Skip to main content

Full text of "Obras de Luiz de Camões; precedidas de um ensaio biographico, no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida;"

See other formats


Google 


This  is  a  digital  copy  of  a  book  that  was  prcscrvod  for  gcncrations  on  library  shclvcs  bcforc  it  was  carcfully  scannod  by  Google  as  part  of  a  projcct 

to  make  the  world's  books  discoverablc  online. 

It  has  survived  long  enough  for  the  copyright  to  expire  and  the  book  to  enter  the  public  domain.  A  public  domain  book  is  one  that  was  never  subject 

to  copyright  or  whose  legal  copyright  term  has  expired.  Whether  a  book  is  in  the  public  domain  may  vary  country  to  country.  Public  domain  books 

are  our  gateways  to  the  past,  representing  a  wealth  of  history,  cultuie  and  knowledge  that's  often  difficult  to  discover. 

Marks,  notations  and  other  maiginalia  present  in  the  original  volume  will  appear  in  this  file  -  a  reminder  of  this  book's  long  journcy  from  the 

publisher  to  a  library  and  finally  to  you. 

Usage  guidelines 

Google  is  proud  to  partner  with  libraries  to  digitize  public  domain  materiais  and  make  them  widely  accessible.  Public  domain  books  belong  to  the 
public  and  we  are  merely  their  custodians.  Nevertheless,  this  work  is  expensive,  so  in  order  to  keep  providing  this  resource,  we  have  taken  steps  to 
prcvcnt  abuse  by  commercial  parties,  including  placing  lechnical  restrictions  on  automated  querying. 
We  also  ask  that  you: 

+  Make  non-commercial  use  of  the  files  We  designed  Google  Book  Search  for  use  by  individuais,  and  we  request  that  you  use  these  files  for 
personal,  non-commercial  purposes. 

+  Refrainfivm  automated  querying  Do  nol  send  automated  queries  of  any  sort  to  Google's  system:  If  you  are  conducting  research  on  machinc 
translation,  optical  character  recognition  or  other  áreas  where  access  to  a  laige  amount  of  text  is  helpful,  please  contact  us.  We  encouragc  the 
use  of  public  domain  materiais  for  these  purposes  and  may  be  able  to  help. 

+  Maintain  attributionTht  GoogXt  "watermark"  you  see  on  each  file  is essential  for  informingpcoplcabout  this  projcct  and  hclping  them  find 
additional  materiais  through  Google  Book  Search.  Please  do  not  remove  it. 

+  Keep  it  legal  Whatever  your  use,  remember  that  you  are  lesponsible  for  ensuring  that  what  you  are  doing  is  legal.  Do  not  assume  that  just 
because  we  believe  a  book  is  in  the  public  domain  for  users  in  the  United  States,  that  the  work  is  also  in  the  public  domain  for  users  in  other 
countiies.  Whether  a  book  is  still  in  copyright  varies  from  country  to  country,  and  we  can'l  offer  guidance  on  whether  any  specific  use  of 
any  specific  book  is  allowed.  Please  do  not  assume  that  a  book's  appearance  in  Google  Book  Search  mcans  it  can  bc  used  in  any  manner 
anywhere  in  the  world.  Copyright  infringement  liabili^  can  be  quite  severe. 

About  Google  Book  Search 

Googlc's  mission  is  to  organize  the  world's  information  and  to  make  it  univcrsally  accessible  and  uscful.   Google  Book  Search  hclps  rcadcrs 
discover  the  world's  books  while  hclping  authors  and  publishers  rcach  ncw  audicnccs.  You  can  search  through  the  full  icxi  of  this  book  on  the  web 

at|http: //books.  google  .com/l 


^/-r 


OBRAS 


DE 


LUIZ  DE  CAMÕES 

PRECEDIDAS  DE  UH  ENSAIO  BIOGRâPHICO 

NO  QUAL  SE  RELATAM 

ALGUNS  FACTOS  NlO  CONHECIDOS  DA  SUA  VIDA 


PELO 


VISCONDE  PB  OUBOBSENHA 


VOLUME  IV 


LISBOA 

mPREIVSA  NACIONAL 

Í863 


/• 


OBRAS 


DE 


LUIZ  DE  CAMÕES 


OBRAS 


DE 


LUIZ  DE  CAMÕES 


PRECEDIDAS  DE  UM  ENSAIO  BIOGRAPHIGO 

NO  QUAL  SE  RKLATAll 

ALGDNS  FACTOS  NAO  CONHECIDOS  DA  SUA  VIDA 

AUGHRNTADAS 

COM  ILGUMS  COMPOSIÇÕES  INÉDITAS  00  POETI 

PELO 
VI800NDS  PE  JUROMENHA 


VOLUME  IV 


<W».#i««- 


LISBOA 

IMPRENSA  NAQONAL 


REDONDILHAS 


Sõbolos  rios  que  vão 
Por  Babylonia,  me  âchei, 
Onde  sentado  chorei 
As  lembranças  de  Sião, 
E  quanto  nella  passei. 
AUi  o  rio  corrente 
De  meus  olhos  foi  manado; 
E  tudo  bem  comparado, 
Babylonia  ao  mal  presente, 
Sião  ao  tempo  passado. 


Alli  lembranças  contentes 
N'alma  se  representarão ; 
E  minhas  cousas  ausentes 
Se  Gzerão  tão  presentes, 
Como  se  nunca  passarão. 
Alli,  despois  d'acordado, 
Co'o  rosto  banhado  em  ágoa. 
Deste  sonho  imaginado, 
Vi  que  todo  o  bem  passado 
Não  he  gosto,  mas  he  mágoa. 


6 


E  vi  que  lodos  os  danos 
Se  causavão  das  mudanças, 
E  as  mudanças  dos  anos; 
Onde  vi  quantos  enganos 
Faz  o  lempo  ás  esperanças. 
Alli  vi  o  maior  bem 
Quão  pouco  espaço  que  dura; 
O  mal  quão  depressa  vem ; 
E  quão  triste  estado  tem 
Quem  se  fia  da  ventura. 


Vi  aquillo  que  mais  vai 
Qu*então  s'entende  melhor, 
Quando  mais  perdido  for ; 
Vi  ao  bem  succedermal, 
E  ao  mal  muito  peor. 
E  vi  com  muito  trabalho 
Comprar .  arrependimento  : 
Vi  nenhum  contentamento; 
E  vejo-me  a  mi,  qu'espaIho 
Tristes  palavras  ao  vento. 

Bem  são  rios  estas  ágoas 
Com  que  banho  este  papel  : 
Bem  parece  ser  cruel 
Variedade  de  mágoas, 
E  confusão  de  Babel. 
Gomo  homem,  que  por  exemplo 
Dos  trances  em  que  se  achou, 
Despois  que  a  guerra  deixou, 
Pelas  paredes  do  templo 
Suas  armas  pendurou : 


Assi,  despois  qu'assentei 
Que  tudo  o  tempo  gastava, 
Da  tristeza  que  lomei, 
Nos  salgueiros  pendurei 
Os  órgãos  com  que  cantava, 
Aquelle  instrumento  ledo 
Deixei  da  vida  passada, 
Dizendo:  Musica  amada, 
Deixo-vos  neste  arvoredo 
A  memoria  consagrada. 


Frauta  minha,  que  tangendo 
Os  montes  fazieis  vir 
Par  onde  estáveis,  correndo; 
E  as  ágoas,  que  hiâo  descendo, 
Tornavão  logo  a  subir; 
Jamais  vos  não  ouvirão 
Os  tigres,  que  s'amansavão; 
E  as  ovelhas,  que  pastavão. 
Das  hervas  se  fartarão, 
Que  por  vos  ouvir  deixavão. 

Ja  não  fareis  docemente 
Em  rosas  tomar  abrolhos 
Na  ribeira  florecente; 
Nem  poreis  freio  á  corrente, 
E  mais  se  for  dos  meus  olhos^ 
Não  movereis  a  espessura, 
Nem  podereis  ja  trazer 
Atraz  ^ós  a  fonte  pura; 
Pois  não  podestes  mover 
Desconcertos  da  ventura. 


« 


I 


K 


Ficareis  oíTerecida 
Á  Fama,  que  sempre  vela, 
Frauta  de  mi  Ião  querida; 
Porque  mudando-se  a  vida, 
Se  mudão  os  gostos  delia. 
Acha  a  tenra  mocidade 
Prazeres  accommodados; 
E  logo  a  maior  idade 
Ja  sente  por  pouquidade 
Áquelles  gostos  passados. 


Hum  gosto^  que  hoje  s'alcança, 
Á  manhâa  ja  o  não  vejo : 
Assi  nos  traz  a  mudança 
D'esperança  em  esperança, 
E  de  desejo  em  desejo. 
Mas  em  vida  tão  escassa 
Qu'esperança  será  forte? 
Fraqueza  da  humana  sorte, 
Que  quanto  da  vida  passa 
Está  recitando  a  morte  I 


x\fas  deixar  nesta  espessura 
O  canto  da  mocidade: 
Não  cuide  a  gente  futura 
.Que  será  obra  da  idade 
O  que  he  força  da  ventura. 
Qu'idade,  tempo,  è  espanto 
De  ver  quão  ligeiro  passe. 
Nunca  em  mi  pudcrão  tanto. 
Que,  postoque  deixo  o  canto, 
A  causa  delle  deixasse. 


9 


Mas  em  tristezas  e  nojos, 
Em  gosto  e  contentamento; 
Por  o  sol,  por  neve,  por  vento, 
Tendrê  presente  á  los  ojos 
Por  quien  muero  tan  contento. 
Órgãos  e  frauta  deixava, 
Despojo  meu  tão  querido. 
No  salgueiro  que  alli  'st^va, 
Que  para  tropheo  ficava 
De  quem  me  tinha  vencido. 


Mas  lembranças  da  aíTeição 
Que  alli  capliyo  me  tinha, 
Me  perguntarão  então, 
Qu'era  da  musica  minha. 
Que  eu  cantava  em  Sião? 
Que  foi  daquelle  cantar, 
Das  gentes  tão  celebrado? 
Porque  o  deixava  de  usar, 
Pois  sempre  ajuda  a  passar 
Qualquer  trabalho  passado? 

Canta  o  caminhante  ledo 
No  caminho  trabalhoso 
Por  entre  o  espesso  arvoredo ; 
E  de  noite  o  temeroso 
Cantando  refreia  o  medo» 
Canta  ò  preso  docemente, 
Os  duros  grilhões  tocando; 
Canta  o  segador  contente ; 
E  o  trabalhador,  cantando, 
O  trabalho  menos  senle. 


\0 

Eu  qu'eslâs  cousas  senti 
N'alma  de  mágoas  tão  cheia, 
Como  dirá,  respondi, 
Quem  alheio  está  de  si 
Doce  canto  em  terra  alheia? 
Como  poderá  cantar 
Quem  em  choro  banha  o  peito? 
Porque,  sè  quem  trabalhar 
Canta  por  menos  cansar. 
Eu  só  descansos  engeito. 

Que  nãp  parece  razão. 
Nem  seria  cousa  idpnia, 
Por  abrandar  a  paixão 
Que  cantasse  em  Babylonia 
As  cantigas  de  Sião. 
Que  quando  a  muita  graveza 
De  saudade  quebrante 
Esta  vital  fortaleza. 
Antes  morra  de  tristeza, 
Que  por  abrandá-la  cante. 

•  Que  se  o  fino  pensamento 
Só  na  tristeza  consiste, 
Não  tenho  medo  ao  tormento: 
Que  morrer  de  puro  triste, 

Que  maior  contentamento? 

• 

Nem  na  fraula  cantarei  • 
O  que  passo,  e  passei  ja, 
Nem  menos  o  escreverei ; 
Porque  a  penna  cansará, 
E  eu  não  descansarei. 


\\ 


Que  se  vida  tão  pequena 
S'accrescenta  em  terra  estranha; 
E  se  Amor  assi  o  ordena, 
Razão  he  que  canse  a  penna 
D'escrever  pena  tamanha. 
Porém,  se  para  assentar 
O  que  sente  o  coração, 
A  penna  ja  me  cansar, 
Não  cançe  para  voar 
A  memoria  ém  Sião. 


Terra  bem-aventurads^ 
Se  por  algum  movimento 
D'alma  me  fores  tirada. 
Minha  penna  seja  dada 
A  perpetuo  esquecimento. 
A  pena  deste  desterro, 
Qu'eu  mais  desejo  esculpida 
Em  pedra,  ou  em  duro  ferro. 
Essa  nunca  seja  ouvida, 
Em  castigo  de  meu  erro. 

E  se  eu  cantar  quizer 
Em  Babylonia  sujeito, 
Hierusalem,  sem  te  ver, 
A  voz,  quando  a  mover, 
Se  me  congele  no  peilo ; 
A  minha  lingua  se  apegue 
Ás  fauces,  pois  te  perdi, 
S'em  quanto  viver  assi 
Houver  tempo,  em  que  te  negue, 
Ou  que  m'es(|ueça  de  ti. 


\2 


Mas  ó  tu,  terra  de  glória, 
S'eu  nunca  vi  tua  essência, 
Como  me  lembras  na  ausência? 
Não  me  lembras  na  memoiia, 
Senão  na  reminiscência: 
Que  a  alma*he  taboa  rasa. 
Que  com  a  escripta  doutrina 
Celeste  tanto  imagina. 
Que  vôa  da  própria  casa, 
E  sobe  á  pátria  divina. 

Não  he  logo  a  saudade 

Das  terras  onde  nasceo 

A  carne,  mas  he  do  Ceo, 

Daquella  santa  Cidade, 

Donde  est'alma  descendeo. 

E  aquella  humana  figura. 

Que  cá  me  pôde  alterar, 

Não  he  quem  se  ha  de  buscar; 

He  raio  da  formosura, 

Que  só  se  deve  d' amar. 

« 

Que  os  olhos,  e-  a  luz  que  ateia 
O  fogo  que  cá  sujeita. 
Não  do  sol,  Dem  da  candeia, 
He  sombra  daquella  ideia, 
Qu'em  Deos  está  mais  perfeita. 
E  os  que  cá  me*  capti varão. 
São  poderosos  affeitos 
Qu'os  corações  tee  sujeitos; 
Sophislas,  que  m'ensinárão 
Máos  caminhos  por  direitos. 


^5 

Destes  o  mando  tyrano 
M' obriga  com  desatino 
A  òantar  ao  som  do  dano 
Cantares  d  amor  profano, 
Por  versos  d' amor  divino. 
Mas  eu,  lustrado  co'o  santo 
Raio,  na  terra  de  dor. 
De  confusões  e  d' espanto, 
Como  hei  de  cantar  o  canto, 
Que  só  se  deve  ao  Senhor? 


Tanto  pôde  o  beneficio 
Da  graça  que  áh  saade. 
Que  ordena  que  a  vida  mude: 
E  o  qu'eu  tomei  por  vicio. 
Me  faz  gráo  para  a  virtude; 
E  faz  qu'este  natural 
Amor,  que  tanto  se  preza, 
Suba  da  sombra  ao  real, 
Da  particular  belleza 
Para  a  belleza  geral. 

Fique  logo  pendurada 
A  frauta  com  que  tangi,f 
O  Hierusalem  sagrada, 
E  tome  a  lyra  dourada 
Para  só  cantar  de  ti; 
Nao  captiva  e  ferrolhado 
Na  Babylonia  infernal, 
Mas  dos  vicios  desatado, 
E  cá  desta  a  ti  levado. 
Pátria  minha  natural. 


\4 


E  s'  eu  mais  der  a  cerviz 
A  mundanos  accidentes. 
Duros,  tyrannos  e  urgentes, 
Risque-se  quanto  ja  fiz 
Do  grão  livro  dos  viventes. . 
E,  tomando  ja  na  mão 
A  lyra  santa  e  capaz 
D' outra  mais'  alta  invenção, 
Gale-se  esta  confusão, 
Cante-se  a  visão  de  paz. 


Ouça-me  o  pastor  e  o  rei. 
Retumbe  este  accento  santo, 
Mova-se  no  mundo  espanto;' 
Que  do  que  ja  mal  cantei 
A  palinodia  ja  canto. 
A  vós  só  me  quero  ir, 
Senhor  e  grão  Capitão 
Da  alta  torre  de  Sião, 
Á  qual  não  posso  subir, 
Se  me  vós  não  dais  a  'mão. 


No  grão  dia  singular, 
Que  na  lyra  em  douto  som 
Hierusalem  celebrar, 
Lembrae-vos  de  castigar 
Os  ruins  filhos  de  Edom. 
Aquelles  que  tintos  vão 
No  pobre  sangue  innocente, 
Soberbos  co'o  poder  vão, 
Arraza-Ios  igualmente: 
Conheção  que  humanos  são. 


45 

E  aqaelle  poder  tão  duro ' 
Dos  affectos  com  que  venho, 
Qu'encendem  alma  e  engenho; 
Que  ja  m'entrárão  o  muro 
Do  livre  arbilrio  que  tenho; 
Estes,  que  tão  furiosos 
Gritando  vem  a  escalar-me, 
Máos  espirites  damnosos, 
Que  querem  como  forçosos 
Do  alicerce  derribar-me; 


Derribae-os,  fiquem  sós, 
De  forças  fracos,  imbelles; 
Porque  não  podemos  nós, 
Nem  com  elles  ir  a  vós, 
Nem  sem  vós  tirar-nos"delles. 
Não  basta  minha  fraqueza 
Para  me  dar  defensão, 
Se  vós,  santo  Capitão, 
Nesta  minha  Fortaleza 
Não  puzerdes  guarnição. 

E  tu,  ó  carne,  qu'encantas. 
Filha  de  Babel  tão  feia. 
Toda  de  miséria  cheia. 
Que  mir  vezes  te  levantas 
Contra  quem  te  senhoreia; 
Beato  só  pôde  ser 
Quem  co'a  ajuda  celeste 
Contra  ti  prevalecer, 
E  te  vier  a  fazer 
O  mal  que  lhe  tu  fizeste: 


t 


I 


* 


t6 

« 

Quem  fcom  disciplina  crua 
Se  fere  mais  que  huma  vez; 
Cuja  alma,  de  vícios  nua, 
Faz  nodas  na  carne  sua, 
Que  ja  a  carne  n'alma  fez. 
E  beato  quem  tomar 
Seus  pensamentos  recentes, 
E  em  nascendo  os  aflbgar, 
Por  não  virem  a  parar 
Em  vicios  graves  e  urgentes: 


Quem  com  elles  logo  der 
Na  pedra  do  furor  santo, 
E  batendo  os  desfizer 
Na  Pedra,  que  veio  a  ser 
flmfim  cabeça  do  canto: 
Quem  logo,  quando  imagina 
Nos  vicios  da  carne  má, 
Os  pensamentos  declina 
Áquella  Carne  divina, 
Que  na  Cruz  esteve  ja. 

Quem  do  vil  contentamento 
Cá  deste  mundo  visibil, 
Quanto  ao  homem  for  possibil, 
Passar  logo  entendimento 
Para  o  mundo  intelligibil; 
Álli  achará  alegria 
Em  tudo  perfeita,  e  cheia 
De  tão  suave  harmonia, 
Que  nem  por  pouca  recreia, 
Nem  |)or  sobeja  enfastia. 


\7 

Alli  verá  Ião  profundo 
Mysterio  na  summa  Alteza, 
Que,  vencida  a  natureza, 
Os  mores  faustos  do  mundo  . 
Julgue  por  maior  baixeza. 
O  tu,  divino  aposento, 
Minha  pátria  singular, 
Se  só  com  te  imaginar. 
Tanto  sobe  o  entendimento, 
Que  fará  se  em  ti  se  achar? 


Ditoso  quem  se  partir 
Para  ti,  terra  excellenle. 
Tão  justo  e  tao  penitente. 
Que  despois  de  a  ti  subir. 
Lá  descanse  eternamente! 


•  CARTA  A  IIUMA  DAMA 


Querendo  escrever  hum  dia 
O  mal,  que  tanto  estimei, 
Cuidando  no  que  poria. 
Vi  Amor  que  me  dizia: 
Escreve,  qu'eu  notarei. 
E  como  para  se  ler 
Não  era  historia  pequena 
A  que  de  mi  quiz  fazer. 
Das  azas  tirou  a  penna 
Com  que  me  fez  escrever. 


Tono  IV 


\s 


E,  logo  como  a  tirou, 
Me  disse:  Aviva  os  espritos; 
Que  pois  em  teu  favor  sou, 
Esta  penna,  que  te  dou, 
Fará  voar  teus  escritos. 
E  dando-me  a  padecer 
Tudo  o  que  quiz  que  puzesse, 
Pude  em  fim  delle  dizer, 
Que  me  deo  com  qu'escrevesse 
O  que  me  deo  a  escrever. 


Eu  qu'este  engano  entendi, 
Disse-lhe:  Qu'escreverei? 
Respondeo,  dizendo  assi: 
Altos  effeitos  de  ti, 
E  daquella  a  quem  te  dei. 
E  ja  que  te  manifesto 
Todas  minhas  estranhezas. 
Escreve,  pois  que  te  prezas. 
Milagres  d'hum. claro  gesto, 
E  de  quem  o  vio,  tristezas. 

Ah  Senhora,  em  quem  se  apura 
A  fé  de  meu  pensanoentol 
Escutae  e  estae  attento, 
.  Que  com  vossa  formosura 
Iguala  Amor  meu  tormento. 
E,.  postoque  tão  remota 
Estejais  de  m'escutar 
Por  me  nâo  remediar. 
Ouvi,  que  pois  Amor  nota, 
Milagres  são  de  notar. 


'      i 


\9 


X 

Escrevem  vários  Authores, 
Que  junto  da  clara  fonte 
Do  Ganges,  os  moradores 
Vivem  do  cheiro  das  flores 
Que  nascem  naquelle  monte. 
Se  os  sentidos  podem  dar 
Mantimento  ao  viver, 
Não  he  logo  d'espantar, 
.  S'estes  vivem  de  cheirar, 
Que  viva  eu  só  de  vos  ver. 


Huma  arvore,  se  conhece, 
Que  na  geral  alegria 
EUa  tanto  s'entristece, 
Que,  como  he  noite,  florece, 
E  perde  as  flores  de  dia. 
Eu,  qu'em  ver-vos  sinto  o  preço 
Qu'em  vossa  vista  consiste, 
Em  a  vendo  m'entristeço, 
Porque  sei  que  não  mereço 
A  gloria  de  ver-me  triste. 

Hum  Rei  de  grande  poder 
Com  veneno  foi  criado. 
Porque,  sendo  costumado. 
Não  lhe  pudesse  empecer. 
Se  despois  lhe  fosse  dado. 
Eu,  que  criei  de  pequena 
A  vista  a  quanto  padece. 
Desta  sorte  m  acontece, 
Que  não  me  faz  mal  a  pena, 
Senão  quando  me  fallece. 


20 

Quem  da  doença  Real 

De  longe  enfermo  se  sente, 

Por  segredo  natural 

Fica  são  vendo  somente 

Hum  volátil  animal. 

Do  mal,  que  Amor  em  mi  cria, 

Quando  acjuella  Phenix  vejo, 

São  de  todo  ficaria; 

Mas  fica-me  hydropesia, 

Que  quanto  mais,  mais  desejo. 


Da  vibora  he  verdadeiro, 
Se  a  consorte  vae  buscar, 
Qu'em  se  querendo  juntar, 
Deixa  a  peçonha  primeiro, 
Porque  lh'impede  o  gerar. 
Assi  quando  m'apresento 
Á  vossa  vista  inhumana, 
A  peçonha  do  tormento 
Deixo  á  parte,  porque  dana 
Tamanho  contentamento. 


Querendo  Amor  suslentar-se, 
Fez  huma  vontade  esquiva 
D'huma  estatua  namorar-se: 
Despois,  por  manifestar-se, 
Converteo-a  em  mulher  viva. 
De  quem  m'irei  eu  queixando, 
Ou  quem  direi  que  m'engana 
Se  vou  seguindo,  e  l)uscando 
Huma  imagem,  que  d'humaria 
Em  pedra  se  vai  tornando? 


21 

D'huma  fonte  se  sabia, 
Da  qual  certo  se  provava, 
Que  (Juem  sobre  ella  jurava, 
Se  falsidade  dizia, 
Dos  olhos  logo  cegava. 
Vós,  que  minha  liberdade, 
Senhora,  lyrannizais, 
Injustamente  mandais, 
Quando  vos  fallo  verdade. 
Que  vos  não  possa  ver  mais. 

« 
Da  palma  í^escreve  e  canta 
Ser  tão  dura  e  tão  forçosa, 
Que  pezo  não  a  quebranta. 
Mas  antes,  de  presumpçosa, 
Com  elle  mais  se  levanta. 
Co'o  pezo  do  mal  que  dais, 
A  constância  qu'em  mi  vejo. 
Não  somente  ma  dobrais, 
Mas  dobra-se  meu  desejo, 
Com  qu'então  vos  quero  mais. 

Se  alguém  os  olhos  quizer 
As  andorinhas  quebrar, 
Logo  a  mãe,  sem  se  deter, 
Huma  herva  lhe  vai  buscar 
Que  lhes  faz  outros  nascer. 
Eu  que  os  olhos  tenho  atlento 
Nos  vossos,  questrellas  são,- 
Cegão-se  os  do  entendimento, 
Mas  nascem-mc  os  da  razão 
De  fplgar  com  meu  tormento. 


22 

Lá  para  onde  o  sol  sahc, 
Descobrimos,  navegando, 
Hum  novo  rio  admirando,  ' 
Que  o  lenho  que  nelle  cabe, 
Em  pedra  se  vai  tornando. 
Não  s'espantem  disto  as  gentes ; 
Mais  razão  será  qu'espante 
Hum  coração  tão  possante, 
Que  com  lagrimas  ardentes 
Se  converte  em  diamante. 


Pôde  hum  mudo  nadador 
Na  linha  e  canna  influir 
Tão  venenoso  vigor. 
Que  faz  mais  não  se  bulir 
O  braço  do  pescador. 
Se  começão  de  beber 
Deste  veneno  excellente 
Meus  olhos,  sem  se  deter, 
Não  se  sabem  mais  mover 
A  nada  que  se  apresente. 


Isto  são  claros  sinais 
Do  muito  qu  em  jni  podeis: 
Neii)  podeis  desejar  mais; 
Que  se  ver-vos  desejais, 
Em  mi  claro  vos  vereis. 
E  quereis  ver  a  que  fim 
Em  mi  tanto  bem  se  pós? 
Porque  quizAmor  assim, 
Que  por  vos  verdes  a  vós, 
Também  me  visseis  a  mim. 


25 

Dos  males  que  m'ordenais, 
Qu'inda  tenho  por  pequenos, 
Sabei,  se  mos  escutais, 
Que  ja  não  sei  dizer  mais. 
Nem  vós  podeis  saber  menos. 
Mas  ja  que  a  tanto  tormento 
Não  se  acha  quem  resista, 
Eu,  Senhora,  me  contento 
De  terdes  meu  soffrimento 
Por  alvo  de  vossa  vista. 


Quantos  contrários  consente 
Amor,  por  mais  padecerl 
Que  aquella  vista  cxcellenle, 
Que  me  faz  viver  contente. 
Me  faça  tão  triste  ser! 
Mas  dou  este  entendimento 
Ao  mal,  que  tanto  mWende, 
Como  na  vela  s'enlende. 
Que  se  se  apaga  co*o  vento,  , 
Co*o  mesmo  vento  se  accende. 


Exprimentou-se  algum'hora 
D'ave,  que  chamão  Gamão, 
Que  se  da  èasa,  onde  mora, 
Vê  adultera  senhora, 
Morre  de  pura  paixão. 
A  dor  he  tão  sem  medida, 
Que  remédio  lhe  não  vai. 
Mas  oh  ditoso  animal. 
Que  pôde  perder  a  vida. 
Quando  ve  tamanho  mal ! 


2{ 


Nos  gostos  de  vos  querer 
Estava  agora  enlevado, 
Se  não  fora  salteado 
Das  lembranças  de  temer 
Ser  por  outrem  desamado. 
Estas  suspeitas  tão  frias, 
Com  que  o  pensamento  sonha, 
São  assi  como  as  harpias, 
Que  as  mais  doces  iguarias 
Vão  converter  em  peçonha. 

Faz-me  este  mal  infinito 
Não  poder  jamais  dizer, 
Por  não  vir  a  corromper 
Os  gostos  que  tenho  escrito, 
Co'os  males  qu'hei  d'escrcver. 
Não  quero  que  s'apregôe 
Mal  tanto  para  encobrir, 
Porque  em  quanto  aqui  s'ouvir 
Nenhuma  outra  cousa  sôe, 
Que  a  gloria  de  vos  servir. 

OUTRA 

Dama  d'estranho  primor, 

Se  vos  for 
Fezada  minha  firmeza, 
Olhai  não  me  deis  tristeza, 
Porque  a  converto  em  amor. 

E  se  cuidais 
De  me  matar,  quando  usais 

D'csquiVança, 
Irei  tomar  por  vingança 
Amar- vos  cada  vez  mais. 


25 

Porém  vosso  pensamento, 

Como  isento, 
Seguirá  sua  tenção. 
Crendo  qu'em  tanta  affeição 
Não  haja  accrescentamento. 

Não  creais 
Que  desta  arte  vos  façais 

Invencibil; 
Que  Amor  sobre  o  impossibil 
Amostra  que  pode  mais. 


Mas  ja  da  tenção  que  sigo, 

Me  desdigo; 
Que  se  ha  tanto  poder  nelle, 
Também  vós  podeis  mais  qu'ello 
Neste  mal  que  usais  comigo. 

Mas  se  for 
O  vosso  poder  maior 

Entre  nós, 
Quem  poderá  mais  que  vós, 
Se  vós  podeis  mais  que  Ariíor? 

Despois  que,  Dama,  vos  vi, 

Entendi, 
Que  perdera  Amor  seu  preço; 
,     Pois  o  favor  que  lh'eu  peço. 
Vos  pede  elle  para  si. 

Nem  duvido 
Que  não  pôde,  de  sentido, 

Resistir; 
Pois  em  vez  de  vos  ferir. 
Ficou  de  vos  ver  ferido. 


26 

Mas  pois  vossa  vista  hc  tal 

Em  meu  mal, 
Que  posso  de  vós  querer? 
Que  mal  poderei  valer, 
Onde  o  mesmo  Amor  não  vai. 

Se  altentar, 
Nenhum  bem  posso  esperar: 

E  oxalá 
Que  vos  alembrassc  ja, 
Sequer  para  me  matar. 

Mas  nem  com  isto  creais 

Que  façais 
Meus  serviços  mais  pequenos; 
Porqu'eu,  quando  espero  menos, 
Sabei  qu'enlão  quero  mais. 

Nada  espero; 
Mas  de  mi  crede  este  fero^ 

Qu'em  ser  vosso, 
Vos  quero  tudo  o  que.  posso, 
E  não  posso  quanto  quero. 

• 

Só  por  esta  pbantasia 

Merecia 
De  meus  males  algum  fruilo; 
E  não  era  certo  muito 
Para  o  muito  que  queria.    - 

De  maneira. 
Que  não  he,  na  derradeira. 

Grande  espanto. 
Que  quem.  Dama,  vos. quer  tanlo, 
Que  outro  lanlo  de  vós  queira. 


27 


A  IIUMAS  SUSPEITAS 

Suspeitas,  que  me  quereis? 
Qu'eu  vos  quero  dar  lugar 
Que  de  certas  me  mateis, 
Se  a  causa,  de  que  nasceis, 
Vós  quizesseis  confessar. 
Que  de  não  lhe  achar  desculpa, 
A  grande  mágoa  passada 
Me  tee  a  alma  tão  cansada, 
Que  se  me  confessa  a  culpa, 
Te-la-hei  por  desculpada. 


Ora  vôde  que  perigos 
Têe  cercado  o  coração. 
Que  no  meio  da  oppressão 
A  seus  próprios  inimigos 
Vai  pedir  a  defensão! 
Que,  suspeitas,  eu  bem  sei, 
Como  se  claro  vos  visse, 
Que  he  certo  o  que  ja  cuidei; 
Que  nunca  mal  suspeitei. 
Que  certo  me  não  sahisse. 


Mas  queria  esta  certeza 
Daquella  que  me  atormenta ; 
Porque  em  tamanha  estreiteza 
Ver  que  disso  se  contenta, 
He  descanso,  dá  tristeza. 
Porque  se  esta  só  verdade 


28 

Me  confessa  limpa  e  nua 
De  cautela  e  falsidade, 
Não  pode  a  minha  vontade 
Desconforme  ser  da  sua. 


Por  segredo  namorado 
He  certo  estar  conhecido 
Que  o  mal  de  ser  engeitado 
Mais  atormenta  sabido 
Mil  vezes,  que  suspeitado. 
Mas  eu  só,  em  quem  se  ordena 
Novo  modo  de  querella, 
De  medo  da  dor  pequena, 
Venho  a  achar  na  maior  |)ena 
O  refrigério  para  ella. 


Ja  nas  iras  m'in(lammei, 
Nas  vinganças,  nos  furores, 
Que  ja  doudo  imaginei; 
E  ja  mais  doudo  jurei 
De  arrancar  d  alma  os  amores, 
Ja  determinei  mudar-me 
Para  outra  parte  com  ira; 
Despois  vim  a  concertar-me  ' 
Que  era  bom  certificar-me 
No  que  mostrava  a  mentira. 


Mas  despois  ja  de  cansadas 
As  fúrias  do  imaginar. 
Vinha  emfim  a  rebentar 
Em  lagrimas  magoadas. 


29 

E  bem  para  magoar. 

E  deixando-se  vencer 

Os  meus  fingidos  enganos 

De  tão  claros  desenganos, 

Não  posso  menos  fazer, 

Que  conlentar-me  co'os  danos. 


E  pedir  que  me  tirassem 
Este  mal  de  suspeitar 
Que  me  vejo  atormentar, 
Indaque  me  confessassem 
Quanto  me  pôde  matar. 
Olhae  bem  se  me  trazeis, 
Senhora,  posto  no  fim; 
Pois  neste  estado  a  que  vim, 
Para  que  vós  confesseis, 
Se  dao  os  tratos  a  mim. 


Mas  para  que  tudo  possa 
Amor,  que  tudo  encaminha, 
Tal  justiça  lhe  convinha; 
Porque  da  culpa,  qu'he  vossa. 
Venha  a  ser  a  morte  minha. 
Justiça  tão  mal  olhada 
Olhae  com  que  côr  se  doura, 
Que  quei- o,  ao  fim  da  jornada. 
Que  vós  sejais  confessada. 
Para  qu'eu  seja  o  que  moura! 


Pois  confessae-vos  jagora, 
Indaque  tenho  tomor 


50 

Que  nem  nesta  oltima  hora 
Me  ha  de  perdoar  Amor 
Vossos  peccados,  Senhora. 
E  assi  vou  desesperado, 
Porque  estes  são  os  costumes 
D'amor  que  he  mal  empregado; 
Do  qual  vou  ja  condemnado 
Ao  inferno  de  ciúmes. 


LABYRINTHO,  QUEIXANDO-SE  DO  MUNDO 

Corre  sem  vela  e  sem  leme 
O  tempo  desordenado, 
D'hum  grande  venlo  levado: 
O  que  perigo  não  teme, 
He  de  pouco  exprimentado. 
As  rédeas  trazem  na  mão 
Os  que  rédeas  não  ti  verão: 
Vendo  quanto  mal  fizerão 
A  cobiça,  e  ambição, 
Disfarçados  se  acolherão. 


A  náo,  que  se  vai  perder, 

Destruo  mil  esperanças: 

Vejo  o  máo  que  vem  a  ter; 

Vejo  perigos  correr 

Quem  não  cuida  que  ha  mudanças. 

Os  que  nunca  em  sella  andarão, 

Na  sella  postos  se  vem: 

De  fazer  mal  não  deixarão; 

De  demónio  hábito  tem 

Os  que  o  justo  profanarão. 


5\ 


Que  poderá  vir  a  ser 
O  mal  nunca  refreado? 
Anda,  por  certo,  enganado 
Aquelle  que  quer- valer, 
Levando  o  caminho  errado. 
He  para  os  bons  confusão, 
Ver  que  os  máos  prevalecerão; 
Que,  posto  se  deliverão 
Com  esta  simulação. 
Sempre  castigos  tiverão: 


Não  porque  governe  o  leme 
Em  mar  envolto  e  turbado, 
Que  tee  seu  rumo  mudado. 
Se  perece  grita  e  geme 
Em  tempo  desordenado. 
Terem  justo  galardão, 
E  dor  dos  que  merecerão, 
Sempre  castigos  tiverão  . 
Sem  nenhuma  redempção, 

Postoque  se  detivei^o. 

• 

• 

Na  tormenta,  se  vier. 
Desespere  na  bonança, 
Quem  manhas  não  sabe  ter: 
Sem  que  lhe  valha  gemer. 
Verá  falsar  a  balança. 
Os  que  nunca  trabalharão, 
Tendo  o  que  lhe  não  convém, 
Se  ao  innocente  enganarão, 
Perderão  o  etcmo  bem. 
Se  do  mal  não  s'apartárâo. 


52 


CONVITE  QUE  FEZ  NA  ÍNDIA  A  CERTOS  FIDALGOS 
A  primeira  iguaria  foi  posta  a  Vasco  de  Athaide,  e  dizia: 

* 

Se  não  quereis  padecer 
Huma,  ou  duas  horas  tristes, 
Sabeis  que  haveis  de  fazer? 
Volveros  por  dò  venistes, 
Que  aqui  não  ha  que  comer. 
E,  postoque  aqui  leais 
Trovinha  que  vos  enleia, 
Corrido  não  estejais; 
Porque  por  mais  que  corrais, 
Não  beis  de  alcançar  a  ceia. 

A  segunda  a  D.  Francisco  de  Almeida 

Heliogabalo  zombava 
Das  pessoas  convidadas; 
E  de  sorte  as  enganava, 
Que  as  iguarias  que  dava, 
Vinhão  nos  pratos  pintadas. 
Não  temais  tal  travessura. 
Pois  ja  não  pôde  ser  nova; 
Porque  a  cêa  está  segura  / 

De  vos  não  vir  em  pintura; 
Mas  ha  de  vir  toda  em  trova. 

A  terceira  a  Heitor  da  Silveira 

Cêa  não  a  papareis: 
Com  tudo,  porque  não  minta, 
Para  beber  achareis. 
Não  Caparica,  mas  tinta, 
E  mil  cousas  que  papeis. 
E  vós  torceis  o  focinho 


Com  esta  amphibologia? 
Pois  sabei  que  a  Poesia 
Vos  dá  aqui  tinta  por  vinho, 
E  papeis  por  iguaria. 

« 

A  quarta  a  João  Lopes  Leitão,  aouem  o  Author  fez  huns  versos,  que  v2o  adiante, 

sobre  huma  peça  ae  cacha,  que  deu  a  huma  dama 

Porque  os  que  vos  convidarão 
Vosso  estômago  não  danem, 
Por  justa  causa  ordenarão, 
Se  trovas  vos  enganarão, 
Que  trovas  vos  desenganem. 
•    Vós  tereis  isto*  por  tacha, 
.  Converter  tudo  em  trovar; 
Pois  se  me  virdes  zombar,  • 
Não  cuideis,  Senhor,  que  he  caclia, 
Que  aqui  não  ha  que  cachar. 

Responde  João  Lopes 

Pezar  ora  não  de  são, 
Eu  juro  pelo  Ceo  bento, 
Se  de  comer  não  me  dão, 
Qu'eu  não  sou  camaleão, 
Que  m'hei  de  manter  do  vento. 

Responde  o  Author 

Senhor,  não  vos  agasteis. 
Porque  Deos  vos  proverá ; 
E  se  mais  saber  quereis, 
Nas  costas  deste  lereis 
Ás  iguarias  que  ha. 

Virado  o  papel,  dizia  assi : 

.  Tendes  nem  migalha  assada ; 
Cousa  nenhuma  de  molho; 

TOMO  !▼  3 


\ 


54 


E  nada  feito  em  empada: 
E  vento  de  tigelada; 
Picar  no  dente  em  remôlho: 
De  fumo  tendes  taçalhos; 
Ave  da  pena  que.  sente 
Quem  da  fome  anda  doente; 
Bocejar  de  vinho  e  d^aihos; 
Manjar  em  branco  excellente. 

A  derradeira  a  Francisco  de  Mello 

D'hum  homem,  que  teve  o  scetro 
Da  vêa  maravilhosa, 
Não  foi  cousa  duvidosa, 
Que  se  lhe  tomava  em  metro 
O  qu'hiá  a  dizer  em  prosa. 
De  mi  vos  quero  aiBrmar 
Que  faça  cousas  mais  novas, 
De  quanto  podeis  cuidar; 
E  esta  côa,  que  he  manjar, 
Vos  faça  na  boca  em  trovas. 


NA  índia  ao  VISO-REI,  COM  O  MOTE  ADIANTE 

Conde,  cujo  illustre  peito 
Merece  nome  de  Rei, 
Do  qual  muito  certo  sei 
Que  lhe  fica  sendo  estreito 
O  cargo  deViso-Rei; 
Servirdes-vos  d'occupar-me 
Tanto  contra  meu  Planeta, 
Não  foi  senão  azas  dar-me, 
Com  as  quaes  vou  a  queimar-me. 
Como  o  faz  a  borboleta. 


55 

E  s'eu  a  penna  tomar, 
Que  Ião  mal  cortada  tenho, 
Será  para  celebrar 
Vosso  valor  singular 
Dmo  de  mais  alto  engenho. 
Que  se  o  meu  vos  celebrasse, 
Necessário  me  seria 
Que  os  olhos  d'aguia  tomasse, 
Só  para  que  não  cegasse 
No  sol  de  vossa  valia. 


Vossos  feitos  sublimados 
Nas  armas,  dignos  de  gloria. 
São  no  mundo  tão  soados» 
Qu'em  vós  de  vossos  passados 
Se  resuscita  a  memoria. 
Pois  aquelle  animo  estranho, 
Prompto  para  todo  eflfeito, 
Espanta  todo  o  conceito: 
Como  coração  tamanho 
Vos  pôde  caber  no  peito? 

A  clemência,  que  asserena 
Coração  tão  singular, 
S'eu  nisso  puzesse  a  penna. 
Seria  encerrar  o  mar 
Em  cova  muito  pequena. 
Bem  basta.  Senhor,  que  agora 
'  Vos  sirvais  de  me  occupar; 
Que  assi  fareis  aparar 
A  penna,  com  que  algum'hora 
Vos  vereis  ao  Ceo  voar. 


56 

Âssi  vos  irei  louvando, 
Vós  a  mi .  do  chão  erguendo, 
Ambos  o  mundo  espantando; 
Vós  com  a  espada  cortando, 
Eu  coro  a  penna  escrevendo. 

MOTE  QUE  LHE  MANDOU  0  TISO-REI 

Muito  sou  meu  inimigo, 
Pois  que  não  tiro  de  mi 
Cuidados,  com  que  nasci, 
Que  põe  a  vida  em  perigo. 
Oxalá  que  fora  assi ! 

VOLTA 

Viver  eu,  sendo  mortal, 
De  cuidados  rodeado. 
Parece  meu  natural ; 
Que  a  peçonha  não  faz  mal 
A  quem  foi  nella  criado. 
Tanto  sou  meu  inimigo, 
Que  por  não  tirar  de  mi 
Cuidados,  com  que  nasci. 
Porei  a  vida  em  perigo. 
Oxalá  que  fora  assi! 


Tanto  vim  a  accrescentar 
Cuidados,  que  nunca  àmansão 
Em  quanto  a  vida  durar, 
Que  canso  ja  de  cuidar 
Como  cuidados  não  cansão. 
S'estes  cuidados,  que  digo. 
Dessem  fim  a  mi  e  a  si, 


57 


Fariâo  pazes  comigo; 
Que  pôr  a  vida  em  perigo, 
O  bom  fora  para  mi. 


A  UUMA  DAMA,  QUE  LHE  MANDOU  PEDIR 
ALGUMAS  OBRAS  SUAS 

Senhora,  s'eu  alcançasse 
No  tempo  que  ler  quereis. 
Que  a  dita  dos  meus  papeis 
Pola  minha  se  trocasse; 
^E  por  ver 

Tudo  o  que  posso  escrever 
Em  mais  breve  relação, 
Indo  eu  onde  elles  vão, 
Por  mi  só  quizesseis  ler; 

Despois  de  ver  hum  cuidado 

Tão  contente  de  seu  mal. 

Veríeis  o  naturai 

Do  que  aqui  vedes  pintado; 

Quç  o  perfeito 

Amor,  de  que  sou  sogeito, 

Vereis  áspero  e  cruel, 

Aqiii  com  tinta  e  papel, 

Em  mi  com  sangue  no  peito. 

m 

9 

Que  hum  contínuo  imaginar 
Naquillo  que  Amor  ordena, 
He  pena,  que  emfim  por  penna 
Se  não  pôde  declarar; 
Que  se  eu  levo  * 

Dentro  n'alma  (juanio  devo 


38 


De  trasladar  em  papeis, 
Vede  que  melhAt  lereis, 
Se  a  mi,  se  aquillo  qu'escrevo? 

À  HUMA  SENHORA,  A  QUEM  DERÃO  HUM  PEDAÇO 

DE  SITIM  AMARELLO 

Se  derivais  da  verdade 
Esta  palavra  Sitim, 
,  Achareis  sem  falsidade, 
Que  após  o  si  lee  o  tim, 
Que  tine  em  toda  a  Cidade. 
Bem  vejo  que  m'eDtendeis ; 
Mas  porque  não  falle  em  vão, 
Sabei  que  a  esta  Nação 
Taqto  que  o  st  concedeis, 
O  tim  logo  está  na  mão. 

B  quem  da  fama  s'arreda, 
Que  tudo  vai  descobrir, . 
Deve  sempre  de  fugir 
De  sitin?,  porque  da  seda 
Seu  natural  he  rugir. 
Mas  panno  fino  e  delgado, 
Qual  a  raxa  e  outros  assi. 
Dura,  aquenta,  e  he  callado. 
Amoroso,  e  dâ  de  si 
Mais  que  sitim,  nem  brocado. 

Mas  estes,  que  sedas  são 
Com  quem  s'enganão  mil  Damas, 
Mais  vos  tomão,  do  que  dão; 
Promettem,  mas  não  darão, 


59 

Senão  nódoas  para  as  famas. 
E  se  não  me  quereis  crer, 
Ou  tomais  outro  caminho, 
Por  exemplo  o  podeis  ver, 
Quando  lá  virdes  arder 
A  casa  d'algum  vizinho. 

Oh  feminina  simpreza, 
Donde  estão  culpas  a  pares, 
Que  por  hum  Dom  de  nobreza, 
Deixão  does  da  natureza, . 
Mais  altos  e  singulares! 
Hum  Dom,  que  anda  enxertado 
No  nome,  e  nas  obras  não. 
Fallo  como  experimentado; 
Que  sitim  desta  feição 
Eu  tenho  muito  cortado. 

Dizem-me  qu'era  amarello; 
E  quem  assi  o  quiz  dar, 
Só  para  me  Deos  vingar, 
Se  vem  á  mão  amarè-Io, 
O  qu'eu  não  posso  cuidar. 
Porque  quem  sabe  viver 
Por  estas  artes  manhosas, 
(Isto  bem  pode  não  ser) 
Dá  a  meninas  formosas, 
Somente  polas  fazer. 

Quem  vos  isto  diz,  Senhora, 
Sérvio  nas  vossas  armadas 
Muito,  mas  anda  ja  fora: 


40 

E  pôde  ser  qu'inclâ  agora 
Traz  abertas  as  frechadas. 
E,  postoque  desfavores 
O  tirfio  de  servidor, 
Quer-vos  ventura  melhor; 
Que  dos  antigos  amores 
Inda  lhe  fica  este  amor. 


A  ÍJUMA  S13NH0RA  REZANDO  POR  HUMAS  CONTAS 

Peço-VQS  que  me  digais 
As  orações  que  rezastes, 
Se  são  poios  que  matastes, 
Se  por  vós  que  assi  matais? 
Se  são  por  vós,  s|io  perdidas; 
Que  qual  será  a  oração. 
Que  seja  satisfação, 
Senhora,  de  tantas  vidas? 


Que  se  vedes  quantos  vem 
A  só  vida  vos  pedir. 
Como  vos  ha  Deos  de  ouvir, 
Se  vós  não  ouvis  ninguém? 
Não  podeis  ser  perdoada 
Com  mãos  a  malar  tão  prontas, 
Que  se  n'huma  trazeis  contas, 
Na  outra  trazeis  espada. 

Se  dizeis  que  encommendando 
Os  que  matastes  andais; 
Sc  rezais  por  quem  malais. 
Para  que  matais  rezando? 


4\ 

Que  se  na  força  do  orar 

Levantais  as  mãos  aos  Geos, 

Não  as  ergueis  para  Deos, 

Erguei-las  para  matar. 
• 

E  quando  os  olhos  cerrais, 
Toda  enlevada  na  fé, 
Cerrão-se  os  de  quem  vos  vô, 
Para  nunca  verem  mais. 
Pois  se  assi  forem  tratados 
Os  que  vos  vem  quando  orais, 
Essas  horas  que  rezais, 
São  as  horas  dos  fínados. 


t 

0 


Pois  logo,  se  sois  servida 
Que  tantos  mortos  não  sejão, 
Não  rezeis  onde  vos  vejão, 
Ou  vede  para  dar  vida. 
Ou  se  quereis  escusar 
Estes  males  que  causastes, 
Resuscitae  quem  matastes, 
Não  tereis  por  quem  rezar. 

A  HUMA  DAMA  QUE  LHE  DEO  HUMA  PENNA 

•     Se  „'alma  e  no  pensamento 

Por  vosso  me  manifesto. 
Não  me  peza  do  que  sento; 
Que  se  não  soffrer  tormento, 
Faço  offensa  a  vosso  geslo. 
E,  pois  quanlo  Amor  ordena, 
E  (juanto  est  alma  deseja, 


42 

Tudo  á  morte  me  condena, 
NãQ  quero  senão  que  seja 
Tudo  pena,  pena,  pena. 


A  HUMA  DAMA  QUE  LHE  CHAMOU  CARA  SEM  OLHOS 

Sem  olhos  vi  o  mal  claro, 
Que  dos  olhos  se  seguio: 
Pois  cara  sem  olhos  vio 
Olhos,  que  lhe  custâo  caro. 
D^olhos  não  faço  menção, 
Pois  quereis  que  olhos  não  sejão; 
Vendo-Yos,  olhos  sobejão, 
Não  vos  vendo,  olhos  não  são. 


DISPARATES  NA  ÍNDIA 

Este  mundo  es  cl  camino    , 

Adó  hay  ducientos  váosj 

Ou  por  onde  bons  e  máos, 

Todos  somos  dei  merino. 

Mas  03  máos  são  de  teor. 

Que  desque  mudão  a  cõr, 

Ghamão  logo  a  El-Rei  compadre; 

Eemgm,dejadlos,  mi  madre, 

Que  sempre  tee  hum  sabor 

De  quem  torto  nasce,  tarde  s'cndireila. 

Deixae  a  hum  que  se  abone: 
Diz  logo  de  muito  sengo, 
Villas  y  castillos  tengo, 
Todos  á  mi  niandar  sone. 


45 


Então  cu,  qu'estou  de  molho, 

Com  a  lagrima  no  olho, 

Pdlo  virar  do  envés, 

Dígo-lhe:  tu  ex  illis  es, 

E  por  isso  não  te  ólho; 

Pois  honra  e  proveito  não  cabem  n'hum  saco. 

« 
• 

Vereis  huns,  que  no  seu  seio 

Cuidão  que  trazem  Paris, 

E  querem  com  dous  ceitis, 

Fender  anca  pelo  meio. 

Vereis  mancebinho  de  arte, 

Com  espada  em  talabarte: 

Não  ha  mais  Italiano. 

A  este  direis:  Meu  mano. 

Vós  sois  galante  que  farte; 

Mas  pan  y  vino  anda  el  camino,  q  no  mozo  garrido. 

Outros  em  cada  theatro. 
Por  officio  lhe  ouvires 
Que  se  matarán  con  três, 
Y  Io  mismo  haran  con  cuatro. 
Prezão-se  de  dar  respostas, 
Com  palavras  bem  compostas; 
Mas  se  lhe  meteis  a  mão. 
Na  paz  mostrão  coração,    ' 
Na  ^erra  mostrão  as  costas; 
Porque  aqui  torce  a  porca  o  rabo. 

Outros  vejo  por  ahi, 

A  que  se  acha  mal  o  fundo, 

Que  andão  emendando  o  mundo, 


44 


E  não  se  cmcndão  a  si. 

Estes  respondem  â  quem 

Delles  não  entende  bem 

El  dolor  que  está  secreto; 

Mas  porém  quem  for  discreto, 

Responder-lhe-hà  muito  bem: 

Assi  entrou  o  mundo,  assi  ha  de  saliir. 

Achareis  rafeiro  velho, 

Que  se  quer  vender  por  galgo: 

Diz  que  o  dinheiro  he  fidalgo, 

Que  o  sangue  todo  he  vermelho. 

Se  elle  mais  alto  o  dissera. 

Este  pelote  puzera : 

Que  o  seu  eco  lhe  responda ; 

Que  su  padre  era  de  Ronda^ 

Y  su  madre  de  Anlequera, 

E  quer  cobrir  o  Céo  co'huma  joeira. 

Fraldas  largas,  grave  aspeito, 
Para  Senador  Romano. 
Oh  que  grandíssimo  engano  1 
Que  Momo  lhe  abrisse  o  peito! 
Consciência,  que  sobeja. 
Siso,  com  que  o  mundo  reja, 
Mansidão  outro  que  si ; 
Mas  que  lobo  está  em  ti. 
Metido  em  pelle  de  oveja! 
E  sabem-no  poucos. 

Guardae-vos  de  huns  meus  Senhores, 
Que  ainda  comprão  e  vehdcm; 


45 

» 

Huns,  qu'he  cerlo,  que  descendera 

Da  geração  de  pastores: 

Mostrão-se-vos  bons  amigos; 

Mas  se  vos  vem  em  perigos, 

Escarrão-vos  nas  paredes; 

Que  de  fora  dormiredes,* 

Irmão,  que  he  tempo  de  figos; 

Porque  de  rabo  de  porco  nunca  bom  virote. 

Que  direis  d'huns,  què  as  entranhas 

Lh'eslão  ardendo  em  cobiça, 

E  se  lee  mando,  a  justiça 

Fazem  de  teas  de  aranhas? 

Com  suas  bypocrisias, 

Que  são  de  vossas  espias: 

Para  os  pequenos  huns  Neros, 

Para  os  grandes  tudo  feros. 

Pois  tu,  parvo,  não  sabias. 

Que  lá  vão  leis,  onde  querem  cruzados? 

Mas  tornando  a  huns  enfadonhos. 
Cujas  cousas  são  notórias;   - 
Huns,  que  contão  mil  historias 
Mais  desmanchadas  que  sonhos; 
Huns  mais  parvos  que  zamboas, 
Qu'estudão  palavras  boas, 
A  que  ignorância  os  atiça: 
Estes  paguem  por  justiça. 
Que  tee  morto  mil  pessoas. 
Por  vida  de  quanto  quero. 

* 

Adonde  tíenen  las  mentes 
Huns  secretos  trovadores, 


46 

Que  fazem  cartas  cCamores, 
De  que  íicão  mui  contentes? 
Não  querem  sabir  á  praça; 
Trazem  trova  por  negaça; 
E  se  lha  gabais,  qu'he  boa, 
Diz  qu'he  de  certa  pessoa. 
Ora  que  quereis  que  faça, 
Senão  ir-me  por  esse  mundo? 

Ó  tu,  como  me  atarracas,  ^ 
Escudeiro  de  Solia, 
Com  bocàes  de  fidalguia, 
Trazido  quasi  com  vacas; 
Importuno  a  importunar, 
Morto  por. desenterrar 
Parentes,  que  cheirão  ja! 
Voto  a  tal,  que  me  fará 
Hum  destes  nunca  fallar 
Mais  com  viva  alma. 

Huns,  que  fallao  muito,  vi, 

De  que  quizera  fugir; 

Huns  que,  emCm,  sem  se  sentir, 

Andão  fallandò  entre  si ;  . 

Porfíosos  sem  razão; 

E  desque  tomão  a  mão, 

Fallao  sem  necessidade; 

E  se  algum'hora  he  verdade, 

Deve  ser  na  confissão; 

Porque  quem  não  mente... .  Ja  m'entendeis. 

• 

Oh  vós,  quem  quer  que  me  lerdes, 
Qu'haveis  de  ser  avisado, 


47 

Que  dizeis  ao  namorado 
Que  caça  venlo  com  redes? 
Jura  por  vida  da  Dama; 
FaUa  comsigo  na  cama; 
Passêa  de  noite  e  escarra;. 
Por  falsete  na  guitarra 
Põe  sempre :  Viva  quem  ama, 
Porque  calça  a  seu  propósito. 


Mas  deixemos,  se  quizerdes, 
Por  hum  pouco  as  travessuras, 
Porqu'entre  quí^tro  maduras 
Leveis  também  cinco  verdes. 
Deitemos-nos  mais  ao  mar; 
E  se  algum  se  arrecear, 
Passe  três  ou  quatro  trovas. 
E  vós  tomais  cores  novas? 
Mas  nao  he  para  espantar; 
Que  quem  porcos  ha  menos, 
Em  cada  mouta  lhe  roncão. 


Ó  vós,  que  sois  Secretários 
Das  consciências  Reais, 
E  que  entre  os  homens  estais 
Por  Senhores  ordinários; 
Porque  não  pondes,  hum  freio 
Ao  roubar,  que  vai  sem  meio, 
Debaixo  de  bom  governo? 
Pois  hum  pedaço  de  inferno  . 
Por  pouco  dinheiro  alheio 
Se  vende  a  Mouro  e  a  Judeo. 


48 


Porque  a  mente,  affeiçoada 

Sempre  á  Real  dignidade, 

Vos  faz  julgar  por  bondade 

A  malicia  desculpada. 

Move  a  pi;esença  Real 

Huma  aíTeição  natural, 

Que  logo  inclina  ao  Juiz 

A  seu  favor:  e  não  diz 

Hum  rifão  muito  geral. 

Que  o  Abbade  donde  canla,  dahi  janta? 

E  vós  bailais  a  esse  som : 
Por  isso,  gentis  pastores, 
Vos  chama  a  vós  mercadores 
Hum  que  só  foi  pastor  bom- 

A  JOAO  LOPES  LEITÃO, 

80BRE  íiUMÂ  PEÇA  DE  CACHA  QUE  I^IANDOU  A  HUMA  DAMA, 

QUE  SE  LHE  FAZIA  DONZELLA 

UOtÉ 

Se  vossa  Dama  voâ  dá 
Tudo  quanto  vós  quizestes, 
Dizei-me:  p'ra  que  lhe  destes 
O  que  vos  ella  fez  ja? 

VOLTA 

Sendo  os  restos  envidados, 
E  vós  de  cachas  mil  contos 
Sabeis  com  quão  poucos  pontos^ 
Que  lhos  achastes  quebrados ; 
Se  o  que  tce,  isso  vos  dá, 


tOlO  IV 


'       '  49 

« 

Vós  mui  Leni  lho  merecesles, 
Porque  se  a  cacha  lhe  destes 
Tinha-vo-la  feita  ja. 

MOTE 

Menina  formosa  e  crua, 
Bem  sei  eu 

Quem  deixará  de  ser  seu, 
Se  vós  quizereis  ser  sua. 

VOLTAS   * 

Menina  mais  que  na  idade, 
Se  para  me  querer  bem 
Vos  não  vejo  ler  vontade, 
He  porque  outrem  vo-la  tem; 
Tee-vo-la,  e  faz-vo-la  crua. 
Porém  eu 

Ja  tomara  não  ser  meu, 
Se  vós  não  fôreis  tão  sua. 

Nos  olhos,  e  na  feição 
Vos  vi,  quando  vos  olhava, 
Tanta  graça,  que  vos  dava 
De  graça  este  coração: 
Não  o  quizestes  de  crua, 
Por  ser  meu : 
Se  outrem  vós  dera  o  seu, 
Pôde  ser  fôreis  mais  sua. 

Menina,  tende  maneira^ 
Que  ainda  não  venha  a  ser, 
Pois  não  quereis  quem  vos  quer, 
Que  queirais  quem  vos  não  ffueira. 


50 

Olhae  não  me  sejais  crua, 
Que  pois  eu 

Quero  ser  vosso,  e  não  meu, 
Sede  vós  minha,  e  não  sua. 

A  HUMA  DAMA  DOENTE 

MOTE 

Da  doença,  em  que  ora  ardeis, 
Eu  fóra  vossa  mezinha 
Só  com  vós  serdes  a  minha. 

VOLTAS 

He  muito  para  notar 
Cura  tão  bem  acertada, 
Que  podereis  ser  curada 
Somente  com  me  curar. 
Se  quereis.  Dama,  trocar. 
Ambos  temos  a  mezinha, 
Eu  a  vossa,  e  vós  a  minha. 

Olhae,  que  não  quer  amor, 
(Porque  fiquemos  iguaes) 
Pois  meu  ardor  não  curais, 
Que  se  cure  vosso  ardor. 
Eu  6á  sinto  vossa  dor; 
E  se  vós  sentis  a  minha, 
Dae  e  tomae  a  mezinha. 

OUTRO 

Deo,  Senhora,  por  sentença 
Amor,  que  fosseis  doente. 
Para  fazerdes  á  gente 
Doce  e  formosa  a  doença. 


5< 


VOLTAS 

Não  sabendo  Amor  curar, 
^  Foi  a  doença  fazer 
Formosa  para  se  ver, 
Doce  para  se  passar. 
Então  vendo  a  dífferença 
Que  ha  de  vós  a  toda  a  gente. 
Mandou,  que  fosseis  doente. 
Para  gloria  da  doença. 

E  digo-vos  de  verdade,   • 
Que  a  saúde  anda  invejosa, 
Por  ver  estar  tão  formosa 
Em  vós  essa  enfermidade. 
Não  façais  logo  detença, 
Senhora,  em  estar  doente, 
Porque  adoecerá  a  gente, 
C!om  desejos  da  doença. 

Qu'eu  por  ter,  formosa  Dama, 
A  doença.  qu'em  vós  vejo, 
Vos  confesso,  que  desejo 
De  cahir  comvosQp  em  cama. 
Se  consentis,  que  me  vença 
Deste  mal,  não  houve  gente 
Da  saúde  Ião  contente, 
Como  eu  serei  da  doença. 

AO  MESMO 

Olhae  que  dura  sentença 
Foi  amor  dar  contra  mi! 
Que  porqu'em  vós  me  perdi, 
Em  vós  me  busque  a  doença. 


/ 


V 


I 


52   ^ 

Clâro  está, 

Que  eni  vós  só  me  achará; 
Qu'em  mi,  se  me  vem  buscar. 
Não  poderá  mais  achar, 
Que  a  forma  do  que  foi  ja. 

Que  8'em  vós  Amor  se  pôs, 

Senhora,  he  forçado  assi, 

Que  o  mal,  que  me  busca  a  mi. 

Que  vos  faça  mal  a  vós. 

Sem  mentir. 

Amor  me  quiz  destruir 

Por  modo  nunca  cuidado, 

Pois  ha  de  ser  ja  forçado 

Pezar-vos  de  vos  servir. 

Mas  sois  tão  desconhecida, 
E  são  meus  males  de  sorte. 
Que  vos  ameaça  à  morte. 
Porque  me  negais  a  vida. 
Se  por  boa 
Tal  justiça  se  pregoa; 
Quando  desta  sorte  for, 
Havei  vós  perdão  de  Amor, 
Que  a  parte  ja  vos  perdoa. 

Mas  o  que  mais  temo,  emtim, 
He  que  nesta  differença. 
Que  se  não  torne  a  doença. 
Se  me  não  tomais  a  mim. 
De  verdade,  ^ 

Que  ja  vossa  humanidade 
De  que  se  queixe  não  tem; 


55 

Pois  para  as  almas  também 
Fez  Amor  enfermidade. 


A  HUMA  DAMA  VESTIDA  DE  DÓ 

MOTB 

De  atormentado  e  perdido, 

Ja  vos  não  peço,  senão 

Que  tenhais  no  coração  ' 

O  que  tendes  no  vestido. 

VOLTA 

Se  de  dó  vestida  andais 
Por  quem  ja  vida  não  tem, 
Porque  não  o  haveis  de  quem 
Vós  tantas  vezes  matais? 
Que  brado  sem  ser  ouvido, 
E  nunca  vejo  senão 
Cruezas  no  coração, 
E  grande  dó  no  vestido. 

A  DONA  GUIOMAR  DE  BLASFÉ,  QUEIMANDO-SE 
COM  HUMA  VELA  NO  ROSTO 

MOTE 

Amor,  que  todos  ofFende, 
Teve,  Senhora,  por  gosto, 
Que  sentisse  o  vosso  rosto 
O  que  nas  almas  accende. 

VOLTA  ^ 

A(juelle  rosto  que  traz 
O  mundo  todo  abrazado, 


/ 

/ 


54 


Sc  foi  da  flâmina  tocado, 
Foi  porque  sinta  o  que  faz. 
Bem  sei  que  Amor  se  vos  rende; 
Porém  o  seu  presupposto 
Foi  sentir  o-  vosso  rosto 
O  que  nas  almas  accende. 

A  HUMA  MULHER,  AÇOUTADA  POR  HUM  «QMEM, 
QUE  CHAMAVÃO  QUARESMA 

MOTK 

« 

Não  estejais  aggravada, 
Senão  se  for  de  vós  mesma; 
Porqu'a  mulher,  que  he  errada, 
Com  razão  pela  Quaresma 
Deve  ser  disciplinada! 

VOLTAS 

Quererdes  profano  amor 
Em  Quaresma,  her  consciência: 
Açoutes  e  penitencia 
Vós  está  muito  melhor. 
Não  fiqueis  disto  aflrontada, 
Pois  a  culpa  he  vossa  mesma ; 
Que  mulher,  que  hc  tão  malvada, 
He  bem  que  pela  Quaresma 
Seja  bem  disciplinada. 

« 

Se  a  penitencia  vos  vai. 
Mui  bem  açoutada  estais; 
Pois  por  Quaresma  pagais 
Vossos  vicios  do  carnal. 
Não  torneis  a  ser  errada, 


5& 

Nem  condemneis  a  vós  mesma, 
Pois  estais  ja  emendada; 
,  E  não  sereis  por  puaresma 
Outra  vez  disciplinada. 


A  HUM  FIDALGO,  QUE  LHE  TAí^AVA  COM  HUMA  CAMISA, 

.  QUE  LHE  PROMETTEO 

Quem  no  mundo  quizer  ser 
Havido  por  singular, 
Para  mais  s^engrandecer, 
Ha  de  trazer  sempre  o  dar 
Nas  ancas  do  prometter. 
E  ja  que  vossa  mercê, 
Largueza  tee  por  divisa, 
Como  o  mundo  todo  vê. 
Ha  mister  que  tanto  dê, 
Que  venha  a  dar  a  camisa. 


A  HUMA  DAMA,  QUE  LHE  CHAMOU  DIABO, 
POR  NOME  FOÃA  DOS  ANJOS 

MOTE 

Senhora,  pois  me  chamais 
Tão  sem  razão  tão  mão  nome, 
Inda  o  diabo  vos  tome. 

VOLTAS 

Quem  quer  que  vio,  ou  que  leo, 
Terá  por  novo  e  moderno. 
Ter  quem  vive  no  inferno, 
O  pensamento  no  Ceo.        ' 
Mas  se  a  vós  vos  pareceo, 


56 

Que  m'es1ava  bem  tal  nome, 
Esse  diabo  vos  tome. 

Perdido  mais  q\ie  ninguém 
Confesso,  Senhora,  ser; 
Mas  o  diabo  não  quer 
Âos  Anjos  tagianho  bem. 
Pois  logo  não  me  convém, 
Ou  se  me  convém  tal  nome, 
Será  para  que  vos  tome. 

Se  vos  benzeis  com  caulella, 
Como  de  AnjOj  e  não  de  luz, 
Mal  pôde  fugir  da  Cruz, 
Quem  vós  tendes  posto  nella. 
Mas  ja  que  foi  minha  estrella 
Ser  diabo,  e  ter  tal  nome, 

Guãrdae-vos,  que  vos  não  tome. 

« 
Ja  que  chegais  tanto  ao  cabo. 

Com  as  mãos  postas  aos  Ceos, 

Vou  sempre  pedindo  a  Deos, 

Que  vos  leve  este  diabo. 

Eu,  Senhora,  não  me  gabo; 

Mas  pois  que  me  dais  tal  nome, 

*  Tomo-o,  para  que  vos  Iqme. 

A  HUM  AMIGO,  QUE  NÃO  PODIA  ENCONTRAR 

MOTE 

Qual  terá  culpa  de  nós 
Neste  mal,  que  todo  he  meu? 
Quaiído  vindes,  não  vou.  eu. 
Quando  vou,  não  vindes  vós. 


57 


VOLTA 


Reinando  Amor  em  dous  peitos, 
Tece  tantas  falsidades, 
Que  de  conformes  vontades 
Faz  desconformes  effeitos. 
Igualmente  vive  em  nós; 
Mas  por  desconcerto  seu 
Vos  leva,  se  venho  eu, 
Me  leva,  se  vindes  vós. 

BI9TB  SEU 

Descalça  \di  pela  neve: 
Assi  faz  quem  Amor  serve. 

VOLTAS  • 

Os  privilégios  que  os  Reis 
Não  podem  dar,  pôde  amor. 
Que  faz  qualquer  amador 
Livre  das  humanas  leis. 
Mortes  e  guerras  cruéis. 
Ferro,  frio,  fogo  e  neve, 
Tudo  soffre  quem  o  serve. 

Moça  formosa  despreza 
Todo  o  frio,  e  toda  a  dor. 
Olbae  quanto  pôde  Amor 
Mais  que  a  própria  natureza. 
Medo,  nem  delicadeza 
Lh'impede  que  passe  a  neve. 
Assi  faz  quem  Amor  serv^. 

Por  mais  trabalhos  que  leve, 
A  Judo  se  oíFreceriá; 


\ 


58 


Passa  peia  neve  fria, 
Mai^  alva  que  a  própria  neve; 
Com  todo  frio  se  atreve. 
Vede  em  que  fogo  ferve 
O  triste,  que  a  Amor  serve. 

OUTRO  ALHEIO 

  dor  que  a  minha  alma  sente, 
Não  na  sabe  toda  a  gente. 

VOLTAS 

Qu'estranho  caso  de  Amor! 
Que  desejado  tormento! 
Que  venho  a  ser  avarento 
Das  dores  de  minha  dor! 
Por  me  não  tratar  peor, 
Se  se  sabe,  ou  se  se  sente. 
Não  na  digo  a  toda  a  gente. 

V 

Minha  dor  e  causa  delia 
De  ninguém  ouso  fiar; 
Que  seria  aventurar 
A  perder-me,  ou  a  perdella. 
E  pois  só  com  padecella, 
A  minha  alma  está  contente, 
Não  quero  que  o  saiba  a  gente. 

Ande  no  peito  escondida. 
Dentro ,n'alma  sepultada; 
De  mi  só  seja  chorada. 
De  ninguém  seja  sentida. 
Ou  me  mate,  ou  me  dê  vida, 


59 

Oa  viva  triste  ou  contente, 
Não  ma  saiba  toda  a  gente. 

OUTRO  SEU 

D'alma,  e  de  quanto  tiver, 
Quero  que  me  despojeis, 
Com  tanto,  que  me  deixeis 
Os  olhos  para  vos  ver. 

VOLTA 

Cousa  este  corpo  não  tem, 
Que  ja  não  tenhais  rendida: 
Despois  de  tirar-lhe  a  vida, 
Tirae-lhè  a  morte  também. 
Se  mais  tenho  que  perder, 
Mais  quero  que  me  leveis, 
Com  tanto  que  me  deixeis 
Os  olhos  para  vos  ver. 

NOTE  ALHEIO 

Amores  de  huma  casada, 
Que  eu  vi  pelo  meu  mal. 

VOLTAS 

N'huma  casada  fui  pôr 
Os  olhos,  de  si  senhores : 
Cuidei  que  fossem  amores, 
Elles  íizerão-se  amor. 
Faz-se  o  desejo  maior 
Donde  o  remédio  não  vai, 
Em  perigo  de  meu  mal 


60 

Não  me  pareceo  que  Amor 
Pudesse  tanto  comigo, 
Que  donde  entra  por  amigo, 
Se  levante  por  senhor. 
Leva-me  de  dor  em  dor, 
E  de  final  em  final. 
Cada  vez  para  mór  mal. 

OUTRO  SEU 

Enforquei  minha  esperança ; 
Mas  Amor  foi  tão  madraço, 
Que  lhe  cortou  o  baraço. 

VOLTA 

Foi  a  esperança  julgada 
Por  sentença  da  Ventura, 
Que  pois  me  teve  á  pendura. 
Que  fosse  dependurada: 
Vem  Cupido  com  a  espada, 
Corta-lhe  cerce  o  haraço. 
Cupido,  foste  madraço. 

OUTRO  SEU 

Puz  o  coração  nos  olhos, 
E  os  olhos  puz  no  chão. 
Por  vingar  o  coração. 

VOLTA 

O  coração  invejoso 
Como  dos  olhos  andava. 
Sempre  remoques  me  dava 
Que  não  era  o  meu  mimoso: 
Venho  eu  de  piedoso 


6< 

Do  Senhor  meu  coração, 
E  boto  os  olhos  no  chão. 

OUTRO  SEU 

Puz  meus  olhos  n'huma  fiinda, 
E  fiz  hum  tiro  com  ella 
Ás  grades  d'huma  janella. 

VOLTA 

Huma  Dama,  de  malvada, 
Tomou  seus  olhos  na  mão; 
E  tirou-me  huma  pedrada 
Com  elles  ao  coração. 
Armei  minha  funda  então, 
E  puz  os  meus  olhos  nella, 
Trape,  quebrei-lhe  a  janella. 

ALHEIO  I 

De  pequena  tomei  amor, 
Porque  o  não  entendi; 
Agora  que  o  conheci, 
Mata-me  com  desfavor. 

VOLTAS 

Vi-o  moço  e  pequenino, 
E  a  mesma  idade  ensina 
Que  s'incline  huma  menina 
Ás  amostras  d'hum  menino: 
Ouvi-lhe  chamar  Amor, 
Polo  nome  me  venci ; 
Nunca  tal  engano  vi, 
Nem  tamanho  desamor. 


•  \ 


62 

Croscechine  de  dia  em  dia 
Com  a  idade  a  affeiçao, 
PoFque  amor  de  criação, 
N'alma,  e  na  vida  se  cria. 
Griou-se  em  mi  este  amor, 
B  senhoreou-se  de  mi: 
Agora  que  o  conheci, 
Mata-me  com  desfavor. 

Às  flores  me  toma  abrolhos, 
A  morte  me  determina 
Quem  eu  trouxe  de  menina 
.Nas  meninas  de  meus  olhos. 
Desta  mágoa  e  desta  dor 
Tenho  sabido  que  emfím 
Por  amor  me  perco  a  mim 
Por  quem  de  mi  perde  amor. 

Parece  ser  caso  estranho 
O  que  Amor  em  mi  ordena, 
Qu'em  idade  tão  pequena 
Haja  tormento  tamanho. 
Sejão  milagres  d' Amor, 
Hei-os  de  soffrer  assi, 
Até  que  haja  dó  de  mi 
Quem  entender  esta  dor. 

CANTIGA  VELHA 

Apartârâo-se  os  meus  olhos 
De  mi  tão  longe. 
Falsos  amores, 
Falsos,  máos,  enganadores. 


65 

TOLTAS 

Tratárão-me  com  cautella, 
Por  m'enganar  mais  asinha; , 
Dei-lhe  posse  d'a]ma  minha, 
Forão-me  fugir  com  ella. 
Não  ha  vê-los,  nem  ha  \  ella, 
De  mi  tão  longe. 
Falsos  amores, 
Falsos,  máos,  enganadores! 

Entn^uei-lhe  a  liberdade, 
E,  emíim,  da  vida  o  melhor; 
Forão-se;  e  do  desamor 
Fizerão  necessidade. 
Quem  leve  a  sua  vontade 
De  si  Ião  longe? 
Falsos  amores, 
E  oxalá  enganadores ! 

OCTBA 

Falso  Cavalheiro,  ingrato, 

Enganais-me, 

Vós  dizeis,  c[ue  eu  vos  maio, 

E  vós  matais-me. 

VOLTAS 

Costumadas  artes  são 
Para  enganar  innocencias, 
Piedosas  apparencias 
Sobre  isento  coração. 
Eu  vos  amo,  c  vós  ingrato 
Magoais-me, 


64 

Dizendo,  que  eu  vos  mato, 
E  vós  matais-me. 


Vede  agora  qual  de  nós 
>  Anda  mais  perto  do  fim. 
Que  a  justiça  faz-se  em  mim, 
E  o  pregão  diz  que  sois  vós. 
Quando  mais  verdade  traio 
Levantais-me 

Que  vos  desamo  e  vos  mato, 
E  vós  matais-me. 

PRÓPRIO 

Se  de  meu  mal  me  contento, 
He  porque  para  vós  vejo 
Em  todo  o  mundo  desejo, 
E  em  ninguém  merecimento. 

VOf.TA 

Para  quem  vos  soube  olhar 
Tao  impossivel  foi  ser 
O  poder-vos  merecer. 
Como  o  não  vos  desejar. 
Pois  logo  a  meu  pensamento 
Nenhum  çémedio  lhe  vejo, 
Senão  se  der  o  desejo 
Azas  ao  merecimento. 

ALHEIO 

Vós,  Senhora,  tudo  tendes, 
Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 


• 


• 


65 

VOLTAS 

Dotou  em  vós  natureza 
O  summo  da  perfeição; 
Que  o  qu^em  vós  he  senão, 
He  em  outras  gentileza: 
O  verde  não  se  despreza, 
Que,  agora  que  vós  os  tendes, 
São  bellos  os  olhos  verdes. 

Ouro  e  azul  he  a  melhor 
Côr,  por  que  a  gente  se  perde ; 
Mas  a, graça  desse  verde 
,    Tira  a  graça  a  toda  côr. 
Fica  agora  sendo  a  flor 
A  côr,  que  nos  olhos  tendes, 
Porque  são  vossos  e  verdes. 

ALHEIO 

Para  que  me  dan  tormento, 
Aprovechando  tan  poço? 
Perdido,  mas  ne  tan  loco, 
Que  descubra  lo  que  sienlo. 

VOLtAS 

Tiempo  perdido  es  aquel 
Que  se  passa  en  darme  afan, 
Pues  cuanto  más  mé  lo  dan^ 

Tanto  menos  siento  dél. 

« 

Que  descubra  lo  que  siento? 
No  lo  haré,  que  no  es  tan  poço ; 
Que  no  puede  ser  tan  loco 
Quien  tiene  tal  pensamiento.         ' 

TOUO  IV       '  5 


66 

Sepan  que  me  manda  Âmor, 
Que  de  tan  dulce  querella, 
A  nadie  dé  parte  delia, 
Porque  la  sienta  mayor. 
Es  tan  dulce  mi  tormento, 
Que  aun  se  me  antoja  poço; 

Y  si  es  mucbo,  quedo  loco 
De  gusto  de  lo  que  siento. 

ALHEIO 

De  vuestros  ojos  centellas, 
Que  encienden  pechos  de  hielo, 
Suben  por  el  aire  ai  cielo, 

Y  en  Uegando  son  estreitas. 

VOLTAS 

Falsos  loores  os  dan, 
Que  essas  centellas  tan  raras 
No  son  nel  cielo  mas  claras 
Que  en  los  ojos  donde  estan. 
Porque  cuando  miro  en  ellas 
Lo  como  alumbran  ai  suelo, 
No  sé  que  scran  nel  cielo; 
Mas  sé  que  acá  son  estrellas. 

Ni  se  puede  presumir 
Que  ai  cielo  suban,  Senora; 
Que  la  lumbre  que  en  vós  mora. 
No  tiene  más  que  subir; 
Mas  pienso  que  dan  quercllas 
Á  Dios  nel  octavo  cielo, 
Porque  son  acá  en  el  suelo 
Dos  tan  hermosas  estreitas. 


07 


ALHEIO 


De  dentro  tengo  mi  mal, 
Que  de  fiíera  no  hay  senal. 

VOLTA 

Mi  nueva  y  dulce  querella 

Es  invisible  á  la  gente ; 

El  alma  sola  Ia  siente, 

Que  el  cuerpo  no  es  dino  delia.  • 

Gomo  la  viva  centella 

Se  encubre  en  el  pedernal, 

De  dentro  tengo  mi  mal. 

ALHEIO 

Amor  loco,  amor  loco, 
Yo  por  vós,  y  vós  por  oiro, 

VOLTAS 

Dióme  Amor  tormentos  dós, 
Para  que  pfcne  doblado; 
Uno  es  verme  desamado, 
Otro  es  mancilla  de  vós. 
Ved  que  ordena  Amor  eçi  nósl 
Porque  vós  haceisme  loco. 
Que  seais  loca  por  otro. 

Tratais  Amor  de  manera^ 
Que  porque  asi  me  tratais^ 
Quiere  que,  pues  no  me  amais, 
Que  ameis  otro  que  no  os  quiera. 
Mas  con  todO;  si  no  os  viera 
De  todo  loca  por  otro, 
Con  más  razon  fuera  loco. 


G8 


Y  tan  contrario  viviendo, 
Âlíin,  alfin,  conformamos; 
Pues  ambos  a  dós  buscamos 
Lo  que  mas  nos  vá  buyendo. 
Voy  trás  vós  siempre  siguiendo, 

Y  vós  buyendo  por  oiro: 
Andais  loca,  y  me  baceis  loco. 

ALHEIO 

Vede  bem  se  nos  meus  dias 
Os  desgostos  vi  sobejos, 
Pois  tenbo  medo  a  desejos, 
E  quero  mal  a  alegrias. 

VOLTA 

Se  desejos  fui  ja  ter, 
Servirão  de  alormentar-me ; 
Se  algum  bem  pôde  alegrar-me, 
Quiz-me  antes  entristecer. 
P^sei  annos,  passei  dias 
Em  desgostos  tão  sobejos, 
Que  só  por  não  ter  desejos, 
.  Perderei  mil  alegrias. 

PRÓPRIO 

Pois  se  be  mais  vosso  que  meu, 
Senbora,  meu  coração, 
Eu  vosso  captivo  são. 
Meus  olbos,  lembre-vos  eu. 

VOLTA 

Lembre-vos  minha  tristeza, 
Que  jamais  nunca  me  deixa ; 


69 


Lembre-vos  com  quânta  queixa 
Se  queixa  minha  firmeza: 
Lembre-vos  que  não  be  meu 
Este  triste  coração; 
E  pois  ba  tanta  razão, 
Meus  olbos,  lembre-vos  eu. 

OUTRO 

Senhora,  pois  minha  vida 
Tendessem  vosso  poder; 
Por  serdes  delia  servida, ' 
Não  queirais  que  destruida 
Possa  ser. 

VOLTA 

Isto  não  por  me  pezar 
De  morrer,  se  vós  quizerdes; 
Que  melhor  me  he  acabar 
Mil  vezes,  que  supprtar 
Os  males  que  me  fizerdes; 
Mas  só  por  serdes  servida 
De  mi,  -em  quanto  viver. 
Vos  peço  que  minha  vida 
Não  queirais  que  destruida 
Possa  ser. 

OUTRO 

Pois  damno  me  faz  olhar-vos. 
Não  quero,  por  não  perder-vos, 
Que  ninguém  me  veja  ver-vos. 

VOLTAS 

De  ver-vos  a  não  vos  ver 
Ha  dous  extremos  mortaes; 


70 

E  são  elles  em  si  taes. 
Que  hum  por  hum  me  faz  morrer; 
Mas  anles  quero  escolher, 
Que  possa  viver  sem  ver-vos, 
Minh'alma,  por  não  perder-vos. 

• 

Deste  tamanho  perigo 
Que  remédio  posso  ter, 
Se  vivo  só  com  vos  ver, 
Se  vos  não  vejo,  perigo? 
Mas  quero  acabar  comigo, 
Que  ninguém  me  veja  ver-vos, 
Senhora,  por  não  perder-vos. 

A  TRÊS  DAMAS,  QUE  UIE  DIZIÃO  QUE  O  AMA  VÃO 

MOTE 

Não  sei  se  m'engana  Helena, 

Se  Maria,  se  Joanna; 

Não  sei  qual  delias  m'engana. 
» 

VOLTAS 

Huma  diz  que  mp  quer  bem, 
Oulra  jura  que  mo  quer; 
Mas  em  jura  de  mulher 
Quem  crerá,  se  ellas  não  crem? 
Não  posso  não  crer  a  Helena, 
A  Maria,  nem  Joanna; 
Mas  não  sei  qual  mais  m'engana. 

Huma  faz-me  juramentos 
Que  só  meu  amor  estima, 


7\ 

A  outra  diz  que  se  fina, 
Joanna,  que  bebe  os  ventos. 
Se  cuido  que  mente  Helena, 
Também  mentirá  Joanna; 
Mas  quem  mente  não  m'engana. 

A  HUMA  DAMA  MAL  EMPREGADA 

MOTE 

Menina,  não  sei  dizer, 
Vendo-vos  tão  acabada, 
Quão  triste  estou  por  vos  ver 
Formosa  e  mal  empregada. 

VOLTAS 

Quem  tão  mal  vos  empregou. 
Pouco  de  mi  se  dohia. 
Pois  não  vio.o  quanto  me  hia 
Em  tirar-me  o  que  tirou. 
Obriga  o  primor  que  tem 
Lindeza  tão  extremada 
Que  digão  quantos  a  vem, 
Formosa  e  mal  empregada! 

Tomastes  da  formosura 
Quanto  delia  desejastes, 
E  com  ella  me  guardastes 
Para  tão  triste  ventura. 
Matáveis  sendo  solteira, 
Matais  agora  em  casada; 
Matais  de  toda  a  maneira, 
Formosa  e  mal  empregada. 


72 


A  HUMA  FOÃA  GONÇALVES 

I 

MOTE 

Com  vossos  olhos,  Gonçalves, 
Senhora,  caplivo  tendes 
Este  meu  coração  Mendes. 

VOLTA 

Eu  sou  boa  testimunha, 
Que  Amor  tem  por  cousa  má, 
Que  olhos,  que  são  homens  ja, 
Se  nomeiem  sem  alcunha; 
Pois  o  coração  apunha, 
E  diz,  olhos,  pois  vós  tendes,- 
Chamae-me  coração  Mendes. 

OUTRO 

De  que  me  serve  fugir 
De  morte,  dor  e  perigo, 
Se  me  eu  levo  comigo? 

