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Full text of "Obras ineditas de José Agostinho de Macedo"

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OBRAS  INÉDITAS 


DE 


JOSÉ  HGOSTIiO  OE 


CARTAS  E  OPÚSCULOS 

DOCUMENTANDO  AS  MEMORIAS  PARA  A  SUA  VIDA  INTIMA 
E  SUCCESSOS  DA  HISTORIA  LITTERARIA  E  POLITICA  DO  SEU  TEMPO 


COM  UMA  PREiAÇÃO  CRITICA 


TIIEOPIIILO  BRAGA 

Sócio  effectivo  da  Academia 


LISBOA 
Por  ordem  e  na  Typograpliia  da  Academia  Iteal  das  Sciencias^ 

1900 


4  3'*' 


OBRAS  INÉDITAS 


OSÊ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


CARTAS  E  OPÚSCULOS 


TRABALHOS  ACADÉMICOS 


TI3:EOIȣ3:IIjO       BII.A.G!--A. 


Historia  da  Universidade  de  Coimbra  nas  suas  relações  com  a  Instrucção 
publica  portugueza. 

Tomo  I  (1289  a  1555.)  xvi-600  pag.  Lisboa.  1892.  In-S."  gr 1  vol. 

Tomo  11  (1555  a  1700.)  8i6  pag.  Lisboa,  189i.  In-S.»  gr 1    » 

Tomo  Hl  (1700  a  1800.)  772  pag.  Lisboa,  1898.  In-8.°  gr 1     .. 

Tomo  IV  (1800  a  1872.)  No  prelo 1    » 

Dom  Francisco  de  Lemos  e  a  reforma  da  Universidade  de  Coimbra.  In-4." 

XLii-168  pag.  Lisboa,  1894 1    » 

(Vem  publicado  nas  Memorias  da  Academia,  tomo  vir,  parte  i,  da  2.* 
Classe,  servindo  de  introdueção  á  Relação  do  estado  da  Universidade  de 
Coimbra  de  1772  a  1776,  apresentada  ao  governo  por  Dom  Francisco 
de  Lemos.) 

Centenário  do  Descobrimento  da  America.  Lisboa,  1892.  In-4.°  20  pag. 
(Serviu  de  introdueção  ao  volume  das  Memorias  da  Academia:  Comme- 
moração  da  descoberta  da  America) Folh. 

Memorias  para  a  Vida  intima  de  José  Agostinho  de  Macedo,  por  Innocen- 
cio  Francisco  da  Silva.  Obra  posthuma:  organisada  sobre  três  redac- 
ções de  1848,  1854  e  1863,  e  ampliada  em  quanto  a  Documentos  e  Bi- 
bliographia  por  Theophilo  Braga.  Lisboa,  1898.  In-8.°  xx-440  pag —   1  vol. 

Obras  inéditas  de  José  Agostinho  de  Macedo  —  Cartas  e  Opusculos,  do- 
cumentando as  Memorias  para  a  sua  Vida  intima,  e  successos  da  Histo- 
ria litteraria  e  poUtica  do  seu  tempo.  Com  uma  prefação  por  Theophilo 
Braga.  Lisboa,  Typ.  da  Academia,  1900.  In-8.°  gr.  xLvni-230  pag 1  vol. 

Censuras  a  diversas  Obras,  (1824  a  1829)  com  varias  Composições  lyricas, 

didácticas  e  dratnaticas. —  Com  um  Estudo  sobre  a  Censura  litteraria  por 
Theophilo  Brnga.  No  prelo 1  vol. 

Proposta  para  a  impressão  dos  Cancioneiros  trobadorescos  portuguezes, 
apresentada  na  sessão  da  2.*  Classe  da  Academia  em  24  de  fevereiro  de 

1898.  Typ.  da  Academia Folh. 

(Liga-se-lhe  o  Parkcer  da  Secção  de  Historia,  em  contrario,  assignado 
pelos  académicos  Gama  Barros  relator.  Silveira  da  Motta  e  Teixeira  de 
Aragão.) 

A  Congregação  do  Oratório  em  Portugal.  Preambulo  ás  Cartas  autographas 
meditas  do  ?.•=  Barlholomeu  de  Quental.  (Ein  preparação.) 


OBRAS  INÉDITAS 


DE 


JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


CARTAS  E  OPÚSCULOS 

DOCUMENTANDO  AS  MEMORIAS  PARA  A  SUA  VIDA  INTIMA 
E  SOCGSSSOS  DA  HISTORIA  LITTERARIA  E  POLITICA  DO  SEU  TEMPO 


COM  UMA  PREFAÇÃO  CRITICA 


TflEOPIIiLO  DRAGA 

Sócio  effectivo  da  Academia 


LISBOA 

Por  ordem  e  na  Typograpliía  da  Academia  llcal  das  Sciencias 

1900 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/obrasineditasdej01mace 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS 


Chegou  a  formar-se  antes  de  1860  uma  sociedade  com  o  fim  de 
publicar  as  Obras  inéditas  de  José  Agostinho  de  Macedo;  o  possuidor 
de  um  grande  numero  de  autographos  e  copias,  José  Pedro  Nunes,  pre- 
stava-os  para  a  impressão,  e  Innocencio  Francisco  da  Silva  organisava  a 
disposição  dos  volumes  com  annotações  e  commentarios,  acompanhando 
tudo  com  o  livro  que  compozera  das  Memorias  biographicas  de  José  Agos- 
tinho de  Macedo;  não  faltava  quem  corresse  com  as  despezas  e  mais  tra- 
balhos editoriaes,  mas,  por  circumstancias  immanentes  a  um  meio  men- 
tal mesquinho,  a  generosa  empreza  não  se  tornara  effectiva.  Desmem- 
braram-se  os  Inéditos  de  José  Agostinho  de  Macedo,  e  as  Memorias  bio- 
graphicas escriptas  por  Innocencio  permaneceriam  na  sombra,  e  per- 
der-se  iam,  se  a  Academia  real  das  Sciencias  não  accolhesse  a  offerta 
do  seu  intelligenle  possuidor,  dando  realidade  ao  frustrado  pensamento 
de  Innocencio. 

Estão  já  publicadas  as  Memorias  para  a  Vida  intima  de  José  Agos- 
tinho de  Macedo;  *^  seguem-se  agora  as  Cartas,  que  documentam  mui- 

^  Um  volume  in-8.°  grande,  de  xxiv-436  paginas,  com  o  retrato  phototypico,  im- 
presso na  Typographia  da  Academia  real  das  Sciencias.  Os  herdeiros  de  Innocencio, 


"^1  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

tos  successos  da  vida  do  escriptor  e  factos  importantes  da  historia  lilte- 
raria  e  politica  do  seu  tempo;  bem  como  as  Censuras,  de  1824  a  1829, 
por  onde  se  conhece  o  estado  das  idéas  n'esse  periodo  agitado  da  im- 
plantação do  regimen  constitucional.  A  collecção  de  Cartas,  que  for- 
mam este  volume,  não  constituem  a  Correspondência  particular  com- 
pleta de  José  Agostinho,  que  chegou  a  reunir  Francisco  de  Paula  Fer- 
reira da  Costa;  Innocencio,  não  podendo  obtel-as  todas,  comprou  co- 
pias d'aquellas  que  mais  documentassem  a  Memoria  biographica  em 
que  trabalhava.  O  culto  pelo  grande  polygrapho  approximara  aquelles 
dois  colleccionadores  acérrimos,  mas  sempre  desconfiados  um  do  ou- 
tro ;  os  Inéditos  de  Macedo  eram  a  única  receita  de  que  vivia  Ferreira 
da  Costa,  que  a  final  vendeu  tudo  para  comer  na  sua  desamparada  ve- 
lhice. 

Das  collecções  de  Francisco  de  Paula  Ferreira  da  Costa  escreve 
Innocencio: 

«Não  é  menos  para  notar  outra  amplíssima  collecção  por  elle  for- 
mada, dos  escriptos  do  P."  José  Agostinho  de  Macedo  (com  quem  teve 
por  largos  annos  tracto  de  intima  amizade);  a  qual  além  de  completa 
no  que  diz  respeito  ás  Obras  impressas  do  celebre  escriptor,  por  mais 
insignificantes  que  sejam,  contém  todas  as  inéditas  que  d' elle  se  conhe- 
cem, tanto  em  verso  como  em  prosa,  inclusive  algumas  centenas  de  Car- 
tas missivas  de  sua  correspondência,  sobre  assumptos  politicos,  littera- 
rios,  etc.»  (Dic.  bibl,  t.  m,  p.  22.) 

Ferreira  da  Costa,  tendo  seguido  a  causa  de  D.  Miguel,  soíTreu  os 
accidentes  da  lucta,  tendo  de  fugir  de  Lisboa  em  julho  de  1833  para 
unir-se  ao  exercito,  e  ficando  sem  nenhum  dos  seus  empregos  sob  o 
regimen  constitucional.  A  consequência  foi  achar-se  no  fim  da  vida  sem 
amparo,  luctando  com  a  miséria,  tendo  como  único  recurso  o  vender 
copias  dos  Manuscriptos  das  Obras  do  V."  José  Agostinho  de  Macedo, 
6  por  fim  vendendo  por  um  conto  e  quinhentos  mil  réis  todas  as  suas 


que  receberam  metade  da  edição,  acharam  em  livrarias  portuguezas  o  preço  de  50  réis 
por  cada  exemplar !  Comprehende-se  por  que  motivo  Innocencio  não  pensou  mais  em 
publicar  o  seu  importante  trabalho. 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  "VII 

collecções  bibliographicas  ao  corretor  Pereira  Merello.  Da  opulenta  col- 
lecção  de  Poemas,  que  hoje  flgura  no  Catalogo  Merello,  escrevia  Inno- 
cencio  em  1839: 

«Entre  alguns  milhares  de  volumes,  ajuntados  com  diligente  e  in- 
cansável curiosidade,  e  nos  qnaes  se  comprehende  bom  numero  de  li- 
vros porluguezes  antigos,  raros  e  estimáveis,  conserva  uma  collecção 
de  Poemas  nacionaes,  impressos  e  manuscriptos  (muitos  d'estes  auto- 
graphos),  a  mais  copiosa  sem  duvida  que  até  agora  conseguira  reunir 
algum  bibliophilo  dado  a  esta  especialidade.»  (Ib.J 

As  copias  obtidas  por  Innocencio  abrangem  especialmente  as  Car- 
tas dirigidas  de  1828  a  1830  a  Frei  Joaquim  da  Cruz,  Procurador  ge- 
ral do  Mosteiro  de  Alcobaça,  que  então  subsidiava  a  propaganda  dou- 
trinaria da  Besta  esfolada  contra  o  Constitucionalismo;  algumas  outras 
a  Frei  Fortunato  de  San  Boaventura,  caudilho  da  reacção  absolutista, 
a  Ribeiro  Saraiva  e  indivíduos  menos  representativos. 

No  empenho  de  ampliar  o  numero  das  Cartas  obtivemos  os  atito- 
graphos  das  que  foram  dirigidas  a  Frei  Francisco  Freire  de  Carvalho, 
que  nos  confiou  o  seu  sobrinho  bisneto  o  garboso  poeta  Eugénio  de 
Castro,  nosso  dedicado  amigo,  e  que  abrangem  uma  época  interessante 
do  escriptor,  de  1806  a  1813.  Também  copiámos  do  Conimbrisense  as 
quatro  Cartas  dirigidas  em  1829  e  1830  ao  Dr.  Frei  Domingos  de  Car- 
valho, graciano,  lente  de  prima  da  Universidade,  ás  quaes  Martins  de 
Carvalho,  que  as  possuía,  dera  publicidade  em  1871. 

Ha  porém  no  presente  volume  a  série  completa  das  Cartas  á  Freira 
Trina  do  convento  do  Rato,  de  que  Innocencio  teve  tradição,  mas  que 
nunca  conseguira  vér,  nem  determinar  o  seu  paradeiro.  *  Ha  felicida- 
des no  trabalho  do  estudioso,  como  no  do  mineiro,  que  topa  casual- 
mente com  os  brilhantes  de  numerosos  quilates,  ou  com  os  filões  de 
ouro  que  em  um  momento  coroam  todas  as  fadigas.  Assim  me  aconte- 


1  Nas  Memorias  para  a  Vida  intima  de  José  Agostinho  de  Macedo,  p.  293,  diz : 
«Ha  também  uma  collecçSo  especial  de  setenta  e  tantas  Cartas  escriptas  a  uma  Freira 
trina  do  Convento  do  Rato  pelos  annos  de  1821  e  1822,  que  não  são  por  certo  as  me- 
nos curiosas.»  Erra  no  numero,  porque  a  collecção  é  de  57  cartas. 


VIII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

ceu  ao  communicar  ao  meu  leal  amigo  Brito  Aranha,  digno  consócio 
da  Academia  e  meritissimo  presidente  da  Associação  dos  Jornalistas, 
o  andamento  em  que  levava  a  impressão  das  Cartas  de  José  Agostinho 
de  Macedo;  com  a  mais  franca  espontaneidade,  e  um  nobilíssimo  des- 
interesse, confessou-me  Brito  Aranha  que  possuia  no  próprio  autogra- 
pho  a  coUecção  das  Cartas  á  Freira  Trina  do  convento  do  Rato,  e  que 
as  punha  á  minha  disposição  para  se  enriquecer  o  monumento  littera- 
rio  iniciado  por  Inuocencio  Francisco  da  Silva.  Que  emoção  de  surpreza ! 
mais  um  raio  de  luz  para  dentro  da  alma  do  grande  luctador,  e  ao 
mesmo  tempo  que  cooperação  sincera,  digna,  desinteressada  em  an- 
tinomia com  os  esconderijos  e  alçapões,  tão  frequentes  entre  os  inves- 
tigadores, que  levam  a  prelibação  do  documento  histórico  até  conser- 
val-o  mysterioso  e  quasi  problemático.  Brito  Aranha  contou-nos  que 
as  Cartas  á  Freira  Trina,  que  são  a  jóia  impagável  d'este  livro,  per- 
tenceram a  José  Pedro  Nunes;  que  este  fervoroso  colleccionador  ma- 
cedino  tencionara  vendel-as  ao  falecido  visconde  de  Alemquer,  e  não 
lhe  convindo  o  preço  as  offerecera  a  elle  como  continuador  do  Diccio- 
nario  bibliographico  porttiguez.  Offerecendo-as  para  completarem  este 
livro,  Brito  Aranha  conquistou  mais  um  titulo  de  benemérito  das  let- 
tras  pátrias,  e  prestou  á  Academia  um  serviço  inolvidável.  E,  para  não 
dar  ao  louvor  a  forma  encomiástica,  declaramos  ainda  que  Brito  Ara- 
nha nos  confiou  o  texto  autographo  das  Censuras  de  José  Agostinho  de 
Macedo,  sobre  o  qual  se  faz  a  revisão  typographica  no  respectivo  vo- 
lume. 

Na  coordenação  das  Cartas  poder-se-ia  ter  seguido  a  ordem  chro- 
Hologica,  sendo  isso  mais  vantajoso  para  o  estudo  da  vida  de  José  Agos- 
tinho de  Macedo,  com  desvantagem  dos  documentos  históricos,  que  fi- 
cariam baralhados.  Innocencio  adoptou  nas  suas  copias  as  séries,  con- 
forme as  pessoas  a  quem  as  Cartas  eram  dirigidas;  é  plausível  esta 
disposição,  que  preferimos  também,  reservando  para  um  estudo  pre- 
liminar o  tracejar  o  quadro  chronologico  implícito  n'ellas. 

As  Cartas  mais  antigas  de  José  Agostinho  de  Macedo  aqui  reuni- 
das começam  em  1806,  acceutuando  uma  época  nova  da  sua  indivi- 
dualidade. Para  traz  ficaram  as  loucuras  de  uma  mocidade  turbulenta. 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  IX 

em  revolta  cora  a  disciplina  monachal,  transferido  de  convento  para 
convento,  expulso  da  communidade  dos  Gracianos,  e  sob  a  alçada  da 
Intendência  da  Policia,  na  agitação  de  delirio  de  um  farte  tempera- 
mento que  não  se  conforma  com  o  seu  meio.  Porém  esse  sentimento 
exagerado  da  sua  personalidade,  temperando-se  n'essas  mesmas  vio- 
lências, passou  do  estimulo  de  um  delirio  inconsciente  a  ser  um  im- 
pulso de  actividade  tendente  a  dar  um  relevo  superior  á  sua  individua- 
lidade. O  alienista  Maudsley,  na  Palhologia  do  Espirito,  descreveu  luci- 
damente estas  duas  phases,  quando  em  um  caracter  commum  predo- 
mina «um  sentimento  pessoal  exagerado  e  mal  temperado,  em  conse- 
quência do  qual  resulta  a  incapacidade  de  ver  as  cousas  nas  suas  ver- 
dadeiras relações  e  nas  suas  verdadeiras  proporções.  Um  sentimento 
vivíssimo  do  eu,  com  poucos  conhecimentos  e  pouca  vontade,  é  o  estofo 
favorável  ao  desenvolvimento  da  paixão  egoista,  quer  se  trate  da  pai- 
xão que  se  traduz  pelos  esforços  que  faz  o  individuo  para  se  satisfa- 
zer a  si  próprio,  a  ambição,  a  avareza,  o  amor,  ou  se  trate  da  paixão 
que  indica  a  recção  do  eu  contra  o  que  se  oppõe  á  stfa  satisfação,  como 
a  inveja,  o  ciúme,  os  resenlimentos  de  amor  próprio,  a  dependência. 
E  a  expressão  natural  de  uma  tal  paixão  levada  ao  extremo  é  o  de- 
lirio.» * 

Todo  o  passado  de  José  Agostinho  de  Macedo  resultou  d'este  ex- 
cesso de  sentimento  da  personalidade,  servindo-se  os  seus  antagonis- 
tas das  deploráveis  manifestações  do  delirio  que  até  á  morte  lhe  ex- 
probraram. 

Começou,  porém,  um  tempo  em  que  esse  temperamento  forte  ven- 
ceu os  estimules  que  o  desvairavam,  servindo-se  d'essa  energia  para 
um  maior  relevo  de  caracter.  Foi  uma  nova  manifestação  da  existên- 
cia, na  sua  mais  intensa  actividade  pessoal  e  inQuxo  social.  Maudsley 
descreve  esta  phase  psychologica:  «Apesar  de  tudo,  ha  grandes  van- 
tagens em  ter  o  sentimento  exagerado  do  seu  valor;  elle  dá  energia 
e  vigor  ao  caracter;  o  que  por  vezes  é  um  mal,  dando  força  a  convic- 
ções acanhadas,  o  que  inflamma  um  zelo  intemperante,  pode  prestar 


Pathologie  de  1'Esprit,  p.  262. 


X  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

serviço  ao  individuo,  permiltindo-lhe  reagir  fortemente  á  opposição,  re- 
sistindo inteiramente  só.»  E  concluindo:  «Pode-se  pois  notar  que  o 
sentimento  do  seu  valor  pessoal  dá  o  poder  a  um  individuo  de  tor- 
nar-se  ura  reformador,  ou  o  leva  a  ser  um  alienado,  conforme  as  cir- 
cumstancias  da  vida  lhe  são  ou  não  favoráveis,  e  segundo  o  maior  ou 
menor  gráo  de  capacidade  intellectual  ou  da  vontade  com  que  elle  se 
acompanha.»  Menos  forte  e  saudável,  menos  intelligente  e  activo,  José 
Agostinho  de  Macedo  ficaria  um  frade  devasso,  morrendo  obscuramente 
em  algum  in  pace,  ou  na  enxurrada  da  gentalha;  esse  excesso  do  sen- 
timento da  personalidade,  que  tantas  vezes  prorompe  no  orgulho  litte- 
rario,  suscitou-lhe  a  ambição  de  um  reformador,  começando  pela  as- 
piração a  transformar  a  Litteratura  e  por  ultimo  a  dirigir  a  Politica, 
sendo  o  único  elemento  de  resistência  doutrinaria  na  crise  da  transi- 
ção do  regimen  do  Absolutismo  para  o  das  Cartas  outorgadas.  Toda 
a  sua  existência  é  uma  documentação  d'essas  doutrinas  da  psychologia 
pathologica,  e  synthetisa-se  nitidamente  na  fórmula  de  Maudsley. 

Na  época  em  que  José  Agostinho  entra  em  correspondência  com 
Frei  Francisco  Freire  de  Carvalho,  superior  do  Collegio  da  Graça,  de 
Coimbra,  ha  ainda  reminiscências  á  vida  desenvolta,  mas  preoccupa-o 
acima  de  tudo  a  ambição  de  uma  reforma  da  Litteratura  portugueza. 
Lêa-se  a  carta  datada  de  20  de  setembro  de  1806;  a  nação  acha-se  com- 
primida enlre  duas  potencias,  a  França  napoleonica  e  a  Inglaterra  que 
dirige  a  reacção  continental,  e  a  Litteratura  está  como  o  espirito  na- 
cional, apagada  e  quasi  extincta;  José  Agostinho  tem  uma  fé:  «virá  um 
tempo  em  que  o  gosto  desperte.»  Elle  próprio  quer  metter  hombros  a 
essa  empreza  e  denuncia-lhe  o  seu  plano:  «Eu  trago  em  vista  uma  pe- 
quena Arcádia,  onde  poucos  opponham  uma  barreira  ao  veneno  das  Bo- 
cagiadas  e  das  NissenadaSj,  que  infestam  o  Tejo  e  o  Mondego.  Veja  se 
atlrae  o  não  sabido  Costa,  moço  de  génio,  e  se  acorda  outros.»  (P.  13o.) 

Em  primeiro  logar  José  Agostinho  estava  ainda  sob  a  impressão 
prestigiosa  da  Arcádia  lusitana,  e  seguindo  esses  moldes  imaginava 
estabelecer  uma  disciplina  de  gosto,  sem  conhecer  que  o  gosto  é  uma 
resultante  do  aperfeiçoamento  geral  dos  costumes  e  da  elevação  das 
idéas.  Aquelles  que  mantendo  o  culto  de  admiração  por  Bocage,  imi- 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XI 

tando  a  sua  maneira,  ox)mbatiara  desesperadamente  contra  a  persona- 
lidade de  José  Agostinho,  reuniam-se  no  botequim  de  José  Pedro  da 
Silva,  a  que  chamaram  a  Arcádia  das  Parras,  consagrando  automatica- 
mente esse  antigo  e  geral  prestigio.^  José  Agostinho,  apesar  de  em  1806 
estar  morto  Bocage,  ainda  luctava  com  a  sua  sombra:  «O  astro  Moniz 
eclipsou-se,  cousa  fatal,  desappareceu  esta  nebulosa  estrella,  ou  lhe 
não  ponho  a  vista  em  cima  ha  oito  mezes;  amda  não  parou  a  desinthe- 
ria  que  inquieta  as  cinzas  do  exlincto  vataihão  Bocage,  que  mania!»  Ap- 
parecera  por  este  tempo  o  retrato  de  Bocage  em  uma  bella  gravura  de 
Bartholozzi;  Macedo  incommodou-se  com  isso,  e  na  carta  referida  nota: 
«Viu  já  luz  a  grande  estampa  de  Bartholozzi,  acceitou  a  dedica  Antó- 
nio de  Araújo,  veode-se  a  800  réis  e  gasta-se.»  O  rancor  contra  Bo- 
cage exacerbou-se  com  a  publicação  da  Sátira  Pena  de  Talião,  e  con- 


*  Na  Sátira  inédita  A  Vingança  das  Musas,  ou  Abreu  Lima'*  transformado  em 
Burro,  ha  uma  referencia  á  Arcádia : 

Qual  outr'ora  os  das  Ménalas  montanhas 

Da  Lusitânia,  os  Árcades  zelavam 

As  leis,  as  justas  leis,  que  o  d'Estagira 

E  o  de  Venusa  oráculo,  dictaram, 

Hoje,  quasi,  entre  nós  desconhecidas. 

Coridon  inimortal,  o  grande  Elpino, 

E  os  sócios  divinaes  que  começaram 

Co'as  lições  e  co'exemplo  memorando 

A  restaurar  da  Pátria  a  gloria  antiga. 

Que  os  Sás,  Camões,  Bernardes  e  Ferreira 

ISas  azas  de  ouro  aos  céos  guindado  haviam^ 

Lá  do  cume  do  Monte  bipartido 

A  um  sopro  seu  das  faldas  enxotavam 

Nojosas  gralhas,  que  piar  ousassem, 

E  ao  som  encantador  dos  alvos  cysnes 

Afogadas  no  charco  as  rãs  morriam. 

Era  já  nova  Athenas  Ulyssêa. 


Notar  cumpre 

Que  inda  que  os  sábios  Árcades  se  extingam 
Seus  raios  darão  luz  perpetuamente. 

(Bibl.  nac,  Ms.  n."  7008.) 

*  Padre  José  Manuel  de  Abreu  Lima,  auctor  das  comediai :  O  Duque  de  Saboya,  U  Serralliciro 
bollandez,  A  c<mquista  de  Lisboa,  Pedro  Grande,  etc. 


XII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

ira  o  grupo  de  Elmanistas,  que  se  reunia  no  Agulheiro  dos  Sábios^  no 
botequim  das  Parras,  dando  origem  á  primeira  elaboração  do  poema 
os  Burros.  Referveram  as  Sátiras  e  as  criticas  em  prosa  na  improvisa- 
ção jornalística,  dando  logar  a  vários  Requerimentos  de  José  Agostinbo 
ao  Desembargo  do  Paço  contra  Pato  Moniz  e  João  Bernardo  da  Rocha 
Loureiro.  *  A  lucta  dos  Elmanistas  prolongou-se  indefinidamente,  e  por 
si  constilue  um  capitulo  da  historia  lilteraria  do  fim  do  arcadismo.  José 
Agostinho  luctava  também  contra  as  Nicenadas  ou  as  imitações  de  gosto 
Filiníista.  O  nome  poético  de  Francisco  Manuel  do  Nascimento  era  Ni- 
ceno,  como  o  conheciam  no  tempo  da  Guerra  dos  Poetas  em  1767; 
D.  Leonor  de  Almeida  (Marqueza  de  Alorna),  quando  prisioneira  de  es- 
tado em  Odivellas,  deu-lhe  o  nome  de  Filinto,  ao  qual  depois  da  ex- 
patriação  em  1778  accrescentou  o  epitheto  de  Elysio,  Durante  o  seu 
longo  desterro  Filinto  Elysio  sustentou,  de  1778  a  18  i8,  uma  incansá- 
vel cruzada  a  favor  da  Litteratura  e  da  Lingua  portugueza.  Não  tinha 
uma  doutrina  esthetica,  mas  por  intuição  approximou-se  das  fontes  po- 
pulares da  tradição  e  da  linguagem;  sustentava  a  necessidade  de  se  es- 
tudarem os  escriptores  Quinhentistas,  de  aproveitarem  as  riquezas  do 
seu  vocabulário,  em  grande  parte  archaico,  combatendo  por  esse  modo 
os  neologismos  imbecis  dos  francélhos,  que  mesclavam  o  portuguez  com 
inopportunos  gallicismos.  Filinto  Elysio,  por  falta  de  critério  histórico, 
manifestara-se  também  inimigo  declarado  da  Rima^  e  impunha  o  verso 
solto  como  a  forma  perfeita  da  métrica. 

Abundaram  os  sectários  da  eschola  Filintista,  que  consideravam 
o  sympathico  poeta  desterrado  como  ura  génio  superior;  não  se  deu 
um  rompimento  entre  Elmanistas  e  Filintistas  porque  Bocage,  pouco 
antes  de  morrer,  recebeu  de  Filinto  a  consagração  devida  ao  génio  do 
numeroso  Elmano,  que  diante  de  uma  tal  apotheose  concluiu  uma  Ode 
com  o  verso  feliz:  «Zoilos,  tremei!  Posteridade,  és  minha.»  O  talento 
irrequieto  de  José  Agostinho  de  Macedo  não  se  conformava  com  estas 


*  Acham-se  de  p.  24o  a  238  d'este  volume.  Deu-nos  indicação  d'esses  Requeri- 
mentos o  nosso  estudioso  amigo  Pedro  Augusto  de  Azevedo,  digno  oífieial  da  Torre 
do  Tombo. 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XIII 

mntuas  glorificações  e  pensou  em  atacar  também  as  Nicenadas.  Como 
tinha  combatido  de  frente  com  Bocage,  prejudicava-o  o  assalto  directo 
com  Filinto,  foragido  da  pátria  e  abandonado  pelos  sens  conterrâneos. 
Suggeriu  a  alguém  que  entrasse  na  lucta;  appareceu  então  uma  Sátira 
á  influencia  litteraria  de  Filinto  com  o  titulo  de  Apologia  das  Obras  no- 
vamente publicadas  por  Francisco  Manuel  em  Paris.  As  Obras  a  que  se 
refere  são  da  edição  de  1797  a  1801,  o  que  nos  limita  o  periodo  da 
redacção  da  Apologia.  A  sátira  é  anonyma,  mas  sabe-se,  e  soube-o  Fran- 
cisco Manuel,  que  a  compozera  a  celebrada  poetisa  Viscondessa  de  Bal- 
semão, D.  Catherina  Michaela  de  Sousa  e  Lencastre,  mulher  do  minis- 
tro Luiz  Pinto  de  Sousa.  *  Mas  quem  moveria  a  poetisa  Natércia,  como 
ella  se  denominava,  a  atacar  o  velho  purista?  Houve  para  isso  sugges- 
tão  extranha;  Filinto  também  soube  que  fora  um  frade,  que  era  leigo, 
quem  suggestionara  a  auctora,  que  era  velha.  Effectivamente  D.  Cathe- 
rina Michaela  de  Sousa  nascera  em  1749  e  entrava  muito  pelos  cin- 
coenla  annos;  o  frade  de  coroa  que  se  tornara  leigo  era  José  Agos- 
tinho de  Macedo,  expulso  da  Ordem  dos  Gracianos  em  1792  e  secula- 
risado  por  breve  de  27  de  fevereiro  de  1794. 

Á  critica  de  D.  Catherina  Michaela  de  Sousa  allude  Filinto,  anno- 
tando  o  verso: — Tu  falias  contra  o  bello  consoante — :  «Assim  me  ar- 
guiu já  Dcna  Fufia  de  Rebique  e  Barambazes,  n'uma  Sátira  que  fez 
contra  os  meus  primeiros  versos  que  imprimi;  á  qual  ella  (por  maga- 
Dice  ou  por  estúrdia)  poz  o  titulo  de  Apologia.  Cá  a  tenho  na  gaveta, 
cem  as  suas  notas  marginaes  que  lhe  ajuntou  o  sr.  Clemente  de  Oli- 
veira e  Bastos.  Talvez  que  um  dia  lh'a  remetta.»^  Incommodado  com 
as  reflexões  da  Apologia,  escreveu  Filinto  uma  longa  Sátira  intitulada 
Molhadura  de  certa  Obrivha,  e  em  nota  explica-lhe  o  intuito:  «Muitos 
annos  depois  de  correrem  por  este  mundo  algumas  trovas  minhas,  que 
primeiras  imprimi,  me  veiu  á  mão  uma  Sátira  contra  ellas;  e  o  amigo 
que  m'a  deu  nunca  me  quiz  nomear  a  pessoa  que  a  fez;  somente  me 
disse  (rindo)  que  a  fizera  uma  mulher,  e  que  a  emendara  um  frade; 


^  Innocencio^  na  ecliçíio  das  Obras  de  Bocage,  t.  i,  p.  423. 

2  Obras,  t.  v^  p.  43.  Filinto  usava  vários  pseudonymos  nos  folhetos. 


XIV  SOBRE  KSTES  INKDITOS 

que  a  mulher  era  velha,  e  tinha  cara  de  bruxa,  e  que  o  frade  era  de 
coroa,  porém  leigo.  Não  fiz  então  caso  algum  da  Sátira,  nem  da  velha, 
nem  do  frade;  etc.»  *  A  questão  levantada  pela  auctora  da  Apologia  era 
sobre  a  conveniência  da  rima  na  Poesia.  O  frade  de  coroa,  porém  leigo 
ou  secular,  a  que  elle  allude,  era  o  P.®  José  Agostinho  de  Macedo,  ex- 
graciano,  que  no  principio  do  século  estava  era  proclamada  revolta  con- 
tra as  Nicenadas. 

Apesar  de  resistir  contra  a  influencia  de  Filinto,  o  P.'  José  Agos- 
tinho de  Macedo  era  arrebatado  na  corrente  do  estudo  de  Horácio,  pro- 
clamado como  norma  suprema  da  poesia  por  Filinto.  Da  sua  traducção 
das  Odes  de  Horácio  escrevia  José  Agostinho  de  Macedo  a  Freire  de 
Carvalho,  em  1806:  «Está  impresso  na  Regia  o  primeiro  volume  da  tra- 
ducção de  Horácio,  em  máo  papel,  género  caríssimo» ;  referia-se  ape- 
nas ás  Odes^  e  quanto  ás  Sátiras  e  Epistolas  dizia-lhe:  «se  se  gastar 
(se.  o  1.°  volume  das  Odes)  irá  o  segundo.»  Do  destino  d'este  segundo 
volume,  das  Sátiras  e  Epistolas,  falia  mais  tarde  em  uma  carta  ao 
P.*  Frei  Joaquim  da  Cruz:  «eu  traduzi  ha  vinte  e  seis  annos  as  Obras 
de  Horácio,  as  Odes,  estrophe  por  estrophe  e  verso  por  verso,  quanto 
poude  ser;  aqui  está  um  exemplar  impresso,  que  escapou  ao  naufrá- 
gio da  maior  maroteira  que  então  se  commetteu  no  mundo;  como  en- 
tão sahiu  a  traducção  de  António  Ribeiro  dos  Santos,  que  é  basbalhada 
por  cabula,  por  intriga,  por  inveja,  por  adulação,  por  vaidade  (como 
traducçõesl!),  Frei  Marianno  Velloso,  frade  de  projectos  botânicos  e  com 
quem  D.  Rodrigo  de  Sousa  Coutinho  gastou  um  bom  centenar  de  con- 
tos, sumiu  a  minha  edição,  que  nunca  appareceu,  nem  se  poz  á  venda, 
e  a  outra  metade  das  Obras  de  Horácio,  que  são  as  Sátiras  e  Episto- 
las e  a  Arte  poética  manuscriptas,  abalou  no  anno  seguinte  de  1807 
com  ella  para  o  Rio  de  Janeiro,  onde  se  afogou,  que  não  vi  mais  tal 
Horácio;  fatalidades  minhas!»  (P.  66.)  Em  uma  carta  a  Frei  Domingos 
de  Carvalho,  lente  de  prima  de  Theologia  em  Coimbra,  torna  a  fallar 
n'esta  perda  da  sua  traducção  de  Horácio.  (P.  166.)  Sob  a  influencia 
íilinlista  entregava-se  ás  traducções  dos  poetas  latinos,  empenhando-se 

1  Ibidem,  p.  38. 


SOBKE  ESTES  INÉDITOS  XV 

a  levar  a  cabo  a  versão  da  Thebaida  de  Slacio,  que  Bocage  chegou  a 
rever,  como  o  alardêa  na  memorável  Sátira  Pena  de  Talião,  O  mesmo 
Francisco  Freire  de  Carvalho,  cora  quem  estava  em  communhão  litte- 
raria,  usava  o  nome  poético  de  Filinto  Júnior,  e  o  Costa  era  José  Ma- 
ria da  Costa  e  Silva,  que  elle  mais  tarde  satirisou  em  uma  Ode,  imi- 
tando ou  parodiando-lhe  as  palavras  compostas  com  os  donaires  da 
louçã  lingua  Filintia. 

A  corrente  poética  do  principio  do  século  xix  esterilisava-se  no 
género  didáctico,  em  um  hybridisrao  scientifico;  Bocage  entrou  n'essa 
corrente  como  traductor  de  poetas  francezes,  e  José  Agostinho  teve 
mais  pujança  lançando-se  á  ideaUsação  de  assumptos  novos,  com  forma 
original.  D'aqui  proviera  a  dissidência  entre  aquelles  dois  espíritos. 
Macedo  revelara-se  com  a  Contemplação  da  Natureza,  em  1802,  e  apre- 
sentara á  Censura  em  1806  A  Natureza,  poema  didáctico,  que  foi  man- 
dado denominar  A  Creação.  Ailude  a  isso  na  Carta  a  Freire  de  Carva- 
lho: «Venha  a  Lisboa,  e  dará  um  passo  A  Natureza,  ou  A  Creação, 
como  quer  o  Tribunal  (se.  da  Censura).»  (P.  13i.) 

O  género  didáctico  tornara-se  a  manifestação  mais  predilecta  do 
seu  talento,  e  em  differentes  épocas  da  vida,  e  através  das  mais  acir- 
radas polemicas  de  uma  politica  intransigente,  ou  das  doenças  mor- 
taes  que  o  victimaram,  como  a  gota,  a  estranguria  e  a  anasarca  geral, 
sempre  trabalhou  n'esses  poemas,  a  Meditação,  Newton  e  a  Viagem  ex- 
tática ao  Templo  da  Sabedoria.  E  estas  elaborações  poéticas,  resentin- 
do-se  do  seu  génio  exclusivamente  rhetoricoeemphatico,  desvanecem-no, 
dando  base  ás  expansões  do  sentimento  exagerado  da  sua  personali- 
dade. Assim  diz  elle  em  uma  carta  a  Frei  Domingos  de  Carvalho:  «O 
poema  Meditação,  segunda  edição,  é  único  no  seu  género;  o  poema 
Oriente  vale  mais  que  os  Lusiadas,  e  avulta  mais  que  o  Caramuru  do 
nosso  bom  Durão.  O  poema  Newton  é  um  compendio  de  erudição  an- 
tiga e  moderna.  Pois  meu  bom  amigo,  nem  me  dão  aquillo  de  que  os 
gregos  eram  só  avarentos  —  Praeter  laudem  nullius  avari. —  O  que  os 
portuguezes  me  não  fazem,  cuidam  em  fazer  os  estrangeiros.  Não  ha 
muito  me  chegou  de  Boma  um  diploma  da  Academia  Tiberina,  que  se 
emprega  no  aperfeiçoamento  das  Sciencias  e  Boas  Artes.  De  Nápoles 


XVI  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

também  me  mandaram  um  outro  diploma,  e  de  Inglaterra  me  manda- 
ram retratar,  e  alli  está  o  artista  para  isso;  mas  com  isto  não  se  manda 
ao  açougue,  nem  melhora  a  minha  sorte.»  (P.  167.) 

Todas  estas  circumstancias  tendiam  a  excitar-lhe  esse  personalismo 
que  se  traçava  uma  missão  reformadora.  O  triampho  sobre  as  suas  an- 
gustias económicas  pela  industria  da  prédica  também  o  embalava  na 
segurança  da  sua  importância  pessoal;  diz  elle  ao  seu  velho  amigo: 
«desde  1793,  com  o  meu  trabalho  do  púlpito,  tive  e  conservo  a  mais 
commoda  subsistência;  ele.»  Os  Sermões,  que  foram  a  sua  primeira 
fonte  de  receita,  tornaram-se  com  a  amplitude  da  aura  popular  e  bur- 
gueza  uma  das  formas  da  acção  politica  que  veiu  a  exercer  nas  luctas 
do  governo  absolutista.  Na  Carta  em  endecasyllabos  escripta  a  Freire 
de  Carvalho,  em  21  de  maio  de  180S,  descreve-lhe  a  sua  situação  de 
pregador: 

Eu  vivo,  caro  amigo,  pois  não  morre 

A  innumeravel  turba  dos  carolas, 

Encanzinados  a  louvar  os  Santos, 

Que  Lá  na  gloria  repimpados  jazem, 

Zangados,  como  eu  creio,  da  assuada 

Que  lhe  fazem  de  cá  roucas  rabecas, 

E  as  mentiras  que  eu  prego,  e  mais  os  outros, 

Que  a  pasmada  plebécula  suspendem, 

Com  frias  Orações,  Discursos  ocos. 

De  vinténs  basculhados  inda  ateimam. . . 

(Cartas,  p.  IH.) 

Os  grandes  acontecimentos  da  Politica  europêa,  que  se  reflectiam 
em  Portugal,  fazendo  que  o  seu  rei  o  abandonasse,  diante  da  invasão  na- 
poleonica,  à  occupação  ingleza,  não  menos  terrivel,  fizeram  com  que  a 
personalidade  de  José  Agostinho  exercesse  o  seu  critério  apreciando  os 
acontecimentos  no  aspecto  histórico  e  social.  É  de  29  de  maio  de  1808 
o  Parecer  dado  acerca  da  situação  do  estado  de  Portugal  depois  da  sa- 
hida  de  Sua  Alteza  Real  e  invasão  que  neste  reino  fizeram  as  tropas 
francezas.  (De  p.  296  a  313.) 

Ninguém  viu  mais  claro  o  problema;  emquanto  os  poetas  e  os 
músicos  celebravam  o  heroismo  com  que  D.  João  VI  fugira  para  o 


SOBRK  ESTES  INÉDITOS  XVII 

Brasil,  *  José  Agostinho  via  o  triumpho  da  politica  ingleza  revelada  no 
discurso  de  Pitt  em  1800,  que  resistia  ao  blocus  continental  desde  que 
podesse  cruzar  o  Atlântico,  e  exportar  para  o  Brasil  as  suas  mercado- 
rias e  abastecer-se  das  matérias  primas  d'esse  vasto  território.  José 
Agostinho  de  Macedo  conhecia  a  origem  d'essa  idéa  do  êxodo  para  o 
Brasil:  «este  projecto  sahiu  primeiro  da  cabeça  do  maior  politico  de 
Portugal,  António  Vieira.»  E  em  nota  accrescenta:  «Alexandre  de  Gus- 
mão o  lembrou  a  el-rei  D.  João  V;  ambos  se  enganavam.»  E  diante  da 
realidade  crua  dos  factos  escreve:  «mas  nunca  se  realisaria,  se  a  sup- 
posta  e  até  agora  não  vista  força  o  não  obrigasse;  e  o  para  sempre 
dia  memorável  30  de  novembro  de  1807  deu  nova  face  ao  mundo.»  E 
na  conclusão  do  seu  exame  á  situação  desgraçada  de  Portugal  apre- 
senta-lhe  o  aspecto  do  seu  futuro:  «ou  uma  colónia  do  império  do  Bra- 
sil, com  uma  Regência  livre  e  honrada;  ou  desmembrando-se  do  Brasil, 
rediizir-se  a  uma  rigorosa  democracia,  para  imitar  a  Hollanda  no  com- 


í  No  Hymno  patriótico,  que  se  cantava  no  fim  da  guerra  peninsular,  e  para  o 
qual  o  celebre  maestro  Marcos  Portugal  fizera  a  musica,  exaltava-se  D.  João  VI  por 
ter  fugido  para  o  Brasil^  abandonando  a  nação  á  invasão  napoleonica: 

Ao  mar  vos  destes 
A  bem  dos  vassallos, 
Jurando  livral-os 
Do  ímpio  poder. 

E  inaudita  a  inconsciência  moral,  maior  ainda  do  qae  a  indignidade  com  que  es- 
tas cousas  se  escreviam  e  cantavam.  Nas  Rimas  de  Sabino :  «Á  partida  de  nosso  au- 
gusto Príncipe  Regente  para  os  seus  estados  da  America  pela  próxima  invasão  dos 
Francezes  em  novembro  de  1807»,  lêem-se  estes  suggestivos  tercetos: 

Heroes  tem  Lysia  ornado  singulares, 
.  Mas  nenhum  lhe  prestou  tal  garantia, 
Qual  foi  Sexto  João  sulcando  os  mares : 

Frustrando  illusa  a  Gallia  aleívosia, 
João  salva,  deixando  os  pátrios  Iarps_, 
Ao  sangue  a  Pátria,  ao  jugo  a  Dynastía. 

{Rimas,  p.  46.) 


XVÍII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

mercio,  franquear  os  seus  portos  a  todas  as  nações,  negociar  cora  os 
géneros  do  paiz,  etc.»  (P.  313.) 

As  intrigas  politicas  agradavam  ao  seu  antigo  génio  aventureiro, 
chegando  a  correr  que  fora  empregado  como  policia  secreto  para  se 
descobrir  a  conspiração  de  Mafra  pela  qual  D.  Carlota  Joaquina  em 
1807  planeara  desthronar  seu  marido  o  rei  D.  João  VI.  Termina  o 
poema  O  Gama  em  27  de  janeiro  de  18H,  originando-lhe  as  virulen- 
tas polemicas  com  Pato  Moniz;  ataca  a  mania  dos  Sebastianistas,  que 
no  meio  dos  desastres  nacionaes  appellavam  para  um  salvador,  um 
Soter,  no  apparecimenlo  do  vencido  de  Alcacer-Quibir.  O  poema  dos 
Burros  torna-se  o  libello  tremendo  contra  os  litteratos,  os  frades  e  os 
políticos  do  tempo  que  vae  atravessando;  está  no  seu  vigor  physico  e 
iníellectual,  em  um  estado  plethorico  que  lhe  faz  ser  designado  pela 
alcunha  do  Padre  Lagosta,  e  com  uma  fecundidade  litteraria  verdadei- 
ramente vertiginosa.  Em  uma  época  de  instabilidade  de  instituições  e 
de  opiniões  não  admira  que  elle  também  cahisse  na  versatilidade  de 
caracter,  combatendo  aferradamente  na  velhice  as  idéas  que  proclamara 
na  virilidade. 

José  Agostinho  de  Macedo  publicou  em  1822  e  1827  as  Cartas  a 
Joaquim  José  Pedro  Lopes,  em  numero  de  trinta  e  duas,  nas  quaes  jul- 
gava os  acontecimentos  da  Revolução  de  Vinte  e  da  outorga  da  Carta; 
Paulo  Midosi,  o  amigo  de  Garrett,  achava-se  emigrado  em  Londres,  e 
começou  a  escrever  uma  série  de  Cartas  em  resposta  a  José  Agostinho 
sob  o  titulo  De  um  Solitário  da  Serra  de  Cintra  ao  seu  compadre  La- 
gosta; a  primeira  carta  foi  publicada  no  Porto  em  1827,  bastante  mu- 
tilada pela  Censura;  uma  segunda  e  terceira  Cartas  foram  apprehen- 
didas  na  imprensa  em  Lisboa.  Paulo  Midosi  escreveu  dez  Cartas,  que 
reuniu  em  um  volume  manuscripto,  dedicado  ao  próprio  P.^  José  Agos- 
tinho, em  14  de  novembro  de  1829,  sob  o  pseudouymo  de  Simão  da 
Serra;  n'ellas  se  encontram  particularíssimas  referencias  á  vida  do  vi- 
rulento folliculario,  e  ás  opiniões  da  época  sobre  a  versatilidade  do  pa- 
dre e  contradicções  das  suas  obras.  Em  uma  Carta  de  18  de  dezembro 
de  1830  a  Frei  Fortunato  de  San  Boaventura  escrevia  Macedo:  «O 
Midosi  e  o  Garrett  ainda  atiram.»  (P.  127.) 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XIX 

Referia-se  ás  polemicas  jornalisticas  do  Chaveco  liberal  do  Paquete 
e  do  Portuguez;  esse  período  violento  e  final  da  sua  vida  acha-se  do- 
cumentado na  collecção  das  Cartas  ao  Procurador  geral  de  Alcobaça, 
em  que  o  homem  odiado  chega  a  despertar  piedade.  Entre  a  lucta 
contra  os  Vintistas  e  a  campanha  da  Besta  esfolada  ou  contra  a  Carta 
outorgada  ha  um  episodio  na  vida  de  José  Agostinho  nada  conheci- 
do, e  que  é  de  um  interesse  vivo,  em  que  se  destaca  a  sua  personali- 
dade. 

A  collecção  das  Cartas  á  Freira  Trina  do  convento  do  Rato  com- 
prehende-se  entre  as  datas  de  30  de  janeiro  de  1820  e  fins  de  1822. 
Foi  este  o  periodo  mais  activo  de  José  Agostinho  de  Macedo,  pregando 
em  todas  as  festas  e  arraiaes,  e  sendo  ouvido  com  interesse,  pela  so- 
noridade da  sua  voz  e  vehemencia  das  paixões  que  suscitava  nas  allu- 
sões  á  crise  politica  do  tempo.  As  freiras  acreditavam  no  seu  saber  e 
sentiam-se  fascinadas  pela  auctoridade  do  padre,  que  as  lisonjeava  em 
um  galanteio  molinosista.  Na  Carta  xxxv  conta  uma  anecdota  caricata 
de  D.  Joanna  Thomazia  de  Brito  Lobo  de  Sampaio,  os  seus  antigos 
amores  do  mosteiro  de  Odivellas,  que  por  1818  foram  substituídos  pe- 
los de  D.  Maria  Cândida  do  Valle,  freira  do  convento  de  Goz,  da  ordem 
das  Bernardas:  «A  tal  Mestra  de  Noviças  me  contou  uma  historia  de 
Joanna  Thomazia,  que  eu  não  sabia;  eil-a  aqui  tal  e  qual:  As  Bernar- 
das, além  do  eterno  officio,  têm  todos  os  dias  o  de  Defuntos,  e  de 
certo  não  é  pelos  que  matam  com  a  sua  formosura  e  descrição ;  a  No- 
viça, se  a  ha,  levanta  a  primeira  Antiphona  de  vésperas,  e  aponta  o 
Psalmo.  Ensinou-a  pois  a  Mestra,  e  disse-lhe: — Olhae,  haveis  de  dizer 
Me  suscepit,  de  pé;  e  depois,  DeuSj  Deus  meus,  sentada;  assim  o  fez 
Joanna  Thomazia,  e  disse  tudo:  Me  suscepit j,  de  pé;  Deus,  Deus  meus, 
sentada,  e  tudo  no  mesmo  tom  latino  e  portuguez  tudo  junto,  sem  se 
lembrar  que  a  pé  e  sentada  era  a  cerimonia;  e  desatando  as  freiras  a 
rir,  ella  muito  arrenegada  gritou  para  a  Mestra: — Não  me  ensinasse 
assim!  Se  você  é  Bernarda  eu  sou  Dominica.  Eu  ri  deveras,  e  não  ha 
um  só  destempero  de  Joanna  Thomazia  que  não  faça  rir.»  (P.  224.) 

Na  Carta  em  verso  a  Francisco  Freire  de  Carvalho,  Filinto  Júnior, 
de  21  de  maio  de  1808,  em  que  manifesta  inteíição  de  fugir  de  Lisboa 


3X  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

por  causa  da  occupação  dos  Inglezes,  falla-lhe  d'estes  amores  com  a 
freira  de  Odivellas: 

Ha  seis  dias  e  mais,  tudo  anda  em  anciãs. 
Se  aos  vulcaneos  canhões  a  mecha  chegam, 
Lá  me  tens,  bom  Fiiinto,  á  desfilada, 
Que  não  'stou  para  vér  moscas  por  cordas. 
Vê  se  ha  no  monte  Hermínio  alguma  gruta 
Em  que  eu  e  uma  Vestal  mimosa  e  belln 
Qtie  aos  ferros  se  evadiu,  e  me  acompanha. 
Possamos  evitar  a  surriada 
Das  ameixas  cruéis  de  todo  o  anno. 

(Cartas,  p.  142.) 

José  Agostinho  não  sahiu  de  Lisboa,  e  a  Vestal  volveu  aos  ferros 
ou  grades  de  Odivellas,  continuando  esse  idylio  freiratico;  lisonjeava-a 
na  sua  curiosidade  litteraria,  dedicando-lhe  em  4815  as  Cartas  philo- 
sophicas  a  Attico^  com  um  elogioso  preambulo;  e  ainda  em  1818  de- 
dicou-lhe  a  novella  Arrependimento  premiado,  que  traduzira  e  publicara 
anonymamente.  Mas  estes  amores  terminaram  pelo  triumpho  de  uma 
rival,  que  D.  Joanna  Thomazia  fizera  notar  a  José  Agostinho  pela  bel- 
leza  das  suas  cartas:  D.  Maria  Cândida  do  Valle  veiu  attrahida  do  con- 
vento de  Coz  para  Odivellas,  e  d'ahi  para  casa  do  Padre,  onde  residiu 
até  á  sua  morte.  A  Lyra  anacreontica,  publicada  em  1819,  é  dedicada 
a  D.  Maria  Cândida  do  Valle,  que  inspirara  essas  cem  cançonetas.  Não 
admira  pois  que  nas  Cartas  d  Freira  Trina  falle  com  desdém  de  D.  Joanna 
Thomazia;  mas  o  seu  temperamento  sarcástico  também  não  poupava 
D.  Maria  Cândida,  pelos  seus  numerosos  achaques  de  gata  rósea  nas 
faces,  segundo  diagnosticava  o  medico  Abrantes,  e  uma  aneurisma  no 
pescoço.  Offerecendo  uma  caixa  preciosa  á  Freira  Trina,  que  a  não 
queria  acceitar,  dizia-lhe:  «Olhe  que  se  fica  vae  ter  ás  mãos  da  Ma- 
ria Cândida,  e  que  esta  não  tem  que  lhe  metter  dentro  mais  que  un- 
guentos para  a  cara  e  ataduras  para  o  pescoço,  e  das  mãos  da  em- 
plastrada é  arrepanhada  logo  pelas  gulosissimas  das  Portas  da  Cruz.» 
(P.  206.) 

E  em  outra  Carta  lhe  refere:  «desfez-se  o  triste  encanto  das  mi- 
nhas jornadas,  pensões  e  cuidados,  que  tudo  isto  quer  dizer  que  se  au- 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XXI 

gmentou  repentinamente  o  volume  da  aneurisma  no  pescoço  da  pobre  e 
attríbulada  Maria  Cândida...»  (P.  227.) 

Em  outra  carta  conta-lhe  uma  aventura  cómica  passada  com  D.  Ma- 
ria Cândida,  que  fora  apresentada  a  D.  Miguel  em  uma  funcção:  «no 
fim  veiu  El-rei  acima  tomar  um  refresco,  já  tinha  conversado  muito 
commigo,  e  estando  eu  com  a  hostelenta  de  cara  no  meio  de  uma  es- 
cada por  onde  elle  passava,  beijei-lhe  a  mão,  e  elle  me  levantou,  pe- 
gando-me  em  ambas  as  mãos,  e  voltando-se  para  a  Freira  disse-lhe: 
— Esta  é  sua  irmã?  Responde  ella: — e  uma  fiel  vassalla  de  F."  Ex.' — 
No  dito  não  o  mostra,  acudi  eu,  e  ella  fazendo  peor  a  emenda  que  o 
soneto  disse: — de  V.  Magestade. — Elle  riu  muito,  e  mais  os  que  com 
elle  vinham,  e  como  elle  estava  de  confiança,  pois  até  lhe  disse  que 
alimpasse  a  cara  que  estava  muito  suada,  remendei  toda  aquella  scena 
com  esta  exclamação: — Seja  tudo  para  honra  e  gloria  do  bemaventu- 
rado  S.  Bernardo!  Ainda  riu  mais,  e  esqueceu-lhe  por  um  pouco  que 
já  não  era  rei.»  (P.  237.) 

O  nome  da  freira  que  em  1822  alimentava  as  ideahsações  de  José 
Agostinho  de  Macedo,  que  elle  tratava  por  manaj,  intercalando  em  mo- 
nogramma  as  iniciaes  de  /  e  F  (p.  206),  deduz-se  da  própria  corre- 
spondência; em  uma  das  cartas  põe  este  fecho:  «Por  F.  R.  andará  hoje 
até  tolo  /.  i.»  (P.  223.)  N'uma  outra  vem  no  final:  «Eu  não  tenho  ou- 
tra feUcidade  mais  que  Feliciana.  Isto  não  é  nome,  é  vida  para  mim.» 
(P.  238.)  E  ainda  n'um  pequeno  bilhete:  «eu  não  quero  senão  Feli- 
ciana, só  esta  fez  e  fará  feliz  J.»  (P.  241.) 

A  correspondência  termina  justamente  em  uma  época  de  agitação 
politica,  quando  José  Agostinho  começou  a  combater  a  Constituição  de 
1822,  e  quando  a  sua  actividade  foi  occupada  em  exercer  a  Censura 
litteraria  por  incumbência  do  patriarchado.  Pelos  successos  da  sua  vida 
vê-se  que  fora  victima  dos  amores  profanos  como  o  da  Benigna  e  o  da 
Domingas  Ebrard;  com  os  amores  freiraiicos  não  havia  perigo,  pela  ne- 
cessidade de  mutuas  cautelas  ou  recatos.  Segundo  os  costumes  do  sé- 
culo xvin,  e  pelas  repressões  legislativas  mais  se  nota,  havia  uma  ca- 
tegoria de  namoradores,  que  segundo  a  giria  do  tempo  preferiam  a 
todas  as  mulheres  o  peixe  de  grelha;  as  freiras  eram  requestadas  em 


XXn  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

Outeiros  poéticos,  e  em  visitas  assiduas  aos  locutórios  ou  grades  e  ás 
festas  dos  Conventos.  Na  poesia  satírica  do  fim  do  século  xvm  acham-se 
fortes  cargas  a  esse  erotismo  mystico. 

Em  uma  Bulia  das  Indulgências  concedidas  aos  Freiraticos  vem  a 
seguinte  Ladainha  (1790): 


San  Bento  de  Cister, 

Cujas  freiras  hão  mister 
Que  as  renoveis  e  reformes, 
(}fa  pro  nobis. 

Santo  Agostinho, 

Cujas  freiras  sem  caminho 
Tomem  o  caminho  que  podes. 
Ora  pro  nobis. 

San  Bernardo, 

De  cujas  freiras  magoado, 
Tu  que  as  vês  e  não  lhe  accodes, 
Ora  pro  nobis. 

Santa  Catharina, 

Que  foste  freira  divina, 
Sem  teres  grades  pregadas, 
Ora  pro  nobis. 

Santa  Thereza, 

Freira  da  maior  pureza. 
Sem  freiraticos  amores, 

Ora  pro  nobis. 


Das  Freiras  d'esta  cidade, 

Que  andam  de  grade  em  grade, 
Com  quem  temos  pouca  fé. 

Libera  nos,  Domine» 

Da  que  se  finge  noviça, 

Da  que  tem  tia  postiça. 
Da  que  vive  de  alquile. 

Libera  nos,  Domine. 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XXIII 

Da  que  tem  mano  e  maneira 
Depois  que  toma  a  gateira 
Canta  sem  solfa  o  Lé  Lé, 

Libera  nos,  Domine. 

D'aquella  que  faz  versinhos, 

Da  que  escreve  cora  pontinhos, 
Da  que  falia  per  sé  sé, 

Libera  tws,  Domine. 

Da  que  de  saber  se  preza, 
E  que  do  coro  e  da  reza 
Não  saiba  que  cousa  é, 

Libera  nos,  Domine. 

D'este  sexo  sem  lealdade, 
Cheio  de  toda  a  maldade, 
Que  professa  nenhuma  fé. 

Libera  nos.  Domine. 


Que  da  mais  firme  e  leal 
Nos  livreis,  que  esta  tal 
É  serpe  feroz, 

Te  rogamus,  audi  nos. 

Que  dos  devotos  freiraticos 

Livreis,  Senhor,  as  cegueiras 
Que  o  demónio  lhe  poz, 

Te  rogamus,  audi  nos. 

Que  fujamos  sempre  d'ellas, 
Que  roubam,  sem  para  ellas 
Haver  forca,  nem  algoz, 

Te  rogamus,  audi  nos. 

Que  para  nos  enfadar, 

Não  nos  deixeis  enganar, 
Com  pratos  de  doce  arroz. 

Te  rogamus,  audi  nos. 

Que  desfaçaes  seus  feitiços, 

Que  em  vosso  santo  serviço 
Vivamos  sem  ellas,  sós, 

Te  rogamus,  audi  nos. 


XXiV  óOBltE  ESTKS  INKIjITOS 


Que  nos  não  fique  fazei 
Tão  grande  peste  em  pé, 

Ex  audi  nos,  Domine. 

E  se  de  seu  amor  nos  livramos 
Sem  saber  o  que  bem  é, 

Paixe  nohis,  Domine. 

E  porque  assim  ignoramos 
Suas  fingidas  vozes, 

Miserere  nohis. 

Ouvi,  Senhor,  vozes  tão  sentidas! 
E  livrae-nos  de  Freiras  tão  garridas. 

O  costume  característico  dos  amores  freiraticos  correspondia  a 
uma  excitação  da  religiosidade  levada  ao  fanatismo,  sobretudo  no  sexo 
feminino,  mais  interessado  nas  praticas  cultuaes,  e  pela  apathia  da 
claustração  cahindo  inevitavelmente  na  subjectividade  contemplativa  ou 
mystica.  Maudsley  explica  as  consequências  d'esta  situação  especial  na 
Pathologia  do  Espirito:  «Se  mulhei^es  não  casadas  têm  por  desgraça, 
em  consequência  da  sua  condição  e  tendendo  por  isso  a  fazel-o,  de  sup- 
portar  o  zelo  ignorante  e  inopportuno  de  padres  inconsiderados  que 
tomam  por  um  profundo  sentimento  religioso  aquillo  que,  na  realidade, 
não  é  mais  do  que  um  sentimento  mórbido  que  tira  a  sua  origem  no 
fundo  de  um  instincto  não  satisfeito  ou  em  uma  outra  acção  uterina,  o 
mal  é  consideravelmente  aggravado. — Os  arrôbos  extacticos  das  santas 
mulheres,  que,  como  Calherina  de  Senna  e  Santa  Thereza,  acreditavam 
que  eram  visitadas  pelo  Salvador  e  recebidas  no  seu  seio  como  verda- 
deiras esposas,  nenhuma  outra  cousa  eram,  apesar  da  sua  intenção,  se- 
não um  modo  de  orgasmo  sexual,  estado  de  cousas  que  a  contempla- 
ção intensa  da  figura  de  um  homem  nú,  gravado  ou  esculpido  sobre 
uma  cruz  com  todas  as  suas  proporções,  é  o  mais  próprio  para  susci- 
tar em  mulheres  novas  de  um  temperamento  nervoso  e  susceptível,  do 
que  se  pode  imaginar.  Todo  o  medico  experimentado  tem  visto  casos 
de  mulheres  celibatárias  sem  filhos  dedicarem-se  com  um  zelo  extraor- 


SOBHE  ESTES  INÉDITOS  XXV 

dinario  aos  exercidos  religiosos  habituaes;  e  que,  enlouquecendo  no 
apogeo'do  seu  fervor  erótico,  manifestaram  logo  a  mescla  a  mais  triste 
de  symptomas  religiosos  e  symptomas  eróticos,  uma  effervescencia  de 
concupiscência  na  voz,  na  expressão,  nos  gestos,  sob  a  deplorável  de- 
gradação da  doença.»*  Tal  e  o  caso  do  molinismo  e  dos  directores  es- 
pirituaes;  nas  relações  dos  freiraticos  ha  este  mesmo  fundo  de  instin- 
cto  não  satisfeito,  mas  a  intelligencia  está  acima  da  religiosidade  e  de- 
fine com  clareza  a  situação,  simulando  mesmo  o  hymeneo  moral. 

As  Carias  d  Freira  Trina  pintam  todo  esse  viver  clerical  e  mo- 
nástico, que  em  breve  ia  transformar-se  por  uma  revolução  profunda; 
José  Agostinho  a  previra,  chegando  mesmo  a  reconhecer  que  as  Ordens 
monachaes  estavam  em  perigo  de  se  extinguirem,  e  todo  o  resto  da 
sua  vida  foi  dispendido  n'uma  lucta  fremente  contra  a  marcha  dos  acon- 
tecimentos que  fatalmente  se  impunham.  Já  em  1823  era  reconhecido 
o  seu  influxo  politico.  Entre  os  vários  Pasquins  que  a  Policia  arran- 
cou do  largo  de  S.  Paulo,  em  1823,  lia-se  um  contra  o  P.®  José  Agos- 
tinho de  Macedo,  que  conspirava  com  D.  Carlota  Joaquina,  reclusa  na 
Quinta  do  Ramalhão,  d'onde  dirigia  a  conjuração  absolutista  dos  Apos- 
tólicos : 

Oh  P.«  José  Agostinho  de  Macedo, 

Se  as  rédeas  te  lançam  da  mão, 

Conto  que  não  vaes  só  para  o  Ramalhão.  2 

Depois  das  luctas  litterarias  com  os  elmanistas  da  Arcádia  das 
Parras,  que  inspiraram  a  José  Agostinho  de  Macedo  o  poema  satírico 
Os  Burros,  em  quatro  cantos,  os  seus  ódios  foram-se  alargando,  e  o 
poema  complicava-se,  abrangendo  os  jornalistas  contemporâneos  e  os 
Frades  Bernardos,  que  passavam  como  objectivo  de  todas  as  anecdotas 
de  imbecilidade.  Depois  de  um  Requerimento  do  jornalista  Luiz  Se- 
queira de  Oliva  e  Sousa  Cabral,  que  se  dava  por  injuriado  por  Macedo, 
foi  passado  um  Aviso  pela  Secretaria  do  Reino,  em  1 1  de  fevereiro  de 
1812,  para  se  fazer  a  apprehensão  do  poema  Os  Burros;  e  pelo  OíBcio 


^  Patholorjie  de  1'Esprit,  p.  i53. 

2  Papeis  da  Intendência.  Correspondências,  maço  135. —  Pinto,  Lisboa  de  outro 
tempo,  t.  II,  p.  144. 


XXYI  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

da  Intendência  da  Policia,  de  18  de  maio  de  1815,  é  José  Agostinho 
apontado  como  auctor  d'esse  causticante  poema.  Parece  que  para  o  tor- 
nar mais  impessoal,  ou  por  desdém  intimo  que  Macedo  nutria  pelas 
bcrnardices  tradicionaes  dos  frades  cistercianos,  Os  Burros  foram  de- 
dicados em  uma  das  suas  ultimas  redacções  ao  Abbade  geral  dos  Ber- 
nardos, com  uma  extensa  justificação  em  prosa.  Em  18H  era  Fr.  Fer- 
nando Pimentel  o  Geral  de  Alcobaça,  e  seria  este  porventura  o  esco- 
lhido para  ser  encabeçado  o  poema?  É  certo  que  José  Agostinho  fez 
uma  nova  remodelação  aos  Burros,  eliminando  todas  as  referencias  aos 
Frades  Bernardos,  e  chegando  mesmo  a  negar  que  o  poema  fosse  seu, 
e  principalmente  a  dedicatória.  Os  Frades  de  Alcobaça  conheceram 
quanto  os  prejudicava  na  sua  opulência  feudal  esse  golpe  sarcástico, 
e  com  o  tino  de  um  bom  conselho  vieram  ao  encontro  do  poeta,  e  ti- 
veram artes  de  amansal-o  e  mesmo  de  o  desarmar.  José  Agostinho  de 
Macedo  apaixonara-se  por  uma  Freira  do  convento  de  Coz,  que  per- 
tencia á  regra  dos  Bernardos;  os  frades  fizeram  a  vista  grossa  e  trans- 
igiram que  o  Padre  vivesse  de  casa  e  pucarinho  com  a  freira  bernarda, 
a  doentissima  D.  Maria  Cândida  do  Valle.  Por  esta  tolerância  tiveram 
o  poeta  e  folliculario  sempre  manietado,  e,  o  que  mais  é,  submeltido 
ao  seu  serviço.  Em  uma  carta  a  Freira  Trina  queixa-se  ou  descul- 
pa-se  José  Agostinho  de  estar  «occupado  com  papeladas  de  Frades 
Bernardos,  que  por  me  tratarem  bem  aquella  gaUinha  choca  os  aturo 
em  tudo  e  os  defendo  com  esta  tal  ou  qual  penna  quanto  posso.» 
(P.  241.) 

Apesar  d'esta  situação  de  dependência,  em  muitas  cartas  nunca  o 
génio  cáustico  de  Macedo  deixou  de  ferrar  o  dente  na  estupidez  pro- 
verbial dos  Bernardos;  assim  na  carta  â  Freira  Trina  falla-lhe  dos  dis- 
parates de  um  frade  que  encontrou  n'uma  jornada  a  Mafra,  que  o  moeu 
«com  aquelle  chorrilho  de  parvoíces  de  que  eu  não  sei  se  S.  Bento  se 
Bernardo  fora  mais  liberal  para  com  seus  filhos.»  (P.  219.) 

E  descrevendo  uma  cólica  de  D.  Maria  Cândida,  volta  ao  mesmo 
estribilho:  «Foi  aquella  Bernarda  na  profissão  e  no  miolo  metter-se, 
sahindo  quente  da  cama,  hontera  pelas  cinco  da  manha  na  frigidissima 
agua  do  mar  em  Paço  de  Arcos. . .»  (P.  221.) 


SOBUE  ESTES  INÉDITOS  XXVII 

Em  outra  carta  á  mesma  já  alludia  ao  cerco  que  os  Frades  de  Al- 
cobaça lhe  faziam  para  apoderarem-se  do  seu  talento  de  polemista  para 
os  defenderem  contra  as  idéas  politicas  dos  liberaes  de  1822:  «Toda 
esta  semana  passada  andei  eu  metlido  com  os  Frades  Bernardos;  está 
ahi  o  Geral,  e  cuidam  em  se  justificar  de  suppostos  crimes  com  que 
os  têm  enxovalhado  n'esses  papeis  públicos;  tenho-lhe  feito  vários  re- 
querimentos e  representações,  porque,  emfim,  tratam-me  bem  aquella 
emplastrada;  agora  me  mandaram  aqui  um  caixote  de  pecegos  que  vêm 
quasi  todos  tocados,  porque  metter  pecegos  verdes  em  caixote,  e  este 
mui  bem  pregado  com  fortes  pregos,  só  Frades  Bernardos;  etc.» 
(P.  236.) 

O  resto  da  carta  consta  de  bernardices  de  que  ainda  se  riu  mais 
o  rei  D.  Miguel. 

O  Procurador  geral  do  mosteiro  de  Alcobaça,  Fr.  Joaquim  da  Cruz, 
tratou  de  captar  a  benevolência  de  José  Agostinho  de  Macedo,  e  por 
meio  de  presentes  de  presuntos,  marmelada,  fructas,  e  ainda  a  lisonja 
de  lhe  mandar  imprimir  obras  suas,  e  consultal-o  sobre  as  compras  de 
Livros  para  a  rica  Bibliotheca  da  opulenta  Abbadia,  apoderou-se  com- 
pletamente do  animo  do  terrível  pregador  e  polemista.  Funccionava  a 
Junta  de  melhoramento  das  Ordens  religiosas,  as  quaes  estavam  quasi 
todas  falidas,  e  era  preciso  um  homem  intelligente  que  defendesse  a 
Abbadia  de  Alcobaça  contra  veleidades  reformadoras;  Fr.  Fortunato 
de  San  Boaventura  era  especialmente  um  erudito,  um  temperamento 
timorato,  apesar  dos  seus  exageros  polémicos,  impróprio  para  essa  lu- 
cta,  em  que  elle  quanto  fizesse  era  pro  domo  sua.  José  Agostinho  de 
Macedo  foi  uma  acquisição  de  primeira  ordem,  e  a  titulo  de  consulta 
encarregaram-no  de  fazer  requerimentos  e  representações  varias,  diante 
da  invasão  da  fazenda  publica  nos  bens  da  communidade.  *  Quando  co- 


1  Sobre  esta  situação  económica  encontramos  a  seguinte  nota  manuscripta  de 
Ferreira  da  Costa  ao  poema  Os  Burros  : 

«É  incrível  o  pezo  das  contribuições  que  opprimiam  as  Ordens  monásticas  em 
Portugal,  estabelecidas  por  causa  das  Invasões  francezas,  dos  Systemas  constitucio- 
naes_,  e  mesmo  do  Governo  realista,  porque  uma  vez  posta  uma  contribuição  tudo  se 
extingue,  menos  o  que  fõr  tirar  dinheiro.  É  tanto  o  que  dão  as  Ordens  religiosas  de- 


XXVIII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

meçou  a  reacção  contra  a  Carta  constitucional  outorgada  em  1826,  José 
Agostinho  de  Macedo  tornou-se  o  campeão  doutrinário  contra  os  ideólo- 
gos do  liberalismo;  era  preciso  um  órgão  jornalístico  para  combater 
esse  código  politico,  e  Fr.  Joaquim  da  Cruz,  com  os  vastos  recursos 
pecuniários  do  mosteiro  de  Alcobaça,  que  elle  administrava,  subsidiou 
uma  publicação  periódica,  que  com  o  titulo  A  Besta  esfolada  publicava 
mensalmente  o  P.*  José  Agostinho  de  Macedo.  A  Besta  era  a  Carta 
constitucional,  assim  denominada  por  uma  metaphora  grosseira;  a  es- 
fola era  a  analyse  dos  artigos,  feita  em  uma  linguagem  de  rhetorica 
arrieiral,  segundo  o  temperamento  impetuoso  de  José  Agostinho.  Com- 
prehende-se  como  serão  cheias  de  curiosidade  e  de  revelações  históri- 
cas as  Cartas  de  Macedo  ao  P.®  Fr.  Joaquim  da  Cruz  n'esse  periodo 
mais  intenso  da  lucía  dos  Apostólicos  contra  o  liberalismo,  e  tratando 
em  especial  dos  números  successivos  e  das  peripécias  da  Besta  esfo- 
lada. A  collecção  formada  por  Ferreira  da  Costa,  fanático  por  Macedo 
e  sincero  realista,  começa  em  julho  de  1828  e  chega  a  1830,  quando 
o  terrível  escriptor  agonisa  sob  incomportáveis  soffrimentos  physicos  e 
se  conserva  em  uma  tensão  moral  nas  violentas  polemicas  doutrinarias 
contra  os  hberaes.  (P.  1  a  90.) 

Ouem  escrever  a  historia  moderna  de  Portugal  nos  desencontra- 
dos e  incoherentes  conQictos  da  implantação  do  regimen  constitucional, 
ha  de  encontrar  n'esta  série  de  Cartas  relâmpagos  de  luz  esclarecendo 
esse  momento  decisivo  da  lucta  de  1828  a  1830.  Ahi  se  verá  o  traba- 
lho preparatório  para  a  introducção  dos  Jesuítas  em  Portugal  como 
meio  de  consolidar  o  absolutismo,  e  como  José  Agostinho,  forçado  a  de- 
fender a  Companhia,  contra  a  qual  escrevera  annos  antes,  mantinha  o 
seu  sentimento  intimo,  apesar  das  glorificações  oÊQciosas. 


baixo  dos  títulos  de  Decima,  Meneio,  Quinto  de  bens  da  Coroa,  CoUectas,  ete.,  que  se 
pode  assegurar  que,  junto  a  Dizimos,  despezas  de  amanhos  e  outras  bagatellas^  nada 
resta  aos  infelizes  proprietários:  — ...  resultando  d'aqui  estarem  empenhadissimas 
todas  as  Ordens  religiosas.»  (Nota  1416.) 

A  extincção  das  Ordens  religiosas  em  1834,  na  sua  essência  foi  uma  liquidação 
final  de  uma  ruína  económica  de  longa  data,  ficando  a  responsabilidade  ao  regimen 
liberal. 


SOBRE  KSTES  INÉDITOS  XXIX 

Quando  em  1829  Macedo  se  tornava  o  sustentáculo  doutrinário 
dos  Jesuítas  em  Portugal,  usava  este  nome  no  sentido  de  pérfido,  es- 
crevendo ao  Procurador  de  Alcobaça:  «É  preciso  inventar  alguma  ;e- 
suitica  para  nos  descartarmos  de  tal  homem. . .»  (P.  30.) 

Na  carta  de  agosto  dirigida  a  Fr.  Joaquim  da  Cruz  communica- 
Ihe:  «Sei  que  vieram  os  Jesuítas,  porque  n'elles  se  põe  alguma  con- 
fiança ;  o  que  elles  fazem  também  os  outros  o  podiam  fazer  se  as  cou- 
sas se  tratassem  seriamente,  e  se  em  tudo  e  de  tudo  não  dispozesse  a 
pedreirada,  e  se  muitas  das  corporações  religiosas  não  estivessem  con- 
taminadas.» (P.  35.) 

Apresenta ram-lhe  o  projecto  de  defeza  escripto  por  Fr.  Fortunato 
de  San  Boaventura,  sobre  o  qual  mandou  indicações,  em  carta  de  de- 
zembro, dizendo:  tSim,  senhor,  convenho  no  que  diz  respeito  aos  Je- 
suítas e  para  se  publicar  pela  imprensa  vejo  que  não  é  politico,  e  de- 
vendo-se  imprimir  deve-se  tirar  ou  accrescentar-lhe  notas,  pondo  tudo 
o  que  ha  duro  na  bocca  de  muitos  philosophos  do  tempo,  e  exhortar 
Fr.  Fortunato  a  que  prosiga,  e  alli  mesmo  lhe  lembrarei  as  cousas  do 
Paraguay. . .»  (P.  54.) 

Com  um  certo  tino  pratico  Macedo  aconselhava  a  Fr.  Fortunato 
que  a  Apologia  dos  Jesuítas  deveria  ser  feita  de  um  modo  geral,  evi- 
tando os  factos  particulares  e  concretos,  porque  poderiam  ser  interpre- 
tados diversamente.  Era  esse  o  modo  como  procurava  conciliar  a  sua 
alta  idéa  da  Companhia  de  Jesus,  que  proclamava  em  1830  no  seu  fo- 
lheio Os  Jesuítas  e  as  lettras,  com  a  carga  terrível  que  lhe  dera  no 
opúsculo  de  1810  Os  Sebastianistas.  N'este  folheto,  em  que  imputava 
aos  Jesuítas  a  redacção  das  Prophecias  sebastícas  no  tempo  de  D.  João  IV, 
é  vehemente  no  julgamento  da  Companhia: 

«O  mundo  está  cheio  de  livros  contra  os  Jesuítas  desde  a  sua  ori- 
gem até  á  sua  extincção.  Isto  é  innegavel.  Homens  respeitáveis  por  ca- 
racter, por  santidade,  por  doutrina,  escreveram  contra  os  malvados  Je- 
suítas, causa  de  tantos  males.  Os  tribunaes  de  todas  as  nações  onde 
existiram,  os  Parlamentos  da  França  catholica,  da  França  illustrada, 
condemnaram  todos  e  enforcaram  alguns.  Os  soberanos  da  França,  de 
Portugal  e  da  Hespanha  os  expulsaram.  O  pontífice  Clemente  XIV  os 


XXX  SOBUIÍ  líSTES  INÉDITOS 

extinguiu.  A  bulia  cl'este  ponlifice,  dirigida  ao  Cardeal  Malvezi,  legado 
de  Bolonha,  os  manda  prender,  sequestrar,  exterminar. 

«A  historia  do  afifectado  reino  de  Paraguay  os  faz  abominar  de 
todos  os  povos,  quando  se  viu  nas  calças  d'aquelles  feito  rei  Nicolau  I 
com  artilheiros  allemães  a  seu  serviço. 

«Elles  arruinaram  as  Universidades,  foram  causa  da  decadência 
da  Litteratura  em  Portugal.  A  cadeira  de  Diogo  de  Teive  foi  substi- 
tuída por  um  roupeta  asselvajado.  Ninguém  podia  saber  senão  aquillo 
que  os  Jesuítas  deixavam  saber. 

«A  sua  moral  era  a  mais  corrompida,  foram  convencidos  de  regi- 
cidas, elles  aguçaram  os  punhaes  de  Jacob  Clemente,  de  Ravaillac,  de 
Thomaz  Roberto,  Francisco  Damiens,  tio  de  Robespierre,  irmão  de  sua 
mãe.  Por  isto  foram  punidos  João  de  Mattos,  João  Alexandre,  Gabriel 
Malagrida. — Pascal,  o  profundo  raathematico  Pascal,  o  sublimissimo 
metaphysico  Pascal,  empregou  o  seu  milagroso  talento  em  os  comba- 
ter sem  réplica. —  Em  summa  os  Jesuítas  eram  péssimos,  porque  o  di- 
zem os  Reis,  os  Papas,  os  Tribunaes,  os  sábios,  os  santos,  e  mais  que 
tudo  a  sua  mesma  conducta  manifesta  em  tantos  livros,  tantos  documen- 
tos, tantos  tratados  existentes,  partos  das  mais  doutas  pennas.» 

E  conw  na  polemica  sebastica  de  1810  atacaram  Macedo  pelo  ódio 
que  revelava  contra  os  Jesuítas,  elle  lhes  replica  que  é  absurdo  o  que 
dizem  «á  face  de  um  reino  onde  os  Jesuítas  foram  origem  de  tantas 
desgraças.»  E  fortificando-se  na  historia  pátria,  lembra  a  carta  da  rai- 
nha D.  Calharina  ao  geral  Francisco  de  Borja,  porque  o  jesuíta  confes- 
sor de  seu  neto  o  rei  D.  Sebastião  «o  deitava  a  perder,  e  fomenta  Ím- 
pias divisões  e  partidos  entre  os  vassalos.»  E  mostrando-se  compungido 
com  a  enternecedora  carta,  accrescenta: 

«Ora  isto  era  na  origem  da  mesma  Companhia,  e  que  será  de- 
pois que  elles  começaram  a  deitar  os  bracinhos  de  fora  e  a  apoderar-se 
dos  confessionários  dos  príncipes  e  dos  grandes,  a  dominar  os  povos, 
a  tyrannisar  a  mocidade  com  o  jugo  dos  seus  chamados  Estudos!» 

Depois  d'estas  affirmações  criticas  tão  cathegoricas  como  é  que 
Macedo  se  acha  em  1829  fazendo  uma  alta  idéa  da  Companhia?  Desde 
que  lhe  insuflaram  a  idéa  de  que  a  Revolução  franceza  e  todas  as  suas 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XXXI 

consequências  temporaes  até  ao  regimen  das  Cartas,  que  elle  agora  com- 
batia, eram  resultantes  da  queda  dos  Jesuitas  no  século  xvm,  logica- 
mente era  levado  a  considerar  a  restauração  do  Absolutismo  como  de- 
pendente da  reintegração  da  Companhia.  Então  não  se  via  mais  fundo 
o  problema  da  Revolução  franceza  senão  como  uma  explosão  local  e 
casual,  quando  esse  phenomeno  era  commum  á  Europa  inteira  solida- 
ria na  decomposição  do  regimen  catholico-feudal.  Os  políticos  que  tra- 
balharam na  reorganisação  do  absolutismo  em  França,  começaram  pela 
readmissão  da  Companhia  de  Jesus,  entregando-lhe  novamente  o  en- 
sino publico.  Em  Portugal  seguiu-se  a  mesma  pista,  e  a  chamada  dos 
Jesuítas  ligava-se  á  causa  miguelista  como  um  meio  estratégico.  Os  Je- 
suitas eram  profundamente  odiados  em  Portugal,  conforme  o  declarava 
D.  Francisco  Alexandre  Lobo  ao  P.*  Delvaux;  escrevia  este  jesuita  em 
26  de  novembro  de  1829  para  França  ao  seu  provincial:  «O  bispo  de 
Vizeu,  encarregado  da  Direcção  dos  Estudos,  nos  disse  sem  rodeios 
que  tínhamos  contra  nós  a  massa  da  nação,  e  n'esta  massa  a  parte  qne 
elle  chama  influente;  e  que  nem  mesmo  se  devia  pensar  em  um  de- 
creto de  justificação.»  Vê-se  pois  que  diante  d'esta  antipathia  geral  da 
nação  contra  os  Jesuitas  era  preciso  captar  a  auctoridade  polemica  do 
P.*  José  Agostinho;  para  isso  foram  humildemente  visital-o  e  pedir-lhe 
conselho  e  informações  sobre  certos  cathecismos.  Macedo,  abordado  de 
perto,  como  elle  mesmo  confessa,  era  um  homem  incapaz  de  dizer — 
não — a  qualquer  pessoa;  tinha  as  formas  exteriores  da  impetuosidade 
brusca  e  da  phrase  grosseira,  em  parte  sobrexcitado  por  graves  doen- 
ças, mas  no  intimo  era  um  coração  benevolente.  Os  Jesuitas  foram  bem 
aconselhados  quando  se  approximaram  do  alhleta,  e  da  sua  conquista 
escrevia  para  França  o  P.*  Delvaux,  em  carta  de  27  de  maio  de  1830, 
ao  P.*  Ruillel: 

«Depois  da  minha  ultima  carta,  o  primeiro  escriptor  de  Portuga! 
emprehendeu  publicamente  a  nossa  apologia. 

<iN'uraa  preciosa  brochura  provou  que  se  não  podia  mais  repellir 
a  Companhia  do  que  se  podia  provocar  a  destruição  da  Misericórdia, 
estabelecimento  precioso  em  Portugal,  que  se  estende  a  lodo  o  reino, 
e  abraça  Iodas  as  obras  de  misericórdia  corporal. 


XXXII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

«N  uma  segunda,  que  vae  apparecer,  elle  estabelece  como  facto 
que,  quando,  como  impossível,  todos  os  livros  do  mundo  viessem  a  pe- 
recer, salvo  os  escriptos  pelos  Padres  da  Companhia,  nada  se  teria 
perdido  de  essencial  em  qualquer  género  de  conhecimentos. 

«Estabelece  subsidiariamente  como  facto  que  sem  a  destruição  da 
Companhia  nunca  haveria  Revolução  franceza. 

«Devo  dizer-vos  que  este  auctor  é  um  poço  de  sciencia,  de  uma 
memoria  prodigiosa,  e  um  pouco  original.  O  seu  eslylo  é  vivo  e  mor- 
dente; o  seu  primeiro  numero  era  dedicado  ao  rei.» 

Referia-se  o  P.®  Delvaux  ao  primeiro  folheto  de  José  Agostinho 
de  Macedo,  intitulado  Os  Jesuítas,  ou  o  Problema  que  resolveu,  e  ao 
muito  alto  6  poderoso  rei  o  senhor  D.  Miguel,  como  nosso  senhor  con- 
sngrou,  etc.  É  datado  de  Pedrouços,  onde  o  padre  vivia  por  causa  de 
doença,  em  1830.  N'este  folheto  escreve  elle  desvanecido:  «Estes  bons 
Padres  da  Companhia  me  fizeram  a  honra  distinctissima  de  me  visitar, 
o  que  eu  previniria  se  não  fosse  um  entrevado,  e  ligado  a  um  leito  de 
dôr  pelas  mãos  da  enfermidade.  Não  lhes  ouvi  uma  palavra  que  me 
não  edificasse;  não  lhes  percebi  uma  intenção  que  me  não  satisfizesse, 
e  vi  que  os  seus  discursos  correspondiam  a  alta  idéa  que  sempre  for- 
mei da  Companhia  de  Jesus.»  Eram  as  manhas  de  combate;  as  phra- 
ses  escriptas  para  o  publico  em  serviço  da  causa  absolutista  não  con- 
diziam com  as  que  intimamente  escrevia  ao  P."  Fr.  Joaquim  da  Cruz, 
apontando  os  absurdos  da  prédica  dos  Jesuítas  em  Carnaxide. 

Em  março  de  1830  escrevia  sobre  este  mesmo  assumpto  ao  Pro- 
curador geral  de  Alcobaça : 

«Muita  inveja  me  teria  hoje  o  sr.  Fr.  Fortunato  se  soubesse  que 
quinta  feira  estiveram  aqui  commigo  os  Jesuítas  até  meia  hora  depois 
do  meio  dia,  e  me  pediram  a  faculdade  de  continuarem  sempre  as  suas 
visitas.  Era  o  prelado  e  um  polaco;  ambos  se  exprimiam  toleravelmente 
em  portuguez,  e  n'islo  admirei  o  polaco.  Vinham  e  vieram  para  se  in- 
struírem em  cousas  pertencentes  á  instrucção  religiosa  no  ministério 
do  púlpito,  pois  o  Senhor  Núncio  os  manda  missionar  na  egreja  do  Lo- 
reto;  (esta  missão  pertence  ao  Patriarcha  e  não  ao  Senhor  Núncio;  va- 
mos adiante.)  . . .  Também  me  disseram  que  este  pequeno  que  ahi  anda. 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XXXUI 

chamado  Marquez  de  Pombal,  lhes  fora  pedir  que  perdoassem  a  seu 
avô  (ainda  vinha  a  tempo  o  perdão!)»  (P.  56.) 

Em  uma  outra  carta  chama  com  graça  aos  Jesuítas  —  filhos  de 
Santo  Ignacio  e  enteados  do  Marquez  de  Pombal.  N'esta  primeira  visita 
os  Jesuítas  deram-lhe  a  conhecer  que  o  apontavam  como  inimigo  da 
Companhia;  e  D'este  intuito  fora  José  Agostinho  solicitado  a  escrever 
um  libello  famoso,  como  elle  conta  em  outra  carta  a  Fr.  Joaquim  da 
Cruz :  «Eu  não  sou  amigo  de  dinheiro ...  se  o  fosse  seria  esta  a  occa- 
sião  de  o  ter,  porque: — Vossê  faz  um  livro  em  dez  dias  (me  veiu  di- 
zer um  alto  magistrado)  escreva-o  e  íntítule-o  Exame  dos  factos  e  dou- 
trinas que  deram,  motivo  á  extincção  dos  Jesuítas  n'este  Reino,  dedicado 
a  Sua  Magestade,  etc,  por  José  Agostinho  de  Macedo;  dê  vossê  (como 
pode)  o  aspecto  a  estes  horrendos  factos  e  analyse  estas  doutrinas  e 
verá  esta  cáfila  posta  fora  do  reino,  e  conte  com  avultadíssima  remu- 
neração.» E  em  seguida  escreve  Macedo:  tagora  vejo  porque  vieram 
cá  os  Jesuítas,  ou  foi  este  o  principal  motivo  porque  insistiam,  até  na 
escada,  em  dizer  que  fora  seu  inimigo,  e  que  por  algum  motivo  o  po- 
deria agora  tornar  a  ser. . .»  (P.  59.) 

