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Full text of "Obras de Francisco d'Andrade"

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UNIVERSITY  OF  TORONTO 

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Professor 

Ralph  G.  Stanton 


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LSCliii    ORIO  DABIBLIOTnBCA*PORTUGUEZA 

Rua  Augusta  x^^''  i  ií).       . 


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DE 

illiilIlSDO  DAiDRADE. 


LISBOA. 

Kbcriptorio  daBibliotheca  Portugt 
Rua  Augusta  N.*  110. 

4853. 


TVP06RAPHIA    DK   F.    I.    PINHEIRO. 

Rtia  da  AnrittHciada  N.^  14. 


PROLOGO. 


o 


Poema  de  Francisco  d'' Andrade  —  O  pri- 
meiro Cerco  de  Diu  —  impresso  no  anno  de 
lo<S9,  tem-se  tornado  tâo  raro,  que  juljí;iimos 
prestar  uni  grande  serviço  ás  letras  pátrias  fa- 
zendo delle  uma  segunda  edição. 

O  primeiro  Cerco  de  Diu  iie  o  Poema  que 
mais  se  aproxima,  de  longe  embora,  dos  Lur- 
siadas  ptdu  pureza  e  louçauia  da  linguajem, 
assisado  das  sentenças,  elegância  do  estj'lo,  e 
sonora  fitcilidade  da  versificação. 

Francisco  d''Andrade  seguindo  a  opiniao.de 
que  os  assumptos  nacionaes  devem  ser  tratados 
sem  artificio  em  sua  composição,  não  escreveu 
Imm  Poema  Heróico,  escreveu  hum  Poema 
Histórico. 


IV  PROLOGO. 

O  Poema  está  adornado  com  brilhantes 
episódios,  históricos,  ou  de  invenção,  que 
amenisao  e  variao  o  seu  assumpto.  Taes  são 
por  exemplo  —  o  episodio  em  que  no  2.^  Canto 
se  narrão  os  successos  da  vida  de  João  de  San- 
tiago—  e  outro  de  caracter  differente  em  que 
no  Canto  9.°  se  pinta  o  amor  de  dois  esposos 
Mogores,  querendo  o  marido  sacrificar-se  para 
salvar  a  esposa  á  custa  da  sua  própria  vida, 
pois  que  s6  a  ella,  e  não  a  elle,  se  concede  o 
refíigiar-se  na  fortaleza. 

Também  são  para  notar  as  descripçôes  tanto 
narrativas,  como  pictorescas,  que  se  encontrão 
neste  Poema  —  entre  as  primeiras  tem  bas- 
tante força  de  colorido  a  que  o  Poeta  faz  no 
Canto  17.*^,  de  hum  mancebo  Portuguez,  que 
combate  e  mata  hum  Mouro  entrando  atraz 
delle  pelo  rio  dentro,  com  grande  perigo  de 
sua  vida  —  entre  as  segundas  são  admiravciâ 
a  pintura  da  habitação  de  Eólo,  e  do  cárcere 
dos  Ventos  no  Canto  4.^,  e  a  de  Merizan  no 
momento  de  accommetter  os  Cambaios  com  o 
seu  pequeno  esquadrão  de  Mogores  no  Can- 
to 9.*^  A  pintura  da  Cobiça  debaixo  do  nome 
de  Pluto  no  Canto  12.^  he  adornada  de  muita 
invenção  e  originalidade.  Não  he  menos  bella 
a  pintura  da  casa  do  Somno  no  Canto  16.^ 
Mas  a  que  sobresahe  a  todas  he  a  que  se  le  no 
Canto  4.°  da  Ilha  desconhecida,  aonde  a  Rai- 
nha do  Cambaia  he  conduzida  depois  da  tem- 
pestade, qtie  a  faz  desgarrar  do  rumo  de  Jud4 : 


PROLOGO.  V 

por  ella  verá  p  Leitor  (diz  o  Sr.  José  Maria 
da  Costa  c  Silva  a  pag.  310  do  Vol.  IV  do 
Ensaio  JBiographico-CrUico  sobre  os  Poetas 
Portuguezes)  a  grande  perda  que  será  para  o 
nosso  Parnaso  o  desapparecimento  deste  Poe- 
ma, se  algum  Editor  benemérito  lhe  nao  obs- 
tar, fazendo  delle  nova  edição. 

Recommendamos  a  leitura  do  citado  Ensaio 
Biographico-Critico  a  quem  quizer  ter  noticias 
mais  amplas  não  só  deste  mas  de  todos  os  nos^ 
SOS  Poetas. 

Terminaremos  este  Prologo  com  a  noticia 
da  J^^^icla  e  Obras  de  Francisco  d? Andrade  que 
extrahimos  da  citada  obra  do  Sr.  Costa  e 
Silva  : 

.«Francisco  d'Andrade,  que  figura  distin- 
ctamente  entre  os  nossos  melhores  Épicos  de 
segunda  ordem,  nasceu  na  cidade  de  Lisboa^ 
não  consta  ao  certo  o  anno  do  seu  nascimento, 
posto  que  pareça  verosimil  que  fosso  pelos  an- 
nos  de  1540,  pouco  mais  ou  menos. 

"Foi  filho  de  Francisco  Alvares  d'Andrade, 
fidalgo  da  casa  d^elrei  D.  João  III,  e  de  Iza- 
bel  de  Paiva,  sua  mulher,  e  filha  de  Nuno 
Fernandes  Moreira,  escrivão  da  camará  de 
Lisboa. 

«Francisco  dWndrade  frequentou,  com 
muito  aproveitamento,  os  estudos  de  humani- 
dades, em  que  sahiu  muito  extremado,  gran- 
geando  tal  respeito   por  seu  talento,    e  saber, 


VI  PROLOGO. 

que  faltando  da  vida  presente  o  Guarda-Mór 
cia  Torre  do  Tombo  António  de  Castilho, 
grande  Lit.terato,  e  grande  Poeta,  foi,  sem  o 
requerer,  escolhido  para  o  substituir  naquelle 
logar,  cuja  serventia,  naquelles  tempos,  só  era 
conferida  a  pessoas  de  consummada  litteratura, 

i(  Foi  igualmente  agraciado  com  a  nomeação 
de  Chronista-Mór  do  Reino,  que  muitas  vezes 
se  annexava  ao  emprego  de  Guarda-Mór  da 
Torre  do  Tombo.  No  exercício  destes  logares, 
tão  lucrativos  como  honrosos,  passou  a  vida 
tranquillamente  até  ao  anno  de  1614,  em  que 
falleceu. 

« Francisco  d' Andrade  desde  os  seus  pri- 
meiros annos  cultivou  a  poesia,  que  então  an- 
dava mui  valida  na  corte,  e  estimada  entre 
os  particulares  :  porém  de  todas  as  suas  obras 
poéticas,  que  nos  consta  terem  sido  numerosas, 
apenas  publicou  as  seguintes  :  Instituição  d^El- 
Rei  Nosso  Senhor^  esta  obra  é  uma  traducçao 
em  verso  solto,  ás  vezes  elegante,  de  outra  que 
o  Doutor,  e  Lente  da  Universidade  de  Coim- 
bra Diogo  de  Teive,  havia  composto  com  este 
titulo  «  Kpodon,  sive  lambicorum  carmen,  Li- 
hri  três  51  e  sahiu  á  luz  com  o  original  em  Lis- 
boa, anno  de  1565.  Atraducção  principia  com 
estes  versos : 

Doutas  habitadoras  do  Parnaso, 
Manifestai  agora  aos  bons  Poetas 
O  sagrado  liquor  das  vossas  fontes. 


PROLOGO.  VII 

t»  Apesar  da  louçania,  e  elegância  de  lin- 
guâgeiíi  desta  traducção,  força  e  confessar, 
que  os  versos  peccao  muitas  vezes  por  falta  de 
numero,  e  de  nobreza  '^  este  defeito  lhe  he  com- 
mum  com  todos  os  Poetas  coevos,  que  todos 
parecem  fallar  uma  linguagem  estranha,  quan- 
do se  desajudão  da  ryma  :  antes  da  epocha  da 
Arcádia,  nao  ha  em  Portuguez  versos  soltos, 
que  possão  dizer-se  bons. 

4<  Philomela  de  S.  Boaventura.  Lisboa  1566, 
em  12.0 

M  Esta  obra  principia  assim  : 

Philomela  suave,  que  cantando, 
O  fim  do  breve  Inverno  denuncias, 
E  a  vinda  do  Verão  alegre,  e  brando. 

4<  Esta  poesia  he  muito  superior  á  outra, 
pelos  pensamentos,  pela  expressão,  e  pelo  me- 
tro. Junte-se  a  isto  o  seguinte  Soneto,  em 
louvor  da  Elegiada  de  Luiz  Pereira  Brandão, 
impresso  com  o  mesmo  Poema,  e  teremos  to- 
dos os  Poemas  de  menor  extensão,  que  restSo 
de  Francisco  d'Andrade  : 

SONETO. 

De  lagrimas,  de  mortes,  de  crueza, 
De  sangue,  inda  hoje  fresco  em  Barberia, 
Brandos  versos  fazer,  doce  harmonia, 
GluG  dá  gosto  apesar  da  mor  tristeza  ^ 


VIII  PKOLOGO. 

Maior  espanto  foi,  mor  estranheza,    ; 
Glue  o  que  íingio  de  Orplieo  a  Poesia-,'- 
Q.ue  se  elle  as  cousas  naturaes  movia, 
Estoutro  move  a  mesma  Natureza. 

Esta  estranheza  tal,  que  em  mor  espanto 
O  que  melhor  a  entende  hoje  tem  posto, 
A  ti,  Pereira,  só  foi  concedida. 

Ditoso  aquelle,  a  quem  chegar  teu  canto, 
Q-ue  pois  da  sua  dor  fizeste  gosto. 
Também  de  sua  morte  serás  vida. 

«Mas  que  caminho  levarão  os  seus  outros 
Sonetos,  as  suas  Poesias  Lyricas,  que  não  de- 
vião  ser  em  pequena  quantidade,  visto  que 
estava  então  tanto  em  moda  escrever  neste 
género?  Ficarão  sem  dúvida  em  manuscripto 
sepultadas  nas  livrarias  de  alguns  conventos, 
e  pela  suppressão  delles,  sabe  Deos  o  fim  que 
tiverão. " 


o  PRllIIilIRO 

CERCO  DE  DIU. 


CAMTO  I. 


Declara-se  a  vida  e  cosiumes  de  Sultão  Sau- 
dur^  Rd  de  Cambaia,  O  Governador  Nuno 
da  Cunha  parte  para  a  Cidade  de  Diu. 
Chega  á  Ilha  de  Sete,  e  faz-se  prestes  para 
a  combater. 


J^mpresas  grandes,  casos  perigosos 
Q.u''ao  Ceo  por  si  somente  se  levantao, 
Ânimos  invencíveis,  gloriosos, 
De  que  o  Ganges  e  o  Tejo  hoje  s^espantao  ^ 
Varões  illustres,  altos  e  animosos 
Com  divino  favor  meus  versos  cantão  :j 
Mas  cumpro  que  de  si  m''enclia  elle  o  peito 
Para  que  o  canto  igual  seja  ao  sujeito. 
«  1 


Soccorre  Eterno  Pae,  Senhor  Supremo, 
Porque  eu  em  mar  tão  largo  desatino, 
Ond''hum  naufrai^io  certo  espero  e  teiilo 
Se  me  faltar  o  teji  favor  divino  : 
Nem  m^atrevo  cho<:^ar  a  tanto  estremo 
D''alto  verso,  sem  ti,  que  o  faça  dino 
Daquelles  que  por  ti  com  peitos  fortes 
Derão,  e  receberão  cruéis  mortes. 


Porque  aqui  tal  matéria  s^oíferece 

A  hum  rudo  engenho,  baixo  entendimento, 

Q-u^engenhos  sobrehumanos  bem  merece 

O  sobrehumano  seu  merecimento. 

Porém  SC  a  meu  intento  nao  fallece 

O  que  nunca  faltou  a  hum  bora  intento, 

Heróicos  varões,  eu  direi  tanto 

De  vos,  que  ao  mundo  seja  inveja  e  espanto. 


Filippe  invicto,  a  quem  a  Providencia 
E  o  IDivino  Poder,  hoje  sujeitos 
Os  Lusitanos  fez,  cuja  potencia 
Assaz  mostrarão  ja  seus  grandes  feitos. 
Rendidos  sem  nenhuma  resistência 
Dos  fortes  braços,  nem  dos  leaes  peitos. 
Por  mostra  quo  a  ti  só  foi  concedido 
Render  o  que  antes  nunca  foi  rendido. 


o    PRIMEIRO    CERCO  DE   DIU. 


Vejo  que  ao  teu  poder  juntando  agora 
Felicemente  o  sceptro  Lusitano, 
A  ti  s^inclina,  teme,  e  quasi  adora 
Europico,  Asiático,  Africano. 
Pois  esta  tal  grandeza  eu  sei  que  mora 
NMium  peito  brando,  affavel,  largo,  humano, 
Desça  o  teu  pensamento  agora  Imm  pouco,   ' 
Dé  logar  ao  meu  canto,  inda  que  rouco. 


Verás  os  grandes  feitos  nunca  ouvidos 
Dos  que  se  hoje  a  teu  jugo  sujeitarão, 
Verás  os  braços  fortes,  não  vencidos 
Dos  que  então  largamente  a  pátria  honrarão. 
Verás  que  em  render  peitos  não  rendidos 
Tu  muito,  e  também  muito  elles  ganharão  : 
Ellcs,  pois  coube  a  ti  senhoreallos, 
Tu,  por  seres  senhor  de  taes  vassallos. 

VII. 

Cambaia,  Reino  grande  e  populoso, 
Nas  partes  d^Oriente  situado. 
Em  riquezas  e  em  armas  poderoso, 
Foi  de  SuUão  Baudtir  senhoreado  : 
Príncipe  máo,  cruel,  despiedoso. 
Dos  naturaes  e  estranhos  pouco  amado, 
Antes  sempre  em  maior  ódio  crescia, 
Cousa  assaz  natural  da  tyrannia. 


^  OBBÂS  DK  FRANCISCO  B^ANDRADE. 

VIII. 

Tinha  os  bens  que  a  fortuna  mal  reparte, 
E  o  cego  povo  tèe  por  mor  bonança, 
Tinha  outros  Reinos  mais,  de  que  hua  parte 
Seus  avos  lhe  deixarão  por  herança, 
E  outra  que  com  favor  do  fero  Marte 
Elle  ganhou,  obrando  espada  e  lança, 
Cresce  o  mando  e  poder  cada  momento, 
Mas  também  o  ódio  vai  em  crescimento. 


IX. 

Este  mando  e  poder,  com  que  elle  segue 
Soltamente  os  acenos  da  vontade, 
Fazem  com  que  á  soberba  o  peito  entregue, 
Glue  não  he  nas  grandezas  novidade. 
A  soberba  também  faz  que  s^empregue 
N^hCa  tão  bruta  e  estranha  crueldade, 
Gluc  tudo  o  que  he  humano  de  si  aparta, 
Nem  de  sangue  e  de  mortes  se  vio  farta. 


Se  por  ventura  o  estranho  lhe  faltava 
Que  desta  brutal  fúria  fosse  objeito, 
No  próprio  natural  a  executava 
Sem  a  qualquer  idade  ter  respeito  ^ 
Juntamente  o  que  amava,  e  desamava, 
A  tamanho  furor  era  sujeito ; 
E  quando  isto  também  lhe  fallocia 
No  sangue  fraternal  as  mãos  tingia. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DltT. 
XI. 

O  sexo  feminil,  cuja  fraqueza 

Resiste  inais  que  os  duros  peitos  fortes, 

Nuo  pôde  resistir  a  esta  braveza, 

Q,uc  se  mantinha  so  do  humanas  mortes^ 

Pois  também  fez  sentir  sua  crueza 

Aquelhis,  cujas  duras,  tristes  sortes 

Com  firme  e  conju^^al  nó  lhe  juntarão, 

Que  com  seu  próprio  sangue  desatarão. 


Nem  bastava  privar  das  doces  vidas 
Os  infeliccs  corpos,  não  culpados, 
E  roubar-lhes  as  fazendas  adquiridas 
Ou  por  si,  ou  por  seus  antepassados^ 
Mas  sobre  tudo  ainda  de  fingidas 
Maldades,  os  fazia  ser  notados, 
Porque  ficassem  obras  tão  damnadas 
Co^a  infâmia  dos  mortos  desculpadas. 


Esta  continuação,  esto  exercício, 
Esta  sede  de  sangue,  de  que  fallo, 
O  fez  chegar  a  tanto  neste  vicio, 
Glue  ja  se  não  contenta  de  mandallo  ^ 
Mas  usando  d^algoz  o  baixo  officio, 
Por  suas  próprias  mãos  vai  derramallo, 
Para  que  ao  seu  cruel  e  bruto  intento 
Não  seja  a  dilação  impedimento. 


6  OBRAS   DE   FRANCISCO   D  ANDRADE. 

XIV. 

Com  tal  brutalidade  qual  descobre, 
(Que  he  destruição  do  grande  senhorio) 
Da  fidalguia  o  seu,  e  gente  nobre, 
Em  breve  tempo  fica  assaz  vazio. 
Q-ue  os  nobres  ante  o  povo  baixo  e  pobre 
Se  põem,  para  que  a  Parca  o  subtil  fio 
Nao  corte  a  cada  hum  da  triste  vida, 
GLu'e&te  máo  da  nobreza  he  s6  homicida. 


Estes  espritos  baixos  e  plebeios, 

Glue  tanto  o  nobre  sangue  aborreciao, 

Estes,  dos  reaes  peitos  tao  alheios, 

Juntamente  com  isto  o  constrangiao 

A  que  os  grandes  estados  (de  que  cheios 

Os  seus  Reinos  entào  todos  se  viao) 

Tire  aos  próprios,  e  os  de  a  outros  senhores 

Pouco  de  taes  mercês  merecedores. 

XVI. 

Mas  nao  lhes  consentiu  sua  ventura 

Q.ue  lhes  durasse  hum  bem  tao  mal  ganhado, 

Glue  nunca  o  desta  sorte  foi  de  dura  ^ 

Justo  castigo  lá  do  Ceo  mandado  : 

€luando  os  tristes  cuidavão  que  segura 

A  mercê  tinhão,  a  honra  c  o  grande  estado, 

Junto  co'a  vida  a  honra  lhe  he  tirada, 

E  n'*outros  a  mesma  honra  he  trespassada. 


o   FRIMEIUO   CERCO   DE   DIU. 


Não  se  segue  com  estes  outro  nortje, 
De  tudo  os  privão,  a  outros  s'apres.enta, 
Oâ  quaes  tratados  são  da  mesma  sorte, 
Affugão-se  também   nesta  tormenta  ^ 
A  todos  a  honra  traz  comsigo  a  morte, 
Nenhum  de  húa  honra  tal  se  descontenta 
Da  qual  tèo  prova  cUira  e  descuberta; 
Glue  não  era  honra  ja,  mas  morte  certa. 


Esta  peste  do  mundo,  horrenda  e  fera, 
Q,ue  o  peito  humano  assi  desassocega, 
Esta  inlernal  culnça,  esta  IMcgera, 
Glue  não  poderá  ja  na  gente  cega  ? 
Pois  só  polo  proveito  que  s"* espera. 
Ao  cego  peito  faz  que  se  Ih^entrega, 
Q-ue  acceite  hua  mercê  com  ledo  rosto 
GLue  traz  tristeza  e  morte,  c  nenhum  gosto. 

XIX. 

Este  jugo  cruel,  d''homcm  alheio. 

Com  que  trata  ao  que  he  estranho,  c  o  que  sujeito 

O  poz  em  tal  cuidado,  em  tal  receio, 

Q-ue  se  velava  mais  do  mais  acceito  :; 

O  que  tèe  de  mercês  e  honras  mais  cheio. 

Lhe  vem  dcspois  a  ser  o  mais  suspeito, 

Porque  a  mortífera  honra  e  a  dignidade 

Motivo  he  d'odio,  mais  que  d^amizade. 


8  OBRAS  DE  FRANCISCO  B^ANDRADE. 

XX. 

E  pois  junto  com  a  honra  a  morte  dava, 
Podia  com  rasao  arrecear-se, 
Q.u^em  quanto  elle  a  vital  aura  gozava, 
Nenhum  no  bem  podia  assegurar-se  •, 
Só  depois  d'elle  morto  s' esperava 
Longo  tempo  qualquer  honra  lograr-se  ^ 
Faz-lhe  isto  a  elle  temer  perder  a  vida, 
Faz  aos  seus  desejar  ver-lha  perdida. 

XXI. 

Isto  que  o  máo  Baudur  claro  conhece, 
Em  tal  desassocego  posto  o  tinha, 
Q-ue  alli  onde  lhe  o  sol  desapparece, 
Gluando  entra  na  salgada  onda  marinha, 
Se  não  acha  depois,  quando  obedece 
E  foge  a  noite  á  nova  luz  que  vinha  :j 
Porque  o  peito  cruel  e  arreceoso, 
Julga  todo  o  logar  por  perigoso. 

XXII. 

Nem  somente  do  ferro  temor  sente, 
Q-ue  a  peçonha  também  lhe  dá  cuidado. 
Isto  lhe  faz  banhar  continuamente 
D'humano  sangue,  o  bosque,  o  monte,  o  prado  ^ 
Porque  ante  elle  nenhum  era  innocente 
Q-ue  só  n^hua  suspeita  era  culpado. 
Mas  nem  assi  alcança  o  que  procura, 
Que  nem  com  tantas  mortes  s'assegura. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU. 
XXIII. 

O  comer  sobre  tudo  então  temia 
Q.ue  trouxesse  escondido  o  maior  dano ; 
E  porque  de  ninguém  ja  se  confia, 
Q-ue  tudo  teme  hum  máo,  falso  e  tyrano. 
Por  suas  próprias  mãos  elle  o  fazia, 
Por  ficar  sem  suspeita  deste  engano  ^ 
E  faz  que  n'*hum  sujeito  junto  caia, 
Vil  cozinheiro,  e  Rei  da  graa  Cambaia. 

XXIV. 

Entr"* estes  vicios,  que  este  miserável 
Fraco,  escondia  em  si,  e  immundo  peito, 
ISão  lhe  faltou  aquelle  abominável, 
Que  contra  a  natureza  vai  direito  y 
O  brutal  apetite  insaciável 
Q-ue  tira  á  natureza  o  ser  perfeito, 
Descido  lá  do  eterno,  claro  assento, 
E  de  quem  inda  foge  o  pensamento. 


Em  vez  de  liberal,  virtude  santa, 
Necessária  a  quem  tèe  qualquer  governo, 
Virtude  que  os  mais  baixos  alevanta, 
E  faz  o  nome  escuro,  claro  e  eterno, 
Virtude  de  quem  toda  a  língua  canta. 
Nascida  lá  no  Reino  alto  e  superno, 
Toma  do  insano  pródigo  o  exercício 
Por  ajuntar  aos  outros  este  vicio. 


to         OliRAS    DE   FRANCISCO   D^AKDRADE. 


Traz  esta  inclinação  não  lhe  faltava 
Outra  d''assaz  contraria  natureza, 
Porque  se  d'hua  parte  elle  gastava 
Sem  orilem  quanto  adquire,  e  com  largueza, 
Também  por  outra  parte  tral)alhava 
Adquirir  grão  thesouro,  gràa  riqueza: 
X)estruidí)r  do  seu,  sem  regra  ou  meio, 
Cubiçoíjo  tamb<im  do  que  era  alheio. 


Tinha  cspiritos  a  guerras  inclinados, 
I*orém  nunca  a  batalha  vio  presente, 
Teve  exércitos  grandes  bem  ornados 
De  lustrosa,  esforçada  e  nobre  gente, 
E  d''apparatos  taes  acompanhados 
G-ue  erão  dinos  d''huin  Rei  alto  e  potente. 
Em  que  grandes  thesouros  se  gastarão 
GLue  seus  antepassados  lhe  deixarão. 


De  muitos  foi  julgado  por  bastante 
Para  feitos  d 'espirito  alto,  animoso, 
Porque  soberbo  o  vião,  e  arrogante. 
Amigo  de  louvor,  presumptuoso : 
E  por  cousas  também  que  fez  perante 
Grão  povo,  por  mostrar-se  valoroso, 
GLue  tão  pouco  d'hiim  tal  Rei  erão  dinas, 
tí-u^Tão  iada  do  baixo  povo  indinas. 


o  PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  11 

XXIX. 

Quando  mais  estrangeiros  juntos  via, 

Ou  d^outra  qualquer  gente  as  praças  cheias, 

Sem  attentar  que  as  obras  que  fazia 

Do  seu  real  estado  erão  alheias, 

Sobe  ligeiro  ao  muro  onde  corria 

Com  grão  pressa  por  cima  das  ameias  ^ 

Os  presentes  á  mesma  obra  convida, 

E  julga  por  covarde  o  que  duvida. 


Espcravao-se  delle  grandes  feitos 
Com  estas  e  outras  taes  leviandades. 
As  quaes  podem  lustrar  nos  baixos  peitos, 
Mas  abatem  as  grandes  magostades. 
Estes  erão  os  Reinos,  que  sujeitos 
Fez  ao  seu  jugo,  e  estas  as  Cidades 
ô-u^entrou  com  braço  forte  c  não  domado 
Para  ser  d 'animoso  celebrado. 


O  tempo  que  durou  o  seu  império, 
(Peior  que  o  do  cruel  Ciracnsano) 
O  seu  Reino  sentio  tal  vitupério, 
Taes  infortúnios,  males,  tanto  dano, 
O^ue  em  quanto  alumiar  este  liemisphcrio 
O  Sol,  c  descansar  lá  no  Oceano, 
Durará  nelle  viva  esta  memoria. 
Nem  sei  se  verá  mais  a  antiga  gloria. 


12         OBRAS   DE  FRANCISCO  d'aNDRADE. 
XXXII. 

Muitos  trabalhos  destes  procederão 
Do  tyranno  a  que  então  obedeciao, 
Outros  das  guerras  que  se  lhe  moverão, 
E  que  com  mortal  ódio  o  perseguiao  ^ 
Mas  da  que  os  Portuguezes  lhe  fizerão, 
Com  armadas  que  o  rnar  todo  cobriuo, 
Tão  grave  damno  e  perda  lhe  succede 
Gtue  a  do  Cartaginez  bárbaro  excede. 


O  forte  Portuguez,  a  quem  o  antigo 

Ódio  moveo  para  esta  cruel  guerra, 

Corre  a  fralda  do  mar  do  Reino  imigo, 

Destrue,  queima,  assola,  e  põe  por  terra. 

O  Mouro,  *que  arreceia  este  perigo. 

Nem  se  assegura  cm  monte,  bosque,  ou  serra, 

Entrega  o  peito  pouco  defendido 

Ao  braço  vencedor,  nunca  vencido. 

XXXIV. 

Outros  a  quem  as  duras  tristes  sortes 

Derão  para  seu  mal  ousada  fronte, 

Gluerondo  resistir  a  huns  braços  fortes, 

G.ue  qualquer  defendera  ao  líetrusco  a  ponte, 

Recebendo  primeiro  cruéis  mortes 

So  vão  banhar  no  ardente  Phlegetonte, 

Deixando  aquella  terra  tao  perdida 

Glue  tarde  ha  ja  de  ser  restituída. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  13 

XXXV. 

A  causa  principal  desta  crueza, 

E  que  então  a  esta  guerra  abrio  a  estrada, 

Foi  somente  porque  hua  fortaleza 

D('S  Christãos  fosse  em  Diu  edificada, 

Cidade  que  em  Cambaia  mais  se  presa, 

Entre  todas  famosa  c  celebrada 

GLu antas  lá  no  Oriento  por  visinlio 

O  senhorio  têc  do  Rei  marinho. 

XXXVI. 

Porque  sendo  fortíssima  do  muro, 
Tendo  munií^ões,  gente,  mantimento. 
Bom  varadouro,  e  porto  bem  seguro, 
E  sendo  de  toda  a  índia  a  balravento. 
Entrando  nella  o  Rume  forte  e  duro 
Podia  ao  Portuguez  dar  detrimento. 
Como  ja  n^outro  tempo  se  vio,  quando 
O  nobre  Almeida  teve  da  índia  o  mando. 

XXXVII. 

Isto  soube  aquelle  alto  e  soberano. 

Prudente  Rei,  invicto  e  verdadeiro, 

Gtue  governava  o  povo  Lusitano, 

E  que  era  dos  Joannes  o  Terceiro  ^ 

E  querendo  atalhar  a  tanto  dano. 

Deu  o  mando,  o  poder,  e  o  sceptro  inteiro, 

Do  Reino  Oriental,  .10  animoso 

Nuno  da  Cunha,  nobre  e  venturoso. 


14         OBHAS    de   FRANCISCO  d'aNDRÀDK. 
XXXVIII. 

E  manda-lhe  qne  ponha  a  grão  cuidado 
Em  tomar  esta  força  á  grãa  Cambaia, 
E  que  antes  de  ter  nella  edificado 
Fortaleza,  por  ai  nao  se  distraia. 
Cumpre  o  Governador  o  que  mandado 
Lhe  foi,  em  vendo  d' Oriente  a  praia, 
INIas  antes  de  ver  nella  os  brancos  seixos 
Duas  vezes  se  volve  o  Sol  nos  eixos. 

XXXIX. 

Foi-lhe  causa  de  tao  larga  tardança, 

E  de  chegar  tão  tarde  ao  seu  governo, 

O  mar  tempestuoso  e  sem  bonança, 

E  passar  no  caminho  o  frio  inverno  : 

Mas  sempre  o  desejado  fim  alcança 

tiuem  alcança  favor  do  Rei  eterno, 

Elle  chega,  e  faz  prestes  a  jornada 

Cora  mui  grande  apparato,  e  grossa  armada. 

XL. 

Não  falta  a  munição,  para  o  que  intenta, 
Nem  mantimento,  e  gente  dura  e  forte, 
Gue  da  empresa  maior  mais  se  contenta, 
Nem  lha  fez  duvidar  perigo,  ou  morte  ^ 
Navios  sobre  cento  tem  noventa, 
E  cinco  mais  além  de  toda  sorte. 
Bem  providos  também  de  quanto  entende 
€Lue  lh'era  necessário  ao  que  pretende, 

I 


-       o   PRIMEIRO   CERCO   DE  Dit.  15 

XLI. 

Doiis  mil  e  setecentos  bem  serino 

(Na  Lusitana  torra  ao  mundo  dados) 

Os  que  a  branca  e  vermelha  Cruz  seguiao^ 

De  íbrtc  aço,  c  mais  forte  \sprito  armados", 

Do  Canarins,  e  Malabares  ião 

Otjlros  dous  mil  também  (os  quaes  creados 

Na  mesma  terra  siio)  que  s''embarcavão 

Nos  navios  de  Mouros  que  alli  estavão. 

xm. 

Mas  coroo  tal  grandeza  em  si  continha 

Est\iruiada,  que  o  mar  quasi  cobria, 

K  ja  o  Govornador  eleitos  tinha 

Capitães,  para  o  dar  da  bataria, 

Não  se  pode  encobrir  quanto  convinha 

O  que  este  seu  intento  pretendia, 

Q-ue  o  custoso  atavio,  honrado  e  nobre, 

K  o  alvoroço  geral,  claro  o  descobre.  ^"^ 

XLIII. 

Q.ual  no  longo  estandarte  vai  mostrando 

Quanto  tèe  dVsperança,  ou  arreceio, 

Q.ual  descobre  se  amor  lhe  he  duro  ou  brando, 

Nenhum  sua  tenção  deixa  no  seio. 

A  Melique  Tocão,  que  então  o  mando 

Em  Diu  tinha,  a  nova  disto  veio. 

Tudo  com  diligencia  olha  e  concerta 

Onde  o  temóií  o  avisa,  onde  o  desperta. 


16         OBRAS   DE  rUANCISCO  d'aNDRA.DEw 
XLIV. 

Ajunta  munições,  ajunta  gente, 

E  tudo  o  mais  que  lh'era  necessário 

Para  se  defender  bastantemente 

©""hum  tão  bravo,  e  tão  áspero  adversário. 

Levanta  a  Cliristã  frota  o  lerreo  donte 

Entrando  o  mez  que  o  Sol  leva  ao  Aquário, 

O  rouco  marinheiro  com  grão  tento 

Solta  remos  ao  mar,  vellas  ao  vento. 


Ja  a  delgada,  subtil,  aguda  pron, 
Polas  salgadas  ondas  faz  caminho, 
E  Zéfiro  suave,  e  brando  soa, 
E  fere  brandamente  o  cavo  linho  ^ 
Ja  da  vista  se  perde  a  nobre  Goa, 
Doce,  quieto,  amado,  e  brando  ninho 
D^aquelles  que  no  reino  de  Neptuno 
Acompanhando  vão  o  illustre  Nuno. 

XLVI. 

Cymothoo,  e  as  outras  Nimphas  do  espaçoso 
Mar,  ante  a  armada  vão  por  festeja-la, 
Yão  com  Protco  e  com  seu  gado  escamoso 
Glauco,  Nereo,  Tritão  acompanha-la, 
Tu  também,  linda  Thetis,  co^o  formoso 
Coro  teu  alli  vás,  por  mais  honra-la, 
Obedecem  também  alli  ao  Piloto 
Euro,  Zéfiro,  Boreas,  Austro  ou  Noto. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU,  17 

XLVII. 

Grande  espaço  esta  armada  acompanharão 
Estes  a  quem  venera  a  onda  salgada, 
Mas  tanto  que  lá  nella  mergulharão 
Esta  bonança  logo  foi  mudada  ^ 
Os  ventos  polas  proas  assoprarão, 
Levanta-se  té  ás  nuvens  a  onda  inchada, 
Por  mandado  dos  seus  Reis  furiosos, 
Quiçá  de  tantas  pompas  invejosos. 

XLVIII. 

Esta  imiga  mudança,  impetuosa. 

Com  algumas  escalas  quo  lizerão, 

(Gluo  nada  temo  a  gente  cubiçosa) 

Esta  viagem  tanto  entreti verão, 

Gluc  quasi  todo  o  mez  que  da  invernosa 

Sazão  no  meio  está,  se  detivcrão 

As  náos,  cm  ir  a  hua  ilha,  que  está  sete 

Legoas  de  Diu,  e  têe  por  nome  Bete, 

XLIX. 

Tao  conhecida  foi  depois  o  clara 

Q-uanto  era  antes  pequena,  e  ignota  esta  ilha, 

Porque  o  seu  capitão  e  gente  rara 

A  fez  no  nmndo  hua  alta  maravilha. 

Aqui  a  aííadigada  armada  pára. 

Q-ual  o  molhado  remo  ja  fcrrilha, 

Q-ual  iça  a  entena,  qual  a  vella  colhe, 

Q-ual  faz  que  o  mar  o  curvo  ferro  molhe. 


i8      OBHAS  BE  FRANCISCO  d'andradí:, 


Hum  Capitão  nest^ilha  residia 

Glue  d^KlRei  de  Cambaia  foi  mandado, 

Est''cra  de  nação  Turco,  e  a  regia 

Com  esforço,  prudência,  e  grão  cuidado  ^ 

De  quasi  dous  mil  homens  estaria 

De  diversas  nações  acompanhado, 

Ja  com  temor  da  Portugueza  armada 

Glue  no  liquido  Reino  abria  a  estrada. 


ti. 

No  mais  alto  desta  ilha  se  mostrava 

Hum  plano,  a  que  não  toca  bosque,  ou  serra, 

Húa  povoação  quasi  occupava, 

A  qual  hum  baixo  muro  cerca  e  cerra. 

O  Cunha  ao  Capitão  que  a  governava 

Manda  que  entregue  a  gente,  e  a  mesma  terra, 

Senão  que  a  verá  logo  combatida. 

Onde  nuo  ficará  nenhum  com  a  vida. 


O  Capitão,  a  quem  nem  copia  tanta 
De  náos,  nem  hum  exercito  lustroso, 
A  fé,  nem  o  valor  move,  ou  quebranta, 
Ousado  lhe  responde  e  valoroso: 
G.ue  d^hum  Principe  tal,  muito  s'espanta 
Tão  esforçado,  nobre,  e  poderoso. 
Mandar  a  Capitão,  inda  que  alheio, 
Glue  faça  hum  feito  tal,  tão  torpe  e  feio. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  i9 


Q-ual  era  com  temor  da  imiga  lança, 

Por  mais  morto  que  traga,  ou  crueldade, 

Entregar  a  bandeira  e  a  confiança 

De  seu  Rei,  a  quem  deve  lealdade  -^ 

Mas  que  elle  ainda  ate  então  tinha  esperança, 

Vendo  sua  nobreza,  e  dignidade, 

Q,u''elle  grande  louvor  e  favor  desse 

A  quem  a  fé  devida  raantiv^se. 


Rias  vendo  o  seu  poder  grande,  e  temido, 
Se  irá,  deix.ando-lhe  a  ilha  despejada, 
Crendo  ser  o  seu  Rei  disso  servido, 
E  á  terra  firme  irá  fazer  morada. 
Armas  quer,  e  as  fazendas  por  partido, 
E  a  fortaleza  só  lhe  será  dada, 
A  qual  devia  ser  o  movimento 
E  a  causa  principal  de  seu  intento. 


Este  partido  então  não  foi  acceito 
Porque  o  Governador  tomar  pretende 
A  gente,  e  o  metal  cavo,  a  que  sujeito 
Está  tudo,  e  que  tudo  assola  e  accende  ^ 
Por  ventura  cuidou  que  deste  eíFeito 
O  successo  de  Diu  quasi  pende. 
Manda-lhes  outra  vez,  que  ou  se  rendao, 
Ou  em  tornando  o  Sol  se  lhe  defendao. 


20        OBRAS  DE  FRANCISCO  D^ANDRÀDB. 
LVI. 

Temor  de  tal  resposta  não  concebe 
O  valoroso  Turco,  rjue  a  honra  preza, 
Glue  o  magnânimo  esprito  antes  recebe 
A  morte,  que  mostrar  qualquer  fraqueza. 
Ja  para  defendcr-se  s^apercebe, 
Prove  do  necessário  a  fortaleza, 
Q.ue  mostrar  covardia  lhe  hc  mais  forte 
Q-ue  passar  por  cruel  e  dura  morte. 

LVII. 

Mas  por  níío  deixar  meio,  que  tentado 
Não  fosse,  por  salvar  a  sua  gente, 
Manda  ao  Governador  outro  recado 
Pedindo-lhe  que  veja  bom,  e  attcnte, 
Glue  pois  a  Diu  vai  encaminhado, 
Digna  empreza  d'hnm  animo  exccUente, 
Níio  queira  em  tão  vil  cousa  embaraçar-se 
Pois  nada  têe  que  possa  dcsejar-se. 


Porque  daqnlllo  que  elle  pretendia 
Outro  iionhum  proveito  elle  alli  tirava 
Senão  quebrar  o  espirito,  a  nfania, 
Aos  que  para  Iium  gião  feito  então  levava  ^ 
E  em  perigo  tand)em  quiçá  os  poria, 
Porque  elle  co\)s  que  têe  determinava, 
Com  tanta  resistência  defender-se, 
Gt-ue  só  á  morte  havia  de  rendcr-se. 


o    rniMEIRO   CERCO  DE  DIU,  21 


LIX. 

Está  immobil  o  Cunha,  e  do  adversário 
Engeita  este  conselho,  que  atraz  digo, 
Também  dizem  que  nisto  por  contrario 
Teve,  todo  o  que  lhe  era  intimo  amigo, 
Q-ue  lhe  diz  que  deixar  lhe  he  necessário 
Hum  feito,  de  que  espora  hum  griío  perigo, 
E  proveito  nenhum  do  que  pretendo. 
Porém  nenhum  conselho  ao  Cunha  rende. 


Vendo  o  Turco  hum  tao  claro  desengane, 
E  a  esperança  de  todo  ja  perdida 
De  poder  evitar  tão  grave  dan(í, 
E  a  si,  e  aos  seus  salvar  com  honra  a  vida, 
Vencido  d''hum  esforço  mais  que  humano, 
E  d"'huma  opinião  nunca  vencida, 
Imagina  hum  estranho  raro  feito 
Q-u^a  desesperação  lh''accende  o  peito. 

LXI. 

E  para  effeituar  aquelle  intenta 
Heróico,  leal,  illustre  e  nobre, 
Cuja  fama  voando  ao  claro  assento 
A  dos  mais  raros  feitos  hoje  encobre. 
Faz  de  todos  os  seus  ajuntamento, 
O  que  tèe  assentado  lhe  descobre, 
iNIas  para  dar  mais  força  a  isto  que  trata 
Peraut''elles  a  lin2;oa  assi  desata : 


22        OBRAS   DE  FRANCISCO   dVnDRADE* 
LXII. 

Companheiros  lieis,  caros  amigos, 
Porque  eu  tenho  ja  bem  exprimentados 
Os  fortes  braços  e  ânimos  antigos 
De  que  sempre  vos  \i  acompanhados, 
Com  que  ja  despresastes  mil  perigos, 
Por  onde  sois  no  mundo  celebrados, 
Q-uiz  de  meu  pensamento  dar-lhe  conta, 
Porque  o  forte  antes  quer  morte  que  aílronta. 


O  que  nisto  me  faz  mais  atrevido, 
E  que  a  fallar  connosco  mais  nTinflama, 
He  cuidar  que  tereis  ja  bem  sabido 
€luanto  est^alma  vos  quer,  e  vossa  honra  ama  •, 
Pois  de  tudo  em  que  fui  de  vós  seguido 
Tirastes  sempre  gloria,  nome  e  fama,  C 

Dá-me  isto  hua  esperança  certa  e  firme 
Q.u'agora  querereis  também  seguir-me. 

I.XIT. 

Bem  vedes  que  tentei  todos  os  meios 
Gtuanios  a  honra  tentar  me  concedia 
Para  abrandar  aquelles  peitos  cheios 
De  presumpção,  soberba,  e  d^ousadia  ; 
E  sempre  os  tenho  achado  mui  alheios 
Do  que  eu,  e  a  rasao  mesma  lhe  pedia, 
Parece  que  a  vós  querem,  não  a  terra, 
E  que  vós  sois  o  fim  da  sua  guerra. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU,  23 

LXV. 

Pois,  qual  ha  de  vós  outros  tao  amigo 
D^hua  \ida  tão  vil,  tao  vergonhosa, 
Que  queira  antes  soíírer  o  jugo  iniigo 
D"'hua  gente  cruel,  despiedosa, 
Q-ue  passar  por  qualquer  grande  perigo, 
Por  hua  morte  honrada  e  gloriosa, 
Q.u''ao  mundo  vos  fará  tão  conhecidos 
Quanto  o  jugo  vis,  baixos,  e  abatidos  ! 


E  pois  qualquer  á  morte  está  sujeito, 

Nem  a  escusa,  por  mais  que  tarde  venha, 

Assaz  deve  á  ventura  o  forte  peito 

Gluando  quer  que  com  honra  e  nome  a  tenlia  ^ 

O  fraco,  o  para  pouco,  o  sem  proveito, 

A  vida  com  deshonra  só  sustenha. 

Nós  de  quem  a  honra  he  mais  que  a  vida  amada 

Vida  assaz  nos  será  a  morte  honrada. 


Porém  ja  que  nós  outros  alcancomois 
Tal  honra,  fama,  gloria  e  lib«^rd;ide, 
Rasão  não  me  parece  que  deixemos 
Em  deshonrado  jugo,  e  crueldade, 
Os  pães,  as  mães,  e  os  filhos  que  aqui  temos. 
Pois  he  contra  direito  e  humanidade 
Q-ue  mouramos  nós  livres  e  com  honra, 
E  elles  vivao,  captivos,  e  em  deshonra. 


24        OBRAS  DE  FRANCISCO  d' ANDRADE. 


Possa  aqui  a  honra  mais  que  o  amor  paterno, 

Demos  a  morte  a  todos  cruelmente, 

Porque  será  para  elles  gosto  eterno 

Não  ver  que  no-la  dá  a  iniiga  gente, 

E  logo  lá  no  claro  e  sempiterno 

Reino,  os  iremos  ver  mais  livremente, 

E  nos  abraçaremos  sem  receio 

De  morte,  nem  deslionra,  ou  jugo  allicio. 

iXIX. 

Então  vos  darão  graças,  pois  honrastes 

A  pátria,  e  a  vos,  com  vossa  honrada  morte, 

E  porque  a  vista  delia  lhes  tirastes, 

E  os  fizestes  subir  a  mellior  sorte  : 

Sede  agora  o  que  sempre  costumastes, 

Mostrai  o  vosso  braço  e  peito  forte, 

Sinta  aquella  cruel  gente  homecida 

Gluão  caro  damos  sempre  o  sangue  c  a  vida. 


Todos  nisto  lhe  dito  consentimento, 

E  nenhum  delles  ha  que  o  contradiga, 

Correndo  logo  vão  sem  nenhum  tento 

Buscando  cada  hum  a  casa  antiga  \ 

Ja  o  consumidor  roxo  elemento 

Té  o  Ceo  levanta  a  chanmia  imiga, 

Entra  em  casa  o  soldado  deshumano. 

Com  furor  mais  que  imigo,  mais  que  insano. 


o   PRIMEIRO   CERCO  DE  DIU.  25 


Esconde  no  materno  ventre  a  espada 
Em  que  elle  andou  também  ja  escondido, 
Não  detém  as  paternas  caas  a  irada 
Mão  do  filho  cruel,  embravecido. 
O  crueldade  estranha  nunca  usada, 
Feito  da  natureza  aborrecido, 
Ja  Phalaris  cruel,  ja  o  cruel  Nero 
Pode  ant^estes  perder  o  nome  de  fero. 


Cahe  debaixo  do  triste  ferro  duro 

A  cara  companheira  desditosa, 

O  tenro  filho  alli  não  he  seguro 

Gtue  também  sente  a  espada  rigorosa  ; 

Banlia-se  alli  com  sangue  quente  e  puro 

O  branco  lirio,  e  a  purpúrea  rosa, 

Do  bello  rosto  em  torno,  ao  qual  voava 

Amor,  e  a  sua  aljava  despejava. 


Nunca  em  fera,  cruel,  dura  batalha, 
Lá  onde  ódio  c  furor  os  braços  manda 
Contra  o  imigo  a  que  cobre  arnez  e  malha 
Tanto  sangue  houve  d''hua  e  d'outra  banda, 
Gluanto  dos  naturaes  aqui  s** espalha  ^ 
Por  toda  a  parte  a  morte  cruel  anda, 
Os  montes  gemem,  o  ar  chora  e  suspira. 
Só  nos  humanos  peitos  dura  esta  ira. 


26         OBRAS   »E  FRANCISCO  I)'aNDRADE, 
LXXIV. 

Vê-se  por  hua  parte  grãa  revolta, 
Lagrimas,  rogos,  dôr,  e  grandes  gritos ! 
Por  outra  a  terra  toda  estar  envolta 
Em  sangue,  e  corpos  mortos  infinitos! 
A  carne  em  fim  de  todo  de  si  solta 
Os  infelizes,  misoros  espritos, 
Glue  lá  polo  ar  se  queixao  descontentes 
Dos  seus  antes  imigos  que  parentes. 


Dentro  naquella  noite,  aquella  terra 
Despejada  ficou  de  toda  a  gente 
ôu^era  fraca,  ou  in hábil  para  a  guerra, 
Para  os  trabalhos  mal  suífi ciente  : 
J^agora  dentro  nella  não  s''encerra 
Senão  somente  aquella  a  quem  consente 
A  idade,  ou  ja  nao  tenra,  ou  nao  gastada 
No  peito  o  duro  arnez,  no  lado  a  espada. 


Estes,  de  tnnto  mal  nao  satisfeitos, 
Tudo  quanto  mais  tinhào  ajuntarão. 
Sem  ficar  alli  mais  que  armados  peitos, 
E  áquellas  bravas  chammas  o  entregarão  : 
Virão-se  em  breve  espaço  alli  desfeitos 
Os  bens  de  cada  hum,  e  só  deixarão 
Para  despojo  dos  Christãos  soldados. 
Armas,  e  corações  desesperados. 


o   PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  27 

LX.XV1I. 

Não  houve  então  nenhum  tao  pouco  forte 
Entre  aquella  infiel  gente  perdida, 
Q-ue  temendo  a  futura,  certa  morte, 
Gtiie  tinhão  ja  bem  clara,  e  conhecida, 
Ou  com  desejo  d^outra  melhor  sorte, 
E  conservar  mais  longo  tempo  a  vida, 
A  Portugucza  gente  se  viesse, 
E  do  que  lá  passava  novas  desse. 

LXXVIII. 

Porém  ella,  que  ja  se  apparolhava 

Para  o  que  em  vindo  o  Sol  fazer  pretende, 

Inda  que  este  recado  lhe  faltava. 

Vendo  o  fogo  que  lá  na  ilha  se  accende, 

E  tal  que  a  terra,  e  o  mar  todo  assombrava, 

O  que  podia  ser  bem  claro  entende, 

Vista  a  nobre  resposta,  forte  e  rara 

Q.ue  o  Turco  Capitão  antes  mandara. 

LXXIX. 

Tal  determinação,  e  tal  braveza, 
Faz  o  Governador  mais  animoso, 
E  logo  ordena  alli  com  grãa  presteza, 
Glue  commetta  o  prudente,  e  valeroso, 
•  Com  gente  pola  porta,  a  fortaleza. 
Grande  Heitor  da  Silveira,  que  famoso 
Tanto  pudera  ser,  quanto  o  Troiano, 
Se  tivera  outro  Homero,  ou  Mantuano. 


28         OBRAS   DE  FRANCISCO   D^ANDRADE. 
XXKX. 

E  porque  alli  nao  vai  engenho  ou  manha, 
Mandou  outros  fidalgos  que  alli  havia 
Cujo  sangue  en nobrece  a  nossa  Hespanha, 
Diogo  da  Silveira,  e  o  Sá  Garcia, 
Dom  António  Silveira,  e  mais  Saldanha, 
E  outros  alguns,  com  gente  em  companhia, 
Glue  por  outros  logares  alli  estejão, 
Porque  mais  facilmente  entrados  sejão. 

LXXXI. 

Antes  que  polo  cume  d^alta  serra 
S'estendesse  o  dourado  raio  puro, 
Com  que  a  nocturna  sombra  se  desterra 
G-ue  fazia  o  claro  ar  sombrio  e  escuro. 
Desembarcou  a  gente  toda  em  terra, 
E  commetteo  com  fúria  o  imigo  muro, 
Onde  todos  então  fizerao  quanto 
Contar-vos  determino  no  outro  Canto. 


o  PRIMEIRO 

CERCO  DE  DIU. 


CAMT©  II. 


Tonia-se  a  Ilha  de  Bete.  O  Crovernador  com- 
bate a  Cidade  de  Diu^  e  se  recolhe  a  Chaul. 
Manda  húa  armada  que  vã  fazer  guerra  d 
costa  de  Cambaia.  Sultão  Baudur  pede  pa- 
zes^ vai  Simão  Ferreira  a  assenta-las.  Ue- 
clara-se  a  vida  de  João  de  Santiago, 


N 


unca  vi  siicceder  prospero  effeito 
Lá  onde  a  obstinação  movco  o  escudo, 
Porque  o  saber  humano  hc  imperfeito, 
Nem  pode  Jium  por  si  só  ;dcaiiçar  tudo. 
Foge  a  fortuna  ao  obstinado  peito, 
Traz  o  conselho  vai  com  grande  estudo, 
E  deste  perde  ás  vezes  o  cuidado, 
ô/uanto  mais  do  teimoso  e  do  obstinado. 


30         OBRAS    DE  FRANCISCO   d'aNDRADE. 

Pode-se  ver  hum  claro  desengano 
Em  Terêncio  Varrao  disto  que  digo 
Bem  á  custa  do  seu  sangue  Romano, 
E  com  que  pôz  o  Império  em  grão  perigo 
No  qual  aquelle  bárbaro  Africano 
Daquella  vez  fartou  seu  ódio  antigo, 
Emilio  o  diga,  e  as  mais  vidas  Romanas, 
Tu  também  o  dirás,  funesta  Cannas. 


O  Lusitano  Heitor,  á  porta  imiga 
Chega,  com  férrea  luz  resplandecente, 
Não  ha  nenhum  dos  seus  que  não  o  siga, 
E  também  que  não  commetta  ousadamente 
Trava- se  alli  cruel  e  dura  briga. 
Porque  a  força  maior  da  imiga  gente 
Posta  em  hum  esquadrão  naquella  parte 
Do  forte  Capitão  segue  o  estandarte. 


Hum  por  subir  então  no  baixo  muro, 
E  por  romper  a  porta  outro  trabalha, 
Faz  isto  não  haver  logar  seguro, 
Mas  perigosa  cm  todos  a  batalha. 
O  fortuna  cruel,  o  fado  duro, 
G-uem  ha  que  contra  ti  resista  ou  valha? 
Guarda-te,  forte  Heitor,  muda  esse  posto, 
Porque  em  mortal  perigo  ahi  estás  posto. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU. 


31 


Mas  quem  ha  hi  que  nao  esteja  preso 
Do  que  manda  o  que  o  Ceo  alto  governa? 
Desce  hum  raio  de  chumbo  em  fogo  acceso  ' 
Lá  da  parte  do  muro  mais  superna  ^ 
Nao  detém  o  forte  aço  o  subtil  peso, 
Ao  valeroso  Heitor  passa  hua  perna, 
Cahe  o  corpo  mortal,  que  a  morte  o  chaina, 
Mas  triumpha  da  morte  a  eterna  fama. 


Mas  antes  no  salgado  senhorio 

Três  vezes  cscondeo  o  Sol  seu  lume, 

Q-ue  cortasse  o  subtil  honrado  fio 

A  Parca,  que  as  mortaes  vidas  consume  : 

Aposentão  na  terra  o  corpo  frio, 

A  alma  sobe  lá  ao  claro  eterno  cume, 

Com  grãa  perda  da  gente  Lusitana, 

De  que  o  salgado  humor  em  cópia  mana, 

VII. 

E  feita  mais  feroz,  e  mais  accesa, 

Co\a  grave  dôr  que  lá  n'alma  a  lastima, 

Rompe  a  porta,  dá  fim  á  dura  empresa, 

Por  mais  que  lh'o  defendem  lá  de  cima. 

Porém  acha  no  Mouro  graa  defesa, 

Q-ue  também  a  honra  mais  que  a  vida  estima, 

Porque  qualquer  parece  hum  novo  Marte 

Em  quanto  os  não  entrarão  d'outra  parte. 


VIII. 

Porém  depois  d''entraclos  nao  se  rendem, 
Nem  de  fraquczèt  mostriío  apparencia, 
Em  quanto  dura  a  força  se  defendem, 
E  vão  buscar  a  niurle  a  competência  : 
Os  mais  delles  enifiiu   mortos  sVstendem, 
Q-ue  nao  lhes  vai  noidiuma  resistência, 
E  o  mesmo  logar  mortos  occupávão 
Gtue  para  defender  vivos  lomárao. 

IX. 

A  todo  o  que  escapou  das  mãos  dos  nossos 
(Os  melhores  dos  sous  ja  mortos  vendo) 
Lá  polo  mais  intrinseco  dos  ossos 
Lhe  foi  hum  temor  frio  discorrendo ; 
E  para  se  salvar  dos  fortes,  grossos 
Esquadrões  Lusitanos,  recolhendo 
Se  vai,  qual  por  cisterna  húmida  c  fria, 
Q.ual  por  furna,  ou  por  cova  alta  e  sombria. 


Hum  a  que  entre  huas  pedras  tinha  dado 
De  salvar-se,  o  temor  grande  esperança. 
Por  hum  de  seus  imigos  foi  acliado, 
G,ue  o  fez  sahir  á  sanguinosa  dança  : 
Acena  logo  o  Mouro  co''o  terçado, 
B^tende  o  Portuguez  a  tesa  lança, 
O  ferro  por  diante  nelle  encobre, 
Gtue  por  detraz  vermelho  se  descobre. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU,  33 

XI. 

O  Mouro,  cuja  fama  agora  voa 

Lá  pola  região  clara  e  superna, 

E  co'o  metal  sonoro  o  mundo  atroa, 

Pola  fazer  ao  mundo  sempiterna, 

Pola  lança  passado,  assi  se  coa, 

Ao  imigo  cruel  corta  hua  perna. 

Juntamente  na  terra  ambos  s'estendem, 

Juntamente  os  espritos  ambos  se  rendem, 

XII. 

De  meus  versos  cantado  eternamente 

Foras,  illustre  Mouro,  se  meu  canto 

Nao  tivera  outro  objecto  aqui  presente, 

De  que  eu  m'ensoberbcço  e  me  honro  tanto  ^ 

Q-ue  com  imagi-nar  nello  somente 

Até  ás  claras  estrellas  m^alevanto, 

Mas  a  falta  da  minha,  ou  d'outra  historia, 

Não  poderá  tirar-te  a  tua  gloria. 

XIII. 

Alguns  a  quem  o  esforço  ainda  nao  falta, 
Por  fugirem  do  jugo  Lusitano, 
Q-ual  o  ferido  cervo  corre  e  salta 
A  buscar  o  remédio  do  seu  dano. 
Sobem  logo  na  rocha  que  he  mais  alta, 
E  se  vão  abraçar  co^o  largo  Oceano, 
Onde  chegando  ja  despedaçados. 
Entre  os  peixes  ficarão  sepultados. 


34        OBRAS  DE  FRANCISCO   d'aNDRADE, 
XIV. 

Os  Christãos  a  triste  ilha  enifiríi  tomarão, 

Cessa  logo  o  furor,  mitiga-se  a  ira, 

S6  dous  ou  três  captivos  nella  acharão, 

E  as  cinzas  do  que  o  fogo  consumira^ 

O  seu  primeiro  nome  lhe  mudarão 

Os  mortos,  que  ella  em  vão  chora  e  suspira, 

E  de  si  lhe  pozerão  o  segundo, 

Co^o  qual  ho  conhecida  hoje  no  mundo. 


Este  tão  triste  fim,  tão  lastimoso, 
Do  que  tão  fácil  antes  se  cuidava. 
Mostrou  então  quanto  era  proveitoso 
O  conselho  que  o  Turco  antes  lhe  dava 
Porque  o  povo,  de  si  pouco  animoso, 
O  alvoroço  perdeo,  que  antes  levava, 
E  do  animoso  Heitor  que  tanto  estima 
O  entristeceu  grãa  falta,  e  o  desanima. 

XVI. 

E  dq  tão  poucos  vendo  a  valentia, 
E  d^hum  logar  tão  fraco  defendida, 
Julgavão  que  espera r-se  então  podia 
Daquella  forte  Diu,  tão  provida 
De  nobre  gente  c  grossa  artilharia, 
Tão  famosa  no  mundo,  e  tão  temida, 
E  sempre  vencedora,  costumada 
Mil  vezes  a  sentir  a  imiga  espada. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE    DIU, 


Tanto  que  no  outro  dia  Phebo  veio 
Banhar-se  na  de  Bete  triste  praia, 
Parte  o  Governador  sem  ter  receio, 
Porque  com  tantas  mortes  não  desmaia. 
Vè-se  o  mar  de  navios  quasi  cheio, 
Revolvc-o  a  chumbada  longa  faia, 
Kstendc  o  nu  remeiro  os  duros  braços 
Encolhe-os  logo  com  iguaes  espaços. 


E  cinco  dias  antes  que  o  dourado 
Planeta  visitasse  aquelle  sino 
Que  no  salgado  Reino  foi  gerado 
E  no  Ceo  tem  assento  alto  e  divino, 
Surge  o  Governador,  acompanhado 
Do  seu  nobre  apparato,  delle  dino, 
Meia  kgua  daquella  forte  e  brava 
Cidade,  para  onde  elle  navegava. 


E  vendo-se  onde  ja  desejou  tanto, 
Nào  se  quer  mais  deter  hum  só  raomentoj 
Logo  com  diligencia  ordena  quanto 
\e  que  lhe  he  necessário  a  seu  intento. 
Mas  porém  antes  que  entre  este  meu  canto   • 
No  combate  cruel,  sanguinolento,  >'■  l 

lihe  parece  rasão  que  hum  pouco  trale 
Do  modo  e  dos  legares  do  combate. 


36        OBEAS  DE  FRANCISCO  d'aNDRADE. 
XX, 

Foi  o  principio  então  deste  apparato 
Pôrem-se  três  bateis  em  ordenança, 
L<evava  o  primeiro  hum  Espalliafato, 
G;u'a  morte  envolta  cm  fogo  de  si  lança, 
O  segundo  Jiura  Leão,  que  em  desbarato 
Põe  tudo,  quanto  sua  fúria  alcança, 
O  terceiro  outra  peça  desta  sorte. 
Cruel,  ruinadora,  grossa  e  forte. 

XXT. 

De  mantas  e  arrombadas  vai  por  cima 
Coberto  cida  lium,  quanto  convinha. 
Vai  por  Capitão  de  hum  o  forte  Lima, 
O  qual  Dom  Vasco  então  por  nome  tinha, 
De  grão  preço,  valor,  de  grande  estima, 
A  quem  perigo  ou  morte  não  detinha, 
E  dos  que  no  batel  leva  comsigo 
Glual  era  seu  parente,  qual  amigo. 

XXII. 

Leva  hum  negro  estandarte,  que  em  pintura 

Mostra  a  triste  visão  que  a  derradeira 

Hora  espantosa  traz  á  creatura 

A  que  o  peccado  fez  da  morte  herdeira  ^ 

Ja  com  esta  pintada  e  vãa  figura, 

Profetisando  a  sua  verdadeira, 

A  qual  era  tão  triste  e  tão  medonha 

Glue  não  ha  quem  os  olhos  nella  ponha. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  37 


Aquelle  exprimentado  cavalleiro 
Jorge  de  Lima  vai  aquelle  dia 
No  segundo  batel,  a  quem  primeiro 
Ninguém  no  esforço  foi,  e  na  ousadia. 
Levava  Tristão  Homem  o  terceiro, 
Cujo  animoso  esprito  e  valentia 
Era  huma  verdadeira  testemunha 
Gtue  lhe  convinha  assaz  a  sua  alcunha. 

XXIV. 

Estes  grandes  bateis  (que  de  tal  arte 
Apparelhados  vão  para  este  feito, 
Q-ue  pudérão  fazer  em  toda  a  parte 
Tremer  a  barba  ao  mais  ousado  peito) 
Havião  de  bater  o  baluarte 
Glue  da  parte  do  mar  estava  feito, 
E  roto  com  poder  do  ferro  e  fogo. 
Se  havião  de  chegar  para  elle  logo. 

XXV. 

Hua  cadeia  neste  muro  afferra, 
Desse  duro  metal  que  dá  Biscaia, 
Glue  chega  aos  baluartes  lá  da  terra, 
E  nega  ao  mareante  que  entre  ou  saia, 
Porque  do  rio  a  livre  entrada  cerra : 
Mas  chegando  os  bateis  á  sua  praia 
Hão  de  largar-lha,  para  que  entre  e  acuda 
A  nossa  armada,  e  possa  dar-lhe  ajuda. 


38         OBHA8   DE   FRANCISCO    D** ANDRADE. 


Está  o  Silveira  então  nobre  e  esforçado 
Glue  o  nome  têe  do  Santo  Lusitano 
ô.ue  na  grande  Lisboa  foi  gcM-ado, 
E  morto  inda  bonra  o  povo  Paduano, 
Algum  tanto  dos  muros  affistado 
Para  se  segurar  de  todo  o  dano 
Q-ue  podia  fazer-lhe  a  artilharia, 
Com  trinta  embarcações  em  companhia. 

XXVII. 

o  grão  Cunha,  de  quem  esta  ordem  pende, 
Nem  deixou  de  fazer  tudo  o  que  lh"'era 
Necessário  para  isto  que  pretende, 
E  que  era  a  causa  só  que  alli  o  trouxera  : 
Lá  sobre  o  baluarte  que  defende 
A  barra,  três  navios  pôr  fizera, 
€tue  com  força  do  grosso  bronzo  cavo 
Hum  combate  lhe  dê,  áspero  e  bravo. 

XXVIII. 

N'hum,  que  era  hua  gale  grande  e  bastarda, 
Vai  Francisco  de  Sá  senhoreando, 
N'outro,  que  era  galé  real,  he  guarda 
Nuno  Fernandes  Freire,  e  tèe  o  mando  ^ 
Nada  António  de  Sá  traz  estes  tarda 
Gtue  hua  grande  albetoça  vai  mandando, 
Todos  três  valerosos  e  esforçados, 
Todos  por  suas  obras  sinalados. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  39 


SoLre  outro  baluarte  (a  qnem  Diogo 

Lopes,  que  de  Sequeira  ièi  a  alcunha, 

Deu  o  nome  depois)  ordena  logo 

Brra  nove  embarcações  o  nobre  Cunha, 

Q.ue  co^o  pó  salitrado  envolto  em  fogo 

Lhe  dem  hum  grào  combate,  e  nellas  punha 

Seis  Basiliscos,  onde  habita  a  morte, 

E  outros  grossos  canhões  de  toda  sorte. 


Manoel  d** Albuquerque  alli  apparece 
l\)r  Capitão  om  hua  galeaça. 
Em  nada  hua  galé  desobedece 
Q.uanto  Jorge  Cabral  manda  que  faça. 
A  Manoel  de  Sousa  outra  obedece 
Quando  manda,  castiga,  ou  ameaça. 
Outra  faz  quanto  manda  em  toda  a  parte 
Martim  AfTousu  de  Mello  Jusartc. 


Nunca  nestes  entrou  algum  desmaio, 
Nem  a  morte  diante  caiisou  medo, 
Vasconcellos  Francisco  (se  bem  caio) 
N'*outra  galé  têo  mando  firme  e  quedo, 
N^hum  batel  Vasco  Pires  de  Sampaio, 
N''outro  mandava  Henrique  de  Macedo, 
N 'outro  Martim  de  Freitas  senhor  anda, 
Miguel  Carvalho  hua  albetoç^a  manda. 


40         OBRAS  OE  VRANCISCO  D*ANDRADK. 


Gtualqiier  destes  também  com  signaladas 
Obras,  ganhado  fama  por  si  tinha, 
Q.u'erão  com  grande  nome  celebradas, 
Nem  o  invejoso  nellas  se  detinha. 
Os  bateis  levão  todos  arrombadas, 
E  tudo  o  mais  então,  quanto  convinha 
Para  bem  sen,  e  damno  do  contrario, 
Como  a  cada  lium  era  necessário. 


XXXIII. 

Mandou-se  a  muita  parte  da  outra  armada 
Qu\'m  outras  partes  faça  outra  contenda, 
E  aquella  ardente  fúria  arrebatada, 
A  quem  força  não  ha  que  se  defenda, 
Que  o  Ceo  atroa,  os  muros  torna  em  nada, 
Sem  Inim  ponto  cessar  nellas  despenda, 
Porque  estando  os  imigos  divididos 
Possào  mais  facilmente  ser  vencidos. 

XXXIV. 

Em  quanto  em  se  ordenar  põe  tal  cuidado 
O  Portuguoz  mais  forte  que  manhoso, 
O  Mouro  não  estava  repousado, 
Porque  nunca  o  temor  foi  ocioso  : 
Tambom  lança  de  si  ferro  coado 
O  canhão  inimigo  e  furioso, 
E  caminhar  com  tal  fúria  o  constrange, 
Q-ue  a  frota  (inda  que  longe)  bem  abrange. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE  DIU.  41 


Ja  jSIelique  Tocao,  senhor  da  terra, 
Antes  (como  vos  ja  disse)  sabia 
D«'ste  grande  apparato,  desta  guerra, 
Gue  diante  de  si  agora  via  : 
Também  diz-se  que  dentro  logo  encerra 
Munições,  mantimento,  artilharia, 
Armiis,  gente,  c  também  repaira  o  muro, 
Mas  com  isto  não  se  ha  por  bem  seguro. 


O  nome  Portuguez  por  si  s(5mente 
Com  tão  alto  temor  nelle  se  assenta 
Q.u%.'sta  forte  Cidade,  e  forte  gente, 
Nem  tudo  o  mais  que  forte  se  apresenta, 
Não  podem  segura-lo  no  presente 
Natifragio,  que  lhe  mostra  esta  tormenta. 
E  dizem  que  a  Cidade  elle  deixara 
Se  o  que  succedeo  não  lh'o  estorvara. 


Pouco  antes  que  com  mostra  horrenda  e  bella 

(Sós  oito  dias  são  se  não  nTengano) 

Sobre  Diu  colhesse  a  inchada  vélla 

O  esperto  marinheiro  Lusitano, 

Hum  Capitão  fugindo  entrara  nella 

Q.ue  dá  obediência  ao  Sulimano, 

Rumecão  era  o  nome  que  elle  tinha, 

E  lá  do  roxo  mar  fugido  vinha. 


42         OBRAS   DE  FRANCISCO   D  ANDRADE. 


Deus  fortes  galeões  bem  concertados 

Comsigo  cm  companhia  a] li  trouxera, 

Dg  gente  e  munições  apparelhados 

Para  qualquer  empresa  que  quizera : 

Com  quanto  he  grande  esforço  o  dos  soldados 

O  do  seu  Capitão  maior  inda  era, 

A  causa  que  a  fugir  agora  o  incita, 

Logo  (se  m*'escutaes)  \os  será  dita. 


Rumecao  (se  aqui  a  fama  diz  verdade) 
Ou  fosse  por  temor,  ou  esperança, 
Ou  ódio  antigo,  ou  por  nova  inÍ4âjizade, 
Porque  isto  a  minha  historia  n3o\)  alcança, 
Matou  Raez  Solimao,  sem  piedade, 
Q-ue  tinha  do  grão  Cairo  a  governança, 
E  juntando  cubica  a  esta  crueza 
Lhe  tomou  grande  cópia  de  riqueza. 

XL. 

E  por  fugir  ao  áspero  castigo, 
Com  que  hum  tal  crime  o  tinha  ameaçado, 
Se  rccolheo  a  Suez,  logar  antigo, 
No  Estreito  do  Mar  Roxo  situado. 
Toma  dous  galeões  alli  comsigo, 
Gtualquer  delles  assaz  forte  e  artilhado, 
Com  favorável  tempo  o  mar  navega, 
E  no  tempo  que  disse  a  Diu  chega. 


o    rniMEIRO   CERCO   DE   DIU.  43 


Onde  vendo  o  temor,  e  o  fraco  intento 
Q-ue  Meliqne  Tocão  no  peito  encerra, 
E  a  gràa  cópia  de  gente  e  mantimento, 
E  a  forte  defensão  que  têe  a  terra, 
Faltou-lhe  em  tal  fraqueza  o  soífrimento, 
Sendo  hábil,  c  creado  sempre  em  guerra, 
A  Melique  roprende,  e  toma  a  empreza 
De  resistir  á  gente  Portusueza. 


XLII. 

Com  isto  que  este  Turco  aqui  têe  feito, 
(Claro  signal  do  seu  feroz  esprito) 
Tanto  se  acreditou,  e  tão  acceito 
Se  fez  ante  Baudur,  que  do  infinito 
Seu  exercito  foi  por  elle  eleito 
(Como  n''outro  logar  vos  será  dito) 
Por  Capitão  geral,  e  bem  he  que  ande 
Traz  o  grande  serviço  a  mercê  grande. 


Perde  Melique  toda  a  covardia 

Q.ue  no  hospede  ha  que  têe  hum  forte  escudo, 

Cobra  novo  fervor,  nova  ousadia, 

E  cm  defender-se  põe  hum  grande  estudo. 

Ja  neste  tempo  para  a  bataria 

Apparelhado  têe  os  Christãos  tudo, 

Com  alvoroço  vão  a  esta  peleja, 

Q.ue  o  forte  o  mor  perigo  mais  deseja. 


XLIV. 

Ja  trinta  e  hum  sobre  mil  e  mais  quinhentos 

Anrios  erao  passados,  que  o  Cordeiro 

Se  Ví^stio  dos  hum. Ml  os  ornamentos 

Q-ue  tèe  no  Ceo  seu  Pae  í3eo8  Verdadeiro, 

K  deu  hiz  aos  mortaes  entendimentos^ 

Cinco  dias  do  mez  de  Fevereiro, 

Em  que  reina  o  verão  lá  no  Oriente, 

E  cá  se  passa  o  inverno  ao  Occidente. 

XLV. 

Era  então  naquella  húmida  e  fresca  hora 
€lu''a  luz  nova  as  estrellas  afugenta, 
E  com  raios  de  prata  a  fria  Aurora 
Do  seu  Titon  se  aparta  somnorenta  : 
Do  curral  salta  o  manso  gado  fora, 
E  das  húmidas  ervas  se  apascenta, 
Q-uando  os  navios  todos  se  abalarão, 
E  lá  onde  hão  de  bater  ferro  lançarão. 

XLA-^I. 

Glual  soe,  quando  o  medonho  e  furioso 
Inverno  está  mai?  bravo  e  mais  possante, 
Mostrar  o  Ceo  o  raio  luminoso 
E  traz  elle  o  trovão  grosso  e  tonante, 
Retumba  o  valle,  e  o  monte  cavernoso. 
Desmaia  o  trabalhado  mareante, 
Cahe  o  cruel  corisco  na  alta  serra, 
Tudo  o  que  toca  abraza,  e  põe  por  terra. 


o   PRIMEIRO   CERCO  DE    DIU.  4o 

XLVII. 

Tal  o  grosso  canhão  hoje  parece 
Glue  d^hua  e  d'outra  parte  assaz  trabalha, 
O  Sol  co'o  espesso  fumo  s** escurece 
Em  quanto  poios  ares  não  s** espalha  *, 
A  frágoa  de  Vulcano  a  isto  obedece, 
Pouco  resiste  o  arnez,  menos  a  malha, 
Q-u^este  espantoso  tom  cruel  e  imigo 
Morte  sempre  e  ruina  traz  comsigo. 

XLVIII. 

O  cruel  invenção,  ao  mundo  dada 

Lá  onde  Lúcifer  para  sempre  arde, 

A  valentia  fora  hoje  estimada 

Se  acertaras  de  vir  annos  mais  tarde. 

Ja  não  vai  braço  forte,  ou  dura  espada. 

Esta  iguala  o  animoso,  e  o  que  he  covarde, 

Toma  ja  o  arcabuz  forte  soldado, 

Q,ue  sem  elie  serás  pouco  estimado. 


Mas  o  redondo  ferro  que  sahia 

Lá  do  concavo  bronzo  Lusitano, 

Com  quanto  ardendo  em  fogo  e  fúria  hia. 

Faz  nos  imigos  muros  pouco  dano  : 

Mas  a  armada  Christãa  grave  o  sentia 

Do  canhão  furioso  Mauritano, 

ôue  de  fixo  logar  faz  seu  serviço, 

E  o  Portuguez  o  faz  de  movediço.. 


45         OBRAS   DE  FRANCISCO   d'aNDRADE. 


Os  tres  bateis  então  se  hiao  chegando 

Aos  baluartes  ja,  que  defendião 

O  mar  e  a  barra,  e  vão-nos  rebocando 

As  fustas,  que  diante  delles  hião  : 

Grãa  cópia  de  pelouros,  que  atroando 

Vem  todo  o  mar,  e  em  vivo  fogo  ardiao, 

Muito  antes  a  encontra-los  no  mar  vinhao, 

€lue  cheguem  lá,  para  aonde  então  caminhão. 


Nada  para  detê-los  he  bastante, 
Destruem,  queimSo,  rompem,  desbaratao, 
Míseros  dos  que  então  achão  diante. 
Porque  não  se  contentão  se  não  matao. 
Só  o  animoso  Dom  Vasco  passa  avante. 
Por  mais  que  lá  dos  muros  mal  o  tratão, 
Só  chegou  ao  logar  determinado. 
Mas  caro  lhe  custou  ter  lá  chegado. 


Não  era  ainda  bem  junto  áquella  parte 
Onde  a  morte  cruel  o  ja  esperava, 
Este  segundo  Heitor,  segundo  Marte, 
Q-uando  no  ar  hum  pelouro  ja  voava, 
Q.u'a  torre  encontrar  vai  do  baluarte, 
Com  que  a  parte  do  mar  f.e  segurava, 
Mas  tal  a  fez  alli  o  esperto  Mouro 
Q,ue  recebe  sem  damno  o  grão  pelouro. 


o   PRIMEIRO   CERCO  DE  DIU.  47 


Ja  do  mar  e  da  terra  se  não  sente 

Senão  s6  da  bombarda  a  cruel  ira. 

Tudo  esconde  a  fumaça  negra  ardente, 

Encobre  o  Sol,  a  vista  aos  olhos  tira. 

O  douto  bombardeiro  diligente 

Não  sabe  aonde  aponta,  ou  aonde  atira, 

Nos  navios  o  ferro  e  fojco  he  tanto 

€tue  causa  morte  n'huus,  «'outros  espanto. 


Os  três  bateis  se  vem  em  grande  aperto, 
Nem  têe  ja  quem  os  chegue,  ou  os  arrede. 
Glue  fazes,  forte  Vasco,  lá  tão  perto  ? 
Deixa  agora  o  que  o  esprito  alto  te  pede. 
Hum  pelouro  da  terra  vem  mais  certo 
Q.ue  os  muitos  que  ella  então  de  si  despede. 
Rompe  a  forte  cabeça  ao  mundo  rara, 
E  outra  também  que  junto  delia  achara. 


Eterno  Rei,  benigno  e  piedoso, 
Gltie  com  a  tua  remiste  a  nossa  morte, 
Porqtje  o  esprito  antes  cego  e  tenebroso 
Receba  luz,  e  suba  a  melhor  sorte, 
Recebe  no  teu  seio  glorioso 
Este  teu  fiel  servo,  ousado  e  forte, 
Que  defendendo  o  teu  nome  infinito 
Rendoo  o  valcroso,  invicto  esprito. 


AS        OJ3RAS  DE  FRANCISCO  D*ANDRÀDK. 
LVI. 

Despois  que  a  ChristSa  gente  neste  dia 
Com  grave  damno  seu  em  vão  trabalha, 
Deixa  de  todo  a  triste  bateria, 
Deixa  aquella  cruel  dura  batalha : 
Q-ual  deixa  então  no  mar  a  carne  fria, 
Q-ual  das  veias  somente  o  sangue  espalha. 
Os  navios  em  salvo  não  ficarão 
Porque  os  mais,  destroçados,  escaparão. 

LVII. 

Affastados  d'alli,  com  não  pequena 
Perda,  segundo  a  fama  hoje  pregoa, 
Manda  o  Governador  içar  a  entena, 
Levar  ferro,  e  a  Chaul  volta  a  proa  : 
Mas  primeiro  que  parta,  manda  e  ordena 
Glue  de  navios  hua  cópia  boa 
Da  sua  companhia  alli  se  saia 
E  faça  guerra  á  costa  de  Cambaia. 

LVIII. 

Fica  a  cruel  armada  que  se  aparta 
Dos  que  vão  a  Chaul,  com  grãa  bonança  : 
Nada  a  detém  então  que  não  se  parta, 
Toma  do  mal  passado  grãa  vingança  : 
De  males,  damnos,  mortes,  não  se  farta, 
Jamais  a  espada  cessa,  nem  a  lança. 
Não  escapa  a  mulher,  o  velho,  o  moço, 
Tudo  sente  o  cruel,  bravo  destroço. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIV.  4^ 

HX. 

Correra  do  mar  a  fralda  os  Lusitanos, 
"Vingão  assaz  os  inales  seus  passados, 
Nem  bastão  os  cruéis,  primeiros  danos, 
Para  se  haverem  ja  por  bem  vingados  : 
Durou  este  ódio  e  gtierra  bem  quatro  anos, 
Com  que  os  Cambaios  mal  afortunados 
A  fúria  Portugueza  sentem  tanto 
Gtue  só  conta-lo  causa  grande  espanto. 

iX. 

Todos  aquelles  grandes  senhorios 
Forão  sem  piedade  entào  corridos, 
Tomão-lhe  mil  logares,  que  vazios 
Lhe  deixarão  de  todo,  e  destruídos : 
Não  escapão  nos  mares  os  seus  navios, 
Também  aos  nossos  ficão  submettidos, 
Da  gente,  a  que  por  dita  escapou  viva 
Não  pode  alU  escapar  de  ser  captiva. 

LXI. 

Tanto  oste  mal,  tanto  este  damno  creoe, 
A  tanto  chega  então  a  fúria  imiga, 
Glu^o  grão  Rei  de  Cambaia  lh''obedece, 
E  o  seu  furor  antigo  se  mitiga : 
A  pedir  pazes  logo  humilde  dece, 
GLu"'assi  a  grãa  soberba  se  castiga, 
E  Baçaim  por  esta  paz  que  pede 
Com  suas  terras  e  ilhas  nos  concede. 


50         OBRAS   DE    FHANCISCO   d** ANDRADE. 


Fica  o  Governador  assaz  contente 
D^huas  pazes  que  vem  desta  maneira, 
Com  que  a  guerra  se  acabe,  e  se  accrescente 
O  mando  á  Lusitana  alta  bandeira : 
E  para  que  estas  pazes  logo  assente, 
Manda  que  a  Diu  vá  Simão  Ferreira, 
O  qual  era  então  da  índia  secretario, 
Bem  provido  de  tudo  o  necessário. 


Mas  porque  em  qualquer  falta  nao  o  tome 
Da  terra  a  lingua  lá,  por  não  sabella, 
Levou  hum,  que  Joanne  tem  por  nome, 
E  grão  conhecimento  tinha  delia, 
O  qual  do  Santo  têe  o  sobrenome  v 

Q.ue  hoje  adora  a  Gallega  Compostella  :~ 
Ouvi-me  deste  a  varia  estrella  e  vida, 
Glue  he  cousa  digna  assaz  de  ser  ouvida. 


Este  para  que  a  minha  historia  pede, 
Senhores,  attenção,  seguio  a  insana 
Lei  primeiro  do  immundo  Mafamede, 
E  nasceo  na  infiel  terra  Africana  -^ 
Lei  que  a  brutalidade  toda  excede, 
Qluc  os  seus  por  si  somente  desengana, 
Mas  tanto  pode  a  carne  (com  seu  dano) 
GLue  vai  mais  que  d.  rasão,  que  o  desengano. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  51 


No  mundo  foi  apenas  entrado 
Q^uando  se  vio  sujeito  ao  jugo  imigo, 
D''entre  os  braços  da  chara  mae  roubado 
Perde  da  doce  piítria  o  ninho  antigo. 
D^alli  ao  fiel  povo  foi  levado, 
Banhão-no  no  llcór  sagrado  e  amigo 
GLu"'a5  culpas  lava,  enche  de  gruça  o  peito, 
E  põe  nas  almas  ser  puro  c  perfeito. 

LXVI. 

O  Ceo,  que  para  varia  sorte  o  chama, 
A  hum  calafate  Portuguez  o  entrega, 
Grão  saber,  discrição  nelle  derrama, 
Grande  engenho  e  agudeza  lhe  não  nega  ^ 
Grandemente  por  isto  o  senhor  o  ama : 
K  depois  acontece  que  navega 
Lá  para  o  Oriental  Reino  o  mar  bravo, 
E  leva  em  companhia  o  seu  escravo. 


Nem  lá  cessa  este  amor,  esta  vontade, 

Em  quanto  d^ar  o  corpo  vivifica, 

E  quando  a  alma  mandou  á  eternidade 

Est''amor  por  mil  provas  verifica  : 

Pois  deixa  o  amado  servo  em  liberdade, 

E  com  ella  também  ao  servo  fica, 

Por  morte  do  senhor,  híia  grãa  parte 

Do  que  as  suas  mãos  lhe  derão,  c  a  su^arte. 


62        OBRAS  DK  FRANCISCO  d'aKDIIA1>K. 
IX  VIII. 

Ja  a  este  tempo  aquelle  que  tomara 
Dos  dous  do  Zebedeo  nome  e  appellido, 
Da  idade  pueril  que  atraz  deixara 
Os  tenros  annos  tinha  consumido, 
Agora  na  viril  idade  entrara, 
E  com  estudo  tal  tinha  aprendido 
Q-uasi  as  linguagens  todas  do  Oriente, 
Glue  delias  usa  assaz  perfeitamente. 

LXIX. 

Depois  que  a  cruel  Atropos,  e  horrenda, 
De  seu  senhor  cortou  o  subtil  fio, 
Ajuntando  o  que  pode  de  fazenda 
Entra  de  Bisnaga  no  senhorio. 
Wenhum  ha  que  melhor  a  lingua  entenda 
Daquella  terra,  e  o  Rei,  que  era  gentio, 
líOgo  por  sua  audácia  o  conhece, 
E  dá-lhe  entrada  em  casa,  e  o  favorece. 


Este  seu  favor  logo  nao  se  acaba, 
Glue  co''a  lisonjaria  se  aconselha, 
E  tudo  louva  a  ElRei,  nada  desgaba. 
Nunca  se  lhe  para  isto  nega  a  orelha. 
Seus  Ídolos  approva,  e  ritos  gaba, 
E  mil  vezes  ante  elles  se  ajoelha. 
Tanto  favor  lhe  mostra  ElRei  por  isto 
Q.u"*entre  os  seus  mais  acceitos  era  visto. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  53 

LXXI. 

Mas  como  hum  cubiçoso  e  máo  conceito 
Não  pode  muito  tempo  estar  no  seio, 
Que  Deos  ás  vezes  (que  he  juiz  direito) 
Faz  que  de  se  mostrar  seja  elle  o  meio  ^ 
Não  pode  este  encubrir  tanto  o  seu  peito, 
De  maldade  e  cubica  sempre  cheio, 
ôu"* antes  que  muito  tempo  alli  passasse 
Elle  por  si  se  não  manifestasse. 


D"'bua  parte  este  vicio  baixo  e  immundo 
(Pae  de  todos,  e  tronco  verdadeiro, 
ttu'a  gente  pasma,  e  têe  por  sem  segundo, 
Mas  qualquer  em  segui-lo  he  o  primeiro, 
GLue  sempre  he  falso  o  bom  que  mostra  o  mundo) 
E  d^outra  bum  tal  favor  nMium  estrangeiro, 
Aborrecido  o  fez  d^outros  privados. 
Os  quaes  delle  se  tèe  por  acanhados. 

IXXIII. 

Este  ódio,  inda  que  novo,  assi  crescia, 
Q.u'em  breve  tempo  foi  maior  que  antigo, 
Por  onde  elle,  naquelle  mesmo  dia 
Q.ue  o  Ceo  se  lhe  mostrava  mais  amigo, 
E  mais  alto  chegou  sua  valia. 
Se  vio  encaminhar  para  o  castigo, 
Q-ue  o  miserável  corpo  no  ar  levanta, 
E  com  laço  cruel  prende  a  garganta. 


LXXIV. 

Esta  he  do  mundo  a  bemaventurança, 
(Oh  quanto  vás,  juizo  humano,  errad«) 
Nisto  pára  quem  ,põe  a  confiança 
No  que  de  si  promette  hum  alto  estado  : 
Este  triste  chegando  á  mor  bonança 
O  sobem  n''hum  rocim,  e  deshonrado 
O  guião  para  a  forca,  a  qual  faz  guerra 
E  soe  punir  os  máos  naquella  terra. 


Ja  d^hua  cor  mortal  coberto  o  rosto, 

E  a  força  «aturai  quasi  perdida. 

Chegado  estava  áquelle  triste  posto 

Lá  onde  o  condemnado  deixa  a  vida  ^ 

ôuando  os  mesmos  a  quem  elle  deu  desgosto, 

E  que  por  elle  virão  abatida 

Sua  privança  (dòr  que  as  almas  cega) 

O  pedirão  a  ElRei,  e  não  Ih^o  nega. 

LXXVI. 

Torna  o  mísero  em  si,  vive,  e  respira, 
Os  membros  cobrão  o  calor  nativo. 
Torna  a  côr  ao  logar  d''onde  sahira, 
Dá-lhe  alguma  figura  ja  de  vivo: 
Anda,  vê,  falia,  e  cuida  que  he  mentira, 
Vê-se  solto,  e  inda  cuida  que  he  captivo, 
Co''os  olhos  o  está  vendo,  e  o  pensamento 
Inda  cuida  que  he  sonho,  ou  fingimento. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DB   DIU.  5^ 


Porém  vendo  que  ja  segura  tinha 
D'hum  perigo  mortal  a  vida  chara, 
Temendo  que  se  alli  mais  se  detinha 
A  veja  n''outro  mor  que  o  que  passara; 
Para  Goa  d''alli  logo  se  encaminha, 
Foge  á  terra  que  á  morte  o  condemnára, 
Mas  nem  socega  muito  tempo  em  Goa 
Q.ue  logo  para  Ormuz  voltou  a  proa. 

LXXVIII. 

D** Ormuz  na  branca  praia  apenas  salta, 

Gliiando  o  seu  grand'engenho,  e  ousado  peito, 

Q-ue  com  tantos  trabalhos  não  lhe  falta, 

O  fez  a  ElRci  da  terra  tão  accoito, 

Glue  privança  alcançou  logo  tão  alta, 

Q-ue  no  Reino  por  elle  tudo  he  feito  : 

A  cubica,  que  lh'era  natureza. 

Fez  que  logo  ajuntasse  grãa  riqueza. 


AUi  sua  bonança  ha  por  segura, 
E  que  sua  fortuna  alli  socegue, 
Mas  como  ella  ao  que  pôz  na  mdr  altura 
Sempre  com  maior  mal  trata  e  persegue, 
Faz  que  neste  alli  foi  de  pouca  dura 
Tudo  quanto  lhe  fora  antes  entregue : 
Perde  o  mando,  as  riquezas,  a  privança, 
E  quasi  de  viver  a  confiança. 


56         OBRAS    DE  FRANCISCO   D^ANDRÁDE. 


A  causa  disto  foi,  se  nao  m^engano, 
Saber  de  corto  ElRei  que  se  fizera 
Este  naquella  terra  hum  tal  tyrano, 
Glual  Sicilia  jamais  de  si  não  dera  : 
E  outro  castigo  mor,  outro  mor  dano^ 
Esle  falso  em  Ormuz  então  tivera, 
Se  aquelle  Capitão  não  atalhava 
Que  a  Christãa  fortaleza  governava. 


Do  segundo  perigo  em  salvo  posto 
Deter-se  aqui  também  mais,  arreceia, 
Outra  vez  para  Goa  volta  o  rosto 
Onde  seus  infortúnios  remedeia  : 
Em  grãa  miséria  alli,  em  grão  desgosto 
Passa  a  vida,  de  males  sempre  cheia, 
Até  que  co''o  tempo  outra  occasião  traga 
Com  que  possa  curar  a  nova  chaga. 


Mas  o  Ceo,  que  até  então  lhe  fora  vario, 
De  novo  bem  lhe  dá  novo  desenho, 
O  Governador  manda  o  Secretario 
Da  índia,  ao  que  ja  acima  dito  tenho : 
Santiago  vê  que  necessário 
Lhe  he  naquella  jornada  o  seu  engenho, 
Porque  a  Cambaica  lingua  bem  sabia, 
Pedio-lhe  que  o  levasse  em  companhia» 


o   PRIMBIRO    CERCO   DE   BIV.  57 

I.XXXIII. 

Ferreira  o  companheiro  nSo  engeita, 

Leva-o  por  seu  Faraute  na  viagem, 

E  em  entrando  em  Cambaia  se  aproveita 

Do  seu  esperto  engenho,  e  da  linguagem  : 

Loco  co^o  Sultão  teve  tão  estreita 

Amizade,  que  a  todos  fez  vantagem, 

Tal  era  o  seu  saber  e  habilidade 

Q,ue  bastava  a  ganhar  qualt^uer  vontade. 


A  sua  inclinação  perversa  o  incita 
A  que  cm  nenhuma  lei  firme  se  assente, 
Porque  tão  devoto  entra  na  mesquita 
Q.ue  fez  a  Mafamede  a  Moura  gente, 
Como  quando  o  Christão  templo  visita 
Que  honra  a  Dcos  Verdadeiro,  Omnipotente 
Com  igual  devoção  também  acode 
Quando  está  co''o  gentio  ao  seu  pagode. 

LXXXV. 

De  tal  sorte  o  Sultão  se  lhe  aífeiçoa, 
Que  quando  o  Secretario  se  despede 
Para  cortar  o  mar  direito  a  Goa, 
Lhe  pede  que  lh''o  deixe,  e  Ih^o  concede. 
Logo  a  sua  bonança  ao  cume  voa, 
E  todas  as  passadas  bem  excede, 
Que  logo  foi  em  tantas  honras  posto 
Quantas  soube  inventar  o  amor  e  o  gosto. 


58        OBRAS   DS  FRANCISCO   í»  AKDRADE. 


A  primeira  he  fazer  que  elle  se  veja 
Com  çrãa  casa,  e  apparato  soberano, 
E  para  a  sustentar  como  deseja, 
De  renda  vinte  mil  pardaos  cada  ano 
Lhe  tinha  dado  El  Rei,  para  que  esteja 
Rico,  grande,  abastado,  alegre,  ufano, 
E  dous  logares,  para  que  mais  creça 
Sua  honra,  e  seu  estado  se  engrandeça. 

LXXXVII. 

Nem  farto  inda  com  isto  o  ardente  peito 
Do  Rei,  a  quem  hum  amor  novo  então  cega, 
A  este,  sem  mais  conselho  ou  mais  respeito, 
O  mando  universal  do  Reino  entrega: 
Tal  que  aos  mais  nobres  seus,  contra  direito, 
ô-ualquer  cargo  que  tèe  agora  nega, 
E  para  este  só  quer  que  se  reserve, 
E  também  de  Faraute  este  lhe  serve. 

LXXXVIII. 

Porém  em  quanto  o  Ceo  hum  tal  estado 

Tão  alto  e  soberano  então  lhe  dera, 

Não  l})e  deu  hum  aspecto  nobre  e  honrado, 

Conveniente  ao  estado  em  que  o  puzera : 

Era  de  rosto  mal  afigurado, 

No  qual  por  mil  signaes  se  via  que  era 

Do  mal  contagioso  combatido 

A  quem  França  toe  dado  hoje  o  appellido. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU. 


59 


Mas  como  nada  disto  lhe  tirava 
A  grande  discrição,  grande  eloquência, 
Glu^o  seu  máo  peito  em  si  dentro  encerrava 
Taes,  que  co^os  vicios  vão  a  competência: 
Aquelle  que  algum  tempo  o  conversava, 
E  disto  tinha  alguma  experiência, 
Ha  que  em  Principes  ficão  desculpados 
Glue  lhe  forão  ja  tão  affeiçoados. 


Em  casa  deste  Rei,  que  a  tanta  altura 
D^hum  estado  tào  baixo  o  alevantára, 
Se  mostrou  a  fortuna  de  mais  dura 
Do  que  em  todas  as  outras  se  mostrara ; 
Mas  como  nenhuma  ha  firme  e  segura, 
Aqui  lhe  deu  o  fim  que  lhe  guardara, 
Digno  d'hum  infiel,  malvado  esprito, 
Como  espero  que  avante  seja  dito. 


Deste  não  mais,  porque  he  rasao  que  acuda 
Ao  Sultão,  que  por  mim  está  bradando, 
Pedindo-me  que  queira  dar-lhe  ajuda 
Contra  o  Mogor,  que  o  vai  desbaratando: 
Se  agora  não  me  falta  a  minha  ruda 
Musa,  e  o  Ceo  se  me  mostra  amigo  e  brando^ 
Contar-vos  esta  guerra,  e  a  causa  quero, 
Porém  14  no  outro  Cíiuto  vus  espero. 


o  PRIMEIRO 

CERCO  DE  DIU. 


CJlMTO   III. 


JLlRei  dos  3Iogores  faz  cruel  guerra  a  Sultão 
Baudur :  declara-se  a  causa  e  a  origem 
delia.  O  Sultão  manda  pedir  soccorro  ao 
Governador^  e  a  Martim,  Affonso  de  Sousa, 
Capilão-mór  do  Mar.  E  apoz  isso  manda 
sua  mulher  para  Judá. 


llaem  vio  nunca  tyranno  que  tivesse 
Seguro  o  peito,  alegre  e  repousado  ? 
Quem  vio  nunca  soberbo  que  podesse 
Conservar  longamente  hum  alto  estado  f 
Nenhum  destes  se  vio,  a  que  não  desse 
O  Ceo  hum  cruel  fim,  triste  e  apressado, 
Porque  entenda  o  soberbo,  e  o  que  he  tyrano, 
G-ue  se  he  poderoso,  he  também  humano. 


o    PRIMSIRO   CEUCO   DS   DIU.  61 

II. 

Fálaris,  Tamorlao,  Mezencio,  Nero, 
Que  tanto  humano  sangue  derramastes, 
Vós  os  dous  Dionizios,  que  co^o  fero 
Nome  só,  a  Siracusa  amedrontastes, 
E  os  mais  de  que  tratar  aqui  não  quero, 
Q.ue  o  mundo  com  cruezas  espantastes. 
Dizei,  porque  se  saiba  esta  verdade, 
Gluão  pouco  vos  durou  a  magestade. 

III. 

Alguns  houve  também,  que  ainda  na  vida 

Tiverão  de  seus  males  o  castigo, 

E  que  a  soberba  virão  abatida 

Por  mais  fraco  poder,  mais  baixo  imigo : 

Este  para  que  agora  vos  convida 

A  minha  historia,  mostra  isto  que  digo, 

De  que  logo  vereis  a  experiência 

Se  me  quizerdes  dar  benigna  audiência. 


Junto  do  Caspio  mar,  contra  o  Oriente, 
Lá  nas  partes  da  Pérsia  interiores. 
Habita  hiia  animosa  e  forte  gente 
Q-ue  tèe  inda  por  nome  hoje  Mogores^ 
Cuja  lingua  algum  tanto  he  diflerente 
Da  que  se  usa  entre  os  Persas  moradores  ^ 
Alvos  08  homens  são,  brandos,  tratáveis, 
Domésticos,  polidos,  convei-saveis. 


Manda  hum  Rei  este  povo  bellicoso, 
Glue  Mirahamed  Mayam  se  chama, 
Tanto  d^altas  empresas  culnçoso, 
Q-ue  sempre  a  maior  busca,  esta  mais  ama 
Este  esforçado  Rei,  e  poderoso, 
Algum  tanto  a  Sultão  Baudur  desama, 
Por  ver  que  traz  com  guerras  avexados 
Alguns  dos  seus  amigos,  e  alliados. 

VI. 

Mandadas  d'*hua  e  d^outra  parte  tinhao 
Sobre  este  caso  alguas  embaixadas, 
As  quaes  como  naquelle  tempo  vinhão 
De  vontades  imigas  e  damnadas, 
Entr''elles  para  bem  nada  encamínhao, 
FicJ5o  do  ódio  as  raizes  arreigadas, 
E  por  então  entr''elles  não  se  solta 
Outro  mor  movimento,  ou  mor  revolta. 


Porém  como  o  damnado  pensamento 
GLuando  mais  dissimula,  mais  se  accende, 
E  qualquer  leve  causa,  ou  movimento, 
Lhe  faz  pôr  em  eífeito  o  que  pretende, 
!Não  vai  rasão,  não  vai  entendimento, 
Porque  tudo  ao  furor  então  se  rende, 
Leve  causa  bastou  para  que  o  peito 
Acceso,  destes  Reis,  viesse  a  effeito. 


o    PKIMBIRO   CBRCO   DE    DIU.  63 

VIII. 

Na  Côrtc  do  Mogor  então  andava 

Ham  Senhor  de  grão  preço  e  grande  estado, 

Q-ue  Mirizam  Hamed  se  nomeava, 

Com  cuja  irmãa  ElRei  era  casado  : 

E  entre  as  mulheres  todas  estimava 

Esta  mais,  e  lho  he  mais  afíeiçoado  : 

Tão  mancebo  na  idade  então  seria 

Mirizam,  que  trinta  annos  não  cumpria. 


Este,  ou  que  ElRei  não  faça  dellc  a  conta,, 
Ctual  cumpre  a  seu  estado  e  dignidade, 
Ou  levado  da  mal  quieta  e  prompta 
A  cousas  novas,  sempre  mocidade. 
Havendo  todavia  por  affronta 
Mostrar-lhe  ElRei  desgosto  e  má  vontade, 
Do  seu  merecimento  assaz  indina, 
Buscar  Senhor  alheio  determina. 

X. 

E  sem  mais  outro  tento,  só  movido 
D''hum  furor  que  a  rasão  mil  vezes  tolhe^ 
Se  o  que  merece  ser  favorecido 
Desgosto  e  semrasões  por  fructo  colhe, 
Mirizam  do  Mogor  parte  escondido. 
Para  Sultão  Baudur  lá  se  recolhe, 
O  qual  ello  em  o  Mandou  então  afchára, 
Reino  que  pouco  tempo  antes  ganhara. 


64      obuas  dx  Francisco  d^akdradb. 

XI. 

Foi  esta  sua  vinda  recebida 

Do  Sultão,  com  grãa  festa,  e  com  grão  gosto, 

Mas  sabendo  o  Mogor  esta  fugida, 

E  para  onde  elle  então  voltara  o  rosto. 

Não  pôde  dentro  em  si  ter  escondida 

A  dor  que  recebeo,  e  o  grão  desgosto, 

Forçado  lhe  he  de  fora  descobrir-se, 

Que  mal  a  grande  dôr  pode  encobrir-se. 


Arde  em  ódio  e  desejo  de  vingança. 
Manda  ao  Sultão  sobre  isto  hua  embaixada, 
A  qual  o  que  pretende  não  alcança, 
Torna  com  más  palavras  affrontada. 
O  Mogor,  que  nào  perde  a  confiança, 
Mas  o  estorço  e  furor  Ih^a  dão  dobrada, 
Lhe  repete  outra  vez,  ja  menos  brando, 
E  palavras  também  duras  soltando. 


Baudur,  que  hua  soberba,  hua  ufania 

Tèe,  e  hua  natural  fúria  indomável, 

E  então  era  maior,  porque  sentia 

Nas  guerras  a  fortuna  favorável, 

E  porque  tinha  em  sua  companhia 

Hum  exercito  grande  e  innumeravel. 

Tal  resposta  lhe  dá,  tão  solta  e  feia, 

Q-ue  d'hum  baixo  e  vil  servo  ind'era  alheia, 


o    PRIMBIRO   CERCO    DS    DIV.  65 

XIV. 

Não  arde  tanto  a  frágoa  de  Vulcano, 
Q.UC  de  Lènos  atroa  o  valle  e  o  monte, 
Onde  por  mal  d'alguns,  por  grave  dano, 
Tu  Pyracmon,  tu  Steropes,  tu  Bronte, 
Os  coriscos  bateis  que  o  soberano 
Júpiter  solta  com  irada  fronte, 
Como  arde  do  Mogor  o  peito  em  ira 
Q.uando  a  resposta  do  Sultão  ouvira. 

XV. 

O  terrível  aspecto  mette  medo, 
Nos  olhos  vivo  fogo  então  chammeja. 
Da  lingua  o  natural  uso  está  quedo, 
Nem  pode  declarar  o  que  deseja  : 
Em  fim  a  solta,  e  diz  que  muito  cedo 
EUe  mesmo  irá,  ver  se  em  tudo  seja 
Correspondente  o  esforço  em  obra  e  eflfeito 
A  taes  palavras,  tão  soberbo  peito. 


Era  isto  na  sazSo  áspera  e  dura 

Em  que  se  ve  de  todo  mia  a  planta, 

Ausenta-se  dos  prados  a  frescura, 

A  branda  Philomena  ja  não  canta  ^ 

O  Noto  inchado  assopra,  e  a  formosura 

Tolhe  ao  Sol,  o  mar  se  incha  e  se  alevanta, 

O  manso  rio  chega  a  tal  grandeza 

Q.ue  co''©  mar  competir  quer  na  braveaa» 


XVII. 

Porém  depois  que  aquelle  tempo  torna 
Brando,  suave,  alegre,  desejado, 
Em  que  Flora  de  novo  o  corno  entorna 
Com  que  Alcides  se  fez  tão  celebrado, 
De  folha,  ílôr  e  fructo  a  planta  se  orna, 
De  boninas  se  esmalta  o  fresco  prado. 
Torna  com  novas  queixas  a  triste  ave, 
Favonio  soa  então  brando  e  suave. 

XVIII. 

Determina  o  Mogor  fazer  aballo. 
Vendo  que  o  bravo  rio  ja  consente 
Neste  tempo  que  possão  vadeallo, 
Porque  isto  o  detivera  tão  somente. 
Dizem  que  ajuntou  logo  de  cavallo 
Trinta  e  cinco  mil  homens,  sem  mais  gente 
Glue  pelejasse  a  pé,  porque  esta  terra 
Só  co^os  cavallos  faz  a  sua  guerra. 


Grande  caminho  passa  em  poucos  dias. 
Porque  a  grande  ira  então  o  estimulava. 
Entra  ja  de  Cliitor  nas  frontarias. 
Reino  que  entãa  Baudur  senhoreava. 
Onde  ajudadas  do  ódio  as  valt^ntias 
Fazem  guerra  qual  elle  Ih^a  ensinava  ^ 
Vinte  e  cinco  mil  homens  lhe  vierão 
De  cavallo  aqui,  mais  do  que  então  erão. 


o   PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  67 

XX. 

Com  tao  nobre  apparato,  e  sumptuoso, 
Para  buscar  o  imigo  se  dispunha, 
Com  som  de  quatro  pes,  rijo  e  espantoso, 
Pisa  ja  o  verde  campo  a  ferrada  unha : 
E  como  era  d^espirito  grandioso, 
Nas  grandes  presas  só  seu  tento  punha, 
Polas  aldeias  passa,  e  as  vê  apenas. 
Porque  não  o  detém  cousas  pequenas. 

XXI. 

E  como  o  seu  caminho  nada  impede, 
A  trabalhos  nenhuns  então  perdoa, 
Com  tal  presteza  vai,  que  bem  excede 
A  presteza  de  tudo  quanto  voa  : 
E  a  tanto  isto  então  chega  que  precede 
Em  mil  partes  a  fama  que  o  pregoa, 
E  com  tanta  presteza,  e  furor  tanto. 
De  temor  toda  a  terra  enche,  e  d'espanto. 

XXII. 

O  soberbo  Sultão  treme  e  arreceia, 

E  a  gente  que  elle  manda,  e  Ih^obedece, 

De  tal  temor  fica  então  cheia 

Qiue  do  rosto  a  còr  desapparece  : 

E  como  onde  o  temor  se  senhoreia 

Sempre  as  imigas  cousas  engrandece, 

Este  fez  parecer  que  o  Mogor  vinha 

Com  muito  mor  poder  do  que  então  tinha. 


68  OBRAS    DE   FRANCISCO   D^AKDRADE. 


Este  que  poios  ossos  ja  corria 
Daquella  multidão  tào  sem  proveito, 
Lhe  fez  então  nSo  crer  a  quem  trazia 
As  verdadeiras  novas  deste  feito, 
Mas  antes  cada  hum  delles  temia 
O  que  então  lhe  dictava  o  fraco  peito: 
E  assi  por  verdadeiro  aquillo  havião 
Q,ue  elles  com  covardia  em  si  jBngião. 

XXIV. 

Isto  puz  o  Sultão  em  tal  cuidado 
Glue  lhe  roubou  de  todo  o  entendimento, 
Nem  a  destruirão  de  seu  estado, 
Nem  as  novas  que  tèe  cada  momento, 
De  quão  ligeiro  vem,  quão  apressado 
A  busca-lo  o  Mogor,  lhe  dão  alenta 
Para  determinar-se  no  que  lh''era 
Necessário  fazer,  e  alli  o  espera. 


Mas  o  ousado  Mogor,  a  que  a  ira  ardente 
Guiava  a  hua  vingança  rigorosa, 
Em  muito  breve  tempo,  áquella  gente 
Deu  de  si  mostra,  horrenda  e  temerosa  : 
E  vendo  que  passava  livremente 
Por  hiia  terra  imiga,  e  perigosa. 
Perde  o  temor,  a  fúria  se  lh''esperta, 
Porque  a  victoria  ja  linha  por  certa. 


>RIM£IRO   CERCO    DE    DIU. 


XXVI. 


69 


Os  que  do  Sultão  seguem  o  estandarte 
De  seiscentos  mil  passão,  que  bastantes 
Pudérão  ser  de  despossar  a  Marte, 
E  de  acabar  a  empresa  dos  Gigantes : 
Era  dos  de  cavallo  a  quarta  parte, 
E  de  guerra  duzentos  elephantes, 
E  de  peças  também  d^artilharia 
Setecentas  no  exercito  haveria. 

xxvil. 

Mas  que  presta  isto  tudo  para  guerra 
Onde  o  valor  os  peitos  não  accende  ? 
Com  tamanho  poder  Baudur  se  encerra 
Lá  dentro  no  arraial,  nem  se  defende, 
Glu^assentado  está  lá  junto  da  serra 
De  Mandou  •,  mas  o  imigo  que  pretende 
Acabar  o  que  já  bem  começara, 
I^á  perto  do  Sultão  ja  se  alojara. 

XXVIII. 

Estando  este  negocio  Ião  diverso, 
Gràa  confiança  em  huns,  n"'outros  receio, 
O  Turco  Rumecão,  máo  e  perverso. 
Tal  que  d''outro  peior  (segundo  eu  creio) 
Não  se  tratou  jamais  em  prosa  ou  verso, 
Tinha  o  mando  geral,  e  o  mór  meneio 
Sobre  este  grosso  exercito  e  infinito  *, 
Atrar  vos  fica  delle  assaz  ja  dito. 


70         OBRAS   OS  FBANCI6CO    d'' ANDRADE. 


Tinha  neste  o  Sultão  çrãa  confiança, 

Somente  o  seu  conselho  era  seguido, 

EIIp  só  têe  de  tudo  a  governança, 

Elle  he  alli  somente  obedecido. 

IVlas  elle  tendo  então  pouca  lembrança 

De  quanto  do  Sultão  têe  recebido, 

O  deixa,  quando  lhe  he  mais  necessário, 

E  truta  de  passar- se  a  seu  contrario. 


Nem  sua  ingratidão  nisto  só  cessa 

(O  peito,  em  que  o  máo  nome  todo  cabe) 

Antes  modo  lhe  dá,  com  que  a  grãa  pressa 

Na  serra  teme  hum  passo  com  que  acabe 

Facilmente  o  que  quer,  pois  lhe  confessa 

Q-ue  por  elio  só  v«m  (como  elle  sabe) 

O  mantimento,  e  o  mais  que  importante  era 

A  gente  a  quem  agora  as  costas  dera. 

XXXI. 

Toma-se  o  passo  emfim,  faz-se  sujeito 
Rutnecão  ao  Mo^or,  de  que  era  imigo, 
Não  sente  o  Sultão  nisto  mais  que  o  effeito 
G.ue  sem  receio  está  deste  perigo, 
Tanto  isto  lhe  penetra  o  fraco  peito 
Que  lhe  accrescenta  em  dobro  o  medo  antigo  : 
Temem  também  os  seus,  porque  os  senhores 
Fazem  quaes  elles  são,  os  servidores. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  71 


Ó  baixa,  vil  e  cega  covardia, 
Dos  sentidos  total  destruidora, 
r^ão  vè  a^ora  esta  gente  que  podia, 
Desarmada,  ser  fácil  vencedora, 
Porque  o  medo  eutranhavel  lli'impedia 
Aos  olhos,  que  nào  vissem  naquella  hora, 
(4ue,  em  tal  desigualdade,  era  a  victoria 
Tão  certa,  que  não  dava  grande  gloria. 

XXXIII. 

Porém  estes  merecem  desculpados. 
Pois  a  senhor  tão  fraco  obedecião, 
E  aquelles  por  quem  erão  governados, 
E  os  negócios  da  guerra  então  fazião, 
Erão  nelles  tão  pouco  exercitados 
Glu'inda  as  suas  espadas  mal  região. 
Em  quem  sempre  maior  temor  se  encerra 
Que  nos  que  experiência  tèe  da  guerra. 


Succedo  a  este  temor  a  dura  fome, 
ftue  nenhuma  força  ha  que  não  quebrante, 
Faz  esta  com  que  a  morte  a  muitos  tome, 
E  nos  vives  o  medo  se  alevante  : 
Todo  o  bruto  animal  alli  se  come, 
Nào  escapa  o  cavallo  ou  o  elephante. 
Elrei,  sem  ser  do  imigo  combatido. 
Foge  hua  noite  emfim,  sem  ser  sentido. 


72         OBRAS   DE  FAANCISCO    d''aNDIIADE. 
XXXV. 

Tanto  que  a  nova  luz  resplandecente 
Ornar  de  vária  cor  o  mundo  veio, 
Esta  fugida  soube  a  sua  gente, 
A  qual  posta  j&cou  em  grão  receio  ^ 
Porque  em  quanto  o  senhor  está  presente, 
O  servo,^inda  que  tenha  o  peito  cheio 
De  desesperação,  d''espanto  e  medo, 
Têe  contra  todo  o  mal  o  rosto  quedo. 

XXXVI. 

Dá  novas  forças,  novo  esprito  e  alento, 
Dá  contra  todo  o  medo  resistência 
A  presença  do  Rei,  que  olha  com  tento, 
E  têe  do  mal  dos  seus  experiência. 
Porém  quanto  esta  dá  d"'atrevimento, 
Tanto  ás  vezes  o  tira  a  sua  ausência, 
O  fraco  faz  mais  fraco,  e  põe  no  forte 
Desejo  de  fugir  á  cruel  morte. 


Estes  tristes  depois  que  a  seu  Rei  virão 
Com  tamanho  temor  posto  em  fugida, 
Longamente  por  elle  cm  vão  suspirão, 
E  têe  sua  esperança  por  perdida: 
Na  fugida  também  logo  o  seguirão 
Por  vêr  se  poderão  salvar  a  vida. 
Com  grãa  fraqueza  o  campo  desampárão 
Gue  com  tanta  soberba  alli  assentarão. 


o   PRIMBIRO   CERCO   DE  DIU.  73 

XXXVIII. 

Ja  os  grandes  arraiaes  desamparavão 
Os  defensores  seus,  que  os  mal  defendem, 
Km  grandes  companhias  se  ajuntavao 
Os  tristes,  e  por  cá,  por  lá  se  estendem  ^ 
Nao  porque  assi  melhor  se  asseguravao, 
Mas  tal  he  seu  temor,  que  nao  entendem 
Q-ue  fazem  indo  assi  ser  mais  formosa 
A  prosa,  á  gente  inaiga  e  cubiçosa. 

XXXIX. 

Vendo  os  Mogores  tal,  tao  nova  gloria,  | 

Tão  prospero  successo,  e  sem  perigo,  | 

dual  nos  não  representa  algua  historia,  \ 

Nem  do  tempo  presente,  nem  do  antigo, 
Não  quizerâo  seguir  mais  a  victoria, 
Deixão  fugir  em  salvo  o  fraco  imigo, 
E  vão-se  a  recolher  a  rica  presa, 
Dar  saque  ao  arraial,  ja  sem  defesa. 


Achao  nelle  riquezas  escondidas. 
De  que  hua  quantidade  tal  havia, 
Q-ue  com  ellas  o  insaciável  Midas 
Engeitára  o  que  Baccho  oíferecia. 
Porque  além  d'o  Sultão  alli  mettidas 
Ter  todas  quantas  possuia, 
Tinha  muitos  despojos  que  tomara 
Em  Reinos  que  adquirira,  e  saqueara. 
*  3 


74  OBRAS    DE    FRANCISCO   d' ANDRADE. 


Também  acharão  dentro  algua  gente, 
A  quem  não  se  mostrarão  rigorosos, 
Não  por  ser  este  imigo  hoje  clemente 
A  imigos  que  lhe  são  tão  odiosos, 
Mas  porque  o  peito  de  cubica  ardente, 
Os  braços  avarentos,  cubiçosos, 
Q.uando.achão  cousa  que  a  cubica  farte 
Não  saldem  occupar-se  em  outra  parte. 


Fique  agora  o  Mogor,  colhendo  est'alta 
Presa,  que  lhe  ganhou  o  forte  braço. 
Vamos  traz  o  Sultão,  a  quem  não  falta 
Nesla  sua  fugida  hum  embaraço: 
Dá-lhe  az^is  o  temor,  já  voa  e  salta, 
E  chega  a  Cham panei  em  breve  espaço. 
Cidade  que  distante  está  hum  grão  trato 
Do  loirar  do  seu  triste  desbarato. 


XLHI. 

Porém  em  sobresaltos  mil  empeça. 
Nem  esto  seu  caminho  em  salvo  segue, 
G-U^a  fortuna  por  pouco  não  começa 
Contra  o  que  a  sou  furor  esta  entregue: 
Não  acha  o  triste  aqui  quem  líi ''obedeça, 
O  vassallo  o  salteia,  este  o  persegue 
Justo  castigo  dado  ao  máo  tyranno, 
Orne  conheça  no  seu  o  alheio  dauno. 


■1 


o   PRIMEIRO  CEBCO  DE  Dllf.  75 

XLIV. 

Huns  poucos,  qtie  por  nome  tee  ResbutoS)-* 

E  qualquer  do  Sultão  era  vassallo,  •  íocÍ 

Q.ue  são  na  vid;i  quaes  alarves  brutos,  '*-' 

Em  vez  de  o  consolar,  e  d'a)udallOj  ^* 

Seguindo  de  ladrões  os  institutos  '^ 

Vão  duas  ou  tr(ís  vezes  salteallo,  •" 

E  desse  pouco  os  seus  lhe  despojarão  ' 
GLue  na  fugida  os  míseros  salvarão. 

XLV. 

Dissimula  o  Sultão,  mostra  humildade, 
Que  a  soberba  ante  o  medo  humilde  fica,  - 
Chegando  a  Champanel  com  brevidade,     ^ 
Alguns  logar«s  perto  fortefica  : 
Mulheres  mette  dentro  na  Cidade, 
Mantimentos,  com  toda  a  cousa  rica, 
PorquVra  forte  assaz  por  beneficio 
Da  mestra  natureza,  e  do  artificio. 


Aqui  dizem  que  têe  determinado 
Refazer  seu  poder,  por-se  em  defensa, 
Mas  o  Mogor,  que  assaz  vem  apressado, 
No  quVIle  determina  não  dispensa, 
Porque  d'elle  o  Sultão  foi  salteado  -  - 

Com  aquella  do  raio  pressa  immensa,       '^ 
Tudo  por  onde  vai  saqueia  e  doma,  '' 

Nenhum  por  defender-se  a  espada  toma. 


76         OBRAS  DE  FRANCISCO   d''aNDBADE. 
XLVIl. 

Baudur,  que  inda  com  medo  nao  repousa, 
Sentindo  que  o  Mogor  ja  perto  lh'era, 
Sustentar-&e  contra  elle  alli  não  ousa, 
Glue  por  forte  nao  se  ha  quanto  quizera  ij 
Desampara  a  Cidade  e  toda  a  cousa 
Rica,  e  quanto  thesouro  alli  pozera, 
O  qual  fcó  nesta  pôz  innumeravel, 
Por  ser,  como  ja  disse,  inexpugnável. 

XLVIIl. 

Mas  como  quanto  he  astuto  e  diligente 
Em  adquirir  riquezas  o  avarento, 
Tanto  mais  vêr  logra-las  a  outrrm  sente, 
Nem  teve  gosto  igual  a  este  tormento: 
E  assi  a  mesma  cubica  em  que  anda  ardente 
Lhe  faz  com  que  destrua  n''hum  momento, 
O  traz  que  tanto  tempo  perde  o  sono 
Polo  não  ver  em  mãos  vir  d'outro  dono. 

XLIX. 

Tal  foi  aqui  o  Sultão,  de  quem  se"  disse 
Glu^hua  cópia  de  perlas  grande  e  rara, 
Antes  que  da  Cidade  se  partisse, 
As  gastadoras  chammas  entregara 
Para  que  o  imigo  não  as  possuísse, 
Q-ue  sempre  tão  cruelmente  o  tratara. 
Mas  o  mais  que  ficou  foi  tão  sobejo 
G.ue  fez  perder  das  perlas  o  desejo. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  77 


A  guarda  da  Cidade  alli  encommeiída 
Ao  mesmo  Capitão  que  antes  a  tinha, 
Pcdindo-lhe  de  novo  que  a  defenda 
Com  o  esforço  e  prudência  que  convinha: 
E  ello,  por  nao  se  achar  nesta  contenda, 
Para  Diu  d^alli  logo  encaminha, 
Cidade  que  he  de  todas  derradeira 
As  que  arvorão  a  sua  alta  bandeira. 

LI. 

Deixemo-lo  agora  ir,  porque  o  receio 
Faz,  que  não  se  assegure,  ou  assocegue  : 
Vejamos  o  Mogor,  que  todo  clieio 
De  soberba  e  ousadia  inda  o  persegue  : 
Tanto  que  a  Champanel  mostra r-se  veio 
Ix)go  sem  defensão  lhe  foi  entregue, 
O  copioso  tliesouro,  e  a  mesma  terra. 
Com  tudo  o  mais  que  dentro  em  si  encerra. 


Aqui  vendo  que  em  vão  tomar  pretendem 
O  Sultão,  que  com  azas  lhes  fugia, 
A  roubar  polo  Reino  então  se  estendem. 
Onde  nada  este  intento  lh"'impedia. 
Depois  que  com  cubica  não  se  accendem, 
Porque  ja  o  roubo  c  a  presa  os  enfastia,, 
Usão  então  d^estranhas  crueldades. 
Sem  respeitar  a  sexos,  nem  a  idades. 


1 


78         OBRAS   DE   FRANCISCO    d'aNDRADE. 
LIII. 

Outra  vez  o  Sultão  m'*está  chamando, 
Ilida  agora  o  deixei,  não  sei  que  diga, 
Glueio  torna-lo  a  ver,  que  arreceando 
Estou,  que  ha  d** estar  posto  em  grãa 
Este  apenas  a  Diu  chega,  quando. 
Vendo  quanto  a  fortuna  lh''era  imiga, 
Desesperando  ja  poder  salvar-se, 
Deixar  o  Reino,  e  a  Meca  quer  passar-se. 

LIV. 

O  grão  medo  a  que  estava  então  sujeito 
Lhe  faz  com  que  procure  esta  fugida, 
Sem  ter  a  seu  estado  algum  respeito, 
Piem  que  deixa  com  elle  a  honra  perdida: 
Mas  uso  he  do  covarde,  e  fraco  peito. 
Estimar  mais  que  tudo  a  torpe  vida, 
Escolhe  antes  viver  sempre  em  miséria 
Glue  dar  d'alto  louvor  larga  matéria. 

tv. 

Trabalhando  o  Sultão  com  grão  cuidado 

Por  dar  execução  a  seu  intento, 

Lhe  foi  d^alguns  vassallos  estorvado, 

Glue  temem  mais  que  a  morte  o  abatimento 

Vendo-se  de  Aigir  desesperado, 

Dá  á  vontade  dos  seus  consentimento, 

Mas  a  sua  de  todo  não  estava 

Isempta,  do  que  agora  imaginava. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  79 


Porém  por  mais  rasões  que  então  lhe  dera, 
Por  mais  que  sua  gente  o  segurara, 
Acabar-se  com  elle  não  pudera 
ôu^isto  que  elle  Ima  vez  em  vão  tentara 
A  pôr  cm  fim  por  obra  não  viera 
Se  o  Mogor  de  segui-lo  não  deixara, 
Do  qual  quando  somente  o  nome  ouvia 
Ao  corpo  o  sangue,  ao  rosto  a  côr  fugia. 

LVII. 

E  porque  ellç  ,á  tenção  que  têe  no  seio 
Este  ultimo  reniedio  se  promette, 
Armar  dous  galeões  com  pressa  veio, 
E  outros  navios  mais,  com  que  fez  sotte  : 
Dizião  que  três  contos  d^ouro  e  moio 
Logo  em  dinheiro  dentro  nelles  mette, 
Com  pedraria  tal,  tão  ricas  jóias, 
Q.u*'enriquecer  pudera  muitas  Troias. 

LVIII. 

Mette  o  rubi  purpúreo,  a  azul  safira, 
Verde  esmeralda,  e  branco  diamante, 
GLue  qualquer  a  muito  ouro  o  valor  tira, 
Glualquer  de  grande  preço  está  diante  : 
Aqui  põe  sua  mulher  por  quem  suspira. 
Por  quem  arde  d'amor,  que  do  possante 
Rei  de  Deli  era  filha,  e  vencedora 
Fora  em  Ida,  se  lá  a  quarta  fora. 


80 


LÍX. 

Pôde  tanto  esta  rara  formosura 
Naquelle  de  si  fero  e  cruel  peito, 
Q-ue  a  força  natural,  go^o  uso  mais  dura, 
Venceo  nelle,  e  da  sua  o  fez  sujeito. 
Armas  são  de  que  amor  usa,  a  brandura 
D^huiis  bellos  olhos,  d''hum  suave  aspeito, 
Com  que  vence  a  invencivel  fortaleza 
Do  longo  uso,  e  da  mesma  natureza. 


Mas  vendo-se  apartar,  ficar  ausente, 
Daquella  que  a  vontade  lhe  levava, 
Daquella  com  quem  só  era  contente. 
Sem  quem  inda  o  mor  gosto  o  atormentava, 
Arrancando  hum  suspiro  triste  e  ardente 
Lá  do  centro  do  peito,  a  que  abrazava 
Hum  grão  fogo  d^amor,  e  saudade, 
Com  que  cada  hora  mais  rende  a  vontade : 

LXI. 

Pondo  os  olhos  naquelles  d^onde  nace 
Na  su^alma  híla  luz  mais  que  a  do  dia, 
Naquellos  olhos  onde  elle  a  alma  pace 
Do  gosto  que  hum  amor  bem  pago  cria  ^ 
Vendo  que  na  purpiirea  branca  face, 
A  quem  a  rosa  e  a  neve  obedecia, 
Hija  agua  saudosa  está  estillando 
ôuMnda  mais  que  o  seu  fogo  o  está  abrazando 


o    rRIHXIRO   CERCO   BE  DIU.  81 


He  possível  (lhe  diz)  hum  s<5  meu  gosto, 
Hum  só  amor  meu,  hum  só  contentamento, 
ôuo  pois  todo  meu  bem  em  li  está  posto, 
De  mi  nasça  este  triste  apartamento  ? 
Como  ouso  eu  hoje  a  ti  voltar  o  rosto, 
Se  eu  causo  hoje  esse  meu  e  teu  tormento  ? 
Ou  como  antes  não  quiz  perder  a  vida, 
Glue  sentir  esta  triste  despedida  ? 

LXIII. 

A  quem  me  queixarei  do  grave  dano 

Que  ficará  comigo  de  contino, 

Se  quando  eu  sou  comtigo  mais  ufano 

Então  de  ti  apartar-me  determino? 

S<;  eu  mesmo  contra  mi  sou  deshumano, 

Gluem  me  poderá  ser  brando  ou  benino? 

Inda  isto  ajuda  mais  a  atormentar-me, 

ttu"*em  meu  mal  só  de  mi  posso  queixar-mc. 


Porém  o  mal  quê  em  mi  tèe  maior  parte, 
C)  que  esta  ahna  mais  sente,  e  o  que  mais  chora, 
Ho  ver  que  com  rasão  podes  queixar-te 
Do.  quem  morre  por  ti,  de  quem  te  adora  ^ 
Pois  sendo  minha  gloria  contentar-te, 
Ku  te  obrigo  a  lançar  dos  olhos  fora 
Essa  agua  que  a  mi,  mais  que  a  ti  maltrata, 
Pois  a  ti  só  faz  triste,  a  mi  me  mata» 


82         OBRAS   DE  FRANCISCO   D  ANDRADE. 
LXV. 

E  se  eu  vivo  somente  de  querer-to, 
Se  do  teu  gosto  so  ijieu  gosto  pende, 
Se  fazer-te  a  vontade,  e  obodecer-te 
He  o  que  ém  maior  gosto  est''ultna  acende^ 
Vendo  eu  por  minha  causa  entristecçr-te. 
Corno  ao  teu  gosto  est^alma  se  não  rende  ? 
Q.uem  me  fez  hoje  ter  tajita  crueza,    .  , 
Q-ue  possa  ai  em  mi  mais  que  essa  tristeza  ? 


Mas  baste  ser-me  dura  ç  esquiva  a  sorte, 
Não  me  sejas  tambpm  tu  dura  e  esquiva, 
Q-ue  pois  em  ti  só  tenho  a  vida  e  a  morte 
Forçado  he  que  por- ti  só  moura  e  viva: 
Cuida  que  por  fugir  a  hum  mal  mais  forte 
Se  oífreceo  esta  alma.  a  ti  captiva, 
A  soffrer  este  mal  da  tua  ausência 
Gl^ue  me  ppp^ume  o  ^o,  e  a  piciencia. 

LXVH. 

Bem  vejo  eu,  amor  meu,  quíío  trabalhosa 

Vida  farei  sem  ti,  se  acaso  dura, 

G.ue  se  a  tenho,  ou  se  me  tila  he  deleitosa, 

Eflfeitos  são  de,  tua  formosura: 

Mas  vejo  a  rainha  sorte,  d^invejosa 

Do  meu  contente  estado,  e  alta  ventura. 

Tão  dura.  contra  mi,  que  vou  cuidando 

Glu'em  triste  estado  o  quer  ir  transtornando. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE    DIU,  83 


Ordena  que  hum  cruel,  soberbo  iraigo, 
Em  perseguir-me  tanto,  dure  e  insista, 
Q-ue  nos  meus  Reinos  ja  não  tenho  abrigo, 
Nem  forças,  ou  poder  que  lhe  resista : 
E  por  eu  não  ver  posta  em  tal  perigo 
A  quem  vida  me  dá  só  com  a  vista, 
Ordeno  esta  mortal,  cruel  partida, 
D''onde  espero  melhor  gosto  e  melhor  vida. 

LXIX. 

Irás,  meu  bem,  irás  lá,  onde  espero 
GLue  mui  cedo  também  serei  presente. 
Mas  nâo  irás  sem  mi,  que  o  que  t'eu  quero 
Faz  ir  comtigo  est^alma  juntamente  : 
E  em  me  dando  logar  o  imigo  fero 
Irá  o  corpo  buscar  a  alma  contente, 
€Lue  nunca  se  apartou  hum  só  momento 
De  quem  he  todo  seu  contentamento. 


Quietamente  então  satisfaremos. 
Apesar  da  ventura,  e  do  meu  fado, 
Este  bem,  e  este  gosto  que  perdemos, 
Com  dobrado  outro  bem,  gosto  dobrado  : 
Com  tal  certeza  em  tanto  poderemos 
Soffrer  a  saudade,  e  o  triste  estado 
Em  que  a  amhos  nos  tèe  posto  hua  lembrança, 
Q-ue  o  mal  fa-lo  soffrivel  a  esperança. 


84         OBRAS   SE  FRANCISCO  D^ANDRADE. 


Ja  agora  estas  palavras  mal  podia 
Declarar  o  Sultão,  que  a  larga  e  grossa 
Veia,  que  dos  seus  olhos  lhe  corria, 
Lihe  faz,  que  a  lingua  então  mal  mover  possa. 
A  namorada  espisa,  em  quem  fazia 
Muito  mais  impressão,  muito  mais  mossa, 
O  mal  que  em  seu  esposo  estava  vendo, 
Q.u'a  grave  dor  que  estava  ella  soíFrendo. 

LXXII. 

Pregando  iielle  os  olhos,  que  bastavSo 
Render  a  mais  agreste  alma,  e  mais  ruda, 
Inda  estilando  perlas,  que  dobravão 
O  amor  ao  que  em  ama-la  só  estuda  ^ 
Detendo-se  hum  espaço,  cm  quanto  davao 
As  lagrimas  logar  á  lingua  muda, 
Em  meio  d^hum  suspiro  saudoso 
Desta  sorte  responde  ao  charo  esposo : 

LXXIII. 

Esposo  charo  meu,  mais  que  esta  vida, 
Mais  que  estes  olhos  meus  com  que  te  vejo, 
Não  me  tenhas  por  tão  mal  entendida, 
Q.ue  não  entenda  bem,  que  o  grão  desejo 
Q^ue  tèes  de  me  não  vêr  offerecida 
A  hum  perigo  mortal,  a  hum  mal  sobajo, 
Faz  que  hoje  contra  mi  sejas  tão  fero, 
Porque  isso  te  merece  o  que  t'eu  quero. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.       85 
LXXIV. 

Bem  vejo  que  a  rasao  quo  a  isto  t^obriga 
l'roccde  só  d'arnor,  não  d^oiitra  parte, 
rorém  que  esperas  tu  qiie  faça,  ou  diga, 
Q.uem  \ive  de  te  ver,  e  ha  de  deixar-te  ? 
Por  muito  que  a  ventura  me  persiga, 
Pois  q«íiz  que  minha  gloria  fosse  amar-te, 
Q-ue  outro  mal  pode  dar-me,  ou  que  tormento 
Gluc  se  iguale  com  este  apartamento  ? 

LXXV. 

Sc  comtigo  hei  de  ter  perigo,  ou  morte, 
Sem  ti  peior  morte  espero,  ou  mor  perigo, 
Pois  sem  ti  o  menor  mal  me  será  forte, 
E  o  maior  me  será  brando  comtigo. 
Assi  que  então  terei  mais  dura  a  sorte, 
Então  me  será  o  fado  mais  imigo 
Quando  sem  ti  me  vir  em  salvo  posta, 
Q.u^eutuo  a  mor  perigo  estou  disposta. 

1.XXVI. 

Mas  pois  com  esta  ausência  seguramos 
Este  grão  bem  que  aqui  em  risco  temos, 
Rasão  será  que  hum  breve  mal  soíTramos 
Para  que  longamente  o  bem  logremos: 
Vamos  agora  traz  o  que  esperamos, 
V^  este  bem  duvidoso  aventuremos 
Por  ter  híia  segura  alta  bonança, 
Enganemos  embora  esta  esperança. 


86         OBRAS   DE   FRANCISCO   D^ANDRADX» 
LXXVII. 

Eu  irei,  amor  meu,  porém  presente 
Comtigo  fica  est''alma,  e  a  liberdade, 
E  cm  meio  desta  ausência  irei  contente 
Pois  te  pude  fazer  nisto  a  vontade  : 
Mas  muito  mais  o  irei,  pois  brevemente 
Satisfarei  comtigo  a  saudade 
Q-ua  de  ti  nesta  tua  alma  se  assenta, 
Se  tanto  como  a  mi  te  ella  atormenta* 

LXXVIII^ 

Mil  soluços  também  d'amor  nascidos. 
De  todo  a  voz  e  a  lingua  então  ll^atárao, 
Q.ue  os  que  em  igual  amor  erSo  unidos 
Tumbem  nas  mostras  delle  se  igualarão  : 
Assi  mais  que  nunca  boje  ambos  rendidos, 
Aml)os  logo  a  píirtida  apparclhárão, 
l^orque  a  espfrrança  então  forças  liie  davi 
Com  quesoífrão  hum  mal  que  a  ambos  matava. 