VOLTAS 

Tenho-me  persuadido. 
Por  razão  conveniente, 
.  Que  não  posso  ser  contente. 
Pois  que  pude  ser  nascido. 
Anda  sempre  tão  unido 
O  meu  tormento  comigo, 
Qu'eu  mesmo  sou  meu  perigo. 

E  se  de  mi  me  livrasse. 
Nenhum  gosto  me  seria: 
Quem,  senão  cu,  não  teria 


7o    . 

Mal,  que  esse  bem  me  tirasse? 
Força,  he  logo  que  assi  passe, 
Ou  com  desgosto  comigo, 
Ou  sem  gosto  e  sem  perigo. 

A  HUMA  DAMA,  QUE  JURAVA  PELOS  SEUS  OLHOS 

Quando  me  quer  enganar 
A  minha  bdla  perjura, 
Para  mais  me  confirmar 
O  que  quer  certificar, 
Poios  seus  olhos  me  jura. 
Gomo  meu  contentamento 
Todo  se  rege  por  elles. 
Imagina  o  pensamento. 
Que  se  faz  aggravo  a  elles 
Nao  crer  tão  grão  juramento. 

I 

Porém  como  em  casos  tais 
Ando  ja  visto  e  corrente, 
Sem  outros  certos  sinais. 
Quanto  me  ella  jura  mais. 
Tanto  mais  cuido  que  mente. 
Então  vendo-lhe  offender 
Huns  taes  olhos  como  aquelles, 
Deixo-me  antes  tudo  crer, 
Só  pola  não  constranger 
A  jurar  falso  por  elles. 


MOTE  ALHEIO 


Ha  hum  bem,  que  chega  e  foge; 
E  chama-se  este  bem  tal, 
Ter  bem  para  sentir  mal. 


.   7 


VOLTA 


Quem  viveo  sempre  n'hum  ser, 
Inda  que  seja  cm  pobreza. 
Não  YÍo  o  bem  da  riqueza, 
Nem  o  mal  d'empobrecer  : 
Não  ganhou  para  perder; 
Mas  ganhou  com  >ída  igual 
Não  ler  bem,  nem  sentir  mal. 


A  HUMA  DAMA,  QUE  LHE  VIROU  O  ROSTO 


MOTE 


Olhos,  não  vos  mereci 
Que  tenhais  tal  condição, 
Tão  liberaes  para  o  chão, 
Tão  irosos  para  mi. 


VOLTA 


Baixos  e  honestos  andais, 
Por  vos  negardes  a  quem 
Não  quer  mais  que  aquelle  bem, 
Que  vós  no  chão  espalhais? 
Se  pouco  vos  mereci, 
Não  m'estimeis  mais  que  o  chão, 
  quem  vós  o  galardão 
Dais,  é  mo  negais  a  mi. 

PRÓPRIO 

Venceo-me  Amor,  não  o  nego; 
Tee  mais  força  qu'eu  assaz; 
Que  como  he  cego  e  rapaz, 
Dá-mc  porrada  de  cego. 


75 


VOLTA 


Só  porque  he  rapaz  ruim, 
Dei-lbe  hum  boféte  zombando. 
Diz-me;  Ó  máo,  estais-me  dando. 
Porque  sois  maior  que  mim? 
Pois  se  eu  vos  descarrego, 
E  em  dizendo  isto,  chaz ; 
Toroa-me  outra,  tá  rapaz. 
Que  dás  porrada  de  cego. 

AO  DESCONCERTO  DO  MUNDO 

Os  bons  vi  sempre  passar 
No  mundo  graves  tormentos; 
E  para  mais  m'espantar, 
Os  máos  vi  sempre  nadar 

w 

Em  mar  de  contentamentos. 
Cuidando  alcançar  assi 
O  bem  tão  mal  ordenado, 
Fui  máo;  mas  fui  castigado. 
Assi,  que  só  para  mi 
Anda  o  mundo  concertado. 


A  HUMA  DAMA,  PERGUNTANDO-UIE  QUEM  O  MATAVA 


MOTE 


Perguntais-me,  quem  me  mata? 
Nâo  quero  responder  nada, 
Por  vos  não  fazer  culpada. 


VOLTA 


E  se  a  penna  não  me  atiça, 
A  dizer  pena  tão  forle. 


70  _ 

Quero-me  entregar  á  morle, 
Antes  tjue  a  vós  á  justiça. 
Porém  se  leqdes  cobiça 
De  vos  verdes  Ião  culpadia, 
Direi  que  não  sinto  nada. 

MOTE 

Esconjuro-te,  Domingas, 
Pois  me  dás  tanto  cuidado, 
Que  me  digas  se  te  vingas, 
Viverei  menos  penado. 

VOLTAS 

Juravas-me,  qu.e  outras  cabras 
Folgavas  de  apascentar; 
Eu  por  não  me  magoar, 
Fingia  qu'erão  palabras. 
Agora  d'arte  te  vingas 
D'algum  meu  doudo  peccado, 
Qu'inda  que  queiras,  Domingas, 
Não  posso  ser  enganado. 

Qualquer  cousa  Lusca  o  seu; 
A  fonte  vai  para  o  Tejo, 
E  tu  para  o  teu  desejo, 
Por  te  vingares  do  meu. 
De  mi  t'esquecps,  Domingas, 
Como  eu  faço  do  meu  gado : 
Praza  a  Deos,  que  se  te  vingas. 
Que  morra  desesperado. 

Na  phanlasia  te  pinto, 
Pallo-te,  responde  o  monte, 


77 

Busco  o  rio,  busco  a  fonte, 
Endoudeço,  e  não  o  sinto: 
Domingas  no  Yalle  brado, 
Responde  o  eco  Domingas; 
E  tu  inda  te  nâo  vingas 
De  me  ver  dou(}o  tornado! 

« 

m 

ALHEIO 

Se  a  alma  ver-se  não  pôde 
Onde  pensamentos  ferem, 
Que  farei  para  me  crerem? 

VOLTAS 

Se  n'alma  huma  só  ferida 
Faz  na  vida  mil  sinais, 
Tanto  se  descobre  mais. 
Quanto  be  mais  escondida. 
S'esta  dor  tão  conhecida 
Me  não  vem,  porque  não  querem. 
Que  farei  para  ma  crerem? 

Se  se  pudesse  bem  ver 
Quanto  callo,  e  quanto  sento, ' 
Despois  de  tanto  tormento 
Cuidaria  alegre  ser.. 
Mas  se  não  me  querem  crer 
Olhos,  que  tão  mal  me  ferem, 
Que  farei  para  me  crerem? 

ALHEIO 

Vosso  bem  querer.  Senhora, 
Vosso  mal  melhor  me  frfra. 


78 


VOLTAS 

Ja  agora  certo  conheço 
Ser  melhor  todo  tormento, 
Onde  o  arrependimento 
Se  compra  por  justo  preço. 
Enganou-me  hum  bom  começo; 
Mias  o  fim  me  diz  agora 
Que  o  mal  melhor  me  fora. 

Quando  hum  bem  he  tão  damnoso, 
Que  sendo  bem,  dá  cuidado, 
O  damno  fica  obrigado 
A  ser  menos  perigoso. 
Mas  se  a  mi  por  desditoso, 
Co'o  bem  me  foi  mal,  Senhora, 
Co'o  vosso  mal  bem  me  fora. 

ALHEIO 

Se  me  desta  terra  for, 

Eu  vos  levarei,  amor. 

f 

VOLTAS 

Se  me  for,  e  \oê  deixar, 
(Ponho  por  caso,  que  possa) 
Est'alma  minha,  qtt'he  vossa, 
Comvosco  m'ha  de  ficar. 
Assi  que  só  por  levar 
A  minha  alma,  se  me  for, 
Vos  levarei,  meu  amor. 

Que  mal  pode  maltratar-me^ 
Que  comvosco  seja  mal? 
Ou  que  bem  pôde  ser  lal^ 


79 

Que  sem  vós  possa  alegrar-me? 
O  mal  não  pode  enojar-me, 
O  bem  me  será  maior, 
Se  vos  levar,  meu  amor. 

ALHEIO 

Pequenos  contentamentos, 
Hi  buscar  quem  contenteis. 

Que  a  mi  não  me  conheceiç. 

• 

VOLTAS 

Os  gostos,  que  tantas  dores 
Fizerão  ja  valer  menos, 
Não  os  acceita  pequenos, 
Quem  nunca  teve, maiores: 
Bem  parecem  vãos  favores. 
Pois  tão  tarde  me^quereis, 
Qu'inda  me  não  conheceis. 

Oflfereceis-me  alegria, 
Tendo-me  ja  cego  e  mouco  : 
He  baixeza  acccitar  pouco, 
Quem  tanto  vos  merecia. 
Ide-vos  por  outra  via. 
Pois  o  bem  qu^  me  deveis, 
Nunca  mo  satisfareis. 

Xlhrio 

Perdigão  perdeo  a  penna, 
Não  ha  mal  que  lhe  não  venha. 

VOLTAS 

Perdigão,  que  o  pensamento 
Subio  a  hum  alto  lugar, 


80 

Perde  a  penfia  do  voar, 
Ganha  a  pena  do  tormento: 
Não  tee  no  ar,  nem  no  vento, 
Azas  com  que  se  sostenha: 
Não  ba  mal  que  lhe  não  venha. 

Quiz  voar  a  huma  alta  torre, 
Mas  achou-se  desasado; 
E  vendo^se  despennado. 
De  puro  penado  morre. 
Se  a  queixumes  se  soccorre, 
Lança  no  fogo  mais  lenha: 
Não  ha  mal  que  lhe  não  venha. 

9 

A  HUMAS  SENHORAS,  QUE  HAVlAO  SER  TERCEIRAS 

PARA  COM  HUMA  DAMA 

Pois  a  tantas  perdições. 

Senhoras,  quereis  dar  vida,    • 

Ditosa  seja  a  ferida. 

Que  tee  taes  Cirurgiõesl 

Pois  ventura 

Me  subio  a  tanta  altura, 

Que  me  sejais  valedoras. 

Ditosa  seja  a  tristura, 

Que  se  cura 

Por  vossos  rogos,  Senhoras! 

Ser  minha  pena  mortal, . 
Ja  qu'en tendeis,  que  he  assi, 
Não  quero  fallar  por  mi. 
Que  por  mi  falia  meu  mal. 
Sois  formosos, 


84 


Haveis  de  ser  piedosas, 

Por  ser  tudo  d'huma  côr; 

Que  pois  Amor  vos  fez  rosas 

Milagrosas, 

Fazei  milagres  de  Amor. 

Pedi  a  qoem  vós  sabeis, 

Que  ^iba  de  meu  trabalho, 

Não  pelo  qu'eu  nisso  valho, 

Mas  pelo  que  vós  valeis. 

Que  o  valer 

De  vosso  alto  merecer. 

Com  lho  pedir  de  giolhos, 

Fará  qu'em  meu  padecer 

Possa  ver 

O  poder  que  tee  seus  olhos. 

Vossa  muita  formosura 

Com  a  sua  tanto  vai. 

Que  me  rio  de  meu  mal. 

Quando  cuido  em  quem  me  cura . 

A  meus  ais, 

Peço-vos  que  lhe  valhais, 

Damas  de  Amor  tão  validas, 

Que  nunca  tal  dor  sintais. 

Que  queirais. 

Onde  não  sejais  queridas. 

CANTIGA  ALHtUIA 

Na  fonte  está  Leonor 
Lavando  a  talha,  e  chorando. 
Ás  amigas  perguntando: 
Vistes  lá  o  meu  amor? 

TOXO  l¥  (í 


82 


VOLTAS 

Posto  O  pensamento  nellé, 
Porque  a  tudo  o  Amor  a  obriga, 
Cantava,  mas  a  cantiga 
Erão  suspiros  por  elle. 
Nisto  estava  Leonor 
O  seu  desejo  enganando, 
Ás  amigas  perguntando:    • 
Vistes  lá  o  meu  amor? 

O  rosto  sobre  bua  mão, 
Os  olhos  no  cbão  pregados. 
Que  de  cborar  ja  cansados, 
Algum  descanso  lhe  dão; 
Desta  sorte  Leonor 
Suspende  de  quando  em  quando 
Sua  dor;  e  em  si  tornando. 
Mais  pezada  sente  a  dor. 

Não  deita  dos  olhos  ágoa, 
Que  não  quer  que  a  dor  s'abrande 
Amor,  porque  em  mágoa  grande 
Sécca  as  lagrimas  a  mágoa. 
Despois  que' de  seu  amor 
Soube  novas  perguntando, 
D' improviso  a  vi  chorando. 
Olhae  que  extremos  de  dorl 


85 


TROVAS 

1 

QUE  MANDOU  O  AUTOR  DA  CADEIA,  EM  QUE  O  TINHA  EMBARGADO  POR  HUMA 
.    DIVIDA  MIGUEL  ROIZ,  FIOS  SECCOS  D'ALCUNHA>  AO  CONDE  DO  REDONDO 

D.  FRANCISCO  COUTINHO,  YISO-REI,  QUE  SE  EMBARCAVA  PARA  PÓRA,  PE- 

DINDO-LHE  O  FIZESSE  DESEMBARCAR. 

Que  diabo  ha  tão  damnado, 
Qae  ttão  tema  a  cutilada 
Dos  fios  seccos  da  espada 
Do  fero  Miguel  armado? 
Pois  se  tanto  hum  golpe  seu 
Sôa  na  infernal  cadeia, 
Do  que  o  demónio  arreceia 
Gomo  não  fugirei  eu? 

Com  razão  lhe  fugiria, 
Se  contr'elle,  e  contra  tudo 
Não  tivesse  hum  forte  escudo 
Só  em  Vossa  Senhoria. 
Por  lanto,  Senhor,  proveja, 
Pois  me  tee  ao  remo  atado. 
Que  antes  que  seja  embarcado, 
.  Eu  desembargado  seja. 

TROVAS 

.    QUE  MANDOU  HETTOR  DA  SILVEIRA  AO  MESMO  CONDE, 

INVERNANDO  EM  GOA 

Vossa  Senhoria  creia 
Que  não  apura  o  engenho 
Fome,  se  he  como  a  que  tenho. 
Mas  afraca  e  corta  a  veia. 
E  quem  o  contrario  senie, 


84 

Está  farto  em  toda  a  hora, 
Gomo  estou  faminto  agora: 
Mas  Martha,  se  está  contente, 
Dá-lhe  pouco  de  quem  chora. 

E  pois  Vossa  Senhoria 
Em  geral  a  tudo  acode. 
Acuda  a  mi,  que  só  pôde 
Dar-me  no  engenho  valia. 
Esperte  esta  Musa  minha, 
Que  o  tempo  traz  somnolenta; 
Valha-lhe  nesta  tormenta 
Com  essa  doce  mezinha, 
Que  só  dá  vida  e  contenta. 

Acuda  com  provisão, 
Não  de  papel,  mas  provida 
D'ouro  e  prata;  que  esta  vida 
Não  suslentão  papeis,  não. 
De  feitor  a  thesoureiro 
Ser-me-hia  trabalho  grande; 
Vossa  Senhoria  mande 
Algum  remédio,  primeiro, 
Com  que  a  morte  o  ferro  abrande. 

AJUDA  dÉ  LUIZ  PE  CAMÕtilS 

Nos  livros  doutos  se  trata 
Que  o  grande  Achilles  insano 
Deo  a  morte  a  Heitor  Troiano; 
Mas  agora  a  fome  mata 
O  nosso  Heitor  Lusitano. 
Só  ella  o  pódc  acabar, 
Se  essa  vossa  condição 


85 

Liberal  e  singular 
'  Não  mete  entr'elles  baslão, 
Bastante  para  o  fartar. 

A  HUMA  SENHORA,  QUE  LHE  CHAMOU  DIABO 

ESPABSA 

Não  posso  chegar  ao  cabo 
De  tamanho  desarranjo, 
•  Que  sendo  vós,  Senhora,  Anjo, 
Vos  queira  tanto  o  Diabo. 
Dais  manifesto  sinal 
De  minha  muita  firmeza, 
,    Que  os  diabos  querem  mal 
Aos  Anjos  por  natureza. 

CANTIGA 

Vi  chorar  huns  claros  olhos. 

Quando  delles  me  partia. 

Oh  que  magoai  Oh  que  alegria! 

VOLTAS 

Polo  meu  apartamento 
Se  aiTazárão  todos  d'ágoa. 
Quem  cuidou  qu'em  tanta  mágoa 
Achasse  contentamento? 
Julgue  todo  entendimento 
Qual  mais  sentir  se  devia. 
Se  esta  dor,  se  esta  alegria? 

Quando  mais  perdido  estive, 
Então  deo  a  est'alma  minha 
Na  maior  mágoa  que  tinha, 


8() 

O  maior  gosto  que  tive. 
Assi,  se  minha  alma  vive, 
Foi  porqae  me  defendia 
Desta  dor  esta  alegria. 

O  bem,  que  Amor  me  não  deu 
No  tempo  que  desejei, 
Quando  delle  me  apartei, 
Me  confessou  qu'era  meu. 
Agora  que  farei  pu, 
Se  a  fortuna  me  desvia 
De  lograr  esta  alegria? 

Não  sei  se  foi  enganado, 
Pois  me  tinha  defendido 
Das  iras  de  mal  querido, 
No  mal  de  ser  apartado, 
Agora  peno  dobrado, 
Achando  no  fim  do  dia 
O  principio  da  alegria. 

VILLÂNCETIfi  PASTORIL 

Deos  te  salve,  Vasco  amigo. 
Não  me  falias?  Gomo  assi? 
Bofe,  Gil,  não  'slava  aqui, 

VOLTAS 

Pois  onde  te  hão  de  faltar, 
Se  não  'stás  onde  appareces? 
Se  Magdanela  conheces, 
Nella  me  podes  achar. 
E  como  le  hão  d'ir  buscar 


87      ■ 


Aonde  fogem  de  ti?    ^ 
Pois  nem  eu  estou  em  mi. 

Porque  te  não  acharei 
Em  ti,  como  em  Magdanela? 
Porque  me  fui  perder  nella 
O  dia  que  me  ganhei. 
Quem  tão  bem  falia,  não  sei 
Como  anda  fora  de  si. 
Ella  falia  dentro  em  mi. 

Gomo  estás  aqui  presente, 
Se  lá  tens  a  alma  e  a  vida? 
Porqu'he  d'hum'alma  perdida 
Apparecer  sempre  á  gente. 
Se  és  morto,  bem  se  consente 
Que  todos -fujão  de  ti. 
Eu  também  fujo  de  mi. 

• 

OUTRO  PASTORIL 

Porque  no  miras,  Giraldo, 
Mi  zampona  como  suena?  - 

Porque  no  me  mira  Elena. 

I 

VOLTAS 

Vuelve  acá,  no  estes  pasmado, 
Mira  que  gentil  sonar! 
Como  te  podrá  mirar 
Quien  no  puede  ser  mirado? 
Y  que  bueno. enamorado! 
No  dirás,  si  es  mala,  o  buena? 
No,  que  me  hizo  mudo  Elena. 


88 

Mira  lan  dulce  armonía, 
Déjate  dessos  enojos. 
Tengo  clavados  los  ojos 
Con  que  mirar  te  podia. 
Ansí  Dios  te  dé  alegria: 
No  vés  cuan  dulce  que  suena? 
No,  porque  no  veo  Elena. 

OUTRO  PASTORIL 

Crescem,  Camilla,  os  abrolhos 
De  cliorares  por  Gincero: 
Nao  lie  muito,  que  lhe  quero, 
Belisa,  mais  que  meus  olhos. 

VOLTAS 

Sempre  os  teus  olhos  estão, 
Camilla,  d'ágoas  banhados. 
De  se  verem  desaipados 
Pôde  ser  que  chorarão. 
Si,  mas  crescem  os  abrolhos, 
E  tu  cegas  por  Cincero. 
S'eu  não  vejo  quem  mais  quero. 
Para  que  quero  mais  olhos? 

Se  se  foi  ha  mais  d'hum  mês, 
Teus  olhos  não  cansarão? 
Não,  que  após  elle  se  vão 
Estas  lagrimas  que  vês. 
Fazem  logo  estes  abrolhos     ^ 
O  mato  espinhoso  e  fero. 
Pois  eu  não  vejo  a  Cincero, 
Isso  só  verão  meus  olhos. 


89 

Chorando  queres  morrer? 
Mais  quero  viver  chorando. 
Tu  não  vês  que  vás  cegando? 
Se  cego,  como  hei  de  ver? 
Põe  na  vista  outros  antolhos. 
Não  posso,  nem  menos  quero. 
Outra  para  outro  Cincero, 
Antes  não  quero  ter  olhos. 


A  HUMA  MULHER,  QUE  SE  CHAMAVA  GRACIA  DE  MORAES 


MOTE 


Olhos,  em  qu'estão  mil  flores, 
E  com  tanta  graça  olhais, 
Que  parece  que  os  Amores 
Morão  onde  vós  morais. 


VOLTA 

Vem-se  rosas  e  boninas, 
Olhos,  nesse  vosso  ver; 
Vem-se  mil  almas  arder 
No  fogo  dessas  meninas. 
E  di-lo-hão  minhas  dores. 
Meus  suspiros  e  meus  ais; 
E  dirão  mais,  que  os  amores 
Morão  onde  vós  morais. 


MOTE 


Quem  se  confia  em  huns  olhos, 
Nas  meninas  delles  vê 
Que  meninas  não  tee  fé. 


90 

VOLTAS 

Quem  põe  suas  confianças 
'  Em  meninas  sem  assento, 
Offereça  o  soffrimento 
A  duzentas  mil  mudanças. 
Mostrao  no  ar  esperanças; 
Mas  em  seus  olhos  se  vé 
Como  não  tee  n'alma  fé. 

Enganão  ao  parecer, 
Porque  no  caso  d'amar. 
São  mulheres  no  matar, 
E  meninas  no  querer. 
Quem  em  seus  olhos  se  crer. 
Cem  mil  graças  nelles  vè ; 
^Vô-las  sim,  mas  não  ter  fé. 

Amostrão-vos  n'hum  momento 
Favores  assi  a  molhos; 
Mas  na  mudança  dos  olhos 
Se  lhe  muda  o  pensamento. 
Em  nada  ja  tee  assento, 
E  o  que  mais  nelles  se  vê 
He  formosura  sem  fé. 

LOUVANDO  E  DESLOUVANDO  HUMA  DAMA 

CANTIGA  VELHA 

Sois  formosa,  e  tudo  tendes, 
Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 

VOLTAS 

Ninguém  vos  pôde  lirar 
Senles  tão  hem  assombrada ; 


91 


Mas  heisrme  de  perdoar, 
Que  os  olhos  não  valem. nada. 
Fostes  mal  aconselhada 
Em  querer  que  fossem  verdes : 
Trabalhae  de  os  esconderdes. 

A  vossa  testa  he  jardim, 
Onde  Amor  se  desenfada; 
He  tão  branca  e  bem  talhada, 
Que  parece  de  marfim. 
Assi  he;  e  quanto  a  mim, 
Isso  vos  nasce  de  a  terdes 
Tão  perto  dos  olhos  verdes. 

Os  cabellos  desatados 
O  mesmo  sol  escurecem ; 
Senão  que  por  ser  ondados. 
Algum  tanto  desmerecem: 
Mas  á  fé,  que  se  parecem 
A  furto  dos  olhos  verdes. 
Não  vos  peze,  não,  de  os  terdes, 

As  pestanas  têe  mostrado 
Ser  raios,  qíie  abrazãu  vidas; 
Se  não  forão  tão  compridas, 
Tudo  o  mais.  era  pintado: 
Elias  me  tinhão  levado 
A  alma,  sem  o  vós  saberdes, 
Se  não  forão  os  olhos  verdes. 

O  mimo  desse  carão 

Nem  pôr-lhe  os  olhos  consente; 

O  ser  liso  e  transparente 


92 


Rouba  todo  o  coração: 
Inda  assi  achareis  nação, 
Que  lhe  não  peze  de  os  verdes; 
Mas  não  seja  co'os  olhos  verdes. 

Esse  riso,  que  lie  composto 
De  quantas  graças  nascerão, 
Senão  que  alguns  me  disserão. 
Vos  faz  covinhas  no  rosto. 
Na  vontade  tenho  posto 
Dar-vos  a  alma,  se  quizerdes, 
A  troco  dos  olhos  verdes. 

Nunca  se  vio,  nem  se  escreve 
Boca  co'huma  graça  igual, 
Se  não  fora  de  coral, 
E  os  dentes  de  côr  de  neve..    ' 
Dou-me  eu  â  Deos,  que  me  leve! 
SofTrerei  quanto  tiverdes, 
Não  me  tenhais  olhos  verdes. 

Essa  garganta  merece 
Outras  palavras  não  minhas. 
Senão  qu'he  feita  em  rosquinhas 
D'ãlfenim,  ao  que  parece. 
Eu'  sei  bem  quem  se  ofíerece 
A  tomar  tudo  o  que  tendes, 

E  também  os  olhos  verdes. 

« 

Essas  mãos  são  ferropeas: 
Só  o  vê-las  enfeitiça; 
Senão  que  são  alvas,  cheias, 
E  tee  a  feição  roliça; 


95 

Com  que  appellais  por  justiça, 
Para  com  ellas aprenderdes 
Qnem  vê  vossos  olhos  verdes. 

A  vossa  galantaria 
Matará  a  quem  faltardes: 
Tendes  huns  desdéns  e  tardes, 
Que  eu  logo  vos  roubaria. 
Oh  dou-me  a  Santa  Maria! 
Sou  cujo  de  quanto  tendes, 
E  também  desses  olhos  verdes. 

* 
ÂO  MESMO 

Tudo  tendes  singular, 

Com  que  os  corações  rendeis. 

Senão  que  rindo  fazeis 

Covinhas  para  enterrar: 

E  para  resuscitar 

Tee  força  a  graça  que  tendes; 

Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 

Tudo,  Senhora,  alcançais. 
Quanto  o  ser  formosa  alcança. 
Senão  que  dais  esperança 
Co'os  olhos  com  que  matais. 
Se  acaso  os  alevantais, 
He  para  as  almas  renderdes; 
Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 


94 


A  DOM  ANTÓNIO,  SENHOR  DE  CASCAES, 

f 

QUE  TENDO-LHE  PROMETTIDO  SEIS  GALLINHAS  RECHEADAS  POR  HUMA  COPLA 
QUE  LHE  FIZERA,  LHE  MANDOU  POR  )>RINCIP10  DA  PAGA 

MEIA  GALLINHA  RECHEADA 

Cinco  galiínhas  e  meia 
Deve  o  Senhor  de  Cascais; 
E  a  meia  vinha  cheia 
,  De  appetile  para  as  mais. 

MqTE 

Catharina  bem  promelte; 
Ora  mál  como  ella  mente! 

VOLTAS 

Catharina  he  mais  formosa 
Para  mi,  que  a  luz  do  dia; 
Mas  mais  formosa  seria, 
Se  não  fosse  mentirosa. 
Hoje  a  vejo  ipiedosa, 
Á  manhãa  tão  differente, 
Que  sempre  cuido  que  mente. 

Promelteo-me  hontem  de  vir, 
Nunca  mais  appareceo; 
Creio  que  não  prometleo, 
Senão  só  por  me  mentir. 
Faz-me,  emfim,  chorar  e  rir; 
Rio,  quando  me  promette. 
Mas  choro  quando  me  mente. 


95 

Jurou-me  aquella  cadelia 
De  vir,  pela  alma  que  tinha; 
Enganou-me;  tjnha  a  minha; 
Deo-lhe  pouco  de  perdella. 
A  vida  gasto  após  ella, 
Porque  ma  dá,  se  promette, 
Maa  tiia-ma  quando  mente. 


Má,  mentirosa,  malvada, 
Dizei,  porque  me  mentis? 
Prometteis,  e  então  fugis? 
Pois  sem  tornar,,  tudo  he  nada. 
Não  sois  bem  aconselhada; 
Que  quem  promette,  se  mente, 
O  que  perde  não  o  sente. 


Tudo  vos  consentiria 
Quanto  quízesseis  fazer. 
Se  este  vosso  promeller 
Fosse  por  me  ter  hum  dia. 
Todo  então  me  desfaria 
Coúi  gosto;  e  vós  de  contente, 
Zombarieis  de  quem  ménle. 


Mas  pois  folgais  de  mentir, 
Promettendo  de  me  ver, 
Eu  vos  deixo  o  prometter, 
Deixae-me  vós  o  servir: 
Haveis  então  de  sentir 
Quanto  a  minha  vida  sente 
O  servir  a  quem  lhe  menle. 


96 

Câthariná  me  menlio 
Muitas  vezes,  sem-  ter  lei, 
E  todas  lhe  perdoei 
Por  huma  só  que  cumprio. 
Se  como  mé  consentio 
Fallar-lhe,  o  mais  me  consente, 
Nunca  mais  direi  que  mente. 

MOTE 

A  alma,  qu'eslá  offrecida 
A  tudo,  nada  lhe  he  forte; 
Assi  passa  o  bem  da  vida. 
Como  passa  o  mal  da  morte. 

VOLTA 

De  maneira  me  succede 
O  que  temo,  e  o  que  desejo, 
Que  sempre  o  que  temo,  vejo, 
Nunca  o  que  a  vontade  pede. 
Tenho  tão  offerecida 
Alma  e  vida  a  toda  a  sorte. 
Que  isso  me  dera  da  morte. 
Como  ja  me  dá  da  vida. 

MOTE 

Ferro,  fogo,  frio  e  calma. 
Todo  o  mundo  acabarão; 
Mas  nunca  vos  tirarão, 
Alma  minha,  da  minha  alma« 

VOLTA 

Não  vos  guardei,  quando  vinha, 
Em  torre,  força,  ou  engenho; 


97 

Que  mais  guardada  vos  lenho 
Em  vós,  que  sois  alma  minha. 
Alli  nem  frio,  nem  calma, 
Não  podem  ler  jurdição; 
Na  vida  sim,  porém  não 
Em  vós  que  lenho  por  alma. 

MOTE 

Esperei,  ja  não  espero 
De  mais  vos  servir.  Senhora; 
Pois  me  fazeis  cada  hora    . 
Tanto  mal,  que  desespero. 

VOLTA 

Pois  sei  certo  que  folgais. 
Quando  mais  mal  me  fazeis, 
E  que  nunca  descansais, 
Senão  quando  me  mostrais 
Quão  pouco  bem  me  quereis; 
Servir-vos  mais  não  espero 
Pois  meu  viver  empeora 
Com  me  fazerdes.  Senhora, 

Tanto  mal,  que  desespero. 

« 

MOTE 

Descalça  vai  para  a  fonte 
Leonor  pela  verdura; 
Vai  formosa,  e  não  segura. 

VOLTIS 

Leva  na  cabeça  o  pote, 
O  testo  nas  mãos  de  prata, 
Cinta  de  fina  escarlata, 

TOMO  lY  7 


I 


98 

Sainho  de  chamalole: 
Traz  a  vasquinha  de  cole, 
•   Mais  branca  que  a  neve  pura; 
Vai  formosa,  e  nao  segura. 

Descobre  a  toinja  a  garganta, 
Cabellos  de  ouro  entrançado. 
Fila  de  côr  d'encamado, 
Tão  linda  que  a  inundo  espanta: 
Chove  nella  graça  tanta, 
Que  dá  graça  á  formosura;, 
Vai  formosa,  e  não  segura. 

MOTE 

Quem  disser  que  a  barca  pende, 
Dir-lhe-hci,  mana,  que  mente. 

VOLTAS 

Se  vos'  quereis  embarcar, 
E  para  isso  estais  no  cães, 
Entrae  logo:  que  tardaes? 
Olhae  qu'está  preamar: 
E  se  outrem,  por  vos  fretar, 
Vos  disser  quesla  que  pende, 
Dir-lhe-hei,  mana,  que  mente. 

Esta  barca  he  de  carreira; 
Tee  seus  apparelhos  novos: 
Não  ha  como  ella  outra  em  Povos 
Boa  de  leme,  e  veleira: 
Mas,  se  por  ser  a  primeira. 
Vos  disser  alguém  que  pende,' 
Dir-lhe-hei,  mana,  que  mente. 


99 

MOTE 

Com  razão  queixar*me  posso 
De  vós,  que  mal  vos  queixais; 
Pois,  Senhora,  vos  sangrais. 
Que  seja  n'l)um  corpo  vosso. 

VOLTAS 

Eu  para  levar  a  palma, 
Com  que  ser  vosso  mereça. 
Quero  que  o  corpo  padeça 
Por  vós,  que  delle  sois  alma. 
Vós  do  corpo  vos  queixais, 
Eu  queixar-me  de  vós  posso, 
Porque,  lendo  hum  corpo  vosso. 
Na  minha  alma  vos  sangrais. 

E  sem  fazer  differença 
No  que  de  mi  possuis, 
Pelo  pouco  que  sentis,  ^ 
Dais  á  minh'alma  doença. 
Porque  dous  aventurais? 
Oh  não  seja  o  damno  nosso! 
Sangre-se  este  corpo  vosso, 
Porque,  minha  alma,  vivais. 

E  inda,  se  attentardes  bem, 
Seguis  medicina  errada. 
Porque  para  ser  sangrada 
Hum'alma  sangue  não  tem. 
E  pois  em  mi  sarar  posso 
Males,  que  á  minha  alma  dais. 
Se  inda  outra  vez  vos  sangrais. 
Seja  neste  corpo  vosso. 


MOTE 

Ojos,  herido  me  hábeis, 
Àcabad  ya  de  matarme; 
Mas  muerto  volved  á  mirarme, 
Porque  me  resusciteis. 

VOLTAS 

Pues  me  distes  lai  herida, 
Gon  gana  de  darme  muerte, 
El  morir  me  es  dulce  suerte, 
Pues  cora  morir  me  dais  vida. 
Ojos,  qué  os  detcneis? 
Acabad  ya  de  matarme; 
Mas  muerto  volved  á  mirarme, 
Porque  me  resusciteis. 

La  Ilaga  cierto  ya  es  mia, 
Aunque,  ojos,  vós  no  querrais; 
Mas  si  la  muerte  me  dais, 
El  morir  me  es  alegria. 
Y  assí  digo  que  acabeis, 
O  ojos,  ya  de  matarme; 
Mas  muerto  volved  á  mirarme. 
Porque  me  resusciteis. 

* 
A  DONA  FRANCISCA  DE  ARAGÃO, 

QUE  LHE  MANDOU  GLOSAR  ESTE  VERSO 

Mas  porém  a  que  cuidados? 

Tanto  maiores  tormentos 
Forâo  sempre  os  que  soffri, 


J0< 

Daquillo  que  cabe  cm  mi, 
Que  não  sei  que  pensamentos 
São  os  para  que  nasci. 
Quando  vejo  esle  meu  peilo 
A  perigos  arriscados 
Inclinado,  bem  suspeito 
Que  a  cuidados  sou  sujeito, 
Mas  porém  a  que  cuidados  ? 

AO  MRSMO 

Que  vindes  em  mi  buscar, 
Cuidados,  que  sou  caplivo? 
Eu  não  tenbo  que  vos  dar: 
Se  vindes  a  me  matar, 
Ja  ha  muito  que  não  vivo ; 
Se  vindes,  porque  me  dais 
Tormentos  desesperados, 
Eu,  que  sempre  soffri  mais. 
Não  digo  que  não  venhais; 
Mas  porém  a  que,  cuidados? 

AO  MESMO 

Se  as  penas  que  Amor  me  deu. 
Vem  por  tão  suaves  meios, 
Não  ha  que  temer  receios; 
Que  vai  hum  cuidado  meu 
Por  mil  descansos  alheios. 
Ter  n'huns  olhos  tão  formosos 
Os  senlidos  enlevados. 
Bem  sei  qu'em  baixos  estados 
São  cuidados  perigosos; 
Mas  porém  a  que  cuidados?.  • . 


102 

UOTE  ALHEIO 

Trabalhos  descansariâo, 
Se  para  vós  trabalhasse; 
Tempos  tristes  passariao, 
Se  algum *hora  vos  lembrasse. 

GLOSA 

Nunca  o  prazer  se  conhece. 
Senão  despois  da  tormenta: 
Tão  pouco  o  bem  permanece, 
Que  se  o  descanso  florece, 
Logo  o  trabalho  arrebenta. 
Sempre  os  bens  se  lograriâo. 
Mas  os  males  tudo  atalhão; 
Porém  ja  que  assi  porfiâo, 
Onde  descansos  trabalhão, 
Trabalhos  dtscanmrião 

Qualquer  trabalho  me  fóra 
Por  vós  grão  contentamento: 
Nada  sentira,  Senhora, 
Se  vira  disto  algum'hora 
Em  vós  hum  conhecimento. 
Por  mal  que  o  mal  me  tratasse, 
Tudo  por  bem  tomaria; 
Postoque  o  corpo  cansasse, 
  alma  descansaria, 
Se  para  vós  trabalhasse 

Quem  vossas  cruezas  ]a 
Soííreo,  a  tudo  se  poz ; 
CiOstumado  ficará; 


« 


1 05 

E  muilo  nHilhor  será, 
Sc  trabalhar  para  vós. 
Tristezas  esqueceriao, 
Posloque  mal  me  tratarão ; 
Annos  não  me  lembrarião, 
Que  como  est'outros  passarão, 
Tempos  tristes  passar  ião. 

Se  fosse  galíjirdoado 
Este  trabalho  tão  duro, 
Não  vivera  magoado. 
Mas  nâo  o  foi  o  passado, 
Como  o  será  o  futuro? 
De  cansar  não  cansaria, 
Se  quizereis,  que  cansasse; 
Cavar,  morrer,  fa-lo-hia; 
Tudo,  emfim,  esqueceria,   , 
Se  algum^hora  vos  lembrasse. 

MOTE  ALHEIO 

Triste  vida  se  me  ordena. 
Pois  quer  vossa  condição       •    ^ 
Que  os  males,  que  dais  i)orpena. 
Me  fiquem  por  gala.rdão. 

GLOSA 

Despois  de  sempre  soffrer, 
Senhora,  vossas  cruezas, 
A  pezar  de  meu  querer, 
Me  quereis  satisfazer 
Meus  serviços  com  tristezas. 
Mas,  pois  em  balde  resiste 


\04 

Quem  vossa  vista  .condena, 
Prestes  estou  para  a  pena; 
Que  de  galardão  tão  triste 
Triste  vida  &e  me  ordena. 

De  contente  do  mal  meu 
A  tão  grande  extremo  vim,^ 
Que  consinto  em  minha  fim: 
Assi  que  vós  e  mais  eu, 
Ambos  somos  contra  mim. 
Mas  qiie  soffra  meu  tormento,. 
Sem  querer  mais  galardão, 
Não  he  fora  de  razão        , 
Que  queira  meu  soffrimenlo. 
Pois  quer  vossa  condição. 

O  mal,  que  vós  dais  por  bem. 
Esse,  Senhora,  he  mortal; 
Que  o  mal,  que  dais  como  mal. 
Em  muito  menos  se  tem, 
Por  costume  natural. 
Mas  porém  nesta  victoria, 
Que  comigo  he  bem  pequena, 
A  maior  dor  me  condena 
A  pena,  que  dais  por  gloria, 
Que  os  males,  que  dais  por  pena, 

Que  mór  bem  me  possa  vir, 
Que  servir-Yos,  não  o  sei. 
Pois  que  mais  quero  eu  pedir, 
Se  quanto  mais  vos  servir, 
Janto  mais  vos  deverei? 
Se  vossos  merecimentos  • 


^05 

De  tão  alta  estima  são, 
Assaz  de  favor  me  dão 
Em  querer  que  meus  tormentos 
Me  fiqueni  por  galardão. 

MOTE  ALHEIO 

Ja  não  posso  ser  contente, 
Tenho  a  esperança  perdida; 
Ando  perdido  entre  a  gente, 
Nem  morro,  nem  tenho  vida. 

GLOSA 

Despois  que  meu  cruel  Fado 
Destruio  huma  esperança. 
Em  que  me  vi  levantado, 
No  mal  fiquei  sem  mudança, 
E  do  bem  desesperado. 
O  coraçãp,  que  isto  sente, 
Á  sua  dor  não  resiste. 
Porque  vê  mui  claramente 
Que  pois  nasci  para  trisle, 
Ja  não  po^o  ser  contente. 

Por  isso,  contentamentos. 
Fugi  de  quem  vos  despreza: 
Ja  6z  outros  fundamentos, 
Ja  fiz  senhora  a  tristeza 
De  todos  meus  pensamentos. 
O  menos  que  lh'entreguei, 
Foi  esta  cansada  vida: 
Cuido  que  nisto  acertei, 
Porque  de  quanto  esperei 
Tenho  a  esperança  perdida. 


^06 

Acabar  de  me  perder 

Fora  ja  muito  melhor; 

Tivera  fim  esta  dor, 

Que  não  podendo  mór  ser, 

Cada  vez  a  sinto  mor. 

De  vós  desejo  esconder-me, 

E  de  mi  principalmente, 

Onde  ninguém  possa  ver-me; 

Què  pois  me  ganho  em  perder-me, 

Ando  perdido  entre  a  gente. 

Gostos  de  mudanças  cheios, 
Nao  me  busqueis,  nâo  vos  quero: 
Tenho-vos  por  tão  alheios, 
Que  do  bem  que  não  espero, 
Inda  me  ficão  receios. 
Em  pena  tão  sem  medida, 
Em  tormento  tão  esquivo 
Que  morra,  ninguém  duvida; 
Mas  eu  se  morro,  ou  se  vivo, 
Nem  morro,  nem  tenho  vida. 


A  HUMA  DAMA  QUE  SE  CHAMAVA  ANNA 


MOTE 


A  morte,  pois  que  sou  vosso, 
Nao  a  quero;  mas  se  vem. 
Ha  de  ser  todo  meu  bem. 


GLOSA 


Amor,  qu'em  meu  pensamento 
Com  tanta  fé  se  fundou, 
Me  tee  dado  hum  regimento, 


107 

Que  quando  vir  meu  tormento 
Me  salve  com  cujo  sou. 
E  com  esta  defensão, 
Com  que  tudo  vencer  posso, 
Diz  a  causa  ao  coração: 
Não  lee  em  mi  jurdição ' 
A  morte,  pois  que  sou  vosso. 

Por  exprimentar  hum  dia 
Amor  se  me  achava  forte 
Nesta  fé,  como  dizia, 
Me  convidou  com  a  morte, 
Só  por  ver  se  a  temeria. 
E  como  ella  seja  a  cousa 
Onde  está  todo  meu  bem, 
Respondi-Ihe,  como  quem 
Quer  dizer  mais,  e  não  ousa: 
Não  a  quero,  mas  se  vem, . . 

Não  disse  mais,  porque  então 
Entendeo  quanto  me  toca; 
E  se  tinha  dito  o.  não, 
Muitas  vezes  diz  a  boca, 
O  que  nega  o  coração. 
Toda  a  cousa  defendida 
Euh  mais  estima  se  tem : ' 
Por  isso  he  cousa  sabida, 
Que  perder  por  vós  a  vida 
Ha  de  ser  todo  mm  bem. 

Á  MESMA  DAMA 

Vejo-a  n'alma  pintada, 
Quando  me  pede  o  desejo 
O  natural  que  não  vejo. 


\os 


GLOSA 


Se  só  de  ver  puramente 
Me  Iransforrtiei  no  que  vi, 
De  vista  tão  excellente 
Mal  poderei  ser  ausente, 
Em  quanto  o  não  for  de  mi. 
Porque  a  alma  namorada 
A  traz  tão  bem  debuxada, 
E  a  memoria  tanto  voa,     / 
Que  se  a  não  vejo  em  pessoa, 
Vejo-a  rCalma  pintada. 

O  desejo,  que  s'estende 
Ao  que  menos  se  concede, 
Sobre  vós  pede  e  pretende, 
Como  o  doente  que  pede 
O  que  mais  se  lhe  defende. 
Eu,  qu'em  ausência  vos  vejo. 
Tenho  piedade  e  pejo 
De  me  ver  tão  pobre  estar, 
Qu'enlão  não  tenho  que  dar. 
Quando  me  pede  o  desejo. 

Gomo  áquelle  que  cegou, 
He  cousa  vista  e  notória,        ^ 
Que  a  natureza  ordenou 
Que  se  lhe  dobre  em  memoria 
O  qu'em  vista  lhe  faltou: 
Assi  a  mi,  que  não  vejo 
Go'os  olhos  o  que  desejo. 
Na  memoria  e  na  firmeza 
Me  concede  a  natureza 
O  natural  que  mo  vejo. 


U)9 


MOTE  ALHEIO 


Sem  vós,  e  com  meu  cuidado, 
Olhae  com  quem,  c  sem  quem. 

GLOSA 

Vendo  Amor  que  com  vos  ver 
Mais  levemente  soffria 
Os  males  que  me  fazia, 
Não  me  pôde  isto  soffrer; 
Gonjurou-se  com  meu  Fado; 
Hum  novo  mal  me  ordenou : 
Ambos  me  levão  forçado, 
Não  sei  onde,  pois  que  vou 
Sem  vó^  e  com  meu  cuidado. 

N 

Não  sei  qual  he  mais  estranho 
Destes  dous  males  que  sigo. 
Se  não  vos  ver,  se  comigo 
Levar  imigo  tamanho. 
O  que  fica,  e  o  que  vem, 
Hum  me  mata,  outro  desejo: 
Com  tal  mal,  e  sem  tal  bem, 
Em  taes  extremos  me  vejo: 
Olhae  com  quem,  e  sem  quem! 

AO  MESMO 

Amor,  cuja  providencia 
Foi  sempre  que  não  errasse,  . 
Porque  n'alma  vos  levasse, 
Respeitando  o  mal  d'ausencia, 
Quiz.qu'em  vós  me  transformasse. 
E  vendo-me  ir  maltratado. 


^^0 

Eu  e  meu  cuidado  sós, 
Proveo  nisso  de  attentado, 
Por  não  me  ausentar  de  vós, 
Sem  vós,  e  com  meu  cuidado. 

Mas  ést'alma,  qu'eu  trazia, 
Porque  vós  nella  morais, 
Deixa-me  cego,  e  sem  guia; 
Que  ha  por  melhor  companhia 
Ficar  onde  vós  ficais. 
Assi  me  vou  de  meu  bem, 
Onde  quer  a  forte  estrella, 
Sem  alma,  qu'em  si  vos  tem, 
Go'o  mal  de  viver  sem  ella: 
OOiae  com  quem,  e  sem  quem! 

MOTE  ALHEIO 

Sem  ventura  lie  por  demais. 

GLOSA 

Todo  o  trabalhado  bem 
Promette.  gostoso  fruito; 
Mas  os  trabalhos,  que  vem. 
Para  quem  dita  não  tem 
Valem  pouco,  e  cuslão  muito.  . 
Rompe  toda  a  pedra  dura, 
Faz  os  homens  immortais 
O  trabalho  quando  atura; 
Mas  querer  achar  ventura, 
Sem  ventura,  he  por  demais. 

MOTE  ALHEIO 

s 

Minh'alma,  Icmbrae-vos  delia. 


\\\ 

GLOSA 

Pois  O  ver-vos  tenho  em  mais 
Que  mil  vidas  que  me  deis, 
Assi  como  a  que  me  dais, 
Meu  bem,  ja  que  mo  negais. 
Meus  olhos,  não  mo  negueis. 
E  se  a  tal  estado  vim 
Guiado  de  minha  estrella. 
Quando  houverdes  dó  de  mim. 
Minha  vida,  dae-lhe  a  fim, 
Minh'almay  lembrae-vos  delia. 

MOTE  alíjeio 

Tudo  pode  huma  affeição. 

GLOSA 

Tee  tal  jurdiçâo  Amor 
N'alma  donde  se  aposenta, 
E  de  que  se  faz  senhor, 
Que  a  Uberla  e  isenta 
De  todo  humano  temor. 
E  com  mui  justa  razão, 
Como  senhor  soberano, 
Que  Amor  não  consente  dano. 
E  pois.  me  soffre  tenção. 
Gritarei  por  desengano: 
Tudo  pôde  huma  affeição. 

TROVA  DE  BOSGÃO 

Justa  fué.mi  perdicion; 
De  mis  males  soy  contento;  . 
Ya  no  espero  galardon, 
Pues.vuestro  merecimiento 
Satisfizo  mi  pasion. 


\\2 


GLOSA 


Despucs  que  Amor  me  formo  ^ 
Todo  de  amor,  cual  me  veo, 
En  las  leyes,  que  me  dió, 
El  mirar  me  consiutió, 

Y  defendióme  el  deseo. 
Mas  el  alma,  como  injusta, 
En  viendo  tal  perfeccion, 
Dió  ai  deseo  ocasion : 

Y  pues  quebre  ley  tan  justa, 
Justa  fué  mi  perdicion. 

Mostrándoseme  el  Amor 
Mas  benigno  que  cruel. 
Sobre  tirano  traidor. 
De  zelos  de  mi  dolor, 
Quisd  tomar  parle  en  él. 
Yo  que  tan  dulce  tormento 
No  quiero  dallo,  aunque  peco, 
Resisto,  y  no  lo  consicnto: 
Mas  si  me  lo  toma  á  trueco 
De  mis  maleSy  soy  contento. 

Senora,  ved  lo  que  ordena 
Este  Amor  tan  falso  nuestrol 
Por  pagar  á  costa  agena, 
Manda  que  de  un  mirar  vuestro 
Haga  el  premio  de  mi  pena. 
Mas  vos,  para  que  veais 
Tan  enganosa  intencion, 
Aunque  muerto  me  sintais, 
No  mireis,  que  si  mirais, 
Ya  no  espero  galardon. 


\ 


Pues  que  premio  (me  direis) 
Esperas  que  será  bueno? 
Sabed,  sino  lo  sabeis, 
Que  es  ló  mas  de  Io  que  peno 
Lo  menos  que  mereceis. 
Quien  hace  ai  mal  tan  ufano, 
Y  tan  libre  ai  senlimiento? 
El  deseo?  No,  que  es  vano. 
El  amor?  No,  que  es  tirano. 
Pues?  Vuestro  merecimiento. 

No  pudiendo  Amor  robarme 
De  mis  tan  caros  despojos, 
Aunque  fué  por  n)as  honrarme. 
Vos  sola  para  matarme 
Le  prestastes  vuestros  ojos. 
Matáranme  ambos  á  dos; 
Mas  á  vos  con  mas  razon 
Debe  el  ia  satísfaccion ; 
Que  ámi  por  él,  y  por  vos, 
Satisfizo  mi  pasion. 

ALHEIO 

Todo  es  poço  lo  posible. 

GLOSA 

Ved  que  engano  seAorea 
Nuestro  juicio  tan  loco, 
Que  por  mucho  que  se  crea, 
Todo  el  bien,  que  se  desea, 
Alcanzado,  queda  poço. 
Un  bien  de  cualquiera  grado. 
Si  de  haberse  es  imposible, 


TOJIO  IT 


w 


Queda  mucho  dcseado. 
Mas  para  mucho,  alcanzado, 
Todo  es  poço  lo  possible. 

OUTRA 

•  Posibie  es  á  mi  cuidado 
Poderme  hacer  satisfecho, 
Si  fuera  posibie  ai  hado 
Hacer  no  hecho  lo  hecho, 

Y  futuro  lo  pasado. 

Si  olvido  pudiera  haber, 
Fuera  remédio  sufríblç; 
Mas  ya  que  no  puede  ser, 
Para  contento  me  hacer, 
Todo  es  poço  lo  posibie. 

ALHEIO 

Vos  tencis  mi  corazon. 

GLOSA 

Mi  corazon  me  han  robado; 
'  Y  Amor  viendo  mis  enojos, 
Me  dijo:  Fuéte  llcvado 
Por  los  mas  hermosos  ojos, 
Que  desque  vivo  he  mirado. 

•  Gracias  sobrenaturales 
Te  lo  tienen  en  prision. 

Y  si  Amor  tiene  razon, 
Senora,  por  las  senales, 
Vos  teneis  mi  corazon. 

m 

MOTÍS 

Que  veré  que  me  contente? 


445 


GLOSA 


Desque  una  vez  yo  mire, 
Senora,  vuestra  beldad, 
Jamas  por  mi  voluntad. 
Los  ojos  de  vos  quite. 
Pues  sin  vos  placer  no  siente 
Mi  vida,  ni  lo  desea, 
Si  no  quereis  que  yo  os  vea, 
Qué  veré  que  me  contente? 

MOTE 

Sem  vós,  c  com  meu  cuidado. 


GLOSA 


Querendo  Amor  esconder-vos 
Em  parte  que  vos  não  visse, 
Co'o  extremo  de  querer-vos 
Cegou-me  os  olhos  com  ver-vos, 
Levou-vos,  sem  que  vos  visse. 
Eu  cego,  mas  atinado. 
Quando  vi  que  vos  não  via. 
Do  mesmo  Amor  indignado, 
Ja  vedes  qual  ficaria 
Sem  vós  e  com  meu  cuidado. 


MOTE 


Retrato,  vós  não  sois  meu ; 
Retratárão-vos  mui  mal; 
Que  a  serdes  meu  natural. 
Fôreis  mofino  como  eu. 


{I6 


GI.OSA 


Indaqn  em  vós  a  arte  vença 
O  que  o  natural  tee  dado, 
Não  fostes  bem  retratado; 
Que  ha  em  vós  mais  dilTerença, 
Que  no  vivo  do  pintado. 
Se  o  lugar  se  considera 
Do  alto  estado,  que  vos  deu 
A  sorte,  qu'eu  mais  tjuizera* 
Se  he  qu'eu  sou  quem  d'anles  era, 
Retrato,  vós  não  soh  vieu. 

Vós  na  vossa  gloria  posto, 
Eu  na  minha  sepultura,     ^ 
Vós  com  bens,  eu  com  desgosto; 
Pareceis-vos  ao  meu  rosto, 
E  não  ja  á  minha  ventura. 
E  pois  nella  e  vós  errarão 
O  qu'em  mi  he  principal. 
Muito  em  ambos  s'enganárão. 
Se  por  mi  vos  retratarão, 
Retratárào-iwíi  mui  inal. 

• 
Mas  se  esse  rosto  fingido 
Quizerão  representar, 
E  houverão  por  bom  partido 
Dar-vos  a  alma  do  sentido 
Para  a  gloria  do  lugar; 
Víreis,  posto  nessa  alteza. 
Que  vos  não  ha  cousa  igual ; 
E  que  nem  a  maior  mal 
Podeis  vir,  nem  mór  baixeza, 
Que  a  serdes  meu  natural: 


\\7 

Por  isso  nao  confesseis 
Serdes  meu,  qu'he  desalino, 
Com  que  o  lugar  perdereis : 
Se  conservar-vos  quereis, 
Blazonae  que  sois  divino. 
Que  se  nesta  occasião 
Conhecessem  qu'ereis  meu, 
Por  meu  vos  derão  de  mão, 

Fôreis  mo  fino  y  como  eu. 

MOTE 

Foi-se  gastando  a  esperança, 
Fui  entendendo  os  enganos; 
Do  mal  ficárão-mc  os  danos, 
E  do  bem  só  a  lembrança. 

GLOSA 

Nunca  em  prazeres  passados 
Tive  firmeza  segura. 
Antes  tão  arrebatados, 
Qu'inda  não  erão  chegados. 
Quando  mos  levou  ventura. 
E  como  quem  desconfia 
Ter  em  tal  sorte  mudança. 
No  meio  desta  porfia, 
De  quanto  bem  pretendia 
Foi'S€  gastando  a  esperança. 

Não  tive  por  desatino 
À  occasião  de  perdella; 
Mas  foi  culpa  do  destino. 


Qiic  a  ninguém,  como  mais  dino, 
Ámor  pudera,  sostelia. 
Dei-lhe  tudo  o  qu'cra  seu, 
Não  receando  taes  danos 
Deste,  a  quem  ahna  lhe  deu  : 
Quando  ja  não  era  meu, 
Fui  entendendo  os  enganos. 

Fiquei  deste  mal  sobejo 
  quem  a  causa  compete 
Dizer-lhe  tudo  o  que  vejo. 
Que  Amor  acceita  o  desejo, 
Mas  mente  no  que  promete. 
Que  se  a  mi  se  me  obrigou 
A  dar-me  bens  soberanos,    . 
Foi  engano  que  ordenou : 
Que  do  bem  tudo  levou, 
Do  mal  ficárão-me  os  danos. 

E  se  dor  tão  desigual 
Sofifro  em  mi  com  padecellos, 
Quero  de  novo  soffrellgs; 
Que  por  a  causa  ser  tal, 
Não  determino  offendellos. 
Dobre-se  o  mal,  falte  a  vida,   • 
Cresça  a  fé,  falte  a  esperança. 
Pois  foi  mal  agradecida; 
Fique  a  dor  n'alma  imprimida, 
E  do  bem  só  a  lembrança. 

ENDECHAS  A  BARBARA  ESCRAVA 

Aquella  captiva,   , 
Que  me  tèe  captivo* 


\\9 

Porque  nella  vivo, 
Ja  não  quer  que  viva. 
Eu  nunca  vi  rosa 
Em  suaves  molhos, 
Que  para  meus  olhos 
Fosse  mais  formosa. 

Nem  no  campo  flores, ' 
Nem  no  Ceo  eslrellas, 
Me  parecem  bellas, 
Como  os  meus  amores. 
Rosto  singular, 
Olhos  socegados, 
Pretos  c  cansados, 
Mas  não  de  matar. 

Huma  graça  viva, 
Que  nelles  lhe  mora, 
Para  ser  senhora 
De  quem  he  capliva. 
Pretos  os  cabellos, 
Onde  o  povo  vão 
Perde  opinião, 
Que  os  louros  são  l;ellos. 

Pretidão  de  Amor, 
Tão  doce  a  figura. 
Que  a  neve  lhe  jura 
Que  trocara  a  côr. 
Leda  mansidão. 
Que  o  siso  acompanha, 
Bem  parece  estranha, 
Mas  barbara  não. 


/ 


420 

Presença  serena, 
Que  a  tonnenta  amansa: 
Nella  emfim  descansa 
Toda  minha  pena. 
Esta  he  a  captiva, 
Que  me  têe  caplivo; 
E  pois  nella  vivo, 
He  força  que  viva. 

IfOTE 

Quem  ora  soubesse 
Onde  o  Amor  nasce, 
Que  o  semeasse ! 

VOLTAS 

D' A  mor  e  seus  danos 
Me  fiz  lavrador; 
Semeava  amor, 
E  colhia  enganos ; 
Não  vi,  em  meus  anos, 
Homem  que  apanhasse 
O  que  semeasse. 

Vi  terra  florida 
De  lindos  abrolhos. 
Lindos  para  os  olhos, 
Duros  para  a  vida. 
Mas  a  rez  perdida, 
Que  tal  herva  pasce, 
Em  forte  hora  nasce. 

Com  quanto  perdi, 
Trabalhava  em  vão: 


\2\ 

Se  semeei  grão, 
Grande  dor  colhi. 
Amor  DUDca  vi 
Que  muito  durasse. 
Que  não  magoasse. 

ALHEIO 

Se  me  levão  ágoas, 
Nos  olhos  as  levo. 

VOLTAS 

Se  de  saudade 
Morrerei  ou  não, 
Meus  olhos  dirão 
De  mi  a  verdade. 
Por  elles  me  atrevo 
A  lançar  as  ágoas, 
Que  mostrem  as  mágoas 
Que  nesta  alma  levo. 

As  ágoas,  qu'em  vão 
Me. fazem  chorar, 
Se  ellas  são  do  mar, 
Estas  de  amar  são. 
Por  ellas  relevo 
Todas  minhas  mágoas; 
Que  se  força  d'ágoas 
Me  leva,  eu  as  levo. 

Todas  me  entristecem, 
Todas  são  salgadas; 
Porém  as  choradas 
Doces  me  parecem. 


422 

Correi,  doces  á^oas, 
Que  se  em  vós  m'enlevo, 
Não  doem  as  mágoas, 
Que  no  peito  levo. 

ALHEIO 

Menina  dos  olhos  verdes. 
Porque  me  não  vedes? 

VOLTAS 

Elles  verdes  são, 
E  tec  por  usança 
Na  côr  esperança, 
E  nas  obras  não. 
Vossa  condição 
Não  he  d'olhos  verdes, 
Porque  me  não  vedes. 

Isenções  a  molhos 
Qu  elles  dizem  terdes. 
Não  são  d'olhos  verdes, 
Nem  de  verdes  olhos. 
Sirvo  de  giolhos, 
E  vós  não  me  credes. 
Porque  me  não  vedes. 

Havião  de  ser. 
Porque  possa  vê-los. 
Que  huns  olhos  tão  bellos 
Não  se  hão  d'esconder: 
Mas  fazeis-me  crer. 
Que  ja  não  são  verdes, 
Porque  me  não  vedes. 


<25 

• 

.Verdes  não  o  são, 
No  que  alcanço  delles; 
Verdes,  são  aquelles 
Qu'esperança  dão. 
Se  na  condição 
Está  serem  verdes, 
Porque  me  não  vedes? 

ALHEIO 

Trocae  o  cuidado, 
Senhora,  comigo; 
Vereis  o  perigo,' 
Qu'he  ser  desamado. 

ê 

VOLTAS 

Se  trocar  desejo 
O  amor  entre  nós, 
He  para  qu'em  vós 
Vejais  o  que  vejo. 
E  sendo  trocado 
Este  amor  comigo, 
Ser-vos-ha  castigo 
Terdes  meu  cuidado. 

Tendes  o  sentido 
D' Amor  livre  e  isento, 
E  cuidais  qu'he  vento 
Ser  tão  mal  querido. 
Não  seja  o  cuidado 
Tão  vosso  inimigo. 
Que  queira  o  perigo 
De  ser  desamado. 


^24 

• 

Mas  nunca  foi  bl 
Este  meu  querer, 
Que  a  quem  tanto  quer, 
Queira  tanto  mal. 
Seja  eu  maltratado, 
E  nunca  o  castigo 
Vos  mostre  o  perigo, 
Qu'he  ser  desamado. 


Á  TENÇÃO  DE  MIRAGUARDA 

Ver,  e  mais  guardar 
De  ver  outro  dia, 
Qufem  o  acabaria? 


VOLTAS 

Da  lindeza  vossa, 
Dama,  quem  a  vê. 
Impossível  he 
Que  guardar-se  possa. 
Se  faz  tanta  .mossa 
Ver-vos  hum  só  dia, 
Quem  se  guardaria? 

Melhor  deve  ser 
Neste  aventurar 
Ver,  e  não  guardar, 
Que  guardar  e  ver. 
Ver  e  defender, 
Muito  bom  seria, . 
Mas  quem  |)oderia? 


^25 

MOTR 

Irme  quiero,  madre, 
Á  aquella  galera, 
CiOn  el  marincro, 
A  ser  marinera. 

VOLTAS 

Madre,  si  me  fiiere, 
Do  quiera  que  vó, 
No  lo  quiero  yo, 
Que  el  Amor  lo  quiere. 
Aquel  nino  fiero, 
Hace  que  me  mueva 
Por  un  marinero 
Á  ser  marinera. 

El  que  todo  puede. 
Madre,  no  podrá, 
Pues  el  alma  vá. 
Que  el  cuerpo  se  quede.' 
Con  él  por  que  muero 
Voy,  porque  no  muera; 
Que  si  es  marinero, 
Seré  marinera. 

Es  tirana  ley 
Del  nino  Senor, 
Que  por  un  amor 
Se  deseche  un  Rey. 
Pues  desta  manera 
Quiero  irme,  quiero 
Por  un  marinero 
Á  ser  marinera. 


426 

« 

Decid,  ondas,  cuando 
Vistes  vos  doncella, 
Siendo  tierna  y  bella, 
Andar  navegando? 
Mas  qué  no  se  espera 
Daquel  nino  íiero?  ^ 
Vea  yo  quien  quierp, 
Sea  marinera. 

MOTE 

Saudade  minha, 
Quando  vos  veria? 

VOLTAS 

Este  tempo  vão, 
Esta  vida  escassa. 
Para  todos  passa, 
Só  para  mi  não. 
Os  dias  se  vão 
Sem  ver  este  dia, 
Quando  vos  veria. 

Vede  esta  mudança 
Se  está  bem  perdida, 
Em  tão  curta  vida 
Tão  longa  esperança. 
Se  este  bem  se  alcança, 
Tudo  sofifrerja, 
Quando  vos  veria. 

Saudosa  dor, 

Eu  bem  vos  entendo; 

Mas  não  me  defendo, 


Pofque  oflfendo  Amor. 
Se  fosseis  maior, 
Em  maior  valia 
Vos  estimaria. 

Minha  saudade, 
Charo  penhor  meu, 
A  quem  direi  eu 
Tamanha  verdade? 
Na  minha  vontade 
De  noite  e  de  dia 
Sempre  vos  leria. 

• 

MOTE 

Vida  da  minha  alma, 
Não  vos  posso  ver: 
Isto  não  he  vida 
Para  se  soffrer. 

VOLTAS 

Quando  vos  eu  via, 
Esse  bem  lograva, 
A  vida  estimava, 
Pois  então  vivia; 
Porgue  vos  servia 
Só.  para  vos  ver. 
Ja  que  vos  não  vejo 
Para  qu'he  viver? 

Vivo  sem  razão, 
Porqu'em  minha  dor 
Não  a  poz  Amor; 
Que  inimigos  são. 


I 


^ 


<28 

Mui  grande  traição     ' 
Mc  obriga  a  fazer 
Que  viva,  Senhora, 
Sem  vos  poder  ver. 

Não  me  atrevo  ja. 
Minha  tão  querida, 
A  chamar-vos  vida, 
Porque  a  tenho  má. 
Ninguém  cuidará. 
Que  isto  pôde  ser, 
Sendo-me  vós  vida, 
Não  poder  viver. 

MOTE 

Coifa  de  beirame 
Namorou  Joanne. 

VOLTAS 

Por  cousa  tão  pouca 
Andas  namorado? 
Amas  o  toucado, 
E  não  quem  o  touca? 
Ando  cega  e  louca 
Por  ti,  meu  Joanne, 
Tu  pelo  beirame. 

Amas  o  vestido? 
Es  falso  amador. 
Tu  não  vês  que  Amor 
Se  pinta  despido? 
Cego  e  mui  perdido 


.     ^29 

Andas  por  lieiranic, 
É  cu  por  ti,  Joanno. 

A  todos  encanta 
Tua  parvoíce; 
De  tua  doudice 
Gonçalo  s'espanta, 
E  zombando  canta: 
Coifa  de  beiramc, 
Namorou  Joanne. 

Eu  não  sei  que  visle 
Neste  meu  toucado, 
Que  tão  namorado 
Delle  te  sentiste, 
Não  te  veja  triste; 
Ama-me,  Joanne, 
E  deixa  o  beiráme. 

« 
Joanne  gemia, 

Maria  chorava, 

E  assi  lamentava 

O  mal  que  sentia: 

(Os  olhos  feria. 

E  não  o  beiramc, 

Que  matou  Joanne). 

Não  sei  do  que  vom 
Amares  vestido; 
Que  o  mesmo  Cupido 
Vestido  não  tem. 
Sabes  de  que  vem 
Amares  beirame? 
Vem  de  ser  Joanne. 

TOSO  IV  U 


150 


MOTE 


Se  Helena  apartar 
Do  campo  seus  olhos. 
Nascerão  abrolhos. 

YOLTAS 

A  verdura  amena. 
Gados,  que  pasceis, 
Sabei  que  a  deveis 
Aos  olhos  d'Helena. 
Os  ventos  serena, 
Faz  flores  d'abrolhos 
O  ar  de  seus  olhos. 

Faz  serras  floridas. 
Faz  claras  as  fontes: 
S'isto  faz  nos  montes. 
Que  ifará  nas  vidas? 
Tra-las  suspendidas, 
Como  hervas  em  molhos, 
Na  luz  de  seus  olhos. 

Os  corações  prende 
Com  graça  inhumana; 
De  cada  pestana 
Hum'alma  líie  pende. 
Amor  se  lhe  rende, 
E  posto  em  giolhos, 
Pasma  nos  seus  olhos. 

ALHEIO 

Verdes  são  os  campos 
De  còT  do  limão; 


<5I 

I 

Assi  são  os  olhos 
Do  meu  coração. 

VOLTAS 

Campo,  que  fcstendes 
Com  verdura  bella; 
Ovelhas,  que  nella 
Vosso  pasto  tendes; 
D'hervas  vos  mantendes 
Que  traz  o  verão; 
E  eu  das  lembranças 
Do  meu  coração. 

Gados,  que  pasceis 
Com  .contentamento, 
Vosso  mantimento 
Não  no  entendeis. 
Isso  que  comeis. 
Não  são  hervas,  não; 
São  graça  dos  olhos 
Do  meu  coração. 

ALHEIO 

Verdes  são  as  hortas 
Com  rosas  e  flores : . 
Moças,  que  as  régão, 
Matão-me  d'amores. 

Entre  estes  penedos 
Que  daqui  parecem, 
Verdes  hervas  cresçam, 
Altos  arvoredos. 


152  - 

Vai  desles  rochedos 
Agoa,  com  que  as  flores 
D'outras  são  regadas, 
Que  mátão  d'amores. 

Com  ágoa,  que  caí 
Daquella  espessura, 
Oulra  se  mistura, 
Que  dos  olhos  sai : 
Toda  junta  vai 
Regar  brancas  flores, 
Onde  ha  outros  olhos, 
Que  mátâo  d'amores. 

Celestes  jardins. 
As  flores  estrellas: 
Hortelôas  delias 
São  huns  seraphins. 
Rosas  e  jasmins 
De  diversas  cores, 
Anjos,  que  as  régão, 
M;ilío-me  d'amores. 

ALHEIO 

Menina  formosa, 
Dizei  de  (|ue  vem 
Serdes  rigorosa 
A  quem  vos  ijuer  hem? 

VOLTAS 

Não  sei  quem  assella 
Vossa  formosura: 


Que  quem  hc  lao  dura 
Não  pôde  ser  bella.    . 
Vós  sereis  formosa; 
Mas  a  ra^ão  tem 
Que  quem  he  irosa, 
Nâo  parece  bem. 

A  mostra  he  de  beila, 
As  obras  s3o  cruas: 
Pois  qual  destas  duas 
Ficará  na  sella? 
Sé  ficar  irosa, 
Não  vos  está  bem : 
Fique  antes  formosa, 
Que  mais  força  lem. 

O  Amor  formoso 
Se  pinta  e  se  chama: 
Se  he  amor,  ama, 
Se  ama,  he  piedoso. 
Diz  agora  a  grosa 
Que  este  texto  tem, 
Que  quem  he  formosa 
Ha  de  querer  bem. 

Havei  dó,  menina, 
Dessa  formosura: 
Que  se  a  terra  he  dura, 
Secca-se  a  bonina. 
Sede  piedosa; 
Não  veja  ninguém 
Que  por  rigorosa 
Percais  lanio  lem. 


^54 

ALHEIO 

Tende-me  mrw)  nelle, 
Que  hum  real  me  deve. 

VOLTAS 

Chum  real  d'amor, 
Dous  de  confiança, 
E  três  d'esperança, 
Me  foge  o  trédor. 
Falso  desamor 
S'encerra  naquelle 
Que  hum  real  me  deve. 

Pedio-mo  emprestado, 
Não  lhe  quiz  penhor: 
He  máo  pagador; 
Tendo-mo  afferrado. 
Chum  cordel  atado, 
Ao  Tronco  se  leve; 
Que  hum  real  me  deve. 

Por  esta  travessa 
Se  vai  acolhendo: 
Ei-lo  vai  correndo, 
Fugindo  a  grã  pressa. 
Nesta  mao,  e  nessa 
O  falso  se  atreve, 
Que  hum  real  me  deve. 

Gomprou-me  o  amor, 
Sem  lhe  fazer  preço: 
Eu  não  lhe  mereço 
Dar-me  desfaVoi'. 


^55 

Dá-me  lanla  dor, 
Que  ando  após  clle 
Pelo  que  me  deve. 

Eu  de  câ  bradando, 
EUe  vai  fugindo; 
Elle  sempre  rindo, 
Eu  sempre  chorando. 
E  de  quando  em  quando 
No  amor  se  atreve, 
Como  que  não  deve. 

« 
A  fallar  a  verdade 
EDe  ja  pagou ; 
Mas  ainda  ficou 
Devendo  ametade. 
Minha  liberdade 
He  a  que  me  deve: 
Só  nella  se  atreve. 


MOTE 


Dó  la  mi  ventura, 
Que  no  veo  alguna? 


VOLTAS 


Sepa  quien  padece. 
Que  en  la  sepultura 
Se  esconde  ventura 
De  quien  la  merece. 
AUá  me  parece, 
Que  quierc  fortuna 
Quo  vo  halk»  aknina. 


<56 

Nacientlo  mesquino, 
Dolor.  fué  mi  cama; 
Tristeza  fuó  el  ama. 
Cuidado  el  padrino. 
VesUóse  el  destino 
Negra  vestidura, 
Huyó  la  ventura. 

No  se  halló  tormento, 
Que  allí  no  se  hallase; 
Ni  hien,  que  pasase. 
Sino  como  viento. 
*  Oh  qué  nacimiento, 
Que  luego  en  la  cuna 
Me  siguió  fortuna! 

Esta  dicha  mia, 
Que  siemprc  busque, 
Bnscándola,  hallé 
Que  no  la  bailaria; 
Que  quien  nace  en  dia 
D'estrella  tan  dura. 
Nunca  baila  ventura. 

No  puso  mi  estrella 
Mas  ventura  em  min  : 
Ansí  vive  en  fin 
Quien  nace  sin  ella. 
No  me  quejo  delia: 
Quéjome  que  atura 
Vida  tan  escura. 

MOTE 

Vida  de  minba  alma. 


\7i7 


VOLTA 


Dous  tormentos  vejo 
Grandes  por  extremo  : 
Se  vos  vejo,  temo, 
E  se  não,  desejo. 
Quando  me  despejo, 
E  venho  a  escollier, 
Temendo  o  desejo, 
Desejo  temer. 

CANTIGA  ALHEIA 

Pastora  da  serra, 
Da  serra  da  Estrella, 
Perco-me  por  ella. 

VOLTAS 

Nos  seus  olhos  Lellos 
Tanto  Amor  se  atreve, 
Que  abraza  entre  a  neve 
Quantos  ousao  vellos. 
Não  solta  os  cabellos 
Aurora  mais  Leilão 
Perco-me  por  ella. 

Não  teve  esta  serra 
No  meio  d^altura 
Mais  que  a  formosura, 
Que  nella  se  encerra. 
Bem  ceo  fica  a  terra, 
Que  tec  tal  estrella : 
Perco-me  por  ella. 


J58 

• 

Sendo  entre  pastores 
Câusa  de  mil  males, 
Não  se  ouvem  nos  vales 
Senão  seus  louvores. 
Eu  só  por  amores 
Não  sei  fallar  qella, 
Sei  morrer  por  ella. 


D^alguns,  que  sentindo 
Seu  mal  vão  mostrando, 
Se  ri,  não  cuidando 
Qu'inda  paga  rindo. 
Eu  triste,  encobrindo 
Só  meus  males  delia, 
Perco-me  por  ella. 


Sc  flores  .deseja 
Por  ventura  bellas. 
Das  que  colhe  delias 
Mil  morrem  d'inveja. 
Não  ha  quem  não  veja 
Todo  o  melhor  nella: 
Perco-me  por  ella. 


Se  n'agoa  corrente 
Seus  olhos  inclina, 
Faz  a  luz  divina 
Parar  a  corrente. 
Tal  se  vô,  que  seiíle 
Por  vcr-sc  a  ágoa  ndia 
Perco-me  por  (^lla. 


J39^ 

ENDECHAS 

Vós  sois  huma  Dama 
Das  feias  do  mundo; 
De  toda  a  má  fama 
Sois  cabo  profundo. 

A  vossa  figura 
Nâo  he  para  ver; 
Em  vosso  poder 
Não  ha  formosura. 

Vós  fostes  dotada 
De  toda  a  maldade; 
Perfeita  beldade 
De  vós  he  tirada. 

Sois  muito  acabada 
De  taixa  e  de  glosa: 
Pois  quanto  a  formosa, 
Em  vós  não  ha  nada. 

Do  grão  merecer 
Sois  bem  apartada; 
Andais  alongada 
Do  bem  parecer. 

Bem  claro  mostrais 
Em  vós  fealdade: 
Não  ha  hi  maldade, 
Que  não  precedais. 

De  fresco  carão 
Vos  vejo  ausente; 
Em  vós  he  presente 
A  má  condição. 

De  ter  perfeição 
Mui  alheia  estais; 
Mui  muito  alcançais 
De  poucíi  razão. 


\Ã0 


KNDKCHAS 


Vai  O  bem  fugindo, 
Cresce  o  ftial  co'os  anos, 
Vao-sc  descobrindo 
Co  o  tempo  os  enganos. 

Amor  e  alegria 
Menos  tempo  dará. 
Triste  de  quem  fia 
Nos  bens  da  ventura! 

Bem  sem  fundamento 
Tee  cerla  a  mudança, 
Certo  o  sentimento 
Na  dor  da  lembrança. 

Quem  vive  contente, 
Viva  receoso: 
Mal  que  se  nâo  sente, 
He  mais  perigoso. 

Quem  males  senlio, 
Saiba  ja  temer; 
E  pelo  que  vio 
Julgue  o  qu'ha  do  ser. 

Alegi^e  vivia, 
Triste  vivo  agora; 
Chora  a  alma  do  dia, 
E  de  noite  chora. 

Confesso  os  enganos 
De  meu  pensamento: 
Bem  de  tantos  anos 
Foi-se  n'hum  momento. 

Meus  olhos,  (jue  vistes? 
Pois  vos  atrevestes, 
Chorae,  olhos  tristes, . 
O  bem  que  pcrdeslcs. 


\4\ 

A  luz  do  sol  pura 
Só  a  vós  se  negue; 
Seja  noite  escura, 
Nunca  a  manhãa  chegue. 

O  campo  floreça, 
Murmurem  .as  ágoas, 
Tudo  me  entristeça, 
Cresção  minhas  mágoas. 

Quizei^a  mostrar 
O  mal  que  padeço; 
Não  lhe  dá  lugar 
Quem  lhe  deu  começo. 

Em  tristes  cuidados 
Passo  a  triste  vida; 
Cuidados  cansados. 
Vida  aborrecida. 

Nunca  pude  crer 
O  que  agora  creio: 
Cegou-me  o  prazer 
Do  mal  que  me  veio. 

Ah  ventura  minha, 
Como  me  negaste! 
Hum  só  bem  que  tinha. 
Porque  mo  roubaste? 

Triste  fanlasia 
Quanta  cousa  guarda ! 
Quem  ja  visse  o  dia, 
Que  tanto  lhe  tarda! 

Nesta  vida  cega 
Nada  permanece; 
O  qu'inda  não  chega, 
Ja  desaparece. 


J42 

Qualquer  cspcraiita 
Foge  como  o  vento: 
Tudo  faz  mudança, 
Salvo  meu  tormento. 

Amor  cego  e  triste, 
Quem  o  têe  padece: 
Mal  quem  lhe  resiste! 
Mal  quem  lhe  obedece! 

No  meu  mal  psquivo 
Sei  como  Amorirala: 
E  pois  nellc  vivo, 
Nenhum  amor  mata. 


ABC  FEITOS  EM  MOTES 

A  A  A  A 

Amor,  quisestes  que  fosvso 
O  vosso  nome  da  pia 
Para  mór  minha  agonia. 

Apelles,  se  fora  vivo, 
E  a  ver-vos  alcançara, 
Por  vós  retratos  tirara. 

Achilles  morreo  no  templo, 
Contemplando  de  giolhos. 
Eu  quando  vejo  esses  olhos. 

Arthemiza  sepultou 
A  seu  irmão,  e  marido, 
Vós  a  mim,  e  a  meu  sentido. 

B 

Bem  vejo  que  sois,  Senhora, 
Extremo  de  formosura, 
Para  minha  sepullura. 


.C  C 

Cleópatra  se  matou, 
Vendo  morto  a  seu  amante, 
E  eu  por  vós  em  ser  constante. 

Cassandra  disse  de  Troya, 
Que  havia  ser  destruida, 
E  eu  por  vós  d  alma  e  da  vida. 

D  D 

Dido  mon^  por  Eneas, 
E  vós  malaes  quem  vos  ama. 
Julgai  se  sois  cruel  dama. 

Dianira  innocente 
Da  má  morte  causadora. 
Vós  da  minha  sabedora. 

K 

Euridice  foi  a  causa 
De  Orpheo  hir  ao  inferno, 
Vós  de  ser  meu  mal  eterno. 

F  F 

Fedra  só  de  puro  amor 
Morreo  por  seu  enteado, 
Eu  morro  de  desamado. 

Febo  vai  escurecendo 
Ante  vossa  claridade, 
E  eu  sem  ter  liberdade.. 

G  G 

Galatea  sois,  Senhora, 
Da  formosura  estremo, 
E  eu  perdido  Polyphemo. 


(]enol)ra,  que  foi  Rainha, 
Se  perdeo  por  Lançarote, 
^  E  vós  |)or  me  dar  a  morte. 

H  H 

Hercules,  huma  camisa 
De  chammas,  o  consumio, 
Minha  alma  des  que  vos  vio. 

Hebis  e  Dido  morrerão 
Com  o  rigor  da  mudança, 
Eu  vendo  vossa  esquivança. 

• 

Judilh  que  o  duro  Holofernes 
Degolou,  SC  viva  fóra, 
Mate  lhe  déreis.  Senhora. 

Júlio  César  conquistou 
O  mundo  com  fortaleza, 
Vós  a  mim  cora*genlileza. 

j  j 

Júlio  César  se  livrou 
Dos  imigos  com  abrolhos, 
Eu  não  posso  desses  olhos. 

Jazia-se  o  Minotauro 
Preso  no  seu  labvrinlho, 
Mas  eu  mais  preso  me  sinto. 

L  L 

Leandro  se  afogou, 
E  foi  sua  causa  Hero ;  . 
E  a  mim  o  que  vos  quero. 


ÍÍ5 


Leandro  se  afogou 
No  mar  de  sua  bonança, 
Eu  no  de  vossa  esperança. 

M  M 

Minerva  dizem  que  foi 
E  Palias  Deosas  da  guerra, 
E  vós,  Senhora,  da  terra.  •  " 

Medéa  foi  mui  cruel, 
,  Mas  não  checou  a  metade 
De  vossa  grâa  crueldade. 

N  N    • 

Narciso  o  siso  perdeo 
Em  vendo  a  sua  figura, 
Eu  por  vossa  formosura. 

Nymphas  enganão  mil  Faunos 
Com  seli  ar  e  formosura, 
E  a  mim  vossa  figura. 

00 

Os  olhos  chorão  o  dam  no* 
Que  em  vos  verem  sentirão, 
Mas  eu  pago  o  que  elles  virão.  ^ 

Orpheo  com  a  doce  harpa 
Venceo  o  reino  de  Plutão, 
Vós  a  mim  com.  perfeição. 

p  p 

^  Paris  a  Helena  roubou, 
Por  quem  Tróia  foi  perdida, 
E  vós  a  mim  alma  e  vida. 

TOMO  IV  .  >  10 


\ 


ã 

Pyrrho  maton  Polirena 
Perfeita  em  lodos  sinaes, 
E  vós  a  mim  me  roataes* 

Quanto  mais  desejo  ver-vos. 
Menos  vos  vejo,  Senhora : 
'Não  vos  ver  melhor  me  fora. 

Querendo  ver  a  Diana, 
Acleon  perdeo  a  vidií), 
Que  eu  por  vós  Irago  perdida. 

H  n 

Remédio  nenhum  não  vejo. 
Que  remedeie  meu  mal ; 
Nem  crueza  á  vossa  igual. 

Roma  o  mundo  sujeita 
Com  armas,  saber,  lemor. 
Vós  a  mim  só  por  amor. 

Serena  na  mór  Fortuna 
Com  enganos  vai  cantando, 
E  vós  sempre  a  mim  matando. 

T  T 

Thisbe  morreo  por  Pyramo, 
A  ambos  matou  o  Amor; 
A  mim  vosso  desfavor. 

Thisbe  pelo  seu  amante 
Morreo  com  amor  sobejo, 
Mas  eu  mais  morto  me  vejo. 


M7 

V  V 

•  Vénus,  que  por  mais  formosa. 
Lhe  deo  Paris  a  maçãa, 
Nao  foi  quanto  vós  louçãa. 

Vcnus  levou  a  maçãa, 
Por  vtfe  não  serdes,  Senhora, 
Nascida  naquella  hora. 

Xpõ  vos  acabe  em  graça, 
E  vos  faça  piedosa, 
Tanto,  quanto  sois  formosa. 

Xahtopea  tornou  atraz, 
Por'Aponio  a  invocar, 
E  v(js  não  a  meu  chamar. 


CARTA  ESCRIPTA  DAFRICA  A  HUM  AMIGO 

(ihuita) 

Por  usar  costume  antigo. 
Saúde  mandar  quisera, 
E  mandara  se  tivera, 
Mas  aníor  delia  he  imigo ; 
Pois  me  deo,  em  lugar  delia, 
Saudade  em  que  ando, 
Saudades  cein  mil  mando,  ' 
E  não  ficando  sem  ella. 

• 

Se  isto  não  fiz  des  que  vim, 
Não  me  queirais  condenar, 
•  Que  não  tive  inda  lugar 
Para  tornar  sobre  mim. 
Perdão  merece  esta  culpa. 


\4» 

Que  alem  de  ser  peijiien.i, 
La  causa  que  me  condena 
Me  serve  de  desculpa. 

• 

Mandar-vos  novas  quizera 
Desla  terra  e  mais  de  mim, 
Se  novas  houvera  aqui 
Boas  que  mandar  poderá ; 
Mas  quem  tal  enfadamento 
Qual  vai  contar  pretende, 
Nao  o  sente,  ou  não  entende 
Onde  chega  seu  tormento. 

Comtudo,  o  que  passa  cá,     * 
Contarei  como  souber, 
Se  algum  nojo  vos  der, 
A  tenção  me  salvará; 
Se  fallar  desconcertado 
Devei  s-me  de  i)erdoar, 
Que  no  estoi  para  llorar 
Si  no  para  ser  llorado. 

Melhor  fora  ter  calladas 
As  novas  que  ha  nesta  terra. 
Pois  aonde  vim  buscar  guerra 
Somente  achei  badaladas. 
Assim  estou  tão  infadado 
Que  digo  em  dias  tão  raros, 
Que  diera  por  no  allaros 
La  gloria  de  os  a  ver  aliado. 

Porque  he  tal  o  desconcerto, 
Que  caminho  ja  não  leva. 


U9 

Nem  menos  lia  ijiieni  se  atreva 
A  dar  hum  conselho  certo: 
A  tudo  ha  conselho  cá, 
Quefti  escapa  e  não  fere 
Triste  dei,  triste  que  mnere 
Si  ai  paraizo  no  vá. 