José  Agostinho  confessa  comtudo  que  podia  muito  contra  a  en- 
trada dos  Jesuítas:  «Eu  não  sou  um  mathematico  (e  poucos  o  são)  como 
o  jansenista  Pascal,  que  morreu  de  trinta  e  outo  annos,  mas  lenho  ati- 
nado melhor  que  elle  com  as  fontes  do  engraçado  e  do  ridículo ...  e  os 
meltería  á  bulha  e  faria  rir  mais  de  que  o  mesmo  Pascal  fez  com  as 
Cartas  a  um,  Provinciano,  que  tanto  estampido  têm  feito  no  mundo...» 
E  contornando  factos  condemnaveis  dos  Jesuítas,  conclue:  «se  Deus  me 
der  alguma  melhora  no  terrível  estado  em  que  me  vejo,  eu  escreverei 
duas  ou  três  folhas,  que  segurarão  os  Jesuitas. . .»  (P.  60.) 

E  em  outra  carta,  fallando  de  varias  caricaturas  espalhadas  con- 
tra os  Jesuítas  em  Lisboa  em  1830,  diz  que  «isso  não  persuade,  nem 
faz  temer  os  pobres  Padres  da  Companhia»,  desejando  que  ninguém 
em  Portugal  conheça  o  livro  da  Monarchia  Solipsorum,  escripto  por  um 
jesuíta  egresso,  «que  os  põe  a  pão  e  laranja,  e  sem  réplica,  porque 
elle  falia  como  ladrão  de  casa,  a  quem  nada  se  occulta.»  (P.  Cl.) 

Taes  eram  os  preâmbulos  com  que  se  preparava  para  rehabilítar 

c 


XXXIV  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

politicamente  os  Jesuítas  sob  o  governo  miguelino.  O  P.°  Fr.  Joaquim 
instava  pelo  escripto  a  favor  dos  Jesuítas,  sem  se  importar  se  José 
Agostinho  se  achava  pouco  menos  que  agonisante;  em  carta  de  1  de 
abril  escrevia  o  atormentado  foUiculario:  «Assim  mesmo,  como  era  ar- 
dentíssimo o  desejo  que  tinha  de  satisfazer  a  determinação  de  Y.*  S.* 
sobre  os  Jesuítas,  antes  de  hontem,  30,  pelo  meio  dia,  me  puz  a  es- 
crever o  papel,  a  que  faltam  só  duas  paginas;  fazia  tenção  de  lh'o  re- 
metter  hoje  pelo  mudo,  mas  não  me  foi  possível,  pela  vehemencia  das 
dores,  que  só  deitado  as  podia  tolerar,  nadando  em  ourina.»  E  n'esta 
mesma  carta  apresenta  o  seu  juízo  sobre  o  folheto  a  favor  dos  Jesuí- 
tas: «papel,  que  na  verdade,  em  estylo  sério,  é  o  ultimo  esforço  do 
raciocínio  e  talvez  da  eloquência  portugueza. —  Eu  o  intitulo — O  Pro- 
blema resolvido  —  e  com  eíTeilo  resolve-se  com  a  rasão,  e  a  apologia 
dos  Jesuítas  não  tem  que  desejar  mais  nada.  Têm  os  Jesuítas  e  os  ho- 
mens de  bem  que  me  agradecer,  e  até  Deus  que  me  premiar,  dando-me 
algumas  melhoras.»  (P.  62.) 

A  entrada  dos  Jesuítas  em  Portugal  encontrou  o  mais  completo 
desdém  fora  do  mundo  politico,  que  pensava  derramar  as  ídéas  libe- 
raes  pela  sua  acção  de  presença.  José  Agostinho  de  Macedo,  apesar 
de  exaltal-os  por  ordem  superior,  escrevia  em  8  de  junho  de  1830  a 
Fr.  Joaquim  da  Cruz:  «Tenho  observado  com  muita  reflexão  o  que  eu 
esperava  a  respeito  dos  Jesuítas,  summa  frieza  e  summo  indifferen- 
tismo,  o  que  era  de  presumir,  conhecendo  nós  os  barões  assignalados 
em  cujas  mãos  se  depositou  o  pandeiro.»  (p.  70.) 

É  esta  ainda  a  característica  da  opinião  publica  em  Portugal  «summa 
frieza  e  summo  indifferentísmo.»  José  Agostinho  queria  vêr  n'issouma 
tendência  para  o  reconhecimento  dos  quatro  poderes  outorgados  na 
Carta,  e  concluía  com  amargura:  «Eis  aqui  o  que  se  quer,  e  os  Jesuí- 
tas vistos  pelas  costas,  e  isso  acontecerá.»  E  assim  aconteceu.  No  em- 
tanto  os  Jesuítas  encetaram  as  suas  pregações,  encabeçando-as  com  o 
milagre  da  Senhora  Apparecida  em  Carnaxide.  ^  Este  milagre  consistiu 
no  encontro  de  uma  pequena  e  tosca  imagem  da  Conceição  por  uns  ra- 


*  Acha-se  largamente  descripto  no  Diário  de  Noticias  de  30  de  setembro  de  i883. 


SOBRIÍ  r.STES  INÉDITOS  XXXV 

pazes,  em  23  de  março  de  1822,  em  uma  gruta  na  ribeira  de  Jamor; 
ligou-se  a  opportunidade  d'esse  acontecimento  á  queda  da  Constituição 
de  1822,  tornando-se  essa  devoção  o  ponto  de  convergência  dos  senti- 
mentos a  favor  da  restauração  do  absolutismo.  Os  Jesuitas  apodera- 
ram-se  logo  dV;sse  symbolo  piedoso  da  guerra  santa;  e  o  P.®  Delvaux, 
em  carta  datada  de  24  de  setembro  de  1829,  contando  ao  P."  Varlet  o 
facto  do  apparecimento  da  Senhora  da  Conceição  da  Rocha,  ahi  lhe  re- 
vela a  intenção  politica  do  milagre: 

«Era  o  tempo  da  primeira  Constituição;  as  Cortes  se  espantam 
d'este  concurso,  querem  impedir  a  aííluencia  e  os  milagres;  impossível. 
— Os  bons  portuguezes  lhe  attribuem  a  volta  do  seu  Rei.  Não  cessam 
de  a  invocar  a  favor  d'elle,  durante  a  sua  longa  ausência;  assim  um  dos 
seus  primeiros  cuidados,  quando  chegou,  foi  de  se  ir  deitar  a  seus  pés. 

«Quanto  os  conselhos  de  Deus,  quanto  suas  misericórdias  são  ad- 
miráveis 1  Um  pouco  de  barro,  uma  pequena  boa  Virgem  do  tamanho 
das  dos  púlpitos  de  vossos  filhos  I  Oh  sabedoria  humana,  onde  eslaes 
vós! 

«No  emlanto  é  muito  verdade  que  Nossa  Senhora  da  Rocha  fez 
recuar  a  revolução  de  1823,  no  dia  mesmo  da  sua  apparição;  que  tem 
feito  mais  milagres  em  Portugal  do  que  tinha  sido  preciso  para  n'elle 
plantar  a  sua  fé.»* 

E  em  outra  carta  de  dezembro  de  1829  escrevia  de  Lisboa  o  P.* 
Delvaux  para  o  P.''  Gury,  em  Paris:  «Já  vos  fallei  de  Nossa  Senhora 
da  Rocha.  É  a  salvação  de  Portugal;  e  para  nós  é  bem  consolador  vêr 
que  o  bom  Deus  parece  ter  destinado  a  nossa  pequena  Companhia  para 
explorar,  se  posso  fallar  d'esta  sorte,  cada  vez  mais  esta  devoção  n'este 
reino,  em  seu  proveito.»  Confessada  assim  a  exploração  jesuítica  do 
milagre,  vejamos  como  José  Agostinho,  que  também  foi  levado  a  com- 
por uma  Novena  para  essa  devoção,*  chasquêa  dos  exploradores:  fal- 


*  Transcripto  no  Conimbricense  de  30  de  outubro  de  1888  (n."  4:297). 

2  Na  caria  de  23  de  maio  de  1827  escreve  ao  P.«  (Iruz:  «Estou  gravemente  en- 
fermo, mas  não  ocioso.  Fiz  uma  Novena  (cousa  mui  séria)  da  Senhora  Apparecida,  que 
se  imprime,  e  já  vae  servir.  De  que  serve  cá  isto?  dirão  os  Paes  da  Pátria,  no  meio 
do  derramamento  das  luzes  do  século  e  dos  progressos  da  civil isação?  Este  diabo  os 


XXXVI  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

lando  de  versos  como  tum  rapto,  um  exlasis,  ou  tombos  e  cabriolas 
de  imaginação  sem  freio»  conclue:  <e  ás  vezes  dizem  mais  appareníes 
desconnexos  que  um  Padre  da  Companhia  a  pregar  em  Carnaxide;  a 
mesma  gente  rústica,  que  de  lá  vinha  hontem  de  tarde,  e  enchia  esta 
larga  rua  (de  Pedrouços),  vinha  ás  gargalhadas.  Em  cá  me  apparecendo 
eu  lhe  lerei  a  Cartilha  e  os  porei  em  caminho  de  me  não  deixarem 
mentiroso.  Estes  filhos  de  Santo  Ignacio  e  enteados  do  Marquez  de  Pom- 
bal, cuidarão  que  todos  os  portuguezes  são  crianças?»  E  com  um  des- 
dém sangrento  exclama  em  seguida:  «Não  ha  dentista  ou  belforinheiro 
do  norte  ou  do  sul  que  não  apprenda  primeiro  a  propriedade  de  al- 
guns termos  portuguezes,  para  abrir  tenda  ou  armazém;  mas  vir  e 
pregar  logo!»  (P.  72.) 

E  em  uma  longa  carta  a  Fr.  Fortunato  de  San  Boaventura  a  pro- 
pósito do  seu  escripto  intitulado  Apologia  dos  Jesuítas^  depois  de  irre- 
spondiveis  factos  históricos,  diz-lhe:  «Estão  admiltidos  os  Jesuítas,  eu 
já  vi  dois,  um  de  hombro  com  outro,  pareceram-me  homelis  como  os 
mais,  algum  medo  me  incutiram  em  razão  dos  chapéos  uniformes  e 
desconformes ;  mas,  dizia  eu  commigo:  os  chapéos  são  da  forma  de 
convés  de  náo  de  alto  bordo;  as  batinas  são  umas  sotainas  lisas  como 
balandráos,  o  gesto  é  estudadamente  composto,  os  pâssos  medidos  como 
os  de  recrutas  na  fila  com  sargento  impertinente;  mas  nem  estes  no- 
véis Jesuítas,  nem  os  passados,  que  não  ensinaram  estes,  têm  a  con- 
dição de  Jeremias,  a  quem  Deus  deu  a  patente  ou  alvará  de  pregador 
régio.. .;  o  chapéo  não  é  lição,  nem  o  balandráo  é  discurso.  Quem  ha 
de  ensinar  estes  para  depois  de  ensinados  ensinarem  aos  futuros  ra- 
pazes Grammalica  latina  no  curto  espaço  de  sete  annos?»  *  E  conti- 
nuando no  mesmo  protesto  de  bom  senso,  escreve  a  Fr.  Fortunato: 
«Quem,  pois,  ha  de  ensinar  essa  meia  dúzia  que  ahi  appareceu,  para 


atacou  na  resposta  ao  da  Comraissâo  da  Censura,  agora  os  suspenderá  de  todo  com  a 
Novena.»  (P.  82.) 

Fizeram-se  duas  edições  d'esta  Novma,  uma  era  1827  e  outra  na  Impressão  régia 
em  1832,  isto  é,  oíficialmente  para  o  effeito  da  propaganda  ou  exploração  jesuítica. 

*  Macedo  apodava  estes  sete  annos  de  latim,  a  que  regressámos  na  ultima  re- 
forma* 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XIXVII 

nos  ensinarem  a  nós?  Os  seis,  cuido  eu  que  são — de  toda  a  tribu  e 
de  Ioda  a  lingua, — nós  nos  devemos  matar  para  os  ensinar  primeiro  a 
elles;  para  elles  depois  nos  ensinarem  a  nós,  vindo  n'isto  a  custar  mais 
cara  a  mecha  que  o  cebo.  Para  os  justos  e  honestos  fins  a  que  são  cha- 
mados e  admittidos  os  Jesuitas  tinhamos  nós  outros,  que  não  espanta- 
vam tanto,  e  aproveitavam  mais,  que  vem  a  ser  o  chamamento  dos  Pa- 
dres das  Escholas  pias.  Este  instituto,  não  mui  antigo,  é  maravilhoso, 
e  grandes  fructos  tem  d'elle  colhido  a  Itália,  e  colhem  todos  os  reinos 
da  christandade  em  que  se  tem  estabelecido;  mas  não  bastam  que  se 
estabeleçam,  é  preciso  que  se  sustentem;  mas  aonde?  Os  que  estão, 
têm  a  barriga  vasia,  e  os  que  de  novo  vierem  morrerão  com  fome.» 
Alludia  ao  estado  de  fallencia  em  que  estavam  as  Ordens  religiosas  em 
Portugal  em  1829,  e  por  isso  exclama  na  referida  carta :  «Pois  se  não 
ha  de  comer  para  os  que  estão,  como  haverá  de  comer  para  os  que 
vêm?  Elles  não  comem  do  que  trazem.  A  Cartilha  de  Mestre  Ignacio, 
e  a  Prosódia  de  Bento  Pereira  não  fazem  sopas;  sopas  fazem-se  com 
pão,  e  o  pão  come-o  Adonirão.  Se  foi  um  erro  acabal-os,  não  é  uma 
discrição  reproduzil-os.  Ora  pois  eu  não  sou  inimigo  dos  Jesuitas,  por 
que  do  coração  não  posso  ser  inimigo  de  ninguém,  a  não  me  fallarem 
em  Systema  representativo,  porque  então  esbarrunto,  e  me  converto 
em  diabo  vivo,  sendo  eu  um  bonacheirão  meio  morto;  só  conservo  um 
indomável  ódio  no  coração  ao  Marquez  de  Pombal,  porque  extinguiu 
os  Jesuitas  e  abriu  a  porta  á  filharada  de  Adonirão.»  (P.  103.) 

O  que  queria  dizer  José  Agostinho  com  estas  referencias  a  Adoni- 
rão e  Âdoniramitas?  Referia-se  á  seita  maçónica,  que  tinha  o  seu  maior 
numero  de  adeptos  na  burguezia,  desde  o  tempo  em  que  na  corte  de 
Luiz  XIV  os  Jesuitas  se  lhe  ligaram  para  derrubarem  os  Jansenistas  e 
conseguirem  a  revogação  do  Edito  de  Nantes.  Os  Âdoniramitas  eram 
a  burguezia  que  invadia  tudo,  e  que  Macedo  detestava  pela  sua  repre- 
sentação no  regimen  da  Carla.  E  por  isso  dizia  ao  mesmo  Fr.  Fortu- 
nato: «Restabelecer  os  Jesuitas,  é  impraticável;  remediar  os  nossos 
males,  impossível.  Deixe  os  Jesuitas,  olhe  que  zomba  o  mundo  dos 
seus  esforços;  a  frieza  e  indifferença  que  eu  vejo  destroe  todos  os  ar- 
gumentos e  tira  a  força  â  mesma  verdade.»  (P.  103.) 


XXWIIl  SOBHE  ESTKS  INÉDITOS 

E  depois  n'um  arranco  de  cólera  suscitada  pelas  dores,  que  lhe 
fazem  perder  o  bom  senso,  escreve:  «Defender  os  Jesuítas?  Ninguém 
os  offende,  e  pouca  gente  sabe  em  Lisboa  que  elles  aqui  existem,  ou 
que  vieram  para  nos  ensinar  e  menos  para  extirpar  os  Pedreiros;  isso 
não  se  faz  com  frades,  faz-se  com  forcas.»  Pela  suggestão  das  tauto- 
logias  a  idéa  do  frade  suscitava-lhe  a  da  forca.  E  depois  diz-lhe  com 
amargura:  «se  os  Jesuítas  vêm  (nem  de  outra  sorte  os  queira  cá  o 
nosso  soberano)  já  vêm  emendados,  e  eu  creio  que  se  hão  de  metter 
mais  com  os  rapazes  para  os  ensinar,  que  com  os  gabinetes  para  os  di- 
rigir; nem  com  as  beatas  ricas,  porque  nem  ricas  nem  pobres  existe 
já  essa  casta  de  despejadoras  de  pias  de  agua  benta  e  também  de  cal- 
dos de  gallinha.»  E  mette  a  ridículo  o  castigo  da  cana,  que  os  Jesuitas, 
segundo  o  processo  orbilianista,  usavam  nas  suas  aulas.  (P.  114.) 

Com  sarcasmo  sangrento,  no  momento  mais  critico  da  reacção  mi- 
guelina,  Macedo  teimina  a  carta  vaticinando  abundância  de  linho  para 
cordas:  «o  ponto  está  que  se  sirvam  d'ellas,  e  os  homens  da  maior 
moderação  serão  obrigados  a  confessar  que  sem  ellas  não  se  faz  nada.» 
(P.  123.) 

Este  furor  sanguinário  não  estava  no  caracter  de  José  Agostinho; 
era  uma  espécie  de  estertor  de  desesperado  no  equleo  de  uma  prolon- 
gada e  terrível  doença.  Ninguém  o  conheceu  n'esta  misera  situação. 

Antes  da  doença,  a  senilidade  cooperava  na  intolerância  e  dogma- 
tismo das  suas  idéas;  José  Agostinho  de  Macedo  contava  os  seus  se- 
tenta annos,  trabalhados  por  uma  irremediável  doença.  A  edade  não 
lhe  permiltia  conformar-se  com  as  novas  instituições,  e  a  doença  su- 
scitava os  impertinentes  rancores.  Transcrevemos  aqui  o  retrato  que 
Maudsley,  na  Palhologia  de  Espirito,  faz  do  velho,  que  tanto  attenua  os 
aspectos  crus  da  personalidade  de  Macedo:  «Na  realidade  acha-se  (se. 
o  velho)  em  um  estado  de  dissolução  gradual,  e  é  natural  que  elle  não 
tome  parte  em  um  processo  de  evolução;  elle  louva  o  passado,  de  que 
se  recorda  emquanto  aos  interesses,  politica  e  emprezas;  entre  os  ho- 
mens do  presente  já  não  encontra  os  gigantes  do  seu  tempo^  e  admi- 
ra-se  de  que  o  mundo  continue  a  subsistir  com  as  suas  mudanças  re- 
volucionarias. Além  d'isso,  ha  um  começo  de  depressão  nas  faculdades 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XIXIX 

moraes,  que  só  ?e  extinguem  completamente  na  demência  senil;  um 
máo  humor,  mesmo  ralhador,  avareza,  uma  vaidade  excessiva,  uma 
teimosia  obstinada  nas  opiniões,  uma  vontade  absoluta,  o  cynismo  e  a 
misanthropia  são  os  differentes  aspectos  com  que  se  manifesta  a  deca- 
dência moral. — Ainda  que  a  demência  senil  se  estabelece  ordinaria- 
mente por  uma  decndencia  gradual— em  alguns  casos  é  annunciada 
por  um  período  de  excitação  mental,  que  dá  ao  doente  uma  apparencia 
passageira  de  energia  e  de  potencia.  Elle  tem  uma  grande  excitação 
mental  e  grande  confiança  em  si  mesmo;...  elle  lança-se  em  espe- 
culações de  um  caracter  nitidamente  insensato,  e  ninguém  o  pode  per- 
suadir que  os  seus  projectos  e  especulações  não  sejam  excellentes. . . 
elle  impacienta-se  com  uma  advertência  ou  com  uma  opposição;  etc.»*  O 
próprio  partido  que  Macedo  servia  pedia-lhe  moderação  na  linguagem; 
elle  insurge-se  contra  a  censura  ecclesiastica,  e  mais  ainda  contra  o 
Desembargo  do  Paço^  vendo  em  tudo  maquinações  da  Pedreirada,  que 
lhe  difficultava  a  violenta  expansão  da  Besta  esfolada^,  que  depois  de 
supprimida  foi  continuada  com  mais  destempêros  no  Desengano.  É  as- 
sim que  se  concilia  esta  antinomia  com  o  seu  caracter  dotado  de  bon- 
dade, mas  proclamando  com  formas  odiosas  opiniões  obstructivas.  Além 
da  edade,  a  doença  levava-o  a  estes  delírios;  nas  suas  cartas  elle  quei- 
xa-se  de  se  achar  por  vezes  tolhido  de  gota.  Maudsley  falia  da  influen- 
cia d'esta  doença  no  tom  mental: 

«Sem  que  alguma  mudança  se  haja  operado  nas  suas  relações,  um 
homem  virá,  em  consequência  de  um  excesso  de  bilis  no  sangue,  a  con- 
siderar o  presente  e  o  futuro  sob  as  cores  as  mais  sombrias;  algumas 
horas  bastarão  para  que  as  cousas  lhe  pareçam  inteiramente  differen- 
tes, e  ao  fim  de  algumas  horas  ellas  lhe  apparecerão  de  novo  sob  um 
differente  aspecto^  sendo  durante  este  tempo  victima  de  um  humor  que 
elle  não  pode  repellir.  A  philosopnia  de  nada  lhe  pode  servir,  porque 
não  se  pode  livrar  do  estado  do  systema  nervoso,  que  um  sangue  im- 
puro produziu,  e  que  occasiona  as  suas  idéas  negras  e  essas  concepções 
dolorosas. — Também  a  presença  no  sangue  de  um  producto  de  nutri- 


Pathologie  de  VEsprit,  p.  504. 


XL  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

ção  incompleta  dá  logar  a  uma  irritabilidade  de  temperamento  que  ne- 
nhum esforço  do  exame  próprio  pode  supprimir,  ainda  que  ás  vezes  se 
consiga  dissimular-ltie  as  manifestações.  O  tom  mental,  sendo,  como  já 
se  disse,  a  expressão  de  uma  condição  physica  do  elemento  nervoso, 
algumas  vezes  está  fora  da  direcção  da  consciência,  da  mesma  forma 
que  o  delirlo  e  as  convulsões  de  um  doente  que  morre  de  anemia  es- 
tão fora  da  vontade.  Todos  os  auctores,  que  têm  escripto  sobre  gota, 
são  concordes  em  reconhecer  que  a  suppressão  de  um  ataque  pode 
produzir  uma  desordem  mental  grave,  e  que  o  súbito  desapparecimento 
de  uma  inchação  gottosa  é  ás  vezes  seguido  de  uma  desordem  seme- 
Ihaate.»  (P.  210.) 

É  interessantíssimo  o  processo  com  que  este  estado  mórbido  leva 
o  tom  mental  a  fixar-se  em  uma  causa  objectiva;  José  Agostinho  es- 
grime contra  a  Carta  outorgada,  contra  a  Pedreirada,  contra  os  ideó- 
logos do  liberalismo,  contra  a  moderação  dos  reahstas  que  não  se  su- 
stentam pelas  forcas.  A  formação  da  illusão  mental  acha-se  admiravel- 
mente descripta  por  Maudsley :  «O  eífeito  o  mais  ligeiro  e  o  primeiro 
em  data  de  uma  alteração  do  sangue  não  é  um  verdadeiro  dehrio,  nem 
uma  incoherencia  de  pensamento,  mas  um  desarranjo  do  tom  mental. 
Sensações  de  um  singular  mal-estar  ou  de  depressão,  de  irritabilidade 
ou  de  inquietação,  desvendam  uma  modiflçacão  no  estado  stalico  dos 
elementos  nervosos,  e  uma  grande  disposição  para  uma  emoção  peni- 
vel  é  o  lado  objectivo  d'este  estado,  a  psychose,  que  é  a  expressão  das 
perturbações  da  nevrilidade.»  E  apontando  a  grandíssima  irritabilidade 
que  a  presença  da  ureia  no  sangue  produz  nos  indivíduos  goltosos,  até 
ao  ponto  da  melancholia  e  da  vesânia,  descreve  magistralmente:  «Ainda 
que  elle  não  possa  ter  nenhuma  illusão  positiva,  as  perturbações  emo- 
cionaes  existem  por  si  mesmas,  as  idéas  que  se  produzem  n'estas  cir- 
cumstancias  trahem  a  influencia  do  sentimento  mórbido  que  as  aííecta 
profundamente;  ellas  são  obscuras,  peniveis,  ou,  em  um  certo  sentido, 
não  representam  claramente  e  fielmente  as  circumstancias  externas. — 
mas,  como  é  uma  disposição  irresistível  do  espirito  o  representar  os 
seus  estados  de  consciência  como  qualidades  dos  objectos  exteriores, 
como  na  nossa  vida  mental  nós  projectamos  sempre  exteriormente  os 


SOBIUC  ESTES  INÉDITOS  XLI 

nossos  estados  subjectivos,  acontece  ordinariamente  que  por  fim  de  um 
certo  tempo  a  victima  de  uma  perturbação  emocional  produzida  por 
estado  intimo  procura  fura  de  si  uma  causa  objectiva  do  seu  estado,  e 
quando  cuida  encontral-a  cae  na  illusão;  está  em  desaccordo  com  o 
exterior,  e  estabelece  esse  equilíbrio  entre  si  e  o  mundo  exterior,  creando 
as  suas  idéas  em  harmonia  com  a  sua  vida  interna.»  E  chegado  a  esta 
observação,  Maudsley  mostra  como  um  acontecimento  importante  pode 
suggerir  esta  illusão  de  natureza  orgânica,  e  como  um  certo  grtipo  de 
idéas  se  associam  por  habito  a  uma  forma  particular  da  acção  mór- 
bida. (P.  216.) 

Nunca  os  críticos  de  José  Agostinho  de  Macedo  julgaram  o  pensa- 
dor e  escriptor  sob  este  aspecto  scientifico;  começaram  por  ignorar  os 
seus  grandes  soffrimentos  physicos. 

Na  carta  de  julho  de  1828,  que  começa  a  correspondência  com 
Fr.  Joaquim  da  Cruz,  já  faz  sentir  o  estado  deplorável  da  sua  saúde: 
tapesar  da  miuha  desesperada  enfermidade,  que  me  faz  insupportavel 
a  existência. . .»  (P.  1.) 

Em  setembro  do  mesmo  anno:  «declarou-se  um  diabetes  doloroso 
e  sem  remédio,  e  os  restos  da  rainha  existência  serão  contados  pelas 
dores  mais  cruéis  »  (P.  4.) 

Em  novembro,  em  data  de  13:  «eslava  na  cama  horrivelmente  ata- 
cado; n'ella  me  tenho  conservado  sem  poder  voltar  o  corpo  de  uma 
para  outra  parte,  chegando  ao  extremo  da  vida,  como  me  succedeu 
hontem,  12,  pelas  outo  horas  da  noite,  porque  a  uma  dôr  insupporta- 
vel se  seguiu  uma  convulsão  fortissima;  agora  dizem  que  é  pedra  que 
cahiu  da  bexiga  na  uretra  e  que  não  pode  sahir.»  (P.  7.) 

Comprehende-se  que  por  vezes  a  doença  o  fizesse  desarrazoar, 
como  confessa:  «Quando  estou  mais  desesperado  com  a  minha  dese- 
sperada moléstia,  que  não  retrocede,  nem  sei  o  que  digo.»  (Ib.^  p.  8.) 

Em  dezembro  d'este  anno  descreve  a  situação  infernal  em  que  se 
vê  com  a  doença  e  trabalhos  obrigatórios:  «a  minha  existência  é  mi- 
lagrosa, não  estou  um  quarto  de  hora  sem  ourinar,  com  dores  que  me 
deitam  no  chão;  de  noite  é  preciso  tomar  tinturas  de  laudano  para  fe- 
char por  minutos  os  olhos.  Levanto-me,  forcejando  sobre  as  minhas 


XLII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

forças,  aqui  estou  assim  mesmo  escrevendo,  ou  Sermões  para  pessoas 
de  quem  sou  amigo,  porque  elles  o  são,  ou  revista  e  Censura  de  pa- 
peis e  Relações  de  Livros. . . »  (P.  11.) 

Era  sob  esta  impressão  terrível  que  elle  escrevera  duas  laudas  da 
Besta  esfolada;  e  fecha  a  custo  com  este  quadro:  «ás  três  horas  da 
tarde  me  deito  gemendo,  e  começo  com  as  fomentações  e  banhos,  e 
chapinhações  de  agua-ardente  de  canna,  quando  me  faltam  os  pulsos; 
bato  todas  as  noites  na  parede  das  casas  altas  visinhas  para  me  acudi- 
rem.» Em  carta  de  18  de  dezembro,  interrompida  pelos  soffrimenlos, 
diz:  «Aqui  chegava  eu  hontem,  17,  de  tarde,  quando  o  terrível  Ímpeto 
do  meu  mal  me  obrigou  a  ir  para  a  cama,  onde  das  ires  para  as  qua- 
tro da  noite  me  achei  em  artigos  de  morte,  e  foi  preciso  acudir-me  até 
com  fortíssimo  banho  aos  pés;  a  dôr  da  uretra  diminuiu  alguma  cousa; 
o  dia  vae  quasi  da  mesma  sorte  na  dolorosíssima  soltura  da  ourina.» 
(P.  13.) 

Era  n'esta  agonia  mortal  que  o  partido  o  forçava  a  ir  de  Pedrou- 
ços  a  Santo  António  da  Sé  pregar  um  Sermão  na  festa  em  acção  de 
graças  pelas  melhoras  de  D.  Miguel:  «N'este  infeliz  estado  em  que  es- 
tou me  vejo  obrigado  a  fazer  o  que  não  posso.  Sabbado  de  manhã  me 
levarão  d'aqui  ás  costas,  para  me  metterem  n'um  bote,  e  levarem-me 
até  ao  Terreiro  do  Paço,  e  de  lá  a  Santo  António,  onde  o  Senado  vae 
dar  graças  a  Deus  pela  melhora  d'El-rei;  ele.»  (Ibid.) 

E  em  janeiro  de  1829:  «estou  feito  molho  de  villão,  picado  e  ras- 
gado com  dores,  ha  tantos  dias  de  cama,  sem  remédio  e  já  sem  pa- 
ciência, porque  para  tanto  padecer  não  chega  o  valor  humano:  aqui  es- 
tou quasi  debruços  em  cima  de  uma  taboa  escrevendo. . . » {Ib.,  p.  17.) 
«Com  uma  baeta  quente  que  me  cinge  a  cintura.»  (P.  18.) 

Em  5  de  fevereiro  de  1829:  «a  minha  enfermidade  chegou  até 
onde  só  a  morte  pode  ser  o  seu  termo;  tenho  todos  os  signaes  de  uma 
inflammação  na  bexiga;  as  dores  são  as  mais  violentas  e  não  param 
nem  um  minuto  ou  segundo;  a  ourina,  em  grande  abundância,  não  pára 
nunca  meia  hora;  de  noite,  n'este  espaço,  posso  seguidamente  dormir: 
a  passada  cuidei  que  era  a  ultima  da  minha  attribulada  existência: 
n'este  estado  como  posso  eu  escrever  uma  letra?  Agora  mesmo,  nem 


SOBUE  ESTES  INICDITOS  XLllI 

de  pé,  Dem  sentado  posso  escrever,  sem  me  sentir  atravessado  de  fer- 
ros era  braza;  este  é  um  dos  martyrios  em  que  estou,  o  outro  é  grande, 
mas  é  evitável,  que  vem  a  ser  as  importunações  de  toda  a  casta  com 
escriptos  incessantes. . .»  (P.  19.) 

Quando  trabalhava  no  n.°  II  da  Besta  esfolada  escrevia  para  Al- 
cobaça em  março  de  1829:  «Tenho  chegado  a  artigo  de  morte  com  es- 
pasmos e  desfalecimentos,  sendo  preciso  pôr-me  sobre  o  coração  pa- 
nos de  \iuho  ou  agua-ardenle  de  canna.  Eis  aqui  como  eu  estou  quasi 
sempre. —  Não  se  admire  V.  S.^  de  ler  alguma  graçola,  é  um  esforço 
que  faço,  mas  nem  assim  chego  a  dissimular  o  martyrio:  agora  mesmo 
estou  supporiando  lancetadas  agudíssimas,  e  cruéis  puchões  que  me 
suffocam  de  dores.»  (P.  20.) 

Em  uma  carta  de  abril  diz  que  o  «descompõem  de  homem  venal 
e  vendido  a  diversos  e  encontrados  partidos;  e  já  estou  insensível  a 
ludo:  digam  e  façam  o  que  quizerem;. . .  desesperadas  dores  me  fa- 
zem de  pedra.»  (P.  22.) 

Elle  conhece  desde  quando  começou  o  padecimento:  «gostoso  es- 
taria eu  no  Limoeiro  ou  nas  galés,  com  tanto  que  diminuísse  metade 
do  martyrio  das  minhas  infernaes  dores, —  a  moléstia  é  de  muitos  an- 
nos,  não  foi  aqui  adquirida,  mas  sim  aggravada.  Sempre  padeci  esta 
dessuria,  mas  não  dolorosa,  e  já  lhe  conto  de  edade  trinta  e  outo  an- 
Dos  (1791.)  Tem  chegado  ao  extremo  a  dôr  em  ambas  as  vias,  e  desde 
sabbado  que  estou  como  desesperado,  e  desejo  do  coração  terminar  a 
minha  existência.»  (P.  26.) 

«...mas,  que  horrível  é  este  mall  é  preciso  pôr  de  instante  a  instante 
sobre  esta  região  ordinária  uma  baeta  quente,  a  ferver,  para  poder  ex- 
halar  a  respiração  do  peito,  que  até  se  comprime:  digo-lhe  a  verdade 
como  amigo,  chego  em  suores  frios  a  artigo  de  morte.»  (P.  28.) 

-  E  em  carta  de  14  de  junho  de  1829:  «ás  duas  horas  estive  quasi 
a  expirar  e  não  esperava  vida:  deram-me  uma  ajuda  de  dormideiras 
e  linhaça,  com  que  á  noite  senti  algum  allivio;  eu  batalho  contra  a  na- 
tureza e  contra  a  terrível  enfermidade.  Hoje  me  levantei  com  dores, 
é  verdade;  mas  não  d^aquellas  que  me  deixam  immovel,  n'um  espasmo 
mortal.»  (P.  29.) 


XLIV  SOBRK  ESTES  INÉDITOS 

Em  T  de  julho  ainda  as  terríveis  lamentações:  «Eu  estou  cada  vez 
peor,  são  maiores  as  dores,  e  chegam  a  tanto  que  me  sae  pela  bocca 
o  sangue  do  peito  ha  quatro  dias;  não  posso  dar  um  passo  pela  casa, 
e  para  vir  da  cama  sentar-me  a  esta  mesa  é  preciso  encostar-me  ás 
paredes  muito  curvado. . . »  (P.  31.) 

No  meio  das  intrigas  que  por  causa  da  Besta  esfolada  lhe  arma- 
vam diante  de  D.  Carlota  Joaquina  e  D.  Miguel,  escrevia  para  Fr.  Joa- 
quim: «Eu  estou  gravemente  enfermo;  além  da  moléstia  habitual  deito 
pela  bocca  muito  sangue  pisado,  cousa  medonha  í  emfira,  estou  como 
desesperado. . .»  (P.  36.) 

As  cartas  começam  sempre  por  um  arranco;  assim  em  novembro 
escrevia:  «Estou  doentissimo,  e  mais  com  certeza  de  morte,  do  que 
com  esperanças  de  vida.»  (P.  40.) 

E  emquanto  ia  recebendo  recados  de  D.  Miguel  por  causa  da  Besta 
esfolada,  elle  escrevia  para  Alcobaça:  «aggravou-se  o  meu  mal  a  ponto 
de  me  vêr  morrer  com  uma  inflammação  heraorrhoidal;  não  me  pude 
levantar,  assim  fiquei,  e  de  noite  mais  de  trinta  vezes  ourinei  com  do- 
res mortaes;  emfira  isto  é  um  individuo  mais  ou  menos  que  existe  na 
terra.»  (P.  44.) 

Os  Ímpetos  da  linguagem  da  Besta  esfolada  eram-lhe  refreiados 
pelo  Desembargo  do  Paço;  Macedo  sentia-se  arrebentar  de  desgosto  e 
escrevia  em  9  de  fevereiro  de  1830:  «Havia  trinta  e  seis  annos  con- 
secutivos em  que  pelo  ministério  do  púlpito  me  sustentava  com  três 
cousas:  com  muita  honra,  muita  independência  e  muita  abundância: 
a  doença  insanável  me  privou  d'este  recurso,  trabalhoso  na  verdade, 
porém  profícuo,  e  que  alguma  estimação  me  mereceu  entre  os  homens; 
acabou  o  exercício  de  fallar  e  foi  substituído  pelo  de  escrever;  e  de  re- 
pente, com  a  maior  e  mais  escandalosa  de  todas  as  injustiças,  me  vejo 
privado  de  tudo.  El-Reí  sabe  que  defendia  seus  direitos;  que  dirigia  bem 
a  opinião  dos  povos;  que  me  mostrei  sempre  intrépido  em  tão  perigosa 
contenda,  antes  e  depois  da  sua  vinda,  o  que  não  foram  capazes  de  fa- 
zer os  seus  aulicos,  grandes,  titulares  e  senhores  nossos... f  (P.  50.) 

Abafavam-lhe  a  Besta  esfolada,  e  para  compensação  era  nomeado 
Chronista-mór  do  reino,  que  elle  considerava  como  uma  ignominia  sue- 


SOBnE  ESTES  INÉDITOS  XLV. 

cedendo  a  Fr.  Cláudio  da  Conceição.  Os  Frades  da  Graça,  que  tinham 
expulso  da  Ordem  em  1792  ao  impetuoso  Macedo,  agora  já  lhe  offe- 
reciam  o  claujrtro  para  recolher-se  no  apaziguamento  da  vida;  em  fe- 
vereiro de  1830  escrevia  ao  P.'  Fr.  Joaquim  da  Cruz:  «Os  Frades  da 
Graça  me  tem  sollicitado  muito  e  muitas  vezes,  mas  eu  não  faço  figu- 
ras perto  da  morte,  e  eu  preferirei  sempre  uma  hospedagem  caritativa 
em  Alcobaça  como  clérigo  secular,  ás  distincções  de  mestre  da  Ordem, 
e  aos  privilégios  de  pregador  régio.»  (P.  51.) 

Chega  a  causar  piedade  o  estado  do  soffrimenlo  prolongado  em 
que  vae  avançando  para  a  morte;  em  dezembro  de  1829  escrevia  ao 
frade  que  o  instigava  ás  polennicas  a  favor  do  miguelismo:  «ha  doze 
dias  que  me  vejo  doentíssimo,  porque  hoje  mesmo  (que  é  uma  hora), 
desde  que  me  levantei  ás  outo,  tenho  ourinado  vinte  e  quatro  vezes; 
isto  é  estar  muito  doente;  ajunle-se  a  isto  uma  sede  coniinua,  com 
tanta  secura  que  me  custa  a  despegar  os  beiços,  e  não  ha  agua  fria 
que  me  farte;  de  noite  é  peor,  porque  se  fecho  os  olhos  é  tal  a  sol- 
tura de  ourina  que  me  acho  alagado,  e  é  preciso  metter  lençoes,  ca- 
misas sujas,  e  quantos  trapos  ha  em  casa,  onde  tudo  o  é,  excepto  a 
minha  lingua.  Este  é  o  meu  estado  miserável.»  (P.  53.) 

Obrigaram-no  a  defender  a  entrada  dos  Jesuítas  em  Portugal  e  elle 
em  carta  de  20  de  março  de  1830  pinta  a  angustia  em  que  se  extorce: 
tCom  indizível  trabalbo  me  tiraram  agora  (onze  horas)  da  cama,  para 
me  sentar  n'esta  cadeira;  e  com  a  perna  esquerda  horrivelmente  in- 
chada, e  o  pé  com  inflammação,  e  a  dôr  de  gota,  e  peor  do  que  já  tive; 
como  o  ataque  é  geral,  renovou-se  a  dôr  de  pedra,  parou  a  ourina  com 
uma  irritação  e  dôr  mortal;  emfim,  estou  em  estado  lastimoso,  e  faz 
compaixão  aos  mais  indifferentes;  não  me  poupo  a  remédios. ..  estou 
um  martyr,  e  sem  terminar  o  marlyrio,  que  em  tal  estado  desejava  que 
fosse  pela  morte.»  (P.  59.) 

E  ainda  em  um  fragmento  da  carta  ao  mesmo:  «Deitado  escrevo; 
quer  Deus  apurar  a  minha  cansada  paciência;  fui  acçommettido  de  um 
tão  violento  ataque  de  gota  no  pé  e  perna  esquerda,  que  está  em  mon- 
struosa inflammação,  com  dores  que  juntas  ás  da  pedra,  que  é  melhor 
a  morte...»  (P.  90.) 


XLVI  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

Nas  angustias  da  prolongada  doença  era  ainda  na  idealisação  lit- 
teraria  que  Macedo  procurava  algum  allivio.  Diz  elle  do  poema  que  ia 
passando  a  limpo,  a  Viagem  extactica:  «Cuidarei  (nos  intervallos)  em 
pôr  a  limpo  a  ultima  composição  minha,  que  fará  estrondo  se  o  amor 
das  letlras  ressuscitar  e  levar  um  estupor  os  secretários  das  Acade- 
mias todas.»  (P.  2.) 

Já  se  não  referia  ás  Arcádias,  mas  á  Academia  real  das  Sciencias, 
onde  não  soubera  introduzir-se,  e  contra  a  qual  conservou  vivo  de- 
speito. Depois  de  ter  descripto  um  forte  ataque  de  bexiga,  torna  a  re- 
ferir-se  ao  poema:  «Também  desejo  não  morrer  sem  trasladar  para 
limpo  o  livro  de  versos  em  que  fallei  a  V.*  S.^,  cousa  que  se  não  pode 
mandar  fazer,  porque  só  eu  posso  desembrulhar  aquelle  cahos,  a  que 
dei  a  mais  séria  applicação  e  que  bem  desejo  deixar  como  um  testa- 
mento de  leltras  a  Portugal  e  ao  mundo.»  (P.  8.) 

Em  carta  de  28  de  dezembro  voltava  á  mesma  preoccupação :  «Os 
cirurgiões  gritam  que  esteja  fora  da  cama,  e  eu  o  farei  se  poder;  e 
para  disfarçar  tão  horríveis  dores  verei  se  posso  ir  tirando  do  cahos 
a  obra  de  maior  trabalho,  erudição  e  empenho  que  V.*  S.*  aqui  viu, 
e  que  desejo  veja  o  mundo  das  lettras.»  (76.,  p.  15.) 

Em  carta  de  5  de  fevereiro  de  1829,  verdadeiramente  impressio- 
nante: «Se  algum  espasmo  de  dôr  me  não  levar  com  brevidade,  entre 
Besta  e  Desta  irei  trabalhando  o  trabalhado  e  trabalhoso  Poema,  e  na 
verdade  lhe  digo  que  só  tenha  pena  de  morrer  sem  o  vêr  publico  por 
uma  asseada  e  não  mesquinha  impressão;  depois  d'isto  nada  mais  te- 
nho cá  que  fazer.»  (p.  20.) 

Em  3  de  junho  escrevia  ao  mesmo:  «Não  têm  intervallos  as  do- 
res, se  os  tivessem  eu  poderia  fazer  o  que  me  diz,  e  mais  alguma 
cousa;  e  assim  mesmo  o  1.°  canto  da  Viagem  estática  ao  Templo  da  Sa- 
bedoria já  está  (irado  a  limpo,  e  que  trabalho!»  (P.  30.)' 

Em  outra  carta  de  setembro  de  1829:  «Fiz  o  drama  para  os  có- 
micos, talvez  uma  das  melhores  cousas  que  eu  tenho  feito  na  minha 
vida:  não  lh'o  mando,  porque  esta  tarde  aqui  ha  de  vir  um  cómico  e 
mais  uma  cómica  para  lhe  ensinar  a  pronunciar  os  versos,  e  apontar- 
Ihe  o  que  se  chama  scenario.  Que  visitas  tão  honradas  e  respeitadas  I 


SOBRE  ESTES  INÉDITOS  XLVII 

Mijarei  n'ellas,  e  para  ellas,  porque  o  diabelís  está  furioso,  nem  dor- 
mir meia  hora  seguida  me  deixa.»  (P.  40.)  O  drama  era: 

*A  Volla  de  Astréa,  Drama  allegorico  para  se  representar  no  Thea- 
tro  portuguez  da  rua  dos  Condes  em  26  de  outubro  de  1829,  no  faus- 
toso anniversario  natalicio  de  Sua  Magestade  Fidelíssima  o  senhor  D.  Mi- 
guel í,  nosso  amabiiissimo  senhor  e  soberano.»  Foi  impresso  n'esse  anno 
Ires  vezes,  sendo  uma  d'ellas  por  conla  de  Fr.  Joaquim  da  Cruz.  Em 
carta  ao  Procurador  de  Alcobaça  escrevia  Macedo:  «A  respeito  do  Drama 
allegorico  (que  não  foi  licenceado  pelo  Desembargo  malhado)  é  cousa 
de  nenhuma  entendidade;  foi  excessivamente  applaudido,  e  por  mim 
desprezado,  pois  sei  o  que  faço,  e  não  queria  que  levasse  o  meu  nome; 
foi  devoção  dos  cómicos,  como  o  humilde  e  reverente.  A  palavra  hu- 
milde, nem  para  o  rei;. . .»  (P.  41.) 

E  descrevendo  a  sua  situação^  illaqueado  por  pretendentes  e  no 
meio  de  irremediáveis  dores,  exclama:  «E  a  Viagem  ao  Templo?  Quasi 
concluído  está  o  segundo  canto,  e  com  vagar  irá,  não  só  pelo  estado 
que  lhe  exponho  da  minha  situação  escrava,  mas  porque  tudo  mudo, 
pois  nunca  me  agrada  o  que'  fiz,  só  me  agrada  o  que  faço.  Tudo  faço 
de  novo.»  (p.  43.) 

A  doença  e  a  polemica  politica,  na  lucla  de  vida  ou  morte  de  um 
partido  que  se  batia  no  terrível  cerco  do  Porio,  davam  ao  caracter  e  á 
linguagem  de  José  Agostinho  de  Macedo  um  rancor  que  contrastava 
com  a  sua  organisação  benevolente.  Elle  mesmo  o  reconhece  nas  suas 
cartas;  mas  os  acontecimentos  e  os  doestos  pessoaes  exalta vam-o,  e 
elle  como  sincero  excedia-se.  Um  contemporâneo  seu,  que  o  conhecera 
já  na  velhice,  escreveu  passados  muitos  annos  estas  palavras:  «Era  o 
rosto  mais  sympathico  e  bello  de  ancião  que  hei  conhecido.— Quem 
lesse  os  seus  furibundos  escriptos  políticos  diria  que  elle  tinha  ura  gé- 
nio irascivel  e  cruel;  todavia  no  seu  trato  familiar  era  aíTabilissimo, 
tinha  um  coração  bondoso,  e  era  excessivamente  generoso  e  bem  fa- 
zejo...»*  Vê-se  que  o  homem  moral  esteve  sempre  submerso  entre 
instituições  que  o  deformaram,  como  a  vida  claustral,  o  absolutismo 


'  Pinho  Lcal^  Portugal  antigo  e  modeino,  t.  v,  p.  3G1. 


XLYIII  SOBRE  ESTES  INÉDITOS 

ffionarchico,  a  rhetorica  da  prédica  e  das  Arcádias,  as  refregas  doutri- 
narias de  ideologismo  liberal.  Elle  pouco  se  conheceu,  e  os  seus  con- 
temporâneos julgavam-se  na  verdade  detestando-o.  O  Systema  raonar- 
chico  absoluto  agonisava  diante  do  cerco  do  Porto,  e  a  vida  de  Macedo 
exhauria-se  em  uma  prolongada  agonia.  Accommeltido  de  uma  sezão 
maligna,  em  2  de  outubro  de  1831,  José  Agostinho  de  Macedo  expi- 
rou, na  casa  que  habitava  em  Pedrouços,  ás  11  horas  da  manhã;  em 
um  manuscripto  contemporâneo  acha-se  assim  consignado  o  facto  odio- 
samente: «Morreu  finalmente  este  Padre,  tendo  uma  edade  avançada, 
na  sua  própria  casa  em  Pedrouços,  e  no  seu  leito,  o  que  é  para  admi- 
rar, tendo  innumeraveis  inimigos  de  todas  as  classes  e  gerarchias  de 
ambos  os  sexos,  a  quem  tinha  excitado  grande  ódio  pelos  seus  escri- 
ptosí»  E  conclue  o  acerbo  necrológio:  «por  evitar  maiores  males,  que 
os  seus  escriplos  podiam  fazer  á  Nação  porlugueza,  enviou-lhe  (a  Pro- 
videncia) uma  Sezão  maligna,  que  em  poucos  dias  o  levou  á  sepul- 
tura.» Era  medico  assistente  o  Dr.  João  Henriques  Paiva,  que  não  con- 
seguira debellar-lhe  a  febre,  complicada  por  uma  inflammação  de  be- 
xiga. De  uma  compleição  forte,  Macedo  manteve  a  sua  rasão  até  á  ago- 
nia, e  quando  foi  sacramentado  pelo  P.®  José  Barreiros,  prior  de  Bem- 
fica,  fez  uma  prédica  aos  assistentes,  pedindo  perdão  a  quantos  ofen- 
dera em  sua  vida,  ou  se  julgassem  por  elle  offendidos.  Declarou  então 
que  desejava  ser  sepultado  na  egreja  das  Freiras  Trinas  do  Rato,  de- 
fronte do  altar  de  S.  Thomaz,  e  para  tal  fim  dava  a  esmola  de  480)5000 
réis,  que  entregou  logo  de  mão,  porque  como  clérigo  não  podia  testar. 
O  seu  enterro  foi  sumptuoso;  D.  Miguel  mandou  um  coche  da  Casa 
real,  a  quatro  parelhas,  para  transportar  o  cadáver,  que  foi  acompa- 
nhado por  alguns  ministros  e  numerosos  convidados.  Era  o  symboio 
do  enterro  do  Systema  absolutista,  que  succumbia  com  o  seu  valente 
polemista  doutrinário.  As  irrefreáveis  paixões  que  o  fizeram  detestado 
passaram;  somente  ás  serenas  emoções  estheticas  é  que  compete  col- 
locar  em  um  foco  de  verdade  esse  vulto  que  a  Historia  litteraria  de  Por- 
tugal não  poderá  deixar  de  estudar. 

Theophilo  Bhaga. 


CARTAS 


DE 


JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


AO  P.'  FR.  JOAQUIM  DA  CRUZ 
Procurador  Geral  do  Mosteiro  de  Alcobaça 


111.'"»  Sr. 

Se  V.  S.*  me  tivesse  insinuado  que  a  cousa  urgia,  apesar  da  mi- 
nha desesperada  enfermidade,  que  me  faz  já  insupportavel  a  existên- 
cia, no  mesmo  instante  a  teria  feito;  porque  sei  o  que  devo  a  toda  a 
Congregação,  e  á  amisade  especial  de  V.  S.^  Agora,  nove  da  manhan, 
arrastando-me  da  cama  que  está  no  meio  da  casa,  escrevi,  e  são  já 
nove  e  meia;  nunca  cousa  tão  pequena  me  levou  tanto  tempo;  mas 
digo-lhe  a  verdade,  que  é  preciso  não  saber  o  que  é  latim,  para  es- 
crever o  latim  curial  da  Dataria  e  Chancellaria  romana,  ou  alfandega 
marroquina.  Eu  não  tenho  melhoras;  as  dores  são  fixas,  e  sempre  acti- 
vas. A  casa  está  sempre  cheia;  agora  deram  os  guerrilheiros  de  alta 
patente  em  a  vir  entulhar.  Vasconcellos,  Quadros,  Cachapuz,  general 
Jordão,  tudo  aqui  está:  quatro  frades  vicentes  com  seus  chapéos  de 
borlas  fazem  a  partida  a  este  entrevado,  partida  muda,  porque  todos 
quatro  são  quatro  doctores  ouvidores.  Todo  o  mundo  pede  Besta,  eu 
não  sou  o  Troca;  se  o  mundo  se  contentasse  cora  as  que  aqui  vêm, 
bastava  uma  viva,  para  supprir  um  cento  das  minhas  escriptas  e  mor- 
tas: comtudo,  esta  semana  que  entra,  como  poder  albardarei  uma.  Já 
disse  quem  era  a  Besta,  n'esta  segunda  direi  as  manhas  que  tem,  e 
depois  se  irão  expondo  os  couces  que  deu.  Creio  que  não  continuará 
a  espinotar  o  Freire  de  Andrade,  e  irá  a  cousa  mais  depressa:  em 
quanto  com  muita  pausa,  muita  reflexão,  e  muita  verdade  protesto 

que  sou 

De  V.  S.* 

. . .  Julho  de  1828.  Am.°  cert.°  e  obrig."'" 

J.  À.  de  M. 

CARTAS.  1 


CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


II 

111."""  Sr. 

Estou  opprimido  com  o  pezo  de  tantos  obséquios,  que  recebo  to- 
dos os  dias  das  generosas  mãos  de  V.  S.*  Eu  com  a  minha  moléstia 
tenho  para  pêras,  mas  estas  que  recebo  são  taes,  que  se  Adão  e  Eva 
as  comessem,  apezar  da  infracção  da  Constituição  primitiva,  tinhão 
desculpa,  e  nós  ficaríamos  sem  pagar  as  favas.  Torno  por  ellas  a  bei- 
jar as  mãos  de  V.  S.*  A  sua  carta  me  encheu  de  consolação  entre 
tantos  padecimentos,  e  me  animou  a  proseguir  na  esfolação  em  algum 
intervalo,  que  é  só  pela  manhan  antes  de  se  affervorar  o  dia.  Tira- 
ram-me  os  facultativos  da  alcova  em  que  estava,  e  me  estenderam  a 
cama  n'esta  egualmente  pequena  casa  de  fora,  e  como  a  tomo  toda,  e 
os  importunos,  como  não  tem  onde  se  sentem,  tem  desabelhado  bas- 
tantes, e  ainda  bem,  que  me  deixam  respirar!  Cuidarei  (nos  interva- 
los) em  pôr  a  limpo  a  ultima  composição  minha,  que  fará  estrondo  se 
o  amor  das  lettras  resuscitar,  e  levar  um  estupor  os  secretários  das 
academias  todas.  Aqui  passou  hoje  o  Provincial  do  Carmo,  e  me  disse 
tinha  jantado  com  o  111.™°  sexta  feira,  e  me  deu  a  grande  nova  da  con- 
sulta sobre  a  Junta  do  Melhoramento:  acabou-se,  e  aproveitou  o  papel; 
falta  dar  cabo  da  Commissão  da  Censura,  e  no  próximo  numero  da 
Besta,  que  ainda  se  vai  em  preliminares  e  preparatórios,  levará  um 
golpe  macio,  mas  decisivo. 

Eu  me  recommendo  a  P.®  M.®  Fr.  Álvaro,  a  quem  remetto  esses 
dous  Uvros ;  deixemos  cousas  extranhas,  cá  nos  aproveitaremos  de  re- 
médios caseiros,  e  os  couces  da  Besta  farão  milagres.  Queira  V.  S.* 
dizer-lhe,  que  fico  entregue  da  obra  remettida,  e  que  a  remetlerei  com 
brevidade.  Custa  muito  escrever  na  cama,  sendo  a  raeza  uma  das  cai- 
xas de  doces  que  tenho  recebido  da  mão  de  V.  S.^.  De  escriplorio  tão 
doce  irão  saindo  amarguras  para  a  canalha,  e  consolações  para  os  ho- 
mens de  bem.  Tremem-me  muito  os  braços,  e  não  posso  escrever 
mais,  porém  sempre  serão  firmes  e  vigorosos  para  escrever  e  assignar 
que  sou  bem  do  coração 

De  V.  S.* 

obrig.°'°  amigo 
Hde  Agosto  de  1828. 

J.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ 


III 

111.'»^  Sr. 

Desde  o  dia  19  do  corrente,  que  pelo  augmento  da  minha  terri- 
vel  enfermidade  tenho  chegado  aos  últimos  apuros,  ou  ao  termo  da 
existência:  e  até  hoje,  e  até  este  momento  em  que  escrevo,  sinto  gran- 
des desfalecimentos  no  coração.  Não  tive  força  para  responder  a  V.  S.* 
quando  aqui  veiu  o  criado,  e  menos  tive  um  momento  de  socego  para 
converter  aquellas  poucas  regras  em  latim  da  Guria  romana.  Domingo, 
se  algum  alento  tiver,  irei  pela  manhan  cedo  a  Lisboa,  fazendo  por  che- 
gar a  esse  domicilio,  e  também  ao  do  Forno  do  Tijolo,  e  então  con- 
versaremos algum  momento.  O  medico,  que  por  sua  devoção  me  as- 
siste, 6  o  cirurgião  que  eu  chamei,  e  o  boticário,  que  é  o  executor 
d'esta  justiça  brava,  em  nada  acertam;  eu  também  não  consinto  que 
em  mim  façam  experiências  da  sua  arte  exterminadora:  teimam  com 
dozes  de  ópio,  eu  não  engulo  nenhum,  e  da  botica  vai  para  a  rua.  Os 
políticos,  que  já  nos  não  adormecem,  entram,  é  verdade,  pelos  ouvi- 
dos, não  se  demoram,  e  lá  vão  como  os  da  botica  para  a  rua,  ou  para 
onde  elles  quizerem. 

Chegou  a  Guimarães  a  14  o  Visconde  da  Azenha:  aqui  me  escreve 
dizendo-rne  que  por  estes  dias  vem  a  Lisboa  solicitar  o  sea  despacho, 
e  que  fosse  eu  andando  com  a  penna  nas  necessárias  disposições.  Tem 
razão,  eu  conheço  o  Principal,  Enfermeiro  mór  do  Hospital ;  e  na  en- 
fermaria de  baixo,  que  tem  um  pateo  onde  elles  passeam,  se  cuidará 
em  algum  quarto  mais  decente !  Foi  fado  meu  atural-o  da  outra  vez, 
e  é  fado  meu  atural-o  d'esta. 

O  intrépido  Raymundo  aqui  me  prometteu  outro  dia  trazer-me  os 
diários,  feitos  por  elle,  das  suas  campanhas  para  lh'os  pôr  em  ordem. 
Elle  commandou  a  acção  grande,  em  que  o  Príncipe  de  Hesse  teve  o 
cavallo  ferido; — o  Raimando  não  o  foi,  porque  sendo  a  acção  no  adro 
da  egreja  de  S.  Victor,  no  campo  de  Sancta  Anna,  o  Raimundo  com- 
mandava  do  alto  da  Falperra  por  ajudantes  de  campo,  e  de  ordens. 
Alguns  sargentos  velhos,  e  inválidos,  que  tinham  vindo  de  Valença,  fo- 
ram promovidos  (diz  o  Raimundo)  a  grãos-majores.  Eu  lhe  aconselhei, 
como  amigo  que  sou  de  militares  de  taes  talentos,  que  com  o  vali- 
mento do  Príncipe  de  Hesse,  se  fosse  offerecer  como  voluntário  ao  Im- 
perador da  Rússia  para  commandante  dos  primeiros  cossacos  que  en- 
trarem em  Gonstautinopla.  A  língua  dos  cossacos,  e  a  do  Raimundo, 


V 


4  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

têm  a  mesma  raiz,  entendem-se  bem.  O  imperador,  se  lhe  não  der  o 
habito  de  S}°  André,  certamente  lhe  dará  o  de  S.  Cornelio.  Foi-se 
embora  o  Raimundo,  cheio  de  idéas  de  Carlos  Magno,  e  a  esta  hora  já 
lerá  feito  a  proposta  ao  Príncipe  de  Hesse;  e  a  pátria,  se  fica  privada 
da  gloria  que  lhe  tem  ganhado  este  general,  e  da  que  lhe  dá  com  a. 
sua  presença,  adquire  a  que  elle  lhe  vai  adquirir  na  tomada  dos  Dar- 
danellos.  Ora  basta,  e  muito  basta  para  quem  escreve  na  cama  taes 
lettras,  e  tão  tortas  regras,  em  cima  da  caixa  das  pêras,  e  para  pêras 
tenho  eu  com  tal  enfermidade,  que  nem  os  discursos  do  Raimundo  me 
podiam  distrahir  da  acerbidade  das  dores.  Tenha  V.  S.^  saúde,  que  é 
um  bem  egual  ao  da  existência.  Recommende-me  respeitosamente  ao 
111."'°,  e  aífectuo sãmente  ao  P.®  M.®  Fr.  Álvaro,  e  de  uma  e  outra  ma- 
neira se  recommenda  a  V.  S.* 

Seu  am.°  obrig."°° 
26  de  Agosto  de  1828. 

J.  A.  de  M. 


IV 

111.'"''  Sr. 

A  minha  vida  é  já  problema  entre  uns  enterradores  chamados  mé- 
dicos, e  cirurgiões:  declarou-se  um  diabetis  doloroso  e  sem  remédio, 
e  os  restos  da  minha  existência  serão  contados  pelas  dores  mais  cruéis. 
Farei  tudo  o  que  V.  S.^  me  ordena,  porque  tudo  devo  fazer  quanto 
me  ordenar  sempre.  Tinha  levado  quasi  ao  meio  a  terceira  Besia,  a 
mais  formosa  e  boa  que  farei.  Veiu  aqui  mandada  por  Sua  Magestade 
uma  das  primeiras  aucloridades,  com  um  infame  impresso  em  Ingla- 
terra contra  Sua  Magestade:  mandou-se  que  logo  e  já  respondesse 
largamente,  para  se  imprimirem  outo  mil  exemplares,  e  distribuirem-se 
pelo  reino,  e  que  lhe  pozesse  o  meu  nome.  Nos  intervalos  de  minha 
mortal  doença  já  tenho  escripto  37  grandes  paginas,  e  não  vou  no 
meio  da  obra  exigida;  eis  aqui  porque  prendi  a  Besía  na  manjadoura, 
mas  não  fica  alli.  Sem  attender-se  ao  meu  lastimoso  eslado,  e  a  não 
poder  escrever  nem  uma  lettra  de  noute,  porque  ainda  de  dia  me  deito, 
e  hontem  terça  feira  estive  sempre  de  cama,  querem  sabbado  tudo  prom- 
pto.  Guarde  n'isto  segredo,  porque  assim  o  mandam.  José  Lápis,  a 
quem  o  Marquez  de  Borba  queria  cá  hoje,  prometlendo  vir  não  appa- 
receu.  O  Marquez  ficou  espantado,  e  me  mandou  dizer  que  me  agra- 
decia a  honra  que  lhe  tinha  feito,  em  lhe  dar  conhecimento  com  um 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  O 

génio  tão  extraordinário.  Veremos  se  apparece.  Tenha  V.  S.*  saúde, 
leia  como  poder  estas  garatujas  de  um  tremulo  e  até  surdo,  e  em  tudo 
que  eu  escrever,  e  em  tudo  que  eu  disser  leia  V.  S.',  e  lerá  sempre 
que  sou 

De  V.  S.» 

Am.»  obrig."'»  e  fiel 
. . .  Septembro  de  1828. 

/.  A.  de  M. 


111.°"»  Sr. 

Ou  eu  me  não  expliquei  bem,  ou  V.  S.*  não  reparou  no  ennun- 
ciado.  Eu  tinha  chegado  ao  meio  do  3.°  n.°  da  Besta,  e  com  muito 
gosto  a  estava  albardando,  quando  por  esta  casa  entrou  o  Intendente 
geral  da  Policia  com  uma  ordem  d'Elrei,  e  um  livro  na  mão  vindo  de 
Inglaterra,  para  lhe  responder  extensamente,  para  se  mandar  impri- 
mir outo  mil  exemplares,  e  distribuirem-se  pela  nação.  Prendi  logo  a 
Besta,  e  no  miserável  e  lastimoso  estado  em  que  me  vejo,  afogado  em 
gente  que  entulha  a  casa  sempre,  e  até  andara  aqui  dentro  aos  mur- 
ros, como  succedeu  hontem  a  dous  officiaes  generaes  do  exercito  emi- 
grado; e  vinda,  comecei  a  escrever,  e  muito  tenho  escripto,  e  muito, 
e  muito,  e  vou  no  meio  da  obra,  que  concluída  e  sem  deixar  copia  (do 
que  tenho  pena)  a  entregarei  ao  mesmo  que  a  veiu  encommen  lar.  Este 
è  o  caso,  e  peço  segredo,  porque  assim  m'o  ordenaram.  O  Intendente 
já  tornou,  e  viu  o  que  eu  tinha  adiantado.  E  mandam  que  lhe  ponha 
o  meu  nome.  O  Visconde  de  Canellas  aqui  me  mandou  o  presente  de 
um  óptimo  livro  impresso  em  Paris,  no  mez  de  Agosto  d'este  anno,  e 
aqui  virá  também  hoje :  e  eu,  a  ourinar  com  dores  do  inferno,  de  quarto 
em  quarto  de  hora  I  Vi  os  catálogos ;  não  ha  cousa  notável,  só  dous  di- 
gnos da  livraria  de  Alcobaça  pela  sua  raridade,  que  vão  apontados  com 
uma  cruz.  Ha  outro  raríssimo,  que  vera  a  ser — Viagens  antigas  de 
Pietro  de  la  Valle. — Poucos  exemplares  haverá  na  Europa  d'esta  obra. 
Adeus,  ahi  está  gente,  e  dous  cirurgiões.  Adeus  Besta,  adeus  papel 
de  Inglaterra^  adeus  tudo,  que  a  casa  está  cheia,  mas  nunca  o  meu  co- 
ração estará  vazio  da  amisade,  que  professa  a  V.  S.* 

8  de  Outubro  de  1828.  J.  ,1.  de  M. 


CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


VI 

111.'"''  Sr. 

O  meu  estado  se  torna  cada  vez  mais  lastimoso,  e  todos  os  dias 
cresce  sem  remédio :  este  é  o  motivo  porque  não  vou  procurar  já  e  já 
a  V.  S.%  obrigando-me  a  dar-lhe  um  incommodo,  e  não  pequeno,  que 
vem  a  ser  chegar  a  este  sitio  e  trisle  morada,  se  não  poder  ser  áma- 
nhan  sabbado  18,  seja  no  domingo  19;  e  como  não  é  possivel  ver  esta 
choupana  despejada  de  gente,  redobro  o  incommodo  do  que  lhe  dou, 
pedindo-lhe  que  seja  no  fim  da  tarde,  porque  só  a  noute,  ou  o  diabo 
os  leva  d'aqui  para  fora,  e  o  negocio  pede  recato  e  segredo.  Hontem 
16  ao  meio  dia  acabei  a  obra,  que  leva  112  paginas  de  quarto  grande 
em  lettra  muito  miúda,  e  mettida.  Hontem  mesmo  esperava  pela  quarta 
vez  o  Intendente,  porque  assim  tinhamos  ajustado;  não  veiu,  porque 
teria  embaraço  invencível  nas  Necessidades;  hoje  aqui  vem,  para  se 
determinar  definitivamente  o  modo  porque  se  ha  de  imprimir  com  as 
duas  condições  que  El  rei  apontou,  que  não  se  revelasse  o  segredo,  e 
que  se  não  conhecesse  que  intervinha  n'isto  a  sua  auctoridade,  e  as- 
sim se  removia  toda  a  suspeita  de  que  elle  mandara  encommendar  a 
obra  para  se  defender  a  si,  lembrando  que  pozesse  eu  o  meu  nome. 
Ella  não  deve  só  ser  distribuída  n'este  reino,  mas  enviada  a  todos  os 
estrangeiros.  N'este  caso,  estando  eu  como  entrevado,  e  não  podendo 
dar  um  passo,  proponho  ao  Intendente  que  a  pessoa  de  mais  confiança 
e  confidencia  a  quem  se  pode  commetter  esta  empreza  de  tanta  pon- 
deração, é  unicamente  V.  S.S  e  nenhuma  outra.  Já  disse  ao  Intendente, 
que  outo  mil  exemplares  que  queriam  era  um  nunca  acabar  com  a  im- 
pressão, e  lhe  mostrei  que  bastariam  três  mil,  e  mais  um  cento  em  pa- 
pel fino;  e  que  antes  de  sair  da  ofQcina,  apresentando-se  o  rol  da  des- 
peza  seria  paga  pelo  cofre  da  Intendência,  que  estas  eram  as  ordens 
dadas.  N'este  caso  é  preciso  que  fallemos,  para  se  apresentar  o  manu- 
scripto  ao  Sr.  Fr.  Henrique  de  Jesus  Maria,  declarando-lhe  com  algum 
rebuço  uma  parte  d'esta  marcha,  para  mais  prompta  expedição  do  ne- 
gocio, e  tractar-se  do  papel,  se  o  houver  capaz,  na  mesma  OíBcina  regia, 
e  da  lettra,  que  não  deve  ser  miúda ;  pois  segundo  se  me  diz,  não  se  olha 
a  despeza  alguma.  Estou  hoje  tão  doente  e  penetrado  de  dores,  que  nem 
escrever  posso ;  e  assim  é  preciso  que  fallemos  ámanhan  sabbado,  de- 
pois de  se  desembaraçar  do  seu  correio. 

Am.°  obrig.""» 

17  de  Octubro  de  1828.  i.  M.  de  M. 


A  FRKI  JOAQUIM  DA  CRUZ 


VII 

111.'°°  Sr. 

Aqui  esteve  hontem  á  noute  o  Intendente,  e  ficou  contentíssimo 
com  a  segura  disposição  que  se  deu  ao  negocio,  como  V.  S.*  já  terá 
conhecido,  visto  Ibe  ter  fallado.  Não  approvo  o  numero  de  exemplares, 
bastam  e  sobejam,  quatro  mil.  O  expediente  de  vir  licenceado  ás  folhas, 
é  perigoso,  porque  nos  caminhos  se  pode  perder  alguma,  e  como  se 
ha  de  remediar,  se  não  ha  uma  copia?  O  trabalho  de  noute  bom  será, 
porque  a  pressa  que  dão  é  excessiva.  Ajustei  com  o  Intendente  que  de- 
pois de  paga  a  impressão  na  officina,  fosse  a  edição  para  o  Desterro, 
e  que  de  lá  em  porções  se  lhe  daria  a  direcção  que  se  determinasse. 
Vamos  com  isto.  As  visitas  de  manhan,  apezar  das  minhas  dores  e 
cruel  martyrio,  fizeram  que  não  saisse  d'aqui  hoje  a  Besta  apparelhada 
de  todo;  o  apparelho  é  novo  e  rico,  e  já  fico  pela  andadura  que  ha 
de  ter.  Depois  de  ámanhan  irá,  e  este  rapaz  será  o  arrieiro,  e  eu  o  ve- 
lho albardador,  cheio  de  maladuras;  se  tivesse,  não  quatro  pés,  isso 
não,  mas  quatro  mãos,  com  todas  ellas  escreveria  em  lettra  bem  clara, 
e  de  modo  que  todos  entendessem,  que  sou 

De  V.  S.» 

O  am.°  mais  obrig.*^*^ 

20  de  Octubro  de  1828.  /.  A.  de  M. 


VIII 


111."^°  Sr. 


Não  respondi  a  V.  S.*  porque  estava  na  cama  horrivelmente  ata- 
cado ;  n'ella  me  tenho  conservado  sem  poder  voltar  o  corpo  de  uma 
para  outra  parte,  chegando  ao  extremo  da  vida,  como  me  succedeu 
hontem  12,  pelas  outo  horas  da  noute,  porque  a  uma  dôr  insupporta- 
vel  se  seguiu  uma  convulsão  fortíssima ;  agora  dizem  que  é  pedra  que 
caiu  da  bexiga  na  uretra,  e  que  não  pode  sair.  Levantei-me  agora  um 
bocado,  que  são  noye  da  manhan,  unicamente  para  lhe  escrever,  por- 
que espero  hoje  o  rapaz.  N'este  miserável  estado,  nem  uma  lettra  te- 
nho escripto  da  impugnação  dos  dous  papeis  aqui  trazidos  pelo  Inten- 


8  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

dente.  Esta  fatalidade  da  moléstia  d'EI  rei  tudo  alraza,  nem  o  homem 
encarregado  das  traducções,  que  prometteu  vir  para  conferenciar,  aqui 
tem  apparecido.  Seja  o  que  fôr,  n'este  estado  nada  me  interessa.  Lem- 
bra-me  só  que  era  tempo  de  V.  S.*  apresentar  ao  Intendente  o  rol  da 
enormíssima  despeza  de  papel  e  impressão,  porque  o  cofre  da  Inten- 
dência não  é  dos  vazios,  e  quando  as  cousas  se  demoram,  esquecem. 
Toda  a  turba  (que  ninguém  pode  contar)  aqui  vem ;  toda  diz  que  é  ge- 
ral a  acceitação  do  papel,  e  antes  de  hontem  á  noute  aqui  disseram  os 
filhos  do  Marquez  de  Borba,  que  a  Marqueza  de  Bellas  tinha  mandado 
alguns  a  um  filho,  que  tem  em  Inglaterra.  Acceitei  o  sermão  da  bulia, 
e  não  posso  acceitar  o  honroso  convite  que  para  o  almoço  se  dignou 
fazer-me  o  111.™°  Sr.  Esmoler-mór,  porque  eu  vou  em  uma  cadeirinha 
do  hospital,  que  me  deve  d'aqui  levar  em  direitura  a  S.  Roque.  Não 
ha  condição  mais  triste!  Nem  uma  Besta  posso  albardar,  cousa  que  me 
levava  poucas  horas,  e  a  matéria  sempre  disposta,  e  qualquer  cousa 
rende  muito.  A  dotação  que  a  nação  faz  ao  rei,  e  os  alimentos  que  lhe 
determina,  assim  como  é  o  ultimo  desaforo,  é  fertilissima  e  vasta  ma- 
téria para  uma  parelha.  Também  desejo  não  morrer  sem  trasladar  para 
limpo  o  Uvro  de  versos  em  que  fallei  a  V.  S.*  cousa  que  se  não  pode 
mandar  fazer,  porque  só  eu  posso  desembrulhar  aquelle  cahos,  a  que 
dei  a  mais  séria  applicação,  e  que  bem  desejo  deixar  como  um  testa- 
mento de  lettras  a  Portugal,  e  ao  mundo.  O  Lopes  emendador  lá  poz 
na  Gazeta  algumas  correcções  da  Refutação;  algumas  pessoas  que  aqui 
vem,  ou  que  d'aqui  se  não  tiram,  já  lhe  pozeram  á  margem  os  dous 
pontos,  e  o  mais  que  pareceu  ao  Lopes ;  e  a  mim  parece-me  que  nin- 
guém é  de  V.  S.^ 

Mais  cordeal  amigo 
13  de  Novembro  de  1828. 

J.  A.  de  M. 


IX 

111.""°  Sr. 

Quando  estoa  mais  desesperado  com  a  minha  desesperada  molés- 
tia, que  não  retrocede,  nem  sei  o  que  digo.  Como  eu  nada  sabia,  e  só 
me  tinham  dito  que  era  para  se  distribuir  grátis  por  todo  o  reino, 
com  razão  me  espantei  de  a  vêr  posta  á  venda,  sem  atinar  com  o  mo- 
tivo d'esta  medida.  O  Intendente  aqui  veiu  já,  esteve  muito  tempo  com- 
migo,  e  me  satisfez  plenissimamente,  e  me  disse  que  se  punham  á 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  9 

venda  muitos  exemplares,  para  que  o  seu  producto  revertesse  para  seu 
auctor.  Nada  me  interessa  no  miserável  estado  em  que  estou,  seja  o 
que  fôr. 

Hontem  á  noute,  quando  veiu  o  seu  criado,  eslava  este  chiqueiro 
com  a  costumada  enchente,  ouvindo  um  sermão,  que  nunca  acabava, 
pregado  pelo  Senhor  António  de  Vasconcellos  Leite  Pereira,  general 
supremo  de  todos  os  guerrilhas  que  houve,  e  ha  de  haver  em  S.  Gre- 
gório ;  a  que  se  seguiu  a  leitura  de  noventa  e  quatro  ofiQcios  manda- 
dos a  todo  o  género  humano,  que  mora  no  Minho,  e  a  maior  parte 
d'elles  a  Capitães  mores,  comraandantes^  ou  senhores  commandantes 
dos  corpos  milicianos  dos  diversos  districtos ;  e  para  que  ?  para  guar- 
darem as  costas  de  Raimundo  José  Pinheiro,  nas  suas  tentativas  sobre 
Braga,  creio  que  nas  operações  naturaes,  pois  segundo  se  collige,  o 
susto  lhe  tinha  soltado  o  ventre.  É  fatalidade I  não  ha  general  ladrão, 
nem  alto  guerrilheiro  ratoneiro,  que  não  venha  acabar  de  matar  com 
sua  honra  e  proezas  este  atribuladissimo  enfermo,  de  cujos  olhos  vai 
fugindo  a  scena  do  mundo.  No  sabbado  aqui  esteve  também  algumas 
horas  da  tarde  o  Senhor  Arcebisi)o  de  Lacedemonia;  ao  menos  cede- 
ram as  armas  á  toga,  e  os  louros  marciaes  á  lingua  eloquente.  Falta- 
ram as  lettras,  e  ensarilharam-se  as  armas.  Estou  ameaçado  de  um 
aproche  também  militar  do  Visconde  de  Canelias,  que  assim  m'o  man- 
dou annunciar  o  Lopes.  Outra  visita,  e  também  de  horas:  hontem  do- 
mingo de  manhan  veiu  aqui  um  hespanhol,  homem  de  bem,  e  erudito, 
com  uma  carta  do  Intendente  para  o  ouvir  e  resolver.  Está  encarre- 
gado de  uma  traducção  franceza  da  Refutação;  e  já  trazia  um  grande 
pedaço,  muito  bem  e  muito  litteralmente  traduzido:  deve  tornar,  e  se 
o  mais  corresponder  áquelle  ensaio,  bem  ficaremos.  EUe  me  disse,  que 
também  se  começara  já  a  traducção  ingleza.  Tantas  honrarias  me  obri- 
gam a  dizer,  que  depois  do  asno  morto  cevada  ao  rabo.  Estimarei  vêr 
já,  e  sem  perda  de  tempo  o  sermão  do  P.®  M.®  D.Tr.  Fortunato:  este 
nome  é  para  mim  de  summo  respeito,  e  em  cuja  gloria  tanto  me  inte- 
resso, mas  não  é  inferior  a  que  tenho  em  ser 

De  V.  S.^ 

Amigo  obrigadissimo 
.. .  Novembro  de  1828. 

/.  A.  de  M. 


10  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


111.-"»  Sr. 

Recebi  hontem  2  do  corrente  a  apreciável  e  estimada  carta,  por 
José  Lápis,  e  quasi  pincel,  com  que  V.  S.*  tanto  me  honra.  V.  S,^  vê 
em  mim  dous  milagres,  o  primeiro  a  continuação  da  minha  existência 
no  meio  de  tão  intoleráveis  tormentos,  que  nem  por  um  instante  se 
suspendem;  e  se  os  dias  são  cruéis,  mais  atribuladas  levo  as  noutes: 
o  segundo  é  poder  eu,  em  algum  intervalo,  só  de  manhan,  escrever 
alguma  cousa  entre  a  importuna  caterva  que  d'aqui  se  não  tira;  por- 
que estando  eu  duas  horas  apenas  fora  da  cama,  mal  pego  na  penna 
se  abre  a  porta,  ou  galopa  pela  casa  dentro,  porque  a  porta  já  se  não 
fecha.  Assim  mesmo,  ahi  vai  o  quarto  numero  da  Besta.  Elia  fará  mu- 
dar de  conceito  o  P.^  M.®  Fr.  Álvaro  a  respeito  do  n.°  3.  Este  quarto 
tem  cousas  novas,  e  algumas  tiradas  muito  eloquentes.  Deixemos  os 
gabos  da  noiva,  que  não  a  quero  casar.  A  respeito  de  traducções,  con- 
fesso-lhe  que  já  não  entendo  similhante  salgalhada,  sem  acabarem  com 
uma  só  cousa.  O  Lopes  me  mandou  dizer  que  estava  reformando  e 
emendando  a  da  Refutação  em  francez:  eu  aqui  tenho  a  ingleza,  e  lar- 
gos dias  tem  cem  annos;  ou  eu  martyr  de  dores  e  anciãs  mortaes  não 
entendo  o  que  me  dizem,  porque  de  toda  a  parte  me  dão  noticias,  que 
eu  não  posso  entender.  V.  S.*  se  me  fizer  a  honra  de  responder-me, 
para  me  certificar  da  entrega  da  Besta,  e  se  lá  apparecer  o  José  Lá- 
pis, seja  por  elle,  pois  elle  me  disse  que  ia  lá  sexta  feira,  ou  eu  en- 
tendi mal,  o  que  me  succede  com  todos.  Pedi  ao  Lopes  que  viesse  cá, 
para  mandar  por  elle  a  traducção  ingleza,  porque  temo  desvio  na  mão 
do  rapaz  mudo ;  não  apparece  Lopes  até  hoje ;  também  isto  fica  por 
entender.  Eu  cada  vez  estou  mais  tolo:  paciência;  mas  por  certo  não 
sou  tolo  em  ser  de  V.  S.*  verdadeiro  amigo,  e  o  mais  obrigado  e  agra- 
decido 

J.  A.  de  M. 

Quartel  dos  Políticos,  e  estrebaria/ 
das  Bestas,  3  de  Dezembro  de  1828-/' 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  li 


XI 

111."»»  Sr. 

Depois  que  o  mudo  d'aqui  foi,  a  minha  existência  é  milagrosa : 
não  estou  um  quarto  de  hora  sem  ourinar,  com  dores  que  me  deitam 
no  chão;  de  noute  é  preciso  tomar  tinturas  de  laudano  para  fechar 
por  minutos  os  olhos.  Levanto-me,  forcejando  sobre  as  minhas  forças, 
aqui  estou  assim  mesmo  escrevendo,  ou  Sermões  para  pessoas  de  quem 
sou  amigo,  porque  elles  o  são,  ou  revista  e  Censura  de  papeis,  e  re- 
lações de  livros;  em  fim  cuidando  não  poder  hoje  nem  senta r-me,  e 
determinando  mandar  vir  de  casa  uma  batina  que  me  resta  (e  lá  dei- 
xaram as  sobrepellizes  por  escarneo)  para  me  amortalharem,  se  aqui 
acabar:  e  não  tendo  esta  manhan  mais  que  um  único  politico,  que  puz 
na  rua,  escrevi  duas  laudas  da  Besta,  e  não  ha  meia  hora,  a  moça  das 
cinco  mulheres  da  visinhança,  enxotando-me  as  moscas,  entornou  o 
tinteiro,  e  caiu  um  borrão  em  cima  das  margens  do  papel,  que  me 
agoniou  deveras,  porque  eu  nunca  deitei  borrão  na  matéria.  Interrompi 
a  serie  das  manhas  para  Iractar  dos  couces,  e  vai  o  titulo  —  1."  Couce 
—  que  vem  a  ser,  os  que  atiram  os  patifes  que  estão  em  Inglaterra. 

Estimo  que  chegasse  o  P.®  Fr.  Álvaro,  e  de  veras  o  estimo,  e  me 
recommendo  para  o  que  eu  poder  n'este  miserável  estado.  Agradeço  a 
V.  S.^  o  tabaco,  mas  nunca  dirá  ao  mundo  que  V.  S.*  me  foi  ás  ven- 
tas; se  o  disser,  eu  lhe  responderei  que  com  cousas  boas.  Se  o  P.® 
M.®  Fr.  Álvaro  tem  que  approvar  no  4."  numero,  o  5.°  o  satisfará.  De 
traducções  e  traductores,  que  os  leve  o  diabo,  poucos  sabem  tradu- 
zir, fica  tudo  ranho  em  parede.  Eu  já  não  vivo,  não  tenho  forças,  se- 
não apareceria  do  D.  Miguel  o  que  appareceu  no  Elogio  de  Pio  Vil,  pri- 
meira e  ultima  traducção  da  minha  vida.  O  mudo  deve  cá  vir  depois 
d'ámanhan,  mande-me  V.  S.*  dizer  se  a  Besta  passou  da  estrebaria  de 
Fr.  Henrique,  e  se  se  imprime  a  traducção  franceza  da  Refutação.  Não 
digo  que  irá  o  n.°  5  depois  d'ámanhan,  porque  ás  três  horas  da  tarde 
me  deito  gemendo,  e  começo  com  as  fomentações  e  banhos,  e  chapi- 
nhações  de  agua-ardente  de  cana,  quando  me  faltam  os  pulsos;  bato 
todas  as  noutes  na  parede  das  casas  altas  visinhas  para  me  acudirem. 
Ora  não  tenha  V.  S.'  nada  d'isto,  mas  tenha  todos  os  bens  que  lhe  de- 
seja 

Seu  verdad.'"  am.° 

. . .  Dezembro  de  1828. 

/.  A.  de  M. 


12  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


XII 

III.""»  Sr. 

Que  dia  este  para  mim  I  O  mais  atribulado  com  dores  que  tenho 
tido ;  a  casa  cheia  de  diabos ;  um  com  um  mappa  de  minas  de  ouro 
que  ha  no  reino,  e  tão  impertinente  que  lhe  pedi  com  as  mãos  postas, 
que  me  deixasse  ir  ao  bispote:  então  se  foi.  Veiu  outro  com  um  re- 
querimento para  o  Duque,  disseram-lhe  lá  que  não  ia  em  forma,  pede 
que  lhe  faça  um  melhor;  esse  ainda  aqui  está.  Assim  mesmo  acabei 
o  M.°  numero  agora,  com  o  tal  requerimento  aqui.  Ahi  vai,  lêa  V.  S.*, 
que  é  cousa  que  nem  me  deixam  fazer.  Pelo  que  me  lembro  de  ter  es- 
cripto,  este  primeiro  Couce  é  a  melhor  cousa  que  haverá  escripta.  De- 
cidirão. Mando  o  mudo  a  correr,  que  são  três  horas.  Eu  me  preveni 
com  escripta  para  outra  vez.  Logo  torna  o  do  rol  das  minas,  e  eu  mi- 
nado de  dores.  Veja  V.  S.*  se  este  Couce  se  imprime  logo.  Recom- 
mende  me  ao  P.®  M.^  Fr.  Álvaro,  e  com  muita  particularidade  ao  111.""' 
Sr.  P.*  Geral,  de  quem  naturalmente  sou  amigo,  e  com  o  mesmo  puro 
sentimento  é  de  V.  S.^  egualmente 

Amigo 

1    de  Dezembro  de  1828. 

/.  A.  de  M. 

XIII 

111.'"''  Sr. 

Depois  que  hontem  16  recebi  a  sua  carta,  com  a  recua  das  seis, 
fui  como  dizia,  deitar-me  para  passar  a  noute  mais  terrível  de  quinze 
horas  de  tormentos :  assim  amanheci,  assim  me  levantei  para  acabar 
de  albardar  a  Besta,  o  que  fiz,  apezar  de  vir  primeiro  o  cirurgião:  de- 
pois veiu  um  acabar  de  matar-me  com  um  plano  de  agricultura.  Vae 
pois,  e  creio  que  a  melhor  e  mais  gorda  da  mesma  recua ;  desejaria 
que  se  apressasse  mais  a  impressão,  mas  que  se  não  imprimissem  tan- 
tos exemplares.  O  povo  está  cansado  de  papeis,  que  por  mais  que  di- 
gam, menos  se  faz:  tudo  está  em  perfeita  frialdade,  nada  lhe  importa, 
e  só  quer  comer,  e  isso  lhe  falta.  Ficam  as  lojas  atulhadas  de  livros  e 
papeis  de  toda  a  qualidade.  Também  será  escusado  citar  os  patifes 
reimpressores,  porque  me  disse  hontem  á  noute  Fr.  José  Machado,  que 
isso  só  tem  logar  quando  ha  privilegio  especial  para  os  escriptos,  o 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  13 

que  DÓS  não  temos,  e  me  provou  isto  com  exemplos  seus.  Se  El  rei  ao 
menos  lesse!  mas  nada  deixam  lá  chegar.  Aqui  chegava  euhontem  17 
de  tarde,  quando  o  terrível  Ímpeto  do  meu  mal  me  obrigou  a  ir  para 
a  cama,  onde  das  três  para  as  quatro  da  noute  me  achei  em  artigos 
de  morte,  e  foi  preciso  acudir-me  até  com  fortíssimo  banho  aos  pés ; 
a  dôr  da  uretra  diminuiu  alguma  cousa,  e  à  força  do  xarope  de  ópio 
pude  dormir  alguma  cousa :  o  dia  vai  quasi  da  mesma  sorte  na  dolo- 
rosíssima soltura  da  ourina.  Aqui  se  me  tem  queixado  do  preço  da 
Besta,  não  sei  se  têm  razão:  querem  que  seja  o  preço  das  Cartas 
três  vinténs,  mas  as  Bestas  levam  sempre  duas  folhas;  n'isso  fará 
V.  S.*  o  que  melhor  entender,  que  eu  não  me  mato  com  similhanles 
cálculos.  Desejo  que  o  senhor  Fr.  Henrique  não  demore  o  insignifi- 
cante papel  na  sua  mão,  nem  venha  com  escrúpulos  sem  entidade:  eu 
sei  o  que  escrevo,  já  que  em  logar  do  freio  ser  para  a  Besta  é  para 
mim ;  não  me  íem  faltado  insinuações  que  marcam  os  limites,  parece 
que  se  não  quer  nem  a  defeza  da  justa  causal  N'este  infeliz  estado 
em  que  estou  me  vejo  obrigado  a  fazer  o  que  não  posso.  Sabbado  de 
manhan  me  levarão  d'aqui  ás  costas,  para  me  metterem  n'um  bote,  e 
levarem-me  até  o  Terreiro  do  Paço,  e  de  lá  a  S.  António,  onde  o  Se- 
nado vai  dar  graças  a  Deus  pela  melhora  d'El  rei :  se  por  lá  appare- 
cesse,  mas  cedo,  o  P.®  M.*^  Fr.  Álvaro,  bom  seria,  no  caso  que  eu  não 
possa  a  pé  tornar  ao  Terreiro  do  Paço;  mas  isto  sem  incommodo,  e 
lá  fallariamos.  Tenha  V.  S.*  saúde,  e  tantas  venturas  quantas  lhe  de- 
seja 

Seu  amigo  o  mais  obrig.'^" 
18  de  Dezembro  de  1828. 