E  á  riqueza  que  disse  e  grão  thesouro 
A  esta  mulher  com  quem  o  gosto  lhe  lila, 
E  estima  mais  que  pedraria  e  que  ouro, 
Por  guarda  o  Sultão  deu,  e  companhia, 
Hum,  não  sei  se  he  Gentio,  Turco,  ou  Mouro, 
!Rlas  do  quem  elle  muito  se  confia, 
Acefarcão,  por  nome  este  se  chama, 
Capitão  que  mais  presa,  e  que  mais  ama. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  87 


Míiníla-lhe  que  a  Judá  se  vá  direito, 
Cidade  das  melhores  que  elle  tinha, 
Situada  do  Roxo  Mar  no  Estreito, 
Ijá  da  parte  que  a  A.rabia  lhe  he  visinlia  ;  ' '' 
E  aqui  esteja,  em  quanto  elle  o  seu  conceito 
Vor  recado,  ou  por  si  mostrar  lhe  vinha. 
Mas  ja  que  se  elle  agora  não  despede, 
"Vejamos  polo  Reino  o  qíié  succcde. 


Em  quanto  por  salvar  esta  riqueza 
E  a  mulher,  o  Siiliao  afesi  trabalha, 
Não  cessa  do  ^logor  a  alta  crueza, 
Por  tudo  quanto  vê,  cruel  s"* espalha : 
Dos  seus  o  que  escap»  u  a  esta  braveza, 
E  s(5  a  fugida  espera  que  lhe  valha, 
A  Diu  se  recolhe  em  tempo  breve. 
Onde  estar  o  Sultão  por  novas  teve. 


Porém  nenhum  a  Diu  sé  recolhe 
Para  ajudar  seu  Rei  n''hum  mal  tão  duro, 
D'onde  hum  tão  alto  titulo  se  colhe 
Q-ue  faz  resplandecer  o  mais  escuro. 
Mas  porque  o  rudo  povo  sempre  escolhe 
O  iogur  por  mais  forte  e  mais  seguro 
Onde  o  seu  Rei 'está,  ainda  que  seja 
Ao  revez  do  que  cuida  e  que  deseja. 


OBRAS    DE    FRANCISCO     D  AKtrADE. 


Desejo  de  salvar  a  inútil  vida^ 
Glue  salvar  não  espera  ja  d^outra  arte, 
Não  somente  a  qualquer  destes  convida, 
Mas  constrange,  a  se  vir  para  esta  parte. 
Aqui  o  que  nunca  a  espada  vio  cingida 
Está,  e  o  que  seguio  sempre  o  fero  iMarte, 
Porque  he  tal  o  temor  por  toda  a  terra 
GLue  sobrepuja  todo  o  uso  da  guerra. 

txxxiv. 

Depois  de  ser  cntr"'ellos  consultado 
O  modo  com  que  o  Reino  se  salvasse, 
Foi  por  todos  ElRei  aconselhado 
Q.ue  naquella  Cidade  signalasse 
Logar  ao  Portugíiez,  imigo  ousado, 
Onde  hiia  fortaleza  ediiicas.se, 
A  qual  deseja  tanto,  que  está  certo 
Ajuda-los  por  ella  neste  aperto. 


O  que  deu  a  este  voto  mor  vehemencia, 

Com  que  ficarão  delle  satisfeitos, 

Foi,  terem  ja  bua  larga  experiência 

Daqnelles  Lusitanos  fortes  peitos, 

Gl-ue  n** outrem  nunca  acharão  resistência. 

Antes  todos  aos  seus  forão  sujeitos, 

Nem  cuidão  que  outrem  dê  tao  brevemente 

Nem  hum  soccorro  igual  ao  desta  gente. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DF,    DIU.  89 


E  como  o  anno  j:i  d^antes  tinha  feita 
O  Sultão  Ima  paz,  qual  tenho  dito, 
K  para  ser  mais  firme  e  mais  perfeita 
Deu  o  que  ja  vos  fica  atraz  escripto  : 
O  conselho  dos  seus  approva  e  acceita, 
Porque  lhe  representa  o  fraco  espirito, 
tí.ue  a  nova  fortaleza,  e  a  paz  antiga 
Lhe  fará  a  Christàa  gente  mais  amiga. 

LXXXVII. 

Mas  porque  o  cíTeito  disto  nao  detenha 
D^onde  espera  ser  posto  em  liberdade, 
(lue  vá  hum  Embaixador  logo  desenha, 
Q.u\io  grão  Cunha  descubra  esta  vontade, 
E  lhe  pessa  que  a  Diu  logo  venha, 
Co'*o  mor  poder  que  possa,  e  brevidade. 
Mas  comtudo  a  rasão  não  lhe  descobre 
Q.u'então  o  constrangeo  a  ser  tão  nobre. 

LXXXVIII. 

E  por  se  segurar  melhor  da  morte, 

Ou  d''htim  mal  que  tal  medo  nelle  punha, 

Manda  a  Marfim  AíFonso,  varão  forte, 

Gtue  dos  illustres  Sonsas  tee  a  alcunha, 

Outro  recado  então  da  mesma  sorte 

Q.ual  fora  o  que  mandara  ao  grande  Cunha  ^ 

O  qual  Sousa  em  Chaul  então  estava 

E  [»or  Capitão-mór  do  mar  andava. 


90         OBRAS   DE  FRANCISCO  D^ANDRADS. 
LXXXIX. 

Com  quanto  o  grão  temor  tanto  o  captíva 
Que  o  força  a  se  valer  dos  que  desama, 
Nào  torna  atraz,  comtudo  nelle  aviva 
Amorosa,  cruel,  ardente  chama  ^ 
Antes  cada  hora  mais  nelle  se  aviva, 
Cada  hora  mais  o  acende,  mais  o  inflama, 
Co^a  lembrança  da  triste  despedida 
De  quem  lhe  dá  co''a  vista  gosto  e  vida. 


Cresce  com  isto  a  dôr,  cresce  o  tormento, 
Cresce  daquella  triste  hora  o  receio  : 
Mas  entendendo  que  este  apartamento, 
Inda  que  agora  o  mata,  lh'era  meio 
Para  ter  depois  mor  contentamento 
De  tristes  sobrrsaltos  sempre  alheio, 
Basta  isto,  inda  que  assaz  suspira  e  geme. 
Para  acabar  comsigo  o  que  mais  teme. 


Despois  que  despedio  aquelle  que  hia 

Ao  Cunha  Embaixador,  como  atraz  digo, 

]NSo  quer  que  se  dilate  mais  hum  dia 

O  remédio  do  seu  maior  perigo  : 

E  inda  de  si  pasmado,  porque  via 

G.ue  podia  acabar  isto  comsigo 

Pondo  a  culpa  ao  temor  e  á  esperança, 

Gluer  que  o  seu  bem  se  parta  sem  tardança. 


o   PRTMEinO    CERCO   DE   DIV ,  91 


Fazendo  apparelhar  aquelles  setto 
Navios,  que  atraz  disse  a  historia  minha, 
Tudo  em  grande  abastança  nelles  melte 
Q-iianto  para  a  viagem  lhes  convinha  : 
Chamando  Acefarcão,  a  quem  commette 
Hum  thesouTo  que  em  tanto  preço  tinha, 
D''encommendar-lh''o  hua  e  outra  vez  não  cessa, 
Ajuntando  a  mercê,  e  iuda  a  promessa. 


Com  merct^s  feitas,  e  outras  que  oíTrece, 
O  seu  charo  thesouro  Ih^encommonda, 
Porque  o  peito  leal,  que  bem  conhece, 
Em  maior  lealdade  assi  o  acenda  : 
Mas  porque  isto  inda  pouco  lhe  parece, 
Para  que  Acefarcão  melhor  entenda 
Gtue  cousa  esta  hc  que  só  delle  fiava. 
Também  estas  palavras  lh''aj untava  : 


Fiel  Acefarcão,  nao  só  sujeito 

Levas  á  tua  antiga  lealdade 

Todo  o  meu  gosto,  e  bem  puro,  e  perfeito, 

Mas  a  vida  também,  e  a  liberdade  : 

Só  fio  isto  de  ti,  pois  do  teu  peito 

Ja  conhecida  assaz  tenho  a  verdade. 

Bem  descansado  fico,  e  bem  seguro, 

Que  no  que  importa  mais  serás  toais  puro. 


92         OBRAS   DE   FRANCISCO    d''a1íDRADI 
XCV. 

Acefarcao,  que  bem  via  a  grandeza 
Do  qvie  ElRí^i  fia  delle,  llie  responde  : 
Senlior,  pois  confessastes  que  a  certeza 
Do  meu  peito  ja  nao  se  vos  esconde. 
Hei  que  será  escusado,  antes  rudeza 
Será  rainha  querer-me  abonar,  onde 
As  obras  de  tal  sorte  me  abonarão 
Gtu'a  confessar-mo  vos,  vos  obrigarão. 


Vejo  que  esta  mercê  foi  de  mor  preço 
Glue  quantas  de  vos  tenho  recebido, 
Mas  o  que  eu  sei  de  mi,  e  vos  mereço, 
Me  faz  crer  que  isto  a  mi  só  he  devido, 
Do  que  eu  nisto  confesso  que  conheço, 
Deveis  vós  entender  qiiao  Ijera  servido 
Sereis  nisto  de  mi,  ptiis  posto  vejo 
Em  nova  obrigação  o  meu  desejo. 

XCVII. 

Algum  tanto  descansa,  e  se  assegura 

O  namorado  Rei,  quiçá  cioso, 

Glue  nao  sei  se  aquella  alta  formosura 

O  faz  de  Acefercao  ser  duvidoso. 

A  partida  porém  logo  procura 

Tao  largo  em  qualquer  cousa  e  curioso, 

Glue  não  se  satisfaz,  ou  determina, 

Pois  sempre  novas  cousas  imagina. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE    DIU.  93 

XCVIII. 

E  assi  d'honTa  e  d%imor  estimulado 

Faz  com  tal  apparato  esta  partida, 

dual  convinha  ao  grào  preço,  ao  grande  estado 

Daquella  com  quem  manda  o  gosto  e  a  vida  : 

E  vendo  elle  ja  tudo  apparelhado, 

E  que  á  partida  o  vento  as  náos  convida, 

Manda-as  ir  o  outro  dia  naquella  hora 

Q-ue  deixa  o  bello  esposo  a  bella  Aurora. 


Aquelle  espaço  todo  que  desprega 
Pulos  ares  a  noite  o  negro  manto, 
Olualquer  dos  dous  amantes  não  se  entrega 
Ao  devido  repouso,  usado  tanto  -^ 
Antes  o  doce  somno  aos  olhos  nega 
Oecu pados  dlium  triste  e  largo  pranto, 
Os  pcíitos  o  frio  ar  que  estão  bei)endo 
Tornão  logo  a  lançar  em  fogo  ardendo. 


Em  meio  d'agua  e  fogo,  sempre  vivos. 
Pois  então  cada  hum  o  outro  accrescenta. 
Os  amantes  cada  hora  mais  captivos 
Passão  est%  amorosa,  alta  tormenta; 
Porém  entre  accideiites  tão  nocivos 
(Tanto  o  verem-se  juntos  os  contenta) 
Desejando  inda  estão  que  se  detenha 
O  Sol  ii)ais  do  qu^soe,  ou  que  não  venha. 


94        OSRAS   DE  FRANCISCO   D^AKDRADE» 
Cl. 

Mas  como  aviva  nelle  isto  qiio  via 
Os  dospresos  do  seu  amado  JLíOtiro, 
D^invejoso,  hoje  mais  do  que  sohia 
Se  apressa  a  descubrir  os  raios  d^ouro  : 
Qualquer  dos  dous  amantes,  a  que  o  dia 
Obriga  a  se  apartar  do  seu  thesonro, 
Mostra  com  novo  pranto,  nova  queixa, 
Gluào  caro  a  cada  hum  custa  o  que  deixa. 

CII. 

Apartados  emfim,  como  puJérao, 

Logo  d  partida  viío  apparclhíindo ; 

Oh  quantas  vezes  ambos  nialdisserao 

O  vento,  porque  IhVra  amigo  e  brando: 

Porque  inda  que  desta  ida  ambos  esperão 

Segurar  este  bem  que  estão  passando, 

Yer  inda  algua  cousa  dcsejavão 

Q,ue  dilate  isto  que  ambos  procuravao. 


Porém  como  então  tudo  favorece 
Aquelle  ultimo  seu  apartamento, 
O  C(íO  sereno,  o  Sol  claro  apparece, 
Brando  e  quieto  o  mar,  prospero  a  vento ; 
Vendo  que  quanto  mais  tardão,  mais  crece 
Da  triste  despedida  o  grão  tormento, 
Ajudados  das  forças  da  esperança. 
Fazem  lá  para  as  náos  logo  mudança. 


o   PRI3IEIR0  CERCO   DE   DIU.  ^^ 


Onde  chegando  (»  dous  algum  espaço 
Em  SC  darom  esforço  ambos  gastarão, 
Mas  com  tal  dôr,  e  amor,  que  os  peitos  d'açOy 
E  os  mais  duros  penedos  abrandarão: 
Dando-se  ambos  emíim  o  ultimo  abraço, 
Co\)s  olhos  sempre  hum  no  outro  se  apartarão, 
Ella  na  ornada  camará  se  encerra, 
Elle  outra  vez  se  torna  para  a  terra. 


Eis  logo  o  marinheiro  diligente 
Clu''isto  esporava  só,  isto  o  detinha, 
Levantando  do  mar  o  férreo  dente. 
Faz  a  vella  cahir,  que  pr<>sa  tinha  : 
Ja  o  vento  amigo  a  fere  brandamente, 
Ja  corta  a  proa  aguda  a  onda  marinha, 
Ar,  agua  e  terra  os  dous  hoje  apartava, 
Q.ue  o  fogo  apesar  delles  ajuntava. 


Baudur,  que  cá  na  praia  estava  posto, 
\'pndo  soltar  no  vento  a  larga  vella, 
Q.u'apartando  lhe  vai  todo  seu  gosto, 
A  angélica,  suave,  vista  bella, 
Não  pode  d^illi  mais  voltar  o  rosto 
Em  quanto  têe  os  olhos  vista  delia  ^ 
Mas  co'a  alma  que  lá  lhe  manda  entregue, 
Depois  que  a  vista  falta,  sempre  a  segue» 


96         OBRAS    DE   FRANCISCO   D^ANDRADE. 
CVII. 

Depois  que  ja  lá  em  v5o  vai  estendendo 

A  vista,  ja  de  novo  arde  e  snspira, 

E  ja  desetíganado,  recolhendo 

Se  vai,  para  o  logar  d^onde  sahira : 

Mas  inda  á  saudade  obedecendo 

De  quando  em  quando  ao  mar  os  olhos  vira, 

Inda  quiçá  cuidando  que  podia 

Ver,  o  que  vira  ja,  que  ja  nào  via  ! 


As  náos  ja  naquella  liora,  que  ajudadas 
D^iquelle  a  quem  os  ventos  mais  temião, 
Com  graa  pressa  cortavao  as  salgadas 
Ondas,  que  ao  Rei  marinho  obedeciSo, 
Do  amado  porto  vão  tão  afíastadas 
Q.ue  nenhuns  olhos  já  vê-lo  podião. 
Com  quanto  alguns  as  náos  também  levavão 
Glue  saudosos  lá  se  cncaminhavão. 


O  suave  almo  Zéfiro  que  agora 
Inchando  as  velhis  vai  co^o  sopro  brando, 
Sentindo  lá  os  suspiros  tristes  lóra 
Q-uV  namorada  esposa  vai  soltando, 
E  o  lamentável  tom  que  ella  chora 
A  ausência  do  que  a  vai  acompanhando, 
Movido  a  compaixão,  e  a  piedade. 
Determina  saber  disto  a  verdade. 


o   PRIMEIRO  CERCO   DE  DIU.  97 

cx.    il*l    -1^ 

Entra  invisível  lá  no  rico  e  ornado 
Aposento,  onde  as  queixas  tinliâ  ouvido^. 
Mas  apenas  lá  dentro  foi  entrado 
Quando  d''entrar  lá  foi  arrependido. 
IVlas  sinto-me  eu  tão  rouco  e  tão  cansado, 
Q.ue  cuido  que  sou  ja  mal  entendido, 
Consenti  que  descanse  aqui  algum  tanto 
Porque  com  clara  voz  me  torne  ao  Canto. 


CERCO  DE  M 


CAMTO  lY 


Zéfiro  chega  onde  esta  El  Rei  Eolo,  e  lhe  pede 
favor  para  roubar  a  Rainha,  yls  nãos  em 
que  elía  vai^  depois  de  húa  grande  tormen- 
ta^ chegão  a  húa  Ilha  não  conhecida.  O 
embaixador  do  Sultão  chega  a  Goa,  e  torna 
a  Diu  com  a  resposta  do  Governador. 


D 


I. 


esejo  he  natural  a  todo  peito, 
A  que  com  grão  trabalho  se  põe  freio, 
Entender  o  secreto  alheio  feito, 
E  (se  também  ser  pode)  o  peito  alheio. 
E  quanto  d"'hQa  parte  a  isto  he  sujeito, 
Tanto  d'outra  procura  d'aehar  meio 
Com  que  encuberto  iielle  a  todos  seja 
O  que  em  todos  saber  elle  deseja. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  99 

II* 

Sujeição  he,  que  pôz  a  natureza 

A<»  peito  que  he  mortal,  ser  avarento, 

E  desta  sujeição,  desta  avareza 

?Jão  vemos  escapar  hum  entre  cento.  ; 

Nem  somente  dos  bens  e  da  riqueza,  í 

Mas  também  do  segredo  e  pensamento     .i.-.i-ifi 

Faz  a  avara  intenção,  a  que  está  entregue,*!!/ 

Q,ue  qualquer  busque  o  alheio,  e  o  próprio  negue. 

III. 

M.ns  o  alto  Rei,  Eterno  e  Soberano, 

GLue  de  tão  in;ís  tenções  foi  sempre  imigo, 

Faz  com  que  este  avarento  peito  humano 

Elle  mesmo  por  si  tome  o  castigo^ 

E  procurando  o  alheio,  ache  seu  dano. 

Com  grão  trabalho  seu,  com  grão  perigo. 

Mil  exemplos  para  isto  accumulára,  ) 

Mas  o  que  hei  de  cantar  bera  o  declara.  /; 

IV. 

Zéfiro,  a  que  hum  desejo  grande  acende 
De  saber  o  segredo  do  que  ouvia, 
Invisivel  entrou  lá  onde  entende 
Q.u"'a  verdade  saber  disto  podia : 
Porém  de  ter  lá  entrado  se  arrepende, 
Porque  em  entrando  vio  o  que  não  cria 
GLue  o  Ceo  para  outro  effeito  então  creasse 
Senão  para  que  os  livres  captivasse. 


Vio  aquella  nao  vista  formosura 

Q/ue  os  suspiros  cada  hora  mais  aviva, 

Vio  por  neve  correr  hua  agua  pura 

Clue  dos  formosos  olhos  se  deriva  : 

D''alli  cuida  que  Amor  solta  a  mais  dura 

Setta,  com  que  o  mais  duro  mais  captiva, 

Alli  cuida  que  próprio  e  devido  era 

O  louvor  que  a  outrem  dão  Gnido  e  Cithera. 

VI. 

Pouco  a  pouco  esta  vista  assi  o  enternece, 
Q-ue  a  liberdade  ja  lhe  desbarata. 
Olhando  para  si  se  nao  conhece, 
Conhece  dentro  o  Amor  que  mal  o  trata. 
Mil  vezes  se  quiz  ir,  mas  lhe  parece 
Impossivel  deixar  a  quem  o  mata, 
O  gosto  do  que  vê  o  detém,  onde 
Mor  fogo  cada  vez  no  peito  esconde. 


Hum  grande  espaço  esteve  contemplando 
Isto  que  apenas  crê  tendo-o  presente, 
Cada  momento  mais  accrescentando 
As  forças  do  amoroso  fogo  ardente. 
Algum  tanto  porém  em  si  tornando 
Q-uer  resistir  ao  mal  que  n'alma  sente, 
Mas  tèe-lh^clle  ja  tão  rendido  o  peito 
Gtue  quanto  mais  resiste  he  mais  sujeito. 


0   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  101 


Mostra-lhe  o  triste  estado  em  que  está  posto 

Isto  que  tèe  de  si  bem  entendido, 

Mas  muito  mais  Ih^o  mostra  o  çrande  gosto 

Q.ue  sentia  de  vêr-se  tao  rendido. 

Bem  ve  que  se  d^aqui  não  muda  o  posto, 

Além  de  ser  cada  hora  mais  perdido, 

l^erderá  a  occasião  que  o  tempo  dava 

De  dar  remédio  ao  mal  que  o  atormentava. 

IX. 

Tanta  força  lhe  dá  esta  esperança 
Q.ue  novamente  em  si  tee  concebida, 
Q-ue  o  forçou  a  deixar  som  mais  tardança 
A  vista  por  quem  morre,  e  lhe  dá  a  vida. 
D\iqui  com  grande  pressa  faz  mudança 
Lá  contra  Strongile,  Ilha  conhecida 
Entre  as  Vulcanias  sete,  e  celebrada, 
Porque  Eolo  alU  faz  sua  morada, 

X. 

Aqui  n'hua  profunda  cova  escura 

Os  inquietos  ventos  encerrados 

Júpiter  pôz,  e  com  bem  forte  e  dura 

TrisSo,  a  todos  tèe  presos,  e  atados : 

E  para  que  inda  possa  mais  segura 

Mente  alli  seus  furores  ser  domados^ 

Lhe  pòz  também  hum  grande  monte  em  cima, 

E  hum  Rei  lhes  deu  q  os  mande  e  q  os  reprima. 


102      OBRAS   DE   FRANCISCO    d'aNDRADE. 


Elies  com  grão  ruido  e  estrondo  horrendo 
Sempre  em  torno  da  porta  estão  bramando, 
Eolo,  a  quem  o  padre  alto  e  tremendo 
Deu  sobrVUes  o  sceptro,  deu  o  mando, 
Os  está  d^hua  torre  alta  regendo. 
Seus  Ímpetos  e  fúrias  temperando, 
E  de  tal  sorte  o  temem  e  venerSo 
Q-ue  por  elle  s'enfreião,  ou  se  alterao. 


Zéfiro,  a  quem  o  amor  hoje  accresccnta 
A  sua  natural  velocidade, 
A  grãa  pressa  que  leva  inda  ha  por  lenta, 
Tanto  o  vai  apertando  a  saudade ; 
Por  onde  em  breve  espaço  se  apresenta 
Perante  aquelle^:  a  cuja  magestade 
Elle  e  os  mais  ventos  dão  obediência, 
E  lhe  faz  a  devida  reverencia. 

XIII. 

Logo  desta  arte  a  língua  solta  ousado, 
Q.u''Amor  dá  para  tudo  atrevimento  : 
Eterno  Rei,  a  quem  no  Ceo  foi  dado 
Dos  ventos  o  poder,  e  o  regimento. 
Porque  eu  sei  que  de  ti  foi  sempre  usado. 
Antes  foi  sempre  teu  contentamento 
Dares  favor  ao  teu  que  delle  tinha 
Necessidade,  o  pesso  eu  para  a  minlia. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  103 

XIV. 

Lá  na  parte  onde  o  Sol  d'entr''Oceano 
Solta  o  primeiro  raio  matutino, 
Hum  tal  parecer  vi,  tão  sobrehumano, 
Q.ue  nao  creio  que  haja  outro  mais  divino : 
Para  meu  mal  o  vi,  para  meu  dano, 
Pois  lhe  sou  tão  sujeito,  que  imagino 
Que  se  nao  dou  remédio  a  mal  tão  forte 
Começará  nos  teus  ter  mando  a  morte. 

XV. 

Deixei-a,  que  com  curso  vagaroso 
O  Reino  de  Neptuno  cortando  hia  ; 
Ja  que  Boreas  te  achou  tão  piedoso 
Q-uando  o  amor  o  abrazava  d^Orithia, 
Não  queiras  a  mi  só  ser  rigoroso, 
Pois  outro  fogo  mór  em  mi  se  cria. 
Nem  queiras  que  Cupido  s^engrandeça 
De  fazer  que  o  que  he  teu  a  elle  obedeça. 

XVI. 

Consente  que  Noto,  Africo  e  Levante 
Me  dêem  nisto  o  remédio  so  que  tenho, 
E  que  comigo  passem  tanto  avante 
Gtue  vão  lá  ter  á  parte  d''onde  eu  venho, 
E  facão  lá  que  o  mar  sHiiche  e  levante, 
E  que  a  seu  pesar  volte  a  proa  o  lenho 
Em  que  vai  meu  bem  todo,  e  vá  direito 
Ond'*eu  quietar  possa  o  acccso  peito. 


XVII. 

Traz  isto  o  humor  dos  olhos  mal  enfreia, 
E  do  peito  o  suspiro  triste  e  ardente  ^ 
Eolo,  a  quem  a  bella  Deyopeia 
Q-uiçá  faz  entender  o  que  este  sente, 
De  piedade  então  tendo  a  alma  cheia 
No  que  lhe  pede  Zéfiro  consente, 
E  não  consente  só,  mas  determina 
Fazer  com  que  elle  acabe  o  que  imagina. 


Logo  do  real  sceptjo  a  ponta  volta 
Ao  cavo  monte  que  em  si  os  ventos  cerra, 
Empncha-o  para  hum  lado,  e  a  prisão  solta 
Aquelles  com  que  faz  a  sua  guerra  : 
Sahe  a  turba  feroz,  com  grãa  revolta. 
Subverter  desejando  o  mar  e  a  terra. 
Mas  vendo  do  seu  Rei  a  veneranda 
Pl^esença,  párão,  vendo  o  que  elle  manda. 

XIX. 

Elle  lhes  manda  então  que  ao  companheiro 

Zéfiro  dêem  favor  no  que  pretende. 

Ja  Zéfiro  d^íUi  parte  ligeiro, 

E  ajudado  do  amor  que  dentro  o  acende, 

Em  breve  tempo  chega  onde  o  primeiro 

Raio  da  luz  dourado  ApoUo  estende, 

Contente  assaz  de  vêr-se  ja  tão  perto 

Do  seu  bem,  que  ser  seu  ja,  têe  por  certo. 


o   PRIiVtBIRO  CERCO    DK  DIU.  105 

XX. 

Os  furiosos  ventos,  que  seguirão 
O  companheiro  sempre  que  os  guiava, 
Tanlo  que  da  prisão  soltos  se  virão 
Mostrão  a  sua  antiga  fúria  brava: 
Os  mansos  mares  tanto  que  sentirão 
Aquella  fúria,  que  antes  presa  estava, 
De  tal  sorte  se  vão  embravecendo 
Q.u''até  ás  nuvens  parece  ir-se  erguendo.  . 

XXI. 

As  grossas  altas  ondas  escumosas, 
Dos  furiosos  ventos  constrangidas, 
Vão  quebrar  seu  furor  nas  alterosas 
Rochas,  OH  lá  nas  praias  estendidas  :  ^ 

Ketiinibão  as  montanhas  cavernosas, 
Véem-se  do  mar  as  nuvens  combatidas, 
ôu''a  força  com  que  encontra  a  rocha  dura 
Lho  faz  com  que  então  suba  a  tanta  altura. 

XXII. 

o  claro  ar  e  sereno  sVscurece, 

Q.u''a  grossa  e  negra  nuvem  lhe  succede, 

O  resplendor  do  Sol  desapparece, 

Q-u''esta  nuvem  também  mesma  lh''o  impede  : 

No  mar  ao  meio  dia  hoje  anoitece, 

Horrisonos  trovões  de  si  despede 

O  Ceo,  e  apoz  estrondos  espantosos 

Solta  de  si  mil  raios  luminosos. 


106      OBRAS  DX  FRANCISCO  D^ANDRADE. 
XXIII. 

Chegao  entretanto  Euto,  Africo  e  Noto 
Onde  os  navios  vão  que  os  lá  levarão, 
E  co''o  seu  costumado  terremoto 
Em  tudo  grão  temor  então  causarão. 
Eis  ja  com  alta  voz  grita  o  Piloto, 
Os  marinheiros  não  se  descuidarão, 
Saltão  de  cá  e  de  lá  com  grande  pressa, 
Hum  á  corda, 

XXIV. 

Mas  por  mais  que  ande  esperto  e  diligente. 
De  se  poder  salvar  ja  desconfia, 
Porque  cada  momento  mais  presente. 
Crescendo  a  tempestade,  a  morte  via. 
Zéfiro  receioso  e  descontente 
Do  perigo  em  que  vê  por  quem  morria. 
Roga  aos  ventos  que  em  si  queirão  pôr  freiOj 
Nem  lhe  dêem  tanto  bem  com  tal  receio. 


Porém  elles,  que  mal  então  podião 
Refrear  o  que  têe  por  natureza, 
Cada  momento  mais  então  crescião 
Em  Ímpeto,  furor,  ira  e  braví^za  : 
Ora  por  entre  as  ondas  descobrião 
Dos  mares  a  areosa  profundeza, 
Ora  fazem  que  o  mar  tão  alto  saia 
GLue  lá  nas  nuvens  quer  fazer  a  praia» 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  107 


Nas  náos  attribuladas,  isto  espalha 
Grande  espanto,  temor,  desconfiança, 
]Mas  a  gente  que  nellas  se  agazalha 
Faz,  quanto  de  viver  lhe  dá  esperança : 
Com  revezada  força  se  trabalha 
Na  longa  boml)a,  e  o  mar  ao  mar  se  lança, 
Ora  se  encolhe  a  escota,  ora  se  solta, 
Cresce  a  voltas  do  medo,  a  grãa  revolta. 

X  XXVII. 

o  nobre  Acefarcão,  que  entende  c  estima 
Q/U.into  hum  perigo  tal  deve  estimar-se, 
Da  Rainha  o  perigo  assi  o  lastima, 
Q-ue  o  faz  de  seu  perigo  descuidar-se : 
Aquclla  attribulada  gente  anima, 
Gtu'*então  ja  começava  a  dosmaiar-se, 
Mas  pouco  presta  quanto  faz  agora  ,;, 

Pois  o  vento  e  o  temor  crescem  cada  hora«>f 


Sente  entretanto  o  Rei  que  têe  o  mando 
Sobre  o  Reino  que  he  liquido  e  salgado, 
A  revolta,  o  rumor  que  perturbando 
Todo  o  seu  Reino  está ;  e  d''ira  inchado, 
Sobre  o  mar  a  cabeça  levantando, 
Vé  das  míseras  náos  o  triste  estado, 
O  desmaio  da  gente,  o  grave  dano, 
De  Zéfiro  também  entende  o  engano. 


XXIX, 

Fazendo  ante  si  vir  aqiiella  irada 
Companhia  dos  ventos,  n'hum  momento, 
Llu!  diz:  Tal  confiança  vos  tee  dada 
A  vossa  geração  e  nascimento, 
ô,ue  sem  vos  ser  de  mi  hoje  outorgada 
Ou  licença,  ou  algum  consentimento, 
Ousaes  de  perturbar  o  Ceo  e  a  Terra, 
E  fazer  no  meu  Reino  á  gente  guerra  ? 

XXX. 

Nao  pareis  mais  aqui,  mas  brevemente 
E  com  pressa  fazei  logo  a  partida, 
Glue  depois  se  jaqui  mais  rumor  se  sente, 
Nao  ireis  som  a  pena  merecida  : 
Dizei  ao  vosso  Rei,  que  do  Tridente 
E  do  mar  a  mi  só  foi  concedida 
A  governança  e  o  mando,  polo  eterno 
Rei,  que  têe  o  geral  mando,  e  governo. 

XXXI. 

Ellé  seu  mando,  têe  na  altiva  e  grande 
Penedia,  cm  que  estaes  vós  encerrados, 
Alli  só  poderoso,  e  senhor  ande, 
Onde  todos  por  elle  são  mandados  ^ 
Contente-se  que  os  bravos  ventos  mande, 
Mas  na  usada  prisão  encarcerados. 
Não  disse  mais,  nem  ha  quem  lhe  responda, 
E  n'hum  instante  applaca  a  soberba  onda. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  109 


XXXIl. 

Eis  foge  a  nuvem  ja  negra  e  chuvosa, 
Cessa  o  trovão,  e  a  luz  que  elle  acarreta, 
Ja  de  novo  a  dourada  luz  formosa 
Mostra  na  terra  o  quarto  almo  planeta : 
O  soberbo  furor  da  onda  alterosa 
Ja  se  humilha,  se  abranda,  e  se  quieta, 
Porque  a  ausência  daquella  fúria  grave 
Tudo  manso  tornou,  tudo  suave. 

XXXIII. 

Vendo  o  marinho  Rei  em  tempo  breve 

Desfeitos  os  estrondos  furiosos, 

Com  que  o  cerúleo  mar  fazem  de  neve 

Os  montes  d''agua  erguidos  e  escumosos, 

Polas  ondas  meneia  o  carro  leve 

Tirado  dos  cavallos  escamosos, 

E  d'ira  isempto  ja,  de  prazer  cheio 

Ao  logar  se  recolhe  d'onde  veio. 

XXXIV, 

Os  cansados  Cambaios  como  vírao 
Sereno  o  Ceo,  as  ondas  ja  abatidas, 
E  que  os  ventos  de  todo  ja  fugirão, 
Agradecendo  ao  Ceo  de  novo  as  vidas. 
Livres  ja  do  temor  que  antes  sentirão 
Cobrào  o  alento,  e  as  forças  ja  perdidas. 
Manda  do  alto  o  Piloto,  e  o  Marinheiro 
Ledo  por  cá,  por  lá,  salta  ligeiro. 

♦  4 


li  o      OURAS   DE  FKAIÍCISCO    D  AKDRADE. 


O  namorado  vento  contemplando 
Q.uao  mal  lhe  succedêra  aquelle  feito, 
Com  nova  dor,  e  amor  acompanhando 
Vai  aquella,  a  que  entregue  leva  o  peito: 
E  com  suspiros  inda  accrescentando 
O  seu  usado  sopro,  de  tal  geito 
Lhe  vai  agora  inchando  o  largo  linho 
Q-ue  faz  com  maior  pressa  o  seu  caminho. 


Nem  têe  andado  muito  quando  o  esperto 
Gageiro,  que  o  calces  alto  vigia, 
D''onde  o  mar  mais  ao  longe  he  descuberto. 
De  lá  bradaj  que  ao  longe  terra  via. 
Mas  que  não  saberá  dizer  em  certo 
Gtue  terra  he,  porque  não  a  conhecia, 
Porque  o  vento  lhe  fez  assaz  remota 
A  via,  da  primeira  sua  rota. 

XXXVII. 

Em  todos  causa  agora  Imm  g'rande  gosto 
A  nova  que  de  lá  de  cima  soa, 
1'orque  esperão  dar  fim  ao  grão  desgosto 
Com  que  o  mar,  e  o  temor  inda  os  magoa  : 
Acefarcão,  também  com  ledo  rosto, 
Manda  que  para  lá  caminhe  a  proa, 
E  tão  amigo  então  o  vento  acharão 
Ciu''em  pouco  tempo  a  terra  se  chegarão. 


o   PRIMEIRO  CERCO  BE  DIU.  Ill 

xxxvm. 

Onde  chegando  vêem  hua  espaçosa 
Ilha,  que  de  nenhum  he  conhecida, 
Mas  de  fresco  arvoredo  tão  formosa 
Glue  a  lograrem-se  então  delia,  os  convida : 
Por  toda  a  parte  mostra  húa  areosa 
Praia,  que  naquella  hora  combatida 
Da  quieta  onda,  faz  que  ainda  mor  seja 
O  desejo,  de  quem  muito  a  deseja. 


Em  meio  desta  praia  se  está  vendo 

llua  larga  bahia,  ao  modo  feita 

Da  Lua,  que  de  novo  apparecendo 

De  travez  o  fraterno  raio  acceita. 

D^^hua  e  outra  parte  ao  Ceo  se  vai  erguendo 

Hua  intratável  rocha,  tào  direita, 

Q.u''em  vão  subir  acima  tenta  e  estuda 

Senão  só  quem  das  azas  têe  a  ajuda. 

XL. 

A  sombra  destas  rochas  sempre  estava 
Em  grão  silencio  o  mar  brando  e  sereno, 
Entre  hum  e  outro  penedo  se  mostrava 
Hum  espaço  de  praia  não  pequeno, 
Da  qual  a  secca  areia  se  acabava 
N"'hum  prado  verde,  assaz  suave  e  ameno^ 
Glue  hum  outeiro  tão  alto  têe  defronte 
Q.ue  bem  merecerá  nome  de  monte. 


XLI. 

Lá  da  maiis  alta  patte  deste  outeiro, 
D'entre  occultos  penedos,  murmurando 
Com  brando  e  alegre  tom,  desce  hum  ribeirOj 
Glue  todo  aquelle  prado  atravessando 
Do  seu  doce  licor,  o  derradeiro 
Curso,  está  co''o  salgado  alli  ajuntando, 
Q-ue  tal  frescura  nesta  parte  gera 
GLue  faz  nella  perpétua  a  Primavera, 

XLII. 

Tao  clara  e  mansa  corre  esta  onda  puta 
(^t.u^a  funda  areia  bem  clara  apparece, 
Vê-se  por  todo  o  prado  hua  verdura 
Glu\dli  perpetuamente  permanece, 
Glu ''ajudada  do  esmalte  e  formosníi 
Da  bonina,  que  alli  sempre  ílorece, 
Roxa,  vermelha,  azul,  branca,  amarella, 
Faz  que  nunca  se  aparte  a  vista  delia. 


Vai  d''hua  e  d*outra  parte  o  manso  rio 
D''hum  espesso  arvoredo  acompanhado, 
Com  que  aquelle  logar  he  Ião  sombrio 
Gtue  não  pode  do  Sol  ser  visitado  : 
Meneia  os  altos  ramos  hum  ar  frio 
Com  brando  murmurar,  mal  concertado, 
Creio  que  este  he  o  logar  onde  foi  visto 
O  que  esconder  em  vSo  tentou  Calbto. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  113 


XLIV. 

Neste  legar  a  armada  se  recolhe 
Gluando  o  Sol  ja  se  inclina  ao  Occidente, 
Ja  pola  longa  entena  a  verga  encolhe 
O  marinheiro  esperto  e  diligente; 
Ja  fciz  que  o  mar  a  curva  ancora  molhe, 
Nos  bordos  apparece  toda  a  gente, 
De  forças,  de  prazer,  d^alento  cheia 
Co'a  visinhança  sd  daquella  areia. 

XLY. 

Acefarcao  também  vendo  o  formoso 
Sitio,  que  a  fresca  terra  lh'íipresenta 
Apoz  hum  temporal  tâo  perigoso, 
D"*achar-se  cm  tão  bom  porto  se  contenta 
Entra  onde  está  a  Rainha,  desejoso 
Q-ue  o  trabalho  do  mar  e  da  tormenta 
Q.ueira  satisfazer,  e  em  terra  saia 
Recrear-se,  se  quer,  na  fresca  praia. 


Dá-lhe  com  alvoroço  a  boa  nova. 
Crendo  que  outra  melhor  dar  não  podia  : 
Porém  ella,  que  só  oor  bom  approva 
O  que  ajuda  ao  tormento  em  que  se  via, 
Crendo  que  pode  lá  com  força  nova 
Entregar-se  ás  lembranças  que  sentia, 
Para  isto  alvoroçada  lhe  concede 
O  que  para  outro  eflFeito  elle  lhe  pede. 


Í14 


Ja  ligeiro  na  barca  entra  o  Grumete^ 
A  qual  em  breve  espaço  se  vê  ornada 
Do  fino,  oriental,  rico  tapete, 
E  da  moUe,  e  também  rica  almofada  : 
Logo  a  Rainha  lá  nelia  se  mete, 
©""AcefarcSo,  e  alguns  acompanhada, 
O  duro  braço  logo  o  remo  afferra 
E  dividindo  o  mar  se  chega  á  terra* 

XLVIU. 

liOgo  a  Rainba  a  barca  desampara 
De  se  ver  so  na  terra,  desejosa. 
Onde  vendo  as  boninas,  a  agua  clafa 
De  sombrio  arvoredo  copiosa, 
Para  o  seu  pensamento  se  prepara 
Ja  do  tempo  em  que  o  tinha  saudosa»» 
Porque  lhe  parecia  que  alli  tinha 
Logar  como  para  elle  lhe  convinha. 


Na  descuberta  praia  o  passo  quedo 
Não  detém,  mas  lá  o  move  airoso  e  lento 
Onde  vio  o  cerrado,  alto  arvoredo. 
Porque  lá  a  guia  então  seu  pensamento:^ 
E  n"'hum  logar  tão  só  leva  inda  medo 
D'achar  para  este  gosto  impedimento, 
Porque  Amor  sempre  nisto  esteve  posto 
Dar  sempre  grão  receio  a  qualquer  gosto* 


o   PRIMEIRO   CERCO   DS   DIU.  113 


Vai-se  ao  longo  do  rio  passeando, 
Q.ue  dos  seus  apartar-se  determina  •, 
Chum  brando  virar  d^olhos  aleçrando 
Ora  aquella  clara  onda,  ora  a  bonina  : 
Acefarcão  a  vai  acompanhando," 
E  hua  da  companhia,  feminina  : 
Porque  os  outros  nSoquiz  que  a  acompanhassem 
Nem  tão  pouco  estes  dous  quiz  que  a  deixassem. 


Quanto  mais  adiante  o  passo  muda 

Render-se  á  saudade  mais  se  deixa, 

E  á  sua  síiudade  agora  ajuda 

Da  triste  Filomena  a  branda  queixa, 

Q-ue  do  ferro  cruel  que  a  fez  ser  muda 

E  do  engano  do  máo  Tereo  se  queixa, 

lim  mil  partes  alli  com  doce  e  branda 

Voz,  que  o  mais  duro  peito  move  e  abranda. 

LII. 

Tanto  ao  longo  do  rio  então  passeia 
Que  perdendo  de  vista  a  sua  gente 
C^hua  mouta  encontrou  espessa,  e  cheia 
De  mil  llòres,  que  dão  cheiro  excellente  : 
Neste  logar  a  vista  se  recreia 
Co''o  brando  murmurar  d^agua  corrente, 
O  cheiro  se  deleita  co'o  que  furta 
Ao  crespo  legação,  á  branda  murta. 


116      OBRAS   DE  FRANCISCO   d''aNDRADE. 


Á  vista  deste  rio  socegado, 
Entre  o  cheiro  suave  destas  flores, 
Ve  lagar  a  Rainha  apparelhado 
Para  a  contemplação  de  seus  amores  : 
Sobre  o  verde  tapete  que  alli  ornado 
A  natureza  pôz  de  varias  cores, 
Se  assenta,  desejosa  d^occupar-se 
Naquillo  com  que  só  pode  alegrar-se. 

LIV. 

Faz  apartar  os  dous  algum  espaço, 
Q.uVntão  da  companhia  pouco  gosta. 
Pondo  na  dura  terra  o  tenro  braço. 
Na  branca  mão  a  bella  face  encosta, 
E  como  então  se  vè  sem  embaraço 
Q.u'a  memoria  de  lá  d^onde  a  têe  posta 
Lhe  possa  divertir,  de  todo  entregue 
Se  sente  ao  pensamento  que  a  pei-segue, 

IV. 

Tão  altamente  nclle  se  transporta 
Glue  mal  pudia  então  ser  conhecida 
Se  ella  era  mulher  viva,  ou  mulher  mori 
Ou  pedra  em  tal  figura  convertida. 
Entre  este  alto  trespasso  abrindo  a  porta 
A  lingua,  que  até  então  teve  impedida, 
De  suspiros  ardentes  rodeada 
Era  taes  palavras  solta  a  voz  cansada : 


o    FRIMEtaO.  CERCO    DE    DIU.  117 

LVI. 

Era  que  podia  Amor  mostrar  mais  claro 
Gtuão  brando  e  favorável  me  he  seu.  peito 
Glu^cm  me  fazer  sujeito  do  meu  charo 
Esposo,  de  que  cu  sei  que  me  he  sujeito? 
Porque  o  melhor  estado,  o  bem  mais  raro, 
O  goito  mais  suave,  e  mais  perfeito 
Ô-u^a  vida  pode  dar,  he  ter  seguro 
O  puro  amor,  que  o  paga  outro  amor  puro. 


Mas  quanto  he  mor  o  meu  contentamento 

De  ver  quão  bem  me  he  paga  esta  vontade, 

Tanto  temo  depois  maior  tormento 

Se  quanto  ouço  d^amor  tudo  he  verdade  ^ 

Pois  me  ordenou  tão  largo  apartamento 

Em  que  somente  o  mal  da  saudade 

Em  tamanha  tristeza  me  têe  posto 

€lue  não  basta  contra  ella  o  maior  gosto. 

LVIII. 

Começo  ja  a  temer  que  me  ordenasse 
Amor  este  tal  bem,  tão  sobrehumano, 
E  que  dentro  nest'*alma  mo  arreigasse 
Com  a  continuação  d^hum  e  d'outro  ano. 
Para  que  d'*entre  as  mãos  mo  arrebatasse 
Com  muito  maior  dor,  muito  mor  dano, 
E  assi  me  fique  o  mal  firme  e  dobrado 
Q.u'em  memoria  de  bens  está  fundado. 


118    onnAs  de  fjrancisco  d-andrade. 

nx. 

Porém  por  outra  parte  estou  cuidando 

Glue  quanto  mal  tiver  todo  merece 

Gluem  o  está  d'antemao  advinhando, 

Ei  a  seus  vãos  arreceies  obedece  \ 

Q-uem  em  meio  do  bem  que  está  passando 

Co*'o  mal  que  inda  nao  sente  se  entristece, 

Bem  merece  que  tenha  o  que  advinha 

E  d'entre  as  mãos  lhe  fuja  o  bem  que  tinha, 


Nem  poderá  cm  mi  tanto  a  desventura 
Gu^em  mi  possa  imprimir  desconfiança, 
G-ue  no  meu  charo  esposo  estou  segura 
Glue  não  poderá  nunca  haver  mudança  : 
Seja  a  sorte  cruel,  seja-mc  dura. 
Que  tanto  poder  tèe  minha  esperança, 
ôu^ella  basta  a  fazer  grSa  resistência 
A  quanto  mal  me  causa  a  triste  ausência, 

LXl. 

Inda  a  Rainha  aqui  não  concluíra 

O  que  Amor  e  a  esperança  lhe  dieta va. 

Se  então  Acofarcão  não  lh'o  impedira 

Q-ue  co^os  olhos  de  lá  a  acompanhava  ^ 

O  qual  inda  que  nada  então  ouvira 

Do  que  ella  para  si  só  resoava, 

O  que  nella  de  fora  vê  somente 

Lhe  mostra  bera  o  que  ella  dentro  sente. 


o    PRIMEIRO    CE^CO   0£   OlV.  119 

LXII. 

O  continuo  suspiro,  que  do  meio 

Do  saudoso  peito  lhe  sahia, 

O  brando  humor  dos  olhos,  de  que  cheio 

De  fora  o  peito  têe,  que  dentro  ardia  ^ 

Ora  a  inquietação  do  seu  meneio. 

Ora  o  grande  trespasso  em  que  elle  a  via, 

Lhe  dão  claro  signal,  antes  certeza 

Da  sua  grave  dòr,  e  alta  tristeza. 

LXIII. 

E  vendo  quão  contrario  foi  o  efleito 
Da  tenção  com  que  a  fez  sahir  em  terra, 
Se  movo  a  compaixão  daquelle  peito 
A  quem  fazia  Amor  tao  cruel  guerra;^ 
Vendo-o  cada  momento  mais  sujeito 
A  saudade  alli  que  dentro  encerra. 
Vê  bem  que  n^hum  logar  tao  deleitoso 
Se  cria  o  mal  do  peito  saudoso, 

LXIV. 

Determina  fazer  que  d'aqui  saia 
Onde  nao  cura  o  mal,  mas  o  accrescenta, 
Onde  a  triste  lembrança  de  Cambaia 
Com  mor  dor  e  desejos  a  atormenta  : 
K  também  porque  vê  que  lá  na  praia 
•Ta  do  Occidento  o  Sol  o  carro  assenta, 
Hua  e  outra  cousa  o  move,  antes  o  obriga 
A  que  outra  vez  das  náos  a  via  siga. 


Posto  em  pé,  co'o  devido  acatamento 

Se  chega  a  ella  e  lhe  diz,  que  ja  tempo  era 

De  fazer  para  a  praia  movimento, 

Pois  o  Sol  ao  Oriente  as  costas  dera  9 

E  quiçá  com  grãa  dor  e  sentimento 

Da  sua  ausência,  a  sua  gente  espera, 

E  não  a  espera  so,  mas  com  cuidado 

Revolve  em  busca  delia  o  monte  e  o  prado. 


Ella,  inda  que  recebe  hum  grão  desgosto 

De  se  haver  d'apartar  somente  hua  hora 

Da  grãa  suavidade,  do  grão  gosto 

Em  que  o  seu  pensamento  a  tinha  agora, 

Vendo  porém  que  o  Sol  ja  muda  o  posto, 

E  começa  a  lançar  a  noite  fora 

Jjá  dess''outro  hemispherio,  e  neste  a  estende, 

A  rasão,  não  ao  gosto j  então  se  rende. 

txvii. 

Em  pé  logo  se  põe,  e  acompanhada 
Dos  dous  que  alli  a  trouxerão,  o  passo  muda, 
Mas  de  tal  maneira  indo  transportada 
íi-ue  os  olhos  cegos  leva,  a  lingua  muda. 
Acefarcão,  que  a  vê  tão  enlevada, 
Entende  que  he  rasão  que  aqui  lh'acuda, 
Porque  tão  triste  a  vê  que  parecia 
€tue  tudo  a  sua  tristeza  entristecia. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  l2l 

LXVIII. 

Q-uauto  então  p(jde  em  consola-la  insiste, 
Dizendo  :  Se  o  que  mais  Amor  inflama 
A  desesperação  do  Amor  resiste 
Esperando  abrandar  quem  o  desama, 
Contente  deveis  vós  ser,  e  não  triste, 
Pois  amaes  a  quem  mais  que  a  si  vos  ama, 
E  de  quem  certa  estaes  (pois  deveis  crê-lo) 
Q,ue  mui  cedo  comvosco  haveis  de  vê-lo. 

LXIX. 

Ella  com  isto  menos  se  entristece. 
Antes  tanto  poder  teve  a  esperança 
GLue  ja  tornando  em  si  desapparece 
A  tristeza,  em  que  a  pôz  sua  lembrança  : 
Também  tudo  o  que  via  então  parece 
Gtue  com  a  vêr  mudada  fez  mudança. 
Porque  quanto  ella  triste  antes  tornara 
Com  vê-la  agora  alegre  se  alegrara. 


Para  as  náos  desta  sorte  caminhando 
Com  a  possivel  pressa  e  brevidade, 
Em  mil  partes  alli  vai  encontrando 
De  vários  animaes  grãa  quantidade, 
Q.ue  o  verde  prado  vão  atravessando 
Sem  temor  de  ninguém,  com  liberdade, 
Porque  a  cada  hum  falta  o  duro  imigo 
De  que  mil  vezes  têe  morte,  ou  periga. 


122      OHRAS    »E   FRANCISCO   d'*ANDRADE. 
LXXI. 

Tanto  agora  a  entretém  o  que  vai  vendo 
Q-ue  o  pesado  caminho  menos  sente. 
Nem  muito  caminhou,  que  apparecendo 
Lhe  vão  as  suas  náos,  e  a  sua  gente  : 
K  ja  isto  era  em  tempo  que  escondendo 
De  todo  o  Sol  no  mar  o  raio  ardente 
Toníava  Hespero  no  ar  o  poderio, 
K  na  terra  estendia  o  raio  frio. 

IXXII. 

Encontrando  d^aqui  vai  por  diante 

Os  seus,  que  a  vào  buscando  a  competência, 

A  quem  de  vê-la  o  gosto  foi  bastante 

Satisfação,  da  dôr  da  sua  ausência  \ 

KUa  a  todos  recebe  com  semblante 

Agradecido,  e  cheio  de  clemência, 

K  em  pouco  tempo  á  praia  assi  chegarão 

Onde  todos  de  vê-la  se  alegrarão. 


Tanto  que  lá  chegou,  logo  encaminha 
Para  a  náo,  sem  deter-se  mais  cá  fora, 
K  tanto  que  de  lá  da  onda  marinha 
Fez  levantar  o  Sol  a  nova  Aurora, 
Solta  a  vella  outra  voz,  que  presa  tinha 
O  marinheiro,  e  tendo  ainda  agora 
Favor  (lo  namorado  manso  vento 
Em  Judá  toma  porto  a  salvamento. 


o    PRIMEIKO   CEHCO   DE   DIV.  123 

LXXIV. 

Agora  he  ja  rasSo  que  volte  o  canto 

Onde  saudoso  assaz  Baudur  ficava, 

Mas  tanto  ha  que  o  deixei  que  não  he  espanto 

Se  me  esquece  o  que  lá  fazendo  estava. 

Eu  cuido  que  mandado  tèe  que  em  quanto 

Da  Rainha  a  partida  apparelhava 

Hum  seu  Legado  ao  Cunha  se  partisse, 

Não  direi  ao  que  vai,  porque  ja  o  disse. 

LXXV. 

Parte  este  Embaixador,  o  mar  navega, 
E  com  favor  do  vento  brando  e  amigo 
Em  breve  tempo  a  Goa  em  salvo  chega 
Sem  receber  do  mar  damno  ou  perigo  : 
Falia  ao  Governador,  nada  lhe  nega, 
(lue  isto  nelle  era  ja  desejo  antigo, 
Contente  o  Mouro  o  mar  passa  de  novo 
Para  animar  o  seu  medroso  povo. 

iXXVI. 

Nao  recebe  tal  força,  tal  esprito 
O  raisero  que  estava  condem  nado 
A  hua  morte  cruel,  se  o  seu  delito 
Entende  que  por  dita  he  perdoado, 
Como  o  Sultào  recebe,  quando  dito 
Lhe  foi  do  Embaixador  este  recado, 
O  povo,  antes  tão  fraco  e  tão  nredroso, 
Ja  se  mostra  esforçado,  ja  animoso. 


124      OBRAS    DE   FRANCISCO  d'aND11ADK. 


Vejo  o  Governador  que  se  aconselha, 
A  Goa  o  quero  ir  ver,  porque  lá  o  vejo, 
Ja  a  Cruz  faz  arvorar  branca  e  vermelha, 
Por  cumprir  do  Sultão,  e  o  seu  desejo. 
Gtuâo  bem  lhe  foi  possivel  se  apparclha, 
Com  grãa  presteza,  e  com  fervor  sobejo, 
Porém  tão  grão  poder  então  não  leva 
Q^uanto  o  Sultão  quizera  e  lhe  releva. 

txxviii. 

Era  naquelle  mez  em  que  o  luzente 
Gluarto  planeta  cm  Libra  se  agasalha, 
Q-uando  o  Governador  nobre  e  prudente 
No  mar  a  bem  provida  armada  espalha. 
Grita  o  rouco  Piloto,  diligente 
O  Marinheiro  cm  mil  partes  trabalha, 
A  vella  em  si  recolhe  hum  vento  brando 
Com  que  as  ondas  a  proa  vai  cortando. 

I.XXIX. 

Não  acha  quem  o  impida,  ou  contradiga 
Nesta  viagem  toda  o  grande  Nuno, 
Mostra-se-lhe  a  fortuna  branda  e  amiga. 
Sempre  sereno  o  Ceo,  sempre  opportuno  : 
Também  agora  a  fúria  se  mitiga 
Do  bravo  Eolo,  e  do  húmido  Neptuno, 
E  com  tantos  favores,  tal  bonança 
Em  breve  tempo  em  Diu  ferro  lança. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  1'25 

LXXX. 

GLiiatro  vezes  o  pae  desse  atrevido 
Moço,  que  o  carro  ardente  mal  regAra, 
Na  terra  a  sua  luz  tiuha  estendido 
Antes  que  o  Escorpião  o  recebera, 
Q.uando  no  porto  ja  bem  conhecido 
De  Diu  a  vella  inchada  recolhera 
O  Marinheiro,  e  faz  com  que  se  esconda 
O  curvo  ferro  lá  na  salgada  onda. 


Nos  ares  o  estandarte  logo  voa 
Branco,  vermelho,  azul,  roxo,  amarello, 
A  sonora  trombeta  o  mar  atroa 
Com  som  que  a  orelha  mal  pode  soffrello, 
O  guerreiro  atambor  também  ja  soa 
Q.ue  os  peitos  alvoroça,  ergue  o  cabello, 
A  bomV)arda  que  a  fúria  alli  despende 
Com  pacifico  estrondo,  os  ares  fende. 


Corre  o  Cambaio  povo  polo  muro 
ôue  com  grão  desejo  esta  frota  aguarda, 
O  Mouro  bombardeiro  bem  segíiro 
Santando  n'hua  vai,  n''outra  bombarda  ^ 
Chega  o  ardente  murrão,  traz  elle  o  duro 
Estrondo  luminoso  pouco  tarda  ^ 
Com  differentes  modos  se  festeja 
Esta  armada,  que  tanto  se  deseja. 


LXXXIII. 

Depois  que  esta  fingida,  alegre  guerra 
Na  armada  se  acabou,  e  na  Cidade, 
Q^ue  n"'huns  o  grão  temor  todo  desterra, 
Dobra  n^outros  a  grãa  ferocidade, 
O  Governador  logo  sabe  em  terra 
Com  grãa  pompa,  apparato,  e  authoridade, 
dual  ao  seu  grande  estado  bem  convinha, 
E  para  ir  ver  Elllei  logo  encaminhei. 

LXXXIV. 

ElRei  para  espera-lo  se  apercebe 

Com  tanta  vaidade,  tanto  estado 

Glue  o  pensamento  apenas  o  concebe, 

E  apenas  pí5de  ser  imaginado. 

Comtudo  ao  Cunha,  e  aos  seus  todos  recebe 

Com  alegria,  festa  e  gasalhado, 

Q,ual  lh'o  ensina  o  perigo  em  que  se  via, 

E  o  remédio  que  delles  pretendia.  -  i  '  J^ 

txxxv. 

Faz  que  o  Governador  lá  se  aposente 
Onde  he  da  fortaleza  agora  o  assento. 
Mas  descanse  elle  hum  pouco,  e  a  sua  gentí 
Porque  bem  ha  mister  forças  e  alento, 
Q-uVu  para  cantar  tenho  aqui  presente 
A  fundação  de  Diu,  e  nascimento, 
E  como  veio  a  ser  famosa  tanto. 
Mas  consenti  que  seja  n'outro  Canto. 


o  PltBlIKIRO 

CERCO  DE  DIU. 

C.tMTO  \. 


Declara-se  a  origem  e  assento  da  Cidade  de 
Diu.  O  Governador  edifica  nella  huma  for- 
taleza. Dá  algumas  ajudas  ao  Sultão :  ellc 
vai  contra  os  Mogores.  O  Governador  se 
torna  invernar  a  Goa, 


O 


saber  por  si  só,  a  arte,  a  prudência 
Sempre  teve  tal  força  e  tal  valia, 
Q-ue  mil  vezes  venceo  a  diligencia, 
A  fortaleza,  o  esforço,  a  valentia. 
Porém  se  se  lhe  ajunta  a  experiência 
Q.ue  outro  novo  saber,  outra  arte  cria, 
Também  se  lhe  accrescenla  a  força  e  dobra 
E  tudo  o  que  pretende  põe  por  obra. 


Tal  lif*  esta  força  iinnca  resistida 
<-lue  até  a  mesma  fortuna  lhe  obedece, 
Porque  esta  onde  a  esperança  he  mais  perdiíla 
DiíTerentes  remédios  ofVcrece  :^ 
Ksta  a  consa  mais  vil,  baixa,  e  abatida 
Mil  vezes  sobre  as  grandes  engrandece, 
Tal  que  da  ja  pequena  Aldeia  e  pobre 
Pode  fazer  Cidade  illustre  e  nobre. 


Isto  se  pode  ver  mui  claramente 

Nesta  que  hoje  ha  de  ser  de  mi  cantada, 

A  qual  d^hua  vil,  pobre,  e  baixa  gente 

•la  no  passado  tempo  foi  morada: 

K  depois  com  a  industria  d^hum  prudente 

Varão,  foi  tão  famosa  e  celebrada 

0.ue  a  cabeça  entre  todas  foi  erguendo 

(Quantas  visita  o  Sol  hoje  em  na.sceudo. 


O  sitio  em  que  ella  têe  seu  fundamento 
Polo  mar,  c^hua  ponta  vai  entrando, 
A  qual  hum  rio  (cujo  nascimento 
Vem  lá  da  salgada  onda)  vai  cortando, 
K  que  seja  Ilha  a  faz,  que  em  comprimento 
Duris  legoas  somente  está  mostrando, 
E  lá  na  parte  onde  ella  mais  se  alarga 
Meia  le2:on  somente  se  vê  larga. 


o  PRIMEIUO    CERCO   DE   DIU.  129 


Forão  antigamente  habitadores 
Desta  Ilha,  a  que  hoje  tantas  sao  sujeitas, 
Alguns  poucos,  e  pobres  pescadores, 
Km  pobres  casas,  vis,  baixas,  e  estreitas. 
E  outros  do  mesmo  officio  imitadores, 
Hedes,  barcos,  e  as  cousas  que  sao  feitas 
Para  uso  deste  officio  alli  passarão 
K  aquella  povoarão  accrcscentárão. 

VI. 

Durou-lhe  muito  tempo  aquclle  estado 

Tão  vil,  tão  baixo  e  pobre,  que  então  tinha, 

Sem  ter  nclla  outra  gente  gasalhado 

Senão  a  que  da  rede  se  mantinha, 

l'or  falta  do  cristal  que  liquidado 

S(Mi  curso  para  o  mar  sempre  encaminha, 

K  porque  a  falta  principal  estava 

Lá  no  logar  onde  a  Ilha  se  habitava. 

VII. 

l^orém  como  esta  humana  e  frágil  massa 
Nada  arreceia  para  conservar-se, 
E  por  todo  o  trabalho  grande  passa 
Onde  entende  que  pode  segurar-se. 
Para  esta  Ilha  tão  secca,  e  d^agua  escassa 
Depois  vierão  muitos  a  passar-se  : 
E  passados  são  ja  annos  trezentos 
Depois  que  estes  alli  tèe  seus  assentos. 


130      OURAS   DE   FRANCISCO  D^AKDRADE. 


K  por  fugir  a  mais  craves  perigos 
Aqui  sua  morada  estes  fizerão, 
Lá  d"'onde  os  moradores  seus  antigos 
Antes  com  mais  rasão  fugir  deverão:; 
Porque  os  cruéis  Re/.butos,  que  inimigos 
D'*alheios  bens,  d^alheias  vidas  erão, 
A  terra  arme  então  cora  roubo  e  morte 
Salteião,  sem  que  escape  o  fraco  e  o  forte. 

lic. 

Fácil  foi  isto  á  gente,  que  nao  cura 
Da  pátria,  que  com  medo  despovoa, 
Porque  além  de  passar  por  toda  a  dura 
Cousa,  o  temor  em  que  elle  põe  a  proa, 
A  meia  parte  só  tee  de  largura 
Do  que  a  setta  que  sahe  da  besta,  voa 
O  rio,  que  Ilha  a  terra  está  fazendo 
E  a  partes  mais  estreito  se  está  vendo. 


Aquelle  ajuntamento  dVstrangeira 
Gente,  fez  que  hum  logar  antes  tão  pobre 
Dopois  venha  a  crescer  de  tal  maneira 
Glue  se  converte  em  villa  grande  e  nobre  : 
Mas  d^onde  teve  a  origem  sua  primeira 
Aquella  alta  nobreza,  que  hoje  encobre 
O  resplendor  ao  Indo,  e  Garamanta 
No  que  se  segue,  a  minha  historia  canta. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  131 


Quando  o  Príncipe,  nobre  e  valeroso 

Sultão  Madrafaxao  (<Je  cuja  linha 

Kste  cruel  Baudur,  falso,  enganoso, 

O  terceiro  apoz  elle,  ao  Reino  vinha) 

Sobre  o  Canibaico  Reino  populoso 

O  mando,  o  sceptro  inteiro,  e  o  poder  tinha, 

Foi  cercar  hum  logar  lá  nessa  terra 

De  Mandou,  com  que  então  trazia  guerra. 

XII. 

Os  grossos  esquadrões,  que  de  luzentes 

Armas  cobertos,  o  logar  visitão, 

Não  forão  juntos  sós  daquellas  gentes 

Glue  de  Madrafaxao  o  Reino  habitão  ^ 

De  diversas  nações  e  difterentes 

São,  os  que  neste  cerco  então  militão, 

Q.ue  a  nobre  empresa,  quando  a  fama  estende 

Os  estrangeiros  sempre  chama  e  acende, 

xiit. 

Acaso  succedeo  que  hum  dia  estava 
Daquella  tenda,  ElRei  junto  assentado, 
Em  que  allivio  de  noite  ao  corpo  dava 
Dos  trabalhos  do  dia  carregado, 
Gluando  passa  hum  milhano,  que  cortava 
Com  as  azas,  o  leve  ar  e  delgado. 
Do  ventre  o  peso  immundo  acaso  lança 
Que  a  ferir  a  real  cabeça  alcança. 


132      OBRAS    DE   FRANCISCO   D^ANDRADE. 


ElRei,  que  o  máo  agouro  n'alma  sento, 

Temendo  fica  alguma  adversidade, 

Gtue  sempre  costumou  a  Moura  gente 

Dar  fé  a  semelhante  vaidade. 

Emfim  apaixonado  e  descontente 

Sem  lembrança  da  sua  magestade, 

Bradando  diz,  se  ha  algum  tão  destro  ou  forte 

Q-ue  aquella  funesta  ave  traga  á  morte. 

XV. 

Nao  ha  nenhum  que  ponha  nisto  o  tento, 
Porque  muito  o  milhano  se  afíastára, 
E  tinha-se  por  vão  o  pensamento 
Daquelle  que  alli  então  imaginara 
Com  a  frecha  alcançar,  a  quem  o  vento 
Com  grãa  difficuldade  inda  alcançara  ^ 
Comtudo  não  faltou  híim  que  o  tentasse 
E  que  este  seu  intento  effectuasse. 


LA  na  Tartaria  terra  foi  nascido 

Este  tão  signalado  aquelle  dia, 

Dito  Miliquiaz,  mas  conhecido 

Muito  mais  polas  obras  que  fazia. 

Este,  inda  que  hum  tspaço  assaz  comprido 

Vio  de  si  ao  milhano,  porque  fia 

Em  sua  força  assaz,  destreza  e  manha, 

Tenta  hQa  obra  espantosa,  rara,  e  estranha. 


i 


o    PRIAtSIRO   CERCO    DE   DIU.  133 


AfTerra  o  arco,  a  frecha  entre  os  dedos  prende. 
No  pé  esquerdo  se  afíirma,  e  de  tal  geito 
Para  diante  o  braço  esquerdo  estende, 
E  para  traz  encolhe  o  que  he  direito, 
GLue  o  rijo  arco  á  graa  força  então  se  rende, 
Tanto  o  encurva  que  a  corda  chega  ao  peito, 
E  com  tal  fúria  a  aguda  frecha  lança 
Q,ue  em  breve  espaço  a  misera  ave  alcança. 

XVIII. 

Da  ferrada,  subtil,  leve  madeira 
Passada  a  misera  ave,  desditosa. 
Deixa  dos  leves  ares  a  carreira 
Q-ue  então  foi  por  seu  mal  tão  vagarosa : 
Ditosa  se  então  fora  mais  ligeira, 
Ah  1  se  apressara  o  curso  quão  ditosa  ! 
Mas  não  ha  quem  fugindo  se  defenda 
Da  morte  tão  ligeira,  quanto  horrenda. 

XIX. 

Morto  o  triste  milhano  á  terra  dece 

Com  grão  louvor  do  destro  e  forte  Mouro, 

A  tristeza  d^ElRei  desapparece 

Q.UC  por  livre  se  tèe  do  máo  agouro: 

Ao  Tártaro  honra  muito,  e  favorece, 

Cuida  que  he  pouco  a  prata,  menos  o  ouro 

Para  satisfazer  bastantemente 

Hum  serviço  tão  bom,  tão  diligente. 


134      OBRAS   DE  FRANCISCO   D^ANDRADE. 
XX. 

Descobre  a  sua  grSa  magnificência 
Naquelle  que  o  sérvio  tanto  a  seu  gosto, 
Porém  depois  que  teve  experiência 
Por  obras  que  elle  fez  ante  o  seu  rosto, 
Do  esforço,  do  valor,  siso  e  prudência, 
E  do  mais  que  o  Ceo  tinha  nelle  posto, 
O  desejo  de  honra-lo  se  lhe  dobra 
E  logo  este  desejo  põe  por  obra. 


A  Ilha  de  Diu  o  Tártaro  lhe  pede 
Com  a  povoação  que  dentro  cerra, 
Elliei,  a  quem  aquillo  então  succedc 
Conforme  ao  que  o  seu  peito  dentro  encerra, 
Não  somente  aquella  Ilha  lhe  concede. 
Mas  da-Ihe  também  lá  na  firmo  terra 
Duas  legoas,  ou  três  (segundo  entendo) 
Q-uanto  se  vai  a  mesma  Ilha  estendendo, 

XXII. 

Melique,  que  em  alteza  se  vê  tanta 
Gtue  passa  o  que  elle  estava  desejando, 
Depois  que  ora  o  não  crê,  ora  se  espanta, 
Se  quer  aproveitar  do  novo  mando. 
Vendo  a  disposição  do  rio,  e  quanta 
Fortaleza  na  entrada  está  mostrando, 
E  vendo  a  Ilha  também  da  mesma  sorte, 
Fa7.  nella  hiia  Cidade,  nobre  c  forte. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  135 

XXIII. 

Com  grande  engenho  afaz,  e  com  grande  arte, 

Cerca-a  de  forte  muro,  e  larga  cava» 

Q.UC  toma  da  Ilha  muito  maior  parte 

Do  que  a  povoação  antes  tomava  ^ 

Põe  aqui  a  torre,  alli  o  baluarte, 

Onde  a  necessidade  o  demandava. 

De  grossíi  artilharia  lhe  põe  tanto 

Q/ue  nada  teme,  em  tudo  cause  espanto. 


Aquelle  baluarte  que  hoje  em  dia 

Com  nome  de  Couraça  se  conhece 

Hua  grossa  cadeia  despedia 

Do  metal  a  que  todo  outro  obedece, 

Q.ue  lá  até  o  baluarte  se  estendia 

Com  que  o  mar  se  defende  e  fortalece, 

E  a  força  do  pesado  cabrestante 

Faz,  com  que  ella  se  abaixe  e  se  alevanto. 


Q.uasi  cm  meio  do  rio  alli  creára 
De  pedra  hiia  restinga  a  natureza, 
líá  na  boca  da  barra,  que  ajuntara 
A  este  forte  logar  mais  fortaleza. 
Do  mar  o  baluarte  aqui  assentara 
Sobejo  em  comprimento  e  na  grandeza 
O  Tártaro  prudente,  e  o  forteíica 
Chua  torre  que  cm  meio  lhe  edifica. 


136      OBRAS   DE   FRANCISCO   D^ANDRADE 


E  além  da  força  qiie  por  beneficio 
Da  natureza  ja  tinha  esta  entrada, 
Gluiz  que  fosse  também  com  artificio 
A  força  natural  accrescentada, 
E  para  isto  ordenou  hum  edifício, 
Lança  da  terra  firme  hua  estacada 
De  tão  rija  madeira,  forte  e  grossa, 
Glue  qualquer  grande  força  deter  possa. 

xxvii. 

Esta  grossa  estacada,  de  tal  arte 

Melique  póz  (que  aquillo  bem  entende) 

Glue  ficasse  lançada  pola  parte 

De  fora,  porque  encerra  em  si,  e  defende 

Melhor,  do  mar  o  grande  baluarte  ^ 

A  qual  até  o  canal  quasi  se  estende. 

E  põe-lhe  ao  longo,  porque  nada  a  abrande. 

De  grandes  pedras  soltas  copia  grande. 


Feita  a  Cidade  ja  tão  forte  e  brava, 
Melique,  de  mui  grossos  Mercadores 
Em  breve  tempo  a  encheo,  porque  lhes  da^ 
Licenças  em  seus  tratos,  e  favores. 
E  d^hum  pobre  logar  que  agasalhava 
En»  si  somente  pobres  Pescadores, 
Veio  a  ser  a  melhor  Cidade  agora 
Das  que  o  sitio  lá  têc  junto  da  Aurora. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.      137 
XXIX. 

Vendo  depois  o  Mouro  que  a  opulência 

Crescia  na  Cidade  cada  dia, 

E  o  concurso  daquelles,  e  frequência 

Glue  alli  tinbão  seu  trato  e  mercancia^ 

Sendo  tal  seu  saber,  sua  prudência, 

tine  em  tudo  proveo  sempre  o  que  cumpria, 

Por  evitar  a  males  que  imagina 

Fazer  outro  edifício  determina. 

XXX. 

Fronteiro  a  esta  Cidade  que  nomeio 
Lá  da  parte  onde  a  firme  terra  fica. 
Está  lium  legar  de  branca  areia  cheio, 
Hua  Villa  aqui  o  Tártaro  edifica  \ 
A  qual  para  de  nada  ter  receio 
Com  grosso  muro  cerca  e  fortefica, 
E  tal  foi,  que  podiao  neste  assento 
Bem  mil  visinhos  ter  recolhimento, 

f  XXXI. 

A  causa  que  moveo  a  este  prtidente 
Tártaro,  a  que  esta  Villa  edificasse, 
Foi  6o,  para  que  em  quanto  a  Turca  gente 
Do  Estreito  do  Mar  Roxo  navegasse 
Vara  a  Diu  vir  ter,  quicítaniente 
Naquella  villa  alli  se  agasalhasse, 
Folas  grandes  revoltas  que  causavao 
Com  que  a  nova  Cidade  inquietavào. 


XXXII. 

E  porque  aquelle,  a  quem  a  soberana 
Providencia,  hua  loura  cor  têe  dado, 
]Na  barbara  linguagem  Indiana 
Com  próprio  nome  seu  Rume  he  chamado; 
E  aquelle  que  nasceo  lá  na  profana 
Turquia,  desta  cor  loura  he  dotado, 
D^aqui  esta  nova  Villa  que  estou  vendo 
A  dos  Rumes  se  diz,  segundo  entendo. 


Ficarão  deste  Tártaro  animoso 

Dous  filhos,  quando  a  morte  o  senhoreia, 

Hum  Melique  Tocão,  mui  valeroso, 

Outro  Melique  Sacia  se  nomeia: 

Mas  o  cruel  Baudur,  e  cubiçoso, 

Glue  tanto  bem  não  soífre  em  mSo  alheia, 

Com  grandes  crueldades  nunca  ouvidas 

A  Cidade  lhes  toma,  e  tira  as  vidas. 

XXXiV.  * 

Pcrdoa-me  deter-me  por  cá  tanto 
Illustre  Nuno,  sem  ir  ter  comtigo, 
Q-ue  também  cá  te  sirvo  no  que  canto, 
Também  nisto  te  sou  fiel  amij^o ; 
Pois  tanto  dá  mor  honra,  e  mor  espanto 
O  vencer,  quanto  foi  mais  forte  o  imigo, 
E  eu  quiz  mostrar  qual  foi  o  que  tiveste 
Para  que  saiba  o  mundo  a  quem,  venceste» 


o    PílXMBiRO   CEKCO   Bfi   Iit\J\  Í39 


iPoi  toda  a  Christaa  gente  agasalhada 
Em  aposento  pobre,  e  mal  composto, 
Glue  era  dos  bombardeiros  a  morada, 
E  d'outros  a  quem  era  o  cargo  posto 
Daquella  artilharia  que  espalhada 
Por  alguns  baluartes,  que  seu  posto 
Tèe  naquelle  logar,  então  estava, 
Porque  aqui  a  Cidade  não  chegava^, 

XXXVl. 

Poucas  vezes  aquelle  soberano 
Planeta,  que  o  triste  ar  negro  desterra*, 
Descansara  nos  braços  d''Oceano 
E  viera  com  nova  lei  á  terra, 
Quando  o  Governador  com  esse  tyrano 
Baudur,  fez  alguns  pactos,  com  que  a  guerta 
Se  acaba,  que  durou  ja  tantos  mezes, 
E  a  amizade  acceitou  dos  Portuguezes. 

XXXVII. 

A  condição  primeira  d'amizade 
Foi  que  Sultão  Baudur  então  consente 
Glue  ElRei  de  Portugal,  com  que  irmandade 
Agora  tinha  feito  novamente, 
Faça  hua  fortaleza  na  Cidade 
De  Diu,  e  ponha  nella  sua  gente, 
I  E  quer,  para  que  mais  segura  fique, 
I  Q-ue  onde  está  a  barra  e  a  entrada  se  edifique. 


XXXVIII. 


Do  mar  o  baluarte  lhe  concede, 
(Pouco  ha  que  tratou  delle  a  historia  minha), 
Mas  para  si  os  canhões  reserva  e  pede, 
Que  nelle,  e  no  da  barra  postos  tinha. 
Na  Cidade  porém  lhe  tolhe,  e  impede, 
JíA  no  que  ao  regimento  seu  convinha 
Todo  o  mando  e  acção,  e  so  permitte 
Gtue  soja  a  fortaleza  o  seu  limite. 


Além  de  lhe  tirar  o  regimento 
Da  Cidade,  e  que  nolla  não  mandassem, 
Q.UÍZ  dos  nossos  também  consentimento 
Q-ue  as  suas  náos  os  mares  navegassem 
Sem  na  viagem  ter  impedimento, 
JVíem  nas  mercadorias  que  levassem, 
E  que  estas  náos  por  onde  quer  que  iriíío 
Seguros  se  os  quizessem,  levarião. 


Assignado  isto  assi  de  parte  a  parte 
Com  outras  condições  que  aqui  não  digo. 
Se  funda  a  fortaleza  com  tal  arte 
Gtue  excedeo  o  presente  tempo,  e  antigo : 
Fez-se  primeiro  hum  grande  baluarte 
Tal  que  não  temeria  hum  forte  imigo, 
O  qual  daquelle  Santo  foi  chamado 
Glue  não  crco  sem  mclter  a  mão  no  lado. 


o   PRIMEIRO  CERCO   DE  DIU.  141 

XLI. 

O  nome  deste  Santo  lhe  puzerao 
Porque  se  começou  naquelle  dia 
Q.ue  os  seus  duros  martírios  merecerão 
Levanta-lo  á  Celeste  Monarchia. 
Traz  este  baluarte  outro  jBzerão, 
Também  tão  forte  e  grosso,  que  podia 
Ter  contra  hum  grão  poder  direito  o  rosto, 
Foi-lhe  de  Santiago  nome  posto, 

XLII. 

Fez-se  apoa  isto  quanto  relevava 
l*ara  mor  segurança,  mor  defeza  : 
Muro  alto,  parapeito,  ameias,  cava, 
Q.ue  tudo  acaba  a  gente  Portugueza. 
Toda  a  gente  nesta  obra  trabalhava 
Q-uanta  ao  Governador  naquella  empresa 
S<'guíra,  e  em  pouco  tempo  se  fez  tanto 
Uue  até  nos  que  o  fizerão  pôz  espanto. 

XLUI. 

E  em  quanto  se  fazia  este  edifício 
Betando  ElRei  presente  na  Cidade, 
Kào  cessa  dos  Mogorcs  o  exercicio, 
Não  cessa  a  costumada  crueldade  :; 
Roubos,  mortes,  e  todo  o  malefício 
Executão  sem  terem  piedade, 
E  tão  ricos  andavão  que  o  mais  pobre 
Era  então  liberal,  era  então  nobre. 


142     OBRAS   DE  FRANCISCO  d''aNDRAD£. 
XLIV. 

K  tamanho  era  o  medo  que  espalhado 

Naquella  terra,  aquelle  imigo  tinha, 

Q-ue  o  que  alli  tinha  o  seguro  assento  amado^ 

No  amado  assento  enlao  não  se  detinha  ^ 

Mais  de  temor  que  amor  estimulado 

Glual  fugindo  de  lá  a  Diu  se  vinha 

Qual  para  outro  logar  se  vai  direito, 

O  temor  então  guia  todo  o  peito. 


De  náos  grãa  companhia  navegando 

Vai  com  favor  do  vento,  e  da  ventura, 

Glue  d'hum  porto  sahirão  juntas,  quando 

As  espalha  a  tormenta  brava  e  dura  : 

Esta  hum  porto,  aquella  outro  vai  buscando 

Onde  cuida  que  pode  estar  segura, 

Tal  esta  gente  se  me  representa 

Glue  espalha  do  Mogor  a  grãa  tormentat 

XLVI. 

Este  intrínseco  medo,  esta  fraqueza 

Q.ue  fugir  estes  tristes  constrangia 

Da  brutal,  inimiga,  alta  crueza. 

Foi  causa  então  que  quando  se  fazia 

Aquella  Lusitana  fortaleza, 

De  gente  grande  copia  alli  se  via. 

Lá  na  Ilha,  na  Cidade,  e  em  toda  a  terra/ 

De  que  quarenta  mil  erão  de  guerra. 


o   PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  l43 


B  com  quanto  Iiia  em  tanto  crescimento 
Aquella  fraca  gente,  miserável, 
Q.ue  quasi  lhe  faltou  recolhimento 
Por  ser  ella  ja  quasi  innumeravel : 
Não  lhe  faltou  comtudo  o  mantimento, 
A  terra  não  o  dá  (cousa  admirável), 
Mas  de  fora  lhe  vem  cópia  tamanha 
Q.ue  farta  a  natural,  e  a  gente  estranha. 

xlviii. 

Baudur,  quiçá  por  ver  se  agora  o  engana 

Esta  amizade  feita  novamente 

Com  gente  estranha,  e  queelle  hapor  profana^ 

Pede  ao  Cunha  que  queira  alguma  gente 

A  Barouche  mandar  da  Lusitana, 

Q-ue  d'hum  imigo  a  livre  tão  potente, 

E  que  elle  mandará  dos  seus  soldados 

De  que  vão  os  Christãos  acompanhados. 

XLIX. 

Barouche  era  Cidade  situada 
A  vista  do  mudável  Oceano, 
Então  deste  Baudur  senhoreada 
Tão  fraco,  quão  soberbo,  quão  tyrano. 
Do  cruel  Mogor  inda  não  tocada, 
Inda  em  salvo  daquelle  commum  dano. 
Mas  dizião  que  delles  hua  parte 
Guiava  para  lá  seu  estandarte. 


144 


Mostra  o  Governador  que  lhe  contenta 
Fazer  o  que  ElRei  quer,  porque  comsigo 
Determinado  têe,  e  em  tudo  assenta 
Mostrar-se-lhe  fiel,  perfeito  amigo : 
Manoel  de  Macedo,  com  setenta 
Homens  manda  ajuda-lo  em  tal  perigo: 
Manda  ElRei  muitos  seus,  que  nesta  empreza 
Acompanhem  a  gente  Portugueza. 

LI. 

Esta  tal  companhia,  que  pudera 
N'hum  fraco  esprito  pôr  altos  conceitos, 
E  a  gente  que  Barouche  de  si  dera 
Gl^ue  por  si  só  acabara  grandes  feitos, 
Assaz  esta  Cidade  defendera 
Sc  aquelles  feminis,  covardes  peitos 
Tal  medo  não  cobrarão  aos  Mogores 
Glue  só  o  nome  os  fazia  vencedores. 

LII. 

Em  vao  foi  o  soccorro  do  Macedo 
E  o  da  gente  que  lhe  era  companheira, 
Porque  alli  mais  podia  o  antigo  medo 
Q.ue  a  força  natural,  nem  a  estrangeira. 
Nenhum  pára  alli  mais,  ou  está  quedo 
Vendo  na  terra  erguer  hua  poeira. 
Porque  o  Mogor  só  cuidão  que  a  levanta 
Cujo  nome  somente  os  tanto  espanta. 


o   PRIMBIRO  CERCQ    DE   DIU.  145 


mi. 

O  nobre  PortugueZj  forte  e  animoso 
A  quem  tanta  fraqueza  em  ira  inflama. 
Desejando  de  ver  se  este  espantoso 
Mogor,  tèe  as  obras  quaes  a  fama,  , 

Trabalha  por  deter  este  medroso  ^^.^  ,v,.f! 
Povo,  que  a  vida  mais  que  sua  honra  aiBay 
Mas  trabalhas  em  vão,  segundo  creio,  ,r 

Porque  nada  detém  a  hum  grão  receio,      ^J 

LlV. 

Nunca  com  tanta  pressa  a  baixa  gente 
Q.ue  no  cerrado  corro  o  touro  aguarda,       y 
Voltou  as  costas  quando  ouvio  somente  , 

As  vozes  do  que  grita  :  Guarda,  guarda  ^ 
Ja  cuida  que  o  animal  nas  costas  sente, 
Corre  ligeira,  e  cuida  inda  que  tarda  ^ 
Como  estes  tèe,  que  a  terra  desampárao      . 
Só  co^o  que  da  poeira  suspeitarão.  -rr 


Deixão  a  amada  pátria  á  gente  imiga, 
Desejo  de  viver  tudo  despreza, 
Macedo  ja  não  sabe  que  lhes  diga, 
Nem  pode  remediar  tanta  fraqueza  \ 
Deixa  usar  o  Mogor  da  sua  antiga 
Victoria,  e  executar  sua  crueza^ 
Em  fim  elle  a  Cidade  também  sdlta 
QiUe  guardar  só  não  pôde,  e  a  Diu  volta» 


i4t. 

Outra  v<'Z  ímpòfttina  o  Rei  Ckhibíiio' 
Outra  ve/  o  sotcorre  o  nbvo  nmiçò, 
K  manda  a  Vascí>  Pire»  de  Sampaio 
Com  navios  por  mar,  o  quitl  coinsÍ5;o 
Duzentos  hoinens  leva,  em  quem  desmaio 
A  nVorfe  núticâ  "pòz,  nem  graó  pprigo, 
K  a  maiores  empresas  eoStumado» 
Q.XW  eíjla  para  que  agora  bííò  íháiltfados. 

Este  Ódípitao  íbrfe  L#usitaíio 
"Vai  de  Cojaçofar  acompanhado, 
Q.ue  nasceo  entYe  o  povo  Italiano, 
K  lio  Santo  L/ieôr  ja  foi  banhado*, 
Ma»  o»  erros  des|x>is  segtiio,  e  o  engano 
G.ue  aqnelle  enganador,  faíso,  malvado 
Mafamede  ensinou,  deixando  a  Santa 
Fe,  que  as  almas  ao  alto  Ceo  levanta. 

tvkii. 

P''Mdente  era,  e  sag;iz  e^e  e  atrevido, 

1/..  guerra  tinha  grão  eonheeímenlo. 

Da  fortuna  era  assaz  faVorccido 

Q.ue  em  riquezas  lhe  deu  gruo  èteseirhCnto  •, 

Em  tudo  sen  desejo  vio  cumprido, 

E  tinha  dentro  em  Diu  seu  assento. 

l^ste  mil  lioinens  leva  em  companhia 

Dos  qtiaes  huns  Pérsia  deUj  outros  Turquia. 


o    PRIMXIRO    CERCO    DE  DIU.  14i 

LIX« 

Blsta  gente  tão  vária  em  pátria,  em  vida, 
Em  costumes,  em  lei,  e  em  tudo,  agora 
Se  ajunta,  e  a  combater,  conforme  e  unida 
Chega  a  huma  fortaleza,  que  nesta  hora 
He  de  bem  pouca  gente  defendida, 
Mas  tal  que  hum  grande  esforço  nella  mora, 
Sós  trezentos  Mogores  encerrava, 
I/'i  junto  do  rio  Indo  posta  estava. 


Mas  tal  era  o  temor  que  o  Turco  e  o  Persa 

Ja  desta  imiga  gente  concebera, 

E  cila  era  nisto  delles  tão  diversa 

Que  por  mais  que  hoje  o  imigo  a  combatera, 

Se  mostrara  a  fortuna  emfim  adversa 

A  gente  de  Baudur  que  a  isso  viera, 

Senão  tivera  então  por  defensores 

Os  Lusitanos  braços  vencedores. 

LXl. 

Não  faltou  aos  Cambaios  diligencia 

Em  meio  deste  seu  grande  arreceio, 

l'õe  escudas  no  muro,  c  a  competência 

A  subir  cada  hum  por  ellas  veio  : 

Mas  achão  no  Mogor  tal  resistência 

Glue  nenhum  subir  pode  bem  ao  meio, 

O  medo,  e  o  ferro  imigo  podem  tanto 

Q-ue  huus  faz  descer  a  morte,  outros  o  espanto. 


148      OBRAS    DE 


O  lim  da  luz  que  o  Sol  tivera  aceza 

Fez  então  apartar  estes  imigos, 

Com  grande  honra  da  gente  Portugueza 

i^ne  nunca  duvidou  grandes  perigos^ 

Tambein  se  signalárão  nesta  empreza 

Os  Turcos,  que  também  são  de  honra  amidos. 

Cinco  perdeo  Sampaio,  e  se  lamenta, 

E  Cojaçofar  mais  de  eincoenta. 

txiil. 

Os  Mògorcs  também  sentirão  dano, 
Do  seu  sangue  também  forão  banhados, 
Muitos  o  ferro  Turco,  e  o  Lusitano 
Deixou  sem  vida,  e  muitos  maltratados: 
K  assi  tanto  que  o  Sol  lá  no  Oceano 
Seus  raios  escondeo  claros  dourado», 
Os  que  do  dia  salvos  escaparão 
De  todo  a  fortaleza  desampárâo. 

LXI V . 

A  gente  do  Sultão,  e  a  que  foi  dada 
Ao  mundo,  lá  na  terra  do  Ponente, 
Tanto  que  o  Sol  a  nova  luz  dourada 
Veio  mostrando  lá  polo  Oriente, 
Vendo  de  todo  ja  desamparada 
A  fortaleza,  desta  imiga  gente, 
Se  tornão  a  embarcar,  e  o  mar  navegão 
K  com  prospero  tempo,  a  Diu  chegão. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  149 


í\)rrida  neste  tempo  a  terra  tinha 
De  Cambaia  o  Mogor,  e  a  saqueara, 
Até  ches^ar  áquolla  que  visinha 
De  Diu  está  seis  legoas,  c  aqui  pára. 
I'L  correr  também  esta  entào  «ão  vinha 
<J'om  temor  da  invencivel  força  rara 
Dos  Portuí^uezes,  que  ella  dentro  encerra 
Com  que  estava  segura  aquella  guerra. 


M;is  como  ja  corrido  o  mais  tivesse 
Com  sobeja  cubica  e  atrevimento, 
Sem  deixar  cííusíi  em  que  atfent^r  podcsse 
Lida  o  mais  cobiçoso,  ou  avarento^ 
K  de  riquezas  farto  assi  estivesse 
<4ue  lhe  hia  tendo  ja  aborrecimento, 
]'«juco  a  pouco  este  Reino  foi  deixando 
Ij{\  para  a  amada  pátria  encaminhando. 

LXVIl. 

Ja  se  mostra  o  Sultão  mui  animoso, 
A  atiseneia  do  Mogor  o  faz  ousado. 
Do  mal  dos  seus^,  agora  he  piedoso, 
Agora  sente  vêr-se  deshonrado. 
Q.uanlo  o  rosto  do  imi^o  o  fez  medroso 
Tanto  as  costas  o  fazem  esforçado. 
Disse  ao  Governador  que  elle  ir  seguindo* 
(iuer  o  imigo  Mogor  que  vai  fugindo.'' 


1Í>0      OBRAS   DE   FRANCISCO   d'aNDIIADE. 


Mas  que  sem  seu  favor  elle  iiao  ousa 
Commetter  so  co''os  seus  este  caminho, 
Nem  fará  algíia  grande  e  honrada  cousa 
Contra  o  Mogor,  que  têe  inda  visinho, 
Se  lhe  não  der  aquelle  ousado  Sousa 
Q-ue  têe  por  nome  AíFonso  apoz  Martinho, 
Q-ue  leve  companheiro  na  jornada 
Porque  com  tal  favor  não  teme  nada. 

txix. 

E  se  este  lhe  não  dá,  que  dar-lhe  queira 
Mil  homens,  entre  aquelles  escolhidos 
Q.ue  seguem  a  temida,  alta  bandeira 
De  Lusitânia,  e  lá  forão  nascidos. 
Nem  esta  petição,  nem  a  primeira 
O  Cunha  recebeo  com  bons  ouvidos. 
Suspenso  fica  assaz,  porque  nem  ousa 
Mandar  aquella  gente,  nem  o  Sousa» 


Mas  porque  em  tal  negocio  nao  queria 
C()'o  seu  conselho  so  determinar-se, 
Faz  ajuntar  a  nobre  companhia 
Com  quem  era  costume  aconselhar-se  ^ 
Pergunta-lhe  que  modo  se  teria 
Para  que  se  escusasse  aventurar-se 
Ou  a  gente,  ou  o  Sousa  a  tal  perigo, 
E  para  não  perder  ElRei  d'amigo. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIV.      151 
LXXI. 

De  tanta  confusão  fica  então  cheio 

Cada  hum,  quanta  o  Cunha  antes  ja  tinha, 

Q-ue  de  tentar  o  Sousa  têe  receio, 

E  mandar  os  mil  homens  não  convinha. 

Q-uando  o  animoso  Sousa  posto  em  meio 

Vendo  que  so  por  elle  se  detinha 

Isto  que  tanto  importa,  ousado  e  forte 

Solta  a  \oz  para  o  Cunha  desta  sorte : 


Pudera  eu  com  rasao  hoje  aíFrontar-mc 
Ou  ao  menos  estar  de  vós  queixoso. 
Senhor,  pois  duvidaes  encarregar-me 
Do  ncf^ocio  que  haveis  por  perigoso. 
Sabendo  que  nenhum  ha  que  mais  arme 
Ao  peito  ibrte,  d'honra  desejoso, 
Ôue  aquelle  que  a  maior  perigo  o  chama, 
Porque  este  sempre  deu  mor  honra  e  fama. 

txxiii. 

Não  he  do  Portuguez  passar  a  idade 
Entre  delicias,  entre  mimo  e  viço, 
Mas  buscar  sempre  a  mor  dilficuldade 
Por  honra  do  seu  Rei,  c  por  serviço  ^ 
E  eu  a  vida,  a  pessoa,  a  liberdade 
Para  as  perder  por  isto,  só  cubico, 
E  quanto  este  perigo  maior  vejo 
Tanto  ja  vêr-me  uello  mais  desejo. 


loá   OBRAS  DE  FRANCISCO  D  ANDRADE. 


Se  isto  quereis,  Senhor,  satisfa/.er-me, 
De  que  eu  corrido  estou,  mais  que  obrigado, 
Pois  menos  mal  he  o  risco  de  perder-me 
€tue  perder  a  occasiào  de  mais  honrado, 
Somente  pude  ser  com  conceder-me 
Q.ue  o  Sultão  vá  de  mi  acompanhado. 
Porque  mais  na  honra  vai  do  Lusitano 
Nome,  que  no  meu  bem,  ou  no  mou  dano. 


Apoz  estas  palavras,  que  com  tanta 
Instancia  disse  o  Sousa,  e  atrevimento, 
!Lo2;o  o  Governador  a  voz  levanta 
Perante  aquelle  nohre  ajuntamento; 
E  seus  louvores  hum  espaço  canta, 
Nem  he  entào  de  palavras  avarento 
A  tamanho  serviço,  e  tão  notório, 
Lto  mesmo  faz  todo  o  consistório. 


Nem  somente  a  jornada  lhe  concede 
Cunha,  mas  quanto  pode  Ih^i  agradece. 
Nada  lhe  nega  ewtão  do  que  lhe  pede, 
0.ue  muito  mais  cuida  inda  que  merece. 
Com  isto  o  ajuntamento  se  despede, 
E  ja  por  toda  a  parte  se  engrandece 
IVste  Illustre  Varão  o  esforço  raro 
Uue  nesta  obra,  e  em  mil  outras  se  vio  claro. 


o  PAIMEIKO   CERCO   DE   DIU.  Í,á'Jk 

X.XXVII. 

A  pparelha<ía  Já  Gomo  cumpria 

Sousa,  para  o  Sultiío  faz  logo  abalo, 

JC  os  que  levava  em  sua  companhia 

Erâo  bem  quarenta  homens  de  cavalo  : 

São  dez  da  Lusitana  fidalguia 

Cujos  nouíes  não  sei,  por  is.so  os  calo,-         n»;M 

E  mais  porque  seus  braços  não  vencidos   ,      'í 

Os  fazem  mais  que  os  nomes  conhecidos, 

LXXVIII. 

Chegados  ao  Sultão,  os  agasalha  ;».:i.> 

C«)m  mostras  d'amor  grande  e  verdadeira^  i.T. 
Polo  Reino  d^alli  logo  se  espalha 
<-iue  ousado  faz  o  novo  companheiro. 
D'hua  parte  para  outra  se  trabalha 
Grão  tempo  sem  parar  hum  dia  inteiro, 
Mas  do  iníigo  Mogor  não  houve  vista 
Nem  outra  cousa  achou  que  lhe  resista. 

IXXIX. 

Até  que  hum  dia,  quando  o  costumado 

Pasto,  o  corpo  mortal  de  nós  recebe. 

Eis  que  se  lhe  chega  hum  Ião  apressado 

Q,ue  apenas  os  usados  are»  bebe; 

E  inda  co'o  tom  da  voz  mal  declarado 

lihe  diz:  Com  grande  presrvi  te  apercebe,       > 

Scjdior,  ptirque  os  Mogores  tèes  tão  prrto,    '  ? 

iiue  quiçá  lhe  serás  ja  descuberto.  ' 


154      OBRAS  SE   VAANCISCO   d''aNDRADE. 


Nesta  gente  nao  vem  (segundo  tinha 
Este  homem  dito)  o  próprio  Rei  imigo, 
Porém  hum  seu  irmão  era  o  que  vinha 
GLue  oito  mil  de  cavallo  traz  comsigo. 
Nao  tèe  gente  Baudur  quanta  convinha 
Para  se  defender  d"'hum  tal  perigo, 
Porque  a  gente  que  então  o  acompanliava 
De  tros  mil  de  cavallo  não  passava. 

LXXXI. 

Grandemente  o  Sultão  se  sobresalta, 
Ja  o  combate  o  temor,  ja  não  repousa, 
E  inda  que  em  casos  taes  sempre  lhe  falta 
Ousadia,  hoje  mais  do  que  soe  ousa. 
Cobre-se  d^armas,  a  cavallo  salta, 
Manda  logo  chamar  o  nobre  Sousa, 
Sem  cujo  parecer,  sem  cuja  ajuda 
Nem  atraz,  nem  avante  o  passo  muda. 


Sousa,  no  qual  tonior  não  se  aposenta, 
Com  grande  pressa  a  sua  gente  ajunta, 
Perante  o  Sultão  logo  se  apresenta, 
Q.ue  cuberto  vio  d'hua  cor  defunta. 
Elle  que  assaz  de  vê-lo  se  contenta, 
E  cobra  a  cor  perdida,  lhe  pergunta 
ôue  devia  fazer-se  agora  nisto 
Pois  no  logar  o  imigo  era  ja  visto. 


o    VmSlEIRO   CEKCU    UE   DlÚ.  1^^ 


LXXXlll. 


Acaso  n'h»im  logar  so  agasall\ava. 
Kiitão  El  Rei,  o  qual  tinha  defronte 
Mum  outeiro,  que  ao  Cco  tanto  se  al<j'ava 
<4.ue  bem  pudera  ter  nome  de  rat)nte  ; 
Recolhida  ja  em  cima  delle  estava 
í^om  medo  que  o  JVIogor  a  nao  affroiitc, 
Muita  da  eomarcãa  rústica,  gente 
No  sexo,  e  nas  idu(lt:8  4f,fífcrG"to. 


\'^endo  o  Sousa  que  alli  grande  apparelho 
l*odia  ter  El  Rei  para  vaíer-se,  .        ■ 
E  sem  fazer  de  saugue  o  chíío  vçrníí<^l,ho, 
Se  fosse  acconmiettido,  dofender-se, 
Llie  disse  que  seria  bom  conselho 
l*ara  aquelíe  alto  outeiro  recolher-se, 
Onde  a  fúria  do  imigo  deshumano 
Poderia  esperar  sem  uçnhum  dano. 


E  que  o  I\íogor  quiçá  nao  ousaria 

Do  outeiro  commetter  a  alta  suljida, 

Cuidando  que  a  pedestre  com[xanhia 

Era  gente  de  guerra,  o  não  fugida. 

Tanto  agrada  ao  Sultão  isto  que  ouvia 

W-ut?  logo  executa-lo  não  duvida,  '  , 

Parte  logo  d''alli,  chega  lá  acima, 

Louvando  o  Sousa,  e  tendo-o  em  grande  csl.ínia, 


IXXXVI. 

Arribados  ao  alta  apenas  erSa 

O  Sultão  com  a  saa  gente,  quando 

Os  Mogores  ao  campo  apparecêrSo 

Q-ue  o  logar  forão  todo  atravessando. 

E  como  ElRei  no  outeiro  conhecerão 

Passando  pola  fralda  o  vão  deixando, 

Vendo  o  logar,  e  aquelles  que  a  pé  estavSo, 

€lue  todos  ser  de  guerra  imaginaVão. 


Sousa,  vendo  e  pesando  então  comsigo 
Esta  ida  do  Mogor,  sem  outro  eífeito, 
Apesar  do  Sultão,  que  a  tal  perigo 
Mal  podia  soffrer  vê-lo  sujeito, 
Se»  aparta  delle  a  ver  se  deste  imigo 
Q.uiçá  agora  entender  pode  o  eonceita, 
E  o  Capitão,  e  alguns  vio  apartar-se 
Q.ual  soe  fazer  quem  quer  aconselhar-se. 


Pouco  traz  isto,  vê  que  a  gente  volta, 

E  no  logar  entrando  d"*odio  cheia, 

De  sangue  enchendo  a  terra,  e  de  revolta^ 

E  de  gritos  os  ares,  a  saqueia  : 

O  Sousa  em  ira  e  dor  tendo  a  alma  envolta 

Porque  hum  tamanho  mal  não  remedeia. 

Descera  a  castigar  tal  crueldade 

Se  tivera  o  poder  qual  a  vontade. 


o    PIllMKIUO    CERCO    DE   DIU.  í  37 


Rico  e  victorioso,  e  ja  em  batalha 
Posto  o  Mogor,  d^alli  desapparece, 
K  porque  então  no  mar  ja  se  agasalha 
O  Sol,  também  ElRei  ao  campo  dece :, 
Vendo  que  o  caminhar  nada  lhe  atalha 
Ja  para  Diu,  em  breve  lá  apparece, 
Onde  despede  o  Sousa,  e  a  sua  gente 
Pagos  de  sen  trabalho  largamente. 


Vendo  o  governador  que  com  superno 
Favor,  tinha  acabado  seu  intento, 
E  que  era  isto  ja  em  Marco,  quando  o  inverno 
Bííte  ás  portas  do  oriental  assento  ^ 
Q.uerendo-se  tornar  ao  seu  governo 
Levanta  o  ferro,  solta  a  vella  ao  vento, 
Volta  a  popa  á  Cidade,  ao  mar  a  proa, 
E  torna-se  a  invernar  na  nobre  Gwa- 


Mas  para  dar  a  esta  obra  segurança, 
Porque  do  novo  amigo  não  se  fia, 
A  Manoel  de  Sousa  (a  quem  a  lança 
Imiga,  pouco,  ou  nunca  resistia) 
Da  fortaleza  deu  a  governança, 
E  oitocentos  lhe  deixa  em  companhia 
Portuguezes,  d** esforço  grande  e  raro. 
Muitos  de  sangue  illustre,  antigo  e  claro. 


1o8       OBRAS    DE    FRANCISCO    D^NDRADF.. 


Noste  tempo  o  Mogor  enfastiado 
De  presas,  de  victorias,  de  riqueza, 
^'endo  que  Orlo»  ja  soljcrbo  e  armado 
Começava  a  mostrar  sua  braveza, 
K  o  Ceo  de  grossas  nuvens  negro,  e  incliado 
]\i ostra  do  inverno  a  fúria,  e  a  tristeza, 
\i\i  buscando  apressado  a  pátria  antiga 
K  deixa  aquella  fraca  terra  imiga. 

XCIIÍ. 

Baudar  vendo  de  todo  em  salvo  postas 
Suas  terras,  e  o  imigo  n'outra  praia 
(iue  tantas  vezes  ja  lhe  vio  as  costas, 
E  levou  os  despojos  de  Cambaia :; 
K  entendendo  que  estavão  ja  dispostas 
l*ara  que  livremente  elle  entre  e  saia, 
Cobra  espiritos  de  novo,  e  ja  se  esforça, 
l)á-lhe  a  falta  do  imigo  alento  e  força. 

xciv. 

Por  cá,  por  lá,  por  monte,  valle  e  serra 
Entra  (qual  soe)  soberba  e  ousadamente. 
Discorre  ja  seguro  pola  terra 
Em  que  então  resistência  ja  nao  sente  ^ 
Onde  alguns  alvoroços,  de  que  a  guerra 
Passada  causa  foi  á  sua  gente, 
Elle  quieta,  ordena,  clle  assocega, 
Tudo  por  onde  passa  se  lhe  entrega. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE    DIU.  j  o9 

XCV. 

.M;uns  (los  principies,  que  tios  passados 

\  >  -^baratos  s;dvar-se  então  puderão, 

li  em  differontes  pjtrtes  retirados 

Todo  o  tempo  das  guerras  estiverâo, 

Vendo  os  imigos  ja  tiJo  apartados 

A  seu  Senlior  de  novo  se  vierão, 

Com  que  foi  restaurando  o  estado  antigo, 

Até  que  o  Reino  vio  sem  guerra  e  imigo. 

xcvi. 

Alguns  Reinos,  que  com  innnmeravel 
Força  ganhou,  soberba  e  crueldade, 
Vendo  que  lhe  era  o  tempo  favorável 
Para  cobrar  a  antiga  liberdade, 
K  tirar-se  d^hum  jugo  intolerável 
Estrangeiro,  tyranno,  sem  piedade, 
Negão-lhc  a  obediência  que  a  lyrana 
For(j*a  dar-lhe  fazia,  e  deshumana. 


Nâo  consente  o  soberbo  resistência, 
Nem  perder  dos  seus  bens  o  cobiçoso, 
Acceso  em  ira  ElRei,  com  diligencia, 
11  um  exercito  manda  poderoso, 
Debaixo  do  poder  e  obediência 
De  Miram,  seu  sobrinho,  que  o  animoso 
Esprito,  com  boas  parles  i Ilustrava, 
E  de  quem  elle  muito  confiava. 


160      OURAS    DE    FKAXCISCO    D''ANDKAnF.. 
XCVIU. 

E  que  logo  se  parta  lhe  encommeiula 
Sem  por  em  eaminhar  qualquer  tarclaura, 
Nem  em  outro  negocio  mais  entenda 
Qlue  em  tomar  dos  rebeldes  graa  vingança  : 
E  nao  desistirá  desta  contenda 
Até  que  com  cruel  espada  e  lança 
Aquellas  infiéis  gentes  perdidas 
Ou  tire  as  liberdades,  ou  as  vidas. 

XCIX. 

De  muitos  a  que  o  saiiijue,  ou  nobre  estado 
Logares  principaes  ji«»  Reino  dera, 
Ficou  então  ElRei  acompanhado^ 
E  Mirizam  Hamed  hum  destes  era, 
iríue  deste  Rei  Mogor  era  cunhado, 
E  ser  elle  a  maior  causa  dissera 
A  estes  dous  Reis,  das  guerras  que  tiverão. 
Se  o»  meus  versos  utraz  o  não  disserão. 


Neste  tempo  em  que  ElRei  ja  sentir  vejo 
Da  fortuna  o  favor  falso,  e  inconstante, 
Se  lançou  com  elle  hum,  de  quem  desejo 
i^ue  a  minha  historia  logo  agora  cante. 
Se  vós  de  o  conhecer  tendes  desejo, 
S<!nhores,  esperai-me  lá  diante, 
Q.ue  eu  agora  passar  d^iqui  não  ouso 
Sem  primeiro  tomar  algum  repouso. 


o  i*fltaiii!}iK4» 

CERCO  DE  DIU. 


J)ú-se  a  morte  ao  Secretario  cVElRei  chsMo- 
ijorcs.  Conieça-se  a  descobrir  o  ódio  tjue  o 
Suliuo  tce  aos  Poriuguezes.  Nuno  da  Cii- 
n /ta  faz  hunia  grossa  armada^  e  chega  com 
<lLa  a  Diu.  Conia-sa  hum  estranho  caso  guc 
acontecco  a  Manoel  de  Sousa  com  Kl  liei. 
O  Sultão  vai  visitar  Nuno  da  Cunha  ao 
seu  galeão. 


rxqnella  sempre  foi  boa  amizade, 
\  erdadeira,  íi»;!,  firme,  e  de  dura, 
Q.ue  iiasceo  d''hum  amor,  d"*hua  vontade 
Livre,  sincera,  limpa,  clara  e  pura  : 
l*orém  a  que  ajuntou  necessidade, 
Sempre  foi  breve,  falsa,  e  mal  segura, 
^ue  do  necessitado  e  interesseiro 
Nunca  se  fc/  umiíro  verdadeiro. 


1G2      OBRAS    DE   FRANCISCO    d''aNDRADE. 


E  se  isto  está  tao  certo  inda  entre  a  gente 

tít-ue  tèe  a  mesma  lei  e  pátria  antiga, 

Q-ue  será  entre  aquelToutra,  a  quem  somente 

A  força  do  interesse  fez  amiga? 

K  que  sendo  em  nação  mui  diíFerente, 

Em  pátria,  em  lei,   e  em  tudo  sempre  imiga, 

Lhe  he  para  seu  remédio,  necessário 

Mostrar  aiíior  ao  seu  mor  adversário  ? 


Em  tanto  dura  o  amor,  antes  no  peito 

Em  tanto  está  encuberto  este  ódio  antigo, 

Em  quanto  áquelle  mal  está  sujeito 

filue  o  constrangera  u  se  mostrar  amigo  \ 

Porem  como  era  falso,  e  contrafeito, 

Apenas  está  fora  do  perigo, 

Ou  da  necessidade,  quando  volta, 

E  com  mor  fúria  ao  ódio  a  rédea  solta. 


Atraz  vos  prometti,  se  nao  me  engano, 
(Faltar-vos  da  promessa  não  queria) 
De  vos  dizer  quem  era  hum  que  seu  dano 
Achou  naquelle  a  quem  favor  pedia. 
Este  que  se  lançou  lá  co''o  tyrano 
Baudur,  como  pouco  antes  vos  dizia. 
Secretario  he  do  Rei  Mogor,  e  he  dito 
GLue  lhe  têe  o  Sultão  ódio  infinito. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE    DIU.  163 

V. 

A  causa  porque  então  o  triste  veio 
liançar-se  co^o  Sultão,  e  acompanballo, 
De  qu(?m  devera  ter  hum  grão  receio 
Só  porque  do  Mogor  era  vassallo, 
Foi,  para  que  alcançasse  por  seu  meio 
Embarcação,  que  a  Ormuz  possa  levallo, 
E  fazer  d''ahi  a  Pérsia  seu  cajninho 
Onde  tinha  o  paterno  arn^ido  ninho. 

Finge  Baudur  então  que  de  si  aparta 
Todo  o  ódio,  e  lhe  mostrou  boa  vontade, 
Para  Diu  lhe  manda  que  se  parta 
Onde  o  despacharão  com  brevidade. 
Dá-lhe  bua  para  o  Rao  funesta  carta 
(Este  tinha  o  governo  da  Cidade) 
Em  que  manda  que  tire  ao  triste  Mouro 
Depois  da  vida  todo  o  mais  thesouro. 


Parte  o  misero  logo  com  grâa  pressa 
Na  palavra  d' El  Rei  mui  confiado, 
Dia  è  noite,  de  caminhar  não  cessa, 
•Ta  para  ver  a  pátria  alvoroçado. 
Espera,  Mouro,  espera,  que  a  promessa 
De  seres  brevemente  despachado 
Não  he  dar-te  a  mercê  que  tèes  pedida, 
Blas  tirar-te  a  fazenda,  e  mais  a  vida. 


ANDRAHE. 


Choga  O  Mouro  contente  áquelle  assento 
tlue  o  nome  inda  hoje  tèe  do  louro  Rume, 
Trata  de  effectuar  o  seu  intento, 
1-^ue  de  tal  traição  nada  presume. 
Acha  na  entrada  bom  recebimento, 
í^ue  este  do  traidor  foi  sempre  o  costume 
Mostrar  amor  onde  o  ódio  mais  o  acende, 
Tara  que  faça  em  salvo  o  que  pertende. 

IX. 

Naquella  mesma  noite  que  a  ventura, 
Antes  desventurada  imiga  sorte, 
Trouxe  alli  o  Mouro  a  dar-lhe  sepultura, 
O  salteão  com  mão  armada  e  forte. 
Nao  lhe  vai  resistência  nem  brandura, 
Vorque  alli  o  esperava  a  cruel  morte, 
A  carne  emtim  no  próprio  sangue  envolta 
l'or  mil  portas  o  triste  esprito  solta. 


Q-ue  cousa  por  tentar  nunca  deixarão 
Huns  cubiçosos  pérfidos  intentos? 
Ou  a  que  peitos  nunca  perdoarão 
Nem  reaes,  nem  de  baixos  nascimentos? 
Inda  estas  cruéis  mãos  aqui  não  ^párão, 
Forque  ao  triste  mil  vezes  setecentos 
Pardaos  roubão  também,  e  fica  agora 
Ladrão  o  que  homicida  antes  ja  fora. 


o    PRIMEIttO    CEllCO    DE   DIU.  1  (i« 


Desta  obra  o  Sultão  fica  satisfeito, 
(iuo  d^hua  e  d^outra  parte  era  conforme 
Ao  seu  cruel  e  cubiçoso  peito 
K  de  tudo  o  real  as^az  disforme. 
Trar  este  abominando,  enorme  feito 
Se  apparelha  para  outro  mais  enorme, 
O  qual  I050  ouvireis,  não  sem  espanto, 
Se  não  vo»  he  pesado  este  meu  canto. 

XII. 

Baudur,  vendo-se  ja  desaíTrontado 
Do  soberbo  Mogor,  cruel  e  imigo, 
Q,ue  o  tivera  até  alli  tão  apertado 
Que  o  fez  dos  Portugueses  ser  amigo, 
K  vendo  livre  todo  o  seu  estado 
Do  guerras,  de  tumultos,  de  perigo, 
De  novo  começou  em  ira  inchar-se 
O  S2U  peito,  e  de  mor  ódio  inílammar-se, 


Vè-se  o  grande  ódio  ja,  vè-se  a  grande  ira, 
Mostra-se  a  natural  fúria  indomável 
Q-ue  a  contraria  fortuna  reprimira, 
Domestica  fizera,  e  tolerável. 
Amor  forçado  sempre  foi  mentira. 
Pois  mostra  quando  o  Cco  vê  favorável 
Q-ue  amor  não  foi,  mas  ódio  de  verdade, 
Enciiberto  com  nome  d''ami/.ade. 


]6í)      OlíIlAS    DE    FRAXCrSCO    D   ANDliADI. 


Mostrou  este  ódio  EIKei  (ao  claramonl(í 
E  a  fiiria  que  iivora  reprimida, 
diie  lo<;;o  vio  a  Tortugueza  gente 
Q.uanto  lhe  era  pesada  e  aborrecida, 
K  que  elle  se  affrontava  grandemente 
De  ter-lhe  a  fortaleza  concedida, 
1*'.  que  tanto  esta  aflronta  então  sentia 
Q-ue  ella  só  vir-se  a  Diu  lhe  impedia. 

XV. 

K  inda  que  nas  palavras  trabalhasse 
líincubrir  a  paixão  que  n^alma  andaVM, 
Não  pôde  tanto  eníliin,  que  refreasse 
O  que  ódio  e  natureza  estimulava, 
E  que  ás  vezes  com  obras  não  mostrasse 
O  que  então  com  a  lingua  não  mostrava, 
Nem  esta  assi  governa,  que  alguma  hora 
O  que  lá  dentro  está  não  mostre  fora. 

XVI. 

Estes  damnados,  pérfidos  conceitos, 
Esta  tenção  d 'El  Rei  falsa  e  tyrana 
Glue  tinha  contra  aquelles  que  sujeitos 
Erão,  da  alta  Coroa  Lusitana, 
Por  alguns  dos  que  lh'erão  mais  acceitos 
Foi  (se  o  que  dir  a  fama  não  m^engana) 
Ao  nobre  Sousa  logo  revelada, 
De  que  era  a  fortaleza  governada. 


o  puiMrir.ò  cEr.co  dt.  niv.  ÍU 


Mas  doste  ódio  mortal  oorh  que  perseguo 
Km  segredo  os  Christaos  este  enganoso 
Ilaudnr,  fa?,  com  que  nada  entào  se  negue 
Ou  se  esconda  ao  grão  Sousa  valeroso, 
O  Rao,  a  quem  ja  disse  que  era  entregue 
Na  Cidade  o  logar  mais  poderoso, 
Pessoa  principal  no  senhorio 
l)e  Cambaia,  com  quanto  era  gentio. 


Este  lhe  descubrio,  que  tao  aceso 
KlRei  em  ódio  eslava,  porque  via 
i)  seu  Reino  daquella  gente  preso 
Q.ue  clle  tão  altamente  aborrecia, 
Q-ue  por  tirar  de  si  tão  grave  peso 
Com  todo  seu  poder  trabalharia. 
Vendo  tempo  e  logar  em  que  este  imigo 
Podesse  destruir  sem  seu  perigo. 


Não  desfalece  o  Sousa,  ou  desespera, 
Do  Sultão,  entendendo  o  pensamento, 
Mas  tudo  trata  então,  rege  e  tempera 
Com  muita  discrição,  com  muito  tento, 
Para  que  passe  em  paz  a  horrenda  e  fera 
Sazão,  que  engrossa  o  mar,  dá  fúria  ao  vento, 
Porque  a  agua  que  só  tinhão  e  bebiao 
Era,  a  que  os  da  Cidade  lhe  trazião. 


168      OBRAS    DE   FRANCISCO   d''aKORADE. 


Porém  sabendo  a  ^ente  da  Cidade 
A  tenção  do  seu  Rei,  e  o  máo  conceito, 
Contra  aquelles  a  quem  a  adversidade 
Pouco  antes  novo  amigo  o  tinha  feito, 
O  quer  seguir  também  na  má  vontade 
Conlormar-se  co''o  seu  malvado  peito, 
Q-ue  até  nas  aífcições  (que  n*'alma  habitao) 
A  seus  Reis  os  vassallos  sempre  imitão. 


E  para  effeito  deste  tao  nefando 
Intento  imitador  d^hum  Rei  tyrano, 
Em  quanto  aquelle  inverno  foi  passando 
Em  que  o  Capitão  forte  Lusitano 
Com  grãa  prudência  as  cousas  temperando 
Estava,  por  fugir  a  qualquer  dano, 
A  Cambaica  gente  em  ódio  acesa 
Trata  com  grãa  soberba  a  Portugueza. 


Q.uando  pola  Cidade  esta  se  estende 
Descobre  a  imiga  gente  a  fúria  antiga, 
E  em  tamanha  ira  hQa  e  outra  o  peito  acende 
Qiiie  travão  sanguinosa,  cruel  briga  : 
O  Portuguez  alli  o  esprito  rende, 
Rende  taml)em  o  esprito  a  gente  imiga, 
Hum  e  outro  a  culpa  e  o  damno  então  pagava 
Q/ue  o  Lusitano  ás  vezes  só  causava. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DX  DIU. 


Deste  intento  d^ElRei  falso  e  damnado 

Indigno  da  real  alta  Coroa, 

A  fama  com  veloz  curso  apressado 

E  co''o  som  do  metal  que  a  orelha  atroa, 

Lioj^o  ao  Governador  levou  recado 

E  lhe  manifestou  lá  dentro  em  Goa 


169 


Não  somente  as  palavras  que  dizia   "*  tíí  "♦!' 
Mas  quanto  contra  os  nossos  pcrtendia. 


Gluanto  mais  a  Oceana  onda  salgada 
No  tempo  que  a  sazão  fria  apparece, 
Com  a  fúria  de  Noto  negra  e  inchada 
Se  engrossa,  se  alevanta  e  se  embravece. 
Não  pode  ser  com  a  fúria  igualada 
Q-ue  no  gesto,  e  palavras  se  conhece 
Do  ilhistre  Nuno,  como  lhe  apresenta 
A  fama  o  que  o  Sultão  pérfido  intenta. 


E  para  castigar  este  ódio  e  esta  ira 
Q,ue  o  pérfido  Sultão  no  peito  encerra, 
As  vellas  logo  ao  manso  vento  abrira 
E  de  Cambaia  entrara  a  ingrata  terra, 
Se  lh*o  de  todo  então  não  impedira 
Hua  áspera,  cruel,  e  dura  guerra 
ô-ue  com  o  Accdecão  travada  tinha 
Q.ue  sua  terra  a  Goa  tèe  visinha. 


Í70      OBRAS    DE   FRANCISCO    d''aKDRADE. 


Passado  era  de  todo  aquelle  inverno 
E  ja  Flora  espalhava  novas  flores, 
E  se  fazia  então  com  mais  interno 
Ódio  esta  guerra,  e  bellicos  furores, 
Gluando  ordena  aquelle  Alto^  e  Sempiterno 
Rei,  que  manda  os  Celestes  Moradores, 
Q.ueem  meio  d^hum  grande  ódio  amigos  fiqucii 
E  de  supito  então  se  pacifiquçpi, 

XXVII. 

Não  deixa  perder  tempo  o  forte  Nuno 
Vendo-se  livre  ja  do  novo  imigo. 
Tendo  para  o  que  quer  tempo  opportuno 
Determina  ir  buscar  o  imigo  antigo: 
Favorável  para  isto  vê  Neptuno, 
Eblo  favorável,  brando  e  amigo, 
Navios  apparelha  e  mantimentos, 
Soldados  escolhidos  bem  quinhentos. 

XXVIII.  ' 

Dá  com  graa  pressa  a  popa  á  nobre  Goa 
E  faz-lhe  a  ira  cuidar  que  ainda  tarda, 
Ao  Reino  de  Baudur  voltou  a  proa 
A  que  o  Ceo  hum  cruel  castigo  guarda. 
A  trombeta  também  agora  soa, 
Também  soa  o  atambor,  soa  a  bombarda, 
Também  voa  nos  ares  o  estandarte. 
Em  tudo  resplandece  o  fero  Marte. 


•    PRIM&IILO   C£BCU  DE  DIU. 


Ft'7,-se  isto  entrando  o  mezque  a  fiel  gente 
Do  Eterno  Rei  celebra  o  nascimento, 
Cortando  o  mar  a  armada  vai  c<jntcnte 
Com  ^Tiio  favor  das  ondas  e  do  veiito  : 
E  tal  foi,  que  tomou  mui  brevemente 
Liá  dentro  em  Baçaim  recolhimento, 
Cahe  a  ancora  da  proa,  o  fundo  afterra, 
Soa  o  canhão  no  mar,  soa  na  terra. 


O  valeroso  Cunha  a  que  o  malvado 
Enganoso  Baudur  sollicitava, 
Lhe  manda  hum  d''alli  logo  com  recado 
ttue  Diogo  de  Mesquita  se  chamava  : 
Este  em  Cambaia  ja  tinha  provado 
Q-uanto  a  braga  nas  pernas  carregava, 
E  da  linguagem  tinha,  e  da  malicia, 
E  das  cousas  da  terra  grãa  notici^^*. 

XXXI. 

o  qtje  o  Governador  aqui  pcrtende 
T)o  recado  que  munda  a  seu  contraria 
He  (se  he  certo  o  que  a  fama  disti)  estenUe)/ 
Com  eòr  d'algum  negocio  neccssari»),  j 

Vt;r  se  o  que  por  signaes  dclle  se  entendo 
Seja  conforme  cm  tudo,  ou  seja  vario 
])a(|uilio  que  os  siiccessos  que  passarão 
Delle  assaz  claro  ja  testemunharão. 


172    OBRAS  DE  rnANcisco  ^''andrade. 


Detem-so  em  Baçaim  todo  Jjíneiro 
O  nobre  Cunha  traz  esta  embaixada, 
E  na  entrada  do  coxo  Fevereiro 
Para  Diu  encaminha  a  sua  armada. 
Porém  antes  que  o  esperto  Marinheiro 
A  ancora  solle,  ou  colha  a  vella  inchada, 
Torna  Mesquita  em  meio  do  mar  largo 
Dar  rasão  do  que  lhe  era  dado  a  cargo. 

XXXIII. 

E  o  que  deste  negocio  denuncia 
He  que  na  Corte  toda,  e  no  tyrano 
Geralmente  hum  mortal  ódio  se  via 
Contra  o  fiel  amigo  Lusitano  : 
E  que  tudo  o  que  entre  elles  lá  se  ouvia 
He  tratar  claro  ja  de  nosso  dano, 
Q-ue  mal  encobre  o  rosto,  oti  a  palavra 
O  fogo  que  lá  dentro  o  peito  lavra. 


Em  quanto  dá  Mesquita  esta  fcsposta 
Seu  curso  a  nobre  armada  nao  detinha. 
Mas  com  a  vella  inchada,  e  cm  alto  posta 
Sempre  polo  salgado  mar  caminha. 
E  assi  chegou  do  Diu  á  outra  costa 
Onde  Madrafabat  por  nomo  tinha, 
Q.ue  he  hum  rií)  assaz  grande,  e  alegre  á  vist 
Q.UC  da  Cidade  cinco  lejroas  dista. 


o    PniMEIUO    CKKCO    DK    HIU 


Ja  Pirois,  Heoo,  Eton,  juntaraeiíto 
<'oin  Flegon,  que  o  diurno  carro  aceso 
Tinhao  trazido  iá  d<?sd'o  Oriente, 
Dfixavao  no  Oceano  o  claro  peso, 
^  la-se  a  Lua  entã<»  resplandecente 
Km  quanto  o  irmão  está  do  bomno  preso, 
Ouando  o  Sousa  que  manda  a  íortale/.a 
A  nossa  armada  vem  com  graa  presteza. 

XXXVI. 

í)nde  ao  Governador  dá  larga  conta 

De  cousas  que  antes  pouco  erao  passada». 

Com  qtie  ás  vezes  se  vio  posto  em  alVronta, 

Mas  forão  todas  bem  T<!mediadas. 

Jlua  somente  a  minha  historia  conta, 

J*orque  todas  não  podem  ser  contadas, 

Se  alguém  me  der  para  ella  attento  ouvido 

Nau  se  arrependerá  <le  ter-me  ouvido. 


Potico  tempo  ante*  vindo  era  á  Cidade 
O  pérfido  tyranno,  falso,  e  imigo, 
A  executar  aqtiella  alta  maldade 
Oue  trazia  assentada  ja  ct>msigo- 
Bem  sabe  o  nobre  Sousa  esta  verdade 
Mas  nem  por  isso  perde  o  esforço  antigo, 
Antes  visita  a   ElRei  tattto  que  veio, 
E  isto  que  sabe  esconde  lá  no  seio. 


174      OSRAS  I>E  FRANCISCO  d''aNORAI>B. 

xx;x\iii. 

Poucos  dias  traz  isto,  quando  a  bella 
Diana  á  escura  terra  se  mostrava, 
E  espalhava  a  prateada  luz  por  ella 
Q-ue  lhe  o  seu  claro  irmão  communicava, 
Sendo  passada  ja  a  primeira  vella 
Quando  no  mor  repouso  tudo  estava, 
E  o  mundo  descuidado,  e  somnorento 
Têe  perdido  ,de  todo  o  sentimento  : 


Por  hum  caminho  que  he  ,bem  encuberto 
E  á  nova  fortaleza  vai  direito, 
Apparece  hum  de  quem  se  têe  por  certo 
Que  do  bruto  Alcorão  segue  o  preceito  : 
Chega  ás  casas  do  Sousa  este  mui  perto 
Para  lhe  descubrir  o  seu  conceito, 
Vai  ao  longo  do  rio,  lá  da  banda 
Q.ue  se  está  descubrindo  hua  varanda. 


D'ain  com  tanta  instancia  o  catá  chamando 
Glue  lhe  acode  daquelles  hum  soldado 
Q.ue  andavão  polo  muro  vigiando, 
E  leva  ao  Capitão  este  recado. 
Salta  da  cama  Sousa  em  dcs|>ertando 
Ora  arreceoso,  ora  alvoroçado, 
Põe-se  lá  onde  ao  Mouro  bem  ouvia, 
Pergunta-lhe  a  que  vinha,  e  que  queria. 


©    PRIMEIRO  CERCO   DE   DIU.  175 


Vendo  o  Mouro  hum  legar  tao  só,  e  secreto, 
Responde:  Illustre  Sousa,  alto,  e  prudente-, 
Cumpre  que  não  estejas  tão  quieto  ''  ' 

Porque  hum  grande  perigo  tèes  presente:    '  ' 
Sabe  que  em  o  Pastor  claro  d'Admeto 
Começando  a  mostrar  o  carro  ardente 
£lRei  te  chamará  como  que  te  ama 
Mas  para  dar-te  a  morte  elle  te  chama, 

XLII. 

E  porque  tu  não  cuides  que  a  mostrar-te 
Me  moveo  interesse  este  perigo. 
Nem  o  meu  nome  quero  declarar-te 
Nem  dizer-te  aqui  mais  que  o  que  te  digo : 
Fica-te  embora,  e  cumpre-te  guardar-te 
Porque  te  mostra  amor  o  mor  imigo. 
JE  com  isto  de  fallar  o  Mouro  cessa. 
Volta  as  costas,  e  vai-se  com  grâa  pressa. 


Se  alguém  me  perguntasse  quem  seria 
liste  que  ao  Sousa  fez  tal  amizade, 
Ser  elle  o  mesmo  Rao  eu  lhe  diria 
Q-ue  então  tinha  o  governo  da  Cidade  : 
Não  me  crêaes  a  mim,  pois  cá  vivia, 
Crede  á  fama,  que  o  affirma  por  verdade, 
Nem  me  pergunteis  disto  o  fundamento 
Porque  eu  não  ad vinho  o  pensamento» 


176      OBUA»   I>r.  FRANCISCO   D  ANDKAIíK. 
XLIV. 

Oe  <.'onfnsn(í  e  pspanto  fica  cheio 
O  Aaloroso  Sousa  co''o  que  ouvira, 
<  >ra  o  líioito  pov  dentro  hum  arr<>coio 
Ora  o  esforça  de  novo  l>ua  nova  ira. 
K  de  Ui\  eonlusao  posto  no  meio 
í^iida  ás  vezes  que  pode  ser  mentira, 
Mas  teo  comsi<i;o  emíim  determinado 
Obedecer  u  El  Hei,  se  for  chamado. 

XLV. 

Nrío  se  descuida  o  pérfido  iyrano 
Oue  de  toda  nialdade  e  engano  he  fonte. 
Mas  pira  executar  o  ultimo  dano 
N<í  iu)i|;'o  que  não  soíVre  ter  defronte, 
Manda  hnm  recado  ao  forte  liusitano 
Co\)  resphiudor  primeiro  do  Horizonte, 
Km  qtie  a  vir  ter  com  elle  então  o  exhort; 
Tara  cousa  que  diz  que  muito  importa. 


Soiísn,  a  quem  este  engano  nao  se  esconde 

O  dissimula  então  com  grãa  firmeza, 

K  tendo  ja  assentado  d''ir  lá  aoud(? 

'J'êii  de  morte  cruel  grande  certeza, 

A<í  mensageiro  ousado  então  responde 

Cltíe  fará  o  que  lhe  manda  sua  Alteza  : 

l'\'Z-60  pre8t<;s  para  ir,  e  dissimula, 

(lue  honra  mais  que  temor  alli  o  estimula. 


o    PKIMSIRO   CERCO   DE  DIU.  li  i 

XLVII. 

Não  vai,  qual  soe,  honrada  e  nobremente. 
Mas  deixa  os  apparatos  seus  primeiros, 
O  soberlK)  cavallo,  e  juntamente 
A  guarda  dos  sesseuta  alabardeiros  : 
Mi.'tte-se  n^hum  catur  onde  he  somente 
DMiuní  p;igem  acompanliado  e  dos  remeiroSjí 
<^ui<;á  cuidou  que  ElRei  com  isto  veja         -;| 
lAue  a  mottc  sem  rasão  dar-lhe  deseja. 

XLVIII. 

Niin  o  enganou  de  todo  esta  esperança 
Antes  lhe  sucCedeo  como  cuidava, 
Choj;a  o  catur,  e  com  gràa  confiança 
Vai  SõU»a  vêr  ElRei,  que  ja  o  esperava*, 
K  vendo-lhe  ora  hua,  ora  outra  mudança, 
íilue  o  malvado  conceito  nelle  obrava, 
Vê  que  o  seu  peito  cheio  de  maldades 
Tèe  concebido  grandes  novidades. 


Algum  tanto  suspenso  ElRei  esteve 

Em  o  vendo,  e  ou  por  vir  sem  companhia, 

Ou  por  causa  que  occulta  á  gente  teve 

O  Sempiterno  Filho  de  Maria, 

O  ódio  antes  tão  pesado  se  faz  leve, 

A  ira  antes  tao  acesa  se  lhe  esfria, 

Mitiga-se  o  furor  sempre  indomável 

Mostra-se-lhe  benigno,  e  favorável. 


178      ©BRAS   DE  FHAWCrSCO  D  AlTORADE. 


Mostra-lhe  gasalhado  falso  e  incerto, 
E  da  sua  ten^ào  contrario  o  rosto, 
E  diz-lhe  que  o  chamara,  porque  certo 
Saiba  se  dá  Cidade  estava  posto 
O  Governador  inda  longe  ou  perto, 
Porque  de  o  ver  alli  terá  grão  gosto. 
Estas  c  outras  cousas  lhe  pôz  diante 
E  logo  o  despedio  com  bom  semblante. 