A  gente  he  peor  em  dobro, 
As  vergonhas  são  perdidas, 
Fallão  das  alheias  vidas 
E  põem  as  suas  em  cobro;.  ' 
Poucos  hão  medo  á  vergonlia, 
E  a  mui  poucos  se  hade  ouvir: 
Mais  vale  morrer  com  honra, 
Que  deshonrado  bivir. 

Não  ha  conversação  como  d'anles 
Porque  ha  mister  cem  mil  tentos 
Com  moradores  praguentos 
E  fronteiros  mais  galantes: 
Toda  a  terra  anda  ao  revez, 
Tanto  que  ja  começa 
Los  pies  sobre  la  caí)eça, 
La  cabeça  sobre  los  pies. 

Neste  desconcerto  tal, 
Se  (juereis  saber  qual  ando, 
Passo  a  vida  suspirando 
Pela  causa  do  meu  mal. 
Assim  me  traz  meo  tormento . 
■  Pelo  ver  tão  perigoso 
De  mi  remédio  dudoso, 
Mas  no  de  mi  perdimento.' 


<50 

Porque  de  males  rodeado, 
E  sem  remédio  me  vejo, 
E  juntamente  o  desejo 
iMe  acaba  e  o  cuidado; 
E  tão  mal  me  vai  tratando 
Este  mal,  segundo  vejo, 
Si  no  muere  este  desejo, 
Moriré  yo  deseando. 

O  mór.  mal  que  cá  padeço, 
He  ter  quanto  sem  razão 
Outros  olhos  lograrão 
O  que  eu  por  amor  mereço: 
Isto  tanto  me  entristece 
Que  depois  que  estou  aqui 
Plazer  no  sabe  de  mi, 
Cuidado  no  me  falece. 

Nenhum  remédio  a  meos  danos 
Vejo  por  alguma  via. 
Senão  vendo  aquelle  dia 
Que  hade  ser  fim  de  dous  anos; 
Mas  tem  meo  mal  tal  graveza, 
Que  depois  de  me  lá  ver 
Ja  não  llegará  el  plazer 
A  do  ílegó  la  tristeza. 

Dar-vos  esta  carta  tal, 
Não  he  fora  de  razão, 
Pois  eu  sei  que  em  vossa  mão 
Está  meu  bem  e  meu  mal ; 
Y  pues  sé  que  muerto  soi 
Si  de  til  mano  me  dexas. 


A  quien  contaré  mis  quexas. 
Si  a  li  no? 

Dai-me  o  favor  sem  pejo, 
Pois  o  dais  a  cousa  vossa, 
Não  queirais  vós  que  não  [íossa 
Servir-vos  como  desejo; 
Ao  menos  se  sou  perdido 
Não  me  deis  o  desengano, 
Que  ja  não  es  en  mi  mano 
El  querer  no  ser  querido. 

'  Com  isto,  e  o  mais  que  callo, 
Julgai  qual  minha  vida  anda, 
Saudade  de  huma  banda 
D'outra  tento  ao  badallo: 
Quando  me  contemplo  tal 
(Chegando  a  tão  tristes  dias. 
Las  tristes  lagrimas  mias 
En  piedra  hazen  senal. 

Poderá  eu  viver  contente, 
(]omo  saber  que  estava  tal 
A  que  he  causa  de  meu  mal, 
Por  me  não  ter  lá  presente ; 
Mas  por  quão  mal  lhe  merece 
Meu  amor  tão  maltratar-me 
Quando  mas  pienso  alegrarme, 
Maior  pacion  me  recrece. 

Viver  sempre  arreceoso, 
Que  bem  {xide  lei*  comigo 
Onde  está  certo  o  perigo 


<52 

He  o.  remcdio  duvidoso;    ' 
Assim  eu  de  ter  perdida 
Esperança  de  contente, 
Ando  perdido  entre  a  gente, 
Não  n)orro  nem  tenho  vida. 

Não  he  viver  á  vontade, 
Vestir  e  andar  como  quero 
Donde  do  bem  desespero 
E  me  mata  a  saudade; 
Se  isto  não  vos  desengana 
Ja  ouvireis  vós  dizer   .. 
El  hombre  queremos  ver, 
Que  los  panos  son  ^e  lana. 

Da  guerra  novas  mais  certas 
Brevemente  são  contadas, 
No  verão  portas  fechadas. 
No  hinvemo  pouco  abertas; 
Qualquer  Mouro  desmandado 
Nos  comete  sem  n'hum  pejo, 
E  aquelle  po&ligo  vejo 
Que  sempre  esteva  fechado. 

Isto  não  he  pniguejar. 
Mas  toda  a  culpa  he  da  fome, 
Porque  gente  que  não  come 
Mal  poderá  pelejar; 
Assim  estão  muitos  no  dia 
Com  os  olhos  na  tramontana, 
Mirando  la  mar  d^Espana 
Como  mengoava  e  crecia. 


155 

*  —  * 

Tudo  são  queixas  em  vão, 

E  tudo  são  vãos  clamores, 

Capitão  dos  moradores, 

Elles  contra  o  Capitão; 

Emíim-tal  vai  tudo  aqui 

Que  brada  grande  e  pequeno: 

Tiempo  bueno,  liempo  bueno 

Quien  se  te  Ilevó  daqui. 

» 

O  mesmo  digo  eu  taml^m. 
Porque  o  mal  que  eu  lá  passava 
Com  ver  a  quem  m'o  causava 
'  •  Se  me  convertia  em  bem; 
E  por  isso  perdoai-me 
Se  eu  brado  noute  e  dia 
Naves  de  la  tierra  mia 
Venid  ora  e  Uevadmc. 

-  •  •  » 

Gabais  esta  vida  cá 
E  desgabâis-me  Lisboa, 
Eu  dera  esta  vida  boa 
A  troco  d'essoulra  má; 
Quem  de  estar  lá  se  queixar 
Meu  desejo  lhe  responde: 
Mas  he  de  nós  Conde 
Que  manzilla  ni  pesar. 

Porém  em  quanto  não  vejo 
O  dia  das  alabanças, 
Lembre-vos  que  as  esperanças 
Puz  em  vós  de  meu  desejo; 
Entretanto  meu  tormento 
SoíTrerei  sem  me  queixar, 


/      # 


'      154 

*  ■  , 

Pues  que  sufrir  e  callar 
Coiivíene  â  mi  |)ensâmento. 

CARTA  ESCRIPTA  D  AFRICA  EM  RESPOSTA  Á  DE  HUM  AMIGO 

• 

Mandaste-me  pedir  novas, 

E  pois  heide  obdecer. 

Quero  que  seja  em  trovas 

Por  vos  d*r  em  que  entender; 

E  que  esta  arte  de  trovar 

Se  vá  desacostumando 

A  quem  anda  como  eu  ando,  *  # 

Tudo  se  hade  perdoar. 

Leíxando  todo  o  euibaraço 
Desde  o  dia  que  cá  vim, 
Vos  darei  conta  de  mim 
C  da  vida  que  cá  faço; 
.  E  julga  o  qiie  ca  sento 
Do  que  lá  sentiria, 
'S'algu'hora  ou  algum  dia 
Tive  esíe  tal  pensamento. 

Acho-me  mui  enganado 
D'hum  engano  que  trazia, 
Não  cuidei  que  nhum  cuidado 
Tantos  cuidados  havia; 
Cuidei  que  vida  mudada 
Mudasse  também  ventura; 
Mas  a  uiá  sempre  he  segura, 
E  da  l)oa  nâo  sei  nada. 


455 

E  pois  que  ja  comecei, 

Dar-vos-hei  conta  comprida    • 

De  como  passo  a  vida  ,  ^ 

Nesta  vida  que  tomei : 

Vou-me  ao  longo  da  praia 

Sem  outros  ricos  petrechos: 

Una  adarga  ale  pechos  - 

Y  en  la  mano  una  azagaia. 

F^aço  no  meu  pensamento 

Mais  torres  que  as  de  Almeirim, 

Mas  emfim  leva-as  o  vento, 

Porque  são  ventos  em  fnp ; 

Vou-me  traz  isto  em  que  ando 

Quando  a  tormenta  mais  arde,  ' 

Suspirando  a  menudo, 

Hablando  de  tarde  en  tarde. 

Fujo  da  conversação, 
Ânoja-me  companhia 
E  trago  os  olhos  no  chão, 
E  mui  alta  a  fantezia; 
Des  que  vou  alongando. 
Que  me  não  |)odem  ouvir. 
Las  bozes  que  iva  dando, 
Al  cielo  quieren  subir. 

Vejo  desfeitos  em  vão 
Todolos  meus  contentamentos. 
Porém  os  meus  [)ensamcntos 
Não  cansão,  nem  cansarão ; 
S'alma,  mais  (jue  a  vida, 
Mais  (|ue  a  vida  hade  durar. 


^5fi 

Maldita  scas  ventura, 
Que  assi  me  hazes  andar. 

Cuido  no  que  he  ja  passado 
E  no  que  está  por  passar, 
Porém  nunca  o  meu  cuidado 
Se  muda  *d'hum  só  lugar: 
Quando  em  mim  torno  cuidando 
Que  de  mi  mesmo  me  velo, 
Los  ojos  puestos  nel  cieio 
Jurando  iva  hechando. 

Vejo  o  mar  embravecer, 
Vejo  que  depois  melhora, 
Mil  cousas  vejo  cada  ora, 
Huma  só  não  posso  ver: 
Assim  vou  passando  o  dia 
Nesta  saudade  tamanha, 
Mirando  Ia  mar  d'Espana 
Como  mengoava  e  crecia. 

Quem  disser  que  a  saudade 
He  vida  para  gabar. 
Se  o  disser  de  verdade, 
Di-lo-ha  para  me  enojar. 
Vida  que  a  alma  entristece 
Em  que  toda  a  dor  consisto, 
"El  dia  que  hade  ser  triste. 
Para  mim  solo  amaneçe. 

Crede-me  quanto  mais  fallo. 
Pois  vos  fallo  como  amigo, 
E  crede  cpie  o  que  callo 


\ 
t 


« 
• 


^57 

He  muito  mais  que  o  (}ue  digo. 
Ando  com  alma  cansada, 
Suspirando  cada  hora 
Por  el  tu  amor  sen  li  ora 
Passe  YO  la  mar  salada. 

tf 

Andando  só,  como  digo. 
Apartado  da  manada, 
Fazendo  contas  comigo 
Qu  emfim  não  fundem  nada, 
Querendo  buscar  atalho 
Para  vir  ao  que  desejo, 
Vi  venir  pendon  bremejo 
Con.lresiento».de  caballo. 

Vinhão  d'esppras  douradas 
E  vestidos  de  alegria. 
Com  adargas  c  braçados 
La  flor  de  la  Berbéria, 
Com  grilos  e  altas  vozes 
Vinhão  a  rédeas  tendidas, 
Ricas  aljubas  vestidas 
En  cima  sus  albernozes. 

Genles.de  mui  las  maneiras 
E  diversas  nações 
CoiTião  a  estas  tranqueiras^, 
Como  a  ganhar  perdões; 
Mas  porque  vos  não  engane 
Cousas  que  outros  vos  escrevão, 
Los  bordones  que  ellos  llevan, 
Langas  vos  pareceranne. 


J58_ 

Tudo  anda  de  lovanio. 
Era  o  campo  todo  clieo, 
Em  tudo  punhão  espanto. 
De  nada  tihhão  receo; 
Com  grandes  vozes  e  festas 
Vinhão  bradando  de  lá: 
Cavalleros  de  Alcalá 
No  os  allabareis  daquesla. 

Comigo  mesmo  faltando. 
Como  s'a  outrem  faltasse   • 
Dizia  quem  me  lembrasse 
Do  em  que  andava  cuidando: 
E  porque  tamanho  dote 
Nao  se  alcança  por  cuidar, 
A  las  armas  Mouriscote, 
í>'in  ellas  quereis  entrar. 

Contar  feitos  esquecidos, 
He  muito  contra  minb'arle, 
Houve  mortos  e  feridos, 
Houve  mal  de  parle  a  parte. 
Houve  homem  que  dizia, 
Na  força  do  mor  recêo, 
Donde  estás  que  no  te  veo, 
Qu'es  de  ti  esperança  mia. 

r 

Pois  fallo  em  tãò  fraca  guerra, 
Sinal  he  de  vosso  amigo. 
Visto  como  estais  em  terra, 
Que  ha  outras  de  mór  perigo; 
E  pois  por  vós  mais  fizera 
Quem  faz  isto  que  aqui  vedes, 


Y  que  nuewis  me  traedes 
Dol  mi  nmor  que  alia  era? 

Quizera-vos  dizer  mais, 
E  pois  vos  não  digo  tudo, 
Farei  conta  que  sou  mudo 
E  entendel-me  por  sinaes; 
Que  se  fosse  tão  ousado, 
Qu'inda  mais  que  isto  dissesse, 
  que  muerte  condenado 
Pudo  ser  que  grave  fuesse. 

'    CARTA  A  HUMA  SENHORA 

(iXRniTA) 

Senhora,  quando  imagino 

O  divino 
Vosso  geslo,  claro  e  bello, 
De  alguma  hora  merece-lo 
Me  conheço  por  indino, 

Que  se  sento 
Ser  altivo  o  pensamento 

Que  m'inclinou, 
Vejo  que  amor  vos  deslina 
Para  mór  merecimento.     , 


Porque  he  vosso  hndo  aspeito 
Tã(x  perfeito  , 

Que  na  mais  pequena  parte, 
Não  pôde,  por  nenhuma  arle, 
Comprender  o  humano  peito; 
Nem  m'espanta, 


K)0 

Porque  se  tivestes  tanta 

Formosura, 
Vossa  suprema  ventura 
Mais  alta  vos  levanta. 

.  Porém  se  meus  pensamentos 

Nos  tormentos 

Quizerdes  experimentar, 

Bem  os  podeis  comparar 

.    Com  vossos  merecimentos, 

Que  se  ordena 

Amor  em  parte  pequena 

Opinião^ 
Crede  que  meu  coração 
He  incapaz  de  grande  pena. 

E  se  cuidais  por  ventura 

,  Que  a  natura 
Contém  outro  regimento, 
Sabei  que  meo  pensamento 
Em  vosso  gesto  se  apura; 

Nem  m*engano 
Que  mudei  o  ser  de  humano 

Como  pude 
Em  divino,  por  virtude. 
De  gesto  tão  soberano. 

.  Assirp  que,  feito  immortal, 

Ou  mortal, 
Outro  nome  tomarei 
De  ser  vosso  pois  mudei 
O  costume  natural. 

Também  vós. 


I 

Pelo  bem  que  em  vós  se  poz, 

Sereis  digna 
De  serdçs  por  vós  divina; 
Mas  eu  divino  por  vós. 

Em  fim,  que  desta  maneira, 

A  fé  inteira 
Que  no  peito  amor  me  cria. 
Vereis  crescer  cada  dia. 
Porque  sempre  mais  vos  queira 

A  fineza 
De  Hum  amor  que  nesta  empreza 

Me  acompanha, 
Ficará  sendo  tamanha 
Como  vossa  gentileza. 


MOTE 

'  (inSDITO) 


Afuera  consajos  vanos 
Que  despertais  mi  dojor; 
No  me  toqueit  vuestras  manos. 
Que  los  cpnsejos  d'amor, 
Los  /jue  matan,  son  los  sanos. 

GLOSA 

Foi-me  a  fortuna  entregar 
A  huma  dama  interesseira. 
Que  em  vez  de  premio  me  dar 
Por  huma  fé  verdadeira. 
Procura  de  me  roubar. 
Diz  que  rompe  qualquer  niuro, 
E  escusa  cem  mil  danos, 
Eu  que  temo  seos  enganos. 


TOMO  IT 


II 


\&2 

Onanto  de  fero  seguro,  ^ 
Afuera  consejos  vanos. 

Grandemente  me  persegue, 
E  me  pede  que  lhe  dê. 
Não  me  vale  razão  que  allegue 
Nem  maneira  com  que  chegue 
A  achar  valor  nesta  fé;. 
E  ponjue  ella  mVntendesse, 
Lhe  disse:  Meu  lindo  amor, 
Por  vosso  disfavor 
Não  me  pidais  interesse. 
Que  despertais  mi  dolor. 

Eifl  mostras  dessa  fé  pura. 
Vos  farei,  se  vós  gostais, 
Lindas  trovas  que  leiais. 
De  vossa  linda  figura 
Com  que  tanto  me  matais; 
Mas  se  pertendeis  roubar-mc 
Com  affagos,  com  enganos, 
E  depois  desenganar-me. 
Pois  não  he  cousa  que  me  arme. 
No  me  toquen  vueslras  manos. 

Se  dizeis  que  quem  quer  bem 
Hade  gastar  sem  ter  freio, ' 
Eu,  Senhora,  bem  o  creio: 
Mas  praticai-o  com  quem 
Tiver  o  seo  cofre  cheio. 
Se  me  dizeis  que  se  soa 
Que  quem  dá  tem  mais  favor, 
Deixai-me  antes  minha  dor. 


<65 

Pois  nada  mais  me  magOa^      « 
Que  los  consejos  d'amor. 

Entre  i\s  regras  dos  amores, 
Tomai  esta  singular 
Que  vos  hade  aproveitar, 
Chamai-nos  enganadores 
E  deixai-vos  enganar; 
Lograi-vos  de  vossa  idade 
No  florido  desses  annos,   ^ 
Por  que  de  nossos  enganos. 
Se  me  credes  em  verdade,     . 
Los  que  matan,  son  los  sanos.. 

MOTE 

(CtUITO) 

Guardai-me  esses  olhos  hellos. 

♦ 

GLOSA 

De  laços  de  ouro  tão  bellos, 
Pertende  amor  fazer  molhos, 
Por  prender  quem  ousa  vè-k)s, 
E  pois  elle  quer  cabellos, 
Para  mim  só  quero  os  olhos : 
Pois  elle  he  vosso  captivo, 
Por  alcança-los  e  te-los, 
Guardai  para  elle  os  cabelbs,. 
Para  mim  que  de  olhos  vivo, 
Gnardai-me  esses  olhos  hellos. 


OtJTRA 

Dois  extremos  tendes  mana. 
Em  vosso  gesto  divino. 


\(}4 

Qualquer  delles  peregrino, 
Olhos  de  luz  soberana, 
Cabellos  d'ouro  mais  fíno. 
Quem  cabelbs  para  si 
Pertender,  deixai-lhe  ave-los; 
Mas  se  eu  não  quero  cabellos. 
E'  olhos  quero  para  inim, 
Guardai-me  esses  olhos  bellos. 

MOTK 

(linmrro)      ^ 

S'espero,  sei  que  m'engano, 
Mas  não  sei  desesperar. 


GLOSA 


O  meu  pensamento  ahivo 
Me  tem  posto  em  tal  extremo, 
Que  quando  esperando  vivo, 
O  bem  esperado  temo, 
Muito  mais  que  o  mal  esquivo. 
Que  para  crescer  meu  dano 
No  gosto  da  confiança, 
Ordena  o  amor  tirano 
Que  na  mais  firme  esperança, 
Se  espero,  sei  que  m'engano. 

Deste  novo  sentimento^ 
Chega  a  tanto  a  nova  dor. 
Que  se  enlea  o  pensamento; 
Ver  que  no  mór  bem  de  amof 
Se  descobre  o  mór  tormento; 
Folgara  de  m'enganar. 
Mas  não  he  cousa  possível, 


K)5 

Pois  [)ara  sempre  penar. 
Sei  que  espero  o  impossível, 
Mas  não  sei  desesperar.    . 

A  HUMA  SENHORA  REZANDO 

*  *       MOTE 

Peço-vos  que  me  digais 
Se  as  orações  (jue  rezastes, 
Se  forão  por  quem  matastes, 
Se  por  vós,  que  assi  matais. 

• 

GLOSA 

Com  o  espirito  puro  e  vivo, 
  vista  toda  turbada. 
Nos  céos  vos  vi  enlevada  , 
Com  gesto  contemplativo 
No  amor  divino  inflammada. 
E  por  quanto,  extremos  tais. 
Me  causarão  grjinde  espanto, 
Seria  ora  com  zelo  santo, 
Peçot-vos  que  me  digais? 

Porque  pondo-mc  a  notar 
'  Os  effeitos  da  visão, 
Medindo-os  com  a  razão, 
Hei  vindo,  em  fim,  a  assentar 
Que  estáveis  em  oração; 
Mas  como  de  tantas  vidas, 
E  corações  que  roubastes, 
Vossas  mãos  são  còmprehendidas. 
Mal  podem  ser  recebidas 
As  orações  que  rezastes. 


466 

Que  posto  que  Deos  aceita 
Hum  coração  humilhado, 
A  conlricçâo  do  peccado 
Ha  de  ser  dor  tão  perfeita. 
Que. lhe  peze  do  passado; 
Porém  se  no  que  mostrastes, 
De  lanlo  mal  vos  doestes, 
Pode  ser  que  empregastes 
Bem  as  preces  que  dissestes, 
Se  forao  por  (piem  matastes. 

E  para  ser  mais  aceito 

O  preço  da  salvação, 

He  de  divino  direito 

Que  façais  satisfação 

Dos  danos  que  tendes  feito. 

Por  tanto  restitui 

A  vida  que  me  tirais, 

E  então  não  duvideis  mais, 

Se  rezastes  só  por  mim, 

Se  por  vós  (|ue  assim  matais. 

MOTK 

(IXBOITO) 

Ora  cuidar  me  assegura, 
Ora  me  matão  cuidados. 

GLOSA 

Foi  ser  a  vontade  minha 
De  todos  tão  desviada, 
Que  me  não  affirmo  em  nada. 
Pois  tenho  o  mal  quu  tinha. 
O  bem  que  tinha  m'enfada. 


<67 

Isto  bejoiya  da  venlura, 
Se  não  mengana  o  que  cuido. 
Que  taes  extremos  mistura, 
Que  oia  o  meu  próprio  descuido, 
Ora  cuidar  me  assegura. 

Diversas  cousas  me  pede 
O  meu  desejo  inquieto, 
Humas  nego,  outras  prometio; 
Mas  comtudo  me  succede 
Perder-me  no  que  cometo. 
Como  seyh  dos  meus  fados 
,  A  tenção,  favorecida, 
Se  para  majes  dobrados 
Dão-me  ora  cuidados  vida, 
Ora  me  matão  cuidados. 

MOTK 

(iMBflITO) 

0 

O  meos  altos  iJensamentos, 
Quão  altos  (\ue  vos  pozestes, 
E  quão  grande  queda  destes! 

VOLTA 

Como  de  mim  vos  não  vinlia 
Serdes  tirme  n'hum  estado, 
Pois  o  viver  enganado, 
Era  o  maior  bem  que  tinba, 
Caslello  d'esta  alma  minha, 
Quão  alio  que  vos  pozesles, 
E  quão  grande  queda  destes.    ^ 

Sabia  que  éreis  de  vento. 
Como  (juem  vos  vio  fazer: 


j68 

f 

Indassim  vos  qiieria  ter, 
Como  éreis  sem  fundamento: 
Quem  vos  desfez  n'hum  momento? 
Ai  quão  alto  vos  pozesles,    ^ 
E  quão  grande  queda  destes! 

MOTI;: 

(IRBOJTO) 

Esperanças  mal  tomadas, 
Agora  vos  deixarei 

Tão  mal  como  vos  tomei. 

* 

VOLTA 

Fostes  tomadas  em  vão 
De  mim  sem  fundamento, 
E  vós  éreis  todas  de  vento, 
E  eu  delle  vivia  então; 
Se  vos  tomei  sem  razão, 
Com  ella  vos  deixarei 
Tão  mal  como  vos  tomei. 

Assim  vos  queria  ter 
Sem  razão  e  mal  tomadas. 
Sabendo,  quando  deixadas. 
Quanto  havieis  de  doer; 
Mas  nem  isto  pôde  ser, 
Que  por  meu  mal  vos  tomei 
E  por  vós  me  deixarei. 

Quereis  qufe  faça  mudança! 
De  vós  outro  bem  não  entendo. 
Isto  só  se  ganha  em  vos  vendo, 
isto  só  de  vós  se  alcança; 


\69. 

Mas  cstâ  vân  esperança. 
Senhora,  se  eu  a  tomei 
Por  vós/ como  a  deixarei? 

* 

MOTK 

(INBDITO) 

Gomo  quer  que  tendes  vida, 
  minha  alma  tão  de  vosso, 
Não  digais,  mana,  não  posso. 

VOLTA 

Para  haver-vos  de  entregar-ipe. 
Bastava  somente  huma  hora, 
E  sobrava  esta  d'agora 
Para  poder  descançar-me. 
Sc  a  vida  pôde  faltar-me, 
Inda  que  eu  não  de  ser  vosso. 
Não  digais,  mana,  não  posso. 

.MOTE 

(imtDITO) 

Em  tudo  vejo  mudanças, 
Senão  onde  as  ver  quisera. 
Passa  a  vida  em  esperanças, 
Nunc^  chega  a  que  se  espera. 


.  VOLTA 


E  posto  que  chegue  o  bem, 
O  que  duvido  de  ser. 
Que  gosto  SC  pode  ter 
No  que  firmeza  não  tem  ? 


.170 

Vida  cheia  de  mudanças 
Tudo  cni  li  cança  e  altera, 
Porque  dás  mil  esperanças, 
E  não  dás  o  que  s'csperã. 

O  mal  he  que  le  conheço 
Ja  j)or  falsa  e  sem  firmeza, 
E  com  ter  esta  certeza 
Inda  te  não  aborreço. 
De  tuas  vaas  esperanças 
Ver-me  ja  livre  quisera. 
Por  me  rir  das  mudanças 
Do  que  espera  e  desespera. 

« 
MOTK 

Ay  de  mim,  mas  de  y()s  ay. 

Que  eu  morrendo, 

Bem  intendo 

Que  a  vós  nisso  mais  vai. 

VOLTA 

A  vida,  por  vós  perdida. 
Bem  me  pôde  ser  gloriosa, 
Mal  pôde  ser  não  penosa, 
A  vós  perdida  esta  vida. 
Se  me  matais  altentai, 
Que  morrendo 
Bem  intendo 
Que  a  vós  mais  nisso  vai. 


Com  vossos  olhos  serenos 
Não  divisais 


\7\ 

Querer  vos  sirva  de  mais, 

Ter  huma  vida  de  menos. 

Matai  meus  olhos,  matai, 

Que  eu  morrendo 

Bem  entendo 

Que  a  vós  mais  nisso  vos  vai. 


MOTE 

(lxkdito) 

r*  ume  desta,  vida     ' 
<eja-me  esse  lume 
^a  que  se  presumo 
c»em  o  ver  perdida. 

VOLTA 

ftoncedei  luz -tal 

>  quem  vós  cegastes, 
Hoda  me  tirastes 

M  essa  só  me  vai: 
soazão  hc  querida 
«^a  vir  do  alto  cume 
^orte  de  tal  lume 

>  alma  tao  perdida. 

oesatando  hide 
Msta  treva  escura 
>uróra  onde  pura 
Hóda  luz  reside: 
>y  (|ue  atada  a  vida 
«^a  com  esse  lume 
Ocixa  o  seu  queixume 
Mslima-se  por  perdida. 


172 


MOTI;: 


(ijrBDITO) 

Que  vistes  meus  olhos? 
Meus  olhos  que  vistes, 
Que  vos  vejo  tristes? 

VOLTA 

Vejo-Yos  chorosos, 
De  amor  agravados, 
Tanto  namorados 
Quanto  mais  queixosos; 
Ora  meus  mimosos       ^ 
Dizei-me,  que  vistes, 
Que  vos  vejo  tristes? 

Dizei-m)B,  meos  olhos, 
Quem  vos  agravou, 
Quem  vos  trespassou 
Com  duros  abrolhos? 
Por  certo  que  cm  molhos 
Nunca  vi,  se  ahi  vistes. 
Lagrimas  tao  tristes. 

Se  chorais  de  amor 
Suas  esperanças, 
Ditosas  lembranças. 
Mais  ditosa  dor; 
Mas  se  he  desfavor, 
Dizei-mc,  que  vistes, 
E  nao  sereis  tristes. 


Porém  se  do  enganos 
Viveis  enganados, « 


\7õ' 

Não  queirais  cuidados 
De  que  vem  taes  danos, 
Deixai  passar  annos 
Com  o  bem  que  vistes, 
E  não  sereis  tristes; 


MOTE 

(IMDITO) 

Ay  de  mim. 
Que  muero  despoes  que  os  vi, 

Ay  de  vós, 
Que  cuenta  dareis  a  Dios. 

VOLTA 

En  dos  maneras  se  muestra 
La  piena  que  por  vos  siento,'  . 
Es  la  una,  mi  tormento, 
La  otra,  la  culpa  vuestra. 

Que  se  vi, 
En  perder  me  no  perdi; 

Pêro  vos. 
Que  cuenta  dareis  a  Dios? 


Porque  se  vuestra  codicia 
En  mi  dano  es  de  tal  arte, 
Aun  que  perdone  la  parle. 
Queda  el  caso  a  la  justicia. 

Yo  de  acjui 
Tomaré  la  culpa  en  mi; 

Pêro  Dios, 
Tomara  la  pona  en  vos. 


\74 

MOTK 


Lcagrimas  dirão  por  mim, 
Senhora,  nesla  despedida, 
Em  qne  lermos  vai  a  vida. 


VOLTA 


A  tanlo  chega  esta  dor, 
Que  desconfio  da  lingoa, 
Queni  pôde  supprir  tal  mingoa, 
Se  não  lagrimas  de  Amor; 
Elias  vos  dirão  melhor, 
Senhora,  nesta  partida 
Que  vai  a  vida  sem  vida. 

A  força  da  saudade, 
Quando  a  lingoa  desvaria, 
A  quem  em  lagrimas  fia .   i 
As  que  lhe  pede  a  vontade, 
Que  chore  nesta  partida, 
Irão  dando  fim  á  vida. 

Não  tem  que  ver  a  tenção 
Com  palavras  amorosas, 
As  lagrimas  saudosas, 
Lingoas  dos  amores  são; 
Elias  por  mim  fatiarão 
Quando  a  pena  da  partida 
Me  tirar  a  falia  e  a  vida. 


Palavras  podem  mentir, 
Mostrar  dor  grande  ou  pequena, 
Mas  lagrimas  que  dão  pena^ 


475 

Ninguém  as  sabe  fingir; 
Pelo  que,  quando  parlir. 
Qual  for  a  dor  da  partida, 
Tíil  será  nellas  sentida. 

MOTK       ' 

(IXBMTO) 

Prazeres,  que  me  quereis? 
Se  vedes  que  vos  não  quero; 
Ja  nenhum  de  vós  espei^o, 
Nenhum  de  mi  espereis. 

VOLTA 

Vindes  para  vos  tomar, 
Sois  leves  de  natureza, 
Melhor  he  minha  tristeza 
Que  me  não  sabe  deixar. 
Disto  não  vos  espanteis, 
Que  pois  me  quer,  eu  a  quero; 
NãoTTie  engana  no  que  espero. 
Como  vós  sempre  fazeis. 

Lembre-vos  quanto  enleastes 
Quando  fugir  vós  quizestes, 
O  muilo  jque  promettestes, 
O  pouco  que  me  deixastes. 
O  que  agora  promettestes 
He  também  engano  'mero, 
O  que  podeis,  não  o  quero, 
O  que  quero,  não  podeis. 

De  vossos  ponlentamenlos 
Tenho  ja  ex|)eriencia, 


\76 

Que  de  [tens  tem  apparencia; 
E  na  verdade  sao  ventos. 
Tempo  he  que  me  deixeis, 
Ja  que  nada  de  vós  quero, 
.  Não  tenhais  isto  por  fero, 
Buscai  outrem  que  enganeis. 

More 

(nHIDITO) 

Por  huns  olhos  que  fugii^o, 
O  lume  dos  meus  perdi; 
Porque  nem  elles  me  virão, 
Nem  eu  lambem  mais  os  vi. 

# 

VOLTA 

•Não  lhes  pude  defender 
Que  taes  olhos  não  seguissem, 
Rirão-se  muito  de  ver 
Outros  olhos  que  tal  vissem. 
Eu  não  sei  o  que  sentirão. 
Mas  sei  que  tal  dor  senti, 
Quando  vi  que  não  virão 
Que  nunca  mais  prazer  vi. 

Com  sua  luz  me  cegarão, 
Como  o  sol  tem  por  costume, 
Fiquei  com  olhos  sem  lume, 
Para  chorar  me  ficarão. 
Âssi,  desde  que  não  virão 
Aquelles  que  acaso  vi, 
Sempre  disso  me  servi, 
Nunca  mais  com  clles  vi. 


MOTE 

(rNRDITO)  * 

No  monte  de  amor  andei, 
Por  ter  de  monteiro  fama, 
Sem  tomar  gamo  nem  gama. 

VOLTA 

Ached-me  tão  elevado 
Neste  monte  a  montear, 
Que  donde  cuidei  caçar 
Eu  mesmo  fiquei  caçado. 
.   Caçador  desesperado, 
Sahi  de  huma  e  outra  rama 
Sem  tomar  gamo  nem  gama. 

Levava  por  meus  monteiros, 
Nesta  caça  de  tormentos, 
Os  meus  ais,  que  como  vento 
Hião  diante  ligeiros. 
Huns  tão  tristes  companheiros 
Levei,  como  quem  ama, 
Por  descobrir  esta  gama. 

^  A  roupa  de  montear 
Que  neste  dia  levava, 
Era  o  mal  que  me  pesava, 
A  corneta  o  suspirar. 
Ja  não  podia  cessar 
Como  touro  quando  J)rama^ 
Só  por  buscar  esta  gama. 

Os  cães  erão  meus  tormentos, 
Cheios  de  muita  agonia, 
O  furão,  minha  porfia, 

TOMO  IV  12 


<78       • 

As  redes,  meus  j)ensafnonlos. 
Nem  me  valeo  lomar  ventos, 
Nem  peneirar  pela  rama 
Para  descobrir  tal  gama. 

MOTK 

(INRNTO) 

Tal  eslCM  devspues  (jue  os  vi. 
Que  de  mi  propio  cuidado    • 
Estoi  tan  enamorado 
Como  NaroÍKO  de  si. 

VOLTAS 

Una  sola  deferência 
Hallo  neste  amor  altivo. 
Que  el  murio  con  preferencia, 
Mas  yo  con  la  vuestra  vivo. 
En  el  punto  que  yo  os  vi 
Se  realço  mi  cuidado, 
De  modo  que  enamorado 
Por  vos  me  quede  de  mi. 

Nacieron  de  un  amor  dos, 
Cupido  fue  el  lercero 
Que  liazc  que  bien  me  quiero 
Solo  por  que  os  quero  a  vos. 
Los  extremos  que  en  vos  vi, 
Me  ban  traido  a  tal  estado 
Que  me  vêo  enamorado 
De  amor  de  vos  e  de  mi. 

MOTE 

(mcorro) 

De  vós  quererdes  meu  mal 
Me  vem  pode-lo  soffrer. 


<79 

Gr.OSA 

De  tantas  penas  cercado, 
Gosó  de  hum  bem  que  ja  live, 
Que  o  que  me  he  menos  pesado 
He  ponderar  que  ainda  vive 
Hum  amor  lao  mal  pagado. 
A  causa  deste  tormento, 
Sem  vós,  me  fora  mortal; 
Daqui  vem  que  em  dano' tal 
Só  tenho  o  contentamento 
De.  vós  quererdes  meu  mal. 

De  vós  quererdes  meu  mal 
Vem  o  querer  esta  vida, 
Porque  a  dor  de  tal  ferida. 
Posto  que  em  si  hc  morlal. 
Fica  assim  menos  sentida. 
Eu  tenho  a  dor  desta  pena, 
Que  me  vós  fazeis  querer, 
E  posto  que  me  condena 
De  ver  que  se  me  ordena, 
xMe  vem  pode-la  sòffrer. 

MOTE 

(ixiorro) 

No  meu  peito  o  meu  desejo 
Da  razão  se  fez  tirano, 
Vejo  nelle  certo  dano. 
Incerto  remédio  vejo. 

VOLTA 

Para  de  todo  defender-me, 
Este  mal  por  passar  tinha. 


f 


Ir  eu  contra  a  razão  minha 
Que  morre  por  defender-me. 
Da  parte  de  meu  deáejo 
Me  passo  para  meo  dano. 
Vejo  que  nisto  me  engano, 
Mas  nenhum  remédio  vejo. 

mote: 

(INIDITO) 

Nasce  eslrella  d'alva, 
A  manhãa  se  vem, 
Despertai,  minha  alma, 
Não  durmais  meu  bem. 

VOLTAS 

Meu  íilho  e  meu  Deus, 
Rei  e  peregiíno. 
Tão  grande  nos  ceos, 
Na  terra  menino. 
Pois  sois  pequenino 
Não  temais  a  alguém ; 
Despertai  minha  alma, 
Não  (hirmais  meu  bem. 


Pestanas  divinas 
E  debaxo  estreitas. 
Não  cubrais  meninas 
Tão  lindas,  tão  bellas; 
Abri  as  janellas. 
Porque  tal  luz  dêem; 
Despertai  minha  alma, 
Não  durmais  meu  bem. 


Vós  tendes,  Senhor, 
O  mundo  na  paimâ, 
Vós  sois  movedor 
Do  frio  e  da  calma; 
Mas  pois  vos  enealma 
O  sol  que  ja  vem. 
Despertai  minha  alma, 
Não  durmais  meu  bem, 

Ovelha  que  errou. 
Buscais  bom  pastor, 
Mas  quem  vo§  deixou 
Is  buscar,  Senhor; 
Pois  de  tal  amor 
Tal  caminho  vem. 
Despertai  minha  alma, 
Não  durmais  meu  .bem. 

Nas  calmas  estranhas 
De  área  torrada, 
Das  minhas  entranhas 
Vos  farei  ramada: 
Pois  por  esta  estrada 
Seguir  nos  convém. 
Despertai  minha  alma, 
Não  durmais  meu  bem. 

Ribeiras  sombrias 
Não  ha  nesta  terra. 
Não  ha  fontes  frias 
Que  baxem  da  serra; 
Pois  quem  vos  desterra 
Espera  lambem, 


482 

Despertai  minha  alma. 
Não  durmais  meu  bem. 

CARTA  A  HUMA  SENHORA 

(ihkoita) 

r 

Amor  que  vio  minha  dor 
Ser  maior  que  a  paciência, 
Promelteu-me,  por  favor, 
Huma  carta  de  adherencia 
Para  vosso  desfavor. 

Eu,  que  ainda  não  sabia 
Quanto  tinha  de  divino, 
Julgava  por  desatino 
Que  caria  de  tal  vaha. 
Notasse  hum  cego  menino. 

Elle  vendo-me  ficar 
Comigo  quasi  suspenso, 
Por  mais  me  desenganar 
Começou-me  de  notar 
Na  mepioria  por  extenso.. 

E  diz,  por  ver  se  o  nego, 
Via  boa  se  assim  for; 
E  eu  tornei-lhe  por  louvor : 
Os  conceitos  são  de  cego, 
E  as  palavras  são  de  amor. 

Logo  escrever  me  mandou, 
E  não  sendo  a  pena  boa. 
Para  as  azas  se  virou 
E  humá  grande  arrancou, 
Daquellas  com  que  mais  vôa. 


<85 

E  diz-nie:  toma  esla  pena, 
Que  por  minha  a  todos  ganha, 
Que  parece  cousa  estranha 
Que  baste  cousa  pequena 
A  contar  cousa  tamanha. 

E  por  ser  mais  igual 
A  matéria  ao  pensamento. 
Tudo  he  de  hum  natural ; 
Molha  a  pena  de  teu  mal 
Na  tinta  do  meu  lormenlo.  • 

O  pensamento  Hgeiro, 
Como  portador  tão  6el, 
Sendo  em  tudo  verdadeiro. 
Te  dê  agora  o  jmpel. 
Te  sirva  de  mensageiro. 

E  eu,  aparelhado  assi, 
Como  amor  me  aparelliou, 
Dés  que  nada  me  fallece ; 
Desta  maneira  escrevi 
O  que  o  moço  cego  notou : 

Senhora,  que  não  quereis, 
Depois  que  tudo  quízesles, 
E  a  morte  me  trazeis, 
Negando-me  o  que  podeis. 
Sabendo  í|uanto  podestes. 

Esperai,  estai  attento, 
Que  para  contar  minha  dor 
Me  dá  a  tinta  o  tormento, 


\S4 

A  pena  me  dá  o  amor, 
O  papel  o  pensamento. 

Demócrito  lirai 
A  vista  tanto  estimada, 
Que  sem  ella  procurai 
Furtar  o  corpo  á  sillada, 
Que  do  desejo  esperai. 

Se  primeiro  que  vos  vira, 
Minha  dor  adivinhará,    ' 
Meós,  certo,  olhos  tirara 
Que  inda  que  pena  sentira, 
Menos  pena  lhe  ficara/ 

Mas  ai,  Senhora,  que  n'isto 
Não  acerto,  nem  pode  ser. 
Porque  para  meu  querer 
Aníes  cego  por  ter-vos  visto, 
Que  cego  por  vos  nâo  ver. 

• 

Quanto  mais  que  os  cegos  taes, 
Se  ante  vós  estivessem, 
Como  os  que  vos  vêem  cegais, 
Os  cegos  vista  tivessem 
Para  nunca  verem  mais. 

\ 

Porque,  depois  que  vos  vi. 
Quando  vós  ver  me  quizesles; 
Nunca  mais  me  vi  a  mim. 
Nem  vi  quando  me  perdestes, 
Sentindo  que  me  perdi. 


<85 

Tanto  enlevei  o  cuidado 
Na  luz  com  que  me  cegastes, 
Que  de  cego  e  enlevado 
Não  vi  quando  me  roub^tes, 
Mas  vi  que  fora  roubado. 

O  pensamento  por  quanto 
Vos  quiz  ter  por  sua  estrella, 
Como  quem  mais  s'acautela 
Se  descuidou  d'alma  tanto, 
Por  vos  dar  cuidado  delia. 

Mas  a  alma  que  na  gloria 
Se  vio  de  vossa  prisão, 
Deu  recado  ao  coração, 
Que  rendido,  ou' com  victoria, 
Se  rendesse  em  vossa  mão. 

Os  olhos  que  cada  dia 
Os  vossos  lhe  erão  defezos, 
Como  que  mais  não  queria 
Hião  sempre  ver  os  presos, 
Por  ver  a  quem  prendia. 

Gosavão  da  vista  pura, 
Vião  huma  alma  no  ceo; 
Ó  que  ceol  mas  pouco  dura 
A  gloria,  pois  a  tolheu, 
Ou  vós,  ou  minha  ventura,     v 

Ventura,  não,  que  he  cousa  dura 
Negar  ella  o  que  podeis; 
Vós  sim,  pois  que  bem  sabeis 


486 

Quão  pouco  pode  â  vcnlura 
Onde  vós  tanto  podeis. 

E  se,  ScHhora,  quereis 
"Ser  remédio  do  que  espero, 
Sou  conlente  que  me  deis 
Não  mais  que  quanto  podeis, 
Para  íicar  com  quanto  quero. 

Se  de  bem  tão  sublimado, 
Por  indigíio  me  tiverdes, 
Tende  comvosco  assentado 
Que  pois  tenho  meu  cuidado. 
Que  terei  quanto  me  derdes. 

E  pois  que  o  pensamento 
For  capaz  de  imaginar-vos 
Pela  gloria  do  tormento, 
Quiz  o  merecer  comprar-vos 
Com  vosso  merecimento.. 

Assim  que  de  merecer 
Não*  me  falta  cantidade, 
Nem  me  falta  o  poder  ser; 
Mas  para  tudo  poder, 
Falta-me  vossa  vontade. 

E  pois  que  podeis  por  vós, 
O  que  não  posso  por  mim. 
Porque  não  quereis  o  fim, 
Sem  desfazeres  em  vós. 
Vir  a  lazer  tanto  em  mim. 


<87 

E  pois  o  tempo  vos  dá 
Licença  porque  me  deis, 
Não  negueis  o  que  podeis, 
Que  depois  o  negará,    . 
E  vós  m'o  concedereis. 

E  pois  tanto  bem  me  .destes, 
Senhora,  não  m*o  tireis; 
Porque  mais  pena  tereis 
Em  saber  que  ja  podestes, 
Que  ver  que  ja  não  podeis. 

Em  fim  porque  nunca  Seja 
Chegado  a  tão  dura  sorte, 
Ou  consenti  que  vos  veja. 
Ou  não  me  negueis  a  morte, 
Que  a  vida  sem  vós  deseja. 

OUTRA 

(inidita) 

Carta  minha  tão  ditosa, 

Pois  que  chegarás  a  ver 

O  que  eu  não;  dou-le  a  entender 

De  minha  vida  penosa, 

O  que  lhe  podes  dizer. 

Quero  que  vás  instruída 
Para  poder  fallar  lá: 
Pede  bem,  dar-me-has  vida. 
Que  em  seres  bem  respondida 
Todo  o  meu  remédio  está. 

Humildade  e  reverencia, 
Convein  nesta  [)arte  teres, 


Jíf 


<88 

Basla-te  humilde  a  mim  veres, 
Para  tu,  que  és  dependência 
Minha,  humilde  lambem  seres. 

Ja  que  me  vãs  remediar, 
Se  necessário  me  for, 
Chora  lá  por  alcançar, 
Fica  a  conta  do  chorar, 
E  em  conto  de  minha  dor. 

Senhora,  dirás  chorando. 
Sou  cá  mandado  de  quem 
Não  quer  mais  que  só  o  bem 
D'eslar  sraipre  contemplando 
No  que  de  vós  junto  tem. 

.  Não  fora  nunca  atrevido 
A  cometter  tal  empreza. 
Dizendo,  delia  esquecido: 
Baste-me  a  mim  ser  perdido 
Por  uma  tão  grande  belleza. 

Mas  amor  que  vio  estar 
Tão  engolfado  na  pena. 
Disse:  assi  has  de  penar 
Sem  quereres  applicar  * 
Sequer  reiçedio  de  pena. 

Põe-te  logo  a  escrever 
Para  aquella  que  te  cança, 
Sem  te  faltar  que.dizer, 
Eu  promello  de  te  ser 
Em  tudo  inteira  lembrança. 


^89 

Pois  elle  vendo  de  amor 
Hum  tão  grande  offerecimenio, 
Faz  de  mim  embaixador 
Com  a  pena  de  sua  dor 
Escrevendo  seu  tormento. 

Dizendo:  Senhora  minha, 
Lá  onde  quer  que  ora  estais 
Como  podeis  ser  mezinha 
Desta  vida  tão  mesquinha, 
Com  hum  só  sim  que  digais. 

Hum  sim  digo  de  contente, 
Que  por  vós  feneça  amando. 
De  modo  que  saiba  a  gente 
Que  me  dais  vida  penando 
N'hum  vagaroso  accidente. 

Quem  souber  que  por  vós  rhouro, 
Que  melhor  sorte  quero  eu? 
Quem  teve  mór  bem  por  seu, 
Que  quero  eu  mór  thesouro. 

Que  morrer  pelo  bem  meu. 

« 

Macias,  o  namorado. 
Teve  que  era  gloria 
Na  morte  ter  estampado 
Até  ser  alanceado, 
O  nome  de  sua  senhora. 


Só  quero  que  de  em  diante 
Se  saiba  que  sois  servida, 
De  quem  por  vós  perca  a  vida, 


190 

■  « 

Que  não  houve  nunca  amante 
Que  a  (lê  por  melhor  perdida. 

Que  he  Ião  grande  o  bem  de  amar- vos. 

Supposlo  que  muito  peno, 

Que  inda  cuido  que  hc  pagar-vos 

Pouco,  e  que  sacrificar- vos 

A  vida,  he  premio  pequeno. 

Assi  que  para  esperar, 
Senhora,  de  vós  favor, 
Não  me  acho  merecedor;' 
Que  em  fim  se  vem  a  pagar 
Meu  amor  c'o  mesmo  amor. 

■ 

Hum  só  que  de  vós  proceda 
Mereço,  pois  me  perdi, 
E  he  que  nunca  succcda, 
Qu'algum  outro  se  conceda 
O  que  se  nega  a  mim. 

OUTRA 

t 

(insdita) 

Pois  que.  Senhora,  folgais 
Que  minha  alma  vos  não  veja; 
Peço-vos  que  me  digais 
A  razão  quê  vós  achais 
Em  não  querer  que  vosso  seja. 

Bem  que  a  razão  vejo  clara. 
Que  alguém  vos  enganou, 
Porque  eu  certo  julgava 
Que  o  fio  não  quebrara 
Pelo  logar  que  cobrou. 


J9JL 

t 

Mas  pois  foi  a  vosso  grado. 
E  disso  tomais  prazer. 
Eu  estou  aparelhado 
A  cumprir  vosso  mandado 
Ja  mais  nunca  vos  ver. 

E  por  ser  obediente. 

Com  o  que  tenho  me  componho, 

Digo  que  sou  mui  contente; 

Seja  passada  por  sonho. 

E  se,  Senhora,  cuidais 

Que  disto  paixão  me  vem, 

Certo  que  vos  enganais    •  ^ 

N'isso' ganho  eu  mais 

Dez  mil  vezes  que  ninguém. 

INTKNDIMKNTO  A  RSTE  VERSO 

(l!fKDITO^ 

Olvide  V  avorescv. 

*  • 

lia  se  de  entender  assi 
Que  desque  os  di  mi  cuidado 
A  quantas  uve  mirado 
Olvide  V  avorescy. 

A  HUMAS  SENHORAS 

OrE  JOr.ANDO  PERTO  DE  HUMA  JANELLA  LUES  CAUIRÁO  TRÊS  PAOS 

E  DERÃO  NA  CARECA  DE  CAMÔI<:S  -      . 

Para  evitar  dias  máos 
Da  vida  triste  que  passo; 
Mandem-me  dar  um  baraço. 
Que  ja  cá  tenho  três  páos. 


COMEDIAS 


/ 


TttVU  IV  13 


EL-REI  SELEUCO 


INTERLOCUTORES 

I 

DO  PROLOGO 

O  Mordomo,  ou  Dono  da  Casa — Martim  Chinchorro — Ambrósio,  Escudeiro 

LA.NÇAROTE,  MoÇO. 
DA  COMEDIA 

El-R£i  Sklbuco— A  Rainha  Estratonica — O  Prinxipe  Antiocho— Lbocadio, 
Pagem  do  Príncipe  Antiocho — Frolalta,  Creada  da  Rainha  Estratonica^— Hum 
Portão  da  Cana — Huma  Moça  da  Camará — Hum  Physico  ou  Medico— San- 
cho, Moço  do  Physico — Alexandre  da  Fonseca,  hum  dos  Músicos. 

PROLOGO 
(Diz  logo  o  Mordomo,  ou  Dono  da  casa:J 

Eis,  Senhores,  o  Autor,  por  me  honrar  nesta  festival  noite,» 
me  quiz  representar  huma  Farçá;  e  diz,  que  por  não  se  encon- 
trar com  outras  ja  feitas,  buscou  huns  novos  fundamentos  para 
a  quem  tiver  hum  juizo  assi  arrazoado  satisfazer.  E  diz  que 
quem  se  del^a  não  contentar,  querendo  outros  covos  aconteci- 
mentos, que  se  vá  aos  soalheiros  dos  Escudeiros  da  Castanheira, 
ou  de  Alhos  Vedros  e  Barreiro,  ou  converse  na  rua  Nova  em 
casa  do  Boticário;  e  não  lhe  faltará  que  conte.  Porém  diz^ o  Au- 
tor que  usou  nesta  obra  da  maneira  de  Isopejle.  Ora  quanto  á 
obra,  se  não  parecer  bem  a  todos,  o  Autor  diz  que  entende  delia 
menos  que  todos  os  que  lha  puderem  emendar.  Todavia,  isto  he 
para  praguentos:  aos  quaes  diz  que  responde  com  hum  dito  de 
hum  Philosopho,  que  diz:  Vós  outros  estudastes  para  prague- 


190 

jar,  e  eu  para  desprezar  praguentos.  Eu  com  Indo  (juero  sa- 
bor (la  F'arça,  em  que  ponto  vai.  Lançarote? 

MOCO 

Sonlior. 

MORDO^K) 

Sâo  ja  chegadas  as  figuras? 

Moçg 
Chegadas  sâo  ellas  ((uasi  ao  íim  de  sua  vida. 

MORDOMO 

Como  assi? 

MOÇO 

.  .  Ponjue  foi  a  gente  tanta,  que  não  ficou  capa  com  friza,  nem 
talão  de  çapatò,  que  não  sahisse  fora  do  couce.  Ora  vierão  huns 
embuçadetes,  e  quizerão  entrar  por  força;  ei-lo  arrancamento  na 
mão:  derão  huma  pedrada  na  cabeça  ao  Anjo,  e  rasgarão  huma 
meia  calça  ao  Ermitão;  e  agora  diz  o  Anjo  que  não  ha  de  en- 
trar, ate  lhe  não  darem  huma  cabeça  nova,  nem  o  Ermitão  até 
lhe  não  porem  huma  estopada  na  calça.  Este  pantufo  se  perdeo 
alli;  mande-o  v.  m.  Domingo' apregoar  nos  púlpitos;  qiie  não 
quero  nada  do  alheio. 

BiORDOMO 

Se  clle  fora  outra  peça  de  mais  valia,  tu  botaras  a  consciên- 
cia pela  porta  fora,  para  o  melteres  em  tua  casa. 

MOCO 

Oh !  se  o  elle  fora,  mais  consciência  seria  tomá-lo  a  sen  do- 
no, quem  o  havia  mister  para  si. 

MORDOMO 

Ora  vem  cá :  vai  daqui  a  casa  de  Marlim  Chinchorro,  e  di- 


m 

m 

ze-lhe  que  temos  cá  Aulo  com  grande  fogueira;  tjue  se  venha  sua 
mercê  para  cá,  e  que  traga  comsigo  o  Senhor  Romão  d' Alvarenga^ 
para  que  sobre  o  Canto-chão  botemos  nos$o  contra-ponto  de 
zombaria.  Ouves,  Lançarote?  ir-lhe-has  abrir  a  porta  do  quin- 
tal, porque  mudemos  o  vinte  aos  que  cuidao  de  entrar  por  força. 

findo-se  o  Moço  diz :) 

Chichelo  de  Judeo,  assi  como  foste  pantufo,  que  te  custava 
ser  huma  bolsa  com  hum  par  de  reales,  íjue  sao  líons  para  Es- 
cudeiro hypocrita;  que  são  pouco,  e  valem  muito? 

,  MOliDOMO 

Moço.  que  estás  fazendo  que  não  vás? 

MOCO 

■  Senhor,  estou  tardando,  e  porém  estou  cuidando  que  se  agora 
fora  aquelle  tempo,  em  que  corrião  as  moedas  dos  sambarcos, 
senlpre  deste  tiraria  para  humas  palmilhas.  Mas  ja  que  assi  he, 
diga-me  v.  m.  que  farei  deste? 

MORDOMO 

Oh  tideputa  bargante!  esperae,  (pie  esl'outro  vo-lo  dirá. 

[Faz  que  lhe  atira  com  outro  pantufo;  vai-se  o  Moço,  e  diz  o  Mordomo:) 

Não  ha  mais  máo  conselho,  que  ter  hum  villão  destes  mi- 
moso, porque  logo  passão  o  pé  além  da  mão,  e  zombão  assi  da 
gravidade  de  seu  amo.  Mas  tomando  ao  que  importa;  vossas 
mercês  he  necessário  que  se  cheguem  huns  para  os  outros,  para 
darem  lugar  aos  outros  senhores  que  hão  de  vir;  que  de  outra 
maneira,  se  todo  o  corro  se  ha  de  gastar  em  palanques,  será 
bom  mandar  fazer  outro  alvalade;  e  mais^  que  me  hão  de  fazer 
mercê,  que  se  hão  de  desembuçar,  porque  eu  não  sei  quem  n\v 
quer  k»m,  nem  quem  me  (píer  mal:  este  s()  desgosto  tee  hum 


198 

Auto,  que  he  como  officio  de  Alcaide;  ou  haveis  deixar  entrar 
a  todos,  ou  vos  hão  de  ter  por  víllão  ruim. 

(Entra  Martim  CuivcnoRRo,  faltando  com  o  Esaidâro  Ambrósio,  e  diz:) 

I  '  MARTIM 

Entre  v.  m. 

AMBRÓSIO 

Dias  ha,  Senhor,  que  ando  de  quebras  com  cortezias;  e  por 
isso  vou  diante.  Beijo  as  mãos  a  v.  m.  Â  verdade  he  esta,  pas- 
sear em  casa  juncada,  fogueira  com  caslanhas,  mesa  posta  com 
alcatifa  e  cardas;  além  disto  Auto  para  esgravalar  os  dentes: 
esta  he  a  vida,  de  que  se  ha  de  fazer  consciência. 

MORDOMO 

'  Senhor,  o  descanso  dizem  lá,  que  se  ha  de  ter  em  quanto 
homem  poder,  porqiie  os  trabalhos,  sem  os  chamarem,  de  seu 
se  vem  por  seu  pé,  que  seu  nome  he. 

MARTIM 

Ora  pois,  Senhor,  o  Auto  que  tal  dizem  que  he?  Porque  hum 
Auto  enfadonho  traz  mais  somno  comsigo  que  huma  pregação 
comprida. 

.    MORDOMO 

Senhor,  por  bom  mo  venderão,  e  eu  o  tomei  á  cala  de  sua 
boa  fama.  E  se  tal  he,  eu  acho  que,  por  outra  parte,  não  ha  tal 
vida,  como  ouvir  hum  villão,  que  arranca  a  falia  da  garganta, 
mais  sem  sabor  que  huma  pera-pão,  e  huma  donzella,  que  vem 
podre  de  amor,  faltando  como  Apostolo,  mais  piedosa  que  huma 
lamentação. 

MARTIM 

Para  estes  taes  he  grande  peça  rapaz  travesso  com  molho 
de  junco,  porque  não  andem  mais  ao  coscorrão,  mais  roucos 
que  huma  cigarra,  trazendo  de  si  enfadamento. 


199 


MOCO 

O  lá  Senhoras;  pedem  as  figuras  alGoetes  para  toucarem  um 
Escudeiro.  Ora  sus,  ha  hi  quem  dê  mais?  que  ainda  vos  veja  to- 
das a  mim  ás  rebatinhas:  ora  sus,  venhâo  de  mano  em  mano, 
ou  de  mana  eAíi  mana. 

^  MORDOMO 

Moço,  folia  bem  ensinado. 

MOÇO 

Senhor,  não  faz  ao  caso;  que  os  erros  por  amores  tee  pri- 
vilegio de  moedeircf. 

AMBRÓSIO 

^  O  rapaz,  não  me  entendes?  Pergunto-te  se  tardarão  muito 
por  entrar. 

MOÇO 

« 

Parece-me,  Senhor,  que  antes  que  amanheça  começarão. 

AMBRÓSIO 

Oh  que  salgado  moçol  Zombas  de  mi?  Vem  cá.  Donde  és 
natural? 

MOCO 

Donde  quer  que  me  acho. 

AMBRÓSIO 

Pergunto-te  onde  nasceste. 

MOÇO 

Nas  mãos  das  parteiras. 

AMBRÓSIO 

Em  que  terra?  - 

MOÇO 

Toda  a  terra  he  huina;  e  mais  eu  nasci  em  casa  assobra- 
dada, varrida  daquella  hora,  que  não  havia  palmo  de  terra  nella. 


200 


MARTIM 

Bem  varrido  de  vergonha  que  me  tu  pareces.  Dize:  Cujo 
filho  CS?  He  para  ver  com  que  disparate  respondes. 

MOCO 

A  fatiar  verdade,  parece-me  a  mi,  que  eu  sou  filho  de  hum 
meu  tio. 

MARTm 

Vem  cá.  De  leu  liol  E  isso  como? 

UOÇX) 

Como?  Isto,  Senhor,  he  adivinhação,  que  vossas  mercês  não 
entendem.  Meu  pae  era  Clérigo,  e  os  Clérigos  sempre  chamão  aos 
filhos  sobrinhos;  e  daqui  me  ficou  a  mi  ser  filho  de  meu  tio. 

MARTIM    ' 

Ora  te  digo  que  és  graciosp.  Senhor,  donde  houvestes  este? 

MORDOMO 

Aqui  me  veio  ás  mãos  sem  pios  nem  nada;  e  eu  por  gra- 
cioso o  tomei ;  e  mais  tSe  outra  cousa,  que  huma  trova  fa-Ia  tão 
bem  como  vós,  ou  como  eu,  ou  como  o  Chiado. 

AMBRÓSIO 

Não!  quanté  disso  nós  havemos-lhe  de  ver  fazer  alguma 
cousa,  em  quanto  se  vestem  as  figuras.  Aindaque,  para  que  he 
mais  Auto,  que  vermos  a  este? 

MORDOMO 

Vem  cá,  moço:  dize  aquella  trova  que  fizeste  á  moça  Brio- 
lanja,  por  amor  de  mi ! 

MOÇO 

Senhor,  si,  direi;  mas  aquella  trova  não  he  senão  para  quem 
a  entender. 


20  ^ 

MARTIM 

Comol  tão  escura  he  ella? 

•  MOCO 

Senhor,  assi  a  fiz  e  a  escrevi  na  memoria,  porque  cu  não 
sei  escrever  senão  con%  carvão ;  e  porém  diz  assi : 

Por  amor  de  vós,  Briolanja, 

Ando  eu  morto, 

Pezar  de  meu  avô  torto. 

MARTIM 

Oh  'como  he  galante  1  Que  descuido  tão  gracioso !  Mas  vem 
cá:  que  culpa  te  tce  leu  avô  nos  desfavores  que  te  tua  dama  dá? 

MOCO 

Pois,  Senhor,  se  eu  houve  de  pezar  de  alguém,  não  pezarei 
*  eu  antes  dos  meus  parentes,  que  dos  alheios? 

MORDOMO 

-Pois  oução  vossas  mercês  a  volla;  que  he  mais  cheia  de  ga- 
vetas, que  a  tromheta  de  Serenissimo  de  la  Valia. 

MOCO 

A  volta.  Senhores,  he  muito  funda;  e  parece-me,  Senhores, 
que  nem  de  mergulho  a  entenderão.  E  por  isso  mandem  assoar 
os  engenhos,  e  melão  mais  huma  sardinha  no  entendimento; 
e  pode  ser  que  com  esta  servilha  lhe  calçará  melhor:  e  todavia 
paira  assi: 

Vossos  olhos  tão  daninhos 

Me  tratarão  de  feição, 

Que  não  ha  em  meu  coração 

Em  (jue  aiom  doris  róis  de  cominhos. 


202 

Meu  bem  anda  sem  focinhos 
•   Por  vós  morlo, 
Pezar  de  meu  avô  torto. 

HARTIM 

Ora  bem:  que  tee  de  ver  os  cominhos  com  o  teu  coraipão? 

MOÇO 

Pois,  Senhores,  coração,  bofes,  baço  e  toda  a  outra  mais  ca- 
bedella,  não  se  podem  comer  senão  com  cominhos:  e  mais,  Se- 
nhores, minha  dama  era  tendeira;  e  este  he  o  verdadeiro  en- 
tendimento. 

MARTIM 

r 

E  aquetla  regra  que  diz:  Meu  bem  anda  sem  focinhos,  me 
dá  tu  a  etitender;  que  ella  não  dá  nada  de  si. 

MOÇO 

Nunca  vossas  mercês  ouvirão  dizer:  Meu  bem  e  meu  mal  - 
lutarão  hum  dia;  meu  bem  era  tal,  que  meu  mal  o  vencia?  Pois 
desta  luta  foi  tamanha  a  queda  que  meií  bem  deu  entre  humas  * 
pedras,  que  quebrou  os  focinhos;  e  por  fícarem  tão  esfarrapa- 
dos, que  lhe  não  podião  botar  pedaço;  por  conselho  dos  Physi- 
cos  lhos  cortarão  por  lhe  nelles  não  saltarem  erpes;  e  daqui  fi- 
cou :  Meu  bem  anda  sem  focinhos,  como  diz  o  texto. 

AMBRÓSIO 

Tu  fazes  ja  melhores  ai^umentos,  que  moços  de  estudo  por 
dia  de  S.  Nicoláo. 

HARTIM 

Senhor,  aquillo  tudo  he  bom  engenho:  este  moço  he  natu- 
ral para  Lógico. 

^  MOÇO 

Que,  Senhor?  Natural  para  lojal  Si,  mas  não  tão  fria  como 
vossas  mercês. 


205 


MORDOMO 

Parece-me,  Senhor,  que  entra  a  primeira  figura.  Moço,  me- 
te-te  aqui  por  baixo  desla  mesa,  e  ouçamos  este  Represenlador, 
que  vem  mais  amarrotado  .dos  encontros,  que  hum  capuz  roxo 
de  piloto  que  sahe  em  terra,  e  o  tira  da  arca  de  cedro. 

MARTIM 

Sennor,  elle  parece  que  aprende  a  cirurgião. 

AMBRÓSIO 

Mais  parece  ourinol  capado,  que  anda  de  amores  com  a 
menina  dos  olhos  verdes. 

MORDOMO 

Em  fim,  parece  figura  de  Auto  em  verdade. 

(Entra  o  RepresentadorJ 

He  lei  de  direito,  assaz  verdadeira. 
Julgar  por  si  mesmos  aquillo  que  vem; 
Peloque,  se  cuidão  que  zombo  de  alguém, 
Eu  cuido  que  zombão  da  mcáma  maneira. 

E  assi  a  qualquer  parece  que  está  mais  dobrado,  sem  ne- 
nhum conhecer  seu  próprio  engano,  por  grande  que  seja.  Ora, 
Senhores^  a  mim  me  esquece  o  dito  todo  de  ponto  em  claro;  mas 
não  sou  de  culpar,  porque  não  ha  mais  que  três  dias  que  m'o 
derâo.  Mas  em  breves  palavras  direi  a  vossas  mercês  a  summa 
dá  obra:  ella  he  toda  de  rir,  do  cabo  até  á  ponta.  Entrarão  logo 
primeiramente  quinze  donzellas  que  vão  fugidas  de  casa  de  seus 
pães,  e  vão  com  cabazes  apanhar  azeitona;  e  traz  ella^  vem  logo 
oito  mundanos,  metidos  em  hum  covão,  cantando:  Quem  os 
.  amores  tee  em  Cintra;  e  despois  de  cantarem  farão  huma  dança 
de  espadas;  cousa  muito  para  ver:  entra  mais  El-Rei  Dom  San- 
cho bailando  os  machatins,  c  entra  logo  Catharina  Real  com 


\ 


204 

luins  poucos  de  parvos  u'huma  joeira;  e  scmeá-los-lia  pela  casa, 
de  que  nascerá  muito  mantimento  ao  riso.  E  nisto  fenecerá  o 
AutO;  com  musica  de  chocalho  e  buzinas,  que  Cupido  vem  dar 
a  huma  alfeloeira  a  quem  quer  bem;  e  ir-sc-hão  vossas  mercês 
cada  hum  para  suas  pousadas,  ou  consoarão  cá  comnosco  disso 
que  ahi  houver.  Ora  pois  ficareis  in  vanum  laboraverunt,  por- 
que atégora  zombei  de  vós,  por  me  forrar  do  erro  da  j^presen- 
tação,  como  quem  diz:  digo-to,  antes  que  mo  digas. 

AMBliOSIO 

Ora  vos  digo.  Senhores,  que  se  as  figuras  são  todas  taes. 
'(jue  acertarião  em  errar  os  ditos;  aindaque  me  parece  que  este 
o  não  fez,  senão  a  ser  mais  galante.  Mas  se  assi  he,  ella  he  a 
melhor  invenção  que  eu  vi;  porque  jagora  representações,  todas 
he  darám  por  praguentos;  e  são  tão  certas,  que  he  melhor  errá- 
las,  que  acertá-las. 

MORDOMO 

Parece-me  que  entrão  as  figuras  do  siso:  vejamos  se  são  tão 
galantes  na  prática,  como  nos  vestidos. 

(Entra  El-Rei  Selruco,  com  a  Rmnha  Esthatonica.) 

REI 

Senhora,  desque  a  ventura 
Me  quiz  dar-vos  poi*  mulher. 
Me  sinto  emmeninecer; 
Porqu'em  vossa  formosura 
Perde  a  velhice  seu  ser. 
Hum  homem  velho,  cansado. 
Não  toe  força,  nem  vigor, 
Para  em  si  sentir  amor: 
Sc  não  he  qu'estou  mudado 
-  Com  ser  vosso  n  outra  cAr. 
Muilo  grande  dita  Wm 
A  mulher  qiio  he  formosa. 


I 


205 

j 

I 

BAINHA 

Senhor,  grande:  mas  porém 

Sc  a  tal  he  virtuosa, 

Quer-lhe  a  ventura  mór  Lem.   ^ 

Si,  mas  porém  nunca  vemos 
xV  natureza  esmerar 
Adonde  haja  que  laxar;    < 
Que  quando  ella  faz  extremos. 
Em  tudo  quer-se  extremar. 
Eu  fallo  como  quem  sente 
Em  vós  esta  calidade. 
Pelo  que  vejo  presente; 
E  se  me  esta  mostra  mente, 
Mente-me  a  mesma  verdade. 
Huma  só  tristeza  tenho 
Que  nao  têe  a  meninice, 
Que  no  mór  contentamento 
O  trabalho  da  velhice 
Me  embaraça  o  senlimenlo. 

RAINHA 

Senhor,  novidades  tais 
Far-mc-hão  crer  de  verdade ... 

REI  , 

Novidades  lhe  chamais! 
Folgo,  Senhora,  que  achais 
Na  velhice  novidades. 

RAINHA 

Senhor,  dias  lia  ([ue  sento 


A* 


206 

Em  o  Príncipe  Antiocho 
Cerlo  descontentamento : 
Dera  alguma  cousa  a  troco 
Por  saber  seu-  sentimento. 
Vejo-lhe  amarello  o  rosto, 
Ou  de  triste,  ou  de  doente; 
Ou  elle  anda  mal  disposto, 
Ou  lá  têe  certo  desgosto 
Que  o  não  deixa  ser  contente. 
Mande,  Senhor,  vossa  Alteza 
A  chama-lo  por  alguém, 
Saberemos  que  mal  tem, 
Se  he  doença  de  tristeza. 
De  que  nasce,  ou  de  que  vem. 

'      REI 

Certo  qu'eu  me  maravilho 
Do  que  vos  ouço  dizer. 
Que  mal  pôde  nelle  haver? 
Ide  dizer  a  meu  filho 
Que  me  venha  logo  ver. 

RAINHA 

Se  curar  não  se  procura 
Huma  cousa  destas  tais, 
Vem  despois  a  crescer  mais. 
Quando  ja  não  se  acha  cura, 
Toda  a  cura  he  por  demais. 

(Entra  o  Palncipe  Antiocho,  com  íteu  Pagem  pôr  nome  Lbocaoio.) 

príncipe 

Leocadio,  se  és  avisado, 
E  não  te  f?ilta  saber. 


ft 


• 


207 

Saber-me-has  dar  a  entender, 
Quem  ama  desesperado, 
Que  fim  espera  de  haver? 

PAGEM 

Senhor,  não. 

Mas  porém  porque  razão 

Lhe  avem  sabê-lo,  ou  de  que? 

príncipe 
Pergunto-te  a  conclusão; 
Não  me  perguntes  porque. 
Porque  he  minha  pena  tal, 
E  de  tão  estranho  ser. 
Que  me  hei  de  deixar  morrer; 
E  por  não  cuidar  no  mal 
O  não  ouso  de  dizer. 
Que  maneira  de  tormento 
Tão  estranho  e  evidente, 
Que  nem  cuidar  se  consente  1 
Porque  o  mesmo  pensamento 
Ha  medo  do  mal  que  sente. 

PAGEM 

Não  entendo  a  Vossa  Âlleza.  ' 

PBINdPE 

Âssi  importa  á  minha  dor. 

pa(;em 
E  porque  ra^ão.  Senhor? 

príncipe 
Parti  que  seja  a  tristeza 


208 

t 

Castigo  do  meu  temor. 
Porque  ordena 
O  Amor,  que  me  condena, 
Que  se  haja  de  sentir,  . 
E  sem  dizer  nem  ouvir. 
Bem-aventurada  a  pena 
Que  se  pôde  descobrir  1 
Oh  caso  grande  e  medonho! 
Oh  duro  tormento  fero! 
Verdade  he  isto,  qu'eu  quero? 
Não  he  verdade,  mas  sonho 
De  que  acordar  não  espero. 
Quero-me  chegar  a  EURei 
Meu  pae,  que  ja  m'está  vendo. 
Mas  onde  vou?  Não  m'entendo. 
Com  que  olhos  eu  olharei 
Huni  pae,  a  quem  tanto  offendo? 
Que  novo  modo  de  antolhos ! 
Porque  neste  atrevimento 
Devera  meu  sentimento 
Para  elle  não  ter  olhos, 
Nem  para  ella  j)ensamonto. 

(Chega 'aonde  e$tá  El-Rei.J 

Filho,  como  andais  assi? 
Que  tanto  desgosto  tomo 
De  vos  ver  como  vos  vil 

PHINCIPE 

Não  sei  eu  tanto  de  mi, 
Que  possa  saber  o  como. 
Dias  ha  ja,  Senhor,  que  ando 


209 

Mal  disposto, .  sem  saber 
Este  mal  uue  possa  ^r; 
Que  se  nelle  estou  cuidando. 

• 

Quasi  me  vejo  morrer. 

REI 

Pois,  filho,  será  razão 

Que  meus  Physicos  vos  vejão. 

príncipe 
Os  Physicos,  Senhor,  não; 
Que  os  males  qu'em  mi  estão, 
São  curas  que  me  sobejao. 

RAINHA 

Deite-se;  que  na  verdade 
Hum  corpo,  deitado  e  manso, 
Descansa  á  sua  vontade. 

príncipe 
Senhora,  esta  enfermidade 
Não  se  cura  com  descanso. 

RAINHA 

Todavia,  bom  será 

Que  lhe  facão  huma  cama. 

príncipe 
(Hum  coxim  abastará, 
Que  assi  não  descansará 
O  repouso  de  quem  ama.) 


TOXO  IV 


REI 


Vamos,  filho,  para  dentro, 


li 


210 

Em  quanto  a  cama  se  fuz: 
*     Repousí^  como  capaz; 
Que  a  mi  me  dá  cá  no  cenlro 
A  pena  que  assi  vos  traz. 

(Vão- se,  e  rem  huma  moça  a  fazer  a  cama  e  diz.) 

MOÇA    . 

iMimos  de  grandes  Senhores, 

E  suas  extremidades,     . 
.    Me  hão  de  matar  de  amores, 
'  Porque  de  meros  dulçores 

Adoecem. 

Então  logo  lhes  parecem 

Aos  outros,  que  são  mamados; 

E  os  que  são  mais  privados, 

Sobre  elles  estremecem. 

Certo  (e  assi  D^s  me  ajudei) 

Que  são  muito  graciosos, 

Porque  de  meros  viçosos, 

Não  podem  com  a  saúde. 

Mas  deixallos. 

Porque  elles  darão  nos  vallos. 

Donde  mais  nao  se  erguerão, 

Inda  que  lhe  dem  a  mão 

Os  seus  privados  vassallos. 

(Entva  hum  Porteiro  da  Canai  e  bate  primeiro  e  diz:) 

POnTKIRO 

Traz,  traz. 

MOÇA 

Jesu!  Quem  'slá  ahi? 

PORTEIRO 

Ja  vós,  mana,  éreis  mamada: 


^  / 


2\\ 

Para  vos  levar  furtada 
Nunca  tal  ensejo  vi. . 
E  vós  estais  descuidada! 

MOCA  • 

E  meus  descuidos  que  fazem? 

PORTEIRO 

Vossos  descuidos?  cadclla! 
Ah  minhalnlal  Sois  tão  bella, 
Qu'esses  descuidos  me  Irazem 
Dous  mil  cuidados  á  vela. 
Pois  sou  vosso  ha  tantos  annos, 
Mana,  lirae  os  antolhos, 
E  vereis  meus  tristes  dannos. 

MOCA 

Não  tenhais  esses  enganos. 

PORTEIRO 

Nem  vós  tenhais  esses  olhos; 
Que  de  vossos  olhos  vem 
Esta  minha  pena  fera. 

MOÇA 

De  meus  olhos?  Assim  era. 

PORTEIRO 

Moça,  que  taes  olhos  tem, 
Nenhuns  olhos  ver  devera. 

MOCA 

E  porque? 


/ 


• 


2Í2 

FOKTEIRO 

.  Porque  cegais 
A  quantos  olhos  olhais, 
Posloque  por  vós  padecem. 
Olhos?  que  tão  bem  parecem, 
Porque  não  os  castigais? 

MOCA 

Deos  de  siso,  pois  de  vós . 
Tirou  o  que  aos  outros  deu. 

PORTEI  HO 

Desatae-me  lá  esses  nós. 
Que  mais  siso  quero  eu. 
Que  não  ter  siso  por  vós? 

MOCA 

m 

Paliais  d'arte;  eu  vos  prometo 
Que  a  resposta  vem  á  vela. 
Isso  he  olho  de  panella, 
Quanto  ha  ja  que  sois  discrelo? 

PORTKIRO 

Quanto  ha  ja  que  vós  sois  bella? 

MOCA 

Dais-me  logo  a  entender 
Que  eu  sou  feia,  a  meu  ver. 

PORTEIRO 

E  isso  porque  o  entendeis? 

MOÇA 

Porque?  Porque  me  dizeis 


\ 


« 


2<5 

Que  só  de  meu  parecer 
Vos  procede  o  que  sabeis. 

PORTEIRO 

He  verdade. 

MOCA 

Pois  bem  senlo 
Que  o  vosso  saber  he  vento. 
Fica  a  cousa  declarada, 
Meu  parecer  nao  ser  nada. 

,   PORTEIRO 

Olhae  aquelle  argumento: 
Além  de  bella,  avisada! 
Oh  nem  tanto,  nem  tão  })Ouco ! 
Vede  vós  o  que  fallais. 

MOCA 

Cego-Ho  saber  andais. 

PORTEIRO 

Nó  siso,  mas  não  lao  louco 
Gomo  vós,  mana,  cuidais. 
Ora  dizei,  duna  má: 
Que  não  amais,  quem  vos  ama? 

MOCA 

Ouvistes  vós  cantar  ja, 
Velho  inalo,  em  minha  cama? 
Ja  mentenderois.    . 

* 

PORTEUtO 

Ha,  ha. 


\ 


«      ^ 


2<4 

Senhora,  cstaes  enganada : 
Que  com  huma  capa  o  espada. 
E  com  este  capuz  fora . . . 

MOCfí 

m 

Ora  bem:  tirae-o  ora^ 
E  fazei  huma  levada. 

PORTEIRO 

Não:  se  m'eu  hoje  alvoroço, 
Achar-me-hcis  d'oulra  feição. 

(Aqui  tira  o  capuz.) 

« 

PORTEIRO 

Tenho  ihá  disposição? 
^  Estas  obras  são  de  moço^ 
Se  as  mostras  de  velho  são. 

MOCA 

Tendes  mui  gentis  meneios. 

PORTEIRO 

Não,  Senhora;  faço  extremos. 

i 

MOCA 

Passeae  ora,  veremos 

Se  tendes  tão  bons  passeios. 

PORTEIRO 

Tudo,  Sci>hora,  faremos. 

MOCA 

Virac  ora  a  essoutra  mãoi 


\ 


2<r) 

PORTEIUO 

Esla  disposição  vêde-a; 
Que  lenho  gentil  feição. 

MOCA 

Tendes  vóá  mui  boa  rédea. 
Soffreis  ancas? 

PORTEUm 

.Isso  não. 

MOÇA 

Por  certo  que  tendes  graça 
Em  tudo  quanto  fizerdes. 
Fazei  mais  o  que  souberdes. 

POnTEIRO 

Não  sei  cousa  que  não  faça, 
Senhora,  por  me  quererdes. 

MOCA 

« 

Tendes  vós  muito  bom  ar. 


I 

PORTEIRO  V 

Mais  qu'isto  faz  quem  (juer  bem. 


MOCA 

tf       « 
I-vos  asinha,  (jue  vem 
O  Principe  a  se  deitar. . 

PORTEIRO 

Nunca  huma  pessoa  tem 
Hiim'hora  para  fallar! 


(Knira  o  Príncipe  com,  o  seu  Pagem  Leocadiq  e  diz:) 

m 

príncipe 

Seja  a  morte  apercebida, 
Porque  ja  o  Amor  ordena 
  dar  a  meu  mal  sabida ; 
Porque  o  fim  da  minha  vida 
O  seja  da  minha  pena. 
Não  larde,  para  tomar 
Vingança  de  meu  querer, 
Pois  não  se  pôde  dizer 
Que  não  lee  ja  que  esperar, 
Nem  com  que  satisfazer? 
Os  Pbysicos  vem  e  vão. 
Sem  saberem  minhas  mágoas, 
Nem  o  pulso  me  acharão; 
E  se  o  querem  ver  nas  ágoas, 
As  dos  olhos  lho  dirão. 
Se  com  sangrias  ),ambem 
Procurão  ver-me  curado; 
O  temor  de  meu  cuidado 
O  mais  do  sangue  me  tem 
Nas  veias  todo  coalhado. 
Quero-me  aqui  encostar,' 
Que  ja  o  esprito  me  cac. 
Lcocadio,  vac-me  chamar 
Os  Músicos  de  meu  Pae; 
Folgarei  de  ouvir  cantar. 

(Aqui  sr.  deila,  como  que  repousa,  e  falia  dizendo  asii:) 

Senhora,  qual  desatino 
Me  trouxe  a  tanta  tristura? 
Foi,  Senhora,  por  ventura 
A  força  do  meu  destino, 


2<7 

Como  vossa  formosura?'     * 
Bem  conheço  que  não  posso 
Ter  tão  alto  pensamento ; 
Mas  disto  só  me  contento, 
Que  sf  paga  com  ser  vosso 
O  mór  mal  de  meu  tormento. 

(Entrúo  0$  Músicos,  e  diz  Alexandre  da  Fonseca,  hum  deUes:) 

I       ALEXANDRE 

Senhor,  de  que  se  acha  mal 
O  Príncipe,  ou  que  mal  sente? 

PA6EM 

Senhor,  sei  que  está  doente,' 
Mas  sua  doença  he  tal, 
Qu'entender- se  não  consente. 
Os  Physicos  vem  e  vão, 
Huns  e  outros  a  meude, 
Sem  o  poderem  dar  são. 
Quanto  mais  cura  lhe  dão, 
Então  tee  menos  saúde. 
O  Pae  anda  em  sacrifícios 
Aos  deoses,  que  lhe  dem 
A  saúde  que  convém; 
.  Dizendo  que  por  seus  vicios 
O  mal  a  seu  filho  vem. 

• 

Eu  suspeito  qu'isto  são 
Alguns  novos  amorinhos, 
Que  terá  no  cjoração. 


ALEXANDRE 

Amores  I  com  (|ucm  serão, 
Que  lhe  não  dem  de  focinhos? 


218 


POHTEIRO 


Senhores;  que  lhe  parca» 
Da  doença  dó  Antiocho? 


ALEXAMOnii: 


Diga-lha  quem  lha  conhece, 


PAGEM 


Que  toma  morrer  a  troco 
De  callar  o  que  padece. 


PORTEIRO 


Isso  he  estar  emperrado 
Na  doença;  que  he  peor. 
Têe-no  os  Physicos  curado  ? 


ALEXANDRE 


^    fOh!  que  de  mal  dei  amor 
No  ha,  Senor,  sanador. 


PORTEIRO 

Fallaís  como  exprimentado 
Qu'eu  cuido  que  esta  fadiga, 
Que  o  faz  com  que  desespere; 
,  Y  por  mas  tormento  quiere 

I 

I  Que  se  sienta,  y  no  se  diga. 


( 


ALEXANDRE 

Pois  senhor  mèu,  isso  assello, 
Porque  a  pena,  que  sabeis, 
Qíie  eu  cuido  que  está  nelle, 
Dar-lhe-ha  penas  cruéis, 
Pues  no  hav  quien  la  consuele. 


2<9 

POnTfilHO 

Folgo,  ponjue  m'entendeis. 

«  » 

PAGEM 

Hemo-nos,  Senhores,  de  ir. 
Porque  nos  está'sperando. 

PORTEIRO 

Pois  eu  tanlbem  hei  de  ir ; 
Que  não  me  posso  espedir 
Donde  vejo  estar  cantando. 

príncipe 
Cantac,  por  amor  de  ml, 
Alguma  cantiga  triste ; 
Que  todo  meu  mal  consiste 
Na  tristeza  em  que  me  vi. 

PORTEIRO 

Mande-lhe  cantar  hum  chiste. 

ALEXANDRE 

Chiste  não,  que  he  deshonesto, 
E  não  tee  esses  extremos: 
Outro  canto  mais  modesto;  * 
Porém  não  sei  que  diremos. 

'pagem 
Gaoleão  o  dirá  presto. 

PORTEIRO 

Dá  licença  V.  Altezii 
Que  diga  minha  tenção? 


/ 

I 


,  220 


PAGEM 

Dizei :  soja  em  canto-châo. 

POBTEIRO 

Pois  crede  qu'he  subtileza, 
Qu'os  Anjos  a  comerão. 
Digão  esta: 

Enforquei  minhQ  esperança. 
E  o  Amor  foi  tão  madraço^ 
Que  lhe  cortou  o  baraço. 

ALEXANDRE 

Não  me  parece  essa  boa. 

PORTEIRO 

Haja  eu  perdão, 

Porque  não  a  entenderão. 

ALEXANDRE 

Entender! 

PORTEIRO 

Bofe  qu'he  boa; 
Não  llie  cahis  na  feição? 

ALEXANDRE  ' 

Dizei  ora  outra  melhor, 
Com  que  nos  atarraqueis, 

PORTEIRO 

Ora  esperae,  ç  ouvireis: 
Sc  a  esta  não  dais  louvor, 
Quero  que  me  degolleis.    - 


22< 

'  (CaníigaJ 

Com  VOSSOS  olhos  Gonçalves, 
Senhora,  captivo  tendes, 
*  Este  meu  coração  Mendes. 

ALEXANDRE 

Essa  parece  mui  taibo, 
Porque  mostra  bom  indicio. 

PORTEIRO 

Vós  cuidareis  qu'eu  que  raivo. 

ALEXANDRE 

Todavia  tee  máo  saibo. 
Ora  mal  lhe  corre  o  oíBcio. 

PRÍNCIPE 

Tá,  não  .vá  "mais  por  diante 
A  zombaria,  que  he  má: 
Cantae  qualquer  delias  ja; 
Qu'esse  Porteiro  he  galante. 
Ninguém  o  contentará. 

(Aqui  cantão,  e  em  acabando,  diz  o) 
PAGEM 

Parece  que  adormeceo. 

