"mp
m
tÊk
f
1
A-ti»" 4
^r-J
HB I 'il }ij
Presented to the
UBKARYofthe
UNIVERSITY OF TORONTO
hy
Professor
Ralph G. Stanton
^
V'"^
à*
BiHilOIllii P§lilliiilEi-Í
'>.^5?%'IBI.
■^-^^"^
LSCliii ORIO DABIBLIOTnBCA*PORTUGUEZA
Rua Augusta x^^'' i ií). .
^g:5^é
^^ã^
DE
illiilIlSDO DAiDRADE.
LISBOA.
Kbcriptorio daBibliotheca Portugt
Rua Augusta N.* 110.
4853.
TVP06RAPHIA DK F. I. PINHEIRO.
Rtia da AnrittHciada N.^ 14.
PROLOGO.
o
Poema de Francisco d'' Andrade — O pri-
meiro Cerco de Diu — impresso no anno de
lo<S9, tem-se tornado tâo raro, que juljí;iimos
prestar uni grande serviço ás letras pátrias fa-
zendo delle uma segunda edição.
O primeiro Cerco de Diu iie o Poema que
mais se aproxima, de longe embora, dos Lur-
siadas ptdu pureza e louçauia da linguajem,
assisado das sentenças, elegância do estj'lo, e
sonora fitcilidade da versificação.
Francisco d''Andrade seguindo a opiniao.de
que os assumptos nacionaes devem ser tratados
sem artificio em sua composição, não escreveu
Imm Poema Heróico, escreveu hum Poema
Histórico.
IV PROLOGO.
O Poema está adornado com brilhantes
episódios, históricos, ou de invenção, que
amenisao e variao o seu assumpto. Taes são
por exemplo — o episodio em que no 2.^ Canto
se narrão os successos da vida de João de San-
tiago— e outro de caracter differente em que
no Canto 9.° se pinta o amor de dois esposos
Mogores, querendo o marido sacrificar-se para
salvar a esposa á custa da sua própria vida,
pois que s6 a ella, e não a elle, se concede o
refíigiar-se na fortaleza.
Também são para notar as descripçôes tanto
narrativas, como pictorescas, que se encontrão
neste Poema — entre as primeiras tem bas-
tante força de colorido a que o Poeta faz no
Canto 17.*^, de hum mancebo Portuguez, que
combate e mata hum Mouro entrando atraz
delle pelo rio dentro, com grande perigo de
sua vida — entre as segundas são admiravciâ
a pintura da habitação de Eólo, e do cárcere
dos Ventos no Canto 4.^, e a de Merizan no
momento de accommetter os Cambaios com o
seu pequeno esquadrão de Mogores no Can-
to 9.*^ A pintura da Cobiça debaixo do nome
de Pluto no Canto 12.^ he adornada de muita
invenção e originalidade. Não he menos bella
a pintura da casa do Somno no Canto 16.^
Mas a que sobresahe a todas he a que se le no
Canto 4.° da Ilha desconhecida, aonde a Rai-
nha do Cambaia he conduzida depois da tem-
pestade, qtie a faz desgarrar do rumo de Jud4 :
PROLOGO. V
por ella verá p Leitor (diz o Sr. José Maria
da Costa c Silva a pag. 310 do Vol. IV do
Ensaio JBiographico-CrUico sobre os Poetas
Portuguezes) a grande perda que será para o
nosso Parnaso o desapparecimento deste Poe-
ma, se algum Editor benemérito lhe nao obs-
tar, fazendo delle nova edição.
Recommendamos a leitura do citado Ensaio
Biographico-Critico a quem quizer ter noticias
mais amplas não só deste mas de todos os nos^
SOS Poetas.
Terminaremos este Prologo com a noticia
da J^^^icla e Obras de Francisco d? Andrade que
extrahimos da citada obra do Sr. Costa e
Silva :
.«Francisco d'Andrade, que figura distin-
ctamente entre os nossos melhores Épicos de
segunda ordem, nasceu na cidade de Lisboa^
não consta ao certo o anno do seu nascimento,
posto que pareça verosimil que fosso pelos an-
nos de 1540, pouco mais ou menos.
"Foi filho de Francisco Alvares d'Andrade,
fidalgo da casa d^elrei D. João III, e de Iza-
bel de Paiva, sua mulher, e filha de Nuno
Fernandes Moreira, escrivão da camará de
Lisboa.
«Francisco dWndrade frequentou, com
muito aproveitamento, os estudos de humani-
dades, em que sahiu muito extremado, gran-
geando tal respeito por seu talento, e saber,
VI PROLOGO.
que faltando da vida presente o Guarda-Mór
cia Torre do Tombo António de Castilho,
grande Lit.terato, e grande Poeta, foi, sem o
requerer, escolhido para o substituir naquelle
logar, cuja serventia, naquelles tempos, só era
conferida a pessoas de consummada litteratura,
i( Foi igualmente agraciado com a nomeação
de Chronista-Mór do Reino, que muitas vezes
se annexava ao emprego de Guarda-Mór da
Torre do Tombo. No exercício destes logares,
tão lucrativos como honrosos, passou a vida
tranquillamente até ao anno de 1614, em que
falleceu.
« Francisco d' Andrade desde os seus pri-
meiros annos cultivou a poesia, que então an-
dava mui valida na corte, e estimada entre
os particulares : porém de todas as suas obras
poéticas, que nos consta terem sido numerosas,
apenas publicou as seguintes : Instituição d^El-
Rei Nosso Senhor^ esta obra é uma traducçao
em verso solto, ás vezes elegante, de outra que
o Doutor, e Lente da Universidade de Coim-
bra Diogo de Teive, havia composto com este
titulo « Kpodon, sive lambicorum carmen, Li-
hri três 51 e sahiu á luz com o original em Lis-
boa, anno de 1565. Atraducção principia com
estes versos :
Doutas habitadoras do Parnaso,
Manifestai agora aos bons Poetas
O sagrado liquor das vossas fontes.
PROLOGO. VII
t» Apesar da louçania, e elegância de lin-
guâgeiíi desta traducção, força e confessar,
que os versos peccao muitas vezes por falta de
numero, e de nobreza '^ este defeito lhe he com-
mum com todos os Poetas coevos, que todos
parecem fallar uma linguagem estranha, quan-
do se desajudão da ryma : antes da epocha da
Arcádia, nao ha em Portuguez versos soltos,
que possão dizer-se bons.
4< Philomela de S. Boaventura. Lisboa 1566,
em 12.0
M Esta obra principia assim :
Philomela suave, que cantando,
O fim do breve Inverno denuncias,
E a vinda do Verão alegre, e brando.
4< Esta poesia he muito superior á outra,
pelos pensamentos, pela expressão, e pelo me-
tro. Junte-se a isto o seguinte Soneto, em
louvor da Elegiada de Luiz Pereira Brandão,
impresso com o mesmo Poema, e teremos to-
dos os Poemas de menor extensão, que restSo
de Francisco d'Andrade :
SONETO.
De lagrimas, de mortes, de crueza,
De sangue, inda hoje fresco em Barberia,
Brandos versos fazer, doce harmonia,
GluG dá gosto apesar da mor tristeza ^
VIII PKOLOGO.
Maior espanto foi, mor estranheza, ;
Glue o que íingio de Orplieo a Poesia-,'-
Q.ue se elle as cousas naturaes movia,
Estoutro move a mesma Natureza.
Esta estranheza tal, que em mor espanto
O que melhor a entende hoje tem posto,
A ti, Pereira, só foi concedida.
Ditoso aquelle, a quem chegar teu canto,
Q-ue pois da sua dor fizeste gosto.
Também de sua morte serás vida.
«Mas que caminho levarão os seus outros
Sonetos, as suas Poesias Lyricas, que não de-
vião ser em pequena quantidade, visto que
estava então tanto em moda escrever neste
género? Ficarão sem dúvida em manuscripto
sepultadas nas livrarias de alguns conventos,
e pela suppressão delles, sabe Deos o fim que
tiverão. "
o PRllIIilIRO
CERCO DE DIU.
CAMTO I.
Declara-se a vida e cosiumes de Sultão Sau-
dur^ Rd de Cambaia, O Governador Nuno
da Cunha parte para a Cidade de Diu.
Chega á Ilha de Sete, e faz-se prestes para
a combater.
J^mpresas grandes, casos perigosos
Q.u''ao Ceo por si somente se levantao,
Ânimos invencíveis, gloriosos,
De que o Ganges e o Tejo hoje s^espantao ^
Varões illustres, altos e animosos
Com divino favor meus versos cantão :j
Mas cumpro que de si m''enclia elle o peito
Para que o canto igual seja ao sujeito.
« 1
Soccorre Eterno Pae, Senhor Supremo,
Porque eu em mar tão largo desatino,
Ond''hum naufrai^io certo espero e teiilo
Se me faltar o teji favor divino :
Nem m^atrevo cho<:^ar a tanto estremo
D''alto verso, sem ti, que o faça dino
Daquelles que por ti com peitos fortes
Derão, e receberão cruéis mortes.
Porque aqui tal matéria s^oíferece
A hum rudo engenho, baixo entendimento,
Q-u^engenhos sobrehumanos bem merece
O sobrehumano seu merecimento.
Porém SC a meu intento nao fallece
O que nunca faltou a hum bora intento,
Heróicos varões, eu direi tanto
De vos, que ao mundo seja inveja e espanto.
Filippe invicto, a quem a Providencia
E o IDivino Poder, hoje sujeitos
Os Lusitanos fez, cuja potencia
Assaz mostrarão ja seus grandes feitos.
Rendidos sem nenhuma resistência
Dos fortes braços, nem dos leaes peitos.
Por mostra quo a ti só foi concedido
Render o que antes nunca foi rendido.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU.
Vejo que ao teu poder juntando agora
Felicemente o sceptro Lusitano,
A ti s^inclina, teme, e quasi adora
Europico, Asiático, Africano.
Pois esta tal grandeza eu sei que mora
NMium peito brando, affavel, largo, humano,
Desça o teu pensamento agora Imm pouco, '
Dé logar ao meu canto, inda que rouco.
Verás os grandes feitos nunca ouvidos
Dos que se hoje a teu jugo sujeitarão,
Verás os braços fortes, não vencidos
Dos que então largamente a pátria honrarão.
Verás que em render peitos não rendidos
Tu muito, e também muito elles ganharão :
Ellcs, pois coube a ti senhoreallos,
Tu, por seres senhor de taes vassallos.
VII.
Cambaia, Reino grande e populoso,
Nas partes d^Oriente situado.
Em riquezas e em armas poderoso,
Foi de SuUão Baudtir senhoreado :
Príncipe máo, cruel, despiedoso.
Dos naturaes e estranhos pouco amado,
Antes sempre em maior ódio crescia,
Cousa assaz natural da tyrannia.
^ OBBÂS DK FRANCISCO B^ANDRADE.
VIII.
Tinha os bens que a fortuna mal reparte,
E o cego povo tèe por mor bonança,
Tinha outros Reinos mais, de que hua parte
Seus avos lhe deixarão por herança,
E outra que com favor do fero Marte
Elle ganhou, obrando espada e lança,
Cresce o mando e poder cada momento,
Mas também o ódio vai em crescimento.
IX.
Este mando e poder, com que elle segue
Soltamente os acenos da vontade,
Fazem com que á soberba o peito entregue,
Glue não he nas grandezas novidade.
A soberba também faz que s^empregue
N^hCa tão bruta e estranha crueldade,
Gluc tudo o que he humano de si aparta,
Nem de sangue e de mortes se vio farta.
Se por ventura o estranho lhe faltava
Que desta brutal fúria fosse objeito,
No próprio natural a executava
Sem a qualquer idade ter respeito ^
Juntamente o que amava, e desamava,
A tamanho furor era sujeito ;
E quando isto também lhe fallocia
No sangue fraternal as mãos tingia.
o PRIMEIRO CERCO DE DltT.
XI.
O sexo feminil, cuja fraqueza
Resiste inais que os duros peitos fortes,
Nuo pôde resistir a esta braveza,
Q,uc se mantinha so do humanas mortes^
Pois também fez sentir sua crueza
Aquelhis, cujas duras, tristes sortes
Com firme e conju^^al nó lhe juntarão,
Que com seu próprio sangue desatarão.
Nem bastava privar das doces vidas
Os infeliccs corpos, não culpados,
E roubar-lhes as fazendas adquiridas
Ou por si, ou por seus antepassados^
Mas sobre tudo ainda de fingidas
Maldades, os fazia ser notados,
Porque ficassem obras tão damnadas
Co^a infâmia dos mortos desculpadas.
Esta continuação, esto exercício,
Esta sede de sangue, de que fallo,
O fez chegar a tanto neste vicio,
Glue ja se não contenta de mandallo ^
Mas usando d^algoz o baixo officio,
Por suas próprias mãos vai derramallo,
Para que ao seu cruel e bruto intento
Não seja a dilação impedimento.
6 OBRAS DE FRANCISCO D ANDRADE.
XIV.
Com tal brutalidade qual descobre,
(Que he destruição do grande senhorio)
Da fidalguia o seu, e gente nobre,
Em breve tempo fica assaz vazio.
Q-ue os nobres ante o povo baixo e pobre
Se põem, para que a Parca o subtil fio
Nao corte a cada hum da triste vida,
GLu'e&te máo da nobreza he s6 homicida.
Estes espritos baixos e plebeios,
Glue tanto o nobre sangue aborreciao,
Estes, dos reaes peitos tao alheios,
Juntamente com isto o constrangiao
A que os grandes estados (de que cheios
Os seus Reinos entào todos se viao)
Tire aos próprios, e os de a outros senhores
Pouco de taes mercês merecedores.
XVI.
Mas nao lhes consentiu sua ventura
Q.ue lhes durasse hum bem tao mal ganhado,
Glue nunca o desta sorte foi de dura ^
Justo castigo lá do Ceo mandado :
€luando os tristes cuidavão que segura
A mercê tinhão, a honra c o grande estado,
Junto co'a vida a honra lhe he tirada,
E n'*outros a mesma honra he trespassada.
o FRIMEIUO CERCO DE DIU.
Não se segue com estes outro nortje,
De tudo os privão, a outros s'apres.enta,
Oâ quaes tratados são da mesma sorte,
Affugão-se também nesta tormenta ^
A todos a honra traz comsigo a morte,
Nenhum de húa honra tal se descontenta
Da qual tèo prova cUira e descuberta;
Glue não era honra ja, mas morte certa.
Esta peste do mundo, horrenda e fera,
Q,ue o peito humano assi desassocega,
Esta inlernal culnça, esta IMcgera,
Glue não poderá ja na gente cega ?
Pois só polo proveito que s"* espera.
Ao cego peito faz que se Ih^entrega,
Q-ue acceite hua mercê com ledo rosto
GLue traz tristeza e morte, c nenhum gosto.
XIX.
Este jugo cruel, d''homcm alheio.
Com que trata ao que he estranho, c o que sujeito
O poz em tal cuidado, em tal receio,
Q-ue se velava mais do mais acceito :;
O que tèe de mercês e honras mais cheio.
Lhe vem dcspois a ser o mais suspeito,
Porque a mortífera honra e a dignidade
Motivo he d'odio, mais que d^amizade.
8 OBRAS DE FRANCISCO B^ANDRADE.
XX.
E pois junto com a honra a morte dava,
Podia com rasao arrecear-se,
Q.u^em quanto elle a vital aura gozava,
Nenhum no bem podia assegurar-se •,
Só depois d'elle morto s' esperava
Longo tempo qualquer honra lograr-se ^
Faz-lhe isto a elle temer perder a vida,
Faz aos seus desejar ver-lha perdida.
XXI.
Isto que o máo Baudur claro conhece,
Em tal desassocego posto o tinha,
Q-ue alli onde lhe o sol desapparece,
Gluando entra na salgada onda marinha,
Se não acha depois, quando obedece
E foge a noite á nova luz que vinha :j
Porque o peito cruel e arreceoso,
Julga todo o logar por perigoso.
XXII.
Nem somente do ferro temor sente,
Q-ue a peçonha também lhe dá cuidado.
Isto lhe faz banhar continuamente
D'humano sangue, o bosque, o monte, o prado ^
Porque ante elle nenhum era innocente
Q-ue só n^hua suspeita era culpado.
Mas nem assi alcança o que procura,
Que nem com tantas mortes s'assegura.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU.
XXIII.
O comer sobre tudo então temia
Q.ue trouxesse escondido o maior dano ;
E porque de ninguém ja se confia,
Q-ue tudo teme hum máo, falso e tyrano.
Por suas próprias mãos elle o fazia,
Por ficar sem suspeita deste engano ^
E faz que n'*hum sujeito junto caia,
Vil cozinheiro, e Rei da graa Cambaia.
XXIV.
Entr"* estes vicios, que este miserável
Fraco, escondia em si, e immundo peito,
ISão lhe faltou aquelle abominável,
Que contra a natureza vai direito y
O brutal apetite insaciável
Q-ue tira á natureza o ser perfeito,
Descido lá do eterno, claro assento,
E de quem inda foge o pensamento.
Em vez de liberal, virtude santa,
Necessária a quem tèe qualquer governo,
Virtude que os mais baixos alevanta,
E faz o nome escuro, claro e eterno,
Virtude de quem toda a língua canta.
Nascida lá no Reino alto e superno,
Toma do insano pródigo o exercício
Por ajuntar aos outros este vicio.
to OliRAS DE FRANCISCO D^AKDRADE.
Traz esta inclinação não lhe faltava
Outra d''assaz contraria natureza,
Porque se d'hua parte elle gastava
Sem orilem quanto adquire, e com largueza,
Também por outra parte tral)alhava
Adquirir grão thesouro, gràa riqueza:
X)estruidí)r do seu, sem regra ou meio,
Cubiçoíjo tamb<im do que era alheio.
Tinha cspiritos a guerras inclinados,
I*orém nunca a batalha vio presente,
Teve exércitos grandes bem ornados
De lustrosa, esforçada e nobre gente,
E d''apparatos taes acompanhados
G-ue erão dinos d''huin Rei alto e potente.
Em que grandes thesouros se gastarão
GLue seus antepassados lhe deixarão.
De muitos foi julgado por bastante
Para feitos d 'espirito alto, animoso,
Porque soberbo o vião, e arrogante.
Amigo de louvor, presumptuoso :
E por cousas também que fez perante
Grão povo, por mostrar-se valoroso,
GLue tão pouco d'hiim tal Rei erão dinas,
tí-u^Tão iada do baixo povo indinas.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 11
XXIX.
Quando mais estrangeiros juntos via,
Ou d^outra qualquer gente as praças cheias,
Sem attentar que as obras que fazia
Do seu real estado erão alheias,
Sobe ligeiro ao muro onde corria
Com grão pressa por cima das ameias ^
Os presentes á mesma obra convida,
E julga por covarde o que duvida.
Espcravao-se delle grandes feitos
Com estas e outras taes leviandades.
As quaes podem lustrar nos baixos peitos,
Mas abatem as grandes magostades.
Estes erão os Reinos, que sujeitos
Fez ao seu jugo, e estas as Cidades
ô-u^entrou com braço forte c não domado
Para ser d 'animoso celebrado.
O tempo que durou o seu império,
(Peior que o do cruel Ciracnsano)
O seu Reino sentio tal vitupério,
Taes infortúnios, males, tanto dano,
O^ue em quanto alumiar este liemisphcrio
O Sol, c descansar lá no Oceano,
Durará nelle viva esta memoria.
Nem sei se verá mais a antiga gloria.
12 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
XXXII.
Muitos trabalhos destes procederão
Do tyranno a que então obedeciao,
Outros das guerras que se lhe moverão,
E que com mortal ódio o perseguiao ^
Mas da que os Portuguezes lhe fizerão,
Com armadas que o rnar todo cobriuo,
Tão grave damno e perda lhe succede
Gtue a do Cartaginez bárbaro excede.
O forte Portuguez, a quem o antigo
Ódio moveo para esta cruel guerra,
Corre a fralda do mar do Reino imigo,
Destrue, queima, assola, e põe por terra.
O Mouro, *que arreceia este perigo.
Nem se assegura cm monte, bosque, ou serra,
Entrega o peito pouco defendido
Ao braço vencedor, nunca vencido.
XXXIV.
Outros a quem as duras tristes sortes
Derão para seu mal ousada fronte,
Gluerondo resistir a huns braços fortes,
G.ue qualquer defendera ao líetrusco a ponte,
Recebendo primeiro cruéis mortes
So vão banhar no ardente Phlegetonte,
Deixando aquella terra tao perdida
Glue tarde ha ja de ser restituída.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 13
XXXV.
A causa principal desta crueza,
E que então a esta guerra abrio a estrada,
Foi somente porque hua fortaleza
D('S Christãos fosse em Diu edificada,
Cidade que em Cambaia mais se presa,
Entre todas famosa c celebrada
GLu antas lá no Oriento por visinlio
O senhorio têc do Rei marinho.
XXXVI.
Porque sendo fortíssima do muro,
Tendo munií^ões, gente, mantimento.
Bom varadouro, e porto bem seguro,
E sendo de toda a índia a balravento.
Entrando nella o Rume forte e duro
Podia ao Portuguez dar detrimento.
Como ja n^outro tempo se vio, quando
O nobre Almeida teve da índia o mando.
XXXVII.
Isto soube aquelle alto e soberano.
Prudente Rei, invicto e verdadeiro,
Gtue governava o povo Lusitano,
E que era dos Joannes o Terceiro ^
E querendo atalhar a tanto dano.
Deu o mando, o poder, e o sceptro inteiro,
Do Reino Oriental, .10 animoso
Nuno da Cunha, nobre e venturoso.
14 OBHAS de FRANCISCO d'aNDRÀDK.
XXXVIII.
E manda-lhe qne ponha a grão cuidado
Em tomar esta força á grãa Cambaia,
E que antes de ter nella edificado
Fortaleza, por ai nao se distraia.
Cumpre o Governador o que mandado
Lhe foi, em vendo d' Oriente a praia,
INIas antes de ver nella os brancos seixos
Duas vezes se volve o Sol nos eixos.
XXXIX.
Foi-lhe causa de tao larga tardança,
E de chegar tão tarde ao seu governo,
O mar tempestuoso e sem bonança,
E passar no caminho o frio inverno :
Mas sempre o desejado fim alcança
tiuem alcança favor do Rei eterno,
Elle chega, e faz prestes a jornada
Cora mui grande apparato, e grossa armada.
XL.
Não falta a munição, para o que intenta,
Nem mantimento, e gente dura e forte,
Gue da empresa maior mais se contenta,
Nem lha fez duvidar perigo, ou morte ^
Navios sobre cento tem noventa,
E cinco mais além de toda sorte.
Bem providos também de quanto entende
€Lue lh'era necessário ao que pretende,
I
- o PRIMEIRO CERCO DE Dit. 15
XLI.
Doiis mil e setecentos bem serino
(Na Lusitana torra ao mundo dados)
Os que a branca e vermelha Cruz seguiao^
De íbrtc aço, c mais forte \sprito armados",
Do Canarins, e Malabares ião
Otjlros dous mil também (os quaes creados
Na mesma terra siio) que s''embarcavão
Nos navios de Mouros que alli estavão.
xm.
Mas coroo tal grandeza em si continha
Est\iruiada, que o mar quasi cobria,
K ja o Govornador eleitos tinha
Capitães, para o dar da bataria,
Não se pode encobrir quanto convinha
O que este seu intento pretendia,
Q-ue o custoso atavio, honrado e nobre,
K o alvoroço geral, claro o descobre. ^"^
XLIII.
Q.ual no longo estandarte vai mostrando
Quanto tèe dVsperança, ou arreceio,
Q.ual descobre se amor lhe he duro ou brando,
Nenhum sua tenção deixa no seio.
A Melique Tocão, que então o mando
Em Diu tinha, a nova disto veio.
Tudo com diligencia olha e concerta
Onde o temóií o avisa, onde o desperta.
16 OBRAS DE rUANCISCO d'aNDRA.DEw
XLIV.
Ajunta munições, ajunta gente,
E tudo o mais que lh'era necessário
Para se defender bastantemente
©""hum tão bravo, e tão áspero adversário.
Levanta a Cliristã frota o lerreo donte
Entrando o mez que o Sol leva ao Aquário,
O rouco marinheiro com grão tento
Solta remos ao mar, vellas ao vento.
Ja a delgada, subtil, aguda pron,
Polas salgadas ondas faz caminho,
E Zéfiro suave, e brando soa,
E fere brandamente o cavo linho ^
Ja da vista se perde a nobre Goa,
Doce, quieto, amado, e brando ninho
D^aquelles que no reino de Neptuno
Acompanhando vão o illustre Nuno.
XLVI.
Cymothoo, e as outras Nimphas do espaçoso
Mar, ante a armada vão por festeja-la,
Yão com Protco e com seu gado escamoso
Glauco, Nereo, Tritão acompanha-la,
Tu também, linda Thetis, co^o formoso
Coro teu alli vás, por mais honra-la,
Obedecem também alli ao Piloto
Euro, Zéfiro, Boreas, Austro ou Noto.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, 17
XLVII.
Grande espaço esta armada acompanharão
Estes a quem venera a onda salgada,
Mas tanto que lá nella mergulharão
Esta bonança logo foi mudada ^
Os ventos polas proas assoprarão,
Levanta-se té ás nuvens a onda inchada,
Por mandado dos seus Reis furiosos,
Quiçá de tantas pompas invejosos.
XLVIII.
Esta imiga mudança, impetuosa.
Com algumas escalas quo lizerão,
(Gluo nada temo a gente cubiçosa)
Esta viagem tanto entreti verão,
Gluc quasi todo o mez que da invernosa
Sazão no meio está, se detivcrão
As náos, cm ir a hua ilha, que está sete
Legoas de Diu, e têe por nome Bete,
XLIX.
Tao conhecida foi depois o clara
Q-uanto era antes pequena, e ignota esta ilha,
Porque o seu capitão e gente rara
A fez no nmndo hua alta maravilha.
Aqui a aííadigada armada pára.
Q-ual o molhado remo ja fcrrilha,
Q-ual iça a entena, qual a vella colhe,
Q-ual faz que o mar o curvo ferro molhe.
i8 OBHAS BE FRANCISCO d'andradí:,
Hum Capitão nest^ilha residia
Glue d^KlRei de Cambaia foi mandado,
Est''cra de nação Turco, e a regia
Com esforço, prudência, e grão cuidado ^
De quasi dous mil homens estaria
De diversas nações acompanhado,
Ja com temor da Portugueza armada
Glue no liquido Reino abria a estrada.
ti.
No mais alto desta ilha se mostrava
Hum plano, a que não toca bosque, ou serra,
Húa povoação quasi occupava,
A qual hum baixo muro cerca e cerra.
O Cunha ao Capitão que a governava
Manda que entregue a gente, e a mesma terra,
Senão que a verá logo combatida.
Onde nuo ficará nenhum com a vida.
O Capitão, a quem nem copia tanta
De náos, nem hum exercito lustroso,
A fé, nem o valor move, ou quebranta,
Ousado lhe responde e valoroso:
G.ue d^hum Principe tal, muito s'espanta
Tão esforçado, nobre, e poderoso.
Mandar a Capitão, inda que alheio,
Glue faça hum feito tal, tão torpe e feio.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. i9
Q-ual era com temor da imiga lança,
Por mais morto que traga, ou crueldade,
Entregar a bandeira e a confiança
De seu Rei, a quem deve lealdade -^
Mas que elle ainda ate então tinha esperança,
Vendo sua nobreza, e dignidade,
Q,u''elle grande louvor e favor desse
A quem a fé devida raantiv^se.
Rias vendo o seu poder grande, e temido,
Se irá, deix.ando-lhe a ilha despejada,
Crendo ser o seu Rei disso servido,
E á terra firme irá fazer morada.
Armas quer, e as fazendas por partido,
E a fortaleza só lhe será dada,
A qual devia ser o movimento
E a causa principal de seu intento.
Este partido então não foi acceito
Porque o Governador tomar pretende
A gente, e o metal cavo, a que sujeito
Está tudo, e que tudo assola e accende ^
Por ventura cuidou que deste eíFeito
O successo de Diu quasi pende.
Manda-lhes outra vez, que ou se rendao,
Ou em tornando o Sol se lhe defendao.
20 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRÀDB.
LVI.
Temor de tal resposta não concebe
O valoroso Turco, rjue a honra preza,
Glue o magnânimo esprito antes recebe
A morte, que mostrar qualquer fraqueza.
Ja para defendcr-se s^apercebe,
Prove do necessário a fortaleza,
Q.ue mostrar covardia lhe hc mais forte
Q-ue passar por cruel e dura morte.
LVII.
Mas por níío deixar meio, que tentado
Não fosse, por salvar a sua gente,
Manda ao Governador outro recado
Pedindo-lhe que veja bom, e attcnte,
Glue pois a Diu vai encaminhado,
Digna empreza d'hnm animo exccUente,
Níio queira em tão vil cousa embaraçar-se
Pois nada têe que possa dcsejar-se.
Porque daqnlllo que elle pretendia
Outro iionhum proveito elle alli tirava
Senão quebrar o espirito, a nfania,
Aos que para Iium gião feito então levava ^
E em perigo tand)em quiçá os poria,
Porque elle co\)s que têe determinava,
Com tanta resistência defender-se,
Gt-ue só á morte havia de rendcr-se.
o rniMEIRO CERCO DE DIU, 21
LIX.
Está immobil o Cunha, e do adversário
Engeita este conselho, que atraz digo,
Também dizem que nisto por contrario
Teve, todo o que lhe era intimo amigo,
Q-ue lhe diz que deixar lhe he necessário
Hum feito, de que espora hum griío perigo,
E proveito nenhum do que pretendo.
Porém nenhum conselho ao Cunha rende.
Vendo o Turco hum tao claro desengane,
E a esperança de todo ja perdida
De poder evitar tão grave dan(í,
E a si, e aos seus salvar com honra a vida,
Vencido d''hum esforço mais que humano,
E d"'huma opinião nunca vencida,
Imagina hum estranho raro feito
Q-u^a desesperação lh''accende o peito.
LXI.
E para effeituar aquelle intenta
Heróico, leal, illustre e nobre,
Cuja fama voando ao claro assento
A dos mais raros feitos hoje encobre.
Faz de todos os seus ajuntamento,
O que tèe assentado lhe descobre,
iNIas para dar mais força a isto que trata
Peraut''elles a lin2;oa assi desata :
22 OBRAS DE FRANCISCO dVnDRADE*
LXII.
Companheiros lieis, caros amigos,
Porque eu tenho ja bem exprimentados
Os fortes braços e ânimos antigos
De que sempre vos \i acompanhados,
Com que ja despresastes mil perigos,
Por onde sois no mundo celebrados,
Q-uiz de meu pensamento dar-lhe conta,
Porque o forte antes quer morte que aílronta.
O que nisto me faz mais atrevido,
E que a fallar connosco mais nTinflama,
He cuidar que tereis ja bem sabido
€luanto est^alma vos quer, e vossa honra ama •,
Pois de tudo em que fui de vós seguido
Tirastes sempre gloria, nome e fama, C
Dá-me isto hua esperança certa e firme
Q.u'agora querereis também seguir-me.
I.XIT.
Bem vedes que tentei todos os meios
Gtuanios a honra tentar me concedia
Para abrandar aquelles peitos cheios
De presumpção, soberba, e d^ousadia ;
E sempre os tenho achado mui alheios
Do que eu, e a rasao mesma lhe pedia,
Parece que a vós querem, não a terra,
E que vós sois o fim da sua guerra.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, 23
LXV.
Pois, qual ha de vós outros tao amigo
D^hua \ida tão vil, tao vergonhosa,
Que queira antes soíírer o jugo iniigo
D"'hua gente cruel, despiedosa,
Q-ue passar por qualquer grande perigo,
Por hua morte honrada e gloriosa,
Q.u''ao mundo vos fará tão conhecidos
Quanto o jugo vis, baixos, e abatidos !
E pois qualquer á morte está sujeito,
Nem a escusa, por mais que tarde venha,
Assaz deve á ventura o forte peito
Gluando quer que com honra e nome a tenlia ^
O fraco, o para pouco, o sem proveito,
A vida com deshonra só sustenha.
Nós de quem a honra he mais que a vida amada
Vida assaz nos será a morte honrada.
Porém ja que nós outros alcancomois
Tal honra, fama, gloria e lib«^rd;ide,
Rasão não me parece que deixemos
Em deshonrado jugo, e crueldade,
Os pães, as mães, e os filhos que aqui temos.
Pois he contra direito e humanidade
Q-ue mouramos nós livres e com honra,
E elles vivao, captivos, e em deshonra.
24 OBRAS DE FRANCISCO d' ANDRADE.
Possa aqui a honra mais que o amor paterno,
Demos a morte a todos cruelmente,
Porque será para elles gosto eterno
Não ver que no-la dá a iniiga gente,
E logo lá no claro e sempiterno
Reino, os iremos ver mais livremente,
E nos abraçaremos sem receio
De morte, nem deslionra, ou jugo allicio.
iXIX.
Então vos darão graças, pois honrastes
A pátria, e a vos, com vossa honrada morte,
E porque a vista delia lhes tirastes,
E os fizestes subir a mellior sorte :
Sede agora o que sempre costumastes,
Mostrai o vosso braço e peito forte,
Sinta aquella cruel gente homecida
Gluão caro damos sempre o sangue c a vida.
Todos nisto lhe dito consentimento,
E nenhum delles ha que o contradiga,
Correndo logo vão sem nenhum tento
Buscando cada hum a casa antiga \
Ja o consumidor roxo elemento
Té o Ceo levanta a chanmia imiga,
Entra em casa o soldado deshumano.
Com furor mais que imigo, mais que insano.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 25
Esconde no materno ventre a espada
Em que elle andou também ja escondido,
Não detém as paternas caas a irada
Mão do filho cruel, embravecido.
O crueldade estranha nunca usada,
Feito da natureza aborrecido,
Ja Phalaris cruel, ja o cruel Nero
Pode ant^estes perder o nome de fero.
Cahe debaixo do triste ferro duro
A cara companheira desditosa,
O tenro filho alli não he seguro
Gtue também sente a espada rigorosa ;
Banlia-se alli com sangue quente e puro
O branco lirio, e a purpúrea rosa,
Do bello rosto em torno, ao qual voava
Amor, e a sua aljava despejava.
Nunca em fera, cruel, dura batalha,
Lá onde ódio c furor os braços manda
Contra o imigo a que cobre arnez e malha
Tanto sangue houve d''hua e d'outra banda,
Gluanto dos naturaes aqui s** espalha ^
Por toda a parte a morte cruel anda,
Os montes gemem, o ar chora e suspira.
Só nos humanos peitos dura esta ira.
26 OBRAS »E FRANCISCO I)'aNDRADE,
LXXIV.
Vê-se por hua parte grãa revolta,
Lagrimas, rogos, dôr, e grandes gritos !
Por outra a terra toda estar envolta
Em sangue, e corpos mortos infinitos!
A carne em fim de todo de si solta
Os infelizes, misoros espritos,
Glue lá polo ar se queixao descontentes
Dos seus antes imigos que parentes.
Dentro naquella noite, aquella terra
Despejada ficou de toda a gente
ôu^era fraca, ou in hábil para a guerra,
Para os trabalhos mal suífi ciente :
J^agora dentro nella não s''encerra
Senão somente aquella a quem consente
A idade, ou ja nao tenra, ou nao gastada
No peito o duro arnez, no lado a espada.
Estes, de tnnto mal nao satisfeitos,
Tudo quanto mais tinhào ajuntarão.
Sem ficar alli mais que armados peitos,
E áquellas bravas chammas o entregarão :
Virão-se em breve espaço alli desfeitos
Os bens de cada hum, e só deixarão
Para despojo dos Christãos soldados.
Armas, e corações desesperados.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 27
LX.XV1I.
Não houve então nenhum tao pouco forte
Entre aquella infiel gente perdida,
Q-ue temendo a futura, certa morte,
Gtiie tinhão ja bem clara, e conhecida,
Ou com desejo d^outra melhor sorte,
E conservar mais longo tempo a vida,
A Portugucza gente se viesse,
E do que lá passava novas desse.
LXXVIII.
Porém ella, que ja se apparolhava
Para o que em vindo o Sol fazer pretende,
Inda que este recado lhe faltava.
Vendo o fogo que lá na ilha se accende,
E tal que a terra, e o mar todo assombrava,
O que podia ser bem claro entende,
Vista a nobre resposta, forte e rara
Q.ue o Turco Capitão antes mandara.
LXXIX.
Tal determinação, e tal braveza,
Faz o Governador mais animoso,
E logo ordena alli com grãa presteza,
Glue commetta o prudente, e valeroso,
• Com gente pola porta, a fortaleza.
Grande Heitor da Silveira, que famoso
Tanto pudera ser, quanto o Troiano,
Se tivera outro Homero, ou Mantuano.
28 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
XXKX.
E porque alli nao vai engenho ou manha,
Mandou outros fidalgos que alli havia
Cujo sangue en nobrece a nossa Hespanha,
Diogo da Silveira, e o Sá Garcia,
Dom António Silveira, e mais Saldanha,
E outros alguns, com gente em companhia,
Glue por outros logares alli estejão,
Porque mais facilmente entrados sejão.
LXXXI.
Antes que polo cume d^alta serra
S'estendesse o dourado raio puro,
Com que a nocturna sombra se desterra
G-ue fazia o claro ar sombrio e escuro.
Desembarcou a gente toda em terra,
E commetteo com fúria o imigo muro,
Onde todos então fizerao quanto
Contar-vos determino no outro Canto.
o PRIMEIRO
CERCO DE DIU.
CAMT© II.
Tonia-se a Ilha de Bete. O Crovernador com-
bate a Cidade de Diu^ e se recolhe a Chaul.
Manda húa armada que vã fazer guerra d
costa de Cambaia. Sultão Baudur pede pa-
zes^ vai Simão Ferreira a assenta-las. Ue-
clara-se a vida de João de Santiago,
N
unca vi siicceder prospero effeito
Lá onde a obstinação movco o escudo,
Porque o saber humano hc imperfeito,
Nem pode Jium por si só ;dcaiiçar tudo.
Foge a fortuna ao obstinado peito,
Traz o conselho vai com grande estudo,
E deste perde ás vezes o cuidado,
ô/uanto mais do teimoso e do obstinado.
30 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
Pode-se ver hum claro desengano
Em Terêncio Varrao disto que digo
Bem á custa do seu sangue Romano,
E com que pôz o Império em grão perigo
No qual aquelle bárbaro Africano
Daquella vez fartou seu ódio antigo,
Emilio o diga, e as mais vidas Romanas,
Tu também o dirás, funesta Cannas.
O Lusitano Heitor, á porta imiga
Chega, com férrea luz resplandecente,
Não ha nenhum dos seus que não o siga,
E também que não commetta ousadamente
Trava- se alli cruel e dura briga.
Porque a força maior da imiga gente
Posta em hum esquadrão naquella parte
Do forte Capitão segue o estandarte.
Hum por subir então no baixo muro,
E por romper a porta outro trabalha,
Faz isto não haver logar seguro,
Mas perigosa cm todos a batalha.
O fortuna cruel, o fado duro,
G-uem ha que contra ti resista ou valha?
Guarda-te, forte Heitor, muda esse posto,
Porque em mortal perigo ahi estás posto.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU.
31
Mas quem ha hi que nao esteja preso
Do que manda o que o Ceo alto governa?
Desce hum raio de chumbo em fogo acceso '
Lá da parte do muro mais superna ^
Nao detém o forte aço o subtil peso,
Ao valeroso Heitor passa hua perna,
Cahe o corpo mortal, que a morte o chaina,
Mas triumpha da morte a eterna fama.
Mas antes no salgado senhorio
Três vezes cscondeo o Sol seu lume,
Q-ue cortasse o subtil honrado fio
A Parca, que as mortaes vidas consume :
Aposentão na terra o corpo frio,
A alma sobe lá ao claro eterno cume,
Com grãa perda da gente Lusitana,
De que o salgado humor em cópia mana,
VII.
E feita mais feroz, e mais accesa,
Co\a grave dôr que lá n'alma a lastima,
Rompe a porta, dá fim á dura empresa,
Por mais que lh'o defendem lá de cima.
Porém acha no Mouro graa defesa,
Q-ue também a honra mais que a vida estima,
Porque qualquer parece hum novo Marte
Em quanto os não entrarão d'outra parte.
VIII.
Porém depois d''entraclos nao se rendem,
Nem de fraquczèt mostriío apparencia,
Em quanto dura a força se defendem,
E vão buscar a niurle a competência :
Os mais delles enifiiu mortos sVstendem,
Q-ue nao lhes vai noidiuma resistência,
E o mesmo logar mortos occupávão
Gtue para defender vivos lomárao.
IX.
A todo o que escapou das mãos dos nossos
(Os melhores dos sous ja mortos vendo)
Lá polo mais intrinseco dos ossos
Lhe foi hum temor frio discorrendo ;
E para se salvar dos fortes, grossos
Esquadrões Lusitanos, recolhendo
Se vai, qual por cisterna húmida c fria,
Q.ual por furna, ou por cova alta e sombria.
Hum a que entre huas pedras tinha dado
De salvar-se, o temor grande esperança.
Por hum de seus imigos foi acliado,
G,ue o fez sahir á sanguinosa dança :
Acena logo o Mouro co''o terçado,
B^tende o Portuguez a tesa lança,
O ferro por diante nelle encobre,
Gtue por detraz vermelho se descobre.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, 33
XI.
O Mouro, cuja fama agora voa
Lá pola região clara e superna,
E co'o metal sonoro o mundo atroa,
Pola fazer ao mundo sempiterna,
Pola lança passado, assi se coa,
Ao imigo cruel corta hua perna.
Juntamente na terra ambos s'estendem,
Juntamente os espritos ambos se rendem,
XII.
De meus versos cantado eternamente
Foras, illustre Mouro, se meu canto
Nao tivera outro objecto aqui presente,
De que eu m'ensoberbcço e me honro tanto ^
Q-ue com imagi-nar nello somente
Até ás claras estrellas m^alevanto,
Mas a falta da minha, ou d'outra historia,
Não poderá tirar-te a tua gloria.
XIII.
Alguns a quem o esforço ainda nao falta,
Por fugirem do jugo Lusitano,
Q-ual o ferido cervo corre e salta
A buscar o remédio do seu dano.
Sobem logo na rocha que he mais alta,
E se vão abraçar co^o largo Oceano,
Onde chegando ja despedaçados.
Entre os peixes ficarão sepultados.
34 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE,
XIV.
Os Christãos a triste ilha enifiríi tomarão,
Cessa logo o furor, mitiga-se a ira,
S6 dous ou três captivos nella acharão,
E as cinzas do que o fogo consumira^
O seu primeiro nome lhe mudarão
Os mortos, que ella em vão chora e suspira,
E de si lhe pozerão o segundo,
Co^o qual ho conhecida hoje no mundo.
Este tão triste fim, tão lastimoso,
Do que tão fácil antes se cuidava.
Mostrou então quanto era proveitoso
O conselho que o Turco antes lhe dava
Porque o povo, de si pouco animoso,
O alvoroço perdeo, que antes levava,
E do animoso Heitor que tanto estima
O entristeceu grãa falta, e o desanima.
XVI.
E dq tão poucos vendo a valentia,
E d^hum logar tão fraco defendida,
Julgavão que espera r-se então podia
Daquella forte Diu, tão provida
De nobre gente c grossa artilharia,
Tão famosa no mundo, e tão temida,
E sempre vencedora, costumada
Mil vezes a sentir a imiga espada.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU,
Tanto que no outro dia Phebo veio
Banhar-se na de Bete triste praia,
Parte o Governador sem ter receio,
Porque com tantas mortes não desmaia.
Vè-se o mar de navios quasi cheio,
Revolvc-o a chumbada longa faia,
Kstendc o nu remeiro os duros braços
Encolhe-os logo com iguaes espaços.
E cinco dias antes que o dourado
Planeta visitasse aquelle sino
Que no salgado Reino foi gerado
E no Ceo tem assento alto e divino,
Surge o Governador, acompanhado
Do seu nobre apparato, delle dino,
Meia kgua daquella forte e brava
Cidade, para onde elle navegava.
E vendo-se onde ja desejou tanto,
Nào se quer mais deter hum só raomentoj
Logo com diligencia ordena quanto
\e que lhe he necessário a seu intento.
Mas porém antes que entre este meu canto •
No combate cruel, sanguinolento, >'■ l
lihe parece rasão que hum pouco trale
Do modo e dos legares do combate.
36 OBEAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
XX,
Foi o principio então deste apparato
Pôrem-se três bateis em ordenança,
L<evava o primeiro hum Espalliafato,
G;u'a morte envolta cm fogo de si lança,
O segundo Jiura Leão, que em desbarato
Põe tudo, quanto sua fúria alcança,
O terceiro outra peça desta sorte.
Cruel, ruinadora, grossa e forte.
XXT.
De mantas e arrombadas vai por cima
Coberto cida lium, quanto convinha.
Vai por Capitão de hum o forte Lima,
O qual Dom Vasco então por nome tinha,
De grão preço, valor, de grande estima,
A quem perigo ou morte não detinha,
E dos que no batel leva comsigo
Glual era seu parente, qual amigo.
XXII.
Leva hum negro estandarte, que em pintura
Mostra a triste visão que a derradeira
Hora espantosa traz á creatura
A que o peccado fez da morte herdeira ^
Ja com esta pintada e vãa figura,
Profetisando a sua verdadeira,
A qual era tão triste e tão medonha
Glue não ha quem os olhos nella ponha.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 37
Aquelle exprimentado cavalleiro
Jorge de Lima vai aquelle dia
No segundo batel, a quem primeiro
Ninguém no esforço foi, e na ousadia.
Levava Tristão Homem o terceiro,
Cujo animoso esprito e valentia
Era huma verdadeira testemunha
Gtue lhe convinha assaz a sua alcunha.
XXIV.
Estes grandes bateis (que de tal arte
Apparelhados vão para este feito,
Q-ue pudérão fazer em toda a parte
Tremer a barba ao mais ousado peito)
Havião de bater o baluarte
Glue da parte do mar estava feito,
E roto com poder do ferro e fogo.
Se havião de chegar para elle logo.
XXV.
Hua cadeia neste muro afferra,
Desse duro metal que dá Biscaia,
Glue chega aos baluartes lá da terra,
E nega ao mareante que entre ou saia,
Porque do rio a livre entrada cerra :
Mas chegando os bateis á sua praia
Hão de largar-lha, para que entre e acuda
A nossa armada, e possa dar-lhe ajuda.
38 OBHA8 DE FRANCISCO D** ANDRADE.
Está o Silveira então nobre e esforçado
Glue o nome têe do Santo Lusitano
ô.ue na grande Lisboa foi gcM-ado,
E morto inda bonra o povo Paduano,
Algum tanto dos muros affistado
Para se segurar de todo o dano
Q-ue podia fazer-lhe a artilharia,
Com trinta embarcações em companhia.
XXVII.
o grão Cunha, de quem esta ordem pende,
Nem deixou de fazer tudo o que lh"'era
Necessário para isto que pretende,
E que era a causa só que alli o trouxera :
Lá sobre o baluarte que defende
A barra, três navios pôr fizera,
€tue com força do grosso bronzo cavo
Hum combate lhe dê, áspero e bravo.
XXVIII.
N'hum, que era hua gale grande e bastarda,
Vai Francisco de Sá senhoreando,
N'outro, que era galé real, he guarda
Nuno Fernandes Freire, e tèe o mando ^
Nada António de Sá traz estes tarda
Gtue hua grande albetoça vai mandando,
Todos três valerosos e esforçados,
Todos por suas obras sinalados.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 39
SoLre outro baluarte (a qnem Diogo
Lopes, que de Sequeira ièi a alcunha,
Deu o nome depois) ordena logo
Brra nove embarcações o nobre Cunha,
Q.ue co^o pó salitrado envolto em fogo
Lhe dem hum grào combate, e nellas punha
Seis Basiliscos, onde habita a morte,
E outros grossos canhões de toda sorte.
Manoel d** Albuquerque alli apparece
l\)r Capitão om hua galeaça.
Em nada hua galé desobedece
Q.uanto Jorge Cabral manda que faça.
A Manoel de Sousa outra obedece
Quando manda, castiga, ou ameaça.
Outra faz quanto manda em toda a parte
Martim AfTousu de Mello Jusartc.
Nunca nestes entrou algum desmaio,
Nem a morte diante caiisou medo,
Vasconcellos Francisco (se bem caio)
N'*outra galé têo mando firme e quedo,
N^hum batel Vasco Pires de Sampaio,
N''outro mandava Henrique de Macedo,
N 'outro Martim de Freitas senhor anda,
Miguel Carvalho hua albetoç^a manda.
40 OBRAS OE VRANCISCO D*ANDRADK.
Gtualqiier destes também com signaladas
Obras, ganhado fama por si tinha,
Q.u'erão com grande nome celebradas,
Nem o invejoso nellas se detinha.
Os bateis levão todos arrombadas,
E tudo o mais então, quanto convinha
Para bem sen, e damno do contrario,
Como a cada lium era necessário.
XXXIII.
Mandou-se a muita parte da outra armada
Qu\'m outras partes faça outra contenda,
E aquella ardente fúria arrebatada,
A quem força não ha que se defenda,
Que o Ceo atroa, os muros torna em nada,
Sem Inim ponto cessar nellas despenda,
Porque estando os imigos divididos
Possào mais facilmente ser vencidos.
XXXIV.
Em quanto em se ordenar põe tal cuidado
O Portuguoz mais forte que manhoso,
O Mouro não estava repousado,
Porque nunca o temor foi ocioso :
Tambom lança de si ferro coado
O canhão inimigo e furioso,
E caminhar com tal fúria o constrange,
Q-ue a frota (inda que longe) bem abrange.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 41
Ja jSIelique Tocao, senhor da terra,
Antes (como vos ja disse) sabia
D«'ste grande apparato, desta guerra,
Gue diante de si agora via :
Também diz-se que dentro logo encerra
Munições, mantimento, artilharia,
Armiis, gente, c também repaira o muro,
Mas com isto não se ha por bem seguro.
O nome Portuguez por si s(5mente
Com tão alto temor nelle se assenta
Q.u%.'sta forte Cidade, e forte gente,
Nem tudo o mais que forte se apresenta,
Não podem segura-lo no presente
Natifragio, que lhe mostra esta tormenta.
E dizem que a Cidade elle deixara
Se o que succedeo não lh'o estorvara.
Pouco antes que com mostra horrenda e bella
(Sós oito dias são se não nTengano)
Sobre Diu colhesse a inchada vélla
O esperto marinheiro Lusitano,
Hum Capitão fugindo entrara nella
Q.ue dá obediência ao Sulimano,
Rumecão era o nome que elle tinha,
E lá do roxo mar fugido vinha.
42 OBRAS DE FRANCISCO D ANDRADE.
Deus fortes galeões bem concertados
Comsigo cm companhia a] li trouxera,
Dg gente e munições apparelhados
Para qualquer empresa que quizera :
Com quanto he grande esforço o dos soldados
O do seu Capitão maior inda era,
A causa que a fugir agora o incita,
Logo (se m*'escutaes) \os será dita.
Rumecao (se aqui a fama diz verdade)
Ou fosse por temor, ou esperança,
Ou ódio antigo, ou por nova inÍ4âjizade,
Porque isto a minha historia n3o\) alcança,
Matou Raez Solimao, sem piedade,
Q-ue tinha do grão Cairo a governança,
E juntando cubica a esta crueza
Lhe tomou grande cópia de riqueza.
XL.
E por fugir ao áspero castigo,
Com que hum tal crime o tinha ameaçado,
Se rccolheo a Suez, logar antigo,
No Estreito do Mar Roxo situado.
Toma dous galeões alli comsigo,
Gtualquer delles assaz forte e artilhado,
Com favorável tempo o mar navega,
E no tempo que disse a Diu chega.
o rniMEIRO CERCO DE DIU. 43
Onde vendo o temor, e o fraco intento
Q-ue Meliqne Tocão no peito encerra,
E a gràa cópia de gente e mantimento,
E a forte defensão que têe a terra,
Faltou-lhe em tal fraqueza o soífrimento,
Sendo hábil, c creado sempre em guerra,
A Melique roprende, e toma a empreza
De resistir á gente Portusueza.
XLII.
Com isto que este Turco aqui têe feito,
(Claro signal do seu feroz esprito)
Tanto se acreditou, e tão acceito
Se fez ante Baudur, que do infinito
Seu exercito foi por elle eleito
(Como n''outro logar vos será dito)
Por Capitão geral, e bem he que ande
Traz o grande serviço a mercê grande.
Perde Melique toda a covardia
Q.ue no hospede ha que têe hum forte escudo,
Cobra novo fervor, nova ousadia,
E cm defender-se põe hum grande estudo.
Ja neste tempo para a bataria
Apparelhado têe os Christãos tudo,
Com alvoroço vão a esta peleja,
Q.ue o forte o mor perigo mais deseja.
XLIV.
Ja trinta e hum sobre mil e mais quinhentos
Anrios erao passados, que o Cordeiro
Se Ví^stio dos hum. Ml os ornamentos
Q-ue tèe no Ceo seu Pae í3eo8 Verdadeiro,
K deu hiz aos mortaes entendimentos^
Cinco dias do mez de Fevereiro,
Em que reina o verão lá no Oriente,
E cá se passa o inverno ao Occidente.
XLV.
Era então naquella húmida e fresca hora
€lu''a luz nova as estrellas afugenta,
E com raios de prata a fria Aurora
Do seu Titon se aparta somnorenta :
Do curral salta o manso gado fora,
E das húmidas ervas se apascenta,
Q-uando os navios todos se abalarão,
E lá onde hão de bater ferro lançarão.
XLA-^I.
Glual soe, quando o medonho e furioso
Inverno está mai? bravo e mais possante,
Mostrar o Ceo o raio luminoso
E traz elle o trovão grosso e tonante,
Retumba o valle, e o monte cavernoso.
Desmaia o trabalhado mareante,
Cahe o cruel corisco na alta serra,
Tudo o que toca abraza, e põe por terra.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 4o
XLVII.
Tal o grosso canhão hoje parece
Glue d^hua e d'outra parte assaz trabalha,
O Sol co'o espesso fumo s** escurece
Em quanto poios ares não s** espalha *,
A frágoa de Vulcano a isto obedece,
Pouco resiste o arnez, menos a malha,
Q-u^este espantoso tom cruel e imigo
Morte sempre e ruina traz comsigo.
XLVIII.
O cruel invenção, ao mundo dada
Lá onde Lúcifer para sempre arde,
A valentia fora hoje estimada
Se acertaras de vir annos mais tarde.
Ja não vai braço forte, ou dura espada.
Esta iguala o animoso, e o que he covarde,
Toma ja o arcabuz forte soldado,
Q,ue sem elie serás pouco estimado.
Mas o redondo ferro que sahia
Lá do concavo bronzo Lusitano,
Com quanto ardendo em fogo e fúria hia.
Faz nos imigos muros pouco dano :
Mas a armada Christãa grave o sentia
Do canhão furioso Mauritano,
ôue de fixo logar faz seu serviço,
E o Portuguez o faz de movediço..
45 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
Os tres bateis então se hiao chegando
Aos baluartes ja, que defendião
O mar e a barra, e vão-nos rebocando
As fustas, que diante delles hião :
Grãa cópia de pelouros, que atroando
Vem todo o mar, e em vivo fogo ardiao,
Muito antes a encontra-los no mar vinhao,
€lue cheguem lá, para aonde então caminhão.
Nada para detê-los he bastante,
Destruem, queimSo, rompem, desbaratao,
Míseros dos que então achão diante.
Porque não se contentão se não matao.
Só o animoso Dom Vasco passa avante.
Por mais que lá dos muros mal o tratão,
Só chegou ao logar determinado.
Mas caro lhe custou ter lá chegado.
Não era ainda bem junto áquella parte
Onde a morte cruel o ja esperava,
Este segundo Heitor, segundo Marte,
Q-uando no ar hum pelouro ja voava,
Q.u'a torre encontrar vai do baluarte,
Com que a parte do mar f.e segurava,
Mas tal a fez alli o esperto Mouro
Q,ue recebe sem damno o grão pelouro.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 47
Ja do mar e da terra se não sente
Senão s6 da bombarda a cruel ira.
Tudo esconde a fumaça negra ardente,
Encobre o Sol, a vista aos olhos tira.
O douto bombardeiro diligente
Não sabe aonde aponta, ou aonde atira,
Nos navios o ferro e fojco he tanto
€tue causa morte n'huus, «'outros espanto.
Os três bateis se vem em grande aperto,
Nem têe ja quem os chegue, ou os arrede.
Glue fazes, forte Vasco, lá tão perto ?
Deixa agora o que o esprito alto te pede.
Hum pelouro da terra vem mais certo
Q.ue os muitos que ella então de si despede.
Rompe a forte cabeça ao mundo rara,
E outra também que junto delia achara.
Eterno Rei, benigno e piedoso,
Gltie com a tua remiste a nossa morte,
Porqtje o esprito antes cego e tenebroso
Receba luz, e suba a melhor sorte,
Recebe no teu seio glorioso
Este teu fiel servo, ousado e forte,
Que defendendo o teu nome infinito
Rendoo o valcroso, invicto esprito.
AS OJ3RAS DE FRANCISCO D*ANDRÀDK.
LVI.
Despois que a ChristSa gente neste dia
Com grave damno seu em vão trabalha,
Deixa de todo a triste bateria,
Deixa aquella cruel dura batalha :
Q-ual deixa então no mar a carne fria,
Q-ual das veias somente o sangue espalha.
Os navios em salvo não ficarão
Porque os mais, destroçados, escaparão.
LVII.
Affastados d'alli, com não pequena
Perda, segundo a fama hoje pregoa,
Manda o Governador içar a entena,
Levar ferro, e a Chaul volta a proa :
Mas primeiro que parta, manda e ordena
Glue de navios hua cópia boa
Da sua companhia alli se saia
E faça guerra á costa de Cambaia.
LVIII.
Fica a cruel armada que se aparta
Dos que vão a Chaul, com grãa bonança :
Nada a detém então que não se parta,
Toma do mal passado grãa vingança :
De males, damnos, mortes, não se farta,
Jamais a espada cessa, nem a lança.
Não escapa a mulher, o velho, o moço,
Tudo sente o cruel, bravo destroço.
o PRIMEIRO CERCO DE DIV. 4^
HX.
Correra do mar a fralda os Lusitanos,
"Vingão assaz os inales seus passados,
Nem bastão os cruéis, primeiros danos,
Para se haverem ja por bem vingados :
Durou este ódio e gtierra bem quatro anos,
Com que os Cambaios mal afortunados
A fúria Portugueza sentem tanto
Gtue só conta-lo causa grande espanto.
iX.
Todos aquelles grandes senhorios
Forão sem piedade entào corridos,
Tomão-lhe mil logares, que vazios
Lhe deixarão de todo, e destruídos :
Não escapão nos mares os seus navios,
Também aos nossos ficão submettidos,
Da gente, a que por dita escapou viva
Não pode alU escapar de ser captiva.
LXI.
Tanto oste mal, tanto este damno creoe,
A tanto chega então a fúria imiga,
Glu^o grão Rei de Cambaia lh''obedece,
E o seu furor antigo se mitiga :
A pedir pazes logo humilde dece,
GLu"'assi a grãa soberba se castiga,
E Baçaim por esta paz que pede
Com suas terras e ilhas nos concede.
50 OBRAS DE FHANCISCO d** ANDRADE.
Fica o Governador assaz contente
D^huas pazes que vem desta maneira,
Com que a guerra se acabe, e se accrescente
O mando á Lusitana alta bandeira :
E para que estas pazes logo assente,
Manda que a Diu vá Simão Ferreira,
O qual era então da índia secretario,
Bem provido de tudo o necessário.
Mas porque em qualquer falta nao o tome
Da terra a lingua lá, por não sabella,
Levou hum, que Joanne tem por nome,
E grão conhecimento tinha delia,
O qual do Santo têe o sobrenome v
Q.ue hoje adora a Gallega Compostella :~
Ouvi-me deste a varia estrella e vida,
Glue he cousa digna assaz de ser ouvida.
Este para que a minha historia pede,
Senhores, attenção, seguio a insana
Lei primeiro do immundo Mafamede,
E nasceo na infiel terra Africana -^
Lei que a brutalidade toda excede,
Qluc os seus por si somente desengana,
Mas tanto pode a carne (com seu dano)
GLue vai mais que d. rasão, que o desengano.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 51
No mundo foi apenas entrado
Q^uando se vio sujeito ao jugo imigo,
D''entre os braços da chara mae roubado
Perde da doce piítria o ninho antigo.
D^alli ao fiel povo foi levado,
Banhão-no no llcór sagrado e amigo
GLu"'a5 culpas lava, enche de gruça o peito,
E põe nas almas ser puro c perfeito.
LXVI.
O Ceo, que para varia sorte o chama,
A hum calafate Portuguez o entrega,
Grão saber, discrição nelle derrama,
Grande engenho e agudeza lhe não nega ^
Grandemente por isto o senhor o ama :
K depois acontece que navega
Lá para o Oriental Reino o mar bravo,
E leva em companhia o seu escravo.
Nem lá cessa este amor, esta vontade,
Em quanto d^ar o corpo vivifica,
E quando a alma mandou á eternidade
Est''amor por mil provas verifica :
Pois deixa o amado servo em liberdade,
E com ella também ao servo fica,
Por morte do senhor, híia grãa parte
Do que as suas mãos lhe derão, c a su^arte.
62 OBRAS DK FRANCISCO d'aKDIIA1>K.
IX VIII.
Ja a este tempo aquelle que tomara
Dos dous do Zebedeo nome e appellido,
Da idade pueril que atraz deixara
Os tenros annos tinha consumido,
Agora na viril idade entrara,
E com estudo tal tinha aprendido
Q-uasi as linguagens todas do Oriente,
Glue delias usa assaz perfeitamente.
LXIX.
Depois que a cruel Atropos, e horrenda,
De seu senhor cortou o subtil fio,
Ajuntando o que pode de fazenda
Entra de Bisnaga no senhorio.
Wenhum ha que melhor a lingua entenda
Daquella terra, e o Rei, que era gentio,
líOgo por sua audácia o conhece,
E dá-lhe entrada em casa, e o favorece.
Este seu favor logo nao se acaba,
Glue co''a lisonjaria se aconselha,
E tudo louva a ElRei, nada desgaba.
Nunca se lhe para isto nega a orelha.
Seus Ídolos approva, e ritos gaba,
E mil vezes ante elles se ajoelha.
Tanto favor lhe mostra ElRei por isto
Q.u"*entre os seus mais acceitos era visto.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 53
LXXI.
Mas como hum cubiçoso e máo conceito
Não pode muito tempo estar no seio,
Que Deos ás vezes (que he juiz direito)
Faz que de se mostrar seja elle o meio ^
Não pode este encubrir tanto o seu peito,
De maldade e cubica sempre cheio,
ôu"* antes que muito tempo alli passasse
Elle por si se não manifestasse.
D"'bua parte este vicio baixo e immundo
(Pae de todos, e tronco verdadeiro,
ttu'a gente pasma, e têe por sem segundo,
Mas qualquer em segui-lo he o primeiro,
GLue sempre he falso o bom que mostra o mundo)
E d^outra bum tal favor nMium estrangeiro,
Aborrecido o fez d^outros privados.
Os quaes delle se tèe por acanhados.
IXXIII.
Este ódio, inda que novo, assi crescia,
Q.u'em breve tempo foi maior que antigo,
Por onde elle, naquelle mesmo dia
Q.ue o Ceo se lhe mostrava mais amigo,
E mais alto chegou sua valia.
Se vio encaminhar para o castigo,
Q-ue o miserável corpo no ar levanta,
E com laço cruel prende a garganta.
LXXIV.
Esta he do mundo a bemaventurança,
(Oh quanto vás, juizo humano, errad«)
Nisto pára quem ,põe a confiança
No que de si promette hum alto estado :
Este triste chegando á mor bonança
O sobem n''hum rocim, e deshonrado
O guião para a forca, a qual faz guerra
E soe punir os máos naquella terra.
Ja d^hua cor mortal coberto o rosto,
E a força «aturai quasi perdida.
Chegado estava áquelle triste posto
Lá onde o condemnado deixa a vida ^
ôuando os mesmos a quem elle deu desgosto,
E que por elle virão abatida
Sua privança (dòr que as almas cega)
O pedirão a ElRei, e não Ih^o nega.
LXXVI.
Torna o mísero em si, vive, e respira,
Os membros cobrão o calor nativo.
Torna a côr ao logar d''onde sahira,
Dá-lhe alguma figura ja de vivo:
Anda, vê, falia, e cuida que he mentira,
Vê-se solto, e inda cuida que he captivo,
Co''os olhos o está vendo, e o pensamento
Inda cuida que he sonho, ou fingimento.
o PRIMEIRO CERCO DB DIU. 5^
Porém vendo que ja segura tinha
D'hum perigo mortal a vida chara,
Temendo que se alli mais se detinha
A veja n''outro mor que o que passara;
Para Goa d''alli logo se encaminha,
Foge á terra que á morte o condemnára,
Mas nem socega muito tempo em Goa
Q.ue logo para Ormuz voltou a proa.
LXXVIII.
D** Ormuz na branca praia apenas salta,
Gliiando o seu grand'engenho, e ousado peito,
Q-ue com tantos trabalhos não lhe falta,
O fez a ElRci da terra tão accoito,
Glue privança alcançou logo tão alta,
Q-ue no Reino por elle tudo he feito :
A cubica, que lh'era natureza.
Fez que logo ajuntasse grãa riqueza.
AUi sua bonança ha por segura,
E que sua fortuna alli socegue,
Mas como ella ao que pôz na mdr altura
Sempre com maior mal trata e persegue,
Faz que neste alli foi de pouca dura
Tudo quanto lhe fora antes entregue :
Perde o mando, as riquezas, a privança,
E quasi de viver a confiança.
56 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRÁDE.
A causa disto foi, se nao m^engano,
Saber de corto ElRei que se fizera
Este naquella terra hum tal tyrano,
Glual Sicilia jamais de si não dera :
E outro castigo mor, outro mor dano^
Esle falso em Ormuz então tivera,
Se aquelle Capitão não atalhava
Que a Christãa fortaleza governava.
Do segundo perigo em salvo posto
Deter-se aqui também mais, arreceia,
Outra vez para Goa volta o rosto
Onde seus infortúnios remedeia :
Em grãa miséria alli, em grão desgosto
Passa a vida, de males sempre cheia,
Até que co''o tempo outra occasião traga
Com que possa curar a nova chaga.
Mas o Ceo, que até então lhe fora vario,
De novo bem lhe dá novo desenho,
O Governador manda o Secretario
Da índia, ao que ja acima dito tenho :
Santiago vê que necessário
Lhe he naquella jornada o seu engenho,
Porque a Cambaica lingua bem sabia,
Pedio-lhe que o levasse em companhia»
o PRIMBIRO CERCO DE BIV. 57
I.XXXIII.
Ferreira o companheiro nSo engeita,
Leva-o por seu Faraute na viagem,
E em entrando em Cambaia se aproveita
Do seu esperto engenho, e da linguagem :
Loco co^o Sultão teve tão estreita
Amizade, que a todos fez vantagem,
Tal era o seu saber e habilidade
Q,ue bastava a ganhar qualt^uer vontade.
A sua inclinação perversa o incita
A que cm nenhuma lei firme se assente,
Porque tão devoto entra na mesquita
Q.ue fez a Mafamede a Moura gente,
Como quando o Christão templo visita
Que honra a Dcos Verdadeiro, Omnipotente
Com igual devoção também acode
Quando está co''o gentio ao seu pagode.
LXXXV.
De tal sorte o Sultão se lhe aífeiçoa,
Que quando o Secretario se despede
Para cortar o mar direito a Goa,
Lhe pede que lh''o deixe, e Ih^o concede.
Logo a sua bonança ao cume voa,
E todas as passadas bem excede,
Que logo foi em tantas honras posto
Quantas soube inventar o amor e o gosto.
58 OBRAS DS FRANCISCO í» AKDRADE.
A primeira he fazer que elle se veja
Com çrãa casa, e apparato soberano,
E para a sustentar como deseja,
De renda vinte mil pardaos cada ano
Lhe tinha dado El Rei, para que esteja
Rico, grande, abastado, alegre, ufano,
E dous logares, para que mais creça
Sua honra, e seu estado se engrandeça.
LXXXVII.
Nem farto inda com isto o ardente peito
Do Rei, a quem hum amor novo então cega,
A este, sem mais conselho ou mais respeito,
O mando universal do Reino entrega:
Tal que aos mais nobres seus, contra direito,
ô-ualquer cargo que tèe agora nega,
E para este só quer que se reserve,
E também de Faraute este lhe serve.
LXXXVIII.
Porém em quanto o Ceo hum tal estado
Tão alto e soberano então lhe dera,
Não l})e deu hum aspecto nobre e honrado,
Conveniente ao estado em que o puzera :
Era de rosto mal afigurado,
No qual por mil signaes se via que era
Do mal contagioso combatido
A quem França toe dado hoje o appellido.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU.
59
Mas como nada disto lhe tirava
A grande discrição, grande eloquência,
Glu^o seu máo peito em si dentro encerrava
Taes, que co^os vicios vão a competência:
Aquelle que algum tempo o conversava,
E disto tinha alguma experiência,
Ha que em Principes ficão desculpados
Glue lhe forão ja tão affeiçoados.
Em casa deste Rei, que a tanta altura
D^hum estado tào baixo o alevantára,
Se mostrou a fortuna de mais dura
Do que em todas as outras se mostrara ;
Mas como nenhuma ha firme e segura,
Aqui lhe deu o fim que lhe guardara,
Digno d'hum infiel, malvado esprito,
Como espero que avante seja dito.
Deste não mais, porque he rasao que acuda
Ao Sultão, que por mim está bradando,
Pedindo-me que queira dar-lhe ajuda
Contra o Mogor, que o vai desbaratando:
Se agora não me falta a minha ruda
Musa, e o Ceo se me mostra amigo e brando^
Contar-vos esta guerra, e a causa quero,
Porém 14 no outro Cíiuto vus espero.
o PRIMEIRO
CERCO DE DIU.
CJlMTO III.
JLlRei dos 3Iogores faz cruel guerra a Sultão
Baudur : declara-se a causa e a origem
delia. O Sultão manda pedir soccorro ao
Governador^ e a Martim, Affonso de Sousa,
Capilão-mór do Mar. E apoz isso manda
sua mulher para Judá.
llaem vio nunca tyranno que tivesse
Seguro o peito, alegre e repousado ?
Quem vio nunca soberbo que podesse
Conservar longamente hum alto estado f
Nenhum destes se vio, a que não desse
O Ceo hum cruel fim, triste e apressado,
Porque entenda o soberbo, e o que he tyrano,
G-ue se he poderoso, he também humano.
o PRIMSIRO CEUCO DS DIU. 61
II.
Fálaris, Tamorlao, Mezencio, Nero,
Que tanto humano sangue derramastes,
Vós os dous Dionizios, que co^o fero
Nome só, a Siracusa amedrontastes,
E os mais de que tratar aqui não quero,
Q.ue o mundo com cruezas espantastes.
Dizei, porque se saiba esta verdade,
Gluão pouco vos durou a magestade.
III.
Alguns houve também, que ainda na vida
Tiverão de seus males o castigo,
E que a soberba virão abatida
Por mais fraco poder, mais baixo imigo :
Este para que agora vos convida
A minha historia, mostra isto que digo,
De que logo vereis a experiência
Se me quizerdes dar benigna audiência.
Junto do Caspio mar, contra o Oriente,
Lá nas partes da Pérsia interiores.
Habita hiia animosa e forte gente
Q-ue tèe inda por nome hoje Mogores^
Cuja lingua algum tanto he diflerente
Da que se usa entre os Persas moradores ^
Alvos 08 homens são, brandos, tratáveis,
Domésticos, polidos, convei-saveis.
Manda hum Rei este povo bellicoso,
Glue Mirahamed Mayam se chama,
Tanto d^altas empresas culnçoso,
Q-ue sempre a maior busca, esta mais ama
Este esforçado Rei, e poderoso,
Algum tanto a Sultão Baudur desama,
Por ver que traz com guerras avexados
Alguns dos seus amigos, e alliados.
VI.
Mandadas d'*hua e d^outra parte tinhao
Sobre este caso alguas embaixadas,
As quaes como naquelle tempo vinhão
De vontades imigas e damnadas,
Entr''elles para bem nada encamínhao,
FicJ5o do ódio as raizes arreigadas,
E por então entr''elles não se solta
Outro mor movimento, ou mor revolta.
Porém como o damnado pensamento
GLuando mais dissimula, mais se accende,
E qualquer leve causa, ou movimento,
Lhe faz pôr em eífeito o que pretende,
!Não vai rasão, não vai entendimento,
Porque tudo ao furor então se rende,
Leve causa bastou para que o peito
Acceso, destes Reis, viesse a effeito.
o PKIMBIRO CBRCO DE DIU. 63
VIII.
Na Côrtc do Mogor então andava
Ham Senhor de grão preço e grande estado,
Q-ue Mirizam Hamed se nomeava,
Com cuja irmãa ElRei era casado :
E entre as mulheres todas estimava
Esta mais, e lho he mais afíeiçoado :
Tão mancebo na idade então seria
Mirizam, que trinta annos não cumpria.
Este, ou que ElRei não faça dellc a conta,,
Ctual cumpre a seu estado e dignidade,
Ou levado da mal quieta e prompta
A cousas novas, sempre mocidade.
Havendo todavia por affronta
Mostrar-lhe ElRei desgosto e má vontade,
Do seu merecimento assaz indina,
Buscar Senhor alheio determina.
X.
E sem mais outro tento, só movido
D''hum furor que a rasão mil vezes tolhe^
Se o que merece ser favorecido
Desgosto e semrasões por fructo colhe,
Mirizam do Mogor parte escondido.
Para Sultão Baudur lá se recolhe,
O qual ello em o Mandou então afchára,
Reino que pouco tempo antes ganhara.
64 obuas dx Francisco d^akdradb.
XI.
Foi esta sua vinda recebida
Do Sultão, com grãa festa, e com grão gosto,
Mas sabendo o Mogor esta fugida,
E para onde elle então voltara o rosto.
Não pôde dentro em si ter escondida
A dor que recebeo, e o grão desgosto,
Forçado lhe he de fora descobrir-se,
Que mal a grande dôr pode encobrir-se.
Arde em ódio e desejo de vingança.
Manda ao Sultão sobre isto hua embaixada,
A qual o que pretende não alcança,
Torna com más palavras affrontada.
O Mogor, que nào perde a confiança,
Mas o estorço e furor Ih^a dão dobrada,
Lhe repete outra vez, ja menos brando,
E palavras também duras soltando.
Baudur, que hua soberba, hua ufania
Tèe, e hua natural fúria indomável,
E então era maior, porque sentia
Nas guerras a fortuna favorável,
E porque tinha em sua companhia
Hum exercito grande e innumeravel.
Tal resposta lhe dá, tão solta e feia,
Q-ue d'hum baixo e vil servo ind'era alheia,
o PRIMBIRO CERCO DS DIV. 65
XIV.
Não arde tanto a frágoa de Vulcano,
Q.UC de Lènos atroa o valle e o monte,
Onde por mal d'alguns, por grave dano,
Tu Pyracmon, tu Steropes, tu Bronte,
Os coriscos bateis que o soberano
Júpiter solta com irada fronte,
Como arde do Mogor o peito em ira
Q.uando a resposta do Sultão ouvira.
XV.
O terrível aspecto mette medo,
Nos olhos vivo fogo então chammeja.
Da lingua o natural uso está quedo,
Nem pode declarar o que deseja :
Em fim a solta, e diz que muito cedo
EUe mesmo irá, ver se em tudo seja
Correspondente o esforço em obra e eflfeito
A taes palavras, tão soberbo peito.
Era isto na sazSo áspera e dura
Em que se ve de todo mia a planta,
Ausenta-se dos prados a frescura,
A branda Philomena ja não canta ^
O Noto inchado assopra, e a formosura
Tolhe ao Sol, o mar se incha e se alevanta,
O manso rio chega a tal grandeza
Q.ue co''© mar competir quer na braveaa»
XVII.
Porém depois que aquelle tempo torna
Brando, suave, alegre, desejado,
Em que Flora de novo o corno entorna
Com que Alcides se fez tão celebrado,
De folha, ílôr e fructo a planta se orna,
De boninas se esmalta o fresco prado.
Torna com novas queixas a triste ave,
Favonio soa então brando e suave.
XVIII.
Determina o Mogor fazer aballo.
Vendo que o bravo rio ja consente
Neste tempo que possão vadeallo,
Porque isto o detivera tão somente.
Dizem que ajuntou logo de cavallo
Trinta e cinco mil homens, sem mais gente
Glue pelejasse a pé, porque esta terra
Só co^os cavallos faz a sua guerra.
Grande caminho passa em poucos dias.
Porque a grande ira então o estimulava.
Entra ja de Cliitor nas frontarias.
Reino que entãa Baudur senhoreava.
Onde ajudadas do ódio as valt^ntias
Fazem guerra qual elle Ih^a ensinava ^
Vinte e cinco mil homens lhe vierão
De cavallo aqui, mais do que então erão.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 67
XX.
Com tao nobre apparato, e sumptuoso,
Para buscar o imigo se dispunha,
Com som de quatro pes, rijo e espantoso,
Pisa ja o verde campo a ferrada unha :
E como era d^espirito grandioso,
Nas grandes presas só seu tento punha,
Polas aldeias passa, e as vê apenas.
Porque não o detém cousas pequenas.
XXI.
E como o seu caminho nada impede,
A trabalhos nenhuns então perdoa,
Com tal presteza vai, que bem excede
A presteza de tudo quanto voa :
E a tanto isto então chega que precede
Em mil partes a fama que o pregoa,
E com tanta presteza, e furor tanto.
De temor toda a terra enche, e d'espanto.
XXII.
O soberbo Sultão treme e arreceia,
E a gente que elle manda, e Ih^obedece,
De tal temor fica então cheia
Qiue do rosto a còr desapparece :
E como onde o temor se senhoreia
Sempre as imigas cousas engrandece,
Este fez parecer que o Mogor vinha
Com muito mor poder do que então tinha.
68 OBRAS DE FRANCISCO D^AKDRADE.
Este que poios ossos ja corria
Daquella multidão tào sem proveito,
Lhe fez então nSo crer a quem trazia
As verdadeiras novas deste feito,
Mas antes cada hum delles temia
O que então lhe dictava o fraco peito:
E assi por verdadeiro aquillo havião
Q,ue elles com covardia em si jBngião.
XXIV.
Isto puz o Sultão em tal cuidado
Glue lhe roubou de todo o entendimento,
Nem a destruirão de seu estado,
Nem as novas que tèe cada momento,
De quão ligeiro vem, quão apressado
A busca-lo o Mogor, lhe dão alenta
Para determinar-se no que lh''era
Necessário fazer, e alli o espera.
Mas o ousado Mogor, a que a ira ardente
Guiava a hua vingança rigorosa,
Em muito breve tempo, áquella gente
Deu de si mostra, horrenda e temerosa :
E vendo que passava livremente
Por hiia terra imiga, e perigosa.
Perde o temor, a fúria se lh''esperta,
Porque a victoria ja linha por certa.
>RIM£IRO CERCO DE DIU.
XXVI.
69
Os que do Sultão seguem o estandarte
De seiscentos mil passão, que bastantes
Pudérão ser de despossar a Marte,
E de acabar a empresa dos Gigantes :
Era dos de cavallo a quarta parte,
E de guerra duzentos elephantes,
E de peças também d^artilharia
Setecentas no exercito haveria.
xxvil.
Mas que presta isto tudo para guerra
Onde o valor os peitos não accende ?
Com tamanho poder Baudur se encerra
Lá dentro no arraial, nem se defende,
Glu^assentado está lá junto da serra
De Mandou •, mas o imigo que pretende
Acabar o que já bem começara,
I^á perto do Sultão ja se alojara.
XXVIII.
Estando este negocio Ião diverso,
Gràa confiança em huns, n"'outros receio,
O Turco Rumecão, máo e perverso.
Tal que d''outro peior (segundo eu creio)
Não se tratou jamais em prosa ou verso,
Tinha o mando geral, e o mór meneio
Sobre este grosso exercito e infinito *,
Atrar vos fica delle assaz ja dito.
70 OBRAS OS FBANCI6CO d'' ANDRADE.
Tinha neste o Sultão çrãa confiança,
Somente o seu conselho era seguido,
EIIp só têe de tudo a governança,
Elle he alli somente obedecido.
IVlas elle tendo então pouca lembrança
De quanto do Sultão têe recebido,
O deixa, quando lhe he mais necessário,
E truta de passar- se a seu contrario.
Nem sua ingratidão nisto só cessa
(O peito, em que o máo nome todo cabe)
Antes modo lhe dá, com que a grãa pressa
Na serra teme hum passo com que acabe
Facilmente o que quer, pois lhe confessa
Q-ue por elio só v«m (como elle sabe)
O mantimento, e o mais que importante era
A gente a quem agora as costas dera.
XXXI.
Toma-se o passo emfim, faz-se sujeito
Rutnecão ao Mo^or, de que era imigo,
Não sente o Sultão nisto mais que o effeito
G.ue sem receio está deste perigo,
Tanto isto lhe penetra o fraco peito
Que lhe accrescenta em dobro o medo antigo :
Temem também os seus, porque os senhores
Fazem quaes elles são, os servidores.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 71
Ó baixa, vil e cega covardia,
Dos sentidos total destruidora,
r^ão vè a^ora esta gente que podia,
Desarmada, ser fácil vencedora,
Porque o medo eutranhavel lli'impedia
Aos olhos, que nào vissem naquella hora,
(4ue, em tal desigualdade, era a victoria
Tão certa, que não dava grande gloria.
XXXIII.
Porém estes merecem desculpados.
Pois a senhor tão fraco obedecião,
E aquelles por quem erão governados,
E os negócios da guerra então fazião,
Erão nelles tão pouco exercitados
Glu'inda as suas espadas mal região.
Em quem sempre maior temor se encerra
Que nos que experiência tèe da guerra.
Succedo a este temor a dura fome,
ftue nenhuma força ha que não quebrante,
Faz esta com que a morte a muitos tome,
E nos vives o medo se alevante :
Todo o bruto animal alli se come,
Nào escapa o cavallo ou o elephante.
Elrei, sem ser do imigo combatido.
Foge hua noite emfim, sem ser sentido.
72 OBRAS DE FAANCISCO d''aNDIIADE.
XXXV.
Tanto que a nova luz resplandecente
Ornar de vária cor o mundo veio,
Esta fugida soube a sua gente,
A qual posta j&cou em grão receio ^
Porque em quanto o senhor está presente,
O servo,^inda que tenha o peito cheio
De desesperação, d''espanto e medo,
Têe contra todo o mal o rosto quedo.
XXXVI.
Dá novas forças, novo esprito e alento,
Dá contra todo o medo resistência
A presença do Rei, que olha com tento,
E têe do mal dos seus experiência.
Porém quanto esta dá d"'atrevimento,
Tanto ás vezes o tira a sua ausência,
O fraco faz mais fraco, e põe no forte
Desejo de fugir á cruel morte.
Estes tristes depois que a seu Rei virão
Com tamanho temor posto em fugida,
Longamente por elle cm vão suspirão,
E têe sua esperança por perdida:
Na fugida também logo o seguirão
Por vêr se poderão salvar a vida.
Com grãa fraqueza o campo desampárão
Gue com tanta soberba alli assentarão.
o PRIMBIRO CERCO DE DIU. 73
XXXVIII.
Ja os grandes arraiaes desamparavão
Os defensores seus, que os mal defendem,
Km grandes companhias se ajuntavao
Os tristes, e por cá, por lá se estendem ^
Nao porque assi melhor se asseguravao,
Mas tal he seu temor, que nao entendem
Q-ue fazem indo assi ser mais formosa
A prosa, á gente inaiga e cubiçosa.
XXXIX.
Vendo os Mogores tal, tao nova gloria, |
Tão prospero successo, e sem perigo, |
dual nos não representa algua historia, \
Nem do tempo presente, nem do antigo,
Não quizerâo seguir mais a victoria,
Deixão fugir em salvo o fraco imigo,
E vão-se a recolher a rica presa,
Dar saque ao arraial, ja sem defesa.
Achao nelle riquezas escondidas.
De que hua quantidade tal havia,
Q-ue com ellas o insaciável Midas
Engeitára o que Baccho oíferecia.
Porque além d'o Sultão alli mettidas
Ter todas quantas possuia,
Tinha muitos despojos que tomara
Em Reinos que adquirira, e saqueara.
* 3
74 OBRAS DE FRANCISCO d' ANDRADE.
Também acharão dentro algua gente,
A quem não se mostrarão rigorosos,
Não por ser este imigo hoje clemente
A imigos que lhe são tão odiosos,
Mas porque o peito de cubica ardente,
Os braços avarentos, cubiçosos,
Q.uando.achão cousa que a cubica farte
Não saldem occupar-se em outra parte.
Fique agora o Mogor, colhendo est'alta
Presa, que lhe ganhou o forte braço.
Vamos traz o Sultão, a quem não falta
Nesla sua fugida hum embaraço:
Dá-lhe az^is o temor, já voa e salta,
E chega a Cham panei em breve espaço.
Cidade que distante está hum grão trato
Do loirar do seu triste desbarato.
XLHI.
Porém em sobresaltos mil empeça.
Nem esto seu caminho em salvo segue,
G-U^a fortuna por pouco não começa
Contra o que a sou furor esta entregue:
Não acha o triste aqui quem líi ''obedeça,
O vassallo o salteia, este o persegue
Justo castigo dado ao máo tyranno,
Orne conheça no seu o alheio dauno.
■1
o PRIMEIRO CEBCO DE Dllf. 75
XLIV.
Huns poucos, qtie por nome tee ResbutoS)-*
E qualquer do Sultão era vassallo, • íocÍ
Q.ue são na vid;i quaes alarves brutos, '*-'
Em vez de o consolar, e d'a)udallOj ^*
Seguindo de ladrões os institutos '^
Vão duas ou tr(ís vezes salteallo, •"
E desse pouco os seus lhe despojarão '
GLue na fugida os míseros salvarão.
XLV.
Dissimula o Sultão, mostra humildade,
Que a soberba ante o medo humilde fica, -
Chegando a Champanel com brevidade, ^
Alguns logar«s perto fortefica :
Mulheres mette dentro na Cidade,
Mantimentos, com toda a cousa rica,
PorquVra forte assaz por beneficio
Da mestra natureza, e do artificio.
Aqui dizem que têe determinado
Refazer seu poder, por-se em defensa,
Mas o Mogor, que assaz vem apressado,
No quVIle determina não dispensa,
Porque d'elle o Sultão foi salteado - -
Com aquella do raio pressa immensa, '^
Tudo por onde vai saqueia e doma, ''
Nenhum por defender-se a espada toma.
76 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDBADE.
XLVIl.
Baudur, que inda com medo nao repousa,
Sentindo que o Mogor ja perto lh'era,
Sustentar-&e contra elle alli não ousa,
Glue por forte nao se ha quanto quizera ij
Desampara a Cidade e toda a cousa
Rica, e quanto thesouro alli pozera,
O qual fcó nesta pôz innumeravel,
Por ser, como ja disse, inexpugnável.
XLVIIl.
Mas como quanto he astuto e diligente
Em adquirir riquezas o avarento,
Tanto mais vêr logra-las a outrrm sente,
Nem teve gosto igual a este tormento:
E assi a mesma cubica em que anda ardente
Lhe faz com que destrua n''hum momento,
O traz que tanto tempo perde o sono
Polo não ver em mãos vir d'outro dono.
XLIX.
Tal foi aqui o Sultão, de quem se" disse
Glu^hua cópia de perlas grande e rara,
Antes que da Cidade se partisse,
As gastadoras chammas entregara
Para que o imigo não as possuísse,
Q-ue sempre tão cruelmente o tratara.
Mas o mais que ficou foi tão sobejo
G.ue fez perder das perlas o desejo.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 77
A guarda da Cidade alli encommeiída
Ao mesmo Capitão que antes a tinha,
Pcdindo-lhe de novo que a defenda
Com o esforço e prudência que convinha:
E ello, por nao se achar nesta contenda,
Para Diu d^alli logo encaminha,
Cidade que he de todas derradeira
As que arvorão a sua alta bandeira.
LI.
Deixemo-lo agora ir, porque o receio
Faz, que não se assegure, ou assocegue :
Vejamos o Mogor, que todo clieio
De soberba e ousadia inda o persegue :
Tanto que a Champanel mostra r-se veio
Ix)go sem defensão lhe foi entregue,
O copioso tliesouro, e a mesma terra.
Com tudo o mais que dentro em si encerra.
Aqui vendo que em vão tomar pretendem
O Sultão, que com azas lhes fugia,
A roubar polo Reino então se estendem.
Onde nada este intento lh"'impedia.
Depois que com cubica não se accendem,
Porque ja o roubo c a presa os enfastia,,
Usão então d^estranhas crueldades.
Sem respeitar a sexos, nem a idades.
1
78 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
LIII.
Outra vez o Sultão m'*está chamando,
Ilida agora o deixei, não sei que diga,
Glueio torna-lo a ver, que arreceando
Estou, que ha d** estar posto em grãa
Este apenas a Diu chega, quando.
Vendo quanto a fortuna lh''era imiga,
Desesperando ja poder salvar-se,
Deixar o Reino, e a Meca quer passar-se.
LIV.
O grão medo a que estava então sujeito
Lhe faz com que procure esta fugida,
Sem ter a seu estado algum respeito,
Piem que deixa com elle a honra perdida:
Mas uso he do covarde, e fraco peito.
Estimar mais que tudo a torpe vida,
Escolhe antes viver sempre em miséria
Glue dar d'alto louvor larga matéria.
tv.
Trabalhando o Sultão com grão cuidado
Por dar execução a seu intento,
Lhe foi d^alguns vassallos estorvado,
Glue temem mais que a morte o abatimento
Vendo-se de Aigir desesperado,
Dá á vontade dos seus consentimento,
Mas a sua de todo não estava
Isempta, do que agora imaginava.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 79
Porém por mais rasões que então lhe dera,
Por mais que sua gente o segurara,
Acabar-se com elle não pudera
ôu^isto que elle Ima vez em vão tentara
A pôr cm fim por obra não viera
Se o Mogor de segui-lo não deixara,
Do qual quando somente o nome ouvia
Ao corpo o sangue, ao rosto a côr fugia.
LVII.
E porque ellç ,á tenção que têe no seio
Este ultimo reniedio se promette,
Armar dous galeões com pressa veio,
E outros navios mais, com que fez sotte :
Dizião que três contos d^ouro e moio
Logo em dinheiro dentro nelles mette,
Com pedraria tal, tão ricas jóias,
Q.u*'enriquecer pudera muitas Troias.
LVIII.
Mette o rubi purpúreo, a azul safira,
Verde esmeralda, e branco diamante,
GLue qualquer a muito ouro o valor tira,
Glualquer de grande preço está diante :
Aqui põe sua mulher por quem suspira.
Por quem arde d'amor, que do possante
Rei de Deli era filha, e vencedora
Fora em Ida, se lá a quarta fora.
80
LÍX.
Pôde tanto esta rara formosura
Naquelle de si fero e cruel peito,
Q-ue a força natural, go^o uso mais dura,
Venceo nelle, e da sua o fez sujeito.
Armas são de que amor usa, a brandura
D^huiis bellos olhos, d''hum suave aspeito,
Com que vence a invencivel fortaleza
Do longo uso, e da mesma natureza.
Mas vendo-se apartar, ficar ausente,
Daquella que a vontade lhe levava,
Daquella com quem só era contente.
Sem quem inda o mor gosto o atormentava,
Arrancando hum suspiro triste e ardente
Lá do centro do peito, a que abrazava
Hum grão fogo d^amor, e saudade,
Com que cada hora mais rende a vontade :
LXI.
Pondo os olhos naquelles d^onde nace
Na su^alma híla luz mais que a do dia,
Naquellos olhos onde elle a alma pace
Do gosto que hum amor bem pago cria ^
Vendo que na purpiirea branca face,
A quem a rosa e a neve obedecia,
Hija agua saudosa está estillando
ôuMnda mais que o seu fogo o está abrazando
o rRIHXIRO CERCO BE DIU. 81
He possível (lhe diz) hum s<5 meu gosto,
Hum só amor meu, hum só contentamento,
ôuo pois todo meu bem em li está posto,
De mi nasça este triste apartamento ?
Como ouso eu hoje a ti voltar o rosto,
Se eu causo hoje esse meu e teu tormento ?
Ou como antes não quiz perder a vida,
Glue sentir esta triste despedida ?
LXIII.
A quem me queixarei do grave dano
Que ficará comigo de contino,
Se quando eu sou comtigo mais ufano
Então de ti apartar-me determino?
S<; eu mesmo contra mi sou deshumano,
Gluem me poderá ser brando ou benino?
Inda isto ajuda mais a atormentar-me,
ttu"*em meu mal só de mi posso queixar-mc.
Porém o mal quê em mi tèe maior parte,
C) que esta ahna mais sente, e o que mais chora,
Ho ver que com rasão podes queixar-te
Do. quem morre por ti, de quem te adora ^
Pois sendo minha gloria contentar-te,
Ku te obrigo a lançar dos olhos fora
Essa agua que a mi, mais que a ti maltrata,
Pois a ti só faz triste, a mi me mata»
82 OBRAS DE FRANCISCO D ANDRADE.
LXV.
E se eu vivo somente de querer-to,
Se do teu gosto so ijieu gosto pende,
Se fazer-te a vontade, e obodecer-te
He o que ém maior gosto est''ultna acende^
Vendo eu por minha causa entristecçr-te.
Corno ao teu gosto est^alma se não rende ?
Q.uem me fez hoje ter tajita crueza, . ,
Q-ue possa ai em mi mais que essa tristeza ?
Mas baste ser-me dura ç esquiva a sorte,
Não me sejas tambpm tu dura e esquiva,
Q-ue pois em ti só tenho a vida e a morte
Forçado he que por- ti só moura e viva:
Cuida que por fugir a hum mal mais forte
Se oífreceo esta alma. a ti captiva,
A soffrer este mal da tua ausência
Gl^ue me ppp^ume o ^o, e a piciencia.
LXVH.
Bem vejo eu, amor meu, quíío trabalhosa
Vida farei sem ti, se acaso dura,
G.ue se a tenho, ou se me tila he deleitosa,
Eflfeitos são de, tua formosura:
Mas vejo a rainha sorte, d^invejosa
Do meu contente estado, e alta ventura.
Tão dura. contra mi, que vou cuidando
Glu'em triste estado o quer ir transtornando.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, 83
Ordena que hum cruel, soberbo iraigo,
Em perseguir-me tanto, dure e insista,
Q-ue nos meus Reinos ja não tenho abrigo,
Nem forças, ou poder que lhe resista :
E por eu não ver posta em tal perigo
A quem vida me dá só com a vista,
Ordeno esta mortal, cruel partida,
D''onde espero melhor gosto e melhor vida.
LXIX.
Irás, meu bem, irás lá, onde espero
GLue mui cedo também serei presente.
Mas nâo irás sem mi, que o que t'eu quero
Faz ir comtigo est^alma juntamente :
E em me dando logar o imigo fero
Irá o corpo buscar a alma contente,
€Lue nunca se apartou hum só momento
De quem he todo seu contentamento.
Quietamente então satisfaremos.
Apesar da ventura, e do meu fado,
Este bem, e este gosto que perdemos,
Com dobrado outro bem, gosto dobrado :
Com tal certeza em tanto poderemos
Soffrer a saudade, e o triste estado
Em que a amhos nos tèe posto hua lembrança,
Q-ue o mal fa-lo soffrivel a esperança.
84 OBRAS SE FRANCISCO D^ANDRADE.
Ja agora estas palavras mal podia
Declarar o Sultão, que a larga e grossa
Veia, que dos seus olhos lhe corria,
Lihe faz, que a lingua então mal mover possa.
A namorada espisa, em quem fazia
Muito mais impressão, muito mais mossa,
O mal que em seu esposo estava vendo,
Q.u'a grave dor que estava ella soíFrendo.
LXXII.
Pregando iielle os olhos, que bastavSo
Render a mais agreste alma, e mais ruda,
Inda estilando perlas, que dobravão
O amor ao que em ama-la só estuda ^
Detendo-se hum espaço, cm quanto davao
As lagrimas logar á lingua muda,
Em meio d^hum suspiro saudoso
Desta sorte responde ao charo esposo :
LXXIII.
Esposo charo meu, mais que esta vida,
Mais que estes olhos meus com que te vejo,
Não me tenhas por tão mal entendida,
Q.ue não entenda bem, que o grão desejo
Q^ue tèes de me não vêr offerecida
A hum perigo mortal, a hum mal sobajo,
Faz que hoje contra mi sejas tão fero,
Porque isso te merece o que t'eu quero.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 85
LXXIV.
Bem vejo que a rasao quo a isto t^obriga
l'roccde só d'arnor, não d^oiitra parte,
rorém que esperas tu qiie faça, ou diga,
Q.uem \ive de te ver, e ha de deixar-te ?
Por muito que a ventura me persiga,
Pois q«íiz que minha gloria fosse amar-te,
Q-ue outro mal pode dar-me, ou que tormento
Gluc se iguale com este apartamento ?
LXXV.
Sc comtigo hei de ter perigo, ou morte,
Sem ti peior morte espero, ou mor perigo,
Pois sem ti o menor mal me será forte,
E o maior me será brando comtigo.
Assi que então terei mais dura a sorte,
Então me será o fado mais imigo
Quando sem ti me vir em salvo posta,
Q.u^eutuo a mor perigo estou disposta.
1.XXVI.
Mas pois com esta ausência seguramos
Este grão bem que aqui em risco temos,
Rasão será que hum breve mal soíTramos
Para que longamente o bem logremos:
Vamos agora traz o que esperamos,
V^ este bem duvidoso aventuremos
Por ter híia segura alta bonança,
Enganemos embora esta esperança.
86 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADX»
LXXVII.
Eu irei, amor meu, porém presente
Comtigo fica est''alma, e a liberdade,
E cm meio desta ausência irei contente
Pois te pude fazer nisto a vontade :
Mas muito mais o irei, pois brevemente
Satisfarei comtigo a saudade
Q-ua de ti nesta tua alma se assenta,
Se tanto como a mi te ella atormenta*
LXXVIII^
Mil soluços também d'amor nascidos.
De todo a voz e a lingua então ll^atárao,
Q.ue os que em igual amor erSo unidos
Tumbem nas mostras delle se igualarão :
Assi mais que nunca boje ambos rendidos,
Aml)os logo a píirtida apparclhárão,
l^orque a espfrrança então forças liie davi
Com quesoífrão hum mal que a ambos matava.
