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^/-r
OBRAS
DE
LUIZ DE CAMÕES
PRECEDIDAS DE UH ENSAIO BIOGRâPHICO
NO QUAL SE RELATAM
ALGUNS FACTOS NlO CONHECIDOS DA SUA VIDA
PELO
VISCONDE PB OUBOBSENHA
VOLUME IV
LISBOA
mPREIVSA NACIONAL
Í863
/•
OBRAS
DE
LUIZ DE CAMÕES
OBRAS
DE
LUIZ DE CAMÕES
PRECEDIDAS DE UM ENSAIO BIOGRAPHIGO
NO QUAL SE RKLATAll
ALGDNS FACTOS NAO CONHECIDOS DA SUA VIDA
AUGHRNTADAS
COM ILGUMS COMPOSIÇÕES INÉDITAS 00 POETI
PELO
VI800NDS PE JUROMENHA
VOLUME IV
<W».#i««-
LISBOA
IMPRENSA NAQONAL
REDONDILHAS
Sõbolos rios que vão
Por Babylonia, me âchei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nella passei.
AUi o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,
Babylonia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Alli lembranças contentes
N'alma se representarão ;
E minhas cousas ausentes
Se Gzerão tão presentes,
Como se nunca passarão.
Alli, despois d'acordado,
Co'o rosto banhado em ágoa.
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não he gosto, mas he mágoa.
6
E vi que lodos os danos
Se causavão das mudanças,
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o lempo ás esperanças.
Alli vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem ;
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
Vi aquillo que mais vai
Qu*então s'entende melhor,
Quando mais perdido for ;
Vi ao bem succedermal,
E ao mal muito peor.
E vi com muito trabalho
Comprar . arrependimento :
Vi nenhum contentamento;
E vejo-me a mi, qu'espaIho
Tristes palavras ao vento.
Bem são rios estas ágoas
Com que banho este papel :
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas,
E confusão de Babel.
Gomo homem, que por exemplo
Dos trances em que se achou,
Despois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou :
Assi, despois qu'assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que lomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava,
Aquelle instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: Musica amada,
Deixo-vos neste arvoredo
A memoria consagrada.
Frauta minha, que tangendo
Os montes fazieis vir
Par onde estáveis, correndo;
E as ágoas, que hiâo descendo,
Tornavão logo a subir;
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que s'amansavão;
E as ovelhas, que pastavão.
Das hervas se fartarão,
Que por vos ouvir deixavão.
Ja não fareis docemente
Em rosas tomar abrolhos
Na ribeira florecente;
Nem poreis freio á corrente,
E mais se for dos meus olhos^
Não movereis a espessura,
Nem podereis ja trazer
Atraz ^ós a fonte pura;
Pois não podestes mover
Desconcertos da ventura.
«
I
K
Ficareis oíTerecida
Á Fama, que sempre vela,
Frauta de mi Ião querida;
Porque mudando-se a vida,
Se mudão os gostos delia.
Acha a tenra mocidade
Prazeres accommodados;
E logo a maior idade
Ja sente por pouquidade
Áquelles gostos passados.
Hum gosto^ que hoje s'alcança,
Á manhâa ja o não vejo :
Assi nos traz a mudança
D'esperança em esperança,
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Qu'esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte I
x\fas deixar nesta espessura
O canto da mocidade:
Não cuide a gente futura
.Que será obra da idade
O que he força da ventura.
Qu'idade, tempo, è espanto
De ver quão ligeiro passe.
Nunca em mi pudcrão tanto.
Que, postoque deixo o canto,
A causa delle deixasse.
9
Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento;
Por o sol, por neve, por vento,
Tendrê presente á los ojos
Por quien muero tan contento.
Órgãos e frauta deixava,
Despojo meu tão querido.
No salgueiro que alli 'st^va,
Que para tropheo ficava
De quem me tinha vencido.
Mas lembranças da aíTeição
Que alli capliyo me tinha,
Me perguntarão então,
Qu'era da musica minha.
Que eu cantava em Sião?
Que foi daquelle cantar,
Das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado?
Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso
Por entre o espesso arvoredo ;
E de noite o temeroso
Cantando refreia o medo»
Canta ò preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente ;
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos senle.
\0
Eu qu'eslâs cousas senti
N'alma de mágoas tão cheia,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, sè quem trabalhar
Canta por menos cansar.
Eu só descansos engeito.
Que nãp parece razão.
Nem seria cousa idpnia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia
As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza.
Antes morra de tristeza,
Que por abrandá-la cante.
• Que se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
•
Nem na fraula cantarei •
O que passo, e passei ja,
Nem menos o escreverei ;
Porque a penna cansará,
E eu não descansarei.
\\
Que se vida tão pequena
S'accrescenta em terra estranha;
E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna
D'escrever pena tamanha.
Porém, se para assentar
O que sente o coração,
A penna ja me cansar,
Não cançe para voar
A memoria ém Sião.
Terra bem-aventurads^
Se por algum movimento
D'alma me fores tirada.
Minha penna seja dada
A perpetuo esquecimento.
A pena deste desterro,
Qu'eu mais desejo esculpida
Em pedra, ou em duro ferro.
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro.
E se eu cantar quizer
Em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peilo ;
A minha lingua se apegue
Ás fauces, pois te perdi,
S'em quanto viver assi
Houver tempo, em que te negue,
Ou que m'es(|ueça de ti.
\2
Mas ó tu, terra de glória,
S'eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memoiia,
Senão na reminiscência:
Que a alma*he taboa rasa.
Que com a escripta doutrina
Celeste tanto imagina.
Que vôa da própria casa,
E sobe á pátria divina.
Não he logo a saudade
Das terras onde nasceo
A carne, mas he do Ceo,
Daquella santa Cidade,
Donde est'alma descendeo.
E aquella humana figura.
Que cá me pôde alterar,
Não he quem se ha de buscar;
He raio da formosura,
Que só se deve d' amar.
«
Que os olhos, e- a luz que ateia
O fogo que cá sujeita.
Não do sol, Dem da candeia,
He sombra daquella ideia,
Qu'em Deos está mais perfeita.
E os que cá me* capti varão.
São poderosos affeitos
Qu'os corações tee sujeitos;
Sophislas, que m'ensinárão
Máos caminhos por direitos.
^5
Destes o mando tyrano
M' obriga com desatino
A òantar ao som do dano
Cantares d amor profano,
Por versos d' amor divino.
Mas eu, lustrado co'o santo
Raio, na terra de dor.
De confusões e d' espanto,
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?
Tanto pôde o beneficio
Da graça que áh saade.
Que ordena que a vida mude:
E o qu'eu tomei por vicio.
Me faz gráo para a virtude;
E faz qu'este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular belleza
Para a belleza geral.
Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,f
O Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada
Para só cantar de ti;
Nao captiva e ferrolhado
Na Babylonia infernal,
Mas dos vicios desatado,
E cá desta a ti levado.
Pátria minha natural.
\4
E s' eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes.
Duros, tyrannos e urgentes,
Risque-se quanto ja fiz
Do grão livro dos viventes. .
E, tomando ja na mão
A lyra santa e capaz
D' outra mais' alta invenção,
Gale-se esta confusão,
Cante-se a visão de paz.
Ouça-me o pastor e o rei.
Retumbe este accento santo,
Mova-se no mundo espanto;'
Que do que ja mal cantei
A palinodia ja canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
Da alta torre de Sião,
Á qual não posso subir,
Se me vós não dais a 'mão.
No grão dia singular,
Que na lyra em douto som
Hierusalem celebrar,
Lembrae-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aquelles que tintos vão
No pobre sangue innocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arraza-Ios igualmente:
Conheção que humanos são.
45
E aqaelle poder tão duro '
Dos affectos com que venho,
Qu'encendem alma e engenho;
Que ja m'entrárão o muro
Do livre arbilrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me,
Máos espirites damnosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me;
Derribae-os, fiquem sós,
De forças fracos, imbelles;
Porque não podemos nós,
Nem com elles ir a vós,
Nem sem vós tirar-nos"delles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha Fortaleza
Não puzerdes guarnição.
E tu, ó carne, qu'encantas.
Filha de Babel tão feia.
Toda de miséria cheia.
Que mir vezes te levantas
Contra quem te senhoreia;
Beato só pôde ser
Quem co'a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste:
t
I
*
t6
«
Quem fcom disciplina crua
Se fere mais que huma vez;
Cuja alma, de vícios nua,
Faz nodas na carne sua,
Que ja a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes,
E em nascendo os aflbgar,
Por não virem a parar
Em vicios graves e urgentes:
Quem com elles logo der
Na pedra do furor santo,
E batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
flmfim cabeça do canto:
Quem logo, quando imagina
Nos vicios da carne má,
Os pensamentos declina
Áquella Carne divina,
Que na Cruz esteve ja.
Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visibil,
Quanto ao homem for possibil,
Passar logo entendimento
Para o mundo intelligibil;
Álli achará alegria
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia,
Nem |)or sobeja enfastia.
\7
Alli verá Ião profundo
Mysterio na summa Alteza,
Que, vencida a natureza,
Os mores faustos do mundo .
Julgue por maior baixeza.
O tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar.
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellenle.
Tão justo e tao penitente.
Que despois de a ti subir.
Lá descanse eternamente!
• CARTA A IIUMA DAMA
Querendo escrever hum dia
O mal, que tanto estimei,
Cuidando no que poria.
Vi Amor que me dizia:
Escreve, qu'eu notarei.
E como para se ler
Não era historia pequena
A que de mi quiz fazer.
Das azas tirou a penna
Com que me fez escrever.
Tono IV
\s
E, logo como a tirou,
Me disse: Aviva os espritos;
Que pois em teu favor sou,
Esta penna, que te dou,
Fará voar teus escritos.
E dando-me a padecer
Tudo o que quiz que puzesse,
Pude em fim delle dizer,
Que me deo com qu'escrevesse
O que me deo a escrever.
Eu qu'este engano entendi,
Disse-lhe: Qu'escreverei?
Respondeo, dizendo assi:
Altos effeitos de ti,
E daquella a quem te dei.
E ja que te manifesto
Todas minhas estranhezas.
Escreve, pois que te prezas.
Milagres d'hum. claro gesto,
E de quem o vio, tristezas.
Ah Senhora, em quem se apura
A fé de meu pensanoentol
Escutae e estae attento,
. Que com vossa formosura
Iguala Amor meu tormento.
E,. postoque tão remota
Estejais de m'escutar
Por me nâo remediar.
Ouvi, que pois Amor nota,
Milagres são de notar.
' i
\9
X
Escrevem vários Authores,
Que junto da clara fonte
Do Ganges, os moradores
Vivem do cheiro das flores
Que nascem naquelle monte.
Se os sentidos podem dar
Mantimento ao viver,
Não he logo d'espantar,
. S'estes vivem de cheirar,
Que viva eu só de vos ver.
Huma arvore, se conhece,
Que na geral alegria
EUa tanto s'entristece,
Que, como he noite, florece,
E perde as flores de dia.
Eu, qu'em ver-vos sinto o preço
Qu'em vossa vista consiste,
Em a vendo m'entristeço,
Porque sei que não mereço
A gloria de ver-me triste.
Hum Rei de grande poder
Com veneno foi criado.
Porque, sendo costumado.
Não lhe pudesse empecer.
Se despois lhe fosse dado.
Eu, que criei de pequena
A vista a quanto padece.
Desta sorte m acontece,
Que não me faz mal a pena,
Senão quando me fallece.
20
Quem da doença Real
De longe enfermo se sente,
Por segredo natural
Fica são vendo somente
Hum volátil animal.
Do mal, que Amor em mi cria,
Quando acjuella Phenix vejo,
São de todo ficaria;
Mas fica-me hydropesia,
Que quanto mais, mais desejo.
Da vibora he verdadeiro,
Se a consorte vae buscar,
Qu'em se querendo juntar,
Deixa a peçonha primeiro,
Porque lh'impede o gerar.
Assi quando m'apresento
Á vossa vista inhumana,
A peçonha do tormento
Deixo á parte, porque dana
Tamanho contentamento.
Querendo Amor suslentar-se,
Fez huma vontade esquiva
D'huma estatua namorar-se:
Despois, por manifestar-se,
Converteo-a em mulher viva.
De quem m'irei eu queixando,
Ou quem direi que m'engana
Se vou seguindo, e l)uscando
Huma imagem, que d'humaria
Em pedra se vai tornando?
21
D'huma fonte se sabia,
Da qual certo se provava,
Que (Juem sobre ella jurava,
Se falsidade dizia,
Dos olhos logo cegava.
Vós, que minha liberdade,
Senhora, lyrannizais,
Injustamente mandais,
Quando vos fallo verdade.
Que vos não possa ver mais.
«
Da palma í^escreve e canta
Ser tão dura e tão forçosa,
Que pezo não a quebranta.
Mas antes, de presumpçosa,
Com elle mais se levanta.
Co'o pezo do mal que dais,
A constância qu'em mi vejo.
Não somente ma dobrais,
Mas dobra-se meu desejo,
Com qu'então vos quero mais.
Se alguém os olhos quizer
As andorinhas quebrar,
Logo a mãe, sem se deter,
Huma herva lhe vai buscar
Que lhes faz outros nascer.
Eu que os olhos tenho atlento
Nos vossos, questrellas são,-
Cegão-se os do entendimento,
Mas nascem-mc os da razão
De fplgar com meu tormento.
22
Lá para onde o sol sahc,
Descobrimos, navegando,
Hum novo rio admirando, '
Que o lenho que nelle cabe,
Em pedra se vai tornando.
Não s'espantem disto as gentes ;
Mais razão será qu'espante
Hum coração tão possante,
Que com lagrimas ardentes
Se converte em diamante.
Pôde hum mudo nadador
Na linha e canna influir
Tão venenoso vigor.
Que faz mais não se bulir
O braço do pescador.
Se começão de beber
Deste veneno excellente
Meus olhos, sem se deter,
Não se sabem mais mover
A nada que se apresente.
Isto são claros sinais
Do muito qu em jni podeis:
Neii) podeis desejar mais;
Que se ver-vos desejais,
Em mi claro vos vereis.
E quereis ver a que fim
Em mi tanto bem se pós?
Porque quizAmor assim,
Que por vos verdes a vós,
Também me visseis a mim.
25
Dos males que m'ordenais,
Qu'inda tenho por pequenos,
Sabei, se mos escutais,
Que ja não sei dizer mais.
Nem vós podeis saber menos.
Mas ja que a tanto tormento
Não se acha quem resista,
Eu, Senhora, me contento
De terdes meu soffrimento
Por alvo de vossa vista.
Quantos contrários consente
Amor, por mais padecerl
Que aquella vista cxcellenle,
Que me faz viver contente.
Me faça tão triste ser!
Mas dou este entendimento
Ao mal, que tanto mWende,
Como na vela s'enlende.
Que se se apaga co*o vento, ,
Co*o mesmo vento se accende.
Exprimentou-se algum'hora
D'ave, que chamão Gamão,
Que se da èasa, onde mora,
Vê adultera senhora,
Morre de pura paixão.
A dor he tão sem medida,
Que remédio lhe não vai.
Mas oh ditoso animal.
Que pôde perder a vida.
Quando ve tamanho mal !
2{
Nos gostos de vos querer
Estava agora enlevado,
Se não fora salteado
Das lembranças de temer
Ser por outrem desamado.
Estas suspeitas tão frias,
Com que o pensamento sonha,
São assi como as harpias,
Que as mais doces iguarias
Vão converter em peçonha.
Faz-me este mal infinito
Não poder jamais dizer,
Por não vir a corromper
Os gostos que tenho escrito,
Co'os males qu'hei d'escrcver.
Não quero que s'apregôe
Mal tanto para encobrir,
Porque em quanto aqui s'ouvir
Nenhuma outra cousa sôe,
Que a gloria de vos servir.
OUTRA
Dama d'estranho primor,
Se vos for
Fezada minha firmeza,
Olhai não me deis tristeza,
Porque a converto em amor.
E se cuidais
De me matar, quando usais
D'csquiVança,
Irei tomar por vingança
Amar- vos cada vez mais.
25
Porém vosso pensamento,
Como isento,
Seguirá sua tenção.
Crendo qu'em tanta affeição
Não haja accrescentamento.
Não creais
Que desta arte vos façais
Invencibil;
Que Amor sobre o impossibil
Amostra que pode mais.
Mas ja da tenção que sigo,
Me desdigo;
Que se ha tanto poder nelle,
Também vós podeis mais qu'ello
Neste mal que usais comigo.
Mas se for
O vosso poder maior
Entre nós,
Quem poderá mais que vós,
Se vós podeis mais que Ariíor?
Despois que, Dama, vos vi,
Entendi,
Que perdera Amor seu preço;
, Pois o favor que lh'eu peço.
Vos pede elle para si.
Nem duvido
Que não pôde, de sentido,
Resistir;
Pois em vez de vos ferir.
Ficou de vos ver ferido.
26
Mas pois vossa vista hc tal
Em meu mal,
Que posso de vós querer?
Que mal poderei valer,
Onde o mesmo Amor não vai.
Se altentar,
Nenhum bem posso esperar:
E oxalá
Que vos alembrassc ja,
Sequer para me matar.
Mas nem com isto creais
Que façais
Meus serviços mais pequenos;
Porqu'eu, quando espero menos,
Sabei qu'enlão quero mais.
Nada espero;
Mas de mi crede este fero^
Qu'em ser vosso,
Vos quero tudo o que. posso,
E não posso quanto quero.
•
Só por esta pbantasia
Merecia
De meus males algum fruilo;
E não era certo muito
Para o muito que queria. -
De maneira.
Que não he, na derradeira.
Grande espanto.
Que quem. Dama, vos. quer tanlo,
Que outro lanlo de vós queira.
27
A IIUMAS SUSPEITAS
Suspeitas, que me quereis?
Qu'eu vos quero dar lugar
Que de certas me mateis,
Se a causa, de que nasceis,
Vós quizesseis confessar.
Que de não lhe achar desculpa,
A grande mágoa passada
Me tee a alma tão cansada,
Que se me confessa a culpa,
Te-la-hei por desculpada.
Ora vôde que perigos
Têe cercado o coração.
Que no meio da oppressão
A seus próprios inimigos
Vai pedir a defensão!
Que, suspeitas, eu bem sei,
Como se claro vos visse,
Que he certo o que ja cuidei;
Que nunca mal suspeitei.
Que certo me não sahisse.
Mas queria esta certeza
Daquella que me atormenta ;
Porque em tamanha estreiteza
Ver que disso se contenta,
He descanso, dá tristeza.
Porque se esta só verdade
28
Me confessa limpa e nua
De cautela e falsidade,
Não pode a minha vontade
Desconforme ser da sua.
Por segredo namorado
He certo estar conhecido
Que o mal de ser engeitado
Mais atormenta sabido
Mil vezes, que suspeitado.
Mas eu só, em quem se ordena
Novo modo de querella,
De medo da dor pequena,
Venho a achar na maior |)ena
O refrigério para ella.
Ja nas iras m'in(lammei,
Nas vinganças, nos furores,
Que ja doudo imaginei;
E ja mais doudo jurei
De arrancar d alma os amores,
Ja determinei mudar-me
Para outra parte com ira;
Despois vim a concertar-me '
Que era bom certificar-me
No que mostrava a mentira.
Mas despois ja de cansadas
As fúrias do imaginar.
Vinha emfim a rebentar
Em lagrimas magoadas.
29
E bem para magoar.
E deixando-se vencer
Os meus fingidos enganos
De tão claros desenganos,
Não posso menos fazer,
Que conlentar-me co'os danos.
E pedir que me tirassem
Este mal de suspeitar
Que me vejo atormentar,
Indaque me confessassem
Quanto me pôde matar.
Olhae bem se me trazeis,
Senhora, posto no fim;
Pois neste estado a que vim,
Para que vós confesseis,
Se dao os tratos a mim.
Mas para que tudo possa
Amor, que tudo encaminha,
Tal justiça lhe convinha;
Porque da culpa, qu'he vossa.
Venha a ser a morte minha.
Justiça tão mal olhada
Olhae com que côr se doura,
Que quei- o, ao fim da jornada.
Que vós sejais confessada.
Para qu'eu seja o que moura!
Pois confessae-vos jagora,
Indaque tenho tomor
50
Que nem nesta oltima hora
Me ha de perdoar Amor
Vossos peccados, Senhora.
E assi vou desesperado,
Porque estes são os costumes
D'amor que he mal empregado;
Do qual vou ja condemnado
Ao inferno de ciúmes.
LABYRINTHO, QUEIXANDO-SE DO MUNDO
Corre sem vela e sem leme
O tempo desordenado,
D'hum grande venlo levado:
O que perigo não teme,
He de pouco exprimentado.
As rédeas trazem na mão
Os que rédeas não ti verão:
Vendo quanto mal fizerão
A cobiça, e ambição,
Disfarçados se acolherão.
A náo, que se vai perder,
Destruo mil esperanças:
Vejo o máo que vem a ter;
Vejo perigos correr
Quem não cuida que ha mudanças.
Os que nunca em sella andarão,
Na sella postos se vem:
De fazer mal não deixarão;
De demónio hábito tem
Os que o justo profanarão.
5\
Que poderá vir a ser
O mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
Aquelle que quer- valer,
Levando o caminho errado.
He para os bons confusão,
Ver que os máos prevalecerão;
Que, posto se deliverão
Com esta simulação.
Sempre castigos tiverão:
Não porque governe o leme
Em mar envolto e turbado,
Que tee seu rumo mudado.
Se perece grita e geme
Em tempo desordenado.
Terem justo galardão,
E dor dos que merecerão,
Sempre castigos tiverão .
Sem nenhuma redempção,
Postoque se detivei^o.
•
•
Na tormenta, se vier.
Desespere na bonança,
Quem manhas não sabe ter:
Sem que lhe valha gemer.
Verá falsar a balança.
Os que nunca trabalharão,
Tendo o que lhe não convém,
Se ao innocente enganarão,
Perderão o etcmo bem.
Se do mal não s'apartárâo.
52
CONVITE QUE FEZ NA ÍNDIA A CERTOS FIDALGOS
A primeira iguaria foi posta a Vasco de Athaide, e dizia:
*
Se não quereis padecer
Huma, ou duas horas tristes,
Sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dò venistes,
Que aqui não ha que comer.
E, postoque aqui leais
Trovinha que vos enleia,
Corrido não estejais;
Porque por mais que corrais,
Não beis de alcançar a ceia.
A segunda a D. Francisco de Almeida
Heliogabalo zombava
Das pessoas convidadas;
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava,
Vinhão nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura.
Pois ja não pôde ser nova;
Porque a cêa está segura /
De vos não vir em pintura;
Mas ha de vir toda em trova.
A terceira a Heitor da Silveira
Cêa não a papareis:
Com tudo, porque não minta,
Para beber achareis.
Não Caparica, mas tinta,
E mil cousas que papeis.
E vós torceis o focinho
Com esta amphibologia?
Pois sabei que a Poesia
Vos dá aqui tinta por vinho,
E papeis por iguaria.
«
A quarta a João Lopes Leitão, aouem o Author fez huns versos, que v2o adiante,
sobre huma peça ae cacha, que deu a huma dama
Porque os que vos convidarão
Vosso estômago não danem,
Por justa causa ordenarão,
Se trovas vos enganarão,
Que trovas vos desenganem.
• Vós tereis isto* por tacha,
. Converter tudo em trovar;
Pois se me virdes zombar, •
Não cuideis, Senhor, que he caclia,
Que aqui não ha que cachar.
Responde João Lopes
Pezar ora não de são,
Eu juro pelo Ceo bento,
Se de comer não me dão,
Qu'eu não sou camaleão,
Que m'hei de manter do vento.
Responde o Author
Senhor, não vos agasteis.
Porque Deos vos proverá ;
E se mais saber quereis,
Nas costas deste lereis
Ás iguarias que ha.
Virado o papel, dizia assi :
. Tendes nem migalha assada ;
Cousa nenhuma de molho;
TOMO !▼ 3
\
54
E nada feito em empada:
E vento de tigelada;
Picar no dente em remôlho:
De fumo tendes taçalhos;
Ave da pena que. sente
Quem da fome anda doente;
Bocejar de vinho e d^aihos;
Manjar em branco excellente.
A derradeira a Francisco de Mello
D'hum homem, que teve o scetro
Da vêa maravilhosa,
Não foi cousa duvidosa,
Que se lhe tomava em metro
O qu'hiá a dizer em prosa.
De mi vos quero aiBrmar
Que faça cousas mais novas,
De quanto podeis cuidar;
E esta côa, que he manjar,
Vos faça na boca em trovas.
NA índia ao VISO-REI, COM O MOTE ADIANTE
Conde, cujo illustre peito
Merece nome de Rei,
Do qual muito certo sei
Que lhe fica sendo estreito
O cargo deViso-Rei;
Servirdes-vos d'occupar-me
Tanto contra meu Planeta,
Não foi senão azas dar-me,
Com as quaes vou a queimar-me.
Como o faz a borboleta.
55
E s'eu a penna tomar,
Que Ião mal cortada tenho,
Será para celebrar
Vosso valor singular
Dmo de mais alto engenho.
Que se o meu vos celebrasse,
Necessário me seria
Que os olhos d'aguia tomasse,
Só para que não cegasse
No sol de vossa valia.
Vossos feitos sublimados
Nas armas, dignos de gloria.
São no mundo tão soados»
Qu'em vós de vossos passados
Se resuscita a memoria.
Pois aquelle animo estranho,
Prompto para todo eflfeito,
Espanta todo o conceito:
Como coração tamanho
Vos pôde caber no peito?
A clemência, que asserena
Coração tão singular,
S'eu nisso puzesse a penna.
Seria encerrar o mar
Em cova muito pequena.
Bem basta. Senhor, que agora
' Vos sirvais de me occupar;
Que assi fareis aparar
A penna, com que algum'hora
Vos vereis ao Ceo voar.
56
Âssi vos irei louvando,
Vós a mi . do chão erguendo,
Ambos o mundo espantando;
Vós com a espada cortando,
Eu coro a penna escrevendo.
MOTE QUE LHE MANDOU 0 TISO-REI
Muito sou meu inimigo,
Pois que não tiro de mi
Cuidados, com que nasci,
Que põe a vida em perigo.
Oxalá que fora assi !
VOLTA
Viver eu, sendo mortal,
De cuidados rodeado.
Parece meu natural ;
Que a peçonha não faz mal
A quem foi nella criado.
Tanto sou meu inimigo,
Que por não tirar de mi
Cuidados, com que nasci.
Porei a vida em perigo.
Oxalá que fora assi!
Tanto vim a accrescentar
Cuidados, que nunca àmansão
Em quanto a vida durar,
Que canso ja de cuidar
Como cuidados não cansão.
S'estes cuidados, que digo.
Dessem fim a mi e a si,
57
Fariâo pazes comigo;
Que pôr a vida em perigo,
O bom fora para mi.
A UUMA DAMA, QUE LHE MANDOU PEDIR
ALGUMAS OBRAS SUAS
Senhora, s'eu alcançasse
No tempo que ler quereis.
Que a dita dos meus papeis
Pola minha se trocasse;
^E por ver
Tudo o que posso escrever
Em mais breve relação,
Indo eu onde elles vão,
Por mi só quizesseis ler;
Despois de ver hum cuidado
Tão contente de seu mal.
Veríeis o naturai
Do que aqui vedes pintado;
Quç o perfeito
Amor, de que sou sogeito,
Vereis áspero e cruel,
Aqiii com tinta e papel,
Em mi com sangue no peito.
m
9
Que hum contínuo imaginar
Naquillo que Amor ordena,
He pena, que emfim por penna
Se não pôde declarar;
Que se eu levo *
Dentro n'alma (juanio devo
38
De trasladar em papeis,
Vede que melhAt lereis,
Se a mi, se aquillo qu'escrevo?
À HUMA SENHORA, A QUEM DERÃO HUM PEDAÇO
DE SITIM AMARELLO
Se derivais da verdade
Esta palavra Sitim,
, Achareis sem falsidade,
Que após o si lee o tim,
Que tine em toda a Cidade.
Bem vejo que m'eDtendeis ;
Mas porque não falle em vão,
Sabei que a esta Nação
Taqto que o st concedeis,
O tim logo está na mão.
B quem da fama s'arreda,
Que tudo vai descobrir, .
Deve sempre de fugir
De sitin?, porque da seda
Seu natural he rugir.
Mas panno fino e delgado,
Qual a raxa e outros assi.
Dura, aquenta, e he callado.
Amoroso, e dâ de si
Mais que sitim, nem brocado.
Mas estes, que sedas são
Com quem s'enganão mil Damas,
Mais vos tomão, do que dão;
Promettem, mas não darão,
59
Senão nódoas para as famas.
E se não me quereis crer,
Ou tomais outro caminho,
Por exemplo o podeis ver,
Quando lá virdes arder
A casa d'algum vizinho.
Oh feminina simpreza,
Donde estão culpas a pares,
Que por hum Dom de nobreza,
Deixão does da natureza, .
Mais altos e singulares!
Hum Dom, que anda enxertado
No nome, e nas obras não.
Fallo como experimentado;
Que sitim desta feição
Eu tenho muito cortado.
Dizem-me qu'era amarello;
E quem assi o quiz dar,
Só para me Deos vingar,
Se vem á mão amarè-Io,
O qu'eu não posso cuidar.
Porque quem sabe viver
Por estas artes manhosas,
(Isto bem pode não ser)
Dá a meninas formosas,
Somente polas fazer.
Quem vos isto diz, Senhora,
Sérvio nas vossas armadas
Muito, mas anda ja fora:
40
E pôde ser qu'inclâ agora
Traz abertas as frechadas.
E, postoque desfavores
O tirfio de servidor,
Quer-vos ventura melhor;
Que dos antigos amores
Inda lhe fica este amor.
A ÍJUMA S13NH0RA REZANDO POR HUMAS CONTAS
Peço-VQS que me digais
As orações que rezastes,
Se são poios que matastes,
Se por vós que assi matais?
Se são por vós, s|io perdidas;
Que qual será a oração.
Que seja satisfação,
Senhora, de tantas vidas?
Que se vedes quantos vem
A só vida vos pedir.
Como vos ha Deos de ouvir,
Se vós não ouvis ninguém?
Não podeis ser perdoada
Com mãos a malar tão prontas,
Que se n'huma trazeis contas,
Na outra trazeis espada.
Se dizeis que encommendando
Os que matastes andais;
Sc rezais por quem malais.
Para que matais rezando?
4\
Que se na força do orar
Levantais as mãos aos Geos,
Não as ergueis para Deos,
Erguei-las para matar.
•
E quando os olhos cerrais,
Toda enlevada na fé,
Cerrão-se os de quem vos vô,
Para nunca verem mais.
Pois se assi forem tratados
Os que vos vem quando orais,
Essas horas que rezais,
São as horas dos fínados.
t
0
Pois logo, se sois servida
Que tantos mortos não sejão,
Não rezeis onde vos vejão,
Ou vede para dar vida.
Ou se quereis escusar
Estes males que causastes,
Resuscitae quem matastes,
Não tereis por quem rezar.
A HUMA DAMA QUE LHE DEO HUMA PENNA
• Se „'alma e no pensamento
Por vosso me manifesto.
Não me peza do que sento;
Que se não soffrer tormento,
Faço offensa a vosso geslo.
E, pois quanlo Amor ordena,
E (juanto est alma deseja,
42
Tudo á morte me condena,
NãQ quero senão que seja
Tudo pena, pena, pena.
A HUMA DAMA QUE LHE CHAMOU CARA SEM OLHOS
Sem olhos vi o mal claro,
Que dos olhos se seguio:
Pois cara sem olhos vio
Olhos, que lhe custâo caro.
D^olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejão;
Vendo-Yos, olhos sobejão,
Não vos vendo, olhos não são.
DISPARATES NA ÍNDIA
Este mundo es cl camino ,
Adó hay ducientos váosj
Ou por onde bons e máos,
Todos somos dei merino.
Mas 03 máos são de teor.
Que desque mudão a cõr,
Ghamão logo a El-Rei compadre;
Eemgm,dejadlos, mi madre,
Que sempre tee hum sabor
De quem torto nasce, tarde s'cndireila.
Deixae a hum que se abone:
Diz logo de muito sengo,
Villas y castillos tengo,
Todos á mi niandar sone.
45
Então cu, qu'estou de molho,
Com a lagrima no olho,
Pdlo virar do envés,
Dígo-lhe: tu ex illis es,
E por isso não te ólho;
Pois honra e proveito não cabem n'hum saco.
«
•
Vereis huns, que no seu seio
Cuidão que trazem Paris,
E querem com dous ceitis,
Fender anca pelo meio.
Vereis mancebinho de arte,
Com espada em talabarte:
Não ha mais Italiano.
A este direis: Meu mano.
Vós sois galante que farte;
Mas pan y vino anda el camino, q no mozo garrido.
Outros em cada theatro.
Por officio lhe ouvires
Que se matarán con três,
Y Io mismo haran con cuatro.
Prezão-se de dar respostas,
Com palavras bem compostas;
Mas se lhe meteis a mão.
Na paz mostrão coração, '
Na ^erra mostrão as costas;
Porque aqui torce a porca o rabo.
Outros vejo por ahi,
A que se acha mal o fundo,
Que andão emendando o mundo,
44
E não se cmcndão a si.
Estes respondem â quem
Delles não entende bem
El dolor que está secreto;
Mas porém quem for discreto,
Responder-lhe-hà muito bem:
Assi entrou o mundo, assi ha de saliir.
Achareis rafeiro velho,
Que se quer vender por galgo:
Diz que o dinheiro he fidalgo,
Que o sangue todo he vermelho.
Se elle mais alto o dissera.
Este pelote puzera :
Que o seu eco lhe responda ;
Que su padre era de Ronda^
Y su madre de Anlequera,
E quer cobrir o Céo co'huma joeira.
Fraldas largas, grave aspeito,
Para Senador Romano.
Oh que grandíssimo engano 1
Que Momo lhe abrisse o peito!
Consciência, que sobeja.
Siso, com que o mundo reja,
Mansidão outro que si ;
Mas que lobo está em ti.
Metido em pelle de oveja!
E sabem-no poucos.
Guardae-vos de huns meus Senhores,
Que ainda comprão e vehdcm;
45
»
Huns, qu'he cerlo, que descendera
Da geração de pastores:
Mostrão-se-vos bons amigos;
Mas se vos vem em perigos,
Escarrão-vos nas paredes;
Que de fora dormiredes,*
Irmão, que he tempo de figos;
Porque de rabo de porco nunca bom virote.
Que direis d'huns, què as entranhas
Lh'eslão ardendo em cobiça,
E se lee mando, a justiça
Fazem de teas de aranhas?
Com suas bypocrisias,
Que são de vossas espias:
Para os pequenos huns Neros,
Para os grandes tudo feros.
Pois tu, parvo, não sabias.
Que lá vão leis, onde querem cruzados?
Mas tornando a huns enfadonhos.
Cujas cousas são notórias; -
Huns, que contão mil historias
Mais desmanchadas que sonhos;
Huns mais parvos que zamboas,
Qu'estudão palavras boas,
A que ignorância os atiça:
Estes paguem por justiça.
Que tee morto mil pessoas.
Por vida de quanto quero.
*
Adonde tíenen las mentes
Huns secretos trovadores,
46
Que fazem cartas cCamores,
De que íicão mui contentes?
Não querem sabir á praça;
Trazem trova por negaça;
E se lha gabais, qu'he boa,
Diz qu'he de certa pessoa.
Ora que quereis que faça,
Senão ir-me por esse mundo?
Ó tu, como me atarracas, ^
Escudeiro de Solia,
Com bocàes de fidalguia,
Trazido quasi com vacas;
Importuno a importunar,
Morto por. desenterrar
Parentes, que cheirão ja!
Voto a tal, que me fará
Hum destes nunca fallar
Mais com viva alma.
Huns, que fallao muito, vi,
De que quizera fugir;
Huns que, emCm, sem se sentir,
Andão fallandò entre si ; .
Porfíosos sem razão;
E desque tomão a mão,
Fallao sem necessidade;
E se algum'hora he verdade,
Deve ser na confissão;
Porque quem não mente... . Ja m'entendeis.
•
Oh vós, quem quer que me lerdes,
Qu'haveis de ser avisado,
47
Que dizeis ao namorado
Que caça venlo com redes?
Jura por vida da Dama;
FaUa comsigo na cama;
Passêa de noite e escarra;.
Por falsete na guitarra
Põe sempre : Viva quem ama,
Porque calça a seu propósito.
Mas deixemos, se quizerdes,
Por hum pouco as travessuras,
Porqu'entre quí^tro maduras
Leveis também cinco verdes.
Deitemos-nos mais ao mar;
E se algum se arrecear,
Passe três ou quatro trovas.
E vós tomais cores novas?
Mas nao he para espantar;
Que quem porcos ha menos,
Em cada mouta lhe roncão.
Ó vós, que sois Secretários
Das consciências Reais,
E que entre os homens estais
Por Senhores ordinários;
Porque não pondes, hum freio
Ao roubar, que vai sem meio,
Debaixo de bom governo?
Pois hum pedaço de inferno .
Por pouco dinheiro alheio
Se vende a Mouro e a Judeo.
48
Porque a mente, affeiçoada
Sempre á Real dignidade,
Vos faz julgar por bondade
A malicia desculpada.
Move a pi;esença Real
Huma aíTeição natural,
Que logo inclina ao Juiz
A seu favor: e não diz
Hum rifão muito geral.
Que o Abbade donde canla, dahi janta?
E vós bailais a esse som :
Por isso, gentis pastores,
Vos chama a vós mercadores
Hum que só foi pastor bom-
A JOAO LOPES LEITÃO,
80BRE íiUMÂ PEÇA DE CACHA QUE I^IANDOU A HUMA DAMA,
QUE SE LHE FAZIA DONZELLA
UOtÉ
Se vossa Dama voâ dá
Tudo quanto vós quizestes,
Dizei-me: p'ra que lhe destes
O que vos ella fez ja?
VOLTA
Sendo os restos envidados,
E vós de cachas mil contos
Sabeis com quão poucos pontos^
Que lhos achastes quebrados ;
Se o que tce, isso vos dá,
tOlO IV
' ' 49
«
Vós mui Leni lho merecesles,
Porque se a cacha lhe destes
Tinha-vo-la feita ja.
MOTE
Menina formosa e crua,
Bem sei eu
Quem deixará de ser seu,
Se vós quizereis ser sua.
VOLTAS *
Menina mais que na idade,
Se para me querer bem
Vos não vejo ler vontade,
He porque outrem vo-la tem;
Tee-vo-la, e faz-vo-la crua.
Porém eu
Ja tomara não ser meu,
Se vós não fôreis tão sua.
Nos olhos, e na feição
Vos vi, quando vos olhava,
Tanta graça, que vos dava
De graça este coração:
Não o quizestes de crua,
Por ser meu :
Se outrem vós dera o seu,
Pôde ser fôreis mais sua.
Menina, tende maneira^
Que ainda não venha a ser,
Pois não quereis quem vos quer,
Que queirais quem vos não ffueira.
50
Olhae não me sejais crua,
Que pois eu
Quero ser vosso, e não meu,
Sede vós minha, e não sua.
A HUMA DAMA DOENTE
MOTE
Da doença, em que ora ardeis,
Eu fóra vossa mezinha
Só com vós serdes a minha.
VOLTAS
He muito para notar
Cura tão bem acertada,
Que podereis ser curada
Somente com me curar.
Se quereis. Dama, trocar.
Ambos temos a mezinha,
Eu a vossa, e vós a minha.
Olhae, que não quer amor,
(Porque fiquemos iguaes)
Pois meu ardor não curais,
Que se cure vosso ardor.
Eu 6á sinto vossa dor;
E se vós sentis a minha,
Dae e tomae a mezinha.
OUTRO
Deo, Senhora, por sentença
Amor, que fosseis doente.
Para fazerdes á gente
Doce e formosa a doença.
5<
VOLTAS
Não sabendo Amor curar,
^ Foi a doença fazer
Formosa para se ver,
Doce para se passar.
Então vendo a dífferença
Que ha de vós a toda a gente.
Mandou, que fosseis doente.
Para gloria da doença.
E digo-vos de verdade, •
Que a saúde anda invejosa,
Por ver estar tão formosa
Em vós essa enfermidade.
Não façais logo detença,
Senhora, em estar doente,
Porque adoecerá a gente,
C!om desejos da doença.
Qu'eu por ter, formosa Dama,
A doença. qu'em vós vejo,
Vos confesso, que desejo
De cahir comvosQp em cama.
Se consentis, que me vença
Deste mal, não houve gente
Da saúde Ião contente,
Como eu serei da doença.
AO MESMO
Olhae que dura sentença
Foi amor dar contra mi!
Que porqu'em vós me perdi,
Em vós me busque a doença.
/
V
I
52 ^
Clâro está,
Que eni vós só me achará;
Qu'em mi, se me vem buscar.
Não poderá mais achar,
Que a forma do que foi ja.
Que 8'em vós Amor se pôs,
Senhora, he forçado assi,
Que o mal, que me busca a mi.
Que vos faça mal a vós.
Sem mentir.
Amor me quiz destruir
Por modo nunca cuidado,
Pois ha de ser ja forçado
Pezar-vos de vos servir.
Mas sois tão desconhecida,
E são meus males de sorte.
Que vos ameaça à morte.
Porque me negais a vida.
Se por boa
Tal justiça se pregoa;
Quando desta sorte for,
Havei vós perdão de Amor,
Que a parte ja vos perdoa.
Mas o que mais temo, emtim,
He que nesta differença.
Que se não torne a doença.
Se me não tomais a mim.
De verdade, ^
Que ja vossa humanidade
De que se queixe não tem;
55
Pois para as almas também
Fez Amor enfermidade.
A HUMA DAMA VESTIDA DE DÓ
MOTB
De atormentado e perdido,
Ja vos não peço, senão
Que tenhais no coração '
O que tendes no vestido.
VOLTA
Se de dó vestida andais
Por quem ja vida não tem,
Porque não o haveis de quem
Vós tantas vezes matais?
Que brado sem ser ouvido,
E nunca vejo senão
Cruezas no coração,
E grande dó no vestido.
A DONA GUIOMAR DE BLASFÉ, QUEIMANDO-SE
COM HUMA VELA NO ROSTO
MOTE
Amor, que todos ofFende,
Teve, Senhora, por gosto,
Que sentisse o vosso rosto
O que nas almas accende.
VOLTA ^
A(juelle rosto que traz
O mundo todo abrazado,
/
/
54
Sc foi da flâmina tocado,
Foi porque sinta o que faz.
Bem sei que Amor se vos rende;
Porém o seu presupposto
Foi sentir o- vosso rosto
O que nas almas accende.
A HUMA MULHER, AÇOUTADA POR HUM «QMEM,
QUE CHAMAVÃO QUARESMA
MOTK
«
Não estejais aggravada,
Senão se for de vós mesma;
Porqu'a mulher, que he errada,
Com razão pela Quaresma
Deve ser disciplinada!
VOLTAS
Quererdes profano amor
Em Quaresma, her consciência:
Açoutes e penitencia
Vós está muito melhor.
Não fiqueis disto aflrontada,
Pois a culpa he vossa mesma ;
Que mulher, que hc tão malvada,
He bem que pela Quaresma
Seja bem disciplinada.
«
Se a penitencia vos vai.
Mui bem açoutada estais;
Pois por Quaresma pagais
Vossos vicios do carnal.
Não torneis a ser errada,
5&
Nem condemneis a vós mesma,
Pois estais ja emendada;
, E não sereis por puaresma
Outra vez disciplinada.
A HUM FIDALGO, QUE LHE TAí^AVA COM HUMA CAMISA,
. QUE LHE PROMETTEO
Quem no mundo quizer ser
Havido por singular,
Para mais s^engrandecer,
Ha de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometter.
E ja que vossa mercê,
Largueza tee por divisa,
Como o mundo todo vê.
Ha mister que tanto dê,
Que venha a dar a camisa.
A HUMA DAMA, QUE LHE CHAMOU DIABO,
POR NOME FOÃA DOS ANJOS
MOTE
Senhora, pois me chamais
Tão sem razão tão mão nome,
Inda o diabo vos tome.
VOLTAS
Quem quer que vio, ou que leo,
Terá por novo e moderno.
Ter quem vive no inferno,
O pensamento no Ceo. '
Mas se a vós vos pareceo,
56
Que m'es1ava bem tal nome,
Esse diabo vos tome.
Perdido mais q\ie ninguém
Confesso, Senhora, ser;
Mas o diabo não quer
Âos Anjos tagianho bem.
Pois logo não me convém,
Ou se me convém tal nome,
Será para que vos tome.
Se vos benzeis com caulella,
Como de AnjOj e não de luz,
Mal pôde fugir da Cruz,
Quem vós tendes posto nella.
Mas ja que foi minha estrella
Ser diabo, e ter tal nome,
Guãrdae-vos, que vos não tome.
«
Ja que chegais tanto ao cabo.
Com as mãos postas aos Ceos,
Vou sempre pedindo a Deos,
Que vos leve este diabo.
Eu, Senhora, não me gabo;
Mas pois que me dais tal nome,
* Tomo-o, para que vos Iqme.
A HUM AMIGO, QUE NÃO PODIA ENCONTRAR
MOTE
Qual terá culpa de nós
Neste mal, que todo he meu?
Quaiído vindes, não vou. eu.
Quando vou, não vindes vós.
57
VOLTA
Reinando Amor em dous peitos,
Tece tantas falsidades,
Que de conformes vontades
Faz desconformes effeitos.
Igualmente vive em nós;
Mas por desconcerto seu
Vos leva, se venho eu,
Me leva, se vindes vós.
BI9TB SEU
Descalça \di pela neve:
Assi faz quem Amor serve.
VOLTAS •
Os privilégios que os Reis
Não podem dar, pôde amor.
Que faz qualquer amador
Livre das humanas leis.
Mortes e guerras cruéis.
Ferro, frio, fogo e neve,
Tudo soffre quem o serve.
Moça formosa despreza
Todo o frio, e toda a dor.
Olbae quanto pôde Amor
Mais que a própria natureza.
Medo, nem delicadeza
Lh'impede que passe a neve.
Assi faz quem Amor serv^.
Por mais trabalhos que leve,
A Judo se oíFreceriá;
\
58
Passa peia neve fria,
Mai^ alva que a própria neve;
Com todo frio se atreve.
Vede em que fogo ferve
O triste, que a Amor serve.
OUTRO ALHEIO
 dor que a minha alma sente,
Não na sabe toda a gente.
VOLTAS
Qu'estranho caso de Amor!
Que desejado tormento!
Que venho a ser avarento
Das dores de minha dor!
Por me não tratar peor,
Se se sabe, ou se se sente.
Não na digo a toda a gente.
V
Minha dor e causa delia
De ninguém ouso fiar;
Que seria aventurar
A perder-me, ou a perdella.
E pois só com padecella,
A minha alma está contente,
Não quero que o saiba a gente.
Ande no peito escondida.
Dentro ,n'alma sepultada;
De mi só seja chorada.
De ninguém seja sentida.
Ou me mate, ou me dê vida,
59
Oa viva triste ou contente,
Não ma saiba toda a gente.
OUTRO SEU
D'alma, e de quanto tiver,
Quero que me despojeis,
Com tanto, que me deixeis
Os olhos para vos ver.
VOLTA
Cousa este corpo não tem,
Que ja não tenhais rendida:
Despois de tirar-lhe a vida,
Tirae-lhè a morte também.
Se mais tenho que perder,
Mais quero que me leveis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos para vos ver.
NOTE ALHEIO
Amores de huma casada,
Que eu vi pelo meu mal.
VOLTAS
N'huma casada fui pôr
Os olhos, de si senhores :
Cuidei que fossem amores,
Elles íizerão-se amor.
Faz-se o desejo maior
Donde o remédio não vai,
Em perigo de meu mal
60
Não me pareceo que Amor
Pudesse tanto comigo,
Que donde entra por amigo,
Se levante por senhor.
Leva-me de dor em dor,
E de final em final.
Cada vez para mór mal.
OUTRO SEU
Enforquei minha esperança ;
Mas Amor foi tão madraço,
Que lhe cortou o baraço.
VOLTA
Foi a esperança julgada
Por sentença da Ventura,
Que pois me teve á pendura.
Que fosse dependurada:
Vem Cupido com a espada,
Corta-lhe cerce o haraço.
Cupido, foste madraço.
OUTRO SEU
Puz o coração nos olhos,
E os olhos puz no chão.
Por vingar o coração.
VOLTA
O coração invejoso
Como dos olhos andava.
Sempre remoques me dava
Que não era o meu mimoso:
Venho eu de piedoso
6<
Do Senhor meu coração,
E boto os olhos no chão.
OUTRO SEU
Puz meus olhos n'huma fiinda,
E fiz hum tiro com ella
Ás grades d'huma janella.
VOLTA
Huma Dama, de malvada,
Tomou seus olhos na mão;
E tirou-me huma pedrada
Com elles ao coração.
Armei minha funda então,
E puz os meus olhos nella,
Trape, quebrei-lhe a janella.
ALHEIO I
De pequena tomei amor,
Porque o não entendi;
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.
VOLTAS
Vi-o moço e pequenino,
E a mesma idade ensina
Que s'incline huma menina
Ás amostras d'hum menino:
Ouvi-lhe chamar Amor,
Polo nome me venci ;
Nunca tal engano vi,
Nem tamanho desamor.
• \
62
Croscechine de dia em dia
Com a idade a affeiçao,
PoFque amor de criação,
N'alma, e na vida se cria.
Griou-se em mi este amor,
B senhoreou-se de mi:
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.
Às flores me toma abrolhos,
A morte me determina
Quem eu trouxe de menina
.Nas meninas de meus olhos.
Desta mágoa e desta dor
Tenho sabido que emfím
Por amor me perco a mim
Por quem de mi perde amor.
Parece ser caso estranho
O que Amor em mi ordena,
Qu'em idade tão pequena
Haja tormento tamanho.
Sejão milagres d' Amor,
Hei-os de soffrer assi,
Até que haja dó de mi
Quem entender esta dor.
CANTIGA VELHA
Apartârâo-se os meus olhos
De mi tão longe.
Falsos amores,
Falsos, máos, enganadores.
65
TOLTAS
Tratárão-me com cautella,
Por m'enganar mais asinha; ,
Dei-lhe posse d'a]ma minha,
Forão-me fugir com ella.
Não ha vê-los, nem ha \ ella,
De mi tão longe.
Falsos amores,
Falsos, máos, enganadores!
Entn^uei-lhe a liberdade,
E, emíim, da vida o melhor;
Forão-se; e do desamor
Fizerão necessidade.
Quem leve a sua vontade
De si Ião longe?
Falsos amores,
E oxalá enganadores !
OCTBA
Falso Cavalheiro, ingrato,
Enganais-me,
Vós dizeis, c[ue eu vos maio,
E vós matais-me.
VOLTAS
Costumadas artes são
Para enganar innocencias,
Piedosas apparencias
Sobre isento coração.
Eu vos amo, c vós ingrato
Magoais-me,
64
Dizendo, que eu vos mato,
E vós matais-me.
Vede agora qual de nós
> Anda mais perto do fim.
Que a justiça faz-se em mim,
E o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade traio
Levantais-me
Que vos desamo e vos mato,
E vós matais-me.
PRÓPRIO
Se de meu mal me contento,
He porque para vós vejo
Em todo o mundo desejo,
E em ninguém merecimento.
VOf.TA
Para quem vos soube olhar
Tao impossivel foi ser
O poder-vos merecer.
Como o não vos desejar.
Pois logo a meu pensamento
Nenhum çémedio lhe vejo,
Senão se der o desejo
Azas ao merecimento.
ALHEIO
Vós, Senhora, tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.
•
•
65
VOLTAS
Dotou em vós natureza
O summo da perfeição;
Que o qu^em vós he senão,
He em outras gentileza:
O verde não se despreza,
Que, agora que vós os tendes,
São bellos os olhos verdes.
Ouro e azul he a melhor
Côr, por que a gente se perde ;
Mas a, graça desse verde
, Tira a graça a toda côr.
Fica agora sendo a flor
A côr, que nos olhos tendes,
Porque são vossos e verdes.
ALHEIO
Para que me dan tormento,
Aprovechando tan poço?
Perdido, mas ne tan loco,
Que descubra lo que sienlo.
VOLtAS
Tiempo perdido es aquel
Que se passa en darme afan,
Pues cuanto más mé lo dan^
Tanto menos siento dél.
«
Que descubra lo que siento?
No lo haré, que no es tan poço ;
Que no puede ser tan loco
Quien tiene tal pensamiento. '
TOUO IV ' 5
66
Sepan que me manda Âmor,
Que de tan dulce querella,
A nadie dé parte delia,
Porque la sienta mayor.
Es tan dulce mi tormento,
Que aun se me antoja poço;
Y si es mucbo, quedo loco
De gusto de lo que siento.
ALHEIO
De vuestros ojos centellas,
Que encienden pechos de hielo,
Suben por el aire ai cielo,
Y en Uegando son estreitas.
VOLTAS
Falsos loores os dan,
Que essas centellas tan raras
No son nel cielo mas claras
Que en los ojos donde estan.
Porque cuando miro en ellas
Lo como alumbran ai suelo,
No sé que scran nel cielo;
Mas sé que acá son estrellas.
Ni se puede presumir
Que ai cielo suban, Senora;
Que la lumbre que en vós mora.
No tiene más que subir;
Mas pienso que dan quercllas
Á Dios nel octavo cielo,
Porque son acá en el suelo
Dos tan hermosas estreitas.
07
ALHEIO
De dentro tengo mi mal,
Que de fiíera no hay senal.
VOLTA
Mi nueva y dulce querella
Es invisible á la gente ;
El alma sola Ia siente,
Que el cuerpo no es dino delia. •
Gomo la viva centella
Se encubre en el pedernal,
De dentro tengo mi mal.
ALHEIO
Amor loco, amor loco,
Yo por vós, y vós por oiro,
VOLTAS
Dióme Amor tormentos dós,
Para que pfcne doblado;
Uno es verme desamado,
Otro es mancilla de vós.
Ved que ordena Amor eçi nósl
Porque vós haceisme loco.
Que seais loca por otro.
Tratais Amor de manera^
Que porque asi me tratais^
Quiere que, pues no me amais,
Que ameis otro que no os quiera.
Mas con todO; si no os viera
De todo loca por otro,
Con más razon fuera loco.
G8
Y tan contrario viviendo,
Âlíin, alfin, conformamos;
Pues ambos a dós buscamos
Lo que mas nos vá buyendo.
Voy trás vós siempre siguiendo,
Y vós buyendo por oiro:
Andais loca, y me baceis loco.
ALHEIO
Vede bem se nos meus dias
Os desgostos vi sobejos,
Pois tenbo medo a desejos,
E quero mal a alegrias.
VOLTA
Se desejos fui ja ter,
Servirão de alormentar-me ;
Se algum bem pôde alegrar-me,
Quiz-me antes entristecer.
P^sei annos, passei dias
Em desgostos tão sobejos,
Que só por não ter desejos,
. Perderei mil alegrias.
PRÓPRIO
Pois se be mais vosso que meu,
Senbora, meu coração,
Eu vosso captivo são.
Meus olbos, lembre-vos eu.
VOLTA
Lembre-vos minha tristeza,
Que jamais nunca me deixa ;
69
Lembre-vos com quânta queixa
Se queixa minha firmeza:
Lembre-vos que não be meu
Este triste coração;
E pois ba tanta razão,
Meus olbos, lembre-vos eu.
OUTRO
Senhora, pois minha vida
Tendessem vosso poder;
Por serdes delia servida, '
Não queirais que destruida
Possa ser.
VOLTA
Isto não por me pezar
De morrer, se vós quizerdes;
Que melhor me he acabar
Mil vezes, que supprtar
Os males que me fizerdes;
Mas só por serdes servida
De mi, -em quanto viver.
Vos peço que minha vida
Não queirais que destruida
Possa ser.
OUTRO
Pois damno me faz olhar-vos.
Não quero, por não perder-vos,
Que ninguém me veja ver-vos.
VOLTAS
De ver-vos a não vos ver
Ha dous extremos mortaes;
70
E são elles em si taes.
Que hum por hum me faz morrer;
Mas anles quero escolher,
Que possa viver sem ver-vos,
Minh'alma, por não perder-vos.
•
Deste tamanho perigo
Que remédio posso ter,
Se vivo só com vos ver,
Se vos não vejo, perigo?
Mas quero acabar comigo,
Que ninguém me veja ver-vos,
Senhora, por não perder-vos.
A TRÊS DAMAS, QUE UIE DIZIÃO QUE O AMA VÃO
MOTE
Não sei se m'engana Helena,
Se Maria, se Joanna;
Não sei qual delias m'engana.
»
VOLTAS
Huma diz que mp quer bem,
Oulra jura que mo quer;
Mas em jura de mulher
Quem crerá, se ellas não crem?
Não posso não crer a Helena,
A Maria, nem Joanna;
Mas não sei qual mais m'engana.
Huma faz-me juramentos
Que só meu amor estima,
7\
A outra diz que se fina,
Joanna, que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
Também mentirá Joanna;
Mas quem mente não m'engana.
A HUMA DAMA MAL EMPREGADA
MOTE
Menina, não sei dizer,
Vendo-vos tão acabada,
Quão triste estou por vos ver
Formosa e mal empregada.
VOLTAS
Quem tão mal vos empregou.
Pouco de mi se dohia.
Pois não vio.o quanto me hia
Em tirar-me o que tirou.
Obriga o primor que tem
Lindeza tão extremada
Que digão quantos a vem,
Formosa e mal empregada!
Tomastes da formosura
Quanto delia desejastes,
E com ella me guardastes
Para tão triste ventura.
Matáveis sendo solteira,
Matais agora em casada;
Matais de toda a maneira,
Formosa e mal empregada.
72
A HUMA FOÃA GONÇALVES
I
MOTE
Com vossos olhos, Gonçalves,
Senhora, caplivo tendes
Este meu coração Mendes.
VOLTA
Eu sou boa testimunha,
Que Amor tem por cousa má,
Que olhos, que são homens ja,
Se nomeiem sem alcunha;
Pois o coração apunha,
E diz, olhos, pois vós tendes,-
Chamae-me coração Mendes.
OUTRO
De que me serve fugir
De morte, dor e perigo,
Se me eu levo comigo?
VOLTAS
Tenho-me persuadido.
Por razão conveniente,
. Que não posso ser contente.
Pois que pude ser nascido.
Anda sempre tão unido
O meu tormento comigo,
Qu'eu mesmo sou meu perigo.
E se de mi me livrasse.
Nenhum gosto me seria:
Quem, senão cu, não teria
7o .
Mal, que esse bem me tirasse?
Força, he logo que assi passe,
Ou com desgosto comigo,
Ou sem gosto e sem perigo.
A HUMA DAMA, QUE JURAVA PELOS SEUS OLHOS
Quando me quer enganar
A minha bdla perjura,
Para mais me confirmar
O que quer certificar,
Poios seus olhos me jura.
Gomo meu contentamento
Todo se rege por elles.
Imagina o pensamento.
Que se faz aggravo a elles
Nao crer tão grão juramento.
I
Porém como em casos tais
Ando ja visto e corrente,
Sem outros certos sinais.
Quanto me ella jura mais.
Tanto mais cuido que mente.
Então vendo-lhe offender
Huns taes olhos como aquelles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pola não constranger
A jurar falso por elles.
MOTE ALHEIO
Ha hum bem, que chega e foge;
E chama-se este bem tal,
Ter bem para sentir mal.
. 7
VOLTA
Quem viveo sempre n'hum ser,
Inda que seja cm pobreza.
Não YÍo o bem da riqueza,
Nem o mal d'empobrecer :
Não ganhou para perder;
Mas ganhou com >ída igual
Não ler bem, nem sentir mal.
A HUMA DAMA, QUE LHE VIROU O ROSTO
MOTE
Olhos, não vos mereci
Que tenhais tal condição,
Tão liberaes para o chão,
Tão irosos para mi.
VOLTA
Baixos e honestos andais,
Por vos negardes a quem
Não quer mais que aquelle bem,
Que vós no chão espalhais?
Se pouco vos mereci,
Não m'estimeis mais que o chão,
 quem vós o galardão
Dais, é mo negais a mi.
PRÓPRIO
Venceo-me Amor, não o nego;
Tee mais força qu'eu assaz;
Que como he cego e rapaz,
Dá-mc porrada de cego.
75
VOLTA
Só porque he rapaz ruim,
Dei-lbe hum boféte zombando.
Diz-me; Ó máo, estais-me dando.
Porque sois maior que mim?
Pois se eu vos descarrego,
E em dizendo isto, chaz ;
Toroa-me outra, tá rapaz.
Que dás porrada de cego.
AO DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais m'espantar,
Os máos vi sempre nadar
w
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assi
O bem tão mal ordenado,
Fui máo; mas fui castigado.
Assi, que só para mi
Anda o mundo concertado.
A HUMA DAMA, PERGUNTANDO-UIE QUEM O MATAVA
MOTE
Perguntais-me, quem me mata?
Nâo quero responder nada,
Por vos não fazer culpada.
VOLTA
E se a penna não me atiça,
A dizer pena tão forle.
70 _
Quero-me entregar á morle,
Antes tjue a vós á justiça.
Porém se leqdes cobiça
De vos verdes Ião culpadia,
Direi que não sinto nada.
MOTE
Esconjuro-te, Domingas,
Pois me dás tanto cuidado,
Que me digas se te vingas,
Viverei menos penado.
VOLTAS
Juravas-me, qu.e outras cabras
Folgavas de apascentar;
Eu por não me magoar,
Fingia qu'erão palabras.
Agora d'arte te vingas
D'algum meu doudo peccado,
Qu'inda que queiras, Domingas,
Não posso ser enganado.
Qualquer cousa Lusca o seu;
A fonte vai para o Tejo,
E tu para o teu desejo,
Por te vingares do meu.
De mi t'esquecps, Domingas,
Como eu faço do meu gado :
Praza a Deos, que se te vingas.
Que morra desesperado.
Na phanlasia te pinto,
Pallo-te, responde o monte,
77
Busco o rio, busco a fonte,
Endoudeço, e não o sinto:
Domingas no Yalle brado,
Responde o eco Domingas;
E tu inda te nâo vingas
De me ver dou(}o tornado!
«
m
ALHEIO
Se a alma ver-se não pôde
Onde pensamentos ferem,
Que farei para me crerem?
VOLTAS
Se n'alma huma só ferida
Faz na vida mil sinais,
Tanto se descobre mais.
Quanto be mais escondida.
S'esta dor tão conhecida
Me não vem, porque não querem.
Que farei para ma crerem?
Se se pudesse bem ver
Quanto callo, e quanto sento, '
Despois de tanto tormento
Cuidaria alegre ser..
Mas se não me querem crer
Olhos, que tão mal me ferem,
Que farei para me crerem?
ALHEIO
Vosso bem querer. Senhora,
Vosso mal melhor me frfra.
78
VOLTAS
Ja agora certo conheço
Ser melhor todo tormento,
Onde o arrependimento
Se compra por justo preço.