F^ORTEIRO 

Pois  será  bom  que  nos  vamos. 

ALEXANDRE 

Senhor,  quer  que  nos  vejamos? 

PORTEIRO 

Senhor  vir-me-ha  do  eco: 
Releva-me  que  o  façamos. 


222 

(Enlra  a  Rainha  com  huma  sua  Criada  jiof  nome  Frolalta,  e  diz:) 

RAINHA 

^  Frolaltó,  como  ficava 

Anliocho  cm  te  tu  vindo? 

FllOLALTA 

Ficava-se  despedindo 
Da  vida  qii'enlão  levava, 
E  assi  seus  dias  cumprindo. 

KAINHA  *    . 

Oh  grave  caso  d'amor! 
Desesperada  affeição! 
Oh  amor  sem  redempção, 
Que  aDi  te  fazes  maior 
Onde  tens  menos  razão ! 
No  mais  alto  e  fundo  pego 
Alli  tens  maior  porfia: 
Razão  de  ti  não  se  fia. 
Quem  a  ti  te  chamou  cego, 
Mui  bem  soube  o  que  dizin. 
Por  ventura  hia  chorando? 

FROLALTA 

Chorando  hia  e  chamando 
Ao  Amor,  Amor  cruel;- 
E  em,  Senhora,  se  deitando 
r  Lhe  cahio  este  papel. 

RAINHA 

Que  papel? 

PROLALTA 

Este,  Senhora. 


I 
I 


225 

RAINHA 

Amostra,  que  quero  lê-lo. 
Agora  acabo  de  crê-lo; 
Que  ao  que  mostra  por  fóra, 
Aqui  lhe  lançou  o  sêllo. 

• 

(Aqui  lê  o  papel.) 

Oh  estranha  pena  fera! 
Desditosa  vida  chara! 
Oh  quem  nunca  cá  viera,    , 
E  com  seu  Pae  não  casara, 
Ou  em  casando  morrera! 

FROLALTA 

Aindaque  eu  peca  são, 
Senhora,  tudo  bem  vejo. 
Attente,  que  na  eleição 
O  que  lhe  pede  o  desejo 
Não  consente  o  coração. 

RAINHA 

Frolalta,  pois  qu'és  discreta 
Nada  te  posso  encobrir; 
Porque,  se  queres  sentir, 
A  huma  mulher  discreta 
Tudo  se  ha  de  descobrir. 
O  dia  qu'entrei  aqui, 
Que  a  Seleuco  recebi, 
Logo  nesse  mesmo  dia 
No  Príncipe  filho  vi 
Os  olhos  com  que  me  via. 
Este  princípio  soffri-lho, 
Para  ver  se  se  mudava : 
Antes  mais  se  accrcscontava: 


224 

Eu  amavu-o  como  tillio, 
E  elle  d'oulrarte  me  amava. 
Agora  vejo-o  no  fim 
Por  se  me  não  declarar. 
E  [)ois  ja  que  a  isso  vim, 
A  morte  que  o  levar, 
Me  leve  lambem  a  mim. 
Porque  ja  que  minha  sorte 
Foi  tão  crua  e  desabrida, 
Que  me  nãò  quer  dar  sabida ; 
Sejamos  juntos  na  morte, 
Pois  o  não  somos  na  vida. 
Oh  quem  me  mandou  casar. 
Para  ver  lai  crpeldade! 
Ninguém  venda  a  liberdade, 
Pois  não  pôde  resgatar 
Onde  não  tee  a  vontade. 
Que  não  ha  mór  desvario. 
Que  o  forçado  casamento 
Por  alcançar  alto. assento;^ 
Que,  emfim,  todo  o  senhorio 
Está  no  contentamento. 
Não  sei  se  o  vá  ver  agora, 
Se  será  tempo  conforme. 
Ou  se  imos  a  deshora. 

FROLALTA 

Despois  iremos.  Senhora, 
Que  agora  dizem  que  dorme. 

(Entra  o  Physico  a  iomar-lhe  o  puUo,  e  tomando -o  diz:) 

PHYSICO 

Su  madrasta  oyó  nombrar, 
Y  eljHilso  se  lo  altero: 


225 

Eslo  no  entieiído  yo. 
Porque  para  le  alterar 
El  corazon  le  obligó.- 
Pues  que  el  corauson  se  altere. 
Es  porque  en  un  moipento 
Algun  nuevo  vencimiento 
De  aficion  terrible  le  hiere, 
Que  causa  tal  movimiento. 
-Pues  que  aficion  cabe  así 
Con  madrasta?  Digo  yo. 
Dos  razones  hay  aqui  : 
La  una  clice,  que  si, 
La  otra  dice,  que  no. 
Empero  yo  determiiío 
De  exprimentar  la  vé/dad, 
Y  hacer  una  habilidad, 
Que  declare  es  agua,  ó  vino 
Esta  su  enfermedad. 
Porque  toda  es^ia  manana 
Tengo  estudiado  su  mal, 
Sin  ver  causa  efectuai 
De  su  dolência  inhumana, 
Ni  olra  de  su  metal. 
Llamar  quiero  este  asnejon ; 
Mas  aun  debe  de  dormir, 
Segun  que  es  dormilon. 
.   Sancho?  6  Sancho? 

SANCHO 

Ah  Sonor. 

PHYSICO 

Ea.  aun  estás  dormiendo? 

TOMO  IT  *  iS 


4 


I 


226 

SANCHO 

Esloyrne,  Sefior,  vesliendo. 

PHYSIGO 

Pues  vellaco  y  sin  sabor,    - 
No  me  respondes  dormiendo? 
•  Vestios  presto,  ladron. 
Oh  qué  mozo,  y  qué  ventura! 

SANCHO 

(Mas  qué  amo  y  qué  cabron!) 
Embíeme  aeã  el  ropon, 
Que  no  hallo  mi  vestidura. 

PHTSICO 

Que  embie  el -ropon  ácá? 

Parece  que  os  desmandais. 
« 

SANCHO 

Que  vaya,  Seiior?  ha,  ha. 
Que  buenos  dias  hayais. 

(Entra  o  Moço  embrulhado  em  hwna  manta) 

PHYSICO 

Di  como  vienes  así 

Con  la  manta,  y  para  qué? 

SANCHO 

Yo,  Senor,  se  lo  diré: 

Por  venir  presto  vesti 

Lo  que  mas  presto  me  hallé: 

Porque  viendo  que  él  me  llama, 

Dormiendo  yo  sin  afan, 


227 

Salte  presto  de  la  cama, 
Que  parezco  uii  gavilan, 
Hermoso  como  una  dama. 

PHYSÍCO 

Mas  es  tu  bovedad  tanta. 
Que  vienes  desta  facion? 

SANCHO 

De  mi  vestido  se  espanta? 
De  nochc  sirve  de  manta,    _ 

Y  de  dia  de  ropon. 

PHYSICO 

Embióme  El-Rey  á  llamar 
Otra  vez. 

SANCHO 

Y  á  mi? 

PHYSICO 

Yáti! 

SANCHO 

Y  él  qué  presta  allá  sin  mi? 

PHYSICO 

Qué  puedes  tu  aprovecbar? 

SANCHO 

* 
Yo  se  lo  diré  de  aqui : 

Si  por  la  ventura  quiere 

Para  que  le  dé  consejo, 

Guando  doliente  esluviere; 

Digo,  coma,  si  pudiere, 


228 

Y  lieba  buen  vino  aiiejo; 
Porque  esle  es  el  licor 

Que  dá  fuerza,  y  es  sabroso; 
Quesegun  dicen,  Senor, 
Vinum  Icetificat  cor 
Hominis,  y  le  es  provechoso. 

PHYSICO 

Ya  sabes  la  medicina. 
Que  Avicena  nos  refiere. 

SANCHO 

Pues,  Senor!  porque  es  divina. 
Pêro  ElRey  qué  le  quiere, 
Qué  manda,  ó  qué  determina? 

PHYSICO 

El  Príncipe  está  doliente. 

SANCHO 

Oh  mesquino!  Y  qué  mal  ha? 

PHYSICO 

Y  á  ti,  necio,  que  te  vá? 

SANCHO 

O  Senor,  que  os  mi  pariente! 

PHYSICO 

Gracioso  el  bovo  eslá. 

Y  pues  díme  por  lu  fé: 
Llorarás  si  se  muriere? 


SANCHO 

No,  Senor,  no  lloraré; 


22í) 

Empero,  Seãor,  lia  ré 
La  peor  cara  que  pudierc. 

PHYSICO 

Ea,  bovo,  vé  corriendo, 
Y  ensilla  Ia  mula  ayna. 

.     SANCHO 

Véngala  eusillar  mejur. 

PHYSICO 

Oh  velhaco,  v  sin  sabor! 

/ 

SANCHO 

Yo  por  cierto  no  lo  entiendo. 
Pero  una  medicina 
La  he  de  pedir,  Dios  queriendo, 
(Porque  ando  atribulado, 
•  Y  no  sé  parte  de  mi 
Con  e&te  nuevo  ouidado) 
Para  un  sayo  esfarrapado. 
Que  me  dicen  hav  allí. 

PHYSICO 

Ora  ensilla:  y  nunca  viva, 
Pues  sufro  tus  desatinos. 

SANCHO 

Senor,  pasion  no  reciva: 

Ya  cavalga  Calainos 

A  la  sombra  de  una  oliva. 

(Aqui  sahe  bolindo  com  a  almofada,  e  acorda  o  Príncipe  e  diz :) 

PRINCIPK 

Oh  bella  vista  e  humana. 


250 

• 

Por  quem  tanto  mal  soslenho! 
Oh  Princeza  soberana! 
Coflfío?  PDS  braços  vos  tenho. 
Ou  esté^sonho  m'engana? 
Pois  como^  sonho,  também 
Me  queres  vir  magoar? 
E  para  me  atormentar 
Mostras-me  a  sombra  do  bem 
Para  assi  mais  m'enganar? 
Assi  que,  com  quanto  canso, 
Ja  não  posso  achar  ataltfo, 
Pois  que  o  somno  quieto  e  manso. 
Que  os  outros  tee  por  descanso, 
Me  vem  a  mi  por  trabalho. 
Pois  ha  hi  tantos  enganos 
Que  condemnão  minha  sorte; 
Não  o  tenho  ja  por  forte, 
Se  ã  volta  de  tantos  danos 
Viesse  também  a  morte. 

(Aqui  entra  El-Rei  com  o  Phvsico,  e  diz:) 

REI 

Ândae  e  vede  se  achais 
O  rasto  desle  segredo, 
Que  me  dizem  que  alcançais; 
Ainda  que  tenho  medo 
Que  lhe  soja  por  demais. 

PHYSICO 

Plega  á  Dios  que  aqueslo  sea 
Para  salud  v  remédio 
Desta  dolência  lan  fea. 
Yo  buscaré  todo  cl  modio, 
Que  presto  sano  se  voa. 


251 

fA^i  lhe  toma.  o  Puvsico  o  puhoj 

'  Aflojen,  Seiior,  sus  ais. 
Como  se  halla  en  sq  penar? 

príncipe 

Gomo  me  acho  perguntais? 
E  como  se  pôde  achar 
Quem  sempre  se  perde  mais? 

\ 
\  • 

PHYSICO 

(La  respuesla  abre  el  camino.) 
Imagina  dè  contino? 

PRÍNCIPE    ' 

Não  tenho  outro  mantimento, 
Netn  outro  contentamento, 
Senão  o  em  que  imagino. 

(Aqui  etUra  a  Rainha  e  diz:) 
RAINHA 

Como  se  sente,  Senhor? 
Tee  a  febre  mais  pequena? 

príncipe 
Responda-lhc  minha  pena. 

PHYSICO 

(Conocido  es  su  dolor. 
Ora  sea  en  hora  buena, 
Tomada  está  la  tristeza 
  las  manos.)  Qué  senti ó? 
(Usaré  de  subtileza.) 


252 

(Diz  contra  El-rei:) 

Gúmpleme  que  solo  yo 
Platique  con  Vuestra  Alteza. 

* 

RICl 

Cheguemo3-nos  para  cá. 

RAINHA 

Mão  deve  desesperar, 
Qu'ein  fim,  se  bem  attentar, 
Para  tudo  o  tempo  dá 
Tempo  para  se  curar.    . 

PRÍNCIPE 

^  Que  cura  poderá  ter 
Quem  tee  a  cura,  Senhora, 
.  No  impossível  haver? 

RAINHA 

Ficae-vos,  Senhor,  embora. 
Que  vos  não  sei  responder. 

(Vai-se  a  Rainiia) 
REI  . 

Neste  mal,  que  não  comprendo, 

Que  meio  dais  de  conselho? 

« 

PHYSICO 

Senor,  nada  entiendo  ddílo ; 
Y  supueslo  que  lo  entiendo, 
Yo  quisiera  no  entendello. 

HEI 

Porque  ? 


2Õ5 

#  ■ 

PHYSICO 

Porque  he  entendido 
Lo  mas  maio  de  entender, 
Para  lo  que  puede  ser, 
Porque  anda,  Senor,  perdido 
De  amores  por  mi  muger. 

REI 

Santo  DeosI  que!  tal  amor 
Lhe  dá  doença  tão  fera! 
Que  remédio  achais  melhor? 

PHYSICO 

Forçado  será  que  muera, 
Porque  no  muera  mi  honor. 

REI 

Pois  como!  a  hum  só  herdeiro 
Deste  Reino  não  dãreiá 
Vossa  mulher,  pois  podeis; 
Que  tudo  faz  o  dinheiro? 
Pois  este  não  o  engeiteis; 
Dae-lha,  porque  eu  espero  ' 
De  vos  dar  dinheiro  e  honra. 
Quanto  eu  para  elle  quero. 

PHYSICO 

No  tira  el  mucho  dinero 
La  mancha  ^e  la  doshonra. 

HEI 

Ora  bem  pouco  defeilo! 
He  peijuico  conhecida, 


è 
f 


I 
I 


25< 

Quando  deixa  de  ser  feito; 
Porque  com  elle  dais  vida 

A  quem  vos  dará  proveito. 

« 

PHYSICO 

Cuan  facilmente  aporfia 
Quien  en  tal  nunca  se  vió! 
Del  consejo  que  me  dió, 
Yuestra  Alteza  que  haria 
Si  agora  fuese  yo? 

BEI 

A  mulher  que  eu  tivesse 

Dar-lha-hia.  Oxalá 

Que  elle  a  Rainha  quizesse ! 

PHYSlCO 

Pues  dela,  si  le  parece, 
Que  por  ellsa  muerto  está. 

REI 

Que  me  dizeis? 

PHYSICO 

La  verdad. 

REI 

Sem  dúvida,  tal  sentistes? 

PHYSICO 

Sin*  duda,  sin  falsedad. 
.  Pues,  Seíior,  ahora  tomad 
Los  consejos  que  me  distes. 


255 

REI 

CerUmeote,  qu'cu  o  via 
Em  tudo  quanto  fallavâ. 
Como  o  vistes?  porque  via? 

.   PHYSICO 

Nel  pulso,  que  se  alterava 
Si  la  via,  ó  si  la  oia. 


REI 

Que  maneira  ha  de  haver? 
Qu'eu  certo  me  maravilho, 
Possa  mais  o  amor  do  filho. 
Do  que  pôde  o  da  mulher. 
Finalmente  hei-lha  de  dar, 
Que  a  ambos  conheço  o  centro. 
Quero-o  ir  alevantar, 
E  iremos  para  dentro 
Neste  caso  praticar. 

(Diz  contra  o  Príncipe  :) 

Levantae-vos,  filho,  d'hi 
O  melhor  que  vós  puderdes, 
E  vinde- vos  para  aqui ; 
Porque,  emfim,  o  que  quizerdes 
Tudo  havereis  de  mi. 

PAGEM 

Ah  Senhores,  oulá,  ou? 


PORTEIRO 

Viestes  em  conjunção 
A  melhor  que  pôde  ser 


J56 

Haveis  aqui  de  fazer 
A  tosquia  a  um  rifao.     • 

PAGEM 

Deixae-me,  Senhor,  dizer: 
Haveis  isto  de  acabar,* 
Coração/ hi  bugiar, 
No  esteis  preso  en  cadenas, 
Que  pois  o  amor  vos  deo  penas, 
Que  vos  lanceis  a  voar. 

PORTEIRO 

Por  certo  que  bem  comprou. 

PAGE.V 

Ora  sabeis  o  que  vai? 
Ântiocho  que  casou 
Com  a  mulher  de  seu  Pai, 
E  o  mesmo  Pae  o  ordenou. 

PORTEIRO 

Isso  como? 

PAGEM     . 

Não  o  sei; 
Porque  dizem  que  a  amava, 
E  que  só  por  ella  andava 
Para  morrer;  e  El-Rei 
Deo-a  a  quem  a  desejava. 

PORTEIRO 

Se  t)  casa  por  querer  bem 
Com  a  moça,  a  quem  elle  ama, 
Direi  eu  que  a  mim  me  inflamma 
O  amor  mais  que  a  ninguém. 


257 

PAGiSM 

Pois  poHi-lhe  a  nossa  dama. 

POHTEinO 

Por  São  Gil,  que  ei-Ios  cá  v<^in, 
Elle  pela  mão  com  ella. 

(Eiitra  El-Rei,  e  Antiocho  com  a  Rainha  pela  mão,  e  diz :) 

BEI 

Que  mais  ha  hi  que  esperar? 
Olhae  qu'estranheza  vai  1 
O  muito  amor  ordenar, 
Ir-se  o  filho  namorar 
D'huma  mulher  de  seu  Pai! 
Querer  bem  foi  sua  dor, 
Negar-lha  será  crueldade; 
Assi  que  ja  foi  bondade 
Usar  eu  de  tal  amor, 
E  de  tal  humanidade. 
Ella  deixou  de  reinar 
Como  fazia  primeiro 
Por  se  com  elle  casar; 
E  por  amor  verdadeiro 
Tudo  se  pôde  deixar. 
Eu  que  nella  tinha  posto 
Todo  o  bem  de  meu  cuidado, , 
Deixei  mais  que  ella  ha  deixado; 
Que  mais  se  deixa  no  gõslo, 
Que  no  poderoso  estado. 
Mas  ja  que  tudo  isto  vemos, 
Hajão  festas  de  prazer, 
As  que  melhor  possão  ser; 
Po.rqu'em  tão  grandes  ex  Iremos, 


258 

Extremos  se  Imo  de- fazer. 
Hajão  cantos  para  oiAÍr, 
Jogos,  prazeres-  sem  fundo; 
Porque,  se  quereis  sentir, 
Deste  modo  entrou  o  mundo, 
E  assi  ha  de  sabir. 


(Aqui  vem  os  Músicos  e  eantâOf  e  depois  dê  cantarem, 
sahem-se  todas  as  figuras,  e  diz) 

MARTIM  CHINCHORRO 

Ora,  Senhor,  tomemos  também  nosso  pandeiro,  e  vamos  fes- 
tejar os  noivos;  ou  vamos  consoar  com  as  figuras,  porque  me 
parece  que  esta  he  a  mór  festa  que  pôde  ser.  Mas  espere  v.  m., 
ouviremos  cantar,  e  na  volta  das  figuras  nos  acolheremos.  x\f  oço, 
accende  esse  molho  de  cavacos,  porque  faz  escuro,  não  vamos 
dar  comnosco  em  algum  atoleiro,  onde  nos  fique  o  ruço  e  as 
canastras. 

ESTAaO  DA  FONSECA 

Não,  senhor,  mas  o  meu  Pilarte  irá  com  elles  com  hum  par 
de  tições  na  mão ;  e  perdoem  o  máo  gasalhado.  Mas  daqui  em 
diante  sirvão-se  desta  pousada;  e  não  tenhão  isto  por  paIa\Tas, 
porque  essas  e  plumas,  o  venlo  as  leva. 


os  AiMPHlTRIÕES 


INTERLOCUTORES 

AmphitrUo— Algmbnâ,  suaMulher—CALLisTo — Feliseo— Sosba^Moço  de  Am- 
phitriâo — Bromu,  sua  Criada— Bblferbão,  Patrão — Aurélio,  Primo  de  Al- 
cmena  —  Um  Moço  de  Aurélio -:-  Júpiter  —  Mercúrio. 


*   ' 


ACTO  PRIMEIRO 
SCENA  I 

(Entra  Algmeka,  saudosa  de  marido,  que  he  na  guerra,  e  Brómia) 

ALCUENA 

•  * 

Ah  Senhor  Amphitrião, 
Onde  está  todo  meu  bem  I 
Pois  meus  olhos  vos  não  vem, 
Paliarei  co'o  coração, 
<Jue  dentro  n  alma  Vós  tem. 
Ausentes  duas  vontades, 
Qual  corre  m()res  perigos, 
Qual  soíTre  mais  crueldades, 
Se  vós  entre  os  inimigos, 
Se  eu  entre  as  saudades? 
Que  a  ventura,  que  vos  traz 
Tão  longe  de  vossa  terra, 


240 

Tantos  deseoricerlos  faz, 
Que  se  vos  levou  á  guerra. 
Não  me  quiz  leixar  em  paz. 
Bromiá,  quem  com  vida  ter, 
Pa  vida  ja  desespera. 
Que  lhe  poderás  dizer? 

BROMIA 

Qup  nunca  se  vio  prazer. 
Senão  quando  não  se  espera. 
E  por  tanto  não  devia 
De  ter  triste  a  phantasia; 
Porque  Vossa  Mercê  creia, 
Que  o  prazer  sempre  salteia 
Qilem  delle  mais  desconfía. 
Eu  tenho  no  coração, 
Do  Senhor  Ámphitrião 
Venha  )ioje  alguma  nova: 
*  Não  receba  alteração, 
Que  a  verdadeira  affeição 
Na  longa  ausência  se  prova. 

ALCMENA 

Dizei  logo  a  Felisoo 
Que  chegue  muito  apressado 
Âo  cães,  e  busque  mêo 
De  saber  se  algum  recado 
Do  porto  Pérsico  vêo: 
E  mais  lhe  haveis  de  dizer, 
(Isto  vos  dou  por  officio) 
D*alguma  nova  saber, 
Em  quanto  eu  vou  fazer 
Aos  Dooses  o  sacrifício. 


244 


SCENA  II 

BROMIA 

Saudades  de  minh'ama, 

Chorinlios  e  devoções, 

Sacrifícios  e  orações, 

Me  hão  de  lançar  nMiuma  cama, 

Cfertamente. 

Nós  mulheres  de  semerrle 

Somos  sedenho  mui  tosco:* 

Cum  qualquer  vento  que  vente, 

Queremos  forçadamente 

Que  os  Deuses  vi  vão  comnosco. 

Quero  Feliseo  chamar, 

E  d)2er*lhe  aonde  ha  de  ir. 

Mas  eHe  como  me  vir, 

Logo  ha  de  querer  rinchar. 

De  travesso. 

Eu  que  de  zombar  não  cesso. 

Por  ficar  com  elle  em  salvo, 

Lanço^lhe  hum  e  outro  remesso ; 

Aos  seus  furlo-lhe  o  alvo; 

E  então  elle  fica  avesso. 

Porque  o  melhor  destas  danças, 

Com  huns  vindiços  assí, 

He  trazemos  por  aqui 

Ó  cheiro  das  esperanças, 

Por  viver. 

Ha-os  homem  de  trazer 

Nos  amores  assi  mornos, 

Só  para  ter  que  fazer ; 

E  despois  ao  remetter 

TOXOIT  1G 


242 

Laiiçai-lhe  a  capa  nus  comos. 
Pelisco,  se  estais  â  mão,    . 
Ghegac  cá,  vem  como. hum  gamo: 
Bem  sei  que  não  chamo  cm  vão. 

SCENA  III 

(Feliseo  e  Brostia) 

FEMSEO 

(jhamais-me?  lambem  vos  chamo: 
Porém  eu  ouço,  e  vós  não: 
Senhora,  que  me  matais, 
Se  vós  ja  nunca  me  ouvis. 
Ou  me  ouvis,  e  vos  callais, 
Dizei :  porque  me.  chamais 
Se  me  vós  a  mim  fugis? 

DHOMIA 

Ku  vos  fujo? 

FEIJSKO 

Fugis,  digo, 
De  dar  «n  meus  males  cabo. 

BROMIA 

Sabei  que  desí?e  perigo 
Não  fujo  oxrnio  de  imigo, 
Fujo  como  do  diabo. 


FELISEO 

Dae  ao  demo  essa  tenção, 
Usae  antes  de  cortês, 
Cahi  vós  nesta  razão. 


BROMIA 

Do  pVigo  fogem  os  pés, 
Do  diabo  o  coração. 

FRLISKO 

Dizeis-me  que  nessa  briga 
Do  meu  coração  fugis. 

^  BRÔMIA 

Ainda  qn'eu  isso  diga . . . 

FELISEO 

Âh  minha  doce  inimiga! 
Bem  sinto  que  me  sentis. 
Mas  para  que  me  chamais? 

BROAI^A 

Manda-vos  minha  Senhora 
Que  chegueis  daqui  ao  cais, 
E.  algumas  novas  saibais 
D*Amphilrião  nesta  hora. 

FELISEO 

Quem  as  não  sabe  de  si, 
D'putrem  como  as  saberá? 

BROMIA 

Não  as  sabeis  vós  de  mi? 

FELISEO 

Má  trama  venha  por  ti. 
Dona  feiticeira  má! 
Porque  não  me  óihas  direiio, 
Cadella,  que  assi  me  cortas? 


V 


BROMIA 

Porque  vos  quero  dar  portas: 
Que  s'eu  olhar  (l'outro  geitó, 
Trarei  cem  mil  vidas  mortas. 

FEUSEO 

E  pois  para  que  me  andais 
Enganando'  ha  cem  mil  anos? 

BROMIA 

Dou-vos  vida  com  enganos. 

9 

FELISEO 

Nesses  enganinhos  tais 
Acho  cruéis  desenganos. 

BROMIA 

Quanl^esses  vos  quero  dar: 
Vós  cuidais  que  estais  na  sella? 
Pois  podeis-vos  descer  delia; 
Qu'eu  nunca  vos  pude  olhar. 

FELISEO 

Jogais,  comigo  á  panella? 
Tendes-me  ha  tanto  captivo, 
E  desenganais-me  agora? 
Tudo  isto  he  o  que  privo. 
Assi  que  he  isso,  Senhora, 
Dochelo  morto,  dochelo  vivo? 
Se  me  vós  desenganais 
No  cabo  de  tantos  anos, 
Dinei,  se  licença  dais, 
Dais-me  vida  com  enganos, 


245 

DesenganoS)  ja  chegais. 
Mas  se  isso  havia  de  ser, 
Dizei,  má  desconhecida, 
Desterro  de  meu  viver, 
Que  vos  custava  dizer 
Amor,  vae  buscar  tua  vida? 

BROMIA 

Zombais?  Fallais-rae  coprinhas? 

FELISEO      . 

Rir-vos-heis  §e  vem  á  msk): 
Copras  não,  mas  isto  são 
Ânsias  y  pasíones  minhas 
Dos  bofes  é  coração. 

BROMIA 

Is-vos  fazendo  d'huns  sengos . . . 

FELISEO 

i 

Perdóneme  Dios  si  peco. 

BROMIA 

Nesses  dentinhos  framengos 
Conheço  que  sois  hum  peco 
De  lodos  quatro  avoengos. 

FELISEO 

Tudo  vos  levo  em  capelo, 
Ja  queslais  tanto  em  agraço. 
Porém,  faltando  singelo, 
A  furto  desse  máo  zelo, 
Quereis-me  dar  hum  abraço? 


2J6^ 

BROMIA 

Ora  digo  que  não  [losso 
Usar  comvosco  de  fero:  ♦ 
Tomae-o. 

FELISEO 

Ja  o  não  quéru. 
Porque  esse  abraço  vosso, 
Sabei  que  he  engano  mero. 

BROMIA 

Oh!  VÓS  sois  d'huns  sensabores 
Abraço  pedis  assim? 
SWremango  d'hum  chapim... 

FELISEO 

Tudo  isso  são  favores: 
Zombae,  vingae-vos  de  mimv 

BROMIA 

Vós  de  furioso  louro 
Ás  garrocbas  não  sentis. 

FELISEO 

Vedes,  com  isso  só  mouro: 
Quando  cuido  que  sois  puro, 
Acho-vos  toda  ceitis. 

BROMIA 

Emfím,  sanha  de  villão 

Vos  fez  jierder  hum  l)oiii  dia. 

FELISEO 

Jagora  o  ou  tomaria ; 
Quereis-mo  dar? 


247 

BHOMIA 

Ora  não. 
C<)Qíi-vos  tíu  lodavia. 

FELISEO 

Pois,  Seuhora,  a  quem  vós  ama 
Sois  tão  desarrazoada, 
Quero  tomar  outra  dama; 
Que  não  digão  os  d'Alfama 
Que  não  tenho  namorada. 

RUOMIA 

Deixae-me. 

FKLISEO    - 

Vós  me  deixais.     • 

BROMIA 

Deixae-me. 

FKLISEO 

Zombais  de  mi? 

BROMIA 

Deixae-n)c.  Pois  m'engeitais, 
Eu  me  ausentarei  daqui 
Onde  me  mais  não  vejais. 

KELISKO 

Roa  oslá  a  zoml)aria! 

BROMIA 

Não  são  essas  míniias  manlias. 

FELISKO 

Porém  is-vos  todavia  ?  . 


248 

BROMJA 

Voyine  á  las  lierras  eslraíias 
Adó  ventura  me  guia.      ♦ 

SCENA  IV 


(Fblisbo  ió) 

Pbantasias  de  donzellas, 
Não  ha  quem  como  eu  as  «juebre ; 
Porque  cerlo  cuidão  ellas, 
Que  com,  palavrinhas  bellas 
Nos  vendem  gato  por  lebre. 
Esta  têe  lá  para  si 
Qu'eu  sou  por  ella  finado; 
E  crê  que  zomba  de  mi ; 
E  eu  digo-lhe  que  si, 
Sou  por  ella  esperdiçado. 
Preza-se  d'humas  seguras; 
E  eu  não  quero  mais  Frandes: 
Dou-lhe  trela  ás  travessuras, 
Porque  destas  coçaduras 
Se  fazem  as  chagas  grandes. 
Qu'estas,  que  andão  sempre  á  vela, 
Estas  vos  digo  eu  que  coço; 
Porque  de  firmes  na  sella, 
Crem  que  falsao  a  costella, 
E  ficão  pelo  pescoço. 
Que  quando  estas  damas  tais 
Me  cachão,  então  recacho. 
Mas  disto  agora  nó  mais. 
Quero-me  ir  daqui  ao  cais 
Ver  SC  algumas  novas  acho. 


249 


SCENAV 

I 

(JupiTBR  e  Mercúrio) 

JÚPITER 

• 

Oh  grande  e  alto  destino ! 
Oh  potenciai  tão  profana! 
Que  a  setta  d'bun)  menino 
Faça  que  meu  ser  divino 
Se  perca  por^  cousa  humana ! 
Que  m'aproveitão  os  xeos. 
Onde  minha  essência  mora 
Com  tanto  poder,  se  agora 
A  quem  me  adora  por  deos, 
Sirvo  eu  como  a  senhora? 
Oh  quão  estranha  iaffeição! 
Quem  em  baixa  cousa  vai  pôr 
A  vontade  e  o  coração. 
Sabe  tão  pouco  d' Amor, 
Quão  pouco  Amor  de  razão. 
Mas  que  remédio  bei  de  ter 
Contra  mulher  tão  terribil,  . 
Que  se  não  pode  vencer? 

MERCÚRIO 

Alto  Senhor,  teu  poder 
O  difficil  faz  possibil.  • 

JÚPITER 

Tu  não  ves  qu'esta  mulher 
Se  preza  de  virtuosa? 

MERCÚRIO 

Senhor,  tudo  pode  ser; 
Que  para  (juem.  muito  (juer. 


250 

Sempre  a  affeição  he  manhosa. 
Seu  marido  está  ausente 
Na  guerra,  longe  daqui; 
Tu,  qu'és  Júpiter  potente, 
Tomarás  sua  forma  em  ti : 
Que  o  farás  mui  facilmente. 
E  eu  me  transformarei 
Na  de  Sosea,  criado  seu; 
E  ao  arraial  me  irei, 
Onde  logo  saberei 
Gomo  se  a  batalha  deu.. 
E  assi  poderás  entrar, 
Em  Jugar  de  seu  marido: 
E  para  que  sejas  crido. 
Poderás  também  contar 
Quanto  eu  lá  tiver  sabido. 


jupiTeii 


Quem  arde  em  tamanho  fogo 
Tira-lhe  a  virtude  a  côr 
De  subtil  e  sabedor; 
E  quem  fora  está  do  jogo 
Enxerga  o  lanço  melhor. 
Mas  tu,  que  dos  sabedores 
Tanto  avante  sempre  estás, 
Se  deos  és  dos  mercadores, 
Sê-lo-has  dos  amadores, 
Pois  tal  remédio  me  dás. 
Ponha-se  logo  em  eSeiXo ; 
Que  uãò  soffre  dilação 
Quem  o  fogo  tee  no  peilo; 
E  tu  vae  logo  direito 
Aonde  anda  Amphitrião. 


251 


SCENA  VI 

(Peliseo  e  Callisto) 
FELISEO 

Âdó  bueno  por  aqui, 
Tãa  longe  do  acostumado? 

CALLISTO 

Mais  longe  vou  eu  de  mi, 
D*ir  perto  de  meu  cuidado. 

FELISEO 

No  andar  vos  conheci. 

CALLISTO 

E  VÓS  onde  vos  lançais. 
Com  vossa  contemplação? 

FELISEO 

Eu  chego  (jlaqui  ao  cais 
A  saber  de  Amphitrião; 
Não  sei  se  vou  por  demais. 

CALUSTO 

Porque  por  demais  dizeis? 

FELISEO 

Porque  nada  alli  ha  certo. 


CALLISTO 


Novus  lá  não  as  busqueis. 
Que  iiqui  as  tendes  iriais  perto. 

FELISEO 

Pois  dâe-mas  ja.  se  as  sabeis. 


252 

CALLISTO 

Hum  navio  be  |a  chegado 
•Á^  barra,  que  vem  de  lá ; 
Traz  de  Amphitrião  recado, 
Diz  que  o  deixa  embarcado 
Para  se  vir  para  cá. 
Têe  vencido  áquelle  Rei; 
E  diz,  segundo  lhe  ouvi, 
Qu'esta  noite  será  aqui. 

FELISEO 

Essas  novas  levarei 
  Alcmena,  que  torne  em  si, 
Porque  ella  tee  maior  guerra 
Co'os  temores  de  perdello, 
Qu'elle  co'o  Rei  dessa  terra. 

CALLISTO 

Onde  amor  lançar  o  sello, 
Nenhuma  cousa  o  desterra. 
Porqu'inda  que  o  pensamento 
Vos  fique.  Senhor,  em  calma, 
Por  morte  ou  apartamento; 
Sempre  vos  lá  ficão  n'alma 
As  pegadas  do  tormento. 

FELlSEO 

Isso  he  hum  segredo  mero, 
A  que  o  Amor  nos  obriga : 
Por  isso  em  caso  tao  fero, 
Senhor,  nunca  ninguém  diga, 
h  lho  quiz,  e  não  lho  quero. 
Vai  quiz  l)em  a  huma  mulher. 


\ 


255 

Qae  vós  conhecestes  beiii, 
E,  com  muito  lhe  querer, 
Casou-se. 

CALLISTO 

Oh!  e  com  quem? 
Que  ainda  o  não  posso  crer. 

FELISEO 

Com  hum  Mercador,  que  veio 
Agora  do  Egypto,  rico.     . 

CALLISTO 

Isso  traz  água  no  bico. 

Esse  homem  he  parvo,  ou  feio? 

FELISEO 

Pois  vedes?  disso  me  pico, 
E  em  pago  desta  traição, 
Afora  outros  mil  descontos 
Que  traz  comsigo  a  affeição, 
Sempre  os  signaes  destes  ponlos 
Trarei  no  meu  coração. 

• 
CALLISTO 

Viste-la  mais? 


FELISEO  i 

Senhor,  vi, 
Na  janellinha  da  grade; 
Passei,  e  disse-Ihc  assi : 
Casada  sem  piedade, 
Porque  nâo  a  haveis  de  mi? 

CAUXSTO 

Que  vos  disse? 


254 

-    ■  \ 

FKMSEO 

Lá  no  ceDtro 
•Lh^enxerguei  pouca  alegria; 
E  como  quem  lhe  dohia, 
Melendo-se  para  dentro 
Disse:  Ja  pasó  folia. 

CALLISTO 

Ah  má  sem  conhecimento! 
Quem  lhe  desse  mil  chofradas! 

FEUSEO 

Senhor,  como  são  casadas, 
Casão-se  co'o  esquecimento 
Das  cousas  que  são  passadas. 

CALLISTO 

Lembranças  de  vos  deixar 
Picar-vos-hão  como  tojos. 

FELISEO 

Senhor,  haveis  d'assentar 
Que  onde  amor  vos  quer  matar, 
^iempre  allá  miran  los  ojos. 
Hum  motete  lhe  mandei 
Hum  dia,  estando  com  febre. 
Si)  da  paixão  que  tomei. 

CALLISTO 

Pois  vejamos  quem  têe  lebre. 

FELISEO 

Senhor,  eu  vo-lo  direi. 


i 

(Moíe.J 

Vós  por  outrem,  e  eu  por  vós;. 
Vós  contente,  e  eu  penado:     • 
Vós  casada,  çu  cansado. 
Poios  sanios  de  minha  dona ! 

CAIJJSTO      ' 

Senhor,  vós  só  o  fizestes? 

FRLISEO 

Si,  que  ninguém  me  ajudou. 

CALLISTO 

« 

.  Se  vós  só  o  compuzesles, 
Crede,  que  extremos  dissestes. 
Nunca  Orlando  tal  fallou. 
Senhor,  fizestes-lhe  piB? 

FBIJSEO 

Senhor,  si;  e  todo  hum  anno... 
Vós  zomhais,  se  não  m'engano? 

CALUSTO 

Não,  mas  dou-vos  minha  fé 
Que  nunca  vi  tão  hora  panrio. 

'  FELISKO 

Ora  olhe  vossa  mercA. 


(VoUa.J 

Olhae  em  quão  fundos  váos 
Por  vossa  causa  me  affcigo, 
Que  outro  me  ganha  no  jogo. 


'        256 

E  eu  triste  pago  os  páos. 
Olhos  travessos  e  máos, 
Inda  eu  veja  o  meu  cuidado 
Por  esse  vosso  trocado. 

CALLISTO 

Não  mais,  qu'isso  me  degola. 

FELISEO 

Senhor,  eu  haja  perdão. 

CALLISTO 

Fizestes  esse  rifão 

Em  algum  jogo  de  bola? 

E  foi-lhe  elle  ler  á  mão? 

Veuseo 

Digo-vos  que  o  vio,  e  lho  leo 
Hum  moçozinho^  d*escoIa. 

CALLISTO 

Está  isso  assi  do  Coo. 
Sabe  ella  jogar  a  hola? 

F£LISE0 

Não. 

CALLISTO 

Pois  não  vos.entendéo. 
Ora  eu  ja  cheguei  a  ler 
Petrarca,  e  crede  de  mi 
Que  nunca  tal  cousa  vi. 
Onde  mora  o  bom  saber, 
Logo  dá  sinal  de  si. 


257         • 

Onde  cmculfl  puzesles. 
Dizei,  [)or(|ue  não  dissestes 
La  que  yb  vi  por  mi  mal. 

FELISEO 

Renunciava  o  metal; 
Qu'em  rifõeszinhos  como  estes-, 
Ha-se-de  pôr  tal  como  tal. 
Que  a  trova  trigo-tremez 
Ha  de  ser  toda  d'hum  pano ; 
Que  parece  muito  Ingrez 
N'hum  pelote  Portuguez^ 
Todo  hum  quarto  Castelhano. 
Ouvi  outra  também  minha,    - 
Que  fiz  a  certa  tenção,^ 
Clara»  leve,  bonitinha, 
De  feição,  que  estaVovinha, 
He  trovinha  de  feição. 
Como  eu  hum  dia  me  visse 
Morto,  e^  a  mão  na  candêa, 
E  ella  não  me  acodisse ; 
Fiz-'lhe  esta,  porque  sentisse 
Que  dava  os  fios  á  téa. 
E  o  propósito  hc 
Andar  eu  hum  dia  só; 
E  para  que  houvesse  dó 
De  mi  e  de  minha  fé, 
Lameatei-lhe  como  Jó. 

CALUSTO 

Andastes,  Senhor,  mui  bem. 

•  F£LISE0 

Ora,  Senhor,  attentai, 

TOIO  IV  /  17«  0 


258       ' 

E  vede  o  saibo  que  tem; 
Se  he  para  a  ver  alguém. 

CALLISTO    " 

Ora  dizei. 

FELISEO 

Er-la  vai. 

(Trova.) 

Coração  de  carne  crua, 
Vê-lo  leu  amor  aqui, 
Que  esmorecido  por  li 
Jaz  no  meio  desla  rua? 

CALLISTO 

Na  rua,  Senhor,  jazia? 
E  era  em  tempo  de  lama? 

FELISEO 

Senhor,  quem  falia  a  quem  ama, 
De  si  mesmo  se  não  fia,: 
Haveis  de  mentir  á  dama. 

CALLISTO 

Volta  disso? 

FELISEO 

Singular, 
Senão  que  he  muito  sentida; 
Far-vos-ha,  Senhor,  chorar. 

CALLISTO 

Oh  t  diga,  por  sua  vida ! 

FEUSEO  • 

Farei  o  que  me  mandar. 


259    . 

fVdta.J 

Porque  não  has  delle  mágoa, 
O  dura  mais  que  ninguém, 
Que  anda  o  triste,  que  não  tem 
Quem  Ibe  dê  bunia  vez  d'ágoa? 
Não  lhe  negues  teu  querer, 
Pois  te  não  custa  dinheiro: 
Que,  emfim,  por  derradeiro 
A  terra  te  ha  de  comer. 

GALUSTO 

Tal  trova  nunca  se  vio. 
Agorentaste-la  ja? 

FELISEO       « 

Senhor,  não;  ainda  está 
Como  a  sua  mãe  pario ; 
E  não  está  muito  má. 

* 

CALLISTO 

He  trova,  que  tee  por  seis ; 
Não  a  posso  mais  gabar. 
Mas,  pois,  tal  cousa  fazeis, 
Senbor,  não  m'ensinareis 
Donde  vem  tão  bem  trovar? 

FELISEO 

Não  he  a  cousa  Ião  pequena,* 
Como,  Senhor,  a  fizestes. 
Essa  que  agora  dissestes. 
Mas  porém  vou  dar  a  Alcmena 
Estas  novas  que  me  destes. 
Despois,  Senhor,  nos  veremos; 
Ficae  ja  roendo  esse  osso. 


J60 

CALUSTO 

O  roer.  Senhor,  lie  vosso. 

FELISEO 

Pois  eu,  por  mais  que  zoofibemos, 
Hei  de  ser  vosso  e  revosso. 

CALLISTO 

Oh  I . . .  Escusae-vos  d'exlremos, 
Qu'is80,  Senhor,  me  atarraca. 
Mas  nós  nos  encontraremos. 
E  sobre  isso  envidaremos 
Dous  reales  mais  de  saca. 


ACTO  SEGUNDO 
SCENA  I 

(Júpiter  e  Mbrcurio  traruformados,  Júpiter  na  forma  de  Amphitrião, 

Mercúrio  na  de  Sosea,  escravo.) 

JÚPITER  • 

Mercúrio,  pois  sou  mudado 
Nesta  forma  natural, 
Olha  e  nota  com  cuidado, 
Se  está  em  mi  o  pintado 
Apparente  co'o  real. 

MERCÚRIO 

Quem  tão  próprio  se  transforma, 
Tenho  por  opinião, 
Que  na  tal  transformação 
Lhe  prestou  natura  a  forma, 
Con)  que  fez  Amphitrião. 


201 


JÚPITER 


Pois  lu  no  gesto  e  na  côr 
Estás  Sosea  escravo  seu. 


MERCÚRIO 

Muito  mais  farás,  Senhor. 


•  I 


JÚPITER 

Não  O  faz  senão  o  Amor, 
Que  nisto  pôde  mais  qu'eu. 


MERCÚRIO 


Ja,  Senhor,  te  fiz  menção 
Como  deo  Ampbilrião 
A  EI-Rei  Terela  -a  morte ; 
Que,  na  guerra  igual,  a  sorte 
Pôde  mais  que  o  coração. 
E  despois  de  sef  tomada 
Toda  a  Cidade,  com  gloria 
D'Amphitrião  bem  ganhada. 
Como  em  sinal  de  victoria, 
Esta  copa  lhe  foi  dada. 
Por  ella  bebia  El-Rei, 
Em  quanto  a  vida  queria; 
E  eu,  porque  te  cumpria, 
A  seu  escravo  a  furtei, 
Que  n'huma  caixa  a  trazia. 
Esta  poderás  levar 
A  Alcmena,  por  lhe  mostrar 
Verdadeiro,  o  que  he  fingido; 
E  desfarte  serás*  crido, 
Sem  mais  outro  ardil  buscar. 


262 

JÚPITER 

Pois  tudo  lens  ordenado 
Por  lao  nova  e  subtil  arte; 
Como  me  vires  entrado, 
Irás  dar  este  recado 
A  Phebo  de  minha  parte: 
Que  faça  mais  devagar 
Seu  curso  neste  Hemispherio, 
Que  o  que  soe  acostumar; 
Qu'esta  noite  hei  de  ordenar 
Hum  caso  de  alto  mysterio. 
E  á  Esphera  mais  alta 
Mandarás  que  fixa  esteja, 
Porque  a  noite  maior  seja: 
Porque  sempre  o  tempo  falta. 
Onde  a  alegria  he  sobeja. 
E  terás  tamanho  tento, 
Que  como  isto  se  ordenar, 
Venhas  aqui  vigiar. 
Porque  meu  contentamento 
Ninguém  mo  possa  estorvar. 

MERCÚRIO 

Seja  feito  sem  debate 
Tudo  como  te  convém,  • 

JÚPITER 

Pois  não  parece  ninguém. 
Como  homem  de  casa  bate, 
E  muda  a  falia  também. 


MERCÚRIO,  batendo  á  porta, 

Ó  de  la  casa,  èn  buena  hora, 
Darmehan  de  cenar  aqui  ? 


265 

BROMIA  dentro 

Sosea  parece  que  ouvi : 
Âlviçaras,  minha  Senhora, 
Que  na  falia  o  conheci. , 

SCENA  U 
(Alcmbka,  Bromiá,  Jupitbb,  «  MBRcmuo.) 

I 

ALCMENA 

Zombais,  Bromia,  por  ventura? 

BROBUA 

Senhora,  não  zombo,  não. 

ALCMENA 

Vejo  eu  Amphitrião, 
Ou  a  vista  me  affigura, 
O  qu  está  no  coração? 

JUPriER 

Olhos,  diante  dos  quais 
Desejei  mais  este  dia. 
Que  nenhuma  oulrá  alegria, . 
Senhora,  nunca  creais 
Que  lhe  minta  a  phantasia. 

ALCMENA 

Oh  presença  mais  querida 
Que  quantas  formou  Amor ! 
Isto  he  verdade.  Senhor? 
Acal^se  aqui  a  vida, 
Por  não  ver  prazer  maior. 


% 


•    9 


264 

JÚPITER 

Pois  esta  hora  de  vos  ver  ' 
Alcançar,  Senhora,  pude; 
Para  mais  contente  ser, 
Conformem  co'este  prazer 
Novas  de  vossa  saudê. 

ÀLCMENA 

Vida  foi  pezada  e  crua 

A  saúde  qu'eu  sostinha; 

Qu'em  quanto.  Senhor,  a  tinha, 

Temer  perigo  na  sua, 

Me  fez  descuidar  da  minha. 

MERCÚRIO 

Y  pues,  mi  Seiiora  Alcmena,    . 
Pese  ai  demónio  malvado, 
No  dirá  á  un  su  criado, 
Vengais  Sosea  norabuena? 

'      ALCMENA 

Sejais,  Sosea,  bem  chegado. 

BROMIA 

Bem  mal  cri  eu,  que  pudesse 
Ver-te,  Sosea,  hoje  aqui. 

MERCÚRIO 

Pues  tambien  yo  no  creí 
Que  en  mi  vida  te  viese, 
S^un  las  muertes  que  vi. 

ALCMENA 

Muilo,  Senhor,  folgarei 
Com  novas  do  vencimento. 


265_ 

JÚPITER 

De  ludp  quanto  passei, 
Por  vos^  dar  contentamento, 
Em  summa  vos  contarei. 
Trago,  Senhora,  a  victoria 
Daquelle  Rei  tão  temido, 
Com  fama  clara  e  ílotoria. 
Porém  maior  foi  a  gloria 
De  me  ver  de  vós  vencido.. 
Sem  me  terem  resistência, 
Os  Grandes  me  obedecerão, 

Gomo  El-Rei  morto  tiverão: 

• 

Em  sinal  de  obediência 
Esta  copa  me  trouxerãa. 
El-Rei  por  ella  bebia: 
(Ella,  e  tudo  o  mais  he  nosso) 
Por  onde  claro  se  via, 
Que  tudo  me  obedecia. 
Pois  tinha  nome  de  vosso. 

MERCÚRIO 

Sí,  roas  luego  de  rondon 
La  fortuna  dió  la  vuelta. 

* 

ALGMENA 

^Como? 

'  MERCÚRIO 

Fué  gran  perdicion, 
Porque  en  aquella  revuelta, 
Me  burtaron  mi  jubon. 
Pêro  bien  lo  pagaron. 
Guando  comigo  rineron, 
Que  aunque  me  des[X)jaron, 


\  • 


266 

Si  uno  de  seda  llevaron, 
Otro  de  azotes  me  díeron. 

• 
ALCMENA 

Senhor,  não  posso  gostar 
De  gosto,  que  he  tão  immenso, 
Senão  muito  devagar: 
Faça-me  mercê  d'entrar, 
E  contar-mo-ba  por  extenso. 

SCENAIII 

(JIsBcuRio  e  Bromia.) 

MERCÚRIO 

Yo  larobien  te  contaria, 

Bromia,  si  quedas  atrás, 

Que  una  noche . . .  enojartehas? 

BROMIA 

Que? 

MERCÚRIO 

Sonaba,  que  te  tenia. . . 
No  me  atrevo  á  decir  mas. 


BROMIA 


Dize. 

MERCÚRIO 

Pardies,  no  diré. 
Sonaba ... 

BROMU 

Bem:  que  sonhavas? 

BIERCURIO 

Que  cuando  en  la  cama  estavas 
Que  yo . . .  enfin  recorde. 


I 


267 

BROMIA 

Pois  tudo  isso  receavas? 

MERCÚRIO 

Sabe  Dios  qué  yo  acá  siento: 
Sola  una  alma  vive  en  dos, 
La  cual  anda  dentro  en  vos. 

BROMEA 

E  que  quer  ella  cá  dentro? 

MERCÚRIO 

Tambien  eso  sabe  Dios. 

SCENA  IV 

MERCÚRIO 

Bem  se  poderá  enganar 
Bromia,  segundo  ora  estou, 
Como  Âlcinena  s'enganou; 
Mas  cumpre-me  ir  ordenar 
O  que  meu  Pae  me  mandou. 
E  porque  seja  guardada 
Esta  porta  e  vigiada   , 
De  toda  a  gente  n^cida. 
Me  será  cousa  forçada, 
Ser  tão  depressa  a  tomada, 
Quão  prestes  faço  a  partida. 

SCENA  V 

•  * 

(S06BA,  canUxndo.) 

Amphitrion  esforzado 


268 

Bravo  vá  por  la  batalla, 

Siete  cabezas  llevaba, 

De  las  mejores  que  ha  bailado. 

(FaUa,J 

Quien  viene  de  tierra  agena, 

Y  de  la  rauerte  escapo, 
La  razon  le  permilió 
Que  cante  como  sirena, 
Como  agora  bago  yo. 

Y  pues  canto  tan  gentil, 
Fuera  llanto  si  muriera. 
Quiero  cantar  como  quiera, 
Una  y  otra,  y  mas  de  mil, 
Que  digan  desta  manera: 

'/  fCania.) 

Dongolondron,  con  dongolondrera, 
Por  el  camino  de  Otera, 
Rosas  coge  en  la  rosera, 
Dongolondron,  con  dongolondrera. 

(Falia,) 

Guando  yo  vengo  á  pensar 
Que  uno  matame  qui$iera, 
No  bago  sino  temblar, 
Porque  creo  si  muriera. 
No  pudiera  mas  cantar. 
Porque  estando  á  uh  rincon 
.De  la  casa  adó  quede, 
Senti  muy  grande  ronron, 

Y  mirando,  que  mire? 

Vi  que  era  un  gran  raton. 


269 

Enipero  yo  nunca  sigo, 
Sino  consejos  muy  sanos; 
Que  en  .estes  casos  levianos, 
Quien  desprecia  el  enemigo, 
Mil  veces  muere  á  sus  manos. 
Pero  mi  Senor  allí  '  . 

Maló  ai  Rey  de  los  Glipazos: 
Yo  como  muerlo  le  vi,     . 
Juro  á  mi  fé,  que  le  dí 
Mas  de  dos  mil  cuchillazos. 
Y  por  me  librar  de  afan, 
Me  voy  siempre  á  cosa  hecba 
Probar  mi  mano  derecha;* 
Que  aquel  es  buen  capitan. 
Que  dei  tiempo  se  aprovecha. 
Que  quien  ba  de  peleár. 
Ha  de  buscar  liempo  y  hora. 
Pêro  quiero  caminar, 
Que  me  muero  por  contar 
Todo  aqueslo  á  mi  Senora. 

SCENA  VI 

(Mbrgurio  e  SosBA.) 
MERCÚRIO 

Mil  vezes  comigo  véjo, 
Para  que  meu  Pae  se  affoute; 
Pois  em  tão  pequeno  ensejo 
Lbe  mandei  talbar  a  noute 
Á  medida  do  desejo. 
E  pois  que  como  possante, 
A  mi  ludo  se  reporta, 
Chego  agora  neste  instante 


I 


\ 


270 

A  estorvar  qu'este  barganle 
Me  não  chegue  a  esla  porta. 

SOSEA 

No  sé  que  míedo,  ó  locura, 

Nestí  pecho  se  me  cria: 

Por  Dios  que  se  me  afigura, 

Que  ha  mucho  que  es  noche  escura, 

Sin  que  venga  el  claro  dia. 

Mas  sabed,  que  pienso  yo 

Que  el  sol  que  no  se  acordo 

De  con  el  dia  vefnir, 

Que  á  noche  cuando  cenó 

Algun  buen  vino  bebió, 

Que  le  hace  tanto  dormir. 


MERCÚRIO 


Ja  sentes  comprida  a  noute, 
Qu'eu  assi  mandei  fazer? 
Pois  mais  te  quero  dizer, 
Que  sentirás  muito  açoute, 
Se  cá  quizeres  vir  ter. 
Porém,  pois  este  bargante 
Tee  medroso  coração, 
Quero-me  fingir  ladrão, 
Ou  phantasma,  e  por  diante 
Não  irá,  se  vem  á  mão. 
E  com  tudo  se  passar,  ~ 
A  falia  quero  mudar 
Na  sua  de  tal  feição. 
Que  couces,  e  pbrfiar. 
Lhe  facão  hoje  assentar 
Que  vsou  Sosea,  e  elle  não. 


N 


27\    -     . 

(Falia  Casldhano.j 

No  veo  passar  ninguno, 

En  quien  yo  me  pueda  hartar.    . 

\  SOSEA 

Á  quien  oigo  aqui  hablar?   , 
Mande  Dios  no  sea  alguno 
Que  me  quiera  aperrear. 

MERCÚRIO 

ê 

La  carne  de  algun  humano 
Me  seria  muy  sabrosa. 

SOSEA 

Oh  qué  voz  tan  temerosa  1 
Hombres  comes,  ó  mi  hermano? 
No  es  mejor  otra  cosa? 
Carne  humana  es  muy  mezquina. 
Oh  no  comas  deso,  not 
Antes  carne  de  gallina. 
Pêro  se  mas  se  avecina, 
Qué  mas  gâllina,  que  yo? 

V 

MERCÚRIO 

Una  voz  de  hombre  ahora 
Á  la  oreja  me  voló. 

SOSEA 

« 

Pésete  quien  me  parió: 
La  voz  traigo  boladora? 
Ella  quisiera  ser  yo. 
Pues  mi  voz  pudo  volar 
Do  la  pudieses  oir; 


• 


I 


■      • 


'   272 

Por  contigo  no  renir, 
Me  debiera  de  prestar 
Las  alas  para  buir. 

• 

MERCÚRIO  / 

Qué  buscas  cabe  esa  puerta, 
Hombre?  Sé  que  eres  ladron. 

SOSEA 

Ay  que  el  alma  tengo  muertal 
Oh  Júpiter  me  convierta 
Las  tripas  en  corazon ! 

MERCÚRIO 

Quien  eres?  quieres  hablar? 

SOSEA 

Soy  quien  mi  voluntad  quiere. 

MERCÚRIO 

Piensas  que  paedas,  burlar? 

SOSEA 

Y  tú  puédesme  quitar 
Que  yo  sea  quien  quisiere? 

MERCÚRIO 

Osas  hablar  tan  osado, .  . 
Don  vellaco  bovarron? 
Dí,  quien  eres? 

SOSEA 

Un  criado 


275 

Del  Seíior  Âmphitríon, 
Por  nombré  Sosea  llamado. 

MERCÚRIO 

Pienso  que  el  seso  perdiste. 
Como  te  llamas,  mal  hombre? 

•     SOSEA 

Sosea  soy,  si  no  me  oiste. 

MERCÚRIO 

Como?  en  persopa  tan  triste 
,    '  Osas  d'ensuciar  mi  nombre? 
Estos  panos  llevarás^ 
Pues  tenermi  nombre  quieres. 
Quiéresme  dicir  quien  eres? 

SOSEA 

O  Senor,  no  me  dés  mas, 
Que  yo  seré  quien  tú  quisieres. 

MERCÚRIO 

Con  tan  nueva  falsedad 
Andais  por  esta  Ciudad, 
Delante  de  quien  os  mira? 
Pues  si  sois  Sosea,  tomad. 

SOSEA' 

Si  me  dás  por  la  verdad, 
Que  me  harás  por  la  meptira? 

'  MERCÚRIO 

Y  que  verdad  es  Ia  tuya? 
Que  te  quiero  dar  castigo. 

TOMO  iV  18 


274 


SOSEA 


Si. no  soy  Sosea  que  digo, 
Que  Júpiter  me  destruya. 

MERCÚRIO 

Mirad  el  falso  enemigo: 

Tomad  este  bofeton, 

Que  yo  soy  Sosea,  y  no  vos. 

SOSEA 

Tú  Sosea? 

MERCÚRIO 

Sosea  por  Dios, 
Escravo  de  Amphitrion. 


SOSEA 

m 

De  modo  que  tiene  dos? 

MERCÚRIO 

No  tendrá,  aunque  tú  qiiieres; 
Que  á  mi  solo  conoció. 

SOSEA 

Pues  luego  de  quien  soy  yo? 

MERCÚRIO 

Si  tú  no  sabes  quien  eres, 
Quieres  que  yo  lo  sepa?  No. 

SOSEA 

Enfin,  has  me  de  hacer  crer 
Que  yo  no  soy  quien  ser  soUa? 

MERCÚRIO 

Quien  solias  tú  de  ser? 


2/5 

SOSEA 

Tregoas  me  has  de  prometer, 
Dirtelohé  sin  porfia. 

MERCÚRIO 

Prometo. 

SOSEA 

No  me  darás? 

MERCÚRIO 

No,  si  no  fuere  razon." 

SOSEA  ' 

Pues,  hermano,  tú  sabrás 
Que  mi  amt  Amphitrion . . . 

MERCÚRIO 

Tu  amo?  Pues  Uevarás. 
Mi  amo  es,  que  tuyo  no. 

SOSEA 

Ây  que  un  brazo  me  quebro ! 

BfERCURIO 

Mas  que  luego  te  matasse. 

SOSEA 

Ojalá  Dios  ordenase 

Que  tú  ahorà  fueses  yo, 

Y  yo  que.tedesmembrasel    . 

MERCÚRIO 

Esa  tu  tema  tan  loca, 


\ 


• 


• 


• 


276 

Punos  te  la  han  de  quitar. 
t)íme,  dí,  verguenza  poça, 
Qué  hablas? 

SOSEA 

Qué  puedo  hablar, 
Si  me  has  quebrado  la  boca? 

MERCÚRIO 

Dí  quien  eres,  sin  fatiga. 

SOSEA 

4 

Soy  un  hombre,  en  quien  tu  dás. 

MERCÚRIO 

Dímè  pues,  qué  nombre  has. 

SOSEA 

Como  quines  tú  que  diga, 
Para  qué  no  me  dés  más? 

MERCÚRIO 

No  me  bas  de  hablar  coDtrahecho. 

« 

SOSEA 

V 

Toda  mi  vida  pasada 
Sosea  fuy,  y  con  despecho 
Ahora  soy. . .  qué?  No  nada; 
Que  tus  manos  me  han  deshecho: 

MERCÚRIO 

Cuyo  eres,  pues  las  sientes, 

Dejando  consejos  vanos? 

La  verdad ;  que  si  me  mientes, 


277 

Dás  coo  la  lengua  en  los  dientes, 
Y  yo  dóyte  cofi  las  manos. 

SOSEA 

No  conoces  Amphitrion? 

MERCÚRIO 

,  Hombre  sin  seso  te  llamo. 
Tan  f uera  estás  de  razon  t 
Piensas  de  mi,  bóvarron, 
Que  no  conozco  á^mi  amo? 

SOSEA 

En  so  casa  cohociste 
Uno,  que  es  Sosea  llamado, 
Hombre  despreciado  y  triste? 

MERCÚRIO 

Desa  suerte  lo  dijiste? 
Yo  soy  triste  y  despreciado? 
Pues  sabe  que  te  llegó 
Á  la  muerte  tu  fortuna. 

SOSEA 

Pues  logo  siyo  no  soy  yo, 
Aunque  nadie  me  mato; 
Soy  luego  cosa  ninguna. 
Ob  dioses,  que  descoi^cierto! 
Yo  por  ventura  soy  muerto, 
Ó  murióme  la  razon? 
Yo  no  soy  de  Amphitrion? 
'  Él  no  me  mandou  dei  puerto? 
Yo  sé  que  no  estoy  loco.     . 


r 


« 


278 

De  mi  madre  no  nací? 
No  ando?  No  hablo  aqui? 

MERCÚRIO 

Pues  sosiega  ahora  un  poço, 
Que  yo  tambien  diré  de  mi. 
Yo  no  sé  que  yo  soy  yo? 
Yo  no  te  dí  con  mis  manos? 
Mi  Senor  no  me  llevó 
Á  la  guerra,  adó  mato 
Aquel  Rey  de  los  Thebanos? 

SOSEA 

Yo  eso  muy  bien  lo  sé. 
Empero  tú  qué  bacias 
Guando  la  batalla  vias? 

MERCÚRIO 

Escacha:  yo  lo  diré, 

Y  cesaran  tus  porfias. 
Geando  mi  Senor  andaba 
Peleando,  y  derramaba 

La  sangre  de  algun  mezquino; 
Gqn  una  bota  de  vino ' 
yo  la  mia  acrescentaba. 

SOSEA 

(Dice  lo  que  yo  bacia) 
Gon  todo,  saber  queria 
Sola  una  cosa,  si  puedo: 
Tu  pecho  entonces  sentia? 

MERCÚRIO  ' 

Del  beber  grande  alegria, 

Y  dei  pelear  gran  miedo. 


279 

SOSGA 

Y  despues? 

MERCÚRIO 

Muy  reposado 
A  dormir  me  eché  de  grado, 
Desde  el  sol  hasta  la  luna. 

SOSEA 

(Todo  lo  tiene  contado. 
Eníin,  tengo  averiguado 
Que  yo  no  soy  cosa  ninguna) 
Pues  de  todo  en  un  instante 
Me  has  echado  de  mi  fuera, 
Aconséjame  si  quiera, 
Quien  seré  daqui  adelaiite, 
Pues  no  soy  quien  de  antes  era. 

MERCÚRIO 

Guando  yo  no.  ser  quisiere 
Ese,  que  tú  ser  deáeas, 
Deápues  que  ya  Sosea  no  fuere, 
^Dartché,  si  te  pliiguiere, 
Licencia  que  todo  seas. 

Y  acógete  luego,  amigo, 

Á  buscar  tu  nombre,  digo, 
Pues  Dios  vida  te  dejó; 
Que  el  Sosea  queda  comigo. 

SOSEA 

Pues  contigo  quedo  yo, 
Dios  quede,  hermano,  contigo. 
Ahora  quiero  ir  allá  • 

Adó  mi  Senora  está. 


I 

» 


280 

» 

0 

Contarle  como  es  venido 
Mi  Seiior.  Mas,  oh  perdido! 
Si  un  otro  yo  tieoe  allá, 
Todb  lo  terna  sabido. 

MEBGURIO 

Ah  hombre ... 

SOSEA 

Mi  VOZ  sono. 

MEBGURIO 

Aonde  vuelves  ahora? 

SOS^A 

Por  Dios  DO  sé  onde  tó, 
Porque  si  yo  no  soy  yo, 
Ni  Alcnaena  es  mi  Senora. 

MEBGURIO 

Adonde  vás? 

SOSEÁ  ^ 

Gon  mensaje 
Del  Senor  Amphitrion 
ÍPara  Alcmena.     . 

MERGURIO 

Ad(f,  salvaje? 
Pues  quebraste  la  omenaje, 
Ahí  verás  tu.  perdicion. 
Yo  doyte  consejos  sanos, 
Y  porfias  otra  vez? 


2»i 

S08EA 

Altos  dioses  soberanos! 
Pues  me  no  valen  las  manos, 
Aqui  me  valgan  los  pies.     fp^e.) 

MERCÚRIO 

Desta  arte  ensenan  aqui 
Á  hurtar  el  nomb)re  ageno? 

« 

SCENA  VII 

SOSEA 

Ay  Dios,  como  me  sicoffl 
Ó  Júpiter  alto  y  bueno, 
Guan  cerca  la  muerle  vi ! 
Quiérome  ir  â  mi  Seiípr 
Gontarle  cuanto  hé  pasado; 
Y  él  me  dirá  dê  grado, 
Si  yo  soy  su  servidor, 
En  que  cosa  me  hé  tornado. 


ACTO  TERCEIRO 
SCENA  I 

(Júpiter  e  Alcsisnâ.) 

JUPriER 

Toda  a  pessoa  discreta 
Terá,  Senhora,  assentado, 
Que  hum  bem  muito  desejado 
Se  ha  de  alcançar  por  dieta, 
Para  ser  sempre  estimado. 


/ 


282 

E  quem  alcançado  tem 
Tamanho  contentamento; 
Por  conserva-lo  convém    . 
Que  tome  por  mantimento 
A  fome  de  tanto  bem. 
E  por  isso  hei  de  tomar 
Este  tempo  tão  ditoso 
*  Para  a  frota  visitar; 
E  despois  quando  tornar, 
Tomarei  mais  desejoso. 
Que  pois  tão  bom  captiveiro 
Me  tee  presa  a  liberdade, 
Eki  lhe  prometto  em  verdade 
Que  tome  ainda  primeiro, 
Que  mo  peça  a  saudade. 

ALCMENA 

Aindaque  se  possa  ir 
Mais  asinha  do  que  creio, 
Como  hei  d'eu  consentir 
Que  se  haja  de  pa^^lir 
Na  mesma  noite  que  veio? 

JUPITBR 

« 

Forçada  he  minha  tornada, 
Mas  muito  cedo  virei; 
Porque  desque  foi  chegada 
A  este  porto  a  Armada, 
Ainda  a  não  visitei. 

alcmeNa 

Pois,  Senhor,  tão  pouco  estais 
Com  quem  vistes  inda  agora? 
Faça-se  como  mandais. 


•• 


285 

JÚPITER 

Vós  me  vereis  cá,  Senhora, 
Primeiro  do  que  cuidais. 

SCENA  U 

(AmpbitriIo  e  Sosba.) 

AMPHITRIÃO 

* 

Emfim  tu,  que  estás  aqui, 
Kstavas  ja  lá  primeiro? 

SOSEA 

Senor,  crea  jque  es  ansí. 

AMPHrrRiÃo 

Eu  nunca  entendi  de  ti, 
Qu'eras  também  chocarreiro. 

SOSEA 

Senor,  yo  que  estoy  presente, 
No  spy  Sosea  su  criado? 

AMPHrrRiÃo 
Creio  que  não  certamente, 
•Porque  Sosea  era  avisado, 
E  tu  és  mui  differente. 

SOSEA 

Pues,  Senor,  si  en  mi  se  vé 
Que  no  soy  quien  de  antes  era, 
Vuélvome. 

AMPHITRIÃO 

E  para  que? 


^     * 


284 

S08EA 

Ver  se  á  dicha  me  qaedé 
Durmiendo  por  la  galera. 

AMPHITRIÃO 

Pois  me  queres  fazer  crer  • 
Huma  doudice  tão  rasa, 
Mais  quero  de  ti  saber: 
Gomo  não  entraste  em  casa 

• 

D'Alcmena  minha  mulher? 

SOSEA 

Âunque  Sosea  quisiese, 
La  verdad  no  negará: 
Aquel  yo  que  allá  está, 
No  quiso  que  á  casa  fuese 
Estotro  yo,  que  iba  allá. 

Y  con  fúria  tan  crecida 

A  mi  se  vino  aquel  hombre, 
Que  yo  me.  puse  en  huida, 

Y  ansí  le  dejé  mi  nombre, 
Por  me  dejar  él  la  vida. 

AMPHÍTHIÃO 

.Quem  sería  tão  ousado. 
Que  tanto  mal  te  fizesse? 

SOSEA 

Yo  mismo  Sosea  llamado. 
Que  á  casa  era  ya  llegado, 
Antes  que  de  acâ  partise. 

AMPHrrRiÃo 

Tu  chegaste  antes  de  ti? 
Este  he  gentil  disparate. 


285 

• ^ 

SOSEA 

Pues  mas  le  digo  daqui^ 
Que  vengo  buyendo  de  mi, 
Porque  yo  mismo  no  me  mate. 

AMPUItRlÂO 

Erão  dous,  ou  era  bum  só, 
Quem  te  fez  assi  fugir? 

SOSEA 

Pé^ete  quien  me  parió: 
Digo,  que  era  un  solo  yo: 
Mil  veces  lo  hé  de  decir? 
Puede  ser  que  naceria 
De  aquel  hombre  otro  alguno,  , 
Como  aquel  de  mi  uacia; 
Porque  aunque  fuese  él  uno, 
Por  mas  de  cuatro  tenia. 
El  tenia  mi  aparência, 
Empero  yo  nunca  vi 
Tal  fiíerza,  ni  tal  potencia: 
Esta  sola  diferencia 
Le  tengo  bailado  de  mi. 

AMPmTRIÃO 

Pudeste  delle  saber 
Cujo  era? 

SOSEA 

Quien?  aquel  yo? 
Tuyo,  Senor,  dijo  ser. 

AMPIflTRIÃO 

Nunca  eu  tive  mais  que  hum  só, 
E  esse  não  quizera  ter. 


286 

SOâEA 

Pues,  Seuor,  si  el  bien  doblado 
Te  le  muestrã  agora  Diós, 
Debe  ser  de  ti  al^bado; 
Pues  de  uno  solo  criado 
Te  ha  hecho  agora  dos. 

AMPHITRIÃO 

Antes  para  que  conheças, 
Que  cousa  he  máo  servidor. 
Me  pezará  se  assi  for; 
Que  de  tão  ruins  cabeças, 
Quantas  mais,  tanto  peor. 
K  ja  que  são  tão  incertos 
Teus  ditos  para  se  crer; 
Muito  melhor  deve  ser 
Que  deixe  teus  desconcertos, 
E  vá  ver  minha  mulher. 


SCENA  ffl 

ALGMENA 

Que  fado,  que  nascimento 
De  gente  humana  nascida, 
Que  d'escasso  e  avarento, 
Nunca  consentio  na  vida 
Perfeito  contentamento! 
Amphitrião,  que  mostrou 
Hum  prazer  tão  desejado 
A  quem  tanto  o  desejou; 
Na  noite,  que  foi  chegado, 
Nessa  mesma  se  tornou ! 
De  se  tornar  tão  asinha 


287 

SiAto  tanto  entristecer 
O  sentido  e  alma  minha, 
Que  certo  que  me  adivinha 
Algum  novo  desprazer. 
Mas  parece  este  que  vem, 
Se  não  estou  enganada: 

Se  ellehe,  venha  com  bem, 

• 

Pois  que  com  sua  tornada 
Tão  transtornada  me  tem. 

SCENA  IV 

(Amphitrião,  Algmena  e  Sosba) 

AMPHITRIÃO 

Com  que  palavras,  Senhora, 
Poderei  engrandecer 
Tão  sublimado  prazer. 
Gomo  he  ver  chegada  a  hora. 
Em  que  vos  pudesse  ver? 
Certo  grão  contentamento 
Tive  de  meu  vencimento; 
Mas  maior  o  hei  de  mim, 
De  me  ver  posto  no  fim 
De  tão  longo  apartamento. 

ALCMENA 

Ja  eu  disse  o  que  sentia 
De  vinda  tão  desejada. 
Mas  diga-me  todavia:  . 
Como  não  foi  ver  a  Armada, 
Que  nie  disse  hoje  este  dia? 

AMPurraiÃo 
Delia  venho  eu  inda  agora 


.     288 

* 

Desejoso  de  vos  ver, 
Muito  mais  que  de  vencer. 
Mas  que  me  dizeis,  Senhora, 
Que  hoje  ine  ouvistes  dizer? 

ALCMENA 

Se  nâo  estava  remota, 
Certamente  que  lhe  ouvi, 
Quando  hoje  partio  daqui, 
Que  tornava  a  ver  a  frota, 
Porque  era  forçado  assi. 

AMPHITRIÃO 

Sosea. 

SOSEA 

.  Senor,  aqui  estoy  yo. 

AMPHrrRiÁo 
Tu  ouves  tal  desconcerto? 

*■  • 

SOSEA 

Grandes  orejas  ganó, 
Pues  estando  en  casa  oyó 
Quien  estava  allá  nel  puerto! 

AHPHITIUÁO 

Quando  dizeis,  que  m'ouvistes? 

ALCMENA 

Hoje,  quando  vos  partistes. 

AMPHITRIÁO 

Donde? 


289 

ALCMKNA 

Daqui,  de  me  ver. 

AMPHITBIÃO 

Nunca  vi  grande  prazer, 
Ouè  não  tenha  os  cabos  tristes. 
Quantos  tnales  d'improviso 
Que  causão  grandes  mudanças! 
Que  mulher  de  tanto  aviso, 
Agora  minhas  lembranças 
A  tee  fora  de  juizo ! 

ALGMENÂ 

Quereis-me  fazer  cuidar 
Que  poderia  sonhar 
O  que  pelos  olhos  vi? 
Nunca  vos  eu  mereci 
Querefdes-me  exprimentar. 

AMPHITRIÃO 

Postoque  he  para  pasmar 
Ver  hum  caso  tão  estranho, 
Todavia  hei  de  altentar, 
Se  poderei  concertar 
Hum  desconcerto  tamanho. 
'Quando  dizeis  que  vim  cá? 

ALCMENA 

Esta  noite  que  passou. 

AMPHITRIÃO 

Dae-me  alguém  que  aqui  se  achuo, 
Que  me  visse.  , 

TOMO  IV  10 


I 

! 


290 

ALCMENA 

Esse  que  hi  está, 
Sosea  que  coinvosco  andou. 

I  AMPHITRIÃO 

i 

Sosea,  podçs-te  lembrar, 
Que  hontem  me  vistes  aqui? 

SOSEA 

Nunca  yo  supe  de  mi 
Que  me  pudiese  acordar 
De  acpiello  que  nunca  vi. 

ALCMENA 

Ora  eu  .creo,  e  he  assi, 
Que  ambos  vindes  conjurados, 
Para  zombardes  de  mi; 
Mas  eu  darei  hoje  aqui 
•  Sinaes  que  sejão  provados. 

'       AMPHITRIÃO 

Que  sinaes  pôde  ahi  haver 
De  mentira  tão  notória, 
Que  nem  foi,  nem  pôde  ser? 

ALCMENA 

Donde  vim  eu  a  saber 
Novas  de  vossa  victoriat 

AMPHITRIÃO 

Que  novas? 

ALCMENA 

Dir-vo-las-hei, 
Assim  como  mas  contastes: 


Que  na  batalha  matastes 
Aquelle  soberbo  Rei, 
E  tudo  desbaratastes: 
Não  fazendo  resistência 
N'huma  batalha  tão  crua, 
Dando-vos  obediência, 
Vos  derao  huma  copa  sua. 
Lavrada  por  excellencia. 

AMPHITRIÃO 

Sosea  he  culpado  só 
Nestes  acontecimentos. 

SOSEA 

Senor,  son  encantamientos, 
Porque  aquel  hombre,  que  es  yo, 
Le  contaria  estos  cuentos. 

AMPHITRIÃO 

Quem  he  esse,  que  vos  deu 
Taes  novas,  saber  queria? 

ALCMENA 

Quem  mo  pergunta. 

AMPHrriuÃo 

Quem?  Eu! 
Quereis-me  fazer  sandeu? 

■ 

ALCMENA 

Mas  VÓS  me  fazeis  sandia. 

AMPHITRIÃO 

Ora  quero  perguntar: 

Que  fiz  sendo  aqui'  chegado? 


292 

ALCMCNA 

Puzemo-nos  a  cear. 

AMPHITRiAO 

E  despois  de  ter  ceado? 

ALCMENA 

Fomos-nos  ambos  deitar. 

AMPHITRIÃO 

Nunca  queira  Deos  que  possa 
Achar-se  na  minha  honra 
Nenhuma  falta  nem  mossa: 
Seja  isto  doudice  vossa. 
Antes  que  minha  deshonra. 

SOSEA 

Bien  lo  supe  yo  entender, 
Que  era  esto  encantaciones; 
Y  ahora  me  habrá  de  crer 
Que  dos  Soseas  puede  haber, 
Pues  hay  dos  Amphitriones. 

ALCMENA 

Com  me  quererdes  tentar 
Tão  torvada  me  fizestes, 
Que  me  não  pôde  lembrar 
Que  vos  mandasse  mostrar 
A  copa  que  me  hontem  destes. 

AMPmTRIÃO 

Eu?  copa?  Se  isso  ahi  ha, 
Que  estou  doudo  cuidarei. 


293 

SOSEA 

Senor,  bieu  guardada  está. 


Bromia? 


ALCMENA 
BROMIA,  áe  dentro 

Senhora, 


ALCMENA 

Dae  cá 
A  copa  que  hontem  vos  dei. 

SÒSEA 

Pues  yo  pari  otro  yo, 
Y  vós  otro  Amphitrion, 
No  es  muchá  admiracion, 
Si  Ia  copa  otra  parió, 
Ni  aun  fuera  de  razon.. 

SCENAV 

(AmphitriIo,  Alcmena,  Sosea  e  Bromu) 

BROMIA 

Eis-aqui  a  copa  vem, 
Testimunho  da  verdade. 

AMPHITRIÃO 

Oh  estranha  novidade! 


ALCBIENA 

Poder-me-ha  dizer  alguém 
Que  o  que  digo  he  falsidade? 

ampHitriâo 
Sosea,  quando  hontem  cá  vinhas, 


294 

Poder-me-has  negar,  ladrão, 
Que  lhe  deste  as  novas  minhas, 
E  mais  a  copa  que  tinhas 
Guardada  na  tua  mão? 

SOSEA 

Senor,  que  no  pude,  no, 
Ver  á  mi  Senora  Alcmena: 
Si  aquel  eso  acá  ordeno, 
No  lleve  este  yo  la  pena  - 
Del  mal  que  hizo  el  otro  yò. 

ÁMPHITRIÃO 

Ora  eu  não  pei  entender 

Tal  caso,  nem  lhe  acho  fundo: 

Com  tudo  venho  a  dizer, 

Que  ha  tantos  males  no  mundo, 

Que  tudo  se  pôde  crer. 

Se  vos  trouxer  quem  vos  diga 

Como  esta  noite  dormi 

Na  náo,  crereis  que  he  assi? 

ALCMENA 

Nenhuma  cousa  me  obriga 
A*  que  não  creia  o  que  vi. 

ÁMPHITRIÃO  • 

Se  o  Patrão  aqui  vier. 
Que  he  homem  d'autoridade, 
Crereis  o  que  vos  disser?  ' 

ALCMENA 

Sim,  que  ninguém  pôde  haver 
Que  me  negue  esta  verdade. 


295 

— . % 

AMPHITRIÃO 

Eu  estou  em  concrusão 
D'hoje  desembaraçar 
Tão  enleada  questão: 
Á  náo  me  quero  tomar 
A  trazer  cá  Belferrão. 
Sosea,  até  minha  tornada 
Fica  nesta  casarem  vela; 
Qu'eu  armarei  tal  cilada 
A  quem  ína  a  mim  têe  armada, 
Que  venha  hoje  a  cahir  nella. 

SCENAVI 

(Alcmbna  e  Bromia.) 
ALCMENA 

Oh  mulher  triste  e  suspensa 
Da  mais  alta  confusão 
Que  nunca  vio  coração! 
Em  que  mereces  a  offensa, 
Que  te  faz  Amphitrião? 
Sempre  de  mi  foi  amado, 
Tanto  quanto  em  mi  se  sente, 
'Co'o  coração  tão  liado. 
Que  se  de  mi  era  ausente, 
Nelle  o  via  figurado. 
E  pois  mulher,  que  cumprisse 
Melhor  qu'eu  fidelidade, 
Não  a  vi,  nem  quefh  me  visse 
Que  dos  limites  sahisse 
Hum  pouco  da  honestidade. 
Pois  porque  he  tão  maltratada 
Innocencia  tão  singella? 


296 

Que  a  pena  mais  apertada, 
He  a  culpa  levanlada 
Ao  coração  livre  delia. 
Mas  ja  que  minh'alina  está    a 
Sem  culpa  do  que  padeço, 
Seja  0  que  fôr;  qu'eu  conheço 
Que  a  verdade  me  porá 
No  qu'eu  pola  ter  mereço. 
Bromia? 

BROMIA 

Senhora. 

ALCMGNA 

Hi  mandar 
A  Feliseo,  que  vá 
Meu  primo  Aurélio  chamar; 
Que  lhe  quero  perguntar 
Que  conselho  me  dará. 
E  pois  que  Amphitrião 
Vai  buscar  sómenle  quem 
Lhe  ajude  a  sua  tenção. 
Quero  eu  ter  aqui  lambem 
Quem  me  defenda  a  razão. 


\CTO  QUARTO 
SCENAI 

(Júpiter,  Alcmena  e  Sosba.) 

JÚPITER 

Grão  desconcerto  tee  feito 
Amphitrião  com  Alcmena! 
Qualquer  deli  es  têe  direito: 
Eu  sou  o  que  venç^  o  preito, 


297 

E  ambos  pagão  a  pena. 
Quero-me  ir  lá  desfazer 
Tão  trabalhosa  demanda, 
Por -nos  tomarmos  a  ver; 
Porque,'  çmfim,  quem  muito  quer 
Com  qualquer  desculpa  abranda. 
E  pois  ja  que  a  affeição  ' 
Ha  de  mudar  tão  asinha,  ^ 
Quero  ir  alcançar  perdão 
Dji  culpa,  que  sendo  minha. 
Parece  de  Amphitrião. 

ALCMENA 

Parece  que  torna  cá 
Amphitrião,  que  já  se  hia: 
Não  sei  a  que  tornará, 
Senão  se  lhe  peza  ja 
Dos  enganos  que  tecia. 

juprrER 
Senhora,  não  haja  error 
Que  tantos  males  me  faça, 
Porque  se  o  contrario  for. 
Pequeno  será  o  amor, 
Que  manencória  desfaça. . 
E  pois  com  tanta  alegria 
De  tantos  perigos  vim, 
Pezar-me-ha  se  achar  no  fiifi, 
Que  huma  leve  zombaria 
Vos  possa  aggravar  de  mim.  ' 

ALCMENA 

Com  palavras  de  deshonra 
Não  se  ha  de  tratar  quem  ama; 


298 

Nem  zombaria  se  chama, 
Por  exprimentar  a  honra, 
Pôr  em  tal  perigo  a  fama. 
Bem  tive  bxx  para  mim, 
Que  era  aquillo  experiência. 

JÚPITER 

Errei  no  que  commetti  : 
Bem  me  basta  a  penitencia 
De  quanto  me  arrependi. 
E  se  fiz  algum  error, 
Com  que  vosso  amor  se  mude 
De  quem  vo-lo  tee  maior; 
Não  exprimentei  virtude, 
Maa  exprimentei  amor. 
Que  se  com  caso  tão  vário 
Folguei  de  vos  agastar, 
Foi  amor  accrescentar ; 
Porque  ás  vezes  hum  contrário 
Faz  seu  contrário  avisar. 
Daqui  vem,  que  a  leve  mágoa 
Firmeza  e  afifeições  augmenta, 
Como  bem  se  vê  na  frágoa, 
Onde  o  fogo  se  accrescenta, 
Borrífando-o  com  pouca  ágoa. 
Se  hum  mal  grande  se  alevanta 
N'hum  coração  que  maltrata, 
A  afieição  se  desbarata; 
Porque  onde  a  água  he  tanta 
O  fogo  d'amor  se  mata. 
E  pois  tive  tal  tenção, 
Perdoae,  Senhora,  a  culpa 
Deste  vosso  coração. 


299 

ALCMENA 

« 

Não  se  alcança  assi  perdão 
D^errq  que  não  têe  desculpa. 

JÚPITER 

Ora  pois  assi  tratais 
Quem  em  tanto  risco  pôs 
O  amor  que  vós  negais, 
Eu  m*ausentarei  de  yós 
Onde  mais  me  não  vejais. 
Que,  pois  desculpa  não' tem 
Coração  que  tanto  quer, 
Vou-me;  que  não  será  bem 
Que  quem  vós  não  podeis  ver, 
Que  possa  mais  ver.  ninguém. 
Se  algum'hora  meu  cuidado 
Vos  der  dor,  em  que  pequena; 
Peço-vos,  pois  fui  culpado, 
Que  vos  não  peze  da  pena 
De  quem  vos  foi  tão  pezado. 
E  despois  que  a  desventura 
Puzer  este  coração 
Debaixo  da  sepultura. 
As  letras  na  pedra  dura 
Vossa  dureza  dirão. 
Isto  vos  hei  de  dizer. 
Que  m'ensinou  minha  dor : 
Se  quizerdes  leda  ser. 
Nunca  exprimenteis  amor 
Em  quem  vo-lo  não  tiver. 
Deixae-me  ir;  não  me  tenhais. 