Tímido  Mareante,  a  quem  a  imiga 

Fúria  do  grosso  mar  embravecido 

Com  naufrágio  ameaça,  e  dá  fadiga, 

E  em  mãos  da  morte  o  tinha  ja  rendido, 

Se  acaso  a  furibunda  ira  mitiga 

O  tempes^uoso  Austro,  de  perdido 

Q.ue  antes  se  estava  vendo,  e  quási  morto, 

Chega  contente  ao  desejado  porto. 

LU. 

Tal  na  imaginação  se  me  apresenta 
O  nobre  Sousa,  o  qual  inda  que  forte 
Sem  temor  níío  entrou  nesta  tormenta        <  * 
Porque  o  esforço  nâo  tira  O  medo  á  morte':'^ 
Vendo-se  em  salvo  delia,  se  contenta, 
Dá  mil  graças  á  sua  amiga  sorte, 
Q.ue  de  novo  quizera  dar-lhe  a  vida 
Q.uando  havia  que  a  tinha  mais  perdida. 


o    PnilkííIRO   CERCO   DE   DIV.  179 


Ouvido  nisto  o  Sousa  attentarriente 
Vj  n'oiitras  cousas  desta  qualidade 
Foi  do  Governador,  que  delias  sente 
A  tenção  de  Bandur,  e  a  má  vontade  *, 
1'orqtje  ellas  lhe  descobrem  claramente 
Do  que  tinha  ouvido  antes  a  verdade,  ' 

Vendo  qne  o  que  ellas  mostrão  conforme  étá 
Co"'o  que  a  faiiia  ja  em  GOa  lhe  dissera. 


O  dourado  aposento  o  Sol  deixando 

Ço"'a  sua  costtiniada  ligeireza, 

Com  a  Auroni  diante,  vinha  dando 

Nova  Itu  á  terrestre  redondeza, 

E  desterrar  a  escura  noite,  quatido 

Se  tornou  Sousa  á  sua  fortaleza,       ■  '-'"P  '^''** 

Mas  não  se  abala  a  armada  até  áquéíflá  lidra 

Q.ue  appareceo  no  Ceo  de  novo  a  Aurora. 


K  quando  ella  mostrou  ao  valle  c  ao  mofit'^ 

O  seu  raio  de  prata,  húmido  e  frio, 

Amanhecia  o  dia  no  Horizonte 

Km  que  a  Igreja  com  rito  santo  e  pio 

Signala  com  cinerea  Cruz  a  fronte 

Dos  que  seguem  de  Christo  o  Senhorio^ 

E  então  a  armada  ao  vento  a  vella  solta 

E  lá  direito  ao  porto  a  proa  volta. 


K  neste  mesmo  tempo  que  ferindo 
Vai  hum  prospero  vento  as  largas  vellas, 
Vâo  pola  terra  firme  em  vão  fugindo 
D^ElRei  á  caça  as  timidas  gazellas. 
Em  quanto  as  náos  seu  curso  vão  seguindo 
Se  vai  por  terra  ElRei  também  traz  ellas. 
Porque  a  caça  deixou  em  vendo  a  frota 
Ê  segue  da  Cidade  a  mesma  rota. 

LVIl. 

Perto  ja  tinha  o  porto  desejado 

A  Lusitana  armada,  que  buscava, 

Q.uando  chega  hua  fusta,  em  que  hum  criado 

Vinha  d** ElRei,  que  grande  amor  mostrava: 

Este  ao  Governador  traz  hum  recado 

Em  que  ja  da  chegada  o  visitava 

Da  parte  do  Sultão,  e  lhe  trazia 

Parte  do  que  caçara  aquelle  dia. 

LVIll. 

Desejo  de  encubrir  a  má  vontade 
Faz  com  que  este  presente  o  Sultão  manda> 
De  gazellas  mandou  grãa  quantidade 
Qlue  sem  lhe  ser  tirada  a  pelle  branda 
Faltava  a  qualquer  delias  a  metade 
Da  carne  d^húa  perna,  e  d'outra  banda 
Mandou  muitas  gallinhas,  a  que  falta 
A  parte  que  no  corpo  anda  mais  alta. 


o   PRIMEIRO  CERCO   DE  DIV.  181 


LIX. 

Estes  abusos  grandes,  sempre  usados,  i^nO 

Mas  antes  naturaes  da  Moura  gente,  '^'^ 

Em  que  costumão  ser  pro;Eçnosticados 
Os  desejos  que  dentro  a  alma  só  sente, 
Forão  com  attençâo  então  olhados, 
E  também  consultados  largamente 
Dos  que  no  galeão  então  estavão 
G.ue  o  vale  roso  Nuno  acompanhavao. 


Mostra  o  Governador  alegre  rosto 

Ao  presente,  e  responde,  que  nesta  hora 

Ir  ver  ElRei  lhe  lora  hnm  grande  gosto 

Mas  que  a  indisposição  lhe  tolhe  ir  fora  i^ 

Porém  como  se  achar  melhor  disposto 

A  falta  supprirá  que  teve  agora. 

Torna-se  o  Mouro  logo  satisfeito 

A  dar  conta  ao  Sultão  do  que  têe  feito. 


Não  detém  Cunha  emtanto  a  nobre  armada 
Glue  do  presente  o  engano  bem  presume  :•  •  ' 
E  tendo  perto  o  fim  da  sua  jornada 
O  Sol,  em  que  mostrava  o  usado  lume, 
Jjá  no  porto  de  Diu  a  vê  ancorada 
Co''as  cerimonias  que  erão  de  costume. 
ElRei,  que  vai  seguindo  a  inchada  vellay»  —'f 
A  Cidade  chegou  junto  com  ella.  "  í»"^' 

♦  6 


iH2      01;RA3    »K   FRANCISCO   d''aNDRAD«, 
VXlí. 

Onão,  safiemio  a  caosa,  e  o  ímpotli monta 
Glue  o  grão  Cunha  detom,  porque  a  ntalina 
Tenção  o  estimulava,  sem  mais  tento 
Ao  galeão  ir  vè-ío  «letermina  : 
Porque  com  tal  amor,  tal  cumprimcrnto 
Maior  obrigaíjão  pôr-llie  imagi»a, 
Para  que  mais  aognro  e- descuidado 
Visite  o  de  que  foi  ja  visitado. 

IXIII. 

Cinda  o  Sultão,  e  tee  por  cousa  cería 
Glue  e»ta  »ua  amizade  contrafeita 
A  toda  a  gente  está  tão  eneuU»rla 
Q,uc  nem  delia  se  lèe  qualquer  suspeita» 
O  fervente  desejo  tanto  o  aperta, 
A  tal  ódio  a  vontade  têe  sujeita, 
Glue  não  lhe  deixão  vAr  o  seu  engano, 
E  as»i  a  trilada  armou  par^i  seu  dano. 

JLXIV. 

Malvado  Rei,  ao  Ceo  e  á  terra  imigo- 
Do  Cambaico  Reino  única  peste, 
Chegado  ja  te  vejo  ao  múr  perigo 
E  a  pagares  os  males  que  fizeste  : 
Tu  mesmo  ordenarás  o  teu  cas^igo, 
Porém  não  inda  tal  qual  mereceste^ 
E  no  laço  em  que  ja  tantos  tomaste 
Tu  mesmo  cahirás,  que  mesmo  o  armaste. 


o    PttlMElR©  CERCO   DE  I>1V.  183 


Tendo  o  Sultão  comsigo  ja  assentado 
Q.ue  por  este  caminho  que  levava 
Daria  fim  mais  prospero  e  apressado 
A  isto  que  unicamente  desejava, 
Ao  nobre  Manoel  manda  hum  recado 
Que  a  nova  fortaleza  governava, 
Para  que  ao  galeão  vão  juntamente 
Vrr  o  Governador,  que  está  doente. 

txvi. 

E-íta  doença  afiirma  sentir  tanto 

Como  o  seu  mais  chegado  que  alli  vinha» 

Kecehe  Sousa  disto  hum  grande  espanto 

Porque  a  sua  tenção  mal  advinha  : 

O  grão  Cunha  avisar  manda  de  quanto 

ElRei  determinado  agora  tinha, 

E  traz  isto  ao  Sultão  se  vai  chegando 

Q.ue  ja  prestes  para  ir  o  está  esperando. 

ixvil. 

Poe  no  Governador  hua  infinita 
Confusão  este  aviso  que  lhe  veio, 
Ora  a  vinda  d^ElRei  ha  por  grãa  dita 
Ora  também  lhe  põe  hum  grão  receio: 
Necessidade  a  dar-lhe  morte  o  incita, 
D^outra  parte  a  vergolha  lhe  põe  freio, 
Porque  ha  que  he  vergonhoso  ao  varão  forte 
Ao  pacifico  imigo  dar  a  morte. 


184      OBBAÍ<^8<'PRAIÍCrtCO    D^ANimÁDE, 


Com  quanto  á  confusão  tatnsLnhtí  pârlc 
Tee  nello,  p<or  fazer  niada  )hfe  fibá,    ' 
Vè-se  a  baildeira' ja,  vê -se  ò  estandarte 
No  galeão,  ve-se  a  aícafifa  rica  ;        '  =  .' 
r(5e-se  a  aYWíída:  também  toda  dest^attèj'' 
Em  toda  grande  festa  se  pivblica,  ' 

Q.UO  assi  o-ttlanda  o  grão  Cnnha,  porc[tíc''teja 
ElRei  qucasua  vinda  se  festeja. 


Muitos  dos  quG  se  então  agasalhavao 
N 'outras  embarcações  em  que  vierão, 
Ao  galeão  ;dò  Gunha  se  passavao  '*  , 

Nesta  hora  ^m  qUe  d' El  Rei  a  vinda  eápeVaò^i 
Estes,  é  08  mais  qtie  dentro  nelle  estavâo 
A  cópia  de  duzentos  bem  encherão, 
Dos  quacs  erào  setenta  (e  não  m^enganò) 
Do  nobre  o  illustre  sangue  Lusitano. 

LXX* 

Com  alvoroço  graháe^^èodío  sobejo 
Se  espera  a  vinda  deste  ia Isò  amigo, 
E  vendo' twlos  hum  tào  bótn  ensejo 
Para  lhe  darem  o  ultimo' castigo, 
E  tão  geTà.1  em  todos  o  desejo 
De  tirareKi  do  mundo  hum  tal  imigo, 
E  quanto  cumpre  quf  elle  perca  a  ridn, 
Ilavião  que  elle  a  tii.))!  ja  perdida. 


ÒPlíí^níIllO    CERCO    DE   DIU.  185 


H' ^j)hcro  j;i  queria  no  Horizonte 
<  >s  raios  ospalhíir  de  prata,  qtiando 
N"hua  pcfjiKMia  fusta  eis  que  defronte 
mostra  Elliei,  que  cstaA  3o  esperando : 
,  )  trajo  igual  nqiielle  que  no  monte 
A  livre  caea  vai  s-oliicitahdò, 
T)e  verde  pantio,  e  touca  em  rt4gtti  tinta    . 
Nu  cabeça,  e  hum  punhal  d'ouro  na  cinta, 


A  Ciente  dtí  f[U<?  foi  acompanhado 
Dentro  nksiíá' fusta  aqu«'!le  dia 
São  dous  paí^ens,  hum  delles  o  terçado, 
Outro  o  arco,  o  coldre,  e  as  frechas  lhe  trazia 
'Também  ó  nobre  Sousa,  que  chamado 
F»)i  delle,  leva  em  sua  companhia, 
E  leva  outros  também  treze  Senhores 
Huc  nos  seus  Reinos  crào  os  maiores.'*''    ■  ^ 

ixxtii. 

Hum  destes  Langarcío  se  nomeava 
\íi  lá  dos  GtjZarates  traz  a  liidui,  .         ' 

Que  a  jtivenil  idade  então  passava'  *•  ^'f*  ^ 
E  sobre  hum  nobre  Estado  o  mando  "títthtti^* 
Amiiiacem  entre  elles  se  chamava  "  -^  *  ^ 
Outro,  e  dos  Guzarates  tamhem  \inhdy''  '  '  ' 
í)<*  <z;rão  preço,  valor,  d^nisado  peito,  ' 
Também  hum  grande  estado  l!)o  he  enjeito'. 


186      OBRAS    DE   FRANCISCO  D^AKDRADE. 
LXXIV. 

Outro  he  aquelle  infiel  que  na  Latina 
Terra  gerado  foi,  para  seu  dano, 
Glue  a  Santa  Lei  deixou,  pura  e  divina 
E  seguio  do  Alcorão  o  bruto  engano  ^ 
Cuja  alma  miserável  nào  foi  dina 
Do  summo  bem,  eterno  e  soberano  i^ 
Cojaçofar  se  chama  este  perdido, 
Creio  que  antes  o  tinheis  conhecido. 

LXXV. 

Mostrava  ElRei  ama-lo  grandemente 
E  com  grandes  mercês  isto  mostrara, 
Porém  esta  aífeiçao  e  amor  ardente 
Q.ue  com  fingida  cor  nelle  empregara 
Tinha  a  hum  seu  filho,  a  quem  tão  largamente 
A  natureza  ornou,  que  se  acertara 
N 'outra  fonte  também  acaso  ver-se 
Também  em  flor  pudera  converter-se» 

IXXVl. 

Hum  Janizaro  ousado,  e  forte  em  tudo 
Companheiro  também  do  Sultão  era, 
A  que  o  Latino,  que  o  Christão  estudo 
Deixou,  por  mulher  hua  filha  dera. 
A  este  o  Tigre  do  Mundo,  o  povo  rudo 
Por  seu  valor,  por  nome  então  puzera. 
Não  digo  os  outros,  porque  os  nao  conheço, 
Mas  todos  são  Senhorea  de  grão  preyo. 


o    PRIMBIKO   C£HCa   DE   DIV.  187 


Aquellas  armas  s<5s  agora  tinhao 
Q.ue  comsigo  na  paz  sempre  traziao, 
Porque  como  seu  mal  nào  advinhão 
Estas  para  ornamento  inda  qtieriao. 
Q.uatro  fustas  traz  esta  d^ElÚei  vinliao 
Em  que  alguns  seus  criados  o  srguiao, 
E  d^outra  gente  algua  quantidade 
Q-ue  sempre  alvoroçou  a  novidade. 

LXXVIII. 

Por  toda  a  armada  vai  atravessando 
Com  esta  ordem  que  aqui  vos  tenho  escrita, 
Em  toda  a  parte  o  apito  o  vai  salvando 
Respondc-lhe  a  sonora,  aguda  grita  : 
Mas  com  quanto  o  vai  tudo  festejando 
A  mostrar  alegria  nada  o  incita, 
Glue  o  sollicito  esprito,  e  grão  desgosto 
Nao  lhe  deixao  mostrar  alegre  rosto. 

IXXIX. 

Chegando  ao  galeSo,  ja  apercebido 
Está  o  Cuuha,  «  com  boa  companhia, 
Ao  bordo  o  vai  tomar,  ©  co^o  devido 
Gazalhado  o  recebe,  e  «ortezia. 
Também  no  galeão  foi  recolhido 
Q-ualquer  dos  que  na  fusta  ElRei  trazia, 
Antes  todos  diante  entrão  agora 
E  todos  os  barretes  levão  fora. 


188      OllKAS    DE   FilAKClSCa    D^ANDIVADE. 


Fazem  la  para  a  tolda  o  movimonio 
De  ricas  alcatifas  toda  ornada, 
No  Governador  todos  põem  o  tento 
Para  dar  fim  a  esta  obra  desejada, 
Porque  lhes  representa  o  pcínsa mento 
Q.ue  sem  falta  ha  de  ser  aqui  tirada 
Do  mundo  esta  cruel  alma  profana, 
Mas  este  pensamento  aqui  os  engana. 


Para  a  camará  juntos  se  passarão 

KlRei,  e  o  que  era  dello  visitado, 

Hum  pagem,  e  Animaceni  o  acompanharão, 

K  o  genro  do  Latino  rene2;ado :, 

Apoz  estes  tamhem  com  elles  entrarão 

Langarcao,  Santiago,  que  canJado 

Atraz,  de  mi  ja  foi  cora  largo  verso, 

Q.ue  até  então  sempre  achara  o  Çeo  diverso. 

LXXXII. 

Qual  soe  ficar  aquelle  em  quem  estende 

A  nocturna  visão  temor  tão  alto 

(iue  o  esprito  humano  não  se  lhe  defendo 

Cheio  d^hum  repentino  sobresalto  : 

Não  falia  o  triste  ja,  menos  entende, 

De  todos  os  sentidos  fica  falto, 

(:S.ue  co''a  terrível  vista  da  pliantasma 

A  lingiia,  o  entendimento,  e  tudo  pasma: 


o    PRI>IEIRO    C:^RCO   DE   DIU.  189 

LXXXIII. 

Tal  o  Governador,  e  ElRoi  estava, 
Porque  ^Itas  confusões  o  comhatião, 
Nonlium  dfilles  a  língua  desatava 
Somente  amhos  dos  olhos  se  seçvwo. 
E  se.á.jCiíma  se  cre,  ella  aíTirmav^  ' 

Q-ue  assi  bem  meia  hora  ambos  estarião, 
TorqMp  t«'»>-da  hum  estava  tão  eonluso 
Glue  perderão  das  línguas  o  antigo  uso. 


Aqui  vio  bem  ElRei  quamanho  engano 
E  quão  desatinada  fora  esta  ida. 
Mas  tarde  o  viste  ja,  falso  tyrano, 
Tarde  foi  a  sandice  cotdiecida, 
Porque  verás  no  teu  o  alheio  dano, 
Mil  mortes  pagarás  c'hua  só  vida  : 
Aos  mortos  se  dará  justa  vingança, 
Aos  vivos  para  as  vidas  segurança. 


Mas  como  lium  máo,  que  a  todos  sempre  dana. 

Se  receia  tarnl)em  de  toda  banda, 

Usando  Elllei  da  lingua  Persiaiia 

A  João  de  Santiago  logo  manda, 

Q.ue  por  vr!r  st;  este  seu  receio  o  engana 

Entre  dissimulado  na  varanda 

l>o  galeão,  e  veja  bem,  e  attonte 

Se  está  lá  dentro  nella  algua  gente. 


LXXX.VI. 

Ao  Governador  isto  nao  se  t>sconde 
Q.ue  não  he  desta  lingua  muito  alheio. 
Santiago  obedece,  e  entra  lá  aonde 
KlRei  mostrava  ter  o  mor  receio. 
O  que  lá  dentro  achou,  e  o  que  responde 
Com  tudo  o  que  apoz  isto  sobreveio 
Consenti-me  que  o  cante  d'aqui  a  hum  poucôi 
Porque  agora  estou  ja  de  todo  rouco. 


CERCO  DE  DIU 

C-%1ÍT€>  ¥11. 


Tt-nía-sc  de  dar  armorie  a  StdUut  Bavdin\ 
Hei  de  Cambaia.  Cordão-sc  ahjumus  eottàtía 
Hviuveis  que  acontecerão  neste  meio. 


J_jm  que  vos  coiiíiaes,  tyrannos  peitos, 
Nunca  fartos  de  sangue,  nem  cansados? 
Se  vedes  que  quaesquer  leves  defeitos 
Sao  ii<;orosamente  castigados. 
Que  esperaes  vós,  (|ue  as  obras  e  os  conceitos 
Trazeis  sempi-e  em  cruezas  empregados? 
K  obrando  quanto  mal  podeis,  vos  vejo 
Nào  chegardes  co'os  males  ao  desejo. 


192      OBRAS    DE   FRANCISCO   D^ANDRABB^ 


Q.uanto  o  máo  peito  ao  ódio  mais  se  entrega 
Menos  pode  cubrir  o  seu  intento, 
Q-uanto  a  ertfeza  o  mais  desassocega 
Tanto  mais  o  sentido  perde,  e  o  tento: 
D''onde  acontece  huas  vezes  que  lhe  cega 
Kste  ódio  de  tal  sorte  o  entendimento, 
Glue  o  que  faz  para  mal  de  seu  imigo 
Se  lhe  torna  em  cruel,  duro  castigo. 


Cambaio  Rei,  com  teu  exemplo  espero 

Do  que  digo  mostrar  logo  a  verdade, 

E  por  isso  trazer  outros  nao  quero 

De  que  houve  (com  seu  mal)  grã  a  quantidade  ^ 

l*ois  tanto  te  cegou  teu  ódio  fero 

Q.ue  o  caminho  que  tua  crueldade 

Te  ensinou,  para  mal  d**outrem,  mais  perto 

De  tua  morte  cruel  foi  o  mais  certa. 


IVi 

Santiago,  entendendo  o  grão  receio 
Q-ue  da  varanda  ElRei  tèe  concebido, 
Co''o  mais  dissimulado  e  cauto  meio, 
Menos  dos  circumstantes  entendido, 
Dentro  nella  se  mette,  e  todo  cheio 
De  segurança,  e  o  medo  ja  perdido, 
Se  torna  para  ElRei,  e  lhe  responde 
Glue  dentro  nella  gente  não  se  esconde. 


o    PRIMEIKO    CEllCO    DE   DIU. 


193 


(Quieta  ElRei  com  isto  hum  pouco  o  esprito 
Mas  inda  não  de  todo  se  assegura, 
Porque  em  quanto  alli  está,  sempre  infinito 
Temor  sente  da  morte  triste  e  dura. 
E  o  silencio  que  atraz  vos  tenho  escrito, 
Com  a  alta  confusão  que  nelles  dura 
(Como  atraz  também  disse)  bem  meia  hora, 
Da  camará  se  sahem  todos  íóra. 


T<xlos  da  grãa  mudança  que  fizera 
ElRei  no  rosto,  vem  qual  he  o  seu  peito, 
Vem  que  sua  tenção  e  desejo  era 
Vêr-se  de  todo  fora  deste  feito. 
Outra  vez  geralmente  aqui  se  espera 
Que  este  geral  desejo  tenha  effeito, 
Mas  foi  vãa  esperança,  e  vão  desejo, 
D''onde  nascer  hum  grave  damno  vejo. 


A  causa  porque  então  foi  esta  imiga 
Alma  infiel,  do  corpo  companheira, 
Q-Udndo  o  desejo,  e  a  occasião  obriga 
Trazer-lhe  a  vida  á  hora  derradeira. 
Não  espere  ninguém  que  aqui  Ih^a  diga 
Pois  dizer-se  não  pode  a  verdadeira, 
E  isto  ordem  pareceo  do  Soberano 
Eterno  Rei,  mais  que  descuido  humano. 


194      OBRAS    DE    FRANCISCO    B^NDRADF,. 
VIII. 

Vftndo-se  ElRei  ja  fora  da  suspeita 
Q.ue  a  varanda  ponco  antes  lhe  mettia, 
l*ara  a  fusta  subtil  logo  endireita 
Porque  dos  que  desama  não  se  fia. 
Sahe  Cunha  até  o  embarcar,  raas  pouco  acceita 
Foi  a  ElRei  neste  tempo  a  corte/ia, 
Porque  em  quanto  o  vê  estar  junto  comsigo 
Ha  que  sobre  si  lêe  o  ferro  imigo. 


Na  fusta  que  alli  têe  salta  ligeiro 
Porque  as  azas  do  medo  o  favorecpm, 
Salta  traz  elle  o  amigo  e  o  companheiro 
Q.UO  os  seus  também  de  medo  não  carecem 
Roga,  manda,  ameaça  o  nu  Remeiro 
Mas  todos  sem  grãa  força  lhe  obedecem, 
Do  temor  ajudado  o  duro  braço 
Faz  alargar  a  fusta  hum  grande  espaço. 

X. 

Depois  que  dentro  ElRei  na  fusta  esteve 
Km  que  de  se  salvar  têe  sd  esperança, 
Co'o  Cunha  á  parte  o  Sousa  se  deteve 
Q  ue  têe  da  fortaleza  a  governança ; 
E  com  quanto  assaz  foi  o  espaço  breve 
A  fusta  do  Sultão  ja  não  alcança, 
O  qual  vendo  o  perigo  a  que  es<;apára 
Do  galeão  com  pressa  se  aíTastára. 


o    PIliMEIAO    CERCO    DE    DIV.  í  !i J 


Ap.iixonado  o  Sonsa,  e  descontente 
]*«*rque  a  pressa  d^ElRci  o  sollicita, 
Se  mette  n''hum  cáttir,  e  juntamente 
l*or  alcança-lo  poe  pressa  infinita: 
Comsigo  no  cátnr  leva  somente 
Hum  seu  pagem,  e  Diogo  de  Mesqnita, 
Do  qual  (se  na  memoria  o  tendes  vivo) 
Disse  atraz  que  em  Cambaia  foi  captivo. 


Se»ue  tu,  Sotisa,  a  ElRei  tao  apressado 

Q-ue  eu  do  Governador  hum  p^uco  canto, 

O  qual  depois  que  á  tolda  foi  tornado, 

Entendendo  bem  toda  a  gente  quanto 

Cumpria  da  infiel  vida  privfido 

St.T  o  imigo  Sultão,  com  grande  espanto 

Os  olhos  nelle  põe,  e  inda  duvida 

Se  das  mãos  se  lhe  foi  são  e  com  vida. 

XIII. 

Elle,  que  da  atlençao  da  circnmstante 
Gente,  está  o  seu  conceito  advinhando. 
Com  inquieto  e  colérico  semblante 
Lhe  disse :  Glue  me  estaes  agora  olhando  ? 
Bem  vedes  essas  fustas  que  ahi  diante 
Estão,  o  galeão  acompanhando, 
Nellas  vos  embarcai,  e  o  Rei  Cambaio 
Segui  ligeiramente,  e  acompanhaio. 


19G       OBRAS    DE    FTlVNfíSCO    D^ANDHADK. 
XIV. 

Aquelle  arrebatado  movimento 
Do  rio,  lá  no  monte  alto  nascido, 
ttiie  para  dar  aos  corpos  mantirnenfo 
Capíivo  ièa  os  homens,  o  impedido, 
Q-uando  livre  se  vô  do  imp»^dimento 
(iue  até  énlão  o  tivera  n-primido, 
Tão  furioso  nào  sah(;  como  esta  çente 
Ao  Cunha,  e  a  seil  desejo -obediente. 

XV. 

VajGTaroso  ha  que  vhÍ  O  qné  nao  voa, 
Tanto  o  grande  desejo  òs  move  e  apressn, 
i:iual  pola  popa  s.ihe,  ifjiial  poia  proa, 
(iiial  tanibom  polo  bordo  se  arremessa: 
A  revolta  huns  confunde,  outros  atroa, 
Nào  lhes  deixa  ter  ordem  a  grãa  prc-ssa, 
Cada  hum  na  mais  cheirada  fusta  salta, 
IVhua  sobeja  gente,  o  n^outras  falta. 


Com  grãa  pressa  o  Remeiro  o  braço  estende 
E  vai-o  para  si  logo  ♦encolhendo, 
Com  grãa  força  as  sal^!^(las  ondas  fende 
E  as  vai  em  branca  escuma  revolvendo: 
Com  esta  pressa  e  força  então  pertende 
Alcançar  o  Sidtãoj  o  qual  correndo 
(Jom  grãa  presteza,  ^<i  vai  tanto  avante 
Gluc  vai  do  galeSoja  mui  distante. 


i>    PUI-MF-ltlO    CF.nCO    DE    DIU.  197 


Porém  com  quanto  ElRei  tao  loDgo  ir  vejo, 

llua  fusta  das  nossas  que  o  sej^uia 

Ajudada  da  pressa  e  do  destjo 

S^e  igualou  com  aquolle  que  íugia : 

Cliega-lhe  juntamente  neste  ensejo 

O  ligeiro  cátur  om  que  o  Sousa  hia 

A  quem  na  fortaleza  lá  obedecem, 

Q-ue  também  ódio  e  pressa  o  favorecem. 


E  vendo-se  ja  junto  a  seu  imigo 

Na  pW)a  do  cátur  ligeiro  salta, 

JC  d^alli,  com  semblante  inda  d^amigo 

A  Santiago' disse  com  voz  alta: 

Dize  a  ElRei  que  se  venha  ter  comigo 

A  este  cátur,  nem  hfija  nisto  falta, 

Ciue  o  Governador  manda  a  Sua  Alteza 

GLue  vá  d^iqui  direito  á  fortaleza. 

XIX. 

Santiago  responde  :  Eu  creio,  Sousa, 
Q.ue  deveis  ter  perdido  o  entendimento, 
j*orque  não  pode  tê-lo  aquelle  que  ousa 
Fallar  a  ElRei  com  tal  atrevimento. 
'A  tamanho  Senhor  se  diz  tal  cousa? 
Ou  vos  falta  a  vos  siso,  ou  falta  tento, 
Passai-vos  vos  cá,  dai-lhe  esse  recado, 
Glue  eu  mais  sisudo  sou,  mais  attentado. 


Í98      OBRAS    DE   FRANCISCO   d''aXDRADK. 


E  o  rosto  para  ElRoi  logo  voltando 
Se  lhe  entendeo  dizer-lhe  :  Senhor,  guar-te, 
Gtue  eu  do  que  vejo  estou  advinhando 
Glue  estes  são  aqui  vindos  a  matar-te. 
Sousa  no  mesmo  tempo,  mais  olhando 
No  que  por  fazer  tinha,  que  na  parte 
Onde  então  posto  está,  delia  escorrega, 
E  ao  salgado  licor  o  corpo  entrega. 


Receioso  d'algíia  adversa  sorte 
O  pagem,  a  que  a  temer  o  amor  convida, 
Traz  elle  ao  mar  se  lança  ousado  e  forte 
Gue  o  verdadeiro  nmor  nada  duvida. 
Por  salvar  seu  Senhor  dai  cruel  morte 
Arrisca  sem  temor  a  própria  vida. 
Q.ue  o  benigno  Senhor,  brando,  amoroso, 
Faz  o  servo  fiel,  fa-lo  animoso. 


No  Reino  de  Neptuno  ambos  entrarão 
E  de  terem  lá  entrado  se  entristecem, 
Mas  com  pressa  maior  da  que  levarão 
Soboragua  ambos  juntos  apparecom. 
liOgo  ambos  no  cátur  juntos  entrarão 
Com  ajuda  d^alguns  que  os  favorecem, 
Q-ue  n''hum  o  grão  perigo  arreceiavão, 
N 'outro  o  grande  valor,  e  amor  louvavao. 


o    PRIMEIRO    CTERCO    DE    DIU.  199 


IslRei  mostra  sentir  dôr  nao  pequena 
De  ver  Sonsa  no  mar  assi  banhar-se  : 
K  d'ylli  com  mãos  ]ogo  Ih^acena 
(iue  á  sua  fusta  então  queira  passar-se. 
Elle  vendo  que  assi  melhor  se  ordenai 
Poder  o  seu  intento  efíeituar-se, 
Obedece  ao  Sultão,  e  co''o  primeiro 
Aceno,  lá  na  fusta  entra  ligoiro. 


Ligeiramente  Sousa  a  fusta  afferra, 
Q-ue  de  grandes  empresas  era  amigo. 
Pedr** Alvares  d^Almeida  lá  se  encerra, 
Segue  António  Corrêa  este  perigo. 
SaUa  tambcm  na  fusta  o  que  na  terra 
Camh)aia,  ja  sentio  o  jugo  imigo. 
Segue  hum  Lopo  t.imbcm  este  caminho, 
Q-ue  por  alcunhas  tèe  Sousa,  Coutinho. 


Hum  Manoel,  hum  Pedro,  e  juntamente 
Hum  António  defende  a  proa  aguda. 
Com  hum  Lopo,  hum  Diogo  alli  somente 
Em  guardar  a  redonda  popa  estuda  : 
Em  meio  desta  nobre  e  forte  gente 
Fica  posto  o  SultiLo,  que  a  còr  ja  muda, 
E  o  que  da  fortaleza  tinha  o  mando 
Estava  então  com  elle  praticando. 


ÚCÚ 


OlíRAS    DE    FRANTISCO    IJ   AXDTlATíT!. 


XXVI, 


KlRei,  que  inda  que  estava  tão  distaiito 
Do  galeão,' por  livre  não  se  havia, 
Q.UO.  era  quanto  os  Portuguozps  tee  diante 
Temor  da  cruel  morte  o  combatia, 
Volta  aos  seus  as  palavras  e  o  semblante, 
E  havendo  que  a  linguagem  o  cneubria 
Diz,  que  com  cruel  peito  e  braço  forte 
Dêem  áquelles  imigos  alli  a  morte^ 

XXVII. 

Isto  entende  o  Mesquita,  e  com  grão  dano 
Do  nobre  Manoel,  ve  logo  o  eífeito, 
Q-ue  o  genro  do  infiel  Italiano 
Sem  piedade  lhe  passa  o  forte  peito. 
Trespassa  aqnelle  peito  soh(»rano, 
O  qual  inda  que  á  morte  foi  sujeito, 
Nunca  o  maior  perigo  pôde  tanto 
Q.ue  lhe  podesse  pôr  qualquer  espanto. 


Mesquita,  em  grave  dôr  e  ira  a  alma  envolta, 

Apertando  na  mão  a  nua  espada. 

Ferra  a  ElRei  por  hum  braço,  e  assi  o  volta 

E  lhe  abre  ao  cruel  sangue  larga  estrada  : 

O  desmaiado  Rei  a  lingua  solta, 

E  ja  com  clara  voz  para  os  seus  brada 

ftii\i  morte  aos  Christãosdèe  com  grã  violência, 

8i;n5  por  si  fazer  nunca  resistência. 


o    rUIMElUO    CERCO    Dt   DIU  '^Ol 


O  fiol  Langarcam,  e  os  que  cahírao 
Iwá  para  a  popa  então,  tendo  infiniía 
Dòr  por  aquelle  mal  que  a  seu  Rei  virão, 
(jLuo  a  terrível  vin;:;ança  ja  os  incita. 
Tanto  que  do  seu  Rei  a  voz  ouvirão 
i)  Coutinho  salteão,  e  o  Mesquita 
Com  imijço  furor,  com  ira  imniensa, 
Mos  em  ambos  acharão  grãa  defensa. 


Este  imigo  furor,  esta  ira  ardente 
(tlue  nliua  e  n^outra  parte  era  assaz  justa) 
Kneheo  em  breve  espaço,  juntamente 
l-)e  revolta  e  de  sangue  a  subtil  fusta. 
Ilfía  e  outra  parte  o  ferro  cruel  sente, 
A  alguns  só  sangue,  alguns  a  vida  custa, 
Mas  não  ha  alli  algum  que  as  costas  vire 
Ou  se  derrame  sangue,  ou  vida  tire. 


Neste  tempo  ja  aquelle  esprito  ousado 
Do  valcroso  Sousa,  illnstre  e  forte, 
A  quem  o  genro  cruel  do  renegado 
Com  vingativo  braço  dera  a  morte, 
No  mar  deixando  o  corpo  sepultado 
Subira  lá  á  Celeste,  Eterna  Corte, 
Com  cantos  e  prazer  dos  que  o  leva  vão 
Com  lagrimas  e  dor  dos  que  ficavão. 


202      OBRAS    DE   FRANCISCO    dVííDRADF. 


O  valoroso  Alineida,  hum  grando  espaço 
Contra  esta  imiíi;a  fúria  embravexúda 
Se  defendeo  com  duro  e  forte  braço 
Em  quanto  lhe  durou  a  força  e  a  vida, 
Até  que  o  duro,  agudo,  e  subtil  aço 
A  sua  fiel  alma  deu  sabida 
Para  suVjir  ao  Eterno  Senhorio, 
Também  no  mar  deixando  o  corpo  frio, 

XXXIII. 

A  falta  destes  dous,  que  alli  morrendo 
Chegarão  do  louvwr  á  mor  alteza, 
Nos  três  que  se  ficavão  defendendo 
Por  excessiva  dôr,  mas  não  fraqueza, 
Antes  quanto  o  perigo  lua  crescendo 
Tanto  crescia  neíles  a  braveza, 
E  ajudado  da  dòr  o  esforço  antigo 
Se  faz  sentir  em  dobro  ao  bravo  imigo. 

XXXIV. 

Com  grãa  velocidade  o  mar  cortando 
Alguas  fustas  vinhao  não  distantes 
Em  favor  dos  que  esta  vão  pelejando, 
Tristes  por  não  poderem  chegar  antes. 
E  vinhão  grandemente  desejando 
Naquelle  feito  ser  partecipantes, 
Mas  por  hum  grande  espaço  ao  seu  intent» 
Hum  tenro  moço  foi  impedimento. 


'IlIMr.lUO    CETICO    DE    DIU. 


XXXV. 


•20:} 


\\sfe  ora  aquelle  pagem  de  qne  escrito 

l''ica,  que  as  frechas  e  o  arco  a  ElRei  trazia, 

O  qual  com  tal  snccosso,  e  tal  esprito 

As  frechas  nos  imigos  despendia, 

Q-ue  em  breve  derramou  sangue  infinito 

Da  Lusitana  gente  que  os  seguia, 

0)m  que  nella  não  pôz  desconfiança 

Mas  mór  ódio,  e  desejo  de  vingança. 

XXXVI. 

E  tao  grave  temor  a  frecha  imiga 
Da  chusma  pôz  então  no  fraco  peito, 
Q.ue  nenhum  Capitão  sabe  que  diga 
due  por  falta  de  remo  perde  o  feito  : 
Hum  roga,  outro  ameaça,  outro  castiga. 
Mas  toda  a  diligencia  he  sem  proveito, 
Q-ue  a  chusma  teme  mais  do  moço  o  braço 
(nlue  o  castigo  dos  seus,  ou  ameaço. 

XXXVII. 

Tanto  tempo  esta  baixa  e  vil  canalha 
Daquelle  alto  temor  foi  combatida, 
(^tuanto  nesta  cruel,  dura  batalha 
Teve  settas  o  moço,  e  teve  vida  ^ 
Porque  o  chumbo  subtil,  que  no  ar  espalha 
A  força  do  arcabuz  mal  resistida. 
Tirou  ao  moço  a  vida  n'hum  momento 
K  aos  Romeiros  aquelle  impediuiento. 


204      OBRAS    DE   FRANCISCO   D^ANDRADE. 

xxxvm. 

Mas  vejo  que  me  estão  pedindo  ajuda 
Os  três  que  lá  deixei  d^ElRei  na  fusta, 
Rasao  Será,  Senhores,  que  lhes  acuda 
GL,ue  este  leito  também  caro  lhes  custa : 
Nenhum  delles  a  cor  do  rosto  muda 
Fuz-lhes  o  perigo  a  força  mais  robusta, 
Q.ual  ponta,  qual  revez,  qual  d\ilto  fende 
Nada  ás  cruéis  espadas  se  defende. 

XXXIX. 

Fraqueza  nos  imigos  se  nao  sente. 
Por  defender  seu  Rei  também  trabalhão. 
Também  movem  o  ferro  ousadamente. 
Também  jogão  de  ponta,  fendem,  talhão: 
Em  meio  desta  imiga  fúria  ardente 
Huns  e  outros  o  sangue  imigo  espalhão. 
Porém  destes  que  os  nossos  tee  defronte 
Mandarão  sete  á  praia  de  Aqueronte. 


Entendendo  os  imigos  que  por  meio 

Das  armas  podem  mal  remediar-se. 

De  desesperação  o  peito  cheio 

Tentão  novo  remédio  de  salvar-se  : 

Todos  supitamente,  sem  receio 

Vão  co^os  três  companheiros  abraçar-sc. 

Da  multidão  vencida  a  fortaleza 

Forçado  lhe  he  mostrar  qualquer  fraqueza. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIU.  205 


Apparelhado  tendes  grão  perigo 
Mas  não  desespereis,  fortes  soldados: 
Salteados  do  copioso  imigo 
Os  três  ja  assaz  feridos,  e  cansados, 
Sem  perderem  aquelle  esforço  antigo 
Glue  os  fez  no  mor  perigo  mais  ousados, 
Mas  faltando-lhes  a  força,  que  era  humana, 
Forçados  vão  buscar  a  onda  Oceana. 


O  que  tèe  do  tridente  o  poderio 
Com  festa  os  companheiros  agasalha. 
Voa  a  fama,  «  por  todo  o  senhorio 
Salgado,  destes  três  a  vinda  espalha  : 
Nenhum  do  gosto  alli  fica  vazio. 
Por  vè-los  cada  hum  corre  e  trabalha. 
Cada  hum  co^o  que  pode  alli  os  festeja 
Q-ue  o  seu  Rei  isto  faz,  e  isto  deseja. 


Deixa  o  Carpathio  velho  o  antigo  assento, 
Glauco,  Nereo,  Tritão,  vão  a  busca-los, 
\  ão  também  neste  alegre  ajuntamento      í 
As  formosas  Nereidas  visita-los,  ' 

Glue  com  brando  e  suave  movimento 
Trabalhão  quanto  podem  festeja-los, 
As  cabeças  com  perlas  enlaçadas 
De  corais,  ou  de  conchas  coroadas. 


XLIV. 

Este  gosto  geral,  com  triste  manto 
De  geral  dôr  se  cobre,  e  se  refreia, 
Porque  logo  dos  três  vêem  correr  tanto 
Sangue,  qual  sahe  da  fonte  a  viva  veia; 
Sente  disto  Neptuno  hum  grande  espanto, 
Não  sabe  então  que  tema,  nem  que  creia, 
Pergunta  aos  três  a  causa,  e  i:ão  Ufa  encobrem 
Mas  tudo  por  extenso  lhe  descobrem. 

XI.V. 

Elle  vendo  o  seu  mal  de  qualidade 
Glue  cura  antes  que  festa  então  pedia, 
E  para  isto  nao  ter  commodidade 
Porque  nao  se  usa  lá  de  cirurgia. 
Manda  os  seus  de  maior  authoridade 
Q-ue  com  elles  se  vão  em  companhia. 
Para  que  vão  segura  e  honradamente 
Até  se  apresentar  á  sua  gente. 


Nao  se  detcm  hum  ponto  esta  marinha 
Gente,  que  a  seu  Rei  todos  obedecem. 
Nada  então  o  caminho  Ih^entrelinha 
Logo  sobolas  ondas  apparocem, 
])'alli  co'a  despedida  que  convinha 
Os  marinhos  ao  fundo  assento  decem, 
E  os  três  na  mais  chegada  fusta  saltão 
Porque  ajudas  para  isso  lhes  não  faltão. 


o    PRIMEIRO   CBRCO   DE    DIU. 


Com  grande  festa  forao  recebidos 
Dos  seus,  que  delles  ja  desconfia  vão, 
E  quanto  os  mais  haviào  por  perdidos 
Tanto  mais  de  os  ver  vivos  se  alegravao  : 
Mas  vendo-os  maltratados  e  feridos 
Só  por  dar-lhes  remédio  procuravao. 
Porém  ni*m  isto  lli''era  impedimento 
Para  continuarem  seu  intento. 

XLVIII. 

Entretanto  o  Sultão,  deste  embaraço 

Ja  livre,  que  o  puzera  em  mãos  da  morte, 

De  novo,  ora  com  rogo,  ora  ameaço, 

(Cuidando  assi  fugir  á  adversa  sorte) 

Faz  que  o  Remeiro  estenda  e  encolha  o  braço 

Mais  que  nunca  apressado  então  e  forte, 

E  lá  para  a  Cidade  as  ondas  fende 

Q.ue  sor  o  mais  seguro  porto  entende. 


Os  Christuos  de  que  ja  disse  primeiro 
Q.ue  á  fusta  de  Baudur  vão  dando  caça, 
Não  querendo  nenhum  ser  derradeiro 
A  grãa  pressa  os  detém  e  os  embarafja. 
E  juntamente  o  fraco  e  vil  Remeiro 
(A  ijue  então  com  cruel  morte  ameaça, 
iiuando  tinha  inda  vida,  o  moço  ousado) 
Sejjue  o  euminho  menos  apressado. 


208      OBRAS   DE   1RANCI8CO   D^I^DRADE. 


Bandur,  que  de  fugir  jamais  nao  cessa, 
Toma  com  isto  alento,  e  confiança, 
Q.ne  o  vaí;;ar  dos  Christaos,  e  sua  pressa 
Lhe  põe  de  se  salvar  çrande  esperança  : 
Traz  isto  outro  embaraço  se  atravessa 
Q.ue  a  victoria  aos  Christãos  pòz  em  balança, 
E  com  quanto  os  trabalha,  e  mal  os  trata 
Não  tolhe  a  morte  a  ElRei,  mas  lh"'a  dilata. 

LI. 

Na  conjunção  que  a  fúria  mais  ardente 
Naquelles  bravos  peitos  se  agasalha, 
Q.uando  o  agudo,  subtil  ferro  luzente 
Com  mor  furor  o  imigo  sangue  espalha, 
Três  navios  chegarão  juntamente 
A  este  mesmo  legar  desta  batalha, 
Q.ne  este  feito  fizerão  mais  custoso 
ISIas  para  os  vencedores  mais  famoso. 


De  lá  de  Mangalor  vem  esta  frota 
l^equena,  mas  de  ousada  gente  cheia, 
Q-ue  nos  brutos  preceitos  cre  devota 
Q-ue  dos  Turcos  a  fé  manda  que  creia. 
Dos  trcs  navios  hum  ho  galeota, 
Outro  fusta,  o  terciro  ho  tiiforeia. 
Os  navios,  e  a  gente  dellcs  vinha 
Trovida  assaz  do  tudo  o  que  convinha. 


o    PKIMEiUO    CEncl)    DK    Dll  .  2iX^ 


^  r-se  aqui  deSta  gonte  <»  esforço  íinti;^»> 
O  esprito  leal,  o  «msado  pfito, 
l'orq!ie  vendo  6<.'ij  liei  ao  ierro  iiiiiiío 
('om  grãío  risco  da  vida  estar  snjcilo, 
3'(ideiid()  bem  fugir  a  este  perigo 
l'orquc  inda  se  não  tinha  a  cllos  respfih», 
Mais  querem  com  seu  Rei  perder  a  vida 
Q.ue  podcrem-ll\''a  vi\f>s  vêr  perdida. 


]/<bte  esforço  leal  estimulados 

Vau  tainanlio  furor  todos  se  accendeni, 

Que  em  meio  surgiam  dos  Chrislãos  soldados' 

K  com  tudo  o  que  poilein  os  oíTendííHi. 

•7a  os  duix)a  fortes  ossos  encurvados 

Com  mil  IVííchas  subtis  os  ar<!S  fendem, 

Sabe. o  redondo  ferro  da  bombarda, 

Sabe  o  chumbo  subtil  lá  da  espingarda. 

LV. 

Nada  J)asla  a  deter  a  arrel)ata<]a 
Fúria,  dos  infernaes  tiros  malditos, 
Sente  algtim  damno  a  gente  baptisada 
ftue  d*huns  sabe  sangue,  dVíutros  os  cspritos' 
Nova  revolta  sente  a  nossa  arrnadn 
Com  nova  confusão,  com  novos  gritos. 
Qne  este  novo  end>araeo  qtie  llie  vei<» 
Lhe  deu  mais  que  fazer,  iuus  aão  receio. 


2Í0     OBRAS  BS  rRAlfCISCO  B^A«DRAI>£» 
IVX. 

Cumpre-lhe  menear  o  braço  forte, 
Usar  mais  de  furor  que  de  prudência, 
Porque  este  novo  imigo  he  de  tal  sorte 
Q-ue  ha  mister  novo  esforço  e  resistência  : 
Por  salvarem  seu  Rei  da  cruel  morte 
A  vao  todos  buscar  á  competência, 
E  este  intento  tratarão  de  tal  geito 
Que  esteve  em  condição  de  ter  eíFeito. 

IVII. 

Mas  o  vencedor  braço  Lusitano 

"Vencido  nunca,  e  pouco  resistido, 

A  este  imigo  mostrou  que  por  seu  dano 

Então  foi  leal,  tão  atrevido: 

E  porque  da.r  «ntão  morte  ao  tyrano 

Lhe  não  fosse  dos  Turcos  impedido. 

Os  mais  delles  d'*ElRei  a  empresa  sóltão 

E  contra  estes  a  fúria,  e  o  ferro  vdltão. 

Aquella  grossa  fúria  impetuosa 
Com  que  a  dura,  e  intratável  penedia 
Combatida  he  da  inchada  onda  alterosa 
No  meio  da  sazão  áspera  e  fria, 
Q-uando  a  força  cruel  tempestuosa 
D**Austro  revolve  o  mar,  encobre  o  dia. 
Não  chega  á  que  os  Christãos  então  levarão 
Contra  os  que  seu  intento  dilatarão. 


t)   PRIMEIRO  CBRCO  DE  B£U.  211 

s,ix:. 

ÂfíerrSo  com  grãa  pressa  os  três  navios, 
Movem  os  braços  sempre  vencedores, 
E  com  quanto  os  acharão  não  vazios 
D^esforço,  de  valor,  de  defensores, 
Mandão  comtudo  ao  mar  os  corpos  frios 
Daquella  gente  a  quem  altos  louvores 
Tirar  nao  pode  a  morte  apoz  a  vida. 
Porque  sempre  da  fama  foi  vencida, 

LX. 

Entre  esta  gente,  digna  de  memoria 
Q.ue  á  morte  por  seu  Rei  quiz  entregar-se, 
Hum  somente  não  acha  a  minha  historia 
Q;ue  podesse  da  vida  contentar-se. 
Mas  também  os  Christãos  desta  victoria 
Algum  tanto  podião  lamentar-se. 
Porque  as  vidas  alguns  alli  perderão, 
Alguns  as  vidas  não,  mas  sangue  derão. 


Traz  ElRei  me  quero  ir,  porque  apressado 
Me  foge,  com  ligeiro  curso  leve, 
O  qual  vendo-se  ja  desaífrontado 
Dos  três  que  antes  na  sua  fusta  teve, 
E  o  soccorro  que  então  lhe  era  chegado 
Glue  as  fustas  que  o  seguião  lhe  deteve, 
Co'a  presteza  que  o  medo  lhe  ensinava 
Lá  direito  á  Cidade  caminhava* 


âÍ2      OURAS    Di:    FÍIANCISCO    d"aIÇDRA'DE, 

E  tanlo  ostava  a  Lusitana  gento 
Kmbaraç.ula  então  iiaf{iielle  feito, 
K  contra  os  tnís  navios  tao  ardente 
Scni  ter  a  E,liÍGÍ  que  fo2;e  algirm  roapeifo, 
(ine  píidéra  nesta  hora  livremente  -o  oúbo- 
A  toiicão  de  BaHfliir  cliogar  a  eífeita  í    •■■.• 
Se  o  Ceo,  (jire  alli  o  castigo  lhe  guardara, . 
O  ciiniinlio  lho  «ião  embaraf^ára. 


Nesta  hora  em  que  estar  salvo  llu;  pViroce 

A  IClRei,  por({ne  a  Ci.lade  tetj  visinh;!, 

De  iá  da  fortaleza  eis  qne  apparece 

i  í  um  cátiir  qoe  cm  soceorro  aos  Christãos  yiiilia 

í)  forte  Capitão  a  l^lRei  conhece     •  = 

(Este  o  Pantafasul  d^altnnha  tinha) 

K  vendo  cora  qnc  pressa  clle  navega 

Logo  o  nuiriílo, ardente  a  hum  berço  chega. 


Fa7  O  tiro  infernal  o  eíícito  antigo, 

S.dic  o  pelouro  ardente,  duro  e  forte, 

K  vai  tão  bem  guiado  ao  Rei  imigo 

(^ue  a  dons  on  tros  Romeiros  lhes  dá  a  itiortc. 

Aqui  tens,  cruel  Rei,  o  grão  castigo 

í^ne  te  ordenou  a  tua  amiga  sorte, 

K  o  Coo,  que  nao  te  foi  amigo  menos, 

M.ts  vir.ga  a  dòr  dos  fracos,  e  pequenos. 


o  Primeiro  c£rco  dé  diu.  âi3 


A  falta  dos  Remeiros,  e  a  grSa  pressa 
Com  que  a  maró  vasava  neste  instante 
Faz  com  que  a  leve  fusta  se  atravessa 
Glue  hia  ja  dos  Cliristàos  assaz  distante. 
Comtudo  de  remar  ElRei  não  cessa, 
Porém  mais  torna  atraz,  que  vai  avante, 
Q.UC  contra  a  grãa  corrente  arrebatada 
Não  basta  pouca  gente  e  ja  cansada. 

LXVÍ. 

l*'orc;ado  he  então  que  ao  tnat  a  fusta  saia 
Da  furça  da  corrente  ja  vencida  •, 
Com  isto  o  trabalhado  Rei  desmaia 
Porque  sua  esperanç^a  Vè  perdida  : 
K  vendo-se  apartar  daquella  praia 
Onde  esperava  só  salvar  a  vida, 
K  metter-se  em  mãos  d''hua  morte  dura, 
D'outro  modo  tentar  quer  a  ventura. 

LXVll. 

Ousadamente  ao  mar  logo  se  lança ^ 
Q-ue  o  grão  perigo  faz  o  medo  ousado, 
Guia-o  nisto  hua  vãa,  falsa  esperança^ 
Porque  cuidou  poder  salvar-^se  a  nado. 
I>ançárão-se  traz  elle  sem  tardança 
Também  os  de  que  estava  acompanhado, 
Q-ue  nem  na  derradeira  hora  o  deixarão 
Os  que  sempre  na  vida  o  acompanharão. 


214      OBRAS    DE   FRANCISCO   S^AMDRADC. 

txvni. 

Co''o9  braços  e  co^os  pés  fax  o  caminho 
Baudur  lá  pelas  ondas  atrevido, 
Agora  quer  vencer  o  Rei  marinho 
Q-uem  sempre  dos  terrestes  foi  vencido. 
Dos  seus  hum  envergonha  alli  o  golfinho 
Outro  inveja  ao  moço  faz  de  Abido, 
Todos  no  mar  parecem  ter  o  assento 
Na  destreza,  em  nadar,  no  atrevimento. 

LXIX. 

Mas  com  tííl  força  então  hião  deixando 
As  aguas  a  Cidade,  e  ao  mar  corrião, 
Gtue  cm  vão  hiào  os  tristes  trabalhando, 
Em  vao  contra  esta  força  resistiao  : 
Antes  cada  vez  mais  os  vai  chegando 
Para  aquelle  logar  d'onde  fugiào, 
Cheg;i-o3  cada  vez  mais  ao  mor  perigo 
Até  que  os  poz  em  mãos  de  seu  imigo. 

LXX. 

O  miserável  Rei,  que  em  tanto  dano 
E:>tá  de  dous  imigos  posto  em  meio, 
Glue  d^hua  parte  a  fúria  do  Oceano 
D^espantoso  temor  o  tinha  cheio, 
E  d^outra  o  bravo  imigo  Lusitano 
Lhe  dava  mais  certeza  que  receio 
D'hua  morte  de  suas  obras  dina, 
Tentar  o  imigo  humano  determina. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  215 

IXXI. 

Clioga-se  o  triste' I050  á  mais  visinha 
Fusta  dos  Portuguezes  que  alli  estava, 
ftne  ilida  que  por  imigos  seus  os  tinha 
Mais  dcllps  que  das  ondas  se  fiava. 
Por  Capitão  naquelia  fusta  vinha 
Hum  que  Tristão  de  Paiva  se  chamava, 
A  quem  o  mor  perigo,  ou  o  mor  medo 
Nào  fez,  que  não  tivesse  o  rosto  quedo. 


El  Rei  para  que  o  tomem  se  convida, 
K  levantando  a  voz  bem  clara  e  forte 
Por  remédio  tomou  de  sua  vida 
O  que  mais  certo  o  íoi   de  sua  morte. 
Melhor  te  fora,  triste,  ter  perdida 
Agora  essa  alta  voz,  que  tua  sorte 
Por  ministra  guardou,  e  executora 
Do  mal  que  te  guardava  para  esta  hora, 


Eu  sou  Baudur  que  tanto  desejáveis, 
Brada,  vendo-se  em  tal  necessidade, 
Mas  se  os  desventurados  miseráveis 
Q.ue  sentem  da  fortuna  a  crueldade, 
IV os  mais  ferinos  peitos,  e  intratáveis 
Brandura  acharão  sempre,  e  piedade, 
Em  vos  agora,  ó  nobres  Lusitanos, 
Nào  me  falte  esta  a  mi,  pois  sois  humanos. 


á^l6      OURAS   DE  rilATíClSCO   D^AIÍDRADE. 


Paiva  abranda  a  tenção  cruel  robusta, 
Gliie  composto  nao  he  de  pedra  dura, 
E  conhecendo  El  Rei  lhe  chega  a  fusta 
Q-uiyá  por  remediar  tal  desventura. 
Mas  elle  vendo  quanto  nelle  injusta 
Aquella  clemência  he,  nao  se  assegura, 
Gue  do  seu  ódio  antigo  a  consciência 
Mais  suspeita  lhe  faz  a  mor  clemência. 

LXXV. 

Arroda-se  da  fusta  com  graa  pressa 

Q/ue  da  morte  hum  temor  grande  o  combate, 

De  lá  ao  Capitão  inda  não  cessa 

Com  instancia  pedir  que  não  o  mate. 

Paiva  diante  a  fusta  lhe  atravessa 

Dizendo  :   Não  ha  cá  quem  mal  te  trate, 

Cambaio  Rei,  seguro  podes  vir-te 

Glue  todos  cá  desejão  de  servir-te. 

LXXVI. 

Sabe  que  os  Portuguezes  nos  corremos 
De  dar  morte  ao  que  a  nós  vem  entregar-se, 
Vendo-se  o  pobre  Rei  em  taes  estremes 
Determina  do  imigo  coníiar-se  : 
Chega-se  á  fusta,  pega  d 'hum  dos  remos, 
Mas  nem  isto  bastou  para  salvar-se, 
Glue  não  basta  o  que  cá  segura  a  gente 
Contra  o  que  ordena  o  Sceptro  Omnipotente. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  217 

LXXVII.'^    €> 

D''hum  remo  n'outro  Paiva  vai  saltando, 
Chega  áquelle  onde  vê  que  o  Sultão  pende, 
Q-ue  inda  o  está  pola  vida  importunando 
E  por  ventura  dar-lh''a  então  pertende : 
Dentro  queria  ja  mettê-lo,  quando 
Outro  mais  cruel,  hua  chuça  estende. 
Mas  porque  sei  que  aqui  ja  muito  tardo 
O  successo  para  outro  Canto  guardo,. 


CERCO  DE  Dll] 


€l%i^T€^  ^'lil, 


Acaha-se  de  dar  a  morte  ao  Sultão ^  e  a  seus 
companheiros,  'JTraz-se  vivo  Cojaçofar  ao 
Gm^ernado7' :  manda-lhe  que  vá  ipdeiar  ai' 
(jumas  revoltas  que  havia  na  Cidade.  Man- 
da o  Governador  lançar  mão  poios  arma- 
%ens  da  Cidade  c  da  Villa  dos  Kumes,  e 
polo  thesouro  do  morto  Sultão,  Presenta-se- 
Ihe  hum  Mouro  de  monstruosa  idade ^  com 
ahjumas  particularidades  notáveis.  Faz  o 
Governador  Rei  de  Cambaia  a  Mei^zam 
Hamed.  Os  Senhores  do  lieino  ajuntão 
hum,  poderoso  exercito  e  vem  sobre  cUe. 


Vfraa  falta  deve  íer  (reiítendimeiíto 
(Aliem  dos  bens  da  fortuna  se  confia, 
Porcjue  este  era  cousa  vSa  pôz  fundirtnento, 
Este  hum  cego  tomou  por  seu  guia. 
O  que  do  mundo  tèe  conhecimento, 
E  dos  seus  bens  entende  a  mor  valia, 
Tèe,  quando  está  mais  alto,  mor  receio 
Torque  vê  que  se  serve  do  que  he  alheio. 


i 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  219 


O  Reino,  o  grande  Império,  o  grande  estado 
De  que  mais  tee  quem  menos  o  merece, 
Como  hc  bem,  que  a  fortuna  dá  emprestado 
Poucas  vezes  grão  tempo  permanece. 
E  o  que  do  seu  vê  mais  senhoreado, 
Q-uando  estar  mais  seguro  lhe  parece 
Lh^o  tira,  ou  d^agastada,  ou  de  corrida 
E  ás  vezes  traz  o  bera  lhe  tira  a  vida. 

III. 

\*<jo  que  com  rasao  deixou  escrito 
O  famoso  Poeta,  com  que  a  terra 
De  Salmona,  alcançou  hum  infinito 
Louvor,  com  que  hoje  faz  ao  tempo  guerra '. 
Clue  em  quanto  este  immortal,  vital  espritft 
Dentro  neste  mortal  corpo  se  encerra         .Ú>1 
llaver-se  por  ditoso  ninguém  deve:  ' 

Verdade  he  que  por  fabula  se  escreve. 

IV. 

Que  se  tanto  a  cubica  o  humano  peito 
Cega,  que  lhe  faz  pôr  a  confiança 
Naquillo  que  á  fortuna  está  sujeito 
Em  quem  não  ha  constância  ou  segurança, 
Contra  toda  rasao,  todo  direito 
Lhe  põe  nome  de  bemaventurança. 
Pois  a  não  têe  quem  têe  maior  certeza 
D^inconstancia  nos  bens  que  de  firmeza. 


De  que  mais  te  sérvio,  o  poderoso 
Baudiir,  ser-te  a  fortuna  favorável, 
K  fazer-te  nà  vida  tão  ditoso, 
Q.ue  de  teres  o  iim  mais  miserável. 
Nao  he  este  meu  exnmplo  fabuloso, 
Nellc  verá  bem  clara,  e  bem  notável 
Mente,  quem  bom  quizor  desenganar-sc 
Gluanto  deve  no  mundo  confiar-se. 

VI. 

Mctter  dentro  na  fusta  procurava 
O  valeroso  Paiva,  ao  Rei  imigo, 
Q-uando  outro  que  na  mesma  fusta  estava 
(Porque  nao  sei  quem  era  não  o  digo) 
Kstende  a  chuça  (como  atraz  contava) 
Em  nova  ira  iuflajnmado,  e  em  ódio  antigo. 
Manda  o  ferro  cruel  á  real  fronte 
Abre  nella  de  sangue  viva  fonte. 


1 


•  til. 

Nao  se  contenta  o  bravo  Lusitano 
De  ver  ElRei  em  forma  tão  estranha, 
Gluenelle  ainda  ha,  que  he  pouco  o  maior  dano 
Em  quanto  o  esprito  o  corpo  lh'acompanha. 
Outra  vez  niove  o  ferro  deshumano. 
Outra  vez  do  sou  próprio  sangue  o  banha, 
Mas  nem  inda  com  i^to  se  contenta 
Em  vão  humildes  ro'os  ElRei  tenta. 


d  pRtM£iao  ceuco  ds  diu.         221 


Saltão  também  traz  este  outros  soldados 
Invejosos  de  ser  outro  o  primeiro, 
De  tal  ódio,  e  tal  ira  acompanhados 
Q.ue  nenhum   quer  alli  ser  derradeiro. 
Deste  imijío  furor  estimulados 
Não  sei  se  lhe  deixarão  membro  inteiro, 
Q-ue  em  quanto  a  ahna  da  carne  nao  n^apartao 
De  sangue  os  cruéis  braços  não  se  fartao, 

IX. 

Baudur  em  fim  o  triste  esprito  rende 
Q.ue  por  mil  partes  têe  larga  sabida, 
Sobolo  mar  o  morto  corpo  estende 
(iue  foi  de  tantos  corpos  homicida. 
Nisto  vem  a  parar  o  que  pertende 
Segurar  co^is  alheias  sua  vida, 
iriue  a  Divina  Justiça  sempre  ordena 
Q.ue  succeda  ao  delicto  igual  pena. 

X. 

QuejTi   morre  traz  os  bens  que  dá  a  ventura 
(Vede  o  humano  saber  como  sempre  erra) 
Pois  áquelle  que  pôz  na  mor  altura 
Faz  a  mais  perigosa,  e  cruel  guerra. 
Não  teve  hoje  na  terra  sepultura 
O  que  hontem  foi  senhor  de  tanta  terra. 
Entre  os  peixes  ja  fica  sepultado 
O  que  dos  homens  foi  tâo  venerado. 


XI. 

Depois  que  o  Portuguez  penetrante  aço 
O  corpo  do  Sultão  fez  amarello, 
Soboragua  ficou  algum  espaço 
Glue  nem  o  mar  queria  recolhello, 
Até  que  de  Neptuno  o  duro  braço 
(Não  sem  dor  de  em  tão  triste  estado  vello) 
Move  o  tridente,  força  a  marinha  onda, 
E  faz  que  a  seu  pesar  em  si  o  esconda. 

XII. 

Esconde  o  corpo  emfim  a  onda  marinha 

A  que  a  terra  negou  recolhimento, 

E  em  nenhum  logar  acha  a  historia  minha 

Glue  fosse  visto  mais  hum  só  momento. 

A  sua  alma  infiel  logo  encaminha 

Lá  do  velho  Acheronte  ao  negro  assento, 

Onde  o  triste  gemido,  o  largo  pranto 

Nao  move  o  rigoroso  Rhadamanto. 

XIII. 

Dos  treze  de  que  atraz  ja  deixo  escrito 
Que  ElRei  nesta  jornada  acompanharão, 
E  que  com  hum  valor  quasi  infinito 
l*or  salva-lo  da  morte  procurarão. 
Os  doze  o  seu  fiel,  ousado  esprito 
Com  seu  Rei  juntamente  aqui  deixarão, 
A  alguns  a  sobeja  agua  a  vida  tira, 
A  outros  o  Portuguez  ferro,  braço,  ira. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  223 


Hum  destes  doze  foi  o  Santiago 

De  que  alraz  ja  meus  versos  escreverão, 

Glue  nesta  hora  também  achou  o  pago 

GLue  sempre  suas  obras  merecerão. 

A  este  polo  salgado  fundo  lago 

Os  pés  e  as  mãos  a  estrada  lhe  fizerão, 

E  cortando  assi  o  mar  com  grãa  presteza 

Se  chega  á  Lusitana  fortaleza. 


Foi-lhe  então  contra  as  ondas  concedida 

Maior  força  da  sua  imiga  sorte, 

Não  para  lh'outorgar  mais  longa  vida 

Senão  para  lhe  dar  mais  triste  morte. 

A  força  da  corrente  foi  vencida 

Só  deste,  quiçá  sendo  o  menos  forte, 

Porque  alli  quiz  o  Ceo  que  fosse  morto 

Onde  cuidava  ter  seguro  porto. 

XVI. 

Vendo  o  triste  passado  o  mór  perigo 
Pouco  d^outro  qualquer  ja  se  arreceia, 
E  como  se  dos  nosscjs  fora  amigo 
Bradando-lhes  que  o  tomem  se  nomeia. 
Acha  este  aqui  também  o  mór  castigo 
Onde  cuida  que  seu  mal  remedeia, 
E  a  via  que  tomou  para  valer-se 
Também  foi  a  mais  certa  de  perder-sc. 


224      OBHA3   DE   FRAnCISCO   D'AKDBADE. 


Gtue  como  o  Ceo,  que  o  bem  e  o  mal  concede 
Lhe  mostrou  natureza  mais  henina 
Entre  o  povo  infiel  de  Mafamede 
Glue  entre  os  que  têe  de  Chri.sto  a  Lei  Divina, 
Os  Christãos,  a  que  agora  favor  pede, 
Para  o  seu  mainr  damno  mais  inclina. 
Os  quaes  tanto  que  ouvirão  a  voz  alta 
Gtual  se  alvoroça,  e  qual  se  sobresalta. 


XVIII. 

Gluando  acaso  entre  a  rústica  manada 
Da  gente  que  no  campo  se  aposenta, 
Apparecer  se  vê,  soberba  e  irada 
A  vibora  cruel  e  peçonhenta. 
Corre  por  cá,  por  lá  sobresaltada 
A  gente,  que  de  a  ver  se  descontenta, 
Buscando  com  que  a  mate,  a  grande  pressa 
Tudo  o  que  acha  diante  lhe  arremessa. 


XIX. 

Nao  muito  difierentes  estou  vendo 
Os  que  estavao  então  na  fortaleza, 
€tue  na  voz  e  no  nome  conhecendo 
O  que  tanto  aborrecem,  com  presteza 
D-hua  parte  para  outra  vão  correndo 
Todos  em  ódio  acesos,  e  em  crueza, 
Jíuscando  cada  himi  com  que  de  cima 
Lhe  mostre  este  seu  mal  quanto  o  lastima. 


i 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   HIV.  225 

XX. 

Fa-los  tornar  com  pressa  a  fúria  imiga, 
Cheios  d\)dio,  vazios  de  piedade, 
tlnal  lhe  lança  o  penedo,  qual  a  viga, 
E  o  que  nào  pode  mais,  lança  a  vontade: 
Pareee  aqui  tratar-se  áspera  briga 
Na  grande  confusão,  na  crueldade, 
K  tudo  em  damno  só  daquelle  triste 
Gluo  em  vao  ao  mar  e  á  terra  entilo  resiste. 


Entre  esta  confusão,  esta  revolta, 
O  justo  Ceo  que  os  move,  assi  os  desperta, 
Q-ue  o  que  mais  apartado  o  tiro  solta 
Nem  por  isso  o  que  quer  peior  acerta. 
Com  isto  entre  mil  queixas  sabe  envolta 
(Glue  fM)r  mil  partes  acha  a  porta  aberta) 
Aquella  alma  infiel,  e  com  tal  morte 
Teve  oAxUio  úm  a  sua  vária  sorte. 

xxn. 

Não  me  esquece  que  atraz  deixo  contado 
tlue  dos  que  ao  galeão  levou  comsigo 
O  miscro  Sultão  desventurado 
Hum  escapou  só  vivo  a  este  perigo: 
Foi  estií  o  Italiano  renegado, 
O.U0  d\'ntre  a  geral  morte  que  atra/,  digo 
Foi  guardado,  quiçá,  porqu<í  ao  diante 
O  nome  l*ortuguez  honre  e  levante. 


226      OBRAS   DS  FRAKCISCO  D^AlfDRAOE. 
XXIII. 

Este,  vendo  o  Sultão  e  a  sua  gente 
(Como  atraz  disse)  ao  mar  juntos  lançar-se, 
Lança-se  ao  mar  com  elles  juntamente 
A  nado,  imaginando  de  salvar-se. 
Porém  da  sua  sorte  e  da  corrente 
Constrangido  este  só  foi  achegar-se 
A  hua  fusta  das  nossas  que  alli  havia 
Q.ue  alguns  de  nobre  sangue  em  si  trazia. 

XXIV. 

Francisco  era  hum  de  Barros,  cuja  linha 
Vem  dos  Paivas,  e  d^ahi  tèe  o  appellido, 
Em  cujo  forte  braço  se  mantinha 
O  nome  Portuguez  sempre  temido. 
Outro  hum  Soutomaior,  que  o  nome  tinha 
Do  Santo  que  em  Lisboa  foi  nascido, 
Q.ue  com  obras  também  de  graa  memoria 
Ao  nome  Portuguez  deu  nova  gloria. 

xxv. 

Vendo  o  Soutomaior  em  mãos  do  Oceano 
Ao  Mouro,  e  que  ja  a  cor  do  rosto  muda, 
E  conhecendo  que  era  o  Italiano 
€tue  do  falsu  Mafoma  a  seita  estuda, 
Desejando  salva-lo  deste  dano 
Chega-liíc  a  fustt,  e  para  entrar  o  ajuda, 
Lá  para  onde  elle  andava  o  braço  estende 
O  alfadigado  Mouro  o  braço  prende. 


o    FRIMEIKO   CEUCO    DE    DIU.  227 


Prende  o  Mouro  com  pressa  aquelle  braço 
Km  que  esperava  só  salvar  a  vida, 
Chegando  á  fusta  achou  outro  embaraço 
Com  que  mais  perto  foi  de  a  ver  perdida. 
1'orque  outro  que  alli  vinha,  o  cruel  aço 
Move,  e  a  cabeça  em  duas  repartida 
Diixa  do  triste  Mouro,  sem  que  vê-lo 
Tossa  Soutomaior,  f^i  i|jtifeiidê-lo. 

XX\1I. 

Sahe  em  grande  abundância  da  uialdita 
Cabeça  o  sangue,  e  foge  a  côr  ao  rosto, 
Tal  que  o  esprito  vital,  que  nelle  habita 
Dá  mostras  de  querer  mudar  o  posto. 
Isto  ao  Soutomaior  nao  sei  se  incita 
A  cólera,  a  alegria,  ou  a  desgosto. 
Porque  o  que  nelle  acende  a  fúria  nova 
A  nobreza  lh*o  nega,  e  lh''o  reprova. 


Kntra  porém  na  fusta  Lusitana 

Vivo  Cojaçofar,  mas  maltratado, 

E  ainda  que  o  sangue  didle  era  cfípia  mana 

Ao  Governador  logo  foi  levado  : 

Acha  nelle  brandura  mais  que  humana, 

Manda-o  logo  curar  com  grão  cuidado, 

l*orque  a  clemência  heróica  e  grandiosa 

Nos  imigos  se  faz  mais  gloriosa. 


228      OBRAS   SB  FRANCISCO  D^NDRADm. 
XXIX. 

Teve  fim  esta  dura  e  cruel  briga 
Q.uando  o  Sol  no  Oceano  descansando 
Do  Latmio  Endimiao  a  branda  amiga 
!Na  terra  a  sua  luz  hia  espalhando. 
Então  ja  pouco  a  pouco  se  mitiga 
O  furor  Portuguez,  o  se  faz  brando, 
Mas  isto  foi  depois  d'hum  grave  dano 
Do  infiel  povo,  e  algum  do  Lusitano. 


Oito  espritos  Christaos  aqui  passarão 
Com  grão  louvor,  da  terra,  ao  Reino  Santo, 
E  os  que  vivos  o  sangue  derramarão 
Poucos  mais  sobre  vinte  acha  o  meu  canto. 
Sào  cento  e  cincoenta  os  que  mandarão 
Lá  ao  Reino  da  eterna  queixa  e  pranto 
As  almas  infiéis  nesta  batalha, 
Contando  ElRei,  os  nobres,  e  a  canalha. 

^  XXXI. 

Os  da  Cidade  vendo  aquelle  duro 
Fim  do  seu  Rei,  e  estrago  da  sua  gente. 
Teme  em  si  cada  hum  o  mal  futuro 
Polo  que  então  nos  seus  via  presente. 
E  não  se  havendo  alli  por  bem  seguro 
Q-ualquer  então  procura  alli  somente 
Por  salvar  sua  vida  e  faculdade 
Com  pressa,  com  temor,  com  brevidade. 


o    PRIMEIRO    CERCO    T>E    DIU.  229 

XXXII. 

E  tal  temor  estou  agora  vendo 
N«'sta  gente  infiel,  fraca  e  covarde, 
Q-ue  o  ferro  Portugiiez  em  si  temendo 
JNão  ha  quem  na  Cidade  mais  aguarde. 
Todos  com  pressa  ás  portas  vão  correndo 
Tèe-se  por  mais  mofino  o  que  mais  tarde, 
Sahe  ao  campo,  onde  mais  se  assegurava 
Q.UC  dentro  de  mui  grosso  muro  e  cava. 


Receio  de  perder  a  inútil  vida 
Tanto  os  feminis  peitos  lh''atravessa, 
Q-ue  não  bastando  a  dar-lhes  então  sabida 
As  portas  da  Cidade  em  tanta  pressa. 
Para  o  muro  qualquer  busca  subida 
De  lá  abaixo  por  cordas  se  arremessa, 
Porém  nisto  inda  mais  suspira  e  geme 
Glue  entre  o  imigo  furor  que  tanto  teme. 

xxxiv. 

Porque  em  tal  copia  ao  muro  se  passavão 
Onde  de  se  salvar  tinhão  suspeita, 
Q-ue  muitos  affogando-se  alli  achavão 
A  estrada  para  a  morte  mais  direita  : 
E  dos  outros  que  ás  portas  se  chegavão, 
(Sendo  aquelbi  subida  assaz  estreita 
Para  tal  multidão)  forão  forçados 
Morrerem  também  muitos  aftbgados. 


■JòO      OBRAS    DE    FRANCISCO    D^ANDRXHK. 


QLiiom  trabalha  fugir  á  adversa  sorte 
Kste  vai  topar  sempre  o  mor  perigo, 
Acharão  entre  os  seus  estes  a  morte 
Fugindo  á  que  esperavão  ter  do  imigo. 
Mas  porém  inda  o  mal  fora  mais  forte 
Lá  na  Cidade  então,  do  que  aqui  digo, 
Sc  a  prudência  do  Cunha  antiga  e  rara 
Do  modo  que  ouvireis  o  não  curara. 

XXXVl. 

Rendo  o  Governador  logo  avisado 
Do  que  então  lá  passava  na  Cidade, 
K  vendo  quanto  cumpre  ser  curado 
Com  instancia  este  mal,  com  brevidade, 
Manda  que  o  Italiano  renegado 
tíL-iie  d^entre  a  Lusitana  crueldade 
Vivo  antes  lhe  trouxerão,  mas  ferido. 
Sem  detença  lhe  fosse  alli  trazido. 


Nííc  põe  o  Mouro  em  vir  qualquet"  tardança 
Ao  mandado  do  Cunha  obediente, 
Mas  não  tendo  em  imigos  confiança 
Mais  vinha  receioso  que  contente. 
Bem  mostra  do  seu  rosto  a  grãa  mudança 
O  que  o  seu  duvidoso  animo  sente, 
Porque  inda  nao  entende  se  a  sua  ida 
He  para  dar-lhe  morte,  ou  dar-lhe  vida. 


o    l»aiMKIUO    CEIICO    DE    DIU.  1^31 

xxxvm. 

I\in  presença  porém  do  Cunha  posto 

J^lu:  torna  ao  rosto  a  cor,  o  alento  ao  polto, 

P<»rqne  lhe  vio  signaes  logo  no  rosto 

De  verdadeiro  amor,  não  contrafeito. 

Vendo  Cunha  qne  estava  elle  disposto 

Para  lhe  encarregar  aqnelle  feito, 

Jjhe  disse  que  estivesse  bem  seguro 

Nem  tenha  ja  temor  de  mal  futuro. 


E  que  a  Cidade  então  revolta  andava 
Com  grão  temor  do  braço  Lusitano, 
Porque  a  gente  que  ha  nella  arreceava 
Nas  vidas  e  nos  bens  receber  dano  ^ 
K  que  disto  em  estremo  lhe  pesava, 
Porque  se  dera  a  morte  ao  Rei  tyrano 
Foi  porque  também  elle  muitos  mezes 
Trabalhou  pola  dar  aos  Portuguezes. 

XL. 

Mas  que  quanto  á  Cidade,  elle  queria 
Em  grãa  justiça  e  paz  sempre  mantella, 
E  além  disto  também  lhe  promettia 
De  todos  seus  imigos  defendella ; 
Polo  qual  então  muito  lhe  pedia 
Polo  que  ao  bem  importa  delle  e  delia, 
Q.ue  com  seu  poder  todo  procurasse 
Por  que  a  Cidade  então  se  aquietasse. 


XLI. 

E  a  rasao  porque  agora  te  encommondo 

Ilnm  negocio  de  tanta  qualidade, 

(Diz  o  Governador)  lie  porque  entendo 

Q-uanto  credito  lá  tèes  na  Cidade  :, 

E  que  em  os  moradores  delia  vendo 

Tua  presença,  e  tua  authoridade, 

Mais  valerás  tu  lá,  pois  te  obedecem, 

Q.ue  os  meus  mais  principaes,  que  nuG  conhecem. 


Nisto  farás  serviço  ao  poderoso 

Rei  Portuguez,  a  qiicm  eu  obedeço, 

De  quem  nunca  vassallo  foi  queixoso 

Nem  serviço  deixou  sem  grande  preço  ^ 

E  serás  ao  teu  povo  proveitoso 

(iue  agora  a  grandes  males  dá  começo, 

Porque  não  terão  mais  destas  fugidas 

Glue  perda  nas  fazendas  e  nas  vidas. 

XLIII. 

E  porque  vejas  que  em  meu  pensamento 

Nau  ha  de  tua  fé  desconfiança. 
Com  me  dares  menagem  me  contento 
(E  ficar-me  de  ti  grãa  segurança), 
(c\ue  sem  eu  nisso  dar  consentimento 
Tu  da  Cidade  nSo  farás  mudança, 
Onde  o  credito  e  mando  em  que  estiveste 
Gtuero  que  tenhas  mor  do  que  tiveste. 


o    PKIMKIUO    CKRCO    DE   DIU. 


233 


Contente  fica  assaz  este  maldito 

\  «'Uíio  para  salvar-sc  tào  bom  meio, 

<^'')bra  de  todo  o  alento  e  esprito 

De  que  inda  então  estava  hum  pouco  alheio. 

Tudo  promette  quanto  tenho  escrito 

Porque  tudo  promette  hum  grão  receio, 

íiue  quietará  a  Cidade  sem  detença 

Nem  se  sahirá  delia  sem  licença. 


Do  que  promette  faz  ao  Cunha  voto 
Dá-lhe  a  menagem  delle  antes  pedida, 
Como  quando  o  furioso  bravo  Noto 
No  mar  cria  a  tormenta  embravecida, 
Grita  e  trabalha  o  timido  Piloto 
Porque  vô  em  grão  perigo  a  náo  e*a  vida, 
O  Passageiro  que  este  mal  conhece 
De  temor  cheio  votos  oflferece. 

XLVI. 

Dá-lhe  o  Governador  geral  seguro 
Ao  Mouro,  de  sua  mào  própria  assignado, 
Para  que  quando  entrar  aquelle  muro 
(lue  têe  de  Diu  o  p)vo  em  si  encerrado 
O  recebão  lá  bem,  e  ande  seguro, 
K  nenhum  de  offendê-lo  seja  ousado. 
Isto  maisda  em  geral  a  toda  a  gente 
Isto  a  cada  NaçíÍ!)  por  si  somente. 


23  í      OURAS   DE   FAJLNCISCO    D^ANDRADE. 


Parte  Cojaçofar  com  grande  pressa 
Nem  gasta  muito  tempo  em  despedir-se, 
Q.ue  o  temor  inda  agora  tanto  o  apressa 
Glue  lhe  nao  lembra  então  mais  que  partir-se. 
Em  chegando  á  Cidade  logo  cessa 
A  revolta  que  a  gente  tinha  em  ir-se, 
E  os  que  ja  da  Cidade  estavão  fora 
Tornarão  para  dentro  naquella  hora. 

XLVIII. 

Isto  se  fez  com  tanta  diligencia 
Glue  a  Cidade  ficou  como  sohia, 
Sem  ter  quebra  na  sua  alta  opulência 
Nem  no  usado  seu  trato  e  mercancia  : 
D^onde  se  vê  com  clara  experiência 
Q.ue  ao  rudo  povo  dá  mor  ousadia 
Hum  só  de  que  ellcs  sejão  satisfei'os 
Q.ue  a  grande  multidão  d'armados  peitos. 

XLIX. 

Passada  a  noite,  a  qual  a  cruel  guerra 
Fez  que  fosse  ao  Sultão  a  derradeira, 
Gluando  de  novo  o  cume  d''alta  serra  ? 

Recebida  do  Sol  a  luz  primeira,  > 

Sahe  o  Governador  e  a  gente  em  terra  » 

E  manda  logo  António  da  Silveira, 
Também  manda  hum  l<^ernando  o  nobre  Cunha 
Glue  Távora  apoz  Sousa  têe  d'alcunha. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE    DIU 


Ma  tida  a  João  da  Costa  que  em  si  tinha 
ih  segredos  do  Reino  do  Oriente, 
Q-ue  a  hum  negocio  que  muito  lhe  convinha 
^  á  CO  "'os  dous  companheiros  juntamente, 
Diz-lhes  que  vuo  ás  casas  da  Rainha 
Mãe  do  Sultão,  que  estava  d'alii  ausente, 
E  que  entrem  também  lá  nesse  aposento 
Q-ue  dava  ao  morto  Rei  recolhimento. 


K  que  tudo  o  que  achar  lá  Ih^encommenda 
Nestas  casas,  ou  n "outras  da  Cidade, 
í)u  soja  de  dinheiro,  ou  de  fazenda 
De  qualquer  outra  sorte  ou  qualidade, 
Q,ue  pertencer  ao  morto  Rei,  entenda, 
Por  tudo  lance  mão,  tudo  arrecade, 
E  dá-lhe  juntamente  por  preceito 
Glue  dos  armazéns  seja  o  mesmo  feito. 

LII. 

Parte-se  o  Secretario,  companheiro 
Dos  dous  que  disse  atraz  de  sangue  nobre, 
Buscão  as  casas  todas  por  inteiro 
Q.ue  nada  do  que  ha  nellas  se  lh'encobre ; 
Aclião  nellas  somente  algum  dinheiro 
Em  moedas  de  prata,  e  d^ouro,  e  cobre, 
Q.ue  os  thesouros  que  ja  alli  se  virão 
As  guerras,  e  o  Mogor  os  consumirão. 


i30    okuasnde  Francisco  i)*andradf.. 


Tíimbem  ElRei  três  contos  d\>uro  o  moio 
A  Judá  (como  atraz  disso)  mandara, 
E  o  mais  que  tinha  quando  a  Diu  veio 
Onde  o  Ceo  para  hum  tal  fim  o  guiara, 
L/á  no  ci:mpo  (qui^'á  com  arreceio) 
3!^ntre  o  seu  grande  exercito  deixara, 
l^)rém  nem  isto,  como  avante  digo. 
Lhe  tolheo  vir  em  mãos  d''hum  novo  imigo. 

LIV. 

Porem  inda  que  os  três,  de  prata,  e  d^ouro.- 
Achão  menos  assaz  do  que  cuidarão, 
3*orque  as  grandes  riquezas  deste  Mouro 
(Jo"*©  nome  do  que  forão  so  ficarão. 
De  ricos  armazéns  hum  grão  thesouro 
Na  Cidade  porém  então  acharão, 
Tão  providos  de  todo  o  necessário 
tí.ue  se  espantão  os  dous,  e  o  Secretario. 


Em  grande  quantidade  se  agasalha 
Artilharia  alli  de  toda  sorte, 
E  toda  a  arma  que  em  meio  da  batalha 
lie  para  defender,  ou  dar  a  morte  : 
Lança,  espada,  terçado,  escudo,  malha, 
Arco,  frecha,  arcabuz,  a  maça  forte, 
O  zarguncho,  a  zagaia,  co^a  bisarma, 
E  tiido  o  que  o  soberbo  cavallo  arma. 


i 


o    l»RIiIl-lita    CERCO    DE    DIL.  237 


A(!li5o  de  miinl^-ões  infinidade 
D^artefiqio,  de  fogo  mil  maneiras, 
Matérias  de  feda  t|  uai  idade 
Com  Ima  gràa  cópia  de  madeiras. 
Acliãt»  d^emharcaçõfs  grãa  quantidade 
Hãas  são  d"'alto  bordo  outras  rasteiras. 
Tudo  foi  logo  posto  a  bom  recado 
Como  do  noijre  Cunha  foi  mandado. 


Entre  esta  alta  abundância,  (^oe  aqui  escrito 
Tenho,  a  dos  mantimentos  nào  faltava, 
Porque  destes  hum  numero  infinito 
Lá  na  Villa  dos  Rumes  junto  estava: 
E  por  serem  do  Rei  que  antes  o  esprito 
Hendoo  em  mãos  da  imiga  fúria  brava, 
Arrecada-los  logo  os  tros  vierão 
E  depois  por  sobejos  se  venderão. 

E  porque  estes  negócios  se  acabassem 
Em  serviço  do  Rei  a  quem  servia, 
Glue  ás  alfandegas  logo  se  entregassem 
A  Officiaes  da  sua  companliia 
Manda  o  Governador,  se  arrendassem 
De  novo  alguas  rendas  que  alli  havia, 
Porque  como  a  ElRei  antes  rospondião 
Assi  agora  aos  Christãos  responder  ião. 


2  i8      OailAS   DK  FR.VXCISCO   d\\jídr.\de. 


Acabado  isto  assi  de  concertar-se 
Em  grão  proveito  assaz  dos  Lusitanos, 
Posta  a  Cidade  em  paz,  sem  receiar-se 
De  quaesquer  sobresaltos,  quaesqiier  dano'^, 
Hum  Mouro  veio  ao  Cunha  apresentar-se 
De  tão  antiga  idade  e  longos  anos, 
(iue  os  que  de  novo  a  terra  povoarão 
Muito  poucos  nos  annos  o  passarão. 

LX. 

Nesta  mesma  Cidade  o  seu  assento 

Tinha  este  então,  e  muito  antes  tivera, 

Sua  idade  três  vezes  annos  cento 

Sobro  mais  trinta  e  cinco  affirmão  que  era. 

Humilde  no  saber  e  entendimento 

U-ue  na  seita  gentilica  ja  crera. 

No  Reino  de  Bengala  foi  nascido 

E  d^estatura  não  muito  crescido. 

LXI. 

Esta  idade  tão  larga  e  monstruosa 
Q-ue  quiçá  crêr-se  agora  mal  merece, 
Se  provou  que  não  era  fabulosa, 
E  por  tal  dentro  em  Diu  se  conhece  : 
Porém  inda  outra  mor  mais  espantosa 
Monstruosidade  aqui  se  me  oíferece, 
Se  acaso  a  natureza  a  têe  mais  rara 
Em  tempo  que  he  dos  annos  tão  avara. 


o    1'HIMK!:10    CF.nCO    DF.   DIU.  -iy 

LXII. 

Nenhum  tempo  mostrou  o  que  esta  n\inlia 
Historia  neste  Mouro  aqui  apresenta, 
Porque  de  sds  dous  filhos  que  elle  titiha 
Tinlia  doze  annos  hum,  outro  noventa. 
Bem  vejo  que  calar  isto  convinha 
Para  o  que  com  rigor  tudo  attenta, 
Mas  este,  se  não  crer  isto  que  digo, 
Haja-o  lá  com  a  fama,  e  não  comigo. 

LXIII. 

Affirma-se  também  (vou  com  receio 
D^escrupulosas  linguas  maldizentes) 
Olue  quatro  ou  cinco  vezes  neste  meio 
Lhe  dera  a  natureza  novos  dentes. 
Elstranha  cousa  assaz,  mas  nisto  creio 
O  que  affirmão  passados  e  presentes, 
Gtue  contão  delle  inda  outra  mais  estranha 
Cousa,  com  ser  tão  nova  esta  e  tamanha. 

LXIV. 

Dizem  que  aquella  barba  que  se  via 

O  antigo  rosto  enlão  estar-lhe  ornando, 

Q-uatro  vezes  ou  cinco,  se  sabia 

Que  em  branca  e  preta  a  côr  fora  alterando: 

Sondo  branca  de  todo,  de  novo  hia 

Pouco  a  pouco  hua  negra  côr  tomando, 

E  sendo  toda  negra  se  mudava, 

E  pouco  a  potico  em  branca  se  tornava. 


240      OBRAS    DE    FRANCISCO   D^ANDRADE. 


Esta  monstruosidade,  nunca  ouvida, 
Esta  reformação  da  natureza, 
A  este  foi  neste  tempo  concedida 
A  voltas  d^hiia  estreita  alta  pobreza  ; 
Porque  possamos  ver  que  a  longa  vida, 
Gtue  tanto  a  imiga  carne  estima  e  preza, 
Nao  serve  emfim  de  mais  que  ser  matéria 
De  dar  vida  a  trabal!ios,  e  a  miséria. 


Diante  do  grão  Cunha  o  Mouro  posto 
A  lingua  desatou  logo  dest''artc  : 
Senhor,  cem  annos  ha  que  deste  posto 
Mudança  nunca  fiz  para  outra  parte. 
Sempre  em  todo  este  tempo  achei  bom  rosto 
(Como  na  terra  podes  informar-te) 
Nos  Reis  que  antes  aqui  senhorearão. 
Sempre  a  passar  a  vida  me  ajudarão. 


O  Sultão,  de  que  agora  a  furía  brava 
Dos  teus,  deixou  no  mar  o  corpo  frio. 
No  tempo  que  da  vida  elle  gozava, 
E  tinha  desta  terra  o  senhorio, 
Cada  mez  hum  cruzado  e  meio  dava 
A  estes  cansados  annos,  e  eu  confio 
Gtue  este  bem  lá  no  Ceo  se  lhe  apresente 
E  receba  lá  a  paga  eternamente. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  241 

LXVIII. 

Obrigou -O  a  fazer  isto  que  digo 

Ver  que  os  passados  Reis  isto  fizerao, 

Pois  perdeo  esta  terra  o  seu  antigo 

Rei,  e  os  fados  a  ti  t'a  concederão, 

Não  sejas  a  esta  idade  tu  só  imigo, 

Dá-me  o  que  os  outros  Reis  sempre  me  derão 

A  tào  cansada  idade  sempre  humanos, 

Valha-me  nisto  a  posse  de  cem  anos. 

LXIX. 

Vendo  o  Governador  tao  longa  idade 
G.ue  as  antigas  idades  quasi  excede, 
E  apoz  isso  a  miséria,  a  pouquidade 
Q.ue  para  sustcntar-se  então  lhe  pede 
Com  grande  espanto  assaz,  graa  piedade 
De  Ião  pobre  velhice,  lh'o  concede. 
Parte-se  tão  contente  o  pobre  Mouro 
Como  o  que  tèe  achado  hum  grão  thesouro, 

I.XX. 

Mas  cumpre-rae  apartar-me  d^aqui  cm  quanto 

Dentro  polo  sertão  faço  a  jornada. 

Porque  a  bua  novidade  volto  o  canto 

Q-ue  não  vos  pesará  de  ser  cantada. 

Causou  em  todo  o  Reino  grande  espanto 

A  morte  do  Sultão  não  esperada, 

E  em  mil  partes  algum  tempo  não  crida 

Por  immortal  julgando  tão  má  vida. 


242      OURAS    DB  FRANCISCO    d''aNDUADE. 


Q-uc  tao  infernaes  obras  sempre  viao 
No  tempo  que  foi  vivo  acompanhalo, 
(iue  os  que  mais  o  tratarão  menos  criSo 
Q.ue  podesse  inda  a  morte  sujeitalo. 
Lá  nos  seus  arraiaes  então  sentiào 
A  maior  confusão,  o  mor  abalo, 
E  graa  revolta  nellcs  fez  que  houvesse 
Nascida  de  cubiga,  e  d'interesse. 

LXXII. 

Bem  me  lembra  que  atraz  tenho  contado, 
GLue  Mirizam  Hamed  por  ausentar-se 
Do  Rei  Mogor,  de  quem  era  cunhado, 
E  ao  soberbo  Baudur  então  passar-se, 
Pedido  do  Mogor  sendo,  e  negado 
Do  Sultão,  fez  entre  elles  comcçar-se 
Hua  guerra  cruel,  brava,  espantosa 
Para  o  senhor  Cambaio  assaz  damnosa. 


Este  nunca  atégora  se  apartara 
Do  serviço  do  Rei  que  o  rect)lhêra, 
E  sendo-lhc  no  exercito  ja  clara 
A  morte  que  em  Diu  recebera, 
3*ara  hum  famoso  feito  se  prepara 
Q.UC.  se  o  meio  ao  conirço  igual  tivera 
Com  grande  louvor  seu,  com  grão  proveito 
Lhe  seguira  á  tenção  conforme  o  efíeito. 


o    1'RIMEIRO  CERCO  SS  DIU. 


Vendo  este  bellicoso  ousado  Mouro 
3Iorto  o  natural  Rei  daquella  terra, 
Com  ajuda  d  ""alguns,  toma  o  thesouro 
Obiie  elle  tinha  alli  junto  para  a  guerra^ 
O  qual  seria  hum  couto  e  meio  d^ouro, 
Se  a  fama  no  que  diz  disto  nao  erra, 
Das  insiguias  reaes  se  senhoreia 
E  Rei  da  grãa  Cambaia  se  nomeia. 


Se  desojaes  saber  os  que  ajudarão 
Este  Mouro  a  tratar  o  que  atraz  digo, 
Forao  alguns  Mogorcs,  que  deixarão 
O  seu  Rei  natural,  Senhor  antigo, 
E  para  o  de  Cambaia  se  passarão 
Q.UO  lhes  fora  até  então  o  mor  iraigo, 
Q.uando  seus  companheiros  ja  deixa  vão 
A  terra  imiga,  e  á  sua  se  tornavão. 


Mas  Mi  rizam  Hamed  arreceioso 

Q,ue  este  nome  de  Rei,  que  novamente 

Elle  usurpara,  á  terra  fosse  odioso 

Por  não  sor  d''estrangciro  Rei  contente  \ 

Salwndo  bem  quanto  era  temeroso 

O  nome  Portugucz  áquolla  gente, 

Amizade  tratou  co'*a  Portugueza 

Por  lhe  ficar  mais  leve  aquclla  cmprezíj. 


2^s 


244 


LXXVII. 


E  para  ser  esta  obra  effeituada 
Conforme  ao  que  comsigo  dentro  estuda, 
A  Novanager,  Villa  situada 
Húa  légua  de  Diu,  então  se  muda. 
D^alli  despede  ao  Cunha  hua  embaixada 
Pedindo-lhe  que  queira  dar-lhe  ajuda, 
Glue  não  poder  sem  ella  bem  entende 
Chegar  então  ao  fim  do  que  pertende. 

LXXVIII. 

E  se  lh''a  dá,  e  o  têe  por  seu  acceito, 
E  em  Cambaia  o  faz  Rei,  como  pedia. 
Além  de  amigo  o  achar  bom,  e  perfeito 
Cincoenta  mil  pardaos  lhe  mandaria. 
E  vindo  a  cousa  a  ter  prospero  eífeito 
Dar-lhe  quaesquer  logares  promettia 
Dos  que  ao  longo  do  mar  tinhão  o  posto 
Polo  Cunha  escolhidos  a  seu  gosto. 


Foi  este  Embaixador  bem  recebido 
Do  nobre  Cunha,  e  visto  o  que  então  pede, 
E  consultado  bom  foi  respondido 
GLue  quanto  vem  pedir  se  lhe  concede. 
Contente  o  Cuniu  assaz  deste  partido 
Com  palavras  d'ámor  logo  o  despede, 
Dizendo  :  Com  favor  alto,  c  divino 
Siga  tou  Hei  hum  feito  delle  dino. 


o    PRIMEIRO    CERCO    UE    OIP. 


n'6 


Contente  o  Mouro  assaz  do  que  lho  he  dito 

Se  torna  ao  novo  R«;i  antes  tyrano, 

O  qual  co»n  isto  cobra  hum  grande  esprito 

Tendo  o  favor  do  hra^o  Lusitano^ 

!C  espera  com  louvor  sen  iníinito, 

í^om  Pirão  proveito  seu  sem  nenhum  dano, 

Possuir  de  Canibaia  o  sceptro  autiiço 

6e  o  Ceo  a  seu  intento  nào  hc  imigo. 

LXXXI, 

No  dinheiro  o  Mogor  tratou,  verdade, 
(^d)iç.i,  e  não  largueza,  aqui  o  estimula, 
Faz  Cunha  logo  as  pazes,  e  amizade 
E  p)r  Hei  de  Cam!)aia  o  intitula: 
K  Kiíi  manda  que  a  gente  da  (Cidade 
(Que  com  medo  o  des>j;osto  dissimula) 
Lhe  chame  na  mesquita,  o  qual  lizera 
Ao  misero  Sultão  quando  vivo  era. 

l-XXXIl. 

Vendo-se  Mirizam  a  hum  tâo  potente 
Sceptro  em  tão  poucos  dias  avriV>ado, 
Temendo  a  natural  Cambaia  gente 
A  quem  jugo  estrangt-iro  era  pesado, 
Conselho  quiz  tomar  para  o  presente 
De  quem  lhe  deu  favor  para  o  passado, 
l'ara  que  algum  bom  meio  lhe  mostrasse 
Com  que  o  seu  novo  Reino  segurasse. 


246      OBRAS  DB  FRA17CISC0  D^Airi>RAI>£. 
LXXXIII. 

Manda  ao  Cunha  pedir  que  o  que  convinha 
Fazer  nisto,  quizesse  aconselhallo, 
E  que  pois  com  as  forças  o  sustinha 
Co"*©  conselho  quizesse  sustentallo. 
Q-ue  a  gente  que  corasigo  agora  tinha 
Erão  dous  mil  Mogores  de  cavallo, 
Gente  toda  escolhida,  e  toda  prompta 
Para  nao  duvidar  qualquer  affronta. 

LXXXIV. 

E  que  os  grandes  Senhores,  que  este  antigo 
Reino  da  graa  Cambaia  em  si  encerra, 
Por  se  livrar  d'estranho  jugo  imigo 
(Se  a  nova  que  então  disto  têe  não  erra) 
Hum  Sobrinho  do  morto  Rei  comsigo 
Assentão  fazer  Rei  daquella  terra, 
Moço  inda,  mas  então  direito  herdeiro 
Por  ser  pouco  antes  morto  o  verdadeiro. 


Não  lhe  tarda  o  conselho  grande  espaço, 
Dá-lh'o  Cunha,  ao  seu  grão  saber  devido, 
Q,ue  entre  esta  confusão,  este  embaraço 
Em  que  o  imigo  ja  têe  quasi  vencido. 
Salteie  com  armado,  forte  braço 
O  Reino  mal  conforme,  e  mal  unido, 
GL/Ue  com  sua  presença  deste  geito 
De  seus  conselhos  impedirá  o  efteito» 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  247 

LXXXVI. 

E  que  tomando-os  inda  desmembrados 
Grão  perigo,  e  diffieuldade  atalha, 
Porque  estando  assi  todos  espalhados 
Pôde  s6  co''os  que  tèe  dar-lhes  batalha : 
E  além  disto  alguns  povos  alterados 
Vendo-se  sem  Rei  inda  que  lhes  valha, 
Desejosos  quiçá  de  novidade 
Folgarão  d"'acceitar  sua  amizade. 

LXXXVII. 

E  que  para  ter  muitos  por  amigos 
Basta  ser  hum  só  delle  satisfeito, 
Mas  que  polo  contrario  mil  perigos 
Achará  se  dilata  disto  o  effeito, 
Porque  achará  então  juntos  seus  imigos 
Com  exercito  unido  e  Rei  eleito, 
E  que  por  si  não  basta  elle  somente 
Para  desbaratar  unida  gente. 

LXXXVIII, 

Approva  o  novo  Rei  por  proveitoso 

O  conselho  que  o  Cunha  lhe  mandara, 

E  fora  nesta  empresa  assaz  ditoso 

Se  assi  como  o  approvou  o  executara  : 

Mas  a  vida  passou  alli  ocioso 

Sem  tratar  do  que  então  bem  começara, 

Com  que  a  fortuna  então  fugir  lhe  obriga 

Q-ue  sempre  do  ócio  inerte  foi  imiga. 


lH8      ObKAS    DE   rHAKCISCO    D^ANDRADB. 

LXXXIX. 

Nesto  tf^mpo  os  Senhores  mais  potentes 
Qluc  o  sceptro  de  Cambaia  sejihoroia, 
Klegem  Rei  o  miTço,  assaz  contentes 
l'or  iiao  vir  o  seu  Reino  a  gente  uHieia  : 
Ficarão  três  com  elle  ]7or  Rf^gentes 
Dos  quaes  Madie  Maluco  hum  se  nomeia, 
E  dos  outros  (se  ínal  não  sou  lenil»r;ído) 
Hum  Driacam,  outro  be  Alucam  chamada. 


D('pois  quo  estes  Senhores  ordenarão 
As  cousas  de  Cambaia  desta  sorte, 
K  alguns  novos  tumultos  quietarão 
Que  causou  (io  Sultão  a  cruel  morte, 
T)o  Rei  Mogor  então  nada  tratarão 
Temendo  o  Lusitano  imigo  forte, 
Com  cuja  anthoridade  elle,  e  vali:< 
De  Rei  o  nome  agora  possuía. 

xci. 

Mas  vendo  que  esta  gente  poderosa 
Não  pode  alli  fazer  longa  tardança, 
Porque  a  fúria  do  inverno  tormentosa 
A  forçará  a  fazer  d'alH  mudaiíça  : 
Sendo  esta  a  seu  intento  só  damnosa, 
Tois  só  nella  o  Mogor  tee  confiança, 
Di latão  delle  o  eífeito  até  que  a  proa 
(J  Cunha  lolte  lá  direito  a  Goa. 


o    PRIMEIRO   CSnCO   DE  DIU.  249 

XCIl. 

O  qual  no  fim  do  mez  quo  o  Sol  fecolhe 
E  no  animal  de  Frixo  lhe  dá  entrada, 
Solta  a  vella,  e  do  fundo  o  ferro  colhe 
K  para  Goa  corta  a  onda  salj^ada  :  i  , 

E  para  Capitão  da  terra  escolhe  :iP 

Da  animosa  gente  illustre  e  honrada  -" 

GLue  comsigo  trouxera  companheira 
O  valeroso  António  da  Silveira. 

xcni. 

Nao  se  descuida  a  gente  de  Cambaia 
Jjívro  dè  quem  lhe  punha  hum  grande  freioj 
Mas  vendo  o  Cunha  ausente  desta  praia 
De  nenhua  outra  cousa  tèe  receio. 
Cuida  que  o  Rei  estranho  ja  desmaia 
l*ois  que  ja  hum  tal  favor  nao  têe  no  meio. 
Ja  toma  ousada  o  ferro,  e  com  grãa  gloria 
E  sem  damno,  alcançar  cuida  a  victoria. 

xciv. 

Pouco  traz  isto  os  três  que  governavao 
Juntamente  co''o  moço  aquella  terra, 
Vendo  chegado  o  tempo  em  que  esperavao/i 
Descubrir  o  que  seu  csprito  encerra,  .''! 

Com  tanta  pressa  o  exercito  ajuntavao 
Para  darem  effeito  áquella  guerra, 
Q.ue  dez  mil  de  cavallo  juntos  tinhao 
E  quinze  mil  dos  outros  que  a  pé  vinhao. 


xcv. 

HiSo  por  Capitão  e  Regedores 

Desta  gente  que  agora  se  fizera, 

Os  dous  daquelles  três  grandes  Senhores 

Hum  Alucam,  Madie  Maluco  outro  era, 

€tue  dissera  aqui  ser  Governadores 

Se  mil  vezes  atraz  o  nao  dissera. 

Os  quaes  com  hum  poder  tal  e  tamanho 

Vão  logo  demandar  o  Rei  estranho. 

xcvi. 

Desejo  de  salvar  a  liberdade 

Gtue  em  mãos  dVstranho  Rei  hão  por  perdícfji, 

Lhes  dá  no  caminhar  grãa  brevidade 

Sem  haver  então  cousa  que  lh'o  impida. 

Sabendo  o  Rei  Mogor  disto  a  verdade 

De  sua  salvação  assaz  duvida. 

Mas  com  quanto  era  grande  este  perigo 

Não  se  deixou  cercar  d''hum  tal  imigo, 

xcvii. 

Salta  a  cavallo,  e  para  a  guerra  incita 
Com  grande  esforço  assaz,  e  atrevimento 
A  gente  que  ja  atraz  vos  tenho  escrita, 
E  toda  quer  seguir  o  seu  intento. 
Deixa  o  logar  nas  costas  em  que  habita 
E  logo  ao  som  do  beliico  instrumento 
O  largo  e  desctiborto  campo  pisa 
Despregando  nos  ar('?>  sua  divisa. 


o    PRIMEIRO  CERCO   DE   DIU.  251 

XCVIII. 

GLualquer  dellcs  para  o  outro  cntâo  caminha 
E  antes  de  longo  espaço  se  toparão, 
Mas  como  enlao  ja  a  noite  o  logar  tinha 
Glue  os  claros  raios  pouco  antes  deixarão, 
Tempo  que  a  dar  batalha  mal  convinha 
Para  o  seguinte  dia  a  dilatarão, 
E  eu  por  não  me  deter  aqui  ja  tanto 
A  dilato  também  para  outro  Canto. 


o  PUIIICIRO 

CERCO  DE  DIU. 


CAI^TO  fiX. 


Dá-se  a  batalha  entre  os  Mogores  e  os  Cam- 
baios. O  p)'imeiro  esquadrão  dos  Mogores 
passa  em  salvo,  o  segundo  foge  para  a  Villa 
dos  Rumes.  He  seguido  dos  Cambaios ,  e  se 
perde  a  maior  parte  delles :  os  que  escapa'- 
rão  se  salvão  na  Villa.  Conta-se  hum,  estru" 
nho  caso  de  hum  Mouro,  e  de  hua  Moura* 
O  Governador  vem,  a  Diu^  fortefica  afor^ 
iakza,  e  se  torna  a  invernar  a  Goa. 


D. 


'estruidoía  foi  d'altos  conceitos 
Sempre  a  deliciosa  ociosidade, 
Por  esta  se  perderão  grandes  feitos 
Glue  merecerão  ter  perpetuidade  : 
Esta  abate  os  mais  duros  fortes  peitos, 
Amolece  a  robusta  mocidade, 
Abre  a  porta  a  damnados  exercicios, 
Semeia  n^alhia  enormes,  torpes  vicios. 


o  PRlMBino  CERCO  DK  DlU.  253 

II. 

Favor  ao  ocioso  nao  concede 
Fortuna,  nem  o  nega  ao  diligente^ 
Porque  sem  rasão  a  outrem  favor  pede 
O  que  para  si  mesmo  he  negligente. 
Se  acaso  a  diligencia  mal  succede 
Ao  menos  o  que  a  usou  fica  contente^ 
E  a  sua  adversidade  bem  desculpa 
Com  ver  que  da  fortuna  he  toda  a  culpa. 

iit. 

Mirizam  com  que  pode  desculpar-se 

De  perder  a  Cambaica  opulência? 

Pois  no  Reino  pudera  segura r-se  \ 

Se  quizera  pôr  nisso  diligencia. 

De  si  somente  deve  lamentar-se 

De  sua  ociosidade  e  negligencia, 

Clue  a  fortuna  a  ninguém  leva  forçado 

A  grãa  prosperidade,  ao  grande  estado. 

iv. 

Passada  aquella  noite  que  so  dava 
A  batalha  cruel  impedimento, 
E  saudosa  a  Aurora  ja  deixava 
Do  charo  esposo  seu  o  almo  aposento^ 
Glualquer  dos  Capitães  se  preparava 
Para  o  assalto  cruel  sanguinolento. 
Põe  em  ordem  a  gente,  a  qual  trabalha 
Com  rasões  esforçar  para  a  batalha. 


'2'6i      OBBA5    DE   FRANCISCO   D^AlíDRADi:. 


A  GJt^nte  natural  tlaquella  terra 
Q.U(«  está  na  multidão  mui  confiada, 
Tendo  ja  por  vencida  aqiiella  guerra 
E  a  gente  imiga  por  desbaratada, 
Toda  n"*}!*.]!!!  esquadrão  junta  se  cerra 
(^ue  tão  poucos  iinigos  têo  em  nada, 
O  holdado  co''a  mesma  confiança 
Deseja  menear  a  espada  e  a  lança. 


i)  Mogor,  que  SiC  vê  posto  no  meio 
D^hum  perigo  onde  a  morte  lie  conhecida, 
Agora  lie  mor  que  nunca  o  seu  receio 
Que  passar  por  tal  cópia  assaz  duvida: 
Mas  tendo  o  esprilo  forte,  e  dMionra  cheio, 
Vendo  que  no  seu  braço  está  sua  vida, 
1'osta  em  dous  esquadrões  a  sua  gente 
Q.uer  vencer  ou  morrer  honradamente. 


líum  tomou  para  si,  no  qual  havia 
Mil  e  duzentos  homens  de  cavallo, 
O  outro  em  que  setecentos  haveria 
Deu  a  hum  seu,  cujo  nome  agora  callo, 
3*orque  nao  sei  quem  he,  mas  de  quem  fia 
Mirizam  que  bem  possa  governallo, 
K  antes  d''entrar  na  bellica  revolta 
Perante  os  seus  desta  arte  a  lingiia  solta  : 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  255 

VIII. 

O  tempo,  a  conjunção,  e  esses  armados 
Iinigos  que  alli  vedes  esperar-vos, 
!Me  pediao  que  aqui,  fortes  soldados, 
Tempo  e  palavras  gaste  em  animar-vos  ^ 
Nem  forão  sem  rasao  ambos  gastados 
Mas  em  vez  d'*animar  temo  anojar-vos, 
I*orque  quem  com  rasões  o  forte  acende 
Com  as  mesmas  rasões  o  anoja  e  oífende. 

IX. 

Sríupre  em  qualquer  de  vós  achei  hum  peito 

Atrevido,  leal,  forte,  animoso. 

Com  que  nao  duvidastes  nenhum  feito 

Por  mais  grave  que  ft)sse  e  duvidoso, 

Por  onde  sei  que  não  vos  será  acceito, 

Antes  qualquer  de  vós  ficar  qiíeixoso 

13e  mim  deve,  se  o  vosso  forte  esprito 

A  mostrar  fortaleza  agora  incito. 

X. 

Assi  que  tratar  disto  ja  não  quero 

( Fois  estou  vendo  em  vós  que  me  he  escusado) 

Porque  vós  não  cuideis  que  desespero, 

Ou  sou  menos  do  que  era  confiado 

Do  vosso  heróico  esprito,  ousado  e  fero, 

De  todos  domador,  nunca  domado, 

E  também  porque  sei  que  aos  grandes  feitos 

Vos  animao  assaz  os  vossos  peitos. 


6o)6      OBRAS   DE   FRANCISCO   D^ANDRADE, 


Mas  porque  hajaes  por  vossa  ja  a  vietoria 
Som  menear  espada  ou  vestir  malha, 
Q.uero  agora  trazer-vos  á  memoria 
Q.ue  esta  he  aquella  fraca  e  vil  canalha 
De  que  houvestes  despojos  mais  que  gloria 
Tois  nunca  se  atreveo  dar-vos  batalha, 
E  a  quem  sem  sangue  vosso,  e  com  grão  gosto 
Sempre  vistes  as  costas,  nunca  o  rosto. 

xir. 

Esta  he  a  mesma  gente  de  Cambaia 
Hoje  não  sei  porque  tão  atrevida, 
(lue  tantas  vezes  ja  na  sua  praia 
T)o  vosso  nome  s(j  ficou  Vencida  : 
E  se  ouvindo  o  Mogor  nome  desmaia 
Q.ue  fará  vendo-se  hoje  combatida 
Daquella  rara  força  dos  Mogores 
Glue  forao  só  co"*o  nome  vencedores, 

XIII. 

Vencida  esta  batalha,  como  eu  fio, 
Íj  tenho  mais  certeza  que  esperança. 
Iremos  ao  Ilio  Indo,  onde  confio 
Q.ue  nos  dará  a  fortuna  grãa  bonança: 
Porque  eu  ja  conquistar  o  senhorio 
De  Cambaia  não  quero,  nem  liança 
Co'os  Portuguezes  ter,  porque  a  vontade 
Perdi  de  ter  com  elloí  nini/.adc. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   BIV,  257 


E  nao  vos  represente  o  pensamento 
Neste  cainii)ho  sermos  impedidos, 
Porque  este  glorioso  vencimento 
Vos  fará  em  toda  a  terra  tao  temido». 
Que  passareis  sem  ter  impedimento 
E  de  todos  sereis  bem  reeebidus, 
Apesar  do  seu  ódio  novo  e  antigo, 
Que  o  medo  faz  propicio  o  mór  imigo* 


XV. 

E  sendo  onde  vos  digo  ja  arribados 
Passaremos  a  vida  descansada 
Até  Deos  melhorar  nossos  estados, 
bem  poder  nunca  alli  faltar-iios  nada  ij 
l*orque  de  meus  amigos  c  alliados 
Toda  aquella  terra  lie  senhoreada, 
E  o  mesmo  Rei  que  manda  aquella  gente 
Alóm  d^amigo,  me  he  muito  parente. 

xv-i. 

Mas  grâa  vergonha  he  vermos  qtie  o  Cambaio 
Chegar  a  tanto  bem  hoje  nos  tolhe. 
Km  quem  costumaes  pôr  tanto  desmaio 
Que  de  ouvir  nomear-vos  só  se  encolhe. 
Deste  atrevimento  hoje  castigaio 
E  j agora  o  segui  que  ja  se  acolhe, 
1'ois  que  sempre  foi  seu,  e  vosso  estillo 
Elle  fuirir  de  vós,  o  vós  í^eguillo. 


XVII. 

Apoz  estas  palavras  que  este  Mouro 
Com  animo  e  efficacia  tinha  dito, 
Abre  com  graa  largueza  o  seu  thesouro 
Q,ue  houvera  do  Sultão,  quasi  infinito  : 
Reparte  poios  setís  grãa  somma  d^ouro 
0.ue  cm  todos  ajuntou  hum  novo  esprito, 
Porque  isto  têc  nos  homens  tanta  força 
Glue  faz  invicto  o  forte,  o  fraco  esforça. 

XVIII. 

Nesta  hora  estando  d^hua  e  d^outra  parte 
Para  a  batalha  tudo  apparelhado, 
Vendo  o  Mogor  que  o  imigo  não  se  parte 
Mas  que  n'hum  esquadrão  fica  cerrado, 
Faz  soar  o  anafil,  larga  o  estandarte 
Então  ja  de  romper  determinado, 
A  gente  faz  que  a  grita  ao  Ceo  se  iguale 
Retumba  o  bosque,  o  prado,  o  monte,  o  vale. 

XXX. 

Posto  então  Mirizam  na  dianteira 
Reluzindo-lhe  em  ferro  o  corpo  e  a  testa, 
Pedindo  que  cada  hum  segui-lo  queira 
Chega  ao  peito  o  escudo,  a  lança  em  esta: 
E  mostrando  ja  o  Sol  a  luz  primeira 
Favorável  a  alguns,  a  alguns  funesta, 
Co''os  seus,  a  quem  mercês  novas  promette 
Com  grãa  fúria  os  imigos  accomette. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE    DIU.  259 


Aquella  ardente  machina  batida 
Dos  Ciclopas  lia  fragoa  de  Vulcano, 
Com  gràa  força  iia  terra  despedida 
Lá  do  Celeste  Assento  Soberano, 
De  força  humana  nunca  resistida 
Antes  traz  onde  chega  o  ultimo  dano, 
Nada  a  detém  de  quanto  acha  diante 
O  mármore,  o  aço,  a  rocha,  o  diamante 

XXI. 

Nao  se  vio  penetrar  tao  facilmente 
O  copado  pinheiro,  a  longa  faia. 
Como  o  forte  Mogor,  co'a  sua  gente 
Penetrou  o  esquadrão  dos  de  Cambaia  : 
Parte-sí»  logo  em  dous,  e  livremente 
Larga  estrada  lhe  dá  por  onde  saia. 
Passa  a  gente  animosa  em  breve  espaço 
Polo  caminho  feito  cora  *eu  braço. 

XXII. 

Signal  deixa  do  seu  esprito  forte 
E  o  leva  em  si  da  imiga  covardia 
Mirizam,  porque  a  muitos  deu  a  morte, 
Com  perder  três  da  sua  companhia. 
E  se  elle  nao  faltara  á  sua  sorte 
E  ao  seu  mesmo  esprito  e  valentia, 
Q.«ando  em  ser  Rei  da  terra  pòz  a  proa 
De  Cambaia  alcançara  a  alta  coroa. 


2G0      OBUAS    DE   FRANCISCO    D^ANDBADE. 


O  segundo  esquadrão  vendo  mettido 
Seu  Senhor  entre  tanta  gente  imiga, 
Sabendo  quanto  nella  têo  crescido 
Cí)^a  nova  occasiao  a  fúria  antiga ; 
Havendo-o  ja  de  todo  por  perdido, 
Tanto  o  feroz  esprito  se  mitiga, 
De  que  antes  cada  hum  estava  cheio, 
€lue  se  lhe  converteo  em  arreceio. 


Deu  nesta  hora  também  grão  crescimento 
A  este  alto  seu  temor,  desesperarem 
De  chegar  ao  Rio  Indo  a  salvamento. 
Onde  csperavao  só  de  se  salvarem. 
Juntando  este  ao  primeiro  pensamento 
Sem  outra  obrigação  mais  respeitarem, 
As  costas  com  grãa  pressa  dão  ao  imigo 
Tendo  neste  remédio  o  mor  perigo. 

XXV. 

Q.nando  ir  traz  seu  Senhor  todos  deverão, 
Todos  com  graa  fraqueza  o  dcsanipárão, 
Mas  se  fizerão  mal  a  si  o  fizerão 
E  de  seu  erro  a  pena  logo  acharão. 
Com  graa  pressa  ao  imigo  as  costas  derão 
K  direitos  á  Villa  encaminharão 
Que  dos  Kumcs  inda  hoje  tèe  o  nome, 
Nenhum  entre  elles  ha  que  a  espada  tome, 


o   PR1M£XRQ   CERCO    DE    DIV.  átf  1 


Km  vao  o  Capitão  sua,  e  traballia, 
Porque  todos  ao  medo  oljedecião  \ 
Polo  campo  o  Mogor  hoje  so  espalha 
Fugindo  aos  que  ja  delle  antes  íu< 
Hoje  o  eheji;ào  á  morte  o  arnez  e  a  malha 
írkue  antes  da  mesma  morto  o  tlí'rendião, 
Hí)je  se  íiiz  Mogor  o  que  he  Cambaio 
K  em  quem  o  desmaiava  põe  desmaio. 


ao 


Vendo  a  gente  Cambaia  tal  fraqueza 
Na  que  eo''o  nome  foi  vietoriosa, 
Agora  cobra  esprito  e  fortaleza 
O  fraco  imigo  a  faz  ser  animosa. 
A»  rédeas  ao»  eavallos  e  á  crueza 
Solta  contra  os  que  fogem  furiosa, 
Tira  daquelles  corpos  os  espritos 
4Auc  ja  dos  seus  tirarão  infinitos. 

XXVIII. 

Os  míseros  Mogores  perseguidos 
Do  ferro  vingador,  da  fúria  acesa 
DMiuns  imigos  cruéis,  en)bravecidos, 
Contra  quem  não  vai  rogo,  nem  defesa, 
Ksperando  de  serem  soccor ridos 
Da  vencedora  for<j*a  Portuguesa, 
l*ara  a  \  illa  ligeiros  encauiinhão 
Por<juc  então  do  temor  as  aisas  liahãu. 


262      OBllAft   D£  FRANCISCO   D^ANDRADE. 
XXIX, 

Nem  aquelle  que  solto  e  despojado 
Vencer  no  leve  pario  o  outro  pertende, 
Nem  o  falcão  nos  ares  levantado 
G-uando  aílerrar  a  presa  a  pruma  estende, 
Nem  a  setta  que  sahe  lá  do  encurvado 
Arco,  e  com  subtil  fúria  os  ares  fende, 
Tomara  hoje  a  esta  gente  a  dianteira 
Menos  do  que  lhe  cumpre  indo  ligeira. 

XXX. 

Porque  aquella  cruel  Cambaia  gente 
Forte  por  não  sentir  a  imiga  lança, 
Porque  do  mal  passado,  e  do  presente 
Podesse  hoje  tomar  qualquer  vingança. 
Salta  traz  o  Mogor  ligeiramente 
A  nenhum  deixa  vida  dos  que  alcança, 
E  que  alcance  a  quem  foge  bem  o  creio 
Q.ue  ódio  azas  dá  lambem  como  o  receio. 


Hum  só  ponto  nao  cessa,  ou  se  mitiga 
Ksta  fúria  cruel  embravecida. 
Com  que  aquella  estrangeira  gente  imiga 
Tanto  sangue  perdoo,  e  tanta  vida. 
Até  que  appareceo  aquella  antiga 
Villa,  que  hoje  dos  Rumes  se  appollida, 
Punjue  no  soíi  primeiro  fundanunlo 
Aos  Rumes  dava  só  recolhimento. 


o    PKIMU,iKO   CEltOO    DE    niU.  2G3 


Mas  lao  longo  camiiílso,  e  tHo  distante 
Do  li);j;ar  da  batalha  á  VilUi  havia, 
(Aua  para  dar  a  morte  foi  bastante 
A  inór  parte  da  gonte  qno  fu'^ia. 
N(!m  cossára  aqui  a  rnort»^,  so  diante 
Nào  acliára  de  grossa  artilharia 
O  cruel  vencedor,  a  fúria  brava, 
(-lue  da  Villa  os  vencidos  ajudava. 


O  esfor(;ado  JoSo,  cujo  appellido 

Era  Mendonça,  e  a  Villa  tinha  em  guarda, 

Vendo  vir  o  iMo<;or  tao  perseguido 

Q.ue  a  morte  corta  tèe  í-e  o  favor  tarda, 

Faz  que  co*o  acostuniado  seu  ruido 

Saia  o  pelouro  ardente  da  bombarda, 

K  vá  encontrar  a  genle  de  Cambaia 

Com  que  além  de  parar  teme  e  desmaia. 

xxxiv. 

Torna  esta  gente  atraz  com  tanta  pressa 
Quanta  para  diante  antes  levara, 
Q.íie  quieá  tanto  o  medo  agora  a  apres^ja 
GLuanto  foi  o  ódio  que  antes  a  apressara. 
O  Mogor  de  fugir  porém  nao  cessa 
O  muro  s<5  o  dotem,  alli  só  pára, 
Porém  inda  nao  se  ha  por  bem  segure» 
Em  quanto  se  nao  \ê  dentro  do  muro. 


264     OBRAS  BB  rRANCiSCO  D^AMDRADB. 
XXXV. 

Buscao  para  entrar  hua  e  outra  maneira^ 
A  alguns  não  foi  em  vão  este  conceito, 
dual  entra  pola  es^treita  bombardeira 
Q-ual  por  outro  caminho  mais  estreito  ^ 
Mas  porque  sem  mandado  do  Silveira 
Não  podia  esta  entrada  haver  eíFeito, 
3Não  permittem  que  mais  algum  entrassí& 
Até  que  o  Capitão  o  não  mandasse. 

XXXYI. 

Vendo  esta  porta  os  tristes  ja  cerrada 
De  novo  hum  grão  temor  os  atormenta, 
Mas  qualquer  para  dentro  abrir  a  entrada 
Por  meio  do  interesse  logo  tenta  : 
Dá  quanto  traz,  que  não  lhe  fica  nada 
A  quem  dentro  o  salvar  desta  tormenta, 
Mas  em  balde  esta  via  tenta  agora, 
E  algum  dá  quanto  têe,  e  fica  fora. 

xxxvn. 

Mas  se  me  ouvis  vereis  o  raro  e  forte 
Poder  do  amor,  que  tudo  desbarata: 
Entre  estes  a  que  a  branda  amiga  sorte 
Com  tanto  risco  seu  hoje  arrebata 
Das  mãos  da  rigorosa  cruel  morte 
Havia  alguns  que  o  no  conjugal  ata, 
E  as  mulheres  comsigo  então  trazião 
Como  nas  guerras  sempre  estes:  fazião» 


o    PRIMEIRO  CERCO    TiV.    DIU.  265 

XXXVUI. 

Hum  que  com  a  companheira  lao  unula 
A  alma  tinha,  e  hum  amor  tão  ncUa  posto, 
Q,ue  delia  só  pendia  sua  vida, 
Seu  descanso,  seu  bem,  todo  seu  gosto, 
Vendo  aquella  purpúrea  côr  perdida 
Q-ue  antes  acompanhava  o  bello  rosto, 
Agora  se  enternece,  agora  se  ira. 
Teme,  desfaz-se  em  vão,  arde  e  suspira. 

XXXIX. 

De  novo  olha,  de  amor  e  temor  cheio 

Aquelles  olhos  antes  vivos  raios, 

E  como  de  os  salvar  não  ve  então  meio 

Lhe  causão  não  hum  só,  mas  mil  desmaios. 

Agora  tèe  da  morto  mór  receio 

Q.UO  entre  os  mais  duros  golpes  dosCambaioi, 

Porque  menos  mortal  o  imigo  adiava 

Q.ue  o  perigo  de  quem  vida  lhe  dava. 


A  bellissima  Moura,  que  a  vontade 

Têe  também  ao  marido  tão  sujeita, 

Q.ue  nem  vida,  nem  gosto,  ou  liberdade 

Sem  elle  lhe  podia  ser  acceita. 

Menos  sente  em  tão  fresca  e  tenra  idade, 

K  tal  que  o  mesmo  amor  se  lhe  sujeita, 

D^^arrcceios  de  morte  vêr-se  cheia 

tí-ue  o  mal  que  ao  charo  esposo  então  receia. 


Dí)6      OEUAS    DE   FKAT-CISCO    D   AXDllADK. 
XLI. 

Os  olhos  nollo  poe  tao  brandamente 
duo  rompera  a  intratável  penedia, 
Vj  janto  ao  amor  antigo,  o  mal  presente 
Instilar  vivas  perlas  lhe  fazia. 
O  namorado  Mouro,  a  que  hum  ardente 
Fogo  n^alma  de  novo  esta  agua  cria, 
Nao  sabe  ja  que  faca,  nem  se  entende, 
Pois  o  que  mata  o  fogo  nelle  o  acende. 


E  maldizendo  emíim  o  fado  imigo 
O-uer  tentar  o  remédio  derradeiro, 
Cliega-se  ao  muro,  em  parte  onde  hum  postij 
A})ro  alguas  entradas  por  dinheiro  : 
Sente  então  nao  trazer  muito  comsigo 
Com  que  mais  acender  possa  o  porteiro, 
Oiie  quanto  o  mundo  têe  mciiDS  o  inflama 
Clue  hua  lagrima  só  da  que  tanto  ama. 


Víderoso  e  esforçado  Lusitano 

(Diz  contra  o  que  o  postigo  a  cargo  tinha) 

Km  cuja  mão  está  o  bem  ou  dano 

Meu,  e  da  triste  companheira  minha, 

Se  acaso  aquella  parte  têes  de  humano 

Que  sempre  ao  grande  esprito  anda  visinha, 

Mostrares  piedade  não  duvido 

A  quem  se  o  tu  não  s:ílvas  ]\e  perdido 


o  PRurviRO  cF.iico  DE  DIU.  Hc'! 

XMV. 

Usa  tu  comigo  noje  de  b  rand  «ira, 

liasta  sor-me  a  fortuna  iiniga  e  furto, 

Sp(|ikt  porque  esta  grande  formosura 

Autc  ti  nào  receba  cruel  morto. 

K  tudo  o. que  entre  tanta  d«'sventura 

Mh  consentio  salvar  a  adversa  sorte 

Te  dou,  que  mais  riquo/.a  eu  não  procuro 

Q.ue  vêr-iue  com  meu  bem  posto  em  seguro. 


O  Portuguez,  que  nao  era  composto 

De  jaspe,  nei;i  estava  em  ódio  aceso, 

Knlernecido  assaz  d<i  bello  rosto 

De  que  o  triste  Mogor  via  tào  preso, 

Diz  que  o8  mettêra  dentro  com  grào  gosto 

IVl.is  que  do  Capitão  lhe  era  defeso, 

Hue  o  que  só  fazer  pode  he  que  ella  entrasse 

Cum  lauto  que  de  lóra  elle  licasse, 

XLVI. 

Acceita  o  INÍouro  a  entrada  só  da  esposa 
Tor  ella  ao  Portiíguez  mil  gra^-as  rende, 
Ja  sua  perdieão  lia  por  ditosa 
Pois  seu  amor  da  morte  ella  defende. 
E  inda  que  a  larga  ausência,  e  trabalhosa 
O  amor  e  a  saudade  mais  lhe  acende. 
Morrer  por  dar-lhe  a  vida  assaz  lhe  paga 
T(xlo  o  mal  que  causa  a  nova  chaga. 


'2t]H      OURAS    DE    FRANCISCO   d'' ANDRADE. 
XtVlI. 

ílesponcle  que  o  'paftido  elle  aceeitava 
E  que  de  ficar  fora  he  satisfeito, 
Porque  salvando-se  ella,  elle  salvava 
A  melhor  vida,  e  o  gosto  mais  perfeito. 
E  porque  hum  grão  temor  o  estimuhiva 
Q-ui?!  que  esta  cutrada  logo  houvesse  eífiito, 
(^hcga-se  á  porta,  e  s<5lta  a  sua  estrellu 
Tirà-se  atraz  co\»s  olhos  postos  nella. 

XLVIII. 

Co^os  olhos  postos  nrlla  atraz  se  tira 
O  triste  amante,  cheio  de  saudade, 
Eui  cada  passo  mais  ama  e  suspira, 
Os  olhos  lá  se  vSo  traz  a  vontade. 
A  Moura,  a  quem  o  amor  nâo  consentira 
<Aue  d\)nde  tinha  entregue  a  liberdade 
Os  olhos  apartasse  hum  .s<5  momento, 
Í3em  vio  do  seu  amor  o  apartamento. 

XLIX. 

K  vendo  que  ficando  elle  de  fora 
Por  salva-la  a  morrer  se  offcrecia, 
Nao  quer  que  impiedade  a  vença  agora 
Q.uem  agora  em  amor  a  não  vencia  : 
Torna  atraz  com  graa  pressa  naquella  hora 
(riiic  para  a  recolher  se  apercebia 
O  Portuguez,  porque  ha  por  bem  mais  raro 
Na  morte  acompanhar  o  esposo  charo. 


o    I'U1MEIU0    CERCO    DE   HIV.  '2G9 


Qufi  cousa  nao  fará  ja  o  poderoso 
Amor,  por  mais  que  soja  alta  e  sublime, 
Pois  que  n'hnm  feminil  peito  medroso 
Tal  dcspreso  da  morte  agora  imprimo, 
(vhegada  a  hella  amante  ao  charo  esposo 
Não  sente  cousa  ja  que  alli  a  lastime 
Sonào  temer  que  a  morte  agora  a  trate 
Tão  mal  que  a  deixe  viva,  e  lh''o  arrebato. 

II. 

E  porque  ambos  os  leve  juntamente 

A  morte  que  estar  perto  lhe  parece, 

Ou  não  haja  cousa  alli  que  delle  a  ausente, 

Os  braços  a  que  a  neve  alva  obedece 

Lhe  lança  tao  unida  e  estreitamente 

Gluanto  a  verde  era  o  antigo  ulmeiro  tece, 

Onde  de  tanta  gloria  fica  cheia 

Glue  a  morte  mais  deseja  que  arreceia. 

t.11. 

Em  meio  deste  grão  contentamento 
duo  d'amoroso  humor  lhe  banha  o  rosto, 
Solta  a  suave  voz,  o  brando  accento 
GLuc  d''amor  e  de  queixa  vai  composto  : 
Amado  esposo  meu,  em  quem  sustento 
A  vida,  a  liberdade,  a  gloria,  o  gosto, 
(Lhe  diz)  e  sem  quem  tenho  por  perdida 
A  floria,  a  libíTdade,  o  gosto,  a  vida. 


'270      OUttAÔ    DK   rUA^CISCO    D*ANDKADE. 

L|ir. 