J.  A.  de  M. 
P.  S. 

Succedeu  o  que  eu  disse,  aqui  estou  na  cama,  e  peor  que  nunca. 
Não  dormi  nem  um  quarto  de  hora.  Meu  amigo,  isto  está  muito  m;ío. 
Vai  a  Besta,  e  recommendo  ao  mudo  que  vá  em  direitura  ao  Desterro. 
Se  vou  continuando  assim,  nem  mais  Bestas  se  imprimirão. 


14  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


XIV 

111.'"°  Sr. 

Hoje  2i,  na  situação  mais  lastimosa,  com  o  meu  mal,  me  levan- 
tei da  cama,  e  encostado  ás  paredes  vim  sentar-me  a  esta  meza,  e  en- 
tre dores  de  expirar  escrevi  quasi  três  paginas  da  Besta  7/  Deu  já 
meio  dia,  e  uma  hora,  e  José  Lápis  não  apparece,  promettendo-me  vir 
ao  meio  dia.  Escrevo  esta,  e  vou  esperando  e  desesperando  com  do- 
res, no  mais  violento  ataque.  Isto  é  o  que  se  deve  considerar  como 
milagre,  porque  até  a  cabeça  tenho  tomada,  e  me  dá  estalos.  Vai  o 
3."  Couce,  o  P.®  M.®  Fr.  Álvaro  que  decida,  eu  o  fiz,  e  o  não  li;  se 
houver  alguma  íalta  de  lettra,  ou  de  palavra,  suppram  lá  isso  como 
convier.  A  carta  patente  do  Imperador  para  os  de  Inglaterra,  que  vai 
no  fim,  não  parecerá  cousa  de  um  homem  moribundo.  Ora  ahi  vão 
umas  boas  festas,  que  se  devem  ler  em  casa  do  111.™°  P."  Geral,  a  quem 
as  desejo,  e  a  todos  esses  senhores.  Estimo  que  fizesse  a  diligencia  de 
vêr  o  busto,  que  representa  o  grande  prodígio  da  espécie  humana ;  o 
ponto  está  em  que  o  José  o  possa  copiar  bem.  Se  na  tal  livraria  hou- 
ver um  livro  de  folio,  composto  por  elle,  que  vem  a  ser  a  compara- 
ção da  doctrina  de  Scotto  com  a  de  Saucto  Agostinho^  no  frontispício 
está  elle  retratado  no  meio,  ou  entre  o  Scotto  e  o  Sancto  Agostinho, 
6  o  retrato  é  bem  ao  natural,  pode  servir  muito  ao  José  Lápis,  que 
ainda  não  apparece.  Se  com  effeito  se  descobrir  o  manuscripto  da  tra- 
ducção  dos  Lusíadas  em  verso  latino,  que  elle  fez  em  Paris,  onde  foi 
mandado  por  D.  João  IV  assessor  e  director  do  Marquez  de  Niza,  seu 
embaixador  extraordinário  a  Luiz  XIII,  podemos  dizer  que  se  encon- 
trou o  maior  thesouro  da  litteratura  portugueza:  eu  duvido,  porque 
na  Bibliolheca  Lusitana  só  se  faz  menção  d'este  manuscripto  existente 
na  livraria  do  Duque  de  Cadaval ;  mas  que  se  buscará  d'esta  casa  que 
se  ache?  O  Padre  engana-se  sobre  a  traducção  impressa,  é  de  Fr.  Thomé 
de  Faria,  frade  carmelita  e  bispo  de  Targa,  e  é  vulgar.  Ha  outra  tra- 
ducção latina  de  André  Baião,  portuguez,  e  mestre  de  eloquência  em 
Roma,  era  manuscripta,  e  estava  na  livraria  do  Vaticano;  por  insinua- 
ção minha  foi  buscada,  e  não  achada.  Se  com  effeito  apparece  em  S. 
Francisco,  é  o  maior  milagre  de  Sancto  António  II  No  CoUegio  da  Pe- 
dreira, em  Coimbra,  onde  elle  professou,  está  o  livro  das  profissões, 
e  por  tanto  letra  da  sua  mão  na  assignatura  de  professo;  chama va-se 
o  provincial  capucho,  que  o  professou,  Fr.  Bernardo  dos  Martyres :  se 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  15 

houvesse  um  José  Lápis,  que  fizesse  um  fac-simile,  bom  seria  possuir 
este  documento.  Ah !  que  miséria  é  o  meu  estado  I  Muito  desejaria  com- 
por um  livro  sobre  este  homem!  São  duas  e  meia,  chega  o  José,  eu 
tremendo  com  o  mal  que  me  não  deixa  suster  a  penna,  e  gastando 
cera  com  o  capucho  do  Botão!. . .  Mas  era  um  homem;  e  eu  que  sou? 
Um  João-ninguem,  e  fallo  a  verdade :  um  bocado  de  imaginação  mais 
viva,  e  disse.  Mas  se  a  imaginação  é  viva,  o  coração  é  sincero,  quando 
digo  que  sou 

De  V.  S.* 

Am.°  e  am.°  obrig.""" 
24  de  Dezembro  de  1828. 

/.  A.  de  M. 

XV 

111.°"»  Sr. 

D'aqui  foi  pelas  três  horas  José  Lápis,  e  levou  o  n.°  7,  e  uma 
carta  minha;  estimarei  que  hoje  mesmo  seja  tudo  entregue.  Sempre 
fico  em  cuidado,  quando  vai  Besta,  não  fuja,  ou  se  perca.  São  quatro 
horas,  eu  estou  só,  porque  a  moça  foi  á  botica;  estou  doentíssimo,  e 
desejando  que  venha,  para  me  deitar.  Estes  dias  santos  me  mudo 
para  uma  casinha  boa  e  nova,  pouco  abaixo  d'esta,  mas  decente:  eu 
darei  parte,  e  o  numero  da  porta.  Recebo  os  exemplares;  agora  com 
a  festa  fará  pausa  a  impressão  da  6.^  e  7.*  Os  cirurgiões  gritam  que 
esteja  fora  da  cama,  e  eu  o  farei  se  poder;  e  para  disfarçar  tão  horrí- 
veis dores,  verei  se  posso  ir  tirando  do  cahos  a  obra  do  maior  traba- 
lho, erudição,  e  empenho,  que  V.  S.^  aqui  viu^  e  que  desejo  veja  o 
mundo  das  lettras.  Aqui  disse  José  tintas  que  Francisco  papelada  está 
fazendo  desenhos  para  o  mais  saliente  e  importante  dos  Burros:  eu 
deveria  dizer  o  que  é  mais  importante,  e  não  Francisco  papelinhos : 
tomara  vêr  isso,  e  tomara  n'essa  casa,  n'esta,  e  em  todas  poder  dizer , 
que  V.  S.*  ouvisse,  que  sou 

De  V.  S.^ 

Am."  e  obrig."** 
24  de  Dezembro  de  1828. 

J.  A.  de  M. 


16  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


XVI 

111.°'°  Sr. 

É  meio  dia,  e  atormentado  de  dores  e  frio  me  levantei  um  pouco, 
porque  vem  chegando  a  hora  de  apparecer  o  mudo.  Primeiro  que  tudo, 
ahi  remetto  a  V.  S.^  esses  papeis,  com  a  sua  competente  Censura,  que 
merece  ser  copiada;  e  se  o  P.®  M.®  Fr.  Álvaro  fôr  domingo  ao  senhor 
Arcebispo,  me  fará  a  mercê  de  lhe  entregar  tudo.  A  minha  penosa  en- 
fermidade me  conserva  no  estado  para  mim  o  mais  cruel,  qual  é  o  da 
inacção.  Nada  tenho  escripto,  sempre  deitado,  sempre  gemendo,  e  as- 
sim se  me  vai  a  vida:  cercado  de  importunos,  que  sempre  vem  pedir, 
nem  os  posso  evitar,  e  menos  resistir  aos  peditórios  de  requerimen- 
tos, que  todos  querem;  aqui  vem  ter  das  províncias  com  a  papelada 
de  documentos  de  serviços  contra  pedreiros;  isso  não  è  cá  para  este 
mundo,  e  menos  para  este  reino.  Todas  as  vezes  que  eu  escrevo,  ou 
fallo  a  V.  S.*  me  esquece  pedir-lhe  que  não  contemple  o  Duque  em 
cousa  alguma  de  papeis:  é  meu  inimigo  declarado,  porque  tenho  (diz 
elle)  a  alma  cheia  de  acrimonia  contra  a  facção.  EUe  não  lê  nada  que 
eu  escreva,  nem  mesmo  a  Refutação;  nem  elle,  nem  o  Borba  queriam 
que  eu  respondesse;  mas  El  rei  insistiu.  Elle  poz  o  Lopes  fora  da  Ga- 
zeta, e  só  elle:  a  Rainha  está  por  isso  muito  enfadada,  e  se  espera  al- 
guma cousa ;  emfim,  a  soberba  e  o  orgulho  de  alguns  è  muitas  ve- 
zes causa  de  desgosto,  e  da  revolta  de  muitos.  Eu  estou  no  termo  da 
minha  carreira;  se  assim  não  fora,  os  meus  ossos  não  se  sepultariam 
em  Portugal,  que  tanto  amor  e  tanto  interesse  me  tem  devido.  Pois  só 
ser  fidalgo  è  ser  tudo?  O  homem  de  bem,  de  alma  grande,  de  cora- 
ção limpo  e  generoso,  o  homem  cheio  de  conhecimentos  sem  vaidade, 
sem  ostentação,  que  nunca  n'elles  falia,  e  sempre  diz  que  os  não  tem, 
nada  é  n'este  mundo  1  Só  o  Duque  de  Caminha,  e  o  Duque  de  Aveiro, 
são  alguma  cousa,  e  são  tudo,  porque  são  Duques!  Os  verdadeiros  re- 
publicanos terão  algumas  vezes  razão?  Os  hollandezes  não  foram,  nem 
são  os  estouvados  pedreiros  poríuguezes.  Chega  o  mudo :  eu  acabo  de 
jantar  um  caldo  simples  de  farinha,  e  ovos:  nada  mais  posso  levar. 
Como  não  vem  Besta,  senão  o  rapaz,  vejo  que  ainda  ha  demora,  e  as- 
sim mais  tempo  tenho  para  a  8.^  se  os  requerimentos  me  deixarem,  e 
poder  estar  alguma  hora  mais  fora  da  cama.  O  Imperador  do  Brasil 
manda  pôr  a  nossa  sorte  nas  mãos  do  Imperador  de  Áustria,  e  Rei  de 
Inglaterra;  são  os  dous  árbitros,  que  hão  de  decidir  se  é  rainha  de 


A  FREI  JOAQUni  DA  CRUZ  17 

Portugal  sid  júris  a  menina,  ou  se  deve  ser  rainha  por  casar  por  força 
com  seu  tio.  Estamos  em  boas  mãos!  E  é  possivel  que  nos  chamem 
ainda  portuguezes?  O  Lopes  me  manda  dizer  isto,  transcrevendo  os 
jornaes  inglezes,  d'este  ultimo  paquete,  que  veiu  em  três  dias  e  meio. 
Tenha  V.  S.'  os  bens  que  bem  lhe  deseja 

Seu  am.°  obrig.™°  e  fiel 
. . .  Dezembro  de  i828. 


J.  A.  de  M. 


XVII 


ni.'"*'  Sr. 


Bem  vê  este  Coelho,  que  faz  o  terceiro  com  estes  dous  antigos  e 
grandes  pintores,  Cláudio  Coelho  e  Bento  Coelho,  como  estou  feito  mo- 
lho de  villão,  picado  e  rasgado  com  dores,  ha  tantos  dias  de  cama, 
sem  remédio,  e  já  sem  paciência,  porque  para  tanto  padecer  não  chega 
o  valor  humano:  aqui  estou  quasi  de  bruços  em  cima  de  uma  taboa 
escrevendo,  o  quê?  um  eterno  requerimento  documentado  com  um  mo- 
lho de  papeis,  que  espantam  o  mesmo  Coelho,  que  já  quer  sair  d'esta 
toca.  E  por  força,  e  de  graça,  escreva  para  ahi,  e  já  me  disse  o  tal 
clérigo  (de  Cêa  é  elle,  e  não  me  traz  de  jantar!)  que  já  tinha  gastado 
dezoito  tostões  em  barcos  para  aqui  vir,  sem  eu  o  chamar!  Sou  um 
escravo  pubhco  para  fazer  requerimentos,  e  o  diabo  lh'o  diz,  que  aqui 
vêm  ter  do  mais  escondido  cu  de  Judas  do  mundo,  para  me  levarem 
a  mim  d-c.^  Apparece  a  remessa  ao  Duque,  pela  razão  do  reparo.  Saiba 
em  tanto  V.  S.^  que  á  mão  de  El-rei  também  não  chegam,  porque  só 
tem  visto  a  4.%  5.*  e  6.*  Aqui  fico,  e  ha  tantos  dias,  e  escrever  as- 
sim é  impossível:  levantar-me-hei  uma  hora  cada  dia,  passando  o  frio, 
e  escreverei  a  8.^,  e  o  mudo  que  espero  um  dia  d'esta  semana  levará 
alguma  coosa,  porque  o  Coelho  com  estas  só  pode  levar  agora  os  pro- 
testos com  que  sou 

De  V.  S,^ 

Amigo  certo 
. . .  Janeiro  de  1829. 

J.  A.  de  M. 


CARTAS. 


18  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 


XVIII 

111.'°°  Sr. 

Cinco  representações,  um  longo  manifesto  á  Junta  do  Tabaco,  uma 
longa  carta  a  José  Ribeiro  Saraiva,  que  tomara  lh'a  apanhassem  para 
a  trasladar;  mil  papeis  de  Censura;  uma  relação  de  livros  mandada 
pelo  Lopes;  um  abbade  de  Priscos,  também  enviado  pelo  Lopes  com 
uns  autos  de  demanda  para  lhe  advogar  uma  causa  de  venda  simulada 
(parece  que  querem  zombar  de  mira)  o  dia  que  amanheceu  hoje  com 
o  augmento  da  minha  enfermidade,  aqui  me  tem  na  cama  gemendo 
tristemente,  e  a  Besta  que  é  a  mais  gorda  de  todas,  devendo  ter  doze 
paginas,  das  três  folhas  tem  só  cinco  e  um  bocado.  Podia  hontera  de 
tarde  acabal-a,  mas  veiu  o  manifesto  para  a  Junta,  e  esta  manhã  veiu 
o  abbade,  logo  vem  um  clérigo  para  se  examinar  de  confessor,  e  é  de 
casa  do  Duque!!  Eu  estou  em  tal  estado,  que  só  me  dá  calor  uma  baeta 
quente,  que  me  cinge  a  cintura.  Espero  segunda  feira  pôr  a  Besta  a 
caminho  pelo  mudo.  Agradeço  tanto  obsequio,  e  tão  amigáveis  lem- 
branças; o  papel  é  óptimo  (é  seu)  e  n'elle  depois  da  8.*  Besta  começo 
a  trasladar  o  Poema,  ainda  que  não  seja  senão  uma  pagina  cada  dia; 
mas  com  que  cuidado  irá  elle  em  correcção,  e  empenho! 

Ora,  senhor  meu,  também  eu  quero  mostrar  a  V.  S.*  que  sou 
grato,  sem  o  ter  sido  mais  ijae  com  penna  e  tinta.  Por  pouco  mais  de 
nada,  trazida  por  mão  com  fome,  me  appareceu  aqui  essa  caixa;  esti- 
mei a  occasião  de  lh'a  oíferecer,  porque  ninguém  mais  conheço  digno. 
Pode  José  Pmcel  estudar  essa  magnifica  pintura;  creio  que  se  fartou 
na  Itália,  e  pode  V.  S.^  mostrar  aos  seus  amigos  que  tem  bom  gosto, 
porque  no  seu  género  é  o  mesmo  que  o  Elogio  de  Pio  VII;  e  eu  sou 
o  mesmo  em  estimar  e  respeitar  a  V.  S.*  como  seu 

sincero  amigo 
...  de  Janeiro  de  1829. 

/.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  19 


XIX 

111.'"°  Sr. 

Parece-me  ura  verdadeiro  milagre  que  eu  possa  escrever  uma  re- 
gra, ou  levantar-me  uma  hora  da  cama:  a  minha  enfermidade  chegou 
onde  só  a  morte  pode  ser  o  seu  termo ;  tenho  todos  os  signaes  de  uma 
inflammação  na  bexiga;  as  dores  são  as  mais  violentas,  e  não  param 
nem  um  minuto  ou  segundo;  a  ourina  em  grande  abundância,  não 
pára  nunca  meia  hora;  de  noute,  n'este  espaço,  posso  seguidamente 
dormir:  a  passada  cuidei  que  era  a  ultima  da  minha  atribulada  exi- 
stência: n'este  estado  como  posso  eu  escrever  uma  letra?  Agora  mesmo, 
nem  de  pé,  nem  sentado  posso  escrever,  sem  me  sentir  atravessado 
de  ferros  em  braza;  este  é  um  dos  martyrios  em  que  estou,  o  outro 
é  grande,  mas  é  evitável,  que  vem  a  ser  as  importunações  de  toda  a 
casta  com  escriptas  incessantes,  porque  quando  julgo  que  o  que  lenho 
n'esta  banca  é  a  ultima,  no  mesmo  instante  apparece  um  feixe  d'ellas, 
e  isto  além  das  Censuras,  que  são  umas  atraz  das  outras.  Pois  visitas? 
Hontem  de  tarde  estiveram  cinco  até  depois  de  noite;  mas  como  ha 
duas  casas,  fecho  a  porta,  e  fico  n'esta  em  que  escrevo,  e  gemo  de 
continuo,  e  lá  os  deixo  escoucear  quanto  querem.  Veja  que  socego  e 
silencio  este  para  compor  cousas  não  lidas  em  livros,  e  d'elles  tresla- 
dados,  porém  creados  unicamente  na  imaginação  I  Basta,  que  já  é  ver- 
gonha repetir  isto  tantas  vezes.  Aqui  me  disse  hontem  um  dos  visi- 
tantes, que  João  Henriques  pede  a  impressão  de  não  sei  que  números 
da  Besta,  porque  de  todo  se  acabaram:  porque  o  não  manda  elle  di- 
zer a  V.  S.*?  Outro  visitante  que  veiu  de  Queluz,  me  disse  que  para 
El-rei  ler  o  numero  7.°,  foi  preciso  mandal-o  comprar  a  Lisboa,  por- 
que á  sua  mão  não  vão  taes  papeis.  Pouco  importa  isto.  Vae  pois  o 
numero  8.°,  creio  que  fará  bulha  pelo  objecto,  e  que  agradará  muito 
pelo  modo.  V.  S.*  o  constituirá  na  mão  do  bom  ledor  mór,  o  P.®  M. 
Fr.  Álvaro,  e  se  entenderem,  elle  o  ledor,  e  V.  S.%  e  os  111.°*°^  Ouvin- 
tes, que  é  preciso  alguma  coisa  riscada,  risquem  tudo  o  que  entende- 
rem. O  post  scriptum  do  fim  é  para  tirar  as  têas  de  aranha  dos  olhos 
do  Santo  António  de  coquilho,  o  Rev.°"*  Fr.  Henrique.  Gomo  è  conti- 
nuada aqui  a  demanda  pela  Besta  8.*,  empenhe-se  V.  S.^pela  pressa. 
Se  algum  espasmo  de  dor  me  não  levar  com  brevidade,  entre  Besta 
e  Besta  irei  trabalhando  o  trabalhado  e  trabalhoso  Poema,  e  na  ver- 
dade lhe  digo,  que  só  tenho  pena  de  morrer  sem  o  ver  publico  por 


20  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

uma  asseada  e  não  mesquinha  impressão;  depois  d'isto  nada  mais  te- 
nho cá  que  fazer.  Aqui  fico,  não  sq  porque  desmaiei  agora  com  uma 
lancetada  que  senti  na  uretra,  mas  porque  é  meio  dia,  e  espero  o 
mudo,  e  poderá  trazer  carta  de  V.  S.*^  a  que  haja  de  responder.  Agora 
me  vão  ajudando  a  sentar-me  ao  sol,  para  vêr  se  dou  aos  pés  algum 
calor.  Deu  uma  hora,  chega  o  mudo,  e  eu  também  o  fiquei  de  pas- 
mado, vendo  que  V.  S.^  também  o  está:  nem  palavra  1!  Seja  o  que  fôr 
não  devia  mandar  a  Besta,  porque  não  sei  o  que  isto  seja.  Ahi  vae,  se 
não  fôr  á  sua  mão,  acabou-se  tudo. 

5  de  Fevereiro  de  1829. 

J.  A  de  M. 

XX 

111.'^^  Sr. 

Um  dia  só,  ou  uma  só  noite  que  aqui  estivesse,  e  visse  e  presen- 
ciasse os  tormentos  que  de  meia  em  meia  hora  eu  soffro,  pasmaria  e 
se  admiraria  que  a  fortaleza  ou  sofrimento  humano  chegasse  a  tanto. 
Tenho  chegado  a  artigo  de  morte  em  espasmos,  e  desfalecimentos, 
sendo  preciso  pôr-me  sobre  o  coração  panos  de  vinho,  ou  aguardente 
de  cana.  Eis  aqui  como  eu  estou  quasi  sempre.  Hontem  de  tarde,  por- 
que entrava  sol  em  casa  me  levantei  para  aquecer  os  pés;  tornei  logo 
para  a  cama.  Hoje  também  me  levantei  porque  tinha  que  escrever 
ainda  o  resto  de  um  sermão,  que  se  hade  pregar  sexta  feira.  Cheio  de 
dores  violentas,  assim  mesmo  nada  fiz,  porque  então  parece  que  o 
diabo  chama  visitas.  Não  se  admire  V.  S.^  de  ler  alguma  graçola,  é  um 
esforço  que  faço,  mas  nem  assim  chego  a  dissimular  o  martyrio:  agora 
mesmo  estou  supportando  lancetadas  agudíssimas,  e  cruéis  puchões, 
que  me  suffocam  de  dores.  Aqui  mandou  o  Lopes  algumas  reflexões 
financeiras  sobre  o  empréstimo;  eu  reduzirei  tudo  a  ordem,  e  então  lh'o 
remetterei;  e  amanhã  que  torna  aqui  o  mudo  irá  alguma  coisa.  Eu  só 
devia  albardar  Bestas,  porque  só  isso  convém,  mas  os  que  querem 
essa  roda  dos  altos  couces,  não  sabem  os  que  me  dá  a  infernal  doença. 
Os  importunos  com  papeis  não  me  deixam  nunca,  e  não  é  possível 
vêr-me  livre  de  semelhante  escravidão.  Um  bacharel  já  despachado 
para  Souzel  no  Alemtejo  me  tem  mortificado  sempre  com  requerimen- 
tos, nunca  pára,  já  a  moça  lhe  não  quer  abrir  a  porta,  e  elle  protesta 
da  rua  que  nada  mais  quer  que  saber  da  minha  saúde,  e  vêr-me,  mais 
nadai —  Abre  a  moça  a  porta,  desenrola  um  molho  de  papeis,  e  diz: 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  21 

«Tenha  paciência,  nós  devemos  servir  uns  aos  outros,  faça-me  já,  já 
um  requerimento,  para  que  eu  n'aquella  primeira  instancia  tenha  o  pre- 
dicamento tal  e  tal;  porque  eu  estive  preso  no  Gastello,  e  de  segredo; 
meu  pae  foi  capitão  de  Ordenanças,  e  meu  avô  foi  almotacé  era  Fron- 
teira, e  meu  bisavô  creava  amoreiras  para  bichos  de  seda;  estes  são 
os  documentos  que  alli  estão. — »  E  hei  de  aturar  um  desavergonhado 
assim?  e  outros  que  taes,  ainda  vêm  com  maiores  destempêros,  e  eu 
aqui  manietado,  quero  fazer  alguma  cousa  mesmo  na  cama  nem  isso 
posso.  Até  aqui  veiu  um  pedreiro,  não  hvre,  mas  dos  que  fazem  ca- 
sas, a  pedir-me  um  requerimento,  que  me  horrorisará  os  poucos  dias 
de  minha  vidai  Pedia,  que  constando-lhe  que  El-rei  queria  emparedar 
vivos  alguns  réos,  elle  queria  ser  o  mestre  que  assim  os  sepultasse. 
Isto  parece  impossível,  pois  assim  succedeu,  e  já  cá  tornou  para  outra 
cousa  que  lhe  lembrou.  Se  os  ponho  pela  porta  fora,  tornam  no  outro 
dia  com  a  mesma  vergonha.  Tal  é  a  minha  vida,  e  vôr-me  livre  é  ex- 
cusado.  Eu  não  sei  se  a  Besta  11.^  apparecerá  ainda  para  a  semana, 
que  tenham  paciência^  e  que  me  livrem  de  dores  e  de  diabos,  que  me 
não  deixam:  até  versos  querem,  ou  feitos  ou  emendados,  e  fogo  na 
porta,  a  toda  a  hora  e  instante I  Gomo  vêm  os  papeis,  e  o  mudo  ama- 
nhã, mais  dirá  a  V.  S.* 

Seu  verdadeiro  amigo 


Março  de  1829. 


/.  A.  de  M. 
XXI 


Ul.""»  Sr. 

Eu  o  que  tenho  feito  e  escripto,  foi  mandar  vir  do  Forno  roubado 
a  batina  para  me  amortalharem,  porque  quero  ir  com  aquella  mesma : 
tal  é  a  situação  em  que  a  moléstia  me  tem  posto  estes  dias.  Nada 
exagero,  nem  tenho  para  quê  nem  porquê.  O  Mastigoforo,  para  se 
publicar  sem  dissabor  do  seu  sapientissimo  auctor,  precisa  dos  remé- 
dios que  eu  lhe  hei  de  pôr,  especialmente  na  venda  do  infante  D. 
Duarte  feita  aos  Castelhanos  pelo  imperador  da  Allemanha,  &c.^  ác* 
—  Elle  quer  desafogar,  lambem  eu  quero,  e  não  posso,  porque  em 
casa  de  ladrão  não  se  falia  em  corda.  Tomará  eu  ter  vida  para  a  con- 
tinuação da  Monarchia  Lusitana;  o  septimo  volume  de  Fr.  Raphael  de 
Jesus  ha  de  ser  posto  na  rua,  e  fazer-se  outro  de  novo.  E  porque  não 
vem  para  Lisboa  o  P.®  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato?  Também  cá  temos  bea- 
tos e  beatas  que  dirigir,  e  o  Mestre  da  Vida  que  explicar;  e  fidalgos 


22  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

e  fidalgas  também  temos  muitas,  mas  para  as  mandar  á  puta  que  as 
pariu,  porque  ellas  o  são.  Que  Tentia,  e  que  se  deixe  da  farfalhada  da 
Universidade,  que  se  não  metta  com  asoos,  nem  ature  os  pedreiros. 
Câ  tem  livros,  sciencias  e  pergaminhos;  e  a  mim  me  terá  para  lhe  di- 
zer:—Tudo  isto  não  vale  dois  caracoes,  nem  a  ponta  de  um  corno! — 
Sejamos  amigos,  como  o  é 


. .  Março  de  1829. 


XXII 


De  V.  S.* 
J.  A.  de  M, 

111.^°  Sr. 


Meu  bom  e  muito  respeitado  amigo.  Um  momento  me  trouxe  a 
sorte  esta  manhã,  em  que  me  deixou  a  enfermidade  levantar  da  cama, 
poucas  horas  durou  o  alivio,  veiu  novo  ataque  agora  ao  meio  dia,  ainda 
estou  sentado,  e  chegou  o  mudo  com  a  carta  de  V.  S.*  Não  exagero: 
cheguei  a  tal  ponto  com  a  doença,  que  outro  dia  á  noute  estando  aqui 
um  clérigo,  lhe  pedi  me  rezasse  o  ofiQcio  da  agonia,  estive  em  artigo 
de  morte:  este  é  o  meu  estado,  e  já  me  envergonho  de  lh'o  repetir  tan- 
tas vezes.  Ia  já  para  o  Forno,  o  diabo  as  arma,  abriu  a  parede  sobre 
uma  janella,  e  agora  me  manda  dizer  o  senhorio,  que  amanhã  terça 
feira  vão  os  pedreiros :  morre  o  Forneiro  e  cae  o  Forno.  Veremos  isto. 
Se  tiver  concerto  a  parede,  logo  vou,  ainda  que  do  desembarque  me 
levem  ás  costas.  Assim  mesmo,  no  mais  que  deplorável  estado  em  que 
existo,  forcejando  de  mais,  sobre  uma  taboa  tenho  escripto  na  cama 
aos  intervallos,  e  faltam  quasi  três  paginas  para  acabar  a  13.*,  talvez, 
talvez  o  papel  melhor  que  eu  tenho  escripto!  Sei  que  se  queixam,  e 
me  atacam  por  ter  usado  de  termos  rasteiros  e  baixos,  em  estylo  ri- 
dículo, ou  do  ridículo:  sei  que  talvez  por  se  doerem  das  mataduras, 
algumas  das  bestas  que  por  cá  andam  me  descompõem  de  homem  ve- 
nal, e  vendido  aos  diversos  e  encontrados  partidos;  e  já  estou  insen- 
sível a  tudo:  digam,  e  façam  o  que  quizerem;  emende  o  mesmo  Fr. 
Henrique,  ponha  lá  as  parvoíces  que  quizer:  desesperadas  dores  me 
fazem  de  pedra;  mas  se  parecer  a  V.  S.*  acabarei  a  13.%  e  dirão  que 
é  dúzia  de  frade.  A  11.*  os  fez  desesperar,  mas  esta  13.*  os  fará  ad- 
mirar. Sabe  o  que  dizem  e  escrevem  mais?  Que  eu  não  imprimo  os 
Sermões  todos,  porque  uns  dizem  bem  e  outros  dizem  mal  da  Consti- 
tuição. Quem  me  ouviu  tal?  Nem  um  só  dos  impressos  foi  escripto,  ou 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  23 

todo  escripto  antes  de  pregado.  Basta  de  seca.  Agradeçam  a  Fr.  Hen- 
rique o  meu  silencio,  se  não  eu  me  vingaria  na  letra  redonda  de  tanto 
patife.  Sobre  o  Ensaio  fallaremos. 

•     Am.°  obrig."' 
Abril  de  1829. 

J.  A.  de  M. 

XXIII 

111.'"°  Sr. 

A  minha  vida,  ou  a  minha  morte  é  estar  na  cama  em  gemidos  e 
dores,  pedindo  a  Deus  que  termine  a  minha  existência.  Levanto-me 
uma  ou  duas  horas,  e  com  incommodo  e  aíílicção,  levantando-me  a  ou- 
rinar  de  quarto  em  quarto  de  hora,  escrevo  alguma  cousa.  A  Besta 
14.*  já  vae  no  meio,  ou  mais;  porém  pego  na  penna — visitas I — Hon- 
tem  desde  as  três  horas  até  ás  nove  aqui  esteve  o  mais  importuno  e 
insoffrivel  dos  mortaes,  um  tal  Nápoles  de  Coimbra,  que  diz  que  é  fi- 
dalgo inteiro  e  puritano;  todos  estes  males  lhe  soífrera  eu  com  a  mi- 
nha invicta  paciência;  mas  é  poeta  recitante,  um  dos  flagellos  mais  pe- 
zados  com  que  Deus  castiga  o  género  humano.  Tinha  para  aqui  tra- 
zido um  poema,  intitulado  A  Memhraida — os  Membros — :  é  contra  as 
Cortes  de  Vinte,  diz  elle  que  para  eu  lh'o  emendar:  hontem  veiu  para 
eu  lh'o  fazer  imprimir  á  minha  custa,  mandar-lhe  alguns  exemplares 
para  Coimbra,  e  vender  cá  os  outros  por  minha  conta.  Isto  tinha  uma 
resposta,  que  era  cozer  já  o  papel  para  a  Besta  15.^,  e  ser  elle  do  rabo 
até  ás  orelhas  o  objecto  e  a  matéria.  Disse-me  mais,  que  tinha  sete 
volumes  manuscriptos  de  poesias  suas,  e  que  cá  os  mandaria  por  um 
almocreve,  não  disse  se  com  porte  pago,  para  eu  os  fazer  imprimir. 
Isto  veiu  dizer-se  a  um  homem  moribundolll  Homem,  que  em  vendo 
poeta  vê  a  morte!  E  é  poeta  um  diabo  d'estes,  que  me  disse  com  toda 
a  franqueza  que  nunca  em  dias  de  sua  vida  ouvira  nem  sequer  fallar 
no  Oriente,  na  Meditação  e  no  Neivton!  O  P.®  M.®  Fr.  Álvaro  conhece 
este  homem  ahi  de  casa  de  um  tal  Dornellas,  que  não  sei  se  também 
é  poeta.  Este  fidalgo  Nápoles  foi  presente  que  me  mandou  o  P."  M.® 
Dr.  Fr.  Fortunato,  e  com  carta  sua,  porque  lhe  foi  dizer  o  fidalgo  em 
Coimbra  que  me  queria  vêr  a  caral  Agora  quer  este  poeta  ainda  mais 
alguma  cousa;  quer  que  lhe  mande  tirar  uma  copia  muito  asseada,  em 
bom  papel,  do  poema  dos  Burros;  que  pague  cá  a  despeza  da  copia, 
e  que  lh'a  remetia  pelo  almocreve,  que  eu  devo  ir  buscar  e  esperar 
na  Ribeira  velha,  e  pagar-lhe  o  porte  adeantado,  dando-lhe  mais  ai- 


24  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

guma  cousa  para  beber  a  fim  de  o  levar  mais  bem  acondicionado !  Não 
ha  condição  mais  miserável  que  a  minha  1  Não  posso  dar  um  passo  da 
cama  para  esta  meza,  e  desde  que  amanhece  até  ás  nove  e  meia  da 
noite,  hei  de  soffrer  d'estas,  pedindo-lhe  de  instante  a  instante  que  me 
deixem  mijar,  com  gritos  e  dores  que  me  quebram  os  joelhos,  e  pa- 
rece que  se  arrancam  as  unhas  dos  pés!  Basta  d'isto.  O  Machado,  se- 
gundo creio,  está  aqui  no  Bom  Successo:  veja  se  o  desencanta,  e  veja 
se  manda  á  regia,  para  se  imprimir.  Vae  a  traducção  da  sextina  do 
Abbade  Casti;  foi  bem  achada,  julgo,  para  o  meu  amigo  Abrantes,  a 
quem  sou  obrigado.  O  Ensaio  aqui  está,  ainda  esta  manhã  o  repassei: 
as  impugnações  não  destroem  cabahnente  as  infâmias  e  absurdos.  O 
povo  mais  se  ha  de  lembrar  d'estas,  que  das  respostas:  eu  tenho  pena 
por  causa  do  P.®  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato.  Tanta  pressa  têm,  que  não 
possam  esperar  por  alguma  cousa  que  eu  fizesse,  porque  ando  mais  ver- 
sado no  que  elles  dizem,  e  no  que  se  lhes  deve  responder;  porque  de 
memoria  lhe  posso  apontar  o  hvro,  e  a  pagina  de  onde  o  defuncto  clé- 
rigo tirou  tudo  aquillol  Emfim  o  mudo  vem  cá  amanhã;  mande-me  di- 
zer se  está  por  isto,  senão  irá;  e  eu  fico  sendo 

De  V.  S.^ 

Am.°  e  o  mais  obrig.*'" 
. . .  Maio  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

XXIV 

111.'"°  Sr. 

O  papel  cozeu-se,  e  a  albardadura  começou-se,  forcejando  eu  con- 
tra o  Ímpeto  da  enfermidade,  que  hontem  subiu  de  ponto;  á  noite  fiz 
eu  um  remédio  sympathico,  e  que  parece  supersticioso,  de  que  falia  o 
Feijó,  e  alguma  cousa  se  applacou  o  Ímpeto  do  inferno,  ou  hemor- 
rhoidal,  dormi  espaços  de  hora,  mas  a  dôr  da  uretra  nada  remettiu. 
Tem  razão  de  dizer-me — não,  não! — e  na  verdade  parece-me  um  mi- 
lagre, que  não  podendo  eu  voltar  o  corpo  na  cama,  nem  a  cabeça  para 
a  ilharga,  para  ver  um  relógio  pendurado,  possa  escrever  uma  letra 
sentado  a  esta  meza,  e  sempre  inquietado  com  visitas,  que  pedem  cou- 
sas e  secaturas  que  não  acabam.  Até  um,  que  diz  que  é  fidalgo  de 
Coimbra,  João  Bernardo  de  Nápoles,  aqui  veiu  já  três  vezes,  com  um 
poema  de  sua  lavra,  chamado  a  Membraida  ou  Membreida,  para  eu  vêr 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  25 

e  emendar.  De  todas  as  manias  a  mais  violenta  ou  arrastadora  é  a  dos 
versos.  Matam-se  os  homens  para  os  fazer,  matam  os  outros  para  lh'os 
empurrar!  Eu  bem  os  entendo;  não  querem  emendas,  querem  applau- 
sos  e  approvações.  Eu,  que  nunca  fallo  de  versos,  nem  de  prosas,  fat- 
iarei agora  alguma  cousa  de  prosas.  Li  a  Besta  12.^,  e  creia  V.  S.*  que 
me  agoniei  bastante;  vem  ridiculamente  transfigurada,  e  me  envergo- 
nha a  sua  publicação.  Quererá  V.  S.^  ter  a  bondade  de  annunciar  a  Fr. 
Henrique  que  aponte  o  que  quizer  na  censura,  que  eu  remediarei  tudo, 
para  ir  a  composição  uniforme.  Tanto  me  aborreceu  a  misturada  de 
grelos,  que  se  a  terrível  doença  me  não  tornasse  insensível  a  tudo, 
queimava  de  uma  vez  tudo  quanto  conservo  escripto.  Isto  não  é  reino 
em  que  se  viva,  ou  não  é  reino  em  que  se  escreva.  Talvez  para  a  pri- 
meira recovagem  leve  o  mudo  a  14.^  Ha  de  custar  a  encher,  só  com 
as  parvoíces  do  Pizarro  I — Amigo  de  V.  S.^  e  amigo  certo,  e  amigo 
para  uma  e  outra  fortuna 

/.  A.  de  M. 
. . .  Maio  de  1829. 

XXV 

111.'"»  Sr. 

Também  eu  me  admiro  de  poder  escrever  uma  letra,  e  pasmo 
quando  depois  ólho  para  o  que  escrevi.  Ha  muitos  dias  que  estou  pe- 
netrado de  dores  nas  duas  vias,  que  a  vida  é  já  para  mim  um  mila- 
gre. Comi  um  pouco  de  peixe,  e  umas  favas,  porque  carne  do  açou- 
gue, ou  aves,  são  venenos  cuja  vista  não  posso  tolerar  de  invencível 
fastio:  fizeram-me  tanto  mal,  que  nem  uma  hora  durmo:  a  ourina  do- 
lorosíssima, o  mais  que  se  demora  são  vinte  minutos,  e  depois  que 
saiu  o  pedaço  de  pedra  lascada,  a  dôr  é  permanente.  Já  as  casas  do 
Forno  estão  caiadas  e  limpas,  a  díÊQculdade  está  em  eu  poder  dar  um 
passo,  e  não  vejo  por  ora  modo  de  ir  d'aqui  até  ao  embarque  e  do 
desembarque  até  ao  Forno.  Apenas  poder,  se  poder  dar  um  passo, 
abalo  d'aqui.  O  desamparo  para  mim  é  o  mesmo,  cá  e  lá,  e  só  com 
a  differença  de  estar  lá  na  escuridão  e  melancholia  da  casa,  e  receio 
de  alguma  parede  me  cair  em  cima,  porque  o  senhorio  só  mandou  dei- 
tar remendos,  sem  desfazer  a  barriga  das  paredes.  Que  importa  isto 
a  V.  S.^  para  o  estar  secando  e  zangando  com  estas  ínsigniQcantes  la- 
murias, lamentações  e  tristezas?  Fallemos  n'outra  cousa.  Para  que  é  a 
impaciência  do  P.*  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato?  Ninguém  mais  do  que  eu, 
porque  sou  seu  amigo,  sem  dependência  de  cousa  alguma,  deseja  su- 


26  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

stentar  a  sua  bem  merecida  reputação  1  É  verdade  que  elle  não  neces- 
sita de  mim,  que  nada  sou,  nem  de  outros,  que  serão  poucos  mais  do 
que  eu ;  mas  elle  vivendo  em  Athenas,  não  conhece  tanto  o  tempo  pre- 
sente como  eu,  n'este  canto  do  mundo:  irá  o  Ensaio  na  primeira  re- 
covagem  do  mudo,  e  eu  fallarei  do  Ensaio  na  Besta  15.\  que  vae  de 
galope. 

A  Membraida  não  é  má,  mas  tem  os  versos  errados;  para  os  fa- 
zer é  preciso  mais  alguma  cousa  que  a  boa  vontade:  esle  mal  posso  eu 
remediar,  e  remediarei.  Ahi  vae  o  poema  com  seus  appensos:  pode 
Francisco  Papeleiro  tirar  uma  copia,  e  depois  eu  a  examinarei,  e  im- 
primir-se-ha,  porque  ha  grande  ciúme  sobre  este  original.  A  Carta  do 
Pizarro,  em  que  V.  S.^  me  falia,  aqui  está  já,  e  fallaremos.  Hoje  levan- 
tei-me  para  fazer  a  barba,  forcejarei  por  me  conservar  até  ás  seis  ho- 
ras, irei  ao  Ensaio,  depois  á  albardadura  da  15.*,  que  não  vae  má, 
porque  eu  já  começo  com  os  remédios  necessários  para  curar  os  ma- 
les que  a  Besta  causou.  As  dores,  nem  sentado  me  deixam  estar;  só 
não  podem  fazer  que  eu  não  seja 

De  V.  S.^ 

Certo  e  verdadeiro  amigo 
. . .  Maio  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

XXVI 

III.""  Sr. 

A  mim  não  me  importa  a  casa,  seja  bonita,  ou  seja  feia;  menos 
com  a  gente  d'este,  ou  de  outro  sitio,  que  me  é  indifferente:  gostoso 
estaria  eu  no  Limoeiro,  ou  nas  galés,  com  tanto  que  diminuísse  me- 
tade do  martyrio  das  minhas  infernaes  dores.  O  sitio  não  me  faz  conta 
pelas  importunações  das  visitas,  todos  os  aias  mais  multiplicadas.  Aqui 
apparece  tudo,  excepto  a  saúde;  a  moléstia  é  de  muitos  annos,  não  foi 
aqui  adquirida,  mas  sim  aggravada.  Sempre  padeci  esta  dessuria,  mas 
não  dolorosa,  e  já  lhe  conto  de  edade  trinta  e  oito  annos.  Tem  chegado 
.  ao  extremo  a  dor  em  ambas  as  vias,  e  desde  sabbado  que  estou  como 
desesperado,  e  desejo  do  coração  terminar  a  minha  existência.  Tanto 
quero  ir  para  o  Forno,  que  não  mandei  pôr  escriptos  nas  casas:  to- 
mara eu  não  vêr  gente.  Aqui  veiu  outro  dia  Fr.  Henrique  em  grande 
luxo,  habito,  corda  e  sege,  lavado  em  lagrimas,  e  protestando-me  e 
jurando  que  elle  não  era  culpado  na  capação  da  Besta,  mas  sim  Joa- 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  27 

quim  António,  e  só  Joaquim  António.  A.qui  esteve  lendo  grande  parte 
da  Besta  15.^,  que  julgo  fingia  admirar,  pedindo-me  mil  perdões.  Nada 
me  importa,  façam  o  que  quizerem,  eu  pouco  posso  durar  já.  Não  vae 
hoje  a  tal  Besta  lõ.^,  porque  faltando-lhe  menos  de  duas  paginas,  tem 
sido  hoje  tão  grande  o  inferno  das  dores,  que  com  muito  trabalho  es- 
crevo fora  da  cama  estes  borrões.  O  Provincial  do  Carmo  aqui  esteve 
também,  e  me  disse  que  não  era  censor  do  Ordinário,  mas  sim  do  Des- 
embargo. Seja  o  diabo,  que  é  o  mesmo.  D'esta  Besta  15.^  tomara  eu 
que  se  tirasse  uma  copia,  porque  não  tendo  nada  que  temer  das  cen- 
suras, é  de  tal  natureza  que  temo  que  se  perca,  porque  nem  eu,  nem 
ninguém  fará  outra  assim.  Ainda  que  o  rapaz  dê  sempre  conta  de  si 
e  a  moça  lh'a  cosa  bem  na  jaqueta,  temo  que  se  perca;  e  se  o  José 
Coelho  aqui  vier  sabbado,  por  elle  a  mandarei,  e  se  não  vier  veremos 
como  poderá  ir  sem  receio.  Para  a  16.*  se  eu  não  morrer,  já  tenho 
matéria  n'um  patife  impresso,  que  me  mandaram  com  a  marca  do  cor- 
reio de  Coimbra,  ou  fingida,  ou  verdadeira,  que  se  intitula  :  =  P^aro/ 
da  liberdade  /W5t7a«a  =  Lisboa,  na  OfBcina  Mirandiana,  anno  de  1821. 
—  Com  licença  da  Commissão  de  censura.=Cousa  mais  desavergonhada 
nunca  appareceul  O  P.^  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato,  que  se  persuada  que 
os  que  cá  estão  em  Lisboa  não  têm  quatro  mãos,  ainda  que  haja  mui- 
tos que  tenham  quatro  pés.  Vou  despachar  o  mudo,  porque  sabbado 
me  ha  de  trazer  tabaco,  e  mais  algumas  cousas.  Tenha  V.  S.*  saúde, 
que  é  todos  os  bens 

De  V.  S.* 

Am.°  certo  e  m.^°  obrig.*^" 
. . .  Maio  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

XXVII 

\\\J^°  Sr. 

Esta  vae  em  letra  mais  direita,  porque  ainda  que  penetrado  de 
medonhas  dores,  quaes  até  hontem  não  tinha  soffrido,  vindo  o  barbeiro 
e  apparecendo  o  sol,  aquelle  para  me  lavar  o  couro,  e  este  para  me 
aquecer,  me  levantei,  e  aqui  estou  olhando  com  dó  da  Besta  sobre  esta 
banca,  só  com  metade  da  pelle  fora:  esta  tarde,  se  as  dores  me  de- 
rem uma  hora  de  menos  sofifrimento,  levará  mais  alguns  talhos.  Tam- 
bém estou  cheio  de  furor,  para  escrever  sobre  o  opúsculo  impio,  e  ar- 
razar  na  Carta  ao  P.®  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato  semelhante  desaforo;  mas 


28  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

que  horrível  é  este  mall  é  preciso  pôr  de  instante  a  instante  sobre  esta 
região  ordinária  uma  baeta  quente,  a  ferver,  para  poder  exhalar  a  re- 
spiração do  peito,  que  até  se  comprime:  digo-lhe  a  verdade  como  amigo, 
chego  em  suores  frios  a  artigo  de  morte.  Aqui  me  escreve  o  Lopes, 
e  algumas  novidades  me  dá  sobre  o  impresso  de  França,  que  chegou 
hontem.  Renduffe  e  Palmella  estão  em  Paris.  Faz  de  embaixador  de 
Portugal  em  Londres  o  embaixador  de  Hespanha,  em  quanto  se  não 
declara  o  Asseca.  E  mais  que  secca  são  já  estas  cousas!  No  erário  de 
quinta  feira  não  havia  mais  que  quarenta  mil  réis,  e  a  rainha  a  pedir 
a  sua  dotação,  e  não  apparecerem  em  diversas  repartições  mais  que 
três  contos;  e  como  se  eu  fosse  financeiro,  que  apresente  o  prospecto 
do  empréstimo I  Eul  Pois  não  fartem  tanto,  que  logo  ha  dinheiro.  Te- 
nha V.  S.*  muito,  e  aquella  saúde,  que  para  si  deseja 

J.  A.  de  M. 
...  1829. 

XXVIII 

111.""»  Sr. 

Primeiro  que  tudo — Ensaio.  Eu  formei  logo  o  meu  juizo  d'este 
papel,  que  o  nome  illustre  do  seu  auctor  acreditava,  sem  necessitar 
de  outros  appendiculos:  quiz  ouvir  outros  votos,  porque  a  esta  impor- 
tunadissima  casa  vem  mais  algum,  que  não  sejam  os  ordinários  falla- 
dores.  O  Provincial  do  Carmo,  como  tem  um  anel  muito  grande,  foi 
um  dos  consultados,  por  ter  noticia  do  mesmo  Ensaio.  Além  d'este 
outros  mais,  com  anéis  e  sem  anéis,  e  todos  têm  concordado  que  o 
que  se  tira  do  papel  é  ficar  a  canalha  decorando  e  repetindo  as  blas- 
phemias  contra  a  religião,  nenhum  caso  fazem  das  respostas,  que  para 
os  doctos  são  ociosas,  ê  para  os  ignorantes  inúteis.  Isto  é  o  que  não 
quer  entender  o  P.®  M.°  Dr.  Fr.  Fortunato,  que  pelo  que  pertence  ao 
conhecimento  do  mundo  actual  é  um  sancto  simples.  Eu  sou  zeloso 
do  seu  bom  nome,  assim  como  sou  o  primeiro  conhecedor  do  seu  ex- 
traordinário merecimento.  Será  para  mim  uma  oífensa  suppôr  alguém 
que  eu  tenha  interesse  em  que  este  papel  se  não  imprima.  O  P.®  M.® 
Dr.  Fr.  Fortunato  está  em  melhor  posição  do  que  eu  para  compor 
dissertações  que  refutem  cabalmente  aquelles  erros  Ímpios:  para  ellas 
vive  entre  exércitos  de  livros,  eu  não  os  tenho,  não  os  quero,  não  os 
posso  vêr,  nem  quero  vêr:  para  as  puerilidades  que  escrevo  basta  a 
minha  imaginação.  Faça  elle  o  que  quizer; — o  Ensaio  ahi  vae.  Vae 
o  n."  16  da  Besta,  para  ser  capada  como  fizeram  ao  n.°  15,  porque 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  29 

lhe  falta  todo  o  legado  das  peles  para  os  doidos  do  hospital;  são  cou- 
sas que  fazem  um  vasio  no  discurso,  que  todos  percebem;  e  se  é  sub- 
stituído por  Fr.  Henrique,  é  ouro  sobre  azul!  E  tanto  me  hão  de  apu- 
rar, que  este  tinteiro  irá  por  aquella  janella;  para  o  rol  da  roupa,  que 
não  é  muita,  basta  giz:  e  muitos  papeis,  que  estão  no  Forno,  virão 
para  aqui  n'um  sacco,  para  se  porem  n'um  fogareiro.  A  minha  vida 
está  por  um  bem  delegado  fio,  a  pedra  está  atravessada  na  uretra, 
já  sahiu  uma  lasca  mais,  comecei  a  inchar  muito,  e  como  chega  aos 
joelhos,  já  não  posso  andar.  É  preciso  tomar  pilulas  de  ópio  para  dor- 
mir meia  hora;  as  dores  são  de  morte,  e  até  ella  será 


De  V.  S.* 

Amigo 
7.  A.  de  M. 


29  de  Maio  de  4829. 


XXIX 


111.'"''  Sr. 


Hontem  quarta  feira  foi  para  mim  um  dia  de  morte:  ás  duas  ho- 
ras estive  quasi  a  expirar,  e  não  esperava  vida :  deram-me  uma  ajuda 
de  dormideiras  e  linhaça,  com  que  á  noute  senti  algum  allivio;  eu  ba- 
talho contra  a  natureza,  e  contra  a  terrível  enfermidade.  Hoje  me  le- 
vantei, com  dores,  é  verdade;  mas  não  d'aquellas  que  me  deixam  im- 
movel,  n'um  espasmo  mortal.  Tinha  vindo  da  tenda  uma  quarta  de 
toucinho,  embrulhado  em  meia  folha  de  papel  impresso,  era  do  Diá- 
rio das  Cortes  de  1822 :  n'ella  achei  tal  matéria,  que  logo  dei  principio 
ao  n.**  18,  que  agora  é  meio  dia,  levo  quasi  em  meio,  e  hão  de  dizer 
que  é  o  melhor,  e  dizem  a  verdade:  o  titulo  é: — Os  dois  focinhos  da 
Besta: — queira  Deus  que  acasos  como  este  vão  trazendo  matéria,  por- 
que a  imaginação  cansa,  tudo  d'ella  nasce,  e  nada  por  ella  entra.  Ad- 
miro-me  do  vagar  com  que  as  Bestas  vão!  Ainda  para  quarta  feira?  Já 
comecei  a  trasladar  o  grande  Poema,  devagar  vae,  porque  na  copia 
torno  a  renovar  tudo,  e  o  meu  estado  não  me  dá  nem  tempo  nem  for- 
ças. Hontem  foi  um  dia,  em  que  não  escrevi  uma  regra.  Aqui  veiu  o 
irmão  do  111.'°'°  ex-Geral  Fr.  António  da  Silveira,  lá  lhe  disse  que  tudo 
faria  para  o  encaminhar  no  que  soubesse,  e  no  que  dependesse  de  re- 
presentações e  requerimentos;  passos  não  posso  dar,  e  com  ministros 


30  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

tão  malhados  nenhumas  relações  queria  ter.  Eu  responderei  sabbado 
ao  mesmo  111.°^°,  pois  me  escreveu  uma  carta  com  que  e  em  que  muito 
me  honra;  e  eu  a  tenho,  em  ser 

Am."  verdadeiro 

De  Y.  S.* 

J.  A.  de  M. 


14  de  Junho  de  1829. 


XXX 


111.'°°  Sr. 


Não  tem  intervalos  as  dores,  se  os  tivessem  eu  poderia  fazer  o 
que  me  diz,  e  mais  alguma  coisa;  e  assim  mesmo,  o  1.°  canto  da  Via- 
gem extática  ao  Templo  da  Sabedoria  já  está  tirado  a  limpo,  e  que  tra- 
balho! A  Besta  20.^  está  começada  com  três  paginas.  As  visitas  são 
obstáculos  ainda  maiores;  hontem  me  levaram  a  tarde  três  carcundas 
de  Lisboa;  levou-me  esta  manhã  um  frade  do  Bom  Successo,  bom  ho- 
mem; de  tarde  verei  se  faço  alguma  cousa,  apesar  de  me  sentir  mais 
doente  com  um  remédio  que  me  receitou  o  medico,  e  aqui  um  cirur- 
gião, que  me  diz  que  a  herva  de  que  se  compunha,  chamada  arnica, 
é  ura  estimulante  com  quasi  a  mesma  força  da  machina  eléctrica!  Se 
a  natureza  ia  arrojando  as  lascas  de  pedra,  depois  do  remédio  não  tem 
saido,  e  sinto-as  encalhadas  com  dores  mortaes.  Não  sei  que  diga  a 
V.  S.^  com  o  poeta  Nápoles!  É  preciso  inventar  alguma  jesuítica  para 
nos  descartarmos  de  tal  homem;  ainda  não  foi  possível  deixar- me  di- 
zer uma  palavra,  em  tantas  e  tão  longas  visitas !  Vou  a  fallar  e  logo 
me  atalha,  fico  interdicto:  o  que  me  faz  a  mim  fará  aos  outros ;  só  elle 
ha  de  fallar:  com  a  doença  tenho  perdido  o  génio  destampado,  se  não 
tinha  atirado  pela  escada  abaixo  com  aquelle  fallador,  e  outros  quetaesi 
Homem  assim  não  ha,  e  lembra-me  dizer-lhe  que  não  dão  licença  aos 
seus  versos.  D'elles,  e  d'elle  livre  Deus  a  V.  S.^  e  lhe  dê  aquella  saúde, 
que  lhe  deseja 

Seu  am.°  obrigadissimo 

30  de  Junho  de  1829. 

J.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  31 


XXXI 

111.""»  Sr. 

Começo  por  fallar  na  Membraida  e  seus  appendices;  e  sem  impa- 
ciência nâo  posso  olhar  para  semelhante  papel.  Julgo  que  V-  S.^  não 
conhece  particularmente  o  poeta,  e  por  isto  não  o  ouviria  ainda  fallar. 
Veiu  aqui  muitas  vezes  de  dia,  e  de  noite,  demorando-se  sempre  mui- 
tas horas;  pois  creia  que  me  não  foi  possível  fazer  que  me  ouvisse  uma 
só  palavra!  Abria  eu  a  boca,  e  á  primeira  syllaba  era  atalhado,  de  sorte 
que  nunca  me  ouviu;  ás  vezes  com  pasmo,  e  riso  dos  circumstantes: 
isto  não  é  encarecimento,  nunca  me  ouviu  uma  palavra:  o  que  me  fez 
a  mim,  julgo  o  fará  a  todos,  é  cousa  a  mais  rara  que  appareceu  na 
terra!  Outra  raridade,  elle  diz  que  é  poeta,  eu  sem  jamais  dizer  que  o 
sou,  tenho  escripto,  e  se  tem  publicado  immensos  versos.  Em  Coimbra 
se  conhecem  todos  os  poemas,  todas  as  composições;  elle  é  de  Coim- 
bra, e  em  Coimbra  está,  pois  protestava  sempre  que  nem  um  só  verso 
meu  tinha  lido,  nem  sabia  que  eu  tivesse  feito  semelhante  cousa.  Quasi 
o  mesmo  dizia  das  prosas,  sendo  tantas;  e  que  apenas  lera  um  ou  ou- 
tro artigo  da  Gazeta  Universal.  Se  houvesse  cousa  no  mundo  de  que 
eu  ao  presente  podesse  fazer  caso,  seria  esta,  em  que  o  devia  deitar 
pela  escada  abaixo.  Já  disse  a  V.  S.*  quaes  eram  as  condições  com  que 
me  conSava  os  seus  poemas,  em  ár  de  quem  queria  valer  á  minha  po- 
breza, outra  injuria  não  menos  atroz!  Parece-me  pois  que  a  medida 
que  se  deve  adoptar,  é  remetter-lhe  para  Coimbra  taes  destemperos, 
sem  lhe  escrever  nem  uma  palavra,  já  que  nunca  me  deixou  dizer  nem 
uma  palavra,  também  não  deve  vêr  nem  uma  palavra  escripta.  Eu  sou 
extremamente  amigo  do  P.®  M.®  Dr.  Fr.  Fortunato,  mas  não  lhe  per- 
doarei nunca  ter-me  mandado  para  cá  tal  jóia!  Homem  com  mania  de 
versos  é  cousa  detestável;  e  ando  tão  farto  de  parvoíces  em  tal  maté- 
ria, que  não  posso  fallar  nem  ouvir  fallar  em  versos.  Protesto  que  se 
continuar  a  existir  (de  que  duvido)  mais  algum  tempo,  que  este  orate 
terá  o  logar  mais  distincto  no  poema  dos  Burros^  e  que  se  elle  nunca 
viu  um  verso  meu,  então  os  verá! 

Eu  estou  cada  vez  peor,  são  maiores  as  dores,  e  chegam  a  tanto, 
que  me  sae  pela  boca  o  sangue  do  peito  ha  quatro  dias:  não  posso 
dar  um  passo  pela  casa,  e  para  vir  da  cama  sentar-me  a  esta  meza, 
é  preciso  encostar-me  ás  paredes  muito  curvado:  agora  n'este  instante 
que  é  meio  dia,  7,  estou  supportando  tal  marlyrio,  que  é  milagre  não 


32  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

morrer  â  violência  das  dores;  vou  já  deitar-me  outra  vez:  peito  e  ca- 
beça tudo  está  tomado,  até  parece  que  estalam  as  solas  dos  pés,  por- 
que as  dores  vão  ás  extremidades!  Deixemos  isto.  Recebi  a  carta  do 
111."°  Sr.  José  Teixeira;  a  outra  desde  domingo  estava  feita,  visto  não 
servir,  elle  dirá  o  que  quer  que  eu  faça.  Estimo  que  as  Bestas  achem 
tão  prompto  expediente  no  despacho,  e  que  este  confunda  o  pérfido 
capucho.  De  novo  agradeço  a  V.  S.*  o  precioso  doce;  de  tarde  sem- 
pre como  um  bocadinho,  com  que  bebo  um  copo  de  agua  fria,  que  me 
refrigera.  Estimarei  que  haja  boas  noticias  do  111.'°°  Sr.  P.°  Geral,  e 
do  P.°  M.®  Fr.  Álvaro,  e  que  V.  S.*  goze  as  felicidades  que  lhe  deseja 

Seu  am.°  obrig."»" 
7  de  Julho  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

XXXII 

111."^°  Sr. 

Li  com  muito  prazer  a  sua  carta,  e  quanto  mais  ia  chegando  ao 
fim,  mais  me  alegrava,  e  me  luzia  o  olho;  mas  é  verdade  que  n'este 
mundo  não  ha  gostos  completos,  porque  suspendendo  com  impaciência 
a  leitura  do  que  vinha  na  margem,  abro  a  enfeitada  caixa,  e  em  logar 
de  suavíssima  abóbora,  acho-me  com  a  pimenta  das  murcellas;  mas 
como  vem  da  mão  de  V.  S.%  não  me  poderão  fazer  mal.  Da  abóbora 
anterior  ainda  tenho,  porque  é  cousa  que  vae  muito  compassada,  e  com 
muita  economia.  Vão  os  números  do  Mastigoforo;  nada  tem  que  accres- 
centar,  tudo  tem  que  admirar,  e  muito  poderão  ensinar  aos  que  com 
attenção  e  inteligência  os  lerem.  Levam  uma  censura,  que  é  um  elo- 
gio, como  ainda  se  não  fez  a  ninguém;  tem  poucas  regras,  e  eu  de- 
sejava que  V.  S.*  mandasse  uma  copia  ao  P.°  M.^  Dr.  Fr.  Fortunato, 
para  elle  mostrar  a  tantos  doctores  seus  collegas,  para  que  vejam  o 
que  produz  a  illustre  e  mui  respeitável  congregação  de  S.  Bernardo. 
Hontem  de  tarde  comecei  a  Besta  22;  se  não  fossem  as  minhas  mor- 
taes  dores,  e  as  minhas  matadoras  visitas,  já  a  levaria  bem  adiantada. 
Agora  me  occupará  mais  cousa  do  ministério,  porque  apparece  ahi  um 
artigo  da  Gazeta  de  Munich,  a  que  é  preciso  acudir,  e  levará  tempo: 
assim  mesmo  irei  albardando,  apezar  de  uma  inflammação  dolorosa  no 
olho  esquerdo,  e  amanhã  hei  de  saber  se  a  impugnação  do  artigo  infame 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  33 

poderá  ir  na  albardadura  da  mesma  Besta.  Deus  nos  livre  d'8llas,  e 
Deus  guarde  a  V.  S.*,  como  deseja 

Seu  amigo  o  mais  obrig.*^" 
27  de  jQlho  de  1829. 

J.  A.  de  M. 

XXXIII 

Ill.°>°  Sr. 

Se  a  inclusa  carta  não  failasse  no  seu  nome,  e  se  o  seu  auclor  se 
não  declarasse  visita  sua,  de  camaradagem  com  o  conhecido  Visconde 
de  Manique,  eu  nem  lh'a  remettia,  nem  o  importunava  com  a  leitura 
de  patifarias  e  insolências.  Esta  leitura  o  instruirá  bastantemente  no 
manejo  dos  meios  infames,  de  que  se  servem,  cuidam  elles,  para  me 
mortificar.  A  invenção  de  ouvirem  o  magote,  que  muito  alto  faltava, 
para  que  os  dois  ouvissem,  é  infame.  V.  S.*  deve  ler  a  carta  ao  tal 
Visconde,  e  saber  d'elle  se  é  real,  se  é  phantastico  o  subjeito  que  se 
diz  seu  amigo  e  sen  collega,  e  que  se  assigna  —  José  Pedro  d'Azam- 
buja  —  declarando-se  morador  no  quartel  da  rua  formosa.  Creio  que 
tudo  isto  é  invenção  dos  que  mais  se  doem  das  matadnras  da  Besta. 
Eu  espero  que  V.  S.*  empregue  todo  o  seu  claro  juizo,  e  admirável 
perspicácia  no  exame  d'esta  patifaria.  Bom  collega  tem  o  Visconde!  Se 
a  Besta  continuar,  eu  me  desforrarei  com  estes  senhores  do  quartel, 
instrumentos  promptos  sempre  para  as  nossas  desgraças.  Eu  nada  te- 
nho escripto,  porque  alem  da  enfermidade  habitual  mais  exaltada,  te- 
nho soffrido  uma  inflammação  no  olho  esquerdo,  com  horríveis  dores 
de  cabeça;  estou  sempre  bloqueado  de  curiosos,  uns  trazem  os  outros, 
e  o  tempo  que  posso  estar  fora  da  cama  vae-se  no  tormento  das  visitas. 
Hontem  de  tarde  se  apresentou  aqui  o  poeta  Membradeiro,  que  veiu 
em  ár  de  triumpho  exprobrar-me  um  erro  palmar  que  achou  na  Besta 
21%  em  que  digo  que  Leão  12°  fez  o  que  não  tinha  querido  fazer 
Urbano  8°  com  el-rei  D.  João  IV,  que  foi  mandar  o  Leão  uma  espécie 
de  núncio,  que  ahi  está,  o  que  não  fez  Urbano.  Vinha  o  tal  mentecapto 
Membrisador  em  ár  de  me  humilhar.  Antes  desse  no  P.®  M.®  Dr.  Fr. 
Fortunato  uma  dor  de  barriga  forte,  que  quer  que  se  imprima  uma 
das  suas  quintilhas  com  este  verso:  — E  a  tripa  cagaiteiraí  Maluicta 
seja  a  mania  dos  versos!  Todos  os  querem  fazer,  não  sei  como  me  hei 
de  ver  livre  d'este  furioso.  V.  S.^  me  annuncia  uma  cousa,  que  me 
poz  já  no  alvoroço  e  na  impaciência  de  a  fazer:  venha  já,  e  logo  a 
oração  latina,  que  eu  lhe  porei  em  frente  tal  versão  portugueza  e  lit- 

CARTAS.  3 


34  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

teral,  que  faça  eternas  ambas  as  cousas.  O  lente  de  prima  de  theologia 
Fr.  Domingos  de  Carvalho,  frade  da  Graça,  me  mandou  por  casa  do 
Patriarcha  uma  carta  com  uma  oração  latina;  mas  nem  carta,  nem 
oração  eu  entendo,  porque  não  atino  a  decifrar ,as  garatujas  das  letlras; 
ahi  está,  e  deixal-a  estar. 

Sobre  a  lembrança  do  periodo — Amalgamador — que  exigiam,  es- 
crevi (e  tanto  mal  fizl)  ao  Visconde  de  Queluz,  para  fazer  vêr  a  El  rei 
que  não  convinha,  e  que  nem  sabiam  o  que  pediam,  mostrando-lhe  que 
nas  actuaes  circumslancias  eram  necessárias  três  cousas,  e  que  todas 
três  eu  faria:  —  i.^  uma  Falia  d'Elrei  á  nação,  cousa  que  ainda  se  não 
fez,  e  na  qual  mostrasse  uma  espécie  de  agradecimento  aos  sacrifícios 
que  a  mesma  nação  por  elle  tinha  feito,  manifestando-lhe  evidentemente 
os  direitos  que  o  chamavam  ao  throno,  promettendo  não  amnistia,  que 
é  palavra  que  não  deve  jamais  sahir  da  bocca  do  Rei,  mas  perdão,  que 
não  ofifende  a  justiça,  aos  que  se  julgasse  que  o  mereciam  por  erros 
de  entendimento. — 2.^  Um  vigoroso  Manifesto  ás  nações,  que  ainda  es- 
tão suspensas,  com  magestade  e  sem  choradeiras. — 3.^  Um,  ou  mais 
discursos  na  Besta  esfolada,  em  que  se  chamem  todos  os  portuguezes 
a  um  centro  de  união,  de  auctoridade  e  de  obediência,  para  vantagem 
da  mesma  nação,  formando  um  systema  de  interesse  commum.  Re- 
spondeu-me,  de  palavra  já  se  sabe,  que  elle  faria  vêr  a  carta  a  El-rei, 
mas  que  eu  devia  recorrer  pelo  canal  competente,  que  era  a  Intendên- 
cia, dizendo  aquillo  mesmo  ao  Intendente  para  propor  a  El  rei  1  Eis-me 
aqui  no  estado  miserável  de  pretendente,  arrastado  pelas  estações,  para 
me  deixarem  fazer  aquillo  mesmo  que  me  pedem  que  faça ! 

Aqui  chegava,  quando  o  rei  dos  mudos  também  chegou,  e  foi  para 
mim  agradável  o  annuncio  da  moça  (que  falia  de  mais)  quando  abrindo 
a  porta,  gritou: — Chegou  o  sr.  João. — V.  S.*  me  quiz  logo  fazer  a  bocca 
doce,  porque  eu  já  não  estava  muito  cousa,  com  a  falta  das  suas  noti- 
cias, ambos  nos  queixamos,  e  nem  eu,  nem  V.  S.^  temos  razão.  Fallei 
no  acabamento  da  Besta,  porque  me  deixei  levar  do  receio  de  que  V.  S.* 
se  enfadaria  de  ser  mettido  nas  barafundas  de  diligencias  e  passos  ne- 
cessários para  licenças,  impressões,  preparos  de  papel,  e  tantas  pen- 
dangas  indispensáveis  para  tão  pequenas  cousas,  que  tanto  tempo  re- 
querem; eis  aqui  o  único  motivo  da  minha  lembrança,  e  mais  nada; 
porque  eu  nos  intervalos  do  meu  insoffrivel  mariyrio,  e  das  minhas 
destampações  com  as  visitas  posso  escrever;  a  matéria  sempre  appa- 
recCj  e  eu  sei  estendel-a  a  martello;  gritem  embora  esses  senhores, 
que  dizem  ouviram  na  rua  os  do  magote.  Se  o  calor  me  deixar  esta 
arde,  entre  dores  começarei  a  23.^  Vejo  que  a  cousa  vae  de  través, 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  35 

apezar  do  conciliador  Lopes,  que  aqui  esteve  antes  de  hontem  até  mui 
de  nonte,  me  querer  fazer  palpar  com  as  mãos  a  nossa  felicidade.  Aqui 
tinha  passado  El  rei  n'esse  dia,  e  com  pasmo  e  até  susurro  festival  da 
gente  da  rua  e  das  janellas,  me  disse  adeus  com  a  mão  direita,  pas- 
sando as  rédeas  para  a  esquerda,  pois  ia  governando  as  bestas,  de- 
pois uma  cortezia  com  a  cabeça,  e  finalmente  meio  levantado  uma  cor- 
tezia  com  o  chapéo  até  abaixo.  Tudo  isto  é  muito,  mas  eu  comprei 
hoje  por  setenta  réis  um  grande  linguado,  uma  abóbora  muito  grande 
por  meio  tostão,  e  dez  réis  de  pepinos,  tudo  com  o  dinheiro  das  Bes- 
tas I  Aviemos  com  isto,  são  duas  horas;  vai  essa  caria  para  o  P.®  iM.® 
Fr.  Álvaro  Vahia ;  vão  os  papeis  para  o  111.™°  Sr.  José  Teixeira,  e  aqui 
fica  seu  amigo  o  mais  obrigado. 

/.  A.  de  M. 
. . .  Agosto  de  1829. 

XXXIV 

111.'°°  Sr. 

Recebi  a  carta  de  V.  S.*  por  mão  de  José  Coelho,  que  muito  es- 
timei, por  tudo  que  n'ella  se  contém ;  sei  que  vieram  os  Jesuítas,  por 
que  n'elles  se  põe  alguma  confiança :  o  que  elles  fazem  também  os  ou- 
tros podiam  fazer,  se  as  cousas  se  tratassem  seriamente,  e  se  em  tudo 
e  de  tudo  não  dispozesse  a  pedreirada,  e  se  muitas  das  corporações 
religiosas  não  estivessem  tão  contaminadas.  Tudo  o  que  nós  dizemos 
para  o  bem  é  governar  o  mundo  em  secco.  Eu  estou  aqui  feito  uma 
péla,  com  que  todo  o  mundo  joga;  todos  aqui  vêm,  ou  aqui  mandam, 
para  que  eu  ponha  isto,  ou  aquillo  na  Besta;  cada  um  quer  a  cousa  a 
seu  modo;  gritam-me,  reprehendem-me,  porque  não  fallo  nos- emigra- 
dos trasmontanos,  porque  não  ralho,  porque  os  não  despacham;  por- 
que não  louvo  como  devia  os  realistas ;  outros  vêm,  que  querem  uma 
tunda  no  ministro  das  Justiças ;  outros  querem  tunda  no  Bastos ;  outros 
que  devo  ralhar  da  promoção;  um  quer  o  monte-pio,  outro  quer  me- 
lhor vacca  para  o  açougue.  A  Rainha  ralhou  da  observação  da  i2*; 
logo  aqui  vem  um  clérigo  por  mandado  d'ella  dizer-me  o  que  eu  devo 
escrever.  Foi  mostrar  a  El  rei  a  Besta  esfolada,  porque  até  alli  nem  um 
só  numero  appareceu  diante  d'elle.  Entendam  lá  similhante  inferno!  A 
Besta  24*  está  quasi  acabada,  e  se  não  fossem  as  visitas  agora  a  po- 
deria mandar.  Estou  perplexo.  V.  S.*  vai  para  a  Venda-secca,  não  sei 
como  isto  será;  eu  não  mando  tal  papel  por  mãos  extranhas,  que  pode 
haver  desvio,  e  cousas  taes  não  se  podem  compor  duas  vezes,  porque 


36  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

é  um  esforço  de  imaginação  tirar  do  nada  tanta  cousa.  Se  a  V.  S.*  pa- 
recer, eu  paro  até  que  V.  S.*  torne  para  Lisboa;  esta  mesma  Besta, 
quasi  concluida,  aqui  ficará:  custa-me  que  tanto  trabalho  se  arrisque. 
— ^ão  importa  que  me  yenbam  descompor  por -não  apparecer  a  Besta. 
Espero  sobre  isto  as  suas  instrucções,  ou  as  providencias  que  tenha 
dado  para  o  expediente.  Eu  estou  gravemente  enfermo;  além  da  mo- 
léstia habitual,  deito  pela  boca  muito  sangue  pizado,  cousa  medonha  1 
O  olho  esquerdo  inflammado,  com  grandes  dores  internas;  emfim  es- 
tou como  desesperado,  sem  apparencia  de  outo  dias  de  alguma  me- 
lhora, para  me  ir  sepultar  no  Forno,  e  vêr-me  livre  de  tantos  diabos, 
que  têm  feito  d'esta  casa  uma  estalagem,  onde  cada  um  entra  quando 
quer,  e  vem  mandar  o  que  quer,  e  até  dizer-me  na  minha  cara  o  mal 
que  dizem  de  mim  por  essa  Lisboa,  sobre  Besta  má,  sobre  Besta  boa; 
só  me  falta  virem  também  regular  as  horas  em  que  devo  ir  ao  bispote, 
e  o  tempo  que  n'elle  me  devo  demorar  I  Ahi  vem  logo  o  Visconde  de 
Monfalegre,  e  que  tenho  eu  com  as  asneiras  que  elles  fizeram  em  Cas- 
tella?  Deixemos  isto.  Mande  V.  S.^  dizer  o  que  eu  devo  fazer  emquanto 
se  demorar  na  Venda-secca,  e  como  deve  ser  isto  de  impressões. 

Am.°  obrig.°'° 
. . .  Agosto  de  1829. 

J.  A.  de  M. 

'xxxv 

111.'"°  Sr. 

H  ontem  pelas  dez  horas  da  manhan  chegou  a  esta  casa  de  dores 
e  zangas  uma  deputação  da  nação  alcatruzada,  composta  de  três  mem- 
bros, um  lente  da  Universidade,  um  tenente-corouel  de  grandes  ser- 
viços, F.  Gamboa,  e  um  cónego  de  Bragança,  F.  Araújo,  que  foi  pela 
Besta  degradado  para  Sagres  em  1822:  julgo  que  o  lente  trazia  arenga 
estudada,  porque  me  aposlrophou  em  forma,  e  com  acções;  ella  durou 
tanto,  que  o  mijo  se  me  não  conteve,  e  com  grande  dôr  mijei  a  camisa, 
e  as  calças  todas:  eu  lhes  respondi,  que  me  dessem  licença  para  me 
ir  alimpar,  e  que  no  emtanto  estivessem  certos,  que  a  Besta  27*  não 
ficava  na  estrebaria,  e  que  eu  a  ia  logo  acabar  de  albardar.  Depois  de 
eu  mudar  de  calças,  ainda  que  não  tivesse  muita  vontade  de  fallar,  lá 
lhes  fiz  o  meu  quanquam  como  Deus  me  inspirou,  agradecendo  á  na- 
ção golfinha  o  seu  cuidado,  e  desvanecendo  o  seu  sobresallo.  A  Besta 
vai,  digam  isto  á  Nação,  a  Besta  vai,  e  vai  de  sorte  que  não  possam 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  37 

pernear  os  censores  bestas.  Este  é  o  discurso  qae  pronunciei,  pouca 
eloquência  de  corpo,  ou  poucas  acções,  porque  eu  não  me  posso  me- 
cher  com  dores.  Já  tive  outro  caso  idêntico,  quando  disse  que  não  con- 
tinuava mais  com  o  Desappromdor,  que  uma  sociedade  a  que  presidia 
Ricardo  Raymundo  fez  o  mesmo,  mandando-me  um  discurso  da  lavra 
do  mesmo  Ricardo,  que  eu  aqui  conservo  pela  sua  lettra,  e  é  uma  mi- 
séria de  emendas,  de  entre-linhas,  e  chamadas  f  Eu  lh'o  mandarei,  ou 
darei,  se  V.  S.*  quando  poder,  e  não  tenha  nada  que  fazer,  cá  vier.  O 
Visconde  de  Queluz  não  fica  pobre,  porque  o  não  é  quem  tem  a  que 
se  torne;  a  loja  lá  está  ainda  á  entrada  da  lameda  de  S."*  António  dos 
Capuchos;  estojo  não  lhe  faltará,  e  o  P.®  M.®  Fr.  Álvaro,  que  é  curioso, 
lhe  pode  acudir  com  um,  que  algumas  vezes  lhe  vi,  e  é  um  acto  de 
caridade  acudir  a  um  official  pobre :  torne  a  levar  couro  e  cabello,  já 
que  não  pode  evitar  esta  escanhoação. — Beatissime  Pater,  sic  transit 
gloria  mundi.—  ^\\iò  poderá  dizer: — Gontenta-te,  papo,  que  já  foste 
farto. — Talvez  que  não  seja  por  fartar  o  próprio,  mas  por  encher  o 
ventre  alheio!  Se  eu  lhe  disser  que  foi  muito  rapaz,  elle  me  pode  re- 
torquir que  também  isto  é  muito  esfolar.  V.  S.*  também  me  poderá  di- 
zer, e  com  razão,  que  também  isto  é  muito  seccar;  pois  eu  me  calo, 
e  só  lhe  digo  com  verdade  que  sou 

De  V.  S.* 

Am.**  certo 

/.  A.  de  M. 


. . .  Septembro  de  i829. 


XXXVI 


III.'"»  Sr. 


Estou  como  cançado  de  fazer  reflexões  sobre  o  laço  armado  á 
Besta;  hontem  depois  que  d'aqui  sahiu  o  P.®  M.°  Fr.  Álvaro,  entrou  um 
sujeito  da  contadoria  do  Senado,  homem  de  consideração  e  propósito, 
o  qual  quinta  feira  tomou  á  sua  conta  averiguar  tudo  o  que  perten- 
cesse ao  embaraço  maçónico  da  mesma  Besta.  O  censor  nomeado  pelo 
Desembargo  é  um  Mr.  Martin,  engenheiro,  e  empregado  na  bibliotheca, 
malhado  furioso,  ignorantíssimo  e  verdadeiro  patife,  e  assim  conhe- 
cido, e  segundo  se  disse  do  mesmo  Desembargo  para  fora,  escolhido 
para  isto :  e  um  filho  de  Joaquim  Ferreira  dos  Santos  disse  ao  tal  su- 
jeito tudo,  e  até  lhe  fez  vêr  por  extenso  a  censura.  O  primeiro  passo 
que  deve  dar  é  responder  como  pede  o  desaforo,  ao  extracto  da  mesma 


38  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

censura,  que  por  todos  os  modos  se  me  deve  apresentar:  isto  vai  ao 
Desembargo,  que  remelte  ao  censor,  para  este  sustentar  a  sua  deci- 
são: eis  aqui  obra  ao  menos  de  um  mez,  porque  se  concede  o  espaço 
que  pedem,  e  desde  este  momento  começa  um  processo  infinito,  por- 
que o  Desembargo  nunca  decide  sem  se  satisfazer  o  censor:  á  vista 
d'isto,  o  recurso  é  um  aviso  para  um  censor  privativo;  peior,  e  muito 
peiorí  Em  1827,  quando  escrevia  as  Cartas,  veiu  esse  aviso  das  Cal- 
das; e  porque?  Porque  Abrantes  o  propoz,  e  logo  a  Infanta  o  mandou 
passar.  Creia  V.  S.*  que  se  por  extraordinário  milagre  o  requerimento 
chegasse  ás  mãos  de  El  rei,  e  elle  mandasse,  nunca  se  passaria  no 
actual  ministério  1  Sei,  como  sei  que  existo  e  penso,  que  o  Duque  é 
capital  inimigo  meu,  e  que  nunca  soíTreu  taes  escriptos,  porque  eu  sou 
realista,  e  o  tenho  mostrado.  Se  fosse  preciso  um  aviso  para  sahir  o 
viatico,  todos  os  doentes  morriam  sem  sacramentos.  Este  aviso  per- 
tencia aos  Negócios  do  reino,  e  esse  homem  deseja  esquartejar-me: 
bem  viu  V.  S.^  qual  foi  o  resultado  da  carta,  que  eu  lhe  escrevi.  Por 
escripto  já  me  dirigi  ao  actual  Intendente,  para  que  Sua  Magestade, 
visto  msndar-me  escrever  tão  positivamente,  me  nomeasse  um  censor; 
nem  resposta  tive,  nem  em  tal  se  fallou.  Pela  Bainha?  Peior,  eu  não 
creio  impostores,  que  inculcam  valimentos  e  inlroducções.  Desde  que 
estou  entrevado,  e  se  me  encheu  a  casa  de  todo  o  género  humano, 
conheço  verdadeiramente  os  homens.  Aos  grandes  influentes  não  agrada 
a  Besta,  foi  preciso  indirectamente  acabar  com  ella,  e  o  conseguiram. 
JVunca  me  esquecerá  o  que  me  disse  Manuel  Fernandes  Thomaz:  — 
Que  estimava  ter  o  poder  nas  mãos,  para  pôr  no  meio  da  rua  o  Des- 
embargo do  Paço,  que  nunca  fez  mais  que  bigodear  o  governo. 

É  preciso  pois,  que  me  seja  remettido  o  extracto  da  censura,  eu 
responderei,  e  se  farão  duas  copias,  uma  para  o  Desembargo,  outra 
eu  a  darei  a  quem  em  audiência  a  apresente,  e  saiba  gritar  a  El  rei. 
Para  defender  El  rei  me  fiz  eu  victima  do  ódio  publico,  e  por  fim  o 
premio  que  recebo  é  uma  desfeita,  e  por  mãos  de  um  patife  e  igno- 
rantíssimo malhado  í  Aqui  chegava  hoje  sabbado,  pelas  nove  horas  da 
manhan,  quando  me  appareceu  o  mudo  com  a  carta  de  V.  S.*  e  vejo 
que  o  expediente  que  toma  é  o  que  elles  querem ;  porque  se  absolu- 
tamente não  supprimirem  a  Besta,  ao  menos  Iodas  apparecerão  d'aqui 
por  diante  mutiladas,  sem  sentido,  e  sem  graça  nenhuma.  Christina 
Alexandra  I  Pois  que  delicto  é  este,  fallar  de  uma  Rainha  de  Suécia, 
do  tempo  de  El  rei  D.  João  IV?  O  monge  disse  mais  do  que  eu  digo, 
ha  testemunhas,  e  uma  d'ellas  é  o  filho  de  Joaquim  Ferreira  dos  San- 
tos, que  estava  no  coro  da  egreja  da  Victoria,  que  lhe  ouviu,  e  outros 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  39 

muitos  que  com  elle  estavam.*  D'esta  sorte,  que  posso  eu  agora  es- 
crever, que  não  seja  a  medo?  Riscarão  todos,  virá  tudo  cheio  de  pon- 
tinhos, e  isso  é  para  mim  um  grande  vilipendio.  É  mais  conveniente 
e  decoroso  não  escrever  mais  nada ;  e  venha  para  cá  o  Intendente  com 
a  hypocrisia  de  dizer  que  El  rei  quer  que  escreva,  e  que  malhe  nos 
malhados!  Desejo  bem  deveras  que  se  não  imprima  a  26*,  acabou-se, 
e  eu  estou  tão  doente,  que  posso  dizer  hoje  que  esta  é  a  minha  ultima 
vontade;  a  horrível  moléstia  que  tenho  basta  para  me  aterrar;  mas 
supponhamos  que  venha  a  morrer  de  fome,  é  mais  uma  doença  de  que 
se  morre,  e  antes  isso  que  ser  alvo  do  povo;  levar  na  cara  desfeitas, 
e  ficar  como  um  rapaz  de  eschola,  sujeito  ás  emendas  do  senhor  mes- 
tre, fazendo,  como  fiz  a  onze  d'este  mez  sessenta  e  quatro  annos! 
Creia  V.  S.*  que  não  mudaram  de  censor,  senão  para  isto  mesmo,  es- 
colhendo um  tão  conhecido  pedreiro-Iivre  para  fazer  d'estas.  Peço  pois 
a  V.  S.*,  e  com  a  ultima  resolução,  que  não  dê  mais  um  passo  para 
a  impressão  de  tal  papel ;  nunca  mais  nenhuma  lettra  minha  appare- 
cerá  impressa  sobre  similhanle  objecto ;  se  lhe  parecer  deite  tudo  isso 
no  lume,  eu  já  ha  muito  deveria  ter  acabado,  foi  hoje.  Não  mande  im- 
primir. Eu  quizera  dizer  muito  mais,  porém  torno  já  para  a  cama,  por- 
que é  tal  a  violência  do  mal  que  hoje  me  ataca,  que  parece  se  exhala 
a  alma.  Sou  '  . 

De  V.  S.* 

Am.°  e  o  mais  obrig.**" 
...  Septembro  de  1829. 

/.  A.  de  M. 


XXXVII 


111.""»  Sr. 


O  mudo  veiu  tardíssimo,  e  é  preciso  que  eu  acabe  de  jantar,  que 
vem  a  ser  queijo  e  uvas,  porque  carne  1 1  não  é  preciso  que  haja  os 
outros  dous  inimigos,  mundo  e  diabo,  basta  tal  carne  do  açougue  de 
Pedrouços,  porque  hoje,  se  não  era  de  cão,  era  de  cavallo  de  certo. 
Li  a  sua  carta,  o  outro  papel  ainda  o  não  li,  o  que  farei  esta  tarde,  se 
os  meus  carrascos  me  deixarem.  Vai  adiantada  a  28*,  e  comecei  hon- 
tém  de  tarde  entre  os  alaridos  dos  carrascos;  ahi  estavam  três,  que  eu 
empurrei.  Veiu  um  clérigo,  que  nunca  vi,  e  me  disse:  tEu  sou  o  pa- 


» Vid.  a  Besta  esfolada,  N.»  20^  pag.'  6  e  7. 


40  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 

dre  João,  V.  M."  ha  de  conhecer,  um  clérigo  que  veiu  em  um  navio, 
chamado  Joaquim  Guilherme;  eu  venho  aqui  somente  para  o  vêr,  como 
V.  M."  é  vivo,  porque  não  me  satisfiz  com  os  retratos.» — Pois  sou  as- 
sim, lhe  disse  eu,  e  adeus  até  á  primeira. . .  E  fechei-lhe  a  porta.  Fiz 
o  drama  para  os  cómicos,  talvez  uma  das  melhoras  cousas,  que  eu  te- 
nho feito  na  minha  vida :  não  lh'o  mando,  porque  esta  tarde  aqui  ha 
de  vir  um  cómico  e  mais  uma  cómica,  para  lhe  ensinar  a  pronunciar 
os  versos,  e  apontar-lhe  o  que  se  chama  scenario.  Que  visitas  tão  hon- 
radas e  respeitáveis!  Mijarei  n'ellas,  e  para  ellas,  porque  o  diabetis 
está  furioso,  nem  dormir  meia  hora  seguida  me  deixa.  Se  estas  illus- 
tres  personagens  não  apparecem,  o  que  é  de  esperar  da  sua  capaci- 
dade, então  ámanhan  verei  se  lh'o  mando,  para  se  copiar  e  logo  im- 
primir. Deram-me  uma  penna  de  aço,  que  esta  com  que  escrevo  não 
presta;  só  tem  a  vantagem  de  escrever  depressa,  e  não  necessitar  de 
aparo,  que  é  cousa  que  leva  tempo,  e  para  as  Bestas  não  convém,  por- 
que vão  de  galope.  Aqui  esteve  hontem  o  Marquez  de  Borba,  que.  me 
fallou  muito  em  V.  S.*,  lá  lhe  dei  a  26^,  que  elle  ainda  não  tinha.  É 
muito  tarde  para  o  mudo  tornar.  Tenha  V.  S.^  as  venturas  que  lhe 
deseja 

Seu  am."  fiel  e  obríg."" 
. . .  Septembro  de  4829. 

/.  A.  de  M. 

XXXVIII 

111."""  Sr. 

Estou  doentíssimo,  e  mais  com  certeza  de  morte,  que  com  espe- 
rança de  vida.  Surprehendido  fiquei  eu  com  a  carta  de  V.  S.^  O  ho- 
mem que  lá  mandei  é  um  homem  de  bem,  e  com  quem  me  tenho 
achado  para  tudo. 