ALCMENA 

Amphitrião,  não  choreis! 


\ 


300 

Âmphitrião! 

JÚPITER 

Que  quereis, 
Ou  para  que  nomeais 
Homem,  que  ver  não  podeis? 

ALCMENA 

Âmphitrião,  s'eu  causei 
Com  manencória  pequena 
Cousa,  cqpíi  que  o  magoei; 
Eu  quero  cahir  na  pena 
Dessa  culpa  que  lhe  dei. 

JÚPITER 

Sempre  serei  magoado 
Se  vossa  má  condição 
Me  não  perdoa  o  passado. 

ALCMENA- 

Perdoo,  e  peço  perdão 
De  lhe  não  ter  perdoado. 

SOSEA 

No  le  perdone,  Senora, 
Hasta  que  con  devocion 
Tambien  me  pida  perdon ; 
Que  bien  se  me  acuerda  ahora 
Que  me  ha  llamado  ladrou. 

JÚPITER 

Sosea? 

SOSEA 

Seiior.  ^ 


50V 

■ 

JUPITEIi 

•Vae  buscar 
O  Piloto  Belferrão; 
Dir-lhe-has,  se  desembarcar, 
Que  me  parece  razão 
Que  venha  hoje  cá  cear. 

SOSEA 

Si,  Senor,  voy  á  la  hora. 

JÚPITER 

De  nenhuma  qualidade 
Cure  de  fazer  demora*.  • 
•  E  nós  vamos-nos,  Senhora, 
Confirmar  nossa  amizade. 

SCENA  II 

MERCÚRIO 

Grandes  revoltas  vão  lá. 
Grandes  acontecimentos  1    ' 
Cumpre-me  que  esteja  cá, 
Em  quanto  meu  pae  está 
Em  seus  desenfaHamentos. 
Porque  vi  Amphitrião 
Vir  da  náo  mui  apressado; 
E  tendo  corrido  e  andado. 
Não  pôde  achar  Belferrão, 
Que  lhe  era  bem  escusado, 
Parece-me  que  virá 
Ver  se  llie  abre  aqui  alguém; 
Mas,  porém,  se  chega  cá, 
Ja  pode  ser  que  se  vá 
Mais  confuso  do  que  vem. 


.• 


302 


SGENÀ  m 

(Mbbcorio  «  AmpíiitriIo.) 

AMPHITRIÃO 

Quiz-nos  nossa  natureza 
Com  tal  condição  fazer, 
Que  ja  temos  por  certeza 
Não  haver  grande  prazer, 
Sem  mistura  de  tristeza.    , 
Este  decreto  espantoso, 
Que  instituio  nossa  sorte, 
He  tal  e  tão  rigoroso, 
Que  ninguém  antes  da  morte 
Se  pôde  chamar  ditoso.    . 
Com  esta  justa  balança 
O  fado  grande  e  profundo 

'  Nos  refreia  a  esperança, 
Porque  ninguém  neste  mundo 
Busque  bem-aventurança. 
Eu,  que  cuidei  de  viver 
Sempre  contente  de  mi* 

^  Com  tamanho  Rei  vencer, 
Venho  achar  minha  mulher 
De  todo  fora  de  si. 
Mas  d'o.utra  parte,  que  digo? 
Que  s'he  verdade  o  que  vi, 
E  o  que  ella  diz  he  assi ; 
Virei  a  cuidar  comigo 
Qu'eu  sou  fora  de  mi. 
Quero  ver  se  a  acho  ja 
Fora  de  tão  seccos  nós. 
Ó  de  casa? 


303 

»  '       f 

MERCÚRIO 

O  -de  allá? 
Quién  sois? 

« 
AMPHITRIÃO 

Abre. 

MERCÚRIO 

Santo  Dios! 
.  Pues  no  os  conocen  acá. 

AMPHITRIÃO 

Oh  que  gentil  deisvariol 
Abri-me  ora  se  quizerdes. 

MERCÚRIO 

No  haré,  que  en  mi  confio 
Que  de  fíiera  dormiredes, 
Que  no  comigo,  amor  mio. 
(Que  cancionpara  oirl) . 

AMPHITRIÃO 

Ah  Sosea!  zombas  de  mi? 
(Ora  quero-me  fingir 
Que  ainda  o  não  conheci, 
Por  ver  se  me  quer  abrir) 
Ah  Senhor,  não  abrireis? 

MERCÚRIO 

Qué  quereis,  hombre,  por  Dios? 


AMPHITRIÃO 

Duas  palavras  de  vós. 


504 


MERCÚRIO 


Tengo  dicho  mas  de  seis, 
E  ahora  me  gedis  dos? 
Defiíera  podeis  dormi v 
Que  entrar  no  podeis  acá. 

« 
AMPHITBIÃO 

Ora  acabae,  abri  lá. 

MEJiCURIO 

Digo  que  no  quiero  abrir: 
Dije  dos  palabras  ya. 

AIIPHITRIÃO 

Ora  sus,  bargante,  abri. 

MERCÚRIO 

Si  no  te  vuelves  de  aqui, 
Á  gran  peligró  te  ofreces. 

■ 

AMPHrTRIÃO 

■ 

Velhaco,  não  me  conheces, 
Ou  estás  fora  de  ti? 


MERCÚRIO 

Bonito  venis,  amor. 

Quien  sois,  que  hablais  tan  osado? 

AMPHrrRiio 
Abre,  que  sou  teu  Senhor. 

MERCÚRIO 

Vuélvas€Lde  esolro  lado, 
Y  conocerlehé  mejor. 


505 

AMPHITBIÃO 

•  ■ 

Sosea  moço.  • 

MERCÚRIO 

Así  me  llamo, 
Huéigome  que  lo  sepais ; 
Empero  digo  que  os  vais, 
Que  ÂmphitrioD  es  mi  amo ; 
Vos  id  buscar  quien  seais. 

AMPHITRIÁO 

Pois  quero  saber  de  ti : 
Eu  quem  sou? 

MERCÚRIO 

Y  quien  sois  vós? 
Gomo  os  llaman  ? 

AMPHITRIÁO 

Abri. 

MERCÚRIO 

Á  vos  os  Uaman  Abri? 
Pues,  Abri,  andad  con  Dios. 

AMPHITRIÃO 

Quem  ha,  que  possa  sofFrer 
Em  sua  honra  tal  destroço, 
Que  para  me  endoudecer 
Me  tee  negado  a  mulher, 
E  agora  me  nega  o  moço? 

MERCÚRIO 

Mira  el  encantador 
Como  se  lastima  v  Hora. 

TOMO  IV  20 


_     • 


506 

Y  fuese  loniar  ahora 
La  forma  de  mi  Senor, 
Para  enganar  mi  Senora. 
Pues  esperad,  y  no  os  vais, 
Por  un  espacio  pequeno; 
Terna  quien  representais, 

Y  él  os  hará  que  volvais 

El  falso  gesto  á  su  dueno. 

• 

AMPHITRIÁO 

Vae,  velhaco,  e  chama  cá 
Esse  falso  feiticeiro; 
Que  se  elle  lá  dentro  eslá^ 
Esta  espada  julgará 
Qual  de  nós  he  o  verdadeiro. 

SCENA  IV 

(AmphitriAo,  Sosea  t  Belfrrrão.) 
fiELFKRRÃO  \ 

Ora  ninguém  presumira 
Que  tinhas  tão  pouco  siso; 
Pois  vás  achar  d' improviso 
Tão  bem  forjada  mentira, 
Que  me  faz  cahir  de  riso. 
Hum  moço,  que  alevantou 
Tal  graça,  nunca  nasceo: 
Porque  vos  jura  que  achpu 
Que  ou  elle  em  dous  se  perdeo, 
Ou  de  hum  dous  se  tomou. 

SOSEA 

Patron,  que  no  burlo,  no; 
En  uno  son  dos  unidos, 


n 


507 

I 

Y  en  dos  cuerpos  repartidos; 
Yo  soy  él,  y  él  es  yo, 

De  un  padre  y  madre  nacidos. 

B£I.FERRÁO 

Esse  tu  que  lã  estás, 
Tão  velhaco  he  coma  ti? 

* 

SOSKA 

Mas  aun  pienso  que  es  mas: 
Por  delante  y  por  detrás 
Todo  se  parece  á  mi. 

Y  fue  gran  merced  de  Dios 
Ayuntar  á  mi  mas  uno, 
Que  peor  fuera  de  nos, 

Si  Dios  me  hiciera  ninguno, 
Que  no  de  uno  hacer  dos. 

BELFERRÃO 

Assi  que,  se  te  perdeste 
Vieste  a  cobrar  mais  hum  : 
Mui  gentil  conta  fizeste, 
Pois  que  perdido  soubeste 
Que  eras  dous,  sendo  nenhum. 

• 
SOSEA 

Pues  teneis  por  abusion 
Verdad  tan  clara,  y  tan  rasa, 
Aunque  pooe  admiracion; 
Quiera  Dios,  que  allá  en  casa 
No  baileis  otro  Patron.    . 

AMPMITRIÃO 

O  Patrão,  que  fui  buscar. 


508 

Parece  que  vejo  vir: 
Não  sei  quem  o  foi  chamar; 
Mas  que  me  ha  de  aproveitar 
Se  me  não  querem  abrir? 
Ah  Belferrão! 

• 

BKLFERRÃO 

Ah  Senhor! 
Ja  sinto  que  fui  culpado; 
Porque  quem  he  convidado, 
Se  tão  vagaroso  for, 
Merece  oão  ser  chamado. 

AMPHITRIÁO 

A  vós  quem  vos  convidou? 

BELFERRÃO 

Sosea,  por  mandado  seu. 

AMPHITRIÁO 

Disso,  Patrão,  não  sei  eu; 
Que  Sosea  ja  me  negou, 
E  ja  se  não  dá  por  meu. 
E  se  alguém  vos  foi  dizer 
Qu'eu  vos  chamo  á  minha  mesa; 
Mal  vos  dará  de  comer 
Quem  de  todo  lhe  he  defesa 
A  casa,  e  mais  a  mulher. 

BELFERRÃO 

Quem  he  esse  tão  ousado, 
Que  vos  isso  faz.  Senhor? 

AMPHITRIÃO 

Sosea,  creio  que  enganado 


509 

Por  algum  encantador, 

Que  a  honra  me  têe  roubado. 

BELFEMXkO 

Se  elle  ?iqui  comigo  vem, 
Isso  como  pode  ser? 

AMPHITRIÃO 

Ah !  que  a  ira  que  vou  ter, 

Tão  cega  a  vista  me  tem. 

Que  mo  não  deixava  ver. 

Porque  razão,  cavalleiro, 

Não  me  abris  quando  vos  mando? 

Vós  fazeis-vos  chocarreiro? 

SOSEA 

.Yo  Senor?  y  como?  y  cuando? 

AMPHITRIÃO 

Quereis-lo  saber  primeiro? 
Esperae,  dir-se-vos-ha, 
Mas  será  por  outro  son. 

SOSEA 

Ah  Senor  Amphiirion, 
Porque  matándome  está, 
Sin  delito,  v  sin  razon? 

AMPHITRIÃO 

Agora  que  vos  eu  dou 
Me  chamais  Amphitrião, 
E  para  me  abrirdes  não. 

BELF£RttÃ0 

Este  movo  em  que  peccou? 


/ 


540 

Porque  pena  sem  razão? 
Não  mais  por  amor  de  mi. 

AMPHITRIÃO 

Não,  que  não  sou  seu  Senhor; 
Eu  sou  hum  encantador. 
Não  o  dizeis  vós  assi, 
Ladrão,  perro,  enganador? 

SOSKA 

Porque  fuy  presto  á  llamar 
Por  su  mandado  ai  Patron, 
Me  quiere  aliora  matar? 

AMPHITRIÃO 

Quem  vo-lo  mandou  huscar? 

SOSEA 

Si  no  hay  otro  Amphitrion, 
Vuestra  merced  sin  dudar. 

AMPHITRIÃO 

Eu  te  mandei? 

SOSEA 

Si  Senor, 
Si  otro  no. 

AMPUITRIÃO 

Outro  ha  aqui, 
Por  quem  tu  zombes  de  mi? 
Pois  só  desse  encantador 
Me  quero  vingar  em  ti. 


5H 

SOSEA 

Oh  Júpiter,  á  quien  bramo 
Por  su  bondad  que  me  vala! 
Pues  porque  Sosea  me  Uamo, 
Yo  mismo,  y  dèspues  mi  amo. 
Me  dieron  venida  mala! 


ACTO  QUINTO  ' 
SCENA  I 

(JuPITKR,  BkLFERRÃO,  SoSEA  €  AUPHITRIÀO.) 

JUPITEB 

Quem  he  o  tão  atrevido, 
Que  aqui  ousa  de  fazer 
Tao  revoltoso  arruido 
Com  meus  moços,  sem  temer, 
Que  fui  sempre  tão  temido? 
Quem  aqui  faz  união, 
Toma  mui  grande  despejo. 

BELFERRÃO 

Oh  grande  admiração! 
Vejo  eu  outro  Amphitrião, 
Ou  he  sonho  isto  que  vejo? 

SOSEA 

No  mirais  la  encantacion, 
Que  aquel  hizo  á  mi  Sefior? 
El  que  sale,  fielfeiTon, 
Es  el  cierto  Âmphitrion, 
Que  estotro  es  encantador. 


5<2 

jrPITER 

Sosea? 

SOSCA 

Mi  Senor,  va  vó. 

JÚPITER 

Fíilrão,  Si)  por  vós  espero. 

SOSEA 

No  os  lo  dicia  yo, 

Que  este  era  el  verdadero, 

Y  esse  que  allá  queda,  no?    • 

AMPHrrRiÁo 

Bargante,  aonde  te  vás? 
Fazes  teu  Senhor  sandeu? 
Pois  espera,  e  levarás. 

JÚPITER 

O  lá,  tomae  por  detrás. 

Não  deis  no  moço,  que  he  meu. 

AMPHITRIÁO 

Vosso? 

JÚPITER 

Meu. 

AMPHITRIÁO 

Pôde  isto  haver. 
Que  outrem  minhas  cousas  tome? 
Vós  galante  haveis  de  ser, 
O  que  me  tomais  o  nome, 
(iasa,  moços  e  mulher. 


Eu  vós  farei  conhecer 

Com  quem  tendes  esse  Iralo. 

JÚPITER 

Sosea? 

SOSEA 

Seiior? 

JÚPITER 

Vae  dizer, 
Que  apparelhem  de  comer, 
Em  quanto  este  doudo  mato. 

BELFERRÃO 

Oh  Senhor,  não  seja  assim. 
Haja  em  vós  concerto  algum ! 
E  senão,  pois  aqui  vim. 
Farei  que  só  tome  em  mim 
Os  golpes  de  cada  hum. 

JÚPITER 

Patrão,  vossa  boa  estrella 
Me  fará  deixar  com  vida 
Quem  me  não  merece  tella. 

•AMPHITRIÃO 

Não  a  tenho  eu  merecida, 
Pois  que  vos  deixo  com  ella. 

BELFERRÃO 

O  homem  que  for  sisudo, 
N'huma  tão  grande  questão 
Ha  de  tomar  por  escudo 


õ\4 

A  justiça,  e  a  razão; 
Que  estas  armas  vencem  tudo. 
E  pois  essa  natureza 
Muitos  homens  faz  iguaes, 
Dê  qualquer  de  vós  signais 
De  quem  he,  para  certeza 
Da  forma  que  ambos  mostrais. 

JÚPITER 

Sou  contente  de  mostrar 
Poios  sinaes  que  vos  dou, 
Que  sào  estes  sem  faltar. 

AMPHJTRIÃO     • 

Que  sinaes  podeis  vós  dar, 
Para  que  sejais  quem  sou? 

JÚPITER     . 

Estes,  que  logo  vereis 

Se  são  vãos,  se  de  raiz.  % 

Patrão,  vós  sede  juiz, 

Que  vós  logo  enxergareis 

Qual  mais  verdade  vos  diz. 


BELFERRÃO 

Eu  não  sinto  onde  consista 
A  cura  desta  doença, 
Que  ha  tão  pouca  diíTerença, 
Que  aquelle  em  qiie  ponho  a  vista, 
Por  esse  dou  a  sentença. 
Mas,  Senhor,  vós  que  ordenastes 
Que  o  juiz  disto  fosse  eu, 
Quando  se  a  batalha  deu, 


>H5 

Dizei,  que  m'encommendastes 
Que  ficasse  a  cargo  meu? 

JUHlTEtt 

Dei-vos  cargo,  qu'eslivesse  ' 
Toda  a  armada  a  bom  recado, 
E,  se  mal  nos  succedesse, 
Que  para  os  vivos  houvesse 
O  refugio  apparelhado. 

BELFERRÃO 

Ora  vós  quantos  dobrões 
Esse  dia  m'ent regastes? . 

AMPHITRIÁO 

Tres  mil:  e  vós  os  contastes. 

l 

•  BELFERRÁO 

Ambos  sois  Amphitriões. 
Pelos  signaes  que  mostrasles. 

JÚPITER 

Para  ser  mais  conhecida 
A  tenção  deste  sandeu, 
Vede  essoutro  sinal  meu, 
Que  he  neste  braço  a  ferida 
Que  me  El-Rei  Terela  deu. 

BELFERRÁO 

Mostrae  vós.  Senhor,  também. 

AMPHITRIÃO 

Aqui  o  podeis  olhar. 


5<6 

BELFERRÁO 

Oh  cousa  {)ara  espantar! 
Que  ambos  a  ferida  lem 
D'hum  tamanho,  em  hum  lugar! 

SCENA  II 

(Júpiter,  AmphitrUo  e  Soska.) 
SOSEA 

Dice  mi  Senora  Âlcmena 
Que  no  ^  ha  de  s&í  de  estar 
Con  un  bobo  á  razonar, 
Que  Se  le  énfria  la  cena. 

JITPITER 

Bel  ferrão,  vamos  cear. 

AMPHITBIÃO 

• 

Belferrão,  não  me  deixeis. 
Como?  também  me  negais? 

■ 
JLPITER 

Andae,  não  vos  detenhais. 
Vamos  comer,  se  quereis, 
Não  ouçais  hum  doudo  mais. 


AMPHITRIÃO 

Ah  máos!  assi  me  ordenais 
Offensa  tão  mal  olhada? 
Eu  farei,  se  m'esperais, 
Com  que  todos  conheçais 
Os  fios  da  minha  espada, 


517 

JIPITER  • 

As  porias  piesles  fechemos. 
Não  entre  este  doudo  cá. 

SOSEA 

De  fiiera  se  dormirá: 
Entre  tanto  que  cenemos, 
Puede  pasearse  allá. 

SCENA  III 

AMPHITRIÃO  $ò 

Oh  ira  para  não  crer, 
Em  que  minh'alma  se  abraza, 
Que  me  faz  endoudecer, 
E  não  me  ajuda  a  romper 
As  paredes  desta  casa! 
E  porque?  Não  tenho  eu ' 
Forças,  que  tudo  destrua? 
Pois  que  tanto  a  salvo  seu, 
Outrem  acho  que  possua 
A  melhor  parte  do  meu ; 
Eu  irei  hoje  buscar 
Quem  me  ajude  a  vir  queimar 
Toda  esta  casa  sem  pena. 
Donde  veja  arder  Alcmena, 
Com  quem  a  vejo  enganar. 

SCENA  IV 

(AcRELio  e  Moço.) 
AURÉLIO 

No  hallo  á  mis  males  culpa, 


r><8 

Para  que  merezca  pena 
La  causa  que  me  condena. 

MOCO 

Essa  está  gentil  desculpa 
Pára  hoje  dar  a  Alcmena  I 
Tf  e-no  mandado  chamar, 
E  elle  «stá  tão  descuidado! 

AURÉLIO 

Moço,  queres-me  malar? 
Que  desculpa  possq  eu  dar 
Melhor  qu'este  meu  cuidado? 

MOCO 

E  não  ha  mais  que  fazer? 
Com  isso  a  boca  me  tapa 
Para  mais  nada  dizer? 

AURKUO 

Ora  dá-me  cá  essa  capa, 
E  vamos  ver  o  que  quer: 
Não  trates  de  mais  razão, 
Pois  não  ha  quem  te  resista. 
Quo  vejo?  outra  novação! 

MOCO 

m 

Que  hp? 

AITRKLIO 

Ou  me  mente  a  vista, 
.  Ou  ou  vejo  Amphilrião. 

MOÇO 

E\\  ouvi  a  Feliseo, 


519 

Quando  cá  trouxe  o  recado, 
Gomo  elle  era  chegado, 
E  quiz-me  dizer  que  veo 
Do  siso  desconcertado. 

AURKUO 

Isso  quero  eu  ir  saber, 
Pois  que  tal  cousa  se  sôa. 

SCENA  V 

(Aurélio  e  Amphitriâo.) 
AUnEIJO 

Senhor,  póde-se  dizer 
Que  a  vinda  seja  mui  boa? 

AMPHITRIÂO 

Essa  não  pode  ella  ser. 

AURÉLIO 

Porque  não? 

AMPHITRIÂO 

Porque  he  roubada 
Minha  honra  sem  temor, 
E  minha  casa  tomada, 
E  vossa  Prima  enganada 
Por  hum  grande  encantador. 

AURÉLIO 

Isso  ho  certo? 

AMPHITRIÂO 

E  mar^ifesto: 


J)20 

E  luilo  tee  ja  por  seu 
Adúltero  e  deshonesto: 
Tee-me  tomado  o  meu  gesto, 
E  faz-lhe  cvev  que  sou  eu. 

AUREUO 

Contais  hum  caso  d'espan1o! 
E  pois  não  podeis  entrar, 
Defendei-me  por  em  tanto, 
Que  eu  hei  de  lá  chegar 
Para  ver  quem  pôde  tanto. 

SCENA  VI 

■ 

AMPHITniÃO,  só 

Se  ver  deshonra  tão  clara 
Me  não  tivera  o  sentido 
JTotalmente  endoudecido, 
Que  gravemente  chorara 
Ver  tão  grande  amor  perdido! 
E  quando  vejo  a  verdade 
Do  nosso  amor  e  amizade 
Desfeita  com  tanta  mágoa, 
Enchem-se-me  os  olhos  d  agoa, 
E  a  alma  de  saudade. 
Assi  que  quiz  minha  estrella, 
Para  nunca  ser  contente, 
Que  agora,  estando  presente 
Viva  mais  saudoso  delia. 
Que  quando  delia  era  ausente. 
Esta  porta  vejo  abrir 
Com  Ímpeto  demasiado, 
Que  poderei  presumir, 


52  < 

Que  vejo  Aurélio  sahir, 
Como  bomem  desatinado? 

SCENA  VII 

(Ampritrião,  Aurélio,  Belferrão  e  Sosea.) 

AURÉLIO 

Oh  eslranha  novidade! 
Oh  cousa  para  não  crer! 

.     BELFERRÃO 

Venho  cego  de  verdade, 
Que  não  puderao  soffrer 
'  Meus  olhos  a  claridade. 

SOSEA 

Oh  triste,  que  vengo  ciego 
Qon  rayos,  y  con  visiones! 
Y  destas  encantacion^s, 
Si  nuestra  casa  arde  en  fuego, 
Han  se  de  arder  mis  colchone^. 

AURÇLIO 

Vamos  a  Amphitrião 
Contar-lhe  cousas  tamanhas. 

AMPHITRIÁO 

Que  vai  lá?  que  cousas  vão? 


AURELH) 

Maravilhas  tão  estranhas, 
Que  me  treme  o  coração. 
Porque  aquelle  homem,  que  assi 


TOMO  IV 


i\ 


522 

Tantos  eíiganos  teceo, 
Gomo  era  cousa  do  Ceo, 
Tanto  qu'eu  appareci, 
Logo  desappareceo. 
E  em  desapparecendo 
Com  ruido  grande  e  horrendo, 
Toda  a  casa  allumioQ ; 
E  de  arte  nos  inflammou, 
Que  nos  vimos  acolhendo 
Do  raio  que  nos  cegou. 
Estes  acontecimentos 

« 

Não  são  de  humana  pessoa. 
Vós  ouvis  a  voz  que  soa? 
Escutae,  estae  attentos; 
Vejamos  o  que  pregoa. 

JUPrrER,  de  dentro 

Amphitrião,  qu'em  teus  dias 
Vês  tamanhas  estranhezas, , 
Não  fespantem  phantasias, 
Que  ás  vezes  grandes  tristezas 
Parem  grandes  al^ias. 
Júpiter  sou  manifesto 
Nas  obras  de  admiração, 
Que  por  mi  causadas  são: 
Qniz-me  vestir  em  teu  gesto, 
Por  honrar  tua  geração. 
Tua  mulher  parirá 
Hum  filho  de  mi  gerado, 
Que  Hercules  se  chamará^ 
O  mais  valente  e  esforçado, 
Que  no  mundo  se  achará. 
Com  este,  teus  successores. 


« 


525 

Se  honrarão  de  serem  teus; 
E  dar-lhe-hão  os  escriplores, 
Por  doze  trabalhos  seus, 
Doze  milhões  de  louvores. 
E  dessa  iUustre  fadiga 
Colherás  mui  rico  fruito: 
Emfím,  a  razão  me  obriga 
Que  tão  pouco  delle  diga,    ^ 
Porque  o  tempo  dirá  muito. 


* 


FILODEMO 


INTEBLOCLTORES 

FiLODEMO  — ViLARDO,  SCU  MoÇO  —  DiONYSA  —  SOLlNA,  8Ua  MoÇH-— VeNADORO  — 

Monteiro — Duriako,  Amigo  de  Filodemo — Hum  Pastor — Hum  Bobo,  Filho 
dô  Pastor -^Florim  ENA,  Pastora — Dom  Lusidardo,  Pae  deVenadoro  —  Dolo- 
roso, Amigo  deVilardo — Três  pastores. 


ARGUMENTO 

Hum  Fidalgo  Portugacz,  que  acaso -andava  nos  Reinos  de 
Dinamarca,  como  por  largos  amores  e  maiores  serviços,  tivesse 
alcançado  o  amor  de  huma  filha  d'El-Rei,  foi-lhe  necessário  fu- 
gir com  ella  em  hunja  galé,  por  quanto  havia  dias  que  a  tinha 
prenhe.  E  de  feito,  sendo  chegados  á  costa  de  Hespanha,  onde 
elle  era  senhor  de  grande  património,  armou-se-lhe  grande  tor-^ 
menta,  que  sem  nenhum  remédio,  dando  a  galé  á  costa,  se  per- 
derão lodos  miseravelmente,  senão  a  Princeza,  que  em  huma  ta- 
boa  foi  á  praia:  a  qual,  como  chegasse  o  tempo  de  seji  parto, 
junto  de  humst  fonte  pario  duas  crianças,  macho  e  fêmea;  e  não 
tardou  muito  que  hum  pastor  Castelhano,  que  naquellas  partes 
morava,  ouvindo  os  tenros  gritos  dos  meninos,  lhe  acudio  a  tem- 
po que  a  Mãe  ja  tinha  espirado.  Crescidas,  emfim,  as  crianças 
debaixo  da  humanidade  e  criação  daquelle  pastor,  o  macho  que 
Filodemo  se  chamou  â  vontade  de  quem  os  baptizara,  levado  da 
natural  inclinação,  deixando  o  campo,  se  foi  para  a  cidade,  aonde 


526 

por  ipusico  e  discreto,  valeo  maito  em  casa  de  D.  Lusidardo,  ir- 
mão de  seu  pae,  a  qaem  muitos  annos  sérvio  sem  saber  o  pa- 
rentesco que  entre  ambos  havia.  E  como  de  seu  Pae  não  tivesse 
herdado  nada  mais  que  os  altos  espiritos,  namorou-se  de  Dio- 
nysa,  filha  de  seu  Senhor  e  Tio,  que  incitada  ao  que  por  suas 
obras  e  boas  partes  merecia,  ou  porque  ellas  nada  engeitão,  )he 
não  queria  mal.  Âconteceo  mais,  queVenadoro,  filho  de  D.Lu- 
sidardo,  mancebo  fragueiro,  e  muito  dado  ao  exercício  da  caça,' 
andando  hum  dia  no  campo  após  hum  cervo,  se  perdeo  dos  seus; 
e  indo  dar  em  huma  fonte,  onde  estava  Florimena,  irmãa  de  Fi- 
lodemo  (que  assim  lhe  pozerão  o  nome)  enchendo  huma  talha 
de  água,  sç  perdeo  de  amores  por  ella,  que  se  não  soube  dar 
a  conselho,  nem  partir-se  donde  ella  estava,  até  que  seu  pae  o 
não  foi  buscar.  O  qual  informado  pelo  pastor  que  a  criara  (que 
era  homem  sábio  na  arte  magica)  de  como  a  achara  e  como  a 
criara,  não  teve  por  mal  de  ca^ar  a  Filodemo  com  Dionysa  sua 
filha,  e  prima  de  Filodemo;  e  aVenadoro  seu  filho,  com  Flori- 
mena sua  sobrinha,  irmãa  de  Filodemo  pastor;  e  também  pela 
muita  renda  que  tinha  e  de  seu  pae  ficara,  de  que  elles  erão  ver- 
dadeiros herdeiros.  Das  mais  particularidades  da  Comedia,  fará 
mengão  o  Auto,  que  he  o  seguinte. 


ACTO  PRIMEIRO 

SCENA  I 

(Filodemo  e  V^ilardq,) 
FILODEMO 

Moço  Vilardo? 

VILARDO 

Ei-lo  vae. 


527 

.  FILODEUO 

Fallae  era  má,  fallae, 
fi  sabi  cá  para  a  ^la. 
O  villão  como  se  cala! 

VIIARDO 

Pois,  Senhor,  sahi  a  meu  Pae, 
Que  quando  dorme  não  fala. 

FII^DEMO 

Trazei  cá  huma  cadeira: 
Ouvis^  villão? 

VILARDO 

Senhor,  sim. 
(Se  m'ella  não  traz  a  mim, 
Vejo-lh'eu  ruim  maneira.) 

FILODEMO 

Acabae,  villão  ruim. 
Que  moço  para  servir 
Quem  tee  as  tristezas  minhas! 
Quem  pudesse  assi  dormir! 

VILARDO. 

Senhor,  neslas  manhãzinhas 
Não  ha  hi  senão  cahir: 
Por  demais  he  trabalhar 
Qu'este  somno  se  me  ausente. 

FILODEMO 

Porque? 

VILARDO 

Porque  ha  d'assentar 


528 

Que  se  não  for  com  pão  quente, 
Não  ha  de  desafferrar. 


FILODEMO 

Ora  hi  pelo  que  vos  mando, 
Villão  feito  de  fermento. 

fSahe  ViLARDO.) 

Triste  do  que  vive  amando 
Sem  ler  oulro  mantimento, 
Qu'estar  só  phantasiando! 
Só  bua  cousa  me  desculpa 
Deste  cuidado  que  sigo,* 
Ser  de  tamanho  perigp. 
Que  cuido  que  a  mesma  culpa 
Me  fica  sendo  castigo. 

(Vem  o  moço,  e  assenta-$e  na  cadeira  Filodeuo,  e  diz  átanie:) 

Ora  quero  praticar 
Só  comigo  hum  pouco  aqui; 
Que  despois  que  me  perdi, 
Desejo  de  me  tomar 
Estreita  conta  de  mi. 
Vae  para  fora,  Vilardo. 
Torna  cá :  .vae-me  saber 
Se  se  quer  ja  lá  erguer 
O  Senhor  Dom  Lu^idardo, 
E  vem-mo  logo  dizer. 

(Vai-se  o  moço,) 

Ora  bem,  minha  ousadia, 
Sem  azas,  pouco  segura, 
Quem  vos  deo  tanta  valia. 
Que  subais  a  phantasia 
Onde  não  sobe  a  ventura? 


529_  ^ 

Por  ventura  eu  não  nasci 
No  mato,  sem  mais  Valer, 
Que  o  gado  ao  pasto  trazer? 
Pois  donde  me  veio  a  mi 
Saber-me  Ião  bem  perder? 
Eu,  nascido  entre  pastores, 
Fui  trazido  dos  currais, 
E  d'enlre  meus  naturais 
Para  casa  dos  Senhores, 
Donde  vim  a  valer  mais. 
E  agora  logo  tão  cedo 
Quiz  mostrar  a  condição 
De  rústico  e  de  villãol 
Dando-me  ventura  o  dedo, 
Lhe.  quero  tomar  a  mão! 
Mas  ohl  qu'isto  não  he  assi,^ 
Nem  são  villãos  meus  cuidados. 
Como  eu  delles  entendi; 
Mas  antes,  de  sublimados, 
Os  não  posso  crer  de  mi. 
Porque  ctímo  hei  eu  de  crer 
Que  me  faça  minha  estrella 
Tão  alta  pena  soffrer. 
Que  somente  pola  ter 
Mereço  a  gloria  delia? 
Senão  se  amor,  d'atlentado, 
Porque  me  não  queixe  delle, 
Tee  por  ventura  ordenado 
Que  mereça  o  meu  cuidado, 
Só  por  ter  cuidado  nclle. 


530 


•  SCENA  II 

(YlLARDO  e  FiLODEMO.) 
VILABDO 

O  Senhor  Dom  Lusidardo 
Dorme  com  todo  o  convento; 
E  elle  com  o  pensamento 
Quer  estar  fazendo  alardo 
De  castellinhos  de  vento! 
Pois  tão  cedo  se  vestio, 
Com  seu  damno  se  conforme, 
Pezar  de  quem  me  pario; 
Que  ainda  o  sol  não  sahio: 
Se  vem  á  mão,  também  dorme. 
Elle  quer-se  levantar 
Assi  pela  manhãzinha! 
Pois  quero-o  desenganar  : 
Nem  por  muito  madrugar 
Amanhece  mais  asinha. 

'   FILODEMO 

Traze-me  a  viola  cá. 

VILAROO 

(Voto  a  tal  que  me  vou  riqdo.) 
Senhor,  também  dormirá. 

FILODEMO 

Traze-a,  moço. 


•  YlLARDO 

Si,  virá. 
Se  não  estiver  dormindo. 


554 

,     .  FILODEMO 

Ora  hi  polo  que  vos  mando: 
Não  gracejeis. 

VILÂRDO 

Eis-me  vou: 
Pois,  pezaf  de  São  Fernando ! 
Por  ventura  áou  eu  grou? 
Sempre  hei  d'estar  vigiando?      soAe. 

FILODEMO 

Ah  Senhora,  que  podeis 
Ser  remédio  do  que  peno, 
Quão  mal  ora  cuidareis 
Que  viveis  e  que  cabeis 
N'hum  coração  tãò  pequeno  I 
Se  vos  fosse  apresentado 
Este  tormento  em  que  vivo, 
Creríeis  que  foi  ousado  • 
Este  vosso,  de  criado 
Tomar-se  vosso  captivo? 

SCENA  In 

(FiLODBMO  0  YlLABDO.)  " 

VILARDO      ' 

Ora  eu  creio,  se  he  verdade 
Ou'pstou  de  todo  acordado. 
Que  meu  amo  he  namorado; 
E  a  mi  dá-me  na  vontade 
Que  anda  hum  pouco  abalado. 
E  se  tal  he,  eu  daria 
Por  conhecer  a  donzella 


552 

A  ração  d'ho]e  este  dia; 
Porque  a  desenganaria, 
Somente  por  ter  dó  delia. 
Havia-lhe  perguntar: 
penhora'  de  que  comeis? 
Se  comeis  d'ouvir  cantar, 
De  fallar  bem,  de  trovar, 
Em  boa  hora  cangareis. 
Porém  se  vós  comeis  pão. 
Tende,  senhora,  resguardo; 
Qu'eis-aqui  está  Vilardo, 
Qu'he  como  hum  camaleão, 
Por  isso,  bus,  fazei  fardo. 
E  se  vós  sois  das  gamenhas, 
E  houverdes  d'attenlar 
Por  mais  que  por  manducar, 
Mi  cama  son  duras  peuas, 
Mi  dormir  siempre  es  velar. 
A  viola,  Senhor,  vem 
Sem  primas,  nem  derradeiras: 
Mas  sabe  o  que  lhe  convém? 
Se  quer,  Senhor,  tanger  bem. 
Ha  de  haver  mister  terceiras. 
E  se  estas  cantigas  vossas 
Não  forem  para  escutar, 
E  quizerdes  espirar; 
Ha  mister  cordas  mais  grossas, 
Porque  não  i)ossão  quebrar. ' 

FILODEMO 

Vae  para  fora. 

VII.AKI>0 

Ja  venho. 


333 

FILODENO 

Qu'eu  só  desta  phantasia 
Me  soslenho  e  me  mantenho. 

YILARDO 

Quamanha  vista  que  tenho, 

Que  vejo  a  estrella  do  dia!         sahe. 

scENA  rv 

FILODEMO,  cantando, 

Adó  sube  el  pensamiento, 
Seria  una  gloria  inmensa 
Si  allá  fuese  quien  Io  piensa. 

(FaUaJ 

Qual  espirito  divino 
Me  farâ  a  mi  sabedor 
Deste  meà  mal,  se  he  amor, 
Se  por  dita  desatino? 
Se  he  amor,  diga-me  qual 
Pôde  ser  seu  fundamento,     ' 
Ou  qual  he  seu  natural, 
Ou  porque  empregou  tão  mal 
Hum  tão  alto  pensamento. 
Se  he  doudice,  como  em  tudo 
A  vida  me  abràza  e  queima. 
Ou  quem  vio  n'hum  peito  rudo 
Desatino  tão  sisudo»    * 
Que  toma  tão  doce  teima? 
Ah  Senhora  Dionysa, 
Onde  a  natureza  humana 
Sè  mostrou  tão  soberana  I 
O  que  vós  valeis  me  avisa. 
Mas  o  qu'eu  peno  m'engana. 


334 


SCENA  V 

(SOLWA  t  PUiOOBMO.) 

9 

SOLINA 

Tomado  estais  vós  agora, 
Senhor  cb'o  furto  nas.  mãos. 

FILOLEMO 

Solina,  minha  Senhora, 
Quantos  pensamentos  vãos 
Me  ouviríeis  lançar  fóra? 

SOLINA 

Oh  Senhor,  quão  bem  que  sôa 
O  tanger  de  quando  em  quando  I 
Bem  sei  eu  huma  pessoa, 
Qub  ha  ja  huma  hora,  e  boa, 
Que  vos  «está  escutando. 

FILODEMO 

Por  vida  vossa,  zombais? 
Quem  he?  quereis-mo  dizer? 

SOLINA 

Não  o  haveis  vós  de  saber, 
Bofe  sè  me  não  peitais. 

FILODEMO 

Dar-vos-hei  quanto  tiver, 
Para  taes  tempos  como  estes. 
Quem  tivera  voz  dos  Ceos, 
Pois  escutar  me  quizestes! 


535 

*  I  I 

SOLINA 

Assi  pareça  eu  a  Deos, 
Como  lhe  vós  parecestes. 

FILODEMO    ' 

A  Senhora  Dionysa 
Quer-se  ja  alevanlar? 

SOLINA 

Assi  me  veja  ea  casar, 
Como  despida  em  camisa 
Se  ergueo  por  vos  escutar. 

FILODEMO 

Em  camisa  levantada! 

Tão  ditosa  he  minha  estrella? 

Ou  mo  dizeis  refalsada? 

SOLINA 

Pois  bem  me  defendeo  ella  ' 
Que  vos  não  dissesse  nada. 

•       FILODEMO 

Se  pena  de  tantos  annos 
Merecer  algum  favor, 
Para  cura  de  meus  dannos 
Fartae-me  desses  engannos, 
Que  não  quero  mais  de  Amor. 

SOLINA 

Agora  quero  eu  fallar 
Neste  caso  com  mais  tento; 
Quero  agora  perguntar: 
E  de  siso  his  vós  tomar 


♦ 


336 

« 

Hum  tão  alio  pensamento? 
Certo  he  minha  maravilha, 
Se  vós  islo  não  sentis 
Bem:  vós  como  não  cahis 
Que  Dipnysa  qu'he  filha 
Do  Senhor  a  quem  servis? 
Como?  Vós  não  attentais 
Os  Grandes,  de  qu  he  pedida? 
Peço-vos  que  me  digais 
Qual  he  o  fim  que  esperais 
Neste  caso,  em  vossa  vida. 
Que  razão  boa,  ou  que  côr 
Podeis  dar  a  esta  affeição? 
Dizei-me  vossa  tenção. 

FILODEMO 

Onde  vistes  vós  amor 
Que  se  guie  por  razão? 
Se  quereis  saber  de  mi 
Que  fim,  ou  de  que  theor 
O  pretendo  em  minha  dor; 
S'eu  nesíe  amor^  quero  fim, 
Sem  fim  me  atormente  Amor. 
Mas  vós  com  gloria  fingida 
Pretendeis  de  m'enganar, 
Por  assi  mal  me  tratar: 
Assi  que  me  "dais  a  vida 
Somente  .por  me  matar. 

SOLINA 

Eu  digo-vos  a  verdade. 

FILODEMO 

Da  verdade  fujo  eu, 


357 

Porque  se  o  Amor  me  deu 
Pena  de  tal  qualidade, 
.  Assaz  me  custa  do  meu. 

SOUNA 

Folgo  muito  de  saber 
Que  sois  amante  tão  fino. 

FILODEMO 

Pois  mais  vos  quero  dizer, 
Que  ás  vezes  no  imaginar 
Não  ouso  de  m'estender. 
Na  hoja  que  imaginei 
Na  causa  de  meu  tormento, 
Tamanha  gloria  levei, 
Que  por  onçaâ  desejei 
De  lograr  o  pensamento. 

SOLINA 

Se  me  vós  a  mi  jurardes    , 
De  me  terdes  em  segredo 
Huma  cousa . . .  mas  hei  medo 
De  logo  tudo  contardes. 


FILODEMO 


A  quem? 


SOUNA 

Áquelle  enxó  vedo. 


Qual? 


FILODEMO 


SOLINA 

Aquelle  máo  pezar. 


TOMO  IT 


t± 


558 

Que  ant^hontem  comvosco  bia. 
Quem  se  fosse  em  vós  fiar! 
O  que  vos  disse  o  outro  dia. 
Tudo  lhe  fostes  contar. 

FILODEMO 

Que  lhe  contei? 

SOLINA 

Ja  Ih'esquece? 

FILODEMO 

Por  certo  qu'eslou  remoto. 

SOLINA 

Hi,  que  sois  hum  ceslo  roto. 

FILODEMO 

Esse  homem  tudo  merea\ 

SOLINA 

Vós  sois  muito  seu  devoto. 

FILODEMO 

Senhora,  não  hajais  medo: 
Contae-m'isso,  e  far-me-hei  mudo. 

SOLINA 

Senhor,  o  homem  sisudo,  ^ 
Se  em  taes  cousas  tee  segredo, 
Saiba  que  alcançará  tudo. 
A  senhora  Dionysa 
Crede  que  mal  vos  não  quer: 
Não  vos  posso  mais  dizer. 
Isto  tende  por  baltsa 


539 

Com  que  vos  saibais  reger. 
Qu'em  mulheres,  se  attentais, 
O  querer  está^visibil; 
E  se  bem  vos  governais, 
Não  desespereis  do  mais. 
Porque,  emfim,  tudo  he  possibil. 

FILODEMO 

Senhora,  pôde  isso  ser? 

SOLINA 

Si,  que  tudo  o  mundo  tem  : 
Olhae  não  o  saiba  alguém. 

FILODEMO 

E  que  maneira  hei  de  ter 
Para  crer  tamanho  bem? 

SOLINA 

Vós,  Senhor,  o  sabereis; 
E  ja  que  vos  descobri 
Tamanho  segredo  aqui, 
Huma  mercê  me  fareis 
Em  que  me  vai  muito  a  mi. 

FILODEMO 

Senhora,  a  tudo  me  obrigo 
Quanto  for  em  minha  mão. 

\ 

SOUNA 

Pois  dizei  a  vosso  amigo 
Que  não  gaste  tempo  ém  vão, 
Nem  queira  amores  comigo.' 


» 


540 

Porque  eu  tenho  parentes. 
Que  me  podem  bem  casar; 
E  mais  que  não  quero  andar 
Agora  em  boca  de  gentes 
A  quem  s'elle  vai  gabar. 

FILODEMO 

Senhora,  mal  conheceis 
O  que  vos  quer  Duriano : 
Sabei-o,  se  o  não  sabeis, 
Qu'em  sua  alma  sente  o  dano 
Do  pouco  que  lhe  quereis; 
El  que  outra  cousa  não  quer, 
Que  ter-vos  sempre  servida. 

SOLINA 

Pola  sua  negra  vida, 
Isso  havia  eu  bem  mister. 

FILODEMO 

Vós  sois  desagradecida!, 

SOLINA 

Si,  que  tudo  são  enganos 
Em  tudo  quanto  fallais. 

FILODEMO 

Não  quero  que  me  creais; 
Crede  o  tempo;  que  ha  dous  anos 
Que  vos  serve,  e  inda  mais. 

SOUNA 

Senhor,  bem  sei  que  m'engano; 


Õ4\     ' 

Mas  a  vós,  como  a  inpão, 
Descubro  este  coração: 
Sabei  que  a  Duriano 
Tenho  sobeja  affeição. 
Olhae  que  lhe  não  digais 
Isto  que  vos  aqui  digo. 

FILODCMO 

Senhora,  mal  me  tratais: 
Inda  que  sou  seu  amigo, 
Sabei  que  vosso  sou  mais. 

SOLINA 

E  ja  que  vos  confessei 
Áquestas  fíraquezas  minhas* 
Que  ha  tanto  que  de  mi  sei : 
Fazei  vós  nas  cousas  minhas 

O  qu'eu  nas  vossas  farei. 

• 

FILODEMO 

Vós  enxergareis,  Senhora, 
O  qu  eu  por  vós  sei  fazer. 

SOLINA 

Como  me  deixo  esquecer ! 
Aqui  estivera  agora 
FaJlando  té  anoitecer. 
Vou-me;  e  olhae  quanto  vai 
O  que  passou  entre  nós. 

FILODEMO 

E  porque  vos  ides  vós? 

SOLINA 

Porque  parece  ja  mal 


542 

Estar  aqui  ambos  sós. 
E  mais  vou  vestir  agora 
A  quem  vos  dá  tão  má  vida. 
Ficae-vos,  Senhor,  embora. 

FILODEMO 

Nessa  ide  vós,  Senhora, 
Que  ja  vos  tenho  entendida. 

SCENA  VI 

FILODEMO,  8Ó. 

Ora  se  pôde  isto  ser 
Do'  qu'esta  moça  me  avisa, . 
Que  a  Senhora  Dionysa, 
For  me  ouvir,  se  fosse  erguer 
Da  sua  cama  em  camisa  I 
E  diz  que  mal  me  não  quer. 
Não  queria  maior  gloria; 

.  Mas  o  que- mais  posso  crer,    ' 
Que  nem  para  lhe  esquecer 
Lhe  passo  peia  memoria. 

.  Mas  ter  Solina  também    - 
Em  Duriano  o  intento, 
He  levar-me  a  lenha  o  vento; 
Porque  s'ella  lhe  quer  bem, , 
Para  bem  vai  meu  tormento. 
Mas  foi-se  este  homem  perder 

.  Neste  tempo,  de  maneira. 
Por  huma  mulher  solteira. 
Que  não  me  atrevo  a  fazer 
Que  hum  pequeno  bem  lhe  queira. 
Porém  far-lhe-hei  hum  partido, 


I 


545 

Porqu'e]la  não  se  querelle: 
Que  se  mostre  seu  perdido, 
Inda  que  seja  fingido, 

Gomo  lh'outrem  faz  a  elle. 

• 

E  ja  que  me  satisfaz, 
E  tanto  nisto  se  alcança, 
Dè-lbe  fingida  esperança: 
Do.  mal  que  lhe  outrem  faz, 
Tomará  nella  vingança. 

SCENA  VII 

VILARDO,  lò. 

Ora  boa  está  a  cilada 
De  meu  amo  com  sua  ama, 
Que  se  levantou  da  cama 
Por  ouvi-lo!  Está  tomada: 
Assi  a  tome  má  trama. 
E  mais  crede  que  quem  canta, 
Ainda  descantará: 
E  quem  do  leito,  onde  está, 
Por  ouvi-lo  se  levanta, 
Mór  desatino  fará. 
Quem  havia  de  cuidar, 
Que  dama  formosa  e  bella 
Saltasse  o  demónio  nella. 
Para  a  fazer  namorar 
De  quem  nãohe  igual  delia? 
Que  me  dizeis  a  Solina? 
Como  se  faz  Celestina, 
Que  por  não  lhe  haver  inveja 
Também  para  si  deseja 
O  que  o  desejo  lh'ensina ! 


544 

Grède  que  se  me  alvoroço, 
Que  a  hei  de  tomar  j^r  dama; 
E  não  será  grão  destroço, 
Pois  o  amo  quer  a  ama, 
Que  a  moça  queira  o  moço. 
Vou-me;  que  vejo  lá  vir 
Venadoro,  apercebido 
Para  a  caça  se  partir: 
E  voto  a  tal,  que  he  partido 
Para  ver  e  para  ouvir. 
Que  he  razão  justa  e  rasa 
Que  seu  folgar  se  desconte 
Em  quem  ardç  como  brasa; 
Que  se  vai  caçar  ao  monte. 
Fique  outrem  caçando  em  casa. 

SCENA  VIII 


VENADORO,  só. 

Approvada  antiguamente 
Foi,  e  muito  de  louvar 
  occupação  do  caçar, 
E  da  mais  antigua  gente 
Havida  por  singular.* 
He  o  mais  contrário  officio 
Que  tee  a  ociosidade. 
Mãe  de  todo  o  bruto  vicio : 
Por  este  limpo  exercicio 
Se  reserva  a  castidade. 
Este  dos  grandes  Senhores 
Foi  sempre  muito  estimado; 
E  he  grande  parte  do  estado 
Ter  monteiros,  caçadores, 


545 

Como  officío  qu'be  prezado. 
Pois  logo  porque  razão 
A  meu  pae  ha  de  pezar 
De  me  ver  ir  a  caçar? 
E  tão  boa  occupação 
Que  mal  me  pôde  causar? 

SCENA  IX 

(VbMAPOBO  e  o  MONT£IRO.) 
MONTEIRO 

Senhor,  venho  alvoroçado, 
E  mais  com  muita  razão. 

VENADORO 

Como  assi? 

MONTEIRO 

Que  me  he  chiado 
O  mais  extremado  cão. 
Que  nunca  caçou  veado. 
Vejamos  que  me  ha  da  dar. 

VENADORO 

Dar-vos-hei  quanto  tiver ; 
Mas  ha-se  d'exprímentar, 
Para  se  poder  julgar 
As  manhas  que  pôde  ter. 

MONTEIRO 

Pôde  assentar  qu'este  cão, 
Que  tee  das  manhas  a  chave. 
Bem  feito?  Em  admiração. 


•         546 

Pois  em  ligeiro?  líe  bumaave. 
Em  commetter?  Hum  leão. 
Com  porcos?  Maravilhoso. 
Com  veados?  Extremado. 
Sobeja-lbe  o  ser  manboso. 

VENADORO 

Pois  eu  ando  desejoso 
D'irmos  matar  um  veado. 

MONTEIRO 

* 

Pois,  Seobor,  como  nao  vae? 

VENADORO 

Vamos,  e  vós  mui  ligeiro 
O  necessário  ordenae; 
Qu'eu  quero  cbegar  primeiro 
Pedir  licença  a  meu  pae. 


ACTO  SEGUNDO 


SCENA  I 


DURIANO 

Pois  não  creio  eu  em  S.  Pisco  de  páo,  se  bei  de  pôr  pé  em 
ramo  verde,  té  Ibe  dar  trezentos  açoutes.  Despois  de  ter  gastado 
perto  de  trezentos  cruzados  com  ella,  porque  logo  Ibe  não  man- 
dei o  setim  para  as  mangas,  fez  de  mim  mangas  ao  demo.  Nâo 
desejo  eu  de  saber,  senão  qual  be  o  galante  que  me  succedeo; 
que  se  vo-lo  eu  coíbo  a  balravento,  eu  Ibe  farei  botar  ao  mar 
quantas  esperanças  Ibe  a  fortuna  tee  cortado  â  minba.  Ora  te- 
nbo  assentado,  que  amor  destas  anda  com  o  dinbeiro,  coroo  a 
maré  com  a  lua:  bolsa  cbeia,  amor  em  águas  vivas:  mas  se  vasa. 


547 


vereis  espraiar  esle  engano,  e  deixar  em  secco  quantos  gostos 
andavão  como  o  peixe  na  ágna. 


SCENA  II 


(FiLODEMO  e  DURIANO.) 


FILODEMO 

Ó  lá!  cá  sois  vós?  Pois  agora  hia  eu  bater  essas  moutas, 
para  ver  se  me  sahieis  de  alguma;  porque  quem  vos  quizer  achar, 
he  necessário  que  vos  tire  como  huma  alma. 


DURUNO 


Oh  maravilhosa  pessoa  1  Vós  ne  certo  que  vos  prezais  de  mais 
certo*  em  casa,  que  pinheiro  em  porta  de  taverna;  e  trazeis,  se 
vem  ã  mão,  os  pensamentos  com  os  focinhos  quebrados,  de  ca- 
hirem  onde  vós  sabeis.  Pois  sabeis.  Senhor  Filodemo,  quaes  são 
os  que  me  mátão?  Huns  muito  bem  almofaçados,  que  com  dois 
ceitis  fendem  a  anca  pelo  meio,  e  se  prezão  de  brandos  na  con- 
versação, e  de  fallarem  pouco  e  sempre  comsigo,  dizendo  que 
não  darão  meia  hora  de  triste  pelo  thesouro  de  Veneza;  e  gabão 
mais  Garcilasso  que  Boscão;  e  ambos  lhe  sahem  das  mãos  vir- 
gens; e  tudo  isto  por  vos  meterem  em  consciência  que  se  não 
achou  para  mais  o  grão  Capitão  Gonçalo  Fernandes.  Ora  pois 
desengano-vos,  que  a  mór  rapazia  do  mundo  farão  altos  espiri- 
tos:  e  eu  não  trocarei  duas  pescoçadas  da  minha  &c.,  despois 
de  ter  feito  a  tosquia  a  hum  frasco,  e  fallar-me  por  tu  e  fingir- 
se-me  bêbada,  porque  o  não  pareça,  por  quantos  Sonetos  estão 
estíriptos  poios  troncos  das  árvores  do  vale  Luso,  nem  por  quan- 
tas Madamas  Lauras  vós  idolatrais. 


FILODEMO 


Tá,  tá,  não  vades  avante,  que  vos  perdeis. 


348    - 

DURIANQ 

Aposto  que  adivinho  o  que  quereis  dizer? 


FtJLODEMO 


Que? 


DURIANO 

Que  se  me  nâb  acudieis  com  o  batel,  que  me  hia  meus  pas- 
sos contados  a  herege  de  amor. 

FILODEMO  ^ 

Oh  que  certeza  tamanha,  o  muito  peccador  não  se  conhe- 
cer por  essel 

DURIANO 

Mas  oh  que  certeza  maior,  de  muito  enganado,  esperar  em 
sua  opinião!  Mas  tornando  a  nosso  propósito,  que  he  o  para  que 
me  buscais?  que  se  he  cousa  de  vossa  saúde,  tudo  farei. 

FILODEMO 

Gomo  templará  el  destemplado?  Quem  poderá  dar  o  que  não 
têe,  Senhor  Duriano?  Eu  quero-vos  deixar  comer  tudo:  não  pôde 
ser  que  a  natureza  não  faça  em  vós  o  que  a  razão  não  pôde: 
o  caso  he  este;  dir-vo-lo-hei;  porém  he  necessário  que  primeiro 
vos  alimpeis  como  marmelo,  .e  que  ajunteis  para  hum  canto  da 
casa  todos  esses  máos  pensamentos;  porque  segundo  andais  mal 
avinhado,  damnareis  tudo  aquillq  que  agora  lançarem  em  vós. 
Ja  vos  dei  conta  da  pouca  que  tenho  com  toda  a  outra  cousa 
que  não  he  servir  a  Senhora  Dionysa;  e  postoque  a  desigual- 
dade dos  estados  o  não  consinta,  eu  não  pretendo  delia  mais  que 
o  não  pretender  delia  nada,  porque  o  que  lhe  quero,  comsigo 
mesmo  se 'paga;  que  este  meu  amor  he  como  a  ave  Phenix,  que 
de  si  só  nasce,  e  não  de  outro  nenhum  interesse. 

DURIANO 

Bem  praticado  está  isso;  mas  dias  ha  que  eu  não  creio  em 
sonhos. 


549 


FILODEMO 

Porque? 

DURIANO 

Eu  vo-lo  direi*:  porque  todos  vós-outros  os  que  amais  pela 
passiva,  dizeis  que  o  amor  fino  como  melão,  não  ha  de  querer 
mais  de  sua  dama  que  amâ-la;  e  virá  ]ogo  o  vosso  Petrarcba, 
e  o  vosso  Pielro  Bembo,  atoado  a  trezentos  PlatOes,  mais  çafado 
que  às  luvas  de  hum  pagem  d'arte,  mostrando  razões  verisimeis 
e  apparentes,  para  não  quererdes  mais  de  vossa  dama  que  vê-la; 
e  ao  mais  até  fallar  com  ella.  • 

Pois  inda  achareis  outros  esquadrinbadores  d'amor,.  mais  es- 
peculativos, qúe  defenderão  ajusta  por  não  emprenhar  o  desejo; 
e  eu  (faço-vos  voto  solemne)  se  a  qualquer  destes  lhe  entregas- 
sem sua  dama  tosada  e  apparelhada  entre  dous  pratos,  eu  fico 
que  não  ficasse  pedra  sobre  pedra:  e  eu  ja  de  mi  vos  sei  con- 
fessar que  os  meus  amores  hão  de  ser  pela  activa,  e  que  ella  ha 
de  ser  a  paciente,  e  eu  agente,  porque  esta  he  a  verdade.  Mas, 
com  tudo,  vá  v.  m.  Ç0'a  historia  por  diante. 

FÍLODEHO 

Vou,  porque  vos  confesso  que  neste  caso  ha  muita  duvida 
entre  os  Doctores:  assi.que  vos  conto,  que  estando  ^ta  noite 
com  a  viola  na  mão,  bem  trinta  ou  quarenta  íegoas  pelo  sertão 
dentro  de  hum  pensamento,  senão  quando  me  tomou  á  traição 
Solina;  e  entre  muitas  palavras  que  tivemos,  me  descobrio  que 
a  Senhora  Dionysa  se  levantara  da  cama  por  me  ouvir,  e  que 
estivera  pela  greta  da  porta  espreitando  quasi  hora  e  meia. 

DURIANO 

Cobras  e  tostões,  sinal  de  tenra:  pois  ainda  vos  não  fai^ia 
tanto  avante. 

^  nLODEMO 

Finalmente,  veio-me  a  descobrir,  que  me  não  queria  mal,  que 


350 

foi  para  mi  o  maior  bem  do  mundo;  que  eu  eslava  ja  concertado 
com  minha  pena  a  soffrer  por  sua  causa,  e  não  tenho  agora  so- 
jeito  para  tamanho  bem. 

DUMANO 

Grande  parte  da  saúde  he  para  o  doente  trabalhar  por  ser 
são.  Se  vos  deixardes  manquecer  na  estrebaria  com  essas  fine- 
zas de  namorado;  nunca  chegareis  onde  chegou  Rui  de  Sande. 
Por  isso  boas  esperanças  ao  leme;  que  eu  vos  faço  bom  que  ás 
duas  enXadadas  acheis  água.  E  que  n^ais  passastes? 

« 

FILODEMO 

  maior  graça  do  mundo:  veio-me  a  descobrir  que  era  per- 
dida por  vós;  e  me  quiz  dar  a  entender  que  faria  por  mi  tudo 
o  que  lhe  vós  merecêsseis. 

DURIANO 

Santa  Maria!  QuantQS  dias  ha  que  nos  olhos  lhe  vejo  mare- 
jar esse  amor?  porque  o  fechar  de  janellas  que  essa  mulher  me 
faz,  e  outros  enojos  que  dizer  poderia,  no  son  sino  corredores 
dei  amor,  e  a  cilada  em  que  ella  quer  que  eu  caia. 

FILODEMO 

Nem  eu  não  quero  que  lho  queirais,  mas  que  lhe  façais  crer 
que  lho  quereis. 

DURIANO 

Não . . .  quanté  dessa  maneira  me  offereço  a  romper  meia  dú- 
zia de  serviços  alinhavados  ás  panderetas,  que  bastem  assen- 
tar-me  em  soldo  pelo  mais  fiel  amante  que  nunca  calçou  esporas; 
e  se  isto  não  bastar,  salgan  las  palabras  mas  sangrientas  dei  co- 
razon,  entoadas  de  feição,  que  digão  que  sou  hum  Maneias,  e 
peor  ainda. 

FILODEMO 

Ora  dais-me  a  vida.  Vamos  ver  se  por  ventura  apparece,  por- 
que Venadoro,  irmão  da  Senhora  Dionysa,  he  fóra^á  caça;  e  sem 


35j 

elle  fica  a  casa  despejada;  e  o  Senhor  Dom  Lusidardo  anda  no 
pomar;  que  todo  o  seu  passatempo  he  enxertar  e  dispor,  e  ou- 
tros exercicios  d'agricultura,  naluraes  a  velhos:  e  pois  o  tempo 
nos  vem  â  medida  do  desejo,  vamo-nos  lá;  e  se  nuderdes  fallar, 
fazei  de  vós  mil  manjares,  porque  lhe  façais  crer  que  sois  mais 
esperdiçado  d'amor  que  hum  Braz  Quadrado. 

DURIANO 

Ora  vamos,  que  agora  estou  de  vez,  e  cuido  d'hoje  fazer  mil 
maravilhas,  com  que  vosso  feito  venha  â  luz. 

m 

SGENA  m 

(DiÒNTSÂ  e  Solina.) 

DIONYSA 

Solina,  mana. 

SOLINA 

Senhora. 

DIONYSA 

Trazei-me  cá  a  almofada; 
Que  a  casa  está  despejada,  , 

E  esta  varanda  cá  fora 
Está  melhor  assombrada. 
Trazei  a  vossa  também 
Para  estarmos  cá  lavrando; 
Em  quanto  meu  pae  não  vem, 
.  Estaremos  praticando. 
Sem  nos  estorvar  ninguém. 

SOLINA 

Este  he  o  mesmo  logar    " 
Onde  estava  o  bem  logrado, 


352 

Tal  que  de  muito  enlevada 
Se  esquecia  do  cantar 
Por  se  enlevar  no  cuidado. 

DIONTSA 

Vós,  mana,  sois  mui  ruim!     "" 
Logo  lhe  fostes  contar 
Que  me  ergui  polo  escutar. 

SOLINA 

Eu  o  disse? 

DIONTSA 

Eu  não  o  ouvi? 
Como  mo  quereis  negar?    * 

SOUNA 

E  pois  isso  que  releva? 
Que  se  perde  nisso  agora? 

DIONTSA 

Que  se  perde!  Assi,  Senhora, 
Folgareis  vós  que  se  atreva 
A  contâ4o  lá  por  fora? 
Que  se  lhe  meta  em  cabeça 
Alguma  parvoa  tenção? 
Que  faça,  se  vem  á  mão, 
Algua  cousa  que  pareça? 

SOUNA 

Senhora,  não  tee  razão. 

DIONTSA 

Eu  sei  mui  bem  attentar " 


555 

Do  que  se  ha  de  ter  receio, 
E  do  que  he  para  estimar. 

SOLINA 

Não  he  o  demo  tão  feio 
Como  alguém  o  quer  pintar; 
E  não  se  espera  isso  delle, 
Que  não  he  orá  tão  moço. 
E  Vossa  Mercê  asselle 
Que  qualquer  segredo  nelle 
He  como  huma  pedra  em  poço. 

DIONTSA 

E  eu  que  s^edo  quero 
Co'hum  criado  de  meu  pae? 

SOLINA 

E  VÓS,  mana,  fazeis  fero? 
Ao  diante  vos  espero. 
Se  adiante  o  caso  vae. 

DIONTSA 

O  madraço  t  quem  o  vir 
Fallar  de  siso  co'ella. . . 
Então  vós,  gentil  donzella, 
Folgais  muito  de  o  ouvir? 

SOLINA 

Si,  porque  me  falia  nella; 
E  eu  como  ouço  fallar 
Nella,  como'  quem  não  sente, 
Folgo  de  o  escutar. 
Só  para  lhe  vir  contar 

TOMO  IT  23  W' 


554 

O  que  delia  diz  a  gente; 
Qu'eu  não  quero  nada  delle. 
E  mais,  porque  está  fallando? 
Não  in'esteve  ella  rogando 
Que  fosse  fallar  com  elle? 

DiONYSA 

Disse-vo-lo  assi  zombando. 
Vós  logo  tomais  em  grosso 
Tudo  quanto  me  escutais. 
Parvo  1  que  vê-lo  não  posso. 

• 

SOUNÀ 

Ella  alli,  e  o  cão  co'o  osso! 
Inda  isto  ha  de  vir  a  mais. 
Pois  que  tal  ódio  lhe  tem, 
Paliemos,  Senhora,  em-al; 
Mas  eu  digo  que  ninguém 
Merece  por  querer  bem 
Que  a  quem  lho  quer,  queira  mal. 

DIONTSA 

Deixae-o  vós  doudejar. 
Se  meu  pae,  ou  meu  irmão, 
O  vierem  a  aventar, 
Não  ha  elle  de  folgar. 

SOLINA 

Deos  meterá  nisso  a  mão. 

DIONYSÂ 

Ora  hi  polas  almofadas, 
.Que  quero  hum  põu.co  lavrar. 


> 


555 

Por  ter  em  que  me  occupar; 

Qa'em  cousas  tão  mal  olhadas 

* 

Não  se  ha  o  tempo  de  gastar. 

SOLINA 

Que  cousa  somos  mulheres! 
Como  somos  perigosas  I 
E  ipais  estas  tão  viçosas 
Qu'estão  á  boca  que  queres? 
E  adoecem  de  mimosas! 
Se  eu  não  caminho  agora 
A  seu  desejo  e  vontade ; 
Gomo  faz  esta  Seqhora, 
Fazem-se  logo  nessa  hora 
Na  volta  da  honestidade. 
Quem  a  vira  o  outro  dia 
Hum  poucochinho  agastada, 
Dar  no  chão  com  á  almofada, 
E  enlevar  a  phantasia, 
Toda  n'outra  transformada! 
Outro  dia  lhe  ouvirão 
Lançar  suspiros  a  molhos, 
E  com  a  imaginação 
Gahir-lhe  a  agulha  da  mão, 
E  as  hagrimas  dos  olhos. 
Ouvir-lhe-heis  á  derradeira 
A  ventura  maldizer, 
Porque  a  foi  fazer  mulher. 
Então  diz  que  quer  ser  Freira; 
E  não  se  sabo^  entender. 
Então  gaba-o  de  discreto, 
De  musico  e  bem  disposto. 
De  bom  corpo  e  de  bom  rosto. 


356 

Quaillé  então  eu  vos  prometo. 
Que  não  tee  delle  desgosto. 
Despois,  se  vem  â  attentar, 
Diz  que  he  muito,  mal  feito 
Amar  homem  deste  geito; 
E  que  não  pôde  alcançar 
Pôr  seu  desejo  em  effeito. 
Logo  se  faz  tão  Senhora, 
Logo  lhe  ameaça  a  vida, 
Logo  se  mostra  nessa  hora 
Muito  segura  de  fora, 
E  de  dentro  está  sentida. 
Bofe,  segundo  vou  veúdo, 
Se  esta  postema  vier, 
Como  eu  suspeito,  a  crescer, 
Muito  ha  que  delia  entendo 
O  fim  que  pôde  vir  ter. 

SCENAIV 

(DUBUNO  «  FlLODBMO.) 

duriàno 
Ora  deixae-a  ir,  que  á  vinda  lhe  f aliaremos;  entretanto  cui- 
darei o  como  hei  de  fazer;  que  não  hjt  môr  trabalho  para  huma 
pessoa  que  fingir-se. 

FILODEMO 

Dar-lhe-heis  esta  carta;  e  fazei  muito  com  ella  que  a  dè  a 
Senhora  Dionysa;  que  me  vai  nisso  muito. 

DURIANO 

Por  mulher  de  tão  bom  engenho  ã  tendes?  . 

FOODEMO 

E  porque  me  perguntais  isso? 


557 


DURIANO 

f    Porque  ainda  hontem  entrou  pelo  a,  b,  g,  e  ja  quereis  que 
leia  carta  mandadeira:  fa-la-heis  cedo  escrever  matéria  junja. 

FILODEMO 

Não  lhe  digais  que  vos  disse  nada,  porque  cuidará  que  por 
isso  lhe  fallais;  mas  fingi  que  de  puro  amor  a  andais  buscando 
a  tempos  que  íação  á  vossa  tenção. 

DURIANO 

Deixae-me  vós  a  mi  com  o  caso,  que  eu  sei  melhor  as  pan- 
cadas a  estes  vintes,  que  vós;'e  eu  vo-la  farei  hoje  vir  a  nós  sem 
gafas;  e  vós  entretanto  acolhei-vos  a  sagrado,  porque  ei-la  lá 
vem. 

FlLODEMO 

V 

*  Olhae  lá:  fazei  que  a  não  vedes,  e  fingi  que  fallais  comvosco; 
que  faz  a  nosso  caso. 

DURIANO 

Dizeis  bem.  (Yo  sigo  tristeza,  remédio  de  tristes:  la  terrible- 
pena  mia  no  la  espere  remediar.  Pois  não  -devia  assi  de  ser,  po- 
ios santos  Evangelhos!  mas  muitos  dias  ha  que  eu  sei  que  o 
amor,  e  os  cangrejos,  andão  ás  vessas.  Ora,  emfim,  las  tristezas 

no  me  espanten,  porque  suelen  aflojar  cuando  mas  duelen.) 

« 

SCENA  V 

j(SOLINA  t  OURUNO.) 

SOLINA,  eom  a  almofada. 

Aqui  anda  passeando  ^ 
Duriano,  e  só  comsigo 
Páisamentos  praticando:     . 
Daqui  posso  estar  notando 
Com  quem  sonha,  se  he  comigo. 


t 


4 


558 

*  —    t  ■  ^ 

m 

DUBIANO  ^ 

Ah  quão  longe  estará  agora 

Minha  Senhora  Solina 

De  saber  que  estou  bem  fora 

De  ter*  outra  por  senhora, 

Segundo  o  amor  determina! 

Porém  se  determinasse 

Minha  bem-aventurança 

Que  de  meu  mal  lhe  pezasse, 

Até  que  nella  tomasse 

Do  que  lhe  quero  vingança!. . . 

SOLINA 

(Comigo  sonha  por  certo. 
Ora  quero-me  mostrar, 
Assim  como  por  acerto: 
Chegar-me-hei  mais  ao  perto, 
Por  ver  se  me  quer  fallar.) 
Sempre  esta  casa  ha  d'estar 
Acompanhada  de  gente, 
Que  não  possa  homem  passar  I 

DURIANO 

Á  traição  vindes  tomar. 
Quem  ja  feridas  não  sente? 

SOLINA 

Logo  me  a  mi  parecia 
Que  era  ePe  o  que  passeava. 

DURIANO 

E  eu  mal  adivinhava 
.  Que  me  viesse  este  dia, 


559 

Que  ha  tantos  que  desejava. 
Se  huns  olhos  por  vos  servir, 
Com  o  amor  que  vos  conquista, 
Se  atreverão  a  subir 
Os  muros  da  vossa  vista. 
Que  culpa  têe  quem  vos  vir? . 
E  se  esta  minha  affeição. 
Que  vos  serve  de  giolhos, 
Não  fez  erro  na  tenção, 
Tomae  vingança  nos  olhos, 
E  deixae  o  coração. 

SOLINA 

Ora  agora  me  vem  riso. 
Assi  que  vós  sois.  Senhor, 
De  siso  meu  servidor? 

DURIANO 

De  siso  não,  porque  o^siso 
Me  tee  tirado  o  amor. 
Porque,  o  amor,  se  attentais, 
N'hum  tão  verdadeiro  amante 
Não  deixa  siso  bastante; 
Senão  se  siso  chamais 
A  doudice  tão  galante. 

SOUNA 

Como  Deos  está  nos  Ceos, 
Que  se  he  verdade  o  que  telno, 
Que  fez  isto  Filodemo. 

DURIANO 

Mas  fè-lo  o  demo;  que  Deos 
Não  faz  mal  tanto  em  extremo. 


560 

80UNA 

Bem.  Vós,  Senhor  DuriáDO, 
Porque  zombareis  de  mim? 

DURIANO 

Eu  zombo? 

SOUNÀ 

Eu  não  me  engano. 

DURIANO 

S'eu  zombo,  inda  em  meu  ^ano 
Vejais  vós  mui  cedo  a  fim.    ' 
Mas  vós,  Senhora  Solina, 
Porque  me  querereis  mal? 

SOLINA 

Sou  mofina. 

DURIANO 

.    Oh!  real. 
Assi  que  minha  mofina , 
He  minha  imiga  mortal. 
Dias  ha  qu'eu  imagino 
Qu'em  vos  amar  e  servir 
Não  ha  amador  mais  fino; 
Mas  sinto  que  de  mofino 
Me  fino  sem  o  sentir. 

SOLINA 

Bem  derivais:  quanté  assi 

A  popa  o  dito  vos  veio. 
•  » 

DURIANO 

Vir-me-ha  de  vós,  porque  creio 
Que  vós  fallais  dentro  em  mi, 


56< 

Gomo  espríto  em  corpo  alheio. 

E  assi  que  em  estas  pios 

A  cahir,  Senhora,  vim; 

Bem  parecerá  eotre  nós, 

Pois  vós  andais  dentro  em  mim,     * 

Que  ande  eu  também  dentro  em  vós. 

SOLINA 

He  bem:  que  f aliar  he  esse? 

9 

DURIANO 

Dentro  na  vossa  alma,  ^go, 
Lá  andasse,,  e  lá  morresse! 
E  se  isto  mal  vos  parece, 
Dae-me  a  morte  por  castigo. 

SOLINA 

Âh  máo!  Gomo  sois  malvado! 

DURIANO 

Mas  vós  como  sois  malvada. 
Que  de  hum  pouco  mais  de  nada 
Fazeis  hum  homem  armado. 
Gomo  quem  'stá  sempre  armada! 
Dizei-me,  Solina,  mana. 

SOLINA 

Qu'he  isso?  Tirae  lá  a  mão: 
Oh  i  vós  sois  máo  cortezão. 

« 
DURIANO 

O  que  vos  quero  m'engana, 

Mas  o  que  desejo  não.  ' 


562 
Não  ha  aqui  senão  paredes, 

I 

Âs  quaes  não  fâllão,  aem  vem. 

SOLINA 

Está  isso  muito  bem. 

Bem:  e  vós,  Senhor,  não  vedes 

Que  poderá  vir  alguém? 

DURIANO       ' 

Que  vos  custão  dous  abraços? 

SOLINA 

Não  quero  tantos  despejos. 

DURIANO 

Pois  que  farão  meus  desejos, 
Que  querem  ter-vos  nos  braços, 
E  dar-vos  trezentos  beijos? 

SOUNA         ^ 

Olhae  que  pouca  vergonha! 
Hi-vos  d'hi,  boca  de  praga. 

DURIANO 

Eu  não  sei  certo  a  que  ponha 
Mostrardes-me  a  triaga, 
E  virdes-me  a  dar  peçonha. 

sorjNA 

Ora  ide  rir  á  feira, 
E  não  sejais  dessa  laia. 

DURIANO 

Se  vedes  minha  canseira, 
Porque  lhe  não  dais  maneira? 


565 

...  ■  . 

^     SOLINA 

Que  maneira? 

•  DURIANO    ' 

A  da  saia. 

SO^NA 

Por  minha  alma,  hei  de  vos  dar 
Meia  dúzia  de  porradas. 

DURIANO 

Oh  que  gostosas  pancadas! 
Mui  bem  vos  podeis  vingar, 
Qu'em  miiA  são  bem  empregadas. 

SOUNA 

Ao  diabo,  que  o  eu  dou. 
Gomo  me  doeo  a  mão! 

DURIANO 

Mostrae  cá,  minha  affeição. 
Que  «ssâ  dor  me  magoou 
Dentro  no  meii  coração. 

SOLINA 

Ora  hi-vos  embora  asinha. 

DURIANO 

Por  amor  de  mi.  Senhora, 
Não  fareis  huma  cousinha? 


SOLINA 


Digo  que  vades  epibora. 
Que  cousa? 


564 

DURIANO 

Esta  cartinha. 

SOLINA 

Que  carta? 

DURIANO 

Dfc  Filodemo 
A  Dionysa  vossa  ama. 

SOUNA 

Dizei,  que  tome  outra  dama, 
E  dè  os  amores  ao  demo. 

« 
DURIANO 

Não  andemos  pola  rama. 
Senhora  (aqui  para  nós), 
Que  sentis  delia  com  elle? 

SOUNA ' 

Grandes  alforges  sois  vós! 
Pois  hi-lhe  dizer  que  appelle. 

DURIANO 

Pallae,  que  aqui  'stamos  sós. 

SOUNA 

Qualquer  honesta  se  abala, 
Como  sabe  que  he  querida. 
EQa  he  por  elle  perdida: 
Nunca  n'outra  cousa  falia. 

DURIANO 

Ora  vou-lhe  dar  a  vida. 


565 

SOUNÀ 

E  eu  não  ]be  disse  ja 
Qttaatâ  affeição  lh'ella  tem? 

■ 

DURIANO 

Não  se  fia  de  ninguém, 
Nem  crè  que  para  elle  ba 
No  mundo  tamanho  bem. 

• 

SOLINA 

Dir-vos-bia  de  mim  lâ 

O  que  lh'eu  disse  zombando? 

DURIANO 

Não  disse,  por  S.  Fernando! 

SOLINA 

Ora  ide-vos. 

DURIANO 

Que  me  vá! 
E  mandais^que  torne?  Quando? 

SOLINA 

Quando  eu  cá  vir  lugar, 
Vo-lo  mandarei  dizer, 

DURIANO 

Se  o  quizerdes  buscar, 
Não  vos  deve  de  faltar. 
Se  não  faltar  o  querer. 

SOUNA 

Não  falta. 


366 

DURIANO 

Dae-me  hum  abraço 
Em  sinal  do  qiie  quereis. 

SOLINA 

Tá,  que  o  não  levareis. 

DURIANO 

De  quantos  serviços  faço 
Nenhum  pagar  me  quereis? 

SOUNA 

_  •% 

Pagar-vos-hão  algum'hora, 
Que  isso  a  mi  também  me  toca; 
Mas  agora  hi-vos  embora. 

DURIANO 

Essas  mãos  beijo,  Senhora, 
Em  quanto  não  posso  a  boca. 

SCENA  VI 

(SoLUVA  qtu  traz  a  almofada,  «DiONTSjr.) 

SOLINA 

Ja  Vossa  Mercê  dirá 
Qu'estive  muito  tardando. 

DIONYSA 

Bem  vos  detivestes  lá. 
Bofe  que  estava  cuidando 
Em  não  sei  que. 

SOLINA 

Que  será? 


567 

Â^ui  somos.  (Quanté  s^ora 
Está  6Íia  transportada.) 

DIONYSA 

Que  rosnais  vós  lá,  Senhora? 

SOLINA 

Digo  que  tardei  lá  fora 
En^  buscar  esta  almofada. 
Que  estava  ella  agora  só 
Gomsigo  phantasiando? 

DIONTSA 

Bofe  que  estava  cuidando 
Qu'he  muito  para  haver  dó 
Da  mulher  que  vive  amando. 
Que  hum  homem  pôde  passar 
A  vida  mais  occupado: 
Coni  passear,  com  caçar, 
Com  correr,  com  cavalgar, 
Forra  parte  do  cuidado. 
Mas  a  coitada 

.  Da  mulher  sempre  encerrada, 
Que  não  tee  contentamento. 
Não  tee  desenfadamento. 
Mais  que  agulha  e  almofada? 
Então  isto  vem  parir 
Os  grandes  erros  da  gente: 
Porão  mil  vezes  cahir 
Princezas  d'alta  semente. 
Lembra-me  que  ouvi  contar 
De  tantas  aíTeiçoadas 
Em  baixo  e  pobre  lugar, 


^ 

\ 


368 

Que  as  que  agora  vão  errar 
Podem  ficar  desculpadas. 

SOLINA 

Senhora,  a  muita  aflfeiçaq 
Nas  Princezas  d'alto  estado 
Não  he  muita  admiração; 
Que  no  "sangue  delicado 
Faz  amor  mais  impressão. 
Mas  deixando  isto  â  parte, 
Se  m'ella  quizer  peitar, 
Prometto  de  lhe  mostrar 
Huma  cousa  muito  d'arte, 
Que  lá  dentro  fui  achar. 

DIONTSA 

Que  cousa? 

SOLINA 

Cousa  d'esprito. 

DIONTSA 

I 

Algum  panno  de  lavores? 

SOUNA 

Inda  ella  não  deo  no  fito? 
Cartinha,  sem  sobre-escripto, 
Que  parece  ser  de  amores. 

DIONYSA 

Essa  he  a  boa  ventura? 

SOUNA 

Bofe  que  mo  pareceo. 


• 


ê 


369 

DIONYSA 

E  essa  donde  nasceo? 

SOLINA 

No  meu  cesto  da  costura: 
Não  sei  quem  m'alli  meteo. 

DIONYSA 

Mostrae-ma;  não  hajais  medo, 
Mana.  Eu  que  vos  descobri ... 

SOLINA 

E  Se  ella  vem  para  mi, 
Logo  quer  ver  meu  s^edo? 
Não  a  veja:  vâ-se  d'hi. 
Ei-la-alíi. 

DIONTSA 

Guja  será? 

SOUNA 

Não  sei  certo  cuja  he. 

DIONYSA 

Si;  sabeis. 

SOUNA 

Não  sei,  bofe. 

DIONYSA 

Ora  a  carta  mo  dirá. 

SOLINA 

Pois  leia  Vossa  Mercê. 

(ÂSbn  DiONYSA  a  caria,  e  lé^ 

Se  para  merecer  minha  pena  me  não  falta  mais  que  viver 

TOMO  IV  .  il 

V 


570 


contente  delia,  ja  logo  ma  podeis  consentir;  pois  que  de  nenhuma 
outra  cousa  vivo  triste,  senão  por  não  ser  para  tão  doce  tristeza. 
Se  tendes  por  offensa  commetter  tamanha  ousadia;  por  maior  a 
devieis  ter,  se  ia  não  commettesse;  que  amor  acostumado  he  fa- 
zer os  extremos  á  medida  das  affeições,  e  as  affeições  á  medida 
da  causa  delias.  Pois  logo,  nem  o  meu  amor  pôde  ser  pouco,  oem 
fazer  menos:  se  este  não  bastar  para  consentirdes  em  meu  pen- 
samento, baste  para  me  dardes  o  que  pelo  ter  mereço;  e  senão 
muitas  graças  ao  Amor,  que  me  soube  dar  hum  ouidado,  que 
com  tè-lo  se  paga  o  ti^abalho  de  soffre-lo.  > 

SOLINA 

Quanta  parvoice  diz ! 

DIONYSÀ 

Ora  muito  boa  está ! 

Como  vós,  mana,  sois  mál  '     « 

Não  sejais  vós  tão  biliz; 

Que  bem  vos  entendo  ja. 

Cuja  he? 

SOLINA 

E  eu  que  sei  ? 

DiONYSA 

Pois  quem  o  sabe? 


SOLINA 


o  demo. 


DIONYSA 


Certo  que  he  de  quem  temo; 
Que  os  ditos  que  nella  achei 
São  todos  de  Filodemo. 
Este  homem,  que  atrevimento 


374 

He  este  que  foi  tomar? 
Qual  será  seu  fundamento? 
Que  mil  vezes  me  faz  dar 
Mil  voltas  ao  pensamento. 
Não  entendo  delle  nada. 
Mas  inda  qu'isto  he  assi, 
Disso  que  delle  entendi, 
Me  sinto  tão  alterada, 
Que  me  arreceio  de  mi. 
Eu  inda  agora  não  creio  . 
Que  he  verdade  este  amor; 
Mas  praza  a  Deos,  se  assi  for, 
Que  inda  este  meu  arreceio 
Se  não  converta  em  temor. 

SOLINA 

Jâ  VÓS,  ja  sedes, 
Peixes,  nas  redes.- 
Senhora,  quem  mais  confia,  , 
Mais  asinha  a  cahir  vem: 
Natural  he  o  querer  bem ; 
Que  o  amor  n'alma  se  cria, 
Sem  'O  sentir  quem  o  tem. 
Filodemo,  no  que  ouvi, 
Tee-lhe  sobeja  affeição; 
E  postoque  o  creia  assi, 
Ou  eu  sonhei,  ou  ouvi, 
Que  era  d  alta  geração. 
Logo  na  physlonomia. 
Nas  manhas,  artes  e  geito, 
Mostra  mui  grande  respeito: 
Nem  tão  alta  phantasia 
Não  se  pOe  em  baixo  peito. 


*  - 


^         572 

DIONTSA 

Tudo  isso  cuido,  e  vi 
Mil  vezes  miudamente ; 
Mas  estas  mostras  assi 
São  desculpas  para  mi, 
E  não  para  toda  a  gente. 

SOUNA 

O  seu  moço  vejo  vir 
A  nós,  seu  passo  contado : 
Este  he  muito  para  ouvir. 
Que  diz  que  me  quer  servir 
D'amores  esperdiçado. 

SCENAVU 
(ViLABDO,  Solina  e  Diony8a.) 

VILARDO 

Senhora,  o  Senhor  seu  pae, 
Mesmo  de  Vossa  Mercê, 
Ja  lá  para  casa  vae: 
Por  isso,  Senhora,  andae, 
Que  elle  me  mandou  n'hum  pé ; 
E  diz  que  fosse  jáhtar 
Vossa  Mercê  mesmamente.  . 

SOLINA 

E  ja  veio  do  pomar? 

DIONYSA      ' 

Oh  quem  pudera  escusar 
De  comer,  nem  de  ver  gente! 
(Nenhuma  cór  de  verdade 
Tenho  do  que  m'elle  manda.) 


\ 


-  575 

^  VILARDO 

S'ella  sem  vontade  anda, 
Eu  lh'eroprestarei  vontade, 
Einpreste-m'ella  a  vianda. 

SOLINA 

Vá,  Senhora,  por  não  dar 
Mais  em  que  cuidar  á  gente.' 

* 

DIONTSA 

Irei,  mas  não  por  jantar; 
,Que  quem  vive  descontente 
Mantem-se  de  imaginar. 