(iiiao  mal  te  merecia  o  que  te  eu  quovo 
Dar-me  a  voltas  da  vida  hum  mal  tao  forte, 
Glue  tanto  para  mim  fora  mais  fero 
Gluanto  me  dilatara  mais  a  morte. 
Se  de  viver  sem  ti  ja  desespero, 
Sem  ti  que  me  poderá  dar  a  sorte 
Senão  morte  cruel,  áspera  e  grave, 
Q.ue  comtigo  terei  branda  e  suave, 

I.1V. 

Como  viver  sem  ti,  meu  bem,  pudera 
Gluem  de  ti  vive  so,  de  ti  respira? 
Q.uem  salvação  em  ti,  e  vida  espera, 
Sem  ti  bem  podes  ver  o  que  sentira. 
Por  mais  perdida  então  eu  me  tivera 
Gt.uando  em  salvo  sem  ti  posta  me  vira, 
De  peior  morte  ent.ào  fora  captiva 
GLuando,  meu  bem,  sem  ti  me  achara  viva. 

Bem  vejo  que  amor  deve  desculparte, 
Q.UC  em  ti  foi  certo  amor,  a  mi  imigo, 
Mas  se  queres  salvar-me  em  toda  a  parte 
Fora  de  ti  me  pões  no  mor  perigo. 
Não  consintas  que  mais  de  ti  me  aparte 
Deixa-me  ter  a  morte  aqui  comtigo. 
Não  queiras,  dilatando-mo  hua  agora, 
€tue  outras  mil  mais  cruéis  sinta  cada  hora. 


o    PRiaiETUn    CEKCO   DE   BIV.  271 


í)  frio  caramello,  a  branca  neve 
Não  se  desfaz  assi  ao  Sol  ardente, 
Nem  a  branda  matéria  que  em  si  teve 
D^ahíílha  o  fructo  ja  doce  e  excellentCj 
Se  desfaz  tanto  a  qualquer  cbamnia  leve 
Çluc  tèe  na  pederneira  sua  semente, 
Quanto  o  Mouro,  a  suave  voz  ouvindo 
Sente-se  pouco  a  pouco  ir  consumindo. 

I,VII. 

Menos  arde  o  Vesúvio  que  o  seu  peito, 
Menos  têe  que  os  seus  olhos  agua  o  Tejo, 
Porém  em  fogo  e  em  agua  assi  desfeito 
Não  torna  atraz,  mas  cresce  o  seu  desejo  •, 
Vt^-se  agora  de  novo  mais  sujeito 
Aquelle  seu  antigo  amor  sobejo, 
Porque  o  que  em  sua  esposa  agora  entende 
O  que  lhe  sempre  teve  mais  acende. 

LVIII. 

D'amor  e  de  arreceio  combatido 
O  triste  não  se  entende,  ou  determina, 
Não  porque  sinta  então  vêr-se  perdido, 
Mas  do  Sí.'u  bem  temendo  a  mor  mina  : 
O  que  com  tanto  amor  lhe  tee  pedido 
A  fazor-lhe  a  vontade  o  movo  e  inclina, 
O  receio  de  a  ver  á  morte  entregue 
Por  outra  parte  o  move  a  que  lh''a  negue. 


Í72      OBRiS    DE   FRANCISCO    1>''aM)R\T)E 
LIX. 

Com  a  alma  inda  confusa  e  duvidosa 
Dest^arte,  ontre  suspiros,  a  voz  lança  : 
P«;díra-te  eu  perdão,  amada  esposa, 
Antes  hum  só  meu  bem  n''liua  esperança, 
Sc  a  força  d'amor  grande  e  poderosa 
A  quem  nada  resiste  aonde  alcança, 
Agora  a  te  anojar  nSo  me  forçara 
GL-ue  mal  sem  esta  força  eu  te  anojara. 

Nâo  cuideis,  amor  meu,  que  menos  forte 
Me  foi  o  teu  cruel  apartamento, 
Q.ue  se  me  vira  em  mãos  da  cruel  morte 
0.ue  esperando  aqui  estou  cada  momento: 
Mas  porque  em  meio  desta  adversa  sorte 
Alcançasse  este  só  contentamento 
De  vêr  que  por  salvar-te  me  perdia, 
O  mal  de  tua  ausência  bem  soffria. 

txi. 

Amor  neste  meu  erro  foi  culpado 
Se  o  que  nasce  d'amor  erro  se  chama, 
Porém  eu  a  este  amor  sou  tao  atado 
Q.ue  o  desejo  d'errar-te  inda  mo  inflama  i^ 
Porque  vcr-te  em  tão  triste  e  imigo  estado 
Mal  o  pode  soffrer  quem  tanto  te  ama, 
A  custa  nâo  só  d'hua,  mas  mil  vidas, 
Porque  todas  por  ti  mo  bem  perdidas. 


o    PRIMEIRO    CEIICO    DK    DIV, 


Por  psso  mesmo  amor  que  me  mostraste 
l"i  .içora  te  obrÍ£;ou  a  vir  buscar-mo, 
K  polo  qiie  til  em  mi  sempre  enxergaste 
Te  po(,'o  que  isto  não  qn eiras  negar-me : 
Q-ue  pois  na  vida  os  males  me  abrandaste 
Não  queiras  mais  na  morte  atormentar-me, 
Basta  ser-mo  a  fortuna  imiga  e  dura 
Não  ajudes  tu  minha  desventura. 

LXiir. 

Eu  sempre  para  ti  só  quiz  a  vida, 
í)  que  desojei  sempre  tinha  agora, 
Mas  n^hum  grave  tormento  convortid* 
V<!Jo  esta  gloria  estando  tu  de  fora  : 
Nuo  queiras  que  por  ti  veja  eu  perdida 
A  vida,  o  bem,  c  o  gosto  só  n^hChora, 
Foge,  foge,  amor  meu,  do  mal  presente 
Porque  vivendo  tu,  moura  eu  contente. 

I.XIV. 

Em  quanto  estas  palavras  solta  o  triste 
E  sollicito  amante,  desejando 
Dar  vida  ao  seu  amor,  de  novo  insiste, 
E  ao  postigo  outra  vez  se  vai  chegando  : 
Ella  que  ao  seu  amor  menos  resiste 
Q-uanto  mais  amor  nelle  está  enxergando, 
Das  suas  rasões  mesmas  contra  elle  usa 
E  com  cilas  d^entrar  ent.no  se  escusa. 


27  í-       OURAS    DK    VKANCISCO   D^ANDUAUI-. 
IX  V. 

Forçado  d 'hum  amor  sincero  o  puro 
Esperando  qualquer  a  morte  estava, 
Torque  a  Moura  nào  qner  ter  o  seguro 
Q-stG  a  quem  he  sua  vida  se  negava  : 
iciuando  se  abre  hua  porta  que  uo  muro 
Livre  entrada  aos  Mogores  todos  dava, 
i*orque  o  Silveira  vendo  o  que  he  passado 
Q.ue  os  recolhessem  ja  tinha  mandado. 

LXVÍ. 

Salteia  acaso  o  lobo  carniceiro 
Das  ovelhas  a  timida  manada 
Em  ausência  do  alão  seu  companheiro, 
E  do  Pastor  de  que  era  antes  guardada  : 
Correm  cheias  de  medo,  e  a  que  primeiro 
Acerta  do  curral  a  larga  entrada 
Segura  fica  alli  de  medo  alheia, 
Nem  morte  ou  desventura  ja  arreceia: 

LXVIl!. 

Desta  sorte  os  IMogores,  qtie  presente 
Ter  o  imigo  cruel  inda  cuidavão, 
Vcjido  que  dentro  ir  ja  se  lhe  consente 
A  porta  com  grãa  fúria  se  lançavào  ^ 
E  querendo  entrar  todos  juntamente 
lluus  aos  outros  a  entrada  embaraçavão, 
Glue  como  aqui  su  esporão  de  salvar-so 
Qualquer  então  procura  adiantar-se. 


o    PfllMF.IP.O    CERCO    DF.    DIl'.  ZiO 

LXVIII. 

Mas  corao  a  porta  a  poucos  agasalha 
E  a  todos  iiella  a  vida  se  promoitc, 
Q-ual  crilhari^a  o  caminho  abrir  trabalhii, 
{\u;\{  a  entrada  co'*09  hombros  accommette  ^ 
*^ual  torna  hnrn  pouco  atraz  porcjue  se  valha, 
Mas  d'*onde  este  se  alarga  outro  se  metto, 
Ora  vão  atraz  todos,  ora  avante, 
>Io\imento  ao  das  ondas  semelhante. 

IXIX. 

Porém  como  na  Villa  então  ja  tendo 
roucos  a  poucos  vao  recolhimento, 
E  a  porta  os  com:?çou  d^ir  recolhendo 
Ja  com  menos  revolta  e  impedimento, 
l*ouco  a  pouco  se  vio  ir  desfazendo 
Aqiielle  revoltoso  ajuntamento. 
Não  se  ouve  grita  ja  porque  ja  cessa 
A  revolta,  o  tumulto,  a  grande  pressa. 

LXX. 

Sondo  todos  na  Villa  recolhidos 
Contentes,  rendem  graças  á  ventura, 
Porque  nao  temem  ja  vêr-se  perdidos 
Que  a  Lusitana  gente  os  assegura. 
Todos  sào  do  Mendonça  recebidos 
Com  grande  humanidade,  amor,  brandura  ^ 
A  alguns  de  quem  o  sangue  então  corria 
Não  falto»!  o  favor  da  cirurgia. 


/O      OBRAS    DE   FRANCISCO   D  ANDRADE. 


Inda  que  o  gosto  em  todos  fosse,  quanto 
Sente  o  triste  que  á  morte  he  condem  nado, 
Se  apo?:  hum  temor  frio,  hum  grave  espanto, 
Acaso  succedeo  ser  perdoado  • 
Comtudo  os  dous  (do  cujo  amor  meu  canto 
Atraz  ja  disse)  ©  têe  hoje  dobrado, 
Porque  os  outros  salvarão  sos  as  suas 
Vidas,  e  qualquer  destes  salvou  duas. 

txxii. 

Digo  daquelles  dous,  em  cujo  peito 

Mais  pode  amor  que  a  morte  horrenda  e  fera, 

Cópia  gentil  com  cujo  amor  perfeito 

Se  exalção  Cj'pro,   Paphos  e  Cythera  \ 

GLue  vendo  cada  hum  delles  desfeito 

O  perigo  em  que  o  Ceo  a  ambos  pozera, 

Agora  sente  dous  contentamentos 

Como  antes  ja  sentira  dous  tormentos. 


O  Silveira,  que  então  na  fortaleza 
Tinha  o  mando,  e  na  Villa,  e  na  Cidade, 
A  quem  tinha  outorgado  a  natureza 
Igual  á  valentia  a  piedade, 
Gtue  do  sangue  alto,  illustre,  e  da  nobreza 
Costumou  sempre  ser  propriedade, 
Esta  affligida  gente,  e  tão  medrosa 
Recebe  com  vontade  piedosa. 


PRIMEIRO  CBRCO  DÊ  IWU.      377 


LXXIV 


E  sendo  embarcação  delles  pedida 

Que  lá  para  Dabul  então  os  leve, 

Lhes  foi  liberalmente  concedida 

Com  tudo  o  que  á  viaj^em  lhes  releve. 

Não  querem  dilatar  sua  partida 

Algum  espaço  então,  ainda  que  breve. 

Porque  a  partir-se  os  move,  acende  e  obriga 

O  desejo  de  ver  a  pátria  antiga. 


Mas  creio  que  estareis  mui  desejosos 
De  saberdes  o  fim  em  que  pararão 
Aquelles  peitos  fortes  valerosos 
Q-ue  o  esquadrão  dos  Cambaios  penetrarão^ 
Digo  de  Mirizam,  e  dos  famosos 
Companheiros  leaes,  os  quaes  ganharão 
Além  da  vida,  c  d^hua  gràa  victoria, 
Para  sempre  no  mundo  fama  e  gloria. 


Este  ousado  Mogor,  depois  que  o  forte 
Braço  seu,  e  da  sua  companhia. 
Com  tanta  perda,  estrago,  e  tanta  morte 
Do  Cambaio  esquadrão  que  o  defendia, 
E  com  tanto  favor  da  amiga  sorte 
Q.ue  sempre  he  favorável  á  ousadia. 
Por  entre  tanto  imigo  abrio  a  estrada, 
Para  o  Rio  Indo  faz  sua  jornada. 


278      OBKAS    DE   FRANCISCO    D^ANDRADE. 


Porém  vendo  que  não  era  seguido 
Do  segundo  esquadrão  da  sua  gente, 
Suspeitando  que  pode  ser  perdido 
Se  sentio  dentro  arder  impaciente  ^ 
A  voltas  desta  fúria  combatido 
D''hua  entranhavel  áòr  também  se  sente, 
Porque  não  lhe  he  a  victoria  tão  acceita 
Q-uanto  lhe  dá  de  dòr  esta  suspeita. 


Mil  vezes  desejou  voltar  ao  imigo, 
Acompanhar  os  seus  que  atraz  deixara, 
Se  naquelle  mortal  cerlo  perigo 
Somente  a  sua  vida  aventurara  ; 
Mas  como  a  salvação  dos  que  comsigo 
Têe  (com  cujo  favor  se  elle  salvara) 
Delle  pende,  somente  a  rasão  segue 
E  lhe  faz  que  hum  desejo  heróico  negue. 

LXXIX. 

Vai-se  traz  a  rasão  deixa  a  vontade, 
Virtude  em  que  o  louvor  não  iêi;  limite, 
Leva-o  mais  a  com m um  necessi(ílade 
Q-ue  o  seu,  inda  que  heróico,  alto  apetite:, 
Cousa  que  ao  real  sceptro  e  dignidade 
Tanto  importa  que  siga,  e  sempre  imite, 
tine  sem  cila  a  perder  está  arriscado 
Traz  a  reputa<;ão,  a  vida  e  o  estado. 


o    I>RIMEIRO   CERCO   DE    líIV.  27í> 

LXXX. 

Deixa  o  Mogor  o  seu  honrado  intento 
l*<)lo  que  íi  sua  grnte  relevava, 
Mas  com  dobrada  dôr  e  sentimento 
Segue  então  o  caminho  que  levava  ^ 
E  sem  ter  nelle  algum  impedimento 
Chega  ao  logar  para  onde  caminhava, 
Tendo  mais  de  cem  léguas  ja  passadas  •   '^* 

Todas  de  seus  imigos  habitadas. 

LXXXI. 

liivro  assi  do  Mogor  esta  profana 
Terfida,  desleal,  ingrata  terra, 
Se  lhe  acende  de  novo  a  fúria  insana 
Q.ne  contra  os  Portuguezes  em  si  encerra  ; 
C4ue  entre  a  gente  Cambaia  e  a  L«»sitana 
Move  ilida  hua  encoberta  occulta  guerra, 
De  nenhua  das  partes  commettida 
Mas  diambas  claramente  conhecida. 

LXXXII. 

Entro  esta  paz  forçada  e  fabulosa 
De  que  fmgidamente  a  fúria  \\o  serva, 
Se  passou  a  sazào  que  da  chí-irosa 
Bonina  despe  o  ])rado,  e  da  verde  erva. 
Neste  tempo  a  Cidade  p{)p\jh)sa 
E  de  tudo  abundante  se  conserva, 
Crescem  as  mercancias,  a  riqueza. 
Cresce  também  a  sua  altii  nobreza. 


280      OBRAS   DE  FRANCISCO   d''aNDRADE. 
LXXXIII. 

Chegado  aqnelle  tempo  em  que  ja  voa 
A  lasciva  e  domestica  andorinha, 
Parte  o  Governador  da  nohre  Goa 
Com  aquelle  apparato  que  convinha  : 
Cortando  o  favorável  mar  a  proa 
Direito  para  Diu  então  caminha, 
E  vai  as  fortalezas  visitando 
Que  em  meio  da  viagem  vai  achando. 


A  Diu  chega  emfim  com  nao  pequena 
Festa  dos  que  lá  eslão,  e  dos  que  leva, 
Nem  faz  d^dli  mudan^'a  cm  quanto  a  amena 
Sazão  de  ílôr  e  fructo  o  mundo  ceva, 
Onde  com  grande  industria  tudo  ordena 
Q-uanto  a  fortefica-la  então  releva, 
G-ue  sempre  acabou  tudo  a  grãa  prudência 
Q.ue  têe  por  companheira  a  diligencia. 

LXXXV. 

Entre  as  obras  que  ordena  com  tal  arte 

Glue  a  douta  antiguidade  a  não  alcan(^a, 

Foi  hum  grosso  e  espaçoso  baluarte 

Q.ue  entre  a  Villa  dos  Rumes  e  o  Rio  lança  ; 

Porque  possão  aqui  ter  nesta  parte 

Favor,  recolhimento,  segurança, 

Os  Christàos  qu*»  na  Villa  residião 

Glue  os  oflicios  d''Alfandega  servião. 


a    PRIMEIRO    CEKCO    DK    Dltí.  581 

K  porque  á  sequidão  que  a  natureza 
Naquoíla  terra  pôz,  roaiedio  díísse. 
Mandou  também  que  lá  na  fortalezii 
Com  pressa  hua  cistfíran  se  fixcsse, 
A  qual  «o  coniprimeiílo  e  na  iargue/^ 
8e  dilatasse  tanto  quo  podesse 
Tauta  agua  rí-colher,  que  muitos  dia;» 
Bastasse  para  graiides  computduus. 

LXXXVII. 

Traz  isto,  porque  ja  no  senhorio 
Kntrava  pouco  a  pouco  do  Oriente 
O  tormentoso  inverno,  húmido  e  íViu, 
K  o  formoso  verão  lá  no  Oeeidenfe, 
O  Cunha  se  recolhe  ao  seu  navio, 
K  dividindo  o  mar  prosperamentíí, 
Ajudada  do  vento,  a  uguda  proa 
6o  vai  passar  o  inverno  á  real  Goa. 

Lxxx.vni. 

Mn9  antes  que  os  henigno»  mangos  ventos 
Façao  co'o  brando  sopro  a  velhi  inchada, 
Deixa  o  Cunha  d'ávante  de  seiscentos 
lixjmens  a  fortaleza  aconipaidiada  : 
Inhabcis  para  as  armas  sào  duzentos 
Doíites,  e  da  outra  gente  ho  pouea  armadií. 
Ficào  tombem  entre  esta  companhia 
MuitoB  da  Lusitana  íidali^uia, 


fe 


282      OBRAS   DE  FRANCISCO    D^ANDRADC 
LXXXIX. 

Deixar  me  cumpre  agora  isto  que  canto 
Q.ue  cantar  novas  cousas  determino  : 
A  ti  se  volta  agora  este  meu  canto 
Pérfido,  desleal,  falso,  malino. 
De  ti,  Cojaçofar,  digo  que  em  quanto 
Te  não  vem  o  castigo  de  ti  dino 
Serás  única  peste,  único  dano 
Do  valeroso  sangue  Lusitano. 

xc. 

Depois  que  aquelle  máo  perverso  esprito 
Do  Sultão  infiel,  da  mortal  vida 
Passou  á  morte  eterna  (como  he  dito) 
Co^a  Lusitana  força  não  vencida, 
De  Cambaios  hum  numero  infinito 
Lá  na  chamma  infernal  nunca  extinguida 
Os  espritos  também  virão  envoltos. 
Do  cárcere  mortal  de  todo  soltos. 


Estes,  novas  lá  dão  do  que  passado 

Fora  em  Diu,  e  no  Reino  até  aquella  hora, 

O  qual  sendo  ao  Sultão  denunciado, 

E  sabendo  que  está  de  todo  agora 

A  parte  principal  do  seu  estado, 

Com  que  ello  tão  temido  e  honrado  fora, 

Entregue  em  mãos  do  seu  maior  imigo 

Cresce  o  antigo  furor,  cresce  o  ódio  antigo. 


o   PniMEIKO   CERCO   DE  DIU.  283 

XCII. 

Agora  mais  que  nunca  desejoso 

D''húa  áspera,  cruel,  dura  vingança, 

Ja  para  isto  induzir  quer  o  engenhoso 

Cojaçofar,  em  quem  têe  confiança  : 

Cuida  que  não  será  difficultoso 

Se  do  escuro  Plutão  favor  alcança, 

Logo  ante  elle  se  vai,  e  com  grãa  mostra 

De  dòr,  ante  os  seus  pés  se  humilha  e  prostra. 

XCIII. 

Eterno  Rei  (lhe  diz)  a  quem  se  inclina 
Todo  o  infernal  poder,  e  monarchia, 
Contára-te  eu  aquella  alta  ruina 
Q.ue  na  terra  me  deu  quando  eu  vivia 
Hua  gente  infiel,  impia,  malina, 
A  quem  cu  o  contrario  merecia, 
Se  não  vira  que  he  hua  larga  historia 
â^uc  eu  cuido  que  te  he  ja  assaz  notória. 

XCIV. 

Basta  que  eu  fui  ja  Rei,  e  falsamente 
Do  meu  Reino  esfes  homens  me  privarão, 
Fui  rico  e  poderoso,  e  juntamente 
O  poder  e  a  riqueza  me  usurparão  : 
Essa  vida  que  lá  tive  entre  a  gente 
EUes  sem  piedade  m^a  roubarão, 
Por  elles  com  enganos  vi  perdida 
A  riqueza,  o  poder,  o  Reino,  a  vidai, 


xcv.  « 

Bem  vês  que  a  natural  propricfiacio 
Dos  que  o  teu  poderoso  sccptro  hoírraniios, 
Kão  consente  que  a  injuria,  a  falííidade 
i'ai>sar  sem  gràa  vinf!;aiiç.i  consintanios : 
3i  tu  íso  por  tua  aita  majestade, 
luda  que  nós  de  fracos  o  soffraníos, 
<>  nao  deves  softVer,  pxjrque  temor-ta 
ttaicá  irào  deixe  a  terra.,  e  obcdecer-tc» 

xcvr. 

Toniar  Ima  crirel  ving;ança  quefo 
Debtes,  que  com  mortal  ódio  persi^(7, 
i'j  por  meio  d^liuni  meu  vassaílo  espercr 
Toma-la,  o  qual  me  ibi  íiel,  c  amiu;o;j 
Mas  nào  pode  islo  Si!r,  se  o  teu  severo 
l'oder  nào  me  ajudar  para  o  que  dij^o, 
K  eti  fio  que  para  isto  (dle  me  acuda 
1'oiíi.nuiica  a  intento*  taes  liegou  ajudii« 

XGVII. 

í^umpria-me  para  isto  que  inspirasse 
A  Inveja  o  c(Ȓstumado  seu  veneno 
No  meu  Cojaçofar,  e  o  provocasse 
A  fazer  isto  que  eu  por  elle  ordeno: 
Se  t.'U  fosse  tão  ditoso  que  alcançasse 
jlste  favor,  dos  teus  o  mais  pequena 
Vai  Si'i  que  será  tal  que  não  duvido 
U-ue  eu  íique  bem  vini^-ado.  e  tu  temida. 


©    PHIMCIRO   CEUCO   DE   DlC.  283 

xcvm. 

Logo  o  Rei  infernal,  a  quem  isto  era 

Bem  conforme  ao  seu  gosto  e  natureza > 

Gabando-lhe  a  tenção  damnada  e  fera, 

Incitando-o  a  mói-  odio,  a  mor  crueza, 

Faz  ^ir  alli  a  pestífera  Megera 

E  lhe  manda  que  vá  com  gr^a  presteza 

Onde  a  sua  morada  IÔl*  a  Inveja 

E  mande  que  o  Sultão  nisto  proveja. 

xcix. 

Eíb  logo  d  diligente  mensageifdj 
Co^a  Cabeça  de  cobras  toda  ornada j 
Cuni  aspeito  feroz,  voa  ligeira 
J)o  esprito  do  Sultão  acompanhada, 
^\ecrcscentando  mais  nelle  a  primeira 
Fi,iribunda  tenção,  fera,  e  damnada, 
E  tildo  o  que  visita  então  do  mundo 
Deixa  também  damnado  e  furibundo. 


Com  tal  presteza  no  ar  as  azas  solta 
A  ministra  infernal  e  peçonhenta^ 
Espargindo  furor,  odio,  e  revolta, 
Ciue  em  breve  espaço  assaz  lá  se  apresenta 
Onde  está  a  casa,  bruta,  e  sempre  envolta 
Em  negro  sangue,  suja  e  fedorentaj 
Onde  sua  morada  a  Inveja  tinha 
E  a  sua  natureza  esta  convinha. 


286      OBRAS   DE  FRANCISCO  d"* ANDRADE. 


Lá  n^hua  escura  cova  está  este  assento 
No  mais  fundo  d''hum  valle  assaz  sombrio, 
Onde  não  têe  entrada  nenhum  vento 
E  do  raio  do  Sol  sempre  he  vazio-, 
Tê^  tristeza  idli,  recolhimento, 
Sempre  he  cheio  dMium  grave,  e  inhabil  frio 
Nunca  alli  se  ve  a  luz  clara  c  formosa 
Vê-se  sempre  hua  noite  tenebrosa. 

CII. 

Chegada  a  fúria  aqui,  e  conhecendo 
Q-ue  aquella  era  a  morada  que  buscava, 
Bate  na  porta,  a  qual  obedecendo 
Logo  a  entrada  na  bruta  casa  dava: 
Vê-se  estar  dentro  a  Inveja,  que  comendo 
Viboras  peçonhentas  sempre  estava, 
Bruto  manjar,  mas  delle  se  contentão 
Os  seus  vicios,  que  delle  se  sustentão. 


Ella  com  grão  vagar  alevantando 
Se  foi  então  da  terra  em  que  jazia, 
E  ja  meio  comidas  lá  deixando 
As  viperinas  carnes  que  comia, 
Com  paaso  mal  composto  foi  andando 
Para  onde  vio  a  nova  companhia, 
Onde  vendo  o  Sultão  mostra  grão  gosto 
Só  porque  o  vio  estar  com  triste  rosto. 


o    rniMEIRO   CERCO   DE   DI¥.  28" 

CIV. 

O  corpo  todo  tee  magro  e  desfeito, 
A  iace  trislo,  pallida,  e  medonha, 
Nunca  para  ninguém  olha  direito, 
Porém  não  lhe  procede  de  vergonha; 
Os  dentes  negros  têo,  e  sempre  o  peito 
Cheio  de  fel,  e  a  lingua  de  peçonha, 
Jamais  á  sua  boca.  o  riso  veio 
S'  jião  quando  lh''o  trouxe  o  mal  alheio. 


Nunca  jamais  do  doce  somno  gosta 
C-lue  o  continuo  cuidado  o  nao  consente, 
Mas  sempre  está  em  vigia  a  triste  posta 
Vendo  os  successos  bons  que  vem  á  gente  : 
E  tanto  só  de  os  ver  arde  e  desgosta 
Qluò  se  está  consumindo  co''o  que  sente, 
O  mal  que  faz,  também  o  tèe  comsigo, 
Ella  mesma,  he  de  si  mesma  o  castigo, 

CVI. 

A  fúria,  que  de  longe  ja  a  conhece, 
(^hegando-se  para  ella,  os  ares  corta, 
K  diz  :  Manda-te  o  Rei  a  que  obedece 
(luanto  cerra  a  prolunda  Stygia  porta 
Q.ne  a  este  esprito  que  elle  ama  e  favorece 
Ajudes,  n^hum  negocio  que  Ih^importa. 
Não  disse  mais,  e  atraz  o  passo  volta, 
Logo  o  esprito  desta  arte  a  lingua  solta : 


Vai-te  a  Dia,  e  lá  o  teu  veneno  inspira 
N''hum  dos  meus  que  alli  tèe  seu  gasalhado, 
Cojaçofar  se  chama.  E  o  passo  vira 
Sem  dizer  mais  :j  e  com  accclerado 
Curso,  torna  ao  logar  d^onde  sahira 
Da  fúria  que  o  trouxera  acompanhado, 
De  novo  ante  Plutão  se  humilha  e  estende 
E  gradas  da  mercê  feita  lhe  rende. 

cviii. 

Não  quer  deter-se  a  Inveja,  constrangida 
Do  mandado  do  Rei  do  Stygio  ninho, 
Toma  hua  aste  na  mão,  torta  e  cingida 
Por  toda  a  parte  do  pungente  espinho  ^ 
Logo  entre  negras  nuVens  escondida 
Lá  para  Diu  faz  o  seu  caminho  *, 
Tudo  por  onde  passa  fa^  que  abunde 
Da  peçonha  mortal  que  em  tudo  infunde, 

CIX. 

Os  espaçosos  campos  que  esmaltados 
De  varias  flores  vio  entre  a  verdura, 
Passando  deixa  murchos  e  pisados 
ôue  níto  pode  soífrer  tal  formosura  i^ 
Pcí<3  fogo  á  loura  espiga,  e  poios  prados 
Faz  que  as  ervas  consuma  a  chamma  dura^ 
E  co^o  bafo  pestífero  a  malina 
CasaS)  povos,  Cidades  contamina. 


o   PtllMElRO  CERCO  DE   DIV,  289 

CX. 

A  Diu  chega  enfifim,  e  com  presteza 
liá  de  Cojaçofar  busca  a  morada, 
Onde  entrando  se  encheo  de  grãa  triste>.a 
Porque  alli  de  tristeza  não  vio  nada ; 
E  por  ver  a  abundância,  a  graa  riqueza, 
A  seda  e  ouro,  de  que  era  toda  ornada, 
E  mal  deter  as  lagrimas  podia 
Porque  então  alli  lagrimas  não  via» 

CXf. 

Vai->-8e  a  Cojaçofar,  que  ja  o  preceito 
De  Plutão  quer  cumprir,  a  que  alli  veio^ 
Com  ferrugenta  mão  lhe  toca  o  peito 
Q-ue  de  mil  pungimentos  deixa  cheio  \ 
Faz  também  apoz  isto  o  usado  elíeito, 
Na  mais  interior  parte  do  seio 
LhHnspira  hua  peçonha  tão  nociva 
Q-ue  nes  ossos  lhe  fica  ardente  e  viva, 

cxii. 

Apoz  isto  ante  os  olhos  lhe  apresenta 
Q.uanto  ja  pode  em  Diu  o  novo  imigo, 
Tal  que  a  grandeza  delia,  alta  e  opulenta 
Muito  cedo  terá  toda  comsigo  ^ 
Glue  se  este  o  seu  poder  novo  accrcscenta 
Elle  perderá  o  seu  poder  antigo. 
Depois  que  outras  mil  cousas  diz  de8t'arte 
Com  que  assaz  o  acendeo,  d'alli  se  parte, 
♦  9 


át»0      ©URAS   CÊ  í-HAlsClSCO  «'aNDkAD?' . 

cxníí 

^ente  Cojaçofar  ja  o  venenoso 

Espiníio,  que  lá  dentro  o  punge  o  aCend<í, 

cl  a  nem  q  liando  o  Sol  mostra  o  luminoso 

Kaio^  nem  quando  oesconde,  osoinno  jirend 

Inquieto,  soílicito^  ahcioso, 

Mal  do  infuso  teueno  se  defende^ 

(iue  derreter-^e  lá  dentro  está  vendo 

ô.uul  se  eíítá  ao  Sol  a  neve  derretendo/ 


Veíido  a  podef^  o  mando,  a  preeítijuencia 
tilue  em  13iu  tèe  a  Lusitana  gente^ 
A  qllem  clie  com  tet  grande;  opulejkvia 
E  grno  ser^  lie  também  olxidieute, 
Bento-se  dentro  ardef  d 'impaciência 
Q-ual  arde  o  verde  espinho  quando  3eni<: 
O  fogo,  que  não  oioíítra  fora  o  lume 
Ma»  dentro  ppucQ  a  pouco  se  consume « 


Mil  Vezes  procutar  quizera  a  morte 
l*or  nao  vêr  tfUito  bem  e  gloria  alliei,^ 
Mas  çqnhecendo  então  que  desta  sorte 
A  sna  gfave  dór  mal  remedeia^ 
Pertonde  com  robusto  animo  forte 
f 'iimprir  sua  tenção,  d'inveja  cheia, 
Com  ffrna  riiinf\  sssaz,  com  graVQ dano 
CoBio  logo  ouvireis*  do  í^usitano. 


o  rntMSino  cbrco  de  di^.  391 

cxvi. 

liste  depois  que  a  sUa  authoridade 
(Como  ja  atraz  a  minha  historia  escreve) 
Fez  quietar  a  gente  da  Cidade;, 
E  dentro  dos  seus  muros  a  deteve, 
A  reputação  mesma,  e  dignidade 
Na  terra  lhe  ficou  que  selnpte  tevej 
Agora  o  acata  mais,  mais  o  venera 
A  gente^  do  que  nunca  antes  fizera. 

cicvii. 

í\:  novo  torna  ao  seu  antigo  tratòj 
Meneia  a  sua  grossa  mercancia, 
t?om  que  esconde  o  cruel  animo  ingratrt 
O.UC  têe  contra  quem  mal  Ih^o  merecia  i 
Contra  os  que  d'eutre  a  morte  e  desbarato 
Do  Sultão,  e  da  sua  companhia 
O  salvarão  so  vivo.  E  do  seu  peito 
Cruel,  se  mostrará  lá  avante  o  eííeito» 

CXVlil. 

Tanto  que  este  infernal  Mouro,  que  estaVtlf  | 
Cheio  d''odio  cruel,  de  fúria  acesa,  < « 

Glue  entSo  forçadamente  tefreava 
Com  receio  da  gente  Portuguesa, 
Vio  que  as  vellas  ao  vento  o  Cunha  dava 
GLue  a  damnada  tenção  lhe  tinha  presa > 
Cobrando  novo  esprito  ordena  quanto 
]*oílereis  logo  ver  ness'outro  Canto» 


o  PRllIF.IttO 

CEIlCd  DE  DIU. 


í\iHe-ie  Cojaçfffar , sccretdmehie  cía  Cidade,  l. 
vai  icr  à  Ãmadahaã^  onde  csiava  TÈlttci  dà 
Cambaia.  '^I^az  de  lã  hxtin  grosso  cxerciloi 
Dá  primeiro  hum  assalio  ao  baluarte  du 
Villa  dos  Rumes  í  sendo  ferido  se  toma  à 
Novanacjer .  O  Capitão  António  da  Silveira 
se  appareíha  para  defender  a  Ilha»  Torna 
Cojaccfar  com  todo  o  campo  a  pôr-lhe  cer- 
co t  c  depois  d'' alguns  recontros  se  solta  a 
Ilha  aos  iniigos.  Contão-se  algumas  cousas 
nofavcis  que  neste  Tneio.  tempo  acontcccrãê 
na  fortalexa,         ■         ..f  sV 


R 


irameiíte  deixou  de  vêf  o  offeito 
T)ii  causa,  iuda  qUe  graVe^  a  que  se  applica) 
Aquellc  que  ó  secreto  seu  conceito 
Nem  a  si  (se  ser  pode)  inda  publica  \ 
Mas  ílquelle  que  o  c<.'íitro  do  seu  peito 
í)escobrc  a  qUelti  niiO  deve^  c  communicaj 
Não  sóniente  níJo  acha  o  que  esperava 
Maa  aclia  ás  vezos  in.il  q»?"  não  cuidava* 


Ó   t»llt*flS!ltO  tíÉItCO   DÉ5  DIU.  293 


Bem  vejo  que  nos  feitos  importantes 
Ninguém,  só,  t-hega  ao  fim  de  seu  intento^ 
Mas  quem  bnsca  fílvor,  lhe  cumpre  que  ante» 
De  se  communicar,  tenha  grão  tento, 
St2  os  qtie  íizef  de  si  pjftecipaiites 
8ouberão  ja  eneubrif  seu  pensamento, 
Q.ue  quem  nào  soube  o  seu  ter  encubertu 
Nuo  encubrir  o  alheio  está  mais  ccrto#i^  ..i^// 

líí. 

r)e[j()i:í  an  iu.i  uo  Cunha,  efa  passado 

Hum  mez,  e  efa  no  fim  ja  do  em  que  o  loufO 

Í*laneta,  que  j^uardou  d''Admeto  o  gado, 

Em  companhia  Soe  andar  do  Touro^ 

iiluando  Cojaçofar,  impio,  malvado, 

írlue  ja  fora  Christao,  agor.i  he  MourOj 

Se  parte  da  Cidade  naquelhi  hora 

l-iue  na  terra  a  nocturna  sombra  mora. 

Com  tanta  discrição,  tal  siso  e  manha 
Ksta  partida  ja  tinha  ordenada, 
Q.ue  sendo  elle  senhor  de  hua  tamanha 
Riqueza,  que  á  de  Creso  era  igualada, 
Q-uando  agora  se  vai  toda  o  acompanha 
Sem  ficar  na  Cidade  delia  nada. 
Porque  isto  commanica  com  tal  gente 
<ciue  nem  hua  suspeita  dá  somente, 


E  assi  com  tal  segredo  o  seu  caminho 

Ordena  este  sagaz  nesta  partida^ 

GLue  nem  do  que  lhe  estava  mais  visinho 

Suspeitada  só  foi,  ou  entendida  : 

Lá  polo  assento  liquido  m.arinho 

N'hua  náo  sua  faz  esta  fugida, 

E  vai  para  Çurrate^  o  mar  cortando 

Villa  de  que  elle  tinha  então  o  mando» 

VI. 

fíua  grâa  confusão,  hum  grande  espanto 
Aos  Mouros  que  viviao  na  Cidade 
Esta  partida  deu,  feita  com  tanto 
Segredo,  quietação,  sagacidade  : 
^Também  aos  Portuguezes  mostrou  quanto 
Saber  deu  o  Senhor  da  eternidade 
Áquelle  máo,  rebelde  á  Santa  Igreja, 
Gluioá  que  por  mor  damno  inda  te  seja» 

vit. 

t)os  ventos  e  das  ondas  a  bonançl 

l*õe  em  salvo  este  máo  na  Villa  aonde  hia^ 

Porém  nella  nao  faz  longa  tardança 

GLue  a  damnada  tenção  o  constrangia  : 

faz  para  Amadabad  logo  mudança, 

Cidade  do  Sertão,  onde  sabia 

Glue  estava  então  ElKei,  e  com  tal  pressa 

Caminha,  que  hum  momento  só  não  cessa» 


o    PRIMEIRO   CKRCO   DK   DIU. 


VIII 


295 


Rias  cantar  n'outra  parte  deste  espero, 
Cumpre  que  hum  pouco  aqui  delle  me  aparte, 
Porém  o  que  cantar  agora  quero 
Tambera  de  gosto  têe  hua  grãa  parte  : 
Obras  vereis  do  bellicoso  e  fero 
Ilida  que  pueril,  fingido  Marte, 
Mas  que  com  tanta  fúria  foi  tratado 
€tue  ibi  de  sangue  e  fogo  acompanhada. 


E  se  o  Senhor  Eterno  e  Soberano 
Com  cousas  que  succedem  cá  na  terra 
Costuma  a  descubrir  ao  povo  humano 
O  que  o  futuro  tempo  esconde  e  encerra, 
Bem  mostra  isto  que  canfo  ao  Lusitano 
Povo,  o  ditoso  fira  que  nesta  guerra 
Q-ue  se  lhe  vai  agora  apparelhando 
Lhe  têe  guardado  o  Ceo  amigo  e  brando. 

X. 

Hum  dos  solemnes  dias  e  sagrados 
Gtue  a  memoria  daquella  gloriosa 
Resurreição  de  Deos,  fez  venerados 
Entre  a  gente  fiel,  religiosa, 
Se  juntao  quantos  moços  baptisados 
Da  Nação  Portugueza,  alta  e  famosa, 
A  fortaleza  então  dentro  em  si  tinha 
Cuja  idade  inda  ás  armas  não  convinha» 


29t)      OiiitAS    ÍJK  JUANCJStO    l>  AIvíJR\lJK, 


Ajunta-se  tanibein  a  quantidade 

Dos  pequenos  escravos  que  agasalha 

A  fortaleza,  cuja  tenra  idade 

Também  soífrêra  mal  o  arnez  e  a  malha  i 

Conformes  n^hum  querer,  n^hfia  vontady 

Ordenao  de  se  dar  hua  batalha, 

Sendo  menos  assaz  os  Lusitanos 

Gtue  o  que  lie  natural  se  achíi  em  quaesquer  aji 


XII 


neia 


E  para  isto  ser  logo  concluído 
Põem  logo  em  se  ordenar  çràa  dilige 
Vê-se  entre  os  Portuguezes  escolhido 
Capitão  a  que  dêem  obediência  ^ 
Vê-se  o  seu  estandarte  no  ar  erguido 
Chua  Cruz  signalado,  e  a  cunipetenciu 
Os  escravos  também  desta  maneira 
Elegem  Capitão,  erguem  bandeira, 

Põem  logo  08  CapitS(!S  em  ordenança 

A  sua  gente,  com  tanto  artefi^iio 

(iue  a  longa  experiência  nào  alcança 

Outra  com  que  melhor  faça  este  oflicio  ; 

Mas  eoino  d^arcabuz,  espada  ou  lança 

Ter  então  nãí>  podião  exercício, 

(Qualquer  ás  armaí^  <jue  acha  o  braço  estendo, 

Qual  yo^J  páo,  qtuil  co*a  dura  pedra  offeiidt', 


o    VAIMBIHO   CERCO    Ol::  HIV..  2^7 

XIV, 

E  com  tanlo  fervor,  e  animo  tanto 

G-ue  a  puerilidade  longe  excedo, 

Invocando  huns  de  Compostella  o  Santo  ; 

Outros  o  peçonhento  Mataniede, 

Seaecommettem,  causando  hum  grande  espanto 

Km  quora  aquillo  com  a  idade  mede, 

E  em  todos  tal  vontade  então  se  via  nO 

Glue  isto  hum  verdadeiro  odiu  parecia.  «'i 

XV. 

Move  o  mociço  páo  o  tenro  liraço 
Vara  o  ferro  inda  mal  suffieiento, 
Mas  como  SC  movera  o  subtil  aço 
Faz  díis  veias  o  sangue  vir  corrente. 
Durou  eíita  peleja  hum  gmnde  espaço 
Crescendo  sempre  o  suiígue  e  a  furia  ardeule, 
Cresce  a  grita,  a  revolta,  os  alaridos, 
E  as  miseráveis  queixas  dos  feridt>s, 

XVI. 

Em  tudo  aqui  podia  ver-se  agom 

Hua  cruel  hataiha  em  ódio  acesa, 

Q-ue  hum  momento  não  cvsy.\  ale  aquella  hom 

Q.ue  a  p<»uca  mocidade  l'ortugu<sa,  «    r 

A  quem  he  natural  ser  vencedora, 

A  victoria  alcançou  daquella  enipre-sH, 

IC  fez  com  fortíj  braço,  e  val«;roso 

Hunj  imigo  fugir  tão  cupioso. 


298      OBRAS   D£   FRANCISCO  D*AMDBAD£. 
XVII, 

Com  graa  festa,  prazer,  contentamento 
Os  Portuguezes  vão  triumphadores, 
Recebendo  algum  damno  e  detrimento 
Dos  vencidos,  também  os  vencedores. 
Huns  vão  buscar  dos  Paes  o  charo  assento, 
Os  outros  vão  buscar  o  dos  Senhores, 
Onde  achão  gasalhados  differentes, 
Mas  todos  igualmente  são  contentes. 

XVIII. 

GLuanto  contentamento  n^Imns  derrama 
Tão  tristes  outros  faz,  disto  a  memoria. 
Mas  todos  igualmente  acende  e  inflama 
Aquella  gloriosa,  alta  victoria. 
Hum  desejo  á  batalha  nova  os  chama 
Mas  de  vingança  he  n'huns,  n'outros  de  gloria, 
Nem  muito  o  effeito  delle  dilatarão 
Mas  para  o  outro  Domingo  se  prepúrão, 

XIX. 

Kntão  ja  o  que  qualquer  no  peito  encerra 
A  buscar  novas  armas  os  obriga,  . 
Novas  preparações  fauer  de  guerra 
Com  que  mais  se  execute  a  fúria  imiga ; 
Porque  do  pó  sulfúreo  que  na  terra 
Com  nada  se  resiste,  ou  se  mitiga, 
Escondidamente  hão  grãa  quantidade, 
E  outra»  cousas  que  são  de  mor  idade. 


X-X, 

Chegado  ja  o  Domingo,  do  niíl  partce 
Correm  aos  Capitães  os  bons  soldiuhjg, 
Ja  estendem  polo  ar  os  estandarteii 
D^iiisígniji»  diiferentes  signalados  ; 
Fazem  de  pedra  solta  buíuartoc 
Do  grossos  bnstioes  acompanhados, 
Os  Portuguezps,  com  tal  arleííeio 
due  iS-i  das  fortalezas  o  edifinií), 

XXI, 

Dentro  sondo  ja  todos  recolhidos 

Na  ordem  que  as  fortalezas  se  defendem, 

Forão  poios  escravos  oommettidos 

(t^ue  vingar  sua  injuria  hoje  portendem) 

Com  tal  fervor,  taes  gritas  o  alaridos 

tíLue  até  as  mais  altas  nuvens  se  estendeni, 

D'hua  e  outra  parto  a  díira  pedra  voa 

Hum  fere,  outro  amedronta,  outro  atortiiijt» 

XXII, 

Tra»  isto  a  fúria  ardente  enibravecida 
Da  pólvora  ornei,  a  alguns  alcaníja, 
(títue  em  vários  arte(jci/)s  convertid;». 
DMina  parte  para  outra  então  se  |an«^'i4  { 
Faz  o  engenho  infernal,  iniigo  á  vidij 
A  >iua  costumada  antiga  usan<;;a, 
Abrasados  os  tenros  corpos  deixa 
CrciKJe  ii  revoltii,  a  dí)«'>  f*  a-  tmtp  qtiíiÍHH, 


3(K>     OJiRAS   I)£  mANClSCO  H^AUSflLhliK^ 
XXIil. 

Este  fogo  que  os  corpos  deixa  ardendo 
Tanto  acende  os  espritos  Lusitanos, 
GLue  affrontados  d'estar-se  defendendo, 
E  querendo  vingar  estes  seus  danos, 
Saltão  da  fortaleza,  e  accommettendo. 
Com  tal  furor  que  excede  os  tenros  anos, 
Os  imigos  cruéis,  de  sorte  os  tratão 
ôue  era  mui  pequeno  espaço  os  desbaratai» 


As  costas  logo  dao  com  graa  presteza 
Glue  detença  o  temor  lhes  não  consente, 
A  grande  multidão  á  fortaleza 
Rendida  hoje  se  vio,  e  obediente. 
Esta  presente  fúria,  esta  crueza 
Hoje  da  livre,  e  da  captiva  gente, 
Fez  derramar  mais  sangue  que  a  passada 
E  algua  em  vivo  fogo  ir  abrazada» 

Não  se  apaga  com  isto  ou  se  despede 

A  furja,  antes  com  isto  mais  se  acende, 

Mais  vezes  pelejar  se  lhes  concede 

E  sempre  o  Portuguez  o  imigo  rende  : 

Mas  porque  o  mal  quo  disto  lhes  succede 

Em  grande  crescimento  ja  se  estende, 

Nao  sd  ja  se  lhe  nega  dar  batalha 

Mas  inda  em  lh'o  vedar  se  insta  e  trabalha. 


o    PRIMEITIO   CF.RCO    DE    Dllf.  301 

XXVI. 

Porém  iâo  cheios  ja  todos  andavao 
D''hum  aceso  furor  iiao  reprimido, 
Q.iie  nem  polo  Domingo  ja  esperavão 
Nem  ser-lhes  do  Silveira  concedido, 
Mas  em  qualquer  logar  que  se  topavão 
Ou  fosse  descuberto,  ou  escondido, 
Q.uaesquer  que  erao  então,  se  accommettiao 
Com  as  armas  que  alli  se  offerecião.  - 


E  com  tonto  fervor,  com  ódio  tanto 
Em  qualqiier  parte  então  vião  tratar-se, 
Qbue  põe  cm  quem  os  olha  grande  espanto 
E  o  Portuguez,  vê  sempre  avantajar-se. 
Porém  não  quer  ja  mais  este  meu  canto 
Nestes  pueris  feitos  occupar-se^ 
Torna  a  Cojaçofar,  impio,  nefando, 
Q/Ue  grandes  cousas  vai  apparelhando, 

XXVIII. 

Depois  que  a  Amadabad  foi  arribado 

Este  falso,  e  infiel  Italiano, 

E  diante  d^EilRei  apresentado, 

Receioso  inda  aqui  de  qualquer  dano 

Se  desculpa  do  tempo  que  gastado 

Tinha  antes  entre  a»  povo  Lusitano 

Sem  commetter  mais  cedo  aquella  vinda 

duo  em  tal  perigo  o  po/,,  quo  a  não  crê  inda, 


,iú2    oimAS  DE  iRiJíciSco  t>V«f)nAr:«tn. 

Pi  porque  EIRei,  e  os  im  que  com  (HU  a  torrrf 
llfigem,  sua  intioceticía  víes^^m  clarM, 
('oiti  qunnld  discríçíSo  seti  peito  encerra 
(^om  a  sua  prudonda  uííícu  g  rata, 
Os  incita,  os  apressa.,  os  fóiça  á  ffucrra 
«lue  lá  contra  os  Christâos  tnoviaa  adiara. 
Na  qual  se  oflferceco  que  os  serviria 
<^om  tt  pessoa,  e  quanto  possuía. 

XXX  4 

Kntre  muita»  rasSes  que  entSo  lhes  dava 
]'ara  vir  esta  guerra  logo  a  ciíeito, 
Muita»  cousas  tambcm  lh*appesentava 
ÍJe  que  ha  na  fortaleza  grão  defeito, 
Com  que  a  tomada  assaz  facilitava 
Sem  lhe  poder  custar  muito  este  feito, 
A  pouca  agua  que  têo  a  fortaleza 
E  dos  seus  baluarte*  a  fraqueza « 

XXXts 

<lue  a  íbrtefícaçSo  tao  engenhosa 
l'olo  Governador  antes  traçada, 
E  aquella  tão  capaz,  tao  espaçosa 
Oisterna  que  deixava  alli  ordenada, 
He  hua  machina  imm^nsa  e  vagarosa 
Glue  apenas  inda  estava  começada, 
E  que  H  cisterna  inda  agua  nSo  recolhe 
Noni  indr»  o  líaliir^rlc  f»  ojitfada  tftjif». 


o    PRIMEIUO   CKUCO   DE   OlV.  303 

\XXII. 

íiicihi-los  tambfiin  a  isto  trabalha 

í  ''•■\i\  lhe  mostrar  quão  pouca  cópia  agora 

íí  t  Je  gpiite  Clàftótãa,  crarne/,  de  malha 

U-Ul'  a  Ilha  c  a  Cidade  só  defenda  hua  hora, 

K  a  cópia  innumeravel  que  agasidha 

r>ií  gente  que  o  Mafoma  falso  adora 

A  tt-rra  em  si,  usada  em  guerra,  c  dura 

tiuc  do  tratante  então  mostra  a  figura. 

XXXIll. 

E  que  Be  a  Ilha  e  n  Cidade  se  perdia 
(G-ue  susler-se  será  cousa  admirável, 
Pois  que  quasi  sem  gente  resistia 
A  hua  cópia  de  gente  innumeravel) 
A  fortaleza  logo  se  entraria, 
l\ns  a  fagia  ser  indefensável 
Por  hua  parte  a  gente  que  lhe  falta 
E  por  outra  ter  d^agua  grande  falta. 

XXXIV. 

E  para  que  de  todo  os  persuadisse 

A  esta  guerra  que  então  lhes  propuzera, 

(Como  depí)is  se  soubf)  também  disse 

(ciue  elle  tinlia  por  certo,  e  que  certo  era 

Q-ue  tanto  que  de  nova  flor  vestisse 

O  valle  e  o  monte  a  fresca  primavera 

Alli  viriao  ter  com  grossa  armada 

Os  Turcos,  bem  provida  e  appíirelhada. 


Vrllio  cdíâcío  a  quorri  a  antiguidade 

llMÍn.l  eíítá  cada  hora  promettondo, 

Se  acaso  sehte  a  Austral  ferocidade 

([)'iando  oinveí-tio  he  mais  bravo  e  mais  liorrendoj 

í\ao  se  f elide  coííl  tal  facilidade 

A  grSa  forca  q»ic  o  estaVa  combatendo, 

Com  qual  El  Rei  e  os  ires  llcôo  rendidoíí 

T)as  rasões  deste  Mouro  combatido». 

flue  com  tal  força  etítrárao,  tal  veliemcnríu 
Os  peitos  para  a  gm-rra  ja  abalados,  ' 

Que  sem  faZer  algQa  resistência , 
Não  estando  inda  então  muito  chegados 
A  dar-lhe  eXecuçSo,  com  diligencia 
Ajuntão  munições,  armas,  soldados^ 
Fazem  com  que  o  guerreiro  anafil  so« 
Fj  a  bandeira  nos  ares  logo  voe. 

XXivff. 

l*osta  Ja  em  ordenança  toda  a  gente 

Com  todo  o  necessário  para  a  guerra. 

Se  partio,  a  Alucâo  obediente 

tlue  hum  dos  três  he  que  então  regem  atefrrtj 

Esforçado,  fiel,  nobre^  prudente, 

IC  leva  só  (se  a  fama  aqui  n3o  erra) 

Cinco  mil  de  caVallo  em  companhia, 

E  cm  numero  dobríido  a  tnfantcria. 


XXKVíií. 

o  qiiG  ÊÚú  guerfa  andou  àolHcítalido 
(Joiíipalihoii-o  tambnttl  íitlLí  caminha. 
Com  qiiasi  íg\iú\  poder^  quasi  igual  mandn 
An  que  tiesto  negocio  Alucão  tinha. 
K-ítí?  mil  de  cavailo  vai  mandando 
E  tfes  mil  da  Outra  gente  que  a  p^  vinha, 
Gt?nte  escolhida,  pfatica,  robusta, 
Q.Ue  levâ  aísoldadada  á  sua  cu»ta. 

Duas  jornadas  sos  ao  Sol  faltavao 
J*ara  ter  dentro  em  Cancei*  gasalhado, 
Guando  as  bandeiras  ja  desenrolavâu 
Os  CapítSes,  e  com  accelerado 
l*a»so,  ja  Amadabad  desamparavao, 
li  vâo  pisando  o  fresco  e  livre  prado» 
Mas  destes  lá  adiante  será  dito, 
Porque  da  fortaleza  ouço  hum  grão  grito, 

Xt. 

í  'f-sta  guerra  que  o  Mouro  preparava 
ii(?go  entre  a  Christaa  gente  a  nova  veíoj 
10  a  vinda  dos  imigos  esperava 
(Jom  maior  alvoroço  que  arreceio, 
J^orque  da  sua  vinda  imaginava 
(Tendo  de  confiança  o  peito  cheio) 
A  voltas  d'hua  nobre,  alta  victoria 
Alr;\ncar  nova  fama,  e  nova  gloria. 


1)06      OBRAS    I>K    FRANCISCO   D*ANDRADE. 
XLI. 

E  em  quanto  nisfo  so  se  têe  o  teiíto, 
Se  vio  íiua  noite  ir  ao  Ceo  subindo 
O  cruel,  ruinador,  bravo  elemento 
GLue  a  povoação  hia  consumindo ; 
Q-ue  como  neste  tetnpo  hum  grande  vento 
O  fogo  com  grãa  força  vai  ferindo, 
E  a  secca  palha  cobre  a  baixa  casa 
Levemente  a  desfaz,  consume  e  abrasa. 

XLII. 

Solta,  cheio  de  medo  e  de  tristeza 

O  triste  habitador  a  casa  ardida. 

Não  trata  de  salvar  bens  ou  riqueza 

Porque  apenas  salvar  pode  ainda  a  vida. 

Em  breve  tempo  em  toda  a  fortaleza 

A  nova  deste  dam  no  foi  sentida. 

Corre  hum  cheio  de  espanto,  outro  de  magua, 

Porém  todos  gritando  vem :  Agua,  agua. 

XLIIl. 

Corre  alli  cm  breve  espaço  graa  frequência 
Vendo  quanto  perigo  ha  na  tardança. 
Não  lhe  falta  agua  então,  que  a  competência 
Glual  a  traz,  qual  a  chega,  qual  a  lança*, 
Outros  vão  derrubar  com  diligencia 
A  parte  em  que  inda  não  alcança, 
Todos  põem  nesta  grãa  calamidade 
Q<ual  obras,  qual  conselho,  qual  vontade. 


o    PRIMF.IHO    CF.RCO    DTt   DliT,  H07 

XLIV, 

K  com  tal  diligencia,  tanta  pressa 
Hum  entre  outro,  qual  soe  ir  a  formigu 
Se  traz  a  agua,  e  no  fogo  se  arremessa 
Glue  se  vence  o  furor  da  chamma  imiga  : 
A  rui  na  também  com  isto  cessa, 
O  tumulto  da  gente  se  mitiga, 
E  em  pequenas  quadrilhas  se  reparte 
Fallando-se  só  disto  em  toda  a  parte. 

xtv. 

Porem  com  quanto  o  povo  diligente 
Por  apagar  o  fogo  assaz  trabalha, 
Como  então  favorece  a  chamma  ardente 
O  vento  d'hua  parte,  e  d'outra  a  palha, 
Bem  sessenta  moradas  brevemente 
Sem  poder  haver  cousa  que  lhes  valha, 
Em  leve  cinza  então  se  converterão 
E  em  muitas  as  fazendas  se  perderão. 


E  86  tal  pressa  o  povo  Lusitano 
Para  atalhar  o  fogo  não  empresta. 
Das  casas  a  mor  parte  com  grão  dano 
Consumira  a  cruel,  chamma  funesta. 
Começou-se  este  mal  (se  não  me  engano) 
Na  torpe  casa  d''hua  desho nesta 
Mulher,  que  em  sensual,  bruto  exercici© 
De  si  fazia  ao  inferno  sacrifício. 


Voí  (Tsfe  grão  cle^afetrft  eéle1)fádo 
Hotn  gtaa  festa  do  Moufo  povo  imígo, 
Que  ci>m  a  nova  g'uoi-fa  alvoroyado 
íla  descobftí  o  ciitráiihavel  ddio  ftiiíígo; 
y\s8acao  aos  ChfistSoá  o  mal  dobrado-, 
Dobrado,  do  que  tinliSo,  o  petígo, 
Ciue  ciao  os  hftn-dttíiB  todo»  ardido;* 
líl  que  estíivao  jd  perto  de  vencido», 

XLVIII* 

Kstaâ  e  outras  fasôes  com  que  íaúão 
A  defeza  aos  Christaos  mais  impossível, 
hi  a  guerra  que  fa^.er  lhes  poptendiâo 
Maior^  mais  peHjiCOsa,  mais  terrivel, 
( >9  Mouros  CapilSes  aos  seus  diwao 
Por  lhes  fazer  a  guerra  mais  soíTrivcl, 
K  porque  dos  íinigos  a  fraqueza 
Lhes  dcsstí  novo  esprito,  e  fortaleza, 

Pouco  tempo  passou  traz  isto  quando 
A  Fama  as  leves  azas  no  ar  desprega , 
Fi  co^a  trombeta  os  ares  atroando 
Á  fortaleza  em  breve  espaço  chega  \ 
Oiide  tíffirma  que  ja  se  vem  chegando 
O  exercito  infiel,  que  a  Christo  nega 
K  têe  de  Mafamede  a  lei  malina, 
Vromettendo  aos  Christííos  a  mór  ruín»- 


o    PRlMElllO   CBJIOJ    Bli   DIU.  :i09 


VM:\  hc  aquella  gente  de  Cambaia 
Hiip  a  damno  dos  Christaos  partio  ligeira 
l)'Aínatlabad,  c  vai  de  Din  á  praia 
Seguindo  a  d'Alucão,  c  a  outra  bandeira  : 
Mais  se  acende  e  desperta,  que  desmaia 
Cow  tal  nova  o  magnânimo  Silveira, 
JProvò  quanto  releva  então  prover-se 
Ou  com  que  oiTender  possa,  ou  defender-so. 

Lt. 

O  qiic  procura  então  provAr  primeira 
He  saber  a  certeza  do  que  ouvia, 
Não  perdoa  a  tra bailio  ou  a  dinheiro 
Que  nisto  largamente  os  despendia  : 
Mas  como  nova  certa»  e  o  verdadeiro 
Kignal  tor--se  dos  Mouros  so  podia, 
A  nova  que  elles  duo  he  sempre  errada 
Porque  he  com  má  tenção,  niáo  zelo  dada. 

ttti 

Porem  apesar  desta  imiga  gente 
O  tempo  descubrio  disto  a  verdade, 
Silveira  como  a  certa  nova  sente 
Acode  logo  á  mor  necessidade : 
A  cisterna  dá  grande  expediente, 
E  com  graa  diligencia  e  brevidade 
Dar  ao  grão  baluarte  fim  pertende 
Ruí»  dos  Rtimps  a  Villa  entiío  defendi». 


•Mo     «tJKA»   DK  í-RANClStMI   »*A^*l)HAlJK, 


t.ítt. 

\í  com  tal  diligencia  isto  pfocur.i 
duo  antes  que  muito  tempo  se  pasaassc 
Fe«  com  que  o  baluarte  óquella  altuni 
Que  se  acha  em  vinte  palmos  arribasse, 
E  que  ao  que  a  ordinária  estatura 
B'hum  homem  d^alto  têe^  também  diegnsse 
A  Sala  que,  se  eu  mal  nao  estou  vendo, 
Juntf)  do  baluarte  estão  fazendo. 

AIV. 

Kstava  «este  estado  a  fortaleía 
(Guando  os  dous  CapitSes  que  caminhavSo 
t)e  lá  d^Amadabad,  com  graa  presteza 
t)ehtro  em  Novanager  se  affasalhavSo : 
K  porque  grandes  faltas  e  fiaqucza 
Achar  entre  os  Christâos  imaginavao, 
Ordehao  que  assaltados  logo  sejao 
Por  lhes  nSo  dar  logar  que  se  provejaOi 

tv. 

K  inda  a  formosa  Aurora  acompanhava 
O  filho  do  Troyano  Líaomcdonte, 
GLuando  Cojaçofar  co'os  seus  pisava 
Lá  caminho  do  Diu  o  valle  e  o  monte  t 
Com  tal  pressa  e  silencio  caminhava 
Gluc  antes  que  desterrasse  do  Horizonte 
O  raio  da  manh3a,  o  manto  escuro, 
f^f^in  ser  sentido  estava  junto  ao  muro. 


o  i'utMt:iKO  c«nc©  BK  liJt;.         -MI 

LVI. 

Onde  a  gente  em  batalhas  hSo  reparte 
Mas  junta  toda  sua  coitipanhia, 
Commcttc  com  gí3a  fufia  o  baluarte 
dttc  hovanietite  a  Villa  defendia : 
li  com  quanto  não  falta  nesta  parte 
llfia  esperta,  c  dollicita  vigia, 
romtudo  o  Mouro  vem  tSo  encuberto 
Q.ue  nSo  se  vô  scnSo  de  muito  perto. 

íjnvanta  a  vella  a  voa  em  vendo  o  imigo 
Hua  e  outra  vez  a  grita  alta  repette, 
Dá  rebate  aos  ChristSos  deste  perigo 
E  dn  gente  que  03  muros  accommette: 
Mas  como  então  ao  doce  som  no  amigo 
ítida  a  cansada  gente  se  submette, 
NSo  se  pode  este  mal  que  está  ja  á  porta 
Tom  tal  pressa  atalhar  quanta  íhe  importa. 

tvttt. 

R  como  03  Portuguezes  que  o  meneio 
V)i\  Alfandega  da  Villa  a  cargo  tinhSo 
Nella  estavâo  então,  como  lhes  veio 
A  nova  dos  imigos  que  alli  vinhâo, 
Com  grande  espanto  assaz,  nSo  sem  receio 
IVhum  mal  que  elles  então  mal  advinhSo, 
Logo  todos  n  hnm  corpo  se  ajuntárfío 


31  â      OBRAS    DS  FRANCISCO   D* ANDRADE. 
LIX. 

Sua  salvação  tee  tiesta  subida 
Nella  põem  seu  valor,  seu  braço  forto. 
Porque  ou  assi  salvar  possão  a  vida 
Oii  vingar  largamente  sua  morto  : 
Esta  heróica  tenção  favorecida 
Foi  da  sua  própria  amiga  sorte. 
Que  tamanho  poder  deu  ao  seu  braço 
Q.ne  subirão  acima  em  breve  espaço. 

tx. 

Porém  ja  da  infiel  Cambaia  gente 
Andava  entre  os  Chrislãos  tal  quantidade, 
Q,ue  com  quanto  á  subida  expediente 
Derao,  com  mui  graa  pressa  e  brevidade. 
Virão  quasi  perdida  totalmente 
Ou  a  vida,  ou  a  chara  liberdade  : 
Mas  aquelle  a  que  a  sorte  favorece 
Contra  tudo  resiste,  e  prevalece. 

LXl* 

Nuo  subirão  lá  tanto  a  salvamento 

Com  quanto  o  Ceo  ti  verão  favorável, 

GLue  alguns  do  Lusitano  ajuntamento 

Nâo  recebessem  morte  miserável. 

Os  vivos  com  grâa  força,  esprito  c  alento 

Áquella  imiga  gente  innumeravel 

De  tal  sorte  algum  tempo  resistirão 

€Uie  a  muitos  sem  seu  damno  a  vida  tirão. 


9  PBIMXIHO  CKRCO  D£  J>IV .  313 

Em  breve  espaço  foi  disto  avisado 
O  grão  Silveira  lá  na  fortaleza, 
Q-ue  com  tal  nova  assaz  sobresaltado 
Nâo  perde  o  seu  esprito  e  fortaleza  : 
Deixa  tudo  alli  posto  a  bom  recado, 
E  co^a  mor  brevidade,  mor  presteza, 
E  mais  gente  que  ptSde  d''alli  parte 
A  favor  dos  que  estào  no  baluarte. 


A  leoa  feroz  que  carregada 
De  presa,  entra  na  sua  inculta  c  ruda 
Casa,  e  a  vè  dos  filhinhos  despojada 
A  quem  vinha  manter  e  dar  ajuda. 
Com  fúria  tão  cruel,  tao  denodada 
Outra  vez  o  veloz  passo  nào  muda, 
Buscando  o  que  d^alli  Ih^os  lan^jou  fora, 
Como  o  forte  Silveira  leva  agora. 

LXIV. 

Em  quanto  o  Capitão  isto  concerta 
No  baluarte  assaz  se  combatia, 
Glue  o  numeroso  imigo  tanto  o  aperta 
ô.ue  com  mui  grào  trabalho  resistia  : 
O  perigo  aos  Christuos  acende  e  esperta 
E  lhes  dá  tanto  esforço  e  valentia 
Gtue  sendo  vinte  sós  os  que  defendem 
Nào  somente  resistem,  mas  offendeui» 


314      OliilAB   DjS   FjaANOiSca   D''AKt)UA))ti. 

Porque  além  do  valor,  do  esforço  antigo 

Glue  08  vinte  om  todo  tempo  acompanhavi 

E  na  difficuldade  e  no  perigo 

Em  que  agora  se  vem,  se  accrescentavn  ; 

Vendo  que  o  Cíipitao  (como  atraz  digt)) 

Para  favorece-los  se  apressava, 

Com  dobrado  fervor,  dobrado  esprito 

Se  defendem  do  numero  infinito. 


O  Mouro  Capitão,  d'ira  assaz  cheio 
Por  ver  quão  pouca  gente  tanto  o  offeiido, 
Do  Cambaio  esquadrão  posto  no  meio, 
Com  t3o  feias  palavras  o  repreliondo 
Glue  o  faz  metter  na  morte  sem  receio, 
Mas  nem  por  isso  alcança  o  que  pertendo, 
Porque  se  dobra  as  forças  e  a  vehemencia 
Tauibcm  acha  dobrada  resistência, 

Í,XVII, 

Rompem  com  isto  o  Ceo  os  altos  gritos, 
Acende-se  o  furor,  cresce  a  revóUa, 
liã  da  longa  espingarda  entre  infinito» 
Chumbos  subtis  a  morte  saho  enví5lta, 
Glue  dMnfeli/o»,  miseros  ospritos 
Doa  corpos  infiéis  grSa  cópia  solta, 
Bem  chegar  a  nenhum  da  fiel  gente 
G-iít}  mú  o  qui;»,  O  Senhor  Omniptentt», 


a   FRIMEtllO  CERCO    DK   UtV ,  Hí^á 


Entre  este  alto  furor,  que  tanto  dano 

Aos  Cambaios  estava  então  causando, 

liá  d^entro  o  ajuntami^pto  Lusitano 

Acaso  h'im  chumbo  ardente  sabe  voando, 

(iue  contra  o  renegado  Italiano 

Os  ares  tão  direito  vai  cortando, 

Q.ne  hfia  das  Ímpias  mãos  lhe  rompo,  e  odeix.* 

Cheio  de  jjrave  dôr,  do  grave  queixa. 

ixix. 

Tira-se  o  triste  atraí,  co'a  0(5r  perdida, 
Q.ue  a  dòr  o  cobre  d'hua  cur  defunta. 
Ksta  nova  entre  os  seus  sendo  sabida 
Grãa  cópia  em  derrtidor  delle  se  ajujita, 
Cuidando  alguns  que  estava  ello  sem  vidii 
tíliial  chega  para  o  ver,  qual  o  pergunta  : 
Rias  o  Mouro  sagar,  que  conhece  isto 
Faz  quo  vivo  do  todos  seja  visto. 

LXX. 

Durando  esta  revolta,  quo  a  bravena 
Do  combate  algum  tanto  reprimira, 
A  gente  que  de  lá  da  fortaleza 
A  favor  dos  Christgos  antes  p;irtír;i, 
No  baluarte  entrou  coni  grãa  prestega 
Abrasada  em  furor,  acesa  em  ira. 
Com  que  deu  novas  forças  aos  amiguj» 
Etjchoo  de  medo  ou  peitos  dos  imigus. 


316      OHKAS   D£  I^AAMCISCO    D^ANDHAUL:. 
LXXI. 

Sendo  da  Lusitana  alta  bandeira 
De  novo  o  baluarte  acompanhado, 
Bem  vio  Cojaçofar  que  o  grão  Silveira 
A  soccorro  dos  vinte  era  chegado  : 
Juntando  esta  rasao  á  outra  primeira 
Glue  era  ver-se  da  mão  mui  maltratado, 
Com  pressa  se  affastou  do  baluarte 
Tendo  dos  seus  perdido  algua  parte. 


Fica  o  nobre  Silveira  assaz  contente 

De  ver  em  salvo  os  seus  para  quem  vinha, 

E  como  era  sagaz,  era  prudente 

Os  quiz  Sitistazer  co''o  que  então  tinha  : 

Solta  a  lingua  perante  toda  a  gente, 

Dá-lhe  tanto  louvor,  quanto  convinha 

A  quem  com  forte  esprito  hua  tal  copia 

Venceo  quasi  sem  damno,  ou  perda  propia, 

Lxxm. 

Grão  proveito  trouxe  esta  leve  aífronta 
Á  Portugueza  gente  que  ha  na  terra, 
Porque  a  fez  despertar,  fe-la  estar  pronta 
Nas  cousas  necessárias  para  a  guerra  ^ 
E  ter  melhor  noticia,  melhor  conta 
Co''a  grande  quantidade  que  em  si  encerra 
A  Cidade  de  bons,  fortes  soldados 
Em  difterentcs  trajos  disfíirçadus. 


<i  iKí^iãinu  cmtcu  PK  inv.  3^7 


K  }X)rque  com  pacilica  appareiícia 

Uar  alguns  «oVjresaltos  intentarão, 

Logo  o  Silveira  pòz  tal  diligencia 

G.ue  us  armas  llie8  tomou,  quantas  ra'iu;hara*>; 

jfi  tiom  nunca  achar  nellcs  resislencia 

Em  operas  prisíJíes  algU"»  Hcárao, 

Por  cauçarnin  n A  terra  alguns  irisuUuí 

Alguns  HJnutaniçntos  o  tuniuUos, 

HelVeadog  de  sorte  os  da  Cidado 

(-àue  ja  niaití  n3o  podião  alterar-t.t% 

í)s  logarcs  provê  çom  brevidatlíi 

Kracos,  de  que  podin  «irroçear-se  : 

Estes  sâo  os  que  com  facilidado 

Naquello  Hio  ptxl<Mn  vadear-se. 

O  <jual  dft  terríi  firmo  a  Ilha  aparíavu,  ; 

JC  deste»  grande  cúpiu  nelle  estava, 

NoB  douB  destes  Ingaros,  que  aqui  digo. 

Onde  nuii»  que  nos  outros  a  agua  hu  rara, 

Estão  dous  baluartes  com  que  o  «ílti^u 

Tempo,  estas  faltas  ja  remedoára  \ 

Os  quaes  alU  Baudur  quarnlo  du  imic;u 

Moçjor,  veio  fugindo,  edilicjíra, 

í>*>m  quç  o  quo  creQu  fraco  a  natuny4{ 

Pif»i:c?!>f-'o  do  arteficio  fo?  ttílcíft, 


LXXVH. 

GLuerendo  o  Capitão  híia  e  outra  parte 
Defender  destas  duas  de  que  fallo, 
Entrega  destes  dous  hum  baluarte 
A  quem  bem  sem  temor  pode  entregallo ; 
A  hum  varão  que  no  esforço  era  outro  Marte, 
Cuja  alcunha  he  Falcão,  nome  Gonçallo, 
Outro  a  Luiz  Rodrigues  de  Carvalho, 
Despresador  da  morte,  e  do  trabalho. 

LXXVIII. 

A  qualquer  destes  dous  bem  se  podia 
Esta  obra  encarregar  com  confiança, 
Glue  a  muito  mores  feitos  se  estendia 
O  seu  heróico  esprito,  a  sua  lança. 
De  gente,  munições,  d'artilharia 
O  Silveira  os  proveo  em  abastança, 
Q.uanto  ser  necessária  então  entende 
Para  effeito  desta  obra  que  pertende. 


Outro  passo  ha  no  Rio,  em  que  o  defeito 
D'agua,  não  era  aos  outros  igualado, 
Porém  porque  se  via  assaz  estreito 
Era  de  defensão  necessitado : 
Deste  a  Lopo  de  Sousa  (cujo  peito 
Se  mostrou  por  mil  provas  forte  e  ousado) 
Foi  dada  a  defensão,  com  leve  frota, 
Duas  fustas,  barcaça,  e  galeota. 


«   PRIMEIRO  CBRCO  DS  DiV.  âÍ9 

txxx. 

Também  n''x)utros  logares  deste  Rio 
Glue  não  têe  defensão,  e  fracos  erão^ 
O  Silveira  íez  pôt  mais  d'hum  navio 
Com  que  ter  defensão  segura  esperão. 
Cuja  capitania  e  senhorio 
Dous  bem  fortes  varões  então  houverSo, 
De  cuja  valentia  e  fortes  peitos 
Se  pudérão  fiar  bem  mores  feitos, 

LXXXI. 

francisco  de  Gouveia  hum  se  chamava^ 
O  qual  naquella  parte  do  Occeano 
Q,ue  da  famosa  Diu  as  terras  lava 
Era  o  Capitão-mor  mais  soberano : 
O  sobrenome  ao  outro  Veiga  dava 
Sobre  o  nome  do  Santo  Lusitano, 
O  qual  da  fortaleza  feitor  era, 
A  ambos  o  Ceo  hum  forte  esprito  dera» 

LXXXII. 

Estas  embarcações  Silveira  espalha 
Polas  partes  que  na  Ilha  têe  fraqueza^ 
Porque  a  cisterna  em  si  não  agasalha 
Inda  agua,  e  outra  não  ha  na  fortaleza^ 
Porque  com  quanto  nella  se  trabalha 
Com  mui  grãa  diligencia,  grãa  presteza», 
Inda  estava  então  mal  sufficiente 
Para  dar  de  beber  áquella  gente» 


3:2(>      OJBiSAS   DE    fílAJÍCÍSCO   D*ÁfifiíRA-D«, 

íítiín  tnonieittcí  êsta  grande  obríi  riTto  írossí! 
<iue  he  tatnbeiíi  dos  soldados  íijudad.í^ 
K  a  gríia  falta  qíie  tee  tanto  os  apressa 
Q.ue  antt'8  de  ser  de  todo  j a  acabada 
Ordena  o  Capitào  que  corti  í^rãa  pif-Hsa 
Tanta  à^ivd  soja  nella  agasalhada 
í-luaiita  todos  os  bois  que  alli  estiv<r-sf;em 
Aciiretar  ení  odres  lhe  podassem. 

Destes  o  vaga  1*050  passo  lento 

Costuma  de  mettef  toda  a  Cidadí? 

Do  crihtatino  e  liquido  elemento 

k^iíd  contra  a  sede  tèe  propriedade  ; 

JE  uquella  a;»ua  qtie  para  mantimento 

Da  Christaa  gente,  em  grande  quantidade* 

lÁ  na  nova  cisterna  agasalharão 

Dos  poços  que  ha  pola  Ilhrf  acarreta r?ío. 

txxxv. 

A  voltas  da  cisterna,  se  procura 
Dar  fim  ao  baluarte,  c  á  grande  sal.-^ 
E  põe-se  entSo  nesta  obra  tal  quentuni 
GLue  ém  breve  tempo  fazem  acabala  : 
Palmos  quarenta  a  sala  tee  d 'altura 
E  o  baluarte  nisto  a  ella  se  iguala  :, 
Nuo  os  cercão  de  cava,  porque  viao 
ííliie  o  sitio  nem  o  tempo  o  perniittia  >, 


o   PniMBtnO   CBRCO   OE  Dlff»  ^^í 

De  munições  e  grosía  artilharia 

O  Silveira  o  fornece,  e  delle  o  mando 

Dá  a  Francisco  Pacheco,  o  qual  sohia 

A  Alfandega  da  Villa  estar  julgando  : 

Setenta  homens  lhe  põe  em  companhia 

De  quem  confia  assaz.  Mas  esperando 

Cumpre  que  aqui  fiqueis  hum  pouco,  em  quanto 

A  Cojaçofar  torna  este  meu  canto* 

txxxvit. 

Kst.*^,  depois  que  a  dór  que  o  chumbo  ardentt? 

Na  rota  mão  lhe  tinha  antes  causadoj 

O  f«i?  fetitar  a  elle  e  á  sua  gente 

Do  baluarte  assaz  afadigado  : 

Para  Novanager  em  continente 

Do  seu  grosso  esquadrão  acompanhado^ 

Com  apressado  passo  vai  direito 

Sem  v«^r  de  seu  intento  algum  efleito, 

LXXXVIIl» 

A  graveza  da  dôr  então  o  obriga 

A  deixar  algum  tempo  o  que  pertendcj 

De  novo  estimulada  a  fúria  antiga 

Se  lhe  alevanta  em  dobro,  se  lhe  acende  ^ 

K  assi  tanto  que  a  dôr  se  lhe  mitiga 

E  o  mal  que  antes  sentia  pouco  offende^ 

Não  faz  hum  só  momento  de  tardança 

Para  tomar  do  novo  mal  vingança» 


txxxix» 

Outra  veai  á  batalha  os  seus  inclina, 
Outra  vet  em  batalhas  os  reparte, 
Promettendo  aos  Christuos  alta  ruina 
Faz  que  voe  nos  ares  o  estandarte  í 
Vingar^se  desta  vez  bem  imagina 
Do  mal  oue  recebeo  no  baluarte, 
Sahe  de  Novanager,  e  n'hum  instante 
Dos  olhos  dos  CÍiristãos  se  põe  diante  • 

Àos  Christâos  n'lium  instante  se  apresenta 
Porque  ódio  e  fúria  atraz  deixão  o  vento, 
Sobre  o  passo  que  o  Sousa  então  sustenta 
Faz  de  todo  seu  campo  o  alojamento  : 
Três  mui  grossos  danhões  contra  elle  assenta 
Com  que  espera  daí  Úiú  a  seu  intento, 
Sahe  com  ardente  fúria  arrebatada 
O  pelouro  a  buscar  do  Sousa  a  armada. 

xcl. 

Mas  o  Sousa  animoso  nâo  desmaia 
Antes  se  acende  mais  no  mòr  perigo, 
Também  com  fúria  ardente  faz  que  saia 
Do  seu  canhão  o  duro  ferro  imigo, 
Gtue  aquella  imiga  gente  de  Cambaia 
De  seu  atrevimento  dá  o  castigo, 
Dando  morte  cruel  a  algua  delia 
De  que  huns  vihhào  a  pó^  outros  em  sella. 


Xcit. 

Entretanto  Alucâo  nSo  descansava 
Nom  estava  ocioso  em  festa  e  em  gostOj 
Antes  com  toda  a  gente  que  mandava 
liá  contra  a  Ilha  também  estaVa  posto  \ 
Onde  quanto  podia  trabalhava 
l*or  dar  n»orte  aos  Christãos^  pena  e  desgosto^ 
Nen»  têe  u''hum  so  logar  a  gente  unidu 
Mas  por  diversos  passos  repartida. 

Xciiíi 

Põe  hum  grosso  esquadrão  contra  O  l*amdsa    ' 
Falcão,  que  hum  baluarte  defendia^ 
Outro  contra  o  Cafvalho  valeroso 
A  que  a  delensào  d''outro  competia  : 
E  sendo  este  seu  campo  assaz  copioso 
Com  que  abranger  a  tudo  bem  podia, 
Também  com  gente  os  dons  passos  rodeia 
(Aue  defendem  por  mar  Veiga  e  Gouveia. 

XciV* 

íiOgo  o  Sulfúreo  estrondo  em1)r'aVccído 
Penetra  e  atroa  o  arco  senhorio, 
E  o  pelouro  infiel  mal  resistido 
Tolhe  a  navegação  do  estreito  Rio, 
Com  que  o  caminho  entào  fica  impedido 
Por  onde  costuma  ir  mais  d'hum  navio, 
Glue  aos  que  estavao  nos  passos,  provimeat^Jlí' 
Leva  de  munições  e  mantimento.  <  ^ 


Hyti      OBRAS  DE  Í^HAKCISCO  D''AN»RADr.. 


Como  as  disposições  que  se  estão  vendo 
No  Rio,  favorrção  disto  o  effeito, 
Ainda  que  os  que  os  passos  vao  provendo 
Bf^m  ou  mal  executem  seu  conceito, 
Disto  os  Christãos  comtudo  recebendo 
Vao,  tanto  maior  damno  que  proveito, 
€tue  esta  detens3o  fica  mais  custosa 
Do  que  a  Ilha  he  necessária  e  proveitosa. 


A  voltas  disto,  a  gente  de  Cambaia 
Sem  descansar  hua  hora  só,  pertende 
Melhorar  suas  estancias  lá  na  praia 
Q.ue  de  longo  do  estreito  Rio  se  estende 
Mais  se  acende  com  isto,  que  desmaia 
A  valerosa  gente  que  defende 
Os  passos,  qual  no  mar,  e  qual  na  tetra 
Fazem  sanguinolenta,  cruel  guerra^ 

XCVII. 

iD^hua  pafte  para  outra  pouco  tarda 
Aquella  irresistivel  fúria  ardente, 
Sahe  o  mortal  pelouro  da  bombarda 
Para  ruina  d^^hua  e  d'outra  gente  ^ 
Da  delgada  também,  longa  espingarda 
Híía  e  outra  parte  a  fúria  subtil  sente, 
Míseros,  tristes,  mal  afortunados 
Os  que  são  destas  fúrias  encontrados. 


XCVIII. 

Co'*o8  corpos  em  pedaços,  vSo  buscando 
A»  alma*^  o  log^r  de  gloria,  ou  pena, 
Q,ue  conforme  ao  que  nesta  vida  obrando 
Merecerão,  lá  na  outra  se  lhes  ordena. 
A  Região  Celeste  penetrando 
Vai  então  dos  fieis  parte  pequena, 
E  de  infiéis  hum  numero  infinito 
Entra  lá  no  inimortal,  negro  conflito. 


Mil  vcaes  se  travou  esta  batalha 
Entre  o  povo  infiel  e  o  Lusitana, 
E  com  q«a«ito  mais  sangue  sempre  espalha 
O  povo  Mahometico  e  profano, 
Comtudo  em  melhorar-se  assi  trabalha 
Q.ue  rompendo  por  toda  a  perda  e  dano 
As  estancias  melhora  onde  queria, 
Sempre  estreitando  mais  a  serventia. 


Disto  o  Silveira  vio  que  era  escusado 
Defender  longamente  á  gente  imiga 
Q,ue  o  Rio  fosse  delia  vadeado 
Por  mais  que  a  Christâa  gente  o  contradiga^ 
Vê  que  esta  defensão  lhe  têe  gastado 
(Sem  que  proveito  algum  delia  se  siga) 
De  gente  e  munições  muito  atégora, 
E  que  lhe  vai  gastapdo  mais  cada  hora» 
«  ^0 


í)*2í»    oi:ka«í  i>e  rwAííciscc»  »  Ai^íitiAnT. 


Vqt  ísto^  c  porque  ja  tinha  acabadn 
A  cisterna,  e  com  pressa  e  brevidade 
Tinlia  ja  dentro  nclla  agasalhada 
B^iquaiiea  licor  gfaa  quantidade  •, 
Determina  deixar  desamparada 
Toda  a  llha^  e  em  defensão  pOr  a  Cidadr^ 
ii  pôr  a  artilharia  toda  nella  'f  >i-      , 

íiuanta  ptV.  na  Ilha  p:ira  defendella, 

Vcãe  Pin  caso  tJlb  grave  c  dMmpOTtancín 
Conselho,  a  quem  podia  aconselha-lo^ 
iiné  por  fngir  sober!>a  tra  ignorância 
Nao  qm2  comsigo  só  doterftiína-lo : 
Todiw  com  fiGtt  i€w,  sem  discrepância 
luhe  dizem  qae  doría  effeitua-lo 
I)iv  maneira  que  o  tinha  em  si  propo^to^ 
fVz-se  isto  sendo  ja  nove  de  Agosto. 

Cllt. 

C^oiicíuido  isto  assí,  nao  se  deteve 

(.)  sábio  Capitão  em  dar-lhe  effeito, 

K  })or  dar  a  isto  a  pressa,  que  se  deve 

A  qualquer  importante,  grave  feito, 

Faz  que  aos  que  estão  nos  passos  disto  levr 

U  recado  hum  varSo,  a  quem  de  peito 

Animoso  dotara  a  nattireza, 

f.  que  era  Alcaide-^mór  da  fortaleza « 


o  PKtMBtnO  C1í:RCO  D£  Dtt'.  3â7 

CIV. 

Payo  Rodrigues  este  se  dizia  '.-..a 

E  lá  dos  Aranjos  traz  a  linha* 
j^go  aos  passos  se  vai,  e  denuncia 
K  gente  que  a  defensa  a  cargo  tinha^  ^ 

tilue  tanto  que  o  Sol  desse  fim  ao  dia  *(! 

Mandava  o  Capitão  (porque  convinha)  * 

Q<ue  nenhum  mais  alli  se  detivesse 
Mal  que  logo  á  Cidade  se  viesse» 

CVi 

M.itida  o  Cipitão  a  este  que  tomasse 
A  harcaça  qUe  em  companhia  andava 
tiá  de  Lopo  de  Sousa,  e  a  ptescntasse 
Ao  baluarte  que  o  Falcão  mandava*, 
K  que  a  recolher  nella  lhe  ajudasse 
tluanto  no  baluarte  entSo  estava 
íAue  para  a  guerra  sirva  ou  lhe  convenha^ 
Artilharia,  oo  gente,  ou  mais  que  tenha. 

cvi. 

Manda  hua  grande  fusta  áquella  parte 

Na  qual  era  o  Carvalho  obedecido^ 

Para  que  quanto  tèe  no  baluarte 

Também  fosse  então  nella  recolhido» 

Trar  a  barcaça  a  fusta  logo  parte,  • 

K  sendo  destes  dous  bem  entendido 

O  que  manda  o  que  têe  geral  mando 

Sem  detença  o  vão  logo  effeituando» 


3i8      OMSÂS    BC   FHAVCiSCe   D^AXDKAIIE. 
CVII. 

Adiante  tia  estancia  encarregada 

Ao  famoso  Falcão^  de  gloria  amigo, 

O  nobre  Capitão  pót  hua  armada 

Temendo  ne&te  passo  algum  perigo : 

D' António  du  Veiga  esta  he  governada 

Como  (»e  vos  lembraes)  atrax  ja  digo, 

De  quem  disse  qne  tinha  hum  grande  esprito 

Nem  me  arrependo  inda  de  o  ter  dito* 

cvui. 

Nesta  armada  que  ao  Veiga  he  obediente 
8obrc  duas  galeotas  que  ahi  andavão 
Alguns  cátures  ha,  e  juntamente 
Outras  fustas  subtis  a  acompanhavSo : 
Frota  para  render  sufficiente 
Muitos  dos  que  o  Aleorão  fiilso  adoravao 
Se  de  temor  não  forão  combatido» 
Jlurw  pcito3  sempre  fortes  o  temidos, 

€fX« 

Veiga,  sendo-lhe  ja  denunciado 
Isto  que  o  Capitão  Silveira  agora 
Aos  que  estavíío  nos  passos  tèe  mandado, 
Nao  quer  em  dar-liie  effeito  pôr  demora  , 
•K  cada  Capitão  enct»mmendado 
Deixa  o  próprio  navio,  e  salta  f6ra 
Klle  na  Ilha,  e  d'abi  com  grãa  prpst«7a 
Por  t<»rra  veio  ter  Á  f»irt:d«v;v. 


I 


.  n    PHIUMRO  CERCO    D£  DIV.  329 

CX. 

A  armada,  em  tendo  tempo  (com  desejo 
D^ir  trat  acu  Capitão)  se  faz  de  largo  \ 
O  Falcão  e  o  Carvalho  neste  ensejo 
Põem  por  obra  o  que  ihVTa  dado  a  cargo. 
Mm  porque  tão  comprido  o  Canto  vejo 
4lue  mais  do  que  devera  ja  me  alargo, 
Perdoai-me  se  hum  pouco  agora  cesso, 
J-éií  avante  vereb  destes  o  succé«80. 


o  PBtl!Ui:iRO 

CERCO  DE  DIU. 

JPerdem^se  dum  fustas  da  amtadtL  de  António 
da  Veiga.  Pcrdem-te  também  as  em,bar€a& 
^ões  em>  que  vem  Gonçalo  Falcão^  c  Luix 
Rodrigues  de  Carvalho ,'  e  humas  c  outras 
vão  ter  a  poder  dos  inimigos.  O  Capitão^ 
depois  de  fazer  algumas  diligencias  necessa-- 
rias  na  Cidoxie^  a  solta  aos  Mouros^  e  se 
recolhe  á  fortaleza.  Alucuo  e  Cojaçofar  en- 
irão  na  Cidade^  e  assentuo  seus  campos^ 
Contuo-se  algumas  cousas  que  entretanio 
succedêrão  d''hua  e  d^ outra  parte. 


\^ue  presta  ao  Capitão  a  valentia^ 
Ser  esperto,  sagaz,  forte  e  prudente, 
Gluando  de  sua  gente  a  covardia 
He  somente  ao  temor  obediente, 
E  o  desampara  mais  naquelle  dia 
Em  que  a  necessidade  he  mais  urgente, 
Só  d^hum  vâo  arreceio  combatida 
l)e  ser  posta  em  perigo  a  inútil  vida. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIV.  3Ò(1 


Cousas  sao  que  h3a  á  outra  favorece 
O  forte  Capitão,  e  a  gente  forte, 
E  se  destas  qualquer  á  outra  falece 
Logo  segue  vergonha,  infâmia,  ou  morte 
Por  onde  as  mais  das  vezes  prevalece 
Aquella  parte  a  quem  a  imiga  sorte 
GLuix  dar,  para  a  fazer  victoriosa, 
Com  forte  Capitão,  gente  animosa. 


Sendo  desamarrada  aquella  frota 
Glue  pouco  antes  o  Veiga  governara, 
Para  seguir  com  pressa  aquella  rota 
ôue  o  geral  Capitão  antes  mandara, 
Forçado  lhe  he  passar  não  mui  remota 
D''hua  formosa  estancia  que  assentara, 
A  damno  dos  Christãos,  n aquella  praia 
Junto  do  Rio  a  gente  de  Cambaia. 


Eolo  naquella  hora  solta  tinha 
A  hum  grão  vento  a  prisão  que  era  si  o  encerra, 
Gtue  com  grãa  força  então  ferindo  vinha 
Aquelle  Rio,  e  toda  aquella  terra. 
Também  a  imiga  estancia,  que  visinha 
Eslava  ao  Rio,  faz  áspera  guerra 
Aos  que  por  elle  vinhão  navegando, 
Co^o  ferro  que  o  canhão  está  lançando» 


TòU      OURAS    D K   l'M4XCIbC0    JJ*ANUKADe. 
V. 

A  imiga  artilharia,  e  o  bravo  yento 
GLue  com  graa  fúria  a  armada  visitavào, 
Aos  Ministros  perder  fazom  o  tento 
Qluc  as  duas  galeotas  governa\  ao ; 
Tanto  que  antes  de  andarem  passos  cento. 
Sem  atinar  por  onde  navegavão, 
Dão  em  logares  de  agua  tão  vados 
Que  não  podem  nadar  mais  os  navioí». 


Com  \erdadeira  então,  clara  apparenciii 
Desta  gente,  o  temor  se  pdz  na  praça, 
Pois  sem  pôr  nisto  algua  diligencia 
Toda  por  se  salvar  co'o  Rio  se  abraça: 
Nem  tèe  a  Capitão  obediência 
Q.ue  ora  roga,  reprehende,  ora  ameaça,  /[f/^ 
Q,ue  então  nenhum  mandado,  ou  poder  segue 
Senão  o  do  temor  a  que  está  entregue. 

v«. 

S<5s  dos  dous  Capitães  acompanhados 
Os  navios  estão  (se  não  me  engano) 
Q,ue  os  m;>is  vejo  ir  nadando  aqcelerados 
Trar  hum  desejo  vil,  não  Ijusitano. 
De  todo  os  Capitães  desesperados 
Se  vem,  de  dar  remédio  áquelle  dano, 
Porque  a  força  de  muitos  neste  feito 
Cumpre  hnvcr,  nno  de  dous  o  fartf  peito. 


«    miMBlRM   CKBCft    UC  OtV.'     o        ^'S^ 
VUI. 

E  Vftudo  que  }>or  mais  que  entuo  úzessèiu ;  íi 

Nenhum  salvar  podia  o  seu  navio,  í;^ 
Para  que  elles  também  se  não  perdesseni 
Determinão  também  lançar-se  ao  Rio: 

Mas  porque  as  galeotas  não  viessem  íí3 

Dos  imigos  cruéis  ao  poderio,  :»A 

Q,uanto  fogo  pudcrão  lhes  chegarão  >(I 

£  começando  a  arder  as  desampárão.  ' ' 

IX. 

Mas  com  quanto  trabalho  cUes  puscrão' 

l*ara  que  dos  imigos  possuído» 

Os  navios  nuo  fossem,  não  poderão 

Nisto  os  seus  bons  desejos  vêr  cumpridos,  iiM 

Gtue  os  navios  emfim  íimbos  vierão  <'i 

A  poder  dos  imiííos  mal  ardidos, 

Com  quan'a  artilharia  dentro  tinhao 

£  as  mait  cousas  que  dentro  ncUes  vinhau. 


Nunca  veio  hum  grão  mal  sem  companhia, 
Q.ue  a  fortuna  |íor  pouco  não  comei;a. 
Na  barcaça  o  Falcão  da  artilharia 
Recolhera  a  miúda  e  a  grossa  peça. 
Nem  a  grande  revolta  que  lá  havia 
No  baluarte  então  faz  que  lhe  esqueça 
(iualquer  cousa  das  que  elle  dentro  enc€mi 
ôue  podessom  ser  boks  par»  guerra. 


334       OBBAft   DK  PKANCIACO   D*ANnRADK. 

.XI. 

E  no  tempo  que  os  dous  navios  ardiao, 

Porque  a  gente  a  salvar-*e  os  não  ajuda, 

Três  ou  quatro  caixões  fora  se  vião 

Olue  nao  pode  embarcar,  por  mais  que  estuda 

Estes  dentro  em  si  todos  recolhião 

Aquelle  negro  pó,  que  com  ajuda 

De  qualquer  leve  chamnia  tão  mal  trata 

G.ue  tudo  acende,  assola,  e  desbarata. 


Mas  como  as  grossas  chammas  que  aUreixavâil 
Os  navios  Christãos  de  que  atras  fallo, 
Causassem  grão  temor  nestes  que  estavão 
Em  companhia  então  do  grão  Gonçallo, 
Por  fugirem  do  mal  que  imaginavuo 
Começão  de  querer  desamparallo, 
Ao  mal  futuro  mais  obedientes 
Ô-ue  a  mil  obrigações  que  tèe  preseút«9. 

XMl. 

O  Falcão  valeroso  que  isto  entende 
Receioso  d^algua  desventtira. 
Por  mil  vias  cura-la  então  pertende 
Qual  mostrando  aspereza,  qual  brandura: 
Ora  os  manda,  ameaça,  ora  os  reprehende. 
Ora  os  roga,  os  anima,  os  assegura, 
Ora  lhes  põe  diante  a  Portugueza 
Honra,  no  mdr  perigo  mais  acôza. 


,^i4  ;4'#^Mi^iUi>  cKnçH  nu,  iiifc.  'S^4 


Náo  foi  de  totlo  om  vao,  e  t^oi  ^roví;ífc<i 
Deste  forte  varSo  o  grão  cuidado, 
l*orém  delle  náo  via  mai»  nutro  eôeíto 
G.ue  nao  te  vôf  díw  «eus  desíun  [íarud^í ; 
Porque  fteou  em  todos  inda  o  peito 
D''lium  tamanho  arreceio  acompauliado, 
Q.ue  por  não  se  deterem  mais  meia  hora, 
ISão  trazem  os  í;ai:ç.òes  r|uo  e{»ta\iío  fí5ra» 


Nitio  pòe.^X^aleSo  sua  eloquência, 

Beii  mando,  «eu  poder,  mu  valia, 

Mas  acha  no  temor  grá^i  rcfciíiteuíii^ 

ttutí  eiií^Q  a  ú  somente  obedecia  ;  ,j  /, 

E  vendo  que  nenhua  dilige^ieia  -.  ;'»| 

Lhe  ba&ta  u  dar  otteito  ao  qu»  queria, 

Pondo  fogo  apft  euix^eg  d^alli  se  parltí 

E  deixa  quttutfl  jíotjtí  o  baluarte,        '^mli:»»'^ 

I)it*to,  u  que  o  torça  então  n6ceM>ida.dti 
Depois  Imm  grave  damno  lhe  suceede. 
Porque  o  resplendor  mr-*mo  o  chiriílad** 
lílue  então  o  auefio  [ió  do  si  despede, 
Em  meip  da  tíerrudu  eàcuridado 
Com  c\iUi  n  noite  aos  mortaea  a  vil»tH  iui^iiv* 
Aos  imigog  mostrou  quão  earregadii 
\iú  a  barca^'a,  o  mal  apparelhadar 


Elte»,  a  quem  hum  ódio  antigo  incita 
A  destruição  do  imigo  Lusitano, 
Porque  o-  peito  brutal  onde  este  habita 
Jamais  naa  se  fartou  de  fazer  dano, 
Hua  e  outra  rez  levantão  a  alta  grita. 
Porque  com.  estas  mostras,  este  engano 
©""irem  traz  os  Christãos,  os  amedrontem. 
Ou  na  ida  os  embaracem,  e  os  affrontem. 


Não  lhes  sahío  em  vão  seu  pensamento» 
Antes  muito  melhor  do  que  euidavao, 
ô^ue  esta  falsa  apparencia  e  fingimento 
A  que  então  os  Christãos  credito  davão, 
E  aquella  grãa  tormenta  e  bravo  vent» 
íkue  (como  disse  atraz)  então  levavão 
Põe  a  barcaça  em  secco,  mas  sahíra 
Facilmente,  se  o  medo  o  consentira v 

XIX. 

Porém  a  gente  delia,  que  então  vinha 
I)'hura  temor  entranha vel  combatida, 
Nem  outra  salvação  cuidou  que  tinha 
Senão  só  n^hua  vil,  torpe  fugida ; 
Sem  tratar  do  que  a  sua  honra  convinh* 
<Com  deshonra  antes  quer  salvar  a  vida, 
Lança-se  com  grãa  pressa  toda  ao  Rio 
Deixa  seu  Capitão  s6  no  navio* 


«  pniMF.ino  cF.nco  dk  inv.  337 


E  com  tanta  presteza  as  ondas  fende 
Q.ue  em  breve  espaço  lá  na  Ilha  apparecp, 
Q.ue  como  entjío  salvar-se  so  pertende 
Contra  a  tormenta  e  vento  prevalece  : 
Outra  vez  o  Falcão  roga  e  reprehcnde. 
Mas  nenhum  o  ouve  então,  nem  lhe  obedece. 
De  baixeza  os  argue,  o  d^ira  cheio, 
Mas  tudo  então  vai  menos  que  o  receio. 


fi  vendo  cmfim  que  em  vao  têc  consumido 
Rogo,  mando,  brandura,  ou  aspereza, 
Por  salvar  hum  navio  ja  perdido 
Por  medo  de  sua  gente,  e  por  fraqueza, 
Parte  d^hum  furor  grande  combatido, 
Parte  d''hua  profunda,  alta  tristeza. 
Deixa  o  que  só  não  pode  hum  forte  peito 
Salvar,  e  lá  á  Cidade  vai  direito. 

XXII. 

Grua  áòr  trouxe,  e  grão  damno  isto  que  (iíço 
A  gente  que  o  Evangelho  Santo  estuda. 
Mas  ao  povo  infiel^  profano  e  imigo 
Deu  grão  contentamento,  e  grande  ajuda  : 
Porque  houve  então  dez  peças  (sem  perigo) 
D''artilharia  grossa,  e  da  miúda, 
E  armas,  e  cousas  desta  qualidade 
í>as  quaes  a  guerra  tèe  necessidade. 


Nem  rotii  cfllc  9f}gat)fJo  datrítio  ccswt 
A  Bnrtc  desta  noite  dcseitrada, 
Antea  II  pjit.otf  ja  vrndo  c^«e  se  nprn^?i.t 
3*arH  outra  ppfda  igual  a  esta  passada. 
í)  fliúmoso  Ccjrvaihn  com  grâa  pm^^sn 
Na  ftista  que  lhe  lá  fora  levada 
As  nrmai  «'mbarcou,  e  artilharia-, 
K  o  (j'ií»  PO  baluarte  mais  havia. 

T\ao  ífí  detém  alH  mais  hum  ínstartc 
}\iríe  logo,  e  á  Cidade  vai  direito, 
VcTÚir)  nem  elle  passa  tanto  árantc 
(Xuc  chegue  em  salvo  no  fim  com  este  feito i 
Porque  com  menos  causa,  c  semelhante 
Modoj  de  SCO  intento  vio  o  cíteito 
(iuc  Tira  antes  do  seu  o  grtío  Gon<;a1o, 
Som  bastar  diligencia  a  remedialo. 

Pcjrt*  ti!rceíra  perda  c  des%'Gntura 
Grão  proveito  os  imigos  aicançáraOj 
Os  fjiiaes  n^hua  «ó  noite,  triste  e  escura, 
K  funesta  nos  Christâos,  vi  que  cobrarão 
Cousa,  que  em  largo  tompo  por  ventura 
J'()dcrení  cobrar  dellcs  nao  cuidarão, 
K  o  pfior  hc  que  a  causa  deates  dano» 
V<>i  len^nr  do»  temido?  liUí^rtann^, 


o  y  R 1 M  r.  iv.à  c  r  rco  d  í.  » i  l  .  3  39 

XXVI. 

L^ipo  de  Sousa  aqui  se  mo  apresenta, 
Dtíile  quero  cantar,-  a  elle  quero  irme, 
K  nisto  que  diíer  meu  canto  intenta 
Bem  sei  que  folgarão  todos  d^ouvirrae. 
Parte-se  este  também,  e  a  grâa  tormenta 
IjÍi  da  parte  o  lançou  da  terra  firme, 
K  como  ja  a  maré  então  vazasse 
Forjado  foi  quo  cm  torra  alli  ficasse. 

XX^lL. 

Aqui  SC  cspcrU  laai^  o  varão  ibrte 
Q-ue  nuuca  arreoeoa  grandes  perigos, 
K  vendo  porque  via  a  adversa  sorte 
Causou  a  perdiyão  a  seus  amigos, 
|!  Vê  que  IKe  cumpre,  por  fugir  á  morte, 
[1  Ter  maia  tento  nos  seus  que  nos  imigos, 
l{  <3om  quanto  os  achou  sempre  acompanhados 
1  De  valerosos  peitos,  e  esforçados. 

K  para  eífcíto  disto  que  queria 

E  ter  da  sua  gente  segurança, 

Alaga  o  seu  batel,  que  s6  podia 

Dar-lhe  de  salvação  hCía  esperança  : 

E  como  alli  mais  largo  o  Rio  se  via 

Q.UC  em  todo  outro  logar  nenhum,  se  lança 

A  elle,  porque  8€  vê  desesperado 

De  se  poder  salvar  então  a  nado. 


.1fO 


OBn\S    nií    FRANCISCO    D  ANDRADE. 


XXIX. 


Em  meio  rrhwm  perigo  tal,  tão  certo 
Passâo  a  noite  dentro  no  navio, 
Aqni  se  mostra  o  Sousa  mais  esperto 
Com  quanto  de  temor  nào  he  vazio. 
Porém  tanto  que  á  terra  descuherto 
Foi  da  fresca  manhãa  o  raio  frio, 
N 'outro  perigo  mor  se  vio  mettido 
Glue  a  noite  lhe  teve  antes  escondido. 


Vio  que  o  Rio  por  onde  nave<^ára 
Gtuando  a  busca-lo  o  mar  de  fora  vinha, 
Agora  que  se  o  mar  ao  mar  tornara 
E  o  Rio  se  ficou  só  co^o  que  tinha. 
Hum  grande  espaço  delle  se  apartara 
Deixando-lhe  alli  a  morte  mais  visinha  ; 
Mas  em  quem  a  esperança  pôz  fraqueza 
A  desesperação  pôz  fortaleza. 

XYXI. 

Esta  era  aquella  gente  que  o  Coutinho 

Na  galeota  alli  tinha  comsigo, 

A  qual  vendo  que  agora  têo  visinho, 

Sem  pode-lo  atalhar,  hum  tal  perigo, 

E  que  nao  têe  então  outro  caminho 

Para  escapar  das  mãos  d'*hum  bravo  imigo 

Senão  o  que  lhe  abrir  a  sua  espada, 

A  qtie  antrs  era  fraca,  agora  he  ou«!,ida. 


o    FRIMSIRO    CURCO   DF.    BIV.  3»! 

XXXIl. 

Mas  bom  lhos  cnmprc  ter  ousado  osprito. 
Do  braço  forte  usar,  duro,  e  constante, 
Porque  em  vendo  o  infiel  povo  maldito 
Q.tie  nao  pode  o  navio  ir  mais  avante, 
Ajuntão  quasi  hum  numero  infinito 
E  em  derredor  o  cercão  n''hum  instante, 
Com  aquelle  furor  a  que  os  incita 
O  grande  ódio  que  nelles  sempre  habita. 

XXXIII. 

Sahc  ao  cerrado  corro,  aonde  o  rudo 

Povo  o  estava  esperando  alvoroçado, 

O  touro  inda  entào  manso,  inda  sisudo 

Q.ue  a  garrocha  o  não  tèe  estimulado^  ■ -^ 

Mas  tanto  que  o  punjjente  ferro  agudo  '  T 

Por  mil  partes  sentio,  cruel  e  irado 

Corre  e  salta  ligeiro,  bravo,  e  forte, 

Hum  derruba,  outro  fere,  a  outro  dá  a  morte  '. 

XXXIV. 

Tal  vejo  cada  hum  dos  valeroso*  >^1 

Peitos  que  a  galeota  agasalhava,  -^-^ 

Q/ue  vendo  huns  esquadrões  tão  copioso»  >*í 

Algum  tanto  o  perigo  arroceiava,  ^íT 

Mas  tanto  que  dos  ferros  sanguinosos  í'>-^ 

<>)meça  de  sentir  a  fúria  brava,  O 

De  tamanha  ira  e  esforço  fica  cheio  '^ 

i-ilue  fay.  temer  a  quem  lhe  pAz  receio,  '"^ 


342   OBRAS  DE  FRÀKCÍSCO  I>*ANOBApr,. 
XKXV. 

Move  logo  o  subtil  aço  luzente 
DMiua  parte  o  iwfiol  tíraço  Cambaio, 
D^outra  faz  com  a  usada  fúria  ardente 
Da  espingarda  sahir  o  subtil  raio, 
Tudo  para  que  áqueila  pouca  gente 
Portugueza  então  dê  morte  ou  desmaio  '^ 
E  isto  com  tantas  gritas,  taes  clamores 
GLue  os  Alcides  tremerão,  e  os  Heitores. 


A  Pottugueza  gente  que  de  usada 

A  estes  clamores,  ja  pouco  os  estima, 

E  CO ''o  grande  perigo  feita  ousada 

Cada  vez  mais  se  acende,  e  mais  se  anima, 

Também  com  arcabuE,  com  lança  e  espada 

Aquella  imiga  gente  assi  lastima, 

Q-ue  valer  menos  ve  com  sangue  e  mortes 

A  fraca  multidão,  que  os  poucos  fortes. 

Não  SC  apaga  com  isto  a  fúria  acesa 
Com  que  o  Cambaio  entrou  nesta  batalha, 
Porque  com  quanto  a  gente  Portugueza 
Do  seu  sangue  graa  copia  então  espalha, 
Comtudo  vér  o  fim  daquella  empresa 
Com  tamanho  furor  inda  trabalha, 
€lue  sem  ter  couta  ja  co'as  suas  vidas 
As  dos  Christãos  procura  ver  perdidas. 


o    PRIMP-IRO    CKRCO    DF.    DiW  .143 

Mas  com  quanto  furor  e  diligencia  "* 

Põem  agora  os  Cambaios  quasi  insanos. 

Com  dar  vidas  e  sangue  a  competência  í 

Por  vingar  este  novo  e  os  velhos  danos.  > 

Achão  poréfla  tão  dura  resistência 

No  pequeno  esquadrão  -dos  Lusitanos, 

Q.ue  quanto  este  furor  os  mais  inflama        [  nO 

Tanto  mais  do  seu  sangue  ae  derrama.  '    * 

XXXIX. 

Durou  esta  conteodá  furiosa  'míVÍ 

(Tão  desigual  na  gente  c  iia  ventura, 

Porque  muitos  da  imiça  e  numerosa  f 

A  região  descerão  stigia  €  escura. 

Mas  a  pouca  fiel  victoriosa 

Toda  era  salvo  ficou,  livre  e  segura) 

Até  que  o  mar  tornou  a  entrar  no  Kio 

E  fez  com  que  nadar  pôde  o  navio. 

Isto  seria  entilo  (se  í»5o  me  enleio) 
Bem  duas  lioras  antes  que  o  Sol  chegue 
Daquelle  arrebatado  curso  ao  meio 
Com  que  forçado  a  nona  Esphera  segue- 
Tanto  qtie  á  galeota  a  maré  veio. 
Com  quanto  a  grãa  tormenta  inda  a  persegue 
Dos  ventos,  quer  vencer  a  pertinácia 
Qoiem  dos  Mouros  venceo  a  contumácia. 


3>4-      OURAS    DF,    FR  XXCIiCÔ    l>*AXDRADr. 
XLl. 

O  Marinheiro  o^pierto  a  Volla  estorulf» 
Q.ue  sentindo  do  vento  a  grãa  braveza 
Com  tal  fiiria  o  navio  as  ondas  fende 
Une  á  Cidade  vai  ter  conn  grãa  presteza. 
O  Silveira  mil  graças  ao  Ceo  rende. 
Mil  louvores  á  invicta  fortaleza 
J)a  pouca  gente,  que  com  forte  braço 
A  tanto  resistio  tào  largo  espaço. 

XLU. 

Vendo  a  imiga  gente  de  Cambaia 
Km  salvo  os  (^hristãos  ir  tão  apartados, 
Deixando  cheio  o  Rio,  e  cheia  a  praia 
Dos  seus  corpos  som  almas  nao  vingado»». 
Ora  se  acende  mais,  ora  desmaia, 
Porém  todos  confust>s  e  pasmados 
De  fazerem  tão  poucos  tal  cstroço 
Em  tristeza  convertera  o  alvoroço. 

XLIII. 

Tornão-se  logo  ao  seu  alojamento 
tíluiçá  com  mais  temor  que  confiança. 
Menos  sentindo  a  perda  e  o  detrimento 
Q-ue  nao  tomarem  delle  grãa  vingança. 
Mas  como  não  consente  meu 'intento 
(iue  eu  faça  n^hum  logar  longa  tardança, 
Fiqu«;rn-se  estes  (rhorando  sua  tristeza 
tJlu«  eu  dVqui  lá  me  vou  Á  fortalev-a. 


o    PRIUIIIR  .    tF.RCO    DE    Dí  l" .  ."i  íi 

XLIV. 

Pouco  ha  qup  a  minha  historia  vos  dizia 
Q.ue  o  famoso  Silveira  antes  mandara 
Trazer  14  da  Ilha  twla  a  artilharia 
Q,ue  para  a  defender  nella  espalhara, 
{A.  qual  disse  tamheni  que  a  covardia 
Dos  Christãos  aos  imigos  entregara) 
Para  que  co"*©  favor  que  ella  lhe  désso 
Defender  a  Cidade  então  pudesse. 


Vendo-a  agora  em  pofler  da  imiga  gent«, 
E  não  somente  em  vao  ir  seu  conceito 
Mas  que  (uz  que  aos  imigos  se  accresccnte 
O  poder,  e  que  o  seu  tenha  defeito, 
Menos  medroso  assaz  que  descontente 
D''hua  gràa  cimfusão  se  lhe  enche  o  peito, 
Mil  cousas  differentes  imagina 
Mas  em  nenhCia  emâm  se  determina. 

XLVI. 

Determina  porém  aconselhar-se 

Glue  o  bom  conselho  as  menos  veies  erra, 

E  para  isto  poder  effeituar-se 

Co"*a  pressa  que  convém  naquella  guerra, 

N^hum  secreto  logar  fuz  ajuntar-se 

A  Fidalguia  toda  que  ha  na  terra, 

E  dos  outros  qualquer  de  quem  se  sabe 

Q<ue  aconselhar  naquillo  bem  lhe  cabe. 


.i4r>    canAS  jDK  ru\'<cis<;o  ii*A^'DnAr»F,. 


XLVlIí 

Perante  todos  úiz  que  elle  cráenava 

d,ue  fosse  na  Cidade  Tecolhida 

A  artilharia  toJa  qtje  \Á  lutava 

Poios  logares  da  Ilha  repartida^ 

Porqtie  poder  com  cUa  imaginava 

Ser  do  imigo  n  Cidade  defendida, 

E  da  Ilha  a  defensíio  (que  he  iSo  cirstosa) 

Nâo  8er  ja  necessária,  e  ser  damnosa. 

Porem  pcns  permíitio  o  Rei  qoe  mora  r  rfiitfi'/ 

Lá  na  Kterna  e  Sirprema  Claridade 

Q-ue  oóbraflSG  a  cruel  gente  que  adora 

Do  profano  Alcorão  a  falsidade 

A  artilharia  toda,  so  n^hua  hora, 

Com  que  então  defender  quer  a  Cidade, 

E  também  os  navios  que  a  trajtiâo, 

Agora  vissem  nisto  o  quo  fariao. 

XLtX» 

Com  pouca  altercação,  pouca  contenda 

Este  negocio  foi  averiguado. 

Porque  entre  elles  não  ha  quem  ai  pertoiída 

Que  o  bem  commum  sem  animo  damnado: 

Neíihum  approva  então  que  se  defenda 

A  Cidade,  mas  foi  determinado 

Por  todos,  que  8C  deixe  á  gente  imtga 

Sem  haver  hum  rd  qoe  Í!*to  contradiga. 


o   nniMElRO  CERCO  DT.  Bir 


Níiõ  move  hoje  nnrcdo  «quollcs  pcitofi 
'X\ifí  nijfiM  a  nipflmrT  morte  arrpcoárão, 
M;i8  pnr  justai  fasoes,  justo»  respeitos 
Defender  a  Cidade  reprovarão. 
Somente  nqnpiles  mo  illnstrcs  feítoi, 
Aquelles  scíi  fiuthor  sómontc?  honráran 
fitie  ft  rasâo  c  a  priidenoia  ice  por  gaia» 
\no  hda  temorana  vtilentia. 


11. 

A  rasao  disto  fot,  vôr  «jiie  eomrinha  "Tf^ff  ?í+*»í>v^ 

Q-uc  Já  da  fortaleM  se  tirasse 

í*artc  da  artilharia  qwG  em  si  tinha 

Com  q«ie  a  Cidade  cntSo  se  sustentasse  ", 

A  nu;\\  como  era  potica,  e  mal  »u»tinha 

A  fortaleza  »d,  se  se  espalhasse 

K  por  ambas  as  parte»  se  reparte 

Kica  8cm  defensão  hfia  e  outra  parte, 

ttl. 

Nía^se  «a  Cidade  juntamente 

l'ara  se  defender  tamanho  espaço, 

K  que  era  alli  tao  pouca  a  Christâa  gelitr 

E  provida  tâo  mal  de  corpos  d'aço 

Clue  poderia  ser  mui  levemente 

Por  mais  forte  que  tenha  e  duro  o  braço 

(lue  desta  defensão  causa  naBcewe 

Por  onde  a  fiirtale^a  se  perdeis». 


5t8    OBRAS  DF,  FftÀ.viisco  h' asduxut.. 

Liir. 

Estas  o  outras  rasões  que  so  aqui  derao 
A  que  outras  em  contrario  nâo  se  achavão. 
Tanto  os  peitos  então  satisfizerao 
De  todos  os  que  alli  juntos  estavao, 
Glue  todos  a  hua  voz  juntos  dissorao 
GLue  a  defensão  de  todo  reprovavao 
Da  Cidade,  entendendo  que  este  feito 
Mil  graves  damnos  traz,  nenhum  proveito. 


Nesta  hora  sendo  ja  toda  a  profana 
Gente  lá  dentro  na  Ilha  recolhida, 
Agora  que  não  he  da  JLusitana 
Gente,  como  pouco  antes,  defendida, 
Sahem  de  lá  (se  a  vista  não  me  engana) 
De  cavallo  três  mil,  gente  escolhida, 
E  dos  que  vem  a  pé  grãa  quantidade, 
E  vão  dar  vista  junto  da  Cidade. 

Vendo  a  gente  infiel  que  nella  mora 
Q>uão  perto  estes  alli  lhe  apparecião, 
Por  mil  partes  bandeiras  logo  arvora 
Q,ue  a  profana  divisa  descubrião. 
Dando  miiitos  signaes  aos  que  estão  fora 
Do  que  dentro  seus  peitos  escondião, 
GLue  o  peito  alvoroçado,  e  mal  qnieto 
Náo  sabe  o  seu  conceito  ter  secreto. 


X.VI. 

Gerou-se-lhft  d'aqui  tal  ufania  « 

Que  causarão  na  terra  alguns  insultos, 
Virão-se  em  muitas  partes  neste  dia 
Ajuntamentos  grandes  e  tumultos, 
©""onde  bem  claramente  se  entendia 
ô.ue  em  hábitos  pacíficos  e  occultos 
Em  si  a  Cidade  então  grãa  cópia  encerra 
De  gente  imiga  usada  a  andar  em  guerra  < 

LVII. 

E  porque  ja  fazia  fundamento  >  <'íí  íí  (/'    .,;  "i 
De  deixar  a  Cidade  o  grão  Silveira, 
Manda  alguns  que  co"'a  força  do  elemento 
Q,ue  nas  veias  está  da  pederneira, 
Com  grande  brevidade,  e  com  grão  tento 
II uns  navios  que  estão  lá  na  ribeira, 
Q.UC  da  chumbada  faia  são  Icvadot^ 
Deixassem  consumidos  e  gastados. 


E  manda  que  de  íá  se  não  tornassem 
Até  que  hua  assaz  grande  quantidade 
DVnxofre  e  de  salitre  não  queimassem 
Q.ue  n^hum  dos  armazéns  ha  da  Cidade^ 
Matérias  infernaes,  que  se  faltassem 
Faltaria  também  a  crueldade 
Da  pólvora  infernal  ruiu  adora 
Com  que  a  morte-  se  fez  tão  grãa  sciíhora. 


Partera-se  logo  aquelles  que  então  tinha 
Mandado  o  Capitgo  para  esto  feito, 
GLuem  erão  não  descobre  a  historia  minha. 
Porque  os  nâo  conheceo,  porém  do  efteitu 
Se  verá  que  não  tèe  quanto  convizihii 
Constante,  valeroso  e  forte  peito 
Para  isto  que  lhes  foi  encouimendado, 
(aluai  foi  dos  Portugueses  sempre  usado, 

Chegao  lá  ao  logar  onde  nppareceai 
Os  navios  ao  fogo  condemnados, 
Art«rficio8  do  fogo  não  fallecem 
Mas  fallecem  então  peitos  ousados ; 
Estes  a  seu  temor  mais  obedecem 
Glue  ao  que  por  mil  rasões  fcío  ohrigado5íj 
Faz-lhes  isto  desejar  com  graa  prestcíiu. 
Tornarem- BC  outra  vez  á  fortaleza. 

Deste  tSo  vil  desejo  combatido» 
Tão  mal  neste  negocio  se  ordenarão, 
Glue  com  quanto  assaz  vao  apercebido* 
Para  isto  que  tão  mal  efleituárao, 
Nem  os  seccos  navios  bem  ardidos 
Nem  o  enxofre  e  o  Salitre  então  ikárão. 
Sendo  matérias  todas  em  que  a  ardente 
íJhamma,  faz  seu  ofticio  facihuentc. 


LKII. 

A  fortaleia  emfim  se  recolherão 

£stes^  que  vida  mais  que  honra  queriSo^ 

Onde  o  Silveira  e  os  mais  os  receberão 

Co^o  ga&alhàdo  que  elies  merecião.  ' 

Os  navios  com  tudo  o  mais  vierão 

Taes  em  mãos  dos  imigos,  que  podiao 

Inda  dcUes  assaz  aproveitar-se.  i 

Mas  meu  canto  ao  Silveir»  qi^or  yoltar-«C4^^ 

ixni. 

Toma  este  varSo  forte  om  companhia 
Dos  que  comsicço  têe  cincoenta  pares, 
Entra  pola  Cidade,  e  onde  se  via  > 

Ajuntamento  algum  (que  he  em  mil  logawfc,! 
E  os  mais  nas  p^irtes  onde  armas  havia)  :'  ri  > 
Huns  faí  pola  garganta  erguer  noa  ares,.  roA 
D^outros  as  miseráveis  almas  lança  r.   ''* 

Polas  portas  quo  lhes  abro  a  tesa  lan^>      .-.  i 

LXIV» 

Mas  nem  erguido  no  ar  receho  a  morto,,  p  O 
Nem  fof  então  com  lança  trespassado,         tw'í 
Sen3o  somente  aquelle  a  quem  a  sorte 
Adversa  permittio  que  fosse  achado 
Em  habito  de  guerra,  igual  ao  fort© 
Esprito  de  que  estava  acojnpanhado  ; 
Maíj  mais  valera  então  tê-lo  covarde 
€tu«  rendido  quiçá  fora  mnn  tanlo, 


âbâ      «iáUAS  av.  rAAHCISC«   S^AUJOItADE. 

Manda  também  Silveira  que  dos  vivo» 

Gluo  sua  habitação  alli  tivessem 

Sós  quatro  Mercadores  vão  captivos 

Da  terra  os  priíicipaes,  nào  porque  dessem 

Estes  algCías  causas  ou  motivos 

A  algum  ajuntamento,  ou  o  soubessem, 

Mas  porque  succeder  males  podião 

Q.ué  com  elles  quiçá  se  curarião. 

ixvi. 

Acabado  isto  assi  como  aqui  digo 

A  fortaleza  far  recolhimento 

O  Silveira  co'os  seus,  sem  que  perigo 

lihc  succedesse  algum,  ou  detrimento. 

Os  Mercadores  lá  leva  comsigo  ^  ^  .  ^>«^ 

Aos  quaes  mandou  fazer  bom  tratamento,;  ,jfj[ 

E  usando  emfim  com  elles  piedade 

Depois  do  cerco  os  pôz  em  liberdade. 

LXVII. 

O  que  daquelle  dia  inda  faltava 
Por  passar,  se  gastou  quietamente, 
Porém  tanto  que  a  luz  que  alumiava 
A  terra,  »e  escondeo  lá  no  Oocidente, 
Logo  a  gente  infiel  que  dentro  estava 
Na  Cidade,  áqueFoutra  infiel  gente 
Q.UC  estava  fora  delia  agasalhada 
I>í*cubrio  que  clk  estava  deíípejada. 


«    miMKIKU    CtRCK    »]í    »IV. 


LXVlil. 


3^3 


Com  alvoroço  jçrauíle,  e  com  çrSo  goàf« 

Este  recado  então  foi  recebido 

Do  Cambaio  esquadrão,  porque  disposta 

Cuida  que  teo  o  imigo  a  ser  vencido. 

Logo  para  a  Cidade  muda  o  posto, 

Onde  ioi  dos  de  dentro  recolhido 

Com  cousas  que  á  tristeza  são  coiítrarièiH, 

Tanger,  eacitos,  folia»,  lumiiiarixs.  >ui^ 


E  porque  húa  sacrílega  e  maldita 
Seita,  de  que  elles  são  adoradores, 
A  louvarem  Mafoma  os  move  e  incita. 
Por  serem  tão  sem  dam  no  vencedores, 
Yi»itão  ora  liua,  ora  outra  Mesquita, 
Onde  lhes  dão  por  isto  mil  louvores», 
S  nelles  lambem  dura  este  exercicio 
Ate  que  torna  o  Sol  u  seu  ofiicio, 

LXX. 

Tanto  que  estes  louvores  acnhárao 
Em  damno  dos  Christãos  logo  entenderão, 
íi-uo  este  acto  pí)r  tao  pio  então  julgarão 
<>omo  est^outro  que  pouco  antes  fiíerãc*. 
liogo  alguas  bombardas  assentarão 
Daquellas  que  os  Christãos  antes  perderão^ 
Junto  d''himi  cães  que  estava  edificsdo 
Lá  onde  o  Mandovim  he  nomeado. 


3â4      OBJtAS  BE  FRANeiSCO  d'aHDRA&£« 

Fronteiro  ao  baluarte  que  defende 
O  mar,  este  logar  posto  se  via, 
Porém  aa  baluarte  não  pertende 
Damnar  agora  aquella  artilharia ; 
Somente  seu  furor  então  acende 
Lá  contra  a  embarcação  que  defendia 
liopo  de  Sousa,  e  alguas  fustazinhas 
€tue  á  fortaleza  então  erão  vizinbas. 


E  em  se  mostrando  o  Sol  lá  no  Horizonte 
O  Cambaio  furor  mais  não  aguarda, 
E  a  damno  dos  Christãos  que  tee  defronte 
liogo  o  aceso  murrão  chega  á  bombarda  •, 
Sahe  o  estrondo,  retumba  o  valle  e  o  montej 
O  pelouro  traz  elle  pouco  tarda,  • ' 

Q»ue  contra  as  fustas  leva  seu  caminho 
E  contra  a  galeota  do  Coutinho  é 

£XXIII. 

Não  foi  de  todo  em  vão  e  sem  proveito 
Desta  gente  infiel  o  imigo  intento, 
Glue  o  pelouro  cruel  vai  tão  direito 
Q^ue  duas  fustas  manda  ao  fundo  assento. 
Recebe  a  galeota  neste  feito 
Alguns  tiros,  com  pouco  detrimento. 
Mas  nos  que  são  nas  fustas  companheiros 
Perdem  a  vida  alguns  dos  Marinheiras» 


^   rRtMKiRO  CBRCO  fiS  DtV.  3^ 

LXXIV. 

Passado  este  combate  não  repousa 
O  dia  inteiro  a  gente  Portugueza^ 
Mas  também  se  dispõe  a  fazer  cousa 
Q.ue  aos  imigos  fará  pôr-se  em  defeza. 
O  Capitão  mandou  Gaspar  de  Sousa^ 
Nobre  varão^  a  quem  a  mor  em  preza 
Se  pode  encomraendar  com  confiança, 
Q.ue  ponha  a  sua  gente  em  ordenança^ 


E  apoz  alguns  Christãos  faça  a  jornada 
Glue  tèe  de  seu  favor  necessidade, 
Os  quaes  tendo  antes  fora  sua  morada 
A  pressa  de  se  vir,  e  a  brevidade 
Fez  que  de  cada  hum  fosse  deixada 
Lá  fora,  essa  pobreza  e  pouquidade 
De  que  se  sustentava,  e  agora  estuda 
Torna4a  a  recolher  com  sua  ajuda. 

LXxyu 

Parte  logo  o  varão  forte  e  animoso 
E  aos  roubados  Christãos  leva  comsigo^ 
A  muitos  inda  então  foi  proveitoso 
O  seu  favor,  porém  não  sem  perigo  ^ 
Porque  como  depressa,  cubiçoso 
Polas  casas  andasse  ja  o  imigo. 
Alguns  Sousa  matou,  e  da  sua  gente 
Poucos  feridos  vão,  morre  hum  somente. 


3:>6    «HRjis  um  v9.kifeiê€o  d^a^ídr.íde 

rxjtvii. 

Mitó  como  o  tempo  ja  vejo  ir  chegíindo 
Do  cerco,  que  iia  mão  me  poz  a  penfr^ 
íiá  aonde  o  Portuguez  nâo  descansando, 
<Mm  perda  dos  imijços  não  pequena, 
O  Beu  grão  nome  foi  eterniíHindo  :; 
Descnbrir-vos  também  meu  canlo  ordena 
O  logar  em  que  o  seu  pendão  arvora 
O  que  honra  a  Mafoma,  e  o  que  a  Ghristo  ador*. 

LXXVIII. 

Aquelle  Italiano  renegado 

44.ue  os  Caínbaios  moveo  a  esta  crae^T, 

De  quom  atraz  ja  tenho  declarado 

i)  nome,  a  pátria,  a  vida,  a  naturcKa, 

l/íi  no  logar  que  disae  ser  chamado 

1)  Mandovim,  que  he  junto  á  fortaleaa, 

Kntão  da  sua  estancia  póz  o  assento 

K  do  seu  eíquadrâo  o  alojamento. 

LXXIX. 

AlucíTio,  que  o  poder  c  o  mando  tinh» 
ííeral  em  todo  o  campo,  lá  se  encerra 
Nas  casas  que  antes  íbrSo  da  Rainha 
tlue  o  misero  Baudur  lançou  na  terra ; 
*^ui;  estão  n'Iium  logar  alto,  qual  convinha 
A  sua  antiga  idade,  a  quem  a  guerra   ' 
fJâutí  sempre  a  inquietações  está  sujeiti*) 
He  mui  conveniente  e  mal  acceita. 


•  pniMF.ino  iciteo  »■  ivir.  ^^7 

O  Silveira  entre  tanto  nSo  repou%a, 
Também  stias  estancias  lá  reparte  \ 
A  Gonçalo  Falcão,  o  qual  tudo  ousa^ 
De  Sâo  Thomé  encommenda  o  baluarte; 
D"'outro  que  he  mais  pequeno,  ao  forte  Sousa 
Cujo  nome  he  Gaspar,  e  qtie  na  parte 
Está  posto,  onde  o  canfo  está  do  Rio 
Deu  a  Capitania,  e  o  Senhorio. 

LXXXI. 

Nno  reparte  isto  assi,  ptirque  arreceia 
Q.ue  a  gente  imiga  que  alli  tec  presente 
De  tanto  esforço  e  esprito  seja  cheia 
<Aue  combater  a  fortaleza  tente  \ 
Mas  porque  estes  logares  que  nomeia 
Kntào  para  guardar  á  sua  gente  >  J*I 

liho  dêem  em  que  se  occupe,  c  em  que  ja  entcnfhí, 
K  assi  mais  se  alvoroce,  e  mais  se  acenda. 

LXXXll. 

Aquolle  illustre  Lopo  e  valcroso 

Que  das  alcunhas  tèe  8o«»sa  a  primeira, 

Na  occupaçâo  geral  nSo  he  ocioso 

Também  lhe  dá  em  que  entenda  o  grão  Silveira, 

Porque  então  hum  negocio  perigoso 

Com  a  gente  que  segue  a  stia  bandeira, 

Em  que  se  ha  d'*occupar,  lhe  poe  diante 

A?«iaz  aos  Portugueses  impt)rtante. 


ffaS      OBRAS  Dft   &RANGÍSCO  D^ANOiRÀDtC» 
LXXXlIl» 

Manda  qiie  qtiantas  Vezes  os  douradoa 
Raios  do  hahitadur  da  quarta  Esphera 
Vir  nos  cumes  dos  montes  espalhados 
Q-ue  escondidos  no  mar  antes  tivera) 
Do  Cambaio  furor  sejSo  guardados 
Por  elle  aquellesj  cujo  costume  era 
Da  sede  defender  huns  peitos  fortes 
Poios  quaes  defendidos  são  das  morteSi 

IXXXiVi 

Mas  como  esta  com m um  necessidade 
Tèe  remédio  n'huns  poços  que  lá  estavão 
Pegados  com  as  casas  da  Cidade, 
E  aquelles  qUc  então  a  agua  acarretavao 
8ào  moçoS)  e  mulheres,  onde  a  idade 
E  o  medo  natural  fraqueza  davão  ^ 
Perigoso  logar,  gente  covarde, 
Forç^ido  lhe  he  que  leve  quem  a  guarde. 

tXXXVi. 

Nem  he  si>  desta  inhabil  getite  o  officio 
A  de  guerra  fa?.er  com  que  agua  tenha, 
Mas  juntamente  tôe  por  exercício 
Daqueilas  mesinas  casas  trazer  lenha  ^ 
As  quaes  com  militar,  douto  arteficio 
Se  mandão  derrubar^,  porque  não  venha 
Hum  tempo  em  que  um  ChristSos  sejão  damnosas 
Por  ratarem  em  partt  ;^  p<ri^o.««ns. 


<y  vftiMstno  CBHCo  de  div.         3o9 

LXXXVI* 

Pt)réin  com  quanto  assola,  e  a  tefra  deita 
Estas  casas  a  gente  Portuguesa, 
Inda  o  imigo  assaz  delias  se  aproveita 
Iriuando  a  fúria  depois  foi  mais  aceza. 
O  esforçado  varSo  contente  acceita 
Aquella,  inda  que  dura,  honrada  empreza, 
Sahe  cada  dia  ao  campo,  e  com  seu  braço 
Far.  agua  e  lenhrv  sahir  sem  embaraço. 