Fiz  o  requerimento,  porque  por  este  homem  me  mandou  dizer  o 
senhor  Arcebispo,  que  o  fizesse  logo,  e  logo:  e  toda  esta  pratica,  e 
todo  este  recado  ouviu  o  P."  M."  Fr.  Álvaro,  que  no  mesmo  gabinete 
do  senhor  Arcebispo  estava;  e  disse-lhe  também  a  este  homem,  que 
me  dissesse  da  sua  parte  que  o  fizesse,  e  que  não  me  descuidasse. 
Este  homem  é  realista,  não  é  pedreiro-livre,  o  mesmo  senhor  Arce- 
bispo faz  d'elle  toda  a  estimação,  e  lhe  franqueia  a  entrada  na  sua 
casa  sem  se  fazer  annunciar  por  criado  algum ;  emfim,  eu  não  sou  de 
todo  pateta,  e  sei  de  quem  me  fio.  Os  patifes  estão  despedidos  d'esta 
casa,  e  nada  temo,  nem  tenho  porque  tema;  temo  tanto  como  pode 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  41 

temer  um  homem  que  sabe  que  morre  dentro  em  poucos  dias;  assim 
mesmo  desejo  que  os  outros  não  temam  por  amor  de  mim.  Se  o  mal- 
dicto  escripto  da  Besta  esfolada  é  um  crime,  como  está  provado,  n'este 
crime  ninguém  é  cúmplice.  Nunca  me  deixei  abater  da  adversidade, 
mas  fico  vergonhosamente  abatido,  quando  vejo  que  me  querem  inve- 
ctivar como  um  criminoso,  por  amor  do  mais  ridiculo  dos  meus  escri- 
ptos,  qae  é  a  Besta  esfolada.  Torno  a  dizer,  que  ainda  que  não  esti- 
vesse moribundo,  não  tenho  medo  de  becas  Vieiras,  e  outros  que  taes 
jacobinos.  Deixemos  isto  para  sempre,  e  se  V.  S.*  poder  haver  o  tal 
requerimento  da  mão  do  individuo  a  quem  se  entregou,  muito  favor 
me  fará  se  lh'o  pedir,  não  para  m'o  remetter,  mas  para  o  entregar  ao 
seu  cosinheiro,  que  o  metta  na  fornalha,  que  não  fallo  mais  em  tal, 
nem  quero  que  me  fallem;  porque  esse  temor  de  que  vejo  possuído  a 
V.  S.*  me  prova  que  eu  commetti  algum  crime,  que  o  Arriaga,  e  os 
outros  maçons  do  Desembargo  querem  punir.  Fico  anciosamente  su- 
spirando pela  oração  do  P.'  M.*  Dr.  Fr.  Fortunato ;  eu  farei  com  me- 
lhor vontade  do  que  o  fiz  ao  frade  de  Nápoles,  no  Elogio  de  Pio  VII  di 
traducção,  que  se  não  corresponder  ao  original,  será  ao  menos  um 
panno  de  raz  ás  avessas.  A  respeito  do  drama  allegorico  (que  não  foi 
licenciado  pelo  Desembargo  malhado)  é  cousa  de  nenhuma  entidade; 
foi  excessivamente  applaudido,  e  por  mim  despresado,  pois  sei  o  que 
faço,  e  não  queria  que  levasse  o  meu  nome:  foi  devoção  dos  cómicos, 
como  o  humilde  e  reverente.  A  palavra  humilde,  nem  para  o  rei;  mas 
para  V.  S.^  os  protestos  da  mais  cordeal  amisade,  porque  sou 

De  V.  S.» 

cordeal  e  natural  am.** 
/.  A.  de  M.. 


. . .  Novembro  de  1829. 


XXXIX 


III.""»  Sr. 


Que  têm  os  meus  honrados  e  verdadeiros  amigos,  que  estão  lá 
na  usurpada  casa  do  Desterro,  com  as  infernaes  buzinas,  que  de  dia 
6  de  noute  aqui  vêm  para  me  fazerem  até  aborrecer  a  vida  com  três 
cousas:  com  mentiras,  com  tolices  e  com  trabalhos  forçados?  Eu  na 
verdade  sou  um  parvo,  e  em  não  tendo  o  encantado  tinteiro  ao  pé  de 
mim,  sou  mais  simples  e  ingénuo  que  uma  creança  de  quatro  anãos  I 


42  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  VACESDO 

no  trato  familiar  não  tenho  a  menor  tintura  de  malicia;  só  as  digo 
quando  escrevo;  não  posso  desgostar  ninguém,  e  contristar  menos 
ainda :  dizer  que  não,  é  tirar-me  os  dias  da  vida.  Ás  vezes  digo  eu  com- 
migo :  —  Se  aqui  estivesse  sem  o  verem  um  dia  inteiro  Fr.  Joaquim  da 
Cruz,  rompia  a  nuvem,  e  gritava  com  muito  dó  de  mim:  «Ponham-se 
no  meio  da  rua,  desavergonhados,  e  não  acabem  de  matar  este  pobre 
homem I» — Eu  já  não  tenho  paciência!  As  mentiras  dos  três  extermi- 
nios  tiraram-me  a  paz  e  o  socego !  Hontem  á  noute  esteve  aqui  um 
Official  da  Secretaria,  chamado  João  Torquato,  quo  é  também  Òílicial 
de  planos  para  o  Duque,  a  quem  não  importara,  veiu  aterrar-me  com 
demoras  de  reconhecimento,  e  novas  ordens  do  Imperador  ao  Marquez 
de  Palmella  para  proseguir  na  obra  de  pôr  no  throno  D.  Maria  II;  de 
ter  chegado,  e  de  ter  sido  recebido  como  um  soberano  José  Bonifácio 
no  Rio  de  Janeiro,  de  lhe  ter  morrido  no  mar  a  mulher,  que  eu  co- 
nheci p. . .  em  Lisboa  ha  trinta  e  outo  annos,  e  de  metter  o  cadáver 
n'uma  pipa  de  agua  ardente,  para  se  não  corromper,  e  de  ser  levado 
nos  coches  da  Casa  com  a  tropa  das  três  armas  em  armas,  para  o  mau- 
soléo  preparado.  Ora  ouça  isto,  e  venha  com  o  animo  socegado  com- 
por tragedias  e  comedias,  sendo  a  comedia  a  mais  diíScil  das  compo- 
sições I  Espere  V.  S.*,  que  isto  não  é  nada :  ahi  veiu  uma  castelhana 
velha,  chamada  a  senhora  D.  Victoria,  que  quer  nas  coutadas  de  Sal- 
vaterra fundar  uma  Villa,  e  n'esta  villa  que  ella  ha  de  fundar,  estabe- 
lecer uma  fabrica  de  pannos  da  terra,  promettendo  levar  comsigo  para 
a  tal  villa  fundada  vinte  e  quatro  meninos  da  Casa-pia  para  os  crear 
no  temor  de  Deus,  e  depois  ensinar  a  tecelões,  e  faça  para  isto  um  re- 
querimento de  duas  folhas  de  papel,|que  me  levou  o  dia  de  hontem, 
e  o  de  hojei 

Espere:  ahi  veiu  o  coronel  Lemos  com  um  soldado  carregado  de 
papeis,  para  lhe  fazer  já  e  já  as  duas  expedições  Madeira  e  Terceira, 
muito  á  su^  vontade,  e  isto  com  dous  Hvros  de  Oílicios,  sem  ser  o  di- 
vino, e  o  de  defunctosi 

Espere :  ahi  veiu  um  cego,  que  toca  guitarra,  e  ao  som  d'ella  can- 
tava a  Constituição,  e  hoje  o  JR^»  chegou,  para  lhe  fazer  um  requeri- 
mento, que  deve  levar  ao  Conde  de  Basto,  para  El  rei  o  fazer  mer- 
cieiro  de  D.  Affonso  IV 1 

Espere :  ahi  chegou  uma  carta  de  um  clérigo  de  Torres,  que  quer 
lhe  faça  um  sermão  da  publicação  da  bulia,  para  correr  as  villas  e 
aldeias ! 

Espere :  ahi  chegaram  duas  immensas  cartas  de  uns  presos,  que 
estavam  no  Aljube,  e  um  d'elles  S.  Fortuna,  por  darem  uma  cacetada 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  43 

n'um  braço  de  um  mercador  patife,  o  sr.  Ambrósio  Simões,  para  lhe 
fazer  dous  sonetos,  em  que  se  queixem  de  lhe  premiarem  com  a  ca- 
deia o  seu  realismo  I 

Que  cabeça  D'este  mundo  não  enlouqueceria?  Pois  n'este  estado 
estou  eu,  e  porque  carga  de  agua  hei  de  eu  fazer  tudo  isto,  pondo-me, 
como  põe,  o  pé  no  pescoço,  não  se  me  tirando  nem  da  porta  a  bater, 
nem  da  casa  a  quebrarem-me  os  ouvidos,  e  as  cadeiras?  Não  sei  por- 
que. Só  me  deixam  cheio  de  louvores  do  meu  corcundismo,  de  que  te- 
nho tirado  boas  fés  de  ofiBcio.  Tal  é  a  minha  situação  no  meio  de  irre- 
mediáveis dores;  por  isso  lhe  digo  que  teria  muito  dó  de  mim,  se  in- 
visivelmente  aqui  estivesse  observando  a  minha  triste  condição,  ou  es- 
cravidão. E  ainda  em  cima,  vá  o  Arcebispo  para  aqui,  o  Provincial  para 
alli,  e  eu  para  a  Casa  dos  OratesI 

E  a  Viagem  ao  Templo?  Quasi  concluído  está  o  segundo  canto,  e 
com  vagar  irá,  não  só  pelo  estado  que  lhe  exponho  da  minha  situação 
escrava,  mas  porque  tudo  mudo,  pois  nunca  me  agrada  o  que  fiz,  só 
me  agrada  o  que  faço.  Tudo  faço  novo.  Tirem-me  d'aqui  este  tinteiro, 
eis-me  outra  vez  tolo.  Espere,  ahi  vieram  dous  frades  "Vicentes,  um  diz 
que  já  foi  vice-cancellario  da  Universidade,  dizer-me  que  a  noute  d'além, 
DO  campo  de  S.'*  Santa  Clara  ás  duas  horas  da  noute  se  deitaram  qua- 
tro foguetes  de  nove  respostas ;  e  que  pela  manhan  se  disse  no  mos- 
teiro eram  porque  quatro  desembargadores  do  paço  iam  para  a  rua,  e 
um  d'elles  o  Bastos,  que  tem  lá  um  filho  a  educar,  e  a  aprender  pre- 
paratórios, para  quê  não  me  souberam  dizer.  Espere:...  É  a  caste- 
lhana, fundadora  de  villas  e  de  fabricas,  vem  buscar  o  requerimento, 
que  vai  no  papel  grande  em  que  se  escreviam  as  Bestas  e  acabaram 
de  escrever  os  Burros.  Mas  esta  fundadora,  sem  ser  D.  Elvira  Fernan- 
des, que  fundou  Odivellas,  traz  um  vestido  velho  de  paninho,  e  uns 
sapatos  de  cordovão  russos  e  rotos  I — E  sem  o  fazer  esperar  mais, 
aqui  tem  Y.  S.^  um  entremez  no  seu 

Velho,  sincero,  e  obrig.*^°  amigo 
11  Novembro  de  1829. 

/.  Â.  de  M. 
Pedrouços,  e  sem  jantar,  ás  três  da 
tarde,  em  dia  de  S.  Martinho,  e  tenho 
arroz,  nabos,  uvas,  e  agua,  porque  car- 
ne não  a  posso  tragar,  nem  vêr. 


44  CAi\TAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


111.""'  Sr. 

Meu  bom  e  honradíssimo  amigo:  Hontem,  13,  cuidei  que  era  o  ul- 
timo dia  em  que  V.  S.*  tinha  que  aturar  este  trambolho  de  impertinên- 
cias: aggravou-se  o  meu  mal  a  ponto  de  me  vêr  morrer  com  uma  in- 
flammação  hemorrhoidal ;  não  me  pude  levantar,  assim  fiquei,  e  de 
noute  mais  de  trinta  vezes  ourinei  com  dores  mortaes;  emfim,  isto  é 
mais  um  individuo,  ou  menos,  que  existe  na  terra.  Hontem  tive  três 
recados  a  respeito  da  Besta;  um  ás  três  da  tarde,  directamente  d'Elrei, 
que  fallando-lhe  na  quinta  debaixo  o  sujeito  que  lhe  entregou  o  reque- 
rimento, e  dizendo-lhe:—: Senhor,  o  padre  além  de  estar  muito  doente, 
está  desconsolado  em  extremo  por  amor  da  Besta:  —  «Pois  vá-lhe  di- 
zer da  minha  parte,  e  que  digo  eu,  que  se  não  desconsole,  que  já  man- 
dei que  fosse  ao  Patriarcha.»  E  isto  lhe  disse  quasi  ao  ouvido,  porque 
se  approximava  o  Marquez  de  Bellas,  e  fallou  isto  tão  baixo,  que  cus- 
tava a  entender.  Veja  V.  S.*  que  taes  são  as  sombras  que  o  seguem! 

O  segundo  foi  de  V.  S.^,  trazido  por  José  a  óleo,  o  terceiro  por 
um  homem  que  foi  copiar  do  livro  da  porta  do  tal  Desembargo  o  des- 
pacho. Talvez  elles  não  ajuntem  á  consulta  a  censura  do  Provincial  do 
Carmo,  e  isto  devia  ser  requerido;  mas  sem  o  conselho  de  V.  S.*  não 
faço  nada.  Se  em  cartas  se  pozessem  despachos,  eu  escreveria  directa- 
mente a  El  rei,  que  elle  não  se  enfada  por  isso.  Emfim,  eu  nada  es- 
pero, porque  a  corda  quebra  sempre  pelo  mais  fraco,  e  elles  hão  de 
pintar  a  cousa  a  seu  geito,  ainda  que  se  fizessem  juizes  e  partes,  con- 
stituindo-se  em  censores,  cousa  nunca  vista;  o  Provincial  devia  já  ejá 
demiltir-se,  que  o  mais  é  vergonha.,  Recebi  o  tal  drama,  os  sonetos 
estão  bons,  e  que  importava  que  fossem  máos?  Um  soneto  compõe-se 
de  quatorze  regras,  que  dizem  quatorze  cousas  nenhumas.  Eu  terei 
feito  mais  de  quinhentos  sonetos,  e  não  sei  que  foi  feito  d'elles,  não 
seil  Muitos  de  encommenda,  a  annos  de  mulheres,  pelos  quaes  eu  me- 
recia tantas  bofetadas  quantos  annos  as  mulheres  furtam,  quando  se 
lhes  pergunta  quantos  annos  têm.  Com  esta  cara  que  eu  tenho,  fiz 
cousa  porque  merecia  não  só  esbofeteado,  mas  açoutado,  que  vem  a 
ser  um  drama  lindíssimo,  e  não  tem  senão  três  adoras,  que  eram  as 
três  Graças:  e  talvez  que  V.  S.*  ponha  as  mãos  na  cabeça,  estas  três 
adoras,  ou  três  Graças,  eram  muito  suas,  e  mui  chegadas  parentas. 
Isto  tem  mais  de  dez  annos  de  edade,  e  me  mandaram  dizer,  que  se 


A  FREI  JOAQUIM  DA.  CRUZ  45 

ensaiaram  também,  que  o  fizeram  segundo  as  instrucções  maravilho- 
samente. 

Vamos  á  tia  Yictoria.  Esta  tarasca  castelhana  é  da  raça  dos  Ardis- 
sons,  a  cousa  já  se  tentou,  mas  ficou  esbarroncada  no  Conselho  de  Fa- 
zenda :  mandou-me  aqui  um  protocollo  que  carregava  um  gallego,  dos 
serviços  do  marido,  que  vinham  a  ser  espionagens  que  fizera  da  es- 
tada dos  francezes  aqui,  mandado  por  Evaristo  Peres  de  Castro,  e  de 
passaportes  que  obtivera  para  ir  explorar  minas  de  azougue;  e  por  es- 
tes serviços  feitos  ao  diplomata  Peres,  quer  a  tia  Yictoria  metade  das 
coutadas  de- Salvaterra;  ao  menos  d'ahi  tirará  para  mandar  deitar  meias 
solas  nos  sapatos  I  Ella  ha  de  ir  á  audiência,  o  senhor  Esmoler-mór 
lá  estará,  e  lá  se  fartará  de  ouvir  fallar  e  bacharelar  a  falladora  mór  de 
Hespanha  e  índias  I 

Emquanto  a  Lemos,  por  dous  volumes  em  quarto  de  oflQcios  e 
mais  papeis  annexos,  que  aqui  tem  e  continua  a  mandar,  parece-me 
que  está  de  boa  fé;  ao  folheto  que  já  appareceu  fiz  eu  a  prefação:  o 
ilhéo  que  a  quiz,  também  me  parece  homem  honrado;  se  eu  o  pintasse 
com  esta  ptnna  não  me  pareceria  assim,  mas  quando  os  ouço  fico  de 
bocca  aberta  e  completo  parvo,  e  não  me  parecem  se  não  S.  Francisco 
de  Assis. 

Quanto  a  Ferreira  Pinto  não  tenho  motivo  para  desconfiar.  Elle 
agora  emprestou  duzentos  e  quarenta  contos,  dinheiro  contado.  Só  cahi 
n'uma,  mas  vi  que  era  para  salvar,  não  duvidei.  Quando  elle  estava  in- 
famadissimo  com  o  governo,  fez-se  um  vigoroso  requerimento,  até  aqui 
vamos  bem,  era  o  rascunho  feito  em  papel  grande  da  Besta,  e  Burros. 
N'outro  dia  veiu-me  pedir  que  o  copiasse  pela  minha  lettra :  eu  o  fiz, 
como  tolo  que  sou,  já  se  sabe  porque  (talvez  lhe  custasse  muito)  se  ti- 
tinha  armado,  e  se  fez  dizer  a  El  rei:  —  Este  papel  é  feito  por  José 
Agostinho,  e  até  a  lettra  é  d'elle. — Isto  fez  o  milagre,  mas  eu  podia 
também  ir  com  elle  para  o  inferno  I  Já  estava  passado  o  decreto,  se- 
não continuava  no  contracto ;  logo  El  rei  lhe  fallou  em  publico  com  dis- 
tincção,  e  está  cabido.  Emquanto  ao  homem,  é  aqui  visinho,  e  não  é 
mal  intencionado.  Elle  se  oflereceu  para  me  levar  uma  carta  ao  Vis- 
conde de  Queluz;  este  se  lhe  offereceu  se  quizesse  alguma  cousa;  pe- 
diu ser  oíficial  de  secretaria ;  disse-lhe  mestre  Pires,  que  elle  não  pe- 
dia a  El  rei ;  mas  que  me  dissesse  a  mim,  que  lhe  escrevesse  eu  uma 
carta  pedindo-lhe  por  aquelle  homem;  porque  é  tal  a  queda  d'Elrei 
para  com  o  Padre,  que  tudo  se  fará  (palavras  do  Pires  I)  E  assim  foi, 
porque  logo  baixou  um  aviso  d'El  rei,  e  dentro  o  requerimento  ao  Vis- 
conde de  Santarém  para  lhe  lavrar  o  despacho,  e  ser  provido  o  homem, 


46  CÀRTÂ6  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

pois  pedia  o  Padre.  O  Visconde  tem  demorado,  ou  mangado,  ainda  não 
está  concluído,  e  se  não  fôr  para  a  secretaria,  será  para  o  correio ;  isto 
lhe  dizem  com  certeza.  E  eu  não  digo  mais,  porque  estou  morto  de 
dores,  e  estafado,  mas  tudo  farei  sempre  para  mostrar  que  sou 

De  V.  S.* 

Am.°  certo  e  obrig.°* 
i4  Novembro  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

XLI 

111.""'  Sr. 

João  Pedro  pergaminho  velho,  basculhador  de  cartórios  para  nada, 
e  lente  de  Diplomacia  para  cousa  nenhuma,  ofiBcial  de  pedreiro  para 
enganar  os  corcundas,  é  de  todos  os  quatro  costados  um  pedaço  de 
asno,  o  que  prova  com  o  presente  escripto :  nada  impugna,  nada  prova, 
tudo  são  fatuidades,  e  tudo  indícios  de  inveja  a  Fr.  Fortunato,  porque 
quiz  ser  oflQcíal  do  mesmo  officío,  lettras  antigas,  e  tolices  velhas.  Fr. 
Fortunato  é  um  assarapantado,  e  tudo  para  elle  são  bichas  de  sete  ca- 
beças; hade  querer  responder  com  muita  seriedade,  e  o  que  aquillo 
merece  é  uma  descompostura,  d'aquellas  que  estão  de  encommenda 
n'um  dos  quatro  ângulos  d'este  tinteirinho;  não  a  perde,  ainda  que 
gire  e  se  espalhe  manuscripta.  Forte  arguição  I  Que  importa  que  a  em- 
perrada velha  (e  talvez  conciliadora  de  vontades  dissidentes  I)  a  Abba- 
dessa  de  Lorvão  não  quizesse  mostrar  o  Cartório  a  Fr.  Manuel  dos  San- 
tos? Que  desgraça  veia  ao  mundo  em  não  quererem  os  padres  do  go- 
verno dar-lhe  licença  para  visitar  o  Cartório  de  Évora?  Os  padres  do  go- 
verno têm  a  seu  favor  a  presumpção  de  prudência,  e  de  direito  no  artigo 
costella  de  rebellião ;  eu  não  vou  por  aqui,  e  digo :  quem  sabe  se  Fr. 
Manuel  dos  Santos  seria  um  chorão,  e  as  senhoras  de  Castris  sempre 
p...?  Isto  é  arriscar  conjecturas;  mas  os  padres  do  governo  nunca 
se  escolhem  tolos.  A  grande  questão  é  o  Dr.  Fr.  Bernardo  de  Brito. 
Ora  eu  pegaria  na  cabeça  d'estes  dous  bolorentos  busca-cartorios  (te- 
nho pena  que  o  tal  pergaminho  velho  basculhasse  o  de  Arouca,  que 
fresquinhas  murcellas  não  sepultaria  elle  no  bucho  f)  e  marraria  uma 
com  a  outra  dúzias  de  vezes,  porque  diz  que  não  é  sobre  cousas  rela- 
tivas ao  Dr.  Fr.  Bernardo  de  Brito.  O  pergaminho  diz  que  elle  compo- 
zera  a  gothica  inscripção  do  arco  da  serra  dos  Albardos ;  o  Fr.  Assus- 


À  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  47 

tado  de  S.  Boaventura  diz  e  grita  que  o  Dr.  Fr.  Bernardo  de  Brito  não 
compozera  a  lindissima  Silvia  de  Lizardo.  É  boa  teima !  Eu  vi  em  Braga 
um  exemplar,  impresso  na  vida  do  auctor,  enquadernado  em  perga- 
minho dourado,  e  com  as  folhas  também  douradas,  e  uma  nota  ma- 
nuscripta,  que  me  excitou  a  idéa — Coz — ,  que  eu  na  edade  de  deze- 
nove  annos,  que  para  alli  me  mandaram  a  uma  Cadeira,  não  conhecia, 
e  a  que  por  amor  da  boa  de  Silvia  fiquei  afifeiçoado.  A  nota  era  a  es- 
tes versos,  que  nunca  me  esqueceram,  e  já  lá  vão  os  sessenta  e  qua- 
tro e  cinco  mezes ! 

E  no  verão  pela  sesta 
Aqui  se  virá  sentar. 
Bem  alheia  de  cuidar 
Que  a  sua  vista  lhe  empresta 
Agua  para  se  lavar. 

Um  ribeirinho,  que  atravessava  a  cerca,  povoado  de  salgueiros,  e 
um  freixo, 

Um  freixo  que  alli  fazia 
Tamalkvez  da  corrente. 
Que  impedida  de  um  penedo 
Que  no  meio  d'ella  estava, 
Ao  repouso  convidava. 

Mas  Fr.  Escrupuloso  não  quer  que  um  rapaz  como  elle  era  com- 
pozesse  tão  suaves,  e  tão  namoradas  cousas  1  Fr.  Bernardo  era  de  Al- 
meida, que  é  fria,  mas  tinha  o  coração  quente.  A  boa  da  Silvia  suppo- 
nho  que  era  menos  ociosa  que  as  Silvias  de  agora,  e  lá,  porque  a  pinta 
delicadamente  fiando  n'uma  roca  á  janella: 

Em  uma  roca  fiando, 
Mas  o  fuso  lhe  cahia 
Dos  dedos  de  quando  em  quando. 

Este  cahir  do  fuso,  para  quem  tem  o  pensamento  no  amante,  que 
também  a  requestava,  é  o  quadro  mais  bello  e  natural,  que  eu  vi,  e 
que  eu  li  ainda.  Elle,  elle,  o  fradinho  da  minha  alma  foi  para  Madrid, 
e  é  bem  de  presumir  que  a  Silvia  do  meu  coração  ficasse  chorando 
(logo  se  calava,  que  n'isto  se  parecem  todas  as  Silvias  velhas,  e  mo- 
ças) e  assim  falia  o  discretíssimo  e  delambido  chorão  : 

E  por  quanto  certo  sei 

Que  as  lagrimas  s5o  salgadas, 

Aquellas  doces  achei. 


48  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Eu  também,  m  illo  tempore,  fazia  versos,  e  muitas  d'estas  lamu- 
rias, e  tive  inveja  dos  versos,  e  muito  mais  inveja  de  uma  verdade  que 
elles  declarara:  o  rapazinho,  que  as  achou  doces,  é  certo  que  se  che- 
gou muito  para  os  campos  de  rosas  por  onde  ellas  corriam !  Tanto  não 
diria  eu,  se  ao  pé  d'estes  campos,  e  d'estas  pérolas  liquidas  visse  um 
papeliço  de  abóbora  com  que  me  fosse  entretendo ;  porque  sou  mais 
amigo  d'estes  bens  sólidos,  que  d'aquellas  doçuras  passageiras.  Se  este 
único  exemplar  estiver  ainda  na  livraria  do  Collegio  do  Populo  de  Braga, 
eu  desenganarei  com  elle  o  beatissimo  antiquário  servo  de  Deus  Fr. 
Fortunato.  Que  diria  elle,  se  lesse  a  traducção  das  Heroidesáe  Ovídio, 
traduzidas  em  óptimos  versos  italianos  pelo  cisterciense,  e  seu  Fr.  Re- 
migio  Florentino !  Diria  que  não  eram  d'elle,  porque  parecera  offensas 
de  Nosso  Senhor,  e  contra  os  Exercícios  de  Santo  Ignacio.— Pois  vá 
açoutar  as  cinzas  do  seu  Doctor  Sá,  lente  da  Universidade  (não  é  o 
dos  Estatutos)  porque  mandando  de  presente  um  congro  ao  Padre  An- 
tónio Vieira,  em  uns  versos  latinos  lhe  diz  cousas  mais  frescas  que  o 
congro  vindo  da  Pederneira.  Que  mande  á  tabúa  Fr.  Pergaminho,  que 
eu  responderei,  porque  ninguém  conhece  melhor  a  litteratura  da  Con- 
gregação. Sou  amigo  de  Fr.  Fortunato,  mas  não  sou  nera  raetade  do 
que  é  de  V.  S.* 

J.  A.  de  M. 

28  de  Janeiro  de  1830. 

P.  S. —  Muito  doente  estou  hojei 


XLII 

Ill.'"°  Sr. 

As  parvoíces  dos  Pavienses  com  dois  piparotes  vão  a  terra,  e  o 
peor  é  fazer  caso  de  republicanos  na  egreja.  Fr.  Fortunato,  pouco  cos- 
tumado á  guerra  das  contradicçôes,  de  tudo  se  assarapanta.  Hoje  re- 
cebi eu  uma  carta  de  Fr.  Domingos  de  Carvalho,  em  que  me  manda 
recados  de  Fr.  Fortunato,  e  me  diz  que  todas  as  tardes  se  ajunta  com 
elle  em  uma  quinta  próxima,  e  que  ali  o  consola  e  anima:  falla-me  na 
carta  septifolia,  e  m'a  pede,  e  diz  que  o  lente  primário  de  Medicina  era 
ouvindo  lêr  alguma  cousa  de  Fr.  Fortunato,  ou  rainha,  logo  grita:  — 
Estes  dous  hão  de  ser  enforcados.  Fr.  Fortunato  cuida  que  já  o  enfor- 
cam, eu  não  cuido.  Eis  aqui  para  que  serve  bem  a  Besta  esfolada, 
mas  julgo  isso  impossível.  Parece  que  disseram  a  El  rei  que  me  des- 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  49 

pachasse,  fazendo-me  substituto  de  Fr.  Cláudio,  para  escrever,  debaixo 
da  direcção  de  Fr.  ClaudioIII  a  historia  do  tempo  desde  a  regeocia 
de  seu  pae  até  á  sua  chegada  a  22  de  fevereiro  de  1828.  Veja  V.  S.* 
a  honra  e  ventura  que  me  esperava!  Olhe  que  a  cousa  chegou  a  me 
mandarem  fazer  requerimento  I — A  Besta  não  sae,  aqui  m'o  veiu  di- 
zer na  minha  cara  António  Ribeiro  Saraiva,  que  a  elle  se  devia  a  sup- 
primissão,  pelo  que  mandara  de  Inglaterra,  pois  representara  que  d'aqm 
iam  retalhos  da  Besta,  que  fallavam  nos  inglezes,  traduzidos  em  inglez, 
que  retardavam  o  reconhecimento,  como  o  retardara  a  prisão  dos  qua- 
tro marinheiros  que  levavam  o  dinheiro  nas  canastras  da  hortaliça,  e 
como  o  tiro  de  baila  que  o  Raimundo  deu  em  Gascaes.  Com  que,  111.™" 
Sr.,  a  Besta  morreu ;  e  só  tenho  viva  esperança  em  cavalgaduras  me- 
nores, que  se  chamara  Burros,  que  vão  indo  de  trote.  Aqui  disse  o 
mesmo  taciturno  Saraiva,  que  lá  fizera  um  pathetico  sermão  a  V.  S.*, 
e  que  o  convertera,  fazendo-o  entrar  na  confraria  de  São  Duque  e  do 
Beato  Santarém:  eu  lhe  dou  os  parabéns,  mas  não  se  incommode,  nem 
confie  nos  laes  Santos.  O  clérigo  de  Braga  é  mais  supportavel  com  a 
demanda  de  São  Fins,  ou  sem  fim.  Tantas  amarguras  minhas  acabara 
de  ser  adoçadas  com  uma  das  óptimas  murcellas,  que  já  não  está  na 
caixa,  está  no  bandulho.  Deus  pague  a  V.  S.*  tão  opportunos  benefí- 
cios; e  se  ateimam  com  Fr.  Cláudio  I!  I  —  Já  d'aqui  peço  ao  111.™"  Sr. 
P.®  Geral,  e  ao  seu  Rev."""  Definitorio  me  concedam  um  logar  entre  as 
serranias,  e  saudosos  horisontes  (expressões  de  Fr.  Bernardo  de  Brito 
na  chronica  de  S.  Pedro  das  Águias),  onde  me  possa  sepultar  sem  nin- 
guém me  vêr  mais,  os  poucos  dias  que  me  restara  de  vida.  Alli  irei 
esconder  a  minha  vergonha,  e  compor,  se  tiver  tempo,  um  episodio 
para  os  Burros,  maior  que  os  Burros  todos  juntos.  Nada  me  diz  sobre 
a  transferencia  do  jejum,  e  eu  em  tudo  o  desejo  servir,  porque  de  todo 
o  coração  sou 

De  V.  S.^ 

Amigo  certo 
Pedrouços,  6  de  fevereiro  de  1830. 

J.  Â.  de  M. 


CARTAS. 


50  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


XLIII 

111."°  Sr. 

Hoje  é  dia  de  Mudo,  e  como  elle  vem  tarde,  e  deve  tornar,  me 
antecipo  nas  tristíssima  escripta.  Aqui  veiu  António  Saraiva  hontem  de 
tarde,  e  aqui  esteve  desde  as  cinco  horas  até  ás  oulo  e  meia:  trazia  o 
5.°  numero  do  Defensor  dos  Jesuítas,  que  levava  ao  Duque,  terra  obli- 
vionis.  Se  lá  o  deixou,  descansará  em  paz  até  á  resurreição  dos  ca- 
puchos, que  um  capucho  o  quiz  enterrar.  Talvez  que  n'esta  terra  Ín- 
via e  inaquosa  encontre  a  Besta,  podendo  ir  de  ancas  cora  o  padre 
do  Forno.  A  Besta  cahu  nas  mãos  dos  ciganos,  aonde  irá  ella  para  tor- 
nar a  apparecer?  Com  effeito,  depois  do  dia  22  de  fevereiro  de  1828 
cuidei  que  um  tribunal  era  corpo  não  exercitasse  ura  despotismo  im- 
pudentissirao,  não  fosse  juiz  e  parte,  e  não  condemnasse  ura  homem 
sem  ser  ouvido,  o  que  se  não  nega  ao  mais  facinoroso,  até  depois  de 
condemnado  á  morte;  e  depois  dMsto,  como  um  conselho  de  bárbaros 
privasse  um  miserável  velho  e  enfermo  do  único  meio  que  lhe  res- 
tava no  mundo  para  sua  subsistência!  Havia  trinta  e  seis  annos  con- 
secutivos em  que  pelo  ministério  do  púlpito  me  sustentava  com  três 
«ousas:  cora  muita  honra,  muita  independência,  e  muita  abundância; 
a  doença  insanável  me  privou  d'este  recurso,  trabalhoso  na  verdade, 
porém  profícuo,  e  que  alguma  estimação  me  mereceu  entre  os  homens; 
acabou  o  exercício  de  fallar,  e  foi  substituído  pelo  de  escrever;  e  de 
repente,  com  a  maior  e  mais  escandalosa  de  todas  as  injustiças,  me 
vejo  privado  de  tudo.  El-rei  sabe  que  defendia  seus  direitos;  que  di- 
rigia bem  a  opinião  dos  povos;  que  me  mostrei  sempre  intrépido  em 
tão  perigosa  contenda,  antes  e  depois  da  sua  vinda,  o  que  não  foram 
capazes  de  fazer  os  seus  aulicos,  grandes,  titulares,  e  senhores  nossos 
(que  se  resuscitasse  Manuel  Fernandes  Thomaz  se  vestiam  logo  de  sa- 
ragoça) e  nem  uma  palavra  disse  mais  sobre  o  absolutismo  do  Tribu- 
nal; suscitando-lhe  a  vergonhosíssima  lembrança  de  Fr.  Cláudio!  Deus 
conserve  na  mesma  disposição  os  actuaes  Contractaijores  do  tabaco;  se 
elles  não  foram,  já  hoje  mesmo  podia  dizer — tenho  fome!— Isto  não 
era  desculpa,  nem  motivo  de  eu  me  fazer  malhado,  nem  de  me  aggre- 
gar  a  malhados  loucos,  patetas  e  ignorantes;  mas  era  motivo  de  eu 
me  declarar  fora  d'aqui,  isto  é,  fora  d'esta  detestável  pocilga  de  per- 
versos, verdadeiro  e  contumaz  republicano;  sei  melhor  que  ninguém  o 
que  isso  seja,  e  como  se  pode  ser;  mas  não  sou  capaz  de  torcer  ca- 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  51 

minho,  já  que  o  da  vida  está  tão  próximo  do  seu  termo.  Em  nada  d'isto 
tenho  fallado  a  V.  S.*,  porque  me  lembrei  que  nada  lhe  devia  impor- 
tar, e  que  só  a  beneficência  o  obrigava  a  tanto  trabalho,  tantas  zan- 
gas e  impertinências,  e  conheci  que  se  compromettiam  os  interesses 
da  Congregação  nas  dependências  que  poderia  haver  n'aquelle  vilissimo 
tribunal;  fallo  agora,  para  que  V.  S,*  não  dê  credito  a  esses  crédulos 
corcundas  que  depois  de  zurzidos  com  palmatoadas,  e  rasgados  com 
açoutes,  devoram  noticias  dadas  por  malhados,  que  os  escarnecem  e 
os  picam.  Bom  é  que  assim  fique  a  Besta,  para  se  ver  e  saber  sem- 
pre que  um  tribunal  foi  juiz  e  parte,  e  condemnou  um  homem  sem  ser 
ouvido.  É  justo  que  eu  também  não  condemne  a  V.  S.*  a  lêr  muito, 
porque  eu  devo  pôr  limite  a  escriptos  de  toda  a  natureza,  mas  não  li- 
mites á  obrigação  de  mostrar  em  tudo  que  sou 

De  V.  S.* 

Amigo  certo  e  obrig.""* 

Pedrouços,  9  de  Fevereiro  de  1830. 

J.  A.  de  M. 

XLIV 

111.™''  Sr. 

Recebi  a  carta  de  V.  S.^  li,  e  nada  ainda  li,  que  me  obrigasse 
tanto;  deu-me  a  conhecer  o  seu  coração  bemfazejo,  e  o  quanto  devo  á 
nobre  Congregação  a  que  pertence.  O  meu  estado  é  mais  lastimoso 
pela  enfermidade,  que  pela  indigência;  eu  não  estou  no  extremo  ain- 
da. Os  frades  da  Graça  me  têm  sollicitado  muito  e  muitas  vezes,  mas 
eu  não  faço  figuras  perto  da  morte,  e  eu  preferirei  sempre  uma  hos- 
pedagem caritativa  em  Alcobaça  como  clérigo  secular,  ás  distincções 
de  mestre  da  Ordem,  e  aos  privilégios  de  pregador  régio.  Deixemos 
isto,  que  não  vem  a  propósito,  porque  eu  confio  mais  dos  extranhos, 
que  n'aquelles  loucos  e  desleixados  domésticos.  Sim  senhor,  eu  desejo 
fazer  tudo  o  que  me  diz  a  respeito  de  lettras,  e  sobre' tudo  pelo  que 
pertence  a  João  Pedro  Ribeiro,  o  aleivoso;  mas  tomara  que  V.  S.*  po- 
desse  observar  a  rainha  situação,  para  conhecer  que  me  é  impossível 
escrever  com  a  rapidez  costumada  sobre  qualquer  matéria.  Venha  aqui, 
e  observe  um  homem  infeliz,  pela  maldita  virtude  de  não  poder  con- 
tristar ninguém.  Todos  os  dias,  apenas  sôa  uma  hora  da  tarde,  aqui 


52  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

está  o  clérigo  do  seminário  de  Braga;  (todos  os  dias!)  não  tarda;  hon- 
tem  yeiu  com  um  immeaso  canudo  de  lata  cheio  de  papeis  da  demanda 
de  São  Fins;  não  se  quiz  ir,  senão  quando  en,  cançado,  eram  sele  ho- 
ras da  noite,  deante  d'elle  me  despi,  e  deitei  quasi  morto;  e  diz  que 
me  não  deixará  emquanto  em  mim  descubrir  um  só  espirito  de  vida, 
porque  se  vae  fazer  um  assento  no  Desembargo  sobre  o  julgado  da 
coroa,  e  quer  exposição  de  bulias,  e  um  breve,  que  eu  não  sei  o  que 
ê—Âparitionis  om— abrimentos  de  boca!  Depois  d'este  capital  inimigo 
meu,  e  de  todos,  depois  d'elle  veiu  António  Ribeiro  Saraiva,  que  vem 
sempre  e  me  trouxe  o  Chaveco  e  o  Paquete,  que  já  tinha  moslradoja 
V.  S^,  e  demorou-se  até  ás  nove  horas.  Hoje  veiu  um  capucho,  pro- 
curador dos  vinte  conventos  que  tem  no  Alemtejo,  que  quer  um  dis- 
curso para  a  eleição  do  provincial.  Ainda  elle  estava,  e  veiu  um  arra- 
bido,  que  vae  para  Salvaterra,  que  quer  dois  sermões  feitos,  um  so- 
bre a  confissão  e  outro  sobre  o  amor  do  próximo.  Ora  considere  V.  S.* 
o  Macedo  que  nasceu  em  Botão,  e  doente  como  eu  seriamente  estou, 
e  que  com  todos  os  seus  talentos  fizesse  metade  do  que  estes  diabos 
querem  que  faça,  e  logo,  e  com  o  pé  no  pescoço,  e  gritando  que  se 
não  tiram  d'aqui,  e  que  fosse  logo  continuar  os  Burros,  acabar  o  Tem- 
plo, e  defender  a  Congregação  contra  os  insultos  do  Pergaminho  ve- 
lho, ác*  ác* — Isto  faz  dó,  e  digam-me  como  hei  de  evitar  isto?  OhiT?. 
vá  para  o  Forno! — Mais  perto  lhe  fico,  pois  aqui  veiu  hoje  um  alfamte 
de  Lisboa,  que  porque  veiu  a  Belém  a  negocio  seu,  aqui  se  ferroujdi- 
zendo — que  posto  eu  o  não  conhecesse,  elle  ouvira  dizer  que  me  ti- 
nham sacramentado,  e  que  tinham  visto  entrar  para  cá  o  viatico;  é  ver- 
dade que  veiu  a  uma  casa  contigua,  uma  d'estas  noites...  Espere,  es- 
pere; ahi  vem  um  clérigo,  fugido  de  Braga,  que  quer  que  lhe  faça  um 
requerimento  para  el-rei  lhe  dar  um  beneficio  de  Coruche,  que  tinha 
o  Conde  de  Paraty — Insere  nunc  Melibce  juros  pone  ordini  vetes.— \3iO 
lá  fazer  prosas  e  fazer  versos,  periódicos  e  discursos  n'este  estado! 
Direi  mais  para  a  outra  viagem,  e  perdoe  V.  S.*  a  secatura.  O  clérigo 
bate,  e  eu  acabo;  pelo  amor  de  Deus,  veja  se  se  lembra  de  algum  re- 
médio, que  a  isto  possa  dar  o  seu 

Verdadeiro  amigo 
Pedrouços  . . .  Fevereiro  de  1830. 

J.  A.  de  M. 


A  FKEI  JOAQUIM  DA  CRUZ  53 


XLV 

III.'"»  Sr. 

Sem  encarecimento  digo  a  V.  8/  que  ha  doze  dias  que  me  vejo 
doentíssimo,  porque  hoje  mesmo  (que  é  uma  hora)  desde  que  me  le- 
vantei ás  oito,  tenho  ourinado  vinte  e  quatro  vezes;  isto  é  estar  muito 
doente;  ajunta-se  a  isto  uma  sele  continua,  com  tanta  seccura,  que 
me  custa  a  despegar  os  beiços,  e  não  ha  agua  fria  que  me  farte;  de 
noite  é  peor,  porque  se  fecho  os  olhos,  é  tal  a  soltura  da  ourina  que 
me  acho  alagado,  e  é  preciso  metter  lençoes,  camisas  sujas,  e  quan- 
tos trapos  ha  em  casa,  onde  tudo  o  é,  excepto  a  minha  lingua.  Este  é 
o  meu  estado  miserável.  V.  S.*  advinhou,  eu  estava  para  mandar  á 
botica  buscar  caroços^  ou  pevides  de  marmello  para  se  fazer  uma  in- 
fusão, e  molhar  a  bocca  para  me  refrigerar  a  lingua,  e  apparece  tanta 
marmellada  (e  donde  me  é  mandada,  para  não  vir  muita?)  Não  é  para 
consoada,  é  para  cear,  porque  nem  carne,  nem  peixe  é  possivol  co- 
mer; só  couves  lombardas  com  manteiga,  leite  e  chá  preto,  é  o  meu 
continuo  alimento,  e  mais  nada.  Agora  mesmo  me  tinha  chegado  de 
Belém  um  arrátel  de  marmellada  grosseira,  como  é  a  dos  confeiteiros, 
e  serve,  porque  faz  a  outra  mais  engulivel.  Beijo  a  mão  a  V.  S.*  e  lhe 
antecipo  as  boas  festas,  ao  111.™  Esmoler  mór,  e  ao  P.®  Fr.  Álvaro; 
eu  as  não  tenho  para  mim,  e  por  isso  estas  que  lhe  annuncio,  n3o  são 
dadas,  são  desejadas.  Basta  de  fallar  de  mim,  nem  devo  entristecer  os 
outros  com  a  minha  triste,  e  miserável  situação.  Depois  que  me  fecha- 
ram a  cavallarice,  e  me  vejo  sem  Bestas,  não  apparece  aqui  viva  almal 
Uns  vinham  para  que  lá  os  não  pozesse,  outros  para  lá  pôr  os  que"el- 
les  queriam,  agora  sem  mais  tirar  nem  pôr,  nem  os  postos,  nem  os 
tirados  aqui  apparecem.  Aqui  veiu  um  Desembargador  do  Alemtejo,  e 
ex-frade,  com  um  calhamaço  manuscripto  contra  Fr.  Fortunato,  por 
amor  de  uma  passagem  pag.  o  do  Masiigoforo  6.^,  para  lhe  dar  o  meu 
parecer  para  o  imprimir;  era  uma  virulenta  invectiva.  Eu  lhe  disse 
(isto  não  é  serviço,  é  effeito  da  minha  convicção  intima)  que  se  tal  fl- 
zesse,  o  levaria  o  diabo  nas  minhas  mãos;  aponlei-lhe  para  o  tinteiro, 
dizendo-lhe:  «Senhor  reverendo,  o  diabo  alli  ê  que  mora,  e  pouco  lhe 
custa  sahir  d'alli,  e  para  se  soltar  não  é  preciso  o  dia.  de  S.  Bartholo- 
meu;  em  eu  lhe  dizendo  o  que  Christo  disse  ao  cadáver  de  Lazaro  — 
Veni  fora — ainda  salta  mais  depressa,  e  sempre  está  a  deitar  a  cabeça 
fora,  a  vêr  se  eu  o  chamo.»— Lá  se  foi  com  as  orelhas  como  dois  me- 


54  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

dronhos;  espreite  V.  S.*  por  lá  se  a  cousa  vae  á  regia;  o  capucho  é 
desavergonhado,  e  pode  fazer  das  suas.  Vamos  á  magna  carta.  Sim 
senhor,  convenho  no  que  diz  respeito  aos  Jesuitas,  e  para  se  publicar 
pela  imprensa  vejo  que  não  é  politico,  e  devendo-se  imprimir  deve-se 
tirar  ou  accrescentar-lhe  notas,  pondo  tudo  o  que  ha  duro  na  boca  de 
muitos  philosophos  do  tempo  e  exhortar  Fr.  Fortunato  a  que  prosiga, 
e  ali  mesmo  lhe  lembrarei  cousas  do  Paraguay  que  immortalisam  e  di- 
vinisam  os  Jesuitas,  assim  como  o  que  elles  fizeram  nas  missões  do 
norte  do  Brazil,  no  rio  do  Tocantins,  e  quasi  até  ás  vertentes  do  Ama- 
zonas. Os  Jesuitas  souberam  mais  que  todos  os  astrónomos  modernos 
(o  que  eu  calei  na  carta);  o  padre  Briga,  napoHtano,  encovou  o  summo 
astrónomo  Bianchini,  e  Maraldi,  e  Zanolli  de  Bolonha,  achando  elle 
Briga  as  manchas  do  planeta  Yenus,  as  suas  phases,  pois  a  viu  cor- 
nuda; achou  a  parallaxe  de  Marle,  com  que  determinou  ao  cerio  a  dis- 
tancia da  terra  ao  sol;  —  inventou  uma  machina  (os  jesuitas  eram  mais 
diabos  que  eu)  na  qual  posto  o  piloto,  podia  fixo  e  sem  balancear,  ser- 
vir-se  do  astrolábio  e  do  outante  para  saber  onde  estava  no  mar,  ainda 
que  o  navio  desse  saltos  em  tempestade,  como  os  Desembargadores  do 
paço  com  a  Besta  esfolada.  Ora  basta,  que  eu  vou-me  ás  couves,  que 
é  hora  e  meia,  e  eu  já  ourinei  a  vigésima  quinta  vez;  mas  V.  S.*  faz-me 
a  bocca  doce,  e  no  fim  das  couves  vae  decerto  meio  covilhete,  e  irá 
meia  canada  de  agua,  porq^ue  se  me  abrazam  as  entranhas;  máos  fí- 
gados tenho  eu  sempre  para  os  patifes,  que  atacarem  Fr.  Fortunato, 
ou  enxovalharem  a  Congregação  de  S.  Bernardo,  ou  disserem  que  V. 
S.*  não  é  amigo  do  seu 

Amigo 
Pedrouços  ...  de  Dezembro  de  1829. 

J.  A.  de  M. 

P.  S.  1.°  Paula  que  não  perca  a  copia,  porque  eu  hei  de  vêl-a, 
para  dar  remédio  a  tudo. 

P.  S.  2.°  Desejo  que  o  senhor  Arcebispo  veja  a  Carta,  porque  a 
pede. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  55 


XLVI 

111.""  Sr. 

Eu  eslava  agora  (meio  dia)  lendo  pela  oitava  oa  nona  vez  o  seu 
óptimo  e  valente  papel  cantra  a  nota  do  patife  e  hypocrita  Ribeiro  ou 
Carreiro,  que  o  dão  a  conhecer  as  botas,  as  meias  brancas  e  o  cha- 
péo;  alli  não  ba  mais  que  dizer,  e  só  alguma  cousa  no  fim  ha  que  ado- 
çar, quando.se  trata  dos  ajuntamentos  e  funcções  em  casa  d'elle  no 
beco  do  Jardim:  isto,  e  o  mais  não  está  esquecido.  A  vinda  inopinada 
do  Arcebispo,  que  muito  se  demorou  depois  fez  que  não  podessemos 
fallar  no  que  era  preciso,  e  foi-se  o  tempo  em  livros  velhos,  que  para 
nada  servem  já,  e  d'estes  mesmos  velhos  os  melhores  são  conhecidos 
apenas  do  bichinho  traça,  e  da  matta  da  poeira;  mas  aquelle  óptimo 
homem  gosta  doestas  cousas,  e  com  ellas  talvez  disfarce  a  affronta  da 
IJesta.  A  sogra  do  velho  da  Penha  para  aqui  mandou  dizer  por  escripto 
que  fallara  ao  conde  na  Besta  esfolada,  e  que  elle  conde  com  um  sor- 
riso (havia  de  ser  muito  engraçado  1)  dissera:  «A  Besta  está  afifecta  a 
El-rei;  mas  a  decisão  não  está  remota.»  Isto  foi  ha  três  semanas  quasi, 
e  depois  aqui  se  espalhou  a  noticia  de  existir  ja  licenciada  na  secre- 
taria do  Desembargo;  agora  resta  em  requerimento  pedir  a  El-rei,  que 
ora  me  leve  o  diabo  a  mim,  ou  aos  patifes  desembargadores;  isto  é 
para  desesperar  d'uma  vez;  creia  V.  S,^  que  hão  de  resistir  ás  ordens 
de  El-rei.  Ninguém  gosta  mais  de  escrever  do  que  eu,  e  agora  muito 
o  preciso,  para  dissimular  as  minhas  dores,  a  cruel  diabetis,  e  o  ar- 
dor interno,  que  me  obriga  a  beber  copos  de  agua  frigidissima  em 
jejum;  mas  que  quer  V  S.^. .  .Fiz  a  oração  fúnebre  em  que  lhe  fallei, 
e  que  se  deve  recitar  a  dez  d'este  mez,  e  que  me  quereriam  dar  por 
isto?  Seis  cruzados  novos;  e  não  seria  melhor  deitar-me  da  janella 
abaixo?  La  se  foram  dous  óptimos  dias  de  sol,  e  eu  abrindo  a  gaveta, 
e  vendo  as  cousas  meias  feitas,  e  especialmente  os  Burros  postos  na 
espinha,  e  sem  ração!  O  Templo  da  Sabedoria  pedindo  que  o  tirem  do 
borrão  1  A  Magna  Carta  sem  poder  preparal-a  com  os  reparos  e  obser- 
vações muito  judiciosas  de  V.  S.*,  porque  ainda  o  Arcebispo  não  a 
mandou;  isto  me  consome,  mas  que  posso  eu  fazer,  tendo  só  duas 
mãos,  que  parece  que  tenho  quatro  pés?  Ninguém  tem  mais  jus  do 
que  eu  a  um  logar  no  poema  dos  Burros.  Tomara  eu  que  V.  S.*  aqui 
viesse  um  dia  pela  manhã,  porém  munido  com  um  robusto  varapáo, 
como  quem  anda  de  passeio,  e  que  á  porta  me  deitasse  em  terra  o 


56  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

clérigo  do  seminário  de  Braga I  Esse,  esse  é  o  inimigo  de  tudo;  se  na 
escada  não  houvesse  outro  morador  estava  eu  bem;  mas  elle  espreita 
que  se  abra  a  poria  da  rua,  não  bate,  apanha  a  porta  aberta,  e  no 
mesmo  instante  me  bate  á  porta  da  casa,  e  eil-o  dentro,  porque  se  não 
vê  quem  seja;  senta-se  logo,  e  desenrola  do  canudo  de  lata  a  papelada, 
não  se  vai,  nem  se  quer  ir,  e  diz  que  ou  elle,  ou  eu.  Isto  parece  um 
sonho,  mas  é  assim  como  lhe  digo.  Outro  clérigo  de  Braga,  que  para 
aqui  recambiou  o  Lopes,  também  me  mortifica  bastante.  Dirá  V.  S.*  que 
os  imponha,  não  o  conseguia  nem  V.  S.^  a  pezar  do  seu  severo  aspecto, 
e  capaz  de  incutir  respeito  a  um  presidente  das  cortes!  Basta  d'isto. 
Os  seis  cruzados  novos  não  me  esquecem,  e  lá  se  foi  o  papel !  Era  óptimo, 
ao  menos  beatificava  o  sancto  e  malhado  Bispo.  Ao  menos  mande  lá 
para  o  ouvir,  e  vir  contar  esse  entendido  Máximo  de  manjericões  ra- 
ros de  folha  amarella  recortada,  e  de  quem  eu  sou  muito  amigo,  por- 
que apesar  dos  poucos  annos  tem  chumbo,  e  siso  na  cabeça,  e  eu  mui- 
tas dores,  mas  muito  desejo  e  efficaz  vontade  de  mostrar  era  tudo  que 

sou 

De  V.  S.* 

Amigo  o  mais  obrig.''° 
Pedrouços  ...  de  Março  de  1830. 


/.  A.  de  M. 


XLVII 


111.'°°  Sr. 


Hoje  é  dia  de  recovagem  do  mudo,  e  por  isso  me  antecipo  com 
estas  regras,  apezar  de  me  achar  muito  opprimido  de  dores,  e  inun- 
dação de  ourinas,  que  me  vae  consumindo.  Muita  inveja  me  teria  hoje 
o  sr.  Fr.  Fortunato,  se  soubesse  que  quinta  feira  estiveram  aqui  com- 
migo  os  Jesuítas,  até  meia  hora  depois  do  meio  dia,  e  me  pediram  a 
faculdade  de  continuarem  sempre  as  suas  visitas.  Era  o  prelado  e  um 
polaco;  ambos  se  exprimiam  toleravelmente  em  portuguez,  e  n'isto  ad- 
mirei o  polaco.  Vinham,  e  vieram  para  se  instruírem  em  cousas  per- 
tencentes á  instrucção  religiosa  no  ministério  do  púlpito,  pois  o  senhor 
Núncio  os  manda  missionar  na  egreja  do  Loreto;  (esta  missão  pertence 
ao  Patriarcha,  e  não  ao  senhor  Núncio,  vamos  íideante);  fizeram-me 
sem  querer  um  beneficio,  que  foi  com  a  sua  vinda  poder  empurrar 
pela  escada  abaixo  o  clérigo  de  Braga,  que  tinha  entrado,  e  já  estava 
fallando  na  demanda  do  seminário.  Lá  inculquei  aos  padres  da  Compa- 
nhia livros  portuguezes  dos  padres  da  Companhia,  bons  para  missões 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  57 

e  instrucções  publicas;  lá  lhe  inculquei  Alma  instruída  na  vida  e  do- 
cirina  christã  do  P.®  Manuel  Fernandes,  confessor  e  mestre  d'el-rei  D. 
Pedro  II,  que  não  sabia  senão  o  Padre  nosso,  que  andava  sempre  re- 
petindo; este  livro  tem  grande  volume  e  chorume: — e  também  o  P.' 
Guerreiro,  jesuíta,  nas  Instrucções  para  os  Missionários.  Depois  d'isto, 
com  malícia  os  metti  em  conversa  sobre  á  litteratura  jesuítica,  e  olha- 
vam como  uns  attonitos  um  para  o  outro,  vendo  um  clérigo  de  calças 
rotas,  e  jaqueta  de  chita  velha  e  remendada,  camisa  suja,  e  chínellos 
mijados,  como  se  fosse  um  jesuíta  francez,  italiano,  allemão,  e  até  po- 
laco; pois  houve  um  jesuíta  polaco  chamado  Casimiro  Sarbieri,  que 
compoz  Odes  latinas,  tão  bem  ou  melhor  que  Horácio,  e  entre  ellas 
uma,  á  defensa  de  Diu,  por  D.  João  Mascarenhas,  em  que  chama  aos 
porluguezes  gens  parva  manu,  isto  é,  gente  com  poucas  forças,  obrando 
tantas  façanhas  na  Africa  e  na  Ásia  (agora  lhe  chamaria  só  gentp  parva, 
porque  assim  a  fizeram  os  pedreiros).  Nada  grande  conheciam  dos  pa- 
dres da  Companhia,  e  me  disseram  que  elles  não  foram  ensinados  pe- 
los Jesuítas  extinctos,  e  que  desejariam  ser  por  mim  ensinados  nas 
suas  mesmas  casas.  Fallaram-me  era  um  cathecismo:  eu  lhes  disse  que 
estudassem  bem  o  cathecismo  romano,  o  do  Concílio  de  Trento,  que  é 
o  mesmo,  e  este  grande  compendio  das  sciencias  theologicas,  moraes, 
e  canónicas,  não  era  de  Jesuítas,  mas  de  um  frade  portuguez  chamado 
Fr.  Francisco  Foreiro,  e  outro  chamado  Fr.  Jeronymo  de  Azambuja,  e 
de  outro  Fr.  João  Soares,  e  de  outro  chamado  Fr.  Gaspar  do  Casal, 
todos  frades  da  Graça,  e  todos  bispos;  que  lessem,  pois  me" persuadia 
que  sabiam  latim,  as  Explicações  orthodoxas  contra  Kmnisio,  e  contra 
todas  as  heresias  que  rebentaram  em  o  Norte,  mandadas  fazer  pelo 
mesmo  Concílio  de  Trento;  e  quem  as  fez  foi  um  clérigo  portuguez; 
chamado  Diogo  de  Paiva  de  Andrade,  irmão  do  Conde  de  Linhares, 
(não  o  de  Arroios)  mas  o  creado  e  instruído  no  Collegio  da  Graça  de 
Coimbra;  e  que  este  clérigo  tinha  vinte  e  seis  annos  de  edade,  quando 
el-rei  D.  Sebastião  o  mandou  ao  Concilio,  e  onde  tanto  assombrou  os 
padres,  que  o  Cardeal  Jeronymo  Serípando,  frade  da  Graça,  e  presi- 
dente do  Concilio,  lhe  commettía  a  resolução  de  todas  as  questões  e  du- 
vidas, que  se  suscitavam.  Disse-lhe  depois  que  estudassem  bem  estas 
Explicações  orthodoxas,  que  era  o  que  bastava  para  ensaiarem  os  po- 
vos, e  combaterem  os  herejes,  e  incrédulos.  Os  taes  padres  da  Com- 
panhia não  perderam  as  passadas,  e  me  pediram  por  muito  obsequio 
lhes  quízesse  mostrar  a  minha  bíbliotheca;  eu  lhes  fiz  a  vontade,  mos- 
trando-lhes  o  livro  de  João  Pedro  Ribeiro,  único  que  estava  sobre  uma 
banca;  com  isto  abriram  um  palmo  de  bocca,  e  para  os  consolar  vim 


58  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

cá  fóra,  e  levei  da  gaveta  um  livrinho,  que  é  do  Lopes,  que  vem  a  ser 
o  poema  do  jesuita  Vanieri,  intitulado  Predium  rusticum.  Eu  antes  o 
quizera  ter  feito  que  vinte  Meditações,  vinte  Orientes,  e  vinte  Templos 
(está  mui  lo  adiantado)  e  como  elle  tem  o  retrato  do  auctor,  consola- 
ram-se  de  vêr  em  Portugal  ao  menos  uma  roupeta  pintada,  e  em  casa 
de  um  homem  de  quem  lhe  tinham  dito  que  era  inimigo  dos  Jesuítas. 
Também  me  disseram  que  este  pequeno  que  ahi  anda,  chamado  Mar- 
quez de  Pombal,  lhes  fora  pedir  que  perdoassem  a  seu  avô  (ainda  vi- 
nha a  tempo  este  perdão  1)  Aqui  ia  eu,  quando  chegou  o  mudo,  faltava 
um  quarto  para  a  uma  hora.  Ajoujar  a  Besta  com  alta  diplomacia  da 
Europa !  Já  o  Lopes  aqui  veiu  também  quarta  feira  com  essa  lembran- 
ça; isso  é  evasiva  dos  patifes  do  Desembargo,  que  querem  ir  escapando 
ás  apupadas  com  o  apparecimento  da  Besta.  Do  reconhecimento  ainda 
não  traia  o  parlamento;  a  votação  de  que  se  fallou  foi  a  outro  respeito, 
e  assim  até  á  resurreição  dos  capuchos  estará  a  Besta  embargada  na 
estalagem.  Pois  o  Arrieiro  de  Thomar  não  falia  ainda  peior  dos  fora- 
gidos de  Inglaterra  ?  Eu  devo  enviar  um  requerimento  a  El-rei,  se  a 
cousa  se  demorar  mais  uns  dias.  Então  eu  hei  de  esperar  até  ao  alto 
verão  para  vêr  manjericões  amarellos?...  Nada  duvido  que  o  calor  ve- 
nha a  fazer  esse  milagre;  os  de  melindrosa  consciência  que  os  vendem 
debaixo  da  Arcada  sabem  fazer  essa  mudança  de  cores;  Fr.  Fernando, 
que  lhes  vá  perguntar  se  tem  alguns  azues,  elles  lhe  dirão  que  sim. 
Ora  aqui  mandou  duas  vezes  e  da  segunda  escreveu,  e  bem  mal,  o 
marquez  de  Olhão,  dizendo-me  que  o  auctor  do  Elogio  de  Pio  VII  se 
manda  queixar  de  Nápoles  de  eu  não  ter  respondido  ás  suas  cartas, 
nem  sobre  o  presente  de  livros  seus  que  me  mandou.  Os  livros  me 
mandou  entregar  o  Núncio,  e  eu  fiz  presente  d'elles  ao  Arcebispo  de 
Lacedemonia,  Vigário  geral;  cartas,  não  recebi  mais  que  a  de  Roma, 
com  uns  diplomas  de  Academias;  e  que  se  eu  quizesse  escrever,  que 
lhe  mandasse  a  carta,  que  elle  a  mandaria  ao  Marquez  do  Lavradio,  o 
que  eu  farei,  e  em  italiano,  e  cá  ficará  copia.  O  Templo,  como  acima 
digo,  vae  adeantado,  e  hontem  levou  um  grande  empurrão,  esta  tarde 
lhe  darei  outro,  e  em  muito  breves  audiências  estará  concluído.  Este 
pode,  e  deve  aqui  imprimir-se  (com  luxo),  mas  os  Burros?  Isso  me  pa- 
rece impossível,  mas  è  muito  fácil  ao  mundo  conhecer  quanto  eu  seja 

De  V.  S.* 
Am.°  certo  e  o  mais  obrig." 
Pedrouços  ...  de  Março  de  1830.  J.  A.  de  M. 

P.  S.  Cedo  o  Ribeiro  bravo  ficará  esgotado. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  59^ 


XLVIII 

III.""'  Sr. 

Com  indizível  trabalho  me*  tiraram  agora  (onze  horas)  da  cama, 
para  me  sentar  n'esta  cadeira;  e  com  a  perna  esquerda  horrivelmente 
inchada,  o  pé  com  inflammação,  e  a  dor  é  dor  de  gota,  e  peor  do  que 
já  tive;  como  o  ataque  é  geral,  renovou-se  a  dor  de  pedra,  parou  a 
ourina  com  uma  irritação  e  dor  mortal;  emíim,  estou  em  estado  las- 
timoso, e  faz  compaixão  aos  mais  indifferentes;  não  me  poupo  a  re- 
médios, mas  a  mistura  «alina  que  me  receitou  o  cirurgião  para  trans- 
pirar, aggravou  mais  o  mal  da  pedra;  estou  um  martyr,  e  sem  ter- 
minar o  martyrio,  que  em  tal  estado  desejava  que  fosse  pela  morte. 

Eu  não  sou  amigo  de  dinheiro — habenles  alimenta  et  quibus  Uga- 
mur  hos  contenti  stimus — se  o  fosse  seria  esta  a  occasião  de  o  ter,  por- 
que—  «Vossê  faz  um  livro  em  dez  dias  (me  veiu  dizer  um  alto  magis- 
trado) escreva-o  e  inlitule-o — Exame  dos  factos  e  doctrinas,  qm  de- 
ram motivo  d  extiiicção  dos  Jesuítas  n'es(e  reino,  dedicado  a  sua  Mages- 
tade,  ác*  por  José  Agostinho  de  Macedo;  dê  vossê  (como  pode)  o  as- 
pecto que  convém  a  estes  horrendos  Jactos^  e  analyse  estas  doctri- 
nas, e  verá  esta  cáfila  posta  fora  do  reino,  e  conte  com  uma  avultadís- 
sima remuneração.»  —  Vade,  Satan,  non  tentabis  dominum  Dnim  tuum, 
nem  com  o — cmnia  tibi  dabo  si  cadens  adoraveris  me — nem  com  este 
omnia  eu  faria  tal,  e  agora  vejo  porque  vieram  cá  os  Jesuítas  ou  foi 
este  o  principal  motivo,  porque  insistiam,  até  na  escada,  em  dizer  que 
fora  seu  inimigo,  e  que  por  algum  motivo  o  poderia  agora  tornar  a 
ser,  porque  havendo  agora  tantos  conventos  não  povoados,  lhe  não  da- 
vam um  para  morarem.  Então  porque  não  quiz  eu?  Creia  V.  S.*  esta 
verdade,  da  bocca  de  um  homem  em  tudo  independente;  eu  sou  do 
coração  amigo  de  Fr.  Fortunato;  é  o  regular  mais  douto  que  existe 
no  reino;  pertence  a  uma  corporação  que  eu  proílindamente  respeito, 
por  me  haver  sempre  feito  e  dado  o  mais  honrado  e  dístincto  accolhi- 
mento,  em  particular  e  publicamente,  por  mera  benevolência,  porque 
n'ella  e  nos  seus  prelados  tenho  visto  e  observado  homens  prestáveis, 
verdadeiros,  humanos  e  munificentes,  tão  raras  qualidades  em  todos 

os  outros  regulares,  ác'  Que  seria,  se  eu  com  um  livro 

ainda  que  m'o  pagassem,  como  os  livreiros  de  Londres  fazem  e  pagam 
agora,  a  guinéo  cada  pagina  de  oitavo  dos  versos  de  um  poeta  que  é 
coxo,  chamado  Walter  Scott?  Isto  não  é  para  mim,  e  muito  principal- 


60  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  J!ACEDO 

mente  depois  de  haver  escripto  Fr.  Fortunato  a  sua  apologia!  Tal  obra 
não  me  seria  difficultosa;  a  Censura  dos  Lusíadas,  dois  volumes  em 
oitavo,  fiz  eu  em  dez  dias,  e  os  factos  que  estão  consignados  na  De- 
ducção  chronologica,  Moral  dos  Jesuítas,  ác.*,  &c^,  levariam  um  cunho 
de  evidencia,  que  allucinaria.  Eu  não  sou  um  mathematico  (e  poucos 
o  são)  como  o  jansenista  Pascal,  que  morreu  de  trinta  e  oito  annos, 
mas  tenho  atinado  melhor  que  elle  com  as  fontes  do  engraçado  e  do 
ridículo,  sem  ter  lido  o  tratado  do  jesuita  P.*  de  Vasur  —  De  hídrica 
diciione — e  os  metteria  mais  á  bulha,  e  faria  rir  mais,  do  que  o  mesmo 
Pascal  fez  com  as  Cartas  a  um  provinciano,  que  tanto  estampido  tem 
feito  no  mundo,  e  que  até  se  verteram  era  latim  com  o  supposto  nome 
de  Montalto.  Já  tenho  dito  que  conheço  os  Jesuitas,  que  a  sua  extinc- 
ção  se  deveu  ao  resentimento  de  Pombal,  porque  o  quizeram  tirar  do 
ministério  e  introduzirem  Alexandre  de  Gusmão,  secretario  que  foi 
das  cartas  d'el-rei  D.  João  V,  cooperando  em  França  a  intriga  da  man- 
ceba de  Luiz  XV,  Madame  Pompadour;  mas  também  sei,  e  melhor 
que  o  Cenáculo,  e  José  Joaquim  Vieira  Godinho,  o  que  os  jesuitas 
Luiz  Gonçalves,  irmão  do  conde  da  Sortelha,  e  Leão  Henriques  influí- 
ram na  jornada  de  Africa;  sei  o  ódio  dos  Jesuitas  á  casa  de  Bragança, 
e  porque  razão  o  Padre  Manuel  Pimenta  e  o  Padre  António  Vieira  fi- 
zeram as  trovas  dos  sebastianistas,  e  porque  se  escreveu  o  Quinto  Im- 
pério, e  porque  se  quiz  provar  que  D.  João  IV  era  o  Encuberto;  em 
fim,  seja  por  isto,  ou  por  aquillo,  eu  não  faço  uma  acção  má,  e  dei- 
xemos isto.  Julgo  que  o  homem  não  tornará,  e  se  Deus  me  der  alguma 
melhora  no  terrível  estado  em  que  me  vejo,  eu  escreverei  duas  ou  três 
folhas,  que  segurarão  os  Jesuitas,  e  mostrarei  que  se  eu  fui  por  pre- 
cisão pregador  de  aluguer,  não  sou  escriptor  assalariado.  Vamos  ao  Ri- 
beirinho. É  verdade  que  este  esganarello  ou  manequim,  tem  dado  pas- 
sos e  feito  obras  corcundas;  mas  quem  sabe  se  isto  è  manobra  pedrei- 
ral,  e  que  trazem  um  com  apparencias  de  corcunda  servilissimo  para 
saber  o  que  estes  fazem?  porque  eu  vejo  o  Ribeirinho  andar  com  uns, 
e  andar  com  outros;  logo  que  o  ouvi  e  vi  sempre  vacillante  me  lem- 
brei d'islo,  e  talvez  acerte.  Não  posso  mais,  tem  inchado  muito  a  perna, 
a  uretra  estala,  e  outra  vez  me  vão  deitar  na  cama.  Para  a  seguinte 
recovagem  dirá  mais  alguma  cousa 

Seu  mais  obrig."  amigo 
Pedrouços  20  de  Março  de  1830. 

J.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  61 


XLIX 

111.°^»  Sr. 

Caricaturas  nada  provam  mais  que  a  malignidade,  ou  venalidade 
de  seus  auctores ;  isso  não  persuade,  nem  faz  temer  os  pobres  padres 
da  Companhia.  Deus  não  permitia  que  os  seus  inimigos  em  Portugal 
nem  leiam^  nem  entendam  um  livro  composto  por  um  allemão  jesuíta, 
que  d'elles  sahiu,  e  os  deixou,  chamado  Schofer,  e  o  livro  chama-se 
Monarchia  Solipsorum,  que  quer  dizer:  A  Monarchia  dos  só  elles.  Este 
maldito  egresso  os  põe  a  pão  e  laranja,  e  sem  réplica,  porque  elle  falia 
como  ladrão  de  casa,  a  quem  nada  se  occulta,  mas  Deus  nos  ajudará; 
em  eu  podendo  escrever  o  que  prometti  a  V.  S.*;  mas  doze  dias  de 
gota  desesperada;  os  pés,  que  parecem  madeiros,  ou  mós  de  moinho; 
a  posição  violenta  em  cima  de  duas  cadeiras,  me  não  deixam  escre- 
ver, e  eu,  et  nos  cum  doctrinis  nostris,  nós  com  toda  a  matalotagem  de 
engenho  e  capacidade,  não  sou  capaz  de  dictar  o  rol  da  minha  roupa, 
que  não  pode  ser  mais  simples,  nem  mais  pequeno;  assim  como  ainda 
me  não  foi  possível  comprehender  o  jogo  do  truque,  ou  da  bisca;  e 
obrigado  uma  vez  n'uma  grande  funcção  da  Graça  a  cantar  um  Ite 
missa  est,  deixei-o  no  meio,  e  os  frades  o  acabaram  ás  gargalhadas; 
mas  eu  não  apertando  nos  três  dedos  a  penna,  começa,  não  um  diabo, 
mas  uma  legião  a  sahir  do  canudo.  Deixe-me  V.  S.*  poder  escrever 
sentado  á  banca,  que  logo,  logo  lhe  encho  a  loja,  que  sei  que  é  de  cruz, 
mas  sem  roza;  e  eu  crucificado  de  dores,  posso  e  devo  dizer  que  sou 

De  V.  S.» 
Am.°  fiel  e  o  mais  obrig."^** 


Pedouços ...  de  Março  de  1830. 


/.  A.  de  M. 


111.""'  Sr. 


Meu  bom  amigo  e  senhor  do  coração :  a  minha  moléstia  tem  to- 
mado um  aspecto  terrível;  não  me  mortifica  tanto  a  inchação  do  pé,  e 
a  dôr  da  gola,  o  que  me  torna  intolerável  a  minha  situação  é  não  po- 
der escrever  dez  linhas,  que  me  não  levante  para  ourinar,  e  não  me 


^2  CARTAS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

chego  a  sentar  que  não  vá  ourinar  outra  vez,  e  isto  de  dia  e  de  noate, 
vendo  e  sentindo  a  cama  alagada  sem  poder  dormir  o  intervalo  de  meia 
hora.  Assim  mesmo,  como  era  ardentíssimo  o  desejo  que  tinha  de  sa- 
tisfazer a  determinação  de  V.  S.^  sobre  Jesailas,  antes  de  honlem  30 
pjlo  meio  dia  me  puz  a  escrever  o  papel,  a  que  faltam  só  duas  pagi- 
nas; fazia  tenção  de  lh'o  remeiter  hoje  pelo  mudo,  mas  não  me  foi 
possivel,  pela  vehemencia  das  dores,  que  só  deitado  as  podia  tolerar, 
nadando  em  ourina.  Se  V.  S.*  poder,  e  quizer  mandar  aqui  um  criado 
seu,  ámanhan  de  tarde,  ou  no  sabbado  logo  pela  manhan,  eu  lhe  man- 
darei com  mais  segurança  este  papel,  que  na  verdade,  em  estylo  sério 
é  o  ultimo  esforço  do  raciocínio,  e  talvez  da  eloquência  portugueza. 
Ninguém  pode  offender,  porque  procede  com  toda  a  cautelia,  para  não 
encontrar  a  mesma  malignidade  em  qae  embirrar,  nem  o  fatal  Desem- 
bargo em  que  possa  pôr  em  obra  as  suas  injustiças  e  desaforos.  Eu  o 
intitulo  —  O  Problema  resoluidu — e  com  effeito,  resolve-se  com  a  ra- 
zão, e  a  apologia  dos  Jesuítas  não  tem  que  desejar  mais  nada.  Tem  os 
Jesuítas,  e  os  homens  de  bem  que  me  agradecer,  e  até  Deus  qae  me 
premiar  dando-me  algumas  melhoras  1  Duas  cousas  peço  a  V.  S.^  para 
este,  talvez  que  meu  ultimo  esforço,  a  favor  da  razão  e  da  justiça,  e 
vem  a  ser:  que  se  não  altere  uma  palavra;  —  a  segunda,  que  se  im- 
prima em  bom  papel,  e  que  não  sejam  cegos,  amaçados,  e  moídos  os 
caracteres,  ao  menos  sejam  do  tamanho  d"estes,  e  assin  espacejados, 
como  os  da  Oração  fúnebre  quQ  compoz  e  recitou  o  P.^  M.®  Dr.  Fr.  For- 
tunato. Esta  Oração  vou  já  lêr  com  todo  o  interesse  que  mDStro  sem- 
pre pela  gloria  d'este  homem,  e  da  illustre  Congregação  a  que  pertence. 
Eu  já  não  tenho  saúde,  se  a  tivera,  eu  cooperara  quanto  podesse  para 
a  gloria  e  respeito  que  merece  a  mãe,  e  o  filho;  mas  sempre  farei  o 
que  poder,  e  lá  vai  uma  pennida  no  Problema  resolvido.  Agradeço  a 
V.  S.*  os  preciosos  bolos,  e  não  foram  sobremesa,  foram  mesa,  com 
algumas  laranjas,  que  o  mais  não  posso  comer;  e  ainda  que  não  tenha 
bocca  de  favas,  estes  dias  tem  sido  o  meu  único  alimento:  e  só  favas, 
agua  e  laranjas,  porque  me  mata  um  incêndio  interior.  Também  ardo 
em  desejos  de  mostrar  sempre,  e  em  tudo  que  sou  de  V.  S.^  amigo, 
e  deveras  amigo,  e  seria  amigo  até  se  lhe  não  fosse  tão 

Obrigado 
Pedrouços  i  de  Abril  de  1830. 

/.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  63 


LI 

111.'"°  Sr. 

Não  respondi  hontem,  19,  a  V.  S.*,  porque  hontem  foi  dia  cheio 
para  mim  dos  incommodos  da  moléstia,  de  truz  na  porta,  de  queixo- 
sos não  despachados,  porque  emigrados,  e  sobretudo  por  algumas 
providencias  que  foi  preciso  dar  para  a  casa  do  Forno,  porque  a  velha 
entrevada  ha  cinco  annos  está'  em  artigo  de  morte,  e  até  deixada  dos 
padres  Camillos  que  lá  tem  ido  chamados.  Lá  escrevi  para  a  fregue- 
zia,  para  cuidarem  no  enterro,  e  eu  aqui  semi-entrevado  lambem.  Ora 
façarii  lá  versos  que  hajam  de  durar^  com  seiscentas  buzinas  d'esta 
magnitude  aos  ouvidos !  Outro  dia  me  ficou  um  no  meio,  e  me  fugiu 
de  todo  o  pensamento  que  o  devia  acabar,  e  lá  foi  d'ahi  a  dias  como 
Deus  foi  servido,  e  assim  é  tudo ;  porque  esta  casa^  sem  ser  taberna, 
é  casa  de  povo ;  e  eu  criado  nato  de  toda  a  bicharia  viva :  até  para  o 
Marquez  de  Alvito  uma  carta,  que  elle  queria  escrever  para  o  Bispo 
vigário  capitular  de  Braga,  e  não  sabia  como,  sendo  o  negocio  seul 
Outra  carta  de  empenho  para  José  Ribeiro  Saraiva,  que  sahiu  tão  boa, 
que  o  mesmo  para  quem  se  fez  aqui  deixou  uma  copia,  que  remetto, 
mas  para  collecção  de  quem  saiba  entender;  e  o  P.®  M.®  Fr.  Álvaro 
que  não  seja  muito  pródigo,  porque  até  uma  escrevi  aos  frades  da 
Graça,  para  o  partido  do  cirurgião  Durão,  (que  muito  pouco  deixa  du- 
rar a  gente)  a  fui  vêr  na  mão  do  Marquez  de  Olhão.  Ora  impríma-se 
o  Problema,  e  os  exemplares  em  papel  florete  não  sejam  uma  dúzia, 
porque  de  certo  se  compram,  e  alguma  cousa  podem  dar  para  os  gas- 
tos da  impressão.  O  meu  diploma  para  ajudante  ainda  até  hoje  terça 
feira  ás  outo  horas  não  chegou;  estimarei  que  seja  em  papel  fino,  fle- 
xivel,  e  macio,  porque  algum  préstimo  terá  logo.  As  favas,  e  as  er- 
vilhas serão  lúbricas,  e  eu 

De  V.  S.* 

Verdad.™  am.° 
Pedrouços  20  de  Abril  de  1830. 

/.  A.  de  M. 


64  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACIÍDO 


LII 

111.'°''  Sr. 

As  minhas  moléstias  me  tem  incommodado  mais  que  nunca,  por- 
que nem  de  noute  posso  socegar  meia  hora,  alagado  de  ourina,  e  o 
enxergão  já  traspassado  da  mesma  ourina;  as  dores  não  tem  limite,  e 
nada  posso  fazer.  Além  d'estes  marlyrios  do  corpo  vieram  também  os 
do  animo;  a  mulher  que  me  aturava,  entrevada  de  cinco  annos,  e 
vinle  e  cinco  de  casa,  morreu;  incommodos  do  enterro,  e  logo  veiuo 
rol  da  freguezia.  A  velha  que  resta,  e  •que  além  de  velhíssima  é  gaga, 
atterrada,  ou  seja  pelo  que  fôr,  não  quer  lá  estar,  e  effectivamente  se 
vae  embora :  eu  como  entrevado  não  posso  dar  um  passo ;  na  casa,  ou 
escada  do  Forno  não  ha  mais  moradores,  e  eis  aqui  a  casa  ao  desam- 
paro, e  os  poucos  trapos  e  cacos  que  lá  tenho,  porque  as  cadeiras  e 
duas  mesas  vieram  para  aqui,  porque  sem  isso  ficava  isto  casa  de  es- 
grima, são  logo  roubados  sem  remédio:  e  n'este  apuro,  com  bem  re- 
pugnância, e  bem  extrema  precisão  tenho  de  importunar  a  V.  S.^,  para 
peimittir  que  em  algum  recanto  d'esse  corredor  ou  quarto,  que  nem 
por  criados  esteja  occupado,me  deixe  amontoar  aquelles  cacaréos,  em- 
quanto  eu  não  possa  ir  a  Lisboa,  cuidar  em  algum  pequeno  hospício, 
nas  visinhanças  do  Desterro,  para  me  recolher,  porque  o  horror  que 
me  causa  o  Forno  com  tal  morte,  me  obriga  a  nunca  mais  lá  pôr  os 
pés;  este  sitio  é  muito  fora  de  mão,  o  necessário  fica  longe,  a  casa  im- 
portunada sempre,  a  minha  existência  está  muito  precária,  e  por  ex- 
tremo atenuada,  e  eu  temo  nos  últimos  instantes  os  horrores  de  um 
hospital,  que  é  o  que  me  resta ;  devo  também  procurar  uma  criada  ca- 
paz por  edade,  e  por  probidade.  Com  a  resposta  de  V.  S.*  sobre  o  re- 
colhimento dos  tarecos  em  algum  d'esses  recantos,  mandarei  a  Lisboa 
uma  pessoa,  que  os  ajunte,  e  me  remetta  para  cá  o  que  é  fato,  que 
formará  uma  trouxa,  e  o  que  é  páo,  e  uns  paleeis,  e  não  sei  que  mais, 
vão  para  esse  asylo  temporário.  Espero  a  resposta  de  V.  S.*  com  a 
possível  brevidade,  porque  agora  mesmo  recebo  um  recado  da  tal  ve- 
lha, que  se  quer  ir  embora,  e  talvez  que  bem  carregada,  porque  lá  fi- 
cou tudo  á  sua  disposição.  Não  fallo  agora  em  lettras  (que  nada  são) 
porque  o  negocio  exclue  tudo,  e  não  me  exclua  V.  S.*  do  numero  dos 
seus  amigos  e  criados,  porque  é  uma  e  outra  cousa 

Pedrouços  24  de  Abril  de  1830.  J.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  65 


LIII 

111.'^  Sr. 

Vai  esta  pelo  chamado  correio  da  posta,  para  annunciar  a  V.  S.' 
que  faltando-me  mudos,  e  sobejando-me  falladores,  nâo  tenho  outro 
meio  de  saber  de  V.  S.*  e  do  destino  do  papel  dos  Jesuítas,  porque 
ainda  que  não  envolva  politicas  da  sublime  Deducção  Chronologica,  as- 
sim mesmo  receio  naufrágio  nas  mãos  do  Fr.  Diabo.  Para  eu  haver  no- 
ticia e  resposta  de  V.  S.*  também  é  preciso  um  rodeio :  que  tal  é  a  mi- 
nha miséria  f  Carta  para  mim,  que  vai  ao  correio,  lá  deu  fundo  eterna- 
mente; para  receber  alguma  é  preciso  que  venha  com  o  sobrescripto 
para  outra  pessoa;  de  ordinário  é  sempre,  e  seja  agora: — Á  senhora 
Francisca  da  Piedade,  Pedrouços,  n.°  97. —  Outro  negocio,  e  também 
importante,  e  vem  a  ser,  que  d'aqui  se  mandou  uma  pequena  encom- 
menda,  dirigida  a  uma  rehgiosa  de  Coz;  eu  lembrei  que  se  remettesse 
para  esse  funil  deixado  á  Congregação  de  S.  Bernardo,  funil  que  agora 
lhe  querem  tapar,  e  que  se  entregasse  a  Manuel  Metternich,  e  mais 
politico  ainda,  e  criado  de  V.  S.',  encarregado  de  negócios,  e  de  con- 
fidencias d'esta  natureza,  para  a  remetler  por  António  dos  Foros,  cor- 
reio do  gabinete  das  Graças,  costumado  a  estas  commissões.  De  Coz 
se  manda  dizer,  que  ainda  lá  se  não  recebeu.  Eu  conheço  a  confusão 
que  haverá  no  expediente  de  Manuel  Metternich,  e  por  isso  peço  a 
V.  S.*  que,  ou  pelo  postilhão  Foros,  ou  por  qualquer  outro  diabo  d'esta 
caterva,  seja  remettido  logo  para  Alcobaça,  porque  se  avisará  para  Coz, 
a  fim  de  o  mandarem  lá  buscar,  sabido  que  seja  o  nome  do  enviado 
ordinário:  e  eu  não  sou  ahi  qualquer  cousa,  sou,  e  muito. 


Pedrouços. . .  de  Maio  de  1830. 


LIV 


De  V.  S.'  Amigo 
.7.  A.  de  M. 

Iil."°  Sr. 


A  minha  doença  empata  tudo;  agora,  que  é  uma  hora  da  tarde, 
me  levantava  da  cama,  que  é  ura  tanque  de  ourina,  porque  já  se  não 
contém,  quando  chegou  o  mudo  com  a  carta  de  V,  S.*,  que  muito  diz, 
e  muito  falia,  sendo  pequena  na  extensão.  Eu  moribundo,  não  deixo 

CARTAS.  5 


66  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

passar  os  restos  da  vida  ocioso,  porque  não  fazer  nada  é  para  mim 
peôr  que  a  doença.  Sou  o  architeclo  Adonhirão,  vou  adiantando  o  Tem- 
plo, mas  aquillo  é  para  poucos,  e  da  forma  que  já  acabei  o  segundo 
canto  é  para  muito  doctos,  e  não  para  o  estado  actual  das  lettras;  mas 
vá,  porque  deve  dar  noticias  minhas  aos  vindouros,  no  caso  que  em 
Portugal  por  algum  plebiscito  (decreto  popular  dos  comícios,  ou  das 
cortes)  se  não  fechem  eteroamente  os  lyceus  ào  ÂB  C,  que  é  o  que 
falta.  Como  é  preciso  comer  para  viver,  ainda  que  seja  com  pão,  her- 
vas,  leite,  e  a  sua  marmellada,  também  é  preciso  ler  com  que,  e  ainda 
tenho ;  ha  três  dias  se  me  despertou  uma  idéa ;  eu  traduzi  ha  victe  e 
seis  annos  as  Obras  de  Horácio;  as  Odes  estrophe  por  estrophe,  e  verso 
por  verso,  quanto  ponde  ser;  aqui  está  um  exemplar  impresso,  que 
escapou  ao  naufrágio  da  maior  maroteira  que  então  se  commetteu  no 
mundo;  como  então  sahiu  a  traducção  de  António  Ribeiro  dos  Santos, 
que  é  basbalhada,  por  cabala,  por  intriga,  por  inveja,  por  adulação, 
por  vaidade  (como  traducçõesíl !)  Fr.  José  Marianno  Velloso,  frade  de 
projectos  botânicos,  e  com  quem  D.  Rodrigo  de  Sousa  Coutinho  gas- 
tou um  bom  centenar  de  contos,  sumiu  toda  a  minha  edição,  que  nunca 
appareceu,  nem  se  poz  á  venda,  e  a  outra  metade  das  obras  de  Horá- 
cio, que  são  as  Sátiras,  as  Epistolas,  e  a  Arte  poí  tica  manuscriptas, 
abalou  no  anno  seguinte  de  4807  com  ella  para  o  Rio  de  Janeiro,  onde 
se  afogou,  que  eu  não  vi  mais  tal  Horácio:  fatalidades  minhas!  Das 
obras  de  Horácio  foge-me  um  capucho  com  o  segundo  volume,  resta 
o  primeiro  impresso;  das  obras  do  maior  poeta  latino,  Stacio,  lam- 
bem traduzido,  perde-me  uma  criada  o  primeiro  volume,  seis  hvros, 
e  resta  o  segundo,  que  são  outros  seis  livros,  na  mão  de  Lopes:  que 
hei  de  fazer?  O  primeiro  de  um,  ou  o  segundo  do  outro?  Farei  o  se- 
gundo do  outro,  que  é  mais  conhecido  Horácio,  e  mais  estimado  do 
mundo  todo,  porque  o  mundo  todo  lambem  se  engana  no  juizo  dos 
poetas,  e  de  versos ;  imprimir-se-ha  tudo  com  uniformidade,  e  em  pa- 
pel grande,  e  bons  caracteres ;  isto  é  cousa  que  se  vende  por  todo  o 
reino;  e  se  parecer  aos  financeiros  prudentes,  abrir-se-ha  uma  suh- 
scripção,  já  que  me  tiraram  a  Besta,  e  me  puzeram  a  pé.  Escreva-me 
sobre  isto,  que  é  cousa  financeirista. 