VILARDO 

Pois  taníbem  cá  minhas  dores 
Me  não  deixão  comer  pão; 
Nem  come  minha  affeição 
Senão'  sopadas  d'amores^ 
E  mil  postas  de  paixão. 
Das  lagrimas  caldo  faço, 
Do  coração  escudella; 
Esses  olhos  são  panella 
Que  coze  bofes  e  baço, 
Com  toda  a  mais  cabedella. 

scENA  vm 

(O  MoRTBiRO,  \wm  Pastor  t  \iMim  Bobo.) 

MONTEIRO 

Perdeo-se  por  esta  brenha 
Venadoro,  meu  Senhor, 
Sem  que  novas  delle  tenha: 


574 

Queira  Deos  qae  inda  não  venha 
Desta  perda  outra  maior. 
Contra  esta  parte  daqui 
Des  pós  hum  cervo  correo, 
Logo  desappareceo; 
Como  da  vista  o  perdi, 
O  gosto  se  me  perdeo. 
Eu,  e  os  mais  caçadores, 
Corremos  montes  e  covas; 
Falíamos  com  lavradores 
Deste  valle,  e  com  pastores, 
Sem  acharmos  delle  novas. 
Quero  ver  nestes  casai? 
Que '  cobre  aqueUe  arvoredo, 
Se  acharei  pastores  mais,      * 
Que  me  dem  alguns  sinais 
Que  me  possão  tornar  ledo. 

fChamaJ 

O  dos  casaes,  õ  de  lá  : 
Âh  pastores,  não  f aliais? 

PASTOR 

Quien  sois,  ó  lo  que  buscais? 

MONTEIRO  ' 

Ouvis?  Chegae  para  cá. 

PASTOR 

Dicid  vos  lo  que  mandais. 

BOBO 

No  vayais  adó  os  llamó. 
Padre,  sin  saber  quien  es. 


575 

PASTOR 

Porque? 

BOBO 

Porque  este  es 
Aquel  ladroo  que  hurtó 
El  asno  dei  Português. 

Y  se  vais  adó  estan, 

Os  juro  ai  cuerpo  sagrado 
De  San  Pisco,  y  San  Juan, 
Que  tambien  os  hurtarán, 
Que  sois  asno  mas  honrado. 

PASTOR 

Déjame  âr,  que  pie  llamó. 

BOBO 

No,  por  vida  de  mi  madre; 
Que  si  allá  vais,  muerto  so', 

Y  desta  vez  quedo  yo, 

Sin  asno,  triste!  y  sin  padre. 

MdNTEIRO 

Vinde,  que  vo-lo  encommendo, 
E  em  vossas  mãos  me  ponho. 

*  BOBO 

No  vais,  que  dijo  en  comiendo, 
Encomiendoos  ai  demónio! 

*  (Ao  MonUiro.) 

Y  esso  es  Io  que  andais  hadendo? 

PASTOR     . 

Déjame  ir  adó  está, 

Que  no  es  cosa  que  me  espante. 


0 


I 


576 

BOBO 

No  quereis  sino  ir  allá? 
Paes  echadle  pan  delante, 
Puede  ser  amansará. 

PASTOR 

Dios  OS  guarde!  Qué  cosa  es 
Esa  porque  voceais? , 

» 

MONTEIRO 

Dar-m'heis  novas,  ou  sinais 
D'hum  Fidalgo  Português, 
Se  passou  por  onde  andais? 

Yd  so'  Hidalgo  Português : 
Que  manda  su  Senoria? 

PASTOR 

Câllate:  oh  que  néscio  es! 

BOBO 

Padre,  no  me  dejarés 
Ser  lo  que  quisiere  un  dia? 
Ah  Santo  Dios  verdadero! 
No  seré  lo  que  otros  s(yi? 
Digo  ahora  que  no  quiero 
Ser  Alonsico,  el  vaquero., 

PASTOR 

Cállate  ya,  bobarron. 

BOBO 

Ya  me  callo :  ahora  un  poco 
He  de  ser  Io  que  yo  quisiere. 


577 

PASTOR 

Senor,  diga  lo  que  quiere, 
Porque  este  mochacho  es  loco, 
Y  muero  pwque  no  muere. 

MONTEIRO 

Digo,  que  se  por  ventura 
Sabeis  o  que  ando  buscando: 
Hum  Fidalgo,  que  caçando 
Se  perdeu  nesta  espessura 
Após  hum  cervo  andando. 
Tenho  esta  parte  corrida, 
Sem  delle  poder  saber: 
Trago  a  alegria  perdida; 
E  se  de  todo  a  perder, 
Perca-se  também  a  vida. 
Porquê  só  polo  buscar 
Tenho  trabalhos  assas. 

BOBO 

(Yo  no  puedo  callar  mas.) 

PASTOR 

(Como  no  puedes  callar? 
Quítate  aUá  para  trás.) 
Cuanto  por  aquesta  tiérra. 
No  siento  nueva  ninguna. 

MONTEIRO 

Oh  trabalhosa  fortuna  I 

PASTOR 

Mas  detrás  daquesta  sierra 
HaUareis,  por  dicha,  alguna; 


\  • 


578 

Que  unas  choças  de  vaqueros 
Portugueses  allí  estan; 

Y  ahí  muchas  veces  van 
Cazadores  Cavalleros: 
Puede  ser  que  lo  sabran. 

MONTEIRO 

Quero-me  ir  lá  saber. 
Ficae-vos  a  Deôs,  pastor. 

'  PASTOR 

Dios  os  livre  de  dolor. 

BOBO 

Y  á  nos  dé  siempre  comer 
Pan  y  sopas»  qu'es  mejor. 

.  Mirad  lo  que  os  notifico : 
En  aquel  valle,  acullá, 
Anda  paciendo  un  burrico, 
Hidalgo,  manso,  y  bonico ; 
Puede  ser  que  ese  será. 

PASTOR 

Galla,  y  acaba  de  andar. 

BOBO 

Ya  ando. 

PASTOR 

Quieres  callar? 
Bobo  que  tan  poço  sabe! 

BOBO 

No  diceis  que  ande  y  acabe? 
Ando,  y  no  quiero  acabar. 


379 


ACTO  TERCEIRO 
SCENAI 

(Florimena,  pattoray  com  hum  pote,  que  vdi  á  fonte.)  ^ 

FLORIMENA 

Por  este  formoso  prado 
Tudo  quanto  a  vista  alcança 
Tão  alegre  está  tornado, 
Que  a  qualquer  desesperado 
Pôde  dar  certa  esperança. 
O  monte,  e  sua  aspereza, 
De  flores  se  veste  ledo; 
Reverdece  o  arvoredo, 
Somente  em  minha  tristeza  ^ 
Está  sempre  o  tempo  quedo. 
Junto  desta  fonte  pura, 
Segundo  a  muitos  ouvi, 
D'altos  parentes  nasci : 
Foi  como  quiz  a  Ventura, 
Mas  não  como  eu  mereci. 
O  dia  que  fui  nascida, 
Minha  mãe  do  parlo  forte 
Foi  sem  cura  fallecida; 
E  o  dia  que  me  deo  vida 
Lhe  dei  eu  a  ella  a  morte. 
Do  mesmo  parto  nasceo 
Meu  irmão,  que  entre  os  cabritos 
Comigo  também  viveo; 
Mas,  assi  como  cresceo, 
Crescerão  nelle  os  espritos. 


380 

.    Foi-se  buscar  a  cidade; 

Teye  juizo  é  saber; 

Eu  fiquei,  como  mulher, 

E-não  tive  faculdade 

Para  poder  mais  valer. 

A  hum  pastor  obedeço 

Por  pae,  que  d'outro  nâo  sei; 

E  pola  mãe  que  matei,  . 

A  huma  cabra  conheço, 

De  cujo  leite  mamei. 
*  Mas  porém,  ja  qu'este  monte 

Me  obriga  e  meu  nascimento, 

Quero,  pois  quer  meu  tormento, 

Encher  a  talha  na  fonte 

Que  co'os' olhos  accrescento. 

fnnge  que  enchi  a  iaiha.J 
SCENAU 


(Venadoro  e  Flordibka.) 
.    V£NAD0R0 

Pois  que  me  vim  alongar 
Dos  caminhos  e  da  gente, 
Fortuna,  que  o  consente. 
Se  devia  contentar 
De  me  ter  tão  descontente. 
Porém,  segundo  adivinho. 
Por  tão  espesso  an^oredo, 
Por  tão  áspero  rochedo,       , 
Quanto  mais  busco  o  qaminho. 
Tanto  mais  delle  me  arredo. 
O  cavallo,  como  amigo, 
Ja  cansado  me  trazia: 


584 


Mais  deixou-me  todavia; 
Que  mal  pudera  comigo 
Quem  comsigo  não  podia. 

_  ♦ 

Quero-me  aqui  assentar 
Á  sombra,  nesta  hervinha, 
Porque  canso  ja  de  andar; 
Mas  inda  a  fortuna  minha 
Não  cansa  de  me  cansar. 
Junto  desta  fonte  pura 
Não  sei  quem  cuido  qu'está; 
Mas  no  coração  me  dá 
Que  aqui  me  guarda  a  Ventura 
Alguma  ventura  má. 
Ou  ganhado,  ou  b^  perdido, 
Faça,  emfim,  o  que  quizer, 
Qu'eu  o  fim  disto  hei  de  ver; 
Que  ja  venho  apercebido 
A  tudo  quanto  vier. 
Oh  que  formosa  serrana 
Á  vista  se  me  ofiFerece! 
Deosa  dos  montes  parece; 
E  se  he  certo  que  he  humana, 
O  monte  não  a  merece.  ~ 
Pastora  tâo  delicada. 
De  gesto  tão  singular, 
Parece-me  qu'em  lugar 
De  perguntar  pola  estrada. 
Por  mim  lhe  hei  de  perguntar. 
Atéqui  sempre  zombei 
De  qualquer  outra  pessoa 
Que  aíFeiçoada  topei; 
Mas  agora  zombarei 
De  quem  se  não  affeiçoa. 


582 

Serrana,  cuja  pintura 
Tanto  a  alma  me  moveo, 
Dizei-me :  Por  qual  ventura 
Andareis  nesta  espes&ura, 
Merecendo  estar  no  Ceo? 

% 

FLORIMENA 

Tamanho  inconveniente 
Andar  na  serra  parece? 
Pois  a  ventura  da  gente 
Sempre  he  mui  difierente 
Do  que,  ao  parecer,  merece* 

VBNADORO 

Tal  resp(ísta  he  manifesto 
Não  se  parecer  co'as  cabras. 
Pois  não  VOS  parece  honesto 
Saberdes  matar  co'o  gesto, 
Senão  inda  com  palabras?  * 
No  mato  tudo  he  rudeza.  " 
Ha  tal  gesto  e  discrição? 
Não  o  creio. 

FLORIMENA 

Porque  não? 
Não  supprirá  natureza 
Onde  falta  criação? 

VENADOBO 

Ja  logo  nisso,  Senhora, 
Dizeis,  se  não  sinto  mal. 
Que  do-  vosso  natural 
Não  era  serdes  pastora. 


I 


385 

FLOBIMENA 

Digo,  mâs  i)ouco  me  vai. 

VENADORO 

Pois  quem  vos  pôde  trazer 
Á  conversação  do  monte? 

FLORIMENA 

Perguntae-0  a  essa  fonte; 
Que  as  cousas  duras  de  crer, 
Hum  as  faça,  outro  as  conte. 

» 
VENADORO 

Esta  fonte,  que  está  aqui. 
Que  sabe  do  que  dizeis? 

FLORIMENA 

Senhor,  mais  não  pergunteis,  . 
Porque  outra  cousa  de  mi 
Sabei  que  não  sabereis. 
De  vós  agora  sabei,- 
O  que  não  tendes  sabido : 
Se  quereis  água,  bebei; 
Se  andais  por  dita  perdido. 
Eu  vos  encaminharei. 

VENADORO 

Senhora,  eu  não  vos  pe^ia 
Que  ninguém  m'encaminhasse; 
Que  o  caminho  gu'eu  queria, 
Se  o  eu  agora  achasse, 
Mais  perdido  me  acharia. 
Não  quero  cassar  daqui ; 


% 


384 

E  não  vos  pareça  espanto . 
Qu'en)  vos  vendo  me  rendi ; 
Porque  quando  me  perdi, 
Não  cuidei  de  ganhar  tanto. 

FLORIMENA 

Senhor,  quem  na  serra  mora 
Também  entende  a  verdade 
Dos  enganos  da  cidade: 
Yá-se  embortt,  ou  fique  embora, 
Qual  for  maiR  sua  vontade. 

VENADORO 

Oh  lindissima  donzella, 
A  quem  a  ventura  ordena 
Que  me  guie  como  estrelia! 
Quereis4ne  deixar  a  pena, 
E  levar-me  a  causa  delia? 
E  ja  que  vos  conjurastes 
Vós  e  Amor  para  matar-mé. 
Oh  não  deixas  d*escutar-me! 
Pois  a  vida  me  tirastes, 
Não  me  tireis  o  queixar-me! 
Qtí'eu,  em  sangue  e  em  nobreza 
O  claro  Ceo  me  extremou; 
E  a  Fortuna  me  dotou 
De  grandes  bens  e  riqueza, 
Que  sempre  a  muitos  negou. 
Andando  caçando  aqui. 
Após  hum  cervo  ferido, 
Permittio  meu  fado  assi. 
Que  andando  dos  meus  perdido, 
Me  venha  perder  a  mi. 


385 

E  purqu'inda  mais  passasse 
Do  que  tinha  por  passar, 
Buscando  quem  m'ensinasse, 
Por  que  via  me  tornasse. 
Acho  quem  me  faz  ficar. 
Que  vingança  permittio 
A  fortuna  n'hum  perdido! 
Oh  que  tyranno  partido, 
Que  quem  o  cervo  ferio, 
Vá  como  cervo  ferido! 
Ambos  feridos  n'hum  monte. 
Eu  a  elle,  outrem  a  mi  : 
Huma  differença  ha  aqui, 
Qu'elle  vai  sarar  á  fonte, 
E  eu  nella  me  feri. 
V     E  pois  que  tão  transformado 
Me  têe  vossa  formosura,     t 
Hum  de  nós  troque  o  estado. 
Ou  vós  para  o  povoado, 
Ou  eu  para  a  espessura. 

FLORIMENA 

Dos  arminhos  he  certeza. 
Se  lhe  a  cova  alguém  çujar. 
Morar  fora,  antes  d'entrar: 
D'estimar  muito  a  limpeza 
Pola  vida  a  vai  trocar: 
Também  quem  na  serra  mora 
Tanto  estima  a  honestidade, 
Que  antes  toma  ser  pastora, 
Que  perder  a  honestidade 
A  troco  de  ser  Senhora. 
Se  mais  quereis,  esta  fonie 

TOMO  IV  25 


386 

Vos  descubra  o  mais  de  mim : 
O  que  ella  vio,  ella  o  conte; 
Porque  eu  vou-me  para  o  monte, 
Porque  ha  ja  muito  que  vim. 

SGENÂ  III 

VENADORO 

Ó  linda  minha  inimiga, 
Gentil  pastora,  esperael 
Pois  que  tanto  amor  me  obrigar 
Consenti-me  que  vos  siga; 
Vá  o  corpo  onde  alma  vae. 
E  pois  por  vós  me  perdi, 
E  neste  estado  Amor  pôs 
Os  olhos  com  que  vos  vi, 
Pois  os  deixaste  sem  mi, 
Oh  não  os  deixeis  sem  vós!  * 
Porque  a  Fortuna  me  disse 
Que  nas  serras,  onde  andais, 
•  Em  estes  extremos  tais, 
Não.  era  bem  que  vos  visse 
Para  não  ver  de  vós  mais.    . 
E  pois  Amor  se  quiz  ver 
Da  livre  vida  vingado, 
Em  que  eu  sohia  viver; 
Faça  em  mi  o  que  quizer, 
Que  aqui  vou  ao  jugo  alado. 

SCENA  IV 
(Dom  Losidabdo,  o  Monteiro  0  Filodemo.) 

^  LUSIDARDO 

Oh  Santo  Deos  verdadeiro. 


587 

  quem  o  muDdo  obedecei 
Meu  filho  não  apparece. 
E  que  me  dizeis,  Monteiro? 

MONTEIRO 

Digo-lhe  que  m'entrislece. 
Qu'eu  corri  por  esses  montes, 
Bem  quinze  léguas,  ou  mais, 
E  busquei  poios*  casais. 
Por  serras,  montes  e  fontes, 
Sem  ver  novas,  nem  sinais. 
Toda  a  gente  que.  levou, 
Buscando-o,  muito  cansada 
Pelo  mato  anda  espalhada; 
Mas  ainda  ninguém  tornou. 
Que  soubesse  delle  nada. 

LUSIDÀRDO 

Oh  fortuna  nunca  igual ! 
Quem  me  fará  sabedor 
De  meu  filho  e  meu  amor? 
Que  se  he  muito  grande  o  mal. 
Muito  mór  he  o  temor. 
Quem  tolhe  que  não  achasse 
Algum  leão  temeroso 
N'algum  monte  cavernoso, 
Que  sua  fome  fartasse 
Em  seu  corpo  tão  formoso? 
Quem  ha  que  saiba,  ou  que  visse. 
Que  das  montanhas  erguidas 
Algum  monstro  não  sahisse, 
E  com  seu  sangue  tingisse 
As  hervas  nellas  nascidas? 


588 

Oh  filho!  vai-me  a  lembrar 
Quantas  vezes  os  mandava 
Que  deixásseis  o  caçar ! 
Não  cuidei  de  adivinhar 
O  que  Fortuna  ordenava. 
Eu  irei,  filho,  buscar-vos 
Por  esses  montes,  por  hi, 
Ou  a  perdèr-me,  ou  cobrar-vos ; 
Que  morte  que  quiz  matar-vos, 
Quero  que  me  mate  a  mi. 
Onde  fostes  fenecido, 
Seja  também  vosso  pae; 
Ser-me-ha  acontecido. 
Como  a  virote  que  vae 
Buscar  outro  que  he  perdido. 
Vós  só  haveis  de  ficar, 
Filodemo,  encarregado 
Para  esta  casa  guardar ; 
Que  de  vosso  bom  cuidado 
Tudo  se  pôde  fiar. 
Ide-vos  a  fazer  prestes, 
Mandae  cavallos  sellar; 
Pois  achá-lo  não  pudestes, 
Ir-m'heis  buscar  o  lugar 
Onde  da  vista  o  perdestes. 

SCENAV 

O  Bobo  com  o  vestuh  de  Venadoro,  a  quem  dera  o  seu. 

(Canta.) 

Los  mochachos  dei  Obispo 
No  comen  cosa  mimosa, 
Ni  zanca  d'arana.  ni  cosa  mimosa. 


589 

(FaUa,) 

De  su  sayo  colorado 
Tan  lozano  me  vestió, 
Que  yo  ya  no  .soy  yo, 
Ya  por  oiro  estoy  trocado; 
Que  este  sayo  me  troco. 
Oh  qué  asno  Português, 
Que  loco  por  Florimena, 
Deseó^amarra  agena, 

Y  dame  por  enterés 
Una  zamarra  tan  buena! 
Como  yo  vi  la  bobilla 
Andar  con  él  en  questiones^ 

Y  parársele  amarilla, 
Díjele:  Florimenilla, 
Andais  en  dongolondrones? 
El  me  dijo :  Matalote, 

No  tengais  dello  desmayo. 

Y  en  esto,  como  un  rayo, 
Tomóme  mi  capirote, 

Y  dióme  su  capisayo. 
Capirote,  en  buena  fé, 

Si  vos,  cuando  en  mi  entrastes, 
Capisayo  vos  tornastes, 
Que  yo  por  eso  cantaré,    , 
Pues  ansí  me  mejorastes. 

(Canta.) 

Lyrio,  lyrio,  lyrio  loco, 
.Con  qué?  Con  capirotada. 
Por  hablar  con  la  golosa 
De  amores,  mirad  la  cosa! 
Zamarilla  tan  hermosá. 


590^ 

Que  me  ha  dado  tan  honrada, 
Gon  qué?  Con  capirotada. 

(FaUa.) 

Yo  enlonces  respondi: 
Seijor,  dame  pan  y  queso^ 
Mas  despues  que  lo  entenà\ 
Dije  a  ella:  Dale  un  beso, 
Que  él  me  dió  zamarra  á  mi. 
Ahora  me  mirarán      ^ 
Guantos  á  la  eglesia  fueren ; 

Y  aquellos  que  no  me  quieren, 
Ahora  me  rogarán. 

Sabeis  porque  no  querré? 
Porque  esfoy  ahidalgado; 

Y  cuando  fuere  rogado, 
Gantando  responderá, 
Que  ya  estoy  otro  tomado. 

(Canta  e  baãa.J 

Soropicote,  picote,  mozas, 

Ahora  quiero  amores  con  vosotras. 

.  è 

SCENA  VI 

fO  Pastob  e  o  Bobo.) 

PASTOR 

Hijo  Alonsillo. 

BOBO 

Hijo  Alonsillo. 

PASTOR 

No  me  quieres  escuchar? 

BOBO 

Pues  déjame  suspirar.. 


59  \ 

PASTOR 

Escúchame  ahora,  asnillo. 
Lo  que  te  quiero  mandar. 
Vete  ai  valle  de  las  rosas, 

Y  di  á  Anton  dei  Lugar 
Que  si  puede  acá  llegar, 
Porque  tengo  muchas  cosas 
Que  importan  para  le  hablar. 
Porque  es  aqui  llegado 

Á  este  valle  un  hombre  honrado, 
Mancebo  de  casta  buena, 
Que  amores  de  Florimena 
Le  Iraen  loco  y  penado. 
Dice  que  quiere  casar 
Con  ella,  que  su  tonnento 
No  le  deja  reposar; 

Y  que  venga  festejar 
Tan  dichoso  casamiento. 

BOBO 

Dicid,  padre,  tambien  vos, 
No  quereis  casar  comigo? 
Casemos  ambos  adós. 

PASTOR 

Vé,  y  haz  lo  que  te  digo. 

BOBO 

Responde,  padre,  por  Dios. 

PASTOR 

Vé  luegó,  y  vuelve  apresado. 
Anda.  No  quieres  andar? 


392 

BOBO 

Pues  que  me  babeis  empujado, 
Juro  á  mi  de  desandar 
Todo  cuanto  tengo  andado. 

PASTOR 

Trabajoso  es  este  insano! 
Nunca  bace  lo  que  quereis. 

BOBO 

Ora  no  os  apasioneis, 
Mi  padrecico  lozano: 
Que  burlaba,  no  lo  veis? 

PASTOR 

Vete  dabi. 

BOBO 

Héme  aqui. 

PASTOR 

Vé  donde  te  dije. 

BOBO 

Ya  vengo. 
Ob  que  padrasto  que  tengo, 
Que  asi  me  manda  por  abi, 
Siendo  camino  tan  luengo! 

ACTO  QDARTO 
SCENA  I 

(DioNYSA  %  Solina.) 
DIONYSA 

Ob  Solina,  minba  amiga, 
Que  todo  este  coração 


395 

Tenho  posto  em  vossa  mão ; 
Amor  me  manda  que  diga, 
Vergonha  me  diz  que  não. 
Que  farei? 

Como  me  descobrirei  ? 
^Porque  a  tamanho  tormento 
Mais  remédio  lhe  não  sei, 
Que  entregá-lo  ao  soffrimento. 
Meu  pae  muito  entristecido 
Se  vai  pela  serra  erguida, 
Ja  da  vida  aborrecido, 
Buscando  o  filho  perdido. 
Tendo  a  filha  cá  perdida! 
Sem  cuidar, 

Foi  a  casa  encommendar 
A  quem  destruir  lha  quer: 
Olhae  que  gentil  saber, 
Que  vai  comigo  deixar 
Quem  me  não  deixa  viver. 

SOLINA 

Senhora,  em  tanto  desgosto 
Não  posso  meter  a  mão; 
Mas  como  diz  o  rifão, 
Mais  vai  vergonha  no  rosto, 
Que  mágoa  no  coração. 
E  bofe,  se  eu  tanto  amasse, 
E  visse  tempo  e  sazão. 
Sem  seu  pae,  sem  seu  irmão, 
Que  a  nuvem  triste  tirasse 
De  cima  do  coração. 

DiONTSA 

Ah  mana!  que  tenho  medo, 


394 

Que  s'eu  em  tal  consentisse 
Que  logo  o  mundo  o  sentisse. 
Porque  nunca  houve  segredo, 
Que,  emfím,  se  não  descobrisse. 

• 

SOUNA 

Se  eu  tantas  dobras  tivesse 
Como  quantas  houve  erradas, 
Sem  que  o  mundo  o  soubesse, 
Á  fé  qu'eu  enriquecesse, 
E  fosse  das  mais  honradas. 

DIONTSA 

Sabeis  que  tenho  em  vontade? 

SOLINA 

Que  podeis.  Senhora,  ter? 

DIONTSA 

Fallar-lhe,  só  para  ver 
Se  he  por  ventura  verdade 
,0  que  dizeis  que  me  quer. 

SOLINA 

Bofe,  mana,  dizeis  bem, 
E  eu  o  mandarei  chamar, 
Como  para  lhe  rogar 
Que  hum  annel,  que  lá  me  tem. 
Que  mo  mande  concertar. 

DIONTSA 

Dizeis  mui  bem. 

SOUNA 

Vou-me  lá 


395 

Chamar  o  seu  moço  á  sala; 
E  s'este  parvo  vem  cá, 
Com  elle  hum  pouco  rirá, 
Que  sempre  amores  me  fala. 
Vilardo,  moço? 

SCENA  II 

(ViLAfiBO  e  Solina.) 

VILARDO 

Quem  chama? 

SOLINA 

Vem  cá,  moço;  pu  te  chamo. 
Qu'he  de  teu  amo?  . 

VILARDO 

Ah  que  dama! 
Perguntais-me  por  meu  amo, 
E  não  por  hum  que  vos  ama? 

SOLINA 

E  quem  he  esse  amador, 
Que  quer  ter  comigo  passo? 
Será  elle  algum  madrasso? 

VILARDO 

Eu  sou  o  mesmo,  que  o  amor 
Me  quebra  pelo  espinhasso. 
E  mais  vós  sabei  de  mi. 
Se  eu  a  dizê-lo  me  atrevo, 
Que  desque  esses  olhas  vi. 
Que  yo  ni  como,  ni  bebo, 


596 

Ni  hago  vida  sin  ti. 
E  mais  para  namorado 
Não  sou  ora  tão  madrasso. 

SOLINA 

Sois  muito  desmazelado. 

VILARDO 

Mas  antes,  de  delicado 
Caio  pedaço  a  pedaço. 
E  mais  eu  soffrer  não  posso 
Que  me  façais  tanto  fero, 
Qu'estou  ja  posto  no  osso,. 
Porque  sou  vosso  e  revosso. 
Por  vida  de  quanto  quero. 

SOLINA 

Feros  está  cheia  a  rua. 
Ora  estou  bem  aviada! 

VILARDO 

Cupido,  por  vida  tua, 
Que  a  não  faças  tão  crua, 
Pois  que. te  não  faço  nada! 
Amor,  Amor,  mas  te  pido, 
Que  quanda  se  for  deitar, 
Que  le  digas  ai  oido: 
Devieis-vos  de  lembrar 
Neste  tempo  de  hum  perdido. 

SOUNA 

E  tu  ja»  fazes  coprinhas? 
Ainda  tu  trovarás? 


•        » 


597 

VILARDO 

Quem  eu?  por  estas  barbinhas, 
Que  se  vós  virdes  as  minhas, 
Que  digais  que  não  são  más. 

SOLINA 

Ora,  pois  me  quereis  bem, 
Dizei-me  huma.     ^ 

VlLARDO 

Ei-Ia  aqui ; 
E  vfíja  o  saibo  que  tem; 
Porque  esta  trovinha  assi. 
Saiba  qu'he  trova  do  assem. 

(Trota,) 

Passarinhos,  que  voais 
Nesta  manhãa  tão  serena, 
Sabei  que  só  minha  pena 
Pôde  encher  mil  cabeçais. 

SOLINA 

O  rifão  está  salgado. 
Essa  pena  te  dou  eu? 

VILARDO 

Vós  e  Amor,  que  de  malvado, 
Me  tee  melhor  empennado, 
Que  nenhum  virbte  seu. 
Pois  se  me  ouvíreis  cantar! 

SOLINA 

E  tu  és  também  cantor? 

VILARDO 

Canto  melhor  que  hum  açor. 


598 

Quereis  que  vos  venha  dar 
Musiqoeta  de  primor, 
E  que  vos  mande  tanger 
Muito  melhor  que  ninguém? 

SOLINA 

Ja  isso  quizera  ver. 

VIIARDO 

Querer-me-heis,  se  o  eu  fizer, 
Algum  pedaço  de  bem? 

SOLINA 

Querer-t€-hei  trinta  pedaços. 

VILARDO 

E  esse  querer  dará  fruito, 
Que  jne  tire  destes  laços? 

SOLINA 

E  que  fruito? 

VlLARDO 

Dous  abraços; 

9 

SOLINA 

Esse  fruito  custa  muito. 

VILARDO 

Esse  he  o  amor  qu'em  vós  ha' 
Pezar  de  minha  mãe  torta! 

SOLINA 

Ora  hi,  chamae  logo  lá 


/- 


599 

Vosso  amo  que  venha  cá, 
Porque  he  cousa  que  importa. 

VILARDO 

Logo? 

SOUNA 

Logo  nessas  horas. 

VILARDO 

Não  estarei  aqui  mais? 

SOLINA 

Não.  Ainda  ahi  estais? 
Vós  haveis  mister  esporas. 

VILARDO 

Irei,  porque  me  mandais. 

SCENAin 

(O  Pastob,  e  Venadoro  com  eUe,  feito  Pastor  J 

PASTOR 

Mas  de  un  mez  es  ya  pasado 
Que  en  esta  sierra  andais; 

Y  es  caso  mal  mirado 

Que  andeis  guardatído  ganado 
Por  una  que  tanto'  amais. 

Y  si  os  determinais 

En  querer  casar  con  ella, 
Juro  á  mi  que  nada  errais; 

Y  si  eso  es  para  habella, 
En  vano  cabras  guardais. 
Ya  me  distes  vuestra  fé 


J00_ 

(Sabendo  estas  lierras  todas): 
Yo  con  dia  me  engane, 
Que  luego  mandar  Uamé 
Quien  festejase  las  bodas. 
Y  agora  dicis  con  pena, 
Que  es  dura  cosa  casar: 
Pues  volveos  nora  buena. 
Que  no  babeis  de  enganar 
Con  palabras  Florímena. 

YENADORO 

Quem  se  ha  de  ter  coração 
Para  tamanho  temor? 
Que  em  mim  pegando  estão. 
De  huma  parte  a  razão, 
E  d'outra  parte  o  Amor. 
Também-  vejo  que  perdella 
Será  minha  perdição; 
Que  bem  me  diz  a  affeição, 
Que  pouco  faço  por  ella, 
Pois  não  desfaço  em  quem  são. 

PASTOR 

Dígoos^  si  por  bajeza 
Dicis  que  no  os  conviene,  - 
Daros  hé  una  certeza, 
Que  en  sangre  y  en  nobleza, 
Tanto  como  vos  la  tiene. 

VENADORO 

Pastor,  digo  que  daqui 
Farei  tudo  que  quizerdes ; 
E  se  mais  quereis  de  mi, 


Digo  que  vos  dou  o  si 
Para  tudo  o  que  quizerdes. 

PASTOR 

Dios  os  dé  su  bendicion; 
Y  pues  que  casais  con  ella, 
Yo  os  afirmo  en  conclusion, 
Que  aun  de  vos  y  mas  delia 
Verná  gran  generacion. 
Yo  me  voy  por  ella,  hijo, 
Tomadla  así  mal  compuesta; 
Verná  quien  haga  la  fiesta; 
Que  en  placer  y  regocijo 
Nos  fesleje  esta  floresta. 
• 

SCENA  IV 

VENÂBORO  ró 

Ó  ribeiras  tão  formosas, 
Valles,  campos  pastoris, 
Porque  vos  não  revestis 
De  novas  flores  e  rosas, 
Se  minha  gloria  sentis? 
Porque  não  seccais,  abrolhos? 
E  v^s,  água,  que  regando, 
Os  olhos  his  alegrando, 
Correi,  que  também  meus  olhos 
D'alegres  eslão  manando. 
Âh  pastora,  em  quem  espero 
Poder  viver  descansado  1 
Comtigo  guardarei  gado. 
Que  ja  eu  sem  ti  não  quero 
Nenhuma  alteza  (restado. 

TOVO  lY  26 


402 

Diga  o  que  quizer  a  gente, 
Tudo  terei  n'huma  palha, 
Porque  está  claro  e  evidente 
Que  não  ha  honra  que  valha 
Contra  a  vida  descontepte. 

SCENAV 

fTre$  Pastores  bailando,  e  eankmdo  de  terreiro,  diante  do  Pastor, 

que  traz  Florimena.) 

PASTOR 

Pues  el  amor  os  obliga 
Á  que  hagais  tan  buena  liga, 
Tomando  a  Dios  por  testigo. 
Daqui  os  la  entrego,  amigo, 
Por  muger  y  por  amiga. 

VENADORO 

Consentis  nisto,  Senhora? 

FLORIMENA 

Senhor,  em  tudo  consento. 

VENADORO 

Oh  grande  contentamento  I 

FLORIMENA 

Saiba  que  nunca  tégora 

Lhe  houve  inveja  ao  tormento. 

PASTOR 

Asi  lo  dices,  bobilla? 
Oh!  mala  dolor  os  duela! 
Pêro  no  es  maravilla 


405 

Quien  consiente  ansí  la  silla, 
CoDsienta  tambien  Ia  espuela. 

SCENA  VI 

(Tornão  a  bailar  e  cantar,  e  acabado,  entra  D.  Lusidardo,  e  o  Monteiro, 

que  andão  em  busca  de  Yenadobo.) 

LUSIDARDO 

Tres  dias  ba  ja  que  ando 
Por  esta  larga  espessura 
A  Venadoro  buscando ; 
E  o  que  delle  vou  achando 
He  como  quer  a  Ventura. 

MONTEIRO 

.  Senhor,  cuido  que  lá  vejo 
Huns  lavradores  caniar. 

LUSroARDO 

Hi  diante  perguntar. 

MONTEIRO 

Cumprido  he  seu  desejo. 
Se  a  vista  não  m'enganar. . 

LUSIDARDO 

Como  assi? 

MONTEIRO 

Elle  não  vé 
Aquelle  pastor  loução 
Com  huma  moça  pela  mão? 
Se  Venadoro  não  be, 
Nem  eu  o  Monteiro  são. 


404 

PASTOR 

Quien  veo  allá  asomar, 

Que  se  viene  á  nuestras  bodas? 

BOBO 

No  los  dejemos  llegar, 
Que  nos  veran  á  roubar, 
Juro  ã  mi,  las  migas  todas. 

LUSIDABDO 

OhVenadoro,  meu  filho! 
És  lu  este? 

VENADORO 

Tal  estou, 
Que  cuido  que  este  não  sou. 

LUSIDARDO 

Certo  que  me  maravilho 
De  quem  tanto  te  mudou. 
Como  estais  assi  mudado 
No  rosto  e  mais  no  vestido? 

VENADORO 

Ando  ja  n'outro  trocado, 
Tanto,  que  fiquei  pasmado 
De  como  fui  conhecido. 
E  se  Vossa  Mercê  vem 
Para  me  levar  daqui, 
Mais  ha  de  levar  que  a  mi ; 
E  ha  de  ser  quem  me  tem 
Todo  transformado. em  si. 

BOBO 

Eso  porque  lo  entendeis? 


405 

Por  las  migas  por  ventura? 
Voto  á  tal  no  llevareis : 
Por  mas  y  por  mas  que  andeis 
No  hareis  tal  travesura. 

YCNADORO 

Esta  formosa  donzella 
Em  mi  teve  tal  poder, 
Que  folguei  de  me  perder; 
Pois,  emfim,  vim  achar  nella 
O  que  não  cuidei  de  ser. 
Tanto  em  mi  pôde  esle  amor,  * 
Que  a  tenho  recebida; 
B  se  o  erro  grave  for. 
Aqui  quero  ser  pastor: 
Deixe-me  ter  esta  vida. 

LUSIDARDO 

He  certo  tal  casamento? 

VENADORO 

Tenha-o  por  cousa  segura. 

LUSmARDO 

Oh  grande  acontecimento  I 
Dest'arte  sabe  a  ventura 
Aguar  hum  contentamento! 

PASTOR 

Óigame,  Senor,  á  mi, 
Como  hombre  sábio,  discreto, 
Porque  acaeció  así, 
Y  lo  que  supo  hasta  aqui 


_m_.  . 

Lo  puede  tener  por  cierto. 
Mucbos  anos  son  corridos 
Que  en  esta  faente  abierta, 
En.  estos  Talles  floridos 
Hallé  dos  ninos  nascidos, 

Y  á  su  madre  casi  muerta. 
Los  ninos  chicos  críé, 

(Y  desto  cierto  me  arreo)  - 

Y  á  la  madre  sepulte; 

Y  despues  un  gran  deseo 
De  saber  esto  tome. 
Como  yo  fuese  ensenado 
De  cbico  á  la  mágica  arte 
Por  mi  padre,  que  es  finado; 
Muy  conoscido  y  noínbrado 
Soy  por  lai  en  toda  parte. 
Yo  con  yervas  de  Ia  âerra, 
Ânimales  y  otras  cosas 
Haré,  si  el  arte  no  se  yerra, 
Que  desciendan  á  la  tierra 

Las  estrellas  luminosas.  I 

Soy,  en  fin,  certificado 
Que  la  madre  de  los  dos 
Fué  Princeza  de  alto  estado, 

Y  por  un  caso  nombrado 

La  trajo  á  esta  tierra  Dios.  | 

El  macho,  como  creció, 

Deseoso  de  otro  bien, 

Á  la  Corte  se  partió : 

La  hembra  es  esta  por  quien 

Vuestro  hijo  se  perdió. 

Y  si  mas  quiere,  Senor, 
De  mi  arte,  prestamente 


407 

Dello  le  haré  sabedor; 
Mas  ha  de  ser  de  tenor 
Que  no  lo  sepa  la  gente. 

LUSIDARDO 

Mas  vamos-nos,  se  quereis, 
Que  não  soffro  dilação, 
A  minha  casa,  e  então 
Lá  disso  me  informareis. 
Que  caso  he  de  admiração. 
E  vós,  filho,  não  cuideis 
Que  a  gloria  de  vos  achar 
Não  he  tanto  d'estimar, 
Qu'em  qualquer  'stado  que  esleis. 
Não  folgue  de  vos  levar. 


ACTO  QUINTO 

SCENA  I 

(Solina,  Diokysa  e  Filodrmo.) 

SOLINA 

Eis  Filodemo  lá  vem : 
Asinha  acudio  ao  leme. 

DIONYSA 

Isso  he  de  quem  quer  bem; 
Mas  não  sei  se  o  vio  alguém, 
Porque  quem  espera  teme. 
Agora  me  quizera  eu 
Daqui  cem  mil  léguas  ver. 

FILODEMO 

Folgara  eu  assi  de  ser, 


408 

Porqu'este  cuidado  meu 

Fora  mais  de  agradecer. 

Que  quando  por  accidente 

A  fortuna  desastrada 

Vos  apartasse  da  gente 

N'bum  deserto,  onde  somente 

Das  feras  fosseis  guardada; 

Lá  por  ferro,  fc^o  e  ágoa 

Buscar  minha  morte  iria; 

A  voz  ronca,  a  lingua  fria, 

Tamanho  mal,  tanta  mágoa 

Ás  montanhas  contaria. 

Lá,  mui  contente  e  ufano 

De  mostrar  amortao  puro, 

Poderia  ser  que  o  dano. 

Que  não  move  hum  peito  humano, 

Que  movesse  hum  monte  duro. 

DIONYSA 

Nesse  deserto  apartado 
De  toda  a  conversação 
Merecieis  degradado 
Por  justiça,  com  pregão 
Que  dissesse:  Por  ousado. 
E  eu  tambein  merecia 
Metida  a  grave  tormento. 
Pois  que,  como  não  devia. 
Vim  a  dar  consentimento 
A  tão  sobeja  ousadia. 

FILODEMO 

Senhora,  se  me  atrevi, 

Fiz  tudo  o  que  Amor  ordena; 

E  se  pouco  mereci.  ^ 


409 

Tudo  o  que  perco  por  mi, 
Mereço  por  minha  pena. 
E  se  Amor  pôde  vencer, 
Levando  de  mi  a  palma, 
Eu  não  lho  pude  tolher; 
Que  os  homens  não  tee  poder 
Sobre  os  affectos  da  alma. 
E  ainda  que  pudera 
Resistir  contra  o  mal  meu, 
Saiba  que  o  não  fizera; 
Que  pouco  valera  eu. 
Se  contra  vós  me  valera. 
Não  deve  logo  ter  culpa 
Quem  se  venceo  d'armas  tais: 
Assi  que  nisto,  e  no  mais, 
Tomo  por  minha  desculpa 
Vós  mesma  que  me  culpais. 
E  se  este  atrevimento 
Com  tudo  for  de  culpar, 
Acabae  de  me  matar; 
Que  aqui  tenho  hum  sofifrimento 
Que  tudo  pôde  passar. 
E  se  esta  penitencia. 
Que  faço  em  me  perder, 
Algum  bem  vos  merecer, 
Fique  em  vossa  consciência 
O  que  me  podeis  dever. 
Que  dizeis  a  isto,  Senhora? 

DIONTSA 

l^u  que  vos  posso  dizer? 
Ja  não  tenho  em  mi  poder, 
Segundo  me  sinto  agora, 


440 

Para  poder  responder. 
Respondei-lhe  vós,  Solina, 
Pois  que  a  vós  me  entreguei. 

SOLINA 

Bofe  não  responderei : 
Veja  ella  o  que  determina. 

DIONTSA 

Não  o  vejo,  nem  o  aei. 

SOUNA 

Pois  eu  também  não  sei  nada. 

DIONTSA 

Porque? 

SOUNA 

Do  que  eu  fizer, 
Se  despois  se  arr^ender, 
Dirá  qu'eu  fui  a  culpada. 

DIONTSA 

Eu  só  quero  a  culpa  ter. 

SOLINA 

Senhora,  por  não  errar, 
Não  quero  que  fique  em  mim. 
Esta  noite  no  jardim  "^ 

Ambos  podem  praticar 
Gomo  isto  venha  a  bom.  fim. 
Lá  poderão  ajustar 
Entr'ambos  o  parecer; 
Qu'eu  não  m'hei  nisso  de  achar, 


4H 

Que  não  quero  temperar 
O  que  outrem  ba  de  comer. 

DIONTSÂ 

Vós  vedes  a  torvação, 
Que  lá  nessa  casa  vae? 

SOLJNA 

Dá-me  cá  no  coração 

Que  he  vindo  o  Senhor  seu  pae 

Com  o  Senhor  seu  irmão. 

DIONYSA 

Filodemo,  hi-vos  embora, 
Fallae  depois  com  Solina. 

SOUNA 

Vamos-nos  também,  Senhora, 
Receber  seu  pae  lá  fora; 
Não  venha  sentir  a -mina. 


SCENA II 

(ViLARDO  e  Doloroso,  que  vem  dar  hum  descante  a  Souna  com  os  Músicos,) 

VILARDO 

Assi  que  te  contava,  Doloroso,  destas  em  que  sempre  andão 
rugindo  as  sedas. 

DOLOROSO 

Avante,  que  bem  sei  que  o  não  dizeis  polas  sedas  de  Veneza. 

VILARDO 

Ja  sabeis  que  esta  nossa  Solina  he  tão  Celestina,  que  não 
ha  quem  a  traga  a  nós. 


1 


112 


DOLOROSO 

Logo  parece  moça  brigosa,  que  por  dá  cá  aqaellas  palhas, 
dará  e  tomará  quatro  espaldeiradas;  e  ao  outro  dia  quem  ha  de 
cuidar  que  huma  mulher  de  sua  arte  ha  de  querer  bem  a  hum 
parvo  como  a  ti?  porque  estas  taes  são  como  homens  sisudos; 
se  de  noite  se  achão  em  algum  arruido,  onde  possão  fugir  sem 
serem  conhecidos,  facilmente  o  fazem;  e  ao  outro  dia  quem  ha 
de  cuidar  que  hum  tão  honrado  havia  de  fugir?  Outros  dizem: 
Bem  pôde  ser,  porque  noite  escura  he  capa  de  judeos  e  de  en- 
vergonhados. 

VII^RDO 

Mui  gentil  comparação  he  esta.  Mas  assi  que  te  dizia,  o  ou- 
tro dia  assi  zombando  lhe  prometti  de  lhe  dar  huma  musica,  e 
ja  chamei  outros  dous  meus  amigos,  que  logo  hão  de  vir  aqui 
ter  comnosco. 

DOLOROSO     ^ 

Que  tal  he  a  musica  que  determinas  de  lhe  dar?  Não  seja 
de  siso;  porque  será  a  maior  parvoice  do  mundo,  porque  não 
concerta  com  a  parvoice  que  tu  finges. 

VILARDO 

A  musica  não  he  senão  das  nossas;  mas  faço-te  queixume, 
que  nem  com  hum  cão  de  busca  pude  achar  humas  nesperas  por 
toda  esta  terra. 

DOLOROSO 

Nem  as  acharás  senão  alugadas;  mas  eu  não  sou  de  opi- 
nião que  teus  amores  te  custem  dinheiro.  Ora  ja  lá  apparecem 
os  outros  companheiros,  e  eu  também  ajudarei  de  telhinha  òu 
de  assovio;  e  vem-me  isto  á  popa,  porque  daqui  iremos  á  porta 
da  minha  padeirinha,  porque  ando  com  ella  n'hum  certo  reque* 
rimento. 

VILARDO 

Vossas  Mercês  vem  ao  próprio;  boa  seja  a  vinda.  As  gui- 
tarras vem  temperadas? 


4\õ 


DOLOROSO  ' 

Tudo  vem  como  cumpre:  mandae  vigiar  a  Justiça  entretanto. 


t* 


VILARDO 

Ora  sus:  fazei  como  se  temperásseis  cabeça  de  pescada  com 
seu  figado  e  bucho,  e  canada  e  meia,  que  nunca  meu  pae  fez 
tamanho  gaslo  na  sua  Missa  nova^ 

(Netíe  passo  se  dá  a  musica  com  todos  quatro,  hum  tange  guitarra,  outro  peniem, 
outro  teihinha,  outro  canta  cantigas  muito  velhas,  e  rio  melhor  «íizYilardo:) 

Estae  assi  quedos,  que  eu  sinto  quem  quer  que  he. 

DOLOROSO 

Justiça,  pelo  corpo  de  tal !  Ora  sus :  aqui  não  ha  outro  va- 
lhacouto que  nos  valha,  que  pôr  os  pés  ao  caminho,  e  mostrar- 
Ihe  as  ferraduras. 

SGENA  m 

O  MONTEIRO,  só 

Gomo  he  gracioso  este  mundo,  e  como  he  galante!  E  quão 
gracioso  seria  quem  o  pudesse  ver  de  palanque  com  carta  d'al-  ^ 
forria  ao  pescoço,  porque  não  podessem  entender  jielle  Meiri- 
nhos, Almotacés  da  limpeza,  trabalhos,  esperanças,  temores,  com 
toda  a  outra  cabedella  de  enfadamentos  1  Ora  notae  bem  de  quan- 
tas cores  teceo  a  Fortuna  esta  manta  d' Alentejo :  perdeo-se  Ve- 
nadoro  na  caça,  eis  a  casa  toda  envolta  como  rio:  o  pae  enfa- 
dado, a  irmã  triste,  a  gente  desgostosa;  tudo,  emfim,  fora  do 
couce;  e  o  galante  aposentado  nos  matos  com  trajos  mudados 
como  camaleão,  decepado  dos  pés  e  das  mãos,  por  huma  serra- 
nica  d' Alentejo;  e  veio  acaso  a  sahir  de  maneira  fora  da  madre, 
que  a  recebeo  por  mulher;  e  rapa  óleo  e  chrisma  de  quem  he, 
e  renega  todas  as  lembranças  de  seu  pae;  pois  tanto  tomou  ao 
pé  da  letra  o  que  Deus  disse:  Por  esta  deixarás  teu  pae  e  mãe. 
E  attentae  isto  por  me  fazer  mercê :  cuidareis  que  este  caso  era 


414 

■  • 

solus  p^egrimis:  sabei  que  os  não  dá  a  fortuna  senão  aos  pa- 
res, como  quedas.  Dionysa  mais  mimosa  e  mais  guardada  de 
seu  pae  que  bicho  de  seda,  moça  sem  fel  como  pombinha,  que 
nos  annos  não  tinha  feito  inda  o  enequim ;  mais  formosa  que 
huma  manhãa  do  S.  João,  mais  mansa  que  o  rio  Tejo,  mais  branda 
que  hum  soneto  de  Garcilasso,  mais  dehcada  que  hum  pucari- 
nho  de  Natal ;  emfim,  que  por  meia  hora  de  sua  conversação  se 
poderá  soflfrer  huma  pipa  com  cobra  e  gallo  e  doninha,  como  a 
parricida»  com  tanto  que  dissesse  o  pregão  o  porque;  porque 
vos  não  fieis  em  castanhas  (não  sei  se  diga,  se  o  cale,  que  de 
magoado  me  trava  pola  manga  a  falia  da  garganta;  mas,  .com 
tudo,  não  ha  quem  se  tenha)  seu  pae  a  achou  esta'noite  no  jar- 
dim com  Filodemo,  mais  arrependida  do  tempo  que  perdera, 
que  do  que  alli  perdia:  eu,  coitado  de  mi,  que  meta  os  dentes 
nos  cabeçaes  se  desejar  ave  de  penna. 

SCENA  IV 

(DuRiANO  e  o  Monteiro.) 
DURIANO,  como  cantando 

Ti  ri  ri,  ti  ri  rão. 

MONTEIRO 

Que  he  isso.  Senhor  Duriano?  Que  descuidos  são  esses? 
Onde  he  cá  a  ida  agora? 

DURIANO 

Vou  assi  como  parvo,  porque  o  melhor  he  não  saber  ho- 
mem nada  de  si. 

MONTEIRO 

Que  dizeis  a  vosso  amigo  Filodemo,  que  assi  se  soube  apro- 
veitar do  tempo  que  ficou  só  em  casa? 

DURIANO 

Eu  que  hei  de  dizer?  Digo  que  descreio  desta  minha  capa, 
se  não  he  isso  caso  para  sahir  com  elle  a  desafio. 


4\h 


MONTEIRO 

Porque? 

DURIÂNO 

Porque  não  b^sta  que  lhe  dê  a  Fortuna  gostos  tão  medidos 
sobre  o  funil,  que  lhe  pôe  nos  braços  Dionysa,  a  mais  formosa 
dama  que  nunca  espalhou  cabellos  ao  vento,  senão  ainda  para 
o  assegurar  em  sua  boa  ventura,  lhe  vem  a  descobrir,  que  he 
filho  de  não  sei  quem,  nem  quem  não. 

MONTEIRO 

Esses  são  outros  quinhentos.  Cujo  filho  dizem  que  he?  que 
eu  ouvi  ja  sobre  isso  não  sei  que  fabulas. 

DURIANO 

Dir-vo-lo-hei ;  pasmareis,  que  não  he  menos  que  Príncipe, 
e  peor  ainda.  Nunca  ouvisles  dizer  de  hum  irmão  do  Çenhor 
Dom  Lusidardo  que  aggravado  dei  Bei,  se  foi  para  os  Reinos 
de  Dinamarca? 

MONTEIRO 

Tudo  isso  ouvi  ja. 

DURIANO 

Pois  esse  «galante,  em  satisfação  de  muitas  mercês  que  El- 
Rei  de  Dinamarca  lhe  fizera,  meteo-se  d'amores  com  huma  sua 
filha,  a  mais  moça;  e  como  era  bom  justador,  manso,  discreto, 
galante,  partes  que  a  qualquer  mulher  abalão,  desejou  ella  de 
ver  geração  delle;  senão  quando,  livre^nos  DeosI  se  lhe  começou 
d'encurtar  o  vestido;  e  porque  estes  sirgos  não  se  desistem  em 
nove  dias,  senão  em  nove  mezes,  foi-lhe  a  elle  então  necessário 
acolher-se  com  ella,  porque  não  colhessem  a  ella  com  elle:  aco- 
Iheo-se  em  huma  galé:  e  vede  laPrinceza  em  huma  galera  nueva, 
con  el  marinero  á  ser  marinera.  Finalmente,  vindo  navegando 
todo  esse  Oceano  Germânico,  bancos  de  Fraudes,  mar  d'Ingla- 
terra,  e  trazidos  á  costa  d'Hespanha,  não  os  quiz  aVentura  dei- 
xar gozar  do  repouso  que  nella  buscavão:  deo-lhe  subitamente 


4«6 

tamanha  tormenta,  que  sem  remédio  deo  a  galé  á  costa,  onde 
feita  pedaços,  morrerão  todos  desastradamente,  sem  escapar  mais 
que  a  Princeza  com  o  que  trazia  na  barriga,  a  quem  parece  que 
a  i<*ortuna  guardava  para  dar  o  descanso,  que  a  seu  pae  e  mãe 
negara.  Sahio  finalmente  a  moça  na  praia,  tal  qual  o  temeroso 
naufrágio  deixaria  huma  Princeza  mais  delicada  que  hum  armi- 
nho; e  indo  assi  a  pobre  mulher  pola  terra  estranha  e  despo- 
voada, e  sem  quem  a  encaminhasse  por  onde,  depois  de  t^  per- 
dido toda  a  esperança  de  ter  algum  remédio,  derão-lhe  as  dores 
de  parto  junto  de  huma  fonte,  aonde  em  breve  espaço  lançou 
duas  crianças,  macho  e  femia,  como  vizagras.  E  como  a  fraca 
compreição  da  delicada  mulher  não  pudesse  sustentar  tantos  e 
tão  desacostumados  trabalhos,  facilmente  deo  a  vida,  que  tanto 
havia  que  desejava  de  dar,  deixando  vivos  aquelles  dous  retra- 
tos delia  e  de  seu  pae,  que  por  causa  de  seus  nascimentos  a  vida 
lhe  tirarão,  como  acontece  a  viboras.  E  como  as  crianças  fossem 
destinadas  ao  que  vedes,  não  faltou  hum  pastor  que  as  criasse, 
que  alli  veio  ter,  dando  a  mãe  a  alma  a  Deos:  de  maneira  que, 
por  não  gastar  mais  palavras,  o  machp  he  vosso  amigo  Filodemo, 
e  a  femia  he  a  serrana  Florimena,  mulher  que  he  ja  deVenadoro. 

MONTEIRO 

Estranhas  cousas  me  contais.  Assi  que  logo  de  seu  pae  her- 
dou Filodemo  namorar  a  filha  do  Senhor  que  serve:  não  haverá 
logo  por  mal  o  Senhor  Dom  Lusidardo  tomar  por  genro  e  nora, 
quem  acha  por  sobrinhos. 

DURIÂNO 

Sabei  que  chora  de  prazer  com  elles,  que  ja  diz  que  acha 
que  Filodemo  se  parece  natural  com  seu  irmão,  e  Florimena  com 
sua  mãe. 

MONTEIRO 

Dae-me  a  entender,  como  se  crêo  tão  de  ligeiro  o  Senhor 
Dom  Lusidardo  de  quem  isso  contou. 


{17 


PLIUANO 

No  caso  não  ha  dúvida,  porque  o  pastor  que  lii  achastes, 
lhe  certificou  todo  o  caso;  e  fez  ao  pastor  muitas  mercês,  e  ntan- 
dou  fazer  muitas  festas  solemnes.  Venadoro,  casado  com  sua  mu- 
lher e  prima,  e  Filodemo,  que  o  mesmo  parentesco  tee  com  a 
Senhora  Dionysa,  estão  fora  de  crer  tamanho  contentamento; 
cuido  que  zombão  delle. 

MONTEinO 

Ora  deixa-me  ir  a  ver  o  rosto  a  esse  velhaco  de  Filodemo; 
pois  de  meu  matalote  se  me  tornou  Senhor.  Creio  que  vem  o 
Senhor  Dom  Lusidàrdo:  dissimulemos. 


SCENA  V 

(Dom  Lusidàrdo  rom  Vexadobo,  qne  traz  Flobimkna  jwla  mão, 

e  Fii.0DF.3J0  a  Dionysa.) 

LUSlDARDO 

Quem  não  ficará  pasmado 
*    De  ver  que  por  tal  caminho 
Tee  a  Ventura  ordenado. 
Filodemo,  meu  criado, 
Vir  ser  meu  genro  c  sobrinho! 
Quem  não  pasmará  agora 
De  ver  a  ventura  minba. 
Que  tee  tornado  n'hum'hora 
Florimena,  huma  pastora, 
Ser  minha  nora  e  sobrinha! 
Dem-se  graças  ao  Senhor, 
Cujo  segredo  he  profundo; 
Pois  que  vemos  que  quiz  dar 
A  ventura  e  o  amor 
Por  prazeres  deste  mundo. 


TOMO  IV  X  2 


Zé 


NOTAS  ÁS  REDONDIIHAS 


N'esta  denomínaçílo  fc  comprehendeni  as  poesias  mepores  do  nosso  Poetn. 
voltas,  glosas,  esparsas,  chistes,  endechas,  viiancicos,  etc;  umas  eróticas,  e  que 


syllabo  até  o  octosyiiabo,  principal  typo  da  trova  antiga  ou  poesia  primitiva  por- 
tugueza,  porque  essa  a  encontrará  o  leitor  nas  artes  poéticas;  só  direi  que  n'este 
género,  como  em  todas  as  outras  regiões  da  poesia,  sobresaiu  sempre  o  nosso  Poe- 
ta. Bastava  a  paraphrase  do  psalmo  136«  poesia  que  tão  admirada  foi  no  seu 
tempo,  para  estabelecer  a  reputação  de  qualquer  poeta  que  não  fosse  Camões; 
graciosas  são  alem  d'isto  outras  quando  se  dirige  a  damas,  ou  responde  aos  chis- 
tosos apodos  das  mesmas,  ou  graceja  com  os  amigos;  ás  vezes  porém  ferinas, 
quando  estende  o  arco  e  dardeja  a  satyra;  este  género  de  poesia  ligeira,  que 
António  Ferreira  embalde  quiz  desterrar : 

A  antiga  trova  deixo  ao  vulgo, 

reagiu  comtudo  no  seu  tempo,  c  veiu  ainda  fazQr  as  delicias  de  nossos  pães  e  avós 
nos  decantados  outeiros,  academias  poéticas,  certames  o  nos  salões  em  improvi- 
sos, que  muitas  vezes  davam  logar  a  brilhar  a  agudeza  de  engenho  de  poetas, 
eomo  Bocage  e  outros. 

Sóbolos  rios  que  vão,  etc. 

Estas  redondilhas,  diz  um  auctor  contemporâneo  de  Camões,  o  editor  da  edi- 
ção dos  Lusíadas  de  Í584,  que  foram  feitas  por  occasião  do  naufrágio  da  China, 
e  lhe  chama  Cancioneiro,  o  que  dá  a  entender  que  ellas  faziam  parte  de  uma 
collecção  mais  numerosa  de  poesias  do  mesmo  género;  Manuel  Severirn  de  Faria, 
seguindo  a  tradição  que  havia,  também  o  aflirma,  bem  como  Manuel  de  Faria  c 
Sousa.  O  sr.  bispo  de  Vizeu  segue  por^m  uma  opinião  different*^*,  fundando-se  es- 
pecialmente em  parecer  que  o  Poeta  tinha  o  desterro  a  que  allijjje  n>stns  redon- 
dilhas como  castigo  de  erro  próprio: 

A  pena  deste  desterro, 
Essa  nunca  .«eja  ouvida 
Em  castigo  do  mvn  erro. 


i': 


20 

O  (jue  está  em  conlradicção  com  aquclie  verso  dos  Luiiada»  em  que  se  queixa 
da  injustiça  d'es(e  degredo : 

Quando  for  o  injusto  mando  executado. 

É  pois  de  opinião  que  fornm  escriptas  em  occasiAo  diíferente  da  do  naufrá- 
gio, e  conjectura  que  o  foram  quando  leve  logar  a  jornada  para  a  índia,  que  o 
FoeLi  reputava  como  desterro  a  que  deram  causa  os  sfiis  erros  amorosos.  Se  con- 
rordo  com  o  sr>.J)íspo  em  que  o  Poeta  nVstas  rednndilhns  se  refere  vagamente 
e  em  gerni,  nâo  só  a  esta  epocha,  mas  a  toda  a  sua  vida  transacta,  abraço  com- 
tudo  a  opini;to  de  um  escriptor  contemporâneo,  e  de  outros  que  mais  se  avizi- 
nharam do  tempo  cm  que  vi\eu  o  Poeta,  que  asseveram  que  foram  compostas 
quando  teve  logar  o  naufrágio. 

Fossem-no  porém  n^esta  ou  n'outra  occasiíio,  o  que  é  certo  é  que  foram  es- 
criptas em  tempo  que  o  poeta  se  achava  animado  de  sentimentos  religiosos,  e  em 
que  algumas  d*estas«atastrophes  da  vida^cordam  a  alma  adormecida  provocando 
o  arrependimento  de  culpas.  Se  foram  feitas  pelo  naufrágio,  corrobora-se  mais 
a  opiíiiáo  que  já  emittinios  de  que  só  em  Goa  recfbeu  a  notipia  da  morte  de 
D.  Latharina  de  Athaíde;  a  noticia  d'esta  morti*  devia  ir  nos  navios  que  parti- 
ram para  a  índia  no  anno  de  15o7,  porquanto  falleceu  depois  da  partida  das  naus 
de  Lisboa  no  anno  antecedente;  c  se  os  navios  da  expedição  da  China  que  o  de- 
viam trazer  a. Goa,  sairam  d'esta  cidade  antes  da  chegada  das  naus  do  reino, só 
em  Goa  á  sua  volta  viria  o  Poeti  a  receber  tAo  triste  nova. 

O  que  me  dá  logar  a  acreditar  que  escreveu  estas  redondil has  em  occasiSo 
em  que  acontecimento  muito  extraordinário  da  vida  provoca  a  contriçAo,  é  que 
alem  do  seu  contexto  todo  biblico,  pois  é  a  paraphrase  do  psaimo  136,  teve  tam- 
bém em  parte  o  pensamento  da  conversão  de  Boscan,  de  quem  imita  algumas  for- 
mas de  estylo,  aiiidaque  muito  de  passagem,  na  frequente  repetição  do  — ali  vi. 

Vi  mi  alma  como  va,  etc. 

Vi  mi  sps^)  romo  es,  etc.  ^ 

« 

Vi  la  parle  que  se  muestra,  etc. 

Vi  mis  quatro  calidades.  ete. 

e  pro«eguo  : 

Ali  \í  el  entendiníienlo 
Con  hl  vcrdad  por  objeclo 
E  vi  todo  el  iv^'íiiiiento, 
,  Lo  passado  e  por  venir 

Todo  lo  puro  delante. 
* 

Estas  redond ilhas  serão  de  uma  obscura  interpretação  para  quem  não  adver- 
tir que  o  Poeta  toma  umas  vezes  Sião  nor  Lisboa  e  Babylonia  pela  índia,  e  ou- 
tras ve/.es  a  mesuia  Sião  pelo  céu  e  Baoylonia  pelo  mundo  em  geral. 

Sentado,  sobre  os  rios  de  Babylonia  chora  as  lembranças  de  Sião,  c  qeante 
n*e1la  passou,  comparando  Babylonia  ao  mal  presente,  Sião  ao  tempo  passado. 
Ali  pondo-se-lhe  presente  as  lembranças  do  tempo  transcorrido,  viu  que  todo  o 
bem  passado  não  é  gosto,  mas  é  magna.  E  considerando  em  todas  as  variedade», 
inconstancias  e^esenganos  que  vem  a  quem  se  fia  da  ventura,  dependurou  a  sua 
frauta  nos  salgueiros,  aquella  f rauta  que  n  outro  tempo  fazia  mover  os  montes  e 
tornar  os  abrolhos  em  rosas,  offerecendo-a  â  fama. 

Porém  não  iulgue  ninguém  que  o  deixar  o  canto  da  mocidade  n'esta  e«pe8- 
sura  será  obra  da  idade  o  que  é  força  da  ventura,  pois  postoque  por  tão  forçosos 
motivos  deixe  o  canto,  nunca  deixani  a  causa  d'elle: 


/ 


Mns  em  tristezas  e  nojos, 
Em  gosto  e  contentamento; 
For  sol,  por  neve,  por  vento, 
Tendré  presente  á  los  ojos, 
Por  quien  muero  tan  contento. 

E»tes  dois  últimos  versos  são  o  remate  do  soneto  de  Boscan,  que  come^-a : 

Poneme  en  la  vrda,  ele. 

Mas  lembranças  da  aíteiçilo  que  ali  o  tinham  captivo  lhe  perguntaram  por- 
que não  usava  do  seu  doce  canto,  pois  sempre  ajuda  a  passar  qualquer  trabalho 
passado.  Ao  que  responde:  Como  dirá 

Qt)em  tão  alheio  está  de  si, 
Doce  canto  em  terra  alhea; 

porque  se  quem  trabalha  canta  por  mejios  can«ar,  elle  engeita  o  descanito;  c 
86  a  paixão  o  quebrantar  antes  morra  de  tristeza  do  que  cante  por  abranda-la: 
e  que  maior  contentamento  do  que  morrer  de  pura  tristeza? 

Náo  cantará  na  frauta  o  que  passa  e  passou  já,  porque  a  penna  cansará,  mas 
elle  não. 

Que  se  vida  tão  pequena 

Se  acrescenta  em  terra  estranha, 

E  se  amor  assi  o  .ordena, 

Rasão  he  que  canse  a  pena 

D' escrever  pena  tamanha. 

Porém  se  cansar  para  exprimir  os  seus  affectos  amorosos,  não  cansará  para 
voar  a  memoria  a  Sião. 

Muda  agora  a  allegoria  representando  Babylonia  a  terra  e  os  seus  vicios,  c 
Sião  o  céu.  Se  por  algum  motivo  apagar  da  alma  a  lembrança  de  Sião,  a  sua 
alma  seja  dada  a  perpetuo  esquecimento: 

A  pena  deste  desterro, 
Qu'eu  mais  desejo  esculpida. 
Km  pedra,  ou  em  duro  ferro, 
Essa  nunca  seja  ouvida, 
Em  castigo  de  u)eu  erro. 

♦ 

É  diílicil  distinguir  que  degredo  é  este  a  que  aqui  allude,  se  se  refere  a  al- 
gum degredo  real,  como  julga  Faria  e  Sousa,  pretendendo  que  seja  o  imaginá- 
rio degredo  a  que  o  condemnou  o  governador  Francisco  Barreto,  ou  se  cm  g\[?ral 
á  terra,  considerada  como  exilio  temporário  em  relação  ao  céu  e  vida  eterna. 

Hompe  em  seguida  o  Poeta  em  aroentes  protestos  de  contrição,  prometlendo 

só  cantar  canções  divinas,  e  converte  toda  a  sua  saudade  para  o  ccu : 

» 

E  aquella  humana  figura, 
Que  cá  me  pude  alterar. 
Não  he  quem  se  ha  de  buscar; 
He  raio  da  formosura, 
Que  só  se  devo  d'amar. 

Descreve  a  luta  do  amor  terreno  que  o  combate  com  o  celeste,  os  aíTectos 
que  o  captivam,*snphistas  que  lhe  ensinaram  maus  caminhos  por  direitos: 

Destes  o  mando  tyrano 
M'obríga  com  desatino 


422 

A  caniar  «10  som  do  (fano 
Cantares  d'amor  profano, 
Por  versos  d'amor  divino. 

« 

Como  ha  de  porém  cantar  a  canção  que  se  deve  ao  Senhor?  tanto  pôde  o  po- 
der da  graça,  que  faz  que  se  suba  da  belleza  parti^^ular  para  a  geral. 

Fícjue  pois  pendurada  a  frauta  e  tome-se  a  lyra  para  cantar  Jerusalém  sa- 
grada livre  de  Babylonia;  e  se  mais  se  curvar  a  accidentes  mundanos  risque-se 
tudo  quanto  já  fez  do  grande  livro  dos  Viventes.  O  Poeta  no  seu  canto  religioso, 
que  prosegue  como  inspirado,  pede  a  assistência  do  céu  contra  a  fraqueza  hu- 
mana, que  arrase  os  vicios  que  o  tentam,  e  derrube  os  maus  affectos  que  o  que- 
rem derrubar  a  elle  do  alicerce. 

Beato  só  quem  pôde  resistir  ás  tentações  carnaes,  afogando  os  maus  pen- 
samentos logo  ao  nascer,  e  os  desfízor  com  a  penitencia,  pondo  o  pensamento 
n'aquella  carne  que  esteve  já  na  Cruz.  Beato  quem,  posto  o  pensamento  no  céu, 
julga  por  baixeza  os  faustos  do  mundo. 

Ditoso  quem  se  partir 
Para  ti,  terra  excellente, 
Tilo  justo  e  tfto  penitente, 
Que  despois  de  a  ti  subir, 
Lá  descanse  eternamente! 

Terminam  estas  admiráveis  redondilhas  com  esta  exclamação,  que  bem  de- 
nota que  foram  feitas  achando-se  o  Poeta  contrlcto  das  suas  culpas;  seguramente 
quanao  teve  logar  o  naufrágio. 

Sóbolos  rios  que  vSo,  etc. 

No(a  Faria  e  Sousa  como  vicioso  este  modo  de  dizer;  a  edição  de  1595  traz: 
Sobre  os  rios.  É  a  traducção  do  primeiro  verso  do  psaimo  136.  -Super  flumina 
Bahylonis,  illic  sedimus  et  /levimus:  cum  reeordaremur  Sion»,  etc.  De  Babylonia 
com  allusão  á  índia  veja-se  o  soneto  cxciv. 

Nos  salgueiros  pendurei,  etc. 

Terceiro  verso  do  Psaimo:  «•  Quia  illic  interrojaverunt  noi,  qui  captiws  âuxe- 
runt  noSy  verba  cantionum». 

Como  dirá  respondi, 
Quem  alheio  está  de  si, 
Doce  canto  em  terra  alheia. 

Verso  quarto  do  psaimo:  «Quomodo  cantabimus  canticum  Domini  in  teiixt 
aliena?»  * 

Terra  beinaventurada 
Se  por  algum  movimento. 

Verso  quinto  do  psaimo:  "Sioblittis  fuero  tui Hierusalem,  ohlivioni  delur  dex- 
tra mea».  lmít.ição  de  Job,  cap.  19,  em  que  rnanifesta  os  mesmos  desejos.  nQm$ 
mihi  Iribuat,  ut  scribantur  sermones  meif  Quis  mihi  det,  ui  exarentur  in  libro  slffio 

foreo,  et  plumbi  lamina,  vel  relte  sculpanlur  in  siíice. 

■ 

A  minha  lingua  se  apegue. 
Verso  sexto:  "Adhfpreat  lingua  mea  faucibus  méis,  $i  non  miminero  tni», 

K  aquella  humana  figura. 


425 

Imitação  do  Dante,  no  Paraíso  e  nas  Rimas.  ^ 

|Ie  sombra  daquella  idea. 

Dante,  Paradisê,  Canto  m. 

Ciò  que  no  maere  e  ciò  que  no  paò  rnoríre 
Non  é  si  no  splendor  daquella  idea 
Que  partorjnce  amando  il  nostro  sere. 

E  se  eu  mais  der  a  cerviz. 

Torna  a  tomar  o  fio  do  psalino. 

Risque-se  quanto  ja  fiz 
Do  grdo  livro  dos  viventes. 

Psalmo  68:  •DeUantur  de  libro  viveníium;  :t  cumjustis  non  scrihanlur». 

Canta-se  a  visáo  de  paz. 
HierusaUm  quer  dizer  Visão  de  paz. 

Os  ruins  filhos  de  Edof).  > 

Entcnde-se  os  vicíos  e  peccados.  Edom  foi  o  nome  de  Esau.  «Hic  sunt  autem 
generationes  Esau  ipse  est  Edom'».  Genes.  Edom  quer  dizer  terreno. ' 

Estes  mie  tão  furiosAs 
Gritando  vem  a  escalar-roe. 

Verso  sétimo  do  psalmo : « Qui  dicunt,  exinanile,  exmanile  usque  ad  {andamen- 
tum  in  ea ». 

E  tu,  ó  carne,  qu'encurtas, 
Filha  de  Babei  tão  feia. 

Verso  oitavo  do  psalmo:  «fYíía  Babylonis  mísera:  bealus  qui  relribuet  tíbi  re- 
tributionem  quam  retribuisti  nobi.<». 

Emfim  cabeça  do  canto. 

Canto -entende- se  por  pedra  e  nSo  por  musica;  assim  usou  o  Poeta  cm  vários 
logares.  Ode  iii,  estancia  x : 

Cessou  de  alçar  Sysifo  o  grave  canto. 

Lusíadas,  Canto  vii : 

Em. quem  quer  reprovar  da  igreja  o  canto. 

Ditoso  quem  se  partir. 

4 

\ 

'  Esta  copla  devera  ser  de  dez  versos  como  as  outras;  em  todas  as  edições  diz 
Faria  e  Sousa  que  é  de  dez,  porém  é  porque  a  xxxv  inclue  três  quintilhas,  e 
sendo  erro  das  copias  ou  da  imprensa,  não  querendo  que  fosse  com  elle,  deixou 
esta  reparada  no  fim.  Diz  mais  Faria  e  Sousa  que,  ou  se  perdeu  uma  d'eilas,  ou 
o  Poeta  não  teria  feito  estas  (quintilhas  para  serem  unidns,  o  que  é  possivcl,  e 
assim  se  lêem  na  primeira  edição  (1595)  separadas;  comtudo  inclina-se  a  que 


42} 

foram  ÍAím  uiii<]a5,  porquanto  desde  a  copla  v  se  seguem  umas  comparações 
que  o  est9o  indicando. 

Em  algumas  edições  vem  separada  esLi  ultima  copla,  o  que  nAo  acontece  na  ^ 
ediçSo  das  Rimas  de  lSd8,  a  segunda  d'estas  poesias.  A  mim  me  parece  que  se 
devem  juntar  as  quintilhas,  porquanto  assim  juntas  o  pensamento  das  duas  co- 
plas ligam  perfeitamente,  e  as  segundas  »&o  dependentes  das  antecedentes  com 
que  ligam;  e  lon^e  de  seguir  a  opinião  de  Faria  e  Sousa  e  de  alguns  editores,  a 
minha  é  que  se  deve  unir  com  a  antecedente  da  cfual  é  o  complemento,  e  sepa- 
rando na  XXXIV  as  três  quintilhas  que  alguns  uniram  pôr  signal  de  lacuna  de- 
ppis  do  verso 

Que  na  Cruz  esteve  ja, 

indicando  que  falta  a  copla  principio  da  redondilba  que  se  segue,  omittida  por 
descuido  do  copista,  ou  por  outro  qualquer  motivo. 

Est^  redondilhas  foram  sempre  mui  e.«timadas,  e  com  rasáo,  pois  téero  belle- 
zas  de  primeira  ordem. 

Sôbolot  rios  que  vão 
Por  Babylonta,  me  achei. 

Sobre  os  rios  que  váo 
Por  Babylonia,  m'achei. 

£difio  d«  1S95. 

Mas  em  tristeza!  e  nojos. 
Mas  em  tristezas  e  enojos. 

£.1içSo  di«  1995. 

Tendré  presente  é  los  ojos. 
Terne  presente  a  los  ojos. 

Ediçilo  de  1595. 

Por  entre  o  espesso  arvoredo.  . 

Por  antr'o  espesso  an'oredo.    . 

Ediçfto  de  1595. 

D*alma  me  fores  tirada. 
D'alma  me  fores  mudada. 

EdiçSo  de  1595. 

Dos  affectos  com  qiie  venho. 
Dos  affeitos  com  que  venho. 

Ediçfto  de  1395. 

Do  livre  arbítrio  que  tenho. 
Do  livre  alvedrio  que  tenho. 

Edição  de  1595. 

CA  deste  mundo  visihil. 
Quanto  ao  homem  for  jTossibil. 

Ca  deste  mundo  visivel, 
Quanto  ao  homem  for  possivel. 

Ediflo  de  1995. 


• 


425 


Para  o  wundo  intelligibiL 
Para  o  inundo  inteliigivel. 

Edição  de  1595. 


Querendo  escrever  hum  dia,  etc. 

Carta  a  httma  Senhora: — Duvidoso  o  Poeta  do  que  havia  de  escrever,  appa- 
re<*e-lhe  Amor,  e  tomando  uma  penna  das  azas,  fazendo-lhe  experimentar  os  seus 
eflfeitos  lhe  foi  dictando,  fazenao-Ihe  escrever  os  milagres  da  formosura  da  sua 
amante  e  as  suas  tristezas  amorosas.  « 

Imitando  a  Boscan  no  seu  Mar  de  Amor,  que  começa: 

El  sentir  de  mi  sentido. 

e  a  Petrarcha,  canção  xxxi,  em  successivas  comparações  descreve  o  efTeito  do  seu 
nrnor  até  á  copla  xix;  e  quando  estava  todo  enlevado  e  cevando-se  na  descrípçâo 
amorosa,  umas  susi)eitas,  como  harpias,  lhe  convertem  em  peçonha  o  goso  em 
que  estava:  e  cora  isto  termina  a  carta,  para  não  corromper  o  que  lem^cripto 
com  os  males  que  ha  de  escrever. 

Escutae  e  estae  altcnto. 
Uma  lição  dizia : 

Ouvido  me  daí  attento. 

Faria  e  Sousa  assim  tinha  emendado,  e  assim  deve  ser  porque  se  dirige  a 
uma  senhora,  e  nSo  podia  pór  oitenta  no  feminino,  porque  nâo  faz  consoante 
com  pensamento  do  verso  antecedente. 

Na  primeira  edição  vêem  as  coplas  separadas  em  quintilhas;  apesar  de  virem 
spparaaaá,  eu  julgo  que  devem  pur-se  unidas  de  dez  versos,  porquanto  a  segunda 
t|uintilha  liga  sempre  com  o  sentido  da  antecedente,  e  é  a  applicação  da  com- 
paração. 

Escrevem  vários  moradores.  ^ 

Veja-se  o  que  o  Poeta  diz  sobre  o  mesmo  assumpto,  estancia  xix  do  canto  vii 
dos  Luêiadai: 

E  junto  donde  nasce  o  longo  braço 
Gangetico,  o  rumor  antigo  conta 
Que  os  vesinhos  da  terra  moradores, 
Do  cheiro  se  mantém  das  lindas  flores.  - 

Hum  Rei  de  grande  poder. 

É  Melhridates,  rei  do  Ponto,  o  qual  querendo-se  matar  com  veneno  quando 
Pompeu  foi  vencido,  por  habituado  a  elle  o  não  pôde  conseguir.  Marcial,  liv.  v, 
cpigramma  i  xxvii. 

Profecit  poto  Mitridâtes  ssepe  veneno 

Toxia  nc  possent  sosva  nocere  sibi. 

Quem  da  doença  Ueal. 

Esta^doença  chamada  Mal  Regia,  é  a  ictericia. 

Querendo  Amor  sustentar-se. 

Allude  á  fabula  de  Pigmalião  que  se  enamorou  de  uma  estatua»  e  Vénus  con- 
doída a  converteu  em  mulher,  com  quem  rasou. 


426^ 

D'huma  fonte  se  sabia. 

Faria  e  Sousa,  referindo-se  a  Jo2o  Maria  Bonardo,  na  sua  Minera  dei  Mondo, 
faz  menção  de  algumas  fontes  com  differente»  virtudes,  e  entre  estas  de  uma 
igual  a  esta  onde,  se  alguém  era  accusado  de  furto,  mettia  a  mão  e  negava  o  cri- 
me tendo-o  praticado,  ucava  cego. 

Huma  herva  lhe  Vai  buscar. 

É  a  eelidonia  maior.  Adverte  Faria  e  Sousa  a  este  respeito  o  que  diz  o  psal- 
mista,  qae  Deus  até  das  aves  cuida,  pois  florece  esta  planta  quando  as  andori- 
nhas começam  a  crear,  e  secca  quando  acabam  os  seus  trabalhos. 

Lá  para  onde  o  sol  sabe. 

Ê  à  ilha  de  Sunda  que  se  refere.  Veja-se  a  estancia  cxxxiv  do  canto  x  dos 
Lusíadas : 

*  Olha  a  Sunda  táo  lar^p,  que  huma  banda 

Esconde  para  o  Sul  dificultoso 
A  gente  do  Sertão,  que  as  terras  anda. 
Hum  rio  diz  que  tem  miraculoso. 
Que  por  onde  elle  só  vem  outro  vae, 
Converte  em  pedra  o  páo  que  nelle  cae. 

• 
Como  na  vela  s'entende. 

É  a  mesma  comparnçAo  de  Boscan  no  seu  Mar  de  Amor,  Em  Bosean  sSo  qua- 
torze  as  comparações,  e  as  do  Poeta  outras  tantas,  porém  de  differente  argumento. 

D'ave,  que  chamSo  Camão. 

» 

é 

Eliano,  livro  xiv,  cap.  xxxv,  descreve  esta  ave  dando-lhe  o  nome  de  porphy- 
rio;  Nebríssa  lhe  chama  palemon  e  outros  camão.  Parece  que  o  Poeta  tomou  esta 
comparação  dos  versos  de  Alciato,  emblema  xlvii,  que  já  referimos  n*outro  logar. 

E  daqudla  a  quem  te  dei, 

E  daquelle  a  quem'te  dei. 

Ediçio  de  1S05. 

EUa  tanto  s'entrislecf. 

V 

Ella  só  tanto  entristece. 

EdiçSo  de  1595. 

A  vista  a  quanto  padece, 
A  vida  a  quanto  padesce. 

*  Ediçio  de  1995. 

Qut  quem  sobre  ella  jurava. 
Que  quem  sobr'ella  jurava. 

Ediçio  de  1595.  . 

Dama  d'estranho  primor,  etc. 

N'estas  re^ondílhas  entra  o  Poeta  em  desafio  com  a  sua  dama  sobre  qual 
terá  mais  força,  ella  em  o  maltratar,  ou  elle  em  a  amar,  protestando-lhe  ^ae 


427 

ãuaiito  mais  por  ella  for  tnitado  com  esquivança,  mais  a  ha  de  adorar.  Termina 
izendo  que  por  tâo  grande  constância  deveria  ter  esperança  de  algum  premio, 
que  ella  me  quízcssc  tanto  quanto  elle  lhe  queria.  Parece  qtie  i)  Poeta  teve  em 
vista  alguns  Jogares  das  poesias  de  Jorge  de  Montemaíor.  Corresponde  com  o  re- 
mate d'esta8  redondilhas  o  da  estancia  i  da  egioga  ii  : 

No  derradeiro  fio 

O  tinha  a  esperança, 

Uue  com  doces  enganos 

Lhe  sustentara  a  vida  tantos  annos 

N'huma  amorosa  e  branda  confiança, 

Que  quem  tanto  queria, 

Parece  que  não  erra  se  confia. 

Estas  redondilhas  chamam-se  de  pé  quebrado;  diz  Faria  e  Sousa  que  o  Poeta 
escreve  menos  n*este  género  de  redondilhas,' porque  começavam  a  estar  e^n  des- 
uso no  seu  tempo,  e  no  d'elle  commentador  já  ninguém  as  escrevia.  Havia-as  de 
quatro  até  doze  versos.  « 

Dama  d'e$traiiho  primor. 

Dama  de  illustre  valor.  • 

Meu  BIS. 
Porque  a  converto  em  amor. 

Que  se  converta  em  amor. 

Meu  MS. 

E  se  cuidais. 
Se  cuidais. 

EdiçSo  de  1595. 

Amar-vos  cada  vez  mais. 


Meu  BIS. 


Meu  MS. 


Querer-vos  cada  vez  mais. 

Crendo  qu'em  tanta  affeição- 
Não  haja  accrescentamento. 

Vendo  mie  em  tanta  affliçSo 
Não  póae  haver  cre&cimento. 

InrencibU; 

Que  Amor  sobre  o  impossibil. 

1  n  venci  vel; 

Que  Amor  sobre  o  impossível. 

Ediçlo  de  1595  e  meu  MS. 

O  final  d'esta  redondílha  é  inteiramente  difierente  no  meu  Ms.,  por  esta  forma : 

Todinia 
Amor  tem  tanta  valia 

Quando  quer, 
Que  o  que  ja  nAo  pôde  ser, 
Faz  elle  em  nós  cada  dia. 


[ 

\ 

r 
í 
\ 

í  428 

í  

[  As  cinco  i^edondilhas  que  se  seguem  são  ínleinimcnte  diííereiítes  iio  meu  Ms., 

!  por  esta  fórma : 

I 

I  Mas  em  tamanho  perigo, 

(  Muito  digo; 

I  Pois  (jue  tâo  livre  viveis, 

[  .                      Que  jamais  que  elle  podeis 


\ 


Neste  mal  que  usais  comigo: 

£  se  for 
O  poder  vosso  maior 

Antre  nós, 
Quem  poderá  mais  que  vós, 
Se  vós  podeis  mais  que  amor? 

Segundo  o  vejo  vendido. 

Não  duvido, 
Que  se  possa  presumir; 
Qu'em  lugar  de  vos  ferir, 
Saia  de  vos  ver  ferido. 

Mas  suspeito 
Que  quando  em  vós  direito 

Desarmar, 
Que  se  lhe  virou  no  ar, 
A  setta  contra  seu  peito. 

Pois  se  está  ferido  amor 

Desta  dor. 
De  quem  me  aqueixo  ou  que  fallei? 
Se  em  vez  de  ser  seu  vassallo. 
Vou  ser  seu  competidor. 
Ja  perdi  quanto  amando  mereci, 

Pois  conheço, 
Que  aquelle  bem  que  lhe  eu  peço, 
•Vos  pede  elle  para  si. 

Mas  mais  se  deve  a  meu  mal 

Paga  igual. 
Pois  que  por  vós  nSo  duvido 
De  ser  traidor  sabido 
A  meu  Senhor  natural. 

O  Senhor, 
Neguo  com  quanto 'q'em  uiim  for; 

Mas  se  olhar, 
Quem  por  vós  tudo  neguar, 
Não  pôde  neguar  amor. 

Que  poderei  ja  tomar,* 

Ou  deixar. 
Pois  que  me  trazeis  tâo  ceguo; 
Que  aqui  lio  que  por  vós  neguo, 
Por  vós  torno  a  confessar. 

bem  sei  en, 
Que  neguar  o  Senhor  meu 

Ja  tiSo  po5so, 
Que  se  elle,  Senhora,  he  vosso, 
Ru  sou  vosso  sendo  seu. 