Enganou-me hum bom começo;
Mias o fim me diz agora
Que o mal melhor me fora.
Quando hum bem he tão damnoso,
Que sendo bem, dá cuidado,
O damno fica obrigado
A ser menos perigoso.
Mas se a mi por desditoso,
Co'o bem me foi mal, Senhora,
Co'o vosso mal bem me fora.
ALHEIO
Se me desta terra for,
Eu vos levarei, amor.
f
VOLTAS
Se me for, e \oê deixar,
(Ponho por caso, que possa)
Est'alma minha, qtt'he vossa,
Comvosco m'ha de ficar.
Assi que só por levar
A minha alma, se me for,
Vos levarei, meu amor.
Que mal pode maltratar-me^
Que comvosco seja mal?
Ou que bem pôde ser lal^
79
Que sem vós possa alegrar-me?
O mal não pode enojar-me,
O bem me será maior,
Se vos levar, meu amor.
ALHEIO
Pequenos contentamentos,
Hi buscar quem contenteis.
Que a mi não me conheceiç.
•
VOLTAS
Os gostos, que tantas dores
Fizerão ja valer menos,
Não os acceita pequenos,
Quem nunca teve, maiores:
Bem parecem vãos favores.
Pois tão tarde me^quereis,
Qu'inda me não conheceis.
Oflfereceis-me alegria,
Tendo-me ja cego e mouco :
He baixeza acccitar pouco,
Quem tanto vos merecia.
Ide-vos por outra via.
Pois o bem qu^ me deveis,
Nunca mo satisfareis.
Xlhrio
Perdigão perdeo a penna,
Não ha mal que lhe não venha.
VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
Subio a hum alto lugar,
80
Perde a penfia do voar,
Ganha a pena do tormento:
Não tee no ar, nem no vento,
Azas com que se sostenha:
Não ba mal que lhe não venha.
Quiz voar a huma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E vendo^se despennado.
De puro penado morre.
Se a queixumes se soccorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não ha mal que lhe não venha.
9
A HUMAS SENHORAS, QUE HAVlAO SER TERCEIRAS
PARA COM HUMA DAMA
Pois a tantas perdições.
Senhoras, quereis dar vida, •
Ditosa seja a ferida.
Que tee taes Cirurgiõesl
Pois ventura
Me subio a tanta altura,
Que me sejais valedoras.
Ditosa seja a tristura,
Que se cura
Por vossos rogos, Senhoras!
Ser minha pena mortal, .
Ja qu'en tendeis, que he assi,
Não quero fallar por mi.
Que por mi falia meu mal.
Sois formosos,
84
Haveis de ser piedosas,
Por ser tudo d'huma côr;
Que pois Amor vos fez rosas
Milagrosas,
Fazei milagres de Amor.
Pedi a qoem vós sabeis,
Que ^iba de meu trabalho,
Não pelo qu'eu nisso valho,
Mas pelo que vós valeis.
Que o valer
De vosso alto merecer.
Com lho pedir de giolhos,
Fará qu'em meu padecer
Possa ver
O poder que tee seus olhos.
Vossa muita formosura
Com a sua tanto vai.
Que me rio de meu mal.
Quando cuido em quem me cura .
A meus ais,
Peço-vos que lhe valhais,
Damas de Amor tão validas,
Que nunca tal dor sintais.
Que queirais.
Onde não sejais queridas.
CANTIGA ALHtUIA
Na fonte está Leonor
Lavando a talha, e chorando.
Ás amigas perguntando:
Vistes lá o meu amor?
TOXO l¥ (í
82
VOLTAS
Posto O pensamento nellé,
Porque a tudo o Amor a obriga,
Cantava, mas a cantiga
Erão suspiros por elle.
Nisto estava Leonor
O seu desejo enganando,
Ás amigas perguntando: •
Vistes lá o meu amor?
O rosto sobre bua mão,
Os olhos no cbão pregados.
Que de cborar ja cansados,
Algum descanso lhe dão;
Desta sorte Leonor
Suspende de quando em quando
Sua dor; e em si tornando.
Mais pezada sente a dor.
Não deita dos olhos ágoa,
Que não quer que a dor s'abrande
Amor, porque em mágoa grande
Sécca as lagrimas a mágoa.
Despois que' de seu amor
Soube novas perguntando,
D' improviso a vi chorando.
Olhae que extremos de dorl
85
TROVAS
1
QUE MANDOU O AUTOR DA CADEIA, EM QUE O TINHA EMBARGADO POR HUMA
. DIVIDA MIGUEL ROIZ, FIOS SECCOS D'ALCUNHA> AO CONDE DO REDONDO
D. FRANCISCO COUTINHO, YISO-REI, QUE SE EMBARCAVA PARA PÓRA, PE-
DINDO-LHE O FIZESSE DESEMBARCAR.
Que diabo ha tão damnado,
Qae ttão tema a cutilada
Dos fios seccos da espada
Do fero Miguel armado?
Pois se tanto hum golpe seu
Sôa na infernal cadeia,
Do que o demónio arreceia
Gomo não fugirei eu?
Com razão lhe fugiria,
Se contr'elle, e contra tudo
Não tivesse hum forte escudo
Só em Vossa Senhoria.
Por lanto, Senhor, proveja,
Pois me tee ao remo atado.
Que antes que seja embarcado,
. Eu desembargado seja.
TROVAS
. QUE MANDOU HETTOR DA SILVEIRA AO MESMO CONDE,
INVERNANDO EM GOA
Vossa Senhoria creia
Que não apura o engenho
Fome, se he como a que tenho.
Mas afraca e corta a veia.
E quem o contrario senie,
84
Está farto em toda a hora,
Gomo estou faminto agora:
Mas Martha, se está contente,
Dá-lhe pouco de quem chora.
E pois Vossa Senhoria
Em geral a tudo acode.
Acuda a mi, que só pôde
Dar-me no engenho valia.
Esperte esta Musa minha,
Que o tempo traz somnolenta;
Valha-lhe nesta tormenta
Com essa doce mezinha,
Que só dá vida e contenta.
Acuda com provisão,
Não de papel, mas provida
D'ouro e prata; que esta vida
Não suslentão papeis, não.
De feitor a thesoureiro
Ser-me-hia trabalho grande;
Vossa Senhoria mande
Algum remédio, primeiro,
Com que a morte o ferro abrande.
AJUDA dÉ LUIZ PE CAMÕtilS
Nos livros doutos se trata
Que o grande Achilles insano
Deo a morte a Heitor Troiano;
Mas agora a fome mata
O nosso Heitor Lusitano.
Só ella o pódc acabar,
Se essa vossa condição
85
Liberal e singular
' Não mete entr'elles baslão,
Bastante para o fartar.
A HUMA SENHORA, QUE LHE CHAMOU DIABO
ESPABSA
Não posso chegar ao cabo
De tamanho desarranjo,
• Que sendo vós, Senhora, Anjo,
Vos queira tanto o Diabo.
Dais manifesto sinal
De minha muita firmeza,
, Que os diabos querem mal
Aos Anjos por natureza.
CANTIGA
Vi chorar huns claros olhos.
Quando delles me partia.
Oh que magoai Oh que alegria!
VOLTAS
Polo meu apartamento
Se aiTazárão todos d'ágoa.
Quem cuidou qu'em tanta mágoa
Achasse contentamento?
Julgue todo entendimento
Qual mais sentir se devia.
Se esta dor, se esta alegria?
Quando mais perdido estive,
Então deo a est'alma minha
Na maior mágoa que tinha,
8()
O maior gosto que tive.
Assi, se minha alma vive,
Foi porqae me defendia
Desta dor esta alegria.
O bem, que Amor me não deu
No tempo que desejei,
Quando delle me apartei,
Me confessou qu'era meu.
Agora que farei pu,
Se a fortuna me desvia
De lograr esta alegria?
Não sei se foi enganado,
Pois me tinha defendido
Das iras de mal querido,
No mal de ser apartado,
Agora peno dobrado,
Achando no fim do dia
O principio da alegria.
VILLÂNCETIfi PASTORIL
Deos te salve, Vasco amigo.
Não me falias? Gomo assi?
Bofe, Gil, não 'slava aqui,
VOLTAS
Pois onde te hão de faltar,
Se não 'stás onde appareces?
Se Magdanela conheces,
Nella me podes achar.
E como le hão d'ir buscar
87 ■
Aonde fogem de ti? ^
Pois nem eu estou em mi.
Porque te não acharei
Em ti, como em Magdanela?
Porque me fui perder nella
O dia que me ganhei.
Quem tão bem falia, não sei
Como anda fora de si.
Ella falia dentro em mi.
Gomo estás aqui presente,
Se lá tens a alma e a vida?
Porqu'he d'hum'alma perdida
Apparecer sempre á gente.
Se és morto, bem se consente
Que todos -fujão de ti.
Eu também fujo de mi.
•
OUTRO PASTORIL
Porque no miras, Giraldo,
Mi zampona como suena? -
Porque no me mira Elena.
I
VOLTAS
Vuelve acá, no estes pasmado,
Mira que gentil sonar!
Como te podrá mirar
Quien no puede ser mirado?
Y que bueno. enamorado!
No dirás, si es mala, o buena?
No, que me hizo mudo Elena.
88
Mira lan dulce armonía,
Déjate dessos enojos.
Tengo clavados los ojos
Con que mirar te podia.
Ansí Dios te dé alegria:
No vés cuan dulce que suena?
No, porque no veo Elena.
OUTRO PASTORIL
Crescem, Camilla, os abrolhos
De cliorares por Gincero:
Nao lie muito, que lhe quero,
Belisa, mais que meus olhos.
VOLTAS
Sempre os teus olhos estão,
Camilla, d'ágoas banhados.
De se verem desaipados
Pôde ser que chorarão.
Si, mas crescem os abrolhos,
E tu cegas por Cincero.
S'eu não vejo quem mais quero.
Para que quero mais olhos?
Se se foi ha mais d'hum mês,
Teus olhos não cansarão?
Não, que após elle se vão
Estas lagrimas que vês.
Fazem logo estes abrolhos ^
O mato espinhoso e fero.
Pois eu não vejo a Cincero,
Isso só verão meus olhos.
89
Chorando queres morrer?
Mais quero viver chorando.
Tu não vês que vás cegando?
Se cego, como hei de ver?
Põe na vista outros antolhos.
Não posso, nem menos quero.
Outra para outro Cincero,
Antes não quero ter olhos.
A HUMA MULHER, QUE SE CHAMAVA GRACIA DE MORAES
MOTE
Olhos, em qu'estão mil flores,
E com tanta graça olhais,
Que parece que os Amores
Morão onde vós morais.
VOLTA
Vem-se rosas e boninas,
Olhos, nesse vosso ver;
Vem-se mil almas arder
No fogo dessas meninas.
E di-lo-hão minhas dores.
Meus suspiros e meus ais;
E dirão mais, que os amores
Morão onde vós morais.
MOTE
Quem se confia em huns olhos,
Nas meninas delles vê
Que meninas não tee fé.
90
VOLTAS
Quem põe suas confianças
' Em meninas sem assento,
Offereça o soffrimento
A duzentas mil mudanças.
Mostrao no ar esperanças;
Mas em seus olhos se vé
Como não tee n'alma fé.
Enganão ao parecer,
Porque no caso d'amar.
São mulheres no matar,
E meninas no querer.
Quem em seus olhos se crer.
Cem mil graças nelles vè ;
^Vô-las sim, mas não ter fé.
Amostrão-vos n'hum momento
Favores assi a molhos;
Mas na mudança dos olhos
Se lhe muda o pensamento.
Em nada ja tee assento,
E o que mais nelles se vê
He formosura sem fé.
LOUVANDO E DESLOUVANDO HUMA DAMA
CANTIGA VELHA
Sois formosa, e tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.
VOLTAS
Ninguém vos pôde lirar
Senles tão hem assombrada ;
91
Mas heisrme de perdoar,
Que os olhos não valem. nada.
Fostes mal aconselhada
Em querer que fossem verdes :
Trabalhae de os esconderdes.
A vossa testa he jardim,
Onde Amor se desenfada;
He tão branca e bem talhada,
Que parece de marfim.
Assi he; e quanto a mim,
Isso vos nasce de a terdes
Tão perto dos olhos verdes.
Os cabellos desatados
O mesmo sol escurecem ;
Senão que por ser ondados.
Algum tanto desmerecem:
Mas á fé, que se parecem
A furto dos olhos verdes.
Não vos peze, não, de os terdes,
As pestanas têe mostrado
Ser raios, qíie abrazãu vidas;
Se não forão tão compridas,
Tudo o mais. era pintado:
Elias me tinhão levado
A alma, sem o vós saberdes,
Se não forão os olhos verdes.
O mimo desse carão
Nem pôr-lhe os olhos consente;
O ser liso e transparente
92
Rouba todo o coração:
Inda assi achareis nação,
Que lhe não peze de os verdes;
Mas não seja co'os olhos verdes.
Esse riso, que lie composto
De quantas graças nascerão,
Senão que alguns me disserão.
Vos faz covinhas no rosto.
Na vontade tenho posto
Dar-vos a alma, se quizerdes,
A troco dos olhos verdes.
Nunca se vio, nem se escreve
Boca co'huma graça igual,
Se não fora de coral,
E os dentes de côr de neve.. '
Dou-me eu â Deos, que me leve!
SofTrerei quanto tiverdes,
Não me tenhais olhos verdes.
Essa garganta merece
Outras palavras não minhas.
Senão qu'he feita em rosquinhas
D'ãlfenim, ao que parece.
Eu' sei bem quem se ofíerece
A tomar tudo o que tendes,
E também os olhos verdes.
«
Essas mãos são ferropeas:
Só o vê-las enfeitiça;
Senão que são alvas, cheias,
E tee a feição roliça;
95
Com que appellais por justiça,
Para com ellas aprenderdes
Qnem vê vossos olhos verdes.
A vossa galantaria
Matará a quem faltardes:
Tendes huns desdéns e tardes,
Que eu logo vos roubaria.
Oh dou-me a Santa Maria!
Sou cujo de quanto tendes,
E também desses olhos verdes.
*
ÂO MESMO
Tudo tendes singular,
Com que os corações rendeis.
Senão que rindo fazeis
Covinhas para enterrar:
E para resuscitar
Tee força a graça que tendes;
Senão que tendes os olhos verdes.
Tudo, Senhora, alcançais.
Quanto o ser formosa alcança.
Senão que dais esperança
Co'os olhos com que matais.
Se acaso os alevantais,
He para as almas renderdes;
Senão que tendes os olhos verdes.
94
A DOM ANTÓNIO, SENHOR DE CASCAES,
f
QUE TENDO-LHE PROMETTIDO SEIS GALLINHAS RECHEADAS POR HUMA COPLA
QUE LHE FIZERA, LHE MANDOU POR )>RINCIP10 DA PAGA
MEIA GALLINHA RECHEADA
Cinco galiínhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
, De appetile para as mais.
MqTE
Catharina bem promelte;
Ora mál como ella mente!
VOLTAS
Catharina he mais formosa
Para mi, que a luz do dia;
Mas mais formosa seria,
Se não fosse mentirosa.
Hoje a vejo ipiedosa,
Á manhãa tão differente,
Que sempre cuido que mente.
Promelteo-me hontem de vir,
Nunca mais appareceo;
Creio que não prometleo,
Senão só por me mentir.
Faz-me, emfim, chorar e rir;
Rio, quando me promette.
Mas choro quando me mente.
95
Jurou-me aquella cadelia
De vir, pela alma que tinha;
Enganou-me; tjnha a minha;
Deo-lhe pouco de perdella.
A vida gasto após ella,
Porque ma dá, se promette,
Maa tiia-ma quando mente.
Má, mentirosa, malvada,
Dizei, porque me mentis?
Prometteis, e então fugis?
Pois sem tornar,, tudo he nada.
Não sois bem aconselhada;
Que quem promette, se mente,
O que perde não o sente.
Tudo vos consentiria
Quanto quízesseis fazer.
Se este vosso promeller
Fosse por me ter hum dia.
Todo então me desfaria
Coúi gosto; e vós de contente,
Zombarieis de quem ménle.
Mas pois folgais de mentir,
Promettendo de me ver,
Eu vos deixo o prometter,
Deixae-me vós o servir:
Haveis então de sentir
Quanto a minha vida sente
O servir a quem lhe menle.
96
Câthariná me menlio
Muitas vezes, sem- ter lei,
E todas lhe perdoei
Por huma só que cumprio.
Se como mé consentio
Fallar-lhe, o mais me consente,
Nunca mais direi que mente.
MOTE
A alma, qu'eslá offrecida
A tudo, nada lhe he forte;
Assi passa o bem da vida.
Como passa o mal da morte.
VOLTA
De maneira me succede
O que temo, e o que desejo,
Que sempre o que temo, vejo,
Nunca o que a vontade pede.
Tenho tão offerecida
Alma e vida a toda a sorte.
Que isso me dera da morte.
Como ja me dá da vida.
MOTE
Ferro, fogo, frio e calma.
Todo o mundo acabarão;
Mas nunca vos tirarão,
Alma minha, da minha alma«
VOLTA
Não vos guardei, quando vinha,
Em torre, força, ou engenho;
97
Que mais guardada vos lenho
Em vós, que sois alma minha.
Alli nem frio, nem calma,
Não podem ler jurdição;
Na vida sim, porém não
Em vós que lenho por alma.
MOTE
Esperei, ja não espero
De mais vos servir. Senhora;
Pois me fazeis cada hora .
Tanto mal, que desespero.
VOLTA
Pois sei certo que folgais.
Quando mais mal me fazeis,
E que nunca descansais,
Senão quando me mostrais
Quão pouco bem me quereis;
Servir-vos mais não espero
Pois meu viver empeora
Com me fazerdes. Senhora,
Tanto mal, que desespero.
«
MOTE
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai formosa, e não segura.
VOLTIS
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
TOMO lY 7
I
98
Sainho de chamalole:
Traz a vasquinha de cole,
• Mais branca que a neve pura;
Vai formosa, e nao segura.
Descobre a toinja a garganta,
Cabellos de ouro entrançado.
Fila de côr d'encamado,
Tão linda que a inundo espanta:
Chove nella graça tanta,
Que dá graça á formosura;,
Vai formosa, e não segura.
MOTE
Quem disser que a barca pende,
Dir-lhe-hci, mana, que mente.
VOLTAS
Se vos' quereis embarcar,
E para isso estais no cães,
Entrae logo: que tardaes?
Olhae qu'está preamar:
E se outrem, por vos fretar,
Vos disser quesla que pende,
Dir-lhe-hei, mana, que mente.
Esta barca he de carreira;
Tee seus apparelhos novos:
Não ha como ella outra em Povos
Boa de leme, e veleira:
Mas, se por ser a primeira.
Vos disser alguém que pende,'
Dir-lhe-hei, mana, que mente.
99
MOTE
Com razão queixar*me posso
De vós, que mal vos queixais;
Pois, Senhora, vos sangrais.
Que seja n'l)um corpo vosso.
VOLTAS
Eu para levar a palma,
Com que ser vosso mereça.
Quero que o corpo padeça
Por vós, que delle sois alma.
Vós do corpo vos queixais,
Eu queixar-me de vós posso,
Porque, lendo hum corpo vosso.
Na minha alma vos sangrais.
E sem fazer differença
No que de mi possuis,
Pelo pouco que sentis, ^
Dais á minh'alma doença.
Porque dous aventurais?
Oh não seja o damno nosso!
Sangre-se este corpo vosso,
Porque, minha alma, vivais.
E inda, se attentardes bem,
Seguis medicina errada.
Porque para ser sangrada
Hum'alma sangue não tem.
E pois em mi sarar posso
Males, que á minha alma dais.
Se inda outra vez vos sangrais.
Seja neste corpo vosso.
MOTE
Ojos, herido me hábeis,
Àcabad ya de matarme;
Mas muerto volved á mirarme,
Porque me resusciteis.
VOLTAS
Pues me distes lai herida,
Gon gana de darme muerte,
El morir me es dulce suerte,
Pues cora morir me dais vida.
Ojos, qué os detcneis?
Acabad ya de matarme;
Mas muerto volved á mirarme,
Porque me resusciteis.
La Ilaga cierto ya es mia,
Aunque, ojos, vós no querrais;
Mas si la muerte me dais,
El morir me es alegria.
Y assí digo que acabeis,
O ojos, ya de matarme;
Mas muerto volved á mirarme.
Porque me resusciteis.
*
A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO,
QUE LHE MANDOU GLOSAR ESTE VERSO
Mas porém a que cuidados?
Tanto maiores tormentos
Forâo sempre os que soffri,
J0<
Daquillo que cabe cm mi,
Que não sei que pensamentos
São os para que nasci.
Quando vejo esle meu peilo
A perigos arriscados
Inclinado, bem suspeito
Que a cuidados sou sujeito,
Mas porém a que cuidados ?
AO MRSMO
Que vindes em mi buscar,
Cuidados, que sou caplivo?
Eu não tenbo que vos dar:
Se vindes a me matar,
Ja ha muito que não vivo ;
Se vindes, porque me dais
Tormentos desesperados,
Eu, que sempre soffri mais.
Não digo que não venhais;
Mas porém a que, cuidados?
AO MESMO
Se as penas que Amor me deu.
Vem por tão suaves meios,
Não ha que temer receios;
Que vai hum cuidado meu
Por mil descansos alheios.
Ter n'huns olhos tão formosos
Os senlidos enlevados.
Bem sei qu'em baixos estados
São cuidados perigosos;
Mas porém a que cuidados?. • .
102
UOTE ALHEIO
Trabalhos descansariâo,
Se para vós trabalhasse;
Tempos tristes passariao,
Se algum *hora vos lembrasse.
GLOSA
Nunca o prazer se conhece.
Senão despois da tormenta:
Tão pouco o bem permanece,
Que se o descanso florece,
Logo o trabalho arrebenta.
Sempre os bens se lograriâo.
Mas os males tudo atalhão;
Porém ja que assi porfiâo,
Onde descansos trabalhão,
Trabalhos dtscanmrião
Qualquer trabalho me fóra
Por vós grão contentamento:
Nada sentira, Senhora,
Se vira disto algum'hora
Em vós hum conhecimento.
Por mal que o mal me tratasse,
Tudo por bem tomaria;
Postoque o corpo cansasse,
 alma descansaria,
Se para vós trabalhasse
Quem vossas cruezas ]a
Soííreo, a tudo se poz ;
CiOstumado ficará;
«
1 05
E muilo nHilhor será,
Sc trabalhar para vós.
Tristezas esqueceriao,
Posloque mal me tratarão ;
Annos não me lembrarião,
Que como est'outros passarão,
Tempos tristes passar ião.
Se fosse galíjirdoado
Este trabalho tão duro,
Não vivera magoado.
Mas nâo o foi o passado,
Como o será o futuro?
De cansar não cansaria,
Se quizereis, que cansasse;
Cavar, morrer, fa-lo-hia;
Tudo, emfim, esqueceria, ,
Se algum^hora vos lembrasse.
MOTE ALHEIO
Triste vida se me ordena.
Pois quer vossa condição • ^
Que os males, que dais i)orpena.
Me fiquem por gala.rdão.
GLOSA
Despois de sempre soffrer,
Senhora, vossas cruezas,
A pezar de meu querer,
Me quereis satisfazer
Meus serviços com tristezas.
Mas, pois em balde resiste
\04
Quem vossa vista .condena,
Prestes estou para a pena;
Que de galardão tão triste
Triste vida &e me ordena.
De contente do mal meu
A tão grande extremo vim,^
Que consinto em minha fim:
Assi que vós e mais eu,
Ambos somos contra mim.
Mas qiie soffra meu tormento,.
Sem querer mais galardão,
Não he fora de razão ,
Que queira meu soffrimenlo.
Pois quer vossa condição.
O mal, que vós dais por bem.
Esse, Senhora, he mortal;
Que o mal, que dais como mal.
Em muito menos se tem,
Por costume natural.
Mas porém nesta victoria,
Que comigo he bem pequena,
A maior dor me condena
A pena, que dais por gloria,
Que os males, que dais por pena,
Que mór bem me possa vir,
Que servir-Yos, não o sei.
Pois que mais quero eu pedir,
Se quanto mais vos servir,
Janto mais vos deverei?
Se vossos merecimentos •
^05
De tão alta estima são,
Assaz de favor me dão
Em querer que meus tormentos
Me fiqueni por galardão.
MOTE ALHEIO
Ja não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida;
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.
GLOSA
Despois que meu cruel Fado
Destruio huma esperança.
Em que me vi levantado,
No mal fiquei sem mudança,
E do bem desesperado.
O coraçãp, que isto sente,
Á sua dor não resiste.
Porque vê mui claramente
Que pois nasci para trisle,
Ja não po^o ser contente.
Por isso, contentamentos.
Fugi de quem vos despreza:
Ja 6z outros fundamentos,
Ja fiz senhora a tristeza
De todos meus pensamentos.
O menos que lh'entreguei,
Foi esta cansada vida:
Cuido que nisto acertei,
Porque de quanto esperei
Tenho a esperança perdida.
^06
Acabar de me perder
Fora ja muito melhor;
Tivera fim esta dor,
Que não podendo mór ser,
Cada vez a sinto mor.
De vós desejo esconder-me,
E de mi principalmente,
Onde ninguém possa ver-me;
Què pois me ganho em perder-me,
Ando perdido entre a gente.
Gostos de mudanças cheios,
Nao me busqueis, nâo vos quero:
Tenho-vos por tão alheios,
Que do bem que não espero,
Inda me ficão receios.
Em pena tão sem medida,
Em tormento tão esquivo
Que morra, ninguém duvida;
Mas eu se morro, ou se vivo,
Nem morro, nem tenho vida.
A HUMA DAMA QUE SE CHAMAVA ANNA
MOTE
A morte, pois que sou vosso,
Nao a quero; mas se vem.
Ha de ser todo meu bem.
GLOSA
Amor, qu'em meu pensamento
Com tanta fé se fundou,
Me tee dado hum regimento,
107
Que quando vir meu tormento
Me salve com cujo sou.
E com esta defensão,
Com que tudo vencer posso,
Diz a causa ao coração:
Não lee em mi jurdição '
A morte, pois que sou vosso.
Por exprimentar hum dia
Amor se me achava forte
Nesta fé, como dizia,
Me convidou com a morte,
Só por ver se a temeria.
E como ella seja a cousa
Onde está todo meu bem,
Respondi-Ihe, como quem
Quer dizer mais, e não ousa:
Não a quero, mas se vem, . .
Não disse mais, porque então
Entendeo quanto me toca;
E se tinha dito o. não,
Muitas vezes diz a boca,
O que nega o coração.
Toda a cousa defendida
Euh mais estima se tem : '
Por isso he cousa sabida,
Que perder por vós a vida
Ha de ser todo mm bem.
Á MESMA DAMA
Vejo-a n'alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que não vejo.
\os
GLOSA
Se só de ver puramente
Me Iransforrtiei no que vi,
De vista tão excellente
Mal poderei ser ausente,
Em quanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada,
E a memoria tanto voa, /
Que se a não vejo em pessoa,
Vejo-a rCalma pintada.
O desejo, que s'estende
Ao que menos se concede,
Sobre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, qu'em ausência vos vejo.
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Qu'enlão não tenho que dar.
Quando me pede o desejo.
Gomo áquelle que cegou,
He cousa vista e notória, ^
Que a natureza ordenou
Que se lhe dobre em memoria
O qu'em vista lhe faltou:
Assi a mi, que não vejo
Go'os olhos o que desejo.
Na memoria e na firmeza
Me concede a natureza
O natural que mo vejo.
U)9
MOTE ALHEIO
Sem vós, e com meu cuidado,
Olhae com quem, c sem quem.
GLOSA
Vendo Amor que com vos ver
Mais levemente soffria
Os males que me fazia,
Não me pôde isto soffrer;
Gonjurou-se com meu Fado;
Hum novo mal me ordenou :
Ambos me levão forçado,
Não sei onde, pois que vou
Sem vó^ e com meu cuidado.
N
Não sei qual he mais estranho
Destes dous males que sigo.
Se não vos ver, se comigo
Levar imigo tamanho.
O que fica, e o que vem,
Hum me mata, outro desejo:
Com tal mal, e sem tal bem,
Em taes extremos me vejo:
Olhae com quem, e sem quem!
AO MESMO
Amor, cuja providencia
Foi sempre que não errasse, .
Porque n'alma vos levasse,
Respeitando o mal d'ausencia,
Quiz.qu'em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado.
^^0
Eu e meu cuidado sós,
Proveo nisso de attentado,
Por não me ausentar de vós,
Sem vós, e com meu cuidado.
Mas ést'alma, qu'eu trazia,
Porque vós nella morais,
Deixa-me cego, e sem guia;
Que ha por melhor companhia
Ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem,
Onde quer a forte estrella,
Sem alma, qu'em si vos tem,
Go'o mal de viver sem ella:
OOiae com quem, e sem quem!
MOTE ALHEIO
Sem ventura lie por demais.
GLOSA
Todo o trabalhado bem
Promette. gostoso fruito;
Mas os trabalhos, que vem.
Para quem dita não tem
Valem pouco, e cuslão muito. .
Rompe toda a pedra dura,
Faz os homens immortais
O trabalho quando atura;
Mas querer achar ventura,
Sem ventura, he por demais.
MOTE ALHEIO
s
Minh'alma, Icmbrae-vos delia.
\\\
GLOSA
Pois O ver-vos tenho em mais
Que mil vidas que me deis,
Assi como a que me dais,
Meu bem, ja que mo negais.
Meus olhos, não mo negueis.
E se a tal estado vim
Guiado de minha estrella.
Quando houverdes dó de mim.
Minha vida, dae-lhe a fim,
Minh'almay lembrae-vos delia.
MOTE alíjeio
Tudo pode huma affeição.
GLOSA
Tee tal jurdiçâo Amor
N'alma donde se aposenta,
E de que se faz senhor,
Que a Uberla e isenta
De todo humano temor.
E com mui justa razão,
Como senhor soberano,
Que Amor não consente dano.
E pois. me soffre tenção.
Gritarei por desengano:
Tudo pôde huma affeição.
TROVA DE BOSGÃO
Justa fué.mi perdicion;
De mis males soy contento; .
Ya no espero galardon,
Pues.vuestro merecimiento
Satisfizo mi pasion.
\\2
GLOSA
Despucs que Amor me formo ^
Todo de amor, cual me veo,
En las leyes, que me dió,
El mirar me consiutió,
Y defendióme el deseo.
Mas el alma, como injusta,
En viendo tal perfeccion,
Dió ai deseo ocasion :
Y pues quebre ley tan justa,
Justa fué mi perdicion.
Mostrándoseme el Amor
Mas benigno que cruel.
Sobre tirano traidor.
De zelos de mi dolor,
Quisd tomar parle en él.
Yo que tan dulce tormento
No quiero dallo, aunque peco,
Resisto, y no lo consicnto:
Mas si me lo toma á trueco
De mis maleSy soy contento.
Senora, ved lo que ordena
Este Amor tan falso nuestrol
Por pagar á costa agena,
Manda que de un mirar vuestro
Haga el premio de mi pena.
Mas vos, para que veais
Tan enganosa intencion,
Aunque muerto me sintais,
No mireis, que si mirais,
Ya no espero galardon.
\
Pues que premio (me direis)
Esperas que será bueno?
Sabed, sino lo sabeis,
Que es ló mas de Io que peno
Lo menos que mereceis.
Quien hace ai mal tan ufano,
Y tan libre ai senlimiento?
El deseo? No, que es vano.
El amor? No, que es tirano.
Pues? Vuestro merecimiento.
No pudiendo Amor robarme
De mis tan caros despojos,
Aunque fué por n)as honrarme.
Vos sola para matarme
Le prestastes vuestros ojos.
Matáranme ambos á dos;
Mas á vos con mas razon
Debe el ia satísfaccion ;
Que ámi por él, y por vos,
Satisfizo mi pasion.
ALHEIO
Todo es poço lo posible.
GLOSA
Ved que engano seAorea
Nuestro juicio tan loco,
Que por mucho que se crea,
Todo el bien, que se desea,
Alcanzado, queda poço.
Un bien de cualquiera grado.
Si de haberse es imposible,
TOJIO IT
w
Queda mucho dcseado.
Mas para mucho, alcanzado,
Todo es poço lo possible.
OUTRA
• Posibie es á mi cuidado
Poderme hacer satisfecho,
Si fuera posibie ai hado
Hacer no hecho lo hecho,
Y futuro lo pasado.
Si olvido pudiera haber,
Fuera remédio sufríblç;
Mas ya que no puede ser,
Para contento me hacer,
Todo es poço lo posibie.
ALHEIO
Vos tencis mi corazon.
GLOSA
Mi corazon me han robado;
' Y Amor viendo mis enojos,
Me dijo: Fuéte llcvado
Por los mas hermosos ojos,
Que desque vivo he mirado.
• Gracias sobrenaturales
Te lo tienen en prision.
Y si Amor tiene razon,
Senora, por las senales,
Vos teneis mi corazon.
m
MOTÍS
Que veré que me contente?
445
GLOSA
Desque una vez yo mire,
Senora, vuestra beldad,
Jamas por mi voluntad.
Los ojos de vos quite.
Pues sin vos placer no siente
Mi vida, ni lo desea,
Si no quereis que yo os vea,
Qué veré que me contente?
MOTE
Sem vós, c com meu cuidado.
GLOSA
Querendo Amor esconder-vos
Em parte que vos não visse,
Co'o extremo de querer-vos
Cegou-me os olhos com ver-vos,
Levou-vos, sem que vos visse.
Eu cego, mas atinado.
Quando vi que vos não via.
Do mesmo Amor indignado,
Ja vedes qual ficaria
Sem vós e com meu cuidado.
MOTE
Retrato, vós não sois meu ;
Retratárão-vos mui mal;
Que a serdes meu natural.
Fôreis mofino como eu.
{I6
GI.OSA
Indaqn em vós a arte vença
O que o natural tee dado,
Não fostes bem retratado;
Que ha em vós mais dilTerença,
Que no vivo do pintado.
Se o lugar se considera
Do alto estado, que vos deu
A sorte, qu'eu mais tjuizera*
Se he qu'eu sou quem d'anles era,
Retrato, vós não soh vieu.
Vós na vossa gloria posto,
Eu na minha sepultura, ^
Vós com bens, eu com desgosto;
Pareceis-vos ao meu rosto,
E não ja á minha ventura.
E pois nella e vós errarão
O qu'em mi he principal.
Muito em ambos s'enganárão.
Se por mi vos retratarão,
Retratárào-iwíi mui inal.
•
Mas se esse rosto fingido
Quizerão representar,
E houverão por bom partido
Dar-vos a alma do sentido
Para a gloria do lugar;
Víreis, posto nessa alteza.
Que vos não ha cousa igual ;
E que nem a maior mal
Podeis vir, nem mór baixeza,
Que a serdes meu natural:
\\7
Por isso nao confesseis
Serdes meu, qu'he desalino,
Com que o lugar perdereis :
Se conservar-vos quereis,
Blazonae que sois divino.
Que se nesta occasião
Conhecessem qu'ereis meu,
Por meu vos derão de mão,
Fôreis mo fino y como eu.
MOTE
Foi-se gastando a esperança,
Fui entendendo os enganos;
Do mal ficárão-mc os danos,
E do bem só a lembrança.
GLOSA
Nunca em prazeres passados
Tive firmeza segura.
Antes tão arrebatados,
Qu'inda não erão chegados.
Quando mos levou ventura.
E como quem desconfia
Ter em tal sorte mudança.
No meio desta porfia,
De quanto bem pretendia
Foi'S€ gastando a esperança.
Não tive por desatino
À occasião de perdella;
Mas foi culpa do destino.
Qiic a ninguém, como mais dino,
Ámor pudera, sostelia.
Dei-lhe tudo o qu'cra seu,
Não receando taes danos
Deste, a quem ahna lhe deu :
Quando ja não era meu,
Fui entendendo os enganos.
Fiquei deste mal sobejo
 quem a causa compete
Dizer-lhe tudo o que vejo.
Que Amor acceita o desejo,
Mas mente no que promete.
Que se a mi se me obrigou
A dar-me bens soberanos, .
Foi engano que ordenou :
Que do bem tudo levou,
Do mal ficárão-me os danos.
E se dor tão desigual
Sofifro em mi com padecellos,
Quero de novo soffrellgs;
Que por a causa ser tal,
Não determino offendellos.
Dobre-se o mal, falte a vida, •
Cresça a fé, falte a esperança.
Pois foi mal agradecida;
Fique a dor n'alma imprimida,
E do bem só a lembrança.
ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA
Aquella captiva, ,
Que me tèe captivo*
\\9
Porque nella vivo,
Ja não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores, '
Nem no Ceo eslrellas,
Me parecem bellas,
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos socegados,
Pretos c cansados,
Mas não de matar.
Huma graça viva,
Que nelles lhe mora,
Para ser senhora
De quem he capliva.
Pretos os cabellos,
Onde o povo vão
Perde opinião,
Que os louros são l;ellos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura.
Que a neve lhe jura
Que trocara a côr.
Leda mansidão.
Que o siso acompanha,
Bem parece estranha,
Mas barbara não.
/
420
Presença serena,
Que a tonnenta amansa:
Nella emfim descansa
Toda minha pena.
Esta he a captiva,
Que me têe caplivo;
E pois nella vivo,
He força que viva.
IfOTE
Quem ora soubesse
Onde o Amor nasce,
Que o semeasse !
VOLTAS
D' A mor e seus danos
Me fiz lavrador;
Semeava amor,
E colhia enganos ;
Não vi, em meus anos,
Homem que apanhasse
O que semeasse.
Vi terra florida
De lindos abrolhos.
Lindos para os olhos,
Duros para a vida.
Mas a rez perdida,
Que tal herva pasce,
Em forte hora nasce.
Com quanto perdi,
Trabalhava em vão:
\2\
Se semeei grão,
Grande dor colhi.
Amor DUDca vi
Que muito durasse.
Que não magoasse.
ALHEIO
Se me levão ágoas,
Nos olhos as levo.
VOLTAS
Se de saudade
Morrerei ou não,
Meus olhos dirão
De mi a verdade.
Por elles me atrevo
A lançar as ágoas,
Que mostrem as mágoas
Que nesta alma levo.
As ágoas, qu'em vão
Me. fazem chorar,
Se ellas são do mar,
Estas de amar são.
Por ellas relevo
Todas minhas mágoas;
Que se força d'ágoas
Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem,
Todas são salgadas;
Porém as choradas
Doces me parecem.
422
Correi, doces á^oas,
Que se em vós m'enlevo,
Não doem as mágoas,
Que no peito levo.
ALHEIO
Menina dos olhos verdes.
Porque me não vedes?
VOLTAS
Elles verdes são,
E tec por usança
Na côr esperança,
E nas obras não.
Vossa condição
Não he d'olhos verdes,
Porque me não vedes.
Isenções a molhos
Qu elles dizem terdes.
Não são d'olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
E vós não me credes.
Porque me não vedes.
Havião de ser.
Porque possa vê-los.
Que huns olhos tão bellos
Não se hão d'esconder:
Mas fazeis-me crer.
Que ja não são verdes,
Porque me não vedes.
<25
•
.Verdes não o são,
No que alcanço delles;
Verdes, são aquelles
Qu'esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Porque me não vedes?
ALHEIO
Trocae o cuidado,
Senhora, comigo;
Vereis o perigo,'
Qu'he ser desamado.
ê
VOLTAS
Se trocar desejo
O amor entre nós,
He para qu'em vós
Vejais o que vejo.
E sendo trocado
Este amor comigo,
Ser-vos-ha castigo
Terdes meu cuidado.
Tendes o sentido
D' Amor livre e isento,
E cuidais qu'he vento
Ser tão mal querido.
Não seja o cuidado
Tão vosso inimigo.
Que queira o perigo
De ser desamado.
^24
•
Mas nunca foi bl
Este meu querer,
Que a quem tanto quer,
Queira tanto mal.
Seja eu maltratado,
E nunca o castigo
Vos mostre o perigo,
Qu'he ser desamado.
Á TENÇÃO DE MIRAGUARDA
Ver, e mais guardar
De ver outro dia,
Qufem o acabaria?
VOLTAS
Da lindeza vossa,
Dama, quem a vê.
Impossível he
Que guardar-se possa.
Se faz tanta .mossa
Ver-vos hum só dia,
Quem se guardaria?
Melhor deve ser
Neste aventurar
Ver, e não guardar,
Que guardar e ver.
Ver e defender,
Muito bom seria, .
Mas quem |)oderia?
^25
MOTR
Irme quiero, madre,
Á aquella galera,
CiOn el marincro,
A ser marinera.
VOLTAS
Madre, si me fiiere,
Do quiera que vó,
No lo quiero yo,
Que el Amor lo quiere.
Aquel nino fiero,
Hace que me mueva
Por un marinero
Á ser marinera.
El que todo puede.
Madre, no podrá,
Pues el alma vá.
Que el cuerpo se quede.'
Con él por que muero
Voy, porque no muera;
Que si es marinero,
Seré marinera.
Es tirana ley
Del nino Senor,
Que por un amor
Se deseche un Rey.
Pues desta manera
Quiero irme, quiero
Por un marinero
Á ser marinera.
426
«
Decid, ondas, cuando
Vistes vos doncella,
Siendo tierna y bella,
Andar navegando?
Mas qué no se espera
Daquel nino íiero? ^
Vea yo quien quierp,
Sea marinera.
MOTE
Saudade minha,
Quando vos veria?
VOLTAS
Este tempo vão,
Esta vida escassa.
Para todos passa,
Só para mi não.
Os dias se vão
Sem ver este dia,
Quando vos veria.
Vede esta mudança
Se está bem perdida,
Em tão curta vida
Tão longa esperança.
Se este bem se alcança,
Tudo sofifrerja,
Quando vos veria.
Saudosa dor,
Eu bem vos entendo;
Mas não me defendo,
Pofque oflfendo Amor.
Se fosseis maior,
Em maior valia
Vos estimaria.
Minha saudade,
Charo penhor meu,
A quem direi eu
Tamanha verdade?
Na minha vontade
De noite e de dia
Sempre vos leria.
•
MOTE
Vida da minha alma,
Não vos posso ver:
Isto não he vida
Para se soffrer.
VOLTAS
Quando vos eu via,
Esse bem lograva,
A vida estimava,
Pois então vivia;
Porgue vos servia
Só. para vos ver.
Ja que vos não vejo
Para qu'he viver?
Vivo sem razão,
Porqu'em minha dor
Não a poz Amor;
Que inimigos são.
I
^
<28
Mui grande traição '
Mc obriga a fazer
Que viva, Senhora,
Sem vos poder ver.
Não me atrevo ja.
Minha tão querida,
A chamar-vos vida,
Porque a tenho má.
Ninguém cuidará.
Que isto pôde ser,
Sendo-me vós vida,
Não poder viver.
MOTE
Coifa de beirame
Namorou Joanne.
VOLTAS
Por cousa tão pouca
Andas namorado?
Amas o toucado,
E não quem o touca?
Ando cega e louca
Por ti, meu Joanne,
Tu pelo beirame.
Amas o vestido?
Es falso amador.
Tu não vês que Amor
Se pinta despido?
Cego e mui perdido
. ^29
Andas por lieiranic,
É cu por ti, Joanno.
A todos encanta
Tua parvoíce;
De tua doudice
Gonçalo s'espanta,
E zombando canta:
Coifa de beiramc,
Namorou Joanne.
Eu não sei que visle
Neste meu toucado,
Que tão namorado
Delle te sentiste,
Não te veja triste;
Ama-me, Joanne,
E deixa o beiráme.
«
Joanne gemia,
Maria chorava,
E assi lamentava
O mal que sentia:
(Os olhos feria.
E não o beiramc,
Que matou Joanne).
Não sei do que vom
Amares vestido;
Que o mesmo Cupido
Vestido não tem.
Sabes de que vem
Amares beirame?
Vem de ser Joanne.
TOSO IV U
150
MOTE
Se Helena apartar
Do campo seus olhos.
Nascerão abrolhos.
YOLTAS
A verdura amena.
Gados, que pasceis,
Sabei que a deveis
Aos olhos d'Helena.
Os ventos serena,
Faz flores d'abrolhos
O ar de seus olhos.
Faz serras floridas.
Faz claras as fontes:
S'isto faz nos montes.
Que ifará nas vidas?
Tra-las suspendidas,
Como hervas em molhos,
Na luz de seus olhos.
Os corações prende
Com graça inhumana;
De cada pestana
Hum'alma líie pende.
Amor se lhe rende,
E posto em giolhos,
Pasma nos seus olhos.
ALHEIO
Verdes são os campos
De còT do limão;
<5I
I
Assi são os olhos
Do meu coração.
VOLTAS
Campo, que fcstendes
Com verdura bella;
Ovelhas, que nella
Vosso pasto tendes;
D'hervas vos mantendes
Que traz o verão;
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados, que pasceis
Com .contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendeis.
Isso que comeis.
Não são hervas, não;
São graça dos olhos
Do meu coração.
ALHEIO
Verdes são as hortas
Com rosas e flores : .
Moças, que as régão,
Matão-me d'amores.
Entre estes penedos
Que daqui parecem,
Verdes hervas cresçam,
Altos arvoredos.
152 -
Vai desles rochedos
Agoa, com que as flores
D'outras são regadas,
Que mátão d'amores.
Com ágoa, que caí
Daquella espessura,
Oulra se mistura,
Que dos olhos sai :
Toda junta vai
Regar brancas flores,
Onde ha outros olhos,
Que mátâo d'amores.
Celestes jardins.
As flores estrellas:
Hortelôas delias
São huns seraphins.
Rosas e jasmins
De diversas cores,
Anjos, que as régão,
M;ilío-me d'amores.
ALHEIO
Menina formosa,
Dizei de (|ue vem
Serdes rigorosa
A quem vos ijuer hem?
VOLTAS
Não sei quem assella
Vossa formosura:
Que quem hc lao dura
Não pôde ser bella. .
Vós sereis formosa;
Mas a ra^ão tem
Que quem he irosa,
Nâo parece bem.
A mostra he de beila,
As obras s3o cruas:
Pois qual destas duas
Ficará na sella?
Sé ficar irosa,
Não vos está bem :
Fique antes formosa,
Que mais força lem.
O Amor formoso
Se pinta e se chama:
Se he amor, ama,
Se ama, he piedoso.
Diz agora a grosa
Que este texto tem,
Que quem he formosa
Ha de querer bem.
Havei dó, menina,
Dessa formosura:
Que se a terra he dura,
Secca-se a bonina.
Sede piedosa;
Não veja ninguém
Que por rigorosa
Percais lanio lem.
^54
ALHEIO
Tende-me mrw) nelle,
Que hum real me deve.
VOLTAS
Chum real d'amor,
Dous de confiança,
E três d'esperança,
Me foge o trédor.
Falso desamor
S'encerra naquelle
Que hum real me deve.
Pedio-mo emprestado,
Não lhe quiz penhor:
He máo pagador;
Tendo-mo afferrado.
Chum cordel atado,
Ao Tronco se leve;
Que hum real me deve.
Por esta travessa
Se vai acolhendo:
Ei-lo vai correndo,
Fugindo a grã pressa.
Nesta mao, e nessa
O falso se atreve,
Que hum real me deve.
Gomprou-me o amor,
Sem lhe fazer preço:
Eu não lhe mereço
Dar-me desfaVoi'.
^55
Dá-me lanla dor,
Que ando após clle
Pelo que me deve.
Eu de câ bradando,
EUe vai fugindo;
Elle sempre rindo,
Eu sempre chorando.
E de quando em quando
No amor se atreve,
Como que não deve.
«
A fallar a verdade
EDe ja pagou ;
Mas ainda ficou
Devendo ametade.
Minha liberdade
He a que me deve:
Só nella se atreve.
MOTE
Dó la mi ventura,
Que no veo alguna?
VOLTAS
Sepa quien padece.
Que en la sepultura
Se esconde ventura
De quien la merece.
AUá me parece,
Que quierc fortuna
Quo vo halk» aknina.
<56
Nacientlo mesquino,
Dolor. fué mi cama;
Tristeza fuó el ama.
Cuidado el padrino.
VesUóse el destino
Negra vestidura,
Huyó la ventura.
No se halló tormento,
Que allí no se hallase;
Ni hien, que pasase.
Sino como viento.
* Oh qué nacimiento,
Que luego en la cuna
Me siguió fortuna!
Esta dicha mia,
Que siemprc busque,
Bnscándola, hallé
Que no la bailaria;
Que quien nace en dia
D'estrella tan dura.
Nunca baila ventura.
No puso mi estrella
Mas ventura em min :
Ansí vive en fin
Quien nace sin ella.
No me quejo delia:
Quéjome que atura
Vida tan escura.
MOTE
Vida de minba alma.
\7i7
VOLTA
Dous tormentos vejo
Grandes por extremo :
Se vos vejo, temo,
E se não, desejo.
Quando me despejo,
E venho a escollier,
Temendo o desejo,
Desejo temer.
CANTIGA ALHEIA
Pastora da serra,
Da serra da Estrella,
Perco-me por ella.
VOLTAS
Nos seus olhos Lellos
Tanto Amor se atreve,
Que abraza entre a neve
Quantos ousao vellos.
Não solta os cabellos
Aurora mais Leilão
Perco-me por ella.
Não teve esta serra
No meio d^altura
Mais que a formosura,
Que nella se encerra.
Bem ceo fica a terra,
Que tec tal estrella :
Perco-me por ella.
J58
•
Sendo entre pastores
Câusa de mil males,
Não se ouvem nos vales
Senão seus louvores.
Eu só por amores
Não sei fallar qella,
Sei morrer por ella.
D^alguns, que sentindo
Seu mal vão mostrando,
Se ri, não cuidando
Qu'inda paga rindo.
Eu triste, encobrindo
Só meus males delia,
Perco-me por ella.
Sc flores .deseja
Por ventura bellas.
Das que colhe delias
Mil morrem d'inveja.
Não ha quem não veja
Todo o melhor nella:
Perco-me por ella.
Se n'agoa corrente
Seus olhos inclina,
Faz a luz divina
Parar a corrente.
Tal se vô, que seiíle
Por vcr-sc a ágoa ndia
Perco-me por (^lla.
J39^
ENDECHAS
Vós sois huma Dama
Das feias do mundo;
De toda a má fama
Sois cabo profundo.
A vossa figura
Nâo he para ver;
Em vosso poder
Não ha formosura.
Vós fostes dotada
De toda a maldade;
Perfeita beldade
De vós he tirada.
Sois muito acabada
De taixa e de glosa:
Pois quanto a formosa,
Em vós não ha nada.
Do grão merecer
Sois bem apartada;
Andais alongada
Do bem parecer.
Bem claro mostrais
Em vós fealdade:
Não ha hi maldade,
Que não precedais.
De fresco carão
Vos vejo ausente;
Em vós he presente
A má condição.
De ter perfeição
Mui alheia estais;
Mui muito alcançais
De poucíi razão.
\Ã0
KNDKCHAS
Vai O bem fugindo,
Cresce o ftial co'os anos,
Vao-sc descobrindo
Co o tempo os enganos.
Amor e alegria
Menos tempo dará.
Triste de quem fia
Nos bens da ventura!
Bem sem fundamento
Tee cerla a mudança,
Certo o sentimento
Na dor da lembrança.
Quem vive contente,
Viva receoso:
Mal que se nâo sente,
He mais perigoso.
Quem males senlio,
Saiba ja temer;
E pelo que vio
Julgue o qu'ha do ser.
Alegi^e vivia,
Triste vivo agora;
Chora a alma do dia,
E de noite chora.
Confesso os enganos
De meu pensamento:
Bem de tantos anos
Foi-se n'hum momento.
Meus olhos, (jue vistes?
Pois vos atrevestes,
Chorae, olhos tristes, .
O bem que pcrdeslcs.
\4\
A luz do sol pura
Só a vós se negue;
Seja noite escura,
Nunca a manhãa chegue.
O campo floreça,
Murmurem .as ágoas,
Tudo me entristeça,
Cresção minhas mágoas.
Quizei^a mostrar
O mal que padeço;
Não lhe dá lugar
Quem lhe deu começo.
Em tristes cuidados
Passo a triste vida;
Cuidados cansados.
Vida aborrecida.
Nunca pude crer
O que agora creio:
Cegou-me o prazer
Do mal que me veio.
Ah ventura minha,
Como me negaste!
Hum só bem que tinha.
Porque mo roubaste?
Triste fanlasia
Quanta cousa guarda !
Quem ja visse o dia,
Que tanto lhe tarda!
Nesta vida cega
Nada permanece;
O qu'inda não chega,
Ja desaparece.
J42
Qualquer cspcraiita
Foge como o vento:
Tudo faz mudança,
Salvo meu tormento.
Amor cego e triste,
Quem o têe padece:
Mal quem lhe resiste!
Mal quem lhe obedece!
No meu mal psquivo
Sei como Amorirala:
E pois nellc vivo,
Nenhum amor mata.
ABC FEITOS EM MOTES
A A A A
Amor, quisestes que fosvso
O vosso nome da pia
Para mór minha agonia.
Apelles, se fora vivo,
E a ver-vos alcançara,
Por vós retratos tirara.
Achilles morreo no templo,
Contemplando de giolhos.
Eu quando vejo esses olhos.
Arthemiza sepultou
A seu irmão, e marido,
Vós a mim, e a meu sentido.
B
Bem vejo que sois, Senhora,
Extremo de formosura,
Para minha sepullura.
.C C
Cleópatra se matou,
Vendo morto a seu amante,
E eu por vós em ser constante.
Cassandra disse de Troya,
Que havia ser destruida,
E eu por vós d alma e da vida.
D D
Dido mon^ por Eneas,
E vós malaes quem vos ama.
Julgai se sois cruel dama.
Dianira innocente
Da má morte causadora.
Vós da minha sabedora.
K
Euridice foi a causa
De Orpheo hir ao inferno,
Vós de ser meu mal eterno.
F F
Fedra só de puro amor
Morreo por seu enteado,
Eu morro de desamado.
Febo vai escurecendo
Ante vossa claridade,
E eu sem ter liberdade..
G G
Galatea sois, Senhora,
Da formosura estremo,
E eu perdido Polyphemo.
(]enol)ra, que foi Rainha,
Se perdeo por Lançarote,
^ E vós |)or me dar a morte.
H H
Hercules, huma camisa
De chammas, o consumio,
Minha alma des que vos vio.
Hebis e Dido morrerão
Com o rigor da mudança,
Eu vendo vossa esquivança.
•
Judilh que o duro Holofernes
Degolou, SC viva fóra,
Mate lhe déreis. Senhora.
Júlio César conquistou
O mundo com fortaleza,
Vós a mim cora*genlileza.
j j
Júlio César se livrou
Dos imigos com abrolhos,
Eu não posso desses olhos.
Jazia-se o Minotauro
Preso no seu labvrinlho,
Mas eu mais preso me sinto.
L L
Leandro se afogou,
E foi sua causa Hero ; .
E a mim o que vos quero.
ÍÍ5
Leandro se afogou
No mar de sua bonança,
Eu no de vossa esperança.
M M
Minerva dizem que foi
E Palias Deosas da guerra,
E vós, Senhora, da terra. • "
Medéa foi mui cruel,
, Mas não checou a metade
De vossa grâa crueldade.
N N •
Narciso o siso perdeo
Em vendo a sua figura,
Eu por vossa formosura.
Nymphas enganão mil Faunos
Com seli ar e formosura,
E a mim vossa figura.
00
Os olhos chorão o dam no*
Que em vos verem sentirão,
Mas eu pago o que elles virão. ^
Orpheo com a doce harpa
Venceo o reino de Plutão,
Vós a mim com. perfeição.
p p
^ Paris a Helena roubou,
Por quem Tróia foi perdida,
E vós a mim alma e vida.
TOMO IV . > 10
\
ã
Pyrrho maton Polirena
Perfeita em lodos sinaes,
E vós a mim me roataes*
Quanto mais desejo ver-vos.
Menos vos vejo, Senhora :
'Não vos ver melhor me fora.
Querendo ver a Diana,
Acleon perdeo a vidií),
Que eu por vós Irago perdida.
H n
Remédio nenhum não vejo.
Que remedeie meu mal ;
Nem crueza á vossa igual.
Roma o mundo sujeita
Com armas, saber, lemor.
Vós a mim só por amor.
Serena na mór Fortuna
Com enganos vai cantando,
E vós sempre a mim matando.
T T
Thisbe morreo por Pyramo,
A ambos matou o Amor;
A mim vosso desfavor.
Thisbe pelo seu amante
Morreo com amor sobejo,
Mas eu mais morto me vejo.
M7
V V
• Vénus, que por mais formosa.
Lhe deo Paris a maçãa,
Nao foi quanto vós louçãa.
Vcnus levou a maçãa,
Por vtfe não serdes, Senhora,
Nascida naquella hora.
Xpõ vos acabe em graça,
E vos faça piedosa,
Tanto, quanto sois formosa.
Xahtopea tornou atraz,
Por'Aponio a invocar,
E v(js não a meu chamar.
CARTA ESCRIPTA DAFRICA A HUM AMIGO
(ihuita)
Por usar costume antigo.
Saúde mandar quisera,
E mandara se tivera,
Mas aníor delia he imigo ;
Pois me deo, em lugar delia,
Saudade em que ando,
Saudades cein mil mando, '
E não ficando sem ella.
•
Se isto não fiz des que vim,
Não me queirais condenar,
• Que não tive inda lugar
Para tornar sobre mim.
Perdão merece esta culpa.
\4»
Que alem de ser peijiien.i,
La causa que me condena
Me serve de desculpa.
•
Mandar-vos novas quizera
Desla terra e mais de mim,
Se novas houvera aqui
Boas que mandar poderá ;
Mas quem tal enfadamento
Qual vai contar pretende,
Nao o sente, ou não entende
Onde chega seu tormento.
Comtudo, o que passa cá, *
Contarei como souber,
Se algum nojo vos der,
A tenção me salvará;
Se fallar desconcertado
Devei s-me de i)erdoar,
Que no estoi para llorar
Si no para ser llorado.
Melhor fora ter calladas
As novas que ha nesta terra.
Pois aonde vim buscar guerra
Somente achei badaladas.
Assim estou tão infadado
Que digo em dias tão raros,
Que diera por no allaros
La gloria de os a ver aliado.
Porque he tal o desconcerto,
Que caminho ja não leva.
U9
Nem menos lia ijiieni se atreva
A dar hum conselho certo:
A tudo ha conselho cá,
Quefti escapa e não fere
Triste dei, triste que mnere
Si ai paraizo no vá.
A gente he peor em dobro,
As vergonhas são perdidas,
Fallão das alheias vidas
E põem as suas em cobro;. '
Poucos hão medo á vergonlia,
E a mui poucos se hade ouvir:
Mais vale morrer com honra,
Que deshonrado bivir.
Não ha conversação como d'anles
Porque ha mister cem mil tentos
Com moradores praguentos
E fronteiros mais galantes:
Toda a terra anda ao revez,
Tanto que ja começa
Los pies sobre la caí)eça,
La cabeça sobre los pies.
Neste desconcerto tal,
Se (juereis saber qual ando,
Passo a vida suspirando
Pela causa do meu mal.
Assim me traz meo tormento .
■ Pelo ver tão perigoso
De mi remédio dudoso,
Mas no de mi perdimento.'
<50
Porque de males rodeado,
E sem remédio me vejo,
E juntamente o desejo
iMe acaba e o cuidado;
E tão mal me vai tratando
Este mal, segundo vejo,
Si no muere este desejo,
Moriré yo deseando.
O mór. mal que cá padeço,
He ter quanto sem razão
Outros olhos lograrão
O que eu por amor mereço:
Isto tanto me entristece
Que depois que estou aqui
Plazer no sabe de mi,
Cuidado no me falece.
Nenhum remédio a meos danos
Vejo por alguma via.
Senão vendo aquelle dia
Que hade ser fim de dous anos;
Mas tem meo mal tal graveza,
Que depois de me lá ver
Ja não llegará el plazer
A do ílegó la tristeza.
Dar-vos esta carta tal,
Não he fora de razão,
Pois eu sei que em vossa mão
Está meu bem e meu mal ;
Y pues sé que muerto soi
Si de til mano me dexas.
A quien contaré mis quexas.
Si a li no?
Dai-me o favor sem pejo,
Pois o dais a cousa vossa,
Não queirais vós que não [íossa
Servir-vos como desejo;
Ao menos se sou perdido
Não me deis o desengano,
Que ja não es en mi mano
El querer no ser querido.
' Com isto, e o mais que callo,
Julgai qual minha vida anda,
Saudade de huma banda
D'outra tento ao badallo:
Quando me contemplo tal
(Chegando a tão tristes dias.
Las tristes lagrimas mias
En piedra hazen senal.
Poderá eu viver contente,
(]omo saber que estava tal
A que he causa de meu mal,
Por me não ter lá presente ;
Mas por quão mal lhe merece
Meu amor tão maltratar-me
Quando mas pienso alegrarme,
Maior pacion me recrece.
Viver sempre arreceoso,
Que bem {xide lei* comigo
Onde está certo o perigo
<52
He o. remcdio duvidoso; '
Assim eu de ter perdida
Esperança de contente,
Ando perdido entre a gente,
Não n)orro nem tenho vida.
Não he viver á vontade,
Vestir e andar como quero
Donde do bem desespero
E me mata a saudade;
Se isto não vos desengana
Ja ouvireis vós dizer ..
El hombre queremos ver,
Que los panos son ^e lana.
Da guerra novas mais certas
Brevemente são contadas,
No verão portas fechadas.
No hinvemo pouco abertas;
Qualquer Mouro desmandado
Nos comete sem n'hum pejo,
E aquelle po&ligo vejo
Que sempre esteva fechado.
Isto não he pniguejar.
Mas toda a culpa he da fome,
Porque gente que não come
Mal poderá pelejar;
Assim estão muitos no dia
Com os olhos na tramontana,
Mirando la mar d^Espana
Como mengoava e crecia.
155
* — *
Tudo são queixas em vão,
E tudo são vãos clamores,
Capitão dos moradores,
Elles contra o Capitão;
Emíim-tal vai tudo aqui
Que brada grande e pequeno:
Tiempo bueno, liempo bueno
Quien se te Ilevó daqui.
»
O mesmo digo eu taml^m.
Porque o mal que eu lá passava
Com ver a quem m'o causava
' • Se me convertia em bem;
E por isso perdoai-me
Se eu brado noute e dia
Naves de la tierra mia
Venid ora e Uevadmc.
- • • »
Gabais esta vida cá
E desgabâis-me Lisboa,
Eu dera esta vida boa
A troco d'essoulra má;
Quem de estar lá se queixar
Meu desejo lhe responde:
Mas he de nós Conde
Que manzilla ni pesar.
Porém em quanto não vejo
O dia das alabanças,
Lembre-vos que as esperanças
Puz em vós de meu desejo;
Entretanto meu tormento
SoíTrerei sem me queixar,
/ #
' 154
* ■ ,
Pues que sufrir e callar
Coiivíene â mi |)ensâmento.
CARTA ESCRIPTA D AFRICA EM RESPOSTA Á DE HUM AMIGO
•
Mandaste-me pedir novas,
E pois heide obdecer.