LXXXVIl» 

Neste  exetcido  tai  continuando 

Com  perda  dos  imigos,  sem  seu  dano, 

Porém  inda  até  então  accrescentando 

liem  pouca  g;loria  ao  nome  Lusitano  ^ 

Até  que  aquelle  dia  chega,  quando 

A  vigília  a  Igreja  traz  cada  ano 

Do  dia  em  que  a  fectmda  Virgem  Santa 

Ao  Reino  de  seu  Filho  se  levatita.      iftt-.í;  «O 

LXXXVÍII. 

Sahe  neste  dia  o  Sousa  a  dar  ajnda 
íComo  em  todos  os  outros  costumava) 
A  gente  popular,  fraca  e  miúda 
Q.ue  d''agua  e  lenha  o  forte  sustentava  '^ 
E  como  assi  no  mal  do  imigo  estuda 
Como  tio  bem  daqoelles  que  guaidava, 
Vendo  bom  tempo  então  para  este  intentw^^^ 
Ntto  quer  delle  perder  hum  so  momento.    '<^ 


3âO      OBRAS   Dfe  FRANCISCO  D^ANARADf:. 
LXXXIX, 

VA  que  algQa  daquella  gente  imiga 

Qne  de  Cojaçofar  segue  o  estandarte, 

Solta,  e  sem  Capitão  a  que  então  siga, 

Sem  ordem,  d'*hua  vai  para  outra  parte  ^ 

Trava  logo  com  ella  áspera  liriga. 

Com  fúria  que  temor  puzera  em  Marte  ij 

Muitos  delles  sem  vida  alli  ficarão, 

£  08  mais  em  sangue  envoltos,  se  salvarão. 


Os  tenros  pintainhos  que  apartados 

Acaso  estão  da  mãe,  picando  a  terra, 

Sendo  da  imiga  ave  salteados 

Glue  hum  deixa  ensanguentado,  n^outroafTerra, 

Os  que  esoapão  não  vão  tão  apressados 

Até  que  a  mãe  nas  azas  os  encerra, 

Como  estes  vão  em  quanto  os  não  recolhem 

Os  arraiaes  dos  seus,  aonde  se  acolhem. 

xci. 

Porém  depois  que  lá  dentro  se  mettem 

Trabalhão  desculpar  sua  fraqueza, 

O  desmando  hua  vez  e  outra  repettem 

Dos  que  sahírão  lá  da  fortaleza  : 

Hua  victoria  certa  aos  seus  promottem 

8e  os  Christãos  vão  buscar  com  grãa  presteza, 

Q,ue  o  numero  pequeno,  e  o  grão  desmando 

O*»  começão  ja  «rir  desbaratando. 


o   PlRIMEIUO  CERCO  DE  4)IU.  3^í 


À  esta  nova  se  abala  o  campo  inteiro, 
D^^hua  parte  para  outra  a  gente  tece, 
E  com  tal  fúria  sahe,  qual  o  ribeiro 
Traz,  que  no  inverno  lá  do  monte  dece  ^ 
E  como  nenhum  quer  ser  derradeiro 
Em  tanta  quantidade  a  gente  crece, 
0,ue  quem  nella  quizera  pôr  o  tento 
Bem  vira  que  era  quatro  vezes  cento^. 


Este  grosso  esquadrão  se  vai  direito 
Ao  pequeno  esquadrão  do  Sousa  imigo^ 
GLue  para  este  importante  c  duro  feito 
Q.uatorze  homens  sós  têe  então  comsigo  ^ 
Mas  sabendo  que  têe  tão  forte  peito 
Q-ue  não  duvidarão  o  mor  perigo, 
Não  somente  então  trata  d"* espera-los 
Mas  presume  também  desbarata-los, 

xciv. 

\  (■  Sousa  então  se  via 

Ji^i:  eus  acompanhado, 

£i  igo  requeria 

■*"   ^  grosso  e  bem  armado-, 

Í-"  companhia 

y'-"  ';     i    ia  espalhado 

Aa  Cidaue,  po;rque  «segura  venha 
A  gente  qu^  at  u  i  delia  traz  e  lenha. 

11 


'^(i2    OURAS  DE  ^nA^■CIsc•o  d\'^ndkadk. 

xcv. 

Ma»  como  aquella  rua  de  que  tinha 
Elle  a  guarda,  era  estreita  e  defensável j 
K  vê  que  tèe  os  seus  quanto  convinha 
Ousado  coração,  braço  incansável, 
A  gente  de  Cambaia,  que  visinha 
.7 a  alli  têe  (com  quanto  era  innumeravel) 
í^uer  com«)etter,  que  ja  mal  se  defende 
Do  grão  furor  que  dentro  o  move  e  acende. 


Nesta  sua  tSo  alta  confiança 
Mais  ousiida  quiçá  do  necessário, 
O  conselho  fez  pòr  qualquer  tardança 
1^'lium,  cujo  voto  disto  era  contrario, 
Sousa  vendo  que  nunca  gloria  alcança 
tí.uem  segue  hum  apetite  temerário 
K  dá  ao  siso  as  costas,  e  á  prudência, 
Deu  então  ao  conselho  obediência, 

XCVII. 

O  que  também  então  fez  ser  seguido 
O  voto  do  que  atraz  vos  tenho  dito 
Foi  ter-se  por  mil  provas  conheci'  i  ' 
V<eu  siso,  seu  valor,  seu  grande  (ir^     •- 
Ouem  delle  quer  saber  nome  e  ap'''  ' 
}•]  o  que  disse,  lá  avante  o  têe  escritb, 
]'j  lá  achareis  também  disto  o  smccésso, 
Agora  perdoai  se  hum  pouco  ccísso. 


o  pniliflsiRo 

CERCO  DE  DIU. 


CJLM  JTO  XII, 


Lojjn  de  Sousa  CoutinJio  desharata  os  imtgos, 
A  armada  dos  Turcos  chega  a  Diu.  Dá-sc 
a  rasão  porque  esta  armada  veio  á  índia* 
K  contão-se  algumas  cousas  particulares  que 
niccedêrão  no  meio  de  sua  navegarão» 


\^iiamanhos  feitos  ja,  quão  necessarioSj 
K  da  victoria  assaz  certeficados, 
VoT  vãa  gloria  de  peitos  temerários 
3ISvt.xt.  de  todo  ser  desbaratados. 
Q,iiorcr  ^      houve  ja  que  dos  contrários 
l*oraò  suoerbamente  despresados, 
A  que  o  conselho  deu  não  só  victoria 
Mas  quasi  sem  seu  damno  eterna  gloria. 


i 


Claramente  mostrou  a  experiência 
Q.UC  sempre  têe  mais  prósperos  e (feitos 
Os  poUcos  que  se  v3o  traz  a  prudência 
Q.ue  os  muitos  que  á  soberba  vao  sujeitos: 
D''onde  se  mostra  com  clara  apparencia 
Q-ue  a  prudência  vai  mais  que  os  fortes  peitos, 
E  que  he  mais  para  as  guerras  necessária 
Q.UC  a  multidão  com  guia  temerária. 


Disse  atraz  que  Imm  varão  forte  e  prudente 
Hum  pouco  fez  deter  ò  SouSa  ousado, 
Glue  para  commetter  a  imiga  gente 
De  todo  estava  ja  determinado  : 
Se  quereis  conhece-lo  claramente 
Sabei  que  o  seu  nome  he  Simão  Furtado, 
O  qual  nos  grandes  feitos  sempre  alcança 
Grãa  gloria  co''o  conselho  e  com  a' lança. 

IV. 

Êsfe  algum  tanto  o  Sousa  fez  co^a  sua 
Pequena  companhia  enlão  deter-se, 
Até  que  dos  imigos  cheia  a  rua 
Das  suas  armas  possao  mal  valer-se  : 
E  possivel  será  que  elle  os  destrua 
Por  quão  mal  assi  podem  defender-se, 
Glue  grande  multidão  em  campo  estreito 
Aos  muitos  damno,  aos  poucos  he  proveito. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  36í 

V. 

A{)prGva  o  Sousa,  e  acceita  este  conselho. 
Dá  por  elle  ao  Furtado  mil  louvores  : 
E  Vendo  que  assi  têe  grande  apparelho 
Para  os  seus  poucos  serem  vencedores, 
E  fazerem,  sem  damno,  o  chão  vermelho 
Co''o  sangue  dos  Cambaios  cercadores, 
Manda  que  pare  a  sua  companhia, 
Obedece  ao  conselho  a  valentia. 


Refreando  dest/arte  o  forte  braço  ,-*  -  ♦■»*,.ff 

Aceso  então  d''e«<prito  mais  que  humano, 
A  gente  Cliristãa  pára  algum  espaço 
l*ara  vencer  depois  com  njenos  dano, 
Até  que  de  Cambaia  o  luzente  aço 
Faminto  assaz  do  sangue  Lusitano, 
Mostrando  ja  por  obra  esta  vontade 
Lhe  põe  de  combater  necessidade. 

VII. 

Vendo  a  gente  iíifiel  que  a  Portugueza 
Do  h)gar  em  que  está  não  passa  avante, 
Como  tanto  então  vem  em  ódio  aceza, 
Q,uanto  brava,  feroz,  quanto  arrogante, 
Gluerendo  ja  dar  fim  áqtiella  empreza 
A  que  cuidava  dá-lo  nMiuni  instante, 
Alguns  delles  subindo-se  aos  telhados 
D'alli  vão  commctter  os  baptisados. 


366      OBRAS   DB  FRANCISCO  B^ ANDRADE. 
VIII. 

Ja  agora  o  nobre  Sousa  bem  entende 

Q-ue  a  mor  prudência  heusar  d^espada  e  lança^ 

E  que  quanto  em  mor  fúria  então  se  acende 

Da  victoria  terá  mor  esperança  : 

E  vê  que  se  ja  então  se  não  defende 

E  naquelle  logar  faz  mais  tardança, 

Os  poucos  que  alli  têe  menos  seriào 

E  aos  imigos  peior  resistirião. 

IX. 

Desta  necessidade  estimulado 
E  mais  do  natural  esprito  duro, 
Co^os  poucos  de  que  vai  acompanhado 
Com  cujo  esforço  se  ha  por  bem  seguro, 
Co^o  furor  com  que  Boreas  bravo  e  irado 
Encontra  o  novo  fructo,  mal  maduro 
Glue  cahe  da  planta,  e  fica  murcho  em  terra^ 
Os  imigos  commette  que  a  rua  encerra. 


Q^ual  com  a  tesa  lança  então  daquella 
Gente  infiel  o  imigo  sangue  espalha, 
dual  sobola  cabeça  ergue  a  rodella 
E  lá  por  baixo  fende,  fura  e  talha  : 
Ja  dUiQa  mortal  cor,  triste  e  amarella 
Se  vê  cuberta  aquella  vil  canalha, 
Gl^ue  correr  do  seu  sangue  vê  infinito 
E  os  Portuguezes  sãos  com  novo  esprito. 


o   PRIMEIRO   CEllCO   DE   DIU.  367 


Porque  como  a  rua  onde  pelejavao 
Não  soffre  multidão  tão  copiosa, 
A  mesma  multidão,  em  que  escoravão 
Depois  lhes  veio  a  ser  a  mais  damnosa  : 
E  como  os  Portuguezes  bem  bastavão 
Para  outra  empresa  mor,  mais  perigosa, 
Do  esforço  e  do  logar  favorecidos 
Pouco  he  se  seus  imigos  são  vencidos. 


Breve  espaço  durou  esta  contenda 
Entre  estes  esquadrões  em  tudo  vários, 
Não  ha  entre  os  infleis  quem  ja  portenda 
Mais  que  escapar  das  mãos  de  seus  contrários 
Ja  nenhum  delles  ha  qtie  se  defenda. 
Os  que  não  fogem  se  hão  por  temerários, 
Porque  todo  o  que  quiz  mostrar-se  forte 
Virão  entregue  em  mãos  da  cruel  morte. 


Em  mãos  da  cruel  morte  entregue  virão 
Todo  o  que  quiz  mostrar  rosto  direito, 
Por  onde  com  mor  medo  se  retirão 
Do  que  trouxerão  antes  forte  peito. 
Oh  quantas  vezes  chorão  e  suspirão 
Porque  aquelle  logar  he  tão  estreito, 
Pois  quanto  lhes  dilata  esta  fugida 
Tanto  cresce  o  perigo  de  sua  vida. 


3(>8      OBRAS    DE    FRANCISCO    D^AXDRADE. 


Mas  como  o  grão  temor,  o  grão  perigo 
As  forças  corporaes  sempre  accrescenta, 
Os  que  mais  perto  estão  do  ferro  imigo 
Por  poderem  fugir  a  esta  tormenta, 
Naquella  estreita  rua,  que  atraz  digo, 
ôue  ante  os  olhos  a  morte  Ih 'apresenta, 
Empuxão  com  tal  forea  os  dianteiros 
Glue  os  fazem  dar  caminho  aos  derradeiros. 


Sabida  ao  campo  largo  a  fraca  gente 
Com  furor  se  defende  impetuoso, 
Não  co'a  força  cruel  do  aço  luzente 
Meneado  do  braço  valeroso  ^ 
Os  pés  a  defensão  fazem  síímente, 
O  mais  ligeiro  se  ha  por  mais  ditoso, 
Glue  em  meio  d''bija  morte  descuberta 
Este  cuida  que  a  vida  tèe  mais  certa. 

XVI. 

Empresta-lhe  então  forças  a  fraqueza 
Vendo  que  está  sua  vida  em  ir  avante, 
E  assi  corre  com  tanta  ligeire/a 
Q.UO  alcançar  o  navio  era  bastante 
Glue  recolhe  na  vella  a  grãa  braveza 
Ou  d'Aquilo,  ou  de  Noto,  ou  de  Levante  ^ 
O  Marinheiro  a  rija  escota  encolhe, 
Divide  a  proa  o  mar,  e  algum  recolhe. 


o    PRIMEIRO  CERCO  DE    DIU.  369 


Mas  nem  este  veloz  curso  ligeiro 
Que  pudera  deixar  atraz  o  \eiito 
Os  levou  tanto  em  salvo,  que  primeiro 
A  trinta  do  Cambaio  ajuntamento 
Não  mostrasse  alli  o  dia  derradeiro 
O  braço  Portiigiiez  sanguinolento, 
E  outros  tantos  abrisse  a  dura  espada 
Por  mil  partes  ao  sangue  larga  estrada. 


Nao  succede  aos  Christaos  igual  o  dano 
Gtue  em  tudo  o  mais  têe  grãa  desigualdade;,  * 
Q.ue  o  Sousa,  do  subtil  ferro  profano 
Na  perna  esquerda  sente  a  crueldade  ^ 
Hum  Pagem  seu,  do  raio  soberano 
Sd  n'hiim  olho  recebe  a  claridade^ 
A  outro  homem  bua  perna  nesta  afíronta 
Também  penetra  do  aço  a  subtil  ponta. 

XIX. 

Com  este  pouco  custo  esta  gente  houve 
Hua  rara  victoria  nunca  ouvida. 
Nao  queiras,  gente  minha,  que  eu  te  louve^- 
Louve-te  a  tua  espada  nao  vencida.  ' 

Tanto  que  o  costtimado  signal  ouve 
Sousa,  que  a  recolher-se  ja  o  convida, 
Deixa  todo  o  furor,  deixa  toda  a  ira, 
Co%)s  seus  á  fortaleza  se  rctiVvi. 


370      OBUAS  D£    FKANCISCO    d''aNDRAD£. 


Onde  com  grão  prazer,  grande  alegria, 
Com  mil  graças  ao  Ceo,  a  elles  louvores, 
O  Silveira  co"*a  sua  companhia 
Recebe  os  gloriosos  vencedores : 
Os  feridos  entrega  á  cirurgia, 
Os  sãos  a  outros  trabalhos  não  menores, 
E  tanto  agrada  ao  são  trabalho  novo 
Q-uanto  ao  ferido  pannos,  óleos,  ovo. 

XXI. 

Em  quanto  a  enferma  perna  ao  Sousa  ousado 
Continuar  o  seu  officio  imppde, 
(Dor,  de  que  então  se  vê  mais  lastimado 
Glue  da  outra  que  da  chaga  lhe  procede) 
Ora  o  Falcão,  Gonçalo  nomeado 
Ora  Caspar  de  Sousa  lhe  succede 
Naquella  guarda  que  antes  elle  tinha 
Glue  a  qualquer  destes  dous  assaz  convinha. 


Hum  dos  dias  que  a  guarda  estava  dando 
Este  que  Sousa  têe  por  sobrenome, 
E  d''hum  dos  pios  Majos,  que  guiando 
Veio  a  Belém  a  Estrella,  lèe  o  nome. 
Acaso  succedeo  que  pelejando 
Hum  discreto  e  entendido  Mouro  tome, 
Q.UC  d^entre  as  cruéis  mãos,  dV^ntrc  a  braveza 
Dos  seus,  vivo  levou  á  fortaleza. 


t>    PKlMfilKO    CKIU-O    lílO    lUC.  371 


D''bijci  e  outra  parte  vem  corremlo  a  gcntf» 
Grâa  cópia  em  derredor  delle  se  ajunta, 
O  Mouro  que  ha  que  a  morte  tèe  presente 
Se  cobre  d'hua  nogra  cor  defunta  : 
O  Silveira  de  vê-lo  assaz  contente 
Por  novas  que  lhe  im portão  lhe  pergunta. 
Do  exercito  que  está  lá  na  Cidade 
E  dos  Rumes  se  ha  alçua  novidade. 

XXIV. 

(3  Mouro,  a  que  o  benigno  tratamento 
Q-ue  no  Silveira  achou,  ja  anima  e  move 
A  que  o  calor  vital,  o  esprito,  o  alento 
Qlhc  co''o  temor  perdoo,  se  lhe  renove, 
Perante  aquelle  nobre  ajuntamento 
Responde  que  mil  vezes  dezenove 
Soldados  a  Cidade  dentro  encerra 
íiue  alli  trouxe  Alucão  para  esta  guerra. 

XXV. 

E  que  a  principal  cansa,  e  confiança 
Com  que  fazer  aquella  guerra  vinha» 
Era  só  hum  sentimento,  híja  esperança 
Q.ue  da  vinda  dos  ílumes  então  tinhão ; 
Com  cujo  só  favor,  com  cuja  lança 
Ja  agora  nesta  guerra  se  sustinhão, 
Com  quanto  se  nao  tè(»  por  certa  ainda 
A  nova  que  lhe  duo  lá  (lesta  vinda. 


312      OJBKAS    DB   FRANCISCO   d'aND11'ADXv 


Porque  a  qwe  lá  se  sabe  somente  era 
Haver  três  dias  s6s  que  se  soava 
Q.ue  a  Mangalor  ter  hua  náo  viera, 
Cidade  de  Cambaia,  que  o  mar  levava, 
E  que  a  gente  que  nella  vem  dissera 
Q,ue  em  Adem  hua  grossa  armada  estava,. 
A  qual  hua  grãa  copia  em  si  trazia 
Dos  soldados  que  á  terra  deu  Turquia. 


Porém  que  se  nSo  tinha  lá  por  certa 
Isto  que  se  dizia  desta  armada. 
Porque  entre  os  seus  não  era  descuberto 
Author,  de  que  esta  nova  fosse  dada. 
!Nao  disse  mais,  mas  o  Silveira  esperto 
Com  isto  que  ouve  só,  não  deixa  nada 
Do  que  á  defensão  cumpre,  porque  entende 
ôuão  mal  o  descuidado  se  defende ». 

XXVIII. 

o  triste  Mouro  foi  logo  levado 
Receioso  inda  assaz  d'hum  grSo  perigo^, 
Onde  estão  os  que  pôz  no  mesmo  estada 
Ou  sua  fraqueza,  ou  o  esforço  imigo. 
Foi  nisto  e  enfermo  Sousa  restaurado 
A  saúde  da  perna,  e  ao  cargo  antigo, 
Sem  replica  dos  dous  que  tenho  dito 
GLue  tèe  a  confiança  igual  ao  espirito.. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.      573 
XXIX. 

Torna  a  continuar  o  que  deixara 
Sousa  até  então  por  sua  enfermidade. 
Até  que  hum  dia  achou  que  se  lançara 
De  mortal  rosalgar  grãa  quantidade 
Nos  poços,  com  cuja  agua  costumara 
Remodiar-se  a  commum  necessidade:, 
Faz  isto  com  que  mais  agora  tarda 
Esta  atégora  tão  frequente  guarrla. 

XXX. 

Entro  tanto  também  d''hua  e  outra  parte 

A  grossa  artilharia  assaz  trabalha, 

Porq*ie  o  canhão  cruel  que  o  baluarte 

Da  villa,  e  a  fortaleza  em  si  agasalha, 

Lá  naquelles  que  seguem  o  estandarte 

De  Cambaia  infiel,  grãa  cópia  espalha 

De  pelouros  perdidos,  mas  não  tanto 

Q,ue  aos  imigos  não  tragão  damno  e  espanto, 

XXXI. 

Mas  se  a  alg«ns  infiéis  a  vida  tirão 
Também  isto  fez  damno  á  fiel  gente, 
Porque  em  tiros  perdidos  consumirão 
Grãa  copia  da  cruel  pólvora  ardente, 
De  que  grãa  falta  assaz  depois  sentirão 
Sendo  a  necessidade  mais  urgente. 
Também  sóltão  sua  fúria  os  canhões  Mouroe 
Mas  fazem  pouco  damno  os  seus  pelouros. 


Oi  *      Oi.KA*    DE   FRANCISCO    1)   ANDKAOK.. 


Nestos  tão  livres  feitos  foi  pnssando 

Todo  o  mez  em  que  jx  luz  que  a  terra  aquenta 

Os  nienstruaes  hospicios  visitando 

13''Ejigone  na  casa  se  aposenta. 

Kntào  ja  lá  no  Oriente  moderando 

"Vai  o  inverno  a  cruel  brava  tormenta, 

E  ja  lá  a  ein])ravecida  onda  salgada 

íSoíire  da  aguda  proa  ser  cortada. 

XXXIII. 

E  vendo  o  Capitão  que  a  grãa  braveza 
Do  mar  ja  se  sujeita  á  subtil  proa, 
Despacha  hum  que  se  vá  com  grãa  presteza 
Ter  co\í  Governador  lá  dentro  em  Goa, 
E  llie  diga  o  que  cá  na  fortaleza 
Até  então  succedeo,  e  o  que  se  soa. 
l-arte-se  o  Men>»ageiro  diligente. 
Faz  quanto  lhe  he  mandado  brevemente. 


Sendo  o  Governador  bem  instruído 
Do  que  passava  em  Diu,  e  se  dizia, 
E  tendo  do  que  ouvio  bom  entendido 
Q-ue  soccorrer  os  nossos  lhe  cumpria  ^ 
Manda  de  gente  hum  numero  escolhido 
Q.ual  hum  tempo  tao  breve  permittia. 
Alguns  de  illustre  sangue,  outros  de  menos, 
roróui  todos  dVspritos  nno  pequenos. 


o  i'iiíMKi5:o  crnco  de  div 


Kiítrc  tanto  o  Silveira,  a  que  então  dava 
O  que  da  armada  ouvira,  hum  grão  cuidado, 
Ilua  fusta  manda  ir,  quando  ja  andava 
No  cabo  o  mez  que  atraz  tenho  coutado, 
Lá  contra  Mangalor,  a  ver  se  achava 
Nova  de  virem  Rumes,  ou  recado, 
Dos  quaes  se  começava  a  ter  mais  certo 
Sentimento,  e  signal  mais  descuberto. 

XXXVI. 

Parte  logo  o  stibtil  veloz  navio 

A  cumprir  o  que  entào  a  cargo  tinha, 

Miguel  Vaz  nelle  o  mando  e  senhorio 

Leva,  segundo  alcança  a  historia  minha; 

Ksprito  de  temor  assaz  vazio. 

Fende  a  proa  a  quieta  onda  marinha, 

Nem  o  favor  do  vento  lho  fallece, 

Q<ue  tudo  a  seu  intento  favorece. 

XXXVII. 

Poucos  dias  no  mar  a  vella  solta 
Logo  acha  do  que  busca  nova  certa, 
l*ara  onde  traz  a  popa  a  proa  vòlt^  .. 
K  mais  ligeira  então,  e  mais  esperta 
Lá  de  Diu  outra  vez  se  faz  na  volta. 
E  a  quatro  de  Setembro  descuberta 
Foi  lá  da  fortaleza  a  sua  vinda, 
('Om  quanto  de  bem  longe  se  vê  aind<t. 


I»7tí      OBRAS    DE    FUANCÍSCO    D  ANDKADK. 
XXXVIII. 

Ve-se  logo  tamhem  grau  quantidade 
Dos  que  em  iMafoma  têe  a  confiaiiya, 
No3  logares  mais  altos  da  Cidade 
D%jnde  a  vista  mais  longe  o  raio  lança, 
Como  que  vêem  algua  novidade 
Clue  inda  da  fortaleza  nào  se  alcança  : 
Desojâo  os  Christàos,  que  isto  nao  vião, 
Dtíscubrir  o  que  os  Mouros  descubriáo. 

XXXIX. 

Mas  como  as  altas  rojlias  que  correndo 
Ao  longo  vão  alli  da  brava  costa, 
Tanto  lá  para  o  Ceo  se  vão  erguendo 
Q.ue  a  fortaleza  fica  abaixo  posta, 
Os  Christàos  não  podião  gostar,  vendo 
O  de  que  a  infiel  gente  vendo  gosta, 
Gtue  tèe  lá  na  Cidade  tanta  alteza 
Glue  deixa  muito  atraz  a  fortaleza. 

XL. 

O  natural  desejo  d''hua  parte, 

D^outra  aquelle  tão  alto  impedimento, 

Nova  altura  buscar  faz  e  nova  arte 

Aos  Christàos  para  o  fim  de  seu  intento. 

Acaso  estava  então  no  baluarte 

De  São  Thomé  hum  mastro,  onde  o  vento 

Tremulava  hum  pendão,  em  que  a  pintiira 

Descuberta,  da  Cruz  tiulía  a  figura. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE    DIU. 


K  como  ora  este  mastro  tao  comprido 
(Aue  do  mais  alto  dcile  bem  podia 
Doscubrir-se  o  que  então  tiiiba  escondido 
A  «levantada  rocha  e  penedia, 
Nâo  faltou  então  hum  tão  atrevido, 
E  de  vôr  desejoso  o  que  não  via, 
Gtuc  a  subi-lo  se  atreva,  e  que  o  tentasse, 
E  que  este  seu  intento  efíeituasse. 

XLII. 

Mas  para  que  podesse  dar  eífeito 

A  esta  difíiculdade  que  pertende, 

Junto  co^os  pés  e  mãos  este  direito 

Mastro,  aquelle  atrevido  logo  prende  ^ 

Ja  com  grãa  força  o  abraça,  c  o  chega  ao  peito, 

Ora  se  encolhe  todo,  ora  se  estende, 

E  caminhando  ao  Ceo  desta  maneira 

Não  pára  senão  lá  junto  á  bandeira. 


Ao  mais  alto  do  mastro  em  fim  subindo 
As  altas  rochas  ja  lhe  obedeciâo. 
Então  ja  ellc  também  vai  descubrindo 
O  que  antes  sós  os  Mouros  descubrião. 
Diz  que  sete  navios  vir  abrindo 
LÁ  da  parte  da  Arábia  o  mar  se  vião, 
E  que  mais  cmmarada  vò  outra  frota 
Qrue  trazia  também  a  mesma  rota. 


378      OBRAS    DE   FRANCISCO   d'aNDRADE. 
XLIV. 

Cria  entre  todos  esta  novidade 

Hua  inquietação,  hum  rumor  brando, 

Q/Ual  de  navios  vê  grâa  quantidade 

N 'outra  parte,  e  co^o  dedo  os  vai  mostrando, 

Gtual  jura,  qual  afftrma,  por  verdade 

O  que  o  juizo  lhe  está  representando, 

Q-ual  serem  Turcos  diz,  e  certefica, 

O  que  quiçá  o  temor  lhe  prognostica. 

XLV. 

Dura  esta  confusão  em  quanto  a  armada 
Mal  se  divisa,  e  mal  inda  apparece, 
Porém  tanto  que  foi  bem  divisada 
Ser  de  Turcos  ja  claro  se  conhece ; 
Glue  a  copia  de  navios  que  a  chumbada 
Faia  leva  (que  assaz  grande  parece) 
Lhe  certefica  e  mostra  claramente 
Glue  não  era  esta  armada  d^outra  gente. 


Apoz  isto  também  chega  a  ligeira 
Fusta,  a  qual  a  esse  effeito  antes  mandara 
(Como  ja  disse  atraz)  o  grão  Silveira, 
E  que  pouco  antes  ja  se  divisara  :; 
Esta,  a  nova  mais  certa  e  verdadeira 
Da  armada  que  se  via,  então  declara, 
E  diz  que  aquelles  mesmos  Rumes  erao 
Q-ue  tantos  annos  ha  na  índia  se  esperão. 


o    PRIMEIRO    CEllCO    DE   BIT. 


XLVIt. 


379 


E  porque  olle  ainda  assi  se  nao  contenta 
Destas  novas,  que  em  summa  tinlia  dadas, 
Cinco  galés  reaes  sobre  quarenta 
Diz  que  deixa  na  armada  bom  contadas-. 
Cem  outras,  de  que  atraz  vio  com  mais  lenta 
Força  as  marinhas  ondas  ser  cortadas, 
GLue  de  muitos  navios  que  lá  via 
De  toda  sorte,  vem  em  companhia. 


Não  perde  hoje  o  Silveira  aquelle  esprito 
Sempre  na  mor  affronta  mais  ousado, 
Antes  com  hum  valor  quasi  infinito 
Se  mostra  mais  alegre  e  confiado  : 
Comtudo  escreve  logo  hum  breve  escrito, 
O  que  diz  a  ninguém  he  declarado. 
Ao  mesmo  o  dá  que  pouco  antes  viera, 
E  que  as  novas  da  armada  lhe  trouxera. 


Diz-lhe  que  com  ligeiro  curso  leve 
Corte  o  mar,  e  de  Goa  siga  a  rota, 
E  que  ao  Governador  o  escripto  leve 
E  lhe  conte  o  que  vio  daquella  frota. 
Nao  tarda  Miguel  Vaz,  e  em  tempo  breve 
Levanta  o  ferro,  ao  mar  o  remo  bota, 
E  polo  assento  liquido  marinho 
Com  graa  velocidade  faz  caminho. 


380      OlilíAS    DE   FRANCISCO    d'aM)RAU1í. 


Porem  como  era  ous;ido  e  verdadeiro 
Gluer  de  novo  affirmar-se  na  verdade, 
Com  quanto  tinha  ja  visto  primeiro 
Toda  a  frota,  com  grãa  curiosidade  : 
E  assi  guia  o  veloz  curso  ligeiro 
Nao  mui  longe  da  grande  quantidade 
Daquellas  infiéis,  imigas  vellas, 
Porque  mais  certo  possa  tratar  delias. 

LI. 

Neste  tempo  ja  toda  a  armada  vinha 
Surgir  com  favorável  manso  vento 
Junto  d""hua  Mesquita  que  alli  tinha 
Sobre  o  mar,  lá  n'hum  alto  seu  assento, 
Glue  vendo  a  Christaa  fusta  tao  visinha, 
Havendo-o  por  aífronta,  e  abatimento, 
Fazem  doze  galés  traz  ella  a  via 
l*ara  lhe  castigar  esta  ousadia. 


O  forte  Portugaez,  que  bem  entende 
(lue  se  tarda,  se  perde,  não  desmaia. 
Mas  com  tanta  presteza  a»  ondas  fende 
títuanta  lhe  empresta  o  linho,  e  a  longa  faia 
Também  a  imiga  frota,  que  pertende 
Dar  mostra  h(rje  de  si  aos  de  Cambaia, 
listcnde  o  grão  bastardo,  a  borda  encolho, 
Para  alcançar  a  fusta  que  se  .icolhe. 


o    PRIMEIIIO    CKIICO   DE    DIU.  38Í 


Olnal  o  ligeiro  cervo  perseguido 

D^inimigos  libres,  d^imiga  gente, 

C^ue  com  hum  importuno  alto  ruido 

Dar-lhe  morte  cruel  tratão  sómoute, 

Co''o  collo  inda  soberbo,  e  em  alto  erguido 

Passa  por  monte  e  valle,  em  quanto  sente 

Nas  costas  o  perigo,  e  a  turba  imiga, 

Nem  descansa  em  quanto  ha  quem  o  persiga  : 

LIV. 

Tal  vejo  ir  a  ligeira  fusta  aguda 

Dos  navios  imigos  perseguida, 

Glue  nUium  perigo  tal  que  a  cor  lhe  muda 

Inda  soberba  vai,  inda  atrevida  : 

Mas  por  mais  que  trabalha,  e  mais  que  estuda 

Mal  pudera  hoje  aos  seus  salvar  a  vida 

Se  nao  tivera  o  vento  favorável. 

Sem  o  qual  hia  sendo  indefensável. 


As  profanas  gales  com  tal  presteza 
O  navio  fiel  vao  perseguindo, 
Glue  por  mais  pressa  que  usa  e  ligeireza 
Parece  ja  que  em  balde  vai  fugindo. 
Os  Christàos  que  estão  lá  na  fortaleza 
Ja  esta  perda  começao  d^ir  sentindo, 
Q-ue  as  galés  infiéis  voem  ir  tão  perto 
tiue  alcançarem  a  fusta  tee  por  certo. 


'.\S'2      OBilAS    DE    FUANCIiCO    D   AKDKACK. 
LVI. 

Nem  este  seu  receio  os  enganara 

(Ou  mal  por  conjecturas  advinhão) 

Se  o  vento  que  pouco  antes  ajudara 

As  imitas  «jalés  ao  seu  caminho 

Aquelle  sopro  então  não  refreara 

Com  que  antes  hia  inchando  o  Turco  linho, 

Não  sei  se  de  piedade,  ou  de  correr-se 

De  anojar  quem  não  pode  defender-se. 

ivii. 

Cessa  o  curso  veloz  d  i  armada  iraiga 
Tanto  que  o  favorável  sopro  falta, 
A  fusta,  que  não  tê:'  quem  a  persiga, 
Ijivre,   com  mor  alento  corre  e  salta  : 
A  imiga  gente,  em  quem  a  fúria  antiga 
Crescendo  agora  vai  com  esta  falta, 
Não  sente  cousa  então  que  tanto  a  anoje. 
Porque  a  fusta  Christãa  das  mãos  lhe  foje. 

LVIII. 

Mas  porque  este  furor,  este  ódio  insano 
Mais  agora  a  estimula,  acende,  e  inflama, 
Por  não  lhe  ficar  cousa  que  hoje  em  dano 
Não  tente  dos  Christãos,  que  assi  desama, 
Chega  o  fogo  ao  cruel  hronzo  profano, 
Sahe  logo  envolta  em  fumo  a  ardente  chama, 
Sahe  traz  ella  o  mortal  ferro  redondo. 
Enche  tudo  de  horrendo,  bravo  estrondo. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  38! 

LIX. 

liá  contra  a  Christaa  fusta  vai  direito 
Hue  d^entre  a  cruel  morte  antes  fugira, 
Mas  nem  isto  tão  pouco  chega  a  eífeito, 
Arde  o  Turco  de  novo  em  ódio  e  em  ira. 
A  fusta,  que  de  todo  vê  desfeito 
O  perigo  em  que  pouco  antes  se  vira, 
Com  mais  quieto  curso  que  o  primeiro 
Dá  descanso,  dá  fôlego  ao  Remeiro. 

LX. 

Fende  o  mar  com  prazer,  com  gosto  tanto 
Q.uanto  foi  o  perigo  que  antes  tinha. 
Mas  cumpre  deixa-la,  porque  em  quanto 
Klla  fendendo  vai  a  onda  marinha, 
Aos  Turcos  se  converte  este  meu  canto 
Porque  lá  me  manda  ir  a  historia  minha, 
Onde  com  tal  matéria  me  convida 
Gtue  também  dará  gosto  em  ser  ouvida. 

LXI. 

Sendo  as  doze  galés  desesperadas 
Do  alcançarem  a  fusta  que  fugia, 
Nem  co'as  vellas  em  alto  levantadas 
Nem  co^os  raios  cruéis  d'artilharia, 
Se  tornão  para  as  outras,  que  ancoradas 
Kstavão  no  logar,  que  atraz  dizia, 
O  qual  naquelle  canto  estava  posto 
Da  Cidade  que  têe  ao  Sul  o  rosto. 


SSi      OKRAS   OE   FRANCISCO    D* ANDRADE. 
LXII. 

Porém  esta  pequena  adversidade 
Se  paga  com  geral  contentamento 
De  vêr-se,  onde  com  giãa  facilidade 
Cuidao  chegar  ao  fim  do  sou  intento : 
Cria  isto  lá  entre  a  gente  da  Cidade 
Diverso  parecer,  e  pensamento, 
De  que  vários  eífeitos  se  seguirão, 
Como  por  obra  então  logo  se  vírao. 

txni. 

AlucSo,  que  atrag  disso  que  mandado 
Por  Capitão  geral  fòra  da  gente 
Gtue  tinha  na  Cidade  gasalhado, 
Sah(^-se  de  dentro  delia  incontinente 
E  vai-se  á  terra  firme,  acompanhado 
De  cinco  ou  seis  mil  homens  tão  somente, 
Porque  conhece  ja  com  grSa  certeza 
Dos  Turcos  a  insoífrivel  natureza. 


O  restante  da  gente  (que  estou  vendo 

Em  sós  treze  mil  homens  ooncluido) 

Na  Cidade  ficou,  obedecendo 

Ao  infiel  que  em  Itália  foi  nascido, 

Digo  Cojaçofar,  que  bem  entendo 

Q-ue  de  todos  assaz  he  conhecido, 

E  d'aqui  não  se  aparta  em  quanto  a  guerra 

A  Turca  gente  faz  naquella  terra. 


o   PRIMEIRO   C£RCO   DE   DIV.  385 

IXV. 

Mas  a  rasao  me  move,  antes  me  obriga 
A  que  d'aqui  meu  canto  hum  pouco  aparte, 
Porque  a  causa  da  vinda  aqui  vos  diga 
Dos  que  do  Turco  seguem  o  estandarte, 
E  a  causa  porque  veio  a  armada  iniiga 
Mais  a  esta  forlaleza  que  a  outra  parte  : 
Nào  demando  attenção,  porque  eu  espero 
Glue  a  historia  por  si  alcance  quanto  eu  quero. 

LXVI. 

Contado  tenho  atraz  que  o  miserável 
Baudur,  quando  vivia,  com  receio 
€lue  lhe  hia  sendo  o  Ceo  mal  favorável, 
Presago  ja  do  mal  que  depois  veio. 
Mandou  de  ouro  hua  cópia  innumeravel, 
Affirmão  que  três  contos  sào  e  meio, 
A  Judá,  porque  alli  determinava 
Fugir  ao  mal  que  quàsi  advinhava,. 


E  isto  mandou  entregue  á  confiança 
Do  nobre  Acefarcão,  fiel  vassallo, 
€Lue  teve  em  seu  poder  tal  segurança 
Q-ue  melhor  nao  pudera  segurallo  : 
Mas  fíaudur  seu  desejo  não  alcança 
Q,ue  veio  a  cruel  morte  a  salteallo 
Co''as  Portuguezas  armas,  e  lhe  vejo 
Dq  sen  receio  o  fim,  não  do  deseja^ 


'ãSÚ      OBRAS    DK   FRANCISCO    U   ANORADE. 


Parte  a  Fama,  e  nos  ares  despregando 

As  azas,  e  a  trombeta  á  boca  posta, 

O  Estreito  do  Mar  Roxo  vai  pa^SMndo 

Q.uandoahua  parte,  e  quando  a  outra  se  encosta, 

E  a  morte  do  Sultão  vai  publicando 

Lá  no  secco  sertão,  na  húmida  costa, 

Nem  aqui  se  detém,  aqui  se  fica, 

Mas  também  passa  ao  Cairo,  e  lá  a  publica. 

LXIX. 

Entregue  enlao  do  Cairo  era  o  governo 
A  Çoleimão  Baxá,  e  mando  inteiro, 
Janizario,  e  daquelles  a  quem  o  Eterno 
Rei,  na  terra  chamou  secco  madeiro, 
€lue  ja  vassallo  antigo,  e  mais  interno, 
Também  da  sua  camará  porteiro. 
Foi  de  Sultão  Selim,  Senhor  indino 
Da  Cidade  que  foi  de  Constantino. 

LXX. 

Porém  este  Selim  então  ja  estava 
Entre  o  fogo  immortal,  nunca  apagado, 
E  Sultão  Solimão  senhoreava 
Q.ue  do  mesmo  Selim  fora  gerado, 
O  qual  ja  agora  em  parte  escura  e  cava 
Também  a  eterna  morte  he  condemnado, 
E  seu  filho  Selim  possue  o  Império 
Com  damno  dos  Christaos  c  vitupério. 


o   PRIM&IllO  CEHCO  DE   I>iU.  3^7 


Tanto  que  co'0  metal  que  arremeda  o  ouro 

Pola  Fama,  no  Cairo  foi  sabido 

O  desestrado  fim  que  o  Sultão  Mouro 

Tinha  dos  Portuguezes  recebido, 

Manda  logo  o  Baxá  que  o  grão  thesouro 

Sem  detença  lhe  fosse  alli  trazido 

Glue  tinha  Aoefarcao  em  Judá  junto 

Por  mandado  do  triste  Rei  defunto. 


Receia  Acefarcao,  e  nao  o  nega 
Q.ue  o  que  manda  o  Baxá  ninguém  o  quebra, 
Vem  o  thesouro  ao  Cairo,  e  se  lhe  entrega 
Sem  detrimento  algum,  Sfm  perda  ou  quebra  : 
Depois  que  em  vê-lo  algum  tempo  se  emprega 
E  ora  se  espanta  delle,  ora  o  celebra, 
Ao  Turco  o  faz  saber  cora  brevidade 
Creio  que  com  mais  medo  que  vontade. 

LXXIII. 

O  Turco  111 'o  agradece,  e  que  elle  o  leve 
Manda  a  Constantinopla  em  companhia, 
O  Baxá  que  hum  temor  não  menos  leve 
Do  que  os  outros  delle  hão,  do  Turco  havia, 
Se  parte  sem  detença,  e  cm  tempo  breve 
Entra  lá  na  Cidade  para  onde  hia. 
Ao  Grão  Turco  o  infinito  ouro  apresenta 
Glue  de  vê-lo  se  admira,  c  se  contenta. 


388      OBRAS   DE   FKANCISCO    d'aNDKADE. 
LXXIV. 

E  vendo  que  lá  d'hua  terra  estranha 
E  d^hum  remoto  Rei,  assi  lhe  veio 
D^ouro  Ima  quantidade  lai,  tamanha, 
Sem  guarda,  sem  perigo,  sem  receio, 
Imagina  que  aquella  que  acompanha 
No  Reino  o  próprio  Rei,  será  sem  meio, 
E  que  he  lá  muito  mor  a  cópia  d^ouro 
ô,ue  a  grande  fama  que  ha  do  seu  thesouro. 


Solta  a  rédea  á  cubica,  e  o  desatina, 

Ja  nao  acha  logar  o  aceso  peito, 

Ja  cego,  vai  seguindo  o  que  imagina, 

E  da  imaginação  procura  o  eífeito. 

Oh  cega  condição,  vil,  baixa,  e  iudina 

De  pessoa  real,  real  conceito, 

O  qual  (se  não  perverte  a  natureza) 

He  senhor,  não  escravo  da  riqueza. 

LXXVI. 

Faz  o  Turco  ajuntar  mais  d^hum  navio 
Com  que  ordena  hua  armada,  grande  e  grossa, 
Porque  o  seu  peito  aceso  torne  frio 
E  dos  Cambaios  bens  farta-lo  possa, 
E  para  tomar  da  índia  o  senhorio 
Senhoreada  ja  da  gente  nossa, 
Havendo  isto  por  pouco  duvidoso 
Q,ue  por  fácil  ha  tudo  o  cubiçoso. 


<*    rUlMElKti    CfcKCO    UE    HIV. 


38!) 


As  novas  desta  arrpada,  e  o  seu  ititontc» 
Por  alguns  que  a  vida  então  deixarão 
Vão  ao  centro  da  terra,  e  lá  no  assento 
Averno,  em  breve  espaço  se  espalharão  : 
E  d^huns  n'outros  correndo,  n'*hum  momento 
Ao  Cambaio  Baudur  também  chegarão, 
Q.UO  estava  triste  assaz,  por  qu-3o  avesso 
Tivera  pola  Inveja  o  seu  successo. 

LXXVIII. 

Este,  vendo  que  em  vao  fora  a  passada 

Obra  da  Inveja  contra  a  Christãa  gente, 

Sendo  com  isto  nelle  então  dobrada 

A  fúria,  e  no  peito  o  ódio  em  dobro  ardente, 

Com  a  cabeça  baixa,  e  derrubada, 

Triste,  e  da  companliia  sempre  ausente, 

Imaginando  está  que  modo  tenlia 

Com  que  o  seu  máo  intento  a  efTeito  venha. 

LXXIX. 

O  sentido  por  cá,  por  !á  derrama, 
Mil  modos  de  vinganças  imagina, 
Torém  tanto  a  Christãa  gente  desama 
t^lue  em  nenhuma  se  assenta  ou  determina, 
Porque  o  ódio  insaciável  que  lhe  inílama 
O  internai  peito,  tanto  o  desatina, 
tí-ue  nenhQa  vingança  acha  que  farte 
\}o  seu  menor  dcsfjo  a  menor  parte. 


390      OBRAS    DE   FRANCISCO   d'aNDRAI>E* 


LXXX. 


Tanto  que  agora  lá  foi  descuberto 
O  que  contra  Cambaia  o  Turco  intenta, 
Inda  que  o  mal  dos  seus  têe  por  mui  certo 
Comtudo  se  alvoroça  e  se  contenta  ; 
Cuida  que  agora  têe  caminho  aberto 
De  destruir  a  quem  tanto  o  atormenta, 
Dá-lhe  da  desejada  sua  vingança 
A  nova  occasião,  nova  esperança. 


Mas  vendo  que  nao  pode  ser  cumprido 

O  desejo  que  têe  de  novo  agora, 

Se  também  de  Plutão  favorecido 

Não  he  desta  vez,  como  fora  outr'ora, 

A  elle  se  vai,  ja  menos  atrevido 

E  menos  confiado  que  antes  fora, 

Mas  mais  por  isso  humilde,  a  lingua  envolta 

Em  vergonha  e  temor,  dest'arte  a  solta. 

LXXXII. 

Senhor,  natureza  he  do  triste  e  afflito 
Q,ue  de  remédio  está  necessitado 
Importunar  alli  onde  lhe  he  dito 
Ou  sabe  que  será  remediado. 
Natureza  he  também  do  grande  esprito 
Não  negar  o  remédio  importunado, 
Antes  de  mor  grandeza  aquelle  he  cheio 
Qluc  mais  vezes  soccorre  o  mal  alheio. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  391 

LXXXIII. 

Ja  te  fui  importuno,  eu  o  conheço, 
Sê-lo  agora  de  novo  não  devera, 
De  ti  recebi  mais  do  que  mereço, 
Mas  foi  como  quem  és,  não  como  eu  era : 
E  se  não  foi  o  fim  qual  o  começo, 
Se  inda  agora  consente  a  minha  fera 
Sorte,  que  o  meu  imigo  o  meu  possua, 
Fraqueza  foi  dos  meus,  não  falta  tua, 

LXXXIV. 

Porém  nem  isto  allivia  o  grande  peso 
Deste  ódio  que  me  acende  o  aceso  peito^ 
Antes  tanto  o  mais  sinto  agora  aceso 
Q,uanto  menos  a  inveja  teve  effeito  ^ 
Tanto  de  ódio  e  furor  estou  mais  preso 
Cluanto  te  importunei  mais  sem  proveito^ 
Nem  sei  se  o  rigoroso  Radamanto 
Castigo  pode  dar  que  doa  tanto. 


Mas  nem  por  isso  eu  ja  te  importunara, 
Soffrera  antes  meu  mal  que  importunarte^ 
Se  a  nova  occasião  me  não  mostrara 
Modo  de  me  eu  vingar,  e  de  tu  honrarte : 
Bem  sabes  que  o  Grão  Turco  hoje  prepára> 
Porque  o  seu  cobiçoso  animo  farte. 
Soldados,  Capitães,  armas,  navios. 
Para  conquistar  da  índia  os  senhorios. 


:i02       OBRAS    I)«   FUANeiSCO    D   ASTiUAVK, 
LXXXVI. 

Manda  a  Cubica  pois,  que  mova  e  iiístigive 
A  Çoleimao  Baxá  para  esta  einpreza, 
E  com  promessas  mil  o  acenda  e  obrigue 
A  fazer  guerra  á  gente  Portiigueza  •, 
Q/ue  ímpossivel  será  que  não  castigue 
A  Turca  gente,  de  cubica  acesa, 
A  soberba  Christíia,  e  que  eu  vingado 
Não  fique  desta  vez,  e  sem  cuidado. 

LXXXVII. 

por  este  meio  cuido,  antes  sei  certo 

G.ue  será  satisfeífo  o  meu  deseja, 

íVjÍs  dos  Turcos  não  te  he,  creio,  encuberto 

O  não  vencido  esforço,  alto  e  sobejo^ 

E  se  esta  ocoasião  eu  não  acerto 

Desesperado  d^outra  tal  me  vejo, 

Acabe  o  que  te  peço  boje  comtigo 

O  mal  do  teu  vassallo^,  e  o  bem  do  imígo, 

LXXXVIII. 

O  Sllgio  Rei,  que  nunca  repugnância 
Tara  esfas  cousas  tee,  mas  as  acende, 
Gabando-lhe  outra  vez  a  graa  constância 
Daquelle  ódio,  e  vingança  que  pertendcy 
Chama  outra  vez  Megera,  e  com  instancia 
Lho  manda  que  se  vá  lá  aonde  entende 
Que  Pluto  se  agasalha,  e  que  lhe  diga 
Ôue  o  Sultão  obedeça  nisto,  e  siga. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  393 


De  novo  ante  Plutão  se  prostra  o  esprito 
Pola  nova  mercê  que  lhe  fizera, 
E  menos  triste  ja,  menos  afílito 
Porque  vingar-se  largamente  espera ; 
Nào  lhe  soffrendo  o  seu  ódio  infinito 
A  menor  dilação,  pede  a  Megera 
Gtue  ao  que  manda  Plutão  logo  obedeça 
E  nisto  com  a  pressa  o  favoreça. 

xc. 

Partc-se  com  veloz  curso  ligeiro 
A  fúria  também  nisto  diligente^ 
O  esprito  do  Sultão  por  companheiro 
Lfna  também  agora  juntamente  :j 
O  qual  agora  mais  que  de  primeiro 
Alvoroçado  vai,  ledo  c  contente. 
Porque  leva  hua  grande  confiança 
Q-ue  ao  seu  ódio  igual  terá  a  vingança* 


Mil  vezes  no  caminho  a  fúria  incita 
A  que  se  desça  á  terra,  imaginando 
Q.ue  em  qualquer  dos  logares  que  ve  habita 
A  Cubica  que  então  hião  buscando  ^ 
Porque  segundo  a  todos  sollicita 
A  sede  d''ir  o  seu  accrescentando^ 
Crê  não  só  que  a  Cubica  alK  estaria 
Mas  qualquer  dos  que  vê  cre  que  o  seria. 


Não  se  detendo  a  furia,  lhe  responde  : 

I\ão  me  espanto  do  teres  esse  engano, 

iiue  o  seu  doce  veneno  Pluto  esconde 

Em  todo  o  peito  que  he  mortal,  e  humano^ 

E  mui  poucos  serão  os  peitos  onde 

Não  reine  este  apetite  cego  e  insano, 

Isto  faz  tantas  vezes  enganarte 

E  cuidar  que  vês  Pluto  em  toda  a  parte, 

XCIIl. 

Tanto  nesta  hora  ja  tinhSo  andado 
Porque  qualquer  ligeiro  então  voava^ 
(Rlue  ja  o  assento  vêem  que  gasalhado 
Aquelle  que  buscavão  em  si  dava. 
Este  n''hua  alta  cova  está  assentado 
Lá  onde  em  maior  copia  o  ouro  se  caVn, 
Pobre,  mal  petrecbado,  mal  composto, 
Mas  têe  cm  torno  bum  forte  muro  posto. 


xciv. 

Vê-se  no  meio  delle  bua  fetfada 
Porta,  d''hua  matéria  forte,  e  dura, 
A  qual  o  mais  do  tempo  está  cerrada 
Mas  nem  com  isto  Pluto  se  assegura. 
Tanto  que  a  Airia  aqui  faz  a  cbegada 
Dar  fim  a  isto  a  que  vem  logo  procura, 
Chega-se  á  porta,  e  ])ate  quanto  pode, 
Porem  de  dentro  lá  niu^u' m  lhe  ac<5de. 


I 


o    IMIIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  39^ 

XC\. 

Pouco  se  espanta  a  fúria,  que  este  o  antigo 
Uso  he,  do  que  naquelle  assento  mora, 
Insta  em  bater  de  novo  onde  atraz  digo 
Acesa  j a  de  si  pola  demora  ^ 
JiOgo  na  porta  abrir  sente  hum  postigo 
E  \io  hum  que  a  cabeça  lança  fora, 
K  pergunta  de  lá  que  quer,  quem  era, 
Irada  lhe  responde  assi  Megera  : 


Abre  a  porta,  que  a  ti  do  alto  e  temido 
Plutão  mandado  sou,  bem  se  conhece. 
Treme  Pluto  somente  cm  ter  ouvido 
O  nome  de  quem  so  teme  e  obedece, 
Cerra  o  postigo,  e  lá  por  escondido 
Logar  sahe  fora,  c  ante  elles  apparece : 
Espanta-so  o  Sultão  do  que  então  via, 
Porém  a  fúria  não,  que  o  conhecia. 

XCVII. 

Vè-se-lhe  hua  presença  veneranda, 
Digna  assaz  de  real  sceptro  e  coroa, 
Com  velhos  trajos,  vis,  e  sujos  anda, 
Mal  ornado,  e  composto  na  pessoa :, 
Mostrando-se  vem  coxo  d' hua  banda, 
D^outra  se  lhe  vêem  azas  com  que  voa, 
Cego  he  de  todo,  e  quem  põe  nelle  o  tento 
Vê  que  ás  vezes  lhe  falta  o  entendimento. 


â96      OBRAS  DE  FRANCISCO  D^ ANDRADE. 


Tanto  que  a  fúria  o  vio^  logo  o  preceito 
Do  temido  e  infernal  Plutão  lhe  disse  *, 
O  Sultão  (que  isto  ja  tinha  por  feito) 
Diz,  que  a  Constantinopla  se  partisse, 
E  a  ÇoleimSo  Baxá,  de  si  o  peito 
Enchesse,  e  a  fazer  guerra  o  persuadisse 
Logo  á  gente  Christãa  que  em  Diu  tinha 
A  fortaleza,  e  que  isto  lhe  convinha. 

xcix. 

Ê  que  feUe  e  a  fúria  irão  lá  juntamente 
Por  verem  seu  saber,  sua  vehemencia. 
Pluto  áquelle  mandado  obediente, 
Tendo  ja  deste  caso  experiência, 
Fende  os  ares  co''os  dous  ligeiramente, 
E  põe  no  caminhar  tal  diligencia 
€lue  lá  a  Constantinopla  então  chegarão 
Gt-uando  á  terra  as  Estrellas  se  mostrarão. 


Entrão  lá  no  aposento  onde  sabião 

Glue  estava  Çoieimão  agasalhado, 

S6,  e  triste  o  vAem,  mas  todos  conheciao 

A  causa  da  tristeza,  e  do  cuidado  i^ 

Tanto  que  veio  aquella  hora  em  que  o  viao 

Do  brando  somno  ja  senhoreado, 

Pluto  por  acabar  isto  que  trata 

A  elle  se  chega,  e  a  lingua  assi  desata  : 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU,  3^7 

Cl. 

Grãa  dor,  grão  sentimento,  graa  tristeza 
Com  rasão  deves  ter,  pois  qué  do  seio 
Te  roubarão  aquella  alta  grandeza 
Do  thesouro  que  lá  de  Judá  veio  ^ 
Mas  d^outro  mor  thesouro,  mor  riqueza^ 
Presente  occasião,  presente  meio 
Tèes  agora  na  mão,  segundo  vejo, 
Glue  satisfaça  a  perda,  e  teu  desejo. 

CII. 

Trabalha  porque  o  Turco  te  encommende 
A  governança  desta  grossa  armada. 
Com  que  senhorear  a  índia  pertende 
Q-ue  agora  he  dos  Christãos  senhoreada^ 
Porque  se  tu  entrares  nella,  entende 
Glue  de  riquezas  he  tão  abastada 
Oiue  não  s6  poderá  delias  fartar-te 
Mas  poderá  também  enfastiar-te. 

cm. 

Mas  para  eífeituares  esta  empreza 
A  Diu  te  cumpre  ir,  e  fazer  guerra 
E  dar  a  morte  á  gente  Portugueza, 
Q.ue  esta  logra  o  melhor  daquella  terra : 
Nem  pode  ella  fazer-te  grãa  defeza 
Por  quão  pouca,  e  sem  armas  lá  se  encerras 
Se  isto  fazer  quizeres,  eu  te  fico 
Q-ue  sejas  bem  contente j  fartOj  e  rico. 
*  12 


n^OS      0!ÍHA6    DS    FliANCISCO    l/ A  TSDTÍ  \  TJF,. 


Apo7,  estas  palavras,  logo  inspira 
Nelle  ííum  desejo  avaro,  c  cubiçoso, 
Bafeja-lhe  também  Mogora  hua  ira, 
Xlum  dfsojo  cruel,  e  furioso. 
Apoz  isto  ao  logar  dVinde  saíiira 
Torna  qualquer  dos  três  nao  vagaroso, 
( 'o n tente  cada  hum  do  que  têe  feito 
E  o  Sultiío  roais  que  todos  satisfeito, 

cv. 

Corrt  grande  sobresalto,  grande  espanto 
Acorda  Çoleimão,  co'o  que  passara, 
Contempla  na  promessa,  e  vc  que  he  tanta 
Que  duvida  so  o  ouvio,  ou  se  o  sonhara  i^ 
Mas  ja  sentindo  o  eíTeito  em  si  de  quanto 
Gtualquer  dos  seus  entào  nelle  inspirara, 
Dá  credito  á  visão,  c  determina 
Fazer  o  que  ella  manda,  e  elle  imaginar 


E  porque  ver  o  fim  de  seu  intento 
Conceder-lhe  o  Grão  Turco  agora  queira,, 
Como  não  fia  em  seu  merecimento 
Tenta  nova  invenyão,  nova  maneira  ^ 
Fciz  com  que  npste  seu  requerimento 
Lhe  queira  a  Mãe  do  Turco  ser  terceira, 
A  que  o  conhecimento  antigo  obriga 
A  íhe  ser  favorável  nisto,  e  amiga. 


o    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIF.  399 


CVII. 

È  o  Baxá,  porque  faça  inda  mais  justa 
A  sua  petição,  diz  que  lie  contente 
De  fazer  todo  o  gasto  á  sua  custa, 
G.ue  artilharia  so  lhe  dêem,  e  gente; 
Mas  a  alterosa  náo,  a  subtil  fusta, 
Com  tudo  o  mais  á  guerra  pertencente^ 
Elle  porá  do  seu  naquelle  feito. 
Tanto  pode  a  esperança  do  proveito  ! 


Trcsenta  a  Mae  ao  Filho  isto  que  pede 
O  Baxá,  e  com  mil  rogos  Ih^o  apresenta  J 
O  Turco,  a  quem  então  isto  succede 
ConformjB  á  condição  cega,  avarenta, 
(^(jm  graa  facilidade  Ih^o  concede. 
Antes  dlium  tal  acerto  se  contenta, 
(^om  que  com  pouco  gasto,  ou  nenhum,  veja 
O  fim  disto  que  tanto  ja  deseja. 

tix. 

Contente  o  Baxá  assaz,  sua  partida 
Ijogo  ordena  com  grande  brevidade, 
E  na  Cidade  ajunta  para  esta  ida 
De  Janizaros  grande  quantidade  ^ 
Mil  e  quinhentos  são,  gente  escolhida, 
Bastantes  a  qualquer  difficuldade. 
Também  para  esta  guerra  que  pregoa 
Dons  mil  Turcos  ajunta,  gente  boa. 


400      OimAS    DE   FRANCISCO   dVnDKADE. 


Com  esta  companhia  deixa  a  torta 
De  Constantino,  e  ao  Cairo  faz  a  via, 
E  recolhe  também  para  esta  guerra 
Outros  três  mil  á  sua  companhia  ^ 
Huns  dos  que  Damiata  dentro  encerra, 
Outros  dos  que  croou  Alexandria, 
Outros  dos  que  outros  portos  hahitavão 
Dos  que  as  Mediterrâneas  ondas  lavão. 

CXI. 

E  porque  sendo  assaJ!  exercitado^ 
Nos  ofíicios  navaes,  e  os  entendi3oj 
E  se  cumpria  ter  peitos  ousados 
Também  a  espada  e  a  lança  revolviao, 
Ora  servem  de  bons,  fortes  soldados 
Ora  ás  coíjsas  navaes  se  convertião, 
Assi  quando  se  o  duro  imigo  oífende 
Como  quando  no  mar  se  a  vella  estende. 

CXII. 

Entra  o  Baxá  no  Cairo,  e  nao  dilata 
Hu"'liora  a  execução  disto  a  que  vinha. 
Mas  para  a  ter  melhor,  solta  e  desata 
A  cruel  condição  que  presa  tinha  : 
Com  tyrainiia  estranha  avexa  e  trata 
A  gente  da  Cidade,  e  a  que  he  visinha, 
Porque  com  geral  custo  a  guerra  faça 
Oue  por  seu  só  proveito  ordena  e  traça. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   1)1U.  401 


Neiti  basta  que  nos  bens  os  tristes  preme 
Mas  também  aos  seus  corpos  volta  a  folha. 
Porque  como  ás  galés  falte  quem  reme 
Q-uantos  ha  mister  toma,  e  os  aferrolha  : 
Não  vai  ao  que  resiste,  ou  roga,  ou  geme, 
Para  que  este  trabalho  então  lhe  tolha, 
Q-ue  contra  o  duro  peito  inexorável 
Do  Baxá,  tudo  fica  indefensável. 

cxiv. 

Fornecido  ja  tudo  o  que  bastante 

Ijhe  pareceo  então  para  este  feito, 

l*assa  a  gente  a  Suez,  logar  distante 

Do  Cairo  hum  grande  espaço,  que  no  Estreito 

Do  R*)xo  IMar  está  lá  tanto  avante 

tiue  no  fim  delle  eslá,  c  lá  direito 

Vai  o  Baxá  co''os  seus,  porque  ancorada 

Estava  neste  porto  a  sua  armada. 


Tanto  que  em  Suez  entra  logo  manda, 
(^om  pena  que  o  mais  forte  amedrontava, 
(A-ue,  por  não  ser  sentida  esta  demanda 
Lá  na  índia,  para  onde  cUe  caminhava. 
Nem  do  Torom,  ou  Judá,  que  estão  da  banda 
Da  Arábia,  nem  do  mar  que  o  Egypto  lava» 
Algum  navio  então  faça  caminho 
Q.ue  lá  no  índio  mar  estenda  o  linho. 


CXVI. 

Porem  porque  iiao  falta  algum  que  attenta 
Na  cópia  dos  navios,  e  outro  aguarda 
Ouvi-la  aqui  dizer,  ja  Ih^o  apresenta 
Meu  canto,  atégora  lhe  não  tarda  : 
São  as  galés  somente  cincoenta, 
Gtual  real,  qual  subtil,  e  qual  bastarda^ 
Quatro  albetoças  mais,  e  seis  formosos 
Galeões,  de  duas  gáveas,  alterosos. 

CXVII. 

Esta  armada  os  passados  fabricarão 

Q/ue  tiverao  do  Cairo  a  governança, 

Porque  com  ella  ter  imaginarão 

O  Estreito  do  Mar  Roxo  segurança. 

A  estas  sessenta  vellas  se  ajuntarão 

As  sete  em  que  atraz  disse  (se  ha  lembrança) 

ô-ue  Acefarcao  levou.  Capitão  Mouro, 

A  Judá,  de  Cambaia  grão  thesouro. 

CXVIII. 

Nem  com  estas  sós  náos  se  acaba  desta 
Armada  a  numerosa  quantidade, 
Vão  três  de  Amezuj?  mais  a  esta  festa 
Q.ue  lá  no  Cairo  têe  grãa  dignidade  : 
ElRei  de  Judá  duas  mais  empresta 
Se  por  força  não  sei,  se  por  vontade. 
Com  que  de  alheias  vellas,  e  de  suas 
Arma  o  Baxá  em  Suez  setenta  e  duas. 


o    PRIMEIRO    CERCO    D£   DIU.  403 


Mas  ja  na  obra  começa  d'ir  mostrando 

O  espirito  cruel  que  nelle  habita, 

Porque  em  quanto  está  as  cousas  preparando 

Necessárias  á  armada  acima  dita, 

E  a  mal  usada  chusma  apremiando 

No  meio  dos  remos  exercita, 

Soffrendo  elles  mal  ver  tão  mal  tratar-se 

Procurão,  com  seu  damno,  de  livrar-se. 

cxx. 

Porque  vendo  que  com  cruel  império 

Os  constrangem  ao  remo  mais  que  inclinao, 

Os  que  têe  das  galés  o  ministério 

Tanto  os  move  esta  dor,  tanto  se  inclinao, 

Q-ue  havendo-o  por  affronta  e  vitupério 

Bem  quatrocentos  delles  se  amotinão 

E  negão  hum  serviço  tal,  tão  forte. 

Tristes,  que  caminhaes  á  vossa  morte  l 


Chega  a  nova  ao  Baxá,  e  em  tal  fogo  arde 
Glual  o  Siculo  monte  ou  o  Campano, 
Nem  soffre  que  em  vingar-se  mais  aguarde 
O  seu  peito  cruel,  impio  e  tyrano. 
Mas  por  cedo  que  vai,  cuida  inda  ir  tarde 
A  derramar  aquelle  sangue  liumauo. 
Manda  que,  porque  o  seu  furor  se  farte, 
Dos  quatrocentos  morra  a  meia  jjarte. 


404      OURAS    DE    FRANClísCO    d\vNííRADE. 


Não  foi  pronunciado  o  Edicto  fero 
GLuando  logo  se  vio  posto  em  effeilo. 
Perdoai  vós  agora,  cruel  Nero, 
Glue  inda  este  cruel  tèe  mais  cruel  peito. 
Kste  espantoso  exemplo,  impio  e  severo 
Reprime  os  que  ficarão  de  tal  geito 
Q.ue  acceitão  por  menor  mal  e  destroço 
Remo  na  mão,  que  espada  no  pescoço. 


Feita  prestes  a  armada  copiosa 

E  favoráveis  sendo  então  os  ventos, 

Enche-a  o  Baxá  de  gente  assaz  lustrosa 

Em  cópia  de  seis  mil,  sobre  quinhentos-, 

De  grossa  artilharia,  e  temerosa, 

De  muitas  munições,  e  mantimentos, 

De  doutos  Capitães  em  toda  a  guerra 

Glue  ou  polo  mar  se  faz,  ou  pola  terra. 


Destes  direi  alguns,  dos  quaes  merece 
Cada  hum  que  o  seu  nome  aqui  se  diga, 
Hum  he  Baram  Baxá,  em  que  apparece 
Da  Janizara  gente  a  insígnia  imiga, 
Outro  Baram,  e  Mustafat,  que  dece 
Q.ualquer  da  Mameluca  gente  antiga, 
O  quinto  Mahamud  (jtueá  se  chama, 
K  todos  entre  os  seus  tèe  nome  e  íauia, 


o    rUIMEIÍlO    CERCO    DE   DIU.  405 


Mas  porque  á  longa  idade  mal  coiivhilia 
De  Çoleimão  ja  ter  capitania, 
Capitão-mór  do  mar  faz  hum  que  vinha 
De  í^randtí  esforço,  em  sua  companhia, 
Chamado  Jhuof  Hamed,  que  tamheui  tinha 
Este  cargo  no  mar  d** Alexandria, 
Porém  para  si  fica  resguardando 
O  governo  o  Baxá,  de  tudo,  e  o  mando. 


Com  esta  grossa  armada,  esta  ordenança 
Ao  vento  solta  o  linho,  ao  mar  a  faia, 
Com  grão  desejo  assaz,  grãa  confiança 
De  lograr  os  thesouros  de  Camhaia  •, 
E  navegando  o  mar  com  grãa  bonança 
De  Judá  em  breve  tempo  ferra  a  praia, 
Aqui  soa  o  Piloto,  alli  o  apito, 
Copi  rouca  voz,  e  com  agudo  grito. 


Chegado  aqui  o  Baxá,  nao  se  deftMide 
Do  cubiçoso  esprito,  que  o  acompanha, 
Por  onde  haver  á  mão  logo  ptírtende 
Daquella  terra  o  Rei  com  arte  e  manha  ^ 
Mas  ello,  que  a  perfídia  bem  entende 
Do  Baxíi,  e  a  crueza  rara  e  estranha, 
Solta  a  Cidade,  e  foge  áquelle  dano, 
Fica  em  vão  o  conceito  do  tyrano. 


406      OBltAS    DE    FRANCISCO   d'aND11ADE. 


O  qual  em  grave  dór,  e  fúria  ardente 
Por  lhe  sahir  em  vão  aquelle  intento, 
Faz  levantar  o  ferro  descontente 
E  de  novo  soltar  a  vella  ao  vento  ^ 
E  navegando  o  mar  prosperamente 
Em  Azebibe  vai  fazer  o  assento, 
GLue  está  na  costa  lá  do  mar  Arábio 
Possuído  d'h um  Rei  mal  cauto  e  sábio. 


Nocodá  Hamed  este  era  chamado 
G,ue  na  infiel  Turquia  foi  nascido, 
Do  qual  com  grande  festa  e  gasalhado 
O  perverso  Baxá  foi  recebido  ^ 
Porém  delle  nao  foi  gratificado 
Como  lhe  tee  por  obras  merecido, 
Mas  como  a  inclinação  sua  lhe  ensina 
Cubiçosa,  perversa,  impia,  malina. 

cxxx. 

Porque  o  Baxá  sabia  que  este  herdara 
Este  Estado,  de  que  he  senhor  agora, 
D''hum  que  INlirescandel  se  nomeara 
Também  da  falsa  lei  que  o  Turco  adora, 
O  qual  da  obedicncia  se  isentara 
Do  Cairo,  a  quem  sujeito  sempre  fora, 
E  por  meios  rebeldes  e  tjrannos 
Isento  o  mando  assi  teve  alguns  annos. 


o    IMllM&l  UO    CEUCO    Dlí    DIU. 


CXXXI 


407 


l\)r  isto,  e  Cicio  mais  por  lhe  ser  di!o 
Q.ue  este  Turco  he  senhor  de  gra;i  riqueza, 
Sem  mais  outra  rasSo,  outro  delito 
Para  hua  tal  justiça,  antes  crueza, 
]Manda  que  o  triste  Turco  renda  o  esprilo, 
(Àue  por  obra  se  põe  com  graa  presteza  :, 
Cahe  do  corpo  a  cabeça,  o  esprito  logo 
Kntra  no  inextinguivel  bravo  fogo. 


Ksta  paga  o  Baxá  da  obra  e  vontade 

Da  a  quem  o  recebeo  com  ledo  rosto, 

Porém  a  graa  cubica  e  crueldade 

Não  conhecem  rimio  mais  que  o  seu  gosto  : 

i)  mando  desta  terra,  e  dignidade, 

Do  que  o  raisero  Turco  foi  deposto, 

Dá  o  Baxá  a  Mustafat,  que  eu  disse  que  era 

Hum  dos  Capitães  que  eíle  alU  trouxera* 

CXXXIII. 

(Joncluido  isto  assi,  de  novo  bota 

O  remo  ao  mar,  c  vella  ao  vento  larga, 

Do  Reino  de  Adem  ja  seguindo  a  rota 

D*Azebibe  a  veloz  proa  se  alarga  : 

l^espede  diante  hua  galeóta 

O  liaxá,  que  com  voga  pouco  larga 

l«\rre  a  terra  dianie  da  outra  armada 

Ji  pronuncie  ao  liei  bua  cjubai.\ada. 


CXXXIV. 

Solta  o  remo  o  subtil  navio  ligeiro, 

Com  apressado  curso  a  voga  arranca, 

Envermelhece  a  face  ao  nu  Remeiro 

Glue  ou  pallida  antes  tinha,  ou  tinha  branca  : 

Este  furor,  este  Ímpeto  primeiro 

Antes  de  vêr-se  o  porto  nao  estanca. 

Mas  tanto  que  se  d'Adem  ferra  a  praia 

Se  solta  o  ferro,  e  se  ferrilha  a  faia. 

cxxxv. 

Salta  em  terra  o  que  então  a  cargo  tinha 
Do  falso  Çoleimao  a  legacia, 
E  presentado  a  ElRei,  diz  que  elle  vinha 
Da  parte  do  Baxá,  que  lhe  pedia 
Que  lhe  mandasse  dar  quanto  convinha 
Mantimento  a  esta  armada  que  trazia. 
Mas  que  este  mantimento  quer  que  entenda 
€tue  de  graça  o  não  quer,  mas  que  Ih^o  venda. 


Apoz  isto  também  diz,  que  comsigo 
(Vede  a  avara  tenção  que  ardis  ensina  ! 
Muitos  doentes  traz  em  grão  perigo 
Por  falta  do  favor  da  medicina  ^ 
Polo  qual  lhe  podia  como  amigo. 
Porque  elle  lá  manda-los  determina, 
Glue  lhes  mande  dar  casas  na  Cidade 
Em  que  elles  curem  sua  enfermidade. 


o    TRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  409 


CXXXVII. 

o  pouco  cauto  Rei,  que  da,  appareucia 
Daquella  enferma  gente,  miss^ravel 
Se  enche  de  piedade,  e  de  clenuencia 
Havendo  que  no  mar  era  incur;)ivei, 
E  não  tendo  inda  inteira  intelliçencia 
Do  esprito  cruel,  insaciável 
Q.ue  habita  no  Baxá,  quanto  lhe  pede 
Com  alegre  vontade  lhe  concede. 

CXXXVIII^ 

Neste  tempo  ja  toda  a  grossa  armada, 
Q.ue  sentira  o  favor  do  amigo  vento, 
Recolhendo  no  porto  a  vella  inchada 
Imprimira  hum  geral  contentamento. 
Ja  com  vário  refresco  he  visitada, 
Ja  se  lhe  enche  o  payol  de  mantimento, 
Recebe  o  triste  Rei  com  alvoroço 
Hua  morte  cruel,  hum  grão  destroço. 


Não  tarda  Colei mao  em  dar  eflfeito 
A  este  engano  que  traz  imaginado. 
Aceso  da  esperança  do  proveito 
E  d^animo  cruel,  nunca  domado. 
Mas  sinto  ja  tão  fraco  e  ronco  o  peito 
Q.ue  em  vão  soltar  a  voz  tenho  tentado, 
Descansemos  hum  pouco,  e  tudo  quanto 
Fez  o  Baxá,  direi  ness^outro  Canto. 


CERCO  DE  DIU 


C.4MTO  ^III. 

Matula  o  Baxá  os  fingidos  enfermos  ã  Cida- 
de, e  a  voltas  dtUes  niette  nella  mitiia  gente 
dtj  gutrra,  a  qual  salteia  os  Paços  d,'' KlKci, 
e  o  toma  vivo,  e  por  mandado  do  Baxá  he 
enforcado  e  posto  á  porta  da  Cidade,  e  ella 
mcttida  a  saque,  A  armada  dos  ^l\ircos 
chega  a  Diu  com  algumas  vellas  menos. 
Dão  os  Janizaros  hum  assalto  cí  fortaleza . 
A  armada  com  tormenta  se  recolhe  ií''aUi 
para  Madrafabat.  Os  Turcos  se  preparão 
para  as  baterias.  Ordenão  hum,  espantoso 
ardil  de  guerra  :  os  Christãos  Ih^o  desfazem . 
Coniao-se  algumas  cousas  pariicidares  que 
succederuo  neste  tempo. 


N 


unca  se  vio  cubica  agradecida 
Nem  de  sangue  jamais  farta  crueza  : 
Esta,  inveja  sempre  ha  d^alheia  vida, 
Do  alheio  bem  aquella,  e  da  riqueza  : 
Por  mais  que  ande  qualquer  delias  mettida 
No  que  liie  pede  a  sua  natureza, 
Nâo  lhe  mata  a  grãa  cópia  a  bruta  sede, 
Antes  Ufa  acende  mais,  e  mais  lhe  pede. 


o    1'RIMEII10    CEUCO    DE    DIU.  511 


Do  poito  cruel,  pérfido,  avarento 
Nào  têy  o  beneficio,  ou  a  amizade 
Outra  paga,  outro  agradecimento 
Se-iião  roubo,  perfídia,  crueldade^ 
Sente  na  triste  vida  detrimento, 
Destrui^'ão  nos  bens,  e  faculdade  ^ 
Nem  me  espanto  que  o  lobo  carniceiro 
Mal  poderá  gerar  manso  cordeiro. 

III. 

C^uanto  este  mais  recelje,  mais  se  acende 
Não  em  gratificar  o  recebido, 
Setííio  em  adquirir  o  mais  que  entende 
ÍAwc  de  quem  recebeo  be  pussuido  : 
K  d^aqui  claramente  se  comprebende 
Gltie  com  rasao  de  muitos  boje  be  crido 
Cliie  a  boa  obra  empregada  em  má  pessoa 
Muito  mais  tèe  de  má  que  d^obra  boa. 


Vendo  o  falso  Baxá  ja  posto  em  termos 
Seu  intento  de  ser  effeituado. 
Manda  logo  os  fingidos  seus  enfermos 
Q.ualquer  de  três  ou  quatro  acompanhado^ 
E  estando  despejados  então,  e  ermos 
Os  logares  que  ElRei  tinha  mandado 
Dar-lhes,  para  curar-se,  bum  par  ficavao 
Dos  que  a  qualquer  enfermo  aeompanhavao. 


112       Or.HAS    !>E    VUAaTSCO    1)*AXDKA;)K. 


São  d^esprito  fero/.,  d'ousado  poílo 
Os  enfermos,  e  os  que  os  acompauliáiao, 
K  por  dissimularem  mais,  hum  leifo 
A  qtial(]!ier  dos  enfermos  ordenarão, 
E  nelic  (com  quanto  era  assaz  estreito) 
Suas  armas  comsigo  então  levarão  ^ 
Alegremente  o  triste  Rei  recebe 
A  peçonha  que  pouco  a  pouco  bebe. 

VI. 

K  som  que  os  natnr.ies,  disto  innocentes, 
Sentissem  traição  tão  engenhosa, 
Antes  que  cinco  vc7;^s  entre  as  gentes 
O  Sol  mostrasse  a  fronte  luminosa, 
Kntrão  quinjientos,  lá  destes  doentes 
D^Mifermidade  tão  contagiosa 
Q.ue  as  gentes  penetrou,  pouco  advertidas, 
Nas  miseras  fazendas,  e  nas  vidas. 

VII. 

Tendo  j a  preparado  este  encuberto 

Engano  Çoleimão,  que  vai  urdindo, 

E  ja  aos  fortes  enfermos  dado  hum  certo 

Signal,  a  que  acudissem  em  o  ouvindo, 

A  El  Rei,  que  hum  deshonrado  fim  mui  perto 

Ja  tee,  o  qual  não  vai  inda  sentindo, 

Manda  que  venha  ter  onde  elle  estava, 

Porque  falia r  com  elle  lh''iraportava. 


o    1'RIlVfEIRO   CEUCO    DE   DIU. 


nVscaniecet'  ElRei,  de  rir  nao  cessa 
])o  recado,  e  dnqnelle  qne  o  trouxera  ^ 
Faz  o  Baxá  o  sigiial,  e  com  gràa  pressa 
A  turba,  antes  enferma  agora  fera, 
Fora  do  gasa)hado  se  arremessa 
Q-ue  para  se  curar  El  Rei  lhe  dera  ^ 
Descobre  á  gente  a  falsa  enfcrmidadír 
Era  que  achou  verdadeira  piedade. 

IX. 

E  quando  o  agradecido  peito  humano 
Agradecera  a  ElRei  tal  beneficio, 
Estes,  que  do  Baxá  falso  e  t/yrano 
A  doutrina  seguião  e  o  exercício, 
Trabalhão  por  lhe  dar  o  ultimo  dano 
Cheios  também  do  cubiçoso  vicio  ^ 
Cercão-lhe  logo  as  casas  em  que  habita 
Com  súbito  furor,  com  alta  grita. 


Dâo-lhe  hua  bateria  áspera  e  horrenda 
Desejosos  d^abrir  ao  alto  a  entrada. 
Jireve  espaço  durou  esta  contenda 
jlintre  a  gente  feroz,  e  a  amedrontada, 
Q-ue  como  nao  ha  dentro  quem  defenda 
Abrirão  facilmente  larga  estrada. 
Entra  logo  a  perversa  turba  ingrata, 
Tudo,  sem  resistência,  desbarata. 


4  li. 


OIÍUAS    DE    IliANCISCO   D  ANDRADE. 


Ctue  este  inesperado  mal,  e  repentino 
D%jnde  esperavão  graças  e  louvores, 
D''hua  tal  confusão,  tal  desatino 
Encheo  daquella  terra  os  moradores, 
Q.ue  nem  esprito  então  houve,  nem  tino 
Nos  que  pudérão  ser-lhe  defensores, 
Para  que  a  aguda  espada  e  a  lança  tesa 
Podesse  então  fazer  qualquer  defesa. 


Vendo  o  mísero  Rei  hum  tal  perigo 
(De  que  estava  seguro  e  descuidado) 
Gluando  das  boas  obras,  que  atraz  digo, 
Cuidou  ser  do  Baxá  remunerado. 
Sem  defensão  se  entrega  a  seu  imigo 
Inda  nas  mesmas  obras  confiado, 
Nas  quaes  de  vida  têe  mais  esperança 
Gtue  na  mor  defensão  d 'espada  e  lança. 

XIII. 

lievSo  logo  ao  Baxá  o  Rei  ja  preso 
Os  Soldados  com  pressa  não  pequena, 
O  qual  em  crueldade  e  fúria  aceso 
Sem  replica  ao  mortal  laço  o  condena. 
Ja  do  misero  Rei  o  frio  peso 
Pendurado  se  vê  da  longa  entena, 
E  apoz  isto,  por  mais  desaventura, 
Na  porta  da  Cidade  se  pendura. 


<3    rniMEIHO    CERCO    DE   DIU.  ii3 


Nem  paga  o  triste  Rei  só  com  a  vida, 
Q-ue  este  só  da  crueza  foi  o  efíeito, 
A  cubica,  de  bens  que  he  só  homicida. 
Também  cjuer  sua  parte  neste  feito: 
Logo  a  Cidade  a  saque  foi  mettida 
Com  tal  desejo  em  todos  de  proveito 
Q.ue  nem  a  pobre  presa  nella  fica 
Q-uanto  mais  ouro,  prata,  e  a  jóia  rica. 


Nào  pode  aqui  o  Baxá  ter  soffrimento, 
€Lue  igual  têe  a  cubica  á  crueldade, 
E  sem  lhe  ser  então  impedimento 
Disposição  pesada,  longa  idade, 
Salta  da  gale  em  terra  n^hum  momento 
E  põe-se  a  hua  das  portas  da  Cidade, 
Porque  nenhiia  cousa  delia  venha 
"  Km  que  elle  ou  parte,  ou  tudo  então  não  tenha. 


Eis  logo,  á  baixa  presa  obediente. 
Com  apressado  passo  mais  que  tardo, 
Se  vem  chegando  á  porta  aquella  gente 
Pouco  antes  mais  feroz  que  o  leão  pardo  : 
Q.ual  das  mãos  o  grão  sacco  traz  pendente. 
Qual  nos  hombros  sustenta  o  grosso  fardo, 
Gtual  o  ouro  e  a  jóia  traz  ao  peito  atada, 
O  peior  k)gar  tee  agora  a  espada. 


41  6      OunAS   TíV.   FBAKCISCO   I>\4NDnA.DF. 

XVII. 

?if;í«i  iinm  estes  hons  logfao,  que  ganliáríio 
Co^os  SP11S  braços  cruéis,  quanto  esforçíidos, 
Porque  tanto  que  á  porta  elles  chegarão, 
E  por  seguros  se  hao,  e  descansado», 
í^om  perigo  maior  então  toparão. 
Porque  d»  Baxn  todos  sao  buscados, 
Glue  o  dijihoiro  Uies  toma,  e  quanto  via 
De  pre^o,  e  so  lhes  deixa  o  sem  valia. 

XVIII. 

Hecolbe  assí  do  livre  e  do  captívo 
ColciniTio  do  oiiro  e  prata  hiia  grãa  Copia, 
Mas  mor  a  recolhpo  d'hum  ódio  vivo 
Co'a  gente  natural,  e  co''a  sua  propia :, 
Qlmc  debaix-O  do  ardente  Sol  estivo 
Não  fervo  tanto   a  areia  da  Ethiopia, 
Q-uaiito  liuns  e  ontro3  em  ódio  estão  fervendo 
Todos  porque  roubados  se  estão  vendo. 

XIX. 

A  Cidade,  que  vé  dados  em  presa 
Seus  bons  d'hum  duro  imigo,  e  d<  sliumano, 
Fica  (pois  mais  nao  pode)  em  ódio  anosa 
Contra  o  authOr  deste  mal,  ímpio  e  tyrano. 
Os  Soldados,  que  vêem  que  desta  empresa 
Outrem  leva  o  proveito,  elles  o  dano, 
Também  se  enchem  d''hum  ódio  assaz  furioao 
Contra  hum  tal  Capitão,  tao  cubiçoso. 


o    PIlIMEIllO    Cr.IlCO   DE    DIU.  M' 

XX. 

Acabado  o  cruel  feito  desta  arte 
C\nn  damno  universal,  só  seu  proveito, 
Passados  quinze  dias  d^alli  parte 
Odioso  aos  Soldados  mais  que  acceito  : 
K  despregando  as  vellas,  e  o  estandarte 
liii  para  a  índia  o  Baxá  se  vai  direito, 
Com  toda  a  bem  provida,  grossa  frota, 
K  do  Porto  de  Diu  segue  a  rota. 


Porém  antes  que  as  vellas  no  ar  despregue, 
K  com  a^uda  proa  as  ondas  fenda. 
Deixa  a  Baram  Baxá  a  Cidade  entregue 
(O  que  Janizaro  era)  que  a  defenda  ^ 
E  porque  mais  ousado  se  encarregue 
Daquclla  defensão  que  lhe  encommenda, 
libe  deixa  alli  duzentos  defensores 
De  trabalho  e  perigos  soffrcdores. 


E  como  da  cubica  e  tyrannia 

Nem  inda  está  segura  a  pouquidade, 

Três  náos  de  Malabares  qtie  alli  havia 

Não  escaparão  desta  tempestade  : 

Toma-lh'as  Çoleimão,  e  á  companhia 

Daquella  sua  grande  quantidade 

De  vellas  as  ajunta,  fornecidas 

Do  que  estão  para  esta  ida  mal  providas. 


418      Or.UAS   I>E   ÍRiNCISCO   d'anduai)k. 
XXIII. 

A  spgunda  rasâo  qiio  iipsta  guerra 
Move  o  Baxá  que  a  Diu  a  proa  traga. 
Mais  que  a  outra  fortaleza,  das  que  emtrr; 
Em  si  a  oriental  remota  plaga, 
Foi  o  infiel,  que  Itália  deu  á  terra, 
Q.uiçá  tendo  inda  n^alma  viva  a  chaga 
Do  que  aqui  recebeo,  e  agora  estuda 
Podor-se  bem  vingar  com  tal  ajuda. 


Kste,  que  do  Senhor  que  atraz  he  dito 

duo  de  Azebibc  tev<'  o  mando  antigo, 

E  em  mãos  de  Çoh-iuiâo  rendeo  o  espirito, 

Era,  além  de  parente,  grande  amigo  ^ 

Tor  muitas  vezes  ja  lhe  tinha  escrito 

ChIuc  se  a  armada  que  os  Turcos  traz  conisigo 

A  índia  acaso  vir  determinasse 

Com  que  viesse  a  Diu  trabalhasse. 

XXV. 

Pois  se  alguém  conquistar  o  sceptro  tinha 
Do  Indico  senhorio  em  pensamento, 
Ter  aquella  Cidade  lhe  convinha 
Por  dar  mais  fácil  fim  a  seu  intento; 
A  qual  he  forte  assaz,  e  ao  mar  visinha 
E  posta  de  toda  a  índia  a  barlavento, 
Com  bom  porto,  e  logar  assaz  conforme 
Em  que  a  náo  destroçada  se  reforme. 


o    PRlMEinO   CERCO    DE   DIT.  Ul) 

XXVI. 

Em  Azebibe  foi  ãàáo  esto  aviso 

Ao  Baxá,  que  ao  Rei  morto  foi  mandado, 

E  pesando-o  com  grão  discurso  e  siso, 

E  ante  os  seus  Capitães  apresentado, 

A  nenhum  pareceo  digno  de  riso. 

E  do  que  ouvio  em  sonhos  bem  lembrado 

Eaz  com  nova  esperança  esta  jornada, 

Que  largamente  atraz  deixo  contada. 

xxvií. 

De  Zeíiro  entretanto  o  sopro  brando 
Enchia  o  Turco  linho,  antes  vazio, 
E  sempre  Çoleimao  mais  desej;indo 
Penetrar  de  Cambaia  o  senhorio  : 
Pouco  a  pouco  se  lhe  hia  ja  cheorando 
Quando  lhe  apparece  hum  subtil  navio 
Que  vem  a  elle  direito  lá  da  terra 
Com  mais  signaes  de  festa,  que  de  guerra. 

XXVIII. 

Este  a  Cojaçofar  em  si  trazia 

(Assaz  he  conhecido,  bem  o  creio) 

No  qual  tudo  descobre  a  alta  alegria 

De  que  o  perverso  peito  leva  cheio  : 

O  anafil,  o  estandarte,  a  artilharia, 

O  concerto  da  fusta,  o  seu  arreio, 

Que  vendo  hum  tal  soccorro,  ja  tào  perto, 

O  íim  dos  Portuguezes  têe  por  certo. 


4á0      OURAS    DE    FRANCISCO    D^ANDRADl?. 


Forra  a  armada,  e  ao  Baxá  feito  presente 
Coin  esta  festival,  leda  apparencia, 
Lhe  dá  conta  de  si  primeiramente 
Apoz  toda  a  devida  reverencia. 
Louva-lhe  logo  a  armada,  louva  a  gente. 
As  obras,  a  tenção,  a  alta  potencia, 
Glue  nada  então  lhe  esquece  do  que  entende 
Glue  ajudará  ao  fim  do  que  pertende. 

XXX. 

Aconselha-o  de  novo,  antes  o  incita 

Q.ue  contra  Diu  lá  faça  a  jornada, 

E  entrar-se  a  fortaleza  facilita 

l^or  quão  pouca  era  a  gente,  e  mal  armada 

Glue  para  defende-la  nella  habita, 

E  da  contínua  guerra  ja  cansada 

Glue  elle  fez,  com  que  falta  vai  sentindo 

De  quanto  a  defensão  lhe  está  pedindo. 


Do  Italiano  a  rasão  se  segue  e  acceita 

Que  guarda  o  que  Mafoma  ou  manda  ou  tolhe, 

Com  mór  gosto  o  Baxá  faz  ir  direita 

A  armada  a  Diu,  e  em  breve  lá  a  recolhe^ 

Da  proa  o  curvo  ferro  ao  mar  se  deita, 

Cahe  logo  a  entena,  a  vella  ja  se  encolhe, 

As  Luas  poios  ares  ja  se  estendem, 

O  anafil  e  o  canhão  os  ares  fendem. 


o  PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  421 


Mas  nao  chega  aqui  tanta  quantidade 
De  vellas,  como  de  Adem  ja  partirão, 
Gue  seis  delias  por  força,  e  por  vontade, 
Differente  caminho  então  seguirão : 
Assi  porque  de  grossa  tempestade 
Hum  furioso  encontro  então  sentirão, 
Como  porque  o  Baxá  mais  furioso 
Era,  que  o  grosso  mar  tempestuoso. 


Hum  dosséis,  que  era  hum  forte  ebem  armado 
Galeão,  lançou  na  índia  a  onda  marinha 
Lá  nos  Ilheos,  a  quem  de  si  tee  dado 
O  nome  a  sempiterna,  alta  Rainha, 
Onde  hum  forte  varão,  qne  era  chamado 
Soutomaior  d^alcunha,  e  nome  tinha 
Do  glorioso  António,  corta  o  largo 
Mar  em  fustas  subtis  que  tèe  a  cargo. 

XXXIV. 

Conhece  este  o  navio,  a  elle  se  lança, 
Q-ue  hum  imigo  furor  o  move  e  acende. 
Seu  desejo  com  grão  trabalho  alcança, 
G.ue  o  Turco  com  grãa  força  se  defende  i 
Mas  vendo  que  em  vão  move  a  espada  e  lança 
Ao  Portuguez  imigo  emfim  se  rende. 
Depois  d''hum  dia  inteiro  de  batalha. 
Em  que  d'hum  e  outro  sangue  assaz  s'espalha. 


422      OBRAS    DE    FRANCISCO    D^ANDKADE. 
XXXV. 

Tomado  o  galeão,  nelle  se  acharão 
Dos  Turcos  que  elle  dentro  em  si  levava 
Alguns  que  acaso  vivos  escaparão 
Lá  d''entre  a  Lusitana  fúria  hrava, 
Q-ue  ao  Soutornaior  denunciarão 
Da  armada  que  lá  a  Diu  navegava  : 
KUe  a  Goa  os  faz  ir  com  pressa  grande 
Porque  a  certeza  disto  ao  Cunha  mande. 


Mas  á  armada  outra  vez  quero  voltar-me 
Onde  outra  vez  me  inanda  ir  o  meu  canto, 
Porque  hum  tal  caso  lá  vejo  esperar-me 
Q-uiçá  causará  duvida  e  espanto^ 
E  se  cousa  podia  cá  mostrar-me 
O  que  lá  determinava  o  Suniuío  Santo, 
Esta  que  contarei,  claro  podia 
Mostrar  a  perdi(;ào  dos  de  Turquia. 


A  noite  que  esta  armada  aqui  chegara, 

ôtjando  a  segunda  vella  hia  passando, 

Hfia  trave  de  fogo  se  vio  clara 

Lá  da  Cidade  os  ares  vir  cortando, 

A  qual  sobola  imiga  armada  pára, 

E  por  todas  as  partes  scintillando 

Vivas  chammas  está  de  ardente  lume  M 

Até  que  sobre  os  Turcos  se  consuiue.  9 


o    l'UlMElRO    CliUCO    DK    DIU. 


XXX\II1. 


i2;> 


Geral  espanto  disto  se  concebe 

Mas  vário  parecer,  juizo  diverso, 

Q-ual  por  fácil  agouro  isto  recebe, 

Glual  o  ièe  por  funesto  agouro  adverso: 

Confiança  o  Christào,  e  alento  bebe, 

Arreceio  o  infiel  Turco  perverso, 

Mas  trata  hum  e  outro  então  d'aperceber-se 

Glual  para  commetter,  qual  defender-se. 


Nas  orelhas  bua  alta  voz  me  soa 

Do  Silveira  de  lá  da  fortaleza, 

O  qual  em  conhecendo  a  Turca  proa, 

K  vendo  seu  poder,  sua  grandeza, 

Q.ue  he  muito  mor  que  a  fama  apregoa, 

Nao  perde  a  costumada  fortaleza, 

Antes  lhe  aviva  mais  o  esforço  antigo 

A  grSa  necessidade,  o  grão  perigo. 


Trabalha  com  a  sua  alta  prudência 
Remediar  as  faltas  que  entào  sente, 
Para  o  qual  com  graa  pressa  e  diligencia 
As  estancias  entrega  á  nobre  gente. 
Varões  a  que  bua  dura  resistência 
Os  fortes  peitos  seus  movem  somente  ^ 
Niío  os  nomeio  aqui,  que  em  breve  espaço 
Os  virá  a  nomear  seu  forte  braço. 


^'2Í      OBRAS   DE    FKANCISCO     D^ANDRADE. 
XLI. 

Glualquor  delles  a  estancia  remedeia 
Como  melhor  então  pode,  e  imagina, 
Q.ue  inda  qiic  a  imij^a  fúria  se  arreceia 
Refrea-la  porém  se  determina  : 
ôual  yjunta  a  estacada,  qual  a  ameia, 
Q-ual  com  agua  a  capaz  e  grossa  tina, 
Nenhua  cousa  então  alli  fallece 
Com  que  hum  fraco  logar  se  fortalece. 


Bepara-so  também  o  baluarte 
Glue  o  da  Villa  dos  Rumes  ser  diziao, 
líá  onde  setenta  homens  o  estandarte 
De  Francisco  Pacfieco  então  seguiào  : 
E  porque  elle  assentado  estava  em  parto 
Onde,  durando  o  cerco,  não  podião 
Soccorrê-lo  a  miúdo,  se  lhe  lança 
Então  do  que  ha  mister  grande  abastança, 

XLIII. 

Provido  desta  sorte,  e  reparado 
Q.uanto  na  fortaleza,  e  fora  lia  via, 
Çoleimão,  s<)ber])o  inda,  e  confiado 
Na  gràa  copia  de  gente  que  trazia, 
Por  mostrar  seu  poder  ao  baptisado 
Povo,  em  appa recendo  o  novo  dia 
Setecentos  Janizaros  em  terra 
Manda  saltar,  dos  mais  doutos  na  guerra. 


o  rniaiEiKO  ckuco  de  div.  r-:o 

XLIV. 

Sahe  a  turba  feroz,  prosumptuosa, 
Mostrando  a  natural  soberba  em  tudi). 
Com  várias  sedas  vai  rica,  e  lustrosa, 
O  uai  setim,  qual  brocado,  qual  velludo, 
Branco,  amarello,  azul,  o  a  côr  da  rosa, 
Fj  quantas  soube  acbar  cnçenlio  o  estudo, 
E  com  tão  vário  arreio  e  sumptuoso 
Dá  espectáculo  beilo,  e  temeroso. 

XLV, 

Nas  cabeças  hiins  feltros  vão  mostrando 
(Insígnia  dos  Janizaros  Soldados 
Com  que  se  estão  dos  outros  divisando) 
iiixe  t!m  todos  são  de  fino  ouro  bordados^ 
Dos  quaes  ao  Ceo  se  vão  alevantando 
DiíTerentes  plumagens,  que  tocados 
l)''hum  brando  ventosinbo,  então  Ibes  davão 
Grão  lustro  aos  atavios  que  levavão, 

XLVI. 

Marcha  a  turba  arrogante  á  fortaleza 
Porque  em  tomá-la  ja  cuida  que  tarda, 
Dos  quaes  qual  se  vô  então  com  grãa   destreza 
O  curvo  arco  tratar,  qual  a  espingarda  : 
Tr;iz  esta  alta  arrogância,  esta  braveza 
i\enhum  lá  na  Cidade  dentro  aguarda 
Dos  que  alli  da  infiel  Cauibaia  terra 
*VriPf%c  antes  Alucuu  paru  esta  guerra. 


426      OBRAS    DE   FHANCISCO   d'^ANDIIADZ. 
XLVII. 

Huns  então  traz  si  leva  a  confiança 
De  mostra  tão  feroz,  e  embravecida, 
Esperando  de  verem  sem  tardança 
Entrada  a  fortaleza,  e  destruída  ^ 
Outros  que  a  Portugueza  forte  lança 
Tinhão  melhor  tratada,  e  conhecida, 
Vão  por  ver  em  que  pára,  ou  em  que  cessa 
Tal  determinação,  tão  grande  pressa. 

XLVIII. 

Gtual  soe  quando  o  penedo  antigo  e  duro 
Encontra  a  alevantada  onda  marinha, 
Achando-o  sempre  mais  firme  e  seguro 
Humilhar  o  furor  com  que  antes  vinha  ^ 
Tal  chega  esta  soberba  gente  ao  muro 
Gtue  por  indefensável  então  tinha. 
Porém  acha  lá  quem  tão  mal  a  trate 
due  com  seu  dam  no  a  fúria  humilha  e  abate» 

XLIX.. 

Chega  logo  a  feroz,  soberba  gente 
Ou  a  espingarda  ao  rosto,   ou  o  arco  ao  peito, 
Sahe  a  frecha  subtil,  e  o  chumbo  ardente 
E  contra  o  Christão  muro  vai  direito  : 
Não  fica  então  de  todo  descontente 
O  Turco  deste  sou  primeiro  feito, 
Porque  a  seis  dos  Christãos  a  vida  tolhe 
E  a  vinte  faz  que  o  próprio  sangue  moUie» 


Xt   PRtMElRO    CERCO   DE   DIU.  427 


Não  lhe  tarda  o  castigo  deste  ufano 
È  venturoso  seu  contentamento, 
Porque  como  entre  o  povo  Lusitano 
A  espingarda  também  três  vezes  cento 
Movem  com  grãa  destreza,  vendo  o  dano 
Q.ue  ihe  fez  o  infiel  ajuntamento, 
Qualquer  delles  sahir,  em  ódio  aceso. 
Faz  da  espingarda  o  ardente,  mortal  peso. 

LI. 

Em  meio  da  infiel,  soberba  banda 
Da  Janizara  gente  se  apresenta, 
Cincoenta  almas  ao  Reino  Stigio  manda,, 
De  muitos  só  co'o  sangue  se  contenta. 
Ja  teme  o  que  era  ousado,  ja  não  anda 
Confiado  qual  soe,  mas  s6  ja  attenta 
Por  logar  d^onde  então  sem  seu  perigo 
Mande  o  chumbo  mortal  ao  muro  imigo* 

LIl. 

Apartada  com  isto  esta  primeira 
Damnosa,  inda  que  breve  bateria, 
Fica  esta  nova  gente  por  fronteira 
A.  voltas  da  outra  antiga,  que  seguia 
Do  Italiano  Mouro  hoje  a  bandeira, 
A  qual  (como  ja  atraz  disse)  seria 
Cópia  de  treze  mil,  e  neste  conto 
Os  que  d'Alucão  tinha  ^  também  contch 


i^líS      OTRAS    DE   FXíAKCrsCO  d'aKR«ADE. 


%j-á  para  a  armada  o  Turco  o  rosto  voUa 

Menos  ufano  ja,  mais  rcceioso, 

K  tanto  que  de  novo  a  usada   volta 

(^oméíj'a  o  grão  planeta  luminoso, 

])e  lá  do  meio  dia  a  prisão  solta 

Kolo  ao  feroz  Austro  impetuoso^ 

í?ahe  logo  a  embravecida  fúria  ineliada^ 

Da  nuvem  grossa  e  negra  acompanhada» 

I.IV. 

Vai  com  liimi  apressado  curso  leve 
Polo  marinho  assento  discorrendo, 
Ki*  se  incha  a  onda,  que  ma  usa  antes  esteve, 
K  vai-se  em  grossa  escuma  revolvendo, 
Kis  se  abre  o  Ceo,  e  mostra  o  raio  breve, 
ÍMiccede  do  trovão  o  estrondo  horrendo, 
Encobre-se  do  Sol  a  claridade, 
C!'ria-sc  a  furiosa  tempestade. 


XV. 

Km  breve  a  grãa  tormenta  lá  appnrece 
(^nde  esta  imiga  armada  anies  surgira, 
A  mansa  se  engrossa  c  se  embravece 
Do  negro  Sul  sentindo  a  fúria  e  a  ira. 
Teme  o  Turco,  dí^smaia,  e  se  entristece, 
Alegra-se  o  Ciirisfão,  roga  e  suspira 
Inda  a  Deos  <pie  accrescente  o  bravo  Noto. 
l*<)]a  bonança  faz  o  Turco  voto. 


o    PRIMEIRO   CEltCO   DE   DIU.  429 

LVI. 

Cresce  ,1  revolta,  quanto  cresce  o  vento, 
tíLue  cada  hora  mais  bravo  o  mar  combate. 
Porém  não  se  descuida  hum  só  momento 
O  comitre  infiel  neste  combate. 
Ja  se  curulha  o  longo  palamento 
Também  o  grosso  mastro  ja  se  abate, 
Cahe  de  novo  da  proa  o  férreo  dente 
Dcsnpparece  do  alto  toda  a  gente. 

LVII. 

O  l^iloto  também  no  alto  navio 

3'nra  poder  salvar-se  tudo  ordena, 

L(nanta  a  rouca  voz,  de  temor  frio, 

Jjança  ao  mar  nova  amarra,  desce  a  entena  í 

K  o  que  se  sente  d'agaa  mal  vazio. 

Com  revezada  força,  e  não  pequena, 

Meneia  a  fedorenta,  longa  b;^mba. 

Km  quanto  a  alevantada  onda  retomba. 

LVIII. 

Alguns  bateis  pequenos  que  se  vírao 
Ir  e  vir  lá  da  terra  para  a  armada, 
A  que  as  ondas  então  não  permittírão 
A  terra,  ou  aos  navios  a  chegada, 
l*ouco  a  tamanha  fúria  resistirão, 
Alagou-os  a  soberba  onda  salgada  : 
Os  tristes  que  alli  pôz  a  adversa  sorte 
Bebem  a  voltas  d 'agua  a  triste  morte. 


530      OBKAS    DE   FRANCISCO   dVnBRADE» 


Fez  o  vento  feroz,  do  furor  clieio 
Q,ne  a  tormenta  hum  espaço  alli  durasse, 
Com  que  a  muitos  a  morte  sobreveio^ 
E  a  todos  grão  temor  que  ella  os  tomasse  \ 
Até  que  o  inchado  Sul,  ja  com  receio 
Q,ue  Neptuno  outra  vez  alli  o  topasse, 
Se  torna  ao  seu  assento  antigo  e  cavo, 
E  deixa  sereno  o  ar,  manso  o  mar  bravo. 


tx. 

Vendo  o  Turco  de  todo  despedidci 
A  tormentosa  fúria,  que  o  porsegutí^ 
Com  que  a  armada  vio  quasi  perdida 
E  a  si  cada  momento  á  morte  entregue  \ 
Com  quanto  de  a  ver  salva  e  a  si  com  vida 
Dá  graças  a  Mafoma,  que  honra  o  segue. 
Não  esperar  alli  propõe  comsigo 
O  segundo  furor  do  vento  imigo. 

ixi. 

lí  quando  o  novo  Sol  solta  a  ligeira 
Roda  lá  no  Oriente,  porque  siga 
De  novo  a  costumada  sua  carreira 
Com  que  fugir  a  negra  sombra  obriga, 
Temor  de  fúria  igual  á  outra  primeira 
D'alli  faz  abalar  a  armada  imiga  : 
Ja  se  recolhe  o  ferro,  ja  se  estende 
A  vella,  o  remo  cahe,  o  mar  se  fende. 


o    PRIMEIRO    CERCO    UE   DIU.  431 


Corta  a  frota  infiel  inda  arrogante 
Contra  Madrafabat  a  onda  marinha, 
Rio  que  da  Cidade  estar  distante 
Cinco  léguas,  ja  disse  a  historia  minha  ^ 
E  não  sendo  passada  ainda  avante 
A  fortaleza  vio  assaz  visinha, 
Faz-lhe  a  devida  salva  e  cortezia 
Co\)  furor  da  mortal  artilharia. 


Sahe  o  redondo  ferro  que  se  esconde 

lÁ  no  bronzo  infiel,  com  graa  braveza, 

Cortando  os  ares  vai  direito  aonde 

A  fortaleza  está,  com  graa  presteza. 

Co^j  mesma  cortezia  lhe  responde 

O  bronzo  Portuguez  da  fortaleza, 

Mas  não  acho  que  houvesse  hoje  algum  dano, 

Oh  no  povo  iníiel,  ou  no  profano. 

LXIV. 

Seu  caminho  os  navios  nao  deixarão,      I 
Revolvo  o  remo  o  mar  com  vosra  lar^a, 
l^otico  a  entrar  no  rio  então  tardarão, 
O  cansado  Remeiro  o  remo  larga. 
Mas  todos  os  navios  não  entrarão 
No  rio  então,  que  quatro  dos  de  carga 
Ao  entrar  se  perderão,  e  o  que  resta 
Entra  com  grão  prazer,  com  grande  festa* 


432      OBRAS   DE   FHÂKCISCO   d'aNDRADE, 


LXV. 


Esta  entrada  de  todos  se  festeja 
Porque  de  gosto  à  todos  encheo  a  alma, 
Nao  ha  ja  quem  do  mar  medroso  esteja 
Gtue  aqui  nunca  embravece,  sempre  he  calma. 
Aqui  a  galé  ja  immunda  se  despeja, 
De  novo  aqui  se  alimpa,  aqui  se  espalma, 
A  gente  se  prepara  para  a  empreza 
Glue  toma  contra  a  gente  Portugueza. 


E  como  o  Turco  ufano  pertendia 
Q,ue  aquelle  baluarte  sinta  a  brava 
Força  da  sua  primeira  bateria 
GLue  da  Villa  dos  Rumes  se  chamava. 
Três  Basiliscos,  e  outra  artilharia 
Q.ue  pelouro  menor  de  si  lançava, 
Faz  Çoleimao  que  saia  logo  em  terra 
Com  que  se  dê  começo  áquella  guerra. 


Manda-la  em  companhia  determina 

Lá  de  Baram  Baxá,  e  d'*outra  gente. 

Com  que  espera  que  tenha  alta  ruina 

O  babiarte  imigo  incontinente. 

Succede-lhe  porém  ao  que  imagina 

Effeito  vário  assaz,  e  differente, 

Q-ue  em  tudo  achou  hum  grande  impedimento 

Para  alcançar  o  fim  de  seu  intento. 


(?)    PRIMEIRO    CERCO   DE   DIV.  43S 

LXVIII. 

Parte  o  Turco  feroz,  que  por  vencido 
O  Christào  tendo  ja,  nada  arreceia, 
Mas  logo  o  faz  ser  menos  atrevido 
D''hua  parte  o  caminho,  d''outra  a  areia, 
Porque  sendo  ella  solta,  elle  comprido, 
E  hum  tão  grosso  canhão  mal  se  meneia, 
Por  mais  força  que  põe,  por  mais  que  estuda. 
Pouco  ou  nada  a  carreta  então  se  muda. 

LXIX. 

Sua  a  gente  porém,  e  mais  se  acende 
Q/uanto  sente  mais  dura  a  resistência, 
Mas  quanto  mais  trabalha,  mais  entende 
Q-ue  em  vão  he  seu  trabalho  e  diligencia. 
O  Capitão,  que  vê  que  em  vão  pertehde 
Com  força,  ou  com  engenho,  ou  com  prudência 
Mover  por  tal  caminho  a  leve  roda, 
Com  a  necessidade  se  accommoda. 

LXX. 

Entre  as  três  grossas  peças  huâ  escolhe^ 
E  outras  que  podem  ser  bem  meneadas 
E  que  a  areosa  estrada  então  não  tolhe 
De  duros,  rijos  braços  ser  levadas  ^ 
As  demais  outra  vez  em  si  recolhe 
A  armada,  d^onde  alli  forão  tiradas, 
E  estas  levarão  sós  para  o  combate 
De  que  espero  que  avante  hum  pouco  trate» 
*  13 


LXXI. 

Vifite  ilíjHS  primeiro  se  passarão 

(rlue  deixe  a  armada  imiga  aqueilu  estancia, 

Ob  (juaes  oeiosameiíte  iião  gastarão 

Os  Turcos,  inda  cheios  d^arro^aiicia  : 

Mas  neste  tempo  tudo  alli  prepárão 

f 'om  í^rão  cuidado  assaz,  grãa  vigilamia, 

^iuanlo  ser  necessário  entào  entendei^ 

l'ara  dar  os  coiiilnites  que  pertendoin. 


'i^ratao  distç  os  rebeldes  á  Igreja  Sant.i 
liaram  e  Mahamud  (bem  se  conliecem), 
IViem  de  dia  e  de  noite  pressa  tanta 
*^uc  em  breve  tempo  feitos  appareceni 
Trinckeira,  bastião,  reparo,  e  manta,. 
ií  «Ui  outras  cousas  mais  q«:e  os  favorecem., 
<Íual  para  a  defensão  da  sua  gente, 
iiual  para  o  cunhào  ter  expediente. 

LXXIIl. 

Knfretanto  não  dorme  a  fortaleza 
4-i.ut'  mostrar  sucis  forças  determina, 
Veiidu  a  preparação,  vendo  a  braveza 
íiue  llie  esiá  ameaçando  alta  ruina  ^ 
Também  com  grão  cuidado,  grãa  prestcjja 
<  >s  intentos  do  imigo  contamina 
(Quanto  soffre  do  tempo  a  brevidade, 
A  pouca  gente,  e  a  grãa  necessidade. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE    DIU.  MV6 

LXXIV. 

Q-Ualquer  porta,  ou  estreita,  ou  espaçosa, 
Q-ue  dá  desfa  Christãa,  fiel  morada 
Sahkla  lá  á  Cidade  irreligiosa, 
Com  grosso  muro  foi  logo  cerrada  : 
Lá  ua  cava  também  funda  e  lodosa 
NSo  faz  ja  a  levadiça  ponte  estrada, 
Dentro  na  fortaleza  posta  fica, 
K  tudo  o  mais  que  importa  se  fabrica* 

LXXV. 

í)iirando  esta  obra  d''hija  e  dVutra  parte 
(^)ni  grão  cuidado  assaz,  com  pressa  immensaj 
Ém  que  30  põe  engenho,  se  põe  arte^ 
(^Lu.d  para  defensão,  qual  para  oííensa, 
Gluer  o  imigo  cruel  que  o  baluarte 
Da  Villa,  o  grlío  furor,  a  fúria  intensa 
(Como  ja  atraz  a  minha  historia  pinta) 
Em  si  do  seu  primeiro  assalto  sinta. 


E  porque  o  eífeito  disto  que  hoje  intentâo 
Mais  fácil  possa  ser,  menos  custoso. 
Hum  grande  estratagema  então  inveutao 
l^e  aspeito  assaz  terrível  c  espantoso  \ 
E  segundo  se  delle  então  contentao 
E  sahe  bem  fabricado  e  curioso, 
Quiçá  lhes  põe  então  mor  esperança 
Do  que  põe  nos  Christãos  desconfiança. 


Í36      OBRAS   DE  FRANCISCO    ©''aNDRADE. 


Louvao-lhe  mais  a  grãa  curiosidade 
Do  que  recebem  delle  algum  espnnto, 
Mas  para  que  o  entendaes,  com  brevidade 
Vo-lo  quer  ir  pintando  este  meu  canto. 
Hua  barcaça  havia  na  Cidade 
Glue  ja  de  Baudur  fora,  capax  tanto 
Q.ue  ella  somente  as  náos  descarregava^ 
A  qual  mui  grandes  pesos  sustentava. 

LXXVIII. 

ArmSo  neste  navio  grande  altura 
De  madeira,  qual  cumpre  neste  feito, 
Q^ue  mostrando  da  casa  está  a  figura 
A  que  se  vê  faltar  por  cima  o  teito  : 
Cheia  logo  se  vê  do  grâa  mistura 
De  matcriacs  vários,  cujo  eífeito 
Por  fedor,  ou  por  fumo  mal  se  sofre, 
Q.uaes  são  salitre,  rama,  esterco,  enxofre. 


txxix. 

Sendo  feita  de  todo  a  alevant-ida 

Maquina,  horrenda  mais  que  inexpugnável, 

Fica  em  meio  do  rio  situada 

Firme  com  quatro  amarras,  e  immudavel, 

Esperando  que  alli  f;<ea  tornada 

O  alternado  das  ondas,  e  incansável 

Movimento,  que  as  aguas  vivas  traga 

Com  que  o  mar  em  mor  copia  a  praia  alaga  ; 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  437 


Para  que  ao  muro  então  possa  encostar-se, 

E  se  lhe  chegue  então  a  chamma  ardente. 

Com  cujo  favor  crêem  pader  tomar-se 

Aquelle  bahiarte  facilmente, 

Ou  quiçá  sem  a  espada  menear-se, 

Sem  perda,  ou  danmo  algum  da  sua  gente  : 

(^rôem  que  sd  poderá  tanto  a  fumaça 

Q.ue  lhes  dará  a  \ictoria  então  de  graça. 

LXXXI. 

Com  quanto  a  Christãa  gente  lá  imagina 
Ksta  obra  d'apparato  mais  que  dano. 
Fazer  porém  queima-la  determina 
Antes  que  as  aguas  vivas  traga  o  Occeano  ^ 
Não  porque  delia  então  tema  a  ruina 
i^lue  procura  o  infiel  povo  profano, 
Senão  para  ellc  ver  que  em  vão  pertende 
Render  a  manha,  a  quem  força  não  rende, 

LXXXII. 

Tendo  o  Silveira  ja  determinado 

Glue  este  arteíicio,  que  elle  não  receia, 

Sitita  o  furor  em  si  que  foi  tirado 

Com  força  do  fuzil,  da  djira  veia, 

O  car2;o  disto  lojío  encom mondado 

Foi  por  elle  a  Francisco  de  Gouveia, 

Nobre  varão,  cujo  esforçado  peito 

Mais  se  ale^ira  que  espanta  co'o  grão  feito. 


438      OBRAS   DE   FRANCISCO   d''aNDRAD£, 
LXXXIII. 

Nem  somente  esta  empresa  lhe  recebe 
Mas  por  grão  beneficio  lh'a  agradece, 
Q.ue  ter  d"*aqui  grâa  parte  em  si  concebe 
Do  louvor  que  co^as  armas  se  merece. 
Com  grãa  pressa  e  cuidado  se  apercebe 
De  quanto  necessário  lhe  parece, 
Duas  fustas  provê  de  tudo  logo 
Em  que  leve  á  barcaça  o  Christão  fogo» 

LXXXIV. 

E  quando  a  occidental  onda  marinha 

As  douradas  do  Sol  rodas  banhava, 

E  de  ursos,  cabras,  serpes  ao  Ceo  vinha 

A  luz,  que  a  mor  luz  antes  apagava, 

O  Gouveia,  que  em  tudo  o  que  convinha 

Para  este  feito  ja  prestes  estava. 

Faz  que  da  subtil  fusta  logo  caia 

E  mansamente  as  ondas  corte  a  faia. 

LXXXV. 

E  inda  que  hum  tenebroso,  escuro  manto 
O  claro  raio  aos  olhos  impedia, 
E  elle  então  navegando  hia  com  quanto 
Silencio  em  tal  logar  se  permittia, 
Encubrir-se  porém  não  pôde  tanto 
Q-ue  do  Turco,  que  o  rio  assaz  vigia, 
Não  fosse  naqueirhora  emfim  sentido, 
Soa  o  infiel  clamor  com  grão  ruido» 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  439 


Eis  se  revolve  o  campo,  eis  se  vai  pondo 
Xiá  pola  praia  a  gente  alvoroçada, 
Dá-se  fogo  ao  canhão,  com  bravo  estrondo, 
Sahe  a  chamma  de  fumo  acompanhada-, 
Sahe  com  ella  o  mortal  ferro  redondo, 
Onde  a  morte  cruel  faz  á  morada, 
E  caminhar  direito  lá  trabalha 
Onde  o  remo  Christão  o  rio  espalha. 

I,XXXVII. 

De  cá,  de  lá  o  infiel  canhão  não  cessa 

Qiue  impedir-lhe  o  caminho  então  pertende, 

E  esta  continuação,  esta  grãa  pressa 

Tanto  fogo  na  escura  noite  acende, 

Glue  Phebo  a  seu  pesar  mesmo  confessa 

Glue  a  sua  luz  maior  hoje  se  rende 

A  luz  que  a  artilharia  de  si  deita 

Glue  inda  hemais  que  a  do  Sol  clara  e  perfeita. 

LXXXVIII. 

Mas  nem  com  tão  mortal  fúria  medonha 
Pode  tanto  o  canhão  bravo  e  espantoso, 
Q-ue  ou  arreceio,  ou  duvida  então  ponha 
Naquelle  Portuguez  peito  animoso : 
O  esforço  natural  junto  á  vergonha 
lie  tanto,  que  os  canhões  mais  furioso, 
Q-ue  o  sulfúreo  furor  não  he  bastante 
A  fazer  que  elle  então  não  passe  avante» 


440      OBUAS    DE   FRANCISCO    D^ANITRADE. 


Rompe  por  ferro  e  fogo  aquelle  ousado 
Peito,  mais  forte  que  hum,  mais  que  outro  iicx 
E  tanto  que  á  barcaça  foi  chegado, 
Qluí*  de  ninguém  lho  pode  ser  defeso, 
Faz  logo  o  que  lhe  foi  encommendado, 
Dá  por  mil  partes  fogo  ao  grosso  peso ; 
Bebe-o  a  secca  matéria,  e  dentro  o  chama, 
Sahe  logo  o  negro  fumo,  e  a  roxa  chama. 


Alguns  a  que  a  profana,  imiga  gente 

Para  guarda  puzí>ra  do  navio, 

Em  sentindo  o  furor  da  rhamma  ardentí 

Poios  ossos  Ihoá  corre  hum  teuior  frio, 

E  por  fugir  ao  mal  que  tèe  presente 

Sem  detença  se  lançào  logo  ao  rio  ^ 

O  que  tinhao  a  cargo  desampárào 

E  inda  elles  com  trabalho  se  salvarão. 


Nem  contente  de  ver  que  era  ja  agora 
A  grãa  chamma  voraz  em  alto  erguida. 
Sendo  tal  o  perigo  naquell'hora 
Q,ue  entre  mil  mortes  tèe  hua  so  vida, 
Comtudo  faz  alli  tanta  demora 
Gouveia,  até  que  em  cinza  convertida 
A  gràa  maquina  seja,  onde  a  profana 
Perenne  artilharia  não  lhe  dana. 


o    nilMEIKO    CEllCO    DE   DIU. 


XCII. 


4il 


Mas  vendo  que  tee  ja  posto  cm  oíUnto 

Da  perigosa  empresa  o  heróico  intento, 

in^illi  se  move  então,  e  lá  direito 

A  fortaleza  faz  o  movimento  ^ 

Onde  em  novo  ódio  aceso  o  infiel  peito 

Faz  que  o  canhão  não  cesse  hum  so  momento, 

Mas  quem  mal  o  acertou  á  ida  primeiro 

Não  foi  depois  na  vinda  mais  certeiro. 


Passa  o  Gouveia  em  salvo  polo  meio 
D'odio,  d''ira,  de  fogo,  ferro,  e  morte, 
E  se  lá  dentro  sente  algum  receio 
3V'm  o  encobre  de  fora  o  peito  forte. 
A  fortaleza  emfim  sem  dam  no  veio, 
Onde  mil  graças  rende  a  sua  sorte, 
K  o  Capitão,  e  os  baixos,  e  os  maiores 
O  recebem  com  festa,  e  com  louvores. 

xciv. 

A  fortaleza  neste  tempo  guia 
Dous  eátures  o  vento  amigo  e  brando, 
Hum  que  ao  Governador  obedecia 
E  lá  de  Goa  as  ondas  vem  cortando*^ 
Dentro  hum  nobre  varão  em  si  trazia 
Cuja  alcunha  he  Moraes,  nome  P'ernando, 
íAuc  tèe  no  militar,  heróico  officio 
Grande  esforço  e  sab(;r,  largo  oxorcicio. 


442 


OBHAS    DE   FRANCISCO    D  ANDRADK. 


N'oulro  que  do  Chaul  faz  a  jornada 
Vem  hum,  cujo  apellido  Guelez  era, 
E  o  nome  Pêro  Vaz,  mas  pouco  ou  nada 
Este  na  fortaleza  então  espera  ; 
No  sen  mesmo  cátur  faz  a  tornada 
Para  o  mesmo  Chaul  d\)nde  viera, 
Mandado  do  que  então  o  governava, 
Qnc  Simão  também  Guelez  se  chamava. 


Também  logo  o  Moraes  tornar-se  estuda 
Para  Goa  outra  vez,  mas  resistência 
Acha  no  Capitão,  que  disto  o  muda 
Dizendo  :  Com  qualquer  leve  advertência 
Vereis  quanto  me  importa  agora  a  ajuda 
Do  vosso  grande  esforço,  e  experiência. 
Obedece  o  Moraes  com  grande  pejo 
Aos  rogos  do  Silveira,  ao  bom  desejo. 

XCVII. 

Na  fortaleza  então  dentro  apparece 

O  Pacheco,  a  quem  disso  a  historia  minha 

Gtue  da  Villa  dos  Piumes  obedece 

Agora  o  baluarte,  e  diz  que  vinha 

A  ordenar  tudo  quanto  lhe  parece 

Que  a  quietar  sua  alma  lhe  convinha, 

K  para  a  quietação  sor  verdadeira 

íivKir  dar  ao  testamento  a  ordem  primeira. 


^    PníMP>IR>    CKHCO    IJK    UIV . 


^M 


E  sendo  dovodnr  em  qUauiidádc 
De  dinheiro  ello  ao  Rt>i  de  íjilé  ho  vasenílo, 
Trata  de  o  arrecadar  com  brevidaílft 
Aquelle  a  qvicui  compele  arvocadalio, 
Km  tão  pia  tencao,  pia  votitadt» 
Desejando  tampem  r|"içá  ajudalio". 
Mas  qtioixa-so  elle  disto,  o  mal  o  sofrei 
Q.ue  a  alma  descarreu;ar  vom,  não  o  eofre. 


Solta  sem  fenío  a  língua  asperamente 
Contra  aqnelle  de  qnem  isto  ho  tratado, 
E  á  verdade  o  tempo  era  mais  docente 
Então  a  grangear  qualquer  ousado  : 
Mostra-se  tão  queixoso  e  impaciente, 
Tão  oíVendido  na  honra,  e  tão  dam  nado, 
t^Uí.'  desta  sua  queixa  tão  sobeja 
titual  ri,  qual  escarnece,  qual  pragueja. 


E  posto  ante  o  Silveira,  com  destento 
O  cargo  que  até  então  tinha  lhe  en2;eit.T, 
E  que  o  proveja  diz,  porque  hum  momentt? 
Elle  d'alli  cm  diante  o  não  acceita, 
Heplica  o  Capitão  com  soilVimeíito, 
Aconselha-o,  porem  pouco  aproveita, 
írJlue  o  Pacheco  obstinado  em  sua  «pifixa, 
iC  nisto  que  então  dlic,  se  vai,  e  o  deixa. 


444 


Cl. 


Wão  quiz  o  Capitão  dar-lhe  o  castigo 
Q-ual  merecia  então  sua  soltura, 
Porque  n^hum  tempo  tal,  irhum  tal  perigo- 
líhe  cumpria  soffrer,  e  usar  brandura  : 
Mas  chama  inda  o  Moraes,  intimo  amigo 
Do  Pacheco,  cuja  honra  inda  procura, 
E  que  vá  aconselha-lo  lhe  encommenda 
Porque  hum  tal  erro  possa  ter  emenda. 


Não  faz  isto  o  Silveira  porque  a  ausência 
Deste  homem,  faça  falta  nesta  parte. 
Porque  o  Sousa  Coutinho,  com  vehemencia 
Lhe  pede  a  defensão  do  baluarte  ^ 
Mas  porque  natural  lie  da  prudência, 
E  muito  mais  no  perigoso  Marte, 
Trabalhar  porque  não  caia  em  affronta 
O  Soldado  antes  tido  em  boa  conta» 

cm. 

Vai-se  logo  o  Moraes  a  dar  eíTeito 

A  isto  que  o  Capitão  então  lhe  manda, 

Nem  foi  esta  sua  ida  sem  proveito 

Q,ue  com  muitas  rasões  o  move  e  abranda. 

Dos  conselhos  do  amigo  satisfeito 

O  Pacheco  se  volve  n'outra  banda, 

E  tanto  que  d^Estrellas  o  Ceo  se  orna 

Para  o  seu  baluarte  elle  se  torna., 


o    PRIMEIRO    CERCO    nv.   BTU. 
CIV. 

Poucas  vezes  depois  o  que  a  formosa 
Daphne  fez  converter  em  verde  louro, 
Lá  sohre  a  opaca  terra,  e  ponderosa  , 
Estendera  e  encubríra  o  raio  do  ouro, 
C^uando  na  hora  que  a  Aurora  ruciosa 
Quer  soltar  o  cabello  crespo  e  louro, 
Põe  junto  á  fortaleza  a  aguda  proa 
Hum  cátur  qne  do  lá  vinha  de  Goa. 


Este  por  novas  deu  que  pouco  havia 
Que  ja  na  oriental  praia  aportara 
A  Portugueza  armada,  e  que  trazia 
Hum  novo  Viso-Piei,  também  declara, 
Cujo  nome  diz  que  era  Dom  Garcia 
Da  Noronha,  familia  antiga  e  clara, 
E  diz  que  traz  comsigo  juntamente 
Mui  copioso  poder,  mui  nobre  gente. 


Logo  ao  nobre  Silveira  se  apresenta 
Hua  carta,  que  lá  de  Goa  veio 
Do  Viso-Rei,  que  persuadi-lo  intenta 
Qluc  este  de  confiança  e  esforço  cheio. 
Alegra-se  o  Silveira,  e  se  contenta, 
Cobra  novo  fervor,  perde  o  receio, 
E  sendo  a  nova  em  todos  espalhada 
Com  grãa  festa  e  prazer  foi  celebrada. 


WS 


h  \'6 


Oníí  vS    1)K    rRANíISíO    I)  AM^«\í»K 


O  Fernando,  que  atraz  a  historia  niiiJia 
Disse,  (]ue  têe  Moraos  por  apellido, 
Píírgunta  se  para  elle  carta  vinha 
Do  Viso-Rei.  Não  vem,  lhe  he  respondido. 
Logo  em  publico  diz,  que  pois  não  tinha 
i)  respeito  o  Noronha  a  elle  devido 
Torna r-se  para  Goa  he  seu  intento, 
Nem  tardará  alli  mais  hum  só  momento, 

CYIII. 

Presenta-stí  ao  Silveira  sem  detença, 
Suas  queixas  perante  elle  renova, 
K  pede  que  lhe  queira  dar  licença 
l^ara  se  ir  no  cátur  que  trouxe  a  nova. 
Mostrií-lhe  o  Capilão  quão  mal  pertença 
A  sua  honra  aquella  ida,  e  lh'a  reprova, 
tíLuieá  de  tirar  com  isto  desejoso 
Grãa  matéria  ao  praguentOj  ou  invejoso. 


Mais  insiste  o  Moraes,  aconselhado 
Responde  o  Capitão,  com  ledo  rosto  : 
I-vos,  que  eu  só  me  quero  acompanhado 
De  quem  de  acompanhar-me  têe  grão  gosto. 
Fica  o  Moraes  traz  isto  inda  obstinado. 
Nem  da  sua  tenção  muda  inda  o  posto, 
K  na  hora  que  n'hum  véo  escuro  envolta 
Fica  a  torra,  se  embarca,  e  a  Goa  volta. 


1'Ul.HIJIU  )    CLHCU    DE    DIU.  14i 


No  !i«)l)re  Capitão  loj^o  se  acende 
Jiuai  (Jes«jo  entendido  clafattietitc, 
irkuc  lá  uo  baluarte  que  defendo 
O  Paeheco,  esta  nova  se  apresente. 
Lopo  de  Sousa,  que  isto  delle  entende, 
Ijlie  proinette,  q»ie  quando  o  Sol  luzente 
Descansar  no  maninlio  usado  leito 
Seu  desejo  verá  posto  em  eíTeito. 


Aceeita  o  Capitão  a  honrada  offerta, 
K  com  muitos  lt)uvort!S  lhe  agradece, 
K  em  quanto  o  raio  dVuro  inda  encuberta 
Têe  a  sombra  que  o  claro  ar  escurece 
Tudo  o  Sousa  provê,  tudo  concerta 
Ciuanto  ser  necessário  lho  parece 
l*ara  eflfoito  daquillo  que  queria, 
Armas,  embarcação,  e  companhia. 


N''hua  fusta  que  alli  so  foi  achada 
(Tendo  para  o  que  quer  tempo  opportuno) 
Kntra,  e  com  grão  silencio,  abrindo  a  estrada 
Vai  polo  húmido  assenio  de  Neptuno. 
ISIas  porque  a  mi  ja  cansa,  a  vós  enfada 
Este  Canto,  ja  assaz  largo  e  importuno, 
Cesso  aqui,  porque  cesse  algum  espaço 
O  vosso  enfadamento,  o  o  meu  cansaço. 


o  PHEIIEIRO 

CERCO  DE  DILi. 


Jjopo   de  Sousa  chega  ao  baluarte  de  Fran- 
chco  Pacheco^  e  torna  á  fortaleza  em.  saloo. 
A  armada  dos  Turcos  sahe  de  ]\IadrafaJ)nt^\ 
e  vai  ancorar  em  Diu.  Dá-se  o  conibatc  ao. 
baluarte^  e  o  succeaso  delle.    Contão-se  algu-i 
mas  cousas  que  succedêruo  neste  meio  tampo/' 
(^hega  á  fortaleza  hum,  homem  do  bulnaric 
de  Francisco  Pacheco^  c  a  que  vinha. 


X  arecer  foi  da  douta  antiguidade 
Qiue  não  falta  a  fortuna  ao  atrevimento, 
Isto  abraçou  depois  a  nova  idade, 
Dá-se-lhe  hoje  também  consentimento. 
Ô/U  ai  o  provou  co^o  exemplo  da  verdade, 
Q/Ual  co^o  exemplo  o  provou  do  fingimento^ 
A  poesia  co*o  cjuc  olla  finge  e  inventa, 
A  historia  co''o  qtie  o  tempo  liraprosonta. 


o    PRIMEIUO    CERCO    DE    DIU.  \][) 


Sc  qualquer  escriplor  isto  pertende 

Ou  seja  fabuloso,  ou  verdadeiro, 

No  braço  Portnguez,  a  quem  se  entende 

(riue  nenhum  outro  foi  nunca  primeiro, 

Conhecido  ja  onde  o  Sol  estende 

O  seu  primeiro  raio,  e  o  derradeiro, 

Mil  feitos  acliará  mais  espantosos 

Uue  os  verdadeiros  seus,  ou  fabulosos. 