João  Pedro  Ribeiro.  Sim  senhor,  alU  tenho  eu,  e  por  signal  ao  pé 
do  bispote,  umas  quadras  que  elle  fez,  e  imprimiu  em  1823,  sobre  a 
realeza,  para  se  sangrar  em  saúde;  para  m'as  dar,  ou  impingir,  andou 
elle  em  busca  de  mim,  mais  um  tal  Dos  Guimarães.  Ainda  que  as  qua- 
dras bastem,  eu  estimaria  vêr  a  nova  obra,  e  mande  dizer  a  Fr.  For- 
tunato que  durma,  que  vá  andando  com  os  seus  trabalhos,  que  deixe 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  67 

▼ir  a  cousa  para  estar  em  boas  mãos,  que  vem  a  ser  as  do  diabo,  que 
é  este  seu  criado.  Aqui  me  disse  o  Lopes,  que  Fr.  Velhaco  de  S.  Pa- 
tife, o  capucho  Henrique,  não  queria  licencear  o  numero  8°  do  Defen- 
sor dos  Jesuítas;  mande  dizer  sobre  isto  o  que  se  passa.  Se  o  Horácio, 
meio  impresso  já,  e  o  outro  meio  que  eu  em  menos  de  um  mez  posso 
dar  prompto  para  a  impressão,  tiver  o  mesmo  fado,  então  assentemos 
de  pedra  e  cal,  que  tudo  é  argamassa.  Adeus,  escreva-me,  e  tenha 
saúde;  ahi  me  trazem  um  prato  de  grelos  de  couve  com  azeite  e  vi- 
nagre, um  cacho  de  passas  (bem  más),  uma  metade  de  queijo  saloio,  e 
uma  bilha  de  agua  fria,  e  boa,  que  é  o  lauto  jantar  d'este  anachoreta, 
porém 

De  V.  S.*  Amigo 

J,  A.  de  M. 
LV 

111.'"°  Sr. 

Se  a  terrível  doença  me  deixasse,  muito  faria  do  que  V.  S.*  me 
diz;  mas  isto  vai  nos  progressos  da  morte,  desfazendo-me  em  oarina, 
sem  cinco  minutos  de  intervallo.  Farei  a  versão  do  que  resta  de  Ho- 
rácio; e  é  cousa  tão  diflBcultosa  para  ser  boa,  que  no  juizo  de  muitos 
basta  para  immortalisar.  O  Stacio,  sendo  o  mais  poeta  dos  poetas, 
isto  é,  o  mais  sublime  de  todos,  os  antigos  e  modernos,  não  é  enten- 
dido, e  por  isto  não  é  conhecido  no  vulgo;  os  mais  litteratos  e  mais 
vistos  na  lingua  latina  ficam  de  queixo  cabido  sem  atinarem  com  a 
intelligencia.  Eu  me  ri  em  Beja  do  universal  sabedor  Cenáculo,  quando 
lhe  disse:  —  Ora  traduza  V.  Ex.^  como  fazem  os  rapazes,  esta  passa- 
gem aqui  da  dedicatória,  em  que  o  poeta  falia  a  Domiciano: 

Licit  arctior  oranes 
Limes  agat  stellas ... 

ou  abra  ao  acaso. — Abriu,  e  descrevia-se  uma  serpente,  e  entre  outras 
cousas  dizia: — Atenuai  ornas  —  nunca  atinou  o  bom,  e  bem  ingénuo 
velho  Cenáculo.  Emfim,  isto  não  ó  para  portuguezes,  acabou-se.  O  Ho- 
rácio sim,  não  por  bem  entendido,  mas  porque  em  Horácio  se  falia 
muito.  O  frio  me  comprime  tanto,  que  apenas  ao  meio  dia  deixo  a 
cama ;  não  sustento  a  penna  nos  dedos,  por  isso  não  peguei  ainda  na 
Carta,  e  custa-me  estar  tirando  e  pondo;  já  me  lembrou  fazer  outra 
de  novo,  porque  o  faço  mais  depressa:  ou  borro  esta,  e  vai  para  o 


68  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

P.^  M.^  Dr.  Fr.  Fortunato,  com  as  addições  e  correcções  que  V.  S.* 
lhe  fez;  lá  se  avenha  elle,  que  tem  mais  paciência:  diga-me  V.  S.'  se 
isto  quer,  para  lh'a  remetter.  V.  S.*  não  me  falia  no  escripto  de  João 
Pedro  Ribeiro,  e  sei  que  é  publico.  E  as  Bestas? — Pois  isto  fica  as- 
sim? Tudo,  e  tudo  é  pedreiro.  O  Fr.  Velhaco  é  reconhecido  instru- 
mento da  pedreirada,  e  soffre-se  este  escândalo?  Não  ha  remédio,  nem 
o  haverá.  Eu  tenho  demorado  a  conclusão  dos  Burros,  porque  desti- 
nava enchel-os  de  pedreiros,  que  é  melhor  que  tudo;  mas  só  impri- 
mindo fora,  e  vendendo  como  muitos  impressos  se  vendem;  porém 
quem  se  encarregará  d'isto?  o  século  de  pedreiros  é  o  século  de  la- 
drões, e  senão  nos  fiamos  dos  homens  por  pedreiros,  menos  nos  de- 
vemos fiar  por  ladrões.  O  frio  não  me  deixa,  e  por  isso  não  me  es- 
pojo agora  mais.  Recommende-me  V.  S.*  ao  111.'°°  Sr.  Esmoler-mór  e 
seu  companheiro,  que  bem  podia  alguns  domingos  dar  por  aqui  alguma 
saltada.  Não  tenho  com  quem  falle,  e  me  console,  e  quem  me  anime. 
Tenho-me  descartado  de  todos  os  chamados  amigos,  mas  amigos  da 
intriga,  e  dos  exemplares  da  Besta;  ainda  assim  aturo  alguns,  e  taes 
que  me  obrigam  (grátis!)  a  fazer-lhe  sermões  para  exéquias  da  Rai- 
nha. Creia  V.  S.*  que  dos  dous  de  que  lhe  fallo,  do  capador  dos  man- 
jericões, e  muito  mais  de  V.  S.^  é 

Amigo 

J.  A.  de  M. 
LVI 

111.'"°  Sr. 

Também  eu  tenho  janellas  para  o  sul,  mas  a  minha  enfermidade 
é  gravíssima;  esta  noute  que  passou,  cuidei  que  também  passava  para 
a  eternidade.  A  ourina  por  si  mesma  se  solta,  já  corre  sempre,  e  ape- 
nas me  deito  tudo  se  inunda,  e  assim  alagado  não  posso  dormir;  a  se- 
cura é  mortal,  não  ha  agua  que  me  estanque  a  sede;  ninguém  padece 
mais,  nem  com  mais  paciência.  Que  hei  de  escrever?  Flontem  de  tarde 
esteve  aqui  o  Prior  do  Carmo,  e  me  disse  que  o  Provincial,  que  está 
doente  de  gota,  escrevera  um  óptimo  papel,  em  que  mostrava  como 
sem  gravame  das  rendas  do  estado  se  podiam  conservar  e  manter  os 
Jesuítas,  applicando  os  recursos  que  elle  apontava,  pois  no  mesmo  in- 
stante—  escusado — e  supprimido,  e  o  capucho  também  lhe  não  quiz 
pegar  para  o  vêr.  Ora  escreva  lál  Disse  o  senhor  Annes,  que  a  ofiQ- 
cina  se  fechava,  que  assim  o  queriam.  Estamos  desenganados.  Eu  es- 
to u  determinado  a  fazer  apparecer  no  senado  um  requerimento  meu. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  69 

pedindo  licença  para  pôr  aqui  em  Pedrouços  um  pequeno  padejo,  para 
fabricar  algum  pão,  chamado  de  luxo,  que  são  merendeiros,  que  aqui 
se  vendem,  e  vão  para  Lisboa  a  vinte  e  cinco  réis;  de  certo  o  faço,  e 
terá  o  publico  em  que  falle  dous,  ou  três  dias.  O  requerimento  vai,  e 
começará:  «Diz  José  Agostinho  de  Macedo,  presbytero  secular,  e  pre- 
gador de  Sua  Magestade,  que  tendo  o  Desembargo  supprimidoum  pa- 
pel, de  que  lhe  vinham  os  meios  de  sua  subsistência,  e  não  podendo 
pregar,  impedido  por  sua  enfermidade,  para  viver  se  determina  a  ser 
padeiro,  etc^»  Isto  apparece  infallivelmente  no  senado,  já  que  a  con- 
sulta não  apparece.  Saiba  isto  El-rei,  e  o  reino  inteiro;  porque  até  para 
o  publico  ha  de  haver  um  annuncio  na  Gazeta,  para  estabelecer  fre- 
guezia.  Sim  senhor,  eu  acabarei  o  Horácio,  e  bem,  e  com  muita  bre- 
vidade. Tenho  pena  do  Stacio,  que  nunca  pude  lêr,  nem  traduzir  sem 
um  violento  arrepiamento  de  cabello,  e  tremor  do  cérebro;  emfim,  os 
seis  últimos  livros  existem,  e  parte  do  primeiro,  porque  eu  a  quiz  co- 
meçar, e  existe  na  mão  de  um  cego,  filho  do  Castilho,  que  está  em 
Coimbra,  e  posso  mandar  vir;  mas  o  tempo  presente  não  é  para  Sta- 
cio. O  Cardeal  Bentivoglio  (Selvaggio  Porpora)  o*  quiz  traduzir,  e  om- 
mittiu  a  dedicatória,  porque  se  não  atreveu  com  ella.  O  Horácio  será 
bem  recebido,  e  o  Horácio  não  é  Besta,  nem  é  Jesuíta,  Quatro  vezes 
me  tenho  levantado  a  ourinar,  depois  que  comecei  estas  tristes  regras; 
o  frio,  sem  ser  Stacio,  me  arrepia,  e  faz  saltar  a  penna  dos  dedos,  e 
aos  saltos  ainda  digo  de  Stacio,  que  a  sabida  de  Satanaz  do  inferno, 
no  Canto  Hl  do  Oriente  é  um  frouxo  e  muito  remoto  arremedo  da  sa- 
bida de  uma  Fúria  do  inferno  no  1.°  livro  da  Thebaida;  tudo  me  lem- 
bra; que  desgraçada  memoria! 

«Sentada  estava  do  Cocytho  horrendo 
Na  margem  negra,  permittindo  ás  cobra» 
Que  os  funeraes  cabellos  lhe  toucavam. 
Que  um  pouco  lambam  as  sulphureas  ondas.» 

Tudo  é  d'este  cunho!  O  2.°  livro  não  se  pode  lêr  sem  sufiFocação 
extrema  do  coração,  mas  o  latim  é  crespissimo,  mui  poucos  o  enten- 
dem, porque  no  estylo  não  ha  senão  figuras  elevadíssimas.  Ora  dê-me 
o  prazer  da  sua  visita,  porque  é 

De  V.  S.*  Amigo 

J.  A.  de  M, 


70  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


LVII 

111."'°  Sr. 

Recebi  por  este  Coelho  a  carta  de  V.  S.*  que  muito  estimei  por- 
que era  sua,  e  como  o  era,  devia  trazer  boas  noticias  do  accolhimento 
que  esses  senhores  fizeram  ao  papel,  a  quem  a  novidade  da  composi- 
ção dará  alguma  voga.  O  primeiro  já  chegou  a  Inglaterra,  porque  o 
Lopes  aqui  me  mandou  uma  carta  do  Saraivinha,  e  n'isso  lhe  fallava; 
veremos  se  também  lá  vai  ter  o  segundo.  Tenho  observado  com  muita 
reflexão  o  que  eu  esperava  a  respeito  dos  Jestntas,  summa  frieza,  e 
summo  indifferentismo,  o  que  era  de  presumir,  conhecendo  nós  os  ba- 
rões assignalados,  em  cujas  mãos  se  depositou  o  pandeiro.  Meu  P."  M.^ 
e  meu  amigo,  o  que  se  quer  são  pelles:  os  bi-camaristas  querem  pa- 
paguear, e  promover  a  felicidade  d'esle  reino,  que  consiste  na  invio- 
labilidade do  domicilio  do  cidadão;  no  exercicio  activo  dos  quatro  po- 
deres outorgados  pela  Carta  outorgada  pelo  senhor  D.  Pedro,  que  quiz 
fazer  a  felicidade  dos  seus  fieis  súbditos,  abdicando,  conforme  os  con- 
selhos da  sua  sabedoria,  na  sua  filha,  rainha  reinante  de  Portugal,  a 
senhora  D.  Maria  da  Gloria,  que  conforme  a  lei  de  Lamego  deve  casar 
com  o  Conde  de  Calhariz,  filho  de' Pedro  Palmellão,  ficando  este  com 
as  pastas  todas.  Eis  aqui  o  que  se  quer,  e  os  Jestdtas  vistos  pelas  cos- 
tas, e  isso  acontecerá.  E  que  hei  de  eu  escrever?  Problemas?  Pois  fa- 
rei problemas;  qual  é  maior  tolo?  Um  pedreiro,  ou  um  sebastianista?... 
Que  acontecerá?  Vem  logo  rebolindo  uma  carta  do  Saraivinha,  em  que 
declare  da  parte  do  governo  de  Sua  Magestade  britannica,  que  não  vem 
o  reconhecimento  emquanto  se  chamarem  tolos  aos  pedreiros,  e  que  é 
contra  os  dictames  da  politica  europêa;  moderação,  moderação.  O  Des- 
embargo escusava  e  supprimia  tudo,  grilando  que  era  ataque  directo, 
porque  sendo  elles,  como  são,  tolos  e  pedreiros,  não  querem  que  lh'o 
chamem.  Weste  caso,  sem  conselho  de  varão  prudente  não  sei  o  que 
farei.  Aqui  me  disseram  hoje  que  se  fechava  brevemente  a  Impressão 
regia;  por  isso,  emquanto  alli  estiver  o  Coquilho,  é  preciso  que  se  cuide 
na  impressão  do  Poema,  seja  como  fôr.  Creio  que  terá  presentemente 
poucos  leitores,  mas  ahi  ficará;  e  se  o  reino  resuscitar  antes  que  re- 
suscitem  os  capuchos,  então  os  terá,  por  isso  bastarão  poucos  exem- 
plares, porque  sendo  o  papel  bom,  a  despeza  é  grande.  Emquanto  ao 
sermão  do  homem  milagroso,  existe,  como  disse,  na  livraria  da  Penha; 
eu  o  vi  lá  em  1807  até  1809,  entrando  á  parte  esquerda  na  primeira 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  71 

carreira  do  chão  estão  livros  em  quarto,  com  capas  de  pergaminho, 
que  são  coUecçôes  de  sermões  e  papeis  avulsos;  em  um  d'estes  baca- 
martes estão  os  dous  sermões,  o  de  S.  Thomé,  e  o  das  exéquias  de 
Luiz  XIII  pregado  no  Loreto.  Como  em  tantos  annos  terá  havido  mu- 
dança de  logar  nos  rabecos,  e  se  tem  renovado  muitas  vezes  as  cama- 
das de  frades,  talvez  estejam  n'outra  parte;  porém  estão  nas  mesmas 
collecções  com  capas  de  pergaminho;  os  frades  nunca  alli  vão,  e  o 
prior  que  era  prudente,  escondia  o  dinheiro  do  convento  atraz  dos  li- 
vros, porque  com  efifeito  estava  seguro.  Seria  ura  bom  serviço  feito  ás 
leltras  a  reimpressão  d'aquelle  prodigio  de  saber  politico,  e  de  memo- 
ria para  o  repetir;  é  verdade  que  nenhuma  estimação  lhe  dariam^  por- 
que o  que  se  quer  saber  é  determinar  as  vezes  em  que  o  magistrado 
pode  entrar  no  domicilio  do  cidadão,  de  dia;  porque  de  noute  o  domi- 
cilio do  cidadão  é  de  uma  inviolabilidade  absoluta,  nem  o  poder  mo- 
derador com  toda  a  extensão  que  lhe  dá  a  Carta,  pode  ir  perturbar 
uma  sessão  pedreira  ás  duas  horas  do  noute.  Isto  é  o  que  convém  es- 
tudar, para  ser  sábio  como  um  Faria  Carvalho.  E  o  P.®  M.®  Dr.  Fr. 
Fortunato  que  diz  a  isto?  Em  que  se  emprega?  Onde  pára?  Que  es- 
creva, ainda  que  seja  sobre  o  domicilio  do  cidadão;  se  o  fizer,  é  logo 
bispo;  a  Vida  de  Santo  António  é  cousa  boa,  mas  o  domicilio  do  cida- 
dão é  cousa  melhor;  e  eu  digo  que  no  actual  estado  de  cousas,  o  me- 
lhor é  dormir,  porque  comer,  até  para  isso  é  inviolável  o  domicilio  do 
cidadão,  porque  nada  entra,  e  nada  ha.  Tomara  ao  menos  que  Sarai- 
vinha  nos  mandasse  o  reconhecimento;  no  emtanto  conheça  e  reco- 
nheça V.  S.*  que  é  seu 


Pedrouços  8  de  junho  de  1830. 


LVIII 


Am."  o  mais  obrig.''" 
J.  A.  de  M. 

111.'°°  Sr. 


Vai  a  carta,  que  não  tem  resposta,  mas  dará  satisfação  de  não  ter 
escripto  a  quem  devia  escrever,  se  me  chamam  aquelles  senhores  tolo 
por  não  escrever,  e  principiar — Aos  que  a  presente  virem — sem  sa- 
ber quaes  sejam,  teem  razão,  porque  tolo  deve  ser  quem  anda  na 
Besta  para  ser  ajudante  substituto  de  Fr.  Cláudio.  Queira  V.  S.*  fa- 
zer-me  o  obsequio  de  a  mandar  entregar  por  um  criado  seu  a  quem 
a  quizer  acceitar,  mas  que  seja  sem  demora;  não  me  façam  um  crime 
do  que  também  não  sei.  Egual  favor  peço  também,  para  a  outra  in- 


72  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

clusa,  entregando-a  a  Francisco  trasladador,  que  logo  a  entrega,  pois 
é  amigo  do  tal  Cláudio,  sem  ser  frade.  Começo  já  a  correr  o  poema, 
para  tirar  o  accrescentado,  e  a  levar  os  versos  de  Camões;  hão  de  ir 
como  elles  são,  porque  se  eu  lhe  havia  pôr  cousa  da  minha  lavra,  en- 
tão seriam  todos  meus.  Os  de  Camões  em  um  soneto  são  taes  e  que- 
jandos: 

O  cisne,  quando  sente  ser  chegada 
A  hora,  que  põe  termo  á  sua  vida, 
Musica  com  voz  alta  e  mui  subida 
Levanta  pela  praia  inhabítada. 

Não  começo  logo  por  basbalhadas  o  poema  de  mais  conhecimen- 
tos e  erudição  que  talvez  haja  de  sahir  do  prelo  porluguez.  O  ultimo 
planeta  descoberto  em  o  nosso  systema  solar  chama-se  o  Hercules;  a 
sua  distancia  do  sol  é  na  razão  directa  do  tempo  do  seu  giro;  esta 
nossa  terra  (que  é  boa  joial)  faz  o  seu  giro  em  36o  dias  e  6  horas,  e 
dista  do  sol  trinta  e  três  milhões  de  léguas,  o  Hercules,  que  faz  o  seu 
giro  em  duzentos  annos,  em  que  distancia  estará?  Isto  ê  o  que  ha  até 

agora  demonstrado ;  e  nao  me  venham  quebrar  os com  livri- 

nhos  francezes,  que  mentem  mais  que  ura  secretario  de  estado.  Seja  o 
que  fôr;  versos  não  são  rigorosas  demonstrações,  ou  dissertações  so- 
bre um  ou  outro  ponto  de  astronomia  no  systema  do  mundo,  são  um 
rapto,  um  extasi,  ou  tombos,  e  cabriolas  de  imaginação  sem  freio,  e 
sem  sarrilha,  e  ás  vezes  dizem  mais  apparentes  desconnexos  que  um 
padre  da  Companhia  a  pregar  em  Carnaxide;  a  mesma  gente  rústica, 
que  de  lá  vinha  hontem  de  tarde,  e  enchia  esta  larga  rua,  vinha  ás 
gargalhadas.  Em  cá  me  apparecendo,  eu  lhe  lerei  a  cartilha,  e  os  po- 
rei em  caminho  de  me  não  deixarem  mentiroso.  Estes  filhos  de  Santo 
Ignacio,  e  enteados  do  Marquez  de  Pombal,  cuidarão  que  lodos  os  por- 
tuguezes  são  creanças?  Um  frade  da  Graça  irlandez,  que  veiu  para  cá 
creança,  e  eu  conheci,  metteu-se  já  velho  a  pregar,  e  pregando  das 
Chagas  de  Christo  em  Lamego,  disse  que  vinha  pregar  das  cinco  ma- 
taduras  de  Nosso  Senhor  Jesus  Christo;  porque  achou  no  Diccionario 
de  Bluieau  synonimo  de  chagas  mataduras,  e  lhe  pareceu  o  termo  mais 
terno  e  mavioso.  Melhor  o  fez  o  laconismo  de  outro  frade  da  Graça, 
escrevendo  para  o  tal  convento  de  Lamego,  que  se  chama  das  Chagas, 
a  uma  freira  chamada  D.  Francisca  das  Chagas;  e  o  frade  também 
Fr.  Francisco  das  Chagas,  que  alguma  cousa  engatinhava  rias  finezas 
e  discrições,  pondo  no  sobre-escripto; — Á  Senhora  D.  Francisca  das 
Chagas,  no  convento  d'ellas,  de  Fr.  Francisco  das  mesmas  ác* — La- 


A  FRKI  JOAQDIM  DA  CRUZ  7ÍJ 

mego.  Este,  que  andava  já  com  mataduras  no  lombo,  picado  da  mosca 
de  amor,  teve  mais  juizo  que  o  mataduras  do  irlandez.  Não  ha  den- 
tista, ou  belforinheiro  do  norte,  ou  do  sul,  que  não  aprenda  primeiro 
a  propriedade  de  alguns  termos  portuguezes,  para  abrir  lenda,  ou  ar- 
mazém; mas  vir,  e  pregar  logo II  Assim  fizeram  os  primeiros  que  cá 
appareceram,  sim;  e  o  primeiro  era  o  P.®  Simão  Rodrigues,  portuguez 
e  natural  de  Vizeu,  pregava  em  portuguez;  e  S.  Francisco  de  Borja, 
que  era  castelhano,  subindo  ao  púlpito  de  S.  Roque,  não  pôde  dizer 
senão,  a  tremer — Passion  de  Nosso  Sefior  Jesus  Christo  —  e  calou-se. 
Farei  no  fim  do  poema  a  declaração,  para  se  depositar  em  Alcobaça. 
Também  quizera  que  lá  por  entre  os  livros  da  casa  d'elles  se  conser- 
vasse um  retrato  meu  em  grande,  e  a  óleo,  feito  pelo  grande  pintor 
chamado  pelo  governo  para  pintar  o  nosso  Lord,  e  mais  o  outro  Lord 
Careca,  casado  com  a  mulher  do  Jerumeuha.  Este  meu  retrato,  como 
pintura  é  cousa  admirável;  como  eu  não  tenho  herdeiros  que  lhe  man- 
dem fazer  a  moldura  que  merece,  eu  o  deixo  em  vida  ao  Mosteiro  de 
Alcobaça,  que  como  guarda  as  obras  em  tinta,  guarde  o  auctor  em  co- 
res, e  Deus  guarde  a  Y.  S/,  de  quem  sou 

Am.°  e  obrigadissimò 
Pedrouços. . .  de  Junho  de  1830. 

J.  A,  de  M. 

N.  B. — Cora  esta  ia  inclusa  uma,  para  ser  entregue  ao  Conde  de 
Basto,  sobre  o  despacho  do  auctor  para  ajudante  do  Chronista  do  Reino. 


LIX 

Ul.""'  Sr. 

São  hoje  30  de  Junho,  e  são  tantas  as  cousas  que  tenho  que  di- 
zer a  V.  S.^,  que  seria  melhor  fazer  um  rol,  que  uma  carta:  a  minha 
moléstia  deve  ir  na  cabeceira  d'este  rol.  Quasi  nada  tenho  feito,  ou  es- 
cripto,  e  isto  pinta  bem  o  meu  estado.  Revi  o  manuscripto  do  poema, 
tirei  prologo  breve,  tirei  versos  de  Camões,  emendados  por  Lopes,  fiz 
outros  novos  em  logar  dos  que  Lopes  fez,  e  Lopes  entortou.  Se  na  co- 
pia do  Paula  papeis,  que  foi  para  a  impressão,  foi  o  que  eu  tirei  no 
principio,  é  preciso  emendar  o  frontispício,  e  em  logar  de  versos  de 
Camões,  e  prologo,  ir  a  advertência  como  prefação;  e  já  que  o  rapaz 
azougado  anda  e  corre  mais  que  uma  noticia  má,  bom  seria  que  cá 
viessem,  e  de  cá  fossem  as  provas  dos  versos,  que  nenhuma  demora 


74  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

terão.  Escrevi  no  fim  a  declaração  do  deposito  em  Alcobaça  para  se 
reconhecer;  deve-se  enquadernar  em  pasta  forte  para  durar.  Como  em 
um  verso  acrescentado  por  Lopes  eu  puz  uma  nota,  e  na  enquaderna- 
ção  se  devem  cortar  algumas  cousas  as  margens,  bom  seria  arrancar 
a  folha,  e  o  Paula  que  a  traslade  (só  os  versos)  para  não  ir  com  a  de- 
formidade do  corte.  Está  acabada  esta  parte  rol  carta,  ou  carta-rol. 
Mais  rol.  Veiu  finalmente  véspera  de  S.  Pedro  o  decreto,  que  aqui 
mandou  o  Conde  de  Basto,  por  um  modo  tão  honroso  como  o  espirito 
do  mesmo  decreto,  pois  o  senhor  commendador  Simões  na  sua  seje  o 
veiu  trazer,  cora  muitos  cumprimentos  e  ofiferecimentos  da  parte  do 
senhor  Conde,  disse-me  que  devia  mandal-o  ao  senhor  Desembargo, 
para  se  lhe  pôr  o  cumpra-se,  e  registe-se,  e  com  os  despachos  do  se- 
nhor Desembargo  ir  ao  Ministro  da  Fazenda.  Eu  do  senhor  Desem- 
bargo, não  quero  conhecer  ninguém;  commetto  tudo  isso  a  V.  S.*, 
porque  do  mesmo  senhor  Desembargo  poderá  haver  alguém,  que  in- 
forme a  V.  S.*  dos  tramites  que  isso  ainda  tem  que  correr,  e  as  esta- 
ções por  onde  deve  andar.  Se  comsigo  ha  de  levar  despezas,  podem 
dar  a  quem  quizer  essas  honras,  porque  eu  não  tenho  sacco  para  ca- 
berem n'elle  honras  e  gastos.  O  periodo  de  que  me  mandam  ser  Chro- 
nista  é  o  mais  escabroso  e  malgradado  de  todos.  Nem  ao  menos  posso 
dizer  se  o  ordenado  pende  do  Erário.  Depois  do  asno  morto  cevada 
ao  rabo.  Veja  V.  S.*  d'onde  hão  de  vir  papeis,  e  documentos  para  a 
historia  de  quatorze  annos  que  El-rei  esteve  no  Rio  de  molho  I  Eu  fa- 
rei o  que  poder,  e  entretanto  morre  o  burro,  ou  quem  o  tange.  Isto 
veiu  para  dar  incommodos  a  V.  S.*  Continua  o  rol.  Ha  duas  cousas, 
que  eu  não  posso  fiar  do  rapaz,  que  desde  Pedrouços  até  subir  essa 
escada  não  encontrará  nem  cão,  nem  gato,  que  não  leve  pedrada,  e 
que  elle  não  receba  também  egual  cumprimento  dos  outros.  A  primeira 
é  o  original  do  poema,  e  a  segunda  é  o  decreto,  também  original,  por- 
que nada  d'isto  pode  ir  cosido  aos  farrapos,  nem  bem  atado  ao  pes- 
coço, como  o  mudo  levava  as  Bestas  arreatadas.  José  desenho  tem-se 
feito  mais  invisível  e  inaccessivel  que  um  primeiro  ministro  assistente 
ao  despacho;  portanto  ponho  no  rol  outro  incommodo  a  V.  S.*,  que  é 
mandar  aqui  o  costumado  criado,  para  conduzir  as  duas  cousas  apon- 
tadas. Custa-lhe,  é  verdade,  andar  a  pé,  mas  vá  de  vagar,  e  com  sen- 
tido, para  não  perder  os  papeis.  Pode  tirar  uma  copia  do  decreto,  para 
se  mostrar  aos  curiosos,  emquanto  o  original  anda  pelos  tramites. 
Nunca  o  rol  da  minha  roupa  foi  mais  extenso,  mas  ahi  vai  mais  al- 
guma cousa.  Leva  o  rapaz  apedrejante  e  apedrejado  um  livro  gordís- 
simo, que  o  Visconde  de  Canellas  me  mandou  de  Hollanda,  que  a  Ca- 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  75 

nellas  viscondessa  aqui  me  fez  entregar:  eu  o  offereço  ao  111.°"'  e  R.""" 
Sr.  EsDQoler-mór.  No  livro  vem  ura  appendice  de  Saraivinha,  e  entre 
os  nomes  dos  Senhores  do  braço  do  clero  vem  também  o  do  mesmo 
Senhor  Esmoler-mór  despachado  assim  por  Saraivinha  a  p.  32  «Dr.  Fr. 
José  Doutel,  D.  Abbade  geral,  e  Capellão  maior  de  Palmella».  Deve  S. 
S.*  agradecer-lhe  o  despacho,  porque  emfim  bom  é  um  pão  com  um 
pedaço,  mas  eu  nunca  assim  vi  um  pedaço  d'asnof  O  livro  vem  muito 
forte  de  cousas  do  tempo,  não  publicadas  ainda.  Eu  espero  um  exem- 
plar da  edição  em  quarto,  que  o  seu  auctor  me  mandou  prometter. 
São  horas  de  acabar  o  rol,  mas  nunca  chegará  uma  em  que  eu  deixe 
de  ser 

De  V.  S.* 

Amigo  obrigadissimo 
/.  A.  de  M. 


Pedrouços,  30  de  Junho  de  1830. 


P.  S.  Tinha  acabado  o  rol  hontem  quasi  á  noute,  para  o  mandar 
como  vai,  pelo  rapaz,  hoje  1  de  Julho;  José  desenho  apparece  com  a 
carta  de  V.  S.*  cujo  intróito  me  contristou  bastante;  mas  eu  martyri- 
sado  com  males  physicos,  não  attendo  aos  destemperos  moraes  e  polí- 
ticos: o  que  elles  quizerem,  até  que  Pedro  de  Sousa  (o  Pasteiro)  se 
farte  de  vingança,  por  passear  três  horas  na  bateria  d'aquella  torrei... 
Tem  baralhado  o  mundo,  e  feito  parir  livros  gordos,  como  o  que  re- 
metto  para  o  111."°  Sr.  Esmoler-mór,  e  ainda  não  está  farto  Pedro  Pas- 
tel. Foram  abolidos  na  Ilha  Terceira  os  sete  sacramentos  para  sem- 
pre, já  não  ha  missa,  o  matrimonio  é  puro  contracto  civil,  o  divorcio 
foi  solemnemente  proclamado;  não  "ha  frades,  não  ha  clérigos,  não  ha 
freiras,  nem  as  egrejas  se  abrem.  O  batalhão  sagrado  tem  feito  em 
achas  as  imagens;  isto  tudo  é  verdade;  guerra  e  lavoura!  eis  aqui  o 
grito;  e  sofre-se  isto?  E  dizem  que  para  lá  se  encaminha  o  Marquez 
de  Sancto  Amaro.  Seja  o  que  fôr,  e  então  soará.  Faça  V.  S.*  guerra 
ao  Capucho,  para  não  perder  tempo,  que  sempre  aproveitarei,  para 
em  tudo  mostrar  que  sou 

De  V.  S.* 

Amigo 
J.  A.  de  M. 


76  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MAGIÍDO 


LX 

111.'°°  Sr. 

Hoje  5  do  corrente  ás  quatro  da  tarde  me  tiraram  para  esta  ca- 
deira, em  quanto  se  me  concertava  a  cama;  e  aproveito  a  occasiâo 
para  escrever  duas  palavras  antes  que  perca  o  fatal  uso  da  escripta. 
Aqui  vieram  os  jesuitas  dizer-me,  que  lhes  deram  para  morada  o  pa- 
lácio do  Lavra,  mas  que  não  era  convento,  mas  domicilio  alugado.  Fal- 
laram-me  em  Fr.  Fortunato;  eu  lhes  disse  que  d'elle  nada  sabia,  que 
por  mais  que  n'elle  fallava  por  escriptos  públicos,  e  por  cartas  particu- 
lares, nem  resposta  ás  cartas,  nem  agradecimento  aos  louvores,  nunca 
tinha  recebido;  e  como  n'aquelle  instante  recebia  uma  carta  de  Coim- 
bra, do  decano  da  faculdade  theologica,  Fr.  Domingos  de  Carvalho, 
n'elia  fazia  menção  de  uma  carta  que  eu  lhe  escrevera,  e  que  em  toda 
Coimbra  se  lia,  recommendando-lhe  um  medico  bacharel,  que  ia  fazer 
acto  ou  exame;  a  esta  mesma  carta  não  quiz  dar  resposta.  EUe  não 
é  malhado,  mas  tomaram  os  malhados  que  eu  lhe  escrevesse.  Isto  nada 
é,  e  nada  importa,  o  que  importa  é  o  meu  padecimento,  em  tão  hor- 
rendas moléstias,  que  todas  a  um  tempo  me  accommettem,  e  me  vão 
chegando  á  cova;  e  diz  o  meu  amigo  Fr.  António,  que  por  sobre  nome 
não  perca,  que  me  não  deixe  V.  S.*  estar  ocioso!  Já  que  tem  tanta  ca- 
ridade, não  virá  ser  meu  enfermeiro?  Nem  um  só  instante  estou  ocioso, 
ou  com  socego,  pois  passo  de  uma  dor  para  outra  dor,  e  todas  insup- 
portaveis.  A  gota  não  pára,  a  ourina  não  cessa,  as  lascas  de  pedra  não 
deixam  de  sahir,  e  de  ferir  a  uretra;  as  hemorrhoidas  inflammadissi- 
mas,  o  fastio  é  de  morte;  agua  e  fructa;  outro  comer,  nem  vêl-o,  nem 
cheira  1-0 :  parece-me  que  tenho  com  que  me  occupe;  e  o  meu  amigo 
Fr.  António  a  passar  ordens  a  V.  S.*  para  me  não  deixar  estar  ocioso! 
Quem  será  este  meu  amigo  Fr.  António?  É  o  Fr.  António,  que  é  meu 
amigo,  e  me  quer  arrancar  da  ociosidade,  que  é  mãe  de  todos  os  vi- 
cios. — E  os  meus  negócios?  Nada  de  bilhete  de  novos  direitos,  nem 
um  passo  sobre  tal  objecto;  eu  represento  a  El-rei,  e  declaro  que  não 
tenho  dez  réis  para  tabaco,  nem  um  vintém  para  a  barba;  e  que  se  a 
graça  não  for  grátis  dada,  que  faça  chronistas  os  desembargadores  do 
paço,  que  isso  é  gente  capaz  e  moços  completos.  Fique  isto  assim  as- 
sentado, e  a  chronica  por  fazer,  e  se  é  oCQcio  de  encarte,  eu  renuncio 
a  propriedade  a  beneficio  da  quinta  caixa,  ou  da  quarta,  ou  d'aquella 
era  que  querem  metter  todo  o  dinheiro  que  houver,  com  carimbo,  ou 


À  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  77 

sem  carimbo.  Sobre  o  poema,  além  de  pedir  a  V.  S."  que  se  appresse, 
supplico  a  V.  S.*  que  risque  tudo  o  que  forem  versos  de  Lopes,  ou 
de  outro  qualquer  curioso;  porque  não  sei  se  na  copia  do  homem  — 
Papeis — vae  essa  mixordia,  e  se  lá  houver  alguma  prova,  mande-m'a 
por  esse  miquelele,  que  o  miquelete  a  levará.  Se  a  folha  da  advertên- 
cia não  estivesse  ainda  tirad?  a  limpo,  eu  faria  mais  alguma  cousa  para 
a  encher,  ainda  que  fosse  com  uma  inscripção  para  a  cova  que  me  es- 
pera. Esquecia-me  dizer  a  V.  S.*  que  a  ultima  carta  que  tenho  de  Fr. 
Fortunato  foi  aquella  em  que  me  mandava  aturar  o  excommungado 
Memhra'da,  que  me  poz  o  cabello  no  estado  respeitável  em  que  está 
pela  sua  côr;  para  eu  não  fazer  o  mesmo  a  V.  S.^  remato  jurando  que 
sou 

De  V.  S.* 

O  mais  obrig.*^"  amigo, 
e  mais  que  o  do  Fr.  António 


Pedrouços,  5  de  Julho  de  1830. 


LXI 


/.  A.  de  M. 


Ill.">°  Sr. 


Ha  duas  cousas,  que  parecem  tornar  incrível  que  eu  possa  escre- 
ver uma  só  letlra:  a  primeira  é  o  estado  doloroso  em  que  existo,  pe- 
dra e  gota,  e  sem  parar,  e  ambas  ao  mesmo  tempo;  a  segunda  é  a  in- 
cessante inquietação  de  gente,  que  vem  entulhar  esta  casa,  cousa  que 
ainda  não  parou,  e  hontem  domingo  foi  enchente  real.  Não  tive  logar 
houtem  de  vêr  as  provas,  o  que  íiz  esta  madrugada,  e  vão  correctas 
conforme  os  reparos  de  V.  S.*  e  assim  continuará.  Só  vae  sem  mu- 
dança o  áinda  porque  é  um  adjectivo  mui  usado  em  poesia;  ha  tam- 
bém o  substantivo  avidez,  que  quer  dizer— desejo  soffrego,  e  ardente. 
Entre  os  visitantes  de  hontem  de  tarde  veiu  também  José  Tintas,  elle 
se  oífereceu  para  portador;  eu  queria  mandar  este  cossaco  pequeno, 
que  também  é  valente;  mas  hontem  quasi  á  noute,  indo  com  a  bilha 
buscar  agua  á  fonte  do  senhor  Duque,  escorregou,  quebrou  a  bilha  e 
pizou  muito  uma  perna,  e  não  pode  caminhar  tanto,  apesar  de  dizer 
que  já  lhe  não  doe  nada.  É  uma  perseguição  por  ir  a  Lisboa  que  me 
atormenta,  effeito  do  bom  agasalho  que  lá  lhe  fazem,  e  elle  merece, 


78  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

porque  é  extraordinária  a  comprehensão  e  viveza  de  um  rapaz  de  dez 
annos;  e  o  que  mais  admira  são  os  sentimentos  de  religião  e  de  hu- 
manidade, que  elle  tem;  quiz  confessar-se,  quiz  commungar;  reparte 
com  os  cegos  pobres  alguns  dez  réis  que  lhe  dão;  viu  dar  uma  facada 
em  um  homem,  e  de  aUlicto  perdeu  a  falia  por  um  dia  inteiro,  e  o  trou- 
xeram em  braços  para  casa.  Se  eu  tiver  alguma  paciência  mais,  em 
uma  semana  aprenderá  a  lêrll  Vamos  a  outras  cousas.  Mandei  a  V.  S.* 
o  Ra?iicio,  porque  a  leitura  de  livros  me  serve  de  grande  embaraço 
para  a  composição;  emfim,  não  posso  lêr  e  escrever  ao  mesmo  tempo, 
confundem-se-me  as  idéas,  fico  esterilmente  pasmado;  não  quero  livros 
de  qualidade  nenhuma.  Nós  não  sabemos  senão  aquillo  de  que  nos  lem- 
bramos, e  a  mim  lembra-me  muita  cousa,  e  é  o  que  basta.  Quando 
agora  acabar  esta,  vou-me  aos  Frades,  antes  que  venham  os  secado- 
res, e  os  pedinchões;  hontem  quando  chegou  o  seu  creado  estava  es- 
crevendo a  pagina  dezoito;  e  vejo  que  ainda  vou  no  principio.  Em  aca- 
bando este  primeiro  quaderno,  para  lá  lh'o  envio,  que  poderá  logo  im- 
primir-se,  para  ir  ganhando  tempo.  E  ainda  terá'bocca  para  fallar  o 
meu  amigo  Fr.  António?  Apenas  o  Fr.  António  meu  amigo  ler  o  que 
estj  feito,  e  chegar  a  ler  o  que  está  por  fazer,  deita-se  a  dormir  como 
uma  lontra,  e  sem  medo  que  o  inquietem  pedreiros;  porque  a  rolha 
que  se  lhes  prepara  ha  de  atarracar  bem  nos  gorgomillos.  Viu  V.  S.* 
João  Paulo  Cordeiro?  Pois  viu  um  dos  mais  solemnes  mentecaptos  do 
século  decimo  nono.  A  fallar,  faria  andar  á  roda  a  cabeça  de  Spinosa, 
que  a  discorrer  era  a  mais  segura  que  se  conhece;  é  bom  para  a  so- 
ciedade, porque  tira  o  trabalho  aos  outros.  Deus  guarde  a  V.  S.^  de 
taes  encontros;  oihe  que  morre  phtysico,  ou  zangado,  que  ainda  é  peor. 
Vae  tardando  o  José  Tintas,  e  se  fosse  o  Pedro  foguete  já  lá  estava  a 
estas  horas,  que  são  nove  da  manhã;  e  eu  em  todas  serei 

De  V.  S.* 

Am.°  obrig.""*  e  certo 
Pedrouços,  ...  de  Julho  de  1830. 

/.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  79 


LXII 

'  m.""'  Sr. 

Vae  o  rapaz,  que  já  não  ha  quem  o  possa  conter:  todos  os  dias 
quer  ir,  pois  vá  hoje  15  do  corrente.  Primeiro  que  tudo,  peço  a  V.  S.* 
que  não  dê  um  só  passo  a  respeito  do  bilhete  da  chancellaria.  Ámanhá 
em  Caxias  se  entregará  a  El-rei  um  requerimento,  em  que  direi  o  que 
me  lembrar.  Nada  tão  injusto  como  quererem  converter  em  oÊQcio  en- 
cartavel,  e  encartado  um  trabalho  de  que  El-rei  me  encarrega,  marcan- 
do-lhe  a  matéria,  o  prescrevendo-lhe  os  limites;  acabando  elle  não  te- 
nho mais  que  fazer.  Se  é  oíEcio  com  encarte,  então  posso  pôr  um  ser- 
ventuário, porque  estou  doente.  Tal  oíBcio  não  quero,  e  por  isso  nem 
um  só  real  de  despeza,  e  peço  a  V.  S.*  que  não  cuide  em  tal.  Para  eu 
escrever  não  necessito  de  decretos,  nem  de  alvarás;  não  quero  felici- 
dades, nem  honras  vindas  pelo  Desembargo  do  paço.  Vamos  ao  que  im- 
porta. A  apologia  dos  Padres  já  chega  a  trinta  e  oito  paginas  de  quarto 
grande,  e  lettra  miúda:  ainda  falta  muito.  Aqui  disseram  que  o  111.°"* 
P.^  Geral  fora  para  Alcobaça,  e  é  provável  fosse  também  o  P.®  M.®  Fr. 
Álvaro,  senão  pedia  a  V.  S.^  viesse  cá  com  o  P."  M.®  Fr.  Álvaro,  para 
uma  leitura  mais  interessante  que  a  da  Magna  Carta,  que  de  nada  ser- 
viu. Este  apologético  dos  frades  deve  publicar-se  logo,  porque  a  cousa 
decide-se,  e  grande  estampido  fará.  Podia  ir  o  que  está  feito,  para  se 
ir  imprimindo,  mas  eu  não  fio  tal  papel  do  rapaz,  nem  de  moços  gran- 
des, nem  pequenos.  Se  lá  estiverem  algumas  provas  do  poema,  para 
isso  vae  o  rapaz,  eu  eu  fico  sendo 

De  V.  S.^ 

O  mais  devedor  e  obrig.**" 

Pedrouços,  15  de  Julho  de  1830. 

J.  A  de  M. 

P.  S.  Quando  o  meu  amigo  Fr.  António  vir  a  Apologia,  se  quizer 
mais  vá  a  sua  casa,  porque  então  já  não  somos  amigos. 


80  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


LXIII 

111.'"°  Sr. 

Vão  as  provas  emendadas,  e  feitos  de  novo  os  dois  versos  que 
vinham  apontados,  e  que  com  effeito  tornavam  o  sentido  escuro,  e  ara- 
phibologico.  Em  quanto  aos  versos,  em  que  parece  faltar  a  harmonia, 
é  preciso  advertir  que  n'estes  versos  de  onze  syllabas,  que  se  chamam 
endecassyllabos,  ha  sua  differença,  que  nasce  da  coUocação  dos  accen- 
tos,  e  por  isso  uns  se  chamam  saphicos,  outros  alcaicos,  e  para  evi- 
tar a  monotonia,  que  nasce  dos  endecassyllabos  com  os  mesmos  accen- 
tos  sempre  uniformes,  vou  intermeando  os  de  outra  versificação,  digo, 
accentuação,  ainda  que  nunca  passem  de  onze  syllabas,  nem  para  mais, 
nem  para  menos.  Eis  aqui  porque  V.  S.^  extranha,  e  eu  os  recitarei 
na  sua  presença,  logo  lhe  sentirá  a  cadencia,  e  o  ouvido  ficará  satis- 
feito. Como  elles  não  têm  a  capa  de  velhacos,  chamada  a  rima,  ou 
as  consoantes,  como  as  outavas  do  Oriente,  é  preciso  variar,  para  con- 
servar e  fechar  bem  o  periodo.  Esta  arte  da  poesia  até  na  sua  difficul- 
dade  é  desgraçada,  e  depois  de  vencida  apenas  se  diz:  —  Isso  são  ver- 
sos, e  qualquer  rapaz  faz  d'essas  cousas. —  Vamos  agora  a  prosas.  Cho- 
ram-se  os  da  Impressão  regia  que  não  têm  nada  que  fazer,  e  eu  lh'o 
creio;  pois  então  porque  não  ha  de  o  capucho  e  o  descapuchado  Annes 
apressar  as  cousas  que  não  são  ataques  claros  e  directos  á  senhora  Pe- 
dreirada?  O  papel —  Os  Frades — parece  que  deve  interessar  o  mesmo 
capucho,  porque  se  o  atacam  por  malhado,  não  o  ataquem  por  frade, 
e  quererá  ter  uma  investida  de  menos.  Eu  não  sei  como  as  cousas 
d'aqui  transpiram,  mas  sei  que  um  vem,  e  vem  outro,  eu  estou  escre- 
vendo, e  logo  o  sabem,  pois  já  começou  a  procissão  dos  frades  arra- 
bidos  com  badaladas  á  porta. —  Senhor  padre  José  Agostinho,  já  sahiu 
o  papel  dos  Frades? — E  isto  ainda  elle  não  estava  acabado;  veja  V. 
S.*  o  que  será  agora.  Desejo  pois  que  se  apresse  a  impressão,  e  que 
passe  pelas  duas  fieiras,  a  do  capacho,  e  a  do  capucho,  e  que  se  não 
eternize  a  impressão,  digo,  a  publicação;  podiam  repartir  a  cousa  por 
dois  ou  mais  ofBciaes.  Inste  pois  V.  S.*  com  aquelles  senhores,  por- 
que se  começarem,  escreverei  mais  uma  folha  para  prefacio,  porque  o 
necessita,  pois  vejo  que  começa  mui  ex-abrupto.  Esta  folha  pode  ir  em 
lettra  gripha.  Aquelle  texto  de  Petronio,  que  vae  no  Templo,  é  de  uma 
leltra  soberba  e  formosa;  mas  sem  estar  licenciado  não  escrevo  o  tal 
prefacio.  Erafim,  isto  é  carta,  e  nãa  é  livro;  mas  se  não  leva  prefacio, 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  81 

levará  o  —  Fwis  Laus  Deo — dando  eu  a  V.  S.*  nâo  só  louvores,  mas 
agradecimentos.  Cavacos,  me  têm  dado  muitos,  mas  cavacas,  só  V. 
S.^;  por  isso,  e  lambem  sem  isso  sou 

De  V.  S.* 

Ara."  e  mais  obrig.**" 
Pedrouços,  27  de  Julho  de  1830. 

/.  A.  de  M. 


LXIV 


111.'"''  Sr. 


É  verdade  que  me  tenho  feito  invisível,  mas  a  minha  triste  e  do- 
lorosa enfermidade  a  isso  me  obriga;  dias  e  dias  me  conservo  na  cama, 
sempre  com  remédios,  e  nunca  com  melhoras.  N'este  sitio  tenho  mais 
commodidades  e  menos  perseguições.  O  Forno  é  muito  conhecido,  e 
este  cadoz  muito  ignorado.  Fui  com  muito  trabalho  domingo,  20,  a  Lis- 
boa pregar  um  sermão;  trouxe,  é  verdade,  dez  cruzados  novos,  mas 
também  em  cima  de  mim  mais  de  dez  vezes  o  nome  de  apostólico,  e 
mais  de  vinte  me  perguntaram  pelo  meu  dinheiro;  de  sorte  que  me 
lembrei  de  trazer  os  dez  cruzados  novos  na  mão,  para  todos  verem  o 
meu  dinheiro,  e  não  me  perguntarem  por  elle.  Amanhã  vou  a  S.  Ro- 
que pregar  da  ascensão  do  Senhor:  elle  subiu  ao  iMonte  Olivete,  e  es- 
ses phariseus  constitucionaes  me  farão  subir  ao  Calvário,  para  me  cru- 
cificarem pelo  meu  dinheiro.  E  é  este  o  systema  que  felizmente  nos 
rege?  E  será  este  sempre,  pois  lhe  não  vejo  geito  de  acabar?  Aqui  es- 
tão sempre  commigo  algum  amigos,  em  cujo  costado  se  divisa  o  mesmo 
proeminente  volume,  que  tanto  avulta  no  meu  (e  eu  pedi  ao  Raphael, 
admirando  elles  muito  o  retrato  que  o  Raphael  trazia,  que  trouxesse 
hoje  alguma  obra  sua,  para  elles  admirarem  ainda  mais);  cada  um  d'el-  • 
les  traz  diariamente  sua  mentira,  suave  alimento  da  miserável  corcun- 
dage:  a  de  hontem  não  foi  das  menos  importantes;  e  vera  a  ser,  uraa 
carta  do  archanjo  á  senhora  Vadre,  em  que  lhe  annunciava  a  sua  appa- 
rição.  Um  cónego  da  sé  trouxe  outra,  egualmente  gorda,  e  graúda: 


*  Em  um  outro  caderno  intitulado  Cartas  a  diversos  indivíduos  encontrámos 
mais  três  carias  dirigidas  a  Fr.  Joaquim  da  Cruz.  (Da  revisão.) 

CARTAS.  6 


82  CAKTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

uma  carta  do  conde  de  Penafiel,  vista  por  elle  cónego  da  sé,  escripta 
de  Paris,  em  que  dizia  a  suas  irmãs:  —  Aqui  chegaram  bagagens  do 
archanjo.  O  principal  Corte  Real  também  aqui  disse:  O  Commissario 
britannico  aboletado  em  minha  casa,  disse:  «O  exercito  se  encontra  em 
Lisboa,  para  se  declarar  quem  é  o  rei  de  Portugal». —  Um  castelhano 
servil,  que  é  despachante  de  navios,  e  que  também  aqui  vem  todos  os 
dias,  disse: — O  commandante  inglez  da  torre,  Miller,  recebeu  uma  carta 
de  um  seu  irmão  de  Inglaterra,  em  que  lhe  dizia:  tVejo  que  te  hei  de 
abraçar  aqui  antes  que  parta  para  uma  commissão  ao  México,  porque 
o  exercito  torna  aqui,  apenas  ahi  chegar  o.infante  reconhecido  rei.»  — 
Estas  foram  as  de  hontem,  veremos  que  taes  são  as  de  hoje.  Serve 
isto  ao  menos  de  disfarçar  a  ceia  se  é  pequena,  ou  se  é  nenhuma.  Em 
quanto  ao  canninguismo  vae  triumphando,  e  o  saldanhisnio  vae  as- 
neando,  e  o  esperancismo  vae  entysicando  o  corcundismo;  pois  já  não 
temos  no  corpo  mais  que  a  triste,  mas  duríssima  merendeira. 

Vamos  ao  mais  que  interessa,  ou  que  talvez  seja  menos  interes- 
sante. Estou  gravemente  enfermo,  mas  não  ocioso.  Fiz  uma  Novena 
(cousa  mui  séria)  da  Senhora  Apparecida,  que  se  imprime,  e  já  vae  ser- 
vir. De  que  serve  cá  isto?  dirão  os  pães  da  pátria,  no  meio  do  derra- 
mamento das  luzes  do  século,  e  dos  progressos  da  civilisação?  Este 
diabo  os  atacou  na  resposta  aos  da  commissão  da  censura,  agora  os 
suspenderá  de  todo  com  a  Novena.  Está  o  summario  feito,  já  foi  or- 
dem a  todas  as  boticas  para  a  execução  da  setença,  e  seja  o  golpe  tão 
prompto,  que  não  dê  a  enfermidade  tempo  nem  para  o  primeiro  bole- 
tim; não  esteja  de  costas,  nem  de  ilharga,  vá  logo  para  o  cemitério. 
Esta  sentença  terá  embargos,  porque  ao  menos  o  domicilio  d'este  cida- 
dão será  inviolável  á  entrada,  não  digo  eu  de  um  frasquinho,  ou  vidri- 
nho de  mammona,  mas  até  a  dez  réis  de  malvas  e  violas. 

Os  Burros  vão  andando,  porque  é  da  minha  obrigação  tocal-os,  e 
dão  taes  urros,  e  taes  zurros,  que  me  vejo  obrigado  a  alargar  e  es- 
tender as  mangedouras,  mais  do  que  tinha  determinado;  eu  os  farei 
viver  sempre,  já  que  elles  com  seus  couces  tanto  nos  matam.  Quizera 
continuar  com  estas  divinas  matérias,  mas  a  carta  do  P."  M.®  Dr.  Fr. 
Fortunato  pede  outra  marcha,  e  outro  estylo.  Não  me  parece  a  oração 
obra  de  Santo  Agostinho;  é  verdade  que  este  grande  homem  quiz  por 
humildade  depois  da  sua  conversão  mudar  de  tom  em  seu  modo  de 
escrever,  o  que  se  conhece  na  comparação  dos  escriptos  feitos  antes 
da  conversão  com  os  que  depois  compoz.  Antes  de  convertido  compoz 
os  dois  livros  —  Contra  Académicos,  que  são  um  prodígio  de  eloquên- 
cia, e  de  pura  lalinidade,  isto  foi  antes  dos  trinta  annos;  depois,  nos 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  83 

mesmos  livros  da  Cidade  de  Deus,  que  são  dezoito,  começa  a  abater-se 
no  estylo  muito  de  propósito,  pois  querendo  pôr  o  nominativo  os  por 
osso,  para  se  não  confundir  com  os,  oris,  que  é  o  rosto,  poz  ossum,  que 
é  de  baixa  e  barbara  latinidade.  Em  todas  as  suas  innumeraveis  obras, 
sempre  seguiu  o  que  tinha  dito  em  uma  carta:  iDisplicet  mihi  qiiod 
múllum  tribui  liberalibus  disciplmis  quae  multi  sancti  multum  nesciunt; 
et  multi  scient  qui  sancti  non  sunl.i»  Apesar  d'isto,  acho  demasiadamente 
humilde  e  incorrecto  o  estylo  da  oração,  que  me  parece  como  uma  pre- 
fação e  profissão  de  fé  aos  sublimes  livros  —  De  Trinitate  —  e  aos  que 
se  lhe  seguem — De  Doctrina  christiana. — Quando  fôr  a  Lisboa  mais 
de  vagar,  que  será  para  a  semana,  mandarei  a  casa  do  Lopes,  que  tem 
a  grande  edição  das  obras  de  Santo  Agostinho,  buscar  o  volume  dos 
livros  da  Trindade,  eu  combinarei  as  cousas,  escreverei  outra  carta  ao 
Prior  da  Graça,  como  a  do  cirurgião,  para  me  mandar  as  obras  de  S. 
Prospero,  onde  vem  tudo  quanto  o  santo  escreveu  em  um  completo  ca- 
talogo. Eu  creio  que  o  cartório  de  Alcobaça  foi  mais  roubado  por  Fi- 
lippe  II,  que  o  Thesouro  nacional  por  Manuel  Fernandes  Thomaz  e  com- 
panhia em  18201  É  destino  de  Portugal  ser  em  todos  os  tempos,  e 
muito  mais  nos  presentes,  roupa  de  francezes  I 

Nos  intervallos  de  mortaes  dores,  e  de  incessantes  mijadelas,  nos 
espaços  que  ha  entre  ração  e  ração  que  deito  aos  Burros,  como  esta- 
mos em  dias  de  Maio^  e  como  a  penna  se  eu  lhe  não  pego,  salta  ella 
por  si  do  tinteiro  para  os  meus  dedos,  tenho  visto,  mudado,  addicio- 
nado  e  polido  o  poema  Newton,  e  irá  até  ao  ponto  e  grandeza  de  per- 
feição, e  abundância  de  cousas  e  de  doutrinas,  que  espero  que  elle 
diga  á  posteridade,  mais  que  tudo  o  que  tenho  feito,  que  eu  soube  al- 
guma cousa  no  mundo;  e  quando  eu  o  apresentar  n'esses  buracos,  que 
as  philanlropias  do  século  lhes  deixaram  para  morada  em  logar  do 
mosteiro,  então  se  verá  que  elle  merece  uma  edição  mais  nitida,  e  mais 
rica  que  esta  do  Oriente,  e  a  vista  fará  fé. 

Ora  senhor,  não  fará  V.  S.^  aò  menos  com  um  páo,  que  aquelle 
azeiteiro  bezunlão  chamado  o  capucho  Henrique  acabe  de  uma  vez  com 
a  impressão  da  Oração  fúnebre,  levando  o  diabo  a  nota,  em  que  o  mal- 
vado Capucho  embirrou  tanto,  porque,  não  a  elle,  que  nada  entende, 
mas  aos  outros  tocou  nas'  mataduras?  E  hei  de  eu  estar  calado  contra 
isto,  e  contra  tudo?. . . 

Oh  periódico  O  Portuguez,  quando  poderei  eu  lançar-te  a  unha, 
e  ferrar-te  o  dente?  E  quando  se  tirará  aos  homens  de  bem  aquelle 
retorcido  corno,  que  na  bocca  lhe  tem  mettido  o  Divinal  systema!  Ora 
pois,  se  elle  me  cahir  da  bocca,  eu  o  converterei  em  penna,  e  com  esta 


84  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

penna  corno  eu  zurzirei  os  erros  de  um  cornudo . . .  Sem  mais,  até  à 
primeira. 

Am.°  obrig.™"  e  invariável 
23  do  Maio  de  1827. 

J.  A.  de  M. 

LXV 

Agradecendo-lhe  uns  presentes 

111.'"''  Sr. 

É  justo  acudir  com  pernas  a  quem  as  não  tem  para  andar;  mas 
se  estas  duas  não  são  pernas  que  me  sirvam,  não  se  poderá  negar  qne 
sejam  pernas  que  me  ajudem;  e  se  nem  pernas  lhe  quizerem  chamar, 
conhecerão  ao  menos  que  são  duas  grossas  moleias  da  existência,  e 
para  fallarmos  como  se  falla^  são  duas  seguras  bases  do  systema  esto- 
macal, que  sem  estar  cheio  não  se  pode  dizer  que  felizmente  nos  rege. 
Com  duas  columnas  não  vae  abaixo  o  ministério  nervoso.  Se  ellas  me 
não  viessem  dar  tanta  substancia,  com  qualquer  alento  que  tivesse  eu 
agradeceria  a  V.  S.^;  mas  agora  que  outorga  em  tão  rica  dadiva  uma 
constituição  tão  robusta  a  este  seu  creado,  assim  como  já  começa  a 
suslentar-me  a  voz  para  lhe  agradecer,  também  já  começa  a  refor- 
çar-me  o  pulso  para  mandar  ao  diabo  O  Portuguez;  e  animar-me  o 
peito  para  pedir  a  Deus  guarde  a  V.  S.*  por  muitos  annos,  e  m'os 
conceda  a  mim,  para  em  tudo  mostrar  que  sou 

De  V.  S.* 

Am.°  m.^°  affectuoso  e  obrig.'*'' 

Forno,  10  de  Junho  de  1827. 

J.  A.  de  M. 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  8S 


LXVI 


Sobre  a  reimpressão  da  dedicatória  á  Nação  portugueza 
do  poema  O  ORIENTE 

Ill."'«  Sr. 

Já  é  solemne  importunação  faliar  eu  no  estado  da  minha  saúde;  é 
verdadeiramente  lastimoso  e  não  tem  remédio,  e  tanto  que  já  me  custa 
escrever,  e  nem  esta  diversão  posso  ter  em  meu  padecimento,  e  até 
se  me  foi  no  meio  de  tantos  pezares  este  único  desafogo.  Não  posso 
ter  duvida  alguma  sobre  a  reimpressão  da  Dedicatória  á  Nação,  que 
morreu  a  24  de  Agosto  de  1820.  Até  esta  época  tudo  aquillo  era  ver- 
dade, de  então  para  cá  é  perfeitíssima  caçoada,  mas  vá,  e  se  mais  qui- 
zerem  mais  lhe  darei,  para  vergonha  sua,  se  é  que  a  tem,  porque  em 
logar  d'esta  vieram  os  direitos  do  homem,  e  a  inviolabilidade  do  do- 
micilio do  cidadão.  Parecia-me  que  se  imprimisse  no  mesmo  formato, 
ou  tamanho  da  actual  edição  do  Oriente,  porque,  quem  o  tiver  por  en- 
cadernar, lh'o  poderia  ajuntar.  Não  me  admiro  da  pouca  extracção  que 
tem  havido  de  tão  trabalhosa  composição,  e  o  motivo  já  m'o  tem  apon- 
tado mais  de  uma  vez  os  mesmos  livreiros,  que  sabem  melhor  d'essas 
especulações;  o  motivo  é  o  excessivo  preço  em  que  a  pozeram;  por- 
que se  a  vendessem  a  oito  tostões  (não  se  perdendo)  já  não  haveria 
um  exemplar.  Cousas  do  Lopes,  que  vae  publicar  as  Cartas  por  junto 
a  1:920  réis,  como  se  fosse  o  mesmo  para  o  povo  dar  isto  de  uma 
vez,  ou  a  60  réis  cada  semana.  Seja  pois  o  que  fôr,  a  pouca  duração 
da  minha  vida  a  tudo  me  torna  indififerente.  Se  V.  S.*  se  lembra  do 
que  ouviu  no  sermão,  eu  não  me  lembro  do  que  disse,  porque  nem 
meia  hora  me  deixaram  livre  em  S.  Roque  para  meditar  alguma  cousa. 
Tornei-me  alvo  do  povo  com  o  diabo  das  Cartas,  tudo  se  amontoa  á 
roda  de  mim  em  apparecendo,  e  não  me  largam.  Quando  subi,  nem  o 
thema  me  soccorria;  sahiu  assim  porque  quiz  sahir,  e  devendo  faliar 
no  rigor  da  discipUna  antiga,  e  penas  canónicas  alliviadas  depois,  que 
isto  quer  dizer — indulgências  —  tudo  ficou  nos  miolos,  e  nada  veiu  á 
lingua  mais  que  verbos  de  encher.  Até  nas  escadas  do  púlpito  me  disse 
um,  que  me  não  esquecesse  bater  nos  pedreiros,  que  isto  ha  de  ser 
á  vontade  do  povo;  eu  lhe  respondi,  que  me  fosse  buscar  um  páo,  e 


86  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

que  se  Dão  deniorasse.  V.  S.*  ouviu  fallar  em — fidelíssima — ;  talvez 
eu  quizesse  dizer  «fieis  patifes»,  que  são  os  que  nos  cercam,  nos  man- 
dam, e  nos  enterram.  Portuguezes  pela  pátria,  antes  fossemos 

,  então  poderíamos  ser  pães  da  pátria,  como  os  treze;  então  te- 
ríamos melhor  ventura.  Aqui  vêm  a  esta  casa  cardumes  de  homens  de 
bem,  isto  é,  corcundas,  e  como  taes  tolíssimos,  de  cujas  guelas  o  diâ- 
metro é  incommensuravel,  podem  engolir  elephantes.  Cada  um  diz  uma 
mentira,  e  vem  a  ser  muitas  mentiras,  porque  elles  são  muitos.  Agora 
mentem,  e  dizem  que  o  Infante  não  quer  vir  sem  vir  feito  rei;  de- 
pois hão  de  dizer  que  não  quer  vir  senão  feito  imperador;  depois  dirão 
que  não  quer  vir  senão  feito  papa;  e  temos  aqui  Fr.  Patrício,  que  já 
não  ha  mais  que  se  faça,  para  depois  ficar  em  nada,  como  Fr.  Patrí- 
cio. O  Lopes  diz  que  ainda  pende  a  negociação,  outros  que  se  acabou 
a  negociação,  outro  que  as  potencias  se  ajuntam,  outro  que  as  poten- 
cias reconhecem;  em  quanto  a  mim,  na  alma  dos  que  isto  dizem  falta 
uma  das  potencias,  que  é  entendimento,  sobejando-lhe  a  terceira,  que 
é  a  vontade  de  mentir.  Se  a  moléstia  me  deixar  escrever  o  post-scri- 
ptum,  já  digo  uma;  eil-a  aqui:  que  sou 

De  V.  S.* 

Am.°  e  muito  deveras 
Casa,  1  de  Dezembro  de  1827. 

J.  A.  de  M. 


NOTA 


Aqui  acabam  as  Cartas  dirigidas  por  José  Agostinho  ao  P.^  Frei  Joaquim  da 
Cruz;  Innocencio  escolheu  apenas  estas  66,  da  época  mais  interessante  da  historia  e 
de  mais  attribuiação  do  valente  escriptor.  Na  Collecção  de  Francisco  de  Paula  Fer- 
reira da  Costa  ficaram  ainda  141  ineditas_,  que  Innocencio  não  obteve^  por  que  cahi- 
ram  em  poder  do  corretor  Merello,  como  se  vê  pelo  Catalogo  da  sua  Livraria  donde 
serão  dispersadas  em  futuro  leilão.  O  volume  da  copia  por  letra  de  Ferreira  da  Costa, 
que  pertenceu  a  Innocencio,  tem  o  seguinte  titulo:  Correspondência  particular  de  }o%± 
Agostinho  de  Macedo — Carias  (escolhidas)  dirigidas  a  Fr.  Joaquim  da  Cruz,  Procura- 
dor geral  da  Ordem  de  S.  Bernardo.  Copiadas  em  Agosto  de  18i8. 

Seguem-se  mais  cinco  cartas  dirigidas  ao  mesmo^  que  encontrámos  em  fragmen- 
tos de  uma  copia  annotada,  que  estavam  entre  os  papeis  de  Innocencio. 

{Da  revisão.) 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  87 


LXVII 

111.'"°  Sr. 

O  meu  estado  é  por  extremo  lastimoso;  desde  domingo  passado 
qne  me  não  levanto  da  cama;  a  moléstia  vae  tendo  progressos  mortaes 
assim  o  sinto,  e  tanto  que  nem  uma  letra  tenho  escripto;  nada  posso, 
e  me  parece  que  nada  mais  poderei.  Aqui  veiu  um  homem  auctor  do 
Papel  incluso  ter  com  esse  exemplar*  o  seu  reconhecimento;  eu  o  en- 
vio a  V.  S.*  porque  é  bem  feito,  e  leva  cousa  que  escrevi.  Aqui  me 
escreve  o  Lopes,  e  me  manda  um  exemplar  do  Sermão  do  P.®  M.® 
Dr.  Fr.  Fortunato,  da  parte  de  João  Henriques  para  me  entregar  de 
mandado  de  seu  auctor;  isto  me  admira!  parece  que  não  devia  ser  este 
o  canal.  Eu  escrevo  sobre  uma  meza,  assim  mesmo  estou  tão  tremulo 
que  só  posso  dizer  com  firmeza  e  segurança  que  sou 

De  V.  S.* 

Am°  e  o  mais  obrigado 

/.  Á.  de  M. 


LXVIII 


111.°"'  Sr. 


Esta  noite  dormi  unicamente  dezenove  minutos,  o  mais  passou-se 
com  insofifriveis  dores;  tinha  hontem  levado  o  dia  na  cama,  e  hoje  as- 
sim vae,  e  assim  estou  sem  alivio.  Antes  de  acabar  a  Besta  farei  e  re- 
metterei  a  Carta  ao  P."  M."  Dr.  Fr.  Fortunato;  eu  o  admiro  e  respeito 
por  dever  ou  justiça.  Sei  toda  a  historia  da  Litteratura  monástica  em 
Portugal,  todas  as  corporações  juntas  e  fundidas,  nem  têm  deitado, 
nem  deitarão  um  Dr.  Fr.  Fortunato;  sobre  linguas  orientaes  tiverão  os 
Vicenles  um  D.  Pedro  de  Figueiró,  os  Dominicos  um  Fr.  Jeronymo  da 


^  É  a  obra  intitulada:  A  legitimidade  da  exaltação  do  Muito  dto  e  Muito  Pode- 
roso Rei  o  Senhor  D.  Miguel  I  ao  Uirono  de  Portugal  demonstrada  por  principioi  de 
Direito  natural  e  das  Gentes.  Por  Filippe  Nery  Soares  de  Avellar.  A  esta  obra  fex  o 
P.«  Macedo  urna  pequena  Censura,  que  vem  unida  á  mesma  obra. 


88  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Azambuja,  antigos;  entre  os  modernos  alguns  houve  até  certo  tempo, 
agora  nenhum  ha;  mas  estes  eram  paios  de  línguas  e  nada  mais;  Fr. 
Fortunato  possue  linguas  orientaes,  possue  as  línguas  mortas  e  vivas, 
e  possue  toda  a  Litteratura  sagrada  e  profana,  antiga  e  moderna;  e  sa- 
bendo tanto,  tudo  sabe  bem.  A  sua  maior  gloria  é  perguntar-se  já: — 
porque  não  foi  este  homem  Bispo,  ou  Arcebispo,  ou  Cardeal?  Isto  vale 
mais  que  dizer:  porque  foi  este  homem  Bispo?  Emfim,  eu  na  carta  ma- 
nifestarei os  meus  sentimentos  sobre  este  illustre  litlerato,  elle  é  uma 
viva  e  ambulante  apologia  do  Monacato,  e  é  uma  resposta  que  tapa  a 
bocca  á  philosophià  do  século.  Não  posso  mais,  estou  violento  escre- 
vendo assim,  porque  encruzado,  ainda  que  fallando-se  em  Cruz  logo 
me  animo,  porque  este  appellido  me  lembra  V.  S."  de  quem  sou 

Obrig."""  servo  e  amigo 

/.  Â.  de  M. 

XLIX 

111."»°  Sr. 

É  verdade  que  podia  ir  a  22,  porém  hontem  sabbado,  dores  e  vi- 
sitas mais  do  que  é  costume,  e  a...  Não  sei  o  que  queria  escrever  de- 
pois d'aquelle — a — ,  porque  ha  uma  hora  e  um  quarto,  que  entrou  o 
máximo  Pintor  a  contar-me  como  Ibe  sahiu  escuzado  um  requerimento 
que  deitara  na  caixa  do  ministro  Leite.  Lá  batem  na  porta . . .  feliz- 
mente é  o  aguadeiro,  e  por  um  milagre  vizivel  escapei  de  Raimundo 
José  Pinheiro;  ainda  tremo!  Emfim  são  quasi  oito  horas  da  manhã, 
elles  não  tardam.  A  Besta  está  quasi  albardada,  e  com  cousa  muito 
grave  e  seria,  porque  assentei,  que  o  que  querem  pode  ir  nas  Bestas,  e 
bem  carregadas  irão.  O  Mudo  a  levará  na  primeira  recovagem,  ou  se 
antes  quizer  mandar  algum  creado  ao  Duque  o  creado  a  levará.  Estimo 
que  chegasse  o  111.'°°  com  feliz  saúde  e  o  P.®  M.®  Fr.  Álvaro,  a  quem 
aífectuosamente  me  recommendo.  Vão  os  Mastigoforos,  e  vae  a  Cen- 
sura, da  qual  se  pode  tirar  uma  copia,  porque  o  Sr.  Arcebispo  é  d'isso 
muito  avaro.  Para  a  mesma  recovagem  escreverei  ao  Paula.  Ahi  me 
trazem  um  caldo  de  sagú;  mas  abi  entrara  dois  realistas,  e  ahi  está  o 
Cura  da  Ericeira,  que  quer  Versos  ou  Loas  para  a  Senhora  da  Naza- 
reth.  Ora  vão  lá  amalgamar  os  partidos  e  dizer  aos  Emigrados  para 
Hespanha,  que  não  gritem  pelo  seu  despacho,  porque  a  fome  bem  de- 


A  FREI  JOAQUIM  DA  CRUZ  89 

pressa  os  despachará  d'este  mundo;  emquanto  eu  n'elle  viver,  que  será 
pouco,  serei  de  V.  S.* 

Am.°  certo  e  obrigadissimo 


/.  A.  de  M. 


LXX 

(Fragmento) 


sitio  eram  os  Jardins  e  Fontes  e  Levadas  do  Mosteiro  de  Alcobaça  para 
meditar  e  concluir  a  traducção  do — Predium  Rusticiim — ha  só  uma 
muito  má,  era  muito  má  prosa  Franceza;  mas  eu  não  tenho  saúde  e 
edade  tão  enfranquecida,  que  se  não  tenho  76,  tenho  64.  Como  o  Li- 
vrinho está  aqui  em  cima  da  encebada  banca  com  pilulas  e  beberragens 
do  Medico  do  sr.  Arcebispo  (Medico  Corcunda,  e  mais  que  corcunda) 

Rara  Avis  in  terris  nigroque  similina  Cygno 
Ave  rara  na  Terra  ou  Cysne  negro 

Ahi  vae  um  rasgo  da  pagina  234  em  que  o  raríssimo  jesuita  en- 
contra o  espirito  republicano  nos  perus.  Eu  nem  pelo  Natal  lhe  en- 
contro o  corpo,  nem  republicano,  nem  realista,  nem  lhe  encontro  o 
espinhaço,  para  ver  se  elles  são  corcundas  ou  malhados;  esse  exame 
é  para  o  Marquez  de  Borba  e  para  os  Hypocritas  meus  vizinhos.  Os 
Jesuítas  foram  os  primeiros  que  trouxeram  os  Perus  á  Europa,  e  os 
Francezes  o veja  o  mundo  a  quem  devemos  mais?  Eu  na  ver- 
dade antes  quero  um  Peru,  que  uma  camada.  São  mais  de  duas  horas 
é  preciso  que  o  Mudo  vá  com  sol;  mais  desconsolado  fico  eu,  porque 
querendo  dizer  mais,  só  posso  dizer  n'esta  recovagem  que  sou 

De  V.  S.» 

Am."  e  m.'°  Am." 

J,  A.  de  M. 

P.  S.  Eu  me  recommendo  ao  I1I.°°  e  ao  P.®  M.*  Fr.  Álvaro. 


90  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


LXXI 

111.'"°  Sr. 

O  primeiro  que  me  lembrou  foi  este  F. . .  chamado  por  alcunha 
—  o  Peru  de  Barcellos. — Não  esquece,  nem  as  perde.  Eu  escrevo  ao 
111.™°  Sr.  P."  Geral,  remeltendo-lhe  uma  estampa  d'El-Rei,  por  isso  sou 
breve,  e  serei  extenso  para  a  outra  vez.  Com  que  todos  os  Pregado- 
res portuguezes  que  têm  existido  e  existem???  Pois  todos,  todos?  Pois 
também  um  a  quem  os  Jesuítas  vêm  perguntar  como  hão  de  pregar? 
Seja  tudo  pelo  amor  de  Deusl  E  já  encommendaram  ao  tal  pregador 
alguma  missão?  Venham  d'eslas  emquanto  envolto  em  sua  ignorância 
sabe  bem,  e  muito  ser  de  V.  S.' 

Am.°  e  obrig.*^" 

/.  A.  de  M. 


LXXII 


111."""  Sr. 


Deitado  escrevo;  quer  Deus  apurar  a  minha  cangada  paciência; 
fui  acommettido  de  um  tão  violento  ataque  de  gota  no  pé  e  perna  es- 
querda, que  está  em  monstruosa  inflammação,  com  dores  que  juntas 
ás  da  pedra,  que  é  melhor  a  morte;  assim  estou  e  tomando  quatro  ve- 
zes ao  dia  misturas  salinas  a  ver  se  transpiro.  Estou  em  estado  lasti- 
moso, por  isso  não  escrevo  a  beijar  a  mão  ao  111.™",  o  que  farei  logo 
que  me  possa  assentar.  Com  efifeito,  se  não  conheci,  porque  não  sou 
dos  mais  atilados,  o  Ribeiro  pequeno,  suspeito-o  ao  menos;  porque 
quem  defende  os  Jesuítas,  não  me  trazia  aqui  uma  infame  caricatura 
contra  elles  em  uma  estampa  lithographada  agora  em  Paris,  e  que  elle 
veiu  buscar  sabbado  véspera  do  seu  embarque.  Eu  direi  tudo.  Aqui 
me  vieram  com  uma  violenta  tentação  contra  os  Jesuítas  e  cousa  de 
lettras  que  lhe  faria  muito  mal.  Não  quiz,  nem  quererei;  era  uma  rede 
do  Inferno.  Infernaes  são  as  dores  que  padece 

O  seu  mais  affecto  Am." 

J.  A.  de  M. 


A  FR.  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA 


Acerca  de  uma  obra,  que  compozera  com  o  titulo 
de  «Alcobaça  Illustrada» 

111.""»  P."  M."  Dr. 

Entre  as  cruéis  dores  de  uma  incurável  enfermidade  de  ourina  de 
sangue  tive  a  consolação  e  o  lenitivo  de  ler  n'estes  dois  dias,  14  e  15 
do  corrente  Novembro,  o  seu  admirável  escripto — Alcobaça  Illlustrada 
—  a  obra  mais  cheia,  mais  apontada,  e  de  mais  luminosa  e  severa  cri- 
tica que  teremos  n'esta  migalha,  ou  resto  de  Portugal,  que  nos  dei- 
xaram os  bons  irmãos  e  melhores  primos;  mas  ella  será  conhecida  na 
Europa,  e  verá  que  a  congregação  de  S.  Bernardo  tem  o  seu  Mabil- 
lon,  como  a  de  S.  Mauro  teve  o  outro;  só  tem  uma  nódoa  n'3quella 
nota  que  me  diz  respeito,  mas  é  fácil  de  apagar,  e  eu  terei  esse  cui- 
dado. Quando  se  tratar  da  impressão,  em  uma  longa  carta  a  tão  re- 
speitável erudito  darei  uma  idéa  analylica  da  obra,  e  farei  conhecer  o 
seu  merecimento,  para  envergonhar  de  uma  vez  a  caterva  dos  superfi- 
ciaes  do  século. 

Folguei  muito  da  noticia  que  nos  dá  de  haver  achado  u'esse  the- 
souro  precioso  dos  manuscriptos  do  cartório  alguns  tratados  de  Fran- 
cisco Petrarcha;  eu  conheço  as  obras  impressas  d'este  homem  immor- 
tal,  até  nas  primeiras  edições  de  Basiléa,  e  algumas  vi  impressas  an- 
tes de  1500,  e  quizera  dever  a  V.  S.^  o  singular  obsequio  de  me  man- 
dar os  títulos  d'esses  tratados  manuscriptos;  talvez  seja  algum  iné- 
dito, e  que  possuamos  o  que  muito  desejariam  ter  os  modernos  ita- 
lianos. Se  n'essa  copiosa  bibliolheca  estiver  a  Vida  de  Petrarcha,  es- 
cripta  pelo  abbade  Sade,  em  4  volumes  de  quarto,  n'elles  encontrará 
noticia  exacta  de  tudo  o  que  o  mesmo  Petrarcha  escrevera :  os  nossos 
bons  escriptores  o  conheciam  e  liam,  e  trasladavam  muito.  Os  Diálo- 
gos de  Fr.  Heitor  Pinto,  e  os  de  Amador  Arraes,  meu  patrício  em  Pe- 


92  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

trarcha,  conservam  a  saa  matriz;  e  é  versão  o  da  —  Vida  solitária — de 
Heitor  Pinto. 

Muito  pois  desejo  saber  se  ha  cousa  não  impressa  de  Petrarcha; 
a  este  homem,  e  a  Lourenço  Valia  deve  tudo  a  actual  litteratura  euro- 
pêa,  que  conservada  nos  mosteiros,  appareceu  primeiro  ao  mundo  pe- 
las mãos  d'estes  homens,  que  se  aproveitaram  dos  trabalhos  monásti- 
cos pára  se  fazerem  grandes  e  nós  doclos. 

Lembrou-se  uma  Academia  de  Itália,  estabelecida  em  Assis,  e  in- 
titulada—  Properciana — de  me  consultar  sobre  a  intelligencia  e  varias 
lições  de  um  verso  do  mesmo  Propercio;  peço  a  V.  S.*  queira  ter  o 
trabalho  de  ver  se  na  livraria  existe  alguma  edição  antiga,  ou  algum 
manuscriplo  entre  os  muitos  do  cartório.  O  mundo  politico  nos  cha- 
mará doudos  e  mentecaptos,  fanáticos  e  toleirões,  por  nos  empregar- 
mos u'estas  puerilidades;  e  qualquer  fanqueiro  nos  olhará. com  um  riso 
de  compaixão,  porque  tendo  nós  (como  se  imprime  e  canta  pelas  ruas) 
a  Divinal  Constituição,  cuidamos  em  lettras,  e  do  tempo  do  absolu- 
tismo e  da  ignorância.  Pois  seja  assim,  e  seja  a  Divinal  Constituição 
um  d'aquelles  exemplares  gregos,  que  Horácio  nos  mandava  virar  d'aqui 
para  alli  com  mão  nocturna  e  diurna:  eu  vou  ser  outro  Mendes  a  Cas- 
tro, a  minha  vida  será  commentar  este  código  divinal,  que  nos  tirou 
do  abysmo;  faça  V.  S.*  outro  tanto,  e  eu  farei  o  mais  que  poder  por 
ser 

De  V.  S.^^ 

Servo  e  amigo 
46  de  Novembro  de  1826. 

/.  A.  de  M. 

II 

Sobre  o  mesmo  assumpto 

111.'"°  Sr. 

Ainda  que  me  guardo  para  escrever  um  juizo  e  parecer  mais  am- 
plo, e  com  mais  cuidado  sobre  o  seu  eruditíssimo  livro,  que  eu  desejo 
se  imprima  no  seu  principio  como  uma  espécie  de  prefação  extranha, 
para  dar  a  conhecer  sem  suspeita  de  parcialidade  o  merecimento  da 
obra,  como  sempre  d'ella  cuido,  e  d'ella  me  lembro,  não  me  posso  ca- 
lar, que  não  diga  de  vez  em  quando  em  seu  louvor  a  V.  S.^  alguma 
cousa.  Este  período  parecerá  longo,  e  espraiado  aos  professores  de 


A  FRKI  FORTUNATO  DE  S.   BOAVENTURA  93 

eloquência  da  Universidade,  que  escrevem  tão  boas  cousas,  como  é  um 
tysico  Emaio  da  historia  lilteraria  de  Portugal;  mas  sem  tão  largo  arn- 
bilo  de  palavras,  eu  não  podia  dizer  o  que  tão  profundamente  sinto. 
Eu  só  posso  julgar  das  bellezas  intrínsecas  da  sua  comppsição,  sem 
deixar  conhecer  o  Ímprobo  e  insano  trabalho  que  foi  preciso  ler  para 
a  levar  ao  fim.  E  porquê? — me  perguntarão:  eu  só  posso  respondei- 
representando-me  a  mim  no  meu  gabinete,  e  na  minha  hibliotheca. 
Uma  pequena  casa  com  quatro  paredes  nuas,  e  tão  nuas  como  são 
de  juizo  as  cabeças  dos  nossos  salvadores  publicistas  e  legisladores, 
de  ambos  os  andares  alto  e  baixo;  uma  meza  de  gosto  antigo,  sobre 
ella  um  tinteiro  de  onde  tem  sabido  bom  e  máo,  como  da  boceta  de 
Pandora;  uma  penna,  de  cujo  canudo,  como  da  bombarda  de  Diu  se 
tem  arremeçado  pelouros,  que  tem  lançado  por  terra,  dando  n'elles 
Sanct-Iago,  muralhas,  bastiões,  revelins,  andaimes  e  pedreiros;  uma 
cadeira,  que  nos  gemidos  que  ás  vezes  dá  parece  que  se  sente  da  sua 
longevidade,  e  que  na  funda  cova  do  assento  mostra  os  annos  que  me 
tem  aturado.  Eu  aqui  só,  em  um  silencio  ascético,  e  só  inlerrornpido 
pela  impetuosa  eloquência  de  uma  velha,  que  com  bocca  de  favas  nunca 
acaba  de  pedir  munições  de  bocca  para  a  cosinha,  e  eu  sem  outro  dote, 
livro,  ou  soccorro  mais  que  uma  imaginação  um  pouco  viva.  Este  é  o 
meu  estado  nu  e  cru;  e  como  posso  eu  fazer  cabal  juizo  de  um  livio 
de  recôndita  erudição,  cujo  substracto  são  escripturas  e  documentos, 
memorias  e  pergaminhos,  que  eu  nunca  vi,  e  tudo  está  lido,  compa- 
rado e  combinado  entre  si  conforme  as  mais  apuradas  regras  da  diplo- 
macia? Este  conhecimento  inirinseco  só  o  pode  conhecer,  e  avaliar 
quem  se  tenha  dado  a  tão  difficultoso  estudo.  Se  as  diplomacias  de  João 
Pedro  Ribeiro  tivessem  dado  os  fructos,  que  eu  admiro  no  livro  de  V. 
S.%  não  teria  eu  feito  tanta  zombaria  dos  trabalhos  diplomáticos  de 
João  Pedro,  e  do  Ftiero  de  Sobrarbe  cora  que  tanto  me  moeu  a  paciên- 
cia. Das  bellezas  externas  da  nobre  composição  de  V.  S.^  posso  cu 
formar  o  devido  conceito,  e  com  muito  prazer  annuncial-o.  A  disposi- 
ção da  obra  e  seu  andamento,  a  sua  critica  e  bom  uso  da  dialéctica, 
a  solidez  dos  argumentos  a  connexão  do  estylo,  as  mortaes  lamanca- 
das  e  fulminantes  cordoadas  nos  lombos  de  Fr.  Viterbo,  e  fmalmrnle 
a  apologia  do  grande  Fr.  Bernardo  de  Brito,  que  tanto  deve  envergo- 
nhar Viterbo,  Ribeiro  (grammaticões!),  Fr.  Joaquim  de  Sancto  Agosti- 
nho e  companhia,  são  cousas  de  cujo  preço  e  valia  posso  eu  ser  juiz 
competente;  e  virá  tempo  em  que  o  mesmo  livro  seja  texto  em  porlu- 
guez.  Se  eu  tivera  cabedal  para  o  fazer  e  compor,  lhe  poria  não  com 
aíTouteza,  mas  com  propriedade,  este  titulo:  *  Historia  chronologira  e 


94  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

mtica  da  real  Abbadia  de  Alcobaça  da  Congregação  Cisterciens  e  de  Por- 
tugal, para  servir  de  continuação  d  Alcobaça  illustrada  do  chronista  môr 
Fr.  Manuel  dos  Sanctos,  por  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura.-» 

A  idéa  da  obra  fica  para  a  minha  prefação;  pois  n'ella  farei  vêr 
pelos  três  diversos  artigos — virtudes — trabalhos  ruraes — litteratura 
—  as  vantagens  que,  desde  o  berço  da  monarchia,  nos  mais  assigna- 
lados  serviços  tem  trazido  a  esta  nação  portugueza  a  ilhistre  congre- 
gação de  S.  Bernardo,  tão  condecorada  pelos  monarchas  portuguezes, 
6  tão  benemérita  da  religião  chrislã. 

Isto  è  lembrança  minha  e  não  emenda  do  titulo  lançado  por  V. 
S.%  e  já  que  o  devora  como  bom  filho  tanto  zelo  pela  gloria  da  sua 
esclarecida  ordem,  e  é  tão  capaz  de  revolver  e  conhecer  os  depósitos 
de  litteratura  conservados  n'esse  memorando  e  notável  mosteiro,  tam- 
bém quizera  que  o  devorasse  egual  zelo,  e  possuísse  egual  cuidado  de 
uma  cousa,  de  que  apenas  se  conhecerá  presentemente  metade,  cha- 
ma-se  esta  cousa  a  língua  portugueza.  Walchio  escreveu  a  Historia  da 
lingua  latina;  o  sábio  Dr.  Fr.  Fortunato  só  poderia  dignamente  escre- 
ver a  Historia  da  lingua  portugueza.  Parece-me  que  n'esse  archivo, 
assim  como  existem  tantos  documentos  em  máo  latim,  também  existi- 
rão alguns  na  lingua  vernácula,  desde  os  primeiros  annos  da  monar- 
chia; estes  poderiam  fazer  a  primeira  época  da  lingua  até  ao  anno 
de  1446,  que  é  o  da  invenção  da  imprensa;  porque  o  Decor  puellarum, 
os  Sermões  de  Bernardino  de  Bustos,  os  livros  da  Cidade  de  Deus, 
que  existem  na  livraria,  ou  casa  de  livros  e  de  têas  de  aranha  dos  in- 
dolentissimos  frades  da  Graça,  a  quem  nem  já  capítulos  importam,  e 
o  de  Lactancio  de  Monte-Cassino,  com  a  Biblia  de  Moguncia,  tudo  alli 
entre  as  mesmas  têas  existe,  foram  e  são  os  primeiros  que  em  tal  anno 
entraram  na  imprensa;  e  começar  d'aqui  a  segunda  época,  notando 
a  progressiva  formação  e  aperfeiçoamento  da  mesma  lingua,  sendo  o 
primeiro  notado  Fr.  Bernardo  de  Alcobaça,  revolvendo  os  melhores, 
desde  o  mesmo  Fr.  Bernardo  até  Francisco  de  Andrade  na  Chronica 
de  D.  João  Hl,  e  poema  Cerco  de  Diu.  Começa  a  terceira  época  em 
os  sermões  ie  Diogo  de  Paiva  de  Andrade,  nos  de  Fr.  Filippe  da  Luz, 
nos  de  Fr.  João  de  Ceita,  para  chegar  ao  seu  polimento  summo,  do 
qual  se  não  passa.  E  quem  poz  estas  columnas?  Pois  não  foi  António 
Vieira?  Não  senhor,  não  foi;  este  ííercules  é  o  padre  Manuel  Bernar- 
des. Eu  assim  o  presenti  sempre,  desde  que  comecei  a  ler,  e  o  que 
digo  agora  disse-o  aos  onze  annos  de  edade.  O  paciento  Lopes,  o  ex- 
gazeteiro  exornado,  collegiu  só  das  Florestas  mais  de  duas  mil  phra- 
ses  e  vocábulos,  qne  escaparam  aos  nossos  melhores  diccionaristas. 