•  429 

Suspeitas,  que  me  quereis? 

A  estas  suspeitas  se  refere  na  carta  ou  redondilhas  que' começam : 

Querendo  escrever  bum  dia,  etc. 

O  Poeta,  apesar  de  se  Inflammar  como  doudo  em  vinganças  e  iras,  e  jurar  ar- 
rancar d'almá  e  pôr  n'outra  parte  o  seu  amor,  o  nSo  pôde  fazer  e  prefere  que  a 
sua  dama  lhe  confesse  e  declare  a  sua  desgraça,  embora  n'elle  se  execute  a  peni- 
tencia e  seja  condenmado  ao  inferno  dos  ciúmes.  Boscan  escreveu  umas  trovas 
ao  mesmo  assumpto.  Veja-se  também  Garcilasso,  soneto  xxx : 

Suspechas  que  en  mi  triste  fanlesia,  etc. 

De  arrancar  d'alma  os  amores. 

D'arrancar  d'aima  os  amores. 

Ediçfto  do  1395. 

Que  tontenlar-me  co'os  danos. 
Que  contenta r-nie  cos  danos. 

Edição  de  1595. 

Corre  sem  vela  e  sem  leme,  etc. 

.  Lahyrinto,  queixando- se  do  mm»/o;  — Esta  composição  se  forma  de  quadras 
ou  quintilbas.  O  seu  mecbanísmo  consiste  em  que  lendo-se  seguidamente  como 
redondilhas  façam  sentido,  ou  toiíiandc-se  versos  da  primeira  e  juntando- se  aos 
da  seffunda  quintilha  ou  redondilha,  ou  lendo-se  as  quintilhas  horisonlalmente, 
de  todo  o  modo  façam  sentido.  Ha  os  acrósticos  em  fórum  de  cruz,  de  eslrella  ou 
de  outro  qualquer  modo  á  vontade  do  poeta.  Na  primeira  ediçAo  vem  com  este 
titulo:  •Labynnlo  do  autor  queixandose  do  mundo»,  n'elle  se  lêem  os  primeiros 
cinco  versos  separados,  e  o  resto  das  quinlilhas  juntas  em  redondilha,  cxrepto  os 
últimos  cinco  versos;  de\iam-se  talvez  ler  todos  em  quintilhas  separadas.  O  ar- 
tifício do  presente  lahyrinto  é  o  seguinte.  Léem-se  primeiro  seguidas  as  quintilhas 
ou  redonailbas,  toma-se  depois  o  primeiro  verso  da  primeira  copla,  o  primeiro 
da  segunda,  o  primeiro  da  terceira,  o  primeiro  da  quarta  e  o  primeiro  da  quinta, 
que  juntos  formam  esta  quintilha: 

Corre  sem  vela  e  sem  Ipme 
A  náo,  que  se  vai  perder. 
Que  poderá  vir  a  ser 
Não  porque  governe  o  leme 
Na  tormenta,  se  vier. 

Toma-se  o  segundo  verso  da  primeira  copla  e  os  segundos-das  outras  coplas, 
e  forma-se  outra  quintilha  por  esta  forma: 

O  tempo  desordenado, 
Destrue  mil  esperanças; 
O  mal  nunca  refreado. 
Em  mar  envolto  ê  turbado, 
Desesp^^re  na  bonança. 

Tomando  o  terceiro  verso  de  cada  copla,  tira-so  esta  quintilha  : 

D'hum  grande  vento  levado: 
Vejo  o  máo  que  vem  a  ter; 


[  430  . 

1^  Anda,  por  certo,  engauado 

f  '  Que  tée  seu  rumo  mudado, 

r  *  '  Quem  manhas  nSo  sabe  ter. 


Ton)ando  pela  mesma  ordem  o  quarto  verso  de  cada  copla,  fórma-se  esta 
quintilha: 

O  c|ue  perigo  não  teme, 
V«jo  perigos  correr; 
Aquelle  que  quer  valer, 
Se  perece  grita  c  geme, 
Sem  que  lhe  valha  gemer.  ' 

Soguindo  a  mesma  ordem  com  o  quinto  verso  se  faz  a  quintilha  que  se  se- 
gue: 

He  de  pouco  eiprimentado, 

Quem  não  cuida  que  ha  mudanças. 

Levando  o  caminho  errado, 

Gm  tempo  desordenado  < 

Verá  falsar  a  balança. 

Do  mesmo  modo  se  formam  as  seguintes  quintilhas,  tomando  os  sextos,  séti- 
mos» oitavos,  nonos  e  décimos  versos  das  redondilhas: 

Ais  rédeas  trazem  na  mSo 

Os  que  nunca  em  sella  andarão, 

He  para  os  bons  confusão, 

Terem  justo  galardão. 

Os  que  nunca  trabalharão. 

Os  que  rédeas  não  ti  verão 
Na  sella  postos  se  vem : 
Ver  que  os  máos  prevalecerão, 
E  dor  dos  que  merecerão, 
Tenao  o  que  lhe  não  convém. 

Vendo  quanto  mal  flzerão 
De  fazer  mal  não  deixarão; 
Que,  posto  se  deti  verão, 
Sempre  castigos  ti  verão 
Se  ao  innocente  enganarão. 

A  cobiça  e  ambição, 
De  demónio  hábito  tem. 
Com  esta  simulação, 
Sem  nenhun^a  redempção. 
Perderão  o  eterno  bem. 

Disfarçados  se  acolherão, 
Os  que  o  justo  profanarão; 
Sempre  castigos  ti  verão : 
Postoque  se  deliver.ão 
Se  do  mal  não  s'apartárão. 

Lè-se  ainda  este  labyrinto  por  dois  modos,  tomando  a  primeira  quintilha,  ter- 
ceira, quinta,  sétima  e  nona,  sendo  o  seu  argumento  no  singular,  e  tomando  a 
segunda,  quarta,  sexta,  oitava  e  decima,  sendo  o  argumento  no  plural  por  esta 
maneira : 


454 

(^orre  sem  vela  e  sem  leme 
O  tempo  desordenado, 
D' hum  grande  vento  levado. 
O  que  perigo  nfio  teme, 
He  de  pouco  exprimentado. 

A  náo  que  se  vat  perder, 

Destrue  mil  esperanças: 

Vejo  o  máo  que  vem  a  ter; 

Vejo  perigos  correr 

Quem  não  cuida  que  ha  mudanças. 

Que  poderá  vir  a  ser 
O  mal  nunca  refreado? 
Anda,  por  certo,  enganado 
Aqueíle  qye  quer  valer, 
Levando  o  caminho  errado. 

Não  porque  governe  o  leme 
Em  mar  envolto  e  turbado. 
Que  têe  seu  rumo  mudado. 
Se  perece  grita  e  geme 
Em  tempo  desordenado. 

Na  tormenta,  se  vier, 
Desespere  na  bonança, 
Quem  manhas  nâo  sabe  ter: 
Sem  que  lhe  valha  gemer. 
Verá  lalsar  a  balança. 

Com  o  argumento  no  plural,  e  tomando,  como  dissemos,  a  segunda,  quarta, 
sexta,  oitava  e  decima  quintilha  se  \é  por  esta  forma: 

As  rédeas  trazem  na  máo 
Os  que  rédeas  náo  tiveráo : 
Venao  quanto  mal  ffzeráo 
A  cobiça  e  ambiçáo, 
Disfarçados  se  acolherão. 

Os  que  nunca  em  sei  la  andarão, 
Na  sella  postos  se  vem : 
De  fazer  mal  não  deixarão; 
De  demónios  hábitosiem 
Os  que  o  justo  profanarão. 

He  para  os  bons  confusão, 
Ver  que  os  máos  prevalecerão ; 
Que,  posto  se  deti  verão 
Com  esta  simulação. 
Sempre  castigos  tiveráo : 

Terem  justo  galardão, 
E  dor  dos  que  merecerão. 
Sempre  castigos  tiveráo' 
Sem  nenhuma  redempção, 
Postoque  se  detiverão. 


452 

Os  uue  nunca  trabalharão, 
Tendo  o  que  lhe  não  convém. 
Se  ao  innocente  enganárSo, 
Perderão  o  eterno  bem, 
Se  do  mal  nSo  s'apartárão. 

Mal  empregado  tempo  gasto  com  estas  poesias  \So  superficiae^Kl  Fernão  Alva- 
ros  do  Oriente  traz  na  sua  Lusitânia  um  labyrirUo  a  Nossa  Senhora,  em  quinli- 
lha»,  e  l<»go  em  seguimento  vem  outro  em  oitava  rima.  Filippe  Nunep,  na  sua 
Arte  Poética,  prescreve  a  regra  dos  consoantes  d'esta  poesia. 

De  demónio  hábito  tem. 

Do  demónios  hábito  tem. 

EdifSo  da  159».         ^ 
Que  tee  seu  rumo  mvdaâb. 

Que  tem  seu  remo  mudado. 

Edição  d«  I.'i95. 

_  » 

Se  não  quereis  padecer,  etc. 

Convidou  Camões  certos  fidalgos  na  índia,  e  cm  logar  de  iguarias  encontra- 
ram enlre  dois  pratos  estas  redondilhas.  Eram  os  convidados  D.  Vasco  de  A  (ha  ide, 
D.  Francisco  de  Almeida,  Heitor  da  Silveira  e  João  Lopes  Leitão;  o  m^u  Ms.  não 
tniz  Heitor  da  Silveira,  mas  Mm  JoTge  de  Moura.  Todos  estes  fidalgos,  amigoâ  do 
Pofta,  perlencíam  â  primeira  nobreza  de  Porlugal;  alguns  tinham  acompanhado 
o  více-rei  D.  Constantino  de  Bragança,  de  sorte  que  este  convite  devia  ser  feito 
para  festejar  a  sua  eh  'gnda. 

A  primeira  iguaria  foi  posta  a  D.Vasco  de  Athaide,  o  da  Castanheira,  filho 
de  D.  Pedro  de  Athaide,  quo  o  foi  de  outro  do  mesmo  nome,  abbade  de  Penalva, 
filho  natural  de  Álvaro  Gonçalves  de  Athaide.  D.Vasco  de  Athaide  militou  n» 
índia,  foi  por  capitão  de  uma  nau  na  armada  contra  o  Achem  em  que  ia  o  go- 
vernador Francisco  Barreto.  Achou-se  no  infeliz  conflirjo  do  Babarem  onde  falle- 
ceu  D.  Álvaro  da  Silveira,  amigo  de  ('amdés,  a  cuja  morte  escreveu  a  elegia  xrviii. 
e  clle  D.Vasco  foi  gravemente  ferido  de  uma  lançada,  volbindo  ainda  convales- 
cente n'outra  armada  ao  Babarem  a  tomar  vingança  dos  fidalgos  parentes  e  ami- 
gos que  abi  pereceram. 

Heliogabalo  zombava,  etc. 

Esta  segunda  iguaria  foi  posta  a  D.  Francisco  de  Almeida,  filho  de  D.  Lopo 
de  Almeida,  filho  segundo  do  prior  do  Crato  D.  Diogo  Fernandes  de  Alm^^ida,  fi* 
lho  de  Lopo  de  Almeida,  primeiro  conde  de  Abrantes.  Tinha  e.sle  fidalgo  ido 
para  a  Índia  cx)m  o  vice-rei  D.  Constantino  de  Bragança,  e  por  mandado  d'este 
foi  em  favor  do  rei  de  Cochim  expulsar  a  gente  do  Çamorim  da  ilha  de  Pom- 
balão,  e  depois  dVIle  a  haver  recuperado,  a  entregou  D.  Constantino  áquetie  rei. 
Foi  depois  D.  Francisco  capitão  de  Tangere,  e  aquelle  mesmo  a  quem  andando 
juntando  gente  para  resistir  á  invasão  de  Filippe  II,  o  Poeta  escreveu  aquelta 
tão  interessante  carta,  da  qual  apenas  nos  restam  oá  fragmentos;  n'ella  descrevia 
o  estado  das  facções  do  reino,  e  manifesta  os  seus  sentimentos  patrióticos.  £ni 
tão  amigo  d'este  fidalgo  o  Poeta,  que,  segundo  nos  affírina  o  editor  da  edição  de 
1626,  ou  antes  em  seu  nome  D.  JoAo  de  Almeida,  filho  de  D.  Francisco,  Camões 
dizia  que  só  nor  não  estar  este  fidalgo  na  índia  se  retirava  para  o  reino. 

N'esta  redondilha  se  refere  ao  l^in  conhecido  facto  do  feroz  imperador  ro- 
mano, que  fazendo  esplendidos  convites,  zombava  dos  convidada«,  apresentando 
em  vez  de  iguarias  verdadeiras  manjares  pintados  nos  pratos. 


1 


4ôõ 

a 

Côa  nSo  a  papareis,  etc. 

A  terceira  iguaria  foi  posta  a  Heitor  da  Silveira,  o  Drago.  Era  este  fidalgo 
cunhado  de  André  FalcAo  de  Resende,  e  grande  amigo  de  CamOes,  em  cuja  com- 

Êanhia  veiu  para  o  reino,  tendo  a  desdita  de  morrer  já  á  vista  do^cabo  da  Roca. 
ira  Jjom  poeta,  cavalleiro  esforçado,  e  pobre  como  Camões,  coroo  se  deprebende 
doe  versos  que  enviou  ao  conde  de  Redondo;  a  elle  dirigiu  seu  cunhado  André 
Falcilo  de  Resende  as  satyras  v  e  viii,  e  a  epistola  i;  e  n'estas  mesmas  obras,  a  que 
já  alladimos  em  outra  parte  do  nosso  trabalho,  e  que  se  imprimem  na  imprensa 
da  universidade  de  Coimbra,  vem  uma  resposta  de  Heitor  da  Silveira  á  primeira 
doestas  duas  satyras  e  á  epistola.  Para  o  leitor  poder  julgar  do  estylo  d'esteca~ 
valheiro  e  poeta,  cujas  obras  se  perderam,  darei  aqui  uns  fragmentos  da  resposta 
á  epistola,  em  que,  minado  pela  saudade  da  esposa,  lhe  inveja  a  vida  quieta  que 
contrasta  com  a  sua  inquieta  e  turbulenta,  e  declama  contra  os  que  se  passam  ás 
conquistas  após  o  oiro  e  uma  falsa  opiniAo  de  honra. 

■ 

Tudo  nos  roubam  cá,  té  o  desejo, 
Que  em  nosso  peito  mora,  lá  o  desviam; 
Parece  que  lhe  faz  affronta,  ou  pejo. 

Este  é  o  ouro,  este  é  o  metal,  que  criam 
Estas  partes  de  cá,  que  em  poucos  annos 
Europa  de  varões  nobres  djèspiam. 
,  Cruel  Gama,  cruel,  que  tantos  damnos 
Ó  Lusitano  dás!  Que  se  desfaça 
Em  pó  tanto  varão  por  bens  mundanos! 

ó  desleal  cubica !  viva  traça, 
Faminta  harpia,  que  por  quasi  nada 
Alma,  que  livre  é,  presa  andar  faça ! 

Termina  com  uúia  apostrophe  saudosa  á  esposa : 

— Ó  certo  norte  meu,  luz  clara  e  guia, 
Beliza  de  minha  alma  —em  váo  chamava: 
Jurara,  amigo  André,  ora  que  a  via. 

Beliza,  amor,  Beliza,  mal  cuidava. 
Quando  de  vós  fugi  quasi  voando, 
Que  vinha  o  mal  voando,  e  cá  o  achava! 

Parti-roe  sem  vos  ver,  assi  enganando  ' 
A  dura  saudade  bem  guardada, 
Que  inda  ora,  mais  que  então,  estou  chorando. 

Mas  não  será  fortuna  tão  ousada, 
Se  a  doce  liberdade  me  ora  nega, 
Que  muito  tempo  assi  m'a  tinha  atada. 

Esta  confiança,  André,  só  me  socega, 
E  me  desvia  de  mil  roáos  extremos, 
A  que  a  vãa  phantasia  se  me  apega. 

Amor  me  cfiz  á  orelha,  que  nos  vemos 
Cedo  já  sem  fortuna  mar  bonança : 
Em  quanto  tarda,  assim  nos  visitemos, 
Se  dar-me  queres  vida,  ou  esperança. 

Quão  enganados  desejos  1  e  como  são  vários  os  destinos  da  vida  humana  I Á  vista 
da  pátria  nem  ao  menos  pôde  morrer  nos  braços  de  uma  esposa  que  tão  extre- 
mosamente amava,  e  só  coube  a  ella  receber  o  cadáver  frio  do  marido,  onde  se 
encerrava  um  coração  abrasado  de  um  amor  tão  constante  e  apaixonado. 

TOMO  IV  ÍM 


r 
I 


Não  Caparica,  mas  tinta,  etc. 

Por  esle  verso  se  vé  que  o  vinho  da  fregueua  de  Caparica,  situada  da  outra 
banda  do  Tejo,  próximo  de  Almada,  era  tido  como  muito  especial :  hoje  temos 
vinhos  muito  mais  generosos. 

A  epistola  xviii  de  Pedro  de  Andrade  Caminha  é  também  dirigida  a  Heitor 
da  Silveira  em  resposta  a  outra  sua  escripta  da  índia,  em  que  Jhe  noticiava  a 
morte  de  João  Lopes  Leitão,  de  quem  passámos  a  tratar. 

Porque  os  que  vos  convidarão,  etc. 

A  quarta  a  João  Lopes  Leitão.  Manuel  de  Faria  e  Sousa  não  pôde  descobrir 
quem  fosse  este  cavalheiro ;  foi  iilbo  de  Francisco  Leitão,  fidalgo  aue  viveu  no 
reinado  d'el-rei  D.  Manuel,  e  de  D.  Joanna  Freire,  filha  de  Rodrigo  ae  Sande,  ve- 
dor da  rainha  D.  Maria  é  embaixador  ao  rei  catholieo  D.  Fernando,  a  quem  ti- 
nha se)*vido  na  conquista  de  Granada,  que  lhe  foi  muito  aceito,  e  lhe  deu  o 
Dom,  e  de  sua  mulher  D.  Margarida  Freire,  viuva  de  Estevão  de  Brito,  alcaide  mór 
f  de  Beja,  e  filha  de  Nuno  Fernandes  Freire.  João  Lopes  Leitão,  sendo  moço  foi 

pagetii  da  lança  do  príncipe  D.João,  pae  d'el-rei  D. Sebastião,  e  no  torneio  de  Xa- 
bregas, que  se  deu  por  occasião  d'este  príncipe  tomar  as  primeiras  armas,  foi  pa- 
relha de  Fernão  da  Silva,  vedor  da  fazenda  e  regedor  da  justiça.  Foi  poeta,  jovial 
e  cortejador  das  damas,  e  por  este  motivo  sendo  moço,  o  antes  de  ir  para  a  ín- 
dia, o  mandou  el-rei  D.  João  III  prender  em  casa  por  entrar  uma  porta  a  ver 
as  damas  do  paço  contra  vontade  do  porteiro,  a  cujo  propósito  fez  Pedro  de  An- 
drade Caminha  o  epigramma  clxvii,  a  que  o  preso  responde  no  epigramma  cLxvni 
da  mesma  collecção  de  ooesias,  publicada  pela  academia  real  das  sciencias  de  Lis- 
boa. As  poesias  de  João  Lopes  Leitão  perderam-se;  apenas  resta  a  resposta  ao 
epigramma,  a  quintilha  que  vem  n'este  convite  que  começa: 

Pezar  ora  não  de  são, 

e  attribue-se-lhe  o  soneto  que  acompanha  as  obras  de  Camões 

*  Quem  he  este  que  na  harpa  Lusitana, 


(. 


^ 


f 


em  elogio  do  poeta;  eu  vi  na  bibliotheca  real  das  Necessidades  uma  longa  carta 
(Ms.)  dirigida  a  seu  irmão  Pedro  Leitão,  escripta  da  índia,  no  estylo  das  de  Ca- 
mões, e  que  me  pareceu  interessante;  porém  d  ella  não  conservo  lembrança,  nem 
tirei  apontamento.  Camões  lhe  dirígiu  outra  poesia  sobre  uma  burla  aue  experi- 
mentou de  uma  senhora  a  quem  dera  uma  peça  de  fazenda,  e  nlem  a  islo  o  so- 
neto que  começa : 

Senhor  João  Lopes,  o  meu  baxo  estado. 

Militou  João  Lopes  Leitão  na  índia  com  distincção  no  tempo  do  Poeta,  indo 
varias  vezes  por  capitão  nas  differentes  expedições,  e  morreu  na  mesma  índia  no 
mar,  não  sabemos  se  afogado,  se  de  doença.  Á  sua  morte  allude  Pedro  de  Andrade 
de  Caminha  em  uma  poesia,  e  á  mesma  compoz  quatro  epitaphios.  Copiámos 
aqui,  dos  quatro,  aquelle  que  nos  parece  melhor: 

Vés  tu  que  passas,  esta  sepultura, 

De  palma  ornada,  e  de  loureiro  e  d^era? 
Vazia  está,  que  o  quiz  asst  a  ventura, 

Que  para  o  corpo  de  João  Lopes  era. 
Seu.  corpo  jaz  no  mar,  su'alma  pura 

()  Ceo  se  foi,  onde  seu  corpo  espera : 
Coroa  mereceo  de  dons  Loureiros, 

A  dos  Poetas,  e  a  dos  ('^valleiros. 


455 

João  Lopes  Leitão  não  casou,  mas  teve  uma  filha  bastarda,  D.  Violante  Leítoa, 
que  foi  religiosa  de  Odivellas.  Era  irmSo  de  Pedro  Leitão  e  de  Estevão  Leitão, 
que  foi  frade  dominico,  muito  parcial  de  D.  António,  prior  do  Crato. 

A  derradeira  a  Francisco  de  Mello: 

P'hum  homem,  que  teve  o  scetro,  etc. 

Francisco  de  Mello  era  fijho  de  Pedro  de  Mello  de  Serpa  eneto  de  Diogo  de 
Mello;  militou  na  índia  e  falleceu  no  cerco  de  Chaul  em  1571,  sendo  vice-rei  o 
famoso  conde  de  Athouguia  D.  Luiz  de  Athaide.  A  Ilude  aqui  Camões  a  Ovidio  e 
a  estes  versos  do  poeta  romano  : 

Sponte  sua  carmen  números  veniebat  adaptus, 
Et  quod  tentabam  scribere  versus  erat. 

No  meu  Ms.  a  disposição  doestas  redondilhas  é  differente,  e  também  ha  mu- 
dança no  nome  dos  convidados.  A  terceira  iguaria  foi  posta  a  João  Lopes  Leitão 
no  Ms.  em  logarde  Heitor  da  Silveira,  de  quem  ali  se  não  faz  menção,  vindo  a 
redondilha  aue  diz  respeito  a  este  fídalgo  no  fim,  depois  da  que  pertence  a  Fran- 
cisco de  Mello,  e  com  referencia  a  todos  os  convidados.  A  quarta  iguaria  é  posta 
no  M^.  a  D.  Jorge  de  Moura,  e  os  versos  que  lhe  dizem  respeito  são  a  quintilha 
que  figura  de  resposta  de  João  Lopes  Leitão,  e  começa  : 

Pezar  ora  não  de  são, 

que  vem  coro  este  titulo  ou  advertência :  «A  outra  a  D,  Jorge  de  Moura,  e  faUa 
aqui  como  era  seu  costume  quando  zombava  queixando-se  do  engano»,. 

Este  Jorge  de  Moura  era  collaço  do  príncipe  D.  João,  pae  d'el-rei  D.  Sebas- 
tião; foi  um  dos  esforçados  guerreiros  da  índia,  e  mais  de  uma  vez  capitão  mór 
de  armadas. 

Sabeis  que  haveis  de  fazer? 

Sabeis  o  que  aveis  de  fazer? 

Men  MS. 

Que  aqui  não  ha  que  comer. 
Que  aqui  no  ai  que  comer. 

Meu  MS. 

Porque  por  mais  que  fWTaís, 
Não  heis  de  alcançar  a  ceia. 

Que  por  mais  que  vós  corrais. 
Não  alcançareis  a  ceia. 

Mea  MS. 

Heliogabalo  zombava. 
Elioguabalo  zombava. 

Meu  MS. 

■ 

Porque  a  céa  está  segura  ' 

De  ros  nCto  rir  em  pintura. 

Que  esta  ceia  está  segura 
De  não  vos  vir  em  pintura. 

Mea  MS 
Vos  dá  nqfti  tinta  ]}or  rinho. 


r 


I. 


456 

Vos  dá  tinta  aqui  por  vinho. 

*  Íleo  MS. 

Vosso  estômago  não  danem. 

Vosso  estomaguo  nSo  danem. 

Íleo  VS. 
E  nada  feito  em  empada; 
^  E  vento  de  tigelada; 

Picar  no  dente  em  remótho: 
De  fumo  tendes  taçathos; 
Ave  da  pena  que  sente 
Quem  da  fome  anda  doente. 

£  nada  feito  de  empada; 

E  vento  de  píverada; 

Picar  no  dente  em  repolho : 
^  Em  carne  tendes  taçaihos; 

r  De  aves  de  pena  que  sente 

Quem  de  fome  anda  doente. 

MeoBIS.      ' 

«     Que  se  lhe  tomava  em  metro. 

^  >,  Que  se  lhe  fazia  em  metro. 

i  Meo  MS. 

De  mt  «OS  quero  afirmar. 
«  De  mi  vos  quero  apostar. 

EdifiodelWSemeoMS. 

i  De  quanto  podeis  cuidar; 

^     E  esta  céa,  que  he  manjar. 
Vos  faça  na  boca  em  trovas. 

Que  quanto  podeis  cuidar; 
[  '  Nesta  ceia,  que  he  manjar, 

>  Vos  faça  na  boca  trovas. 

M6I1  MS. 

Conde,  eujo  illustre  peito,  etc. 

Ao  conde  de  Redondo  D.  Francisco  Coutinho,  vice-rei  da  índia,  para  onde  foi 
f  no  anno  de  Í56í,  e  durante  o  seu  governo  procurou  tirar  o  Poeta  do  abatimento 

e  desgraça  em  que  o  foi  encontrar.  Era  o  conde  homem  de  espirito  elevado  tanto 
nas  armas  como  nas  letras,  e  como  tal  sabia  apreciar  o  verdadeiro  merecimento  de 
Camões.  Pela  descri  pçáo,  que  nos  faz  Couto,  ao  caracter  e  boas  partes  que  concor- 
riam n^este  vice-rei,  se  vé  como  o  Poeta  nfto  era  lisonjeiro^os  elogios  que  lhe  di- 
rigia. «Era  o  conde,  diz  o  chronista  da  índia,  homem  de  bom  corpo,  gentil-homem, 
b^m  posto  no  chão,  e  ainda  n'aquella  idade  de  cincoenta  e  sete  annos  em  que 
morreu,  era  galante.  Fov  homem  fácil,  alegre,  bem  assombrado,  muito  avisado 
e  grande  cortesão,  e  tinha  ditos  muito  galantes,  foy  liberal,  ao  menos  nSo  foy 
tacanho,  amiffo  de  justiça  e  trabalhou  sempre  muito  que  se  fizesse  com  intei- 
reza». Foi  filho  do  primeiro  conde  de  Redondo  D.  João  Coutinho,  e  de  D.  Maria 
Henriques,  filha  de  Fernão  Martins  Mascarenhas,  senhor  de  Lavra;  elle  foi  casado 
oom  D.  Maria  de  Gusmão^  filha  de  Francisco  de  Gusmão,  e  D.  Joanna  de  Blasíé, 
camareira  mór  da  infanta  D.  Maria,  e  elle  seu  mordomo  roór.  D'este  consorcio 
houve  três  filhos  e  cinco  filhas;  o  primeiro,  D.  João  Coutinho,  morreu  menino; 
o  segundo,  D.  Luiz  Coutinho,  herdeiro  da  casa,  foi  casado  com  D.  Macia,  filha  de 


457 

D.  Aleixo  de  Menezes,  o  aio  d'el-rei  D.  Sebastião;  morreu  na  batalha  de  Alcácer, 
e  por  nflo  ter  successflo,  passou  a  casa  ao  im  mediato  e  derradeiro  filho  D.  JoSo 
Coutinho,  conde  de  Redondo. 

Ao  mesmo  conde  escreveu  a  ode  ou  trovas  que  lhe  mandou  da  prisão,  quando 
Miguel  Rodrigues  Coutinho  o  embargava  por  uma  divida,  e  os  versos  em  favor 
do  seu  amigo  Heitor  da  Silveira,  que  acompanham  a  que  ao  mesmo  vice-rei  di- 
rigiu aquelle  fidalgo. 

Senhora,  s'eu  alcançasse,  etc. 

Parece  ser  escripto  á  sua  amante,  que  lhe  teria  pedido  as  suas  poesias,  pois- 
que  n'esles  versos  revela  o  despjo  que  a  pessoa  a  quem  sfio  dirigiaos  leia  antes 
no  seu  coração  do  que  nos  seus  papeis. 

E  por  ver 

Tiido  o  que  posso  escrever. 

Só  por  ver 

TuQo  o  que  possa  escrever. 

Men  MS. 

Por  mi  SÓ  quizesseis  ler. 

Só  por  mim  quizesses  ler. 

Meu  MS. 

Verteis  o  natural 

Do  que  aqui  vedes  pintado. 

Vereis  ao  natural 

Do  que  aqui  virdes  pintado. 

Meu  .MS. 

Vereis  áspero  e  crud. 
Vereis  áspera  e  cruel. 

•  Mea  MS. 

Em  mi  tom  sangue  no  peiio. 

E  a  mi  com  sangue  no  peito. 

Meu  MS. 

«  Se  não  pôde  dedaxar. 
Não  se  pôde  declarar. 

'  Mea  MS. 

Vede  que  mdhor  lereis. 

Se  a  mi,  se  aquiUo  qu'eserevo, 

Vôde  qual  milhor  lereis,  /  * 

Se  a  mi,  se  ao  que  escrevo. 

Meu  BIS. 


Se  derivais  da  verdade,  etc. 

A  huma  Senhora,  a  quem  derão  hum  pedaço  de  sitim  amardb:  —  Aconselha-a 
o  Poeta  que  resista  á  dadiva  que  lhe  fazia  um  cavalheiro  astucioso,  de  uma  peça 
de  setim,  e  a  despreze.  Qoe  não  é  dadiva,  pois  ella  lhe  cede  mais,  que  é  a  sua 
honra.  Invectiva  contra  a  devassidão  d'aquelles  que,  abusando  da  sua  nobreza. 


458 

armam  ciladas  contra  o  pudor  das  mulheres  de  inferior  nascimento,  e  lastima  a 
simplicidade  d'estas  que,  por  um  dom  de  nobreza,  deixam  os  mais  singulares 

i  dons. 

^  Hum  Dom,  que  anda  enxertado 

No  nome,  e  nas  obras  não. 

I  É  mui  graciosa  esta  poesia.  Na  edíçSo  de  1595  traz  este  titulo:  m Outras  a  hw- 

i  ma  Senhora,  a  qttem  derão  para  hutna  filha  tua  hum  pedaço  de  sitim  amareUo  de 

í  quem  $e  tinha  suspeita». 

Peço-vos  que  me  digais,  etc. 

A  huma  Senhora  rezando  por  humas  coiUa<;—  Cousa  alguma  desafia  tanto  a 
devoção  como  ver  uma  dama  formosa  orando;  os  olhos  que  em  uma  sala  por- 
> .  ventura  dardejam  faiscas  de  um  amor  profano,  no  tabernáculo  quebram-se  do- 

>  cemente,  fulguram,  mas  com  um  esplenaor  suave  e  estranho,  e  parecem  absorver 

r  em  si  um  reflexo  do  raio  da  divindade.  Diríeis  que  um  dos  entes  que  circundam 

r  o  tbrono  celestial  baixou  á  terra  e  veiu  incarnar-se  na  forma  externa  da  mulher, 

illuminando-a  com  todo  o  fulgor  mysteríoso  da  alta  região  d' onde  descendeu, 
e  inspirando-a  com  a  fé  viva  com  que  os  coros  celestes  levantam  o  Hosana  na 
corte  celeste.  Sim,  a  mulher  ou  ntfo  reza,  ou  o  faz  com  fé  sincera.  Foi  enlevado 
'  na  sua  amante,  vendo-a  rezar,  que  o  Poeta  escreveu  esta  poesia:  em  outra  occa- 
si2o  glosou  o  mesmo  mote.  Veja-se  a  pag.  165,  o  mote  e  glosa  (inéditos). 


^ 


Se  n'alma  e  no  pensamento,  etc. 

A  huma  Dama  que  lhe  deo  huma  penna: — Esta  esparsa  funda- se  no  equivoco 
do  Poeta  tomar  a  penna  de  ave  pela  pena  de  sentimento,  nSo  lhe  pesando  o  tor- 
mento que  lhe  causa  a  mesma  pena. 


Sem  olhos  vi  o  mal  claro,  etc. 

A  huma  Dama  que  lhe  chamou  cara  sem  olhos: — Diz-lhe  o  Poeta  que  vendo-a 
lhe  sobejam  os  olhos,  nSo  a  Vendo,  olhos  nSo  sâo. 

DISPARATES  NA  ÍNDIA 


f  Esta  satyra  foi*escripta  na  índia,  e  dizem  que  ella  deu  origem  ao  seu  degredo, 

o  que  eu  nSo  acredito;  não  obstante  devia  malquista-lo  com  os  que  militavam 
n'aquelle  estado.  Cada  redondilha  acaba  com  um  provérbio,  máxima,  dictado  ou 
verso  tirado  das  cophis  antigas  ou  de  auctor  castelhano : 

Este  mundo  es  el  camino,  etc. 

Este  verso  é  de  D.  Jorge  de  Manrique,  copla  v.  Parece  que  o  Poeta  n*esta  re-« 
dondilha  critica  aauelles  que  sendo  de  baixa  extracção^  logoque  sobefn  aos  lo- 
gares  elevados  — aesque  mudão  a  côr —  não  fazem  caso  dos  antigos  conheci* 
^  mentos 

ChamSo  logo  a  El-Rei  compadre; 

isto  é,  se  ensoberbecem  tanto  que  não  conhecem  os  iguaes. 

Deixae  a  hum  que  se  abone. 


/ 


459 

Continua  ó  Poeta  a  fustigar  os  que  se  jactam  de  poderosos,  e  que  fabricaram   % 
estado  por  meios  illícitos,  á  custa  da  honra. 

Diz  logo  de  muito  sengo. 

Diz  Faria  e  Sousa  que  alguns  pensam  que  o  vocábulo  sengo  se  deriva  de  Sé- 
neca. 

Digo-Ihe :  iu  ex  Ulis  es. 

O  que  disseram  a  S.  Pedro  quando  negou  a  Christu;  na  primeira  ediçAo  traz : 
tu  insanus  es. 

> 

Vereis  bons,  que  no  seu  seio. 

Critica  certos  mancebos  que,  com  dois  ceitia  de  sciencia,  julgam  que  sabem 
tudo  quanto  se  ensina  na  universidade  de  Paris,  e  náo  (éem  outra  occupaçâo  senão 
tratar  de  seus  trages. 

N3o  ha  mais  Italiano. 

Foram  os  italianos  que  inventaram  o  talabarte,  que  se  começou  a  usar  entre 
nós  no  tempo  d'el-rei  I).  Manuel;  e  assim  pinta  o  Poeta  a  Vasco  da  Gama  guar- 
necido com  p]le : 

Âo  Itálico  modo,  a  áurea  espada. 

LuBiadas,  Canto  ii,  estanda  98. 

A  este  direis:  Meu  mano. 

Tratamento  que  parece  davam  aos  afeminados,  que  em  Castella  chamavam 
lindos. 

Outros  em  ^da  theatro. 

Refere-se  esta  redondil  ha  aos  que  alardeam  valentias,  e  cujas  palavras  nflo 
correspondem  com  as  obras.  Veja-se  a  carta  i :  « Ja  estes  que  tomavao  esta  opi- 
nião de  valentes  as  costas,  crede,  que  nunca  ríberas  de  Duero  arriba  cavalgaron 
Çamoranos,  que  roncas  de  tal  soberbia  entre  si  fuesen  hablando^  e  quando  vem 
.10  efleito  da  obra,  salvão-se  com  dizer  que  se  nam  podem  fazer  tamanhas  duas 
cousas  como  he  prometer  e  dar » . 

.Outros  vejo  por  ahí. 

Contra  os  hy])ocritas  que  andam  emendando  o  mundo  com  conselhos  e  nâo 
emendam  a  sua  vida.  ^ 

El  dolor  que  está  secreto. 

Vem  de  uma  copla  antiga  que  corresponde  a  um  verso  também  antigo :  De 
dentro  tenifo  mi  dolor, 

Assi  entrou  o  mundo,  assi  ha  de  sahir. 

Este  adagio  continua  por  esta  forma  : 

Muitos  a  reprende-lo  e  poucos  a  emenda-lo. 

Achareis  rafeiro  velho. 

Allude  aos  de  baixa  qualidade  que  querem  hombrear  com  os  cavalheiros,  di- 
zendo que  a  riqueza  é  a  verdadeira  fidalguia. 


Que  se  qoer  vender  por  galgo; 

Ísto  é,  se  quer  fazer  passar  por  fidalgo,  porque  o  galgo  se  reputa  o  cáo  mais  no- 
)re. 

Diz  que  o  dinheiro  he  fidalgo. 

Correspo]ide  a  uma  copla  antiga  castelhana : 

Cavallero  es  dom  dinero,  etc. 

Que  su  padre  era  de  Ronda. 
Parece  que  estas  duas  terras  eram  insignificantes  e  de  pouca  nobreza. 

Fraldas  largas,  grave  aspeito. 
É,uma  pungente  e  vehementissima  invectiva  contra  um  ministro. 

Que  Momo  lhe  abrisse  o  peito. 

Desejava  Momo  que  no  coração  do  homem  houvesse  uma  abertura  por  onde 
se  visse  o  que  havia  dentro;  isto  mesmo  desejava  o  Poeta  a  este  ministro  para 
desmascarar  o  lobo  vestido  com  pelle  de  ovelha.  Faria  e  Sousa  diz  que  ainda  que 
o  Poeta  escrevia  na  índia,  o  magistrado,  a  gue  se  refere,  estava  no  reino;  que  elle 
sabe  quem  era,  porém  que  o  não  quer  dizer.  Parece  querer  alludir  ao  ministro 
d*el-rei  D.  Sebastião,  apesar  do  segredo  que  fin^e  guaraar,  pois  passa  a  mostrar 
certa  identidade  com  logares  análogos  dos  Lustadoi,  em  que  se  suppõe  que  o 
Poeta  o  quiz  indigitar.  Fernão  Alvares  do  Oriente  na  sua  LutUania  Transfor- 
mada descreve  um  ministro  que  foi  do  reino  para  a  Índia,  muito  parecido  com 
este. 

Guardae-vos  de  huns  meus  Senhores. 

Quer  Fana  e  Sousa  que  esta  redondilha  se  refira  aos  chrlstãos  novos;  julgo 
porém  ojue  diz  respeito  aos  fidalgos  que  ne^ciavam,  e  que  o  Pòéta  allude  aqui 
ao  que  lhe  aconteceu  com  os  amigos  que  o  intrigaram  com  o  governador  Fran- 
cisco Barreto,  e  depois  o  abandonaram. 

Que  de  fora  dormiredes. 

É  uma  cantiga  velha : 

De  fuera  dormiredes  pastorsico. 

Até  aqui  acabavam  estas  redondilhas  na  edição  de  1595;  as  que  se  seguem 
vêem  nas  outras  edições. 

Que  direis  d'huns,  que  as  entranl^as. 

Contra  os  magistrados,  sua  cobiça,  hypocrisia  e  tyrannia,  e^cialmente  com 
os  pequenos. 

Que  lá  vão  leis,  onde  querem  cruzados? 

Este  rifão  teve  principio  no  reinado  de  D.  Affonso  o  VI,  de  Castella. 

Mas  tornando  a  huns  enfadonhos. 

Aos  importunos  narradores  de  contos,  mais  insípidos  do  que  zamboas,  yne 
matam  com  suas  historias  a  quem  os  ouve,  seja-lhe  applicada  a  pena  de  talião, 
morram  também. 


Adonde  tienen  las  mentes. 

Aos  vaidosos  de  nobreza  que,  sem  terem  fundamento  para  taes  se  julffarem, 
andam  desenterrando  mortos  para  ver  se  encontram  algum  parente  d'onde  pos- 
sam derivar  a  sua  ascendência. 

Escudeiro  de  Solia. 

Solia  era  certo  estofo  do  qual,  no  século  xiv,  se  vestiam  as  senhoras  distin- 
ctas;  diz  Faria  e  Sousa  que  era  tela  baixa  que  suppria  a  alta. 

Huns,  que  fallfio  muito,  vi. 

Contra  os  falladores,  que  nâo  fazem  mais  do  que  importunar  e  mentir. 

Ob  vós,  quem  quer  que  me  lerdes. 

*  * 

•  •  * 

Mette  a  ridículo  o  namorado;  Gil  Vicente  em  uma  das  suas  comedias  pinta  Um 
do  mesmo  modo. 

Mas  deixemos,  se  quizerdes. 

Parece  que  o  Poeta  se  disp(Se  a  atacar  alguém,  personalísando,  e  pessoa  de 
elevada  categoria. 

Deitemos-nos  mais  ao  mar. 

O  lo^ar.  porém  da  critica,  e  onde  se  indigitava  a  pessoa  ou  pessoas  objecto 
d'ella,  foi  cortado,  como  se  deprehende  dos  seguintes  versos: 

E  se  algum  se  arrecear, 
Pa^  três  ou  quatro  trovas; 

e  porque  a  ultima  redondilha  d'esta  composição  não  está  terminada.  Devia  ser 
pessoa  da  governação  da  índia,  ou  talvez  que  occnpasse  em  Lisboa  os  mais  ele- 
vados cargos. 

Ó  vós,  que  sois  Secretários. 

Dírige-se  agora  aos  ministros  d'el-rei  D.  Sebastião,  dizendo-lhe  por  que  não 
pOem  freio  ao  roubar  que  vae  sem  medida  debaixo  de  um  bom  governo;  nos  Im-     * 
siadas  usa  da  mesma  Unguagem  tocando  este  assumpto. 

Porque  a  mente,  affeiçoada. 

• 

Parecendo  atacar  os  privados  do  rei  atenua  a  critica  com  o  elogio  que  faz 
do  joven  soberano,  carregando  as  culpas  nos  ministros  que  não  deixam  exerci- 
tar as  suas  boas  qualidades. 

Por  isso,  gentis  pastores. 

Quer  Faria  e  Sousa  que  o  ultimo  verso  doesta  poesia : 

Hum  que  só  foi  pastor  bom, 

seja  allusivo  a  Cbristo  quando  lançou  fora  do  templo  os  vendilhões;  porém  pa- 
rece-me  que  se  engana,  e  que  este  dito  é  de  um  dos  vice-reís  da  índia,  julgo  que 
de  D.  João  de  Castro.  Esta  poesia  n2o  está  terminada,  pois  da  ultima  redondilba 
só  ha  quatro  versos. 


í  /> 


42 


Se  vossa  Daaia  vos  dá,  etc. 


.  A  João  Lopes  Leitão,  sobre  huma  peca  de  cadta  que  mandou  a  huma  Dama,  que 
se  lhe  fazia  donzella: — Com  este  titulo  vem  esta  poesia  nas  differentes  edições. 
Cacha,  significa  peça  de  fazenda,  e  ardil  ou  engano  de  jogo^Esta  volta  do  mote 
refere-se  a  expressões  de  jogo,  hoje.  desconhecidas. 


Menina  formosa  e  crua,  etc. 

Aconselha  uma  menina  que  largue  outro  que  a  corteja  e  o  prefira  a  elle.  Ê  es- 
cripta  em  estylo  jocoserio,  e  sem  verdadeiro  pensamento  amoroso.  Na  primeira 
edição  (1595)  vem  com  este  titulo:  «A  huma  Dama  eom  quem  queria  andar  de 
y amores»;  no  roeu  Ms.  se  acrescenta:  se  não  fóra  afeiçoada  ao  outro. 

Ja  tomara  não  ser  meu. 
Se  vós  não  fôreis  tão  sua. 
Nos  olhos,  e  na  feição, 

Tomaria  náo  ser  meu. 
Se  náo  fôreis  tanto  sua. 
Nos  olhos,  e  na  afeiçfio. 


MOO  Mu< 


Não  o  quiiestes  de  crua. 


NSo  no  quisestes  de  crua. 

Mea  MS.  e  ediçlo  de  IS95. 

Por  ser  meu: 

Se  outrem  vos  dera  o  seu.  , 

Pôde  ser  fôreis  mais  sua. 

Porque  he  meu : 

E  se  outrem  vos  dera  o  seu, 

Náo  fôreis  vós  tanto  sua. 

Meu  MS. 

Que  ainda  não  venha  a  ser. 

m 

Para  que  nSo  venha  a  ser. 

Meu  MS. 


Da  doença,  em  que  ora  ardeis,  etc. 

A  huma  Dama  doente: — Alem  d'estas  voltas,  ao  mesmo  assumpto  escreveu 
o  l^oeta  a  cançáo  xxi  (inédita). 

Porque  fiquemos  ifiuaes. 
Pois  meu  ardor  não  curais. 
Que  se  cure  rosso  ardor. 

Para  iicardes  em  joguo. 

Que  se  apague  o  foguo,  , 

SenSo  com  meu,  que  bo  maior. 

Meu  MS. 


445 

Em  vós  me  bwque  a  doença. 
Em  vós  me  busca  a  doença. 

'  MeaMS. 

Que  em  vós  só  me  achará; 
Qu'em  mi,  se  me  vem  buscar. 

Que  eip  vós  só  me  matará; 
Que  a  mi  se  me  vem  buscar. 

Mea  MS.  , 

Que  a  forma  do  que  foi  ja. 
Que  a  sombra  do  que  fui  ja. 

Bleo  MS. 

Os  outros  ramos  d'esta  poesia  sâo  inteirauiente  differentes  no  meu  Ms.,  pela 
maneira  seguinte : 

Que  se  em  vós  estou  trocado, 

O  mal  que  mal  me  quizer 

Para  me  n'alma  doer, 

£m  vós  hade  ser  mostrado. 

Nem  m 'espanto  ' 

Que  me  queirais  mal,  em  quanto 

Querer-vos  menos  não  posso; 

Pois,  Senhora,  ser  tão  vosso.. 
^  Me  tem  ja  custado  tanto. 

D'outra  parte,  quem  duvida 
Ser  tfto  alta  minha  sorte, 
Que  vos  ame  até  á  morte; 
Porque  me  neguais  a  vida 
Se  pagais. 

Nisso  a  morte  que  mo  dais, 
Ó  não  me  sejais  «squiva; 
Não  porque  eu,  Senhora,  viva; 
Mas  para  que  vós  vivais. 

Que  tanto  mais  qualquer  dano 
Vosso  que  o  meu  sentiria, 
Quanto  he  maior  a  valia 
D'alma,  aue  do  corpo  humano. 
De  verdaae. 

Que  ja  vossa  humanidade 
De  que  se  aqueixe  não  tem; 
Pois  para  as  almas  também 
Fez  amor  enfermidade. 

Se  a  verdade  dizer  posso, 
Estar  doente  convinha; 
Vós  não,  que  sois  alma  minha, 
Êu  si,  que  sou  corpo  vosso. 


De  atormentado  e  perdido,  etc. 

A  huma  Dama  vestida  de  dó;  — Pede-lhe  que  o  dó  não  seja  somente  externo, 
que  o  tenha  d'elle  Popta,  que  tantas  vezes  tem  morto. 


444 

Amor,  que  todos  oífende,  etc. 

A  Dona  Guiomar  de  BUufé,  queimando-te  com  huma  ttía  no  rotio:  —  EsU 
D.  Guiomar  era  filha  do  conae  de  Redondo,  D.  Francisco  Coutinho.  Ao  mesmo 
assumpto  escreveu  o  soneto  xxxix,  que  começa : 

O  fogo  que  na  hranda  cera  ardia,  etc. 

Esta  D.  Guiomar  foi  casada  com  D.  Simão  de  Menezes,  que  morreu  na  bata- 
lha de  Africa  com  el-rei  D.  Sebastião. 

Bem  sei  que  Amor  se  vos  rende. 
Bem  sei  que  Amor  se  lhe  rende. 

Edição  de  iS^, 

Na  primeira  edição  os  primeiros  versos  formam  uma  oitava,  e  termina  -com 
uma  quadra. 

Não  estejais  aggravada,  etc. 

A  huma  mulher,  açoutada  por  hum  homem,  que  dumavão  Quaresma: — O  ar- 
gumento d'esta  poesia  es\á  claro;  na  primeira  edição  se  diz  ser  feita  na  índia. 
Na  mesma  edição  os  versos  vêem  mal  collocados,  porque  vêem  primeiro  nove, 
depois  cinco  e  por  fim  os  outros  nove. 

Deve  ser  disciplinada. 

Deve  ser  disciprinada. 

Ediçio  de  1595. 

Seja  bem  disciplinada. 
Seja  bem  disciprinada. 

Ediçio  de  1595. 

Vossos  vidos  do  carnal. 
:^  Vossos  viços  do  carnal. 

Ediçio  de  1595. 

Outra  vez  disciplinada. 
Outra  vez  disciprinada. 

Ediçio  de  1595. 


Quem  no  mundo  quizer  ser,  etc. 

A  hum  fidalgo,  que  lhe  tardava  com  huma  camisa  que  lhe  prometteo : — Na  pri- 
meira edição  vem  esta  poesia  com  o  título  de  esparsa,  e  á  camisa  se  chama  ca- 
misa aalanle.  Estas  camisas  não  eram  ordinárias,  e  custavam  ás  vezes  um  preço 
elevado  pela  riqueza  da  fazenda  e  lavor  da  gola  ou  gorgeira. 

Come  o  mundo  todo  vê. 
Que  venha  a  dar  a  camisa. 

Gomo  todo  mundo  vé. 
Que  dar  a  camisa. 

Ediçio  de  1595. 


445 

Senhora,  pois  me  chamais,  etc. 

A  ku/ma  Dama  que  lhe  chamou  Diabo,  por  nome  Foõa  dos  Anjos: — S2o  gra- 
ciosas as  voltas  a  este  mote;  ^rave  seria  a  causa  que  obrigou  a  dama  a  dar-lhe 
ido  mau  nome,  e  bem  aproveitada  a  j>ccasião  para  lhe  redarguir  com  estes  bo- 
nitos versos. 

Como  de  Anjo,  e  não  de  luz. 

Gomo  d^anjo  e  não  da  luz. 

£diçio  de  IS9S. 

Qual  terá  culpa  de  nós,  etc. 

A  hum  Amigo,  que  não  podia  encontrar: — O  titulo  d*esta  poesia,  e  a  mesma, 
declara  o  seu  assumpto;  por  isso  não  precisa  de  explicação. 


Descalça  vai  pela  neve,  etc. 

Este  mote  é  de  Camões:  as  voltas  são  bonitas,  menos  09  dois  últimos  versps. 
Depois  de  fallar  tanto  em  neve,  cabe  mal  o  ferver  em  fogo;  ó  pensamento  e  ex- 
pressão alambicada. 

A  dor  que  a  minha  alma  sente,  etc. 

I 

O  Poeta  revela  em  mais  de  um  logar  das  suas  poesias  a  necessidade  de  guar- 
dar sepultado  no  coração  o  segredo  dos  seus  amores : 

Por  não  mostrar  meu  mal  a  toda  a  gente^ 

Elegia  ni. 

Comtudo  parece  que  nem  sempre  teve  a  constância  de  g;uardar  para  si  toda 
a  sua  ventura;  e  a  imprudência  sobre  esta  matéria  deveu  a  separação,  embora 
temporária,  aue  lhe  impoz  a  amante,  prívando-o  por  algum  tempo  da  sua  pre- 
sença e  agraao. 

Parece  que  Diogo  Bernardes  usurpara  estas  voltas,  porém  com  alguma  diífe- 
rença,  por  esta  forma : 

Tenho  feito  juramento, 
Porque  assi  o  quiz  Amor, 
De  sempre  como  avarento 
Guardar  em  mim  minha  dor, 
Por  nam  tratar  peor: 
Se  disto  o  contrario  sente 
Nam  o  saiba  toda  a  gente. 

Bernardes  traz  só  duas  coplas. 

Não  na  sabe  toda  a  gente. 

Não  a  saiba  toda  a  gente. 

EdiçSo  de  1595. 

De  ninguém  ouso  fiar. 
De  ninguém  a  ouso  fiar. 

EdiçSo  de  1595. 


4 

D'alina,  e  de  quanto  tiver,  ete. 

Pede  á  dama  que  use  para  coin  elie  toda  a  sorte  de  rígoresi  cooit^nloquc 
Ihé  deixe  os  olhos  para  a  ver. 

Amores  de  huroa  casada,  etc. 

Á  frequente  convivência  com  uma  casada,  deu  em  resultado  converter-se  a 
amisade  em  amor  im]>ossivel,  que  se  quebra  contra  a  barreira  da  honestidade  da 
dama  que  o  faz  nutrir.  O  mote  é  alheio,  e  também  provavelmente  estranho  ao 
Poeta  o  assumpto  d'elle. 

^  Faz-se  o  desejo  maior 

Donde  o  remédio  não  vaL 
Em  perigo  de  meu  mal 

Fcz-se  o  desejo  maior 
Donde  remédio  não  vai, 
Sem  perigo  do  mais  mal. 

M  o  MS. 

Que  donde  entra  ftor  amigo, 
Se  levante  por  senhor. 

Mas  onde  entrou  por  amigo, 
Se  levantou  por  Senhor. 

Mpo  MS. 

E  de  final  em  final. 
Cada  vez  para  mór  mal, 

Aquelle  passo  mortal. 

Que  eU'  terei  por  menos  mal. 

Meu  MS 

No  meu  MS.  vem  mais  esta  redondilha  que  não  está  no  impresso: 

Casada,  t>em  vejo  eu 
Que  sois  alheia  e  nâo  vossa, 
Mas  quem  deste  mal  se  apossa, 
Também  he  vosso,  e  nflo  seu; 
'  Ja  que  a  vós  amor  mo  deu, 
Dai- me  vós  algum  sinal 
De  vos  pezar  de  meu  mal. 


Enforquei  minha  esperança,  etc. 

Feito  a  uma  redonciliaçáo,  é  galante  poesia.  Ao  mesmo  assumpto  vae,  mais 
adiante,  uma  poesia  inédita. 


Puz  o  coração  nos  olhos,  etc. 

N9o  entendo  muito  bem  este  mote,  nem  a  volta;  é  escripto  n*um  cstylo  algifiu 
tanto  alambicado. 


U7 

Puz  meus  olhos  n'huina  funda,  etc. 

Peito,  como  claramente  declara  a  poesia,  a  um  trocar  de  olhos  com  uma  da- 
ma ;  é  um  epigramma  engraçado. 

Trape,  quebrei-lhe  a  janella. 

Trape,  quebro-lh*a  janella. 

Edição  de  1595. 


De  pequena  tomei  amor,  etc. 

Este  mote  parece  ter  sido  dado  ao.Poeta  por  uma  dama;  elle  revira  as  setlas, 
e  declara  á  mesma,  como*  conhecendo  amor  desde  pequenino,  illudido  o  seguiu» 
e  foi  victima  dos  seus  enganos  e  tormentos,  que  só  ella  pôde  mitigar  e  extinguir. 


Tenho  sabido  que  em  fim. 
Tenho  sabido  em  fim. 

Edição  de  4595. 


Apartáráo-se  os  meus  olhos,  etc. 

Á  uma  dama  privando^  da  sua  vista,  por  ausência  ou  interrupção  de  rola- 
ç(^s  amorosas. 

E  oxalá  enganadores. 

Erão  cruéis  matadores. 

Ediçjio  de  1595. 

N*esta  primeira  ediçSo  traz  mais  esta  redondílha : 

Não  se  poz  terra  nem  mar 

Entre  vós,  que  forSo  em  \So, 

Poz-se  vossa  condiçAo, 

Que  tão  doce  he  de  passar, 

Por  ella  vos  quiz  levar 

De  mim  táo  longe,  • 

Falsos  amores, 

E  oxalá  enganadores. 


Falso  Cavalheiro,  ingrato,  etc. 

NVste  mote  e  voltas- é  uma  dama  que  falia;  serSo  pois  estes  versos  escrípto<« 
por  ella  oo  por  CamOes,  para  ella  responder  á  arguição  que  parece  se  lhe  fazia  ? 

Sobre  isento  coração. 

0  Sobre  falso  coraçfto. 

Mm  MS. 


448 

Se  de  meu  mal  me  contento,  etc. 

Encarece  as  qualidades  da  dama,  e  a  impossibilidade  de  a  merecer,  por  ter 
impossivel  aspirar  á  ventura  de  a  amar,  reconhecendo  o  seu  pouco  merecimento; 
só  se  este  igualasse  ao  seu  desejo. 

Vós,  Senhora,  tudo  tendes,  etc. 

Exalta  a  belleza  da  dama  e  de  seus  olhos  verdes,  que  excede  a  dos  azues, 
embora  estes  sejam  muito  louvados. 


Para  que  me  dan  tormento,  etc. 

Instigado  a  declarar  a  quem  ama,  recusa-se  a  revela-lo,  promettendo  guardar 
segredo,  orgulhoso  do  seu  tormento.  É  mote  antigo  que  mmtos  glosaram,  e  entre 
outros,  Montemaior,  como  se  pôde  ver  nas  suas  poesias  em  castelhano. 


De  vuestros  ojos  centelhas,  etc. 

Os  olhos  da  dama  não  podem  subir  ao  céu,  e  ali  transformar-se  em  estrellas, 
porque  já  o  são  na  terra,  e«não  pedem  subir  mais;  e  s^  ali  subissem  inspirariam 
amor  ao  próprio  Deus  no  oitavo  céu. 

Lo  como  ahtmhran  ai  suelo. 
De  como  alumbran  ai  cielo. 

Ediçlto  de  1695. 

Escripto  em  castelhano. 

'  De  dentro  tengo  mi  mal,  etc. 

A  sua  dor  está. tão  occulta  no  coração,  como  a  centelha  na  pederneira.  Em 
'castelhano. 

Anior  loco,  amor  loco,  etc. 

Anda  doido  por  uma  dama  que  anda  louca  por  outro  que  a  não  ama;  se  a 
não  vira  tão  dedicada  por  elle,  fora  mais  louco  por  el)a.  Este  mote  glosaram  mui- 
tos, entre  outros  Montemaior,  na  sua  Diana,  Em  castelhano. 


Vede  bem  se  nos  meus  dias,  etc. 

Desiste  de  novos  amores,  pelos  tormentos  que  experimentou  com  os  passados. 

\ 

Pois  se  ho  mais  vosso  que  meu,  etc. 

Pede  á  dama,  pois  o  seu  coração  é  mais  d'elia  do  que  seu,  e  elle  seu  capti^^, 
que  se  lembre  da  tristeza  que  o  domina. 


449 


Senhora,  pois  minha  vida,  etc. 


Ao  mesmo  assumpto  do  mote  antecedente.  Pede  á  dama  nSo  qaeira  ver  des- 
truída a  sua  vida,  pois  é  d'eila  e  não  sua. 


Pois  damno  nie  faz  olhar-vos,  etc. 

Entre  os  dois  extremos  de  nSo  ver  e  perder  a  sua  dama,  ou  vé-la  e  perâe-la, 
prefere  não  a  ver. 

Pois  damno  me  faz  oUiar-vot, 

Pois  me  fez  dano  olhar-vos.  . 

Ediç9o  de  t595. 


N2o  sei  se  m'engana  Helena. 

A  tre$  Damas,  que  Uie  dizião  que  o  amavão :  — Bem  se  vé  que  esta  poesia  é 
puramente  jocosa;  se  assim  fora  náo  haveria  tão  boa  concordância  entre  as  três. 
Eram  brinquedos  e  ditos  chistosos  para  provocarem  a  veia  poética  fácil  e  engra- 
çada de  Camões. 

Menina,  não  sei  dizer,  etc. 

A  hvma  Dama  mal  empregada:  —  Esta  poesia  é  dedicada  a  uma  senhora  com 
qu^m  teve  amores,  que  o  deixou  para  passar  ao  estado  de  casada;  é  natural  que 
a  achasse  como  diz:  —mal  empregada. 


Com  vossos  olhos,  Gonçalves,  eta 

A  huma  Foãa  Gonçalves:  —Não  posso  entender  a  amphibologia  d'esta  compo- 
sição. 


De  que  me  serve  fugir,  etc-. 

Para  tod^í  a  parte  para  onde  vá  leva  comsigo  o  seu  desgosto,  ao  qual  não 
pôde  fugir. 

# 

Quando  me  quer  enganar,  etc. 

A  huma  Dama,  que  lhe  jurava  pelos  seus  olhos: — Parece  que  escreveu  o  Poeta 
estes  vorsos  á  imitação  da  ode  viii  de  Horácio,  do  livro  ii,  dirigida  a  Júlia  Ba- 
rina,  que  fazia  taes  juramentos  e  pt^rjurios.  D'estes  juramentos,  de  que  alguns 
disseram  que  se  riam  os  deuses,  resultou  o  adaffio  latino:  •  Venerium  jusjuran- 
dum».  Faria  e  Sousa  tinha  dividido  estas  redondiihas  em  quatro  quintilhas. 

Quanto  me  eÚa  jura  mais. 

Quanto  m*ella  jura  roais. 

EdifAo  de  1595. 
Tosio  IV  29 


450 

•  

Ha  hum  bem,  que  diega  e  foge,  etc. 

O  bem  quando  chega  e  foge,  nSo  é  bem,  porém  é  mtl;  assim  quero  viveu 
sempre  pobre,  nem  conhece  o  bem  da  riqueza,  nem  o  mal  de  empobrecer. 


Olhos,  nSo  vos  mereci,  ele. 

A  huma  Dama,  que  Uie  virou  o  rotío: — NSo  ambiciona  mais  do  que  o  que 
ella,  com  tanta  liberalidade,  arremessa  ao  chSOi 


Yenceo-me  Amor,  não  o  nego,  etc. 

É  um  epigramma  engraçado,  o  qual,  como  outros  d'esta  collecçfto,  não  engei- 
taria  Anacreonte  ou  Moscho.  Representa  o  poder  do  Amor  aue,  apesar  de  peque- 
nino, dá  pancada  de  cego;  e  ninguém,  aindaque  fora  Hercules,  lhe  resiste. 

Ve^ceo-me  Amor*,  não  o  nego.. 

Venceste,  Amor,  nSo  o  nego. 

Hea  MS. 

Só  porque  he  rapaz  ruim, 
Det'lhe  hum  boféle  zombando. 
Diz-me:  Ó  mao,  eslais-me  dando. 
Porque  sois  maior  que  mim  f 
Pois  se  eu  ros  descarrego, 

Poraue  he  rapaz  roim, 
Dei-Ihe  huma  ronba  zombando. 
Disse-nie  elle :  estais-me  dando. 
Por  serdes  maior  que  mim? 
Pois  se  vos  eu  desça  rreguo.  / 

Ueo  MS. 

Toma-me  outra,  tá  rapaz^ 
Descarregua,  tá  rapaz. 

MeaMS. 


/ 


Os  bons  vi  sempre  passar,  etc. 

Ao  desconcerto  do  mundo: — Vendo  que  a  fortuna  favorecia  n'este  mundo  os 
maus  e  opprimia  os  bons,  fez-se  mau;  mas  é  tal  a  sua  desgraça  que  nem  com 
isso  eanhou,  pois  apesar  d'este  desconcerto  do  mundo,  só  para  elte  anda  con- 
certado. Aristophanes  diz  que  quando  Júpiter  ordenava  a  PlutSo,  deus  das  rique- 
zas, que  batesse  ás  portas  dos  beneméritos,  ia  coxo,  e  quando  á  dos  maus,  voava. 
Esta  desordem  na  justa  repartição  dos  bens  é  muito  vulgar;  ha  comtudo  uma  ri- 
queza que  a  fortuna  não  pôde  roubar,  que  é  a  tranquillidade  de  uma  consciên- 
cia pura. 

Cuidando  alcançar  assi. 

Cuidando  alcançar  assim. 

Edição  de  1598. 


1 


45< 

Am,  que  só  para  mi. 
Adsiin,  que  só  para  mim. 

EdiçSo  de  1998. 

Perguntai$-n)e,  quem  me  mata?  etc. 

A  huma  Dama,  perguntando-lhe  quem  o  matava: — NSo  quer  responder  nada, 
com  receio  de  a  entregar  á  justiça  por  culpada. 


Esconjuro-te,  Domingas,  etc. 

Uma  certa  Domingas  poz  o  amor  n'outro  para  se  vingar  d'eUe;  pede-lhe  que 
atteuda  ao  estado  delirante  em  que  o  vé,  e  suspenda  desde  já  a  vingança. 

Folgavas  de  apascentar. 

Folgavas  d'apascentar. 

Ediçio  do  1598. 

Fingia  qu'erão  palabras. 
Fingia  que  erSo  palavras.      ' 

£diç2b  de  lim^ 
Qa'inda  que  queiras.  Domingas. 

Qu'inda  queiras,  Domingas. 

Edição  de  1598. 

J)e  mi  í' esqueces.  Domingas, 
Como  eu  faço  do  meu  gado. 

De  mi  te  esqueces,  Domingas, 
Com' eu  faço  do  meu  gado. 

EdiçJlo  do  1398. 

Que  morra  desesperado. 
Q(ie  moura  desesperado. 

Edição  de  1398. 


Se  a  alma  ver-se  não  pôde,  etc. 

Se  não  pôde  ver-se  a  dor  que  está  no  intimo  d'alma,  sendo  a  sua  aliás  tão 
profunda,  que  fará  para  ser  querido  n'esta  impossibilidade? 

Se  a  alma  ver-se  não  pôde, 

i 

S*alma  ver-se  não  pôde. 

EdiçSo  de  1598. 


Vosso  bem  querer,  Senhora,  etc. 

Não  se  acha  satisfeito  com  os  favores  da  dama,  prefere  que  o  maltrate :  não 
entendo. 


452 


Ser  melhor  todo  tormento. 
Ser  melhor  tod'o  tormento. 

Ediç9o  de  1598. 

Que  o  mal  melhor  me  fora. 
Qu*o  mal  melhor  me  fora. 

£diçSodel598. 


Se  me  desta  terra  for,  etc. 

Protesta  a  uma  dama,  ausentando-se,  ou  leva-la  comsigo,  ou  deixar  junto 
d'ella  a  sua  alma. 

A  minha  alma,  se  me  for. 

A  minh'alma,  se  me  for. 

Ediçio  de  1596. 


Pequenos  contentamentos,  etc. 

Não  (|uer  aceitar  os  gostos  que  se  lhe  offerecem  já  tâo  tarde,  por  minguados 
e  mesquinhos;  pois  o  bem  que  lhe  é  devido  nunca  o  satisfará. 

Que  a  mi  não  me  conheceis. 

Qu'a  mim  nflo  me  conheceis. 

Ediçio  de  1596. 


Perdigão  perdeo  a  penna,  etc. 

Por  acaso  em  um  livro  genealógico  que  pertenceu  a  Manuel -Severim  de  Fa- 
ria, o  mesmo  escriptor  que  escreveu  uma  biographía  do  Poeta,  encontrámos  o 
que  deu  assumpto  a  este  poema,  e  que  aqui  transcrevemos:  «  Silvas, Casa  do  Re- 
gedor. Jorge  da  Silva,  filho  terceiro  do  Regedor,  Jofto  da  Silva  irmfto  de  Diogo  da 
ailva.  Casou  com  D.  Luiza  da  Barros,  filha  herdeira  de  Jorge  de  Barros  e  D.  Phi- 
lippa  de  Mello,  de  quem  nfto  teve  filhos.  Foi  fidalgo  de  erandps  brios  e  altivos 
pensamentos;  sendo  moço  namorou  a  Infanta  D.  Maria,  filha  d'El-Rei  D.  Manurt, 
e  fez  taes  extremos  que,  chepndo  á  noticia  d'EURei  D.  Joáo  III,  irmáo  da  In- 
fanta, o  mandou  prender  no  Limoeiro  onde  esteve  o  tempo  que  pareceu  bastante 
para  seu  castigo;  e  a  esta  prisáo  e  amores  fez  Luiz  de  Camões  umas  voltas  áqaella 
cantiga  velha : 

Perdigão  perdeo  a  penna,  etc. 

que  começam : 

Perdigão,  que  o  pensamento,  etc. 

Quarta  parte  das  Famílias  Nobres  de  Portugal  Segue  a  assignatura  de  Ma- 
nuel Severim  de  Faria.  Na  folha  primeira  que  está  collada  á  capa,  tem  esta  nota: 
«O  P.*  Prior  do  Hospital  do  Beato  João  de  Deos  de  IMontemor,  me  fez  m.  deste 
livro  em  Fevereiro  de  1649.  =  Manuel  Severim  de  Faria  ». 

Subío  a  hum  alto  lugar. 
Perde  a  penna  do  voar. 
Ganha  a  pena  do  tormento. 


ibò 


«  Foi  por  em  alto  lugar, 
Perde  as  pennas  de  voar, 
Ganha  as  penas  de  tormento. 

MS.  genealógica. 
Se  ajpieixumes  se  soccorre. 

Se' a  queixumes  se  socorre. 

Edição  de  1398. 

Pois  a  tantas  perdições,  etc. 

* 

A  humas  Senhoras,  que  havião  ser  terceiras  para  com  huma  Dama:—É  moi 
gentil  esta  poesia,  na  qual  pede  que  intercedam  para  com  a  sua  amante.  Pelo  seu 
estylo  delicado  e  cortezão  se  vé  que  é  dirigida  a  senhoras  da  mais  elevada  po- 
sição social,  e  nSo  deixa  duvida  que  fossem  as  damas  do  paço.  É  escripta  com 
muita  arte,  com  move  e  persuade  com  mui  íina  galanteria,  e  emprega  affectos  ver- 
dadeiros, a  que  se  junta  um  estylo  natural  repassado  de  melancholia;  bem  se  vé 
que  saía  do  coração.  Lisonjeia  as  damas  com  uma  lisonia  delicada;  pois  a  ven- 
tura o  subiu  a  tanta  altura,  que  melhores  cirurgiões  pódfe  ter  para  a  sua  ferida; 
ditosa  ferida!  ditosa  tristeza!  A  vaidade  feminina  é  adulada  com  summa  finura; 
emprega  o  argumento  dos  argumentos  para  com  o  sexo,  obama-lhe  formosas; 
não  se  contenta  com  isso,  como  que  desapparece  da  scena,  e  tudo  entrega  ao  seu 
poderoso  valimento.  São  somente  ellas,  rosas  milagrosas  de  amor,  que  podem  fa- 
zer o  milagre  de  abrandar  o  coração  da  suá  amante;  assim  de  joelhos  peçam-lhe 
que  queiram  ver  no  seu  padecer  o  poder  que  téem  os  seus  olhos.  E  que  maior 
intercessora  do  que  a  formosura  dobrando  o  joelho  perante  a  formosura?  Para 
despertar  o  empenho  das  suas  amáveis  medianeiras,  termina  evocando  por  ^sim 
dizer  o  seu  egoísmo,  lembra-lhes  que  podem  ser  victimas  de  um  mal  como  o  que 
soffire,  o  que  oxalá  nunca  lhes  aconteça. 

• 
Que  ièe  iaes  Cirurgiões. 

Que  taes  Cirurgiões. 

Edição  de  1398. 

Ja  qu* entendeis,  que  he>  assi, 
Ja  entendeis  qu'he  assim. 

Edição  de  1598. 

Fazei  milagres  de  Amor. 
Fazei  milagres  d^amor. 

Edição  de  1598. 

Que  o  valer. 
Qu*o  valer. 

Edição  de  1598. 

Quando  cuido  em  quem  me  cura. 
Quando  cuido  em  quem  mo  cura. 

Edição  de  1598 

Na  fonte  está  Leonor,  etc. 

É  bonita  e  aífectuosa  esta  poesia;  a  representação  da  dor  de  Leonor  é  pin- 
tada com  cores  tão  naturaes  como  expressivas. 


454 

Na  (onle  está  Leonor, 
Na  fonte  está  Lcanor. 

Edi{9o  de  1646. 

A$  amigas  perguntando. 
As  amigas  preguntando. 

Edição  de  1616. 

Nisto  estava  Leonor, 
Nisto  estava  Leanor. 

EdiçSo  de  1616. 

o  rosto  sobre  hOa  mão. 
O  rosto  sobre  huma  uíSo. 

Ediçio  de  1616. 

Qiêe  de  chorar  ja  cansados. 
Que  (lo  chorar  ja  cansados. 

EdífSo  de  1616. 

Desta  sorte  Leonor. 
Desta  sorte  I^anor. 

Edição  de  1616. 
Que  não  quer  que  a  dor  s'abrande. 

Que  não  quer  que  á  dor  se  abrande 

EdiçSo  de  1616. 

Despois  qne  de  se\i  amor 
Soube  novos  pei*guntando, 
D'improviso  a  vi  chorando. 

Que  depois  de  seu  amor 
Soube  novas  preguntando, 
Demproviso  a  vi  chorando. 

Ediçiú  de  1616. 

Que  diabo  ha  tão  dam  nado,  etc. 

Trovas  que  mandou  o  autor  da  cadeia,  em  que  o  tinha  embargado  por  huma 
divida  Miguei  Roiz,  Fios  Seeeos  d  alcunha,  ao  Conde  de  Redondo  D.  Francisco  Cou- 
tinho,Viso- Rei  j  que  se  embarcava  para  fora,  pedindo-lhe  o  fizesse  desembarcar: — 
Escreveu  o  Poeta  estes  versos  que  dirigiu,  como  declara  o  titulo,  ao  viso-rei,  pe- 
dindo-lhe o  mandasse  soltar  antes  que  embarcasse.  Yeja-se  o  que  dissemos  na 
biographin,  tomo  i.  Este  fidalgo  era  um  dos  capitães  da  índia  dos  mais  distinctos, 
e  esteve  no  cerco  de  Dio.  É  um  epigramma  engraçado  e  enérgico. 


Vossa  Senhoria  creia,  etc. 

Trovas  que  mandou  Heitor  da  Silveira  ao  mesmo  Conde,  invemando  em  Goa: — 
SSo  escriptas  por  elle  mesmo;  quem  fosse  este  fidalgo,  amigo  de  Camões,  deixá- 
mos dito  quando  tratámos  do  convite  feito  aos  fidalgos  na  índia. 

Que  o  tempo  traz  somnolenla. 


455 

Qae  o  tempo  traz  sonorenta. 

Edição  de  1616. 

Que  80  dá  vida  e  eoaterUa. 
Que  só  dá  vida  e  a  contenta. 

EdiçSo  de  16!6. 

Não  posso  chegar  ao  cabo,  etc. 

A  huma  Senhora,  que  lhe  chamou  diabo: — Ao  mesmo  assumpto  d'esta  esparsa 
fica  atrás  o  mot^i  que  começa : 

* 

Senhora^  pois  me  chamais,  etc. 


Vi  chorar  huns  claros  olhos,  etc. 

Lindos  versos  a  uma  despedida.  É  no  mesmo  momento  de  se  ausentar,  aue 
a  amante  lhe  confessa  que  o  ama;  assim  a  sua  alegria  ainda  é  maior  que  a  aor 
e  tristeza  pela  ausência,  ouvindo  esta  confissão,  e  vendo  arrazar-se  os  olhos  de 
agua  de  quem  a  fazia. 

Se  esta  dor,  se  esta  alegria. 

Se  esta  dor,  se  est' alegria. 

Kdiçao  de  1616. 

Assi,  se  minha  alma  vive, 
Assi,  se  minh'alma  vive. 

Edição  de  1616. 

No  tempo  que  desejei. 
No  tempo  que  o  desejei. 

EdiçSo  de  1616. 
O  principio  da  alegria.  ^ 

O  principio  d' alegria. 

Edíç9b  de  1616. 

Deos  te  salve,  Vasco  amigo,  etc. 

Vilancde  pastoril: — Vasco  arguido  por  Gil  de  lhe  nSo  responder,  diz-lhe  que 
o  não  faz  por  que  não  está  em  si;  se  o  quer  procurar  o  faça  em  Magdalena.'Argue- 
Ihe  Gil,  como  é  gue  nSo  está  em  si,  se  responde  táo  atilado;  ao  que  elle  contesta 
que  é  ella  que  responde. 

Pois  onde  te  hão  de  fallar. 
Pois  onde  te  nSo  fallar. 

Ediç&o  do  1616. 

Se  Magdanda  conheces. 
Se  Madanela  conheces. 

EdiçSo  de  1616. 

Em  ti,  como  em  Magdanela, 
Em  ti,  como  em  Madanella. 

Edição  de  1616. 


456 

Porque  no  miras,  Giraldo,  ete. 

Outro  vilancete  pastoril: — Giraldo  convidado  por  um  pastor  para  ouvir  a  har- 
monia da  sua  sanfona,  lhe  volve  que  está  mudo  e  surdo  para  o  attender,  por- 
quanto nSo  vé  Helena. 

No  vé$  cuan  dtdee  que  ntena. 
No  vés  quan  dulce  e  serena. 

Edif  io  de  1616. 

Crescem,  Camilla,  os  abrolhos,  etc. 

(hAro  vilancete  pastoril:  —  A  uma  senhora  que  chorava  a  ausência  do  seu 
amante  e  não  queria  ser  consolada,  e  repeJie  os  conselhos  que  lhe  dá  para  miti- 
gar a  sua  dor. 

S'eu  não  vejo  quem  mais  quero. 

Se  eu  não  vejo  quem  mais  quero.    - 

Edição  de  46! 6. 

Se  se  foi  ha  mais  d'hum  mês. 
Se  se  foy  ha  mais  de  hum  mêz. 

Edição  de  1616. 

Olhos,  em  qu^esUo  mil  flores,  etc. 

A  huma  mulher j  que  se  chamou  Grada  de  Moraes:  —  Joga  com  o  equivoco  de 
morais,  verbo,  com  o  de  Moraes  appellido.  A  esta  mesma  Gracia  de  Moraes  traz 
Faria  e  Sousa  as  duas  outras  redondilhas  seguintes  que  não  vêem  impressas: 

Ha  huma  questão  de  Amor, 

Na  qual  ningaem  se  assegura,  . 

Qual  seja  de  mais  valor : 

Se  a  Graça,  se  a  Fermosura. 

Julgo  a  poder  julgar  nella, 

Se  a  affeiçam  nam  me  embaraça, 

Que  muito  mais  vale  a  Graça 

Que  a  Fermosura  sem  ella. 

Se  me  dessem  a  escolher 

(Mas  nam  tenho  tal  ventura) 

A  Graça  quisera  eu  ter,  ^ 

Tenha  outra  a  Fermosura. 

Ninguém  pôde  aqui  por  grossa 

Que  nam  nque  com  desgraça, 

Pôde  haver  Graça  fermosa, 

Nam  Fermosura  sem  graça. 

Anacreonte  fazendo  o  retrato  da  sua  amante  a  representa  composta  de  leite, 
rosas  e  marfim ;  porém  não  julga  completo  o  retrato,  se  todas  estas  partes  nSo 
forem  acompanhadas  da  graça,  por  isso  quer  que  as  graças  esvoacem  em  torno 
do  collo. 

Olhos,  em  qu' estão  mil  flores. 

Olhos,  em  que  estão  mil  flores. 

Edição  do  1616. 


Quem  se  confia  em  huns  olhos,  etc. 

Queixa-se  da  inconstância  ou  antes  garridice  de  uma  senhora;  engana-se 

3uem  põe  a  sua  confiança  em  meninas  que,  com  um  mudar  de  olhos,  mudam 
e  pensamento. 

Sois  formosa,  e  tudo  tendes,  etc. 

Louvando  e  detiouvando  huma  dama;— Faz  a  descri pção  dos  diflerentes  attri- 
butos  physicos  e  moraes  da  senhora,  terminando  sempre  com  o  elogio  dos  olhos 
verdes. 

Serdes  tão  bem  assombjrada. 

Serdes  bem  assombrada. 

Edição  do  1616. 

He  tão  branca  e  bem  talhada. 
He  branca  e  bem  talhada. 

/      Edição  de  1616. 

Am  he;  e  quanto  a  mim. 
Isso  tos  nasce  de  a  terdes, 

Ja  sei  quanto  a  mim. 
Isso  nasce  de  a  terdes. 

Edição  de  1616. 

A  alma,  sem  o  vós  saberdes, 
Ja  sem  o  vós  saberdes. 

Edição  de  1616. 

Inda  assim  achareis  nação, ' 
Inda  assim  aehareis  gente. 

Ediç3o  de  i616. 

Esse  riso,  que  he  composto. 
Esse  riso,  he  composto. 

Edição  de  1616.  , 

Boca  CO*  huma  graça  igual. 

Boca  nem  graça  igual. 

Edição  de  1616. 

Dou-me  eu  a  Deos,  que  me  leve,» 
Dou-me  a  Deos,  que  me  leve. 

Edição  de  i616. 
Senão  qu'he  feita  em  rosquinhas, 

SenSo  que  feita  em  rosquinhas. 

Edição  de  1616. 

Eu  sei  bem  quem  se  offerece. 
Eu  sei  quem  se  offerece. 

Edição  de  1616. 


458 

Só  o  vé-hu  enfeitiça. 
Só  com  vô-las  enfeitiça.- 

£diçiddel6l6. 

Quem  vê  vo$so$  oUios  verdei. 
Os  que  vem  vossos  olhos  verdes. 

EdiçSo  de  1616. 

Que  eu  logo  vos  roubaria. 
Oh  dou-me  a  Santa  Maria  t 

Qae  eu.  rogo  vos  roubaria. 
Dou- me  a  Santa  Maria  I 

Edição  de  4646. 


Tudo  tendes  singular,  etc. 
Ao  mesmo  assumpto  do  antecedente. 

Quanto  o  ser  formosa  akança. 
Quando  ser  formosa  alcança. 

EdiçSo  de  1616. 

N'esta  ediçáo  faltam  os  últimos  dois  versos. 


Cinco  gallinbas  e  meia,  etc. 

A  Dom  António,  Senhor  de  Cascaes,  que  tendo4he  promettido  seisgalUnhas  re- 
cheadas por  huma  covla  que  lhe  fizera,  lhe  mandou  por  principio  de  paga  meia 
ÍmUinha  recheada: — Muito  engraçado  epigramma.  Mal  pensava  Camões,  quando 
he  dirigia  estes  versos,  que  este  mesmo  fidalgo  seria  quem  arvorasse  no  castello 
de  Lisboa  o  estandarte  castelhano  por  Filippe  II. 


Catharina  bem  promette,  etc. 

Pedindo  a  uma  mulher,  depois  de  uma  entrevista,  mais  do  que  ella  queria 
e  devia  consentir>lhe;  é  escripta  em  estylo  jocoso,  e  por  elle  se  vé  que  ella  se 
evadia  ás  suas  pretensões,  ou  por  se  fazer  valer  ou  por  decoro.  Faria  e  Sousa  in- 
verte a  ordem  das  redondilhas.  Depois  da  primeira,  em  logar  da  segunda  é  a 
sexta,  no  da  terceira  a  quarta,  e  no  da  quarta  a  terceira. 

CaAarina  bem  promette; 
Ora  mál  como  eUa  mente! 

Calerina  bem  promete; 
Era  má!  como  ella  mente! 

Edição  de  4595. 

i  Enganou-me;  tinha  a  minha; 

Deo-lhe  pouco  de  perdella. 

Enganou-me;  teve  a  minha; 
Da-Ihe  pouco  de  perdella. 

EdiçSo  de  4595. 


459 


Dizei,  porque  me  mentis? 
Promelteis,  e  então  fugis? 
Pois  sem  tot*nar,  tuao  he  nada. 
Não  sois  bem  aconselhada. 

Dizei,  para  que  mentia? 
Prometeis,  e  nSo  campris? 
Pois  sem  cumprir,  tuao  he  nada. 
Nem  sois  bem  aconselhada. 

Edição  de  1593. 

o  que  perde  não  q  sente, 
O  que  perde  nSo  no  sente.* 

EdiçSo  do  4595. 

Se  este  vosso  prometter 
Fosse  por  me  ter  hum  dia* 

Se  esse  vosso  pormeter 
Fosse  por  me  ter  um  dia. 

Ediç9o  do  1595. 

Com  gosto;  e  tôs  de  contente. 
Com  vosco;  e  vós  de  contente. 

Ediçio  de  1595. 
Deixai-me  vós  o  servir, 

Deiíai-me  vós  o  coinprír. 

EdiçSo  do  1595. 

O  seí'vir  a  quem  Uie  mente, 
O  que  cumpre  o  que  mente. 

Edição  de  1595. 

FaUar-lhe,  o  mais  me  consente, 
Paliar,  o  mais  me  consente. 

EdiçSo  de  1595. 

Em  logar  da  sexta  redondilha,  vem  a  seguinte  no  meu  Ms. : 

Mas  pois  folgais  de  mentir. 

Prometendo  de  me  vér. 

Eu  vos  deixo  a  prometer, 

Deixai-me  vós  o  comprir; 

Aveis  então  de  sentir 

Quanto  fica  mais  constante, 

O  que  cumpre,  que  o  que  mente. 


'  A  alma,  qn*está  oíTrecida,  etc. 
No  estado  em  que  se  acha,  o  mal  e  o  bem  é-lhe  já  indifferente. 


Ferro,  fogo,  frio  e  calma,  etc. 
Insignificante  e  pouco  intelligivel  é  esta  poesia. 


J6q_ 

Esperei,  ja  não  espero,  etc. 

Desenganado  do  pouco  interesse  que  ]he  mostra  uma  dama,  bate  em  reti- 
rada e  despede-se  d^ella. 

Descalça  vai  para  a  fonte,  etc. 

Este  mote  e  voltas  parece  que  deviam  preceder,  se  estas  rimas  fossem  por 
ordem,  o  mote  que  começa : 

Na  fonte  está  Leojior,  etc. 

É  bonita  descripçSo  de  unflst  pa3tora. 

Vai  formosa,  e  não  segura. 

Vai  fermosa,  e  não  segura. 

Fdíç5o  de  166S. 


Quem  disser  que  a  ffarca  pende,  etc. 

NSo  entendo  a  allegoria  d'esta  barca  que  pende;  s2o  allusôes  a  cousas  do 
tempo  em  que  foram  escriptos  estes  versos. 


Com  razSo  queixar-me  posso,  etc. 

A  uma  senhora  sangrando-se :  talvez  a  me^ma  a  quem  são  dirigidos  os  ou- 
tros versos,^  que  váo  n'esta  collecção,  a  uma  senhora  estando  doente. 