Quero que seja em trovas
Por vos d*r em que entender;
E que esta arte de trovar
Se vá desacostumando
A quem anda como eu ando, * #
Tudo se hade perdoar.
Leíxando todo o euibaraço
Desde o dia que cá vim,
Vos darei conta de mim
C da vida que cá faço;
. E julga o qiie ca sento
Do que lá sentiria,
'S'algu'hora ou algum dia
Tive esíe tal pensamento.
Acho-me mui enganado
D'hum engano que trazia,
Não cuidei que nhum cuidado
Tantos cuidados havia;
Cuidei que vida mudada
Mudasse também ventura;
Mas a uiá sempre he segura,
E da l)oa nâo sei nada.
455
E pois que ja comecei,
Dar-vos-hei conta comprida •
De como passo a vida , ^
Nesta vida que tomei :
Vou-me ao longo da praia
Sem outros ricos petrechos:
Una adarga ale pechos -
Y en la mano una azagaia.
F^aço no meu pensamento
Mais torres que as de Almeirim,
Mas emfim leva-as o vento,
Porque são ventos em fnp ;
Vou-me traz isto em que ando
Quando a tormenta mais arde, '
Suspirando a menudo,
Hablando de tarde en tarde.
Fujo da conversação,
Ânoja-me companhia
E trago os olhos no chão,
E mui alta a fantezia;
Des que vou alongando.
Que me não |)odem ouvir.
Las bozes que iva dando,
Al cielo quieren subir.
Vejo desfeitos em vão
Todolos meus contentamentos.
Porém os meus [)ensamcntos
Não cansão, nem cansarão ;
S'alma, mais (jue a vida,
Mais (|ue a vida hade durar.
^5fi
Maldita scas ventura,
Que assi me hazes andar.
Cuido no que he ja passado
E no que está por passar,
Porém nunca o meu cuidado
Se muda *d'hum só lugar:
Quando em mim torno cuidando
Que de mi mesmo me velo,
Los ojos puestos nel cieio
Jurando iva hechando.
Vejo o mar embravecer,
Vejo que depois melhora,
Mil cousas vejo cada ora,
Huma só não posso ver:
Assim vou passando o dia
Nesta saudade tamanha,
Mirando Ia mar d'Espana
Como mengoava e crecia.
Quem disser que a saudade
He vida para gabar.
Se o disser de verdade,
Di-lo-ha para me enojar.
Vida que a alma entristece
Em que toda a dor consisto,
"El dia que hade ser triste.
Para mim solo amaneçe.
Crede-me quanto mais fallo.
Pois vos fallo como amigo,
E crede cpie o que callo
\
t
«
•
^57
He muito mais que o (}ue digo.
Ando com alma cansada,
Suspirando cada hora
Por el tu amor sen li ora
Passe YO la mar salada.
tf
Andando só, como digo.
Apartado da manada,
Fazendo contas comigo
Qu emfim não fundem nada,
Querendo buscar atalho
Para vir ao que desejo,
Vi venir pendon bremejo
Con.lresiento».de caballo.
Vinhão d'esppras douradas
E vestidos de alegria.
Com adargas c braçados
La flor de la Berbéria,
Com grilos e altas vozes
Vinhão a rédeas tendidas,
Ricas aljubas vestidas
En cima sus albernozes.
Genles.de mui las maneiras
E diversas nações
CoiTião a estas tranqueiras^,
Como a ganhar perdões;
Mas porque vos não engane
Cousas que outros vos escrevão,
Los bordones que ellos llevan,
Langas vos pareceranne.
J58_
Tudo anda de lovanio.
Era o campo todo clieo,
Em tudo punhão espanto.
De nada tihhão receo;
Com grandes vozes e festas
Vinhão bradando de lá:
Cavalleros de Alcalá
No os allabareis daquesla.
Comigo mesmo faltando.
Como s'a outrem faltasse •
Dizia quem me lembrasse
Do em que andava cuidando:
E porque tamanho dote
Nao se alcança por cuidar,
A las armas Mouriscote,
í>'in ellas quereis entrar.
Contar feitos esquecidos,
He muito contra minb'arle,
Houve mortos e feridos,
Houve mal de parle a parte.
Houve homem que dizia,
Na força do mor recêo,
Donde estás que no te veo,
Qu'es de ti esperança mia.
r
Pois fallo em tãò fraca guerra,
Sinal he de vosso amigo.
Visto como estais em terra,
Que ha outras de mór perigo;
E pois por vós mais fizera
Quem faz isto que aqui vedes,
Y que nuewis me traedes
Dol mi nmor que alia era?
Quizera-vos dizer mais,
E pois vos não digo tudo,
Farei conta que sou mudo
E entendel-me por sinaes;
Que se fosse tão ousado,
Qu'inda mais que isto dissesse,
 que muerte condenado
Pudo ser que grave fuesse.
' CARTA A HUMA SENHORA
(iXRniTA)
Senhora, quando imagino
O divino
Vosso geslo, claro e bello,
De alguma hora merece-lo
Me conheço por indino,
Que se sento
Ser altivo o pensamento
Que m'inclinou,
Vejo que amor vos deslina
Para mór merecimento. ,
Porque he vosso hndo aspeito
Tã(x perfeito ,
Que na mais pequena parte,
Não pôde, por nenhuma arle,
Comprender o humano peito;
Nem m'espanta,
K)0
Porque se tivestes tanta
Formosura,
Vossa suprema ventura
Mais alta vos levanta.
. Porém se meus pensamentos
Nos tormentos
Quizerdes experimentar,
Bem os podeis comparar
. Com vossos merecimentos,
Que se ordena
Amor em parte pequena
Opinião^
Crede que meu coração
He incapaz de grande pena.
E se cuidais por ventura
, Que a natura
Contém outro regimento,
Sabei que meo pensamento
Em vosso gesto se apura;
Nem m*engano
Que mudei o ser de humano
Como pude
Em divino, por virtude.
De gesto tão soberano.
. Assirp que, feito immortal,
Ou mortal,
Outro nome tomarei
De ser vosso pois mudei
O costume natural.
Também vós.
I
Pelo bem que em vós se poz,
Sereis digna
De serdçs por vós divina;
Mas eu divino por vós.
Em fim, que desta maneira,
A fé inteira
Que no peito amor me cria.
Vereis crescer cada dia.
Porque sempre mais vos queira
A fineza
De Hum amor que nesta empreza
Me acompanha,
Ficará sendo tamanha
Como vossa gentileza.
MOTE
' (inSDITO)
Afuera consajos vanos
Que despertais mi dojor;
No me toqueit vuestras manos.
Que los cpnsejos d'amor,
Los /jue matan, son los sanos.
GLOSA
Foi-me a fortuna entregar
A huma dama interesseira.
Que em vez de premio me dar
Por huma fé verdadeira.
Procura de me roubar.
Diz que rompe qualquer niuro,
E escusa cem mil danos,
Eu que temo seos enganos.
TOMO IT
II
\&2
Onanto de fero seguro, ^
Afuera consejos vanos.
Grandemente me persegue,
E me pede que lhe dê.
Não me vale razão que allegue
Nem maneira com que chegue
A achar valor nesta fé;.
E ponjue ella mVntendesse,
Lhe disse: Meu lindo amor,
Por vosso disfavor
Não me pidais interesse.
Que despertais mi dolor.
Eifl mostras dessa fé pura.
Vos farei, se vós gostais,
Lindas trovas que leiais.
De vossa linda figura
Com que tanto me matais;
Mas se pertendeis roubar-mc
Com affagos, com enganos,
E depois desenganar-me.
Pois não he cousa que me arme.
No me toquen vueslras manos.
Se dizeis que quem quer bem
Hade gastar sem ter freio, '
Eu, Senhora, bem o creio:
Mas praticai-o com quem
Tiver o seo cofre cheio.
Se me dizeis que se soa
Que quem dá tem mais favor,
Deixai-me antes minha dor.
<65
Pois nada mais me magOa^ «
Que los consejos d'amor.
Entre i\s regras dos amores,
Tomai esta singular
Que vos hade aproveitar,
Chamai-nos enganadores
E deixai-vos enganar;
Lograi-vos de vossa idade
No florido desses annos, ^
Por que de nossos enganos.
Se me credes em verdade, .
Los que matan, son los sanos..
MOTE
(CtUITO)
Guardai-me esses olhos hellos.
♦
GLOSA
De laços de ouro tão bellos,
Pertende amor fazer molhos,
Por prender quem ousa vè-k)s,
E pois elle quer cabellos,
Para mim só quero os olhos :
Pois elle he vosso captivo,
Por alcança-los e te-los,
Guardai para elle os cabelbs,.
Para mim que de olhos vivo,
Gnardai-me esses olhos hellos.
OtJTRA
Dois extremos tendes mana.
Em vosso gesto divino.
\(}4
Qualquer delles peregrino,
Olhos de luz soberana,
Cabellos d'ouro mais fíno.
Quem cabelbs para si
Pertender, deixai-lhe ave-los;
Mas se eu não quero cabellos.
E' olhos quero para inim,
Guardai-me esses olhos bellos.
MOTK
(linmrro) ^
S'espero, sei que m'engano,
Mas não sei desesperar.
GLOSA
O meu pensamento ahivo
Me tem posto em tal extremo,
Que quando esperando vivo,
O bem esperado temo,
Muito mais que o mal esquivo.
Que para crescer meu dano
No gosto da confiança,
Ordena o amor tirano
Que na mais firme esperança,
Se espero, sei que m'engano.
Deste novo sentimento^
Chega a tanto a nova dor.
Que se enlea o pensamento;
Ver que no mór bem de amof
Se descobre o mór tormento;
Folgara de m'enganar.
Mas não he cousa possível,
K)5
Pois [)ara sempre penar.
Sei que espero o impossível,
Mas não sei desesperar. .
A HUMA SENHORA REZANDO
* * MOTE
Peço-vos que me digais
Se as orações (jue rezastes,
Se forão por quem matastes,
Se por vós, que assi matais.
•
GLOSA
Com o espirito puro e vivo,
 vista toda turbada.
Nos céos vos vi enlevada ,
Com gesto contemplativo
No amor divino inflammada.
E por quanto, extremos tais.
Me causarão grjinde espanto,
Seria ora com zelo santo,
Peçot-vos que me digais?
Porque pondo-mc a notar
' Os effeitos da visão,
Medindo-os com a razão,
Hei vindo, em fim, a assentar
Que estáveis em oração;
Mas como de tantas vidas,
E corações que roubastes,
Vossas mãos são còmprehendidas.
Mal podem ser recebidas
As orações que rezastes.
466
Que posto que Deos aceita
Hum coração humilhado,
A conlricçâo do peccado
Ha de ser dor tão perfeita.
Que. lhe peze do passado;
Porém se no que mostrastes,
De lanlo mal vos doestes,
Pode ser que empregastes
Bem as preces que dissestes,
Se forao por (piem matastes.
E para ser mais aceito
O preço da salvação,
He de divino direito
Que façais satisfação
Dos danos que tendes feito.
Por tanto restitui
A vida que me tirais,
E então não duvideis mais,
Se rezastes só por mim,
Se por vós (|ue assim matais.
MOTK
(IXBOITO)
Ora cuidar me assegura,
Ora me matão cuidados.
GLOSA
Foi ser a vontade minha
De todos tão desviada,
Que me não affirmo em nada.
Pois tenho o mal quu tinha.
O bem que tinha m'enfada.
<67
Isto bejoiya da venlura,
Se não mengana o que cuido.
Que taes extremos mistura,
Que oia o meu próprio descuido,
Ora cuidar me assegura.
Diversas cousas me pede
O meu desejo inquieto,
Humas nego, outras prometio;
Mas comtudo me succede
Perder-me no que cometo.
Como seyh dos meus fados
, A tenção, favorecida,
Se para majes dobrados
Dão-me ora cuidados vida,
Ora me matão cuidados.
MOTK
(iMBflITO)
0
O meos altos iJensamentos,
Quão altos (\ue vos pozestes,
E quão grande queda destes!
VOLTA
Como de mim vos não vinlia
Serdes tirme n'hum estado,
Pois o viver enganado,
Era o maior bem que tinba,
Caslello d'esta alma minha,
Quão alio que vos pozesles,
E quão grande queda destes. ^
Sabia que éreis de vento.
Como (juem vos vio fazer:
j68
f
Indassim vos qiieria ter,
Como éreis sem fundamento:
Quem vos desfez n'hum momento?
Ai quão alto vos pozesles, ^
E quão grande queda destes!
MOTI;:
(IRBOJTO)
Esperanças mal tomadas,
Agora vos deixarei
Tão mal como vos tomei.
*
VOLTA
Fostes tomadas em vão
De mim sem fundamento,
E vós éreis todas de vento,
E eu delle vivia então;
Se vos tomei sem razão,
Com ella vos deixarei
Tão mal como vos tomei.
Assim vos queria ter
Sem razão e mal tomadas.
Sabendo, quando deixadas.
Quanto havieis de doer;
Mas nem isto pôde ser,
Que por meu mal vos tomei
E por vós me deixarei.
Quereis qufe faça mudança!
De vós outro bem não entendo.
Isto só se ganha em vos vendo,
isto só de vós se alcança;
\69.
Mas cstâ vân esperança.
Senhora, se eu a tomei
Por vós/ como a deixarei?
*
MOTK
(INBDITO)
Gomo quer que tendes vida,
 minha alma tão de vosso,
Não digais, mana, não posso.
VOLTA
Para haver-vos de entregar-ipe.
Bastava somente huma hora,
E sobrava esta d'agora
Para poder descançar-me.
Sc a vida pôde faltar-me,
Inda que eu não de ser vosso.
Não digais, mana, não posso.
.MOTE
(imtDITO)
Em tudo vejo mudanças,
Senão onde as ver quisera.
Passa a vida em esperanças,
Nunc^ chega a que se espera.
. VOLTA
E posto que chegue o bem,
O que duvido de ser.
Que gosto SC pode ter
No que firmeza não tem ?
.170
Vida cheia de mudanças
Tudo cni li cança e altera,
Porque dás mil esperanças,
E não dás o que s'csperã.
O mal he que le conheço
Ja j)or falsa e sem firmeza,
E com ter esta certeza
Inda te não aborreço.
De tuas vaas esperanças
Ver-me ja livre quisera.
Por me rir das mudanças
Do que espera e desespera.
«
MOTK
Ay de mim, mas de y()s ay.
Que eu morrendo,
Bem intendo
Que a vós nisso mais vai.
VOLTA
A vida, por vós perdida.
Bem me pôde ser gloriosa,
Mal pôde ser não penosa,
A vós perdida esta vida.
Se me matais altentai,
Que morrendo
Bem intendo
Que a vós mais nisso vai.
Com vossos olhos serenos
Não divisais
\7\
Querer vos sirva de mais,
Ter huma vida de menos.
Matai meus olhos, matai,
Que eu morrendo
Bem entendo
Que a vós mais nisso vos vai.
MOTE
(lxkdito)
r* ume desta, vida '
<eja-me esse lume
^a que se presumo
c»em o ver perdida.
VOLTA
ftoncedei luz -tal
> quem vós cegastes,
Hoda me tirastes
M essa só me vai:
soazão hc querida
«^a vir do alto cume
^orte de tal lume
> alma tao perdida.
oesatando hide
Msta treva escura
>uróra onde pura
Hóda luz reside:
>y (|ue atada a vida
«^a com esse lume
Ocixa o seu queixume
Mslima-se por perdida.
172
MOTI;:
(ijrBDITO)
Que vistes meus olhos?
Meus olhos que vistes,
Que vos vejo tristes?
VOLTA
Vejo-Yos chorosos,
De amor agravados,
Tanto namorados
Quanto mais queixosos;
Ora meus mimosos ^
Dizei-me, que vistes,
Que vos vejo tristes?
Dizei-m)B, meos olhos,
Quem vos agravou,
Quem vos trespassou
Com duros abrolhos?
Por certo que cm molhos
Nunca vi, se ahi vistes.
Lagrimas tao tristes.
Se chorais de amor
Suas esperanças,
Ditosas lembranças.
Mais ditosa dor;
Mas se he desfavor,
Dizei-mc, que vistes,
E nao sereis tristes.
Porém se do enganos
Viveis enganados, «
\7õ'
Não queirais cuidados
De que vem taes danos,
Deixai passar annos
Com o bem que vistes,
E não sereis tristes;
MOTE
(IMDITO)
Ay de mim.
Que muero despoes que os vi,
Ay de vós,
Que cuenta dareis a Dios.
VOLTA
En dos maneras se muestra
La piena que por vos siento,' .
Es la una, mi tormento,
La otra, la culpa vuestra.
Que se vi,
En perder me no perdi;
Pêro vos.
Que cuenta dareis a Dios?
Porque se vuestra codicia
En mi dano es de tal arte,
Aun que perdone la parle.
Queda el caso a la justicia.
Yo de acjui
Tomaré la culpa en mi;
Pêro Dios,
Tomara la pona en vos.
\74
MOTK
Lcagrimas dirão por mim,
Senhora, nesla despedida,
Em qne lermos vai a vida.
VOLTA
A tanlo chega esta dor,
Que desconfio da lingoa,
Queni pôde supprir tal mingoa,
Se não lagrimas de Amor;
Elias vos dirão melhor,
Senhora, nesta partida
Que vai a vida sem vida.
A força da saudade,
Quando a lingoa desvaria,
A quem em lagrimas fia . i
As que lhe pede a vontade,
Que chore nesta partida,
Irão dando fim á vida.
Não tem que ver a tenção
Com palavras amorosas,
As lagrimas saudosas,
Lingoas dos amores são;
Elias por mim fatiarão
Quando a pena da partida
Me tirar a falia e a vida.
Palavras podem mentir,
Mostrar dor grande ou pequena,
Mas lagrimas que dão pena^
475
Ninguém as sabe fingir;
Pelo que, quando parlir.
Qual for a dor da partida,
Tíil será nellas sentida.
MOTK '
(IXBMTO)
Prazeres, que me quereis?
Se vedes que vos não quero;
Ja nenhum de vós espei^o,
Nenhum de mi espereis.
VOLTA
Vindes para vos tomar,
Sois leves de natureza,
Melhor he minha tristeza
Que me não sabe deixar.
Disto não vos espanteis,
Que pois me quer, eu a quero;
NãoTTie engana no que espero.
Como vós sempre fazeis.
Lembre-vos quanto enleastes
Quando fugir vós quizestes,
O muilo jque promettestes,
O pouco que me deixastes.
O que agora promettestes
He também engano 'mero,
O que podeis, não o quero,
O que quero, não podeis.
De vossos ponlentamenlos
Tenho ja ex|)eriencia,
\76
Que de [tens tem apparencia;
E na verdade sao ventos.
Tempo he que me deixeis,
Ja que nada de vós quero,
. Não tenhais isto por fero,
Buscai outrem que enganeis.
More
(nHIDITO)
Por huns olhos que fugii^o,
O lume dos meus perdi;
Porque nem elles me virão,
Nem eu lambem mais os vi.
#
VOLTA
•Não lhes pude defender
Que taes olhos não seguissem,
Rirão-se muito de ver
Outros olhos que tal vissem.
Eu não sei o que sentirão.
Mas sei que tal dor senti,
Quando vi que não virão
Que nunca mais prazer vi.
Com sua luz me cegarão,
Como o sol tem por costume,
Fiquei com olhos sem lume,
Para chorar me ficarão.
Âssi, desde que não virão
Aquelles que acaso vi,
Sempre disso me servi,
Nunca mais com clles vi.
MOTE
(rNRDITO) *
No monte de amor andei,
Por ter de monteiro fama,
Sem tomar gamo nem gama.
VOLTA
Ached-me tão elevado
Neste monte a montear,
Que donde cuidei caçar
Eu mesmo fiquei caçado.
. Caçador desesperado,
Sahi de huma e outra rama
Sem tomar gamo nem gama.
Levava por meus monteiros,
Nesta caça de tormentos,
Os meus ais, que como vento
Hião diante ligeiros.
Huns tão tristes companheiros
Levei, como quem ama,
Por descobrir esta gama.
^ A roupa de montear
Que neste dia levava,
Era o mal que me pesava,
A corneta o suspirar.
Ja não podia cessar
Como touro quando J)rama^
Só por buscar esta gama.
Os cães erão meus tormentos,
Cheios de muita agonia,
O furão, minha porfia,
TOMO IV 12
<78 •
As redes, meus j)ensafnonlos.
Nem me valeo lomar ventos,
Nem peneirar pela rama
Para descobrir tal gama.
MOTK
(INRNTO)
Tal eslCM devspues (jue os vi.
Que de mi propio cuidado •
Estoi tan enamorado
Como NaroÍKO de si.
VOLTAS
Una sola deferência
Hallo neste amor altivo.
Que el murio con preferencia,
Mas yo con la vuestra vivo.
En el punto que yo os vi
Se realço mi cuidado,
De modo que enamorado
Por vos me quede de mi.
Nacieron de un amor dos,
Cupido fue el lercero
Que liazc que bien me quiero
Solo por que os quero a vos.
Los extremos que en vos vi,
Me ban traido a tal estado
Que me vêo enamorado
De amor de vos e de mi.
MOTE
(mcorro)
De vós quererdes meu mal
Me vem pode-lo soffrer.
<79
Gr.OSA
De tantas penas cercado,
Gosó de hum bem que ja live,
Que o que me he menos pesado
He ponderar que ainda vive
Hum amor lao mal pagado.
A causa deste tormento,
Sem vós, me fora mortal;
Daqui vem que em dano' tal
Só tenho o contentamento
De. vós quererdes meu mal.
De vós quererdes meu mal
Vem o querer esta vida,
Porque a dor de tal ferida.
Posto que em si hc morlal.
Fica assim menos sentida.
Eu tenho a dor desta pena,
Que me vós fazeis querer,
E posto que me condena
De ver que se me ordena,
xMe vem pode-la sòffrer.
MOTE
(ixiorro)
No meu peito o meu desejo
Da razão se fez tirano,
Vejo nelle certo dano.
Incerto remédio vejo.
VOLTA
Para de todo defender-me,
Este mal por passar tinha.
f
Ir eu contra a razão minha
Que morre por defender-me.
Da parte de meu deáejo
Me passo para meo dano.
Vejo que nisto me engano,
Mas nenhum remédio vejo.
mote:
(INIDITO)
Nasce eslrella d'alva,
A manhãa se vem,
Despertai, minha alma,
Não durmais meu bem.
VOLTAS
Meu íilho e meu Deus,
Rei e peregiíno.
Tão grande nos ceos,
Na terra menino.
Pois sois pequenino
Não temais a alguém ;
Despertai minha alma,
Não (hirmais meu bem.
Pestanas divinas
E debaxo estreitas.
Não cubrais meninas
Tão lindas, tão bellas;
Abri as janellas.
Porque tal luz dêem;
Despertai minha alma,
Não durmais meu bem.
Vós tendes, Senhor,
O mundo na paimâ,
Vós sois movedor
Do frio e da calma;
Mas pois vos enealma
O sol que ja vem.
Despertai minha alma,
Não durmais meu bem,
Ovelha que errou.
Buscais bom pastor,
Mas quem vo§ deixou
Is buscar, Senhor;
Pois de tal amor
Tal caminho vem.
Despertai minha alma,
Não durmais meu .bem.
Nas calmas estranhas
De área torrada,
Das minhas entranhas
Vos farei ramada:
Pois por esta estrada
Seguir nos convém.
Despertai minha alma,
Não durmais meu bem.
Ribeiras sombrias
Não ha nesta terra.
Não ha fontes frias
Que baxem da serra;
Pois quem vos desterra
Espera lambem,
482
Despertai minha alma.
Não durmais meu bem.
CARTA A HUMA SENHORA
(ihkoita)
r
Amor que vio minha dor
Ser maior que a paciência,
Promelteu-me, por favor,
Huma carta de adherencia
Para vosso desfavor.
Eu, que ainda não sabia
Quanto tinha de divino,
Julgava por desatino
Que caria de tal vaha.
Notasse hum cego menino.
Elle vendo-me ficar
Comigo quasi suspenso,
Por mais me desenganar
Começou-me de notar
Na mepioria por extenso..
E diz, por ver se o nego,
Via boa se assim for;
E eu tornei-lhe por louvor :
Os conceitos são de cego,
E as palavras são de amor.
Logo escrever me mandou,
E não sendo a pena boa.
Para as azas se virou
E humá grande arrancou,
Daquellas com que mais vôa.
<85
E diz-nie: toma esla pena,
Que por minha a todos ganha,
Que parece cousa estranha
Que baste cousa pequena
A contar cousa tamanha.
E por ser mais igual
A matéria ao pensamento.
Tudo he de hum natural ;
Molha a pena de teu mal
Na tinta do meu lormenlo. •
O pensamento Hgeiro,
Como portador tão 6el,
Sendo em tudo verdadeiro.
Te dê agora o jmpel.
Te sirva de mensageiro.
E eu, aparelhado assi,
Como amor me aparelliou,
Dés que nada me fallece ;
Desta maneira escrevi
O que o moço cego notou :
Senhora, que não quereis,
Depois que tudo quízesles,
E a morte me trazeis,
Negando-me o que podeis.
Sabendo í|uanto podestes.
Esperai, estai attento,
Que para contar minha dor
Me dá a tinta o tormento,
\S4
A pena me dá o amor,
O papel o pensamento.
Demócrito lirai
A vista tanto estimada,
Que sem ella procurai
Furtar o corpo á sillada,
Que do desejo esperai.
Se primeiro que vos vira,
Minha dor adivinhará, '
Meós, certo, olhos tirara
Que inda que pena sentira,
Menos pena lhe ficara/
Mas ai, Senhora, que n'isto
Não acerto, nem pode ser.
Porque para meu querer
Aníes cego por ter-vos visto,
Que cego por vos nâo ver.
•
Quanto mais que os cegos taes,
Se ante vós estivessem,
Como os que vos vêem cegais,
Os cegos vista tivessem
Para nunca verem mais.
\
Porque, depois que vos vi.
Quando vós ver me quizesles;
Nunca mais me vi a mim.
Nem vi quando me perdestes,
Sentindo que me perdi.
<85
Tanto enlevei o cuidado
Na luz com que me cegastes,
Que de cego e enlevado
Não vi quando me roub^tes,
Mas vi que fora roubado.
O pensamento por quanto
Vos quiz ter por sua estrella,
Como quem mais s'acautela
Se descuidou d'alma tanto,
Por vos dar cuidado delia.
Mas a alma que na gloria
Se vio de vossa prisão,
Deu recado ao coração,
Que rendido, ou' com victoria,
Se rendesse em vossa mão.
Os olhos que cada dia
Os vossos lhe erão defezos,
Como que mais não queria
Hião sempre ver os presos,
Por ver a quem prendia.
Gosavão da vista pura,
Vião huma alma no ceo;
Ó que ceol mas pouco dura
A gloria, pois a tolheu,
Ou vós, ou minha ventura, v
Ventura, não, que he cousa dura
Negar ella o que podeis;
Vós sim, pois que bem sabeis
486
Quão pouco pode â vcnlura
Onde vós tanto podeis.
E se, ScHhora, quereis
"Ser remédio do que espero,
Sou conlente que me deis
Não mais que quanto podeis,
Para íicar com quanto quero.
Se de bem tão sublimado,
Por indigíio me tiverdes,
Tende comvosco assentado
Que pois tenho meu cuidado.
Que terei quanto me derdes.
E pois que o pensamento
For capaz de imaginar-vos
Pela gloria do tormento,
Quiz o merecer comprar-vos
Com vosso merecimento..
Assim que de merecer
Não* me falta cantidade,
Nem me falta o poder ser;
Mas para tudo poder,
Falta-me vossa vontade.
E pois que podeis por vós,
O que não posso por mim.
Porque não quereis o fim,
Sem desfazeres em vós.
Vir a lazer tanto em mim.
<87
E pois o tempo vos dá
Licença porque me deis,
Não negueis o que podeis,
Que depois o negará, .
E vós m'o concedereis.
E pois tanto bem me .destes,
Senhora, não m*o tireis;
Porque mais pena tereis
Em saber que ja podestes,
Que ver que ja não podeis.
Em fim porque nunca Seja
Chegado a tão dura sorte,
Ou consenti que vos veja.
Ou não me negueis a morte,
Que a vida sem vós deseja.
OUTRA
(inidita)
Carta minha tão ditosa,
Pois que chegarás a ver
O que eu não; dou-le a entender
De minha vida penosa,
O que lhe podes dizer.
Quero que vás instruída
Para poder fallar lá:
Pede bem, dar-me-has vida.
Que em seres bem respondida
Todo o meu remédio está.
Humildade e reverencia,
Convein nesta [)arte teres,
Jíf
<88
Basla-te humilde a mim veres,
Para tu, que és dependência
Minha, humilde lambem seres.
Ja que me vãs remediar,
Se necessário me for,
Chora lá por alcançar,
Fica a conta do chorar,
E em conto de minha dor.
Senhora, dirás chorando.
Sou cá mandado de quem
Não quer mais que só o bem
D'eslar sraipre contemplando
No que de vós junto tem.
. Não fora nunca atrevido
A cometter tal empreza.
Dizendo, delia esquecido:
Baste-me a mim ser perdido
Por uma tão grande belleza.
Mas amor que vio estar
Tão engolfado na pena.
Disse: assi has de penar
Sem quereres applicar *
Sequer reiçedio de pena.
Põe-te logo a escrever
Para aquella que te cança,
Sem te faltar que.dizer,
Eu promello de te ser
Em tudo inteira lembrança.
^89
Pois elle vendo de amor
Hum tão grande offerecimenio,
Faz de mim embaixador
Com a pena de sua dor
Escrevendo seu tormento.
Dizendo: Senhora minha,
Lá onde quer que ora estais
Como podeis ser mezinha
Desta vida tão mesquinha,
Com hum só sim que digais.
Hum sim digo de contente,
Que por vós feneça amando.
De modo que saiba a gente
Que me dais vida penando
N'hum vagaroso accidente.
Quem souber que por vós rhouro,
Que melhor sorte quero eu?
Quem teve mór bem por seu,
Que quero eu mór thesouro.
Que morrer pelo bem meu.
«
Macias, o namorado.
Teve que era gloria
Na morte ter estampado
Até ser alanceado,
O nome de sua senhora.
Só quero que de em diante
Se saiba que sois servida,
De quem por vós perca a vida,
190
■ «
Que não houve nunca amante
Que a (lê por melhor perdida.
Que he Ião grande o bem de amar- vos.
Supposlo que muito peno,
Que inda cuido que hc pagar-vos
Pouco, e que sacrificar- vos
A vida, he premio pequeno.
Assi que para esperar,
Senhora, de vós favor,
Não me acho merecedor;'
Que em fim se vem a pagar
Meu amor c'o mesmo amor.
■
Hum só que de vós proceda
Mereço, pois me perdi,
E he que nunca succcda,
Qu'algum outro se conceda
O que se nega a mim.
OUTRA
t
(insdita)
Pois que. Senhora, folgais
Que minha alma vos não veja;
Peço-vos que me digais
A razão quê vós achais
Em não querer que vosso seja.
Bem que a razão vejo clara.
Que alguém vos enganou,
Porque eu certo julgava
Que o fio não quebrara
Pelo logar que cobrou.
J9JL
t
Mas pois foi a vosso grado.
E disso tomais prazer.
Eu estou aparelhado
A cumprir vosso mandado
Ja mais nunca vos ver.
E por ser obediente.
Com o que tenho me componho,
Digo que sou mui contente;
Seja passada por sonho.
E se, Senhora, cuidais
Que disto paixão me vem,
Certo que vos enganais • ^
N'isso' ganho eu mais
Dez mil vezes que ninguém.
INTKNDIMKNTO A RSTE VERSO
(l!fKDITO^
Olvide V avorescv.
* •
lia se de entender assi
Que desque os di mi cuidado
A quantas uve mirado
Olvide V avorescy.
A HUMAS SENHORAS
OrE JOr.ANDO PERTO DE HUMA JANELLA LUES CAUIRÁO TRÊS PAOS
E DERÃO NA CARECA DE CAMÔI<:S - .
Para evitar dias máos
Da vida triste que passo;
Mandem-me dar um baraço.
Que ja cá tenho três páos.
COMEDIAS
/
TttVU IV 13
EL-REI SELEUCO
INTERLOCUTORES
I
DO PROLOGO
O Mordomo, ou Dono da Casa — Martim Chinchorro — Ambrósio, Escudeiro
LA.NÇAROTE, MoÇO.
DA COMEDIA
El-R£i Sklbuco— A Rainha Estratonica — O Prinxipe Antiocho— Lbocadio,
Pagem do Príncipe Antiocho — Frolalta, Creada da Rainha Estratonica^— Hum
Portão da Cana — Huma Moça da Camará — Hum Physico ou Medico— San-
cho, Moço do Physico — Alexandre da Fonseca, hum dos Músicos.
PROLOGO
(Diz logo o Mordomo, ou Dono da casa:J
Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite,»
me quiz representar huma Farçá; e diz, que por não se encon-
trar com outras ja feitas, buscou huns novos fundamentos para
a quem tiver hum juizo assi arrazoado satisfazer. E diz que
quem se del^a não contentar, querendo outros covos aconteci-
mentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros da Castanheira,
ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na rua Nova em
casa do Boticário; e não lhe faltará que conte. Porém diz^ o Au-
tor que usou nesta obra da maneira de Isopejle. Ora quanto á
obra, se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende delia
menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto he
para praguentos: aos quaes diz que responde com hum dito de
hum Philosopho, que diz: Vós outros estudastes para prague-
190
jar, e eu para desprezar praguentos. Eu com Indo (juero sa-
bor (la F'arça, em que ponto vai. Lançarote?
MOCO
Sonlior.
MORDO^K)
Sâo ja chegadas as figuras?
Moçg
Chegadas sâo ellas ((uasi ao íim de sua vida.
MORDOMO
Como assi?
MOÇO
. . Ponjue foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem
talão de çapatò, que não sahisse fora do couce. Ora vierão huns
embuçadetes, e quizerão entrar por força; ei-lo arrancamento na
mão: derão huma pedrada na cabeça ao Anjo, e rasgarão huma
meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não ha de en-
trar, ate lhe não darem huma cabeça nova, nem o Ermitão até
lhe não porem huma estopada na calça. Este pantufo se perdeo
alli; mande-o v. m. Domingo' apregoar nos púlpitos; qiie não
quero nada do alheio.
BiORDOMO
Se clle fora outra peça de mais valia, tu botaras a consciên-
cia pela porta fora, para o melteres em tua casa.
MOCO
Oh ! se o elle fora, mais consciência seria tomá-lo a sen do-
no, quem o havia mister para si.
MORDOMO
Ora vem cá : vai daqui a casa de Marlim Chinchorro, e di-
m
m
ze-lhe que temos cá Aulo com grande fogueira; tjue se venha sua
mercê para cá, e que traga comsigo o Senhor Romão d' Alvarenga^
para que sobre o Canto-chão botemos nos$o contra-ponto de
zombaria. Ouves, Lançarote? ir-lhe-has abrir a porta do quin-
tal, porque mudemos o vinte aos que cuidao de entrar por força.
findo-se o Moço diz :)
Chichelo de Judeo, assi como foste pantufo, que te custava
ser huma bolsa com hum par de reales, íjue sao líons para Es-
cudeiro hypocrita; que são pouco, e valem muito?
, MOliDOMO
Moço. que estás fazendo que não vás?
MOCO
■ Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora
fora aquelle tempo, em que corrião as moedas dos sambarcos,
senlpre deste tiraria para humas palmilhas. Mas ja que assi he,
diga-me v. m. que farei deste?
MORDOMO
Oh tideputa bargante! esperae, (pie esl'outro vo-lo dirá.
[Faz que lhe atira com outro pantufo; vai-se o Moço, e diz o Mordomo:)
Não ha mais máo conselho, que ter hum villão destes mi-
moso, porque logo passão o pé além da mão, e zombão assi da
gravidade de seu amo. Mas tomando ao que importa; vossas
mercês he necessário que se cheguem huns para os outros, para
darem lugar aos outros senhores que hão de vir; que de outra
maneira, se todo o corro se ha de gastar em palanques, será
bom mandar fazer outro alvalade; e mais^ que me hão de fazer
mercê, que se hão de desembuçar, porque eu não sei quem n\v
quer k»m, nem quem me (píer mal: este s() desgosto tee hum
198
Auto, que he como officio de Alcaide; ou haveis deixar entrar
a todos, ou vos hão de ter por víllão ruim.
(Entra Martim CuivcnoRRo, faltando com o Esaidâro Ambrósio, e diz:)
I ' MARTIM
Entre v. m.
AMBRÓSIO
Dias ha, Senhor, que ando de quebras com cortezias; e por
isso vou diante. Beijo as mãos a v. m. Â verdade he esta, pas-
sear em casa juncada, fogueira com caslanhas, mesa posta com
alcatifa e cardas; além disto Auto para esgravalar os dentes:
esta he a vida, de que se ha de fazer consciência.
MORDOMO
' Senhor, o descanso dizem lá, que se ha de ter em quanto
homem poder, porqiie os trabalhos, sem os chamarem, de seu
se vem por seu pé, que seu nome he.
MARTIM
Ora pois, Senhor, o Auto que tal dizem que he? Porque hum
Auto enfadonho traz mais somno comsigo que huma pregação
comprida.
. MORDOMO
Senhor, por bom mo venderão, e eu o tomei á cala de sua
boa fama. E se tal he, eu acho que, por outra parte, não ha tal
vida, como ouvir hum villão, que arranca a falia da garganta,
mais sem sabor que huma pera-pão, e huma donzella, que vem
podre de amor, faltando como Apostolo, mais piedosa que huma
lamentação.
MARTIM
Para estes taes he grande peça rapaz travesso com molho
de junco, porque não andem mais ao coscorrão, mais roucos
que huma cigarra, trazendo de si enfadamento.
199
MOCO
O lá Senhoras; pedem as figuras alGoetes para toucarem um
Escudeiro. Ora sus, ha hi quem dê mais? que ainda vos veja to-
das a mim ás rebatinhas: ora sus, venhâo de mano em mano,
ou de mana eAíi mana.
^ MORDOMO
Moço, folia bem ensinado.
MOÇO
Senhor, não faz ao caso; que os erros por amores tee pri-
vilegio de moedeircf.
AMBRÓSIO
^ O rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardarão muito
por entrar.
MOÇO
«
Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.
AMBRÓSIO
Oh que salgado moçol Zombas de mi? Vem cá. Donde és
natural?
MOCO
Donde quer que me acho.
AMBRÓSIO
Pergunto-te onde nasceste.
MOÇO
Nas mãos das parteiras.
AMBRÓSIO
Em que terra? -
MOÇO
Toda a terra he huina; e mais eu nasci em casa assobra-
dada, varrida daquella hora, que não havia palmo de terra nella.
200
MARTIM
Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo
filho CS? He para ver com que disparate respondes.
MOCO
A fatiar verdade, parece-me a mi, que eu sou filho de hum
meu tio.
MARTm
Vem cá. De leu liol E isso como?
UOÇX)
Como? Isto, Senhor, he adivinhação, que vossas mercês não
entendem. Meu pae era Clérigo, e os Clérigos sempre chamão aos
filhos sobrinhos; e daqui me ficou a mi ser filho de meu tio.
MARTIM '
Ora te digo que és graciosp. Senhor, donde houvestes este?
MORDOMO
Aqui me veio ás mãos sem pios nem nada; e eu por gra-
cioso o tomei ; e mais tSe outra cousa, que huma trova fa-Ia tão
bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado.
AMBRÓSIO
Não! quanté disso nós havemos-lhe de ver fazer alguma
cousa, em quanto se vestem as figuras. Aindaque, para que he
mais Auto, que vermos a este?
MORDOMO
Vem cá, moço: dize aquella trova que fizeste á moça Brio-
lanja, por amor de mi !
MOÇO
Senhor, si, direi; mas aquella trova não he senão para quem
a entender.
20 ^
MARTIM
Comol tão escura he ella?
• MOCO
Senhor, assi a fiz e a escrevi na memoria, porque cu não
sei escrever senão con% carvão ; e porém diz assi :
Por amor de vós, Briolanja,
Ando eu morto,
Pezar de meu avô torto.
MARTIM
Oh 'como he galante 1 Que descuido tão gracioso ! Mas vem
cá: que culpa te tce leu avô nos desfavores que te tua dama dá?
MOCO
Pois, Senhor, se eu houve de pezar de alguém, não pezarei
* eu antes dos meus parentes, que dos alheios?
MORDOMO
-Pois oução vossas mercês a volla; que he mais cheia de ga-
vetas, que a tromheta de Serenissimo de la Valia.
MOCO
A volta. Senhores, he muito funda; e parece-me, Senhores,
que nem de mergulho a entenderão. E por isso mandem assoar
os engenhos, e melão mais huma sardinha no entendimento;
e pode ser que com esta servilha lhe calçará melhor: e todavia
paira assi:
Vossos olhos tão daninhos
Me tratarão de feição,
Que não ha em meu coração
Em (jue aiom doris róis de cominhos.
202
Meu bem anda sem focinhos
• Por vós morlo,
Pezar de meu avô torto.
HARTIM
Ora bem: que tee de ver os cominhos com o teu coraipão?
MOÇO
Pois, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais ca-
bedella, não se podem comer senão com cominhos: e mais, Se-
nhores, minha dama era tendeira; e este he o verdadeiro en-
tendimento.
MARTIM
r
E aquetla regra que diz: Meu bem anda sem focinhos, me
dá tu a etitender; que ella não dá nada de si.
MOÇO
Nunca vossas mercês ouvirão dizer: Meu bem e meu mal -
lutarão hum dia; meu bem era tal, que meu mal o vencia? Pois
desta luta foi tamanha a queda que meií bem deu entre humas *
pedras, que quebrou os focinhos; e por fícarem tão esfarrapa-
dos, que lhe não podião botar pedaço; por conselho dos Physi-
cos lhos cortarão por lhe nelles não saltarem erpes; e daqui fi-
cou : Meu bem anda sem focinhos, como diz o texto.
AMBRÓSIO
Tu fazes ja melhores ai^umentos, que moços de estudo por
dia de S. Nicoláo.
HARTIM
Senhor, aquillo tudo he bom engenho: este moço he natu-
ral para Lógico.
^ MOÇO
Que, Senhor? Natural para lojal Si, mas não tão fria como
vossas mercês.
205
MORDOMO
Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, me-
te-te aqui por baixo desla mesa, e ouçamos este Represenlador,
que vem mais amarrotado .dos encontros, que hum capuz roxo
de piloto que sahe em terra, e o tira da arca de cedro.
MARTIM
Sennor, elle parece que aprende a cirurgião.
AMBRÓSIO
Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a
menina dos olhos verdes.
MORDOMO
Em fim, parece figura de Auto em verdade.
(Entra o RepresentadorJ
He lei de direito, assaz verdadeira.
Julgar por si mesmos aquillo que vem;
Peloque, se cuidão que zombo de alguém,
Eu cuido que zombão da mcáma maneira.
E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem ne-
nhum conhecer seu próprio engano, por grande que seja. Ora,
Senhores^ a mim me esquece o dito todo de ponto em claro; mas
não sou de culpar, porque não ha mais que três dias que m'o
derâo. Mas em breves palavras direi a vossas mercês a summa
dá obra: ella he toda de rir, do cabo até á ponta. Entrarão logo
primeiramente quinze donzellas que vão fugidas de casa de seus
pães, e vão com cabazes apanhar azeitona; e traz ella^ vem logo
oito mundanos, metidos em hum covão, cantando: Quem os
. amores tee em Cintra; e despois de cantarem farão huma dança
de espadas; cousa muito para ver: entra mais El-Rei Dom San-
cho bailando os machatins, c entra logo Catharina Real com
\
204
luins poucos de parvos u'huma joeira; e scmeá-los-lia pela casa,
de que nascerá muito mantimento ao riso. E nisto fenecerá o
AutO; com musica de chocalho e buzinas, que Cupido vem dar
a huma alfeloeira a quem quer bem; e ir-sc-hão vossas mercês
cada hum para suas pousadas, ou consoarão cá comnosco disso
que ahi houver. Ora pois ficareis in vanum laboraverunt, por-
que atégora zombei de vós, por me forrar do erro da j^presen-
tação, como quem diz: digo-to, antes que mo digas.
AMBliOSIO
Ora vos digo. Senhores, que se as figuras são todas taes.
'(jue acertarião em errar os ditos; aindaque me parece que este
o não fez, senão a ser mais galante. Mas se assi he, ella he a
melhor invenção que eu vi; porque jagora representações, todas
he darám por praguentos; e são tão certas, que he melhor errá-
las, que acertá-las.
MORDOMO
Parece-me que entrão as figuras do siso: vejamos se são tão
galantes na prática, como nos vestidos.
(Entra El-Rei Selruco, com a Rmnha Esthatonica.)
REI
Senhora, desque a ventura
Me quiz dar-vos poi* mulher.
Me sinto emmeninecer;
Porqu'em vossa formosura
Perde a velhice seu ser.
Hum homem velho, cansado.
Não toe força, nem vigor,
Para em si sentir amor:
Sc não he qu'estou mudado
- Com ser vosso n outra cAr.
Muilo grande dita Wm
A mulher qiio he formosa.
I
205
j
I
BAINHA
Senhor, grande: mas porém
Sc a tal he virtuosa,
Quer-lhe a ventura mór Lem. ^
Si, mas porém nunca vemos
xV natureza esmerar
Adonde haja que laxar; <
Que quando ella faz extremos.
Em tudo quer-se extremar.
Eu fallo como quem sente
Em vós esta calidade.
Pelo que vejo presente;
E se me esta mostra mente,
Mente-me a mesma verdade.
Huma só tristeza tenho
Que nao têe a meninice,
Que no mór contentamento
O trabalho da velhice
Me embaraça o senlimenlo.
RAINHA
Senhor, novidades tais
Far-mc-hão crer de verdade ...
REI ,
Novidades lhe chamais!
Folgo, Senhora, que achais
Na velhice novidades.
RAINHA
Senhor, dias lia ([ue sento
A*
206
Em o Príncipe Antiocho
Cerlo descontentamento :
Dera alguma cousa a troco
Por saber seu- sentimento.
Vejo-lhe amarello o rosto,
Ou de triste, ou de doente;
Ou elle anda mal disposto,
Ou lá têe certo desgosto
Que o não deixa ser contente.
Mande, Senhor, vossa Alteza
A chama-lo por alguém,
Saberemos que mal tem,
Se he doença de tristeza.
De que nasce, ou de que vem.
' REI
Certo qu'eu me maravilho
Do que vos ouço dizer.
Que mal pôde nelle haver?
Ide dizer a meu filho
Que me venha logo ver.
RAINHA
Se curar não se procura
Huma cousa destas tais,
Vem despois a crescer mais.
Quando ja não se acha cura,
Toda a cura he por demais.
(Entra o Palncipe Antiocho, com íteu Pagem pôr nome Lbocaoio.)
príncipe
Leocadio, se és avisado,
E não te f?ilta saber.
ft
•
207
Saber-me-has dar a entender,
Quem ama desesperado,
Que fim espera de haver?
PAGEM
Senhor, não.
Mas porém porque razão
Lhe avem sabê-lo, ou de que?
príncipe
Pergunto-te a conclusão;
Não me perguntes porque.
Porque he minha pena tal,
E de tão estranho ser.
Que me hei de deixar morrer;
E por não cuidar no mal
O não ouso de dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente 1
Porque o mesmo pensamento
Ha medo do mal que sente.
PAGEM
Não entendo a Vossa Âlleza. '
PBINdPE
Âssi importa á minha dor.
pa(;em
E porque ra^ão. Senhor?
príncipe
Parti que seja a tristeza
208
t
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor, que me condena,
Que se haja de sentir, .
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se pôde descobrir 1
Oh caso grande e medonho!
Oh duro tormento fero!
Verdade he isto, qu'eu quero?
Não he verdade, mas sonho
De que acordar não espero.
Quero-me chegar a EURei
Meu pae, que ja m'está vendo.
Mas onde vou? Não m'entendo.
Com que olhos eu olharei
Huni pae, a quem tanto offendo?
Que novo modo de antolhos !
Porque neste atrevimento
Devera meu sentimento
Para elle não ter olhos,
Nem para ella j)ensamonto.
(Chega 'aonde e$tá El-Rei.J
Filho, como andais assi?
Que tanto desgosto tomo
De vos ver como vos vil
PHINCIPE
Não sei eu tanto de mi,
Que possa saber o como.
Dias ha ja, Senhor, que ando
209
Mal disposto, . sem saber
Este mal uue possa ^r;
Que se nelle estou cuidando.
•
Quasi me vejo morrer.
REI
Pois, filho, será razão
Que meus Physicos vos vejão.
príncipe
Os Physicos, Senhor, não;
Que os males qu'em mi estão,
São curas que me sobejao.
RAINHA
Deite-se; que na verdade
Hum corpo, deitado e manso,
Descansa á sua vontade.
príncipe
Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
RAINHA
Todavia, bom será
Que lhe facão huma cama.
príncipe
(Hum coxim abastará,
Que assi não descansará
O repouso de quem ama.)
TOXO IV
REI
Vamos, filho, para dentro,
li
210
Em quanto a cama se fuz:
* Repousí^ como capaz;
Que a mi me dá cá no cenlro
A pena que assi vos traz.
(Vão- se, e rem huma moça a fazer a cama e diz.)
MOÇA .
iMimos de grandes Senhores,
E suas extremidades, .
. Me hão de matar de amores,
' Porque de meros dulçores
Adoecem.
Então logo lhes parecem
Aos outros, que são mamados;
E os que são mais privados,
Sobre elles estremecem.
Certo (e assi D^s me ajudei)
Que são muito graciosos,
Porque de meros viçosos,
Não podem com a saúde.
Mas deixallos.
Porque elles darão nos vallos.
Donde mais nao se erguerão,
Inda que lhe dem a mão
Os seus privados vassallos.
(Entva hum Porteiro da Canai e bate primeiro e diz:)
POnTKIRO
Traz, traz.
MOÇA
Jesu! Quem 'slá ahi?
PORTEIRO
Ja vós, mana, éreis mamada:
^ /
2\\
Para vos levar furtada
Nunca tal ensejo vi. .
E vós estais descuidada!
MOCA •
E meus descuidos que fazem?
PORTEIRO
Vossos descuidos? cadclla!
Ah minhalnlal Sois tão bella,
Qu'esses descuidos me Irazem
Dous mil cuidados á vela.
Pois sou vosso ha tantos annos,
Mana, lirae os antolhos,
E vereis meus tristes dannos.
MOCA
Não tenhais esses enganos.
PORTEIRO
Nem vós tenhais esses olhos;
Que de vossos olhos vem
Esta minha pena fera.
MOÇA
De meus olhos? Assim era.
PORTEIRO
Moça, que taes olhos tem,
Nenhuns olhos ver devera.
MOCA
E porque?
/
•
2Í2
FOKTEIRO
. Porque cegais
A quantos olhos olhais,
Posloque por vós padecem.
Olhos? que tão bem parecem,
Porque não os castigais?
MOCA
Deos de siso, pois de vós .
Tirou o que aos outros deu.
PORTEI HO
Desatae-me lá esses nós.
Que mais siso quero eu.
Que não ter siso por vós?
MOCA
m
Paliais d'arte; eu vos prometo
Que a resposta vem á vela.
Isso he olho de panella,
Quanto ha ja que sois discrelo?
PORTKIRO
Quanto ha ja que vós sois bella?
MOCA
Dais-me logo a entender
Que eu sou feia, a meu ver.
PORTEIRO
E isso porque o entendeis?
MOÇA
Porque? Porque me dizeis
\
«
2<5
Que só de meu parecer
Vos procede o que sabeis.
PORTEIRO
He verdade.
MOCA
Pois bem senlo
Que o vosso saber he vento.
Fica a cousa declarada,
Meu parecer nao ser nada.
, PORTEIRO
Olhae aquelle argumento:
Além de bella, avisada!
Oh nem tanto, nem tão })Ouco !
Vede vós o que fallais.
MOCA
Cego-Ho saber andais.
PORTEIRO
Nó siso, mas não lao louco
Gomo vós, mana, cuidais.
Ora dizei, duna má:
Que não amais, quem vos ama?
MOCA
Ouvistes vós cantar ja,
Velho inalo, em minha cama?
Ja mentenderois. .
*
PORTEUtO
Ha, ha.
\
« ^
2<4
Senhora, cstaes enganada :
Que com huma capa o espada.
E com este capuz fora . . .
MOCfí
m
Ora bem: tirae-o ora^
E fazei huma levada.
PORTEIRO
Não: se m'eu hoje alvoroço,
Achar-me-hcis d'oulra feição.
(Aqui tira o capuz.)
«
PORTEIRO
Tenho ihá disposição?
^ Estas obras são de moço^
Se as mostras de velho são.
MOCA
Tendes mui gentis meneios.
PORTEIRO
Não, Senhora; faço extremos.
i
MOCA
Passeae ora, veremos
Se tendes tão bons passeios.
PORTEIRO
Tudo, Sci>hora, faremos.
MOCA
Virac ora a essoutra mãoi
\
2<r)
PORTEIUO
Esla disposição vêde-a;
Que lenho gentil feição.
MOCA
Tendes vóá mui boa rédea.
Soffreis ancas?
PORTEUm
.Isso não.
MOÇA
Por certo que tendes graça
Em tudo quanto fizerdes.
Fazei mais o que souberdes.
POnTEIRO
Não sei cousa que não faça,
Senhora, por me quererdes.
MOCA
«
Tendes vós muito bom ar.
I
PORTEIRO V
Mais qu'isto faz quem (juer bem.
MOCA
tf «
I-vos asinha, (jue vem
O Principe a se deitar. .
PORTEIRO
Nunca huma pessoa tem
Hiim'hora para fallar!
(Knira o Príncipe com, o seu Pagem Leocadiq e diz:)
m
príncipe
Seja a morte apercebida,
Porque ja o Amor ordena
 dar a meu mal sabida ;
Porque o fim da minha vida
O seja da minha pena.
Não larde, para tomar
Vingança de meu querer,
Pois não se pôde dizer
Que não lee ja que esperar,
Nem com que satisfazer?
Os Pbysicos vem e vão.
Sem saberem minhas mágoas,
Nem o pulso me acharão;
E se o querem ver nas ágoas,
As dos olhos lho dirão.
Se com sangrias ),ambem
Procurão ver-me curado;
O temor de meu cuidado
O mais do sangue me tem
Nas veias todo coalhado.
Quero-me aqui encostar,'
Que ja o esprito me cac.
Lcocadio, vac-me chamar
Os Músicos de meu Pae;
Folgarei de ouvir cantar.
(Aqui sr. deila, como que repousa, e falia dizendo asii:)
Senhora, qual desatino
Me trouxe a tanta tristura?
Foi, Senhora, por ventura
A força do meu destino,
2<7
Como vossa formosura?' *
Bem conheço que não posso
Ter tão alto pensamento ;
Mas disto só me contento,
Que sf paga com ser vosso
O mór mal de meu tormento.
(Entrúo 0$ Músicos, e diz Alexandre da Fonseca, hum deUes:)
I ALEXANDRE
Senhor, de que se acha mal
O Príncipe, ou que mal sente?
PA6EM
Senhor, sei que está doente,'
Mas sua doença he tal,
Qu'entender- se não consente.
Os Physicos vem e vão,
Huns e outros a meude,
Sem o poderem dar são.
Quanto mais cura lhe dão,
Então tee menos saúde.
O Pae anda em sacrifícios
Aos deoses, que lhe dem
A saúde que convém;
. Dizendo que por seus vicios
O mal a seu filho vem.
•
Eu suspeito qu'isto são
Alguns novos amorinhos,
Que terá no cjoração.
ALEXANDRE
Amores I com (|ucm serão,
Que lhe não dem de focinhos?
218
POHTEIRO
Senhores; que lhe parca»
Da doença dó Antiocho?
ALEXAMOnii:
Diga-lha quem lha conhece,
PAGEM
Que toma morrer a troco
De callar o que padece.
PORTEIRO
Isso he estar emperrado
Na doença; que he peor.
Têe-no os Physicos curado ?
ALEXANDRE
^ fOh! que de mal dei amor
No ha, Senor, sanador.
PORTEIRO
Fallaís como exprimentado
Qu'eu cuido que esta fadiga,
Que o faz com que desespere;
, Y por mas tormento quiere
I
I Que se sienta, y no se diga.
(
ALEXANDRE
Pois senhor mèu, isso assello,
Porque a pena, que sabeis,
Qíie eu cuido que está nelle,
Dar-lhe-ha penas cruéis,
Pues no hav quien la consuele.
2<9
POnTfilHO
Folgo, ponjue m'entendeis.
« »
PAGEM
Hemo-nos, Senhores, de ir.
Porque nos está'sperando.
PORTEIRO
Pois eu tanlbem hei de ir ;
Que não me posso espedir
Donde vejo estar cantando.
príncipe
Cantac, por amor de ml,
Alguma cantiga triste ;
Que todo meu mal consiste
Na tristeza em que me vi.
PORTEIRO
Mande-lhe cantar hum chiste.
ALEXANDRE
Chiste não, que he deshonesto,
E não tee esses extremos:
Outro canto mais modesto; *
Porém não sei que diremos.
'pagem
Gaoleão o dirá presto.
PORTEIRO
Dá licença V. Altezii
Que diga minha tenção?
/
I
, 220
PAGEM
Dizei : soja em canto-châo.
POBTEIRO
Pois crede qu'he subtileza,
Qu'os Anjos a comerão.
Digão esta:
Enforquei minhQ esperança.
E o Amor foi tão madraço^
Que lhe cortou o baraço.
ALEXANDRE
Não me parece essa boa.
PORTEIRO
Haja eu perdão,
Porque não a entenderão.
ALEXANDRE
Entender!
PORTEIRO
Bofe qu'he boa;
Não llie cahis na feição?
ALEXANDRE '
Dizei ora outra melhor,
Com que nos atarraqueis,
PORTEIRO
Ora esperae, ç ouvireis:
Sc a esta não dais louvor,
Quero que me degolleis. -
22<
' (CaníigaJ
Com VOSSOS olhos Gonçalves,
Senhora, captivo tendes,
* Este meu coração Mendes.
ALEXANDRE
Essa parece mui taibo,
Porque mostra bom indicio.
PORTEIRO
Vós cuidareis qu'eu que raivo.
ALEXANDRE
Todavia tee máo saibo.
Ora mal lhe corre o oíBcio.
PRÍNCIPE
Tá, não .vá "mais por diante
A zombaria, que he má:
Cantae qualquer delias ja;
Qu'esse Porteiro he galante.
Ninguém o contentará.
(Aqui cantão, e em acabando, diz o)
PAGEM
Parece que adormeceo.
F^ORTEIRO
Pois será bom que nos vamos.
ALEXANDRE
Senhor, quer que nos vejamos?
PORTEIRO
Senhor vir-me-ha do eco:
Releva-me que o façamos.
222
(Enlra a Rainha com huma sua Criada jiof nome Frolalta, e diz:)
RAINHA
^ Frolaltó, como ficava
Anliocho cm te tu vindo?
FllOLALTA
Ficava-se despedindo
Da vida qii'enlão levava,
E assi seus dias cumprindo.
KAINHA * .
Oh grave caso d'amor!
Desesperada affeição!
Oh amor sem redempção,
Que aDi te fazes maior
Onde tens menos razão !
No mais alto e fundo pego
Alli tens maior porfia:
Razão de ti não se fia.
Quem a ti te chamou cego,
Mui bem soube o que dizin.
Por ventura hia chorando?
FROLALTA
Chorando hia e chamando
Ao Amor, Amor cruel;-
E em, Senhora, se deitando
r Lhe cahio este papel.
RAINHA
Que papel?
PROLALTA
Este, Senhora.
I
I
225
RAINHA
Amostra, que quero lê-lo.
Agora acabo de crê-lo;
Que ao que mostra por fóra,
Aqui lhe lançou o sêllo.
•
(Aqui lê o papel.)
Oh estranha pena fera!
Desditosa vida chara!
Oh quem nunca cá viera, ,
E com seu Pae não casara,
Ou em casando morrera!
FROLALTA
Aindaque eu peca são,
Senhora, tudo bem vejo.
Attente, que na eleição
O que lhe pede o desejo
Não consente o coração.
RAINHA
Frolalta, pois qu'és discreta
Nada te posso encobrir;
Porque, se queres sentir,
A huma mulher discreta
Tudo se ha de descobrir.
O dia qu'entrei aqui,
Que a Seleuco recebi,
Logo nesse mesmo dia
No Príncipe filho vi
Os olhos com que me via.
Este princípio soffri-lho,
Para ver se se mudava :
Antes mais se accrcscontava:
224
Eu amavu-o como tillio,
E elle d'oulrarte me amava.
Agora vejo-o no fim
Por se me não declarar.
E [)ois ja que a isso vim,
A morte que o levar,
Me leve lambem a mim.
Porque ja que minha sorte
Foi tão crua e desabrida,
Que me nãò quer dar sabida ;
Sejamos juntos na morte,
Pois o não somos na vida.
Oh quem me mandou casar.
Para ver lai crpeldade!
Ninguém venda a liberdade,
Pois não pôde resgatar
Onde não tee a vontade.
Que não ha mór desvario.
Que o forçado casamento
Por alcançar alto. assento;^
Que, emfim, todo o senhorio
Está no contentamento.
Não sei se o vá ver agora,
Se será tempo conforme.
Ou se imos a deshora.
FROLALTA
Despois iremos. Senhora,
Que agora dizem que dorme.
(Entra o Physico a iomar-lhe o puUo, e tomando -o diz:)
PHYSICO
Su madrasta oyó nombrar,
Y eljHilso se lo altero:
225
Eslo no entieiído yo.
Porque para le alterar
El corazon le obligó.-
Pues que el corauson se altere.
Es porque en un moipento
Algun nuevo vencimiento
De aficion terrible le hiere,
Que causa tal movimiento.
-Pues que aficion cabe así
Con madrasta? Digo yo.
Dos razones hay aqui :
La una clice, que si,
La otra dice, que no.
Empero yo determiiío
De exprimentar la vé/dad,
Y hacer una habilidad,
Que declare es agua, ó vino
Esta su enfermedad.
Porque toda es^ia manana
Tengo estudiado su mal,
Sin ver causa efectuai
De su dolência inhumana,
Ni olra de su metal.
Llamar quiero este asnejon ;
Mas aun debe de dormir,
Segun que es dormilon.
. Sancho? 6 Sancho?
SANCHO
Ah Sonor.
PHYSICO
Ea. aun estás dormiendo?
TOMO IT * iS
4
I
226
SANCHO
Esloyrne, Sefior, vesliendo.
PHYSIGO
Pues vellaco y sin sabor, -
No me respondes dormiendo?
• Vestios presto, ladron.
Oh qué mozo, y qué ventura!
SANCHO
(Mas qué amo y qué cabron!)
Embíeme aeã el ropon,
Que no hallo mi vestidura.
PHTSICO
Que embie el -ropon ácá?
Parece que os desmandais.
«
SANCHO
Que vaya, Seiior? ha, ha.
Que buenos dias hayais.