Feitos,  que  mais  ao  vivo  estão  provando 

<aluanto  ajuda  a  fortuna  á  ousadia 

(^«je  quantos  a  verdade  está  mostrando, 

Ou  quantos  imagina  a  fantasia. 

O  que  agora  começo  de  ir  cantando 

Só  para  prova  disto  bastaria. 

Mas  esta  prova  fazem  mais  bastante 

Os  que  cantei,  e  espero  que  inda  cante. 

IV. 

Fendendo  as  ondas  vai  a  proa  aguda 
Sem  ter  algum  favor  de  linho  ou  faia. 
Porque  como  encubrir-se  o  Sousa  estuda 
Nào  quer  que  ou  hum  se  estenda,  ou  outra  caia 
O  curso  da  maré  só  lhe  dá  ajuda 
J*ara  ir  buscar  do  baluarte  a  praia, 
Mas  tão  depressa  vai  co''o  favor  delia 
G.ue  bem  pode  escusar  o  remo  e  a  vcUa. 


4.Í0      OiiUAS    DE   rRAKCiSCO    d''aNOKADE, 


Nao  fui  de  todo  vão  este  conceito 

Glue  algum  tempo  se  encobre  com  esta  arte, 

Porém  como  era  o  rio  assaz  estreito, 

E  vigiado  assaz  por  toda  a  parte, 

Daquelle  ardil  não  pôde  ver  o  effeito, 

l*orque  antes  de  chegar  ao-  baluarte 

Das  espertas  vigias  foi  sentido  ^ 

Soa  logo  a  alta  grita,  o  grão  ruido. 

VI. 

Traz  isto  o  bombardeiro  diligente 

Salta  d''hum  canhão  n''outro,  e  aceso  o  sóita, 

Sahe  entre  fogo  e  fumo  o  ferro  ardente, 

E  lá  da  Christãa  fusta  vai  na  volta. 

Não  desmaia  com  isto  a  fiel  gente, 

Inda  que  então  n'algum  temor  envolta, 

Pois  então  cada  hum  vê  combatida 

De  mil  mortes  cruéis  híia  só  vida. 


Não  deixa  d*'ir  avante  com  graa  pressa 
Com  quanto  a  jornada  he  de  morte  cheia, 
Arde  o  Turco,  de  blasfemar  não  cessa 
Por  se  ir  este  também  como  o  Gouveia  : 
Nem  a  solida  chuva  mais  espessa 
Cabe  de  lá  da  nimbrosa,  escura  veia, 
Glue  do  infiel  canhão  o  mortal  peso 
Inda  em  mor  ódio  calie  que  fogo  aceso. 


o    PRIMEIRO'    CERCO    UE    DIU.  451 

Vllf.    , 

Mas  dos  mortaes  pelouros  a  frequência 
Einfim  foi  vãa,  e  vão  foi  todo  o  estudo, 
Q.UC  em  vuo  se  ajunta  ao  ódio  a  diligencia 
Contra  quem  da  fortuna  leva  o  escudo. 
O  Sousa  emfim  sem  outra  resistência 
Senão  a  do  seu  peito  ousado  em  tudo, 
A  que  a  fortuna  então  favor  nao  nega, 
Sem  dam  no  ao  logar  chega,  aonde  navega. 


Levanta  logo  a  voz,  sendo  chegado, 

Polo  Pacheco  brada  com  instancia  ;; 

Acode  elle  em  ouvindo  ser  chamado, 

Q.ue  não  lh'o  impede  então  a  alta  distancia  : 

Pergunta  logo  o  Sousa  polo  estado 

Em  que  estão,  elle,  os  seus,  e  a  sua  estancia, 

Dá-lhe  a  nova  que  traz,  que  elle  ha  por  boa, 

D"* estar  a  armada  ja  do  Ríino  em  Goa. 


Apoz  isto  lhe  diz  que  elio  queria 

Deixar  a  embarcação,  saltar  em  terra 

A  dar-lhe  alguas  cousas  que  trazia. 

De  que  hua  he  de  refresco,  outra  de  guerra  : 

Q-ue  tenha  aberta  a  porta  lhe  pedia 

A  qual  da  sala  a  entrada  impede  e  cerra, 

E  para  que  elle  possa  ir  lá  seguro 

CoV)S  seus  o  favoreça  lá  do  muro. 


4o2      OBUAS    DE    FRANCISCO    dV^NDIIADí:. 
.     XI. 

Rocusa  o  Capitão  aquella  entrada 

3)o  Sousa  onde  elle  está,  nem  lli"a  concede, 

Dizendo  que  com  muro  tèe  cerrada 

A  porta,  que  elle  estar  aberta  pede, 

I'j  díille  ao  baluarte  está  atalhada 

♦Ta  a  communicação,  porque  lli'a  impede 

O  grào  vallo  que  o  imigo  pôz  na  parte 

Que  entre  eile  posta  está,  e  o  baluarte. 

XII. 

E  que  de  mais  não  têe  necessidade 

Senão  que  a  sua  ajuda  lhe  não  negue 

O  Rei  que  habita  lá  na  Eternidade 

A  quem  tudo  obedece,  e  tudo  he  entregue^ 

Mas  pola  obrigação,  pola  amizade 

Ciue  deve  hum  Capitão  a  quem  o  segue, 

Klle  ao  Silveira  pede  por  ajuda 

Gluc  dando  elle  signal,  de  lá  lhe  acuda. 


Aquelle  espaço  todo  que  gastarão 
Nesta  prática  os  dous  que  aqui  nomeio, 
Os  profanos  pelouros  não  cessarão, 
(i-ue  por  serem  mortaes  davão  receio  \ 
K  tão  espessos  vao  que  lhes  cortarão 
Mil  vezes  as  palavras  polo  meio, 
Mas  a  prática  fica  concluida 
Tl)  d  a  que  foi  mil  vezes  repetida. 


o  i'uimeí:io  cerco  de  diu.  i 

XIV. 

Dcspediâo  atraz  isto  o  varão  forte 
Ao  primeiro  perigo  a  fusta  entrega, 
E  rompendo  outra  voz  por  fogo  e  morte 
Com  invencível  peito  o  mar  navega^ 
E  tal  favor  então  da  amiga  sorte 
Sentio,  que  á  fortaleza  em  salvo  chega, 
Apesar  do  perennc  fogo  ardente 
A  dete-lo  apressado  c  diligente. 

XV. 

Nenhum  peito  a  grua  festa  dissimula, 
Nenhuma  lingua  o  seu  louvor  encobre, 
(iual  entre  os  mais  heróicos  o  intitula, 
Q-ual  então  hum  geral  gosto  descobre  : 
Nem  somente  ao  Silveira  isto  estimula 
Mas  a  gente  também  plebeia  e  nobre. 
Todos  liga  união  pura  e  sobeja 
Em  nenhum  detriícção  reina,  ou  inveja. 

XVI. 

Gastou-se  nisto  o  espaço  que  o  dourado 
riiineta  poz  na  usada  sua  carreira, 
Mas  quando  elle  nas  ondas  descansado 
Foz  que  mostrasse  a  irmãa  a  Itiz  primeira, 
A  fusta  só  que  tinha,  com  recado 
A  Goa  ao  Viso-Rei  manda  o  Silveira, 
E  nella  os  que  a  doença  grave  e  dura 
Necessitados  fez  alli  de  cura. 


NCISÍO    I>   ANDllA.DK. 


XVII 


Toiido  o  Turco,  que  em  nada  pôz  taicL 
Knlao  ja  preparada  a  V)a teria 
Q-ue  ao  baluarte,  cuja  governança 
Têe  Francisco  Pacheco,  dar  queria, 
Nãp  1'je  boífre  o  furor,  e  a  confiança 
<lue  o  possa  dilatar  mais  hum  só  dia, 
Crendo  que  por  nao  ser  ja  commettido 
Não  era  o  baluarte  ja  rendido. 


E  ja  no  fim  do  mez  om  que  pisando 
As  fsf radas  do^Ceo  oo^o  carro  aceso 
O  autumnal  Equinócio  vai  mostrando 
O  planeta  do  amor  de  Daphne  preso. 
Na  nora  que  d^entre  as  ondas,  levantando 
Phlegom,  e  os  outros  três  o  claro  peso, 
Desleriáião  o  manto  tenebroso, 
Coíneça  o  bravo  assalto,  e  temeroso. 

XIX. 

Eis  se  ouve  o  grão  clamor,  vê-se  a  revolta 

Lá  no  povo  fiel,  e  lá  no  imigo, 

Sahe  a  rui  na  e  a  morte  em  fogo  envolta. 

Lá  do  grão  basilisco,  que  atraz  digo 

Glue  da  armada  alli  veio,  e  também  solta 

Com  estrondo  menor,  menos  perigo 

Seu  furor  outra  peça  mais  miúda 

Glue  entradí!  ao  baluarte  abrir  estuda. 


ri;iMF,IUO    CERCO    DE   DiV. 


Mas  em  quanto  trabalha  nesta  entrada 
\  profana  l>()mb;irda  horrenda  e  fera. 
Eu  lá  a  Madralíibat  faço  a  jornada 
Onde  a  frota  infiel  sei  que  me  espora. 
Esta  estando  ja  assaz  bem  preparada 
Do  que  a  sua  tenção  necessário  era, 
Nào  quer  alli  deter-se  mais  bíia  hora, 
Pois  têe  o  mar  e  o  vento  brando  agora. 

XXI. 

Sendo  ja  chegada  a  hora  da  partida 
Hum  manda,  outro  executa  o  mandamento, 
Sahe  logo  a  ancora  curva,  constrangida 
De  duros  braços,  lá  do  fundo  assento, 
Sobe  a  entena  ao  my\\s  alto,  onde  estendida 
A  vella,  em  si  recolhe  hum  manso  vento, 
O  remo  calie,  e  as  ondas  revolvendo 
Faz  com  que  a  aguda  proa  as  vá  fendendo. 


Fendendo  as  ondas  vai  a  aguda  proa 

l  fania  mostrando  em  tudo,  e  gosto, 

O  estandarte  de  varia  seda  voa 

(^om  ordem  em  logares  vários  posto, 

O  tambor,  e  o  clarão  guerreiro  soa 

Com  mais  horrendo  som  que  bem  composto, 

Na  popa  o  rico  toldo  roçagante 

De  que  o  mar  he  também  partecipante. 


io^      OBRA6    DE   FRANCISCO    ©"aNDRADE. 


Esto  gosto  que  em  tudo  mostra  a  frota 
Em  tildo  vai  a  gente  descubrindo, 
Da  Christãa  fortaleza  segue  a  rota 
Favorável  o  vento  e  o  mar  sentindo  : 
Hua  bem  concertada  galeóta 
Vai  diante,  a  quem  todos  vao  seguindo, 
A  qual  Jhuof  Hamed  em  si  trazia 
Que  tee  do  mar  a  mor  capitania. 

XXIV. 

Com  esta  ordem  que  digo  que  levava 
Esta  armada  infiel,  soberba  e  ufana, 
Na  hora  que  o  baluarte  começava 
Sentir  em  si  a  cruel  fúria  profana, 
Começa  a  apparecer  onde  a  alcançava 
Ja  claramente  a  vista  Lusitana, 
Glue  dlium  tal  apparato,  tal  arreio 
Mais  alvoroço  toma  que  arreceio. 


E  sendo  o  dia  claro,  o  vento  brando, 
O  mar  quieto,  manso,  e  bonançoso, 
E  a  aguda  proa  os  ventos  vai  cortando 
Com  curso  mais  veloz  que  vagaroso. 
Em  breve  tempo  a  armada  foi  chegando 
Defronte  ao  baluarte  onde  o  animoso 
Gouveia  tinha  o  mando,  e  o  regimento, 
Ao  qual  a  barra  deu  o  nome  e  o  assento. 


o  PRIMEIRO    CERCO   I}£   DIU. 


457 


Aqui  logo  a  profana  imiga  gente 

Começa  a  descubrir  o  aceso  peito  ^ 

Faz  do  canhão  sahir  o  ferro  ardente 

Q.ue  contra  a  fortaleza  vai  direito  ^ 

Mas  por  isto  não  ser  confusamente 

Passa  hum  navio  entre  outro,  e  de  tal  geito 

Se  ordenão,  que  em  tirando  alli,  o  primeiro 

Dá  logar  ao  segundo,  este  ao  terceiro. 

XXVII. 

Soltando  com  esta  ordem  toda  a  armada 
Dos  canhões  a  fulminea  tempestade, 
Faz  que  na  fortaleza  tenha  entrada 
De  pelouros  mortaes  grãa  quantidade: 
E  cuidando  quiçá  ver  destroçada 
Só  com  isto  a  Christàa  ferocidade, 
Só  n''hijm  tão  forte,  quanto  triste,  moço 
De  infinitos  canhões  pára  o  destroço. 

XXVIII. 

o  infelice  mancebo,  que  no  muro 
Acaso  estava  então  d^armas  ornado, 
Lá  onde  o  seu  feroz  esprito  duro 
Para  seu  damno  o  tinha  então  guiado, 
Q-uiçá  na  hora  que  estava  mais  seguro, 
K  d^hum  tão  grave  mal  mais  descuidado. 
Eis  solta  das  galés  a  horrenda  e  fera 
Mortal  fúria,  hua  grossa,  brava  espera» 


4ò8       OJiRAS    «K    lllAN  fisco    !>"' A  NDK  A  13K. 


Esta,  que  sempre  traz  por  companheira 
Hum  morte  cruel  não  resistida. 
Direita  ao  moço  lá  faz  a  carreira 
A  dar  morte  ao  que  então  começa  a  vida 
Encontra-o  polo  ventre,  e  da  maneira 
Q-ue  cahe  a  nova  planta,  combatida 
Do  machado,  que  o  duro  braço  aíferra, 
O  triste  moço  cahe  pallido  em  terra. 


Pallido  em  terra  cahe  o  moço  triste 
Com  as  entranhas  feitas  em  pedaços, 
A  lagrimas  e  a  dor,  ninguém  resiste 
Senão  sós  os  penedos,  s<)s  os  aços. 
Tu,  mal  afoitunada  que  o  pariste 
Apparelha  os  cansados,  velhos  braços. 
Em  que  nMiu^hora  vejas  consumido 
O  que  vinte  annos  ha  que  tees  parido. 


Viva  alli  a  Mãe  ao  moço  inda  guardara 
Para  esta  desventura  acaso  a  sorte, 
A  qual  ja  n 'outro  tempo  arrebatara 
O  charo  companheiro  a  cruel  morte. 
Com  vida  inda,  e  com  falia  á  velha  e  chara 
Mãe,  foi  levado  o  moço,  e  com  tão  forte 
Esprito  o  recebeo,  que  dôr  tamanha 
Com  lagrimas  as  faces  nào  lhe  banha. 


o    l'UI.MEIRO    CERCO    DE    DiU.  io9 


Nos  braços  o  agasalha,  e  inua  procura 

Q-ue  a  cirurgia  a  tanto  mal  proveja, 

Mas  o  moço,  que  vô  que  a  sepultura 

Só  lhe  fallece  então,  e  o  mais  sobeja, 

lihc  diz  :  Consenti,  Mãe,  que  d^ahna  a  cura 

Antes  que  as  vossas  lagrimas  cu  vcj;!. 

Para  que  a  vossa  dor  não  possa  agora 

Impedir-me  o  que  cumpre  a  esta  ultima  hora. 

XXXIII. 

A  animosa  mulher,  em  quem  se  esconde 
Esforço,  que  ao  mais  forte  dera  esp^uito. 
Estando  ella  cnlao  so  quieta,  onde 
Os  mais  rompem  o  Cco  com  triste  pranto, 
Com  socpgado  rosto  lhe  responde  : 
Filho,  doestar  teu  fim  ja  perto  tanto 
duo  a  cura  d^dma  só  te  está  pedindo 
Está  a  minha  hua  grave  dôr  sentindo. 

'     XXXIV. 

Mas  inda  que  esta  dor  tanto  me  alcança 

Q-uanto  me  obriga  o  amor,  e  o  mal  presente, 

Faz-ma  porém  soífror  bem  a  esperança 

Com  que  ja  hum  grande  allivio  esta  alma  sente, 

Q-ue  lá  na  Eterna  Bemaventurança 

Irá  reinar  tua  alma  eternamente, 

SA  esforçado  em  morrer,  na  fé  constante 

Q.UC  isto  a  me  consolar  s^rá  bastante. 


460      OBKAS    de   FRANCISCO   d"'aNDKADE. 


Ja  nesta  hora  comsigo  o  moço  via 

O  Sacro  Sacerdote,  e  diz-lhe  :  Ouvi-me. 

Aparta-se  então  toda  a  companhia, 

Descobre -lhe  o  pesado,  e  o  leve  crime, 

Recebe  absolvição,  e  neste  dia 

Entra  em  estado  santo,  alto  e  sublimo. 

Tornão  aquelles  logo  acompanha-lo 

Glue  o  Sacramento  fez  desampara-lo. 

XXXVI. 

E  dos  braços  da  Mãe,  que  d''infinito 
Esforço  e  piedade  estava  cheia. 
Manda  este  corpo  lá  o  pio  esprito 
Onde  vida  ha  de  ter,  de  morte  alheia  : 
Eis  sobe  logo  ás  nuvens  o  alto  grito, 
Mana  dos  olhos  a  salgada  veia, 
Gtual  com  dor  de  hua  morte  assi  im matura, 
Qual  sentindo  da  Mãe  a  desventura. 


Aquella  so  que  ao  morto  filha  dava 
No  charo  seio  então  recolhimento, 
Nas  lagrimas  communs  enchuta  estava, 
,Na  impaciência  commum  têe  soífrimento  ^ 
Se  alguém  a  consola-la  se  chegava 
Delia  consolação  recebe  e  alento. 
Esforço  sublime  inusitado 
Digno  de  eternamente  ser  cantado. 


4til 


o    PIlIMl!.ia(>    CEKCO    DK    DIU. 


A  fortaleza  torno,  onde  me  espera 
Hum  desestrado  caso  lamentável. 
Disse  que  a  artilharia  iniiga  e  fera 
Soltando  a  horren<la  fúria  insuperável, 
Na  Christãa  fortaleza  entrar  fizera 
Q^iiasi  hua  quantidade  innumeravel 
De  pelouros  inortaes,  e  esta  só  f^nerra 
Ou  toma-la  cuidou,  ou  pò-la  em  terra. 


Porem  a  forte  çente  que  a  defende, 
(:lue  em  tâo  leve  perigo  segura  anda, 
Tamhem  os  se»is  mortaes  canhões  acende, 
Tamhem  o  aceso  ferro  á  frota  manda  ; 
^las  não  lhe  segue  o  effeito  ao  que  pertende, 
Porque  a  sorte  enlào  mais  díira  que  hr.mda 
Faz  (jue  o  horrendo  furor  do  Lusitano 
Canhão,  traga  aos  seus,  mais  q  aos  Turcos  dano. 


Do  baluarte  da  barra,  e  do  que  titdia 
Do  Santo  antes  incredido  o  apellido, 
Neste  tempo  o  pelouro  ardente  vinha 
De  lá  do  ruinador  bronzo  sahido, 
E  tendo  a  imiga  frota  tão  visinha 
Q-ue  lá  alcança  o  furor  nao  resistido. 
Sós  duas  galés  o  sentem  pouco  ou  nad 
Pois  não  passa  da  en varria,  e  paliçada. 


XLI. 

Dos  seus  mesmos  canhões  a  Portugueza 
Gente,  sente  o  mor  dano,  a  mor  ruina, 
Porque  dos  que  alli  têe  para  esta  empreza, 
Espera,  basilisco,  columbrina, 
ô-uando  aquella  soberba  fúria  aceza 
Com  mor  pressa  e  furor  joga  e  fulmina, 
Dous  grossos  basiliscos  arrebentão 
Glue  da  pólvora  a  força  não  sustentão. 


Hum  de  metal,  de  ferro  outro  era  feito, 

Ambos  fortes,  mortaes,  impetuosos. 

Porém  d'ambos  não  segue  hum  mesmo  eíFcito, 

Só  d^hum  os  que  alli  eslao  íicão  queixosos. 

O  de  metal,  com  quanto  alli  desfeito 

Sc  vê  em  mortaes  coriscos  furiosos, 

De  tal  sorte  porém  seu  furor  lança 

Glue  dos  que  em  torno  estão  nenhum  alcança. 

XLIII. 

Mas  o  férreo  canhão  em  desarmando 
Os  arcos  de  que  fora  antes  composto, 
Por  cá,  por  lá  sua  fúria  executando, 
Q.ual  ferindo  no  peito,  qual  no  rosto  '^ 
A  quatro  logo  as  almas  arrancando 
Faz  dos  corpos  deixar  o  antigo  posto, 
Outros  dez  no  seu  próprio  sangue  banha, 
Nos  sãos  causa  tristeza,  c  dor  estranha. 


10   PRIMEIRO  CERCO   DE   DIU.  46S 

XLIV. 

Esta  cópia  de  mortos  e  feridos 
No  baluarte  da  barra  s6  se  acharão. 
Mas  os  fados  cruéis  endurecidos 
Neste  só  desastre  hoje  não  pararão. 
D'outros  canhões  que  estavão  repartidos 
N 'outras  partes,  alguns  arrebentarão, 
E  por  todos  vêem  sete  o  ultimo  dia, 
Q,uinze  vão  ter  em  mãos  da  cirurgia. 


Deu  causa  a  este  successo  miserável 
Applicar-se  ao  serviço  da  bombarda. 
Por  erro  mal  sabido,  e  desculpável, 
O  negro  pó,  que  serve  na  espingarda. 
Mas  hum  feito  assaz  raro,  assaz  notável, 
K  de  memoria  digno,  lá  me  aguarda 
No  baluarte  da  Villa,  ir-me  lá  quero. 
Onde  causar  espanto  e  gosto  espero. 


Porém  antes  me  cumpre  entrar  na  armada 
Q-ue  com  instantes  vozes  me  importuna, 
Porque  d^hum  vão  trabalho  ja  cansada 
Segura  estancia  ja  busca,  e  opportuna  ^ 
Com  a  ordem  que  ja  atraz  tenho  contada, 
Contraria  ao  que  cuidou  tendo  a  fortuna, 
Dispara  a  frota  imiga  a  alta  braveza 
Dos  seus  canhões  lá  contra  a  fortaleza. 


^{j\      OiiRAS    DE   i^iANClSCO    «""aNDUADE. 


Ora  hum  dispara,  ora  outro,  com  graa  pressa^ 
Poios  ares  retumba  o  estrondo  horrendo, 
Succede-lhe  a  fumaça  negra  e  espessa 
Q-ue  apoz  a  Aurora  a  noite  está  trazendo. 
Espantado  o  Ciclopa  h^)je  confessa 
Que  lá  onde  o  corisco  está  fazendo 
Tão  grosso  fogo  e  fumo  a  Etnea  fragoa 
Não  lançou  de  si  nunca  como  lioje  a  agoa» 


Dado  fim  ao  furor  da  fulminosa 

Artilharia,  que  não  he  infinita, 

Kíítve  a  escura  fumaça,  e  temerosa 

(:i.ue  ora  a  espanto,  ora  a  gosto  o  peito  incita, 

l*assa  encoberta  a  frota  copiosa, 

K  vai  surgir  lá  junto  da  Mesquita 

Onde  disse  que  o  ferro  ao  mar  lançara 

Q,uando  alU  de  Suez  antes  chegara. 

XLIX. 

Eui  quanto  estes  canhões  cá  nesta  parte 

Os  redondos  coriscos  no  ar  espalhão. 

Os  que  batendo  estão  o  baluarte, 

Em  que  os  fortes  soldados  se  agasalhão 

í4.ue  do  PacJieco  seguem  o  estandarte, 

Com  grande  instancia  assaz  também  trabalhão    -. 

Para  romper  o  muro,  e  nelle  houvesse  m 

Porta  por  onde  o  Turco  entrar  pudesse.  ^ 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  4G5 


Este  bravo  combate,  começado 

Subindo  a  luz  primeira  no  Oriente, 

Até  aquella  hora  foi  continuado 

Km  que  o  Governador  do  carro  ardente, 

Além  do  meio  curso  costumado 

GLuatro  horas  caminhara  ao  Occidente, 

Sem  estar  hum  momento  ou  quedo  ou  mudo 

Nrm  o  grosso  canhão,  nem  o  miúdo. 


Nem  fez  ao  baluarte  em  vao  a  guerra 
Esta  fúria  perenne,  alta,  e  funesta, 
l'orq!ie  aquella  grãa  sala  põe  por  terra 
Ci-ue  lá  no  baluarte  mesmo  entesta, 
Tal  que  a  parede  com  que  antes  se  cerra 
Essa  mesma  d^escada  agora  presta, 
A  qual  naquella  parte  se  acabava 
Que  o  baluarte  mais  alta  mostrava. 


Nem  pára  nisto  a  horrenda  bateria 

Porque  ódio  tudo  prova,  tudo  intenta, 

HuH  parte  também  da  frontaria 

Do  baluarte  sente  esta  tormenta  ', 

Também  lhe  cegão  toda  a  artilharia. 

De  que  se  alegra  assaz,  e  se  contenta 

O  imigo,  que  ha  que  tee,  com  grande  gloria, 

Pois  subida  ja  tee,  certa  a  victoria. 


Vô6      0BR\9    DE   1'nANCi.SCO   D^ANDRADt:. 


E  vendo  ella  que  o  fim  de  seu  intento 
Com  tal  occasião  se  lhe  apparelhaj 
Não  se  quer  mais  deter  liuni  só  momento 
De  fúria  estimulada,  nova  e  velha, 
E  logo  ao  som  do  bellico  inatru mento 
Sc^^uitido  de  corrida  liuu  vermelha 
Bandeira  grande  assaz  que  hia  diante, 
Sahe  soberba,  feroz,  salic  arrogante, 

tiV. 

Desce  lá  do  intratável  cume  Alpino 
O  arrebatado  rio,  caudaloso, 
Quando  o  Sol  dos  de  Leda  entra  no  sino 
Co 'a  derretida  neve  mais  furioso :, 
Se  em  meio  do  furor,  do  desatino 
Com  que  move  o  seu  curso  impet»08o 
Encontra  do  penedo  a  gràa  firmeza 
Torna  atraz,  e  desvia  a  alta  bravez^a  : 

Tal  se  mo  representa  esta  profana 

Gente  ÍL-rox,  e  cheia  d^irrogancia, 

(iue  entrando  impetuosa,  ousada,  e  ufana 

A  detom  buH  firme,  alta  constância. 

Setecentos  ser3o  (se  não  me  engana 

A  vista)  os  que  vão  lá  da  Turca  estancia 

Traz  o  j>endão  purpúreo,  erguido  em  alto, 

Prí^parudos  ao  fero,  liorrendo  assalto. 


4G7 


o    l'Ul?.lKillO   CEUCO   DE   Dil'. 
LVl. 

K  como  tèe  a  empresa  por  vencida 
Ir  cada  hum  diante  entào  trabalha  u 
Sobe  o^nimuso  alferes  de  corrida 
Lá  pola  ruinada,  alta  muralha, 
Acompanhado  l\ji  nesta  subida 
De  quantos  o  lo;;ar  em  si  ag -.salha, 
<^iiie  como  não  esperão  resistência 
Vão  ja  traz  a  victoria  a  competência. 


E  porque  mais  ousado  hoje  e  atrevido 
Siga  o  Turco  esquadrão  o  que  pcrtende^ 
Foi  de  muitos  dos  seus  favorecido, 
Q/ual  co''a  frecha  subtil  que  os  ares  fende, 
Gtual  co''o  chumbo  mortal,  que  despedido 
Lá  da  espino;arda,  ti:do  abate,  e  rende, 
ttuevão  contra  os  Christãos,  para  impedir-lhr» 
Mostra r-se  aos  infiéis,  e  resistir-lhes, 


ií  sendo  os  Turcos  ja  quasi  igualados 
Co''o  mais  alto  logar  do  roto  muro, 
Tendo  os  Christàos  ja  por  desbaratados 
E  o  íiin  daquella  empresa  por  seguro, 
Forão  de  sós  dous  homens  encontrados 
D^esprito  mais  que  forte,  mais  que  duro^ 
Q.ue  sobre  o  andaime  lá  do  baluarte 
,    Fa2Jcm  parar  do3  Turcos  o  estandarte. 


^68      OBRAS   DE   FRANCISCO   1>'aNDRADE. 


Cílualquer  dos  dons  estende  a  tesa  lança 
Contra  infinitas  lanças,  sem  receio. 
O  Turco,  inda  com  riso  e  confiança, 
Nao  duvida  acabar  isto  a  que  veio, 
Mas  porque  a  resistência  mor  tardança 
Lhe  põe  do  que  cuidava,  d''ira  cheio, 
Blasfemando  a  Mafoma,  que  lhes  nega 
Seu  favor,  só  nos  dous  a  fúria  emprega. 


Porém  os  dous,  em  quem  hum  tal  perigo 
Maior  esforço  põe  que  espanto  e  medo, 
Contra  o  grosso  furor  do  povo  imigo 
Com  tal  constância  têe  o  rosto  quedo, 
Glue  o  mais  grosso  Carvalho,  e  mais  antigo, 
Nem  a  móbil  constância  do  penedo, 
iNão  resiste  melhor  ao  movimento 
Ou  da  furiosa  onda,  ou  do  grão  vento. 

LXI. 

Os  Christaos  que  lá  da  fortaleza 

Aquelle  raro  esforço  dos  dous  vião, 

Movidos  ora  a  dôr  ora  a  braveza 

Porque  então  ajuda-los  não  podião, 

INão  sabendo  se  a  causa  era  fraqueza 

Ou  se  outras  cousas  são  as  que  fazião 

O-ue  os  outros  aos  dous  sós  deixão  em  tanto 

Perigo,  em  todos  entra  hum  grande  espanto. 


«   PRIMEIRO  CERCO  DE  BIV,  4<89 


Cresce  esta  sua  dór,  vendo  faltar-lKes 
Navios,  com  que  então  o  mar  fendendo 
Sequer  algum  favor  podessem  dar-lhes, 
E  em  lagrimas  a  ardente  ira  envolvendo 
Mandão-lh\)s  peitos  lá  onde  mandar-lhes 
Nenhum  pode  o  seu  braço,  e  o  ferro  horrendo. 
Mas  00^*0  mortal  canhão,  bravo  e  terrivel 
Os  ajudão  de  lá  quanto  he  possível, 

Lxm. 

Mas  a  gente  infiel,  que  desatina 
E  dentro  se  consume,  e  desespera, 
Vendo  que  podem  dous  o  que  imagina 
G-ue  toda  a  Ohristãa  gente  não  pudera. 
Com  dobrado  furor,  se  determina 
Vencer  aquella  invicta  cópia  fera, 
Meneia  com  imigo,  duro  braço 
Hum  a  comprida  lança,  outro  o  curto  aço» 


Porém  tendo  qualquer  dos  dous  o  peito 
Invencivel,  feroz,  forte,  incansável^ 
E  o  logar  em  que  estão  he  tão  estreito 
Ô-ue  bem  lhes  dá  de  si  ser  defensável, 
Ambos  sós  o  defendem  de  tal  geito 
Contra  hum  imigo  quasi  innumeravclj 
Como  se  os  que  estão  no  baluarte 
Aquella  defensão  tiverão  parte. 

«  14 


Agora  <'i  t<í$a  lan^a  p&netrando 
Os  coípQs  infií-is,  faz  seu  oílix:io, 
Agora  ©  Htii&o  hi\rro  aiEiíracs6anUo, 
AgopA  filtro  íiainmiiero  arfericio, 
Q-ue  oi  lie  cktttro  llreatavão  uíinisfeíaAfcdcf 
Jj^feí^-a  í*-tj.«elW>au;§uiií€o  ^xercicio, 
Fazí-ífc».  SOS  o  ijue  os  mais  ç^ug  tè«  eQuisigo 
Não  por  clilíiéuldadti,  e  por  jKirigo. 

ixvi. 

JiOgo  (laquelLe^^WagQS-.^wo  vençídoii 
Entre  os  TuFGOS  se  segue  o  eíleito  duro^ 
l*orque  \\uu&  net>te  logar  são  constraugúJoft 
!Maiidaí.as  almas  lá  ao  reino  escuro, 
Outros  co''os  péa  nos  ares  estendidos 
iVeci pitados  v2^i  lá  do  alto  muro 
Com  grão  damuo  ou  das  peruas  ou  das  frontes, 
Ach4íâé^e  htye  í#^»U  mil  PUaetoates. 

Nem  íegucRi  tíiuto  tfnv  salvo  esta  conteHdrt 
(Aue  o  seu  saugue  ní5o  faça  húmida  a  terra, 
l'orquç,  como  someuite  a  elles  peiteníla 
Fazer  esta  wi-pitisa  turba  a  guerra, 
Inda  que  os  >nintas, vezes  não  oflenda 
O  tiro  penetra Xi te,  porr^uq  os  erra. 
Outros  muito*  também  os  acertarão 
Une  cruelmetU©  os  cqupo.'»  Uves  passarão. 


,,l»3JriRIAÍEIílO    CERCO    BE   DJU.  471 

LXVIII. 

Mas  nfm  faltos  <le  sangue,  c  trabalhadc» 

T)e  resistir  a  imigos  infinitos, 

Se  Ufaljatem  hum  ponto  os  indomado», 

Magnânimos,  leaes,  duros  espritos. 

E  tanto  hoje  são  delles  maltratado» 

Aqudles  infiéis  peitos  malditos, 

Q.UO  perderão  de  todo  a  confiança 

l)i'  prevalecer  hoje  a  sua  lança. 


Dura  este  bravo  assalto  c  furioso 
Ato  que  de  Latona  o  filho  louro 
Nas  ondas  ja  mettia  o  luminoso 
Carro,  d''onde  espalhara  os  raios  d'oviro. 
Confuso  então  assaz,  e  ja  medroso 
Aquelle  antes  soberbo,  e  ousadv  Mouro, 
]Não  se  atrevo  a  esperar  a  força  brava 
Que  antes  como  a  venciíja  dcspresaya. 

Desce  lá  do  alto  laaiiro  com  mor  pressa 
Da  cora  que  antes  subio,  a  imiga  gente. 
Por  cá,  por  lá  se  espallia,  e  se  arremessa  ,,;  / 
Por  fugir  a  outro  mal  que  tèe  presente  ^     í^ 
Porque  hum  momento  só  então  não  cessa 
De  busca-la  o  redondo  ferro  ardente, 
Q-ue  lá  da  fortaleza  fulminando 
O  canhão  furioso  está  lançando. 


^72      ©BHAS    Til.    líVÀNCISCO   D^ANDBADE. 
LXXl. 

Aquelles  que  hoje  ir  vivos  o  Ceo  manda 
Das  mãos  dos  duus,  e  da  mortal  bombarda, 
Só  co''os  pés  dão  fim  a  esta  demahda, 
Por  mais  ditoso  se  ha  quem  menos  tarda  ^ 
T)"* estorninhos  no  Outono  a  negra  banda 
Q.UG  sente  o  tom  iniigo  da  espingarda, 
No  temor  e  desordem  com  que  foge 
Não  chega  á  que  esta  gente  levava  hoje. 

Mas  com  medo  e  desordem  côfrem  taiito 
ÍTlue  ás  estancias  vão  tef  em  breve  espaço, 
E  inda  os  lá  acompanha  hum  grande  esp;into 
D"' hum  tão  raro  Valor,  tão  íofte  brago. 
Vós  fort»."*  d^us  vaiõos  de  quem  eu  canto 
Soífrei-mc  não  louv.jr-vos,  pois  o  faço 
Porque  o  maior  louvor  do  vosso  peito 
He  só  dizer  o  que  hoje  tendes  feito. 

LXitlI. 

Sendo  com  tão  glorioso  vencimento 
Lançado  d^alli  lium  áspero  adversário, 
Vão  logo  os  dou»  buscar  recolhimento 
Gt/Ual  entendem  que  lhes  era  necessário. 
Recebidos  com  grão  contentamento 
Dos  companheiros  são,  e  co'o  ordinário 
Favor  da  cirurgia  sustentados 
Ob  corpos  por  mil  partes  trojp.;-?  i-.los. 


o    IMliaiKIUO    CERCO    I>E   DIU 


LXXIV. 


473 


Não  tleixárão  porém  aqiielle  muro 

Q,ue  têe  com  tanto  esforço  defendido, 

Até  que  descobrio  o  manto  escuro 

A  noite,  e  o  Ceo  d'Estrellus  foi  vestido  :j 

l*orqae  esta  escuridão  lhes  dá  seguro 

Q-ue  nào  será  de  novo  combatido, 

K  inda  o  seu  forte  esprito  lhes  renova         <>A. 

J*ara  outro  assalto  novo,  força  nova.  f*^ 

LXXV. 

Depois  de  ser  passada  a  maior  parte 

Da  noite  que  seguio  a  hum  tão  bom  dia, 

Q.uand()  o  Sfinguinolento,  hórrido  Marte 

Ao  nKjlle  c  brando  som  no  obedecia, 

Sahe  hum  do  combatido  baluarte 

K  á  fortaleza  faz  direito  a  via, 

Q,ue  por  nome  Faleiro  António  tinha, 

K  com  pressa  lá  chega  aonde  caminha. 

ixxvi. 

Confuso  o  Capitão,  suspenso  fica 
Tanto  que  lhe  chegou  disto  o  recado, 
Pt)rque  esta  vinda  então  lhe  prognostica 
Algum  estranho  mal,  e  não  cuidado^ 
Mas  nada  então  de  fora  notifica 
O  que  o  seu  peito  tee  dentro  encerrado, 
O  sobresalto  o  apressa,  elle  o  primeiro 
Deseja  d' ir  buscar  lo^o  o  Faleiro. 


474      OBRAS   DE   FRANCISCO   D^ANDRADE. 
LXXVII. 

Mas  vence  emfim  co''a  força  da  prudência 

Este  impo.to  que  tanto  o  perturbara, 

E  fazendo  alli  vir  com  diligencia 

Todos  os  da  família  illustre  e  clara, 

E  os  mais  a  quem  o  esforço  e  experiência 

Para  estes  aulos  taes  habilitara. 

Ao  Faleiro  mandou  (que  presente  era) 

Qiue  dissesse  a  rasão  que  alli  o  trouxera, 

Lxxviir. 

EUe  então  posto  em  pé,  logo  endireita 
Para  onde  o  Capitão  via  que  esava, 
Dá-lhe  hua  longa  carta,  que  ser  feita 
De  três  ou  quatro  dias  mostras  dava. 
Esta  era  do  Pacheco,  onde  da  estreita 
Peleja  do  outro  dia  não  tratava. 
Nem  d''outra  cousa  das  que  disse  agora 
O  Faleiro,  a  que  alli  mandado  fora. 

ixxix. 

Esta  carta  em  logar  do  sobrescrito 
Q.ue  declara  a  pessoa  a  quem  se  escreve, 
Diz  que  lá  a  tudo  quanto  lhe  fòr  dito 
Polo  Faleiro  então,  fé  dar  se  deve. 
Logo  isto  ao  perspicaz,  esperto  esprito 
JMotivo  e  occasião  deu,  e  não  leve 
De  cuidar  que  esta  vinda  extraordinária 
Era  forjada  mais  que  necessária. 


o    PRIMEIRO   CERCO    I>E   DIU.  475 


O  Falei ro  apoz  isto  diz  que  quando 

Fez  lá  do  baluarte  elle  a  partida, 

O  Pacheco  (que  tinha  delle  o  mando) 

Tão  perto  estava  ja  do  fim  da  vida, 

Q-ue  elle  comsigo  estava  imaginando 

Q-ue  de  todo  a  teria  ja  perdida, 

E  que  hua  enfermidade  grave  e  forte         h  /. 

ôue  teve  o  tempo  atraz,  o  trouxe  á  morte. ''^ 

LXXXI. 

Entre  este  ajuntamento  ora  presente 
O  Lopo,  que  d'alcunha  tinha  Sousa, 
Este  ao  Faleiro  diz,  que  ante  tal  gente 
Como  dizer  se  atreve  hria*tal  cousa, 
Porque  elle  havia  dous  dias  somente 
Q.ue  do  Pacheco  a  voz  ouvira,  e  que  ousa 
Dizer  que  aquella  voz  estava  em  termo 
Q,ue  era  Voz  de  homem  são  mais  que  d''enfermo. 

Lxxxir. 

Pouco  o  Faleiro  disto  se  contenta 
Q-ue  em  grão  perigo  vê  sua  verdade, 
E  como  inda  procura,  ainda  intenta 
Do  Pacheco  provar  a  enfermidade, 
Grãa  cópia  de  rasões  logo  apresenta, 
IMas  todas  sem  vigor,  e  authoridade, 
Para  dar  a  entender  que  ser  podia 
O  que  lhe  o  Sousa  então  contradida. 


47l)      OHUA8    DK    FRANCISCO    D^AxNDRADE. 
LXXXIII. 

E  cuidando  que  estava  ja  bastante 
Mente  com  taes  rasõcs  acreditado, 
Polo  que  começou  segue  inda  avante, 
E  diz  que  no  combate  antes  passado 
Soffrendo  os  seus  com  animo  constante 
O  bárbaro  furor  imigo  e  irado, 
A  dez  ou  quinze  coube  o  fim  das  vidas, 
E  aos  vivos,  cruéis,  mortaes  feridas. 

LXXXIV. 

D\)nde  nasceo  que  quando  a  competência 
Os  commetteo  a  gente  Sarracena, 
EUa  achou  em  tão  poucos  resistência. 
Mas  nem  por  isso  fraca  nem  pequena  \ 
Antes  aquella  imiga  alta  potencia 
Gt^ue  os  Christãos  a  cruel  morte  condena, 
Havendo-os  ja  de  todo  por  perdidos. 
Vencida  he  dos  que  havia  por  vencidos. 


E  diz  que  as  cousas  todas  sao  gastadas 
Gluantas  á  defensão  se  requerião. 
Ardida  acaso  a  pólvora,  e  arrombadas 
As  pipas  que  em  si  a  agua  recolhião  ^ 
Co^os  tiros  as  mais  lanças  são  cortadas, 
Cegas  as  bombardeiras  que  impediáo 
Da  bombarda  o  meneio,  e  desta  síirte 
Não  tèe  ja  defensão  senão  na  morte. 


é    PRIMEIRO    CERCJ    DT,    tílV 


LXXXVI. 


477. 


E  que  vendo  o  Pacheco,  e  o»  Réus  soldados 
Em  tudo  o  necessário  hum  tal  defeito, 
De  se  salvarem  ja  desesperados, 
Tanto  o  desesperar  Ih^acende  o  peito 
Glue  estavão  de  ir  morrer  determinados 
(Em  se  tornando  o  Sol  ao  usado   leito) 
Entre  os  Turcos,  que  pois  lhes  era  forçada 
A  morte,  fosse  ao  menos  morte  honrada. 

LXXXVII, 

Porém  que  elle  impedira  efíeituar-se 
O  que  esta  gente  então  determinava, 
Dizendo  que  melhor  era  buscar-se 
Remédio  áquolle  aperto  em  que  se  achava  ', 
E  qtjando  não  podesse  remediar-se 
Então  esse  remédio  lhes  ficava  i.j.» 

Da  morte  que  buscar  queria  aurora,  •  - 

tílue  para  morrer  nunca  falta  hii'hora.  <• 

I.XXXYIIX. 

Toda  a  mais  companhia  isto  approvára 
OH}C  só  cm  desesperar  tinha  esperança, 
Elle  a  hua  bombardeira  então  chegara 
D'ondo  co\i  fria  luz  que  de  si  lança 
A  bella  Trivia,  que  era  então  bem  clara, 
Gtue  da  de  seu  irmão  grãa  parte  alcança, 
Vê  por  baixo  pawnr  hum  que  a  doutrina 
Segue  de  Mafamcdo.  «  se  Ih^inclina. 


Deixa  a  materna  língua  em  qu«  nascera, 
E  usando  a  que  usa  lá  a  Arábia  terra 
Diz  ao  Turco  :  Escusar-so  rasao  era 
Esta  sanguinolenta,  cruel  guerra, 
Se  Tesifone,  Alecto,  se  Megera 
Dentro  nos  vossos  peitos  não  se  encerra ; 
Busque-se  hum  meio  bom  com  que  se  evite 
Tanto  sangue,  e  qué  ás  mortes  de  limite. 


Ao  qual  lhe  respondeo,  que  esta  demanda 
Elle  aos  seus  Capitães  presentaria. 
Parte-se  logo,  e  torna  áquella  banda 
Com  tal  pressa  que  então  cuidava  qtie  hia, 
E  dissera  que  Cojaçofar  manda 
Q.ue  para  se  dar  a  isto  a  melhor  via 
Algum  descesse  lá  do  ChristSo  muro, 
O  qual  poderia  ir  assaz  seguro. 


E  que  aquelle  Christao  ajuntamento 

Com  sentença   por  todos  approvada 

O  elegera,  por  ter  conhecimento 

Da  lingua  quQ  em  Arábia  he  costumada, 

Porque  esta  também  lá  no  Turco  assento 

Não  he  entendida  só,  mas  mui  tratada, 

Para  que  algum  partido  lá  pratique 

Cora  que  em  salvo  honra  e  vida  a  todos  íique. 


»>    PHIiMEIKO    CKRCt)    DE    Oll'. 


*ní 


I>ogo  abaiito  descara,  o  pros«ntA<í« 
Aos  Ttircctó  Capitíltís,  foi  recébídt» 
Com  alegre  semhLmte  e  gasaihado, 
Onde  fora. por  ellot!  eomníettido  .  . 

Q.UG  se  quinassem  dal',  pois  têe  |1<'0>di(i^  ;•'■•'•^•■ 
Q/ne  em  vío  o  seu  poder  hc  resiet id»*^ í  ■'••>  '->^ 
E  que  de  Çoleimão  ninguém  duvida  9í'p  «í«í^ 
(iue  a  todos  iilxirdade  dará,  e  vida,'^  oíííkuXí 


K  sondo  isto  altercaílo  longameíife     /íOv  rnp,^ 

Com  mil  várias  rjisões  de  parte  a  parle, 

Dissera  elle  Cjue  a  l\irtugueza  gente 

jSão  se  entregará  a  si,  e  o  baluarte  *, 

Antes  com  ])ertinaz  furor  ardente 

Se  defenderão  contra  o  mesmo  iMaríe  '■ 

Por  mais  q^ie  mostre  sua  crueldade, 

Senão  salvar  a  vida,  e  a,  liberdade. 

xciv. 

Mas  que  nenhum  concerto,  ou  de  »eu  goito, 

Ou  de  sua  honra  fosse,  ou  seu  proveito, 

Entre  elles  ficará  por  obra  posto 

Sem  ser  ao  Capitão  geral  aeccito. 

A  isto  os  Turcos  respondem  com  bom  rosto, 

K  dizem  que  elle  fosíjc  dar-llie  elteito, 

E  que  havida  a  iic^n(;a,  tratarião 

l)t>  pacto  qno  entre  si  íazer  poditio. 


480      OBHA8    S£   FRANCISCO   X>''aNI>RíIi»Z« 
XCV» 

E  que  os  do  baluarte  a  isto  o.  mandavií> 
Para  que  co'o  Silveira  o  consultasse^ 
A  cujo  parecer  se  sujeitavào^ 
E  elle  nisto  o  melhor  determinasse  \ 
Q-ue  elles  para  morrer  promptos  estavao 
Se  elle  para  morrer  os  incitasse, 
Mas  que  faltar-lhes  tudo  saiba  certo 
€luanto  os  pode  ajudar  em  tal  aperto». 


Aqui  conclue  a  prática  o  Faleiro. 
De  quem  se  concebeo  juizo  vário, 
Gluaí  o  julga  por  pouco  verdadeiro 
Q.ual  o  julga  também  polo  contrario  : 
Porém  o  Capitão  geral,  primeiro 
Que  lhe  responda,  tèe  por  necessário 
Consultar  os  que  estão  iiaquellt*  junta. 
Logo  os  seus  votos  nisto  lhes  pergunta. 

XCVII. 

Pestes  iuda  que  alguns  então  ficarão 
Com  má  suspeita  em  si,  sem  a  dizere»». 
Vendo  com  quanta  instancia  lh'affirmáraa 
Glue  não  lêe  defensão  senão  morrerem, 
Todos  sem  discrepância  aconselharão 
Que  o  melhor  pacto  facão  que  puderem, 
Que  de  morrer  não  deve  dar  motivo 
Quem  quando  isto  aconselha  fica  vivo,. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE    DIU.  481 

XCVIII. 

P  Silveira  também  nisto  concerta 

Co''o  parecer  daquella  companhia, 

E  responde  que  pois  tanto  os  aperta 

A  falta  que  de  tudo  lá  havia, 

Q,ue  elles  mesmos  escolhão  a  mais  certa 

E  de  sua  saúde  a  melhor  via. 

Torna  o  Faleiro  aos  seus,  tendo  licença, 

Q.ue  esta  resposta  só  lhes  põe  detença. 

XCIX. 

Na  fortaleza  foi  logo  affirmado, 

Sem  saber  inda  alguém  disto  a  verdadcí- 

Q.ue  o  Pacheco  co''os  Turcos,  quando  o  usado 

Raio  do  Sol  esconde  a  claridade, 

Tinha  duas  ou  três  vezes  fallado, 

E  algãas  cousas  desta  qualidade, 

^ue  se  soube  depois  serem  passadas 

Como  forão  então  advinhada«. 


Pouco  espaço  depois  que  o  passo  volta 
Faleiro  para  os  seus,  não  vagaroso, 
A  bella  Aurora  em  nova  luz  envolta 
Deixa  a  conversação  do  velho  esposo, 
E  ante  o  Sol  os  cabellos  de  ouro  solta 
Não  sem  grãa  mágoa  de  Titon  cioso, 
A  quem  a  ausência  desta  chara  amiça 
A  suspiros,  e  a  lagrimas  obriga. 


4  ?1*      OBníS    DK   FRANCISCO   J)' ANm  A  CK. 


J-íOgo  toda  a  plebeia  e  nobre  gonle 

fluo  a  fortaleza  então  dentro  em  si  linlja, 

ílual  detraz,  qual  diante,  promptamente 

Ao  baluarte  os  olhos  encaminha, 

J*ara  vêr  o  Faleiro  diligente 

Co\>»  Turcos  em  que  pacto  ou  quarKÍo  vinha, 

Mas  isto  não  se  vio  senão  ja  quando 

O  Sol  ao  meio  curso  hia  chegando. 


N<"sta  hora  a  ruinada  parede  alia 
Serve  do  escada  á  gente  Sarracena, 
O  que  não  pode  só  não  corre  o  salta, 
Todos  hão  toda  a  pressa  por  pequena  ; 
Outro  a  fjuem  esta  escada  agora  falta 
Kncosta  á  bombardeira  a  longa  entenn, 
Por  ella  quanto  pode  vai  ligeiro, 
Trabalha  cada  hum  ser  o  primeiro. 

cm. 

Desta  sorte  a  infiel  gente  perdida 
Dentro  no  baluarte  te\e  entrada, 
Onde  por  terra  foi  posta  e  abati-la 
A  bandeira  com  Cruz  assignalada, 
E  em  sen  logar  indignamente  erguida 
Outra  vermelha  em  cor,  grande  e  farpada, 
Insignia-do  que  o  sccptro  alto  meneia 
Gtne  o  larjjo  império  Turco  senhoreia. 


lij  cLii::ú  DE  DIU.  IS?) 


CIA  . 


Ksto  acto  tao  lieikiulo,  c  indigno  t.;tnto 
I)<>  que  bua  e  oJitra  handeira  merecia, 
Com  *;Mve  seí-it!<nioíito  e  larço  príMito 
Contemplado  eivtão  foi  da  gyiite  pia. 
Bem  desejarão  t«>dos  Rio3t?ar  qmiHto 
F.sta  religião  os  aeeiadia, 
Se  o  distante  logar  não  lh'impodÍra 
O  effeito  de  tuo  justuj  e  tao  piu  ira. 


Mas  cnlrc  csl.a  levolía  que  causarão 
No  baluarte  os  iníieis  soldados, 
Religiosos  peitos  não  faltarão, 
Os  quaes  da  honra  da  Cruz  estimulado», 
Ou  acabar  alli  determinarão, 
Sendo  na  terra  e  Ceo  eternisados, 
Ou  erguer  o  pendão  da  insígnia  santa 
K  abater  o  que  o  Turco  impio  levanta. 


Foi  autlior  deste  santo,  honrado  feito 
líum  que  Pires  d"'alcunha  se  nomeia, 
E  o  nome  t«e  do  Santo  que  no  peito 
Do  Senhor  se  encostou  na  Sacra  Ceia  ^ 
Homem  a  quem  nas  forças  grão  defeito 
Oava  a  cansada  idade,  d"'annos  cheia. 
Mas  d'hum  grande  esprito  inda  acompanhado 
O-ue  por  mil  provas  tinha  antes  mostrado. 


\>^'i      OiWlAS    DE    FHA^i  ISro    Ij'a  N  J)K  Ai>K. 


Vendo  esto  posta  a  Cruz  ])ranca  e  vcrniolli; 
Em  tamanho  despreso,  e  irreverência, 
A  quem  Ceo,  terra,  c  inferno  se  ajoelha, 
Aceso  d''hua  santa  impaciência 
Cora  outros  seis  ou  sete  se  aconselha 
due  o  quizerão  seguir,  e  a  competência 
Se  chegão  á  bandeira,  e  fazem  quanto 
Nao  diz  aqui  de  rouco  este  meu  canto. 


o  I^^RIlfiF.mO 

CERCO  DE  DIU. 


C%MTO  ILT 


./oão  Pires  e  seus  companheiros  são  mortos  po- 
ios Turcos.  António  Faltiro  traz  ao  Copi- 
ião  António  da  Silveira  hwna  carta  de  Fran- 
fisco  Pacheco,  e  leva  a  resposta  delia.  Os 
Turcos  assentão  a  artilharia,  batem  o  ba- 
luarte de  Gaspar  de  Sousa,  dão-lhe  htim 
assalto,  e  o  succcsso  delle. 


I^Dnsumidor  he  o  tempo,  insaciável 
De  tudo  quanto  cria  a  natureza, 
Ou  seja  a  cousa  em  si  forte  e  durável 
Ou  feita  com  engenho  e  subtileza; 
Ante  este  imigo  emfim  fica  domavel 
Antes  de  todo  perde  a  fortaleza, 
K  á  que  parece  mais  constante  e  lorte 
Também  guarda  soii  género  de  morte. 


iód      OJJRAS    DE    FliANCISCvO   D  ANDRADE. 
XT. 

Q-iic  grande  Império  d^ouro,  c  d^armas  feilo, 

Qiim  bem  fundada  torre,  <^ue  Cidade, 

Gtiie  espanfoso,  im mortal,  que  lioroicò  feito, 

Glue  forte,  que  robusta  mocidade, 

GLue  dôr  posta  no  centro  lá  do  peito, 

(iuc  desesperação,  que  saudade, 

Ou  se  cousa  inda  ha  mais  dura  e  constante 

A  resistir  ao  tempo  foi  bastante  ? 


Tudo  se  rende  erafim,  tudo  obedece 
A  este  segundo  fogo,  vagaroso, 
So  contra  suas  forças  prevalece 
Hum  magnânimo  espriio  valeroso :; 
Porque  este,  quando  a  força  desfalece 
Se  torna  mais  feroz^  mais  animoso, 
E  o  decurso  do  tempo,  ou  morte  esquiva 
Não  somente  o  não  gasta,  mas  o  aviva. 


Não  he  isto-  qu-e  digo  cousa  nova. 

Mil  exemplos  cada  hora  o  têe  mos-trado. 

Ousado  Piresi,  claro  em  ti  se  prova 

Q.ue  o  tempo  não  consume  o  peito  ousado, 

Antes  co"'(j  tempo  cresce  e  se  renova, 

E  o  domador  geral  delle  he  domado, 

Mostra-lo-hão  tuas  obras  nunca  ouvidas 

Do  teu  esprito  so  favorecidas. 


o  ri{iM7;i?.o  ctRco  de  diu.  487 


Com  irnpoto  feroz,  cmn  furor  sant© 
A  bandeira  infirel  Pires  se  lança. 
Do  baluarte  fora  a  deita  quanto 
A  sua  ant)ga  e  fraca  forca  alcança; 
K  ajodado  dos  rwais  de  que  atraz  canto 
Q.ue  aqui  lho  dão  favor  e  confiança, 
Alli  d''oride  o  pendão  purpúreo  arranca 
Arvora  lo^o  a  Crua  vermeliia  e  branca. 


Eis<o  soberbo  Turco  aceso  cm  ira 
Glue  aquella  injuria  tèc  em  grande  estima, 
De  novo  abate  a  Cruz,  de  cima  a  tira, 
Ergue  a  sua  bandeira,  e  põe-na  em  cima. 
Pires  arde  outra  vez,  geme  e  suspira, 
E  a  sua  companhia  acende  e  anima. 
Tenta  outra  vez  co^os  seus  este  combate 
Ergue  o  pendão  Christão,  o  Turco  abate. 


Não  se  acaba  cona  isto  esta  contenda, 
Faz  que  de  novo  o  Turco  e  o  Christão  gema, 
l*t)rque  o  Turco  não  quer  que  hoje  se  renda 
A  sua  insignia  á  Crux,  que  elle  blasfema, 
E  Pires  também  quer  que  o  Turco  entenda 
Glue  esta  he  a  rasão  que  só  se  exalce  e  tema, 
E  três  ou  quatro  vezes  foi  no  ar  visto 
Ora  o  pendão  do  Turco,  ora  o  de  Chri«tQ. 


Am 


OBRAS   DF,   FRANCISCO    1)   ANDRAOF,. 


Alé  que  vendo  o  Turco  impaciente 

(lue  não  poderá  no  ar  durar  erguida 

A  8ua  insignia,  em  quanto  a  ChristSa  gento 

'i  ee,  para  erguer  a  sua,  força  e  vida, 

•ia  menos  d^honra  então  que  d'ira  ardente, 

J)i'ixa  a  bandeira  ja  mal  defendida, 

lí>  voítu  o  feno  contra  a  companhia 

irlixe  o  fim  do  seu  intento  Ih 'impedia. 

IK. 

dual  faz  que  da  espingarda  o  chumbo  «aia, 
^Auai  men<'ia  o  luzente  ferro  agudo, 
Trabalhando  porque  esta  gente  caia 
iluft  o  seu  esforço  só  têe  por  escudo  i, 
Maí  a  esforçada  gente  nâo  desmaia, 
iiuc  a  vida  estima  ja  menos  que  tudo, 
í^uanto  o  perigo  he  mor  mais  se  defende. 
Também  meneia  a  espada,  a  lança  estende. 


O  pequeno  navio  que  engolfado 
No  Occeano  se  vê  largo  e  espaçoso, 
O-uando  Orion  d"* espessa  chuva  armado 
Mostra  a  força  do  inverno  tormentoso, 
De  cá  o  combate  o  grosso  mar  inchado, 
De  lá  o  bravo  vento  impetuoso, 
E  por  mais  que  trabalha  o  bom  Piloto 
Emfim  se  rende  aos  bravos  mar  e  Noto. 


o    IMllMEillO    CDKtO   DE    DIU.  489 

XI. 

Doíittt  sorte  me  mostra  o  pensamento 
Que  estes  poucos  Christãos  estar  devião 
Kntre  este  copioso  ajuntamento 
iJos  que  so  sua  morte  pertendião, 
K  que  com  maior  força  que  a  do  vento, 
E  que  a  do  bravo  mar,  os  comhatião, 
Nâo  lhes  faltando  então  por  toda  a  parte 
(stuanto  pode  ensinar,  ira,  ódio,  e  Marte. 


Kntre  aqnella  tão  grossa  tempestade 
Algum  tempo  os  fieis  se  defenderão, 
Mas  tal  dos  Turcos  era  a  quantidade 
Vlue  defender-se  muito  não  puderão  : 
Km  mãos  emfím  da  imiga  crueldade 
í)s  corpos,  que  só  á  morte  se  renderão, 
Antes  despedaçados,  que  rendidos, 
Deixarão  hoje  os  espritos  não  vencidos. 

XIIX. 

Nem  contente  com  isto  aquella  impura 
Turba  cruel,  que  em  ódio  inda  ardia, 
Dá  no  rio  a  estes  corpos  sepultura 
t^ue  inda  despedaçados  os  temia. 
Fica  a  sua  bandeira  então  segura 
Depois  que  lhe  faltou  quem  lh'a  abatia, 
Com  tanto  sjingue  seu,  que  esta  victoria 
yiiús  lhes  trouxe  de  dam  no,  que  de  gloria. 


'í9i>      OBKAS    OK    iniA  NCl.SCO    l>\\Xi)n  \  li  F. 
XIV. 

Estes  corpos  fiei»  çfae  bojo  no  rio 
Pola  ba-rbiira  mao  fifrat)  lançados, 
Cujos  espritos  no  Alto  SenJtorio 
(\)m  gloria  eterna  são  agasalhados, 
Por  ptirmissao  do  Etorno  Poderio 
Forão  do  mesmo  rio  então  lovado» 
A  hua  das  portas  lá  da  fortaleza 
Com  cnreo  ropugnaotc  á  natureza. 


Manda  o  Alto  Rei  tomn   nova  carroira 
Ao  liquido  elemento  nH';'.ielU  hora, 
Porque  estes  em  que  a  F6  foi  tao  inteira 
Lofi^rem  na  terra  a  casa  em  que  c\ht  mora  ; 
Dando  com  isto  mostra  verdadeira, 
Glue  pois  com  tal  milagre  quiz  açora 
Dar-llies  na  terra  aos  ctjrpos  tal  morada, 
Também  no  Cco  ás  almas  ih''a  tèe  dada. 

XVI. 

Com  marte  destes  poucos^  «aja  vida 
Suspendeo'  grande  espaço  osla  victoria, 
Aquella  estancia  aos  Turcos  foi  Tendi<ia 
GLue  por  ser  Portugueza  lhes  deu  gloria. 
A  maneira  de  que  i\n  concluida 
Do  pacto  a  Gondi<^ão,  não  foi  notória 
Na  fortaleza,  até  que  »  loura  frontr 
De  novo  erg^ipo  Apollo  no  Horizonte. 


o    rRÍMCIJlO    CERCO   DE   DIU.  4'J  I 


Nem  tinha  intla  chegtido  bem  ao  meio 
Do  arrebatado  seu  curso  ligeiro, 
iAuando  da  purte  lá  de  fora  veio 
Da  fortaleza  aquelle  máo  Faleiro, 
No  trajo,  e  na  arte  ja  de  todo  alheio 
Do  que  rt'presentando  liia  primeiro, 
De  brocadilbo  ornado,  e  de  grãa  fina, 
Cortados  á  feição  que  o  Turco  ensina. 


Cliama  com  alta  voz  na  estancia,  onde 
(xaspar  de  Sousa  têe  sou  estandarte  ^ 
Sousa,  a  quem  esta  voz  alta  nào  se  esconde, 
Se  lhe  mostra  de  lá  do  baluarte  ^ 
l*ergunta-lhc  o  que  quer,  elle  responde 
ôue  o  Pacheco  o  mandava  áquella  part<» 
Chfia  carta  que  ao  grão  Silveira  escreve, 
A  qual  cumpre  que  logo  se  lhe  leve. 

XIX. 

E  dando-a  a  hum,  de  que  vem  acompanhado' 
iiue  do  Mafoma  segue  a  immunda  seita, 
Manda  que  dentro  a  deite  ^  elle  chegado 
Com  pressa  ao  baluarte,  dentro  a  deita  ; 
llocollie  o  Sousa  a  carta,  e  com  cuidado 
Faz  com  que  oUa  ao  Silveira  vá  direita  \ 
Faleiro,  que  Ih^a  vê  na  mão  ja  |x>sta, 
L!ie  encommenda  a  presteza  da  resposta. 


492      OlillAS    DE   FKANCISCO    D*ANDRADF.. 
XX. 

Dizendo  que  o  Pacheco,  que  ficava 
N^hua  casa,  que  perto  alli  se  via, 
(Signalando  co''o  dedo  onde  ella  estava) 
E  têe  Cojaçofar  em  companhia, 
Por  má  disposição  que  o  mal  tratava 
Deter-se  muito  espaço  não  podia, 
Antes  para  poder  remediar-se 
Lhe  cumpria  d''alli  logo  tornar-se. 


Em  quanto  ao  grão  Silveira  vai  voando 

A  carta  que  o  í^aleiro  alli  trouxera, 

Fica  elle  largamente  declarando 

As  honras  e  mercês  que  lhes  fizera 

O  Baxá  Çoleimão,  e  que  em  chegando 

Cabaias  de  grão  preço  a  todos  dera  ^ 

E  com  grande  fervor,  grande  eloquência 

Louva  a  sua  real  magnificência. 


Também  com  mil  palavras  engrandece 

O  seu  raro  saber  e  authoridade, 

O  grão  poder  que  traz  e  lh'obedece, 

E  outras  mil  cousas  desta  qualidade, 

D^onde  com  claras  mostras  apparece 

Aquella  pouca  fé,  pouca  verdade, 

Aquelle  desleal  peito  fingido 

Que  neste  antes  ja  foi  quasi  entendido. 


o   PRIMEIRO   C£nCO   DK  DIU.  493 


Chega  entretanto  a  carta  á  fortaleza, 
E  sendo  ao  Capitão  apresentada 
Faz  logo  ante  si  vir  toda  a  nobreza 
Q-ue  alli  estava  então  agasalhada, 
E  outros  muitos,  a  quem  alli  a  grandeza 
Do  saber  e  do  esprito  dera  entrada, 
E  juntos  abre  a  carta,  que  inda  tinha 
Cerrada,  e  nesta  forma  escripta  vinha  : 


Senhor,  eu  me  entreguei  ao  poderoso 

Grão  Baxá  Çoleimão,  porque  elle  dado 

Me  têe  seguro  firme  e  valioso 

N''hum  formão  seu,  de  ehapas  d'ouro  ornado, 

Polo  qual  como  nobre  e  grandioso 

Não  somente  nos  tèe  assegurado 

Glue  as  vidas  nos  dará,  e  as  liberdades. 

Mas  escravos  também,  e  faculdades. 

XXV. 

De  nós  a  artilharia  quiz  somente, 

E  as  armas,  com  que  tanto  o  maltratamo», 

E  por  ser  da  victoria  mais  contente 

Ctue  faxer-lhe  á  galé  calema  vamos. 

Levado  fui  d^alli  com  toda  a  gente 

E  todos  na  Cidade  logo  entramos, 

Na  qual  em  aposentos  apartados 

Fomos  de  dous  em  dous  agasalhados. 


404 


OBUA8    UK   *UAKtlS(;<)    »   ANOKADE. 


XXVI 


D^aqui  á  c^alé  ^xlstatda  eu  fiz  àfealo 
Em  quo  tèe  Çolpimào  seu  aposeíito, 
Foi  la  António  Faloiro,  e  foi  Gonçalo 
D^Almeida  tanibom  neste  ajuntamento:; 
Achámos  nelle  mil,  que  aqui  «ao  falo, 
Honras,  mercês,  traz  bom  recebimento, 
De  que  em  chegando  foi  logo  o  conieço 
Dar- nos  senhas  cabaias  de  grão  preço. 


Depois  que  algum  espaço  alli  pratica 
Comnosco,  lhe  disse  cu  :  Se  o  teu  espríto, 
Senhor,  he  tal,  qual  teu  poder  publica, 
Cumpre  o  que  este  formão  teu  nos  têe  dito, 
Outra  vez  com  palavras  ratifica 
O  que  nos  pr<ímettêra  por  escrito, 
Dizendo  que  sem  falta  cumpriria 
€tuanto  no  seu  formão  nos  promettia. 


Mas  por  quanto  assentado  elle  ja  tinha 
Coml^ater  com  instante  fúria  aceza 
Logo  essa  fortaleza,  «  a  isso  so  vinha. 
Nem  cessaT  sem  victoria  desta  em  preza. 
Para  isto  haver  efíeito  lhe  convinha 
Glue  eu,  e  a  mais  companhia  Portugticza, 
Deste  seu  arraial  não  me  apartasse 
Todo  o  tempo  que  nisto  se  gastasst;. 


e    l>R<HBIKO   CERCO    DS    lil«. 


W$ 


E  que  se  com  favor  do  Ceo  ainigo  -muJt 

A  esta  S!ia  tenção  o  efieito  segue,  íkM 

Sem  haver  mais  detença,  ou  mais  píírigo,  •:  "^i 
Fará  que  a  Christya  gente  á  índia  navegueíí> 
Mas  qne  se  o  Ceo  lhe  fòr  tao  inimigo  jo'J 

Que  de  sua  lerção  o  elfeito  negue,  ?  A 

Eu  com  todos  os  mais  livres  seremos  ..t.T 

E  á  fortaleza  livremente  iremos. 


Mas  porque  a  execnçSo  desta  vootade 
Hum  sd  momento  mais  não  se  dilate, 
Desembarcar  mandou  com  brevidade 
Dous  basiliscos  ja  para  o  combate. 
Cuja  horrenda  o  mortal  ferocidade 
Tudo  abraza,  destriie,  assola,  e  abate, 
Nem  sao  sós  e&tes  dous,  que  nesta  guerra 
Pode  quantos  quizer  lanhar  em  terra. 

XXXI. 

Elle  manda  avisar-vos.  que  rondar- vos         :.ifí 
Clueiraes,  e  em  sou  poder  entregar  tudo  ■■>  / 
Sem  menear  espada,  ou  dcíender-vos, 
Porque  se  nsaes  contra  elle  lança  e  escudo 
Em  vão  depois  haveis  de  arre  ponde r-v os, 
Pois  com  inexorável  ferro  agudo 
Fará  de  vosso  sangue  o  chão  vermelho. 
A  gora  ©  vede-,  e  havei  lá  bom  conselho. 


49$       OBBAS    DE  FRAKCXSCO   I>''aKX>RAO£. 
XXXII. 

Com  mui  grande  attençao  a  carta  ouvid» 
Foi  de  toda  esta  nobre  companhia, 
E  sendo  então  de  todos  entendida 
Claramente  a  tenção  que  ella  trazia, 
Com  pouca  alteração  foi  conclui(ia 
A  resposta  que  dar-lhe  então  cumpria. 
Toma  tinta  e  papel  logo  o  Silveira 
E  a  resposta  formou  desta  maneira  : 

XXXllI. 

Para  hum  tal  Capitão,  tão  poderoso 
Como  dizeis  que  esse  he,  fora  devido 
(Pois  he  próprio  do  esprito  generoso) 
Cumprir  o  que  vos  tinha  promettido; 
Mas  não  me  espanto  ser-vos  mentiroso 
GLuem  he  de  natureza  fementido, 
De  vós  me  espanto,  que  tão  livremente 
Me  escreveis  que  cá  o  bom   conselho  attonte 


Dizei-lhe  lá  que  mostre  neste  feito 
A  quanto  seu  poder  e  ira  se  estendo, 
Gtue  tudo  ha  de  ser  vão  e  sem  proveito 
Pois  não  ha  de  alcançar  o  que  pcrtende  ; 
Porque  cá  o  mais  covarde  e  fraco  peito 
Em  tamanho  furor  hoje  se  acende, 
Q.ue  por  não  se  perder  a  mais  pequena 
Pedra,  aciui  dar  o  sanirtic  c  a  vida  ord«:na. 


o    PttIMElKO    CEUCO    DK    Dll,  ií>7 


E  VOS  ficai  d'aqui  bem  avisado 

(Se  nao  vos  quereis  ver  em  j^rão  porisío) 

Ôue  nào  me  mandeis  outro  tal  recado, 

Nem  m'o  Iragaes  por  vos  cora  som  d'aiHÍgo, 

Porque  sereis  de  mi  tiío  maltratado 

Quanto  o  fora  o  cruel,  mortal  imigo, 

K  como  a  tal  farei  que  a  brava  e  h(»rreHd<|  i*Í 

Bombarda  a  sua  fúria  em  vós  dispeiula.       .  B 


Concluída  a  resposta  foi  desta  arfe 
E  na  mão  ao  Faioiro  loíi;o  a  derão, 
Ellc  sem  mais  tardar,  d'alli  se  parte 
E  se  vai  aonde  lá  juntos  o  espcrào 
O  que  ja  governou  o  baluarte 
De  que  os  Turcos  então  senhores  erão, 
E  o  niáo  Cojaçofar,  e  alíi  não  párao 
Mas  todos  d''alli  juntos  se  apartarão. 

xxxvii. 

Desejo  geral  he,  se  não  mo  engano, 
Saber  o  fim  que  teve  a  Christãa  gente 
due  se  entregou  em  mãos  do  imigo  iiiswuo 
Sempre  falso  e  cruel,  nunca  clemente. 
Estes  depois  por  ordem   do  tyrano 
Baxá,  dos  Portiiguezes  mal  contentr, 
Se  diz  que  fòrão  todos  degoladí)s 
S(  ndo  a  Aacbibç  os  Turcos  arribados. 


XXXVIII. 

A  nova  desta  carta  que  se  espalha 
Por  toda  a  fortaleza  n''hum  momento. 
Na  que  antes  era  baixa  e  vil  canalha 
Imprime  hoje  fervor  e  atrevimento^ 
Mais  desejo  que  medo  ha  da  batalha 
No  nobre  e  no  plebeo  ajuntamento, 
E  para  defender-se  estão  tão  fortes 
Glue  inda  mil  lhe  parecem  poucas  mortes ► 

XXXIX, 

O  forte  Capitão  que  bem  merece 

Desta  tão  forte  gente  ter  o  mando, 

Tudo  soccorre,  tudo  favorece 

Com  peito  liberal,  altivo,  e  brando. 

Se  alguém  qualquer  fraqueza  em  si  conhece 

Só  pôr  os  olhos  nelle  o  está  animando, 

Com  grande  ordem,  cuidado,  e  brevidade 

Tudo  ordena  o  de  que  ha  necessidade. 

XL. 

Os  Turcos  entretanto,  desejosos 
De  poderem  dar  fim  á  sua  enipreza, 
Hum  momento  não  gastão  só  ociosos, 
Mas  com  vontade  agora  mais  aceza 
Assentào  canhões  grossos,  furiosos 
Para  ruina  da  gente  Portugueza, 
Em  qualquer  dos  logares  que  se  via 
Ser  maÍ8  conveniente  á  bateria» 


«   PKIMEIRO   CBRCO   SE   Oiti. 
TÍLU 

Afora  estes  canhões  que  se  applicavão 
A  ruina  do  grosso  muro  forte, 
Por  diversos  locares  se  assentavão 
Outros  canhões  também  de  vária  sorte, 
Cujas  horrendas  fúrias  se  empregavão 
Em  ruina  da  gente,  e  crufl  morte, 
E  qualquer  destes  seu  assento  tinha 
á  fortaleza  mais  visinha. 


A  cópia  dos  canhões  que  a  fortaleza 
Combatera,  rasao  he  que  aqui  se  veja, 
São  nove  basiliscos  de  grandeza 
Não  usada  até  então,  nova,  e  sobeja, 
Mostrão  os  seus  pelouros,  a  braveza 
Destes  canhões,  e  saiba  quem  deseja 
Saber  que  peso  têe,  que  os  mais  pequenos 
Fesão  de  cem  arráteis  pouco  menos. 


Em  companhia  destes  basiliscos 

Espalhafatos  cinco  estavão  postos, 

Cuja  fúria,  onde  chega,  em  grandes  riscos 

Põe  tudo,  e  faz  perder  a  cor  aos  rostos  •, 

Destes  os  bravos,  hórridos  coriscos, 

(Os  quaes  de  pedra  dura  erão  compostos) 

Em  roda  (vede  se  isto  espanto  mette) 

Ciual  cinco  palmos  têe,  qual  seis,  qual  sette, 


^(ÍO      O^XAS    DE   FRANCISCO    D^ANDKA  UX. 
XLíV. 

Nem  ccmi  isto  se  farta,  ou  se  contenta 
AquoUa  iiniga  fúria,  antiga  e  fera, 
t Quinze  águias  e  leões  taiubem  assenta 
l/Uin  qtie  ajudar  a  seu  intento  espera  :, 
De  eanliões  mais  pequenos  põe  oitenta, 
Km  ijue  {k3c  o  falcão,  e  a  meia  espera, 
Võii  o  selvagem,  põe  a  espera  inteira, 
K  uuliob  muitos  também  desta  maneira. 


T)er>uis  dilrandío  o  cerco,  se  aproveita 

])a  braVa,  liorrenda  fúria,  alta  e  temitl.r 

Diuan  medonho  quartão,  t]ue  de  si  dí;ita 

líua  morte  cruely  não  resistida. 

EUe,  o  qae  sempre  a  barba  mais  direita 

'{\;ve,  quando  em  mór  risco  tinha  a  viíla, 

Fa*- agora  tremer,  e  põe  receio 

I\'o  cjuc  antes  de  temor  foi  sempre  alheio. 

xiivi. 

Douíj  Capitães  tinha  esta  artilharia 
})'aí>iiaii  várias  nações,  e  nascimentos, 
llám  era  Jhnof  llamed,  d"* Alexandria, 
Oiifró  o  rebelde  aos  Sacros  Mandamentos. 
Ksles,  dos  que  nascerão  em  Turquia 
'!  eií  comsigo  contiimos  vihte  centos, 
K  tamljcm  toda  aquella  gente  os  segue 
^!M;  ao  liutiuo  inlicl  estava  entrcíruc. 


o    PltIM£IRO   CERCO    D£   DIl.  SOI 

XIVU. 

O  Baxá,  que  isto  tudo  governava, 
Nunca  a  frota  deixou,  nella  se  encerra, 
Assi  porque  guarda-la  a  elle  tocava 
Por  estar  nella  a  força  desta  guerra, 
Como  porque  de  todo  lhe  negava 
A  sua  antiga  idade  vir  a  terra^ 
Ou  por  outro  respeito  extraordinário, 
Mas  d^alli  provê  tudo  o  necessário. 


A q nella  artilharia  que  prantada 

Para  bater  estava  alli  somente, 

Está  por  vários  postos  situada, 

A  qual  forteficou  a  iniiga  gente 

Com  grandes  bastiões,  acompanhada 

De  mui  grandes  trincheiras  juntamente, 

E  para  que  estar  mais  segura  possa 

Faz  que  também  a  ampare  a  manta  grossa. 

XLiX. 

Nenhum  destes  canhões,  ctija  arrogância 

Só  do  morte  ou  ruina  se  contenta. 

Da  fortaleza  têe  a  sua  estancia 

Mais  que  só  passos  cento  c  cincocRta  ;; 

Mas  antes  alguns  ha  cuja  distancia 

Da  fortaleza  he  só  passos  sessenta, 

E  entre  elles  e  ella  está  posto  inda  o  assento 

Glue  dá  á  gente  de  guerra  alojamento. 


tí02      QJènXS,    DE    FRANCISCO    1»  ANDRADE. 


E  com  tanto  saber,  arte,  o  íloutrina 
Está  alli  ítquelle  as&etito  situado, 
Gue  por  cÍHia  o  canhão  jogn  e  fLiliiiitt*|  xeaA 
Sem  damno  do  que  alli  está  alojado^      o  •'oí 
E  para  iiao  temer  qualquer  ruiiui  3 

Com  larga  cava  estíi  rorteficadõ,  / 

E  com  outras  díjfensa»,  d^>dmiravpl 
Artclicioj  ííosaz  forte,  e  defensável, 

Lt. 

Preparado  ja  tudo  q«nnto  iliVra 
Necessário  a  bater  o  muro  iraigo, 
Tendo  o  Planeta  entíío  da  quarta  osf«rA 
Cluatro  vozjs  andado  o  curso  antigo, 
Depois  que  entrou  o  mez  quo  ã  cruel  fcra 
Q.UO  a  terra  produzi©  pari»  c;w{,ii!,o, 
D^Orioii,  por  seu  mal  solíxírbo  e  ufaso. 
Hua  vez  agasalha  cm  si  coda  atiia  ; 

Tanto  que  começou  lá  ftó  fíoriaottic, 
Abrindo  o  radioso  seu  tli*!Soiiro, 
Erguer  a  luminosa,  luura  fronte  i.,;  , 

O  que  foz  tornar  Daplino  em  verdelO;!!!», 
Eis  que  logo  rctuiíi})ix  o  vallc  c  o  moiitc, 
Salie  com  esttondo  lK)rris()iio  o  pelourtt 
Da  grosea  artilharia,  e  da  miu(la>)!  »  ^  ;«  . 
Q.ue  cm  damno  dos  ChrislS<x«^  Hiliní^íbteíestuda. 


.<*>  eill»«l«0  jC^IVCO   DE  DIU.  503 

Dura  csle  seu  ferosi  commettimento 

Em  quanto  o  rosplondor  que  Apollo  cri«y 

Ora  visitando  Hum,  ora  outro  assento, 

Duas  vtíxes  altcBr>a  a  noite  é  ó  dia  • 

Em  que  da  infiel. gente  foi  o  intento  .,4j 

Cegar  toda  aí  Cliristaa  artilharia  r> 

E  desfazor-lhe  ti»do  o  q\!e  a  defende, 

E  bom  fiiz  a  acu  a<*lY0  o  que  pertowde, 

itv. 

E  nao  somente-  agora;  eíTeituávSo 

O  que  nestes  dous  dias  pertendêrão, 

Mas  inda  alguns  eaiiliões  também  quebrálao 

Com  que  o  daiii.no  foi  mor  do  q^uc  quizerão  : 

Foi  hum  d«stx^'S  que  alli  rotos  íieárâo 

Hua  férrea  selvagem,,  e  outros  erão  -r-i 

Hum  camalcte,  e  a  boca  a  hum  leão  jfoçte^'! 

E  outras  peças  miúdas  d^outra  sorte. 


IMas  porque  ja  basíantemente  agora 

Tèe  dado  execução  a  seu  conceito,  W 

Comoção  em  tornando  a  nova  Aurora  ' 

A  cruel  batt^ria  dar  efíeito  : 

E  vendo  o  baluarte  cá  de  fora 

Clue  era  a  Gaspar  de  Sousa  então  sujeito 

Com  menos  defensões  que  os  outros  tinhão. 

O  seu  furor  primeiro  a  elle  encaminhão. 


LVl, 

Vêem  que  até  meio  rosto  só  têe  cava 
Em  que  nenhum  travéz  pode  ajudallo, 
Do  baluarte  do  mar  só  esperava 
Ter  favor,  se  d^alguem  pôde  esperallo. 
Oito  peças  aqui  daquella  brava 
Artilharia  põe,  de  que  atraz  fallo, 
Que  nesta  frontaria  sóltão  logo        • 
O  ruinador  ferro  envolto  em  fogo. 

LVII. 

N 'outros  postos  também  está  batendo, 

Onde  o  pelouro  ao  muro  peior  trate, 

Mais  d** hum  grosso  canhão  medonho  e  horrendo 

Cujo  furor  assola  tudo,  e  abate  : 

Também  algúas  peças  se  estão  vendo 

Em  parte  onde  qualquer  o  muro  bate, 

Co^a  sua  costumada  alta  braveza 

Sobre  a  porta  lá  da  fortaleza. 

LVllI. 

D'aqui  grão  damno  o  povo  ChristSo  sente 
Q/Ue  lá  na  fortaleza  então  trabalha, 
l'()is  d 'aqui  o  roto  muro  á  infiel  f!;ente 
Mostra  o  logar  onde  elle  se  agasalha  : 
Dos  pelouros  também  a  fúria  ardente 
Q-ue  a  líirga  bateria  no  ar  espalha. 
Do  baluarte  o  travéz  encontrar  vinha 
O  qual  de  São  Thomé  o  nome  tinha. 


o  iPfttMElRO  CERCO    U£  DIU.  305 


Começava  esta  horrenda  bateria 
Q^iiando  o  Dclio  profeta  o  carro  solta, 
D''onde  espalha  na  terra  o  novo  dia 
Pouco  antes  inda  em  noite  e  somno  envolta  ^ 
E  dura  até  aquella  hora  em  que  fazia 
Outra  vez  ao  salgado  leito  a  volta, 
E  a  escuridão  da  noite  que  succeJe 
Ao  bombardeiro  esperto  a  vista  impede. 


Então  os  canhões  todos  carregavao, 

E  nas  partes  que  são  mais  importantes 

Ao  fiel  defensor,  os  assestavão, 

As  quaes  elies  baterão  ja  pouco  antes  ^ 

E  em  sentindo  os  Christãos  que  as  reparavao 

Sóltão  logo  os  pelouros  penetrantes ;; 

Nem  foi  sempre  lá  em  vão  esta  sua  ida 

Glue  alguas  vezes  tirão  sangue  e  vida. 

txi. 

Não  falta  ao  Portuguez  entendimento, 
Nem  astúcia  que  est''outra  desbarata, 
Glue  antes  de  dar  principio  a  seu  intento 
Manda  hum  que  c^hiim  picão  no  muro  bata! 
Logo  o  Turco,  que  nisto  têe  o  tento, 
A  fúria  dos  canhões  em  vão  desata, 
E  atalhado  dest''arte  aquelle  engano 
Cresce  a  obra  com  menor  receio  e  dano. 


Cinco  dias  traz  vinte  nao  cessarão 
Os  Turcos  de  bater,  com  grande  instancia, 
Mas  como  o  que  primeiro  elles  tentarão 
Era 'do  valeroso  Sousa  a  estancia, 
]'orque  (como  atraz  disse)  a  divisarão 
í^om  menos  defensões,  menos  constância, 
E  ii>onos  a  damnar  apparelhada 
Cluaudo  fosse  por  elles  assaltada  ^ 


Dilatar  muito  tempo  não  quizerão 

A  victoria  que  havião  per  segura, 

E  dentro  em  cinco  dias  (os  quaes  derão 

Começo  á  bateria  áspera  e  dura) 

Com  fúria,  das  ameias  lhe  baterão 

'íámbem  das  contra-ameias  a  grossura, 

E  o  mais  tanto  a  bombardada  o  damnifica 

tílue  quasi  até  o  entulho  roto  fica. 

LXIV* 

Dentro  nos  cinco  dias,  que  atraz  fallo 
(^.ue  o  baluarte  a  fúria  imiga  sente, 
O  Silveira  também  manda  atalhallo 
Para  se  defender  mais  facilmente  : 
E  também  p.ira  mais  forteíicallo 
Hum  reparo  lhe  lauga  juntamente 
n'hfia  parede  forte,  e  não  estreita, 
A  qual  era  de  pedra  c  barro  feita. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU,  ^7 


Tanto  era  esta  parede  ao  ar  alçada 
Gluanto  têe  qualquer  homem  de  comprido, 
A  qual  lá  pola  borda  vai  lançada 
Do  que  a  Turca  bombarda  têe  batido  -^ 
Por  dentro  he  com  dej^ráos  forteíicada 
D''onde  bem  pelejar  pode  o  atrevido  : 
E  este  atalho  e  reparo  a  terça  parte 
Occupavão  daquelle  baluarte. 


Ncbte  tempo  ja  vendo  a  gente  íraiga 
tlue  lhe  dá  larga  entrada  o  roto  murOj 
Confiança,  ousadia,  e  ódio  os  obriça 
A  ir  tomar  o  que  havião  por  seguro^ 
E  quando  de  Titon  a  chara  imiga 
De  novo  desterrou  o  manto  escuro. 
Hum  dia  apoz  os  cinco  que  gastarão 
Em  bater,  para  o  assalto  se  prepáruo. 


Prove-se  cada  hum  d^armas  agora 
Q-ue  hoje  mais  necessárias  ser-lhe  entende, 
E  quando  o  Sol  chegando  hia  áquella  hora 
Em  que  a  sombra  entre  nós  menos  se  estende, 
Sahe  do  seu  forte  assento  a  gente  fora, 
Cuidando  inda  acabar  o  que  pertende 
Sem  seu  trabalho,  quanto  mais  sem  dano, 
Mas  cora  ambos  vio  logo  seu  engano. 


Cincoonta  vao  sós  na  dianteira 
D^aço  ornados  assaz  e  d%if«nia, 
Seguindo  traz  a  usada  sua  bandeira 
\ão  ])iiscar  o  que  abrio  a  bateria  : 
A  mais  gente  que  lhes  era  companheira 
No  logar  da  peleja  nao  cabia, 
Em  baixo  ficao  todos  postos,  onde 
A  nossa  cava  em  si  dentro  os  esconde. 

LXIX. 

Mas  nem  o  tempo  aqui  passa  ociosa 

<3liie  d''oqui  lar^^amente  os  seus  soccorre, 

Pois  quando  na  bataliia  sanguinosa 

Vê  qiie  dos  seus  als^-um,  ou  cansa,  ou  morre, 

A  competência  sahe  de  lá  animosa 

E  com  grSa  pressa  ao  alto  logo  corre, 

l*ara  enclier  o  logar  desamparado 

Do  que  delle  sahio  morto  ou  cansado. 

LXX. 

í^óbem  ousadamente  os  cincoenta 
PoIh  pedra  e  caliça  que  esparzida 
l)eixt)U  da  bateria  alii  a  tormenta 
Por  onde  ao  alto  tee  fácil  subida  ;, 
Mas  tanto  que  lá  vao  se  Hrapresenta 
Hum  pnqueno  esqjiadrão,  mas  d^escolbida 
Gente  :,  este  be  o  Sousa,  e  os  compaidieiros  fortes. 
Prestes  nào  sd  para  hna^  mas  y:\'.\  mortes. 


«    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  509 


Logo  aqiiellii  infiel  gente  profana 
Com  grãa  grita  á  Chiistãa  se  vai  direita, 
Q.ual  move  o  pique,  qual  a  partasana, 
Q-ual  tamhem  do  zarguncho  se  aproveita  \ 
D^outras  armas  tamhem  com  que  mais  danii 
Usa  então,  que  a  panella  cheia  deita 
T)o  negro  p(5,  deita  outros  arteficios 
CLue  lançar  fogo  tèe  por  seus  officios. 


O  Hirte  Sousa  c  os  seus,  a  quem  a  usança 
De  semelhantes  casos  lioje  dava 
N«'ste  menos  temor  que  confiança 
Pouco  temendo  a  imiga  fúria  brava, 
E  movendo  também  espada  e  lança 
Ousados  vão  buscar  quem  os  buscava, 
Tamhem  no  ar  levantando  Ima  alta  grita 
Que  os  peitos  alvoroça,  acende,  e  incita. 


Arremotte  a  infiel  á  fiel  gente 

Co'o  furor  que  o  grande  ódio  ensina  e  Marte- 

Mas  acha  a  defensão  bem  dilíerente 

Do  que  cuidava  lá  no  baluarte. 

Deste  grande  fun)r,  deste  ódio  ardente, 

Com  assaz  dam  no  (rhua  e  d^outra  parto, 

.Logo  o  cffeito  cruel  ^.e  está  mostrando, 

VoU  a  ambas  sangue  e  vida  et>tá  custando. 


510      OBRAS   DE   FRANCISCO   D^ANDRADE. 


A  Christaa  companhia  que  defende 
O  reparo  que  pouco  antes  foi  feito 
Revolve  a  aguda  espada,  a  lança  estende, 
Sente-o  a  perna  infiel,  o  braço,  o  peito  : 
O  Turco,  inda  que  assaz  também  a  offende, 
Comtudo  seu  trabalho  he  sem  proveito, 
Pois  quanto  mais  insiste  na  victoria 
Tanto  alcança  mais  damno,  e  menos  gloria. 

LXXV. 

Cahe  d^hua  e  d'outra  parte  o  miserável 
A  que  o  ferro  encontrou,  morto  ou  feridoj 
Faz  isto  o  ódio  e  o  furor  insaciável. 
Das  armas  cresce  o  estrépito  e  o  ruido :; 
Soa  entre  esta  revolta  o  lamentável 
Com  hum  confuso  tom  triste  gemido, 
Glue  do  que  ainda  em  pé  está,  a  vontade 
Move  a  vingança  mais  que  a  piedade. 


Nesta  alta  defensão,  nesta  constância 
O  esquadrão  Lusitano  prevalece, 
Até  que  salie  de  lá  da  sua  estancia 
Q-ualquer  dos  Capitães,  e  o  favorece  ^ 
Glue  o  Silveira,  que  com  grãa  vigilância 
Contemplando  está  sempre  o  que  parece 
Glue  em  cada  parte  então  fazer  convinha^ 
O  que  agora  direi  mandado  tinha. 


i 


«   FRIMEinO   CERCO   DE  DIV.  híi 


Mandou  que  quando  o  Turco  ajuntamento 

Híía  destas  estancias  assaltasse, 

Q-ualquer  dos  Capitães  que  o  regimento 

Das  outras  tee,  alguns  a  si  ajuntasse 

Dos  melhores  que  têe,  e  n'hum  momento 

A  favor  do  assaltado  se  passasse  ^ 

E  isto  que  nos  assaltos  ordenara 

Também  no  assalto  d^hoje  se  guardara.     -    ^i^ 

LXXVIII. 

Co''o  favor  que  dos  outros  Sousa  teve 
Tanto  nelle,  e  nos  seus  cresce  a  braveza, 
Q-ue  no  imigo  feroz,  em  tempo  breve 
Imprime  grande  espanto,  grãa  fraqueza. 
Tal  que  ja  desmaiado  não  se  atreve 
Soffrcr  mais  tempo  aquella  alta  crueza, 
Contra  a  qual  quanto  mais  se  mostra  forte 
Procura  para  si  mais  damno  e  morte. 

IXXIX. 

Vai-se  atraz  com  graa  pressa  retirando 
Cheia  de  sangue  assaz,  mas  mais  d'espanto, 
Todos  vão  de  Mafoma  blasfemando 
ôue  outro  poder  não  crêem  que  possa  tanto. 
Alguns  dos  seus  os  corpos  cá  deixando 
Mandão  as  almas  lá  ao  eterno  pranto, 
Dos  Christãos  sós  dous  vão  á  eternidade 
Mas  dos  feridos  he  grãa  quantidade. 


0l2      OBUAS    DE    FRANCISCO   D 'ANDRADE 


In  da  que  o  niáo  successo  que  este  dia 
Teve  esta  iniiga  gente,  lhe  reprime 
A  sua  alta  soberba,  alta  ousadia, 
Glue  faz  que  a  seus  imigos  pouco  estime, 
Comtudo  a  natural  sua  ufania 
Hum  ardente  des  jo  nella  imprime 
De  tomar  desta  aífronta  graa  vingança, 
E  inda  lhe  dá  para  isto  confiança. 


D^aqui  nasceo  ao  Sousa  hum  grão  perigo 
De  damno,  mas  de  gloria  acompanhado. 
Pois  cada  dia,  em  quanto  o  Turco  imigo 
Sustentar  este  cenío  foi  ousado. 
Lá  naquelle  reparo  que  atraz  digo 
Foi  duas  e  três  vezes  assaltado. 
Lá  onde  o  que  commette,  e  o  que  defend( 
Sempre  derrama  sangue,  e  esprito  rejide. 

LXXXII. 

E  com  quanto  os  imigos  combatiao 
De  mais  alto  logar  que  os  defensores, 
E  no  logar  daquelles  que  morrião 
Mettem  sempre  dos  vivos  os  melhores, 
Também  o  Sousa  e  es  seus  se  defendiào 
Glue  emfim  sempre  ficarão  vencedores, 
Q-ue  não  pode  hum  trabalho  intolerável 
Domar  aquelle  esprito  alto,  indomaví;!. 


#    1'RIAIEIRO   CERCO   ME    DIC.  Òl^ 

I.XXXIII. 

Mas  em  quanto  o  assaltou  desta  maneira   •    /. 
O  Turco  pertinaz  com  tanta  instancia, 
Sempre  teve  comsi<:;<i  companheira 
Gente  e  Capitão  d\)utra  algua  estancia  ^ 
l*orque  ordíMiado  assi  tinha  o  Silveira 
Q-ue  por  sua  ordem  vão,  com  vij^ilancia 
Todos  ao  ajudar,  depois  que  sente 
€lue  alli  se  inclina  mais  a  imiga  gente. 

LXXXIV. 

Neste  tempo  em  que  ja  mais  de  verdade 
O  imií^o  mostra  a  sua  alta  braveza, 
S<»breveio  g(;ral  enlermidade 
Km  qnasi  quantos  ha  na  fortaleza  : 
Na  boca  he  todo  o  dam  no  o  adversidade, 
Gtue  a  muitos  trata  então  com  tal  crueza 
GLue  com  dores  immensas  e  excessivas 
Orfãas  e  sós  lhes  ficão  as  gengivas. 

LXXXV. 

Por  toda  a  parte  se  ouve  o  piedoso 
Gemido  do  que  a  dor  grave  atormenta, 
Q.ue  de  todo  o  suave  e  saboroso 
Somno,  do  trabalhado  corpo  ausenta  \ 
K  assi  o  áspero  arroz  e  escandaloso 
(Manjar  que  então  só  têe)  o  descontenta, 
Q.ua  soflVe  antes  com  fome  ter  a  morte 
(^uc  a  dor  d"'hum  tal  manjar  ásp»n*o  <•  forte. 


S14       OBRAS    DE    FRANCISCO   d''aNDRADE. 
IXXXVI. 

A  causa  deste  damno  foi  nascida 
Da  cisterna,  segundo  o  que  suspeito. 
Que  sendo  d''hum  betimic  guarnecida 
Cujo  nome  he  charú,  e  em  Ormuz  feito, 
Foi  a  agua  dentro  nella  recolhida 
Sendo  o  betume  fresco,  e  de  tal  geito 
A  agua  Urinfeccionou,  que  a  esta  pesada 
Nojosa  enfermidade  abrio  a  estrada. 

LXXXVII. 

Mns  em  meio  d^^hum  mal  que  os  tanto  aperta 

Nenhum  se  nega  então,  ou  quando  o  imigo 

Os  chama  á  sua  mortal,  d<ira  referta, 

Ou  quando  a  trabalhar  os  chama  o  amigo  : 

Mais  os  incita  então,  mais  os  desperta 

O  perigo  geral,  que  o  seu  perigo, 

Com  quanto  a  fraca  força  então  IhMmpcde 

O  eífeito  do  que  o  duro  esprito  pede. 

LXXXVII  I. 

Porém  como  a  doença  hia  crescendo, 
E  as  feridas  e  mortes  cada  dia 
Os  poucos  Christãos  menos  vão  fazendo, 
Também  mais  grave  o  peso  se  fazia, 
Porque  pequena  cópia  está  soílVendo 
O  que  hua  grande  cópia  antes  soflVia  ^ 
E  assi  quanto  mais  hião  trabalhando 
Mais  se  hiao  do  trabalho  sujeitando. 


o    PltlMElUO    CEUCO    DE    DIU. 


E  como  V  poiico  íofuno,  e  ra9tntimeT^9\ 

Os  debilita  àssaz  e  o»  enfraquecíe,        ik.1 
Padérão  receber  grão  detrimento, 
Pois  cresce  o  peso,  e  a  força  desfaliece, 
Se  então  o  feminil  ajuntamento, 
(itie  também  aos  trabalhos  se  oflferece, 
Em  varonil  esforço,  e  em  honra  aceso 
Nào  tomara  grãa  parte  deste  peso. 

Põe-se  ao  traHhlíko  a  líraca,  ihnali^íl  ^^hte  'V 
Para  alentar  os  furtes  ja  cansados,  \' 

De  que  cada  hum  tal  vergonha  sente 
Olue  n^huns  membro?  ja  assaz  debilitados 
Renova  tal  fervor,  e  esprito  ardente, 
Que  da  desconfiança  estimulados 
Emprehendem  cousas  taes,  que  a  natureza 
Impossíveis  as  faz  a  tal  fraqueza. 


Destas  mulheres  animosas  erao 
Muitas  no  marital  jugo  mettidas, 
E  alguas  cujas  vistas  bem  piiderão 
Render  mil  almas  nunca  antes  rendidas: 
Se  quereis  ver  quem  são,  e  o  que  fizerão, 
(lousas  dignas  assaz  de  ser  ouvidas, 
Detende-vos  aqui  hum  pouco,  em  (pianto 
Eu  dou  repouso  á  voz  para  outro  Canto. 


o  priiie:iro 

CERCO  DE  DIU. 


CitMTO  1L\W. 


Declara-se  quem  são  estas  mulheres,  e  o  que 
fizerão.  Os  Christãos  se  forteficão  o  Ttielhot- 
que  podem.  Os  Turcos,  por  meio  (Thumt 
ardil  assaz  engenhoso,  m,elhoruo  as  suas  es- 
tancias. Dão  hum  assalto  ao  baluarte  de 
Gaspar  de  Sousa,  e  o  successo  delle.  Contão- 
se  algumas  cousas  particulares  que  alli  acon^ 
tecerão  neste  meio  tempo. 


v-iousas  no  mundo  fez  maravilhosas 

A  natureza  sempre  em  toda  a  idade, 

Mas  com  quanto  sao  raras  e  espantosas 

Seguem  sua  natural  propriedade ; 

Polo  qual  ainda  as  faz  mais  monstruosas 

N'algúa  parte  a  grãa  necessidade, 

Pois  que  a  mudar  o  ser  as  move  e  obriga 

Q-ue  lhes  pôz  com  grande  arte  a  mestra  antiga. 


o    PRIMKIKO   CERCO    DK    DIU.  ol7 


Q.ue  o  varão  forte  ao  grão  feito  se  atreva 
Sendo  humano  e  mortal,  digno  he  d^espanto, 
Mas  como  o  natural  esprito  o  leva 
Louvo-o,  mas  do  que  faz  menos  me  espanto^ 
Isto  me  espanta  mais,  e  mais  me  enleva 
Ver  que  a  necessidade  pode  tanto 
Q,ue  em  peitos  feminis  põe  fortaleza 
Os  quaes  fracos  creou  a  natureí?a. 


Cousa  ho  esta  que  espanta  em  s6  ouvilla 

E  iiula  alguém  a  terá  por  desatino, 

Mas  bem  o  prova  Harpalice  e  Camilla 

E  a  que  foi  mulher  d^hum,  mãe  d^outro  Nino. 

Porque  a  causa,  a  quem  bem  quer  advertilla, 

Do  esforço  destas,  d** altos  peitos  dino, 

Só  de  necessidade  foi  nascida 

Ou  do  Reino,  ou  do  pae,  ou  de  ter  vida. 

IV. 

Se  alguém  de  duvidar  ha  tão  amigo 
Q.ue  estes  exemplos  hoje  não  admitta, 
Porque  hum  tão  largo  tempo  e  tão  antigo 
Perante  elle  os  quiçá  desacredita, 
Novo  exemplo  achará  no  que  aqui  digo 
Glue  esta  duvida  assaz  lhe  facilita, 
Se  não  está  a  não  crer  tão  costumado 
Q,ue  o  presente  não  crê  como  o  passado. 


o  18      OBRAS    DE    FRANCISCO    d''aNDUADE. 
V. 

Bom  me  lembra  que  tenho  promeUido 
De  vos  dizer  aqui  o  que  fizerão 
Aquellas  que  com  peito  não  vencido 
Grande  allivio  e  fervor  aos  varões  derao  : 
De  todas  não  he  o  nome  aqui  sabido, 
Duas,  de  que  so  o  sei,  direi  quem  erão, 
Cuja  persuasão,  e  authoridade 
Das  outras  obrigou  a  isto  a  vontade. 


Ilua  Tzabel  da  Veiga  se  nomeia 

íiue  então  da  idade  passa  a  ílór  primeira, 

K  na  beldade  pouco  se  arreceia 

Da  que  no  Ceo  a  Esphera  têe  terceira, 

E  cora  quem  no  saber  também  se  enleia 

A  primeira  inventora  da  oliveira, 

K  o  ornamento  que  n^alma  se  requere 

Deste  que  têe  no  corpo  não  dififere. 

VII. 

Esta  interior  sua  formosura, 
Por  mil  provas  alli  ja  signalada, 
Das  liiiguas  maldizentes  a  assegura 
Para  não  ser  sua  honra  alli  arriscada  : 
Esta  do  matrimonio  a  ligatura 
Ajuntara  a  hum  varão  de  nobre  c  honrada 
Casta,  que  IManoel  tinha  por  nome 
E  Vasconcellos  era  o  sobrenome. 


o    PimiLIítO    CKKCO    DE   DIU.  oI9 

VIII. 

l^orcm  antes  que  passe  mais  avante 
K  á  segunda  mulher  o  verso  mude, 
Consenti  que  aqui  desta  hum  easo  cante 
Q,ue  prova  seu  valor,  sua  virtude  ^ 
E  inda  que  ja  atraz  outro  semelhante 
Cantei,  não  me  fará  que  não  estude 
Cantar  este  também,  porque  os  bons  feitos 
Sempre  os  fez  a  mor  cópia  mais  acceitos. 


Q.nando  o  illustre  Silveira,  que  em  si  tinha 
Da  fortaleza  a  summa  dignidade, 
(Como  ja  disse  atraz  a  historia  minha) 
Hua  fusta  mandou  com  brevidade 
A  Goa  ao  Viso-Rei,  ao  que  convinha, 
í)nde  alguns  que  a  grave  enfermidade 
De  cura  tinha  assaz  necessitados 
Mandou  também  que  lá  fossem  levados  ^ 


Aquelle  Manoel  que  junto  estava 
Com  matrimonio  á  Veiga  valerosa, 
Temendo  que  se  o  Ceo  a  mão  voltava 
Contra  a  gente  fiel  religiosa, 
E  forças  e  poder  ao  imigo  dava, 
D^húa  barbara  mão  despiedosa 
Despojo  venha  a  ser  a  sua  chara 
Esposa,  que  de  si  o  despojara  \ 


sí20       OttilA.S    Dr.    iilAN     lííCC    D*ANiJÍiADK. 


Ordena  de  íi  mandar  naqíiella  fusta 
Que  para  Goa  vai,  como  atraz  digo, 
Porque  hua  e  outra  cousa  ha  por  cousa  justa, 
Ter  ella  a  salvação,  elle  o  perigo  \ 
E  tamhem  porque   mais  caro  lhe  custa 
O  receio  de  a  vêr  em  mãos  do  imigo 
Bárbaro,  sem  primor,  e  sem  clemência, 
Glue  vendo-a  posta  em  salvo,  a  sua  ausência. 

XII. 

A  Goa  a  quer  mandar,  onde  imagina 
Q-ue  ella  poderá  estar  s;'guramente. 
Porque  lá  o  velho  pae  deila,  a  Divina 
Providencia  inda  têe  vivo  entre  a  gente  ; 
Coai  isto  que  comsigo  determina 
Ilida  que  d^hua  parte  está  contente 
U''outra  começa  a  estar  arreceoso 
Do  mal  que  sente  hum  peito  saudoso. 

XIII. 

Mas  como  da  sua  alma  fístá  mais  perto 

O  mal.  delia  que  o  seu,  a  ella  se  volta, 

E  de  hum  novo  arreceio  então  cuberto 

De  amor  nascido,  a  lingua  assi  lhe  solta  : 

Amada  esposa  minha,  he  tão  incerto 

O  fiin  que  a  guerra  tee,  que  esta  alma  envolta 

Em  mil  cuidados  trago  diflercntes 

Todos  tristes  poréin,  e  descontentes. 


o    PUIMEIÍIO    CERCO    DE   DIU.  o2  l 


CuiJo  que  se  de  lá  da  mor  altura 
Para  castigo  n(»sso  está  ordenado 
Q.ue  fique  co''os  Chri^tàos  a  desventura 
E  fique  vencedor  o  Turco  ousado, 
Q-ue  poderá  ser  essa  formosura 
Entregue  em  mãos  do  bárbaro  soldado  ; 
Esta  lembrança  ja  tão  mal  me  trata 
Qiiie  somente  o  temor  disto  me  mata. 


Faz-me  isto  que  deseje  ver-vos  ida 
Onde  eu  possa  perder  este  receio, 
Porque  pondo  eu  em  salvo  a  vossa  vida 
En  do  maior  perigo  fico  alheio  ^ 
Mas  se  torno  a  cuidar  na  despedida, 
E  que  fica  sem  vós  hum  peito  cheio 
D^amor  vosso,  e  lembrança  também  vossa, 
Também  temo  outro  mal  com  que  eu  não  possa. 


Mas  este  mesmo  amor  que  esta  alma  agora 
Com  tão  vários  temores  sollicita, 
Q-uer  do  mal  que  vos  temo  vêr-vos  fora 
IC  para  isso  de  todo  ja  me  incita  ^ 
Cresça  da  saudade  o  mal  embora 
(tLuc  em  mi  habitará  sempre,  e  ja  habita, 
Glue  pois  he  por  bem  vosso,  me  he  acceito, 
Antes  ja  não  he  mal,  mas  he  proveito. 


'022      OBRAS    DE   FRANCISCO    d''aNDRADE. 


Gtueria  que  fizésseis  a  jornada 
A  Goa,  nesta  fusta  que  se  parte, 
Onde  de  vosso  pae  acompanhada 
Mais  segura  estareis  que  em  outra  parte, 
Assi  de  toda  a  má  lingua  damnada 
Como  também  do  incerto,  cruel  Marte, 
E  a  mi  do  vosso  bem  a  segurança 
Soffrivel  me  fará  a  vossa  lembrança. 

XVIII. 

E  se  a  guerra  o  fim  tee,  qual  eu  espero, 
Eu  vos  irei  lá  vêr  mui  brevemente, 
Mas  se  o  Ceo  contra  nós  se  mostrar  fero 
De  vos  vêr  posta  em  salvo  irei  contente  *, 
Possa  agora  comvosco  o  que  eu  vos  quero 
Q.uererdes-vos  guardar  do  mal  presente. 
Porque  eu  com  isso  em  todo  o  mal  futuro 
Possa  também  estar  ledo,  ou  seguro. 

XIX. 

Com  grande  sobresalto,  grande  espanto 

Ouvio  a  nobre  Veiga  o  charo  esposo. 

Porque  nao  sabe  então  se  elle  de  tafito 

Amor  como  lhe  têe  he  duvidoso  • 

Detem-se  em  responder-lhe  hu  pouco,  em  quanto 

O  peito  palpitante,  e  arreceoso 

Se  quieta,  e  segura,  e  ja  quieto 

Lhe  descobre  assi  d 'alma  o  mais  secreto : 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  5*23 


Senhor  meu,  para  quem  eu  s6  desejo 

A  vida,  e  em  quem  agora  a  só  sustento, 

Se  neste  grande  amor,  puro  e  sobejo 

Q.ue  em  vos  pôz  todo  o  meu  contentamento, 

Se  na  vontade,  na  obra,  ou  no  desejo 

De  vosso  gosto  algum  apartamento 

"Vistes  que  duvidar  de  mi  vos  faca 

Rasào  he  que  meu  erro  eu  satisfaça. 


Mas  se  este  meu  amor,  esta  vontade. 
Este  desejo  meu,  sempre  cm  vós  posto. 
Tive  (como  sabeis)  tão  de  verdade 
Q-ue  sempre  o  vosso  só  foi  o  seu  gosto, 
D''oncle  nasceo  em  vós  tal  crueldade 
Q-ue  queiraes  contra  mi  voltar  o  rosto, 
E  apartar-me  de  vós  naquelle  dia 
Q,ue  eu  mais  desejo  vossa  companhia? 


Amor  he  o  que  vos  força,  eu  assi  o  digo, 
Porque  isso  he  o  que  este  amor  meu  vos  merece, 
Mas  vede  vós  se  lie  amor,  ou  se  he  imigo 
O  que  contra  mi  tanto  se  endurece, 
Q-ue  só  para  livrar-me  d"'hum  perigo 
Incerto,  a  morte  certa  me  oíferece  ^ 
Porque  não  cuideis  vós  que  esta  partida 
Me  poderá  custar  menos  que  a  vida. 


fíSi      OaiiA-S    DE   iílANCiSCO    a''AKlir.AX>E. 


Se  o  meu  perigo  a  vos  tanto  vos  dana 
iiue  nem  podeis  soífrer  delle  o  receio, 
< 'orno  pDSSo  eu  ser  tal,  tão  doshiimana, 
Tendo  do  vosso  amor  o  peito  cheio, 
<-iue  no  tempo  que  a  imiga  fúria  insana 
De  mil  mortes  cruéis  vos  têe  no  meio, 
Possa  eu  estar  sem  vos,  e  este  tormento 
Me  não  mate  cada  hora,  ou  n^hum  momento  ? 

XXIV. 

(tLoc  gosto  a  grãa  delicia  pode  dar-me, 
íQ,ue  não  me  faltará  na  pátria  casa) 
Se  cá  comvosco  o  amor  ha  de  ficar-me, 
irkue  em  saudoso  fogo  lá  me  abrasa  ? 
Que  cousa  poderá  la  consolar-me, 
Se  em  meio  d'hum  furor  que  tudo  arrasa 
Todo  meu  bem  me  fica  cá  mettido 
A  mil  mortes  cada  hora  oíTerecido  ? 

XXV. 

Km  meio  desta  fúria  embravecida 
De  que  vós  trabalhaes  que  eu  seja  ausente, 
Nada  me  pode  dar  ou  gosto,  ou  vida. 
Senão  comvosco  em  tudo  ser  presente. 
Vede  agora  pois  bem  que  esta  partida. 
Com  que  segura  vós  vêr-me  e  contente 
Cuidaes,  a  ordena  a  minha  adversa  sorte 
Para  mor  dam  no  meu,  mais  grave  morte. 


U    PK.lMi.,i;tO    CiiRCO    DE    DIU.  iiZú 

XXVI. 

Assi  quando  cuidaes  ver-me  segura 
Ao  mor  perigo  então  me  ides  chegando, 
Q.ue  entào  mais  perto  estou  da  sepultura 
Gtdando  de  vos  me  vou  mais  apartando  ^ 
E  ajudardes  vós  minlia  desventura 
Nào  o  soffre  este  amor,  que  desejando 
Está,  ter  comvosco  antes  morte  grave, 
Gluc  sem  vós  tudo  o  que  he  doce  e  suave. 

XXVII. 

Sc  a  guerra  der  no  fim  contentamento 
Q-uero  lograr  comvosco   esta  bonança, 
Forrarei  (se  fòr  viva)  lá  o  tormento 
Q.ue  me  dará  qualquer  vossa  tardança^ 
Mas  se  co'os  Turcos  fica  o  vencimento. 
Do  que  o  csprito  me  dá  vária  esperança, 
Male-me  antes  comvosco  o  imigo  ousado, 
Glue  sem  vós  outro  mór,  que  he  meu  cuidado. 

XXVIII. 

Polo  qual  se  esse  amor  sobejo  e  puro. 
Bem  merecido  assaz  do  que  eu  vos  quero, 
Vos  obriga  a  querer  pôr-me  em  seguro. 
Eu  só  comvosco  estar  segura  espero. 
Não  queiraes  que  hum  incerto  mal  futuro 
Se  atalhe  co'o  presente  certo,  e  fero, 
Deixai-me  estar  aqui,  porque  eu  vos  digo 
Xkue  esse  remédio  me  hc  o  mór  perigo. 


'á'2ij      OB1JA.S    DE   TRANCISCO    D   ANDR^V.DE 


Isto  que  a  Veiga  disse,  foi  bastante 
A  mudar  a  tenção  do  esposo  charo, 
ôue  composto  nào  he  de  diamante, 
K  esta  ida  assaz  tanibem  lhe  custa  caro, 
Porque  vê-la  também,  te-ia  diante 
He  o  seu  maior  gosto,  o  bem  mais  raro, 
E  assi  d''amor  movido  lhe  concede 
O  que  de  amor  movida  ella  lhe  pede. 

XXX. 

Q-uiz  então  ao  m<5r  dam  no  aventura r-se 

Só  para  lhe  fazer  nisto  a  vontade, 

E  porque  elle  também  possa  guardar-se 

Do  mal  que  o  mata  mais,  que  he  a  saudade. 

Mas  porque  deste  incerto  mal  salvar-se 

Hua  lilha  que  teo  de  tenra  idade 

Pudesse,  a  Goa  então  esta  mandarão, 

E  a  fortuna  sós  ambos  esperarão. 

XXXI. 

Mas  ja  agora  a  rasao  me  move  e  obriga 
Glue  volte  á  outra  mulher  a  minha  historia, 
Pois  também  assaz  delk  ha  que  se  diga, 
Também  assaz  he  digna  de  memoria  -^ 
Piírque  inda  que  ja  a  sua  idade  antiga 
Dava  ao  cego  menino  pouca  gloria, 
O  seu  mais  que  viril  esprito  forte 
A  dava  então  liem  grande  ao  grão  Mavorle. 


o    PRIMEIRO    CKUCO    DE   DIU. 


Anna  Fernandes  esta  se  cliamava, 
De  louvor  por  mil  várias  obras  dina, 
Gliie  com  nó  conjugal  ligada  estava 
A  hum  que  era  professor  de  medicina, 
A  quem  Fernando  o  próprio  nome  dava, 
E  tèe  do  Santo  a  alcunha  a  que  a  Divina 
Graça  tanto  ajudou,  que  d''hua  handa 
Assado  ja,  voltar-se  da  oulra  manda. 


Obras  nella  se  achao  quaes  convinhão 
A  caridoso  peito,  e  forte  braço. 
Porque  os  desamparados  que  alli  vinhao 
Trespassados  do  imigo  cruel  aço, 
De  seu  damno  o  remédio  nella  tinliao 
Como  n^hum  maternal,  charo  regaço, 
E  a  conserva,  e  o  manjar  delia  guisado, 
E  isto  faz  a  qualquer  necessitado. 

XXXIV. 

Nem  tanto  nesta  pia  obra  se  assenta 
GLue  nella  só  consuma  a  noite  e  o  dia, 
Mas  quando  o  Sol  nas  ondas  se  aposenta 
E  a  noite  polas  terras  se  estendia. 
Arrimada  a  hum  bordão,  em  que  sustenta 
O  seu  pesado  corpo,  se  sabia 
Ella  de  casa  então,  a  dar  effeito 
Ao  que  lhe  pede  o  forte,  viril  peito. 


'Í28      OilIlAS    DE   FilAKCISCO    ©"aNDKADE. 


Nosta  hora  que  os  mortaes  a  hum  doce,  e  brando 

Repouso,  do  diurno  peso  chama, 

t.Ha  ao  seu  débil  corpo  então  negando 

O  devido  favor  da  molle  cama, 

Sobe  no  muro,  e  em  torno  rodeando 

A  fortah'za,  os  que  acha  move  e  inflama 

Com  palavras  de  esforço,  e  confiança 

A  nao  terem  tensor  da  imiga  lança, 

XXXVI. 

Apoz  isto  também  lhes  põe  diante 
Gluanto  era  a  cada  hum  cousa  devida, 
Contra  hum  tão  forte  imigo,  e  tão  possante 
Usar  d"* esforço,  e  força  não  vencida, 
Assi  para  que  possa  ser  bastante 
A  defender  a  própria  amada  vida. 
Como  para  alcançar  grande  honra  e  gloria 
Com  que  eterna  fará  sua  memoria. 


Nem  pára  nisto  o  seu  peito  esforçado, 
Antes  quando  o  combate  horrendo  e  duro 
Faz  com  que  perca  a  cor  o  mais  ousado 
EUa   a  casa  não  vai  pôr-se  em  seguro, 
Mas,  como  se  do  mais  forte  soldado 
Tivera  a  obrigação,  se  sobe  ao  muro. 
Sem  mostra  de  temor  d'hum  tal  perigo 
Q-ue  a  morte  por  mil  vias  traz  comsigo. 


©   PRIMEIRO   CERCO  DE  DIU.  S29 


XXXVIII. 


Onde  o  que  a  cruel  morte  arrebatara 
Ella  com  pressa  o  cobre,  e  d''alli  o  muda, 
O  que  somente  o  sangue  derramara 
Ella  o  aperta,  e  a  descer  d^alli  o  ajuda, 
O  triste  em  qupm  acaso  ella  enxergara 
Covardia,  não  lhe  acha  a  lingua  muda, 
E  fôra-lhe  melhor,  agora  nisto 
Ser  do  seu  Capitão,  que  delia  visto. 

XXXIX. 

Ella  alli  tinha  hum  filho,  a  quem  devido 
Por  seu  grande  valor,  grão  louvor  era, 
Moço,  a  quem  dera  Mendes  o  apellido, 
E  o  grão  Santo  d^Assis  o  nome  dera  -^ 
Da  velha  mãe  com  tal  amor  qtierido 
Glual  o  filho  da  que  honra  a  alta  Cj'thera 
Nunca  soube  imprimir  naquelle  peito 
Q.ue  elle  fazer  a  si  quiz  mais  sujeito. 


Todo  o  tempo  que  a  Turca  imiga  gente 
Cercado  o  Christão  povo  teve,  e  preso. 
Este  moço  hum  feroz  esprito  ardente 
Mostrou  no  mor  perigo  mais  aceso  ^ 
Até  que  permittio  o  Omnipotente 
Rei,  que  no  fim  do  cerco  o  plúmbeo  peso 
Saia  lá  da  espingarda  impia,  funesta, 
E  rompa  a  juvenil,  ousada  testa. 


S30      OBIIAS    DE   FRANCISCO    d''aNDRADE. 
XLI. 

Succede  ao  moço  desta  cruel  morte 
Honra  na  terra,  e  gloria  no  Alto  Assento, 
E  a  mãe  qualificou  hoje  o  seu  forte 
Esprito,  n''hura  heróico  soffriínento  • 
Porque  nesta  alta  dor,  com  q»e  lhe  a  sorte 
Trespassou  a  alma  com  mortal  tormento, 
Seu  esforço  mostrou  tao  de  verdade 
Gluanto  o  mostrou  na  alheia  adversidade. 


Esta,  e  aquella  Izabel  que  atraz  nomeio 

(Tanto  lá  dentro  igiiaes,  diversas  fora) 

Forão  a  occasião,  forão  o  mf^io 

Com  que  qualquer  das  outras  que  aqui  mora 

Perdendo  o  natural  seu  arreceio 

D^hum  desusado  esprito  se  encha  agora, 

E  tome  sobre  si  a  grave  carga 

Glue  então  ja  por  fraqueza  o  forte  larga. 

»  XLIII. 

Eis  o  femineo  cdro  forte  e  honesto 
A  que  hum  viril  desejo  estimulava. 
Pouco  curando  então  do  liudo  gesto 
A  que  antes  de  curá-lo  só  curava, 
Glual  sustentando  a  alcofa,  qtuil  o  cesto, 
A  pedra  e  o  necessário  acarretava 
Sobre  os  louros  anneis,  que  enterneciao 
Inda  as  pedras  que  sobre  si  trazião. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE    DIU.  SBl 

XLIV. 

Pedra,  terra,  e  o  mais  tudo  se  acarreta 
Sobre  madeixas  d^ouro  crespo  e  fino, 
Q-ue  faz  inveja  ao  claro,  alto  planeta 
Gluando  solta  o  sen  raio  matutino^ 
A  hella  face,  dVnde  a  áurea  seta 
Solta  aqnelle  cruel,  cego  menino, 
Feita  co^o  grão  trabalho  ruciosa 
Se  faz  a  quem  a  ve  mais  perigosa. 


A  linda  Cytherea,  que  então  via 

A  grave  occupação,  mais  digna  e  própria 

Da  escura  gente  a  que  isto  competia. 

Nascida  lá  na  terra  da  Fithiopia, 

(:iue  daquella  formosa  companhia 

Km  que  ella  dos  seus  bens  mostrou  graa  cópia, 

Ilavendo-o  por  affronta,  determina 

Tomar  disto  vingança  delia  dina. 


Deixa  de  sou  terceiro  orbe  o  governo 
K  o  caminho  lá  faz  soberba  e  irada 
Direita  ao  Ceo  Empirio,  onde  o  superno 
Júpiter  tèe  a  sua  alta  morada  \ 
K  tocada  d^hum  ódio  novo  e  interno 
Vai  no  amor  de  seu  pae  mui  confiada 
Q-ue  a  vingará  da  Porf  ugueza  gente 
A  quem  disto  ella  culpa  põe  somente. 


532      OBRAS    DE    FRANCISCO    dVnDRADE. 
XLVII. 

Mas  iiao  tinlia  inda  avante  muito  andado 
Quando  ao  caminho  vem  Marte  enoontra-la, 
Que  vendo  nella  o  brando  peito  irado 
Contra  os  seus,  procurar  quer  de  applaca-la, 
Temendo  que  se  o  pae  delia,  informado 
Conforme  ao  que  lhe  quer,  quizer  vinga-la, 
Que  corre  muito  risco  a  gente  sua 
Que  de  todo  a  consuma  elle,  e  a  destrua. 


E  com  semblante  alegre,  humilde,  e  brando, 
Inda  rendido  a  tanta  formosura, 
Lhe  disse  :  Branda  Vénus,  que  a  teu  mando 
Os  corações  sujeitas  com  brandura, 
Quem  te  vai  de  ti  tanto  hoje  apartando 
Que  te  obriga  a  mostrar  condição  dura 
Contra  hua  gente  que  isso  níío  merece, 
E  também  de  ser  tua  se  engrandece  ? 

XLIX. 

Nao  te  espantes  se  os  fortes  Lusitanos 

A  hum  peso  intolerável  sào  rendidos, 

Porque  como  em  mortaes  corpos  humanos 

Tèe  postos  os  espritos  não  vencidos. 

Que  espanto  ho  se  huns  contínuos,  graves  danos 

Os  têc  cansados  ja,  e  enfraquecidos, 

Pois  uao  pode  ser  o  animo  constante 

Na  carga  corporal  partccipante. 


5;K3 


E  se  de  «juda  sao  necessitados 
(Culpa  do  peso  só,  não  dos  seus  peitos) 
De  quem  devem  melhor  ser  ajudados 
Glue  daquellas  a  quem  elles  são  sujeitos? 
Tendo  os  seus  mesmos  peitos  esforçados 
Lhes  forao  quiçá  sempre  pouco  acceitos, 
K  se  a^ora  a  ajudá-los  se  moverão 
He  pola  honra  quiçá  que  disso  esperão. 


Tua  affronta  não  ho,  nem  da  formo-a 

Gente  tua,  isto  em  que  cilas  se  occupárSo, 

Antes  a  hei  por  empresa  gloriosa 

K  cora  que  (se  ser  pode)  inda  te  honrarão; 

l*orque  como  da  forte  e  valorosa 

Gente  minha  hoje  o  ofiicio  cilas  tomarão. 

Ambas  as  honras  tèe  ellas  somente 

A  que  eu  á  minha  dou,  tu  á  tua  gente. 

LII. 

Isto  nao  tira  a  grãa,  e  a  nove  ao  rosto 
Com  que  os  mais  livres  peitos  desbaratão, 
E  quem  do  jaspe  o  seu  não  tèe  compo^^to 
Doe-se  do  que  os  cruéis  fados  maltr.itão^ 
Bem  he  que  de  dar  vida  tcnhão  ço^to 
Aos  mesmos  que  de  amores  cilas  matão, 
E  antes  queirão  que  os  mate  a  formosura 
Delias,  que  a  cruel  fúria,  imiíi;a  e  dura. 


534     OBRAS  SE  FRANCISCO  D^ANDRASE» 
LIII. 

Assi  que  tu  nao  tees  por  que  queixar-te 
De  tomar  o  teu  coro  tal  empreza, 
Nem  menos  têes  rasão  para  vingar-te 
Do  que  fez  nisto  a  gente  Portugueza  \ 
E  pois  servir-te  quiz,  não  anojar- te, 
D*'amor  deves  estar,  nao  d''odio,  aceza, 
Guarda,  guarda  a  vingança  e  a  má  vontade 
Para  o  que  offender  tua  magestade. 

LIV. 

Torna-te  ao  teu  governo,  e  o  furor  muda 

Tão  contrario  de  tua  natureza, 

ô-ue  honra  tua  he  que  a  tua  gente  acuda 

Aos  fortes  que  mostrando  vão  fraqueza  ^ 

E  se  os  meus  não  merecem  tua  ajuda 

Por  seu  alto  valor,  e  fortaleza, 

Polo  que  eu  sei  de  mim,  bem  te  convinha 

Glue  tu  Ih^a  dês  por  serem  gente  minha. 


Q,uietamente  a  bella  Cypria  attenta 
O  que  Marte  então  brando  está  dizendo, 
E  como  inda  não  he  de  todo  isenta 
Vai-se-lhe  pouco  a  pouco  enternecendo  ^ 
Ver  mostras  d^amor  nelle  Ih '' aviventa 
O  fogo  em  que  ja  andou  por  elle  ardendo, 
E  pondo  os  olhos  nelle  inda  se  sente 
De  fazer-lhe  a  vontade  assaz  contente. 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  Dlir,  535 

tVl. 

Responder-lhe  tentou,  porém  do  meio 
Da  boca,  a  voz  ao  peito  se  recolhe, 
Que  o  passado  erro  seu,  que  então  lhe  veio 
Ao  pensamento,  a  lingua  e  a  voz  lhe  tolhe ^ 
E  como  tèe  d^amor  o  peito  cheio 
Por  a  melhor 'resposta  então  escolhe 
Fazer-lhe  tudo  o  que  elle  lhe  pedia 
Pois  seu  gosto  também  nisto  fazia. 

tvii. 

Logo  cheia  d^amor  perde  toda  a  ira, 
E  não  somente  muda  o  pensamento 
Mas  lá  no  seu  formoso  coro  inspira 
Para  o  que  faz  hum  novo  esprito,  e  alento> 
Co'os  olhos  inda  hum  no  outro  se  retira 
Lá  para  o  seu  celeste  antigo  assento, 
Contente  cada  hum  do  que  tee  feito, 
Pois  tirarão  d'aqui  gosto,  e  proveito. 

Lvm. 

Porém  Marte  nesta  hora  contemplando 
Q-ue  aquella  gente  sua  do  ordinário 
Trabalho,  se  hia  tanto  sujeitando 
Q.ue  o  favor  feminil  lhe  he  necessário  ^ 
Vendo-a  em  tamanho  aperto,  arreceando 
Q-ue  a  grande  contumácia  do  adversário 
Em  risco  de  cahir  ponha  aquella  alta 
Constância,  se  o  favor  lhe  tarda  ou  falta  ^ 


o36      OBRAS    DE   FRANCISCO    D^ANDRAJDE. 
LIX. 

O  caminho  buscou  com  que  mais  perlo 
A.  nova  disto  cm  Goa  fosse  dada, 
Para  que  o  Viso-Rei  a  tanto  aperto 
Acuda  com  fcivor  de  gente  armada^ 
Logo  direito  vai  lá  aonde  certo 
Sabe  que  o  Somno  tèe  sua  morada, 
Porque  por  meio  delle  determiiia 
Dar  com  graa  pressa  effeito  ao  que  imagina. 


Lá  junto  dos  Ciramerios  hua  escura 
Profunda  cova  está,  que  do  luzente 
Sol  nunca  vio  a  biz  dourada  e  pura 
Ou  seja  Oriental,  ou  do  Occidente  ^ 
Grossas  névoas  de  si  a  terra  dura 
J£x.haIando  alli  está  continuamente, 
Com  que  bua  incerta  luz  alli  se  espalha, 
E  aqui  o  inhabil  Somno  se  agasalha. 


Alli  da  vigilante  cvistada  ave 
Nao  denuncia  o  canto  a  nova  Aurora, 
Nem  do  pato,  ou  do  cão  soa  a  voz  gravo, 
Nem  da  fera,  ou  do  gado,  era  alguma  hora  i 
Os  ramos  de  grão  vento,  ou  d^ir  suave 
Movidos,  nem  humana  voz  lá  fora 
Fazem  qualquer  rumor,  qualquer  ruido 
C'\'"n  nue  o  silencio  s^ja  interrompido. 


•    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  ã37 


Nao  8e  sente  alli  cousa  que  inquiete. 
Mas  tudo  tão  calado  se  está  vendo 
Glue  bua  quietação  longa  promete, 
E  por  brancos  seixinhos  vem  correndo 
Hum  ribeiro  que  traz  aguas  de  Lete, 
Cujo  brando  rumor  favorecendo 
Nao  somente  está  o  sorano  ao  que  dormia, 
!\Lis  convidando  ao  somno  o  que  vigia. 

LXIll. 

Entre  as  porfas  da  cova  alta  e  profunda 
A  dormideira  está  sempre,  e  florece, 
D'outras  ervas  alli  a  terra  abunda 
Com  cujo  çumo  a  noite  se  enriquece 
De  somno,  que  por  toda  a  terra  infunda, 
Com  que  a  gente  descansa  o  se  adormece, 
Jí  do  mais  que  a  dormir  move,  e  convida 
Se  vê  aquella  terra  bem  provida. 


Não  ha  portas  em  todo  aquelle  assento 
Em  que  está  o  moUe  Somno  agasalhado, 
Para  que  da  couceira  o  movimento 
Não  faça  o  seu  ruido  costumado  ^ 
Tudo  o  que  pode  ser  impedimento 
■   Ao  Somno,  d'alli  estava  desterrado^ 
E  esta  porta  que  estava  sempre  aberta 
Nenhua  guarda  têe  fiel  e  corta. 


\í 


03S      OlittAS    DIS   lUAKClSCO   D  AM)UADE. 


Aqui  n^hum  leito  sempre  moUe  e  brando      /. 
i^ual  os  seus  mollos  membros  o  pedião  ' 

Estava  sjMupre  o  Som  no  repousando, 
Junto  delle  jazer  tamijem  se  vião 
Vãos  Sonhos,  que  o  estão  sempre  acompanhando^ 
E  em  niil  loHnas  cada  hora  se  variào, 
Cujo  numero  he  tal,  que  senhoreia 
As  Estrellas  do  Ceo^  da  praia  a  areia, 

IXVI. 

Tanto  que  entra  aqui  Marte,  f»  de  diante 
Os  Sonlios  com  as  mãos  de  si  aífastára 
Q.ue  lhe  impedem  a  entrada-,  a  rutilante 
Luz  sua,  toda  a  casa  tornou  clara  ^ 
Nem  dus  armas  o  estrépito  bastante 
Sendo  então,  ou  a  luz  que  nella  entrara, 
l^ara  que  o  Som  no  sinta  a  menor  parte, 
Tviogo  para  onde  o  vê  se  chega  Marte. 

LX.V1I. 

Hua  e  outra  vez  o  bolle,  e  o  preguiçoso 
Estende  o  brayo  e  a  perna,  e  inda  dormindo 
Ergue  os  olhos,  pesado  e  vagaroso, 
Mas  deixa-se  outra  vez  logo  ir  cahindo. 
Bolle-o  Marte  outra  vez  mais  furioso,  . 

Elle  o  peito  co'a  barba  inda  ferindo,  j 

Os  olhos  co''a8  mãos  esfrega,  e  esta  hora 
Emíím  a  f<i  de  si  se  lança  fúri. 


o    1'UlMEinO   CERCO  DE  DIU,  Ô39 

ixvni. 