E á riqueza que disse e grão thesouro
A esta mulher com quem o gosto lhe lila,
E estima mais que pedraria e que ouro,
Por guarda o Sultão deu, e companhia,
Hum, não sei se he Gentio, Turco, ou Mouro,
!Rlas do quem elle muito se confia,
Acefarcão, por nome este se chama,
Capitão que mais presa, e que mais ama.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 87
Míiníla-lhe que a Judá se vá direito,
Cidade das melhores que elle tinha,
Situada do Roxo Mar no Estreito,
Ijá da parte que a A.rabia lhe he visinlia ; ' ''
E aqui esteja, em quanto elle o seu conceito
Vor recado, ou por si mostrar lhe vinha.
Mas ja que se elle agora não despede,
"Vejamos polo Reino o qíié succcde.
Em quanto por salvar esta riqueza
E a mulher, o Siiliao afesi trabalha,
Não cessa do ^logor a alta crueza,
Por tudo quanto vê, cruel s"* espalha :
Dos seus o que escap» u a esta braveza,
E s(5 a fugida espera que lhe valha,
A Diu se recolhe em tempo breve.
Onde estar o Sultão por novas teve.
Porém nenhum a Diu sé recolhe
Para ajudar seu Rei n''hum mal tão duro,
D'onde hum tão alto titulo se colhe
Q-ue faz resplandecer o mais escuro.
Mas porque o rudo povo sempre escolhe
O iogur por mais forte e mais seguro
Onde o seu Rei 'está, ainda que seja
Ao revez do que cuida e que deseja.
OBRAS DE FRANCISCO D AKtrADE.
Desejo de salvar a inútil vida^
Glue salvar não espera ja d^outra arte,
Não somente a qualquer destes convida,
Mas constrange, a se vir para esta parte.
Aqui o que nunca a espada vio cingida
Está, e o que seguio sempre o fero iMarte,
Porque he tal o temor por toda a terra
GLue sobrepuja todo o uso da guerra.
txxxiv.
Depois de ser cntr"'ellos consultado
O modo com que o Reino se salvasse,
Foi por todos ElRei aconselhado
Q.ue naquella Cidade signalasse
Logar ao Portugíiez, imigo ousado,
Onde hiia fortaleza ediiicas.se,
A qual deseja tanto, que está certo
Ajuda-los por ella neste aperto.
O que deu a este voto mor vehemencia,
Com que ficarão delle satisfeitos,
Foi, terem ja bua larga experiência
Daqnelles Lusitanos fortes peitos,
Gl-ue n** outrem nunca acharão resistência.
Antes todos aos seus forão sujeitos,
Nem cuidão que outrem dê tao brevemente
Nem hum soccorro igual ao desta gente.
o PRIMEIRO CERCO DF, DIU. 89
E como o anno j:i d^antes tinha feita
O Sultão Ima paz, qual tenho dito,
K para ser mais firme e mais perfeita
Deu o que ja vos fica atraz escripto :
O conselho dos seus approva e acceita,
Porque lhe representa o fraco espirito,
tí.ue a nova fortaleza, e a paz antiga
Lhe fará a Christàa gente mais amiga.
LXXXVII.
Mas porque o cíTeito disto nao detenha
D^onde espera ser posto em liberdade,
(lue vá hum Embaixador logo desenha,
Q.u\io grão Cunha descubra esta vontade,
E lhe pessa que a Diu logo venha,
Co'*o mor poder que possa, e brevidade.
Mas comtudo a rasão não lhe descobre
Q.u'então o constrangeo a ser tão nobre.
LXXXVIII.
E por se segurar melhor da morte,
Ou d''htim mal que tal medo nelle punha,
Manda a Marfim AíFonso, varão forte,
Gtue dos illustres Sonsas tee a alcunha,
Outro recado então da mesma sorte
Q.ual fora o que mandara ao grande Cunha ^
O qual Sousa em Chaul então estava
E [»or Capitão-mór do mar andava.
90 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADS.
LXXXIX.
Com quanto o grão temor tanto o captíva
Que o força a se valer dos que desama,
Nào torna atraz, comtudo nelle aviva
Amorosa, cruel, ardente chama ^
Antes cada hora mais nelle se aviva,
Cada hora mais o acende, mais o inflama,
Co^a lembrança da triste despedida
De quem lhe dá co''a vista gosto e vida.
Cresce com isto a dôr, cresce o tormento,
Cresce daquella triste hora o receio :
Mas entendendo que este apartamento,
Inda que agora o mata, lh'era meio
Para ter depois mor contentamento
De tristes sobrrsaltos sempre alheio,
Basta isto, inda que assaz suspira e geme.
Para acabar comsigo o que mais teme.
Despois que despedio aquelle que hia
Ao Cunha Embaixador, como atraz digo,
]NSo quer que se dilate mais hum dia
O remédio do seu maior perigo :
E inda de si pasmado, porque via
G.ue podia acabar isto comsigo
Pondo a culpa ao temor e á esperança,
Gluer que o seu bem se parta sem tardança.
o PRTMEinO CERCO DE DIV , 91
Fazendo apparelhar aquelles setto
Navios, que atraz disse a historia minha,
Tudo em grande abastança nelles melte
Q-iianto para a viagem lhes convinha :
Chamando Acefarcão, a quem commette
Hum thesouTo que em tanto preço tinha,
D''encommendar-lh''o hua e outra vez não cessa,
Ajuntando a mercê, e iuda a promessa.
Com merct^s feitas, e outras que oíTrece,
O seu charo thesouro Ih^encommonda,
Porque o peito leal, que bem conhece,
Em maior lealdade assi o acenda :
Mas porque isto inda pouco lhe parece,
Para que Acefarcão melhor entenda
Gtue cousa esta hc que só delle fiava.
Também estas palavras lh''aj untava :
Fiel Acefarcão, nao só sujeito
Levas á tua antiga lealdade
Todo o meu gosto, e bem puro, e perfeito,
Mas a vida também, e a liberdade :
Só fio isto de ti, pois do teu peito
Ja conhecida assaz tenho a verdade.
Bem descansado fico, e bem seguro,
Que no que importa mais serás toais puro.
92 OBRAS DE FRANCISCO d''a1íDRADI
XCV.
Acefarcao, que bem via a grandeza
Do qvie ElRí^i fia delle, llie responde :
Senlior, pois confessastes que a certeza
Do meu peito ja nao se vos esconde.
Hei que será escusado, antes rudeza
Será rainha querer-me abonar, onde
As obras de tal sorte me abonarão
Gtu'a confessar-mo vos, vos obrigarão.
Vejo que esta mercê foi de mor preço
Glue quantas de vos tenho recebido,
Mas o que eu sei de mi, e vos mereço,
Me faz crer que isto a mi só he devido,
Do que eu nisto confesso que conheço,
Deveis vós entender qiiao Ijera servido
Sereis nisto de mi, ptiis posto vejo
Em nova obrigação o meu desejo.
XCVII.
Algum tanto descansa, e se assegura
O namorado Rei, quiçá cioso,
Glue nao sei se aquella alta formosura
O faz de Acefercao ser duvidoso.
A partida porém logo procura
Tao largo em qualquer cousa e curioso,
Glue não se satisfaz, ou determina,
Pois sempre novas cousas imagina.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 93
XCVIII.
E assi d'honTa e d%imor estimulado
Faz com tal apparato esta partida,
dual convinha ao grào preço, ao grande estado
Daquella com quem manda o gosto e a vida :
E vendo elle ja tudo apparelhado,
E que á partida o vento as náos convida,
Manda-as ir o outro dia naquella hora
Q-ue deixa o bello esposo a bella Aurora.
Aquelle espaço todo que desprega
Pulos ares a noite o negro manto,
Olualquer dos dous amantes não se entrega
Ao devido repouso, usado tanto -^
Antes o doce somno aos olhos nega
Oecu pados dlium triste e largo pranto,
Os pcíitos o frio ar que estão bei)endo
Tornão logo a lançar em fogo ardendo.
Em meio d'agua e fogo, sempre vivos.
Pois então cada hum o outro accrescenta.
Os amantes cada hora mais captivos
Passão est% amorosa, alta tormenta;
Porém entre accideiites tão nocivos
(Tanto o verem-se juntos os contenta)
Desejando inda estão que se detenha
O Sol ii)ais do qu^soe, ou que não venha.
94 OSRAS DE FRANCISCO D^AKDRADE»
Cl.
Mas como aviva nelle isto qiio via
Os dospresos do seu amado JLíOtiro,
D^invejoso, hoje mais do que sohia
Se apressa a descubrir os raios d^ouro :
Qualquer dos dous amantes, a que o dia
Obriga a se apartar do seu thesonro,
Mostra com novo pranto, nova queixa,
Gluào caro a cada hum custa o que deixa.
CII.
Apartados emfim, como puJérao,
Logo d partida viío apparclhíindo ;
Oh quantas vezes ambos nialdisserao
O vento, porque IhVra amigo e brando:
Porque inda que desta ida ambos esperão
Segurar este bem que estão passando,
Yer inda algua cousa dcsejavão
Q,ue dilate isto que ambos procuravao.
Porém como então tudo favorece
Aquelle ultimo seu apartamento,
O C(íO sereno, o Sol claro apparece,
Brando e quieto o mar, prospero a vento ;
Vendo que quanto mais tardão, mais crece
Da triste despedida o grão tormento,
Ajudados das forças da esperança.
Fazem lá para as náos logo mudança.
o PRI3IEIR0 CERCO DE DIU. ^^
Onde chegando (» dous algum espaço
Em SC darom esforço ambos gastarão,
Mas com tal dôr, e amor, que os peitos d'açOy
E os mais duros penedos abrandarão:
Dando-se ambos emíim o ultimo abraço,
Co\)s olhos sempre hum no outro se apartarão,
Ella na ornada camará se encerra,
Elle outra vez se torna para a terra.
Eis logo o marinheiro diligente
Clu''isto esporava só, isto o detinha,
Levantando do mar o férreo dente.
Faz a vella cahir, que pr<>sa tinha :
Ja o vento amigo a fere brandamente,
Ja corta a proa aguda a onda marinha,
Ar, agua e terra os dous hoje apartava,
Q.ue o fogo apesar delles ajuntava.
Baudur, que cá na praia estava posto,
\'pndo soltar no vento a larga vella,
Q.u'apartando lhe vai todo seu gosto,
A angélica, suave, vista bella,
Não pode d^illi mais voltar o rosto
Em quanto têe os olhos vista delia ^
Mas co'a alma que lá lhe manda entregue,
Depois que a vista falta, sempre a segue»
96 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
CVII.
Depois que ja lá em v5o vai estendendo
A vista, ja de novo arde e snspira,
E ja desetíganado, recolhendo
Se vai, para o logar d^onde sahira :
Mas inda á saudade obedecendo
De quando em quando ao mar os olhos vira,
Inda quiçá cuidando que podia
Ver, o que vira ja, que ja nào via !
As náos ja naquella liora, que ajudadas
D^iquelle a quem os ventos mais temião,
Com graa pressa cortavao as salgadas
Ondas, que ao Rei marinho obedeciSo,
Do amado porto vão tão afíastadas
Q.ue nenhuns olhos já vê-lo podião.
Com quanto alguns as náos também levavão
Glue saudosos lá se cncaminhavão.
O suave almo Zéfiro que agora
Inchando as velhis vai co^o sopro brando,
Sentindo lá os suspiros tristes lóra
Q-uV namorada esposa vai soltando,
E o lamentável tom que ella chora
A ausência do que a vai acompanhando,
Movido a compaixão, e a piedade.
Determina saber disto a verdade.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 97
cx. il*l -1^
Entra invisível lá no rico e ornado
Aposento, onde as queixas tinliâ ouvido^.
Mas apenas lá dentro foi entrado
Quando d''entrar lá foi arrependido.
IVlas sinto-me eu tão rouco e tão cansado,
Q.ue cuido que sou ja mal entendido,
Consenti que descanse aqui algum tanto
Porque com clara voz me torne ao Canto.
CERCO DE M
CAMTO lY
Zéfiro chega onde esta El Rei Eolo, e lhe pede
favor para roubar a Rainha, yls nãos em
que elía vai^ depois de húa grande tormen-
ta^ chegão a húa Ilha não conhecida. O
embaixador do Sultão chega a Goa, e torna
a Diu com a resposta do Governador.
D
I.
esejo he natural a todo peito,
A que com grão trabalho se põe freio,
Entender o secreto alheio feito,
E (se também ser pode) o peito alheio.
E quanto d"'hQa parte a isto he sujeito,
Tanto d'outra procura d'aehar meio
Com que encuberto iielle a todos seja
O que em todos saber elle deseja.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 99
II*
Sujeição he, que pôz a natureza
A<» peito que he mortal, ser avarento,
E desta sujeição, desta avareza
?Jão vemos escapar hum entre cento. ;
Nem somente dos bens e da riqueza, í
Mas também do segredo e pensamento .i.-.i-ifi
Faz a avara intenção, a que está entregue,*!!/
Q,ue qualquer busque o alheio, e o próprio negue.
III.
M.ns o alto Rei, Eterno e Soberano,
GLue de tão in;ís tenções foi sempre imigo,
Faz com que este avarento peito humano
Elle mesmo por si tome o castigo^
E procurando o alheio, ache seu dano.
Com grão trabalho seu, com grão perigo.
Mil exemplos para isto accumulára, )
Mas o que hei de cantar bera o declara. /;
IV.
Zéfiro, a que hum desejo grande acende
De saber o segredo do que ouvia,
Invisivel entrou lá onde entende
Q.u"'a verdade saber disto podia :
Porém de ter lá entrado se arrepende,
Porque em entrando vio o que não cria
GLue o Ceo para outro effeito então creasse
Senão para que os livres captivasse.
Vio aquella nao vista formosura
Q/ue os suspiros cada hora mais aviva,
Vio por neve correr hua agua pura
Clue dos formosos olhos se deriva :
D''alli cuida que Amor solta a mais dura
Setta, com que o mais duro mais captiva,
Alli cuida que próprio e devido era
O louvor que a outrem dão Gnido e Cithera.
VI.
Pouco a pouco esta vista assi o enternece,
Q-ue a liberdade ja lhe desbarata.
Olhando para si se nao conhece,
Conhece dentro o Amor que mal o trata.
Mil vezes se quiz ir, mas lhe parece
Impossivel deixar a quem o mata,
O gosto do que vê o detém, onde
Mor fogo cada vez no peito esconde.
Hum grande espaço esteve contemplando
Isto que apenas crê tendo-o presente,
Cada momento mais accrescentando
As forças do amoroso fogo ardente.
Algum tanto porém em si tornando
Q-uer resistir ao mal que n'alma sente,
Mas tèe-lh^clle ja tão rendido o peito
Gtue quanto mais resiste he mais sujeito.
0 PRIMEIRO CERCO DE DIU. 101
Mostra-lhe o triste estado em que está posto
Isto que tèe de si bem entendido,
Mas muito mais Ih^o mostra o çrande gosto
Q.ue sentia de vêr-se tao rendido.
Bem ve que se d^aqui não muda o posto,
Além de ser cada hora mais perdido,
l^erderá a occasião que o tempo dava
De dar remédio ao mal que o atormentava.
IX.
Tanta força lhe dá esta esperança
Q.ue novamente em si tee concebida,
Q-ue o forçou a deixar som mais tardança
A vista por quem morre, e lhe dá a vida.
D\iqui com grande pressa faz mudança
Lá contra Strongile, Ilha conhecida
Entre as Vulcanias sete, e celebrada,
Porque Eolo alU faz sua morada,
X.
Aqui n'hua profunda cova escura
Os inquietos ventos encerrados
Júpiter pôz, e com bem forte e dura
TrisSo, a todos tèe presos, e atados :
E para que inda possa mais segura
Mente alli seus furores ser domados^
Lhe pòz também hum grande monte em cima,
E hum Rei lhes deu q os mande e q os reprima.
102 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
Elies com grão ruido e estrondo horrendo
Sempre em torno da porta estão bramando,
Eolo, a quem o padre alto e tremendo
Deu sobrVUes o sceptro, deu o mando,
Os está d^hua torre alta regendo.
Seus Ímpetos e fúrias temperando,
E de tal sorte o temem e venerSo
Q-ue por elle s'enfreião, ou se alterao.
Zéfiro, a quem o amor hoje accresccnta
A sua natural velocidade,
A grãa pressa que leva inda ha por lenta,
Tanto o vai apertando a saudade ;
Por onde em breve espaço se apresenta
Perante aquelle^: a cuja magestade
Elle e os mais ventos dão obediência,
E lhe faz a devida reverencia.
XIII.
Logo desta arte a língua solta ousado,
Q.u''Amor dá para tudo atrevimento :
Eterno Rei, a quem no Ceo foi dado
Dos ventos o poder, e o regimento.
Porque eu sei que de ti foi sempre usado.
Antes foi sempre teu contentamento
Dares favor ao teu que delle tinha
Necessidade, o pesso eu para a minlia.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 103
XIV.
Lá na parte onde o Sol d'entr''Oceano
Solta o primeiro raio matutino,
Hum tal parecer vi, tão sobrehumano,
Q.ue nao creio que haja outro mais divino :
Para meu mal o vi, para meu dano,
Pois lhe sou tão sujeito, que imagino
Que se nao dou remédio a mal tão forte
Começará nos teus ter mando a morte.
XV.
Deixei-a, que com curso vagaroso
O Reino de Neptuno cortando hia ;
Ja que Boreas te achou tão piedoso
Q-uando o amor o abrazava d^Orithia,
Não queiras a mi só ser rigoroso,
Pois outro fogo mór em mi se cria.
Nem queiras que Cupido s^engrandeça
De fazer que o que he teu a elle obedeça.
XVI.
Consente que Noto, Africo e Levante
Me dêem nisto o remédio so que tenho,
E que comigo passem tanto avante
Gtue vão lá ter á parte d''onde eu venho,
E facão lá que o mar sHiiche e levante,
E que a seu pesar volte a proa o lenho
Em que vai meu bem todo, e vá direito
Ond'*eu quietar possa o acccso peito.
XVII.
Traz isto o humor dos olhos mal enfreia,
E do peito o suspiro triste e ardente ^
Eolo, a quem a bella Deyopeia
Q-uiçá faz entender o que este sente,
De piedade então tendo a alma cheia
No que lhe pede Zéfiro consente,
E não consente só, mas determina
Fazer com que elle acabe o que imagina.
Logo do real sceptjo a ponta volta
Ao cavo monte que em si os ventos cerra,
Empncha-o para hum lado, e a prisão solta
Aquelles com que faz a sua guerra :
Sahe a turba feroz, com grãa revolta.
Subverter desejando o mar e a terra.
Mas vendo do seu Rei a veneranda
Pl^esença, párão, vendo o que elle manda.
XIX.
Elle lhes manda então que ao companheiro
Zéfiro dêem favor no que pretende.
Ja Zéfiro d^íUi parte ligeiro,
E ajudado do amor que dentro o acende,
Em breve tempo chega onde o primeiro
Raio da luz dourado ApoUo estende,
Contente assaz de vêr-se ja tão perto
Do seu bem, que ser seu ja, têe por certo.
o PRIiVtBIRO CERCO DK DIU. 105
XX.
Os furiosos ventos, que seguirão
O companheiro sempre que os guiava,
Tanlo que da prisão soltos se virão
Mostrão a sua antiga fúria brava:
Os mansos mares tanto que sentirão
Aquella fúria, que antes presa estava,
De tal sorte se vão embravecendo
Q.u''até ás nuvens parece ir-se erguendo. .
XXI.
As grossas altas ondas escumosas,
Dos furiosos ventos constrangidas,
Vão quebrar seu furor nas alterosas
Rochas, OH lá nas praias estendidas : ^
Ketiinibão as montanhas cavernosas,
Véem-se do mar as nuvens combatidas,
ôu''a força com que encontra a rocha dura
Lho faz com que então suba a tanta altura.
XXII.
o claro ar e sereno sVscurece,
Q.u''a grossa e negra nuvem lhe succede,
O resplendor do Sol desapparece,
Q-u''esta nuvem também mesma lh''o impede :
No mar ao meio dia hoje anoitece,
Horrisonos trovões de si despede
O Ceo, e apoz estrondos espantosos
Solta de si mil raios luminosos.
106 OBRAS DX FRANCISCO D^ANDRADE.
XXIII.
Chegao entretanto Euto, Africo e Noto
Onde os navios vão que os lá levarão,
E co''o seu costumado terremoto
Em tudo grão temor então causarão.
Eis ja com alta voz grita o Piloto,
Os marinheiros não se descuidarão,
Saltão de cá e de lá com grande pressa,
Hum á corda,
XXIV.
Mas por mais que ande esperto e diligente.
De se poder salvar ja desconfia,
Porque cada momento mais presente.
Crescendo a tempestade, a morte via.
Zéfiro receioso e descontente
Do perigo em que vê por quem morria.
Roga aos ventos que em si queirão pôr freiOj
Nem lhe dêem tanto bem com tal receio.
Porém elles, que mal então podião
Refrear o que têe por natureza,
Cada momento mais então crescião
Em Ímpeto, furor, ira e braví^za :
Ora por entre as ondas descobrião
Dos mares a areosa profundeza,
Ora fazem que o mar tão alto saia
GLue lá nas nuvens quer fazer a praia»
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 107
Nas náos attribuladas, isto espalha
Grande espanto, temor, desconfiança,
]Mas a gente que nellas se agazalha
Faz, quanto de viver lhe dá esperança :
Com revezada força se trabalha
Na longa boml)a, e o mar ao mar se lança,
Ora se encolhe a escota, ora se solta,
Cresce a voltas do medo, a grãa revolta.
X XXVII.
o nobre Acefarcão, que entende c estima
Q/U.into hum perigo tal deve estimar-se,
Da Rainha o perigo assi o lastima,
Q-ue o faz de seu perigo descuidar-se :
Aquclla attribulada gente anima,
Gtu'*então ja começava a dosmaiar-se,
Mas pouco presta quanto faz agora ,;,
Pois o vento e o temor crescem cada hora«>f
Sente entretanto o Rei que têe o mando
Sobre o Reino que he liquido e salgado,
A revolta, o rumor que perturbando
Todo o seu Reino está ; e d''ira inchado,
Sobre o mar a cabeça levantando,
Vé das míseras náos o triste estado,
O desmaio da gente, o grave dano,
De Zéfiro também entende o engano.
XXIX,
Fazendo ante si vir aqiiella irada
Companhia dos ventos, n'hum momento,
Llu! diz: Tal confiança vos tee dada
A vossa geração e nascimento,
ô,ue sem vos ser de mi hoje outorgada
Ou licença, ou algum consentimento,
Ousaes de perturbar o Ceo e a Terra,
E fazer no meu Reino á gente guerra ?
XXX.
Nao pareis mais aqui, mas brevemente
E com pressa fazei logo a partida,
Glue depois se jaqui mais rumor se sente,
Nao ireis som a pena merecida :
Dizei ao vosso Rei, que do Tridente
E do mar a mi só foi concedida
A governança e o mando, polo eterno
Rei, que têe o geral mando, e governo.
XXXI.
Ellé seu mando, têe na altiva e grande
Penedia, cm que estaes vós encerrados,
Alli só poderoso, e senhor ande,
Onde todos por elle são mandados ^
Contente-se que os bravos ventos mande,
Mas na usada prisão encarcerados.
Não disse mais, nem ha quem lhe responda,
E n'hum instante applaca a soberba onda.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 109
XXXIl.
Eis foge a nuvem ja negra e chuvosa,
Cessa o trovão, e a luz que elle acarreta,
Ja de novo a dourada luz formosa
Mostra na terra o quarto almo planeta :
O soberbo furor da onda alterosa
Ja se humilha, se abranda, e se quieta,
Porque a ausência daquella fúria grave
Tudo manso tornou, tudo suave.
XXXIII.
Vendo o marinho Rei em tempo breve
Desfeitos os estrondos furiosos,
Com que o cerúleo mar fazem de neve
Os montes d''agua erguidos e escumosos,
Polas ondas meneia o carro leve
Tirado dos cavallos escamosos,
E d'ira isempto ja, de prazer cheio
Ao logar se recolhe d'onde veio.
XXXIV,
Os cansados Cambaios como vírao
Sereno o Ceo, as ondas ja abatidas,
E que os ventos de todo ja fugirão,
Agradecendo ao Ceo de novo as vidas.
Livres ja do temor que antes sentirão
Cobrào o alento, e as forças ja perdidas.
Manda do alto o Piloto, e o Marinheiro
Ledo por cá, por lá, salta ligeiro.
♦ 4
li o OURAS DE FKAIÍCISCO D AKDRADE.
O namorado vento contemplando
Q.uao mal lhe succedêra aquelle feito,
Com nova dor, e amor acompanhando
Vai aquella, a que entregue leva o peito:
E com suspiros inda accrescentando
O seu usado sopro, de tal geito
Lhe vai agora inchando o largo linho
Q-ue faz com maior pressa o seu caminho.
Nem têe andado muito quando o esperto
Gageiro, que o calces alto vigia,
D''onde o mar mais ao longe he descuberto.
De lá bradaj que ao longe terra via.
Mas que não saberá dizer em certo
Gtue terra he, porque não a conhecia,
Porque o vento lhe fez assaz remota
A via, da primeira sua rota.
XXXVII.
Em todos causa agora Imm g'rande gosto
A nova que de lá de cima soa,
1'orque esperão dar fim ao grão desgosto
Com que o mar, e o temor inda os magoa :
Acefarcão, também com ledo rosto,
Manda que para lá caminhe a proa,
E tão amigo então o vento acharão
Ciu''em pouco tempo a terra se chegarão.
o PRIMEIRO CERCO BE DIU. Ill
xxxvm.
Onde chegando vêem hua espaçosa
Ilha, que de nenhum he conhecida,
Mas de fresco arvoredo tão formosa
Glue a lograrem-se então delia, os convida :
Por toda a parte mostra húa areosa
Praia, que naquella hora combatida
Da quieta onda, faz que ainda mor seja
O desejo, de quem muito a deseja.
Em meio desta praia se está vendo
llua larga bahia, ao modo feita
Da Lua, que de novo apparecendo
De travez o fraterno raio acceita.
D^^hua e outra parte ao Ceo se vai erguendo
Hua intratável rocha, tào direita,
Q.u''em vão subir acima tenta e estuda
Senão só quem das azas têe a ajuda.
XL.
A sombra destas rochas sempre estava
Em grão silencio o mar brando e sereno,
Entre hum e outro penedo se mostrava
Hum espaço de praia não pequeno,
Da qual a secca areia se acabava
N"'hum prado verde, assaz suave e ameno^
Glue hum outeiro tão alto têe defronte
Q.ue bem merecerá nome de monte.
XLI.
Lá da maiis alta patte deste outeiro,
D'entre occultos penedos, murmurando
Com brando e alegre tom, desce hum ribeirOj
Glue todo aquelle prado atravessando
Do seu doce licor, o derradeiro
Curso, está co''o salgado alli ajuntando,
Q-ue tal frescura nesta parte gera
GLue faz nella perpétua a Primavera,
XLII.
Tao clara e mansa corre esta onda puta
(^t.u^a funda areia bem clara apparece,
Vê-se por todo o prado hua verdura
Glu\dli perpetuamente permanece,
Glu ''ajudada do esmalte e formosníi
Da bonina, que alli sempre ílorece,
Roxa, vermelha, azul, branca, amarella,
Faz que nunca se aparte a vista delia.
Vai d''hua e d*outra parte o manso rio
D''hum espesso arvoredo acompanhado,
Com que aquelle logar he Ião sombrio
Gtue não pode do Sol ser visitado :
Meneia os altos ramos hum ar frio
Com brando murmurar, mal concertado,
Creio que este he o logar onde foi visto
O que esconder em vSo tentou Calbto.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 113
XLIV.
Neste legar a armada se recolhe
Gluando o Sol ja se inclina ao Occidente,
Ja pola longa entena a verga encolhe
O marinheiro esperto e diligente;
Ja fciz que o mar a curva ancora molhe,
Nos bordos apparece toda a gente,
De forças, de prazer, d^alento cheia
Co'a visinhança sd daquella areia.
XLY.
Acefarcao também vendo o formoso
Sitio, que a fresca terra lh'íipresenta
Apoz hum temporal tâo perigoso,
D"*achar-se cm tão bom porto se contenta
Entra onde está a Rainha, desejoso
Q-ue o trabalho do mar e da tormenta
Q.ueira satisfazer, e em terra saia
Recrear-se, se quer, na fresca praia.
Dá-lhe com alvoroço a boa nova.
Crendo que outra melhor dar não podia :
Porém ella, que só oor bom approva
O que ajuda ao tormento em que se via,
Crendo que pode lá com força nova
Entregar-se ás lembranças que sentia,
Para isto alvoroçada lhe concede
O que para outro eflFeito elle lhe pede.
Í14
Ja ligeiro na barca entra o Grumete^
A qual em breve espaço se vê ornada
Do fino, oriental, rico tapete,
E da moUe, e também rica almofada :
Logo a Rainha lá nelia se mete,
©""AcefarcSo, e alguns acompanhada,
O duro braço logo o remo afferra
E dividindo o mar se chega á terra*
XLVIU.
liOgo a Rainba a barca desampara
De se ver so na terra, desejosa.
Onde vendo as boninas, a agua clafa
De sombrio arvoredo copiosa,
Para o seu pensamento se prepara
Ja do tempo em que o tinha saudosa»»
Porque lhe parecia que alli tinha
Logar como para elle lhe convinha.
Na descuberta praia o passo quedo
Não detém, mas lá o move airoso e lento
Onde vio o cerrado, alto arvoredo.
Porque lá a guia então seu pensamento:^
E n"'hum logar tão só leva inda medo
D'achar para este gosto impedimento,
Porque Amor sempre nisto esteve posto
Dar sempre grão receio a qualquer gosto*
o PRIMEIRO CERCO DS DIU. 113
Vai-se ao longo do rio passeando,
Q.ue dos seus apartar-se determina •,
Chum brando virar d^olhos aleçrando
Ora aquella clara onda, ora a bonina :
Acefarcão a vai acompanhando,"
E hua da companhia, feminina :
Porque os outros nSoquiz que a acompanhassem
Nem tão pouco estes dous quiz que a deixassem.
Quanto mais adiante o passo muda
Render-se á saudade mais se deixa,
E á sua síiudade agora ajuda
Da triste Filomena a branda queixa,
Q-ue do ferro cruel que a fez ser muda
E do engano do máo Tereo se queixa,
lim mil partes alli com doce e branda
Voz, que o mais duro peito move e abranda.
LII.
Tanto ao longo do rio então passeia
Que perdendo de vista a sua gente
C^hua mouta encontrou espessa, e cheia
De mil llòres, que dão cheiro excellente :
Neste logar a vista se recreia
Co''o brando murmurar d^agua corrente,
O cheiro se deleita co'o que furta
Ao crespo legação, á branda murta.
116 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
Á vista deste rio socegado,
Entre o cheiro suave destas flores,
Ve lagar a Rainha apparelhado
Para a contemplação de seus amores :
Sobre o verde tapete que alli ornado
A natureza pôz de varias cores,
Se assenta, desejosa d^occupar-se
Naquillo com que só pode alegrar-se.
LIV.
Faz apartar os dous algum espaço,
Q.uVntão da companhia pouco gosta.
Pondo na dura terra o tenro braço.
Na branca mão a bella face encosta,
E como então se vè sem embaraço
Q.u'a memoria de lá d^onde a têe posta
Lhe possa divertir, de todo entregue
Se sente ao pensamento que a pei-segue,
IV.
Tão altamente nclle se transporta
Glue mal pudia então ser conhecida
Se ella era mulher viva, ou mulher mori
Ou pedra em tal figura convertida.
Entre este alto trespasso abrindo a porta
A lingua, que até então teve impedida,
De suspiros ardentes rodeada
Era taes palavras solta a voz cansada :
o FRIMEtaO. CERCO DE DIU. 117
LVI.
Era que podia Amor mostrar mais claro
Gtuão brando e favorável me he seu. peito
Glu^cm me fazer sujeito do meu charo
Esposo, de que cu sei que me he sujeito?
Porque o melhor estado, o bem mais raro,
O goito mais suave, e mais perfeito
Ô-u^a vida pode dar, he ter seguro
O puro amor, que o paga outro amor puro.
Mas quanto he mor o meu contentamento
De ver quão bem me he paga esta vontade,
Tanto temo depois maior tormento
Se quanto ouço d^amor tudo he verdade ^
Pois me ordenou tão largo apartamento
Em que somente o mal da saudade
Em tamanha tristeza me têe posto
€lue não basta contra ella o maior gosto.
LVIII.
Começo ja a temer que me ordenasse
Amor este tal bem, tão sobrehumano,
E que dentro nest'*alma mo arreigasse
Com a continuação d^hum e d'outro ano.
Para que d'*entre as mãos mo arrebatasse
Com muito maior dor, muito mor dano,
E assi me fique o mal firme e dobrado
Q.u'em memoria de bens está fundado.
118 onnAs de fjrancisco d-andrade.
nx.
Porém por outra parte estou cuidando
Glue quanto mal tiver todo merece
Gluem o está d'antemao advinhando,
Ei a seus vãos arreceies obedece \
Q-uem em meio do bem que está passando
Co*'o mal que inda nao sente se entristece,
Bem merece que tenha o que advinha
E d'entre as mãos lhe fuja o bem que tinha,
Nem poderá cm mi tanto a desventura
Gu^em mi possa imprimir desconfiança,
G-ue no meu charo esposo estou segura
Glue não poderá nunca haver mudança :
Seja a sorte cruel, seja-mc dura.
Que tanto poder tèe minha esperança,
ôu^ella basta a fazer grSa resistência
A quanto mal me causa a triste ausência,
LXl.
Inda a Rainha aqui não concluíra
O que Amor e a esperança lhe dieta va.
Se então Acofarcão não lh'o impedira
Q-ue co^os olhos de lá a acompanhava ^
O qual inda que nada então ouvira
Do que ella para si só resoava,
O que nella de fora vê somente
Lhe mostra bera o que ella dentro sente.
o PRIMEIRO CE^CO 0£ OlV. 119
LXII.
O continuo suspiro, que do meio
Do saudoso peito lhe sahia,
O brando humor dos olhos, de que cheio
De fora o peito têe, que dentro ardia ^
Ora a inquietação do seu meneio.
Ora o grande trespasso em que elle a via,
Lhe dão claro signal, antes certeza
Da sua grave dòr, e alta tristeza.
LXIII.
E vendo quão contrario foi o efleito
Da tenção com que a fez sahir em terra,
Se movo a compaixão daquelle peito
A quem fazia Amor tao cruel guerra;^
Vendo-o cada momento mais sujeito
A saudade alli que dentro encerra.
Vê bem que n^hum logar tao deleitoso
Se cria o mal do peito saudoso,
LXIV.
Determina fazer que d'aqui saia
Onde nao cura o mal, mas o accrescenta,
Onde a triste lembrança de Cambaia
Com mor dor e desejos a atormenta :
K também porque vê que lá na praia
•Ta do Occidento o Sol o carro assenta,
Hua e outra cousa o move, antes o obriga
A que outra vez das náos a via siga.
Posto em pé, co'o devido acatamento
Se chega a ella e lhe diz, que ja tempo era
De fazer para a praia movimento,
Pois o Sol ao Oriente as costas dera 9
E quiçá com grãa dor e sentimento
Da sua ausência, a sua gente espera,
E não a espera so, mas com cuidado
Revolve em busca delia o monte e o prado.
Ella, inda que recebe hum grão desgosto
De se haver d'apartar somente hua hora
Da grãa suavidade, do grão gosto
Em que o seu pensamento a tinha agora,
Vendo porém que o Sol ja muda o posto,
E começa a lançar a noite fora
Jjá dess''outro hemispherio, e neste a estende,
A rasão, não ao gosto j então se rende.
txvii.
Em pé logo se põe, e acompanhada
Dos dous que alli a trouxerão, o passo muda,
Mas de tal maneira indo transportada
íi-ue os olhos cegos leva, a lingua muda.
Acefarcão, que a vê tão enlevada,
Entende que he rasão que aqui lh'acuda,
Porque tão triste a vê que parecia
€tue tudo a sua tristeza entristecia.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. l2l
LXVIII.
Q-uauto então p(jde em consola-la insiste,
Dizendo : Se o que mais Amor inflama
A desesperação do Amor resiste
Esperando abrandar quem o desama,
Contente deveis vós ser, e não triste,
Pois amaes a quem mais que a si vos ama,
E de quem certa estaes (pois deveis crê-lo)
Q,ue mui cedo comvosco haveis de vê-lo.
LXIX.
Ella com isto menos se entristece.
Antes tanto poder teve a esperança
GLue ja tornando em si desapparece
A tristeza, em que a pôz sua lembrança :
Também tudo o que via então parece
Gtue com a vêr mudada fez mudança.
Porque quanto ella triste antes tornara
Com vê-la agora alegre se alegrara.
Para as náos desta sorte caminhando
Com a possivel pressa e brevidade,
Em mil partes alli vai encontrando
De vários animaes grãa quantidade,
Q.ue o verde prado vão atravessando
Sem temor de ninguém, com liberdade,
Porque a cada hum falta o duro imigo
De que mil vezes têe morte, ou periga.
122 OHRAS »E FRANCISCO d'*ANDRADE.
LXXI.
Tanto agora a entretém o que vai vendo
Q-ue o pesado caminho menos sente.
Nem muito caminhou, que apparecendo
Lhe vão as suas náos, e a sua gente :
K ja isto era em tempo que escondendo
De todo o Sol no mar o raio ardente
Toníava Hespero no ar o poderio,
K na terra estendia o raio frio.
IXXII.
Encontrando d^aqui vai por diante
Os seus, que a vào buscando a competência,
A quem de vê-la o gosto foi bastante
Satisfação, da dôr da sua ausência \
KUa a todos recebe com semblante
Agradecido, e cheio de clemência,
K em pouco tempo á praia assi chegarão
Onde todos de vê-la se alegrarão.
Tanto que lá chegou, logo encaminha
Para a náo, sem deter-se mais cá fora,
K tanto que de lá da onda marinha
Fez levantar o Sol a nova Aurora,
Solta a vella outra voz, que presa tinha
O marinheiro, e tendo ainda agora
Favor (lo namorado manso vento
Em Judá toma porto a salvamento.
o PRIMEIKO CEHCO DE DIV. 123
LXXIV.
Agora he ja rasSo que volte o canto
Onde saudoso assaz Baudur ficava,
Mas tanto ha que o deixei que não he espanto
Se me esquece o que lá fazendo estava.
Eu cuido que mandado tèe que em quanto
Da Rainha a partida apparelhava
Hum seu Legado ao Cunha se partisse,
Não direi ao que vai, porque ja o disse.
LXXV.
Parte este Embaixador, o mar navega,
E com favor do vento brando e amigo
Em breve tempo a Goa em salvo chega
Sem receber do mar damno ou perigo :
Falia ao Governador, nada lhe nega,
(lue isto nelle era ja desejo antigo,
Contente o Mouro o mar passa de novo
Para animar o seu medroso povo.
iXXVI.
Nao recebe tal força, tal esprito
O raisero que estava condem nado
A hua morte cruel, se o seu delito
Entende que por dita he perdoado,
Como o Sultào recebe, quando dito
Lhe foi do Embaixador este recado,
O povo, antes tão fraco e tão nredroso,
Ja se mostra esforçado, ja animoso.
124 OBRAS DE FRANCISCO d'aND11ADK.
Vejo o Governador que se aconselha,
A Goa o quero ir ver, porque lá o vejo,
Ja a Cruz faz arvorar branca e vermelha,
Por cumprir do Sultão, e o seu desejo.
Gtuâo bem lhe foi possivel se apparclha,
Com grãa presteza, e com fervor sobejo,
Porém tão grão poder então não leva
Q^uanto o Sultão quizera e lhe releva.
txxviii.
Era naquelle mez em que o luzente
Gluarto planeta cm Libra se agasalha,
Q-uando o Governador nobre e prudente
No mar a bem provida armada espalha.
Grita o rouco Piloto, diligente
O Marinheiro cm mil partes trabalha,
A vella em si recolhe hum vento brando
Com que as ondas a proa vai cortando.
I.XXIX.
Não acha quem o impida, ou contradiga
Nesta viagem toda o grande Nuno,
Mostra-se-lhe a fortuna branda e amiga.
Sempre sereno o Ceo, sempre opportuno :
Também agora a fúria se mitiga
Do bravo Eolo, e do húmido Neptuno,
E com tantos favores, tal bonança
Em breve tempo em Diu ferro lança.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 1'25
LXXX.
GLiiatro vezes o pae desse atrevido
Moço, que o carro ardente mal regAra,
Na terra a sua luz tiuha estendido
Antes que o Escorpião o recebera,
Q.uando no porto ja bem conhecido
De Diu a vella inchada recolhera
O Marinheiro, e faz com que se esconda
O curvo ferro lá na salgada onda.
Nos ares o estandarte logo voa
Branco, vermelho, azul, roxo, amarello,
A sonora trombeta o mar atroa
Com som que a orelha mal pode soffrello,
O guerreiro atambor também ja soa
Q.ue os peitos alvoroça, ergue o cabello,
A bomV)arda que a fúria alli despende
Com pacifico estrondo, os ares fende.
Corre o Cambaio povo polo muro
ôue com grão desejo esta frota aguarda,
O Mouro bombardeiro bem segíiro
Santando n'hua vai, n''outra bombarda ^
Chega o ardente murrão, traz elle o duro
Estrondo luminoso pouco tarda ^
Com differentes modos se festeja
Esta armada, que tanto se deseja.
LXXXIII.
Depois que esta fingida, alegre guerra
Na armada se acabou, e na Cidade,
Q^ue n"'huns o grão temor todo desterra,
Dobra n^outros a grãa ferocidade,
O Governador logo sabe em terra
Com grãa pompa, apparato, e authoridade,
dual ao seu grande estado bem convinha,
E para ir ver Elllei logo encaminhei.
LXXXIV.
ElRei para espera-lo se apercebe
Com tanta vaidade, tanto estado
Glue o pensamento apenas o concebe,
E apenas pí5de ser imaginado.
Comtudo ao Cunha, e aos seus todos recebe
Com alegria, festa e gasalhado,
Q,ual lh'o ensina o perigo em que se via,
E o remédio que delles pretendia. - i ' J^
txxxv.
Faz que o Governador lá se aposente
Onde he da fortaleza agora o assento.
Mas descanse elle hum pouco, e a sua gentí
Porque bem ha mister forças e alento,
Q-uVu para cantar tenho aqui presente
A fundação de Diu, e nascimento,
E como veio a ser famosa tanto.
Mas consenti que seja n'outro Canto.
o PltBlIKIRO
CERCO DE DIU.
C.tMTO \.
Declara-se a origem e assento da Cidade de
Diu. O Governador edifica nella huma for-
taleza. Dá algumas ajudas ao Sultão : ellc
vai contra os Mogores. O Governador se
torna invernar a Goa,
O
saber por si só, a arte, a prudência
Sempre teve tal força e tal valia,
Q-ue mil vezes venceo a diligencia,
A fortaleza, o esforço, a valentia.
Porém se se lhe ajunta a experiência
Q.ue outro novo saber, outra arte cria,
Também se lhe accrescenla a força e dobra
E tudo o que pretende põe por obra.
Tal lif* esta força iinnca resistida
<-lue até a mesma fortuna lhe obedece,
Porque esta onde a esperança he mais perdiíla
DiíTerentes remédios ofVcrece :^
Ksta a consa mais vil, baixa, e abatida
Mil vezes sobre as grandes engrandece,
Tal que da ja pequena Aldeia e pobre
Pode fazer Cidade illustre e nobre.
Isto se pode ver mui claramente
Nesta que hoje ha de ser de mi cantada,
A qual d^hua vil, pobre, e baixa gente
•la no passado tempo foi morada:
K depois com a industria d^hum prudente
Varão, foi tão famosa e celebrada
0.ue a cabeça entre todas foi erguendo
(Quantas visita o Sol hoje em na.sceudo.
O sitio em que ella têe seu fundamento
Polo mar, c^hua ponta vai entrando,
A qual hum rio (cujo nascimento
Vem lá da salgada onda) vai cortando,
K que seja Ilha a faz, que em comprimento
Duris legoas somente está mostrando,
E lá na parte onde ella mais se alarga
Meia le2:on somente se vê larga.
o PRIMEIUO CERCO DE DIU. 129
Forão antigamente habitadores
Desta Ilha, a que hoje tantas sao sujeitas,
Alguns poucos, e pobres pescadores,
Km pobres casas, vis, baixas, e estreitas.
E outros do mesmo officio imitadores,
Hedes, barcos, e as cousas que sao feitas
Para uso deste officio alli passarão
K aquella povoarão accrcscentárão.
VI.
Durou-lhe muito tempo aquclle estado
Tão vil, tão baixo e pobre, que então tinha,
Sem ter nclla outra gente gasalhado
Senão a que da rede se mantinha,
l'or falta do cristal que liquidado
S(Mi curso para o mar sempre encaminha,
K porque a falta principal estava
Lá no logar onde a Ilha se habitava.
VII.
l^orém como esta humana e frágil massa
Nada arreceia para conservar-se,
E por todo o trabalho grande passa
Onde entende que pode segurar-se.
Para esta Ilha tão secca, e d^agua escassa
Depois vierão muitos a passar-se :
E passados são ja annos trezentos
Depois que estes alli tèe seus assentos.
130 OURAS DE FRANCISCO D^AKDRADE.
K por fugir a mais craves perigos
Aqui sua morada estes fizerão,
Lá d"'onde os moradores seus antigos
Antes com mais rasão fugir deverão:;
Porque os cruéis Re/.butos, que inimigos
D'*alheios bens, d^alheias vidas erão,
A terra arme então cora roubo e morte
Salteião, sem que escape o fraco e o forte.
lic.
Fácil foi isto á gente, que nao cura
Da pátria, que com medo despovoa,
Porque além de passar por toda a dura
Cousa, o temor em que elle põe a proa,
A meia parte só tee de largura
Do que a setta que sahe da besta, voa
O rio, que Ilha a terra está fazendo
E a partes mais estreito se está vendo.
Aquelle ajuntamento dVstrangeira
Gente, fez que hum logar antes tão pobre
Dopois venha a crescer de tal maneira
Glue se converte em villa grande e nobre :
Mas d^onde teve a origem sua primeira
Aquella alta nobreza, que hoje encobre
O resplendor ao Indo, e Garamanta
No que se segue, a minha historia canta.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 131
Quando o Príncipe, nobre e valeroso
Sultão Madrafaxao (<Je cuja linha
Kste cruel Baudur, falso, enganoso,
O terceiro apoz elle, ao Reino vinha)
Sobre o Canibaico Reino populoso
O mando, o sceptro inteiro, e o poder tinha,
Foi cercar hum logar lá nessa terra
De Mandou, com que então trazia guerra.
XII.
Os grossos esquadrões, que de luzentes
Armas cobertos, o logar visitão,
Não forão juntos sós daquellas gentes
Glue de Madrafaxao o Reino habitão ^
De diversas nações e difterentes
São, os que neste cerco então militão,
Q.ue a nobre empresa, quando a fama estende
Os estrangeiros sempre chama e acende,
xiit.
Acaso succedeo que hum dia estava
Daquella tenda, ElRei junto assentado,
Em que allivio de noite ao corpo dava
Dos trabalhos do dia carregado,
Gluando passa hum milhano, que cortava
Com as azas, o leve ar e delgado.
Do ventre o peso immundo acaso lança
Que a ferir a real cabeça alcança.
132 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
ElRei, que o máo agouro n'alma sento,
Temendo fica alguma adversidade,
Gtue sempre costumou a Moura gente
Dar fé a semelhante vaidade.
Emfim apaixonado e descontente
Sem lembrança da sua magestade,
Bradando diz, se ha algum tão destro ou forte
Q-ue aquella funesta ave traga á morte.
XV.
Nao ha nenhum que ponha nisto o tento,
Porque muito o milhano se afíastára,
E tinha-se por vão o pensamento
Daquelle que alli então imaginara
Com a frecha alcançar, a quem o vento
Com grãa difficuldade inda alcançara ^
Comtudo não faltou híim que o tentasse
E que este seu intento effectuasse.
LA na Tartaria terra foi nascido
Este tão signalado aquelle dia,
Dito Miliquiaz, mas conhecido
Muito mais polas obras que fazia.
Este, inda que hum tspaço assaz comprido
Vio de si ao milhano, porque fia
Em sua força assaz, destreza e manha,
Tenta hQa obra espantosa, rara, e estranha.
i
o PRIAtSIRO CERCO DE DIU. 133
AfTerra o arco, a frecha entre os dedos prende.
No pé esquerdo se afíirma, e de tal geito
Para diante o braço esquerdo estende,
E para traz encolhe o que he direito,
GLue o rijo arco á graa força então se rende,
Tanto o encurva que a corda chega ao peito,
E com tal fúria a aguda frecha lança
Q,ue em breve espaço a misera ave alcança.
XVIII.
Da ferrada, subtil, leve madeira
Passada a misera ave, desditosa.
Deixa dos leves ares a carreira
Q-ue então foi por seu mal tão vagarosa :
Ditosa se então fora mais ligeira,
Ah 1 se apressara o curso quão ditosa !
Mas não ha quem fugindo se defenda
Da morte tão ligeira, quanto horrenda.
XIX.
Morto o triste milhano á terra dece
Com grão louvor do destro e forte Mouro,
A tristeza d^ElRei desapparece
Q.UC por livre se tèe do máo agouro:
Ao Tártaro honra muito, e favorece,
Cuida que he pouco a prata, menos o ouro
Para satisfazer bastantemente
Hum serviço tão bom, tão diligente.
134 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
XX.
Descobre a sua grSa magnificência
Naquelle que o sérvio tanto a seu gosto,
Porém depois que teve experiência
Por obras que elle fez ante o seu rosto,
Do esforço, do valor, siso e prudência,
E do mais que o Ceo tinha nelle posto,
O desejo de honra-lo se lhe dobra
E logo este desejo põe por obra.
A Ilha de Diu o Tártaro lhe pede
Com a povoação que dentro cerra,
Elliei, a quem aquillo então succedc
Conforme ao que o seu peito dentro encerra,
Não somente aquella Ilha lhe concede.
Mas da-Ihe também lá na firmo terra
Duas legoas, ou três (segundo entendo)
Q-uanto se vai a mesma Ilha estendendo,
XXII.
Melique, que em alteza se vê tanta
Gtue passa o que elle estava desejando,
Depois que ora o não crê, ora se espanta,
Se quer aproveitar do novo mando.
Vendo a disposição do rio, e quanta
Fortaleza na entrada está mostrando,
E vendo a Ilha também da mesma sorte,
Fa7. nella hiia Cidade, nobre c forte.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 135
XXIII.
Com grande engenho afaz, e com grande arte,
Cerca-a de forte muro, e larga cava»
Q.UC toma da Ilha muito maior parte
Do que a povoação antes tomava ^
Põe aqui a torre, alli o baluarte,
Onde a necessidade o demandava.
De grossíi artilharia lhe põe tanto
Q/ue nada teme, em tudo cause espanto.
Aquelle baluarte que hoje em dia
Com nome de Couraça se conhece
Hua grossa cadeia despedia
Do metal a que todo outro obedece,
Q.ue lá até o baluarte se estendia
Com que o mar se defende e fortalece,
E a força do pesado cabrestante
Faz, com que ella se abaixe e se alevanto.
Q.uasi cm meio do rio alli creára
De pedra hiia restinga a natureza,
líá na boca da barra, que ajuntara
A este forte logar mais fortaleza.
Do mar o baluarte aqui assentara
Sobejo em comprimento e na grandeza
O Tártaro prudente, e o forteíica
Chua torre que cm meio lhe edifica.
136 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE
E além da força qiie por beneficio
Da natureza ja tinha esta entrada,
Gluiz que fosse também com artificio
A força natural accrescentada,
E para isto ordenou hum edifício,
Lança da terra firme hua estacada
De tão rija madeira, forte e grossa,
Glue qualquer grande força deter possa.
xxvii.
Esta grossa estacada, de tal arte
Melique póz (que aquillo bem entende)
Glue ficasse lançada pola parte
De fora, porque encerra em si, e defende
Melhor, do mar o grande baluarte ^
A qual até o canal quasi se estende.
E põe-lhe ao longo, porque nada a abrande.
De grandes pedras soltas copia grande.
Feita a Cidade ja tão forte e brava,
Melique, de mui grossos Mercadores
Em breve tempo a encheo, porque lhes da^
Licenças em seus tratos, e favores.
E d^hum pobre logar que agasalhava
En» si somente pobres Pescadores,
Veio a ser a melhor Cidade agora
Das que o sitio lá têc junto da Aurora.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 137
XXIX.
Vendo depois o Mouro que a opulência
Crescia na Cidade cada dia,
E o concurso daquelles, e frequência
Glue alli tinbão seu trato e mercancia^
Sendo tal seu saber, sua prudência,
tine em tudo proveo sempre o que cumpria,
Por evitar a males que imagina
Fazer outro edifício determina.
XXX.
Fronteiro a esta Cidade que nomeio
Lá da parte onde a firme terra fica.
Está lium legar de branca areia cheio,
Hua Villa aqui o Tártaro edifica \
A qual para de nada ter receio
Com grosso muro cerca e fortefica,
E tal foi, que podiao neste assento
Bem mil visinhos ter recolhimento,
f XXXI.
A causa que moveo a este prtidente
Tártaro, a que esta Villa edificasse,
Foi 6o, para que em quanto a Turca gente
Do Estreito do Mar Roxo navegasse
Vara a Diu vir ter, quicítaniente
Naquella villa alli se agasalhasse,
Folas grandes revoltas que causavao
Com que a nova Cidade inquietavào.
XXXII.
E porque aquelle, a quem a soberana
Providencia, hua loura cor têe dado,
]Na barbara linguagem Indiana
Com próprio nome seu Rume he chamado;
E aquelle que nasceo lá na profana
Turquia, desta cor loura he dotado,
D^aqui esta nova Villa que estou vendo
A dos Rumes se diz, segundo entendo.
Ficarão deste Tártaro animoso
Dous filhos, quando a morte o senhoreia,
Hum Melique Tocão, mui valeroso,
Outro Melique Sacia se nomeia:
Mas o cruel Baudur, e cubiçoso,
Glue tanto bem não soífre em mSo alheia,
Com grandes crueldades nunca ouvidas
A Cidade lhes toma, e tira as vidas.
XXXiV. *
Pcrdoa-me deter-me por cá tanto
Illustre Nuno, sem ir ter comtigo,
Q-ue também cá te sirvo no que canto,
Também nisto te sou fiel amij^o ;
Pois tanto dá mor honra, e mor espanto
O vencer, quanto foi mais forte o imigo,
E eu quiz mostrar qual foi o que tiveste
Para que saiba o mundo a quem, venceste»
o PílXMBiRO CEKCO Bfi Iit\J\ Í39
iPoi toda a Christaa gente agasalhada
Em aposento pobre, e mal composto,
Glue era dos bombardeiros a morada,
E d'outros a quem era o cargo posto
Daquella artilharia que espalhada
Por alguns baluartes, que seu posto
Tèe naquelle logar, então estava,
Porque aqui a Cidade não chegava^,
XXXVl.
Poucas vezes aquelle soberano
Planeta, que o triste ar negro desterra*,
Descansara nos braços d''Oceano
E viera com nova lei á terra,
Quando o Governador com esse tyrano
Baudur, fez alguns pactos, com que a guerta
Se acaba, que durou ja tantos mezes,
E a amizade acceitou dos Portuguezes.
XXXVII.
A condição primeira d'amizade
Foi que Sultão Baudur então consente
Glue ElRei de Portugal, com que irmandade
Agora tinha feito novamente,
Faça hua fortaleza na Cidade
De Diu, e ponha nella sua gente,
I E quer, para que mais segura fique,
I Q-ue onde está a barra e a entrada se edifique.
XXXVIII.
Do mar o baluarte lhe concede,
(Pouco ha que tratou delle a historia minha),
Mas para si os canhões reserva e pede,
Que nelle, e no da barra postos tinha.
Na Cidade porém lhe tolhe, e impede,
JíA no que ao regimento seu convinha
Todo o mando e acção, e so permitte
Gtue soja a fortaleza o seu limite.
Além de lhe tirar o regimento
Da Cidade, e que nolla não mandassem,
Q.UÍZ dos nossos também consentimento
Q-ue as suas náos os mares navegassem
Sem na viagem ter impedimento,
JVíem nas mercadorias que levassem,
E que estas náos por onde quer que iriíío
Seguros se os quizessem, levarião.
Assignado isto assi de parte a parte
Com outras condições que aqui não digo.
Se funda a fortaleza com tal arte
Gtue excedeo o presente tempo, e antigo :
Fez-se primeiro hum grande baluarte
Tal que não temeria hum forte imigo,
O qual daquelle Santo foi chamado
Glue não crco sem mclter a mão no lado.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 141
XLI.
O nome deste Santo lhe puzerao
Porque se começou naquelle dia
Q.ue os seus duros martírios merecerão
Levanta-lo á Celeste Monarchia.
Traz este baluarte outro jBzerão,
Também tão forte e grosso, que podia
Ter contra hum grão poder direito o rosto,
Foi-lhe de Santiago nome posto,
XLII.
Fez-se apoa isto quanto relevava
l*ara mor segurança, mor defeza :
Muro alto, parapeito, ameias, cava,
Q.ue tudo acaba a gente Portugueza.
Toda a gente nesta obra trabalhava
Q-uanta ao Governador naquella empresa
S<'guíra, e em pouco tempo se fez tanto
Uue até nos que o fizerão pôz espanto.
XLUI.
E em quanto se fazia este edifício
Betando ElRei presente na Cidade,
Kào cessa dos Mogorcs o exercicio,
Não cessa a costumada crueldade :;
Roubos, mortes, e todo o malefício
Executão sem terem piedade,
E tão ricos andavão que o mais pobre
Era então liberal, era então nobre.
142 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRAD£.
XLIV.
K tamanho era o medo que espalhado
Naquella terra, aquelle imigo tinha,
Q-ue o que alli tinha o seguro assento amado^
No amado assento enlao não se detinha ^
Mais de temor que amor estimulado
Glual fugindo de lá a Diu se vinha
Qual para outro logar se vai direito,
O temor então guia todo o peito.
De náos grãa companhia navegando
Vai com favor do vento, e da ventura,
Glue d'hum porto sahirão juntas, quando
As espalha a tormenta brava e dura :
Esta hum porto, aquella outro vai buscando
Onde cuida que pode estar segura,
Tal esta gente se me representa
Glue espalha do Mogor a grãa tormentat
XLVI.
Este intrínseco medo, esta fraqueza
Q.ue fugir estes tristes constrangia
Da brutal, inimiga, alta crueza.
Foi causa então que quando se fazia
Aquella Lusitana fortaleza,
De gente grande copia alli se via.
Lá na Ilha, na Cidade, e em toda a terra/
De que quarenta mil erão de guerra.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. l43
B com quanto Iiia em tanto crescimento
Aquella fraca gente, miserável,
Q.ue quasi lhe faltou recolhimento
Por ser ella ja quasi innumeravel :
Não lhe faltou comtudo o mantimento,
A terra não o dá (cousa admirável),
Mas de fora lhe vem cópia tamanha
Q.ue farta a natural, e a gente estranha.
xlviii.
Baudur, quiçá por ver se agora o engana
Esta amizade feita novamente
Com gente estranha, e queelle hapor profana^
Pede ao Cunha que queira alguma gente
A Barouche mandar da Lusitana,
Q-ue d'hum imigo a livre tão potente,
E que elle mandará dos seus soldados
De que vão os Christãos acompanhados.
XLIX.
Barouche era Cidade situada
A vista do mudável Oceano,
Então deste Baudur senhoreada
Tão fraco, quão soberbo, quão tyrano.
Do cruel Mogor inda não tocada,
Inda em salvo daquelle commum dano.
Mas dizião que delles hua parte
Guiava para lá seu estandarte.
144
Mostra o Governador que lhe contenta
Fazer o que ElRei quer, porque comsigo
Determinado têe, e em tudo assenta
Mostrar-se-lhe fiel, perfeito amigo :
Manoel de Macedo, com setenta
Homens manda ajuda-lo em tal perigo:
Manda ElRei muitos seus, que nesta empreza
Acompanhem a gente Portugueza.
LI.
Esta tal companhia, que pudera
N'hum fraco esprito pôr altos conceitos,
E a gente que Barouche de si dera
Gl^ue por si só acabara grandes feitos,
Assaz esta Cidade defendera
Sc aquelles feminis, covardes peitos
Tal medo não cobrarão aos Mogores
Glue só o nome os fazia vencedores.
LII.
Em vao foi o soccorro do Macedo
E o da gente que lhe era companheira,
Porque alli mais podia o antigo medo
Q.ue a força natural, nem a estrangeira.
Nenhum pára alli mais, ou está quedo
Vendo na terra erguer hua poeira.
Porque o Mogor só cuidão que a levanta
Cujo nome somente os tanto espanta.
o PRIMBIRO CERCQ DE DIU. 145
mi.
O nobre PortugueZj forte e animoso
A quem tanta fraqueza em ira inflama.
Desejando de ver se este espantoso
Mogor, tèe as obras quaes a fama, ,
Trabalha por deter este medroso ^^.^ ,v,.f!
Povo, que a vida mais que sua honra aiBay
Mas trabalhas em vão, segundo creio, ,r
Porque nada detém a hum grão receio, ^J
LlV.
Nunca com tanta pressa a baixa gente
Q.ue no cerrado corro o touro aguarda, y
Voltou as costas quando ouvio somente ,
As vozes do que grita : Guarda, guarda ^
Ja cuida que o animal nas costas sente,
Corre ligeira, e cuida inda que tarda ^
Como estes tèe, que a terra desampárao .
Só co^o que da poeira suspeitarão. -rr
Deixão a amada pátria á gente imiga,
Desejo de viver tudo despreza,
Macedo ja não sabe que lhes diga,
Nem pode remediar tanta fraqueza \
Deixa usar o Mogor da sua antiga
Victoria, e executar sua crueza^
Em fim elle a Cidade também sdlta
QiUe guardar só não pôde, e a Diu volta»
i4t.
Outra v<'Z ímpòfttina o Rei Ckhibíiio'
Outra ve/ o sotcorre o nbvo nmiçò,
K manda a Vascí> Pire» de Sampaio
Com navios por mar, o quitl coinsÍ5;o
Duzentos hoinens leva, em quem desmaio
A nVorfe núticâ "pòz, nem graó pprigo,
K a maiores empresas eoStumado»
Q.XW eíjla para que agora bííò íháiltfados.
Este Ódípitao íbrfe L#usitaíio
"Vai de Cojaçofar acompanhado,
Q.ue nasceo entYe o povo Italiano,
K lio Santo L/ieôr ja foi banhado*,
Ma» o» erros des|x>is segtiio, e o engano
G.ue aqnelle enganador, faíso, malvado
Mafamede ensinou, deixando a Santa
Fe, que as almas ao alto Ceo levanta.
tvkii.
P''Mdente era, e sag;iz e^e e atrevido,
1/.. guerra tinha grão eonheeímenlo.
Da fortuna era assaz faVorccido
Q.ue em riquezas lhe deu gruo èteseirhCnto •,
Em tudo sen desejo vio cumprido,
E tinha dentro em Diu seu assento.
l^ste mil lioinens leva em companhia
Dos qtiaes huns Pérsia deUj outros Turquia.
o PRIMXIRO CERCO DE DIU. 14i
LIX«
Blsta gente tão vária em pátria, em vida,
Em costumes, em lei, e em tudo, agora
Se ajunta, e a combater, conforme e unida
Chega a huma fortaleza, que nesta hora
He de bem pouca gente defendida,
Mas tal que hum grande esforço nella mora,
Sós trezentos Mogores encerrava,
I/'i junto do rio Indo posta estava.
Mas tal era o temor que o Turco e o Persa
Ja desta imiga gente concebera,
E cila era nisto delles tão diversa
Que por mais que hoje o imigo a combatera,
Se mostrara a fortuna emfim adversa
A gente de Baudur que a isso viera,
Senão tivera então por defensores
Os Lusitanos braços vencedores.
LXl.
Não faltou aos Cambaios diligencia
Em meio deste seu grande arreceio,
l'õe escudas no muro, c a competência
A subir cada hum por ellas veio :
Mas achão no Mogor tal resistência
Glue nenhum subir pode bem ao meio,
O medo, e o ferro imigo podem tanto
Q-ue huus faz descer a morte, outros o espanto.
148 OBRAS DE
O lim da luz que o Sol tivera aceza
Fez então apartar estes imigos,
Com grande honra da gente Portugueza
i^ne nunca duvidou grandes perigos^
Tambein se signalárão nesta empreza
Os Turcos, que também são de honra amidos.
Cinco perdeo Sampaio, e se lamenta,
E Cojaçofar mais de eincoenta.
txiil.
Os Mògorcs também sentirão dano,
Do seu sangue também forão banhados,
Muitos o ferro Turco, e o Lusitano
Deixou sem vida, e muitos maltratados:
K assi tanto que o Sol lá no Oceano
Seus raios escondeo claros dourado»,
Os que do dia salvos escaparão
De todo a fortaleza desampárâo.
LXI V .
A gente do Sultão, e a que foi dada
Ao mundo, lá na terra do Ponente,
Tanto que o Sol a nova luz dourada
Veio mostrando lá polo Oriente,
Vendo de todo ja desamparada
A fortaleza, desta imiga gente,
Se tornão a embarcar, e o mar navegão
K com prospero tempo, a Diu chegão.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 149
í\)rrida neste tempo a terra tinha
De Cambaia o Mogor, e a saqueara,
Até ches^ar áquolla que visinha
De Diu está seis legoas, c aqui pára.
I'L correr também esta entào «ão vinha
<J'om temor da invencivel força rara
Dos Portuí^uezes, que ella dentro encerra
Com que estava segura aquella guerra.
M;is como ja corrido o mais tivesse
Com sobeja cubica e atrevimento,
Sem deixar cííusíi em que atfent^r podcsse
Lida o mais cobiçoso, ou avarento^
K de riquezas farto assi estivesse
<4ue lhe hia tendo ja aborrecimento,
]'«juco a pouco este Reino foi deixando
Ij{\ para a amada pátria encaminhando.
LXVIl.
Ja se mostra o Sultão mui animoso,
A atiseneia do Mogor o faz ousado.
Do mal dos seus^, agora he piedoso,
Agora sente vêr-se deshonrado.
Q.uanlo o rosto do imi^o o fez medroso
Tanto as costas o fazem esforçado.
Disse ao Governador que elle ir seguindo*
(iuer o imigo Mogor que vai fugindo.''
1Í>0 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDIIADE.
Mas que sem seu favor elle iiao ousa
Commetter so co''os seus este caminho,
Nem fará algíia grande e honrada cousa
Contra o Mogor, que têe inda visinho,
Se lhe não der aquelle ousado Sousa
Q-ue têe por nome AíFonso apoz Martinho,
Q-ue leve companheiro na jornada
Porque com tal favor não teme nada.
txix.
E se este lhe não dá, que dar-lhe queira
Mil homens, entre aquelles escolhidos
Q.ue seguem a temida, alta bandeira
De Lusitânia, e lá forão nascidos.
Nem esta petição, nem a primeira
O Cunha recebeo com bons ouvidos.
Suspenso fica assaz, porque nem ousa
Mandar aquella gente, nem o Sousa»
Mas porque em tal negocio nao queria
C()'o seu conselho so determinar-se,
Faz ajuntar a nobre companhia
Com quem era costume aconselhar-se ^
Pergunta-lhe que modo se teria
Para que se escusasse aventurar-se
Ou a gente, ou o Sousa a tal perigo,
E para não perder ElRei d'amigo.
o PRIMEIRO CERCO DE DIV. 151
LXXI.
De tanta confusão fica então cheio
Cada hum, quanta o Cunha antes ja tinha,
Q-ue de tentar o Sousa têe receio,
E mandar os mil homens não convinha.
Q-uando o animoso Sousa posto em meio
Vendo que so por elle se detinha
Isto que tanto importa, ousado e forte
Solta a \oz para o Cunha desta sorte :
Pudera eu com rasao hoje aíFrontar-mc
Ou ao menos estar de vós queixoso.
Senhor, pois duvidaes encarregar-me
Do ncf^ocio que haveis por perigoso.
Sabendo que nenhum ha que mais arme
Ao peito ibrte, d'honra desejoso,
Ôue aquelle que a maior perigo o chama,
Porque este sempre deu mor honra e fama.
txxiii.
Não he do Portuguez passar a idade
Entre delicias, entre mimo e viço,
Mas buscar sempre a mor dilficuldade
Por honra do seu Rei, c por serviço ^
E eu a vida, a pessoa, a liberdade
Para as perder por isto, só cubico,
E quanto este perigo maior vejo
Tanto ja vêr-me uello mais desejo.
loá OBRAS DE FRANCISCO D ANDRADE.
Se isto quereis, Senhor, satisfa/.er-me,
De que eu corrido estou, mais que obrigado,
Pois menos mal he o risco de perder-me
€tue perder a occasiào de mais honrado,
Somente pude ser com conceder-me
Q.ue o Sultão vá de mi acompanhado.
Porque mais na honra vai do Lusitano
Nome, que no meu bem, ou no mou dano.
Apoz estas palavras, que com tanta
Instancia disse o Sousa, e atrevimento,
!Lo2;o o Governador a voz levanta
Perante aquelle nohre ajuntamento;
E seus louvores hum espaço canta,
Nem he entào de palavras avarento
A tamanho serviço, e tão notório,
Lto mesmo faz todo o consistório.
Nem somente a jornada lhe concede
Cunha, mas quanto pode Ih^i agradece.
Nada lhe nega ewtão do que lhe pede,
0.ue muito mais cuida inda que merece.
Com isto o ajuntamento se despede,
E ja por toda a parte se engrandece
IVste Illustre Varão o esforço raro
Uue nesta obra, e em mil outras se vio claro.
o PAIMEIKO CERCO DE DIU. Í,á'Jk
X.XXVII.
A pparelha<ía Já Gomo cumpria
Sousa, para o Sultiío faz logo abalo,
JC os que levava em sua companhia
Erâo bem quarenta homens de cavalo :
São dez da Lusitana fidalguia
Cujos nouíes não sei, por is.so os calo,- n»;M
E mais porque seus braços não vencidos , 'í
Os fazem mais que os nomes conhecidos,
LXXVIII.
Chegados ao Sultão, os agasalha ;».:i.>
C«)m mostras d'amor grande e verdadeira^ i.T.
Polo Reino d^alli logo se espalha
<-iue ousado faz o novo companheiro.
D'hua parte para outra se trabalha
Grão tempo sem parar hum dia inteiro,
Mas do iníigo Mogor não houve vista
Nem outra cousa achou que lhe resista.
IXXIX.
Até que hum dia, quando o costumado
Pasto, o corpo mortal de nós recebe.
Eis que se lhe chega hum Ião apressado
Q,ue apenas os usados are» bebe;
E inda co'o tom da voz mal declarado
lihe diz: Com grande presrvi te apercebe, >
Scjdior, ptirque os Mogores tèes tão prrto, ' ?
iiue quiçá lhe serás ja descuberto. '
154 OBRAS SE VAANCISCO d''aNDRADE.
Nesta gente nao vem (segundo tinha
Este homem dito) o próprio Rei imigo,
Porém hum seu irmão era o que vinha
GLue oito mil de cavallo traz comsigo.
Nao tèe gente Baudur quanta convinha
Para se defender d"'hum tal perigo,
Porque a gente que então o acompanliava
De tros mil de cavallo não passava.
LXXXI.
Grandemente o Sultão se sobresalta,
Ja o combate o temor, ja não repousa,
E inda que em casos taes sempre lhe falta
Ousadia, hoje mais do que soe ousa.
Cobre-se d^armas, a cavallo salta,
Manda logo chamar o nobre Sousa,
Sem cujo parecer, sem cuja ajuda
Nem atraz, nem avante o passo muda.
Sousa, no qual tonior não se aposenta,
Com grande pressa a sua gente ajunta,
Perante o Sultão logo se apresenta,
Q.ue cuberto vio d'hua cor defunta.
Elle que assaz de vê-lo se contenta,
E cobra a cor perdida, lhe pergunta
ôue devia fazer-se agora nisto
Pois no logar o imigo era ja visto.
o VmSlEIRO CEKCU UE DlÚ. 1^^
LXXXlll.
Acaso n'h»im logar so agasall\ava.
Kiitão El Rei, o qual tinha defronte
Mum outeiro, que ao Cco tanto se al<j'ava
<4.ue bem pudera ter nome de rat)nte ;
Recolhida ja em cima delle estava
í^om medo que o JVIogor a nao affroiitc,
Muita da eomarcãa rústica, gente
No sexo, e nas idu(lt:8 4f,fífcrG"to.
\'^endo o Sousa que alli grande apparelho
l*odia ter El Rei para vaíer-se, . ■
E sem fazer de saugue o chíío vçrníí<^l,ho,
Se fosse acconmiettido, dofender-se,
Llie disse que seria bom conselho
l*ara aquelíe alto outeiro recolher-se,
Onde a fúria do imigo deshumano
Poderia esperar sem uçnhum dano.
E que o I\íogor quiçá nao ousaria
Do outeiro commetter a alta suljida,
Cuidando que a pedestre com[xanhia
Era gente de guerra, o não fugida.
Tanto agrada ao Sultão isto que ouvia
W-ut? logo executa-lo não duvida, ' ,
Parte logo d''alli, chega lá acima,
Louvando o Sousa, e tendo-o em grande csl.ínia,
IXXXVI.
Arribados ao alta apenas erSa
O Sultão com a saa gente, quando
Os Mogores ao campo apparecêrSo
Q-ue o logar forão todo atravessando.
E como ElRei no outeiro conhecerão
Passando pola fralda o vão deixando,
Vendo o logar, e aquelles que a pé estavSo,
€lue todos ser de guerra imaginaVão.
Sousa, vendo e pesando então comsigo
Esta ida do Mogor, sem outro eífeito,
Apesar do Sultão, que a tal perigo
Mal podia soffrer vê-lo sujeito,
Se» aparta delle a ver se deste imigo
Q.uiçá agora entender pode o eonceita,
E o Capitão, e alguns vio apartar-se
Q.ual soe fazer quem quer aconselhar-se.
Pouco traz isto, vê que a gente volta,
E no logar entrando d"*odio cheia,
De sangue enchendo a terra, e de revolta^
E de gritos os ares, a saqueia :
O Sousa em ira e dor tendo a alma envolta
Porque hum tamanho mal não remedeia.
Descera a castigar tal crueldade
Se tivera o poder qual a vontade.
o PIllMKIUO CERCO DE DIU. í 37
Rico e victorioso, e ja em batalha
Posto o Mogor, d^alli desapparece,
K porque então no mar ja se agasalha
O Sol, também ElRei ao campo dece :,
Vendo que o caminhar nada lhe atalha
Ja para Diu, em breve lá apparece,
Onde despede o Sousa, e a sua gente
Pagos de sen trabalho largamente.
Vendo o governador que com superno
Favor, tinha acabado seu intento,
E que era isto ja em Marco, quando o inverno
Bííte ás portas do oriental assento ^
Q.uerendo-se tornar ao seu governo
Levanta o ferro, solta a vella ao vento,
Volta a popa á Cidade, ao mar a proa,
E torna-se a invernar na nobre Gwa-
Mas para dar a esta obra segurança,
Porque do novo amigo não se fia,
A Manoel de Sousa (a quem a lança
Imiga, pouco, ou nunca resistia)
Da fortaleza deu a governança,
E oitocentos lhe deixa em companhia
Portuguezes, d** esforço grande e raro.
Muitos de sangue illustre, antigo e claro.
1o8 OBRAS DE FRANCISCO D^NDRADF..
Noste tempo o Mogor enfastiado
De presas, de victorias, de riqueza,
^'endo que Orlo» ja soljcrbo e armado
Começava a mostrar sua braveza,
K o Ceo de grossas nuvens negro, e incliado
]\i ostra do inverno a fúria, e a tristeza,
\i\i buscando apressado a pátria antiga
K deixa aquella fraca terra imiga.
XCIIÍ.
Baudar vendo de todo em salvo postas
Suas terras, e o imigo n'outra praia
(iue tantas vezes ja lhe vio as costas,
E levou os despojos de Cambaia :;
K entendendo que estavão ja dispostas
l*ara que livremente elle entre e saia,
Cobra espiritos de novo, e ja se esforça,
l)á-lhe a falta do imigo alento e força.
xciv.
Por cá, por lá, por monte, valle e serra
Entra (qual soe) soberba e ousadamente.
Discorre ja seguro pola terra
Em que então resistência ja nao sente ^
Onde alguns alvoroços, de que a guerra
Passada causa foi á sua gente,
Elle quieta, ordena, clle assocega,
Tudo por onde passa se lhe entrega.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. j o9
XCV.
.M;uns (los principies, que tios passados
\ > -^baratos s;dvar-se então puderão,
li em differontes pjtrtes retirados
Todo o tempo das guerras estiverâo,
Vendo os imigos ja tiJo apartados
A seu Senlior de novo se vierão,
Com que foi restaurando o estado antigo,
Até que o Reino vio sem guerra e imigo.
xcvi.
Alguns Reinos, que com innnmeravel
Força ganhou, soberba e crueldade,
Vendo que lhe era o tempo favorável
Para cobrar a antiga liberdade,
K tirar-se d^hum jugo intolerável
Estrangeiro, tyranno, sem piedade,
Negão-lhc a obediência que a lyrana
For(j*a dar-lhe fazia, e deshumana.
Nâo consente o soberbo resistência,
Nem perder dos seus bens o cobiçoso,
Acceso em ira ElRei, com diligencia,
11 um exercito manda poderoso,
Debaixo do poder e obediência
De Miram, seu sobrinho, que o animoso
Esprito, com boas parles i Ilustrava,
E de quem elle muito confiava.
160 OURAS DE FKAXCISCO D''ANDKAnF..
XCVIU.
E que logo se parta lhe encommeiula
Sem por em eaminhar qualquer tarclaura,
Nem em outro negocio mais entenda
Qlue em tomar dos rebeldes graa vingança :
E nao desistirá desta contenda
Até que com cruel espada e lança
Aquellas infiéis gentes perdidas
Ou tire as liberdades, ou as vidas.
XCIX.
De muitos a que o saiiijue, ou nobre estado
Logares principaes ji«» Reino dera,
Ficou então ElRei acompanhado^
E Mirizam Hamed hum destes era,
iríue deste Rei Mogor era cunhado,
E ser elle a maior causa dissera
A estes dous Reis, das guerras que tiverão.
Se o» meus versos utraz o não disserão.
Neste tempo em que ElRei ja sentir vejo
Da fortuna o favor falso, e inconstante,
Se lançou com elle hum, de quem desejo
i^ue a minha historia logo agora cante.
Se vós de o conhecer tendes desejo,
S<!nhores, esperai-me lá diante,
Q.ue eu agora passar d^iqui não ouso
Sem primeiro tomar algum repouso.
o i*fltaiii!}iK4»
CERCO DE DIU.
J)ú-se a morte ao Secretario cVElRei chsMo-
ijorcs. Conieça-se a descobrir o ódio tjue o
Suliuo tce aos Poriuguezes. Nuno da Cii-
n /ta faz hunia grossa armada^ e chega com
<lLa a Diu. Conia-sa hum estranho caso guc
acontecco a Manoel de Sousa com Kl liei.
O Sultão vai visitar Nuno da Cunha ao
seu galeão.
rxqnella sempre foi boa amizade,
\ erdadeira, íi»;!, firme, e de dura,
Q.ue iiasceo d''hum amor, d"*hua vontade
Livre, sincera, limpa, clara e pura :
l*orém a que ajuntou necessidade,
Sempre foi breve, falsa, e mal segura,
^ue do necessitado e interesseiro
Nunca se fc/ umiíro verdadeiro.
1G2 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
E se isto está tao certo inda entre a gente
tít-ue tèe a mesma lei e pátria antiga,
Q-ue será entre aquelToutra, a quem somente
A força do interesse fez amiga?
K que sendo em nação mui diíFerente,
Em pátria, em lei, e em tudo sempre imiga,
Lhe he para seu remédio, necessário
Mostrar aiíior ao seu mor adversário ?
Em tanto dura o amor, antes no peito
Em tanto está encuberto este ódio antigo,
Em quanto áquelle mal está sujeito
filue o constrangera u se mostrar amigo \
Porem como era falso, e contrafeito,
Apenas está fora do perigo,
Ou da necessidade, quando volta,
E com mor fúria ao ódio a rédea solta.
Atraz vos prometti, se nao me engano,
(Faltar-vos da promessa não queria)
De vos dizer quem era hum que seu dano
Achou naquelle a quem favor pedia.
Este que se lançou lá co''o tyrano
Baudur, como pouco antes vos dizia.
Secretario he do Rei Mogor, e he dito
GLue lhe têe o Sultão ódio infinito.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 163
V.
A causa porque então o triste veio
liançar-se co^o Sultão, e acompanballo,
De qu(?m devera ter hum grão receio
Só porque do Mogor era vassallo,
Foi, para que alcançasse por seu meio
Embarcação, que a Ormuz possa levallo,
E fazer d''ahi a Pérsia seu cajninho
Onde tinha o paterno arn^ido ninho.
Finge Baudur então que de si aparta
Todo o ódio, e lhe mostrou boa vontade,
Para Diu lhe manda que se parta
Onde o despacharão com brevidade.
Dá-lhe bua para o Rao funesta carta
(Este tinha o governo da Cidade)
Em que manda que tire ao triste Mouro
Depois da vida todo o mais thesouro.
Parte o misero logo com grâa pressa
Na palavra d' El Rei mui confiado,
Dia è noite, de caminhar não cessa,
•Ta para ver a pátria alvoroçado.
Espera, Mouro, espera, que a promessa
De seres brevemente despachado
Não he dar-te a mercê que tèes pedida,
Blas tirar-te a fazenda, e mais a vida.
ANDRAHE.
Choga O Mouro contente áquelle assento
tlue o nome inda hoje tèe do louro Rume,
Trata de effectuar o seu intento,
1-^ue de tal traição nada presume.
Acha na entrada bom recebimento,
í^ue este do traidor foi sempre o costume
Mostrar amor onde o ódio mais o acende,
Tara que faça em salvo o que pertende.
IX.
Naquella mesma noite que a ventura,
Antes desventurada imiga sorte,
Trouxe alli o Mouro a dar-lhe sepultura,
O salteão com mão armada e forte.
Nao lhe vai resistência nem brandura,
Vorque alli o esperava a cruel morte,
A carne emtim no próprio sangue envolta
l'or mil portas o triste esprito solta.
Q-ue cousa por tentar nunca deixarão
Huns cubiçosos pérfidos intentos?
Ou a que peitos nunca perdoarão
Nem reaes, nem de baixos nascimentos?
Inda estas cruéis mãos aqui não ^párão,
Forque ao triste mil vezes setecentos
Pardaos roubão também, e fica agora
Ladrão o que homicida antes ja fora.
o PRIMEIttO CEllCO DE DIU. 1 (i«
Desta obra o Sultão fica satisfeito,
(iuo d^hua e d^outra parte era conforme
Ao seu cruel e cubiçoso peito
K de tudo o real as^az disforme.
Trar este abominando, enorme feito
Se apparelha para outro mais enorme,
O qual I050 ouvireis, não sem espanto,
Se não vo» he pesado este meu canto.
XII.
Baudur, vendo-se ja desaíTrontado
Do soberbo Mogor, cruel e imigo,
Q,ue o tivera até alli tão apertado
Que o fez dos Portugueses ser amigo,
K vendo livre todo o seu estado
Do guerras, de tumultos, de perigo,
De novo começou em ira inchar-se
O S2U peito, e de mor ódio inílammar-se,
Vè-se o grande ódio ja, vè-se a grande ira,
Mostra-se a natural fúria indomável
Q-ue a contraria fortuna reprimira,
Domestica fizera, e tolerável.
Amor forçado sempre foi mentira.
Pois mostra quando o Cco vê favorável
Q-ue amor não foi, mas ódio de verdade,
Enciiberto com nome d''ami/.ade.
]6í) OlíIlAS DE FRAXCrSCO D ANDliADI.
Mostrou este ódio EIKei (ao claramonl(í
E a fiiria que iivora reprimida,
diie lo<;;o vio a Tortugueza gente
Q.uanto lhe era pesada e aborrecida,
K que elle se affrontava grandemente
De ter-lhe a fortaleza concedida,
1*'. que tanto esta aflronta então sentia
Q-ue ella só vir-se a Diu lhe impedia.
XV.
K inda que nas palavras trabalhasse
líincubrir a paixão que n^alma andaVM,
Não pôde tanto eníliin, que refreasse
O que ódio e natureza estimulava,
E que ás vezes com obras não mostrasse
O que então com a lingua não mostrava,
Nem esta assi governa, que alguma hora
O que lá dentro está não mostre fora.
XVI.
Estes damnados, pérfidos conceitos,
Esta tenção d 'El Rei falsa e tyrana
Glue tinha contra aquelles que sujeitos
Erão, da alta Coroa Lusitana,
Por alguns dos que lh'erão mais acceitos
Foi (se o que dir a fama não m^engana)
Ao nobre Sousa logo revelada,
De que era a fortaleza governada.
o puiMrir.ò cEr.co dt. niv. ÍU
Mas doste ódio mortal oorh que perseguo
Km segredo os Christaos este enganoso
Ilaudnr, fa?, com que nada entào se negue
Ou se esconda ao grão Sousa valeroso,
O Rao, a quem ja disse que era entregue
Na Cidade o logar mais poderoso,
Pessoa principal no senhorio
l)e Cambaia, com quanto era gentio.
Este lhe descubrio, que tao aceso
KlRei em ódio eslava, porque via
i) seu Reino daquella gente preso
Q.ue clle tão altamente aborrecia,
Q-ue por tirar de si tão grave peso
Com todo seu poder trabalharia.
Vendo tempo e logar em que este imigo
Podesse destruir sem seu perigo.
Não desfalece o Sousa, ou desespera,
Do Sultão, entendendo o pensamento,
Mas tudo trata então, rege e tempera
Com muita discrição, com muito tento,
Para que passe em paz a horrenda e fera
Sazão, que engrossa o mar, dá fúria ao vento,
Porque a agua que só tinhão e bebiao
Era, a que os da Cidade lhe trazião.
168 OBRAS DE FRANCISCO d''aKORADE.
Porém sabendo a ^ente da Cidade
A tenção do seu Rei, e o máo conceito,
Contra aquelles a quem a adversidade
Pouco antes novo amigo o tinha feito,
O quer seguir também na má vontade
Conlormar-se co''o seu malvado peito,
Q-ue até nas aífcições (que n*'alma habitao)
A seus Reis os vassallos sempre imitão.
E para effeito deste tao nefando
Intento imitador d^hum Rei tyrano,
Em quanto aquelle inverno foi passando
Em que o Capitão forte Lusitano
Com grãa prudência as cousas temperando
Estava, por fugir a qualquer dano,
A Cambaica gente em ódio acesa
Trata com grãa soberba a Portugueza.
Q.uando pola Cidade esta se estende
Descobre a imiga gente a fúria antiga,
E em tamanha ira hQa e outra o peito acende
Qiiie travão sanguinosa, cruel briga :
O Portuguez alli o esprito rende,
Rende taml)em o esprito a gente imiga,
Hum e outro a culpa e o damno então pagava
Q/ue o Lusitano ás vezes só causava.
o PRIMEIRO CERCO DX DIU.
Deste intento d^ElRei falso e damnado
Indigno da real alta Coroa,
A fama com veloz curso apressado
E co''o som do metal que a orelha atroa,
Lioj^o ao Governador levou recado
E lhe manifestou lá dentro em Goa
169
Não somente as palavras que dizia "* tíí "♦!'
Mas quanto contra os nossos pcrtendia.
Gluanto mais a Oceana onda salgada
No tempo que a sazão fria apparece,
Com a fúria de Noto negra e inchada
Se engrossa, se alevanta e se embravece.
Não pode ser com a fúria igualada
Q-ue no gesto, e palavras se conhece
Do ilhistre Nuno, como lhe apresenta
A fama o que o Sultão pérfido intenta.
E para castigar este ódio e esta ira
Q,ue o pérfido Sultão no peito encerra,
As vellas logo ao manso vento abrira
E de Cambaia entrara a ingrata terra,
Se lh*o de todo então não impedira
Hua áspera, cruel, e dura guerra
ô-ue com o Accdecão travada tinha
Q.ue sua terra a Goa tèe visinha.
Í70 OBRAS DE FRANCISCO d''aKDRADE.
Passado era de todo aquelle inverno
E ja Flora espalhava novas flores,
E se fazia então com mais interno
Ódio esta guerra, e bellicos furores,
Gluando ordena aquelle Alto^ e Sempiterno
Rei, que manda os Celestes Moradores,
Q.ueem meio d^hum grande ódio amigos fiqucii
E de supito então se pacifiquçpi,
XXVII.
Não deixa perder tempo o forte Nuno
Vendo-se livre ja do novo imigo.
Tendo para o que quer tempo opportuno
Determina ir buscar o imigo antigo:
Favorável para isto vê Neptuno,
Eblo favorável, brando e amigo,
Navios apparelha e mantimentos,
Soldados escolhidos bem quinhentos.
XXVIII. '
Dá com graa pressa a popa á nobre Goa
E faz-lhe a ira cuidar que ainda tarda,
Ao Reino de Baudur voltou a proa
A que o Ceo hum cruel castigo guarda.
A trombeta também agora soa,
Também soa o atambor, soa a bombarda,
Também voa nos ares o estandarte.
Em tudo resplandece o fero Marte.
• PRIM&IILO C£BCU DE DIU.
Ft'7,-se isto entrando o mezque a fiel gente
Do Eterno Rei celebra o nascimento,
Cortando o mar a armada vai c<jntcnte
Com ^Tiio favor das ondas e do veiito :
E tal foi, que tomou mui brevemente
Liá dentro em Baçaim recolhimento,
Cahe a ancora da proa, o fundo afterra,
Soa o canhão no mar, soa na terra.
O valeroso Cunha a que o malvado
Enganoso Baudur sollicitava,
Lhe manda hum d''alli logo com recado
ttue Diogo de Mesquita se chamava :
Este em Cambaia ja tinha provado
Q-uanto a braga nas pernas carregava,
E da linguagem tinha, e da malicia,
E das cousas da terra grãa notici^^*.
XXXI.
o qtje o Governador aqui pcrtende
T)o recado que munda a seu contraria
He (se he certo o que a fama disti) estenUe)/
Com eòr d'algum negocio neccssari»), j
Vt;r se o que por signaes dclle se entendo
Seja conforme cm tudo, ou seja vario
])a(|uilio que os siiccessos que passarão
Delle assaz claro ja testemunharão.
172 OBRAS DE rnANcisco ^''andrade.
Detem-so em Baçaim todo Jjíneiro
O nobre Cunha traz esta embaixada,
E na entrada do coxo Fevereiro
Para Diu encaminha a sua armada.
Porém antes que o esperto Marinheiro
A ancora solle, ou colha a vella inchada,
Torna Mesquita em meio do mar largo
Dar rasão do que lhe era dado a cargo.
XXXIII.
E o que deste negocio denuncia
He que na Corte toda, e no tyrano
Geralmente hum mortal ódio se via
Contra o fiel amigo Lusitano :
E que tudo o que entre elles lá se ouvia
He tratar claro ja de nosso dano,
Q-ue mal encobre o rosto, oti a palavra
O fogo que lá dentro o peito lavra.
Em quanto dá Mesquita esta fcsposta
Seu curso a nobre armada nao detinha.
Mas com a vella inchada, e cm alto posta
Sempre polo salgado mar caminha.
E assi chegou do Diu á outra costa
Onde Madrafabat por nomo tinha,
Q.ue he hum rií) assaz grande, e alegre á vist
Q.UC da Cidade cinco lejroas dista.
o PniMEIUO CKKCO DK HIU
Ja Pirois, Heoo, Eton, juntaraeiíto
<'oin Flegon, que o diurno carro aceso
Tinhao trazido iá d<?sd'o Oriente,
Dfixavao no Oceano o claro peso,
^ la-se a Lua entã<» resplandecente
Km quanto o irmão está do bomno preso,
Ouando o Sousa que manda a íortale/.a
A nossa armada vem com graa presteza.
XXXVI.
í)nde ao Governador dá larga conta
De cousas que antes pouco erao passada».
Com qtie ás vezes se vio posto em alVronta,
Mas forão todas bem T<!mediadas.
Jlua somente a minha historia conta,
J*orque todas não podem ser contadas,
Se alguém me der para ella attento ouvido
Nau se arrependerá <le ter-me ouvido.
Potico tempo ante* vindo era á Cidade
O pérfido tyranno, falso, e imigo,
A executar aqtiella alta maldade
Oue trazia assentada ja ct>msigo-
Bem sabe o nobre Sousa esta verdade
Mas nem por isso perde o esforço antigo,
Antes visita a ElRei tattto que veio,
E isto que sabe esconde lá no seio.
174 OSRAS I>E FRANCISCO d''aNORAI>B.
xx;x\iii.
Poucos dias traz isto, quando a bella
Diana á escura terra se mostrava,
E espalhava a prateada luz por ella
Q-ue lhe o seu claro irmão communicava,
Sendo passada ja a primeira vella
Quando no mor repouso tudo estava,
E o mundo descuidado, e somnorento
Têe perdido ,de todo o sentimento :
Por hum caminho que he ,bem encuberto
E á nova fortaleza vai direito,
Apparece hum de quem se têe por certo
Que do bruto Alcorão segue o preceito :
Chega ás casas do Sousa este mui perto
Para lhe descubrir o seu conceito,
Vai ao longo do rio, lá da banda
Q.ue se está descubrindo hua varanda.
D'ain com tanta instancia o catá chamando
Glue lhe acode daquelles hum soldado
Q.ue andavão polo muro vigiando,
E leva ao Capitão este recado.
Salta da cama Sousa em dcs|>ertando
Ora arreceoso, ora alvoroçado,
Põe-se lá onde ao Mouro bem ouvia,
Pergunta-lhe a que vinha, e que queria.
© PRIMEIRO CERCO DE DIU. 175
Vendo o Mouro hum legar tao só, e secreto,
Responde: Illustre Sousa, alto, e prudente-,
Cumpre que não estejas tão quieto '' '
Porque hum grande perigo tèes presente: ' '
Sabe que em o Pastor claro d'Admeto
Começando a mostrar o carro ardente
£lRei te chamará como que te ama
Mas para dar-te a morte elle te chama,
XLII.
E porque tu não cuides que a mostrar-te
Me moveo interesse este perigo.
Nem o meu nome quero declarar-te
Nem dizer-te aqui mais que o que te digo :
Fica-te embora, e cumpre-te guardar-te
Porque te mostra amor o mor imigo.
JE com isto de fallar o Mouro cessa.
Volta as costas, e vai-se com grâa pressa.
Se alguém me perguntasse quem seria
liste que ao Sousa fez tal amizade,
Ser elle o mesmo Rao eu lhe diria
Q-ue então tinha o governo da Cidade :
Não me crêaes a mim, pois cá vivia,
Crede á fama, que o affirma por verdade,
Nem me pergunteis disto o fundamento
Porque eu não ad vinho o pensamento»
176 OBUA» I>r. FRANCISCO D ANDKAIíK.
XLIV.
Oe <.'onfnsn(í e pspanto fica cheio
O Aaloroso Sousa co''o que ouvira,
< >ra o líioito pov dentro hum arr<>coio
Ora o esforça de novo l>ua nova ira.
K de Ui\ eonlusao posto no meio
í^iida ás vezes que pode ser mentira,
Mas teo comsi<i;o emíim determinado
Obedecer u El Hei, se for chamado.
XLV.
Nrío se descuida o pérfido iyrano
Oue de toda nialdade e engano he fonte.
Mas pira executar o ultimo dano
N<í iu)i|;'o que não soíVre ter defronte,
Manda hnm recado ao forte liusitano
Co\) resphiudor primeiro do Horizonte,
Km qtie a vir ter com elle então o exhort;
Tara cousa que diz que muito importa.
Soiísn, a quem este engano nao se esconde
O dissimula então com grãa firmeza,
K tendo ja assentado d''ir lá aoud(?
'J'êii de morte cruel grande certeza,
A<í mensageiro ousado então responde
Cltíe fará o que lhe manda sua Alteza :
l'\'Z-60 pre8t<;s para ir, e dissimula,
(lue honra mais que temor alli o estimula.
o PKIMSIRO CERCO DE DIU. li i
XLVII.
Não vai, qual soe, honrada e nobremente.
Mas deixa os apparatos seus primeiros,
O soberlK) cavallo, e juntamente
A guarda dos sesseuta alabardeiros :
Mi.'tte-se n^hum catur onde he somente
DMiuní p;igem acompanliado e dos remeiroSjí
<^ui<;á cuidou que ElRei com isto veja -;|
lAue a mottc sem rasão dar-lhe deseja.
XLVIII.
Niin o enganou de todo esta esperança
Antes lhe sucCedeo como cuidava,
Choj;a o catur, e com gràa confiança
Vai SõU»a vêr ElRei, que ja o esperava*,
K vendo-lhe ora hua, ora outra mudança,
íilue o malvado conceito nelle obrava,
Vê que o seu peito cheio de maldades
Tèe concebido grandes novidades.
Algum tanto suspenso ElRei esteve
Em o vendo, e ou por vir sem companhia,
Ou por causa que occulta á gente teve
O Sempiterno Filho de Maria,
O ódio antes tão pesado se faz leve,
A ira antes tao acesa se lhe esfria,
Mitiga-se o furor sempre indomável
Mostra-se-lhe benigno, e favorável.
178 ©BRAS DE FHAWCrSCO D AlTORADE.
Mostra-lhe gasalhado falso e incerto,
E da sua ten^ào contrario o rosto,
E diz-lhe que o chamara, porque certo
Saiba se dá Cidade estava posto
O Governador inda longe ou perto,
Porque de o ver alli terá grão gosto.
Estas c outras cousas lhe pôz diante
E logo o despedio com bom semblante.
Tímido Mareante, a quem a imiga
Fúria do grosso mar embravecido
Com naufrágio ameaça, e dá fadiga,
E em mãos da morte o tinha ja rendido,
Se acaso a furibunda ira mitiga
O tempes^uoso Austro, de perdido
Q.ue antes se estava vendo, e quási morto,
Chega contente ao desejado porto.
LU.
Tal na imaginação se me apresenta
O nobre Sousa, o qual inda que forte
Sem temor níío entrou nesta tormenta < *
Porque o esforço nâo tira O medo á morte':'^
Vendo-se em salvo delia, se contenta,
Dá mil graças á sua amiga sorte,
Q.ue de novo quizera dar-lhe a vida
Q.uando havia que a tinha mais perdida.
o PnilkííIRO CERCO DE DIV. 179
Ouvido nisto o Sousa attentarriente
Vj n'oiitras cousas desta qualidade
Foi do Governador, que delias sente
A tenção de Bandur, e a má vontade *,
1'orqtje ellas lhe descobrem claramente
Do que tinha ouvido antes a verdade, '
Vendo qne o que ellas mostrão conforme étá
Co"'o que a faiiia ja em GOa lhe dissera.