(Entra o Moço embrulhado em hwna manta)
PHYSICO
Di como vienes así
Con la manta, y para qué?
SANCHO
Yo, Senor, se lo diré:
Por venir presto vesti
Lo que mas presto me hallé:
Porque viendo que él me llama,
Dormiendo yo sin afan,
227
Salte presto de la cama,
Que parezco uii gavilan,
Hermoso como una dama.
PHYSÍCO
Mas es tu bovedad tanta.
Que vienes desta facion?
SANCHO
De mi vestido se espanta?
De nochc sirve de manta, _
Y de dia de ropon.
PHYSICO
Embióme El-Rey á llamar
Otra vez.
SANCHO
Y á mi?
PHYSICO
Yáti!
SANCHO
Y él qué presta allá sin mi?
PHYSICO
Qué puedes tu aprovecbar?
SANCHO
*
Yo se lo diré de aqui :
Si por la ventura quiere
Para que le dé consejo,
Guando doliente esluviere;
Digo, coma, si pudiere,
228
Y lieba buen vino aiiejo;
Porque esle es el licor
Que dá fuerza, y es sabroso;
Quesegun dicen, Senor,
Vinum Icetificat cor
Hominis, y le es provechoso.
PHYSICO
Ya sabes la medicina.
Que Avicena nos refiere.
SANCHO
Pues, Senor! porque es divina.
Pêro ElRey qué le quiere,
Qué manda, ó qué determina?
PHYSICO
El Príncipe está doliente.
SANCHO
Oh mesquino! Y qué mal ha?
PHYSICO
Y á ti, necio, que te vá?
SANCHO
O Senor, que os mi pariente!
PHYSICO
Gracioso el bovo eslá.
Y pues díme por lu fé:
Llorarás si se muriere?
SANCHO
No, Senor, no lloraré;
22í)
Empero, Seãor, lia ré
La peor cara que pudierc.
PHYSICO
Ea, bovo, vé corriendo,
Y ensilla Ia mula ayna.
. SANCHO
Véngala eusillar mejur.
PHYSICO
Oh velhaco, v sin sabor!
/
SANCHO
Yo por cierto no lo entiendo.
Pero una medicina
La he de pedir, Dios queriendo,
(Porque ando atribulado,
• Y no sé parte de mi
Con e&te nuevo ouidado)
Para un sayo esfarrapado.
Que me dicen hav allí.
PHYSICO
Ora ensilla: y nunca viva,
Pues sufro tus desatinos.
SANCHO
Senor, pasion no reciva:
Ya cavalga Calainos
A la sombra de una oliva.
(Aqui sahe bolindo com a almofada, e acorda o Príncipe e diz :)
PRINCIPK
Oh bella vista e humana.
250
•
Por quem tanto mal soslenho!
Oh Princeza soberana!
Coflfío? PDS braços vos tenho.
Ou esté^sonho m'engana?
Pois como^ sonho, também
Me queres vir magoar?
E para me atormentar
Mostras-me a sombra do bem
Para assi mais m'enganar?
Assi que, com quanto canso,
Ja não posso achar ataltfo,
Pois que o somno quieto e manso.
Que os outros tee por descanso,
Me vem a mi por trabalho.
Pois ha hi tantos enganos
Que condemnão minha sorte;
Não o tenho ja por forte,
Se ã volta de tantos danos
Viesse também a morte.
(Aqui entra El-Rei com o Phvsico, e diz:)
REI
Ândae e vede se achais
O rasto desle segredo,
Que me dizem que alcançais;
Ainda que tenho medo
Que lhe soja por demais.
PHYSICO
Plega á Dios que aqueslo sea
Para salud v remédio
Desta dolência lan fea.
Yo buscaré todo cl modio,
Que presto sano se voa.
251
fA^i lhe toma. o Puvsico o puhoj
' Aflojen, Seiior, sus ais.
Como se halla en sq penar?
príncipe
Gomo me acho perguntais?
E como se pôde achar
Quem sempre se perde mais?
\
\ •
PHYSICO
(La respuesla abre el camino.)
Imagina dè contino?
PRÍNCIPE '
Não tenho outro mantimento,
Netn outro contentamento,
Senão o em que imagino.
(Aqui etUra a Rainha e diz:)
RAINHA
Como se sente, Senhor?
Tee a febre mais pequena?
príncipe
Responda-lhc minha pena.
PHYSICO
(Conocido es su dolor.
Ora sea en hora buena,
Tomada está la tristeza
 las manos.) Qué senti ó?
(Usaré de subtileza.)
252
(Diz contra El-rei:)
Gúmpleme que solo yo
Platique con Vuestra Alteza.
*
RICl
Cheguemo3-nos para cá.
RAINHA
Mão deve desesperar,
Qu'ein fim, se bem attentar,
Para tudo o tempo dá
Tempo para se curar. .
PRÍNCIPE
^ Que cura poderá ter
Quem tee a cura, Senhora,
. No impossível haver?
RAINHA
Ficae-vos, Senhor, embora.
Que vos não sei responder.
(Vai-se a Rainiia)
REI .
Neste mal, que não comprendo,
Que meio dais de conselho?
«
PHYSICO
Senor, nada entiendo ddílo ;
Y supueslo que lo entiendo,
Yo quisiera no entendello.
HEI
Porque ?
2Õ5
# ■
PHYSICO
Porque he entendido
Lo mas maio de entender,
Para lo que puede ser,
Porque anda, Senor, perdido
De amores por mi muger.
REI
Santo DeosI que! tal amor
Lhe dá doença tão fera!
Que remédio achais melhor?
PHYSICO
Forçado será que muera,
Porque no muera mi honor.
REI
Pois como! a hum só herdeiro
Deste Reino não dãreiá
Vossa mulher, pois podeis;
Que tudo faz o dinheiro?
Pois este não o engeiteis;
Dae-lha, porque eu espero '
De vos dar dinheiro e honra.
Quanto eu para elle quero.
PHYSICO
No tira el mucho dinero
La mancha ^e la doshonra.
HEI
Ora bem pouco defeilo!
He peijuico conhecida,
è
f
I
I
25<
Quando deixa de ser feito;
Porque com elle dais vida
A quem vos dará proveito.
«
PHYSICO
Cuan facilmente aporfia
Quien en tal nunca se vió!
Del consejo que me dió,
Yuestra Alteza que haria
Si agora fuese yo?
BEI
A mulher que eu tivesse
Dar-lha-hia. Oxalá
Que elle a Rainha quizesse !
PHYSlCO
Pues dela, si le parece,
Que por ellsa muerto está.
REI
Que me dizeis?
PHYSICO
La verdad.
REI
Sem dúvida, tal sentistes?
PHYSICO
Sin* duda, sin falsedad.
. Pues, Seíior, ahora tomad
Los consejos que me distes.
255
REI
CerUmeote, qu'cu o via
Em tudo quanto fallavâ.
Como o vistes? porque via?
. PHYSICO
Nel pulso, que se alterava
Si la via, ó si la oia.
REI
Que maneira ha de haver?
Qu'eu certo me maravilho,
Possa mais o amor do filho.
Do que pôde o da mulher.
Finalmente hei-lha de dar,
Que a ambos conheço o centro.
Quero-o ir alevantar,
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
(Diz contra o Príncipe :)
Levantae-vos, filho, d'hi
O melhor que vós puderdes,
E vinde- vos para aqui ;
Porque, emfim, o que quizerdes
Tudo havereis de mi.
PAGEM
Ah Senhores, oulá, ou?
PORTEIRO
Viestes em conjunção
A melhor que pôde ser
J56
Haveis aqui de fazer
A tosquia a um rifao. •
PAGEM
Deixae-me, Senhor, dizer:
Haveis isto de acabar,*
Coração/ hi bugiar,
No esteis preso en cadenas,
Que pois o amor vos deo penas,
Que vos lanceis a voar.
PORTEIRO
Por certo que bem comprou.
PAGE.V
Ora sabeis o que vai?
Ântiocho que casou
Com a mulher de seu Pai,
E o mesmo Pae o ordenou.
PORTEIRO
Isso como?
PAGEM .
Não o sei;
Porque dizem que a amava,
E que só por ella andava
Para morrer; e El-Rei
Deo-a a quem a desejava.
PORTEIRO
Se t) casa por querer bem
Com a moça, a quem elle ama,
Direi eu que a mim me inflamma
O amor mais que a ninguém.
257
PAGiSM
Pois poHi-lhe a nossa dama.
POHTEinO
Por São Gil, que ei-Ios cá v<^in,
Elle pela mão com ella.
(Eiitra El-Rei, e Antiocho com a Rainha pela mão, e diz :)
BEI
Que mais ha hi que esperar?
Olhae qu'estranheza vai 1
O muito amor ordenar,
Ir-se o filho namorar
D'huma mulher de seu Pai!
Querer bem foi sua dor,
Negar-lha será crueldade;
Assi que ja foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Ella deixou de reinar
Como fazia primeiro
Por se com elle casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se pôde deixar.
Eu que nella tinha posto
Todo o bem de meu cuidado, ,
Deixei mais que ella ha deixado;
Que mais se deixa no gõslo,
Que no poderoso estado.
Mas ja que tudo isto vemos,
Hajão festas de prazer,
As que melhor possão ser;
Po.rqu'em tão grandes ex Iremos,
258
Extremos se Imo de- fazer.
Hajão cantos para oiAÍr,
Jogos, prazeres- sem fundo;
Porque, se quereis sentir,
Deste modo entrou o mundo,
E assi ha de sabir.
(Aqui vem os Músicos e eantâOf e depois dê cantarem,
sahem-se todas as figuras, e diz)
MARTIM CHINCHORRO
Ora, Senhor, tomemos também nosso pandeiro, e vamos fes-
tejar os noivos; ou vamos consoar com as figuras, porque me
parece que esta he a mór festa que pôde ser. Mas espere v. m.,
ouviremos cantar, e na volta das figuras nos acolheremos. x\f oço,
accende esse molho de cavacos, porque faz escuro, não vamos
dar comnosco em algum atoleiro, onde nos fique o ruço e as
canastras.
ESTAaO DA FONSECA
Não, senhor, mas o meu Pilarte irá com elles com hum par
de tições na mão ; e perdoem o máo gasalhado. Mas daqui em
diante sirvão-se desta pousada; e não tenhão isto por paIa\Tas,
porque essas e plumas, o venlo as leva.
os AiMPHlTRIÕES
INTERLOCUTORES
AmphitrUo— Algmbnâ, suaMulher—CALLisTo — Feliseo— Sosba^Moço de Am-
phitriâo — Bromu, sua Criada— Bblferbão, Patrão — Aurélio, Primo de Al-
cmena — Um Moço de Aurélio -:- Júpiter — Mercúrio.
* '
ACTO PRIMEIRO
SCENA I
(Entra Algmeka, saudosa de marido, que he na guerra, e Brómia)
ALCUENA
• *
Ah Senhor Amphitrião,
Onde está todo meu bem I
Pois meus olhos vos não vem,
Paliarei co'o coração,
<Jue dentro n alma Vós tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre m()res perigos,
Qual soíTre mais crueldades,
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades?
Que a ventura, que vos traz
Tão longe de vossa terra,
240
Tantos deseoricerlos faz,
Que se vos levou á guerra.
Não me quiz leixar em paz.
Bromiá, quem com vida ter,
Pa vida ja desespera.
Que lhe poderás dizer?
BROMIA
Qup nunca se vio prazer.
Senão quando não se espera.
E por tanto não devia
De ter triste a phantasia;
Porque Vossa Mercê creia,
Que o prazer sempre salteia
Qilem delle mais desconfía.
Eu tenho no coração,
Do Senhor Ámphitrião
Venha )ioje alguma nova:
* Não receba alteração,
Que a verdadeira affeição
Na longa ausência se prova.
ALCMENA
Dizei logo a Felisoo
Que chegue muito apressado
Âo cães, e busque mêo
De saber se algum recado
Do porto Pérsico vêo:
E mais lhe haveis de dizer,
(Isto vos dou por officio)
D*alguma nova saber,
Em quanto eu vou fazer
Aos Dooses o sacrifício.
244
SCENA II
BROMIA
Saudades de minh'ama,
Chorinlios e devoções,
Sacrifícios e orações,
Me hão de lançar nMiuma cama,
Cfertamente.
Nós mulheres de semerrle
Somos sedenho mui tosco:*
Cum qualquer vento que vente,
Queremos forçadamente
Que os Deuses vi vão comnosco.
Quero Feliseo chamar,
E d)2er*lhe aonde ha de ir.
Mas eHe como me vir,
Logo ha de querer rinchar.
De travesso.
Eu que de zombar não cesso.
Por ficar com elle em salvo,
Lanço^lhe hum e outro remesso ;
Aos seus furlo-lhe o alvo;
E então elle fica avesso.
Porque o melhor destas danças,
Com huns vindiços assí,
He trazemos por aqui
Ó cheiro das esperanças,
Por viver.
Ha-os homem de trazer
Nos amores assi mornos,
Só para ter que fazer ;
E despois ao remetter
TOXOIT 1G
242
Laiiçai-lhe a capa nus comos.
Pelisco, se estais â mão, .
Ghegac cá, vem como. hum gamo:
Bem sei que não chamo cm vão.
SCENA III
(Feliseo e Brostia)
FEMSEO
(jhamais-me? lambem vos chamo:
Porém eu ouço, e vós não:
Senhora, que me matais,
Se vós ja nunca me ouvis.
Ou me ouvis, e vos callais,
Dizei : porque me. chamais
Se me vós a mim fugis?
DHOMIA
Ku vos fujo?
FEIJSKO
Fugis, digo,
De dar «n meus males cabo.
BROMIA
Sabei que desí?e perigo
Não fujo oxrnio de imigo,
Fujo como do diabo.
FELISEO
Dae ao demo essa tenção,
Usae antes de cortês,
Cahi vós nesta razão.
BROMIA
Do pVigo fogem os pés,
Do diabo o coração.
FRLISKO
Dizeis-me que nessa briga
Do meu coração fugis.
^ BRÔMIA
Ainda qn'eu isso diga . . .
FELISEO
Âh minha doce inimiga!
Bem sinto que me sentis.
Mas para que me chamais?
BROAI^A
Manda-vos minha Senhora
Que chegueis daqui ao cais,
E. algumas novas saibais
D*Amphilrião nesta hora.
FELISEO
Quem as não sabe de si,
D'putrem como as saberá?
BROMIA
Não as sabeis vós de mi?
FELISEO
Má trama venha por ti.
Dona feiticeira má!
Porque não me óihas direiio,
Cadella, que assi me cortas?
V
BROMIA
Porque vos quero dar portas:
Que s'eu olhar (l'outro geitó,
Trarei cem mil vidas mortas.
FEUSEO
E pois para que me andais
Enganando' ha cem mil anos?
BROMIA
Dou-vos vida com enganos.
9
FELISEO
Nesses enganinhos tais
Acho cruéis desenganos.
BROMIA
Quanl^esses vos quero dar:
Vós cuidais que estais na sella?
Pois podeis-vos descer delia;
Qu'eu nunca vos pude olhar.
FELISEO
Jogais, comigo á panella?
Tendes-me ha tanto captivo,
E desenganais-me agora?
Tudo isto he o que privo.
Assi que he isso, Senhora,
Dochelo morto, dochelo vivo?
Se me vós desenganais
No cabo de tantos anos,
Dinei, se licença dais,
Dais-me vida com enganos,
245
DesenganoS) ja chegais.
Mas se isso havia de ser,
Dizei, má desconhecida,
Desterro de meu viver,
Que vos custava dizer
Amor, vae buscar tua vida?
BROMIA
Zombais? Fallais-rae coprinhas?
FELISEO .
Rir-vos-heis §e vem á msk):
Copras não, mas isto são
Ânsias y pasíones minhas
Dos bofes é coração.
BROMIA
Is-vos fazendo d'huns sengos . . .
FELISEO
i
Perdóneme Dios si peco.
BROMIA
Nesses dentinhos framengos
Conheço que sois hum peco
De lodos quatro avoengos.
FELISEO
Tudo vos levo em capelo,
Ja queslais tanto em agraço.
Porém, faltando singelo,
A furto desse máo zelo,
Quereis-me dar hum abraço?
2J6^
BROMIA
Ora digo que não [losso
Usar comvosco de fero: ♦
Tomae-o.
FELISEO
Ja o não quéru.
Porque esse abraço vosso,
Sabei que he engano mero.
BROMIA
Oh! VÓS sois d'huns sensabores
Abraço pedis assim?
SWremango d'hum chapim...
FELISEO
Tudo isso são favores:
Zombae, vingae-vos de mimv
BROMIA
Vós de furioso louro
Ás garrocbas não sentis.
FELISEO
Vedes, com isso só mouro:
Quando cuido que sois puro,
Acho-vos toda ceitis.
BROMIA
Emfím, sanha de villão
Vos fez jierder hum l)oiii dia.
FELISEO
Jagora o ou tomaria ;
Quereis-mo dar?
247
BHOMIA
Ora não.
C<)Qíi-vos tíu lodavia.
FELISEO
Pois, Seuhora, a quem vós ama
Sois tão desarrazoada,
Quero tomar outra dama;
Que não digão os d'Alfama
Que não tenho namorada.
RUOMIA
Deixae-me.
FKLISEO -
Vós me deixais. •
BROMIA
Deixae-me.
FKLISEO
Zombais de mi?
BROMIA
Deixae-n)c. Pois m'engeitais,
Eu me ausentarei daqui
Onde me mais não vejais.
KELISKO
Roa oslá a zoml)aria!
BROMIA
Não são essas míniias manlias.
FELISKO
Porém is-vos todavia ? .
248
BROMJA
Voyine á las lierras eslraíias
Adó ventura me guia. ♦
SCENA IV
(Fblisbo ió)
Pbantasias de donzellas,
Não ha quem como eu as «juebre ;
Porque cerlo cuidão ellas,
Que com, palavrinhas bellas
Nos vendem gato por lebre.
Esta têe lá para si
Qu'eu sou por ella finado;
E crê que zomba de mi ;
E eu digo-lhe que si,
Sou por ella esperdiçado.
Preza-se d'humas seguras;
E eu não quero mais Frandes:
Dou-lhe trela ás travessuras,
Porque destas coçaduras
Se fazem as chagas grandes.
Qu'estas, que andão sempre á vela,
Estas vos digo eu que coço;
Porque de firmes na sella,
Crem que falsao a costella,
E ficão pelo pescoço.
Que quando estas damas tais
Me cachão, então recacho.
Mas disto agora nó mais.
Quero-me ir daqui ao cais
Ver SC algumas novas acho.
249
SCENAV
I
(JupiTBR e Mercúrio)
JÚPITER
•
Oh grande e alto destino !
Oh potenciai tão profana!
Que a setta d'bun) menino
Faça que meu ser divino
Se perca por^ cousa humana !
Que m'aproveitão os xeos.
Onde minha essência mora
Com tanto poder, se agora
A quem me adora por deos,
Sirvo eu como a senhora?
Oh quão estranha iaffeição!
Quem em baixa cousa vai pôr
A vontade e o coração.
Sabe tão pouco d' Amor,
Quão pouco Amor de razão.
Mas que remédio bei de ter
Contra mulher tão terribil, .
Que se não pode vencer?
MERCÚRIO
Alto Senhor, teu poder
O difficil faz possibil. •
JÚPITER
Tu não ves qu'esta mulher
Se preza de virtuosa?
MERCÚRIO
Senhor, tudo pode ser;
Que para (juem. muito (juer.
250
Sempre a affeição he manhosa.
Seu marido está ausente
Na guerra, longe daqui;
Tu, qu'és Júpiter potente,
Tomarás sua forma em ti :
Que o farás mui facilmente.
E eu me transformarei
Na de Sosea, criado seu;
E ao arraial me irei,
Onde logo saberei
Gomo se a batalha deu..
E assi poderás entrar,
Em Jugar de seu marido:
E para que sejas crido.
Poderás também contar
Quanto eu lá tiver sabido.
jupiTeii
Quem arde em tamanho fogo
Tira-lhe a virtude a côr
De subtil e sabedor;
E quem fora está do jogo
Enxerga o lanço melhor.
Mas tu, que dos sabedores
Tanto avante sempre estás,
Se deos és dos mercadores,
Sê-lo-has dos amadores,
Pois tal remédio me dás.
Ponha-se logo em eSeiXo ;
Que uãò soffre dilação
Quem o fogo tee no peilo;
E tu vae logo direito
Aonde anda Amphitrião.
251
SCENA VI
(Peliseo e Callisto)
FELISEO
Âdó bueno por aqui,
Tãa longe do acostumado?
CALLISTO
Mais longe vou eu de mi,
D*ir perto de meu cuidado.
FELISEO
No andar vos conheci.
CALLISTO
E VÓS onde vos lançais.
Com vossa contemplação?
FELISEO
Eu chego (jlaqui ao cais
A saber de Amphitrião;
Não sei se vou por demais.
CALUSTO
Porque por demais dizeis?
FELISEO
Porque nada alli ha certo.
CALLISTO
Novus lá não as busqueis.
Que iiqui as tendes iriais perto.
FELISEO
Pois dâe-mas ja. se as sabeis.
252
CALLISTO
Hum navio be |a chegado
•Á^ barra, que vem de lá ;
Traz de Amphitrião recado,
Diz que o deixa embarcado
Para se vir para cá.
Têe vencido áquelle Rei;
E diz, segundo lhe ouvi,
Qu'esta noite será aqui.
FELISEO
Essas novas levarei
 Alcmena, que torne em si,
Porque ella tee maior guerra
Co'os temores de perdello,
Qu'elle co'o Rei dessa terra.
CALLISTO
Onde amor lançar o sello,
Nenhuma cousa o desterra.
Porqu'inda que o pensamento
Vos fique. Senhor, em calma,
Por morte ou apartamento;
Sempre vos lá ficão n'alma
As pegadas do tormento.
FELlSEO
Isso he hum segredo mero,
A que o Amor nos obriga :
Por isso em caso tao fero,
Senhor, nunca ninguém diga,
h lho quiz, e não lho quero.
Vai quiz l)em a huma mulher.
\
255
Qae vós conhecestes beiii,
E, com muito lhe querer,
Casou-se.
CALLISTO
Oh! e com quem?
Que ainda o não posso crer.
FELISEO
Com hum Mercador, que veio
Agora do Egypto, rico. .
CALLISTO
Isso traz água no bico.
Esse homem he parvo, ou feio?
FELISEO
Pois vedes? disso me pico,
E em pago desta traição,
Afora outros mil descontos
Que traz comsigo a affeição,
Sempre os signaes destes ponlos
Trarei no meu coração.
•
CALLISTO
Viste-la mais?
FELISEO i
Senhor, vi,
Na janellinha da grade;
Passei, e disse-Ihc assi :
Casada sem piedade,
Porque nâo a haveis de mi?
CAUXSTO
Que vos disse?
254
- ■ \
FKMSEO
Lá no ceDtro
•Lh^enxerguei pouca alegria;
E como quem lhe dohia,
Melendo-se para dentro
Disse: Ja pasó folia.
CALLISTO
Ah má sem conhecimento!
Quem lhe desse mil chofradas!
FEUSEO
Senhor, como são casadas,
Casão-se co'o esquecimento
Das cousas que são passadas.
CALLISTO
Lembranças de vos deixar
Picar-vos-hão como tojos.
FELISEO
Senhor, haveis d'assentar
Que onde amor vos quer matar,
^iempre allá miran los ojos.
Hum motete lhe mandei
Hum dia, estando com febre.
Si) da paixão que tomei.
CALLISTO
Pois vejamos quem têe lebre.
FELISEO
Senhor, eu vo-lo direi.
i
(Moíe.J
Vós por outrem, e eu por vós;.
Vós contente, e eu penado: •
Vós casada, çu cansado.
Poios sanios de minha dona !
CAIJJSTO '
Senhor, vós só o fizestes?
FRLISEO
Si, que ninguém me ajudou.
CALLISTO
«
. Se vós só o compuzesles,
Crede, que extremos dissestes.
Nunca Orlando tal fallou.
Senhor, fizestes-lhe piB?
FBIJSEO
Senhor, si; e todo hum anno...
Vós zomhais, se não m'engano?
CALUSTO
Não, mas dou-vos minha fé
Que nunca vi tão hora panrio.
' FELISKO
Ora olhe vossa mercA.
(VoUa.J
Olhae em quão fundos váos
Por vossa causa me affcigo,
Que outro me ganha no jogo.
' 256
E eu triste pago os páos.
Olhos travessos e máos,
Inda eu veja o meu cuidado
Por esse vosso trocado.
CALLISTO
Não mais, qu'isso me degola.
FELISEO
Senhor, eu haja perdão.
CALLISTO
Fizestes esse rifão
Em algum jogo de bola?
E foi-lhe elle ler á mão?
Veuseo
Digo-vos que o vio, e lho leo
Hum moçozinho^ d*escoIa.
CALLISTO
Está isso assi do Coo.
Sabe ella jogar a hola?
F£LISE0
Não.
CALLISTO
Pois não vos.entendéo.
Ora eu ja cheguei a ler
Petrarca, e crede de mi
Que nunca tal cousa vi.
Onde mora o bom saber,
Logo dá sinal de si.
257 •
Onde cmculfl puzesles.
Dizei, [)or(|ue não dissestes
La que yb vi por mi mal.
FELISEO
Renunciava o metal;
Qu'em rifõeszinhos como estes-,
Ha-se-de pôr tal como tal.
Que a trova trigo-tremez
Ha de ser toda d'hum pano ;
Que parece muito Ingrez
N'hum pelote Portuguez^
Todo hum quarto Castelhano.
Ouvi outra também minha, -
Que fiz a certa tenção,^
Clara» leve, bonitinha,
De feição, que estaVovinha,
He trovinha de feição.
Como eu hum dia me visse
Morto, e^ a mão na candêa,
E ella não me acodisse ;
Fiz-'lhe esta, porque sentisse
Que dava os fios á téa.
E o propósito hc
Andar eu hum dia só;
E para que houvesse dó
De mi e de minha fé,
Lameatei-lhe como Jó.
CALUSTO
Andastes, Senhor, mui bem.
• F£LISE0
Ora, Senhor, attentai,
TOIO IV / 17« 0
258 '
E vede o saibo que tem;
Se he para a ver alguém.
CALLISTO "
Ora dizei.
FELISEO
Er-la vai.
(Trova.)
Coração de carne crua,
Vê-lo leu amor aqui,
Que esmorecido por li
Jaz no meio desla rua?
CALLISTO
Na rua, Senhor, jazia?
E era em tempo de lama?
FELISEO
Senhor, quem falia a quem ama,
De si mesmo se não fia,:
Haveis de mentir á dama.
CALLISTO
Volta disso?
FELISEO
Singular,
Senão que he muito sentida;
Far-vos-ha, Senhor, chorar.
CALLISTO
Oh t diga, por sua vida !
FEUSEO •
Farei o que me mandar.
259 .
fVdta.J
Porque não has delle mágoa,
O dura mais que ninguém,
Que anda o triste, que não tem
Quem Ibe dê bunia vez d'ágoa?
Não lhe negues teu querer,
Pois te não custa dinheiro:
Que, emfim, por derradeiro
A terra te ha de comer.
GALUSTO
Tal trova nunca se vio.
Agorentaste-la ja?
FELISEO «
Senhor, não; ainda está
Como a sua mãe pario ;
E não está muito má.
*
CALLISTO
He trova, que tee por seis ;
Não a posso mais gabar.
Mas, pois, tal cousa fazeis,
Senbor, não m'ensinareis
Donde vem tão bem trovar?
FELISEO
Não he a cousa Ião pequena,*
Como, Senhor, a fizestes.
Essa que agora dissestes.
Mas porém vou dar a Alcmena
Estas novas que me destes.
Despois, Senhor, nos veremos;
Ficae ja roendo esse osso.
J60
CALUSTO
O roer. Senhor, lie vosso.
FELISEO
Pois eu, por mais que zoofibemos,
Hei de ser vosso e revosso.
CALLISTO
Oh I . . . Escusae-vos d'exlremos,
Qu'is80, Senhor, me atarraca.
Mas nós nos encontraremos.
E sobre isso envidaremos
Dous reales mais de saca.
ACTO SEGUNDO
SCENA I
(Júpiter e Mbrcurio traruformados, Júpiter na forma de Amphitrião,
Mercúrio na de Sosea, escravo.)
JÚPITER •
Mercúrio, pois sou mudado
Nesta forma natural,
Olha e nota com cuidado,
Se está em mi o pintado
Apparente co'o real.
MERCÚRIO
Quem tão próprio se transforma,
Tenho por opinião,
Que na tal transformação
Lhe prestou natura a forma,
Con) que fez Amphitrião.
201
JÚPITER
Pois lu no gesto e na côr
Estás Sosea escravo seu.
MERCÚRIO
Muito mais farás, Senhor.
• I
JÚPITER
Não O faz senão o Amor,
Que nisto pôde mais qu'eu.
MERCÚRIO
Ja, Senhor, te fiz menção
Como deo Ampbilrião
A EI-Rei Terela -a morte ;
Que, na guerra igual, a sorte
Pôde mais que o coração.
E despois de sef tomada
Toda a Cidade, com gloria
D'Amphitrião bem ganhada.
Como em sinal de victoria,
Esta copa lhe foi dada.
Por ella bebia El-Rei,
Em quanto a vida queria;
E eu, porque te cumpria,
A seu escravo a furtei,
Que n'huma caixa a trazia.
Esta poderás levar
A Alcmena, por lhe mostrar
Verdadeiro, o que he fingido;
E desfarte serás* crido,
Sem mais outro ardil buscar.
262
JÚPITER
Pois tudo lens ordenado
Por lao nova e subtil arte;
Como me vires entrado,
Irás dar este recado
A Phebo de minha parte:
Que faça mais devagar
Seu curso neste Hemispherio,
Que o que soe acostumar;
Qu'esta noite hei de ordenar
Hum caso de alto mysterio.
E á Esphera mais alta
Mandarás que fixa esteja,
Porque a noite maior seja:
Porque sempre o tempo falta.
Onde a alegria he sobeja.
E terás tamanho tento,
Que como isto se ordenar,
Venhas aqui vigiar.
Porque meu contentamento
Ninguém mo possa estorvar.
MERCÚRIO
Seja feito sem debate
Tudo como te convém, •
JÚPITER
Pois não parece ninguém.
Como homem de casa bate,
E muda a falia também.
MERCÚRIO, batendo á porta,
Ó de la casa, èn buena hora,
Darmehan de cenar aqui ?
265
BROMIA dentro
Sosea parece que ouvi :
Âlviçaras, minha Senhora,
Que na falia o conheci. ,
SCENA U
(Alcmbka, Bromiá, Jupitbb, « MBRcmuo.)
I
ALCMENA
Zombais, Bromia, por ventura?
BROBUA
Senhora, não zombo, não.
ALCMENA
Vejo eu Amphitrião,
Ou a vista me affigura,
O qu está no coração?
JUPriER
Olhos, diante dos quais
Desejei mais este dia.
Que nenhuma oulrá alegria, .
Senhora, nunca creais
Que lhe minta a phantasia.
ALCMENA
Oh presença mais querida
Que quantas formou Amor !
Isto he verdade. Senhor?
Acal^se aqui a vida,
Por não ver prazer maior.
%
• 9
264
JÚPITER
Pois esta hora de vos ver '
Alcançar, Senhora, pude;
Para mais contente ser,
Conformem co'este prazer
Novas de vossa saudê.
ÀLCMENA
Vida foi pezada e crua
A saúde qu'eu sostinha;
Qu'em quanto. Senhor, a tinha,
Temer perigo na sua,
Me fez descuidar da minha.
MERCÚRIO
Y pues, mi Seiiora Alcmena, .
Pese ai demónio malvado,
No dirá á un su criado,
Vengais Sosea norabuena?
' ALCMENA
Sejais, Sosea, bem chegado.
BROMIA
Bem mal cri eu, que pudesse
Ver-te, Sosea, hoje aqui.
MERCÚRIO
Pues tambien yo no creí
Que en mi vida te viese,
S^un las muertes que vi.
ALCMENA
Muilo, Senhor, folgarei
Com novas do vencimento.
265_
JÚPITER
De ludp quanto passei,
Por vos^ dar contentamento,
Em summa vos contarei.
Trago, Senhora, a victoria
Daquelle Rei tão temido,
Com fama clara e ílotoria.
Porém maior foi a gloria
De me ver de vós vencido..
Sem me terem resistência,
Os Grandes me obedecerão,
Gomo El-Rei morto tiverão:
•
Em sinal de obediência
Esta copa me trouxerãa.
El-Rei por ella bebia:
(Ella, e tudo o mais he nosso)
Por onde claro se via,
Que tudo me obedecia.
Pois tinha nome de vosso.
MERCÚRIO
Sí, roas luego de rondon
La fortuna dió la vuelta.
*
ALGMENA
^Como?
' MERCÚRIO
Fué gran perdicion,
Porque en aquella revuelta,
Me burtaron mi jubon.
Pêro bien lo pagaron.
Guando comigo rineron,
Que aunque me des[X)jaron,
\ •
266
Si uno de seda llevaron,
Otro de azotes me díeron.
•
ALCMENA
Senhor, não posso gostar
De gosto, que he tão immenso,
Senão muito devagar:
Faça-me mercê d'entrar,
E contar-mo-ba por extenso.
SCENAIII
(JIsBcuRio e Bromia.)
MERCÚRIO
Yo larobien te contaria,
Bromia, si quedas atrás,
Que una noche . . . enojartehas?
BROMIA
Que?
MERCÚRIO
Sonaba, que te tenia. . .
No me atrevo á decir mas.
BROMIA
Dize.
MERCÚRIO
Pardies, no diré.
Sonaba ...
BROMU
Bem: que sonhavas?
BIERCURIO
Que cuando en la cama estavas
Que yo . . . enfin recorde.
I
267
BROMIA
Pois tudo isso receavas?
MERCÚRIO
Sabe Dios qué yo acá siento:
Sola una alma vive en dos,
La cual anda dentro en vos.
BROMEA
E que quer ella cá dentro?
MERCÚRIO
Tambien eso sabe Dios.
SCENA IV
MERCÚRIO
Bem se poderá enganar
Bromia, segundo ora estou,
Como Âlcinena s'enganou;
Mas cumpre-me ir ordenar
O que meu Pae me mandou.
E porque seja guardada
Esta porta e vigiada ,
De toda a gente n^cida.
Me será cousa forçada,
Ser tão depressa a tomada,
Quão prestes faço a partida.
SCENA V
• *
(S06BA, canUxndo.)
Amphitrion esforzado
268
Bravo vá por la batalla,
Siete cabezas llevaba,
De las mejores que ha bailado.
(FaUa,J
Quien viene de tierra agena,
Y de la rauerte escapo,
La razon le permilió
Que cante como sirena,
Como agora bago yo.
Y pues canto tan gentil,
Fuera llanto si muriera.
Quiero cantar como quiera,
Una y otra, y mas de mil,
Que digan desta manera:
'/ fCania.)
Dongolondron, con dongolondrera,
Por el camino de Otera,
Rosas coge en la rosera,
Dongolondron, con dongolondrera.
(Falia,)
Guando yo vengo á pensar
Que uno matame qui$iera,
No bago sino temblar,
Porque creo si muriera.
No pudiera mas cantar.
Porque estando á uh rincon
.De la casa adó quede,
Senti muy grande ronron,
Y mirando, que mire?
Vi que era un gran raton.
269
Enipero yo nunca sigo,
Sino consejos muy sanos;
Que en .estes casos levianos,
Quien desprecia el enemigo,
Mil veces muere á sus manos.
Pero mi Senor allí ' .
Maló ai Rey de los Glipazos:
Yo como muerlo le vi, .
Juro á mi fé, que le dí
Mas de dos mil cuchillazos.
Y por me librar de afan,
Me voy siempre á cosa hecba
Probar mi mano derecha;*
Que aquel es buen capitan.
Que dei tiempo se aprovecha.
Que quien ba de peleár.
Ha de buscar liempo y hora.
Pêro quiero caminar,
Que me muero por contar
Todo aqueslo á mi Senora.
SCENA VI
(Mbrgurio e SosBA.)
MERCÚRIO
Mil vezes comigo véjo,
Para que meu Pae se affoute;
Pois em tão pequeno ensejo
Lbe mandei talbar a noute
Á medida do desejo.
E pois que como possante,
A mi ludo se reporta,
Chego agora neste instante
I
\
270
A estorvar qu'este barganle
Me não chegue a esla porta.
SOSEA
No sé que míedo, ó locura,
Nestí pecho se me cria:
Por Dios que se me afigura,
Que ha mucho que es noche escura,
Sin que venga el claro dia.
Mas sabed, que pienso yo
Que el sol que no se acordo
De con el dia vefnir,
Que á noche cuando cenó
Algun buen vino bebió,
Que le hace tanto dormir.
MERCÚRIO
Ja sentes comprida a noute,
Qu'eu assi mandei fazer?
Pois mais te quero dizer,
Que sentirás muito açoute,
Se cá quizeres vir ter.
Porém, pois este bargante
Tee medroso coração,
Quero-me fingir ladrão,
Ou phantasma, e por diante
Não irá, se vem á mão.
E com tudo se passar, ~
A falia quero mudar
Na sua de tal feição.
Que couces, e pbrfiar.
Lhe facão hoje assentar
Que vsou Sosea, e elle não.
N
27\ - .
(Falia Casldhano.j
No veo passar ninguno,
En quien yo me pueda hartar. .
\ SOSEA
Á quien oigo aqui hablar? ,
Mande Dios no sea alguno
Que me quiera aperrear.
MERCÚRIO
ê
La carne de algun humano
Me seria muy sabrosa.
SOSEA
Oh qué voz tan temerosa 1
Hombres comes, ó mi hermano?
No es mejor otra cosa?
Carne humana es muy mezquina.
Oh no comas deso, not
Antes carne de gallina.
Pêro se mas se avecina,
Qué mas gâllina, que yo?
V
MERCÚRIO
Una voz de hombre ahora
Á la oreja me voló.
SOSEA
«
Pésete quien me parió:
La voz traigo boladora?
Ella quisiera ser yo.
Pues mi voz pudo volar
Do la pudieses oir;
•
I
■ •
' 272
Por contigo no renir,
Me debiera de prestar
Las alas para buir.
•
MERCÚRIO /
Qué buscas cabe esa puerta,
Hombre? Sé que eres ladron.
SOSEA
Ay que el alma tengo muertal
Oh Júpiter me convierta
Las tripas en corazon !
MERCÚRIO
Quien eres? quieres hablar?
SOSEA
Soy quien mi voluntad quiere.
MERCÚRIO
Piensas que paedas, burlar?
SOSEA
Y tú puédesme quitar
Que yo sea quien quisiere?
MERCÚRIO
Osas hablar tan osado, . .
Don vellaco bovarron?
Dí, quien eres?
SOSEA
Un criado
275
Del Seíior Âmphitríon,
Por nombré Sosea llamado.
MERCÚRIO
Pienso que el seso perdiste.
Como te llamas, mal hombre?
• SOSEA
Sosea soy, si no me oiste.
MERCÚRIO
Como? en persopa tan triste
, ' Osas d'ensuciar mi nombre?
Estos panos llevarás^
Pues tenermi nombre quieres.
Quiéresme dicir quien eres?
SOSEA
O Senor, no me dés mas,
Que yo seré quien tú quisieres.
MERCÚRIO
Con tan nueva falsedad
Andais por esta Ciudad,
Delante de quien os mira?
Pues si sois Sosea, tomad.
SOSEA'
Si me dás por la verdad,
Que me harás por la meptira?
' MERCÚRIO
Y que verdad es Ia tuya?
Que te quiero dar castigo.
TOMO iV 18
274
SOSEA
Si. no soy Sosea que digo,
Que Júpiter me destruya.
MERCÚRIO
Mirad el falso enemigo:
Tomad este bofeton,
Que yo soy Sosea, y no vos.
SOSEA
Tú Sosea?
MERCÚRIO
Sosea por Dios,
Escravo de Amphitrion.
SOSEA
m
De modo que tiene dos?
MERCÚRIO
No tendrá, aunque tú qiiieres;
Que á mi solo conoció.
SOSEA
Pues luego de quien soy yo?
MERCÚRIO
Si tú no sabes quien eres,
Quieres que yo lo sepa? No.
SOSEA
Enfin, has me de hacer crer
Que yo no soy quien ser soUa?
MERCÚRIO
Quien solias tú de ser?
2/5
SOSEA
Tregoas me has de prometer,
Dirtelohé sin porfia.
MERCÚRIO
Prometo.
SOSEA
No me darás?
MERCÚRIO
No, si no fuere razon."
SOSEA '
Pues, hermano, tú sabrás
Que mi amt Amphitrion . . .
MERCÚRIO
Tu amo? Pues Uevarás.
Mi amo es, que tuyo no.
SOSEA
Ây que un brazo me quebro !
BfERCURIO
Mas que luego te matasse.
SOSEA
Ojalá Dios ordenase
Que tú ahorà fueses yo,
Y yo que.tedesmembrasel .
MERCÚRIO
Esa tu tema tan loca,
\
•
•
•
276
Punos te la han de quitar.
t)íme, dí, verguenza poça,
Qué hablas?
SOSEA
Qué puedo hablar,
Si me has quebrado la boca?
MERCÚRIO
Dí quien eres, sin fatiga.
SOSEA
4
Soy un hombre, en quien tu dás.
MERCÚRIO
Dímè pues, qué nombre has.
SOSEA
Como quines tú que diga,
Para qué no me dés más?
MERCÚRIO
No me bas de hablar coDtrahecho.
«
SOSEA
V
Toda mi vida pasada
Sosea fuy, y con despecho
Ahora soy. . . qué? No nada;
Que tus manos me han deshecho:
MERCÚRIO
Cuyo eres, pues las sientes,
Dejando consejos vanos?
La verdad ; que si me mientes,
277
Dás coo la lengua en los dientes,
Y yo dóyte cofi las manos.
SOSEA
No conoces Amphitrion?
MERCÚRIO
, Hombre sin seso te llamo.
Tan f uera estás de razon t
Piensas de mi, bóvarron,
Que no conozco á^mi amo?
SOSEA
En so casa cohociste
Uno, que es Sosea llamado,
Hombre despreciado y triste?
MERCÚRIO
Desa suerte lo dijiste?
Yo soy triste y despreciado?
Pues sabe que te llegó
Á la muerte tu fortuna.
SOSEA
Pues logo siyo no soy yo,
Aunque nadie me mato;
Soy luego cosa ninguna.
Ob dioses, que descoi^cierto!
Yo por ventura soy muerto,
Ó murióme la razon?
Yo no soy de Amphitrion?
' Él no me mandou dei puerto?
Yo sé que no estoy loco. .
r
«
278
De mi madre no nací?
No ando? No hablo aqui?
MERCÚRIO
Pues sosiega ahora un poço,
Que yo tambien diré de mi.
Yo no sé que yo soy yo?
Yo no te dí con mis manos?
Mi Senor no me llevó
Á la guerra, adó mato
Aquel Rey de los Thebanos?
SOSEA
Yo eso muy bien lo sé.
Empero tú qué bacias
Guando la batalla vias?
MERCÚRIO
Escacha: yo lo diré,
Y cesaran tus porfias.
Geando mi Senor andaba
Peleando, y derramaba
La sangre de algun mezquino;
Gqn una bota de vino '
yo la mia acrescentaba.
SOSEA
(Dice lo que yo bacia)
Gon todo, saber queria
Sola una cosa, si puedo:
Tu pecho entonces sentia?
MERCÚRIO '
Del beber grande alegria,
Y dei pelear gran miedo.
279
SOSGA
Y despues?
MERCÚRIO
Muy reposado
A dormir me eché de grado,
Desde el sol hasta la luna.
SOSEA
(Todo lo tiene contado.
Eníin, tengo averiguado
Que yo no soy cosa ninguna)
Pues de todo en un instante
Me has echado de mi fuera,
Aconséjame si quiera,
Quien seré daqui adelaiite,
Pues no soy quien de antes era.
MERCÚRIO
Guando yo no. ser quisiere
Ese, que tú ser deáeas,
Deápues que ya Sosea no fuere,
^Dartché, si te pliiguiere,
Licencia que todo seas.
Y acógete luego, amigo,
Á buscar tu nombre, digo,
Pues Dios vida te dejó;
Que el Sosea queda comigo.
SOSEA
Pues contigo quedo yo,
Dios quede, hermano, contigo.
Ahora quiero ir allá •
Adó mi Senora está.
I
»
280
»
0
Contarle como es venido
Mi Seiior. Mas, oh perdido!
Si un otro yo tieoe allá,
Todb lo terna sabido.
MEBGURIO
Ah hombre ...
SOSEA
Mi VOZ sono.
MEBGURIO
Aonde vuelves ahora?
SOS^A
Por Dios DO sé onde tó,
Porque si yo no soy yo,
Ni Alcnaena es mi Senora.
MEBGURIO
Adonde vás?
SOSEÁ ^
Gon mensaje
Del Senor Amphitrion
ÍPara Alcmena. .
MERGURIO
Ad(f, salvaje?
Pues quebraste la omenaje,
Ahí verás tu. perdicion.
Yo doyte consejos sanos,
Y porfias otra vez?
2»i
S08EA
Altos dioses soberanos!
Pues me no valen las manos,
Aqui me valgan los pies. fp^e.)
MERCÚRIO
Desta arte ensenan aqui
Á hurtar el nomb)re ageno?
«
SCENA VII
SOSEA
Ay Dios, como me sicoffl
Ó Júpiter alto y bueno,
Guan cerca la muerle vi !
Quiérome ir â mi Seiípr
Gontarle cuanto hé pasado;
Y él me dirá dê grado,
Si yo soy su servidor,
En que cosa me hé tornado.
ACTO TERCEIRO
SCENA I
(Júpiter e Alcsisnâ.)
JUPriER
Toda a pessoa discreta
Terá, Senhora, assentado,
Que hum bem muito desejado
Se ha de alcançar por dieta,
Para ser sempre estimado.
/
282
E quem alcançado tem
Tamanho contentamento;
Por conserva-lo convém .
Que tome por mantimento
A fome de tanto bem.
E por isso hei de tomar
Este tempo tão ditoso
* Para a frota visitar;
E despois quando tornar,
Tomarei mais desejoso.
Que pois tão bom captiveiro
Me tee presa a liberdade,
Eki lhe prometto em verdade
Que tome ainda primeiro,
Que mo peça a saudade.
ALCMENA
Aindaque se possa ir
Mais asinha do que creio,
Como hei d'eu consentir
Que se haja de pa^^lir
Na mesma noite que veio?
JUPITBR
«
Forçada he minha tornada,
Mas muito cedo virei;
Porque desque foi chegada
A este porto a Armada,
Ainda a não visitei.
alcmeNa
Pois, Senhor, tão pouco estais
Com quem vistes inda agora?
Faça-se como mandais.
••
285
JÚPITER
Vós me vereis cá, Senhora,
Primeiro do que cuidais.
SCENA U
(AmpbitriIo e Sosba.)
AMPHITRIÃO
*
Emfim tu, que estás aqui,
Kstavas ja lá primeiro?
SOSEA
Senor, crea jque es ansí.
AMPHrrRiÃo
Eu nunca entendi de ti,
Qu'eras também chocarreiro.
SOSEA
Senor, yo que estoy presente,
No spy Sosea su criado?
AMPHrrRiÃo
Creio que não certamente,
•Porque Sosea era avisado,
E tu és mui differente.
SOSEA
Pues, Senor, si en mi se vé
Que no soy quien de antes era,
Vuélvome.
AMPHITRIÃO
E para que?
^ *
284
S08EA
Ver se á dicha me qaedé
Durmiendo por la galera.
AMPHITRIÃO
Pois me queres fazer crer •
Huma doudice tão rasa,
Mais quero de ti saber:
Gomo não entraste em casa
•
D'Alcmena minha mulher?
SOSEA
Âunque Sosea quisiese,
La verdad no negará:
Aquel yo que allá está,
No quiso que á casa fuese
Estotro yo, que iba allá.
Y con fúria tan crecida
A mi se vino aquel hombre,
Que yo me. puse en huida,
Y ansí le dejé mi nombre,
Por me dejar él la vida.
AMPHÍTHIÃO
.Quem sería tão ousado.
Que tanto mal te fizesse?
SOSEA
Yo mismo Sosea llamado.
Que á casa era ya llegado,
Antes que de acâ partise.
AMPHrrRiÃo
Tu chegaste antes de ti?
Este he gentil disparate.
285
• ^
SOSEA
Pues mas le digo daqui^
Que vengo buyendo de mi,
Porque yo mismo no me mate.
AMPUItRlÂO
Erão dous, ou era bum só,
Quem te fez assi fugir?
SOSEA
Pé^ete quien me parió:
Digo, que era un solo yo:
Mil veces lo hé de decir?
Puede ser que naceria
De aquel hombre otro alguno, ,
Como aquel de mi uacia;
Porque aunque fuese él uno,
Por mas de cuatro tenia.
El tenia mi aparência,
Empero yo nunca vi
Tal fiíerza, ni tal potencia:
Esta sola diferencia
Le tengo bailado de mi.
AMPmTRIÃO
Pudeste delle saber
Cujo era?
SOSEA
Quien? aquel yo?
Tuyo, Senor, dijo ser.
AMPIflTRIÃO
Nunca eu tive mais que hum só,
E esse não quizera ter.
286
SOâEA
Pues, Seuor, si el bien doblado
Te le muestrã agora Diós,
Debe ser de ti al^bado;
Pues de uno solo criado
Te ha hecho agora dos.
AMPHITRIÃO
Antes para que conheças,
Que cousa he máo servidor.
Me pezará se assi for;
Que de tão ruins cabeças,
Quantas mais, tanto peor.
K ja que são tão incertos
Teus ditos para se crer;
Muito melhor deve ser
Que deixe teus desconcertos,
E vá ver minha mulher.
SCENA ffl
ALGMENA
Que fado, que nascimento
De gente humana nascida,
Que d'escasso e avarento,
Nunca consentio na vida
Perfeito contentamento!
Amphitrião, que mostrou
Hum prazer tão desejado
A quem tanto o desejou;
Na noite, que foi chegado,
Nessa mesma se tornou !
De se tornar tão asinha
287
SiAto tanto entristecer
O sentido e alma minha,
Que certo que me adivinha
Algum novo desprazer.
Mas parece este que vem,
Se não estou enganada:
Se ellehe, venha com bem,
•
Pois que com sua tornada
Tão transtornada me tem.
SCENA IV
(Amphitrião, Algmena e Sosba)
AMPHITRIÃO
Com que palavras, Senhora,
Poderei engrandecer
Tão sublimado prazer.
Gomo he ver chegada a hora.
Em que vos pudesse ver?
Certo grão contentamento
Tive de meu vencimento;
Mas maior o hei de mim,
De me ver posto no fim
De tão longo apartamento.
ALCMENA
Ja eu disse o que sentia
De vinda tão desejada.
Mas diga-me todavia: .
Como não foi ver a Armada,
Que nie disse hoje este dia?
AMPurraiÃo
Delia venho eu inda agora
. 288
*
Desejoso de vos ver,
Muito mais que de vencer.
Mas que me dizeis, Senhora,
Que hoje ine ouvistes dizer?
ALCMENA
Se nâo estava remota,
Certamente que lhe ouvi,
Quando hoje partio daqui,
Que tornava a ver a frota,
Porque era forçado assi.
AMPHITRIÃO
Sosea.
SOSEA
. Senor, aqui estoy yo.
AMPHrrRiÁo
Tu ouves tal desconcerto?
*■ •
SOSEA
Grandes orejas ganó,
Pues estando en casa oyó
Quien estava allá nel puerto!
AHPHITIUÁO
Quando dizeis, que m'ouvistes?
ALCMENA
Hoje, quando vos partistes.
AMPHITRIÁO
Donde?
289
ALCMKNA
Daqui, de me ver.
AMPHITBIÃO
Nunca vi grande prazer,
Ouè não tenha os cabos tristes.
Quantos tnales d'improviso
Que causão grandes mudanças!
Que mulher de tanto aviso,
Agora minhas lembranças
A tee fora de juizo !
ALGMENÂ
Quereis-me fazer cuidar
Que poderia sonhar
O que pelos olhos vi?
Nunca vos eu mereci
Querefdes-me exprimentar.
AMPHITRIÃO
Postoque he para pasmar
Ver hum caso tão estranho,
Todavia hei de altentar,
Se poderei concertar
Hum desconcerto tamanho.
'Quando dizeis que vim cá?
ALCMENA
Esta noite que passou.
AMPHITRIÃO
Dae-me alguém que aqui se achuo,
Que me visse. ,
TOMO IV 10
I
!
290
ALCMENA
Esse que hi está,
Sosea que coinvosco andou.
I AMPHITRIÃO
i
Sosea, podçs-te lembrar,
Que hontem me vistes aqui?
SOSEA
Nunca yo supe de mi
Que me pudiese acordar
De acpiello que nunca vi.
ALCMENA
Ora eu .creo, e he assi,
Que ambos vindes conjurados,
Para zombardes de mi;
Mas eu darei hoje aqui
• Sinaes que sejão provados.
' AMPHITRIÃO
Que sinaes pôde ahi haver
De mentira tão notória,
Que nem foi, nem pôde ser?
ALCMENA
Donde vim eu a saber
Novas de vossa victoriat
AMPHITRIÃO
Que novas?
ALCMENA
Dir-vo-las-hei,
Assim como mas contastes:
Que na batalha matastes
Aquelle soberbo Rei,
E tudo desbaratastes:
Não fazendo resistência
N'huma batalha tão crua,
Dando-vos obediência,
Vos derao huma copa sua.
Lavrada por excellencia.
AMPHITRIÃO
Sosea he culpado só
Nestes acontecimentos.
SOSEA
Senor, son encantamientos,
Porque aquel hombre, que es yo,
Le contaria estos cuentos.
AMPHITRIÃO
Quem he esse, que vos deu
Taes novas, saber queria?
ALCMENA
Quem mo pergunta.
AMPHrriuÃo
Quem? Eu!
Quereis-me fazer sandeu?
■
ALCMENA
Mas VÓS me fazeis sandia.
AMPHITRIÃO
Ora quero perguntar:
Que fiz sendo aqui' chegado?
292
ALCMCNA
Puzemo-nos a cear.
AMPHITRiAO
E despois de ter ceado?
ALCMENA
Fomos-nos ambos deitar.
AMPHITRIÃO
Nunca queira Deos que possa
Achar-se na minha honra
Nenhuma falta nem mossa:
Seja isto doudice vossa.
Antes que minha deshonra.
SOSEA
Bien lo supe yo entender,
Que era esto encantaciones;
Y ahora me habrá de crer
Que dos Soseas puede haber,
Pues hay dos Amphitriones.
ALCMENA
Com me quererdes tentar
Tão torvada me fizestes,
Que me não pôde lembrar
Que vos mandasse mostrar
A copa que me hontem destes.
AMPmTRIÃO
Eu? copa? Se isso ahi ha,
Que estou doudo cuidarei.
293
SOSEA
Senor, bieu guardada está.
Bromia?
ALCMENA
BROMIA, áe dentro
Senhora,
ALCMENA
Dae cá
A copa que hontem vos dei.
SÒSEA
Pues yo pari otro yo,
Y vós otro Amphitrion,
No es muchá admiracion,
Si Ia copa otra parió,
Ni aun fuera de razon..
SCENAV
(AmphitriIo, Alcmena, Sosea e Bromu)
BROMIA
Eis-aqui a copa vem,
Testimunho da verdade.
AMPHITRIÃO
Oh estranha novidade!
ALCBIENA
Poder-me-ha dizer alguém
Que o que digo he falsidade?
ampHitriâo
Sosea, quando hontem cá vinhas,
294
Poder-me-has negar, ladrão,
Que lhe deste as novas minhas,
E mais a copa que tinhas
Guardada na tua mão?
SOSEA
Senor, que no pude, no,
Ver á mi Senora Alcmena:
Si aquel eso acá ordeno,
No lleve este yo la pena -
Del mal que hizo el otro yò.
ÁMPHITRIÃO
Ora eu não pei entender
Tal caso, nem lhe acho fundo:
Com tudo venho a dizer,
Que ha tantos males no mundo,
Que tudo se pôde crer.
Se vos trouxer quem vos diga
Como esta noite dormi
Na náo, crereis que he assi?
ALCMENA
Nenhuma cousa me obriga
A* que não creia o que vi.
ÁMPHITRIÃO •
Se o Patrão aqui vier.
Que he homem d'autoridade,
Crereis o que vos disser? '
ALCMENA
Sim, que ninguém pôde haver
Que me negue esta verdade.
295
— . %
AMPHITRIÃO
Eu estou em concrusão
D'hoje desembaraçar
Tão enleada questão:
Á náo me quero tomar
A trazer cá Belferrão.
Sosea, até minha tornada
Fica nesta casarem vela;
Qu'eu armarei tal cilada
A quem ína a mim têe armada,
Que venha hoje a cahir nella.
SCENAVI
(Alcmbna e Bromia.)
ALCMENA
Oh mulher triste e suspensa
Da mais alta confusão
Que nunca vio coração!
Em que mereces a offensa,
Que te faz Amphitrião?
Sempre de mi foi amado,
Tanto quanto em mi se sente,
'Co'o coração tão liado.
Que se de mi era ausente,
Nelle o via figurado.
E pois mulher, que cumprisse
Melhor qu'eu fidelidade,
Não a vi, nem quefh me visse
Que dos limites sahisse
Hum pouco da honestidade.
Pois porque he tão maltratada
Innocencia tão singella?
296
Que a pena mais apertada,
He a culpa levanlada
Ao coração livre delia.
Mas ja que minh'alina está a
Sem culpa do que padeço,
Seja 0 que fôr; qu'eu conheço
Que a verdade me porá
No qu'eu pola ter mereço.
Bromia?
BROMIA
Senhora.
ALCMGNA
Hi mandar
A Feliseo, que vá
Meu primo Aurélio chamar;
Que lhe quero perguntar
Que conselho me dará.
E pois que Amphitrião
Vai buscar sómenle quem
Lhe ajude a sua tenção.
Quero eu ter aqui lambem
Quem me defenda a razão.
\CTO QUARTO
SCENAI
(Júpiter, Alcmena e Sosba.)
JÚPITER
Grão desconcerto tee feito
Amphitrião com Alcmena!
Qualquer deli es têe direito:
Eu sou o que venç^ o preito,
297
E ambos pagão a pena.
Quero-me ir lá desfazer
Tão trabalhosa demanda,
Por -nos tomarmos a ver;
Porque,' çmfim, quem muito quer
Com qualquer desculpa abranda.
E pois ja que a affeição '
Ha de mudar tão asinha, ^
Quero ir alcançar perdão
Dji culpa, que sendo minha.
Parece de Amphitrião.
ALCMENA
Parece que torna cá
Amphitrião, que já se hia:
Não sei a que tornará,
Senão se lhe peza ja
Dos enganos que tecia.
juprrER
Senhora, não haja error
Que tantos males me faça,
Porque se o contrario for.
Pequeno será o amor,
Que manencória desfaça. .
E pois com tanta alegria
De tantos perigos vim,
Pezar-me-ha se achar no fiifi,
Que huma leve zombaria
Vos possa aggravar de mim. '
ALCMENA
Com palavras de deshonra
Não se ha de tratar quem ama;
298
Nem zombaria se chama,
Por exprimentar a honra,
Pôr em tal perigo a fama.
Bem tive bxx para mim,
Que era aquillo experiência.
JÚPITER
Errei no que commetti :
Bem me basta a penitencia
De quanto me arrependi.
E se fiz algum error,
Com que vosso amor se mude
De quem vo-lo tee maior;
Não exprimentei virtude,
Maa exprimentei amor.
Que se com caso tão vário
Folguei de vos agastar,
Foi amor accrescentar ;
Porque ás vezes hum contrário
Faz seu contrário avisar.
Daqui vem, que a leve mágoa
Firmeza e afifeições augmenta,
Como bem se vê na frágoa,
Onde o fogo se accrescenta,
Borrífando-o com pouca ágoa.
Se hum mal grande se alevanta
N'hum coração que maltrata,
A afieição se desbarata;
Porque onde a água he tanta
O fogo d'amor se mata.
E pois tive tal tenção,
Perdoae, Senhora, a culpa
Deste vosso coração.
299
ALCMENA
«
Não se alcança assi perdão
D^errq que não têe desculpa.
JÚPITER
Ora pois assi tratais
Quem em tanto risco pôs
O amor que vós negais,
Eu m*ausentarei de yós
Onde mais me não vejais.
Que, pois desculpa não' tem
Coração que tanto quer,
Vou-me; que não será bem
Que quem vós não podeis ver,
Que possa mais ver. ninguém.
Se algum'hora meu cuidado
Vos der dor, em que pequena;
Peço-vos, pois fui culpado,
Que vos não peze da pena
De quem vos foi tão pezado.
E despois que a desventura
Puzer este coração
Debaixo da sepultura.
As letras na pedra dura
Vossa dureza dirão.
Isto vos hei de dizer.
Que m'ensinou minha dor :
Se quizerdes leda ser.
Nunca exprimenteis amor
Em quem vo-lo não tiver.
Deixae-me ir; não me tenhais.
ALCMENA
Amphitrião, não choreis!
\
300
Âmphitrião!
JÚPITER
Que quereis,
Ou para que nomeais
Homem, que ver não podeis?
ALCMENA
Âmphitrião, s'eu causei
Com manencória pequena
Cousa, cqpíi que o magoei;
Eu quero cahir na pena
Dessa culpa que lhe dei.
JÚPITER
Sempre serei magoado
Se vossa má condição
Me não perdoa o passado.
ALCMENA-
Perdoo, e peço perdão
De lhe não ter perdoado.
SOSEA
No le perdone, Senora,
Hasta que con devocion
Tambien me pida perdon ;
Que bien se me acuerda ahora
Que me ha llamado ladrou.
JÚPITER
Sosea?
SOSEA
Seiior. ^
50V
■
JUPITEIi
•Vae buscar
O Piloto Belferrão;
Dir-lhe-has, se desembarcar,
Que me parece razão
Que venha hoje cá cear.
SOSEA
Si, Senor, voy á la hora.
JÚPITER
De nenhuma qualidade
Cure de fazer demora*. •
• E nós vamos-nos, Senhora,
Confirmar nossa amizade.
SCENA II
MERCÚRIO
Grandes revoltas vão lá.
Grandes acontecimentos 1 '
Cumpre-me que esteja cá,
Em quanto meu pae está
Em seus desenfaHamentos.
Porque vi Amphitrião
Vir da náo mui apressado;
E tendo corrido e andado.
Não pôde achar Belferrão,
Que lhe era bem escusado,
Parece-me que virá
Ver se llie abre aqui alguém;
Mas, porém, se chega cá,
Ja pode ser que se vá
Mais confuso do que vem.
.•
302
SGENÀ m
(Mbbcorio « AmpíiitriIo.)
AMPHITRIÃO
Quiz-nos nossa natureza
Com tal condição fazer,
Que ja temos por certeza
Não haver grande prazer,
Sem mistura de tristeza. ,
Este decreto espantoso,
Que instituio nossa sorte,
He tal e tão rigoroso,
Que ninguém antes da morte
Se pôde chamar ditoso. .