A  FftEI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTUE\A  9o 

Como  eu  não  tenho  senão  um  livro  chamado  Breviário,  que  me  custou 
dois  cruzados  novos,  da  livraria  immensa  e  óptima  do  mesmo  gazeteiro 
que  foi  nos  interregnos  dos  constitucionaes  trago  ás  vezes  meu  livrinho 
para  os  intervalos  das  minhas  cruéis  dores,  contento-me  agora  com  as 
únicas  Florestas,  e  cada  vez  admiro  mais  o  thesouro  das  palavras  la- 
tinas, com  que  enriqueceu  como  jóias  próprias  a  lingua  portugueza. 
Eis  aqui  uma  obra,  que  só  V.  S.*  é  capaz  de  fazer,  e  eu  de  o  ajudar; 
mas  quando???...  Agora  não  ha,  nem  pode  haver,  nem  deve  haver 
outra  sciencia  mais  que  a  exegética  constitucional.  Oh  minha  querida 
Constituição  1  Eu  te  desfiarei  I  Já  lhe  disse  que  eu  seria  para  ella  um 
Mendes  a  Castro,  agora  serei,  porque  da  minha  terra  sahiu  outro  ex- 
positor, que  é  —  Pegas  á  Ordenação. — Elle  era  de  Beja,  eu  sou  tam- 
bém de  Beja:  elle  era  Pegas,  e  eu  pegarei  melhor;  ja  me  chamaram 
de  Londres  —  cão  de  fila — ,  pois  filarei  agora  de  beiço  e  de  orelha. 
Benjamin  Constant,  o  amigo  dos  homens,  o  pae  da  humanidade,  o  ar- 
rumador da  platéa  social,  o  Bruto  dos  Toranos,  o  alma  das  camarás, 
e  o  bispote  d'ellas,  o  carrasco  do  despotismo,  e  mais  do  absolutismo, 
6  por  accesso  ao  maior  posto,  o  capitão  dos  ladrões,  sahiu-se  agora 
com  uma  obra,  que  aqui  me  mandaram  á  censura  —  Politica  constitu- 
cional:— esià  será  o  meu  Veni-mecum,  ou  o  meu  badameco  Não  ha- 
verá um  olho  só  n'um  corpo  portuguez,  por  onde  eu  não  metta  a  Con- 
stituição com  quanta  força  eu  poder,  até  encaixar  no  mesmo  intestino 
recto,  e  no  cólon  o  que  tantos  tem  no  coração,  e  nos  cascos.  Eu  não 
acho  estudo  mais  digno  do  homem  de  bem.  Os  beneméritos  da  pátria 
foram  treze,  serão  agora  quaiorze,  e  farei  que  esta  maligna  acabe  ao 
quatorzeno:  se  treze  a  fizeram,  o  quatorze  commentará.  O  meu  busto 
estará  entre  os  bustos  de  Jeremias  Benthara,  e  de  Benjamin  Constant 
com  um  letreiro  que  diga: — Este  do  meio  matou  os  dous  das  ilhar- 
gas.— 

Para  carta  missiva  ja  passa  de  aranzel ;  ahi  vae  o  papel  de  Itália ; 
sobre  elle  peço  a  V.  S.*  faça  alguma  indagação  nos  códices  manuscriptos 
d'essa  bibliotheca,  atraz  de  cujos  livros  pode  o  mosteiro  esconder  al- 
gum dinheiro,  que  lhes  sobrar  das  decimas,  quintas  caixas,  e  alçava- 
las,  porque  de  certo  os  costitucionaes  não  vão  lá;  mas  onde  não  che- 
gará o  faro  de  taes  cães  podengos  e  perdigueiros?  E  pois  os  cães  se 
não  levam  mais  do  que  a  páo,  tanto  não  deixará  de  lhes  malhar,  como 
não  deixará  de  ser 

De  V.  S.'' 

Am.°  e  obrigado 

J.  A.  de  M. 


96  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DR  MACEDO 

III 

Acerca  da  «Apologia  dos  Jesuítas» 

III.'""  e  R."""  Sr. 

Este  seu  amigo,  e  o  mais  justo  apreciador  e  admirador,  sem  es- 
perar informações,  nem  ter  RR  nos  exames,  está  em  miserável  situa- 
ção com  três  cousas  que  tem:  primeira,  na  bocca  um  corno;  —  nos  de- 
dos algemas,  segunda; — e  terceira  os  pés  na  cova:  assim  mesmo  sou 
muito  zeloso  e  apaixonado  do  nome  e  litteraria  gloria  de  V.  S.*,  por- 
que é  um  homem  verdadeiramente  benemérito,  não  do  Porto,  mas  das 
lettras.  Onde  foi  esconder  esta  oração  gratulatoria  natalícia?  Eu  não 
lhe  encommendei  o  sermão,  mas  quero-lh'o  pagar;  como?  se  ella  não 
tem  preço!. . .  Pois  também  o  não  terá  a  paga,  que  vem  a  ser  a  sua 
versão  portugueza,  para  chegar  a  todos  o  que  muitos,  nem  lá  n'esse 
salão  sem  ser  augusto,  mereciam  ouvir.  Veja  V.  S.^  que  se  diz  isto  a 
todos  em  Coimbra,  um  diluvio  de  pragas  cáe  sobre  o  louvador;  mas 
venham,  porque  ellas  não  são  o  phosphoro  fulminante  com  que  em 
Galiza  intentaram  matar,  ou  mataram  o  general  Eguia.  Vamos  a  ou- 
tro negocio,  não  de  menor  importância.  Tenho  lido  a  Apologia  dos  Je- 
suítas, e  como  era  cousa  sua  não  podia  deixar  de  ser  por  mim  appro- 
vada:  se  o  não  foi,  ou  se  o  não  é  pelo  Desembargo,  isso  não  é  de  es- 
tranhar; mas  tenho  ouvido  murmurar  da  Apologia  dos  Jesuítas;  eu 
defendo,  mas  sou  como  Alfranius  Burrhus  —  Et  mcerens  Btirrhtis,  ac 
laudam  —  e  porque  me  entristeço  no  coração,  se  o  louvor  assoma  nos 
beiços?  Louvo  com  os  beiços,  para  fazer  calar  a  incontenlavel  male- 
volencia,  entres teço-me  no  coração,  porque  os  Jesuítas  não  deviam  ser 
assim  defendidos.  Eu  conheço  talvez  melhor  que  ninguém  os  Jesuítas, 
e  eu  perdoaria  a  todos  por  amor  de  dous:  um  italiano,  outro  francez. 
O  italiano,  que  ha  pouco  morreu  em  Bassano,  cidade  do  estado  de  Ve- 
neza, chamado  João  Baptista  Roberti,  escreveu  em  sua  lingua  vulgar 
doze  volumes  em  outavo,  e  com  taes  cousas,  e  de  tal  sorte  que  o  seu 
extinguidor  Ganganelli  lhe  destinou  uma  pensão  extraordinária,  (não 
do  thesouro  da  Egreja,  que  são  indulgências,  mas  do  thesouro  ponti- 
fício, que  então  tinha  dobrões  porluguezes,  monetário  de  que  poucos 
antiquários  curiosos,  especialmente  portuguezes,  se  podem  agora  gabar) 
e  o  cardeal  Passionci,  que  foi  o  compositor  da  bulia  da  extincção,  e 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  97 

que  antes  se  contentara  com  a  pasmosa  oração  fúnebre  do  Príncipe 
Eugénio,  foi  o  declarado  amigo  do  P.*  Roberti.  Entre  os  doze  volumes, 
ha  um  Tracíado  da  Probidade  natural,  que  excede  tudo  quanto  em  phi- 
losophia  moral  e  eloquência  se  tem  feito.  Vade  in  pace,  está  absolvido 
este  jesuita,  e  metade  dos  Jesuítas  por  amor  d'elle.  Vamos  ao  outro, 
por  amor  do  qual  se  perdoará  á  outra  metade.  É  francez,  não  é  nem 
Petau,  nem  Sirmond,  nem  Sallíen,  nem  Rapin,  nem  a  mais  roupetada, 
é  Jacob  Vanière;  e  o  Praedium  riistkum  tem  dezeseís  livros;  não  digo 
que  é  este,  ou  que  é  aquelle,  djgo  que  qualquer  folha  d'este  ou  d'a- 
quelle,  merece  que  a  outra  metade  dos  Jesuítas  leve  o  outro  vade  in 
pace,  ou  venham  em  paz.  Aqui^  e  sò  com  este  venham  se  ha  de  asere- 
nar  e  alegrar  o  severo  semblante  de  V.  S.%  e  depois  de  V.  S.^,  de 
muitos  poucos  mais;  eu  fico  assim. . .  como  a  minha  costumada  cara 
alvar.  Estão  absolvidos;  chamar-me-hão /)assa  culpas;  é  verdade  que 
não  tenho  a  moral  rigída  de  Concína,  ou  de  Rilhafoles;  sou  um  triste 
clérigo,  natural  de  Beja,  e  pregador  de  aluguer,  mijão,  potroso,  rabu- 
jento,  moribundo,  mas  amigo  de  Fr.  Fortunato,  porque  è  muito  ho- 
mem de  bem,  e  mui  letrado.  Fica  V.  S.*  aqui  com  a  bocca  doce?  Fica; 
e  sabe  para  que  lh'a  faço?  Eu  lh'o  digo;  para  lhe  declarar  o  meu  pa- 
recer sobre  a  Apologia  dos  Jesuitas.  Meu  P.®  M.®  D.°'',  não  os  devia  de- 
fender assim;  devia-os  defender  em  grande,  e  não  em  detalhe.  Olhe 
que  isto  não  é  impertinência,  porque  em  detalhe  lhe  posso  retorquir, 
é  mostrar  que  outra  qualquer  das  corporações  regulares  os  eguala  e 
vence;  eu  escolho  os  Capuchos  na  parte  Htteraria.  Capuchos!...  Oh 
homem f. . .  Capuchos?  Sim  senhor,  Capuchos;  e  se  ha  cousa  menos 
que  Capuchos,  são  os  Mínimos,  e  antes  que  me  metta  Capucho,  ouça- 
me  Y.  S.*  mínimo.  O  P.®  Marino  Merseno  inventou  a  cycloíde;  em  in- 
ventora philosophia  na  exposição  do  Génesis  excede  os  Jesuitas,  e  em 
transcedente  geometria,  mestre  e  amigo  de  Descartes.  Como  está  em 
Coimbra,  onde  eu  estive  ha  quarenta  e  sete  annos,  vá  ao  Collegio  da 
Graça,  entre  na  livraria,  e  no  topo  da  parte  direita,  ao  lado  de  Ex- 
positores, está  o  Padre  Marino  Merseno,  e  logo  á  entrada,  da  parte  di- 
reita, ao  pé  de  S'Gravesend,  está  Renato  Descartes;  combine  devagar 
o  discípulo  com  o  mestre,  e  verá  um  Mínimo  menor  que  Capuchos,  e 
maior  que  os  máximos  Jesuitas.  E  o  outro  Mínimo,  maior  que  os  Je- 
suitas, já  que  falia  em  Pedro  da  Fonseca,  eu  Christovam  Gil,  natural 
de  Torres  Vedras,  é  o  padre  Francisco  Jacquíer  no  seu  Curso  de  Phi- 
losophia; ningem  entendeu  melhor  Newton.  Vou-me  aos  Capuchos,  que 
o  Guardião  é  amigo  e  também  é  Pateiro,  que  é  consoante  de  Celeírei- 
ro,  não  chegará  a  tanto.  Logo  me  mostram  á  entrada,  pintado  n'uma 

CARTAS.  7 


98  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 

parede  Fr.  Marcos  de  Lisboa,  que  vale  mais  que  Balthasar  Telles,  e 
António  de  Vasconcellos ;  deixemos  que  as  historias  d'aquelle  se  com- 
parem com  as  historias  d'estes,  e  vamos  á  Itália. 

O  capucho  com  barbas  Cardeal  Quirini,  em  leltras,  eloquência  e 
politica  faz  frente  á  grande  maioria  dos  Jesuítas,  com  o  seu  único  Car- 
deal Belarmino  á  testa  da  columna.  O  capucho  Fortunato  de  Brixia  em 
seu  Curso  philosophico  foi  o  primero  que  no  meio  dia  da  Europa  tratou 
a  Philosophia  como  methodicamente  se  deve  tratar,  e  isto  quando  os 
Jesuítas  andavam  ás  marradas  com  Aristóteles,  e  seus  Árabes,  e  scho- 
lasticos  commentadores.  O  capucho  Serafino  de  Vicença,  o  capucho 
Jaco  de  Nápoles,  o  capucho  Gabrielis  antigos,  não  fazem  lembrar  muito 
o  jesuíta  Paulo  Segneri;  e  se  querem  ura  capucho,  que  encove  em 
politica  de  gabinete,  e  em  direcção  de  monarchas,  não  busquem  o  je- 
suíta La  Chaise  ou  Le  Tellier,  busquem  o  capucho  Père  Joseph,  mes- 
tre assoprador  e  director  do  politico  Richelieu.  Bastam  Capuchos  uni- 
camente para  fazer  grandes  encontros  aos  Jesuítas;  Capuchos,  gente 
de  corda  e  cie  barba;  e  se  fizéssemos  uma  resenha,  e  déssemos  um 
varejo  por  todas  as  outras  ordens  monásticas,  mendicantes  e  mixtas 
(d'estas  mixtas  o  barnabita  Gerdil,  e  o  servita  Sarpi,  inventor  da  Óptica, 
que  depois  Newton  chamou  sua,  e  do  prisma  que  foi  só  do  Sarpi,  e 
da  circulação  do  sangue,  que  não  foi  do  inglez  Harvey,  nem  do  alveitar 
Francisco  de  la  Reyna,  como  quer  o  galego  de  Orense  chamado  Fei- 
joo,  mas  do  mesmo  servita  Sarpi)  fariam  desapparecer  os  Jesuítas, 
ainda  que  ahi  em  Coimbra  apparecesse  a  V.  S.^  em  sonhos  o  jesuíta 
Cristovam  Clavio  com  a  sua  geometria  embrulhada;  e  de  Catalunha 
viesse  o  Padre  Dechalles.  Em  detalhe  nunca  se  poderá  dar  a  prefe- 
rencia aos  Jesuítas,  nem  buscar  por  aqui  a  sua  defensa;  se  os  consi- 
dera velhacos,  isto  é,  profundos  políticos,  porque  são  jesuítas,  salta- 
vam logo  em  V.  S.^  dous  franciscanos,  de  que  Deus  o  livre,  Fr.  Fran- 
cisco Cisneros,  e  Fr.  Félix  Peretti,  cada  um  com  seu  globo  de  Mappa 
mundi,  e  diziam-lhe;  «Oh  meu  Dr.  Fr.  Fortunato,  vê  aqui  este  mundo"? 
Pois  governei-o  eu.»  Nas  outras  cousas  em  detalhe  os  outros  frades 
encovam  os  Jesuítas.  Dístínguiram-se,  é  verdade,  nas  missões  remotas, 
ultramarinas,  na  Ásia  opulentíssima  e  na  America  fértil,  eriça;  para 
a  Africa  se  encostaram  elles  pouco,  ou  nada;  não  se  quizeram  enten- 
der nem  com  o  árabe  da  Mauritânia,  nem  com  os  sons  quasi  inartícu- 
lados  dos  pretos  jalofos,  e  bravios,  desde  o  cabo  de  Não,  e  de  volta 
pelo  das  Tormentas  até  ao  rio  dos  Bons-signaes;  sim,  pelas  missões 
do  Ultramar  grandes  são  os  Jesuítas,  e  não  se  pagam  cá  os  sermões 
como  elles  por  lá  se  pagaram  dos  que  faziam;  mas  ja  os  outros  fra- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  99 

des  OS  tinham  precedido  e  vencido;  e  V.  S.*  não  poderá  negar  que  el- 
rei  D.  Manuel  é  primeiro  que  D.  João  3.°;  este  3.°  foi  o  que  metteu 
cá  os  Jesuítas,  que  como  ingnorantes  que  então  eram,  comçaram  por 
ensinar  o  Padre  nosso  aos  lava-chocos  da  ribeira.  Não  falta  quem  diga 
e  menos  falta  quem  prove,  que  o  sancto  Xavier  não  era  jesuíta,  quando 
Paulo  III  para  cá  os  mandou,  era  um  pio  sacerdote  secular,  e  pouco 
instruído,  porque  João  de  Lucena  não  lhe  compoz  a  Vida,  corapoz  um 
romance;  ora  basta  d'isto.  El-rei  D.  Manuel  antes  dos  Jesuítas,  man- 
dou fazer  umas  instrucções  para  os  missionários  apostólicos  ultramari- 
nos; existem  manuscriptas,  e  seu  auctor  é  Fr.  Sebastião  Toscano,  frade 
da  Graça;  se  V.  S.*  vier  a  Lisboa,  vá  de  passeio  até  ao  convento,  e  em 
um  casarão,  que  forma  a  ante-livraria,  estão  uns  caixões  velhos  cheios 
de  papeis  velhos,  escríptos  á  mão;  ahí  jazem  as  instrucções  feitas  pelo 
frade,  e  não  pelos  Jesuítas  que  ainda  não  existiam,  ou  nunca  as  fize- 
ram, porque  n'isto  e  em  muito  mais  havia  monita  secreta,  e  verá  que 
o  frade  fallou  tão  bem  portuguez  como  Fr.  Thomé  de  Jesus,  porque  o 
o  frade  foi  escolhido  para  pregar  na  entrada  dos  ossos  de  Affonso  de 
Albuquerque,  e  alli  se  depositaram  quando  os  trouxeram  de  Goa;  existe 
o  sermão  impresso,  mas  um  só  exemplar,  e  na  mão  de  um  homem 
que  faz  planos,  e  fecha  dinheiro  na  Junta  dos  Juros. 

Que  trará  digno  de  tamanho  hiato 
Este  promettedor?  Com  dôr  estranha, 
Stava  posta  a  parir  uma  montanha : 
Tremem  as  gentes,  e  appareee  um  rato. 

São  precisas  muitas  cousas  para  que  a  humana  sociedade  exista 
bem  e  prospere;  fallo  das  cousas  mandadas  e  ensinadas  pela  religião; 
juntarei  depois  algumas  mandadas  pela  politica:  Educação  religiosa  e  ci- 
vil da  mocidade  em  toda  a  latitude  de  seus  deveres.  Propagação  e  dila- 
tação do  evangelho  (para  maior  gloria  de  Deus)  nos  paizes  catholicos, 
nos-  heterodoxos,  e  entre  as  nações  barbaras  e  incultas;  civílisação  d'es- 
tes  mesmos  povos  nas  conquistas  e  descobrimentos ;  conservação  das 
boas  doctrinas,  ensinadas  nas  escholas  publicas,  e  nas  universidades; 
extirpação  das  heresias,  combatendo  e  impugnando  os  seus  sectários; 
soccorrer  a  humanidade  em  todas  as  situações  da  vida  e  da  morte; 
illustrar  e  dirigir  os  soberanos,  ou  como  mestres,  ensinando-os,  ou 
como  ministros  da  penitencia,  governando-lhes  as  consciências,  e  como 
políticos  religiosos,  intervindo  nos  negócios  públicos  com  lisa  dextri- 
dade,  e  fazer  praticamente  um  enlace  vigoroso  de  todas  as  sciencias, 
e  de  todas  as  virtudes  moraes,  civis  e  religiosas.  Unicamente  o  corpo 


100  CARTAS  DE  JCSK  AGOSTINHO  DK  MACF.DO 

dos  Igcacianos  se  dedicou  a  tudo  isto.  Desde  a  sua  introducção  até  á 
sua  extincção  em  Portugal  se  deram  a  tudo  isto,  e  tudo  isto  é  das 
suas  constituições  mauifeslas.  Se  ha  monita  (arcana  verba,  quae  non 
licet  htmini  loqui)  até  S.  Paulo  teve  suas  reservas,  e  não  ha  ti  atado 
politico,  que  não  tenha  artigos  secretos;  nas  famílias  ha  segredos  de 
família  (só  eu  hei  de  ser  a  porta  aberta  a  toda  a  bicharia  viva,  que  me 
queira  embutir  as  crueldades  de  malhados,  e  as  parvoíces  de  corcun- 
das 1)  Deixe  V.  S.^  fallar  Sebastião  José  de  Carvalho,  José  de  Seabra, 
José  Pereira  Ramos,  Francisco  de  Lemos,  Francisco  Vieira  (letrado), 
José  Joaquim  Vieira  Godinho,  e  todos  os  mais  falladores  e  architecto- 
res  da  Deducção  chronohgica,  e  do  seu  apaixonado,  verbosissimo,  fal- 
ladorissimo,  e  confusíssimo  Manuel  do  Cenáculo,  (e  era  meu  amigo, 
mas  eu  sou  mais  amigo  de  quem  sabe  pouco  e  bem,  do  que  iruíto  e 
mal)  mentiram  muito,  e  atassalharam  tudo.  Não  foram  as  visões  do 
Malagrida,  nem  os  Eocercicios  de  Santo  Ignacio  dados  á  Marqueza  de 
Távora  pelos  Padres  João  de  Mattos  e  João  Alexandre,  quem  os  ex- 
tinguiu em  Portugal,  nem  antigamente  os  conselhos  do  Padre  Leão 
Henriques  dados  a  el-rei  D.  Sebastião;  foi  a  exclusão  de  Sebastião  José 
do  gabinete,  ou  ministério,  entrando  depois 'para  se  vingar.  São  ques- 
tões n'este  tempo  frívolas,  e  que  não  tem  remédio;  e  eis  aqui  porque 
€u  nunca  entendi  com  a  Deducção  chronologica.  Os  Jesuítas  dedica- 
ram-se  a  tudo  quanto  podia  contribuir  para  a  prosperidade  do  estado, 
para  a  gloria  da  rehgião,  e  para  os  progressos  das  lettras,  abrangendo 
todas,  todas.  Eu  sou  alguma  cousa  grammatícão,  e  elles  eram  gran- 
des e  melhores  grammaticões.  Se  tiraram  do  Pateo  Diogo  de  Teive, 
D.  João  III  Dão  era  amigo  de  Diogo  Teive.  Ora  esta  simultaneidade  de 
cousas  só  se  viu  no  corpo  jesuítico,  e  em  nenhum  outro.  Não  podiam 
ser  em  tudo  óptimos,  mas  foram  alguma  cousa  em  tudo;  porém  con- 
siderados singularmente  foram  excedidos  pelos  outros.  A  primeira  das 
scieucias  é  a  theologia,  e  ainda  que  me  inculque  Petau,  o  tratado  De 
TrinUate  não  o  livra  dos  laivos  do  socinianismo,  e  arianismo,  e  não  é 
um  theologo  que  possa  sustentar  o  parallelo  com  o  dominicano  Goti, 
ou  com  o  augustiniano  Berti,  ou  ainda  mesmo  com  oulro  Gusmão, 
Melchior  Cano.  O  tratado  De  Locis  não  tem  entre  os  Jesuítas  outro  ir- 
mão gémeo.  O  Soares  Granatense  tem  pezo,  mas  não  tem  feitio,  e  por 
ser  árabe,  como  os  malhados  de  agora,  está  desligado  do  corpo.  Natal 
Alexandre  e  Jacinto  Serry  não  eram  jesuítas,  nem  lá  os  tiveram  as- 
sim.—Theclogia!  (dirá  V.*  S.^)  de  onde  veiu  a  Pedro  fallar  gallego? 
Pois  quem  apenas  pode  fazer  uma  decima  em  outeiro  de  abbadessado, 
mettese  a  fallar  de  theologia?  É  muito  querer  saber  tudo!  Pois  pacien- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.   BOAVENTURA  iOi 

cia,  talvez  eu  seja  jesuíta  disfarçado.  O  único  Padre  Pedro  Lemoine 
quiz  fazer  um  poema  épico  em  sua  língua  vulgar,  pois  foi  dar  com  os 
bodes  na  areia,  que  n'isso  foram  elles  miseráveis,  e  apenas  o  jesuíta  An- 
tónio Milliftu  no  Moysés  Viator  (como  épico)  fez  cousa  tolerável,  mas  em 
latim. 

E  onde  fica  o  modo  de  defender  os  Jesuítas?  Eu  vou  já,  que  eu 
não  quero  cantar  fora  do  coro.  Os  factos  faliam,  as  suas  chronicas  exi- 
stem, e  a  chronica  geral  não  é  a  Monarchia  dos  Solipsos,  que  os  põe  a 
pão  e  laranja.  Em  cada  um  dos  artigos  em  que  eu  faço  consistir  tanto 
a  prosperidade  dos  estados,  como  a  gloria  e  manutenção  da  religião, 
achará  mil  factos  que  comprovem  a  asserção  geral,  e  a  conclusão  ló- 
gica será,  que  nenhum  dos  corpos  regulares  servira  tanto  a  humana 
sociedade  no  estado  religioso,  e  no  estado  politico;  porque  nenhum  por 
seu  instituto  abrangera  tanta  cousa,  trabalhando  era  todas  com  conhe- 
cido e  ainda  hoje  desejado  fructo.  Mas  dirão:  De  bono  opere  non  lapida 
mtiste. — Então  porque  são  as  pedradas?  São  porque  até  os  do  Collegio 
de  Cochim  na  índia  vendiam  por  bons  pardáos  as  pérolas  que  colhiam 
em  ura  grande  lago  salgado,  que  tinham  era  uma  fazenda  suai  Gom- 
merciantes!  E  os  frades  Bentos  em  Lisboa  não  vendem  couves  e  alfa- 
ces da  cerca  por  uma  janelinha  com  grades,  que  deita  para  a  rua?  Em 
acabando  a  Meza  do  Melhoramento  vae  Fr.  Matheus  para  esse  ramo 
de  finanças. 

Estão  admittidos  os  Jesuítas,  eu  já  vi  dois,  um  de  hombro  com 
outro,  pareceram-rae  homens  como  os  mais,  algum  medo  me  incuti- 
ram em  razão  dos  chapéos  uniformes  e  desconformes;  mas  dizia  eu 
commigo:  os  chapéos  são  da  forma  de  convez  de  náo  de  alto  bordo; 
as  batinas  são  umas  sotainas  lizas  como  balandraus,  o  gesto  é  estuda- 
damente composto,  os  passos  medidos  como  os  de  recrutas  na  fila  com 
sargento  impertinente;  mas  nem  estes  novéis  Jesuítas,  nem  os  passa- 
dos, que  não  ensinaram  estes,  têm  a  condição  de  Jereraias,  a  quem 
Deus  deu  a  patente  ou  alvará  de  pregador  régio,  nem  os  fez  prophe- 
tas  dos  gentios  antes  que  sahissem  do  ovário  materno,  e  pegados  a 
uma  placenta  especial;  o  chapéo  não  é  lição,  nem  o  balandrau  é  dis- 
curso.—  Quem  ha  de  ensinar  estes,  para  depois  de  ensinados  ensina- 
rem aos  futuros  rapazes  graramatica  latina  no  curto  espaço  de  sete  an- 
nos?  Dos  grammalicões  Jesuítas  eu  exceptuo  sempre  o  P.®  Vaníeri,  e 
Rapin  no  poema  De  cultura  Horíorum;  mas  inculcando  os  Jesuítas  pelo 
maxirao  latinista  o  Padre  Famiano  Strada  na  sua  Historia  de  Bello  bel- 
gico,  Gaspar  Scioppio  escreveu  um  livro  intitulado — Infâmia  Famiani, 
em  que  lhe  descobre  mais  erros,  que  em  um  thema  de  rapaz  de  es- 


102  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

chola.  Quem  pois  ha  de  ensinar  esta  meia  dúzia  que  ahi  appareceu, 
para  nos  ensinarem  a  nós?  Os  seis,  cuido  eu  que  são — de  toda  a  tribu 
e  de  toda  a  língua — nós  nos  devemos  matar  para  os  ensinar  primeiro 
a  elies,  para  elles  depois  nos  ensinarem  a  nós,  vindo  n'isto  a  custar 
mais  cara  a  mecha  que  o  cebo.  Para  os  justos  e  honestos  fins  para 
que  sâo  chamados  e  admittidos  os  Jesuitas,  tínhamos  nós  outros,  que 
não  espantavam  tanto,  e  aproveitavam  mais,  que  vem  a  ser  o  chama- 
mento dos  Padres  das  Escholas  Pias.  Este  instituto,  não  mui  antigo,  é 
maravilhoso,  e  grandes  fructos  tem  d'elle  colhido  a  Itália,  e  colhem  to- 
dos os  reinos  da  christandade,  em  que  se  tem  estabelecido;  mas  não 
bastam  que  se  estabeleçam,  é  preciso  que  se  sustentem;  mas  aonde? 
Os  que  estão  têm  a  barriga  vasia,  os  que  de  novo  vierem  morrerão 
com  fome,  A  grande  e  multiplicadissima  família  do  palriarcha  Adoni- 
rão  não  quer  a  alienação  dos  bens  nacionaes,  que  são  exclusivamente 
seus.  Todos  os  frades  são  a  respeito  dos  Adonhiramitas  como  aquelles 
cães  de  que  falia  a  Cananéa  no  evangelho — qtii  comedimt  de  mieis  quae 
cadtmt  de  mensis  dominorum  suoriim, — e  pouco  falta  já  para  lhe  levan- 
tarem a  cesta  d'essas  mesmas  migalhas;  e  se  Christo,  senhor  nosso, 
perguntasse  agora  aos  frades  se  tinham  alguma  cousa  que  comer? 
Custaria  a  achar  pelas  ordens  um  S.  Philippe,  que  podesse  dizer,  sem 
parecer  basofia: — Temos  aqui  cinco  pães  de  cevada  e  dois  peixes,  que 
Dão  passariam  de  sardinhas,  em  quanto  os  filhos  de  Adonirão  se  ban- 
queteam  esplendidamente,  e  os  filhos  de  Bento  e  de  Bernardo  já  não 
têm  para  a  socéga,  em  logar  da  emina  de  vinho,  mais  que  a  descon- 
soladora  certeza  de  os  chamarem  á  meia  noite  para  entoarem  os  divi- 
nos louvores  em  nunca  terminada  psalmodia.  Ora  se  estes  que  rotea- 
ram os  mattos  com  suas  euchadas,  e  regaram  com  o  próprio  suor  os 
ferregiaes,  e  que  levaram  ás  costas  a  viga  do  seu  lagar  e  o  pizão  da 
sua  azeitona,  e  fizeram  para  se  divertir  com  prazer  a  empa  das  suas 
vinhas,  e  se  os  seus  antigos  abbades  encostando  o  bago,  empimharam 
o  severo  podão  para  reprimir  a  videira  luxuriante,  ou  o  previdente  sa- 
cho, para  quebrarem  o  torrão,  e  conchegar  a  terra  á  pavêa  de  milho 
attenuada,  sendo  as  cousas  suas  e  feitas  por  elles,  não  têm  quo  comer, 
porque  os  filhos  de  Adonirão  não  só  embargam  bestas,  mas  embargam 
e  levantam  as  rações  aos  donos,  e  aos  operários.  Parece,  meu  P.°  M.® 
Dr.,  que  o  propheta  devassador  do  futuro  tinha  em  vista  os  presentes 
tempos,  quando  disse — Hominis,  et  jumenta  salvaves  Dotriim  —  vós, 
senhor,  salvareis  os  homens,  e  as  bestas,  porque  só  Deus,  e  não  as 
creaturas,  salvará  agora  as  bestas,  e  mais  os  homens  que  d'ellas  vivem, 
condemnados  a  viver  com  elias.  Pois  se  não  ha  de  comer  para  os  que 


A  FHEl  FORTUNATO  DE  S.   BOAYliNTUHA  103 

estão,  como  haverá  de  comer  para  os  que  vêm?  Elles  não  comera  do 
que  trazem.  A  Cartilha  do  Mestre  Ignacio,  e  a  Prosódia  de  Bento  Pe- 
reira não  fazem  sopas;  sopas  fazem-se  cora  pão,  e  o  pão  come-o  Ado- 
nirão.  Se  foi  um  erro  acabal-os,  não  é  uma  discripção  reproduzil-os. 
Ora  pois,  eu  não  sou  inimigo  dos  Jesuitas,  porque  do  coração  não 
posso  ser  inimigo  de  ninguém,  a  não  me  fallarem  em  Systeraa  repre- 
sentativo, porque  então  esbarrunto,  e  me  converto  em  um  diabo  vivo, 
sendo  eu  um  bonacheirão  meio  morto;  só  conservo  um  indomável  ódio 
no  coração  ao  Marquez  de  Pombal,  porque  extinguiu  os  Jesuitas,  e  abriu 
a  porta  á  filharada  de  Adonirão.  É  melhor  um  rei  sachristão  cora  Diogo 
de  Mendonça  Corte  Real,  que  um  rei  philosopho  com  Sebastião  José 
de  Carvalho.  Restabelecer  os  Jesuitas,  é  impraticável;  remediar  os  nos- 
sos males,  impossível.  Deixe  os  Jesuitas,  olhe  que  zomba  o  mundo  dos 
seus  esforços;  a  frieza  e  indifferença  que  eu  vejo  destroe  todos  os  ar- 
gumentos e  lira  a  força  á  mesma  verdade. 

Deixe  V.  S.*  também  os  Jansenistas,  favorecendo  tanto  os  Moli- 
nistas;  olhe  que  se  lhe  seccam  os  miolos;  não  ha  quem  entenda  estes 
demónios  ergotistas.  Eu  não  entendo  Luiz  de  Molina,  eu  não  entendo 
o  Bispo  de  Ypres,  nem  o  teimoso  Quesnel;  as  cinco  proposições  con- 
demnadas  no  livro  intitulado — Âugustinus — coudemnadas  estão;  lá  se 
avenha  o  inferno  com  ellas;  se  pariram  Pavia,  se  pariram  Pistola,  Tam- 
burini  que  lhe  toque  o  tambor,  e  os  padres  d'aquelle  concilio  que  que- 
brem lá  as  emperradas  cabeças;  ninguém  cuida  em  tal,  não  falta  quem 
lhes  atribua  os  princípios  da  crença  Adonhiramita,  mas  quem  o  cuida 
delira.  Eu  não  os  entendo,  nem  os  creio,  nem  os  defendo.  Os  Molinis- 
tas  amotinam-se,  ouvindo  fallar  em  Porto-Real;  eu  nunca  tratei-estas 
questões  já  tão  debatidas,  da  graça  efficaz  e  da  siifjiciente ;  peçaraos  a 
Deus,  que  nos  dê  a  sua  graça,  que  é  o  orvalho  do  céo,  já  que  a  gor- 
dura da  terra  parece  que  se  não  creou  senão  para  engordar  os  pe- 
dreiros. Olhei  sempre  para  o  que  fizeram  os  solitários  de  Porto-Real, 
e  o  que  fizeram  os  testarudos  Molinistas  do  Collegio  de  la  Flèche.  Dou 
mais  pela  Biblia  de  Sacy,  que  pela  Biblia  de  Cornelio  à  Lapide.  Acho 
mais  galanteria  na  Arte  de  pensar,  ou  na  Lógica  de  Porto-Real,  que  na 
Lógica  do  Padre  Aranha;  mais  razão  e  religião  nos  Ensaios  de  Moral 
de  Nicole,  que  na  Moral  do  P.®  Diana,  qui  tollit  peccata  mundi;  mais 
nos  Tractados  de  António  Arnauld,  que  nas  lucubrações  de  Busem- 
baum.  Então  que  ha  de  fazer  com  seu  saber  iramenso  o  P.*  M.°  Dr. 
Fr.  Fortunato?  Defender  os  Jesuitas?  Ninguém  os  offende,  e  pouca 
gente  sabe  em  Lisboa,  que  elles  aqui  existem,  ou  que  vieram  para  nos 
ensinar,  e  menos  para  extirpar  os  pedreiros ;  isso  não  se  faz  com  fra- 


104  CAKTAS  !)!•:  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACKDO 

des,  faz-se  com  forcas.  Que  hade  fazer  pois  o  P/  M.®  Dr.  Fortunato? 
Eu  lh'o  digo.  Desembrulhar  o  cahos  da  vinda  do  Conde  D.  Henrique 
a  este  reino,  seu  casamento,  e  com  que  dote,  e  partir  d'este  ponto 
como  primário  principio  do  que  se  deve  chamar — Historia  de  Portu- 
gal, que  eu  quizera  dividir  por  épocas: — 1.*  Desde  o  governo  do  Conde 
até  á  deposição  de  D.  Sancho  II; — 2.*  desde  o  reinado  de  D.  AíTonso 
III,  até  à  morte  de  D.  Fernando; — 3.*  desde  a  morte  de  D.  Fernando 
até  á  morte  de  D.  João  II;  —  4.^  desde  o  chamamento  d'el-rei  D.  Ma- 
nuel até  o  reinado  do  Cardeal  rei; — 5.^  desde  a  entrada  de  Fiiippe  II 
até  a  acclamação  de  D.  João  IV — (O  reinado  dos  três  Filippes  do  pe- 
ríodo de  sessenta  annos  é  mui  pouco  sabido  entre  nós); — 6.*  desde  a 
elevação  da  dynastia  de  Bragança,  até  á  exaltação  ao  throno  do  Senhor 
Rei  D.  Miguel  I.  Olhe  que  isto  não  é  fundar  castellos  na  Hespanha,  é 
começar  a  escrever  antes  que  me  fuja  o  ultimo  alento  da  vida.  Nós 
temos  em  portuguez  o  que  ha  em  latim,  Historia  Aiigustae  Scriptores, 
são  os  diários  dos  reis,  mas  não  é  a  historia  da  nação ;  deve-se  fallar 
dos  reis,  mas  não  d'elles  unicamente.  Os  reis  governam,  e  a  nação 
obra.  Francisco  de  Andrade  escreveu  a  volumosíssima  Chronica  de  D. 
João  III; — Damião  de  Góes  a  de  D.  Manuel;  pois  nem  uma  única  re- 
flexão sobre  o  engrandecimento  da  nação,  buscado  pelos  seus  próprios 
esforços  nas  sciencias  e  nas  artes;  é  uma  vergonha,  nunca  se  falia  em 
marinha  como  construcção  naval;  nunca  no  astrolábio,  nunca  n'um  ou- 
tante;  nunca  na  barquinha;  nunca  no  nocturlabio,  tudo  invenções  por- 
tuguezas!  É  verdade  que  diz  Barros  no  titulo  das  Décadas — Dos  fei- 
tos que  os  porluguezes  fizeram — feitos  d'armas,  disparar  bombardas 
contra  os  Índios  vestidos  de  algodão;  mas  nem  palavra  sobre  o  des- 
cobrimento da  índia  como  acontecimento  politico,  e  influente  na  parte 
não  dominadora,  mas  conquistadora  do  globo,  que  é,  e  será  sempre  a 
Europa?. . .  Dirá  V.  S.*  que  uma  cousa  é  dizer  como  deve  ser  com- 
posta a  Historia  portugueza,  outra  cousa  é  compor  esta  mesma  cousa 
chamada — Historia  Portugueza.  Seria  cousa  diíBcaltosissima  se  todos 
os  materiaes  não  estivessem  promptos;  é  uma  pisarra  tosca,  mas  ci- 
randada e  divertida,  deitará  a  fina  prata  de  onze  dinheiros.  Pôde  um 
homem  só,  como  Mr.  de  Thou  compor  tão  grandes  e  volumosos  livros 
das  historias  do  seu  tempo;  pôde  um  homem  só  como  Mr.  Mezeray 
compor  a  historia  geral  da  França  desde  Pharamundo  até  ao  seu  tempo, 
e  não  poderão  dous  homens  costumados  a  trabalhar,  e  um  d'elles  que 
escreve  mais  depressa  do  que  algum  tempo  se  escrevia  á  raza,  empre- 
hender  esta  historia,  e  com  o  pulso  de  Raynal,  tendo  como  disse,  os 
materiaes  para  a  obra,  ainda  que  não  se  encontrassem  senão  era  o 


A  FRKI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  405 

uuico  Damião  António  de  Lemos!  Temos  os  materiaes  promptos,  e  o 
estylo  para  se  adoptar  e  imitar,  que  é  o  do  veneziano  Saggredi  na  His- 
toria dos  Turcos,  ou  do  Império  Othomano,  que  emquanto  a  mim  ati- 
nou cora  o  verdadeiro  estylo  histórico  entre  os  antigos  e  modernos,  en- 
trando esses  dois  de  que  se  enctiem  as  selectas  do5  rapazes  do  Páteo, 
Velleio  Paterculo  e  Sallustio,  e  entre  os  das  letlras  renascidas  na  Itá- 
lia, Guicchiardini,  e  Carlos  Dati  ou  Villani.  Basta  de  erudições,  e  de 
estylo  histórico.  Mas  esse  velho  EIntello,  e  esse  moço  Daretes  não  sâo 
como  os  phariseos  do  evangelho,  que  diziam  e  não  faziam;  estes  dous 
podem  fazer  aquillo  que  sabem  dizer. 

Meu  P.®  M.®  Dr.  confesso,  e  V.  S.'  concordará  que  o  projecto  é 
gigantesco  e  diíTiculloso,  e  que  se  pode  dizer  aos  dois  Phaetontes:  — 
Magna  petis  —s>q  é  presumível  o  precipício,  porque  a  historia  sem  ver- 
dade é  um  corpo  sem  alma;  se  dos  passados  se  não  pode  dizer,  por- 
que offende  os  presentes;  se  dos  presentes  se  não  pode  dizer  porque 
a  não  querem  escutar,  ou  a  politica  que  pode  tudo,  não  o  permitte 
descubrir;  para  que  se  ha  de  compaginar  um  corpo  de  historia,  e  di- 
zer-se  ao  povo: — Aqui  tendes  um  quadro  de  óptimo  colorido,  mas  in- 
fiel, porque  não  representa  com  fidelidade  os  seus  originaes? — É  o 
mesmo  que  dizer  aos  frades: — Aqui  tendes  um  refeitório  de  boa  ar- 
chitectura;  o  Quadro  da  Cea  é  de  Leonardo  de  Vinci,  as  mesas  são  de 
mogano,  e  as  toalhas  de  Flandres,  mas  nunca  aqui  achareis  nem  uma 
mixa  que  possaes  comer; — de  que  serviria  aos  frades  este  refeitório? 
Talvez  dissessem  de  nossa  historia  o  que  Juvenal  diz  das  historias  gre- 
gas, sem  expungir  a  do  mesmo  Thucydides  —  Quid  qtiid  Grécia  mendax 
aiídet  in  historiae. — Além  d'esle  inconveniente  que  faz  desvanecer  o 
projecto  dos  nossos  trabalhos,  não  haveria  cousa  notável  em  nenhuma 
das  nossas  seis  épocas,  que  não  ficasse  excusada  ou  supprimida:  A 
conspiração  do  Duque  de  Vizeu,  morto  em  Setúbal  pela  mão  d'el-rei 
D.  João  II. — A  conspiração  do  Duque  de  Bragança,  D.  Fernando  II 
degolado  na  praça  de  Évora  por  mandado  do  mesmo  rei. — A  conspi- 
ração e  fugida  do  Duque  D.  Raimundo  de  Alencastre. — A  conspiração 
do  Duque  de  Caminha,  sua  morte,  e  a  de  seus  sócios  no  meio  do  Ro- 
cio.—A  conspiração  do  Duque  de  Aveiro,  e  companhia,  rodados  na 
praça  de  Belém;  veja  V.  S.*  só  n'esta  classe  ducal  que  cousas  tão  me- 
lindrosas para  receberem  a  luz  da  verdade  n'uma  pagina  da  historial 
Nem  o  mesmo  Tácito  se  atreveu  a  ser  imparcial  e  sincero  na  conjura- 
ção de  Pizão.  Esta  única  reflexão  tem  força  bastante  para  nos  afastar 
d'esta  temerária  empresa.  Além  d'isto,  nós  estamos  ameaçados  de  uma 
continuação  da  historia  de  Laclede  até  aos  nossos  dias,  obra  em  que 


106  CARTA5  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

são  collaboradores  os  nossos  mais  sábios  transfugas,  residentes  em  Pa- 
ris. O  prospecto  já  ahi  anda  e  não  mui  escondido,  e  para  que  V.  S.* 
conheça  o  que  nos  espera  em  iiistoria,  e  o  perigo  a  que  nos  exporía- 
mos eu  lhe  faço  o  obsequio  (e  bem  grande)  de  trasladar  o  paragrapho 
2.°  da  pagina  4.^  do  mesmo  prospecto;  falia  da  volta  do  senhor  rei  D. 
João  VI,  para  a  Europa:  «Só  em  1821,  depois  da  revolução  que  re- 
stabeleceu em  seus  estados  da  Europa  as  cortes,  cuja  reunião  cessara 
em  1697,  entrou  D.  João  VI  em  sua  metrópole.  Aqui  começa  nova  éra 
para  a  monarchia  porlugueza,  e  os  factos  que  se  seguiram,  e  muda- 
ram a  face  d'este  império  são  importantíssimos,  porque  atrelando-se 
ao  movimento  geral  que  agita  ambos  os  continentes,  tomam  a  direcção 
a  que  parece  os  leva  o  impulso  da  sua  mesma  massa  para  onde  o  es- 
pirito de  independência  se  combina  com  o  exercício  do  poder.  A  Con- 
stituição hespanhola  acceita  e  jurada  por  D.  João  VI;  a  insurreição  de 
1823  que  proclam.ou  o  poder  absoluto  em  Lisboa;  os  abalos  políticos, 
que  precederam  e  acompanharam  a  publicação  da  Carta  de  D.  Pedro 
IV;  os  attentados  praticados  contra  a  magestade  real  no  desprezo  dos 
decretos  do  legitimo  herdeiro  do  throno;  Traz-os-Montes  invadido  pe- 
los conspiradores  e  rebeldes;  a  Beira  em  armas,  e  as  outras  províncias 
agitadas,  e  tomadas  de  justo  temor  de  uma  guerra  civil;  a  Inglaterra 
occupando  o  território  de  seu  alliado,  para  o  preservar  de  uma  inva- 
são inimiga;  a  regência  e  ambas  as  camarás  luctando  com  muito  tra- 
balho, ainda  que  com  muita  vontade  e  sublime  valor  contra  os  insur- 
gentes;  a  Hespanha  fazendo  tantos  e  tão  grandes  preparativos,  que 
presagiavam  um  rompimento,  ou  próximas  hostilidades;  a  Europa  com 
os  olhos  fitos  sobre  taes  acontecimentos,  e  prompta,  e  disposta  a  pre- 
venil-os,  ou  a  tomar  parte  n'elles;  e  D.  Miguel  tenente  general  de  seu 
augusto  irmão,  tomando  as  rédeas  do  governo,  jurando  solemnemente 
e  em  presença  da  nação  congregada  observar  o  pacto  social  outorgado 
por  seu  rei. . .  Tal  é  o  quadro  immenso,  que  se  offerece  n'este  período 
dos  Annaes  de  Portugal  ao  buril  da  historia,  á  observação  do  philoso- 
pho,  6  ás  meditações  do  homem  de  estado.» 

Este  prospecto  impresso  em  Paris  gira  por  todas  as  mais  notá- 
veis cidades,  e  por  todas  as  capitães  dos  reinos  e  senhorios  da  Euro- 
pa. Ora  veja  V.  S.*  se  o  prospecto  é  assim,  que  fará  a  Historia?  Deve 
formar  dez  grossos  volumes  em  oitavo;  pode  escrever-se  e  imprimir-se 
maior  enfiada  de  patifarias?  Este  é  o  tempo  em  que  vivemos,  e  tão 
ociosa  cousa  é  defender  Jesuítas,  e  flagellar  os  Jansenistas,  como  com- 
por a  Historia  de  Portugal.  Esta  nobre  tarefa,  ou  este  nobre  emprego 
do  homem  de  bem,  está  nas  mãos  dos  maiores  scelerados  do  universo. 


A  FREI  FORTUNATO  DK  S.  BOAVENTURA  107 

que  são  os  nossos  transfugas  conspiradores,  que  havendo-nos  roubado 
dentro,  nos  estão  atacando  de  fora,  o  que  é  a  mais  verdadeira  das  his- 
torias, porque  ó  o  mais  evidente  dos  factos.  Quem  não  quer  a  sua  pu- 
blicação, é  cúmplice  com  os  malvados.  Meu  P.®  M.®  Dr.  deixemo-nos 
á  vista  d"isto  de  Historia;  porque  tratar  de  Historia  é  historia.  Se  a 
tentação  fòr  mais  forte,  então  façamos  como  Freishemius  fez  á  historia 
de  Alexandre  Magno,  por  Quinto  Curcio,  um  supplemento  á  historia  de 
Carlos  Magno.  Ponha  V.  S.*  mais  um  par,  que  eu  porei  outro,  ficam 
quatorze,  e  o  ultimo  o  casamento  de  Floripes,  e  verifiquemos  a  data 
da  segunda  passagem  da  Ponte  de  Mantible,  e  com  escrúpulo  de  inda- 
gador académico  deveremos  inserir  no  supplemento  alguma  memoria 
que  se  nos  enviar  sobre  o  logar  onde  Ferrabraz  recebeu  os  santos  óleos 
depois  que  Oliveiros  lhe  ministrou  o  baptismo,  quando  entrou  com  elle 
no  rio.  Depois  do  prospecto  em  que  havemos  de  cuidar? 

Como  as  dores  me  trazem  cruéis  insomnias,  longas  horas  me  dei- 
xam para  formar  projectos  de  lettras,  e  não  de  leis,  e  nunca  me  deixam 
a  sublime  mania  de  engrandecer  a  nossa  pátria,  e  dilatar  a  sua  gloria 
6  a  fama  do  seu  nome.  As  biographias  são  muito  do  gosto  e  do  uso 
d'este  século.  Quantas  diariamente  nos  oíferece  a  França?  E  quantos 
homens  iliustres  tem  produzido  Portugal  em  todos  os  séculos  da  sua 
duração  politica  na  toga,  nas  lettras,  nas  artes,  em  tudo  quanto  tem 
ganhado  tão  estrondosa  nomeada  ás  outras  nações?  A  V.  S.*,  a  quem 
só  falta  mudar  a  cama  para  a  livraria,  e  que  por  seus  trabalhos  pode 
ser  contado  no  numero  d'aquelles  a  quem  Berti  no  Compendio  de  His- 
toria ecclesiastica,  chama  Ubrorum  Heloung,  comedores  e  tragadores  de 
livros,  podia  dos  dispersos  retalhos  da  nossa  retalhada  historia  tirar  o 
nome  de  muitos,  ou  dos  mais  distinctos  barões,  que  ali  jazem  como  os 
mesmos  livros,  no  sepulchral  bandulho  do  bichinho  traça.  Oh  que  ga- 
leria de  quadros  poderia  apparecer,  que  encovasse  a  galeria  do  palá- 
cio Pitli  em  França  f  Um  Diccionario  biographico,  sem  muitos  e  gran- 
des volumes,  bastariam  quatro  de  quarto;  isto  seria  o  maior  serviço 
feito  á  nação  portugueza.  Estes  retratos,  que  trazem  o  desenho  corre- 
ctíssimo em  si  mesmos,  e  aos  quaes  esta  penna  daria  no  estylo  o  co- 
lorido, como  aquelle  que  a  seus  quadros  deram  como  pincel  Guercini, 
e  André  dei  Sarto,  talvez  hombreassem  com  aquelles  que  Paulo  Jovio 
immortalisou  em  seu  latim  puríssimo,  semelhante,  sem  as  impuridades 
ao  de  Patronio  Arbitro,  ou  com  os  retratos  de  Jano  Nicio  Erylhrêo, 
em  sua  Pinacothéca.  (Lá  saberá  V.  S.*  como  tão  grego,  o  que  diz  esta 
palavra),  estes  retratos  de  varões  iliustres,  que  tanto  illustraram  a  nossa 
pátria  com  o  ferro  da  cinta,  e  com  a  penna  dos  seus  dedos,  assim  como 


108  CARTAS  DE  JOSK   AÍIOSFINIIU   Dlí   MACEDO 

para  os  de  fora  serviriam  de  admiração  e  assombro,  para  os  de  dentro 
deveriam  servir  de  estimulo,  e  de  exemplo,  -sendo  uma  lição  perma- 
nente, que  ensinasse  os  actuaes  a  fazer  o  mesmo,  ou  mais  ainda,  que 
fizeram  seus  gloriosos  antepassados,  estimulando-lhes  ou  despertando- 
Ihes  o  desejo  de  que  os  futuros  biographos  lhes  fizessem  o  que  eu 
biographo,  e  V.  S.*  biographo  também  intentamos  fazer.  Chegávamos 
nós  á  letra  F  dos  nossos  biographados,  e  biographavamos  o  infante  D. 
Fernando,  preso  em  uma  masmorra  em  Fez;  e  que  diríamos?  Que  este 
magnânimo  Regulo,  e  mais  que  Regulo  em  Carthago,  regeitara  a  sua 
liberdade  a  preço  da  entrega  de  Ceuta  aos  mouros.  Este  memorando 
exemplo  que  faria?  Á  vista  d'este  quadro  seria  logo  excusado  e  sup- 
primido  na  presença  de  qualquer  pequeno  morgado,  a  quem  para  de- 
fender e  sustentar  a  pátria  exigissem  d'elle  que  se  levantasse  mais  cedo 
em  uma  manhã  de  janeiro;  ou  de  um  grande,  que  tivesse  menos  uma 
parelha,  por  não  dizer  outra  cousa...  Stantes  in  curribus  Emilianos  — 
dizia  Juvenal  fallando  a  um  grande  romano,  dos  quadros  que  de  seus 
antepassados  conservava  nas  galerias  de  seus  palácios,  ou  entre  as  es- 
tatuas de  seus  pórticos: — Tu  vês  alli  teus  avós  e  teus  tios,  os  Emilianos 
com  a  lança  em  riste,  ou  com  a  espada  em  recto,  de  pé,  e  mui  direi- 
tos nos  carros  falcados  arremettendo  aos  inimigos;  faze  o  que  elles  fi- 
zeram, e  não  vivas  mal  na  presença  d'estas  imagens. — Ora  ponha  V.  S.* 
estas  figuras  bem  biographadas,  deante  dos  olhos  de  tantos  transfugas 
crirainosissiraos,  e  descendentes  de  taes  Emilianos,  stantes  postos  de 
pé  nos  carros  falcados  em  qualquer  das  três  conhecidas  partes  do  mundo 
ameaçando  com  a  ponta  da  lança  cerrados  esquadrões  de  inimigos,  em 
quanto  elles,  ou  com  as  armas  nas  mãos,  ou  em  conferencia  com  os 
boticários,  ou  com  as  boccas  bilingues,  tratam  de  dar  cabo  da  pátria, 
e  dos  homens  de  bem,  que  pela  pátria  se  matam,  que  aconteceria? 
Fora,  fora  da  biographia  com  estes  Emilianos,  isto  não  vem  cá  fazer 
mais  que  offender  muitos  indivíduos  presentes,  e  classes  respeitáveis ; 
a  tendência  do  século,  o  derramamento  das  luzes,  mostram  o  pendor 
geral  que  ha  para  a  moderação.  Todos  os  governos  têm  um  centro,  e 
para  elle  convergem,  e  este  centro  é  a  moderação;  não  é  só  o  evan- 
gelho, também  a  politica  quer  o  perdão  das  injurias,  e  o  amor  dos  ini- 
migos; mas  sendo  o  evangelho  para  lodos  sem  excepção,  a  politica 
n'esta  parte  tem  suas  reservas;  quando  os  filhos  de  Adonirão  estão, 
como  se  diz,  debaixo,  então  evangelho  para  elles;  e  quando  dirigem  o 
timão  da  republica,  então  coitados  dos  que  não  são  Adonhiramitasf 
Cárceres,  desterros,  misérias,  infâmias,  perseguições  e  mortes;  aca- 
bou-se  a  tendência  do  século  para  a  moderação.  Appareça  qualquer 


A  FREI  FORTUNATO  DE  5.  BOAVENTURA  109 

dos  nossos  biographados,  cujas  acções  antigas  reprehendiam  as  revo- 
luções presentes,  ainda  que  estivéssemos  na  ultima  letra  do  abeceda- 
rio  no  Diccionario,  verbi  gralia,  Zacuto  Lusitano,  judeu  e  medico,  as- 
sim como  abríamos  o  diccionario  com  a  primeira  do  alphabeto  com  ou- 
tro judeu  medico  (e  natural  do  Porto!)  chamado  Abraham  Guedelha; 
assim  como  estes  dois  judeus  médicos,  o  Abraham  e  o  Zacuto  despo- 
voaram os  hospitaes  de  doentes,  e  as  casas  de  moradores,  enterrando 
tudo,  nos  enterrariam  a  nós  o  nosso  biographico  diccionario.  A(jui  dou 
eu  logar  a  uma  reflexão,  e  vem  a  ser,  que  sempre  eu  vou  dar  cora  os 
médicos!  Não  senhor,  elles  é  que  vêm  dar  commigo  na  cova.  Aqui  me 
appareceu  um,  e  não  era  o  mandado  por  amigo  nosso,  e  de  alta  je- 
raicliia;  sic  orsus  ab  alto,  começou  logo  a  failar  da  alta  tripeça,  que- 
rendo-me  apalpar  a  barriga,  que  alguns  visos  me  dá  de  hydropesia, 
mostrando-me  primeiro  as  palmas  das  mãos  lizas,  e  nuas,  e  abrindo 
os   dedos  para  eu  \èT  que  não  havia  alli  empalmado  instrumento  al- 
gum, agudo  e  perfurante,  ainda  que  com  qualquer  movimento  podia 
correr  para  a  palma  da  manga  do  fraque;  não  consenti  ser  apalpado, 
porque  eu  não  ia  para  o  segredo,  ainda  que  estivesse  em  lermos  de 
ir  para  o  sepulchro;  se  pude  ter  mão  naapalpação,  não  pude  atarra- 
car o  batoque  n'aque]Ia  bocca,  que  se  vazava  como  torneira  de  tanque. 
Yeiu  cem  eíTeito  a  dissertação  feita  no  quarto  anno  do  seu  curso,  e 
repetida  depois  da  foimatura  tantas  vezes  quantas  são  as  cabeceiras  a 
que  tem  chegado,  depois  que  ha  trinta  e  tantos  annos  exercita  a  medi- 
cina chnica  n'esta  corte,  seu  termo,  e  fora  de  lodos  os  termos.  Todas 
as  suas  melaphoras  e  comparações  eram  tiradas  do  âmago,  e  do  cerne 
do  syslema  representativo...  Seja  com  uma  camará  só,  e  não  com 
duas,  senhor  doctor,  porque  do  mal  o  menos  (lhe  disse  eu). — Ambas 
(tornou  elle)  garantun  as  liberdades  pátrias.— Pois  vamos  á  minha 
moléstia,  disse  eu  sem  mais  réplica. —  Pois  meu  padre,  bem  sobe  que 
da  combinação  dos  quatro  temperamentos,  e  do  equilíbrio  dos  quatro 
humores  resulta  a  saúde,  e  a  conservação  da  nossa  vida  como  do  equi- 
líbrio dos  quatro  poderes  políticos,  legislativo,  executivo,  moderador  e 
judiciário  resulta  a  força  e  a  vitalidade  do  celestial  systema  represen- 
tativo—  entende,  meu  padre? — Ah,  senhor  dcctor,  agora  é  que  eu  vi 
a  luz;  até  aqui  era  um.  pedaço  d'asm)!  Assim,  assim  é  que  se  tiríim  as 
pedras  da  bexiga,  e  as  malditas  almorreimas  deixam  de  me  assassi- 
nar...—  E  ccmo  vae,  m.eu  padre,  de  evacuações  alvinas? — Eu  não 
olho  para  isso,  mas  pela  manhã  lá  vão  sahindo. . . — Pois  fora  com  tudo 
isso;  é  preciso  que  o  canal  intestinal  esteja  purificado...  eu  me  ex- 
plico: o  canal  intestinal  da  vitalidade  do  systema  representativo  é  a  es- 


110  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACKDO 

colha  dos  deputados;  é  preciso  purificar  as  listas  nas  asserabléas  elei- 
toraes,  expellir  o  máo  e  deixar  ficar  o  bom;  entende?  —  Ah  senhor 
doctor,  isso  é  tão  claro,  que  por  V.  S.*  mesmo  vem  provado! — E  como 
vae  isso  com  o  furor  da  hemorroide  apertante  e  congestante? — Eu 
não  sei,  que  isso  seria  ver  por  dentro,  sei  que  estou  ahi  horas,  e  nem 
para  traz,  nem  para  deante.  . .  —  O  clister,  o  clister  emolliente;  é  cus- 
toso na  verdade,  mas  eu  me  explico:  o  domicilio  do  cidadão  é  invio- 
lável, ninguém  pode  entrar  na  casa  alheia  contra  a  vontade  do  cidadão; 
mas  a  lei  previdente  marca  os  casos  em  que  se  deve  entrar,  ou  o  ci- 
dadão queira,  ou  o  cidadão  não  queira. . .  entende,  meu  padre? — Pois 
quem  não  ha  de  entender;  mas  é  que  eu  não  quero,  e  rua  já.  —  Meu 
padre,  está  no  caso  dos  rebeldes,  que  regeitam  o  beneficio  celestial  da 
Carta,  que  vem  fazer  o  homem  cidadão  livre,  e  defender  as  liberdades 
pátrias.  As  moléstias  exercitam  no  corpo  um  governo,  ou  um  dominio 
tyrannico  e  despótico;  a  medicina  é  um  governo,  ou  um  systema  re- 
presentativo, que  destroe  o  absolutismo,  e  destroe  os  abusos.  As  fle- 
gmacias  da  prostrata  são  os  aulicos,  e  os  lisongeiros,  que  contaminam 
o  systema  monarchico. . .  —  Ah  senhor  doctor,  se  se  não  cala,  e  se  não 
vae  embora,  eu  tenho  aqui  cousa  debaixo  da  cama  que  lhe  vae  á  ca- 
beça!. . .  —  Pois  flque-se  para  ahi,  e  saiba  que  está  no  caso  dos  scele- 
rados,  que  estiveram  a  ponto  de  apedrejar  os  mesmos  representantes 
da  nação. . .  —  Pois  senhor  doctor,  esses  pagaram-se  das  suas  visitas, 
e  eu  não  lhe  dou  nem  cinco  réis. 

Meu  P.®  M.®  Dr.,  a  digressão  foi  longa,  mas  precisa  e  illustrativa; 
mas  se  eu  contasse  na  biographia  as  mortes  que  fizeram  os  dois  mé- 
dicos judeus,  Abraham  Guedelha,  natural  do  Porto  como  diz  o  Abbade 
Barbosa  na  Biblioiheca  Lusitana,  e  o  judeu  medico  Zacuto  Lusitano, 
que  esquadra  de  Epidauro,  e  de  três  pontes  se  lhe  atravessaria  na  proa, 
e  lá  ficava  a  biographia  supprimidada  no  fundo  dos  mares!  N'esta  ma- 
téria de  biographia,  eu  não  vejo  mais  que  cinzas,  que  encobrem  fogo 
ardentíssimo,  ou  chammas  devastadoras.  Os  crimes  d'este  século  nem 
toleram,  nem  perdoam  ás  virtudes  dos  passados,  e  os  heroes  d'este 
tempo  não  querem  que  os  houvesse  nos  outros;  e  clamam  que  são  in- 
vectivas feitas  a  elles  aquelles  louvores  que  se  dão  aos  que  já  não  vi- 
vem. Fatal  mudança  de  portuguezes,  ou  fatal  corrupção  de  costumes  I 

Não  ha  na  Itália  uma  só  cidade  notável  em  tão  diversos  estados 
e  senhorios  de  que  se  compõe  aquella  península,  sempre  grande,  ou 
vencedora  ou  vencida,  que  não  tenha  uma  biographia  particular  dos 
varões  illustres  que  alli  nascessem  e  florecessem;  entre  nós  apparece- 
ram  os  Retratos  de.  Varões  e  Donas,  mas  isto  não  são  biographias,  são 


A  FRlíl  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  4  1  i 

umas  grosseiras  gravuras,  que  pararam  no  meio  do  caminho,  como 
tudo  que  pareceria  bom,  como  são  os  edifícios,  que  os  meliiores  nunca 
se  acabaram,  nem  acabarão.  V.  S.*  está  no  seio  da  Athenas  porlugue- 
za,  ou  na  Tecua  dos  judeus,  que  era  a  cidade  das  lettras,  de  onde  veiu 
aquella  mulher  que  fez  embatucar  David;  está  cercado  de  philosophos, 
que  deviam  ser  pintados  pelo  Urbinate,  quero  dizer,  Raphael,  como 
pintou  os  da  Eschola  de  Aihetias;  estes  philosophos  o  aturdirão  sem- 
pre com  a  repizadissima  palavra  patriotismo;  mas  a  que  ideia  corre- 
sponderá esta  palavra?  Pelo  que  elles  fazem  vemos  que  esta  palavra  é 
synonimo  de  revolução,  porque  não  conhecem  outro  amor  da  pátria 
que  não  seja  isto;  na  successão  de  tantos  séculos  de  existência  da  mo- 
narchia  portugueza  não  conhecem  homens  illustres  e  dignos  de  se  lhe 
perpetuar  a  memoria  em  uma  patriótica  biographia,  que  não  sejam 
aquelles  que  parece  haverem  descido  da  mais  remota  região  dos  ares 
em  1820,  para  levarem  ao  cabo  a  regeneração  e  a  salvação  de  Portu- 
gal, procedendo  como  atilados  e  perspicassissimos  médicos,  como  elles 
costumam  ser,  que  vendo  o  corpo  succulento,  fartíssimo  e  obeso,  o  ate- 
nuam pelas  purgas  e  pelas  reiteradas  sangrias,  e  fazendo-o  assim  mais 
ligeiro,  o  deixam  phtysico.  Seguiram  esta  marcha  na  ordem  politica; 
o  corpo  do  estado  estava  engorgitado^  era  a  imagem  da  fartura,  da 
robustez,  e  da  saúde;  as  treze  lancetas,  e  as  trezentas  mil  que  se  lhe 
aggregaram  logo,  lhe  abriram  todas  as  veias,  e  lhe  esgotaram  todo  o 
sangue,  e  do  volume  de  um  elephante  que  linha,  o  pozeram  logo  na 
tenuidade  e  leveza  de  um  camaleão.  Ora  quererá  V.  S.*  compor  a  bio- 
graphia d'estes  varões  illustres,  e  só  d'estes?  Não  por  certo,  me  dirá 
V.  S.*,  pois  então  deixemo-nos  d'esta  espécie  de  escriptos,  nem  queira 
com  as  virtudes  dos  passados  reprehender  tão  asperamente  os  vícios 
dos  presentes.  Nem  os  quadros  da  historia,  nem  os  retratos  da  biogra- 
phia servem  para  este  tempo.  Nós  não  temos  biographias  escriptas,  te- 
raos  biographias  vivas,  e  que  andam  pelo  seu  pé.  Não  vê  V.  S.*  esses 
varões  assignalados,  como  diz  o  nosso  torto  Gamões  (torto,  porque 
manquejava  de  um  olho,  como  elle  confessa)  que  andam  como  canta 
Virgílio — Acti  Falis  maria  omnia  circum — á  roda  de  todos  os  mares 
e  de  todas  as  ilhas,  para  fundarem  como  diz  Horácio,  que  em  tudo 
meltia  vinho,  como  eu  em  tudo  metto  os  médicos,  elle  por  gosto,  e  eu 
por  justiça,  para  fundarem  uma  nova  Salamina,  como  fizera  Teucro 
expulso  por  seu  pae,  dizendo  aos  companheiros,  que  se  enfrascassem 
em  bastante  vinho,  porque  no  dia  seguinte  eras  tinham  de  fazer  longo 
caminho  no  largo  mar?  Pois  Senhor  P.®  M."  Dr.,  esses  são  os  biogra- 
phos  de  si  mesmos,  a  sua  biographia  é  viva,  e  é  essa  a  que  se  quer, 


H2  GARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DB  MACEDO 

e  a  que  se  louva. —  Fugiram  da  pátria  não  porque  lh'a  queimassem 
como  Troya,  mas  porque  a  queriam,  e  querem  alies  queimar,  e  se 
aqui  não  houve  Enéas,  que  levassem  os  pães  ás  costas,  houveram  pães 
que  arrastaram  os  filhos;  e  as  Creusas  não  houve  mister  apertar  muito 
com  ellas,  para  também  tomarem  as  de  Villa  Diogo,  e  isto  para  segui- 
rem um  areogueiroSinão,  dolis  instructus,  ei  arte  Pelasga,  —  Nas  gre- 
gas artes  de  mentir  mui  douto  —  e  cujos  trastes  vão  sendo  postos  era 
vagarosa  almoeda.  Este  Sinão  nos  queria  cá  metter,  como  em  Troya, 
ura  cavallo  de  páo,  pejado  de  Cartas,  e  de  alvitres  para  nossa  total 
ruina  e  acabamento.  Escreva  V.  S.^  a  biographia  d'estes  varões  illus- 
tres,  e  eu  o  ajudarei;  mas  havemos  de  começar  por  lhes  chamar  j^aes 
da  pátria,  que  por  não  poderem  supportar  a  carranca  medonha  do 
que  elles  chamam  usurpações,  nem  terem  o  valor  do  sábio  da  Ode  de 
Horácio  encarando  o  rosto  do  impendente  lyranno,  se  ausentaram  da 
pátria  em  perigo.  Quando  passarmos  a  louval-os  depois  de  seus  feitos 
pelos  seus  escriptos,  lhe  chamaremos  como  elles  se  chamam,  os  ho- 
mens mais  sábios  da  nação:  (entre  elles  Fr.  Fortunato  sabe  tanto  das 
línguas  orientaes,  como  ura  donato  da  Penha  de  França  sabe  contra- 
ponto) porque  em  seus  livros,  por  lá  escriptos,  e  para  cá  mandados, 
regalam  o  mundo  com  as  mais  insolentes  invectivas  ao  augusto  sobe- 
rano de  Portugal,  seus  ministros  e  seu  governo:  —  Qui  lapide  inci- 
denda,  cedro  qui  digna  Locutus — diz  o  epitaphio  de  Mendo  de  Foyos, 
gravado  no  seu  moimento,  que  está  na  sachristia  da  Graça,  e  que  não 
foi  composto  pelos  padres  da  Companhia;  diremos  pois  que  elles  dizem 
e  escrevem  cousas 

Dignas  só  de  gravar-se  em  jaspe,  %  em  cedro, 
Que  injuriam  Miguel^  e  exaltam  Pedro. 

Aqui  tenho  quarenta  Gazelas,  mais  feias  que  um  janeiro,  e  mais 
lodacentas  que  um  rio,  que  são  peças  justificativas  do  que  acima  acabo 
de  dizer,  materiaes  do  nosso  edifício  biographico,  se  d'esta  guisa  o  in- 
tentarmos, e  a  seu  fira  o  conduzirmos.  O  Mastigoforo  será  amnistiado 
a  V.  S.%  e  a  minha  querida  Besta,  que  me  ganhava  o  pão  para  a  bocca 
e  para  a  botica,  não  será  condemnada  a  uma  perpetua  atafona.  Appa- 
recendo  assim  esta  nossa  tão  bem  cuidada  biographia,  eu  lhe  fico  que 
passados  menos  de  quinze  dias,  se  os  ventos  forem  de  servir,  appareça 
logo  no  Constitucional  de  França,  e  no  Courier  de  Londres  em  phrase 
mais  assucarada:  «Ora  o  Padre  é  por  certo  o  diabo,  mas  não  tão  feio 
como  o  pintam;  tem  suas  idéas,  e  sabe  alguma  cousa  o  maldito;  (^n- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  113 

testou-se  de  monarchismo,  mas  vae  cahindo  em  si.  Â  nação  faria  n'elle 
uma  boa  acquisição,  e  nos  vae  deixando  aos  sábios  essa  esperança 
(fora,  patifes  1) — E  tratando  de  V.  S.^  dirão:  É  um  grande  lente  da  Uni- 
versidade; da  sua  mão  não  cae  um  R  na  fatal  urna.  No  Pateo,  pela  la- 
linidade,  philologia  e  historia,  arremeda  bem  o  antigo  escocez  Bucha- 
nan,  que  por  lá  esteve  e  zangando-se  com  Cypriano  Soares,  e  os  mais 
roupetas  do  Collegio  das  Artes,  despediu-se  em  laiim  (e  óptimo!)  veiu 
para  Inglaterra  acabar  de  traduzir  e  de  polir  do  texto  hebreu  os  Psal- 
mos,  deixando  á  Universidade,  e  a  Portugal  aquelles  terríveis  jambos, 
que  vem  no  segundo  volume  das  suas  obras  em  quarto,  e  que  come- 
çam: 

Valete  miserae  terrae  Lusitaniae, 

«Adeus,  adeus,  das  terras  lusitanas, 
«AdeuS;,  oh  pobres,  míseras  choupanas. 

O  nosso  Sir  Carlos  Slward,  o  maior  diplomático  do  mundo  velho, 
e  que  é  capaz  de  dar  quanto  lhe  peçam  por  um  livro  velho,  sediço  e 
bolorento,  ha  de  gostar  muito  dos  seus  inéditos.  Bem  desejaria  a  na- 
ção que  elle  lançasse  mão  de  outras  tarefas  para  os  progressos  da  ci- 
vilisação  e  derramamento  das  luzes!!. . .  (Fora,  patifes,  também  V.  S.* 
dirá,  e  não  diz  mai). 

Tomara  vôr,  diz  o  Doctor  Velasco, 
D'estes  heroes  biographo  o  carrasco  I 

E  também  diz  optimamente  o  Dr.  Velasco,  e  eu  sou  do  voto  do 
Dr.  Velasco,  ainda  que  elles  tanto  se  incham  com  a  doctrina  de  outro 
Doctor  Velasco,  mas  de  Gouvêa,  sobre  a  auctoridade  popular  na  elei- 
ção ou  successão  dos  monarchas;  talvez,  meu  P.®  M.^  que  essa  sua 
Coimbra  já  cheirasse  a  Coimbra  no  tempo  d'este  Dr.  Velasco  na  sua 
cadeira  de  prima,  de  véspera  ou  de  noite! 

Proscripta  pois  a  Apologia  dos  Jesuítas  como  cousa  ociosa,  para 
não  cahirmos  na  censura  do  adagio  latino,  e  também  paraphraseado 
por  Desiderio  Erasmo — Actiim  agere — que  é  fazer  o  que  está  feito; 
porque  se  os  Jesuítas  vêm  (nem  de  outra  sorte  os  queira  cá  o  nosso 
soberano)  já  vêm  emendados,  e  eu  creio  que  se  hão  de  metter  mais 
com  os  rapazes  para  os  ensinar,  que  com  os  gabinetes  para  os  diri- 
gir; nem  com  as  beatas  ricas,  porque  nem  ricas,  nem  pobres  existe 
já  essa  casta  de  despejadores  de  pias  de  agua  benta,  e  também  de  cal- 

CARTAS.  8 


H4  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

dos  de  galinha.  Também  creio  que  estes  que  Têm,  e  alguns  mais  que 
vierem,  quando  d'aqui  a  annos  souberem  portuguez,  se  acaso  é  lingua 
que  os  estrangeiros  fallem  sem  fazerem  rir  quem  os  ouve,  e  sahirem 
a  ensinar  a  doctrina  aos  rapazes,  pelos  recantos  das  ruas  e  escadaria 
dos  adros,  não  levarão,  segundo  costumavam,  empunhada  na  mão  uma 
cana  muito  comprida  para  darem  coques  nos  que,  ou  não  responderem 
(e  hão  de  ouvir  boas  cousas!)  ou  não  estiverem  quietos.  Ura  coque  rijo 
na  cabeça  de  um  rapaz  é  fazer  dar  gargalhadas  a  todos  os  outros;  e 
senão  com  a  deliberada  vontade,  por  certo  machinalmente;  eu  mesmo 
que  ando  bem  pouco  para  me  rir,  obedeceria  ao  impulso  da  natureza, 
ou  ao  excesso  do  ridículo,  e  ainda  o  fiz  ha  poucos  dias  na  sacristia 
de  S.  Roque,  contemplando  os  painéis  de  S.  Francisco  Xavier  pintados 
pelo  leigo  jesuita  Francisco  Pereira;  alli  está  a  scena  da  canada;  não 
é  o  santo  que  a  dá,  é  um  leigo  executor;  e  o  artista  estudou  tanto  a 
natureza,  que  o  rapaz  está  em  acto  de  ir  com  as  mãos  á  cabeça,  o  que 
dá  a  conhecer  que  o  irmão  leigo  carregara  a  mão  contra  vontade  do 
santo,  que  a  não  quereria  tão  rija,  e  muito  mais  do  rapaz,  qne  não 
gostou  d'ella  tão  forte.  Venham  pois  os  Jesuítas,  mas  nãn  venham  por- 
teiros da  cana,  porque  se  lhes  pode  metter  na  cabeça  serem  camaris- 
tas. Deixemos  pois  os  Jesuítas,  que  elles  fallarão  por  si  e  por  mim; 
creio  que  a  sua  conducta  actual  desmentirá  os  testemunhos  antigos; 
assim  como  também  creio  que  as  luzes  que  espalharem  não  serão  para 
os  olhos  dos  presentes,  serão  para  as  suas  covas,  se  os  clérigos  do 
acompanhamento  se  contentarem  com  essas  lombrigas;  mas,  não  tarda 
quem  vem,  e  mais  vale  tarde  que  nunca. 

Deixemo-nos  egualmente  de  ódio,  ou  de  amor  aos  Jansenistas;  se- 
rão uns  grandes  hereges,  mas  diz  S.  Paulo — Oportet  haereses  esse. — 
Este  oráculo  é  um  mysterio  profundo.  Se  V.  S.*  assenta  que  no  livro 
dô  Cornelio  Jansenio — Augustimis  —  com  os  erros  dos  pelagianos,  cuja 
historia  magistralmente  escripta  por  o  frade  da  Graça  Cardeal  Henri- 
que Noris,  está  também  mettido  á  surrelfa  o  systema  representativo 
de  uma  Gamara,  ou  de  duas  Gamaras;  então  caia-lhe  V.  S.*  á  perna 
com  toda  a  força  da  honra  e  da  dialéctica,  e  conte  commigo,  que  eu 
também  farei  uma  perna.  No  abbade  Raynal,  que  também  foi  jesuita, 
vejo  eu  grandes  sementes  do  republicanismo,  e  no  mesmíssimo  Braz 
Pjscal,  jansenista  furioso,  mas  christão  penitente,  pois  lhe  acharam 
quando  o  amortalharam  um  cilicio  de  ferro  encravado  nos  descarnados 
lumbos,  por  mais  que  lhe  commente  e  recomente  os  pensamentos  não 
lhe  encontro  vestígios  do  divinal  systema,  que  põe  os  povos  a  pedir 
por  portas,  e  por  consequência  ás  da  morte.  Olhe  V.  S.*,  chame  V.  S.* 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  H5 

aos  de  Pavia,  e  aos  de  Pistoia  wicleffistas,  que  não  queriam  mais  que 
republicanismo  na  egreja,  e  republicanismo  no  estado,  como  parece 
queriam  depois  João  Hus,  e  Jeronymo  de  Praga,  e  não  se  entronque 
esta  raça  fina  com  os  Jansenistas;  talvez  eu  diga  isto  porque  os  não 
enteodo,  nem  tal  quero,  gosto  do  meu  socego,  e  se  me  não  dá  a  dor 
de  pedra,  não  quero  que  m'o  tire  uma  questão,  cujos  termos  bem  de- 
finidos, todos  ficariam  concordes,  porque  a  graça  é  um  dom  gratuito 
de  Deus — Non  valentes,  nec  correntis,  sed  miserentis  est  Dei. — (S.  Paulo, 
Epist.  aos  Rom.,  cap.  ix,  t.  16.) 

De  biographia  é  bom  deixar,  porque  dizer  dos  presentes  o  que 
elles  são,  e  dos  passados  o  que  elles  foram,  é  accender  uma  guerra, 
e  gritarão  que  é  sátira  o  que  Dão  é  mais  que  retrato  ao  natural,  isto 
é  accender  o  facho  ás  fúrias. 

V.  S.*  é  intrépido,  nem  o  assustam  grossos  volumes,  nas  suas 
mais  que  Ambrosianas  livrarias  de  Milão,  nem  se  enfarrusca  e  cega 
com  a  poeirada  e  caruncho  de  seus  cartórios  Mathusalens.  Impávido 
Capuneo,  vocat  in  certamina  divos,  entra  por  essas  portas  mais  defen- 
didas que  as  de  Brandeburgo;  dois  exércitos  o  assaltam,  e  caminha  o 
exercito  «la  traça,  e  o  exercito  da  aranha;  Xerxes  não  trazia  mais  bi- 
charia atraz  de  si  quando  passou  o  Helesponto  para  conquistar  a  Gré- 
cia, onde  vinha  buscar  lã  para  ficar  tosquiado;  ou  para  me  explicar 
melhor,  entra  V.  S.*  nas  antigas  catacumbas  da  antiga  Roma,  a  visitar 
a  região  dos  mortos  e  dos  esquecidos,  tudo  é  pó,  e  tudo  são  cadáve- 
res; alli  jazem  sem  distincção  como  bacalhaus  albardados  em  pastas 
de  massa,  em  camadas  de  poeira,  ou  em  folio  máximo,  ou  em  oitavo 
pequeno;  com  um  assopro  faz  desapparecer  a  traça,  e  com  uma  vas- 
soura faz  ir  em  debandada  o  exercito  das  aranhas.  Salve-se  quem  po- 
der, grita  um  granadeiro  aranhiço,  como  nos  campos  de  Waterloo  gri- 
tou um  granadeiro  francez,  quando  com  a  cavallaria  forçou  o  flanco  di- 
reito o  espantoso  Bulow.  V.  S.*  é  o  espantoso  Bolow  da  cavallaria  ma- 
nuscripta,  apparece  V.  S.%  foge  a  traça,  somera-se  as  aranhas,  ras- 
gam-se  as  têas,  dissipa-se  o  pó  e  dá  a  liberdade  áquelles  prisioneiros  do 
esquecimento,  e  salva  aquellas  bagagens  da  simplicidade,  ou  da  sapiên- 
cia antiga.  Está  quebrantada  a  paz  dos  mortos,  e  violado  o  domicilio  das 
cinzas;  resgata  V.  S.*  um  manuscripto  captivo,  não  pelas  mãos  dos 
mouros,  mas  do  tempo  dos  mouros;  não  é  uma  alma  sahindo  do  purga- 
tório, mas  é  um  corpo  sem  alma  que  vem  vêr  a  luz  do  mundo,  m?s 
para  tornar  logo  ás  sombras  vestido  de  outra  mortalha.  Á  poria  d'a- 
quelle  jazigo  dos  pergaminhos  e  das  garatujas,  está  esperando  a  V.  S.* 
o  seu  criado,  ou  o  da  sala,  ou  o  particular  do  seu  quarto,  com  uma  vas- 


116  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

soura  de  piassá,  para  o  basculhar  de  tantos  barambazes  de  lêas,  e  de 
tanta  poeira  dos  séculos  porque  não  ha  de  subir  á  cadeira  como  um  en- 
farinhado do  entrudo.  V.  S.^  recusa,  não  consente,  não  quer  e  faz  be;n, 
porque  o  timbre  do  guerreiro  vencedor  é  apparecer  coberto  de  pó  e 
sangue,  que  lhe  deve  salpicar  os  louros  que  traz  na  frente.  Não  sei  que 
diga  a  V.  S.*  O  Imperador  Aureliano  não  entrou  mais  soberbo  as  portas 
de  Roma  no  carro  de  seu  triumpho  por  levar  presa  em  cadeias  de  ouro 
a  discreta  Zenobia,  rainha  de  Palmira,  e  atraz  sem  palmatória  seu  mes- 
tre Longino,  com  o  seu  Tratado  do  Sublime  (que  ainda  se  não  sabe  o 
que  é,  e  nenhum  mestre  de  Rhetorica  diz  o  que  seja)  como  V.  S.^  ca- 
minha magestoso,  levando  sobraçado  o  seu  querido  e  empoeirado  ma- 
nuscripto. 

Não  tornaram  de  Colcho  mais  contentes  os  Argonautas  cora  o  vel- 
locino  de  ouro,  nem  a  nâo  Cavallo  branco  vinha  de  Tunes  mais  empave- 
zada  com  o  rico  deposito  d'aquelles  pannos  recamados  de  ouro  que  lá 
roubaram  os  portuguezes.  O  prazer,  a  alegria  e  contentamento  vinham 
como  chantados  no  venerando  rosto  de  V.  S.^  Os  philoiogos,  latinisías 
e  grammaticos  da  Athenas  Lusitana  (d'onde  n'estes  dias  de  regenera- 
ção tem  apparecido  os  melhores  barros,  que  se  tem  dado  ao  dizimo, 
teste  Condeixa)  dava  nos  reiterados  appiausos  os  mesmos  signaes  de 
satisfação  litteraria,  cuidando  que  V.  S.*  tinha  encontrado  o  que  falta 
nas  Décadas  de  Tilo  Livio,  ou  que  V.  S.*  o  tinha  arrancado  da  livra- 
ria do  serralho  em  Constantinopla,  e  d'onde  Luiz  XIV  o  mandou  por 
seu  embaixador  pedir,  e  não  lh'o  deram,  e  lá  existe  (esta  entrega  {-.o- 
deria  ser  um  dos  preliminares  da  paz,  porém  a  Nicoláo  não  importa  o 
que  os  romanos  fizeram,  importa  o  que  elle  faz,  e  imporle-nos  a  nós 
o  que  devemos  fazer).  E  que  vae  V.  S.*  fazer  com  o  seu  manuscriplo? 
Talvez  se  impaciente  por  ter  de  esperar  três  ou  quatro  horas,  em  que 
o  tenha  ao  sol,  para  lhe  consumir  o  bolor  e  a  humidade;  se  o  achasse 
nas  ruinas  de  Herculano  ou  de  Pompeia,  ser-lhe-ia  preciso  eniregal-o 
ao  frade  de  Nápoles,  que  achou  o  modo  de  os  desenrolar  sem  se  des- 
pedaçarem, ou  reduzirem  a  pó  negro  e  impalpável.  Emfim  ao  sol  posto 
tirando  V.  S.*  aquelle  frangalho  do  estendal,  já  enchuto,  ou  encham- 
brado,  adeus  somno  e  adeus  refeitório!  Óculos,  lentes,  microscópios, 
tudo  se  emprega,  a  cousa  é  legivel,  e  trasladavel,  o  caracter  é  gothico 
puro,  ou  allemão  quadrado.  É  do  século  undécimo  1  E  a  matéria?  Cousa 
importante  na  verdade,  como  o  foram  alguns  rolos  achados  em  Her- 
culano, um  fragmento  de  versos  de  Alcêo,  e  de  Stesichoro,  meio  capi- 
tulo de  Xenophonte,  e  o  tratado  dos  átomos  de  Demócrito;  e  para  cer- 
tos philosophos  dois  exemplares  mais  correctos  pela  mão  do  auctor,  os 


A  FBEI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  147 

pensamentos  de  Timêo  de  Locres  e  de  Ocello  Lucaao,  isto  era  as  ruí- 
nas de  Pompeia.  E  cà  em  o  cartório?  cousa  melhor,  e  eu  o  creio,  por- 
que se  trata  de  religião.  V.  S.*  lê,  traslada,  corrige,  passa  a  limpo,  e 
tremendo-lhe  as  mãos  como  Varas  verdes,  manda  para  o  Desembargo; 
é  applaudido,  entra  no  prelo,  sae,  distribuem-se  os  exemplares,  lá  es- 
tão nas  lojas  dos  livreiros,  uns  vestidos  de  soberbo  e  purpurino  mar- 
roquim, com  manifesta  inveja  d'aquelles  que  se  vestem  da  modesta  e 
acapachada  carneira. 