O dourado aposento o Sol deixando
Ço"'a sua costtiniada ligeireza,
Com a Auroni diante, vinha dando
Nova Itu á terrestre redondeza,
E desterrar a escura noite, quatido
Se tornou Sousa á sua fortaleza, ■ '-'"P '^''**
Mas não se abala a armada até áquéíflá lidra
Q.ue appareceo no Ceo de novo a Aurora.
K quando ella mostrou ao valle c ao mofit'^
O seu raio de prata, húmido e frio,
Amanhecia o dia no Horizonte
Km que a Igreja com rito santo e pio
Signala com cinerea Cruz a fronte
Dos que seguem de Christo o Senhorio^
E então a armada ao vento a vella solta
E lá direito ao porto a proa volta.
K neste mesmo tempo que ferindo
Vai hum prospero vento as largas vellas,
Vâo pola terra firme em vão fugindo
D^ElRei á caça as timidas gazellas.
Em quanto as náos seu curso vão seguindo
Se vai por terra ElRei também traz ellas.
Porque a caça deixou em vendo a frota
Ê segue da Cidade a mesma rota.
LVIl.
Perto ja tinha o porto desejado
A Lusitana armada, que buscava,
Q.uando chega hua fusta, em que hum criado
Vinha d** ElRei, que grande amor mostrava:
Este ao Governador traz hum recado
Em que ja da chegada o visitava
Da parte do Sultão, e lhe trazia
Parte do que caçara aquelle dia.
LVIll.
Desejo de encubrir a má vontade
Faz com que este presente o Sultão manda>
De gazellas mandou grãa quantidade
Qlue sem lhe ser tirada a pelle branda
Faltava a qualquer delias a metade
Da carne d^húa perna, e d'outra banda
Mandou muitas gallinhas, a que falta
A parte que no corpo anda mais alta.
o PRIMEIRO CERCO DE DIV. 181
LIX.
Estes abusos grandes, sempre usados, i^nO
Mas antes naturaes da Moura gente, '^'^
Em que costumão ser pro;Eçnosticados
Os desejos que dentro a alma só sente,
Forão com attençâo então olhados,
E também consultados largamente
Dos que no galeão então estavão
G.ue o vale roso Nuno acompanhavao.
Mostra o Governador alegre rosto
Ao presente, e responde, que nesta hora
Ir ver ElRei lhe lora hnm grande gosto
Mas que a indisposição lhe tolhe ir fora i^
Porém como se achar melhor disposto
A falta supprirá que teve agora.
Torna-se o Mouro logo satisfeito
A dar conta ao Sultão do que têe feito.
Não detém Cunha emtanto a nobre armada
Glue do presente o engano bem presume :• • '
E tendo perto o fim da sua jornada
O Sol, em que mostrava o usado lume,
Jjá no porto de Diu a vê ancorada
Co''as cerimonias que erão de costume.
ElRei, que vai seguindo a inchada vellay» —'f
A Cidade chegou junto com ella. " í»"^'
♦ 6
iH2 01;RA3 »K FRANCISCO d''aNDRAD«,
VXlí.
Onão, safiemio a caosa, e o ímpotli monta
Glue o grão Cunha detom, porque a ntalina
Tenção o estimulava, sem mais tento
Ao galeão ir vè-ío «letermina :
Porque com tal amor, tal cumprimcrnto
Maior obrigaíjão pôr-llie imagi»a,
Para que mais aognro e- descuidado
Visite o de que foi ja visitado.
IXIII.
Cinda o Sultão, e tee por cousa cería
Glue e»ta »ua amizade contrafeita
A toda a gente está tão eneuU»rla
Q,uc nem delia se lèe qualquer suspeita»
O fervente desejo tanto o aperta,
A tal ódio a vontade têe sujeita,
Glue não lhe deixão vAr o seu engano,
E as»i a trilada armou par^i seu dano.
JLXIV.
Malvado Rei, ao Ceo e á terra imigo-
Do Cambaico Reino única peste,
Chegado ja te vejo ao múr perigo
E a pagares os males que fizeste :
Tu mesmo ordenarás o teu cas^igo,
Porém não inda tal qual mereceste^
E no laço em que ja tantos tomaste
Tu mesmo cahirás, que mesmo o armaste.
o PttlMElR© CERCO DE I>1V. 183
Tendo o Sultão comsigo ja assentado
Q.ue por este caminho que levava
Daria fim mais prospero e apressado
A isto que unicamente desejava,
Ao nobre Manoel manda hum recado
Que a nova fortaleza governava,
Para que ao galeão vão juntamente
Vrr o Governador, que está doente.
txvi.
E-íta doença afiirma sentir tanto
Como o seu mais chegado que alli vinha»
Kecehe Sousa disto hum grande espanto
Porque a sua tenção mal advinha :
O grão Cunha avisar manda de quanto
ElRei determinado agora tinha,
E traz isto ao Sultão se vai chegando
Q.ue ja prestes para ir o está esperando.
ixvil.
Poe no Governador hua infinita
Confusão este aviso que lhe veio,
Ora a vinda d^ElRei ha por grãa dita
Ora também lhe põe hum grão receio:
Necessidade a dar-lhe morte o incita,
D^outra parte a vergolha lhe põe freio,
Porque ha que he vergonhoso ao varão forte
Ao pacifico imigo dar a morte.
184 OBBAÍ<^8<'PRAIÍCrtCO D^ANimÁDE,
Com quanto á confusão tatnsLnhtí pârlc
Tee nello, p<or fazer niada )hfe fibá, '
Vè-se a baildeira' ja, vê -se ò estandarte
No galeão, ve-se a aícafifa rica ; ' = .'
r(5e-se a aYWíída: também toda dest^attèj''
Em toda grande festa se pivblica, '
Q.UO assi o-ttlanda o grão Cnnha, porc[tíc''teja
ElRei qucasua vinda se festeja.
Muitos dos quG se então agasalhavao
N 'outras embarcações em que vierão,
Ao galeão ;dò Gunha se passavao '* ,
Nesta hora ^m qUe d' El Rei a vinda eápeVaò^i
Estes, é 08 mais qtie dentro nelle estavâo
A cópia de duzentos bem encherão,
Dos quacs erào setenta (e não m^enganò)
Do nobre o illustre sangue Lusitano.
LXX*
Com alvoroço graháe^^èodío sobejo
Se espera a vinda deste ia Isò amigo,
E vendo' twlos hum tào bótn ensejo
Para lhe darem o ultimo' castigo,
E tão geTà.1 em todos o desejo
De tirareKi do mundo hum tal imigo,
E quanto cumpre quf elle perca a ridn,
Ilavião que elle a tii.))! ja perdida.
ÒPlíí^níIllO CERCO DE DIU. 185
H' ^j)hcro j;i queria no Horizonte
< >s raios ospalhíir de prata, qtiando
N"hua pcfjiKMia fusta eis que defronte
mostra Elliei, que cstaA 3o esperando :
, ) trajo igual nqiielle que no monte
A livre caea vai s-oliicitahdò,
T)e verde pantio, e touca em rt4gtti tinta .
Nu cabeça, e hum punhal d'ouro na cinta,
A Ciente dtí f[U<? foi acompanhado
Dentro nksiíá' fusta aqu«'!le dia
São dous paí^ens, hum delles o terçado,
Outro o arco, o coldre, e as frechas lhe trazia
'Também ó nobre Sousa, que chamado
F»)i delle, leva em sua companhia,
E leva outros também treze Senhores
Huc nos seus Reinos crào os maiores.'*'' ■ ^
ixxtii.
Hum destes Langarcío se nomeava
\íi lá dos GtjZarates traz a liidui, . '
Que a jtivenil idade então passava' *• ^'f* ^
E sobre hum nobre Estado o mando "títthtti^*
Amiiiacem entre elles se chamava " -^ * ^
Outro, e dos Guzarates tamhem \inhdy'' ' ' '
í)<* <z;rão preço, valor, d^nisado peito, '
Também hum grande estado l!)o he enjeito'.
186 OBRAS DE FRANCISCO D^AKDRADE.
LXXIV.
Outro he aquelle infiel que na Latina
Terra gerado foi, para seu dano,
Glue a Santa Lei deixou, pura e divina
E seguio do Alcorão o bruto engano ^
Cuja alma miserável nào foi dina
Do summo bem, eterno e soberano i^
Cojaçofar se chama este perdido,
Creio que antes o tinheis conhecido.
LXXV.
Mostrava ElRei ama-lo grandemente
E com grandes mercês isto mostrara,
Porém esta aífeiçao e amor ardente
Q.ue com fingida cor nelle empregara
Tinha a hum seu filho, a quem tão largamente
A natureza ornou, que se acertara
N 'outra fonte também acaso ver-se
Também em flor pudera converter-se»
IXXVl.
Hum Janizaro ousado, e forte em tudo
Companheiro também do Sultão era,
A que o Latino, que o Christão estudo
Deixou, por mulher hua filha dera.
A este o Tigre do Mundo, o povo rudo
Por seu valor, por nome então puzera.
Não digo os outros, porque os nao conheço,
Mas todos são Senhorea de grão preyo.
o PRIMBIKO C£HCa DE DIV. 187
Aquellas armas s<5s agora tinhao
Q.ue comsigo na paz sempre traziao,
Porque como seu mal nào advinhão
Estas para ornamento inda qtieriao.
Q.uatro fustas traz esta d^ElÚei vinliao
Em que alguns seus criados o srguiao,
E d^outra gente algua quantidade
Q-ue sempre alvoroçou a novidade.
LXXVIII.
Por toda a armada vai atravessando
Com esta ordem que aqui vos tenho escrita,
Em toda a parte o apito o vai salvando
Respondc-lhe a sonora, aguda grita :
Mas com quanto o vai tudo festejando
A mostrar alegria nada o incita,
Glue o sollicito esprito, e grão desgosto
Nao lhe deixao mostrar alegre rosto.
IXXIX.
Chegando ao galeSo, ja apercebido
Está o Cuuha, « com boa companhia,
Ao bordo o vai tomar, © co^o devido
Gazalhado o recebe, e «ortezia.
Também no galeão foi recolhido
Q-ualquer dos que na fusta ElRei trazia,
Antes todos diante entrão agora
E todos os barretes levão fora.
188 OllKAS DE FilAKClSCa D^ANDIVADE.
Fazem la para a tolda o movimonio
De ricas alcatifas toda ornada,
No Governador todos põem o tento
Para dar fim a esta obra desejada,
Porque lhes representa o pcínsa mento
Q.ue sem falta ha de ser aqui tirada
Do mundo esta cruel alma profana,
Mas este pensamento aqui os engana.
Para a camará juntos se passarão
KlRei, e o que era dello visitado,
Hum pagem, e Animaceni o acompanharão,
K o genro do Latino rene2;ado :,
Apoz estes tamhem com elles entrarão
Langarcao, Santiago, que canJado
Atraz, de mi ja foi cora largo verso,
Q.ue até então sempre achara o Çeo diverso.
LXXXII.
Qual soe ficar aquelle em quem estende
A nocturna visão temor tão alto
(iue o esprito humano não se lhe defendo
Cheio d^hum repentino sobresalto :
Não falia o triste ja, menos entende,
De todos os sentidos fica falto,
(:S.ue co''a terrível vista da pliantasma
A lingiia, o entendimento, e tudo pasma:
o PRI>IEIRO C:^RCO DE DIU. 189
LXXXIII.
Tal o Governador, e ElRoi estava,
Porque ^Itas confusões o comhatião,
Nonlium dfilles a língua desatava
Somente amhos dos olhos se seçvwo.
E se.á.jCiíma se cre, ella aíTirmav^ '
Q-ue assi bem meia hora ambos estarião,
TorqMp t«'»>-da hum estava tão eonluso
Glue perderão das línguas o antigo uso.
Aqui vio bem ElRei quamanho engano
E quão desatinada fora esta ida.
Mas tarde o viste ja, falso tyrano,
Tarde foi a sandice cotdiecida,
Porque verás no teu o alheio dano,
Mil mortes pagarás c'hua só vida :
Aos mortos se dará justa vingança,
Aos vivos para as vidas segurança.
Mas como lium máo, que a todos sempre dana.
Se receia tarnl)em de toda banda,
Usando Elllei da lingua Persiaiia
A João de Santiago logo manda,
Q.ue por vr!r st; este seu receio o engana
Entre dissimulado na varanda
l>o galeão, e veja bem, e attonte
Se está lá dentro nella algua gente.
LXXX.VI.
Ao Governador isto nao se t>sconde
Q.ue não he desta lingua muito alheio.
Santiago obedece, e entra lá aonde
KlRei mostrava ter o mor receio.
O que lá dentro achou, e o que responde
Com tudo o que apoz isto sobreveio
Consenti-me que o cante d'aqui a hum poucôi
Porque agora estou ja de todo rouco.
CERCO DE DIU
C-%1ÍT€> ¥11.
Tt-nía-sc de dar armorie a StdUut Bavdin\
Hei de Cambaia. Cordão-sc ahjumus eottàtía
Hviuveis que acontecerão neste meio.
J_jm que vos coiiíiaes, tyrannos peitos,
Nunca fartos de sangue, nem cansados?
Se vedes que quaesquer leves defeitos
Sao ii<;orosamente castigados.
Que esperaes vós, (|ue as obras e os conceitos
Trazeis sempi-e em cruezas empregados?
K obrando quanto mal podeis, vos vejo
Nào chegardes co'os males ao desejo.
192 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRABB^
Q.uanto o máo peito ao ódio mais se entrega
Menos pode cubrir o seu intento,
Q-uanto a ertfeza o mais desassocega
Tanto mais o sentido perde, e o tento:
D''onde acontece huas vezes que lhe cega
Kste ódio de tal sorte o entendimento,
Glue o que faz para mal de seu imigo
Se lhe torna em cruel, duro castigo.
Cambaio Rei, com teu exemplo espero
Do que digo mostrar logo a verdade,
E por isso trazer outros nao quero
De que houve (com seu mal) grã a quantidade ^
l*ois tanto te cegou teu ódio fero
Q.ue o caminho que tua crueldade
Te ensinou, para mal d**outrem, mais perto
De tua morte cruel foi o mais certa.
IVi
Santiago, entendendo o grão receio
Q-ue da varanda ElRei tèe concebido,
Co''o mais dissimulado e cauto meio,
Menos dos circumstantes entendido,
Dentro nella se mette, e todo cheio
De segurança, e o medo ja perdido,
Se torna para ElRei, e lhe responde
Glue dentro nella gente não se esconde.
o PRIMEIKO CEllCO DE DIU.
193
(Quieta ElRei com isto hum pouco o esprito
Mas inda não de todo se assegura,
Porque em quanto alli está, sempre infinito
Temor sente da morte triste e dura.
E o silencio que atraz vos tenho escrito,
Com a alta confusão que nelles dura
(Como atraz também disse) bem meia hora,
Da camará se sahem todos íóra.
T<xlos da grãa mudança que fizera
ElRei no rosto, vem qual he o seu peito,
Vem que sua tenção e desejo era
Vêr-se de todo fora deste feito.
Outra vez geralmente aqui se espera
Que este geral desejo tenha effeito,
Mas foi vãa esperança, e vão desejo,
D''onde nascer hum grave damno vejo.
A causa porque então foi esta imiga
Alma infiel, do corpo companheira,
Q-Udndo o desejo, e a occasião obriga
Trazer-lhe a vida á hora derradeira.
Não espere ninguém que aqui Ih^a diga
Pois dizer-se não pode a verdadeira,
E isto ordem pareceo do Soberano
Eterno Rei, mais que descuido humano.
194 OBRAS DE FRANCISCO B^NDRADF,.
VIII.
Vftndo-se ElRei ja fora da suspeita
Q.ue a varanda ponco antes lhe mettia,
l*ara a fusta subtil logo endireita
Porque dos que desama não se fia.
Sahe Cunha até o embarcar, raas pouco acceita
Foi a ElRei neste tempo a corte/ia,
Porque em quanto o vê estar junto comsigo
Ha que sobre si lêe o ferro imigo.
Na fusta que alli têe salta ligeiro
Porque as azas do medo o favorecpm,
Salta traz elle o amigo e o companheiro
Q.UO os seus também de medo não carecem
Roga, manda, ameaça o nu Remeiro
Mas todos sem grãa força lhe obedecem,
Do temor ajudado o duro braço
Faz alargar a fusta hum grande espaço.
X.
Depois que dentro ElRei na fusta esteve
Km que de se salvar têe sd esperança,
Co'o Cunha á parte o Sousa se deteve
Q ue têe da fortaleza a governança ;
E com quanto assaz foi o espaço breve
A fusta do Sultão ja não alcança,
O qual vendo o perigo a que es<;apára
Do galeão com pressa se aíTastára.
o PIliMEIAO CERCO DE DIV. í !i J
Ap.iixonado o Sonsa, e descontente
]*«*rque a pressa d^ElRci o sollicita,
Se mette n''hum cáttir, e juntamente
l*or alcança-lo poe pressa infinita:
Comsigo no cátnr leva somente
Hum seu pagem, e Diogo de Mesqnita,
Do qual (se na memoria o tendes vivo)
Disse atraz que em Cambaia foi captivo.
Se»ue tu, Sotisa, a ElRei tao apressado
Q-ue eu do Governador hum p^uco canto,
O qual depois que á tolda foi tornado,
Entendendo bem toda a gente quanto
Cumpria da infiel vida privfido
St.T o imigo Sultão, com grande espanto
Os olhos nelle põe, e inda duvida
Se das mãos se lhe foi são e com vida.
XIII.
Elle, que da atlençao da circnmstante
Gente, está o seu conceito advinhando.
Com inquieto e colérico semblante
Lhe disse : Glue me estaes agora olhando ?
Bem vedes essas fustas que ahi diante
Estão, o galeão acompanhando,
Nellas vos embarcai, e o Rei Cambaio
Segui ligeiramente, e acompanhaio.
19G OBRAS DE FTlVNfíSCO D^ANDHADK.
XIV.
Aquelle arrebatado movimento
Do rio, lá no monte alto nascido,
ttiie para dar aos corpos mantirnenfo
Capíivo ièa os homens, o impedido,
Q-uando livre se vô do imp»^dimento
(iue até énlão o tivera n-primido,
Tão furioso nào sah(; como esta çente
Ao Cunha, e a seil desejo -obediente.
XV.
VajGTaroso ha que vhÍ O qné nao voa,
Tanto o grande desejo òs move e apressn,
i:iual pola popa s.ihe, ifjiial poia proa,
(iiial tanibom polo bordo se arremessa:
A revolta huns confunde, outros atroa,
Nào lhes deixa ter ordem a grãa prc-ssa,
Cada hum na mais cheirada fusta salta,
IVhua sobeja gente, o n^outras falta.
Com grãa pressa o Remeiro o braço estende
E vai-o para si logo ♦encolhendo,
Com grãa força as sal^!^(las ondas fende
E as vai em branca escuma revolvendo:
Com esta pressa e força então pertende
Alcançar o Sidtãoj o qual correndo
(Jom grãa presteza, ^<i vai tanto avante
Gluc vai do galeSoja mui distante.
i> PUI-MF-ltlO CF.nCO DE DIU. 197
Porém com quanto ElRei tao loDgo ir vejo,
llua fusta das nossas que o sej^uia
Ajudada da pressa e do destjo
S^e igualou com aquolle que íugia :
Cliega-lhe juntamente neste ensejo
O ligeiro cátur om que o Sousa hia
A quem na fortaleza lá obedecem,
Q-ue também ódio e pressa o favorecem.
E vendo-se ja junto a seu imigo
Na pW)a do cátur ligeiro salta,
JC d^alli, com semblante inda d^amigo
A Santiago' disse com voz alta:
Dize a ElRei que se venha ter comigo
A este cátur, nem hfija nisto falta,
Ciue o Governador manda a Sua Alteza
GLue vá d^iqui direito á fortaleza.
XIX.
Santiago responde : Eu creio, Sousa,
Q.ue deveis ter perdido o entendimento,
j*orque não pode tê-lo aquelle que ousa
Fallar a ElRei com tal atrevimento.
'A tamanho Senhor se diz tal cousa?
Ou vos falta a vos siso, ou falta tento,
Passai-vos vos cá, dai-lhe esse recado,
Glue eu mais sisudo sou, mais attentado.
Í98 OBRAS DE FRANCISCO d''aXDRADK.
E o rosto para ElRoi logo voltando
Se lhe entendeo dizer-lhe : Senhor, guar-te,
Gtue eu do que vejo estou advinhando
Glue estes são aqui vindos a matar-te.
Sousa no mesmo tempo, mais olhando
No que por fazer tinha, que na parte
Onde então posto está, delia escorrega,
E ao salgado licor o corpo entrega.
Receioso d'algíia adversa sorte
O pagem, a que a temer o amor convida,
Traz elle ao mar se lança ousado e forte
Gue o verdadeiro nmor nada duvida.
Por salvar seu Senhor dai cruel morte
Arrisca sem temor a própria vida.
Q.ue o benigno Senhor, brando, amoroso,
Faz o servo fiel, fa-lo animoso.
No Reino de Neptuno ambos entrarão
E de terem lá entrado se entristecem,
Mas com pressa maior da que levarão
Soboragua ambos juntos apparecom.
liOgo ambos no cátur juntos entrarão
Com ajuda d^alguns que os favorecem,
Q-ue n''hum o grão perigo arreceiavão,
N 'outro o grande valor, e amor louvavao.
o PRIMEIRO CTERCO DE DIU. 199
IslRei mostra sentir dôr nao pequena
De ver Sonsa no mar assi banhar-se :
K d'ylli com mãos ]ogo Ih^acena
(iue á sua fusta então queira passar-se.
Elle vendo que assi melhor se ordenai
Poder o seu intento efíeituar-se,
Obedece ao Sultão, e co''o primeiro
Aceno, lá na fusta entra ligoiro.
Ligeiramente Sousa a fusta afferra,
Q-ue de grandes empresas era amigo.
Pedr** Alvares d^Almeida lá se encerra,
Segue António Corrêa este perigo.
SaUa tambcm na fusta o que na terra
Camh)aia, ja sentio o jugo imigo.
Segue hum Lopo t.imbcm este caminho,
Q-ue por alcunhas tèe Sousa, Coutinho.
Hum Manoel, hum Pedro, e juntamente
Hum António defende a proa aguda.
Com hum Lopo, hum Diogo alli somente
Em guardar a redonda popa estuda :
Em meio desta nobre e forte gente
Fica posto o SultiLo, que a còr ja muda,
E o que da fortaleza tinha o mando
Estava então com elle praticando.
ÚCÚ
OlíRAS DE FRANTISCO IJ AXDTlATíT!.
XXVI,
KlRei, que inda que estava tão distaiito
Do galeão,' por livre não se havia,
Q.UO. era quanto os Portuguozps tee diante
Temor da cruel morte o combatia,
Volta aos seus as palavras e o semblante,
E havendo que a linguagem o cneubria
Diz, que com cruel peito e braço forte
Dêem áquelles imigos alli a morte^
XXVII.
Isto entende o Mesquita, e com grão dano
Do nobre Manoel, ve logo o eífeito,
Q-ue o genro do infiel Italiano
Sem piedade lhe passa o forte peito.
Trespassa aqnelle peito soh(»rano,
O qual inda que á morte foi sujeito,
Nunca o maior perigo pôde tanto
Q.ue lhe podesse pôr qualquer espanto.
Mesquita, em grave dôr e ira a alma envolta,
Apertando na mão a nua espada.
Ferra a ElRei por hum braço, e assi o volta
E lhe abre ao cruel sangue larga estrada :
O desmaiado Rei a lingua solta,
E ja com clara voz para os seus brada
ftii\i morte aos Christãosdèe com grã violência,
8i;n5 por si fazer nunca resistência.
o rUIMElUO CERCO Dt DIU '^Ol
O fiol Langarcam, e os que cahírao
Iwá para a popa então, tendo infiniía
Dòr por aquelle mal que a seu Rei virão,
(jLuo a terrível vin;:;ança ja os incita.
Tanto que do seu Rei a voz ouvirão
i) Coutinho salteão, e o Mesquita
Com imijço furor, com ira imniensa,
Mos em ambos acharão grãa defensa.
Este imigo furor, esta ira ardente
(tlue nliua e n^outra parte era assaz justa)
Kneheo em breve espaço, juntamente
l-)e revolta e de sangue a subtil fusta.
Ilfía e outra parte o ferro cruel sente,
A alguns só sangue, alguns a vida custa,
Mas não ha alli algum que as costas vire
Ou se derrame sangue, ou vida tire.
Neste tempo ja aquelle esprito ousado
Do valcroso Sousa, illnstre e forte,
A quem o genro cruel do renegado
Com vingativo braço dera a morte,
No mar deixando o corpo sepultado
Subira lá á Celeste, Eterna Corte,
Com cantos e prazer dos que o leva vão
Com lagrimas e dor dos que ficavão.
202 OBRAS DE FRANCISCO dVííDRADF.
O valoroso Alineida, hum grando espaço
Contra esta imiíi;a fúria embravexúda
Se defendeo com duro e forte braço
Em quanto lhe durou a força e a vida,
Até que o duro, agudo, e subtil aço
A sua fiel alma deu sabida
Para suVjir ao Eterno Senhorio,
Também no mar deixando o corpo frio,
XXXIII.
A falta destes dous, que alli morrendo
Chegarão do louvwr á mor alteza,
Nos três que se ficavão defendendo
Por excessiva dôr, mas não fraqueza,
Antes quanto o perigo lua crescendo
Tanto crescia neíles a braveza,
E ajudado da dòr o esforço antigo
Se faz sentir em dobro ao bravo imigo.
XXXIV.
Com grãa velocidade o mar cortando
Alguas fustas vinhao não distantes
Em favor dos que esta vão pelejando,
Tristes por não poderem chegar antes.
E vinhão grandemente desejando
Naquelle feito ser partecipantes,
Mas por hum grande espaço ao seu intent»
Hum tenro moço foi impedimento.
'IlIMr.lUO CETICO DE DIU.
XXXV.
•20:}
\\sfe ora aquelle pagem de qne escrito
l''ica, que as frechas e o arco a ElRei trazia,
O qual com tal snccosso, e tal esprito
As frechas nos imigos despendia,
Q-ue em breve derramou sangue infinito
Da Lusitana gente que os seguia,
0)m que nella não pôz desconfiança
Mas mór ódio, e desejo de vingança.
XXXVI.
E tao grave temor a frecha imiga
Da chusma pôz então no fraco peito,
Q.ue nenhum Capitão sabe que diga
due por falta de remo perde o feito :
Hum roga, outro ameaça, outro castiga.
Mas toda a diligencia he sem proveito,
Q-ue a chusma teme mais do moço o braço
(nlue o castigo dos seus, ou ameaço.
XXXVII.
Tanto tempo esta baixa e vil canalha
Daquelle alto temor foi combatida,
(^tuanto nesta cruel, dura batalha
Teve settas o moço, e teve vida ^
Porque o chumbo subtil, que no ar espalha
A força do arcabuz mal resistida.
Tirou ao moço a vida n'hum momento
K aos Romeiros aquelle impediuiento.
204 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
xxxvm.
Mas vejo que me estão pedindo ajuda
Os três que lá deixei d^ElRei na fusta,
Rasao Será, Senhores, que lhes acuda
GL,ue este leito também caro lhes custa :
Nenhum delles a cor do rosto muda
Fuz-lhes o perigo a força mais robusta,
Q.ual ponta, qual revez, qual d\ilto fende
Nada ás cruéis espadas se defende.
XXXIX.
Fraqueza nos imigos se nao sente.
Por defender seu Rei também trabalhão.
Também movem o ferro ousadamente.
Também jogão de ponta, fendem, talhão:
Em meio desta imiga fúria ardente
Huns e outros o sangue imigo espalhão.
Porém destes que os nossos tee defronte
Mandarão sete á praia de Aqueronte.
Entendendo os imigos que por meio
Das armas podem mal remediar-se.
De desesperação o peito cheio
Tentão novo remédio de salvar-se :
Todos supitamente, sem receio
Vão co^os três companheiros abraçar-sc.
Da multidão vencida a fortaleza
Forçado lhe he mostrar qualquer fraqueza.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 205
Apparelhado tendes grão perigo
Mas não desespereis, fortes soldados:
Salteados do copioso imigo
Os três ja assaz feridos, e cansados,
Sem perderem aquelle esforço antigo
Glue os fez no mor perigo mais ousados,
Mas faltando-lhes a força, que era humana,
Forçados vão buscar a onda Oceana.
O que tèe do tridente o poderio
Com festa os companheiros agasalha.
Voa a fama, « por todo o senhorio
Salgado, destes três a vinda espalha :
Nenhum do gosto alli fica vazio.
Por vè-los cada hum corre e trabalha.
Cada hum co^o que pode alli os festeja
Q-ue o seu Rei isto faz, e isto deseja.
Deixa o Carpathio velho o antigo assento,
Glauco, Nereo, Tritão, vão a busca-los,
\ ão também neste alegre ajuntamento í
As formosas Nereidas visita-los, '
Glue com brando e suave movimento
Trabalhão quanto podem festeja-los,
As cabeças com perlas enlaçadas
De corais, ou de conchas coroadas.
XLIV.
Este gosto geral, com triste manto
De geral dôr se cobre, e se refreia,
Porque logo dos três vêem correr tanto
Sangue, qual sahe da fonte a viva veia;
Sente disto Neptuno hum grande espanto,
Não sabe então que tema, nem que creia,
Pergunta aos três a causa, e i:ão Ufa encobrem
Mas tudo por extenso lhe descobrem.
XI.V.
Elle vendo o seu mal de qualidade
Glue cura antes que festa então pedia,
E para isto nao ter commodidade
Porque nao se usa lá de cirurgia.
Manda os seus de maior authoridade
Q-ue com elles se vão em companhia.
Para que vão segura e honradamente
Até se apresentar á sua gente.
Nao se detcm hum ponto esta marinha
Gente, que a seu Rei todos obedecem.
Nada então o caminho Ih^entrelinha
Logo sobolas ondas apparocem,
])'alli co'a despedida que convinha
Os marinhos ao fundo assento decem,
E os três na mais chegada fusta saltão
Porque ajudas para isso lhes não faltão.
o PRIMEIRO CBRCO DE DIU.
Com grande festa forao recebidos
Dos seus, que delles ja desconfia vão,
E quanto os mais haviào por perdidos
Tanto mais de os ver vivos se alegravao :
Mas vendo-os maltratados e feridos
Só por dar-lhes remédio procuravao.
Porém ni*m isto lli''era impedimento
Para continuarem seu intento.
XLVIII.
Entretanto o Sultão, deste embaraço
Ja livre, que o puzera em mãos da morte,
De novo, ora com rogo, ora ameaço,
(Cuidando assi fugir á adversa sorte)
Faz que o Remeiro estenda e encolha o braço
Mais que nunca apressado então e forte,
E lá para a Cidade as ondas fende
Q.ue sor o mais seguro porto entende.
Os Christuos de que ja disse primeiro
Q.ue á fusta de Baudur vão dando caça,
Não querendo nenhum ser derradeiro
A grãa pressa os detém e os embarafja.
E juntamente o fraco e vil Remeiro
(A ijue então com cruel morte ameaça,
iiuando tinha inda vida, o moço ousado)
Sejjue o euminho menos apressado.
208 OBRAS DE 1RANCI8CO D^I^DRADE.
Bandur, que de fugir jamais nao cessa,
Toma com isto alento, e confiança,
Q.ne o vaí;;ar dos Christaos, e sua pressa
Lhe põe de se salvar çrande esperança :
Traz isto outro embaraço se atravessa
Q.ue a victoria aos Christãos pòz em balança,
E com quanto os trabalha, e mal os trata
Não tolhe a morte a ElRei, mas lh"'a dilata.
LI.
Na conjunção que a fúria mais ardente
Naquelles bravos peitos se agasalha,
Q.uando o agudo, subtil ferro luzente
Com mor furor o imigo sangue espalha,
Três navios chegarão juntamente
A este mesmo legar desta batalha,
Q.ne este feito fizerão mais custoso
ISIas para os vencedores mais famoso.
De lá de Mangalor vem esta frota
l^equena, mas de ousada gente cheia,
Q-ue nos brutos preceitos cre devota
Q-ue dos Turcos a fé manda que creia.
Dos trcs navios hum ho galeota,
Outro fusta, o terciro ho tiiforeia.
Os navios, e a gente dellcs vinha
Trovida assaz do tudo o que convinha.
o PKIMEiUO CEncl) DK Dll . 2iX^
^ r-se aqui deSta gonte <» esforço íinti;^»>
O esprito leal, o «msado pfito,
l'orq!ie vendo 6<.'ij liei ao ierro iiiiiiío
('om grãío risco da vida estar snjcilo,
3'(ideiid() bem fugir a este perigo
l'orquc inda se não tinha a cllos respfih»,
Mais querem com seu Rei perder a vida
Q.ue podcrem-ll\''a vi\f>s vêr perdida.
]/<bte esforço leal estimulados
Vau tainanlio furor todos se accendeni,
Que em meio surgiam dos Chrislãos soldados'
K com tudo o que poilein os oíTendííHi.
•7a os duix)a fortes ossos encurvados
Com mil IVííchas subtis os ar<!S fendem,
Sabe. o redondo ferro da bombarda,
Sabe o chumbo subtil lá da espingarda.
LV.
Nada J)asla a deter a arrel)ata<]a
Fúria, dos infernaes tiros malditos,
Sente algtim damno a gente baptisada
ftue d*huns sabe sangue, dVíutros os cspritos'
Nova revolta sente a nossa arrnadn
Com nova confusão, com novos gritos.
Qne este novo end>araeo qtie llie vei<»
Lhe deu mais que fazer, iuus aão receio.
2Í0 OBRAS BS rRAlfCISCO B^A«DRAI>£»
IVX.
Cumpre-lhe menear o braço forte,
Usar mais de furor que de prudência,
Porque este novo imigo he de tal sorte
Q-ue ha mister novo esforço e resistência :
Por salvarem seu Rei da cruel morte
A vao todos buscar á competência,
E este intento tratarão de tal geito
Que esteve em condição de ter eíFeito.
IVII.
Mas o vencedor braço Lusitano
"Vencido nunca, e pouco resistido,
A este imigo mostrou que por seu dano
Então foi leal, tão atrevido:
E porque da.r «ntão morte ao tyrano
Lhe não fosse dos Turcos impedido.
Os mais delles d'*ElRei a empresa sóltão
E contra estes a fúria, e o ferro vdltão.
Aquella grossa fúria impetuosa
Com que a dura, e intratável penedia
Combatida he da inchada onda alterosa
No meio da sazão áspera e fria,
Q-uando a força cruel tempestuosa
D**Austro revolve o mar, encobre o dia.
Não chega á que os Christãos então levarão
Contra os que seu intento dilatarão.
t) PRIMEIRO CBRCO DE B£U. 211
s,ix:.
ÂfíerrSo com grãa pressa os três navios,
Movem os braços sempre vencedores,
E com quanto os acharão não vazios
D^esforço, de valor, de defensores,
Mandão comtudo ao mar os corpos frios
Daquella gente a quem altos louvores
Tirar nao pode a morte apoz a vida.
Porque sempre da fama foi vencida,
LX.
Entre esta gente, digna de memoria
Q.ue á morte por seu Rei quiz entregar-se,
Hum somente não acha a minha historia
Q;ue podesse da vida contentar-se.
Mas também os Christãos desta victoria
Algum tanto podião lamentar-se.
Porque as vidas alguns alli perderão,
Alguns as vidas não, mas sangue derão.
Traz ElRei me quero ir, porque apressado
Me foge, com ligeiro curso leve,
O qual vendo-se ja desaífrontado
Dos três que antes na sua fusta teve,
E o soccorro que então lhe era chegado
Glue as fustas que o seguião lhe deteve,
Co'a presteza que o medo lhe ensinava
Lá direito á Cidade caminhava*
âÍ2 OURAS Di: FÍIANCISCO d"aIÇDRA'DE,
E tanlo ostava a Lusitana gento
Kmbaraç.ula então iiaf{iielle feito,
K contra os tnís navios tao ardente
Scni ter a E,liÍGÍ que fo2;e algirm roapeifo,
(ine píidéra nesta hora livremente -o oúbo-
A toiicão de BaHfliir cliogar a eífeita í •■■.•
Se o Ceo, (jire alli o castigo lhe guardara, .
O ciiniinlio lho «ião embaraf^ára.
Nesta hora em que estar salvo llu; pViroce
A IClRei, por({ne a Ci.lade tetj visinh;!,
De iá da fortaleza eis qne apparece
i í um cátiir qoe cm soceorro aos Christãos yiiilia
í) forte Capitão a l^lRei conhece • =
(Este o Pantafasul d^altnnha tinha)
K vendo cora qnc pressa clle navega
Logo o nuiriílo, ardente a hum berço chega.
Fa7 O tiro infernal o eíícito antigo,
S.dic o pelouro ardente, duro e forte,
K vai tão bem guiado ao Rei imigo
(^ue a dons on tros Romeiros lhes dá a itiortc.
Aqui tens, cruel Rei, o grão castigo
í^ne te ordenou a tua amiga sorte,
K o Coo, que nao te foi amigo menos,
M.ts vir.ga a dòr dos fracos, e pequenos.
o Primeiro c£rco dé diu. âi3
A falta dos Remeiros, e a grSa pressa
Com que a maró vasava neste instante
Faz com que a leve fusta se atravessa
Glue hia ja dos Cliristàos assaz distante.
Comtudo de remar ElRei não cessa,
Porém mais torna atraz, que vai avante,
Q.UC contra a grãa corrente arrebatada
Não basta pouca gente e ja cansada.
LXVÍ.
l*'orc;ado he então que ao tnat a fusta saia
Da furça da corrente ja vencida •,
Com isto o trabalhado Rei desmaia
Porque sua esperanç^a Vè perdida :
K vendo-se apartar daquella praia
Onde esperava só salvar a vida,
K metter-se em mãos d''hua morte dura,
D'outro modo tentar quer a ventura.
LXVll.
Ousadamente ao mar logo se lança ^
Q-ue o grão perigo faz o medo ousado,
Guia-o nisto hua vãa, falsa esperança^
Porque cuidou poder salvar-^se a nado.
I>ançárão-se traz elle sem tardança
Também os de que estava acompanhado,
Q-ue nem na derradeira hora o deixarão
Os que sempre na vida o acompanharão.
214 OBRAS DE FRANCISCO S^AMDRADC.
txvni.
Co''o9 braços e co^os pés fax o caminho
Baudur lá pelas ondas atrevido,
Agora quer vencer o Rei marinho
Q-uem sempre dos terrestes foi vencido.
Dos seus hum envergonha alli o golfinho
Outro inveja ao moço faz de Abido,
Todos no mar parecem ter o assento
Na destreza, em nadar, no atrevimento.
LXIX.
Mas com tííl força então hião deixando
As aguas a Cidade, e ao mar corrião,
Gtue cm vão hiào os tristes trabalhando,
Em vao contra esta força resistiao :
Antes cada vez mais os vai chegando
Para aquelle logar d'onde fugiào,
Cheg;i-o3 cada vez mais ao mor perigo
Até que os poz em mãos de seu imigo.
LXX.
O miserável Rei, que em tanto dano
E:>tá de dous imigos posto em meio,
Glue d^hua parte a fúria do Oceano
D^espantoso temor o tinha cheio,
E d^outra o bravo imigo Lusitano
Lhe dava mais certeza que receio
D'hua morte de suas obras dina,
Tentar o imigo humano determina.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 215
IXXI.
Clioga-se o triste' I050 á mais visinha
Fusta dos Portuguezes que alli estava,
ftne ilida que por imigos seus os tinha
Mais dcllps que das ondas se fiava.
Por Capitão naquelia fusta vinha
Hum que Tristão de Paiva se chamava,
A quem o mor perigo, ou o mor medo
Nào fez, que não tivesse o rosto quedo.
El Rei para que o tomem se convida,
K levantando a voz bem clara e forte
Por remédio tomou de sua vida
O que mais certo o íoi de sua morte.
Melhor te fora, triste, ter perdida
Agora essa alta voz, que tua sorte
Por ministra guardou, e executora
Do mal que te guardava para esta hora,
Eu sou Baudur que tanto desejáveis,
Brada, vendo-se em tal necessidade,
Mas se os desventurados miseráveis
Q.ue sentem da fortuna a crueldade,
IV os mais ferinos peitos, e intratáveis
Brandura acharão sempre, e piedade,
Em vos agora, ó nobres Lusitanos,
Nào me falte esta a mi, pois sois humanos.
á^l6 OURAS DE rilATíClSCO D^AIÍDRADE.
Paiva abranda a tenção cruel robusta,
Gliie composto nao he de pedra dura,
E conhecendo El Rei lhe chega a fusta
Q-uiyá por remediar tal desventura.
Mas elle vendo quanto nelle injusta
Aquella clemência he, nao se assegura,
Gue do seu ódio antigo a consciência
Mais suspeita lhe faz a mor clemência.
LXXV.
Arroda-se da fusta com graa pressa
Q/ue da morte hum temor grande o combate,
De lá ao Capitão inda não cessa
Com instancia pedir que não o mate.
Paiva diante a fusta lhe atravessa
Dizendo : Não ha cá quem mal te trate,
Cambaio Rei, seguro podes vir-te
Glue todos cá desejão de servir-te.
LXXVI.
Sabe que os Portuguezes nos corremos
De dar morte ao que a nós vem entregar-se,
Vendo-se o pobre Rei em taes estremes
Determina do imigo coníiar-se :
Chega-se á fusta, pega d 'hum dos remos,
Mas nem isto bastou para salvar-se,
Glue não basta o que cá segura a gente
Contra o que ordena o Sceptro Omnipotente.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 217
LXXVII.'^ €>
D''hum remo n'outro Paiva vai saltando,
Chega áquelle onde vê que o Sultão pende,
Q-ue inda o está pola vida importunando
E por ventura dar-lh''a então pertende :
Dentro queria ja mettê-lo, quando
Outro mais cruel, hua chuça estende.
Mas porque sei que aqui ja muito tardo
O successo para outro Canto guardo,.
CERCO DE Dll]
€l%i^T€^ ^'lil,
Acaha-se de dar a morte ao Sultão ^ e a seus
companheiros, 'JTraz-se vivo Cojaçofar ao
Gm^ernado7' : manda-lhe que vá ipdeiar ai'
(jumas revoltas que havia na Cidade. Man-
da o Governador lançar mão poios arma-
%ens da Cidade c da Villa dos Kumes, e
polo thesouro do morto Sultão, Presenta-se-
Ihe hum Mouro de monstruosa idade ^ com
ahjumas particularidades notáveis. Faz o
Governador Rei de Cambaia a Mei^zam
Hamed. Os Senhores do lieino ajuntão
hum, poderoso exercito e vem sobre cUe.
Vfraa falta deve íer (reiítendimeiíto
(Aliem dos bens da fortuna se confia,
Porcjue este era cousa vSa pôz fundirtnento,
Este hum cego tomou por seu guia.
O que do mundo tèe conhecimento,
E dos seus bens entende a mor valia,
Tèe, quando está mais alto, mor receio
Torque vê que se serve do que he alheio.
i
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 219
O Reino, o grande Império, o grande estado
De que mais tee quem menos o merece,
Como hc bem, que a fortuna dá emprestado
Poucas vezes grão tempo permanece.
E o que do seu vê mais senhoreado,
Q-uando estar mais seguro lhe parece
Lh^o tira, ou d^agastada, ou de corrida
E ás vezes traz o bera lhe tira a vida.
III.
\*<jo que com rasao deixou escrito
O famoso Poeta, com que a terra
De Salmona, alcançou hum infinito
Louvor, com que hoje faz ao tempo guerra '.
Clue em quanto este immortal, vital espritft
Dentro neste mortal corpo se encerra .Ú>1
llaver-se por ditoso ninguém deve: '
Verdade he que por fabula se escreve.
IV.
Que se tanto a cubica o humano peito
Cega, que lhe faz pôr a confiança
Naquillo que á fortuna está sujeito
Em quem não ha constância ou segurança,
Contra toda rasao, todo direito
Lhe põe nome de bemaventurança.
Pois a não têe quem têe maior certeza
D^inconstancia nos bens que de firmeza.
De que mais te sérvio, o poderoso
Baudiir, ser-te a fortuna favorável,
K fazer-te nà vida tão ditoso,
Q.ue de teres o iim mais miserável.
Nao he este meu exnmplo fabuloso,
Nellc verá bem clara, e bem notável
Mente, quem bom quizor desenganar-sc
Gluanto deve no mundo confiar-se.
VI.
Mctter dentro na fusta procurava
O valeroso Paiva, ao Rei imigo,
Q-uando outro que na mesma fusta estava
(Porque nao sei quem era não o digo)
Kstende a chuça (como atraz contava)
Em nova ira iuflajnmado, e em ódio antigo.
Manda o ferro cruel á real fronte
Abre nella de sangue viva fonte.
1
• til.
Nao se contenta o bravo Lusitano
De ver ElRei em forma tão estranha,
Gluenelle ainda ha, que he pouco o maior dano
Em quanto o esprito o corpo lh'acompanha.
Outra vez niove o ferro deshumano.
Outra vez do sou próprio sangue o banha,
Mas nem inda com i^to se contenta
Em vão humildes ro'os ElRei tenta.
d pRtM£iao ceuco ds diu. 221
Saltão também traz este outros soldados
Invejosos de ser outro o primeiro,
De tal ódio, e tal ira acompanhados
Q.ue nenhum quer alli ser derradeiro.
Deste imijío furor estimulados
Não sei se lhe deixarão membro inteiro,
Q-ue em quanto a ahna da carne nao n^apartao
De sangue os cruéis braços não se fartao,
IX.
Baudur em fim o triste esprito rende
Q.ue por mil partes têe larga sabida,
Sobolo mar o morto corpo estende
(iue foi de tantos corpos homicida.
Nisto vem a parar o que pertende
Segurar co^is alheias sua vida,
iriue a Divina Justiça sempre ordena
Q.ue succeda ao delicto igual pena.
X.
QuejTi morre traz os bens que dá a ventura
(Vede o humano saber como sempre erra)
Pois áquelle que pôz na mor altura
Faz a mais perigosa, e cruel guerra.
Não teve hoje na terra sepultura
O que hontem foi senhor de tanta terra.
Entre os peixes ja fica sepultado
O que dos homens foi tâo venerado.
XI.
Depois que o Portuguez penetrante aço
O corpo do Sultão fez amarello,
Soboragua ficou algum espaço
Glue nem o mar queria recolhello,
Até que de Neptuno o duro braço
(Não sem dor de em tão triste estado vello)
Move o tridente, força a marinha onda,
E faz que a seu pesar em si o esconda.
XII.
Esconde o corpo emfim a onda marinha
A que a terra negou recolhimento,
E em nenhum logar acha a historia minha
Glue fosse visto mais hum só momento.
A sua alma infiel logo encaminha
Lá do velho Acheronte ao negro assento,
Onde o triste gemido, o largo pranto
Nao move o rigoroso Rhadamanto.
XIII.
Dos treze de que atraz ja deixo escrito
Que ElRei nesta jornada acompanharão,
E que com hum valor quasi infinito
l*or salva-lo da morte procurarão.
Os doze o seu fiel, ousado esprito
Com seu Rei juntamente aqui deixarão,
A alguns a sobeja agua a vida tira,
A outros o Portuguez ferro, braço, ira.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 223
Hum destes doze foi o Santiago
De que alraz ja meus versos escreverão,
Glue nesta hora também achou o pago
GLue sempre suas obras merecerão.
A este polo salgado fundo lago
Os pés e as mãos a estrada lhe fizerão,
E cortando assi o mar com grãa presteza
Se chega á Lusitana fortaleza.
Foi-lhe então contra as ondas concedida
Maior força da sua imiga sorte,
Não para lh'outorgar mais longa vida
Senão para lhe dar mais triste morte.
A força da corrente foi vencida
Só deste, quiçá sendo o menos forte,
Porque alli quiz o Ceo que fosse morto
Onde cuidava ter seguro porto.
XVI.
Vendo o triste passado o mór perigo
Pouco d^outro qualquer ja se arreceia,
E como se dos nosscjs fora amigo
Bradando-lhes que o tomem se nomeia.
Acha este aqui também o mór castigo
Onde cuida que seu mal remedeia,
E a via que tomou para valer-se
Também foi a mais certa de perder-sc.
224 OBHA3 DE FRAnCISCO D'AKDBADE.
Gtue como o Ceo, que o bem e o mal concede
Lhe mostrou natureza mais henina
Entre o povo infiel de Mafamede
Glue entre os que têe de Chri.sto a Lei Divina,
Os Christãos, a que agora favor pede,
Para o seu mainr damno mais inclina.
Os quaes tanto que ouvirão a voz alta
Gtual se alvoroça, e qual se sobresalta.
XVIII.
Gluando acaso entre a rústica manada
Da gente que no campo se aposenta,
Apparecer se vê, soberba e irada
A vibora cruel e peçonhenta.
Corre por cá, por lá sobresaltada
A gente, que de a ver se descontenta,
Buscando com que a mate, a grande pressa
Tudo o que acha diante lhe arremessa.
XIX.
Nao muito difierentes estou vendo
Os que estavao então na fortaleza,
€tue na voz e no nome conhecendo
O que tanto aborrecem, com presteza
D-hua parte para outra vão correndo
Todos em ódio acesos, e em crueza,
Jíuscando cada himi com que de cima
Lhe mostre este seu mal quanto o lastima.
i
o PRIMEIRO CERCO DE HIV. 225
XX.
Fa-los tornar com pressa a fúria imiga,
Cheios d\)dio, vazios de piedade,
tlnal lhe lança o penedo, qual a viga,
E o que nào pode mais, lança a vontade:
Pareee aqui tratar-se áspera briga
Na grande confusão, na crueldade,
K tudo em damno só daquelle triste
Gluo em vao ao mar e á terra entilo resiste.
Entre esta confusão, esta revolta,
O justo Ceo que os move, assi os desperta,
Q-ue o que mais apartado o tiro solta
Nem por isso o que quer peior acerta.
Com isto entre mil queixas sabe envolta
(Glue fM)r mil partes acha a porta aberta)
Aquella alma infiel, e com tal morte
Teve oAxUio úm a sua vária sorte.
xxn.
Não me esquece que atraz deixo contado
tlue dos que ao galeão levou comsigo
O miscro Sultão desventurado
Hum escapou só vivo a este perigo:
Foi estií o Italiano renegado,
O.U0 d\'ntre a geral morte que atra/, digo
Foi guardado, quiçá, porqu<í ao diante
O nome l*ortuguez honre e levante.
226 OBRAS DS FRAKCISCO D^AlfDRAOE.
XXIII.
Este, vendo o Sultão e a sua gente
(Como atraz disse) ao mar juntos lançar-se,
Lança-se ao mar com elles juntamente
A nado, imaginando de salvar-se.
Porém da sua sorte e da corrente
Constrangido este só foi achegar-se
A hua fusta das nossas que alli havia
Q.ue alguns de nobre sangue em si trazia.
XXIV.
Francisco era hum de Barros, cuja linha
Vem dos Paivas, e d^ahi tèe o appellido,
Em cujo forte braço se mantinha
O nome Portuguez sempre temido.
Outro hum Soutomaior, que o nome tinha
Do Santo que em Lisboa foi nascido,
Q.ue com obras também de graa memoria
Ao nome Portuguez deu nova gloria.
xxv.
Vendo o Soutomaior em mãos do Oceano
Ao Mouro, e que ja a cor do rosto muda,
E conhecendo que era o Italiano
€tue do falsu Mafoma a seita estuda,
Desejando salva-lo deste dano
Chega-liíc a fustt, e para entrar o ajuda,
Lá para onde elle andava o braço estende
O alfadigado Mouro o braço prende.
o FRIMEIKO CEUCO DE DIU. 227
Prende o Mouro com pressa aquelle braço
Km que esperava só salvar a vida,
Chegando á fusta achou outro embaraço
Com que mais perto foi de a ver perdida.
1'orque outro que alli vinha, o cruel aço
Move, e a cabeça em duas repartida
Diixa do triste Mouro, sem que vê-lo
Tossa Soutomaior, f^i i|jtifeiidê-lo.
XX\1I.
Sahe em grande abundância da uialdita
Cabeça o sangue, e foge a côr ao rosto,
Tal que o esprito vital, que nelle habita
Dá mostras de querer mudar o posto.
Isto ao Soutomaior nao sei se incita
A cólera, a alegria, ou a desgosto.
Porque o que nelle acende a fúria nova
A nobreza lh*o nega, e lh''o reprova.
Kntra porém na fusta Lusitana
Vivo Cojaçofar, mas maltratado,
E ainda que o sangue didle era cfípia mana
Ao Governador logo foi levado :
Acha nelle brandura mais que humana,
Manda-o logo curar com grão cuidado,
l*orque a clemência heróica e grandiosa
Nos imigos se faz mais gloriosa.
228 OBRAS SB FRANCISCO D^NDRADm.
XXIX.
Teve fim esta dura e cruel briga
Q.uando o Sol no Oceano descansando
Do Latmio Endimiao a branda amiga
!Na terra a sua luz hia espalhando.
Então ja pouco a pouco se mitiga
O furor Portuguez, o se faz brando,
Mas isto foi depois d'hum grave dano
Do infiel povo, e algum do Lusitano.
Oito espritos Christaos aqui passarão
Com grão louvor, da terra, ao Reino Santo,
E os que vivos o sangue derramarão
Poucos mais sobre vinte acha o meu canto.
Sào cento e cincoenta os que mandarão
Lá ao Reino da eterna queixa e pranto
As almas infiéis nesta batalha,
Contando ElRei, os nobres, e a canalha.
^ XXXI.
Os da Cidade vendo aquelle duro
Fim do seu Rei, e estrago da sua gente.
Teme em si cada hum o mal futuro
Polo que então nos seus via presente.
E não se havendo alli por bem seguro
Q-ualquer então procura alli somente
Por salvar sua vida e faculdade
Com pressa, com temor, com brevidade.
o PRIMEIRO CERCO T>E DIU. 229
XXXII.
E tal temor estou agora vendo
N«'sta gente infiel, fraca e covarde,
Q-ue o ferro Portugiiez em si temendo
JNão ha quem na Cidade mais aguarde.
Todos com pressa ás portas vão correndo
Tèe-se por mais mofino o que mais tarde,
Sahe ao campo, onde mais se assegurava
Q.UC dentro de mui grosso muro e cava.
Receio de perder a inútil vida
Tanto os feminis peitos lh''atravessa,
Q-ue não bastando a dar-lhes então sabida
As portas da Cidade em tanta pressa.
Para o muro qualquer busca subida
De lá abaixo por cordas se arremessa,
Porém nisto inda mais suspira e geme
Glue entre o imigo furor que tanto teme.
xxxiv.
Porque em tal copia ao muro se passavão
Onde de se salvar tinhão suspeita,
Q-ue muitos affogando-se alli achavão
A estrada para a morte mais direita :
E dos outros que ás portas se chegavão,
(Sendo aquelbi subida assaz estreita
Para tal multidão) forão forçados
Morrerem também muitos aftbgados.
■JòO OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRXHK.
QLiiom trabalha fugir á adversa sorte
Kste vai topar sempre o mor perigo,
Acharão entre os seus estes a morte
Fugindo á que esperavão ter do imigo.
Mas porém inda o mal fora mais forte
Lá na Cidade então, do que aqui digo,
Sc a prudência do Cunha antiga e rara
Do modo que ouvireis o não curara.
XXXVl.
Rendo o Governador logo avisado
Do que então lá passava na Cidade,
K vendo quanto cumpre ser curado
Com instancia este mal, com brevidade,
Manda que o Italiano renegado
tíL-iie d^entre a Lusitana crueldade
Vivo antes lhe trouxerão, mas ferido.
Sem detença lhe fosse alli trazido.
Nííc põe o Mouro em vir qualquet" tardança
Ao mandado do Cunha obediente,
Mas não tendo em imigos confiança
Mais vinha receioso que contente.
Bem mostra do seu rosto a grãa mudança
O que o seu duvidoso animo sente,
Porque inda nao entende se a sua ida
He para dar-lhe morte, ou dar-lhe vida.
o l»aiMKIUO CEIICO DE DIU. 1^31
xxxvm.
I\in presença porém do Cunha posto
J^lu: torna ao rosto a cor, o alento ao polto,
P<»rqne lhe vio signaes logo no rosto
De verdadeiro amor, não contrafeito.
Vendo Cunha qne estava elle disposto
Para lhe encarregar aqnelle feito,
Jjhe disse que estivesse bem seguro
Nem tenha ja temor de mal futuro.
E que a Cidade então revolta andava
Com grão temor do braço Lusitano,
Porque a gente que ha nella arreceava
Nas vidas e nos bens receber dano ^
K que disto em estremo lhe pesava,
Porque se dera a morte ao Rei tyrano
Foi porque também elle muitos mezes
Trabalhou pola dar aos Portuguezes.
XL.
Mas que quanto á Cidade, elle queria
Em grãa justiça e paz sempre mantella,
E além disto também lhe promettia
De todos seus imigos defendella ;
Polo qual então muito lhe pedia
Polo que ao bem importa delle e delia,
Q.ue com seu poder todo procurasse
Por que a Cidade então se aquietasse.
XLI.
E a rasao porque agora te encommondo
Ilnm negocio de tanta qualidade,
(Diz o Governador) lie porque entendo
Q-uanto credito lá tèes na Cidade :,
E que em os moradores delia vendo
Tua presença, e tua authoridade,
Mais valerás tu lá, pois te obedecem,
Q.ue os meus mais principaes, que nuG conhecem.
Nisto farás serviço ao poderoso
Rei Portuguez, a qiicm eu obedeço,
De quem nunca vassallo foi queixoso
Nem serviço deixou sem grande preço ^
E serás ao teu povo proveitoso
(iue agora a grandes males dá começo,
Porque não terão mais destas fugidas
Glue perda nas fazendas e nas vidas.
XLIII.
E porque vejas que em meu pensamento
Nau ha de tua fé desconfiança.
Com me dares menagem me contento
(E ficar-me de ti grãa segurança),
(c\ue sem eu nisso dar consentimento
Tu da Cidade nSo farás mudança,
Onde o credito e mando em que estiveste
Gtuero que tenhas mor do que tiveste.
o PKIMKIUO CKRCO DE DIU.
233
Contente fica assaz este maldito
\ «'Uíio para salvar-sc tào bom meio,
<^'')bra de todo o alento e esprito
De que inda então estava hum pouco alheio.
Tudo promette quanto tenho escrito
Porque tudo promette hum grão receio,
íiue quietará a Cidade sem detença
Nem se sahirá delia sem licença.
Do que promette faz ao Cunha voto
Dá-lhe a menagem delle antes pedida,
Como quando o furioso bravo Noto
No mar cria a tormenta embravecida,
Grita e trabalha o timido Piloto
Porque vô em grão perigo a náo e*a vida,
O Passageiro que este mal conhece
De temor cheio votos oflferece.
XLVI.
Dá-lhe o Governador geral seguro
Ao Mouro, de sua mào própria assignado,
Para que quando entrar aquelle muro
(lue têe de Diu o p)vo em si encerrado
O recebão lá bem, e ande seguro,
K nenhum de offendê-lo seja ousado.
Isto maisda em geral a toda a gente
Isto a cada NaçíÍ!) por si somente.
23 í OURAS DE FAJLNCISCO D^ANDRADE.
Parte Cojaçofar com grande pressa
Nem gasta muito tempo em despedir-se,
Q.ue o temor inda agora tanto o apressa
Glue lhe nao lembra então mais que partir-se.
Em chegando á Cidade logo cessa
A revolta que a gente tinha em ir-se,
E os que ja da Cidade estavão fora
Tornarão para dentro naquella hora.
XLVIII.
Isto se fez com tanta diligencia
Glue a Cidade ficou como sohia,
Sem ter quebra na sua alta opulência
Nem no usado seu trato e mercancia :
D^onde se vê com clara experiência
Q.ue ao rudo povo dá mor ousadia
Hum só de que ellcs sejão satisfei'os
Q.ue a grande multidão d'armados peitos.
XLIX.
Passada a noite, a qual a cruel guerra
Fez que fosse ao Sultão a derradeira,
Gluando de novo o cume d''alta serra ?
Recebida do Sol a luz primeira, >
Sahe o Governador e a gente em terra »
E manda logo António da Silveira,
Também manda hum l<^ernando o nobre Cunha
Glue Távora apoz Sousa têe d'alcunha.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU
Ma tida a João da Costa que em si tinha
ih segredos do Reino do Oriente,
Q-ue a hum negocio que muito lhe convinha
^ á CO "'os dous companheiros juntamente,
Diz-lhes que vuo ás casas da Rainha
Mãe do Sultão, que estava d'alii ausente,
E que entrem também lá nesse aposento
Q-ue dava ao morto Rei recolhimento.
K que tudo o que achar lá Ih^encommenda
Nestas casas, ou n "outras da Cidade,
í)u soja de dinheiro, ou de fazenda
De qualquer outra sorte ou qualidade,
Q,ue pertencer ao morto Rei, entenda,
Por tudo lance mão, tudo arrecade,
E dá-lhe juntamente por preceito
Glue dos armazéns seja o mesmo feito.
LII.
Parte-se o Secretario, companheiro
Dos dous que disse atraz de sangue nobre,
Buscão as casas todas por inteiro
Q.ue nada do que ha nellas se lh'encobre ;
Aclião nellas somente algum dinheiro
Em moedas de prata, e d^ouro, e cobre,
Q.ue os thesouros que ja alli se virão
As guerras, e o Mogor os consumirão.
i30 okuasnde Francisco i)*andradf..
Tíimbem ElRei três contos d\>uro o moio
A Judá (como atraz disso) mandara,
E o mais que tinha quando a Diu veio
Onde o Ceo para hum tal fim o guiara,
L/á no ci:mpo (qui^'á com arreceio)
3!^ntre o seu grande exercito deixara,
l^)rém nem isto, como avante digo.
Lhe tolheo vir em mãos d''hum novo imigo.
LIV.
Porem inda que os três, de prata, e d^ouro.-
Achão menos assaz do que cuidarão,
3*orque as grandes riquezas deste Mouro
(Jo"*© nome do que forão so ficarão.
De ricos armazéns hum grão thesouro
Na Cidade porém então acharão,
Tão providos de todo o necessário
tí.ue se espantão os dous, e o Secretario.
Em grande quantidade se agasalha
Artilharia alli de toda sorte,
E toda a arma que em meio da batalha
lie para defender, ou dar a morte :
Lança, espada, terçado, escudo, malha,
Arco, frecha, arcabuz, a maça forte,
O zarguncho, a zagaia, co^a bisarma,
E tiido o que o soberbo cavallo arma.
i
o l»RIiIl-lita CERCO DE DIL. 237
A(!li5o de miinl^-ões infinidade
D^artefiqio, de fogo mil maneiras,
Matérias de feda t| uai idade
Com Ima gràa cópia de madeiras.
Acliãt» d^emharcaçõfs grãa quantidade
Hãas são d"'alto bordo outras rasteiras.
Tudo foi logo posto a bom recado
Como do noijre Cunha foi mandado.
Entre esta alta abundância, (^oe aqui escrito
Tenho, a dos mantimentos nào faltava,
Porque destes hum numero infinito
Lá na Villa dos Rumes junto estava:
E por serem do Rei que antes o esprito
Hendoo em mãos da imiga fúria brava,
Arrecada-los logo os tros vierão
E depois por sobejos se venderão.
E porque estes negócios se acabassem
Em serviço do Rei a quem servia,
Glue ás alfandegas logo se entregassem
A Officiaes da sua companliia
Manda o Governador, se arrendassem
De novo alguas rendas que alli havia,
Porque como a ElRei antes rospondião
Assi agora aos Christãos responder ião.
2 i8 OailAS DK FR.VXCISCO d\\jídr.\de.
Acabado isto assi de concertar-se
Em grão proveito assaz dos Lusitanos,
Posta a Cidade em paz, sem receiar-se
De quaesquer sobresaltos, quaesqiier dano'^,
Hum Mouro veio ao Cunha apresentar-se
De tão antiga idade e longos anos,
(iue os que de novo a terra povoarão
Muito poucos nos annos o passarão.
LX.
Nesta mesma Cidade o seu assento
Tinha este então, e muito antes tivera,
Sua idade três vezes annos cento
Sobro mais trinta e cinco affirmão que era.
Humilde no saber e entendimento
U-ue na seita gentilica ja crera.
No Reino de Bengala foi nascido
E d^estatura não muito crescido.
LXI.
Esta idade tão larga e monstruosa
Q-ue quiçá crêr-se agora mal merece,
Se provou que não era fabulosa,
E por tal dentro em Diu se conhece :
Porém inda outra mor mais espantosa
Monstruosidade aqui se me oíferece,
Se acaso a natureza a têe mais rara
Em tempo que he dos annos tão avara.
o 1'HIMK!:10 CF.nCO DF. DIU. -iy
LXII.
Nenhum tempo mostrou o que esta n\inlia
Historia neste Mouro aqui apresenta,
Porque de sds dous filhos que elle titiha
Tinlia doze annos hum, outro noventa.
Bem vejo que calar isto convinha
Para o que com rigor tudo attenta,
Mas este, se não crer isto que digo,
Haja-o lá com a fama, e não comigo.
LXIII.
Affirma-se também (vou com receio
D^escrupulosas linguas maldizentes)
Olue quatro ou cinco vezes neste meio
Lhe dera a natureza novos dentes.
Elstranha cousa assaz, mas nisto creio
O que affirmão passados e presentes,
Gtue contão delle inda outra mais estranha
Cousa, com ser tão nova esta e tamanha.
LXIV.
Dizem que aquella barba que se via
O antigo rosto enlão estar-lhe ornando,
Q-uatro vezes ou cinco, se sabia
Que em branca e preta a côr fora alterando:
Sondo branca de todo, de novo hia
Pouco a pouco hua negra côr tomando,
E sendo toda negra se mudava,
E pouco a potico em branca se tornava.
240 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
Esta monstruosidade, nunca ouvida,
Esta reformação da natureza,
A este foi neste tempo concedida
A voltas d^hiia estreita alta pobreza ;
Porque possamos ver que a longa vida,
Gtue tanto a imiga carne estima e preza,
Nao serve emfim de mais que ser matéria
De dar vida a trabal!ios, e a miséria.
Diante do grão Cunha o Mouro posto
A lingua desatou logo dest''artc :
Senhor, cem annos ha que deste posto
Mudança nunca fiz para outra parte.
Sempre em todo este tempo achei bom rosto
(Como na terra podes informar-te)
Nos Reis que antes aqui senhorearão.
Sempre a passar a vida me ajudarão.
O Sultão, de que agora a furía brava
Dos teus, deixou no mar o corpo frio.
No tempo que da vida elle gozava,
E tinha desta terra o senhorio,
Cada mez hum cruzado e meio dava
A estes cansados annos, e eu confio
Gtue este bem lá no Ceo se lhe apresente
E receba lá a paga eternamente.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 241
LXVIII.
Obrigou -O a fazer isto que digo
Ver que os passados Reis isto fizerao,
Pois perdeo esta terra o seu antigo
Rei, e os fados a ti t'a concederão,
Não sejas a esta idade tu só imigo,
Dá-me o que os outros Reis sempre me derão
A tào cansada idade sempre humanos,
Valha-me nisto a posse de cem anos.
LXIX.
Vendo o Governador tao longa idade
G.ue as antigas idades quasi excede,
E apoz isso a miséria, a pouquidade
Q.ue para sustcntar-se então lhe pede
Com grande espanto assaz, graa piedade
De Ião pobre velhice, lh'o concede.
Parte-se tão contente o pobre Mouro
Como o que tèe achado hum grão thesouro,
I.XX.
Mas cumpre-rae apartar-me d^aqui cm quanto
Dentro polo sertão faço a jornada.
Porque a bua novidade volto o canto
Q-ue não vos pesará de ser cantada.
Causou em todo o Reino grande espanto
A morte do Sultão não esperada,
E em mil partes algum tempo não crida
Por immortal julgando tão má vida.
242 OURAS DB FRANCISCO d''aNDUADE.
Q-uc tao infernaes obras sempre viao
No tempo que foi vivo acompanhalo,
(iue os que mais o tratarão menos criSo
Q.ue podesse inda a morte sujeitalo.
Lá nos seus arraiaes então sentiào
A maior confusão, o mor abalo,
E graa revolta nellcs fez que houvesse
Nascida de cubiga, e d'interesse.
LXXII.
Bem me lembra que atraz tenho contado,
GLue Mirizam Hamed por ausentar-se
Do Rei Mogor, de quem era cunhado,
E ao soberbo Baudur então passar-se,
Pedido do Mogor sendo, e negado
Do Sultão, fez entre elles comcçar-se
Hua guerra cruel, brava, espantosa
Para o senhor Cambaio assaz damnosa.
Este nunca atégora se apartara
Do serviço do Rei que o rect)lhêra,
E sendo-lhc no exercito ja clara
A morte que em Diu recebera,
3*ara hum famoso feito se prepara
Q.UC. se o meio ao conirço igual tivera
Com grande louvor seu, com grão proveito
Lhe seguira á tenção conforme o efíeito.
o 1'RIMEIRO CERCO SS DIU.
Vendo este bellicoso ousado Mouro
3Iorto o natural Rei daquella terra,
Com ajuda d ""alguns, toma o thesouro
Obiie elle tinha alli junto para a guerra^
O qual seria hum couto e meio d^ouro,
Se a fama no que diz disto nao erra,
Das insiguias reaes se senhoreia
E Rei da grãa Cambaia se nomeia.
Se desojaes saber os que ajudarão
Este Mouro a tratar o que atraz digo,
Forao alguns Mogorcs, que deixarão
O seu Rei natural, Senhor antigo,
E para o de Cambaia se passarão
Q.UO lhes fora até então o mor iraigo,
Q.uando seus companheiros ja deixa vão
A terra imiga, e á sua se tornavão.
Mas Mi rizam Hamed arreceioso
Q,ue este nome de Rei, que novamente
Elle usurpara, á terra fosse odioso
Por não sor d''estrangciro Rei contente \
Salwndo bem quanto era temeroso
O nome Portugucz áquolla gente,
Amizade tratou co'*a Portugueza
Por lhe ficar mais leve aquclla cmprezíj.
2^s
244
LXXVII.
E para ser esta obra effeituada
Conforme ao que comsigo dentro estuda,
A Novanager, Villa situada
Húa légua de Diu, então se muda.
D^alli despede ao Cunha hua embaixada
Pedindo-lhe que queira dar-lhe ajuda,
Glue não poder sem ella bem entende
Chegar então ao fim do que pertende.
LXXVIII.
E se lh''a dá, e o têe por seu acceito,
E em Cambaia o faz Rei, como pedia.
Além de amigo o achar bom, e perfeito
Cincoenta mil pardaos lhe mandaria.
E vindo a cousa a ter prospero eífeito
Dar-lhe quaesquer logares promettia
Dos que ao longo do mar tinhão o posto
Polo Cunha escolhidos a seu gosto.
Foi este Embaixador bem recebido
Do nobre Cunha, e visto o que então pede,
E consultado bom foi respondido
GLue quanto vem pedir se lhe concede.
Contente o Cuniu assaz deste partido
Com palavras d'ámor logo o despede,
Dizendo : Com favor alto, c divino
Siga tou Hei hum feito delle dino.
o PRIMEIRO CERCO UE OIP.
n'6
Contente o Mouro assaz do que lho he dito
Se torna ao novo R«;i antes tyrano,
O qual co»n isto cobra hum grande esprito
Tendo o favor do hra^o Lusitano^
!C espera com louvor sen iníinito,
í^om Pirão proveito seu sem nenhum dano,
Possuir de Canibaia o sceptro autiiço
6e o Ceo a seu intento nào hc imigo.
LXXXI,
No dinheiro o Mogor tratou, verdade,
(^d)iç.i, e não largueza, aqui o estimula,
Faz Cunha logo as pazes, e amizade
E p)r Hei de Cam!)aia o intitula:
K Kiíi manda que a gente da (Cidade
(Que com medo o des>j;osto dissimula)
Lhe chame na mesquita, o qual lizera
Ao misero Sultão quando vivo era.
l-XXXIl.
Vendo-se Mirizam a hum tâo potente
Sceptro em tão poucos dias avriV>ado,
Temendo a natural Cambaia gente
A quem jugo estrangt-iro era pesado,
Conselho quiz tomar para o presente
De quem lhe deu favor para o passado,
l'ara que algum bom meio lhe mostrasse
Com que o seu novo Reino segurasse.
246 OBRAS DB FRA17CISC0 D^Airi>RAI>£.
LXXXIII.
Manda ao Cunha pedir que o que convinha
Fazer nisto, quizesse aconselhallo,
E que pois com as forças o sustinha
Co"*© conselho quizesse sustentallo.
Q-ue a gente que corasigo agora tinha
Erão dous mil Mogores de cavallo,
Gente toda escolhida, e toda prompta
Para nao duvidar qualquer affronta.
LXXXIV.
E que os grandes Senhores, que este antigo
Reino da graa Cambaia em si encerra,
Por se livrar d'estranho jugo imigo
(Se a nova que então disto têe não erra)
Hum Sobrinho do morto Rei comsigo
Assentão fazer Rei daquella terra,
Moço inda, mas então direito herdeiro
Por ser pouco antes morto o verdadeiro.
Não lhe tarda o conselho grande espaço,
Dá-lh'o Cunha, ao seu grão saber devido,
Q,ue entre esta confusão, este embaraço
Em que o imigo ja têe quasi vencido.
Salteie com armado, forte braço
O Reino mal conforme, e mal unido,
GL/Ue com sua presença deste geito
De seus conselhos impedirá o efteito»
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 247
LXXXVI.
E que tomando-os inda desmembrados
Grão perigo, e diffieuldade atalha,
Porque estando assi todos espalhados
Pôde s6 co''os que tèe dar-lhes batalha :
E além disto alguns povos alterados
Vendo-se sem Rei inda que lhes valha,
Desejosos quiçá de novidade
Folgarão d"'acceitar sua amizade.
LXXXVII.
E que para ter muitos por amigos
Basta ser hum só delle satisfeito,
Mas que polo contrario mil perigos
Achará se dilata disto o effeito,
Porque achará então juntos seus imigos
Com exercito unido e Rei eleito,
E que por si não basta elle somente
Para desbaratar unida gente.
LXXXVIII,
Approva o novo Rei por proveitoso
O conselho que o Cunha lhe mandara,
E fora nesta empresa assaz ditoso
Se assi como o approvou o executara :
Mas a vida passou alli ocioso
Sem tratar do que então bem começara,
Com que a fortuna então fugir lhe obriga
Q-ue sempre do ócio inerte foi imiga.
lH8 ObKAS DE rHAKCISCO D^ANDRADB.
LXXXIX.
Nesto tf^mpo os Senhores mais potentes
Qluc o sceptro de Cambaia sejihoroia,
Klegem Rei o miTço, assaz contentes
l'or iiao vir o seu Reino a gente uHieia :
Ficarão três com elle ]7or Rf^gentes
Dos quaes Madie Maluco hum se nomeia,
E dos outros (se ínal não sou lenil»r;ído)
Hum Driacam, outro be Alucam chamada.
D('pois quo estes Senhores ordenarão
As cousas de Cambaia desta sorte,
K alguns novos tumultos quietarão
Que causou (io Sultão a cruel morte,
T)o Rei Mogor então nada tratarão
Temendo o Lusitano imigo forte,
Com cuja anthoridade elle, e vali:<
De Rei o nome agora possuía.
xci.
Mas vendo que esta gente poderosa
Não pode alli fazer longa tardança,
Porque a fúria do inverno tormentosa
A forçará a fazer d'alH mudaiíça :
Sendo esta a seu intento só damnosa,
Tois só nella o Mogor tee confiança,
Di latão delle o eífeito até que a proa
(J Cunha lolte lá direito a Goa.
o PRIMEIRO CSnCO DE DIU. 249
XCIl.
O qual no fim do mez quo o Sol fecolhe
E no animal de Frixo lhe dá entrada,
Solta a vella, e do fundo o ferro colhe
K para Goa corta a onda salj^ada : i ,
E para Capitão da terra escolhe :iP
Da animosa gente illustre e honrada -"
GLue comsigo trouxera companheira
O valeroso António da Silveira.
xcni.
Nao se descuida a gente de Cambaia
Jjívro dè quem lhe punha hum grande freioj
Mas vendo o Cunha ausente desta praia
De nenhua outra cousa tèe receio.
Cuida que o Rei estranho ja desmaia
l*ois que ja hum tal favor nao têe no meio.
Ja toma ousada o ferro, e com grãa gloria
E sem damno, alcançar cuida a victoria.
xciv.
Pouco traz isto os três que governavao
Juntamente co''o moço aquella terra,
Vendo chegado o tempo em que esperavao/i
Descubrir o que seu csprito encerra, .''!
Com tanta pressa o exercito ajuntavao
Para darem effeito áquella guerra,
Q.ue dez mil de cavallo juntos tinhao
E quinze mil dos outros que a pé vinhao.
xcv.
HiSo por Capitão e Regedores
Desta gente que agora se fizera,
Os dous daquelles três grandes Senhores
Hum Alucam, Madie Maluco outro era,
€tue dissera aqui ser Governadores
Se mil vezes atraz o nao dissera.
Os quaes com hum poder tal e tamanho
Vão logo demandar o Rei estranho.
xcvi.
Desejo de salvar a liberdade
Gtue em mãos dVstranho Rei hão por perdícfji,
Lhes dá no caminhar grãa brevidade
Sem haver então cousa que lh'o impida.
Sabendo o Rei Mogor disto a verdade
De sua salvação assaz duvida.
Mas com quanto era grande este perigo
Não se deixou cercar d''hum tal imigo,
xcvii.
Salta a cavallo, e para a guerra incita
Com grande esforço assaz, e atrevimento
A gente que ja atraz vos tenho escrita,
E toda quer seguir o seu intento.
Deixa o logar nas costas em que habita
E logo ao som do beliico instrumento
O largo e desctiborto campo pisa
Despregando nos ar('?> sua divisa.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 251
XCVIII.
GLualquer dellcs para o outro cntâo caminha
E antes de longo espaço se toparão,
Mas como enlao ja a noite o logar tinha
Glue os claros raios pouco antes deixarão,
Tempo que a dar batalha mal convinha
Para o seguinte dia a dilatarão,
E eu por não me deter aqui ja tanto
A dilato também para outro Canto.
o PUIIICIRO
CERCO DE DIU.
CAI^TO fiX.
Dá-se a batalha entre os Mogores e os Cam-
baios. O p)'imeiro esquadrão dos Mogores
passa em salvo, o segundo foge para a Villa
dos Rumes. He seguido dos Cambaios , e se
perde a maior parte delles : os que escapa'-
rão se salvão na Villa. Conta-se hum, estru"
nho caso de hum Mouro, e de hua Moura*
O Governador vem, a Diu^ fortefica afor^
iakza, e se torna a invernar a Goa.
D.
'estruidoía foi d'altos conceitos
Sempre a deliciosa ociosidade,
Por esta se perderão grandes feitos
Glue merecerão ter perpetuidade :
Esta abate os mais duros fortes peitos,
Amolece a robusta mocidade,
Abre a porta a damnados exercicios,
Semeia n^alhia enormes, torpes vicios.
o PRlMBino CERCO DK DlU. 253
II.
Favor ao ocioso nao concede
Fortuna, nem o nega ao diligente^
Porque sem rasão a outrem favor pede
O que para si mesmo he negligente.
Se acaso a diligencia mal succede
Ao menos o que a usou fica contente^
E a sua adversidade bem desculpa
Com ver que da fortuna he toda a culpa.
iit.
Mirizam com que pode desculpar-se
De perder a Cambaica opulência?
Pois no Reino pudera segura r-se \
Se quizera pôr nisso diligencia.
De si somente deve lamentar-se
De sua ociosidade e negligencia,
Clue a fortuna a ninguém leva forçado
A grãa prosperidade, ao grande estado.
iv.
Passada aquella noite que so dava
A batalha cruel impedimento,
E saudosa a Aurora ja deixava
Do charo esposo seu o almo aposento^
Glualquer dos Capitães se preparava
Para o assalto cruel sanguinolento.
Põe em ordem a gente, a qual trabalha
Com rasões esforçar para a batalha.
'2'6i OBBA5 DE FRANCISCO D^AlíDRADi:.
A GJt^nte natural tlaquella terra
Q.U(« está na multidão mui confiada,
Tendo ja por vencida aqiiella guerra
E a gente imiga por desbaratada,
Toda n"*}!*.]!!! esquadrão junta se cerra
(^ue tão poucos iinigos têo em nada,
O holdado co''a mesma confiança
Deseja menear a espada e a lança.
i) Mogor, que SiC vê posto no meio
D^hum perigo onde a morte lie conhecida,
Agora lie mor que nunca o seu receio
Que passar por tal cópia assaz duvida:
Mas tendo o esprilo forte, e dMionra cheio,
Vendo que no seu braço está sua vida,
1'osta em dous esquadrões a sua gente
Q.uer vencer ou morrer honradamente.
líum tomou para si, no qual havia
Mil e duzentos homens de cavallo,
O outro em que setecentos haveria
Deu a hum seu, cujo nome agora callo,
3*orque nao sei quem he, mas de quem fia
Mirizam que bem possa governallo,
K antes d''entrar na bellica revolta
Perante os seus desta arte a lingiia solta :
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 255
VIII.
O tempo, a conjunção, e esses armados
Iinigos que alli vedes esperar-vos,
!Me pediao que aqui, fortes soldados,
Tempo e palavras gaste em animar-vos ^
Nem forão sem rasao ambos gastados
Mas em vez d'*animar temo anojar-vos,
I*orque quem com rasões o forte acende
Com as mesmas rasões o anoja e oífende.
IX.
Sríupre em qualquer de vós achei hum peito
Atrevido, leal, forte, animoso.
Com que nao duvidastes nenhum feito
Por mais grave que ft)sse e duvidoso,
Por onde sei que não vos será acceito,
Antes qualquer de vós ficar qiíeixoso
13e mim deve, se o vosso forte esprito
A mostrar fortaleza agora incito.
X.
Assi que tratar disto ja não quero
( Fois estou vendo em vós que me he escusado)
Porque vós não cuideis que desespero,
Ou sou menos do que era confiado
Do vosso heróico esprito, ousado e fero,
De todos domador, nunca domado,
E também porque sei que aos grandes feitos
Vos animao assaz os vossos peitos.
6o)6 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE,
Mas porque hajaes por vossa ja a vietoria
Som menear espada ou vestir malha,
Q.uero agora trazer-vos á memoria
Q.ue esta he aquella fraca e vil canalha
De que houvestes despojos mais que gloria
Tois nunca se atreveo dar-vos batalha,
E a quem sem sangue vosso, e com grão gosto
Sempre vistes as costas, nunca o rosto.
xir.
Esta he a mesma gente de Cambaia
Hoje não sei porque tão atrevida,
(lue tantas vezes ja na sua praia
T)o vosso nome s(j ficou Vencida :
E se ouvindo o Mogor nome desmaia
Q.ue fará vendo-se hoje combatida
Daquella rara força dos Mogores
Glue forao só co"*o nome vencedores,
XIII.
Vencida esta batalha, como eu fio,
Íj tenho mais certeza que esperança.
Iremos ao Ilio Indo, onde confio
Q.ue nos dará a fortuna grãa bonança:
Porque eu ja conquistar o senhorio
De Cambaia não quero, nem liança
Co'os Portuguezes ter, porque a vontade
Perdi de ter com elloí nini/.adc.
o PRIMEIRO CERCO DE BIV, 257
E nao vos represente o pensamento
Neste cainii)ho sermos impedidos,
Porque este glorioso vencimento
Vos fará em toda a terra tao temido».
Que passareis sem ter impedimento
E de todos sereis bem reeebidus,
Apesar do seu ódio novo e antigo,
Que o medo faz propicio o mór imigo*
XV.
E sendo onde vos digo ja arribados
Passaremos a vida descansada
Até Deos melhorar nossos estados,
bem poder nunca alli faltar-iios nada ij
l*orque de meus amigos c alliados
Toda aquella terra lie senhoreada,
E o mesmo Rei que manda aquella gente
Alóm d^amigo, me he muito parente.
xv-i.
Mas grâa vergonha he vermos qtie o Cambaio
Chegar a tanto bem hoje nos tolhe.
Km quem costumaes pôr tanto desmaio
Que de ouvir nomear-vos só se encolhe.
Deste atrevimento hoje castigaio
E j agora o segui que ja se acolhe,
1'ois que sempre foi seu, e vosso estillo
Elle fuirir de vós, o vós í^eguillo.
XVII.
Apoz estas palavras que este Mouro
Com animo e efficacia tinha dito,
Abre com graa largueza o seu thesouro
Q,ue houvera do Sultão, quasi infinito :
Reparte poios setís grãa somma d^ouro
0.ue cm todos ajuntou hum novo esprito,
Porque isto têc nos homens tanta força
Glue faz invicto o forte, o fraco esforça.
XVIII.
Nesta hora estando d^hua e d^outra parte
Para a batalha tudo apparelhado,
Vendo o Mogor que o imigo não se parte
Mas que n'hum esquadrão fica cerrado,
Faz soar o anafil, larga o estandarte
Então ja de romper determinado,
A gente faz que a grita ao Ceo se iguale
Retumba o bosque, o prado, o monte, o vale.
XXX.
Posto então Mirizam na dianteira
Reluzindo-lhe em ferro o corpo e a testa,
Pedindo que cada hum segui-lo queira
Chega ao peito o escudo, a lança em esta:
E mostrando ja o Sol a luz primeira
Favorável a alguns, a alguns funesta,
Co''os seus, a quem mercês novas promette
Com grãa fúria os imigos accomette.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 259
Aquella ardente machina batida
Dos Ciclopas lia fragoa de Vulcano,
Com gràa força iia terra despedida
Lá do Celeste Assento Soberano,
De força humana nunca resistida
Antes traz onde chega o ultimo dano,
Nada a detém de quanto acha diante
O mármore, o aço, a rocha, o diamante
XXI.
Nao se vio penetrar tao facilmente
O copado pinheiro, a longa faia.
Como o forte Mogor, co'a sua gente
Penetrou o esquadrão dos de Cambaia :
Parte-sí» logo em dous, e livremente
Larga estrada lhe dá por onde saia.
Passa a gente animosa em breve espaço
Polo caminho feito cora *eu braço.
XXII.
Signal deixa do seu esprito forte
E o leva em si da imiga covardia
Mirizam, porque a muitos deu a morte,
Com perder três da sua companhia.
E se elle nao faltara á sua sorte
E ao seu mesmo esprito e valentia,
Q.«ando em ser Rei da terra pòz a proa
De Cambaia alcançara a alta coroa.
2G0 OBUAS DE FRANCISCO D^ANDBADE.
O segundo esquadrão vendo mettido
Seu Senhor entre tanta gente imiga,
Sabendo quanto nella têo crescido
Cí)^a nova occasiao a fúria antiga ;
Havendo-o ja de todo por perdido,
Tanto o feroz esprito se mitiga,
De que antes cada hum estava cheio,
€lue se lhe converteo em arreceio.
Deu nesta hora também grão crescimento
A este alto seu temor, desesperarem
De chegar ao Rio Indo a salvamento.
Onde csperavao só de se salvarem.
Juntando este ao primeiro pensamento
Sem outra obrigação mais respeitarem,
As costas com grãa pressa dão ao imigo
Tendo neste remédio o mor perigo.
XXV.
Q.nando ir traz seu Senhor todos deverão,
Todos com graa fraqueza o dcsanipárão,
Mas se fizerão mal a si o fizerão
E de seu erro a pena logo acharão.
Com graa pressa ao imigo as costas derão
K direitos á Villa encaminharão
Que dos Kumcs inda hoje tèe o nome,
Nenhum entre elles ha que a espada tome,
o PR1M£XRQ CERCO DE DIV. átf 1
Km vao o Capitão sua, e traballia,
Porque todos ao medo oljedecião \
Polo campo o Mogor hoje so espalha
Fugindo aos que ja delle antes íu<
Hoje o eheji;ào á morte o arnez e a malha
írkue antes da mesma morto o tlí'rendião,
Hí)je se íiiz Mogor o que he Cambaio
K em quem o desmaiava põe desmaio.
ao
Vendo a gente Cambaia tal fraqueza
Na que eo''o nome foi vietoriosa,
Agora cobra esprito e fortaleza
O fraco imigo a faz ser animosa.
A» rédeas ao» eavallos e á crueza
Solta contra os que fogem furiosa,
Tira daquelles corpos os espritos
4Auc ja dos seus tirarão infinitos.
XXVIII.
Os míseros Mogores perseguidos
Do ferro vingador, da fúria acesa
DMiuns imigos cruéis, en)bravecidos,
Contra quem não vai rogo, nem defesa,
Ksperando de serem soccor ridos
Da vencedora for<j*a Portuguesa,
l*ara a \ illa ligeiros encauiinhão
Por<juc então do temor as aisas liahãu.
262 OBllAft D£ FRANCISCO D^ANDRADE.
XXIX,
Nem aquelle que solto e despojado
Vencer no leve pario o outro pertende,
Nem o falcão nos ares levantado
G-uando aílerrar a presa a pruma estende,
Nem a setta que sahe lá do encurvado
Arco, e com subtil fúria os ares fende,
Tomara hoje a esta gente a dianteira
Menos do que lhe cumpre indo ligeira.
XXX.
Porque aquella cruel Cambaia gente
Forte por não sentir a imiga lança,
Porque do mal passado, e do presente
Podesse hoje tomar qualquer vingança.
Salta traz o Mogor ligeiramente
A nenhum deixa vida dos que alcança,
E que alcance a quem foge bem o creio
Q.ue ódio azas dá lambem como o receio.
Hum só ponto nao cessa, ou se mitiga
Ksta fúria cruel embravecida.
Com que aquella estrangeira gente imiga
Tanto sangue perdoo, e tanta vida.
Até que appareceo aquella antiga
Villa, que hoje dos Rumes se appollida,
Punjue no soíi primeiro fundanunlo
Aos Rumes dava só recolhimento.
o PKIMU,iKO CEltOO DE niU. 2G3
Mas lao longo camiiílso, e tHo distante
Do li);j;ar da batalha á VilUi havia,
(Aua para dar a morte foi bastante
A inór parte da gonte qno fu'^ia.
N(!m cossára aqui a rnort»^, so diante
Nào acliára de grossa artilharia
O cruel vencedor, a fúria brava,
(-lue da Villa os vencidos ajudava.
O esfor(;ado JoSo, cujo appellido
Era Mendonça, e a Villa tinha em guarda,
Vendo vir o iMo<;or tao perseguido
Q.ue a morte corta tèe í-e o favor tarda,
Faz que co*o acostuniado seu ruido
Saia o pelouro ardente da bombarda,
K vá encontrar a genle de Cambaia
Com que além de parar teme e desmaia.
xxxiv.
Torna esta gente atraz com tanta pressa
Quanta para diante antes levara,
Q.íie quieá tanto o medo agora a apres^ja
GLuanto foi o ódio que antes a apressara.
O Mogor de fugir porém nao cessa
O muro s<5 o dotem, alli só pára,
Porém inda nao se ha por bem segure»
Em quanto se nao \ê dentro do muro.
264 OBRAS BB rRANCiSCO D^AMDRADB.
XXXV.
Buscao para entrar hua e outra maneira^
A alguns não foi em vão este conceito,
dual entra pola es^treita bombardeira
Q-ual por outro caminho mais estreito ^
Mas porque sem mandado do Silveira
Não podia esta entrada haver eíFeito,
3Não permittem que mais algum entrassí&
Até que o Capitão o não mandasse.
XXXYI.
Vendo esta porta os tristes ja cerrada
De novo hum grão temor os atormenta,
Mas qualquer para dentro abrir a entrada
Por meio do interesse logo tenta :
Dá quanto traz, que não lhe fica nada
A quem dentro o salvar desta tormenta,
Mas em balde esta via tenta agora,
E algum dá quanto têe, e fica fora.
xxxvn.
Mas se me ouvis vereis o raro e forte
Poder do amor, que tudo desbarata:
Entre estes a que a branda amiga sorte
Com tanto risco seu hoje arrebata
Das mãos da rigorosa cruel morte
Havia alguns que o no conjugal ata,
E as mulheres comsigo então trazião
Como nas guerras sempre estes: fazião»
o PRIMEIRO CERCO TiV. DIU. 265
XXXVUI.
Hum que com a companheira lao unula
A alma tinha, e hum amor tão ncUa posto,
Q,ue delia só pendia sua vida,
Seu descanso, seu bem, todo seu gosto,
Vendo aquella purpúrea côr perdida
Q-ue antes acompanhava o bello rosto,
Agora se enternece, agora se ira.
Teme, desfaz-se em vão, arde e suspira.
XXXIX.
De novo olha, de amor e temor cheio
Aquelles olhos antes vivos raios,
E como de os salvar não ve então meio
Lhe causão não hum só, mas mil desmaios.
Agora tèe da morto mór receio
Q.UO entre os mais duros golpes dosCambaioi,
Porque menos mortal o imigo adiava
Q.ue o perigo de quem vida lhe dava.
A bellissima Moura, que a vontade
Têe também ao marido tão sujeita,
Q.ue nem vida, nem gosto, ou liberdade
Sem elle lhe podia ser acceita.
Menos sente em tão fresca e tenra idade,
K tal que o mesmo amor se lhe sujeita,
D^^arrcceios de morte vêr-se cheia
tí-ue o mal que ao charo esposo então receia.
Dí)6 OEUAS DE FKAT-CISCO D AXDllADK.
XLI.
Os olhos nollo poe tao brandamente
duo rompera a intratável penedia,
Vj janto ao amor antigo, o mal presente
Instilar vivas perlas lhe fazia.
O namorado Mouro, a que hum ardente
Fogo n^alma de novo esta agua cria,
Nao sabe ja que faca, nem se entende,
Pois o que mata o fogo nelle o acende.
E maldizendo emíim o fado imigo
O-uer tentar o remédio derradeiro,
Cliega-se ao muro, em parte onde hum postij
A})ro alguas entradas por dinheiro :
Sente então nao trazer muito comsigo
Com que mais acender possa o porteiro,
Oiie quanto o mundo têe mciiDS o inflama
Clue hua lagrima só da que tanto ama.
Víderoso e esforçado Lusitano
(Diz contra o que o postigo a cargo tinha)
Km cuja mão está o bem ou dano
Meu, e da triste companheira minha,
Se acaso aquella parte têes de humano
Que sempre ao grande esprito anda visinha,
Mostrares piedade não duvido
A quem se o tu não s:ílvas ]\e perdido
o PRurviRO cF.iico DE DIU. Hc'!
XMV.
Usa tu comigo noje de b rand «ira,
liasta sor-me a fortuna iiniga e furto,
Sp(|ikt porque esta grande formosura
Autc ti nào receba cruel morto.
K tudo o. que entre tanta d«'sventura
Mh consentio salvar a adversa sorte
Te dou, que mais riquo/.a eu não procuro
Q.ue vêr-iue com meu bem posto em seguro.
O Portuguez, que nao era composto
De jaspe, nei;i estava em ódio aceso,
Knlernecido assaz d<i bello rosto
De que o triste Mogor via tào preso,
Diz que o8 mettêra dentro com grào gosto
IVl.is que do Capitão lhe era defeso,
Hue o que só fazer pode he que ella entrasse
Cum lauto que de lóra elle licasse,
XLVI.
Acceita o INÍouro a entrada só da esposa
Tor ella ao Portiíguez mil gra^-as rende,
Ja sua perdieão lia por ditosa
Pois seu amor da morte ella defende.
E inda que a larga ausência, e trabalhosa
O amor e a saudade mais lhe acende.
Morrer por dar-lhe a vida assaz lhe paga
T(xlo o mal que causa a nova chaga.
'2t]H OURAS DE FRANCISCO d'' ANDRADE.
XtVlI.
ílesponcle que o 'paftido elle aceeitava
E que de ficar fora he satisfeito,
Porque salvando-se ella, elle salvava
A melhor vida, e o gosto mais perfeito.
E porque hum grão temor o estimuhiva
Q-ui?! que esta cutrada logo houvesse eífiito,
(^hcga-se á porta, e s<5lta a sua estrellu
Tirà-se atraz co\»s olhos postos nella.
XLVIII.
Co^os olhos postos nrlla atraz se tira
O triste amante, cheio de saudade,
Eui cada passo mais ama e suspira,
Os olhos lá se vSo traz a vontade.
A Moura, a quem o amor nâo consentira
<Aue d\)nde tinha entregue a liberdade
Os olhos apartasse hum .s<5 momento,
Í3em vio do seu amor o apartamento.
XLIX.
K vendo que ficando elle de fora
Por salva-la a morrer se offcrecia,
Nao quer que impiedade a vença agora
Q.uem agora em amor a não vencia :
Torna atraz com graa pressa naquella hora
(riiic para a recolher se apercebia
O Portuguez, porque ha por bem mais raro
Na morte acompanhar o esposo charo.
o I'U1MEIU0 CERCO DE HIV. '2G9
Qufi cousa nao fará ja o poderoso
Amor, por mais que soja alta e sublime,
Pois que n'hnm feminil peito medroso
Tal dcspreso da morte agora imprimo,
(vhegada a hella amante ao charo esposo
Não sente cousa ja que alli a lastime
Sonào temer que a morte agora a trate
Tão mal que a deixe viva, e lh''o arrebato.
II.
E porque ambos os leve juntamente
A morte que estar perto lhe parece,
Ou não haja cousa alli que delle a ausente,
Os braços a que a neve alva obedece
Lhe lança tao unida e estreitamente
Gluanto a verde era o antigo ulmeiro tece,
Onde de tanta gloria fica cheia
Glue a morte mais deseja que arreceia.
t.11.
Em meio deste grão contentamento
duo d'amoroso humor lhe banha o rosto,
Solta a suave voz, o brando accento
GLuc d''amor e de queixa vai composto :
Amado esposo meu, em quem sustento
A vida, a liberdade, a gloria, o gosto,
(Lhe diz) e sem quem tenho por perdida
A floria, a libíTdade, o gosto, a vida.
'270 OUttAÔ DK rUA^CISCO D*ANDKADE.
L|ir.
(iiiao mal te merecia o que te eu quovo
Dar-me a voltas da vida hum mal tao forte,
Glue tanto para mim fora mais fero
Gluanto me dilatara mais a morte.
Se de viver sem ti ja desespero,
Sem ti que me poderá dar a sorte
Senão morte cruel, áspera e grave,
Q.ue comtigo terei branda e suave,
I.1V.
Como viver sem ti, meu bem, pudera
Gluem de ti vive so, de ti respira?
Q.uem salvação em ti, e vida espera,
Sem ti bem podes ver o que sentira.