Com esta justa balança
O fado grande e profundo
' Nos refreia a esperança,
Porque ninguém neste mundo
Busque bem-aventurança.
Eu, que cuidei de viver
Sempre contente de mi*
^ Com tamanho Rei vencer,
Venho achar minha mulher
De todo fora de si.
Mas d'o.utra parte, que digo?
Que s'he verdade o que vi,
E o que ella diz he assi ;
Virei a cuidar comigo
Qu'eu sou fora de mi.
Quero ver se a acho ja
Fora de tão seccos nós.
Ó de casa?
303
» ' f
MERCÚRIO
O -de allá?
Quién sois?
«
AMPHITRIÃO
Abre.
MERCÚRIO
Santo Dios!
. Pues no os conocen acá.
AMPHITRIÃO
Oh que gentil deisvariol
Abri-me ora se quizerdes.
MERCÚRIO
No haré, que en mi confio
Que de fíiera dormiredes,
Que no comigo, amor mio.
(Que cancionpara oirl) .
AMPHITRIÃO
Ah Sosea! zombas de mi?
(Ora quero-me fingir
Que ainda o não conheci,
Por ver se me quer abrir)
Ah Senhor, não abrireis?
MERCÚRIO
Qué quereis, hombre, por Dios?
AMPHITRIÃO
Duas palavras de vós.
504
MERCÚRIO
Tengo dicho mas de seis,
E ahora me gedis dos?
Defiíera podeis dormi v
Que entrar no podeis acá.
«
AMPHITBIÃO
Ora acabae, abri lá.
MEJiCURIO
Digo que no quiero abrir:
Dije dos palabras ya.
AIIPHITRIÃO
Ora sus, bargante, abri.
MERCÚRIO
Si no te vuelves de aqui,
Á gran peligró te ofreces.
■
AMPHrTRIÃO
■
Velhaco, não me conheces,
Ou estás fora de ti?
MERCÚRIO
Bonito venis, amor.
Quien sois, que hablais tan osado?
AMPHrrRiio
Abre, que sou teu Senhor.
MERCÚRIO
Vuélvas€Lde esolro lado,
Y conocerlehé mejor.
505
AMPHITBIÃO
• ■
Sosea moço. •
MERCÚRIO
Así me llamo,
Huéigome que lo sepais ;
Empero digo que os vais,
Que ÂmphitrioD es mi amo ;
Vos id buscar quien seais.
AMPHITRIÁO
Pois quero saber de ti :
Eu quem sou?
MERCÚRIO
Y quien sois vós?
Gomo os llaman ?
AMPHITRIÁO
Abri.
MERCÚRIO
Á vos os Uaman Abri?
Pues, Abri, andad con Dios.
AMPHITRIÃO
Quem ha, que possa sofFrer
Em sua honra tal destroço,
Que para me endoudecer
Me tee negado a mulher,
E agora me nega o moço?
MERCÚRIO
Mira el encantador
Como se lastima v Hora.
TOMO IV 20
_ •
506
Y fuese loniar ahora
La forma de mi Senor,
Para enganar mi Senora.
Pues esperad, y no os vais,
Por un espacio pequeno;
Terna quien representais,
Y él os hará que volvais
El falso gesto á su dueno.
•
AMPHITRIÁO
Vae, velhaco, e chama cá
Esse falso feiticeiro;
Que se elle lá dentro eslá^
Esta espada julgará
Qual de nós he o verdadeiro.
SCENA IV
(AmphitriAo, Sosea t Belfrrrão.)
fiELFKRRÃO \
Ora ninguém presumira
Que tinhas tão pouco siso;
Pois vás achar d' improviso
Tão bem forjada mentira,
Que me faz cahir de riso.
Hum moço, que alevantou
Tal graça, nunca nasceo:
Porque vos jura que achpu
Que ou elle em dous se perdeo,
Ou de hum dous se tomou.
SOSEA
Patron, que no burlo, no;
En uno son dos unidos,
n
507
I
Y en dos cuerpos repartidos;
Yo soy él, y él es yo,
De un padre y madre nacidos.
B£I.FERRÁO
Esse tu que lã estás,
Tão velhaco he coma ti?
*
SOSKA
Mas aun pienso que es mas:
Por delante y por detrás
Todo se parece á mi.
Y fue gran merced de Dios
Ayuntar á mi mas uno,
Que peor fuera de nos,
Si Dios me hiciera ninguno,
Que no de uno hacer dos.
BELFERRÃO
Assi que, se te perdeste
Vieste a cobrar mais hum :
Mui gentil conta fizeste,
Pois que perdido soubeste
Que eras dous, sendo nenhum.
•
SOSEA
Pues teneis por abusion
Verdad tan clara, y tan rasa,
Aunque pooe admiracion;
Quiera Dios, que allá en casa
No baileis otro Patron. .
AMPMITRIÃO
O Patrão, que fui buscar.
508
Parece que vejo vir:
Não sei quem o foi chamar;
Mas que me ha de aproveitar
Se me não querem abrir?
Ah Belferrão!
•
BKLFERRÃO
Ah Senhor!
Ja sinto que fui culpado;
Porque quem he convidado,
Se tão vagaroso for,
Merece oão ser chamado.
AMPHITRIÁO
A vós quem vos convidou?
BELFERRÃO
Sosea, por mandado seu.
AMPHITRIÁO
Disso, Patrão, não sei eu;
Que Sosea ja me negou,
E ja se não dá por meu.
E se alguém vos foi dizer
Qu'eu vos chamo á minha mesa;
Mal vos dará de comer
Quem de todo lhe he defesa
A casa, e mais a mulher.
BELFERRÃO
Quem he esse tão ousado,
Que vos isso faz. Senhor?
AMPHITRIÃO
Sosea, creio que enganado
509
Por algum encantador,
Que a honra me têe roubado.
BELFEMXkO
Se elle ?iqui comigo vem,
Isso como pode ser?
AMPHITRIÃO
Ah ! que a ira que vou ter,
Tão cega a vista me tem.
Que mo não deixava ver.
Porque razão, cavalleiro,
Não me abris quando vos mando?
Vós fazeis-vos chocarreiro?
SOSEA
.Yo Senor? y como? y cuando?
AMPHITRIÃO
Quereis-lo saber primeiro?
Esperae, dir-se-vos-ha,
Mas será por outro son.
SOSEA
Ah Senor Amphiirion,
Porque matándome está,
Sin delito, v sin razon?
AMPHITRIÃO
Agora que vos eu dou
Me chamais Amphitrião,
E para me abrirdes não.
BELF£RttÃ0
Este movo em que peccou?
/
540
Porque pena sem razão?
Não mais por amor de mi.
AMPHITRIÃO
Não, que não sou seu Senhor;
Eu sou hum encantador.
Não o dizeis vós assi,
Ladrão, perro, enganador?
SOSKA
Porque fuy presto á llamar
Por su mandado ai Patron,
Me quiere aliora matar?
AMPHITRIÃO
Quem vo-lo mandou huscar?
SOSEA
Si no hay otro Amphitrion,
Vuestra merced sin dudar.
AMPHITRIÃO
Eu te mandei?
SOSEA
Si Senor,
Si otro no.
AMPUITRIÃO
Outro ha aqui,
Por quem tu zombes de mi?
Pois só desse encantador
Me quero vingar em ti.
5H
SOSEA
Oh Júpiter, á quien bramo
Por su bondad que me vala!
Pues porque Sosea me Uamo,
Yo mismo, y dèspues mi amo.
Me dieron venida mala!
ACTO QUINTO '
SCENA I
(JuPITKR, BkLFERRÃO, SoSEA € AUPHITRIÀO.)
JUPITEB
Quem he o tão atrevido,
Que aqui ousa de fazer
Tao revoltoso arruido
Com meus moços, sem temer,
Que fui sempre tão temido?
Quem aqui faz união,
Toma mui grande despejo.
BELFERRÃO
Oh grande admiração!
Vejo eu outro Amphitrião,
Ou he sonho isto que vejo?
SOSEA
No mirais la encantacion,
Que aquel hizo á mi Sefior?
El que sale, fielfeiTon,
Es el cierto Âmphitrion,
Que estotro es encantador.
5<2
jrPITER
Sosea?
SOSCA
Mi Senor, va vó.
JÚPITER
Fíilrão, Si) por vós espero.
SOSEA
No os lo dicia yo,
Que este era el verdadero,
Y esse que allá queda, no? •
AMPHrrRiÁo
Bargante, aonde te vás?
Fazes teu Senhor sandeu?
Pois espera, e levarás.
JÚPITER
O lá, tomae por detrás.
Não deis no moço, que he meu.
AMPHITRIÁO
Vosso?
JÚPITER
Meu.
AMPHITRIÁO
Pôde isto haver.
Que outrem minhas cousas tome?
Vós galante haveis de ser,
O que me tomais o nome,
(iasa, moços e mulher.
Eu vós farei conhecer
Com quem tendes esse Iralo.
JÚPITER
Sosea?
SOSEA
Seiior?
JÚPITER
Vae dizer,
Que apparelhem de comer,
Em quanto este doudo mato.
BELFERRÃO
Oh Senhor, não seja assim.
Haja em vós concerto algum !
E senão, pois aqui vim.
Farei que só tome em mim
Os golpes de cada hum.
JÚPITER
Patrão, vossa boa estrella
Me fará deixar com vida
Quem me não merece tella.
•AMPHITRIÃO
Não a tenho eu merecida,
Pois que vos deixo com ella.
BELFERRÃO
O homem que for sisudo,
N'huma tão grande questão
Ha de tomar por escudo
õ\4
A justiça, e a razão;
Que estas armas vencem tudo.
E pois essa natureza
Muitos homens faz iguaes,
Dê qualquer de vós signais
De quem he, para certeza
Da forma que ambos mostrais.
JÚPITER
Sou contente de mostrar
Poios sinaes que vos dou,
Que sào estes sem faltar.
AMPHJTRIÃO •
Que sinaes podeis vós dar,
Para que sejais quem sou?
JÚPITER .
Estes, que logo vereis
Se são vãos, se de raiz. %
Patrão, vós sede juiz,
Que vós logo enxergareis
Qual mais verdade vos diz.
BELFERRÃO
Eu não sinto onde consista
A cura desta doença,
Que ha tão pouca diíTerença,
Que aquelle em qiie ponho a vista,
Por esse dou a sentença.
Mas, Senhor, vós que ordenastes
Que o juiz disto fosse eu,
Quando se a batalha deu,
>H5
Dizei, que m'encommendastes
Que ficasse a cargo meu?
JUHlTEtt
Dei-vos cargo, qu'eslivesse '
Toda a armada a bom recado,
E, se mal nos succedesse,
Que para os vivos houvesse
O refugio apparelhado.
BELFERRÃO
Ora vós quantos dobrões
Esse dia m'ent regastes? .
AMPHITRIÁO
Tres mil: e vós os contastes.
l
• BELFERRÁO
Ambos sois Amphitriões.
Pelos signaes que mostrasles.
JÚPITER
Para ser mais conhecida
A tenção deste sandeu,
Vede essoutro sinal meu,
Que he neste braço a ferida
Que me El-Rei Terela deu.
BELFERRÁO
Mostrae vós. Senhor, também.
AMPHITRIÃO
Aqui o podeis olhar.
5<6
BELFERRÁO
Oh cousa {)ara espantar!
Que ambos a ferida lem
D'hum tamanho, em hum lugar!
SCENA II
(Júpiter, AmphitrUo e Soska.)
SOSEA
Dice mi Senora Âlcmena
Que no ^ ha de s&í de estar
Con un bobo á razonar,
Que Se le énfria la cena.
JITPITER
Bel ferrão, vamos cear.
AMPHITBIÃO
•
Belferrão, não me deixeis.
Como? também me negais?
■
JLPITER
Andae, não vos detenhais.
Vamos comer, se quereis,
Não ouçais hum doudo mais.
AMPHITRIÃO
Ah máos! assi me ordenais
Offensa tão mal olhada?
Eu farei, se m'esperais,
Com que todos conheçais
Os fios da minha espada,
517
JIPITER •
As porias piesles fechemos.
Não entre este doudo cá.
SOSEA
De fiiera se dormirá:
Entre tanto que cenemos,
Puede pasearse allá.
SCENA III
AMPHITRIÃO $ò
Oh ira para não crer,
Em que minh'alma se abraza,
Que me faz endoudecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque? Não tenho eu '
Forças, que tudo destrua?
Pois que tanto a salvo seu,
Outrem acho que possua
A melhor parte do meu ;
Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena.
Donde veja arder Alcmena,
Com quem a vejo enganar.
SCENA IV
(AcRELio e Moço.)
AURÉLIO
No hallo á mis males culpa,
r><8
Para que merezca pena
La causa que me condena.
MOCO
Essa está gentil desculpa
Pára hoje dar a Alcmena I
Tf e-no mandado chamar,
E elle «stá tão descuidado!
AURÉLIO
Moço, queres-me malar?
Que desculpa possq eu dar
Melhor qu'este meu cuidado?
MOCO
E não ha mais que fazer?
Com isso a boca me tapa
Para mais nada dizer?
AURKUO
Ora dá-me cá essa capa,
E vamos ver o que quer:
Não trates de mais razão,
Pois não ha quem te resista.
Quo vejo? outra novação!
MOCO
m
Que hp?
AITRKLIO
Ou me mente a vista,
. Ou ou vejo Amphilrião.
MOÇO
E\\ ouvi a Feliseo,
519
Quando cá trouxe o recado,
Gomo elle era chegado,
E quiz-me dizer que veo
Do siso desconcertado.
AURKUO
Isso quero eu ir saber,
Pois que tal cousa se sôa.
SCENA V
(Aurélio e Amphitriâo.)
AUnEIJO
Senhor, póde-se dizer
Que a vinda seja mui boa?
AMPHITRIÂO
Essa não pode ella ser.
AURÉLIO
Porque não?
AMPHITRIÂO
Porque he roubada
Minha honra sem temor,
E minha casa tomada,
E vossa Prima enganada
Por hum grande encantador.
AURÉLIO
Isso ho certo?
AMPHITRIÂO
E mar^ifesto:
J)20
E luilo tee ja por seu
Adúltero e deshonesto:
Tee-me tomado o meu gesto,
E faz-lhe cvev que sou eu.
AUREUO
Contais hum caso d'espan1o!
E pois não podeis entrar,
Defendei-me por em tanto,
Que eu hei de lá chegar
Para ver quem pôde tanto.
SCENA VI
■
AMPHITniÃO, só
Se ver deshonra tão clara
Me não tivera o sentido
JTotalmente endoudecido,
Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos d agoa,
E a alma de saudade.
Assi que quiz minha estrella,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente
Viva mais saudoso delia.
Que quando delia era ausente.
Esta porta vejo abrir
Com Ímpeto demasiado,
Que poderei presumir,
52 <
Que vejo Aurélio sahir,
Como bomem desatinado?
SCENA VII
(Ampritrião, Aurélio, Belferrão e Sosea.)
AURÉLIO
Oh eslranha novidade!
Oh cousa para não crer!
. BELFERRÃO
Venho cego de verdade,
Que não puderao soffrer
' Meus olhos a claridade.
SOSEA
Oh triste, que vengo ciego
Qon rayos, y con visiones!
Y destas encantacion^s,
Si nuestra casa arde en fuego,
Han se de arder mis colchone^.
AURÇLIO
Vamos a Amphitrião
Contar-lhe cousas tamanhas.
AMPHITRIÁO
Que vai lá? que cousas vão?
AURELH)
Maravilhas tão estranhas,
Que me treme o coração.
Porque aquelle homem, que assi
TOMO IV
i\
522
Tantos eíiganos teceo,
Gomo era cousa do Ceo,
Tanto qu'eu appareci,
Logo desappareceo.
E em desapparecendo
Com ruido grande e horrendo,
Toda a casa allumioQ ;
E de arte nos inflammou,
Que nos vimos acolhendo
Do raio que nos cegou.
Estes acontecimentos
«
Não são de humana pessoa.
Vós ouvis a voz que soa?
Escutae, estae attentos;
Vejamos o que pregoa.
JUPrrER, de dentro
Amphitrião, qu'em teus dias
Vês tamanhas estranhezas, ,
Não fespantem phantasias,
Que ás vezes grandes tristezas
Parem grandes al^ias.
Júpiter sou manifesto
Nas obras de admiração,
Que por mi causadas são:
Qniz-me vestir em teu gesto,
Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá
Hum filho de mi gerado,
Que Hercules se chamará^
O mais valente e esforçado,
Que no mundo se achará.
Com este, teus successores.
«
525
Se honrarão de serem teus;
E dar-lhe-hão os escriplores,
Por doze trabalhos seus,
Doze milhões de louvores.
E dessa iUustre fadiga
Colherás mui rico fruito:
Emfím, a razão me obriga
Que tão pouco delle diga, ^
Porque o tempo dirá muito.
*
FILODEMO
INTEBLOCLTORES
FiLODEMO — ViLARDO, SCU MoÇO — DiONYSA — SOLlNA, 8Ua MoÇH-— VeNADORO —
Monteiro — Duriako, Amigo de Filodemo — Hum Pastor — Hum Bobo, Filho
dô Pastor -^Florim ENA, Pastora — Dom Lusidardo, Pae deVenadoro — Dolo-
roso, Amigo deVilardo — Três pastores.
ARGUMENTO
Hum Fidalgo Portugacz, que acaso -andava nos Reinos de
Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços, tivesse
alcançado o amor de huma filha d'El-Rei, foi-lhe necessário fu-
gir com ella em hunja galé, por quanto havia dias que a tinha
prenhe. E de feito, sendo chegados á costa de Hespanha, onde
elle era senhor de grande património, armou-se-lhe grande tor-^
menta, que sem nenhum remédio, dando a galé á costa, se per-
derão lodos miseravelmente, senão a Princeza, que em huma ta-
boa foi á praia: a qual, como chegasse o tempo de seji parto,
junto de humst fonte pario duas crianças, macho e fêmea; e não
tardou muito que hum pastor Castelhano, que naquellas partes
morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudio a tem-
po que a Mãe ja tinha espirado. Crescidas, emfim, as crianças
debaixo da humanidade e criação daquelle pastor, o macho que
Filodemo se chamou â vontade de quem os baptizara, levado da
natural inclinação, deixando o campo, se foi para a cidade, aonde
526
por ipusico e discreto, valeo maito em casa de D. Lusidardo, ir-
mão de seu pae, a qaem muitos annos sérvio sem saber o pa-
rentesco que entre ambos havia. E como de seu Pae não tivesse
herdado nada mais que os altos espiritos, namorou-se de Dio-
nysa, filha de seu Senhor e Tio, que incitada ao que por suas
obras e boas partes merecia, ou porque ellas nada engeitão, )he
não queria mal. Âconteceo mais, queVenadoro, filho de D.Lu-
sidardo, mancebo fragueiro, e muito dado ao exercício da caça,'
andando hum dia no campo após hum cervo, se perdeo dos seus;
e indo dar em huma fonte, onde estava Florimena, irmãa de Fi-
lodemo (que assim lhe pozerão o nome) enchendo huma talha
de água, sç perdeo de amores por ella, que se não soube dar
a conselho, nem partir-se donde ella estava, até que seu pae o
não foi buscar. O qual informado pelo pastor que a criara (que
era homem sábio na arte magica) de como a achara e como a
criara, não teve por mal de ca^ar a Filodemo com Dionysa sua
filha, e prima de Filodemo; e aVenadoro seu filho, com Flori-
mena sua sobrinha, irmãa de Filodemo pastor; e também pela
muita renda que tinha e de seu pae ficara, de que elles erão ver-
dadeiros herdeiros. Das mais particularidades da Comedia, fará
mengão o Auto, que he o seguinte.
ACTO PRIMEIRO
SCENA I
(Filodemo e V^ilardq,)
FILODEMO
Moço Vilardo?
VILARDO
Ei-lo vae.
527
. FILODEUO
Fallae era má, fallae,
fi sabi cá para a ^la.
O villão como se cala!
VIIARDO
Pois, Senhor, sahi a meu Pae,
Que quando dorme não fala.
FII^DEMO
Trazei cá huma cadeira:
Ouvis^ villão?
VILARDO
Senhor, sim.
(Se m'ella não traz a mim,
Vejo-lh'eu ruim maneira.)
FILODEMO
Acabae, villão ruim.
Que moço para servir
Quem tee as tristezas minhas!
Quem pudesse assi dormir!
VILARDO.
Senhor, neslas manhãzinhas
Não ha hi senão cahir:
Por demais he trabalhar
Qu'este somno se me ausente.
FILODEMO
Porque?
VILARDO
Porque ha d'assentar
528
Que se não for com pão quente,
Não ha de desafferrar.
FILODEMO
Ora hi pelo que vos mando,
Villão feito de fermento.
fSahe ViLARDO.)
Triste do que vive amando
Sem ler oulro mantimento,
Qu'estar só phantasiando!
Só bua cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo,*
Ser de tamanho perigp.
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
(Vem o moço, e assenta-$e na cadeira Filodeuo, e diz átanie:)
Ora quero praticar
Só comigo hum pouco aqui;
Que despois que me perdi,
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi.
Vae para fora, Vilardo.
Torna cá : .vae-me saber
Se se quer ja lá erguer
O Senhor Dom Lu^idardo,
E vem-mo logo dizer.
(Vai-se o moço,)
Ora bem, minha ousadia,
Sem azas, pouco segura,
Quem vos deo tanta valia.
Que subais a phantasia
Onde não sobe a ventura?
529_ ^
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais Valer,
Que o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veio a mi
Saber-me Ião bem perder?
Eu, nascido entre pastores,
Fui trazido dos currais,
E d'enlre meus naturais
Para casa dos Senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora logo tão cedo
Quiz mostrar a condição
De rústico e de villãol
Dando-me ventura o dedo,
Lhe. quero tomar a mão!
Mas ohl qu'isto não he assi,^
Nem são villãos meus cuidados.
Como eu delles entendi;
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer de mi.
Porque ctímo hei eu de crer
Que me faça minha estrella
Tão alta pena soffrer.
Que somente pola ter
Mereço a gloria delia?
Senão se amor, d'atlentado,
Porque me não queixe delle,
Tee por ventura ordenado
Que mereça o meu cuidado,
Só por ter cuidado nclle.
530
• SCENA II
(YlLARDO e FiLODEMO.)
VILABDO
O Senhor Dom Lusidardo
Dorme com todo o convento;
E elle com o pensamento
Quer estar fazendo alardo
De castellinhos de vento!
Pois tão cedo se vestio,
Com seu damno se conforme,
Pezar de quem me pario;
Que ainda o sol não sahio:
Se vem á mão, também dorme.
Elle quer-se levantar
Assi pela manhãzinha!
Pois quero-o desenganar :
Nem por muito madrugar
Amanhece mais asinha.
' FILODEMO
Traze-me a viola cá.
VILAROO
(Voto a tal que me vou riqdo.)
Senhor, também dormirá.
FILODEMO
Traze-a, moço.
• YlLARDO
Si, virá.
Se não estiver dormindo.
554
, . FILODEMO
Ora hi polo que vos mando:
Não gracejeis.
VILÂRDO
Eis-me vou:
Pois, pezaf de São Fernando !
Por ventura áou eu grou?
Sempre hei d'estar vigiando? soAe.
FILODEMO
Ah Senhora, que podeis
Ser remédio do que peno,
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
N'hum coração tãò pequeno I
Se vos fosse apresentado
Este tormento em que vivo,
Creríeis que foi ousado •
Este vosso, de criado
Tomar-se vosso captivo?
SCENA In
(FiLODBMO 0 YlLABDO.) "
VILARDO '
Ora eu creio, se he verdade
Ou'pstou de todo acordado.
Que meu amo he namorado;
E a mi dá-me na vontade
Que anda hum pouco abalado.
E se tal he, eu daria
Por conhecer a donzella
552
A ração d'ho]e este dia;
Porque a desenganaria,
Somente por ter dó delia.
Havia-lhe perguntar:
penhora' de que comeis?
Se comeis d'ouvir cantar,
De fallar bem, de trovar,
Em boa hora cangareis.
Porém se vós comeis pão.
Tende, senhora, resguardo;
Qu'eis-aqui está Vilardo,
Qu'he como hum camaleão,
Por isso, bus, fazei fardo.
E se vós sois das gamenhas,
E houverdes d'attenlar
Por mais que por manducar,
Mi cama son duras peuas,
Mi dormir siempre es velar.
A viola, Senhor, vem
Sem primas, nem derradeiras:
Mas sabe o que lhe convém?
Se quer, Senhor, tanger bem.
Ha de haver mister terceiras.
E se estas cantigas vossas
Não forem para escutar,
E quizerdes espirar;
Ha mister cordas mais grossas,
Porque não i)ossão quebrar. '
FILODEMO
Vae para fora.
VII.AKI>0
Ja venho.
333
FILODENO
Qu'eu só desta phantasia
Me soslenho e me mantenho.
YILARDO
Quamanha vista que tenho,
Que vejo a estrella do dia! sahe.
scENA rv
FILODEMO, cantando,
Adó sube el pensamiento,
Seria una gloria inmensa
Si allá fuese quien Io piensa.
(FaUaJ
Qual espirito divino
Me farâ a mi sabedor
Deste meà mal, se he amor,
Se por dita desatino?
Se he amor, diga-me qual
Pôde ser seu fundamento, '
Ou qual he seu natural,
Ou porque empregou tão mal
Hum tão alto pensamento.
Se he doudice, como em tudo
A vida me abràza e queima.
Ou quem vio n'hum peito rudo
Desatino tão sisudo» *
Que toma tão doce teima?
Ah Senhora Dionysa,
Onde a natureza humana
Sè mostrou tão soberana I
O que vós valeis me avisa.
Mas o qu'eu peno m'engana.
334
SCENA V
(SOLWA t PUiOOBMO.)
9
SOLINA
Tomado estais vós agora,
Senhor cb'o furto nas. mãos.
FILOLEMO
Solina, minha Senhora,
Quantos pensamentos vãos
Me ouviríeis lançar fóra?
SOLINA
Oh Senhor, quão bem que sôa
O tanger de quando em quando I
Bem sei eu huma pessoa,
Qub ha ja huma hora, e boa,
Que vos «está escutando.
FILODEMO
Por vida vossa, zombais?
Quem he? quereis-mo dizer?
SOLINA
Não o haveis vós de saber,
Bofe sè me não peitais.
FILODEMO
Dar-vos-hei quanto tiver,
Para taes tempos como estes.
Quem tivera voz dos Ceos,
Pois escutar me quizestes!
535
* I I
SOLINA
Assi pareça eu a Deos,
Como lhe vós parecestes.
FILODEMO '
A Senhora Dionysa
Quer-se ja alevanlar?
SOLINA
Assi me veja ea casar,
Como despida em camisa
Se ergueo por vos escutar.
FILODEMO
Em camisa levantada!
Tão ditosa he minha estrella?
Ou mo dizeis refalsada?
SOLINA
Pois bem me defendeo ella '
Que vos não dissesse nada.
• FILODEMO
Se pena de tantos annos
Merecer algum favor,
Para cura de meus dannos
Fartae-me desses engannos,
Que não quero mais de Amor.
SOLINA
Agora quero eu fallar
Neste caso com mais tento;
Quero agora perguntar:
E de siso his vós tomar
♦
336
«
Hum tão alio pensamento?
Certo he minha maravilha,
Se vós islo não sentis
Bem: vós como não cahis
Que Dipnysa qu'he filha
Do Senhor a quem servis?
Como? Vós não attentais
Os Grandes, de qu he pedida?
Peço-vos que me digais
Qual he o fim que esperais
Neste caso, em vossa vida.
Que razão boa, ou que côr
Podeis dar a esta affeição?
Dizei-me vossa tenção.
FILODEMO
Onde vistes vós amor
Que se guie por razão?
Se quereis saber de mi
Que fim, ou de que theor
O pretendo em minha dor;
S'eu nesíe amor^ quero fim,
Sem fim me atormente Amor.
Mas vós com gloria fingida
Pretendeis de m'enganar,
Por assi mal me tratar:
Assi que me "dais a vida
Somente .por me matar.
SOLINA
Eu digo-vos a verdade.
FILODEMO
Da verdade fujo eu,
357
Porque se o Amor me deu
Pena de tal qualidade,
. Assaz me custa do meu.
SOUNA
Folgo muito de saber
Que sois amante tão fino.
FILODEMO
Pois mais vos quero dizer,
Que ás vezes no imaginar
Não ouso de m'estender.
Na hoja que imaginei
Na causa de meu tormento,
Tamanha gloria levei,
Que por onçaâ desejei
De lograr o pensamento.
SOLINA
Se me vós a mi jurardes ,
De me terdes em segredo
Huma cousa . . . mas hei medo
De logo tudo contardes.
FILODEMO
A quem?
SOUNA
Áquelle enxó vedo.
Qual?
FILODEMO
SOLINA
Aquelle máo pezar.
TOMO IT
t±
558
Que ant^hontem comvosco bia.
Quem se fosse em vós fiar!
O que vos disse o outro dia.
Tudo lhe fostes contar.
FILODEMO
Que lhe contei?
SOLINA
Ja Ih'esquece?
FILODEMO
Por certo qu'eslou remoto.
SOLINA
Hi, que sois hum ceslo roto.
FILODEMO
Esse homem tudo merea\
SOLINA
Vós sois muito seu devoto.
FILODEMO
Senhora, não hajais medo:
Contae-m'isso, e far-me-hei mudo.
SOLINA
Senhor, o homem sisudo, ^
Se em taes cousas tee segredo,
Saiba que alcançará tudo.
A senhora Dionysa
Crede que mal vos não quer:
Não vos posso mais dizer.
Isto tende por baltsa
539
Com que vos saibais reger.
Qu'em mulheres, se attentais,
O querer está^visibil;
E se bem vos governais,
Não desespereis do mais.
Porque, emfim, tudo he possibil.
FILODEMO
Senhora, pôde isso ser?
SOLINA
Si, que tudo o mundo tem :
Olhae não o saiba alguém.
FILODEMO
E que maneira hei de ter
Para crer tamanho bem?
SOLINA
Vós, Senhor, o sabereis;
E ja que vos descobri
Tamanho segredo aqui,
Huma mercê me fareis
Em que me vai muito a mi.
FILODEMO
Senhora, a tudo me obrigo
Quanto for em minha mão.
\
SOUNA
Pois dizei a vosso amigo
Que não gaste tempo ém vão,
Nem queira amores comigo.'
»
540
Porque eu tenho parentes.
Que me podem bem casar;
E mais que não quero andar
Agora em boca de gentes
A quem s'elle vai gabar.
FILODEMO
Senhora, mal conheceis
O que vos quer Duriano :
Sabei-o, se o não sabeis,
Qu'em sua alma sente o dano
Do pouco que lhe quereis;
El que outra cousa não quer,
Que ter-vos sempre servida.
SOLINA
Pola sua negra vida,
Isso havia eu bem mister.
FILODEMO
Vós sois desagradecida!,
SOLINA
Si, que tudo são enganos
Em tudo quanto fallais.
FILODEMO
Não quero que me creais;
Crede o tempo; que ha dous anos
Que vos serve, e inda mais.
SOUNA
Senhor, bem sei que m'engano;
Õ4\ '
Mas a vós, como a inpão,
Descubro este coração:
Sabei que a Duriano
Tenho sobeja affeição.
Olhae que lhe não digais
Isto que vos aqui digo.
FILODCMO
Senhora, mal me tratais:
Inda que sou seu amigo,
Sabei que vosso sou mais.
SOLINA
E ja que vos confessei
Áquestas fíraquezas minhas*
Que ha tanto que de mi sei :
Fazei vós nas cousas minhas
O qu'eu nas vossas farei.
•
FILODEMO
Vós enxergareis, Senhora,
O qu eu por vós sei fazer.
SOLINA
Como me deixo esquecer !
Aqui estivera agora
FaJlando té anoitecer.
Vou-me; e olhae quanto vai
O que passou entre nós.
FILODEMO
E porque vos ides vós?
SOLINA
Porque parece ja mal
542
Estar aqui ambos sós.
E mais vou vestir agora
A quem vos dá tão má vida.
Ficae-vos, Senhor, embora.
FILODEMO
Nessa ide vós, Senhora,
Que ja vos tenho entendida.
SCENA VI
FILODEMO, 8Ó.
Ora se pôde isto ser
Do' qu'esta moça me avisa, .
Que a Senhora Dionysa,
For me ouvir, se fosse erguer
Da sua cama em camisa I
E diz que mal me não quer.
Não queria maior gloria;
. Mas o que- mais posso crer, '
Que nem para lhe esquecer
Lhe passo peia memoria.
. Mas ter Solina também -
Em Duriano o intento,
He levar-me a lenha o vento;
Porque s'ella lhe quer bem, ,
Para bem vai meu tormento.
Mas foi-se este homem perder
. Neste tempo, de maneira.
Por huma mulher solteira.
Que não me atrevo a fazer
Que hum pequeno bem lhe queira.
Porém far-lhe-hei hum partido,
I
545
Porqu'e]la não se querelle:
Que se mostre seu perdido,
Inda que seja fingido,
Gomo lh'outrem faz a elle.
•
E ja que me satisfaz,
E tanto nisto se alcança,
Dè-lbe fingida esperança:
Do. mal que lhe outrem faz,
Tomará nella vingança.
SCENA VII
VILARDO, lò.
Ora boa está a cilada
De meu amo com sua ama,
Que se levantou da cama
Por ouvi-lo! Está tomada:
Assi a tome má trama.
E mais crede que quem canta,
Ainda descantará:
E quem do leito, onde está,
Por ouvi-lo se levanta,
Mór desatino fará.
Quem havia de cuidar,
Que dama formosa e bella
Saltasse o demónio nella.
Para a fazer namorar
De quem nãohe igual delia?
Que me dizeis a Solina?
Como se faz Celestina,
Que por não lhe haver inveja
Também para si deseja
O que o desejo lh'ensina !
544
Grède que se me alvoroço,
Que a hei de tomar j^r dama;
E não será grão destroço,
Pois o amo quer a ama,
Que a moça queira o moço.
Vou-me; que vejo lá vir
Venadoro, apercebido
Para a caça se partir:
E voto a tal, que he partido
Para ver e para ouvir.
Que he razão justa e rasa
Que seu folgar se desconte
Em quem ardç como brasa;
Que se vai caçar ao monte.
Fique outrem caçando em casa.
SCENA VIII
VENADORO, só.
Approvada antiguamente
Foi, e muito de louvar
 occupação do caçar,
E da mais antigua gente
Havida por singular.*
He o mais contrário officio
Que tee a ociosidade.
Mãe de todo o bruto vicio :
Por este limpo exercicio
Se reserva a castidade.
Este dos grandes Senhores
Foi sempre muito estimado;
E he grande parte do estado
Ter monteiros, caçadores,
545
Como officío qu'be prezado.
Pois logo porque razão
A meu pae ha de pezar
De me ver ir a caçar?
E tão boa occupação
Que mal me pôde causar?
SCENA IX
(VbMAPOBO e o MONT£IRO.)
MONTEIRO
Senhor, venho alvoroçado,
E mais com muita razão.
VENADORO
Como assi?
MONTEIRO
Que me he chiado
O mais extremado cão.
Que nunca caçou veado.
Vejamos que me ha da dar.
VENADORO
Dar-vos-hei quanto tiver ;
Mas ha-se d'exprímentar,
Para se poder julgar
As manhas que pôde ter.
MONTEIRO
Pôde assentar qu'este cão,
Que tee das manhas a chave.
Bem feito? Em admiração.
• 546
Pois em ligeiro? líe bumaave.
Em commetter? Hum leão.
Com porcos? Maravilhoso.
Com veados? Extremado.
Sobeja-lbe o ser manboso.
VENADORO
Pois eu ando desejoso
D'irmos matar um veado.
MONTEIRO
*
Pois, Seobor, como nao vae?
VENADORO
Vamos, e vós mui ligeiro
O necessário ordenae;
Qu'eu quero cbegar primeiro
Pedir licença a meu pae.
ACTO SEGUNDO
SCENA I
DURIANO
Pois não creio eu em S. Pisco de páo, se bei de pôr pé em
ramo verde, té Ibe dar trezentos açoutes. Despois de ter gastado
perto de trezentos cruzados com ella, porque logo Ibe não man-
dei o setim para as mangas, fez de mim mangas ao demo. Nâo
desejo eu de saber, senão qual be o galante que me succedeo;
que se vo-lo eu coíbo a balravento, eu Ibe farei botar ao mar
quantas esperanças Ibe a fortuna tee cortado â minba. Ora te-
nbo assentado, que amor destas anda com o dinbeiro, coroo a
maré com a lua: bolsa cbeia, amor em águas vivas: mas se vasa.
547
vereis espraiar esle engano, e deixar em secco quantos gostos
andavão como o peixe na ágna.
SCENA II
(FiLODEMO e DURIANO.)
FILODEMO
Ó lá! cá sois vós? Pois agora hia eu bater essas moutas,
para ver se me sahieis de alguma; porque quem vos quizer achar,
he necessário que vos tire como huma alma.
DURUNO
Oh maravilhosa pessoa 1 Vós ne certo que vos prezais de mais
certo* em casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se
vem ã mão, os pensamentos com os focinhos quebrados, de ca-
hirem onde vós sabeis. Pois sabeis. Senhor Filodemo, quaes são
os que me mátão? Huns muito bem almofaçados, que com dois
ceitis fendem a anca pelo meio, e se prezão de brandos na con-
versação, e de fallarem pouco e sempre comsigo, dizendo que
não darão meia hora de triste pelo thesouro de Veneza; e gabão
mais Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sahem das mãos vir-
gens; e tudo isto por vos meterem em consciência que se não
achou para mais o grão Capitão Gonçalo Fernandes. Ora pois
desengano-vos, que a mór rapazia do mundo farão altos espiri-
tos: e eu não trocarei duas pescoçadas da minha &c., despois
de ter feito a tosquia a hum frasco, e fallar-me por tu e fingir-
se-me bêbada, porque o não pareça, por quantos Sonetos estão
estíriptos poios troncos das árvores do vale Luso, nem por quan-
tas Madamas Lauras vós idolatrais.
FILODEMO
Tá, tá, não vades avante, que vos perdeis.
348 -
DURIANQ
Aposto que adivinho o que quereis dizer?
FtJLODEMO
Que?
DURIANO
Que se me nâb acudieis com o batel, que me hia meus pas-
sos contados a herege de amor.
FILODEMO ^
Oh que certeza tamanha, o muito peccador não se conhe-
cer por essel
DURIANO
Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em
sua opinião! Mas tornando a nosso propósito, que he o para que
me buscais? que se he cousa de vossa saúde, tudo farei.
FILODEMO
Gomo templará el destemplado? Quem poderá dar o que não
têe, Senhor Duriano? Eu quero-vos deixar comer tudo: não pôde
ser que a natureza não faça em vós o que a razão não pôde:
o caso he este; dir-vo-lo-hei; porém he necessário que primeiro
vos alimpeis como marmelo, .e que ajunteis para hum canto da
casa todos esses máos pensamentos; porque segundo andais mal
avinhado, damnareis tudo aquillq que agora lançarem em vós.
Ja vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa
que não he servir a Senhora Dionysa; e postoque a desigual-
dade dos estados o não consinta, eu não pretendo delia mais que
o não pretender delia nada, porque o que lhe quero, comsigo
mesmo se 'paga; que este meu amor he como a ave Phenix, que
de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.
DURIANO
Bem praticado está isso; mas dias ha que eu não creio em
sonhos.
549
FILODEMO
Porque?
DURIANO
Eu vo-lo direi*: porque todos vós-outros os que amais pela
passiva, dizeis que o amor fino como melão, não ha de querer
mais de sua dama que amâ-la; e virá ]ogo o vosso Petrarcba,
e o vosso Pielro Bembo, atoado a trezentos PlatOes, mais çafado
que às luvas de hum pagem d'arte, mostrando razões verisimeis
e apparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê-la;
e ao mais até fallar com ella. •
Pois inda achareis outros esquadrinbadores d'amor,. mais es-
peculativos, qúe defenderão ajusta por não emprenhar o desejo;
e eu (faço-vos voto solemne) se a qualquer destes lhe entregas-
sem sua dama tosada e apparelhada entre dous pratos, eu fico
que não ficasse pedra sobre pedra: e eu ja de mi vos sei con-
fessar que os meus amores hão de ser pela activa, e que ella ha
de ser a paciente, e eu agente, porque esta he a verdade. Mas,
com tudo, vá v. m. Ç0'a historia por diante.
FÍLODEHO
Vou, porque vos confesso que neste caso ha muita duvida
entre os Doctores: assi.que vos conto, que estando ^ta noite
com a viola na mão, bem trinta ou quarenta íegoas pelo sertão
dentro de hum pensamento, senão quando me tomou á traição
Solina; e entre muitas palavras que tivemos, me descobrio que
a Senhora Dionysa se levantara da cama por me ouvir, e que
estivera pela greta da porta espreitando quasi hora e meia.
DURIANO
Cobras e tostões, sinal de tenra: pois ainda vos não fai^ia
tanto avante.
^ nLODEMO
Finalmente, veio-me a descobrir, que me não queria mal, que
350
foi para mi o maior bem do mundo; que eu eslava ja concertado
com minha pena a soffrer por sua causa, e não tenho agora so-
jeito para tamanho bem.
DUMANO
Grande parte da saúde he para o doente trabalhar por ser
são. Se vos deixardes manquecer na estrebaria com essas fine-
zas de namorado; nunca chegareis onde chegou Rui de Sande.
Por isso boas esperanças ao leme; que eu vos faço bom que ás
duas enXadadas acheis água. E que n^ais passastes?
«
FILODEMO
 maior graça do mundo: veio-me a descobrir que era per-
dida por vós; e me quiz dar a entender que faria por mi tudo
o que lhe vós merecêsseis.
DURIANO
Santa Maria! QuantQS dias ha que nos olhos lhe vejo mare-
jar esse amor? porque o fechar de janellas que essa mulher me
faz, e outros enojos que dizer poderia, no son sino corredores
dei amor, e a cilada em que ella quer que eu caia.
FILODEMO
Nem eu não quero que lho queirais, mas que lhe façais crer
que lho quereis.
DURIANO
Não . . . quanté dessa maneira me offereço a romper meia dú-
zia de serviços alinhavados ás panderetas, que bastem assen-
tar-me em soldo pelo mais fiel amante que nunca calçou esporas;
e se isto não bastar, salgan las palabras mas sangrientas dei co-
razon, entoadas de feição, que digão que sou hum Maneias, e
peor ainda.
FILODEMO
Ora dais-me a vida. Vamos ver se por ventura apparece, por-
que Venadoro, irmão da Senhora Dionysa, he fóra^á caça; e sem
35j
elle fica a casa despejada; e o Senhor Dom Lusidardo anda no
pomar; que todo o seu passatempo he enxertar e dispor, e ou-
tros exercicios d'agricultura, naluraes a velhos: e pois o tempo
nos vem â medida do desejo, vamo-nos lá; e se nuderdes fallar,
fazei de vós mil manjares, porque lhe façais crer que sois mais
esperdiçado d'amor que hum Braz Quadrado.
DURIANO
Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil
maravilhas, com que vosso feito venha â luz.
m
SGENA m
(DiÒNTSÂ e Solina.)
DIONYSA
Solina, mana.
SOLINA
Senhora.
DIONYSA
Trazei-me cá a almofada;
Que a casa está despejada, ,
E esta varanda cá fora
Está melhor assombrada.
Trazei a vossa também
Para estarmos cá lavrando;
Em quanto meu pae não vem,
. Estaremos praticando.
Sem nos estorvar ninguém.
SOLINA
Este he o mesmo logar "
Onde estava o bem logrado,
352
Tal que de muito enlevada
Se esquecia do cantar
Por se enlevar no cuidado.
DIONTSA
Vós, mana, sois mui ruim! ""
Logo lhe fostes contar
Que me ergui polo escutar.
SOLINA
Eu o disse?
DIONTSA
Eu não o ouvi?
Como mo quereis negar? *
SOUNA
E pois isso que releva?
Que se perde nisso agora?
DIONTSA
Que se perde! Assi, Senhora,
Folgareis vós que se atreva
A contâ4o lá por fora?
Que se lhe meta em cabeça
Alguma parvoa tenção?
Que faça, se vem á mão,
Algua cousa que pareça?
SOUNA
Senhora, não tee razão.
DIONTSA
Eu sei mui bem attentar "
555
Do que se ha de ter receio,
E do que he para estimar.
SOLINA
Não he o demo tão feio
Como alguém o quer pintar;
E não se espera isso delle,
Que não he orá tão moço.
E Vossa Mercê asselle
Que qualquer segredo nelle
He como huma pedra em poço.
DIONTSA
E eu que s^edo quero
Co'hum criado de meu pae?
SOLINA
E VÓS, mana, fazeis fero?
Ao diante vos espero.
Se adiante o caso vae.
DIONTSA
O madraço t quem o vir
Fallar de siso co'ella. . .
Então vós, gentil donzella,
Folgais muito de o ouvir?
SOLINA
Si, porque me falia nella;
E eu como ouço fallar
Nella, como' quem não sente,
Folgo de o escutar.
Só para lhe vir contar
TOMO IT 23 W'
554
O que delia diz a gente;
Qu'eu não quero nada delle.
E mais, porque está fallando?
Não in'esteve ella rogando
Que fosse fallar com elle?
DiONYSA
Disse-vo-lo assi zombando.
Vós logo tomais em grosso
Tudo quanto me escutais.
Parvo 1 que vê-lo não posso.
•
SOUNÀ
Ella alli, e o cão co'o osso!
Inda isto ha de vir a mais.
Pois que tal ódio lhe tem,
Paliemos, Senhora, em-al;
Mas eu digo que ninguém
Merece por querer bem
Que a quem lho quer, queira mal.
DIONTSA
Deixae-o vós doudejar.
Se meu pae, ou meu irmão,
O vierem a aventar,
Não ha elle de folgar.
SOLINA
Deos meterá nisso a mão.
DIONYSÂ
Ora hi polas almofadas,
.Que quero hum põu.co lavrar.
>
555
Por ter em que me occupar;
Qa'em cousas tão mal olhadas
*
Não se ha o tempo de gastar.
SOLINA
Que cousa somos mulheres!
Como somos perigosas I
E ipais estas tão viçosas
Qu'estão á boca que queres?
E adoecem de mimosas!
Se eu não caminho agora
A seu desejo e vontade ;
Gomo faz esta Seqhora,
Fazem-se logo nessa hora
Na volta da honestidade.
Quem a vira o outro dia
Hum poucochinho agastada,
Dar no chão com á almofada,
E enlevar a phantasia,
Toda n'outra transformada!
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a molhos,
E com a imaginação
Gahir-lhe a agulha da mão,
E as hagrimas dos olhos.
Ouvir-lhe-heis á derradeira
A ventura maldizer,
Porque a foi fazer mulher.
Então diz que quer ser Freira;
E não se sabo^ entender.
Então gaba-o de discreto,
De musico e bem disposto.
De bom corpo e de bom rosto.
356
Quaillé então eu vos prometo.
Que não tee delle desgosto.
Despois, se vem â attentar,
Diz que he muito, mal feito
Amar homem deste geito;
E que não pôde alcançar
Pôr seu desejo em effeito.
Logo se faz tão Senhora,
Logo lhe ameaça a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fora,
E de dentro está sentida.
Bofe, segundo vou veúdo,
Se esta postema vier,
Como eu suspeito, a crescer,
Muito ha que delia entendo
O fim que pôde vir ter.
SCENAIV
(DUBUNO « FlLODBMO.)
duriàno
Ora deixae-a ir, que á vinda lhe f aliaremos; entretanto cui-
darei o como hei de fazer; que não hjt môr trabalho para huma
pessoa que fingir-se.
FILODEMO
Dar-lhe-heis esta carta; e fazei muito com ella que a dè a
Senhora Dionysa; que me vai nisso muito.
DURIANO
Por mulher de tão bom engenho ã tendes? .
FOODEMO
E porque me perguntais isso?
557
DURIANO
f Porque ainda hontem entrou pelo a, b, g, e ja quereis que
leia carta mandadeira: fa-la-heis cedo escrever matéria junja.
FILODEMO
Não lhe digais que vos disse nada, porque cuidará que por
isso lhe fallais; mas fingi que de puro amor a andais buscando
a tempos que íação á vossa tenção.
DURIANO
Deixae-me vós a mi com o caso, que eu sei melhor as pan-
cadas a estes vintes, que vós;'e eu vo-la farei hoje vir a nós sem
gafas; e vós entretanto acolhei-vos a sagrado, porque ei-la lá
vem.
FlLODEMO
V
* Olhae lá: fazei que a não vedes, e fingi que fallais comvosco;
que faz a nosso caso.
DURIANO
Dizeis bem. (Yo sigo tristeza, remédio de tristes: la terrible-
pena mia no la espere remediar. Pois não -devia assi de ser, po-
ios santos Evangelhos! mas muitos dias ha que eu sei que o
amor, e os cangrejos, andão ás vessas. Ora, emfim, las tristezas
no me espanten, porque suelen aflojar cuando mas duelen.)
«
SCENA V
j(SOLINA t OURUNO.)
SOLINA, eom a almofada.
Aqui anda passeando ^
Duriano, e só comsigo
Páisamentos praticando: .
Daqui posso estar notando
Com quem sonha, se he comigo.
t
4
558
* — t ■ ^
m
DUBIANO ^
Ah quão longe estará agora
Minha Senhora Solina
De saber que estou bem fora
De ter* outra por senhora,
Segundo o amor determina!
Porém se determinasse
Minha bem-aventurança
Que de meu mal lhe pezasse,
Até que nella tomasse
Do que lhe quero vingança!. . .
SOLINA
(Comigo sonha por certo.
Ora quero-me mostrar,
Assim como por acerto:
Chegar-me-hei mais ao perto,
Por ver se me quer fallar.)
Sempre esta casa ha d'estar
Acompanhada de gente,
Que não possa homem passar I
DURIANO
Á traição vindes tomar.
Quem ja feridas não sente?
SOLINA
Logo me a mi parecia
Que era ePe o que passeava.
DURIANO
E eu mal adivinhava
. Que me viesse este dia,
559
Que ha tantos que desejava.
Se huns olhos por vos servir,
Com o amor que vos conquista,
Se atreverão a subir
Os muros da vossa vista.
Que culpa têe quem vos vir? .
E se esta minha affeição.
Que vos serve de giolhos,
Não fez erro na tenção,
Tomae vingança nos olhos,
E deixae o coração.
SOLINA
Ora agora me vem riso.
Assi que vós sois. Senhor,
De siso meu servidor?
DURIANO
De siso não, porque o^siso
Me tee tirado o amor.
Porque, o amor, se attentais,
N'hum tão verdadeiro amante
Não deixa siso bastante;
Senão se siso chamais
A doudice tão galante.
SOUNA
Como Deos está nos Ceos,
Que se he verdade o que telno,
Que fez isto Filodemo.
DURIANO
Mas fè-lo o demo; que Deos
Não faz mal tanto em extremo.
560
80UNA
Bem. Vós, Senhor DuriáDO,
Porque zombareis de mim?
DURIANO
Eu zombo?
SOUNÀ
Eu não me engano.
DURIANO
S'eu zombo, inda em meu ^ano
Vejais vós mui cedo a fim. '
Mas vós, Senhora Solina,
Porque me querereis mal?
SOLINA
Sou mofina.
DURIANO
. Oh! real.
Assi que minha mofina ,
He minha imiga mortal.
Dias ha qu'eu imagino
Qu'em vos amar e servir
Não ha amador mais fino;
Mas sinto que de mofino
Me fino sem o sentir.
SOLINA
Bem derivais: quanté assi
A popa o dito vos veio.
• »
DURIANO
Vir-me-ha de vós, porque creio
Que vós fallais dentro em mi,
56<
Gomo espríto em corpo alheio.
E assi que em estas pios
A cahir, Senhora, vim;
Bem parecerá eotre nós,
Pois vós andais dentro em mim, *
Que ande eu também dentro em vós.
SOLINA
He bem: que f aliar he esse?
9
DURIANO
Dentro na vossa alma, ^go,
Lá andasse,, e lá morresse!
E se isto mal vos parece,
Dae-me a morte por castigo.
SOLINA
Âh máo! Gomo sois malvado!
DURIANO
Mas vós como sois malvada.
Que de hum pouco mais de nada
Fazeis hum homem armado.
Gomo quem 'stá sempre armada!
Dizei-me, Solina, mana.
SOLINA
Qu'he isso? Tirae lá a mão:
Oh i vós sois máo cortezão.
«
DURIANO
O que vos quero m'engana,
Mas o que desejo não. '
562
Não ha aqui senão paredes,
I
Âs quaes não fâllão, aem vem.
SOLINA
Está isso muito bem.
Bem: e vós, Senhor, não vedes
Que poderá vir alguém?
DURIANO '
Que vos custão dous abraços?
SOLINA
Não quero tantos despejos.
DURIANO
Pois que farão meus desejos,
Que querem ter-vos nos braços,
E dar-vos trezentos beijos?
SOUNA ^
Olhae que pouca vergonha!
Hi-vos d'hi, boca de praga.
DURIANO
Eu não sei certo a que ponha
Mostrardes-me a triaga,
E virdes-me a dar peçonha.
sorjNA
Ora ide rir á feira,
E não sejais dessa laia.
DURIANO
Se vedes minha canseira,
Porque lhe não dais maneira?
565
... ■ .
^ SOLINA
Que maneira?
• DURIANO '
A da saia.
SO^NA
Por minha alma, hei de vos dar
Meia dúzia de porradas.
DURIANO
Oh que gostosas pancadas!
Mui bem vos podeis vingar,
Qu'em miiA são bem empregadas.
SOUNA
Ao diabo, que o eu dou.
Gomo me doeo a mão!
DURIANO
Mostrae cá, minha affeição.
Que «ssâ dor me magoou
Dentro no meii coração.
SOLINA
Ora hi-vos embora asinha.
DURIANO
Por amor de mi. Senhora,
Não fareis huma cousinha?
SOLINA
Digo que vades epibora.
Que cousa?
564
DURIANO
Esta cartinha.
SOLINA
Que carta?
DURIANO
Dfc Filodemo
A Dionysa vossa ama.
SOUNA
Dizei, que tome outra dama,
E dè os amores ao demo.
«
DURIANO
Não andemos pola rama.
Senhora (aqui para nós),
Que sentis delia com elle?
SOUNA '
Grandes alforges sois vós!
Pois hi-lhe dizer que appelle.
DURIANO
Pallae, que aqui 'stamos sós.
SOUNA
Qualquer honesta se abala,
Como sabe que he querida.
EQa he por elle perdida:
Nunca n'outra cousa falia.
DURIANO
Ora vou-lhe dar a vida.
565
SOUNÀ
E eu não ]be disse ja
Qttaatâ affeição lh'ella tem?
■
DURIANO
Não se fia de ninguém,
Nem crè que para elle ba
No mundo tamanho bem.
•
SOLINA
Dir-vos-bia de mim lâ
O que lh'eu disse zombando?
DURIANO
Não disse, por S. Fernando!
SOLINA
Ora ide-vos.
DURIANO
Que me vá!
E mandais^que torne? Quando?
SOLINA
Quando eu cá vir lugar,
Vo-lo mandarei dizer,
DURIANO
Se o quizerdes buscar,
Não vos deve de faltar.
Se não faltar o querer.
SOUNA
Não falta.
366
DURIANO
Dae-me hum abraço
Em sinal do qiie quereis.
SOLINA
Tá, que o não levareis.
DURIANO
De quantos serviços faço
Nenhum pagar me quereis?
SOUNA
_ •%
Pagar-vos-hão algum'hora,
Que isso a mi também me toca;
Mas agora hi-vos embora.
DURIANO
Essas mãos beijo, Senhora,
Em quanto não posso a boca.
SCENA VI
(SoLUVA qtu traz a almofada, «DiONTSjr.)
SOLINA
Ja Vossa Mercê dirá
Qu'estive muito tardando.
DIONYSA
Bem vos detivestes lá.
Bofe que estava cuidando
Em não sei que.
SOLINA
Que será?
567
Â^ui somos. (Quanté s^ora
Está 6Íia transportada.)
DIONYSA
Que rosnais vós lá, Senhora?
SOLINA
Digo que tardei lá fora
En^ buscar esta almofada.
Que estava ella agora só
Gomsigo phantasiando?
DIONTSA
Bofe que estava cuidando
Qu'he muito para haver dó
Da mulher que vive amando.
Que hum homem pôde passar
A vida mais occupado:
Coni passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar,
Forra parte do cuidado.
Mas a coitada
. Da mulher sempre encerrada,
Que não tee contentamento.
Não tee desenfadamento.
Mais que agulha e almofada?
Então isto vem parir
Os grandes erros da gente:
Porão mil vezes cahir
Princezas d'alta semente.
Lembra-me que ouvi contar
De tantas aíTeiçoadas
Em baixo e pobre lugar,
^
\
368
Que as que agora vão errar
Podem ficar desculpadas.
SOLINA
Senhora, a muita aflfeiçaq
Nas Princezas d'alto estado
Não he muita admiração;
Que no "sangue delicado
Faz amor mais impressão.
Mas deixando isto â parte,
Se m'ella quizer peitar,
Prometto de lhe mostrar
Huma cousa muito d'arte,
Que lá dentro fui achar.
DIONTSA
Que cousa?
SOLINA
Cousa d'esprito.
DIONTSA
I
Algum panno de lavores?
SOUNA
Inda ella não deo no fito?
Cartinha, sem sobre-escripto,
Que parece ser de amores.
DIONYSA
Essa he a boa ventura?
SOUNA
Bofe que mo pareceo.
•
ê
369
DIONYSA
E essa donde nasceo?
SOLINA
No meu cesto da costura:
Não sei quem m'alli meteo.
DIONYSA
Mostrae-ma; não hajais medo,
Mana. Eu que vos descobri ...
SOLINA
E Se ella vem para mi,
Logo quer ver meu s^edo?
Não a veja: vâ-se d'hi.
Ei-la-alíi.
DIONTSA
Guja será?
SOUNA
Não sei certo cuja he.
DIONYSA
Si; sabeis.
SOUNA
Não sei, bofe.
DIONYSA
Ora a carta mo dirá.
SOLINA
Pois leia Vossa Mercê.
(ÂSbn DiONYSA a caria, e lé^
Se para merecer minha pena me não falta mais que viver
TOMO IV . il
V
570
contente delia, ja logo ma podeis consentir; pois que de nenhuma
outra cousa vivo triste, senão por não ser para tão doce tristeza.
Se tendes por offensa commetter tamanha ousadia; por maior a
devieis ter, se ia não commettesse; que amor acostumado he fa-
zer os extremos á medida das affeições, e as affeições á medida
da causa delias. Pois logo, nem o meu amor pôde ser pouco, oem
fazer menos: se este não bastar para consentirdes em meu pen-
samento, baste para me dardes o que pelo ter mereço; e senão
muitas graças ao Amor, que me soube dar hum ouidado, que
com tè-lo se paga o ti^abalho de soffre-lo. >
SOLINA
Quanta parvoice diz !
DIONYSÀ
Ora muito boa está !
Como vós, mana, sois mál ' «
Não sejais vós tão biliz;
Que bem vos entendo ja.
Cuja he?
SOLINA
E eu que sei ?
DiONYSA
Pois quem o sabe?
SOLINA
o demo.
DIONYSA
Certo que he de quem temo;
Que os ditos que nella achei
São todos de Filodemo.
Este homem, que atrevimento
374
He este que foi tomar?
Qual será seu fundamento?
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento.
Não entendo delle nada.
Mas inda qu'isto he assi,
Disso que delle entendi,
Me sinto tão alterada,
Que me arreceio de mi.
Eu inda agora não creio .
Que he verdade este amor;
Mas praza a Deos, se assi for,
Que inda este meu arreceio
Se não converta em temor.
SOLINA
Jâ VÓS, ja sedes,
Peixes, nas redes.-
Senhora, quem mais confia, ,
Mais asinha a cahir vem:
Natural he o querer bem ;
Que o amor n'alma se cria,
Sem 'O sentir quem o tem.
Filodemo, no que ouvi,
Tee-lhe sobeja affeição;
E postoque o creia assi,
Ou eu sonhei, ou ouvi,
Que era d alta geração.
Logo na physlonomia.
Nas manhas, artes e geito,
Mostra mui grande respeito:
Nem tão alta phantasia
Não se pOe em baixo peito.
* -
^ 572
DIONTSA
Tudo isso cuido, e vi
Mil vezes miudamente ;
Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.
SOUNA
O seu moço vejo vir
A nós, seu passo contado :
Este he muito para ouvir.
Que diz que me quer servir
D'amores esperdiçado.
SCENAVU
(ViLABDO, Solina e Diony8a.)
VILARDO
Senhora, o Senhor seu pae,
Mesmo de Vossa Mercê,
Ja lá para casa vae:
Por isso, Senhora, andae,
Que elle me mandou n'hum pé ;
E diz que fosse jáhtar
Vossa Mercê mesmamente. .
SOLINA
E ja veio do pomar?
DIONYSA '
Oh quem pudera escusar
De comer, nem de ver gente!
(Nenhuma cór de verdade
Tenho do que m'elle manda.)
\
- 575
^ VILARDO
S'ella sem vontade anda,
Eu lh'eroprestarei vontade,
Einpreste-m'ella a vianda.
SOLINA
Vá, Senhora, por não dar
Mais em que cuidar á gente.'
*
DIONTSA
Irei, mas não por jantar;
,Que quem vive descontente
Mantem-se de imaginar.
VILARDO
Pois taníbem cá minhas dores
Me não deixão comer pão;
Nem come minha affeição
Senão' sopadas d'amores^
E mil postas de paixão.
Das lagrimas caldo faço,
Do coração escudella;
Esses olhos são panella
Que coze bofes e baço,
Com toda a mais cabedella.
scENA vm
(O MoRTBiRO, \wm Pastor t \iMim Bobo.)
MONTEIRO
Perdeo-se por esta brenha
Venadoro, meu Senhor,
Sem que novas delle tenha:
574
Queira Deos qae inda não venha
Desta perda outra maior.
Contra esta parte daqui
Des pós hum cervo correo,
Logo desappareceo;
Como da vista o perdi,
O gosto se me perdeo.
Eu, e os mais caçadores,
Corremos montes e covas;
Falíamos com lavradores
Deste valle, e com pastores,
Sem acharmos delle novas.
Quero ver nestes casai?
Que ' cobre aqueUe arvoredo,
Se acharei pastores mais, *
Que me dem alguns sinais
Que me possão tornar ledo.
fChamaJ
O dos casaes, õ de lá :
Âh pastores, não f aliais?
PASTOR
Quien sois, ó lo que buscais?
MONTEIRO '
Ouvis? Chegae para cá.
PASTOR
Dicid vos lo que mandais.
BOBO
No vayais adó os llamó.
Padre, sin saber quien es.
575
PASTOR
Porque?
BOBO
Porque este es
Aquel ladroo que hurtó
El asno dei Português.
Y se vais adó estan,
Os juro ai cuerpo sagrado
De San Pisco, y San Juan,
Que tambien os hurtarán,
Que sois asno mas honrado.