Chegámos,  meu  P.®  M.®  Dr.,  chegámos  ao  grande  ponto;  qual  é 
o  destino,  qual  é  a  sorte  d'estes  tão  trabalhosos  e  trabalhados  impres- 
sos, em  que  a  sua  tão  generosa  e  tão  benemérita  Congregação  despen- 
dera tanto,  sem  outro  interesse  mais  do  que  merecer  o  respeito  paru 
seus  filhos,  a  gloria  para  si,  a  utilidade  para  a  pátria,  porque  se  sa- 
crifica tanto  que  se  empobrece  para  a  opulentar,  porque  desde  a  sua 
fundação  o  tira  da  bocca  para  lh'o  pôr  na  mesa.  Tremo  com  esta  ideia! 
A  sorte  d'estes  impressos  é  a  mesma  que  tinham  antes  de  o  serem. 
A  Sociedade  dos  bibliomaniacos  de  Londres,  lá  manda  buscar  um  exem- 
plar, como  destacaram  dois  commissarios  a  Vienna  d' Áustria,  só  para 
verem  no  gabinete  das  raridades  do  Imperador  aquella,  cuja  folha  de 
papel  com  suas  emendas  e  variantes  contém  a  ultima  oitava  da  Jeru- 
salém de  Tasso,  escripta  pela  mão  de  seu  auctor.  E  os  outros  exem- 
plares? Lá  estão  nas  baiucas  dos  livreiros,  esmagados  e  entalados  en- 
tre os  outros  na  terra  do  esquecimento,  chorando  pelo  repouso  e  an- 
tiga folgança  do  seu  querido  cartório,  onde  ao  menos  tinham  poeira 
em  que  molemente  se  deitassem  e  dormissem.  O  inédito  que  muitos 
querem,  é  aquelle  que  nunca  tinha  visto  a  luz  publica  em  Portugal, 
que  vem  a  ser  uma  revolução,  em  que  os  atrevidos  medrara,  os  gulo- 
sos comem,  os  ladrões  se  abastam,  e  os  ambiciosos  pulam,  e  depois 
atropellam  e  esmagam  os  outros;  estes  são  os  inéditos  buscados,  e  os 
inediíos  queridos,  e  com  tanta  sofifreguidão  devorados.  Os  que  V.  S.* 
publica  e  pode  publicar,  ficara  assim  escondidos  para  os  futuros  sé- 
culos, se  lá  apparecer  outro  Fr.  Fortunato,  (duvido  que  o  produzam 
semelhante  ao  presente)  que  torne  a  dar  preço  a  estes  thesouros  es- 
condidos e  encantados.  É  verdade  que  em  algumas  curiosas  mãos  vejo 
depositados  alguns,  mas  isto  não  é  mais  que  effeito  da  generosidade 
de  animo  de  um  de  seus  irmãos,  homem  de  mãos  rotas  e  coração 
largo,  que  sabe  dar  a  tempo,  que  ama  as  lettras  como  outros  thesou- 
ros, 6  as  grandezas  do  mundo. 

Persuado-me  que  V.  S.*  estará  já  enfadado  com  esta  tão  comprida 
arenga,  e  lhe  dará  aquelle  nome  que  Juvenal  dava  áquellas  cartas  que 


Ii8  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Tibério  escrevia  de  Caprea  ao  seu  valido  Sejaoo,  que  governava  ou  ty- 
ranisava  ^oma-- Longa  et  verbosa  epistola  venit  a  Caprei. —  Esta  minha 
é  longa,  mas  não  verbosa,  e  tendo  já  até  aqui  este  comprimento,  ainda 
aqui  não  fica. — Tenet  insanabile  muitos  scribendis  cachoethes. — Eu  serei 
um  d'estes, — trahit  sua  quemque  vohiptas — uns  bebem,  outros  dor- 
mem, estes  galanteara,  outros  architectam  republicas,  aquelles  outros 
(estes  são  os  mais  loucos)  lisonjeara  os  grandes,  alguns  intrigam  nas 
Cortes,  outros  querem  que  o  mundo  lhes  chame  Rabbi,  isto  é,  mestres 
6  até  grãos-mestres,  sem  ser  de  Rhodes,  ou  de  Malta;  outros  vivem 
de  calotes,  a  que  chamam  industria;  outros,  de  quem  falia  Juvenal, 
—  quid  nigra  in  cândida  vertimt. — Eu  entendo,  e  levado  também  n'este 
turbilhão  maníaco,  engeitado  do  mundo,  desconhecido  da  fortuna,  per- 
seguido do  ódio,  e  seguro  na  virtude,  obedeço  a  um  irresistível  impul- 
so:— escrevo.  Nos  versos  acho  fumo,  ena  prosa  desgostos;  morro  por 
saber,  e  morro  ignorante;  leio  e  não  me  adianto;  medito,  e  não  de- 
paro com  a  verdade;  mas  vou  teimando,  e  vou  escrevendo;  e  queria 
nas  minhas  debilitadas  forças  o  adminiculo,  sustentáculo,  ou  concor- 
rência do  pulso  athletico  de  V.  S.*;  mas  nas  matérias  já  por  mim  offe- 
recidas  á  erudita  penna  de  V.  S.*,  não  encontro  mais  que  insuperáveis 
diíBculdades  e  manifestos  inconvenientes,  e  ainda  que  ao  fim  levásse- 
mos as  indicadas  emprezas,  seriam  por  certo  recebidas  por  esmola, 
cora  uma  fria  indifferença,  ou  pelo  orgulho  regenerador  com  um  insul- 
tante  despreso. 

Eu  desfaço-me  em  projectos,  que  são  filhos  da  solidão,  da  incom- 
municabilidade,  e  do  retiro;  ura  dos  projectos,  cuja  execução  só  para 
mim  reservava  sem  intenção  extranha,  era  combater  as  rebeliões  pela 
illustração  dos  povos,  porque  sendo  a  arma  a  verdade  mais  poderosa 
para  vencer  tudo,  sendo  esta  nua,  não  perde  por  se  vestir  de  roupas 
mais  agradáveis,  e  costuma-se  adoçar  a  orla  de  um  vaso,  era  que  se 
dá  ao  menino  enfermo  a  medicina  amarga.  A  pátria  altamente  demanda 
este  recurso,  mas  não  sei  que  desconcerto  seja  esta  da  natureza;  esta 
verdade  não  sei  de  quem  conceba  para  parir  este  ódio,  como  ha  tan- 
tos séculos  nos  disse  o  cómico  romano  ou  deraidiado  Menandro;  aíBan- 
çava-rae  na  publica  experiência;  com  a  verdade  festivalmente  annun- 
ciada,  a  efifervescencia  das  províncias  se  accalma,  o  phrenesi  se  affrouia 
e  os  ânimos  se  ligam;  o  ferraento  revolucionário  não  leveda  a  massa 
disposta  na  população  do  reino;  erafira  eu  queria,  que  n'um  forno  de 
credito  se  cozesse  um  pão  sera  saibo,  e  sem  hervinha.  Mais  desfez  a 
lingua  de  Cicero  a  conjuração  de  Catilina,  que  a  espada  de  César!  O 
mais  sincero  e  nunca  desmentido  patriotismo,  a  força  e  a  perspicui- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  119 

dade  de  fluida  e  natural  eloquência,  sem  estudo  e  sem  preparados  ar- 
rebiques; o  órgão,  cujos  sons  lisonjeavam  os  ouvidos  populares,  o  ar- 
chote de  dia,  que  aclarava  os  caminhos  da  honra  e  da  justiça,  não  ser- 
viram de  outra  cousa,  que  não  fosse  depositar  em  ânimos  pervertidos, 
e  desgraçadamente  influentes,  um  rancor  sempre  resentido,  e  um  ódio 
pertinazmente  conservado;  que  sem  me  incutir  medo,  me  encheu  de 
uma  tão  motivada  indignação,  que  se  me  não  extinguiu  o  amor  da  pá- 
tria, que  isso  era  impossível,  ao  menos  extinguiu  em  mim  toda  a  sen- 
sibilidade moral,  mais  forte  que  a  physica;  porque  as  fibras  moraes 
são  mais  delicadas,  e  as  suas  vibrações  mais  vivamente  pronunciadas, 
fazendo  calar  uma  lingua,  que  só  bateu  o  ár  para  articular  os  sons,  ou 
as  palavras,  que  sempre  fizeram  escutar  e  perceber  o  mais  fino  amor 
da  pátria,  a  mais  segura  adhesão  ao  throno,  o  mais  desinteressado  affe- 
clo  aos  monarchas;  tornando  rombo  ou  obtuso  um  entendimento  que 
nunca  estendeu  um  raciocínio  ou  dispoz  ura  syllogismo  que  não  pro- 
vasse a  legitimidade  do  rei  que  temos;  d'este  rei  que  tanto  merecera 
os  bons  corao  temem  os  mãos.  Quizeram  que  o  silencio  era  mim  fosse 
forçado,  mas  eu  o  faço  voluntário.  Roma  conheceu  o  que  devia  a  Mar- 
cello,  e  o  chamou  do  desterro;  mas  tantas  sem  razões,  ou  da  minha 
estrella  ou  da  malignidade  dos  homens,  ou  da  contumácia  de  uma  seita 
me  farão  sempre  surdo,  e  opporei  a  contumácia  de  uma  resolução  hon- 
rada ao  proseguimento  de  um  ódio  implacável. 

Meu  P.^  M.*  Dr.,  poupar  as  rebeliões  é  ser  rebelde;  não  amar  o 
legitimo  soberano,  que  a  providencia  tão  visivelmente  cobre,  e  cubrirá 
com  as  suas  azas,  não  é  ser  portuguez;  o  maçon  que  se  obstina  é  um 
demónio  que  nos  flagella.  Eu  conservo  um  profundo  respeito  aos  gran- 
des, que  são  virtuosos,  e  que  conservam  com  o  sangue  que  lhes  gira 
nas  veias  a  herança  da  fidelidade,  que  em  acções  heróicas  lhes  deixa- 
ram os  seus  maiores;  mas  repare  V.  S.*  no  que  lhe  digo,  fite  os  olhos 
no  quadro  das  sedições  e  revoluções  romanas,  e  achará  que  só  uma 
foi  architectada  por  um  plebeu,  por  um  escravo,  Spartaco;  porque  os 
Gracchos  nunca  passaram  de  Tribunos;  tudo  achará  na  ordem  eques- 
tre, na  senatoria,  e  na  consular;  sem  me  [tornar  a  lembrar  Catilina, 
Bruto  e  Cassio  d'esta  ordem  eram,  ou  d'esta  gerarchia;  se  julgarem 
isto  uma  allusão,  julguem  embora;  talvez  possa  ser  ao  Conde  d'Essex, 
ou  a  Philippe  Egalité,  Duque  de  Orleans;  esta  lembrança  se  me  de- 
sperta com  o  espectáculo  de  uma  sentença  impressa,  e  vulgarisada^  que 
condemna  tantos,  antes  tão  grandes,  em  publico  cadafalso  á  morte  in- 
fame de  garrote.  Estes,  que  não  seHam  o  que  foram,  e  os  que  perde- 
ram, se  não  existissem  as  monarchias,  não  querem  as  monarchias,  que 


J20  CAUTAS  DIS  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

OS  sustentam  na  grandeza,  e  lhe  afiSançam  seus  foros,  e  com  espanto 
da  razão  humana,  odeiam  de  morte,  despresam  e  perseguem  affinca- 
damente  aquelles  que  com  seus  escriptos,  e  com  seus  estudos  defen- 
dem os  governos  monarchicos  com  aquella  mesma  forma  com  que  fo- 
ram instituídos;  quero  dizer,  com  a  conservação  e  unidade  do  poder, 
e  indivisibilidade  da  soberania,  contentando-se  de  fazer  uma  inglória 
figura,  onde  tem  preponderância,  que  os  põe  distantes  dos  thronos  ena 
quanto  não  acabam  com  os  thronos,  e  com  elles;  mas  se  quem  defende 
a  soberania,  que  sustenta  com  todos  os  seus.Jóros  a  nobreza,  é  obri- 
gado ao  silencio,  onde  acharão  advogados?  O  século  presente  offerece 
poucas  contradicções  d*esta  magnitude;  só  me  persuado  que  estes  ob- 
scuridissimos  problemas  só  podem  ser  resolvidos  pela  analyse  de  uma 
já  não  enigmática  associação. 

E  que  havemos  de  escrever,  meu  P.®  M.^  Dr.  ?  A  resposta  é  tão 
fácil,  como  é  fácil  escrevel-a.— Cousa  nenhuma. —  Passarmos  da  vida 
activa  da  banca  para  a  vida  sedentária  e  contemplativa  das  scenas  do 
mundo  moral,  mais  variáveis  e  variadas  que  as  da  natureza.  V.  S.* 
appellará  para  os  milagres  da  iiitroducção  e  instituição  jesuitica;  eu  co- 
nheço e  confesso  a  sua  eííicacia  para  o  presente,  ou  talvez  para  o  fu- 
turo, mas  eu  que  olho  para  os  homens  d'estas  nossas  eras,  digo  com 
o  vulgo: — pretos  velhos  não  aprendera  línguas  —  e  não  ha  assopros 
que  abalem  a  arvore  da  morte.  Muitas  vezes  se  lhe  tem  deitado  o  ma- 
chado ao  tronco,  e  parece  abatido,  mas  ficam  na  terra  as  raizes,  co- 
meçam de  pullular  renovos,  os  suecos  vegetaes  n'ella  são  muito  fortes, 
e  o  terreno  sempre  adubado...  Gosto  pouco  das  allegorias,  e  um  animo 
sem  refolhos  não  se  deve  servir  de  expressões  mascaradas.  V.  S.*  sabe 
que  se  declarou  guerra  a  dois  objectos,  os  mais  importantes  para  o  ho- 
mem, e  dos  quaes  pende  a  sua  ventura,  —  sociedade  e  religião;  — 
guerra  á  sociedade  pela  política,  guerra  á  religião  pela  incredulidade; 
d'esta  guerra  não  se  desiste;  se  as  circumstancias  parece  trazerem  al- 
guma trégoa,  não  é  mais  que  u;n  espaço  buscado  pela  malícia  para 
novos  preparativos,  e  para  encher  os  trens  de  novuS  petrechos  e  de 
novas  munições.  Outras  circumstancias  vêm  abrir  a  campanha;  reno- 
vam-se  as  jornadas,  e  se  avivam  e  encarniçam  mais  os  combates.  Isto 
na  infeliz  Europa  não  tem  já  remédio,  porque  aquelles  que  como  mi- 
nistros da  auctorídade  lh'o  poderiam  dar,  estão  (por  desgraçai)  pos- 
suídos do  mesmo  espirito  bellicoso. 

Gustavo  Adolpho  accendeu  e  proseguiu  na  Alleraanha  uma  guerra 
por  espaço  de  trinta  annos,  mas  por  fira  acabou-se.  Frederico  II,  rei 
da  Prússia,  sustentou  outra  guerra  na  mesma  AUemanha  por  sete  an- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAYENTURA  121 

uos;  terminou,  e  veiu  a  paz.  Se  me  lembro  de  tempos  mais  antigos, 
os  Belgas,  Hollandezes,  ou  Flamengos,  sustentavam  contra  Filippe  II 
e  seus  successores  uma  guerra  de  quarenta  annos;  encheu-se  este  pe- 
ríodo, e  acabou-se.  Os  sanguinários  bandos  dos  Guelfos  e  Gibelinos  na 
Itália,  por  mais  de  um  século  se  encarniçaram,  mas  acabaram;  só  não 
acaba,  nem  acabará  aquella  Ordem,  que  a  não  quer;  Ordem  que  não 
morre,  porque  assim  como  se  propaga,  se  renova  em  todas  as  gera- 
ções, e  como  ella  não  acaba,  não  termina  a  guerra  á  religião  e  á  socie- 
dado.  Se  esta  guerra  publica  e  universal  se  reduzisse  a  um  certamen 
singular,  como  a  dos  Philistêos  contra  os  Israelitas,  ainda  que  d'este 
exercito  de  tão  desmedidos  gigantes  apparecesse  o  maior  gigante  ves- 
tido de  todas  as  suas  armas  brancas  e  negras,  sobpezando  uma  lança, 
cujo  ferro  fosse  como  o  da  lança  de  Golias,  do  tamanho  da  laçadeira 
do  maior  tear,  talvez  apparecesse  um  pequeno  David,  que  com  uma 
só  pedrada  o  derribasse,  e  se  acabasse  e  decidisse  d'esta  guiza  a  fa- 
tal contenda;  mas  não  é  assim,  morre  um  Golias,  e  ficam  os  outros; 
a  guerra  é  geral,  é  publica  e  é  eterna;  e  chega  a  tanto  o  seu  orgulho 
que  esperam  não  ter  inimigos  que  combater,  porque  aspiram  a  alistar 
todos  os  homens  debaixo  das  suas  bandeiras.  Elles  têm  dois  generaes 
ou  generalíssimos,  um  quiz  ser  urso  com  os  ursos,  elles  o  querem  tam- 
bém, e  eis  aqui  desfeita  a  sociedade.  Outro  diz  que  é  filho  do  acaso, 
este  é  o  pae,  e  da  fortuita  concorrência  e  adherencia  dos  átomos,  esta 
é  a  mãe;  quer  o  atheismo,  isto  querem  todos,  e  eis  aqui  depois  de 
dissolvida  a  sociedade  acabada  a  religião:  a  estas  razões  de  loucos  ajun- 
tam a  violência  do  poder,  e  a  maligna  dextridade  da  politica,  tem  a 
força  nas  armas,  e  a  politica  nos  ministérios,  porque  Vergennes  foi  sa- 
plantado  por  Necker.  Não  convence  a  razão,  nem  persuade  a  eviden- 
cia, a  quem  não  conhece  as  leis  da  sociedade,  e  considerada  como  de- 
lírios da  ingnorancia  e  furores  do  fanatismo,  as  que  se  chamam  eter- 
nas, e  aos  homens  reveladas.  Gomo  estes  scelerados  se  assoalham  mes- 
tres do  mundo,  e  exigem  uma  obediência  cega,  e  uma  crença  absoluta 
a  quanto  querem  dizer,  a  nenhum  d'elles  ouvi  ainda  uma  reposta  que 
não  fosse  o  sorriso  do  despreso,  e  o  gesto  da  ameaça:  querer  empre- 
gar contra  elles  o  talento,  é  azedar-lhes  a  tyrannia,  e  o  dia  do  seu  po- 
der manifesto  seria  o  dia  da  sua  publica,  ainda  que  até  alli  dissimu- 
lada vingança.  Eis  aqui  bastantes  razões  para  um  silencio  eterno.  Que 
se  ha-de  escrever?  se  o  que  se  escrever  é  remédio,  não  o  querem;  se 
é  luz  logo  a  apagam.  Mas  a  mania  de  escrever? 

Tu  licet  expelias  furca,  tamen  usque  recurrit? 


122  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MAOTDO 

«Se  intentas  expulsal-a  co'um  forcado, 
«Vem  de  novo  investir,  tudo  é  baldado  1» 


Assim  o  parece  n'esta  carta,  porque  devendo  dar  fundo  e  abra- 
çar a  terra,  torna  de  novo  a  engolfar-se  nos  mares.  Se  eu  poderá 
dar  fim  ao  escrever,  como  pude  dar  fim  ao  ler,  ja  gosaria  d'aquella 
deliciosa  paz,  que  é  para  mim  invejada  herança  dos  mandriões,  e  dor- 
mira aquelle  somno  que  o  céo  outorga  aos  seus  queridos. —  Cum  de- 
derit  dilectus  suis  somniim. —  Deixei  por  uma  vez  de  ler  e  de  estudar: 
como  eu  tinha  lido  muito,  muita  cousa  me  ficou  na  cabeça,  porque 
para  desgraça  minha  tenho  a  memoria  tenacissima»  e  porque  até  esta 
potencia  d'aima  a  tenho  nos  sentidos,  cores,  cheiros,  sabores,  situa- 
ções, logares,  sons,  d-c,  tudo  lenho  presente  como  permanentes  sen- 
sações que  se  succedem,  mas  não  se  destroem.  As  vezes  me  vem  á 
bocca  cousas  hdas  ha  cincoenta  annos,  o  que  me  succedeu  com  a  se- 
guinte passagem  de  Séneca  na  sexta  carta  a  Lucilio.—  Turpe  est  se- 
ntei commentario  sapere.  Hoc  Zeno  dixit;  tu  qiiid?  Hoc  Cleanthes;  tu 
quid?  Quoitsque  sub  alio  moveris?  Aliquid  et  de  tuo  profer. — Não  para 
V.  S.%  que  é  maior  latinista  que  Lourenço  Vala,  e  para  o  consolar  de 
todo,  que  o  mesmo  jesuíta  Bento  Pereira,  o  Prosódia,  mas  porque  esta 
carta  pode  ir  ás  mãos  de  quem  não  sabe  latim,  que  é  cousa  que  vae 
succedendo  a  quasi  todo  Portugal,  eu  o  converto  era  romance: — É 
cousa  feia  e  torpe  em  um  velho,  saber  por  apontamentos,  ou  estra- 
nhos retalhos.  Isto  disse  Zeno;  e  tu  quo  dizes?  Isto  disse  Cleantes;  e 
que  dizes  tu?  Quando  começarás  a  dar  um  passo  sem  direcção  alheia? 
Deixa  os  mais,  e  apparece  no  mundo  com  fructos  da  tua  própria  la- 
wa. — Isto  foi  trovão,  que  me  acordou;  despedi  os  livros  para  sempre 
e  comecei  a  cavar  no  terreno  próprio.  Não  será  ninguém  culpado  do 
que  eu  escrevo;  porque  se  é  máo  é  só  meu,  e  se  é  bom  também  não 
é  extranho.  Como  é  irresistível  a  força  que  me  arrasta  para  o  tinteiro, 
escreverei  não  o  que  os  outros  disseram  e  fizeram,  não  o  que  se  fez 
nem  o  que  se  faz,  escreverei  cousa  nova  e  tão  nova  que  ainda  não  está 
feita.  António  Vieira  escreveu  a  Historia  do  Futuro;  pois  eu  escreve- 
rei um  Sarrabal,  ou  reportório  para  o  anno  que  vem,  e  queira  o  céo 
que  elle  não  sirva  para  todos,  como  o  Lunario  perpetuo!  Os  meus  pro- 
gnósticos serão  tão  infalliveis  como  o  costumam  ser  os  factos  presen- 
tes; o  que  logo  se  fará  conhijcer  pelo  juízo  geral  do  anno,  e  suas  qua- 
dras. Grandes  colheitas  haverá,  e  que  fructos!!!  Eu  já  não  posso  con- 
ter o  espirito  vaticínador,  que  me  agita  como  a  sybilla  de  Virgílio;  es- 
tou sentado  na  tripode,  porque  esta  cadeira  também  o  é,  e  como  é 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  123 

pouco  segura  dos  pés,  produz  um  movimento  de  trepidação,  que  me 
anda  tudo  á  roda.  Non  vullus,  non  color  mus — não  tenho  o  mesmo 
rosto,  as  mesmas  cores.  Ahi  vae  já  uma  que  eu  não  posso  conter.  En- 
tre os  vegetaes  haverá  muita  abundância  de  linho  para  cordas;  o  ponto 
está  que  se  sirvam  d'eilas,  e  os  homens  da  maior  moderação  serão 
obrigados  a  confessar  que  sem  ellas  não  se  faz  nada. 

Dirá  V.  S."*  que  eu  depois  de  compor  tanta  cousa  vim  a  parar  em 
compor  reportorios;  os  d'esta  qualidade  são  originaes;  o  que  eu  disse 
não  o  disse  Cleanthes,  nem  o  disse  Zeno;  hão  de  ser  cousas  da  minha 
própria  lavra;  ninguém  se  queixará  de  mim,  porque  não  são  sujeitos 
ou  cousas  que  existam,  mas  que  hão  de  existir.  Os  que  vierem  não 
serão  tão  impertinentes,  nem  o  tempo  será  tão  diíBcil,  que  d'elle  se 
possa  dizer  o  que  eu  digo  do  presente.— /)aí  veniam  corvis,  vexat  cen- 
sura cohmbas.  Este  futuro,  de  que  eu  sou  prognosticador,  eu  o  leio 
no  passado  e  no  presente.  Quem  vê  o  que  vae  agora,  verbi-gratia,  a 
creação  que  se  dá  á  mocidade,  pode  vaticinar  o  que  esta  mocidade 
dará,  quando  for  velha,  á  mocidade  que  então  existir.  V.  S.*  pode  co- 
nhecer desde  já  o  grande  credito  que  este  seguro  modo  de  vaticinar 
dará  ao  meu  sarrabal!  Emfim  dei  um  salto  de  censor  do  presente  a 
retratista  do  futuro,  e  nos  intervallos  lerei  nas  unhas  de  alguns  la 
buena  dicha  de  muitos.  A  chiromancia  também  entra  com  os  sarrabaes 
na  classe  das  artes  divinatorias. 

Concluo,  meu  P.®  M.®  Dr.,  afirmando  a  V.  S.*  que  tudo  quanto 
até  aqui  tenho  escripto  é  uma  parenesis,  ou  uma  exhortação  indirecta 
para  o  persuadir  que  é  melhor  e  mais  útil  dormir  que  escrever;  foi 
já  este  o  pensamento  de  Horácio. — Ni  melius  dormire  putem,  gitam  fa- 
cere  versus. — Que  excellentes  commodidades  tem  V.  S.*  para  isto,  e 
para  evitar  desgostos,  que  são  guzanos  que  nos  vão  roendo  a  existen- 
cial V.  S.*  dá  a  conhecer,  impressa  em  seu  rosto,  a  esplendida  saúde 
e  athletica  robustez;  a  paz  cenobitíca  só  se  encontra  em  seus  veneran- 
dos mosteiros.  Alcobaça,  pela  situação  é  o  Tempe  e  a  Thessalia  de  Por- 
tugal. Ahl  Quem  colhera  alU  um  soalheiro  no  inverno,  e  a  fresca  vi- 
ração por  entre  as  arvores  no  verão!  O  socego  do  espirito,  e  o  volume 
do  corpo  alli  se  me  augmentariam  a  olho;  alli  como  de  um  baluarte 
seguro,  eu  veria  apathicamente  as  tempestades  no  mar,  e  as  tempes- 
tades na  terra,  as  cabeçadas  nos  homens  e  as  leviandades  nas  mulhe- 
res; alli  me  veria  a  politica,  mas  não  ouviria  esta  palavra,  porque  a 
reduziria  ao  bom  acolhimento  e  tracto  dos  que  vivem  dentro  e  de  al- 
guns desenganos  que  me  viessem  de  fora.  Se  os  Dardanellos  ficaram 
—  se  os  Dardanellos  se  foram — se  o  equilíbrio  se  guarda — se  a  ba- 


124  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DR  MACIiDO 

lança  pende,  porque  na  Europa  se  as  cousas  se  não  pezam,  ao  menos 
todas  se  vendem;  tudo  isto  seriam  para  mim  os  objectos  do  paiz  das 
chimeras,  e  recostado  como  um  dormente  sobre  o  moUe  tapiz  das  flo- 
res e  das  hervas,  mais  dormiria,  e  mais  assobiados  seriam  os  meus 
roncos;  e  se  o  sol  ao  esconder-se  por  detraz  das  montanhas  com  o  ul- 
timo raio  me  ferisse  os  olhos  e  despertasse,  eu  daria  alguns  passos 
não  para  o  gabinete  a  seccar  os  miolos,  mas  para  o  refeitório  a  povoar 
o  estômago.  Se  me  apodassem  ou  motejassem  por  essa  injuria  da  na- 
tureza, chamada  corcova  ou  corcunda,  eu  lhe  diria  que  era  impulso  de 
um  coração  que  me  não  cabia  no  peito,  entumecido  por  um  achaque 
chamado  honra;  que  elle  tinha  pulsações  como  um  aneurisma;  que  se 
se  rompesse  acabaria,  mas  com  elle  a  vida.  Se  corresse  de  novo  a  bus- 
car o  somno,  que  é  a  pausa  da  existência,  quando  a  languida  cabeça 
chegasse  ao  travesseiro  já  chegaria  dormindo;  então,  então  é  que  eu 
depararia  com  a  verdadeira  felicidade  do  mundo,  já  definida  e  deter- 
minada por  Juvenal — Mens  sana  in  corpore  sano  —  é  uma  alma  tran- 
quilla  n'um  corpo  sadio.  Isto  que  eu  só  posso  ver  em  pintura,  V.  S.* 
o  pode  gosar  em  realidade.  A  hora  extrema  sem  a  desejar,  e  sem  a 
temer,  aqui  lhe  soaria;  mas  lembre-se  a  toda  a  hora,  que  mais  vale 
burro  vivo,  que  doutor  morto,  e  que  uma  philosophica  indolência  é 
melhor  que  a  estrepitosa  fortuna.  As  aguas  do  Alço,  e  do  Baça  lhe  en- 
sinarão como  corre  a  vida,  como  a  mim  n'esta  choupana  litoral  os  bra- 
midos do  Oceano,  além  dos  baluartes  d'aquellas  arêas,  me  ensinam  a 
despresar  as  bravatas  dos  soberbos  e  a  ignorância  dos  poderosos. 
Passe  V.  S.*  muito  bem,  que  assim  lh'o  deseja 

Seu  amigo 
Pedrouços,  6  de  dezembro  de  4829. 

J.  A.  de  M. 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  125 


IV 

Pedindo-lhe  protecção 

para  o  estudante  José  Pedro  Ferreira  de  Oliveira, 

que  fazia  acto  do  quarto  anno  medico 

jll  m.  e  j^  mo  gr 

Até  aqui  o  candidato,  agora  en  que  o  uão  sou  e  sem  ter  qualida- 
des para  o  ser,  me  vejo  feito  patrono,  e  sem  ser  isto  cousa  que  se 
pegue,  também  quero  que  V.  S.*  o  seja,  e  perante  que  juizes? — Apud 
quos,  nec  te  Lttcius  Crassiis  defendit^  ne  Marcus  Aníonitis,  et  qtioniam 
apud  Graecos,  Judaeiís  res  hábetur  possis  ad  hiberem  Demosthenem  — 
Ah  meu  P.*  M.®  Dr.,  estes  juizes  gregos  são  os  nossos  Hypocrates; 
aqui  ha  dois  grandes  riscos,  um  para  V.  S.*,  outro  para  o  candidato. 
V.  S.*  está  de  perfeita  saúde  e  ainda  bem!  Pedindo-lhe  que  falle  aos 
médicos  o  ponho  em  grande  perigo,  porque  basta  só  fallar-lhe  para  dar 
um  alegrão  á  morte  e  ao  coveiro.  Para  o  candidato,  porque  é  impossí- 
vel ^ue  igDore  que  nunca  um  medico  começa  a  escrever  (nunca  o  fa- 
rão em  minha  casa!)  que  não  comece  por  R. — Recipe;  e  como  elles 
são  muito  amigos  de  abreviar,  especialmente  a  vida,  talvez  no  seu  juizo 
de  exame,  para  abreviarem,  até  rnachinalmente  larguem  um  R.  Isto 
não  quer  o  candidato  e  menos  o  quero  eu,  com  o  valimento,  interven- 
ção 6  auctoridade  de  V.  S.*  Isto  seria  uma  fatalidade,  porque  havendo 
em  os  nomes  e  appellidos  do  candidato  cinco  RR,  viesse  ainda  mais 
um,  e  mais  de  um;  então  poderia  eu  dizer — arre! — porque  ainda  que 
me  tiraram  as  Bestas,  não  me  tiraram  a  musica  com  que  ellas  andam. 
Dirá  V.  S.*  que  eu  pedindo-lhe  um  favor,  o  exponho  a  um  perigo,  como 
eu  confesso;  é  verdade,  mas  "V.  S.*  é  prudentissimo;  falle  sim,  porém 
meça  o  terreno,  calcule  a  distancia,  pode  ouvir  a  artilheria,  comtanto 
que  esteja  fora  do  alcance;  e  não  será  u'elles  tão  prompta  a  morte  pelo 
ouvido,  como  é  sempre  pela  bocca.  Faça-se  este  milagre,  que  merecerá 
um  painel  como  aquelle  que  eu,  entre  velhos  que  para  dar  logar  aos 
novos,  se  vão  tirando  das  paredes  da  ante-sacristia  da  Penha  de  Fran- 
ça, vi  e  tive  na  mão  e  dizia  a  legenda: — Milagre  que  fez  Nossa  Se- 
nhora da  Penha  de  França  a  uma  filha  de  Thomaz  Pinto  Brandão,  em 
a  livrar  de  dois  médicos,  que  a  queriam  matar.» — Basta,  não  diga  V. 
S.^  que  medico  lhe  pareço  eu,  e  que  o  quero  malar  com  uma  tão  com- 


126  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

prida  arenga.  Ora  ao  menos  deixe-me  dizer  o  que  importa  mais  que 
tudo,  e  o  que  esses  senhores  do  calculo  podem  pôr  entre  as  verdades 
demonstradas  na  sciencia  exacta,  que  eu  sou 

De  V.  S.* 


Pedrouços,  15  de  Maio  de  1830. 


Verdadeiro  amigo 
/.  A.  de  M. 
V 

III  mo  e  j^  mo  Sj.^ 

Por  mão  do  111.""°  P.®  M.®  Cruz  recebi  as  muito  interessantes  no- 
ticias de  V.  S.*,  escriptas  pela  leltra  de  V.  S.*  Disse  bem  o  Dr.  Fr. 
Domingos  de  Carvalho,  que  eu  as  desejava,  mas  não  as  exigia ;  o  que 
é  para  mim  um  favor  singularissimo,  era  em  V.  S.*  mercê  e  não  obri- 
gação. Sempre  e  a  todos  os  que  me  podiam  illustrar  sobre  este  objecto 
perguntava  por  V.  S.^,  e  como  tão  conhecido  do  Marquez  de  Borba, 
vindo  no  mez  de  Outubro,  emquanlo  se  demorava  n'este  Tusculano, 
verdadeiramente  delicioso,  quatro  vezes  a  esta  casa,  recahia  a  conver- 
sação sobre  V.  S.%  e  por  fonte  segura,  que  é  El-rei  nosso  senhor,  pois 
este  disse  que  emquanto  ouvira  o  seu  sermão  chorara  sempre. — Go- 
vernando-me  por  mim,  lhe  tornei  eu,  o  extemporâneo  é  o  melhor,  por- 
que o  discurso  sae  do  coração,  e  não  é  filho  do  estudo;  e  é  mais  dex- 
tra parteira  a  natureza  do  que  a  arte.  Estas  são  as  novas  que  tenho 
de  V.  S.*  agora  darei  minhas.  Da  minha  saúde  não  lh'as  dou  porque 
nenhuma  tenho,  nem  tenho  a  ultima  cousa  que  deixa  os  desgraçados 
que  é  a  esperança;  não  tem  remédio,  não  tem  remédio;  uma  confir- 
mada dissuria  dolorosa,  que  me  inunda  de  dia,  e  me  alaga  de  noite, 
continuada  ejecção  de  lascas  escabrosas  de  pedra,  maiores  que  o  diâ- 
metro da  uretra  que  se  rasga,  uma  atenuação  progressiva,  e  um  fas- 
tio invencível  a  outra  cousa  que  não  seja  agua,  e  de  uma  fonte  pró- 
xima a  este  domicilio,  sem  outra  consolação  e  outro  lenitivo,  entre  tan- 
tas dores  e  pezares,  mais  do  que  não  vêr,  nem  querer  vêr,  nem  a  vinte 
passos  de  distancia,  um  só  medico,  ainda  que  venha  desarmado,  sem 
traquitana,  sem  o  nunca  exhausto  e  verbosissimo  erário,  sem  o  oitavo 
de  papel,  que  traz  por  sello  a  fouce  da  morte;  sem  Benjamin  Con- 
stanl  dentro  dos  cascos,  e  Jeremias  Bentham  na  lingua  badaladora;  ve- 
nha como  vier,  não  me  verá,  nem  eu  o  verei.  Já  Iriumphei  de  um  me- 
dico! Não  ha  muitas  semanas,  que  ouvi  um  grande  estrépito  de  fogo- 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  127 

sas  bestas  parar  a  esta  poria;  era  a  indiscreta  philantropia  de  um  meu 
amigo,  que  por  devoção  sua  me  trazia  um  medico,  que  se  tem  em 
maior  conta  que  Hipócrates  e  Boerhaave,  chamado  Leal  de  Gusmão; 
cansaram  de  bater  á  porta,  eu  mesmo  lhes  disse  da  janella  abaixo  que 
lh'a  não  abria,  nem  abri;  o  meu  amigo  tratou-me  mal,  e  elle  o  inimigo 
apezar  da  sua  não  viril,  mas  adocicada  expressão  brazileira,  proferiu 
palavras,  cada  uma  d'ellas  mais  peçonhenta  e  mortifera  que  uma  re- 
ceita! Eu,  que  não  teria  medo  dos  morteiros  e  obuzés  de  Souvarrow, 
não  acceitei  o  combate,  e  confesso  que  foi  medo  e  não  descortezia.  Ou- 
tro amigo,  6  bem  intencionado,  me  trouxe  aqui  um  cirurgião  — /sséo 
torrentior — apenas  conheci  que  tinha  laivos  de  medicina,  e  da  actual 
escola  liberal  do  hospital  de  S.  Joseph,  e  que  mui  repimpado  na  ca- 
deira junto  á  cama.  tossindo  muito  e  limpando  os  beiços,  fazendo  uma 
fricção  na  estolidissima  testa  com  a  palma  da  mão  direita,  vendo  o 
relógio,  mandando-me  deitar  a  lingua  fora,  o  que  eu  não  quiz — sic 
orus  ah  alto — «O  canal  intestinal. . . — Basta,  basta,  disse  eu  ao  illus- 
tre  preopinante;  e  como  sou  um  tanto  resoluto,  continuei: — «Ponha-se 
já  no  andar  da  rua,  venha  a  morte,  mas  calada;  onde  ia  v.  m.*^  ter 
por  esse  canal  intestinal?  Pois  vá  pelo  canal  da  escada  abaixo,  e  se 
faltar  o  carrasco  pode  acceitar,  que  fará  fortuna.» — Lá  se  foi  blasphe- 
mando,  mas  eu  estou  vivo.  Taes  são  as  noticias  da  minha  saúde;  agora 
as  darei  das  minhas  lettras,  com  cujo  louvor  V.  S.*  tanto  me  enver- 
gonha. As  minhas  lettras,  Sr.  P.'  M.®  Dr.,  as  minhas  lettras  são  gor- 
das, ou  nem  gordas  nem  magras.  Eu  não  tenho  mais  que  alguma  ima- 
ginação, um  pouco  não  digo  viva,  mas  ardente;  olhe  bem  que  mais 
nada  tenho,  e  sou  sincero.  Não  passo  do  10°  Desengano;  ahi  estão  na 
arena  grandes  luctadores;  isto  foijjogo  politico,  foi  uma  diversão  que  a 
caverna  quiz  fazer  á  questão  principal  de  que  El-rei  me  mandou  tra- 
tar. Melteram  na  dança  o  frade  bento,  que  metteu  empenho  a  V.  S.* 
para  o  approvar  em  grego.  Se  lá  lhe  fôr  dar  o  Desengano  5.",  fará  idéa 
da  manobra  maçónica.  Beijo  a  mão  a  V.  S.*  por  tomar  a  minha  defensa 
(que  eu  ainda  não  vi);  no  Chaveco,  que  ataca  a  Senhora  da  Rocha,  sou 
eu  investido,  e  no  Paquete  muito  mais.  O  Midosi  e  o  Garrett  ainda  ati- 
ram. Eu  devo  servir  em  tudo  a  Congregação  de  São  Bernardo,  e  em 
duas  palavras  o  declaro;  o  P.^  M.®  Cruz  ha  mais  de  dois  annos  aqui 
me  traz  com  que  tenho  jantado,  e  me  sobra  com  que  jantar  ainda,  e 
que  cear  e  lautamente  por  muitas  noites,  e  isto  sempre,  e  até  cousas 
que  se  não  entram  na  barriga,  cobrem  a  pelle;  tanta  generosidade 
pede  bem  a  recompensa  da  publicidade.  Em  defender  a  Congregação 
faço  um  acto  de  justiça,  e  na  recompensa  do  trabalho  ha  um  acto  con- 


128  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

tinuo  de  grandeza;  é  preciso  que  eu  assim  faile,  porque  os  pobres  não 
devem  ser  soberbos,  e  se  eu  alguma  soberba  tenho  é  em  gosar  da 
amisade  de  V.  S.*,  porque  sou 


Pedrouços,  18  de  Dezembro  de  1830. 


VI 


Seu  amigo 
J.  A.  de  M. 

111.'"°  Sr. 


Recebi  as  tão  desejadas  lettras  de  V.  S.*  e  também  depois  d'ellas 
os  três  impressos,  nos  quaes  admirando  tudo,  me  desagradam  duas 
cousas:  uma  por  carta  de  mais,  outra  por  carta  de  menos;  por  carta 
de  mais,  o  bem  que  me  trata,  merecendo-o  eu  tão  pouco;  por  carta 
de  menos  o  pouco  que  zurze  o  almocreve  de  Âdo7urão,  merecendo-o 
elle  muito.  Para  mim  foi  lisonja,  e  para  elle  caridade;  para  mim  a  li- 
sonja é  ociosa,  porque  me  conbeço;  para  elle  a  caridade  é  inútil,  por- 
que a  soberba  é  cega.  Ora  pois,  o  que  V.  S.*  não  faz  por  caridade, 
farei  eu  por  justiça,  e  se  lhe  amargurar  os  últimos  dias  da  vida,  nin- 
guém o  mandou  escrever  parvoíces,  ou  pedreirices.  Não  é  só  Alcobaça 
ou  o  que  tem,  ou  verdadeiramente  teve  Alcobaça,  o  que  elle  indirecta- 
mente ataca  sempre,  porque  os  pedreiros  julgam  usurpação  o  que  el- 
les  não  podem  furtar;  este  almocreve,  até  no  gesto  e  nas  botas  sem- 
pre atacou  o  culto  catholico.  Que  tem  cora  Memorias  Chronologicas  e 
diplomáticas,  a  miúda  e  escrupulosa  descripção  das  momices,  serpes, 
dragos,  danças  e  folias,  que  os  do  Porto  faziam  na  procissão  de  Cor- 
pus Christi  ha  dozentos  annos?  Que  temos  nós  agora  que  levassem  o 
sacramento  n'uma  charola  de  vidraças,  por  amor  das  chuvas,  e  outras 
tripei radas  d'este  calibre!  Tudo  isto  é  metter  á  bulha  n'este  século  das 
luzes  a  simplicidade  dos  nossos  maiores.  Trata-se  de  Jesuítas,  vem  logo 
n'este  ultimo  volume  das  chamadas  Dissertações  chronologicas  uma  sen- 
tença do  Procurador  da  coroa  Thomé  Pinheiro  da  Veiga,  porque  estes 
queriam  que  na  pessoa  do  procurador  da  índia  fosse  citado  o  provin- 
cial do  Japão.  Trata-se  da  boticária  de  Lamego,  que  quiz  adoptar  por 
filho  um  rapaz  para  ser  seu  herdeiro,  vem  logo  uma  tirada  contra  o 
Juízo  ecclesíastico.  Eis  aqui  as  Dissertações  chronologicas  do  Almocreve 
e  o  orgulho,  com  que  a  si  mesmo  se  cita  e  allega.  Isto  e  tudo  o  mais 
que  elle  escreveu,  que  é  ínutilissimo,  será  em  grosso  bem  espíolhado, 
não  com  a  applicação  das  regras  da  arte  diplomática  com  que  elle  nos 
cança  e  nos  aturde,  mas  com  o  fel  da  sátira,  e  perspicácia  do  diabo. 


JL  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  129 

e  ao  diabo  dará  elle  a  cardada  de  se  metter  com  o  clérigo  mijão,  go- 
toso e  septuagenário.  Deixemos  esta  primeira  jornada  com  o  almocreve 
de  terra,  vamos  ao  piloto  ou  contramestre  do  mar. —  Quis  te  Palinure 
Deorum  —  diz  Virgilio,  e  digo  eu:  Vem  cá,  Palinuro  do  inferno  nebu- 
loso, que  demónio  te  raelteu  na  cabeça  desafiar  os  intervallos  das  mi- 
nhas dores  e  das  minhas  viagens  ao  ourinor?Teu  camarada  oChaveco 
atacou  com  Ímpios  epigraramas  a  Senhora  da  Rocha;  n'esse  numero 
fui  eu  bem  convidado,  com  espanto  de  alguns  bem  conhecidos  como  o 
Saraivinha,  o  amnistieiro;  não  respondi,  porque  nunca  vi  um  aggre- 
gado  de  maiores  e  mais  vergonhosos  disparates;  conheci  claramente 
que  tudo  aquillo  era  fome,  n'aquelíes  esfaimados  gosos,  que  de  tão 
longe  ladram,  e  dão  bem  a  conhecer  de  que  espirito  sejam.  V.  S.*  se 
dignou  defender-me  e  bem  visto  ficava  que  com  tal  patrono  eu  não  fi- 
caria criminoso.  Não  podem  taes  burros  deixar  de  doer-se  das  mata- 
duras,  e  o  poema  que  os  immortalisa  devia  ser  impresso  era  Londres, 
para  que  elles  primeiro  o  vissem  e  se  regalassem.  Deixemos  os  tolos, 
que  não  ha  quem  os  possa  soffrer,  ainda  que  para  onde  quer  que 
aproemos  o  seu  numero  é  infinito.  Dou  os  parabéns  a  V.  S.*  e  á  nossa 
historia  litteraria  pelo  achado  no  Cartório  dos  fragmentos  d'esse  homem 
de  cérebro  grande  (pois  se  acharem  o  duplo  no  craneo  do  jesuíta  Dio- 
nysio  Petavio,  n'este  capucho  de  Botão  podiam  achar  o  quádruplo). 
Como  é  manuscripto  e  tem  as  addições  de  um  seu  discípulo,  tomara 
saber  se  são  diversos  os  caracteres  da  letlra,  para  se  ajuizar  sem  soc- 
coros  do  almocreve,  se  era  a  lettra  do  homem  prodigioso,  que  diz  an- 
dara de  gatinhas  sobre  os  pleclros,  e  as  lyras  pelas  margens  do  Mon- 
dego, e  já  n'aquella  tenra  infância  era  arrastado  e  impellido  para  os 
versos  e  não  por  escolha  ou  arbítrio  da  sua  edade,  e  que  aos  onze  au- 
nos  já  repetia  de  cor  todo  o  Virgílio;  repito  em  latim  as  suas  ultimas 
palavras:  —  Et  undécimo  cetatis  anno  Virgilium  omnem  palam  memori- 
ter  recitabam. — Que  me  diz  V.  S.*  á  creança?  Que  mal  empregados 
miolos  na  frivolidade  que  se  encontra  nos  setenta  volumes  de  que  se 
chama  pae? — Septuagenta  voluminum  pater,  et  aliorum  plurimorum 
libroriim,  maiorum,  minorum,manuscriptorum~  como  acaba  o  seu  elo- 
gio o  Abbade  Rancatí,  italiano  de  Pádua!  N'esta  biblíotheca  de  burel 
só  acho  cousa  que  deveras  me  pasma,  que  é  um  Elogio  em  latim  ao 
Bispo  de  Lamego  D.  Luiz  de  Sousa,  embaixador  a  Fernando  VII,  im- 
presso em  Roma  e  digno  de  se  constituir  entre  o  de  Plinio  a  Trajano, 
e  o  de  Pacato  a  Theodosiol  Os  gordos  volumes  da  conciliação  da  dou- 
trina de  Scotto  e  de  Santo  Agostinho  fizeram  perder  um  tempo,  que 
serviria  para  escrever  a  historia  do  reino  de  Portugal  até  D.  João  IV, 

CARTAS.  9 


430  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

e  se  a  quizesse  escrever  em  lalim,  para  as  cousas  da  índia  não  neces- 
sitariamos  de  Angelo  Policiano,  nem  que  este  se  desculpasse  a  el-rei 
D.  João  II  na  mais  bella  caria  que  ainda  se  escreveu ;  nem  do  jesuita 
de  Bergamo  João  Pedro,  sem  ser  Ribeiro,  mas  MnfTei,  convidado  por 
el-rei  D.  João  III.  Emfim  o  capucho  foi  o  maior  talento  perdifio  que 
tem  apparecido  no  mundo;  mas  eu,  a  quem  não  são  conhecidos  Otto, 
Galba  e  Vitelio  nem  por  injurias,  nem  por  benefícios,  digo  que  o  fra- 
dinho de  Botão  era  espadachim.  Quando  o  frade  cardeal  Noris,  de  vas- 
tíssima erudição,  imprimiu  era  Roma  a  sua  Historia  Pelagiana,  e  os 
magníficos  factos  ou  eras  dos  Cyros  e  Macedonios,  com  os  documen- 
tos das  medalhas  d'aquelles  reinados  dos  successores  de  Alexandre, 
veiu  o  filhote  coimbrão  metter  atrevidamente  os  seus  dois  oiros  no  jogo, 
o  fradalhão  Noris  se  estimulou,  porque  o  fradete  de  Botão  tinha  mui- 
tas idéas,  mas.  tumultuosas,  e  sem  aquella  ordem  symmetrica  em  que 
consiste  o  saber;  deu-lhe  pelas  ventas  com  o  livro  que  se  deve  ler — 
Macedonius  Mille  armatus  Plaiilino  sale  pi^rfrictus.—l&lo  obrigou  o  Fr. 
Ricardo  da  Normandia  a  escrever  um  cartel  de  desafio,  para  que  am- 
bos corpo  a  corpo  fossem  combater,  argumentar  ou  esfaquear-se  em 
Bolonha,  como  dois  rapazes  de  escola  argumentando  em  taboada  em 
um  sabbado  de  tarde;  rematou  o  cartel — Em  Bononice — O  frade  No- 
ris se  riu,  e  o  capucho  morreu,  sabendo  e  fallando  vinte  e  duas  lín- 
guas. Eu  também  não  devia  dar  tanto  á  minha  sobre  estes  contos  pas- 
sados, que  por  serem  de  letti;fis  fariam  dormir  um  liberal,  ainda  que 
elle  absorvido  estivesse  na  contemplação  e  na  divisão  dos  quatro  po- 
deres; que  são  a  par  d'elles  as  épocas  dos  livros  Macedonicos  ?  Sendo 
quatro,  o  rei  fica  sem  nenhum.  Veja  o  Noris  e  veja  o  capucho  se  achara 
isto  na  historia  portugueza.  Venha  pois  o  escripto,  e  venha  a  traduc- 
ção,  depois  faremos  alguma  cousa  mais  sobre  outro  prodígio  portuguez, 
chamado  o  hellenista  Achilles  Estacio.  Quando  o  capucho  esteve  em 
Roma,  alli  existia  também  um  escossez  charaado  João  Barclay,  que 
escreveu  era  latim  ura  livro,  a  que  o  cardeal  de  Richelieu  chamava  o 
seu  breviário,  e  o  profundíssimo  philosopho  Leibnitz  o  trazia  sempre 
na  algibeira,  e  com  elle  descançava  na  contemplação  de  suas  abstra- 
ctas idéas;  chamava-se  o  livro — Argenis  e  Poliarcho. — Ora  já  que  V. 
S.*  é  tão  amigo,  e  deve  ser,  d'El-rei  nosso  senhor,  deixe  ao  menos  um 
mez  de  tratar  da  fundação  de  ura  mosteiro,  e  traduza  em  portuguez 
este  livro,  que  eu  salvaria  só  do  naufrágio  ou  do  incêndio  de  todos  el- 
les;  e  pelo  maior  serviço  que  possa  fazer  a  El-rei  nosso  senhor,  dedi- 
que-lhe  este  livro;  e  do  que  n'elle  são  versos  eu  me  encarrego.  El-rei 
D.  João  IV  mandou  a  António  de  Sousa  de  Macedo,  que  compozesse 


A  FREI  FORTUNATO  DE  S.  BOAVENTURA  431 

uma  Politica  para  o  principe  D.  Theodosio,  o  que  elle  fez,  mas  podia-a 
guardar.  Féaelon  compoz  o  Telemaco  para  o  Delphim;  mas  o  Telemaco 
é  copia,  e  tem  original;  a  Argenis  não  o  tem,  e  diz  o  auclor,  fallando 
do  livro  e  Luiz  XIII  a  quem  o  dedica: — Nec  in  latine,  ante  viso. — D. 
Miguel  I  terá  uma  guia  de  reinantes;  faça  V.  S.*  isto,  e  servirá  deve- 
ras a  El-rei.  Ha  uma  traducção  em  hespanhol,  e  duas  em  francez,  mas 
todas  três  detestáveis  e  desgraçadas.  E  porque  o  não  tenho  eu  feito? 
Porque  eu  sempre  ou  gritasse  nas  egrejas  ou  escrevesse  em  casa,  gri- 
tei e  escrevi  sempre  para  comer;  e  fora  isto,  em  tão  longos  annos  de 
gritarias  e  de  escriptos,  não  Unhamos  um  principe,  que  pela  leitura  o 
aprendesse  a  ser.  Olhe  que  o  livro,  sendo  de  dois  dias,  o  ha  impresso 
em  Hollanda,  cum  notis  varionim. — Hoc  fac,  et  vives. — Mas  não  se  des- 
cuide de  proseguir  na  Contramina;  dê-lhe  fogo  e  faça  ir  pelos  ares 
tantos  patifes  d'áquem  e  d'além  mar,  e  dará  n'isto  o  maior  prazer  e, 
a  maior  gloria  ao 

Seu  amigo 
Pedrouços,  26  de  Dezembro  de  1830. 

/.  A.  de  M, 


A  FR.  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO 
Superior  no  CoUegio  da  Graça  em]  Coimbra 


Amigo 

Respondi  logo  á  sua  primeira  carta,  e  como  me  dizia  que  de  Gas- 
tello  de  Vide  se  transferia  a  Portalegre,  dirigi  a  reposta  a  Portalegre; 
Tejo  que  se  desencaminhou;  recebo  a  sua  segundí  carta  que  eu  es- 
perava com  alvoroço,  porque  na  verdade  eu  sou  muito  do  coração  seu 
amigo.  Eslimo  que  lenha  passado  bem,  pelo  que  pertence  ao  physico. 
O  clima,  as  perdizes,  a  apathia  lhe  poderão  grangear  a  corpulência 
de  Vitelio;  sei  que  o  moral,  ou  isto  que  se  designa  por  este  nome, 
ha  de  ter  padecido;  a  etiqueta  prioral,  a  theologia,  os  cânones  epis- 
copaes,  o  chá  mesurado  e  compassado,  tudo  isso  amofina,  e  caga  na 
paciência  a  uma  alma  costumada  á  sucia  grossa  e  mofina,  que  a  Pro- 
videncia aqui  depara  em  tantos  brejeiros,  de  que  eu  sou  o  mínimo  col- 
lega;  almas  grandes,  que  em  pacificas  orgias  sabem  encontrar  a  bem- 
aventurança.  Gompadeço-me  d'este  seu  estado  tão  gene.  (Vivam  os  Ma- 
nes de  Manuel  Bernardo,  que  nos  enriqueceu  a  lingua).  Porem,  amigo, 
viva  e  supporte  esses  Getas,  chamemos-lhe  antes  Palestinos,  que  elles 
não  se  injuriam;  absorva  a  elipse  prioral,  e  venha,  que  eu  o  credito 
dos  meus  infinitos  conhecidos,  com  deligencia,  e  o  fatal  feijão  capitu- 
lar, se  conseguirá  a  entrada  na  fortaleza  da  Penha  de  França,  que  é 
o  elyseo  da  Augustiniana  (que  alluvião  de  p. . .  verei  eu  lá  amanhã,  dia 
do  glorioso  S.  Matheus,  o  genealógico!  Sim,  meu  amigo,  vivam  as 
p...,  que  hão  de  ir  á  feira,  e  a  sua  rainha,  a  discreta  Domingas!) 
Engorde  e  volte,  e  vá  dispondo  ao  menos  com  pano  de  linho  os  apro- 
ches  á  Penha,  e  diga-se  adeus  ás  doctissimas  cadeiras;  venha  antes 
regentar  os  quatro  donatos  a  corso  de  cobre,  e  será  feliz. 

Eu  tenho  passado  bem;  conhece  o  repouso  do  meu  espirito — si 


134  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

fracfus  illahatur  orbis  etc,  —  a  palavra  voga,  rende,  e  não  pára.  As  let- 
tras  sumiram-se,  exlinguiram-se,  anniquilaram-se.  O  astro  Moniz  ecli- 
pscu-se,  cousa  fatal,  desappareceu  esta  nebulosa  estrella,  que  lhe  não 
ponho  a  vista  em  cinia  ha  oito  mezes;  ainda  não  parou  a  desintheria 
que  inquieta  as  cinzas  do  extincto  vatalhão  Bocage,  que  mania!  Viu  já  a 
luz  a  grande  estampa  de  Bartholozzi,  acceitou  a  dedica  António  de  Araú- 
jo, vende-se  a  800  réis,  e  gasta-se.  Está  impresso  na  Regia  o  primeiro 
Tolume  da  traducção  de  Horácio,  em  máo  papel,  género  caríssimo;  eu 
o  remelterei,  porque  ainda  não  está  encadernado;  se  se  gastar,  irá  o 
segundo.  No  dia  em  que  recebi  a  sua  primeira  carta  vieram  a  emen- 
dar as  primeiras  provas.  Tenho  sentido  a  sua  falta  para  o  poema  da 
Natureza;  não  canso  de  o  polir;  mas  quem  o  trasladará?  —  Eu  não. 
Ánles  escondfrme  inglório  no  cemitério  que  me  espera.  Venha  a  Lis- 
boa, 6  dará  um  passo  a  Natureza,  ou  a  Creação,  como  quiz  o  Tribu- 
nal. Os  nossos  amigos  vivem;  mas  d'elles  o  chronicão  despede-se  para 
a  eternidade.  Foi  atacado  de  um  tenesmo,  os  médicos  o  reduziram  ao 
estado  de  um  cadáver;  foi  ás  Caldas,  e  existe  moribundo  em  Odivellas, 
onde  eu  só  o  tenho  ido  visitar  muito  de  propósito.  É  bom,  e  sympa- 
thisava;  temo  muito  pela  sua  vida,  e  me  dá  summa  pena  o  longo  pa- 
decimento d'este  infeliz.  Aquelles  hombros  de  alheleta  desapparece- 
ram;  do  Botelho  resta  a  macilenta  pelle;  e  de  Botelho  não  ha  mais 
que  o  desleixo,  o  descuido,  a  indifferença,  a  ingenuidade,  e  as  namo- 
radas canções.  O  Magalhães,  e  o  Pedro  são  inseparáveis  de  mim;  to- 
dos os  dias  nos  vemos,  ajuntamos, "conferimos.  O  Magalhães  é  moço 
de  bom  juizo,  boas  qualidades,  viu  já  a  luz,  e  vive  commigo.  Quem  dis- 
sera que  ainda  hcntem  á  noite,  19  de  Septembro,  em  a  nova  e  luxu- 
riosa loge  de  José  Pedro,  o  Pedro  ateimou  sobre^«i  ténue  fenda,  que 
tae  dar  com  ellel*  Pois  teimou,  meu  amigo,  e  dura  o  prurito  de  não 
mudar  o  verso.  Que  objecto  tão  prodigiosamente  frívolo!  Emfim,  eu 
os  deixei  ás  nove  horas,  elles  foram  f. . .,  e  eu  também.  Tomámos  or- 
chata,  e  Pedro  foi  propagar  o  reverendo  esquentamiento  com  que  lucta 
ha  três  mezes.  O  Magalhães  mais  seguro,  tem  ambas  as  divisões  da 
Brigada  dentro  na  barriga.  Este  Quixote  das  p. . .  foi  corrido  á  pedra 
uma  d'estas  noites  desde  o  theatro  de  S.  Carlos  até  á  rua  do  Ouro, 
6  merecia-o,  porque  pagou  com  meio  tostão,  o  que  lhe  tiraram  do  corpo 
com  pedradas;  cura-se  das  contusões,  e  ri-se. 

Novidades  externas  Bella,  hórrida  bella.  A  este  porto  chegou  o 
grande  almirante  Jervis,  com  seis  formidáveis  náos,  e  cruzam  mais 
vinte  e  quatro  defronte  da  barra;  o  motivo  ignora-se  no  publico;  os 
m  eus  amigos  de  corte  me  dizem  que  se  previne  uma  invasão  de  certa 


A  FREI  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO  135 

Potencia  com  estas  formidáveis  forças;  eu,  e  os  amigos  acima  temos 
ido  a  bordo  da  náo  Hibernia,  onde  está  o  redutavel  Jervis,  tem  cento 
e  trinta  e  seis  peças,  é  uma  cidade  flucluante;  os  soberbos  inglezes 
nos  recebem  muito  bem;  corre  o  vinho  em  ondas;  as  p...  temem  as 
náos  os  Goiazes.  Giram  os  guineos,  que  mettera  em  um  chinelo  os 
nossos  magros  e  engoiados  pintos.  P...  de  alto  bordo  falia  em  uma 
peça  apenas  abre  a  porta,  e  afugenta  o  denodado  Pedro,  que  f . . . 
em  pleno  Rocio  apenas  anoulece.  Emíim,  o  meu  amigo  lembra-me 
mil  vezes,  quando  vamos  ás  náos.  Jervis  tomou  casas,  vae  ao  thea- 
tro,  e  até  ás  grandes  festas  de  egreja,  onde  eu  fallo.  Assim  se  volve 
o  tempo,  entre  delicias  e  zangas.  Vive-se  em  Lisboa,  e  creio  que  só 
em  Lisboa;  entre  esses  sarmatas  não  tem  a  existência  mais  que  a  du- 
ração. Escreva-me,  meu  amigo,  mas  seja  na  oração  ligada,  que  eu  lhe 
tornarei  na  mesma  moeda ;  aproveite  as  longas  noites  do  inverno,  que 
se  apressa,  e  venham  em  bons  versos  as  bellas  Cartas  do  Ponto.  F... 
quanto  quizer  e  poder,  mas  faça  versos;  virá  um  tempo  em  que  o 
gosto  desperte.  Eu  trago  em  vista  uma  pequena  Arcádia,  onde  poucos 
opponham  uma  barreira  ao  veneno  das  Bocagiadas  e  Nissenadas,  que 
infestam  o  Tejo  e  o  Mondego.  Veja  se  atrahe  o  não  sabido  Costa,  moço 
de  génio,  e  se  acorda  outros. 

A  sua  Ode  está  na  gaveta;  as  coisas  não  estão  para  lisonjear  o 
Cão  grande  ác*  Vae  o  Epicedio.  Vença  a  preguiça,  e  d'esse  hyperboreo 
castello  venham  versos,  pois  os  estima,  e  mais  a  sua  pessoa  e  me- 
moria 

Seu  amigo  deveras 

Lisboa  20  de  Septembro  de  1806. 

/.• 

II 

Amigo 

Acontecimentos  tristes,  a  quem  todo  o  estoicismo  em  pezo  não 
resistiria,  me  tem  conservado  em  silencio  para  tudo:  veja  se  elles  são 
de  calibre  —  ultra  philosophiam:  morreu  de  parto  a  espirituosa  Do- 
mingas, rainha  das  p.  • .,  dos  motejos,  e  das  agudezas;  a  14  de  De- 
zembro fui  roubado  em  casa,  ficando  com  a  única  camisa  que  tinha  no 
espinhaço,  sem  roupa,  sem  trastes,  sem  cama,  e  sem  dinheiro;  digo, 
sem  cama,  porque  até  os  cobertores  levaram.  Só  não  arrombaram  uma 
carteira,  porque  o  baflo  de  versos  alli  alapardados  afugentava  ladrões; 
com  os  versos  escapou  o  Breve  da  secularisação,  a  carta  de  ordens, 


136  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

e  O  diploma  regio,  trastes  taes,  que  nem  os  ladrões  os  quizeram!  A 
4  d'este  morreu  o  Botelho  em  Odivellas,  e  no  mesmo  dia  o  sepulta- 
ram na  egreja  das  Freiras;  teimou  a  ir  moribundo  para  Odivellas  con- 
tra os  conselhos  e  supplicas  de  um  amigo  como  eu. 

Insere  nunc  Melibeae  piros,  pone  ordine  vites  f 

Amigo,  eu  só  me  ri  hontera  á  noite,  porque  parecia  mal  não  me 
rir  com  o  mundo  inteiro  apinhado  na  terrivel  e  redutavel  plaléa  da 
Rua  dos  Condes,  com  a  representação  de  uma  tragedia  do  Moniz,  no 
beneficio  do  Victorino ;  ainda  nas  esquinas  jaz  o  cartaz,  qne  a  annun- 
cia,  e  diz  em  lettra  vermelha  e  garrafal: 


A  Alcaideça  de  Castello  de  Vide 

Tr-ag-ediâ, 

Por  um  bem  conhecido  engenho  da  Capital 
que  já  o  anno  passado  'se  fez  vér  com  a  tragedia  denominada 


A  pateada  foi  mais  estrondosa  que  as  catadupas  do  Nilo;  á  mi- 
nha parte  quebrei  um  páo,  e  um  banco;  achava-me  em  um  camarote 
com  uma  corja  de  desavergonhados  taes  como  eu,  que  na  catastrophe 
levantaram  tamanha  grita,  que  nem  a  de  —  Senhor  Deus,  mesericordia ! 
—  nos  naufrágios  de  Fernão  Mendes;  era  para  isto  a  tal  catastrophe- 
sinha.  Era  uma  moura  namorada  de  um  mouro,  sem  saber  que  era 
seu  irmão;  no  fim  apparece  um  mouro  velho  do  feitio  de  Fr.  Octavia- 
no, reitor  do  Colleginho  e  n'elle  regente  dos  Estudos,  que  disse: 

Mouro  velho  :  «Vós  ambos  sois  irmãos  do  mesmo  ventre . . . 

Mouro  moço:*  «Pois  tu  és  minha  irmã?  Éu  morro,  eu  morro, 
Aprende  n'esta  triste  punhalada. . . 

(mata-sej. 

MouaA  moça:  «Este  era  meu  irmão?  Levae-me,  oh  Fúrias  1 
Com  o  mesmo  punhal  dou  de  mim  cabo. 

(mata-seJ. 


A  FREI  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO  137 

Ora  que  queria  V.  Reverencia  que  nós  fizéssemos?  O  que  fez  o 
povo,  começando  a  grita,  a  assobiada  da  baixa  platéa.  A  agnação  é  a  fra- 
ternidade uterina;  a  fraternidade  é  sem  mais  nem  mais  a  causa  da 
morte  t  Cada  acto  levou  uma  pateada,  e  aindíi  não  linha  acabado  o  pri- 
meiro, ja  Moniz  se  havia  sumido.  E  no  fim  d'isto  vem  um  endiabrado 
entremez  de  José  Daniel,  intitulado  —  O  Taful  desmascarado.  Chorou 
todo  o  fôlego  vivo,  e  acabou  com  maior  pateada,  porque  o  não  deixa- 
ram acabar.  Ora  aqui  tem  o  motivo  do  meu  silencio,  do  meu  pranto, 
6  do  meu  riso. 

Dê-me  novas  suas.  Continue  na  cultura  das  lettras,  não  deixe 
esmorecer  o  bello  fogo  da  Poesia,  que  o  anima,  e  que  no  meu  con- 
ceito o  destingue  de  toda  a  irmandade  do  Parnaso,  ora  existente  na 
egreja  de  Deus.  Venha  para  Lisboa,  aqui  vive-se,  e  fora  d'aqui  dura- 
se.  Ja  corre  o  Venusino;  eu  mandarei  por  almocreve  alguns  exem- 
plares. 

Recommenda-se  o  bom  e  atilado  Magalhães;  eu  sou  muito  seu 
amigo,  e  elle  merece  que  todos  o  sejam.  Creia  que  até  hontem  á  noite 
6  de  Fevereiro,  teimava  Pedro  o  podre,  com  o  maldicto  verso:  A  ténue 
fenda  que  vae  dar  com  elle. 

Completamente  endoideceu.  Cuide  nas  Cartas  de  Ovidio,  e  veja  se 
traz  comsigo  as  poesias  melancólicas  traduzidas;  aproveite  o  tempo,  e 
já  que  não  podemos  fazer  cousas  que  os  mais  escrevam,  façamos  cou- 
sas que  os  mais  lêam.  Viva  certo  que  o  seu  maior  amigo  é 

Jozé  Agostinho. 
Lisboa,  7  de  Fevereiro 

de  1807. 


III 

Amigo 

Recebi  a  sua  carta  por  mão  do  honrado  pygmêo,  e  com  a  carta 
os  preciosos  queijos,  de  que  eu,  e  o  que  me  pertence,  temos  gostado 
como  elles  merecem.  Approvo-lhe,  e  justifico-lhe  o  sentimento  pela 
morte  prematura  do  Botelho;  Nulli  flebilius  quam  mihi.  Seriamente 
me  perturbei,  e  se  apoderou  de  mim  uma  profunda  melancholia,  que 
tarde  se  dissipará.  Elle,  é  verdade,  apressou  os  fados,  como  se  estes 
fossem  tardos,  entregando-se  indiscretamente  na  mão  de  assassinos, 
ou  deputados  da  junta  da  morte,  que  taes  são  os  médicos,  e  um  d'el- 


438  CAHTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

les  O  propinador  da  terrível  agua  de  cal,  talvez  fosse  seu  rival  em  amor. 
Emíim,  lá  jaz  mesmo  em  Odivellas,  e  os  olhos  da  querida  todos  os  dias 
se  fitam,  talvez  com  indifferença,  na  raza  campa  do  infeliz  Botelho. 
Eu  vou  existindo,  cheio  de  fadigas  quaresraaes,  que  se  me  amontoa- 
ram mais  que  nunca,  e  assim  é  preciso,  para  ressarcir  o  immenso  roubo 
que  me  fizeram.  Não  posso  approvar  a  sua  indolência,  porque  serve 
de  damno  á  republica  dos  versos,  e  nenhuma  situação  deve  paralisar 
as  faculdades  intellectuaes,  nem  embolar  os  talentos,  e  á  prosperidade 
da  vegetação  também  pende  da  cultura  das  terras.  Os  gelos  da  Scy- 
thia  não  entorpeceram,  antes  emquanto  a  mim  deram  mais  solido  e 
temperado  vigor  ao  prodigioso  engenho  de  Ovidio.  Não  deixe  as  bel- 
las  Cartas  d'este  homem,  e  se  entre  talentos  ha  analogia,  eu  descubro 
muita  semelhança  entre  o  seu  e  o  do  desterrado  romano. 

A  sua  pretenção  foi  logo  o  primeiro  objecto  da  minha  lembrança, 
e  da  minha  deligencia,  mas  uma  e  outra  baldadas,  porque  quasi  no 
mesmo  dia  foi  provido  um  Arrabido;  mas  nem  por  isso  deixará  V.  M.*^* 
de  ser  pregador  rcgio,  porque  eu  sei  ser  amigo  verdadeiro,  e  quando 
trato  de  obsequiar  o  talento,  nenhum  sacrificio  me  parece  grande.  Te- 
nho destinado  ceder  eu  do  meu  logar,  para  V.  M.*^®  entrar,  e  já  pro- 
puz  isto  ao  Rebello,  mostrando-lhe  que  nenhum  interesse  ou  depen- 
dência me  obrigava  mais  do  que  a  pura  amisade. 

De  nada  me  serve  o  logar,  as  vantagens  são  unicamente  para  os 
Regulares;  tu  não  fico  nem  menos  buscado,  nem  menos  ouvido;  emfim, 
nada  me  importa  ser  pregador  régio,  trabalho  unicamente  para  me  não 
accêitarem  em  má  parte  a  livre  demissão,  que  eu  quero  só  se  verifi- 
que com  a  sua  entrada.  Deixe  vir  o  Rebello  de  Mafra,  que  se  ultimará 
sem  duvida  este  negocio,  porque  alguém  offereceu  contos  de  réis;  eu 
estimo  muito  poder  dar-lhe  esta  prova  de  pura  amisade,  em  que  só 
busco  o  interesse  da  sua  companhia  n'esla  terra.  Virá  para  a  Penha 
de  França,  e  não  queira  outro  convento,  e  alli  nos  daremos  em  ócio  á 
indagação  da  verdade,  e  á  contemplação  d'este  admirável  quadro  da 
Natureza,  e  insigne  espectáculo  dos  seus  prodígios,  em  que  eu  encon- 
tro mais  prazer  que  na  posse  de  todas  as  delicias.  E  V.  M.*^'  renun- 
ciará a  tudo  o  mais,  e  até  á  importuna  magistratura,  cujos  privilegies 
ficam  inúteis. 

Não  remetti  o  Horácio  pelo  almocreve,  porque  o  livreiro  m'o  não 
deu  a  tempo  enquadernado;  irá  na  primeira  occasião,  e  talvez  que  todo 
porque  está  a  sahir  do  prelo  o  segundo  volume.  Tenho  adiantado  muito 
uma  obra,  cujo  titulo  é — Republica  litteraria — Sonho  philosophico, — 
convém  a  saber,  um  giro  extático  pela  Republica  das  lettras,  em  que 


A  FREI  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO  139 

á  excepção  da  sagrada  theologia,  em  qne  se  não  falia,  todas  as  scien- 
cias,  artes  e  seus  cultores  são  mettidos  á  bulha  com  uma  erudição  im- 
mensa  e  uma  chalaça  contínua;  nada  escapa,  meu  amigo,  e  hoje  acabo 
com  os  Philosophos,  cujos  systemas  vão  analysados,  e  o  ultimo  é  o  ce- 
lebre Kant.  O  Magalhães  vem  todos  os  dias  ler  o  que  se  vae  fazendo. 
O  Pedro  (proh  dolorl)  completamente  doido  ha  mais  de  dois  mezes, 
arredio,  fugitivo,  e  embrenhado  no  Passeio  publico,  ha  quinze  dias,  sem 
querer  ouvir  os  amigos,  por  amor  d'este  ulillissimo  mote: 

«Tu  me  fazes  a  alma  em  mil  pedaços^ 

que  diz  ser  de  uma  endiabrada  mulher  ou  solemne  p.. .,  conhecidas 
do  Pedro  I 

Novidades:  Ha  dias  chegou  ao  Tejo  uma  fragata  ingleza  emban- 
deirada e  a  tripulação  bêbeda,  segundo  o  costume  britannico,  com  a  no- 
ticia da  completa  derrota  de  Napoleão.  Foi  batido  vinte  e  cinco  léguas 
além  de  Varsóvia.  O  exercito  russiano  é  commandado  por  um  sobri- 
nho de  Sowarou,  que  eslava  nas  fronteiras  da  Pérsia;  traz  comsigo 
tártaros,  calmucos  e  cossacos,  ^í'w/é'5  opostratias.  Depois  da  fragata  che- 
garam dois  paquetes  com  o  detalhe  da  acção,  nada  resta  dos  invencí- 
veis e  fugiu  Napoleão  com  dois  ajudantes  de  ordens  e  já  não  pára  em 
Varsóvia,  e  commandava  Napoleão  em  pessoa;  foi  a  batalha  a  26  de 
Dezembro  e  tem  continuado  muitas  victorias,  mas  não  constam  ofiScial- 
mente.  Os  russos  estão  a  esta  hora  em  Constantinopla  com  outro  exer- 
cito, e  faz  horrível  fogo  á  cidade  o  almirante  Luiz,  moço  de  vinte  e  qua- 
tro annos  com  vinte  e  cinco  náos  de  linha,  e  eis  aqni  os  russos  abar- 
cando a  Europa  por  dois  lados,  e  veriGcando-se  a  prophecia  de  João 
Jacques  no  Contracto  social:  —  Os  russos  serão  os  senhores  da  Europa. 
Defronte  da  boca  do  Tejo  está  outra  esquadra  ingleza  de  doze  náos  e 
fragatas;  defronte  de  Cadiz  outra  de  trinta  e  duas  náos.  Mas  seja  V. 
M."  pregador  régio,  e  emquanto  os  russos  derramam  sangue,  vivamos 
tranquillos  e  felizes.  Veja  se  lhe  serve  de  alguma  cousa  em  Lisboa  o 
seu  amigo 

José  Agostinho  de  Macedo. 

Lisboa,  7  de  Março 

de  1807. 


140  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

IV 

Epistola 

Bifam-se  as  cartas  todas  no  correio; 

Três  me  escreveste,  respondi-lhe  logo, 

Agradecendo  orbiculares  qufiijos, 

D'essa  charneca  producções  suaves. 

Pasto  mimoso  de  gulosas  boccas 

Que,  por  decretos  do  vendado  enchalmo, 

Sempre  em  roda  de  mim  se  abrem  de  palmo. 

Vê  que  versos  tão  chochos  vío  sahindo 

Da  apoquentada  cachimonia  minha! 

Envolto,  bom  amigo,  ando  em  sombrios 

Véos  de  tristeza,  que  me  pousam  n'alma. 

Eclipsou-se  de  todo  a  lusa  gloria ; 

Em  logar  de  saber,  honra  e  virtude 

Veiu  ignorância  vil,  perfídia,  engano, 

Kapina  universal,  que  tudo  assola. 

Tudo  mudado  está!  Quasi  da  vida 

O  triste  Magalhães  vae  despedir-se, 

Hoje  luctava  co'a  patifa  morte; 

Gavallos,  mulas,  parolins  á  sota 

Coraeram-lhe  a  substancia;  hoje  dois  negros 

Enlabuzados  sórdidos  Camillos, 

Chamados  por  decência,  e  por  costume, 

Grandes  sandices  lhe  arrumavam  graves; 

Pesado  hyssope  de  latão  (que  os  outros 

Sem  ser  nas  mãos  de  Ovidio,  se  mudaram 

Em  novas  formas,  differentes  corpos) 

Lançando  um  chorro  d'agua  afugentava 

Tentador  Satanaz,  brejeiro  antigo; 

Eu  quasi  o  vi  sahir  pela  janella 

De  ilharga,  porque  os  cornos  lhe  vedavam, 

Immensos,  retorcidos,  ponte-agudos, 

Quaes  se  ergueram  na  frente  a  Jove  Ammonio, 

Ou  quaes  puUulam  na  raiz  do  pello 


A  FREI  FRANCISCO  FREIRE  LE  CARVALHO  141 

Aos  que  moTendo  a  conjugai  carroça 

Na  fatal  esparrella  se  despenham 

De  ser  amigos  meus,  e  amigos  nossos! 

Eia,  pois,  Magalhães  vae  a  finar-se, 

Lá  vae  para  o  paiz  onde  se  sabe 

Como  se  dá  do  circulo  quadrado, 

E  outras  asneiras  mais,  que  cá  se  ignoram. 

Pedro  o  teimoso,  Pedro  o  cabeçudo. 
De  todo  endoideceu,  fez-se  vinagre; 
Com  que  frescura  clama  que  os  amigos 
Pés  de  boi,  portuguezes  de  outras  eras, 
Inda  que  vates  sejam  quaes  Filinto, 
E  Elmiro,  preso  á  banca  e  dado  a  versos. 
Devem  varrer-se  da  memoria  todos, 
E  banir-se  da  sucia,  e  da  amisade, 
Quando  elle  Pedro  a  dita  conseguira 
De  um  alferes  francez  morar-lhe  em  casa! 
Isto  diz,  isto  clama,  a  todos  foge. 
Não  por  vergonha,  por  soberba  e  insânia! 
Ora  c. . .  no  Pedro,  e  mais  nos  versos 
Magros  de  lima,  magros  de  trabalho, 
Que  chamados  a  exame  em  zero  ficam; 

Com  anciã  te  esperava,  oh  caro  amigo. 
Entre  os  padres  conscriptos  dos  comícios. 
Gérmen  de  sedições,  de  enredos  fonte, 
Em  que  se  acclama  o  dictador  dos  filhos 
Do  eterno  fallador,  águia  da  Lybia; 
Mas  decreto  fatal  suspende  os  passos 
Aos  tribunos  do  povo  tonsurado, 
E  redobra  a  alta  magoa  que  me  opprime. 
Na  longa,  triennal,  tyranna  ausência 
Do  vate  que  mais  preso  e  mais  estimo 
Eu  vivo,  caro  amigo,  pois  não  morre 
A  innumeravel  turba  dos  carolas, 
Encanzinados  em  louvar  os  santos. 
Que  lá  na  gloria  repimpados  jazem, 
Zangados,  como  eu  creio,  da  assuada 
Que  lhe  fazem  de  cá  roucas  rebecas, 
E  as  mentiras  que  eu  prego,  e  mais  os  outros, 
Que  a  pasmada  plebecula  suspendem. 


142  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Com  frias  Orações,  Discursos  occos. 
De  vinténs  basculhados  inda  ateimam. . . 

Não  queiras,  caro  amigo,  que  entre  n'esse 
Labyrintho  politico  do  tempo; 
Mate-me  embora  Deus,  mas  nunca  as  balas 
Que  satis  façon  no  corpo  se  aquartelam 
Por  dá  cá  aquella  palha;  eu  só  te  peço 
Que  antes  leias  a  Bíblia,  que  as  Gazetas. 
Os  filhos  de  Albion  soberba  e  rica, 
Co'o  cachimbo  na  bocca,  o  c. . .  na  pipa 
Jazem  na  foz  do  Tejo  amedrontado 
Em  mais  de  cem  ignivomas  montanhas; 
Tem  nas  mãos  o  murrão,  e  em  nós  a  mira. 
Míseras  p . . . ,  míseros  f . . . , 
Tristes  gatos  pingados,  quaes  tu  viste, 
E  a  quem  talvez  berrando  a  pansa  encheste, 
Se  três  diabos,  émulos  de  Nelson, 
Gramber,  Cotton  e  Cotter,  e  o  primeiro 
D'estes  diabos  três  fez  cinza  e  nada 
A  infeliz  Copenhague,  a  um  só  aceno 
Mandam  as  divisões,  que  a  trovoada 
Façam  soar  nos  torreados  muros 
Da  corte  dos  c. . .  Ahf  só  de  vêl-os 
Quantas  calças  por  dentro  frescas  ficam  I 
É  comedia,  Filinto;  até  não  dormem 
Os  galos  no  poleiro,  e  são  galinhas 
Os  ursos  comilões  d'alta  Sibéria, 
Inda  aqui  jazem  no  curral  fechados 
Ha  seis  dias  e  mais,  tudo  anda  em  anciãs. 
Se  aos  vulcaneos  canhões  a  mecha  chegam, 
Lá  me  tens,  bom  Filinto,  á  desfilada, 
Que  não  'slou  para  ver  moscas  por  cordas. 
Vê  se  ha  no  monte  Hermínio  alguma  gruta 
Em  que  eu,  e  uma  vestal  mimosa  e  bella, 
Que  aos  ferros  se  evadiu,  e  me  acompanha, 
Possamcs  evitar  a  surriada 
Das  ameixas  cruéis  de  todo  o  anno. 
M;is  basta  de  aranzel.  O  padre  Horácio 
É  todo  convertido  em  lusos  versos. 
Santos  Ribeiro  o  seu  também  publica, 


A  FREI  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO  143 

Em  papel  imperial,  vinhetas,  tarjas, 
E  notas,  prefações,  lições  variantes; 
N'isto  me  acaniia,  no  demais  é  bolas. 
O  sabujo  Moniz  me  ladra  ao  longe 
Com  mi!  sonetos  da  oíBcina  d'elle; 
Do  campeão  ie  Apúlia  a  longa  espada 
Eu  já  nas  mãos  tomei,  fendi-lhe  as  costas 
Co'uma  Sátira  longa,  meu  Filinto. 

Apanham  longas  cartas  no  correio. 
Por  isso  se  não  manda  a  papelada; 
Ella  aos  poucos  irá;  sou  teu  amigo, 
Acabou-se  o  papel  e  adeus,  FiUnto. 

Rocio  de  Lisboa,  21  de  Maio  de  1808. 


Amigo  do  G. 

N'este  instante,  6  da  tarde,  30  d'este  Maio,  me  entregam  na  Loge 
da  Gazeta  duas  cartas  suas  atrazadissimas.  Foi  um  presente  para  mim. 
A  todos  pergunto  por  V.  m.*'^  e  só  o  Ferrão  me  deu  noticias  suas,  di- 
zendo-me  que  estava  em  uma  quinta  junto  a  Coimbra.  Ora  pois  o  cor- 
reio parte.  Exista,  e  eis  ahi  o  que  eu  quero.  Muito  lhe  direi  sobre  o 
Gama  no  primeiro  correio.  Saiba  comtudo  que  sae  em  doze  cantos,  e 
leva  1:020  oitavas;  inteiramente  novo  o  nono  e  decimo  Canto,  encerram 
os  quadros  da  rehgião,  começando  no — In  principio  creavit — até  ao  es- 
tabelecimento e  progressos  do  christianismo  em  Portugal,  e  conquistas 
de  Africa,  ác.  Esta  semana  que  entra  se  publica  a  resposta  aos  dois 


í  No  sobrescripto  do  mesmo  papel : 

Ao  Rev."'°  Snr.  P.'  M.'  Fr.  Francisco  Freire 
Collegio  da  Graça 

Ooixii1t>]ra. 

Esta  carta  é  de  1812,  pois  que  a  ella  se  refere  na  carta  de  3  de  junho  do  mesmo 
anno.  (Da  revisão.) 


144  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Investigadores,  em  que  os  leva  o  diabo  nas  minhas  mãos.  Vão  escova- 
dos infinitamente;  tudo  lhe  remetterei.  Um  novo  poema,  intitulado — 
A  Meditação—  em  quatro  cantos,  dedicado  á  Universidade,  vae  appare- 
cer  já,  e  o  primeiro  canto  está  impresso,  e  pubhco  mandarei.  Supprimi 
o  da  Natureza;  este  é  maior  e  melhor.  Eis  o  assumpto:  — Primeiro 
canto:  Quem  sou  eu?— Segundo:  Onde  estou  eu?— Terceiro:  Com 
quem  estou? — Quarto:  D'onde  vim  eu? 

Seja  meu  amigo,  porque  sempre  o  ama  e  defende  e  louva,  como 
deve 

Seu  amigo 

J.  Âgost.°  de  Macedo. 
Lisboa,  30  de  Maio 
seis  da  tarde. 


VI 


Amigo  do  C. 


'o 


Com  muita  pressa  lhe  escrevi  outro  dia,  porque  partia  o  correio  e 
a  escrevia  entre  a  açougada  e  motim  da  loge  da  Gazeta,  onde  me  en- 
tregaram as  suas  cartas.  Tenho  passado  bem  de  saúde,  e  menos  mal 
no  artigo  finanças,  porque  ainda  não  acabaram  as  festas;  mas  as- 
sim mesmo  vae  já  para  cinco  annos  me  tenho  conservado  em  nm  es- 
tade  de  guerra  contra  um  exercito  de  Burros,  que  peja  e  entulha  esta 
capital  da  parvoíce.  Desde  que  sahi  com  o  hvro  —  Os  Sebastianistas — 
posso  dizer  que  se  abriu  trincheira  contra  mim,  e  um  dos  primeiros 
mentecaptos  que  me  assestou  uma  cagalhoada  de  inepcias  foi  o  Mo- 
niz, e  um  seu  camarada,  ainda  mais  asno  que  elle  chamado  João  Ber- 
nardo—  Árcades  amho,  et  cantare  pares  et  respondere  parati. — Isto  pro- 
duziu uma  tempestade  de  escriptos,  a  que  eu  sempre  respondi  enfei- 
chando-os  victoriosamente.  Lancei  mão  de  outro  expediente,  era  que  os 
expuzesse,  como  expuz,  a  um  ridículo  eterno;  dei  com  elles  no  Thea- 
tro,  em  muitas  comedias  que  os  imniortalisarão  no  templo  da  asneira 
e  continuam  a  immortalisar,  porque  continuam  a  representar-se.  Ca- 
laram-se  então,  mas  levautou-se  outra  camada  de  orates,  quando  im- 
primi os  quatro  grossos  volumes  dos  Solilóquios  ou  Mulim  Litterario, 
que  julgo  terão  apparecido  por  esse  Atheneo  dos  alumnos  de  Minerva 
transformados  em  filhos  de  Marte  ou  Quixotes  vingadores  dos  aggra- 
vos  feitos  á  pátria;  respondi  também,  e  calaram-se.  Imprimi  também 
um  pequeno  poema  em  quatrocento  versos,  intitulado — O  Argonauta — 


A   FRi:i   FHANCISGO  FUF.IRE   DE  CAKVALHO  145 

cujo  assumpto  é  a  portentosa  viagem  que  em  um  pequeno  barco  fez 
um  algarvio  ao  Rio  de  Janeiro;  nova  guerra,  e  novos  impressos,  que 
aterrou  a  corja  do  botequim  de  José  Pedro  no  Rocio.  Finalmente  por 
uma  teima  que  tive  a  27  de  dezembro  de  1810  com  o  sabichão  Ri- 
beiro dos  Santos  e  companhia,  dei-lhe  acabado  a  7  de  março  de  1811 
o  poema  Gama;  nova  tempestade  levantada,  e  mais  terrível  e  espan- 
tosa que  as  precedentes;  tenho  respondido,  e  esta  semana  em  que  es- 
tamos sahiu  impressa  a  resposta  aos  dois  estouvados  Investigadores,  e 
aposto  que  os  senhores  Censores,  nossos  senhores,  foram  muito  indul- 
gentes para  com  elles,  mutilando  grandes  tiradas  da  tunda  tremendíssi- 
ma, assim  mesmo  vão  bem  servidos  e  coçados  como  verá.  Como  me  que- 
bravam os  tomates  com  o  episodio  do  Adamastor  no  5.°  Canto  dos  Lu- 
síadas, imprimi  uma  longa  carta  critica,  em  que  mostro  que  o  tal  episo- 
dio é  um  solemue  destempero;  eis  em  campo  um  orate,  professor  de 
grego,  chamado  o  Couto,  com  um  aggregado  de  sandices;  leva  nas  ven- 
tas uma  resposta,  que  também  sae  impressa  esta  semana  junta  á  dos  In- 
vestigadores. Como  o  Theatro  está  de  todo  estragado,  e  não  apparecem 
na  scena  mais  que  inepcias,  imprimi  três  Carias  criticas,  em  que  esmiu- 
ço três  dramas,  que  deram  aqui  muito  no  gosto  da  populaça.  O  senhor 
Ricardo  disse,  que  depois  de  Pope  não  flcava  campo  a  poeta  algum 
para  tratar  matérias  philosopliicas  em  verso;  fiz  o  levantado  poema — 
A  Meditação — de  que  já  lhe  dei  uma  ideia,  e  tem  mais  versos  que  o 
—  Gatna;  já  está  impresso  o  primeiro  canto,  e  eu  o  dedico  á  Univer- 
sidade, e  creio  que  fará  seu  estampido.  Finalmente  assentei  que  a  me- 
lhor resposta  preparada  para  a  posteridade  sobre  o  Gama,  era  fazer 
o  poema  de  novo;  eu  o  fiz,  e  vae  em  doze  cantos,  com  mais  oitavas 
que  o  de  Camões,  e  puz  quanto  pude  em  o  aperfeiçoar  e  pulir,  de  ma- 
neira que  levantei  de  todo  a  mão,  e  lá  vae  a  licencear-se.  Cancei-me, 
meu  amigo,  a  ponto  de  me  enfadar,  e  se  me  enfraquecer  sensivelmente 
a  vista,  mas  emfim,  ou  vou  ficar  por  uma  vez  enterrado,  ou  fazer  es- 
quecer o  que  ha  na  repartição  Epopêas  até  agora.  Isto  é  o  que  aqui 
vê,  e  verá  a  luz  publica;  porém  como  me  tem  esporeado  bastante  a 
alluvião  de  orates,  que  tem  aqui  crescido  a  olho,  compuz  um  poema 
regular  em  quatro  cantos,  que  terá  quasi  cinco  mil  versos,  intitulado 
Os  Burros,  sátira  amarga,  em  que  tudo  e  todos  são  envolvidos  com 
mais  fel  que  o  de  Juvenal;  e  tanto  me  tenho  empenhado,  que  me  re- 
solvo a  ir  a  Londres,  onde  só  o  poderei  imprimir,  e  com  elle  me  dei- 
xarei ou  repousarei  da  mania  poética,  que  já  basta,  pois  tenho  qua- 
renta e  nove  annos. 