Por mais perdida então eu me tivera
Gt.uando em salvo sem ti posta me vira,
De peior morte ent.ào fora captiva
GLuando, meu bem, sem ti me achara viva.
Bem vejo que amor deve desculparte,
Q.UC em ti foi certo amor, a mi imigo,
Mas se queres salvar-me em toda a parte
Fora de ti me pões no mor perigo.
Não consintas que mais de ti me aparte
Deixa-me ter a morte aqui comtigo.
Não queiras, dilatando-mo hua agora,
€tue outras mil mais cruéis sinta cada hora.
o PRiaiETUn CEKCO DE BIV. 271
í) frio caramello, a branca neve
Não se desfaz assi ao Sol ardente,
Nem a branda matéria que em si teve
D^ahíílha o fructo ja doce e excellentCj
Se desfaz tanto a qualquer cbamnia leve
Çluc tèe na pederneira sua semente,
Quanto o Mouro, a suave voz ouvindo
Sente-se pouco a pouco ir consumindo.
I,VII.
Menos arde o Vesúvio que o seu peito,
Menos têe que os seus olhos agua o Tejo,
Porém em fogo e em agua assi desfeito
Não torna atraz, mas cresce o seu desejo •,
Vt^-se agora de novo mais sujeito
Aquelle seu antigo amor sobejo,
Porque o que em sua esposa agora entende
O que lhe sempre teve mais acende.
LVIII.
D'amor e de arreceio combatido
O triste não se entende, ou determina,
Não porque sinta então vêr-se perdido,
Mas do Sí.'u bem temendo a mor mina :
O que com tanto amor lhe tee pedido
A fazor-lhe a vontade o movo e inclina,
O receio de a ver á morte entregue
Por outra parte o move a que lh''a negue.
Í72 OBRiS DE FRANCISCO 1>''aM)R\T)E
LIX.
Com a alma inda confusa e duvidosa
Dest^arte, ontre suspiros, a voz lança :
P«;díra-te eu perdão, amada esposa,
Antes hum só meu bem n''liua esperança,
Sc a força d'amor grande e poderosa
A quem nada resiste aonde alcança,
Agora a te anojar nSo me forçara
GL-ue mal sem esta força eu te anojara.
Nâo cuideis, amor meu, que menos forte
Me foi o teu cruel apartamento,
Q.ue se me vira em mãos da cruel morte
0.ue esperando aqui estou cada momento:
Mas porque em meio desta adversa sorte
Alcançasse este só contentamento
De vêr que por salvar-te me perdia,
O mal de tua ausência bem soffria.
txi.
Amor neste meu erro foi culpado
Se o que nasce d'amor erro se chama,
Porém eu a este amor sou tao atado
Q.ue o desejo d'errar-te inda mo inflama i^
Porque vcr-te em tão triste e imigo estado
Mal o pode soffrer quem tanto te ama,
A custa nâo só d'hua, mas mil vidas,
Porque todas por ti mo bem perdidas.
o PRIMEIRO CEIICO DK DIV,
Por psso mesmo amor que me mostraste
l"i .içora te obrÍ£;ou a vir buscar-mo,
K polo qiie til em mi sempre enxergaste
Te po(,'o que isto não qn eiras negar-me :
Q-ue pois na vida os males me abrandaste
Não queiras mais na morte atormentar-me,
Basta ser-mo a fortuna imiga e dura
Não ajudes tu minha desventura.
LXiir.
Eu sempre para ti só quiz a vida,
í) que desojei sempre tinha agora,
Mas n^hum grave tormento convortid*
V<!Jo esta gloria estando tu de fora :
Nuo queiras que por ti veja eu perdida
A vida, o bem, c o gosto só n^hChora,
Foge, foge, amor meu, do mal presente
Porque vivendo tu, moura eu contente.
I.XIV.
Em quanto estas palavras solta o triste
E sollicito amante, desejando
Dar vida ao seu amor, de novo insiste,
E ao postigo outra vez se vai chegando :
Ella que ao seu amor menos resiste
Q-uanto mais amor nelle está enxergando,
Das suas rasões mesmas contra elle usa
E com cilas d^entrar ent.no se escusa.
27 í- OURAS DK VKANCISCO D^ANDUAUI-.
IX V.
Forçado d 'hum amor sincero o puro
Esperando qualquer a morte estava,
Torque a Moura nào qner ter o seguro
Q-stG a quem he sua vida se negava :
iciuando se abre hua porta que uo muro
Livre entrada aos Mogores todos dava,
i*orque o Silveira vendo o que he passado
Q.ue os recolhessem ja tinha mandado.
LXVÍ.
Salteia acaso o lobo carniceiro
Das ovelhas a timida manada
Em ausência do alão seu companheiro,
E do Pastor de que era antes guardada :
Correm cheias de medo, e a que primeiro
Acerta do curral a larga entrada
Segura fica alli de medo alheia,
Nem morte ou desventura ja arreceia:
LXVIl!.
Desta sorte os IMogores, qtie presente
Ter o imigo cruel inda cuidavão,
Vcjido que dentro ir ja se lhe consente
A porta com grãa fúria se lançavào ^
E querendo entrar todos juntamente
lluus aos outros a entrada embaraçavão,
Glue como aqui su esporão de salvar-so
Qualquer então procura adiantar-se.
o PfllMF.IP.O CERCO DF. DIl'. ZiO
LXVIII.
Mas corao a porta a poucos agasalha
E a todos iiella a vida se promoitc,
Q-ual crilhari^a o caminho abrir trabalhii,
{\u;\{ a entrada co'*09 hombros accommette ^
*^ual torna hnrn pouco atraz porcjue se valha,
Mas d'*onde este se alarga outro se metto,
Ora vão atraz todos, ora avante,
>Io\imento ao das ondas semelhante.
IXIX.
Porém como na Villa então ja tendo
roucos a poucos vao recolhimento,
E a porta os com:?çou d^ir recolhendo
Ja com menos revolta e impedimento,
l*ouco a pouco se vio ir desfazendo
Aqiielle revoltoso ajuntamento.
Não se ouve grita ja porque ja cessa
A revolta, o tumulto, a grande pressa.
LXX.
Sondo todos na Villa recolhidos
Contentes, rendem graças á ventura,
Porque nao temem ja vêr-se perdidos
Que a Lusitana gente os assegura.
Todos sào do Mendonça recebidos
Com grande humanidade, amor, brandura ^
A alguns de quem o sangue então corria
Não falto»! o favor da cirurgia.
/O OBRAS DE FRANCISCO D ANDRADE.
Inda que o gosto em todos fosse, quanto
Sente o triste que á morte he condem nado,
Se apo?: hum temor frio, hum grave espanto,
Acaso succedeo ser perdoado •
Comtudo os dous (do cujo amor meu canto
Atraz ja disse) © têe hoje dobrado,
Porque os outros salvarão sos as suas
Vidas, e qualquer destes salvou duas.
txxii.
Digo daquelles dous, em cujo peito
Mais pode amor que a morte horrenda e fera,
Cópia gentil com cujo amor perfeito
Se exalção Cj'pro, Paphos e Cythera \
GLue vendo cada hum delles desfeito
O perigo em que o Ceo a ambos pozera,
Agora sente dous contentamentos
Como antes ja sentira dous tormentos.
O Silveira, que então na fortaleza
Tinha o mando, e na Villa, e na Cidade,
A quem tinha outorgado a natureza
Igual á valentia a piedade,
Gtue do sangue alto, illustre, e da nobreza
Costumou sempre ser propriedade,
Esta affligida gente, e tão medrosa
Recebe com vontade piedosa.
PRIMEIRO CBRCO DÊ IWU. 377
LXXIV
E sendo embarcação delles pedida
Que lá para Dabul então os leve,
Lhes foi liberalmente concedida
Com tudo o que á viaj^em lhes releve.
Não querem dilatar sua partida
Algum espaço então, ainda que breve.
Porque a partir-se os move, acende e obriga
O desejo de ver a pátria antiga.
Mas creio que estareis mui desejosos
De saberdes o fim em que pararão
Aquelles peitos fortes valerosos
Q-ue o esquadrão dos Cambaios penetrarão^
Digo de Mirizam, e dos famosos
Companheiros leaes, os quaes ganharão
Além da vida, c d^hua gràa victoria,
Para sempre no mundo fama e gloria.
Este ousado Mogor, depois que o forte
Braço seu, e da sua companhia.
Com tanta perda, estrago, e tanta morte
Do Cambaio esquadrão que o defendia,
E com tanto favor da amiga sorte
Q.ue sempre he favorável á ousadia.
Por entre tanto imigo abrio a estrada,
Para o Rio Indo faz sua jornada.
278 OBKAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
Porém vendo que não era seguido
Do segundo esquadrão da sua gente,
Suspeitando que pode ser perdido
Se sentio dentro arder impaciente ^
A voltas desta fúria combatido
D''hua entranhavel áòr também se sente,
Porque não lhe he a victoria tão acceita
Q-uanto lhe dá de dòr esta suspeita.
Mil vezes desejou voltar ao imigo,
Acompanhar os seus que atraz deixara,
Se naquelle mortal cerlo perigo
Somente a sua vida aventurara ;
Mas como a salvação dos que comsigo
Têe (com cujo favor se elle salvara)
Delle pende, somente a rasão segue
E lhe faz que hum desejo heróico negue.
LXXIX.
Vai-se traz a rasão deixa a vontade,
Virtude em que o louvor não iêi; limite,
Leva-o mais a com m um necessi(ílade
Q-ue o seu, inda que heróico, alto apetite:,
Cousa que ao real sceptro e dignidade
Tanto importa que siga, e sempre imite,
tine sem cila a perder está arriscado
Traz a reputa<;ão, a vida e o estado.
o I>RIMEIRO CERCO DE líIV. 27í>
LXXX.
Deixa o Mogor o seu honrado intento
l*<)lo que íi sua grnte relevava,
Mas com dobrada dôr e sentimento
Segue então o caminho que levava ^
E sem ter nelle algum impedimento
Chega ao logar para onde caminhava,
Tendo mais de cem léguas ja passadas • '^*
Todas de seus imigos habitadas.
LXXXI.
liivro assi do Mogor esta profana
Terfida, desleal, ingrata terra,
Se lhe acende de novo a fúria insana
Q.ne contra os Portuguezes em si encerra ;
C4ue entre a gente Cambaia e a L«»sitana
Move ilida hua encoberta occulta guerra,
De nenhua das partes commettida
Mas diambas claramente conhecida.
LXXXII.
Entro esta paz forçada e fabulosa
De que fmgidamente a fúria \\o serva,
Se passou a sazào que da chí-irosa
Bonina despe o ])rado, e da verde erva.
Neste tempo a Cidade p{)p\jh)sa
E de tudo abundante se conserva,
Crescem as mercancias, a riqueza.
Cresce também a sua altii nobreza.
280 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
LXXXIII.
Chegado aqnelle tempo em que ja voa
A lasciva e domestica andorinha,
Parte o Governador da nohre Goa
Com aquelle apparato que convinha :
Cortando o favorável mar a proa
Direito para Diu então caminha,
E vai as fortalezas visitando
Que em meio da viagem vai achando.
A Diu chega emfim com nao pequena
Festa dos que lá eslão, e dos que leva,
Nem faz d^dli mudan^'a cm quanto a amena
Sazão de ílôr e fructo o mundo ceva,
Onde com grande industria tudo ordena
Q-uanto a fortefica-la então releva,
G-ue sempre acabou tudo a grãa prudência
Q.ue têe por companheira a diligencia.
LXXXV.
Entre as obras que ordena com tal arte
Glue a douta antiguidade a não alcan(^a,
Foi hum grosso e espaçoso baluarte
Q.ue entre a Villa dos Rumes e o Rio lança ;
Porque possão aqui ter nesta parte
Favor, recolhimento, segurança,
Os Christàos qu*» na Villa residião
Glue os oflicios d''Alfandega servião.
a PRIMEIRO CEKCO DK Dltí. 581
K porque á sequidão que a natureza
Naquoíla terra pôz, roaiedio díísse.
Mandou também que lá na fortalezii
Com pressa hua cistfíran se fixcsse,
A qual «o coniprimeiílo e na iargue/^
8e dilatasse tanto quo podesse
Tauta agua rí-colher, que muitos dia;»
Bastasse para graiides computduus.
LXXXVII.
Traz isto, porque ja no senhorio
Kntrava pouco a pouco do Oriente
O tormentoso inverno, húmido e íViu,
K o formoso verão lá no Oeeidenfe,
O Cunha se recolhe ao seu navio,
K dividindo o mar prosperamentíí,
Ajudada do vento, a uguda proa
6o vai passar o inverno á real Goa.
Lxxx.vni.
Mn9 antes que os henigno» mangos ventos
Façao co'o brando sopro a velhi inchada,
Deixa o Cunha d'ávante de seiscentos
lixjmens a fortaleza aconipaidiada :
Inhabcis para as armas sào duzentos
Doíites, e da outra gente ho pouea armadií.
Ficào tombem entre esta companhia
MuitoB da Lusitana íidali^uia,
fe
282 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADC
LXXXIX.
Deixar me cumpre agora isto que canto
Q.ue cantar novas cousas determino :
A ti se volta agora este meu canto
Pérfido, desleal, falso, malino.
De ti, Cojaçofar, digo que em quanto
Te não vem o castigo de ti dino
Serás única peste, único dano
Do valeroso sangue Lusitano.
xc.
Depois que aquelle máo perverso esprito
Do Sultão infiel, da mortal vida
Passou á morte eterna (como he dito)
Co^a Lusitana força não vencida,
De Cambaios hum numero infinito
Lá na chamma infernal nunca extinguida
Os espritos também virão envoltos.
Do cárcere mortal de todo soltos.
Estes, novas lá dão do que passado
Fora em Diu, e no Reino até aquella hora,
O qual sendo ao Sultão denunciado,
E sabendo que está de todo agora
A parte principal do seu estado,
Com que ello tão temido e honrado fora,
Entregue em mãos do seu maior imigo
Cresce o antigo furor, cresce o ódio antigo.
o PniMEIKO CERCO DE DIU. 283
XCII.
Agora mais que nunca desejoso
D''húa áspera, cruel, dura vingança,
Ja para isto induzir quer o engenhoso
Cojaçofar, em quem têe confiança :
Cuida que não será difficultoso
Se do escuro Plutão favor alcança,
Logo ante elle se vai, e com grãa mostra
De dòr, ante os seus pés se humilha e prostra.
XCIII.
Eterno Rei (lhe diz) a quem se inclina
Todo o infernal poder, e monarchia,
Contára-te eu aquella alta ruina
Q.ue na terra me deu quando eu vivia
Hua gente infiel, impia, malina,
A quem cu o contrario merecia,
Se não vira que he hua larga historia
â^uc eu cuido que te he ja assaz notória.
XCIV.
Basta que eu fui ja Rei, e falsamente
Do meu Reino esfes homens me privarão,
Fui rico e poderoso, e juntamente
O poder e a riqueza me usurparão :
Essa vida que lá tive entre a gente
EUes sem piedade m^a roubarão,
Por elles com enganos vi perdida
A riqueza, o poder, o Reino, a vidai,
xcv. «
Bem vês que a natural propricfiacio
Dos que o teu poderoso sccptro hoírraniios,
Kão consente que a injuria, a falííidade
i'ai>sar sem gràa vinf!;aiiç.i consintanios :
3i tu íso por tua aita majestade,
luda que nós de fracos o soffraníos,
<> nao deves softVer, pxjrque temor-ta
ttaicá irào deixe a terra., e obcdecer-tc»
xcvr.
Toniar Ima crirel ving;ança quefo
Debtes, que com mortal ódio persi^(7,
i'j por meio d^liuni meu vassaílo espercr
Toma-la, o qual me ibi íiel, c amiu;o;j
Mas nào pode islo Si!r, se o teu severo
l'oder nào me ajudar para o que dij^o,
K eti fio que para isto (dle me acuda
1'oiíi.nuiica a intento* taes liegou ajudii«
XGVII.
í^umpria-me para isto que inspirasse
A Inveja o c(Ȓstumado seu veneno
No meu Cojaçofar, e o provocasse
A fazer isto que eu por elle ordeno:
Se t.'U fosse tão ditoso que alcançasse
jlste favor, dos teus o mais pequena
Vai Si'i que será tal que não duvido
U-ue eu íique bem vini^-ado. e tu temida.
© PHIMCIRO CEUCO DE DlC. 283
xcvm.
Logo o Rei infernal, a quem isto era
Bem conforme ao seu gosto e natureza >
Gabando-lhe a tenção damnada e fera,
Incitando-o a mói- odio, a mor crueza,
Faz ^ir alli a pestífera Megera
E lhe manda que vá com gr^a presteza
Onde a sua morada IÔl* a Inveja
E mande que o Sultão nisto proveja.
xcix.
Eíb logo d diligente mensageifdj
Co^a Cabeça de cobras toda ornada j
Cuni aspeito feroz, voa ligeira
J)o esprito do Sultão acompanhada,
^\ecrcscentando mais nelle a primeira
Fi,iribunda tenção, fera, e damnada,
E tildo o que visita então do mundo
Deixa também damnado e furibundo.
Com tal presteza no ar as azas solta
A ministra infernal e peçonhenta^
Espargindo furor, odio, e revolta,
Ciue em breve espaço assaz lá se apresenta
Onde está a casa, bruta, e sempre envolta
Em negro sangue, suja e fedorentaj
Onde sua morada a Inveja tinha
E a sua natureza esta convinha.
286 OBRAS DE FRANCISCO d"* ANDRADE.
Lá n^hua escura cova está este assento
No mais fundo d''hum valle assaz sombrio,
Onde não têe entrada nenhum vento
E do raio do Sol sempre he vazio-,
Tê^ tristeza idli, recolhimento,
Sempre he cheio dMium grave, e inhabil frio
Nunca alli se ve a luz clara c formosa
Vê-se sempre hua noite tenebrosa.
CII.
Chegada a fúria aqui, e conhecendo
Q-ue aquella era a morada que buscava,
Bate na porta, a qual obedecendo
Logo a entrada na bruta casa dava:
Vê-se estar dentro a Inveja, que comendo
Viboras peçonhentas sempre estava,
Bruto manjar, mas delle se contentão
Os seus vicios, que delle se sustentão.
Ella com grão vagar alevantando
Se foi então da terra em que jazia,
E ja meio comidas lá deixando
As viperinas carnes que comia,
Com paaso mal composto foi andando
Para onde vio a nova companhia,
Onde vendo o Sultão mostra grão gosto
Só porque o vio estar com triste rosto.
o rniMEIRO CERCO DE DI¥. 28"
CIV.
O corpo todo tee magro e desfeito,
A iace trislo, pallida, e medonha,
Nunca para ninguém olha direito,
Porém não lhe procede de vergonha;
Os dentes negros têo, e sempre o peito
Cheio de fel, e a lingua de peçonha,
Jamais á sua boca. o riso veio
S' jião quando lh''o trouxe o mal alheio.
Nunca jamais do doce somno gosta
C-lue o continuo cuidado o nao consente,
Mas sempre está em vigia a triste posta
Vendo os successos bons que vem á gente :
E tanto só de os ver arde e desgosta
Qluò se está consumindo co''o que sente,
O mal que faz, também o tèe comsigo,
Ella mesma, he de si mesma o castigo,
CVI.
A fúria, que de longe ja a conhece,
(^hegando-se para ella, os ares corta,
K diz : Manda-te o Rei a que obedece
(luanto cerra a prolunda Stygia porta
Q.ne a este esprito que elle ama e favorece
Ajudes, n^hum negocio que Ih^importa.
Não disse mais, e atraz o passo volta,
Logo o esprito desta arte a lingua solta :
Vai-te a Dia, e lá o teu veneno inspira
N''hum dos meus que alli tèe seu gasalhado,
Cojaçofar se chama. E o passo vira
Sem dizer mais :j e com accclerado
Curso, torna ao logar d^onde sahira
Da fúria que o trouxera acompanhado,
De novo ante Plutão se humilha e estende
E gradas da mercê feita lhe rende.
cviii.
Não quer deter-se a Inveja, constrangida
Do mandado do Rei do Stygio ninho,
Toma hua aste na mão, torta e cingida
Por toda a parte do pungente espinho ^
Logo entre negras nuVens escondida
Lá para Diu faz o seu caminho *,
Tudo por onde passa fa^ que abunde
Da peçonha mortal que em tudo infunde,
CIX.
Os espaçosos campos que esmaltados
De varias flores vio entre a verdura,
Passando deixa murchos e pisados
ôue níto pode soífrer tal formosura i^
Pcí<3 fogo á loura espiga, e poios prados
Faz que as ervas consuma a chamma dura^
E co^o bafo pestífero a malina
CasaS) povos, Cidades contamina.
o PtllMElRO CERCO DE DIV, 289
CX.
A Diu chega enfifim, e com presteza
liá de Cojaçofar busca a morada,
Onde entrando se encheo de grãa triste>.a
Porque alli de tristeza não vio nada ;
E por ver a abundância, a graa riqueza,
A seda e ouro, de que era toda ornada,
E mal deter as lagrimas podia
Porque então alli lagrimas não via»
CXf.
Vai->-8e a Cojaçofar, que ja o preceito
De Plutão quer cumprir, a que alli veio^
Com ferrugenta mão lhe toca o peito
Q-ue de mil pungimentos deixa cheio \
Faz também apoz isto o usado elíeito,
Na mais interior parte do seio
LhHnspira hua peçonha tão nociva
Q-ue nes ossos lhe fica ardente e viva,
cxii.
Apoz isto ante os olhos lhe apresenta
Q.uanto ja pode em Diu o novo imigo,
Tal que a grandeza delia, alta e opulenta
Muito cedo terá toda comsigo ^
Glue se este o seu poder novo accrcscenta
Elle perderá o seu poder antigo.
Depois que outras mil cousas diz de8t'arte
Com que assaz o acendeo, d'alli se parte,
♦ 9
át»0 ©URAS CÊ í-HAlsClSCO «'aNDkAD?' .
cxníí
^ente Cojaçofar ja o venenoso
Espiníio, que lá dentro o punge o aCend<í,
cl a nem q liando o Sol mostra o luminoso
Kaio^ nem quando oesconde, osoinno jirend
Inquieto, soílicito^ ahcioso,
Mal do infuso teueno se defende^
(iue derreter-^e lá dentro está vendo
ô.uul se eíítá ao Sol a neve derretendo/
Veíido a podef^ o mando, a preeítijuencia
tilue em 13iu tèe a Lusitana gente^
A qllem clie com tet grande; opulejkvia
E grno ser^ lie também olxidieute,
Bento-se dentro ardef d 'impaciência
Q-ual arde o verde espinho quando 3eni<:
O fogo, que não oioíítra fora o lume
Ma» dentro ppucQ a pouco se consume «
Mil Vezes procutar quizera a morte
l*or nao vêr tfUito bem e gloria alliei,^
Mas çqnhecendo então que desta sorte
A sna gfave dór mal remedeia^
Pertonde com robusto animo forte
f 'iimprir sua tenção, d'inveja cheia,
Com ffrna riiinf\ sssaz, com graVQ dano
CoBio logo ouvireis* do í^usitano.
o rntMSino cbrco de di^. 391
cxvi.
liste depois que a sUa authoridade
(Como ja atraz a minha historia escreve)
Fez quietar a gente da Cidade;,
E dentro dos seus muros a deteve,
A reputação mesma, e dignidade
Na terra lhe ficou que selnpte tevej
Agora o acata mais, mais o venera
A gente^ do que nunca antes fizera.
cicvii.
í\: novo torna ao seu antigo tratòj
Meneia a sua grossa mercancia,
t?om que esconde o cruel animo ingratrt
O.UC têe contra quem mal Ih^o merecia i
Contra os que d'eutre a morte e desbarato
Do Sultão, e da sua companhia
O salvarão so vivo. E do seu peito
Cruel, se mostrará lá avante o eííeito»
CXVlil.
Tanto que este infernal Mouro, que estaVtlf |
Cheio d''odio cruel, de fúria acesa, < «
Glue entSo forçadamente tefreava
Com receio da gente Portuguesa,
Vio que as vellas ao vento o Cunha dava
GLue a damnada tenção lhe tinha presa >
Cobrando novo esprito ordena quanto
]*oílereis logo ver ness'outro Canto»
o PRllIF.IttO
CEIlCd DE DIU.
í\iHe-ie Cojaçfffar , sccretdmehie cía Cidade, l.
vai icr à Ãmadahaã^ onde csiava TÈlttci dà
Cambaia. '^I^az de lã hxtin grosso cxerciloi
Dá primeiro hum assalio ao baluarte du
Villa dos Rumes í sendo ferido se toma à
Novanacjer . O Capitão António da Silveira
se appareíha para defender a Ilha» Torna
Cojaccfar com todo o campo a pôr-lhe cer-
co t c depois d'' alguns recontros se solta a
Ilha aos iniigos. Contão-se algumas cousas
nofavcis que neste Tneio. tempo acontcccrãê
na fortalexa, ■ ..f sV
R
irameiíte deixou de vêf o offeito
T)ii causa, iuda qUe graVe^ a que se applica)
Aquellc que ó secreto seu conceito
Nem a si (se ser pode) inda publica \
Mas ílquelle que o c<.'íitro do seu peito
í)escobrc a qUelti niiO deve^ c communicaj
Não sóniente níJo acha o que esperava
Maa aclia ás vezos in.il q»?" não cuidava*
Ó t»llt*flS!ltO tíÉItCO DÉ5 DIU. 293
Bem vejo que nos feitos importantes
Ninguém, só, t-hega ao fim de seu intento^
Mas quem bnsca fílvor, lhe cumpre que ante»
De se communicar, tenha grão tento,
St2 os qtie íizef de si pjftecipaiites
8ouberão ja eneubrif seu pensamento,
Q.ue quem nào soube o seu ter encubertu
Nuo encubrir o alheio está mais ccrto#i^ ..i^//
líí.
r)e[j()i:í an iu.i uo Cunha, efa passado
Hum mez, e efa no fim ja do em que o loufO
Í*laneta, que j^uardou d''Admeto o gado,
Em companhia Soe andar do Touro^
iiluando Cojaçofar, impio, malvado,
írlue ja fora Christao, agor.i he MourOj
Se parte da Cidade naquelhi hora
l-iue na terra a nocturna sombra mora.
Com tanta discrição, tal siso e manha
Ksta partida ja tinha ordenada,
Q.ue sendo elle senhor de hua tamanha
Riqueza, que á de Creso era igualada,
Q-uando agora se vai toda o acompanha
Sem ficar na Cidade delia nada.
Porque isto commanica com tal gente
<ciue nem hua suspeita dá somente,
E assi com tal segredo o seu caminho
Ordena este sagaz nesta partida^
GLue nem do que lhe estava mais visinho
Suspeitada só foi, ou entendida :
Lá polo assento liquido m.arinho
N'hua náo sua faz esta fugida,
E vai para Çurrate^ o mar cortando
Villa de que elle tinha então o mando»
VI.
fíua grâa confusão, hum grande espanto
Aos Mouros que viviao na Cidade
Esta partida deu, feita com tanto
Segredo, quietação, sagacidade :
^Também aos Portuguezes mostrou quanto
Saber deu o Senhor da eternidade
Áquelle máo, rebelde á Santa Igreja,
Gluioá que por mor damno inda te seja»
vit.
t)os ventos e das ondas a bonançl
l*õe em salvo este máo na Villa aonde hia^
Porém nella nao faz longa tardança
GLue a damnada tenção o constrangia :
faz para Amadabad logo mudança,
Cidade do Sertão, onde sabia
Glue estava então ElKei, e com tal pressa
Caminha, que hum momento só não cessa»
o PRIMEIRO CKRCO DK DIU.
VIII
295
Rias cantar n'outra parte deste espero,
Cumpre que hum pouco aqui delle me aparte,
Porém o que cantar agora quero
Tambera de gosto têe hua grãa parte :
Obras vereis do bellicoso e fero
Ilida que pueril, fingido Marte,
Mas que com tanta fúria foi tratado
€tue ibi de sangue e fogo acompanhada.
E se o Senhor Eterno e Soberano
Com cousas que succedem cá na terra
Costuma a descubrir ao povo humano
O que o futuro tempo esconde e encerra,
Bem mostra isto que canfo ao Lusitano
Povo, o ditoso fira que nesta guerra
Q-ue se lhe vai agora apparelhando
Lhe têe guardado o Ceo amigo e brando.
X.
Hum dos solemnes dias e sagrados
Gtue a memoria daquella gloriosa
Resurreição de Deos, fez venerados
Entre a gente fiel, religiosa,
Se juntao quantos moços baptisados
Da Nação Portugueza, alta e famosa,
A fortaleza então dentro em si tinha
Cuja idade inda ás armas não convinha»
29t) OiiitAS ÍJK JUANCJStO l> AIvíJR\lJK,
Ajunta-se tanibein a quantidade
Dos pequenos escravos que agasalha
A fortaleza, cuja tenra idade
Também soífrêra mal o arnez e a malha i
Conformes n^hum querer, n^hfia vontady
Ordenao de se dar hua batalha,
Sendo menos assaz os Lusitanos
Gtue o que lie natural se achíi em quaesquer aji
XII
neia
E para isto ser logo concluído
Põem logo em se ordenar çràa dilige
Vê-se entre os Portuguezes escolhido
Capitão a que dêem obediência ^
Vê-se o seu estandarte no ar erguido
Chua Cruz signalado, e a cunipetenciu
Os escravos também desta maneira
Elegem Capitão, erguem bandeira,
Põem logo 08 CapitS(!S em ordenança
A sua gente, com tanto artefi^iio
(iue a longa experiência nào alcança
Outra com que melhor faça este oflicio ;
Mas eoino d^arcabuz, espada ou lança
Ter então nãí> podião exercício,
(Qualquer ás armaí^ <jue acha o braço estendo,
Qual yo^J páo, qtuil co*a dura pedra offeiidt',
o VAIMBIHO CERCO Ol:: HIV.. 2^7
XIV,
E com tanlo fervor, e animo tanto
G-ue a puerilidade longe excedo,
Invocando huns de Compostella o Santo ;
Outros o peçonhento Mataniede,
Seaecommettem, causando hum grande espanto
Km quora aquillo com a idade mede,
E em todos tal vontade então se via nO
Glue isto hum verdadeiro odiu parecia. «'i
XV.
Move o mociço páo o tenro liraço
Vara o ferro inda mal suffieiento,
Mas como SC movera o subtil aço
Faz díis veias o sangue vir corrente.
Durou eíita peleja hum gmnde espaço
Crescendo sempre o suiígue e a furia ardeule,
Cresce a grita, a revolta, os alaridos,
E as miseráveis queixas dos feridt>s,
XVI.
Em tudo aqui podia ver-se agom
Hua cruel hataiha em ódio acesa,
Q-ue hum momento não cvsy.\ ale aquella hom
Q.ue a p<»uca mocidade l'ortugu<sa, « r
A quem he natural ser vencedora,
A victoria alcançou daquella enipre-sH,
IC fez com fortíj braço, e val«;roso
Hunj imigo fugir tão cupioso.
298 OBRAS D£ FRANCISCO D*AMDBAD£.
XVII,
Com graa festa, prazer, contentamento
Os Portuguezes vão triumphadores,
Recebendo algum damno e detrimento
Dos vencidos, também os vencedores.
Huns vão buscar dos Paes o charo assento,
Os outros vão buscar o dos Senhores,
Onde achão gasalhados differentes,
Mas todos igualmente são contentes.
XVIII.
GLuanto contentamento n^Imns derrama
Tão tristes outros faz, disto a memoria.
Mas todos igualmente acende e inflama
Aquella gloriosa, alta victoria.
Hum desejo á batalha nova os chama
Mas de vingança he n'huns, n'outros de gloria,
Nem muito o effeito delle dilatarão
Mas para o outro Domingo se prepúrão,
XIX.
Kntão ja o que qualquer no peito encerra
A buscar novas armas os obriga, .
Novas preparações fauer de guerra
Com que mais se execute a fúria imiga ;
Porque do pó sulfúreo que na terra
Com nada se resiste, ou se mitiga,
Escondidamente hão grãa quantidade,
E outra» cousas que são de mor idade.
X-X,
Chegado ja o Domingo, do niíl partce
Correm aos Capitães os bons soldiuhjg,
Ja estendem polo ar os estandarteii
D^iiisígniji» diiferentes signalados ;
Fazem de pedra solta buíuartoc
Do grossos bnstioes acompanhados,
Os Portuguezps, com tal arleííeio
due iS-i das fortalezas o edifinií),
XXI,
Dentro sondo ja todos recolhidos
Na ordem que as fortalezas se defendem,
Forão poios escravos oommettidos
(t^ue vingar sua injuria hoje portendem)
Com tal fervor, taes gritas o alaridos
tíLue até as mais altas nuvens se estendeni,
D'hua e outra parto a díira pedra voa
Hum fere, outro amedronta, outro atortiiijt»
XXII,
Tra» isto a fúria ardente enibravecida
Da pólvora ornei, a alguns alcaníja,
(títue em vários arte(jci/)s convertid;».
DMina parte para outra então se |an«^'i4 {
Faz o engenho infernal, iniigo á vidij
A >iua costumada antiga usan<;;a,
Abrasados os tenros corpos deixa
CrciKJe ii revoltii, a dí)«'> f* a- tmtp qtiíiÍHH,
3(K> OJiRAS I)£ mANClSCO H^AUSflLhliK^
XXIil.
Este fogo que os corpos deixa ardendo
Tanto acende os espritos Lusitanos,
GLue affrontados d'estar-se defendendo,
E querendo vingar estes seus danos,
Saltão da fortaleza, e accommettendo.
Com tal furor que excede os tenros anos,
Os imigos cruéis, de sorte os tratão
ôue era mui pequeno espaço os desbaratai»
As costas logo dao com graa presteza
Glue detença o temor lhes não consente,
A grande multidão á fortaleza
Rendida hoje se vio, e obediente.
Esta presente fúria, esta crueza
Hoje da livre, e da captiva gente,
Fez derramar mais sangue que a passada
E algua em vivo fogo ir abrazada»
Não se apaga com isto ou se despede
A furja, antes com isto mais se acende,
Mais vezes pelejar se lhes concede
E sempre o Portuguez o imigo rende :
Mas porque o mal quo disto lhes succede
Em grande crescimento ja se estende,
Nao sd ja se lhe nega dar batalha
Mas inda em lh'o vedar se insta e trabalha.
o PRIMEITIO CF.RCO DE Dllf. 301
XXVI.
Porém iâo cheios ja todos andavao
D''hum aceso furor iiao reprimido,
Q.iie nem polo Domingo ja esperavão
Nem ser-lhes do Silveira concedido,
Mas em qualquer logar que se topavão
Ou fosse descuberto, ou escondido,
Q.uaesquer que erao então, se accommettiao
Com as armas que alli se offerecião. -
E com tonto fervor, com ódio tanto
Em qualqiier parte então vião tratar-se,
Qbue põe cm quem os olha grande espanto
E o Portuguez, vê sempre avantajar-se.
Porém não quer ja mais este meu canto
Nestes pueris feitos occupar-se^
Torna a Cojaçofar, impio, nefando,
Q/Ue grandes cousas vai apparelhando,
XXVIII.
Depois que a Amadabad foi arribado
Este falso, e infiel Italiano,
E diante d^EilRei apresentado,
Receioso inda aqui de qualquer dano
Se desculpa do tempo que gastado
Tinha antes entre a» povo Lusitano
Sem commetter mais cedo aquella vinda
duo em tal perigo o po/,, quo a não crê inda,
,iú2 oimAS DE iRiJíciSco t>V«f)nAr:«tn.
Pi porque EIRei, e os im que com (HU a torrrf
llfigem, sua intioceticía víes^^m clarM,
('oiti qunnld discríçíSo seti peito encerra
(^om a sua prudonda uííícu g rata,
Os incita, os apressa., os fóiça á ffucrra
«lue lá contra os Christâos tnoviaa adiara.
Na qual se oflferceco que os serviria
<^om tt pessoa, e quanto possuía.
XXX 4
Kntre muita» rasSes que entSo lhes dava
]'ara vir esta guerra logo a ciíeito,
Muita» cousas tambcm lh*appesentava
ÍJe que ha na fortaleza grão defeito,
Com que a tomada assaz facilitava
Sem lhe poder custar muito este feito,
A pouca agua que têo a fortaleza
E dos seus baluarte* a fraqueza «
XXXts
<lue a íbrtefícaçSo tao engenhosa
l'olo Governador antes traçada,
E aquella tão capaz, tao espaçosa
Oisterna que deixava alli ordenada,
He hua machina imm^nsa e vagarosa
Glue apenas inda estava começada,
E que H cisterna inda agua nSo recolhe
Noni indr» o líaliir^rlc f» ojitfada tftjif».
o PRIMEIUO CKUCO DE OlV. 303
\XXII.
íiicihi-los tambfiin a isto trabalha
í ''•■\i\ lhe mostrar quão pouca cópia agora
íí t Je gpiite Clàftótãa, crarne/, de malha
U-Ul' a Ilha c a Cidade só defenda hua hora,
K a cópia innumeravel que agasidha
r>ií gente que o Mafoma falso adora
A tt-rra em si, usada em guerra, c dura
tiuc do tratante então mostra a figura.
XXXIll.
E que Be a Ilha e n Cidade se perdia
(G-ue susler-se será cousa admirável,
Pois que quasi sem gente resistia
A hua cópia de gente innumeravel)
A fortaleza logo se entraria,
l\ns a fagia ser indefensável
Por hua parte a gente que lhe falta
E por outra ter d^agua grande falta.
XXXIV.
E para que de todo os persuadisse
A esta guerra que então lhes propuzera,
(Como depí)is se soubf) também disse
(ciue elle tinlia por certo, e que certo era
Q-ue tanto que de nova flor vestisse
O valle e o monte a fresca primavera
Alli viriao ter com grossa armada
Os Turcos, bem provida e appíirelhada.
Vrllio cdíâcío a quorri a antiguidade
llMÍn.l eíítá cada hora promettondo,
Se acaso sehte a Austral ferocidade
([)'iando oinveí-tio he mais bravo e mais liorrendoj
í\ao se f elide coííl tal facilidade
A grSa forca q»ic o estaVa combatendo,
Com qual El Rei e os ires llcôo rendidoíí
T)as rasões deste Mouro combatido».
flue com tal força etítrárao, tal veliemcnríu
Os peitos para a gm-rra ja abalados, '
Que sem faZer algQa resistência ,
Não estando inda então muito chegados
A dar-lhe eXecuçSo, com diligencia
Ajuntão munições, armas, soldados^
Fazem com que o guerreiro anafil so«
Fj a bandeira nos ares logo voe.
XXivff.
l*osta Ja em ordenança toda a gente
Com todo o necessário para a guerra.
Se partio, a Alucâo obediente
tlue hum dos três he que então regem atefrrtj
Esforçado, fiel, nobre^ prudente,
IC leva só (se a fama aqui n3o erra)
Cinco mil de caVallo em companhia,
E cm numero dobríido a tnfantcria.
XXKVíií.
o qiiG ÊÚú guerfa andou àolHcítalido
(Joiíipalihoii-o tambnttl íitlLí caminha.
Com qiiasi íg\iú\ poder^ quasi igual mandn
An que tiesto negocio Alucão tinha.
K-ítí? mil de cavailo vai mandando
E tfes mil da Outra gente que a p^ vinha,
Gt?nte escolhida, pfatica, robusta,
Q.Ue levâ aísoldadada á sua cu»ta.
Duas jornadas sos ao Sol faltavao
J*ara ter dentro em Cancei* gasalhado,
Guando as bandeiras ja desenrolavâu
Os CapítSes, e com accelerado
l*a»so, ja Amadabad desamparavao,
li vâo pisando o fresco e livre prado»
Mas destes lá adiante será dito,
Porque da fortaleza ouço hum grão grito,
Xt.
í 'f-sta guerra que o Mouro preparava
ii(?go entre a Christaa gente a nova veíoj
10 a vinda dos imigos esperava
(Jom maior alvoroço que arreceio,
J^orque da sua vinda imaginava
(Tendo de confiança o peito cheio)
A voltas d'hua nobre, alta victoria
Alr;\ncar nova fama, e nova gloria.
1)06 OBRAS I>K FRANCISCO D*ANDRADE.
XLI.
E em quanto nisfo so se têe o teiíto,
Se vio íiua noite ir ao Ceo subindo
O cruel, ruinador, bravo elemento
GLue a povoação hia consumindo ;
Q-ue como neste tetnpo hum grande vento
O fogo com grãa força vai ferindo,
E a secca palha cobre a baixa casa
Levemente a desfaz, consume e abrasa.
XLII.
Solta, cheio de medo e de tristeza
O triste habitador a casa ardida.
Não trata de salvar bens ou riqueza
Porque apenas salvar pode ainda a vida.
Em breve tempo em toda a fortaleza
A nova deste dam no foi sentida.
Corre hum cheio de espanto, outro de magua,
Porém todos gritando vem : Agua, agua.
XLIIl.
Corre alli cm breve espaço graa frequência
Vendo quanto perigo ha na tardança.
Não lhe falta agua então, que a competência
Glual a traz, qual a chega, qual a lança*,
Outros vão derrubar com diligencia
A parte em que inda não alcança,
Todos põem nesta grãa calamidade
Q<ual obras, qual conselho, qual vontade.
o PRIMF.IHO CF.RCO DTt DliT, H07
XLIV,
K com tal diligencia, tanta pressa
Hum entre outro, qual soe ir a formigu
Se traz a agua, e no fogo se arremessa
Glue se vence o furor da chamma imiga :
A rui na também com isto cessa,
O tumulto da gente se mitiga,
E em pequenas quadrilhas se reparte
Fallando-se só disto em toda a parte.
xtv.
Porem com quanto o povo diligente
Por apagar o fogo assaz trabalha,
Como então favorece a chamma ardente
O vento d'hua parte, e d'outra a palha,
Bem sessenta moradas brevemente
Sem poder haver cousa que lhes valha,
Em leve cinza então se converterão
E em muitas as fazendas se perderão.
E 86 tal pressa o povo Lusitano
Para atalhar o fogo não empresta.
Das casas a mor parte com grão dano
Consumira a cruel, chamma funesta.
Começou-se este mal (se não me engano)
Na torpe casa d''hua desho nesta
Mulher, que em sensual, bruto exercici©
De si fazia ao inferno sacrifício.
Voí (Tsfe grão cle^afetrft eéle1)fádo
Hotn gtaa festa do Moufo povo imígo,
Que ci>m a nova g'uoi-fa alvoroyado
íla descobftí o ciitráiihavel ddio ftiiíígo;
y\s8acao aos ChfistSoá o mal dobrado-,
Dobrado, do que tinliSo, o petígo,
Ciue ciao os hftn-dttíiB todo» ardido;*
líl que estíivao jd perto de vencido»,
XLVIII*
Kstaâ e outras fasôes com que íaúão
A defeza aos Christaos mais impossível,
hi a guerra que fa^.er lhes poptendiâo
Maior^ mais peHjiCOsa, mais terrivel,
( >9 Mouros CapilSes aos seus diwao
Por lhes fazer a guerra mais soíTrivcl,
K porque dos íinigos a fraqueza
Lhes dcsstí novo esprito, e fortaleza,
Pouco tempo passou traz isto quando
A Fama as leves azas no ar desprega ,
Fi co^a trombeta os ares atroando
Á fortaleza em breve espaço chega \
Oiide tíffirma que ja se vem chegando
O exercito infiel, que a Christo nega
K têe de Mafamede a lei malina,
Vromettendo aos Christííos a mór ruín»-
o PRlMElllO CBJIOJ Bli DIU. :i09
VM:\ hc aquella gente de Cambaia
Hiip a damno dos Christaos partio ligeira
l)'Aínatlabad, c vai de Din á praia
Seguindo a d'Alucão, c a outra bandeira :
Mais se acende e desperta, que desmaia
Cow tal nova o magnânimo Silveira,
JProvò quanto releva então prover-se
Ou com que oiTender possa, ou defender-so.
Lt.
O qiic procura então provAr primeira
He saber a certeza do que ouvia,
Não perdoa a tra bailio ou a dinheiro
Que nisto largamente os despendia :
Mas como nova certa» e o verdadeiro
Kignal tor--se dos Mouros so podia,
A nova que elles duo he sempre errada
Porque he com má tenção, niáo zelo dada.
ttti
Porem apesar desta imiga gente
O tempo descubrio disto a verdade,
Silveira como a certa nova sente
Acode logo á mor necessidade :
A cisterna dá grande expediente,
E com graa diligencia e brevidade
Dar ao grão baluarte fim pertende
Ruí» dos Rtimps a Villa entiío defendi».
•Mo «tJKA» DK í-RANClStMI »*A^*l)HAlJK,
t.ítt.
\í com tal diligencia isto pfocur.i
duo antes que muito tempo se pasaassc
Fe« com que o baluarte óquella altuni
Que se acha em vinte palmos arribasse,
E que ao que a ordinária estatura
B'hum homem d^alto têe^ também diegnsse
A Sala que, se eu mal nao estou vendo,
Juntf) do baluarte estão fazendo.
AIV.
Kstava «este estado a fortaleía
(Guando os dous CapitSes que caminhavSo
t)e lá d^Amadabad, com graa presteza
t)ehtro em Novanager se affasalhavSo :
K porque grandes faltas e fiaqucza
Achar entre os Christâos imaginavao,
Ordehao que assaltados logo sejao
Por lhes nSo dar logar que se provejaOi
tv.
K inda a formosa Aurora acompanhava
O filho do Troyano Líaomcdonte,
GLuando Cojaçofar co'os seus pisava
Lá caminho do Diu o valle e o monte t
Com tal pressa e silencio caminhava
Gluc antes que desterrasse do Horizonte
O raio da manh3a, o manto escuro,
f^f^in ser sentido estava junto ao muro.
o i'utMt:iKO c«nc© BK liJt;. -MI
LVI.
Onde a gente em batalhas hSo reparte
Mas junta toda sua coitipanhia,
Commcttc com gí3a fufia o baluarte
dttc hovanietite a Villa defendia :
li com quanto não falta nesta parte
llfia esperta, c dollicita vigia,
romtudo o Mouro vem tSo encuberto
Q.ue nSo se vô scnSo de muito perto.
íjnvanta a vella a voa em vendo o imigo
Hua e outra vez a grita alta repette,
Dá rebate aos ChristSos deste perigo
E dn gente que 03 muros accommette:
Mas como então ao doce som no amigo
ítida a cansada gente se submette,
NSo se pode este mal que está ja á porta
Tom tal pressa atalhar quanta íhe importa.
tvttt.
R como 03 Portuguezes que o meneio
V)i\ Alfandega da Villa a cargo tinhSo
Nella estavâo então, como lhes veio
A nova dos imigos que alli vinhâo,
Com grande espanto assaz, nSo sem receio
IVhum mal que elles então mal advinhSo,
Logo todos n hnm corpo se ajuntárfío
31 â OBRAS DS FRANCISCO D* ANDRADE.
LIX.
Sua salvação tee tiesta subida
Nella põem seu valor, seu braço forto.
Porque ou assi salvar possão a vida
Oii vingar largamente sua morto :
Esta heróica tenção favorecida
Foi da sua própria amiga sorte.
Que tamanho poder deu ao seu braço
Q.ne subirão acima em breve espaço.
tx.
Porém ja da infiel Cambaia gente
Andava entre os Chrislãos tal quantidade,
Q,ue com quanto á subida expediente
Derao, com mui graa pressa e brevidade.
Virão quasi perdida totalmente
Ou a vida, ou a chara liberdade :
Mas aquelle a que a sorte favorece
Contra tudo resiste, e prevalece.
LXl*
Nuo subirão lá tanto a salvamento
Com quanto o Ceo ti verão favorável,
GLue alguns do Lusitano ajuntamento
Nâo recebessem morte miserável.
Os vivos com grâa força, esprito c alento
Áquella imiga gente innumeravel
De tal sorte algum tempo resistirão
€Uie a muitos sem seu damno a vida tirão.
9 PBIMXIHO CKRCO D£ J>IV . 313
Em breve espaço foi disto avisado
O grão Silveira lá na fortaleza,
Q-ue com tal nova assaz sobresaltado
Nâo perde o seu esprito e fortaleza :
Deixa tudo alli posto a bom recado,
E co^a mor brevidade, mor presteza,
E mais gente que ptSde d''alli parte
A favor dos que estào no baluarte.
A leoa feroz que carregada
De presa, entra na sua inculta c ruda
Casa, e a vè dos filhinhos despojada
A quem vinha manter e dar ajuda.
Com fúria tão cruel, tao denodada
Outra vez o veloz passo nào muda,
Buscando o que d^alli Ih^os lan^jou fora,
Como o forte Silveira leva agora.
LXIV.
Em quanto o Capitão isto concerta
No baluarte assaz se combatia,
Glue o numeroso imigo tanto o aperta
ô.ue com mui grào trabalho resistia :
O perigo aos Christuos acende e esperta
E lhes dá tanto esforço e valentia
Gtue sendo vinte sós os que defendem
Nào somente resistem, mas offendeui»
314 OliilAB DjS FjaANOiSca D''AKt)UA))ti.
Porque além do valor, do esforço antigo
Glue 08 vinte om todo tempo acompanhavi
E na difficuldade e no perigo
Em que agora se vem, se accrescentavn ;
Vendo que o Cíipitao (como atraz digt))
Para favorece-los se apressava,
Com dobrado fervor, dobrado esprito
Se defendem do numero infinito.
O Mouro Capitão, d'ira assaz cheio
Por ver quão pouca gente tanto o offeiido,
Do Cambaio esquadrão posto no meio,
Com t3o feias palavras o repreliondo
Glue o faz metter na morte sem receio,
Mas nem por isso alcança o que pertendo,
Porque se dobra as forças e a vehemencia
Tauibcm acha dobrada resistência,
Í,XVII,
Rompem com isto o Ceo os altos gritos,
Acende-se o furor, cresce a revóUa,
liã da longa espingarda entre infinito»
Chumbos subtis a morte saho enví5lta,
Glue dMnfeli/o», miseros ospritos
Doa corpos infiéis grSa cópia solta,
Bem chegar a nenhum da fiel gente
G-iít} mú o qui;», O Senhor Omniptentt»,
a FRIMEtllO CERCO DK UtV , Hí^á
Entre este alto furor, que tanto dano
Aos Cambaios estava então causando,
liá d^entro o ajuntami^pto Lusitano
Acaso h'im chumbo ardente sabe voando,
(iue contra o renegado Italiano
Os ares tão direito vai cortando,
Q.ne hfia das Ímpias mãos lhe rompo, e odeix.*
Cheio de jjrave dôr, do grave queixa.
ixix.
Tira-se o triste atraí, co'a 0(5r perdida,
Q.ue a dòr o cobre d'hua cur defunta.
Ksta nova entre os seus sendo sabida
Grãa cópia em derrtidor delle se ajujita,
Cuidando alguns que estava ello sem vidii
tíliial chega para o ver, qual o pergunta :
Rias o Mouro sagar, que conhece isto
Faz quo vivo do todos seja visto.
LXX.
Durando esta revolta, quo a bravena
Do combate algum tanto reprimira,
A gente que de lá da fortaleza
A favor dos Christgos antes p;irtír;i,
No baluarte entrou coni grãa prestega
Abrasada em furor, acesa em ira.
Com que deu novas forças aos amiguj»
Etjchoo de medo ou peitos dos imigus.
316 OHKAS D£ I^AAMCISCO D^ANDHAUL:.
LXXI.
Sendo da Lusitana alta bandeira
De novo o baluarte acompanhado,
Bem vio Cojaçofar que o grão Silveira
A soccorro dos vinte era chegado :
Juntando esta rasao á outra primeira
Glue era ver-se da mão mui maltratado,
Com pressa se affastou do baluarte
Tendo dos seus perdido algua parte.
Fica o nobre Silveira assaz contente
De ver em salvo os seus para quem vinha,
E como era sagaz, era prudente
Os quiz Sitistazer co''o que então tinha :
Solta a lingua perante toda a gente,
Dá-lhe tanto louvor, quanto convinha
A quem com forte esprito hua tal copia
Venceo quasi sem damno, ou perda propia,
Lxxm.
Grão proveito trouxe esta leve aífronta
Á Portugueza gente que ha na terra,
Porque a fez despertar, fe-la estar pronta
Nas cousas necessárias para a guerra ^
E ter melhor noticia, melhor conta
Co''a grande quantidade que em si encerra
A Cidade de bons, fortes soldados
Em difterentcs trajos disfíirçadus.
<i iKí^iãinu cmtcu PK inv. 3^7
K }X)rque com pacilica appareiícia
Uar alguns «oVjresaltos intentarão,
Logo o Silveira pòz tal diligencia
G.ue us armas llie8 tomou, quantas ra'iu;hara*>;
jfi tiom nunca achar nellcs resislencia
Em operas prisíJíes algU"» Hcárao,
Por cauçarnin n A terra alguns irisuUuí
Alguns HJnutaniçntos o tuniuUos,
HelVeadog de sorte os da Cidado
(-àue ja niaití n3o podião alterar-t.t%
í)s logarcs provê çom brevidatlíi
Kracos, de que podin «irroçear-se :
Estes sâo os que com facilidado
Naquello Hio ptxl<Mn vadear-se.
O <jual dft terríi firmo a Ilha aparíavu, ;
JC deste» grande cúpiu nelle estava,
NoB douB destes Ingaros, que aqui digo.
Onde nuii» que nos outros a agua hu rara,
Estão dous baluartes com que o «ílti^u
Tempo, estas faltas ja remedoára \
Os quaes alU Baudur quarnlo du imic;u
Moçjor, veio fugindo, edilicjíra,
í>*>m quç o quo creQu fraco a natuny4{
Pif»i:c?!>f-'o do arteficio fo? ttílcíft,
LXXVH.
GLuerendo o Capitão híia e outra parte
Defender destas duas de que fallo,
Entrega destes dous hum baluarte
A quem bem sem temor pode entregallo ;
A hum varão que no esforço era outro Marte,
Cuja alcunha he Falcão, nome Gonçallo,
Outro a Luiz Rodrigues de Carvalho,
Despresador da morte, e do trabalho.
LXXVIII.
A qualquer destes dous bem se podia
Esta obra encarregar com confiança,
Glue a muito mores feitos se estendia
O seu heróico esprito, a sua lança.
De gente, munições, d'artilharia
O Silveira os proveo em abastança,
Q.uanto ser necessária então entende
Para effeito desta obra que pertende.
Outro passo ha no Rio, em que o defeito
D'agua, não era aos outros igualado,
Porém porque se via assaz estreito
Era de defensão necessitado :
Deste a Lopo de Sousa (cujo peito
Se mostrou por mil provas forte e ousado)
Foi dada a defensão, com leve frota,
Duas fustas, barcaça, e galeota.
« PRIMEIRO CBRCO DS DiV. âÍ9
txxx.
Também n''x)utros logares deste Rio
Glue não têe defensão, e fracos erão^
O Silveira íez pôt mais d'hum navio
Com que ter defensão segura esperão.
Cuja capitania e senhorio
Dous bem fortes varões então houverSo,
De cuja valentia e fortes peitos
Se pudérão fiar bem mores feitos,
LXXXI.
francisco de Gouveia hum se chamava^
O qual naquella parte do Occeano
Q,ue da famosa Diu as terras lava
Era o Capitão-mor mais soberano :
O sobrenome ao outro Veiga dava
Sobre o nome do Santo Lusitano,
O qual da fortaleza feitor era,
A ambos o Ceo hum forte esprito dera»
LXXXII.
Estas embarcações Silveira espalha
Polas partes que na Ilha têe fraqueza^
Porque a cisterna em si não agasalha
Inda agua, e outra não ha na fortaleza^
Porque com quanto nella se trabalha
Com mui grãa diligencia, grãa presteza»,
Inda estava então mal sufficiente
Para dar de beber áquella gente»
3:2(> OJBiSAS DE fílAJÍCÍSCO D*ÁfifiíRA-D«,
íítiín tnonieittcí êsta grande obríi riTto írossí!
<iue he tatnbeiíi dos soldados íijudad.í^
K a gríia falta qíie tee tanto os apressa
Q.ue antt'8 de ser de todo j a acabada
Ordena o Capitào que corti í^rãa pif-Hsa
Tanta à^ivd soja nella agasalhada
í-luaiita todos os bois que alli estiv<r-sf;em
Aciiretar ení odres lhe podassem.
Destes o vaga 1*050 passo lento
Costuma de mettef toda a Cidadí?
Do crihtatino e liquido elemento
k^iíd contra a sede tèe propriedade ;
JE uquella a;»ua qtie para mantimento
Da Christaa gente, em grande quantidade*
lÁ na nova cisterna agasalharão
Dos poços que ha pola Ilhrf acarreta r?ío.
txxxv.
A voltas da cisterna, se procura
Dar fim ao baluarte, c á grande sal.-^
E põe-se entSo nesta obra tal quentuni
GLue ém breve tempo fazem acabala :
Palmos quarenta a sala tee d 'altura
E o baluarte nisto a ella se iguala :,
Nuo os cercão de cava, porque viao
ííliie o sitio nem o tempo o perniittia >,
o PniMBtnO CBRCO OE Dlff» ^^í
De munições e grosía artilharia
O Silveira o fornece, e delle o mando
Dá a Francisco Pacheco, o qual sohia
A Alfandega da Villa estar julgando :
Setenta homens lhe põe em companhia
De quem confia assaz. Mas esperando
Cumpre que aqui fiqueis hum pouco, em quanto
A Cojaçofar torna este meu canto*
txxxvit.
Kst.*^, depois que a dór que o chumbo ardentt?
Na rota mão lhe tinha antes causadoj
O f«i? fetitar a elle e á sua gente
Do baluarte assaz afadigado :
Para Novanager em continente
Do seu grosso esquadrão acompanhado^
Com apressado passo vai direito
Sem v«^r de seu intento algum efleito,
LXXXVIIl»
A graveza da dôr então o obriga
A deixar algum tempo o que pertendcj
De novo estimulada a fúria antiga
Se lhe alevanta em dobro, se lhe acende ^
K assi tanto que a dôr se lhe mitiga
E o mal que antes sentia pouco offende^
Não faz hum só momento de tardança
Para tomar do novo mal vingança»
txxxix»
Outra veai á batalha os seus inclina,
Outra vet em batalhas os reparte,
Promettendo aos Christuos alta ruina
Faz que voe nos ares o estandarte í
Vingar^se desta vez bem imagina
Do mal oue recebeo no baluarte,
Sahe de Novanager, e n'hum instante
Dos olhos dos CÍiristãos se põe diante •
Àos Christâos n'lium instante se apresenta
Porque ódio e fúria atraz deixão o vento,
Sobre o passo que o Sousa então sustenta
Faz de todo seu campo o alojamento :
Três mui grossos danhões contra elle assenta
Com que espera daí Úiú a seu intento,
Sahe com ardente fúria arrebatada
O pelouro a buscar do Sousa a armada.
xcl.
Mas o Sousa animoso nâo desmaia
Antes se acende mais no mòr perigo,
Também com fúria ardente faz que saia
Do seu canhão o duro ferro imigo,
Gtue aquella imiga gente de Cambaia
De seu atrevimento dá o castigo,
Dando morte cruel a algua delia
De que huns vihhào a pó^ outros em sella.
Xcit.
Entretanto Alucâo nSo descansava
Nom estava ocioso em festa e em gostOj
Antes com toda a gente que mandava
liá contra a Ilha também estaVa posto \
Onde quanto podia trabalhava
l*or dar n»orte aos Christãos^ pena e desgosto^
Nen» têe u''hum so logar a gente unidu
Mas por diversos passos repartida.
Xciiíi
Põe hum grosso esquadrão contra O l*amdsa '
Falcão, que hum baluarte defendia^
Outro contra o Cafvalho valeroso
A que a delensào d''outro competia :
E sendo este seu campo assaz copioso
Com que abranger a tudo bem podia,
Também com gente os dons passos rodeia
(Aue defendem por mar Veiga e Gouveia.
XciV*
íiOgo o Sulfúreo estrondo em1)r'aVccído
Penetra e atroa o arco senhorio,
E o pelouro infiel mal resistido
Tolhe a navegação do estreito Rio,
Com que o caminho entào fica impedido
Por onde costuma ir mais d'hum navio,
Glue aos que estavao nos passos, provimeat^Jlí'
Leva de munições e mantimento. < ^
Hyti OBRAS DE Í^HAKCISCO D''AN»RADr..
Como as disposições que se estão vendo
No Rio, favorrção disto o effeito,
Ainda que os que os passos vao provendo
Bf^m ou mal executem seu conceito,
Disto os Christãos comtudo recebendo
Vao, tanto maior damno que proveito,
€tue esta detens3o fica mais custosa
Do que a Ilha he necessária e proveitosa.
A voltas disto, a gente de Cambaia
Sem descansar hua hora só, pertende
Melhorar suas estancias lá na praia
Q.ue de longo do estreito Rio se estende
Mais se acende com isto, que desmaia
A valerosa gente que defende
Os passos, qual no mar, e qual na tetra
Fazem sanguinolenta, cruel guerra^
XCVII.
iD^hua pafte para outra pouco tarda
Aquella irresistivel fúria ardente,
Sahe o mortal pelouro da bombarda
Para ruina d^^hua e d'outra gente ^
Da delgada também, longa espingarda
Híía e outra parte a fúria subtil sente,
Míseros, tristes, mal afortunados
Os que são destas fúrias encontrados.
XCVIII.
Co'*o8 corpos em pedaços, vSo buscando
A» alma*^ o log^r de gloria, ou pena,
Q,ue conforme ao que nesta vida obrando
Merecerão, lá na outra se lhes ordena.
A Região Celeste penetrando
Vai então dos fieis parte pequena,
E de infiéis hum numero infinito
Entra lá no inimortal, negro conflito.
Mil vcaes se travou esta batalha
Entre o povo infiel e o Lusitana,
E com q«a«ito mais sangue sempre espalha
O povo Mahometico e profano,
Comtudo em melhorar-se assi trabalha
Q.ue rompendo por toda a perda e dano
As estancias melhora onde queria,
Sempre estreitando mais a serventia.
Disto o Silveira vio que era escusado
Defender longamente á gente imiga
Q,ue o Rio fosse delia vadeado
Por mais que a Christâa gente o contradiga^
Vê que esta defensão lhe têe gastado
(Sem que proveito algum delia se siga)
De gente e munições muito atégora,
E que lhe vai gastapdo mais cada hora»
« ^0
í)*2í» oi:ka«í i>e rwAííciscc» » Ai^íitiAnT.
Vqt ísto^ c porque ja tinha acabadn
A cisterna, e com pressa e brevidade
Tinlia ja dentro nclla agasalhada
B^iquaiiea licor gfaa quantidade •,
Determina deixar desamparada
Toda a llha^ e em defensão pOr a Cidadr^
ii pôr a artilharia toda nella 'f >i- ,
íiuanta ptV. na Ilha p:ira defendella,
Vcãe Pin caso tJlb grave c dMmpOTtancín
Conselho, a quem podia aconselha-lo^
iiné por fngir sober!>a tra ignorância
Nao qm2 comsigo só doterftiína-lo :
Todiw com fiGtt i€w, sem discrepância
luhe dizem qae doría effeitua-lo
I)iv maneira que o tinha em si propo^to^
fVz-se isto sendo ja nove de Agosto.
Cllt.
C^oiicíuido isto assí, nao se deteve
(.) sábio Capitão em dar-lhe effeito,
K })or dar a isto a pressa, que se deve
A qualquer importante, grave feito,
Faz que aos que estão nos passos disto levr
U recado hum varSo, a quem de peito
Animoso dotara a nattireza,
f. que era Alcaide-^mór da fortaleza «
o PKtMBtnO C1í:RCO D£ Dtt'. 3â7
CIV.
Payo Rodrigues este se dizia '.-..a
E lá dos Aranjos traz a linha*
j^go aos passos se vai, e denuncia
K gente que a defensa a cargo tinha^ ^
tilue tanto que o Sol desse fim ao dia *(!
Mandava o Capitão (porque convinha) *
Q<ue nenhum mais alli se detivesse
Mal que logo á Cidade se viesse»
CVi
M.itida o Cipitão a este que tomasse
A harcaça qUe em companhia andava
tiá de Lopo de Sousa, e a ptescntasse
Ao baluarte que o Falcão mandava*,
K que a recolher nella lhe ajudasse
tluanto no baluarte entSo estava
íAue para a guerra sirva ou lhe convenha^
Artilharia, oo gente, ou mais que tenha.
cvi.
Manda hua grande fusta áquella parte
Na qual era o Carvalho obedecido^
Para que quanto tèe no baluarte
Também fosse então nella recolhido»
Trar a barcaça a fusta logo parte, •
K sendo destes dous bem entendido
O que manda o que têe geral mando
Sem detença o vão logo effeituando»
3i8 OMSÂS BC FHAVCiSCe D^AXDKAIIE.
CVII.
Adiante tia estancia encarregada
Ao famoso Falcão^ de gloria amigo,
O nobre Capitão pót hua armada
Temendo ne&te passo algum perigo :
D' António du Veiga esta he governada
Como (»e vos lembraes) atrax ja digo,
De quem disse qne tinha hum grande esprito
Nem me arrependo inda de o ter dito*
cvui.
Nesta armada que ao Veiga he obediente
8obrc duas galeotas que ahi andavão
Alguns cátures ha, e juntamente
Outras fustas subtis a acompanhavSo :
Frota para render sufficiente
Muitos dos que o Aleorão fiilso adoravao
Se de temor não forão combatido»
Jlurw pcito3 sempre fortes o temidos,
€fX«
Veiga, sendo-lhe ja denunciado
Isto que o Capitão Silveira agora
Aos que estavíío nos passos tèe mandado,
Nao quer em dar-liie effeito pôr demora ,
•K cada Capitão enct»mmendado
Deixa o próprio navio, e salta f6ra
Klle na Ilha, e d'abi com grãa prpst«7a
Por t<»rra veio ter Á f»irt:d«v;v.
I
. n PHIUMRO CERCO D£ DIV. 329
CX.
A armada, em tendo tempo (com desejo
D^ir trat acu Capitão) se faz de largo \
O Falcão e o Carvalho neste ensejo
Põem por obra o que ihVTa dado a cargo.
Mm porque tão comprido o Canto vejo
4lue mais do que devera ja me alargo,
Perdoai-me se hum pouco agora cesso,
J-éií avante vereb destes o succé«80.
o PBtl!Ui:iRO
CERCO DE DIU.
JPerdem^se dum fustas da amtadtL de António
da Veiga. Pcrdem-te também as em,bar€a&
^ões em> que vem Gonçalo Falcão^ c Luix
Rodrigues de Carvalho ,' e humas c outras
vão ter a poder dos inimigos. O Capitão^
depois de fazer algumas diligencias necessa--
rias na Cidoxie^ a solta aos Mouros^ e se
recolhe á fortaleza. Alucuo e Cojaçofar en-
irão na Cidade^ e assentuo seus campos^
Contuo-se algumas cousas que entretanio
succedêrão d''hua e d^ outra parte.
\^ue presta ao Capitão a valentia^
Ser esperto, sagaz, forte e prudente,
Gluando de sua gente a covardia
He somente ao temor obediente,
E o desampara mais naquelle dia
Em que a necessidade he mais urgente,
Só d^hum vâo arreceio combatida
l)e ser posta em perigo a inútil vida.
o PRIMEIRO CERCO DE DIV. 3Ò(1
Cousas sao que h3a á outra favorece
O forte Capitão, e a gente forte,
E se destas qualquer á outra falece
Logo segue vergonha, infâmia, ou morte
Por onde as mais das vezes prevalece
Aquella parte a quem a imiga sorte
GLuix dar, para a fazer victoriosa,
Com forte Capitão, gente animosa.
Sendo desamarrada aquella frota
Glue pouco antes o Veiga governara,
Para seguir com pressa aquella rota
ôue o geral Capitão antes mandara,
Forçado lhe he passar não mui remota
D''hua formosa estancia que assentara,
A damno dos Christãos, n aquella praia
Junto do Rio a gente de Cambaia.
Eolo naquella hora solta tinha
A hum grão vento a prisão que era si o encerra,
Gtue com grãa força então ferindo vinha
Aquelle Rio, e toda aquella terra.
Também a imiga estancia, que visinha
Eslava ao Rio, faz áspera guerra
Aos que por elle vinhão navegando,
Co^o ferro que o canhão está lançando»
TòU OURAS D K l'M4XCIbC0 JJ*ANUKADe.
V.
A imiga artilharia, e o bravo yento
GLue com graa fúria a armada visitavào,
Aos Ministros perder fazom o tento
Qluc as duas galeotas governa\ ao ;
Tanto que antes de andarem passos cento.
Sem atinar por onde navegavão,
Dão em logares de agua tão vados
Que não podem nadar mais os navioí».
Com \erdadeira então, clara apparenciii
Desta gente, o temor se pdz na praça,
Pois sem pôr nisto algua diligencia
Toda por se salvar co'o Rio se abraça:
Nem tèe a Capitão obediência
Q.ue ora roga, reprehende, ora ameaça, /[f/^
Q,ue então nenhum mandado, ou poder segue
Senão o do temor a que está entregue.
v«.
S<5s dos dous Capitães acompanhados
Os navios estão (se não me engano)
Q,ue os m;>is vejo ir nadando aqcelerados
Trar hum desejo vil, não Ijusitano.
De todo os Capitães desesperados
Se vem, de dar remédio áquelle dano,
Porque a força de muitos neste feito
Cumpre hnvcr, nno de dous o fartf peito.
« miMBlRM CKBCft UC OtV.' o ^'S^
VUI.
E Vftudo que }>or mais que entuo úzessèiu ; íi
Nenhum salvar podia o seu navio, í;^
Para que elles também se não perdesseni
Determinão também lançar-se ao Rio:
Mas porque as galeotas não viessem íí3
Dos imigos cruéis ao poderio, :»A
Q,uanto fogo pudcrão lhes chegarão >(I
£ começando a arder as desampárão. ' '
IX.
Mas com quanto trabalho cUes puscrão'
l*ara que dos imigos possuído»
Os navios nuo fossem, não poderão
Nisto os seus bons desejos vêr cumpridos, iiM
Gtue os navios emfim íimbos vierão <'i
A poder dos imiííos mal ardidos,
Com quan'a artilharia dentro tinhao
£ as mait cousas que dentro ncUes vinhau.
Nunca veio hum grão mal sem companhia,
Q.ue a fortuna |íor pouco não comei;a.
Na barcaça o Falcão da artilharia
Recolhera a miúda e a grossa peça.
Nem a grande revolta que lá havia
No baluarte então faz que lhe esqueça
(iualquer cousa das que elle dentro enc€mi
ôue podessom ser boks par» guerra.
334 OBBAft DK PKANCIACO D*ANnRADK.
.XI.
E no tempo que os dous navios ardiao,
Porque a gente a salvar-*e os não ajuda,
Três ou quatro caixões fora se vião
Olue nao pode embarcar, por mais que estuda
Estes dentro em si todos recolhião
Aquelle negro pó, que com ajuda
De qualquer leve chamnia tão mal trata
G.ue tudo acende, assola, e desbarata.
Mas como as grossas chammas que aUreixavâil
Os navios Christãos de que atras fallo,
Causassem grão temor nestes que estavão
Em companhia então do grão Gonçallo,
Por fugirem do mal que imaginavuo
Começão de querer desamparallo,
Ao mal futuro mais obedientes
Ô-ue a mil obrigações que tèe preseút«9.
XMl.
O Falcão valeroso que isto entende
Receioso d^algua desventtira.
Por mil vias cura-la então pertende
Qual mostrando aspereza, qual brandura:
Ora os manda, ameaça, ora os reprehende.
Ora os roga, os anima, os assegura,
Ora lhes põe diante a Portugueza
Honra, no mdr perigo mais acôza.
,^i4 ;4'#^Mi^iUi> cKnçH nu, iiifc. 'S^4
Náo foi de totlo om vao, e t^oi ^roví;ífc<i
Deste forte varSo o grão cuidado,
l*orém delle náo via mai» nutro eôeíto
G.ue nao te vôf díw «eus desíun [íarud^í ;
Porque fteou em todos inda o peito
D''lium tamanho arreceio acompauliado,
Q.ue por não se deterem mais meia hora,
ISão trazem os í;ai:ç.òes r|uo e{»ta\iío fí5ra»
Nitio pòe.^X^aleSo sua eloquência,
Beii mando, «eu poder, mu valia,
Mas acha no temor grá^i rcfciíiteuíii^
ttutí eiií^Q a ú somente obedecia ; ,j /,
E vendo que nenhua dilige^ieia -. ;'»|
Lhe ba&ta u dar otteito ao qu» queria,
Pondo fogo apft euix^eg d^alli se parltí
E deixa quttutfl jíotjtí o baluarte, '^mli:»»'^
I)it*to, u que o torça então n6ceM>ida.dti
Depois Imm grave damno lhe suceede.
Porque o resplendor mr-*mo o chiriílad**
lílue então o auefio [ió do si despede,
Em meip da tíerrudu eàcuridado
Com c\iUi n noite aos mortaea a vil»tH iui^iiv*
Aos imigog mostrou quão earregadii
\iú a barca^'a, o mal apparelhadar
Elte», a quem hum ódio antigo incita
A destruição do imigo Lusitano,
Porque o- peito brutal onde este habita
Jamais naa se fartou de fazer dano,
Hua e outra rez levantão a alta grita.
Porque com. estas mostras, este engano
©""irem traz os Christãos, os amedrontem.
Ou na ida os embaracem, e os affrontem.
Não lhes sahío em vão seu pensamento»
Antes muito melhor do que euidavao,
ô^ue esta falsa apparencia e fingimento
A que então os Christãos credito davão,
E aquella grãa tormenta e bravo vent»
íkue (como disse atraz) então levavão
Põe a barcaça em secco, mas sahíra
Facilmente, se o medo o consentira v
XIX.
Porém a gente delia, que então vinha
I)'hura temor entranha vel combatida,
Nem outra salvação cuidou que tinha
Senão só n^hua vil, torpe fugida ;
Sem tratar do que a sua honra convinh*
<Com deshonra antes quer salvar a vida,
Lança-se com grãa pressa toda ao Rio
Deixa seu Capitão s6 no navio*
« pniMF.ino cF.nco dk inv. 337
E com tanta presteza as ondas fende
Q.ue em breve espaço lá na Ilha apparecp,
Q.ue como entjío salvar-se so pertende
Contra a tormenta e vento prevalece :
Outra vez o Falcão roga e reprehcnde.
Mas nenhum o ouve então, nem lhe obedece.
De baixeza os argue, o d^ira cheio,
Mas tudo então vai menos que o receio.
fi vendo cmfim que em vao têc consumido
Rogo, mando, brandura, ou aspereza,
Por salvar hum navio ja perdido
Por medo de sua gente, e por fraqueza,
Parte d^hum furor grande combatido,
Parte d''hua profunda, alta tristeza.
Deixa o que só não pode hum forte peito
Salvar, e lá á Cidade vai direito.
XXII.
Grua áòr trouxe, e grão damno isto que (iíço
A gente que o Evangelho Santo estuda.
Mas ao povo infiel^ profano e imigo
Deu grão contentamento, e grande ajuda :
Porque houve então dez peças (sem perigo)
D''artilharia grossa, e da miúda,
E armas, e cousas desta qualidade
í>as quaes a guerra tèe necessidade.
Nem rotii cfllc 9f}gat)fJo datrítio ccswt
A Bnrtc desta noite dcseitrada,
Antea II pjit.otf ja vrndo c^«e se nprn^?i.t
3*arH outra ppfda igual a esta passada.
í) fliúmoso Ccjrvaihn com grâa pm^^sn
Na ftista que lhe lá fora levada
As nrmai «'mbarcou, e artilharia-,
K o (j'ií» PO baluarte mais havia.
T\ao ífí detém alH mais hum ínstartc
}\iríe logo, e á Cidade vai direito,
VcTÚir) nem elle passa tanto árantc
(Xuc chegue em salvo no fim com este feito i
Porque com menos causa, c semelhante
Modoj de SCO intento vio o cíteito
(iuc Tira antes do seu o grtío Gon<;a1o,
Som bastar diligencia a remedialo.
Pcjrt* ti!rceíra perda c des%'Gntura
Grão proveito os imigos aicançáraOj
Os fjiiaes n^hua «ó noite, triste e escura,
K funesta nos Christâos, vi que cobrarão
Cousa, que em largo tompo por ventura
J'()dcrení cobrar dellcs nao cuidarão,
K o pfior hc que a causa deates dano»
V<>i len^nr do» temido? liUí^rtann^,
o y R 1 M r. iv.à c r rco d í. » i l . 3 39
XXVI.
L^ipo de Sousa aqui se mo apresenta,
Dtíile quero cantar,- a elle quero irme,
K nisto que diíer meu canto intenta
Bem sei que folgarão todos d^ouvirrae.
Parte-se este também, e a grâa tormenta
IjÍi da parte o lançou da terra firme,
K como ja a maré então vazasse
Forjado foi quo cm torra alli ficasse.
XX^lL.
Aqui SC cspcrU laai^ o varão ibrte
Q-ue nuuca arreoeoa grandes perigos,
K vendo porque via a adversa sorte
Causou a perdiyão a seus amigos,
|! Vê que IKe cumpre, por fugir á morte,
[1 Ter maia tento nos seus que nos imigos,
l{ <3om quanto os achou sempre acompanhados
1 De valerosos peitos, e esforçados.
K para eífcíto disto que queria
E ter da sua gente segurança,
Alaga o seu batel, que s6 podia
Dar-lhe de salvação hCía esperança :
E como alli mais largo o Rio se via
Q.UC em todo outro logar nenhum, se lança
A elle, porque 8€ vê desesperado
De se poder salvar então a nado.
.1fO
OBn\S nií FRANCISCO D ANDRADE.
XXIX.
Em meio rrhwm perigo tal, tão certo
Passâo a noite dentro no navio,
Aqni se mostra o Sousa mais esperto
Com quanto de temor nào he vazio.
Porém tanto que á terra descuherto
Foi da fresca manhãa o raio frio,
N 'outro perigo mor se vio mettido
Glue a noite lhe teve antes escondido.
Vio que o Rio por onde nave<^ára
Gtuando a busca-lo o mar de fora vinha,
Agora que se o mar ao mar tornara
E o Rio se ficou só co^o que tinha.
Hum grande espaço delle se apartara
Deixando-lhe alli a morte mais visinha ;
Mas em quem a esperança pôz fraqueza
A desesperação pôz fortaleza.
XYXI.
Esta era aquella gente que o Coutinho
Na galeota alli tinha comsigo,
A qual vendo que agora têo visinho,
Sem pode-lo atalhar, hum tal perigo,
E que nao têe então outro caminho
Para escapar das mãos d'*hum bravo imigo
Senão o que lhe abrir a sua espada,
A qtie antrs era fraca, agora he ou«!,ida.
o FRIMSIRO CURCO DF. BIV. 3»!
XXXIl.
Mas bom lhos cnmprc ter ousado osprito.
Do braço forte usar, duro, e constante,
Porque em vendo o infiel povo maldito
Q.tie nao pode o navio ir mais avante,
Ajuntão quasi hum numero infinito
E em derredor o cercão n''hum instante,
Com aquelle furor a que os incita
O grande ódio que nelles sempre habita.
XXXIII.
Sahc ao cerrado corro, aonde o rudo
Povo o estava esperando alvoroçado,
O touro inda entào manso, inda sisudo
Q.ue a garrocha o não tèe estimulado^ ■ -^
Mas tanto que o punjjente ferro agudo ' T
Por mil partes sentio, cruel e irado
Corre e salta ligeiro, bravo, e forte,
Hum derruba, outro fere, a outro dá a morte '.
XXXIV.
Tal vejo cada hum dos valeroso* >^1
Peitos que a galeota agasalhava, -^-^
Q/ue vendo huns esquadrões tão copioso» >*í
Algum tanto o perigo arroceiava, ^íT
Mas tanto que dos ferros sanguinosos í'>-^
<>)meça de sentir a fúria brava, O
De tamanha ira e esforço fica cheio '^
i-ilue fay. temer a quem lhe pAz receio, '"^
342 OBRAS DE FRÀKCÍSCO I>*ANOBApr,.
XKXV.
Move logo o subtil aço luzente
DMiua parte o iwfiol tíraço Cambaio,
D^outra faz com a usada fúria ardente
Da espingarda sahir o subtil raio,
Tudo para que áqueila pouca gente
Portugueza então dê morte ou desmaio '^
E isto com tantas gritas, taes clamores
GLue os Alcides tremerão, e os Heitores.
A Pottugueza gente que de usada
A estes clamores, ja pouco os estima,
E CO ''o grande perigo feita ousada
Cada vez mais se acende, e mais se anima,
Também com arcabuE, com lança e espada
Aquella imiga gente assi lastima,
Q-ue valer menos ve com sangue e mortes
A fraca multidão, que os poucos fortes.
Não SC apaga com isto a fúria acesa
Com que o Cambaio entrou nesta batalha,
Porque com quanto a gente Portugueza
Do seu sangue graa copia então espalha,
Comtudo vér o fim daquella empresa
Com tamanho furor inda trabalha,
€lue sem ter couta ja co'as suas vidas
As dos Christãos procura ver perdidas.
o PRIMP-IRO CKRCO DF. DiW .143
Mas com quanto furor e diligencia "*
Põem agora os Cambaios quasi insanos.
Com dar vidas e sangue a competência í
Por vingar este novo e os velhos danos. >
Achão poréfla tão dura resistência
No pequeno esquadrão -dos Lusitanos,
Q.ue quanto este furor os mais inflama [ nO
Tanto mais do seu sangue ae derrama. ' *
XXXIX.
Durou esta conteodá furiosa 'míVÍ
(Tão desigual na gente c iia ventura,
Porque muitos da imiça e numerosa f
A região descerão stigia € escura.
Mas a pouca fiel victoriosa
Toda era salvo ficou, livre e segura)
Até que o mar tornou a entrar no Kio
E fez com que nadar pôde o navio.
Isto seria entilo (se í»5o me enleio)
Bem duas lioras antes que o Sol chegue
Daquelle arrebatado curso ao meio
Com que forçado a nona Esphera segue-
Tanto qtie á galeota a maré veio.
Com quanto a grãa tormenta inda a persegue
Dos ventos, quer vencer a pertinácia
Qoiem dos Mouros venceo a contumácia.
3>4- OURAS DF, FR XXCIiCÔ l>*AXDRADr.
XLl.
O Marinheiro o^pierto a Volla estorulf»
Q.ue sentindo do vento a grãa braveza
Com tal fiiria o navio as ondas fende
Une á Cidade vai ter conn grãa presteza.
O Silveira mil graças ao Ceo rende.
Mil louvores á invicta fortaleza
J)a pouca gente, que com forte braço
A tanto resistio tào largo espaço.
XLU.
Vendo a imiga gente de Cambaia
Km salvo os (^hristãos ir tão apartados,
Deixando cheio o Rio, e cheia a praia
Dos seus corpos som almas nao vingado»».
Ora se acende mais, ora desmaia,
Porém todos confust>s e pasmados
De fazerem tão poucos tal cstroço
Em tristeza convertera o alvoroço.
XLIII.
Tornão-se logo ao seu alojamento
tíluiçá com mais temor que confiança.
Menos sentindo a perda e o detrimento
Q-ue nao tomarem delle grãa vingança.
Mas como não consente meu 'intento
(iue eu faça n^hum logar longa tardança,
Fiqu«;rn-se estes (rhorando sua tristeza
tJlu« eu dVqui lá me vou Á fortalev-a.
o PRIUIIIR . tF.RCO DE Dí l" . ."i íi
XLIV.
Pouco ha qup a minha historia vos dizia
Q.ue o famoso Silveira antes mandara
Trazer 14 da Ilha twla a artilharia
Q,ue para a defender nella espalhara,
{A. qual disse tamheni que a covardia
Dos Christãos aos imigos entregara)
Para que co"*© favor que ella lhe désso
Defender a Cidade então pudesse.
Vendo-a agora em pofler da imiga gent«,
E não somente em vao ir seu conceito
Mas que (uz que aos imigos se accresccnte
O poder, e que o seu tenha defeito,
Menos medroso assaz que descontente
D''hua gràa cimfusão se lhe enche o peito,
Mil cousas differentes imagina
Mas em nenhCia emâm se determina.
XLVI.
Determina porém aconselhar-se
Glue o bom conselho as menos veies erra,
E para isto poder effeituar-se
Co"*a pressa que convém naquella guerra,
N^hum secreto logar fuz ajuntar-se
A Fidalguia toda que ha na terra,
E dos outros qualquer de quem se sabe
Q<ue aconselhar naquillo bem lhe cabe.
.i4r> canAS jDK ru\'<cis<;o ii*A^'DnAr»F,.
XLVlIí
Perante todos úiz que elle cráenava
d,ue fosse na Cidade Tecolhida
A artilharia toJa qtje \Á lutava
Poios logares da Ilha repartida^
Porqtie poder com cUa imaginava
Ser do imigo n Cidade defendida,
E da Ilha a defensíio (que he iSo cirstosa)
Nâo 8er ja necessária, e ser damnosa.
Porem pcns permíitio o Rei qoe mora r rfiitfi'/
Lá na Kterna e Sirprema Claridade
Q-ue oóbraflSG a cruel gente que adora
Do profano Alcorão a falsidade
A artilharia toda, so n^hua hora,
Com que então defender quer a Cidade,
E também os navios que a trajtiâo,
Agora vissem nisto o quo fariao.
XLtX»
Com pouca altercação, pouca contenda
Este negocio foi averiguado.
Porque entre elles não ha quem ai pertoiída
Que o bem commum sem animo damnado:
Neíihum approva então que se defenda
A Cidade, mas foi determinado
Por todos, que 8C deixe á gente imtga
Sem haver hum rd qoe Í!*to contradiga.
o nniMElRO CERCO DT. Bir
Níiõ move hoje nnrcdo «quollcs pcitofi
'X\ifí nijfiM a nipflmrT morte arrpcoárão,
M;i8 pnr justai fasoes, justo» respeitos
Defender a Cidade reprovarão.
Somente nqnpiles mo illnstrcs feítoi,
Aquelles scíi fiuthor sómontc? honráran
fitie ft rasâo c a priidenoia ice por gaia»
\no hda temorana vtilentia.
11.
A rasao disto fot, vôr «jiie eomrinha "Tf^ff ?í+*»í>v^
Q-uc Já da fortaleM se tirasse
í*artc da artilharia qwG em si tinha
Com q«ie a Cidade cntSo se sustentasse ",
A nu;\\ como era potica, e mal »u»tinha
A fortaleza »d, se se espalhasse
K por ambas as parte» se reparte
Kica 8cm defensão hfia e outra parte,
ttl.
Nía^se «a Cidade juntamente
l'ara se defender tamanho espaço,
K que era alli tao pouca a Christâa gelitr
E provida tâo mal de corpos d'aço
Clue poderia ser mui levemente
Por mais forte que tenha e duro o braço
(lue desta defensão causa naBcewe
Por onde a fiirtale^a se perdeis».
5t8 OBRAS DF, FftÀ.viisco h' asduxut..
Liir.
Estas o outras rasões que so aqui derao
A que outras em contrario nâo se achavão.
Tanto os peitos então satisfizerao
De todos os que alli juntos estavao,
Glue todos a hua voz juntos dissorao
GLue a defensão de todo reprovavao
Da Cidade, entendendo que este feito
Mil graves damnos traz, nenhum proveito.
Nesta hora sendo ja toda a profana
Gente lá dentro na Ilha recolhida,
Agora que não he da JLusitana
Gente, como pouco antes, defendida,
Sahem de lá (se a vista não me engana)
De cavallo três mil, gente escolhida,
E dos que vem a pé grãa quantidade,
E vão dar vista junto da Cidade.
Vendo a gente infiel que nella mora
Q>uão perto estes alli lhe apparecião,
Por mil partes bandeiras logo arvora
Q,ue a profana divisa descubrião.
Dando miiitos signaes aos que estão fora
Do que dentro seus peitos escondião,
GLue o peito alvoroçado, e mal qnieto
Náo sabe o seu conceito ter secreto.
X.VI.
Gerou-se-lhft d'aqui tal ufania «
Que causarão na terra alguns insultos,
Virão-se em muitas partes neste dia
Ajuntamentos grandes e tumultos,
©""onde bem claramente se entendia
ô.ue em hábitos pacíficos e occultos
Em si a Cidade então grãa cópia encerra
De gente imiga usada a andar em guerra <
LVII.
E porque ja fazia fundamento > <'íí íí (/' .,; "i
De deixar a Cidade o grão Silveira,
Manda alguns que co"'a força do elemento
Q,ue nas veias está da pederneira,
Com grande brevidade, e com grão tento
II uns navios que estão lá na ribeira,
Q.UC da chumbada faia são Icvadot^
Deixassem consumidos e gastados.
E manda que de íá se não tornassem
Até que hua assaz grande quantidade
DVnxofre e de salitre não queimassem
Q.ue n^hum dos armazéns ha da Cidade^
Matérias infernaes, que se faltassem
Faltaria também a crueldade
Da pólvora infernal ruiu adora
Com que a morte- se fez tão grãa sciíhora.
Partera-se logo aquelles que então tinha
Mandado o Capitgo para esto feito,
GLuem erão não descobre a historia minha.
Porque os nâo conheceo, porém do efteitu
Se verá que não tèe quanto convizihii
Constante, valeroso e forte peito
Para isto que lhes foi encouimendado,
(aluai foi dos Portugueses sempre usado,
Chegao lá ao logar onde nppareceai
Os navios ao fogo condemnados,
Art«rficio8 do fogo não fallecem
Mas fallecem então peitos ousados ;
Estes a seu temor mais obedecem
Glue ao que por mil rasões fcío ohrigado5íj
Faz-lhes isto desejar com graa prestcíiu.
Tornarem- BC outra vez á fortaleza.
Deste tSo vil desejo combatido»
Tão mal neste negocio se ordenarão,
Glue com quanto assaz vao apercebido*
Para isto que tão mal efleituárao,
Nem os seccos navios bem ardidos
Nem o enxofre e o Salitre então ikárão.
Sendo matérias todas em que a ardente
íJhamma, faz seu ofticio facihuentc.
LKII.
A fortaleia emfim se recolherão
£stes^ que vida mais que honra queriSo^
Onde o Silveira e os mais os receberão
Co^o ga&alhàdo que elies merecião. '
Os navios com tudo o mais vierão
Taes em mãos dos imigos, que podiao
Inda dcUes assaz aproveitar-se. i
Mas meu canto ao Silveir» qi^or yoltar-«C4^^
ixni.
Toma este varSo forte om companhia
Dos que comsicço têe cincoenta pares,
Entra pola Cidade, e onde se via >
Ajuntamento algum (que he em mil logawfc,!
E os mais nas p^irtes onde armas havia) :' ri >
Huns faí pola garganta erguer noa ares,. roA
D^outros as miseráveis almas lança r. ''*
Polas portas quo lhes abro a tesa lan^> .-. i
LXIV»
Mas nem erguido no ar receho a morto,, p O
Nem fof então com lança trespassado, tw'í
Sen3o somente aquelle a quem a sorte
Adversa permittio que fosse achado
Em habito de guerra, igual ao fort©
Esprito de que estava acojnpanhado ;
Maíj mais valera então tê-lo covarde
€tu« rendido quiçá fora mnn tanlo,
âbâ «iáUAS av. rAAHCISC« S^AUJOItADE.
Manda também Silveira que dos vivo»
Gluo sua habitação alli tivessem
Sós quatro Mercadores vão captivos
Da terra os priíicipaes, nào porque dessem
Estes algCías causas ou motivos
A algum ajuntamento, ou o soubessem,
Mas porque succeder males podião
Q.ué com elles quiçá se curarião.
ixvi.
Acabado isto assi como aqui digo
A fortaleza far recolhimento
O Silveira co'os seus, sem que perigo
lihc succedesse algum, ou detrimento.
Os Mercadores lá leva comsigo ^ ^ . ^>«^
Aos quaes mandou fazer bom tratamento,; ,jfj[
E usando emfim com elles piedade
Depois do cerco os pôz em liberdade.
LXVII.
O que daquelle dia inda faltava
Por passar, se gastou quietamente,
Porém tanto que a luz que alumiava
A terra, »e escondeo lá no Oocidente,
Logo a gente infiel que dentro estava
Na Cidade, áqueFoutra infiel gente
Q.UC estava fora delia agasalhada
I>í*cubrio que clk estava deíípejada.
« miMKIKU CtRCK »]í »IV.
LXVlil.
3^3
Com alvoroço jçrauíle, e com çrSo goàf«
Este recado então foi recebido
Do Cambaio esquadrão, porque disposta
Cuida que teo o imigo a ser vencido.
Logo para a Cidade muda o posto,
Onde ioi dos de dentro recolhido
Com cousas que á tristeza são coiítrarièiH,
Tanger, eacitos, folia», lumiiiarixs. >ui^
E porque húa sacrílega e maldita
Seita, de que elles são adoradores,
A louvarem Mafoma os move e incita.
Por serem tão sem dam no vencedores,
Yi»itão ora liua, ora outra Mesquita,
Onde lhes dão por isto mil louvores»,
S nelles lambem dura este exercicio
Ate que torna o Sol u seu ofiicio,
LXX.
Tanto que estes louvores acnhárao
Em damno dos Christãos logo entenderão,
íi-uo este acto pí)r tao pio então julgarão
<>omo est^outro que pouco antes fiíerãc*.
liogo alguas bombardas assentarão
Daquellas que os Christãos antes perderão^
Junto d''himi cães que estava edificsdo
Lá onde o Mandovim he nomeado.
3â4 OBJtAS BE FRANeiSCO d'aHDRA&£«
Fronteiro ao baluarte que defende
O mar, este logar posto se via,
Porém aa baluarte não pertende
Damnar agora aquella artilharia ;
Somente seu furor então acende
Lá contra a embarcação que defendia
liopo de Sousa, e alguas fustazinhas
€tue á fortaleza então erão vizinbas.
E em se mostrando o Sol lá no Horizonte
O Cambaio furor mais não aguarda,
E a damno dos Christãos que tee defronte
liogo o aceso murrão chega á bombarda •,
Sahe o estrondo, retumba o valle e o montej
O pelouro traz elle pouco tarda, • '
Q»ue contra as fustas leva seu caminho
E contra a galeota do Coutinho é
£XXIII.
Não foi de todo em vão e sem proveito
Desta gente infiel o imigo intento,
Glue o pelouro cruel vai tão direito
Q^ue duas fustas manda ao fundo assento.
Recebe a galeota neste feito
Alguns tiros, com pouco detrimento.
Mas nos que são nas fustas companheiros
Perdem a vida alguns dos Marinheiras»
^ rRtMKiRO CBRCO fiS DtV. 3^
LXXIV.
Passado este combate não repousa
O dia inteiro a gente Portugueza^
Mas também se dispõe a fazer cousa
Q.ue aos imigos fará pôr-se em defeza.
O Capitão mandou Gaspar de Sousa^
Nobre varão^ a quem a mor em preza
Se pode encomraendar com confiança,
Q.ue ponha a sua gente em ordenança^
E apoz alguns Christãos faça a jornada
Glue tèe de seu favor necessidade,
Os quaes tendo antes fora sua morada
A pressa de se vir, e a brevidade
Fez que de cada hum fosse deixada
Lá fora, essa pobreza e pouquidade
De que se sustentava, e agora estuda
Torna4a a recolher com sua ajuda.
LXxyu
Parte logo o varão forte e animoso
E aos roubados Christãos leva comsigo^
A muitos inda então foi proveitoso
O seu favor, porém não sem perigo ^
Porque como depressa, cubiçoso
Polas casas andasse ja o imigo.
Alguns Sousa matou, e da sua gente
Poucos feridos vão, morre hum somente.
3:>6 «HRjis um v9.kifeiê€o d^a^ídr.íde
rxjtvii.
Mitó como o tempo ja vejo ir chegíindo
Do cerco, que iia mão me poz a penfr^
íiá aonde o Portuguez nâo descansando,
<Mm perda dos imijços não pequena,
O Beu grão nome foi eterniíHindo :;
Descnbrir-vos também meu canlo ordena
O logar em que o seu pendão arvora
O que honra a Mafoma, e o que a Ghristo ador*.
LXXVIII.
Aquelle Italiano renegado
44.ue os Caínbaios moveo a esta crae^T,
De quom atraz ja tenho declarado
i) nome, a pátria, a vida, a naturcKa,
l/íi no logar que disae ser chamado
1) Mandovim, que he junto á fortaleaa,
Kntão da sua estancia póz o assento
K do seu eíquadrâo o alojamento.
LXXIX.
AlucíTio, que o poder c o mando tinh»
ííeral em todo o campo, lá se encerra
Nas casas que antes íbrSo da Rainha
tlue o misero Baudur lançou na terra ;
*^ui; estão n'Iium logar alto, qual convinha
A sua antiga idade, a quem a guerra '
fJâutí sempre a inquietações está sujeiti*)
He mui conveniente e mal acceita.
• pniMF.ino iciteo »■ ivir. ^^7
O Silveira entre tanto nSo repou%a,
Também stias estancias lá reparte \
A Gonçalo Falcão, o qual tudo ousa^
De Sâo Thomé encommenda o baluarte;
D"'outro que he mais pequeno, ao forte Sousa
Cujo nome he Gaspar, e qtie na parte
Está posto, onde o canfo está do Rio
Deu a Capitania, e o Senhorio.
LXXXI.
Nno reparte isto assi, ptirque arreceia
Q.ue a gente imiga que alli tec presente
De tanto esforço e esprito seja cheia
<Aue combater a fortaleza tente \
Mas porque estes logares que nomeia
Kntào para guardar á sua gente > J*I
liho dêem em que se occupe, c em que ja entcnfhí,
K assi mais se alvoroce, e mais se acenda.
LXXXll.
Aquolle illustre Lopo e valcroso
Que das alcunhas tèe 8o«»sa a primeira,
Na occupaçâo geral nSo he ocioso
Também lhe dá em que entenda o grão Silveira,
Porque então hum negocio perigoso
Com a gente que segue a stia bandeira,
Em que se ha d'*occupar, lhe poe diante
A?«iaz aos Portugueses impt)rtante.
ffaS OBRAS Dft &RANGÍSCO D^ANOiRÀDtC»
LXXXlIl»
Manda qiie qtiantas Vezes os douradoa
Raios do hahitadur da quarta Esphera
Vir nos cumes dos montes espalhados
Q-ue escondidos no mar antes tivera)
Do Cambaio furor sejSo guardados
Por elle aquellesj cujo costume era
Da sede defender huns peitos fortes
Poios quaes defendidos são das morteSi
IXXXiVi
Mas como esta com m um necessidade
Tèe remédio n'huns poços que lá estavão
Pegados com as casas da Cidade,
E aquelles qUc então a agua acarretavao
8ào moçoS) e mulheres, onde a idade
E o medo natural fraqueza davão ^
Perigoso logar, gente covarde,
Forç^ido lhe he que leve quem a guarde.
tXXXVi.