PASTOR
Déjame âr, que pie llamó.
BOBO
No, por vida de mi madre;
Que si allá vais, muerto so',
Y desta vez quedo yo,
Sin asno, triste! y sin padre.
MdNTEIRO
Vinde, que vo-lo encommendo,
E em vossas mãos me ponho.
* BOBO
No vais, que dijo en comiendo,
Encomiendoos ai demónio!
* (Ao MonUiro.)
Y esso es Io que andais hadendo?
PASTOR .
Déjame ir adó está,
Que no es cosa que me espante.
0
I
576
BOBO
No quereis sino ir allá?
Paes echadle pan delante,
Puede ser amansará.
PASTOR
Dios OS guarde! Qué cosa es
Esa porque voceais? ,
»
MONTEIRO
Dar-m'heis novas, ou sinais
D'hum Fidalgo Português,
Se passou por onde andais?
Yd so' Hidalgo Português :
Que manda su Senoria?
PASTOR
Câllate: oh que néscio es!
BOBO
Padre, no me dejarés
Ser lo que quisiere un dia?
Ah Santo Dios verdadero!
No seré lo que otros s(yi?
Digo ahora que no quiero
Ser Alonsico, el vaquero.,
PASTOR
Cállate ya, bobarron.
BOBO
Ya me callo : ahora un poco
He de ser Io que yo quisiere.
577
PASTOR
Senor, diga lo que quiere,
Porque este mochacho es loco,
Y muero pwque no muere.
MONTEIRO
Digo, que se por ventura
Sabeis o que ando buscando:
Hum Fidalgo, que caçando
Se perdeu nesta espessura
Após hum cervo andando.
Tenho esta parte corrida,
Sem delle poder saber:
Trago a alegria perdida;
E se de todo a perder,
Perca-se também a vida.
Porquê só polo buscar
Tenho trabalhos assas.
BOBO
(Yo no puedo callar mas.)
PASTOR
(Como no puedes callar?
Quítate aUá para trás.)
Cuanto por aquesta tiérra.
No siento nueva ninguna.
MONTEIRO
Oh trabalhosa fortuna I
PASTOR
Mas detrás daquesta sierra
HaUareis, por dicha, alguna;
\ •
578
Que unas choças de vaqueros
Portugueses allí estan;
Y ahí muchas veces van
Cazadores Cavalleros:
Puede ser que lo sabran.
MONTEIRO
Quero-me ir lá saber.
Ficae-vos a Deôs, pastor.
' PASTOR
Dios os livre de dolor.
BOBO
Y á nos dé siempre comer
Pan y sopas» qu'es mejor.
. Mirad lo que os notifico :
En aquel valle, acullá,
Anda paciendo un burrico,
Hidalgo, manso, y bonico ;
Puede ser que ese será.
PASTOR
Galla, y acaba de andar.
BOBO
Ya ando.
PASTOR
Quieres callar?
Bobo que tan poço sabe!
BOBO
No diceis que ande y acabe?
Ando, y no quiero acabar.
379
ACTO TERCEIRO
SCENAI
(Florimena, pattoray com hum pote, que vdi á fonte.) ^
FLORIMENA
Por este formoso prado
Tudo quanto a vista alcança
Tão alegre está tornado,
Que a qualquer desesperado
Pôde dar certa esperança.
O monte, e sua aspereza,
De flores se veste ledo;
Reverdece o arvoredo,
Somente em minha tristeza ^
Está sempre o tempo quedo.
Junto desta fonte pura,
Segundo a muitos ouvi,
D'altos parentes nasci :
Foi como quiz a Ventura,
Mas não como eu mereci.
O dia que fui nascida,
Minha mãe do parlo forte
Foi sem cura fallecida;
E o dia que me deo vida
Lhe dei eu a ella a morte.
Do mesmo parto nasceo
Meu irmão, que entre os cabritos
Comigo também viveo;
Mas, assi como cresceo,
Crescerão nelle os espritos.
380
. Foi-se buscar a cidade;
Teye juizo é saber;
Eu fiquei, como mulher,
E-não tive faculdade
Para poder mais valer.
A hum pastor obedeço
Por pae, que d'outro nâo sei;
E pola mãe que matei, .
A huma cabra conheço,
De cujo leite mamei.
* Mas porém, ja qu'este monte
Me obriga e meu nascimento,
Quero, pois quer meu tormento,
Encher a talha na fonte
Que co'os' olhos accrescento.
fnnge que enchi a iaiha.J
SCENAU
(Venadoro e Flordibka.)
. V£NAD0R0
Pois que me vim alongar
Dos caminhos e da gente,
Fortuna, que o consente.
Se devia contentar
De me ter tão descontente.
Porém, segundo adivinho.
Por tão espesso an^oredo,
Por tão áspero rochedo, ,
Quanto mais busco o qaminho.
Tanto mais delle me arredo.
O cavallo, como amigo,
Ja cansado me trazia:
584
Mais deixou-me todavia;
Que mal pudera comigo
Quem comsigo não podia.
_ ♦
Quero-me aqui assentar
Á sombra, nesta hervinha,
Porque canso ja de andar;
Mas inda a fortuna minha
Não cansa de me cansar.
Junto desta fonte pura
Não sei quem cuido qu'está;
Mas no coração me dá
Que aqui me guarda a Ventura
Alguma ventura má.
Ou ganhado, ou b^ perdido,
Faça, emfim, o que quizer,
Qu'eu o fim disto hei de ver;
Que ja venho apercebido
A tudo quanto vier.
Oh que formosa serrana
Á vista se me ofiFerece!
Deosa dos montes parece;
E se he certo que he humana,
O monte não a merece. ~
Pastora tâo delicada.
De gesto tão singular,
Parece-me qu'em lugar
De perguntar pola estrada.
Por mim lhe hei de perguntar.
Atéqui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que aíFeiçoada topei;
Mas agora zombarei
De quem se não affeiçoa.
582
Serrana, cuja pintura
Tanto a alma me moveo,
Dizei-me : Por qual ventura
Andareis nesta espes&ura,
Merecendo estar no Ceo?
%
FLORIMENA
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre he mui difierente
Do que, ao parecer, merece*
VBNADORO
Tal resp(ísta he manifesto
Não se parecer co'as cabras.
Pois não VOS parece honesto
Saberdes matar co'o gesto,
Senão inda com palabras? *
No mato tudo he rudeza. "
Ha tal gesto e discrição?
Não o creio.
FLORIMENA
Porque não?
Não supprirá natureza
Onde falta criação?
VENADOBO
Ja logo nisso, Senhora,
Dizeis, se não sinto mal.
Que do- vosso natural
Não era serdes pastora.
I
385
FLOBIMENA
Digo, mâs i)ouco me vai.
VENADORO
Pois quem vos pôde trazer
Á conversação do monte?
FLORIMENA
Perguntae-0 a essa fonte;
Que as cousas duras de crer,
Hum as faça, outro as conte.
»
VENADORO
Esta fonte, que está aqui.
Que sabe do que dizeis?
FLORIMENA
Senhor, mais não pergunteis, .
Porque outra cousa de mi
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei,-
O que não tendes sabido :
Se quereis água, bebei;
Se andais por dita perdido.
Eu vos encaminharei.
VENADORO
Senhora, eu não vos pe^ia
Que ninguém m'encaminhasse;
Que o caminho gu'eu queria,
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero cassar daqui ;
%
384
E não vos pareça espanto .
Qu'en) vos vendo me rendi ;
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.
FLORIMENA
Senhor, quem na serra mora
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade:
Yá-se embortt, ou fique embora,
Qual for maiR sua vontade.
VENADORO
Oh lindissima donzella,
A quem a ventura ordena
Que me guie como estrelia!
Quereis4ne deixar a pena,
E levar-me a causa delia?
E ja que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-mé.
Oh não deixas d*escutar-me!
Pois a vida me tirastes,
Não me tireis o queixar-me!
Qtí'eu, em sangue e em nobreza
O claro Ceo me extremou;
E a Fortuna me dotou
De grandes bens e riqueza,
Que sempre a muitos negou.
Andando caçando aqui.
Após hum cervo ferido,
Permittio meu fado assi.
Que andando dos meus perdido,
Me venha perder a mi.
385
E purqu'inda mais passasse
Do que tinha por passar,
Buscando quem m'ensinasse,
Por que via me tornasse.
Acho quem me faz ficar.
Que vingança permittio
A fortuna n'hum perdido!
Oh que tyranno partido,
Que quem o cervo ferio,
Vá como cervo ferido!
Ambos feridos n'hum monte.
Eu a elle, outrem a mi :
Huma differença ha aqui,
Qu'elle vai sarar á fonte,
E eu nella me feri.
V E pois que tão transformado
Me têe vossa formosura, t
Hum de nós troque o estado.
Ou vós para o povoado,
Ou eu para a espessura.
FLORIMENA
Dos arminhos he certeza.
Se lhe a cova alguém çujar.
Morar fora, antes d'entrar:
D'estimar muito a limpeza
Pola vida a vai trocar:
Também quem na serra mora
Tanto estima a honestidade,
Que antes toma ser pastora,
Que perder a honestidade
A troco de ser Senhora.
Se mais quereis, esta fonie
TOMO IV 25
386
Vos descubra o mais de mim :
O que ella vio, ella o conte;
Porque eu vou-me para o monte,
Porque ha ja muito que vim.
SGENÂ III
VENADORO
Ó linda minha inimiga,
Gentil pastora, esperael
Pois que tanto amor me obrigar
Consenti-me que vos siga;
Vá o corpo onde alma vae.
E pois por vós me perdi,
E neste estado Amor pôs
Os olhos com que vos vi,
Pois os deixaste sem mi,
Oh não os deixeis sem vós! *
Porque a Fortuna me disse
Que nas serras, onde andais,
• Em estes extremos tais,
Não. era bem que vos visse
Para não ver de vós mais. .
E pois Amor se quiz ver
Da livre vida vingado,
Em que eu sohia viver;
Faça em mi o que quizer,
Que aqui vou ao jugo alado.
SCENA IV
(Dom Losidabdo, o Monteiro 0 Filodemo.)
^ LUSIDARDO
Oh Santo Deos verdadeiro.
587
 quem o muDdo obedecei
Meu filho não apparece.
E que me dizeis, Monteiro?
MONTEIRO
Digo-lhe que m'entrislece.
Qu'eu corri por esses montes,
Bem quinze léguas, ou mais,
E busquei poios* casais.
Por serras, montes e fontes,
Sem ver novas, nem sinais.
Toda a gente que. levou,
Buscando-o, muito cansada
Pelo mato anda espalhada;
Mas ainda ninguém tornou.
Que soubesse delle nada.
LUSIDÀRDO
Oh fortuna nunca igual !
Quem me fará sabedor
De meu filho e meu amor?
Que se he muito grande o mal.
Muito mór he o temor.
Quem tolhe que não achasse
Algum leão temeroso
N'algum monte cavernoso,
Que sua fome fartasse
Em seu corpo tão formoso?
Quem ha que saiba, ou que visse.
Que das montanhas erguidas
Algum monstro não sahisse,
E com seu sangue tingisse
As hervas nellas nascidas?
588
Oh filho! vai-me a lembrar
Quantas vezes os mandava
Que deixásseis o caçar !
Não cuidei de adivinhar
O que Fortuna ordenava.
Eu irei, filho, buscar-vos
Por esses montes, por hi,
Ou a perdèr-me, ou cobrar-vos ;
Que morte que quiz matar-vos,
Quero que me mate a mi.
Onde fostes fenecido,
Seja também vosso pae;
Ser-me-ha acontecido.
Como a virote que vae
Buscar outro que he perdido.
Vós só haveis de ficar,
Filodemo, encarregado
Para esta casa guardar ;
Que de vosso bom cuidado
Tudo se pôde fiar.
Ide-vos a fazer prestes,
Mandae cavallos sellar;
Pois achá-lo não pudestes,
Ir-m'heis buscar o lugar
Onde da vista o perdestes.
SCENAV
O Bobo com o vestuh de Venadoro, a quem dera o seu.
(Canta.)
Los mochachos dei Obispo
No comen cosa mimosa,
Ni zanca d'arana. ni cosa mimosa.
589
(FaUa,)
De su sayo colorado
Tan lozano me vestió,
Que yo ya no .soy yo,
Ya por oiro estoy trocado;
Que este sayo me troco.
Oh qué asno Português,
Que loco por Florimena,
Deseó^amarra agena,
Y dame por enterés
Una zamarra tan buena!
Como yo vi la bobilla
Andar con él en questiones^
Y parársele amarilla,
Díjele: Florimenilla,
Andais en dongolondrones?
El me dijo : Matalote,
No tengais dello desmayo.
Y en esto, como un rayo,
Tomóme mi capirote,
Y dióme su capisayo.
Capirote, en buena fé,
Si vos, cuando en mi entrastes,
Capisayo vos tornastes,
Que yo por eso cantaré, ,
Pues ansí me mejorastes.
(Canta.)
Lyrio, lyrio, lyrio loco,
.Con qué? Con capirotada.
Por hablar con la golosa
De amores, mirad la cosa!
Zamarilla tan hermosá.
590^
Que me ha dado tan honrada,
Gon qué? Con capirotada.
(FaUa.)
Yo enlonces respondi:
Seijor, dame pan y queso^
Mas despues que lo entenà\
Dije a ella: Dale un beso,
Que él me dió zamarra á mi.
Ahora me mirarán ^
Guantos á la eglesia fueren ;
Y aquellos que no me quieren,
Ahora me rogarán.
Sabeis porque no querré?
Porque esfoy ahidalgado;
Y cuando fuere rogado,
Gantando responderá,
Que ya estoy otro tomado.
(Canta e baãa.J
Soropicote, picote, mozas,
Ahora quiero amores con vosotras.
. è
SCENA VI
fO Pastob e o Bobo.)
PASTOR
Hijo Alonsillo.
BOBO
Hijo Alonsillo.
PASTOR
No me quieres escuchar?
BOBO
Pues déjame suspirar..
59 \
PASTOR
Escúchame ahora, asnillo.
Lo que te quiero mandar.
Vete ai valle de las rosas,
Y di á Anton dei Lugar
Que si puede acá llegar,
Porque tengo muchas cosas
Que importan para le hablar.
Porque es aqui llegado
Á este valle un hombre honrado,
Mancebo de casta buena,
Que amores de Florimena
Le Iraen loco y penado.
Dice que quiere casar
Con ella, que su tonnento
No le deja reposar;
Y que venga festejar
Tan dichoso casamiento.
BOBO
Dicid, padre, tambien vos,
No quereis casar comigo?
Casemos ambos adós.
PASTOR
Vé, y haz lo que te digo.
BOBO
Responde, padre, por Dios.
PASTOR
Vé luegó, y vuelve apresado.
Anda. No quieres andar?
392
BOBO
Pues que me babeis empujado,
Juro á mi de desandar
Todo cuanto tengo andado.
PASTOR
Trabajoso es este insano!
Nunca bace lo que quereis.
BOBO
Ora no os apasioneis,
Mi padrecico lozano:
Que burlaba, no lo veis?
PASTOR
Vete dabi.
BOBO
Héme aqui.
PASTOR
Vé donde te dije.
BOBO
Ya vengo.
Ob que padrasto que tengo,
Que asi me manda por abi,
Siendo camino tan luengo!
ACTO QDARTO
SCENA I
(DioNYSA % Solina.)
DIONYSA
Ob Solina, minba amiga,
Que todo este coração
395
Tenho posto em vossa mão ;
Amor me manda que diga,
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei ?
^Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao soffrimento.
Meu pae muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Ja da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido.
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar,
Foi a casa encommendar
A quem destruir lha quer:
Olhae que gentil saber,
Que vai comigo deixar
Quem me não deixa viver.
SOLINA
Senhora, em tanto desgosto
Não posso meter a mão;
Mas como diz o rifão,
Mais vai vergonha no rosto,
Que mágoa no coração.
E bofe, se eu tanto amasse,
E visse tempo e sazão.
Sem seu pae, sem seu irmão,
Que a nuvem triste tirasse
De cima do coração.
DiONTSA
Ah mana! que tenho medo,
394
Que s'eu em tal consentisse
Que logo o mundo o sentisse.
Porque nunca houve segredo,
Que, emfím, se não descobrisse.
•
SOUNA
Se eu tantas dobras tivesse
Como quantas houve erradas,
Sem que o mundo o soubesse,
Á fé qu'eu enriquecesse,
E fosse das mais honradas.
DIONTSA
Sabeis que tenho em vontade?
SOLINA
Que podeis. Senhora, ter?
DIONTSA
Fallar-lhe, só para ver
Se he por ventura verdade
,0 que dizeis que me quer.
SOLINA
Bofe, mana, dizeis bem,
E eu o mandarei chamar,
Como para lhe rogar
Que hum annel, que lá me tem.
Que mo mande concertar.
DIONTSA
Dizeis mui bem.
SOUNA
Vou-me lá
395
Chamar o seu moço á sala;
E s'este parvo vem cá,
Com elle hum pouco rirá,
Que sempre amores me fala.
Vilardo, moço?
SCENA II
(ViLAfiBO e Solina.)
VILARDO
Quem chama?
SOLINA
Vem cá, moço; pu te chamo.
Qu'he de teu amo? .
VILARDO
Ah que dama!
Perguntais-me por meu amo,
E não por hum que vos ama?
SOLINA
E quem he esse amador,
Que quer ter comigo passo?
Será elle algum madrasso?
VILARDO
Eu sou o mesmo, que o amor
Me quebra pelo espinhasso.
E mais vós sabei de mi.
Se eu a dizê-lo me atrevo,
Que desque esses olhas vi.
Que yo ni como, ni bebo,
596
Ni hago vida sin ti.
E mais para namorado
Não sou ora tão madrasso.
SOLINA
Sois muito desmazelado.
VILARDO
Mas antes, de delicado
Caio pedaço a pedaço.
E mais eu soffrer não posso
Que me façais tanto fero,
Qu'estou ja posto no osso,.
Porque sou vosso e revosso.
Por vida de quanto quero.
SOLINA
Feros está cheia a rua.
Ora estou bem aviada!
VILARDO
Cupido, por vida tua,
Que a não faças tão crua,
Pois que. te não faço nada!
Amor, Amor, mas te pido,
Que quanda se for deitar,
Que le digas ai oido:
Devieis-vos de lembrar
Neste tempo de hum perdido.
SOUNA
E tu ja» fazes coprinhas?
Ainda tu trovarás?
• »
597
VILARDO
Quem eu? por estas barbinhas,
Que se vós virdes as minhas,
Que digais que não são más.
SOLINA
Ora, pois me quereis bem,
Dizei-me huma. ^
VlLARDO
Ei-Ia aqui ;
E vfíja o saibo que tem;
Porque esta trovinha assi.
Saiba qu'he trova do assem.
(Trota,)
Passarinhos, que voais
Nesta manhãa tão serena,
Sabei que só minha pena
Pôde encher mil cabeçais.
SOLINA
O rifão está salgado.
Essa pena te dou eu?
VILARDO
Vós e Amor, que de malvado,
Me tee melhor empennado,
Que nenhum virbte seu.
Pois se me ouvíreis cantar!
SOLINA
E tu és também cantor?
VILARDO
Canto melhor que hum açor.
598
Quereis que vos venha dar
Musiqoeta de primor,
E que vos mande tanger
Muito melhor que ninguém?
SOLINA
Ja isso quizera ver.
VIIARDO
Querer-me-heis, se o eu fizer,
Algum pedaço de bem?
SOLINA
Querer-t€-hei trinta pedaços.
VILARDO
E esse querer dará fruito,
Que jne tire destes laços?
SOLINA
E que fruito?
VlLARDO
Dous abraços;
9
SOLINA
Esse fruito custa muito.
VILARDO
Esse he o amor qu'em vós ha'
Pezar de minha mãe torta!
SOLINA
Ora hi, chamae logo lá
/-
599
Vosso amo que venha cá,
Porque he cousa que importa.
VILARDO
Logo?
SOUNA
Logo nessas horas.
VILARDO
Não estarei aqui mais?
SOLINA
Não. Ainda ahi estais?
Vós haveis mister esporas.
VILARDO
Irei, porque me mandais.
SCENAin
(O Pastob, e Venadoro com eUe, feito Pastor J
PASTOR
Mas de un mez es ya pasado
Que en esta sierra andais;
Y es caso mal mirado
Que andeis guardatído ganado
Por una que tanto' amais.
Y si os determinais
En querer casar con ella,
Juro á mi que nada errais;
Y si eso es para habella,
En vano cabras guardais.
Ya me distes vuestra fé
J00_
(Sabendo estas lierras todas):
Yo con dia me engane,
Que luego mandar Uamé
Quien festejase las bodas.
Y agora dicis con pena,
Que es dura cosa casar:
Pues volveos nora buena.
Que no babeis de enganar
Con palabras Florímena.
YENADORO
Quem se ha de ter coração
Para tamanho temor?
Que em mim pegando estão.
De huma parte a razão,
E d'outra parte o Amor.
Também- vejo que perdella
Será minha perdição;
Que bem me diz a affeição,
Que pouco faço por ella,
Pois não desfaço em quem são.
PASTOR
Dígoos^ si por bajeza
Dicis que no os conviene, -
Daros hé una certeza,
Que en sangre y en nobleza,
Tanto como vos la tiene.
VENADORO
Pastor, digo que daqui
Farei tudo que quizerdes ;
E se mais quereis de mi,
Digo que vos dou o si
Para tudo o que quizerdes.
PASTOR
Dios os dé su bendicion;
Y pues que casais con ella,
Yo os afirmo en conclusion,
Que aun de vos y mas delia
Verná gran generacion.
Yo me voy por ella, hijo,
Tomadla así mal compuesta;
Verná quien haga la fiesta;
Que en placer y regocijo
Nos fesleje esta floresta.
•
SCENA IV
VENÂBORO ró
Ó ribeiras tão formosas,
Valles, campos pastoris,
Porque vos não revestis
De novas flores e rosas,
Se minha gloria sentis?
Porque não seccais, abrolhos?
E v^s, água, que regando,
Os olhos his alegrando,
Correi, que também meus olhos
D'alegres eslão manando.
Âh pastora, em quem espero
Poder viver descansado 1
Comtigo guardarei gado.
Que ja eu sem ti não quero
Nenhuma alteza (restado.
TOVO lY 26
402
Diga o que quizer a gente,
Tudo terei n'huma palha,
Porque está claro e evidente
Que não ha honra que valha
Contra a vida descontepte.
SCENAV
fTre$ Pastores bailando, e eankmdo de terreiro, diante do Pastor,
que traz Florimena.)
PASTOR
Pues el amor os obliga
Á que hagais tan buena liga,
Tomando a Dios por testigo.
Daqui os la entrego, amigo,
Por muger y por amiga.
VENADORO
Consentis nisto, Senhora?
FLORIMENA
Senhor, em tudo consento.
VENADORO
Oh grande contentamento I
FLORIMENA
Saiba que nunca tégora
Lhe houve inveja ao tormento.
PASTOR
Asi lo dices, bobilla?
Oh! mala dolor os duela!
Pêro no es maravilla
405
Quien consiente ansí la silla,
CoDsienta tambien Ia espuela.
SCENA VI
(Tornão a bailar e cantar, e acabado, entra D. Lusidardo, e o Monteiro,
que andão em busca de Yenadobo.)
LUSIDARDO
Tres dias ba ja que ando
Por esta larga espessura
A Venadoro buscando ;
E o que delle vou achando
He como quer a Ventura.
MONTEIRO
. Senhor, cuido que lá vejo
Huns lavradores caniar.
LUSroARDO
Hi diante perguntar.
MONTEIRO
Cumprido he seu desejo.
Se a vista não m'enganar. .
LUSIDARDO
Como assi?
MONTEIRO
Elle não vé
Aquelle pastor loução
Com huma moça pela mão?
Se Venadoro não be,
Nem eu o Monteiro são.
404
PASTOR
Quien veo allá asomar,
Que se viene á nuestras bodas?
BOBO
No los dejemos llegar,
Que nos veran á roubar,
Juro ã mi, las migas todas.
LUSIDABDO
OhVenadoro, meu filho!
És lu este?
VENADORO
Tal estou,
Que cuido que este não sou.
LUSIDARDO
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou.
Como estais assi mudado
No rosto e mais no vestido?
VENADORO
Ando ja n'outro trocado,
Tanto, que fiquei pasmado
De como fui conhecido.
E se Vossa Mercê vem
Para me levar daqui,
Mais ha de levar que a mi ;
E ha de ser quem me tem
Todo transformado. em si.
BOBO
Eso porque lo entendeis?
405
Por las migas por ventura?
Voto á tal no llevareis :
Por mas y por mas que andeis
No hareis tal travesura.
YCNADORO
Esta formosa donzella
Em mi teve tal poder,
Que folguei de me perder;
Pois, emfim, vim achar nella
O que não cuidei de ser.
Tanto em mi pôde esle amor, *
Que a tenho recebida;
B se o erro grave for.
Aqui quero ser pastor:
Deixe-me ter esta vida.
LUSIDARDO
He certo tal casamento?
VENADORO
Tenha-o por cousa segura.
LUSmARDO
Oh grande acontecimento I
Dest'arte sabe a ventura
Aguar hum contentamento!
PASTOR
Óigame, Senor, á mi,
Como hombre sábio, discreto,
Porque acaeció así,
Y lo que supo hasta aqui
_m_. .
Lo puede tener por cierto.
Mucbos anos son corridos
Que en esta faente abierta,
En. estos Talles floridos
Hallé dos ninos nascidos,
Y á su madre casi muerta.
Los ninos chicos críé,
(Y desto cierto me arreo) -
Y á la madre sepulte;
Y despues un gran deseo
De saber esto tome.
Como yo fuese ensenado
De cbico á la mágica arte
Por mi padre, que es finado;
Muy conoscido y noínbrado
Soy por lai en toda parte.
Yo con yervas de Ia âerra,
Ânimales y otras cosas
Haré, si el arte no se yerra,
Que desciendan á la tierra
Las estrellas luminosas. I
Soy, en fin, certificado
Que la madre de los dos
Fué Princeza de alto estado,
Y por un caso nombrado
La trajo á esta tierra Dios. |
El macho, como creció,
Deseoso de otro bien,
Á la Corte se partió :
La hembra es esta por quien
Vuestro hijo se perdió.
Y si mas quiere, Senor,
De mi arte, prestamente
407
Dello le haré sabedor;
Mas ha de ser de tenor
Que no lo sepa la gente.
LUSIDARDO
Mas vamos-nos, se quereis,
Que não soffro dilação,
A minha casa, e então
Lá disso me informareis.
Que caso he de admiração.
E vós, filho, não cuideis
Que a gloria de vos achar
Não he tanto d'estimar,
Qu'em qualquer 'stado que esleis.
Não folgue de vos levar.
ACTO QUINTO
SCENA I
(Solina, Diokysa e Filodrmo.)
SOLINA
Eis Filodemo lá vem :
Asinha acudio ao leme.
DIONYSA
Isso he de quem quer bem;
Mas não sei se o vio alguém,
Porque quem espera teme.
Agora me quizera eu
Daqui cem mil léguas ver.
FILODEMO
Folgara eu assi de ser,
408
Porqu'este cuidado meu
Fora mais de agradecer.
Que quando por accidente
A fortuna desastrada
Vos apartasse da gente
N'bum deserto, onde somente
Das feras fosseis guardada;
Lá por ferro, fc^o e ágoa
Buscar minha morte iria;
A voz ronca, a lingua fria,
Tamanho mal, tanta mágoa
Ás montanhas contaria.
Lá, mui contente e ufano
De mostrar amortao puro,
Poderia ser que o dano.
Que não move hum peito humano,
Que movesse hum monte duro.
DIONYSA
Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecieis degradado
Por justiça, com pregão
Que dissesse: Por ousado.
E eu tambein merecia
Metida a grave tormento.
Pois que, como não devia.
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.
FILODEMO
Senhora, se me atrevi,
Fiz tudo o que Amor ordena;
E se pouco mereci. ^
409
Tudo o que perco por mi,
Mereço por minha pena.
E se Amor pôde vencer,
Levando de mi a palma,
Eu não lho pude tolher;
Que os homens não tee poder
Sobre os affectos da alma.
E ainda que pudera
Resistir contra o mal meu,
Saiba que o não fizera;
Que pouco valera eu.
Se contra vós me valera.
Não deve logo ter culpa
Quem se venceo d'armas tais:
Assi que nisto, e no mais,
Tomo por minha desculpa
Vós mesma que me culpais.
E se este atrevimento
Com tudo for de culpar,
Acabae de me matar;
Que aqui tenho hum sofifrimento
Que tudo pôde passar.
E se esta penitencia.
Que faço em me perder,
Algum bem vos merecer,
Fique em vossa consciência
O que me podeis dever.
Que dizeis a isto, Senhora?
DIONTSA
l^u que vos posso dizer?
Ja não tenho em mi poder,
Segundo me sinto agora,
440
Para poder responder.
Respondei-lhe vós, Solina,
Pois que a vós me entreguei.
SOLINA
Bofe não responderei :
Veja ella o que determina.
DIONTSA
Não o vejo, nem o aei.
SOUNA
Pois eu também não sei nada.
DIONTSA
Porque?
SOUNA
Do que eu fizer,
Se despois se arr^ender,
Dirá qu'eu fui a culpada.
DIONTSA
Eu só quero a culpa ter.
SOLINA
Senhora, por não errar,
Não quero que fique em mim.
Esta noite no jardim "^
Ambos podem praticar
Gomo isto venha a bom. fim.
Lá poderão ajustar
Entr'ambos o parecer;
Qu'eu não m'hei nisso de achar,
4H
Que não quero temperar
O que outrem ba de comer.
DIONTSÂ
Vós vedes a torvação,
Que lá nessa casa vae?
SOLJNA
Dá-me cá no coração
Que he vindo o Senhor seu pae
Com o Senhor seu irmão.
DIONYSA
Filodemo, hi-vos embora,
Fallae depois com Solina.
SOUNA
Vamos-nos também, Senhora,
Receber seu pae lá fora;
Não venha sentir a -mina.
SCENA II
(ViLARDO e Doloroso, que vem dar hum descante a Souna com os Músicos,)
VILARDO
Assi que te contava, Doloroso, destas em que sempre andão
rugindo as sedas.
DOLOROSO
Avante, que bem sei que o não dizeis polas sedas de Veneza.
VILARDO
Ja sabeis que esta nossa Solina he tão Celestina, que não
ha quem a traga a nós.
1
112
DOLOROSO
Logo parece moça brigosa, que por dá cá aqaellas palhas,
dará e tomará quatro espaldeiradas; e ao outro dia quem ha de
cuidar que huma mulher de sua arte ha de querer bem a hum
parvo como a ti? porque estas taes são como homens sisudos;
se de noite se achão em algum arruido, onde possão fugir sem
serem conhecidos, facilmente o fazem; e ao outro dia quem ha
de cuidar que hum tão honrado havia de fugir? Outros dizem:
Bem pôde ser, porque noite escura he capa de judeos e de en-
vergonhados.
VII^RDO
Mui gentil comparação he esta. Mas assi que te dizia, o ou-
tro dia assi zombando lhe prometti de lhe dar huma musica, e
ja chamei outros dous meus amigos, que logo hão de vir aqui
ter comnosco.
DOLOROSO ^
Que tal he a musica que determinas de lhe dar? Não seja
de siso; porque será a maior parvoice do mundo, porque não
concerta com a parvoice que tu finges.
VILARDO
A musica não he senão das nossas; mas faço-te queixume,
que nem com hum cão de busca pude achar humas nesperas por
toda esta terra.
DOLOROSO
Nem as acharás senão alugadas; mas eu não sou de opi-
nião que teus amores te custem dinheiro. Ora ja lá apparecem
os outros companheiros, e eu também ajudarei de telhinha òu
de assovio; e vem-me isto á popa, porque daqui iremos á porta
da minha padeirinha, porque ando com ella n'hum certo reque*
rimento.
VILARDO
Vossas Mercês vem ao próprio; boa seja a vinda. As gui-
tarras vem temperadas?
4\õ
DOLOROSO '
Tudo vem como cumpre: mandae vigiar a Justiça entretanto.
t*
VILARDO
Ora sus: fazei como se temperásseis cabeça de pescada com
seu figado e bucho, e canada e meia, que nunca meu pae fez
tamanho gaslo na sua Missa nova^
(Netíe passo se dá a musica com todos quatro, hum tange guitarra, outro peniem,
outro teihinha, outro canta cantigas muito velhas, e rio melhor «íizYilardo:)
Estae assi quedos, que eu sinto quem quer que he.
DOLOROSO
Justiça, pelo corpo de tal ! Ora sus : aqui não ha outro va-
lhacouto que nos valha, que pôr os pés ao caminho, e mostrar-
Ihe as ferraduras.
SGENA m
O MONTEIRO, só
Gomo he gracioso este mundo, e como he galante! E quão
gracioso seria quem o pudesse ver de palanque com carta d'al- ^
forria ao pescoço, porque não podessem entender jielle Meiri-
nhos, Almotacés da limpeza, trabalhos, esperanças, temores, com
toda a outra cabedella de enfadamentos 1 Ora notae bem de quan-
tas cores teceo a Fortuna esta manta d' Alentejo : perdeo-se Ve-
nadoro na caça, eis a casa toda envolta como rio: o pae enfa-
dado, a irmã triste, a gente desgostosa; tudo, emfim, fora do
couce; e o galante aposentado nos matos com trajos mudados
como camaleão, decepado dos pés e das mãos, por huma serra-
nica d' Alentejo; e veio acaso a sahir de maneira fora da madre,
que a recebeo por mulher; e rapa óleo e chrisma de quem he,
e renega todas as lembranças de seu pae; pois tanto tomou ao
pé da letra o que Deus disse: Por esta deixarás teu pae e mãe.
E attentae isto por me fazer mercê : cuidareis que este caso era
414
■ •
solus p^egrimis: sabei que os não dá a fortuna senão aos pa-
res, como quedas. Dionysa mais mimosa e mais guardada de
seu pae que bicho de seda, moça sem fel como pombinha, que
nos annos não tinha feito inda o enequim ; mais formosa que
huma manhãa do S. João, mais mansa que o rio Tejo, mais branda
que hum soneto de Garcilasso, mais dehcada que hum pucari-
nho de Natal ; emfim, que por meia hora de sua conversação se
poderá soflfrer huma pipa com cobra e gallo e doninha, como a
parricida» com tanto que dissesse o pregão o porque; porque
vos não fieis em castanhas (não sei se diga, se o cale, que de
magoado me trava pola manga a falia da garganta; mas, .com
tudo, não ha quem se tenha) seu pae a achou esta'noite no jar-
dim com Filodemo, mais arrependida do tempo que perdera,
que do que alli perdia: eu, coitado de mi, que meta os dentes
nos cabeçaes se desejar ave de penna.
SCENA IV
(DuRiANO e o Monteiro.)
DURIANO, como cantando
Ti ri ri, ti ri rão.
MONTEIRO
Que he isso. Senhor Duriano? Que descuidos são esses?
Onde he cá a ida agora?
DURIANO
Vou assi como parvo, porque o melhor he não saber ho-
mem nada de si.
MONTEIRO
Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube apro-
veitar do tempo que ficou só em casa?
DURIANO
Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa,
se não he isso caso para sahir com elle a desafio.
4\h
MONTEIRO
Porque?
DURIÂNO
Porque não b^sta que lhe dê a Fortuna gostos tão medidos
sobre o funil, que lhe pôe nos braços Dionysa, a mais formosa
dama que nunca espalhou cabellos ao vento, senão ainda para
o assegurar em sua boa ventura, lhe vem a descobrir, que he
filho de não sei quem, nem quem não.
MONTEIRO
Esses são outros quinhentos. Cujo filho dizem que he? que
eu ouvi ja sobre isso não sei que fabulas.
DURIANO
Dir-vo-lo-hei ; pasmareis, que não he menos que Príncipe,
e peor ainda. Nunca ouvisles dizer de hum irmão do Çenhor
Dom Lusidardo que aggravado dei Bei, se foi para os Reinos
de Dinamarca?
MONTEIRO
Tudo isso ouvi ja.
DURIANO
Pois esse «galante, em satisfação de muitas mercês que El-
Rei de Dinamarca lhe fizera, meteo-se d'amores com huma sua
filha, a mais moça; e como era bom justador, manso, discreto,
galante, partes que a qualquer mulher abalão, desejou ella de
ver geração delle; senão quando, livre^nos DeosI se lhe começou
d'encurtar o vestido; e porque estes sirgos não se desistem em
nove dias, senão em nove mezes, foi-lhe a elle então necessário
acolher-se com ella, porque não colhessem a ella com elle: aco-
Iheo-se em huma galé: e vede laPrinceza em huma galera nueva,
con el marinero á ser marinera. Finalmente, vindo navegando
todo esse Oceano Germânico, bancos de Fraudes, mar d'Ingla-
terra, e trazidos á costa d'Hespanha, não os quiz aVentura dei-
xar gozar do repouso que nella buscavão: deo-lhe subitamente
4«6
tamanha tormenta, que sem remédio deo a galé á costa, onde
feita pedaços, morrerão todos desastradamente, sem escapar mais
que a Princeza com o que trazia na barriga, a quem parece que
a i<*ortuna guardava para dar o descanso, que a seu pae e mãe
negara. Sahio finalmente a moça na praia, tal qual o temeroso
naufrágio deixaria huma Princeza mais delicada que hum armi-
nho; e indo assi a pobre mulher pola terra estranha e despo-
voada, e sem quem a encaminhasse por onde, depois de t^ per-
dido toda a esperança de ter algum remédio, derão-lhe as dores
de parto junto de huma fonte, aonde em breve espaço lançou
duas crianças, macho e femia, como vizagras. E como a fraca
compreição da delicada mulher não pudesse sustentar tantos e
tão desacostumados trabalhos, facilmente deo a vida, que tanto
havia que desejava de dar, deixando vivos aquelles dous retra-
tos delia e de seu pae, que por causa de seus nascimentos a vida
lhe tirarão, como acontece a viboras. E como as crianças fossem
destinadas ao que vedes, não faltou hum pastor que as criasse,
que alli veio ter, dando a mãe a alma a Deos: de maneira que,
por não gastar mais palavras, o machp he vosso amigo Filodemo,
e a femia he a serrana Florimena, mulher que he ja deVenadoro.
MONTEIRO
Estranhas cousas me contais. Assi que logo de seu pae her-
dou Filodemo namorar a filha do Senhor que serve: não haverá
logo por mal o Senhor Dom Lusidardo tomar por genro e nora,
quem acha por sobrinhos.
DURIÂNO
Sabei que chora de prazer com elles, que ja diz que acha
que Filodemo se parece natural com seu irmão, e Florimena com
sua mãe.
MONTEIRO
Dae-me a entender, como se crêo tão de ligeiro o Senhor
Dom Lusidardo de quem isso contou.
{17
PLIUANO
No caso não ha dúvida, porque o pastor que lii achastes,
lhe certificou todo o caso; e fez ao pastor muitas mercês, e ntan-
dou fazer muitas festas solemnes. Venadoro, casado com sua mu-
lher e prima, e Filodemo, que o mesmo parentesco tee com a
Senhora Dionysa, estão fora de crer tamanho contentamento;
cuido que zombão delle.
MONTEinO
Ora deixa-me ir a ver o rosto a esse velhaco de Filodemo;
pois de meu matalote se me tornou Senhor. Creio que vem o
Senhor Dom Lusidàrdo: dissimulemos.
SCENA V
(Dom Lusidàrdo rom Vexadobo, qne traz Flobimkna jwla mão,
e Fii.0DF.3J0 a Dionysa.)
LUSlDARDO
Quem não ficará pasmado
* De ver que por tal caminho
Tee a Ventura ordenado.
Filodemo, meu criado,
Vir ser meu genro c sobrinho!
Quem não pasmará agora
De ver a ventura minba.
Que tee tornado n'hum'hora
Florimena, huma pastora,
Ser minha nora e sobrinha!
Dem-se graças ao Senhor,
Cujo segredo he profundo;
Pois que vemos que quiz dar
A ventura e o amor
Por prazeres deste mundo.
TOMO IV X 2
Zé
NOTAS ÁS REDONDIIHAS
N'esta denomínaçílo fc comprehendeni as poesias mepores do nosso Poetn.
voltas, glosas, esparsas, chistes, endechas, viiancicos, etc; umas eróticas, e que
syllabo até o octosyiiabo, principal typo da trova antiga ou poesia primitiva por-
tugueza, porque essa a encontrará o leitor nas artes poéticas; só direi que n'este
género, como em todas as outras regiões da poesia, sobresaiu sempre o nosso Poe-
ta. Bastava a paraphrase do psalmo 136« poesia que tão admirada foi no seu
tempo, para estabelecer a reputação de qualquer poeta que não fosse Camões;
graciosas são alem d'isto outras quando se dirige a damas, ou responde aos chis-
tosos apodos das mesmas, ou graceja com os amigos; ás vezes porém ferinas,
quando estende o arco e dardeja a satyra; este género de poesia ligeira, que
António Ferreira embalde quiz desterrar :
A antiga trova deixo ao vulgo,
reagiu comtudo no seu tempo, c veiu ainda fazQr as delicias de nossos pães e avós
nos decantados outeiros, academias poéticas, certames o nos salões em improvi-
sos, que muitas vezes davam logar a brilhar a agudeza de engenho de poetas,
eomo Bocage e outros.
Sóbolos rios que vão, etc.
Estas redondilhas, diz um auctor contemporâneo de Camões, o editor da edi-
ção dos Lusíadas de Í584, que foram feitas por occasião do naufrágio da China,
e lhe chama Cancioneiro, o que dá a entender que ellas faziam parte de uma
collecção mais numerosa de poesias do mesmo género; Manuel Severirn de Faria,
seguindo a tradição que havia, também o aflirma, bem como Manuel de Faria c
Sousa. O sr. bispo de Vizeu segue por^m uma opinião different*^*, fundando-se es-
pecialmente em parecer que o Poeta tinha o desterro a que allijjje n>stns redon-
dilhas como castigo de erro próprio:
A pena deste desterro,
Essa nunca .«eja ouvida
Em castigo do mvn erro.
i':
20
O (jue está em conlradicção com aquclie verso dos Luiiada» em que se queixa
da injustiça d'es(e degredo :
Quando for o injusto mando executado.
É pois de opinião que fornm escriptas em occasiAo diíferente da do naufrá-
gio, e conjectura que o foram quando leve logar a jornada para a índia, que o
FoeLi reputava como desterro a que deram causa os sfiis erros amorosos. Se con-
rordo com o sr>.J)íspo em que o Poeta nVstas rednndilhns se refere vagamente
e em gerni, nâo só a esta epocha, mas a toda a sua vida transacta, abraço com-
tudo a opini;to de um escriptor contemporâneo, e de outros que mais se avizi-
nharam do tempo cm que vi\eu o Poeta, que asseveram que foram compostas
quando teve logar o naufrágio.
Fossem-no porém n^esta ou n'outra occasiíio, o que é certo é que foram es-
criptas em tempo que o poeta se achava animado de sentimentos religiosos, e em
que algumas d*estas«atastrophes da vida^cordam a alma adormecida provocando
o arrependimento de culpas. Se foram feitas pelo naufrágio, corrobora-se mais
a opiíiiáo que já emittinios de que só em Goa recfbeu a notipia da morte de
D. Latharina de Athaíde; a noticia d'esta morti* devia ir nos navios que parti-
ram para a índia no anno de 15o7, porquanto falleceu depois da partida das naus
de Lisboa no anno antecedente; c se os navios da expedição da China que o de-
viam trazer a. Goa, sairam d'esta cidade antes da chegada das naus do reino, só
em Goa á sua volta viria o Poeti a receber tAo triste nova.
O que me dá logar a acreditar que escreveu estas redondil has em occasiSo
em que acontecimento muito extraordinário da vida provoca a contriçAo, é que
alem do seu contexto todo biblico, pois é a paraphrase do psaimo 136, teve tam-
bém em parte o pensamento da conversão de Boscan, de quem imita algumas for-
mas de estylo, aiiidaque muito de passagem, na frequente repetição do — ali vi.
Vi mi alma como va, etc.
Vi mi sps^) romo es, etc. ^
«
Vi la parle que se muestra, etc.
Vi mis quatro calidades. ete.
e pro«eguo :
Ali \í el entendiníienlo
Con hl vcrdad por objeclo
E vi todo el iv^'íiiiiento,
, Lo passado e por venir
Todo lo puro delante.
*
Estas redond ilhas serão de uma obscura interpretação para quem não adver-
tir que o Poeta toma umas vezes Sião nor Lisboa e Babylonia pela índia, e ou-
tras ve/.es a mesuia Sião pelo céu e Baoylonia pelo mundo em geral.
Sentado, sobre os rios de Babylonia chora as lembranças de Sião, c qeante
n*e1la passou, comparando Babylonia ao mal presente, Sião ao tempo passado.
Ali pondo-se-lhe presente as lembranças do tempo transcorrido, viu que todo o
bem passado não é gosto, mas é magna. E considerando em todas as variedade»,
inconstancias e^esenganos que vem a quem se fia da ventura, dependurou a sua
frauta nos salgueiros, aquella f rauta que n outro tempo fazia mover os montes e
tornar os abrolhos em rosas, offerecendo-a â fama.
Porém não iulgue ninguém que o deixar o canto da mocidade n'esta e«pe8-
sura será obra da idade o que é força da ventura, pois postoque por tão forçosos
motivos deixe o canto, nunca deixani a causa d'elle:
/
Mns em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento;
For sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos,
Por quien muero tan contento.
E»tes dois últimos versos são o remate do soneto de Boscan, que come^-a :
Poneme en la vrda, ele.
Mas lembranças da aíteiçilo que ali o tinham captivo lhe perguntaram por-
que não usava do seu doce canto, pois sempre ajuda a passar qualquer trabalho
passado. Ao que responde: Como dirá
Qt)em tão alheio está de si,
Doce canto em terra alhea;
porque se quem trabalha canta por mejios can«ar, elle engeita o descanito; c
86 a paixão o quebrantar antes morra de tristeza do que cante por abranda-la:
e que maior contentamento do que morrer de pura tristeza?
Náo cantará na frauta o que passa e passou já, porque a penna cansará, mas
elle não.
Que se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se amor assi o .ordena,
Rasão he que canse a pena
D' escrever pena tamanha.
Porém se cansar para exprimir os seus affectos amorosos, não cansará para
voar a memoria a Sião.
Muda agora a allegoria representando Babylonia a terra e os seus vicios, c
Sião o céu. Se por algum motivo apagar da alma a lembrança de Sião, a sua
alma seja dada a perpetuo esquecimento:
A pena deste desterro,
Qu'eu mais desejo esculpida.
Km pedra, ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de u)eu erro.
♦
É diílicil distinguir que degredo é este a que aqui allude, se se refere a al-
gum degredo real, como julga Faria e Sousa, pretendendo que seja o imaginá-
rio degredo a que o condemnou o governador Francisco Barreto, ou se cm g\[?ral
á terra, considerada como exilio temporário em relação ao céu e vida eterna.
Hompe em seguida o Poeta em aroentes protestos de contrição, prometlendo
só cantar canções divinas, e converte toda a sua saudade para o ccu :
»
E aquella humana figura,
Que cá me pude alterar.
Não he quem se ha de buscar;
He raio da formosura,
Que só se devo d'amar.
Descreve a luta do amor terreno que o combate com o celeste, os aíTectos
que o captivam,*snphistas que lhe ensinaram maus caminhos por direitos:
Destes o mando tyrano
M'obríga com desatino
422
A caniar «10 som do (fano
Cantares d'amor profano,
Por versos d'amor divino.
«
Como ha de porém cantar a canção que se deve ao Senhor? tanto pôde o po-
der da graça, que faz que se suba da belleza parti^^ular para a geral.
Fícjue pois pendurada a frauta e tome-se a lyra para cantar Jerusalém sa-
grada livre de Babylonia; e se mais se curvar a accidentes mundanos risque-se
tudo quanto já fez do grande livro dos Viventes. O Poeta no seu canto religioso,
que prosegue como inspirado, pede a assistência do céu contra a fraqueza hu-
mana, que arrase os vicios que o tentam, e derrube os maus affectos que o que-
rem derrubar a elle do alicerce.
Beato só quem pôde resistir ás tentações carnaes, afogando os maus pen-
samentos logo ao nascer, e os desfízor com a penitencia, pondo o pensamento
n'aquella carne que esteve já na Cruz. Beato quem, posto o pensamento no céu,
julga por baixeza os faustos do mundo.
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellente,
Tilo justo e tfto penitente,
Que despois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!
Terminam estas admiráveis redondilhas com esta exclamação, que bem de-
nota que foram feitas achando-se o Poeta contrlcto das suas culpas; seguramente
quanao teve logar o naufrágio.
Sóbolos rios que vSo, etc.
No(a Faria e Sousa como vicioso este modo de dizer; a edição de 1595 traz:
Sobre os rios. É a traducção do primeiro verso do psaimo 136. -Super flumina
Bahylonis, illic sedimus et /levimus: cum reeordaremur Sion», etc. De Babylonia
com allusão á índia veja-se o soneto cxciv.
Nos salgueiros pendurei, etc.
Terceiro verso do Psaimo: «• Quia illic interrojaverunt noi, qui captiws âuxe-
runt noSy verba cantionum».
Como dirá respondi,
Quem alheio está de si,
Doce canto em terra alheia.
Verso quarto do psaimo: «Quomodo cantabimus canticum Domini in teiixt
aliena?» *
Terra beinaventurada
Se por algum movimento.
Verso quinto do psaimo: "Sioblittis fuero tui Hierusalem, ohlivioni delur dex-
tra mea». lmít.ição de Job, cap. 19, em que rnanifesta os mesmos desejos. nQm$
mihi Iribuat, ut scribantur sermones meif Quis mihi det, ui exarentur in libro slffio
foreo, et plumbi lamina, vel relte sculpanlur in siíice.
■
A minha lingua se apegue.
Verso sexto: "Adhfpreat lingua mea faucibus méis, $i non miminero tni»,
K aquella humana figura.
425
Imitação do Dante, no Paraíso e nas Rimas. ^
|Ie sombra daquella idea.
Dante, Paradisê, Canto m.
Ciò que no maere e ciò que no paò rnoríre
Non é si no splendor daquella idea
Que partorjnce amando il nostro sere.
E se eu mais der a cerviz.
Torna a tomar o fio do psalino.
Risque-se quanto ja fiz
Do grdo livro dos viventes.
Psalmo 68: •DeUantur de libro viveníium; :t cumjustis non scrihanlur».
Canta-se a visáo de paz.
HierusaUm quer dizer Visão de paz.
Os ruins filhos de Edof). >
Entcnde-se os vicíos e peccados. Edom foi o nome de Esau. «Hic sunt autem
generationes Esau ipse est Edom'». Genes. Edom quer dizer terreno. '
Estes mie tão furiosAs
Gritando vem a escalar-roe.
Verso sétimo do psalmo : « Qui dicunt, exinanile, exmanile usque ad {andamen-
tum in ea ».
E tu, ó carne, qu'encurtas,
Filha de Babei tão feia.
Verso oitavo do psalmo: «fYíía Babylonis mísera: bealus qui relribuet tíbi re-
tributionem quam retribuisti nobi.<».
Emfim cabeça do canto.
Canto -entende- se por pedra e nSo por musica; assim usou o Poeta cm vários
logares. Ode iii, estancia x :
Cessou de alçar Sysifo o grave canto.
Lusíadas, Canto vii :
Em. quem quer reprovar da igreja o canto.
Ditoso quem se partir.
4
\
' Esta copla devera ser de dez versos como as outras; em todas as edições diz
Faria e Sousa que é de dez, porém é porque a xxxv inclue três quintilhas, e
sendo erro das copias ou da imprensa, não querendo que fosse com elle, deixou
esta reparada no fim. Diz mais Faria e Sousa que, ou se perdeu uma d'eilas, ou
o Poeta não teria feito estas (quintilhas para serem unidns, o que é possivcl, e
assim se lêem na primeira edição (1595) separadas; comtudo inclina-se a que
42}
foram ÍAím uiii<]a5, porquanto desde a copla v se seguem umas comparações
que o est9o indicando.
Em algumas edições vem separada esLi ultima copla, o que nAo acontece na ^
ediçSo das Rimas de lSd8, a segunda d'estas poesias. A mim me parece que se
devem juntar as quintilhas, porquanto assim juntas o pensamento das duas co-
plas ligam perfeitamente, e as segundas »&o dependentes das antecedentes com
que ligam; e lon^e de seguir a opinião de Faria e Sousa e de alguns editores, a
minha é que se deve unir com a antecedente da cfual é o complemento, e sepa-
rando na XXXIV as três quintilhas que alguns uniram pôr signal de lacuna de-
ppis do verso
Que na Cruz esteve ja,
indicando que falta a copla principio da redondilba que se segue, omittida por
descuido do copista, ou por outro qualquer motivo.
Est^ redondilhas foram sempre mui e.«timadas, e com rasáo, pois téero belle-
zas de primeira ordem.
Sôbolot rios que vão
Por Babylonta, me achei.
Sobre os rios que váo
Por Babylonia, m'achei.
£difio d« 1S95.
Mas em tristeza! e nojos.
Mas em tristezas e enojos.
£.1içSo di« 1995.
Tendré presente é los ojos.
Terne presente a los ojos.
Ediçilo de 1595.
Por entre o espesso arvoredo. .
Por antr'o espesso an'oredo. .
Ediçfto de 1595.
D*alma me fores tirada.
D'alma me fores mudada.
EdiçSo de 1595.
Dos affectos com qiie venho.
Dos affeitos com que venho.
Ediçfto de 1395.
Do livre arbítrio que tenho.
Do livre alvedrio que tenho.
Edição de 1595.
CA deste mundo visihil.
Quanto ao homem for jTossibil.
Ca deste mundo visivel,
Quanto ao homem for possivel.
Ediflo de 1995.
•
425
Para o wundo intelligibiL
Para o inundo inteliigivel.
Edição de 1595.
Querendo escrever hum dia, etc.
Carta a httma Senhora: — Duvidoso o Poeta do que havia de escrever, appa-
re<*e-lhe Amor, e tomando uma penna das azas, fazendo-lhe experimentar os seus
eflfeitos lhe foi dictando, fazenao-Ihe escrever os milagres da formosura da sua
amante e as suas tristezas amorosas. «
Imitando a Boscan no seu Mar de Amor, que começa:
El sentir de mi sentido.
e a Petrarcha, canção xxxi, em successivas comparações descreve o efTeito do seu
nrnor até á copla xix; e quando estava todo enlevado e cevando-se na descrípçâo
amorosa, umas susi)eitas, como harpias, lhe convertem em peçonha o goso em
que estava: e cora isto termina a carta, para não corromper o que lem^cripto
com os males que ha de escrever.
Escutae e estae altcnto.
Uma lição dizia :
Ouvido me daí attento.
Faria e Sousa assim tinha emendado, e assim deve ser porque se dirige a
uma senhora, e nSo podia pór oitenta no feminino, porque nâo faz consoante
com pensamento do verso antecedente.
Na primeira edição vêem as coplas separadas em quintilhas; apesar de virem
spparaaaá, eu julgo que devem pur-se unidas de dez versos, porquanto a segunda
t|uintilha liga sempre com o sentido da antecedente, e é a applicação da com-
paração.
Escrevem vários moradores. ^
Veja-se o que o Poeta diz sobre o mesmo assumpto, estancia xix do canto vii
dos Luêiadai:
E junto donde nasce o longo braço
Gangetico, o rumor antigo conta
Que os vesinhos da terra moradores,
Do cheiro se mantém das lindas flores. -
Hum Rei de grande poder.
É Melhridates, rei do Ponto, o qual querendo-se matar com veneno quando
Pompeu foi vencido, por habituado a elle o não pôde conseguir. Marcial, liv. v,
cpigramma i xxvii.
Profecit poto Mitridâtes ssepe veneno
Toxia nc possent sosva nocere sibi.
Quem da doença Ueal.
Esta^doença chamada Mal Regia, é a ictericia.
Querendo Amor sustentar-se.
Allude á fabula de Pigmalião que se enamorou de uma estatua» e Vénus con-
doída a converteu em mulher, com quem rasou.
426^
D'huma fonte se sabia.
Faria e Sousa, referindo-se a Jo2o Maria Bonardo, na sua Minera dei Mondo,
faz menção de algumas fontes com differente» virtudes, e entre estas de uma
igual a esta onde, se alguém era accusado de furto, mettia a mão e negava o cri-
me tendo-o praticado, ucava cego.
Huma herva lhe Vai buscar.
É a eelidonia maior. Adverte Faria e Sousa a este respeito o que diz o psal-
mista, qae Deus até das aves cuida, pois florece esta planta quando as andori-
nhas começam a crear, e secca quando acabam os seus trabalhos.
Lá para onde o sol sabe.
Ê à ilha de Sunda que se refere. Veja-se a estancia cxxxiv do canto x dos
Lusíadas :
* Olha a Sunda táo lar^p, que huma banda
Esconde para o Sul dificultoso
A gente do Sertão, que as terras anda.
Hum rio diz que tem miraculoso.
Que por onde elle só vem outro vae,
Converte em pedra o páo que nelle cae.
•
Como na vela s'entende.
É a mesma comparnçAo de Boscan no seu Mar de Amor, Em Bosean sSo qua-
torze as comparações, e as do Poeta outras tantas, porém de differente argumento.
D'ave, que chamSo Camão.
»
é
Eliano, livro xiv, cap. xxxv, descreve esta ave dando-lhe o nome de porphy-
rio; Nebríssa lhe chama palemon e outros camão. Parece que o Poeta tomou esta
comparação dos versos de Alciato, emblema xlvii, que já referimos n*outro logar.
E daqudla a quem te dei,
E daquelle a quem'te dei.
Ediçio de 1S05.
EUa tanto s'entrislecf.
V
Ella só tanto entristece.
EdiçSo de 1595.
A vista a quanto padece,
A vida a quanto padesce.
* Ediçio de 1995.
Qut quem sobre ella jurava.
Que quem sobr'ella jurava.
Ediçio de 1595. .
Dama d'estranho primor, etc.
N'estas re^ondílhas entra o Poeta em desafio com a sua dama sobre qual
terá mais força, ella em o maltratar, ou elle em a amar, protestando-lhe ^ae
427
ãuaiito mais por ella for tnitado com esquivança, mais a ha de adorar. Termina
izendo que por tâo grande constância deveria ter esperança de algum premio,
que ella me quízcssc tanto quanto elle lhe queria. Parece qtie i) Poeta teve em
vista alguns Jogares das poesias de Jorge de Montemaíor. Corresponde com o re-
mate d'esta8 redondilhas o da estancia i da egioga ii :
No derradeiro fio
O tinha a esperança,
Uue com doces enganos
Lhe sustentara a vida tantos annos
N'huma amorosa e branda confiança,
Que quem tanto queria,
Parece que não erra se confia.
Estas redondilhas chamam-se de pé quebrado; diz Faria e Sousa que o Poeta
escreve menos n*este género de redondilhas,' porque começavam a estar e^n des-
uso no seu tempo, e no d'elle commentador já ninguém as escrevia. Havia-as de
quatro até doze versos. «
Dama d'e$traiiho primor.
Dama de illustre valor. •
Meu BIS.
Porque a converto em amor.
Que se converta em amor.
Meu MS.
E se cuidais.
Se cuidais.
EdiçSo de 1595.
Amar-vos cada vez mais.
Meu BIS.
Meu MS.
Querer-vos cada vez mais.
Crendo qu'em tanta affeição-
Não haja accrescentamento.
Vendo mie em tanta affliçSo
Não póae haver cre&cimento.
InrencibU;
Que Amor sobre o impossibil.
1 n venci vel;
Que Amor sobre o impossível.
Ediçlo de 1595 e meu MS.
O final d'esta redondílha é inteiramente difierente no meu Ms., por esta forma :
Todinia
Amor tem tanta valia
Quando quer,
Que o que ja nAo pôde ser,
Faz elle em nós cada dia.
[
\
r
í
\
í 428
í
[ As cinco i^edondilhas que se seguem são ínleinimcnte diííereiítes iio meu Ms.,
! por esta fórma :
I
I Mas em tamanho perigo,
( Muito digo;
I Pois (jue tâo livre viveis,
[ . Que jamais que elle podeis
\
Neste mal que usais comigo:
£ se for
O poder vosso maior
Antre nós,
Quem poderá mais que vós,
Se vós podeis mais que amor?
Segundo o vejo vendido.
Não duvido,
Que se possa presumir;
Qu'em lugar de vos ferir,
Saia de vos ver ferido.
Mas suspeito
Que quando em vós direito
Desarmar,
Que se lhe virou no ar,
A setta contra seu peito.
Pois se está ferido amor
Desta dor.
De quem me aqueixo ou que fallei?
Se em vez de ser seu vassallo.
Vou ser seu competidor.
Ja perdi quanto amando mereci,
Pois conheço,
Que aquelle bem que lhe eu peço,
•Vos pede elle para si.
Mas mais se deve a meu mal
Paga igual.
Pois que por vós nSo duvido
De ser traidor sabido
A meu Senhor natural.
O Senhor,
Neguo com quanto 'q'em uiim for;
Mas se olhar,
Quem por vós tudo neguar,
Não pôde neguar amor.
Que poderei ja tomar,*
Ou deixar.
Pois que me trazeis tâo ceguo;
Que aqui lio que por vós neguo,
Por vós torno a confessar.
bem sei en,
Que neguar o Senhor meu
Ja tiSo po5so,
Que se elle, Senhora, he vosso,
Ru sou vosso sendo seu.
• 429
Suspeitas, que me quereis?
A estas suspeitas se refere na carta ou redondilhas que' começam :
Querendo escrever bum dia, etc.
O Poeta, apesar de se Inflammar como doudo em vinganças e iras, e jurar ar-
rancar d'almá e pôr n'outra parte o seu amor, o nSo pôde fazer e prefere que a
sua dama lhe confesse e declare a sua desgraça, embora n'elle se execute a peni-
tencia e seja condenmado ao inferno dos ciúmes. Boscan escreveu umas trovas
ao mesmo assumpto. Veja-se também Garcilasso, soneto xxx :
Suspechas que en mi triste fanlesia, etc.
De arrancar d'alma os amores.
D'arrancar d'aima os amores.
Ediçfto do 1395.
Que tontenlar-me co'os danos.
Que contenta r-nie cos danos.
Edição de 1595.
Corre sem vela e sem leme, etc.
. Lahyrinto, queixando- se do mm»/o; — Esta composição se forma de quadras
ou quintilbas. O seu mecbanísmo consiste em que lendo-se seguidamente como
redondilhas façam sentido, ou toiíiandc-se versos da primeira e juntando- se aos
da seffunda quintilha ou redondilha, ou lendo-se as quintilhas horisonlalmente,
de todo o modo façam sentido. Ha os acrósticos em fórum de cruz, de eslrella ou
de outro qualquer modo á vontade do poeta. Na primeira ediçAo vem com este
titulo: •Labynnlo do autor queixandose do mundo», n'elle se lêem os primeiros
cinco versos separados, e o resto das quinlilhas juntas em redondilha, cxrepto os
últimos cinco versos; de\iam-se talvez ler todos em quintilhas separadas. O ar-
tifício do presente lahyrinto é o seguinte. Léem-se primeiro seguidas as quintilhas
ou redonailbas, toma-se depois o primeiro verso da primeira copla, o primeiro
da segunda, o primeiro da terceira, o primeiro da quarta e o primeiro da quinta,
que juntos formam esta quintilha:
Corre sem vela e sem Ipme
A náo, que se vai perder.