Ojos,  herido  me  habcis,  etc* 

Se  o  mata  com  os  seus  olhos,  torne  a  olha-lo  depois  de  morto  para  o  resus- 
citar.  Em  castelhano. 

O  ojoi,  ya  de  matarme; 

Mas  muerto  volved  á  mirarme, 

Porque  me  resusdteis, 

Ojos,  de  resuscitarme; 

Mas  muerto  bolve  a  mirarme, 

Porque  me  resusciteis. 

RdiçSo  de  166S. 

Na  mesma  edição  vem  esta  poesia  com  as  quadras  separadas. 


Mas  porém  a  que  cuidados,  etc. 

A  D.  Francisca  de  Aragão:  este  mote  foi  dado  por  esta  senhora,  e  a  glosa 
acompanhada  da  carta  que  vae  junta  com  as  outras  cartas  em  prosa. . 

Eu  não  tenho  que  fx>s  dar. 

E  não  tenho  que  vos  dar. 

.  Ediçllo  de  J59S. 


u\ 


Trabalhos  descansariSo,  e(c. 


Expor-se-ia  a  todo  o  trabalho  de  bom  grado,  se  experimentasse  o  mais  pe- 
queno reconhecimento  por  parte  da  sua  amante;  porém  acostumado  a  soíTrer  as 
suas  cruezas,  que  esperanças  pôde  ter  no  futuro. 


Triste  vida  se  me  ordena,  ete. 

Apesar  da  injustiça  de  querer  satisfazer  os  seus  seryiços  com  cruezas,  não 
pôde  ter  maior  bem  que  ser\i-Ia;  pois  quanto  mais  pedir  mais  deverá,  e  são  taes 
08  seus  merecimentos,  e  de  tão  alta  estima,  que  ainda  é' muito  lavor  querer  que 
os  seus  tormentos  lhe  fiquem  por  galardão. 


Ja  não  posso  ser  contente,  etc. 

Perdida  a  a^perança,  repelle  os  contentamentos  e  gosos  que  se  lhe  offe recém; 
só  deseja  a  solidão  para  cevar  a  sua  tristeza,  ou  antes  a  morte  para  pôr  termo 
aos  seus  males;  porquanto,  no  doloroso  estado  em  que  vive,  nem  morre,  nem 
tem  vida. 

^  A  morte,  pois  que  sou  vosso,  etc. 

■  • 
A  huma  dama  que  se  chamava  Anna:  —  Amor,  para  o  experimentar,  lhe  apre- 
sentou a  morte  para  ver  se  a  temeria;  não  a  quer,  mas  se  vier,  será  todo  o  seu 
bem. 

Amor  te  me  achava  forte. 

Amor  se  m' achava  forte. 

Edição  de  1595. 

Enlendeo  quanto  me  toca. 
Disse  o  que  mais  n'a]ma  toca. 

Meu  MS. 


Vejo-a  n'alma  pintada,  etc. 

Despertado  pelo  desejo  vé,  na  ausência,  tão  claramente  retratada  a  sua  amante, 
que  a  traz  debuxada  na  alma  namorada,  como  se  a  tivera  presente.  Como  o  cegp 
a  quem  falta  a  vista,  e  a  natureza  lhe  dobrou  a  memoria,  assim  a  elle  a  mesma 
natureza,  se  lhe  nega  que  veja  com  os  olhos  o-  que  deseja,  lhe  concede  o  natural 
que  não  vé. 

A$si  a  mi,  que  não  vejo 
y  Co'ós  olhos  o  que  desejo. 

Assim  a  mim,  que  não  vejo 
Os  olhos  ao  que  desejo. 

Edição  de  1595. 


Sem  vós  e  com  meu  cuidado,  etc. 

Ao  mesmo  assumpto  do  mote  antecedente.  O  amor  para  que  a  levasse  na  al- 
ma, fez  com  que  se  transformasse  n*ella,  deixando-o  porém  cego  e  sem  guia,  e 
assim  se  ausenta. 


462 

Foi  sempre  que  não  errasse. 
Nanca  fez  cousa  que  errasse. 

Sem  alma,  qu'em  si  fx)s  tem, 
Co' o  mal  de  viver  sem  ella. 


MenlIS. 


.    Sem  a  alma  que  em  si  vos  (em, 
Co  mal  de  viver  sem  ella. 

EdiçSo  de  1595. 

Sem  ventura  he  por  demais,  etc 

Todo  o  trabalho  produz  gostoso  fructo,  vence  tudo  e  torna  os  homens  immor- 
taes;  porém  querer  achar  ventura  quem  a  nSo  tem,  é  trabalho  ocioso. 

Rompe  toda  a  pedra  dura. 

Rompem  toda  a  pedra  dura. 

Ediçio  de  1595. 

^  Minh'a]ma,  lembrae-vos  delta,  etc.  ^ 

Pede  á  sua  dama  que  lhe  dô  o  gosto  de  a  ver,  prazer  que  para  elle  vale  mil 
vidas,  ou  lhe  dô  morte  por  uma  vez. 

Tudo  pôde  huma  aíTeição,  etc. 

É  tal  o  poder  e  jurisdicçâo  do  amor,  que  tudo  liberta  de  temor  humano,  e 
assim  declarará  por  toda  a  parte  quanto  pôde  uma  aífeiçfto. 

De  todo  humano  temor. 

De  todo  o  humano  temor. 

Ediçio  de  4595. 

Justa  fué  mi  perdicion,  etc. 

A  uma  trova  de  Boscan.  Consentiu-lhe  a  amante  a  vista,  e  probíbiu-Ihe  o  de- 
sejo, e  depois  compadeceurse  da  sua  dor  despertando-lhe  o  desejo;  pede-lhe  que 
o  nSo  olhe,  se  não  quer  ver  culpado  o  seu  merecimento  do  desejo  que  faz  nascer. 
Em  castelhano. 

^  Satisfizo  mi  pasion. 

Satisfizo  a  mi  pasion. 

Edição  de  1595. 

De  zelos  de  mi  dolor. 
De  celos  de  mi  dolor. 

Edição  de  1595. 

Todo  es  poço  lo  posible,  etc. 

É  pouco  intelli^ivel,  e  tem  referencia  a  successos  passados  dos  seus  amores; 
por  isso  são  dif&ceis  de  interpretar  estes  versos. 


465 

Vos  ieneis  mi  corazon,  etc. 

Amor  o  consola  de  lhe  terem  roubado  os  olhos,  pois  foi  roubo  feito  pelos 
.    mais  formosos  que  via  desde  que  vive. 

ift  corazon  me  han  robado. 

Mi  coraçon  me  aA  robado. 

Ediçio  de  1593. 

Que  veré  que  me  contente?  etc. 

Nâo  pôde  saciar-se  com  a  vista  da  amante,  assim,  se  o  quer  ver  contente,  n2o 
lh'a  roube. 

Senora,  vuestra  beldad. 

Senhora,  vuestra  beldade. 

Edl(3o  de  4616. 

Pues  $in  vos  plaeer  no  sierUe. 
Pues  si  en  vos  ptazer  no  siente. 

Ediçio  de  1616. 

Si  no  quereis  que  yo  os  vea. 
Si  no  quereis  que  os  vea. 

Ediçio  de  Í6I6. 


Sem  vós,  e  com  meu  cuidado,  etc. 

Amor  roubou-lhe  a  vista  da  ams^nte  e  cegou-o:  qual  seria  pois  a  sua  indi- 
ffnaçáo  contra  o  deus  vendado,  ficando  sem  ella  e  com  o  seu  cuidado.  Este  mote 
nca  anteriormente  glosado. 

Retrato,  vós  nSo  sois  meu,  etc. 

A  um  seu  retrato:  vendo-o  no  seio  da  amante,  em  sitio  tSo  privilegiado,  nSo 
ousa  acreditar  tanta  ventura,  e  duvida  que  seja  d'elle;  por  isso  lhe  aconselha 
que  nSo  confesse  que  é  sèu,  porque  a  sua  mofina  ventura  o  derrubará  de  tão 
elevada  altura.  São  bonitos  estes  versos. 

lndaque'em  vós  a  arte  vença,  / 

Inda  que  em  vós  a  arte  vença. 

EdiçSodei668. 

Se  he  qtí,'eu  sou  quem  d' antes  era. 
Se  he  que  eu  sou  quem  dantes  era. 

Ediçio  de  4668 

O  qu'em  mi  he  principal, 
MuUo  em  ambos  s' enganarão, 

O  que  em  mim  he  principal, 
Muito  em  ambos  se  enganarão. 

EdiçSo  de  1668. 


464 

Quizn*ão  represetitar, 

E  houverão  por  bom  partido 

Dar-vos  a  cama  do  sentido, 

Quizereis  representar, 
Ouvera  por  bom  partido 
Dar-lho  a  alma  do  sentido. 

Edição  de  1668. 
Que  a  serdes  meu  natural 

Que  serdes  meu  natural. 

Ediçio  de  1668. 

Blazonae  que  sois  divino. 
Blasonai  que  sois  divino. 

Edição  de  1668. 
Conhecessem  qu'ereis  meu. 

Conhecessem  que  éreis  meu. 

Edição  de  1668. 


Foi-se  gastando  a  esperança,  etc. 

Apesar  da  esperança  gasta  e  maltratado  ingratamente  pelo  amor»  pois  nin- 
guém foi  mais  fino  amador,  cresça  a  f é  e  fique  n'alma  impressa  a  leníbrança  do 
bem  já  passado. 

Do  mal  ficárãú-me  os  danos. 
Do  mal  ficarão  meus  danos. 

Ediç9o  áe  1668. 

Qu'inda  não  erão  chegados. 
Que  inda  nSo  erSo  chegados. 

EdiçSo  de  1668. 

Que  a  ninguém,  como  mais  dino. 
Que  ninguém  como  mais  dino. 

Ediçlo  de  1668. 

Do  mal  ficárão-me  os  danos. 
Do  mal  ficárSo  meus  danos. 

EdiçJlo  de  1668. 


Aquella  captiva,  etc. 

Endechas  a  Barbara  escrava: — Parece  impossível  que  sujeito  iSo  eseui^  in- 
spirasse tão  linda  poesia.  €hateaubriand  traduziu  para  francez  estes  versos. 


Quem  ora  soubesse,  etc. 
Fcz-se  lavrador  de  amor,  porém  só  colheu  enganos  o  dor. 


1 


Stí  mo  levílo  ágoas,  etc. . 

A  lima  despedida;  protestos  de  saudade  e  constância  que  faz  á  amante  cho- 
rosa u'esta  despedida.  Sito  naturaes  e  bem  escriptos  estes  versos. 

.4  lançar  as  á(jon$. 

Alcançar  ns  ágons. 

Ediçllo  de  1595. 

Ezlas  de  amar  são. 
Estas  do  mar  silo. 

•  EdicHo  do  4593 

Afe  leva,  eu  as  levo. 
Me  levão,  eu  as  levo. 

EdiçAo  de  i595. 


Menina  dos  olhos  verdes,  etc. 

Duvida  que  sejam  verdes  os  olhos  da  amante,  porque  o  verde  é  cór  de  espe- 
rança, e  assim  a  daria  aos  seus  amores. 


Trocae  o  cuidado,  etc. 

AconsQlha-lhe  que  troque  com  elle  o  cuidado,  para  expiTimentar  o  qne  6  ser 
desamada;  porém  arrepende-se  porque  ihe  quer  tanto  bem  que  antes  elle  seja 
maltratado,  do  que  elia  experimentar  que  castigo  seja  o  ser  desamada. 

Que  queira  o  perigo. 

Que  quero  o  perigo. 

EdiçAo  de  1595. 


Ver,  e  mais  guardar,  etc. 

A  tenção  de  Miraguarda : — Cantiga  antiga.  Se  quem  a  \é  uma  só  vez  se  não 
pôde  guardar,  o  que  acontecerá  a  quem  a  vé  continuamente.  O  abster-se  de  a  ver 
seria  o  melhor  partido;  ter.1  porém  força  para  faze-lo? 

Da  lindeza  fx>ssa. 

A  lindeza  vossa. 

Ediçfto  de  1595. 


Iniie  quiero,  madre,  etc. 

Parece  ser  allegoria  a  uma  senhora  que  acompanhou  o  amante  ou  marido 
n'uma  viagem. 

'  %  Com  él  por  que  muero, 

Con  el  por  quien  muero. 

Ediçlo  dp  1595. 
TONO  IV  :)0 


{60 


Saudade  minha,  etc. 


Aasenie,  suspira  pelo  dia  de  tornar  a  ver  a  amante,  esperança  que  lhe  vae 
faltando;  desafoga  n'estas  saudosas  queixas,  e  nSo  lhe  importa  que  a  dor  seja 
grande,  porque,  quanto  maior  for  também  maior  será  a  valia  d*eUa. 


Vida  da  minlia  alma,  etc. 

Ausente,  inveja  a  ventura  que  experimentava  quando  tinha  a  dita  de  gosar 
da  presença  da  amante;  entSo  vivia,  agora  a  vida  que  passa  não  lhe  pôde  cha- 
mar vida.  

Coifa  de  beírame,  etc. 

Joanne  é  increpado  peia  amante  de  amar  o  toucado,  e  nSo  a  ella,  que  anda 
cega  e  louca  por  elle.  Nas  edições  antigas  traz  mais  duas  redondiihas,  que  vem 
por  ordem  differenle.  As  duas  que  faltam  aqui  sfto  as  seguintes  que  estão  depois 
da  segunda  redondil  ha : 

Se  aiffuem  te  vir,  Quem  ama  assi 

Que  úirá  de  ti  ?  Pôde  ser  amada. 

Que  deixas  a  mim  Ando  maltratada 

Por  cousa  táo  vil!  De  amores  por  ti; 

Terá  bem  aue  rir,  Ama-me  a  mi 

Pois  amas  oeiranie,  E  deixa  o  beirame 

£  a  mim  náo,  Joanne.  Que  he  razáo,  Joann^*. 

Cego  e  mui  perdido. 

Cego  e  perdido. 

Edíçio  de  1595. 


Se  Helena  apartar,  etc. 

Descreve  os  eífeitos  que  produzem  nos  seres  inanimados  os  olhos  de  Helena; 
se  sáo  tfto  milagrosos,  o  que  farSo  nos  corações.  Não  sei  se  é  esta  a  mesma  He- 
lena a  quem  se  refere  nas  redondiihas  que  começam : 

m 

Não  sei  se  m' engana,  ele. 

0$  veníoB  serena. 
Faz  fiore$  d*ahrolhos 

O  ar  de  seus  olhos. 

« 

He  noite  serena. 
Paz  secar  abrolhos 
Na  luz  de  seus  olhos. 

Mco  MS. 

à primeira  redondil  ha  segne-se  esta,  no  meu  Ms.: 

A  parle  escurece 

Donde  os  olhos  tira, 

E  para  onde  os  vira 

O  ar  se  esclarece,  * 

A  terra  florece, 

Secam-se  os  abrolhos 

Na  luz  de  seus  olhos. 


1 


{67 

E  posto  em  giolkos. 
Pasma  nos  Seus  olhos, 

E  posto  de  giolhos, 
Lhe  adora  os  olhos. 

Mca  MS. 

Verdes  são  os  campos,  etc. 

As  bellezas  da  natureza  tiram  toda  a  sua  essência  da  graça  dos  olhos  da  soa 
amante. 

Campo,  que  t' estendes. 

Campo,  que  te  estendeis. 

Edi(So  de  1598. 

E  eu  das  lembranças. 
'  Mas  eu  do  lembranças. 

Mou  MS. 

Isso  que  comeis. 

Isto  que  comeis. 

Mea  MS. 

São  graça  dos  olhos. 
Sáo  graças  dos  olhos. 

Meu  MS. 

Verdes  são  as  hortas,  etc. 

Parece  serem  feitos  estes  versos  ao  ver  algumas  senhoras  jardinando  e  re- 
gando flores;  representa  um  sitio  cheio  de  rochedos  e  povoado  de  espesso  arvo- 
redo. 

Com  ágoa,  que  cai, 

Co' a  ágoa,  que  cay. 

Bdíc3o  de  I99K. 

Horlelóas  delias. 
Os  ortelois  delia. 

Meo  MS. 

Menina  formosa,  etc. 

Aconselha-a  a  nfto  ser  .esquiva,  condição  que  diz  mal  com  a  formosura;  pois 
até  a  bonina  sécca,  se  a  terra  é  dura. 

Menina  formosa. 

Menina  fermosa. 

Kdição  de  l.'>98. 

Fique  aníes  formosa. 
Fique  antes  fermosa. 

Eiiiçilo  de  1398. 


{68 

O  Amor  formoio, 
O  Amor  fennoso 

Ediçio  de  1596. 

Se  amãj  he  piedoso. 
Se  ama,  he  piadoso. 

EdiçSo  de  IS98. 

Que  quem  he  formosa. 
Que  quem  he  fermosa. 

Edição  de  t598. 

Havei  dó,  menina. 
Dessa  formosura ; 
Que  se  a  terra  he  dura . 

Aveí  dó,  menina. 
Dessa  fermosura; 
Que  s*a  terra  he  dura. 

Edição  de  1996 
Sede  piedosa, 

Sôdp  pia  dosa. 

EdiçXo  de  4598. 

Tende-me  mâo  netie,  ele. 

Grita  após  o  Amor,  que  vae  fugindo,  devendo-Ihe  a  liberdadt;  que  lhe  rou- 
hou.  Ha  aqui  uma  conta  de  reaes  que  não  entendo. 

Que  hum  real  me  dere. 

Qu'hum  real  me  devp. 

Ediçio  de  i596. 
O  falso  ae  atreve, 

O  falso  8'alreve. 

Edição  de  «998. 
^  Comp%'OU'me  o  amor. 

r.omprou-me  amor. 

Edição  de  1596. 
Dar-me  desfavor. 

])ar-me  dísfavor. 

Edição  de  4598. 

Que  ando  opôs  etle. 
Qu'ando  apóselle. 

Edição  de  4598. 

No  amor  se  atreve. 
No  amor  s' atreve. 

Edição  de  4596. 


1 


mi 

« 

Dú  la  riil  ventura,  e(c. 

Desde  o  berço  o  perseguiu  a  desventura,  e  nSo  houve  tormento  que  nAo  ex- 
perinientasse;  o  que  não  admira,  pois  nasceu  em  dia  de  uma  estrella  mui  con- 
traria. Só  na  sepultura  pôde  ter  fini  a  sua  desventura,  e  n&o  se  queixa  d'ella; 
porém  sim  que  dure  vida  tâo  mofina. 


Vida  de  minha  alma,  etc. 

Luta  entre  dois  tormentos:  o  de  não  ver  a  sua  dama  e  desejar,  e  o  de  a  ver 
e  temer.  t 

Vida  de  minha  alma. 

Vida  de  niính^alma. 

EdiçJlo  ilc  t845. 

Temendo  o  despjo. 
Desejo  lemei\ 


E  tenio  o  desejo. 
Desejo  o  temer. 


Edição  de  i(Jl6. 


^  Pastora  da  serra,  etc. 

Parece  fazer  o  elogio  de  uma  senhora  da  serra  da  Estrella.  objecto  da  admi- 
ração dos  pastores  daquella  serra,  pela  sua  extraordinária  belleza  e  encantos. 

Jdaii  que  a  formosura. 

Mas  da  fermosurn. 

EUiçSo  do  i6iG. 

*Se  ri,  não  cuidando. 
Se  rim,  não  cuidando. 

Edi(9ode46l6. 

Por  ventura  I^Uas, 
Das  que  colhe  delias, 

por  ventura  drilas, 
Das  que  colhe  bèllas. 

Edição  de  4616. 

Se  n'ágoa  corrente. 
Se  na  ágoa  corrente. 

Edifij  de  1616  . 

Faz  a  luz  divina. 
Fm  a  luz  cristalina. 

Edição  de  1616. 

Por  ver-se  a  ágoa  nefla. 

« 

Por  ver  se  ágoa  nella. 

Edírno.de'16iC. 


470 


Vós^sois  boina  Dama,  etc. 

Estes  versos  téem  duas  interpretações,  louvando  e  desloavando  orna  dama; 
lendo-se  de  alto  a  baixo,  são  em  vitupério,  e  dobrando-os,  em  elogio;  por  esta 
fóraia : 


Vós  sois  buina  Dama 
Das  feias  do  mundo; 
De  toda  a  má  fama 
Sois  cabo  profundo. 
,    A  vossa  figura 
NSo  be  para  ver; 
Em  vosso  poder 
Náo  ha  forrAosuhi. 

V6s  fosteii  dotada 
De  toda  a  maldade; 
Perfeita  beldade 
De  vós  he  tirada. 

Sois  mui  acabada 
De  taixa  e  de  glosa : 
Pois  quanto  a  formosa, 
Em  vós  náo  lia  nada. 


Do  grfto  merecer 
Sois  bem  apartada ; 
Andais  alongada 
Do  bem  parecer. 

Bem  claro  mostrais 
Em  vós  fpaldade  : 
Não  ha  bí  maldade, 
Que  nfto  precedais. 

De  fresco  carSo 
Vos  vejo  ausente; 
Em  vós  h"  presente 
A  má  condição. 

De  ter  perfeição 
Mui  alheia  estais; 
Mui  muito  alcançais 
De  pouca  razão. 


Vai  o  bem  fugindo,  etc. 

E^tas  endechas  vrm  na  primeira  edição,  d'onde  so  tiraram  depois.  Faria  e 
Sousa  traz  mais  estas  em  seguida: 


Grandes  espornnças 
Tem  grandes  desvios; 
E  grandes  desvios 
Certas  as  mudanças. 

Anda  mui  vizinha 
A  queda  á  snhida; 
Cs  gostos  (la  vida 
PassSo  mui  acimn. 

Nas  torrrs  mais  alias 
Mais  combate  o  vento; 
O  fnllar  ^eni  tento 
Descobre  mil  faltas.      « 

Ninguém  se  contenta 
Co'a  sna  ventura; 
Onde  ird  segura 
A  náo  com  torinentn. 

O  qno  siihio  muito 
Mais  subir  deseja; 
Sempre  deu  a  inve];i 
Amargoso  frui  to. 


O  cego  interesse 
Desfaz  amizades: 
Nas  prosperidades 
A  soberba  crece. 

O  curso  dos  annos 
Descobre  a  verdade; 
A  necessidade 
He  mestra  de  enganos. 

Quem  cuida  que  engana 
Acha-se  enpnado. 
Necio.  coníiado, 
A  fi  mesmo  dana. 

Ser  soberbo  e  pobre  ^ 
He  cousa  de  riso. 
Nain  he  nmíto  aviso 
Dar  ouro  por  cobre. 

Do  que  pouco  tem 
Ninguém  teni  memoria. 
Soberlta  e  vangloria. 
Nam  con juntam  bem. 


OUTRAS 


Nesta  vida  escassa 
Todo  O  bem  se  nega : 
Quando  acaso  chega 
Como  raio  passa. 

Vão  e  vem  os  dia«. 
As  noites  tanthem; 
Se  vão  nunca  vem 
Firmes  alegrias. 


Cansão-me  lembranças* 
De  cousas  passadas. 
Horas  mal  ga^tadas 
Em  vãs  esperanças. 

Lagrimas  sem  fruito 
Pruiio  de  amor  louco, 
Valeste-me  pouco, 
Custaste  muito. 


•    47  < 

• 

D'spiri(os  cativos  Posto  em  liberdade 

Me  vejo  cativo,  Me  vi  mais  perdido; 

Entre  mortos  vivo,  Outra  vez  metido 

E  morto  entr' vivos.  Nas  mãos  da  vontade. 

Se  me  não  socorre 
Divino  favor. 
De  mi  o  melhor 
Grande  risco  corre. 

Diogo  Bernardes,  nas  Varias  Rimas  ao  Bom  Jesus,  traz  estas  daas  ultimas  en- 
dechas, e  n2o  as  que  se  imprimiram  como  de  Camões. 


ABC  FEITO  EM  MOTES 

No  meu  Ms.  vem  addicionados  mais  alguns  motes. 

B  J 

Bersabé  com  si'u  prazer  JuIio  César  conquistou 

A  £l*Rei  David  seguio,  O  mundo  com  fortaleza , 

E  o  vosso  sol  me  «matou.  Vós  a  mim  com  gentileza. 

* 

G  C  J 

«  Caim  dizem  que  matou  Judie  ao  grSo  Allofernes 

Abel  sendo  seu  irmSo,  Degolou,  se  vivo  fora. 

A  mim  vossa  ingratidão.  Morte  lhe  déreis,  Senhora. 

H 

Caim  se  mostrou  matador  Minerva  foi  mui  cruel. 

Pela  inveja  que  havia,  Mas  não  chegou  a  metade 

Vós  a  miiij  por  outra  via.  Da  vossa  gran  crueldade. 

E  s 

Esther  por  formosura  Salomão,  por  adorar 

A  ser  rainha  e  gran  Senhora,  Huma  mulher,  se  perdeo; 

Vós  nome  de  matadora.  E  por  vós  me  perdi  eu. 

6  z  z 

Geremias  lamentando,       •  Zenobía,  se  sois  por  mim 

Chorava  com  gran  cuidado,  Pedida  de  amor  e  fé, 

E  eu  sou  ja  sepultado.  Como  essa  por  si  he. 

Zacharias  emudeceu 
Por  hum  pouco  duvidar, 
E  eu  só  por  vos  fallar. 

Não  faço  explicações  a  .esta  poesia,  aliás  trivial,  porque  estas  se  encontram 
nos  diccionarios  da  fabula.  No  meu  Ms.  vem  estes  motes  com  o  seguinte  titulo : 
•Moles  feitos  pelo  ABC  com  historias  antigas,  que  fez  Luis  de  Camões  a  huma  sua 
dama».  Esta  dama,  pela  variante  do  primeiro  mote  do  mesmo  Ms.,  parece  cha- 
mar-se  Anna;  talvez  a  mesma  do  mote,  a  pag.  106^  que  começa: 

A  morte,  pois  que  sou  vosso,  etc. 

Amor,  quisestes  que  fosse. 

Anna  quisestes  que  fosse. 

Ediçio  de  1668  e  o  meu  MS. 


474 

Serena  na  mór  Fortuna 
Com  enganos  vai  cantando. 

E  tÓ8  sempre  a  mim  matando. 

» 

Serea  na  formosura 
Com  engano  vai  cantando. 
Vós  a  mim  sempre  uiatindo. 

Meu  MS.. 

• 

Vénus,  qfiê  ppr  mais  formosa. 
Lhe  deo  Paris  a  maçãa. 
Não  foi  quanio  tós  £ouçãa. 

Vénus,  que  nrtais  fermosa, 
Paris  lhe  julfi^ou  a  sorte, 
Vós  a  mini  dareis  a  niortr*. 

M.'o  MS. 

Por  vós  não  serdes,  Senlwra, 
Nascida  naquella  hora. 

Porque  nllo  fostes,  Senhora, 
Presente  naquella  ora. 

Moo  MS. 

Tanto,  quanto  sois  formosa. 
Tanto  quanto  sois  fermosa. 

Edição  de  1S68.     ' 

Na  ediçSo  de  1668,  onde  vem  priineiro  esta  poesia,  depois  da  letra  X  vem 
roais  estes  dois  motes : 

Júlio  Cezar  se  livrou 
Dos  imigos  com  abrolhos, 
Eu  não  posso  desses  olhos. 

Jazia-se  o  Minotauro 
Preso  no  seu  labyrintho, 
Mas  eu  mais  preso  me  sinto. 


Por  usar  costume  antigo,  etc. 

Carta  eteripta  d* Africa  a  hum  amigo: — Expõe-lhe  o  estado  apaixonado  que 
o  domina  longe  da  sua  amante,  e  a  saudade  que  o  devora;  pede  novas  do  objecto 
aue  lh'a  faz  nutrir,  e  roga  ao  fidalgo  continue  os  seus  bons  oflGcios  perante  a 
aama,  da  qual  pede  novas,  fundamentando  na  amisade  d*este  fidalgo,  e  no  seu 
patrocínio  toda  a  consistência  da  sua  ventura;  ao  mesmo  fidalgo  se  dirige,  por 
a  mesma  occasi9o  e  igual  motivo,  na  elegia  ir,  e  muito  explicitamente;  é  uma 
maneira  de  exprimir  inteiramente  análoga  á  da  variante  inédita  que  publicámos 
dVsta  elegia.  Alem  da  descri pçao  quf^  faz  do  seu  estado  amoroso,  dá  noticia  dos 
negócios  militares  da  praça,  alludmdo  a  queixas  mutuas  da  parle  do  governa- 
dor a  respeito  dos  moradores,  e  d'estes  do  go\iernador,  por  ventura  de  parle*a 
parte  injustas,  e  devidas  sem  duvida  ao  abandono  forçado  que  se  começava  a 
experimentar  n'estas  primeiras  conquistas  no  ultramar,  em  tempo  de  D.João  III, 
que  vergava  com  o  peso  de  uma  tdo  vasta  e  dilatada  monarchia. 

Somente  achei  badaladas. 

•  Ja  estes  fdíz  o  Poeta  na  sua  primeira  carta  escripta  da  índia)  que  tomárjo 
esta  opinião  ae  valentes  ás  costas,  crede  que  nunca  rioeras  dei  Duero  arriba  ca- 


475 

valgaron  Çamoranos,  que  roncas  de  tal  soberbia  antre  si  fuesen  hablando,  e 
quando  vem  ao  effeito  da  obra  salvao-se  em  dizer  que  se  não  podem  fazer  ta- 
uuiDhas  duas  cousas  como  é  prometer  e  dar.»  O  Poeta,  vaIora<(o  por  natureza, 
nio  só  nos  logares  seguintes,  mas  ainda  eoi  outros,  niette  a  ridiculo  estes  ruiiôes 
mais  esforçados  com  a  língua,  do  que  com  a  espada. 

Outros  em  cada  theatro, 
Por  ofQcio  lhe  ouvires 
Que  se  matarán  con  três, 


Na  paz  mostrfio  coração, 
Na  guerra  mostrâo  as  costas; 
Porque  aqui  torce  a  porca  o  rabo. 

Disparaies  na  Índia. 

SenSo  ^nendo  aquelle  dia 

Uue  bade  ser  fim  de  dous  anos. 


Por  estes  versos  se  vô  que  o  degredo  tinha  praso  marcado.  E^(a  epistola  de- 
via ser  das  primeiras  cousas  qne  escreveu  da  Africa,  porque  n'ella  nSo  faz  men- 
ção dos  combates  a  que  allude  na  seguinte  e  na  elegiaai.  Talvez  este  degredo 
fosse  de  três  annos,  começado  nas  margens  do  Tejo  e  terminado  na  Africa.  Os 
seguintes  versos  da  elegia  i,  escripta  por  esta  occasião,  parecem  confirma-lo: 

Até  que  venba  aquelle  alegre  dia 
Qu'eu  vá  onde  vós  ides,  livre  e  ledo. 
Mas  tanto  <empo^  quero  o  passaria? 

As  penas  impostas  aos  que  se  atreviam  a  ter  amores  no  paço  eram  severas, 
«oino  deixámos  dito  na  bio^raphia;  alem  d'isto  podia-se  ter  aggravado  a  causa 
d'este  castigo  com  alguma  nxa  ou  dueUo. 

Pois  sei  que  em  vossa  rofio 
£8tá  meu  bem  e  meu  mal. 

Por  estes  versos  se  vé  que  a  pessoa,  a  quem  o  Po(?ta  se  dirigia  n'esta  carta, 
era  terceira  n'estes  amores,  e  tinha  grande  valimento  com  a  dama;  o  mesmo  se 
deprebende  da  variante  inédita  que  publicámos  aa  nota  á  elegia  ii. 

Dai-me  o  favor  sem  pejo, 
Pois  o  dais  a  cousa  vossa. 

Veja-se  a  ode  Vii  em  que  o  Poeta  celebra  D.  Manuel  de  Portugal :  ali  se  ex- 
pressa de  uma  maneira  muito  análoga: 

Saudade  de  uma  banda 
P'outra  tento  ao  badalla 

D'aqui  muito  claramente  se  colli^e  que  os  amores  do  Poeta,  ainda  depois  da 
pena,  náo  estavam  extinctos,  mas  exigiam  grande  segredo  e  recato.* 

Mas  be  de  nós  Conde. 

Se  este  verso  é  de  Camões  e  não  pertence  aos  alheios  inseridos  no  (im  de 
eada  redondiiba,  dá  a  entender  que  esta  poesia  era  dirigida  a  um  conde;  podia 
ser  o  de  Vimioso,  ou  de  Redondo,  ambos  amigos  e  protectores  de  Camões. 


A76 


O  dia  das  alabanças. 


Torna  o  Poeta  a  marcar  um  praso  determinado  para  termo  do  seu  degredo, 
e  pela  expressão  ({ue  emprega  se  vé  com  quanto  alvoroço  era  por  elle  esperado. 
Vem  esta  poesia  em  um  Ms;  do  século  xvn. 


Handaste-me  pedir  novas,  etc 

Carla  escripta  d' Africa  em  resposla  á  de  hum  amigo:  —  Este  lhe  mandou  pe- 
dir novas:  dá  as  suas,  e  de  uma  investida  dos  mouros  á  praça  onde  militava. 

Cuidei  que  vida  mudada.  ^ 

Do  mesmo  modo  se  expressa  na  elegia  n,  escripla  por  esta  mesma  occasiâo : 

Mas  nem  com  isto,  emfim,  qu* estou  dizendo. 
Nem  com  as  armas  táo  continuadas, 
D' amorosas  lembranças  me  defendo. 

Faço  no  meu  pensamento 
Mais  torres  que  as  de  Almeiíim. 

Onde  estão  estas  torres?  ainda  no  fim  do  Beculo  xvi  era  este  paço  uma  das 
casas  onde  os  nossos  reis  se  iam  recrear,  e  hoje  está  tudo  nivelado  com  o  chão; 
as  suas  torres  estão  derrubadas  do  mesmo  modo  que  aquellas  quê  o  Poeta  fazia 
no  seu  pensamento.  Parece  que  um  anathema  foi  lançado  contra  estas  muralhas, 
onde  um  rei  caduco  e  portuguezes  vendidos  entregaram  o  reino  ao  estrangeiro. 

Quem  disser  que  a  saudade. 

O  Poeta  descreve  n*esta  poesia  o  seu  estado  apaixonado  com  as*  mesmas  co- 
res exactamente  com  que  o  fez  na  elegia  ii,  também  escripta  por  esta  occasifto. 
Aqui,  como  na  primeira  poesia,  é  corroído  pela  saudade  mais  violenta,  divaga 
solitário  ao  longo  do  mar,  através  do  qual  dilata  a  vista  até  á  pátria :  a  analo- 
gia das  suas  composições  é  igual;  a  descripção,  os  sentimentos  expressados  os 
mesmos. 

Vi  venir  pendon  bremejo. 

Descreve  uma  investida  á  praça  feita  pelos  mouros,  á  qual,  na  forma  do  cos- 
tume,  dá  pouca  imjportância;  o  mesmo  usa  quando  descreve  a  sua  primeira  ex- 
pedição na  índia.  O  no9SO  Poeta  não  era  bom  para  redigir  boletins  de  batalhas. 

A  las  arn)as  Mouriscote. 

Veja-se  a  carta  i  em  prosa  escripta  da  índia:  «...  mas  os  que  sua  opinião 
deita  á  las  armas  Mouriscote,  como  maré  corpos  mortos  á  praia»,  etc. 

,  A  que  muerte  condenado. 

Termina  a  carta  com  o  receio,  que  manifesta  na  primeira,  de  fallar  nos  seus 
amores,  e  aue  isto  possa  de  alguma  maneira  constar.  Vem  esta  poesia  em  um 
Ms.  do  século  xvii.  

Senhora,  quando  imagino,  etc. 

Carta  a  huma  Senhora:  —  Encarece  as  qualidades  da  amante,  e  expõe  o  seu 
pouco  merecimento  para  amar  tão  divina  formosura  e  dama  tão  perfeita;  porém 


J77_ 

depois  volta  sobre  o  que  disse,  e  reputa-se  idóneo  para  a  amar,  pois  mudou  o 
ser  humano  no  divino,  por  virtude  de  gesto  t&o  soberano.  No  Ms.  de  Manuel  de 
Faria  e  Sousa.  ^ 

Afuera  consejos  vanos,  etc. 

Poesia  burlesca  a  uma  mulher  que  o  queria  disfructar  na  bolsa;  aconselha-a 
que  procure  outro,  e  o  deixe  com  a  sua  dor.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Lagrimas  dirão  por  mim,  etc. 

A  uma  despediíla:  lêem  verdadeiro  sentimento  estes  versos.  JLagrimas  ver- 
dadeiras e  sinceras,  que  nSo  se  sabem  fingir, 'fallarão  por  elle  quando  a  pena  da 
partida  lhe  tirar  a  falia  e  a  vida.  No  Ms.  de  Manuel  de*  Faria  e  Sousa. 


Prazeres,  que  me  quereis  ?  etc. 

Diz  aos  prazeres,  que  sempre  o  enganaram,  que  o  deixem  com  a  suji  tristeza, 
pois  essa  lhe  tem  sido  sempre  fiel  companheira.  De  seus  contentamentos  appa- 
rentes  tem  já  experiência  certa;  assim  busquem  outro  a  quem  enganem.  No  Ms. 
de  Ifanuel  de  Faria  e  Sousa.  

^espero,  sei  que  m'engano,  etc. 

Vive  entre  dois  extremos:  temendo  sempre  o  bem  que  espera,  e  sendo  este 
impossível,  não  podendo  com  tudo  desesperar.  Este  mote  foi  glosado  duas  vezes 
por  Diogo  Bernardes,  e  em  uma  d'elias  por  esta  forma;  Francisco  Rodrigues  Lobo 
também  o  glosou  na  sua  Pnmavera.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Peço-vos  que  me  digais,  etc. 

A  hvma  Senhora  rezando: — V^endo  a  sua  dama  a  orar,  e  toda  inflammada 
no  amor  divino, .recorda-lhe  quilo  pouco  serão  aceitas  as^uas  rezas,  tendo  rou- 
bado tantos  corações,  se  elias  n«1o  forem  acompanhadas  de  uma  verdadeira  con- 
trição e  da  satisfação  dos  daninos  causados;  assim,  se  quer,  restitua-lhe  a  vida 
que  lhe  roubou.  Galante  poesia,  e  ao  mesmo  assumpto  escreveu  o  lindo  so- 
neto ccxLvi  e  as  redondilhas  antecedentes,  glosando  o  mesmo  mote.  No  Ms.  de 
Manuel  de  Faria  e  Sousa.  

Ora  cuidar  me  assegura,  etc. 

Vive  em  tal  incerteza  e  tormento  com  os  seus  amores,  que  os  mesmos  cui- 
dados que  lhe  dão  vida,  lhe  dão  a  morte.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Ú  meos  altos  pensamentos,  etc. 

Embora  conhecesse  que  eram  aéreos  e  sem  Ifase  os  seus  pensamentos,  tínha-os 
elevado  tão  alto  que  agora  sente  o  cair  de  tão  grande  altura.  No  Ms.  de  Manuel 
de  Faria  e  Sousa.  

Esperanças  mal  tomadas,  etc. 
Ao  mesmo  assumpto  da  redondil  ha 

S' espero,  sei  que  m' engano. 


478 


Embora  as  suas  esperanças  sejam  vSs  e  sem  fundamento.  n9o  as  pôde  deixar, 
pois  é  origem  d'ella8  a  soa  aniante.  No  Ms.  de  Manuel  de  Paria  e  Sonsa. 


Como  quer  que  tendes  vida,  etc 

Pede  a  uma  mulher  quf^  se  lhe  entregue,  pelo  menos  uma  hora,  e  despache 
bem  o  seu  requerimento.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Em  tudo  vejo  mudanças,  etc. 

A  estas  esperanças  vãs  e  mal  concebidas  escreveu  o  Poeta,  como  temos  visto, 
varias  poesias;  sendo  vãs,  falsas  e  dando-lhe  tanto  tormento,  ainda  assim  as  nSo 
aborrece.  No  Ms.  de  Manuii  de  Faria  e  Sousa. 


Ay  de  mim,  mas  de  vós  ay,  etc. 

Diz  á  ^ama  que  attenda  bem  no  qae  faz  matando-o,  porquanto  ella  é  nisso 
mais  prejudicada.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Lume  desta  vida,  etc.  ' 

Acróstico  de  Imís  e  Caterina  de  Ataíde.  Re»ente-se  esta  redondil  ha  da  natu- 
reza das  poesias  restrictas  a  estas  formas  mesquinhas;  o  assumpto,  isto  é,  o 
nome  da  sua  amante,  como  em  outras  occasiões,  deveria  eldvar  mais  o  estro 
do  Poeta.  No  mesmo  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Que  vistes  meus  olhos?  etc. 

NSo  é  bem  claro  se  se  dirige  aos  seus  olhos  ou  aos  de  uma  senhora.  Se  s2o 
chorosos  de  amor  e  de  esperanças  lisonjeiras,  ditosa  dor,  ditosas  lagrimas;  po- 
rém se  de  desfavor,  á%  efiganos  e  cuidados,  deixem  passar  os  annos  e  não  serio 
tristes.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa,  e  traz  esta  cota;  No  Ms.  novo. 


Ay  de  mim,  etc. 

-Diz  á  dama  que  será  responsável  da  sua  vida  perante  Deus,  pois  aindaque 
a  parte  perdoe  fica  o  caso  á  justiça;  todos  sabem,  os  que  téem  pratica  de  foro, 
que  eQ)bora  a  parte  se  não  desaggrave,  toma  ella  a  si  esse  dever.  Em  castelhano, 
no  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Guardai-me  esses  olhos  bellos,  etc. 

Embora  srj.uit  lindos  os  cabeyos  da  dama,  guarde-os' amor  para  si,  queelle 
prefere  os  olhos,  pois  é  d'elles  que  se  mantém  e  vive.  No  Ms.  de  Manuel  de 
Faria  e  Sousa. 

Por  huns  olhos  que  fugirão,  etc 

Explica  o  efTeito  que  produziu  nVlle  a  vista  dos  olhos  de  uma  seahora.  Alem 
de  o  cegarem,  nunca  mais  sentiu  prazer  por  os  não  tornar  a  ver.  No  Ms.  de 
Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


No  moote  de  amor  andei,  etc. 

Esta  poesia  YÍsiveimente  é  escrípta  ajima  senhora  que  se  appellidava  Gama, 
talvez  pareata  do  próprio  Poeta,  que  era  aparentado  com  esta  íiimilia  por  sua  avó 
D.  Guiomar* da  Gama,  dos  Gamas  do  Algarve.  O  assumpto  parece  ser  um  desen- 
contro com  a  mesma  senhora.  Vem  estes  versos  no  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Tal  estoi  despaes  que  os  vi,  etc. 

Em  castelhano:' declara-se  namorado  ao  mesmo  tempo  de  amor  pela  dama, 
assompto  d'e8ta  poesia,  e  de  si  mesmo.  Vem  no  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


De  vós  quererdes  meu  mal,  etc. 

Fortalece-se  no  soffri mento  do  sen  mal  com  a  causa  que  lh'o  faz  soífrer,  e 
resigna-se  contente  á  pena,  porque  lh'a  ordena  a  sua  dama.  No  Ms.  de  Manuel 
de  taria  e  Sousa.  j 

No  meu  peito  o  meu  desejo,  etc. 

No  seu  amor  é  certo  o  damuo  que  se  segue  voluntariamente,  nSo  dando  ou- 
vidos A  rasflo,  mas  incerto  o  remédio.  No  Ms.  de  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 


Nasce  estrella  d'alva,  etc. 

Ao  nascimento  de  Christo:  versos  provavelmente  para  serem  recitados  na 
noite  de  Natal.  Parecem  mais  do  estyio  de  Diogo  Bernardes.  Vem  no  Ms.  de 
Manuel  de  Faria  e  Sousa.  

Amor  que  vio  minha  dor,  etc. 

Carta  a  huma  Senhora: — Amor  tirou  uma  penoa  das  azas,  e  mandou  qne  es- 
crevesse o  que  elle  dictasse;  pede,  na  forma  ao  costume,  uma  entrevista.  Esta 
carta,  bem  como  outras  poesias  d'e8ta  natureza,  pôde  bem  ser  que  nSo  fosse  di- 
^  rectamente  dirigida  peio  Poeta,  màs  i^im  escrípta  para  algum  estranho  apoucado 
de  talento  poético  para  a  escrever.  Existia  n'outro  tempo  este  commercio,  e  tal- 
vez o  Poeta  em  occasiâo  de  apuro  recorresse  a  este  meio.  Vem  no  meu  Ms. 


Carta  minha  tão  ditosa,  etc. 

Parece  ser  escrípta  á  mesma  senhora^  e  em  continuação  da  primeira  carrta, 
porquanto  é  o  mesmo  amor  que  dictou  a  outra,  que  a^ora  se  encarrega  de  dictar 
esta.  Parece  que  nfio  houve  resposta  da  prímeira  missiva,  e  agora  n'e8ta  a  re- 
clama cora  encarecimentos  de  amor;  estabelece  novos  paralleios  para  render  a 
praça,  que  pede  se  nfto  renda  a  outro.  No  méu  Ms. 


Pois  que,  Senhora,  folgais,  etc. 

A  uma  senhora  que  em  um  rompimento  de  relações  amorosas  lhe  ordenou 
que  mais  n.1o  lhe  apparecesse.  Desforço  jocoso  do  Poeta,  em  que  lhe  assevera 

3ue  nada  perde  com  a  quebra  d'estes  amores.  Já  se  vé  que  esta  poesia  não  foi 
irígida  á  amante;  talvez  a  flzesse  para  um  outro  a  enviar  a  alguma  senhora. 
No  meu  Ms. 


J80 

Olvide  y  avoroscy,  etc. 
Intendimenlo  a  este  verso: — Com  este  titulo  vem  estes  versos  no  meu  Ms. 


Para  evitar  dias  máos,  etc. 

A  humas  Senhoras  que  jogando  per  (o  de  huma  janella  lhes  cahirão  três  páos  e 
derão  na  cabeça  de  Camões:^  A  forca  ó  triangular,  por  isso  o  Poeta  allude  aos 
três  paus  do  baralho  que  lhe  caíram  na  cabeça,  referindo-se  ao  instrumento  do 
supplicio ;  fazemos  esta  explicação,  não  para  nós  que  o  sabemos,  mas  para  in- 
teliigencia  de  algum  estrangeiro,  se  lhe  cair  nas  mãos  esta  poesia,  a  qual  talvez 
não  entenderia  sem  ella.  Na  carta  ii,  em  prosa,  se  encontra  também  uma  allusão 
aos  três  paus  do  baralho: 

Eu  então  por  burlar  quem  me  burlou, 
Tros  páos  joguei,  e  disse  que  ganhasse. 

Este  improviso  vem  também  no  meu  Ms. 


BL-REI  SELEDCO 


Foi  impresso  este  auto,  pela  primeira  vez,  no  aano  de  1616  sobre  um  Ms. 
que  possuía  o  conde  de  Penaguião.  É  precedido  de  um  prologo  dramático,  e 
composto,  segundo  se  deprehende  do  mesmo  prologo,  em  o  curto  espaço  de  três 
dias  e  representado  em  casa  de  um  Estacio  da  Fonseca,  enteado  de  Duarte  Ro> 
drigues,  reposteiro  d'el-rei  D.  João  111,  o  qual  exerceu  no  paço  dííTerentes  car- 
gos :  almoxarife  dos  paços  de  Alcáçova  (1551) ;  recebedor  dos  dinheiros  das  apo- 
sentadorias da  corte  (1565);  e  por  ultimo,  cavalleiro  fidalgo  e  thesoureiro  das 
moradias  da  corte  (1574).  Devia  ser  escripto  depois  do  anno  de  1545,  pois  no 
prologo  o  moro  diz,  fazendo  menção  da  moeda,  os  basarucos:  «. .  .que  se  agora 
fora  aquelle  (empo  em  aue  corrião  as  moedas  do^-sambarcos»,  etc,  os  quaes 
corriam  ainda  no  tempo  ae  D.  João  de  Castro,  pois  n'este  mesmo  anno  revogou 
este  vice-rei  a  lei  de  veu  antecessor  Martim  Áffonso  de  Sousa,  que  lhe  alterava 
o  valor. 

O  prologo  é  escripto  em  prosa  e  estylo  burlesco,  e  não  deixa  de  nos  dar  al- 
guma noticia  d' estas  representações  particulares;  por  elle  vemos  que  era  cos- 
tume deixar  entrar  o  publico  que  podia  ser  admittido,  e  que  o-representador 
explicava  o  argumento  da  peça  ou  como  n'esta  suspendia  a  attenção,  e  prepa- 
rava  a  surpreza  annunciando  divertimento  diíferente;  n'este  mesmo  faz  o  nosso 
Poeta  menção  do  Chiado,  cpmo  bom  trovista. 

O  facto  narrado  por  Plutarcho,  de  Seleuco  rei  da  Syria,  que  cede  a  mulher 
a  seu  filho  Ântiocho,  que  apaixonado  da  madrasta  chega  ás  portas  da  morte, 
forma  o  assumpto  doeste  auto,  que  tem  sido  reputado  difficil,  e  por  isso  pouco 
próprio  para  o  theatro.  Eis  como  a  este  respeito  se  expressa  o  abbade  d'Aubi- 
gnac  (La  pratique  du  théatre,  etc.  Amsterdam,  1715,  tomo  i,  pag.  57) :  «D'avan- 
tage  il  ne  faut  pas  s'lmaginer  que  toutes  les  belles  histoires  puissent  heureuse- 


car  Ic  senl  accident  considérable,  est  Tadresse  du  Medécin  qui  fit  passer  á*^ 
vant  les  yeux  de  ce  jeune  Prince  malade  depuis  longtemps  toutes  les  Dames  de 
la  Cour  a  fín  de  jugor  par  Témotion  de  son  poulx  celle  qu'il  aimaít  et  qui  cau- 
sait  sa  maladíe;  et  j'eslime  qu'il  est  três  difficile  de  faire  un  Poéme  Dramatique, 
dont  ce  Héros  sojt  to^ljours  au  lit,  ni  de  représenter  cette  circonstance;  et  qu'il 
a  peu  de  moiens  de  la  cbanger  en  telle  sorte  que  Toii  en  put  conserver  les  agre- 
mens;  outre  que  le  temps,  et  le  lieu  de  la  scene  seraíent  três  difiiciles  à  ren- 


4S\ 

coDtrer;  car  si  Antiochus  est  au  lit  le  matin»  il  faudra  bien  travailler  pour  le 
faire  agir  dans  le  méme  jour.  De  méme  aossi  la  scene  dans  la  chambre  du  roa- 
lade,  ou  devant  sa  porte  cela  ne  seroit  gaere  raisonable.  La  Theodore  de  Mon- 
sieur  Comeille  n*a  pas  eú  tant  de  succès  ni  toute  Tapprobation  qu'elle  meritoit». 

Apesar  comtudo  d'esta  difficuldade,  deparámos  com  duas  peças  d*este  mesmo 
assumpto  no  theatro  italiano  no  século  xvii,  uma  para  musica,  e  representada 
no  theatro  S.  Cassiano :  «  Antioeo  D.  per  Muiica  de  N.  M,  stU  teatro  S.  Ccasiano 
per  l'anno  1658  in  Venei.»,  e  outra  por  uma  senhora,  escripta  em  prosa  e  verso : 
mLa  StraUmica  Tragieomedia  di  Angdiea  Scaramueia  in  Viterbo,  Í609«.  Agosti- 
nho Moreto  tratou  o  mesmo  assumpto  em  Hespanha :  •  Comedia  Famosa  Antioeo. 
e  Seleueo,  de  Dm  Agustin  Moreto  ».  Mo  nos  sobra  aqui  o  espaço  para  confrontar-^ 
mos  estas  differentes  peças  com  a  do  nosso  Poeta,  o  que  talvez  faremos  em  ou-' 
tra  occasião,  e  assim  umitar-nos-hemos  a  dizer  duas  palavras  sobre  a  sua  com- 
posição. 

»Sem  ser  uma  peça  de  grande  merecimento,  de  espaço  a  espaço  apparecem 
comtudo  lampejos  do  génio  de  CamOes.  O  enredo  do  auto  é  simples,  e  resolvida 
a  diíBculdade  que  aponta  mr.  d'Aubignac,  tratada  com  o  génio  com  que  Racine 
tratou  a  Phedra,  uma  scena  de  declaração  feita  á  rainha,  poderia  fazer  um  bello 
effeito  dramático  no  theatro  moderno;  Camões  evitou  este  passo,  e  é^por  um 
papel  que  lhe  cáe  quando  se  reclina  na  cama,  apanhado  pela  aia  da  rainha,  que 
ella  vem  no  conhecimento  do  amor  illicito  do  príncipe,  amor  i Ilícito  de  que 
ella  sé  acha  também  ferida,  e  assim  foi  talvez  para  evitar  o  embaraço  que  devia 
seguir- se  da  entrevista  entre  os  dois,  que  Camões  fugiu  a  esta  scena,  preparando 
comtudo  de  ante-mao  para  o  desfecho  final,  e  tornando  natural  a  união  dos  dois, . 
peld  interesse  que  ella  mostra  pelo  prineipe,  e  pelas  confidencias  com  a  aia,  a 
quem  declara  o  amor  que  tem  pelo  entiado,  pezarosa  de  ter  vendido  a  liberdade, 
conservando-se  com  todo  o  decoro  n'esta  luta  do  coraçflo. 

Emquanto  ao  estylo,  tem  todd  o  colorido  da  epocha;  o  príncipe  exprime-se* 
nos  seus  amores  no  estylo  de  Petrarcha,  e  o  mesmo  anachronismo  se  nota  nos 
outros  personagens:  Sancho  é  o  gracioso  moderno,  um  dos  musidos  ó  o  sr.  Ale- 
xandre da  Fonseca,  e  o  porteiro  recita  motes  entoados  em  cantochflo. 

A  comedia  de  Moreto  é  mais  apparatosa  e  acompanhada  de  incidentes  mais 
variados;  conheceu  o  auctor  hespanhol  a  do  nosso  Poeta,  como  se  vé  da  scena 
dos  músicos,  e  do  discurso  àue  na  peça  portugneza  faz  o  moço,  e  na  hespanhola 
o  gracioso  Lnquete,  sobre  a  delicadeza  no  trato  e  melindres  dos  príncipes  e  gran- 
de senhores,  comparada  com  os  trabalhos  pbysicos  que  experimentam  os  ho^ 
roens  ordinários  do  povo.  O  dialogo  do  physico  e  do  bobo  em  Camões  é  cómico, 
^  a  scena  do  mesmo  physico  quando  revela  ao  rei  a  paixão  do  filho  pela  rainha, 
é  bem  conduzida  e  me  parece  mais  natural  e  com  mais  arte  do  que  a  de  Moreto. 

Esta  comedia  nâo  devia  agradar  na  corte,  pois,  sabemos  que  el-rei  D.  Manuel 
não  representou  com  seu  filho  D.  João  111  o  papel  de  Seleueo,  antes  lhe  tomou 
a  noiva  que  lhe  estava  destinada. 

os  amphitriOks 

o  argumento  d'esta  peça  eminentemente  cómica,  antes  de  Plauto^^tinha  sido 
tratado  por  Archipo  e  Êuripides;  no  começo  do  século  xvi  (ISCfô)  reproduziu 
Villalobos  na  lingua  castelhana  a  comedia  latina,  acommodada  á  representação, 
imitando-a  pouco  depois  (1545),  na  Itália  Ludovico  Daiee  (II  Marito),  em  Por- 
tugal o  nosso  Poeta,  e  mais  tarde  o  poeta  inglez  Dryden  e  o  celebre  Holière. 

O  ser  escolhida  por  homens  tão  eminentes,  demonstra  que  acharam  esta 
fabula  mui  adaptada  para  ser  tratada  no  theatro.  Se  na  comeaia  de  Seleueo  de- 
parámos com  alguns  lampejos  de  génio  de  Camões,  n^este  auto  dos  Amphitriões 
ou  Enphatrioens,  como  então  se  dizia,  apparece  uma  força  mais  cómica,  e  se 
exceptuarmos  algumas  scenas  accessorias  revestidas  de  um  certo  modernismo 
e  anachronismos  a  que  o  Poeta  talvez  era  obrigado  para  satisfazer  o  gosto  de 
uma  parte  dos  espectadores,  não  receámos  afiSrmar  que  n'ella  corre  parelhas, 
senão  excede  ás  vezes  o  poeta  latino  imitado  e  o  próprio  Molière.  N'este  caso 

TOMO  IV  .71 


482 

estSo,  a  mea  ver,  as  seenas  v  e  vi  do  acto  n,  de  Soeea  e  Mercurío  contrafeito  cm 
Sosea,  que  é  superíor  á  de  Plaoto  e  de  Molière,  e  n^ootrae  lhes  é  i^al:  o  enredo 
da  peca  geralmente  é  bem  conduzido,  o  estyio  mai  cómico  e  incisivo,  e  o  final 
mais  oem  ordenado  do  que  em  Flauto  e  Molière.  Na  peça  francesa  apparece  Jú- 
piter montado  na  Águia  entre  ondas  de  lui,  e  revela  a  Amphitríao  o  que  deu 
causa  á  mvstíficaçflo  que  tanto  o  atormentou,  vaticinando-ihe  o  futuro  nasci- 
mento de  Hercules  que  deveria  provir  d'esse  concubíto;  pai«ce-me  une  isto  nâo 
devia  consolar  muito  AmpbitriSo,  e  assim  o  expressa  Molière  pela  oôca  de  So- 
sea  nos  últimos  versos  com  que  termina  a  sua  comedia: 

Sur  telles  affaíres  toujours 
Le  meilleur  est  de  ne  ríen  dire. 

Na  comedia  portuguesa  o  final  acaba  de  uma  maneira  muito  mais  dramá- 
tica, e  é  mais  bem  condueido.  Aurélio,  primo  de  Alcmena,  a  quem  Amphitriiío 
se  havia  queixado  da  affronta  na  sua  nonra,  conjuntamente  coro  Belferráo,  o 
patrão  do  navio,  e  Sosea  se  dirigem  a  casa  de  Alcmena  para  forçar  a  entrada  e 
aclarar  toda  esta  embrulhada;  porém  ao  penetrar  na  casa  sSo  de  súbito  fulmi- 
nados pelo  clarfto  de  raios  de  luz  que  a  esclarecem,  desapmrecendo  n'isto  o  em- 
busteiro Júpiter,  .perd0e-roe  sua  divindade,  com  um  ruiao  grande  e  horrendo. 
Attonitos  e  assombrados  da  claridade  que  os  cega,  saem,  e  encontrando  Amphi- 
tríáo,  narram  rapidamente  o  acontecido,  pedindo-lhe  que  preste  ouvido  aitento 
á  voz  que  inda  sôa.  É  a  de  Júpiter  que  de  dentro  aclara  a  Amphitríflo  o  que  se 
ha  passaoo,  consolando-o  com  o  vaticínio  que  faz  das  glorias  de  Hercules  que 
nascerá  d'este  ajuntamento,  doírando-lhe  a  pílula  como  pôde: 

Quiz-me  vestir  em  teu  gesto, 
Por  honrar  tua  geraçáo. 

Molière  ao  mesmo  assumpto  disse: 

L'éc]at  d'une  fortune  eo  mille  biens  fécoiule. 
Fera  connaitre  à  tous  que  je  suis  ten  support. 

Parece-^n^e  em  Gamões  roais  bem  doirada,  assim  como  já  dissemos  este  final 
todo  mais  artisticamente  trabalhado.  O  theatro  repentinamente  esclarecido  por 
entre  a  transparência  do  panno  da  boca  do  mesmo  theatro,  uma  voz  sobrenatu- 
ral, auxiliada  talvez  por  um  porta- voz,  annunciando  as  grandes  venturas  de  Am- 
fSiitriáo,  me  parece  mais  theatral  do  que  Júpiter  escarranchado  na  águia,  e  fal- 
ando cara  a  cara  com  Amphitrião,  que  deve  achar-se  n*uma  posiçfto. critica,  e 
que  talvez  dispensasse  tanta  honra. 

Esta  comedia,  que  revela  aonde  podia  chegar  o  génio  vasto  de  Gamões,  se  a 
sua  vocaçáo  o  chamasse  exclusivamente  para  o  theatro,  e  nâo  o  aguardasse 
ainda  mais  elevada  esphera,  na  litteratura  tem  sido  olhada  com  pouca  attençlo 
pelos  nossos  philologos;  admira-me  como  bellezas  cómicas  de  tlh>  subido  quilate 
nfio  feriram  a  vista  do  nosso  aliás  distinctissigio  académico  Sebastião  Td^oso. 
Nâo  aconteceu  porém  assim  no  seu  tempo;  representada  ou  perante  académicos, 
ou  na  presença  de  uma  aristocracia  das  mais  iilustradas  da  Europa,  a  quem  os 
exemplares  da  língua  latina  eram  tSo  familiares  como  os  da  lingua  própria,  cu- 
briram  de  applausos  o  auctor,  e  foi  sem  duvida  no  meio  d'estes  applausos  e  ova- 
ção que  um  enthusiasta,  admirador  do  Poeta,  rompeu  em  sen  louvor  com  o 
guinte  soneto  improvisado: 

Quem  he  este  que  na  harpa  Lusitana 
Abate  as  Musas  Gregas,  e  Latinas? 
E  faz  que  ao  mundo  esqueçam  as  Plautínas 

Graças,  com  graça  alegre,  e  lyra  ufana? 


1 


485 

LoÍ8  de- Camões  he»  que  a  Soberana 
Potencia  lhe  influio  partes  divinas, 
Com  que  espiram  as  flores,  e  boninas, 
Da  Homérica  Musa,  e  Mantuana. 

Se  tu,  triumphante  Roma,  este  alcançaras 
No  teu  theatro,  e  scena  luminosa, 
Nunca  do  grfto  Terêncio  te  admiraras. 

Mas  antes,  sem  contraste,  curiosa 
Estatua  de  ouro  ali  lhe  levantaras, 
Contente  de  ventura  tão  ditosa. 

Foi  este  auto,  bem  como  o  de  Filodemo,  Impresso  pela  primeira  vez  no  anno 
de  1587,  na  raríssima  collecçSo  dos  autos  de  António  Prestes,  da  qual  apenas 
conhecemos  em  Lisboa  o  exemplar  que  possue  o  sr.  Sousa  Lobo;  é  para  sentir 
que  nAo  se  proceda  a  uma  reimpressão,  com  a  qual  faria  o  distincto  litterato, 
possuidor  do  livro,  valioso  serviço  á  litteratura  nacional,  pois  conjunctamente 
estáo  outros  autos  do  século  xvt,.e  com- qualquer  descaminho  do  livro,  será  ine- 
vitável a  perda  d'estes,  se  fora  do  reino  se  nâo  descobrir  outro  exemplar. 

Esta  tragicomedia  foi  representada  na  índia,  ao  governador  Francisco  Bar-, 
reto,  para  celebrar  a  investidura  do  seu  governo,  nas  festas  que  os  fidalgos  e 
povo  de  Goa  fizeram  por  esta  occasiAo,  coroo  consta  do  Ms.  de  Luiz  Franco,  onde 
vem  incluída  com  este  titulo:  m Comédia  feita  por  Iam  de  Camõet.  Repre$entada 
na  índia  a  franeiteo  de  harreto.  Em  a  qual  etUrão  as  figutat  seguintes,  etc.» 
Representada  logo  no  principio  da  sua  estada  na  Indiá,  é  repassada  ás  vezes  de 
um  certo  fel,  o  mie  me  induz  muito  a  acreditar  que  fosse  feita  na  viagem  para 
a  índia,  para  se  desenfastiar  de  uma  tito  enfadonha  viagem,  e  auando  as  feridas 
recebidas  no  reino  ainda  sangravam;  nao  estava  porém  acaoada  quando  foi 
posta  em  scena,  porque  depois  reduziu  a  verso  algumas  passagens  que  no  ma- 
nuscripto  vem  em  prosa.  Sáo  bastantes  as  variantes  no  manuscripto,  o  que  nos 
levaria  a  termos  que  repetir  uma  impressão  d'este  auto;  fimiLir-nos-hemos  pois 
a  darmos  alguns  versos  que  náo  vêem  no  impresso,  e  alguma  variante  mais  sa- 
liente que  possa  convir  para  emendar  os  erros  em  que  abunda  o  auto  impresso, 
postoque,  em  partes,  o  manuscripto  não  está  menos  incorrecto. 

Não  sei  o  romance  d'onde  Camões  tirou  o  fundamento  para  esta  ti^agicome- 
dia;  parece  ter  comtudo  uma  certa  analogia  com  uma  lenda  genealógica  da  casa 
de  Marialva,  de'  uma  tal  infanta  Cras,  filha  do  rei  Ordonho. 

Depois  do  verso: 

Assas  me  custa  do  meu, 

vem  a  seguinte  estancia,  que  nflo  está  impressa : 

SOLINA 

Pois  dii^ei  por  vossa  vida 

Vós  que  podereis  querer  delta?  - 

FILODBMO 

Eu  não  quero  mais  que  querela, 
Que  vida  tão  bem  perdida 
O  gaoha-k  está  em  perdella. 
Porque  os  pensamentos  meus 
Tenho  por  tanta  ousadia. 
Que  se  acerto  algum  dia 
Pôr  os  meus  olhos  nos  CiK)s 
Me  parece  inda  heresia. 

Do  dialogo  em  prosa  que  com6|ça:  «Pois  não  creio  em  S.  Pisco  de  páo »,  etc, 
copiámos  a  parte  onde  é  mais  saliente  a  mudança,  porque  convém  para  emen- 


484 

dar  o  erro  grosseiro,  que  Tem  no  origina],  de  Vaie  Luzo  por  Valcbiosa,  logar 
romântico  dos  amores  de  Petrarcha  : 

DORIANO 

«...  Ora  désengano-vos  qne  foi  a  maior  rapazia  do  mundo  altos  espíritos, 
porque  eu  nSo  darei  duas  pescoçadas  da  minha  beoi-ni  cem  depois  de  ter  feito 
a  trosquia  a  um  frasco,  e  falar-me  por  tu  e  fingi r-se  bêbada,  porque  pareça  oue 
o  nAo  está,  por  quantos  sonetos  estão  escritos  pelos  tronquos  oas  arvores  de  Yal- 
chiusa,  nem  por  quantas  Madamas  Lauras  yós  idolatrais,  que  se  veoi  á  máo. 

FILODEMO 

«Tá  que  vos  perdeis,  nSo  consinto  que  vades  mais  avante. 

DORIAKO 

«Queres  apostar  que  adivinho  o  quç  quereis  dizer? 

FILODBVO 

«Que?  . 

DORUNO 

« Que  se  me  nSo  açudes  com  o  batel,  que  me  hia  nesse  de  amor. 

PltODBMO 

«  Ó  que  certeza  tamanha  do  muito  pecador,  nSo  se  conhecer  por  esse. 

DORIANO 

«Mas  que  certeza  tamanha  do  muito  enganado,  embirrar  em  sua  opíniSo. 

FILODEMO 

«  Se  nSo  tivesse  por  maior  offensa  o  que  faço  a  meu  pensamento  em  vos  con- 
tradizer, que  telo  secretamente,  gastara  humas  poucas  de  palavras  comvosco;  mas 
ainda  eu  não  tenho  as  minhas  em  tão  má  conta,  que  as  queira  tão  mal  empre- 
gadas. 

DORIANO 

«  Ja  falamos  por  meu  pensamento,  ay  era  má,  peza-me  que  éreis  um  homem 
de  bom  saber  e  boa  conversação;  mas  prazerá  a  Deos  que  me  chorareis,  e  vos 
porá  no  caminho  da  verdade.  Entornando  ao  nosso  preposito  que  he  o  que  para 
que  me  buscais  que  se  íor  causa  da  vossa  saúde  tudo  farei. 

DORIANO 

«...  Bem  praticado  está  isto,  mas  a.  outro  perro  com  esse  osso  criei,  dias  ha 
que  não  creo  em  sonhos. 

FILODEMO 

«Porque  dizeis  isto? 

DORIANO 

«  Eu  volo  direi,  porque  vós  outros  que  amais  pela  passiva  dizeis  que  o  ama- 
dor fino  como  melão,  que  não  hade  querer  mais  de  sua  dama  que  ama-la  viva, 
e  virá  logo  o  vosso  Petro  Bembo  e  Petrarcha,  e  outros  trinta  Piatois  (mais  safados 
destes  hypocritas  que  umas  luvas  de  pagem  d'arte)  mostrando-vos  nesôes  vero- 
símilhantes  para  homem  não  auerer  mais  de  sua  dama,  que  ver  e  até  failar,  e 
ainda  ouve  outros  inquisidores  a'amor  mais  especulativos,  que  defenderão  a  vista 
por  não  emprenhar  o  desejo,  e  eu  faço  voto  a  ueos  que  se  a  qualquer  destes  lhe 
entregarem  sua  dama  entre  dous  pratos  tosada  e  aparelhada,  que  não  fique  pe- 
dra sobre  pedra,  nem  lugar  sagrado  em  que  se  possa  dizer  missa  dahi  a  mil  an- 


485 

no8,  nem  lugar  Uo  privilegiado  em  que  'a  fúria  da  justiça  nSo  buscasse  até  os 
caninhos  escaninhos;  de  mim  vos  sei  dizer  que  os  meus  amores  hfio  dcser  acti- 
vos, e  eu  heide  ser  a  pessoa  agente  e  ella  a  paciente,  e  esta  he  a  verdade ,  mas 
tornando  a  nosso  preposíto  váV.  M.'*'  com  sua  historia  avante. 

PILODEMO 

«Vou,  porque  vos  confesso  que  ha  nesle  caso  muitas  duvidas  nos  doutores. 
Mas  assy  como  vos  contava  estando  esta  manhSa  bem  trinta  ou  corenta  legoas 
pelo  certfto  de  meu  pensamento,  muito,  com  a  viola  nas  mãos,  perto  de  la  amo- 
rosa torre,  senfto  quando  me  toma  de  traição  Solina,  e  entre  algumas  pratiquas 
que  tivemos  certincon-me  que  a  Senhora  Dioniza  se  levantara  da  cama  para  me 
ouvir. 

DORIAKO 

tt  Cobres  e  tostes,  sinal  de  terra :  pois  ainda  vos  nSo  fazia  tanto  avante. » 

Se  foi  a  censura  que  cortou  parte  d'este  dialogo,  teve  alguma  rasSo,  porque 
nSo  é  o  sacrifício  da  missa  objecto  para  uma  comparação  tâo  excessivamente 
profana;  o  Poeta  nâo  o  fez  com  má  tençflo,  mas  para  exagerar  o  fingimento  dos 
bypocritas  a  que  allude. 

DORIANO 

«Ó  Santa  Maria  Senhora. . .  em  que  ella  quer  aue  eu  caya,  porque  este  fin- 
gimento nâo  he  senão  fazer-me  sede  delia.  Comtudo  se  vos  a  vós  cumprir  será 
necessário  que  me  transtorne  n'outro,  porque  neste  que  agora  sou  he  impossi- 
vel  eu  querer-lhe  nenhum  bem.» 

A  continuação  do  dialogo  mostra  que  falta  o  que  vem  no  manuscrípto. 

DORIANO 

«...  Deixay-me  vós  a  mim  o  cargo,  que  eu  sei  melhor  as  pancadas  que  vós, 
e  eu  vos  farei  hoje  este  dia  sem  negaça  vir-nos,  e  vós  acolhei-nos  ao  sagrado, 
porque  ella  lá  aparece. 

FILODBMO 

«  Fazei  que  a  não  vedes  e  fallai  comvosco  alguns  pensamentos  que  façSo  ao 
caso.» 

A  redondilha  que  começa : 

Ah  quão  longe  estará  agora,  etc. 
Vem  no  manuscrípto  em  prosa,  por  esta  forma : 

DORIANO 

«...  Quão  lonffe  estará  agora  a  Sr.*  Solina  de  cuidar  que  ja  canso  de  cuidar 
como  meus  cuidados  não  cansão.  Se  esta  rapariga  da  fortuna,  minha  senhora, 
em  pago  de  tantos  danos  consentisse  que  pudesse  meu  desejo  deitar  uma  an- 
cora em  vossa  formosura,  eu  tomaria  de  vós  vingança  de  fogo.e  ferro.» 

Depois  do  verso : 

Quem  ja  fendas  não  sente, 

vem  estes  versos  que  não  estão  no  impresso : 

Pois  que  aqui  estamos  sós, 
Vós  e  eu,  minha  fim, 
Mal  volo  demande  Dios 
Porque  vós  fugis  de  mim, 
£  eu  de  mim  para  vós. 


486 

Depois  do  verso : 

Qne  mágoa  no  coraçSo, 

vem  as  seguintes  redondílhas: 


De  ^ue  serve  assim  ^tar 
A  vida  em  tantas  paixões, 
Nam  mais  que  i)or  sustentar 
Estas  vSas  opiniões 
Que  o  vulgo  foi  inventar, 
Onras  grandes,  nome  eterno 
.Nenhuma  outra  cousa  dSo, 
Que  para  as  almas  inferno 
E  dores  no  coraçSo. 

Quem  nSo  pertende  morar 
Ipocrita  em  huma  Ermida, 
Quem  nlo  ade  jejuar, 
Disciplínar-se  e  chorar 
Para  fingir  santa  vida, 
Porque  n2o  se  logrará 
Do  tempo  que  tem  nas  mSos, 
Ou  porque  sustentará 
Onras  falsas,  nomes  váos 
A  custa  da  vida  má. 

Certamente  que  m'espanto 
Desta  opinião  errada. 
Como  está  táo  arreigada 
Que  custando  a  vida  tanto, 
Émfim,  emfim  não  he  nada. 
De  lá  nacerfto  as  guerras, 
Os  danos  e  morte  da  gente, 
Por  ella  só  se  consente 
Correr  mares,  buscar  terras 
Pok  sustentar  somente. 

Por  esta  nossa  enemiga 

Vereis  logo  o  mundo  vSo  . 

Ter  em  má  opinião 

A  mulher  que  o  Amor  obriga 

A  natural  affeição. 

Assi  que  é  meu  pensar 

Quem  estas  verdades  mede, 

Pois  no  mundo  quer  viver, 

Deve  certo  de  fazer 

O  que  lhe  a  vontade  pede. 

Se  nisto  replicais 
Que  ofendo  as  leis  do  ceo, 
Os  que  as  onras  sustentais 
Dizei-me,  servis  a  Deus; 
Mas  errai-lo  muito  mais. 
Ora,  Senhora,  este  error 
Consinto  que  seja  culpa. 
Porque  tão  sobejo  amor. 
Todos  os  erros  desculpa. 


J87_ 

N'este8  versos  não  podemos  ver  outra  cousa  mais  do  que  a  hyperbole  para 
desculpar  talvez  erros  próprios,  acompanhada  de  um  certo  resentimento,  que  se 
nota  em  mais  de  um  logac  d'este  auto,  por  offensas  recebidas  no  reino  da  parte 
de  homens  que  apparentando  a  austeridade  da  virtude,  sendo  aliás  propensos  para 
o  vicio,  o  perseguiram  e  incommodaram  nos  seus  amores.  Talvez  que  a  cara- 
puça que  aqui  pretende  talhar,  assentasse  na  cabeça  d'aquelle  a  quem  se  refere 
na  satyra  dos  Disparatei  da  Indifl.  A  moral  aqui  apregoada  nSo  seria  a  mais 
pura,  se  a  não  olhássemos  como  a  ironia  provocada  pelo  resentimento,  e  está  em 

FBrfeita  opposição  com  os  sentimentos  religiosos  constantemente  sustentados  pelo 
oeta  não  só  nos  Lustadoê,  já  em  outros  logares :  na  bella  e  violenta  apostrophe 
em  que  convida  os  príncipes  catholicos  para  resgatarem  o  santo  sepulcbro,  como 
nas  Rimai,  especialmente  n'aquellas  redondilhas  tão  divinamente  inspiradas  e 
saídas  do  coração,  por  occasião  do  naufrágio  em  que  se  notam  estes  versos : 

E  tu,  ó  carne,  qu'encantas, 
Filha  de  Babel  tão  féía. 
Toda  de  miséria  cheia, 
«  -    Que  mil  vezes  te  levantas 

Contra  quem  te  senhoreia ; 
Beato  só  pôde  ser 
Quem  CO*  a  ajuda  celeMe 
Contra  ti  prevalecer, 
E  te  vier  a  fazer 
O  mal  que  lhe  tu  íizeste : 

Quem  com  disciplina  crua 
Se  fere  mais  que  huma  vez: 
Cuja  alma,  de  vi  cios  nua. 
Faz  nodas  na  carne  sua, 
Que  ja  a  carne  n'alma  fez. 
E  beato  quem  tomar 
Seus  pensamentos  recentes, 
E  em  nascendo  os  aíTogar, 
Por  não  virem  a  parar 
Em  vicios  graves  e  urgentes. 

O  desafogo  do  Poeta  é  diríj^ido  contra  a  hypocrisia,*e  não  contra  o  verda- 
deiro religioso.  Depois  do  verso : 


vem  esta  variante: 


*  Caio  pedaço  a  pedaço, 

E  fnaii  eu  soffrer  não  pouo 
Que  me  façais  tanto  fero, 
Qu' estou  ja  posto  no  osso. 
Porque  sou  fX>sso  e  revosso 
Por  vida  de  quanto  quero. 

E  mais  eu  sofrer  não  posso 
Que  um  archanjo  dos  Ceos, 
Que  me  corte  carne  e  osso, 
Porque  sou  vosso  e  revosso 
Pelo  Santo  dia  de  Deos. 

r 

Mais  adiante  depois  do  verso 

Mal  consentira  la  espuela, 
vem  mais  estes  versos: 

Pues  sus,  canta  si  mandais. 


488 

PLORIMENA 

Padre  no  quero  cantar. 

PASTOR 

Porque? 

PLORIMENA 

Porque  no  me  dais  que  tragar 
Ni  tan  poço  rae  casais. 

PASTOR 

Canta  que  algo  te  ande  dar. 

Faltam  estes  versos  no  manu^ripto : 

£1  macho  como  crecio 
Deseoso  de  otro  bien, 
A  la  corte  se  partio, 
La  hembra  es  esta  por  quien 
Vuestro  hijo  se  perdio. 

Falta  lambem  todo  o  dialogo  em  prosa^  desde :  « Assi  te  contava,  Doloroso». . . 
até  que  pór  os  pés  ao  caminho,  e  mostrar-lhe  as  ferraduras».  O  resto  do  dialogo 
faz  pouca  differença  no  manuscrípto. 


índice 


DAS  POESUS  CONTIDAS  N'ESTE  VOLUME 


R£DONDILHAS 

A  alma  qu*está  offrecida 96 

.  A  dor  qoo  a  minha  alma  sente :,..    58 

'  Afuera  coosejos  vanos. . ; ; 161 

Amores  de  huma  casada 59 

Amor  loco,  amor  loco 67 

Amor,  qae  todos  offende 53 

Amor,  quiseste  gae  fosse 142 

Amor  que  vio  minha  dor 182 

A  morie,  pois  que  sou  vosso 106 

ApartárSo-se  os  meus  olhos 62 

Aquella  captiva / 118 

Ay  de  mim 173 

Ay  de  mim,  mas  de  vós  ay , 170 

Carta  minha  tflo  ditosa 187 

Catharina  bem  promete 94 

.Cinco  gallinhas  e  meia 94 

Coifa  de  beirame , 128 

Como  quer  que  tendes  vida 169 

Com  razSo  queixar-me  posso 99 

Com  vossos  olhos,  Gon^lves 72 

Conde,  cujo  illustre  peito 34 

Corre  sem  vela  e  sem  leme 30 

Crecem,  Camilla,  os  abrolhos ^ 88 ' 

D'alma,.e  de  quanto  tiver 59 

Da  doença,  em  que  ora  ardeis 50 

Dama  d' estranho  primor 24 

De  atormentado  e  perdido 53 

De  dentro  tengo  mi  mal 67 

De  pequena  tomei  amor 61 

Deo,  Senhora,  por  sentença 50 

Deos  te  salve,  Vasco  amigo 86 


490 

De  que  me  serve  fogir , , 72 

Descalça  vai  para  a  fonte .97 

Descalça  vai  pela  neve 57 

De  vaestros  ojos  centellas : 66 

De  vós  quererdes  meu  mal i78 

Dó  Ia  mi  ventura 135 

Em  tudo  vejo  mudanças 169 

Enforquei  minha  esperança 60 

Esconjuro-te  Domingas 76 

Esperanças  mal  tomada? 168 

Esperei,  ja  nflo  espero •. .' 97 

Este  mundo  es  el  camino 42 

Falso  Cavalheiro,  ingrato 63 

Ferro,  fogo,  frio  e  calma 96 

Foi-se  pstando  a  esperança 117 

Guardai-me  esses  olhos  hellos i63 

Ha  hum  bem,  que  chega  e  foge 73 

Irme  quiero,  madre * 125 

Ja  nSo  posso  ser  contente 105 

Lagrimas  dirão  por  mim 174 

Lume  desta  vida I . . .  171 

Mandaste-me  pedir  novas 154 

Mas  porém  a  que  cuidados 100 

Menina  dos  olhos  verdes ' 122 

.Menina  formosa 132 

Menina  formosa  e  crua 49 

Menina,  nSo  sei  dizec 71 

Minh'aíma  lembrae-vos  delia 110 

Muito  sou  meu  Inimigo \ .  36 

Na  fonte  está  Leonor 81 

N2o,estejais  aggravada 54 

NSo  posso  chegar  ao  cabo 85 

NSo  sei  se  m' engana  Helena 70 

Nasce  estrella  d'alva 180 

No  meu  peito  o  meu  desejo 1 . . . .  179 

No  monte  de  amor  andei 177 

Ojos,  herido  me  hábeis ; 100 

Õlhae  que  dura  sentença ^ 51 

Olhos,  em  qu' estão  mil  flores 89 

Olhos,  nSo  vos  mereci 74 

Olvide  y  avore^cy 191 

Ó  meus  altos  pensamentos 167 

Ora  cuidar  me  assegura ; 166 

Os  bons  vi  sempre  passar 75 

Para  evitar  dias  máos 191 

Para  que  me  dan  tormento 65 

Pastora  da  s*erra 137 

Peço-vos  que  me  digais ^ 40 

Pequenos  contentamentos : 79 

Perdigão  perdeo  a  penná 79 

Perguntais-me,  quem  me  mata 75 

Pois  a  tantas  perdições r ^ 

Pois  darano  me  faz  olhar-vos  69 

Pois  se  he  mais  vosso  que  meu 68 

Pois  que,  Senhora,  folgais 190 

Porque  no  miras  Giraído 87 

Por  nuns  olhos  que  fugirão 176 

Por  usar  costume  antigo < 147 


491 


Prazeres  que  me  quereis . .  -. 175 

Puz  o  coraçSo  nos  olhos , 60 

Puz  meus  olhos  D'httma  funda ^ 61 

Qual  terá  culpa  de  nós 06 

Quando  me  quer  enganar 73 

Que  diaho  ha  tSo  damnado 83 

Que  veré  que  me  contente il4 

lue  vistes  meus  olhos i72 

!uem  disser  que  a  barca  pende. . : 98 

íuem  no  mundo  quizer  ser 55 

8 nem  ora  soubesse .' 120 

uem  se  confia  em  huns  olhos '. 89 

Querendo  escrever  hum  dia 17 

Retrato,  vós  nSo  sois  meu 115 

Saudade  minha 126 

Se  a  alma  ver-se  nfto  pôde 77 

Se  de  meu  mal  me  contento 64 

Se  derivais  da  verdade 38 

S' espero,  sei  que  m'engano , 164 

Se  Helena  apartar 130 

Se  me  desta  terra  for 78 

Se  uie  levfto  ágoas « 121 

Se  n'alma  e  no  pensamento 41 

Se  nSo  quereis  padecer 32 

Se  vossa  dama  vos  dá 48 

Sem  olhos  vi  o  mal  claro 42 

Sem  ventura  he  por  demais ; .  110 

Sem  vós,  e  com  meu  cuidado 109 

Sem  vós,  e  com  meu  cuidado 115 

Senhora^  s'eu  alcançasse 37 

Senhora,  pois  me  chamais 55 

Senhora,  pois  minha  vida 69 

Senhora,  quando  imagino 159 

Sóbolos  rios  que  vSo 5 

Sois  formosa,  e  tudo  tendes 90 

Suspeitas,  que  me  quereis 27 

Tal  estoi  despues  que  os  vi 178 

Tende-me  roáo  nelle 134 

Todo  es  poço  lo  posible « 113 

Trabalhos  descansariáo 102 

Triste  vida  se  me  ordena 103 

Trocae  o  cuidado 123 

Tudo  pôde  buma  affeiçáo 111 

Vai  o  bem  fugindo .' 140 

Vede  bem  se  nos  meus  dias 68 

Vejo-a  n'alroa  pintada 107 

Venceo-roe  Amor,  nfio  o  nego  \ 74 

Verdes  sSo  as  hortas 131 

Verdes  sSo  os  campos 130 

Ver,  e  roaisguardar 124 

Vi  chorar  huns  claros  olhos 85 

Vida  da  minha  alma 127 

Vida  de  minha  alma 136 

Vós,  Senhora,  tudo  tendes 64 

Vós  sois  huma  dama 139 

Vos  teneis  mi  corazon 114 

Vossa  Senhoria  creia 83 

Vosso  bem  querer,  Senhora 77 


I 

492 

COMEDIAS 

El-Rei  Seleuco 195 

Os  Amphilri(Je8 239 

Filodemo ^ 325 


^ 


Esta  edição  das  obras  de  Camões  constará  de  cinco  a  sete  vo- 
lumes conforme  der  o  texto.  Preço  1^440  réis  o  volmne,  por 
assignatura,  pagos  á  entrega,  e  1^51600  réis  avulso. 

Assigna-se  em  Lisboa  nas  lojas  dos  srs.  João  Paulo  Martins 
Lavado,  rua  Augusta  n.^  8,  Livraria  Central  de  José  Melchiades 
&  Companhia,  rua  do  Oiro  n.®  1S5. — Coimbra,  José  de  Mesqui- 
ta.— Porto,  António  Rodrigues  da  Cruz  Coutinho.— L.  J.  de 
Oliveira. — Paris,  Rey  et  Belhate,  Quai  des  Augustins  n.^  45,  N. 
More,  2  bis,  rue  d'Arcole. 

Vende-se  nas  lojas  acima  mencionadas,  nas  dos  commissarios 
da  Imprensa  Nacional,  na  doS  srs.  Bertrands  aos  Martyres  n.**  73, 
e  nas  mais  do  costume. 

Está  no  prelo  o  5.°  volume. 


OBRA  DO  MESMO  ACCTOR 


Cintra  Pinluresea  on  Memoria  Descripliva  darYlIla  de  Cinlra,  Collares 

e  seus  arredores 

Yende-se  nas  mesmas  lojas. 


I