Nem he si> desta inhabil getite o officio
A de guerra fa?.er com que agua tenha,
Mas juntamente tôe por exercício
Daqueilas mesinas casas trazer lenha ^
As quaes com militar, douto arteficio
Se mandão derrubar^, porque não venha
Hum tempo em que um ChristSos sejão damnosas
Por ratarem em partt ;^ p<ri^o.««ns.
<y vftiMstno CBHCo de div. 3o9
LXXXVI*
Pt)réin com quanto assola, e a tefra deita
Estas casas a gente Portuguesa,
Inda o imigo assaz delias se aproveita
Iriuando a fúria depois foi mais aceza.
O esforçado varSo contente acceita
Aquella, inda que dura, honrada empreza,
Sahe cada dia ao campo, e com seu braço
Far. agua e lenhrv sahir sem embaraço.
LXXXVIl»
Neste exetcido tai continuando
Com perda dos imigos, sem seu dano,
Porém inda até então accrescentando
liem pouca g;loria ao nome Lusitano ^
Até que aquelle dia chega, quando
A vigília a Igreja traz cada ano
Do dia em que a fectmda Virgem Santa
Ao Reino de seu Filho se levatita. iftt-.í; «O
LXXXVÍII.
Sahe neste dia o Sousa a dar ajnda
íComo em todos os outros costumava)
A gente popular, fraca e miúda
Q.ue d''agua e lenha o forte sustentava '^
E como assi no mal do imigo estuda
Como tio bem daqoelles que guaidava,
Vendo bom tempo então para este intentw^^^
Ntto quer delle perder hum so momento. '<^
3âO OBRAS Dfe FRANCISCO D^ANARADf:.
LXXXIX,
VA que algQa daquella gente imiga
Qne de Cojaçofar segue o estandarte,
Solta, e sem Capitão a que então siga,
Sem ordem, d'*hua vai para outra parte ^
Trava logo com ella áspera liriga.
Com fúria que temor puzera em Marte ij
Muitos delles sem vida alli ficarão,
£ 08 mais em sangue envoltos, se salvarão.
Os tenros pintainhos que apartados
Acaso estão da mãe, picando a terra,
Sendo da imiga ave salteados
Glue hum deixa ensanguentado, n^outroafTerra,
Os que esoapão não vão tão apressados
Até que a mãe nas azas os encerra,
Como estes vão em quanto os não recolhem
Os arraiaes dos seus, aonde se acolhem.
xci.
Porém depois que lá dentro se mettem
Trabalhão desculpar sua fraqueza,
O desmando hua vez e outra repettem
Dos que sahírão lá da fortaleza :
Hua victoria certa aos seus promottem
8e os Christãos vão buscar com grãa presteza,
Q,ue o numero pequeno, e o grão desmando
O*» começão ja «rir desbaratando.
o PlRIMEIUO CERCO DE 4)IU. 3^í
À esta nova se abala o campo inteiro,
D^^hua parte para outra a gente tece,
E com tal fúria sahe, qual o ribeiro
Traz, que no inverno lá do monte dece ^
E como nenhum quer ser derradeiro
Em tanta quantidade a gente crece,
0,ue quem nella quizera pôr o tento
Bem vira que era quatro vezes cento^.
Este grosso esquadrão se vai direito
Ao pequeno esquadrão do Sousa imigo^
GLue para este importante c duro feito
Q.uatorze homens sós têe então comsigo ^
Mas sabendo que têe tão forte peito
Q-ue não duvidarão o mor perigo,
Não somente então trata d"* espera-los
Mas presume também desbarata-los,
xciv.
\ (■ Sousa então se via
Ji^i: eus acompanhado,
£i igo requeria
■*" ^ grosso e bem armado-,
Í-" companhia
y'-" '; i ia espalhado
Aa Cidaue, po;rque «segura venha
A gente qu^ at u i delia traz e lenha.
11
'^(i2 OURAS DE ^nA^■CIsc•o d\'^ndkadk.
xcv.
Ma» como aquella rua de que tinha
Elle a guarda, era estreita e defensável j
K vê que tèe os seus quanto convinha
Ousado coração, braço incansável,
A gente de Cambaia, que visinha
.7 a alli têe (com quanto era innumeravel)
í^uer com«)etter, que ja mal se defende
Do grão furor que dentro o move e acende.
Nesta sua tSo alta confiança
Mais ousiida quiçá do necessário,
O conselho fez pòr qualquer tardança
1^'lium, cujo voto disto era contrario,
Sousa vendo que nunca gloria alcança
tí.uem segue hum apetite temerário
K dá ao siso as costas, e á prudência,
Deu então ao conselho obediência,
XCVII.
O que também então fez ser seguido
O voto do que atraz vos tenho dito
Foi ter-se por mil provas conheci' i '
V<eu siso, seu valor, seu grande (ir^ •-
Ouem delle quer saber nome e ap''' '
}•] o que disse, lá avante o têe escritb,
]'j lá achareis também disto o smccésso,
Agora perdoai se hum pouco ccísso.
o pniliflsiRo
CERCO DE DIU.
CJLM JTO XII,
Lojjn de Sousa CoutinJio desharata os imtgos,
A armada dos Turcos chega a Diu. Dá-sc
a rasão porque esta armada veio á índia*
K contão-se algumas cousas particulares que
niccedêrão no meio de sua navegarão»
\^iiamanhos feitos ja, quão necessarioSj
K da victoria assaz certeficados,
VoT vãa gloria de peitos temerários
3ISvt.xt. de todo ser desbaratados.
Q,iiorcr ^ houve ja que dos contrários
l*oraò suoerbamente despresados,
A que o conselho deu não só victoria
Mas quasi sem seu damno eterna gloria.
i
Claramente mostrou a experiência
Q.UC sempre têe mais prósperos e (feitos
Os poUcos que se v3o traz a prudência
Q.ue os muitos que á soberba vao sujeitos:
D''onde se mostra com clara apparencia
Q-ue a prudência vai mais que os fortes peitos,
E que he mais para as guerras necessária
Q.UC a multidão com guia temerária.
Disse atraz que Imm varão forte e prudente
Hum pouco fez deter ò SouSa ousado,
Glue para commetter a imiga gente
De todo estava ja determinado :
Se quereis conhece-lo claramente
Sabei que o seu nome he Simão Furtado,
O qual nos grandes feitos sempre alcança
Grãa gloria co''o conselho e com a' lança.
IV.
Êsfe algum tanto o Sousa fez co^a sua
Pequena companhia enlão deter-se,
Até que dos imigos cheia a rua
Das suas armas possao mal valer-se :
E possivel será que elle os destrua
Por quão mal assi podem defender-se,
Glue grande multidão em campo estreito
Aos muitos damno, aos poucos he proveito.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 36í
V.
A{)prGva o Sousa, e acceita este conselho.
Dá por elle ao Furtado mil louvores :
E Vendo que assi têe grande apparelho
Para os seus poucos serem vencedores,
E fazerem, sem damno, o chão vermelho
Co''o sangue dos Cambaios cercadores,
Manda que pare a sua companhia,
Obedece ao conselho a valentia.
Refreando dest/arte o forte braço ,-* - ♦■»*,.ff
Aceso então d''e«<prito mais que humano,
A gente Cliristãa pára algum espaço
l*ara vencer depois com njenos dano,
Até que de Cambaia o luzente aço
Faminto assaz do sangue Lusitano,
Mostrando ja por obra esta vontade
Lhe põe de combater necessidade.
VII.
Vendo a gente iíifiel que a Portugueza
Do h)gar em que está não passa avante,
Como tanto então vem em ódio aceza,
Q,uanto brava, feroz, quanto arrogante,
Gluerendo ja dar fim áqtiella empreza
A que cuidava dá-lo nMiuni instante,
Alguns delles subindo-se aos telhados
D'alli vão commctter os baptisados.
366 OBRAS DB FRANCISCO B^ ANDRADE.
VIII.
Ja agora o nobre Sousa bem entende
Q-ue a mor prudência heusar d^espada e lança^
E que quanto em mor fúria então se acende
Da victoria terá mor esperança :
E vê que se ja então se não defende
E naquelle logar faz mais tardança,
Os poucos que alli têe menos seriào
E aos imigos peior resistirião.
IX.
Desta necessidade estimulado
E mais do natural esprito duro,
Co^os poucos de que vai acompanhado
Com cujo esforço se ha por bem seguro,
Co^o furor com que Boreas bravo e irado
Encontra o novo fructo, mal maduro
Glue cahe da planta, e fica murcho em terra^
Os imigos commette que a rua encerra.
Q^ual com a tesa lança então daquella
Gente infiel o imigo sangue espalha,
dual sobola cabeça ergue a rodella
E lá por baixo fende, fura e talha :
Ja dUiQa mortal cor, triste e amarella
Se vê cuberta aquella vil canalha,
Gl^ue correr do seu sangue vê infinito
E os Portuguezes sãos com novo esprito.
o PRIMEIRO CEllCO DE DIU. 367
Porque como a rua onde pelejavao
Não soffre multidão tão copiosa,
A mesma multidão, em que escoravão
Depois lhes veio a ser a mais damnosa :
E como os Portuguezes bem bastavão
Para outra empresa mor, mais perigosa,
Do esforço e do logar favorecidos
Pouco he se seus imigos são vencidos.
Breve espaço durou esta contenda
Entre estes esquadrões em tudo vários,
Não ha entre os infleis quem ja portenda
Mais que escapar das mãos de seus contrários
Ja nenhum delles ha qtie se defenda.
Os que não fogem se hão por temerários,
Porque todo o que quiz mostrar-se forte
Virão entregue em mãos da cruel morte.
Em mãos da cruel morte entregue virão
Todo o que quiz mostrar rosto direito,
Por onde com mor medo se retirão
Do que trouxerão antes forte peito.
Oh quantas vezes chorão e suspirão
Porque aquelle logar he tão estreito,
Pois quanto lhes dilata esta fugida
Tanto cresce o perigo de sua vida.
3(>8 OBRAS DE FRANCISCO D^AXDRADE.
Mas como o grão temor, o grão perigo
As forças corporaes sempre accrescenta,
Os que mais perto estão do ferro imigo
Por poderem fugir a esta tormenta,
Naquella estreita rua, que atraz digo,
ôue ante os olhos a morte Ih 'apresenta,
Empuxão com tal forea os dianteiros
Glue os fazem dar caminho aos derradeiros.
Sabida ao campo largo a fraca gente
Com furor se defende impetuoso,
Não co'a força cruel do aço luzente
Meneado do braço valeroso ^
Os pés a defensão fazem síímente,
O mais ligeiro se ha por mais ditoso,
Glue em meio d''bija morte descuberta
Este cuida que a vida tèe mais certa.
XVI.
Empresta-lhe então forças a fraqueza
Vendo que está sua vida em ir avante,
E assi corre com tanta ligeire/a
Q.UO alcançar o navio era bastante
Glue recolhe na vella a grãa braveza
Ou d'Aquilo, ou de Noto, ou de Levante ^
O Marinheiro a rija escota encolhe,
Divide a proa o mar, e algum recolhe.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 369
Mas nem este veloz curso ligeiro
Que pudera deixar atraz o \eiito
Os levou tanto em salvo, que primeiro
A trinta do Cambaio ajuntamento
Não mostrasse alli o dia derradeiro
O braço Portiigiiez sanguinolento,
E outros tantos abrisse a dura espada
Por mil partes ao sangue larga estrada.
Nao succede aos Christaos igual o dano
Gtue em tudo o mais têe grãa desigualdade;, *
Q.ue o Sousa, do subtil ferro profano
Na perna esquerda sente a crueldade ^
Hum Pagem seu, do raio soberano
Sd n'hiim olho recebe a claridade^
A outro homem bua perna nesta afíronta
Também penetra do aço a subtil ponta.
XIX.
Com este pouco custo esta gente houve
Hua rara victoria nunca ouvida.
Nao queiras, gente minha, que eu te louve^-
Louve-te a tua espada nao vencida. '
Tanto que o costtimado signal ouve
Sousa, que a recolher-se ja o convida,
Deixa todo o furor, deixa toda a ira,
Co%)s seus á fortaleza se rctiVvi.
370 OBUAS D£ FKANCISCO d''aNDRAD£.
Onde com grão prazer, grande alegria,
Com mil graças ao Ceo, a elles louvores,
O Silveira co"*a sua companhia
Recebe os gloriosos vencedores :
Os feridos entrega á cirurgia,
Os sãos a outros trabalhos não menores,
E tanto agrada ao são trabalho novo
Q-uanto ao ferido pannos, óleos, ovo.
XXI.
Em quanto a enferma perna ao Sousa ousado
Continuar o seu officio imppde,
(Dor, de que então se vê mais lastimado
Glue da outra que da chaga lhe procede)
Ora o Falcão, Gonçalo nomeado
Ora Caspar de Sousa lhe succede
Naquella guarda que antes elle tinha
Glue a qualquer destes dous assaz convinha.
Hum dos dias que a guarda estava dando
Este que Sousa têe por sobrenome,
E d''hum dos pios Majos, que guiando
Veio a Belém a Estrella, lèe o nome.
Acaso succedeo que pelejando
Hum discreto e entendido Mouro tome,
Q.UC d^entre as cruéis mãos, dV^ntrc a braveza
Dos seus, vivo levou á fortaleza.
t> PKlMfilKO CKIU-O lílO lUC. 371
D''bijci e outra parte vem corremlo a gcntf»
Grâa cópia em derredor delle se ajunta,
O Mouro que ha que a morte tèe presente
Se cobre d'hua nogra cor defunta :
O Silveira de vê-lo assaz contente
Por novas que lhe im portão lhe pergunta.
Do exercito que está lá na Cidade
E dos Rumes se ha alçua novidade.
XXIV.
(3 Mouro, a que o benigno tratamento
Q-ue no Silveira achou, ja anima e move
A que o calor vital, o esprito, o alento
Qlhc co''o temor perdoo, se lhe renove,
Perante aquelle nobre ajuntamento
Responde que mil vezes dezenove
Soldados a Cidade dentro encerra
íiue alli trouxe Alucão para esta guerra.
XXV.
E que a principal cansa, e confiança
Com que fazer aquella guerra vinha»
Era só hum sentimento, híja esperança
Q.ue da vinda dos ílumes então tinhão ;
Com cujo só favor, com cuja lança
Ja agora nesta guerra se sustinhão,
Com quanto se nao tè(» por certa ainda
A nova que lhe duo lá (lesta vinda.
312 OJBKAS DB FRANCISCO d'aND11'ADXv
Porque a qwe lá se sabe somente era
Haver três dias s6s que se soava
Q.ue a Mangalor ter hua náo viera,
Cidade de Cambaia, que o mar levava,
E que a gente que nella vem dissera
Q,ue em Adem hua grossa armada estava,.
A qual hua grãa copia em si trazia
Dos soldados que á terra deu Turquia.
Porém que se nSo tinha lá por certa
Isto que se dizia desta armada.
Porque entre os seus não era descuberto
Author, de que esta nova fosse dada.
!Nao disse mais, mas o Silveira esperto
Com isto que ouve só, não deixa nada
Do que á defensão cumpre, porque entende
ôuão mal o descuidado se defende ».
XXVIII.
o triste Mouro foi logo levado
Receioso inda assaz d'hum grSo perigo^,
Onde estão os que pôz no mesmo estada
Ou sua fraqueza, ou o esforço imigo.
Foi nisto e enfermo Sousa restaurado
A saúde da perna, e ao cargo antigo,
Sem replica dos dous que tenho dito
GLue tèe a confiança igual ao espirito..
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 573
XXIX.
Torna a continuar o que deixara
Sousa até então por sua enfermidade.
Até que hum dia achou que se lançara
De mortal rosalgar grãa quantidade
Nos poços, com cuja agua costumara
Remodiar-se a commum necessidade:,
Faz isto com que mais agora tarda
Esta atégora tão frequente guarrla.
XXX.
Entro tanto também d''hua e outra parte
A grossa artilharia assaz trabalha,
Porq*ie o canhão cruel que o baluarte
Da villa, e a fortaleza em si agasalha,
Lá naquelles que seguem o estandarte
De Cambaia infiel, grãa cópia espalha
De pelouros perdidos, mas não tanto
Q,ue aos imigos não tragão damno e espanto,
XXXI.
Mas se a alg«ns infiéis a vida tirão
Também isto fez damno á fiel gente,
Porque em tiros perdidos consumirão
Grãa copia da cruel pólvora ardente,
De que grãa falta assaz depois sentirão
Sendo a necessidade mais urgente.
Também sóltão sua fúria os canhões Mouroe
Mas fazem pouco damno os seus pelouros.
Oi * Oi.KA* DE FRANCISCO 1) ANDKAOK..
Nestos tão livres feitos foi pnssando
Todo o mez em que jx luz que a terra aquenta
Os nienstruaes hospicios visitando
13''Ejigone na casa se aposenta.
Kntào ja lá no Oriente moderando
"Vai o inverno a cruel brava tormenta,
E ja lá a ein])ravecida onda salgada
íSoíire da aguda proa ser cortada.
XXXIII.
E vendo o Capitão que a grãa braveza
Do mar ja se sujeita á subtil proa,
Despacha hum que se vá com grãa presteza
Ter co\í Governador lá dentro em Goa,
E llie diga o que cá na fortaleza
Até então succedeo, e o que se soa.
l-arte-se o Men>»ageiro diligente.
Faz quanto lhe he mandado brevemente.
Sendo o Governador bem instruído
Do que passava em Diu, e se dizia,
E tendo do que ouvio bom entendido
Q-ue soccorrer os nossos lhe cumpria ^
Manda de gente hum numero escolhido
Q.ual hum tempo tao breve permittia.
Alguns de illustre sangue, outros de menos,
roróui todos dVspritos nno pequenos.
o i'iiíMKi5:o crnco de div
Kiítrc tanto o Silveira, a que então dava
O que da armada ouvira, hum grão cuidado,
Ilua fusta manda ir, quando ja andava
No cabo o mez que atraz tenho coutado,
Lá contra Mangalor, a ver se achava
Nova de virem Rumes, ou recado,
Dos quaes se começava a ter mais certo
Sentimento, e signal mais descuberto.
XXXVI.
Parte logo o stibtil veloz navio
A cumprir o que entào a cargo tinha,
Miguel Vaz nelle o mando e senhorio
Leva, segundo alcança a historia minha;
Ksprito de temor assaz vazio.
Fende a proa a quieta onda marinha,
Nem o favor do vento lho fallece,
Q<ue tudo a seu intento favorece.
XXXVII.
Poucos dias no mar a vella solta
Logo acha do que busca nova certa,
l*ara onde traz a popa a proa vòlt^ ..
K mais ligeira então, e mais esperta
Lá de Diu outra vez se faz na volta.
E a quatro de Setembro descuberta
Foi lá da fortaleza a sua vinda,
('Om quanto de bem longe se vê aind<t.
I»7tí OBRAS DE FUANCÍSCO D ANDKADK.
XXXVIII.
Ve-se logo tamhem grau quantidade
Dos que em iMafoma têe a confiaiiya,
No3 logares mais altos da Cidade
D%jnde a vista mais longe o raio lança,
Como que vêem algua novidade
Clue inda da fortaleza nào se alcança :
Desojâo os Christàos, que isto nao vião,
Dtíscubrir o que os Mouros descubriáo.
XXXIX.
Mas como as altas rojlias que correndo
Ao longo vão alli da brava costa,
Tanto lá para o Ceo se vão erguendo
Q.ue a fortaleza fica abaixo posta,
Os Christàos não podião gostar, vendo
O de que a infiel gente vendo gosta,
Gtue tèe lá na Cidade tanta alteza
Glue deixa muito atraz a fortaleza.
XL.
O natural desejo d''hua parte,
D^outra aquelle tão alto impedimento,
Nova altura buscar faz e nova arte
Aos Christàos para o fim de seu intento.
Acaso estava então no baluarte
De São Thomé hum mastro, onde o vento
Tremulava hum pendão, em que a pintiira
Descuberta, da Cruz tiulía a figura.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU.
K como ora este mastro tao comprido
(Aue do mais alto dcile bem podia
Doscubrir-se o que então tiiiba escondido
A «levantada rocha e penedia,
Nâo faltou então hum tão atrevido,
E de vôr desejoso o que não via,
Gtuc a subi-lo se atreva, e que o tentasse,
E que este seu intento efíeituasse.
XLII.
Mas para que podesse dar eífeito
A esta difíiculdade que pertende,
Junto co^os pés e mãos este direito
Mastro, aquelle atrevido logo prende ^
Ja com grãa força o abraça, c o chega ao peito,
Ora se encolhe todo, ora se estende,
E caminhando ao Ceo desta maneira
Não pára senão lá junto á bandeira.
Ao mais alto do mastro em fim subindo
As altas rochas ja lhe obedeciâo.
Então ja ellc também vai descubrindo
O que antes sós os Mouros descubrião.
Diz que sete navios vir abrindo
LÁ da parte da Arábia o mar se vião,
E que mais cmmarada vò outra frota
Qrue trazia também a mesma rota.
378 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
XLIV.
Cria entre todos esta novidade
Hua inquietação, hum rumor brando,
Q/Ual de navios vê grâa quantidade
N 'outra parte, e co^o dedo os vai mostrando,
Gtual jura, qual afftrma, por verdade
O que o juizo lhe está representando,
Q-ual serem Turcos diz, e certefica,
O que quiçá o temor lhe prognostica.
XLV.
Dura esta confusão em quanto a armada
Mal se divisa, e mal inda apparece,
Porém tanto que foi bem divisada
Ser de Turcos ja claro se conhece ;
Glue a copia de navios que a chumbada
Faia leva (que assaz grande parece)
Lhe certefica e mostra claramente
Glue não era esta armada d^outra gente.
Apoz isto também chega a ligeira
Fusta, a qual a esse effeito antes mandara
(Como ja disse atraz) o grão Silveira,
E que pouco antes ja se divisara :;
Esta, a nova mais certa e verdadeira
Da armada que se via, então declara,
E diz que aquelles mesmos Rumes erao
Q-ue tantos annos ha na índia se esperão.
o PRIMEIRO CEllCO DE BIT.
XLVIt.
379
E porque olle ainda assi se nao contenta
Destas novas, que em summa tinlia dadas,
Cinco galés reaes sobre quarenta
Diz que deixa na armada bom contadas-.
Cem outras, de que atraz vio com mais lenta
Força as marinhas ondas ser cortadas,
GLue de muitos navios que lá via
De toda sorte, vem em companhia.
Não perde hoje o Silveira aquelle esprito
Sempre na mor affronta mais ousado,
Antes com hum valor quasi infinito
Se mostra mais alegre e confiado :
Comtudo escreve logo hum breve escrito,
O que diz a ninguém he declarado.
Ao mesmo o dá que pouco antes viera,
E que as novas da armada lhe trouxera.
Diz-lhe que com ligeiro curso leve
Corte o mar, e de Goa siga a rota,
E que ao Governador o escripto leve
E lhe conte o que vio daquella frota.
Nao tarda Miguel Vaz, e em tempo breve
Levanta o ferro, ao mar o remo bota,
E polo assento liquido marinho
Com graa velocidade faz caminho.
380 OlilíAS DE FRANCISCO d'aM)RAU1í.
Porem como era ous;ido e verdadeiro
Gluer de novo affirmar-se na verdade,
Com quanto tinha ja visto primeiro
Toda a frota, com grãa curiosidade :
E assi guia o veloz curso ligeiro
Nao mui longe da grande quantidade
Daquellas infiéis, imigas vellas,
Porque mais certo possa tratar delias.
LI.
Neste tempo ja toda a armada vinha
Surgir com favorável manso vento
Junto d""hua Mesquita que alli tinha
Sobre o mar, lá n'hum alto seu assento,
Glue vendo a Christaa fusta tao visinha,
Havendo-o por aífronta, e abatimento,
Fazem doze galés traz ella a via
l*ara lhe castigar esta ousadia.
O forte Portugaez, que bem entende
(lue se tarda, se perde, não desmaia.
Mas com tanta presteza a» ondas fende
títuanta lhe empresta o linho, e a longa faia
Também a imiga frota, que pertende
Dar mostra h(rje de si aos de Cambaia,
listcnde o grão bastardo, a borda encolho,
Para alcançar a fusta que se .icolhe.
o PRIMEIIIO CKIICO DE DIU. 38Í
Olnal o ligeiro cervo perseguido
D^inimigos libres, d^imiga gente,
C^ue com hum importuno alto ruido
Dar-lhe morte cruel tratão sómoute,
Co''o collo inda soberbo, e em alto erguido
Passa por monte e valle, em quanto sente
Nas costas o perigo, e a turba imiga,
Nem descansa em quanto ha quem o persiga :
LIV.
Tal vejo ir a ligeira fusta aguda
Dos navios imigos perseguida,
Glue nUium perigo tal que a cor lhe muda
Inda soberba vai, inda atrevida :
Mas por mais que trabalha, e mais que estuda
Mal pudera hoje aos seus salvar a vida
Se nao tivera o vento favorável.
Sem o qual hia sendo indefensável.
As profanas gales com tal presteza
O navio fiel vao perseguindo,
Glue por mais pressa que usa e ligeireza
Parece ja que em balde vai fugindo.
Os Christàos que estão lá na fortaleza
Ja esta perda começao d^ir sentindo,
Q-ue as galés infiéis voem ir tão perto
tiue alcançarem a fusta tee por certo.
'.\S'2 OBilAS DE FUANCIiCO D AKDKACK.
LVI.
Nem este seu receio os enganara
(Ou mal por conjecturas advinhão)
Se o vento que pouco antes ajudara
As imitas «jalés ao seu caminho
Aquelle sopro então não refreara
Com que antes hia inchando o Turco linho,
Não sei se de piedade, ou de correr-se
De anojar quem não pode defender-se.
ivii.
Cessa o curso veloz d i armada iraiga
Tanto que o favorável sopro falta,
A fusta, que não tê:' quem a persiga,
Ijivre, com mor alento corre e salta :
A imiga gente, em quem a fúria antiga
Crescendo agora vai com esta falta,
Não sente cousa então que tanto a anoje.
Porque a fusta Christãa das mãos lhe foje.
LVIII.
Mas porque este furor, este ódio insano
Mais agora a estimula, acende, e inflama,
Por não lhe ficar cousa que hoje em dano
Não tente dos Christãos, que assi desama,
Chega o fogo ao cruel hronzo profano,
Sahe logo envolta em fumo a ardente chama,
Sahe traz ella o mortal ferro redondo.
Enche tudo de horrendo, bravo estrondo.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 38!
LIX.
liá contra a Christaa fusta vai direito
Hue d^entre a cruel morte antes fugira,
Mas nem isto tão pouco chega a eífeito,
Arde o Turco de novo em ódio e em ira.
A fusta, que de todo vê desfeito
O perigo em que pouco antes se vira,
Com mais quieto curso que o primeiro
Dá descanso, dá fôlego ao Remeiro.
LX.
Fende o mar com prazer, com gosto tanto
Q.uanto foi o perigo que antes tinha.
Mas cumpre deixa-la, porque em quanto
Klla fendendo vai a onda marinha,
Aos Turcos se converte este meu canto
Porque lá me manda ir a historia minha,
Onde com tal matéria me convida
Gtue também dará gosto em ser ouvida.
LXI.
Sendo as doze galés desesperadas
Do alcançarem a fusta que fugia,
Nem co'as vellas em alto levantadas
Nem co^os raios cruéis d'artilharia,
Se tornão para as outras, que ancoradas
Kstavão no logar, que atraz dizia,
O qual naquelle canto estava posto
Da Cidade que têe ao Sul o rosto.
SSi OKRAS OE FRANCISCO D* ANDRADE.
LXII.
Porém esta pequena adversidade
Se paga com geral contentamento
De vêr-se, onde com giãa facilidade
Cuidao chegar ao fim do sou intento :
Cria isto lá entre a gente da Cidade
Diverso parecer, e pensamento,
De que vários eífeitos se seguirão,
Como por obra então logo se vírao.
txni.
AlucSo, que atrag disso que mandado
Por Capitão geral fòra da gente
Gtue tinha na Cidade gasalhado,
Sah(^-se de dentro delia incontinente
E vai-se á terra firme, acompanhado
De cinco ou seis mil homens tão somente,
Porque conhece ja com grSa certeza
Dos Turcos a insoífrivel natureza.
O restante da gente (que estou vendo
Em sós treze mil homens ooncluido)
Na Cidade ficou, obedecendo
Ao infiel que em Itália foi nascido,
Digo Cojaçofar, que bem entendo
Q-ue de todos assaz he conhecido,
E d'aqui não se aparta em quanto a guerra
A Turca gente faz naquella terra.
o PRIMEIRO C£RCO DE DIV. 385
IXV.
Mas a rasao me move, antes me obriga
A que d'aqui meu canto hum pouco aparte,
Porque a causa da vinda aqui vos diga
Dos que do Turco seguem o estandarte,
E a causa porque veio a armada iniiga
Mais a esta forlaleza que a outra parte :
Nào demando attenção, porque eu espero
Glue a historia por si alcance quanto eu quero.
LXVI.
Contado tenho atraz que o miserável
Baudur, quando vivia, com receio
€lue lhe hia sendo o Ceo mal favorável,
Presago ja do mal que depois veio.
Mandou de ouro hua cópia innumeravel,
Affirmão que três contos sào e meio,
A Judá, porque alli determinava
Fugir ao mal que quàsi advinhava,.
E isto mandou entregue á confiança
Do nobre Acefarcão, fiel vassallo,
€Lue teve em seu poder tal segurança
Q-ue melhor nao pudera segurallo :
Mas fíaudur seu desejo não alcança
Q,ue veio a cruel morte a salteallo
Co''as Portuguezas armas, e lhe vejo
Dq sen receio o fim, não do deseja^
'ãSÚ OBRAS DK FRANCISCO U ANORADE.
Parte a Fama, e nos ares despregando
As azas, e a trombeta á boca posta,
O Estreito do Mar Roxo vai pa^SMndo
Q.uandoahua parte, e quando a outra se encosta,
E a morte do Sultão vai publicando
Lá no secco sertão, na húmida costa,
Nem aqui se detém, aqui se fica,
Mas também passa ao Cairo, e lá a publica.
LXIX.
Entregue enlao do Cairo era o governo
A Çoleimão Baxá, e mando inteiro,
Janizario, e daquelles a quem o Eterno
Rei, na terra chamou secco madeiro,
€lue ja vassallo antigo, e mais interno,
Também da sua camará porteiro.
Foi de Sultão Selim, Senhor indino
Da Cidade que foi de Constantino.
LXX.
Porém este Selim então ja estava
Entre o fogo immortal, nunca apagado,
E Sultão Solimão senhoreava
Q.ue do mesmo Selim fora gerado,
O qual ja agora em parte escura e cava
Também a eterna morte he condemnado,
E seu filho Selim possue o Império
Com damno dos Christaos c vitupério.
o PRIM&IllO CEHCO DE I>iU. 3^7
Tanto que co'0 metal que arremeda o ouro
Pola Fama, no Cairo foi sabido
O desestrado fim que o Sultão Mouro
Tinha dos Portuguezes recebido,
Manda logo o Baxá que o grão thesouro
Sem detença lhe fosse alli trazido
Glue tinha Aoefarcao em Judá junto
Por mandado do triste Rei defunto.
Receia Acefarcao, e nao o nega
Q.ue o que manda o Baxá ninguém o quebra,
Vem o thesouro ao Cairo, e se lhe entrega
Sem detrimento algum, Sfm perda ou quebra :
Depois que em vê-lo algum tempo se emprega
E ora se espanta delle, ora o celebra,
Ao Turco o faz saber cora brevidade
Creio que com mais medo que vontade.
LXXIII.
O Turco 111 'o agradece, e que elle o leve
Manda a Constantinopla em companhia,
O Baxá que hum temor não menos leve
Do que os outros delle hão, do Turco havia,
Se parte sem detença, e cm tempo breve
Entra lá na Cidade para onde hia.
Ao Grão Turco o infinito ouro apresenta
Glue de vê-lo se admira, c se contenta.
388 OBRAS DE FKANCISCO d'aNDKADE.
LXXIV.
E vendo que lá d'hua terra estranha
E d^hum remoto Rei, assi lhe veio
D^ouro Ima quantidade lai, tamanha,
Sem guarda, sem perigo, sem receio,
Imagina que aquella que acompanha
No Reino o próprio Rei, será sem meio,
E que he lá muito mor a cópia d^ouro
ô,ue a grande fama que ha do seu thesouro.
Solta a rédea á cubica, e o desatina,
Ja nao acha logar o aceso peito,
Ja cego, vai seguindo o que imagina,
E da imaginação procura o eífeito.
Oh cega condição, vil, baixa, e iudina
De pessoa real, real conceito,
O qual (se não perverte a natureza)
He senhor, não escravo da riqueza.
LXXVI.
Faz o Turco ajuntar mais d^hum navio
Com que ordena hua armada, grande e grossa,
Porque o seu peito aceso torne frio
E dos Cambaios bens farta-lo possa,
E para tomar da índia o senhorio
Senhoreada ja da gente nossa,
Havendo isto por pouco duvidoso
Q,ue por fácil ha tudo o cubiçoso.
<* rUlMElKti CfcKCO UE HIV.
38!)
As novas desta arrpada, e o seu ititontc»
Por alguns que a vida então deixarão
Vão ao centro da terra, e lá no assento
Averno, em breve espaço se espalharão :
E d^huns n'outros correndo, n'*hum momento
Ao Cambaio Baudur também chegarão,
Q.UO estava triste assaz, por qu-3o avesso
Tivera pola Inveja o seu successo.
LXXVIII.
Este, vendo que em vao fora a passada
Obra da Inveja contra a Christãa gente,
Sendo com isto nelle então dobrada
A fúria, e no peito o ódio em dobro ardente,
Com a cabeça baixa, e derrubada,
Triste, e da companliia sempre ausente,
Imaginando está que modo tenlia
Com que o seu máo intento a efTeito venha.
LXXIX.
O sentido por cá, por !á derrama,
Mil modos de vinganças imagina,
Torém tanto a Christãa gente desama
t^lue em nenhuma se assenta ou determina,
Porque o ódio insaciável que lhe inílama
O internai peito, tanto o desatina,
tí-ue nenhQa vingança acha que farte
\}o seu menor dcsfjo a menor parte.
390 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRAI>E*
LXXX.
Tanto que agora lá foi descuberto
O que contra Cambaia o Turco intenta,
Inda que o mal dos seus têe por mui certo
Comtudo se alvoroça e se contenta ;
Cuida que agora têe caminho aberto
De destruir a quem tanto o atormenta,
Dá-lhe da desejada sua vingança
A nova occasião, nova esperança.
Mas vendo que nao pode ser cumprido
O desejo que têe de novo agora,
Se também de Plutão favorecido
Não he desta vez, como fora outr'ora,
A elle se vai, ja menos atrevido
E menos confiado que antes fora,
Mas mais por isso humilde, a lingua envolta
Em vergonha e temor, dest'arte a solta.
LXXXII.
Senhor, natureza he do triste e afflito
Q,ue de remédio está necessitado
Importunar alli onde lhe he dito
Ou sabe que será remediado.
Natureza he também do grande esprito
Não negar o remédio importunado,
Antes de mor grandeza aquelle he cheio
Qluc mais vezes soccorre o mal alheio.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 391
LXXXIII.
Ja te fui importuno, eu o conheço,
Sê-lo agora de novo não devera,
De ti recebi mais do que mereço,
Mas foi como quem és, não como eu era :
E se não foi o fim qual o começo,
Se inda agora consente a minha fera
Sorte, que o meu imigo o meu possua,
Fraqueza foi dos meus, não falta tua,
LXXXIV.
Porém nem isto allivia o grande peso
Deste ódio que me acende o aceso peito^
Antes tanto o mais sinto agora aceso
Q,uanto menos a inveja teve effeito ^
Tanto de ódio e furor estou mais preso
Cluanto te importunei mais sem proveito^
Nem sei se o rigoroso Radamanto
Castigo pode dar que doa tanto.
Mas nem por isso eu ja te importunara,
Soffrera antes meu mal que importunarte^
Se a nova occasião me não mostrara
Modo de me eu vingar, e de tu honrarte :
Bem sabes que o Grão Turco hoje prepára>
Porque o seu cobiçoso animo farte.
Soldados, Capitães, armas, navios.
Para conquistar da índia os senhorios.
:i02 OBRAS I)« FUANeiSCO D ASTiUAVK,
LXXXVI.
Manda a Cubica pois, que mova e iiístigive
A Çoleimao Baxá para esta einpreza,
E com promessas mil o acenda e obrigue
A fazer guerra á gente Portiigueza •,
Q/ue ímpossivel será que não castigue
A Turca gente, de cubica acesa,
A soberba Christíia, e que eu vingado
Não fique desta vez, e sem cuidado.
LXXXVII.
por este meio cuido, antes sei certo
G.ue será satisfeífo o meu deseja,
íVjÍs dos Turcos não te he, creio, encuberto
O não vencido esforço, alto e sobejo^
E se esta ocoasião eu não acerto
Desesperado d^outra tal me vejo,
Acabe o que te peço boje comtigo
O mal do teu vassallo^, e o bem do imígo,
LXXXVIII.
O Sllgio Rei, que nunca repugnância
Tara esfas cousas tee, mas as acende,
Gabando-lhe outra vez a graa constância
Daquelle ódio, e vingança que pertendcy
Chama outra vez Megera, e com instancia
Lho manda que se vá lá aonde entende
Que Pluto se agasalha, e que lhe diga
Ôue o Sultão obedeça nisto, e siga.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 393
De novo ante Plutão se prostra o esprito
Pola nova mercê que lhe fizera,
E menos triste ja, menos afílito
Porque vingar-se largamente espera ;
Nào lhe soffrendo o seu ódio infinito
A menor dilação, pede a Megera
Gtue ao que manda Plutão logo obedeça
E nisto com a pressa o favoreça.
xc.
Partc-se com veloz curso ligeiro
A fúria também nisto diligente^
O esprito do Sultão por companheiro
Lfna também agora juntamente :j
O qual agora mais que de primeiro
Alvoroçado vai, ledo c contente.
Porque leva hua grande confiança
Q-ue ao seu ódio igual terá a vingança*
Mil vezes no caminho a fúria incita
A que se desça á terra, imaginando
Q.ue em qualquer dos logares que ve habita
A Cubica que então hião buscando ^
Porque segundo a todos sollicita
A sede d''ir o seu accrescentando^
Crê não só que a Cubica alK estaria
Mas qualquer dos que vê cre que o seria.
Não se detendo a furia, lhe responde :
I\ão me espanto do teres esse engano,
iiue o seu doce veneno Pluto esconde
Em todo o peito que he mortal, e humano^
E mui poucos serão os peitos onde
Não reine este apetite cego e insano,
Isto faz tantas vezes enganarte
E cuidar que vês Pluto em toda a parte,
XCIIl.
Tanto nesta hora ja tinhSo andado
Porque qualquer ligeiro então voava^
(Rlue ja o assento vêem que gasalhado
Aquelle que buscavão em si dava.
Este n''hua alta cova está assentado
Lá onde em maior copia o ouro se caVn,
Pobre, mal petrecbado, mal composto,
Mas têe cm torno bum forte muro posto.
xciv.
Vê-se no meio delle bua fetfada
Porta, d''hua matéria forte, e dura,
A qual o mais do tempo está cerrada
Mas nem com isto Pluto se assegura.
Tanto que a Airia aqui faz a cbegada
Dar fim a isto a que vem logo procura,
Chega-se á porta, e ])ate quanto pode,
Porem de dentro lá niu^u' m lhe ac<5de.
I
o IMIIMEIRO CERCO DE DIU. 39^
XC\.
Pouco se espanta a fúria, que este o antigo
Uso he, do que naquelle assento mora,
Insta em bater de novo onde atraz digo
Acesa j a de si pola demora ^
JiOgo na porta abrir sente hum postigo
E \io hum que a cabeça lança fora,
K pergunta de lá que quer, quem era,
Irada lhe responde assi Megera :
Abre a porta, que a ti do alto e temido
Plutão mandado sou, bem se conhece.
Treme Pluto somente cm ter ouvido
O nome de quem so teme e obedece,
Cerra o postigo, e lá por escondido
Logar sahe fora, c ante elles apparece :
Espanta-so o Sultão do que então via,
Porém a fúria não, que o conhecia.
XCVII.
Vè-se-lhe hua presença veneranda,
Digna assaz de real sceptro e coroa,
Com velhos trajos, vis, e sujos anda,
Mal ornado, e composto na pessoa :,
Mostrando-se vem coxo d' hua banda,
D^outra se lhe vêem azas com que voa,
Cego he de todo, e quem põe nelle o tento
Vê que ás vezes lhe falta o entendimento.
â96 OBRAS DE FRANCISCO D^ ANDRADE.
Tanto que a fúria o vio^ logo o preceito
Do temido e infernal Plutão lhe disse *,
O Sultão (que isto ja tinha por feito)
Diz, que a Constantinopla se partisse,
E a ÇoleimSo Baxá, de si o peito
Enchesse, e a fazer guerra o persuadisse
Logo á gente Christãa que em Diu tinha
A fortaleza, e que isto lhe convinha.
xcix.
Ê que feUe e a fúria irão lá juntamente
Por verem seu saber, sua vehemencia.
Pluto áquelle mandado obediente,
Tendo ja deste caso experiência,
Fende os ares co''os dous ligeiramente,
E põe no caminhar tal diligencia
€lue lá a Constantinopla então chegarão
Gt-uando á terra as Estrellas se mostrarão.
Entrão lá no aposento onde sabião
Glue estava Çoieimão agasalhado,
S6, e triste o vAem, mas todos conheciao
A causa da tristeza, e do cuidado i^
Tanto que veio aquella hora em que o viao
Do brando somno ja senhoreado,
Pluto por acabar isto que trata
A elle se chega, e a lingua assi desata :
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, 3^7
Cl.
Grãa dor, grão sentimento, graa tristeza
Com rasão deves ter, pois qué do seio
Te roubarão aquella alta grandeza
Do thesouro que lá de Judá veio ^
Mas d^outro mor thesouro, mor riqueza^
Presente occasião, presente meio
Tèes agora na mão, segundo vejo,
Glue satisfaça a perda, e teu desejo.
CII.
Trabalha porque o Turco te encommende
A governança desta grossa armada.
Com que senhorear a índia pertende
Q-ue agora he dos Christãos senhoreada^
Porque se tu entrares nella, entende
Glue de riquezas he tão abastada
Oiue não s6 poderá delias fartar-te
Mas poderá também enfastiar-te.
cm.
Mas para eífeituares esta empreza
A Diu te cumpre ir, e fazer guerra
E dar a morte á gente Portugueza,
Q.ue esta logra o melhor daquella terra :
Nem pode ella fazer-te grãa defeza
Por quão pouca, e sem armas lá se encerras
Se isto fazer quizeres, eu te fico
Q-ue sejas bem contente j fartOj e rico.
* 12
n^OS 0!ÍHA6 DS FliANCISCO l/ A TSDTÍ \ TJF,.
Apo7, estas palavras, logo inspira
Nelle ííum desejo avaro, c cubiçoso,
Bafeja-lhe também Mogora hua ira,
Xlum dfsojo cruel, e furioso.
Apoz isto ao logar dVinde saíiira
Torna qualquer dos três nao vagaroso,
( 'o n tente cada hum do que têe feito
E o Sultiío roais que todos satisfeito,
cv.
Corrt grande sobresalto, grande espanto
Acorda Çoleimão, co'o que passara,
Contempla na promessa, e vc que he tanta
Que duvida so o ouvio, ou se o sonhara i^
Mas ja sentindo o eíTeito em si de quanto
Gtualquer dos seus entào nelle inspirara,
Dá credito á visão, c determina
Fazer o que ella manda, e elle imaginar
E porque ver o fim de seu intento
Conceder-lhe o Grão Turco agora queira,,
Como não fia em seu merecimento
Tenta nova invenyão, nova maneira ^
Fciz com que npste seu requerimento
Lhe queira a Mãe do Turco ser terceira,
A que o conhecimento antigo obriga
A íhe ser favorável nisto, e amiga.
o PRIMEIRO CERCO DE DIF. 399
CVII.
È o Baxá, porque faça inda mais justa
A sua petição, diz que lie contente
De fazer todo o gasto á sua custa,
G.ue artilharia so lhe dêem, e gente;
Mas a alterosa náo, a subtil fusta,
Com tudo o mais á guerra pertencente^
Elle porá do seu naquelle feito.
Tanto pode a esperança do proveito !
Trcsenta a Mae ao Filho isto que pede
O Baxá, e com mil rogos Ih^o apresenta J
O Turco, a quem então isto succede
ConformjB á condição cega, avarenta,
(^(jm graa facilidade Ih^o concede.
Antes dlium tal acerto se contenta,
(^om que com pouco gasto, ou nenhum, veja
O fim disto que tanto ja deseja.
tix.
Contente o Baxá assaz, sua partida
Ijogo ordena com grande brevidade,
E na Cidade ajunta para esta ida
De Janizaros grande quantidade ^
Mil e quinhentos são, gente escolhida,
Bastantes a qualquer difficuldade.
Também para esta guerra que pregoa
Dons mil Turcos ajunta, gente boa.
400 OimAS DE FRANCISCO dVnDKADE.
Com esta companhia deixa a torta
De Constantino, e ao Cairo faz a via,
E recolhe também para esta guerra
Outros três mil á sua companhia ^
Huns dos que Damiata dentro encerra,
Outros dos que croou Alexandria,
Outros dos que outros portos hahitavão
Dos que as Mediterrâneas ondas lavão.
CXI.
E porque sendo assaJ! exercitado^
Nos ofíicios navaes, e os entendi3oj
E se cumpria ter peitos ousados
Também a espada e a lança revolviao,
Ora servem de bons, fortes soldados
Ora ás coíjsas navaes se convertião,
Assi quando se o duro imigo oífende
Como quando no mar se a vella estende.
CXII.
Entra o Baxá no Cairo, e nao dilata
Hu"'liora a execução disto a que vinha.
Mas para a ter melhor, solta e desata
A cruel condição que presa tinha :
Com tyrainiia estranha avexa e trata
A gente da Cidade, e a que he visinha,
Porque com geral custo a guerra faça
Oue por seu só proveito ordena e traça.
o PRIMEIRO CERCO DE 1)1U. 401
Neiti basta que nos bens os tristes preme
Mas também aos seus corpos volta a folha.
Porque como ás galés falte quem reme
Q-uantos ha mister toma, e os aferrolha :
Não vai ao que resiste, ou roga, ou geme,
Para que este trabalho então lhe tolha,
Q-ue contra o duro peito inexorável
Do Baxá, tudo fica indefensável.
cxiv.
Fornecido ja tudo o que bastante
Ijhe pareceo então para este feito,
l*assa a gente a Suez, logar distante
Do Cairo hum grande espaço, que no Estreito
Do R*)xo IMar está lá tanto avante
tiue no fim delle eslá, c lá direito
Vai o Baxá co''os seus, porque ancorada
Estava neste porto a sua armada.
Tanto que em Suez entra logo manda,
(^om pena que o mais forte amedrontava,
(A-ue, por não ser sentida esta demanda
Lá na índia, para onde cUe caminhava.
Nem do Torom, ou Judá, que estão da banda
Da Arábia, nem do mar que o Egypto lava»
Algum navio então faça caminho
Q.ue lá no índio mar estenda o linho.
CXVI.
Porem porque iiao falta algum que attenta
Na cópia dos navios, e outro aguarda
Ouvi-la aqui dizer, ja Ih^o apresenta
Meu canto, atégora lhe não tarda :
São as galés somente cincoenta,
Gtual real, qual subtil, e qual bastarda^
Quatro albetoças mais, e seis formosos
Galeões, de duas gáveas, alterosos.
CXVII.
Esta armada os passados fabricarão
Q/ue tiverao do Cairo a governança,
Porque com ella ter imaginarão
O Estreito do Mar Roxo segurança.
A estas sessenta vellas se ajuntarão
As sete em que atraz disse (se ha lembrança)
ô-ue Acefarcao levou. Capitão Mouro,
A Judá, de Cambaia grão thesouro.
CXVIII.
Nem com estas sós náos se acaba desta
Armada a numerosa quantidade,
Vão três de Amezuj? mais a esta festa
Q.ue lá no Cairo têe grãa dignidade :
ElRei de Judá duas mais empresta
Se por força não sei, se por vontade.
Com que de alheias vellas, e de suas
Arma o Baxá em Suez setenta e duas.
o PRIMEIRO CERCO D£ DIU. 403
Mas ja na obra começa d'ir mostrando
O espirito cruel que nelle habita,
Porque em quanto está as cousas preparando
Necessárias á armada acima dita,
E a mal usada chusma apremiando
No meio dos remos exercita,
Soffrendo elles mal ver tão mal tratar-se
Procurão, com seu damno, de livrar-se.
cxx.
Porque vendo que com cruel império
Os constrangem ao remo mais que inclinao,
Os que têe das galés o ministério
Tanto os move esta dor, tanto se inclinao,
Q-ue havendo-o por affronta e vitupério
Bem quatrocentos delles se amotinão
E negão hum serviço tal, tão forte.
Tristes, que caminhaes á vossa morte l
Chega a nova ao Baxá, e em tal fogo arde
Glual o Siculo monte ou o Campano,
Nem soffre que em vingar-se mais aguarde
O seu peito cruel, impio e tyrano.
Mas por cedo que vai, cuida inda ir tarde
A derramar aquelle sangue liumauo.
Manda que, porque o seu furor se farte,
Dos quatrocentos morra a meia jjarte.
404 OURAS DE FRANClísCO d\vNííRADE.
Não foi pronunciado o Edicto fero
GLuando logo se vio posto em effeilo.
Perdoai vós agora, cruel Nero,
Glue inda este cruel tèe mais cruel peito.
Kste espantoso exemplo, impio e severo
Reprime os que ficarão de tal geito
Q.ue acceitão por menor mal e destroço
Remo na mão, que espada no pescoço.
Feita prestes a armada copiosa
E favoráveis sendo então os ventos,
Enche-a o Baxá de gente assaz lustrosa
Em cópia de seis mil, sobre quinhentos-,
De grossa artilharia, e temerosa,
De muitas munições, e mantimentos,
De doutos Capitães em toda a guerra
Glue ou polo mar se faz, ou pola terra.
Destes direi alguns, dos quaes merece
Cada hum que o seu nome aqui se diga,
Hum he Baram Baxá, em que apparece
Da Janizara gente a insígnia imiga,
Outro Baram, e Mustafat, que dece
Q.ualquer da Mameluca gente antiga,
O quinto Mahamud (jtueá se chama,
K todos entre os seus tèe nome e íauia,
o rUIMEIÍlO CERCO DE DIU. 405
Mas porque á longa idade mal coiivhilia
De Çoleimão ja ter capitania,
Capitão-mór do mar faz hum que vinha
De í^randtí esforço, em sua companhia,
Chamado Jhuof Hamed, que tamheui tinha
Este cargo no mar d** Alexandria,
Porém para si fica resguardando
O governo o Baxá, de tudo, e o mando.
Com esta grossa armada, esta ordenança
Ao vento solta o linho, ao mar a faia,
Com grão desejo assaz, grãa confiança
De lograr os thesouros de Camhaia •,
E navegando o mar com grãa bonança
De Judá em breve tempo ferra a praia,
Aqui soa o Piloto, alli o apito,
Copi rouca voz, e com agudo grito.
Chegado aqui o Baxá, nao se deftMide
Do cubiçoso esprito, que o acompanha,
Por onde haver á mão logo ptírtende
Daquella terra o Rei com arte e manha ^
Mas ello, que a perfídia bem entende
Do Baxíi, e a crueza rara e estranha,
Solta a Cidade, e foge áquelle dano,
Fica em vão o conceito do tyrano.
406 OBltAS DE FRANCISCO d'aND11ADE.
O qual em grave dór, e fúria ardente
Por lhe sahir em vão aquelle intento,
Faz levantar o ferro descontente
E de novo soltar a vella ao vento ^
E navegando o mar prosperamente
Em Azebibe vai fazer o assento,
GLue está na costa lá do mar Arábio
Possuído d'h um Rei mal cauto e sábio.
Nocodá Hamed este era chamado
G,ue na infiel Turquia foi nascido,
Do qual com grande festa e gasalhado
O perverso Baxá foi recebido ^
Porém delle nao foi gratificado
Como lhe tee por obras merecido,
Mas como a inclinação sua lhe ensina
Cubiçosa, perversa, impia, malina.
cxxx.
Porque o Baxá sabia que este herdara
Este Estado, de que he senhor agora,
D''hum que INlirescandel se nomeara
Também da falsa lei que o Turco adora,
O qual da obedicncia se isentara
Do Cairo, a quem sujeito sempre fora,
E por meios rebeldes e tjrannos
Isento o mando assi teve alguns annos.
o IMllM&l UO CEUCO Dlí DIU.
CXXXI
407
l\)r isto, e Cicio mais por lhe ser di!o
Q.ue este Turco he senhor de gra;i riqueza,
Sem mais outra rasSo, outro delito
Para hua tal justiça, antes crueza,
]Manda que o triste Turco renda o esprilo,
(Àue por obra se põe com graa presteza :,
Cahe do corpo a cabeça, o esprito logo
Kntra no inextinguivel bravo fogo.
Ksta paga o Baxá da obra e vontade
Da a quem o recebeo com ledo rosto,
Porém a graa cubica e crueldade
Não conhecem rimio mais que o seu gosto :
i) mando desta terra, e dignidade,
Do que o raisero Turco foi deposto,
Dá o Baxá a Mustafat, que eu disse que era
Hum dos Capitães que eíle alU trouxera*
CXXXIII.
(Joncluido isto assi, de novo bota
O remo ao mar, c vella ao vento larga,
Do Reino de Adem ja seguindo a rota
D*Azebibe a veloz proa se alarga :
l^espede diante hua galeóta
O liaxá, que com voga pouco larga
l«\rre a terra dianie da outra armada
Ji pronuncie ao liei bua cjubai.\ada.
CXXXIV.
Solta o remo o subtil navio ligeiro,
Com apressado curso a voga arranca,
Envermelhece a face ao nu Remeiro
Glue ou pallida antes tinha, ou tinha branca :
Este furor, este Ímpeto primeiro
Antes de vêr-se o porto nao estanca.
Mas tanto que se d'Adem ferra a praia
Se solta o ferro, e se ferrilha a faia.
cxxxv.
Salta em terra o que então a cargo tinha
Do falso Çoleimao a legacia,
E presentado a ElRei, diz que elle vinha
Da parte do Baxá, que lhe pedia
Que lhe mandasse dar quanto convinha
Mantimento a esta armada que trazia.
Mas que este mantimento quer que entenda
€tue de graça o não quer, mas que Ih^o venda.
Apoz isto também diz, que comsigo
(Vede a avara tenção que ardis ensina !
Muitos doentes traz em grão perigo
Por falta do favor da medicina ^
Polo qual lhe podia como amigo.
Porque elle lá manda-los determina,
Glue lhes mande dar casas na Cidade
Em que elles curem sua enfermidade.
o TRIMEIRO CERCO DE DIU. 409
CXXXVII.
o pouco cauto Rei, que da, appareucia
Daquella enferma gente, miss^ravel
Se enche de piedade, e de clenuencia
Havendo que no mar era incur;)ivei,
E não tendo inda inteira intelliçencia
Do esprito cruel, insaciável
Q.ue habita no Baxá, quanto lhe pede
Com alegre vontade lhe concede.
CXXXVIII^
Neste tempo ja toda a grossa armada,
Q.ue sentira o favor do amigo vento,
Recolhendo no porto a vella inchada
Imprimira hum geral contentamento.
Ja com vário refresco he visitada,
Ja se lhe enche o payol de mantimento,
Recebe o triste Rei com alvoroço
Hua morte cruel, hum grão destroço.
Não tarda Colei mao em dar eflfeito
A este engano que traz imaginado.
Aceso da esperança do proveito
E d^animo cruel, nunca domado.
Mas sinto ja tão fraco e ronco o peito
Q.ue em vão soltar a voz tenho tentado,
Descansemos hum pouco, e tudo quanto
Fez o Baxá, direi ness^outro Canto.
CERCO DE DIU
C.4MTO ^III.
Matula o Baxá os fingidos enfermos ã Cida-
de, e a voltas dtUes niette nella mitiia gente
dtj gutrra, a qual salteia os Paços d,'' KlKci,
e o toma vivo, e por mandado do Baxá he
enforcado e posto á porta da Cidade, e ella
mcttida a saque, A armada dos ^l\ircos
chega a Diu com algumas vellas menos.
Dão os Janizaros hum assalto cí fortaleza .
A armada com tormenta se recolhe ií''aUi
para Madrafabat. Os Turcos se preparão
para as baterias. Ordenão hum, espantoso
ardil de guerra : os Christãos Ih^o desfazem .
Coniao-se algumas cousas pariicidares que
succederuo neste tempo.
N
unca se vio cubica agradecida
Nem de sangue jamais farta crueza :
Esta, inveja sempre ha d^alheia vida,
Do alheio bem aquella, e da riqueza :
Por mais que ande qualquer delias mettida
No que liie pede a sua natureza,
Nâo lhe mata a grãa cópia a bruta sede,
Antes Ufa acende mais, e mais lhe pede.
o 1'RIMEII10 CEUCO DE DIU. 511
Do poito cruel, pérfido, avarento
Nào têy o beneficio, ou a amizade
Outra paga, outro agradecimento
Se-iião roubo, perfídia, crueldade^
Sente na triste vida detrimento,
Destrui^'ão nos bens, e faculdade ^
Nem me espanto que o lobo carniceiro
Mal poderá gerar manso cordeiro.
III.
C^uanto este mais recelje, mais se acende
Não em gratificar o recebido,
Setííio em adquirir o mais que entende
ÍAwc de quem recebeo be pussuido :
K d^aqui claramente se comprebende
Gltie com rasao de muitos boje be crido
Cliie a boa obra empregada em má pessoa
Muito mais tèe de má que d^obra boa.
Vendo o falso Baxá ja posto em termos
Seu intento de ser effeituado.
Manda logo os fingidos seus enfermos
Q.ualquer de três ou quatro acompanhado^
E estando despejados então, e ermos
Os logares que ElRei tinha mandado
Dar-lhes, para curar-se, bum par ficavao
Dos que a qualquer enfermo aeompanhavao.
112 Or.HAS !>E VUAaTSCO 1)*AXDKA;)K.
São d^esprito fero/., d'ousado poílo
Os enfermos, e os que os acompauliáiao,
K por dissimularem mais, hum leifo
A qtial(]!ier dos enfermos ordenarão,
E nelic (com quanto era assaz estreito)
Suas armas comsigo então levarão ^
Alegremente o triste Rei recebe
A peçonha que pouco a pouco bebe.
VI.
K som que os natnr.ies, disto innocentes,
Sentissem traição tão engenhosa,
Antes que cinco vc7;^s entre as gentes
O Sol mostrasse a fronte luminosa,
Kntrão quinjientos, lá destes doentes
D^Mifermidade tão contagiosa
Q.ue as gentes penetrou, pouco advertidas,
Nas miseras fazendas, e nas vidas.
VII.
Tendo j a preparado este encuberto
Engano Çoleimão, que vai urdindo,
E ja aos fortes enfermos dado hum certo
Signal, a que acudissem em o ouvindo,
A El Rei, que hum deshonrado fim mui perto
Ja tee, o qual não vai inda sentindo,
Manda que venha ter onde elle estava,
Porque falia r com elle lh''iraportava.
o 1'RIlVfEIRO CEUCO DE DIU.
nVscaniecet' ElRei, de rir nao cessa
])o recado, e dnqnelle qne o trouxera ^
Faz o Baxá o sigiial, e com gràa pressa
A turba, antes enferma agora fera,
Fora do gasa)hado se arremessa
Q-ue para se curar El Rei lhe dera ^
Descobre á gente a falsa enfcrmidadír
Era que achou verdadeira piedade.
IX.
E quando o agradecido peito humano
Agradecera a ElRei tal beneficio,
Estes, que do Baxá falso e t/yrano
A doutrina seguião e o exercício,
Trabalhão por lhe dar o ultimo dano
Cheios também do cubiçoso vicio ^
Cercão-lhe logo as casas em que habita
Com súbito furor, com alta grita.
Dâo-lhe hua bateria áspera e horrenda
Desejosos d^abrir ao alto a entrada.
Jireve espaço durou esta contenda
jlintre a gente feroz, e a amedrontada,
Q-ue como nao ha dentro quem defenda
Abrirão facilmente larga estrada.
Entra logo a perversa turba ingrata,
Tudo, sem resistência, desbarata.
4 li.
OIÍUAS DE IliANCISCO D ANDRADE.
Ctue este inesperado mal, e repentino
D%jnde esperavão graças e louvores,
D''hua tal confusão, tal desatino
Encheo daquella terra os moradores,
Q.ue nem esprito então houve, nem tino
Nos que pudérão ser-lhe defensores,
Para que a aguda espada e a lança tesa
Podesse então fazer qualquer defesa.
Vendo o mísero Rei hum tal perigo
(De que estava seguro e descuidado)
Gluando das boas obras, que atraz digo,
Cuidou ser do Baxá remunerado.
Sem defensão se entrega a seu imigo
Inda nas mesmas obras confiado,
Nas quaes de vida têe mais esperança
Gtue na mor defensão d 'espada e lança.
XIII.
lievSo logo ao Baxá o Rei ja preso
Os Soldados com pressa não pequena,
O qual em crueldade e fúria aceso
Sem replica ao mortal laço o condena.
Ja do misero Rei o frio peso
Pendurado se vê da longa entena,
E apoz isto, por mais desaventura,
Na porta da Cidade se pendura.
<3 rniMEIHO CERCO DE DIU. ii3
Nem paga o triste Rei só com a vida,
Q-ue este só da crueza foi o efíeito,
A cubica, de bens que he só homicida.
Também cjuer sua parte neste feito:
Logo a Cidade a saque foi mettida
Com tal desejo em todos de proveito
Q.ue nem a pobre presa nella fica
Q-uanto mais ouro, prata, e a jóia rica.
Nào pode aqui o Baxá ter soffrimento,
€Lue igual têe a cubica á crueldade,
E sem lhe ser então impedimento
Disposição pesada, longa idade,
Salta da gale em terra n^hum momento
E põe-se a hua das portas da Cidade,
Porque nenhiia cousa delia venha
" Km que elle ou parte, ou tudo então não tenha.
Eis logo, á baixa presa obediente.
Com apressado passo mais que tardo,
Se vem chegando á porta aquella gente
Pouco antes mais feroz que o leão pardo :
Q.ual das mãos o grão sacco traz pendente.
Qual nos hombros sustenta o grosso fardo,
Gtual o ouro e a jóia traz ao peito atada,
O peior k)gar tee agora a espada.
41 6 OunAS TíV. FBAKCISCO I>\4NDnA.DF.
XVII.
?if;í«i iinm estes hons logfao, que ganliáríio
Co^os SP11S braços cruéis, quanto esforçíidos,
Porque tanto que á porta elles chegarão,
E por seguros se hao, e descansado»,
í^om perigo maior então toparão.
Porque d» Baxn todos sao buscados,
Glue o dijihoiro Uies toma, e quanto via
De pre^o, e so lhes deixa o sem valia.
XVIII.
Hecolbe assí do livre e do captívo
ColciniTio do oiiro e prata hiia grãa Copia,
Mas mor a recolhpo d'hum ódio vivo
Co'a gente natural, e co''a sua propia :,
Qlmc debaix-O do ardente Sol estivo
Não fervo tanto a areia da Ethiopia,
Q-uaiito liuns e ontro3 em ódio estão fervendo
Todos porque roubados se estão vendo.
XIX.
A Cidade, que vé dados em presa
Seus bons d'hum duro imigo, e d< sliumano,
Fica (pois mais nao pode) em ódio anosa
Contra o authOr deste mal, ímpio e tyrano.
Os Soldados, que vêem que desta empresa
Outrem leva o proveito, elles o dano,
Também se enchem d''hum ódio assaz furioao
Contra hum tal Capitão, tao cubiçoso.
o PIlIMEIllO Cr.IlCO DE DIU. M'
XX.
Acabado o cruel feito desta arte
C\nn damno universal, só seu proveito,
Passados quinze dias d^alli parte
Odioso aos Soldados mais que acceito :
K despregando as vellas, e o estandarte
liii para a índia o Baxá se vai direito,
Com toda a bem provida, grossa frota,
K do Porto de Diu segue a rota.
Porém antes que as vellas no ar despregue,
K com a^uda proa as ondas fenda.
Deixa a Baram Baxá a Cidade entregue
(O que Janizaro era) que a defenda ^
E porque mais ousado se encarregue
Daquclla defensão que lhe encommenda,
libe deixa alli duzentos defensores
De trabalho e perigos soffrcdores.
E como da cubica e tyrannia
Nem inda está segura a pouquidade,
Três náos de Malabares qtie alli havia
Não escaparão desta tempestade :
Toma-lh'as Çoleimão, e á companhia
Daquella sua grande quantidade
De vellas as ajunta, fornecidas
Do que estão para esta ida mal providas.
418 Or.UAS I>E ÍRiNCISCO d'anduai)k.
XXIII.
A spgunda rasâo qiio iipsta guerra
Move o Baxá que a Diu a proa traga.
Mais que a outra fortaleza, das que emtrr;
Em si a oriental remota plaga,
Foi o infiel, que Itália deu á terra,
Q.uiçá tendo inda n^alma viva a chaga
Do que aqui recebeo, e agora estuda
Podor-se bem vingar com tal ajuda.
Kste, que do Senhor que atraz he dito
duo de Azebibc tev<' o mando antigo,
E em mãos de Çoh-iuiâo rendeo o espirito,
Era, além de parente, grande amigo ^
Tor muitas vezes ja lhe tinha escrito
ChIuc se a armada que os Turcos traz conisigo
A índia acaso vir determinasse
Com que viesse a Diu trabalhasse.
XXV.
Pois se alguém conquistar o sceptro tinha
Do Indico senhorio em pensamento,
Ter aquella Cidade lhe convinha
Por dar mais fácil fim a seu intento;
A qual he forte assaz, e ao mar visinha
E posta de toda a índia a barlavento,
Com bom porto, e logar assaz conforme
Em que a náo destroçada se reforme.
o PRlMEinO CERCO DE DIT. Ul)
XXVI.
Em Azebibe foi ãàáo esto aviso
Ao Baxá, que ao Rei morto foi mandado,
E pesando-o com grão discurso e siso,
E ante os seus Capitães apresentado,
A nenhum pareceo digno de riso.
E do que ouvio em sonhos bem lembrado
Eaz com nova esperança esta jornada,
Que largamente atraz deixo contada.
xxvií.
De Zeíiro entretanto o sopro brando
Enchia o Turco linho, antes vazio,
E sempre Çoleimao mais desej;indo
Penetrar de Cambaia o senhorio :
Pouco a pouco se lhe hia ja cheorando
Quando lhe apparece hum subtil navio
Que vem a elle direito lá da terra
Com mais signaes de festa, que de guerra.
XXVIII.
Este a Cojaçofar em si trazia
(Assaz he conhecido, bem o creio)
No qual tudo descobre a alta alegria
De que o perverso peito leva cheio :
O anafil, o estandarte, a artilharia,
O concerto da fusta, o seu arreio,
Que vendo hum tal soccorro, ja tào perto,
O íim dos Portuguezes têe por certo.
4á0 OURAS DE FRANCISCO D^ANDRADl?.
Forra a armada, e ao Baxá feito presente
Coin esta festival, leda apparencia,
Lhe dá conta de si primeiramente
Apoz toda a devida reverencia.
Louva-lhe logo a armada, louva a gente.
As obras, a tenção, a alta potencia,
Glue nada então lhe esquece do que entende
Glue ajudará ao fim do que pertende.
XXX.
Aconselha-o de novo, antes o incita
Q.ue contra Diu lá faça a jornada,
E entrar-se a fortaleza facilita
l^or quão pouca era a gente, e mal armada
Glue para defende-la nella habita,
E da contínua guerra ja cansada
Glue elle fez, com que falta vai sentindo
De quanto a defensão lhe está pedindo.
Do Italiano a rasão se segue e acceita
Que guarda o que Mafoma ou manda ou tolhe,
Com mór gosto o Baxá faz ir direita
A armada a Diu, e em breve lá a recolhe^
Da proa o curvo ferro ao mar se deita,
Cahe logo a entena, a vella ja se encolhe,
As Luas poios ares ja se estendem,
O anafil e o canhão os ares fendem.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 421
Mas nao chega aqui tanta quantidade
De vellas, como de Adem ja partirão,
Gue seis delias por força, e por vontade,
Differente caminho então seguirão :
Assi porque de grossa tempestade
Hum furioso encontro então sentirão,
Como porque o Baxá mais furioso
Era, que o grosso mar tempestuoso.
Hum dosséis, que era hum forte ebem armado
Galeão, lançou na índia a onda marinha
Lá nos Ilheos, a quem de si tee dado
O nome a sempiterna, alta Rainha,
Onde hum forte varão, qne era chamado
Soutomaior d^alcunha, e nome tinha
Do glorioso António, corta o largo
Mar em fustas subtis que tèe a cargo.
XXXIV.
Conhece este o navio, a elle se lança,
Q-ue hum imigo furor o move e acende.
Seu desejo com grão trabalho alcança,
G.ue o Turco com grãa força se defende i
Mas vendo que em vão move a espada e lança
Ao Portuguez imigo emfim se rende.
Depois d''hum dia inteiro de batalha.
Em que d'hum e outro sangue assaz s'espalha.
422 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDKADE.
XXXV.
Tomado o galeão, nelle se acharão
Dos Turcos que elle dentro em si levava
Alguns que acaso vivos escaparão
Lá d''entre a Lusitana fúria hrava,
Q-ue ao Soutornaior denunciarão
Da armada que lá a Diu navegava :
KUe a Goa os faz ir com pressa grande
Porque a certeza disto ao Cunha mande.
Mas á armada outra vez quero voltar-me
Onde outra vez me inanda ir o meu canto,
Porque hum tal caso lá vejo esperar-me
Q-uiçá causará duvida e espanto^
E se cousa podia cá mostrar-me
O que lá determinava o Suniuío Santo,
Esta que contarei, claro podia
Mostrar a perdi(;ào dos de Turquia.
A noite que esta armada aqui chegara,
ôtjando a segunda vella hia passando,
Hfia trave de fogo se vio clara
Lá da Cidade os ares vir cortando,
A qual sobola imiga armada pára,
E por todas as partes scintillando
Vivas chammas está de ardente lume M
Até que sobre os Turcos se consuiue. 9
o l'UlMElRO CliUCO DK DIU.
XXX\II1.
i2;>
Geral espanto disto se concebe
Mas vário parecer, juizo diverso,
Q-ual por fácil agouro isto recebe,
Glual o ièe por funesto agouro adverso:
Confiança o Christào, e alento bebe,
Arreceio o infiel Turco perverso,
Mas trata hum e outro então d'aperceber-se
Glual para commetter, qual defender-se.
Nas orelhas bua alta voz me soa
Do Silveira de lá da fortaleza,
O qual em conhecendo a Turca proa,
K vendo seu poder, sua grandeza,
Q.ue he muito mor que a fama apregoa,
Nao perde a costumada fortaleza,
Antes lhe aviva mais o esforço antigo
A grSa necessidade, o grão perigo.
Trabalha com a sua alta prudência
Remediar as faltas que entào sente,
Para o qual com graa pressa e diligencia
As estancias entrega á nobre gente.
Varões a que bua dura resistência
Os fortes peitos seus movem somente ^
Niío os nomeio aqui, que em breve espaço
Os virá a nomear seu forte braço.
^'2Í OBRAS DE FKANCISCO D^ANDRADE.
XLI.
Glualquor delles a estancia remedeia
Como melhor então pode, e imagina,
Q.ue inda qiic a imij^a fúria se arreceia
Refrea-la porém se determina :
ôual yjunta a estacada, qual a ameia,
Q-ual com agua a capaz e grossa tina,
Nenhua cousa então alli fallece
Com que hum fraco logar se fortalece.
Bepara-so também o baluarte
Glue o da Villa dos Rumes ser diziao,
líá onde setenta homens o estandarte
De Francisco Pacfieco então seguiào :
E porque elle assentado estava em parto
Onde, durando o cerco, não podião
Soccorrê-lo a miúdo, se lhe lança
Então do que ha mister grande abastança,
XLIII.
Provido desta sorte, e reparado
Q.uanto na fortaleza, e fora lia via,
Çoleimão, s<)ber])o inda, e confiado
Na gràa copia de gente que trazia,
Por mostrar seu poder ao baptisado
Povo, em appa recendo o novo dia
Setecentos Janizaros em terra
Manda saltar, dos mais doutos na guerra.
o rniaiEiKO ckuco de div. r-:o
XLIV.
Sahe a turba feroz, prosumptuosa,
Mostrando a natural soberba em tudi).
Com várias sedas vai rica, e lustrosa,
O uai setim, qual brocado, qual velludo,
Branco, amarello, azul, o a côr da rosa,
Fj quantas soube acbar cnçenlio o estudo,
E com tão vário arreio e sumptuoso
Dá espectáculo beilo, e temeroso.
XLV,
Nas cabeças hiins feltros vão mostrando
(Insígnia dos Janizaros Soldados
Com que se estão dos outros divisando)
iiixe t!m todos são de fino ouro bordados^
Dos quaes ao Ceo se vão alevantando
DiíTerentes plumagens, que tocados
l)''hum brando ventosinbo, então Ibes davão
Grão lustro aos atavios que levavão,
XLVI.
Marcha a turba arrogante á fortaleza
Porque em tomá-la ja cuida que tarda,
Dos quaes qual se vô então com grãa destreza
O curvo arco tratar, qual a espingarda :
Tr;iz esta alta arrogância, esta braveza
i\enhum lá na Cidade dentro aguarda
Dos que alli da infiel Cauibaia terra
*VriPf%c antes Alucuu paru esta guerra.
426 OBRAS DE FHANCISCO d'^ANDIIADZ.
XLVII.
Huns então traz si leva a confiança
De mostra tão feroz, e embravecida,
Esperando de verem sem tardança
Entrada a fortaleza, e destruída ^
Outros que a Portugueza forte lança
Tinhão melhor tratada, e conhecida,
Vão por ver em que pára, ou em que cessa
Tal determinação, tão grande pressa.
XLVIII.
Gtual soe quando o penedo antigo e duro
Encontra a alevantada onda marinha,
Achando-o sempre mais firme e seguro
Humilhar o furor com que antes vinha ^
Tal chega esta soberba gente ao muro
Gtue por indefensável então tinha.
Porém acha lá quem tão mal a trate
due com seu dam no a fúria humilha e abate»
XLIX..
Chega logo a feroz, soberba gente
Ou a espingarda ao rosto, ou o arco ao peito,
Sahe a frecha subtil, e o chumbo ardente
E contra o Christão muro vai direito :
Não fica então de todo descontente
O Turco deste sou primeiro feito,
Porque a seis dos Christãos a vida tolhe
E a vinte faz que o próprio sangue moUie»
Xt PRtMElRO CERCO DE DIU. 427
Não lhe tarda o castigo deste ufano
È venturoso seu contentamento,
Porque como entre o povo Lusitano
A espingarda também três vezes cento
Movem com grãa destreza, vendo o dano
Q.ue ihe fez o infiel ajuntamento,
Qualquer delles sahir, em ódio aceso.
Faz da espingarda o ardente, mortal peso.
LI.
Em meio da infiel, soberba banda
Da Janizara gente se apresenta,
Cincoenta almas ao Reino Stigio manda,,
De muitos só co'o sangue se contenta.
Ja teme o que era ousado, ja não anda
Confiado qual soe, mas s6 ja attenta
Por logar d^onde então sem seu perigo
Mande o chumbo mortal ao muro imigo*
LIl.
Apartada com isto esta primeira
Damnosa, inda que breve bateria,
Fica esta nova gente por fronteira
A. voltas da outra antiga, que seguia
Do Italiano Mouro hoje a bandeira,
A qual (como ja atraz disse) seria
Cópia de treze mil, e neste conto
Os que d'Alucão tinha ^ também contch
i^líS OTRAS DE FXíAKCrsCO d'aKR«ADE.
%j-á para a armada o Turco o rosto voUa
Menos ufano ja, mais rcceioso,
K tanto que de novo a usada volta
(^oméíj'a o grão planeta luminoso,
])e lá do meio dia a prisão solta
Kolo ao feroz Austro impetuoso^
í?ahe logo a embravecida fúria ineliada^
Da nuvem grossa e negra acompanhada»
I.IV.
Vai com liimi apressado curso leve
Polo marinho assento discorrendo,
Ki* se incha a onda, que ma usa antes esteve,
K vai-se em grossa escuma revolvendo,
Kis se abre o Ceo, e mostra o raio breve,
ÍMiccede do trovão o estrondo horrendo,
Encobre-se do Sol a claridade,
C!'ria-sc a furiosa tempestade.
XV.
Km breve a grãa tormenta lá appnrece
(^nde esta imiga armada anies surgira,
A mansa se engrossa c se embravece
Do negro Sul sentindo a fúria e a ira.
Teme o Turco, dí^smaia, e se entristece,
Alegra-se o Ciirisfão, roga e suspira
Inda a Deos <pie accrescente o bravo Noto.
l*<)]a bonança faz o Turco voto.
o PRIMEIRO CEltCO DE DIU. 429
LVI.
Cresce ,1 revolta, quanto cresce o vento,
tíLue cada hora mais bravo o mar combate.
Porém não se descuida hum só momento
O comitre infiel neste combate.
Ja se curulha o longo palamento
Também o grosso mastro ja se abate,
Cahe de novo da proa o férreo dente
Dcsnpparece do alto toda a gente.
LVII.
O l^iloto também no alto navio
3'nra poder salvar-se tudo ordena,
L(nanta a rouca voz, de temor frio,
Jjança ao mar nova amarra, desce a entena í
K o que se sente d'agaa mal vazio.
Com revezada força, e não pequena,
Meneia a fedorenta, longa b;^mba.
Km quanto a alevantada onda retomba.
LVIII.
Alguns bateis pequenos que se vírao
Ir e vir lá da terra para a armada,
A que as ondas então não permittírão
A terra, ou aos navios a chegada,
l*ouco a tamanha fúria resistirão,
Alagou-os a soberba onda salgada :
Os tristes que alli pôz a adversa sorte
Bebem a voltas d 'agua a triste morte.
530 OBKAS DE FRANCISCO dVnBRADE»
Fez o vento feroz, do furor clieio
Q,ne a tormenta hum espaço alli durasse,
Com que a muitos a morte sobreveio^
E a todos grão temor que ella os tomasse \
Até que o inchado Sul, ja com receio
Q,ue Neptuno outra vez alli o topasse,
Se torna ao seu assento antigo e cavo,
E deixa sereno o ar, manso o mar bravo.
tx.
Vendo o Turco de todo despedidci
A tormentosa fúria, que o porsegutí^
Com que a armada vio quasi perdida
E a si cada momento á morte entregue \
Com quanto de a ver salva e a si com vida
Dá graças a Mafoma, que honra o segue.
Não esperar alli propõe comsigo
O segundo furor do vento imigo.
ixi.
lí quando o novo Sol solta a ligeira
Roda lá no Oriente, porque siga
De novo a costumada sua carreira
Com que fugir a negra sombra obriga,
Temor de fúria igual á outra primeira
D'alli faz abalar a armada imiga :
Ja se recolhe o ferro, ja se estende
A vella, o remo cahe, o mar se fende.
o PRIMEIRO CERCO UE DIU. 431
Corta a frota infiel inda arrogante
Contra Madrafabat a onda marinha,
Rio que da Cidade estar distante
Cinco léguas, ja disse a historia minha ^
E não sendo passada ainda avante
A fortaleza vio assaz visinha,
Faz-lhe a devida salva e cortezia
Co\) furor da mortal artilharia.
Sahe o redondo ferro que se esconde
lÁ no bronzo infiel, com graa braveza,
Cortando os ares vai direito aonde
A fortaleza está, com graa presteza.
Co^j mesma cortezia lhe responde
O bronzo Portuguez da fortaleza,
Mas não acho que houvesse hoje algum dano,
Oh no povo iníiel, ou no profano.
LXIV.
Seu caminho os navios nao deixarão, I
Revolvo o remo o mar com vosra lar^a,
l^otico a entrar no rio então tardarão,
O cansado Remeiro o remo larga.
Mas todos os navios não entrarão
No rio então, que quatro dos de carga
Ao entrar se perderão, e o que resta
Entra com grão prazer, com grande festa*
432 OBRAS DE FHÂKCISCO d'aNDRADE,
LXV.
Esta entrada de todos se festeja
Porque de gosto à todos encheo a alma,
Nao ha ja quem do mar medroso esteja
Gtue aqui nunca embravece, sempre he calma.
Aqui a galé ja immunda se despeja,
De novo aqui se alimpa, aqui se espalma,
A gente se prepara para a empreza
Glue toma contra a gente Portugueza.
E como o Turco ufano pertendia
Q,ue aquelle baluarte sinta a brava
Força da sua primeira bateria
GLue da Villa dos Rumes se chamava.
Três Basiliscos, e outra artilharia
Q.ue pelouro menor de si lançava,
Faz Çoleimao que saia logo em terra
Com que se dê começo áquella guerra.
Manda-la em companhia determina
Lá de Baram Baxá, e d'*outra gente.
Com que espera que tenha alta ruina
O babiarte imigo incontinente.
Succede-lhe porém ao que imagina
Effeito vário assaz, e differente,
Q-ue em tudo achou hum grande impedimento
Para alcançar o fim de seu intento.
(?) PRIMEIRO CERCO DE DIV. 43S
LXVIII.
Parte o Turco feroz, que por vencido
O Christào tendo ja, nada arreceia,
Mas logo o faz ser menos atrevido
D''hua parte o caminho, d''outra a areia,
Porque sendo ella solta, elle comprido,
E hum tão grosso canhão mal se meneia,
Por mais força que põe, por mais que estuda.
Pouco ou nada a carreta então se muda.
LXIX.
Sua a gente porém, e mais se acende
Q/uanto sente mais dura a resistência,
Mas quanto mais trabalha, mais entende
Q-ue em vão he seu trabalho e diligencia.
O Capitão, que vê que em vão pertehde
Com força, ou com engenho, ou com prudência
Mover por tal caminho a leve roda,
Com a necessidade se accommoda.
LXX.
Entre as três grossas peças huâ escolhe^
E outras que podem ser bem meneadas
E que a areosa estrada então não tolhe
De duros, rijos braços ser levadas ^
As demais outra vez em si recolhe
A armada, d^onde alli forão tiradas,
E estas levarão sós para o combate
De que espero que avante hum pouco trate»
* 13
LXXI.
Vifite ilíjHS primeiro se passarão
(rlue deixe a armada imiga aqueilu estancia,
Ob (juaes oeiosameiíte iião gastarão
Os Turcos, inda cheios d^arro^aiicia :
Mas neste tempo tudo alli prepárão
f 'om í^rão cuidado assaz, grãa vigilamia,
^iuanlo ser necessário entào entendei^
l'ara dar os coiiilnites que pertendoin.
'i^ratao distç os rebeldes á Igreja Sant.i
liaram e Mahamud (bem se conliecem),
IViem de dia e de noite pressa tanta
*^uc em breve tempo feitos appareceni
Trinckeira, bastião, reparo, e manta,.
ií «Ui outras cousas mais q«:e os favorecem.,
<Íual para a defensão da sua gente,
iiual para o cunhào ter expediente.
LXXIIl.
Knfretanto não dorme a fortaleza
4-i.ut' mostrar sucis forças determina,
Veiidu a preparação, vendo a braveza
íiue llie esiá ameaçando alta ruina ^
Também com grão cuidado, grãa prestcjja
< >s intentos do imigo contamina
(Quanto soffre do tempo a brevidade,
A pouca gente, e a grãa necessidade.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. MV6
LXXIV.
Q-Ualquer porta, ou estreita, ou espaçosa,
Q-ue dá desfa Christãa, fiel morada
Sahkla lá á Cidade irreligiosa,
Com grosso muro foi logo cerrada :
Lá ua cava também funda e lodosa
NSo faz ja a levadiça ponte estrada,
Dentro na fortaleza posta fica,
K tudo o mais que importa se fabrica*
LXXV.
í)iirando esta obra d''hija e dVutra parte
(^)ni grão cuidado assaz, com pressa immensaj
Ém que 30 põe engenho, se põe arte^
(^Lu.d para defensão, qual para oííensa,
Gluer o imigo cruel que o baluarte
Da Villa, o grlío furor, a fúria intensa
(Como ja atraz a minha historia pinta)
Em si do seu primeiro assalto sinta.
E porque o eífeito disto que hoje intentâo
Mais fácil possa ser, menos custoso.
Hum grande estratagema então inveutao
l^e aspeito assaz terrível c espantoso \
E segundo se delle então contentao
E sahe bem fabricado e curioso,
Quiçá lhes põe então mor esperança
Do que põe nos Christãos desconfiança.
Í36 OBRAS DE FRANCISCO ©''aNDRADE.
Louvao-lhe mais a grãa curiosidade
Do que recebem delle algum espnnto,
Mas para que o entendaes, com brevidade
Vo-lo quer ir pintando este meu canto.
Hua barcaça havia na Cidade
Glue ja de Baudur fora, capax tanto
Q.ue ella somente as náos descarregava^
A qual mui grandes pesos sustentava.
LXXVIII.
ArmSo neste navio grande altura
De madeira, qual cumpre neste feito,
Q^ue mostrando da casa está a figura
A que se vê faltar por cima o teito :
Cheia logo se vê do grâa mistura
De matcriacs vários, cujo eífeito
Por fedor, ou por fumo mal se sofre,
Q.uaes são salitre, rama, esterco, enxofre.
txxix.
Sendo feita de todo a alevant-ida
Maquina, horrenda mais que inexpugnável,
Fica em meio do rio situada
Firme com quatro amarras, e immudavel,
Esperando que alli f;<ea tornada
O alternado das ondas, e incansável
Movimento, que as aguas vivas traga
Com que o mar em mor copia a praia alaga ;
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 437
Para que ao muro então possa encostar-se,
E se lhe chegue então a chamma ardente.
Com cujo favor crêem pader tomar-se
Aquelle bahiarte facilmente,
Ou quiçá sem a espada menear-se,
Sem perda, ou danmo algum da sua gente :
(^rôem que sd poderá tanto a fumaça
Q.ue lhes dará a \ictoria então de graça.
LXXXI.
Com quanto a Christãa gente lá imagina
Ksta obra d'apparato mais que dano.
Fazer porém queima-la determina
Antes que as aguas vivas traga o Occeano ^
Não porque delia então tema a ruina
i^lue procura o infiel povo profano,
Senão para ellc ver que em vão pertende
Render a manha, a quem força não rende,
LXXXII.
Tendo o Silveira ja determinado
Glue este arteíicio, que elle não receia,
Sitita o furor em si que foi tirado
Com força do fuzil, da djira veia,
O car2;o disto lojío encom mondado
Foi por elle a Francisco de Gouveia,
Nobre varão, cujo esforçado peito
Mais se ale^ira que espanta co'o grão feito.
438 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRAD£,
LXXXIII.
Nem somente esta empresa lhe recebe
Mas por grão beneficio lh'a agradece,
Q.ue ter d"*aqui grâa parte em si concebe
Do louvor que co^as armas se merece.
Com grãa pressa e cuidado se apercebe
De quanto necessário lhe parece,
Duas fustas provê de tudo logo
Em que leve á barcaça o Christão fogo»
LXXXIV.
E quando a occidental onda marinha
As douradas do Sol rodas banhava,
E de ursos, cabras, serpes ao Ceo vinha
A luz, que a mor luz antes apagava,
O Gouveia, que em tudo o que convinha
Para este feito ja prestes estava.
Faz que da subtil fusta logo caia
E mansamente as ondas corte a faia.
LXXXV.
E inda que hum tenebroso, escuro manto
O claro raio aos olhos impedia,
E elle então navegando hia com quanto
Silencio em tal logar se permittia,
Encubrir-se porém não pôde tanto
Q-ue do Turco, que o rio assaz vigia,
Não fosse naqueirhora emfim sentido,
Soa o infiel clamor com grão ruido»
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 439
Eis se revolve o campo, eis se vai pondo
Xiá pola praia a gente alvoroçada,
Dá-se fogo ao canhão, com bravo estrondo,
Sahe a chamma de fumo acompanhada-,
Sahe com ella o mortal ferro redondo,
Onde a morte cruel faz á morada,
E caminhar direito lá trabalha
Onde o remo Christão o rio espalha.
I,XXXVII.
De cá, de lá o infiel canhão não cessa
Qiue impedir-lhe o caminho então pertende,
E esta continuação, esta grãa pressa
Tanto fogo na escura noite acende,
Glue Phebo a seu pesar mesmo confessa
Glue a sua luz maior hoje se rende
A luz que a artilharia de si deita
Glue inda hemais que a do Sol clara e perfeita.
LXXXVIII.
Mas nem com tão mortal fúria medonha
Pode tanto o canhão bravo e espantoso,
Q-ue ou arreceio, ou duvida então ponha
Naquelle Portuguez peito animoso :
O esforço natural junto á vergonha
lie tanto, que os canhões mais furioso,
Q-ue o sulfúreo furor não he bastante
A fazer que elle então não passe avante»
440 OBUAS DE FRANCISCO D^ANITRADE.
Rompe por ferro e fogo aquelle ousado
Peito, mais forte que hum, mais que outro iicx
E tanto que á barcaça foi chegado,
Qluí* de ninguém lho pode ser defeso,
Faz logo o que lhe foi encommendado,
Dá por mil partes fogo ao grosso peso ;
Bebe-o a secca matéria, e dentro o chama,
Sahe logo o negro fumo, e a roxa chama.
Alguns a que a profana, imiga gente
Para guarda puzí>ra do navio,
Em sentindo o furor da rhamma ardentí
Poios ossos Ihoá corre hum teuior frio,
E por fugir ao mal que tèe presente
Sem detença se lançào logo ao rio ^
O que tinhao a cargo desampárào
E inda elles com trabalho se salvarão.
Nem contente de ver que era ja agora
A grãa chamma voraz em alto erguida.
Sendo tal o perigo naquell'hora
Q,ue entre mil mortes tèe hua so vida,
Comtudo faz alli tanta demora
Gouveia, até que em cinza convertida
A gràa maquina seja, onde a profana
Perenne artilharia não lhe dana.
o nilMEIKO CEllCO DE DIU.
XCII.
4il
Mas vendo que tee ja posto cm oíUnto
Da perigosa empresa o heróico intento,
in^illi se move então, e lá direito
A fortaleza faz o movimento ^
Onde em novo ódio aceso o infiel peito
Faz que o canhão não cesse hum so momento,
Mas quem mal o acertou á ida primeiro
Não foi depois na vinda mais certeiro.
Passa o Gouveia em salvo polo meio
D'odio, d''ira, de fogo, ferro, e morte,
E se lá dentro sente algum receio
3V'm o encobre de fora o peito forte.
A fortaleza emfim sem dam no veio,
Onde mil graças rende a sua sorte,
K o Capitão, e os baixos, e os maiores
O recebem com festa, e com louvores.
xciv.
A fortaleza neste tempo guia
Dous eátures o vento amigo e brando,
Hum que ao Governador obedecia
E lá de Goa as ondas vem cortando*^
Dentro hum nobre varão em si trazia
Cuja alcunha he Moraes, nome P'ernando,
íAuc tèe no militar, heróico officio
Grande esforço e sab(;r, largo oxorcicio.
442
OBHAS DE FRANCISCO D ANDRADK.
N'oulro que do Chaul faz a jornada
Vem hum, cujo apellido Guelez era,
E o nome Pêro Vaz, mas pouco ou nada
Este na fortaleza então espera ;
No sen mesmo cátur faz a tornada
Para o mesmo Chaul d\)nde viera,
Mandado do que então o governava,
Qnc Simão também Guelez se chamava.
Também logo o Moraes tornar-se estuda
Para Goa outra vez, mas resistência
Acha no Capitão, que disto o muda
Dizendo : Com qualquer leve advertência
Vereis quanto me importa agora a ajuda
Do vosso grande esforço, e experiência.
Obedece o Moraes com grande pejo
Aos rogos do Silveira, ao bom desejo.
XCVII.
Na fortaleza então dentro apparece
O Pacheco, a quem disso a historia minha
Gtue da Villa dos Piumes obedece
Agora o baluarte, e diz que vinha
A ordenar tudo quanto lhe parece
Que a quietar sua alma lhe convinha,
K para a quietação sor verdadeira
íivKir dar ao testamento a ordem primeira.
^ PníMP>IR> CKHCO IJK UIV .
^M
E sendo dovodnr em qUauiidádc
De dinheiro ello ao Rt>i de íjilé ho vasenílo,
Trata de o arrecadar com brevidaílft
Aquelle a qvicui compele arvocadalio,
Km tão pia tencao, pia votitadt»
Desejando tampem r|"içá ajudalio".
Mas qtioixa-so elle disto, o mal o sofrei
Q.ue a alma descarreu;ar vom, não o eofre.
Solta sem fenío a língua asperamente
Contra aqnelle de qnem isto ho tratado,
E á verdade o tempo era mais docente
Então a grangear qualquer ousado :
Mostra-se tão queixoso e impaciente,
Tão oíVendido na honra, e tão dam nado,
t^Uí.' desta sua queixa tão sobeja
titual ri, qual escarnece, qual pragueja.
E posto ante o Silveira, com destento
O cargo que até então tinha lhe en2;eit.T,
E que o proveja diz, porque hum momentt?
Elle d'alli cm diante o não acceita,
Heplica o Capitão com soilVimeíito,
Aconselha-o, porem pouco aproveita,
írJlue o Pacheco obstinado em sua «pifixa,
iC nisto que então dlic, se vai, e o deixa.
444
Cl.
Wão quiz o Capitão dar-lhe o castigo
Q-ual merecia então sua soltura,
Porque n^hum tempo tal, irhum tal perigo-
líhe cumpria soffrer, e usar brandura :
Mas chama inda o Moraes, intimo amigo
Do Pacheco, cuja honra inda procura,
E que vá aconselha-lo lhe encommenda
Porque hum tal erro possa ter emenda.
Não faz isto o Silveira porque a ausência
Deste homem, faça falta nesta parte.
Porque o Sousa Coutinho, com vehemencia
Lhe pede a defensão do baluarte ^
Mas porque natural lie da prudência,
E muito mais no perigoso Marte,
Trabalhar porque não caia em affronta
O Soldado antes tido em boa conta»
cm.
Vai-se logo o Moraes a dar eíTeito
A isto que o Capitão então lhe manda,
Nem foi esta sua ida sem proveito
Q,ue com muitas rasões o move e abranda.
Dos conselhos do amigo satisfeito
O Pacheco se volve n'outra banda,
E tanto que d^Estrellas o Ceo se orna
Para o seu baluarte elle se torna.,
o PRIMEIRO CERCO nv. BTU.
CIV.
Poucas vezes depois o que a formosa
Daphne fez converter em verde louro,
Lá sohre a opaca terra, e ponderosa ,
Estendera e encubríra o raio do ouro,
C^uando na hora que a Aurora ruciosa
Quer soltar o cabello crespo e louro,
Põe junto á fortaleza a aguda proa
Hum cátur qne do lá vinha de Goa.
Este por novas deu que pouco havia
Que ja na oriental praia aportara
A Portugueza armada, e que trazia
Hum novo Viso-Piei, também declara,
Cujo nome diz que era Dom Garcia
Da Noronha, familia antiga e clara,
E diz que traz comsigo juntamente
Mui copioso poder, mui nobre gente.
Logo ao nobre Silveira se apresenta
Hua carta, que lá de Goa veio
Do Viso-Rei, que persuadi-lo intenta
Qluc este de confiança e esforço cheio.
Alegra-se o Silveira, e se contenta,
Cobra novo fervor, perde o receio,
E sendo a nova em todos espalhada
Com grãa festa e prazer foi celebrada.
WS
h \'6
Oníí vS 1)K rRANíISíO I) AM^«\í»K
O Fernando, que atraz a historia niiiJia
Disse, (]ue têe Moraos por apellido,
Píírgunta se para elle carta vinha
Do Viso-Rei. Não vem, lhe he respondido.
Logo em publico diz, que pois não tinha
i) respeito o Noronha a elle devido
Torna r-se para Goa he seu intento,
Nem tardará alli mais hum só momento,
CYIII.
Presenta-stí ao Silveira sem detença,
Suas queixas perante elle renova,
K pede que lhe queira dar licença
l^ara se ir no cátur que trouxe a nova.
Mostrií-lhe o Capilão quão mal pertença
A sua honra aquella ida, e lh'a reprova,
tíLuieá de tirar com isto desejoso
Grãa matéria ao praguentOj ou invejoso.
Mais insiste o Moraes, aconselhado
Responde o Capitão, com ledo rosto :
I-vos, que eu só me quero acompanhado
De quem de acompanhar-me têe grão gosto.
Fica o Moraes traz isto inda obstinado.
Nem da sua tenção muda inda o posto,
K na hora que n'hum véo escuro envolta
Fica a torra, se embarca, e a Goa volta.
1'Ul.HIJIU ) CLHCU DE DIU. 14i
No !i«)l)re Capitão loj^o se acende
Jiuai (Jes«jo entendido clafattietitc,
irkuc lá uo baluarte que defendo
O Paeheco, esta nova se apresente.
Lopo de Sousa, que isto delle entende,
Ijlie proinette, q»ie quando o Sol luzente
Descansar no maninlio usado leito
Seu desejo verá posto em eíTeito.
Aceeita o Capitão a honrada offerta,
K com muitos lt)uvort!S lhe agradece,
K em quanto o raio dVuro inda encuberta
Têe a sombra que o claro ar escurece
Tudo o Sousa provê, tudo concerta
Ciuanto ser necessário lho parece
l*ara eflfoito daquillo que queria,
Armas, embarcação, e companhia.
N''hua fusta que alli so foi achada
(Tendo para o que quer tempo opportuno)
Kntra, e com grão silencio, abrindo a estrada
Vai polo húmido assenio de Neptuno.
ISIas porque a mi ja cansa, a vós enfada
Este Canto, ja assaz largo e importuno,
Cesso aqui, porque cesse algum espaço
O vosso enfadamento, o o meu cansaço.
o PHEIIEIRO
CERCO DE DILi.
Jjopo de Sousa chega ao baluarte de Fran-
chco Pacheco^ e torna á fortaleza em. saloo.
A armada dos Turcos sahe de ]\IadrafaJ)nt^\
e vai ancorar em Diu. Dá-se o conibatc ao.
baluarte^ e o succeaso delle. Contão-se algu-i
mas cousas que succedêruo neste meio tampo/'
(^hega á fortaleza hum, homem do bulnaric
de Francisco Pacheco^ c a que vinha.