Que poderá vir a ser
Não porque governe o leme
Na tormenta, se vier.
Toma-se o segundo verso da primeira copla e os segundos-das outras coplas,
e forma-se outra quintilha por esta forma:
O tempo desordenado,
Destrue mil esperanças;
O mal nunca refreado.
Em mar envolto ê turbado,
Desesp^^re na bonança.
Tomando o terceiro verso de cada copla, tira-so esta quintilha :
D'hum grande vento levado:
Vejo o máo que vem a ter;
[ 430 .
1^ Anda, por certo, engauado
f ' Que tée seu rumo mudado,
r * ' Quem manhas nSo sabe ter.
Ton)ando pela mesma ordem o quarto verso de cada copla, fórma-se esta
quintilha:
O c|ue perigo não teme,
V«jo perigos correr;
Aquelle que quer valer,
Se perece grita c geme,
Sem que lhe valha gemer. '
Soguindo a mesma ordem com o quinto verso se faz a quintilha que se se-
gue:
He de pouco eiprimentado,
Quem não cuida que ha mudanças.
Levando o caminho errado,
Gm tempo desordenado <
Verá falsar a balança.
Do mesmo modo se formam as seguintes quintilhas, tomando os sextos, séti-
mos» oitavos, nonos e décimos versos das redondilhas:
Ais rédeas trazem na mSo
Os que nunca em sella andarão,
He para os bons confusão,
Terem justo galardão.
Os que nunca trabalharão.
Os que rédeas não ti verão
Na sella postos se vem :
Ver que os máos prevalecerão,
E dor dos que merecerão,
Tenao o que lhe não convém.
Vendo quanto mal flzerão
De fazer mal não deixarão;
Que, posto se deti verão,
Sempre castigos ti verão
Se ao innocente enganarão.
A cobiça e ambição,
De demónio hábito tem.
Com esta simulação,
Sem nenhun^a redempção.
Perderão o eterno bem.
Disfarçados se acolherão,
Os que o justo profanarão;
Sempre castigos ti verão :
Postoque se deliver.ão
Se do mal não s'apartárão.
Lè-se ainda este labyrinto por dois modos, tomando a primeira quintilha, ter-
ceira, quinta, sétima e nona, sendo o seu argumento no singular, e tomando a
segunda, quarta, sexta, oitava e decima, sendo o argumento no plural por esta
maneira :
454
(^orre sem vela e sem leme
O tempo desordenado,
D' hum grande vento levado.
O que perigo nfio teme,
He de pouco exprimentado.
A náo que se vat perder,
Destrue mil esperanças:
Vejo o máo que vem a ter;
Vejo perigos correr
Quem não cuida que ha mudanças.
Que poderá vir a ser
O mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
Aqueíle qye quer valer,
Levando o caminho errado.
Não porque governe o leme
Em mar envolto e turbado.
Que têe seu rumo mudado.
Se perece grita e geme
Em tempo desordenado.
Na tormenta, se vier,
Desespere na bonança,
Quem manhas nâo sabe ter:
Sem que lhe valha gemer.
Verá lalsar a balança.
Com o argumento no plural, e tomando, como dissemos, a segunda, quarta,
sexta, oitava e decima quintilha se \é por esta forma:
As rédeas trazem na máo
Os que rédeas náo tiveráo :
Venao quanto mal ffzeráo
A cobiça e ambiçáo,
Disfarçados se acolherão.
Os que nunca em sei la andarão,
Na sella postos se vem :
De fazer mal não deixarão;
De demónios hábitosiem
Os que o justo profanarão.
He para os bons confusão,
Ver que os máos prevalecerão ;
Que, posto se deti verão
Com esta simulação.
Sempre castigos tiveráo :
Terem justo galardão,
E dor dos que merecerão.
Sempre castigos tiveráo'
Sem nenhuma redempção,
Postoque se detiverão.
452
Os uue nunca trabalharão,
Tendo o que lhe não convém.
Se ao innocente enganárSo,
Perderão o eterno bem,
Se do mal nSo s'apartárão.
Mal empregado tempo gasto com estas poesias \So superficiae^Kl Fernão Alva-
ros do Oriente traz na sua Lusitânia um labyrirUo a Nossa Senhora, em quinli-
lha», e l<»go em seguimento vem outro em oitava rima. Filippe Nunep, na sua
Arte Poética, prescreve a regra dos consoantes d'esta poesia.
De demónio hábito tem.
Do demónios hábito tem.
EdifSo da 159». ^
Que tee seu rumo mvdaâb.
Que tem seu remo mudado.
Edição d« I.'i95.
_ »
Se não quereis padecer, etc.
Convidou Camões certos fidalgos na índia, e cm logar de iguarias encontra-
ram enlre dois pratos estas redondilhas. Eram os convidados D. Vasco de A (ha ide,
D. Francisco de Almeida, Heitor da Silveira e João Lopes Leitão; o m^u Ms. não
tniz Heitor da Silveira, mas Mm JoTge de Moura. Todos estes fidalgos, amigoâ do
Pofta, perlencíam â primeira nobreza de Porlugal; alguns tinham acompanhado
o více-rei D. Constantino de Bragança, de sorte que este convite devia ser feito
para festejar a sua eh 'gnda.
A primeira iguaria foi posta a D.Vasco de Athaide, o da Castanheira, filho
de D. Pedro de Athaide, quo o foi de outro do mesmo nome, abbade de Penalva,
filho natural de Álvaro Gonçalves de Athaide. D.Vasco de Athaide militou n»
índia, foi por capitão de uma nau na armada contra o Achem em que ia o go-
vernador Francisco Barreto. Achou-se no infeliz conflirjo do Babarem onde falle-
ceu D. Álvaro da Silveira, amigo de ('amdés, a cuja morte escreveu a elegia xrviii.
e clle D.Vasco foi gravemente ferido de uma lançada, volbindo ainda convales-
cente n'outra armada ao Babarem a tomar vingança dos fidalgos parentes e ami-
gos que abi pereceram.
Heliogabalo zombava, etc.
Esta segunda iguaria foi posta a D. Francisco de Almeida, filho de D. Lopo
de Almeida, filho segundo do prior do Crato D. Diogo Fernandes de Alm^^ida, fi*
lho de Lopo de Almeida, primeiro conde de Abrantes. Tinha e.sle fidalgo ido
para a Índia cx)m o vice-rei D. Constantino de Bragança, e por mandado d'este
foi em favor do rei de Cochim expulsar a gente do Çamorim da ilha de Pom-
balão, e depois dVIle a haver recuperado, a entregou D. Constantino áquetie rei.
Foi depois D. Francisco capitão de Tangere, e aquelle mesmo a quem andando
juntando gente para resistir á invasão de Filippe II, o Poeta escreveu aquelta
tão interessante carta, da qual apenas nos restam oá fragmentos; n'ella descrevia
o estado das facções do reino, e manifesta os seus sentimentos patrióticos. £ni
tão amigo d'este fidalgo o Poeta, que, segundo nos affírina o editor da edição de
1626, ou antes em seu nome D. JoAo de Almeida, filho de D. Francisco, Camões
dizia que só nor não estar este fidalgo na índia se retirava para o reino.
N'esta redondilha se refere ao l^in conhecido facto do feroz imperador ro-
mano, que fazendo esplendidos convites, zombava dos convidada«, apresentando
em vez de iguarias verdadeiras manjares pintados nos pratos.
1
4ôõ
a
Côa nSo a papareis, etc.
A terceira iguaria foi posta a Heitor da Silveira, o Drago. Era este fidalgo
cunhado de André FalcAo de Resende, e grande amigo de CamOes, em cuja com-
Êanhia veiu para o reino, tendo a desdita de morrer já á vista do^cabo da Roca.
ira Jjom poeta, cavalleiro esforçado, e pobre como Camões, coroo se deprebende
doe versos que enviou ao conde de Redondo; a elle dirigiu seu cunhado André
Falcilo de Resende as satyras v e viii, e a epistola i; e n'estas mesmas obras, a que
já alladimos em outra parte do nosso trabalho, e que se imprimem na imprensa
da universidade de Coimbra, vem uma resposta de Heitor da Silveira á primeira
doestas duas satyras e á epistola. Para o leitor poder julgar do estylo d'esteca~
valheiro e poeta, cujas obras se perderam, darei aqui uns fragmentos da resposta
á epistola, em que, minado pela saudade da esposa, lhe inveja a vida quieta que
contrasta com a sua inquieta e turbulenta, e declama contra os que se passam ás
conquistas após o oiro e uma falsa opiniAo de honra.
■
Tudo nos roubam cá, té o desejo,
Que em nosso peito mora, lá o desviam;
Parece que lhe faz affronta, ou pejo.
Este é o ouro, este é o metal, que criam
Estas partes de cá, que em poucos annos
Europa de varões nobres djèspiam.
, Cruel Gama, cruel, que tantos damnos
Ó Lusitano dás! Que se desfaça
Em pó tanto varão por bens mundanos!
ó desleal cubica ! viva traça,
Faminta harpia, que por quasi nada
Alma, que livre é, presa andar faça !
Termina com uúia apostrophe saudosa á esposa :
— Ó certo norte meu, luz clara e guia,
Beliza de minha alma —em váo chamava:
Jurara, amigo André, ora que a via.
Beliza, amor, Beliza, mal cuidava.
Quando de vós fugi quasi voando,
Que vinha o mal voando, e cá o achava!
Parti-roe sem vos ver, assi enganando '
A dura saudade bem guardada,
Que inda ora, mais que então, estou chorando.
Mas não será fortuna tão ousada,
Se a doce liberdade me ora nega,
Que muito tempo assi m'a tinha atada.
Esta confiança, André, só me socega,
E me desvia de mil roáos extremos,
A que a vãa phantasia se me apega.
Amor me cfiz á orelha, que nos vemos
Cedo já sem fortuna mar bonança :
Em quanto tarda, assim nos visitemos,
Se dar-me queres vida, ou esperança.
Quão enganados desejos 1 e como são vários os destinos da vida humana I Á vista
da pátria nem ao menos pôde morrer nos braços de uma esposa que tão extre-
mosamente amava, e só coube a ella receber o cadáver frio do marido, onde se
encerrava um coração abrasado de um amor tão constante e apaixonado.
TOMO IV ÍM
r
I
Não Caparica, mas tinta, etc.
Por esle verso se vé que o vinho da fregueua de Caparica, situada da outra
banda do Tejo, próximo de Almada, era tido como muito especial : hoje temos
vinhos muito mais generosos.
A epistola xviii de Pedro de Andrade Caminha é também dirigida a Heitor
da Silveira em resposta a outra sua escripta da índia, em que Jhe noticiava a
morte de João Lopes Leitão, de quem passámos a tratar.
Porque os que vos convidarão, etc.
A quarta a João Lopes Leitão. Manuel de Faria e Sousa não pôde descobrir
quem fosse este cavalheiro ; foi iilbo de Francisco Leitão, fidalgo aue viveu no
reinado d'el-rei D. Manuel, e de D. Joanna Freire, filha de Rodrigo ae Sande, ve-
dor da rainha D. Maria é embaixador ao rei catholieo D. Fernando, a quem ti-
nha se)*vido na conquista de Granada, que lhe foi muito aceito, e lhe deu o
Dom, e de sua mulher D. Margarida Freire, viuva de Estevão de Brito, alcaide mór
f de Beja, e filha de Nuno Fernandes Freire. João Lopes Leitão, sendo moço foi
pagetii da lança do príncipe D.João, pae d'el-rei D. Sebastião, e no torneio de Xa-
bregas, que se deu por occasião d'este príncipe tomar as primeiras armas, foi pa-
relha de Fernão da Silva, vedor da fazenda e regedor da justiça. Foi poeta, jovial
e cortejador das damas, e por este motivo sendo moço, o antes de ir para a ín-
dia, o mandou el-rei D. João III prender em casa por entrar uma porta a ver
as damas do paço contra vontade do porteiro, a cujo propósito fez Pedro de An-
drade Caminha o epigramma clxvii, a que o preso responde no epigramma cLxvni
da mesma collecção de ooesias, publicada pela academia real das sciencias de Lis-
boa. As poesias de João Lopes Leitão perderam-se; apenas resta a resposta ao
epigramma, a quintilha que vem n'este convite que começa:
Pezar ora não de são,
e attribue-se-lhe o soneto que acompanha as obras de Camões
* Quem he este que na harpa Lusitana,
(.
^
f
em elogio do poeta; eu vi na bibliotheca real das Necessidades uma longa carta
(Ms.) dirigida a seu irmão Pedro Leitão, escripta da índia, no estylo das de Ca-
mões, e que me pareceu interessante; porém d ella não conservo lembrança, nem
tirei apontamento. Camões lhe dirígiu outra poesia sobre uma burla aue experi-
mentou de uma senhora a quem dera uma peça de fazenda, e nlem a islo o so-
neto que começa :
Senhor João Lopes, o meu baxo estado.
Militou João Lopes Leitão na índia com distincção no tempo do Poeta, indo
varias vezes por capitão nas differentes expedições, e morreu na mesma índia no
mar, não sabemos se afogado, se de doença. Á sua morte allude Pedro de Andrade
de Caminha em uma poesia, e á mesma compoz quatro epitaphios. Copiámos
aqui, dos quatro, aquelle que nos parece melhor:
Vés tu que passas, esta sepultura,
De palma ornada, e de loureiro e d^era?
Vazia está, que o quiz asst a ventura,
Que para o corpo de João Lopes era.
Seu. corpo jaz no mar, su'alma pura
() Ceo se foi, onde seu corpo espera :
Coroa mereceo de dons Loureiros,
A dos Poetas, e a dos ('^valleiros.
455
João Lopes Leitão não casou, mas teve uma filha bastarda, D. Violante Leítoa,
que foi religiosa de Odivellas. Era irmSo de Pedro Leitão e de Estevão Leitão,
que foi frade dominico, muito parcial de D. António, prior do Crato.
A derradeira a Francisco de Mello:
P'hum homem, que teve o scetro, etc.
Francisco de Mello era fijho de Pedro de Mello de Serpa eneto de Diogo de
Mello; militou na índia e falleceu no cerco de Chaul em 1571, sendo vice-rei o
famoso conde de Athouguia D. Luiz de Athaide. A Ilude aqui Camões a Ovidio e
a estes versos do poeta romano :
Sponte sua carmen números veniebat adaptus,
Et quod tentabam scribere versus erat.
No meu Ms. a disposição doestas redondilhas é differente, e também ha mu-
dança no nome dos convidados. A terceira iguaria foi posta a João Lopes Leitão
no Ms. em logarde Heitor da Silveira, de quem ali se não faz menção, vindo a
redondilha aue diz respeito a este fídalgo no fim, depois da que pertence a Fran-
cisco de Mello, e com referencia a todos os convidados. A quarta iguaria é posta
no M^. a D. Jorge de Moura, e os versos que lhe dizem respeito são a quintilha
que figura de resposta de João Lopes Leitão, e começa :
Pezar ora não de são,
que vem coro este titulo ou advertência : «A outra a D, Jorge de Moura, e faUa
aqui como era seu costume quando zombava queixando-se do engano»,.
Este Jorge de Moura era collaço do príncipe D. João, pae d'el-rei D. Sebas-
tião; foi um dos esforçados guerreiros da índia, e mais de uma vez capitão mór
de armadas.
Sabeis que haveis de fazer?
Sabeis o que aveis de fazer?
Men MS.
Que aqui não ha que comer.
Que aqui no ai que comer.
Meu MS.
Porque por mais que fWTaís,
Não heis de alcançar a ceia.
Que por mais que vós corrais.
Não alcançareis a ceia.
Mea MS.
Heliogabalo zombava.
Elioguabalo zombava.
Meu MS.
■
Porque a céa está segura '
De ros nCto rir em pintura.
Que esta ceia está segura
De não vos vir em pintura.
Mea MS
Vos dá nqfti tinta ]}or rinho.
r
I.
456
Vos dá tinta aqui por vinho.
* Íleo MS.
Vosso estômago não danem.
Vosso estomaguo nSo danem.
Íleo VS.
E nada feito em empada;
^ E vento de tigelada;
Picar no dente em remótho:
De fumo tendes taçathos;
Ave da pena que sente
Quem da fome anda doente.
£ nada feito de empada;
E vento de píverada;
Picar no dente em repolho :
^ Em carne tendes taçaihos;
r De aves de pena que sente
Quem de fome anda doente.
MeoBIS. '
« Que se lhe tomava em metro.
^ >, Que se lhe fazia em metro.
i Meo MS.
De mt «OS quero afirmar.
« De mi vos quero apostar.
EdifiodelWSemeoMS.
i De quanto podeis cuidar;
^ E esta céa, que he manjar.
Vos faça na boca em trovas.
Que quanto podeis cuidar;
[ ' Nesta ceia, que he manjar,
> Vos faça na boca trovas.
M6I1 MS.
Conde, eujo illustre peito, etc.
Ao conde de Redondo D. Francisco Coutinho, vice-rei da índia, para onde foi
f no anno de Í56í, e durante o seu governo procurou tirar o Poeta do abatimento
e desgraça em que o foi encontrar. Era o conde homem de espirito elevado tanto
nas armas como nas letras, e como tal sabia apreciar o verdadeiro merecimento de
Camões. Pela descri pçáo, que nos faz Couto, ao caracter e boas partes que concor-
riam n^este vice-rei, se vé como o Poeta nfto era lisonjeiro^os elogios que lhe di-
rigia. «Era o conde, diz o chronista da índia, homem de bom corpo, gentil-homem,
b^m posto no chão, e ainda n'aquella idade de cincoenta e sete annos em que
morreu, era galante. Fov homem fácil, alegre, bem assombrado, muito avisado
e grande cortesão, e tinha ditos muito galantes, foy liberal, ao menos nSo foy
tacanho, amiffo de justiça e trabalhou sempre muito que se fizesse com intei-
reza». Foi filho do primeiro conde de Redondo D. João Coutinho, e de D. Maria
Henriques, filha de Fernão Martins Mascarenhas, senhor de Lavra; elle foi casado
oom D. Maria de Gusmão^ filha de Francisco de Gusmão, e D. Joanna de Blasíé,
camareira mór da infanta D. Maria, e elle seu mordomo roór. D'este consorcio
houve três filhos e cinco filhas; o primeiro, D. João Coutinho, morreu menino;
o segundo, D. Luiz Coutinho, herdeiro da casa, foi casado com D. Macia, filha de
457
D. Aleixo de Menezes, o aio d'el-rei D. Sebastião; morreu na batalha de Alcácer,
e por nflo ter successflo, passou a casa ao im mediato e derradeiro filho D. JoSo
Coutinho, conde de Redondo.
Ao mesmo conde escreveu a ode ou trovas que lhe mandou da prisão, quando
Miguel Rodrigues Coutinho o embargava por uma divida, e os versos em favor
do seu amigo Heitor da Silveira, que acompanham a que ao mesmo vice-rei di-
rigiu aquelle fidalgo.
Senhora, s'eu alcançasse, etc.
Parece ser escripto á sua amante, que lhe teria pedido as suas poesias, pois-
que n'esles versos revela o despjo que a pessoa a quem sfio dirigiaos leia antes
no seu coração do que nos seus papeis.
E por ver
Tiido o que posso escrever.
Só por ver
TuQo o que possa escrever.
Men MS.
Por mi SÓ quizesseis ler.
Só por mim quizesses ler.
Meu MS.
Verteis o natural
Do que aqui vedes pintado.
Vereis ao natural
Do que aqui virdes pintado.
Meu .MS.
Vereis áspero e crud.
Vereis áspera e cruel.
• Mea MS.
Em mi tom sangue no peiio.
E a mi com sangue no peito.
Meu MS.
« Se não pôde dedaxar.
Não se pôde declarar.
' Mea MS.
Vede que mdhor lereis.
Se a mi, se aquiUo qu'eserevo,
Vôde qual milhor lereis, / *
Se a mi, se ao que escrevo.
Meu BIS.
Se derivais da verdade, etc.
A huma Senhora, a quem derão hum pedaço de sitim amardb: — Aconselha-a
o Poeta que resista á dadiva que lhe fazia um cavalheiro astucioso, de uma peça
de setim, e a despreze. Qoe não é dadiva, pois ella lhe cede mais, que é a sua
honra. Invectiva contra a devassidão d'aquelles que, abusando da sua nobreza.
458
armam ciladas contra o pudor das mulheres de inferior nascimento, e lastima a
simplicidade d'estas que, por um dom de nobreza, deixam os mais singulares
i dons.
^ Hum Dom, que anda enxertado
No nome, e nas obras não.
I É mui graciosa esta poesia. Na edíçSo de 1595 traz este titulo: m Outras a hw-
i ma Senhora, a qttem derão para hutna filha tua hum pedaço de sitim amareUo de
í quem $e tinha suspeita».
Peço-vos que me digais, etc.
A huma Senhora rezando por humas coiUa<;— Cousa alguma desafia tanto a
devoção como ver uma dama formosa orando; os olhos que em uma sala por-
> . ventura dardejam faiscas de um amor profano, no tabernáculo quebram-se do-
> cemente, fulguram, mas com um esplenaor suave e estranho, e parecem absorver
r em si um reflexo do raio da divindade. Diríeis que um dos entes que circundam
r o tbrono celestial baixou á terra e veiu incarnar-se na forma externa da mulher,
illuminando-a com todo o fulgor mysteríoso da alta região d' onde descendeu,
e inspirando-a com a fé viva com que os coros celestes levantam o Hosana na
corte celeste. Sim, a mulher ou ntfo reza, ou o faz com fé sincera. Foi enlevado
' na sua amante, vendo-a rezar, que o Poeta escreveu esta poesia: em outra occa-
si2o glosou o mesmo mote. Veja-se a pag. 165, o mote e glosa (inéditos).
^
Se n'alma e no pensamento, etc.
A huma Dama que lhe deo huma penna: — Esta esparsa funda- se no equivoco
do Poeta tomar a penna de ave pela pena de sentimento, nSo lhe pesando o tor-
mento que lhe causa a mesma pena.
Sem olhos vi o mal claro, etc.
A huma Dama que lhe chamou cara sem olhos: — Diz-lhe o Poeta que vendo-a
lhe sobejam os olhos, nSo a Vendo, olhos nSo sâo.
DISPARATES NA ÍNDIA
f Esta satyra foi*escripta na índia, e dizem que ella deu origem ao seu degredo,
o que eu nSo acredito; não obstante devia malquista-lo com os que militavam
n'aquelle estado. Cada redondilha acaba com um provérbio, máxima, dictado ou
verso tirado das cophis antigas ou de auctor castelhano :
Este mundo es el camino, etc.
Este verso é de D. Jorge de Manrique, copla v. Parece que o Poeta n*esta re-«
dondilha critica aauelles que sendo de baixa extracção^ logoque sobefn aos lo-
gares elevados — aesque mudão a côr — não fazem caso dos antigos conheci*
^ mentos
ChamSo logo a El-Rei compadre;
isto é, se ensoberbecem tanto que não conhecem os iguaes.
Deixae a hum que se abone.
/
459
Continua ó Poeta a fustigar os que se jactam de poderosos, e que fabricaram %
estado por meios illícitos, á custa da honra.
Diz logo de muito sengo.
Diz Faria e Sousa que alguns pensam que o vocábulo sengo se deriva de Sé-
neca.
Digo-Ihe : iu ex Ulis es.
O que disseram a S. Pedro quando negou a Christu; na primeira ediçAo traz :
tu insanus es.
>
Vereis bons, que no seu seio.
Critica certos mancebos que, com dois ceitia de sciencia, julgam que sabem
tudo quanto se ensina na universidade de Paris, e náo (éem outra occupaçâo senão
tratar de seus trages.
N3o ha mais Italiano.
Foram os italianos que inventaram o talabarte, que se começou a usar entre
nós no tempo d'el-rei I). Manuel; e assim pinta o Poeta a Vasco da Gama guar-
necido com p]le :
Âo Itálico modo, a áurea espada.
LuBiadas, Canto ii, estanda 98.
A este direis: Meu mano.
Tratamento que parece davam aos afeminados, que em Castella chamavam
lindos.
Outros em ^da theatro.
Refere-se esta redondil ha aos que alardeam valentias, e cujas palavras nflo
correspondem com as obras. Veja-se a carta i : « Ja estes que tomavao esta opi-
nião de valentes as costas, crede, que nunca ríberas de Duero arriba cavalgaron
Çamoranos, que roncas de tal soberbia entre si fuesen hablando^ e quando vem
.10 efleito da obra, salvão-se com dizer que se nam podem fazer tamanhas duas
cousas como he prometer e dar » .
.Outros vejo por ahí.
Contra os hy])ocritas que andam emendando o mundo com conselhos e nâo
emendam a sua vida. ^
El dolor que está secreto.
Vem de uma copla antiga que corresponde a um verso também antigo : De
dentro tenifo mi dolor,
Assi entrou o mundo, assi ha de sahir.
Este adagio continua por esta forma :
Muitos a reprende-lo e poucos a emenda-lo.
Achareis rafeiro velho.
Allude aos de baixa qualidade que querem hombrear com os cavalheiros, di-
zendo que a riqueza é a verdadeira fidalguia.
Que se qoer vender por galgo;
Ísto é, se quer fazer passar por fidalgo, porque o galgo se reputa o cáo mais no-
)re.
Diz que o dinheiro he fidalgo.
Correspo]ide a uma copla antiga castelhana :
Cavallero es dom dinero, etc.
Que su padre era de Ronda.
Parece que estas duas terras eram insignificantes e de pouca nobreza.
Fraldas largas, grave aspeito.
É,uma pungente e vehementissima invectiva contra um ministro.
Que Momo lhe abrisse o peito.
Desejava Momo que no coração do homem houvesse uma abertura por onde
se visse o que havia dentro; isto mesmo desejava o Poeta a este ministro para
desmascarar o lobo vestido com pelle de ovelha. Faria e Sousa diz que ainda que
o Poeta escrevia na índia, o magistrado, a gue se refere, estava no reino; que elle
sabe quem era, porém que o não quer dizer. Parece querer alludir ao ministro
d*el-rei D. Sebastião, apesar do segredo que fin^e guaraar, pois passa a mostrar
certa identidade com logares análogos dos Lustadoi, em que se suppõe que o
Poeta o quiz indigitar. Fernão Alvares do Oriente na sua LutUania Transfor-
mada descreve um ministro que foi do reino para a Índia, muito parecido com
este.
Guardae-vos de huns meus Senhores.
Quer Fana e Sousa que esta redondilha se refira aos chrlstãos novos; julgo
porém ojue diz respeito aos fidalgos que ne^ciavam, e que o Pòéta allude aqui
ao que lhe aconteceu com os amigos que o intrigaram com o governador Fran-
cisco Barreto, e depois o abandonaram.
Que de fora dormiredes.
É uma cantiga velha :
De fuera dormiredes pastorsico.
Até aqui acabavam estas redondilhas na edição de 1595; as que se seguem
vêem nas outras edições.
Que direis d'huns, que as entranl^as.
Contra os magistrados, sua cobiça, hypocrisia e tyrannia, e^cialmente com
os pequenos.
Que lá vão leis, onde querem cruzados?
Este rifão teve principio no reinado de D. Affonso o VI, de Castella.
Mas tornando a huns enfadonhos.
Aos importunos narradores de contos, mais insípidos do que zamboas, yne
matam com suas historias a quem os ouve, seja-lhe applicada a pena de talião,
morram também.
Adonde tienen las mentes.
Aos vaidosos de nobreza que, sem terem fundamento para taes se julffarem,
andam desenterrando mortos para ver se encontram algum parente d'onde pos-
sam derivar a sua ascendência.
Escudeiro de Solia.
Solia era certo estofo do qual, no século xiv, se vestiam as senhoras distin-
ctas; diz Faria e Sousa que era tela baixa que suppria a alta.
Huns, que fallfio muito, vi.
Contra os falladores, que nâo fazem mais do que importunar e mentir.
Ob vós, quem quer que me lerdes.
* *
• • *
Mette a ridículo o namorado; Gil Vicente em uma das suas comedias pinta Um
do mesmo modo.
Mas deixemos, se quizerdes.
Parece que o Poeta se disp(Se a atacar alguém, personalísando, e pessoa de
elevada categoria.
Deitemos-nos mais ao mar.
O lo^ar. porém da critica, e onde se indigitava a pessoa ou pessoas objecto
d'ella, foi cortado, como se deprehende dos seguintes versos:
E se algum se arrecear,
Pa^ três ou quatro trovas;
e porque a ultima redondilha d'esta composição não está terminada. Devia ser
pessoa da governação da índia, ou talvez que occnpasse em Lisboa os mais ele-
vados cargos.
Ó vós, que sois Secretários.
Dírige-se agora aos ministros d'el-rei D. Sebastião, dizendo-lhe por que não
pOem freio ao roubar que vae sem medida debaixo de um bom governo; nos Im- *
siadas usa da mesma Unguagem tocando este assumpto.
Porque a mente, affeiçoada.
•
Parecendo atacar os privados do rei atenua a critica com o elogio que faz
do joven soberano, carregando as culpas nos ministros que não deixam exerci-
tar as suas boas qualidades.
Por isso, gentis pastores.
Quer Faria e Sousa que o ultimo verso doesta poesia :
Hum que só foi pastor bom,
seja allusivo a Cbristo quando lançou fora do templo os vendilhões; porém pa-
rece-me que se engana, e que este dito é de um dos vice-reís da índia, julgo que
de D. João de Castro. Esta poesia n2o está terminada, pois da ultima redondilba
só ha quatro versos.
í />
42
Se vossa Daaia vos dá, etc.
. A João Lopes Leitão, sobre huma peca de cadta que mandou a huma Dama, que
se lhe fazia donzella: — Com este titulo vem esta poesia nas differentes edições.
Cacha, significa peça de fazenda, e ardil ou engano de jogo^Esta volta do mote
refere-se a expressões de jogo, hoje. desconhecidas.
Menina formosa e crua, etc.
Aconselha uma menina que largue outro que a corteja e o prefira a elle. Ê es-
cripta em estylo jocoserio, e sem verdadeiro pensamento amoroso. Na primeira
edição (1595) vem com este titulo: «A huma Dama eom quem queria andar de
y amores»; no roeu Ms. se acrescenta: se não fóra afeiçoada ao outro.
Ja tomara não ser meu.
Se vós não fôreis tão sua.
Nos olhos, e na feição,
Tomaria náo ser meu.
Se náo fôreis tanto sua.
Nos olhos, e na afeiçfio.
MOO Mu<
Não o quiiestes de crua.
NSo no quisestes de crua.
Mea MS. e ediçlo de IS95.
Por ser meu:
Se outrem vos dera o seu. ,
Pôde ser fôreis mais sua.
Porque he meu :
E se outrem vos dera o seu,
Náo fôreis vós tanto sua.
Meu MS.
Que ainda não venha a ser.
m
Para que nSo venha a ser.
Meu MS.
Da doença, em que ora ardeis, etc.
A huma Dama doente: — Alem d'estas voltas, ao mesmo assumpto escreveu
o l^oeta a cançáo xxi (inédita).
Porque fiquemos ifiuaes.
Pois meu ardor não curais.
Que se cure rosso ardor.
Para iicardes em joguo.
Que se apague o foguo, ,
SenSo com meu, que bo maior.
Meu MS.
445
Em vós me bwque a doença.
Em vós me busca a doença.
' MeaMS.
Que em vós só me achará;
Qu'em mi, se me vem buscar.
Que eip vós só me matará;
Que a mi se me vem buscar.
Mea MS. ,
Que a forma do que foi ja.
Que a sombra do que fui ja.
Bleo MS.
Os outros ramos d'esta poesia sâo inteirauiente differentes no meu Ms., pela
maneira seguinte :
Que se em vós estou trocado,
O mal que mal me quizer
Para me n'alma doer,
£m vós hade ser mostrado.
Nem m 'espanto '
Que me queirais mal, em quanto
Querer-vos menos não posso;
Pois, Senhora, ser tão vosso..
^ Me tem ja custado tanto.
D'outra parte, quem duvida
Ser tfto alta minha sorte,
Que vos ame até á morte;
Porque me neguais a vida
Se pagais.
Nisso a morte que mo dais,
Ó não me sejais «squiva;
Não porque eu, Senhora, viva;
Mas para que vós vivais.
Que tanto mais qualquer dano
Vosso que o meu sentiria,
Quanto he maior a valia
D'alma, aue do corpo humano.
De verdaae.
Que ja vossa humanidade
De que se aqueixe não tem;
Pois para as almas também
Fez amor enfermidade.
Se a verdade dizer posso,
Estar doente convinha;
Vós não, que sois alma minha,
Êu si, que sou corpo vosso.
De atormentado e perdido, etc.
A huma Dama vestida de dó; — Pede-lhe que o dó não seja somente externo,
que o tenha d'elle Popta, que tantas vezes tem morto.
444
Amor, que todos oífende, etc.
A Dona Guiomar de BUufé, queimando-te com huma ttía no rotio: — EsU
D. Guiomar era filha do conae de Redondo, D. Francisco Coutinho. Ao mesmo
assumpto escreveu o soneto xxxix, que começa :
O fogo que na hranda cera ardia, etc.
Esta D. Guiomar foi casada com D. Simão de Menezes, que morreu na bata-
lha de Africa com el-rei D. Sebastião.
Bem sei que Amor se vos rende.
Bem sei que Amor se lhe rende.
Edição de iS^,
Na primeira edição os primeiros versos formam uma oitava, e termina -com
uma quadra.
Não estejais aggravada, etc.
A huma mulher, açoutada por hum homem, que dumavão Quaresma: — O ar-
gumento d'esta poesia es\á claro; na primeira edição se diz ser feita na índia.
Na mesma edição os versos vêem mal collocados, porque vêem primeiro nove,
depois cinco e por fim os outros nove.
Deve ser disciplinada.
Deve ser disciprinada.
Ediçio de 1595.
Seja bem disciplinada.
Seja bem disciprinada.
Ediçio de 1595.
Vossos vidos do carnal.
:^ Vossos viços do carnal.
Ediçio de 1595.
Outra vez disciplinada.
Outra vez disciprinada.
Ediçio de 1595.
Quem no mundo quizer ser, etc.
A hum fidalgo, que lhe tardava com huma camisa que lhe prometteo : — Na pri-
meira edição vem esta poesia com o título de esparsa, e á camisa se chama ca-
misa aalanle. Estas camisas não eram ordinárias, e custavam ás vezes um preço
elevado pela riqueza da fazenda e lavor da gola ou gorgeira.
Come o mundo todo vê.
Que venha a dar a camisa.
Gomo todo mundo vé.
Que dar a camisa.
Ediçio de 1595.
445
Senhora, pois me chamais, etc.
A ku/ma Dama que lhe chamou Diabo, por nome Foõa dos Anjos: — S2o gra-
ciosas as voltas a este mote; ^rave seria a causa que obrigou a dama a dar-lhe
ido mau nome, e bem aproveitada a j>ccasião para lhe redarguir com estes bo-
nitos versos.
Como de Anjo, e não de luz.
Gomo d^anjo e não da luz.
£diçio de IS9S.
Qual terá culpa de nós, etc.
A hum Amigo, que não podia encontrar: — O titulo d*esta poesia, e a mesma,
declara o seu assumpto; por isso não precisa de explicação.
Descalça vai pela neve, etc.
Este mote é de Camões: as voltas são bonitas, menos 09 dois últimos versps.
Depois de fallar tanto em neve, cabe mal o ferver em fogo; ó pensamento e ex-
pressão alambicada.
A dor que a minha alma sente, etc.
I
O Poeta revela em mais de um logar das suas poesias a necessidade de guar-
dar sepultado no coração o segredo dos seus amores :
Por não mostrar meu mal a toda a gente^
Elegia ni.
Comtudo parece que nem sempre teve a constância de g;uardar para si toda
a sua ventura; e a imprudência sobre esta matéria deveu a separação, embora
temporária, aue lhe impoz a amante, prívando-o por algum tempo da sua pre-
sença e agraao.
Parece que Diogo Bernardes usurpara estas voltas, porém com alguma diífe-
rença, por esta forma :
Tenho feito juramento,
Porque assi o quiz Amor,
De sempre como avarento
Guardar em mim minha dor,
Por nam tratar peor:
Se disto o contrario sente
Nam o saiba toda a gente.
Bernardes traz só duas coplas.
Não na sabe toda a gente.
Não a saiba toda a gente.
EdiçSo de 1595.
De ninguém ouso fiar.
De ninguém a ouso fiar.
EdiçSo de 1595.
4
D'alina, e de quanto tiver, ete.
Pede á dama que use para coin elie toda a sorte de rígoresi cooit^nloquc
Ihé deixe os olhos para a ver.
Amores de huroa casada, etc.
Á frequente convivência com uma casada, deu em resultado converter-se a
amisade em amor im]>ossivel, que se quebra contra a barreira da honestidade da
dama que o faz nutrir. O mote é alheio, e também provavelmente estranho ao
Poeta o assumpto d'elle.
^ Faz-se o desejo maior
Donde o remédio não vaL
Em perigo de meu mal
Fcz-se o desejo maior
Donde remédio não vai,
Sem perigo do mais mal.
M o MS.
Que donde entra ftor amigo,
Se levante por senhor.
Mas onde entrou por amigo,
Se levantou por Senhor.
Mpo MS.
E de final em final.
Cada vez para mór mal,
Aquelle passo mortal.
Que eU' terei por menos mal.
Meu MS
No meu MS. vem mais esta redondilha que não está no impresso:
Casada, t>em vejo eu
Que sois alheia e nâo vossa,
Mas quem deste mal se apossa,
Também he vosso, e nflo seu;
' Ja que a vós amor mo deu,
Dai- me vós algum sinal
De vos pezar de meu mal.
Enforquei minha esperança, etc.
Feito a uma redonciliaçáo, é galante poesia. Ao mesmo assumpto vae, mais
adiante, uma poesia inédita.
Puz o coração nos olhos, etc.
N9o entendo muito bem este mote, nem a volta; é escripto n*um cstylo algifiu
tanto alambicado.
U7
Puz meus olhos n'huina funda, etc.
Peito, como claramente declara a poesia, a um trocar de olhos com uma da-
ma ; é um epigramma engraçado.
Trape, quebrei-lhe a janella.
Trape, quebro-lh*a janella.
Edição de 1595.
De pequena tomei amor, etc.
Este mote parece ter sido dado ao.Poeta por uma dama; elle revira as setlas,
e declara á mesma, como* conhecendo amor desde pequenino, illudido o seguiu»
e foi victima dos seus enganos e tormentos, que só ella pôde mitigar e extinguir.
Tenho sabido que em fim.
Tenho sabido em fim.
Edição de 4595.
Apartáráo-se os meus olhos, etc.
Á uma dama privando^ da sua vista, por ausência ou interrupção de rola-
ç(^s amorosas.
E oxalá enganadores.
Erão cruéis matadores.
Ediçjio de 1595.
N*esta primeira ediçSo traz mais esta redondílha :
Não se poz terra nem mar
Entre vós, que forSo em \So,
Poz-se vossa condiçAo,
Que tão doce he de passar,
Por ella vos quiz levar
De mim táo longe, •
Falsos amores,
E oxalá enganadores.
Falso Cavalheiro, ingrato, etc.
NVste mote e voltas- é uma dama que falia; serSo pois estes versos escrípto<«
por ella oo por CamOes, para ella responder á arguição que parece se lhe fazia ?
Sobre isento coração.
0 Sobre falso coraçfto.
Mm MS.
448
Se de meu mal me contento, etc.
Encarece as qualidades da dama, e a impossibilidade de a merecer, por ter
impossivel aspirar á ventura de a amar, reconhecendo o seu pouco merecimento;
só se este igualasse ao seu desejo.
Vós, Senhora, tudo tendes, etc.
Exalta a belleza da dama e de seus olhos verdes, que excede a dos azues,
embora estes sejam muito louvados.
Para que me dan tormento, etc.
Instigado a declarar a quem ama, recusa-se a revela-lo, promettendo guardar
segredo, orgulhoso do seu tormento. É mote antigo que mmtos glosaram, e entre
outros, Montemaior, como se pôde ver nas suas poesias em castelhano.
De vuestros ojos centelhas, etc.
Os olhos da dama não podem subir ao céu, e ali transformar-se em estrellas,
porque já o são na terra, e«não pedem subir mais; e s^ ali subissem inspirariam
amor ao próprio Deus no oitavo céu.
Lo como ahtmhran ai suelo.
De como alumbran ai cielo.
Ediçlto de 1695.
Escripto em castelhano.
' De dentro tengo mi mal, etc.
A sua dor está. tão occulta no coração, como a centelha na pederneira. Em
'castelhano.
Anior loco, amor loco, etc.
Anda doido por uma dama que anda louca por outro que a não ama; se a
não vira tão dedicada por elle, fora mais louco por el)a. Este mote glosaram mui-
tos, entre outros Montemaior, na sua Diana, Em castelhano.
Vede bem se nos meus dias, etc.
Desiste de novos amores, pelos tormentos que experimentou com os passados.
\
Pois se ho mais vosso que meu, etc.
Pede á dama, pois o seu coração é mais d'elia do que seu, e elle seu capti^^,
que se lembre da tristeza que o domina.
449
Senhora, pois minha vida, etc.
Ao mesmo assumpto do mote antecedente. Pede á dama nSo qaeira ver des-
truída a sua vida, pois é d'eila e não sua.
Pois damno nie faz olhar-vos, etc.
Entre os dois extremos de nSo ver e perder a sua dama, ou vé-la e perâe-la,
prefere não a ver.
Pois damno me faz oUiar-vot,
Pois me fez dano olhar-vos. .
Ediç9o de t595.
N2o sei se m'engana Helena.
A tre$ Damas, que Uie dizião que o amavão : — Bem se vé que esta poesia é
puramente jocosa; se assim fora náo haveria tão boa concordância entre as três.
Eram brinquedos e ditos chistosos para provocarem a veia poética fácil e engra-
çada de Camões.
Menina, não sei dizer, etc.
A hvma Dama mal empregada: — Esta poesia é dedicada a uma senhora com
qu^m teve amores, que o deixou para passar ao estado de casada; é natural que
a achasse como diz: —mal empregada.
Com vossos olhos, Gonçalves, eta
A huma Foãa Gonçalves: —Não posso entender a amphibologia d'esta compo-
sição.
De que me serve fugir, etc-.
Para tod^í a parte para onde vá leva comsigo o seu desgosto, ao qual não
pôde fugir.
#
Quando me quer enganar, etc.
A huma Dama, que lhe jurava pelos seus olhos: — Parece que escreveu o Poeta
estes vorsos á imitação da ode viii de Horácio, do livro ii, dirigida a Júlia Ba-
rina, que fazia taes juramentos e pt^rjurios. D'estes juramentos, de que alguns
disseram que se riam os deuses, resultou o adaffio latino: • Venerium jusjuran-
dum». Faria e Sousa tinha dividido estas redondiihas em quatro quintilhas.
Quanto me eÚa jura mais.
Quanto m*ella jura roais.
EdifAo de 1595.
Tosio IV 29
450
•
Ha hum bem, que diega e foge, etc.
O bem quando chega e foge, nSo é bem, porém é mtl; assim quero viveu
sempre pobre, nem conhece o bem da riqueza, nem o mal de empobrecer.
Olhos, nSo vos mereci, ele.
A huma Dama, que Uie virou o rotío: — NSo ambiciona mais do que o que
ella, com tanta liberalidade, arremessa ao chSOi
Yenceo-me Amor, não o nego, etc.
É um epigramma engraçado, o qual, como outros d'esta collecçfto, não engei-
taria Anacreonte ou Moscho. Representa o poder do Amor aue, apesar de peque-
nino, dá pancada de cego; e ninguém, aindaque fora Hercules, lhe resiste.
Ve^ceo-me Amor*, não o nego..
Venceste, Amor, nSo o nego.
Hea MS.
Só porque he rapaz ruim,
Det'lhe hum boféle zombando.
Diz-me: Ó mao, eslais-me dando.
Porque sois maior que mim f
Pois se eu ros descarrego,
Poraue he rapaz roim,
Dei-Ihe huma ronba zombando.
Disse-nie elle : estais-me dando.
Por serdes maior que mim?
Pois se vos eu desça rreguo. /
Ueo MS.
Toma-me outra, tá rapaz^
Descarregua, tá rapaz.
MeaMS.
/
Os bons vi sempre passar, etc.
Ao desconcerto do mundo: — Vendo que a fortuna favorecia n'este mundo os
maus e opprimia os bons, fez-se mau; mas é tal a sua desgraça que nem com
isso eanhou, pois apesar d'este desconcerto do mundo, só para elte anda con-
certado. Aristophanes diz que quando Júpiter ordenava a PlutSo, deus das rique-
zas, que batesse ás portas dos beneméritos, ia coxo, e quando á dos maus, voava.
Esta desordem na justa repartição dos bens é muito vulgar; ha comtudo uma ri-
queza que a fortuna não pôde roubar, que é a tranquillidade de uma consciên-
cia pura.
Cuidando alcançar assi.
Cuidando alcançar assim.
Edição de 1598.
1
45<
Am, que só para mi.
Adsiin, que só para mim.
EdiçSo de 1998.
Perguntai$-n)e, quem me mata? etc.
A huma Dama, perguntando-lhe quem o matava: — NSo quer responder nada,
com receio de a entregar á justiça por culpada.
Esconjuro-te, Domingas, etc.
Uma certa Domingas poz o amor n'outro para se vingar d'eUe; pede-lhe que
atteuda ao estado delirante em que o vé, e suspenda desde já a vingança.
Folgavas de apascentar.
Folgavas d'apascentar.
Ediçio do 1598.
Fingia qu'erão palabras.
Fingia que erSo palavras. '
£diç2b de lim^
Qa'inda que queiras. Domingas.
Qu'inda queiras, Domingas.
Edição de 1598.
J)e mi í' esqueces. Domingas,
Como eu faço do meu gado.
De mi te esqueces, Domingas,
Com' eu faço do meu gado.
EdiçJlo do 1398.
Que morra desesperado.
Q(ie moura desesperado.
Edição de 1398.
Se a alma ver-se não pôde, etc.
Se não pôde ver-se a dor que está no intimo d'alma, sendo a sua aliás tão
profunda, que fará para ser querido n'esta impossibilidade?
Se a alma ver-se não pôde,
i
S*alma ver-se não pôde.
EdiçSo de 1598.
Vosso bem querer, Senhora, etc.
Não se acha satisfeito com os favores da dama, prefere que o maltrate : não
entendo.
452
Ser melhor todo tormento.
Ser melhor tod'o tormento.
Ediç9o de 1598.
Que o mal melhor me fora.
Qu*o mal melhor me fora.
£diçSodel598.
Se me desta terra for, etc.
Protesta a uma dama, ausentando-se, ou leva-la comsigo, ou deixar junto
d'ella a sua alma.
A minha alma, se me for.
A minh'alma, se me for.
Ediçio de 1596.
Pequenos contentamentos, etc.
Não (|uer aceitar os gostos que se lhe offerecem já tâo tarde, por minguados
e mesquinhos; pois o bem que lhe é devido nunca o satisfará.
Que a mi não me conheceis.
Qu'a mim nflo me conheceis.
Ediçio de 1596.
Perdigão perdeo a penna, etc.
Por acaso em um livro genealógico que pertenceu a Manuel -Severim de Fa-
ria, o mesmo escriptor que escreveu uma biographía do Poeta, encontrámos o
que deu assumpto a este poema, e que aqui transcrevemos: « Silvas, Casa do Re-
gedor. Jorge da Silva, filho terceiro do Regedor, Jofto da Silva irmfto de Diogo da
ailva. Casou com D. Luiza da Barros, filha herdeira de Jorge de Barros e D. Phi-
lippa de Mello, de quem nfto teve filhos. Foi fidalgo de erandps brios e altivos
pensamentos; sendo moço namorou a Infanta D. Maria, filha d'El-Rei D. Manurt,
e fez taes extremos que, chepndo á noticia d'EURei D. Joáo III, irmáo da In-
fanta, o mandou prender no Limoeiro onde esteve o tempo que pareceu bastante
para seu castigo; e a esta prisáo e amores fez Luiz de Camões umas voltas áqaella
cantiga velha :
Perdigão perdeo a penna, etc.
que começam :
Perdigão, que o pensamento, etc.
Quarta parte das Famílias Nobres de Portugal Segue a assignatura de Ma-
nuel Severim de Faria. Na folha primeira que está collada á capa, tem esta nota:
«O P.* Prior do Hospital do Beato João de Deos de IMontemor, me fez m. deste
livro em Fevereiro de 1649. = Manuel Severim de Faria ».
Subío a hum alto lugar.
Perde a penna do voar.
Ganha a pena do tormento.
ibò
« Foi por em alto lugar,
Perde as pennas de voar,
Ganha as penas de tormento.
MS. genealógica.
Se ajpieixumes se soccorre.
Se' a queixumes se socorre.
Edição de 1398.
Pois a tantas perdições, etc.
*
A humas Senhoras, que havião ser terceiras para com huma Dama:—É moi
gentil esta poesia, na qual pede que intercedam para com a sua amante. Pelo seu
estylo delicado e cortezão se vé que é dirigida a senhoras da mais elevada po-
sição social, e nSo deixa duvida que fossem as damas do paço. É escripta com
muita arte, com move e persuade com mui íina galanteria, e emprega affectos ver-
dadeiros, a que se junta um estylo natural repassado de melancholia; bem se vé
que saía do coração. Lisonjeia as damas com uma lisonia delicada; pois a ven-
tura o subiu a tanta altura, que melhores cirurgiões pódfe ter para a sua ferida;
ditosa ferida! ditosa tristeza! A vaidade feminina é adulada com summa finura;
emprega o argumento dos argumentos para com o sexo, obama-lhe formosas;
não se contenta com isso, como que desapparece da scena, e tudo entrega ao seu
poderoso valimento. São somente ellas, rosas milagrosas de amor, que podem fa-
zer o milagre de abrandar o coração da suá amante; assim de joelhos peçam-lhe
que queiram ver no seu padecer o poder que téem os seus olhos. E que maior
intercessora do que a formosura dobrando o joelho perante a formosura? Para
despertar o empenho das suas amáveis medianeiras, termina evocando por ^sim
dizer o seu egoísmo, lembra-lhes que podem ser victimas de um mal como o que
soffire, o que oxalá nunca lhes aconteça.
•
Que ièe iaes Cirurgiões.
Que taes Cirurgiões.
Edição de 1398.
Ja qu* entendeis, que he> assi,
Ja entendeis qu'he assim.
Edição de 1598.
Fazei milagres de Amor.
Fazei milagres d^amor.
Edição de 1598.
Que o valer.
Qu*o valer.
Edição de 1598.
Quando cuido em quem me cura.
Quando cuido em quem mo cura.
Edição de 1598
Na fonte está Leonor, etc.
É bonita e aífectuosa esta poesia; a representação da dor de Leonor é pin-
tada com cores tão naturaes como expressivas.
454
Na (onle está Leonor,
Na fonte está Lcanor.
Edi{9o de 1646.
A$ amigas perguntando.
As amigas preguntando.
Edição de 1616.
Nisto estava Leonor,
Nisto estava Leanor.
EdiçSo de 1616.
o rosto sobre hOa mão.
O rosto sobre huma uíSo.
Ediçio de 1616.
Qiêe de chorar ja cansados.
Que (lo chorar ja cansados.
EdífSo de 1616.
Desta sorte Leonor.
Desta sorte I^anor.
Edição de 1616.
Que não quer que a dor s'abrande.
Que não quer que á dor se abrande
EdiçSo de 1616.
Despois qne de se\i amor
Soube novos pei*guntando,
D'improviso a vi chorando.
Que depois de seu amor
Soube novas preguntando,
Demproviso a vi chorando.
Ediçiú de 1616.
Que diabo ha tão dam nado, etc.
Trovas que mandou o autor da cadeia, em que o tinha embargado por huma
divida Miguei Roiz, Fios Seeeos d alcunha, ao Conde de Redondo D. Francisco Cou-
tinho,Viso- Rei j que se embarcava para fora, pedindo-lhe o fizesse desembarcar: —
Escreveu o Poeta estes versos que dirigiu, como declara o titulo, ao viso-rei, pe-
dindo-lhe o mandasse soltar antes que embarcasse. Yeja-se o que dissemos na
biographin, tomo i. Este fidalgo era um dos capitães da índia dos mais distinctos,
e esteve no cerco de Dio. É um epigramma engraçado e enérgico.
Vossa Senhoria creia, etc.
Trovas que mandou Heitor da Silveira ao mesmo Conde, invemando em Goa: —
SSo escriptas por elle mesmo; quem fosse este fidalgo, amigo de Camões, deixá-
mos dito quando tratámos do convite feito aos fidalgos na índia.
Que o tempo traz somnolenla.
455
Qae o tempo traz sonorenta.
Edição de 1616.
Que 80 dá vida e eoaterUa.
Que só dá vida e a contenta.
EdiçSo de 16!6.
Não posso chegar ao cabo, etc.
A huma Senhora, que lhe chamou diabo: — Ao mesmo assumpto d'esta esparsa
fica atrás o mot^i que começa :
*
Senhora^ pois me chamais, etc.
Vi chorar huns claros olhos, etc.
Lindos versos a uma despedida. É no mesmo momento de se ausentar, aue
a amante lhe confessa que o ama; assim a sua alegria ainda é maior que a aor
e tristeza pela ausência, ouvindo esta confissão, e vendo arrazar-se os olhos de
agua de quem a fazia.
Se esta dor, se esta alegria.
Se esta dor, se est' alegria.
Kdiçao de 1616.
Assi, se minha alma vive,
Assi, se minh'alma vive.
Edição de 1616.
No tempo que desejei.
No tempo que o desejei.
EdiçSo de 1616.
O principio da alegria. ^
O principio d' alegria.
Edíç9b de 1616.
Deos te salve, Vasco amigo, etc.
Vilancde pastoril: — Vasco arguido por Gil de lhe nSo responder, diz-lhe que
o não faz por que não está em si; se o quer procurar o faça em Magdalena.'Argue-
Ihe Gil, como é gue nSo está em si, se responde táo atilado; ao que elle contesta
que é ella que responde.
Pois onde te hão de fallar.
Pois onde te nSo fallar.
Ediç&o do 1616.
Se Magdanda conheces.
Se Madanela conheces.
EdiçSo de 1616.
Em ti, como em Magdanela,
Em ti, como em Madanella.
Edição de 1616.
456
Porque no miras, Giraldo, ete.
Outro vilancete pastoril: — Giraldo convidado por um pastor para ouvir a har-
monia da sua sanfona, lhe volve que está mudo e surdo para o attender, por-
quanto nSo vé Helena.
No vé$ cuan dtdee que ntena.
No vés quan dulce e serena.
Edif io de 1616.
Crescem, Camilla, os abrolhos, etc.
(hAro vilancete pastoril: — A uma senhora que chorava a ausência do seu
amante e não queria ser consolada, e repeJie os conselhos que lhe dá para miti-
gar a sua dor.
S'eu não vejo quem mais quero.
Se eu não vejo quem mais quero. -
Edição de 46! 6.
Se se foi ha mais d'hum mês.
Se se foy ha mais de hum mêz.
Edição de 1616.
Olhos, em qu^esUo mil flores, etc.
A huma mulher j que se chamou Grada de Moraes: — Joga com o equivoco de
morais, verbo, com o de Moraes appellido. A esta mesma Gracia de Moraes traz
Faria e Sousa as duas outras redondilhas seguintes que não vêem impressas:
Ha huma questão de Amor,
Na qual ningaem se assegura, .
Qual seja de mais valor :
Se a Graça, se a Fermosura.
Julgo a poder julgar nella,
Se a affeiçam nam me embaraça,
Que muito mais vale a Graça
Que a Fermosura sem ella.
Se me dessem a escolher
(Mas nam tenho tal ventura)
A Graça quisera eu ter, ^
Tenha outra a Fermosura.
Ninguém pôde aqui por grossa
Que nam nque com desgraça,
Pôde haver Graça fermosa,
Nam Fermosura sem graça.
Anacreonte fazendo o retrato da sua amante a representa composta de leite,
rosas e marfim ; porém não julga completo o retrato, se todas estas partes nSo
forem acompanhadas da graça, por isso quer que as graças esvoacem em torno
do collo.
Olhos, em qu' estão mil flores.
Olhos, em que estão mil flores.
Edição do 1616.
Quem se confia em huns olhos, etc.
Queixa-se da inconstância ou antes garridice de uma senhora; engana-se
3uem põe a sua confiança em meninas que, com um mudar de olhos, mudam
e pensamento.
Sois formosa, e tudo tendes, etc.
Louvando e detiouvando huma dama;— Faz a descri pção dos diflerentes attri-
butos physicos e moraes da senhora, terminando sempre com o elogio dos olhos
verdes.
Serdes tão bem assombjrada.
Serdes bem assombrada.
Edição do 1616.
He tão branca e bem talhada.
He branca e bem talhada.
/ Edição de 1616.
Am he; e quanto a mim.
Isso tos nasce de a terdes,
Ja sei quanto a mim.
Isso nasce de a terdes.
Edição de 1616.
A alma, sem o vós saberdes,
Ja sem o vós saberdes.
Edição de 1616.
Inda assim achareis nação, '
Inda assim aehareis gente.
Ediç3o de i616.
Esse riso, que he composto.
Esse riso, he composto.
Edição de 1616. ,
Boca CO* huma graça igual.
Boca nem graça igual.
Edição de 1616.
Dou-me eu a Deos, que me leve,»
Dou-me a Deos, que me leve.
Edição de i616.
Senão qu'he feita em rosquinhas,
SenSo que feita em rosquinhas.
Edição de 1616.
Eu sei bem quem se offerece.
Eu sei quem se offerece.
Edição de 1616.
458
Só o vé-hu enfeitiça.
Só com vô-las enfeitiça.-
£diçiddel6l6.
Quem vê vo$so$ oUios verdei.
Os que vem vossos olhos verdes.
EdiçSo de 1616.
Que eu logo vos roubaria.
Oh dou-me a Santa Maria t
Qae eu. rogo vos roubaria.
Dou- me a Santa Maria I
Edição de 4646.
Tudo tendes singular, etc.
Ao mesmo assumpto do antecedente.
Quanto o ser formosa akança.
Quando ser formosa alcança.
EdiçSo de 1616.
N'esta ediçáo faltam os últimos dois versos.
Cinco gallinbas e meia, etc.
A Dom António, Senhor de Cascaes, que tendo4he promettido seisgalUnhas re-
cheadas por huma covla que lhe fizera, lhe mandou por principio de paga meia
ÍmUinha recheada: — Muito engraçado epigramma. Mal pensava Camões, quando
he dirigia estes versos, que este mesmo fidalgo seria quem arvorasse no castello
de Lisboa o estandarte castelhano por Filippe II.
Catharina bem promette, etc.
Pedindo a uma mulher, depois de uma entrevista, mais do que ella queria
e devia consentir>lhe; é escripta em estylo jocoso, e por elle se vé que ella se
evadia ás suas pretensões, ou por se fazer valer ou por decoro. Faria e Sousa in-
verte a ordem das redondilhas. Depois da primeira, em logar da segunda é a
sexta, no da terceira a quarta, e no da quarta a terceira.
CaAarina bem promette;
Ora mál como eUa mente!
Calerina bem promete;
Era má! como ella mente!
Edição de 4595.
i Enganou-me; tinha a minha;
Deo-lhe pouco de perdella.
Enganou-me; teve a minha;
Da-Ihe pouco de perdella.
EdiçSo de 4595.
459
Dizei, porque me mentis?
Promelteis, e então fugis?
Pois sem tot*nar, tuao he nada.
Não sois bem aconselhada.
Dizei, para que mentia?
Prometeis, e nSo campris?
Pois sem cumprir, tuao he nada.
Nem sois bem aconselhada.
Edição de 1593.
o que perde não q sente,
O que perde nSo no sente.*
EdiçSo do 4595.
Se este vosso prometter
Fosse por me ter hum dia*
Se esse vosso pormeter
Fosse por me ter um dia.
Ediç9o do 1595.
Com gosto; e tôs de contente.
Com vosco; e vós de contente.
Ediçio de 1595.
Deixai-me vós o servir,
Deiíai-me vós o coinprír.
EdiçSo do 1595.
O seí'vir a quem Uie mente,
O que cumpre o que mente.
Edição de 1595.
FaUar-lhe, o mais me consente,
Paliar, o mais me consente.
EdiçSo de 1595.
Em logar da sexta redondilha, vem a seguinte no meu Ms. :
Mas pois folgais de mentir.
Prometendo de me vér.
Eu vos deixo a prometer,
Deixai-me vós o comprir;
Aveis então de sentir
Quanto fica mais constante,
O que cumpre, que o que mente.
' A alma, qn*está oíTrecida, etc.
No estado em que se acha, o mal e o bem é-lhe já indifferente.
Ferro, fogo, frio e calma, etc.
Insignificante e pouco intelligivel é esta poesia.
J6q_
Esperei, ja não espero, etc.
Desenganado do pouco interesse que ]he mostra uma dama, bate em reti-
rada e despede-se d^ella.
Descalça vai para a fonte, etc.
Este mote e voltas parece que deviam preceder, se estas rimas fossem por
ordem, o mote que começa :
Na fonte está Leojior, etc.
É bonita descripçSo de unflst pa3tora.
Vai formosa, e não segura.
Vai fermosa, e não segura.
Fdíç5o de 166S.
Quem disser que a ffarca pende, etc.
NSo entendo a allegoria d'esta barca que pende; s2o allusôes a cousas do
tempo em que foram escriptos estes versos.
Com razSo queixar-me posso, etc.
A uma senhora sangrando-se : talvez a me^ma a quem são dirigidos os ou-
tros versos,^ que váo n'esta collecção, a uma senhora estando doente.
Ojos, herido me habcis, etc*
Se o mata com os seus olhos, torne a olha-lo depois de morto para o resus-
citar. Em castelhano.
O ojoi, ya de matarme;
Mas muerto volved á mirarme,
Porque me resusdteis,
Ojos, de resuscitarme;
Mas muerto bolve a mirarme,
Porque me resusciteis.
RdiçSo de 166S.
Na mesma edição vem esta poesia com as quadras separadas.
Mas porém a que cuidados, etc.
A D. Francisca de Aragão: este mote foi dado por esta senhora, e a glosa
acompanhada da carta que vae junta com as outras cartas em prosa. .
Eu não tenho que fx>s dar.
E não tenho que vos dar.
. Ediçllo de J59S.
u\
Trabalhos descansariSo, e(c.
Expor-se-ia a todo o trabalho de bom grado, se experimentasse o mais pe-
queno reconhecimento por parte da sua amante; porém acostumado a soíTrer as
suas cruezas, que esperanças pôde ter no futuro.