E  sobre  o  cofovello  hum  pouco  erguido 
Er^ue  o  rosto  pura  elle  a  ver  quem  era, 
E  sendo  Marte  dello  conhecido 
Nas  armas,  e  presença  horrenda  e  fera, 
Com  rouca  voz,  e  mal  inda  entendido 
Lhe  pergunta  o  que  quer,  e  a  que  viera. 
Marte  agora  o  furor  usado  esconde, 
E  com  aspeito  brando  lhe  responde; 


Somno,  em  quem  tèe  repouso  toda  a  gente. 
De  cuidados  sollicitos  imigo, 
E  os  que  a  morada  tce  no  Ceo  luzente 
Grão  repouso  também  tomão  comtigo, 
Q.ue  ao  corpo  que  o  diurno  peso  sente 
Dás  suave  descanso,  brando,  e  amigo, 
A  quem  os  Sonhos  todos  obedecem 
tílue  em  diíferentes  formas  apparecem. 


Manda  hum  delles  a  Goa,  que  encuberto  ,  y, 
Co'a  figura  do  meu  forte  Silveira  •  ' ; 

Ao  Viso- Rei  Noronha  faça  certo 
(Apressando  a  veloz  sua  carreira) 
Dos  meus  que  estão  em  Diu  o  grande  aperto, 
Porque  mandar-lhes  logo  ajuda  queira:, 
Os  quaes  a  tanto  estremo  são  chegados 
(iue  das  mulheres  ja  são  ajudados. 


Apoz  estas  palavras  se  sahia 

Da  casa  soporifera  em  que  estava, 

Porque  soífrer  então  ja  nâo  podia 

O  somno  que  de  si  ella  espalhava  ^ 

E  sentindo  que  o  somno  que  alli  via 

Penetra-lo  por  dentro  começava, 

Com  grãa  pressa  se  vai,  e  lá  caminha 

Para  o  quinto  orbe,  que  elie  a  cargo  tinha. 

LXXII. 

Mostra  o  Somno  por  obra  quanto  gosto 
Têe,  de  fazer  a  Marte  o  que  lhe  pede. 
Faz  logo  deixar  Morfeo  o  molle  encosto  ^ 
Este  a  todos  os  Sonhos  muito  excede 
Em  exprimir  o  andar,  a  falia,  o  rosto 
Da  gente,  e  nenhum  ha  qiie  assi  arremede 
Os  trajos,  os  vestidos,  os  arreios. 
As  palavras,  os  termos,  os  meneios. 

LXXIII. 

A  este  agora  encommenda  disto  o  effeito, 
E  ja  então  outra  vez  a  si  tornado 
A  cabeça  encostou  no  molle  leito 
E  outra  vez  adormece  repousado. 
Morfeo  voando,  a  Goa  Vai  direito 
A  fazer  o  que  lhe  era  encommendado, 
E  sem  que  as  azas  facão  quando  voa 
Q^ualquer  ruido,  em  breve  chega  a  Goa. 


>0  l>KI»íl:iRO   CERCO   DE   HW.  ^\Í 

LXXIV. 

Onde  do  leve  corpo  então  deixaliáo 

As  pennas  com  que  no  ar  se  alça  e  sustenta. 

Do  Silveira  a  figura  em  si  tomando 

(^ue  mais  ao  vivo  então  o  representa, 

Affrontado,  suado,  -e  inda  oflfegando 

Ao  leito  do  Noronha  se  apresenta, 

E  mostrando  cm  caliça,  e  em  pó  envolta 

A  barba  e  o  rosto,  a  lingua  assi  lhe  solta  : 

ixxv. 

Cumpre,  Senhor,  que  seja  era  breve  espaço 
De  Diu  a  fortaleza  soccorrida. 
Porque  a  gente  que  tinha,  ou  do  Turco  aço 
Ou  do  trabalho  he  muita  consumida^ 
Tal  que  ja  o  Lusitano  invicto  braço, 
Ja  a  força  Lusitana  he  constrangida, 
Para  ter  defensão  a  fortaleza, 
Tomar  favor  da  feminil  fraqueza. 


As  mulheres  também  em  si  tomarão 
Grâa  parte  do  trabalho  alli  ordinário^ 
Porque  nos  varões  fortes  enxergarão 
Menos  forças  do  que  era  necessário. 
Elles  com  grãa  vergonha  lh'o  acceitárão, 
Porém  a  contumácia  do  adversário 
E  a  grande  quantidade  pode  tanto 
Q,ue  pôz  fraqueza,  em  quem  nâo  põe  espanto> 
*  i6 


í^iá;      OBRAS   BTE   FllANCISCO   D^ANDUAJ^Í, 

'  txxvn. 

DVquí  verás  o  estado  perigoso, 
O  aperto  om  que  está  posta  aquella  gente, 
Nem  te  diz  isto  iwcerto,  ou  duvidoso 
Aulhor,  mas  quem  a  passa,  e  quem  o  sente  ^ 
Q.iie  se  o  eoutiuuo  pes(j  trabalhoso 
Mudiido  me  nSo  tèií,  bem  claramente 
Verás  que  a  fortaleza  a  eargo  tenho 
Q.ue  avi*ar-te  só  disto  agora  venho, 

LXXVlIf  r 

Tão  próprio  cmilrafez  Morfeo  nesta  ÍioíIí 
A  voz,  do  que  no  mais  contrafizera, 
U.ue  o  Noronha,  inda  mal  esperto  agora-, 
Km  iudo  ÍHiHginou  qu(;  o  Silveira  era  ^ 
Enifíni  de  si  de  t(xío  lança  fóra 
O  somno  que  até  então  era  si  tivera, 
E  quanto  no  que  vio  mais  imagina 
Mrtis  mandar  o  soccorro  determin». 


Tanto  que  foi  miJtthãa  nSío  tarda  ou  eessíl 

"Em  fazer  prestes  hua  grossa  frota, 

Mas  como  o  ouvido  aperto  o  move  e  apresa;! 

ijogo  quatro  cáturcs  ao  mar  bota  ^ 

Gente,  e  o  mais  neíles  mette,  e  com  grSapressíi 

Lá  de  Diu  seguir  lhes  manda  a  rota. 

Mas  em  quanto  elle  ordena  a  grossa  arfti.ula 

A  furtuleza  faío  eu  a  tornada f 


•    PRIMEIRO   CEftC€>    DE   DIU.  3Í3 

LXXX. 

O  lemineo  esquadrão,  formoso  e  lindo 
Q-ue  era  de  Anua  e  Izabel  estimulado, 
E  agora  hum  novo  esprito  hia  sentindo 
Co"*o  divino  favor  nelle  inspirado, 
Comíigo  o  gríío  trabalho  repartindo, 
Também  aos  varões  faz  soffrer  dobrado 
Trabalho^  do  que  a  força  lhes  soífriaj 
T.vnto  a  vergonha  então  os  acendia» 

tXXXIí 

M.is  neste  tempo  vendo  ja  adabar-sfí 
Toda  a  pfedra  que  havia  então  na  terra^ 
Oom  que  ao  Christão  forçado  he  reparar-stí 
Para  se  defender  naquella  guerra, 
Toda  a  casa  se  vê  logo  arrasar-se 
(Itwe  a  fortaleza  dentro  em  si  encerra, 
l\)rqtje  co''a  pedra  que  ella  de  si  desse 
O  reparo  importante  se  fizesse* 

txxxíí. 

E  como  o  Turco  hu^hora  nao  socega^ 
Que  não  lh''o  soífre  o  imigo  cruel  peito^ 
Também  dos  seus  canhões  a  fúria  emprega 
No  Sacro  Templo  então,  pouco  antes  feito  '^ 
Não  soffre  vêr  em  pé  o  que  arrenega, 
E  em  pouco  tempo  o  bate  de  tal  geito 
Q.ue  quasi  todo  foi  por  terra  posto. 
Com  mágoa  dos  Christàosj  e  grão  desgosto. 


íj44      0BRA8    DE   FRANCISCO    D^ANDHADE. 


LXXXIII. 


Neste  tempo  também  ja  a  imiga  e  grossa 
Bombarda,  que  hum  momento  nao  cessava 
Senão  em  quanto  o  ^^i^eo  a  gente  nossa 
Com  assaltos  cruéis  sollieitava, 
Porque  mais  facilmente  cumprir  possa 
llum  desejo  que  o  tanto  estimulava, 
Tinha  aquelle  reparo  derrubado 
Q.ue  atraz  disse  que  fora  edificado. 


O  Portuguoz  porém  se  fortefica 

De  novo  com  grãa  pressa,  e  com  grande  artcj 

Outro  reparo  mais  dentro  edifica 

ikue  outro  terço  occupou  do  baluarte  :, 

De  maneira  que  ao  Sousa  ja  não  fica 

Do  baluarte,  mais  que  a  terça  parte, 

D'onde  então  se  defende,  e  os  oflensores 

D^unbos  os  outros  terços  são  senhores. 

LXXXV. 

Porém  como  o  logar  que  a  Christaa  gonte 
J*ara  defenfeao  sua  possuhia 
Outro  novo  reparo  não  consente, 
Que  era  o  remédio  só  que  a  defendia, 
D^aqui  veio  a  entender-se  claranuMite 
Q.U»  durar  alli  níuito  não  podia, 
Se  o  mal  que  desta  falta  se  arrrocia 
Por  outra  via  nao  se  renvdoia. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  fí43 


Engenho  e  diligencia  não  fallece 
Onde  a  necessidade  está  exhortando, 
Fazem  q»ie  bua  graa  torre  se  comece 
l*ola  parte  de  dentro  d^ir  creando 
Junto  do  baluarte,  e  esta  apparcce 
Tão  alia  em  breve  tempo,  que  igualando 
Se  fí)i  co^o  baluarte,  a  quem  defende, 
Tanto  alli  o  geral  bem  se  pertcnde. 

LXXXVII. 

Nos  dias  que  o  fiel  que  a  Christo  adora 
l*õe  em  se  reparar  grãa  diligencia^ 
Também  a  infiel  gente,  naquella  hora 
Hue  a  noite  mostra  a  escura  sua  potencia j 
As  estancias  com  grãa  arte  melhora 
(Sem  poder  dos  Christãos  ter  resistência) 
Em  que  a  sua  vanguarda  se  alojava, 
E  vai-as  pôr  lá  junto  á  nossa  cava. 

LXXXVIII. 

O  modo  ouvi,  com  que  isto  eíTeituárão 
Os  Turcos,  bem  espertos  nesta  guerra, 
lluns  fardos  assaz  grandes  ordenarão 
Da  pelle  que  o  boi  ja  trouxe  na  serra, 
Oue  na  forma  redondos  se  tornarão 
Depois  que  os  occupou  por  dentro  a  terra, 
E  outras  bailas  também  grandes  fizerão 
0.ue  de  brando  abíodão  também  encherão. 


Detraz  de  cada  peça  destas  hião 

Três  ou  quatro  infiéis  dos  que  alli  cstavao^ 

Co'' os  joelhos  por  terfa,  e  assi  seguião 

O  que  elles  com  as  mãos  mesmos  levavSo  ^ 

E  tào  bera  detraz  delias  se  escondião 

Q-ue  com  quanto  os  Christãos  bem  trabalhavao 

Para  lhes  defender  o  que  pertendem 

Elles  emfim  debalde  lh'o  defendem. 

xc* 

Sahe  o  chumbo  mortal  para  este  effeito 
Da  espingarda,  que  a  mão  fiel  meneia 
Lá  contra  o  fardo,  e  a  baila  vai  direito. 
Porém  pouco  este  damno  remedeia^ 
A  qual  rompe  a  cabeça,  a  qual  o  peito, 
A  qual  abre  de  sangue  grossa  veia. 
Mas  nem  ou  sangue,  ou  morte  foi  bastante 
Para  tolher  ao  imigo  it  por  diante. 

xci . 

tlompe  por  sangue  e  morte,  e  assi  se  igualia 
Co^a  nossa  fortaleza,  atraz  ja  o  digo, 
Onde  se  fortefica  logo,  e  valia 
Em  altura  que  sem  temor  do  imigo, 
Ajuntando  ao  seu  vallo  o  fardo  e  a  baila 
Anda  em  pé  bem  seguro  e  sem  perigo. 
Porque  tão  bem  se  esconde  detraz  disto 
Q-ue  de  cima  do  muro  não  he  visto* 


o   PRIMEIRO   CERCO   D£  DIU.  547 


D'aqui  com  militar  arte  e  doutrina 

Outras  cavas  lançou  por  onde  possa 

Seguramente  andar,  e  com  faxina, 

Com  terra  e  pedra  solta,  o  vallo  engrossa, 

Tal  que  não  só  o  segura  de  ruina. 

Mas  que  o  canhão  lhe  faça  qualquer  mossa, 

E  desta  arte  commette  bem  seguro 

â.uando  quer,  o  que  está  posto  no  muro. 


E  porque  quando  a  sua  artilharia 
No  Christão  baluarte  se  empregava, 
Com  a  caliça  e  terra  que  cahia 
Bater  no  vivo  então  se  lhe  estorvava, 
A  gente  de  Cambaia  constrangia 
Glue  com  Cojaçofar  no  campo  estava, 
A  lhe  alimpar  aquillo,  sem  que  attente 
€tuantas  vidas  custa  isto  áquella  gente. 

xciv. 

Entra  o  triste  Cambaio  em  mãos  da  morte 
Constrangido  de  quem  espera  a  vida, 
Hoje  o  amigo  lhe  he  mais  que  o  imigo  forte 
O  mesmo  companheiro  lhe  he  homecida. 
Mil  queixas  solta  em  vão  de  sua  sorte. 
Pois  tão  cruel  a  sente  e  endurecida 
Glue  têe  a  morte  alli  mais  certa  e  dura 
Onde  a  vida  ha  que  tinha  mais  segura» 


5Í8      OliUAS    DE    FRANCISCO    D*ANDKADE. 


Nestes  dias  que  o  Turco  do  ira  cheio 
Faz  com  que  o  seu  canhão  o  muro  bata 
Do  baluarte  do  Sousa,  como  creio 
Q.ue'pouco  atraz  a  minha  historia  trata  •, 
Naquelhi  hora  que  o  Sol  de  novo  o   freio 
Põe  a  B^legon,  e  aos  mais,  e  as  rodas  lh'ata, 
Sendo  hum  dia  apoz  quinze  ja  passado 
Do  mez  que  ao  Escorpião  dá  gasalhado  ^ 

xcvi. 

Aquelle  grSo  Falcão,  de  que  atraz  f;)llo, 

(Creio  que  haverá  delle  grãa  lembrança) 

Aquelle  cujo  nome  era  Gonçallo, 

E  hum  grão  louvor  da  Portugueza  lança, 

Q-uerendo  ja  o  Ceo  gratilicallo 

Com  dar-lhe  a  Eterna  Bemaventurançji, 

O  alto  esprito  rendeo,  mas  com  tal  gloria 

Q,{iG  da  seíTunda  morte  houve  a  victoría. 


Este  varão  famoso  pertendendo 

Q.ue  do  seu  baluarte  o  furioso 

Canhão,  S(51te  o  furor  mortal  e  horrendo 

No  infiel  esquadrão  tão  copioso, 

Com  quanto  claramente  estava  vendo 

Descuberto  o  logar,  e  perigoso 

Em  que  tèe  posto  a  sua  artilharia, 

Nem  do  que  então  pertende,  isto  o  desvia. 


•    l*niMElRU   CEUCO   HE   DIU.  j»  i9 

XCVIII. 

Nem  tanto  aquelle  grão  perigo  estima 

Q.ue  deixe  elle  de  ser  o  dianteiro, 

Nem  o  officio  que  tèe  tanto  o  sublima 

Glue  não  seja  ao  que  cumpre  elle  o  primeiro^ 

K  com  se  aventurar,  esforça  e  anima 

Para  o  seguir  o  amigo  c  companheiro, 

A  que  o  pelouro  imigo  tanto  enfreia 

Glue  desciibrir-se  enlào  muito  arreceia. 


Este  seu  bom  desojo  tanto  o  acendç 

Q.ue  oppõe  a  hum  grão  perigo  o  forte  peito, 

Glue  sem  aventurar-se  bem  entende 

Que  nunca  se  eíTcitua  o  grande  feito  ; 

Porém  disto  que  entào  elle  pertendo 

Segue  a  sua  tenção  diverso  o  eíTeito, 

Porque  a  morte  d'aqui  a  elle  se  gera 

Que  elle  ao  soberbo  imigo  dar  quizera.         =^ 


Posto  entre  os  seus  canhões  então  estava 
Em  logar  assaz  cogo,  e  sem  abrigo. 
Lá  d'onde  a  sua  gente  elle  animava 
Para  não  duvidar  este  perigo, 
Quando  hua  horrenda  espera  solta  a  brava 
Ruinadora  fúria  d'entre  o  imigo, 
Sabe  o  ferro  que  dentro  estava  preso 
Direito  ao  Falcão  vai  em  fogo  aceso. 


â^O      OBKAS   D£'FKANCiSCU   d''aNORADK 


Encontra-o  na  cabeça,  e  alli  esparzido 
Lhe  deixa  o  cérebro  entre  a  sua  gente, 
Pallido  e  inhabil  cahe  o  não  vencido 
Braço,  dos  grandes  feitos  síj  contente. 
Hoje  da  cruel  morte  foi  rendido 
O  que  rendido  foi  delia  somente, 
Mus  co^a  fama  que  cresce  de  hora  em  hora 
Venceo  a  sua  mesma  vencedora. 

CII. 

Com  grave  sentimento  recebida 

Foi  esta  repentina  morte  dura 

Da  sua  companhia,  que  na  vida 

Só  do  seu  Capitão  se  ha  por  segura. 

Na  fortaleza  foi  logo  esparzida 

Com  dor  de  todos  esta  desventura. 

Pois  bem  dava  a  entender  seu  braço  forte 

€luanta  perda  alli  trouxe  a  sua  morle. 


Nesta  hora,  a  Turca  armada  que  visiuha 
Estava  da  Mesquita,  onde  ancorada 
A  deixei  (como  disse  a  historia  minha) 
Se  leva,  e  vai  surgir  n^hCia  enseada, 
A  qual  posta  defronte  íle  si  tinha 
A  nossa  fortaleza,  que  arredada 
Meia  légua  só  tèe  lá  contra  o  assento 
Gtue  scniprc  aos  Rumes  deu  recolhimento. 


vi    IMIIMKIHO    CKIU<J    DK    DIU.  hoi 


Passoii-se  a  Cí>te  loij.ir  o  esperto  Mouru 
Ondo  os  navios  mais  se  soj^uravão, 
P<»r  ter  alli  amparado  o  surgedoiiro 
Dos  ventos  que  a  soprar  ja  conioçavHo, 
E  por  tei*  melhor  desembarcadouro 
Q-ue  o  logar  onde  então  clles  estavao, 
E  uiais  perto  o  lieòr  brando  c  snave 
Q.Jie  da  sede  reprime  a  força  grave. 


Nesta  mesma  manhãi  que  este  famoso 

Falcão  sobe  á  Celes'e  Monarquia, 

O  Turco  pertinaz,  nunca  ocioso, 

CrAue  o  damno  dos  Cliristãos  só  pertcndia. 

Assalta  o  baluarte  que  o  animoso 

Sousa  co^i  sua  boa  companhia, 

Com  grande  louvor  sc<i,  com  grão  perigo, 

^Jii  ve/^8  defendera  deste  iniiso. 


Sessenta  são  sdmetíle  os  atrcNÍdos 
(ri lie  aqiielle  baluarte  lioje  assallárào, 
Mas  do  Sousa  e  dos  seus  são  recebidos 
C<»\>  valor  com  que  sempre  costumarão; 
Ilompem  o  Ceo  os  altos  alaridos 
Q-itando  os  imigos  bra<^os  se  ajuntarão, 
A  c-sc  com  sangue  e  morte  vm  breve  esji.içu 
tÍLían!«  ódio  nclles  ha,  quão  forte  brart». 


Aceso  em  ira  o  Turco  o  ferro  move, 
Move  o  ferro  o  Cliristao  em  ira  aceso,. 
Faz  isto  que  n'hum  e  outro  se  renove 
O  ódio,  de  que  antes  ja  estava  preso  \ 
D'aqui  nasce  também  que  hum  e  outro  prove 
Do  ferro  imigo  o  grave  e  mortal  peso, 
Mas  o  Turco  se  vê  sem  paciência 
De  tão  dura  e  contínua  resistência. 


E  vendo  que  os  sessenta  em  vao  pertendesk 

Desbaratar  os  fortes  defensores, 

Q.ue  com  tamanha  esforço  se  defendem 

Glue  vencidos  nao  sao,  mas  vencedores. 

Mandão  muitos  de  novo  com  que  offendem 

Com  revezadas  forças  e  maiores 

Estes  poucos  Christãos,  e  os  seus  ajudão. 

Mas  nem  com  isto  a  usada  sorte  m.udã.0.. 


Porém  por  mais  que  aquella  alta  constância 
Do  Sousa  se  defenda  e  prevaleça, 
Keveza-se  porém  com  tanta  instancia 
O  Turco,  porque  nunca  desfalleça, 
Gtue  he  forçado  vir  lá  da  sua  estancia 
Glualquer  dos  Capitães,  e  favoreça 
Dos  Christãos  a  pequena  companhia 
€tue  sempre  a  forças  novas  resistia». 


o    PTIÍMETRO    CERCO    DE   1)11". 


Entra  esbi  descansada  gente  forte 

Onde  resiste  a  forte  mas  cansada, 

A  tempo  que  a  dous  têe  levado  a  morte 

E  que  oito  tèc  ao  sangue  aberta  a  estrada. 

(Querendo  esta  também  tentar  a  sorte 

Contra  a  gente  mil  vezes  revezada, 

Faz  que  o  Sousa  co^os  seus  d^dli  se  aparte 

Toraa  ella  a  defensão  do  baluarte. 


Succede  no  logar  ao  Sousa  ousado 
E  também  na  ousadia  lhe  succede, 
Ja  sente  o  Turco  o  braço  descansado 
Mas  nem  isto  lhe  faz  que  atraz  se  arrede  ^ 
Mostra  agora  o  furor  mais  obstinado 
Q.uando  a  necessidade  mais  lh'o  pede, 
Com  nova  for^a  agora  entrar  pertende 
O  que  com  nova  força  se  defende. 


Mas  esta  força  nova  acha  tao  dura 
Q.ue  elle  pertende  em  vão  desbarata-la, 
Comtudo  hiia  e  outra  parte  insta,  e  procura 
Ella  defender-se,  elle  de  entra-la. 
Fende  a  espada  cruel,  a  lança  fura, 
A  alta  grita  de  novo  ao  Ceo  se  iguala, 
Hum  dos  Christãos  aqui  só  perde  a  vida 
Outros  somente  ao  sangue  dão  sabida. 


55  i      OBRAS    lili   FJlA^CISCO    D  ■  ANDRADE. 


Destes  a  que  espalhou  o  imigo  tanto 
Sangue,  que  ja  da  marte  estavao  perto, 
Fonseca  he  hum,  que  o  nome  têe  do  Santo 
<-lue  ja  habitou  de  Palhmos  o  deserto. 
I)eter-se  hum  pouco  aqui  quer  o  meu  Ciiuto 
Para  que  seja  ao  mundo  descuherlo 
))o  raro  esforço  deste  hum  raro  exemplo 
Glue  da  fama  honra  assaz  o  Sacro  Teniplo. 

CXIV. 

Kste  maneelx)  (que  era  ao  estandarte 

Do  valeroso  Sousa  obediente) 

(Guando  no  combatido  baluarte 

Mostra  o  Turco  e  o  Christão  a  fúria  arílente, 

Da  espingarda  cruel  que  lá  na  parte 

Imiga  se  meneia,   a  fúria  sente, 

Mas  nào  foi  por  logar  que  o  tao  mal  trate 

Q.[ie  logo  a  chura  vida  lhe  arrebate. 

cxv. 

Co'o  seu  furor  usado  a  elle  endireita 
Kste  ardente,  cruel,  mortal  pelouro, 
irkue  acaso  para  aquella  parte  deita 
A  espingarda  de  lá  do  esquadrão  Motiro^ 
Polo  colío  lhe  entrou  da  mão  direita 
K  acha  a  sabida  lá  no  sangradouro. 
Tudo  deixa  desfeito,  e  em  fogo  aceso, 
Molle  carne,  osso  duro,   nervo  test). 


o    lUlIMLlJlO    CEIICO    JDE   DIU.  O 

CXVI. 

O  verde  ramo  a  quom  o  desestrado 
Ca-íe,  ou  da  imiga  mão,  ou  do  graò  veiito, 
Deixou  da  suk  plaitta  peiídunido 
Com  grande  damno  seu,  grào  detrimento, 
Murcho  o  secco  se  torna,  e  pcírdo  o  usado 
Seu  preço,  seu  valor,  seu  ornárnento, 
Tal  este  forte  braço  hoje  estou  vendo 
Perdido  o  seu  valor,  estar  pendendo. 


ISfas  nem  a  falta  d*i»um  tSo  importante 
Memlín),  algíia  eausou  no  forte  peito, 
Q.ue  inda  que  a  dôr  que  tinha  era  bastante 
A  sujeitar  o  nunca  antes  sujeito, 
Nenhum  nelle  o  se'ntio,  dos  que  diante 
Alli  tinha,  ou  no  rosto,  ou  n'algum  geito, 
<lue  mais  o  aperta  o  esprito  não  domavel 
Q.ue  aquella  grave  dôr  intolerável. 

CXVIII. 

E  porque  a  esta  grãa  falta  <?ntão  acuda 

T)e  sorte,  que  não  seja  deScuberta, 

Ao  decepado  braço  a  adarga  muda 

E  com  a  esquerda  mão  a  lança  aperta^ 

Levanta  ao  hombro  a  adarga  quanto  o  ajuda 

O  fraco  braço,  e  á  bellica  referta 

Torna  com  grão  fervor  e  esforço,  onde 

A  maior  parte  desta  falta  esconde. 


Ó.>6      OnílAS    DF.   FRANCISCO    D  ANDRADK, 


Mas  por  mais  qtio  escondê-la  elle  trabalha 
Nao  a  pode  oscoíider  quanto  queria, 
Porque  como  o  logar  desta  batalha 
Recolher  doze  ou  treze  sos  podia, 
Muitos  de  fora  estão  vendo  o  que  espalha 
O  sangue,  ou  o  que  á  morte  se  rendia, 
Para  que  no  logar  que  este  deixasse 
O  que  estiver  mais  perto  logo  entrasse. 

cxx, 

R  como  então  so  nisto  so  attentava 
Nao  pôde  elle  encubrir-fo  grande  espaço, 
Q.ue  a  graa  cópia  de  sangue  que  lançava 
De  si  o  dependurado  roto  braço, 
Veio  a  mostrar  emfim  qual  elle  estava 
A  hum  que  co'o  seu  valor,  e  co'o  duro  aço 
Fez  conhecer  seu  nome  em  toda  a  parte, 
Vasconcellos  traz  Mendes  e  Duarte. 

CXXI. 

Estas  alcunhas,  c  este  nome  tinha 
Este  que  do  Fonseca  a  falta  alcança, 
O  qual  vendo  que  então  alli  o  detinha 
Força  não,  mas  esprito  e  confiança, 
Pucha  por  elle,  e  diz,  que  pois  convinha 
A  cura,  e  não  mover  adarga  e  lança. 
Ao  estado  em  que  está,  da  cura  trate 
E  lhe  dê  logar  que  entre  no  combate. 


o    PRIMF-inO    CERCO    DE    DIU. 


Fonseca  nao  o  onvindo  por  ventura, 
l*nlo  tento  que  têe  na  gente  imiga, 
Ou  sendo-lhe  pesada  cousa  e  dura 
Deixar  o  seu  logar,  durando  a  briga, 
Do  que  diz  Vasconcellos  pouco  cura. 
Não  lhe  torna  resposta,  nem  mitiga 
O  esforço  natural  que  o  está  movendo. 
Antes  com  isto  mais  lhe  vai  crescendo. 


Vasconcellos  porem,  em  quem  o  esprito 
Heróico  cada  vez  mais  se  aviventa. 
Ao  Fonseca  repete  o  que  antes  dito 
Lhe  tinha  ja  outra  vez,  e  lhe  accrescenta, 
ÍtIuc  pois  hum  desestrado,  e  fortuito 
Caso,  que  assaz  a  todos  descontenta, 
Faz  que  o  direito  braço  elle  não  mude 
lihe  dê  a  elle  o  logar,  pois  têe  saúde. 

CXXIV. 

Fonseca,  d'hua  honrada  ira  ja  cheio, 
Agora  que  o  bem  ouve,  não  he  mudo. 
Como  sois  de  rasào  (diz)  tão  alheio 
Q.ue  se  eu  do  esquerdo  braço  inda  me  ajudo 
iMe  pedis  o  logar?  porque  inda  eu  creio 
C^uc  em  quanto  eu  este  tenho,  tenho  tudo  : 
Não  qtieiraes  nisso  o  tempo  aqui  gastar-me 
(Aue  eu  posso  aproveitar  cm  mais  honrar-me. 


'6oS      OBRAS  DE  FRANCISCO  d"* ANDRADE. 


Traz  isto  inda  se  volta  com  ardente 
Esprito,  onde  o  desejo  o  está  guiando. 
Achou-se  acaso  o  Sousa  aqui  presente 
Q-ue  têe  por  nome  Lopo,  e  contemplando 
Tão  honrada  questão,  instantemente 
Pede  ao  Fonseca,  e  quasi  o  está  forçando 
A  que  se  vá  curar,  e  elle  se  queixa., 
O  logar  o  outro  toma  que  elle  deixa. 

CXXVI. 

Vai  Fonseca  a  curar-se,  inda  queixoso 
De  quem  para  viver  o  encaminhara, 
Vasconcellos  entrou  no  perigoso 
Logar,  que  por  si  mesmo  elle  buscara. 
Neste  Fonseca  sempre  hum  valeroso 
Esprito  em  todo  o  cerco  se  enxergara, 
Porém  da  mão  emfim  fica  aleijado 
Com  que  alli  se  fizera  tão  honrado. 

CXXVII. 

Nesta  hora  o  grão  furor,  a  alta  ufania 
Com  que  o  soberbo  Turco  combatera 
Gluando  a  cansada  gente  resistia 
A  quem  os  seus  mil  vezes  refizera, 
Com  as  forças  da  nova  companhia 
Glue  os  cansados  Christãos  favorecera, 
Tanto  ja  torna  atraz,  tanto  se  abate 
€tue  começa  a  aíTrouxar  o  grão  combate. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  S59 


Sentindo  isto  o  Silveira  ja  no  iinigo 
Manda  a  Lopo  de  Sousa  que  descesse 
A  cava,  co^os  que  tee  alli  comsigo, 
E  os  Turcos  com  grâa  fúria  accommettesse. 
Pouco  duvida  o  Sousa  o  grão  perigo 
Inda  que  então  bem  claro  o  conhecesse. 
Faz  recolher  os  seus  logo  á  bandeira 
Vai  cumprir  o  mandado  do  Silveira. 

CXXIX. 

Com  pressa  ao  baluarte  lá  endireita 

Q.ue  do  incrédulo  Santo  se  nomeia, 

E  da  parte  que  ao  mar  olha  direita 

Ata  hua  rija  corda  u^hua  ameia; 

Por  cila,  sem  temor,  logo  se  deita, 

Q-uc  este  perigo  então  não  se  arreceia, 

Por  onde  co^os  seus  desce  bem  seguro 

Ao  releixo  que  está  entre  a  cava  e  o  muro. 

cxxx. 

Menos  o  grão  perigo  então  duvida 
O.uando  mais  perto  delle  ja  se  achava, 
D^aqui  lança  húa  escada  tão  comprida 
GL-ue  em  quarenta  degráos  se  limitava ;; 
De  corda  esta  era  feita,  que  descida 
Ao  Sousa  deu,  e  aos  seus  d'alli  á  cava, 
Glue  mais  que  n^outra  parte  aqui  era  alta, 
D«sce  a  gente  animosa,  e  nella  salta. 


i)60      0BR4S    DE   FRANCISCO    D*ANDIIADK. 


Nem  inda  a  cava  todos  dentro  tinlia 
(luando  de  cima  foi  Sousa  avisado 
(\ue  lá  d"'hua  Mesquita  que  a  marinlia 
Onda  vê,  foi  d''hum  Mouro  elle  enxergado, 
O  qual  com  grande  pressa  ja  caminha 
As  estancias  dos  seus,  dar-lhes  recado 
J)e  sua  ida,  que  cumpre  ter  grão  tento 
Glue  de  lá  não  receba  detrimento. 

CXXXII. 

Não  esfria  isto  ao  Sousa  o  peito  ardente 
Sempre  r.o  grão  perigo  ardente  peito, 
K  c<)''os  que  tèe  em  baixo  (que  somente 
Trinta  e  cinco  serião)  faz  o  effeito :, 
Não  se  quer  deter  mais  a  forte  gente, 
I*orqne  com  se  deter  não  perca  o  feito, 
I^ogo  o  Sousa,  a  quem  mais  isto  compete, 
l)s  descuidados  Turcos  accommette. 

CXXXIII. 

Muitos  lá  no  alto  estão  do  baluarte, 
]Muitos  nas  quebras  delle  descansando, 
(iue  de  qualquer  perigo  desta  parte 
Pouco  se  estão  então  arreceando. 
Sousa  soltando  no  ar  seu  estandarte 
K  o  furor  aos  que  o  vão  acompanhando, 
Faz  com  que  sinta  o  Turco  em  pouco  espaço 
Q,uão  bem  sabe  cortar  o  Christao  aço. 


o    PRUI-CIRO    CERCO    DE    DIU.  oGl 

CXXXIV. 

A  cortadora  rspada  Lusitana 
Derrama  o  sangue  imigo  sem  piedade, 
Mas  aqviella  infiel  turba  profana 
Sentindo  esta  inesperada  crueldade, 
Inda  hoje  a  natural  soberba  a  engana, 
Inda  de  resistir  mostra  vontade, 
E  os  que  cá  mais  em  baixo  tee  o  posto 
Mostrão  contra  os  CUristãos  direito  o  rosto. 

cxxxv. 

Fai-lbcs  mover  o  ferro  o  esprito  ufano 
K  quanio  lhes  he  possível  se  defendem, 
Mas  logo  lhes  mostrou  seu  próprio  dano 
Glue  defender-se  então  em  vão  pertendem. 
Pois  debaixo  do  ferro  Lusitano 
As  almas  infiéis  seis  delles  rendem, 
E  co^os  mais  de  tal  sorte  aperta  o  Sousa 
Glue  deter-se  alli  mais  nenhum  ja  ousa. 


Procura  de  salvar-se  o  que  he  mais  forte 
Por  onde  o  medo  c  o  tempo  então  o  ensina, 
Vendo  os  que  em  cima  estão,  a  dura  sorte 
Dest^outros,  também  temem  sua  ruina, 
(Qualquer  delles  também  fugir  á  morte 
Clue  alli  têe  por  mui  certa,  determina. 
Mas  tal  foi  o  remédio  que  buscarão 
Glue  a  morte  então  mais  certa  nelle  acharão. 


r.xxxvn. 

Q-ualqner  Hoíles,  s«m  tento,  í'utSo  ífe  luJi<,'<'i 
Polas  quebras  que  mostra  o  roto  muro, 
Mas  logo  de  viver  p«írde  a  esperança, 
Porque  o  caminho  que  elle  por  seguro 
Busca,  tomado  achou,  e  assi  na  lança 
E  na  espada  vai  dar  do  imigo  duro, 
Onde  perdem  alguns  delles  a  vida 
Sem  detrimento  ou  dam  no  d<j  homccida. 

cxxxvitt. 

Com  isto  o  baluarte  em  í'-mpo  brovf 

Foi  do  soberbo  imigo  drir pejado, 

E  com  grão  dam  no  seu  timbem  fim  tove 

O  assalto  tantas  vezes  revezado. 

Sousa  porém  na  cava  se  deteve 

Em  quanto  ao  general  manda  hum  recado, 

Avisando-o  de  cousa  que  então  sente 

Ser  ao  tempo  em  que  estão  conveniente. 

CX.XXIX, 

Manda  dizer  que  porque  a  gente  imíga 
Os  soldados  Christãos  cada  momento 
Com  pequenos  combates  nao  persiga, 
Nem  seja  ao  trabalhar  impedimento, 
Parece  que  a  rasao  e  tempo  obriga 
A  que  lá  do  ÚA  ajuntamento 
Se  mande  sempre  gente  revezada 
Da  qual  a  cava  esteja  acompanhada. 


o    PRIMEIRO    CKItO    »E   «IT 


£i(i3 


Nem  vá  esta  genle  lá,  para  que  o  amígn 
Destes  leves  combates  defendesse, 
Senão  para  fazer  que  o  Turco  imigo 
Com  mor  cópia  c  poder  o  conimettesse  ^ 
E  inda  que  isto  ao  Christâo  he  mor  perigo, 
Comtudo  como  o  Turco  conhecesse 
(i.ue  outro  mor  numero  e  ordem  lhe  convinha 
Monos  vezes  virá  do  que  então  vinlia. 

CXLI. 

E  que  d'aqui  lerá  hum  grão  proveito 
< )  fiel  defensor,  porque  teria 
'J%'mpo  de  trabalhar,  e  dar  effeito 
Ao  reparo  importante  que  fazia. 
I«to  npprova  o  Silveira,  e  lhe  he  acceito, 
Louva  o  Sousa,  e  agradece  o  que  dizia, 
O  qual  ficou  na  cava  até  que  a  escura 
Sombra  encobre  a  diurna  formosura. 


Esta  ordem  de  metter  gente  na  cava 
O  Silveira  mandou  que  se  guardasse, 
A  qual  quando  a  que  lá  em  cima  estava 
De  lá  algum  signal  certo  lhe  mostrasse, 
Contra  os  Turcos  irá,  mas  lhe  mandiíva 
<iiie  da  boca  da  cava  não  passasse, 
Nom  tanto  ao  imigo  então  se  descubrissc 
U,ue  elle  a  sua  pequena  cópia  visse. 


3G4      OBRAS    DE    FRANCISCO    d" ANDRADE. 
CXLIII. 

Isto  d"'allí  em  diante  foi  seguido, 
Nem  foi  de  todo  v5o,  mas  proveitoso, 
Porque  o  imigo  cruel  foi  constrangido 
Dar  raais  socego  ao  povo  religioso, 
Pois  forçado  era  então  ser  commettido 
Com  outro  mor  poder,  mais  copioso, 
D''onde  ás  vezes  o  povo  Lusitano 
Menos  perda  recebe,  e  menos  dano. 

CXLIV. 

Mandando  polo  estylo  atraz  escrito 
Oito  homens  o  Silveira,  dos  que  tinha 
Comsigo  aquelle  Sousa  Lopo  dito. 
Também  Simão  Furtado  entre  elles  vinha. 
Varão  a  cujo  siso,  idade,  e  esprito 
Glualquer  feito  importante  bem  convinha, 
E  foi  mandado  á  cava  lá  de  cima 
Porque  se  houver  desmando  elle  o  reprima. 

CXLV. 

Apor  este  esquadrão  hum  moço  segue 

Q,ue  dezoito  annos  sos  inda  fizera, 

Cujo  nome  he  João,  o  qual  entregue 

Ao  serviço  de  Lopo  de  Sousa  era  ^ 

E  temendo  quiçá  que  elle  lhe  negue 

A  licença,  pedir-lh^a  não  quizera. 

Nem  leva  outra  algíja  arma  em  sua  ajuda 

GLue  a  comprida  espingarda,  e  a  espada  aguda. 


o   l>IlXM£IRO  CERCO    DE    DíU.  56$ 


Com  pressa  á  cava  lá  busca  a  descida 
O  pequeno  esquadrão,  mas  forte  e  ousado, 
Em  tempo  que  o  feroz  Turco  homecida 
(Como  meu  verso  atraz  ja  têe  cantado) 
Faz  que  o  Cambaio,  á  custa  da  sua  vida^ 
A  immundicie  que  cahe  do  ruinado 
Muro  lhe  alimpe,  a  qual  então  tolhia 
Ser  lá  no  vivo  a  sua  bateria. 

CXLVII» 

E  para  effeito  disto  se  sahirao 
Alguns  da  estancia  lá  que  os  alojava, 
Os  Christãos  lá  do  muro  quando  os  virao 
Logo  o  signal  íizerão  aos  da  cava  \ 
Elles,  que  no  signal  bem  advertirão, 
Porque  só  cada  hum  nelle  attentava, 
SalteSo  sem  tardança  a  Turca  gente 
Giwe  tardança  em  furor  não  se  consente 


O  moço  que  seguio,  como  atraz  digo, 
Os  oito,  e  também  lá  na  cava  entrara, 
Pouco  duvida  agora  o  grão  perigo. 
Mas  seguindo  o  furor  que  o  estimulara 
Salteia  elle  também  o  incauto  imigo, 
E  a  mortal  espingarda  n"'hum  dispara, 
Traz  isto  a  espada  arranca  ^  nias  lá  avante 
Esperai  que  o  que  fez  com  outro  caute» 


CERCO  DE  DIU. 


O  mo^o  dá  a  morte  ao  outro  Mouro,  e  torna 
em  salvo  ã  fortaleza.  3Ianoel  de  Vasconccl- 
los  entra  duas  vezes  com  <jcnie  na  cava,  e 
o  que  lhe  succedco.  João  da  Nova  persuade 
aos  Christuos  que  entreguem  a  fortaleza.  Os 
Turcos  a  batem  por  diversas  partes,  e  lhe 
dão  alguns  assaltos.  Ordcnão-lhe  huma  mi- 
na, e  indo  Gaspar  de  Sousa  reconhecê-la  he 
morto  poios  Turcos.  Inventão  os  Chrisíãon 
hum  ardil  com,  que  algum  tempo  se  defen-r 
dem  dos  inimigos.  Enira  na  fortaleza  soe 
corro  de  Goa. 


\^ue  nome,  que  louvor,  que  honra,  que  gloria 
O  verdadeiro  esforço  não  merece? 
(iue  cousa  ha  hi  mais  digna  de  memoria 
Q.UC  o  que  por  seu  esforço  se  engrandece? 
Km  quem  com  maisrasào  se  empreita  a  historia 
Do  engenho  que  no  mundo  mais  ílorece, 
(^ue  a'hum  braço  tao  forte  e  valeroso 
i\ini  se  faz  por  si  eterno  e  glorioso? 


o    rRIM£IUO    CERCO    ©E   DIU.  aU  i 


Matérias  dignas  são,  que  em  toda  a  partft 
Delias  cante  o  subtil  engenho  agudo 
A  virtude,  a  sciencia,  o  íçoverno,  a  arte, 
Dote  hum  da  natureza,  outro  do  estudo-, 
Mas  as  obras  do  fero,  horrendo  Marte 
Como  em  honra  e  louvor  passào  por  tudo, 
Assi  tambíím  matéria  s5o  mais  dina 
Do  que  mais  gastou  d^agua  Cabaliua. 

III. 

Provar-se  com  rasão  será  escusado 

O  que  a  mesma  rasao  está  provando, 

Pois  merece  aqiuílle  sor  cantado 

(■iue  a  vida  está  cada  hora  aventurando, 

E  de  mil  cruéis  mortes  rodeado 

Sempre  hum  invicto  esprito  está  mostrando, 

Ciue  aquelle  que  faz  guerra  ao  tempo  imigo 

Com  trabalho  menor  e  sem  perigo. 

IV. 

E  se  o  mellior  engenho  he  láu  devido 

A  qualquer  que  do  Marte  segue  a  banda, 

E  inda  áquelle  que  está  envelhecido 

Nas  perigosas  cousas  que  elle  mauda, 

A  que  o  uso  faz  não  ser  delle  temido 

O  que  o  novo  soldado  temendo  anda, 

Gtue  se  deverá  á«{ueile  que  he  tào  forte 

(4ue  entrou  ja  nào  temendo  a  mesin?.  morte? 


568      OmiAS    DE    FRANCISCO    D^ANDRADE. 


Tal  foi  dfiquelle  moço  o  forte  poito 
De  que  atraz  prometti  cantar  cá  avante, 
Q.ue  entrou  n'hum  perigoso,  bravo  feito 
Com  animo  feroz,  duro  e  constante^ 
Assaz  merecedor  que  o  mais  perfeito 
Verso,  este  seu  heróico  feito  cante, 
E  tanto  mais  heróico  quanto  a  idade 
Tenra,  lhe  punha  mor  difliculdade. 


Depois  que  da  espingarda  nao  se  ajuda 
Este  Marte  novel,  logo  com  pressa, 
Apertando  na  mão  a  espada  aguda, 
Traz  hum  dos  outros  Turcos  se  arremessa^ 
Impedir-lh^o  o  Furtado  assaz  estuda, 
Mas  de  seguir  o  Turco  elle  nao  cessa, 
(iue  mais  he  então  ao  seu  esprito  ardente 
Que  ao  que  manda  o  Furtado  obediente. 


O  Turco  dVMitranhavel  medo  cheio 
Dá-lhe  as  costas,  ligeiro  q «janto  o  vento, 
Com  tal  pressa  porem  trag  elle  veio 
O  moço,  que  lho  chega  n''hum  momento; 
Bem  desfjou  o  Turco  então  ter  meio 
DVuitrar  lá  onde  os  seus  tee  seu  assento, 
Mas  a  pressa  do  moço  he  tão  sobeja 
(jLuo  o  faz  desesperar  do  que  deseja. 


«    1'KIMEIKO    CEUtO    DE    UlU.  oG9 

VIII. 

Fé  vendo  que  chegar  ja  iiao  podI;i 
As  estancias  dos  seus  lá  junto  á  ckv;j. 
Onde  então  mais  secura  e  certa  via 
Aquella  salvação  que  desejava, 
E  pòr-se  em  defensão  nao  se  atrevia 
Contra  o   moço  feroz,  quo  o  maltratavii, 
No  rio  o  rosto  põe,  com  grande  mágua, 
Determinando  ja  salvar-se  n'*agua. 

IX. 

Direito  ao  rio  vai  com  ta!  presteza 
O  uai  nelle  põe  hum  crave  temor  frio, 
O  moço,  que  lhe  he  igual  na  ligeirez;!, 
Junto  com  elle  vai  também  ao  rio, 
Onde  sempre  \\\e  faz  com  grãa  crueza 
Sentir  da  dura  espada  o  agudo  lio 
Em  quanto  lhe  durou  esta  corrida, 
Mas  nem  com  isso  faz  que  perca  a  vida. 


Nem  foi  isto  escondido  á  imiga  gente 
Q.ue  mais  de  mil  lhe  têe  direita  a  fronte, 
E  qual  soe  o  lihre  que  o  touro  sente, 
Ou  sente  o  j.ivaly  correr  no  monte, 
Salta  de  cá  e  de  lá,  feroz  e  ardente 
Por  ferrar  o  animal  que  têe  defronte, 
Mas  reprime-o  a  tesa  e  dura  Irell.i, 
E  O  iistuto  caçador  (|ue  afleira  ncUa  : 


570      «BlílAS  SB  FKANCISCO  B^ANDRÀBJto. 
XI, 

Tal  vejo  cada  hum  dos  que  atraz  digo 
Que  os  dous  da  Turca  esí anciã  estavão  vendo^ 
Os  quaes  vendo  o  furor  do  moço  imigo 
Em  vingadora  fúria  estão  ardendo  ^ 
Bem  desejão  d^ir  lá,  mas  o  perigo 
Tanto  estão  dos  raortaes  tiros  temendo 
Com  que  os  Christãos  ao  moço  dão  ajuda ,^ 
Q.ue  nenhum  d^onde  está  o  passo  muda^ 

XII. 

Nenhum  a  própria  vida  aventurando 
€tuer  segurar  a  alheia  naquella  hora, 
E  assi  nenhum  faz  mais  que  estar  olhanda 
Como  salvar-se  o  seu  trabalha  agora  \ 
O  qual  chegado  ao  rio,  tanto  entrando 
Foi  pola  agua,  que  os  hombros  sós  tèe  fórai^ 
Entra  também  traz  elle  o  ousado  moço 
Até  que  Ih^agua  deu  polo  pescoço. 

XIII. 

Tão  différentes  erão  na  estatura 
Q/ue  inda  que  o  Mouro  estava  avante  postu 
E  o  moço  atraz,  onde  ha  menos  altura, 
Comtudo  a  agua  mais  perto  têe  do  rosto  ^ 
Pára  aqui  o  triste  Mouro,  que  outra  dura 
Sorte  arreceia  n'agua,  e  outro  desgosto. 
Temendo  que  se  lá  mais  dentro  entrasse 
A  corrente  também  traz  si  o  levasse» 


•0  :PRIMElRO  CERCO  Í)E  DItí.  Stl 


XIV. 


Procura  o  moço  assaz  por  dar  effeito 
Aquella  obra  que  tinha  começada, 
Mas  elle  e  o  Mouro  estão  de  tão  máo  geito 
Glue  alcançá-lo  mal  pdde  com  a  espada. 
Aquelle  Sousa  a  quem  elle  he  sujeito 
Q.ue  no  muro  está  então,  de  lá  lhe  brada 
Q.ue  encolha  o  braço  a  si,  depois  o  estenda^ 
E  co^a  ponta  da  espada  o  imigo  oíTenda, 


O  moço,  cujo  esprito  forte  e  ousado 
No  perigo  maior  mais  prevalece. 
Também  agora  está  tão  acordado 
Q.ue  do  Senhor  a  falia  bem  conhece^ 
E  havendo-se  por  bem  aconselhado 
Logo  neste  conselho  lhe  obedece  ij 
Ja  não  levanta  o  braço,  e  d''alto  fende, 
Mas  para  si  o  encolhe,  e  logo  o  estende, 

XVI. 

Hua  e  outra  vez  encolhe  e  estende  o  braço^ 
Mas  nem  o  que  pertende  assi  alcança: 
O  triste  Mouro  em  todo  aquelle  espaço 
Nem  somente  lhe  veio  hua  lembrança, 
Glue  também  traz  ao  lado  o  subtil  aço 
Com  que  de  se  salvar  tenha  esperança, 
Glue  tanto  o  aperta  o  medo,  que  imagina 
Glue  têe  na  salvação  maior  ruina. 


oT2     OBRAS    DE  FKANCISCQ  d'aNI>RADE. 


O  nio^'o,  a  quem  lium  furor  então  ja  cega 
Porquo  chegar  ao  Mouro  a  agua  lhe  impede 
(-omtudo  quer  tentar  se  o  que  cila  nega 
l*<jde  o  esforço  acabar,  mas  mal  succede. 
lontra  ])ola  agua  mais,  nem  assi  chega 
Ao  fim  do  que  o  desejo  então  lhe  ptíde, 
iA.ue  como  a  agua  na  altura  o  senhoreia 
Vrio-se-llie  os  pés  por  baixo,  e  eahe  na  areia 


Ve-se  enfao  mais  que  nunca  perigoso, 

l*orque  d'^agua  íícou  todo  cuborto^ 

li  o  Mo(jro  em  dcfeiider-se  antes  medroso 

Para  oíTender  se  mostra  agora  esperto  ^ 

Salta  logo  sobre  elle,  desejoso 

De  o  fazer  aífogar,   e  muito  perto 

Kstcve  esta  tenção  de  vir  a  (>fleito, 

1l  os  que  do  íóra  o  vêem  o  dão  por  feito. 


Mas  aquelle  \alor  raro  e  sobejo 
Na  liHu-  necessidade  mais  se  acende, 
<  lue  inda  que  o  moço  j a  cansado  vejo, 
E  das  mãos  a  espingarda  lula  lhe  prende, 
E  bebera  agua  assaz,  vendo  o  desejo 
Do  Mouro,  que  aífogá-lo  então  pertende, 
V<!)lta  a  espatla  para  elic,  v.  faz  que  lhe  entre 
Lá  três  ou  quatro)  vezes  polo  ventre. 


o    PRIMEIRO   CERCO    BE   DIV.  S73 

XX. 

Corre  o  sangue  infiel  em  grosso  fio 

A  quem  o  moço  dco  larga  sabida^ 

Começa-se  a  tornar  o  corpo  frio 

A  que  o  sangue  traz  si  levava  a  vida, 

Perde  a  côr  natural  a  agua  do  rio 

E  de  branca  em  purpúrea  he  convertida, 

K  o  contrario  á  infiel  face  acontece 

Q.ue  sendo  antes  purpúrea  amarellece. 

XXI. 

lio  mortal  ferro  o  Mouro  trespassado 
Solta  de  todo  o  moço,  e  o  desaíferra, 
K  logo  posto  em  pé,  desatinado 
(^jirendo  d'*agiia  vai  lá  para  a  tefra  *^ 
Porém  apenas  era  nella  entrado 
Q.uando  o  esprito  infiel  que  o  corpo  encerra 
Blasfemando  desceo  á  eterna  queixa 
Solto  do  corpo  ja,  que  cm  terra  deixa. 


O  moço,  que  de  todo  se  ja  sente 
liivre  d'hum  tal  trabalho  e  tal  perigo, 
Também  se  põe  em  pé,  assaz  contente, 
Inda  envolto  no  fresco  sangue  imigo. 
Desatina  de  novo  a  imiga  gente 
Porque  lhe  tolhe  ir  a  elle  o  que  atraz  digo^ 
Mas  co'o  q\ie  pode  então  lhe  faz  que  veja 
O  que  o  seu  peito  imigo  lhe  deseja. 


oT4      obras    de   rRANClSCO    D^NDIiADEi 


Q-ual  da  espingarda  lança  o  chumbo  fora^ 
Glual  faz  que  a  subtil  frecha  corte  o  vento. 
Porém  n(Mihum  tao  cefto  atira  agora 
Que  execute  no  moço  o  duro  intento; 
Elle  fazendo  alli  qualf|iier  demora 
Em  quanto  algua  força  toma,  e  alento, 
Ufano  d'agua  sahe,  com  vagaroso 
PassOj  mais  confiado  que  medroso, 


XXlV. 

"bi-ã  niao  direita  a  espada  sustentando, 
E  na  esquerda  a  espinoardaj  faz  a  via^ 
E  junto  hl  co^os  Turcos  caminhando 
Jamais  delles  o  rosto  nao  desvia  : 
VoT  entre  mortaes  tiros  Vai  passando 
Com  mostras  de  dospreso,  e  de  ufania, 
E  assi,  api^sar  da  imiga  fúria  brava, 
Inteiro  e  sho  entrou  dentro  na  cava. 

XXV. 

ilecebido  de  todos  foi  com  tanto 
Prazer,  que  a  pouco  mais  fora  infinito, 
Porém  mor  que  o  prazer  foi  inda  o  espanto 
Vendo  cm  tao  pouca  idade  tanto  esprito. 
Não  quero  em  teu  louvor  soltar  o  canto 
Famoso  moço,  porque  o  que  he  só  dito 
De  ti,  matéria  Ja  sirá  luistante 
Para  que  todo  o  engenho  «l.-  ti  <  i-.nte. 


«1    IMUMEIRO   CERCO    DE   DIV,  i 

XXVI. 

Apoz  este  esqiiadrão,   outro  caminlia 
Para  a  cava  também   ao  mesmo  effeito, 
Seguindo  hum  Vasconcellos,  o  qual  tinha 
Por  nome  Manoel,  dVusado  peito;; 
Salteia  a  imiga  gente  alli  visinha, 
3Ias  não  teve  esta  \ez  naquelle  feito 
O  successo  tao  bom  qual  o  tivera 
O  Sousa,  que  o  principio  a  e»ta  obra  dera^ 

XKVII. 

Nao  foi  a  falta  então  do  peito  ousado, 
Q.ue  em  todos  a  ousadia  então  sobeja, 
Mas  como  menos  vai  acautelado 
Do  que  em  tão  árduo  feito  se  deseja, 
Não  vai  tão  encuberto,  e  tão  calado 
(ríue  não  o  sinta  o  imigo,  e  não  o  veja^ 
E  quando  delle  foi  accommettido 
Ja  sobre  aviso  estava,  e  prevenido. 

XXVIIÍ. 

Não  fazem  os  Christãos  o  que  peffendetn^ 
í:iue  os  prevenidos  Turcos  os  maltralão, 
E  inda  que  duramente  se  defendem 
Alguns  feridos  vão,  bum  só  lhes  matão ; 
Alguns  Turcos  também  alli  se  estendem 
Q.ue  as  almas  das  mortaes  prisões  desatão^ 
E  na  infernal  e  eterna   são  insjltidas  \ 
Alguns  só  dão  o  sangue,  e  não  as  vidas* 


Ô76      OBRAS   DE  FRANCISCO  D*'aNDRADK. 
XXIX. 

Aquelle  a  qué  hoje  o  justo  Ceo  permitte 
Render  a  alma  entre  a  imiga  alta  crueza 
Christovão  têe  por  nome,  e  se  lhe  admitte 
O  apellido  dos  Sonsas,  e  a  nobreza  '^ 
Da  juvenil  idade  iiida  o  limite 
Não  passara,  porém  a  tanta  alteza 
Chegou  o  seu  esprito  alto  e  sublime 
Q.ue  até  no  mesmo  Marte  inveja  imprime. 

XXX. 

Este  grave  infortúnio  o  peito  forte 
Do  nobre  Manoel  não  amedronta, 
Antes  para  vingar  do  Sousa  a  morte 
Quer  outra  vez  tentar  a  mesma  aífronta. 
Crendo  que  pois  lhe  fora  imiga  a  sorte 
Porque  elle  pouco  cautamente  e  pronta 
Os  Turcos  salteou,  se  se  castiga, 
E  cauto  e  prompto  vai,  a  terá  amiga. 

XXXI. 

De  novo  se  prepara  e  se  concerta 
Com  ordem,  da  pnssadadiíFerente, 
E  quando  a  conjunção  o  chama  e  esperta 
Com  Ímpeto  salteia  a  imiga  gente  ^ 
E  tanto  desta  vez  a  dam  na  e  aperta 
Glue  vinga  o  mal  passado  largamente, 
Com  dam  no  e  perda  assaz  dos  salteados 
Sem  perda  ou  dam  no  algum  dos  baptisados. 


o  PHIMÉIRO  CERCO  DK  Dir.  SY? 

XXXll. 

Mas  o  Turco  feroz  nunca  ocioso, 
Q.ue  o  dam  no  dos  Christaos  só  pertendia^ 
Q.uiçá  então  de  vingar-se  desejoso 
Do  dam  no  que  da  cava  recebia, 
Prepara  hum  novo  assalto  e  furioso 
Para  aquella  hora  quando  o  novo  dia 
Mostra  lá  do  Oriental  dourado  assento 
O  qae  têe  do  quarto  orbe  o  regimento^ 

XXXI 11. 

liOgo  naquélla  noite,  aquella  parte 
Da  vella  que  á  manliãa  he  mais  visinha. 
Coube  áquelles  que  seguem  o  estandarte 
Do  Sousa  que  por  nome  Lopo  tinha  '^ 
Este  forte  varão,  no  baluarte 
<^ue  os  assaltos  cruéis  então  sustinha 
Foi  vigiar,  no  tempo  que  atraz  digo, 
E  grãa  parte  dos  seus  leva  corasigo* 

XXXIV. 

E  quando  ò  novo  raio,  fresco  e  puro 
Subindo  no  Horizonte,  a  Aurora  estende^ 
Commette  o  irado  Turco  aquelle  muro 
Glue  mil  vezes  em  vão  tomar  pertende  ^ 
Mas  tanto  como  sompre  hoje  acha  duro 
O  valeroso  braço  que  o  defende, 
Porque  o  Sousa  co''os  seus  que  o  vigiarão 
Na  defensão  o  não  desampararão, 

«  17 


oTS      OBRAS    I>E   FRANCISCO   D  ANDRADC 
XXXV. 

Antes  em  nitiior  faria  se  acenderão 
^iuíjiilo  com  mor  furor  stio  c<íinmettidos, 
E  assi  os  ferozes  Turcos  receberão 
('om  golpes  ião  niortaes,  n»o  resistidos, 
tíiue  eiu  breve  espaço  assaz  se  arrependerão 
De  se  terem  mostrado  hoje  atrevidos, 
Porque  hoje  o  Lusitano  braço  forte 
Como  sempre  os  enchco  de  sangue  o  morte, 

XXXTI. 

Porém  d'entre  esta  fúria  imiga  e  (em 
Hoje  em  salvo  o  Christão  não  se  recolhe, 
Porque  hum  ptilonro,  que  hua  meia  espera 
ÍÁ  d'hum  ttavtíz  lauçou,  o  Sousa  eolhe 
l*or  liua  espadoa,  a  qual  a  direita  era, 
E  inda  que  então  a  vida  não  lhe  tolhe 
Trata-o  porem  tão  mal  que  o  inhabilita 
l*ara  aquillo  a  que  o  seu  esforço  o  incita. 

XXXVIl. 

liOgo  o  forte  varão  d''aqiii  he  íevado 
E  lá  na  sua  estancia  se  aposenta, 
Onde  he  do  Cirur^ão  remediado 
Co'©  melhor  que  a  sua  arte  lhe  apresenta  ^ 
JVem  Co"'©  damno  que  ao  Sousa  tec  cau8;KÍo 
Este  mortal  pelouro  se  contenta. 
Também  eolhe  outros  três,  e  grãa  sabida 
Ao  sangue  lhes  abrio,  e  quasi  á  vida. 


o   PRIMEIRO  CIRCO   DE  DIU.  S79 

XXXVIII» 

Ja  a  fortaleza  então  grãa  falta  sente 
De  quanto  á  defensão  lhe  pertencia, 
Mas  a  falta  mor,  he  da  forte  gente 
Glue  a  melhor  defensão  nella  fazia  \ 
Pois  muita  ja  descansa  eternamente, 
Muita  estava  em  poder  da  cirurgia, 
K  esta,  muitos  dos  sãos  traz  occupados 
G.ue  andao  na  sua  cura  embaraçados. 

XXXIX. 

Rente  tatnhetn  de  todo  ir-sc  acabando 

A  pólvora  cruel,  com  que  a  espingarda 

Nos  ares  o  mortal  chumbo  soltando 

Faz  que  a  morte  onde  elle  entra  pouco  tarda  ^ 

Vê  todo  o  outro  arteticio  ir  ja  faltando, 

K  o  fulminar  contínuo  da  bombarda 

As  longas  lanças  ter  tão  maltratadas 

Q.ue  delias  a  mor  parte  erão  cortadas. 

XL. 

Mas  sobre  tudo  a  cor  do  rosto  muda 
A  gente  popular,  ver  que  não  vinha 
O  Viso-Rei,  que  espera  dar-lhe  ajuda, 
Nem  d'*outra  parte  algum  soccorro  tinha  \ 
Nem  fortaleza  algua  ha  que  lhe  acuda 
Co'o  que  a  tamanho  aperto  lhe  convinha, 
O  qual  o  Capitão,  bem  previnido, 
Por  vezes  ás  visinhas  têc  pedido. 


XLl. 

Aquelle  a  queit)  Chnul  era  sujeito 
(Seu  iionio  he  SJniao  Guflloz)  so  mandara 
T)i)  pó  com  que  a  espingarda  faz  eíleito 
Duas  arrohas  sds,  so  aproveitara  ^ 
jNías  foi  todo  esto  pó  lá  sem  proveito^ 
i'orque  em  desembarcando  se  arrombáfa 
O  barril  em  que  vem,  e  o  datnnifica 
O  salgado  licor   que  dentro  fica. 

xt.tt. 

I)''Iiua  parto  liaVor  ião  pouca  letiibratíça 

Nas  outras  fortalezas,  do  seu  dano, 

E  d^outra  haver  ja  tão  pouca  esperança 

Dt;  soceorro,  que  o  têe  por  desenganOj 

Encheu  muitos  de  tal  descolifiahea 

Q.ue  lhes  abateo  o  esprilo  antes  ufano, 

Com  que  as  cousas  Ciirislaas  enião  mostravão 

Q.ue  pura  o  niáo  successo  declinavão. 

XLllI. 

Mas  em  quem  cada  vez  mais  se  reíiova 
Hum  iutriiíseco  medo,  hum  grão  receio, 
Foi  n''hum  que  dera  ja  mais  d^liua  prova 
1)«  eáprito  de  temor  assaz  alheio  '^ 
Este  por  nome  too  JoHo  da  Nova, 
l)'hum  tão  estranho  medo  agora  cheio 
O-ue  causou  nelle  í-flcilos  desusados 
Nunca  ouvidos  qnicáj   nunra  ciir-.tados. 


o    PTtlMtlUO    CERCO    DE   DIU.  381" 

XLIV. 

No  tempo  que  a  outra  gente  forte  e  ousada 
Se  occupa  uo  trabalho^  e  na  peleja, 
Toda  a  outra  estancia  deste  he  rodeada 
K  a  qualquer  dos  que  encontra,   diz^  que  veja 
*-inc  pois  a  defensão  he  ja  escusada 
D^outro  melhor  remédio  se  proveja, 
Q.ue  devia  entregar-so  em  quanto  espera 
Adiar  clemeiite  a  imiga  gente  fera. 


INÍoveo  logo  isto  riso  em  cada  êíitancía 

K  em  todas  so  julgou  por  zombaria, 

Mas  vendo-o  importunar  com  grande  instancia 

Nenhum  na  sua  estancia  o  consentia, 

Temendo  que  isto  abale  a  grãa  constância 

i^uc  em  toda  a  popular  gente  se  via, 

A  qual  sempre  em  erér  tèe  facilidade. 

Nem  tèe  respeito  algum,  mais  que  a  vontade* 

XLVI. 

A  endo  o  triste  João,  que  nao  somente 
Alli  este  seu  conselho  se  não  segue. 
Mas  que  em  nenhum  logar  se  lhe  consente 
Tratar  ja  deste  medo  a  que  era  entregue, 
Anda  por  cá,  por  lá,  como  o  que  sente 
A  grande  dòr  e  aguda  que  o  persegue, 
txue  mil  logares  busca,  hum  e  outro  tenta, 
K  em  nenhum  se  quieta,  ou  se  contenta. 


XLVII. 

D^hum  logat  n^outro  o  triste  não  parava, 
Mas  não  acha  logar,  nem  se  socega, 
E  como  salvação  não  esperava 
Todo  a  hum  grave  temor  o  peito  entrega^ 
Qiue  o  espirito  vital  que  o  sustentava 
O  seu  favor  usado  ja  lhe  nega, 
Com  que  do  rosto  a  côr  desapparece 
E  a  força  corporal  lhe  desfallece. 

XLVIII. 

Tanto  a  força  lhe  foi  desfallece ndo 
Q.ue  em  mãos  veio  cahir  da  medicina, 
O  Medico  a  doença  conhecendo 
S6  co''o  esforço  curá-lo  determina  ^ 
EUe  mal  a  esta  cura  obedecendo, 
Sem  febre,  ou  dor,  que  cause  tal  ruina, 
Emfim  rendeo  o  esprito,  a  quem  a  porta 
Abrio  só  o  grão  temor  que  dentro  o  corta» 

xtix. 

Que  mais  cruel,  que  mais  estranho  effeito 
Fez  nunca  o  fogo  ardente,  e  o  ferro  agudo, 
Do  que  faz  o  temor  no  fraco  peito 
Contra  o  qual  este  pode  mais  que  tudo? 
Pouco  vai  ao  que  ao  medo  está  sujeito 
Usar  para  salvar-se  de  arte  e  estudo, 
Porque  dentro  em  si  traz  o  imigo  forte 
E  aB  armas  com  que  lhe  elle  causa  a  morte. 


o   PBIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  383 


Mas  vejamos  se  o  Turco  previnido 

Passa  entretanto  o  tempo  descuidado. 

Vendo  elle  o  baluarte  combatido 

Assaz  basta ntemente  ja  arrasado, 

E  que  não  cumpre  ja  ser  mais  batido 

Para  poder  subir  ja  nelle  o  ousado, 

Trata  logo  o  que  entende  que  he  mais  dano 

Do  valeroso  imigo  Lusitano, 


E  porque  as  forças  ja  enfraquecidas 
Dos  Christãos,  co^os  trabalhos  que  passavao, 
Sendo  em  diversas  partes  repartidas 
Mais  fracas  se  tornassem  do  que  estavao, 
Fazem  logo  os  imigos  ser  batidas 
As  casas  que  o  Silveira  agasalhavão, 
Batem  também  a  estancia  onde  inda  agora 
Lopo  de  Sousa  o  seu  pendão  arvora. 

m. 

Porém  com  quanto  emprega  n'*outra  parte 
Os  redondos  coriscos,  fulminantes, 
Nem  por  isso  deixou  o  baluarte 
Em  que  os  costumava  empregar  antes*, 
A  boml)arda  cruel  também  reparte 
Com  elle  dos  pelouros  penetrantes. 
Temendo  que  se  livre  e  solto  fique 
D''algum  reparo  o  imigo  o  fortefique. 


iíSÍ-    obkA»  de  fcUAXcisco  d''axdrade. 

LllI. 

Gtuatro  dias  o  Turco  se  deteve 

Do  Silveira  em  bater  sempre  a  morada, 

Porém  dMuim  eontra-muro  em  tempo  br< 

Toda  por  dentro  foi  íbrtefieada. 

Mas  a  estancia  do  Sousa  com  bem  leve 

Bateria  cahio,  porque  a  delgada 

Parede  a  poucos  tiros  obedece, 

Cahe,  e  a  madeira  lá  dentro  appareco. 


Mas  entendendo  bem   o  esperto  imigo 

Q,ue  o  baluarte  do  mar  então  podia 

Dar  favor  aos  logares  que  atraz  digo 

Com  a  força  da  sua  artilharia, 

Determina  também  logo  comsigo 

Empregar  nelle  a  horrenda   bateria. 

Que  se  tomá-lo  pode,  tee  por  certo  - 

Q-ue  o  Christao  de  perder-se  está  mais  pt.Ttíí. 

tv. 

Solta  o  grosso  canhão  a  fnria  ardente, 
Retumba  o  valle,  e  o  monte  cavernoso, 
E  ao  baluarte  vai  direitamente 
Glue  pode  ser  aos  outros  proveitoso  ; 
Disse  que  era  o  do  mar,  que  oV)odií"nto 
Era  a  hum  nobre  varão,  forte  e  animoso, 
A  quem  o  próprio  nome  António  punha 
E  que  também  dos  Sousas  tec  a  aícunhu. 


o    P&IMEIUO    CERCO    DE    DIU.  â8d 


Jjá  na  entrada  da  porta  este  profano 
Pelouro  agora  vai  lazer  o  effeito, 
Onde  o  Sousa,  temendo  qualquer  dano, 
Hum  bom  reparo  tinha  então  ja  feito  ^ 
Eate  o  canlião  também  do  muro  o  pano 
Q-ue  para  a  fortaleza  olha  direito, 
E  a  torre  da  menagem  buscar  veio 
Q.ue  está  do  baluarte  posta  em  meio. 


Mas  em  quanto  o  canhão  profano  e  horrendo 
Nos  logares  que  digo  a  fúria  emprega, 
O  Turco  o  baluarte  combatendo 
ftue  combateo  mil  vezes,  não  soeega  ;        .    jij 
E  com  quanto  o  Christào  sempre  venceudoH 
De  seu  desejo  ao  Turco  o  efíeito  neg^,  ..soul, 
A  victoria  porém  sempre  lhe  vinha    ^".ff    A 
Com  perda  da  melhor  gente  que  tinha. 


Ja  o  imigo  outra  vez,  nao  descuidado 
iMelhorára  as  estancia,  onde  estava, 
Q.«ie  por  estar  ao  muro  mais  chegado 
Dentro  da  boca  as  póz  da  n(»ssa  cava  ^ 
E  como  sou  intento,  seu  cuidado 
Em  damno  dos  Christãos  so  se  empregava, 
Pois  a  seu  salvo  pode,  determina 
Fazer  ao  baluarte  hua  alta  mina. 


586    ojaiiAS  SE  FRA^CISco  d^anoraoe. 

líH. 

Digo  aqiíelle  que  tinha  ja  vencido 
Mil  vezes  o  furor  do  imigo  duro, 
Porque  este  delle  foi  mais  perseguido, 
Cuja  constância   o  faz  menos  seguro. 
Logo  o  agudo  picão,  sem  grão  ruido. 
Porque  o  Christão  nao  sinta  o  mal  futuro 
Gt-uc  desta  obra  o  cruel  Turco  lhe  ordena, 
A  começa  com  pressa  nao  pequena. 


Nem  se  move  a  fazer  o  que  portende 
Porque  fazer  mais  raso  lhe  importasse 
O  muro  do  que  está,  mas  porque  entende 
Q.ne  se  esta  mina  então  se  effeituasse, 
O  elemento  voraz  que  tudo  acende 
Junto  ao  pó  salitrado  que  o  ajudasse, 
A  muitos  dará  a  morte  nesta  parte 
Gtm;  em  guarda  sempre  estão  do  baluarte. 

LXli 

E  com  quanto  o  Christão  não  recebia 
Desta  mina  inda  algum  conhecimento, 
Mas  só  de  quando  em  quando  hum  tom  ouvia. 
E  sentia  lium  pequeno  movimento, 
Comtudo  o  grão  receio  que  sentia 
De  pôr  o  esperto  imigo  nisto  o  tento, 
Só  jwlo  tom  que  ouvio,  lhe  faz  que  creia 
Gtue  pode  ser  verdade  o  que  arreceia. 


O  Silveira,  qUQ  ve  qiiuo  iniportatite 
l#he  he  que  çe  este  receio  veriíiquo, 
Ordena,  antfís  que  o  mal  vá  mais  ávaute 
Hum -meio  qije  a  certeza  lho  publique  : 
Manda  hum  que  com  grande  animo  econafaute 
As  estancias  salteie  e  damnifiquc, 
Porque  entretanto  veja  se  he  ja  feita 
A  mina,  ou  quiçá  o  engana  esta  suspeita. 


LíOgo  a  Gfíspar  de  SouBa  ello  apresenta 
Aquelle  hotirado  assaz,  mas  grão  perigo, 
Sousa  da  honrada  empresa  se  contenta 
(i-ue  da  mais  perigosa  he  mais  amigo  ^ 
Beni  armados  varões  lho  dão  setenta 
Q-ue  leve  neste  feito  então  comsig». 
Os  quaes  a  commelterem  grandes  feitos 
Move  o  valor  somente  dos  seus  peitos. 

Í.XIV. 

Apoz  isto  também  logo  o  prudente 
Silveira  manda  alguns  que  abaixo  d(S(;ao 
Tanto  que  q  Christão  der  na  imiga  genti*, 
E  da  mina  a  verdade  bem  eonher-ào, 
E  Vfjao  quanto  ja  entra  attentameníe  ; 
E  aos  que  fieào  njandou  qtie  fíivorcçàu 
I^á  de  cima  a  qualquer  que  detiMiniiia 
Ou  saltear  o  inúgo^  ou  ver  a  mina. 


LX.V. 

Tendo  o  Sousa  ja  prestes  tudo  agora 
Q-uanto  entende  que  cumpre  a  tão  grão  feito^ 
Antes  que  a  namorada  clara  Aurora 
Deixe  do  charo  esposo  o  usado  leito, 
©e  lá  da  fortaleza  se  sahe  fora 
E  lá  na  cava  vai  entrar  direito, 
Co^o  seu  forte  esquadrão,  em  fúria  envolto^ 
Co'o  usado  seu  guião  nos  ares  solto ^ 


Porém  antes  d'entrar  nesta  contenda 

Dos  seus  mais  espertos  a  si  cbam-a, 

LíOgo  a  hú  a  bomba,  e  a  lança  a  outro  encomenda  y 

D^onde  sahe  a  cruel,  ardente  chama, 

E  mandou  a  qualquer  que  inflamme  e  acenda 

A  baila  d^algodão,  e  a  secca  rama 

Gtue  nas  estancias  têe  os  Turcos  posta 

De  que  graa  parte  delias  he  composta^ 


Ordenado  isto  assi,  fica  esperanda 

Só  tempo  e  conjunção  ao  que  pertende^. 

Mas  porque  o  caso  o  estava  convidando 

Em  quanto  co^^os  imigos  não  contende 

Com  palavras  d"* esforço  está  animando 

A  quem  o  esforço  próprio  anima  e  acende, 

A  tento  e  a  valentia  exhorta  e  anima 

A  quem  sua  honra  mais  que  a  vida  estima. 


o    PUIMEIRO    CV.RCO    DE    DIU.  o89 


l>reve  espaço  gastado  nisto  tinha 
GLuaiuIo  chegou  o  tompo  desejado, 
Cuja  ausência  somente  alii  o  detinha 
Sem  commetter  o  imigo  descuidado  ; 
Logo  com  siso  e  esforço  qual  convinha 
A  douto  Capitão,  forte  Soldado, 
As  estancias  entrou,  em  que  haveria 
Q.uinhentos  sobre  mil  dos  de  Tiirqiiia. 


Mostra  o  curto  esquadrão  quanto  he  possante, 
Co''o  grão  clamor  a  terra  e  o  Ceo  rctomba, 
Ousado  passa,  e  quanto  acha  diante 
Rompe,  destrue,  abate,  assolla,  e  arromba  ; 
Faz  também  seu  effeito  n^hum  instante 
A  ílammifera  lança,  a  acesa  bomba  :, 
Tudo  recebe  em  si  a  chamma  ardente' 
Q.uanto  a  recebe-la  he  sufficiente- 


O  Turco,  que  este  mal  nao  receava, 

A  que  o  diurno  peso  trabalhoso 

E  a  frescura  desta  hora  convidava 

A  hum  brando  somno,  doce  e  saboroso, 

ISão  sente  hum  mal  que  tanto  o  maltratava 

Senão  depois  que  o  braço  valeroso 

Do  esq^iadrão  Lusitano  ousado  e  forte 

Kiicheo  tudo  de  fogo,  sangue  e  morte. 


O4)0      OBRAS    DE   FRANCISCO   li^ANDnAOE. 

txxi. 

Porque  o  Sousa,  entendendo  que  na  pressa 
Está  seu  bem,  e  o  danrino  na  tardança, 
]*or  cá,  por  lá,  com  fúria  se  arremessa, 
Com  tal  pressa  que  o  vento  o  niío  alcança^ 
Hum  momento  o  cruel  ferro  não  cessa, 
Triste  o  que  então  da  imiga  espada  ou  lança 
O  grào  golpe  sentio,  pois  não  se  farta 
Senão  depois  que  o  corpo  da  alma  aparta. 

LXXII. 

Grãa  parte  com  a  fúria  com  que  entrarão 
Dos  Turcos  bastiões  vão  discorrendo, 
K  com  quanto  impedir-lh^o  trabalharão 
Os  que  a  gtiarda  nesta  hora  estão  fazendo, 
A  impedir-lh^o  comtudo  não  bastarão, 
Çíue  o  primeiro  furor  do  ferro  horrendo 
Lusitano  desfez  em  breve  espaço 
Com  morte  do  que  o  pôz,  este  embaraço. 

LXXIII. 

Km  quanto  a  valerosa  companhia 
Po  Sousa  os  Turcos  trata  deste  geito, 
Aquell''outra  a  que  agora  competia 
R(*conhecer  a  mina,  faz  o  eíFeito  \ 
Ousada  logo  abaixo  faz  a  via, 
Q-ue  isto  também  requer  hum  forte  peito, 
Com  attenção  a  mede,  olha-a  com  tonto, 
K  logo  se  recolhe  a  salvamento. 


rui.UKiiio  c5:;ico  lít  lin  .  'á\il 


JCXXIV. 


o  Sousa  ja  nesta  hora  contemj^aiKlo 
<Tliiao  bem  lhe  tinha  o  caso  succedido, 
2'orqne  afora  os  que  o  sangue  estão  soltando 
Mais  de  sessenta  o  esprito  tèo  rendido, 
Logo  os  seus  companheiros  ajuntando, 
Dos  quaes  vio  que  nenhum  tinha  perdido, 
Com  ordem  se  recolhe,  e  peito  forte 
Sem  deixar  por  fazer  cousa  que  importe. 


O  Turco  somnorcnto  e  descuidado 

Q.ue  o  repentino  mal  e  assalto  sente,  ! 

Tanto  então  do  somno  desacordado 

Q-uanto  d^havcr  que  he  mais  a  Christaa  gfínte, 

As  estancias  deixou  desatinado, 

E  lá  se  retirou  ligeiramente 

Onde  vio  outros  muitos  que  acudirão 

l)"'oulras  partes  á  grita  que  cá  virão. 


l-XXVI. 

Estes  que  dos  mortaes  sanguinolentos 
Golpes  dos  Lusitanos  vão  fugindo, 
Com  apressados  passos  mais  que  lentos, 
Juntos  aos  que  ao  clamor  vem  acudindo, 
O  numero  de  mil  sobre  quinhentos 
Em  breve  espaço  alli  forão  cumprindo, 
Com  que  não  temem  j;i,  nem  se  retirão, 
Mas  seguem  os  de  quem  antes  fugirão. 


O0:i      OIÍUAS    DE   F.wVNCISCO   d'ani)rade. 
LXXVII. 

Feita  irhum  esquadrão  a  copiosa 
Companhia  infiel,  que  junta  estava, 
Trax  os  Christaos  se  lança  furiosa 
Q.ne  ja  perto  da  boca  vão  da  cava. 
Sousa,  que  nesta  empresa  tão  honrosa 
Hum  prospero  fim  ja  ver  desejava. 
Fica  detraz  dos  seus,  c  faíC  com  que  andetn, 
Porque  não  haja  alguns  que  se  desmandem. 

LXXVllI. 

Porém  vendo  nesta  hor:i  que  ficavSo 
Dons  ou  três  dos  que  trouxe  alli  comsigo 
Em  parte  onde,  se  não  se  retira  vão, 
Oorrião  de  perder-se  grão  perigo, 
?íIandando  andar  avante  os  que  alli  esta  vão, 
Com  quanto  ja  bem  perto  via  o  iniigo, 
So  se  torna  ao  lotear  onde  apartados 
Vio  os  dous  que  lhe  andavâo  desmandados. 

LXXIX. 

Está  neste  logar  inda  híia  antiga 
Porta,  que  o  velho  muro  aberta  tinha, 
O  qual  tamanho  fez  a  gente  imiga 
Q.ue  naquelle  logar  fenecer  vinha:, 
Aqui  o  Sousa  chegou,  mas  para  a  briga 
Menos  provido  ja  do  que  convinha. 
Porque  na  mão  só  traz  a  nua  espada 
Glue  a  lança  ja  a  deixara  antes  quebrada. 


o    PRIiir.IRO    CERCO    DE    DIU.  iiV, 

LXXX. 

Clípgado  o  Sousa  á  porta  onde  enxergara 
Os  seus  que  arreceava  vôr  perdidos, 
.TA  alli  03  nao  achou  como  cuidara, 
Q.ue  erao  por  outra  parte  recolhidos^ 
E  querendo  tornar  aos  que  deixara, 
Os  imigos  cruéis  embravecidos, 
'-iiie  erSo  ja  alli  chegados,  o  rodeiao, 
E  co^o  furor  que  podem  o  saltciao. 

LXXXI. 

Meneia  a  espada  e  lança,  d^ira  cheio 
(.'outra  hum  só  imigo  o  imigo  copioso, 
Sousa,  que  de  temor  foi  sempre  alheio, 
Nem  a  morte  diante  o  fez  medroso. 
Por  não  dar  qualquer  mostra  d%irreceio 
Nâo  quer  dar  pressa  ao  passo  vagaroso, 
Antes  quer  arriscar  agora  a  vida 
Q.UC  salvá-la  com  mostras  de  fugida. 

rxxxii. 

Volta  ao  imigo  a  espada  e  o  forte  peito 
ft^ue  agora  para  a  morte  o  incita  e  exhorta, 
E  sendo  alli  o  logar  assaz  estreito 
Faz  ao  Turco  sentir  quanto  ella  corta ;; 
Trata  os  que  acha  diante  de  tal  geito 
Q-ue  faz  que  outra  vez  entrem  pola  [wrta 
Clue  estar  no  muro  velho  disse  agora, 
Ato  que  com  elies  sahe  ao  largo  fónx. 


^94     <íKuAs  i)K  tuVNtisco  d'a>íj)ji  vnr,. 


Não  quer  da  imiga  turba  a  má  vontade 
Perder  a  occasião  que  tês  presente, 
Mas  logo  o  cerca  em  tanta  quantidade 
Q-uanta  o  logar  e  o  imigo  lhe  consente  -^ 
Sousa,  vendo-se  em  tal  necessidade, 
Resiste  mais  que  nunca  duramente, 
Em  mil  partes  a  espada  fura  e  fende 
O  imigo,  que  de  mil  partes  o  offende. 


LXXXIV. 

Mas  que  presta  hum  sobraço,  hum  peito  ousado 
Se  a  fraca  multidão  o  senhoreia  ? 
Sousa,  que  em  toda  a  parte  está  cercado 
De  tanta  iraiga  gente  cl''odio  cheia, 
Render-se  á  multidão  lhe  foi  forçado 
Q,ue  por  lhe  dar  a  morte  a  não  receia, 
E  com  seu  damno  assa»  lhe  faz  tal  guerra 
Que  decepado  o  faz  cahir  em  terra. 


Cahe  decepado  em  terra  o  Sousa  forte, 
Mas  não  lhe  cahe  o  esprito,  antes  lhe  crece, 
Pois  com  quanto  se  vê  visinho  á  morte 
Do  seu  usado  esforço  não  ge  esquece  ^ 
Mas  em  quanto  a  cruel  imiga  sorte 
G,ue  hum  apressado  fim  ja  alli  lhe  tece 
Lhe  dá  forças  e  alento,  ousado  insisto, 
E  quanto  pode  ao  imigo  inda  resiste. 


o    ÍFRIMEIRO    cerco    DK    DIU.  oí 

t,x\xvr. 

Poitím  pouco  jíi  vai  a  resisleiícia 
D^alento  e  forças  ja  debilitadas. 
Contra  os  que  o  vão  buscar  a  competência 
<?om  forças  novas  sempre,  e  reveladas  :, 
E  nssi  de  todo  deu  a  obediência 
As  imigas,  cruéis,  duras  espadas, 
Que  lhe  derào  por  mil  partes  sabida 
Nao  ao  sangue  somente,  mas  á  vida. 

LXXXVII. 

Pallido  em  terra  ja  morto  se  estende 
Este,  de  quem  sd  a  morte  houve  a  victoria. 
Porém  se  a  morte  he  certo  que  se  rende 
As  obras  immortaes,  á  ira  mortal  gloria, 
Heróico  varão,  claro  se  entende 
T)o  que  de  ti  cantou  a  minha  historia, 
Q,ue  se  á  morte  o  mortal  corpo  rendeste 
Co 'os  teus  immortaes  feitos  a  venceste- 

LXXXVIII. 

Este  tão  desestrado  fim,  tão  duro. 
Deste  a  quem  com  a  vida  a  honra  crescia, 
l*arte  foi  visto  dos  que  estão  no  muro, 
Parte  dos  que  alli  trouxe  em  companhia  i^ 
E  inda  que  hila  e  outra  parte  o  mal  futuro 
Antes  de  succeder  ja  o  conhecia, 
Ninguém  lhe  deu  soccorro  neste  feito, 
Porque  se  o  dera,  fora  sem  proveito. 


590      OBRAf5    DE   FRANCISCO   B*  ANDR  \  OV.. 
LXXXIX. 

Nem  so  no  forte  Sons.i  hoje  se  emprega 
Dos  imigos  cruéis  a  fúria  brava, 
Outro  á  morte  cruel  também  entrega 
(iue  quasi  recolhido  era  na  cava  ^ 
Dos  mais  ha  dons  a  quem  o  Ceo  não  nnga 
A  vida,  que  hoje  aos  outros  todos  dava, 
Mas  dá-lh'a  com  tal  custo,  e  de  tal  arte 
GLue  perdem  do  seu  sangue  hQa  graa  parte. 

xc. 

O  Turco,  inda  nao  farto  nem  contente 
Desta  morte  cruel  do  Sousa  imigo, 
Em  quanto,  inda  que  morto,  o  tèe  presente 
Ksquecer-se  não  pode  do  ódio  antigo:^ 
A  cabeça  lhe  corta  cruelmente 
Inda  quiçá  temendo  algum  perigo, 
Corta-lhe  os  pés  e  as  mãos,  inda  medroso 
Q.uiçá  daquelle  braço  vale  roso. 

xci. 

Toma  a  turba  infiel  delle  a  vingança 

Em  tudo  o  com  que  foi  delle  offendida, 

Dá-lhc  para  isto  esprito  e  confiatjça 

Vêr  que  não  pode  ja  ser  resistida  ^ 

A  cabeça  lhe  põe  n^hua  alta  lança 

E  lá  polas  estaijcias  foi  trazida. 

Com  (|ue  em  trajos  d''opprobrio  lhe  foi  dado 

Hum  triumpho  assaz  nobre,  assaz  honrado. 


XCII, 

Neai  eo''o  disforme  corpo  a  gente  imiga 

A^ora  quiz  usar  mais  piedade, 

tlue  ilida  esta  cruel  morte  Uiio  mitiiça 

Hum  ponto  a  seu  furor  e  má  vontade^ 

Lá  na  praia  o  lançou,  para  quo  siga 

A  deshonra  apoz  tal  disform idade, 

Porque  também  se  vinguem  com  deslionra 

De  quem  com  cUes  ganhou  sempre  tanta  honra. 

XCIIf. 

Achado  foi  depois,  c  conhecido 
Vendo-lhe  hua  das  pernas  que  o  profano 
Chumbt),  que  da  espingarda  foi  sahido, 
Lhe  quebrou,  lá  no  Estreito  Gaditano  '^ 
D^aqiii  á  sepultura  foi  trazido 
Com  higrimas  de  todo  o  Lusitano 
Ou  popular,  ou  nobre  ajuntamento, 
(oLue  em  todos  foi  igual  o  sentimento. 

SLCIV. 

Esta  fúria  e  Ijraveza  com  que  veio 
Os  Turcos  commetter  o  Sousa  forte, 
Os  pÓ7.  era  grão  temor,  e  em  grão  receio 
(iue  l!ies  viesse  a  ser  imiga  a  sorte  : 
Também  disto  o  Christào  nao  íica  alheio 
Vendo  que  a  larga  guerra,  e  a  cruel  morte 
Lhe  vào  sempre  os  melhores  consumindo 
Com  que  as  forças  lhe  vão  diminuindo. 


o').S       HlrillAÇ     DF.    KKANClSCil    D*  A  S  D  «l.l  U  ! 


xcv. 

Os  qnci  forao  lá  abaixo  a  saber  certo 
O  que  se  está  da  mina  siispritando, 
Tornando  acima,  dizem,  que  mui  perto 
De  meio  baluarte  vai  ja  entrando  : 
Logo  o  nobre  Silveira,  em  tudo  esperto, 
O  perigo  desta  obra  contemplando, 
Lhe  applicou  o  remédio  que  então  sente 
Ao  tempo  e  conjunção  ser  pertencente. 

xcvi. 

Manda  que  lá  no  mesmo  Iniluarte 
Se  faça  hua  profunda  contra-mina, 
Com  tal  pressa  que  o  Turco  infiel  Marte 
Não  possa  eífeituar  o  que  imagina: 
Mas  nem  por  isso  lá  naquella  parte 
D**onde  arreceia  ter  qualquer  ruina 
(Como  atraz  disse)  a  torre  cessa  agora. 
Antes  cresce  com  mor  pressa  cada  hora. 

XCVII. 

Esta  capitania  que  vagara 

Polo  defunto  Sousa,  que  aqui  digo, 

O  Silveira  a  hum  Proença  encommendára 

Glue  antes  de  ter  Proença  tèe  Rodrigo, 

Varão  a  quem  o  Ceo  junto  dotara 

De  esprito  sem  temor  do  mor  perigo, 

E  d^híia  corporal  força  c  dureza 

Q-ue  o  m6r  trabalho  soíTre,  antes  despreza. 


o  phimj:íuo  cKíico  de  pir.  o99 

XCVIII. 

Níiquelle  mesmo  dia  que  npresenta 
No  Ceo  o  seu  esprito  o  Sousa  ousado,  •  '- 

Entre  os  Christaos  hum  novo  ardil  se  invemtk* 
Quiçá  nunca  antes  visto,  nem  usado:     UJ  o(í 
Dcscuhrir  delle  o  author  mil  vezes  tentar  niti) 
Meu  canto,  mas  foi  sempre  em  vão  tentado,-' 
Pois  nem  a  fama  disse  quem  elle  era,  '  -^ 

Glue  bem  o  soubera  eu  se  ella  o  dissera. 

XCIX. 

Mas  d'e5conder-se  o  author  pouco  me  curo    * 
Q.ue  encubri-lo  eu  por  isso  erro  seria.  '  A 

N''hua  praça  que  lá  no  roto  muro  '^ 

Fez  a  força  da  grossa  artilharia,  >'' 

liá  d'onde  o  pertinaz  imigo  duro 
Contra  os  do  baluarte  combatia, 
Fez  ajuntar  a  gente  Portugueza 
Grande  cópia  de  lenha  em  fogo  aceza. 

Nem  de  levar  ao  fogo  lenha  cessa 
Com  esta  que  primeiro  alli  lhe  leva. 
Antes  mais  lenha  ajunta,  e  lhe  arremessa,       • 
Com  que  cada  vez  mais  e  mais  o  ceva  *,  ^ 

E  assi  tanto  cresceo,  com  grande  pressa,        ■  '^ 
O  fogo,  que  ninguém  ha  que  se  atreva  A 

Não  somente  de  perto  conversá-lo,  "A 

Mas  nem  de  muito  longo  inda  csj>erá-lo.        ** 


líOO      OF.RAS    DE    FRANCISCO    D^ANDRADE. 
Cl. 

Contra  esta  grossa  cliamina  penetrante 

Q.ue  tanto  ao  longe  estende  a  faria  ardíMite, 

O  reparo  que  têc  posto  diante 

De  tal  sorte  defende  a  Christaa  gente, 

Q.ue  inda  que  nao  está  muito  distante 

A  p<>de  então  soítrer  mui  levemente^ 

Levemente  lhe  faz  também  soífrella 

O  proveito  e  descanso  que  tee  delia. 

CII. 

Mas  o  Turco  cruel,  que  so  pertende 
A  ruina  do  imigo  Lusitano, 
Vendo  hum  tão  novo  ardil  que  lhe  defende 
Poder-lhe  então  chegar,  fazer-lhe  dano, 
N 'outro  fogo  maior  o  peito  acende. 
Agora  he  mais  que  nunca  irado,  e  insano, 
Também  tenta  remédio  com  que  possa 
A  força  desfazer  da  chamma  grossa. 

cm. 

Solta  o  canhão  o  ferro  que  tèe  preso 
Glue  lá  dentro  no  fogo  entrar  trabalha, 
Encontra  o  aceso  ferro  o  lenho  aceso. 
Agora  o  fogo  ao  fogo  dá  bíitalha  ^ 
Em  tocando  os  tições  o  duro  peso 
A  viva  chamma  morre,  e  logo  espalha 
As  vivas  brazas  lá  por  toda  a  parte 
De  que  grãa  cópia  entrou  no  baluarte. 


o   PRIMEIRO   CERCO   X>£   DIU.  6>0í 

CIV. 

Estas  mor  damno  lá  a  alguns  causara» 
Do  que  causara  o  imigo  ferro  horrendo^         ' 
Pois  a  quantos  diante  de  si  acharão 
Fazem  ficar  em  vivo  fogo  ardendo  \ 
Porém  com  isto  os  sãos  não  desampara» 
O  fogo  que  os  estava  defendendo. 
Porque  se  em  poucos  faz  cruel  eífeito 
A  muitos  dá  descanso,  e  dá  proveito» 


Grande  cópia  o  Christão  de  lenha  ajunta 
E  d'acender  o  fogo  outra  vez  trata, 
Ja  resuscita  a  chamma  antes  defunta 
Porém  logo  o  canhão  a  desbarata  *, 
Eis  logo  apparece  outra  lenha  junta 
Mas  o  canhão  a  encontra,  e  a  chamma  mata, 
Prevalecer  hum  e  outro  então  pertende. 
Ou  o  que  apaga  o  fogo,  ou  o  que  o  acende. 

CVI. 

Porém  a  maior  força  prevalece. 
Fica  a  que  era  menor  delia  vencida, 
O  grão  fogo  á  bombarda  ja  obedece, 
Q-ue  esta  de  tudo  he  sempre  obedecidit. 
Vendo  o  fogo  apagado  lhe  parece 
Ao  Turco  que  tèe  ja  fácil  subida  :, 
Sobem  com  pressa  ja  muitos  ao  alto. 
Preparados  a  hum  bravo,  horrendo  assalto^ 


.00^      OBRAS    DE   FRANCISCO    D'ANDRADE. 


A  natural  soberba  a  isto  os  anima  j 

Qbue  esta  sempre  animou  mais  do  que  dev^i^; 
Mas  como  inda  lá  estava  tudo  era  cima 
Penetrado  do  fogo  que  alli  esteve, 
Tanto  a  quentura  lá  todos  lastima 
Glue  parar  muito  lá  nenhum  se  atreve; 
Torna  com  passo  atraz  não  vagaroso 
D^hua  tal  defensão  assaz  queixoso. 

CVIII. 

Aquelles  que  nos  braços  sustentavão 

As  panellas  que  dentro  em  si  trazião 

O  salitrado  pó,  e  os  que  íevavào 

Arteficios  que  em  fogo  se  acendiao, 

Subir  lá  muito  acin»a  não  ousavão 

Vendo  quanto  perigo  lá  corrião, 

E  eni  tornar-se  nao  são  os  derradeiros, 

Mas  tornâo  com  mais  pressa  que  os  primeiros, 

Proença  naquclla  hora  contemplando 
Q-uanto  aquelle  remédio  lhe  aproveita, 
Nova  lenha  outra  vez  alli  ajuntando 
Lá  no  mesmo  logar  acesa  a  deita, 
Com  que  a  chamma  feroz  sempre  cevando 
Faz  com  que  logo  ás  nuvens  vá  direita. 
Applica-lhe  o  remédio  o  Turco  logo 
Com  que  antes  apagou  ja  o  outro  fogo. 


E  tanto  desta  vez  insiste  e  (Jura 

Em  desfazer  aquella  chamma  esquiva, 

Gtue  com  quanto  o  Proença  insta  e  procura 

Tola  sustentar  sempre  acesa  e  viva, 

Não  pode  emfim  tolher  que  aquella  dura 

Força,  que  a  força  mor  rende,  e  captiva, 

Nào  venha  a  effeituar  a  sua  empresa 

Extinguindo  de  todo  a  chamma  acesa. 

CXI. 

Sendo  ja  quasi  então  mortificada 
Co^o  perenne  furor  da  artilharia 
A  aspereza  da  chamma  alevantada, 
E  a  do  foço  que  as  pedras  acendia, 
Commette  lá  outra  vez  de  novo  a  entrada 
Hiia  assaz  numerosa  companhia 
De  soberbos  imigos  bem  armados, 
De  nova  ira  e  furor  estimulados. 

CXII. 

Lançao  lá  nos  Christãos  mil  differentes 

Arleficios  de  fogo,  com  que  espalhão 

Sulfúreas  e  mortaes  chammas  ardentes 

Nos  que  naquella  parte  se  agasalhao  : 

Traz  isto  confiados  o  contentes 

Os  imigos  entrar  dentro  trabalhão, 

Havendo  que  a  taes  chammas,  e  ao  seu  braço 

Durará  u  resistenci»!  pouco  espaço. 


Porém  nao  lhes  responde  agora  a  sorte  < 

Conforme  á  sua  grande  confiança, 
Porque  achãu  braço  lá  muito  mais  forte 
Que  o  seu,  que  de  vencer  lhes  dá  esperança, 
E  peitos  sem  temor  da  mesma  morte 
Q-uanto  mais  do  seu  fogo,  espada  ou  lança, 
Com  que  nao  sao  somente  resistidos 
IMas  com  seu  grave  dam  no  inda  vencidos. 

CXIV. 

Porque  acudindo  alli  com  grande  instancia 
G-ualquer  dos  Capitães,    que  encarrcgaí^o 
Estava  então  de  qualquer  outra  estancia, 
Como  ja  disse  atraz  que  era  ordenado, 
DSo  no  imigo  infiel  com  tal  constância, 
Com  Ímpeto  tao  bravo  e  denodado, 
ôue  o  constrangem  de  todo  a  retirar-se 
Sem  poder  defender-se,  ou  repara r-se. 


Tão  apressado  então  desce  e  medroso 
Q.uão  soberbo  e  apressado  antes  subira, 
Mas  sempre  de  vingança  desejoso 
Cresce  com  isto  mais  em  ódio  e  em  ira 
A  muitos  o  Cliristão  victorioso 
Lá  das  veias,  sónicnte  o  sangue  tira, 
]S  quarenta  a  que  o  ferro  melhor  chega 
A  fúria  do  tri fauce  cao  entrega . 


tt    1»U1ME1K0    CEUCS    1)£    Dlt.  (>03 


IVÍas  em  salvo  nao  sahe  deste  perií:;o,  ~i 

l*orqua  a  quatro  hoje  a  morte  senhoreia,         ' 
E  a  cinco  sobre  vinte  o  ferro  iuiigo 
Faz  o  sangue  correr  da  Christaa  veia  : 
Entre  estes  vinte  e  cinco  que  aqui  digo  '? 

Hum  se  chama  Francisco  de  Gouveia,  * 

Outro  era  o  Manoel  que  he  conhecido 
l*or  ter  de  Vasconcellos  o  apclUdo. 


CXVII. 

Outro  he  hum  que  por  nome  lèe  Duarte 
E  com  Mendes  d'alcunha  se  conhece, 
Q.ue  qualqner  de  Bellona  e  do  seu  Marte 
Co^o  íorto  braço  o  nome  honra  e  engrandece 
Q-ualquer  dos  mais  também  que  nesta  parte 
Deixou  ou  sangue  ou  vida,  bem  merece 
Q^ue  se  diga  o  seu  nome,  e  esforço  raro, 
Mas  eu  porque  o  não  sei  o  não  declaro. 

CXVIII. 

Estes,  inda  que  assaz  os  apertassem 
As  dores  que  as  feridas  lhes  fa/iao, 
E  mais  a  descansar  os  obrigassem 
G-ue  aos  trabalhos  que  alli  se  oífcrcciãi>, 
Fez-lhcs  a  necessidade  que  engíútasseui 
O  descanso  que  assaz  mi:>ter  havião, 
E  que  como  o  mais  são  que  alli  se  vej  i 
Entrem,  ou  nu  tra)>alho,  ou  na  peleja. 


o  Turco  vendo  então  desfeito  em  vento» 
O  subterrâneo  ardil,  com  que  imagina 
Dar  a  todo  o  ChristSo  ajuntamento 
Ou  grave  damno,  ou  ultima  ruina, 
Porque  ja  tinha  hum  claro  sentimento 
De  se  fazer  lá  dentro  a  contra-mina, 
Manda  que  a  mina  cesse,  porque  via 
€lue  embalde  então  ja  nella  procedia. 

cxx. 

Mas  com  quanto  da  mina  está  ja  fdra 
Por  ver  que  em  vão  ja  nella  trabalhava, 
A  bombarda  não  quer  que  cesse  hu'hora 
€lue  o  baluarte  do  mar  batendo  estava  : 
O  Sousa  que  têe  delle  o  mando  agora, 
Co^i  sua  companhia  que  o  ajudava, 
Tratão  de  reparar  quanto  he  possivel 
O  que  arromba  a  cruel  fúria  terriveh 


Neste  tempo  em  que  ja  grSa  falta  sente 

De  tudo  o  Portuguez  quanto  convinha 

Para  se  defender  bastantemente 

D''hua  fúria  infiel  que  tee  visinha, 

E  que  a  falta  he  maior  da  forte  gente 

Q.ue  consumida  a  larga  guerra  tinha, 

Tal  ajuda  lhe  vem  de  lá  de  Goa 

Q-ue  inda  que  he  assaz  pequena,  he  assaz  boa. 


"d   PRIMEIRO  CERCO  DE  1)19.  607 


CXXIt. 

Chcgao  quatro  cátures  que  mandados 
Forão  do  Viso-Rei  a  dar-lhe  ajuda, 
Quando  ainda  o  planeta  dos  dourados 
Raios,  do  usado  leito  nao  se  muda. 
Vem  de  fortes  varões  acompanhados, 
Dos  quaes  só  cada  hum  deseja  e  estuda 
Ser  dos  perigos  ja  partecipante 
De  que  a  fortaleza  he  bem  abundante, 

CXXIII. 

Alguns  nomearei  dos  que  fizerão 
De  Goa  nos  cátures  o  caminho  : 
Hum  Gonçalo,  do  qual  alcunhas  erao 
Primeiramente  Vaz,  logo  Coutinho  • 
Dous  Pachecos,  aos  quaes  os  nomes  derao 
Gabriel,  hum  Vaz,  outro  apoz  Martinho^ 
Dous  Mendes  Vasconcellos  alli  estavão 
€tue  hu  Francisco,  outro  António  se  chamavSot 

cxxiv. 

Junto  com  estes  cinco  que  aqui  digo 
Outros  vinte  e  oito  vem  em  companhia, 
Desejosos  também  do  grão  perigo. 
Cheios  também  d"" esforço  e  d''ousadia  : 
E  inda  que  nada  então  trazem  comsigo 
De  quanto  á  defensão  lhes  pertencia, 
Grão  gosto  a  sua  vinda  a  todos  dava 
Glue  a  melhor  defensão  nelles  estava  * 


008      OBRAS    DE   rRAKCISCO   d''aNDRAD£, 


cxxv. 

Acliiío  estíiS  que  lá  na  fortaleza 

Tèe  fjuarenta  os  espritos  ja  rendido* 

Em  mãos  da  pertinaz  Turca  braveza, 

E  mais  d(í  sessenta  aehão  mal  feridos :, 

Aehão  também  nos  sãos  j a  grua  fraqueza^ 

Q-ue  cansados  os  lêe  o  enfraquecidos 

O  contínuo  trabalho  intolerável^ 

Mas  o  esprito  aasaz  forte  inda,  e  incansável. 


CXXVI. 

E  como  estes  qi>e  agora  aqui  chegarão 
Viessem  descansados,  e  ociosos, 
E  os  seus  ânimos  sempre  desejarão 
Empregar-se  nos  feitos  duvidosos, 
Logo  hua  griínde  parte  em  si  tomarão 
Daquelles  graves  pesos  trabalhosos, 
Com  que  os  enfraquecidos  e  cansados 
Ficarão  grandemente  alliviados. 


ISÍas  o  Silveira  esperto  assaz  deseja 
<^ue  o  Cauto  e  perspicaz  imigo,  quanto 
Foi  pequeno  o  soccorro,  então  não  Aejif, 
E  o  como  isto  ordenou  lá  avante  o  canto. 
Agora  porquíi  temo  que  vos  seja 
Ja  de  largo  pesado  este  meu  Canto, 
liá  ness*'outro  ouvireis,  dando  audi<nci.í. 
Do  nolire  Capitão  a  grãa  prud<;iuia. 


o  PSilllKlBO 

CERCO  DE  DIU. 


o  Capitão  António  da  Silveii'a  manda  que  oS 
(■  atures  que  vierão  de  Goa  se  tornem  a  par^ 
iiv  antes  que  seja  manhãa.  Os  Turcos  com^ 
mcttem  ires  vezes  o  hcduarte  do  inar^  e  ior-' 
uno  desbaratados  com  morte  do  seu  Capitão ^ 
Tom,ão-se  dous  l^\ircos  vivos ^  e  o  que  se  fez 
dclles.  Os  inimigos  dão  hum  cruel  assalto  ao 
baluarte  dos  combates,  e  o  successo  dellc. 
(^onta-se  }ium>  feito  notável  que  aqui  fez  hum, 
Soldado  particular.  Contão-se  iamhem  algii-^ 
mas  cousas  notáveis  que  neste  tempo  aconte^ 
cêrão  na  fortaleza. 


M 


ostrado  têe  o  tempo  claramentoj 
K  com  exemplos  bem  verificado, 
Que  inda  que  ao  Capitão,  conveniente 
Seja  ter  braço  forte,  e  peito  ousado^ 
Comtudo  se  não  he  sábio  e  prudente 
Está  sempre  á  ruina  aventurado^ 
K  taiato  vem  a  ser  mais  perigoso 
Q-uanto  mais  sem  prudência  ha  animoso. 


010      OBRAS    DE   IllANClSCO    D^NDllADE. 
11. 

O  que  fSò  de  prndciicia  cheio  g  peito    y 
Seguro  eÀi  tudo  está,  nuda  f(H:ei^í,  ' 

1'orqiie  o  mais  inipossivel,  duro  feito 
Klle  so  co''a  prudência  o  remedeia  ^ 
D'*onde  se  diz,  que  o  fado  lhe  he  sujeito, 
E  que  elle  cá  iia  terra  senhoreia 
Os  celestfs  influxos,  soberanos, 
À  que  o  Cco  fez  sujeitos  os  humanos. 


Por  onde  índa  que  a  dotita  antiguidade 
No  Capitão  perfeito  demandava 
Ousadia,  sab<.T,  felicidade, 
Comtudo  a  experiência  lhe  mostrava 
€lue  do  saber  têe  mais  necessidade, 
Pois  a  falta  este  só  remediava 
Da  fortuna  e  do  esforço,  e  a  falta  deste 
FaZ  que  o  esforço  e  a  fortuna  pouco  preste, 

Entendendo  o  sagaz  Silveira  esperto 
t-JtuDo  necessário  então,  e  importante  era 
Ser  aos  cautos  imigos  encoberto 
Q.u5o  pequeno  soccorro  lhe  viera, 
Antes  lhe  cumpre  ter  elles  por  certo 
Gtue  foi  soccorro  tal,  qual  elle  o  espera., 
Usa  d''hum  novo  ardil,  que  foi  effeito 
I)''}ium   prudente,  advertido,  osísido  peito. 


o    fniMElRO   CERCO   DE   DIU.  Clt 


♦Ia  tinha  bom  sabido  que  a  profana 
Gente,  que  têo  na  armada  seu  assento, 
Vira  a  pequena  frota  Lusitana, 
E  tèe  de  ser  Cliristaa  conhecimento, 
Porque  a  luz  da  nocturna  alma  Diana, 
(iue  então  ja  hia  em  grande  crescimento, 
Nao  somente  os  cátures  llie  mostrara, 
i^Ias  serem  Portuguezes  lhe  declara. 

Yl. 

Manda  logo  o  Silveira  que  os  navio» 
Q.ue  de  lá  de  Goa  entào  alli  \ier3o, 
Pois  estavâo  de  todo  ja  vazios 
Dos  famosos  varões  que  alli  trouxerão, 
Antes  que  a  Aurora  espalhe  os  raios  frios 
E  descubra  os  segredos  que  esconderão 
As  sombras  que  a  nocturna  Phebe  solta, 
Façàò'9em  mais  detença  a  Goa  à  volta. 

vii. 

Apoz  isto  mandou  com  desusada 
Festa,  maior  qíiiçá  do  que  convinha, 
Celebrar-se  lá  dentro  aquella  entrada 
Do  pequeno  soccorro  que  então  tinha. 
Solta  a  vella  com  pressa  a  breve  armada 
E  tão  ligeira  corta  a  ohda  marinha, 
Clue  quando  a  Aurora  os  frios  raios  lanoa 
.7 a  nem  a  mais  aguda  vista  a  alcaíiça. 


VIII. 

o  Turco,  que  esperando  está  aquella  hora 
Para  que  melhor  veja  o  que  antes  vira, 
Como  a  frota  Christãa  não  vio  agora 
Lá  por  todo  o  Horizonte  os  olhos  vira  : 
Confuso  assaz,  e  quasi  de  si  fora 
Torna  a  cuidar  se  foi  quiçá  mentira^ 
Ou  representação  da  fantasia 
Clue  o  faz  imaginar  o  que  nSo  via. 

IX. 

Olhão  huns  para  os  outros,  pefguntanda 
Cada  hum,  ao  que  vê,  disto  a  verdade, 
Mas  juntamente  todos  affirmando 
Glue  verdade  isto  foi,  não  vaidade  : 
Ficarão  entre  si  todos  julgando 
Clue  era  de  mor  substancia  e  quantidade 
O  soccorro  que  veio  á  Christãa  gente, 
Crendo  qUe  a  conjectura  aqui  não  mente, 

X. 

Mas  agora  me  cumpre  ir  a  outra  parte 
Oue  memoria  e  louvor  assaz  merece, 
Porque  me  ouço  chamar  do  baluarte 
Do  mar,  que  ao  Sousa  atraz  dito  obedece  ^ 
Obras  aqui  também  do  horrendo  Marte 
A  descubrir  meu  canto  se  oíFerece, 
Glue  quiçá  não  darão  menos  espanto 
Q.ue  as  que  ja  descubrio  atraz  meu  canto» 


t)    PUIMEIRO   CERCO   DE   DIU,  613 


Vendo  ja  neste  tempo  o  mal  soffrido 

Imigo  pertinaz,  que  de  tal  geito 

Do  mar  o  baluarte  he  ja  batido 

Q.ue  hum  caminho  assaz  largo  he  nelle  feito 

Por  onde  pode  ja  ser  commettido, 

De  novo  se  lhe  acende  o  aceso  peito, 

Toma  novo  furor  e  confiança 

De  tomar  neste  do  outro  grãa  vingança. 

XII. 

E  porque  a  dilação  lhe  descontenta 
Deste  furor  que  o  tanto  estimulava, 
Sem  detença  o  combate  logo  intenta 
ô.ue  ja  para  o  outro  dia  preparava : 
Logo  faz  ajnntar  bem  cincoenta 
Barcas,  da  grossa  armada  que  alli  estava^ 
Glual  deita  o  galeão,  qual  também  deita 
A  galé,,  e  d'hua  e  d'outra  se  aproveita^ 


Faz  nellas  embarcar  grãa  companhia 
De  gente  bem  armada,  e  bem  lustrosa, 
Em  que^  bem  setecentos  haveria 
Bastantes  a  qualquer  empresa  honrosa. 
Este  grosso  esquadrão  obedecia 
A  Mahamud,  que  a  grande  e  perigosa 
Empresa,  também  folga  ter  diante, 
Tamanho  he  seu  valor,  alto  e  constante^ 
4»  18 


614 


OBIiAS    DE    FKANCISCO    D  AKBRADT,, 


E  tanfo  que  ó  pastor  ai  mo  e  íutenífí 
Gtuo  lá  ao  longo  do  Aiifriso  trouxe  o  gado 
Mostrou  a  nova  lux  M  no  Oriente 
Começando  o  seu  eilrso  costumado, 
Knlra  nas  barcas  logo  a  infiel  gente 
Que  tudo  eniao  JH  lèe  bem  preparada 
Ouanto  para  o  combate  íhe  couvinlia, 
E  comécH  a  eortar  a  onda  marinha. 

Soa  alíi  do  ntambor  o  esfrwlido  horrendo 
Ooni  mal  ci>mpo»to  som,  mas  bellicofH>, 
A  grila  as  altas  nuvens  vai  rompend») 
T)o  Soldado",  índa  então  forte  e  orçidhmo: 
O  remo  as  n)ansas  ondas  revolvendo 
Com  curso  nuns  veloz  qtie  vagaroso, 
Em  breve  espaço  a  barca  põe  na  píirté 
DVndo  se  ba  de  assaltar  ó  baloarte. 


Mas  ;t  g^ente  que  está  na  fortaleza 
Vendo  ás  barcas  tão  perto  vir  ja  agora, 
Chega  o  aceso  murrSo  dom  grãa  prrsteza 
A  bombarda  cruel,  ruinadora  ^ 
Sahe  com  a  sua  usada  alta  braveza 
O  pelouro  mortal  da  prisão  fora, 
Contra  as  imigas  barcas  vai  direito 
E  fii?  o  seu  cruel  usado  effeito. 


o   PRIMEIRO   CERCO    DE  Dir,  615 

XVII. 

Inda  ellas  juntamente  Vem  coitando 
Mas  perto  ja  da  terra ^  a  onda  salgada) 
Gliiando  o  pelouro  ardente  íultninando 
Em  meio  delias  todas  faz  a  entrada  ^ 
K  inda  que  a  todas  vai  amedrontando^ 
Em  duas  sos  deixou  effeituada 
A  sua  impetuosa  fúria  imiga, 
Q.iie  em  pedaços  ao  fundo  ir  as  obriga» 

XVití. 

Míis  nettl  por  isso  as  outras  detívefâo 
O  ctjrso,  ou  perde  a  gente  a  confiança j 
Antes  á  praia  todos  se  vierSo 
Com  mor  pressa,  e  desejo  de  vingança  ^ 
Saltando  logo  em  terra  os  que  couberão 
No  desembarcadouro,  sem  tardança, 
Nenhum  subir  acima  entào  duvida, 
Q-ue  em  toda  a  parte  ve  fácil  subida « 

XIX. 

Os  mais  que  lá  nas  barcas  se  agasalhâo 
A  que  a  praia  nao  deu  recolhimentoj 
Não  estão  ociososj  mas  trabalhão 
Por  ajudar  dos  seus  o  duro  intento  \ 
Huns  frechas,  outros  chumbos  no  ar  espalhSo 
Com  que  dão  aos  Christãos  impedimento 
Para  que  nos  reparos  appareção. 
Mandando  os  tiros  lá  a  que  obedeção. 


€!í>      OBHAS    DE   FAANCISCO    d''aNT>IIADE. 

Xx. 

Sóbo  com  tal  favor  o  Turco,  cLoío 
Do  coníiança^  osfor(;o,  e  trufalii:ii, 
Mas  logo  a  recebe-lo  o  Sousa  veio 
Co\i  sua  valcrosa  companhia  ^ 
Art.tííicios  de  fogo  assaz,  no  meio 
Dí-lles  hiiiça,  e  com  tal  fúria  e  ousadia 
Os  encontra  apoz  isto  a  lança  tesa 
Qne  os  faz  ja  duvidar  daquella  empresa. 


Inda  conitudo  mostrao  peito  foríe, 
Mas  pouco  lhes  durou  tal  presupposto, 
l^orque  os  Christaos  os  tratào  de  tal  sortti 
Glue  ja  nâo  ousão  ter  direito  o  rosto. 
Com  dam  no  seu  assaz,  com  sangue  e  morte 
Tornao  lá  para  o  níar  mudar  o  posto, 
Dos  vencedores  braços  constrangidos, 
Uuc  pouco  antes  havia  por  vencidos. 


Os  das  barc.is,  que  também  de  lá  despedem 
0.ual  a  frecha  subtil,  qual  chumbo  ardentí-, 
De  todo  os  tiros  niíd  não  lhe  succedem 
Oue  alguiis  ferem  então  da  Christãa  gente  ^ 
Isto  aos  outros  obriga  que  se  arredem 
liá  de  traz  do  reparo,  onde  o  presente 
Mal,  se  pode  evitar,  que  causa  o  Mouro 
Ou  co''a  frecha  subtil,  ou  coV)  p  l^uro. 


o    PlllMLlKO   CEltCO   DE  DIU.  017 

XXllI. 

Eis  aquellcs  que  ja  não  se  atreverão 
Ter  contra  o  imigo  são,  rosto  direito, 
Veiuio  o  porque  os  Cliristàus  se  recolherão. 
Tendo  por  grave  o  damno  que  lhes  he  feito, 
O  temor  que  então  têe  logo  perderão. 
Enchem  loco  de  novo  ardor  o  peito. 
Ousado  cada  hum  torna  ligeiro 
A  tentar  o  qae  em  vão  tentou  primeiro, 

XXIV. 

Torna  a  subir  de  novo  alvoroçado 
E  em  entrar,  com  grãa  força  dura  e  insiste, 
Porém  acha  diante  o  Sousa  ousado 
(ine  aí^ora  como  sempre  lhe  resiste, 
Do  qual  emfim  se  vè  tão  maltratado 
O-ue  outra  voz  desta  empresa  ja  desiste, 
Outra  vez  desce  abaixo  com  grãa  pressa 
E  dentro  lá  nas  barcas  se  arremessa, 

XXV. 

Com  mor  pressa  nas  barcas  vão  entrando 

])a  com  que  ao  baluarte  antes  subirão, 

E  ja  as  ondas  comerão  de  ir  cortando 

Para  tornar-se  lá  d'onde  partirão  ^ 

Mas  como  entre  si  vão  arrezoando 

De  quão  pouca  gente  era  a  quem  fugirão, 

JCm  todos  tal  vergonha  sobreveio 

Que  pode  então  mais  nellcs  que  o  receio. 


XXVI» 

^Tanto  os  lastima  então,  tanto  os  magoa 
Esta  vergonha,  e  tanto  os  move  e  acende 
Glue  faiem  outra  vez  voltar  a  proa, 
E  morrer  ou  vencer  qualquer  pertende  ^ 
Outra  vez  o  tambor  guerreiro  soa, 
Outra  vez  a  alta  grita  as  nuvens  fende^ 
Ja  põe  a  proa  em  terra  a  leve  barca, 
Com  graa  pressa  o  Soldado  desembarca. 

XXVIl. 

NSo  SC  descuida  então,  nem  he  ocioso 
O  que  na  fortaleza  se  agasalha. 
Mas  o  imigo  outra  vez  vendo,  animoso 
Em  seu  damno  outra  vez  insta  e  trabalha: 
Outra  vez  o  mortal  e  furioso 
Pelouro  manda  lá,  que  no  ar  espalha 
Assi  a  grossa  e  horrisona  bombarda 
Como  a  leve,  subtil,  longa  espingarda* 

ítxviii» 

Mas  aquelles  a  quem  encarregada 

Estava  a  defensão  do  baluarte, 

Cuidão,  vendo  dos  Turcos  a  tornada, 

Gtue  a  salvá-los  nao  basta  ou  força  ou  arte  * 

Deterrainíio  com  hiia  morte  honrada 

Eternizar  seu  nome  em  toda  a  parte^ 

E  venderem  tão  cata  esta  victoria 

G.ue  fique  ao  vencedor  mais  dôr  que  gloria» 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  619 


Dá-lhes  isto  tal  fervor  e  atrevimento 
Glue  não  podem  lá  estar  dentfo  encerrados, 
Correm  todos  ás  barcas,  n^hum  momento, 
E  inda  os  Turcos  não  são  desembarcados 
ô-uando  lhes  fazem  tal  recebimento 
Com  golpes  tão  mortaes,  tão  apressados, 
€lue  poucos  vir  a  terra  então  puderão, 
Estes  d'e&tarem  lá  se  arrependerão. 

XXX. 

E  tanta  foi  a  força,  tanta  a  pressa 

Com  que  o  bom  Sousa  eosseusosaccommettem, 

E  o  damno  dos  pelouros,  que  arremessa 

O  canhão,  que  dão  mortes  e  as  promcttem, 

Glue  o  segundo  furor  no  Turco  cessa, 

Renova-se  o  temor,  e  lá  se  mettem 

Nas  barcas  outra  vez,  que  o  mal  presente 

Fez  a  vergonha  ao  medo  obediente. 


Pouco  ja  da  vergonha  então  curarão 
Q-uando  a  morte  diante  os  faz  medrosos, 
E  de  tornarem  vivos  mais  tratarão 
Glue  de  poder  tornar  victoriosos  : 
Os  que  das  barcas  mais  perto  se  acliárão 
Estes  então  se  têe  por  mais  ditosos, 
Q.ue  estes  hão  que  têe  mais  segura  a  vida 
Mais  longe  do  Christão  ferro  homecida. 


620      OBRAS    DE    FRANCISCO    u'aXDUADE. 
XXXII. 

Tanto  que  sao  nas  barcas  recolhidos 

Logo  as  ondas  comecão  d^ir  ferindo, 

K  ainda  que  a  hum  grave  medo  vão  rendliJos 

Também  os  vai  vergonha  perseguindo. 

Eis  lá  da  fortaleza  os  alaridos, 

Os  apupos  e  as  gritas,  que  seguindo 

Os  vao,  em  quanto  podem,  Ih^iccrescenlão 

A  vergonha  e  temor  que  os  atormentão. 

XXXIII. 

Nao  deixarão  porém  de  recolher-se 
Até  que  a  hum  cães  chegarão  da  Cidade, 
Onde  de  nov(J  tornão  a  acender-se 
Ausentes  da  Christãa  ferocidade: 
Trafào  de  quanto  devem  de  correr-se 
De  ver  que  tão  pequena  quantidade 
De  gente,  hua  e  outra  vez  os  d(ísbarata, 
E  tanto  a  salvo  seu  tão  mal  os  trata. 

XXXIV. 

o  forte  Mahamud,  de  que  ja  conta 
A  minha  historia  atraz,  que  os  governava, 
A  quem  aquella  vergonlia,  aquella  aíIVonta 
Lá  dentro  ao  centro  d^ahna  então  chegav;j, 
Vendo  que  elles  de  novo  mostrão  pronta 
Vontade,  para  o  que  elie  desejava, 
Porque  de  todo  os  mova  a  darem  volta 
Km  taQs  palavras  logo  a  língua  solta  ; 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  621 

XXXV. 

He  possível,  ó  fortes,  bons  soldados, 
Q-ue  tao  poucos,  e  fracos  defensores 
Contra  tantos  do  nós,  tao  esforçados 
Sào  hoje  duas  vezes  vencedores? 
Ku  creio  que  a  Fortuna  e  os  duros  Fados, 
K  outros  deoses  alguns,  se  os  ha  maiores, 
Jjhes  quizerao  dar  hoje  esta  victoria 
Com  tanta  aflronta  nossa,  e  sua  gloria. 

XXXVI. 

Qlub  possível  nao  fora,  d\)j)tra  sorte, 
CLue  pudera  ficar  victorioso 
<^  que  menos  forte  he  do  que  he  mais  forte, 
E  o  que  he  menos  do  que  he  mais  copioso ;, 
Por  onde  se  cm  nós  houve  affVonta  e  morte, 
E  nelles  fim  sem  damno,  e  glorioso, 
Nem  cá  alfrouta,  nem  lá  honra  se  deve, 
l*ois  toda  a  parte  nisto  o  Fado  teve. 

XXXVII. 

Mas  com  quanto  nos  dá  disto  a  certeza 

De  nâo  termos  affronta,  e  segurança, 

Bem  se  póJe  porém  ter  por  fraqtieza 

Deixarmos  hoje  os  mortos  sem  vingança  ^ 

E  pois  propriedade  e  natureza 

Da  Fortuna,  he  fazer  logo  mudança, 

Creio  que  já  terá  virada  a  roda 

E  a  terra  em  favor  nosso  posta  toda. 


622      OltUAS   DE   FRANCISCO   d'aNDRADE. 
XXXYIII. 

Eia  sus,  outra  vez  a  elles  tornemos, 
Agora  que  a  Fortuna  os  desampara. 
Com  qiKinto  ja  em  vencer  pouco  faremos 
Sendo  nos  tanta  cópia,  elles  tão  rara  ^ 
Mas  vençamos  porém,  porque  vinguemos 
Os  que  deixarão  lá  a  vida  chara, 
E  elles  vejao  que  ess^outro  foi  effeito 
Do  divino  favor,  não  do  seu  peito. 

XXXIX. 

Agora  que  a  victoria  está  no  braço 
Mostrai-lhe  vós  qual  he  forte  e  constante. 
Rompa  sem  piedade  hoje  o  vosso  aço 
Polo  imigo  Christão,  hoje  arrogante  : 
Nisto  não  podeis  ja  ter  embaraço 
Pois  a  Fortuna  e  a  mi  levaes  diante, 
Segui-nos,  que  com  ella,  e  mais  comigo 
Não  podei»  ja  temer  nenhum  perigo. 

XL. 

Apoz  estas  palavras,  logo  estuda 
De  dar  execução  ao  que  pertende, 
Toda  a  gente  também  para  isto  o  ajuda 
Glue  co^o  que  têe  ouvido  mais  se  acende  : 
Ja  a  barca  outra  vez  volta  a  proa  aguda 
E  contra  o  baluarte  as  ondas  fende, 
Agora  que  o  furor  mais  os  incita 
O  alvoroço  hc  maior,  mais  alta  a  grita. 


o  i'itíaifc:iKo  cEHCo  oe  dlv .  C2J' 


Posto  diante  vai  este  esforçado 
Capitão  Mahamud,  d^arnias  luzente. 
De  soberba  iiida  mais  que  d''aço  armado, 
Das  victorias  Christãas  impacietite  j^ 
Em  seu  braço  e  valor  tão  confiado 
Q-ue  por  vingado  se  ha  da  imiga  gente, 
E  assi  qualquer  detença  mal  o  trata 
Glue  então  esta  vingança  lhe  dilata. 

Mas  nao  lhe  tardou  muito  o  desengano 
Com  que  a  soberba  o  justo  Cep  castiga  \ 
Chegado  ao  baluarte  Lusitaiio 
Eis  de  lá  solta  hum  berço  a  fúria  imiga, 
A  Mahamud  encontra,  e  com  grão  dano 
Lhe  abate  a  natural  soberba  antiga, 
E  faz  que  alli  vencido  apparecesse 
Gude  cuidou  que  tudo  elle  vencesse. 

XLllI. 

Pallido  agora  cahe,  este  que  agora 

Fazer  cahir  mil  pallidos  cuidava, 

E  inda  que  não  vio  logo  a  ultima  hora 

Comtudo  ja  mui  perto  delia  estava, 

Porque  quando  de  novo  a  nova  Aurora 

As  estradas  ao  Sol  apparelhava, 

A  «>ia  alma  infiel  com  grão  tormento 

Foi  a  beber  o  eterno  esquecimento. 


624      OBRAS   DE  FRANCISCO   D^^ANDRADE. 


Q-uando  a  gente  infiel  (mais  confiada 
Q.uiçá  no  Capitão  que  n^outra  cousa) 
Se  vio  d''hum  tal  favor  desamparada 
Com  que  o  imigo  esta  vez  commetter  ousa^ 
De  novo  a  hum  grão  receio  deu  entrada 
Vendo  outra  vez  diante  posto  o  Sousa, 
E  as  espadas  cruéis  diante  postas 
A  que  ja  duas  vezes  deu  as  costas» 

XLV. 

Cresce  este  seu  temor  co^o  peso  horrendo 
Q-ue  a  bombarda  Christàa  contra  elles  solta. 
Porque  este  lá  nas  barcas  vai  mettendo 
Grãa  confusão,  grão  medo,  grãa  revolta  : 
Fez-lhes  isto,  e  o  Capitão,  que  estavão  vendo 
Mal  ferido,  com  pressa  dar  a  volta, 
Com  dobrada  vergonha,  e  sem  lembrança 
De  tentar  outra  vez  esta  vingança. 

XLVI. 

Nestes  combates  todos  atraz  ditos, 

6lue  os  Turcos,  por  seu  mal,  sempre  intentarão, 

Q.uarenta  dos  infiéis,  Ímpios  espritos 

As  sombras  de  Plutão  hoje  mandarão, 

E  o  seu  sangue  também  quasi  infinitos 

Dos  que  ficarão  vivos,  derramarão. 

Dos  Christãos  sobem  dous  ao  Reino  Santo, 

Cinco  feridos  sós  acha  o  meu  canta. 


o    PRIMEÍTIO    TERÇO    DE    DIU,  62t 


Das  líarcas  que  arroiríbou  a  artllliaria 
Alguns  a  salgada  onda  agora  molha, 
Q-ue  como  então  o  mar  ao  mar  corria 
Faz  com  quo  a  barca  saa  os  nao  recolha. 
Manda  logo  o  Silveira  hua  ahiiadia, 
Pois  que  não  ha  ninguém  ja  que  lli^o  tolha, 
E  nella  dous  que  dentro  os  recolhessem 
Para  que  vivos  todos  liros  trouxessem. 


Vai-se  logo  o  suhtil,  levo  navio 
I<á  contra  aquelles  tristes  caminhando 
Q-ue  ce^is  mãos  e  co"'os  pes  o  senhorio 
Andão  do  Rei  marinho  inda  apartando, 
Por  fugirem  da  Parca  que  ja  o  lio 
Subtil,  para  o  cortar,  Ih^anda  buscando. 
Mas,  tristes,  que  fugis?  que  a  Parca  fera 
N'outro  maior  perigo  vos  espera. 

XLIX. 

Porque  quahjucr  dosdousque  então  se  cm1)arca 

No  navio  subtil,  h:va  comsigo 

Hum  ódio  tão  mortal,  de  tanta  marca 

Contra  hum  tão  triste  e  tão  rendido  imigo, 

(-lue  quiz  tomar  o  officio  á  cruel  Parca 

Por  satisfazer  parte  do  ódio  antigo, 

E  contra  o  que  o  Silveira  lhes  permitte 

Manda  quantos  encontra  ao  escuro  Dite. 


62ò      OBRAS    DB   FRAKCISCO    D^AXOTl 'vDF.. 


Porém  tanto  os  que  estavao  lá  na  estancia 
Do  baluarte  da  barra,  então  íizorao, 
Bradando  huae  outra  vez  com  grande  instancia 
Aos  dons,  que  o  cruel  ferro  detivcrao, 
E  com  grão  pesar  seu,  grãa  repugnância 
Pe  sou  feroz  esprito,  dous  trouxerao 
Vivos  á  fortaleza,  e  lá  diante 
Espero  que  meu  verso  delles  cante. 

LI. 

Sousn,  vendo  ja  ida  a  imiga  gente 

E  os  combates  de  todo  ja  acabados, 

A  fortaleza  manda  os  que  então  sente 

Da  cirurgia  estar  necessitados*, 

Manda  hum  Fernando  entre  estes  juntamente 

Qiue  o  sobrenome  têe  dos  Penteados, 

Mancebo  de  valor,  e  esforço  raro, 

Logo  disto  vereis  exemplo  claro. 


LU. 


Agora  me  quero  ir  vêr  a  príjfana 
Gente,  que  de  temor  e  espanto  cheia, 
Por  fugir  á  graa  fúria  Lusitana 
Pouco  j a  da  vergonha  se  arreceia. 
Esta  vondo-se  em  salvo,  ja  a  engana 
A  soberl^a  outra  vez,  e  a  senhoreia, 
Determina  vingar-se,  mas  não  ousa 
Tentar  o  baluarte  j:i  do  Sousa. 


i 


o  i>íiiMi:i;io  CERCO  de  Dir.  627 

Toflii  a  ira  c  desejo  de  vingança 

Solta  lá  contra  aqncUe  baluarte 

Do  qual  lêes  tu,  Proonça,  a  governança, 

Porém  tu  saberás  também  gtiardarte. 

De  se  vingar  aqui  têe  confiança 

Do  mal  que  recebera  n^^outra  parte, 

Dá-lhe  isto  tal  fervor,  tamanho  alento 

Que  nao  se  quiz  deter  mais  hum  momento. 