X arecer foi da douta antiguidade
Qiue não falta a fortuna ao atrevimento,
Isto abraçou depois a nova idade,
Dá-se-lhe hoje também consentimento.
Ô/U ai o provou co^o exemplo da verdade,
Q/Ual co^o exemplo o provou do fingimento^
A poesia co*o cjuc olla finge e inventa,
A historia co''o qtie o tempo liraprosonta.
o PRIMEIUO CERCO DE DIU. \][)
Sc qualquer escriplor isto pertende
Ou seja fabuloso, ou verdadeiro,
No braço Portnguez, a quem se entende
(riue nenhum outro foi nunca primeiro,
Conhecido ja onde o Sol estende
O seu primeiro raio, e o derradeiro,
Mil feitos acliará mais espantosos
Uue os verdadeiros seus, ou fabulosos.
Feitos, que mais ao vivo estão provando
<aluanto ajuda a fortuna á ousadia
(^«je quantos a verdade está mostrando,
Ou quantos imagina a fantasia.
O que agora começo de ir cantando
Só para prova disto bastaria.
Mas esta prova fazem mais bastante
Os que cantei, e espero que inda cante.
IV.
Fendendo as ondas vai a proa aguda
Sem ter algum favor de linho ou faia.
Porque como encubrir-se o Sousa estuda
Nào quer que ou hum se estenda, ou outra caia
O curso da maré só lhe dá ajuda
J*ara ir buscar do baluarte a praia,
Mas tão depressa vai co''o favor delia
G.ue bem pode escusar o remo e a vcUa.
4.Í0 OiiUAS DE rRAKCiSCO d''aNOKADE,
Nao fui de todo vão este conceito
Glue algum tempo se encobre com esta arte,
Porém como era o rio assaz estreito,
E vigiado assaz por toda a parte,
Daquelle ardil não pôde ver o effeito,
l*orque antes de chegar ao- baluarte
Das espertas vigias foi sentido ^
Soa logo a alta grita, o grão ruido.
VI.
Traz isto o bombardeiro diligente
Salta d''hum canhão n''outro, e aceso o sóita,
Sahe entre fogo e fumo o ferro ardente,
E lá da Christãa fusta vai na volta.
Não desmaia com isto a fiel gente,
Inda que então n'algum temor envolta,
Pois então cada hum vê combatida
De mil mortes cruéis híia só vida.
Não deixa d*'ir avante com graa pressa
Com quanto a jornada he de morte cheia,
Arde o Turco, de blasfemar não cessa
Por se ir este também como o Gouveia :
Nem a solida chuva mais espessa
Cabe de lá da nimbrosa, escura veia,
Glue do infiel canhão o mortal peso
Inda em mor ódio calie que fogo aceso.
o PRIMEIRO' CERCO UE DIU. 451
Vllf. ,
Mas dos mortaes pelouros a frequência
Einfim foi vãa, e vão foi todo o estudo,
Q.UC em vuo se ajunta ao ódio a diligencia
Contra quem da fortuna leva o escudo.
O Sousa emfim sem outra resistência
Senão a do seu peito ousado em tudo,
A que a fortuna então favor nao nega,
Sem dam no ao logar chega, aonde navega.
Levanta logo a voz, sendo chegado,
Polo Pacheco brada com instancia ;;
Acode elle em ouvindo ser chamado,
Q.ue não lh'o impede então a alta distancia :
Pergunta logo o Sousa polo estado
Em que estão, elle, os seus, e a sua estancia,
Dá-lhe a nova que traz, que elle ha por boa,
D"* estar a armada ja do Ríino em Goa.
Apoz isto lhe diz que elio queria
Deixar a embarcação, saltar em terra
A dar-lhe alguas cousas que trazia.
De que hua he de refresco, outra de guerra :
Q-ue tenha aberta a porta lhe pedia
A qual da sala a entrada impede e cerra,
E para que elle possa ir lá seguro
CoV)S seus o favoreça lá do muro.
4o2 OBUAS DE FRANCISCO dV^NDIIADí:.
. XI.
Rocusa o Capitão aquella entrada
3)o Sousa onde elle está, nem lli"a concede,
Dizendo que com muro tèe cerrada
A porta, que elle estar aberta pede,
I'j díille ao baluarte está atalhada
♦Ta a communicação, porque lli'a impede
O grào vallo que o imigo pôz na parte
Que entre eile posta está, e o baluarte.
XII.
E que de mais não têe necessidade
Senão que a sua ajuda lhe não negue
O Rei que habita lá na Eternidade
A quem tudo obedece, e tudo he entregue^
Mas pola obrigação, pola amizade
Ciue deve hum Capitão a quem o segue,
Klle ao Silveira pede por ajuda
Gluc dando elle signal, de lá lhe acuda.
Aquelle espaço todo que gastarão
Nesta prática os dous que aqui nomeio,
Os profanos pelouros não cessarão,
(i-ue por serem mortaes davão receio \
K tão espessos vao que lhes cortarão
Mil vezes as palavras polo meio,
Mas a prática fica concluida
Tl) d a que foi mil vezes repetida.
o i'uimeí:io cerco de diu. i
XIV.
Dcspediâo atraz isto o varão forte
Ao primeiro perigo a fusta entrega,
E rompendo outra voz por fogo e morte
Com invencível peito o mar navega^
E tal favor então da amiga sorte
Sentio, que á fortaleza em salvo chega,
Apesar do perennc fogo ardente
A dete-lo apressado c diligente.
XV.
Nenhum peito a grua festa dissimula,
Nenhuma lingua o seu louvor encobre,
(iual entre os mais heróicos o intitula,
Q-ual então hum geral gosto descobre :
Nem somente ao Silveira isto estimula
Mas a gente também plebeia e nobre.
Todos liga união pura e sobeja
Em nenhum detriícção reina, ou inveja.
XVI.
Gastou-se nisto o espaço que o dourado
riiineta poz na usada sua carreira,
Mas quando elle nas ondas descansado
Foz que mostrasse a irmãa a Itiz primeira,
A fusta só que tinha, com recado
A Goa ao Viso-Rei manda o Silveira,
E nella os que a doença grave e dura
Necessitados fez alli de cura.
NCISÍO I> ANDllA.DK.
XVII
Toiido o Turco, que em nada pôz taicL
Knlao ja preparada a V)a teria
Q-ue ao baluarte, cuja governança
Têe Francisco Pacheco, dar queria,
Nãp 1'je boífre o furor, e a confiança
<lue o possa dilatar mais hum só dia,
Crendo que por nao ser ja commettido
Não era o baluarte ja rendido.
E ja no fim do mez om que pisando
As fsf radas do^Ceo oo^o carro aceso
O autumnal Equinócio vai mostrando
O planeta do amor de Daphne preso.
Na nora que d^entre as ondas, levantando
Phlegom, e os outros três o claro peso,
Desleriáião o manto tenebroso,
Coíneça o bravo assalto, e temeroso.
XIX.
Eis se ouve o grão clamor, vê-se a revolta
Lá no povo fiel, e lá no imigo,
Sahe a rui na e a morte em fogo envolta.
Lá do grão basilisco, que atraz digo
Glue da armada alli veio, e também solta
Com estrondo menor, menos perigo
Seu furor outra peça mais miúda
Glue entradí! ao baluarte abrir estuda.
ri;iMF,IUO CERCO DE DiV.
Mas em quanto trabalha nesta entrada
\ profana l>()mb;irda horrenda e fera.
Eu lá a Madralíibat faço a jornada
Onde a frota infiel sei que me espora.
Esta estando ja assaz bem preparada
Do que a sua tenção necessário era,
Nào quer alli deter-se mais bíia hora,
Pois têe o mar e o vento brando agora.
XXI.
Sendo ja chegada a hora da partida
Hum manda, outro executa o mandamento,
Sahe logo a ancora curva, constrangida
De duros braços, lá do fundo assento,
Sobe a entena ao my\\s alto, onde estendida
A vella, em si recolhe hum manso vento,
O remo calie, e as ondas revolvendo
Faz com que a aguda proa as vá fendendo.
Fendendo as ondas vai a aguda proa
l fania mostrando em tudo, e gosto,
O estandarte de varia seda voa
(^om ordem em logares vários posto,
O tambor, e o clarão guerreiro soa
Com mais horrendo som que bem composto,
Na popa o rico toldo roçagante
De que o mar he também partecipante.
io^ OBRA6 DE FRANCISCO ©"aNDRADE.
Esto gosto que em tudo mostra a frota
Em tildo vai a gente descubrindo,
Da Christãa fortaleza segue a rota
Favorável o vento e o mar sentindo :
Hua bem concertada galeóta
Vai diante, a quem todos vao seguindo,
A qual Jhuof Hamed em si trazia
Que tee do mar a mor capitania.
XXIV.
Com esta ordem que digo que levava
Esta armada infiel, soberba e ufana,
Na hora que o baluarte começava
Sentir em si a cruel fúria profana,
Começa a apparecer onde a alcançava
Ja claramente a vista Lusitana,
Glue dlium tal apparato, tal arreio
Mais alvoroço toma que arreceio.
E sendo o dia claro, o vento brando,
O mar quieto, manso, e bonançoso,
E a aguda proa os ventos vai cortando
Com curso mais veloz que vagaroso.
Em breve tempo a armada foi chegando
Defronte ao baluarte onde o animoso
Gouveia tinha o mando, e o regimento,
Ao qual a barra deu o nome e o assento.
o PRIMEIRO CERCO I}£ DIU.
457
Aqui logo a profana imiga gente
Começa a descubrir o aceso peito ^
Faz do canhão sahir o ferro ardente
Q.ue contra a fortaleza vai direito ^
Mas por isto não ser confusamente
Passa hum navio entre outro, e de tal geito
Se ordenão, que em tirando alli, o primeiro
Dá logar ao segundo, este ao terceiro.
XXVII.
Soltando com esta ordem toda a armada
Dos canhões a fulminea tempestade,
Faz que na fortaleza tenha entrada
De pelouros mortaes grãa quantidade:
E cuidando quiçá ver destroçada
Só com isto a Christàa ferocidade,
Só n''hijm tão forte, quanto triste, moço
De infinitos canhões pára o destroço.
XXVIII.
o infelice mancebo, que no muro
Acaso estava então d^armas ornado,
Lá onde o seu feroz esprito duro
Para seu damno o tinha então guiado,
Q-uiçá na hora que estava mais seguro,
K d^hum tão grave mal mais descuidado.
Eis solta das galés a horrenda e fera
Mortal fúria, hua grossa, brava espera»
4ò8 OJiRAS «K lllAN fisco !>"' A NDK A 13K.
Esta, que sempre traz por companheira
Hum morte cruel não resistida.
Direita ao moço lá faz a carreira
A dar morte ao que então começa a vida
Encontra-o polo ventre, e da maneira
Q-ue cahe a nova planta, combatida
Do machado, que o duro braço aíferra,
O triste moço cahe pallido em terra.
Pallido em terra cahe o moço triste
Com as entranhas feitas em pedaços,
A lagrimas e a dor, ninguém resiste
Senão sós os penedos, s<)s os aços.
Tu, mal afoitunada que o pariste
Apparelha os cansados, velhos braços.
Em que nMiu^hora vejas consumido
O que vinte annos ha que tees parido.
Viva alli a Mãe ao moço inda guardara
Para esta desventura acaso a sorte,
A qual ja n 'outro tempo arrebatara
O charo companheiro a cruel morte.
Com vida inda, e com falia á velha e chara
Mãe, foi levado o moço, e com tão forte
Esprito o recebeo, que dôr tamanha
Com lagrimas as faces nào lhe banha.
o l'UI.MEIRO CERCO DE DiU. io9
Nos braços o agasalha, e inua procura
Q-ue a cirurgia a tanto mal proveja,
Mas o moço, que vô que a sepultura
Só lhe fallece então, e o mais sobeja,
lihc diz : Consenti, Mãe, que d^ahna a cura
Antes que as vossas lagrimas cu vcj;!.
Para que a vossa dor não possa agora
Impedir-me o que cumpre a esta ultima hora.
XXXIII.
A animosa mulher, em quem se esconde
Esforço, que ao mais forte dera esp^uito.
Estando ella cnlao so quieta, onde
Os mais rompem o Cco com triste pranto,
Com socpgado rosto lhe responde :
Filho, doestar teu fim ja perto tanto
duo a cura d^dma só te está pedindo
Está a minha hua grave dôr sentindo.
' XXXIV.
Mas inda que esta dor tanto me alcança
Q-uanto me obriga o amor, e o mal presente,
Faz-ma porém soífror bem a esperança
Com que ja hum grande allivio esta alma sente,
Q-ue lá na Eterna Bemaventurança
Irá reinar tua alma eternamente,
SA esforçado em morrer, na fé constante
Q.UC isto a me consolar s^rá bastante.
460 OBKAS de FRANCISCO d"'aNDKADE.
Ja nesta hora comsigo o moço via
O Sacro Sacerdote, e diz-lhe : Ouvi-me.
Aparta-se então toda a companhia,
Descobre -lhe o pesado, e o leve crime,
Recebe absolvição, e neste dia
Entra em estado santo, alto e sublimo.
Tornão aquelles logo acompanha-lo
Glue o Sacramento fez desampara-lo.
XXXVI.
E dos braços da Mãe, que d''infinito
Esforço e piedade estava cheia.
Manda este corpo lá o pio esprito
Onde vida ha de ter, de morte alheia :
Eis sobe logo ás nuvens o alto grito,
Mana dos olhos a salgada veia,
Gtual com dor de hua morte assi im matura,
Qual sentindo da Mãe a desventura.
Aquella so que ao morto filha dava
No charo seio então recolhimento,
Nas lagrimas communs enchuta estava,
,Na impaciência commum têe soífrimento ^
Se alguém a consola-la se chegava
Delia consolação recebe e alento.
Esforço sublime inusitado
Digno de eternamente ser cantado.
4til
o PIlIMl!.ia(> CEKCO DK DIU.
A fortaleza torno, onde me espera
Hum desestrado caso lamentável.
Disse que a artilharia iniiga e fera
Soltando a horren<la fúria insuperável,
Na Christãa fortaleza entrar fizera
Q^iiasi hua quantidade innumeravel
De pelouros inortaes, e esta só f^nerra
Ou toma-la cuidou, ou pò-la em terra.
Porem a forte çente que a defende,
(:lue em tâo leve perigo segura anda,
Tamhem os se»is mortaes canhões acende,
Tamhem o aceso ferro á frota manda ;
^las não lhe segue o effeito ao que pertende,
Porque a sorte enlào mais díira que hr.mda
Faz (jue o horrendo furor do Lusitano
Canhão, traga aos seus, mais q aos Turcos dano.
Do baluarte da barra, e do que titdia
Do Santo antes incredido o apellido,
Neste tempo o pelouro ardente vinha
De lá do ruinador bronzo sahido,
E tendo a imiga frota tão visinha
Q-ue lá alcança o furor nao resistido.
Sós duas galés o sentem pouco ou nad
Pois não passa da en varria, e paliçada.
XLI.
Dos seus mesmos canhões a Portugueza
Gente, sente o mor dano, a mor ruina,
Porque dos que alli têe para esta empreza,
Espera, basilisco, columbrina,
ô-uando aquella soberba fúria aceza
Com mor pressa e furor joga e fulmina,
Dous grossos basiliscos arrebentão
Glue da pólvora a força não sustentão.
Hum de metal, de ferro outro era feito,
Ambos fortes, mortaes, impetuosos.
Porém d'ambos não segue hum mesmo eíFcito,
Só d^hum os que alli eslao íicão queixosos.
O de metal, com quanto alli desfeito
Sc vê em mortaes coriscos furiosos,
De tal sorte porém seu furor lança
Glue dos que em torno estão nenhum alcança.
XLIII.
Mas o férreo canhão em desarmando
Os arcos de que fora antes composto,
Por cá, por lá sua fúria executando,
Q.ual ferindo no peito, qual no rosto '^
A quatro logo as almas arrancando
Faz dos corpos deixar o antigo posto,
Outros dez no seu próprio sangue banha,
Nos sãos causa tristeza, c dor estranha.
10 PRIMEIRO CERCO DE DIU. 46S
XLIV.
Esta cópia de mortos e feridos
No baluarte da barra s6 se acharão.
Mas os fados cruéis endurecidos
Neste só desastre hoje não pararão.
D'outros canhões que estavão repartidos
N 'outras partes, alguns arrebentarão,
E por todos vêem sete o ultimo dia,
Q,uinze vão ter em mãos da cirurgia.
Deu causa a este successo miserável
Applicar-se ao serviço da bombarda.
Por erro mal sabido, e desculpável,
O negro pó, que serve na espingarda.
Mas hum feito assaz raro, assaz notável,
K de memoria digno, lá me aguarda
No baluarte da Villa, ir-me lá quero.
Onde causar espanto e gosto espero.
Porém antes me cumpre entrar na armada
Q-ue com instantes vozes me importuna,
Porque d^hum vão trabalho ja cansada
Segura estancia ja busca, e opportuna ^
Com a ordem que ja atraz tenho contada,
Contraria ao que cuidou tendo a fortuna,
Dispara a frota imiga a alta braveza
Dos seus canhões lá contra a fortaleza.
^{j\ OiiRAS DE i^iANClSCO «""aNDUADE.
Ora hum dispara, ora outro, com graa pressa^
Poios ares retumba o estrondo horrendo,
Succede-lhe a fumaça negra e espessa
Q-ue apoz a Aurora a noite está trazendo.
Espantado o Ciclopa h^)je confessa
Que lá onde o corisco está fazendo
Tão grosso fogo e fumo a Etnea fragoa
Não lançou de si nunca como lioje a agoa»
Dado fim ao furor da fulminosa
Artilharia, que não he infinita,
Kíítve a escura fumaça, e temerosa
(:i.ue ora a espanto, ora a gosto o peito incita,
l*assa encoberta a frota copiosa,
K vai surgir lá junto da Mesquita
Onde disse que o ferro ao mar lançara
Q,uando alU de Suez antes chegara.
XLIX.
Eui quanto estes canhões cá nesta parte
Os redondos coriscos no ar espalhão.
Os que batendo estão o baluarte,
Em que os fortes soldados se agasalhão
í4.ue do PacJieco seguem o estandarte,
Com grande instancia assaz também trabalhão -.
Para romper o muro, e nelle houvesse m
Porta por onde o Turco entrar pudesse. ^
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 4G5
Este bravo combate, começado
Subindo a luz primeira no Oriente,
Até aquella hora foi continuado
Km que o Governador do carro ardente,
Além do meio curso costumado
GLuatro horas caminhara ao Occidente,
Sem estar hum momento ou quedo ou mudo
Nrm o grosso canhão, nem o miúdo.
Nem fez ao baluarte em vao a guerra
Esta fúria perenne, alta, e funesta,
l'orq!ie aquella grãa sala põe por terra
Ci-ue lá no baluarte mesmo entesta,
Tal que a parede com que antes se cerra
Essa mesma d^escada agora presta,
A qual naquella parte se acabava
Que o baluarte mais alta mostrava.
Nem pára nisto a horrenda bateria
Porque ódio tudo prova, tudo intenta,
HuH parte também da frontaria
Do baluarte sente esta tormenta ',
Também lhe cegão toda a artilharia.
De que se alegra assaz, e se contenta
O imigo, que ha que tee, com grande gloria,
Pois subida ja tee, certa a victoria.
Vô6 0BR\9 DE 1'nANCi.SCO D^ANDRADt:.
E vendo ella que o fim de seu intento
Com tal occasião se lhe apparelhaj
Não se quer mais deter liuni só momento
De fúria estimulada, nova e velha,
E logo ao som do bellico inatru mento
Sc^^uitido de corrida liuu vermelha
Bandeira grande assaz que hia diante,
Sahe soberba, feroz, salic arrogante,
tiV.
Desce lá do intratável cume Alpino
O arrebatado rio, caudaloso,
Quando o Sol dos de Leda entra no sino
Co 'a derretida neve mais furioso :,
Se em meio do furor, do desatino
Com que move o seu curso impet»08o
Encontra do penedo a gràa firmeza
Torna atraz, e desvia a alta bravez^a :
Tal se mo representa esta profana
Gente ÍL-rox, e cheia d^irrogancia,
(iue entrando impetuosa, ousada, e ufana
A detom buH firme, alta constância.
Setecentos ser3o (se não me engana
A vista) os que vão lá da Turca estancia
Traz o j>endão purpúreo, erguido em alto,
Prí^parudos ao fero, liorrendo assalto.
4G7
o l'Ul?.lKillO CEUCO DE Dil'.
LVl.
K como tèe a empresa por vencida
Ir cada hum diante entào trabalha u
Sobe o^nimuso alferes de corrida
Lá pola ruinada, alta muralha,
Acompanhado l\ji nesta subida
De quantos o lo;;ar em si ag -.salha,
<^iiie como não esperão resistência
Vão ja traz a victoria a competência.
E porque mais ousado hoje e atrevido
Siga o Turco esquadrão o que pcrtende^
Foi de muitos dos seus favorecido,
Q/ual co''a frecha subtil que os ares fende,
Gtual co''o chumbo mortal, que despedido
Lá da espino;arda, ti:do abate, e rende,
ttuevão contra os Christãos, para impedir-lhr»
Mostra r-se aos infiéis, e resistir-lhes,
ií sendo os Turcos ja quasi igualados
Co''o mais alto logar do roto muro,
Tendo os Christàos ja por desbaratados
E o íiin daquella empresa por seguro,
Forão de sós dous homens encontrados
D^esprito mais que forte, mais que duro^
Q.ue sobre o andaime lá do baluarte
, Fa2Jcm parar do3 Turcos o estandarte.
^68 OBRAS DE FRANCISCO 1>'aNDRADE.
Cílualquer dos dons estende a tesa lança
Contra infinitas lanças, sem receio.
O Turco, inda com riso e confiança,
Nao duvida acabar isto a que veio,
Mas porque a resistência mor tardança
Lhe põe do que cuidava, d''ira cheio,
Blasfemando a Mafoma, que lhes nega
Seu favor, só nos dous a fúria emprega.
Porém os dous, em quem hum tal perigo
Maior esforço põe que espanto e medo,
Contra o grosso furor do povo imigo
Com tal constância têe o rosto quedo,
Glue o mais grosso Carvalho, e mais antigo,
Nem a móbil constância do penedo,
iNão resiste melhor ao movimento
Ou da furiosa onda, ou do grão vento.
LXI.
Os Christaos que lá da fortaleza
Aquelle raro esforço dos dous vião,
Movidos ora a dôr ora a braveza
Porque então ajuda-los não podião,
INão sabendo se a causa era fraqueza
Ou se outras cousas são as que fazião
O-ue os outros aos dous sós deixão em tanto
Perigo, em todos entra hum grande espanto.
« PRIMEIRO CERCO DE BIV, 4<89
Cresce esta sua dór, vendo faltar-lKes
Navios, com que então o mar fendendo
Sequer algum favor podessem dar-lhes,
E em lagrimas a ardente ira envolvendo
Mandão-lh\)s peitos lá onde mandar-lhes
Nenhum pode o seu braço, e o ferro horrendo.
Mas 00^*0 mortal canhão, bravo e terrivel
Os ajudão de lá quanto he possível,
Lxm.
Mas a gente infiel, que desatina
E dentro se consume, e desespera,
Vendo que podem dous o que imagina
G-ue toda a Ohristãa gente não pudera.
Com dobrado furor, se determina
Vencer aquella invicta cópia fera,
Meneia com imigo, duro braço
Hum a comprida lança, outro o curto aço»
Porém tendo qualquer dos dous o peito
Invencivel, feroz, forte, incansável^
E o logar em que estão he tão estreito
Ô-ue bem lhes dá de si ser defensável,
Ambos sós o defendem de tal geito
Contra hum imigo quasi innumeravclj
Como se os que estão no baluarte
Aquella defensão tiverão parte.
« 14
Agora <'i t<í$a lan^a p&netrando
Os coípQs infií-is, faz seu oílix:io,
Agora © Htii&o hi\rro aiEiíracs6anUo,
AgopA filtro íiainmiiero arfericio,
Q-ue oi lie cktttro llreatavão uíinisfeíaAfcdcf
Jj^feí^-a í*-tj.«elW>au;§uiií€o ^xercicio,
Fazí-ífc». SOS o ijue os mais ç^ug tè« eQuisigo
Não por clilíiéuldadti, e por jKirigo.
ixvi.
JiOgo (laquelLe^^WagQS-.^wo vençídoii
Entre os TuFGOS se segue o eíleito duro^
l*orque \\uu& net>te logar são constraugúJoft
!Maiidaí.as almas lá ao reino escuro,
Outros co''os péa nos ares estendidos
iVeci pitados v2^i lá do alto muro
Com grão damuo ou das peruas ou das frontes,
Ach4íâé^e htye í#^»U mil PUaetoates.
Nem íegucRi tíiuto tfnv salvo esta conteHdrt
(Aue o seu saugue ní5o faça húmida a terra,
l'orquç, como someuite a elles peiteníla
Fazer esta wi-pitisa turba a guerra,
Inda que os >nintas, vezes não oflenda
O tiro penetra Xi te, porr^uq os erra.
Outros muito* também os acertarão
Une cruelmetU© os cqupo.'» Uves passarão.
,,l»3JriRIAÍEIílO CERCO BE DJU. 471
LXVIII.
Mas nfm faltos <le sangue, c trabalhadc»
T)e resistir a imigos infinitos,
Se Ufaljatem hum ponto os indomado»,
Magnânimos, leaes, duros espritos.
E tanto hoje são delles maltratado»
Aqudles infiéis peitos malditos,
Q.UO perderão de todo a confiança
l)i' prevalecer hoje a sua lança.
Dura este bravo assalto c furioso
Ato que de Latona o filho louro
Nas ondas ja mettia o luminoso
Carro, d''onde espalhara os raios d'oviro.
Confuso então assaz, e ja medroso
Aquelle antes soberbo, e ousadv Mouro,
]Não se atrevo a esperar a força brava
Que antes como a venciíja dcspresaya.
Desce lá do alto laaiiro com mor pressa
Da cora que antes subio, a imiga gente.
Por cá, por lá se espallia, e se arremessa ,,; /
Por fugir a outro mal que tèe presente ^ í^
Porque hum momento só então não cessa
De busca-la o redondo ferro ardente,
Q-ue lá da fortaleza fulminando
O canhão furioso está lançando.
^72 ©BHAS Til. líVÀNCISCO D^ANDBADE.
LXXl.
Aquelles que hoje ir vivos o Ceo manda
Das mãos dos duus, e da mortal bombarda,
Só co''os pés dão fim a esta demahda,
Por mais ditoso se ha quem menos tarda ^
T)"* estorninhos no Outono a negra banda
Q.UG sente o tom iniigo da espingarda,
No temor e desordem com que foge
Não chega á que esta gente levava hoje.
Mas com medo e desordem côfrem taiito
ÍTlue ás estancias vão tef em breve espaço,
E inda os lá acompanha hum grande esp;into
D"' hum tão raro Valor, tão íofte brago.
Vós fort»."* d^us vaiõos de quem eu canto
Soífrei-mc não louv.jr-vos, pois o faço
Porque o maior louvor do vosso peito
He só dizer o que hoje tendes feito.
LXitlI.
Sendo com tão glorioso vencimento
Lançado d^alli lium áspero adversário,
Vão logo os dou» buscar recolhimento
Gt/Ual entendem que lhes era necessário.
Recebidos com grão contentamento
Dos companheiros são, e co'o ordinário
Favor da cirurgia sustentados
Ob corpos por mil partes trojp.;-? i-.los.
o IMliaiKIUO CERCO I>E DIU
LXXIV.
473
Não tleixárão porém aqiielle muro
Q,ue têe com tanto esforço defendido,
Até que descobrio o manto escuro
A noite, e o Ceo d'Estrellus foi vestido :j
l*orqae esta escuridão lhes dá seguro
Q-ue nào será de novo combatido,
K inda o seu forte esprito lhes renova <>A.
J*ara outro assalto novo, força nova. f*^
LXXV.
Depois de ser passada a maior parte
Da noite que seguio a hum tão bom dia,
Q.uand() o Sfinguinolento, hórrido Marte
Ao nKjlle c brando som no obedecia,
Sahe hum do combatido baluarte
K á fortaleza faz direito a via,
Q,ue por nome Faleiro António tinha,
K com pressa lá chega aonde caminha.
ixxvi.
Confuso o Capitão, suspenso fica
Tanto que lhe chegou disto o recado,
Pt)rque esta vinda então lhe prognostica
Algum estranho mal, e não cuidado^
Mas nada então de fora notifica
O que o seu peito tee dentro encerrado,
O sobresalto o apressa, elle o primeiro
Deseja d' ir buscar lo^o o Faleiro.
474 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
LXXVII.
Mas vence emfim co''a força da prudência
Este impo.to que tanto o perturbara,
E fazendo alli vir com diligencia
Todos os da família illustre e clara,
E os mais a quem o esforço e experiência
Para estes aulos taes habilitara.
Ao Faleiro mandou (que presente era)
Qiue dissesse a rasão que alli o trouxera,
Lxxviir.
EUe então posto em pé, logo endireita
Para onde o Capitão via que esava,
Dá-lhe hua longa carta, que ser feita
De três ou quatro dias mostras dava.
Esta era do Pacheco, onde da estreita
Peleja do outro dia não tratava.
Nem d''outra cousa das que disse agora
O Faleiro, a que alli mandado fora.
ixxix.
Esta carta em logar do sobrescrito
Q.ue declara a pessoa a quem se escreve,
Diz que lá a tudo quanto lhe fòr dito
Polo Faleiro então, fé dar se deve.
Logo isto ao perspicaz, esperto esprito
JMotivo e occasião deu, e não leve
De cuidar que esta vinda extraordinária
Era forjada mais que necessária.
o PRIMEIRO CERCO I>E DIU. 475
O Falei ro apoz isto diz que quando
Fez lá do baluarte elle a partida,
O Pacheco (que tinha delle o mando)
Tão perto estava ja do fim da vida,
Q-ue elle comsigo estava imaginando
Q-ue de todo a teria ja perdida,
E que hua enfermidade grave e forte h /.
ôue teve o tempo atraz, o trouxe á morte. ''^
LXXXI.
Entre este ajuntamento ora presente
O Lopo, que d'alcunha tinha Sousa,
Este ao Faleiro diz, que ante tal gente
Como dizer se atreve hria*tal cousa,
Porque elle havia dous dias somente
Q.ue do Pacheco a voz ouvira, e que ousa
Dizer que aquella voz estava em termo
Q,ue era Voz de homem são mais que d''enfermo.
Lxxxir.
Pouco o Faleiro disto se contenta
Q-ue em grão perigo vê sua verdade,
E como inda procura, ainda intenta
Do Pacheco provar a enfermidade,
Grãa cópia de rasões logo apresenta,
IMas todas sem vigor, e authoridade,
Para dar a entender que ser podia
O que lhe o Sousa então contradida.
47l) OHUA8 DK FRANCISCO D^AxNDRADE.
LXXXIII.
E cuidando que estava ja bastante
Mente com taes rasõcs acreditado,
Polo que começou segue inda avante,
E diz que no combate antes passado
Soffrendo os seus com animo constante
O bárbaro furor imigo e irado,
A dez ou quinze coube o fim das vidas,
E aos vivos, cruéis, mortaes feridas.
LXXXIV.
D\)nde nasceo que quando a competência
Os commetteo a gente Sarracena,
EUa achou em tão poucos resistência.
Mas nem por isso fraca nem pequena \
Antes aquella imiga alta potencia
Gt^ue os Christãos a cruel morte condena,
Havendo-os ja de todo por perdidos.
Vencida he dos que havia por vencidos.
E diz que as cousas todas sao gastadas
Gluantas á defensão se requerião.
Ardida acaso a pólvora, e arrombadas
As pipas que em si a agua recolhião ^
Co^os tiros as mais lanças são cortadas,
Cegas as bombardeiras que impediáo
Da bombarda o meneio, e desta síirte
Não tèe ja defensão senão na morte.
é PRIMEIRO CERCJ DT, tílV
LXXXVI.
477.
E que vendo o Pacheco, e o» Réus soldados
Em tudo o necessário hum tal defeito,
De se salvarem ja desesperados,
Tanto o desesperar Ih^acende o peito
Glue estavão de ir morrer determinados
(Em se tornando o Sol ao usado leito)
Entre os Turcos, que pois lhes era forçada
A morte, fosse ao menos morte honrada.
LXXXVII,
Porém que elle impedira efíeituar-se
O que esta gente então determinava,
Dizendo que melhor era buscar-se
Remédio áquolle aperto em que se achava ',
E qtjando não podesse remediar-se
Então esse remédio lhes ficava i.j.»
Da morte que buscar queria aurora, • -
tílue para morrer nunca falta hii'hora. <•
I.XXXYIIX.
Toda a mais companhia isto approvára
OH}C só cm desesperar tinha esperança,
Elle a hua bombardeira então chegara
D'ondo co\i fria luz que de si lança
A bella Trivia, que era então bem clara,
Gtue da de seu irmão grãa parte alcança,
Vê por baixo pawnr hum que a doutrina
Segue de Mafamcdo. « se Ih^inclina.
Deixa a materna língua em qu« nascera,
E usando a que usa lá a Arábia terra
Diz ao Turco : Escusar-so rasao era
Esta sanguinolenta, cruel guerra,
Se Tesifone, Alecto, se Megera
Dentro nos vossos peitos não se encerra ;
Busque-se hum meio bom com que se evite
Tanto sangue, e qué ás mortes de limite.
Ao qual lhe respondeo, que esta demanda
Elle aos seus Capitães presentaria.
Parte-se logo, e torna áquella banda
Com tal pressa que então cuidava qtie hia,
E dissera que Cojaçofar manda
Q.ue para se dar a isto a melhor via
Algum descesse lá do ChristSo muro,
O qual poderia ir assaz seguro.
E que aquelle Christao ajuntamento
Com sentença por todos approvada
O elegera, por ter conhecimento
Da lingua quQ em Arábia he costumada,
Porque esta também lá no Turco assento
Não he entendida só, mas mui tratada,
Para que algum partido lá pratique
Cora que em salvo honra e vida a todos íique.
»> PHIiMEIKO CKRCt) DE Oll'.
*ní
I>ogo abaiito descara, o pros«ntA<í«
Aos Ttircctó Capitíltís, foi recébídt»
Com alegre semhLmte e gasaihado,
Onde fora. por ellot! eomníettido . .
Q.UG se quinassem dal', pois têe |1<'0>di(i^ ;•'■•'•^•■
Q/ne em vío o seu poder hc resiet id»*^ í ■'••> '->^
E que de Çoleimão ninguém duvida 9í'p «í«í^
(iue a todos iilxirdade dará, e vida,'^ oíííkuXí
K sondo isto altercaílo longameíife /íOv rnp,^
Com mil várias rjisões de parte a parle,
Dissera elle Cjue a l\irtugueza gente
jSão se entregará a si, e o baluarte *,
Antes com ])ertinaz furor ardente
Se defenderão contra o mesmo iMaríe '■
Por mais q^ie mostre sua crueldade,
Senão salvar a vida, e a, liberdade.
xciv.
Mas que nenhum concerto, ou de »eu goito,
Ou de sua honra fosse, ou seu proveito,
Entre elles ficará por obra posto
Sem ser ao Capitão geral aeccito.
A isto os Turcos respondem com bom rosto,
K dizem que elle fosíjc dar-llie elteito,
E que havida a iic^n(;a, tratarião
l)t> pacto qno entre si íazer poditio.
480 OBHA8 S£ FRANCISCO X>''aNI>RíIi»Z«
XCV»
E que os do baluarte a isto o. mandavií>
Para que co'o Silveira o consultasse^
A cujo parecer se sujeitavào^
E elle nisto o melhor determinasse \
Q-ue elles para morrer promptos estavao
Se elle para morrer os incitasse,
Mas que faltar-lhes tudo saiba certo
€luanto os pode ajudar em tal aperto».
Aqui conclue a prática o Faleiro.
De quem se concebeo juizo vário,
Gluaí o julga por pouco verdadeiro
Q.ual o julga também polo contrario :
Porém o Capitão geral, primeiro
Que lhe responda, tèe por necessário
Consultar os que estão iiaquellt* junta.
Logo os seus votos nisto lhes pergunta.
XCVII.
Pestes iuda que alguns então ficarão
Com má suspeita em si, sem a dizere»».
Vendo com quanta instancia lh'affirmáraa
Glue não lêe defensão senão morrerem,
Todos sem discrepância aconselharão
Que o melhor pacto facão que puderem,
Que de morrer não deve dar motivo
Quem quando isto aconselha fica vivo,.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 481
XCVIII.
P Silveira também nisto concerta
Co''o parecer daquella companhia,
E responde que pois tanto os aperta
A falta que de tudo lá havia,
Q,ue elles mesmos escolhão a mais certa
E de sua saúde a melhor via.
Torna o Faleiro aos seus, tendo licença,
Q.ue esta resposta só lhes põe detença.
XCIX.
Na fortaleza foi logo affirmado,
Sem saber inda alguém disto a verdadcí-
Q.ue o Pacheco co''os Turcos, quando o usado
Raio do Sol esconde a claridade,
Tinha duas ou três vezes fallado,
E algãas cousas desta qualidade,
^ue se soube depois serem passadas
Como forão então advinhada«.
Pouco espaço depois que o passo volta
Faleiro para os seus, não vagaroso,
A bella Aurora em nova luz envolta
Deixa a conversação do velho esposo,
E ante o Sol os cabellos de ouro solta
Não sem grãa mágoa de Titon cioso,
A quem a ausência desta chara amiça
A suspiros, e a lagrimas obriga.
4 ?1* OBníS DK FRANCISCO J)' ANm A CK.
J-íOgo toda a plebeia e nobre gonle
fluo a fortaleza então dentro em si linlja,
ílual detraz, qual diante, promptamente
Ao baluarte os olhos encaminha,
J*ara vêr o Faleiro diligente
Co\>» Turcos em que pacto ou quarKÍo vinha,
Mas isto não se vio senão ja quando
O Sol ao meio curso hia chegando.
N<"sta hora a ruinada parede alia
Serve do escada á gente Sarracena,
O que não pode só não corre o salta,
Todos hão toda a pressa por pequena ;
Outro a fjuem esta escada agora falta
Kncosta á bombardeira a longa entenn,
Por ella quanto pode vai ligeiro,
Trabalha cada hum ser o primeiro.
cm.
Desta sorte a infiel gente perdida
Dentro no baluarte te\e entrada,
Onde por terra foi posta e abati-la
A bandeira com Cruz assignalada,
E em sen logar indignamente erguida
Outra vermelha em cor, grande e farpada,
Insignia-do que o sccptro alto meneia
Gtne o larjjo império Turco senhoreia.
lij cLii::ú DE DIU. IS?)
CIA .
Ksto acto tao lieikiulo, c indigno t.;tnto
I)<> que bua e oJitra handeira merecia,
Com *;Mve seí-it!<nioíito e larço príMito
Contemplado eivtão foi da gyiite pia.
Bem desejarão t«>dos Rio3t?ar qmiHto
F.sta religião os aeeiadia,
Se o distante logar não lh'impodÍra
O effeito de tuo justuj e tao piu ira.
Mas cnlrc csl.a levolía que causarão
No baluarte os iníieis soldados,
Religiosos peitos não faltarão,
Os quaes da honra da Cruz estimulado»,
Ou acabar alli determinarão,
Sendo na terra e Ceo eternisados,
Ou erguer o pendão da insígnia santa
K abater o que o Turco impio levanta.
Foi autlior deste santo, honrado feito
líum que Pires d"'alcunha se nomeia,
E o nome t«e do Santo que no peito
Do Senhor se encostou na Sacra Ceia ^
Homem a quem nas forças grão defeito
Oava a cansada idade, d"'annos cheia.
Mas d'hum grande esprito inda acompanhado
O-ue por mil provas tinha antes mostrado.
\>^'i OiWlAS DE FHA^i ISro Ij'a N J)K Ai>K.
Vendo esto posta a Cruz ])ranca e vcrniolli;
Em tamanho despreso, e irreverência,
A quem Ceo, terra, c inferno se ajoelha,
Aceso d''hua santa impaciência
Cora outros seis ou sete se aconselha
due o quizerão seguir, e a competência
Se chegão á bandeira, e fazem quanto
Nao diz aqui de rouco este meu canto.
o I^^RIlfiF.mO
CERCO DE DIU.
C%MTO ILT
./oão Pires e seus companheiros são mortos po-
ios Turcos. António Faltiro traz ao Copi-
ião António da Silveira hwna carta de Fran-
fisco Pacheco, e leva a resposta delia. Os
Turcos assentão a artilharia, batem o ba-
luarte de Gaspar de Sousa, dão-lhe htim
assalto, e o succcsso delle.
I^Dnsumidor he o tempo, insaciável
De tudo quanto cria a natureza,
Ou seja a cousa em si forte e durável
Ou feita com engenho e subtileza;
Ante este imigo emfim fica domavel
Antes de todo perde a fortaleza,
K á que parece mais constante e lorte
Também guarda soii género de morte.
iód OJJRAS DE FliANCISCvO D ANDRADE.
XT.
Q-iic grande Império d^ouro, c d^armas feilo,
Qiim bem fundada torre, <^ue Cidade,
Gtiie espanfoso, im mortal, que lioroicò feito,
Glue forte, que robusta mocidade,
GLue dôr posta no centro lá do peito,
(iuc desesperação, que saudade,
Ou se cousa inda ha mais dura e constante
A resistir ao tempo foi bastante ?
Tudo se rende erafim, tudo obedece
A este segundo fogo, vagaroso,
So contra suas forças prevalece
Hum magnânimo espriio valeroso :;
Porque este, quando a força desfalece
Se torna mais feroz^ mais animoso,
E o decurso do tempo, ou morte esquiva
Não somente o não gasta, mas o aviva.
Não he isto- qu-e digo cousa nova.
Mil exemplos cada hora o têe mos-trado.
Ousado Piresi, claro em ti se prova
Q.ue o tempo não consume o peito ousado,
Antes co"'(j tempo cresce e se renova,
E o domador geral delle he domado,
Mostra-lo-hão tuas obras nunca ouvidas
Do teu esprito so favorecidas.
o ri{iM7;i?.o ctRco de diu. 487
Com irnpoto feroz, cmn furor sant©
A bandeira infirel Pires se lança.
Do baluarte fora a deita quanto
A sua ant)ga e fraca forca alcança;
K ajodado dos rwais de que atraz canto
Q.ue aqui lho dão favor e confiança,
Alli d''oride o pendão purpúreo arranca
Arvora lo^o a Crua vermeliia e branca.
Eis<o soberbo Turco aceso cm ira
Glue aquella injuria tèc em grande estima,
De novo abate a Cruz, de cima a tira,
Ergue a sua bandeira, e põe-na em cima.
Pires arde outra vez, geme e suspira,
E a sua companhia acende e anima.
Tenta outra vez co^os seus este combate
Ergue o pendão Christão, o Turco abate.
Não se acaba cona isto esta contenda,
Faz que de novo o Turco e o Christão gema,
l*t)rque o Turco não quer que hoje se renda
A sua insignia á Crux, que elle blasfema,
E Pires também quer que o Turco entenda
Glue esta he a rasão que só se exalce e tema,
E três ou quatro vezes foi no ar visto
Ora o pendão do Turco, ora o de Chri«tQ.
Am
OBRAS DF, FRANCISCO 1) ANDRAOF,.
Alé que vendo o Turco impaciente
(lue não poderá no ar durar erguida
A 8ua insignia, em quanto a ChristSa gento
'i ee, para erguer a sua, força e vida,
•ia menos d^honra então que d'ira ardente,
J)i'ixa a bandeira ja mal defendida,
lí> voítu o feno contra a companhia
irlixe o fim do seu intento Ih 'impedia.
IK.
dual faz que da espingarda o chumbo «aia,
^Auai men<'ia o luzente ferro agudo,
Trabalhando porque esta gente caia
iluft o seu esforço só têe por escudo i,
Maí a esforçada gente nâo desmaia,
iiuc a vida estima ja menos que tudo,
í^uanto o perigo he mor mais se defende.
Também meneia a espada, a lança estende.
O pequeno navio que engolfado
No Occeano se vê largo e espaçoso,
O-uando Orion d"* espessa chuva armado
Mostra a força do inverno tormentoso,
De cá o combate o grosso mar inchado,
De lá o bravo vento impetuoso,
E por mais que trabalha o bom Piloto
Emfim se rende aos bravos mar e Noto.
o IMllMEillO CDKtO DE DIU. 489
XI.
Doíittt sorte me mostra o pensamento
Que estes poucos Christãos estar devião
Kntre este copioso ajuntamento
iJos que so sua morte pertendião,
K que com maior força que a do vento,
E que a do bravo mar, os comhatião,
Nâo lhes faltando então por toda a parte
(stuanto pode ensinar, ira, ódio, e Marte.
Kntre aqnella tão grossa tempestade
Algum tempo os fieis se defenderão,
Mas tal dos Turcos era a quantidade
Vlue defender-se muito não puderão :
Km mãos emfím da imiga crueldade
í)s corpos, que só á morte se renderão,
Antes despedaçados, que rendidos,
Deixarão hoje os espritos não vencidos.
XIIX.
Nem contente com isto aquella impura
Turba cruel, que em ódio inda ardia,
Dá no rio a estes corpos sepultura
t^ue inda despedaçados os temia.
Fica a sua bandeira então segura
Depois que lhe faltou quem lh'a abatia,
Com tanto sjingue seu, que esta victoria
yiiús lhes trouxe de dam no, que de gloria.
'í9i> OBKAS OK iniA NCl.SCO l>\\Xi)n \ li F.
XIV.
Estes corpos fiei» çfae bojo no rio
Pola ba-rbiira mao fifrat) lançados,
Cujos espritos no Alto SenJtorio
(\)m gloria eterna são agasalhados,
Por ptirmissao do Etorno Poderio
Forão do mesmo rio então lovado»
A hua das portas lá da fortaleza
Com cnreo ropugnaotc á natureza.
Manda o Alto Rei tomn nova carroira
Ao liquido elemento nH';'.ielU hora,
Porque estes em que a F6 foi tao inteira
Lofi^rem na terra a casa em que c\ht mora ;
Dando com isto mostra verdadeira,
Glue pois com tal milagre quiz açora
Dar-llies na terra aos ctjrpos tal morada,
Também no Cco ás almas ih''a tèe dada.
XVI.
Com marte destes poucos^ «aja vida
Suspendeo' grande espaço osla victoria,
Aquella estancia aos Turcos foi Tendi<ia
GLue por ser Portugueza lhes deu gloria.
A maneira de que i\n concluida
Do pacto a Gondi<^ão, não foi notória
Na fortaleza, até que » loura frontr
De novo erg^ipo Apollo no Horizonte.
o rRÍMCIJlO CERCO DE DIU. 4'J I
Nem tinha intla chegtido bem ao meio
Do arrebatado seu curso ligeiro,
iAuando da purte lá de fora veio
Da fortaleza aquelle máo Faleiro,
No trajo, e na arte ja de todo alheio
Do que rt'presentando liia primeiro,
De brocadilbo ornado, e de grãa fina,
Cortados á feição que o Turco ensina.
Cliama com alta voz na estancia, onde
(xaspar de Sousa têe sou estandarte ^
Sousa, a quem esta voz alta nào se esconde,
Se lhe mostra de lá do baluarte ^
l*ergunta-lhc o que quer, elle responde
ôue o Pacheco o mandava áquella part<»
Chfia carta que ao grão Silveira escreve,
A qual cumpre que logo se lhe leve.
XIX.
E dando-a a hum, de que vem acompanhado'
iiue do Mafoma segue a immunda seita,
Manda que dentro a deite ^ elle chegado
Com pressa ao baluarte, dentro a deita ;
llocollie o Sousa a carta, e com cuidado
Faz com que oUa ao Silveira vá direita \
Faleiro, que Ih^a vê na mão ja |x>sta,
L!ie encommenda a presteza da resposta.
492 OlillAS DE FKANCISCO D*ANDRADF..
XX.
Dizendo que o Pacheco, que ficava
N^hua casa, que perto alli se via,
(Signalando co''o dedo onde ella estava)
E têe Cojaçofar em companhia,
Por má disposição que o mal tratava
Deter-se muito espaço não podia,
Antes para poder remediar-se
Lhe cumpria d''alli logo tornar-se.
Em quanto ao grão Silveira vai voando
A carta que o í^aleiro alli trouxera,
Fica elle largamente declarando
As honras e mercês que lhes fizera
O Baxá Çoleimão, e que em chegando
Cabaias de grão preço a todos dera ^
E com grande fervor, grande eloquência
Louva a sua real magnificência.
Também com mil palavras engrandece
O seu raro saber e authoridade,
O grão poder que traz e lh'obedece,
E outras mil cousas desta qualidade,
D^onde com claras mostras apparece
Aquella pouca fé, pouca verdade,
Aquelle desleal peito fingido
Que neste antes ja foi quasi entendido.
o PRIMEIRO C£nCO DK DIU. 493
Chega entretanto a carta á fortaleza,
E sendo ao Capitão apresentada
Faz logo ante si vir toda a nobreza
Q-ue alli estava então agasalhada,
E outros muitos, a quem alli a grandeza
Do saber e do esprito dera entrada,
E juntos abre a carta, que inda tinha
Cerrada, e nesta forma escripta vinha :
Senhor, eu me entreguei ao poderoso
Grão Baxá Çoleimão, porque elle dado
Me têe seguro firme e valioso
N''hum formão seu, de ehapas d'ouro ornado,
Polo qual como nobre e grandioso
Não somente nos tèe assegurado
Glue as vidas nos dará, e as liberdades.
Mas escravos também, e faculdades.
XXV.
De nós a artilharia quiz somente,
E as armas, com que tanto o maltratamo»,
E por ser da victoria mais contente
Ctue faxer-lhe á galé calema vamos.
Levado fui d^alli com toda a gente
E todos na Cidade logo entramos,
Na qual em aposentos apartados
Fomos de dous em dous agasalhados.
404
OBUA8 UK *UAKtlS(;<) » ANOKADE.
XXVI
D^aqui á c^alé ^xlstatda eu fiz àfealo
Em quo tèe Çolpimào seu aposeíito,
Foi la António Faloiro, e foi Gonçalo
D^Almeida tanibom neste ajuntamento:;
Achámos nelle mil, que aqui «ao falo,
Honras, mercês, traz bom recebimento,
De que em chegando foi logo o conieço
Dar- nos senhas cabaias de grão preço.
Depois que algum espaço alli pratica
Comnosco, lhe disse cu : Se o teu espríto,
Senhor, he tal, qual teu poder publica,
Cumpre o que este formão teu nos têe dito,
Outra vez com palavras ratifica
O que nos pr<ímettêra por escrito,
Dizendo que sem falta cumpriria
€tuanto no seu formão nos promettia.
Mas por quanto assentado elle ja tinha
Coml^ater com instante fúria aceza
Logo essa fortaleza, « a isso so vinha.
Nem cessaT sem victoria desta em preza.
Para isto haver efíeito lhe convinha
Glue eu, e a mais companhia Portugticza,
Deste seu arraial não me apartasse
Todo o tempo que nisto se gastasst;.
e l>R<HBIKO CERCO DS lil«.
W$
E que se com favor do Ceo ainigo -muJt
A esta S!ia tenção o efieito segue, íkM
Sem haver mais detença, ou mais píírigo, •: "^i
Fará que a Christya gente á índia navegueíí>
Mas qne se o Ceo lhe fòr tao inimigo jo'J
Que de sua lerção o elfeito negue, ? A
Eu com todos os mais livres seremos ..t.T
E á fortaleza livremente iremos.
Mas porque a execnçSo desta vootade
Hum sd momento mais não se dilate,
Desembarcar mandou com brevidade
Dous basiliscos ja para o combate.
Cuja horrenda o mortal ferocidade
Tudo abraza, destriie, assola, e abate,
Nem sao sós e&tes dous, que nesta guerra
Pode quantos quizer lanhar em terra.
XXXI.
Elle manda avisar-vos. que rondar- vos :.ifí
Clueiraes, e em sou poder entregar tudo ■■> /
Sem menear espada, ou dcíender-vos,
Porque se nsaes contra elle lança e escudo
Em vão depois haveis de arre ponde r-v os,
Pois com inexorável ferro agudo
Fará de vosso sangue o chão vermelho.
A gora © vede-, e havei lá bom conselho.
49$ OBBAS DE FRAKCXSCO I>''aKX>RAO£.
XXXII.
Com mui grande attençao a carta ouvid»
Foi de toda esta nobre companhia,
E sendo então de todos entendida
Claramente a tenção que ella trazia,
Com pouca alteração foi conclui(ia
A resposta que dar-lhe então cumpria.
Toma tinta e papel logo o Silveira
E a resposta formou desta maneira :
XXXllI.
Para hum tal Capitão, tão poderoso
Como dizeis que esse he, fora devido
(Pois he próprio do esprito generoso)
Cumprir o que vos tinha promettido;
Mas não me espanto ser-vos mentiroso
GLuem he de natureza fementido,
De vós me espanto, que tão livremente
Me escreveis que cá o bom conselho attonte
Dizei-lhe lá que mostre neste feito
A quanto seu poder e ira se estendo,
Gtue tudo ha de ser vão e sem proveito
Pois não ha de alcançar o que pcrtende ;
Porque cá o mais covarde e fraco peito
Em tamanho furor hoje se acende,
Q.ue por não se perder a mais pequena
Pedra, aciui dar o sanirtic c a vida ord«:na.
o PttIMElKO CEUCO DK Dll, ií>7
E VOS ficai d'aqui bem avisado
(Se nao vos quereis ver em j^rão porisío)
Ôue nào me mandeis outro tal recado,
Nem m'o Iragaes por vos cora som d'aiHÍgo,
Porque sereis de mi tiío maltratado
Quanto o fora o cruel, mortal imigo,
K como a tal farei que a brava e h(»rreHd<| i*Í
Bombarda a sua fúria em vós dispeiula. . B
Concluída a resposta foi desta arfe
E na mão ao Faioiro loíi;o a derão,
Ellc sem mais tardar, d'alli se parte
E se vai aonde lá juntos o espcrào
O que ja governou o baluarte
De que os Turcos então senhores erão,
E o niáo Cojaçofar, e alíi não párao
Mas todos d''alli juntos se apartarão.
xxxvii.
Desejo geral he, se não mo engano,
Saber o fim que teve a Christãa gente
due se entregou em mãos do imigo iiiswuo
Sempre falso e cruel, nunca clemente.
Estes depois por ordem do tyrano
Baxá, dos Portiiguezes mal contentr,
Se diz que fòrão todos degoladí)s
S( ndo a Aacbibç os Turcos arribados.
XXXVIII.
A nova desta carta que se espalha
Por toda a fortaleza n''hum momento.
Na que antes era baixa e vil canalha
Imprime hoje fervor e atrevimento^
Mais desejo que medo ha da batalha
No nobre e no plebeo ajuntamento,
E para defender-se estão tão fortes
Glue inda mil lhe parecem poucas mortes ►
XXXIX,
O forte Capitão que bem merece
Desta tão forte gente ter o mando,
Tudo soccorre, tudo favorece
Com peito liberal, altivo, e brando.
Se alguém qualquer fraqueza em si conhece
Só pôr os olhos nelle o está animando,
Com grande ordem, cuidado, e brevidade
Tudo ordena o de que ha necessidade.
XL.
Os Turcos entretanto, desejosos
De poderem dar fim á sua enipreza,
Hum momento não gastão só ociosos,
Mas com vontade agora mais aceza
Assentào canhões grossos, furiosos
Para ruina da gente Portugueza,
Em qualquer dos logares que se via
Ser maÍ8 conveniente á bateria»
« PKIMEIRO CBRCO SE Oiti.
TÍLU
Afora estes canhões que se applicavão
A ruina do grosso muro forte,
Por diversos locares se assentavão
Outros canhões também de vária sorte,
Cujas horrendas fúrias se empregavão
Em ruina da gente, e crufl morte,
E qualquer destes seu assento tinha
á fortaleza mais visinha.
A cópia dos canhões que a fortaleza
Combatera, rasao he que aqui se veja,
São nove basiliscos de grandeza
Não usada até então, nova, e sobeja,
Mostrão os seus pelouros, a braveza
Destes canhões, e saiba quem deseja
Saber que peso têe, que os mais pequenos
Fesão de cem arráteis pouco menos.
Em companhia destes basiliscos
Espalhafatos cinco estavão postos,
Cuja fúria, onde chega, em grandes riscos
Põe tudo, e faz perder a cor aos rostos •,
Destes os bravos, hórridos coriscos,
(Os quaes de pedra dura erão compostos)
Em roda (vede se isto espanto mette)
Ciual cinco palmos têe, qual seis, qual sette,
^(ÍO O^XAS DE FRANCISCO D^ANDKA UX.
XLíV.
Nem ccmi isto se farta, ou se contenta
AquoUa iiniga fúria, antiga e fera,
t Quinze águias e leões taiubem assenta
l/Uin qtie ajudar a seu intento espera :,
De eanliões mais pequenos põe oitenta,
Km ijue {k3c o falcão, e a meia espera,
Võii o selvagem, põe a espera inteira,
K uuliob muitos também desta maneira.
T)er>uis dilrandío o cerco, se aproveita
])a braVa, liorrenda fúria, alta e temitl.r
Diuan medonho quartão, t]ue de si dí;ita
líua morte cruely não resistida.
EUe, o qae sempre a barba mais direita
'{\;ve, quando em mór risco tinha a viíla,
Fa*- agora tremer, e põe receio
I\'o cjuc antes de temor foi sempre alheio.
xiivi.
Douíj Capitães tinha esta artilharia
})'aí>iiaii várias nações, e nascimentos,
llám era Jhnof llamed, d"* Alexandria,
Oiifró o rebelde aos Sacros Mandamentos.
Ksles, dos que nascerão em Turquia
'! eií comsigo contiimos vihte centos,
K tamljcm toda aquella gente os segue
^!M; ao liutiuo inlicl estava entrcíruc.
o PltIM£IRO CERCO D£ DIl. SOI
XIVU.
O Baxá, que isto tudo governava,
Nunca a frota deixou, nella se encerra,
Assi porque guarda-la a elle tocava
Por estar nella a força desta guerra,
Como porque de todo lhe negava
A sua antiga idade vir a terra^
Ou por outro respeito extraordinário,
Mas d^alli provê tudo o necessário.
A q nella artilharia que prantada
Para bater estava alli somente,
Está por vários postos situada,
A qual forteficou a iniiga gente
Com grandes bastiões, acompanhada
De mui grandes trincheiras juntamente,
E para que estar mais segura possa
Faz que também a ampare a manta grossa.
XLiX.
Nenhum destes canhões, ctija arrogância
Só do morte ou ruina se contenta.
Da fortaleza têe a sua estancia
Mais que só passos cento c cincocRta ;;
Mas antes alguns ha cuja distancia
Da fortaleza he só passos sessenta,
E entre elles e ella está posto inda o assento
Glue dá á gente de guerra alojamento.
tí02 QJènXS, DE FRANCISCO 1» ANDRADE.
E com tanto saber, arte, o íloutrina
Está alli ítquelle as&etito situado,
Gue por cÍHia o canhão jogn e fLiliiiitt*| xeaA
Sem damno do que alli está alojado^ o •'oí
E para iiao temer qualquer ruiiui 3
Com larga cava estíi rorteficadõ, /
E com outras díjfensa», d^>dmiravpl
Artclicioj ííosaz forte, e defensável,
Lt.
Preparado ja tudo q«nnto iliVra
Necessário a bater o muro iraigo,
Tendo o Planeta entíío da quarta osf«rA
Cluatro vozjs andado o curso antigo,
Depois que entrou o mez quo ã cruel fcra
Q.UO a terra produzi© pari» c;w{,ii!,o,
D^Orioii, por seu mal solíxírbo e ufaso.
Hua vez agasalha cm si coda atiia ;
Tanto que começou lá ftó fíoriaottic,
Abrindo o radioso seu tli*!Soiiro,
Erguer a luminosa, luura fronte i.,; ,
O que foz tornar Daplino em verdelO;!!!»,
Eis que logo rctuiíi})ix o vallc c o moiitc,
Salie com esttondo lK)rris()iio o pelourtt
Da grosea artilharia, e da miu(la>)! » ^ ;« .
Q.ue cm damno dos ChrislS<x«^ Hiliní^íbteíestuda.
.<*> eill»«l«0 jC^IVCO DE DIU. 503
Dura csle seu ferosi commettimento
Em quanto o rosplondor que Apollo cri«y
Ora visitando Hum, ora outro assento,
Duas vtíxes altcBr>a a noite é ó dia •
Em que da infiel. gente foi o intento .,4j
Cegar toda aí Cliristaa artilharia r>
E desfazor-lhe ti»do o q\!e a defende,
E bom fiiz a acu a<*lY0 o que pertowde,
itv.
E nao somente- agora; eíTeituávSo
O que nestes dous dias pertendêrão,
Mas inda alguns eaiiliões também quebrálao
Com que o daiii.no foi mor do q^uc quizerão :
Foi hum d«stx^'S que alli rotos íieárâo
Hua férrea selvagem,, e outros erão -r-i
Hum camalcte, e a boca a hum leão jfoçte^'!
E outras peças miúdas d^outra sorte.
IMas porque ja basíantemente agora
Tèe dado execução a seu conceito, W
Comoção em tornando a nova Aurora '
A cruel batt^ria dar efíeito :
E vendo o baluarte cá de fora
Clue era a Gaspar de Sousa então sujeito
Com menos defensões que os outros tinhão.
O seu furor primeiro a elle encaminhão.
LVl,
Vêem que até meio rosto só têe cava
Em que nenhum travéz pode ajudallo,
Do baluarte do mar só esperava
Ter favor, se d^alguem pôde esperallo.
Oito peças aqui daquella brava
Artilharia põe, de que atraz fallo,
Que nesta frontaria sóltão logo •
O ruinador ferro envolto em fogo.
LVII.
N 'outros postos também está batendo,
Onde o pelouro ao muro peior trate,
Mais d** hum grosso canhão medonho e horrendo
Cujo furor assola tudo, e abate :
Também algúas peças se estão vendo
Em parte onde qualquer o muro bate,
Co^a sua costumada alta braveza
Sobre a porta lá da fortaleza.
LVllI.
D'aqui grão damno o povo ChristSo sente
Q/Ue lá na fortaleza então trabalha,
l'()is d 'aqui o roto muro á infiel f!;ente
Mostra o logar onde elle se agasalha :
Dos pelouros também a fúria ardente
Q-ue a líirga bateria no ar espalha.
Do baluarte o travéz encontrar vinha
O qual de São Thomé o nome tinha.
o iPfttMElRO CERCO U£ DIU. 305
Começava esta horrenda bateria
Q^iiando o Dclio profeta o carro solta,
D''onde espalha na terra o novo dia
Pouco antes inda em noite e somno envolta ^
E dura até aquella hora em que fazia
Outra vez ao salgado leito a volta,
E a escuridão da noite que succeJe
Ao bombardeiro esperto a vista impede.
Então os canhões todos carregavao,
E nas partes que são mais importantes
Ao fiel defensor, os assestavão,
As quaes elies baterão ja pouco antes ^
E em sentindo os Christãos que as reparavao
Sóltão logo os pelouros penetrantes ;;
Nem foi sempre lá em vão esta sua ida
Glue alguas vezes tirão sangue e vida.
txi.
Não falta ao Portuguez entendimento,
Nem astúcia que est''outra desbarata,
Glue antes de dar principio a seu intento
Manda hum que c^hiim picão no muro bata!
Logo o Turco, que nisto têe o tento,
A fúria dos canhões em vão desata,
E atalhado dest''arte aquelle engano
Cresce a obra com menor receio e dano.
Cinco dias traz vinte nao cessarão
Os Turcos de bater, com grande instancia,
Mas como o que primeiro elles tentarão
Era 'do valeroso Sousa a estancia,
]'orque (como atraz disse) a divisarão
í^om menos defensões, menos constância,
E ii>onos a damnar apparelhada
Cluaudo fosse por elles assaltada ^
Dilatar muito tempo não quizerão
A victoria que havião per segura,
E dentro em cinco dias (os quaes derão
Começo á bateria áspera e dura)
Com fúria, das ameias lhe baterão
'íámbem das contra-ameias a grossura,
E o mais tanto a bombardada o damnifica
tílue quasi até o entulho roto fica.
LXIV*
Dentro nos cinco dias, que atraz fallo
(^.ue o baluarte a fúria imiga sente,
O Silveira também manda atalhallo
Para se defender mais facilmente :
E também p.ira mais forteíicallo
Hum reparo lhe lauga juntamente
n'hfia parede forte, e não estreita,
A qual era de pedra c barro feita.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU, ^7
Tanto era esta parede ao ar alçada
Gluanto têe qualquer homem de comprido,
A qual lá pola borda vai lançada
Do que a Turca bombarda têe batido -^
Por dentro he com dej^ráos forteíicada
D''onde bem pelejar pode o atrevido :
E este atalho e reparo a terça parte
Occupavão daquelle baluarte.
Ncbte tempo ja vendo a gente íraiga
tlue lhe dá larga entrada o roto murOj
Confiança, ousadia, e ódio os obriça
A ir tomar o que havião por seguro^
E quando de Titon a chara imiga
De novo desterrou o manto escuro.
Hum dia apoz os cinco que gastarão
Em bater, para o assalto se prepáruo.
Prove-se cada hum d^armas agora
Q-ue hoje mais necessárias ser-lhe entende,
E quando o Sol chegando hia áquella hora
Em que a sombra entre nós menos se estende,
Sahe do seu forte assento a gente fora,
Cuidando inda acabar o que pertende
Sem seu trabalho, quanto mais sem dano,
Mas cora ambos vio logo seu engano.
Cincoonta vao sós na dianteira
D^aço ornados assaz e d%if«nia,
Seguindo traz a usada sua bandeira
\ão ])iiscar o que abrio a bateria :
A mais gente que lhes era companheira
No logar da peleja nao cabia,
Em baixo ficao todos postos, onde
A nossa cava em si dentro os esconde.
LXIX.
Mas nem o tempo aqui passa ociosa
<3liie d''oqui lar^^amente os seus soccorre,
Pois quando na bataliia sanguinosa
Vê qiie dos seus als^-um, ou cansa, ou morre,
A competência sahe de lá animosa
E com grSa pressa ao alto logo corre,
l*ara enclier o logar desamparado
Do que delle sahio morto ou cansado.
LXX.
í^óbem ousadamente os cincoenta
PoIh pedra e caliça que esparzida
l)eixt)U da bateria alii a tormenta
Por onde ao alto tee fácil subida ;,
Mas tanto que lá vao se Hrapresenta
Hum pnqueno esqjiadrão, mas d^escolbida
Gente :, este be o Sousa, e os compaidieiros fortes.
Prestes nào sd para hna^ mas y:\'.\ mortes.
« PRIMEIRO CERCO DE DIU. 509
Logo aqiiellii infiel gente profana
Com grãa grita á Chiistãa se vai direita,
Q.ual move o pique, qual a partasana,
Q-ual tamhem do zarguncho se aproveita \
D^outras armas tamhem com que mais danii
Usa então, que a panella cheia deita
T)o negro p(5, deita outros arteficios
CLue lançar fogo tèe por seus officios.
O Hirte Sousa c os seus, a quem a usança
De semelhantes casos lioje dava
N«'ste menos temor que confiança
Pouco temendo a imiga fúria brava,
E movendo também espada e lança
Ousados vão buscar quem os buscava,
Tamhem no ar levantando Ima alta grita
Que os peitos alvoroça, acende, e incita.
Arremotte a infiel á fiel gente
Co'o furor que o grande ódio ensina e Marte-
Mas acha a defensão bem dilíerente
Do que cuidava lá no baluarte.
Deste grande fun)r, deste ódio ardente,
Com assaz dam no (rhua e d^outra parto,
.Logo o cffeito cruel ^.e está mostrando,
VoU a ambas sangue e vida et>tá custando.
510 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
A Christaa companhia que defende
O reparo que pouco antes foi feito
Revolve a aguda espada, a lança estende,
Sente-o a perna infiel, o braço, o peito :
O Turco, inda que assaz também a offende,
Comtudo seu trabalho he sem proveito,
Pois quanto mais insiste na victoria
Tanto alcança mais damno, e menos gloria.
LXXV.
Cahe d^hua e d'outra parte o miserável
A que o ferro encontrou, morto ou feridoj
Faz isto o ódio e o furor insaciável.
Das armas cresce o estrépito e o ruido :;
Soa entre esta revolta o lamentável
Com hum confuso tom triste gemido,
Glue do que ainda em pé está, a vontade
Move a vingança mais que a piedade.
Nesta alta defensão, nesta constância
O esquadrão Lusitano prevalece,
Até que salie de lá da sua estancia
Q-ualquer dos Capitães, e o favorece ^
Glue o Silveira, que com grãa vigilância
Contemplando está sempre o que parece
Glue em cada parte então fazer convinha^
O que agora direi mandado tinha.
i
« FRIMEinO CERCO DE DIV. híi
Mandou que quando o Turco ajuntamento
Híía destas estancias assaltasse,
Q-ualquer dos Capitães que o regimento
Das outras tee, alguns a si ajuntasse
Dos melhores que têe, e n'hum momento
A favor do assaltado se passasse ^
E isto que nos assaltos ordenara
Também no assalto d^hoje se guardara. - ^i^
LXXVIII.
Co''o favor que dos outros Sousa teve
Tanto nelle, e nos seus cresce a braveza,
Q-ue no imigo feroz, em tempo breve
Imprime grande espanto, grãa fraqueza.
Tal que ja desmaiado não se atreve
Soffrcr mais tempo aquella alta crueza,
Contra a qual quanto mais se mostra forte
Procura para si mais damno e morte.
IXXIX.
Vai-se atraz com graa pressa retirando
Cheia de sangue assaz, mas mais d'espanto,
Todos vão de Mafoma blasfemando
ôue outro poder não crêem que possa tanto.
Alguns dos seus os corpos cá deixando
Mandão as almas lá ao eterno pranto,
Dos Christãos sós dous vão á eternidade
Mas dos feridos he grãa quantidade.
0l2 OBUAS DE FRANCISCO D 'ANDRADE
In da que o niáo successo que este dia
Teve esta iniiga gente, lhe reprime
A sua alta soberba, alta ousadia,
Glue faz que a seus imigos pouco estime,
Comtudo a natural sua ufania
Hum ardente des jo nella imprime
De tomar desta aífronta graa vingança,
E inda lhe dá para isto confiança.
D^aqui nasceo ao Sousa hum grão perigo
De damno, mas de gloria acompanhado.
Pois cada dia, em quanto o Turco imigo
Sustentar este cenío foi ousado.
Lá naquelle reparo que atraz digo
Foi duas e três vezes assaltado.
Lá onde o que commette, e o que defend(
Sempre derrama sangue, e esprito rejide.
LXXXII.
E com quanto os imigos combatiao
De mais alto logar que os defensores,
E no logar daquelles que morrião
Mettem sempre dos vivos os melhores,
Também o Sousa e es seus se defendiào
Glue emfim sempre ficarão vencedores,
Q-ue não pode hum trabalho intolerável
Domar aquelle esprito alto, indomaví;!.
# 1'RIAIEIRO CERCO ME DIC. Òl^
I.XXXIII.
Mas em quanto o assaltou desta maneira • /.
O Turco pertinaz com tanta instancia,
Sempre teve comsi<:;<i companheira
Gente e Capitão d\)utra algua estancia ^
l*orque ordíMiado assi tinha o Silveira
Q-ue por sua ordem vão, com vij^ilancia
Todos ao ajudar, depois que sente
€lue alli se inclina mais a imiga gente.
LXXXIV.
Neste tempo em que ja mais de verdade
O imií^o mostra a sua alta braveza,
S<»breveio g(;ral enlermidade
Km qnasi quantos ha na fortaleza :
Na boca he todo o dam no o adversidade,
Gtue a muitos trata então com tal crueza
GLue com dores immensas e excessivas
Orfãas e sós lhes ficão as gengivas.
LXXXV.
Por toda a parte se ouve o piedoso
Gemido do que a dor grave atormenta,
Q.ue de todo o suave e saboroso
Somno, do trabalhado corpo ausenta \
K assi o áspero arroz e escandaloso
(Manjar que então só têe) o descontenta,
Q.ua soflVe antes com fome ter a morte
(^uc a dor d"'hum tal manjar ásp»n*o <• forte.
S14 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
IXXXVI.
A causa deste damno foi nascida
Da cisterna, segundo o que suspeito.
Que sendo d''hum betimic guarnecida
Cujo nome he charú, e em Ormuz feito,
Foi a agua dentro nella recolhida
Sendo o betume fresco, e de tal geito
A agua Urinfeccionou, que a esta pesada
Nojosa enfermidade abrio a estrada.
LXXXVII.
Mns em meio d^^hum mal que os tanto aperta
Nenhum se nega então, ou quando o imigo
Os chama á sua mortal, d<ira referta,
Ou quando a trabalhar os chama o amigo :
Mais os incita então, mais os desperta
O perigo geral, que o seu perigo,
Com quanto a fraca força então IhMmpcde
O eífeito do que o duro esprito pede.
LXXXVII I.
Porém como a doença hia crescendo,
E as feridas e mortes cada dia
Os poucos Christãos menos vão fazendo,
Também mais grave o peso se fazia,
Porque pequena cópia está soílVendo
O que hua grande cópia antes soflVia ^
E assi quanto mais hião trabalhando
Mais se hiao do trabalho sujeitando.
o PltlMElUO CEUCO DE DIU.
E como V poiico íofuno, e ra9tntimeT^9\
Os debilita àssaz e o» enfraquecíe, ik.1
Padérão receber grão detrimento,
Pois cresce o peso, e a força desfaliece,
Se então o feminil ajuntamento,
(itie também aos trabalhos se oflferece,
Em varonil esforço, e em honra aceso
Nào tomara grãa parte deste peso.
Põe-se ao traHhlíko a líraca, ihnali^íl ^^hte 'V
Para alentar os furtes ja cansados, \'
De que cada hum tal vergonha sente
Olue n^huns membro? ja assaz debilitados
Renova tal fervor, e esprito ardente,
Que da desconfiança estimulados
Emprehendem cousas taes, que a natureza
Impossíveis as faz a tal fraqueza.
Destas mulheres animosas erao
Muitas no marital jugo mettidas,
E alguas cujas vistas bem piiderão
Render mil almas nunca antes rendidas:
Se quereis ver quem são, e o que fizerão,
(lousas dignas assaz de ser ouvidas,
Detende-vos aqui hum pouco, em (pianto
Eu dou repouso á voz para outro Canto.
o priiie:iro
CERCO DE DIU.
CitMTO 1L\W.
Declara-se quem são estas mulheres, e o que
fizerão. Os Christãos se forteficão o Ttielhot-
que podem. Os Turcos, por meio (Thumt
ardil assaz engenhoso, m,elhoruo as suas es-
tancias. Dão hum assalto ao baluarte de
Gaspar de Sousa, e o successo delle. Contão-
se algumas cousas particulares que alli acon^
tecerão neste meio tempo.
v-iousas no mundo fez maravilhosas
A natureza sempre em toda a idade,
Mas com quanto sao raras e espantosas
Seguem sua natural propriedade ;
Polo qual ainda as faz mais monstruosas
N'algúa parte a grãa necessidade,
Pois que a mudar o ser as move e obriga
Q-ue lhes pôz com grande arte a mestra antiga.
o PRIMKIKO CERCO DK DIU. ol7
Q.ue o varão forte ao grão feito se atreva
Sendo humano e mortal, digno he d^espanto,
Mas como o natural esprito o leva
Louvo-o, mas do que faz menos me espanto^
Isto me espanta mais, e mais me enleva
Ver que a necessidade pode tanto
Q,ue em peitos feminis põe fortaleza
Os quaes fracos creou a natureí?a.
Cousa ho esta que espanta em s6 ouvilla
E iiula alguém a terá por desatino,
Mas bem o prova Harpalice e Camilla
E a que foi mulher d^hum, mãe d^outro Nino.
Porque a causa, a quem bem quer advertilla,
Do esforço destas, d** altos peitos dino,
Só de necessidade foi nascida
Ou do Reino, ou do pae, ou de ter vida.
IV.
Se alguém de duvidar ha tão amigo
Q.ue estes exemplos hoje não admitta,
Porque hum tão largo tempo e tão antigo
Perante elle os quiçá desacredita,
Novo exemplo achará no que aqui digo
Glue esta duvida assaz lhe facilita,
Se não está a não crer tão costumado
Q,ue o presente não crê como o passado.
o 18 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDUADE.
V.
Bom me lembra que tenho promeUido
De vos dizer aqui o que fizerão
Aquellas que com peito não vencido
Grande allivio e fervor aos varões derao :
De todas não he o nome aqui sabido,
Duas, de que so o sei, direi quem erão,
Cuja persuasão, e authoridade
Das outras obrigou a isto a vontade.
Ilua Tzabel da Veiga se nomeia
íiue então da idade passa a ílór primeira,
K na beldade pouco se arreceia
Da que no Ceo a Esphera têe terceira,
E cora quem no saber também se enleia
A primeira inventora da oliveira,
K o ornamento que n^alma se requere
Deste que têe no corpo não dififere.
VII.
Esta interior sua formosura,
Por mil provas alli ja signalada,
Das liiiguas maldizentes a assegura
Para não ser sua honra alli arriscada :
Esta do matrimonio a ligatura
Ajuntara a hum varão de nobre c honrada
Casta, que IManoel tinha por nome
E Vasconcellos era o sobrenome.
o PimiLIítO CKKCO DE DIU. oI9
VIII.
l^orcm antes que passe mais avante
K á segunda mulher o verso mude,
Consenti que aqui desta hum easo cante
Q,ue prova seu valor, sua virtude ^
E inda que ja atraz outro semelhante
Cantei, não me fará que não estude
Cantar este também, porque os bons feitos
Sempre os fez a mor cópia mais acceitos.
Q.nando o illustre Silveira, que em si tinha
Da fortaleza a summa dignidade,
(Como ja disse atraz a historia minha)
Hua fusta mandou com brevidade
A Goa ao Viso-Rei, ao que convinha,
í)nde alguns que a grave enfermidade
De cura tinha assaz necessitados
Mandou também que lá fossem levados ^
Aquelle Manoel que junto estava
Com matrimonio á Veiga valerosa,
Temendo que se o Ceo a mão voltava
Contra a gente fiel religiosa,
E forças e poder ao imigo dava,
D^húa barbara mão despiedosa
Despojo venha a ser a sua chara
Esposa, que de si o despojara \
sí20 OttilA.S Dr. iilAN lííCC D*ANiJÍiADK.
Ordena de íi mandar naqíiella fusta
Que para Goa vai, como atraz digo,
Porque hua e outra cousa ha por cousa justa,
Ter ella a salvação, elle o perigo \
E tamhem porque mais caro lhe custa
O receio de a vêr em mãos do imigo
Bárbaro, sem primor, e sem clemência,
Glue vendo-a posta em salvo, a sua ausência.
XII.
A Goa a quer mandar, onde imagina
Q-ue ella poderá estar s;'guramente.
Porque lá o velho pae deila, a Divina
Providencia inda têe vivo entre a gente ;
Coai isto que comsigo determina
Ilida que d^hua parte está contente
U''outra começa a estar arreceoso
Do mal que sente hum peito saudoso.
XIII.
Mas como da sua alma fístá mais perto
O mal. delia que o seu, a ella se volta,
E de hum novo arreceio então cuberto
De amor nascido, a lingua assi lhe solta :
Amada esposa minha, he tão incerto
O fiin que a guerra tee, que esta alma envolta
Em mil cuidados trago diflercntes
Todos tristes poréin, e descontentes.
o PUIMEIÍIO CERCO DE DIU. o2 l
CuiJo que se de lá da mor altura
Para castigo n(»sso está ordenado
Q.ue fique co''os Chri^tàos a desventura
E fique vencedor o Turco ousado,
Q-ue poderá ser essa formosura
Entregue em mãos do bárbaro soldado ;
Esta lembrança ja tão mal me trata
Qiiie somente o temor disto me mata.
Faz-me isto que deseje ver-vos ida
Onde eu possa perder este receio,
Porque pondo eu em salvo a vossa vida
En do maior perigo fico alheio ^
Mas se torno a cuidar na despedida,
E que fica sem vós hum peito cheio
D^amor vosso, e lembrança também vossa,
Também temo outro mal com que eu não possa.
Mas este mesmo amor que esta alma agora
Com tão vários temores sollicita,
Q-uer do mal que vos temo vêr-vos fora
IC para isso de todo ja me incita ^
Cresça da saudade o mal embora
(tLuc em mi habitará sempre, e ja habita,
Glue pois he por bem vosso, me he acceito,
Antes ja não he mal, mas he proveito.
'022 OBRAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
Gtueria que fizésseis a jornada
A Goa, nesta fusta que se parte,
Onde de vosso pae acompanhada
Mais segura estareis que em outra parte,
Assi de toda a má lingua damnada
Como também do incerto, cruel Marte,
E a mi do vosso bem a segurança
Soffrivel me fará a vossa lembrança.
XVIII.
E se a guerra o fim tee, qual eu espero,
Eu vos irei lá vêr mui brevemente,
Mas se o Ceo contra nós se mostrar fero
De vos vêr posta em salvo irei contente *,
Possa agora comvosco o que eu vos quero
Q.uererdes-vos guardar do mal presente.
Porque eu com isso em todo o mal futuro
Possa também estar ledo, ou seguro.
XIX.
Com grande sobresalto, grande espanto
Ouvio a nobre Veiga o charo esposo.
Porque nao sabe então se elle de tafito
Amor como lhe têe he duvidoso •
Detem-se em responder-lhe hu pouco, em quanto
O peito palpitante, e arreceoso
Se quieta, e segura, e ja quieto
Lhe descobre assi d 'alma o mais secreto :
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 5*23
Senhor meu, para quem eu s6 desejo
A vida, e em quem agora a só sustento,
Se neste grande amor, puro e sobejo
Q.ue em vos pôz todo o meu contentamento,
Se na vontade, na obra, ou no desejo
De vosso gosto algum apartamento
"Vistes que duvidar de mi vos faca
Rasào he que meu erro eu satisfaça.
Mas se este meu amor, esta vontade.
Este desejo meu, sempre cm vós posto.
Tive (como sabeis) tão de verdade
Q-ue sempre o vosso só foi o seu gosto,
D''oncle nasceo em vós tal crueldade
Q-ue queiraes contra mi voltar o rosto,
E apartar-me de vós naquelle dia
Q,ue eu mais desejo vossa companhia?
Amor he o que vos força, eu assi o digo,
Porque isso he o que este amor meu vos merece,
Mas vede vós se lie amor, ou se he imigo
O que contra mi tanto se endurece,
Q-ue só para livrar-me d"'hum perigo
Incerto, a morte certa me oíferece ^
Porque não cuideis vós que esta partida
Me poderá custar menos que a vida.
fíSi OaiiA-S DE iílANCiSCO a''AKlir.AX>E.
Se o meu perigo a vos tanto vos dana
iiue nem podeis soífrer delle o receio,
< 'orno pDSSo eu ser tal, tão doshiimana,
Tendo do vosso amor o peito cheio,
<-iue no tempo que a imiga fúria insana
De mil mortes cruéis vos têe no meio,
Possa eu estar sem vos, e este tormento
Me não mate cada hora, ou n^hum momento ?
XXIV.
(tLoc gosto a grãa delicia pode dar-me,
íQ,ue não me faltará na pátria casa)
Se cá comvosco o amor ha de ficar-me,
irkue em saudoso fogo lá me abrasa ?
Que cousa poderá la consolar-me,
Se em meio d'hum furor que tudo arrasa
Todo meu bem me fica cá mettido
A mil mortes cada hora oíTerecido ?
XXV.
Km meio desta fúria embravecida
De que vós trabalhaes que eu seja ausente,
Nada me pode dar ou gosto, ou vida.
Senão comvosco em tudo ser presente.
Vede agora pois bem que esta partida.
Com que segura vós vêr-me e contente
Cuidaes, a ordena a minha adversa sorte
Para mor dam no meu, mais grave morte.
U PK.lMi.,i;tO CiiRCO DE DIU. iiZú
XXVI.
Assi quando cuidaes ver-me segura
Ao mor perigo então me ides chegando,
Q.ue entào mais perto estou da sepultura
Gtdando de vos me vou mais apartando ^
E ajudardes vós minlia desventura
Nào o soffre este amor, que desejando
Está, ter comvosco antes morte grave,
Gluc sem vós tudo o que he doce e suave.
XXVII.
Sc a guerra der no fim contentamento
Q-uero lograr comvosco esta bonança,
Forrarei (se fòr viva) lá o tormento
Q.ue me dará qualquer vossa tardança^
Mas se co'os Turcos fica o vencimento.
Do que o csprito me dá vária esperança,
Male-me antes comvosco o imigo ousado,
Glue sem vós outro mór, que he meu cuidado.
XXVIII.
Polo qual se esse amor sobejo e puro.
Bem merecido assaz do que eu vos quero,
Vos obriga a querer pôr-me em seguro.
Eu só comvosco estar segura espero.
Não queiraes que hum incerto mal futuro
Se atalhe co'o presente certo, e fero,
Deixai-me estar aqui, porque eu vos digo
Xkue esse remédio me hc o mór perigo.
'á'2ij OB1JA.S DE TRANCISCO D ANDR^V.DE
Isto que a Veiga disse, foi bastante
A mudar a tenção do esposo charo,
ôue composto nào he de diamante,
K esta ida assaz tanibem lhe custa caro,
Porque vê-la também, te-ia diante
He o seu maior gosto, o bem mais raro,
E assi d''amor movido lhe concede
O que de amor movida ella lhe pede.
XXX.
Q-uiz então ao m<5r dam no aventura r-se
Só para lhe fazer nisto a vontade,
E porque elle também possa guardar-se
Do mal que o mata mais, que he a saudade.
Mas porque deste incerto mal salvar-se
Hua lilha que teo de tenra idade
Pudesse, a Goa então esta mandarão,
E a fortuna sós ambos esperarão.
XXXI.
Mas ja agora a rasao me move e obriga
Glue volte á outra mulher a minha historia,
Pois também assaz delk ha que se diga,
Também assaz he digna de memoria -^
Piírque inda que ja a sua idade antiga
Dava ao cego menino pouca gloria,
O seu mais que viril esprito forte
A dava então liem grande ao grão Mavorle.
o PRIMEIRO CKUCO DE DIU.
Anna Fernandes esta se cliamava,
De louvor por mil várias obras dina,
Gliie com nó conjugal ligada estava
A hum que era professor de medicina,
A quem Fernando o próprio nome dava,
E tèe do Santo a alcunha a que a Divina
Graça tanto ajudou, que d''hua handa
Assado ja, voltar-se da oulra manda.
Obras nella se achao quaes convinhão
A caridoso peito, e forte braço.
Porque os desamparados que alli vinhao
Trespassados do imigo cruel aço,
De seu damno o remédio nella tinliao
Como n^hum maternal, charo regaço,
E a conserva, e o manjar delia guisado,
E isto faz a qualquer necessitado.
XXXIV.
Nem tanto nesta pia obra se assenta
GLue nella só consuma a noite e o dia,
Mas quando o Sol nas ondas se aposenta
E a noite polas terras se estendia.
Arrimada a hum bordão, em que sustenta
O seu pesado corpo, se sabia
Ella de casa então, a dar effeito
Ao que lhe pede o forte, viril peito.
'Í28 OilIlAS DE FilAKCISCO ©"aNDKADE.
Nosta hora que os mortaes a hum doce, e brando
Repouso, do diurno peso chama,
t.Ha ao seu débil corpo então negando
O devido favor da molle cama,
Sobe no muro, e em torno rodeando
A fortah'za, os que acha move e inflama
Com palavras de esforço, e confiança
A nao terem tensor da imiga lança,
XXXVI.
Apoz isto também lhes põe diante
Gluanto era a cada hum cousa devida,
Contra hum tão forte imigo, e tão possante
Usar d"* esforço, e força não vencida,
Assi para que possa ser bastante
A defender a própria amada vida.
Como para alcançar grande honra e gloria
Com que eterna fará sua memoria.
Nem pára nisto o seu peito esforçado,
Antes quando o combate horrendo e duro
Faz com que perca a cor o mais ousado
EUa a casa não vai pôr-se em seguro,
Mas, como se do mais forte soldado
Tivera a obrigação, se sobe ao muro.
Sem mostra de temor d'hum tal perigo
Q-ue a morte por mil vias traz comsigo.
© PRIMEIRO CERCO DE DIU. S29
XXXVIII.
Onde o que a cruel morte arrebatara
Ella com pressa o cobre, e d''alli o muda,
O que somente o sangue derramara
Ella o aperta, e a descer d^alli o ajuda,
O triste em qupm acaso ella enxergara
Covardia, não lhe acha a lingua muda,
E fôra-lhe melhor, agora nisto
Ser do seu Capitão, que delia visto.
XXXIX.
Ella alli tinha hum filho, a quem devido
Por seu grande valor, grão louvor era,
Moço, a quem dera Mendes o apellido,
E o grão Santo d^Assis o nome dera -^
Da velha mãe com tal amor qtierido
Glual o filho da que honra a alta Cj'thera
Nunca soube imprimir naquelle peito
Q.ue elle fazer a si quiz mais sujeito.
Todo o tempo que a Turca imiga gente
Cercado o Christão povo teve, e preso.
Este moço hum feroz esprito ardente
Mostrou no mor perigo mais aceso ^
Até que permittio o Omnipotente
Rei, que no fim do cerco o plúmbeo peso
Saia lá da espingarda impia, funesta,
E rompa a juvenil, ousada testa.
S30 OBIIAS DE FRANCISCO d''aNDRADE.
XLI.
Succede ao moço desta cruel morte
Honra na terra, e gloria no Alto Assento,
E a mãe qualificou hoje o seu forte
Esprito, n''hura heróico soffriínento •
Porque nesta alta dor, com q»e lhe a sorte
Trespassou a alma com mortal tormento,
Seu esforço mostrou tao de verdade
Gluanto o mostrou na alheia adversidade.
Esta, e aquella Izabel que atraz nomeio
(Tanto lá dentro igiiaes, diversas fora)
Forão a occasião, forão o mf^io
Com que qualquer das outras que aqui mora
Perdendo o natural seu arreceio
D^hum desusado esprito se encha agora,
E tome sobre si a grave carga
Glue então ja por fraqueza o forte larga.
» XLIII.
Eis o femineo cdro forte e honesto
A que hum viril desejo estimulava.
Pouco curando então do liudo gesto
A que antes de curá-lo só curava,
Glual sustentando a alcofa, qtuil o cesto,
A pedra e o necessário acarretava
Sobre os louros anneis, que enterneciao
Inda as pedras que sobre si trazião.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. SBl
XLIV.
Pedra, terra, e o mais tudo se acarreta
Sobre madeixas d^ouro crespo e fino,
Q-ue faz inveja ao claro, alto planeta
Gluando solta o sen raio matutino^
A hella face, dVnde a áurea seta
Solta aqnelle cruel, cego menino,
Feita co^o grão trabalho ruciosa
Se faz a quem a ve mais perigosa.
A linda Cytherea, que então via
A grave occupação, mais digna e própria
Da escura gente a que isto competia.
Nascida lá na terra da Fithiopia,
(:iue daquella formosa companhia
Km que ella dos seus bens mostrou graa cópia,
Ilavendo-o por affronta, determina
Tomar disto vingança delia dina.
Deixa de sou terceiro orbe o governo
K o caminho lá faz soberba e irada
Direita ao Ceo Empirio, onde o superno
Júpiter tèe a sua alta morada \
K tocada d^hum ódio novo e interno
Vai no amor de seu pae mui confiada
Q-ue a vingará da Porf ugueza gente
A quem disto ella culpa põe somente.
532 OBRAS DE FRANCISCO dVnDRADE.
XLVII.
Mas iiao tinlia inda avante muito andado
Quando ao caminho vem Marte enoontra-la,
Que vendo nella o brando peito irado
Contra os seus, procurar quer de applaca-la,
Temendo que se o pae delia, informado
Conforme ao que lhe quer, quizer vinga-la,
Que corre muito risco a gente sua
Que de todo a consuma elle, e a destrua.
E com semblante alegre, humilde, e brando,
Inda rendido a tanta formosura,
Lhe disse : Branda Vénus, que a teu mando
Os corações sujeitas com brandura,
Quem te vai de ti tanto hoje apartando
Que te obriga a mostrar condição dura
Contra hua gente que isso níío merece,
E também de ser tua se engrandece ?
XLIX.
Nao te espantes se os fortes Lusitanos
A hum peso intolerável sào rendidos,
Porque como em mortaes corpos humanos
Tèe postos os espritos não vencidos.
Que espanto ho se huns contínuos, graves danos
Os têc cansados ja, e enfraquecidos,
Pois uao pode ser o animo constante
Na carga corporal partccipante.
5;K3
E se de «juda sao necessitados
(Culpa do peso só, não dos seus peitos)
De quem devem melhor ser ajudados
Glue daquellas a quem elles são sujeitos?
Tendo os seus mesmos peitos esforçados
Lhes forao quiçá sempre pouco acceitos,
K se a^ora a ajudá-los se moverão
He pola honra quiçá que disso esperão.
Tua affronta não ho, nem da formo-a
Gente tua, isto em que cilas se occupárSo,
Antes a hei por empresa gloriosa
K cora que (se ser pode) inda te honrarão;
l*orque como da forte e valorosa
Gente minha hoje o ofiicio cilas tomarão.
Ambas as honras tèe ellas somente
A que eu á minha dou, tu á tua gente.
LII.
Isto nao tira a grãa, e a nove ao rosto
Com que os mais livres peitos desbaratão,
E quem do jaspe o seu não tèe compo^^to
Doe-se do que os cruéis fados maltr.itão^
Bem he que de dar vida tcnhão ço^to
Aos mesmos que de amores cilas matão,
E antes queirão que os mate a formosura
Delias, que a cruel fúria, imiíi;a e dura.
534 OBRAS SE FRANCISCO D^ANDRASE»
LIII.
Assi que tu nao tees por que queixar-te
De tomar o teu coro tal empreza,
Nem menos têes rasão para vingar-te
Do que fez nisto a gente Portugueza \
E pois servir-te quiz, não anojar- te,
D*'amor deves estar, nao d''odio, aceza,
Guarda, guarda a vingança e a má vontade
Para o que offender tua magestade.
LIV.
Torna-te ao teu governo, e o furor muda
Tão contrario de tua natureza,
ô-ue honra tua he que a tua gente acuda
Aos fortes que mostrando vão fraqueza ^
E se os meus não merecem tua ajuda
Por seu alto valor, e fortaleza,
Polo que eu sei de mim, bem te convinha
Glue tu Ih^a dês por serem gente minha.
Q,uietamente a bella Cypria attenta
O que Marte então brando está dizendo,
E como inda não he de todo isenta
Vai-se-lhe pouco a pouco enternecendo ^
Ver mostras d^amor nelle Ih '' aviventa
O fogo em que ja andou por elle ardendo,
E pondo os olhos nelle inda se sente
De fazer-lhe a vontade assaz contente.
o PRIMEIRO CERCO DE Dlir, 535
tVl.
Responder-lhe tentou, porém do meio
Da boca, a voz ao peito se recolhe,
Que o passado erro seu, que então lhe veio
Ao pensamento, a lingua e a voz lhe tolhe ^
E como tèe d^amor o peito cheio
Por a melhor 'resposta então escolhe
Fazer-lhe tudo o que elle lhe pedia
Pois seu gosto também nisto fazia.
tvii.
Logo cheia d^amor perde toda a ira,
E não somente muda o pensamento
Mas lá no seu formoso coro inspira
Para o que faz hum novo esprito, e alento>
Co'os olhos inda hum no outro se retira
Lá para o seu celeste antigo assento,
Contente cada hum do que tee feito,
Pois tirarão d'aqui gosto, e proveito.
Lvm.
Porém Marte nesta hora contemplando
Q-ue aquella gente sua do ordinário
Trabalho, se hia tanto sujeitando
Q.ue o favor feminil lhe he necessário ^
Vendo-a em tamanho aperto, arreceando
Q-ue a grande contumácia do adversário
Em risco de cahir ponha aquella alta
Constância, se o favor lhe tarda ou falta ^
o36 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRAJDE.
LIX.
O caminho buscou com que mais perlo
A. nova disto cm Goa fosse dada,
Para que o Viso-Rei a tanto aperto
Acuda com fcivor de gente armada^
Logo direito vai lá aonde certo
Sabe que o Somno tèe sua morada,
Porque por meio delle determiiia
Dar com graa pressa effeito ao que imagina.
Lá junto dos Ciramerios hua escura
Profunda cova está, que do luzente
Sol nunca vio a biz dourada e pura
Ou seja Oriental, ou do Occidente ^
Grossas névoas de si a terra dura
J£x.haIando alli está continuamente,
Com que bua incerta luz alli se espalha,
E aqui o inhabil Somno se agasalha.
Alli da vigilante cvistada ave
Nao denuncia o canto a nova Aurora,
Nem do pato, ou do cão soa a voz gravo,
Nem da fera, ou do gado, era alguma hora i
Os ramos de grão vento, ou d^ir suave
Movidos, nem humana voz lá fora
Fazem qualquer rumor, qualquer ruido
C'\'"n nue o silencio s^ja interrompido.
• PRIMEIRO CERCO DE DIU. ã37
Nao 8e sente alli cousa que inquiete.
Mas tudo tão calado se está vendo
Glue bua quietação longa promete,
E por brancos seixinhos vem correndo
Hum ribeiro que traz aguas de Lete,
Cujo brando rumor favorecendo
Nao somente está o sorano ao que dormia,
!\Lis convidando ao somno o que vigia.
LXIll.
Entre as porfas da cova alta e profunda
A dormideira está sempre, e florece,
D'outras ervas alli a terra abunda
Com cujo çumo a noite se enriquece
De somno, que por toda a terra infunda,
Com que a gente descansa o se adormece,
Jí do mais que a dormir move, e convida
Se vê aquella terra bem provida.
Não ha portas em todo aquelle assento
Em que está o moUe Somno agasalhado,
Para que da couceira o movimento
Não faça o seu ruido costumado ^
Tudo o que pode ser impedimento
■ Ao Somno, d'alli estava desterrado^
E esta porta que estava sempre aberta
Nenhua guarda têe fiel e corta.
\í
03S OlittAS DIS lUAKClSCO D AM)UADE.
Aqui n^hum leito sempre moUe e brando /.
i^ual os seus mollos membros o pedião '
Estava sjMupre o Som no repousando,
Junto delle jazer tamijem se vião
Vãos Sonhos, que o estão sempre acompanhando^
E em niil loHnas cada hora se variào,
Cujo numero he tal, que senhoreia
As Estrellas do Ceo^ da praia a areia,
IXVI.