Triste vida se me ordena, ete.
Apesar da injustiça de querer satisfazer os seus seryiços com cruezas, não
pôde ter maior bem que ser\i-Ia; pois quanto mais pedir mais deverá, e são taes
08 seus merecimentos, e de tão alta estima, que ainda é' muito lavor querer que
os seus tormentos lhe fiquem por galardão.
Ja não posso ser contente, etc.
Perdida a a^perança, repelle os contentamentos e gosos que se lhe offe recém;
só deseja a solidão para cevar a sua tristeza, ou antes a morte para pôr termo
aos seus males; porquanto, no doloroso estado em que vive, nem morre, nem
tem vida.
^ A morte, pois que sou vosso, etc.
■ •
A huma dama que se chamava Anna: — Amor, para o experimentar, lhe apre-
sentou a morte para ver se a temeria; não a quer, mas se vier, será todo o seu
bem.
Amor te me achava forte.
Amor se m' achava forte.
Edição de 1595.
Enlendeo quanto me toca.
Disse o que mais n'a]ma toca.
Meu MS.
Vejo-a n'alma pintada, etc.
Despertado pelo desejo vé, na ausência, tão claramente retratada a sua amante,
que a traz debuxada na alma namorada, como se a tivera presente. Como o cegp
a quem falta a vista, e a natureza lhe dobrou a memoria, assim a elle a mesma
natureza, se lhe nega que veja com os olhos o- que deseja, lhe concede o natural
que não vé.
A$si a mi, que não vejo
y Co'ós olhos o que desejo.
Assim a mim, que não vejo
Os olhos ao que desejo.
Edição de 1595.
Sem vós e com meu cuidado, etc.
Ao mesmo assumpto do mote antecedente. O amor para que a levasse na al-
ma, fez com que se transformasse n*ella, deixando-o porém cego e sem guia, e
assim se ausenta.
462
Foi sempre que não errasse.
Nanca fez cousa que errasse.
Sem alma, qu'em si fx)s tem,
Co' o mal de viver sem ella.
MenlIS.
. Sem a alma que em si vos (em,
Co mal de viver sem ella.
EdiçSo de 1595.
Sem ventura he por demais, etc
Todo o trabalho produz gostoso fructo, vence tudo e torna os homens immor-
taes; porém querer achar ventura quem a nSo tem, é trabalho ocioso.
Rompe toda a pedra dura.
Rompem toda a pedra dura.
Ediçio de 1595.
^ Minh'a]ma, lembrae-vos delta, etc. ^
Pede á sua dama que lhe dô o gosto de a ver, prazer que para elle vale mil
vidas, ou lhe dô morte por uma vez.
Tudo pôde huma aíTeição, etc.
É tal o poder e jurisdicçâo do amor, que tudo liberta de temor humano, e
assim declarará por toda a parte quanto pôde uma aífeiçfto.
De todo humano temor.
De todo o humano temor.
Ediçio de 4595.
Justa fué mi perdicion, etc.
A uma trova de Boscan. Consentiu-lhe a amante a vista, e probíbiu-Ihe o de-
sejo, e depois compadeceurse da sua dor despertando-lhe o desejo; pede-lhe que
o nSo olhe, se não quer ver culpado o seu merecimento do desejo que faz nascer.
Em castelhano.
^ Satisfizo mi pasion.
Satisfizo a mi pasion.
Edição de 1595.
De zelos de mi dolor.
De celos de mi dolor.
Edição de 1595.
Todo es poço lo posible, etc.
É pouco intelli^ivel, e tem referencia a successos passados dos seus amores;
por isso são dif&ceis de interpretar estes versos.
465
Vos ieneis mi corazon, etc.
Amor o consola de lhe terem roubado os olhos, pois foi roubo feito pelos
. mais formosos que via desde que vive.
ift corazon me han robado.
Mi coraçon me aA robado.
Ediçio de 1593.
Que veré que me contente? etc.
Nâo pôde saciar-se com a vista da amante, assim, se o quer ver contente, n2o
lh'a roube.
Senora, vuestra beldad.
Senhora, vuestra beldade.
Edl(3o de 4616.
Pues $in vos plaeer no sierUe.
Pues si en vos ptazer no siente.
Ediçio de 1616.
Si no quereis que yo os vea.
Si no quereis que os vea.
Ediçio de Í6I6.
Sem vós, e com meu cuidado, etc.
Amor roubou-lhe a vista da ams^nte e cegou-o: qual seria pois a sua indi-
ffnaçáo contra o deus vendado, ficando sem ella e com o seu cuidado. Este mote
nca anteriormente glosado.
Retrato, vós nSo sois meu, etc.
A um seu retrato: vendo-o no seio da amante, em sitio tSo privilegiado, nSo
ousa acreditar tanta ventura, e duvida que seja d'elle; por isso lhe aconselha
que nSo confesse que é sèu, porque a sua mofina ventura o derrubará de tão
elevada altura. São bonitos estes versos.
lndaque'em vós a arte vença, /
Inda que em vós a arte vença.
EdiçSodei668.
Se he qtí,'eu sou quem d' antes era.
Se he que eu sou quem dantes era.
Ediçio de 4668
O qu'em mi he principal,
MuUo em ambos s' enganarão,
O que em mim he principal,
Muito em ambos se enganarão.
EdiçSo de 1668.
464
Quizn*ão represetitar,
E houverão por bom partido
Dar-vos a cama do sentido,
Quizereis representar,
Ouvera por bom partido
Dar-lho a alma do sentido.
Edição de 1668.
Que a serdes meu natural
Que serdes meu natural.
Ediçio de 1668.
Blazonae que sois divino.
Blasonai que sois divino.
Edição de 1668.
Conhecessem qu'ereis meu.
Conhecessem que éreis meu.
Edição de 1668.
Foi-se gastando a esperança, etc.
Apesar da esperança gasta e maltratado ingratamente pelo amor» pois nin-
guém foi mais fino amador, cresça a f é e fique n'alma impressa a leníbrança do
bem já passado.
Do mal ficárãú-me os danos.
Do mal ficarão meus danos.
Ediç9o áe 1668.
Qu'inda não erão chegados.
Que inda nSo erSo chegados.
EdiçSo de 1668.
Que a ninguém, como mais dino.
Que ninguém como mais dino.
Ediçlo de 1668.
Do mal ficárão-me os danos.
Do mal ficárSo meus danos.
EdiçJlo de 1668.
Aquella captiva, etc.
Endechas a Barbara escrava: — Parece impossível que sujeito iSo eseui^ in-
spirasse tão linda poesia. €hateaubriand traduziu para francez estes versos.
Quem ora soubesse, etc.
Fcz-se lavrador de amor, porém só colheu enganos o dor.
1
Stí mo levílo ágoas, etc. .
A lima despedida; protestos de saudade e constância que faz á amante cho-
rosa u'esta despedida. Sito naturaes e bem escriptos estes versos.
.4 lançar as á(jon$.
Alcançar ns ágons.
Ediçllo de 1595.
Ezlas de amar são.
Estas do mar silo.
• EdicHo do 4593
Afe leva, eu as levo.
Me levão, eu as levo.
EdiçAo de i595.
Menina dos olhos verdes, etc.
Duvida que sejam verdes os olhos da amante, porque o verde é cór de espe-
rança, e assim a daria aos seus amores.
Trocae o cuidado, etc.
AconsQlha-lhe que troque com elle o cuidado, para expiTimentar o qne 6 ser
desamada; porém arrepende-se porque ihe quer tanto bem que antes elle seja
maltratado, do que elia experimentar que castigo seja o ser desamada.
Que queira o perigo.
Que quero o perigo.
EdiçAo de 1595.
Ver, e mais guardar, etc.
A tenção de Miraguarda : — Cantiga antiga. Se quem a \é uma só vez se não
pôde guardar, o que acontecerá a quem a vé continuamente. O abster-se de a ver
seria o melhor partido; ter.1 porém força para faze-lo?
Da lindeza fx>ssa.
A lindeza vossa.
Ediçfto de 1595.
Iniie quiero, madre, etc.
Parece ser allegoria a uma senhora que acompanhou o amante ou marido
n'uma viagem.
' % Com él por que muero,
Con el por quien muero.
Ediçlo dp 1595.
TONO IV :)0
{60
Saudade minha, etc.
Aasenie, suspira pelo dia de tornar a ver a amante, esperança que lhe vae
faltando; desafoga n'estas saudosas queixas, e nSo lhe importa que a dor seja
grande, porque, quanto maior for também maior será a valia d*eUa.
Vida da minlia alma, etc.
Ausente, inveja a ventura que experimentava quando tinha a dita de gosar
da presença da amante; entSo vivia, agora a vida que passa não lhe pôde cha-
mar vida.
Coifa de beírame, etc.
Joanne é increpado peia amante de amar o toucado, e nSo a ella, que anda
cega e louca por elle. Nas edições antigas traz mais duas redondiihas, que vem
por ordem differenle. As duas que faltam aqui sfto as seguintes que estão depois
da segunda redondil ha :
Se aiffuem te vir, Quem ama assi
Que úirá de ti ? Pôde ser amada.
Que deixas a mim Ando maltratada
Por cousa táo vil! De amores por ti;
Terá bem aue rir, Ama-me a mi
Pois amas oeiranie, E deixa o beirame
£ a mim náo, Joanne. Que he razáo, Joann^*.
Cego e mui perdido.
Cego e perdido.
Edíçio de 1595.
Se Helena apartar, etc.
Descreve os eífeitos que produzem nos seres inanimados os olhos de Helena;
se sáo tfto milagrosos, o que farSo nos corações. Não sei se é esta a mesma He-
lena a quem se refere nas redondiihas que começam :
m
Não sei se m' engana, ele.
0$ veníoB serena.
Faz fiore$ d*ahrolhos
O ar de seus olhos.
«
He noite serena.
Paz secar abrolhos
Na luz de seus olhos.
Mco MS.
à primeira redondil ha segne-se esta, no meu Ms.:
A parle escurece
Donde os olhos tira,
E para onde os vira
O ar se esclarece, *
A terra florece,
Secam-se os abrolhos
Na luz de seus olhos.
1
{67
E posto em giolkos.
Pasma nos Seus olhos,
E posto de giolhos,
Lhe adora os olhos.
Mca MS.
Verdes são os campos, etc.
As bellezas da natureza tiram toda a sua essência da graça dos olhos da soa
amante.
Campo, que t' estendes.
Campo, que te estendeis.
Edi(So de 1598.
E eu das lembranças.
' Mas eu do lembranças.
Mou MS.
Isso que comeis.
Isto que comeis.
Mea MS.
São graça dos olhos.
Sáo graças dos olhos.
Meu MS.
Verdes são as hortas, etc.
Parece serem feitos estes versos ao ver algumas senhoras jardinando e re-
gando flores; representa um sitio cheio de rochedos e povoado de espesso arvo-
redo.
Com ágoa, que cai,
Co' a ágoa, que cay.
Bdíc3o de I99K.
Horlelóas delias.
Os ortelois delia.
Meo MS.
Menina formosa, etc.
Aconselha-a a nfto ser .esquiva, condição que diz mal com a formosura; pois
até a bonina sécca, se a terra é dura.
Menina formosa.
Menina fermosa.
Kdição de l.'>98.
Fique aníes formosa.
Fique antes fermosa.
Eiiiçilo de 1398.
{68
O Amor formoio,
O Amor fennoso
Ediçio de 1596.
Se amãj he piedoso.
Se ama, he piadoso.
EdiçSo de IS98.
Que quem he formosa.
Que quem he fermosa.
Edição de t598.
Havei dó, menina.
Dessa formosura ;
Que se a terra he dura .
Aveí dó, menina.
Dessa fermosura;
Que s*a terra he dura.
Edição de 1996
Sede piedosa,
Sôdp pia dosa.
EdiçXo de 4598.
Tende-me mâo netie, ele.
Grita após o Amor, que vae fugindo, devendo-Ihe a liberdadt; que lhe rou-
hou. Ha aqui uma conta de reaes que não entendo.
Que hum real me dere.
Qu'hum real me devp.
Ediçio de i596.
O falso ae atreve,
O falso 8'alreve.
Edição de «998.
^ Comp%'OU'me o amor.
r.omprou-me amor.
Edição de 1596.
Dar-me desfavor.
])ar-me dísfavor.
Edição de 4598.
Que ando opôs etle.
Qu'ando apóselle.
Edição de 4598.
No amor se atreve.
No amor s' atreve.
Edição de 4596.
1
mi
«
Dú la riil ventura, e(c.
Desde o berço o perseguiu a desventura, e nSo houve tormento que nAo ex-
perinientasse; o que não admira, pois nasceu em dia de uma estrella mui con-
traria. Só na sepultura pôde ter fini a sua desventura, e n&o se queixa d'ella;
porém sim que dure vida tâo mofina.
Vida de minha alma, etc.
Luta entre dois tormentos: o de não ver a sua dama e desejar, e o de a ver
e temer. t
Vida de minha alma.
Vida de niính^alma.
EdiçJlo ilc t845.
Temendo o despjo.
Desejo lemei\
E tenio o desejo.
Desejo o temer.
Edição de i(Jl6.
^ Pastora da serra, etc.
Parece fazer o elogio de uma senhora da serra da Estrella. objecto da admi-
ração dos pastores daquella serra, pela sua extraordinária belleza e encantos.
Jdaii que a formosura.
Mas da fermosurn.
EUiçSo do i6iG.
*Se ri, não cuidando.
Se rim, não cuidando.
Edi(9ode46l6.
Por ventura I^Uas,
Das que colhe delias,
por ventura drilas,
Das que colhe bèllas.
Edição de 4616.
Se n'ágoa corrente.
Se na ágoa corrente.
Edifij de 1616 .
Faz a luz divina.
Fm a luz cristalina.
Edição de 1616.
Por ver-se a ágoa nefla.
«
Por ver se ágoa nella.
Edírno.de'16iC.
470
Vós^sois boina Dama, etc.
Estes versos téem duas interpretações, louvando e desloavando orna dama;
lendo-se de alto a baixo, são em vitupério, e dobrando-os, em elogio; por esta
fóraia :
Vós sois buina Dama
Das feias do mundo;
De toda a má fama
Sois cabo profundo.
, A vossa figura
NSo be para ver;
Em vosso poder
Náo ha forrAosuhi.
V6s fosteii dotada
De toda a maldade;
Perfeita beldade
De vós he tirada.
Sois mui acabada
De taixa e de glosa :
Pois quanto a formosa,
Em vós náo lia nada.
Do grfto merecer
Sois bem apartada ;
Andais alongada
Do bem parecer.
Bem claro mostrais
Em vós fpaldade :
Não ha bí maldade,
Que nfto precedais.
De fresco carSo
Vos vejo ausente;
Em vós h" presente
A má condição.
De ter perfeição
Mui alheia estais;
Mui muito alcançais
De pouca razão.
Vai o bem fugindo, etc.
E^tas endechas vrm na primeira edição, d'onde so tiraram depois. Faria e
Sousa traz mais estas em seguida:
Grandes espornnças
Tem grandes desvios;
E grandes desvios
Certas as mudanças.
Anda mui vizinha
A queda á snhida;
Cs gostos (la vida
PassSo mui acimn.
Nas torrrs mais alias
Mais combate o vento;
O fnllar ^eni tento
Descobre mil faltas. «
Ninguém se contenta
Co'a sna ventura;
Onde ird segura
A náo com torinentn.
O qno siihio muito
Mais subir deseja;
Sempre deu a inve];i
Amargoso frui to.
O cego interesse
Desfaz amizades:
Nas prosperidades
A soberba crece.
O curso dos annos
Descobre a verdade;
A necessidade
He mestra de enganos.
Quem cuida que engana
Acha-se enpnado.
Necio. coníiado,
A fi mesmo dana.
Ser soberbo e pobre ^
He cousa de riso.
Nain he nmíto aviso
Dar ouro por cobre.
Do que pouco tem
Ninguém teni memoria.
Soberlta e vangloria.
Nam con juntam bem.
OUTRAS
Nesta vida escassa
Todo O bem se nega :
Quando acaso chega
Como raio passa.
Vão e vem os dia«.
As noites tanthem;
Se vão nunca vem
Firmes alegrias.
Cansão-me lembranças*
De cousas passadas.
Horas mal ga^tadas
Em vãs esperanças.
Lagrimas sem fruito
Pruiio de amor louco,
Valeste-me pouco,
Custaste muito.
• 47 <
•
D'spiri(os cativos Posto em liberdade
Me vejo cativo, Me vi mais perdido;
Entre mortos vivo, Outra vez metido
E morto entr' vivos. Nas mãos da vontade.
Se me não socorre
Divino favor.
De mi o melhor
Grande risco corre.
Diogo Bernardes, nas Varias Rimas ao Bom Jesus, traz estas daas ultimas en-
dechas, e n2o as que se imprimiram como de Camões.
ABC FEITO EM MOTES
No meu Ms. vem addicionados mais alguns motes.
B J
Bersabé com si'u prazer JuIio César conquistou
A £l*Rei David seguio, O mundo com fortaleza ,
E o vosso sol me «matou. Vós a mim com gentileza.
*
G C J
« Caim dizem que matou Judie ao grSo Allofernes
Abel sendo seu irmSo, Degolou, se vivo fora.
A mim vossa ingratidão. Morte lhe déreis, Senhora.
H
Caim se mostrou matador Minerva foi mui cruel.
Pela inveja que havia, Mas não chegou a metade
Vós a miiij por outra via. Da vossa gran crueldade.
E s
Esther por formosura Salomão, por adorar
A ser rainha e gran Senhora, Huma mulher, se perdeo;
Vós nome de matadora. E por vós me perdi eu.
6 z z
Geremias lamentando, • Zenobía, se sois por mim
Chorava com gran cuidado, Pedida de amor e fé,
E eu sou ja sepultado. Como essa por si he.
Zacharias emudeceu
Por hum pouco duvidar,
E eu só por vos fallar.
Não faço explicações a .esta poesia, aliás trivial, porque estas se encontram
nos diccionarios da fabula. No meu Ms. vem estes motes com o seguinte titulo :
•Moles feitos pelo ABC com historias antigas, que fez Luis de Camões a huma sua
dama». Esta dama, pela variante do primeiro mote do mesmo Ms., parece cha-
mar-se Anna; talvez a mesma do mote, a pag. 106^ que começa:
A morte, pois que sou vosso, etc.
Amor, quisestes que fosse.
Anna quisestes que fosse.
Ediçio de 1668 e o meu MS.
474
Serena na mór Fortuna
Com enganos vai cantando.
E tÓ8 sempre a mim matando.
»
Serea na formosura
Com engano vai cantando.
Vós a mim sempre uiatindo.
Meu MS..
•
Vénus, qfiê ppr mais formosa.
Lhe deo Paris a maçãa.
Não foi quanio tós £ouçãa.
Vénus, que nrtais fermosa,
Paris lhe julfi^ou a sorte,
Vós a mini dareis a niortr*.
M.'o MS.
Por vós não serdes, Senlwra,
Nascida naquella hora.
Porque nllo fostes, Senhora,
Presente naquella ora.
Moo MS.
Tanto, quanto sois formosa.
Tanto quanto sois fermosa.
Edição de 1S68. '
Na ediçSo de 1668, onde vem priineiro esta poesia, depois da letra X vem
roais estes dois motes :
Júlio Cezar se livrou
Dos imigos com abrolhos,
Eu não posso desses olhos.
Jazia-se o Minotauro
Preso no seu labyrintho,
Mas eu mais preso me sinto.
Por usar costume antigo, etc.
Carta eteripta d* Africa a hum amigo: — Expõe-lhe o estado apaixonado que
o domina longe da sua amante, e a saudade que o devora; pede novas do objecto
aue lh'a faz nutrir, e roga ao fidalgo continue os seus bons oflGcios perante a
aama, da qual pede novas, fundamentando na amisade d*este fidalgo, e no seu
patrocínio toda a consistência da sua ventura; ao mesmo fidalgo se dirige, por
a mesma occasi9o e igual motivo, na elegia ir, e muito explicitamente; é uma
maneira de exprimir inteiramente análoga á da variante inédita que publicámos
dVsta elegia. Alem da descri pçao quf^ faz do seu estado amoroso, dá noticia dos
negócios militares da praça, alludmdo a queixas mutuas da parle do governa-
dor a respeito dos moradores, e d'estes do go\iernador, por ventura de parle*a
parte injustas, e devidas sem duvida ao abandono forçado que se começava a
experimentar n'estas primeiras conquistas no ultramar, em tempo de D.João III,
que vergava com o peso de uma tdo vasta e dilatada monarchia.
Somente achei badaladas.
• Ja estes fdíz o Poeta na sua primeira carta escripta da índia) que tomárjo
esta opinião ae valentes ás costas, crede que nunca rioeras dei Duero arriba ca-
475
valgaron Çamoranos, que roncas de tal soberbia antre si fuesen hablando, e
quando vem ao effeito da obra salvao-se em dizer que se não podem fazer ta-
uuiDhas duas cousas como é prometer e dar.» O Poeta, vaIora<(o por natureza,
nio só nos logares seguintes, mas ainda eoi outros, niette a ridiculo estes ruiiôes
mais esforçados com a língua, do que com a espada.
Outros em cada theatro,
Por ofQcio lhe ouvires
Que se matarán con três,
Na paz mostrfio coração,
Na guerra mostrâo as costas;
Porque aqui torce a porca o rabo.
Disparaies na Índia.
SenSo ^nendo aquelle dia
Uue bade ser fim de dous anos.
Por estes versos se vô que o degredo tinha praso marcado. E^(a epistola de-
via ser das primeiras cousas qne escreveu da Africa, porque n'ella nSo faz men-
ção dos combates a que allude na seguinte e na elegiaai. Talvez este degredo
fosse de três annos, começado nas margens do Tejo e terminado na Africa. Os
seguintes versos da elegia i, escripta por esta occasião, parecem confirma-lo:
Até que venba aquelle alegre dia
Qu'eu vá onde vós ides, livre e ledo.
Mas tanto <empo^ quero o passaria?
As penas impostas aos que se atreviam a ter amores no paço eram severas,
«oino deixámos dito na bio^raphia; alem d'isto podia-se ter aggravado a causa
d'este castigo com alguma nxa ou dueUo.
Pois sei que em vossa rofio
£8tá meu bem e meu mal.
Por estes versos se vé que a pessoa, a quem o Po(?ta se dirigia n'esta carta,
era terceira n'estes amores, e tinha grande valimento com a dama; o mesmo se
deprebende da variante inédita que publicámos aa nota á elegia ii.
Dai-me o favor sem pejo,
Pois o dais a cousa vossa.
Veja-se a ode Vii em que o Poeta celebra D. Manuel de Portugal : ali se ex-
pressa de uma maneira muito análoga:
Saudade de uma banda
P'outra tento ao badalla
D'aqui muito claramente se colli^e que os amores do Poeta, ainda depois da
pena, náo estavam extinctos, mas exigiam grande segredo e recato.*
Mas be de nós Conde.
Se este verso é de Camões e não pertence aos alheios inseridos no (im de
eada redondiiba, dá a entender que esta poesia era dirigida a um conde; podia
ser o de Vimioso, ou de Redondo, ambos amigos e protectores de Camões.
A76
O dia das alabanças.
Torna o Poeta a marcar um praso determinado para termo do seu degredo,
e pela expressão ({ue emprega se vé com quanto alvoroço era por elle esperado.
Vem esta poesia em um Ms; do século xvn.
Handaste-me pedir novas, etc
Carla escripta d' Africa em resposla á de hum amigo: — Este lhe mandou pe-
dir novas: dá as suas, e de uma investida dos mouros á praça onde militava.
Cuidei que vida mudada. ^
Do mesmo modo se expressa na elegia n, escripla por esta mesma occasiâo :
Mas nem com isto, emfim, qu* estou dizendo.
Nem com as armas táo continuadas,
D' amorosas lembranças me defendo.
Faço no meu pensamento
Mais torres que as de Almeiíim.
Onde estão estas torres? ainda no fim do Beculo xvi era este paço uma das
casas onde os nossos reis se iam recrear, e hoje está tudo nivelado com o chão;
as suas torres estão derrubadas do mesmo modo que aquellas quê o Poeta fazia
no seu pensamento. Parece que um anathema foi lançado contra estas muralhas,
onde um rei caduco e portuguezes vendidos entregaram o reino ao estrangeiro.
Quem disser que a saudade.
O Poeta descreve n*esta poesia o seu estado apaixonado com as* mesmas co-
res exactamente com que o fez na elegia ii, também escripta por esta occasifto.
Aqui, como na primeira poesia, é corroído pela saudade mais violenta, divaga
solitário ao longo do mar, através do qual dilata a vista até á pátria : a analo-
gia das suas composições é igual; a descripção, os sentimentos expressados os
mesmos.
Vi venir pendon bremejo.
Descreve uma investida á praça feita pelos mouros, á qual, na forma do cos-
tume, dá pouca imjportância; o mesmo usa quando descreve a sua primeira ex-
pedição na índia. O no9SO Poeta não era bom para redigir boletins de batalhas.
A las arn)as Mouriscote.
Veja-se a carta i em prosa escripta da índia: «... mas os que sua opinião
deita á las armas Mouriscote, como maré corpos mortos á praia», etc.
, A que muerte condenado.
Termina a carta com o receio, que manifesta na primeira, de fallar nos seus
amores, e aue isto possa de alguma maneira constar. Vem esta poesia em um
Ms. do século xvii.
Senhora, quando imagino, etc.
Carta a huma Senhora: — Encarece as qualidades da amante, e expõe o seu
pouco merecimento para amar tão divina formosura e dama tão perfeita; porém
J77_
depois volta sobre o que disse, e reputa-se idóneo para a amar, pois mudou o
ser humano no divino, por virtude de gesto t&o soberano. No Ms. de Manuel de
Faria e Sousa. ^
Afuera consejos vanos, etc.
Poesia burlesca a uma mulher que o queria disfructar na bolsa; aconselha-a
que procure outro, e o deixe com a sua dor. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Lagrimas dirão por mim, etc.
A uma despediíla: lêem verdadeiro sentimento estes versos. JLagrimas ver-
dadeiras e sinceras, que nSo se sabem fingir, 'fallarão por elle quando a pena da
partida lhe tirar a falia e a vida. No Ms. de Manuel de* Faria e Sousa.
Prazeres, que me quereis ? etc.
Diz aos prazeres, que sempre o enganaram, que o deixem com a suji tristeza,
pois essa lhe tem sido sempre fiel companheira. De seus contentamentos appa-
rentes tem já experiência certa; assim busquem outro a quem enganem. No Ms.
de Ifanuel de Faria e Sousa.
^espero, sei que m'engano, etc.
Vive entre dois extremos: temendo sempre o bem que espera, e sendo este
impossível, não podendo com tudo desesperar. Este mote foi glosado duas vezes
por Diogo Bernardes, e em uma d'elias por esta forma; Francisco Rodrigues Lobo
também o glosou na sua Pnmavera. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Peço-vos que me digais, etc.
A hvma Senhora rezando: — V^endo a sua dama a orar, e toda inflammada
no amor divino, .recorda-lhe quilo pouco serão aceitas as^uas rezas, tendo rou-
bado tantos corações, se elias n«1o forem acompanhadas de uma verdadeira con-
trição e da satisfação dos daninos causados; assim, se quer, restitua-lhe a vida
que lhe roubou. Galante poesia, e ao mesmo assumpto escreveu o lindo so-
neto ccxLvi e as redondilhas antecedentes, glosando o mesmo mote. No Ms. de
Manuel de Faria e Sousa.
Ora cuidar me assegura, etc.
Vive em tal incerteza e tormento com os seus amores, que os mesmos cui-
dados que lhe dão vida, lhe dão a morte. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Ú meos altos pensamentos, etc.
Embora conhecesse que eram aéreos e sem Ifase os seus pensamentos, tínha-os
elevado tão alto que agora sente o cair de tão grande altura. No Ms. de Manuel
de Faria e Sousa.
Esperanças mal tomadas, etc.
Ao mesmo assumpto da redondil ha
S' espero, sei que m' engano.
478
Embora as suas esperanças sejam vSs e sem fundamento. n9o as pôde deixar,
pois é origem d'ella8 a soa aniante. No Ms. de Manuel de Paria e Sonsa.
Como quer que tendes vida, etc
Pede a uma mulher quf^ se lhe entregue, pelo menos uma hora, e despache
bem o seu requerimento. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Em tudo vejo mudanças, etc.
A estas esperanças vãs e mal concebidas escreveu o Poeta, como temos visto,
varias poesias; sendo vãs, falsas e dando-lhe tanto tormento, ainda assim as nSo
aborrece. No Ms. de Manuii de Faria e Sousa.
Ay de mim, mas de vós ay, etc.
Diz á ^ama que attenda bem no qae faz matando-o, porquanto ella é nisso
mais prejudicada. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Lume desta vida, etc. '
Acróstico de Imís e Caterina de Ataíde. Re»ente-se esta redondil ha da natu-
reza das poesias restrictas a estas formas mesquinhas; o assumpto, isto é, o
nome da sua amante, como em outras occasiões, deveria eldvar mais o estro
do Poeta. No mesmo Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Que vistes meus olhos? etc.
NSo é bem claro se se dirige aos seus olhos ou aos de uma senhora. Se s2o
chorosos de amor e de esperanças lisonjeiras, ditosa dor, ditosas lagrimas; po-
rém se de desfavor, á% efiganos e cuidados, deixem passar os annos e não serio
tristes. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa, e traz esta cota; No Ms. novo.
Ay de mim, etc.
-Diz á dama que será responsável da sua vida perante Deus, pois aindaque
a parte perdoe fica o caso á justiça; todos sabem, os que téem pratica de foro,
que eQ)bora a parte se não desaggrave, toma ella a si esse dever. Em castelhano,
no Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Guardai-me esses olhos bellos, etc.
Embora srj.uit lindos os cabeyos da dama, guarde-os' amor para si, queelle
prefere os olhos, pois é d'elles que se mantém e vive. No Ms. de Manuel de
Faria e Sousa.
Por huns olhos que fugirão, etc
Explica o efTeito que produziu nVlle a vista dos olhos de uma seahora. Alem
de o cegarem, nunca mais sentiu prazer por os não tornar a ver. No Ms. de
Manuel de Faria e Sousa.
No moote de amor andei, etc.
Esta poesia YÍsiveimente é escrípta ajima senhora que se appellidava Gama,
talvez pareata do próprio Poeta, que era aparentado com esta íiimilia por sua avó
D. Guiomar* da Gama, dos Gamas do Algarve. O assumpto parece ser um desen-
contro com a mesma senhora. Vem estes versos no Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Tal estoi despaes que os vi, etc.
Em castelhano:' declara-se namorado ao mesmo tempo de amor pela dama,
assompto d'e8ta poesia, e de si mesmo. Vem no Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
De vós quererdes meu mal, etc.
Fortalece-se no soffri mento do sen mal com a causa que lh'o faz soífrer, e
resigna-se contente á pena, porque lh'a ordena a sua dama. No Ms. de Manuel
de taria e Sousa. j
No meu peito o meu desejo, etc.
No seu amor é certo o damuo que se segue voluntariamente, nSo dando ou-
vidos A rasflo, mas incerto o remédio. No Ms. de Manuel de Faria e Sousa.
Nasce estrella d'alva, etc.
Ao nascimento de Christo: versos provavelmente para serem recitados na
noite de Natal. Parecem mais do estyio de Diogo Bernardes. Vem no Ms. de
Manuel de Faria e Sousa.
Amor que vio minha dor, etc.
Carta a huma Senhora: — Amor tirou uma penoa das azas, e mandou qne es-
crevesse o que elle dictasse; pede, na forma ao costume, uma entrevista. Esta
carta, bem como outras poesias d'e8ta natureza, pôde bem ser que nSo fosse di-
^ rectamente dirigida peio Poeta, màs i^im escrípta para algum estranho apoucado
de talento poético para a escrever. Existia n'outro tempo este commercio, e tal-
vez o Poeta em occasiâo de apuro recorresse a este meio. Vem no meu Ms.
Carta minha tão ditosa, etc.
Parece ser escrípta á mesma senhora^ e em continuação da primeira carrta,
porquanto é o mesmo amor que dictou a outra, que a^ora se encarrega de dictar
esta. Parece que nfio houve resposta da prímeira missiva, e agora n'e8ta a re-
clama cora encarecimentos de amor; estabelece novos paralleios para render a
praça, que pede se nfto renda a outro. No méu Ms.
Pois que, Senhora, folgais, etc.
A uma senhora que em um rompimento de relações amorosas lhe ordenou
que mais n.1o lhe apparecesse. Desforço jocoso do Poeta, em que lhe assevera
3ue nada perde com a quebra d'estes amores. Já se vé que esta poesia não foi
irígida á amante; talvez a flzesse para um outro a enviar a alguma senhora.
No meu Ms.
J80
Olvide y avoroscy, etc.
Intendimenlo a este verso: — Com este titulo vem estes versos no meu Ms.
Para evitar dias máos, etc.
A humas Senhoras que jogando per (o de huma janella lhes cahirão três páos e
derão na cabeça de Camões:^ A forca ó triangular, por isso o Poeta allude aos
três paus do baralho que lhe caíram na cabeça, referindo-se ao instrumento do
supplicio ; fazemos esta explicação, não para nós que o sabemos, mas para in-
teliigencia de algum estrangeiro, se lhe cair nas mãos esta poesia, a qual talvez
não entenderia sem ella. Na carta ii, em prosa, se encontra também uma allusão
aos três paus do baralho:
Eu então por burlar quem me burlou,
Tros páos joguei, e disse que ganhasse.
Este improviso vem também no meu Ms.
BL-REI SELEDCO
Foi impresso este auto, pela primeira vez, no aano de 1616 sobre um Ms.
que possuía o conde de Penaguião. É precedido de um prologo dramático, e
composto, segundo se deprehende do mesmo prologo, em o curto espaço de três
dias e representado em casa de um Estacio da Fonseca, enteado de Duarte Ro>
drigues, reposteiro d'el-rei D. João 111, o qual exerceu no paço dííTerentes car-
gos : almoxarife dos paços de Alcáçova (1551) ; recebedor dos dinheiros das apo-
sentadorias da corte (1565); e por ultimo, cavalleiro fidalgo e thesoureiro das
moradias da corte (1574). Devia ser escripto depois do anno de 1545, pois no
prologo o moro diz, fazendo menção da moeda, os basarucos: «. . .que se agora
fora aquelle (empo em aue corrião as moedas do^-sambarcos», etc, os quaes
corriam ainda no tempo ae D. João de Castro, pois n'este mesmo anno revogou
este vice-rei a lei de veu antecessor Martim Áffonso de Sousa, que lhe alterava
o valor.
O prologo é escripto em prosa e estylo burlesco, e não deixa de nos dar al-
guma noticia d' estas representações particulares; por elle vemos que era cos-
tume deixar entrar o publico que podia ser admittido, e que o-representador
explicava o argumento da peça ou como n'esta suspendia a attenção, e prepa-
rava a surpreza annunciando divertimento diíferente; n'este mesmo faz o nosso
Poeta menção do Chiado, cpmo bom trovista.
O facto narrado por Plutarcho, de Seleuco rei da Syria, que cede a mulher
a seu filho Ântiocho, que apaixonado da madrasta chega ás portas da morte,
forma o assumpto doeste auto, que tem sido reputado difficil, e por isso pouco
próprio para o theatro. Eis como a este respeito se expressa o abbade d'Aubi-
gnac (La pratique du théatre, etc. Amsterdam, 1715, tomo i, pag. 57) : «D'avan-
tage il ne faut pas s'lmaginer que toutes les belles histoires puissent heureuse-
car Ic senl accident considérable, est Tadresse du Medécin qui fit passer á*^
vant les yeux de ce jeune Prince malade depuis longtemps toutes les Dames de
la Cour a fín de jugor par Témotion de son poulx celle qu'il aimaít et qui cau-
sait sa maladíe; et j'eslime qu'il est três difficile de faire un Poéme Dramatique,
dont ce Héros sojt to^ljours au lit, ni de représenter cette circonstance; et qu'il
a peu de moiens de la cbanger en telle sorte que Toii en put conserver les agre-
mens; outre que le temps, et le lieu de la scene seraíent três difiiciles à ren-
4S\
coDtrer; car si Antiochus est au lit le matin» il faudra bien travailler pour le
faire agir dans le méme jour. De méme aossi la scene dans la chambre du roa-
lade, ou devant sa porte cela ne seroit gaere raisonable. La Theodore de Mon-
sieur Comeille n*a pas eú tant de succès ni toute Tapprobation qu'elle meritoit».
Apesar comtudo d'esta difficuldade, deparámos com duas peças d*este mesmo
assumpto no theatro italiano no século xvii, uma para musica, e representada
no theatro S. Cassiano : « Antioeo D. per Muiica de N. M, stU teatro S. Ccasiano
per l'anno 1658 in Venei.», e outra por uma senhora, escripta em prosa e verso :
mLa StraUmica Tragieomedia di Angdiea Scaramueia in Viterbo, Í609«. Agosti-
nho Moreto tratou o mesmo assumpto em Hespanha : • Comedia Famosa Antioeo.
e Seleueo, de Dm Agustin Moreto ». Mo nos sobra aqui o espaço para confrontar-^
mos estas differentes peças com a do nosso Poeta, o que talvez faremos em ou-'
tra occasião, e assim umitar-nos-hemos a dizer duas palavras sobre a sua com-
posição.
»Sem ser uma peça de grande merecimento, de espaço a espaço apparecem
comtudo lampejos do génio de CamOes. O enredo do auto é simples, e resolvida
a diíBculdade que aponta mr. d'Aubignac, tratada com o génio com que Racine
tratou a Phedra, uma scena de declaração feita á rainha, poderia fazer um bello
effeito dramático no theatro moderno; Camões evitou este passo, e é^por um
papel que lhe cáe quando se reclina na cama, apanhado pela aia da rainha, que
ella vem no conhecimento do amor illicito do príncipe, amor i Ilícito de que
ella sé acha também ferida, e assim foi talvez para evitar o embaraço que devia
seguir- se da entrevista entre os dois, que Camões fugiu a esta scena, preparando
comtudo de ante-mao para o desfecho final, e tornando natural a união dos dois, .
peld interesse que ella mostra pelo prineipe, e pelas confidencias com a aia, a
quem declara o amor que tem pelo entiado, pezarosa de ter vendido a liberdade,
conservando-se com todo o decoro n'esta luta do coraçflo.
Emquanto ao estylo, tem todd o colorido da epocha; o príncipe exprime-se*
nos seus amores no estylo de Petrarcha, e o mesmo anachronismo se nota nos
outros personagens: Sancho é o gracioso moderno, um dos musidos ó o sr. Ale-
xandre da Fonseca, e o porteiro recita motes entoados em cantochflo.
A comedia de Moreto é mais apparatosa e acompanhada de incidentes mais
variados; conheceu o auctor hespanhol a do nosso Poeta, como se vé da scena
dos músicos, e do discurso àue na peça portugneza faz o moço, e na hespanhola
o gracioso Lnquete, sobre a delicadeza no trato e melindres dos príncipes e gran-
de senhores, comparada com os trabalhos pbysicos que experimentam os ho^
roens ordinários do povo. O dialogo do physico e do bobo em Camões é cómico,
^ a scena do mesmo physico quando revela ao rei a paixão do filho pela rainha,
é bem conduzida e me parece mais natural e com mais arte do que a de Moreto.
Esta comedia nâo devia agradar na corte, pois, sabemos que el-rei D. Manuel
não representou com seu filho D. João 111 o papel de Seleueo, antes lhe tomou
a noiva que lhe estava destinada.
os amphitriOks
o argumento d'esta peça eminentemente cómica, antes de Plauto^^tinha sido
tratado por Archipo e Êuripides; no começo do século xvi (ISCfô) reproduziu
Villalobos na lingua castelhana a comedia latina, acommodada á representação,
imitando-a pouco depois (1545), na Itália Ludovico Daiee (II Marito), em Por-
tugal o nosso Poeta, e mais tarde o poeta inglez Dryden e o celebre Holière.
O ser escolhida por homens tão eminentes, demonstra que acharam esta
fabula mui adaptada para ser tratada no theatro. Se na comeaia de Seleueo de-
parámos com alguns lampejos de génio de Camões, n^este auto dos Amphitriões
ou Enphatrioens, como então se dizia, apparece uma força mais cómica, e se
exceptuarmos algumas scenas accessorias revestidas de um certo modernismo
e anachronismos a que o Poeta talvez era obrigado para satisfazer o gosto de
uma parte dos espectadores, não receámos afiSrmar que n'ella corre parelhas,
senão excede ás vezes o poeta latino imitado e o próprio Molière. N'este caso
TOMO IV .71
482
estSo, a mea ver, as seenas v e vi do acto n, de Soeea e Mercurío contrafeito cm
Sosea, que é superíor á de Plaoto e de Molière, e n^ootrae lhes é i^al: o enredo
da peca geralmente é bem conduzido, o estyio mai cómico e incisivo, e o final
mais oem ordenado do que em Flauto e Molière. Na peça francesa apparece Jú-
piter montado na Águia entre ondas de lui, e revela a Amphitríao o que deu
causa á mvstíficaçflo que tanto o atormentou, vaticinando-ihe o futuro nasci-
mento de Hercules que deveria provir d'esse concubíto; pai«ce-me une isto nâo
devia consolar muito AmpbitriSo, e assim o expressa Molière pela oôca de So-
sea nos últimos versos com que termina a sua comedia:
Sur telles affaíres toujours
Le meilleur est de ne ríen dire.
Na comedia portuguesa o final acaba de uma maneira muito mais dramá-
tica, e é mais bem condueido. Aurélio, primo de Alcmena, a quem Amphitriiío
se havia queixado da affronta na sua nonra, conjuntamente coro Belferráo, o
patrão do navio, e Sosea se dirigem a casa de Alcmena para forçar a entrada e
aclarar toda esta embrulhada; porém ao penetrar na casa sSo de súbito fulmi-
nados pelo clarfto de raios de luz que a esclarecem, desapmrecendo n'isto o em-
busteiro Júpiter, .perd0e-roe sua divindade, com um ruiao grande e horrendo.
Attonitos e assombrados da claridade que os cega, saem, e encontrando Amphi-
tríáo, narram rapidamente o acontecido, pedindo-lhe que preste ouvido aitento
á voz que inda sôa. É a de Júpiter que de dentro aclara a Amphitríflo o que se
ha passaoo, consolando-o com o vaticínio que faz das glorias de Hercules que
nascerá d'este ajuntamento, doírando-lhe a pílula como pôde:
Quiz-me vestir em teu gesto,
Por honrar tua geraçáo.
Molière ao mesmo assumpto disse:
L'éc]at d'une fortune eo mille biens fécoiule.
Fera connaitre à tous que je suis ten support.
Parece-^n^e em Gamões roais bem doirada, assim como já dissemos este final
todo mais artisticamente trabalhado. O theatro repentinamente esclarecido por
entre a transparência do panno da boca do mesmo theatro, uma voz sobrenatu-
ral, auxiliada talvez por um porta- voz, annunciando as grandes venturas de Am-
fSiitriáo, me parece mais theatral do que Júpiter escarranchado na águia, e fal-
ando cara a cara com Amphitrião, que deve achar-se n*uma posiçfto. critica, e
que talvez dispensasse tanta honra.
Esta comedia, que revela aonde podia chegar o génio vasto de Gamões, se a
sua vocaçáo o chamasse exclusivamente para o theatro, e nâo o aguardasse
ainda mais elevada esphera, na litteratura tem sido olhada com pouca attençlo
pelos nossos philologos; admira-me como bellezas cómicas de tlh> subido quilate
nfio feriram a vista do nosso aliás distinctissigio académico Sebastião Td^oso.
Nâo aconteceu porém assim no seu tempo; representada ou perante académicos,
ou na presença de uma aristocracia das mais iilustradas da Europa, a quem os
exemplares da língua latina eram tSo familiares como os da lingua própria, cu-
briram de applausos o auctor, e foi sem duvida no meio d'estes applausos e ova-
ção que um enthusiasta, admirador do Poeta, rompeu em sen louvor com o
guinte soneto improvisado:
Quem he este que na harpa Lusitana
Abate as Musas Gregas, e Latinas?
E faz que ao mundo esqueçam as Plautínas
Graças, com graça alegre, e lyra ufana?
1
485
LoÍ8 de- Camões he» que a Soberana
Potencia lhe influio partes divinas,
Com que espiram as flores, e boninas,
Da Homérica Musa, e Mantuana.
Se tu, triumphante Roma, este alcançaras
No teu theatro, e scena luminosa,
Nunca do grfto Terêncio te admiraras.
Mas antes, sem contraste, curiosa
Estatua de ouro ali lhe levantaras,
Contente de ventura tão ditosa.
Foi este auto, bem como o de Filodemo, Impresso pela primeira vez no anno
de 1587, na raríssima collecçSo dos autos de António Prestes, da qual apenas
conhecemos em Lisboa o exemplar que possue o sr. Sousa Lobo; é para sentir
que nAo se proceda a uma reimpressão, com a qual faria o distincto litterato,
possuidor do livro, valioso serviço á litteratura nacional, pois conjunctamente
estáo outros autos do século xvt,.e com- qualquer descaminho do livro, será ine-
vitável a perda d'estes, se fora do reino se nâo descobrir outro exemplar.
Esta tragicomedia foi representada na índia, ao governador Francisco Bar-,
reto, para celebrar a investidura do seu governo, nas festas que os fidalgos e
povo de Goa fizeram por esta occasiAo, coroo consta do Ms. de Luiz Franco, onde
vem incluída com este titulo: m Comédia feita por Iam de Camõet. Repre$entada
na índia a franeiteo de harreto. Em a qual etUrão as figutat seguintes, etc.»
Representada logo no principio da sua estada na Indiá, é repassada ás vezes de
um certo fel, o mie me induz muito a acreditar que fosse feita na viagem para
a índia, para se desenfastiar de uma tito enfadonha viagem, e auando as feridas
recebidas no reino ainda sangravam; nao estava porém acaoada quando foi
posta em scena, porque depois reduziu a verso algumas passagens que no ma-
nuscripto vem em prosa. Sáo bastantes as variantes no manuscripto, o que nos
levaria a termos que repetir uma impressão d'este auto; fimiLir-nos-hemos pois
a darmos alguns versos que náo vêem no impresso, e alguma variante mais sa-
liente que possa convir para emendar os erros em que abunda o auto impresso,
postoque, em partes, o manuscripto não está menos incorrecto.
Não sei o romance d'onde Camões tirou o fundamento para esta ti^agicome-
dia; parece ter comtudo uma certa analogia com uma lenda genealógica da casa
de Marialva, de' uma tal infanta Cras, filha do rei Ordonho.
Depois do verso:
Assas me custa do meu,
vem a seguinte estancia, que nflo está impressa :
SOLINA
Pois dii^ei por vossa vida
Vós que podereis querer delta? -
FILODBMO
Eu não quero mais que querela,
Que vida tão bem perdida
O gaoha-k está em perdella.
Porque os pensamentos meus
Tenho por tanta ousadia.
Que se acerto algum dia
Pôr os meus olhos nos CiK)s
Me parece inda heresia.
Do dialogo em prosa que com6|ça: «Pois não creio em S. Pisco de páo », etc,
copiámos a parte onde é mais saliente a mudança, porque convém para emen-
484
dar o erro grosseiro, que Tem no origina], de Vaie Luzo por Valcbiosa, logar
romântico dos amores de Petrarcha :
DORIANO
«... Ora désengano-vos qne foi a maior rapazia do mundo altos espíritos,
porque eu nSo darei duas pescoçadas da minha beoi-ni cem depois de ter feito
a trosquia a um frasco, e falar-me por tu e fingi r-se bêbada, porque pareça oue
o nAo está, por quantos sonetos estão escritos pelos tronquos oas arvores de Yal-
chiusa, nem por quantas Madamas Lauras yós idolatrais, que se veoi á máo.
FILODEMO
«Tá que vos perdeis, nSo consinto que vades mais avante.
DORIAKO
«Queres apostar que adivinho o quç quereis dizer?
FILODBVO
«Que? .
DORUNO
« Que se me nSo açudes com o batel, que me hia nesse de amor.
PltODBMO
« Ó que certeza tamanha do muito pecador, nSo se conhecer por esse.
DORIANO
«Mas que certeza tamanha do muito enganado, embirrar em sua opíniSo.
FILODEMO
« Se nSo tivesse por maior offensa o que faço a meu pensamento em vos con-
tradizer, que telo secretamente, gastara humas poucas de palavras comvosco; mas
ainda eu não tenho as minhas em tão má conta, que as queira tão mal empre-
gadas.
DORIANO
« Ja falamos por meu pensamento, ay era má, peza-me que éreis um homem
de bom saber e boa conversação; mas prazerá a Deos que me chorareis, e vos
porá no caminho da verdade. Entornando ao nosso preposito que he o que para
que me buscais que se íor causa da vossa saúde tudo farei.
DORIANO
«... Bem praticado está isto, mas a. outro perro com esse osso criei, dias ha
que não creo em sonhos.
FILODEMO
«Porque dizeis isto?
DORIANO
« Eu volo direi, porque vós outros que amais pela passiva dizeis que o ama-
dor fino como melão, que não hade querer mais de sua dama que ama-la viva,
e virá logo o vosso Petro Bembo e Petrarcha, e outros trinta Piatois (mais safados
destes hypocritas que umas luvas de pagem d'arte) mostrando-vos nesôes vero-
símilhantes para homem não auerer mais de sua dama, que ver e até failar, e
ainda ouve outros inquisidores a'amor mais especulativos, que defenderão a vista
por não emprenhar o desejo, e eu faço voto a ueos que se a qualquer destes lhe
entregarem sua dama entre dous pratos tosada e aparelhada, que não fique pe-
dra sobre pedra, nem lugar sagrado em que se possa dizer missa dahi a mil an-
485
no8, nem lugar Uo privilegiado em que 'a fúria da justiça nSo buscasse até os
caninhos escaninhos; de mim vos sei dizer que os meus amores hfio dcser acti-
vos, e eu heide ser a pessoa agente e ella a paciente, e esta he a verdade , mas
tornando a nosso preposíto váV. M.'*' com sua historia avante.
PILODEMO
«Vou, porque vos confesso que ha nesle caso muitas duvidas nos doutores.
Mas assy como vos contava estando esta manhSa bem trinta ou corenta legoas
pelo certfto de meu pensamento, muito, com a viola nas mãos, perto de la amo-
rosa torre, senfto quando me toma de traição Solina, e entre algumas pratiquas
que tivemos certincon-me que a Senhora Dioniza se levantara da cama para me
ouvir.
DORIAKO
tt Cobres e tostes, sinal de terra : pois ainda vos nSo fazia tanto avante. »
Se foi a censura que cortou parte d'este dialogo, teve alguma rasSo, porque
nSo é o sacrifício da missa objecto para uma comparação tâo excessivamente
profana; o Poeta nâo o fez com má tençflo, mas para exagerar o fingimento dos
bypocritas a que allude.
DORIANO
«Ó Santa Maria Senhora. . . em que ella quer aue eu caya, porque este fin-
gimento nâo he senão fazer-me sede delia. Comtudo se vos a vós cumprir será
necessário que me transtorne n'outro, porque neste que agora sou he impossi-
vel eu querer-lhe nenhum bem.»
A continuação do dialogo mostra que falta o que vem no manuscrípto.
DORIANO
«... Deixay-me vós a mim o cargo, que eu sei melhor as pancadas que vós,
e eu vos farei hoje este dia sem negaça vir-nos, e vós acolhei-nos ao sagrado,
porque ella lá aparece.
FILODBMO
« Fazei que a não vedes e fallai comvosco alguns pensamentos que façSo ao
caso.»
A redondilha que começa :
Ah quão longe estará agora, etc.
Vem no manuscrípto em prosa, por esta forma :
DORIANO
«... Quão lonffe estará agora a Sr.* Solina de cuidar que ja canso de cuidar
como meus cuidados não cansão. Se esta rapariga da fortuna, minha senhora,
em pago de tantos danos consentisse que pudesse meu desejo deitar uma an-
cora em vossa formosura, eu tomaria de vós vingança de fogo.e ferro.»
Depois do verso :
Quem ja fendas não sente,
vem estes versos que não estão no impresso :
Pois que aqui estamos sós,
Vós e eu, minha fim,
Mal volo demande Dios
Porque vós fugis de mim,
£ eu de mim para vós.
486
Depois do verso :
Qne mágoa no coraçSo,
vem as seguintes redondílhas:
De ^ue serve assim ^tar
A vida em tantas paixões,
Nam mais que i)or sustentar
Estas vSas opiniões
Que o vulgo foi inventar,
Onras grandes, nome eterno
.Nenhuma outra cousa dSo,
Que para as almas inferno
E dores no coraçSo.
Quem nSo pertende morar
Ipocrita em huma Ermida,
Quem nlo ade jejuar,
Disciplínar-se e chorar
Para fingir santa vida,
Porque n2o se logrará
Do tempo que tem nas mSos,
Ou porque sustentará
Onras falsas, nomes váos
A custa da vida má.
Certamente que m'espanto
Desta opinião errada.
Como está táo arreigada
Que custando a vida tanto,
Émfim, emfim não he nada.
De lá nacerfto as guerras,
Os danos e morte da gente,
Por ella só se consente
Correr mares, buscar terras
Pok sustentar somente.
Por esta nossa enemiga
Vereis logo o mundo vSo .
Ter em má opinião
A mulher que o Amor obriga
A natural affeição.
Assi que é meu pensar
Quem estas verdades mede,
Pois no mundo quer viver,
Deve certo de fazer
O que lhe a vontade pede.
Se nisto replicais
Que ofendo as leis do ceo,
Os que as onras sustentais
Dizei-me, servis a Deus;
Mas errai-lo muito mais.
Ora, Senhora, este error
Consinto que seja culpa.
Porque tão sobejo amor.
Todos os erros desculpa.
J87_
N'este8 versos não podemos ver outra cousa mais do que a hyperbole para
desculpar talvez erros próprios, acompanhada de um certo resentimento, que se
nota em mais de um logac d'este auto, por offensas recebidas no reino da parte
de homens que apparentando a austeridade da virtude, sendo aliás propensos para
o vicio, o perseguiram e incommodaram nos seus amores. Talvez que a cara-
puça que aqui pretende talhar, assentasse na cabeça d'aquelle a quem se refere
na satyra dos Disparatei da Indifl. A moral aqui apregoada nSo seria a mais
pura, se a não olhássemos como a ironia provocada pelo resentimento, e está em
FBrfeita opposição com os sentimentos religiosos constantemente sustentados pelo
oeta não só nos Lustadoê, já em outros logares : na bella e violenta apostrophe
em que convida os príncipes catholicos para resgatarem o santo sepulcbro, como
nas Rimai, especialmente n'aquellas redondilhas tão divinamente inspiradas e
saídas do coração, por occasião do naufrágio em que se notam estes versos :
E tu, ó carne, qu'encantas,
Filha de Babel tão féía.
Toda de miséria cheia,
« - Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia ;
Beato só pôde ser
Quem CO* a ajuda celeMe
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu íizeste :
Quem com disciplina crua
Se fere mais que huma vez:
Cuja alma, de vi cios nua.
Faz nodas na carne sua,
Que ja a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes,
E em nascendo os aíTogar,
Por não virem a parar
Em vicios graves e urgentes.
O desafogo do Poeta é diríj^ido contra a hypocrisia,*e não contra o verda-
deiro religioso. Depois do verso :
vem esta variante:
* Caio pedaço a pedaço,
E fnaii eu soffrer não pouo
Que me façais tanto fero,
Qu' estou ja posto no osso.
Porque sou fX>sso e revosso
Por vida de quanto quero.
E mais eu sofrer não posso
Que um archanjo dos Ceos,
Que me corte carne e osso,
Porque sou vosso e revosso
Pelo Santo dia de Deos.
r
Mais adiante depois do verso
Mal consentira la espuela,
vem mais estes versos:
Pues sus, canta si mandais.
488
PLORIMENA
Padre no quero cantar.
PASTOR
Porque?
PLORIMENA
Porque no me dais que tragar
Ni tan poço rae casais.
PASTOR
Canta que algo te ande dar.
Faltam estes versos no manu^ripto :
£1 macho como crecio
Deseoso de otro bien,
A la corte se partio,
La hembra es esta por quien
Vuestro hijo se perdio.
Falta lambem todo o dialogo em prosa^ desde : « Assi te contava, Doloroso». . .
até que pór os pés ao caminho, e mostrar-lhe as ferraduras». O resto do dialogo
faz pouca differença no manuscrípto.
índice
DAS POESUS CONTIDAS N'ESTE VOLUME
R£DONDILHAS
A alma qu*está offrecida 96
. A dor qoo a minha alma sente :,.. 58
' Afuera coosejos vanos. . ; ; 161
Amores de huma casada 59
Amor loco, amor loco 67
Amor, qae todos offende 53
Amor, quiseste gae fosse 142
Amor que vio minha dor 182
A morie, pois que sou vosso 106
ApartárSo-se os meus olhos 62
Aquella captiva / 118
Ay de mim 173
Ay de mim, mas de vós ay , 170
Carta minha tflo ditosa 187
Catharina bem promete 94
.Cinco gallinhas e meia 94
Coifa de beirame , 128
Como quer que tendes vida 169
Com razSo queixar-me posso 99
Com vossos olhos, Gon^lves 72
Conde, cujo illustre peito 34
Corre sem vela e sem leme 30
Crecem, Camilla, os abrolhos ^ 88 '
D'alma,.e de quanto tiver 59
Da doença, em que ora ardeis 50
Dama d' estranho primor 24
De atormentado e perdido 53
De dentro tengo mi mal 67
De pequena tomei amor 61
Deo, Senhora, por sentença 50
Deos te salve, Vasco amigo 86
490
De que me serve fogir , , 72
Descalça vai para a fonte .97
Descalça vai pela neve 57
De vaestros ojos centellas : 66
De vós quererdes meu mal i78
Dó Ia mi ventura 135
Em tudo vejo mudanças 169
Enforquei minha esperança 60
Esconjuro-te Domingas 76
Esperanças mal tomada? 168
Esperei, ja nflo espero •. .' 97
Este mundo es el camino 42
Falso Cavalheiro, ingrato 63
Ferro, fogo, frio e calma 96
Foi-se pstando a esperança 117
Guardai-me esses olhos hellos i63
Ha hum bem, que chega e foge 73
Irme quiero, madre * 125
Ja nSo posso ser contente 105
Lagrimas dirão por mim 174
Lume desta vida I . . . 171
Mandaste-me pedir novas 154
Mas porém a que cuidados 100
Menina dos olhos verdes ' 122
.Menina formosa 132
Menina formosa e crua 49
Menina, nSo sei dizec 71
Minh'aíma lembrae-vos delia 110
Muito sou meu Inimigo \ . 36
Na fonte está Leonor 81
N2o,estejais aggravada 54
NSo posso chegar ao cabo 85
NSo sei se m' engana Helena 70
Nasce estrella d'alva 180
No meu peito o meu desejo 1 . . . . 179
No monte de amor andei 177
Ojos, herido me hábeis ; 100
Õlhae que dura sentença ^ 51
Olhos, em qu' estão mil flores 89
Olhos, nSo vos mereci 74
Olvide y avore^cy 191
Ó meus altos pensamentos 167
Ora cuidar me assegura ; 166
Os bons vi sempre passar 75
Para evitar dias máos 191
Para que me dan tormento 65
Pastora da s*erra 137
Peço-vos que me digais ^ 40
Pequenos contentamentos : 79
Perdigão perdeo a penná 79
Perguntais-me, quem me mata 75
Pois a tantas perdições r ^
Pois darano me faz olhar-vos 69
Pois se he mais vosso que meu 68
Pois que, Senhora, folgais 190
Porque no miras Giraído 87
Por nuns olhos que fugirão 176
Por usar costume antigo < 147
491
Prazeres que me quereis . . -. 175
Puz o coraçSo nos olhos , 60
Puz meus olhos D'httma funda ^ 61
Qual terá culpa de nós 06
Quando me quer enganar 73
Que diaho ha tSo damnado 83
Que veré que me contente il4
lue vistes meus olhos i72
!uem disser que a barca pende. . : 98
íuem no mundo quizer ser 55
8 nem ora soubesse .' 120
uem se confia em huns olhos '. 89
Querendo escrever hum dia 17
Retrato, vós nSo sois meu 115
Saudade minha 126
Se a alma ver-se nfto pôde 77
Se de meu mal me contento 64
Se derivais da verdade 38
S' espero, sei que m'engano , 164
Se Helena apartar 130
Se me desta terra for 78
Se uie levfto ágoas « 121
Se n'alma e no pensamento 41
Se nSo quereis padecer 32
Se vossa dama vos dá 48
Sem olhos vi o mal claro 42
Sem ventura he por demais ; . 110
Sem vós, e com meu cuidado 109
Sem vós, e com meu cuidado 115
Senhora^ s'eu alcançasse 37
Senhora, pois me chamais 55
Senhora, pois minha vida 69
Senhora, quando imagino 159
Sóbolos rios que vSo 5
Sois formosa, e tudo tendes 90
Suspeitas, que me quereis 27
Tal estoi despues que os vi 178
Tende-me roáo nelle 134
Todo es poço lo posible « 113
Trabalhos descansariáo 102
Triste vida se me ordena 103
Trocae o cuidado 123
Tudo pôde buma affeiçáo 111
Vai o bem fugindo .' 140
Vede bem se nos meus dias 68
Vejo-a n'alroa pintada 107
Venceo-roe Amor, nfio o nego \ 74
Verdes sSo as hortas 131
Verdes sSo os campos 130
Ver, e roaisguardar 124
Vi chorar huns claros olhos 85
Vida da minha alma 127
Vida de minha alma 136
Vós, Senhora, tudo tendes 64
Vós sois huma dama 139
Vos teneis mi corazon 114
Vossa Senhoria creia 83
Vosso bem querer, Senhora 77
I
492
COMEDIAS
El-Rei Seleuco 195
Os Amphilri(Je8 239
Filodemo ^ 325
^
Esta edição das obras de Camões constará de cinco a sete vo-
lumes conforme der o texto. Preço 1^440 réis o volmne, por
assignatura, pagos á entrega, e 1^51600 réis avulso.
Assigna-se em Lisboa nas lojas dos srs. João Paulo Martins
Lavado, rua Augusta n.^ 8, Livraria Central de José Melchiades
& Companhia, rua do Oiro n.® 1S5. — Coimbra, José de Mesqui-
ta.— Porto, António Rodrigues da Cruz Coutinho.— L. J. de
Oliveira. — Paris, Rey et Belhate, Quai des Augustins n.^ 45, N.
More, 2 bis, rue d'Arcole.
Vende-se nas lojas acima mencionadas, nas dos commissarios
da Imprensa Nacional, na doS srs. Bertrands aos Martyres n.** 73,
e nas mais do costume.
Está no prelo o 5.° volume.
OBRA DO MESMO ACCTOR
Cintra Pinluresea on Memoria Descripliva darYlIla de Cinlra, Collares
e seus arredores
Yende-se nas mesmas lojas.
I