LIV. 

Logo  com  altas  gritas  e  clamores 

Dão  começo  á  cruel,  dura  l>atalha, 

Entrao  lá  contra  os  duros  defensores 

tliiantos  Turcos  a  entrada  em  si  agasalha  : 

Ja  reluzem  os  aços  cortadores, 

E  penetrar  etítão  qualquer  trabalha 

O  imigo  que  diante  se  apresenta, 

E  quanto  o  damno  he  mor,  mais  se  contenta, 

LV. 

O  vingativo  Turco  desejando 
De  não  fazer  alli  longa  detença, 
Cada  momento  os  seus  vai  refrescando 
Porque  assi  com  mor  pressa  e  damno  vença  ^ 
E  de  tal  sorte  assi  vai  apertando 
Os  que  a  bandeira  seguem  do  Proença, 
Q-ue  mostra  este  furor  embravecido 
(Querer  cobrar  o  que  antes  têe  perdido. 


r>28     or.uAS  nv.  rn ancisgo  d  andjiadk. 


Mas  o  forle  Proença  acostumado 
A  mil  encontros  a  este  semtíliiantos, 
Do  seu  forte  esquadrão  acompanhado 
Q.ue  em  mil  aífrontas  ja  o  seguira  antes, 
E  vendo-se  também  aqui  ajudado 
Dos  que  de  Goa,  a  ser  partocipant.es 
Nestas  cousas,  vierao  novamente, 
Pouco  teme  o  furor  do  imigo  ardente. 

LVII. 

Recebe  cora  Itiór  fúria,  a  fúria  imÍ2;a, 
K  com  aço  mais  duro,  o  seu  duro  aço. 
Acende  o  ódio  o  furor,  e  faz  que  siga 
Traz  o  peito  feroz  hum  e  outro  braço  : 
Cresce  com  isto  tanto  a  cruel  briga 
Que  d''hua  e  d^outra  parte  em  breve  esp; 
Co''os  espritos,  alguns  cahem  rendidos, 
Afora  hua  gràa  cópia  de  feridos. 


Durando  esta  revolta  horrenda  e  fera 
Glue  tantos  para  a  morte  hoje  encaminha, 
Aquelle  Penteado  que  viera 
Buscar  a  cura  alli  que  lhe  convinha, 
Chega  onde  o  Circirgião,  cujo  nome  era 
Mestre  João,  diante  de  si  tinha 
Hum  a  quem  dava  a  cura  a  isto  ordinária, 
E  muitos  a  que  ella  era  necessária. 


i 


o    rUl.MEIRO    CF.aCvO   DE  DIU.  62;) 

LIX. 

JMas  como  o  grande  estrondo,  a  grande  grita 
Do  oonnbyte  nesta  hora  não  cessava, 
Tanto  isto  o  Penteado  acende  e  incita 
(^ue,  esquecendo-se  ja  do  qne  esperava, 
Não  ihe  soífre  o  valor  qne  nelle  habita, 
(iue  inda  mais  que  a  ferida  o  estimuUiva, 
Glue  não  se  ache  também  no  baluarte 
E  do  que  passa  nelle  tenha  parte. 

LX. 

E  assí  nao  esporando  que  lhe  seja 
Applicado  o  remédio  á  graa  ferida, 
Diz  para  o  Cirurgião  que  outro  proveja 
Q.ue  ellc  vai  arriscar  de  novo  a  vida. 
E  correndo  entrou  lá  onde  a  peleja 
Se  mostra  mais  feroz,  e  embravecida  ^ 
Porém  lá  muito  nella  não  atura 
Que  com  dobrada  causa  torna  á  cura. 

ixi. 

Porque  como  lá  então  hfia  e  outra  espada 
Não  esteja  hum  momento  só  ociosa, 
E  elle  qiiiz,  em  fazendo  lá  a  entrada 
íiue  a  sua  aos  infiéis  fosse  damnosa, 
A  primeira  ferida  acompanhada 
Foi  logo  d^outra,  grande  e  perigosa, 
ftue  na  cabeça  fez  seu  duro  effeito, 
Lá  onde  a  outra  também  o  tiidia  feito. 


030      OliRAS    DE    FRANCISCO    D^AXDRADE. 
LXII. 

Dobrada  occasiSo  o  força  agora 
A  se  tornar  de  novo  á  cirurgia, 
E  como  o  Cirurgião  têe  naquella  hora 
Dobrada  occupaçao  da  que  sohia. 
Forçado  lhe  he  fazer  qualquer  demora 
Em  quanto  os  de  mais  perto  elle  provia 
Da  cura,  de  que  estão  necessitados, 
Ctue  também  sao  do  imigo  maltratados. 

LXlll. 

Cresce  entretanto  o  estrondo  temeroso 
E  as  nuvens  outra  vez  penetra  e  fende, 
Glue  o  Turco  de  vingança  desejoso 
Com  revezada  força  o  imigo  offcnde, 
Mas  o  imigo  também  forte  e  animoso 
Com  dobrado  furor  se  lhe  defende  ; 
Causa  isto  grSa  revolta  em  toda  a  estancia, 
E  hua  medonha  e  triste  dissonância. 


Ouvindo  o  Penteado  esta  revolta 
De  novo  se  alvoroça,  e  dentro  ferve, 
Nem  podendo  ja  ter-se,  a  cura  solta 
Glue  buscou  porque  a  vida  lhe  conserve  : 
De  novo  ao  baluarte  faz  a  volta, 
Glue  então  á  honra  mais  que  á  vida  serve, 
E  inda  que  o  logar  he  cheio  de  morte 
Alli  so  têe  quieto  o  esprito  forte. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DTI   DIU.  63í 


IX  V. 

Revolve  o  duro  ferro,  e  com  mais  dura 
Força  commette  o  imigo  revezado 
Do  que  podia  haver  em  quem  a  cura 
Duas  vezes  ja  tinha  antes  buscado. 
Porém  nem  desta  vez  muito  aqui  dura, 
Porque  o  direito  braço  trespassado 
Em  breve  espaço  vio  d'hum  largo  pique 
ôue  o  faz  que  muito  tempo  aqui  rmo  fique- 


Este  terceiro  encontro  ja  lhe  impede 

De  todo  o  que  três  vezes  intentara, 

E  forçado  o  que  o  esprito  então  lhe  pede 

Se  torna  ao  Cirurgião  que  antes  deixara. 

Desusado  valor,  que  bem  excede 

O  mais  raro  valor,  força  mais  rara, 

Os  mais  invictos  peitos,  soberanos 

Glue  o  tempo  têe  mostrado  em  largos  anos ! 

LXVII. 

Recebe  agora  a  cura  juntamente 

A  três  mortaes  encontr(»s  bem  devida, 

E  delia,  CO  ""o  favor  Omnipotente 

Recebe  desta  vez  saúde  e  vida. 

Este  que  d''entre  o  imigo  fogo  ardente, 

DVntre  o  ferro  infiel,  duro,  homecida, 

Mil  vezes  escapou,  depois  o  vento 

E  o  mar,  o  consumirão  n^hum  momento. 


632    OBRAS  DE  FRANCISCO  d\\:;dradk. 


Dnra  inda  este  combate  hum  grande  esparo 
Com  damno  do  fiel,  e  do  profano, 
Porém  sentindo  o  Turco  que  o  seu  aço 
Com  furor  revezado,  sempre  insano, 
Ja  contra  o  Portuguez  vencedor  braro 
Q.u;into  têe  mor  constância  he  mor  sou  dano, 
Se  torna  agora  atraz,  e  se  retira 
Para  o  mesmo  loj^ar  duende  sahira. 


Deixao  nova  ousadia  lá  no  imigo, 
Grande  gloria  e  prazer  na  fortale/a  •, 
Novo  damno  e  temor  levão  comsigo, 
Affronta  para  os  seus,  e  graa  tristeza  ^ 
Cento  feridos  vão,  vinte  o  castigo 
"Vão  receber  á  eterna  profundeza  ^ 
Dos  Clnistãos  sóbom  três  á  Eternidade, 
Dos  feridos  he  grande  a  quantidade. 

LXX. 

Ja  nesta  conjunção  a  Portugueza 
Gente,  grãa  falfa  assaz  de  tudo  tinha 
Gluanto  para  poder  pór-se  em  defer.a 
Contra  hum  tão  duro  imigo  liie  convinha  :; 
Nem  com  vontade  assi  menos  accza 
Se  vem  á  defensão  do  que  antes  vitiha, 
(iite  em  todos  hum  constante  animo  forte 
Mais  despreso  que  medo  põe  da  morte. 


o    rRl.MEIliv)    Ci:iiC^    DE   DIU.  (J3J 

LXXI. 

A  coníiniiaçuo  da  longa  guerra, 

K  dos  bravos  assaltos  a  frequência, 

(Jiíbrírão  eincoenta  ja  de  terra 

Dos  que  fizerão  j.i  mais  resiste?)cia  : 

Dos  mais  que  a  fortaleza  em  si  encerra 

Q^uasi  todos  sentirão  a  violência 

Do  iniigo  aço,  de  que  huus  ja  sãos  estavao, 

Outros,  inda  que  enfermos,  ajudavão. 

LXXII. 

Afora  estes  que  a  morte  tee  levados 
T.uíiheni  outros  setenta  aqui  se  vião 
A  que  esta  guerra  lêe  tao  maltratados 
ii^ue  sustentar  as  armas  não  podião  : 
Assi  que  os  que  alli  podem  vir  armados 
Duzentos  e  setenta  mal  serião. 
Contando  os  que  de  Goa  alli  vierão, 
De  que  huus  mortos,  feridos  outros  erão. 

rxxiii. 

As  munições  também  vão  fenecendo, 
K  o  pó  com  que  a  bombarda  faz  o  eíTeito 
(Porque  então  nos  canliões  se  estava  vendo 
No  nsado  fulminar  hum  grão  defeito) 
O  vão,  com  quanto  lie  pouco,  convertendo 
jN 'outras  cousas  então  de  mais  proveito, 
(.^ual  delle  as  bombas  faz,  qual  as  pancíllas, 
Torque  depois  o  fogo  acenda  nella§. 


C34    ouHAs  nii  in^Ncisca  i>  anouadk. 

LXXIV. 

Também  aquollo  pó  lic  ja  bem  raro 

Com  que  a  espingarda  o  chumbo  ofogoacotale, 

E  hc  delle  o  espingardeiro  tão  avaro 

Çlue  nenhum  tiro  ja  em  vão  dispo nde, 

Mas  só  o  dispende  então  quando  lhe  he  claro 

€tue  o  Turco  alli  com  elle  o  esprito  rende, 

E  não  qualquer,  senão  o  que  parece 

Glue  aquelle  tiro  em  tal  tempo  merece. 

LXXV. 

Bem  cuido  eu  que  esíã^  muitos  desejando 
Vêr  meu  verso  aos  dons  Turcos  convertida 
Que  lá  no  baluarte  do  mar,  quando 
Pe  Mahamud  em  vão  foi  commettido, 
Tomados  lá  no  mar  forâo  nadando  ; 
E  eu  me  lembro  que  tenho  promettido 
Tratar  dclles  cá  avante,  e  bem  depressa 
BIspero  de  cumprir  minha  promessa. 

LXXVI. 

Com  força  de  cruéis,  duros  tormentos 
Forçados  estes  dous  então  publicão 
Dos  seus  o8  mais  intrínsecos  intentos, 
Também  o  estado  delles  certificão  : 
Dizem  que  então  avante  de  seiscentos 
Homens,  lá  no  arraial  mortos  ja  ficão, 
E  05  que  vivos  o  sangue  derramarão 
O  numero  de  mil  sobrepujarão. 


o    PRIMEIRO    CTítlCO   DE    Dir.  63 J 


Dizom  q«e  do  Baxá  se  coíligia, 
NAo  que  affirmá-lo  possao  com  certeza, 
Q-ue  com  todo  o  poder  trabalharia 
VoT  conquistar  aquella  fortaleza  \ 
E  09  Capitães  da  sua  companhia 
Também  nisto  mostravão  ter  firmeza, 
Inda  que  o  resto  a  risco  ja  se  ponha, 
Porque  o  contrario  têe  por  graa  vergonha. 

I.XXVIII. 

Nenhum  delles  diz  mais,  mas  proveitoso 
Lhe  fora  a  cada  hum  se  mais  falhira, 
E  quanto  o  fallar  a  outro  he  damnoso 
Tanto  agora  a  estes  dous  aproveitara, 
Porque  logo  o  Silveira  rigoroso 
Q.ue  aos  dous  para  isto  a  morte  dilatara, 
Manda  (e  logo  se  faz)  que  a  salgada  onda 
Com  pesos  ao  pescoço  ambos  çsconda. 

titxix* 

A  vinda  destes  dous  Turcos  que  agora 
Qs  segredos  dos  seus  manifestavao. 
As  mulheres  chegou,  que  naqueila  hora 
Também  do  trabalhar  partecipavao :; 
E  vendo  a  hum  homem  vir  da  casa  fora 
Onde  ouviao  dizer  que  elles  estavão, 
Hua  que  era  casada,  a  elle  se  ajunta 
E  se  estavao  lá  dentro  Ihr  pergunta. 


C3G      OÍÍIIA.S    DE    l''Il.\KCISCO    D^VNDUADE. 


Pergunta-llie  também  se  se  alcançava 
O  qu«  delles  está  determinado. 
Respondc-lhe  elle,   que  lá  dentro  os  deixava, 
Mas  que  o  Silveira  tinha  então  mandado 
Hua  cousa,  que  a- quem  hem  a  attentava 
O  julga  a  elle  por  nuo  hem  attentado, 
Pois  não  somente  a  morte  lhes  impede 
Mas  inda  a  liberdade  llies  concede. 


Ella,  sem  mais  cuidar  se  era  mentira, 

Ou  se  era  por  ventura  isto  verdade, 

Inflammada  do  todo  em  fúria  e  em  ira, 

Esquecida  de  toda  a  piedade. 

Entra  na  casa  lá  d''onde  sahira 

O  que  lhe  isto  dissera,  com  vontade 

Ja  tão  prompta  a  hua  estranha  alta  crueza 

Como  se  lhe  ella  fora  natureza. 


Acha  em  entrando  lá  diante  posto 
Francisco  de  Gouveia,  a  quem  o  ardente 
Fogo,  abrazando  os  pés,  as  mãos  e  o  rosto, 
Tão  disforme  fizera  e  diíferente 
Q.  ue  hua  magoa  assaz  grande,  hum  grão  desgosto 
G-uem  o  ja  vio,  em  ve-lo  agora  sente. 
Ella,  a  quem  a  ira  então,  e  o  furor  cega, 
Tendo-o  por  hum  dos  Turcos,  a  elle  chega. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE    DIU.  637 

LXXXIIl. 

E  com  semblante  inda  irado,  acoso,  e  esquivo, 
Mas  cheio  inda  de  graça  e  de  brandura, 
Do  qual  por  dita  houvera  ser  captivo 
O  peito  mais  isento,  a  alma  mais  dura, 
Lhe  diz  :  O  perro,  imigo,  e  outra  vez  vivt> 
Te  levará  d^aqui  tua  ventura? 
Traz  isto  no  ar  levanta  hua  gamella 
E  fender-lhe  a  cabeça  liia  com  ella. 

LXXXIV. 

EUe,  a  quem  o  seu  damno  tao  mal  trata 
Q.ue  lhe  nào  deixa  ver  quanta  dita  era 
Morrer  em  mãos  de  quem  co\)s  olhos  mata. 
Se  guardou  delia  então,  como  pudera. 
Ella,  que  em  nova  fúria  se  arrebata. 
Corre  por  lhe  chegar,  mais  que  antes  fera. 
Brada  elle  então,  e  diz  que  o  não  persiga, 
ô/ue  na  outra  casa  têe  a  copia  imiga. 

LXXXV. 

Ella,  que  estas  palavras  bem  entende. 
Cuidando  que  era  ardil,  prosegue  a  empreza  ^ 
Com  iáto  em  maior  fúria  então  se  acende, 
E  inda  mais  desta  vez  que  antes  aceza, 
Diz:  Olhai  que  enganar-me  o  cão  pertende  l 
Como  espivita  a  falia  Portugueza  ! 
Pois  nem  o  que  cuidaes  ha  de  valer-vos, 
ôue  esta  nessa  cabeça  hei  de  fender-vos. 


638    oi;uAS  de  fuakcisco  d^anduajue. 


Alguns  que  nesta  casa  então  se  acliárao, 
Vendo-a  de  tal  furor,  tal  ira  cheia, 
Mettendo'Se  no  meio  lhe  affirmárao 
Glue  aquelle  era  Francisco  de  Gouveia  i 
E  o  melhor  que  pudérão  lhe  applacárão 
O  furor,  para  que  ella  o  veja,  e  o  creia. 
Com  isto  ella  da  fúria  hum  pouco  dece, 
E  pondo  nelle  os  olhos  o  conhece. 

txxxvii. 

Logo  para  outra  parte  volta  o  peito 
Sem  mais  se  desculpar  do  que  passava. 
Mas  ainda  com  altivo  e  grave  aspeito 
Onde  está  o  Capitão  lhes  perguntava. 
E  sabido  onde  está,  lá  faz  direito 
O  caminho  onde  dizem  que  elle  estava, 
E  cliegatjdo  diante  do  Silveira 
Lho  começa  a  fallar  desta  maneira  ; 

LXXXVIII. 

Dizem,  Senhor,  que  tendes  ja  mandado 
(Mas  eu  nao  posso  cre-lo  por  verdade) 
Q-ue  s«*ja  aos  dous  imigos  outorgado 
Poderem-se  ir  com  vida  o  liberdade  ^ 
Porém  se  isto  assi  está  determinado, 
Q.ue  ás  vezes  a  rasão  segue  a  vontade, 
Nós,  nisso  que  fadeis,  não  consentimos, 
Mas  o  contrario  disso  vos  pedimos. 


•   l^BIMEinO   CERCO   D£   DIV .  639 


Eu,  e  as  outras  mulheres,  que  aqui  temos 
Nesta  guerra  também  algua  parte, 
Q-ue  mandeis  dar  a  morte  a  aml)OS  queremos^ 
Mas  se  quereis  que  seja  inda  d\)utra  arte 
Por  nenhum  caso  o  nós  consentiremos. 
Nem  ha  cousa  que  disto  nos  apiírte  ^ 
E  eu,  que  sou  entre  todas  menos  forte, 
Se  vos  m'os  entregaes,  lhes  darei  morte. 

xc. 

Vendo  o  Silveira  o  grão  fervor  que  havia 
Em  quem  he  natural  medo  e  fraqueia, 
Espantado,  mas  ledo,  porque  via 
Mudada  em  seu  favor  a  natureza. 
Lhe  disse,  que  pois  ella  assi  o  queria 
Glue  elle  os  nao  soltará,  tenha  certeza. 
Contente  ella  com  tal  resposta  fica 
E  de  todo  se  applaca  e  pacifica. 

xci. 

Tao  arreigado  estava  contra  o  imigo 
Em  todo  o  peito  este  ódio  furioso, 
Glue  dá  esforço  e  furor  maior  que  antigo 
No  peito  que  he  de  si  brando  e  medroso. 
Mas  se  espanta  este  exorf<plo  que  aqui  digo 
Inda  outro  hei  de  dizer  mais  espantoso. 
Com  que  este  ódio  ijeral  claro  se  prova 
Com  cousa  inda  mais  rara,  inda  mais  nova. 


Sendo  eniao,  pola  falta  que  se  sente 
Dos  varões,  que  ja  o  Ceo  em  si  agasalha. 
Tão  geral  o  trabalho  em  toda  a  gente 
ftiie  todo  o  sexo  e  idade  alli  trabalha  \ 
A  tenra  idade,  e  mais  sufíieiente 
Quiçá  para  o  lieôr  que  de  si  espalha 
A  teta  maternal,  branda  e  suave, 
Nao  foge  ao  trabalhoso  peso  grave. 


Nos  trabalhos,  que  assaz  são  importantes 
Também  os  tenros  moços  se  occiípavao, 
Com  espritos  mais  duros  e  constantes 
Do  que  em  tão  tenn)S  annos  se  esperavão  : 
Nem  dos  trabalhos  são  parteeipaníes 
Somente  os  livres  moços  que  alli  estavão, 
Mas  a  partecipar  nelles  vierão 
Muitos  moços  também,  que  escravos  crão. 

XCIV. 

Estando  cm  parte  juntos,  onde  eneliessem 
Da  grave  terra  os  It.-ves  seus  eestinlios 
Com  que  onde  ha  falta  delia  soeeorrcssom, 
Disse  para  outro  Inim  destes  escravinhos  : 
Se  os  Turcos  fossem  homens,  e  soubessem 
Q,uanto  de  se  perder  estão  visinhos 
Ja  estes  Portuguezes,  hojf:  entrada 
Fora  esta  fortaleza,  e  ja  tomada. 


u  i^niAíEiai)  CI.RCO  de  diu.  Oíí 


Isto  que  o  tenro  escravo  agora  disse 
Com  tal  seí^redo  o  não  esconde  e  cerra 
Q^ue  hum  moço  Portuguez  o  não  ouvisse. 
Solta  o  cestinho  ja  cheio  de  terra, 
Todo  aceso  em  furor,  como  se  visse 
Ja  aquillo  effeituado,  o  escravo  aííerra, 
E  aos  companheiros  diz:  Vinde  correndo, 
Ouvi  o  que  este  perro  está  dizendo. 

XCYI. 

Ellcs  sem  mais  tardar,  logo  soltarão 

Os  cestinlios  também,  e  ja  com  ira, 

Com  pressa  ao  companheiro  se  chegarão, 

Glue  logo  lhes  dá  conta  do  que  ouvira  : 

Elles  sem  mais  respeito,  não  curarão 

De  ver  se  he  verdade  isto,  ou  se  he  mentira, 

Mas  cheios  de  furor,  ao  triste  moço 

Logo  hua  corda  lançào  ao  pescoço. 


Nem  querendo  que  mais  se  dilatasse 

A  pena  que  a  hum  tal  crime  se  devia, 

Gluercm  que  a  forca  logo  o  castigasse^ 

INIas  hum  dos  moços  diz  que  bom  seria 

Glue  ao  Capitão  primeiro  se  levasse, 

O  qual  taml)em  á  ntorte  o  jidgaria^ 

A  todos  pareceu  isto  bem  feito. 

Nem  querem  que  lhe  tarde  muito  o  eííeito. 


&42     OBRAS  BE  FRANCISCO  D^ANDRARS^ 


E  com  clamores  ta€s  que  vão  rompendo 
Não  so  o  ar,  mas  o  Ceo  terceiro,  e  o  quarto. 
Pegão  tantos  na  corda,  que  escondendo 
"Vão  as  mãos  o  escabroso,  áspero  esparto  ^ 
láogo,  sem  mais  tardan^'a,  vai  correndo 
O  esquadrão  pueril,  d'odio  não  farto, 
lie V ando  traz  si  o  triste  á  corda  atado 
Q.ue  foi  aute  o  Silveira  apresentado. 


Onde  o  que  então  se  achou  mais  atrevido 

Entre  este  pueril  ajuntamento 

líhe  disse  :  Nós  queremos  que  punido 

Seja  este  perro  co^o  ultimo  tormento, 

Sem  ser  hum  só  momento  deferido, 

Pois  teve  de  dizer  atrevimento 

ftue  os  Turcos  se  homens  fossem,  ja  entrado* 

Nos  tiverão  de  todo,  e  ja  tomados. 


E  porque  não  haja  outro,  inda  que  imigo, 
A  que  isto  lembrar  possa  somente, 
€lueremos  a  este  dar  este  castigo 
Onde  qualquer  dos  outros  se  escarmente» 
Trouxemo-lo  ante  vós,  porque  eu  me  obrigo 
O-ue  vós  o  não  julgueis  por  innocente, 
E  porque  vendo-o  morto  não  cuidásseis 
€lue  morreo  sem  rasão,  e  nos  culpásseis,. 


«  PKÍttSIRO  CSRCO  DE  DIU.  ^IS 

%y  discreto  Silveira,  que  duvida 
Gtue  haja  tanto  valor  em  tal  idade, 
Mas  a  alegria  e  espanto  isto  o  convida ^ 
Lhes  diz  {por  lhes  fartar  assi  a  vontade) 
GLue  o  deixem,  e  se  vão,  porque  elle  a  vida 
Lhe  mandará  tirar  sem  piedade. 
Mas  isto  que  por  bem  então  tentava 
Lhe  sahio  ao  tevéz  do  que  cuidava^ 

CIl. 

Porque  como  elles  todos  vem  agora 
D''hum  entranhavel  ódio  combatidos, 
E  todos  estivessem  naquella  hora 
Qnvdi  do  páo,  qual  da  pedra  apercebidos^ 
Não  põem  neste  castigo  mais  demora, 
Antes  com  grandes  gritas  e  alaridos, 
Como  se  o  Capitão  Ih^o  consentira, 
ComeçSo  pôr  por  obra  esta  sua  ira^ 

CHI. 

Êis  d'hfla  pattê  a  pedra,  dividindo 
O  ar,  lá  no  triste  acaba  sua  jornada, 
D^outra  o  mociço  páo,  ao  ar  subindo 
Cahe  na  tenra  cabeça,  condemnada^ 
Hum  e  outro  o  tenro  moço  então  ferindo 
Com  grâa  fúria  cruel,  imiga  e  irada. 
Em  breve  espaço  fazem  tal  effeito 
Gtue  em  mil  pedaços  he  logo  desfeitOi 


644      0Í5RAS    DE   FKAKCISCO    d''aNDÍIADE. 
CIV. 

Alguns  dos  circn instantes  procurarão 
Por  lho  impedir  líum  fim  Ião  miserável, 
Mas  vendo  que  era  embalde,  não  curarão 
De  dar  remerUa  ao  que  era  irremediável, 
Kiíes  depois  que  alii  iielie  fartarão 
A  ira  que  parecia  insaciável, 
Com  cantigas  de  «rão  contentamento 
No  Occeauo  lhe  duo  eterno  assento. 


Esto  tão  cruel  tím,  tão  desastrado, 
Tal  medo  nos  escravos  fez  que  houvesse, 
iA.ue  não  se  vio  algum  mais  tão  ousado 
(.iue  usar  da  sua  lingua  se  atrevesse. 
Ou  com  hum  baixo  tom  mal  declarado 
Dizer  cousíi  que  bem  não  se  entendesse. 
Cine  qualquer  destas  culpas,  bem  pequena, 
Kecebia  bua  grave  c  cruel  pena. 


Todo  o  seguinte  dia,  o  qual  ja  era 

Penúltimo  do  mez,  que  atraz  dizia 

€Lue  cm  si  dá  gasalhado  á  cruel  fera 

O-ue  faz  a  Orion  ver  o  ultimo  dia, 

Não  houve  lá  mais  dam  no  que  o  que  a  fera 

Bombarda  faz  co'a  usada  bateria, 

A  qual  foi  tal,  que  tèe  por  toda  a  p^irte 

Koto  o  reparo  ja  do  baluarte. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  645 

CVII. 

Cahc  o  assento  tambom,  que  em  si  encerra 
O  Silveira,  e  a  parede  lá  da  estancia 
Do  Sousa  Lopo,  vem  também  a  terra, 
Sem  poder  o  canhão  ter  repugnância  ^ 
Ordena  apoz  isto  hum  ardil  de  guerra 
Q.ue  derrube  a  Christaa  dura  constância 
O  Turco,  que  co''a  força  não  se  atreve. 
Mas  este  Canto  he  ja  mor  do  que  deve. 


o  PRIlir.IRO 

CERCO  DE  DIU. 


Os  TurtOÁ  se  vtio  embarcai'  nas  galí-s,  pciití 
iomarem  depois  os  Christãos  mais  descuida" 
dos.  O  Capitão^  suspeitando  este  engano^ 
ic  appútelha  para  o  asialto.  Os  Turcos  cin 
sendo  noite  se  to  mão  a  desembarcar  i^  e  duo 
hum  largo  e  terrihilissimo  asialto  do  baluarte» 
Conião-se  alguns  casos  particulares  e  notáveis 
que  acontecerão  no  meio  delle. 


u 


1. 


ado  sempre  foi,  e  proveitoso 
Km  toda  a  guerra  o  ardil,  e  necessário, 
Tal,  que  no  mais  prudente  e  valeroso 
Capitão,  sempre  foi  mais  ordinário  -^ 
Q.ue  sempre  o  vencer  foi  mais  glorioso 
Q.uanto  com  maior  damno  do  contrario, 
E  com  damno  menor  da  sua  gente, 
Veneeo  o  Capitão  sábio  e  prinlonte. 


o    PRIMEIRO   CKKCO   DE  DIU.  647 

It. 

Quanto  proveito  o  ardil  traga  comsigo 
Por  mil  provas  o  tempo  o  tèe  mostrado. 
Pois  no  presente  vimos,  e  no  antigo 
Ser  co''o  engenhoso  ardil  remediado 
Mil  vezes  o  mortal,  grave  perigo 
Para  o  qual  não  bastava  o  peito  ousado, 
Vj  alcançar  mil  victorias  incriveis, 
Níío  duvidosas  só,  mas  impossíveis, 

111. 

E  com  quanto  mil  vezes  falsa  o  effeíto 
O  discurso  do  ardil  que  he  bem  composto, 
Nâo  fica  sem  louvor  o  bom  conceito 
A  que  a  Fortuna  quiz  voltar  o  rosto  : 
E  se  d^aqui  não  tira  algum  proveito, 
Não  tira  também  damno,  nem  desgosto 
Mais  que  de  nHo  poder  com  sua  gloria 
Alcançar  do»  imigos  a  victoria. 

It. 

Vendo  a  gente  infiel  que  cm  vão  pef tende 
Vencer  com  força  a  força  Lusitana, 
íiue  com  tanta  constância  se  defende 
<iue  parece  lá  foríja  mais  que  humana, 
Depois  que,  com  f5eu  damno,  claro  entende 
Q.ue  quanto  mais  aperta,  mais  se  dana, 
(^uer  tentar  se  do  ardil  a  subtileza 
At'a1)a  o  que  não  pode  a  fortaleza. 


6Í8      OBRAS   DE  FRANCISCO  d'aNDRADE. 


E  para  effeituarem  este  engano 
Fazem  que  aquelle  mesmo  dia,  quando 
O  Sol  tornava  ja  para  o  Oceano, 
Mais  de  mil  as  estancias  vão  deixando, 
E  dando  vista  ao  imigo  Lusitano 
Traz  a  usada  bandeira  vão  passando 
Pola  Villa  dos  Rumes,  e  não  párão 
Até  que  aos  seus  navios  arribarão. 


Onde  arribados,  apressadamente 
Todos  onde  podião  se  embarcavao, 
Para  que  assi  cuidasse  a  Christãa  gente 
Glue  elles  de  todo  o  cerco  ja  deixavão. 
Levão  doze  galés  o  férreo  dente, 
E  na  volta  do  mar  o  mar  corta  vão, 
Porque  o  Christão  assi  do  mal  futuro 
Mais  descuidado  esteja,  e  mais  seguro. 


Mas  o  Christão  sagaz  pouco  se  enleia 
Com  esta  falsa  mostra  que  apparecej 
Antes  agora  mór  dam  no  arreceia 
Porque  o  Turco  enganoso  bem  conhece  ^ 
E  assi  com  mor  cuidado  remedeia 
Tudo  o  Silvfira  então  quanto  parece 
Q,ue  para  defender-se  lhe  convinha 
Da  nova  tempestade  que  advinha. 


o  PnlMEIRO  CERCO  DE  DlU.  640 


!Dobrar  as  vcllas  faz  etn  toda  a  parle 
Q,ue  vê  que  delias  têe  necessidade, 
Polo  muro  também  logo  reparte 
De  pedra  solta  grande  quantidade  ^ 
Faz  lá  de  São  Thomé  no  baluarte 
Logar,  d''onde  a  fulminea  tempestade 
Hum  camalete  solte  horrendo  e  forte, 
De  que  o  Turco  receba  espanto  e  morte. 


Avisar  também  manda  que  estiveàsè 

Do  mar  o  baluarte  apercebido, 

Porque  se  o  que  elle  cuida  succedesse, 

Glue  era  ser  dos  imigos  combatido. 

Se  por  qualquer  maneira  ser  podesse 

Elle  fosse  de  lá  favorecido 

Co''o  pelouro  cruel  que  de  si  solta 

O  canhão  que  em  si  a  morte  leva  envóitai. 


Tudo  faz  emfim  prestes  quanto  via 
Q.ue  cumpre  á  defensão  da  fortaleza^ 
De  sorte  que  vir  cousa  não  podia 
Q-ue  cause  confusão  ou  incerteza. 
Logo  elle  co^os  da  sua  companhia 
Os  logares  visita  em  que  ha  fraqueza. 
Lembrando  a  cada  hum  o  que  he  obriga^òj 
Porém  isto  era  em  todos  escusado. 
*  19 


GaO   OBKAS  BE  FKAKCISCO  »' AWDR  .\T)E. 


Gastou-se  nisto  tanto  espaço,  qnant.o 
Vjífí  so  «.'scmitlcr  tio  mar  o  Sol  gastara, 
K  bum  espaço  depois  que  o  negro  manto 
A  noite  ])olos  ares  eíjpalíiúra, 
Sem  que  lá  nas  estancias  entretanto 
Mudanea  hn-fíi  qnakpier,  por  »er  tão  clara 
A  Lua  catão,  que  quasi  se  presumo 
Qlw.  iumára  do  irmão  o  earro  e  o  lume, 

XII. 

Mas  d(ípoís  que  eíla  ja  de  saudosa 

f)o  sou  cliaro  Pastor,  que  n''aima  tinha.. 

Deixou  á  meia  noite  a  luminosa 

«Jornada,  e  ao  I>iitmio  monte  lá  caminha; 

Tao  escura  ficou  e  tenebrosa 

A  noite,  quanto  ao  iinigo  então  convinha 

l*ara  «ífeifo  do  engano  que  imagina, 

K  logo  eiteituá-lo  determina. 

XUÍ. 

Vendo  quão  Lcm  ajuda  a  seu  intcnt(7 
Aquella  t:  se  ura  noite  tao  cerrada, 
Nào  se  quer  deter  mais  hum  só  momentr»., 
Manda  chegar  ao  muro  a  longa  esc.ida  i^ 
Hl  pt)rqiie  sem  ter  disto  sentimento 
PosSa  a  gente  Christãa  ser  assaltada., 
Í'i  co'q  {'«sonido  fique  mais  vencivel, 
Com  silencio  ibto  íuz  quanto  he  jk)S^ív<>1, 


o  PRIMEIRO  etRco  DE  Dir.  6ol 


Mas  pouco  este  silencio  Itie  aproveita^ 
Torcjue  a  vigia  esperta  e  dili^iieiite, 
tílue  disto  tinha  ja  grande  suspeita 5 
Em  'meio  do  silencio  logo  o  sente  \ 
Com  pressa  ao  Capitão  logo  endireita, 
E  llie  diz  que  em  mil  partes  sentio  gente 
Q.ue  hum  calado  rumor  faz,  de  maneira 
Como  que  meneando  está  madeira» 

Vi,\\co  o  bom  Capitão  com  isto  se  enleia 

forque  novo  nao  llie  he,  mas  esperado, 

lí  li»go  esta  incerteza  remedeia 

Com  hum  remédio  assaz  prompto  o  avisado 

Manda  que  hua  capaz  paneUa  cheia 

Po  negro  ruinador  po  salitrado 

Abaixo  lancem,  cuja  claridade 

l}(í!icubra  o  que  encubrio  a  escuridade, 

XVI. 

Eis  ja  vôa  a  capaz  grossa  panella 
A  mostrar  o  que  o  imigo  faz  lá  fora^ 
Na  terra  apenas  dá,  quando  síihe  delia 
Hum  novo  e  claro  Sol,  antes  da  Aurora^ 
"Ve-se  o  que  antes  ja  disse  a  esperta  vella 
Do  escadas  cheio  o  chão,  e  que  ja  agora 
As  põe  na  parte  o  Turco  onde  parece 
Que  mais  a  seu  intento  favorece. 


0vi2      OIsHA^    DE   FRANCISCO   D^ANDRADT:. 


Pouco  espanto  isto  põe,  pouco  receio 
IjíÍ  onde  ha  disto  ja  certa  esperança. 
Antes  qualquer  com  isto  tica  cheio 
DVsforço,  de  fervor,  de  confiança, 
Vendo  que  o  Capitão  que  alli  o  meneio 
l^èe  da  guerra,  tal  he,  que  pola  usança 
Que  tee  delia,  o  por  vir  prognosticava^ 
E  ja  como  presente  o  remediava. 

XVIII. 

Entendendo  o  Silveira  o  copioso 

Numero  das  escadas,  vê  que  o  imigo 

A  estancia  assaltará  do  valeroso 

Tjopo  de  Sousa,  e  o  seu  assento  anfigOj 

Porque  hum  e  outro  logar,  o  furioso 

Canhão  sentio  em  si,  como  atí-az  digo  ^ 

E  assi  li  um  modo  ordenoti  com  que  as  escadas 

Com  grão  trabalho  fossem  arvoradas. 

XiX, 

Manda,  o  também  depois  roga  e  encommenda, 

ÍT^ue  todo  o  que  a  espingarda  meneasse 

So  naquellc  a  cruel  fiiria  dispenda 

Que  a  lançar  mão  da  escada  se  chegasse  ^ 

E  o  que  tee  lança,  ou  outra  arma  que  offendaj 

Em  defender  í^úmente  se  occupasse 

í)  portal  que  <iti  qualquer  parte  fizera 

A  fúria  do  canhão  horrend;s  «'  í'.ra. 


o    rUTMr-IRO    CERCO    DE   DIU.  053 

XX. 

Man-la  cpie  hua  ahortura  que  a  hua  parle 
3N)la  Christãa  gento  feita  se  via 
Do  reparo  quo  está  no  baluarte, 
.]*orque  estando  mais  fora  o  que  vigia 
Melhor  cralli  sentir  possa  desta  arte 
O  que  lá  em  ])aixo  o  Turco  então  fazia, 
Se  alimpe  da  caliça  que  la  ninada 
Tèe  nella  a  h.vtcria  antes  passada. 


Fez  isto  o  Capitão  por  ter  sabido 
(Se  eu  mal  não  advinho  o  sou  intento) 
Q.ue  estando  na  abertura  hum  recolhido 
Não  pode  outro  lá  ter  recolhimento, 
E  que  o  que  lá  estiver  dentro  mettido 
Sem  nenhum  risco  seu,  ou  detrimento, 
De  lá  fará  grão  dam  no  á  gente  imíga 
No  moio  da  cruel,  áspera  briga. 


Agora  quer  ir  Ví*r  este  meu  canto 

O  eíftiito  do  que  o  Turco  em  si  concebe 

Qiuc  se  embarcou  pouco  antes,  e  entretanto 

Deixarei  o  Christao,  que  se  apercebe. 

Logo  como  o  estrelíado,  escuro  manto 

Pola  ausência  do  Sol  o  Ceo  recebe, 

O  Turco,  que  do  engano  não  se  esquece j 

Das  gales  outra  vez  á  terra  dcce. 


Em  terra  outra  vez  saltão  escolhidos 
Dous  mil  homens  em  toda  aquella  armada, 
De  tudo  o  necessário  apercehidos 
De  tal  sorte,  que  nao  lhes  falta  nada. 
Logo  são  nas  estancias  recolhidos 
Onde  estava  a  mais  gente  agasalhada, 
E  os  mais  dos  Capitães  com  elles  hião 
A  que  as  embarcações  obedecião. 

XXIV. 

Cuidão  de  nao  achar  ja  fesislencia 
Por  muito   que  os  Christãos  sejão  ousados. 
Q.uaes  dão  a  Jhuof  Hamed  obedieticia 
Gtuaes  de  Baram  Baxá  são  governados, 
Varões  que  em  grande  esforço,  e  grãa  prudência 
Se  virão  em  mil  partes  signalaclos :, 
Creio  que  os  conheceis,   se  inda  memoria 
Tendes  do  que  atraz  disse  a  minha  historia» 

XXV. 

Estes  te  tido  ja  prestes  toda  a  gente, 

Com  tudo  o  mais  que  ao  assalto  lhes  convinha^ 

A  tardança  os  detém  ai  li  somente 

Q.ue  inda  então  faz  o  Sol  na  onda  marinha  ^ 

Mas  tanto  que  as  estradas  do  Oriente 

De  Memnon  pisa  a  mãe  que  ante  o  Sol  vinha) 

Logo  os  dous  Capitães  com  grãa  presteza 

Se  vão  lá  preseutar  á  fortaleza. 


o    rRIMKlRO    CERCO   DE   DIU.  G55 


Em  três  grandes  batalhas  repartida 

A  gente,  á  fortaleza  se  apresenta, 

Tão  ufana,  lustrosa,  e  tao  luzida 

Gtue  o  Turco  Capitão  comsigo  assenta 

Giue  não  poderá  então  ser  resistida, 

E  tanto  da  vietoria  se  contenta 

Glue  os  despojos  Christãos  ja  então  reparte 

Dando  a  qualquer  dos  seus  ja  sua  parte. 

XXVII. 

GLualquer  destas  batalhas  agasalha 
Mais  de  mil  destes  homens  tão  valentes, 
Cojaçofar  também  dos  seus  espalha 
Mais  de  dez  mil  por  partes  d iíTe rentes, 
Os  qiiaes  em  começando  a  graa  batalha 
Soltem  logo  os  mortaes  chumbos  ardentes* 
E  as  voadoras  frechas,  com  que  ajudem 
Os  seus,  e  ao  defensor  damnar  estudem. 


Os  dous  bons  Capitães  antes  que  dessem 

O  assalto,  aos  Lusitanos  defensores. 

Mandarão  que  as  bombardas  dispendessem 

liá  nas  partes  os  seus  bravos  furores 

Por  onde  hão  de  assaltar,  porque  tivessem 

Entradas  mais  capazes,  e  maiores» 

Não  ha  nisto  detença,  mas  ja  soa 

O  grosso  estrondo,  c  o  ferro  mortal  vòa. 


6otí      OliRAS   DE   FRANCISCO    d"'aNDIIADE» 
XXIX. 

Faz  logo  o  seu  cruel  usado  eíTcito 
Com  ruina  d(3  tudo  o  que  alcançava. 
Vendo  o  Turco  que  iêe  elle  ja  feito 
Gluanto  para  o  combate  desejava, 
Não  lhe  soífre  o  feroz,  ousado  peito 
Dilatar  a  victoria  que  esperava; 
Faz  cessar  do  canhão  a  fúria  grossa 
Porque  elle  executar  a  sua  possa. 


Logo  das  três  batalhas  a  primeira 

Lá  diante  se  põe,  a  qual  guiada 

Vai  d^hua  larga  entào  grande  bandeira 

De  cor  branca  e  vermeilia  quaiteada. 

Ja  sôa  do  tanil)or  a  voz  guí;rreira, 

Soa  a  voz  do  chirao  mal  concertada, 

A  grita  he  tal  que  as  nuvens  fende  e  arn  inl) 

A  terra  quasi  treme,  o  mar  retomba. 

XXXI. 

Em  meio  desta  grita  hua  graa  parte 
Dos  mil  que  a  dianteira  tèe  agora, 
Com  tal  fúria  coinmette  o  baluarte 
€lue  imagina  acabar  tudo  nesta  hora  : 
Sobe  tao  alto  o  Alferes,  que  o  estandarte 
Lá  no  mais  alto  deile  então  arvora, 
Q.UC  nellcs  hum  fervor  novo  desperta 
Com  que  toe  a  victoria  por  mais  certa. 


o    PUlMEIilO    CERCO    DE    DIU.  057 

XXXII. 

A  outra  parte  dos  mil  que  nao  «ntende 
No  comhate  que  aos  outros  era  imposto, 
Logo  arvora  as  escadas,  e  per  tende 
Nas  casas  do  Silveira  dar-lhe  encosto, 
Porém  logo  acha  alli  quem  lh\)  defende, 
Porque  os  espingardeiros  que  alli  posto 
O  Silveira  para  este  eífeito  tinha 
Não  deix3o  por  fazer  quanto  convinha. 


Sóltao  logo  o  mortal  chumbo  damnoso 
Só  naquelle  que  a  longa  escada  alVerra, 
Q-ualquer  do  que  soltou  fica  gostoso 
Porque  então  nenhum  delles  o  tiro  erra, 
Tal,  que  quantos  estão  (caso  espantoso) 
Ferrados  nas  escadas  vem  a  terra, 
Q-ual  manda  a  alma  ao  profundo  senhorio, 
Gtual  vivo  solta  o  sangue  em  grosso  fio. 


Nem  por  Isso  as  escadas  despovoao, 
Correm  ao  mesmo  effeito  outros  ligeiros, 
Logo  os  chumbos  Christaos  contra  elles  voao 
Gtue  nào  são  desta  vez  n>enos  certeiros. 
Mas  também  desta  vez  tanto  os  magoão 
Qluh  igual  damno  estes  sentem  aos  primeiros, 
l*orque  estes  também  diío  larga  saliida 
GLual  ao  sangue  somente,  qe^il  á  vida.. 


(Í58      OlíRAS   DE    FRANCISCO    D^ANDRADE. 
XXXV. 

Ja  agoríi  este  mortal  segundo  dano 
Km  todos  imprimio  hum  tal  receio, 
Q-ue  das  escadas  tendo  o  desengano 
Nenhum  mais  afíerrar  nellas  se  veio, 
Antes  o  que  se  têe  por  mais  ufano 
Daquella  empresa  fica  mais  alheio, 
Ponjue  ha  que  obra  nao  he  do  forte  peito 
Entrar  na  morte  certa  sem  proveito. 

XXXVI. 

Deixao  logo  as  escadas,  onde  viao 
Q-ue  os  espera  hua  corta  e  cruel  morto, 
Vào-se  jijudar  aos  outros  que  querião 
Com  valeroso  peito,  ousado,  e  forte 
Entrar  no  baluarte,  porque  haviào 
(àue  esta  era  ou  mais  honrada  ou  melhor  sorte. 
E  cotno  n'hum  so  posto  o  Turco  insiste 
SoíTre-o  o  Christào  melhor,  melhor  resiste. 

XXXVII. 

JS^esta  hora  aquella   gente  que  ficara 
Nos  dous  esquadrões  posta  em  ordenaiu^-a, 
E  a  que  Cojaeofar  alli  deixara, 
Em  ajudar  os  seus  nao  põe  tardança  : 
Clual  a  longa  espingarda  então  dispara, 
Q-ual  do  curvo  arco  a  frecha  aguda  lanrja, 
Iltim  e  outro  vai  direito  áquella  parte 
Q.ue  mais  danuic  os  que  cslào  no  baluarte. 


it    1'UlMKiilO    CEÍUO    U«    íilV. 


t>o9 


Nunca  íi  niiiis  fçrossa  iiuvooi,  mah  inchada 
Clue  poios  ares  vai  não  va<2;arosa, 
Tanta  parte  encubrio  da  luz  dourada 
Glue  a  terra  opaca  faz  clara  e  formosa, 
Nem  tanta  parte  do  ar  íbi  ocííiipada 
Da  banda  d^storninhos  copiosa, 
Gluanta  u  frecha  (pie  sah(*  lá  do  arco  Mouro 
Occiípa  do  ar,  encobre  da  luz  d\)UTO. 


Ja  nesta  hora  a  infiel  genfo  atrevida 

Com  H  gente  fiel  andava  envolta, 

Com  fúria  tao  acesa  e  embravecida 

Q.(ie  hua  e  outra  parte  o  sangue  e  a  vida  sátía  ^ 

Mas  quanto  solta  mais  de  sangue  e  vida 

Tanto  mais  o  furor  cresce,  e  a  revolla, 

Ja  por  todo  o  logar  a  morte  vòa. 

Em  toda  a  parto  o  ebtrondo  e  a  grita  soa. 


Huns  com  vozes  ja  fracos  lamentáveis 

Da  morte  ja  visiuha  se  queixavão, 

Outros  com  altas  vozes  incansáveis 

Qluq  dessem  cruel  morte  encommendavão  •, 

Arteficios  de  fogo  innumeraveis 

Alli  se  vêem,  ({uíí  liuns  a  outros  se  «paií;a\ã<^ 

K  assi  o  fogo  que  senipre  os  dauína  e  oiieude 

Ksse  agora  de  si  nusaiO  os  defendo. 


tÍ60      OBKAS   D£  FRANCISCO   ©'aNDRAD»^ 


XLI. 


O  vaso  que  de  barro  era  formado 
E  dentro  o  negro  p6  mortal  encerra, 
Pouco  foi  do  murrão  hoje  ajudado 
Porque  sem  seu  favor  a  chamma  afferra^ 
Pois  tão  aceso  está,  tão  inflam mado 
O  baluarte  todo,  e  a  mesma  terra, 
Q.ue  em  tocando  no  chão  recebe  logo 
Melhor  que  do  murrão  o  ardente  fogo.. 


lievantão  neste  tempo  o  curvo  dente 
Bem  quatorze  galés,  e  o  mar  cortando 
A  estacada  se  vão  ligeiramente. 
Onde  apenas  chegadas  forão,  quando 
Chegando  aos  seus  canhões  o  fogo  ardentt^ 
Mil  pelouros  mortaes  sahem  voando, 
ôue  com  furor,  estrondo,  e  ligeireza 
Direitos  lá  se  vão  á  fortaleza. 

XLIII. 

Nem  deste  sd  furor  se  contentarão, 
G-ue  ódio  nunca  de  pouco  se  contenta. 
Mas  mil  vezes  então  descarregarão 
A  fulminea  cruel  brava  tormenta  ; 
Mas  por  mais  que  as  bombardas  trabalharão 
Emfim  sahe  em  vão  quanto  o  imigo  intenta, 
Porque  esta  revezada  fúria  insana 
Nenhum  mal  íaz  á  gente  Lusitana». 


o    PRtMKIilO    OF.RCO    DK   DIU.  6GI 

XLIV. 

Mas  o  Gonvola,  a  quem  era  sujeira 
T)o  hal Marte  da  barra  a  governança. 
De  lá  <x)ntra  as  gale's  fa7,  ir  direita 
A  fúria  que  o  cruel  seu  canhão  lança  : 
Esta  mais  que  -a  dos  Turcos  aproveita, 
Q.UO  alguns  despedaçou,  que  então  alcança, 
E  desapparelhando  dous  navios 
Faz  todos  affastar  de  temor  frios. 


A  Portugueza  gente  como  entende 
Q.ue  he  só  no  baluarte  o  assalto  agora, 
As  forças  que  por  mil  partes  estende 
AUi  somente  ajunta  naquella  hora. 
Com  isto  hum  tal  furor  novo  os  acende 
iiue  quasi  trinta  delles  sahem  fora, 
N'hua  praça  que  lá  naquella  parte 
Sobre  os  reparos  faz  o  baluarte. 


Com  grande  ímpeto  aos  Turcos  se  arremessão 

GLue  alli  mais  de  duzentos  se  agasalhão, 

Arteficios  de  fogo  então  não  cessão, 

GLue  hua  grãa  cópia  então  no  imigo  espalhao, 

Co^as  lanças  apoz  isto  os  atravessão, 

E  tanto  os  tratão  mal,  tanto  trabalhão, 

Q.UO  com  morte  de  muitos  lhe  he  forçado 

Perder  o  Turco  quanto  tèe  ganhado. 


€62      OBKAS    DE    FRANCISCO    D*ANl>nAI)E. 
XLVII. 

Entre  estos  que  aqtii  a  hora  derradeira 
Vilão,  iaiubem  o  Alferes  deixa  a  vida, 
Mas  nem  por  isso  enião  cabe  a  bandeira, 
Antes  quando  elle  cahe  fica  ella  erguida, 
Porque  eo»n  pressa  tal,  de  tal  maneira 
Por  mais  de  dez  dos  seus  foi  soccorrida, 
<Aue  antes  que  o  Alferes  caia,  estes  eslavão 
Ferrados  nella  ja,  e  a  sustentavao. 


O  Chrislão  que  isto  vê,  com  força  iíisi^te 
3*orqije  no  ar  a  bandeira  nao  se  veja, 
De  defende-la  o  Turco  não  desiste 
Q^iie  sustentá-la  no  ar  também  deseja  •, 
Assi  que  o  que  contende,  e  o  que  resiste 
l^om  tal  fervor  crescer  faz  a  p<;leja, 
iiue  havendo  bem  hua  hora  q\ie  durava 
Parecia  que  então  se  começava. 


Em  meio  de  hum  furor  que  he  quasi  insano 

E  que  ho  mais  perigoso,  ao  que  he  mais  forte 

Chega  hum  pique  mortal,  longo,  e  profano, 

A  ]\Tartiin  Vaz  I*acheco,  e  de  tal  sorte 

l^euetra  este  esforçado  Lusitano 

tliie  lo^o  o  entreíja  em  mãos  da  cruel  morte. 

Vingando  so  com  esta  largamente 

jMil  que  elle  tinha  dado  á  imiga  gente. 


o    VUÍMKHIO    Ci:ilCO    DE    JDIU.  C03 


Jiinlo  entito  delle  ostíi  no  mosnio  poslo 
iÍMii  que  ora  primo  seu,  e  intimo  amigo, 
A  quem  foi  Gabriel  por  nome  posto 
líi  a  alcunha  ièo.  do  mesmo  que  atraz  digo  \ 
Varão  a  quem  não  foz  voli.ar  ú  rosfo 
A  morte  m;iis  horrenda,  o  mor  perigo, 
Antes  sempre  o  seu  forte,  invicto  peito 
Q.UÍZ  o  mais  perigoso,  e  árduo  feito. 


ICste,  vendo  aòs  seus  pés  da  imiga  lança 
Tresp.issado  o  que  dentro  n'alma  tinha, 
Cortado  d''hOa  dor  que  a  alma  lhe  alcança 
Diz  :  Morrer  eil  comvosco  bem  convinha. 
Mas  por  ir  vossa  morte  com  vingança 
Folgo  que  se  dilate  hum  pouco  a  minha, 
fttic  a  minha  eu  a  haverei  por  bem  vingada 
Com  ir  a  vossa  delia  acompanhada. 

Traz  isto  furioso  e  embravecido, 

Só  de  morte  e  vingança  desejoso, 

Deixa  o  que  ante  seus  pés  tèe  estendido, 

A  que  inda  agora  foi  tão  piedoso. 

Salta  em  meio  do  imigo,  onde  mettido 

Revolve  o  forte  braço  valeroso, 

O  bjzente  aço  fura,  talha,  e  fende. 

Hum  solta  o  sancrue,  e  morto  outro  se  estende. 


i}i)l      OJiílAS    DE   FRANCISCO   1>  ANDKADE. 
LIII. 

Mas  o  Turco  não  quu  que  líic  durasse 
Milito  sem  seu  castigo  esta  ira  ardesite. 
Faz  também  que  o  seu  ferro  lho  tfe^ípa^^ití 
I)nns  vezes  o  rosto  mortalmonte, 
(liie  para  quem  a  vida  desejasse 
Bastante  occasiao  era  a  presente 
Para  huscar  remédio  de  ter  vida^ 
Porem  elle  so  qum*  vô-la  perdida. 

tiv. 

Faz-lhe  isto  que  hum  remédio  vá  buscando 
(Xne  a  morte  mais  lhe  apresse  que  dihitc, 
J^ois  com  isto  o  furor  accrescentando 
Kntra  mais  furioso  no  combate. 
Hum  dos  da  companhia  a  elle  chegando 
Lhe  dij5  que  de  curar-se  agora  trate, 
Nem  queira  ja  com  tanta  brevidíidc 
Dar  fim  a  seu  esforço  e  mocidade. 

tv. 

Elle,  inda  de  furor  e  d*amor  cheio, 

Kesponde :  Como  posso  eu  ter  desejo 

Da  vida,  ou  ter  da  morte  algum  receio, 

Se  o  que  eu  mais  que  a  mi  quiz,  morto  ja  vejo  ? 

Grào  gosto  me  he  da  imiga  fúria  em  meio 

Deixar  a  triste  vida,  em  tal  ensejo, 

(tIub  acompanhe  no  dia  derradeiro 

A  quem  sempre  nos  mais  fui  companheiro. 


o  .pRij.rr.ip.o  cErvCO  df.  uir.         Gôo 

LM. 

Apoz  estas  palavras  pouco  tarrla, 
Torna  a  ajudar  os  seus  na  graa  revoUn, 
Mas  a  líiorte  cruel  que  alli  o  aguarda 
Faz  que  lá  de  travéz  o  chumbo  s<51ta 
Contra  elle  hua  mortal,  longa  espingarda 
Que  na  cabeça  o  encontra :,  sabe~lhe  envolta 
Em  sangue  a  alma,  cahe  morto  o  moç;)  forte 
Sobre  o  que  lhe  causou  agora  a  morte. 

LVII. 

Q.UG  exemplo  pode  dar  a  antiguidade 
D^ontro  maior  amor  que  esto  que  digo? 
Pirothoo  de  Thcseu  mais  do  verdade 
Nem  Patroclo  d''Achille9,  foi  amigo. 
Nem  do  Niso  e  d"'Aurialo  a  amizade 
Provada  assaz  co\)  Grego  sangue  antigo 
Vantagem  a  esta  fez,  nom  Ih^i  fizestes 
\6s  Pilades  Phocense,  e  vós  Orestes. 

LVIII. 

Pois  se  na  idade  nova  ponlio  o  rosto 
Não  vejo  cousa  que  isto  inda  arremede, 
Porque  vejo  que  só  se  põe  o  gosto 
Naquillo  q«)e  o  interesse  próprio  pede:; 
E  tanto  nisto  está  ja  o  mundo  posto, 
(Graa  miséria  que  a  todas  bem  excede) 
Que  alli  se  inclina  só  o  liumano  peito 
DVíude  espera  tirar  algtJm  proveito. 


tíGG      OBRAS    DE    FRANCISCO    d''aNDíIADE. 


Mas  manda-mo  a  rasão  qtie  nao  me  aparte 
D\)nde  os  Christãos  ficavao  combatendo. 
Com  grave  dam  no  dMiua  c  d%)ntra  parte 
So  estào  os  cruéis  ferros  revolvendo, 
Q.uando  de  lá  do  mar  do  baluarte 
E  do  de  São  Thomé,  em  fogo  ardendo 
Sahe  d^ilguns  camaletes  o  redondo 
Pelouro,  com  medonho,  horrendo  estrondo. 

tx. 

Direito  aos  Turcos  l;i  vôa  apressado, 
Porque  ou  os  damniíique,  ou  os  destrua, 
E  vai  elle  esta  vez  tão  bem  guiado 
Que  esta  sua  tenção  bem  effeitua, 
Gtue  achando  de  infiéis  tudo  occupado 
Não  podo  ser  em  vão  a  fúria  sua, 
Encontra-os,  faz  entre  elles  larga  praça, 
Aleija,  fere,  mata,  despedaça. 

LXI. 

Neste  tempo  hum  que  lá  no  ajuntamento 
Dos  Christãos,  da  espingarda  se  servia, 
Subindo  lá  no  ruinado  assento 
Gtue  em  si  o  Silveira  antes  recolhia. 
Hum  Turco  vê  de  lá  que  no  ornamento 
E  riqueza  do  trajo,  ha  que  seria 
Homem  de  grande  nome,  e  grande  conta, 
Chega  a  espingarda  ao  rosto,  e  nelle  aponta- 


f*    PHIMEITtO    CERCO    DF-   BIU.  667 

LXII. 

Sahc  o  c])un)l>o  veloz,  faz  a  jornac1;i' 
Dirfíito  ao  triste  Turco  bem  vestido, 
Encontra-o  poios  peitos,  c  á  morada 
Infernal  desce  o  Èsprito  ja  rendido. 
Mas  ccmo  a  esta  nação  he  cousa  usada 
E  dMionra,  não  deixar  o  conhecido 
Corpo,  ou  do  Capitão,  ou  do  que  he  amigo, 
Determina  hum  levar  este  que  digo. 


Sulia  onde  o  morto  estava,  arreceando 
Glue  a  levá-lo  chegasse  outro  primeiro, 
Sobre  os  hombros  o  põe,  determinando 
Levá-lo:,  mas  o  mesmo  espingardeiro, 
Q-ue  ja  prestes  está,  nelle  apontando 
Nao  foi  menos  então  que  antes  certeiro, 
Encontra  o  que  levava  a  carga  morta, 
Cp.hem  ambos,  e  á  alma  este  abre  a  porta- 


Eis  outro  qije  cuidou  que  esta  houra  nega 
Áquelle  o  Ceo,  porque  para  elle  a  guarda, 
Ferra  o  primeiro  morto,  e  em  si  o  carrega. 
Mas  outro  igdal  castigo  não  lhe  tarda, 
Porque  o  chnmbo  subtil  também  lhe  chega 
Q-ue  d''outra  parte  sóíta  outra  espingarda  ^ 
Cahe  morto  este  também,  e  aquelle  honrado 
Entra  de  dous  no  inferno  acompanhado. 


CGS    OBRAS  EE  riíAxrisca  T)*ANnn '.DP.. 


liem  ao  rovcz  faz  isto  a  Clírlstaa  gf  nte 
tVue  lá  no  baluarte  pc;I<?Javn, 
Porque  nenhum  entro  cíles  íia  qtie  attcMite 
S?nao  no  imigo  só  que  inda  em  pé  estava. 
O  q(ie  para  cantar  tenho  presente 
Mostra  hem  dos  Christàos  a  fúria  brava, 
f^aso  assiz  desastrado,  e  miserável, 
Se  o  tempo  o  nSo  fizera  desculpável. 

r.xvi. 

Kntre  estes  que  o  furor  da  gente  imiga 

Com  outro  mor  furor  pondo  estão  freio, 

Jlavia  hum,  cuja  idade  he  tao  antiga 

(iue  trinta  annos  lhe  chegão  delia  ao  meio  :^ 

Mas  nem  a  antiga  idade  lhe  mitiga 

O  natural  esprito,  sempre  cheio 

Da  ousadia,  que  o  esforço  nelle  punlia  :, 

Seu  nome  era  Fernando,  Aífonso  a  alcunha. 

LXVII. 

Este  no  bravo  assalto  sempre  atura 

Onde  o  seu  duro  esprito  prevalece. 

Até  que  a  força  que  era  menos,  dura, 

E  o  menos  duro  alento  lhe  fallece. 

Cahe  o  triste  entre  os  seus,  mas  nenhum  cura 

Be  viVlo  em  tal  estado,  'e  o  favorece, 

(^ue  nenlmm  de  salvá-lo  agora  trata 

Eui  quanto  imigo  vê  com  que  combata. 


o    PUIiiEíllO    CEUCO    DE   DIU,  GÔ9 

LXVltl. 

Nonhum  ha  alU  que  eiilão  o  tempo  gaste 
O)^o  que  cuida  que  tce  a  alma  rendida, 
Não  acha  o  triste  quem  d''alli  o  afiaste, 
Mas  acha  quem  na  sua  envelhecida 
Barba,  faz  fincapé,  porque  contraste 
Melhor  á  imiga  fúria  embravecida ; 
Também  sente  a  garganta,  com  seu  dano, 
O  pé  do  compaalioiro  deshumano. 

lisvnnta  quanto  pude  a  voz,  o  brada 
O  triste  velho,  aos  seus,  que  inda  vivia, 
E  com  a  fraca,  e  ja  debilitada 
Força,  trabalha  então  quanto  podia 
Por  se  livrar  dos  pés  da  sua  irada 
Ardente  e  impetuosa  companhia, 
Q-ue  entre  estes  teve  agora  mor  perigo 
ílue  entre  o  maior  furor  do  ferro  imigo. 

LXX. 

Porem  pouco  lhe  vai  agora  o  grito. 

Nem  a  sua  cansada  força  velha, 

(lue  esta  topa  hum  furor  quasi  infinito, 

AquoUe  não  penetra  a  surda  orelha  ^ 

Assi  forçado  lhe  he  render  o  esprito 

Sem  do  seu  sangue  a  terra  ser  vermelha, 

Ou  ter  outro  algum  mal,  mais  que  o  que  sentft 

Do  ardor  com  que  peleja  ;i  sua  gente. 


inO      OURAS    T/F-    FRANCÍSC)    dVnDUAD  F.. 
LXXI. 

Estava  nesfe  ser  a  sjrã.i  batalha 
Km  quo  hum  c  ontro  furor  cresce  g  so  are  nJ;' 
Porque  o  Turco  d'entrar  assaz  tralialha, 
Mas  o  Chrislao  lli'o  no^n,  e  Ih^o  defendo, 
(Luanda  hum  lá  na  abertura  se  agasalha 
Ciue  no  reparo  eski,  d\)nde  dispendc 
}*erennemente  o  chumbo  da  espingarda, 
Porque  em  disparando  bua,  outra  não  tarda. 


Tão  mal  desta  maneira  (vs  Turcos  traia, 
Porqtie  quantos  aponta  nenhum  erra, 
GLue  também  o  segunda  Alferes  mata 
E  outros  muitos  d%dli  faz  vir  a  terra  : 
Fa?,  isto  que  no  Turco  assi  se  abata 
O  furor  que  ate  então  no  peito  encerra, 
Porque  os  melhores  seus  ja  vêem  perdidos, 
Glue  começão  de  todo  a  ser  vencidos. 


A  segunda  batalha,  que  era  feita 
D^^seolhidos  varões,  gente  animosa, 
Sentindo  que  a  primeira  era  desfeita, 
De  vingar  esta  afíronta  desejosa. 
Faz  aífastar  os  seus,  e  vai  direita 
Lá  para  o  baluarte  impetuosa, 
E  apoz  quatro  bandeiras  que  diante 
Leva,  se  põe  (.'m  cima  n''h«im  instante. 


o  ritiMr:iRO  ckuco  de  diu.  GTJ 


LKXIV. 

Duas  crhnm  paniio  sao,  que  arremedava 
O  canliamnçOj  ou  ou  mal  i^^o  entendo, 
E  íia  bainha  lá  por  onde  entrava 
A  /iste,  grandes  madeixas  se  estão  vendo 
D^dva  lâa,  que  qualquer  se  sustentava 
l)"'hria  maçSa  que  está  resplandecendo 
De  tal  sorte,  que  eu  hei  por  cousa  certa 
Q.UC  ou  cila  lie  d^ouro,  ou  l)e  d^ouro  cuberta, 


Estas  bandeiras  tao  difíerençadas 
Das  outras  na  matéria,  e  no  ornamento, 
Dizem  que  do  Caciz  forão  mandadas 
Q^ue  tee  lá  em  Medina  seu  assento, 
Onde  as  barbaras  gentes  enganadas 
Com  graa  veneração  e  acatamento 
Repulchro  ao  seu  Mafoma  falso  derão, 
Y,  onde  inda  agora  o  acatao,  e  o  venerão 


Por  divinas  as  têe,  e  as  presao  tanto 
CXue  então  quiçá  só  nellas  se  fiarão. 
Por  vôrem  que  do  seu  profano  santo 
A  grãa  virtude  ja  partecipárão  :; 
Faz-lhos  isto  ja  perder  agora  quanto 
Medo  antes  dos  Ciiristãos  quiçá  cobrarão, 
Crendo  que  tal  virtude  alli  se  encerra 
C-iue  tudo  ha  de  vencer,  e  por  por  terra. 


<>7^      OBRAS    DE   FRANCISCO    D^^ANDRADE. 
LXXVII. 

Com  tal  superstição  e  confiança 

Sobe  esta  descansada,  ousada  gente, 

Posta  era  cima,  nao  faz  qualquer  tardança, 

Logo  entra  co''os  Christãos  mui  bravamente^ 

Graa  cópia  d^arteficios  nelles  lança 

Q.ue  estão  de  si  lançando  fogo  ardente, 

Lança  também  com  elles  de  mistura 

O  pungente  zarguncho,  a  pedra  dura. 

Lxxvm, 

Os  que  de  fora  estão,  que  não  subirão 
A  ser  no  combater  partecipantes, 
Com  tanta  quantidade  então  atirão 
De  frechas,  e  de  chumbos  coruscantes, 
Glue  as  lanças  dos  Christãos  então  se  virão 
E  as  mãos  com  que  as  sustem,  das  penetrantes 
Tontas  junto  cravadas,  e  as  rodellas, 
E  os  rostos  penetrados  também  delias. 

,  LXXIX. 

Juntamente  com  isto  a  tal  distancia 

O  altisono  clamor  soando  voa, 

Glue  entrando  na  infernal,  escura  estancia 

Rhadam;into,  Aqueronto,  e  Dite  atroa: 

A  confusão  dos  sons,  e  a  dissonância 

Q.ue  em  monte,  em  valle,  ê  serra,  e  ê  bosque  sôa, 

Tal  era,  que  podia  bem  julgar-se 

Gtue  o  mundo  começava  a  transtornar-se. 


'      o  PRIMEIRO    eERCO   DE   DIU.  Q7à 

LXXX. 

Cresce  em  tanto  a  revolta  e  a  crueldade 
©""onde  a  todos  mortal  damno  succede, 
Ja  descem  de  lá  alguns  da  Christandade 
A  que  a  ferida  estar  lá  em  cima  impede^ 
dual  com  queixosa  voz,  e  piedade 
Para  a  alma  que  sahe  remédio  pede, 
Q.ual  pondo  nas  feridas  óleos,  ovo, 
Se  torna  a  receber  outras  de  nova* 


Nem  foi  somente  o  ferro  hoje  culpado. 
Também  damna  o  cruel  fogo  profano, 
Porque  da  mortal  pólvora  ajudado 
Acende,  inílamma,  abraza,  e  faz  grão  damno: 
E  tão  disforme  fica,  e  tão  mudado 
O  que  o  sentio,  do  ser,  e  vulto  humano, 
Gtue  se  acha  irmão  que  vendo  outro  irmão  pasma 
E  foge,  imaginando  que  he  phantasma. 

LXXX  II. 

Grãa  miséria  era  ver  estes  ardidos 
Correr  por  cá,  por  lá  impacientes, 
D** intoleráveis  dores  combatidos 
Causadas  das  mortaes  chammas  ardentes,, 
Até  que  na  salgada  agua  mettidos, 
Q.ue  lá  na  fortaleza,  em  differentes 
líOgares  em  si  têe  a  grossa  tina. 
Sentem  aUivio  á  dor  que  os  desatina* 


LXXX.IXI, 

Mas  este  allivio  tal  qne  agora  damlo 
Liircstá  o  írio  licor  em  que  se  viãu, 
Outro  damno  maior  Ih^está  causando 
K  outra  mais  grave  dòr,  que  a  que  sentiãc, 
Porque  assi  mais  em  breve  penetrando 
Os  vai  o  bravo  ardor,  a  que  fugião, 
E  em  meio  de  dobrada  dòr  e  queixa 
O  attribulado  esprito  a  carne  deixa. 

LXXXIV. 

Nesta  hora  em  queofuror  d^lium  eoutroiniigo 
Mostra  mor  crueldade  e  mor  braveza, 
Aquella  Anua  Fernandes,  que  atraz  digo 
_Q/ue  tanto  bem  fez  senipre  á  fortaleza, 
Vencendo  o  seu  pesado  corpo  antigo, 
K  a  fraqueza  que  tèe  por  natureza 
O  trabalho  e  o  temor,  se  sobe  ao  muro 
Lá  onde  o  loí^ar  he  menos  seguro. 


E  a  figura  daquelle  Omnipotente 
Eterno  Crcador  nas  mãos  sustondo, 
Oue  por  dar  vida  eterna  á  ingrata  gente 
Q-uiz  a  morte  na  Cruz  matar  morrendo, 
Com  esforçado  peito,  e  reverente 
^1(ístrando-a  aos  que  estavao  defeudendo, 
Taes  palavras  com  isto  Ih^apresenta 
(ine  o  natural  esforjj-a  lh''acçresctínta. 


o    VniMElKO    CEKCU    DK    DIU.  OTo 


Com  palavras  d'esforço  acende,  c  esperta 

Ciuem  por  si  se  acendia,  e  se  espertava, 

E  se  algiun  cahir  morto  acauo  acerta 

A  levá-lo  d'alli  ella  ajudava: 

O  que  ferido  vem,  logo  ella  o  aporta, 

K  o  que  com  pouco  dam  no  alli  cliegava 

Dizia  que  á  peleja  se  tornasse 

Torque  nau  tinha  mal  que  liro  estorvasse. 


i)  prudente  Silveira,  e  valoroso 

Não  se  descuida  entào,  ou  se  enfraquece. 
No  trabalho  eummum  não  he  ocioso, 
Também  os  seus  anima,  e  favorece  •, 
De  tudo  os  provê  quanto  proveitoso 
Ou  ser-lhes  necessário  lhe  parece, 
Kaz  vir  fora  o  ferido,  e  com  vergonha, 
E  que  d^onde  este  sahe  o  são  se  punha. 

LXXXVIII. 

Manda  vir  das  estancias  o  que  inteiro 
E  o  que  nellas  está  melhor  armado, 
Manda  que  lá  no  imigo  o  espingardeiro 
Solte  o  chumbo  subtil  arreijatado, 
Q-ue  inqxjssivel  será  não  sor  cert(;iro. 
Tanto  dos  Turcos  he  tudo  occupado. 
Mas  o  que  agora  quer  dizer  meu  canio 
Eu  sei  que  dará  a  todos  .ujsto  e  espanto. 


676      OJi»AS   DE   FKANCISCO  D^ANDJXADE. 
LXXXIX. 

Hum  destes  que  seguindo  esta  ordonan^-a 
Do  Silveira,  a  espingarda  meneara, 
Tantas  vezes  o  chumbo  delia  lança 
Que  de  todo  o  pelouro  o  desampara*, 
Porém  nella  outra  vez  o  que  era  usança 
Lançar  do  negro  pó,  então  lançara, 
Gluer-lhe  lançar  a  plúmbea  companhia, 
Busca-a,  mas  nao  a  achou  como  sohia. 


Com  isto  o  grão  fervor  nao  se  lhe  applaea, 
Antes  mais  se  accrescenta,  e  se  afervora  ; 
Ferra  d'hum  dente  seu,  que  então  ja  fraca 
Q-uiçá  tee  a  raií,  e  o  arranca  fora, 
A  espingarda  com  elle  logo  ataca, 
Q.ue  do  pelouro  o  offieio  toma  agora, 
E  ajudado  da  ardente  chanmia  leve 
Entre  os  imigos  entra  em  tempo  breve. 


Caso  de  louvor  digno,  e  de  memoria, 
Só  no  mundo  quiçá,  quanto  mais  raro. 
Mas  não  trata  mais  delle  a  minha  hisloria, 
]N2o  porque  eu  de  louvores  seja  avaro, 
Mas  porque  sempre  deu  mór  honra  e  gloria 
A  nação  l'ortugueza  (como  he  claro) 
O  braço  vencedor  que  o  engenho  agudo, 
Com  quanto  este  ja  agora  iguala  tudo. 


o    PlllMEIKO    CKIICO    BE    DIU.  CTT 


Os  Turcos  entretanto  nuo  tornúrrio 

Atraz  co^o  grão  furor  que  ant<^s  tiverao, 

E  tanto  os  defensores  apertarão 

Glue  a  vietoria  quicú  por  sua  liouverào, 

Porque  do  baluarte  mais  ganharão 

ôue  os  outros  que  primeiro  o  commtttorão, 

Porém  taes  são  os  j)eitos  que  o  defendem 

Glue  em  quanto  ha  forca  e  vida,  não  se  rendou 


Folgara  eu  por  seus  nomes  declará-los 

Pois  merecem  assaz  ser  eonhecídos, 

E  co^o  louvor  devido  eternisá-los, 

Porém  pois  me  sao  muitos  escondidos, 

E  eu  a  todos  não  posso  nomeá-los, 

Mas  a  todos  os  braços  não  vencidos 

Os  dão  a  conhecer,  se  me  perdoe 

(Aue  a  fama,  e  não  meu  canto,  os  apregoe. 


Estes  fortes  varões,  que  eu  não  nomeio 
Pois  sua  fama  o  faz  mais  largamente, 
D'hum  aceso  furor  postos  em  meio 
Todo  o  peso  sustem  da  imiga  gente  ^ 
E  como  em  toda  a  parte  tudo  he  cheio 
T)o  pique,  espada,  íVccha,   e  chumbo  ard_; 
Voa  hua  imiga  frecha,  e  sem  deten«;a 
f^í  din;ita  encontrar  vai  o  Proen<?.:. 


678      OBRAS   DE   FRANCISCO   I)'^ANBRAI>3. 


Este  era  aquelle  forte,  invicto  peito 

De  que  atraz  fez  menção  a  historia  minha ^ 

A  quem  o  baluarte  era  sujeito 

ôue  este  tão  bravo  assalto  hoje  sustinha. 

Este,  depois  de  ter  até  então  feito 

Q.uanto  ao  seu  raro  esforço  bem  convinha-v 

AUi  o  veio  a  esperar  a  cruel  morte 

Onde  a  muitos  a  deu  seu  braço  forte ^ 


No  peito  o  duro  arnez  grosso  vestia, 

E  a  cabeça  hum  elmete  lhe  defende 

A  que  a  vista  tirou,  na  qual  sentia 

Grão  pejo  para  o  que  elle  então  pertende  : 

Logo  a  frecha  mortal,  que  atraz  dizia, 

Itá.  para  elle  direita  os  ares  fende. 

Por  hum  olho  o  encontrou,  e  a  travéz  corre^ 

Ambos  llie  quebra,  e  ao  cérebro  discorre» 


Perde  logo  o  sentido  este  esforçado 
Mancebo,  onde  perdeo  também  a  vista, 
E  sendo  cego,  e  ja  desatinado 
Cumpre  que  do  combate  então  desista, 
Abaixo  d^alli  logo  foi  levado 
Pois  não  têe  forças  ja  com  que  resista  ; 
Os  que  íicão  em  cima  em  breve  espaça 
Sentem  a  falta  deste  forte  braço. 


o   PRtMElTaO   CERCO   DE   DIU.  679 


Antes  que  aquella  vez  lá  no  Oceano 
O  Sol  mettesse  a  leve  roda  usada, 
Aquelle  heróico  esprito  mais  que  humano 
Solto  ja  da  prisão  fria  e  pesada, 
Entra  no  Eterno  Assento,  e  Soberano, 
Deixando  a  terra  triste  e  acompanhada 
De  lagrimas,  de  dôr,  de  sentimento 
for  esta  grave  perda,  e  apartamento, 

XciX. 

Aquelle  valeroso  cavalleiro 

A  quem  deu  nome  António,  e  também  dera 

Dos  sobrenomes  Mendes  o  primeiro, 

E  Vasconcellos  o  outro  apoz  este  era, 

Pelejando  então  todo  o  espaço  inteiro 

Q.ue  ha  que  dura  a  batalha  horrenda  e  fera^ 

•Ja  na  garganta  o  pique  mortal  sente, 

Também  solta  do  rosto  o  sangue  quente. 


Mas  nem  por  isso  deixa  o  assalto  aceso, 

Até  que  hum  meio  berço,  irado  e  horrendo-, 

Soltando  de  travéz  o  mortal  peso 

Todo  polo  hombro  esquerdo  o  vai  rompendo  ^ 

Cahe  ja  desatinado,  e  quasi  preso 

Da  morte:,  logo  abaixo  o  vão  descendo, 

E  antes  que  o  Sol  deixasse  este  hemisfério 

Mandou  a  alma  ao  Celeste,  Eterno  Império, 


680      OBRAS   DE  FRA?>'CÍSCO    B^NDRAOS. 
Cl. 

Também  a  falta  deste  valeroso 
Companheiro,  então  foi  assaz  sentida. 
Durando  assi  o  combate  furioso 
Muitos  o  sangue  dão,  muitos  a  vida. 
Nesta  hora  o  pertinaz,  e  inda  animoso 
Turco,  a  acabar  a  empresa  não  duvida^ 
l*ois  mais  que  nunca  então  linha  ganhado^ 
Porém  bem  caro  assaz  lhe  têe  custado. 


Algum  tanto  a  Fortuna  se  mostrava 
Contraria,  ou  trabalhosa  á  Chrísfãa  parto, 
aluando  hum  a  quem  João  o  nome  dava 
E  Rodrigues  a  alcunha,  o  qual  de  Marte 
O  mais  raro  valor  partecipava, 
Com  grãa  pressa  subio  no  baluarte :, 
Nos  honvbros  hua  jarra  este  sustinha 
Qlug  de  pólvora  toda  cheia  vinha. 


Tanto  a  jarra  he  capaz  que  encerraria 
líua  arroba  do  negro  po  ruinante. 
Chegando  este  aos  da  sua  companhia, 
iiue  com  peito  feroz,  braço  constante 
Aos  imigos  a  entrada  defendia, 
Lhes  diz :  Deixai-me,  amigos,  ir  lá  ávaiitf 
Clue  nestfS  hombros  vai  quem  vos  ajudc^ 
íSfiido  a  mim  e  aos  imifíos  atatidc. 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU»  681 


Rompo  por  entre  os  sens  com  fúria  e  pressa j 
E  com  quanto  ainda  a  entrada  se  lhe  nega 
Elle  então  de  romper  e  instar  não  cessa 
Até  que  lá  onde  estão  os  Turcos  chega*, 
Co'*o  corpo  ajuda  as  mãos,  e  lhes  arremessa 
A  jarra,  e  em  vão  lá  nollcs  não  a  emprega^ 
Mas  apenas  de  si  a  despedira 
(Guando  aos  seus  com  grãa  pressa  se  retira» 

CV» 

O  1.1  teo  inda  qUc  duro  vaso  quando 
A  dureza  da  pedra  encontra  e  sente^ 
Mil  pedaços  se  faz,  com  que  mostrando 
Se  osteve  á  mor  dureza  obediente  ^ 
E  d''hum  murrão  que  o  vai  acompanhando 
Se  lhe  communicou  a  chamma  ardente, 
F;iz  logo  o  usado  cííeito  a  ardente  chammaj 
Abraza,  despedaça,  acende,  inflam  ma. 


Vèem-se  logo  nos  ares  levantados 

Mais  de  vinte  que  o  pó  sulfúreo  afferra) 

E  co\is  corpos  de  lá,  despedaçados 

E  feitos  em  carvões  descem  á  terra  ; 

Outros  tantos  ficarão  maltratados 

Desta  ardente,  apressada,  mortal  guerra. 

Os  Christãos,  que  esta  ajuda  bem  conhecem, 

Q.não  bem  podem  então  a  favorecem. 


082      OURAS   DB   FRAKCÍSCa   D''A?.DttADE. 
CVII. 

Nem  com  isto  d  logar  vazio  iica 

Q-\ni  agora  a  acesa  pólvora  despeja 5 

Mas  o  numero  alli  se  multiplica 

D\ajtros  fortes  varões  para  a  peleja. 

Deste  succcsst)  bom  ?5e  prognostica 

O  Christão  que  o  lerá  qual  o  deseja, 

Nisto  em  que  arreceava  te-lo  avesso, 

Tanto  anima  hum  bom  golpe,  hum  bom  succcsso, 

cvitt. 

Com  este  novo  esforço  e  cõníialiça 
C»uii  taula  força  09  Turcos  commetterâo, 
(iue  lhe»  he  forçado  atra?-  fazer  mudanÇ.t 
Porque  então  tesisfir-lhe  lifio  piKh.Tao* 
(filtra  Vez  o  Christíío  entfe  elles  lança 
JMil  panelias,  qut^  cm  fogo  se  aCendcrno* 
due  fazendo  o  cruel  usado  eíí*eito 
Tudo  por  onde  vao  deixao  desfeito. 


Pega  o  consumidor  braVo  elemento 
Nas  bandeiras  que  fião  por  sacras  tidas, 
Hein  ter  obediência,  e  acatanuMito 
As  virtudes  que  estão  nellas  mettidas, 
Pois  nao  somente  forão  n'hum  momc;nto 
As  bandeiras  do  fogo  consumidas, 
Mas  inda  os  que  as  sustem,  das  abundantrs 
Cliammas  forão  assaz  p;iríecipa:.!es. 


i 


o    l'J{ÍMKlílO   CEKCO   DE   DIU.  683 


Faz  isto  no  Chrisíão  dobrar-se  a2;ora 

O  grão  fervor  com  quo  atitrs  pelrjavaj 

K  tocando  a  trombeta  alta  e  sonora 

Ja  victoria  !  vicforia  !  então  bradava. 

Faz  voar  dos  imigos  corpos  fora 

As  almas  infleis,  e  os  apertava 

<^om  tão  impetuoso,  forte  Í)raço 

(iiie  03  vai  d^alli  empuchando  grande  espaço^ 

O  Chrístão  nrcabdz  injpetuoso 

Não  estava  nesta  Iiora  descuidado, 

j\í»s  solta  o  mortal  chumbo  furioso 

No  imigo  com  grãa  pressa  e  ^rão  cuidado :, 

O  cjual  segundo  então  he  copioso, 

K  do  arcabuz  está  pouco  aítastado, 

Neulnim  dos  niortaes  chumbos  o  Tutco  erra. 

Cabe  sempre  oumalíerido,  oti  morto  em  terra* 

l'2is  nesta  bofa  também  do  babiarte 

Do  mar  solta  bum  canhão  a  fúria  horfendaj 

l^ue  antes  que  a  sanguínosa  sede  farte 

INIuitos  fará  que  o  Stygio  fogo  acenda. 

Esta  direita  vai  áquella  parte 

Onde  então  se  faíia  a  grãa  contenda, 

Não  aos  que  estão  em  cima  combatendo 

31as  aos  que  estão  ao  pé  favorecendo. 


684      OBRAS   DE  FHANCISCO  d''aNDRAD«. 
CXIII. 

Entra  em  meio  da  triste  infiel  gontcj 
ílompe,  derruba,  mata,  faz  pedaços. 
Nem  resistem  melhor  ao  mal  presente 
Os  que  sobre  si  têe  os  fortes  aços: 
E  como  não  encontra  a  fúria  ardente 
Senão  peitos,  cabeças,  pernas,  braços^ 
Tudo  por  cá,  por  lá  se  vê  desfeito, 
Braeo,  perna,  cabeça,  armado  peito. 


Nem  apaga  isto  ao  Turco  a  irada  chama 
Glue  contra  o  Christão  move  espada  e  escudo^ 
Também  o  que  está  em  baixo  mais  se  inflama 
"Vendo  que  do  seu  sangue  he  cheio  tudo^ 
Innumeraveis  tiros  ja  derrama, 
Glual  redondo  e  subtil,  qual  longo  e  agudo, 
Sem  que  as  horrendas  mortes  que  então  via 
Lhe  fíossão  impedir  o  que  fazia. 

cxV. 

Pouco  apoz  este  golpe  horrendo  e  duro 
Eis  lá  do  baluarte,  que  nomeio 
Mil  vezes  São  Thomé  (d^onde  seguro 
O  Turco  então  está,  e  sem  receio, 
Com  quanto  de  lá  deste  mesmo  muro 
Pouco  antes  hum  mortal  dam  no  lhe  veio) 
Hum  camalete  solta  o  mortal  peso 
E  contra  os  Turcos  vai  em  fogo  aceso. 


«    PRIMEIRO   CBRCO   DE   DIU. 


CXVI. 


68^ 


E  direite  ao  legar  este  caminha 
Onde  agora  outro  fex  bem  larga  praça, 
E  como  este  igual  força  e  poder  tinha 
Forçado  he  que  igual  damno  também  faça : 
Mostra  aos  tristes  a  fúria  com  que  vinha, 
Mata  outra  vez,  abraza,  e  despedaça, 
E  entre  corpos  mortaes,  com  seu  grão  dano 
€luieta  o  seu  furor  mortal  e  insano. 

CXVII. 

Vendo  o  Turco  quão  bem  o  tiro  acerta 
Os  de  baixo,  e  também  qu2o  mal  os  trata, 
E  que  o  Christão  lá  em  cima  tanto  aperta 
Os  imigos,  que  quasi  os  desbarata, 
Pois  ja  lhes  derrubou  nesta  referta 
As  outras  duas  bandeiras,  e  lhes  mata 
Os  Alferes  que  as  tee,  se  esfria,  e  desce 
O  furor  que  até  então  se  acende  e  cresce, 

CXVIII. 

O  fiel  defensor  isto  entendendo 
Com  tal  grita  e  fervor  lhe  põe  o  rosto, 
Q.ue  ja  aquella  batalha  vai  vencendo 
Q.ue  em  grande  aperto  e  risco  o  teve  posto» 
A  terceira  batalha  isto  então  vendo 
Faz,  de  grãa  fúria  cheia,  e  grão  desgosto, 
Apartar  os  cansados  ^  mas  forçado 
Me  he  que  eu  também  me  cale  de  cansado. 
»  20 


o  fi^Riiii<:iiio 

CERCO  DE  DIU. 


CAUTO  XX. 


A  terceira  batalha  dos  imigos  he  tamhem  roid 
e  desbaratada  poios  Christãos,  Os  1\ircos  se 
reiirão  com,  grande  damno  e  perda  da  sua 
gente.  Enibarcãose  nos  seus  navios ^  e  ior- 
nuo-se  para  suas  terras. 


♦la  vejo  o  doct;  porto  desejado 

Se  o  dest-jo  de  vê-lo  não  me  engana, 

Onde  estarei  seguro  e  descansado, 

Sem  contrastar  á  forya  mais  que  humana 

Do  furibundo  Noto,  horrendo  e  irado, 

E  da  impetuosa  onda,  grossa  e  insana, 

Em  frágil  barca,  e  mal  apercebida 

A  viagem  lao  dura,  c  tão  comprida. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  68t 


Em  meio  do  furor  da  onda  marinha 
Engrossada  co'©  bravo,  inchado  NotOj 
Mil  vozes  vi  perdida  a  barca  minha 
Por  faltas  ou  do  leme^  ou  do  Piloto, 
E  pois  tão  mal  composta  cila  caminha 
Por  mar  tempestuoso,  largo  e  ignoto, 
Maravilha  he  do  Ceo  que  o  porto  veja 
F;  rn  padecer  naufrágio,  que  deseja. 

Ill* 

.Poirm  nao  sei  se  fofa  mais  ditosa 

Kin  se  render  de  todo  ao  tiiar  e  ao  vento 

Ficiíndo  assaz  contente  e  gloriosa, 

E  co'o  ganho  d'hum  tão  heróico  intento, 

Que  apoz  via  tuo  larga  c  trabalhosa 

Chegar  ao  fim  ao  porto  a  salvamento 

Onde  eu  sei  que  ha  de  ter  (e  não  me  engano) 

Outro  naufrágio  mor  e  de  mor  dano. 


Porque  então  se  verá  quanto  atraz  fico 
Do  que  pedindo  estava  hum  tal  sujeito, 
No  qual  inda  o  mais  fértil,  e  mais  rico 
Engenho,  fora  estéril  e  imperfeito  ^ 
Por  onde  eu  ja  d^aqui  me  prognostico, 
Pois  o  erro  começou  ja  do  conceito. 
Ter  antes  vitupério,  que  honra  ou  gloria. 
Pois  ousei  emprehender  tão  alta  historia, 


V. 

Vos,  ó  fortes  varôes,  de  quem  Gu  tanto, 
Perdoai  se  não  dou  tudo  o  que  Iic  vosso, 
Porque  não  ha  ninguém  que  possa  tanto, 
Menos  eu,  que  entre  todos  menos  posso  i^ 
E  se  cu  qui2  empregar  em  vós  hum  canto 
Q.ue  eu  conheço  por  baixo,  rudo,  e  grosso, 
He  só  porque  me  força  hum  grão  desejo 
Q-ue  vojão  de  vós  todos  o  que  eu  vejo. 

Vi. 

Porem  nao  Vos  pareça  qiie  a  rudezéi 

Do  men  inculto  verso,  pouco  agudo, 

Abaterá  a  vossa  alta  fortaleza 

Com  que  d^espanto  tendes  cheio  tudo  ^ 

Porque  das  vossas  obras  a  grandeza 

Bastará  para  honrar  meu  canto  rudo, 

E  este  nunca  será  tao  poderoso 

Que  faça  o  que  em  vós  ha  menos  lustroso. 

Vil. 

A  terceira  batalha  que  alli  estava 
Prestes  para  qualquer  necessidade, 
Vendo  que  ja  a  segunda  começava 
De  render-se  á  Christâa  ferocidade, 
Com  tal  grita  que  os  ares  atroava. 
Por  dar  soccorro  áquella  adversidade 
Corre  direita  lá  ao  baluarte, 
E  o  cansado  d'alli  faz  que  se  aparte. 


Ô    l*RiMElRO    CERCO   DE   DtU,  689 

VIII. 

Entra  no  logaf  deste  ja  cansado 
Outro,  com  novas  forças  descansadas. 
Logo  o  novo  furor  aceso  e  irado 
Faz  menear  as  laníjas,  e  as  espadas. 
Vê-se  de  novo  o  sangue  derramado, 
E  veem-se  almas  de  novo  trespassadas 
Ba  terrestre  prisão  ao  assento  eterno, 
Entrando  huas  no  Ceo,  outras  no  inferno, 

IX. 

Mas  como  nSo  viesse  tão  provida 
Ja  agora  esta  batalha  derradeira 
De  esforçados  varÔeS,  gente  escolhida, 
GLuanto  a  segunda  ja  veio,  e  a  primeira. 
Não  foi  com  tanta  instancia  combatida 
Agora  a  Christãa  gente,  e  de  maneira 
Q-ue  em  aperto  ao  passado  igual  se  Veja, 
Porque  mais  tíbio  o  Turco  ja  peleja. 

X. 

Causa  he  quiçá  também  poíqiie  appaíece 
Nestes  agora  o  peito  menos  forte, 
Ver  que  a  fortuna  os  seus  desfavorece, 
Vendo  nelles  incêndios,  sangue,  e  morte  ^ 
Pois  nas  guerras  mil  vezes  acontece 
Causar  maior  espanto  a  adversa  sorte, 
E  o  mal  do  companheiro,  e  grão  perigo, 
Q-ue  a  constância  e  valor  do  bravo  iraigo. 


Presente  aqui  se  achou ^  para  seu  dano, 
ílum  Janizaro  então,  tão  forte,  e  clieio 
D''hum  tao  alto  valor,  tão  sobrehumano 
Glue  nunca  nelle  entrou  qualquer  receio  ^ 
Ao  qual  o  renegado  Italiano 
(Cojaçofar  mil  vezes  o  nomeio) 
Por  mulher  hua  filha  sua  dera, 
Carahacem  ouvi  que  o  seu  nome  era» 

XII. 

Em  meio  da  peleja  este  se  lançaj 
Passa  por  entre  todos  animoso, 
E  sem  temor  da  imiga  dura  lança 
Mostra  o  seu  forte  braço  valeroso. 
E  não  somente  a  esforço  e  confiança 
Move  o  Turco  esquadrão,  quiçá  medroso j 
Mas  o  imigo  também,  que  têe  diante, 
Faz  do  dam  no  dos  seus  partecipante, 

Xlll» 

O  Christao  que  aos  imigos  resistia 
Vendo  quanto  este  Turco  he  differentêj 
Assi  nas  ricas  armas  que  vestia. 
Como  no  grande  esforço,  da  outra  gente^ 
Dessas  poucas  panellas  que  ja  havia, 
Glue  lanção  de  si  a  braVa  chamma  ardente 
Q-uando  ao  murrão  aceso  abrem  a  porta. 
Faz  com  que  hua  contra  elle  os  ares  corta» 


o  PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  691 

XIV. 

Nem  lhe  sahe  hoje  em  vao  o  que  pertende, 
Porque  faz  o  caminho  tao  direito 
Gtue  o  misero  infiel  nuo  se  defende 
De  sentir  o  seu  bravo  horrendo  effeito  ^ 
Solta  a  chamma  cruel,  que  abraza  e  acende 
Ao  triste  a  perna,  o  braço,  o  rosto,  o  peito, 
E  cercado  de  dôr  intolerável 
Se  queixa  com  voz  alta,  e  lamentável. 

XV. 

Forçado  desta  dôr  que  o  desatina 
Deixa  o  assalto  cruel,  sanguinolento, 
Mas  no  reino  infiel  de  Prosérpina 
Sua  alma  desta  vez  não  fez  o  assento, 
Porém  sente  nos  membros  graa  ruina  : 
Da  qual  desaventura,  e  detrimento 
Glue  hoje  neste  combate  lhe  acontece 
Se  jacta  assaz  depois,  e  ensoberbece. 


A  falta  deste  so,  que  tenho  dito, 
ôue  os  seus  ja  não  ajuda,  nem  anima, 
Tanto  abatco  então  o  tibio  esprito 
Dos  mais  que  pelejando  estão  lá  em  cima, 
Glue  com  quanto  de  muitos  acho  escrito 
Glue  são  de  grão  valor,  de  grande  estima, 
De  todo  agora  ja  se  enfraquecerão 
E  aos  quasi  ja  rendidos  se  renderão. 


692      OBRAS    DE   FRANCISCO    d\4iNDRADE. 


O  cansado  Christâo,  e  tao  ferido 
Q-ne  quasi  ja  iiao  têo  que  dar  a  veia, 
Depois  de  ter  grão  tempo  resistido 
A  hua  graa  cópia  sempre  saa  e  cheia, 
Vendo  o  imigo  furor  enfraquecido, 
E  que  elle  ja  de  todo  o  senhoreia, 
Com  nova  grita  e  esprito  tao  mal  trata 
O  Turco,  que  de  todo  o  desbarata. 


Este,  a  que  hum  grave  medo  ja  atravessa, 

E  do  seu  braço  está  desconfiado, 

"Volta  as  costas  de  todo,  com  graa  pressa, 

Ja  nao  soberbo  eutão,  ja  nao  ousado^ 

Do  baluarte  abaixo  se  arremessa 

Mais  do  que  antes  subira  inda  apressado, 

Deixando  o  que  ganhou  com  sangue  e  mortes 

De  grãa  copia  de  imigos,  peitos  fortes. 

XIX. 

Durou  este  combate  hum  grande  espaço 

Que  em  quatro  horas  inteiras  se  limita, 

Nas  quaes  sempre  o  Christâo  e  o  Turco  braço 

Em  novo  ódio  e  furor  se  acende  e  incita  \ 

E  renovando  sempre  ou  fogo  ou  aço 

A  porta  á  vida  e  ao  sangue  facilita, 

Dando  isto  não  receio,  mas  motivo 

De  fúria  e  de  vingança  ao  sao  e  ao  vivo* 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE   DIU.  C93 

XX. 

Mas  como  este  combate  bravo  e  horrendo 
Foi  mais  que  os  outros  largo  e  furioso, 
Também  para  os  que  estavão  defendendo 
Mais  que  nenhum  dos  outros  foi  custoso  \ 
Porque  se  eu  esta  conta  bem  entendo 
Gluatorze  ao  Reino  Eterno  e  Glorioso 
Passão  os  seus  espritos  nao  vencidos, 
E  são  mais  de  duzentos  os  feridos. 

XXI. 

Tão  vazia  deixou  da  forte  gente 

A  fortaleza,  esta  áspera  batalha, 

Qiue  quarenta  varões  nella  ha  somente 

Q-ue  se  possão  servir  de  espada  e  malha. 

Consumio-se  de  todo  aqui  o  ardente 

Pó,  com  que  os  seus  coriscos  no  ar  espalha 

Ou  o  grosso  canhão,  ou  a  espingarda, 

Nada  delle  o  barril  dentro  em  si  guarda* 

XXII. 

As  panellas,  e  as  bombas,  que  ajudadas 
Do  fogo,  em  vivo  fogo  se  acendião, 
Todas  naqiielle  tempo  erao  gastadas, 
Q.ue  a  defensão  assaz  favoreeiào  ; 
As  lanças  erâo  todas  tao  cortadas 
Do  continuo  bater,  que  servirião 
Mais  ao  ferido  e  enfermo  para  encosto 
Q-ue  ao  sao  para  mostrar  ao  imigo  o  rosto» 


694      OBRAS   DE   FRANCISCO   d'aNDRADE. 


Nesta  falta  de  tudo,  ao  grão  Silveira 
O  esforço  nao  faltou  que  antes  tivera, 
Mas  se  ordena  e  refaz  de  tal  maneira 
Com  a  gente  plebeia  que  alli  era, 
Q-ue  querendo  a  infiel  Turca  bandeira 
Commettê-lo  outra  vez  (como  se  espera) 
Veja  que  ainda  que  alli  tudo  o  mais  falta 
D^esforço  e  defensão  só  não  ha  falta. 

XXIV. 

Porém  os  Turcos  ja  com  grão  receio 
Ás  estancias  então  se  retirarão, 
Deixando  do  seu  sangue  o  logar  cheio 
Q-ue  para  combater  alli  tomarão^ 
D'onde  hfia  perda  tal  lhes  sobreveio 
Glue  mais  de  mil  o  sangue  derramarão, 
E  dos  melhores  vão  mais  de  quinhentos 
Sentir  os  inferaaes,  graves  tormentos. 

XXV. 

Tanto  este  grão  temor  que  o  Turco  havia 
O  peito  lhe  trespassa,  e  a  côr  lhe  muda, 
Glue  quando  o  Sol  chegou  ao  moio  dia 
Recolher-se  ás  galés  qualquer  estuda  ^ 
Leva  também  comsigo  a  artilharia, 
Mas  aqtiella  semente  que  he  miúda, 
E  com  menos  trabalho,  e  mor  presteza 
Se  luva.  sem  se  ver  du  fortaleza. 


o    PRIMEIKO   CEUCO    DE    DIL.  tí9o 


Mas  por  se  dar  melhor  expediente 
Áquella  artilharia  que  embarcavao, 
As  galés  se  chegarão  juntamente 
Mais  á  Villa  dos  Rumes,  do  que  estavao. 
Porém  em  quanto  as  terras  do  Occidonte 
Hoje  os  raios  do  Sol  aliimiavao, 
De  bater  o  canhão  grosso  niio  cessa 
Co'o  seu  furor  usado,  e  usada  pressa. 

XXVII. 

Sendo  da  fortaleza  divisado 

Como  as  galés  se  vem  para  mais  perto, 

E  que  hum  grosso  esquadrão,  com  grão  cuidado 

Se  embarca  nellas  claro  e  descuberto, 

A  lembrança  do  engano  antes  passado 

Faz  que  todos  agora  hajao  por  certo 

G-ue  quer  o  Turco  usar  de  igual  engano 

Contra  o  ja  destroçado  Lusitano, 


Esta  geral  suspeita  tanto  esperta 

O  prudente  Silveira  neste  ensejo, 

Q-ue  tendo  elle  também  por  cousa  certa 

Glue  d'enganá-lo  o  Turco  tèe  desejo, 

Esse  pouco  que  tèe  tao  bem  concerta 

Glue  parece  que  tudo  tèe  sobejo  : 

Tal  era  o  grande  esforço,  a  gràa  prudência 

Com  que  ordenava  então  a  resistência. 


XXIX. 

Nem  só  a  defensão  facilitava 

Mas  de  victoria  dá  grande  esperança, 

E  tao  seguramente  isto  affirmava 

Q.ue  enche  todos  de  esforço  e  confiança; 

Tal  que  o  que  era  mais  fraco  então  jurava 

€lue  de  tudo  alli  têe  grande  abastança, 

Pois  não  cuida  que  cousa  falta  esteja 

Onde  no  Capitão  tudo  sobeja. 

XXX. 

o  qual  vendo  que  toda  he  ja  gastada 
Q^uanta  pólvora  tinha  naquella  hora, 
Faz  que  toda  a  que  estava  agasalhada 
Em  quatro  peças  grossas  saia  fora, 
Pois  nenhua  outra  está  ja  carregada 
Antes  todas  cessado  têe  ja  agora, 
E  o  negro  pó  que  então  faz  sahir  delias 
Por  trinta  repartio,  e  mais  panellas* 

XXXI. 

Todo  o  fraco  logar  com  brevidade 
Repara,  como  a  falta  lh'o  concede, 
Das  pedras  nelle  põe  grãa  quantidade 
Gtue  co''o  braço  atraz  posto  a  mão  despede  ^ 
Alguns  feridos,  cuja  enfermidade 
Poder  ja  mostrar  rosto  não  lh''impede, 
Ajunta  com  alguns  dos  que  sãos  erão 
€Lue  inda  assi  confiança  lhe  puzerão.. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE   DIU.  697 

XXXII. 

Muitos  feridos  que  isto  imo  podião 
Se  mandarão  levar  ao  baluarte, 
Porque  para  morrer  este  escolhiâo 
Por  logar  mais  decente  que  outra  parte  ^ 
Os  que  das  espingardas  se  servião 
Por  todo  o  logar  fraco  elle  reparte, 
E  a  pouparem  então  mais  os  convida 
A  pólvora,  que  o  imigo,  .sangue  e  vida. 


Com  tão  pobre  apparato,  e  differento 

Do  combate  que  espera  horrendo  e  forte, 

Determina  esperar  o  fim  presente 

Glue  lhe  ordenar  a  dura  ou  branda  sorte, 

O  qual  não  poderá  ser  descontente 

Pois  será  o  seu  mor  mal  a  honrada  morte, 

E  se  lhe  tira  o  gosto  da  victoria 

Não  lh'o  pode  tirar  da  Eterna  Gloria. 

XXXIV. 

Todo  o  espaço  que  o  Sol  hoje  alumia 
A  terra,  antes  de  entrar  lá  no  Oceano, 
Se  gastou  (porque  então  ja  quasi  havia 
Em  todos  de  morrer  hum  desengano) 
Em  cuidar  cada  hum  como  podia 
Morrer,  com  dar  ao  imigo  maior  dano, 
E  isto  em  ninguém  temor  põe,  ou  tristeza, 
Mas  em  todos  alegre  fortaleza. 


698      OBRAS    DE    FliANCISCO    D^ANDRAUE 
XXXV. 

Tal  era  o  alegre  esforço,  que  era  tido 

Por  hum  particular  favor  celeste, 

E  como  para  festa,  quem  provido 

Do  bom  vestido  está,   agora  o  veste  ^ 

E  o  que  não  iêe  de  seu  o  bom  vestido, 

Busca,  e  nao  lhe  fallece  quem  lh''o  empreste*, 

Por  in hábil,  e  assaz  desamparado 

Se  têe  o  que  então  se  acha  mal  ornado, 

XXXVI. 

Este  esforço  geral,  este  grão  gosto 

GLue  em  to«dos  d^hum  honrado  fim  se  entendo, 

Nos  homens  não  está  somente  posti» 

Também  aos  feminis  peitos  se  estende  : 

Glualquer  delles  mostrar  direito  o  rosto 

Contra  a  gente  infiel  também  perteiide, 

E  n'alguas  fez  isto  taes  effeitos 

Q.ue  cubrírSo  de  ferro  os  brandos  peitos. 

XXXVII. 

Q-uasi  toda  a  seguinte  noite  inteira 
N 'alguns  rebates  falsos  foi  gastada, 
Dados  polo  mandado  do  Silveira 
Por  nao  estar  i  gente  descuidada  ^ 
E  vio-se  em  todos  mostra  verdadeira 
Da  vontade  geral  determinada 
Q-ue  Iêe  de  contrastar  aos  verdadeiros. 
Pois  todos  nisto  qu(;re«i  ser  primeiros. 


'ui:.íi:íuo  ci:nco  jde  diu.  G09 


XXXVIII. 


Mas  tanto  ha  ja  que  os  Turcos  occiípados 
Deixei  em  se  embarcar,  que  o  pensamento 
Mc  dá  que  estão  ja  todos  embarcados, 
Q.uero  ir  vêr  qual  agora  he  seu  intento. 
Tendo  estes  nos  combates  ja  passados 
Recebido  grâa  perda  e  detrimento 
Na  gente  e  munições,  neste  quixerao 
Mostrar  seu  poder  todo,  e  assi  o  fizerao. 

XXXIX. 

Porem  neste  também  se  lhes  mostrarão 
Os  Fados  mais  cruéis  que  protectores, 
Pois  com  grande  dam  no  sen  se  sujeitarão 
(Como  ja  disse)  aos  fortes  defensores. 
Depois  que  se  ás  estancias  retirarão 
Achào,  tornando  em  si,  que  dos  melhores 
Duzentos  sobre  mil  tinbao  perdidos, 
K  os  vivos  quasi  todos  são  feridos. 

XL. 

Achao  também  de  todo  consumidas 
Ja  quasi  as  munições,  com  que  oflendiao, 
K  que  cora  forças  tao  enfraquecidas 
Nao  somente  assaltar  ja  não  podiâo, 
Mas  que  se  acaso  fossem  commettidas 
De  qualquer  leve  força,   se  porião 
A  risco  de  acabar-se,  e  de  perder-se 
Sem  poderem  somente  defender-se. 


^00      OBRAS    DE    FRANCISCO    dVkDKADE. 


Afora  isto  também  temem  que  a  gente 
Da  terra,  o  seu  estado  contemplando, 
Contra  elles  novidade  algua  tí?nte 
Com  que  grão  damno  assaz  lh'irá  causando^ 
Pois  de  gente  nao  têe  falta  somente, 
Mas  também  o  comer  lhes  vai  faltando, 
K  os  da  terra,  que  só  provê-los  podem 
Com  mantimentos,  entSo  ja  mal  lh'acodem. 


Estas  e  outras  rasões,  tanta  efíicacia 
Tiverão,  no  infiel  povo  profano. 
Em  quem  ja  era  abatida  a  antiga  audácia, 
Resfriado  o  furor,  e  o  esprito  ufano, 
Q-ue  vendo  que  durando  a  pertinácia 
Lhe  cresce  a  occasião  de  maior  dano. 
Determina  deixar  aquella  guerra 
E  tornar  cada  hum  a  sua  terra. 

XLllI. 

Com  este  pensamento,  assaz  alheio 
Do  que  a  gente  Christaa  delle  cuidava, 
Depois  que  a  se  embarcar  o  Turco  veio 
Como  (se  bem  me  lembro)  antes  contava, 
Tanto  que  ao  Occidental  salgado  seio 
O  Sol  se  recolheo,  e  começava 
De  se  estender  na  terra  a  sombra  escura, 
Recolher  o  canhão  grosso  procura. 


o    PRIMEIRO    CERCO    DE   DIU.  70  í 


Mas  porque  isto  o  Christao  nao  sinta  agora, 
E  o  rumor  lhe  descubra  esta  tamanha 
Fraqneza,  que  lhe  encobre  a  nocturna  hora, 
D^hum  grão  silencio  então  isto  acompanha: 
Porém  da  artilharia  algua  fora 
Deixa,  inda  que  a  possivel  força  o  manha- 
l'Õe  pola  não  deixar,  porque  não  tinha 
Quanta  gente  para  isto  lhe  convinha. 

XLV. 

Fica  entregue  ao  Latino  renegado 

Todo  o  canhãxj  porem  que  então  nao  hia, 

Glue  delle  e  das  estancias  grão  cuidado 

Toma,  e  de  tudo  o  mais  que  alli  se  via. 

Lego  em  logar  do  Turco  ja  embarcado 

Põe  a  gente  da  sua  companhia, 

Porque  o  Christao  não  sinta  esta  sua  ida 

Temendo  que  se  a  sente  então  Ih 'a  impida. 


O  Turco,  em  quanto  a  noite  persevera 
Tolhendo  a  clara  luz  co'o  manto  escuro, 
Tudo  quanto  embarcar  possivel  lhe  era 
Como  pôde  melhor,  pôz  em  seguro. 
Porém  a  Christãa  gente  em  tanto  espera 
Glue  em  vindo  o  matutino  raio  puro 
Lhe  venha  o  fim  com  ello  juntamente 
Do  trabalho  geral  que  alli  se  sente. 


T02      OURAS    DE   FRANCISCO    D''ANiaRADE. 


Chfcla  desta  esperança,  que  ha  por  certa, 
Está  a  gente  Christaa,  mas  animosa, 
Ao  sonnno  não  entregue,  mas  desperta, 
De  vender  bem  a  vida  desejosa, 
Gluando  lá  no  Horizonte  dcscuberta 
Foi  a  alegre  manhãa,  clara,  e  formosa, 
Em  que  a  Igreja  festeja,  com  louvores, 
Todos  os  que  no  Ceo  são  moradores. 

XLVIII. 

Ja  agora  esta  nao  vem  acompanhada 

De  imigos  esquadrões  do  aço  luzentes. 

Nem  soa  nelle  a  horrisona  alvorada 

Dos  pelouros  cruéis,  bravos,  ardentes. 

Mas  quieta  apparece,  e  socegada. 

Cheia  de  ares  serenos,  e  contentes, 

Nâo  qual  se  espera,  horrenda,  triste,  e  dura, 

Que  lhe  faz  mais  formosa  a  formosura. 

XLIX. 

Tanto  que  a  nova  luz,  serena  e  clara, 
Mostra  a  ausência  aos  Xpãos  do  Turco  imigo, 
E  que  o  Cambaio  em  seu  logar  deixara, 
E  elle  os  mais  dos  canhões  leva  comsigo, 
Com  tal  prazer  que  a  lingua  o  não  declara 
Cada  hum  corre  a  dar  a  nova  ao  amigo 
Do  que  elle  ja  sabido  e  visto  tinha, 
E  de  que  também  novas  dar-lhe  vinha. 


o    PRIMEIRO   CERCO    DE    DIU.  703 


Porém  com  quanto  hum  e  outro  isto  que  ouvira 
Por  seus  olhos  ja  têe  visto  primeiro, 
Ouvo  as  novas  porém  do  que  bera  vira 
Com  grão  prazer,  do  amigo  c  companheiro, 
Julgando  que  o  que  vio  não  he  mentira. 
Pois  outro  o  vio  também,  mas  verdadeiro, 
E  assi  esta  reciproca  alegria 
Dobra,  e  acredita  o  bem  daquelle  dia. 

LI. 

Entretanto  o  infiel  não  pára,  ou  cessa. 

Antes  em  sou  intento  continua, 

Q.ue  quiçá  hum  grão  temor  o  move  e  apressa 

Que  o  commetta  o  Christão,  e  alli  o  destrua. 

Agua  recolhe  dentro  com  grãa  pressa, 

E  o  mais  que  necessário  lhe  era  a  sua 

Viagem  larga  assaz,  e  nisto  gasta 

Sete  dias,  que  hum  menos  lhe  não  basta. 


Mas  vendo  os  que  na  terra  eutao  vivião 

O  destroço  que  os  Turcos  ja  levavão. 

Muitas  daquellas  cousas  lhe  impedião 

Q.ue  elles  para  a  viagem  embarcavão, 

E  com  tanto  seu  dainno  isto  fazião 

Gtue  vida  e  sangue  huns  e  outros  derramavao; 

Mas  faz  Cojaçofar  com  que  esta  gente 

Os  deixe  fornecer  bem  pobremente. 


704      OBKAS    DE   rilANCISCO    u'AíNDRADE. 
LIII. 

Todos  os  sete  dias  que  estiverao 
Km  fornecer-se  os  Turcos  occupados, 
Jj-d  por  aquella  praia  se  pozerão 
íiue  meia  légua  os  tee  só  aflfastados 
T)a  Christaa  fortaleza,  lá  d'onde  erao 
De  todos  claramente  divisados, 
E  os  vião  trabalhar  desde  que  a  terra 
O  Sol  visita,  até  que  o  mar  o  encerra. 


Nestes  dias  porém  nao  se  assegura, 

Nem  se  descuida  ou  dorme  o  bom  Silveira, 

No  muro  reparou  toda  a  rotura 

Com  que  de  novo  fica  sãa,  e  inteira, 

E  tudo  o  mais  fazer  então  procura 

(Q-ue  esta  mostra  nao  ha  por  verdadeira) 

Q-uanto  a  se  defender  lhe  era  importante, 

Como  se  o  Turco  vira  inda  diante. 


Aquelle  mesmo  claro  e  alegre  dia 

Glue  aos  Christãos  deu  o  gosto  que  atraz  digo. 

Gluando  a  sombra  se  faz  ja  longa  e  fria 

E  o  Sol  torna  a  buscar  o  assento  antigo, 

Mandar  o  Capitão  alguns  queria 

liíí  fora  onde  estivera  o  campo  imigo, 

A  qual  gente  de  mais  então  não  trate 

Gtue  nas  estancias  dar  algum  rebate. 


o  rniMEiíio  cLRco  de  diu.  705 

LVl. 

Não  tanto  porque  ao  Mouro  maltratasse 
Q-uanto  por  lhe  encubrir  quão  fraco  estava, 
Porque  ellc  se  o  sentir  não  intentasse 
Dar  fim  a  isto  a  que  o  Turco  o  então  dava  \ 
E  para  que  esta  gente  derrubasse 
Aquelles  bastiões  que  lá  na  cava, 
De  trincheiras  assaz  forteficados, 
Os  Turcos  antes  tinhao  situados. 

LVII. 

Pode  António  da  Veij^a  logo  esta  ida 
Glue  a  fortaleza  está  feitorisando, 
A  qual  do  Capitão  lhe  he  concedida 
E  lhe  está  mil  louvores  ajuntando^ 
Manda  também  que  o  vão  nesta  sabida 
Vinte  e  cinco  varões  acompanhando. 
Cujos  peitos,  e  braços  valerosos 
Para  outros  feitos  são  mais  perigosos. 

LVIII. 

Não  quer  Veiga  fazer  qualquer  demora 
Q-ue  para  isto  hoje  o  esprito  se  lhe  dobra, 
Dos  seus  acompanhado,  salta  fora, 
Seu  furor  nas  estancias  põe  por  obra. 
Pouco  o  Cambaio  aqui  resiste  agora, 
Q-ual  perde  a  vida,  qual  fugindo  a  cobra  ^ 
Cahe  toda  a  estancia  ja  com  grâa  presteza 
Glue  mais  perto  se  vê  da  fortaleza. 


<tr*J      OliílAS    DE   VRANCIIiCO    D  AKCRAUfí. 

Em  quanto  Veiga  nisto  o  tempo  gasta 
Salie  do  longo  da  cava,  pola  banda 
De  fora,   hum  dos  que  traz,  que  se  lhe  aíTu.-ífíi 
Gluiçá  mais  do  que  o  tempo  e  a  rasao  matiJa  \ 
Mas  como  isto  ninguém  ja  lhe  contrasta, 
Tanto  neste  caminho  adiante  anda 
Q.ue  chegou  a  hua  estancia,  cujo  posto 
Sobre  a  rocha  do  mar  estava  posto. 

LX. 

Entrando  nella  a  vé  des  mi  parada, 
E  lá  no  bastião  delia  subindo 
llíla  bombarda  vio,  que  alli  deixada 
Foi  dos  Turcos,  e  então  nao  advertindo 
Se  ella  era  saa,  ou  se  era  arrebentada, 
(Leão  era,  se  o  certo  estou  ouvindo) 
E  achando  nesta  estancia  hua  bandeira, 
Volta,  e  comsigo  a  traz  por  companheira. 

LXI. 

Direito  áqnclla  parte  lá  caminha 
Onde  António  da  Veiga  antes  deixara, 
Chegando  lá  lhe  disse  d'onde  vinha 
E  daquella  bombarda  que  lá  achara. 
Veiga  vendo  que  tudo  feito  tinha 
O  para  que  o  Silveira  o  lá  mandara, 
Nem  ha  necessidade  a  que  elle  acuda, 
Lá  para  a  fortaleza  o  passo  muda. 


I)    1'KIMRIRO    CERCO    DE    DIU.  /' 

LXII. 

Este,  ou  que  o  bom  successo  deste  feito 
A  névoa  do  temor  lhe  desfizesse 
De  que  notado  foi  sempre  o  seu  peito, 
Ou  que  a  morte  chamá-lo  ja  quizesse, 
Animado  hoje  assaz  e  satisfeito, 
Importuna  o  Silveira  que  lhe  desse 
Licença,  e  companhia  com  que  possa 
Tomar  aquella  peça  forte  e  grossa. 

LXIII. 

O  Capitão  se  escusa  e  se  desvia 
Do  Veiga,  e  assi  lhe  diz,  que  bem  entende 
Q.ue  em  tomar  o  canhão  pouco  fazia 
Pois  que  ninguém  tomá-lo  lh''o  defende, 
E  pois  em  toda  a  estancia  nao  se  via 
Outro  canhão  algum,  bom  se  comprehende 
Q-ue  aquelle  deve  ser  arrebentado. 
Pois  todo  o  que  era  são  fora  levado. 

LXIV. 

Veiga  a  tantas  rasões  nao  obedece, 
Antes  mais  importuna,  e  mais  atura, 
E  tanto  em  seu  intento  prevalece 
Q.ue  escusar-se  o  Silveira  em  vão  procura :, 
O  qual  por  quanto  agora  bem  conhece 
Q^uão  pouco  em  lhe  outorgar  isto  aventura. 
Por  não  ter  este  so  delle  esta  queixa 
tJumprir  sua  vontade  agora  o  deixa. 


708      OBRAS    DE    FRANCISCO    D^NDRADE. 
LXV. 

Fax-lhe  Veiga  o  devido  acatamento 

E  se  vai  fazer  prestes  para  esta  ida, 

E  logo  como  o  usado  mantimento 

Deu  ao  corpo  mortal,   na  hora  devida, 

Se  cobre  do  melhor  seu  ornamento, 

E  inda  que  hum  e  outro  amigo  o  então  convida 

Com  armas,  e  era  vestir-lh''as  insistisse. 

Nenhum  dobrar  o  pôde  a  que  as  vestisse. 

LXVI. 

E  de  vinte  homens  ja  posto  diante 

Q-ue  o  Silveira  para  isto  então  lhe  entrega, 

Sahe  de  longo  da  rocha,  que  a  vazante 

Da  maré,  que  he  bem  baixa,  lh'o  não  nega.v 

Por  hum  logar  trepando,  que  bastante 

Subida,  e  fácil  dá,  á  estancia  chega  ; 

Acha  o  canhão,  mas  acha  prova  clara 

Gtue  por  quebrado  o  Turco  o  não  levara, 

LXVII. 

Mas  nem  por  isso  quiz  que  lá  ficasse 

Pois  viera  alli  S(5  para  levá-lo. 

Faz  que  á  borda  da  rocha  elle  chegasse 

Porque  abaixo  d^alli  possa  lançá-lo. 

Mas  a  morte,  que  faz  que  elle  arribasse 

Alli  onde  viera  ella  esperá-lo. 

Para  o  levar  ordena  então  hum  meio, 

€tue  sabendo  eu  que  hecerto,  inda  o  não  creio. 


o   PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  709 

LXVIII. 

N'hum  alto  que  d^alli  distante  estava 
Mais  de  seiscentos  passos,  se  bem  conto, 
Hum  Mouro  appareceo,  que  meneava 
Híia  espingarda,  e  os  vinte  olhando  pronto, 
Inda  que  assaz  de  longe,  os  enxergava  •, 
Põe  no  rosto  a  espingarda,  e  o  subtil  ponto 
Direito  nelles  põe,  e  faz  que  logo 
A  pólvora  o  furor  sinta  do  fogo. 


Sahe  o  chumbo  subtil,  e  contra  a  estancia 
Onde  então  Veiga  está  voa  direito, 
E  sendo  grande  assaz  esta  distancia 
Parece  que  qualquer  bem  fraco  objeito. 
Com  qualquer  fraca  e  leve  repugnância, 
Lhe  pudera  impedir  o  usado  effeito. 
Porém  não  foi  assi,  que  a  cruel  morte 
O  fez  mais  do  que  soe  agora  forte. 

LXX. 

Entra  em  meio  dos  vinte,  mas  somente 
Busca  o  misero  Veiga,  o  qual  mettido 
No  meio  estando  então  da  sua  gente, 
E  de  estatura  sendo  mal  crescido, 
Pola  cabeça  o  encontra  o  chumbo  ardente, 
Deixando  todo  o  que  era  mais  comprido, 
Glue  por  rasão  estava  em  mor  perigo 
Glue  o  pequeno,  a  quem  elle  dava  abrigo. 


710      OBRAS    DE   FRANCISCO    D^ANDRADl 


Do  pelouro  mortal  Veiga  encontrado 
Palliflo  cabe,  perdida  a  vitía  chara, 
O  esprito,  do  que  soe,  mais  hoje  ousado. 
Entra  na  Região  Celeste  e  Clara. 
A  fortaleza  foi  logo  levado, 
Deixando  lá  o  canhão  que  o  lá  levara. 
Morte  de  ponderar  mais  digna,  entendo, 
Glue  quantas  nesta  guerra  estive  veado. 


E  inda  que  com  louvores  esta  honrar-se 

Parece  que  nao  he  cousa  devida, 

Sem  rasão  he  porem  vitiiperar-se 

-Q-uem,  ou  bem  ou  mal  seja,  perde  a  vida, 

Rasão  me  pareceo  manifestar-se 

Gluão  bom  do  Veiga  foi  favorecida 

A  fortaleza,  porque  a  vida  leve 

O  louvor  que  se  á  morte  pouco  deve. 


LXXIII. 

Este,  em  quanto  o  feroz  Turco  se  espalha 
Em  torno  4  fortaleza,  nao  cessando. 
Ajudado  de  muitos  que  agasalha, 
E  que  está  á  sua  custa  sustentando. 
Nos  reparos  e  em   tudo  o  mais  trabalha, 
Pedra,  terra,  e  o  que  cumpre  acarretando 
Com  que  na  defensão  tão  bem  ajuda 
Como  o  que  contra  o  imigo  o  passo  muda, 


o    PRIMEIRO   CERCO   DE  DIU.  71  i 

LXXIV. 

Porém,  ou  cu  mal  ouço,  ou  com  voz  alta 
Me  chama  agora  o  Turco,  e  me  importuna, 
GLue  deseja  partir-se,  pois  lhe  falta 
Das  armas  o  favor,  e  da  Fortuna. 
Ja  para  elle  outra  vez  meu  canto  salta 
Pois  ja  prestes  o  vejo,  e  que  opportuna 
Conjunção  têe  agora  de  partir-se, 
E  vejo  que  sem  mim  pode  mal  ir-rse. 


Esta  gente  infiel,  que  de  ufania 
E  de  soberba  cheia,  e  confiança, 
Victoria  com  louvor  se  promettia 
Apesar  do  poder  da  imiga  lança, 
E  ja  entre  si  os  despojos  repartia, 
Porque  têe  mais  certeza  que  esperança 
Gtue  o  Christao  defensor,  que  têe  diante, 
Não  pode  a  resistir-lhe  ser  bastante  ^ 

LXXVI. 

Agora  de  temor  cheia,  e  d'espanto, 
Vencida  dos  que  havia  por  vencidos, 
Depois  que  obedecer  a  Rhadamantho 
Foi  grãa  cópia  dos  seus,  mais  escolhidos, 
Tendo  das  munições  gastado  tanto 
Gtue  se  espanta  de  o  ver,  sendo  cumpridos 
riinco  dias  do  mez  que  deu  o  assento 
Ao  Sagittario,  solta  a  vella  ao  vento. 


712      OBRAS  DE  FRANCISCO   B^ANORABE. 


Mas  como  com  graa  força  então  sopra\a 
O  Levante,  o  qual  era  assaz  ponteiro 
Ao  logar  em  que  a  armada  surta  estava, 
Torna  outra  vez  o  esperto  Marinheiro, 
Vendo  que  em  vão  avante  ir  trabalhava, 
A  surgir  onde  surto  era  primeiro. 
Esperando  que  o  tempo  dê  jazigo 
Com  que  vá  sem  trabalho,  e  sem  perigo, 

I.XXVIII. 

Também  de  novo  a  armada  o  fundo  afferra 
Porque  os  Turcos  se  viao  occupados 
De  muitos  a  que  a  larga  crua  guerra 
Deixou  do  imigo  ferro  trespassados, 
Determinando  então  deixar  em  terra 
Todos  os  que  estào  mais  debilitados, 
Porque  a  longa  viagem  nao  consente 
O  peso  de  tão  fraca  e  débil  gente, 

LXXIX. 

Logo  ao  seguinte  dia  executarão 

Esta  o1)ra,  cheia  assaz  de  crueldade, 

E  sendo  á  tarde  já,  desembarcarão 

Os  que  mais  apertou  a  enfermidade, 

E  sem  outro  remédio  os  entregarão 

Somente  a  cortezia  e  piedade 

ô.ue  quizessom  usar  os  estrangeiros 

Co"* os  que  acharão  cruéis  os  companheiros. 


o    l'KIMEIRO    CERCO    UE    DIL'.  71  i 

LXXX. 

Nesta  hora  sendo  ]a  mais  moderada 

A  fúria  do  feroz,  bravo  Levante, 

Sóka  a  vella  de  novo  a  imiga  armada, 

E  d^alli  se  vai  pôr  hum  pouco  avante^ 

Até  hua  ponta  sahe  contra  a  enseada 

De  Cambaia,  que  em  freute  está,  e  distante 

Da  Chrislãa  fortaleza  h'goa  e  meia, 

Busca  outra  vez  o  ferro  a  funda  areia. 


Outra  vez  aqui  faz  que  se  encolhesse 
O  Turco  Mariufieiro  o  inchado  linho, 
Porque  quando  depois  se  recolhesse 
O  Sol  ao  usado  seu  leito  marinho, 
Q.uando  a  maré  vasava,  elle  podesse 
Seguir  prosperamente  este  caminho 
Tanto  de  toda  a  gente  desejado, 
E  duas  vezes  já  em  vão  tentado. 

LXXXII. 

Apenas  no  loc^ar  que  estou  dizendo 
Aquelles  infiéis  hoje  surgirão, 
Q-uando  os  da  fortaleza  o  estrondo  horrendo 
Ouvem  de  alguns  canhões,  que  longe  atirão 
Contra  Madrafabat  (se  bem  entendo) 
Estes  homens  o  estrondo  agora  ouvirão, 
Do  qual  se  forma  lá  vario  conceito, 
Mas  todos  cuidão  que  he  de  seu  proveito. 


714     OBRAS  ]>E  FRANCISCO  B^ANORADE. 
JLXXXIII. 

Este  da  armada  sabe  que  a  cargo  tinha 
Hum  António  assaz  forte  e  d''lionra  amigo, 
Q-ue  o  sobrenome  têe  da  bonrada  linba 
Dos  Silvas,  nobre  sangue,  illustre,  e  antigo, 
Q-ue  com  alguas  fustas  alli  vinha 
Para,  apesar  da  morte  e  do  perigo. 
Entrar  na  fortaleza,  e  soccorrella, 
Se  qualquer  modo  achasse  d'entrar  nella^ 


Mandado  este  alli  foi  do  valeroso 

Noronha  Viso-Rei,  mas  porque  havia 

Q-ue  era  negocio  assaz  difficultoso 

Chegar  á  fortaleza,  lhe  dizia, 

Que  se  isto  não  puder,  co^o  furioso 

Estrondo  da  feroz  artilharia 

Mostre  que  era  da  armada  a  dianteira 

Que  ja  do  Yiso-Rei  segue  a  bandeira. 


Desta  armada  que  o  Silva  governava 

Se  apartão  duas  fustas,  que  cortando, 

Co  "'o  grão  favor  que  Hippotades  lhes  dava, 

O  Reino  que  Neptuno  está  mandando. 

Quando  a  sombra  que  o  Sol  afugentava 

Das  Estreitas  a  luz  está  mostrando, 

Chegão  á  fortaleza,  onde  amainarão 

A  inchada  vella,  e  o  ferro  ao  mar  lançarão. 


o   PRIMEIRO  CERCO  DE  DIU.  7ÍS 

I.XXXV1. 

Vem  nellas  dous  varõeis  nobres,  ousados, 
A  quem  o  mor  perigo  mais  inflama, 
Dom  Luiz,  Dom  Martinho  são  chamados. 
Este  Sousa,  e  Taide  o  outro  se  chama. 
Ambos  trazem  comsigo  bem  armados 
Varões,  que  a  grande  empresa  qualquer  ama-^ 
E  outras  cousas  também  estes  trouxerão 
due  alli  bem  necessárias  enlão  erão. 


Sendo  esta  noite  A  Lua  então  negada. 

Por  interposição  da  opaca  terra, 

A  partecipação  da  luz  usada 

€lue  o  Sol  de  natureza  em  si  encerra, 

De  todo  se  mostrou  quasi  eclipsada 

Com  que  mais  se  escurece  a  noite  e  cerra j 

E  quiçá  que  este  máo  e  usado  agouro 

A  partida  apressar  fez  mais  ao  Mouro. 

IXXXVIII» 

Esta  noite  também  aquella  gente 
Q,ue  de  Cojaçofar  segue  o  estandarte, 
Fazendo  que  a  Cidade  a  chamma  ardente 
Sinta  primeiro  n''hua  e  n^outra  parte, 
Também  damuificada  e  descontente 
Antes  de  ser  manhãa,  d^alli  se  parte, 
E  o  logar  com  grão  medo  desampara 
Que  com  grãa  confiança  antes  tomara» 


LXXXIX, 


Também  nesta  mesma  hora  dentro  colhe 
Com  grão  silencio  o  ferro  a  imiga  frota, 
A  velía  hum  brando  vento  em  si  recolhe, 
E  lá  do  Roxo  Mar  segue  a  derrota. 
Porém  dos  que  feridos  leva,  escolhe 
Os  mais  fracos  primeiro,  e  em  terra  os  bota 
Dos  que  menos  o  mar  soífrer  podião, 
Q.uatrocentos  ouvi  que  estes  serião. 

xc. 

E  perguntando  acaso  hum  dos  Senhores 
Da  terra,  a  estes  então,  se  os  que  vierão 
Da  Lusitânia,  ou  lá  são  moradores. 
São  bons  homens  de  guerra,  lhe  disserão 
Q-ue  os  Portuguezes  sós  merecedores 
De  trazerem  no  rosto  barbas  erão, 
E  que  as  outras  nações  se  contentassem 
Co  "'o  estjlo  das  mulheres,  e  este  usassem. 

xci. 

Mas  com  quanto  eu  estou  mui  confiado 
No  valor  Portuguez,  bem  conhecido. 
Não  sou  porém   co\)S  meus  tão  enganado 
Q.ue  aos  outros  negue  o  preço  merecido  ^ 
Suspeito  que  o  soberbo  Turco,  usado 
Mais  vezes  a  vencer,  que  a  ser  vencido, 
Q-uiz  que,  pois  o  venceo  hoje  esta  gente- 
Merecesse  ella  as  barbas  ter  somente. 

FIM, 


IMȣ1Il. 


PAG. 
V  )•<  )1  OgO.  ....étt....k » n       llt 

Canto  I  1 

^'        II 29 

»       III        60 

»       IV         98 

"       V  127 

»       VI        161 

^.       VII       191 

..       VIII     218 

»       IX         252 

.í       X  292 

>»       XI         330 

>í       XII       363 

XIII     410 

»       XIV      448 

»       XV       485 

»       XVI      516 

»       XVII    566 

»       XVIII 609 

»       XIX     646 

5'       XX       686 


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