Tanto que entra aqui Marte, f» de diante
Os Sonlios com as mãos de si aífastára
Q.ue lhe impedem a entrada-, a rutilante
Luz sua, toda a casa tornou clara ^
Nem dus armas o estrépito bastante
Sendo então, ou a luz que nella entrara,
l^ara que o Som no sinta a menor parte,
Tviogo para onde o vê se chega Marte.
LX.V1I.
Hua e outra vez o bolle, e o preguiçoso
Estende o brayo e a perna, e inda dormindo
Ergue os olhos, pesado e vagaroso,
Mas deixa-se outra vez logo ir cahindo.
Bolle-o Marte outra vez mais furioso, .
Elle o peito co'a barba inda ferindo, j
Os olhos co''a8 mãos esfrega, e esta hora
Emíím a f<i de si se lança fúri.
o 1'UlMEinO CERCO DE DIU, Ô39
ixvni.
E sobre o cofovello hum pouco erguido
Er^ue o rosto pura elle a ver quem era,
E sendo Marte dello conhecido
Nas armas, e presença horrenda e fera,
Com rouca voz, e mal inda entendido
Lhe pergunta o que quer, e a que viera.
Marte agora o furor usado esconde,
E com aspeito brando lhe responde;
Somno, em quem tèe repouso toda a gente.
De cuidados sollicitos imigo,
E os que a morada tce no Ceo luzente
Grão repouso também tomão comtigo,
Q.ue ao corpo que o diurno peso sente
Dás suave descanso, brando, e amigo,
A quem os Sonhos todos obedecem
tílue em diíferentes formas apparecem.
Manda hum delles a Goa, que encuberto , y,
Co'a figura do meu forte Silveira • ' ;
Ao Viso- Rei Noronha faça certo
(Apressando a veloz sua carreira)
Dos meus que estão em Diu o grande aperto,
Porque mandar-lhes logo ajuda queira:,
Os quaes a tanto estremo são chegados
(iue das mulheres ja são ajudados.
Apoz estas palavras se sahia
Da casa soporifera em que estava,
Porque soífrer então ja nâo podia
O somno que de si ella espalhava ^
E sentindo que o somno que alli via
Penetra-lo por dentro começava,
Com grãa pressa se vai, e lá caminha
Para o quinto orbe, que elie a cargo tinha.
LXXII.
Mostra o Somno por obra quanto gosto
Têe, de fazer a Marte o que lhe pede.
Faz logo deixar Morfeo o molle encosto ^
Este a todos os Sonhos muito excede
Em exprimir o andar, a falia, o rosto
Da gente, e nenhum ha qiie assi arremede
Os trajos, os vestidos, os arreios.
As palavras, os termos, os meneios.
LXXIII.
A este agora encommenda disto o effeito,
E ja então outra vez a si tornado
A cabeça encostou no molle leito
E outra vez adormece repousado.
Morfeo voando, a Goa Vai direito
A fazer o que lhe era encommendado,
E sem que as azas facão quando voa
Q^ualquer ruido, em breve chega a Goa.
>0 l>KI»íl:iRO CERCO DE HW. ^\Í
LXXIV.
Onde do leve corpo então deixaliáo
As pennas com que no ar se alça e sustenta.
Do Silveira a figura em si tomando
(^ue mais ao vivo então o representa,
Affrontado, suado, -e inda oflfegando
Ao leito do Noronha se apresenta,
E mostrando cm caliça, e em pó envolta
A barba e o rosto, a lingua assi lhe solta :
ixxv.
Cumpre, Senhor, que seja era breve espaço
De Diu a fortaleza soccorrida.
Porque a gente que tinha, ou do Turco aço
Ou do trabalho he muita consumida^
Tal que ja o Lusitano invicto braço,
Ja a força Lusitana he constrangida,
Para ter defensão a fortaleza,
Tomar favor da feminil fraqueza.
As mulheres também em si tomarão
Grâa parte do trabalho alli ordinário^
Porque nos varões fortes enxergarão
Menos forças do que era necessário.
Elles com grãa vergonha lh'o acceitárão,
Porém a contumácia do adversário
E a grande quantidade pode tanto
Q,ue pôz fraqueza, em quem nâo põe espanto>
* i6
í^iá; OBRAS BTE FllANCISCO D^ANDUAJ^Í,
' txxvn.
DVquí verás o estado perigoso,
O aperto om que está posta aquella gente,
Nem te diz isto iwcerto, ou duvidoso
Aulhor, mas quem a passa, e quem o sente ^
Q.iie se o eoutiuuo pes(j trabalhoso
Mudiido me nSo tèií, bem claramente
Verás que a fortaleza a eargo tenho
Q.ue avi*ar-te só disto agora venho,
LXXVlIf r
Tão próprio cmilrafez Morfeo nesta ÍioíIí
A voz, do que no mais contrafizera,
U.ue o Noronha, inda mal esperto agora-,
Km iudo ÍHiHginou qu(; o Silveira era ^
Enifíni de si de t(xío lança fóra
O somno que até então era si tivera,
E quanto no que vio mais imagina
Mrtis mandar o soccorro determin».
Tanto que foi miJtthãa nSío tarda ou eessíl
"Em fazer prestes hua grossa frota,
Mas como o ouvido aperto o move e apresa;!
ijogo quatro cáturcs ao mar bota ^
Gente, e o mais neíles mette, e com grSapressíi
Lá de Diu seguir lhes manda a rota.
Mas em quanto elle ordena a grossa arfti.ula
A furtuleza faío eu a tornada f
• PRIMEIRO CEftC€> DE DIU. 3Í3
LXXX.
O lemineo esquadrão, formoso e lindo
Q-ue era de Anua e Izabel estimulado,
E agora hum novo esprito hia sentindo
Co"*o divino favor nelle inspirado,
Comíigo o gríío trabalho repartindo,
Também aos varões faz soffrer dobrado
Trabalho^ do que a força lhes soífriaj
T.vnto a vergonha então os acendia»
tXXXIí
M.is neste tempo vendo ja adabar-sfí
Toda a pfedra que havia então na terra^
Oom que ao Christão forçado he reparar-stí
Para se defender naquella guerra,
Toda a casa se vê logo arrasar-se
(Itwe a fortaleza dentro em si encerra,
l\)rqtje co''a pedra que ella de si desse
O reparo importante se fizesse*
txxxíí.
E como o Turco hu^hora nao socega^
Que não lh''o soífre o imigo cruel peito^
Também dos seus canhões a fúria emprega
No Sacro Templo então, pouco antes feito '^
Não soffre vêr em pé o que arrenega,
E em pouco tempo o bate de tal geito
Q.ue quasi todo foi por terra posto.
Com mágoa dos Christàosj e grão desgosto.
íj44 0BRA8 DE FRANCISCO D^ANDHADE.
LXXXIII.
Neste tempo também ja a imiga e grossa
Bombarda, que hum momento nao cessava
Senão em quanto o ^^i^eo a gente nossa
Com assaltos cruéis sollieitava,
Porque mais facilmente cumprir possa
llum desejo que o tanto estimulava,
Tinha aquelle reparo derrubado
Q.ue atraz disse que fora edificado.
O Portuguoz porém se fortefica
De novo com grãa pressa, e com grande artcj
Outro reparo mais dentro edifica
ikue outro terço occupou do baluarte :,
De maneira que ao Sousa ja não fica
Do baluarte, mais que a terça parte,
D'onde então se defende, e os oflensores
D^unbos os outros terços são senhores.
LXXXV.
Porém como o logar que a Christaa gonte
J*ara defenfeao sua possuhia
Outro novo reparo não consente,
Que era o remédio só que a defendia,
D^aqui veio a entender-se claranuMite
Q.U» durar alli níuito não podia,
Se o mal que desta falta se arrrocia
Por outra via nao se renvdoia.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. fí43
Engenho e diligencia não fallece
Onde a necessidade está exhortando,
Fazem q»ie bua graa torre se comece
l*ola parte de dentro d^ir creando
Junto do baluarte, e esta apparcce
Tão alia em breve tempo, que igualando
Se fí)i co^o baluarte, a quem defende,
Tanto alli o geral bem se pertcnde.
LXXXVII.
Nos dias que o fiel que a Christo adora
l*õe em se reparar grãa diligencia^
Também a infiel gente, naquella hora
Hue a noite mostra a escura sua potencia j
As estancias com grãa arte melhora
(Sem poder dos Christãos ter resistência)
Em que a sua vanguarda se alojava,
E vai-as pôr lá junto á nossa cava.
LXXXVIII.
O modo ouvi, com que isto eíTeituárão
Os Turcos, bem espertos nesta guerra,
lluns fardos assaz grandes ordenarão
Da pelle que o boi ja trouxe na serra,
Oue na forma redondos se tornarão
Depois que os occupou por dentro a terra,
E outras bailas também grandes fizerão
0.ue de brando abíodão também encherão.
Detraz de cada peça destas hião
Três ou quatro infiéis dos que alli cstavao^
Co'' os joelhos por terfa, e assi seguião
O que elles com as mãos mesmos levavSo ^
E tào bera detraz delias se escondião
Q-ue com quanto os Christãos bem trabalhavao
Para lhes defender o que pertendem
Elles emfim debalde lh'o defendem.
xc*
Sahe o chumbo mortal para este effeito
Da espingarda, que a mão fiel meneia
Lá contra o fardo, e a baila vai direito.
Porém pouco este damno remedeia^
A qual rompe a cabeça, a qual o peito,
A qual abre de sangue grossa veia.
Mas nem ou sangue, ou morte foi bastante
Para tolher ao imigo it por diante.
xci .
tlompe por sangue e morte, e assi se igualia
Co^a nossa fortaleza, atraz ja o digo,
Onde se fortefica logo, e valia
Em altura que sem temor do imigo,
Ajuntando ao seu vallo o fardo e a baila
Anda em pé bem seguro e sem perigo.
Porque tão bem se esconde detraz disto
Q-ue de cima do muro não he visto*
o PRIMEIRO CERCO D£ DIU. 547
D'aqui com militar arte e doutrina
Outras cavas lançou por onde possa
Seguramente andar, e com faxina,
Com terra e pedra solta, o vallo engrossa,
Tal que não só o segura de ruina.
Mas que o canhão lhe faça qualquer mossa,
E desta arte commette bem seguro
â.uando quer, o que está posto no muro.
E porque quando a sua artilharia
No Christão baluarte se empregava,
Com a caliça e terra que cahia
Bater no vivo então se lhe estorvava,
A gente de Cambaia constrangia
Glue com Cojaçofar no campo estava,
A lhe alimpar aquillo, sem que attente
€tuantas vidas custa isto áquella gente.
xciv.
Entra o triste Cambaio em mãos da morte
Constrangido de quem espera a vida,
Hoje o amigo lhe he mais que o imigo forte
O mesmo companheiro lhe he homecida.
Mil queixas solta em vão de sua sorte.
Pois tão cruel a sente e endurecida
Glue têe a morte alli mais certa e dura
Onde a vida ha que tinha mais segura»
5Í8 OliUAS DE FRANCISCO D*ANDKADE.
Nestes dias que o Turco do ira cheio
Faz com que o seu canhão o muro bata
Do baluarte do Sousa, como creio
Q.ue'pouco atraz a minha historia trata •,
Naquelhi hora que o Sol de novo o freio
Põe a B^legon, e aos mais, e as rodas lh'ata,
Sendo hum dia apoz quinze ja passado
Do mez que ao Escorpião dá gasalhado ^
xcvi.
Aquelle grSo Falcão, de que atraz f;)llo,
(Creio que haverá delle grãa lembrança)
Aquelle cujo nome era Gonçallo,
E hum grão louvor da Portugueza lança,
Q-uerendo ja o Ceo gratilicallo
Com dar-lhe a Eterna Bemaventurançji,
O alto esprito rendeo, mas com tal gloria
Q,{iG da seíTunda morte houve a victoría.
Este varão famoso pertendendo
Q.ue do seu baluarte o furioso
Canhão, S(51te o furor mortal e horrendo
No infiel esquadrão tão copioso,
Com quanto claramente estava vendo
Descuberto o logar, e perigoso
Em que tèe posto a sua artilharia,
Nem do que então pertende, isto o desvia.
• l*niMElRU CEUCO HE DIU. j» i9
XCVIII.
Nem tanto aquelle grão perigo estima
Q.ue deixe elle de ser o dianteiro,
Nem o officio que tèe tanto o sublima
Glue não seja ao que cumpre elle o primeiro^
K com se aventurar, esforça e anima
Para o seguir o amigo c companheiro,
A que o pelouro imigo tanto enfreia
Glue desciibrir-se enlào muito arreceia.
Este seu bom desojo tanto o acendç
Q.ue oppõe a hum grão perigo o forte peito,
Glue sem aventurar-se bem entende
Que nunca se eíTcitua o grande feito ;
Porém disto que entào elle pertendo
Segue a sua tenção diverso o eíTeito,
Porque a morte d'aqui a elle se gera
Que elle ao soberbo imigo dar quizera. =^
Posto entre os seus canhões então estava
Em logar assaz cogo, e sem abrigo.
Lá d'onde a sua gente elle animava
Para não duvidar este perigo,
Quando hua horrenda espera solta a brava
Ruinadora fúria d'entre o imigo,
Sabe o ferro que dentro estava preso
Direito ao Falcão vai em fogo aceso.
â^O OBKAS D£'FKANCiSCU d''aNORADK
Encontra-o na cabeça, e alli esparzido
Lhe deixa o cérebro entre a sua gente,
Pallido e inhabil cahe o não vencido
Braço, dos grandes feitos síj contente.
Hoje da cruel morte foi rendido
O que rendido foi delia somente,
Mus co^a fama que cresce de hora em hora
Venceo a sua mesma vencedora.
CII.
Com grave sentimento recebida
Foi esta repentina morte dura
Da sua companhia, que na vida
Só do seu Capitão se ha por segura.
Na fortaleza foi logo esparzida
Com dor de todos esta desventura.
Pois bem dava a entender seu braço forte
€luanta perda alli trouxe a sua morle.
Nesta hora, a Turca armada que visiuha
Estava da Mesquita, onde ancorada
A deixei (como disse a historia minha)
Se leva, e vai surgir n^hCia enseada,
A qual posta defronte íle si tinha
A nossa fortaleza, que arredada
Meia légua só tèe lá contra o assento
Gtue scniprc aos Rumes deu recolhimento.
vi IMIIMKIHO CKIU<J DK DIU. hoi
Passoii-se a Cí>te loij.ir o esperto Mouru
Ondo os navios mais se soj^uravão,
P<»r ter alli amparado o surgedoiiro
Dos ventos que a soprar ja conioçavHo,
E por tei* melhor desembarcadouro
Q-ue o logar onde então clles estavao,
E uiais perto o lieòr brando c snave
Q.Jie da sede reprime a força grave.
Nesta mesma manhãi que este famoso
Falcão sobe á Celes'e Monarquia,
O Turco pertinaz, nunca ocioso,
CrAue o damno dos Cliristãos só pertcndia.
Assalta o baluarte que o animoso
Sousa co^i sua boa companhia,
Com grande louvor sc<i, com grão perigo,
^Jii ve/^8 defendera deste iniiso.
Sessenta são sdmetíle os atrcNÍdos
(ri lie aqiielle baluarte lioje assallárào,
Mas do Sousa e dos seus são recebidos
C<»\> valor com que sempre costumarão;
Ilompem o Ceo os altos alaridos
Q-itando os imigos bra<^os se ajuntarão,
A c-sc com sangue e morte vm breve esji.içu
tÍLían!« ódio nclles ha, quão forte brart».
Aceso em ira o Turco o ferro move,
Move o ferro o Cliristao em ira aceso,.
Faz isto que n'hum e outro se renove
O ódio, de que antes ja estava preso \
D'aqui nasce também que hum e outro prove
Do ferro imigo o grave e mortal peso,
Mas o Turco se vê sem paciência
De tão dura e contínua resistência.
E vendo que os sessenta em vao pertendesk
Desbaratar os fortes defensores,
Q.ue com tamanha esforço se defendem
Glue vencidos nao sao, mas vencedores.
Mandão muitos de novo com que offendem
Com revezadas forças e maiores
Estes poucos Christãos, e os seus ajudão.
Mas nem com isto a usada sorte m.udã.0..
Porém por mais que aquella alta constância
Do Sousa se defenda e prevaleça,
Keveza-se porém com tanta instancia
O Turco, porque nunca desfalleça,
Gtue he forçado vir lá da sua estancia
Glualquer dos Capitães, e favoreça
Dos Christãos a pequena companhia
€tue sempre a forças novas resistia».
o PTIÍMETRO CERCO DE 1)11".
Entra esbi descansada gente forte
Onde resiste a forte mas cansada,
A tempo que a dous têe levado a morte
E que oito tèc ao sangue aberta a estrada.
(Querendo esta também tentar a sorte
Contra a gente mil vezes revezada,
Faz que o Sousa co^os seus d^dli se aparte
Toraa ella a defensão do baluarte.
Succede no logar ao Sousa ousado
E também na ousadia lhe succede,
Ja sente o Turco o braço descansado
Mas nem isto lhe faz que atraz se arrede ^
Mostra agora o furor mais obstinado
Q.uando a necessidade mais lh'o pede,
Com nova for^a agora entrar pertende
O que com nova força se defende.
Mas esta força nova acha tao dura
Q.ue elle pertende em vão desbarata-la,
Comtudo hiia e outra parte insta, e procura
Ella defender-se, elle de entra-la.
Fende a espada cruel, a lança fura,
A alta grita de novo ao Ceo se iguala,
Hum dos Christãos aqui só perde a vida
Outros somente ao sangue dão sabida.
55 i OBRAS lili FJlA^CISCO D ■ ANDRADE.
Destes a que espalhou o imigo tanto
Sangue, que ja da marte estavao perto,
Fonseca he hum, que o nome têe do Santo
<-lue ja habitou de Palhmos o deserto.
I)eter-se hum pouco aqui quer o meu Ciiuto
Para que seja ao mundo descuherlo
))o raro esforço deste hum raro exemplo
Glue da fama honra assaz o Sacro Teniplo.
CXIV.
Kste maneelx) (que era ao estandarte
Do valeroso Sousa obediente)
(Guando no combatido baluarte
Mostra o Turco e o Christão a fúria arílente,
Da espingarda cruel que lá na parte
Imiga se meneia, a fúria sente,
Mas nào foi por logar que o tao mal trate
Q.[ie logo a chura vida lhe arrebate.
cxv.
Co'o seu furor usado a elle endireita
Kste ardente, cruel, mortal pelouro,
irkue acaso para aquella parte deita
A espingarda de lá do esquadrão Motiro^
Polo colío lhe entrou da mão direita
K acha a sabida lá no sangradouro.
Tudo deixa desfeito, e em fogo aceso,
Molle carne, osso duro, nervo test).
o lUlIMLlJlO CEIICO JDE DIU. O
CXVI.
O verde ramo a quom o desestrado
Ca-íe, ou da imiga mão, ou do graò veiito,
Deixou da suk plaitta peiídunido
Com grande damno seu, grào detrimento,
Murcho o secco se torna, e pcírdo o usado
Seu preço, seu valor, seu ornárnento,
Tal este forte braço hoje estou vendo
Perdido o seu valor, estar pendendo.
ISfas nem a falta d*i»um tSo importante
Memlín), algíia eausou no forte peito,
Q.ue inda que a dôr que tinha era bastante
A sujeitar o nunca antes sujeito,
Nenhum nelle o se'ntio, dos que diante
Alli tinha, ou no rosto, ou n'algum geito,
<lue mais o aperta o esprito não domavel
Q.ue aquella grave dôr intolerável.
CXVIII.
E porque a esta grãa falta <?ntão acuda
T)e sorte, que não seja deScuberta,
Ao decepado braço a adarga muda
E com a esquerda mão a lança aperta^
Levanta ao hombro a adarga quanto o ajuda
O fraco braço, e á bellica referta
Torna com grão fervor e esforço, onde
A maior parte desta falta esconde.
Ó.>6 OnílAS DF. FRANCISCO D ANDRADK,
Mas por mais qtio escondê-la elle trabalha
Nao a pode oscoíider quanto queria,
Porque como o logar desta batalha
Recolher doze ou treze sos podia,
Muitos de fora estão vendo o que espalha
O sangue, ou o que á morte se rendia,
Para que no logar que este deixasse
O que estiver mais perto logo entrasse.
cxx,
R como então so nisto so attentava
Nao pôde elle encubrir-fo grande espaço,
Q.ue a graa cópia de sangue que lançava
De si o dependurado roto braço,
Veio a mostrar emfim qual elle estava
A hum que co'o seu valor, e co'o duro aço
Fez conhecer seu nome em toda a parte,
Vasconcellos traz Mendes e Duarte.
CXXI.
Estas alcunhas, c este nome tinha
Este que do Fonseca a falta alcança,
O qual vendo que então alli o detinha
Força não, mas esprito e confiança,
Pucha por elle, e diz, que pois convinha
A cura, e não mover adarga e lança.
Ao estado em que está, da cura trate
E lhe dê logar que entre no combate.
o PRIMF-inO CERCO DE DIU.
Fonseca nao o onvindo por ventura,
l*nlo tento que têe na gente imiga,
Ou sendo-lhe pesada cousa e dura
Deixar o seu logar, durando a briga,
Do que diz Vasconcellos pouco cura.
Não lhe torna resposta, nem mitiga
O esforço natural que o está movendo.
Antes com isto mais lhe vai crescendo.
Vasconcellos porem, em quem o esprito
Heróico cada vez mais se aviventa.
Ao Fonseca repete o que antes dito
Lhe tinha ja outra vez, e lhe accrescenta,
ÍtIuc pois hum desestrado, e fortuito
Caso, que assaz a todos descontenta,
Faz que o direito braço elle não mude
lihe dê a elle o logar, pois têe saúde.
CXXIV.
Fonseca, d'hua honrada ira ja cheio,
Agora que o bem ouve, não he mudo.
Como sois de rasào (diz) tão alheio
Q.ue se eu do esquerdo braço inda me ajudo
iMe pedis o logar? porque inda eu creio
C^uc em quanto eu este tenho, tenho tudo :
Não qtieiraes nisso o tempo aqui gastar-me
(Aue eu posso aproveitar cm mais honrar-me.
'6oS OBRAS DE FRANCISCO d"* ANDRADE.
Traz isto inda se volta com ardente
Esprito, onde o desejo o está guiando.
Achou-se acaso o Sousa aqui presente
Q-ue têe por nome Lopo, e contemplando
Tão honrada questão, instantemente
Pede ao Fonseca, e quasi o está forçando
A que se vá curar, e elle se queixa.,
O logar o outro toma que elle deixa.
CXXVI.
Vai Fonseca a curar-se, inda queixoso
De quem para viver o encaminhara,
Vasconcellos entrou no perigoso
Logar, que por si mesmo elle buscara.
Neste Fonseca sempre hum valeroso
Esprito em todo o cerco se enxergara,
Porém da mão emfim fica aleijado
Com que alli se fizera tão honrado.
CXXVII.
Nesta hora o grão furor, a alta ufania
Com que o soberbo Turco combatera
Gluando a cansada gente resistia
A quem os seus mil vezes refizera,
Com as forças da nova companhia
Glue os cansados Christãos favorecera,
Tanto ja torna atraz, tanto se abate
€tue começa a aíTrouxar o grão combate.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. S59
Sentindo isto o Silveira ja no iinigo
Manda a Lopo de Sousa que descesse
A cava, co^os que tee alli comsigo,
E os Turcos com grâa fúria accommettesse.
Pouco duvida o Sousa o grão perigo
Inda que então bem claro o conhecesse.
Faz recolher os seus logo á bandeira
Vai cumprir o mandado do Silveira.
CXXIX.
Com pressa ao baluarte lá endireita
Q.ue do incrédulo Santo se nomeia,
E da parte que ao mar olha direita
Ata hua rija corda u^hua ameia;
Por cila, sem temor, logo se deita,
Q-uc este perigo então não se arreceia,
Por onde co^os seus desce bem seguro
Ao releixo que está entre a cava e o muro.
cxxx.
Menos o grão perigo então duvida
O.uando mais perto delle ja se achava,
D^aqui lança húa escada tão comprida
GL-ue em quarenta degráos se limitava ;;
De corda esta era feita, que descida
Ao Sousa deu, e aos seus d'alli á cava,
Glue mais que n^outra parte aqui era alta,
D«sce a gente animosa, e nella salta.
i)60 0BR4S DE FRANCISCO D*ANDIIADK.
Nem inda a cava todos dentro tinlia
(luando de cima foi Sousa avisado
(\ue lá d"'hua Mesquita que a marinlia
Onda vê, foi d''hum Mouro elle enxergado,
O qual com grande pressa ja caminha
As estancias dos seus, dar-lhes recado
J)e sua ida, que cumpre ter grão tento
Glue de lá não receba detrimento.
CXXXII.
Não esfria isto ao Sousa o peito ardente
Sempre r.o grão perigo ardente peito,
K c<)''os que tèe em baixo (que somente
Trinta e cinco serião) faz o effeito :,
Não se quer deter mais a forte gente,
I*orqne com se deter não perca o feito,
I^ogo o Sousa, a quem mais isto compete,
l)s descuidados Turcos accommette.
CXXXIII.
Muitos lá no alto estão do baluarte,
]Muitos nas quebras delle descansando,
(iue de qualquer perigo desta parte
Pouco se estão então arreceando.
Sousa soltando no ar seu estandarte
K o furor aos que o vão acompanhando,
Faz com que sinta o Turco em pouco espaço
Q,uão bem sabe cortar o Christao aço.
o PRUI-CIRO CERCO DE DIU. oGl
CXXXIV.
A cortadora rspada Lusitana
Derrama o sangue imigo sem piedade,
Mas aqviella infiel turba profana
Sentindo esta inesperada crueldade,
Inda hoje a natural soberba a engana,
Inda de resistir mostra vontade,
E os que cá mais em baixo tee o posto
Mostrão contra os CUristãos direito o rosto.
cxxxv.
Fai-lbcs mover o ferro o esprito ufano
K quanio lhes he possível se defendem,
Mas logo lhes mostrou seu próprio dano
Glue defender-se então em vão pertendem.
Pois debaixo do ferro Lusitano
As almas infiéis seis delles rendem,
E co^os mais de tal sorte aperta o Sousa
Glue deter-se alli mais nenhum ja ousa.
Procura de salvar-se o que he mais forte
Por onde o medo c o tempo então o ensina,
Vendo os que em cima estão, a dura sorte
Dest^outros, também temem sua ruina,
(Qualquer delles também fugir á morte
Clue alli têe por mui certa, determina.
Mas tal foi o remédio que buscarão
Glue a morte então mais certa nelle acharão.
r.xxxvn.
Q-ualqner Hoíles, s«m tento, í'utSo ífe luJi<,'<'i
Polas quebras que mostra o roto muro,
Mas logo de viver p«írde a esperança,
Porque o caminho que elle por seguro
Busca, tomado achou, e assi na lança
E na espada vai dar do imigo duro,
Onde perdem alguns delles a vida
Sem detrimento ou dam no d<j homccida.
cxxxvitt.
Com isto o baluarte em í'-mpo brovf
Foi do soberbo imigo drir pejado,
E com grão dam no seu timbem fim tove
O assalto tantas vezes revezado.
Sousa porém na cava se deteve
Em quanto ao general manda hum recado,
Avisando-o de cousa que então sente
Ser ao tempo em que estão conveniente.
CX.XXIX,
Manda dizer que porque a gente imíga
Os soldados Christãos cada momento
Com pequenos combates nao persiga,
Nem seja ao trabalhar impedimento,
Parece que a rasao e tempo obriga
A que lá do ÚA ajuntamento
Se mande sempre gente revezada
Da qual a cava esteja acompanhada.
o PRIMEIRO CKItO »E «IT
£i(i3
Nem vá esta genle lá, para que o amígn
Destes leves combates defendesse,
Senão para fazer que o Turco imigo
Com mor cópia c poder o conimettesse ^
E inda que isto ao Christâo he mor perigo,
Comtudo como o Turco conhecesse
(i.ue outro mor numero e ordem lhe convinha
Monos vezes virá do que então vinlia.
CXLI.
E que d'aqui lerá hum grão proveito
< ) fiel defensor, porque teria
'J%'mpo de trabalhar, e dar effeito
Ao reparo importante que fazia.
I«to npprova o Silveira, e lhe he acceito,
Louva o Sousa, e agradece o que dizia,
O qual ficou na cava até que a escura
Sombra encobre a diurna formosura.
Esta ordem de metter gente na cava
O Silveira mandou que se guardasse,
A qual quando a que lá em cima estava
De lá algum signal certo lhe mostrasse,
Contra os Turcos irá, mas lhe mandiíva
<iiie da boca da cava não passasse,
Nom tanto ao imigo então se descubrissc
U,ue elle a sua pequena cópia visse.
3G4 OBRAS DE FRANCISCO d" ANDRADE.
CXLIII.
Isto d"'allí em diante foi seguido,
Nem foi de todo v5o, mas proveitoso,
Porque o imigo cruel foi constrangido
Dar raais socego ao povo religioso,
Pois forçado era então ser commettido
Com outro mor poder, mais copioso,
D''onde ás vezes o povo Lusitano
Menos perda recebe, e menos dano.
CXLIV.
Mandando polo estylo atraz escrito
Oito homens o Silveira, dos que tinha
Comsigo aquelle Sousa Lopo dito.
Também Simão Furtado entre elles vinha.
Varão a cujo siso, idade, e esprito
Glualquer feito importante bem convinha,
E foi mandado á cava lá de cima
Porque se houver desmando elle o reprima.
CXLV.
Apor este esquadrão hum moço segue
Q,ue dezoito annos sos inda fizera,
Cujo nome he João, o qual entregue
Ao serviço de Lopo de Sousa era ^
E temendo quiçá que elle lhe negue
A licença, pedir-lh^a não quizera.
Nem leva outra algíja arma em sua ajuda
GLue a comprida espingarda, e a espada aguda.
o l>IlXM£IRO CERCO DE DíU. 56$
Com pressa á cava lá busca a descida
O pequeno esquadrão, mas forte e ousado,
Em tempo que o feroz Turco homecida
(Como meu verso atraz ja têe cantado)
Faz que o Cambaio, á custa da sua vida^
A immundicie que cahe do ruinado
Muro lhe alimpe, a qual então tolhia
Ser lá no vivo a sua bateria.
CXLVII»
E para effeito disto se sahirao
Alguns da estancia lá que os alojava,
Os Christãos lá do muro quando os virao
Logo o signal íizerão aos da cava \
Elles, que no signal bem advertirão,
Porque só cada hum nelle attentava,
SalteSo sem tardança a Turca gente
Giwe tardança em furor não se consente
O moço que seguio, como atraz digo,
Os oito, e também lá na cava entrara,
Pouco duvida agora o grão perigo.
Mas seguindo o furor que o estimulara
Salteia elle também o incauto imigo,
E a mortal espingarda n"'hum dispara,
Traz isto a espada arranca ^ nias lá avante
Esperai que o que fez com outro caute»
CERCO DE DIU.
O mo^o dá a morte ao outro Mouro, e torna
em salvo ã fortaleza. 3Ianoel de Vasconccl-
los entra duas vezes com <jcnie na cava, e
o que lhe succedco. João da Nova persuade
aos Christuos que entreguem a fortaleza. Os
Turcos a batem por diversas partes, e lhe
dão alguns assaltos. Ordcnão-lhe huma mi-
na, e indo Gaspar de Sousa reconhecê-la he
morto poios Turcos. Inventão os Chrisíãon
hum ardil com, que algum tempo se defen-r
dem dos inimigos. Enira na fortaleza soe
corro de Goa.
\^ue nome, que louvor, que honra, que gloria
O verdadeiro esforço não merece?
(iue cousa ha hi mais digna de memoria
Q.UC o que por seu esforço se engrandece?
Km quem com maisrasào se empreita a historia
Do engenho que no mundo mais ílorece,
(^ue a'hum braço tao forte e valeroso
i\ini se faz por si eterno e glorioso?
o rRIM£IUO CERCO ©E DIU. aU i
Matérias dignas são, que em toda a partft
Delias cante o subtil engenho agudo
A virtude, a sciencia, o íçoverno, a arte,
Dote hum da natureza, outro do estudo-,
Mas as obras do fero, horrendo Marte
Como em honra e louvor passào por tudo,
Assi tambíím matéria s5o mais dina
Do que mais gastou d^agua Cabaliua.
III.
Provar-se com rasão será escusado
O que a mesma rasao está provando,
Pois merece aqiuílle sor cantado
(■iue a vida está cada hora aventurando,
E de mil cruéis mortes rodeado
Sempre hum invicto esprito está mostrando,
Ciue aquelle que faz guerra ao tempo imigo
Com trabalho menor e sem perigo.
IV.
E se o mellior engenho he láu devido
A qualquer que do Marte segue a banda,
E inda áquelle que está envelhecido
Nas perigosas cousas que elle mauda,
A que o uso faz não ser delle temido
O que o novo soldado temendo anda,
Gtue se deverá á«{ueile que he tào forte
(4ue entrou ja nào temendo a mesin?. morte?
568 OmiAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
Tal foi dfiquelle moço o forte poito
De que atraz prometti cantar cá avante,
Q.ue entrou n'hum perigoso, bravo feito
Com animo feroz, duro e constante^
Assaz merecedor que o mais perfeito
Verso, este seu heróico feito cante,
E tanto mais heróico quanto a idade
Tenra, lhe punha mor difliculdade.
Depois que da espingarda nao se ajuda
Este Marte novel, logo com pressa,
Apertando na mão a espada aguda,
Traz hum dos outros Turcos se arremessa^
Impedir-lh^o o Furtado assaz estuda,
Mas de seguir o Turco elle nao cessa,
(iue mais he então ao seu esprito ardente
Que ao que manda o Furtado obediente.
O Turco dVMitranhavel medo cheio
Dá-lhe as costas, ligeiro q «janto o vento,
Com tal pressa porem trag elle veio
O moço, que lho chega n''hum momento;
Bem desfjou o Turco então ter meio
DVuitrar lá onde os seus tee seu assento,
Mas a pressa do moço he tão sobeja
(jLuo o faz desesperar do que deseja.
« 1'KIMEIKO CEUtO DE UlU. oG9
VIII.
Fé vendo que chegar ja iiao podI;i
As estancias dos seus lá junto á ckv;j.
Onde então mais secura e certa via
Aquella salvação que desejava,
E pòr-se em defensão nao se atrevia
Contra o moço feroz, quo o maltratavii,
No rio o rosto põe, com grande mágua,
Determinando ja salvar-se n'*agua.
IX.
Direito ao rio vai com ta! presteza
O uai nelle põe hum crave temor frio,
O moço, que lhe he igual na ligeirez;!,
Junto com elle vai também ao rio,
Onde sempre \\\e faz com grãa crueza
Sentir da dura espada o agudo lio
Em quanto lhe durou esta corrida,
Mas nem com isso faz que perca a vida.
Nem foi isto escondido á imiga gente
Q.ue mais de mil lhe têe direita a fronte,
E qual soe o lihre que o touro sente,
Ou sente o j.ivaly correr no monte,
Salta de cá e de lá, feroz e ardente
Por ferrar o animal que têe defronte,
Mas reprime-o a tesa e dura Irell.i,
E O iistuto caçador (|ue afleira ncUa :
570 «BlílAS SB FKANCISCO B^ANDRÀBJto.
XI,
Tal vejo cada hum dos que atraz digo
Que os dous da Turca esí anciã estavão vendo^
Os quaes vendo o furor do moço imigo
Em vingadora fúria estão ardendo ^
Bem desejão d^ir lá, mas o perigo
Tanto estão dos raortaes tiros temendo
Com que os Christãos ao moço dão ajuda ,^
Q.ue nenhum d^onde está o passo muda^
XII.
Nenhum a própria vida aventurando
€tuer segurar a alheia naquella hora,
E assi nenhum faz mais que estar olhanda
Como salvar-se o seu trabalha agora \
O qual chegado ao rio, tanto entrando
Foi pola agua, que os hombros sós tèe fórai^
Entra também traz elle o ousado moço
Até que Ih^agua deu polo pescoço.
XIII.
Tão différentes erão na estatura
Q/ue inda que o Mouro estava avante postu
E o moço atraz, onde ha menos altura,
Comtudo a agua mais perto têe do rosto ^
Pára aqui o triste Mouro, que outra dura
Sorte arreceia n'agua, e outro desgosto.
Temendo que se lá mais dentro entrasse
A corrente também traz si o levasse»
•0 :PRIMElRO CERCO Í)E DItí. Stl
XIV.
Procura o moço assaz por dar effeito
Aquella obra que tinha começada,
Mas elle e o Mouro estão de tão máo geito
Glue alcançá-lo mal pdde com a espada.
Aquelle Sousa a quem elle he sujeito
Q.ue no muro está então, de lá lhe brada
Q.ue encolha o braço a si, depois o estenda^
E co^a ponta da espada o imigo oíTenda,
O moço, cujo esprito forte e ousado
No perigo maior mais prevalece.
Também agora está tão acordado
Q.ue do Senhor a falia bem conhece^
E havendo-se por bem aconselhado
Logo neste conselho lhe obedece ij
Ja não levanta o braço, e d''alto fende,
Mas para si o encolhe, e logo o estende,
XVI.
Hua e outra vez encolhe e estende o braço^
Mas nem o que pertende assi alcança:
O triste Mouro em todo aquelle espaço
Nem somente lhe veio hua lembrança,
Glue também traz ao lado o subtil aço
Com que de se salvar tenha esperança,
Glue tanto o aperta o medo, que imagina
Glue têe na salvação maior ruina.
oT2 OBRAS DE FKANCISCQ d'aNI>RADE.
O nio^'o, a quem lium furor então ja cega
Porquo chegar ao Mouro a agua lhe impede
(-omtudo quer tentar se o que cila nega
l*<jde o esforço acabar, mas mal succede.
lontra ])ola agua mais, nem assi chega
Ao fim do que o desejo então lhe ptíde,
iA.ue como a agua na altura o senhoreia
Vrio-se-llie os pés por baixo, e eahe na areia
Ve-se enfao mais que nunca perigoso,
l*orque d'^agua íícou todo cuborto^
li o Mo(jro em dcfeiider-se antes medroso
Para oíTender se mostra agora esperto ^
Salta logo sobre elle, desejoso
De o fazer aífogar, e muito perto
Kstcve esta tenção de vir a (>fleito,
1l os que do íóra o vêem o dão por feito.
Mas aquelle \alor raro e sobejo
Na liHu- necessidade mais se acende,
< lue inda que o moço j a cansado vejo,
E das mãos a espingarda lula lhe prende,
E bebera agua assaz, vendo o desejo
Do Mouro, que aífogá-lo então pertende,
V<!)lta a espatla para elic, v. faz que lhe entre
Lá três ou quatro) vezes polo ventre.
o PRIMEIRO CERCO BE DIV. S73
XX.
Corre o sangue infiel em grosso fio
A quem o moço dco larga sabida^
Começa-se a tornar o corpo frio
A que o sangue traz si levava a vida,
Perde a côr natural a agua do rio
E de branca em purpúrea he convertida,
K o contrario á infiel face acontece
Q.ue sendo antes purpúrea amarellece.
XXI.
lio mortal ferro o Mouro trespassado
Solta de todo o moço, e o desaíferra,
K logo posto em pé, desatinado
(^jirendo d'*agiia vai lá para a tefra *^
Porém apenas era nella entrado
Q.uando o esprito infiel que o corpo encerra
Blasfemando desceo á eterna queixa
Solto do corpo ja, que cm terra deixa.
O moço, que de todo se ja sente
liivre d'hum tal trabalho e tal perigo,
Também se põe em pé, assaz contente,
Inda envolto no fresco sangue imigo.
Desatina de novo a imiga gente
Porque lhe tolhe ir a elle o que atraz digo^
Mas co'o q\ie pode então lhe faz que veja
O que o seu peito imigo lhe deseja.
oT4 obras de rRANClSCO D^NDIiADEi
Q-ual da espingarda lança o chumbo fora^
Glual faz que a subtil frecha corte o vento.
Porém n(Mihum tao cefto atira agora
Que execute no moço o duro intento;
Elle fazendo alli qualf|iier demora
Em quanto algua força toma, e alento,
Ufano d'agua sahe, com vagaroso
PassOj mais confiado que medroso,
XXlV.
"bi-ã niao direita a espada sustentando,
E na esquerda a espinoardaj faz a via^
E junto hl co^os Turcos caminhando
Jamais delles o rosto nao desvia :
VoT entre mortaes tiros Vai passando
Com mostras de dospreso, e de ufania,
E assi, api^sar da imiga fúria brava,
Inteiro e sho entrou dentro na cava.
XXV.
ilecebido de todos foi com tanto
Prazer, que a pouco mais fora infinito,
Porém mor que o prazer foi inda o espanto
Vendo cm tao pouca idade tanto esprito.
Não quero em teu louvor soltar o canto
Famoso moço, porque o que he só dito
De ti, matéria Ja sirá luistante
Para que todo o engenho «l.- ti < i-.nte.
«1 IMUMEIRO CERCO DE DIV, i
XXVI.
Apoz este esqiiadrão, outro caminlia
Para a cava também ao mesmo effeito,
Seguindo hum Vasconcellos, o qual tinha
Por nome Manoel, dVusado peito;;
Salteia a imiga gente alli visinha,
3Ias não teve esta \ez naquelle feito
O successo tao bom qual o tivera
O Sousa, que o principio a e»ta obra dera^
XKVII.
Nao foi a falta então do peito ousado,
Q.ue em todos a ousadia então sobeja,
Mas como menos vai acautelado
Do que em tão árduo feito se deseja,
Não vai tão encuberto, e tão calado
(ríue não o sinta o imigo, e não o veja^
E quando delle foi accommettido
Ja sobre aviso estava, e prevenido.
XXVIIÍ.
Não fazem os Christãos o que peffendetn^
í:iue os prevenidos Turcos os maltralão,
E inda que duramente se defendem
Alguns feridos vão, bum só lhes matão ;
Alguns Turcos também alli se estendem
Q.ue as almas das mortaes prisões desatão^
E na infernal e eterna são insjltidas \
Alguns só dão o sangue, e não as vidas*
Ô76 OBRAS DE FRANCISCO D*'aNDRADK.
XXIX.
Aquelle a qué hoje o justo Ceo permitte
Render a alma entre a imiga alta crueza
Christovão têe por nome, e se lhe admitte
O apellido dos Sonsas, e a nobreza '^
Da juvenil idade iiida o limite
Não passara, porém a tanta alteza
Chegou o seu esprito alto e sublime
Q.ue até no mesmo Marte inveja imprime.
XXX.
Este grave infortúnio o peito forte
Do nobre Manoel não amedronta,
Antes para vingar do Sousa a morte
Quer outra vez tentar a mesma aífronta.
Crendo que pois lhe fora imiga a sorte
Porque elle pouco cautamente e pronta
Os Turcos salteou, se se castiga,
E cauto e prompto vai, a terá amiga.
XXXI.
De novo se prepara e se concerta
Com ordem, da pnssadadiíFerente,
E quando a conjunção o chama e esperta
Com Ímpeto salteia a imiga gente ^
E tanto desta vez a dam na e aperta
Glue vinga o mal passado largamente,
Com dam no e perda assaz dos salteados
Sem perda ou dam no algum dos baptisados.
o PHIMÉIRO CERCO DK Dir. SY?
XXXll.
Mas o Turco feroz nunca ocioso,
Q.ue o dam no dos Christaos só pertendia^
Q.uiçá então de vingar-se desejoso
Do dam no que da cava recebia,
Prepara hum novo assalto e furioso
Para aquella hora quando o novo dia
Mostra lá do Oriental dourado assento
O qae têe do quarto orbe o regimento^
XXXI 11.
liOgo naquélla noite, aquella parte
Da vella que á manliãa he mais visinha.
Coube áquelles que seguem o estandarte
Do Sousa que por nome Lopo tinha '^
Este forte varão, no baluarte
<^ue os assaltos cruéis então sustinha
Foi vigiar, no tempo que atraz digo,
E grãa parte dos seus leva corasigo*
XXXIV.
E quando ò novo raio, fresco e puro
Subindo no Horizonte, a Aurora estende^
Commette o irado Turco aquelle muro
Glue mil vezes em vão tomar pertende ^
Mas tanto como sompre hoje acha duro
O valeroso braço que o defende,
Porque o Sousa co''os seus que o vigiarão
Na defensão o não desampararão,
« 17
oTS OBRAS I>E FRANCISCO D ANDRADC
XXXV.
Antes em nitiior faria se acenderão
^iuíjiilo com mor furor stio c<íinmettidos,
E assi os ferozes Turcos receberão
('om golpes ião niortaes, n»o resistidos,
tíiue eiu breve espaço assaz se arrependerão
De se terem mostrado hoje atrevidos,
Porque hoje o Lusitano braço forte
Como sempre os enchco de sangue o morte,
XXXTI.
Porém d'entre esta fúria imiga e (em
Hoje em salvo o Christão não se recolhe,
Porque hum ptilonro, que hua meia espera
ÍÁ d'hum ttavtíz lauçou, o Sousa eolhe
l*or liua espadoa, a qual a direita era,
E inda que então a vida não lhe tolhe
Trata-o porem tão mal que o inhabilita
l*ara aquillo a que o seu esforço o incita.
XXXVIl.
liOgo o forte varão d''aqiii he íevado
E lá na sua estancia se aposenta,
Onde he do Cirur^ão remediado
Co'© melhor que a sua arte lhe apresenta ^
JVem Co"'© damno que ao Sousa tec cau8;KÍo
Este mortal pelouro se contenta.
Também eolhe outros três, e grãa sabida
Ao sangue lhes abrio, e quasi á vida.
o PRIMEIRO CIRCO DE DIU. S79
XXXVIII»
Ja a fortaleza então grãa falta sente
De quanto á defensão lhe pertencia,
Mas a falta mor, he da forte gente
Glue a melhor defensão nella fazia \
Pois muita ja descansa eternamente,
Muita estava em poder da cirurgia,
K esta, muitos dos sãos traz occupados
G.ue andao na sua cura embaraçados.
XXXIX.
Rente tatnhetn de todo ir-sc acabando
A pólvora cruel, com que a espingarda
Nos ares o mortal chumbo soltando
Faz que a morte onde elle entra pouco tarda ^
Vê todo o outro arteticio ir ja faltando,
K o fulminar contínuo da bombarda
As longas lanças ter tão maltratadas
Q.ue delias a mor parte erão cortadas.
XL.
Mas sobre tudo a cor do rosto muda
A gente popular, ver que não vinha
O Viso-Rei, que espera dar-lhe ajuda,
Nem d'*outra parte algum soccorro tinha \
Nem fortaleza algua ha que lhe acuda
Co'o que a tamanho aperto lhe convinha,
O qual o Capitão, bem previnido,
Por vezes ás visinhas têc pedido.
XLl.
Aquelle a queit) Chnul era sujeito
(Seu iionio he SJniao Guflloz) so mandara
T)i) pó com que a espingarda faz eíleito
Duas arrohas sds, so aproveitara ^
jNías foi todo esto pó lá sem proveito^
i'orque em desembarcando se arrombáfa
O barril em que vem, e o datnnifica
O salgado licor que dentro fica.
xt.tt.
I)''Iiua parto liaVor ião pouca letiibratíça
Nas outras fortalezas, do seu dano,
E d^outra haver ja tão pouca esperança
Dt; soceorro, que o têe por desenganOj
Encheu muitos de tal descolifiahea
Q.ue lhes abateo o esprilo antes ufano,
Com que as cousas Ciirislaas enião mostravão
Q.ue pura o niáo successo declinavão.
XLllI.
Mas em quem cada vez mais se reíiova
Hum iutriiíseco medo, hum grão receio,
Foi n''hum que dera ja mais d^liua prova
1)« eáprito de temor assaz alheio '^
Este por nome too JoHo da Nova,
l)'hum tão estranho medo agora cheio
O-ue causou nelle í-flcilos desusados
Nunca ouvidos qnicáj nunra ciir-.tados.
o PTtlMtlUO CERCO DE DIU. 381"
XLIV.
No tempo que a outra gente forte e ousada
Se occupa uo trabalho^ e na peleja,
Toda a outra estancia deste he rodeada
K a qualquer dos que encontra, diz^ que veja
*-inc pois a defensão he ja escusada
D^outro melhor remédio se proveja,
Q.ue devia entregar-so em quanto espera
Adiar clemeiite a imiga gente fera.
INÍoveo logo isto riso em cada êíitancía
K em todas so julgou por zombaria,
Mas vendo-o importunar com grande instancia
Nenhum na sua estancia o consentia,
Temendo que isto abale a grãa constância
i^uc em toda a popular gente se via,
A qual sempre em erér tèe facilidade.
Nem tèe respeito algum, mais que a vontade*
XLVI.
A endo o triste João, que nao somente
Alli este seu conselho se não segue.
Mas que em nenhum logar se lhe consente
Tratar ja deste medo a que era entregue,
Anda por cá, por lá, como o que sente
A grande dòr e aguda que o persegue,
txue mil logares busca, hum e outro tenta,
K em nenhum se quieta, ou se contenta.
XLVII.
D^hum logat n^outro o triste não parava,
Mas não acha logar, nem se socega,
E como salvação não esperava
Todo a hum grave temor o peito entrega^
Qiue o espirito vital que o sustentava
O seu favor usado ja lhe nega,
Com que do rosto a côr desapparece
E a força corporal lhe desfallece.
XLVIII.
Tanto a força lhe foi desfallece ndo
Q.ue em mãos veio cahir da medicina,
O Medico a doença conhecendo
S6 co''o esforço curá-lo determina ^
EUe mal a esta cura obedecendo,
Sem febre, ou dor, que cause tal ruina,
Emfim rendeo o esprito, a quem a porta
Abrio só o grão temor que dentro o corta»
xtix.
Que mais cruel, que mais estranho effeito
Fez nunca o fogo ardente, e o ferro agudo,
Do que faz o temor no fraco peito
Contra o qual este pode mais que tudo?
Pouco vai ao que ao medo está sujeito
Usar para salvar-se de arte e estudo,
Porque dentro em si traz o imigo forte
E aB armas com que lhe elle causa a morte.
o PBIMEIRO CERCO DE DIU. 383
Mas vejamos se o Turco previnido
Passa entretanto o tempo descuidado.
Vendo elle o baluarte combatido
Assaz basta ntemente ja arrasado,
E que não cumpre ja ser mais batido
Para poder subir ja nelle o ousado,
Trata logo o que entende que he mais dano
Do valeroso imigo Lusitano,
E porque as forças ja enfraquecidas
Dos Christãos, co^os trabalhos que passavao,
Sendo em diversas partes repartidas
Mais fracas se tornassem do que estavao,
Fazem logo os imigos ser batidas
As casas que o Silveira agasalhavão,
Batem também a estancia onde inda agora
Lopo de Sousa o seu pendão arvora.
m.
Porém com quanto emprega n'*outra parte
Os redondos coriscos, fulminantes,
Nem por isso deixou o baluarte
Em que os costumava empregar antes*,
A boml)arda cruel também reparte
Com elle dos pelouros penetrantes.
Temendo que se livre e solto fique
D''algum reparo o imigo o fortefique.
iíSÍ- obkA» de fcUAXcisco d''axdrade.
LllI.
Gtuatro dias o Turco se deteve
Do Silveira em bater sempre a morada,
Porém dMuim eontra-muro em tempo br<
Toda por dentro foi íbrtefieada.
Mas a estancia do Sousa com bem leve
Bateria cahio, porque a delgada
Parede a poucos tiros obedece,
Cahe, e a madeira lá dentro appareco.
Mas entendendo bem o esperto imigo
Q,ue o baluarte do mar então podia
Dar favor aos logares que atraz digo
Com a força da sua artilharia,
Determina também logo comsigo
Empregar nelle a horrenda bateria.
Que se tomá-lo pode, tee por certo -
Q-ue o Christao de perder-se está mais pt.Ttíí.
tv.
Solta o grosso canhão a fnria ardente,
Retumba o valle, e o monte cavernoso,
E ao baluarte vai direitamente
Glue pode ser aos outros proveitoso ;
Disse que era o do mar, que oV)odií"nto
Era a hum nobre varão, forte e animoso,
A quem o próprio nome António punha
E que também dos Sousas tec a aícunhu.
o P&IMEIUO CERCO DE DIU. â8d
Jjá na entrada da porta este profano
Pelouro agora vai lazer o effeito,
Onde o Sousa, temendo qualquer dano,
Hum bom reparo tinha então ja feito ^
Eate o canlião também do muro o pano
Q-ue para a fortaleza olha direito,
E a torre da menagem buscar veio
Q.ue está do baluarte posta em meio.
Mas em quanto o canhão profano e horrendo
Nos logares que digo a fúria emprega,
O Turco o baluarte combatendo
ftue combateo mil vezes, não soeega ; . jij
E com quanto o Christào sempre venceudoH
De seu desejo ao Turco o efíeito neg^, ..soul,
A victoria porém sempre lhe vinha ^".ff A
Com perda da melhor gente que tinha.
Ja o imigo outra vez, nao descuidado
iMelhorára as estancia, onde estava,
Q.«ie por estar ao muro mais chegado
Dentro da boca as póz da n(»ssa cava ^
E como sou intento, seu cuidado
Em damno dos Christãos so se empregava,
Pois a seu salvo pode, determina
Fazer ao baluarte hua alta mina.
586 ojaiiAS SE FRA^CISco d^anoraoe.
líH.
Digo aqiíelle que tinha ja vencido
Mil vezes o furor do imigo duro,
Porque este delle foi mais perseguido,
Cuja constância o faz menos seguro.
Logo o agudo picão, sem grão ruido.
Porque o Christão nao sinta o mal futuro
Gt-uc desta obra o cruel Turco lhe ordena,
A começa com pressa nao pequena.
Nem se move a fazer o que portende
Porque fazer mais raso lhe importasse
O muro do que está, mas porque entende
Q.ne se esta mina então se effeituasse,
O elemento voraz que tudo acende
Junto ao pó salitrado que o ajudasse,
A muitos dará a morte nesta parte
Gtm; em guarda sempre estão do baluarte.
LXli
E com quanto o Christão não recebia
Desta mina inda algum conhecimento,
Mas só de quando em quando hum tom ouvia.
E sentia lium pequeno movimento,
Comtudo o grão receio que sentia
De pôr o esperto imigo nisto o tento,
Só jwlo tom que ouvio, lhe faz que creia
Gtue pode ser verdade o que arreceia.
O Silveira, qUQ ve qiiuo iniportatite
l#he he que çe este receio veriíiquo,
Ordena, antfís que o mal vá mais ávaute
Hum -meio qije a certeza lho publique :
Manda hum que com grande animo econafaute
As estancias salteie e damnifiquc,
Porque entretanto veja se he ja feita
A mina, ou quiçá o engana esta suspeita.
LíOgo a Gfíspar de SouBa ello apresenta
Aquelle hotirado assaz, mas grão perigo,
Sousa da honrada empresa se contenta
(i-ue da mais perigosa he mais amigo ^
Beni armados varões lho dão setenta
Q-ue leve neste feito então comsig».
Os quaes a commelterem grandes feitos
Move o valor somente dos seus peitos.
Í.XIV.
Apoz isto também logo o prudente
Silveira manda alguns que abaixo d(S(;ao
Tanto que q Christão der na imiga genti*,
E da mina a verdade bem eonher-ào,
E Vfjao quanto ja entra attentameníe ;
E aos que fieào njandou qtie fíivorcçàu
I^á de cima a qualquer que detiMiniiia
Ou saltear o inúgo^ ou ver a mina.
LX.V.
Tendo o Sousa ja prestes tudo agora
Q-uanto entende que cumpre a tão grão feito^
Antes que a namorada clara Aurora
Deixe do charo esposo o usado leito,
©e lá da fortaleza se sahe fora
E lá na cava vai entrar direito,
Co^o seu forte esquadrão, em fúria envolto^
Co'o usado seu guião nos ares solto ^
Porém antes d'entrar nesta contenda
Dos seus mais espertos a si cbam-a,
LíOgo a hú a bomba, e a lança a outro encomenda y
D^onde sahe a cruel, ardente chama,
E mandou a qualquer que inflamme e acenda
A baila d^algodão, e a secca rama
Gtue nas estancias têe os Turcos posta
De que graa parte delias he composta^
Ordenado isto assi, fica esperanda
Só tempo e conjunção ao que pertende^.
Mas porque o caso o estava convidando
Em quanto co^^os imigos não contende
Com palavras d"* esforço está animando
A quem o esforço próprio anima e acende,
A tento e a valentia exhorta e anima
A quem sua honra mais que a vida estima.
o PUIMEIRO CV.RCO DE DIU. o89
l>reve espaço gastado nisto tinha
GLuaiuIo chegou o tompo desejado,
Cuja ausência somente alii o detinha
Sem commetter o imigo descuidado ;
Logo com siso e esforço qual convinha
A douto Capitão, forte Soldado,
As estancias entrou, em que haveria
Q.uinhentos sobre mil dos de Tiirqiiia.
Mostra o curto esquadrão quanto he possante,
Co''o grão clamor a terra e o Ceo rctomba,
Ousado passa, e quanto acha diante
Rompe, destrue, abate, assolla, e arromba ;
Faz também seu effeito n^hum instante
A ílammifera lança, a acesa bomba :,
Tudo recebe em si a chamma ardente'
Q.uanto a recebe-la he sufficiente-
O Turco, que este mal nao receava,
A que o diurno peso trabalhoso
E a frescura desta hora convidava
A hum brando somno, doce e saboroso,
ISão sente hum mal que tanto o maltratava
Senão depois que o braço valeroso
Do esq^iadrão Lusitano ousado e forte
Kiicheo tudo de fogo, sangue e morte.
O4)0 OBRAS DE FRANCISCO li^ANDnAOE.
txxi.
Porque o Sousa, entendendo que na pressa
Está seu bem, e o danrino na tardança,
]*or cá, por lá, com fúria se arremessa,
Com tal pressa que o vento o niío alcança^
Hum momento o cruel ferro não cessa,
Triste o que então da imiga espada ou lança
O grào golpe sentio, pois não se farta
Senão depois que o corpo da alma aparta.
LXXII.
Grãa parte com a fúria com que entrarão
Dos Turcos bastiões vão discorrendo,
K com quanto impedir-lh^o trabalharão
Os que a gtiarda nesta hora estão fazendo,
A impedir-lh^o comtudo não bastarão,
Çíue o primeiro furor do ferro horrendo
Lusitano desfez em breve espaço
Com morte do que o pôz, este embaraço.
LXXIII.
Km quanto a valerosa companhia
Po Sousa os Turcos trata deste geito,
Aquell''outra a que agora competia
R(*conhecer a mina, faz o eíFeito \
Ousada logo abaixo faz a via,
Q-ue isto também requer hum forte peito,
Com attenção a mede, olha-a com tonto,
K logo se recolhe a salvamento.
rui.UKiiio c5:;ico lít lin . 'á\il
JCXXIV.
o Sousa ja nesta hora contemj^aiKlo
<Tliiao bem lhe tinha o caso succedido,
2'orqne afora os que o sangue estão soltando
Mais de sessenta o esprito tèo rendido,
Logo os seus companheiros ajuntando,
Dos quaes vio que nenhum tinha perdido,
Com ordem se recolhe, e peito forte
Sem deixar por fazer cousa que importe.
O Turco somnorcnto e descuidado
Q.ue o repentino mal e assalto sente, !
Tanto então do somno desacordado
Q-uanto d^havcr que he mais a Christaa gfínte,
As estancias deixou desatinado,
E lá se retirou ligeiramente
Onde vio outros muitos que acudirão
l)"'oulras partes á grita que cá virão.
l-XXVI.
Estes que dos mortaes sanguinolentos
Golpes dos Lusitanos vão fugindo,
Com apressados passos mais que lentos,
Juntos aos que ao clamor vem acudindo,
O numero de mil sobre quinhentos
Em breve espaço alli forão cumprindo,
Com que não temem j;i, nem se retirão,
Mas seguem os de quem antes fugirão.
O0:i OIÍUAS DE F.wVNCISCO d'ani)rade.
LXXVII.
Feita irhum esquadrão a copiosa
Companhia infiel, que junta estava,
Trax os Christaos se lança furiosa
Q.ne ja perto da boca vão da cava.
Sousa, que nesta empresa tão honrosa
Hum prospero fim ja ver desejava.
Fica detraz dos seus, c faíC com que andetn,
Porque não haja alguns que se desmandem.
LXXVllI.
Porém vendo nesta hor:i que ficavSo
Dons ou três dos que trouxe alli comsigo
Em parte onde, se não se retira vão,
Oorrião de perder-se grão perigo,
?íIandando andar avante os que alli esta vão,
Com quanto ja bem perto via o iniigo,
So se torna ao lotear onde apartados
Vio os dous que lhe andavâo desmandados.
LXXIX.
Está neste logar inda híia antiga
Porta, que o velho muro aberta tinha,
O qual tamanho fez a gente imiga
Q.ue naquelle logar fenecer vinha:,
Aqui o Sousa chegou, mas para a briga
Menos provido ja do que convinha.
Porque na mão só traz a nua espada
Glue a lança ja a deixara antes quebrada.
o PRIiir.IRO CERCO DE DIU. iiV,
LXXX.
Clípgado o Sousa á porta onde enxergara
Os seus que arreceava vôr perdidos,
.TA alli 03 nao achou como cuidara,
Q.ue erao por outra parte recolhidos^
E querendo tornar aos que deixara,
Os imigos cruéis embravecidos,
'-iiie erSo ja alli chegados, o rodeiao,
E co^o furor que podem o saltciao.
LXXXI.
Meneia a espada e lança, d^ira cheio
(.'outra hum só imigo o imigo copioso,
Sousa, que de temor foi sempre alheio,
Nem a morte diante o fez medroso.
Por não dar qualquer mostra d%irreceio
Nâo quer dar pressa ao passo vagaroso,
Antes quer arriscar agora a vida
Q.UC salvá-la com mostras de fugida.
rxxxii.
Volta ao imigo a espada e o forte peito
ft^ue agora para a morte o incita e exhorta,
E sendo alli o logar assaz estreito
Faz ao Turco sentir quanto ella corta ;;
Trata os que acha diante de tal geito
Q-ue faz que outra vez entrem pola [wrta
Clue estar no muro velho disse agora,
Ato que com elies sahe ao largo fónx.
^94 <íKuAs i)K tuVNtisco d'a>íj)ji vnr,.
Não quer da imiga turba a má vontade
Perder a occasião que tês presente,
Mas logo o cerca em tanta quantidade
Q-uanta o logar e o imigo lhe consente -^
Sousa, vendo-se em tal necessidade,
Resiste mais que nunca duramente,
Em mil partes a espada fura e fende
O imigo, que de mil partes o offende.
LXXXIV.
Mas que presta hum sobraço, hum peito ousado
Se a fraca multidão o senhoreia ?
Sousa, que em toda a parte está cercado
De tanta iraiga gente cl''odio cheia,
Render-se á multidão lhe foi forçado
Q,ue por lhe dar a morte a não receia,
E com seu damno assa» lhe faz tal guerra
Que decepado o faz cahir em terra.
Cahe decepado em terra o Sousa forte,
Mas não lhe cahe o esprito, antes lhe crece,
Pois com quanto se vê visinho á morte
Do seu usado esforço não ge esquece ^
Mas em quanto a cruel imiga sorte
G,ue hum apressado fim ja alli lhe tece
Lhe dá forças e alento, ousado insisto,
E quanto pode ao imigo inda resiste.
o ÍFRIMEIRO cerco DK DIU. oí
t,x\xvr.
Poitím pouco jíi vai a resisleiícia
D^alento e forças ja debilitadas.
Contra os que o vão buscar a competência
<?om forças novas sempre, e reveladas :,
E nssi de todo deu a obediência
As imigas, cruéis, duras espadas,
Que lhe derào por mil partes sabida
Nao ao sangue somente, mas á vida.
LXXXVII.
Pallido em terra ja morto se estende
Este, de quem sd a morte houve a victoria.
Porém se a morte he certo que se rende
As obras immortaes, á ira mortal gloria,
Heróico varão, claro se entende
T)o que de ti cantou a minha historia,
Q,ue se á morte o mortal corpo rendeste
Co 'os teus immortaes feitos a venceste-
LXXXVIII.
Este tão desestrado fim, tão duro.
Deste a quem com a vida a honra crescia,
l*arte foi visto dos que estão no muro,
Parte dos que alli trouxe em companhia i^
E inda que hila e outra parte o mal futuro
Antes de succeder ja o conhecia,
Ninguém lhe deu soccorro neste feito,
Porque se o dera, fora sem proveito.
590 OBRAf5 DE FRANCISCO B* ANDR \ OV..
LXXXIX.
Nem so no forte Sons.i hoje se emprega
Dos imigos cruéis a fúria brava,
Outro á morte cruel também entrega
(iue quasi recolhido era na cava ^
Dos mais ha dons a quem o Ceo não nnga
A vida, que hoje aos outros todos dava,
Mas dá-lh'a com tal custo, e de tal arte
GLue perdem do seu sangue hQa graa parte.
xc.
O Turco, inda nao farto nem contente
Desta morte cruel do Sousa imigo,
Em quanto, inda que morto, o tèe presente
Ksquecer-se não pode do ódio antigo:^
A cabeça lhe corta cruelmente
Inda quiçá temendo algum perigo,
Corta-lhe os pés e as mãos, inda medroso
Q.uiçá daquelle braço vale roso.
xci.
Toma a turba infiel delle a vingança
Em tudo o com que foi delle offendida,
Dá-lhc para isto esprito e confiatjça
Vêr que não pode ja ser resistida ^
A cabeça lhe põe n^hua alta lança
E lá polas estaijcias foi trazida.
Com (|ue em trajos d''opprobrio lhe foi dado
Hum triumpho assaz nobre, assaz honrado.
XCII,
Neai eo''o disforme corpo a gente imiga
A^ora quiz usar mais piedade,
tlue ilida esta cruel morte Uiio mitiiça
Hum ponto a seu furor e má vontade^
Lá na praia o lançou, para quo siga
A deshonra apoz tal disform idade,
Porque também se vinguem com deslionra
De quem com cUes ganhou sempre tanta honra.
XCIIf.
Achado foi depois, c conhecido
Vendo-lhe hua das pernas que o profano
Chumbt), que da espingarda foi sahido,
Lhe quebrou, lá no Estreito Gaditano '^
D^aqiii á sepultura foi trazido
Com higrimas de todo o Lusitano
Ou popular, ou nobre ajuntamento,
(oLue em todos foi igual o sentimento.
SLCIV.
Esta fúria e Ijraveza com que veio
Os Turcos commetter o Sousa forte,
Os pÓ7. era grão temor, e em grão receio
(iue l!ies viesse a ser imiga a sorte :
Também disto o Christào nao íica alheio
Vendo que a larga guerra, e a cruel morte
Lhe vào sempre os melhores consumindo
Com que as forças lhe vão diminuindo.
o').S HlrillAÇ DF. KKANClSCil D* A S D «l.l U !
xcv.
Os qnci forao lá abaixo a saber certo
O que se está da mina siispritando,
Tornando acima, dizem, que mui perto
De meio baluarte vai ja entrando :
Logo o nobre Silveira, em tudo esperto,
O perigo desta obra contemplando,
Lhe applicou o remédio que então sente
Ao tempo e conjunção ser pertencente.
xcvi.
Manda que lá no mesmo Iniluarte
Se faça hua profunda contra-mina,
Com tal pressa que o Turco infiel Marte
Não possa eífeituar o que imagina:
Mas nem por isso lá naquella parte
D**onde arreceia ter qualquer ruina
(Como atraz disse) a torre cessa agora.
Antes cresce com mor pressa cada hora.
XCVII.
Esta capitania que vagara
Polo defunto Sousa, que aqui digo,
O Silveira a hum Proença encommendára
Glue antes de ter Proença tèe Rodrigo,
Varão a quem o Ceo junto dotara
De esprito sem temor do mor perigo,
E d^híia corporal força c dureza
Q-ue o m6r trabalho soíTre, antes despreza.
o phimj:íuo cKíico de pir. o99
XCVIII.
Níiquelle mesmo dia que npresenta
No Ceo o seu esprito o Sousa ousado, • '-
Entre os Christaos hum novo ardil se invemtk*
Quiçá nunca antes visto, nem usado: UJ o(í
Dcscuhrir delle o author mil vezes tentar niti)
Meu canto, mas foi sempre em vão tentado,-'
Pois nem a fama disse quem elle era, ' -^
Glue bem o soubera eu se ella o dissera.
XCIX.
Mas d'e5conder-se o author pouco me curo *
Q.ue encubri-lo eu por isso erro seria. ' A
N''hua praça que lá no roto muro '^
Fez a força da grossa artilharia, >''
liá d'onde o pertinaz imigo duro
Contra os do baluarte combatia,
Fez ajuntar a gente Portugueza
Grande cópia de lenha em fogo aceza.
Nem de levar ao fogo lenha cessa
Com esta que primeiro alli lhe leva.
Antes mais lenha ajunta, e lhe arremessa, •
Com que cada vez mais e mais o ceva *, ^
E assi tanto cresceo, com grande pressa, ■ '^
O fogo, que ninguém ha que se atreva A
Não somente de perto conversá-lo, "A
Mas nem de muito longo inda csj>erá-lo. **
líOO OF.RAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
Cl.
Contra esta grossa cliamina penetrante
Q.ue tanto ao longe estende a faria ardíMite,
O reparo que têc posto diante
De tal sorte defende a Christaa gente,
Q.ue inda que nao está muito distante
A p<>de então soítrer mui levemente^
Levemente lhe faz também soífrella
O proveito e descanso que tee delia.
CII.
Mas o Turco cruel, que so pertende
A ruina do imigo Lusitano,
Vendo hum tão novo ardil que lhe defende
Poder-lhe então chegar, fazer-lhe dano,
N 'outro fogo maior o peito acende.
Agora he mais que nunca irado, e insano,
Também tenta remédio com que possa
A força desfazer da chamma grossa.
cm.
Solta o canhão o ferro que tèe preso
Glue lá dentro no fogo entrar trabalha,
Encontra o aceso ferro o lenho aceso.
Agora o fogo ao fogo dá bíitalha ^
Em tocando os tições o duro peso
A viva chamma morre, e logo espalha
As vivas brazas lá por toda a parte
De que grãa cópia entrou no baluarte.
o PRIMEIRO CERCO X>£ DIU. 6>0í
CIV.
Estas mor damno lá a alguns causara»
Do que causara o imigo ferro horrendo^ '
Pois a quantos diante de si acharão
Fazem ficar em vivo fogo ardendo \
Porém com isto os sãos não desampara»
O fogo que os estava defendendo.
Porque se em poucos faz cruel eífeito
A muitos dá descanso, e dá proveito»
Grande cópia o Christão de lenha ajunta
E d'acender o fogo outra vez trata,
Ja resuscita a chamma antes defunta
Porém logo o canhão a desbarata *,
Eis logo apparece outra lenha junta
Mas o canhão a encontra, e a chamma mata,
Prevalecer hum e outro então pertende.
Ou o que apaga o fogo, ou o que o acende.
CVI.
Porém a maior força prevalece.
Fica a que era menor delia vencida,
O grão fogo á bombarda ja obedece,
Q-ue esta de tudo he sempre obedecidit.
Vendo o fogo apagado lhe parece
Ao Turco que tèe ja fácil subida :,
Sobem com pressa ja muitos ao alto.
Preparados a hum bravo, horrendo assalto^
.00^ OBRAS DE FRANCISCO D'ANDRADE.
A natural soberba a isto os anima j
Qbue esta sempre animou mais do que dev^i^;
Mas como inda lá estava tudo era cima
Penetrado do fogo que alli esteve,
Tanto a quentura lá todos lastima
Glue parar muito lá nenhum se atreve;
Torna com passo atraz não vagaroso
D^hua tal defensão assaz queixoso.
CVIII.
Aquelles que nos braços sustentavão
As panellas que dentro em si trazião
O salitrado pó, e os que íevavào
Arteficios que em fogo se acendiao,
Subir lá muito acin»a não ousavão
Vendo quanto perigo lá corrião,
E eni tornar-se nao são os derradeiros,
Mas tornâo com mais pressa que os primeiros,
Proença naquclla hora contemplando
Q-uanto aquelle remédio lhe aproveita,
Nova lenha outra vez alli ajuntando
Lá no mesmo logar acesa a deita,
Com que a chamma feroz sempre cevando
Faz com que logo ás nuvens vá direita.
Applica-lhe o remédio o Turco logo
Com que antes apagou ja o outro fogo.
E tanto desta vez insiste e (Jura
Em desfazer aquella chamma esquiva,
Gtue com quanto o Proença insta e procura
Tola sustentar sempre acesa e viva,
Não pode emfim tolher que aquella dura
Força, que a força mor rende, e captiva,
Nào venha a effeituar a sua empresa
Extinguindo de todo a chamma acesa.
CXI.
Sendo ja quasi então mortificada
Co^o perenne furor da artilharia
A aspereza da chamma alevantada,
E a do foço que as pedras acendia,
Commette lá outra vez de novo a entrada
Hiia assaz numerosa companhia
De soberbos imigos bem armados,
De nova ira e furor estimulados.
CXII.
Lançao lá nos Christãos mil differentes
Arleficios de fogo, com que espalhão
Sulfúreas e mortaes chammas ardentes
Nos que naquella parte se agasalhao :
Traz isto confiados o contentes
Os imigos entrar dentro trabalhão,
Havendo que a taes chammas, e ao seu braço
Durará u resistenci»! pouco espaço.
Porém nao lhes responde agora a sorte <
Conforme á sua grande confiança,
Porque achãu braço lá muito mais forte
Que o seu, que de vencer lhes dá esperança,
E peitos sem temor da mesma morte
Q-uanto mais do seu fogo, espada ou lança,
Com que nao sao somente resistidos
IMas com seu grave dam no inda vencidos.
CXIV.
Porque acudindo alli com grande instancia
G-ualquer dos Capitães, que encarrcgaí^o
Estava então de qualquer outra estancia,
Como ja disse atraz que era ordenado,
DSo no imigo infiel com tal constância,
Com Ímpeto tao bravo e denodado,
ôue o constrangem de todo a retirar-se
Sem poder defender-se, ou repara r-se.
Tão apressado então desce e medroso
Q.uão soberbo e apressado antes subira,
Mas sempre de vingança desejoso
Cresce com isto mais em ódio e em ira
A muitos o Cliristão victorioso
Lá das veias, sónicnte o sangue tira,
]S quarenta a que o ferro melhor chega
A fúria do tri fauce cao entrega .
tt 1»U1ME1K0 CEUCS 1)£ Dlt. (>03
IVÍas em salvo nao sahe deste perií:;o, ~i
l*orqua a quatro hoje a morte senhoreia, '
E a cinco sobre vinte o ferro iuiigo
Faz o sangue correr da Christaa veia :
Entre estes vinte e cinco que aqui digo '?
Hum se chama Francisco de Gouveia, *
Outro era o Manoel que he conhecido
l*or ter de Vasconcellos o apclUdo.
CXVII.
Outro he hum que por nome lèe Duarte
E com Mendes d'alcunha se conhece,
Q.ue qualqner de Bellona e do seu Marte
Co^o íorto braço o nome honra e engrandece
Q-ualquer dos mais também que nesta parte
Deixou ou sangue ou vida, bem merece
Q^ue se diga o seu nome, e esforço raro,
Mas eu porque o não sei o não declaro.
CXVIII.
Estes, inda que assaz os apertassem
As dores que as feridas lhes fa/iao,
E mais a descansar os obrigassem
G-ue aos trabalhos que alli se oífcrcciãi>,
Fez-lhcs a necessidade que engíútasseui
O descanso que assaz mi:>ter havião,
E que como o mais são que alli se vej i
Entrem, ou nu tra)>alho, ou na peleja.
o Turco vendo então desfeito em vento»
O subterrâneo ardil, com que imagina
Dar a todo o ChristSo ajuntamento
Ou grave damno, ou ultima ruina,
Porque ja tinha hum claro sentimento
De se fazer lá dentro a contra-mina,
Manda que a mina cesse, porque via
€lue embalde então ja nella procedia.
cxx.
Mas com quanto da mina está ja fdra
Por ver que em vão ja nella trabalhava,
A bombarda não quer que cesse hu'hora
€lue o baluarte do mar batendo estava :
O Sousa que têe delle o mando agora,
Co^i sua companhia que o ajudava,
Tratão de reparar quanto he possivel
O que arromba a cruel fúria terriveh
Neste tempo em que ja grSa falta sente
De tudo o Portuguez quanto convinha
Para se defender bastantemente
D''hua fúria infiel que tee visinha,
E que a falta he maior da forte gente
Q.ue consumida a larga guerra tinha,
Tal ajuda lhe vem de lá de Goa
Q-ue inda que he assaz pequena, he assaz boa.
"d PRIMEIRO CERCO DE 1)19. 607
CXXIt.
Chcgao quatro cátures que mandados
Forão do Viso-Rei a dar-lhe ajuda,
Quando ainda o planeta dos dourados
Raios, do usado leito nao se muda.
Vem de fortes varões acompanhados,
Dos quaes só cada hum deseja e estuda
Ser dos perigos ja partecipante
De que a fortaleza he bem abundante,
CXXIII.
Alguns nomearei dos que fizerão
De Goa nos cátures o caminho :
Hum Gonçalo, do qual alcunhas erao
Primeiramente Vaz, logo Coutinho •
Dous Pachecos, aos quaes os nomes derao
Gabriel, hum Vaz, outro apoz Martinho^
Dous Mendes Vasconcellos alli estavão
€tue hu Francisco, outro António se chamavSot
cxxiv.
Junto com estes cinco que aqui digo
Outros vinte e oito vem em companhia,
Desejosos também do grão perigo.
Cheios também d"" esforço e d''ousadia :
E inda que nada então trazem comsigo
De quanto á defensão lhes pertencia,
Grão gosto a sua vinda a todos dava
Glue a melhor defensão nelles estava *
008 OBRAS DE rRAKCISCO d''aNDRAD£,
cxxv.
Acliiío estíiS que lá na fortaleza
Tèe fjuarenta os espritos ja rendido*
Em mãos da pertinaz Turca braveza,
E mais d(í sessenta aehão mal feridos :,
Aehão também nos sãos j a grua fraqueza^
Q-ue cansados os lêe o enfraquecidos
O contínuo trabalho intolerável^
Mas o esprito aasaz forte inda, e incansável.
CXXVI.
E como estes qi>e agora aqui chegarão
Viessem descansados, e ociosos,
E os seus ânimos sempre desejarão
Empregar-se nos feitos duvidosos,
Logo hua griínde parte em si tomarão
Daquelles graves pesos trabalhosos,
Com que os enfraquecidos e cansados
Ficarão grandemente alliviados.
ISÍas o Silveira esperto assaz deseja
<^ue o Cauto e perspicaz imigo, quanto
Foi pequeno o soccorro, então não Aejif,
E o como isto ordenou lá avante o canto.
Agora porquíi temo que vos seja
Ja de largo pesado este meu Canto,
liá ness*'outro ouvireis, dando audi<nci.í.
Do nolire Capitão a grãa prud<;iuia.
o PSilllKlBO
CERCO DE DIU.
o Capitão António da Silveii'a manda que oS
(■ atures que vierão de Goa se tornem a par^
iiv antes que seja manhãa. Os Turcos com^
mcttem ires vezes o hcduarte do inar^ e ior-'
uno desbaratados com morte do seu Capitão ^
Tom,ão-se dous l^\ircos vivos ^ e o que se fez
dclles. Os inimigos dão hum cruel assalto ao
baluarte dos combates, e o successo dellc.
(^onta-se }ium> feito notável que aqui fez hum,
Soldado particular. Contão-se iamhem algii-^
mas cousas notáveis que neste tempo aconte^
cêrão na fortaleza.
M
ostrado têe o tempo claramentoj
K com exemplos bem verificado,
Que inda que ao Capitão, conveniente
Seja ter braço forte, e peito ousado^
Comtudo se não he sábio e prudente
Está sempre á ruina aventurado^
K taiato vem a ser mais perigoso
Q-uanto mais sem prudência ha animoso.
010 OBRAS DE IllANClSCO D^NDllADE.
11.
O que fSò de prndciicia cheio g peito y
Seguro eÀi tudo está, nuda f(H:ei^í, '
1'orqiie o mais inipossivel, duro feito
Klle so co''a prudência o remedeia ^
D'*onde se diz, que o fado lhe he sujeito,
E que elle cá iia terra senhoreia
Os celestfs influxos, soberanos,
À que o Cco fez sujeitos os humanos.
Por onde índa que a dotita antiguidade
No Capitão perfeito demandava
Ousadia, sab<.T, felicidade,
Comtudo a experiência lhe mostrava
€lue do saber têe mais necessidade,
Pois a falta este só remediava
Da fortuna e do esforço, e a falta deste
FaZ que o esforço e a fortuna pouco preste,
Entendendo o sagaz Silveira esperto
t-JtuDo necessário então, e importante era
Ser aos cautos imigos encoberto
Q.u5o pequeno soccorro lhe viera,
Antes lhe cumpre ter elles por certo
Gtue foi soccorro tal, qual elle o espera.,
Usa d''hum novo ardil, que foi effeito
I)''}ium prudente, advertido, osísido peito.
o fniMElRO CERCO DE DIU. Clt
♦Ia tinha bom sabido que a profana
Gente, que têo na armada seu assento,
Vira a pequena frota Lusitana,
E tèe de ser Cliristaa conhecimento,
Porque a luz da nocturna alma Diana,
(iue então ja hia em grande crescimento,
Nao somente os cátures llie mostrara,
i^Ias serem Portuguezes lhe declara.
Yl.
Manda logo o Silveira que os navio»
Q.ue de lá de Goa entào alli \ier3o,
Pois estavâo de todo ja vazios
Dos famosos varões que alli trouxerão,
Antes que a Aurora espalhe os raios frios
E descubra os segredos que esconderão
As sombras que a nocturna Phebe solta,
Façàò'9em mais detença a Goa à volta.
vii.
Apoz isto mandou com desusada
Festa, maior qíiiçá do que convinha,
Celebrar-se lá dentro aquella entrada
Do pequeno soccorro que então tinha.
Solta a vella com pressa a breve armada
E tão ligeira corta a ohda marinha,
Clue quando a Aurora os frios raios lanoa
.7 a nem a mais aguda vista a alcaíiça.
VIII.
o Turco, que esperando está aquella hora
Para que melhor veja o que antes vira,
Como a frota Christãa não vio agora
Lá por todo o Horizonte os olhos vira :
Confuso assaz, e quasi de si fora
Torna a cuidar se foi quiçá mentira^
Ou representação da fantasia
Clue o faz imaginar o que nSo via.
IX.
Olhão huns para os outros, pefguntanda
Cada hum, ao que vê, disto a verdade,
Mas juntamente todos affirmando
Glue verdade isto foi, não vaidade :
Ficarão entre si todos julgando
Clue era de mor substancia e quantidade
O soccorro que veio á Christãa gente,
Crendo qUe a conjectura aqui não mente,
X.
Mas agora me cumpre ir a outra parte
Oue memoria e louvor assaz merece,
Porque me ouço chamar do baluarte
Do mar, que ao Sousa atraz dito obedece ^
Obras aqui também do horrendo Marte
A descubrir meu canto se oíFerece,
Glue quiçá não darão menos espanto
Q.ue as que ja descubrio atraz meu canto»
t) PUIMEIRO CERCO DE DIU, 613
Vendo ja neste tempo o mal soffrido
Imigo pertinaz, que de tal geito
Do mar o baluarte he ja batido
Q.ue hum caminho assaz largo he nelle feito
Por onde pode ja ser commettido,
De novo se lhe acende o aceso peito,
Toma novo furor e confiança
De tomar neste do outro grãa vingança.
XII.
E porque a dilação lhe descontenta
Deste furor que o tanto estimulava,
Sem detença o combate logo intenta
ô.ue ja para o outro dia preparava :
Logo faz ajnntar bem cincoenta
Barcas, da grossa armada que alli estava^
Glual deita o galeão, qual também deita
A galé,, e d'hua e d'outra se aproveita^
Faz nellas embarcar grãa companhia
De gente bem armada, e bem lustrosa,
Em que^ bem setecentos haveria
Bastantes a qualquer empresa honrosa.
Este grosso esquadrão obedecia
A Mahamud, que a grande e perigosa
Empresa, também folga ter diante,
Tamanho he seu valor, alto e constante^
4» 18
614
OBIiAS DE FKANCISCO D AKBRADT,,
E tanfo que ó pastor ai mo e íutenífí
Gtuo lá ao longo do Aiifriso trouxe o gado
Mostrou a nova lux M no Oriente
Começando o seu eilrso costumado,
Knlra nas barcas logo a infiel gente
Que tudo eniao JH lèe bem preparada
Ouanto para o combate íhe couvinlia,
E comécH a eortar a onda marinha.
Soa alíi do ntambor o esfrwlido horrendo
Ooni mal ci>mpo»to som, mas bellicofH>,
A grila as altas nuvens vai rompend»)
T)o Soldado", índa então forte e orçidhmo:
O remo as n)ansas ondas revolvendo
Com curso nuns veloz qtie vagaroso,
Em breve espaço a barca põe na píirté
DVndo se ba de assaltar ó baloarte.
Mas ;t g^ente que está na fortaleza
Vendo ás barcas tão perto vir ja agora,
Chega o aceso murrSo dom grãa prrsteza
A bombarda cruel, ruinadora ^
Sahe com a sua usada alta braveza
O pelouro mortal da prisão fora,
Contra as imigas barcas vai direito
E fii? o seu cruel usado effeito.
o PRIMEIRO CERCO DE Dir, 615
XVII.
Inda ellas juntamente Vem coitando
Mas perto ja da terra ^ a onda salgada)
Gliiando o pelouro ardente íultninando
Em meio delias todas faz a entrada ^
K inda que a todas vai amedrontando^
Em duas sos deixou effeituada
A sua impetuosa fúria imiga,
Q.iie em pedaços ao fundo ir as obriga»
XVití.
Míis nettl por isso as outras detívefâo
O ctjrso, ou perde a gente a confiança j
Antes á praia todos se vierSo
Com mor pressa, e desejo de vingança ^
Saltando logo em terra os que couberão
No desembarcadouro, sem tardança,
Nenhum subir acima entào duvida,
Q-ue em toda a parte ve fácil subida «
XIX.
Os mais que lá nas barcas se agasalhâo
A que a praia nao deu recolhimentoj
Não estão ociososj mas trabalhão
Por ajudar dos seus o duro intento \
Huns frechas, outros chumbos no ar espalhSo
Com que dão aos Christãos impedimento
Para que nos reparos appareção.
Mandando os tiros lá a que obedeção.
€!í> OBHAS DE FAANCISCO d''aNT>IIADE.
Xx.
Sóbo com tal favor o Turco, cLoío
Do coníiança^ osfor(;o, e trufalii:ii,
Mas logo a recebe-lo o Sousa veio
Co\i sua valcrosa companhia ^
Art.tííicios de fogo assaz, no meio
Dí-lles hiiiça, e com tal fúria e ousadia
Os encontra apoz isto a lança tesa
Qne os faz ja duvidar daquella empresa.
Inda conitudo mostrao peito foríe,
Mas pouco lhes durou tal presupposto,
l^orque os Christaos os tratào de tal sortti
Glue ja nâo ousão ter direito o rosto.
Com dam no seu assaz, com sangue e morte
Tornao lá para o níar mudar o posto,
Dos vencedores braços constrangidos,
Uuc pouco antes havia por vencidos.
Os das barc.is, que também de lá despedem
0.ual a frecha subtil, qual chumbo ardentí-,
De todo os tiros niíd não lhe succedem
Oue alguiis ferem então da Christãa gente ^
Isto aos outros obriga que se arredem
liá de traz do reparo, onde o presente
Mal, se pode evitar, que causa o Mouro
Ou co''a frecha subtil, ou coV) p l^uro.
o PlllMLlKO CEltCO DE DIU. 017
XXllI.
Eis aquellcs que ja não se atreverão
Ter contra o imigo são, rosto direito,
Veiuio o porque os Cliristàus se recolherão.
Tendo por grave o damno que lhes he feito,
O temor que então têe logo perderão.
Enchem loco de novo ardor o peito.
Ousado cada hum torna ligeiro
A tentar o qae em vão tentou primeiro,
XXIV.
Torna a subir de novo alvoroçado
E em entrar, com grãa força dura e insiste,
Porém acha diante o Sousa ousado
(ine aí^ora como sempre lhe resiste,
Do qual emfim se vè tão maltratado
O-ue outra voz desta empresa ja desiste,
Outra vez desce abaixo com grãa pressa
E dentro lá nas barcas se arremessa,
XXV.
Com mor pressa nas barcas vão entrando
])a com que ao baluarte antes subirão,
E ja as ondas comerão de ir cortando
Para tornar-se lá d'onde partirão ^
Mas como entre si vão arrezoando
De quão pouca gente era a quem fugirão,
JCm todos tal vergonha sobreveio
Que pode então mais nellcs que o receio.
XXVI»
^Tanto os lastima então, tanto os magoa
Esta vergonha, e tanto os move e acende
Glue faiem outra vez voltar a proa,
E morrer ou vencer qualquer pertende ^
Outra vez o tambor guerreiro soa,
Outra vez a alta grita as nuvens fende^
Ja põe a proa em terra a leve barca,
Com graa pressa o Soldado desembarca.
XXVIl.
NSo SC descuida então, nem he ocioso
O que na fortaleza se agasalha.
Mas o imigo outra vez vendo, animoso
Em seu damno outra vez insta e trabalha:
Outra vez o mortal e furioso
Pelouro manda lá, que no ar espalha
Assi a grossa e horrisona bombarda
Como a leve, subtil, longa espingarda*
ítxviii»
Mas aquelles a quem encarregada
Estava a defensão do baluarte,
Cuidão, vendo dos Turcos a tornada,
Gtue a salvá-los nao basta ou força ou arte *
Deterrainíio com hiia morte honrada
Eternizar seu nome em toda a parte^
E venderem tão cata esta victoria
G.ue fique ao vencedor mais dôr que gloria»
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 619
Dá-lhes isto tal fervor e atrevimento
Glue não podem lá estar dentfo encerrados,
Correm todos ás barcas, n^hum momento,
E inda os Turcos não são desembarcados
ô-uando lhes fazem tal recebimento
Com golpes tão mortaes, tão apressados,
€lue poucos vir a terra então puderão,
Estes d'e&tarem lá se arrependerão.
XXX.
E tanta foi a força, tanta a pressa
Com que o bom Sousa eosseusosaccommettem,
E o damno dos pelouros, que arremessa
O canhão, que dão mortes e as promcttem,
Glue o segundo furor no Turco cessa,
Renova-se o temor, e lá se mettem
Nas barcas outra vez, que o mal presente
Fez a vergonha ao medo obediente.
Pouco ja da vergonha então curarão
Q-uando a morte diante os faz medrosos,
E de tornarem vivos mais tratarão
Glue de poder tornar victoriosos :
Os que das barcas mais perto se acliárão
Estes então se têe por mais ditosos,
Q.ue estes hão que têe mais segura a vida
Mais longe do Christão ferro homecida.
620 OBRAS DE FRANCISCO u'aXDUADE.
XXXII.
Tanto que sao nas barcas recolhidos
Logo as ondas comecão d^ir ferindo,
K ainda que a hum grave medo vão rendliJos
Também os vai vergonha perseguindo.
Eis lá da fortaleza os alaridos,
Os apupos e as gritas, que seguindo
Os vao, em quanto podem, Ih^iccrescenlão
A vergonha e temor que os atormentão.
XXXIII.
Nao deixarão porém de recolher-se
Até que a hum cães chegarão da Cidade,
Onde de nov(J tornão a acender-se
Ausentes da Christãa ferocidade:
Trafào de quanto devem de correr-se
De ver que tão pequena quantidade
De gente, hua e outra vez os d(ísbarata,
E tanto a salvo seu tão mal os trata.
XXXIV.
o forte Mahamud, de que ja conta
A minha historia atraz, que os governava,
A quem aquella vergonlia, aquella aíIVonta
Lá dentro ao centro d^ahna então chegav;j,
Vendo que elles de novo mostrão pronta
Vontade, para o que elie desejava,
Porque de todo os mova a darem volta
Km taQs palavras logo a língua solta ;
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 621
XXXV.
He possível, ó fortes, bons soldados,
Q-ue tao poucos, e fracos defensores
Contra tantos do nós, tao esforçados
Sào hoje duas vezes vencedores?
Ku creio que a Fortuna e os duros Fados,
K outros deoses alguns, se os ha maiores,
Jjhes quizerao dar hoje esta victoria
Com tanta aflronta nossa, e sua gloria.
XXXVI.
Qlub possível nao fora, d\)j)tra sorte,
CLue pudera ficar victorioso
<^ que menos forte he do que he mais forte,
E o que he menos do que he mais copioso ;,
Por onde se cm nós houve affVonta e morte,
E nelles fim sem damno, e glorioso,
Nem cá alfrouta, nem lá honra se deve,
l*ois toda a parte nisto o Fado teve.
XXXVII.
Mas com quanto nos dá disto a certeza
De nâo termos affronta, e segurança,
Bem se póJe porém ter por fraqtieza
Deixarmos hoje os mortos sem vingança ^
E pois propriedade e natureza
Da Fortuna, he fazer logo mudança,
Creio que já terá virada a roda
E a terra em favor nosso posta toda.
622 OltUAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
XXXYIII.
Eia sus, outra vez a elles tornemos,
Agora que a Fortuna os desampara.
Com qiKinto ja em vencer pouco faremos
Sendo nos tanta cópia, elles tão rara ^
Mas vençamos porém, porque vinguemos
Os que deixarão lá a vida chara,
E elles vejao que ess^outro foi effeito
Do divino favor, não do seu peito.
XXXIX.
Agora que a victoria está no braço
Mostrai-lhe vós qual he forte e constante.
Rompa sem piedade hoje o vosso aço
Polo imigo Christão, hoje arrogante :
Nisto não podeis ja ter embaraço
Pois a Fortuna e a mi levaes diante,
Segui-nos, que com ella, e mais comigo
Não podei» ja temer nenhum perigo.
XL.
Apoz estas palavras, logo estuda
De dar execução ao que pertende,
Toda a gente também para isto o ajuda
Glue co^o que têe ouvido mais se acende :
Ja a barca outra vez volta a proa aguda
E contra o baluarte as ondas fende,
Agora que o furor mais os incita
O alvoroço hc maior, mais alta a grita.
o i'itíaifc:iKo cEHCo oe dlv . C2J'
Posto diante vai este esforçado
Capitão Mahamud, d^arnias luzente.
De soberba iiida mais que d''aço armado,
Das victorias Christãas impacietite j^
Em seu braço e valor tão confiado
Q-ue por vingado se ha da imiga gente,
E assi qualquer detença mal o trata
Glue então esta vingança lhe dilata.
Mas nao lhe tardou muito o desengano
Com que a soberba o justo Cep castiga \
Chegado ao baluarte Lusitaiio
Eis de lá solta hum berço a fúria imiga,
A Mahamud encontra, e com grão dano
Lhe abate a natural soberba antiga,
E faz que alli vencido apparecesse
Gude cuidou que tudo elle vencesse.
XLllI.
Pallido agora cahe, este que agora
Fazer cahir mil pallidos cuidava,
E inda que não vio logo a ultima hora
Comtudo ja mui perto delia estava,
Porque quando de novo a nova Aurora
As estradas ao Sol apparelhava,
A «>ia alma infiel com grão tormento
Foi a beber o eterno esquecimento.
624 OBRAS DE FRANCISCO D^^ANDRADE.
Q-uando a gente infiel (mais confiada
Q.uiçá no Capitão que n^outra cousa)
Se vio d''hum tal favor desamparada
Com que o imigo esta vez commetter ousa^
De novo a hum grão receio deu entrada
Vendo outra vez diante posto o Sousa,
E as espadas cruéis diante postas
A que ja duas vezes deu as costas»
XLV.
Cresce este seu temor co^o peso horrendo
Q-ue a bombarda Christàa contra elles solta.
Porque este lá nas barcas vai mettendo
Grãa confusão, grão medo, grãa revolta :
Fez-lhes isto, e o Capitão, que estavão vendo
Mal ferido, com pressa dar a volta,
Com dobrada vergonha, e sem lembrança
De tentar outra vez esta vingança.
XLVI.
Nestes combates todos atraz ditos,
6lue os Turcos, por seu mal, sempre intentarão,
Q.uarenta dos infiéis, Ímpios espritos
As sombras de Plutão hoje mandarão,
E o seu sangue também quasi infinitos
Dos que ficarão vivos, derramarão.
Dos Christãos sobem dous ao Reino Santo,
Cinco feridos sós acha o meu canta.
o PRIMEÍTIO TERÇO DE DIU, 62t
Das líarcas que arroiríbou a artllliaria
Alguns a salgada onda agora molha,
Q-ue como então o mar ao mar corria
Faz com quo a barca saa os nao recolha.
Manda logo o Silveira hua ahiiadia,
Pois que não ha ninguém ja que lli^o tolha,
E nella dous que dentro os recolhessem
Para que vivos todos liros trouxessem.
Vai-se logo o suhtil, levo navio
I<á contra aquelles tristes caminhando
Q-ue ce^is mãos e co"'os pes o senhorio
Andão do Rei marinho inda apartando,
Por fugirem da Parca que ja o lio
Subtil, para o cortar, Ih^anda buscando.
Mas, tristes, que fugis? que a Parca fera
N'outro maior perigo vos espera.
XLIX.
Porque quahjucr dosdousque então se cm1)arca
No navio subtil, h:va comsigo
Hum ódio tão mortal, de tanta marca
Contra hum tão triste e tão rendido imigo,
(-lue quiz tomar o officio á cruel Parca
Por satisfazer parte do ódio antigo,
E contra o que o Silveira lhes permitte
Manda quantos encontra ao escuro Dite.
62ò OBRAS DB FRAKCISCO D^AXOTl 'vDF..
Porém tanto os que estavao lá na estancia
Do baluarte da barra, então íizorao,
Bradando huae outra vez com grande instancia
Aos dons, que o cruel ferro detivcrao,
E com grão pesar seu, grãa repugnância
Pe sou feroz esprito, dous trouxerao
Vivos á fortaleza, e lá diante
Espero que meu verso delles cante.
LI.
Sousn, vendo ja ida a imiga gente
E os combates de todo ja acabados,
A fortaleza manda os que então sente
Da cirurgia estar necessitados*,
Manda hum Fernando entre estes juntamente
Qiue o sobrenome têe dos Penteados,
Mancebo de valor, e esforço raro,
Logo disto vereis exemplo claro.
LU.
Agora me quero ir vêr a príjfana
Gente, que de temor e espanto cheia,
Por fugir á graa fúria Lusitana
Pouco j a da vergonha se arreceia.
Esta vondo-se em salvo, ja a engana
A soberl^a outra vez, e a senhoreia,
Determina vingar-se, mas não ousa
Tentar o baluarte j:i do Sousa.
i
o i>íiiMi:i;io CERCO de Dir. 627
Toflii a ira c desejo de vingança
Solta lá contra aqncUe baluarte
Do qual lêes tu, Proonça, a governança,
Porém tu saberás também gtiardarte.
De se vingar aqui têe confiança
Do mal que recebera n^^outra parte,
Dá-lhe isto tal fervor, tamanho alento
Que nao se quiz deter mais hum momento.
LIV.
Logo com altas gritas e clamores
Dão começo á cruel, dura l>atalha,
Entrao lá contra os duros defensores
tliiantos Turcos a entrada em si agasalha :
Ja reluzem os aços cortadores,
E penetrar etítão qualquer trabalha
O imigo que diante se apresenta,
E quanto o damno he mor, mais se contenta,
LV.
O vingativo Turco desejando
De não fazer alli longa detença,
Cada momento os seus vai refrescando
Porque assi com mor pressa e damno vença ^
E de tal sorte assi vai apertando
Os que a bandeira seguem do Proença,
Q-ue mostra este furor embravecido
(Querer cobrar o que antes têe perdido.
r>28 or.uAS nv. rn ancisgo d andjiadk.
Mas o forle Proença acostumado
A mil encontros a este semtíliiantos,
Do seu forte esquadrão acompanhado
Q.ue em mil aífrontas ja o seguira antes,
E vendo-se também aqui ajudado
Dos que de Goa, a ser partocipant.es
Nestas cousas, vierao novamente,
Pouco teme o furor do imigo ardente.
LVII.
Recebe cora Itiór fúria, a fúria imÍ2;a,
K com aço mais duro, o seu duro aço.
Acende o ódio o furor, e faz que siga
Traz o peito feroz hum e outro braço :
Cresce com isto tanto a cruel briga
Que d''hua e d^outra parte em breve esp;
Co''os espritos, alguns cahem rendidos,
Afora hua gràa cópia de feridos.
Durando esta revolta horrenda e fera
Glue tantos para a morte hoje encaminha,
Aquelle Penteado que viera
Buscar a cura alli que lhe convinha,
Chega onde o Circirgião, cujo nome era
Mestre João, diante de si tinha
Hum a quem dava a cura a isto ordinária,
E muitos a que ella era necessária.
i
o rUl.MEIRO CF.aCvO DE DIU. 62;)
LIX.
JMas como o grande estrondo, a grande grita
Do oonnbyte nesta hora não cessava,
Tanto isto o Penteado acende e incita
(^ue, esquecendo-se ja do qne esperava,
Não ihe soífre o valor qne nelle habita,
(iue inda mais que a ferida o estimuUiva,
Glue não se ache também no baluarte
E do que passa nelle tenha parte.
LX.
E assí nao esporando que lhe seja
Applicado o remédio á graa ferida,
Diz para o Cirurgião que outro proveja
Q.ue ellc vai arriscar de novo a vida.
E correndo entrou lá onde a peleja
Se mostra mais feroz, e embravecida ^
Porém lá muito nella não atura
Que com dobrada causa torna á cura.
ixi.
Porque como lá então hfia e outra espada
Não esteja hum momento só ociosa,
E elle qiiiz, em fazendo lá a entrada
íiue a sua aos infiéis fosse damnosa,
A primeira ferida acompanhada
Foi logo d^outra, grande e perigosa,
ftue na cabeça fez seu duro effeito,
Lá onde a outra também o tiidia feito.
030 OliRAS DE FRANCISCO D^AXDRADE.
LXII.
Dobrada occasiSo o força agora
A se tornar de novo á cirurgia,
E como o Cirurgião têe naquella hora
Dobrada occupaçao da que sohia.
Forçado lhe he fazer qualquer demora
Em quanto os de mais perto elle provia
Da cura, de que estão necessitados,
Ctue também sao do imigo maltratados.
LXlll.
Cresce entretanto o estrondo temeroso
E as nuvens outra vez penetra e fende,
Glue o Turco de vingança desejoso
Com revezada força o imigo offcnde,
Mas o imigo também forte e animoso
Com dobrado furor se lhe defende ;
Causa isto grSa revolta em toda a estancia,
E hua medonha e triste dissonância.
Ouvindo o Penteado esta revolta
De novo se alvoroça, e dentro ferve,
Nem podendo ja ter-se, a cura solta
Glue buscou porque a vida lhe conserve :
De novo ao baluarte faz a volta,
Glue então á honra mais que á vida serve,
E inda que o logar he cheio de morte
Alli so têe quieto o esprito forte.
o PRIMEIRO CERCO DTI DIU. 63í
IX V.
Revolve o duro ferro, e com mais dura
Força commette o imigo revezado
Do que podia haver em quem a cura
Duas vezes ja tinha antes buscado.
Porém nem desta vez muito aqui dura,
Porque o direito braço trespassado
Em breve espaço vio d'hum largo pique
ôue o faz que muito tempo aqui rmo fique-
Este terceiro encontro ja lhe impede
De todo o que três vezes intentara,
E forçado o que o esprito então lhe pede
Se torna ao Cirurgião que antes deixara.
Desusado valor, que bem excede
O mais raro valor, força mais rara,
Os mais invictos peitos, soberanos
Glue o tempo têe mostrado em largos anos !
LXVII.
Recebe agora a cura juntamente
A três mortaes encontr(»s bem devida,
E delia, CO ""o favor Omnipotente
Recebe desta vez saúde e vida.
Este que d''entre o imigo fogo ardente,
DVntre o ferro infiel, duro, homecida,
Mil vezes escapou, depois o vento
E o mar, o consumirão n^hum momento.
632 OBRAS DE FRANCISCO d\\:;dradk.
Dnra inda este combate hum grande esparo
Com damno do fiel, e do profano,
Porém sentindo o Turco que o seu aço
Com furor revezado, sempre insano,
Ja contra o Portuguez vencedor braro
Q.u;into têe mor constância he mor sou dano,
Se torna agora atraz, e se retira
Para o mesmo loj^ar duende sahira.
Deixao nova ousadia lá no imigo,
Grande gloria e prazer na fortale/a •,
Novo damno e temor levão comsigo,
Affronta para os seus, e graa tristeza ^
Cento feridos vão, vinte o castigo
"Vão receber á eterna profundeza ^
Dos Clnistãos sóbom três á Eternidade,
Dos feridos he grande a quantidade.
LXX.
Ja nesta conjunção a Portugueza
Gente, grãa falfa assaz de tudo tinha
Gluanto para poder pór-se em defer.a
Contra hum tão duro imigo liie convinha :;
Nem com vontade assi menos accza
Se vem á defensão do que antes vitiha,
(iite em todos hum constante animo forte
Mais despreso que medo põe da morte.
o rRl.MEIliv) Ci:iiC^ DE DIU. (J3J
LXXI.
A coníiniiaçuo da longa guerra,
K dos bravos assaltos a frequência,
(Jiíbrírão eincoenta ja de terra
Dos que fizerão j.i mais resiste?)cia :
Dos mais que a fortaleza em si encerra
Q^uasi todos sentirão a violência
Do iniigo aço, de que huus ja sãos estavao,
Outros, inda que enfermos, ajudavão.
LXXII.
Afora estes que a morte tee levados
T.uíiheni outros setenta aqui se vião
A que esta guerra lêe tao maltratados
ii^ue sustentar as armas não podião :
Assi que os que alli podem vir armados
Duzentos e setenta mal serião.
Contando os que de Goa alli vierão,
De que huus mortos, feridos outros erão.
rxxiii.
As munições também vão fenecendo,
K o pó com que a bombarda faz o eíTeito
(Porque então nos canliões se estava vendo
No nsado fulminar hum grão defeito)
O vão, com quanto lie pouco, convertendo
jN 'outras cousas então de mais proveito,
(.^ual delle as bombas faz, qual as pancíllas,
Torque depois o fogo acenda nella§.
C34 ouHAs nii in^Ncisca i> anouadk.
LXXIV.
Também aquollo pó lic ja bem raro
Com que a espingarda o chumbo ofogoacotale,
E hc delle o espingardeiro tão avaro
Çlue nenhum tiro ja em vão dispo nde,
Mas só o dispende então quando lhe he claro
€tue o Turco alli com elle o esprito rende,
E não qualquer, senão o que parece
Glue aquelle tiro em tal tempo merece.
LXXV.
Bem cuido eu que esíã^ muitos desejando
Vêr meu verso aos dons Turcos convertida
Que lá no baluarte do mar, quando
Pe Mahamud em vão foi commettido,
Tomados lá no mar forâo nadando ;
E eu me lembro que tenho promettido
Tratar dclles cá avante, e bem depressa
BIspero de cumprir minha promessa.
LXXVI.
Com força de cruéis, duros tormentos
Forçados estes dous então publicão
Dos seus o8 mais intrínsecos intentos,
Também o estado delles certificão :
Dizem que então avante de seiscentos
Homens, lá no arraial mortos ja ficão,
E 05 que vivos o sangue derramarão
O numero de mil sobrepujarão.
o PRIMEIRO CTítlCO DE Dir. 63 J
Dizom q«e do Baxá se coíligia,
NAo que affirmá-lo possao com certeza,
Q-ue com todo o poder trabalharia
VoT conquistar aquella fortaleza \
E 09 Capitães da sua companhia
Também nisto mostravão ter firmeza,
Inda que o resto a risco ja se ponha,
Porque o contrario têe por graa vergonha.
I.XXVIII.
Nenhum delles diz mais, mas proveitoso
Lhe fora a cada hum se mais falhira,
E quanto o fallar a outro he damnoso
Tanto agora a estes dous aproveitara,
Porque logo o Silveira rigoroso
Q.ue aos dous para isto a morte dilatara,
Manda (e logo se faz) que a salgada onda
Com pesos ao pescoço ambos çsconda.
titxix*
A vinda destes dous Turcos que agora
Qs segredos dos seus manifestavao.
As mulheres chegou, que naqueila hora
Também do trabalhar partecipavao :;
E vendo a hum homem vir da casa fora
Onde ouviao dizer que elles estavão,
Hua que era casada, a elle se ajunta
E se estavao lá dentro Ihr pergunta.
C3G OÍÍIIA.S DE l''Il.\KCISCO D^VNDUADE.
Pergunta-llie também se se alcançava
O qu« delles está determinado.
Respondc-lhe elle, que lá dentro os deixava,
Mas que o Silveira tinha então mandado
Hua cousa, que a- quem hem a attentava
O julga a elle por nuo hem attentado,
Pois não somente a morte lhes impede
Mas inda a liberdade llies concede.
Ella, sem mais cuidar se era mentira,
Ou se era por ventura isto verdade,
Inflammada do todo em fúria e em ira,
Esquecida de toda a piedade.
Entra na casa lá d''onde sahira
O que lhe isto dissera, com vontade
Ja tão prompta a hua estranha alta crueza
Como se lhe ella fora natureza.
Acha em entrando lá diante posto
Francisco de Gouveia, a quem o ardente
Fogo, abrazando os pés, as mãos e o rosto,
Tão disforme fizera e diíferente
Q. ue hua magoa assaz grande, hum grão desgosto
G-uem o ja vio, em ve-lo agora sente.
Ella, a quem a ira então, e o furor cega,
Tendo-o por hum dos Turcos, a elle chega.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 637
LXXXIIl.
E com semblante inda irado, acoso, e esquivo,
Mas cheio inda de graça e de brandura,
Do qual por dita houvera ser captivo
O peito mais isento, a alma mais dura,
Lhe diz : O perro, imigo, e outra vez vivt>
Te levará d^aqui tua ventura?
Traz isto no ar levanta hua gamella
E fender-lhe a cabeça liia com ella.
LXXXIV.
EUe, a quem o seu damno tao mal trata
Q.ue lhe nào deixa ver quanta dita era
Morrer em mãos de quem co\)s olhos mata.
Se guardou delia então, como pudera.
Ella, que em nova fúria se arrebata.
Corre por lhe chegar, mais que antes fera.
Brada elle então, e diz que o não persiga,
ô/ue na outra casa têe a copia imiga.
LXXXV.
Ella, que estas palavras bem entende.
Cuidando que era ardil, prosegue a empreza ^
Com iáto em maior fúria então se acende,
E inda mais desta vez que antes aceza,
Diz: Olhai que enganar-me o cão pertende l
Como espivita a falia Portugueza !
Pois nem o que cuidaes ha de valer-vos,
ôue esta nessa cabeça hei de fender-vos.
638 oi;uAS de fuakcisco d^anduajue.
Alguns que nesta casa então se acliárao,
Vendo-a de tal furor, tal ira cheia,
Mettendo'Se no meio lhe affirmárao
Glue aquelle era Francisco de Gouveia i
E o melhor que pudérão lhe applacárão
O furor, para que ella o veja, e o creia.
Com isto ella da fúria hum pouco dece,
E pondo nelle os olhos o conhece.
txxxvii.
Logo para outra parte volta o peito
Sem mais se desculpar do que passava.
Mas ainda com altivo e grave aspeito
Onde está o Capitão lhes perguntava.
E sabido onde está, lá faz direito
O caminho onde dizem que elle estava,
E cliegatjdo diante do Silveira
Lho começa a fallar desta maneira ;
LXXXVIII.
Dizem, Senhor, que tendes ja mandado
(Mas eu nao posso cre-lo por verdade)
Q-ue s«*ja aos dous imigos outorgado
Poderem-se ir com vida o liberdade ^
Porém se isto assi está determinado,
Q.ue ás vezes a rasão segue a vontade,
Nós, nisso que fadeis, não consentimos,
Mas o contrario disso vos pedimos.
• l^BIMEinO CERCO D£ DIV . 639
Eu, e as outras mulheres, que aqui temos
Nesta guerra também algua parte,
Q-ue mandeis dar a morte a aml)OS queremos^
Mas se quereis que seja inda d\)utra arte
Por nenhum caso o nós consentiremos.
Nem ha cousa que disto nos apiírte ^
E eu, que sou entre todas menos forte,
Se vos m'os entregaes, lhes darei morte.
xc.
Vendo o Silveira o grão fervor que havia
Em quem he natural medo e fraqueia,
Espantado, mas ledo, porque via
Mudada em seu favor a natureza.
Lhe disse, que pois ella assi o queria
Glue elle os nao soltará, tenha certeza.
Contente ella com tal resposta fica
E de todo se applaca e pacifica.
xci.
Tao arreigado estava contra o imigo
Em todo o peito este ódio furioso,
Glue dá esforço e furor maior que antigo
No peito que he de si brando e medroso.
Mas se espanta este exorf<plo que aqui digo
Inda outro hei de dizer mais espantoso.
Com que este ódio ijeral claro se prova
Com cousa inda mais rara, inda mais nova.
Sendo eniao, pola falta que se sente
Dos varões, que ja o Ceo em si agasalha.
Tão geral o trabalho em toda a gente
ftiie todo o sexo e idade alli trabalha \
A tenra idade, e mais sufíieiente
Quiçá para o lieôr que de si espalha
A teta maternal, branda e suave,
Nao foge ao trabalhoso peso grave.
Nos trabalhos, que assaz são importantes
Também os tenros moços se occiípavao,
Com espritos mais duros e constantes
Do que em tão tenn)S annos se esperavão :
Nem dos trabalhos são parteeipaníes
Somente os livres moços que alli estavão,
Mas a partecipar nelles vierão
Muitos moços também, que escravos crão.
XCIV.
Estando cm parte juntos, onde eneliessem
Da grave terra os It.-ves seus eestinlios
Com que onde ha falta delia soeeorrcssom,
Disse para outro Inim destes escravinhos :
Se os Turcos fossem homens, e soubessem
Q,uanto de se perder estão visinhos
Ja estes Portuguezes, hojf: entrada
Fora esta fortaleza, e ja tomada.
u i^niAíEiai) CI.RCO de diu. Oíí
Isto que o tenro escravo agora disse
Com tal seí^redo o não esconde e cerra
Q^ue hum moço Portuguez o não ouvisse.
Solta o cestinho ja cheio de terra,
Todo aceso em furor, como se visse
Ja aquillo effeituado, o escravo aííerra,
E aos companheiros diz: Vinde correndo,
Ouvi o que este perro está dizendo.
XCYI.
Ellcs sem mais tardar, logo soltarão
Os cestinlios também, e ja com ira,
Com pressa ao companheiro se chegarão,
Glue logo lhes dá conta do que ouvira :
Elles sem mais respeito, não curarão
De ver se he verdade isto, ou se he mentira,
Mas cheios de furor, ao triste moço
Logo hua corda lançào ao pescoço.
Nem querendo que mais se dilatasse
A pena que a hum tal crime se devia,
Gluercm que a forca logo o castigasse^
INIas hum dos moços diz que bom seria
Glue ao Capitão primeiro se levasse,
O qual taml)em á ntorte o jidgaria^
A todos pareceu isto bem feito.
Nem querem que lhe tarde muito o eííeito.
&42 OBRAS BE FRANCISCO D^ANDRARS^
E com clamores ta€s que vão rompendo
Não so o ar, mas o Ceo terceiro, e o quarto.
Pegão tantos na corda, que escondendo
"Vão as mãos o escabroso, áspero esparto ^
láogo, sem mais tardan^'a, vai correndo
O esquadrão pueril, d'odio não farto,
lie V ando traz si o triste á corda atado
Q.ue foi aute o Silveira apresentado.
Onde o que então se achou mais atrevido
Entre este pueril ajuntamento
líhe disse : Nós queremos que punido
Seja este perro co^o ultimo tormento,
Sem ser hum só momento deferido,
Pois teve de dizer atrevimento
ftue os Turcos se homens fossem, ja entrado*
Nos tiverão de todo, e ja tomados.
E porque não haja outro, inda que imigo,
A que isto lembrar possa somente,
€lueremos a este dar este castigo
Onde qualquer dos outros se escarmente»
Trouxemo-lo ante vós, porque eu me obrigo
O-ue vós o não julgueis por innocente,
E porque vendo-o morto não cuidásseis
€lue morreo sem rasão, e nos culpásseis,.
« PKÍttSIRO CSRCO DE DIU. ^IS
%y discreto Silveira, que duvida
Gtue haja tanto valor em tal idade,
Mas a alegria e espanto isto o convida ^
Lhes diz {por lhes fartar assi a vontade)
GLue o deixem, e se vão, porque elle a vida
Lhe mandará tirar sem piedade.
Mas isto que por bem então tentava
Lhe sahio ao tevéz do que cuidava^
CIl.
Porque como elles todos vem agora
D''hum entranhavel ódio combatidos,
E todos estivessem naquella hora
Qnvdi do páo, qual da pedra apercebidos^
Não põem neste castigo mais demora,
Antes com grandes gritas e alaridos,
Como se o Capitão Ih^o consentira,
ComeçSo pôr por obra esta sua ira^
CHI.
Êis d'hfla pattê a pedra, dividindo
O ar, lá no triste acaba sua jornada,
D^outra o mociço páo, ao ar subindo
Cahe na tenra cabeça, condemnada^
Hum e outro o tenro moço então ferindo
Com grâa fúria cruel, imiga e irada.
Em breve espaço fazem tal effeito
Gtue em mil pedaços he logo desfeitOi
644 0Í5RAS DE FKAKCISCO d''aNDÍIADE.
CIV.
Alguns dos circn instantes procurarão
Por lho impedir líum fim Ião miserável,
Mas vendo que era embalde, não curarão
De dar remerUa ao que era irremediável,
Kiíes depois que alii iielie fartarão
A ira que parecia insaciável,
Com cantigas de «rão contentamento
No Occeauo lhe duo eterno assento.
Esto tão cruel tím, tão desastrado,
Tal medo nos escravos fez que houvesse,
iA.ue não se vio algum mais tão ousado
(.iue usar da sua lingua se atrevesse.
Ou com hum baixo tom mal declarado
Dizer cousíi que bem não se entendesse.
Cine qualquer destas culpas, bem pequena,
Kecebia bua grave c cruel pena.
Todo o seguinte dia, o qual ja era
Penúltimo do mez, que atraz dizia
€Lue cm si dá gasalhado á cruel fera
O-ue faz a Orion ver o ultimo dia,
Não houve lá mais dam no que o que a fera
Bombarda faz co'a usada bateria,
A qual foi tal, que tèe por toda a p^irte
Koto o reparo ja do baluarte.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 645
CVII.
Cahc o assento tambom, que em si encerra
O Silveira, e a parede lá da estancia
Do Sousa Lopo, vem também a terra,
Sem poder o canhão ter repugnância ^
Ordena apoz isto hum ardil de guerra
Q.ue derrube a Christaa dura constância
O Turco, que co''a força não se atreve.
Mas este Canto he ja mor do que deve.
o PRIlir.IRO
CERCO DE DIU.
Os TurtOÁ se vtio embarcai' nas galí-s, pciití
iomarem depois os Christãos mais descuida"
dos. O Capitão^ suspeitando este engano^
ic appútelha para o asialto. Os Turcos cin
sendo noite se to mão a desembarcar i^ e duo
hum largo e terrihilissimo asialto do baluarte»
Conião-se alguns casos particulares e notáveis
que acontecerão no meio delle.
u
1.
ado sempre foi, e proveitoso
Km toda a guerra o ardil, e necessário,
Tal, que no mais prudente e valeroso
Capitão, sempre foi mais ordinário -^
Q.ue sempre o vencer foi mais glorioso
Q.uanto com maior damno do contrario,
E com damno menor da sua gente,
Veneeo o Capitão sábio e prinlonte.
o PRIMEIRO CKKCO DE DIU. 647
It.
Quanto proveito o ardil traga comsigo
Por mil provas o tempo o tèe mostrado.
Pois no presente vimos, e no antigo
Ser co''o engenhoso ardil remediado
Mil vezes o mortal, grave perigo
Para o qual não bastava o peito ousado,
Vj alcançar mil victorias incriveis,
Níío duvidosas só, mas impossíveis,
111.
E com quanto mil vezes falsa o effeíto
O discurso do ardil que he bem composto,
Nâo fica sem louvor o bom conceito
A que a Fortuna quiz voltar o rosto :
E se d^aqui não tira algum proveito,
Não tira também damno, nem desgosto
Mais que de nHo poder com sua gloria
Alcançar do» imigos a victoria.
It.
Vendo a gente infiel que cm vão pef tende
Vencer com força a força Lusitana,
íiue com tanta constância se defende
<iue parece lá foríja mais que humana,
Depois que, com f5eu damno, claro entende
Q.ue quanto mais aperta, mais se dana,
(^uer tentar se do ardil a subtileza
At'a1)a o que não pode a fortaleza.
6Í8 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
E para effeituarem este engano
Fazem que aquelle mesmo dia, quando
O Sol tornava ja para o Oceano,
Mais de mil as estancias vão deixando,
E dando vista ao imigo Lusitano
Traz a usada bandeira vão passando
Pola Villa dos Rumes, e não párão
Até que aos seus navios arribarão.
Onde arribados, apressadamente
Todos onde podião se embarcavao,
Para que assi cuidasse a Christãa gente
Glue elles de todo o cerco ja deixavão.
Levão doze galés o férreo dente,
E na volta do mar o mar corta vão,
Porque o Christão assi do mal futuro
Mais descuidado esteja, e mais seguro.
Mas o Christão sagaz pouco se enleia
Com esta falsa mostra que apparecej
Antes agora mór dam no arreceia
Porque o Turco enganoso bem conhece ^
E assi com mor cuidado remedeia
Tudo o Silvfira então quanto parece
Q,ue para defender-se lhe convinha
Da nova tempestade que advinha.
o PnlMEIRO CERCO DE DlU. 640
!Dobrar as vcllas faz etn toda a parle
Q,ue vê que delias têe necessidade,
Polo muro também logo reparte
De pedra solta grande quantidade ^
Faz lá de São Thomé no baluarte
Logar, d''onde a fulminea tempestade
Hum camalete solte horrendo e forte,
De que o Turco receba espanto e morte.
Avisar também manda que estiveàsè
Do mar o baluarte apercebido,
Porque se o que elle cuida succedesse,
Glue era ser dos imigos combatido.
Se por qualquer maneira ser podesse
Elle fosse de lá favorecido
Co''o pelouro cruel que de si solta
O canhão que em si a morte leva envóitai.
Tudo faz emfim prestes quanto via
Q.ue cumpre á defensão da fortaleza^
De sorte que vir cousa não podia
Q-ue cause confusão ou incerteza.
Logo elle co^os da sua companhia
Os logares visita em que ha fraqueza.
Lembrando a cada hum o que he obriga^òj
Porém isto era em todos escusado.
* 19
GaO OBKAS BE FKAKCISCO »' AWDR .\T)E.
Gastou-se nisto tanto espaço, qnant.o
Vjífí so «.'scmitlcr tio mar o Sol gastara,
K bum espaço depois que o negro manto
A noite ])olos ares eíjpalíiúra,
Sem que lá nas estancias entretanto
Mudanea hn-fíi qnakpier, por »er tão clara
A Lua catão, que quasi se presumo
Qlw. iumára do irmão o earro e o lume,
XII.
Mas d(ípoís que eíla ja de saudosa
f)o sou cliaro Pastor, que n''aima tinha..
Deixou á meia noite a luminosa
«Jornada, e ao I>iitmio monte lá caminha;
Tao escura ficou e tenebrosa
A noite, quanto ao iinigo então convinha
l*ara «ífeifo do engano que imagina,
K logo eiteituá-lo determina.
XUÍ.
Vendo quão Lcm ajuda a seu intcnt(7
Aquella t: se ura noite tao cerrada,
Nào se quer deter mais hum só momentr».,
Manda chegar ao muro a longa esc.ida i^
Hl pt)rqiie sem ter disto sentimento
PosSa a gente Christãa ser assaltada.,
Í'i co'q {'«sonido fique mais vencivel,
Com silencio ibto íuz quanto he jk)S^ív<>1,
o PRIMEIRO etRco DE Dir. 6ol
Mas pouco este silencio Itie aproveita^
Torcjue a vigia esperta e dili^iieiite,
tílue disto tinha ja grande suspeita 5
Em 'meio do silencio logo o sente \
Com pressa ao Capitão logo endireita,
E llie diz que em mil partes sentio gente
Q.ue hum calado rumor faz, de maneira
Como que meneando está madeira»
Vi,\\co o bom Capitão com isto se enleia
forque novo nao llie he, mas esperado,
lí li»go esta incerteza remedeia
Com hum remédio assaz prompto o avisado
Manda que hua capaz paneUa cheia
Po negro ruinador po salitrado
Abaixo lancem, cuja claridade
l}(í!icubra o que encubrio a escuridade,
XVI.
Eis ja vôa a capaz grossa panella
A mostrar o que o imigo faz lá fora^
Na terra apenas dá, quando síihe delia
Hum novo e claro Sol, antes da Aurora^
"Ve-se o que antes ja disse a esperta vella
Do escadas cheio o chão, e que ja agora
As põe na parte o Turco onde parece
Que mais a seu intento favorece.
0vi2 OIsHA^ DE FRANCISCO D^ANDRADT:.
Pouco espanto isto põe, pouco receio
IjíÍ onde ha disto ja certa esperança.
Antes qualquer com isto tica cheio
DVsforço, de fervor, de confiança,
Vendo que o Capitão que alli o meneio
l^èe da guerra, tal he, que pola usança
Que tee delia, o por vir prognosticava^
E ja como presente o remediava.
XVIII.
Entendendo o Silveira o copioso
Numero das escadas, vê que o imigo
A estancia assaltará do valeroso
Tjopo de Sousa, e o seu assento anfigOj
Porque hum e outro logar, o furioso
Canhão sentio em si, como atí-az digo ^
E assi li um modo ordenoti com que as escadas
Com grão trabalho fossem arvoradas.
XiX,
Manda, o também depois roga e encommenda,
ÍT^ue todo o que a espingarda meneasse
So naquellc a cruel fiiria dispenda
Que a lançar mão da escada se chegasse ^
E o que tee lança, ou outra arma que offendaj
Em defender í^úmente se occupasse
í) portal que <iti qualquer parte fizera
A fúria do canhão horrend;s «' í'.ra.
o rUTMr-IRO CERCO DE DIU. 053
XX.
Man-la cpie hua ahortura que a hua parle
3N)la Christãa gento feita se via
Do reparo quo está no baluarte,
.]*orque estando mais fora o que vigia
Melhor cralli sentir possa desta arte
O que lá em ])aixo o Turco então fazia,
Se alimpe da caliça que la ninada
Tèe nella a h.vtcria antes passada.
Fez isto o Capitão por ter sabido
(Se eu mal não advinho o sou intento)
Q.ue estando na abertura hum recolhido
Não pode outro lá ter recolhimento,
E que o que lá estiver dentro mettido
Sem nenhum risco seu, ou detrimento,
De lá fará grão dam no á gente imíga
No moio da cruel, áspera briga.
Agora quer ir Ví*r este meu canto
O eíftiito do que o Turco em si concebe
Qiuc se embarcou pouco antes, e entretanto
Deixarei o Christao, que se apercebe.
Logo como o estrelíado, escuro manto
Pola ausência do Sol o Ceo recebe,
O Turco, que do engano não se esquece j
Das gales outra vez á terra dcce.
Em terra outra vez saltão escolhidos
Dous mil homens em toda aquella armada,
De tudo o necessário apercehidos
De tal sorte, que nao lhes falta nada.
Logo são nas estancias recolhidos
Onde estava a mais gente agasalhada,
E os mais dos Capitães com elles hião
A que as embarcações obedecião.
XXIV.
Cuidão de nao achar ja fesislencia
Por muito que os Christãos sejão ousados.
Q.uaes dão a Jhuof Hamed obedieticia
Gtuaes de Baram Baxá são governados,
Varões que em grande esforço, e grãa prudência
Se virão em mil partes signalaclos :,
Creio que os conheceis, se inda memoria
Tendes do que atraz disse a minha historia»
XXV.
Estes te tido ja prestes toda a gente,
Com tudo o mais que ao assalto lhes convinha^
A tardança os detém ai li somente
Q.ue inda então faz o Sol na onda marinha ^
Mas tanto que as estradas do Oriente
De Memnon pisa a mãe que ante o Sol vinha)
Logo os dous Capitães com grãa presteza
Se vão lá preseutar á fortaleza.
o rRIMKlRO CERCO DE DIU. G55
Em três grandes batalhas repartida
A gente, á fortaleza se apresenta,
Tão ufana, lustrosa, e tao luzida
Gtue o Turco Capitão comsigo assenta
Giue não poderá então ser resistida,
E tanto da vietoria se contenta
Glue os despojos Christãos ja então reparte
Dando a qualquer dos seus ja sua parte.
XXVII.
GLualquer destas batalhas agasalha
Mais de mil destes homens tão valentes,
Cojaçofar também dos seus espalha
Mais de dez mil por partes d iíTe rentes,
Os qiiaes em começando a graa batalha
Soltem logo os mortaes chumbos ardentes*
E as voadoras frechas, com que ajudem
Os seus, e ao defensor damnar estudem.
Os dous bons Capitães antes que dessem
O assalto, aos Lusitanos defensores.
Mandarão que as bombardas dispendessem
liá nas partes os seus bravos furores
Por onde hão de assaltar, porque tivessem
Entradas mais capazes, e maiores»
Não ha nisto detença, mas ja soa
O grosso estrondo, c o ferro mortal vòa.
6otí OliRAS DE FRANCISCO d"'aNDIIADE»
XXIX.
Faz logo o seu cruel usado eíTcito
Com ruina d(3 tudo o que alcançava.
Vendo o Turco que iêe elle ja feito
Gluanto para o combate desejava,
Não lhe soífre o feroz, ousado peito
Dilatar a victoria que esperava;
Faz cessar do canhão a fúria grossa
Porque elle executar a sua possa.
Logo das três batalhas a primeira
Lá diante se põe, a qual guiada
Vai d^hua larga entào grande bandeira
De cor branca e vermeilia quaiteada.
Ja sôa do tanil)or a voz guí;rreira,
Soa a voz do chirao mal concertada,
A grita he tal que as nuvens fende e arn inl)
A terra quasi treme, o mar retomba.
XXXI.
Em meio desta grita hua graa parte
Dos mil que a dianteira tèe agora,
Com tal fúria coinmette o baluarte
€lue imagina acabar tudo nesta hora :
Sobe tao alto o Alferes, que o estandarte
Lá no mais alto deile então arvora,
Q.UC nellcs hum fervor novo desperta
Com que toe a victoria por mais certa.
o PUlMEIilO CERCO DE DIU. 057
XXXII.
A outra parte dos mil que nao «ntende
No comhate que aos outros era imposto,
Logo arvora as escadas, e per tende
Nas casas do Silveira dar-lhe encosto,
Porém logo acha alli quem lh\) defende,
Porque os espingardeiros que alli posto
O Silveira para este eífeito tinha
Não deix3o por fazer quanto convinha.
Sóltao logo o mortal chumbo damnoso
Só naquelle que a longa escada alVerra,
Q-ualquer do que soltou fica gostoso
Porque então nenhum delles o tiro erra,
Tal, que quantos estão (caso espantoso)
Ferrados nas escadas vem a terra,
Q-ual manda a alma ao profundo senhorio,
Gtual vivo solta o sangue em grosso fio.
Nem por Isso as escadas despovoao,
Correm ao mesmo effeito outros ligeiros,
Logo os chumbos Christaos contra elles voao
Gtue nào são desta vez n>enos certeiros.
Mas também desta vez tanto os magoão
Qluh igual damno estes sentem aos primeiros,
l*orque estes também diío larga saliida
GLual ao sangue somente, qe^il á vida..
(Í58 OlíRAS DE FRANCISCO D^ANDRADE.
XXXV.
Ja agoríi este mortal segundo dano
Km todos imprimio hum tal receio,
Q-ue das escadas tendo o desengano
Nenhum mais afíerrar nellas se veio,
Antes o que se têe por mais ufano
Daquella empresa fica mais alheio,
Ponjue ha que obra nao he do forte peito
Entrar na morte certa sem proveito.
XXXVI.
Deixao logo as escadas, onde viao
Q-ue os espera hua corta e cruel morto,
Vào-se jijudar aos outros que querião
Com valeroso peito, ousado, e forte
Entrar no baluarte, porque haviào
(àue esta era ou mais honrada ou melhor sorte.
E cotno n'hum so posto o Turco insiste
SoíTre-o o Christào melhor, melhor resiste.
XXXVII.
JS^esta hora aquella gente que ficara
Nos dous esquadrões posta em ordenaiu^-a,
E a que Cojaeofar alli deixara,
Em ajudar os seus nao põe tardança :
Clual a longa espingarda então dispara,
Q-ual do curvo arco a frecha aguda lanrja,
Iltim e outro vai direito áquella parte
Q.ue mais danuic os que cslào no baluarte.
it 1'UlMKiilO CEÍUO U« íilV.
t>o9
Nunca íi niiiis fçrossa iiuvooi, mah inchada
Clue poios ares vai não va<2;arosa,
Tanta parte encubrio da luz dourada
Glue a terra opaca faz clara e formosa,
Nem tanta parte do ar íbi ocííiipada
Da banda d^storninhos copiosa,
Gluanta u frecha (pie sah(* lá do arco Mouro
Occiípa do ar, encobre da luz d\)UTO.
Ja nesta hora a infiel genfo atrevida
Com H gente fiel andava envolta,
Com fúria tao acesa e embravecida
Q.(ie hua e outra parte o sangue e a vida sátía ^
Mas quanto solta mais de sangue e vida
Tanto mais o furor cresce, e a revolla,
Ja por todo o logar a morte vòa.
Em toda a parto o ebtrondo e a grita soa.
Huns com vozes ja fracos lamentáveis
Da morte ja visiuha se queixavão,
Outros com altas vozes incansáveis
Qluq dessem cruel morte encommendavão •,
Arteficios de fogo innumeraveis
Alli se vêem, ({uíí liuns a outros se «paií;a\ã<^
K assi o fogo que senipre os dauína e oiieude
Ksse agora de si nusaiO os defendo.
tÍ60 OBKAS D£ FRANCISCO ©'aNDRAD»^
XLI.
O vaso que de barro era formado
E dentro o negro p6 mortal encerra,
Pouco foi do murrão hoje ajudado
Porque sem seu favor a chamma afferra^
Pois tão aceso está, tão inflam mado
O baluarte todo, e a mesma terra,
Q.ue em tocando no chão recebe logo
Melhor que do murrão o ardente fogo..
lievantão neste tempo o curvo dente
Bem quatorze galés, e o mar cortando
A estacada se vão ligeiramente.
Onde apenas chegadas forão, quando
Chegando aos seus canhões o fogo ardentt^
Mil pelouros mortaes sahem voando,
ôue com furor, estrondo, e ligeireza
Direitos lá se vão á fortaleza.
XLIII.
Nem deste sd furor se contentarão,
G-ue ódio nunca de pouco se contenta.
Mas mil vezes então descarregarão
A fulminea cruel brava tormenta ;
Mas por mais que as bombardas trabalharão
Emfim sahe em vão quanto o imigo intenta,
Porque esta revezada fúria insana
Nenhum mal íaz á gente Lusitana».
o PRtMKIilO OF.RCO DK DIU. 6GI
XLIV.
Mas o Gonvola, a quem era sujeira
T)o hal Marte da barra a governança.
De lá <x)ntra as gale's fa7, ir direita
A fúria que o cruel seu canhão lança :
Esta mais que -a dos Turcos aproveita,
Q.UO alguns despedaçou, que então alcança,
E desapparelhando dous navios
Faz todos affastar de temor frios.
A Portugueza gente como entende
Q.ue he só no baluarte o assalto agora,
As forças que por mil partes estende
AUi somente ajunta naquella hora.
Com isto hum tal furor novo os acende
iiue quasi trinta delles sahem fora,
N'hua praça que lá naquella parte
Sobre os reparos faz o baluarte.
Com grande ímpeto aos Turcos se arremessão
GLue alli mais de duzentos se agasalhão,
Arteficios de fogo então não cessão,
GLue hua grãa cópia então no imigo espalhao,
Co^as lanças apoz isto os atravessão,
E tanto os tratão mal, tanto trabalhão,
Q.UO com morte de muitos lhe he forçado
Perder o Turco quanto tèe ganhado.
€62 OBKAS DE FRANCISCO D*ANl>nAI)E.
XLVII.
Entre estos que aqtii a hora derradeira
Vilão, iaiubem o Alferes deixa a vida,
Mas nem por isso enião cabe a bandeira,
Antes quando elle cahe fica ella erguida,
Porque eo»n pressa tal, de tal maneira
Por mais de dez dos seus foi soccorrida,
<Aue antes que o Alferes caia, estes eslavão
Ferrados nella ja, e a sustentavao.
O Chrislão que isto vê, com força iíisi^te
3*orqije no ar a bandeira nao se veja,
De defende-la o Turco não desiste
Q^iie sustentá-la no ar também deseja •,
Assi que o que contende, e o que resiste
l^om tal fervor crescer faz a p<;leja,
iiue havendo bem hua hora q\ie durava
Parecia que então se começava.
Em meio de hum furor que he quasi insano
E que ho mais perigoso, ao que he mais forte
Chega hum pique mortal, longo, e profano,
A ]\Tartiin Vaz I*acheco, e de tal sorte
l^euetra este esforçado Lusitano
tliie lo^o o entreíja em mãos da cruel morte.
Vingando so com esta largamente
jMil que elle tinha dado á imiga gente.
o VUÍMKHIO Ci:ilCO DE JDIU. C03
Jiinlo entito delle ostíi no mosnio poslo
iÍMii que ora primo seu, e intimo amigo,
A quem foi Gabriel por nome posto
líi a alcunha ièo. do mesmo que atraz digo \
Varão a quem não foz voli.ar ú rosfo
A morte m;iis horrenda, o mor perigo,
Antes sempre o seu forte, invicto peito
Q.UÍZ o mais perigoso, e árduo feito.
ICste, vendo aòs seus pés da imiga lança
Tresp.issado o que dentro n'alma tinha,
Cortado d''hOa dor que a alma lhe alcança
Diz : Morrer eil comvosco bem convinha.
Mas por ir vossa morte com vingança
Folgo que se dilate hum pouco a minha,
fttic a minha eu a haverei por bem vingada
Com ir a vossa delia acompanhada.
Traz isto furioso e embravecido,
Só de morte e vingança desejoso,
Deixa o que ante seus pés tèe estendido,
A que inda agora foi tão piedoso.
Salta em meio do imigo, onde mettido
Revolve o forte braço valeroso,
O bjzente aço fura, talha, e fende.
Hum solta o sancrue, e morto outro se estende.
i}i)l OJiílAS DE FRANCISCO 1> ANDKADE.
LIII.
Mas o Turco não quu que líic durasse
Milito sem seu castigo esta ira ardesite.
Faz também que o seu ferro lho tfe^ípa^^ití
I)nns vezes o rosto mortalmonte,
(liie para quem a vida desejasse
Bastante occasiao era a presente
Para huscar remédio de ter vida^
Porem elle so qum* vô-la perdida.
tiv.
Faz-lhe isto que hum remédio vá buscando
(Xne a morte mais lhe apresse que dihitc,
J^ois com isto o furor accrescentando
Kntra mais furioso no combate.
Hum dos da companhia a elle chegando
Lhe dij5 que de curar-se agora trate,
Nem queira ja com tanta brevidíidc
Dar fim a seu esforço e mocidade.
tv.
Elle, inda de furor e d*amor cheio,
Kesponde : Como posso eu ter desejo
Da vida, ou ter da morte algum receio,
Se o que eu mais que a mi quiz, morto ja vejo ?
Grào gosto me he da imiga fúria em meio
Deixar a triste vida, em tal ensejo,
(tIub acompanhe no dia derradeiro
A quem sempre nos mais fui companheiro.
o .pRij.rr.ip.o cErvCO df. uir. Gôo
LM.
Apoz estas palavras pouco tarrla,
Torna a ajudar os seus na graa revoUn,
Mas a líiorte cruel que alli o aguarda
Faz que lá de travéz o chumbo s<51ta
Contra elle hua mortal, longa espingarda
Que na cabeça o encontra :, sabe~lhe envolta
Em sangue a alma, cahe morto o moç;) forte
Sobre o que lhe causou agora a morte.
LVII.
Q.UG exemplo pode dar a antiguidade
D^ontro maior amor que esto que digo?
Pirothoo de Thcseu mais do verdade
Nem Patroclo d''Achille9, foi amigo.
Nem do Niso e d"'Aurialo a amizade
Provada assaz co\) Grego sangue antigo
Vantagem a esta fez, nom Ih^i fizestes
\6s Pilades Phocense, e vós Orestes.
LVIII.
Pois se na idade nova ponlio o rosto
Não vejo cousa que isto inda arremede,
Porque vejo que só se põe o gosto
Naquillo q«)e o interesse próprio pede:;
E tanto nisto está ja o mundo posto,
(Graa miséria que a todas bem excede)
Que alli se inclina só o liumano peito
DVíude espera tirar algtJm proveito.
tíGG OBRAS DE FRANCISCO d''aNDíIADE.
Mas manda-mo a rasão qtie nao me aparte
D\)nde os Christãos ficavao combatendo.
Com grave dam no dMiua c d%)ntra parte
So estào os cruéis ferros revolvendo,
Q.uando de lá do mar do baluarte
E do de São Thomé, em fogo ardendo
Sahe d^ilguns camaletes o redondo
Pelouro, com medonho, horrendo estrondo.
tx.
Direito aos Turcos l;i vôa apressado,
Porque ou os damniíique, ou os destrua,
E vai elle esta vez tão bem guiado
Que esta sua tenção bem effeitua,
Gtue achando de infiéis tudo occupado
Não podo ser em vão a fúria sua,
Encontra-os, faz entre elles larga praça,
Aleija, fere, mata, despedaça.
LXI.
Neste tempo hum que lá no ajuntamento
Dos Christãos, da espingarda se servia,
Subindo lá no ruinado assento
Gtue em si o Silveira antes recolhia.
Hum Turco vê de lá que no ornamento
E riqueza do trajo, ha que seria
Homem de grande nome, e grande conta,
Chega a espingarda ao rosto, e nelle aponta-
f* PHIMEITtO CERCO DF- BIU. 667
LXII.
Sahc o c])un)l>o veloz, faz a jornac1;i'
Dirfíito ao triste Turco bem vestido,
Encontra-o poios peitos, c á morada
Infernal desce o Èsprito ja rendido.
Mas ccmo a esta nação he cousa usada
E dMionra, não deixar o conhecido
Corpo, ou do Capitão, ou do que he amigo,
Determina hum levar este que digo.
Sulia onde o morto estava, arreceando
Glue a levá-lo chegasse outro primeiro,
Sobre os hombros o põe, determinando
Levá-lo:, mas o mesmo espingardeiro,
Q-ue ja prestes está, nelle apontando
Nao foi menos então que antes certeiro,
Encontra o que levava a carga morta,
Cp.hem ambos, e á alma este abre a porta-
Eis outro qije cuidou que esta houra nega
Áquelle o Ceo, porque para elle a guarda,
Ferra o primeiro morto, e em si o carrega.
Mas outro igdal castigo não lhe tarda,
Porque o chnmbo subtil também lhe chega
Q-ue d''outra parte sóíta outra espingarda ^
Cahe morto este também, e aquelle honrado
Entra de dous no inferno acompanhado.
CGS OBRAS EE riíAxrisca T)*ANnn '.DP..
liem ao rovcz faz isto a Clírlstaa gf nte
tVue lá no baluarte pc;I<?Javn,
Porque nenhum entro cíles íia qtie attcMite
S?nao no imigo só que inda em pé estava.
O q(ie para cantar tenho presente
Mostra hem dos Christàos a fúria brava,
f^aso assiz desastrado, e miserável,
Se o tempo o nSo fizera desculpável.
r.xvi.
Kntre estes que o furor da gente imiga
Com outro mor furor pondo estão freio,
Jlavia hum, cuja idade he tao antiga
(iue trinta annos lhe chegão delia ao meio :^
Mas nem a antiga idade lhe mitiga
O natural esprito, sempre cheio
Da ousadia, que o esforço nelle punlia :,
Seu nome era Fernando, Aífonso a alcunha.
LXVII.
Este no bravo assalto sempre atura
Onde o seu duro esprito prevalece.
Até que a força que era menos, dura,
E o menos duro alento lhe fallece.
Cahe o triste entre os seus, mas nenhum cura
Be viVlo em tal estado, 'e o favorece,
(^ue nenlmm de salvá-lo agora trata
Eui quanto imigo vê com que combata.
o PUIiiEíllO CEUCO DE DIU, GÔ9
LXVltl.
Nonhum ha alU que eiilão o tempo gaste
O)^o que cuida que tce a alma rendida,
Não acha o triste quem d''alli o afiaste,
Mas acha quem na sua envelhecida
Barba, faz fincapé, porque contraste
Melhor á imiga fúria embravecida ;
Também sente a garganta, com seu dano,
O pé do compaalioiro deshumano.
lisvnnta quanto pude a voz, o brada
O triste velho, aos seus, que inda vivia,
E com a fraca, e ja debilitada
Força, trabalha então quanto podia
Por se livrar dos pés da sua irada
Ardente e impetuosa companhia,
Q-ue entre estes teve agora mor perigo
ílue entre o maior furor do ferro imigo.
LXX.
Porem pouco lhe vai agora o grito.
Nem a sua cansada força velha,
(lue esta topa hum furor quasi infinito,
AquoUe não penetra a surda orelha ^
Assi forçado lhe he render o esprito
Sem do seu sangue a terra ser vermelha,
Ou ter outro algum mal, mais que o que sentft
Do ardor com que peleja ;i sua gente.
inO OURAS T/F- FRANCÍSC) dVnDUAD F..
LXXI.
Estava nesfe ser a sjrã.i batalha
Km quo hum c ontro furor cresce g so are nJ;'
Porque o Turco d'entrar assaz tralialha,
Mas o Chrislao lli'o no^n, e Ih^o defendo,
(Luanda hum lá na abertura se agasalha
Ciue no reparo eski, d\)nde dispendc
}*erennemente o chumbo da espingarda,
Porque em disparando bua, outra não tarda.
Tão mal desta maneira (vs Turcos traia,
Porqtie quantos aponta nenhum erra,
GLue também o segunda Alferes mata
E outros muitos d%dli faz vir a terra :
Fa?, isto que no Turco assi se abata
O furor que ate então no peito encerra,
Porque os melhores seus ja vêem perdidos,
Glue começão de todo a ser vencidos.
A segunda batalha, que era feita
D^^seolhidos varões, gente animosa,
Sentindo que a primeira era desfeita,
De vingar esta afíronta desejosa.
Faz aífastar os seus, e vai direita
Lá para o baluarte impetuosa,
E apoz quatro bandeiras que diante
Leva, se põe (.'m cima n''h«im instante.
o ritiMr:iRO ckuco de diu. GTJ
LKXIV.
Duas crhnm paniio sao, que arremedava
O canliamnçOj ou ou mal i^^o entendo,
E íia bainha lá por onde entrava
A /iste, grandes madeixas se estão vendo
D^dva lâa, que qualquer se sustentava
l)"'hria maçSa que está resplandecendo
De tal sorte, que eu hei por cousa certa
Q.UC ou cila lie d^ouro, ou l)e d^ouro cuberta,
Estas bandeiras tao difíerençadas
Das outras na matéria, e no ornamento,
Dizem que do Caciz forão mandadas
Q^ue tee lá em Medina seu assento,
Onde as barbaras gentes enganadas
Com graa veneração e acatamento
Repulchro ao seu Mafoma falso derão,
Y, onde inda agora o acatao, e o venerão
Por divinas as têe, e as presao tanto
CXue então quiçá só nellas se fiarão.
Por vôrem que do seu profano santo
A grãa virtude ja partecipárão :;
Faz-lhos isto ja perder agora quanto
Medo antes dos Ciiristãos quiçá cobrarão,
Crendo que tal virtude alli se encerra
C-iue tudo ha de vencer, e por por terra.
<>7^ OBRAS DE FRANCISCO D^^ANDRADE.
LXXVII.
Com tal superstição e confiança
Sobe esta descansada, ousada gente,
Posta era cima, nao faz qualquer tardança,
Logo entra co''os Christãos mui bravamente^
Graa cópia d^arteficios nelles lança
Q.ue estão de si lançando fogo ardente,
Lança também com elles de mistura
O pungente zarguncho, a pedra dura.
Lxxvm,
Os que de fora estão, que não subirão
A ser no combater partecipantes,
Com tanta quantidade então atirão
De frechas, e de chumbos coruscantes,
Glue as lanças dos Christãos então se virão
E as mãos com que as sustem, das penetrantes
Tontas junto cravadas, e as rodellas,
E os rostos penetrados também delias.
, LXXIX.
Juntamente com isto a tal distancia
O altisono clamor soando voa,
Glue entrando na infernal, escura estancia
Rhadam;into, Aqueronto, e Dite atroa:
A confusão dos sons, e a dissonância
Q.ue em monte, em valle, ê serra, e ê bosque sôa,
Tal era, que podia bem julgar-se
Gtue o mundo começava a transtornar-se.
' o PRIMEIRO eERCO DE DIU. Q7à
LXXX.
Cresce em tanto a revolta e a crueldade
©""onde a todos mortal damno succede,
Ja descem de lá alguns da Christandade
A que a ferida estar lá em cima impede^
dual com queixosa voz, e piedade
Para a alma que sahe remédio pede,
Q.ual pondo nas feridas óleos, ovo,
Se torna a receber outras de nova*
Nem foi somente o ferro hoje culpado.
Também damna o cruel fogo profano,
Porque da mortal pólvora ajudado
Acende, inílamma, abraza, e faz grão damno:
E tão disforme fica, e tão mudado
O que o sentio, do ser, e vulto humano,
Gtue se acha irmão que vendo outro irmão pasma
E foge, imaginando que he phantasma.
LXXX II.
Grãa miséria era ver estes ardidos
Correr por cá, por lá impacientes,
D** intoleráveis dores combatidos
Causadas das mortaes chammas ardentes,,
Até que na salgada agua mettidos,
Q.ue lá na fortaleza, em differentes
líOgares em si têe a grossa tina.
Sentem aUivio á dor que os desatina*
LXXX.IXI,
Mas este allivio tal qne agora damlo
Liircstá o írio licor em que se viãu,
Outro damno maior Ih^está causando
K outra mais grave dòr, que a que sentiãc,
Porque assi mais em breve penetrando
Os vai o bravo ardor, a que fugião,
E em meio de dobrada dòr e queixa
O attribulado esprito a carne deixa.
LXXXIV.
Nesta hora em queofuror d^lium eoutroiniigo
Mostra mor crueldade e mor braveza,
Aquella Anua Fernandes, que atraz digo
_Q/ue tanto bem fez senipre á fortaleza,
Vencendo o seu pesado corpo antigo,
K a fraqueza que tèe por natureza
O trabalho e o temor, se sobe ao muro
Lá onde o loí^ar he menos seguro.
E a figura daquelle Omnipotente
Eterno Crcador nas mãos sustondo,
Oue por dar vida eterna á ingrata gente
Q-uiz a morte na Cruz matar morrendo,
Com esforçado peito, e reverente
^1(ístrando-a aos que estavao defeudendo,
Taes palavras com isto Ih^apresenta
(ine o natural esforjj-a lh''acçresctínta.
o VniMElKO CEKCU DK DIU. OTo
Com palavras d'esforço acende, c esperta
Ciuem por si se acendia, e se espertava,
E se algiun cahir morto acauo acerta
A levá-lo d'alli ella ajudava:
O que ferido vem, logo ella o aporta,
K o que com pouco dam no alli cliegava
Dizia que á peleja se tornasse
Torque nau tinha mal que liro estorvasse.
i) prudente Silveira, e valoroso
Não se descuida entào, ou se enfraquece.
No trabalho eummum não he ocioso,
Também os seus anima, e favorece •,
De tudo os provê quanto proveitoso
Ou ser-lhes necessário lhe parece,
Kaz vir fora o ferido, e com vergonha,
E que d^onde este sahe o são se punha.
LXXXVIII.
Manda vir das estancias o que inteiro
E o que nellas está melhor armado,
Manda que lá no imigo o espingardeiro
Solte o chumbo subtil arreijatado,
Q-ue inqxjssivel será não sor cert(;iro.
Tanto dos Turcos he tudo occupado.
Mas o que agora quer dizer meu canio
Eu sei que dará a todos .ujsto e espanto.
676 OJi»AS DE FKANCISCO D^ANDJXADE.
LXXXIX.
Hum destes que seguindo esta ordonan^-a
Do Silveira, a espingarda meneara,
Tantas vezes o chumbo delia lança
Que de todo o pelouro o desampara*,
Porém nella outra vez o que era usança
Lançar do negro pó, então lançara,
Gluer-lhe lançar a plúmbea companhia,
Busca-a, mas nao a achou como sohia.
Com isto o grão fervor nao se lhe applaea,
Antes mais se accrescenta, e se afervora ;
Ferra d'hum dente seu, que então ja fraca
Q-uiçá tee a raií, e o arranca fora,
A espingarda com elle logo ataca,
Q.ue do pelouro o offieio toma agora,
E ajudado da ardente chanmia leve
Entre os imigos entra em tempo breve.
Caso de louvor digno, e de memoria,
Só no mundo quiçá, quanto mais raro.
Mas não trata mais delle a minha hisloria,
]N2o porque eu de louvores seja avaro,
Mas porque sempre deu mór honra e gloria
A nação l'ortugueza (como he claro)
O braço vencedor que o engenho agudo,
Com quanto este ja agora iguala tudo.
o PlllMEIKO CKIICO BE DIU. CTT
Os Turcos entretanto nuo tornúrrio
Atraz co^o grão furor que ant<^s tiverao,
E tanto os defensores apertarão
Glue a vietoria quicú por sua liouverào,
Porque do baluarte mais ganharão
ôue os outros que primeiro o commtttorão,
Porém taes são os j)eitos que o defendem
Glue em quanto ha forca e vida, não se rendou
Folgara eu por seus nomes declará-los
Pois merecem assaz ser eonhecídos,
E co^o louvor devido eternisá-los,
Porém pois me sao muitos escondidos,
E eu a todos não posso nomeá-los,
Mas a todos os braços não vencidos
Os dão a conhecer, se me perdoe
(Aue a fama, e não meu canto, os apregoe.
Estes fortes varões, que eu não nomeio
Pois sua fama o faz mais largamente,
D'hum aceso furor postos em meio
Todo o peso sustem da imiga gente ^
E como em toda a parte tudo he cheio
T)o pique, espada, íVccha, e chumbo ard_;
Voa hua imiga frecha, e sem deten«;a
f^í din;ita encontrar vai o Proen<?.:.
678 OBRAS DE FRANCISCO I)'^ANBRAI>3.
Este era aquelle forte, invicto peito
De que atraz fez menção a historia minha ^
A quem o baluarte era sujeito
ôue este tão bravo assalto hoje sustinha.
Este, depois de ter até então feito
Q.uanto ao seu raro esforço bem convinha-v
AUi o veio a esperar a cruel morte
Onde a muitos a deu seu braço forte ^
No peito o duro arnez grosso vestia,
E a cabeça hum elmete lhe defende
A que a vista tirou, na qual sentia
Grão pejo para o que elle então pertende :
Logo a frecha mortal, que atraz dizia,
Itá. para elle direita os ares fende.
Por hum olho o encontrou, e a travéz corre^
Ambos llie quebra, e ao cérebro discorre»
Perde logo o sentido este esforçado
Mancebo, onde perdeo também a vista,
E sendo cego, e ja desatinado
Cumpre que do combate então desista,
Abaixo d^alli logo foi levado
Pois não têe forças ja com que resista ;
Os que íicão em cima em breve espaça
Sentem a falta deste forte braço.
o PRtMElTaO CERCO DE DIU. 679
Antes que aquella vez lá no Oceano
O Sol mettesse a leve roda usada,
Aquelle heróico esprito mais que humano
Solto ja da prisão fria e pesada,
Entra no Eterno Assento, e Soberano,
Deixando a terra triste e acompanhada
De lagrimas, de dôr, de sentimento
for esta grave perda, e apartamento,
XciX.
Aquelle valeroso cavalleiro
A quem deu nome António, e também dera
Dos sobrenomes Mendes o primeiro,
E Vasconcellos o outro apoz este era,
Pelejando então todo o espaço inteiro
Q.ue ha que dura a batalha horrenda e fera^
•Ja na garganta o pique mortal sente,
Também solta do rosto o sangue quente.
Mas nem por isso deixa o assalto aceso,
Até que hum meio berço, irado e horrendo-,
Soltando de travéz o mortal peso
Todo polo hombro esquerdo o vai rompendo ^
Cahe ja desatinado, e quasi preso
Da morte:, logo abaixo o vão descendo,
E antes que o Sol deixasse este hemisfério
Mandou a alma ao Celeste, Eterno Império,
680 OBRAS DE FRA?>'CÍSCO B^NDRAOS.
Cl.
Também a falta deste valeroso
Companheiro, então foi assaz sentida.
Durando assi o combate furioso
Muitos o sangue dão, muitos a vida.
Nesta hora o pertinaz, e inda animoso
Turco, a acabar a empresa não duvida^
l*ois mais que nunca então linha ganhado^
Porém bem caro assaz lhe têe custado.
Algum tanto a Fortuna se mostrava
Contraria, ou trabalhosa á Chrísfãa parto,
aluando hum a quem João o nome dava
E Rodrigues a alcunha, o qual de Marte
O mais raro valor partecipava,
Com grãa pressa subio no baluarte :,
Nos honvbros hua jarra este sustinha
Qlug de pólvora toda cheia vinha.
Tanto a jarra he capaz que encerraria
líua arroba do negro po ruinante.
Chegando este aos da sua companhia,
iiue com peito feroz, braço constante
Aos imigos a entrada defendia,
Lhes diz : Deixai-me, amigos, ir lá ávaiitf
Clue nestfS hombros vai quem vos ajudc^
íSfiido a mim e aos imifíos atatidc.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU» 681
Rompo por entre os sens com fúria e pressa j
E com quanto ainda a entrada se lhe nega
Elle então de romper e instar não cessa
Até que lá onde estão os Turcos chega*,
Co'*o corpo ajuda as mãos, e lhes arremessa
A jarra, e em vão lá nollcs não a emprega^
Mas apenas de si a despedira
(Guando aos seus com grãa pressa se retira»
CV»
O 1.1 teo inda qUc duro vaso quando
A dureza da pedra encontra e sente^
Mil pedaços se faz, com que mostrando
Se osteve á mor dureza obediente ^
E d''hum murrão que o vai acompanhando
Se lhe communicou a chamma ardente,
F;iz logo o usado cííeito a ardente chammaj
Abraza, despedaça, acende, inflam ma.
Vèem-se logo nos ares levantados
Mais de vinte que o pó sulfúreo afferra)
E co\is corpos de lá, despedaçados
E feitos em carvões descem á terra ;
Outros tantos ficarão maltratados
Desta ardente, apressada, mortal guerra.
Os Christãos, que esta ajuda bem conhecem,
Q.não bem podem então a favorecem.
082 OURAS DB FRAKCÍSCa D''A?.DttADE.
CVII.
Nem com isto d logar vazio iica
Q-\ni agora a acesa pólvora despeja 5
Mas o numero alli se multiplica
D\ajtros fortes varões para a peleja.
Deste succcsst) bom ?5e prognostica
O Christão que o lerá qual o deseja,
Nisto em que arreceava te-lo avesso,
Tanto anima hum bom golpe, hum bom succcsso,
cvitt.
Com este novo esforço e cõníialiça
C»uii taula força 09 Turcos commetterâo,
(iue lhe» he forçado atra?- fazer mudanÇ.t
Porque então tesisfir-lhe lifio piKh.Tao*
(filtra Vez o Christíío entfe elles lança
JMil panelias, qut^ cm fogo se aCendcrno*
due fazendo o cruel usado eíí*eito
Tudo por onde vao deixao desfeito.
Pega o consumidor braVo elemento
Nas bandeiras que fião por sacras tidas,
Hein ter obediência, e acatanuMito
As virtudes que estão nellas mettidas,
Pois nao somente forão n'hum momc;nto
As bandeiras do fogo consumidas,
Mas inda os que as sustem, das abundantrs
Cliammas forão assaz p;iríecipa:.!es.
i
o l'J{ÍMKlílO CEKCO DE DIU. 683
Faz isto no Chrisíão dobrar-se a2;ora
O grão fervor com quo atitrs pelrjavaj
K tocando a trombeta alta e sonora
Ja victoria ! vicforia ! então bradava.
Faz voar dos imigos corpos fora
As almas infleis, e os apertava
<^om tão impetuoso, forte Í)raço
(iiie 03 vai d^alli empuchando grande espaço^
O Chrístão nrcabdz injpetuoso
Não estava nesta Iiora descuidado,
j\í»s solta o mortal chumbo furioso
No imigo com grãa pressa e ^rão cuidado :,
O cjual segundo então he copioso,
K do arcabuz está pouco aítastado,
Neulnim dos niortaes chumbos o Tutco erra.
Cabe sempre oumalíerido, oti morto em terra*
l'2is nesta bofa também do babiarte
Do mar solta bum canhão a fúria horfendaj
l^ue antes que a sanguínosa sede farte
INIuitos fará que o Stygio fogo acenda.
Esta direita vai áquella parte
Onde então se faíia a grãa contenda,
Não aos que estão em cima combatendo
31as aos que estão ao pé favorecendo.
684 OBRAS DE FHANCISCO d''aNDRAD«.
CXIII.
Entra em meio da triste infiel gontcj
ílompe, derruba, mata, faz pedaços.
Nem resistem melhor ao mal presente
Os que sobre si têe os fortes aços:
E como não encontra a fúria ardente
Senão peitos, cabeças, pernas, braços^
Tudo por cá, por lá se vê desfeito,
Braeo, perna, cabeça, armado peito.
Nem apaga isto ao Turco a irada chama
Glue contra o Christão move espada e escudo^
Também o que está em baixo mais se inflama
"Vendo que do seu sangue he cheio tudo^
Innumeraveis tiros ja derrama,
Glual redondo e subtil, qual longo e agudo,
Sem que as horrendas mortes que então via
Lhe fíossão impedir o que fazia.
cxV.
Pouco apoz este golpe horrendo e duro
Eis lá do baluarte, que nomeio
Mil vezes São Thomé (d^onde seguro
O Turco então está, e sem receio,
Com quanto de lá deste mesmo muro
Pouco antes hum mortal dam no lhe veio)
Hum camalete solta o mortal peso
E contra os Turcos vai em fogo aceso.
« PRIMEIRO CBRCO DE DIU.
CXVI.
68^
E direite ao legar este caminha
Onde agora outro fex bem larga praça,
E como este igual força e poder tinha
Forçado he que igual damno também faça :
Mostra aos tristes a fúria com que vinha,
Mata outra vez, abraza, e despedaça,
E entre corpos mortaes, com seu grão dano
€luieta o seu furor mortal e insano.
CXVII.
Vendo o Turco quão bem o tiro acerta
Os de baixo, e também qu2o mal os trata,
E que o Christão lá em cima tanto aperta
Os imigos, que quasi os desbarata,
Pois ja lhes derrubou nesta referta
As outras duas bandeiras, e lhes mata
Os Alferes que as tee, se esfria, e desce
O furor que até então se acende e cresce,
CXVIII.
O fiel defensor isto entendendo
Com tal grita e fervor lhe põe o rosto,
Q.ue ja aquella batalha vai vencendo
Q.ue em grande aperto e risco o teve posto»
A terceira batalha isto então vendo
Faz, de grãa fúria cheia, e grão desgosto,
Apartar os cansados ^ mas forçado
Me he que eu também me cale de cansado.
» 20
o fi^Riiii<:iiio
CERCO DE DIU.
CAUTO XX.
A terceira batalha dos imigos he tamhem roid
e desbaratada poios Christãos, Os 1\ircos se
reiirão com, grande damno e perda da sua
gente. Enibarcãose nos seus navios ^ e ior-
nuo-se para suas terras.
♦la vejo o doct; porto desejado
Se o dest-jo de vê-lo não me engana,
Onde estarei seguro e descansado,
Sem contrastar á forya mais que humana
Do furibundo Noto, horrendo e irado,
E da impetuosa onda, grossa e insana,
Em frágil barca, e mal apercebida
A viagem lao dura, c tão comprida.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 68t
Em meio do furor da onda marinha
Engrossada co'© bravo, inchado NotOj
Mil vozes vi perdida a barca minha
Por faltas ou do leme^ ou do Piloto,
E pois tão mal composta cila caminha
Por mar tempestuoso, largo e ignoto,
Maravilha he do Ceo que o porto veja
F; rn padecer naufrágio, que deseja.
Ill*
.Poirm nao sei se fofa mais ditosa
Kin se render de todo ao tiiar e ao vento
Ficiíndo assaz contente e gloriosa,
E co'o ganho d'hum tão heróico intento,
Que apoz via tuo larga c trabalhosa
Chegar ao fim ao porto a salvamento
Onde eu sei que ha de ter (e não me engano)
Outro naufrágio mor e de mor dano.
Porque então se verá quanto atraz fico
Do que pedindo estava hum tal sujeito,
No qual inda o mais fértil, e mais rico
Engenho, fora estéril e imperfeito ^
Por onde eu ja d^aqui me prognostico,
Pois o erro começou ja do conceito.
Ter antes vitupério, que honra ou gloria.
Pois ousei emprehender tão alta historia,
V.
Vos, ó fortes varôes, de quem Gu tanto,
Perdoai se não dou tudo o que Iic vosso,
Porque não ha ninguém que possa tanto,
Menos eu, que entre todos menos posso i^
E se cu qui2 empregar em vós hum canto
Q.ue eu conheço por baixo, rudo, e grosso,
He só porque me força hum grão desejo
Q-ue vojão de vós todos o que eu vejo.
Vi.
Porem nao Vos pareça qiie a rudezéi
Do men inculto verso, pouco agudo,
Abaterá a vossa alta fortaleza
Com que d^espanto tendes cheio tudo ^
Porque das vossas obras a grandeza
Bastará para honrar meu canto rudo,
E este nunca será tao poderoso
Que faça o que em vós ha menos lustroso.
Vil.
A terceira batalha que alli estava
Prestes para qualquer necessidade,
Vendo que ja a segunda começava
De render-se á Christâa ferocidade,
Com tal grita que os ares atroava.
Por dar soccorro áquella adversidade
Corre direita lá ao baluarte,
E o cansado d'alli faz que se aparte.
Ô l*RiMElRO CERCO DE DtU, 689
VIII.
Entra no logaf deste ja cansado
Outro, com novas forças descansadas.
Logo o novo furor aceso e irado
Faz menear as laníjas, e as espadas.
Vê-se de novo o sangue derramado,
E veem-se almas de novo trespassadas
Ba terrestre prisão ao assento eterno,
Entrando huas no Ceo, outras no inferno,
IX.
Mas como nSo viesse tão provida
Ja agora esta batalha derradeira
De esforçados varÔeS, gente escolhida,
GLuanto a segunda ja veio, e a primeira.
Não foi com tanta instancia combatida
Agora a Christãa gente, e de maneira
Q-ue em aperto ao passado igual se Veja,
Porque mais tíbio o Turco ja peleja.
X.
Causa he quiçá também poíqiie appaíece
Nestes agora o peito menos forte,
Ver que a fortuna os seus desfavorece,
Vendo nelles incêndios, sangue, e morte ^
Pois nas guerras mil vezes acontece
Causar maior espanto a adversa sorte,
E o mal do companheiro, e grão perigo,
Q-ue a constância e valor do bravo iraigo.
Presente aqui se achou ^ para seu dano,
ílum Janizaro então, tão forte, e clieio
D''hum tao alto valor, tão sobrehumano
Glue nunca nelle entrou qualquer receio ^
Ao qual o renegado Italiano
(Cojaçofar mil vezes o nomeio)
Por mulher hua filha sua dera,
Carahacem ouvi que o seu nome era»
XII.
Em meio da peleja este se lançaj
Passa por entre todos animoso,
E sem temor da imiga dura lança
Mostra o seu forte braço valeroso.
E não somente a esforço e confiança
Move o Turco esquadrão, quiçá medroso j
Mas o imigo também, que têe diante,
Faz do dam no dos seus partecipante,
Xlll»
O Christao que aos imigos resistia
Vendo quanto este Turco he differentêj
Assi nas ricas armas que vestia.
Como no grande esforço, da outra gente^
Dessas poucas panellas que ja havia,
Glue lanção de si a braVa chamma ardente
Q-uando ao murrão aceso abrem a porta.
Faz com que hua contra elle os ares corta»
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 691
XIV.
Nem lhe sahe hoje em vao o que pertende,
Porque faz o caminho tao direito
Gtue o misero infiel nuo se defende
De sentir o seu bravo horrendo effeito ^
Solta a chamma cruel, que abraza e acende
Ao triste a perna, o braço, o rosto, o peito,
E cercado de dôr intolerável
Se queixa com voz alta, e lamentável.
XV.
Forçado desta dôr que o desatina
Deixa o assalto cruel, sanguinolento,
Mas no reino infiel de Prosérpina
Sua alma desta vez não fez o assento,
Porém sente nos membros graa ruina :
Da qual desaventura, e detrimento
Glue hoje neste combate lhe acontece
Se jacta assaz depois, e ensoberbece.
A falta deste so, que tenho dito,
ôue os seus ja não ajuda, nem anima,
Tanto abatco então o tibio esprito
Dos mais que pelejando estão lá em cima,
Glue com quanto de muitos acho escrito
Glue são de grão valor, de grande estima,
De todo agora ja se enfraquecerão
E aos quasi ja rendidos se renderão.
692 OBRAS DE FRANCISCO d\4iNDRADE.
O cansado Christâo, e tao ferido
Q-ne quasi ja iiao têo que dar a veia,
Depois de ter grão tempo resistido
A hua graa cópia sempre saa e cheia,
Vendo o imigo furor enfraquecido,
E que elle ja de todo o senhoreia,
Com nova grita e esprito tao mal trata
O Turco, que de todo o desbarata.
Este, a que hum grave medo ja atravessa,
E do seu braço está desconfiado,
"Volta as costas de todo, com graa pressa,
Ja nao soberbo eutão, ja nao ousado^
Do baluarte abaixo se arremessa
Mais do que antes subira inda apressado,
Deixando o que ganhou com sangue e mortes
De grãa copia de imigos, peitos fortes.
XIX.
Durou este combate hum grande espaço
Que em quatro horas inteiras se limita,
Nas quaes sempre o Christâo e o Turco braço
Em novo ódio e furor se acende e incita \
E renovando sempre ou fogo ou aço
A porta á vida e ao sangue facilita,
Dando isto não receio, mas motivo
De fúria e de vingança ao sao e ao vivo*
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. C93
XX.
Mas como este combate bravo e horrendo
Foi mais que os outros largo e furioso,
Também para os que estavão defendendo
Mais que nenhum dos outros foi custoso \
Porque se eu esta conta bem entendo
Gluatorze ao Reino Eterno e Glorioso
Passão os seus espritos nao vencidos,
E são mais de duzentos os feridos.
XXI.
Tão vazia deixou da forte gente
A fortaleza, esta áspera batalha,
Qiue quarenta varões nella ha somente
Q-ue se possão servir de espada e malha.
Consumio-se de todo aqui o ardente
Pó, com que os seus coriscos no ar espalha
Ou o grosso canhão, ou a espingarda,
Nada delle o barril dentro em si guarda*
XXII.
As panellas, e as bombas, que ajudadas
Do fogo, em vivo fogo se acendião,
Todas naqiielle tempo erao gastadas,
Q.ue a defensão assaz favoreeiào ;
As lanças erâo todas tao cortadas
Do continuo bater, que servirião
Mais ao ferido e enfermo para encosto
Q-ue ao sao para mostrar ao imigo o rosto»
694 OBRAS DE FRANCISCO d'aNDRADE.
Nesta falta de tudo, ao grão Silveira
O esforço nao faltou que antes tivera,
Mas se ordena e refaz de tal maneira
Com a gente plebeia que alli era,
Q-ue querendo a infiel Turca bandeira
Commettê-lo outra vez (como se espera)
Veja que ainda que alli tudo o mais falta
D^esforço e defensão só não ha falta.
XXIV.
Porém os Turcos ja com grão receio
Ás estancias então se retirarão,
Deixando do seu sangue o logar cheio
Q-ue para combater alli tomarão^
D'onde hfia perda tal lhes sobreveio
Glue mais de mil o sangue derramarão,
E dos melhores vão mais de quinhentos
Sentir os inferaaes, graves tormentos.
XXV.
Tanto este grão temor que o Turco havia
O peito lhe trespassa, e a côr lhe muda,
Glue quando o Sol chegou ao moio dia
Recolher-se ás galés qualquer estuda ^
Leva também comsigo a artilharia,
Mas aqtiella semente que he miúda,
E com menos trabalho, e mor presteza
Se luva. sem se ver du fortaleza.
o PRIMEIKO CEUCO DE DIL. tí9o
Mas por se dar melhor expediente
Áquella artilharia que embarcavao,
As galés se chegarão juntamente
Mais á Villa dos Rumes, do que estavao.
Porém em quanto as terras do Occidonte
Hoje os raios do Sol aliimiavao,
De bater o canhão grosso niio cessa
Co'o seu furor usado, e usada pressa.
XXVII.
Sendo da fortaleza divisado
Como as galés se vem para mais perto,
E que hum grosso esquadrão, com grão cuidado
Se embarca nellas claro e descuberto,
A lembrança do engano antes passado
Faz que todos agora hajao por certo
G-ue quer o Turco usar de igual engano
Contra o ja destroçado Lusitano,
Esta geral suspeita tanto esperta
O prudente Silveira neste ensejo,
Q-ue tendo elle também por cousa certa
Glue d'enganá-lo o Turco tèe desejo,
Esse pouco que tèe tao bem concerta
Glue parece que tudo tèe sobejo :
Tal era o grande esforço, a gràa prudência
Com que ordenava então a resistência.
XXIX.
Nem só a defensão facilitava
Mas de victoria dá grande esperança,
E tao seguramente isto affirmava
Q.ue enche todos de esforço e confiança;
Tal que o que era mais fraco então jurava
€lue de tudo alli têe grande abastança,
Pois não cuida que cousa falta esteja
Onde no Capitão tudo sobeja.
XXX.
o qual vendo que toda he ja gastada
Q^uanta pólvora tinha naquella hora,
Faz que toda a que estava agasalhada
Em quatro peças grossas saia fora,
Pois nenhua outra está ja carregada
Antes todas cessado têe ja agora,
E o negro pó que então faz sahir delias
Por trinta repartio, e mais panellas*
XXXI.
Todo o fraco logar com brevidade
Repara, como a falta lh'o concede,
Das pedras nelle põe grãa quantidade
Gtue co''o braço atraz posto a mão despede ^
Alguns feridos, cuja enfermidade
Poder ja mostrar rosto não lh''impede,
Ajunta com alguns dos que sãos erão
€Lue inda assi confiança lhe puzerão..
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 697
XXXII.
Muitos feridos que isto imo podião
Se mandarão levar ao baluarte,
Porque para morrer este escolhiâo
Por logar mais decente que outra parte ^
Os que das espingardas se servião
Por todo o logar fraco elle reparte,
E a pouparem então mais os convida
A pólvora, que o imigo, .sangue e vida.
Com tão pobre apparato, e differento
Do combate que espera horrendo e forte,
Determina esperar o fim presente
Glue lhe ordenar a dura ou branda sorte,
O qual não poderá ser descontente
Pois será o seu mor mal a honrada morte,
E se lhe tira o gosto da victoria
Não lh'o pode tirar da Eterna Gloria.
XXXIV.
Todo o espaço que o Sol hoje alumia
A terra, antes de entrar lá no Oceano,
Se gastou (porque então ja quasi havia
Em todos de morrer hum desengano)
Em cuidar cada hum como podia
Morrer, com dar ao imigo maior dano,
E isto em ninguém temor põe, ou tristeza,
Mas em todos alegre fortaleza.
698 OBRAS DE FliANCISCO D^ANDRAUE
XXXV.
Tal era o alegre esforço, que era tido
Por hum particular favor celeste,
E como para festa, quem provido
Do bom vestido está, agora o veste ^
E o que não iêe de seu o bom vestido,
Busca, e nao lhe fallece quem lh''o empreste*,
Por in hábil, e assaz desamparado
Se têe o que então se acha mal ornado,
XXXVI.
Este esforço geral, este grão gosto
GLue em to«dos d^hum honrado fim se entendo,
Nos homens não está somente posti»
Também aos feminis peitos se estende :
Glualquer delles mostrar direito o rosto
Contra a gente infiel também perteiide,
E n'alguas fez isto taes effeitos
Q.ue cubrírSo de ferro os brandos peitos.
XXXVII.
Q-uasi toda a seguinte noite inteira
N 'alguns rebates falsos foi gastada,
Dados polo mandado do Silveira
Por nao estar i gente descuidada ^
E vio-se em todos mostra verdadeira
Da vontade geral determinada
Q-ue Iêe de contrastar aos verdadeiros.
Pois todos nisto qu(;re«i ser primeiros.
'ui:.íi:íuo ci:nco jde diu. G09
XXXVIII.
Mas tanto ha ja que os Turcos occiípados
Deixei em se embarcar, que o pensamento
Mc dá que estão ja todos embarcados,
Q.uero ir vêr qual agora he seu intento.
Tendo estes nos combates ja passados
Recebido grâa perda e detrimento
Na gente e munições, neste quixerao
Mostrar seu poder todo, e assi o fizerao.
XXXIX.
Porem neste também se lhes mostrarão
Os Fados mais cruéis que protectores,
Pois com grande dam no sen se sujeitarão
(Como ja disse) aos fortes defensores.
Depois que se ás estancias retirarão
Achào, tornando em si, que dos melhores
Duzentos sobre mil tinbao perdidos,
K os vivos quasi todos são feridos.
XL.
Achao também de todo consumidas
Ja quasi as munições, com que oflendiao,
K que cora forças tao enfraquecidas
Nao somente assaltar ja não podiâo,
Mas que se acaso fossem commettidas
De qualquer leve força, se porião
A risco de acabar-se, e de perder-se
Sem poderem somente defender-se.
^00 OBRAS DE FRANCISCO dVkDKADE.
Afora isto também temem que a gente
Da terra, o seu estado contemplando,
Contra elles novidade algua tí?nte
Com que grão damno assaz lh'irá causando^
Pois de gente nao têe falta somente,
Mas também o comer lhes vai faltando,
K os da terra, que só provê-los podem
Com mantimentos, entSo ja mal lh'acodem.
Estas e outras rasões, tanta efíicacia
Tiverão, no infiel povo profano.
Em quem ja era abatida a antiga audácia,
Resfriado o furor, e o esprito ufano,
Q-ue vendo que durando a pertinácia
Lhe cresce a occasião de maior dano.
Determina deixar aquella guerra
E tornar cada hum a sua terra.
XLllI.
Com este pensamento, assaz alheio
Do que a gente Christaa delle cuidava,
Depois que a se embarcar o Turco veio
Como (se bem me lembro) antes contava,
Tanto que ao Occidental salgado seio
O Sol se recolheo, e começava
De se estender na terra a sombra escura,
Recolher o canhão grosso procura.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 70 í
Mas porque isto o Christao nao sinta agora,
E o rumor lhe descubra esta tamanha
Fraqneza, que lhe encobre a nocturna hora,
D^hum grão silencio então isto acompanha:
Porém da artilharia algua fora
Deixa, inda que a possivel força o manha-
l'Õe pola não deixar, porque não tinha
Quanta gente para isto lhe convinha.
XLV.
Fica entregue ao Latino renegado
Todo o canhãxj porem que então nao hia,
Glue delle e das estancias grão cuidado
Toma, e de tudo o mais que alli se via.
Lego em logar do Turco ja embarcado
Põe a gente da sua companhia,
Porque o Christao não sinta esta sua ida
Temendo que se a sente então Ih 'a impida.
O Turco, em quanto a noite persevera
Tolhendo a clara luz co'o manto escuro,
Tudo quanto embarcar possivel lhe era
Como pôde melhor, pôz em seguro.
Porém a Christãa gente em tanto espera
Glue em vindo o matutino raio puro
Lhe venha o fim com ello juntamente
Do trabalho geral que alli se sente.
T02 OURAS DE FRANCISCO D''ANiaRADE.
Chfcla desta esperança, que ha por certa,
Está a gente Christaa, mas animosa,
Ao sonnno não entregue, mas desperta,
De vender bem a vida desejosa,
Gluando lá no Horizonte dcscuberta
Foi a alegre manhãa, clara, e formosa,
Em que a Igreja festeja, com louvores,
Todos os que no Ceo são moradores.
XLVIII.
Ja agora esta nao vem acompanhada
De imigos esquadrões do aço luzentes.
Nem soa nelle a horrisona alvorada
Dos pelouros cruéis, bravos, ardentes.
Mas quieta apparece, e socegada.
Cheia de ares serenos, e contentes,
Nâo qual se espera, horrenda, triste, e dura,
Que lhe faz mais formosa a formosura.
XLIX.
Tanto que a nova luz, serena e clara,
Mostra a ausência aos Xpãos do Turco imigo,
E que o Cambaio em seu logar deixara,
E elle os mais dos canhões leva comsigo,
Com tal prazer que a lingua o não declara
Cada hum corre a dar a nova ao amigo
Do que elle ja sabido e visto tinha,
E de que também novas dar-lhe vinha.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 703
Porém com quanto hum e outro isto que ouvira
Por seus olhos ja têe visto primeiro,
Ouvo as novas porém do que bera vira
Com grão prazer, do amigo c companheiro,
Julgando que o que vio não he mentira.
Pois outro o vio também, mas verdadeiro,
E assi esta reciproca alegria
Dobra, e acredita o bem daquelle dia.
LI.
Entretanto o infiel não pára, ou cessa.
Antes em sou intento continua,
Q.ue quiçá hum grão temor o move e apressa
Que o commetta o Christão, e alli o destrua.
Agua recolhe dentro com grãa pressa,
E o mais que necessário lhe era a sua
Viagem larga assaz, e nisto gasta
Sete dias, que hum menos lhe não basta.
Mas vendo os que na terra eutao vivião
O destroço que os Turcos ja levavão.
Muitas daquellas cousas lhe impedião
Q.ue elles para a viagem embarcavão,
E com tanto seu dainno isto fazião
Gtue vida e sangue huns e outros derramavao;
Mas faz Cojaçofar com que esta gente
Os deixe fornecer bem pobremente.
704 OBKAS DE rilANCISCO u'AíNDRADE.
LIII.
Todos os sete dias que estiverao
Km fornecer-se os Turcos occupados,
Jj-d por aquella praia se pozerão
íiue meia légua os tee só aflfastados
T)a Christaa fortaleza, lá d'onde erao
De todos claramente divisados,
E os vião trabalhar desde que a terra
O Sol visita, até que o mar o encerra.
Nestes dias porém nao se assegura,
Nem se descuida ou dorme o bom Silveira,
No muro reparou toda a rotura
Com que de novo fica sãa, e inteira,
E tudo o mais fazer então procura
(Q-ue esta mostra nao ha por verdadeira)
Q-uanto a se defender lhe era importante,
Como se o Turco vira inda diante.
Aquelle mesmo claro e alegre dia
Glue aos Christãos deu o gosto que atraz digo.
Gluando a sombra se faz ja longa e fria
E o Sol torna a buscar o assento antigo,
Mandar o Capitão alguns queria
liíí fora onde estivera o campo imigo,
A qual gente de mais então não trate
Gtue nas estancias dar algum rebate.
o rniMEiíio cLRco de diu. 705
LVl.
Não tanto porque ao Mouro maltratasse
Q-uanto por lhe encubrir quão fraco estava,
Porque ellc se o sentir não intentasse
Dar fim a isto a que o Turco o então dava \
E para que esta gente derrubasse
Aquelles bastiões que lá na cava,
De trincheiras assaz forteficados,
Os Turcos antes tinhao situados.
LVII.
Pode António da Veij^a logo esta ida
Glue a fortaleza está feitorisando,
A qual do Capitão lhe he concedida
E lhe está mil louvores ajuntando^
Manda também que o vão nesta sabida
Vinte e cinco varões acompanhando.
Cujos peitos, e braços valerosos
Para outros feitos são mais perigosos.
LVIII.
Não quer Veiga fazer qualquer demora
Q-ue para isto hoje o esprito se lhe dobra,
Dos seus acompanhado, salta fora,
Seu furor nas estancias põe por obra.
Pouco o Cambaio aqui resiste agora,
Q-ual perde a vida, qual fugindo a cobra ^
Cahe toda a estancia ja com grâa presteza
Glue mais perto se vê da fortaleza.
<tr*J OliílAS DE VRANCIIiCO D AKCRAUfí.
Em quanto Veiga nisto o tempo gasta
Salie do longo da cava, pola banda
De fora, hum dos que traz, que se lhe aíTu.-ífíi
Gluiçá mais do que o tempo e a rasao matiJa \
Mas como isto ninguém ja lhe contrasta,
Tanto neste caminho adiante anda
Q.ue chegou a hua estancia, cujo posto
Sobre a rocha do mar estava posto.
LX.
Entrando nella a vé des mi parada,
E lá no bastião delia subindo
llíla bombarda vio, que alli deixada
Foi dos Turcos, e então nao advertindo
Se ella era saa, ou se era arrebentada,
(Leão era, se o certo estou ouvindo)
E achando nesta estancia hua bandeira,
Volta, e comsigo a traz por companheira.
LXI.
Direito áqnclla parte lá caminha
Onde António da Veiga antes deixara,
Chegando lá lhe disse d'onde vinha
E daquella bombarda que lá achara.
Veiga vendo que tudo feito tinha
O para que o Silveira o lá mandara,
Nem ha necessidade a que elle acuda,
Lá para a fortaleza o passo muda.
I) 1'KIMRIRO CERCO DE DIU. /'
LXII.
Este, ou que o bom successo deste feito
A névoa do temor lhe desfizesse
De que notado foi sempre o seu peito,
Ou que a morte chamá-lo ja quizesse,
Animado hoje assaz e satisfeito,
Importuna o Silveira que lhe desse
Licença, e companhia com que possa
Tomar aquella peça forte e grossa.
LXIII.
O Capitão se escusa e se desvia
Do Veiga, e assi lhe diz, que bem entende
Q.ue em tomar o canhão pouco fazia
Pois que ninguém tomá-lo lh''o defende,
E pois em toda a estancia nao se via
Outro canhão algum, bom se comprehende
Q-ue aquelle deve ser arrebentado.
Pois todo o que era são fora levado.
LXIV.
Veiga a tantas rasões nao obedece,
Antes mais importuna, e mais atura,
E tanto em seu intento prevalece
Q.ue escusar-se o Silveira em vão procura :,
O qual por quanto agora bem conhece
Q^uão pouco em lhe outorgar isto aventura.
Por não ter este so delle esta queixa
tJumprir sua vontade agora o deixa.
708 OBRAS DE FRANCISCO D^NDRADE.
LXV.
Fax-lhe Veiga o devido acatamento
E se vai fazer prestes para esta ida,
E logo como o usado mantimento
Deu ao corpo mortal, na hora devida,
Se cobre do melhor seu ornamento,
E inda que hum e outro amigo o então convida
Com armas, e era vestir-lh''as insistisse.
Nenhum dobrar o pôde a que as vestisse.
LXVI.
E de vinte homens ja posto diante
Q-ue o Silveira para isto então lhe entrega,
Sahe de longo da rocha, que a vazante
Da maré, que he bem baixa, lh'o não nega.v
Por hum logar trepando, que bastante
Subida, e fácil dá, á estancia chega ;
Acha o canhão, mas acha prova clara
Gtue por quebrado o Turco o não levara,
LXVII.
Mas nem por isso quiz que lá ficasse
Pois viera alli S(5 para levá-lo.
Faz que á borda da rocha elle chegasse
Porque abaixo d^alli possa lançá-lo.
Mas a morte, que faz que elle arribasse
Alli onde viera ella esperá-lo.
Para o levar ordena então hum meio,
€tue sabendo eu que hecerto, inda o não creio.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 709
LXVIII.
N'hum alto que d^alli distante estava
Mais de seiscentos passos, se bem conto,
Hum Mouro appareceo, que meneava
Híia espingarda, e os vinte olhando pronto,
Inda que assaz de longe, os enxergava •,
Põe no rosto a espingarda, e o subtil ponto
Direito nelles põe, e faz que logo
A pólvora o furor sinta do fogo.
Sahe o chumbo subtil, e contra a estancia
Onde então Veiga está voa direito,
E sendo grande assaz esta distancia
Parece que qualquer bem fraco objeito.
Com qualquer fraca e leve repugnância,
Lhe pudera impedir o usado effeito.
Porém não foi assi, que a cruel morte
O fez mais do que soe agora forte.
LXX.
Entra em meio dos vinte, mas somente
Busca o misero Veiga, o qual mettido
No meio estando então da sua gente,
E de estatura sendo mal crescido,
Pola cabeça o encontra o chumbo ardente,
Deixando todo o que era mais comprido,
Glue por rasão estava em mor perigo
Glue o pequeno, a quem elle dava abrigo.
710 OBRAS DE FRANCISCO D^ANDRADl
Do pelouro mortal Veiga encontrado
Palliflo cabe, perdida a vitía chara,
O esprito, do que soe, mais hoje ousado.
Entra na Região Celeste e Clara.
A fortaleza foi logo levado,
Deixando lá o canhão que o lá levara.
Morte de ponderar mais digna, entendo,
Glue quantas nesta guerra estive veado.
E inda que com louvores esta honrar-se
Parece que nao he cousa devida,
Sem rasão he porem vitiiperar-se
-Q-uem, ou bem ou mal seja, perde a vida,
Rasão me pareceo manifestar-se
Gluão bom do Veiga foi favorecida
A fortaleza, porque a vida leve
O louvor que se á morte pouco deve.
LXXIII.
Este, em quanto o feroz Turco se espalha
Em torno 4 fortaleza, nao cessando.
Ajudado de muitos que agasalha,
E que está á sua custa sustentando.
Nos reparos e em tudo o mais trabalha,
Pedra, terra, e o que cumpre acarretando
Com que na defensão tão bem ajuda
Como o que contra o imigo o passo muda,
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 71 i
LXXIV.
Porém, ou cu mal ouço, ou com voz alta
Me chama agora o Turco, e me importuna,
GLue deseja partir-se, pois lhe falta
Das armas o favor, e da Fortuna.
Ja para elle outra vez meu canto salta
Pois ja prestes o vejo, e que opportuna
Conjunção têe agora de partir-se,
E vejo que sem mim pode mal ir-rse.
Esta gente infiel, que de ufania
E de soberba cheia, e confiança,
Victoria com louvor se promettia
Apesar do poder da imiga lança,
E ja entre si os despojos repartia,
Porque têe mais certeza que esperança
Gtue o Christao defensor, que têe diante,
Não pode a resistir-lhe ser bastante ^
LXXVI.
Agora de temor cheia, e d'espanto,
Vencida dos que havia por vencidos,
Depois que obedecer a Rhadamantho
Foi grãa cópia dos seus, mais escolhidos,
Tendo das munições gastado tanto
Gtue se espanta de o ver, sendo cumpridos
riinco dias do mez que deu o assento
Ao Sagittario, solta a vella ao vento.
712 OBRAS DE FRANCISCO B^ANORABE.
Mas como com graa força então sopra\a
O Levante, o qual era assaz ponteiro
Ao logar em que a armada surta estava,
Torna outra vez o esperto Marinheiro,
Vendo que em vão avante ir trabalhava,
A surgir onde surto era primeiro.
Esperando que o tempo dê jazigo
Com que vá sem trabalho, e sem perigo,
I.XXVIII.
Também de novo a armada o fundo afferra
Porque os Turcos se viao occupados
De muitos a que a larga crua guerra
Deixou do imigo ferro trespassados,
Determinando então deixar em terra
Todos os que estào mais debilitados,
Porque a longa viagem nao consente
O peso de tão fraca e débil gente,
LXXIX.
Logo ao seguinte dia executarão
Esta o1)ra, cheia assaz de crueldade,
E sendo á tarde já, desembarcarão
Os que mais apertou a enfermidade,
E sem outro remédio os entregarão
Somente a cortezia e piedade
ô.ue quizessom usar os estrangeiros
Co"* os que acharão cruéis os companheiros.
o l'KIMEIRO CERCO UE DIL'. 71 i
LXXX.
Nesta hora sendo ]a mais moderada
A fúria do feroz, bravo Levante,
Sóka a vella de novo a imiga armada,
E d^alli se vai pôr hum pouco avante^
Até hua ponta sahe contra a enseada
De Cambaia, que em freute está, e distante
Da Chrislãa fortaleza h'goa e meia,
Busca outra vez o ferro a funda areia.
Outra vez aqui faz que se encolhesse
O Turco Mariufieiro o inchado linho,
Porque quando depois se recolhesse
O Sol ao usado seu leito marinho,
Q.uando a maré vasava, elle podesse
Seguir prosperamente este caminho
Tanto de toda a gente desejado,
E duas vezes já em vão tentado.
LXXXII.
Apenas no loc^ar que estou dizendo
Aquelles infiéis hoje surgirão,
Q-uando os da fortaleza o estrondo horrendo
Ouvem de alguns canhões, que longe atirão
Contra Madrafabat (se bem entendo)
Estes homens o estrondo agora ouvirão,
Do qual se forma lá vario conceito,
Mas todos cuidão que he de seu proveito.
714 OBRAS ]>E FRANCISCO B^ANORADE.
JLXXXIII.
Este da armada sabe que a cargo tinha
Hum António assaz forte e d''lionra amigo,
Q-ue o sobrenome têe da bonrada linba
Dos Silvas, nobre sangue, illustre, e antigo,
Q-ue com alguas fustas alli vinha
Para, apesar da morte e do perigo.
Entrar na fortaleza, e soccorrella,
Se qualquer modo achasse d'entrar nella^
Mandado este alli foi do valeroso
Noronha Viso-Rei, mas porque havia
Q-ue era negocio assaz difficultoso
Chegar á fortaleza, lhe dizia,
Que se isto não puder, co^o furioso
Estrondo da feroz artilharia
Mostre que era da armada a dianteira
Que ja do Yiso-Rei segue a bandeira.
Desta armada que o Silva governava
Se apartão duas fustas, que cortando,
Co "'o grão favor que Hippotades lhes dava,
O Reino que Neptuno está mandando.
Quando a sombra que o Sol afugentava
Das Estreitas a luz está mostrando,
Chegão á fortaleza, onde amainarão
A inchada vella, e o ferro ao mar lançarão.
o PRIMEIRO CERCO DE DIU. 7ÍS
I.XXXV1.
Vem nellas dous varõeis nobres, ousados,
A quem o mor perigo mais inflama,
Dom Luiz, Dom Martinho são chamados.
Este Sousa, e Taide o outro se chama.
Ambos trazem comsigo bem armados
Varões, que a grande empresa qualquer ama-^
E outras cousas também estes trouxerão
due alli bem necessárias enlão erão.
Sendo esta noite A Lua então negada.
Por interposição da opaca terra,
A partecipação da luz usada
€lue o Sol de natureza em si encerra,
De todo se mostrou quasi eclipsada
Com que mais se escurece a noite e cerra j
E quiçá que este máo e usado agouro
A partida apressar fez mais ao Mouro.
IXXXVIII»
Esta noite também aquella gente
Q,ue de Cojaçofar segue o estandarte,
Fazendo que a Cidade a chamma ardente
Sinta primeiro n''hua e n^outra parte,
Também damuificada e descontente
Antes de ser manhãa, d^alli se parte,
E o logar com grão medo desampara
Que com grãa confiança antes tomara»
LXXXIX,
Também nesta mesma hora dentro colhe
Com grão silencio o ferro a imiga frota,
A velía hum brando vento em si recolhe,
E lá do Roxo Mar segue a derrota.
Porém dos que feridos leva, escolhe
Os mais fracos primeiro, e em terra os bota
Dos que menos o mar soífrer podião,
Q.uatrocentos ouvi que estes serião.
xc.
E perguntando acaso hum dos Senhores
Da terra, a estes então, se os que vierão
Da Lusitânia, ou lá são moradores.
São bons homens de guerra, lhe disserão
Q-ue os Portuguezes sós merecedores
De trazerem no rosto barbas erão,
E que as outras nações se contentassem
Co "'o estjlo das mulheres, e este usassem.
xci.
Mas com quanto eu estou mui confiado
No valor Portuguez, bem conhecido.
Não sou porém co\)S meus tão enganado
Q.ue aos outros negue o preço merecido ^
Suspeito que o soberbo Turco, usado
Mais vezes a vencer, que a ser vencido,
Q-uiz que, pois o venceo hoje esta gente-
Merecesse ella as barbas ter somente.
FIM,
IMȣ1Il.
PAG.
V )•< )1 OgO. ....étt....k » n llt
Canto I 1
^' II 29
» III 60
» IV 98
" V 127
» VI 161
^. VII 191
.. VIII 218
» IX 252
.í X 292
>» XI 330
>í XII 363
XIII 410
» XIV 448
» XV 485
» XVI 516
» XVII 566
» XVIII 609
» XIX 646
5' XX 686
-/^ç
Q
1
1
t.
k.