Desejo  mandar-lhe  toda  esta  enorme  papelada  impressa,  que  deita 

CARTAS.  10 


446  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

a  uns  quatorze  volumes,  além  de  seis  Sermões  também  impressos;  mas 
isto  pelo  correio  é  de  um  frete  ou  porte  escandalisador;  lembra-me 
que  d'essa  cidade  vem  a  esta  um  recoveiro  dos  Frades  Gruzios,  cha- 
mado António,  que  me  conhece  e  sabe  onde  eu  moro  —  Calçada  do  Forno 
do  Tijolo,  n.°  45; — escreva-me  por  elle,  que  por  elle  lh'a  remetterei. 
Esquecia-me  dizer-lhe  que  o  titulo  do  novo  poema  é  este — O  Oriente. 
Como  me  diz  que  existe  no  Collegio  de  Coimbra,. creio  que  estará 
empregado;  mas  as  cousas  estão  tão  baralhadas  ainda,  essas  terras  tão 
pensionadas  ainda  e  inquietas,  que  a  melhor  habitação  é Lisboa;  veja  se 
quer  que  me  interesse  com  o  Provincial,  ou  quando  isto  não  aproveite, 
eu  tenho  conhecidos  no  Rio  de  Janeiro,  e  a  nomeação  ds  pregador  régio 
o  podia  constituir  aqui  em  tranquillidade  e  independência  da  fradaria, 
cuja  existência  eu  vejo  muito  vacillante;  responda-me  sobre  este  obje- 
cto com  brevidade.  Depois  da  necessária  mania  militar,  tem  acabado  o 
amor  das  lettras;  já  não  ha  livros,  nem  livreiros,  nem  instituições  litte- 
rarias,  e  limita-se  este  furor  manso  a  um  ou  outro  individuo,  que  em 
silencio  busca  o — Dulcia  oblivia  vitae. — Um  inventor  de  chuços  passa 
aqui  por  um  Galileo  ou  por  um  Descartes,  e  reconhece-se  por  archi- 
poeta  de  botequins  o  Moniz  e  o  Cego  e  coxo  de  Hospital.  Tenha  saúde 
e  conte  com  a  araisade  invariável  do  seu 

Amigo 

/.*  Âgost.°  de  Macedo. 
Lisboa  3  de  Julho 

de  1812. 

VII 

(Fragmento) 

A  pena  é  ter  eu  rebolindo,  respondido  ao  senhor  apenas  recebi  as 
suas  cartas,  e  continuar  a  escrever,  e  ir  eu  mesmo  com  as  rainhas  ben- 
tas mãos  deitar  as  cartas  no  buraco  do  Sr.  S.  Domingos,  e  quei- 
xar-se  o  senhor  que  não  recebera  as  cartas;  se  o  senhor  não  mente, 
então  não  duvidamos  da  louvável  curiosidade  dos  eximios  doutores 
d'esse  Collegio  de  Artes.  Eu  vivo,  e  vivo  em  guerra,  que  é  o  meu  ali- 
mento e  divisa,  em  logar  do — vitam  impendere  vero. 

Declaro  guerra  aos  papelões  da  terra.  E  a  papelada  impressa  tem 
crescido  a  ponto  de  poder  em  volumes  pedir  messas  o  Macedo  de 


A  FRKI  FRANCISCO  FREIRE  DE  CARVALHO  147 

Beja  a  esse  seu  Macedo  do  Botão.  Em  uma  das  cartas  lhe  dizia,  que 
visto  vir  d'essa  cidade  regularmente  o  azemel  António  dos  Cónegos  Re- 
gulares, por  elle  me  escrevesse,  para  por  elle  lhe  mandar  a  papelada 
da  polemica.  Imprime-se  o  poema  —  Meditação. — Vae  a  isso  o  novo 
poema — O  Oriente — em  doze  cantos,  que  tem  1:070  oitavas,  que  vem 
a  ser  8:560  versos  para  servir  a  v.  m.*'®;  e  guarde  v.  m."  esse  apo- 
logetico-analytico  (isto  é  ter  laivos  de  Universidade)  para  quando  sair 
esta  almanjarra,  que  talvez  faça  dizer: — Cedite  Romani  scriptores,  ce- 
di te  Graii. 

Não  escrevo  mais,  sem  saber  se  com  efifeito  é  entregue  d'esta  que  é 

Do  seu  verd.®  am.® 

José  Agostinho  de  Macedo. 

Lisboa,  dia  de  S.  Judas  de  1812. 
(A  lápis:  Outubro.) 


VIII* 

Queixa-se  s.  m.*  do  meu  silencio;  queixa-se  da  falta  de  resposta 
ás  suas  cartas;  a  ultima  que  recebi  sua  me  mandava  calar,  calei-me; 
agora  falia,  fallo  eu  também.  Já  lá  chegaram  os  Burrosl  Têm  viajado! 
Ora  digo-lhe  a  verdade,  que  me  zanga  seriamente  a  desgraça  dos  meus 
jumentos;  sairam  da  minha  estrebaria,  limpos,  nédios,  anafados  e  lu- 
zidios; bastou  a  primeira  copia  que  se  tirou,  para  se  adulterar  tudo; 
é  uma  lastima  o  estado  a  que  tão  bom  poema  está  reduzido  I  Tem  ti- 


*0s  autographos  d'e3ta3  oito  Cartas  fôram-nos  confiados  pelo  nosso  antigo 
alumno  Eugénio  de  Castro,  que  em  carta  de  1  de  maio  de  1894,  nos  communicava : 
«As  Cartas  são  dirigidas  a  Fr.  Francisco  Freire  de  Carvalho,  primo-coirmâo  do  meu 
bisavô  o  Desembargador  Francisco  José  Freire  de  Carvalho,  e  irmão  de  José  Liberato 
Freire  de  Carvalho  e  D.  António  da  Visitação  Freire,  que  foi  sócio  da  Academia  real 
das  Sciencias  e  grande  amigo  de  Bocage.»  Por  parte  de  seu  avô  materno  o  Dr.  Fran- 
cisco de  Castro  Freire  é  que  se  conservaram  estas  cartas  na  familia. 

Em  presença  dos  autographos  vimos  quanto  imperfeitas,  e  por  vezes  inintelli- 
gentes  eram  as  copias  alcançadas  por  Innocencio,  evitando  assim  deploráveis  erros. 
{Da  reviíão.) 


148  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DR  MACEDO 

rado  mais  de  uma  terça  parte,  e  tem  introduzido  Mordomos  por  devo- 
ção, sem  eu  ser  ouvido;  tem  estropeado  versos,  e  tem  maculado  o 
todo,  até  na  ordem.  Obrigaram-me  a  uma  nova  edição,  que  acabei; 
este  rapaz  poderá  para  outubro  levar  uma  copia  para  se  conhecer  n'essa 
cidade.  Tenho  concluído  o  poema  —  O  Oriente — em  doze  cantos,  que 
contém  1:071  oitavas;  cinco  vezes  o  fiz  e  refiz;  julgo  que  consegui  a 
possível  perfectibilidade,  e  que  não  cabe  mais  nas  forças  humanas. 
Talvez  me  resolva  a  imprimil-o  n'essa  Ofíicina  da  Universidade.  Não  ha 
colher  uma  obra  impressa  das  oíficinas  de  Lisboa;  a  Regia,  que  tem  ex- 
cellente  typo,  está  pejada  dos  malditos  periódicos,  de  tal  arte  que  desde 
Janeiro  até  hoje  10  de  Julho  só  estão  impressas  do  poema  da  Medita- 
ção oito  folhas,  e  do  poema  Newton  três  folhas.  Nenhum  official  é  livre 
dos  periódicos  de  m. . .,  e  só  em  horas  de  descanço  ou  de  noite,  me 
compõem  alguma  cousa. 

A  hiteratura,  meu  senhor,  morreu  n'esta  capital;  ninguém  lê  mais 
que  Gazetas,  nem  quer  ler  mais  que  Gazetas.  Os  livreiros  que  ainda 
têm  a  porta  aberta  estão  ás  moscas,  as  togas  cederam  ás  armas. 
Aqui  diz  o  rapaz  geometra  que  s.  m."  busca  obras  de  Delille;  dei- 
xe-se  de  poetas  francezes,  que  nada  são;  por  essa  livraria  talvez  haja 
um  exemplar  de  Estacio,  leia-o,  medite-o,  tome-lhe  o  sabor,  achará 
mais  poesia  em  uma  só  pagina  bem  conhecida,  que  em  quantos  es- 
creveram versos  antigos  e  modernos;  eu  assim  o  sinto  e  fallo  com  co- 
nhecimento de  causa,  sendo  por  desgraça  da  Irmandade  do  bicorneo 
monte. 

Pouco  avulta  o  que  tenho  feito  até  agora,  mas  d'isso  mesmo  irá 
o  que  ajuntar;  espere  pela  Meditação  e  pelo  Newton;  depois  appare- 
cerá  O  Oriente,  e  basta.  Cuide  nas  lettras  antes  que  se  acabem;  ado- 
çam a  existência,  e  depois  de  bem  cultivadas,  trazem  a  vantagem  por 
fim  de  nos  mostrarem  que  morremos  perfeitamente  asnos  e  ignoran- 
tes; eu  já  cheguei  no  circulo  ao  ponto  de  que  partira,  e  se  me  per- 
gunto quem  é  Deus? — respondo-me  com  o  Mestre  Ignacio,  o  que  ea 
dizia  na  eschola: — É  um  senhor  infinito,  eterno,  todo  poderoso,  que 
dá  a  gloria  aos  bons,  e  aos  máos  o  inferno  para  sempre.  Amen. — Es- 
tou adiantado  1  Eis  aqui  a  Philosophia.  Tinha  vontade  de  passar  um 
mez  ainda  sentado  por  esses  sinceiraes  do  Mondego;  ouvir  por  ahi  es- 
ses Plalões,  Chrissipos  e  Diagoras;  se  uma  estalagem  me  não  fosse  in- 
ço mmoda,  ia  para  os  fins  de  outubro  ver  a  imprensa  e  cuidar  no  Orien- 
te. A  Meditação  é  um  poema  digno  e  único,  a  que  se  pode  chamar 
philosophico;  eu  o  dedico  á  Universidade,  e  ella  devia  mandar  fazer 
segunda  edição  com  pompa,  e  enriquecel-a  com  notas — cegri  somnia 


k   FREI  FRANCISCO  FREIRE  DK  CARVALHO  149 

vana! — A  Universidade!., .  Se  elles  trocaram  a  borla  em  capacetes, 
e  os  frades  que  ficaram  encanecem  no  profundo  estudo  do  Larragaf 
Divirta-se,  meu  senhor,  e  creia  que  é 

Seu  amigo 

/."  Âg.'*  de  Macedo. 
Lisboa  10  de  Julho 
1813. 


A  UM  AMIGO  DO  VIGÁRIO  GERAL 


111."»"  Sr. 

Peço-lhe  um  favor,  e  vem  a  ser:  O  Duque  de  Cadaval  segunda 
feira  me  encarregou  da  traducção  de  umas  bulias  que  impetrou,  para 
pôr  certos  prestimonios  em  algumas  das  muitas  egrejas  do  seu  pa- 
droado, a  beneficio  de  seus  irmãos,  permanecendo  no  estado  de  sol- 
teiros, e  passando  aos  outros  se  elles  casassem.  Estas  bulias  vão  exe- 
cutar-se  perante  S.  Ex.*  o  senhor  Arcebispo  de  Lacedemonia,  e  esta 
execução  já  eslá  em  caminho,  tendo  ido  com  vista  ao  promotor  Lima, 
logar  de  novo  creado,  para  lhe  dar  de  comer  alguma  cousa,  e  com 
que  elle  come  muito,  e  come  tudo.  Este  Lima  é  um  clérigo,  que  sim- 
plicíssimo em  lettras,  enxotado  ha  muitos  annos  da  CoUegiada  de  Ou- 
rem, e  aqui  com  aquella  impostura  que  é  filha  das  luzes  do  século,  e 
do  presente  estado  dos  progressos  da  civilisação  (Diccionario  de  24 
de  Agosto),  se  tem  introduzido  em  quantos  togares  ha,  e  creio  que  o 
senhor  Arcebispo  de  Lacedomonia  precendente  estará  no  céo  pelo  ha- 
ver posto  no  meio  da  rua  aos  quinze  dias  de  o  aturar.  Algum  dia  ti- 
nha dois  tostões  por  cada  duvida  que  punha  nos  breves;  poz  cin- 
coenta  e  duas  em  um  breve  de  banhos  de  uma  freira  da  Esperança, 
6  mamou  10j5400,  metal  I  E  se  José  Gonçalves  não  acode  com  justiça 
de  mouro,  ainda  a  estaria  a  mamar  os  dois  tostões.  Nas  bulias  do 
Duque  não  tinha  duvidas  que  pôr,  que  tem  o  beneplácito,  e  n'elle  o 
substanciado  conteúdo  nos  rescriptos  apostólicos,  e  como  não  achou 
duvidas,  lembrou-se  de  condições,  e  já  mamou  oito  tostões  pela  pri- 
meira, que  é  esta:  —  cApresente  traducção  exacta  d'estas  bulias.»  O 
Duque  me  pediu  lh'as  traduzisse,  e  eu  o  não  faria  por  lodo  o  ducado 
de  Cadaval,  como  lh'o  disse,  porque  são  tão  compridas,  que  mais  de- 
pressa traduziria  as  Pandectas,  e  ambos  os  Digestos,  e  todo  o  Isidoro 
Mercador;  que  antes  traduziria  de  portuguez  para  portuguez  um  dis- 


152  CARTAS  DS   JOSÉ  AOOSTINHO  DE   MACEDO 

curso  do  sr.  Annes  de  Carvalho,  e  todo  o  Filangieri  do  cónego  Cas- 
tello  Branco.  Disse  ao  Duque  que  eu  lhe  faria,  e  fiz,  um  requerimento 
ao  senhor  Arcebispo,  como  executor  das  mesmas  bulias,  para  se  jun- 
tar aos  autos,  para  que  sem  embargo  da  condição  se  passasse  a  prova 
das  premissas  até  a  final  sentença  executorial.  Que  diabo  de  desem- 
bargador e  de  promotor  é  este,  que  não  entende  nem  o  latim  da  mo- 
derna Roma,  e  que  precisa  de  ter  em  portuguez  aquiilo  que  deve  en- 
tender? Se  o  senhor  Arcebispo  não  fora  de  tanta  bondade,  o  despacho 
á  condição  devia  ser  este:  — «Qs  Padres  de  Rilhafolles  fechem  n'uma 
cela  este  clérigo,  e  por  quarenta  quarentenas  lhe  ensinarão  á  palma- 
tória os  rudimentos  da  lingua  latina,  e  no  fim  do  anuo  darão  conta 
n'esta  secretaria  do  seu  adiantamento.  A.  A.  de  Lacedemonia.» — E  se 
quizesse  pôr  com  guarda,  melhor  seria,  mas  ha  de  ser  de  dois  Padres 
de  Rilhafoles  em  horas  de  estudo  do  réo  recluso. — Pois  tu.  Promotor 
infernal,  não  sabes  que  lendo  as  bulias  no  original  entenderias  melhor 
a  força  das  clausulas,  e  termos  curiaes  das  mesmas  bulias?  Para  cer- 
tos termos  do  estylo  da  Guria  não  ha  equivalentes  na  lingua  portu- 
gueza. 

Como  uão  tenho  accesso  algum  na  presença  de  S.  Ex.*,  peço  a 
V.  S.*  lhe  queira  ponderar  estas  razões,  pois  desejo  satisfazer  ao  Du- 
que, a  quem  devo  amisade,  lembrando-lhe  que  na  mesma  sentença  exe- 
cutorial se  costuma  transcrever  a  substancia  dos  mesmos  rescriptos 
apostólicos,  e  que  isso  é  da  competência  do  escrivão,  e  como  aquelle 
impostor  devia  comer  os  oito  tostões,  sempre  havia  de  dizer  alguma 
cousa,  ainda  que  fosse  uma  parvoíce.  Nos  mesmos  breves  das  freiras 
nunca  se  mandou  juntar  traducções,  e  o  mesmo  Duque  me  mostrou  a 
sentença  executorial  da  bulia  impetrada  pela  Rainha  para  a  suppres- 
são  da  CoUegiada  de  Torres  Novas  para  património  do  convento  da  Es- 
trella,  e  não  vem  lá  tal  traducção!  Eu  nem  para  sacristão  tenho  pré- 
stimo, mas  se  fosse  Arcebispo  uma  hora,  punha-lhe  este  despacho:  — 
O  promotor  as  mande  traduzir  á  sua  custa,  ou  elle  as  traduza  ex-offi- 
cto.— No  mesmo  instante  acabava  o  de  promotor,  e  folgavam  as  bol- 
ças dos  impetrantes. 

Espero  de  V.  S.*  este  obsequio  e  occasiões  em  que  mostre  ser 

De  Y.  S.* 
Forno,  30  de  julho  de  1829. 

Invariável  amigo 

J.  A.  de  M. 


AO  ARCEBISPO  VIGÁRIO  GERAL 


D.  António  José  Ferreira  de  Sousa 


Ex."®  e  R.»"  Sr. 

O  livreiro  Orcei  declara  que  o  primeiro  volume  de  Condillac,  que 
annuncia,  vem  para  um  particular,  que  tendo  o  Curso  de  Estudos  para 
instrucção  do  Duque  de  Parma,  se  lhe  desencaminhou  o  primeiro,  e 
quer  ter  a  obra  completa.  Como  não  é  o  que  expressamente  trata  das 
Sensações,  pode  passar,  e  V.  Ex.'  inclui-lo  na  licença  geral.* 

Aproveitando  esta  occasião,  passo  a  expor  a  V.  Ex.'  matéria  que 
não  é  da  censura,  mas  de  muito  maior  importância.  Hoje  21  de  Sept- 
embro,  indo  pregar  ás  Mercês,  fui  testemunha  da  murmuração  pu- 
blica, e  lá  a  expuz  a  dois  Desembargadores  da  Relação  ecclesiastica. 
Oliveira,  e  o  Prior  da  mesma  egreja  João  Gamillo.  O  frade  arrabido 
Argea,  preso  por  tantos  tempos  no  Limoeiro,  e  de  lá  desterrado;  o 
padre  Marcos,  ex-encommendado  da  Pena,  o  Heliodoro  dos  nossos  tem- 
pos, expoliador  dos  templos,  appareceram  em  Lisboa,  e  S.  Em.*  a  este 
só  deu  licença  para  dizer  missa,  e  ambos  sem  licença  se  mettem  a 
pregar  com  escândalo  e  murmuração  publica;  o  frade  na  egreja  do 
Sacramento,  terça  feira  28  do  corrente,  e  o  Marcos  na  egreja  da  Ma- 
gdalena  a  29;  clama  o  povo  sem  razão  contra  o  senhor  Patriarcha,  que 
tal  licença  não  deu;  e  me  parece  que  para  evitar  tumultos  e  escân- 
dalos, e  acudir-se  á  reputação  e  nome  de  S.  Em.*,  usasse  V.  Ex.*  de 
um  meio  suave  e  politico,  e  auctorisado  pela  constituição  do  Patriar- 
chado:  Que  mandasse  sem  perda  de  tempo  ordem  por  escripto  aos 
dois  priores,  que  pedissem  aos  dois  pregadores  a  actual  licença  por 
escripto,  ou  a  provisão  de  licença;  e  assim  ninguém  pode  ser  arguido. 


*  Vid.  a  Censura  de  15  Setembro  1824. 


{54  CAUTAS  DB  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

por  cumprir  com  a  sua  obrigação,  e  obviando-se  o  motim,  e  gritos  de 
que  eu  fui  testemunha.  O  perdão  dos  crimes  políticos  d'estes  dois  após- 
tolos não  subentende  a  licença  para  pregar,  que  S.  Ex.*  não  deu,  nem 
devia  dar,  sem  escândalo;  porque  se  os  priores  vindos  não  tiveram 
de  S.  Em.*  a  faculdade  do  ministério  parochial,  como  podiam  ter  li- 
cença para  o  ministério  apostólico  o  frade,  que  nas  sacristias  mostrava 
uma  faca  para  matar  corcundas,  e  o  divinisador  de  Manuel  Fernandes 
em  suas  exéquias,  em  que  declamou  contra  o  poder  real?  Parece-me 
muito  acertado  este  aviso.  Deus  guarde  a  V.  Ex.*  como  deseja,  e  lhe 
roga  o  que  é  de  V.  Ex.* 

Súbdito  m.'"  obed.*» 
24  Septembro  de  1824. 

J.  A.  de  M. 

II 

Remettendo-lhe  um  exemplar  da  traducção  da  Oração  fúnebre 
recitada  nas  exéquias  de  Pio  VII 

111.»°  e  Ex.^""  Sr. 

Quanto  posso,  e  quanto  devo,  agradeço  a  V.  Ex.*  a  efBeacia  com 
que  procura  satisfazer  o  pio  desejo  com  as  boas  irlandezas  religiosas 
do  convento  do  Bom-Successo  para  se  lhe  conceder  a  graça  que  sup- 
plicaram  da  exposição  do  sagrado  lausperenne;  pedem  agora  que  se- 
jam consideradas  em  a  nova  folhinha  que  se  fizer  para  o  dia  23  de 
junho  futuro.  Eu  para  então  não  conto  com  a  vida  pelo  estado  de  mo- 
léstia que  tão  horrivelmente  me  atormenta;  e  a  philosophica  Lisboa 
contará  então  com  lausperenne!  É  já  muito  grande  o  derramamento  das 
luzes,  muito  rápidos  os  progressos  da  civilisação,  para  se  cuidar  em 
taes  actos  de  piedade,  quando  ha  muito  que  fazer  em  sustentar  a  Carta, 
e  defender  as  sabias  instituições  com  a  penna,  e  com  a  espada.  Es- 
pere por  ora  o  catholicismo,  é  preciso  primeiro  derrotar  o  servilismo, 
e  manter  os  inauferíveis  direitos  do  senhor  D.  Pedro  4.°,  e  depois  se 
cuidará  no  menos  interessante. 

Offereço  a  V.  Ex.*  esse  exemplar  do  Elogio  fúnebre  de  Pio  7.**, 
que  eu  fiz  apenas  comecei  a  ler  o  original  italiano,  que  me  mandou  o 
Núncio  (não  digo  apostólico,  porque  esta  palavra  por  si  só  é  um  crime 
mais  atroz  que  o  regicídio  I)  digo  só  Núncio.  É  a  segunda  traducção 
que  faço  em  minha  vida;  a  primeira  foi  a  de  todas  as  obras  de  Hora- 


ÁO  ARCEBISPO  YIGARIO  GERAL  155 

cio  em  versos  menos  máos;  imprimiu-se  o  primeiro  volume,  que  con- 
tem as  Odes,  e  que  se  tem  feito  muito  raro;  o  segundo  foi  levado  ma- 
nuscripto,  sem  eu  saber,  para  o  Rio  de  Janeiro,  por  um  frade  capu- 
cho, e  botânico,  grande  architector  de  Floras,  e  lá  se  perdeu  como  o 
Brasil,  que  também  era  propriedade  portugueza.  A  segunda  é  essa  que 
apresento  a  V.  Ex.*;  eu  não  vi,  não  li,  nem  conheço  cousa  mais  admi- 
rável; verdade  seja,  eu  ainda  não  tinha  ouvido  fallar  na  Camará  alta  o 
Conde  de  Lumiares,  e  na  baixa  o  General  operatório  Claudino,  e  o  Li- 
curgo  doctor  Magalhães,  nem  o  bedel  da  faculdade  iManuel  Borges  Car- 
neiro, n'aquelle  grande  arrazoado  em  que  pediam  uma  estatua  colossal 
do  Senhor  D.  Pedro  4.°,  para  a  collocar  em  cima  da  primeira  obra 
publica,  isto  no  mesmo  momento  em  que  pegadas  ao  Rocio  se  con- 
cluía e  ultimava  a  grande  obra  das  magnificas  cloacas  nacionaes,  que 
logo  começaram  a  servir,  e  vão  muito  commodamente  servindo. 

Apezar  d'estas  riquezas  domesticas,  não  deixará  V.  Ex.*  de  admi- 
rar e  estimar  este  thesouro  extranho,  dando-lhe  aquella  altenção  que 
merece  a  mais  sublime  dialelica,  e  a  mais  pomposa  eloquência.  Eu  estava 
persuadido  que  se  não  podia  exceder  em  uma  e  outra  cousa  a  Oração 
fúnebre  nas  exéquias  do  Príncipe  Eugénio,  feita  por  outro  italiano,  o 
cardeal  Domingos  Passionei,  que  os  francezes  logo  traduziram,  e  sem- 
pre tem  louvado;  vejo  agora  que  nada  se  pode  egualar  a  este  prodí- 
gio, que  a  frivolidade  presente  não  julgará  tal,  mas  que  o  profundo 
entendimento  de  V.  S.*  reconhecerá,  como  eu  respeitosamente  lhe  sup- 
plico  que  reconheça  que  sou 


Em  23  de  Junho  de  1827. 


III 


De  V.  Ex.*  ác* 
/.  A.  de  M. 

III.'»*»  e  Ex."""  Sr. 


A  distincta  honra  e  especial  bondade,  com  que  V.  Ex.*  se  digna 
tratar-me,  me  anima  e  me  dá  a  confiança  de  me  dirigir  d'esta  ma- 
neira a  V.  Ex.*  Está  próximo  a  passar-se  a  sentença  executorial  de  um 
breve  de  prorogação  para  uso  de  remédios  a  beneficio  de  uma  reli- 
giosa, a  quem  V.  Ex.'  concedeu  por  virtude  de  um  rescripto  do  Nún- 
cio dois  mezes  de  hcença,  para  se  ultimar  a  execução  do  breve,  que 
novamente  impetrou.  O  profundo  promotor,  que  acha  duvidas  na  bulia 
do  Duque  de  Cadaval,  apezar  de  saber  que  a  freira  me  pertence  pe- 
los mais  estreitos  vínculos  de  sangue,  de  ter  cincoenta  e  três  annos 


156  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

de  edade,*  de  estar  cuberla  de  lepra  (gota  rósea,  lhe  chama  o  medico 
Abrantes)  e  de  ter  um  aneurisma  na  artéria  carótide  no  pescosso,  já 
com  pulsasões  sensíveis  em  perigo  de  vida,  como  também  sabe  que 
me  interesso  n'isto,  e  com  tanta  razão,  ha  de  multiplicar  as  suas  illo- 
sorias  duvidas,  e  o  tempo  dos  dois  mezes  se  finalisa;  peço  a  V  Ex.* 
lodo  o  favor  compatível  cora  a  justiça,  em  rejeitar  ou  entupir  a  mina 
das  parvoíces  em  que  insistir  o  nunca  assas  louvado  promotor,  e  n'islo 
receberá  a  maior  mercê  o  que  é 

De  V.  Ex.* 

Súbdito  obdiente 

/.  A.  de  M. 

Ex.'"°  R."">  Sr. 


4828 

IV 


O  portador  d'esta  me  tem  feito  algumas  vezes  obsequio  de  se  en- 
carregar do  dever  que  eu  nâo  podia  desempenhar,  tolhido  pela  rai- 
nha terrível  e  desesperada  enfermidade:  que  é  saber  do  estado  de 
saúde  de  V.  Ex.*,  porque  me  encheu  de  um  serio  cuidado,  tanto  que 
vi  que  V.  Ex.'  tinha  transferido  o  despacho.  Eu  beijo  a  mão  a  V.  Ex.* 
pelo  bom  accolhimento  que  lhe  tem  dado,  pois  me  apparece  aqui  até 
compungido  de  gratidão  e  de  respeito  pela  sagrada  pessoa  de  V.  Ex.* 
Agradeço  muito  a  generosa  offerta,  que  V.  Ex.*  me  faz,  tanto  do  hon- 
rado facultativo,  que  eu  fiquei  estimando  muito,  porque  lhe  conheci 
o  jtacto  medico,  sem  dilatar  as  philaterias  da  ridícula  presumpção  e 
nojentíssima  verbosidade,  mais  mortífera  que  as  mesmas  doenças,  que 
elles  não  curam,  e  menos  conhecem.  Egualmente  agradeço  a  V.  Ex.* 
o  beneâcio  da  agua  sympathica,  que  ja  começa  a  augmentar  e  avivar 
a  minha  fé.  Vivo  em  um  interminável  martyrio,  quasí  sempre  confi- 
nado na  cama,  e  sempre  víctima  de  permanentes  dores;  sem  um  veio 
de  alivio,  nem  de  dia,  nem  de  noite,  luctando  cora  este  trabalho,  para 
o  qual  não  tem  forças  o  composto  humano;  não  padeço  menos  na  for- 
çada ínnacção  da  minha  alma,  pois  vejo  passar  inteiros  e  tão  longas 
dias  sem  ler  uma  pagina,  ou  escrever  uma  linha,  e  pasmo  ás  vezes, 
quando  em  algumas  horas  de  escripta  vejo  que  chego  ao  fim  com  um 
ou  outro  numero  d'esse  pueril  e  insignificante  divertimento  da  esfo- 
lação,  com  o  desprazer  de  escrever  a  medo,  porque  os  senhores  co- 


*  Aliás  48,  tinha  nascido  em  1780.  {Nota  de  Inn.') 


AO  ARCEBISPO  VIGÁRIO  GERAL  157 

bertos  de  mazellas  dizem,  que  tudo  lhes  váe  dar  n'ellas;  e  é  tanla  a 
soberba  titular,  que  até  querem  contemplações  com  os  mesmos  que 
com  titulo  6  tudo  merecem  a  forca.  Ainda  querem  mais  melindre  com 
os  extranhos,  falta  mandarem-me  que  lhes  beije  a  mão,  pela  zomba- 
ria que  de  nós  fazem,  e  não  lhes  faltava  mais  que  fazerem-nos  pupi- 
los, o  que  me  faz  lembrar  o  que  um  pregador  disse  aos  saloios  de 
Loures,  em  um  sermão  de  paixão  na  quinta  feira  de  endoenças  á  noite. 
Pediu  o  sudário,  e  estando  dois  embrulhos  sobre  os  caixões  da  sacri- 
stia, um  do  sudário,  outr-o  lambem  de  panno,  de  Santo  António,  tro- 
cam a  cousa,  e  levam-lhe  o  do  santo,  que  também  tinha  dois  paus  nas 
extremidades,  como  costuma  ter  o  sudário,  e  têm  os  mappas. —  «Os 
judeus  (disse  o  pregador)  fizeram  tudo  qnanlo  quizeram  de  nosso  se- 
nhor Jesus  Christo;  mas  fazel-o  frade  capucho,  isto  só  os  bêbados  de 
Loures  1» — De  nós  têm  feito  o  que  querem;  mas  fazerem-nos  pupil- 
losl. . .  Seja  pelo  divino  amor  de  Deus!  Assim  escrevo  a  medo,  e  os 
cabeções,  que  se  deviam  pôr  na  Besta,  tenho-os  eu. . . 

Muito  me  lembro  sempre  da  htteraria  e  patriota  resolução  de 
V.  Ex.",  com  a  edição  do  grande  Fernão  Mendes  Pinto,  para  cuja  pre- 
facção  eu  me  offereci;  e  deseja  que  V.  Ex.*  visse  a  prefação  da  tra- 
traducção  hespanhola,  e  o  que  diz  o  Abbade  Prevost  na  Gollecção  das 
Viagens,  e  também  a  antiga  traducção  franceza,  feita  por  um  portu- 
guez  F.  Figueira.  Demos  o  devido  apreço  a  tão  grande  escriptor,  que 
merecia  um  commentario,  ou  uma  illustracção  ao  que  nos  diz  da  China, 
6  da  dynaslia  tártara,  que  então  começon;  assim  como  dos  grandes 
descobrimentos  no  mar  do  sul,  isto  é,  das  ilhas  dos  Papuas,  Ceiebes, 
e  Mindanous.  Não  deixaríamos  levar  isso  aos  inglezes,  assim  como  nos 
levavam  tudo,  que  muito  è  o  senhor  Cook  fallar  nas  terras  de  Quei- 
roz. Mas  em  que  tempo  estamos  nós?  Fallar  em  lettras  aos  portugue- 
zes,  que  chegaram  a  querer  só  Panem  et  Circenses! 

Aqui  me  disse  um  cavalheiro  procurador  por  Coimbra,  que  a  fal- 
lar poderia  cançar  Fábio,  o  fallador,  que  o  Ex."""  Sr.  Bispo  de  Vizeu 
tinha  composto  e  publicado  algumas  memorias  sobre  escriptores  por- 
tuguezes,  que  o  mesmo  Ex."*"  Sr.  Bispo  lhe  mostrara  agora  em  casa 
do  Principal  Freire;  tomara  que  este  tão  erudito  prelado  se  não  esque- 
cesse dos  seus  e  meus  patrícios  Fr.  Amador  Arraes,  e  Jacinto  Freire 
de  Andrade,  e  sobre  todos,  do  quasi  nosso  patrício,  pois  nasceu  na 
Vidigueira,  Achilles  Estacio,  a  quem  tanto  se  deve,  mas  não  conhe- 
ceu tudo  o  Abbade  Barbosa,  porque  de  quasi  todas  as  obras  de  S.  João 
Chrysostoroo  fez  a  traducção  latina,  que  se  conserva  manuscripta  e  in- 
tacta na  sua  inteira  bibliotheca,  legada  por  elle  em  Roma  aos  Congre- 


158  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

gados  do  Oratório;  assim  como  não  desejava  que  se  esquecesse  de  An- 
tónio e  Marçal  de  Gouvêa,  também  de  Beja,  e  que  tão  grandes  pare- 
ceram á  França,  onde  ensinaram.  Eu  já  nada  posso,  estou  sempre  a 
braços  com  a  morte,  em  dores  intermináveis,  e  no  espasmo  perturba- 
se-me  a  cabeça,  e  muito  terei  que  agradecer  ao  céo  se  poder  tirar  de 
um  borrador  indecifrável  o  poema,  em  que  o  mundo  cá  poderá  conhe- 
cer que  eu  desejei  saber  alguma  cousa. 

V.  Ex.*  por  amizade  me  favorecerá,  mandando  aos  clérigos  po- 
bres, de  quem  sou  irmão,  que  ponham  na  lapide  da  minha  cova  este 
epitaphio: 

Debaixo  d'esta  pedra  mudo  e  quedo 
Jaz  o  moído  e  moedor  Macedo ; 
No  mundo  nada  foi  quando  vivia, 
Nem  sócio  foi  da  magra  Academia. 

Não  me  quizeram  lá,  porque  diziam  que  eu  ia  para  lá  dizer  mal 
de  todos;  talvez  se  não  enganassem,  porque  todos  o  mereciam;  po- 
rém o  que  elles  não  quizeram  fazer,  fizeram  agora  os  romanos,  man- 
dando-me  um  diploma  de  sócio  da  Academia  Tiberina,  em  que  entram 
só  os  primeiros  litteratos  da  Itália;  e  eu,  que  nunca  me  esqueço  dos 
portuguezes,  no  meu  agradecimento  lhes  pedi  quizessem  examinar  nos 
manuscriptos  da  Vaticana  os  manuscriptos  de  André  Baião,  successor 
de  Marco  António  Mureto  na  cadeira  de  eloquência,  e  fazerem  uma 
copia  da  traducção  latina  das  Lusíadas,  mais  exacta  e  muito  melhores 
versos  que  os  da  paraphrase,  e  não  traducção  de  Fr.  Thomé  de  Faria, 
6  que  viesse  isto  pela  legação,  que  eu  cá  pagaria  o  frete,  e  a  quem 
elles  aqui  quizessem  o  trabalho  da  copia,  porque  fazer  gastar  um  tos- 
tão a  um  italiano  é  tirar-lhe  um  olho  da  cara,  ou  ambos  os  olhos.  Se 
assim  o  fizerem,  será  mais  um  tropheo  levantado  á  gloria  do  poeta, 
e  que  valha  mais  alguma  cousa  que  a  edição  rica  do  Morgado  Matheus. 
Não  se  enfade  V.  Ex.*,  se  um  moribundo  em  logar  de  uma  carta  mis- 
siva faz  um  testamento.  Se  o  meu  fraco  é  fazer  conhecer  ao  mundo  a 
litteratura  portugueza,  este  fraco  é  tão  forte  que  a  tudo  me  obriga,  e 
o  pouco  que  me  tem  a  mim  obrigado  me  obrigaria  agora  a  mim  a  dei- 
xar Portugal,  e  a  dizer  com  o  bom  Juvenal: 

Vivat  Asturius  illic 
Vivant  qui  nigra  in  cândida  vertuntem. . . 

Mas,  viva  V.  Ex.*  para  timbre  da  egreja  lusitana,  para  estimador 


ÀO  ARCEBISPO  VIGÁRIO  GERAL  159 

das  lettras,  e  para  ser,  como  é,  um  Vigário  geral,  de  quem  nenhum 
clérigo  diz  mal,  e  de  quem  é 
Com  o  mais  sincero  respeito 

Súbdito  e  amigo  m.*°  affectuoso 

Pedrouços,  15  de  Junho  de  1829. 

/.  A.  de  M. 

V 

111.'"*'  e  R.""  Sr. 

Com  muito  respeito  beijo  a  mão  a  V.  Ex.*  pelo  distincto  e  gene- 
roso obsequio,  que  se  dignou  fazer-me;  aqui  appareceu  o  honrado  fa- 
cultativo, muito  de  espaço,  e  não  com  a  rapidez  do  relâmpago,  de  suas 
costumadas  visitas,  que  só  se  podem  desculpar  pelo  muito  que  tem 
que  fazer  a  morte,  e  lhes  basta  um  sopro  para  nos  apagar  a  candeia 
da  vida.  Veiu  pois,  e  sentenciou,  e  eu  com  uma  docilidade,  que  eu 
não  sabia  que  tinha,  lhe  puz  o  cumprase,  e  lá  foi  logo  para  o  execu- 
tor, o  boticário;  veiu,  e  V.  Ex.*  não  pode  considerar  a  Sócrates  com 
mais  intrepidez,  tendo  o  vaso  de  cicuta  na  mão;  eu  n'uma  cousa  ex- 
cedi a  Sócrates,  porque  não  consta  da  historia  que  elle  Gzesse  a  ca- 
reta que  eu  fiz  apenas  me  passou  o  esofago  o  primeiro  trago.  Viram-se 
tentados  os  circumstantes  a  me  rezar  o  responso,  porque  me  viram  por 
muito  tempo  com  os  olhos  fechados,  e  com  a  bocca  aberta.  Emfim,  lá 
foi,  e  eu  ainda  aqui  estou;  no  seguinte  dia  passei  duas  horas  menos 
dolorosas,  mas  parece  que  o  mal  recuou  para  accommetter  com  mais 
faria;  comtudo,  como  o  remédio  não  é  espingarda,  para  produzir  logo 
o  effeito,  continuarei  com  as  mesmas  caretas  a  despejar  a  segunda 
garrafa,  e  darei  parte.  Visto  a  agua  annunciada  ser  feita  pela  phar- 
macopola  natureza,  e  não  costumar  esta  empurrar  e  embutir  um  qui 
pro  qiio,  muito  desejarei  fazer  d'ella  alguma  experiência,  porque  na  ver- 
dade o  meu  estado  é  miserável,  e  só  a  religião  me  pôde  tornar  sup- 
portavel  a  existência. 

Ando  sempre  luctando  com  a  enfermidade,  e  para  fugir  ao  maior 
tormento  da  vida,  que  é  para  mim  o  não  fazer  nada,  na  pausa  das  mais 
excessivas  dores,  porque  alguma  cousa  remittem,  ainda  que  pouco, 
lanço  no  papel  essas  linhas  impressas,  que  por  ahi  apparecem,  e  tiro 
do  cahos  de  um  inintelligivel  borrão  o  poema,  em  que  me  parece  que 
ja  fallei  a  V.  Ex.*  O  primeiro  dos  quatro  cantos  hoje  mesmo  me  ficou 


160  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACKDO 

em  limpo;  tudo  vae  de  vagar,  não  pelo  dito  do  philosopho,  festina  lente, 
mas  porque  é  um  milagre  poder  escrever  uma  só  lettra. 

Ha  muito  tempo  que  estou  em  divorcio  com  os  livros,  e  muito 
mais  depois  que  a  dor  de  pedra  se  casou  commigo;  mas  aqui  me  ap- 
pareceu  um  livro,  que  até  ao  anuo  de  1731  era  inter  rariores  rarissi- 
mtis,  e  depois  de  1731  não  é  muito  vulgar;  talvez  V.  Ex.'  o  não  te- 
nha em  sua  estante,  ainda  que  deva  estar  sempre  em  cima  da  sua 
meza,  ou  bofete;  vem  a  ser  a — Historia  do  descubrimento  das  Anti- 
lhas e  Índia — por  António  Galvão,  a  quem  premiaram  com  dezesete 
annos  de  hospital,  e  na  morte  um  lençol  pelo  amor  de  Deus  para  o 
amortalharem.  Óptimo  livro!  É  uma  synopse  chronologica  de  todos  os 
descobrimentos  por  mar,  e  illustra  muito  Fernão  Mendes  peio  que  per- 
tence ás  ilhas  do  Oceano  pacifico.  Eu  o  acho  mais  exacto  em  datas, 
em  topographia,  cosmographia,  pelo  que  respeita  ás  índias  de  Hespa- 
nha,  que  os  mesmos  dois  grandes  historiadores  Fernando  de  Herrera, 
e  António  de  Solis.  É  um  epitcme,  como  o  de  Eutropio,  ou  de  Jus- 
tino; e  muitas  vezes  em  pouco  diz  mais  e  melhor  que  o  áspero  e  di- 
fuso João  de  Barros;  porque  este  Galvão  pinta  o  que  viu,  e  João  de  Bar- 
ros o  que  lhe  disseram.  Eu  o  offereço  pois  a  V.  Ex.*,  porque  é  um  lit- 
terato,  que  d'elle  pode  fazer  um  excellente  uso.  É  notável  o  ,que  diz 
a  paginas  22,  sobre  um  mappa  achado  no  Cartório  de  Alcobaça  no 
anno  de  1S28;  eu  sabia  da  existência  d'este  mappa,  que  é  de  Martim 
de  Bohemia,  mas  não  sabia  que  o  infante  D.  Fernando  fallara  n'elle, 
nem  que  do  Cartório  se  tirara;  e  fallando  eu  n'elle  a  Ricardo  Raymun- 
do,  a  Regência  me  mandou  a  casa  um  aviso,  para  que  fosse  examinar 
esta  e  outras  cousas  de  importância  no  paiz  das  leltras.  Como  eu  de- 
via ir  á  minha  custa,  porque  o  Erário  estava  muito  alcançado,  cuidei 
em  ir  aturar  os  carolas  das  irmandades,  para  lhes  gritar  algum  ser- 
mão, que  em  me  fazer  busca-mappas  á  minha  custa.  Saibam  lodos 
quantos  o  quizerem  saber,  que  em  Portugal  lançar-se  no  partido  das 
lettras,  é  o  mesmo  que  emigrar  para  Hespanha  com  o  Marquez  de  Cha- 
ves, todos  a  eito  e  a  esmo  criminosos,  dignos  de  áspero  castigo,  e  so- 
lemne  desamparo.  Eu  dei  na  fina,  estou  com  o  milord  Bollingbroock 
quando  sahiu  do  nrinisterio  no  tempo  da  rainha  Anna;  retirou-se,  e 
não  lia  nem  queria  ler  senão  os  livros  mais  ineptos  que  apparecessem. 
Elle  não  foi  tão  feliz  como  eu  n^esta  resolucção,  porque  lhe  não  ap- 
pareceu  o  que  me  appareceu  a  mim,  que  é  a  — Defeza  dos  Direitos 
nacicnaes  e  reaes  —  pelo  maior  mentecapto  do  mundo,  tanto  velho 
como  novo,  o  Desembargador  Doclor  José  António  de  Sá.  —  Nocturna 
versate  manu,  versate  diurna — Isto  é  verdadeiramente  o  exemplaria 


AO  ARCEBISPO  VIGÁRIO  GERAL  461 

grceca;  o  que  aquillo  seja,  ainda  aié  hoje  ninguém  entendeu,  e  abra- 
çado com  o  meu  Sá,  acabarei  a  minha  vida.  Quando  os  facultativos 
me  querem  impingir  laudano,  digo  á  moça:  —  Traze-me  cà  o  Sá  —  que 
ella  perfeitamente  conhece,  por  ser  aqui  o  filho  único,  e  estar  sempre 
n'uma  cadeira  ao  pé  da  outra  em  que  me  assento.  V.  Ex.*  estará  sem- 
pre desejando  ver  terra,  porque  parece  que  não  acaba  a  viagem  d'esta 
carta;  pois  Ex.°"*  Sr.,  aqui  dá  fundo,  ficando  insondável  o  profundo 
respeito  com  que  sou 

De  V.  Ex.* 

Súbdito  obed.'®  e  afifecluoso  am.° 

/.  A.  de  M. 
Pedrouços,  27  de  Junho  de  1829. 


VI 

EX."^  R  mo  Sj. 

Ligado  em  uma  cama,  com  o  mais  terrível  ataque  de  gota,  que 
me  despedaça  o  pé  direito,  com  trabalho  indizível  vou  á  presença  de 
V.  Ex.*  para  valer  a  um  innocente,  qual  é  este  P.'  Joaquim  José  Pi- 
nheiro, não  porque  eu  o  diga,  mas  porque  assim  é  lido  na  freguezia, 
(jue  está  em  alvoroço  e  commoção,  vendo-o  tão  atrozmente  calum- 
liiado.  Eu  dou  a  V.  Ex.*  uma  idéa  do  seu  accusadcr  com  as  palavras 
de  Juvenal  —  Monstriim  nidla  virtute  redempttim. — Um  genovez,  que 
aqui  appareceu,  e  poz  uma  fabrica  de  papel  pardo  em  um  palheiro  e 
estrebaria  na  Rua  do  Telhai,  defronte  do  muro  das  parreiras;  aca- 
bou-se  logo  o  papel  pardo,  e  arvorou-se  em  vice-consul  de  Sua  Ma- 
gestade  Sarda,  isto  é,  criado  do  cônsul  sardo,  que  é  dentista  genovez; 
calotes,  contrabandos,  gatos  por  lebres,  eis  aqui  a  vida  do  accusador; 
e  até  a  mim  cum  doctrinis  nostris  me  enganou  com  um  canastrel  de 
macarrão  de  torna  viagem  por  três  cruzados  novos,  ião  duro  e  ava- 
riado, que  nem  os  pobres  o  quizeram  á  porta.  Convidou  o  clérigo  para 
sua  casa  por  4)^800  por  mez,  malou-o  á  fome,  e  o  clérigo  fugiu  de  lá; 
pedia  nas  tendas  em  nome  do  clérigo,  que  elie  pagou  com  lingua  de 
palmo.  Eu  me  constituo  advogado  do  clérigo;  o  accusador  ha  de  vir 
com  seu  libeilo,  quando  chegar  a  estes  lermos  eu  responderei  por  ar- 
tigos; elle  deve  ter  juntado  documentos  á  sua  accusação;  ponha-se  a 
cousa  em  tela  judiciaria,  e  verá  V.  Ex.*  quem  é  o  vice-consul  sardo, 

CARTAS.  H 


462  CAUTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

fabricante  de  papel  pardo;  elle  merecia  que  V.  Ex.*  o  mandasse  para 
a  cadeia  por  calumniador,  ou  que  mandasse  pôr  silencio  a  semelhante 
impostor,  e  se  consolasse  o  pobre  clérigo,  que  é  verdadeiramente  o 
infamado. 

Tolhido  de  dores,  e  ardendo  em  febre,  só  posso  escrever  agora 
que  sou 

De  V.  Ex.» 

Súbdito  e  am.°  obrig.""* 
Pedrouços,  21  de  Maio  de  1830. 

/.  A.  de  M. 


AO  DR.  FR.  DOMINGOS  DE  CARVALHO* 
Graciano,  lente  de  prima  de  Theologia  na  Universidade  de  Coimbra 


18S©— leso 


Meu  antiquíssimo  amigo,  e  meu  muito  eradilo  collega.  Hontem  6 
do  corrente  Agosto,  dia  da  Transfiguração,  também  eu  me  transfigu- 
rei; e  na  presença  de  muitos  corcundas  que  estavam  commigo  —  Viden- 
tibus  illis  —  porque,  ou  pelo  pezo  da  enfermidade,  ou  peia  Índole  das 
circumstancias,  esta  minha  cara  sempre  annuviada  de  tristesa,  ficou 
banhada  de  uma  vivíssima  luz  de  contentamento  e  alegria,  ao  receber 
a  tua  presadissima  carta,  que  despertou  em  minha  alma  as  mais  en- 
ternecedoras  recordações.  Coimbra  I  O  GoUegiol  A  quinta  de  Valmeãof 
Isto  para  o  meu  coração,  que  tem  as  fibras  tão  irritáveis I  Accresce 
mais  para  augmentar  estas  emoções  incomprehensiveis,  ser  mandada 
a  tua  carta  do  palácio  do  nosso  tão  respeitado  e  tão  venerado  collega 
o  Em."""  Sr.  Cardeal  da  Silva.  Tudo  isto — post  vários  casus,  post  tota 
discrimina  rerumt — Casos  e  cousas  que  me  tem  apparecido  no  dila- 
tado periodo  de  51  annos!  E  que  coincidência  de  cousas!  Recebo  a 
tua  carta  no  momento  em  que  estava  revolvendo  os  papeis  que  aqui 
me  deixou  o  Dr.  Faustino  Simões  Ferreira,  mais  um  documento  dos 
absurdos  constitucionaes  d'essa,  agora  tão  reformada  Universidade! 
Se  a  providencia  me  não  houvesse  posto  n'este  lastimoso  estado  de  in- 
sanável enfermidade,  que  me  torna  immovel,  por  que  com  muito  tra- 
balho posso  apenas  sahir  da  cama  para  sentar-me  n'esta  cadeira,  este 
era  o  instante  de  realisar  o  presupposto  que  ha  muilo  se  me  tinha 
apresentado  na  alma,  que  era  o  de  reverter  para  a  Ordem,  com  a 
única  condição  de  permanecer  para  sempre  n'esse  Collegio,  e  ahi  em 


•  Impressa  em  1871  no  Conimbricense,  n.°'  2:449  e  2:450. 


164  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

ocio  absoluto  seguir  o  impulso  que  me  deu  a  Natureza  para  o  estudo 
das  Boas-Letras  em  uma  cidade  conhecida  pela  sua  cultura.  Este  im- 
pulso se  desenvolveu  em  mim  na  edade  de  30  annos,  por  um  phe- 
noioeno  inexplicável  em  physologia,  pois  por  um  accidente  adquiriu 
nova  forma  o  mechanisrao  do  cérebro.  Isto  pede  explicações,  que  nem 
são  para  uma  carta  missiva,  nem  para  o  presente  momento.  Desvane- 
ceu-se  esta  minha  determinação  pela  minha  enfermidade.  Vamos  á  tua 
carta,  a  que  eu  não  darei  uma  só  resposta.  Conservo— a//a  mente  re- 
posium ~  ãmhos  os  varões  assignalados,  S.  Luiz  e  o  Quixote  Sá,  olim 
Fr.  José  da  Piedade,  orate  sem  vergonha,  o  que  prova  o  facto  seguinte. 
Poucos  tempos  antes  da  morte,  ou  assassínio  d'el-rei  D.  João  VI,  fa- 
zendo-se  por  subscripção  uma  festa  em  acção  de  graças  pelas  melho- 
ras da  Infanta,  depois  Regente,  a  que  El-rei  assistiu,  quando  o  Prior 
da  Freguezia,  que  ainda  hoje  é  ex  illis,  porque  assim  o  faz  manifesto 
a  sua  loquella,  foi  dar  parte  a  El-rei  da  hora  a  que  devia  começar  a 
festa,  na  véspera  da  mesma  festa,  lhe  perguntou  El-rei:  quem  era  o 
Pregador?  —  O  Sr.  lente  Sá,  —  lhe  respondeu  este.  Pois  eu  não  quero 
que  seja  esse,  e  vá  já  convidar  da  minha  parte  José  Agostinho.  As- 
sim o  fez,  vindo  aqui  a  Pedrouços  lavado  em  lagrimas;  mas  vingou-se, 
convidando  o  mesmo  Sá  para  ir  cantar  o  Evangelho,  e  teve  tão  pouco 
pejo  que  foi.  El-rei  não  esperou  que  a  missa  acabasse,  abalou.  Não 
era  preciso  tanto  para  se  conhecer  Sá,  ainda  que  não  tardaram  as  car- 
tas, em  que  mais  se  conheceu.  Tanto  elle  como  o  actual  monge,  não 
já  de  Cassino,  mas  da  Serra  d'Ossa,  com  o  seu  liberalismo,  com  os 
seus  gallicismos  e  com  os  seus  Synonimos,  tem  um  jus  inquestionável 
a  occupar  um  logar  distinctissimo  na  Esfolada  Besla.  Eu  te  vingarei 
das  injustiças,  ainda  que  nos  fragmentos  da  tua  Oração  não  vão  mal 
aquinhoados.  São  bem  trazidos  os  versos  de  fecundo  Ovidio  nas  pra- 
gas contra  Ibis.  As  expressões  de  S.  João  Chrysostomo,  este  eloquen- 
tíssimo varão,  e  o  mais  eloquente  de  quantos  escreveram,  como  lhe 
chama  António  Vieira,  são  muito  bem  trazidas,  e  muito  melhor  apro- 
priado o  texto  de  S.  Paulo.  Jubilaram-te  na  cadeira?  Muito  melhor, 
se  te  conservaram  o  ordenado;  juntarás  mais  livros  á  tua  soberba  col- 
leção,  a  que  me  parece  faltam  o  Luciano  de  Odempdorpío,  2  vol.  em 
grande  4.^  e  o  Tácito  —  variortim,  que  é  a  melhor  edição,  em  que  se 
ajuntam  os  trabalhos  de  todos  especialmente  os  de  Justo  Lipsio,  pois  me 
não  lembro  que  n'este  me  fallasses.  Boa  invtja  te  tenho,  e  antes  que- 
ria estar  comtigo  na  quinta  de  Valmeão,  oblitus  meorum  oblivescendus 
et  illis,  que  n'este  Tusculano  de  Pedrouços.  Estou  cançado  do  munda 
e  de  políticos. . .  Vanitas  vanitatum  et  omnia  muitas,  para  dar  os  ul- 


AO  DR.  FHEl  DOMINGOS  DE  CARVALHO  l'65 

timos  cuidados,  e  chamar  ainda  á  bigorna  um  poema,  em  que  tenho 
consumido  tempos,  intitulado — Viagem  extática  ao  Templo  da  Sabe- 
doria.—  Com  este  fecho  o  circulo  da  minha  sempre  triste  e  trabalhosa 
existência.  As  folhas  volantes  da  Besta  Esfolada  são  diversões  ás  minhas 
dores,  e  me  entretenho  como  Erasmo  com  o  Encomiom  Morae  ou  Elo- 
gio da  Loucura.  Estimo  que  te  lembrasses  do  homem  extraordinário 
Fr.  Francisco  de  S.*°  Agost."  de  Macedo;  pena  é  que  homem  tão  grande 
se  perdesse  em  nadas;  só  dou  preço  a  três  producções  suas,  duas  são 
as  iinicas  que  escreveu  em  portuguez,  o  Sermão  de  S.  Thomé  na  Ca- 
pella  Real,  e  o  das  Exéquias  de  Luiz  XIII  na  egreja  do  Loreto,  e  a 
terceira  o  Elogio  em  latim  dito  a  D.  Luiz'de  Souza,  Bispo  de  Lamego  e 
Embaixador  a  Roma.  Que  tempo  perdeu  este  homem  único  na  tedi- 
osa e  volumosa  comparação  da  douctrina  de  S.  Agostinho  com  a  do 
subtil  Scoto!  Assim  mesmo  merecia  que  os  de  Coimbra,  ou  de  Botão, 
onde  nascera,  lhe  levantassem  uma  estatua,  como  a  outros  que  menos 
as  mereceram  levantaram  tantos  povos! — Et  ta.men  tantm  hic  vir  mo- 
nástico dum  taxat  indtitits  habitu,  et  domesticis  insignitus  honoribus,  se- 
pelitur.  Disseram  de  Petavio,  que  lhe  acharam  no  craneo  o  duplo  do  cé- 
rebro dos  outros  homens:  se  anatomisassem  o  d'este  capucho,  por  vida 
minha  lhe  achariam  o  quádruplo.  Só  por  desenfado  dize  ao  reverendo 
Guardião  que  te  mostre  a  carunchosa  cadeira  em  que  elle  se  assen- 
tava para  ensinar,  e  que  no  livro  das  profissões  te  faça  vêr  a  sua  as- 
signatura  no  triennio  do  provincial  Fr.  Bernardo  dos  Martyres.  Isto 
são  pequenas  cousas,  mas  eu  lhes  dou  um  grande  preço,  porque  lhes 
acho  um  grande  sabor,  e  ha  pouco  tempo  mandei  um  perfeitíssimo 
desenhador  que  me  tirasse  uma  copia  exacta  do  precioso  e  magnifico 
basto  de  mármore  de  Garrara  que  existe  na  livraria  de  S.  Francisco 
da  Cidade  em  frente  do  busto  de  Lucas  Wadingo,  analista  dos  Fran- 
ciscanos, cujas  obras  em  doze  volumes  de  folio  mandou  imprimir  em 
Roma  com  sua  costumada  magnificência  El-rei  D.  João  V.  Os  frades 
da  Graça  de  tudo  se  esquecem  (e  de  mim);  elles  deviam  ter  feito  as 
mesmas  honras  a  Fr.  Egidio  da  Apresentação,  admirável  escholatico  e 
profundo  engenho.  Deixemo-nos  de  homens  de  lettras,  porque  isso  é 
um  titulo  para  sermos  apupados.  Se  te  encontrares  com  o  P.®  M."  Dr. 
Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura,  dize-lhe  que  eu  me  recommendo.  Lis- 
boa, 7  de  Agosto  de  4829.  Sou  teu  am.°,  porque  o  sou  ha  51  annos 

/.  A.  de  M. 

P.  S.  Se  me  escreveres,  põe  no  sobrescripto  —  Á  Sr.*  D.  Maria 
Cândida. — Pedrouços — Lisboa. 


166  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


II 


Meu  bom  amigo,  antigo  e  aproveitado  cocdiscípulo;  mestre  insi- 
gne e  consumado  litleralor.  Não  respondi  á  tua  muito  presada  carta, 
porque  accessos  imprevistos  do  meu  terrivel  mal  me  não  deixam  fazer 
o  que  quero.  Hoje,  quinta  feira  19  de  Agosto,  que  com  mais  desafogo 
posso  mover  estes  três  dedos,  me  preparo  com  estas  regras  para  o 
correio  de  sabbado.  Em  primeiro  logar,  chamem  embora  ao  amor  dos 
livros,  e  á  nobre  paixão  pelos  melhores, —  Biblomania  —  eu  lhe  cha- 
marei óptimo  juizo,  apurado  gosto,  e  virtuosíssima  ambição.  Por  isso 
louvo  e  approvo  muito  o  teu  procedimento  na  escolha,  porque  quanto 
a  mim  o  luxo  mais  digno  do  homem  grande,  é  o  luxo  typographico. 
Eu  o  goso  por  intervenção  de  um  meu  amigo,  o  ex-Gazeteiro  Joaquim 
José  Pedro  Lopes.  Se  algum  dia  viesses  a  Lisboa  admirarias  uma  rica 
e  bem  escolhida  bibliotheca,  em  um  homem  particular,  de  que  se  pode 
dizer  o  que  se  disse  de  Ant."  Maggliabechi,  bibliothecario  de  Florença: 
Que  os  livros  o  punham  na  rua,  porque  lhe  não  cabiam  em  casa,  e  tanto 
a  entulhavam,  que  não  cabia  elle. 

Verias  uma  collecção  completa  de  todos  os  clássicos  gregos  e  ro- 
manos; isto  terás  e  tens  muitos,  mas  ninguém  ajuntou  uma  completa 
collecção  de  todos  elles  traduzidos  em  hespanhol  desde  o  tempo  de 
Carlos  V  até  Filippe  IV,  até  de  Suetonio,  que  os  Fraucezes  nunca  tra- 
duziram senão  agora;  e  de  Valério  Flacco,  etc.  etc. —  Elle  também 
tem  muitas  edições  variornm  que  talvez  tu  não  lenhas  ainda,  como 
a  de  Séneca  Philosopho,  a  de  Quinto  Curcio,  de  Petisco,  e  de  Estacio,. 
que  eu  lhe  dei.  Sobre  este  valentíssimo  poeta  vae  uma  digressão. 
Sempre  me  tocou  muito  seu  fogoso  enthusiasmo,  e  logo  depois  da 
minha  transformação  aos  trinta  annos  eu  traduzi  todos  os  doze  livros 
da  Thebaida  em  óptimos  versos,  que  por  bons  que  fossem  nunca  po- 
deriam corresponder  ao  Ímpeto  e  ao  fogo  do  original,  mas  emfim  ou  a 
conclui,  e  deitava  a  obra  a  dois  volumes  em  4.°  Que  fatalidade!  Em- 
presto a  um  amigo  o  primeiro  volume  que  continha  os  primeiros  seis 
livros,  depois  mandando-o  buscar,  o  moço  o  perdeu  na  rua  juntamente 
com  uns  calções  que  me  trazia  de  casa  do  alfaiate!  Restam  os  seis 
últimos,  que  ahi  estão,  e  eu  sem  animo  para  nova  traducção  dos  pri- 
meiros. Outra  egual  fatalidade  com  Horácio.  Eu  o  traduzi  todo,  desde 
Mecenas  até  Non  missura  cvtem.  O  primeiro  volume  das  Odes  ahi  está 
impresso,  e  é  mais  alguma  cousa  que  a  traducção  de  António  Ribeiro 


AO  DR.   FRKI  DOMINGOS  DE  CARVALHO  467 

dos  Santos.  E  o  segundo?  Abalou-me  com  elle  mais  para  o  Rio  de 
Janeiro  um  frade  capucho,  que  era  botânico,  e  se  chamava  Fr.  José 
Mariano  Velloso,  e  nunca  mais  o  vi,  lá  ficou  livro  e  frade,  e  eu  cá  fi- 
quei tão  aborrecido  de  traducções,  que  não  tornei  a  fazer  outra  senão 
a  que  fiz  ha  dois  annos  do  Elogio  de  Pio  VII,  que  se  imprimiu,  e  é 
cousa  espantosa.  Fr.  Fortunato  iá  terá  algum  exemplar,  que  t*o  faça 
vêr.  Na  collecção  castelhana  do  Lopes  ha  a  traducção  de  Tito  Livio,  e 
a  de  Plinio  Naturalista,  que  tu  deves  ter,  mas  da  edição  do  jesuita 
Harduino.  Nós  em  Portugal  existimos  na  época  das  ruinas  da  Litte- 
ratura,  d'aqui  amanhã  ninguém  estuda  latim.  Eu  estou  cançado  de  lei- 
turas e  de  composições.  Para  diversão  das  minhas  inierminaveis  do- 
res calamo  ludimiis.  Ninguém  tem  mais  amor  ás  letras,  e  d'isso  tenho 
dado  provas.  Rio-me  do  livro  de  Cornelio  Agripa — Devanietate  Scien- 
tiarum,  e  do  Discurso  do  seu  copiador  plagiário  João  Jacques  coroado 
pelo  Academia  de  Dijon;  a  vaidade  das  sciencias  não  está  nas  sciencías, 
está  no  fructo  e  galardão  das  mesmas  sciencias,  no  despreso  e  estima 
que  d'ellas  fazemos  os  que  as  deviam  adorar  e  recompensar.  O  poema 
Meditação,  segunda  edição,  é  único  no  seu  género;  o  poema  Oriente 
vale  mais  que  os  Lusíadas,  e  avulta  mais  que  o  Caramuru  do  nosso 
bom  Durão.  O  poema  Newton  é  um  compendio  de  erudição  antiga  e 
moderna.  Pois  meu  bom  amigo,  nem  me  dão  aquillo  de  que  os  gregos 
só  eram  avarentos — Praeter  laudem  nullius  avari. — O  livro  intitulado 
— A  Existência  de  Deus  a  priori,  é  o  ultimo  esforço  da  dialéctica;  ou 
nâo  o  entendera,  ou  a  ninguém  importa.  O  que  os  portuguezes  me  não 
fazem,  cuidam  em  fazer  os  estrangeiros.  Não  ha  muito  me  chegou  de 
Roma  um  diploma  da  Academia  Tiberina,  que  se  emprega  no  aperfei- 
çoamento das  Sciencias  e  Boas-Artes.  De  Nápoles  também  me  manda- 
ram um  outro  diploma,  e  de  Inglaterra  me  mandam  retratar,  e  ahi  está 
o  artista  para  isso;  mas  com  isto  não  se  manda  ao  açougue,  nem  me- 
lhora a  minha  sorte. 

Uma  parte  da  tua  carta  occupou  o  meu  espirito,  outra  enterneceu 
meu  coração,  porque  conheço  a  sinceridade  da  tua  generosa  ofiFerta. 
Não,  meu  bom  amigo;  nada  me  falta  senão  saúde,  e  desde  1793  com 
o  meu  trabalho  do  púlpito  tive  e  conservo  a  mais  commoda  subsistên- 
cia; nada  me  falta,  torno  a  dizer,  senão  a  saúde,  e  não  deixo  de  ter 
com  que  me  trate  na  enfermidade,  e  com  abundância.  Em  18á6  me 
deu  o  Governo  uma  pensão  de  300)$ÍOOO  réis,  porque  é  costume  dar-se 
alguma  cousa  a  quem  prega  nas  exéquias  do  rei,  quando  são  manda- 
das celebrar  pelo  que  lhe  succede;  isto  não  anda  bem  pago,  mas  assim 
mesmo  contribue  para  a  minha  indepente  subsistência.  Beijo-te  pois  a 


168  CARTAS  DE   JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

mão  pela  lembrança,  e  pela  offerta.  Sim  eu  desejava  recolher-me  e  ir 
viver  n'esse  Collegio,  mas  o  meu  estado  de  saúde,  a  minha  edade  de 
64  annos,  fazem  que  se  amorteça  esse  desejo;  nada  posso  trabalhar, 
e  depois,  se  um  Provincial  me  desse  essa  moradia,  outro  viria  que  m'a 
tirasse,  e  mandasse  servir  á  taboa  na  Graça;  isto  depois  de  eu  ter  ap- 
parecido  na  grande  scena  do  mundo  entre  applausos  e  respeitos  de 
todo  quanto  ha  grande,  e  de  levar  outro  dia  uma  publica  demonstra- 
ção de  affecto  e  consideração  d"El-Rei,  porque  passando  por  aqui,  me 
fez  três  cortezias,  uma  com  a  mão,  e  outra  com  o  chapéo,  tirando-o  da 
cabeça,  e  levando-o  até  abaixo!  Isto  faz  desvanecer  o  meu  desejo,  e 
acabarei  tranquillo  no  estado  em  que  estou.  Se  eu  tivesse  saúde  iria 
estar  seis  meses  em  Coimbra,  e  lá  imprimiria  a  minha  ultima  compo- 
sição. Gosa  tu  das  luas  acquisições  litterarias,  e  entre  tantas,  da  que 
mais  te  invejo,  as  Obras  de  Erasmo.  Escreve-me  que  eu  corresponde- 
rei, e  não  te  esqueças  do  sobrescripto  que  puzeste  na  ultima  que  re- 
cebi tua.  Vé  se  te  sirvo  para  alguma  cousa,  tudo  fará 

Teu  am.®  bem  deveras  e  bem  obrig.*^" 

J.  Á.  de  M. 

Lisboa  e  Pedrouços,  49  de  agosto  de  1829. 


III 

Meu  bom,  meu  velho,  meu  querido  amigo  e  companheiro;  recebi 
a  tua  carta  de  3  do  corrente  Fevereiro,  e  n'ella  não  vejo  novas  de  uma 
que  não  ha  muito  tempo  te  havia  escripto;  talvez  se  desviasse.  Pedes- 
me  a  carta  para  o  nosso  amigo  o  Dr.  Fr.  Fortunato;  fallemos  n'isto. 
Sentei-me  â  mesa,  ou  banca  para  lhe  escrever,  como  a  ti  te  escrevo, 
em  meia  folha  de  papel,  uma  missiva  e  breve,  em  que  lhe  offerecia  o 
meu  parecer  sobre  o  verdadeiro  modo,  ou  methodo  de  defender  os  Je- 
suítas; foi  o  inverso  de  Horácio — currente  rota — não  sahiu  um  púcaro 
mas  uma  talha  do  Alemtejo,  de  duzentos  almudes,  o  septifolio.  Dizia- 
Ihe  que  defendesse  os  Jesuítas  em  grande,  e  não  em  detalhe;  porque 
a  individuo  se  podia  oppôr  individuo  das  outras  ordens  regulares,  e 
para  o  convencer  lhe  lembrava  duas,  que  me  parecem  de  menos  vulto, 
que  vem  a  ser  os  Capuchos  e  os  Minimos,  e  menos  que  Mínimos  não 
ha;  e  para  lhe  mostrar  esta  verdade  o  mandava  á  livraria  do  Collegio 
da  Graça,  onde  no  fundo,  da  parte  direita,  e  ao  pé  dos  Expositores 


AO   DB.   FREI   DOMINGOS  bV.  CARVALHO  169 

acharia  as  obras  do  Minimo  ou  máximo  P.'  Marino  Merseno,  amigo  e 
mestre  de  Descartes;  que  também  acharia  á  entrada  da  parte  direita, 
ao  pé  de  Sgravesend,  que  lá  acharia  outro  Minimo,  Jaquier,  o  melhor 
entendedor  de  Newton,  etc.  Se  eu  me  quizesse  lembrar  de  outros  de 
outras  ordens,  os  Jesuitas  não  tiveram  lá  nem  Noris,  nem  Onufrio  Pan- 
vinio,  basta  d'estes.  D'aqui  passava  a  persuadil-o  e  dissuadil-o  de  es- 
crever a  historia  e  biographia,  etc,  tudo  em  uma  continuada  ironia, 
que  ^e  convertia  na  sátira  da  presente  indifferença  com  que  se  tratam 
as  letras  e  os  litteratos.  Esta  carta  que  fez  estampido,  correu  logo  com 
temporal  de  má  fortuna,  porque  foi  ter  a  mãds  que  por  devoção  a  ris- 
caram e  emendaram  muito;  assim  mesmo,  como  por  baixo  das  riscas 
se  lê  bem  o  texto,  está  nas  mãos  do  Sr.  Arcebispo,  nosso  honradissimo 
amigo,  e  ura  dos  homens  mais  estimáveis  que  existem,  por  todos  os 
tilulos.  Elle  mandou  tirar  uma  exacta  copia,  que  remetterei  para  esse 
«mporio  das  letras,  e  o  Dr.  Fr.  Fortunato  t'a  mostrará,  e  a  quem  elle 
quizer,  certo  que  eu  sustentarei  tudo  o  que  digo,  no  que  parecer  pa- 
radoxo, em  qualquer  espécie  da  litteratura  que  toco  na  mesma  carta. 
Meu  Decano  dos  sentimentí)s  honrados,  sabe  que  nada  se  pode  escre- 
ver, porque  nada  se  deixa  imprimir.  Eu  para  enganar  dores  e  vingar 
injurias,  vou  ampliando  o  poema  dos  Burros,  que  vem  a  ser  a  chro- 
nica  escandalosa  dos  presentes  tempos  em  Portugal,  e  ha  quem  faça 
imprimir  esta  Iliada  de  Borabardadas  nos  patifes  e  mais  nas  patifas. 

Ora  sabe  que  se  eu  tiver  alguns  visos  de  melhoras  até  o  meado 
de  Maio,  e  aqui  (encommendando-se)  apparecer  uma  liteira,  vou  pas- 
sar meia  dúzia  de  dias  em  uma  estalagem  de  Coimbra,  comerei  um 
quarteirão  de  laranjas  das  Sete  Fontes,  e  mostrarei  esta  cara  a  muitos 
figurões  malhadissimos  d'essa  Athenas,  sem  ser  a  do  tempo  de  Peri- 
des.  Isto  pende  de  algumas  melhoras  com  que  possa  sofifrer  os  leves 
balanços  de  uma  liteira.  Não  é  este  o  fim  principal,  mas  o  vêr  os  ca- 
racteres da  imprensa,  e  como  isso  por  ahi  vae  a  respeito  de  correcção, 
pois  intento  n'essa  officina  imprimir  o  poema — Viagem  extática  aopaiz 
da  Sabedoria. — Tenho-o  de  todo  concluído,  e  com  elle  intento  despe- 
dir-me  dos  homens  e  das  letras.  As  letras  me  enfadam,  e  os  homens 
me  desgostam.  Podes  assegurar  isto  aos  curiosos,  e  eu  prometto  uma 
novena  ao  Senhor  do  Arnado,  se  não  der  commigo  um  João  Bernardo 
de  Vilhena  e  Nápoles,  que  mil  vezes  aqui  me  desconjuntava  os  miolos 
com  secaturas,  e  taes  diarrheas  de  palavras,  que  muitas  vezes  lhe  re- 
petia no  meio  da  arenga  o  texto  sagrado — Sicasti  fluvios  Ethan — e  isto 
com  a  insanável  mania  de  versos  detestáveis  do  narcótico  poema  A  Mem- 
braida,  em  que  mui  seriamente  fallava  na  tripa  cagaiteira  e  nas  suas 


i70  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

funcçôes.  Agora  acabo,  pedindo-te  não  me  demores  as  tuas  letras,  de 
que  muito  gosto,  ainda  que  no  principio  me  custassem  a  ler.  Dize  ao 
Dr.  Fortunato  que  o  seu  livro — Historia  chronologica — é  muito  atacado 
por  João  Pedro  Ribeiro,  o  Pergaminho  velho;  eu  também  entro  no  es- 
tádio, mas  que  eu  me  despriorei  a  mim  e  a  elle;  que  já  saberá  d'isto, 
porque  Fr.  Joaquim  da  Cruz  Itie  terá  participado.  Aqui  Oco  esperando 
carta  tua,  e  rol  de  livros  que  tenhas  comprado,  e  determinações  que 
execute 

O  teu  velho  amigo 

/.  A.  de  M. 

Lisboa  e  Pedrouços,  7  de  Fevereiro  de  1830. 


IV 

Meu  bom  amigo:  Noli  esse  increduhis  sed  fidelis: — infer  digiliim 
tutim  hic. — Olha  bem  para  esta  carta.  Como  eu  sou  aqui  o  irmão  mais 
velho,  e  n'este  tempo  só  a  primogenitura  faz  os  reis,  governo  eu  ao 
menos  em  mim.  É  verdade  que  a  doença  não  me  tem  deixado  ir  aonde 
tenho  querido,  assim  mesmo  tenho  ido  onde  os  outros  têm  querido  que 
eu  vá.  A  22  d'ebte  mez,  faz  um  anno  que  El-Rei  quiz  que  eu  fosse 
pregar  na  festa  que  elle  mesmo  fazia  na  Sé,  o  que  verás  por  essa  carta 
de  agradecimento.  D'aqui  me  levaram  á  praia  da  Torre,  e  me  embar- 
caram em  um  escaler  de  mnitos  romeiros,  e  desembarcando  no  Ter- 
reiro do  Paço,  em  uma  carruagem  me  levaram  á  Sé,  e  isto  por  debaixo 
de  tal  tempestade  sonora,  com  tão  espantosos  trovões,  que  só  me  lem- 
brava ver  e  soffrer  outra  quasi  egual  n'essa  terra,  em  a  noite  que  em 
Semide  morreu  o  velho  bispo  D.  Miguel,  dizendo  no  dia  seguinte  o 
medico  Gato,  no  Collegio,  que  a  trovoada  fora  tal,  que  até  os  seus  fi- 
lhos se  pozeram  de  joelhos.  Harto  lo  has  encarecido!  A  22  de  novem- 
bro do  mesmo  anno  me  fez  sair  d'aqui  o  Esmoler  mór,  Commissario 
geral  da  Bulia  e  lá  fui  incommodo  em  uma  sege  a  S.  Roque  pregar  na 
publicação  da  mesma  Bulia.  A  22  de  Janeiro  d'este  anno  me  fez  sair 
d'aqui  o  Presidente  da  Sé  para  pregar  do  padroeiro  S.  Vicente;  sofifri 
os  balanços,  e  vim  melhor.  Ora  para  os  princípios  de  Agosto,  como 
dizes,  tempo  quente,  e  com  o  uso  das  aguas  que  me  mandou  o  Arce- 
bispo nosso  amigo,  e  em  uma  liteira,  cujo  movimento  é  doce  e  uni- 
forme, e  com  jornadas  pequenas  e  marcadas,  não  poderei  dispor  de 


ÀO  DR.   FBEI  D(;MINGOS  DE  CARVALHO  174 

mim,  Dão  poderei  tentar  a  requisição  de  outro  ambiente?  Sou  eu  por 
ventura  o  Sancto  Milagre,  que  não  sáe  senão  em  casos  muito  extraor- 
dinários, e  com  licença  da  Secretaria  de  Estado?  Esta  expedição  pende 
de  alguns  visos  de  melhoras,  que  é  presumi^el  com  a  mudança  da  es- 
tação e  temperatura  da  atmosphera;  o  frio  me  contrae  os  vasos  ouri- 
narios,  e  com  o  aperto  da  uretra  se  augmenta  a  dor.  Não  comerei  la- 
ranja de  mais,  mas  comerei  melancias  de  agosto.  Sei  qual  seria  o  bom 
accolhimento  que  me  farias  no  CoUegio,  mas  também  sei  que  não  devo 
causar  incommodos.  Quando  em  27  de  novembro  de  1823  fui  pregar 
á  Graça  na  estrondosa  festa  que  o  Senado  fez  pela  restauração  do  Rei 
em  Villa  Franca,  jantei  na  cella  de  Fr.  Christovão,  muito  compellido, 
que  nem  isso  eu  queria;  emíim,  torno  a  dizer  que  apontando-me  alli- 
vios,  ou  vindo  estado  menos  incommodo,  eu  vou,  e  sobre  o  sermão  do 
Patriarcha  lá  me  dirão  o  que  querem,  já  que  querem  soffrer  Menino 
entre  os  Doutores,  mas  velho  no  oíScio.  Eu  me  figuro  o  que  Fr.  For- 
tunato diria  sem  se  conter,  porque  não  pode,  e  tem  razão  Eu  ainda 
não  preguei  do  assumpto,  mas  estou  certo  que  em  se  acabando  o  moi- 
mento ou  tumulo,  que  se  está  fazendo  na  capella  do  Ramaihão,  vindo 
o  corpo,  que  alli  está  perto  na  freguezia  de  S.  Pedro,  alli  irei  pois  me 
dizem  que  El-Rei  assim  o  determina,  mas  vem  o  aviso  na  véspera,  como 
aconteceu  com  a  sua  funcção  da  Sé.  Sexta  feira  12  do  corrente  á  noite 
se  entregou  ao  duque  de  Cadaval  o  numero  do  Defensor  dos  Jesuítas 
a  quem  não  quizeram  dar  licença;  veremos  se  elle  faz  o  milagre.  O 
Directório  Central  Maçónico  não  quer  que  se  imprima  cousa  alguma  que 
possa  revelar  mysterios.  Mal  sabe  Fr.  Fortunato  como  é  tratado  nos 
papeis  inpressos  em  Inglaterra,  na  muito  nobre  e  casta  lingua  portu- 
gueza,  com  especialidade  em  dois,  um  chamado  O  Chaveco,  outro  cha- 
mado O  Paquete!  N'uma  lhe  chamam  indigesto,  n'outra  masmarro;  mas 
que  se  console  commigo,  que  o  meu  quinhão  é  centuplicado,  não  só 
nos  porluguezes,  mas  nos  mesmos  inglezes,  até  ministeriaes,  Morning 
Journal,  Times,  ác.  Eu  gosto  de  pagar  logo  as  minhas  dividas,  e  aquillo 
são  para  mim  letras  pagas  á  vista,  e  eu  tenho  meio  e  modo  de  inserir 
nos  jornaes  inglezes  e  francezes  as  minhas  respostas.  Talvez  façam  ar- 
repender os  patifes  que  d'aqui  mandam,  e  lá  escrevem.  É  incrível  o 
que  se  espalha  na  Europa  sobre  a  questão  portugueza,  e  uma  das  pro- 
vas da  preponderância  pedreiral  é  não  estar  ainda  decidida.  Vi  e  li  hon- 
tem  uma  carta  de  Paris,  em  que  se  dizia  que  o  Conde  de  Sales,  alli 
Embaixador  dEl-Rei  da  Sardenha,  tivera  medo  de  acceitar  até  como 
presente  um  nosso  livro  agora  novamente  composto  sobre  os  direitos 
de  D.  Miguel,  soberbamente  impresso,  e  mais  soberbamente  enquader- 


i72  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

nado;  e  assim  se  me  remette  um  exemplar  pela  nossa  legação  de  Iq- 
glaterra,  porque  até  por  lá  se  conhece  este  estropeado  Entello,  mas 
batalhador;  chegado  que  seja  eu  t'o  enviarei.  A  carta  já  não  parece 
missiva,  mas  ainda  digo  que  um  Cónego  Regrante,  ainda  mui  rapaz, 
que  é  do  CoUegio  da  Sapiência,  e  que  ahi  pregou  dois  sermões  que 
imprimiu,  aqui  veiu  e  m'os  deixou.  Gostei  do  typo,  por  isto  fallei  na 
impressão  do  poema  n'essa  typographia.  Eu  lhe  paguei  com  um  exem- 
plar do  Oriente,  tirado  em  papel  fino  e  de  grande  formato  em  8."  Eu 
nunca  tive  paciência  de  rever  provas,  mas  dizem-rae  que  ha  ahi  um 
José  Vicente  de  Moura,  homem  muito  capaz  de  sofifrer  esse  tormento; 
atormentar-te  não  quero  eu  com  mais  dilatada  ou  comprida  arenga, 
acabando  com  dizer-te  que  sou 

Teu  am.°  ant.°  e  coll.'  obrig.™" 

/.  A.  de  M. 

Pedrouços,  16  de  Fevereiro  de  1830. 


A  que  se  refere  esta  Carta 

El-Rei  N.  S.  foi  servido  ordenar-rae  que  em  seu  real  nome  fizesse 
constar  a  V.  M."  o  quanto  Sua  Mag.'  ficou  satisfeito  de  que  V.  M." 
podesse  ir  no  dia  Í22  do  corrente  pregar  na  egreja  da  Sé;  e  do  mesmo 
modo  o  quanto  lhe  foi  agradável  o  seu  eloquenlissimo  Sermão.  O  que 
tudo  de  ordem  de  Sua  Mag."  participo  a  V.  M."  para  seu  conhecimento 
e  satisfação.  Deus  guarde  a  V.  M."  Palácio  de  Queluz  24  de  Fevereiro 
da  1829.  Visconde  de  Queluz. — Sr.  P.®  José  Agostinho  de  Macedo. 


A  FR.  CHRISTOVAM  HENRIQUES* 


Religioso  no  Couvento  da  Graça 

Intercedendo  pelo  Cirurgião  João  José  Durão,  que  pretendia  sel-o 
do  mesmo  Convento 

Meu  Christovam 

Eu  não  pediria  por  um  medico,  porque  sou  amigo  dos  frades  da 
Graça,  e  desejo  a  sua  vida  e  conservação.  Sei  quantos  golpes  lhe  tem 
cabido  em  casa,  para  lhes  pedirem  e  levarem  a  fazenda;  e  se  eu  pe- 
disse por  um  medico  lhes  faria  cair  o  raio  em  casa,  que  lhes  alimpasse 
a  vida,  e  á  custa  das  relíquias  da  fazenda  que  lhes  tem  deixado.  Um 
cirurgião,  quando  não  conspira  com  os  médicos  para  despovoar  um 
convento,  é  outro  cantar.  O  senhor  Durão,  portador  d'esta,  é  conhe- 
cido, acreditado,  estabelecido  e  respeitado;  e  tendo  elle  vindo  a  esta 
casa  muitas  vezes,  chamado  por  mim  e  para  mim,  bem  vês  que  estou 
vivo,  pois  te  escrevo  esta  carta.  Sei  que  o  cirurgião  d'esse  partido  vae 
para  Bissau;  cuidei  que  só  os  médicos  deviam  ser  mandados  para  este 
paraíso  do  mundo,  e  suas  annexas,  Gacheu,  Cabinda,  Pedras  de  An- 
gonche  e  Negras;  mas  emfim,  fica  o  partido  vago  pela  ausência,  e 
d'aqui  a  pouco  pela  morte  do  actual  empregado.  Desejo,  e  effectiva- 
mente  desejo  que  o  portador  seja  admittido.  Falia  da  minha  parte  ao 
Prior,  a  quem  me  recommendo  muito;  eu  lhe  preguei  na  sua  missa 
nova,  quando  eu  ainda  a  não  dizia;  quero  agora  a  esmola  do  sermão, 
que  vem  a  ser,  não  ficar  frustrado  o  meu  empenho.  Elle  Prior  é  o  pre- 
sidente do  Conselho,  talvez  de  tanta  importância  como  de  estado,  dei- 
xemo-nos  da  questão  se  tem  voto  consultivo  ou  deliberativo,  o  que  eu 
quero  é  que  não  fique  a  cousa  no  ár,  e  que  depois  de  redigido  o  al- 
vará da  nomeação  não  venha  o  Provincial  dizendo — Sua  Reverendís- 
sima quer  meditar — e  não  seja  a  meditação  mais  comprida  que  a  que 


•  Publicada  em  1871  ao  Conimbricense. 


174  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DR  MAClilDO 

nos  fazia  ter  pelo  Alonso  Rodrigues  o  reitor  Fr.  Lourenço  em  Braga, 
quando  de  Coimbra  me  mandaram  para  lá.  No  conselho  haverá  um  ou 
outro  membro  preopinante,  que  tenha  empenho  por  este  ou  por  aquelle ; 
mas  dize  da  minha  parte  ao  Prior  que  tenha  em  vista  aquella  pergunta 
que  fazia  Fr.  João  do  Rosário,  que  nos  dava  em  Coimbra  pasteis  de 
tutano  de  prato  do  meio,  quando  se  tratou  em  conselho  de  prover  o 
ministério  de  carreiro,  vago  pela  borracheira  e  morte  do  empregado; 
dizia  um  membro: — Eu  conheço  um  que  é  um  santo,  confessa-se  a 
miúdo,  ouve  missa  todos  os  dias,  e  é  muito  escrupulosa  em  matérias 
rapinantes. —  É  elle  um  bom  carreiro? — perguntava  o  reitor. — Faça 
a  mesma  pergunta  o  digno  Prior,  que  elle  ahi  é  único,  e  não  é  par. 
Eu  responderei,  sem  ser  do  conselho,  cá  de  fora,  já  que  a  mania  de 
hoje  é  quererem  todos  metter  o  focinho  no  governo :  — É  bom  cirurgião, 
muito  prompto,  e  muito  activo,  e  será  pouco  receilador,  porque  a  bo- 
tica é  do  convento.  Eu  ia  pondo  fora  do  partido  o  medico  Pequeno, 
quando  em  sua  alia  sabedoria  intentou  outorgar-me,  ou  empurrar-me 
uma  ajuda  em  uma  inflammação  de  olhos.  O  ataque  devia  ser  feito  pelo 
leigo  Fr.  Joaquim,  filho  do  Desembargador  Silveira  Prelo,  que  era  pe- 
ticego;  eu  disse  taes  cousas  ao  commandante  das  operações  que  elle 
me  chamou  judeu,  sendo-o  elle,  e  se  quiz  despedir  do  partido,  mas  eu 
não  levei  a  ajuda.  Agora  peço  para  se  dar  o  partido,  não  a  um  me- 
dico, mas  a  um  cirurgião  hábil;  não  duvido  que  malará  alguém,  mas 
não  malará  muitos,  que  é  o  que  devemos  pedir  a  Deus. 

Estou  maguado  cora  a  sorte  do  rapaz  pretendente;  eu  estava  certo 
que  cingiria  a  corrêa  de  Santo  Agostinho;  mas  ao  sair  da  missa  na 
cgreja  de  Belém,  lhe  cingiram  outras  corrêas  mais  largas  e  enverni- 
sadas,  e  o  obrigaram  a  deixar  pae  e  mãe,  não  pelo  claustro,  que  é 
cousa  inútil,  mas  por  uma  espingarda.  A  sagrada  causa  da  divinal 
Carta  pede  defensores;  os  rebeldes  já  não  profanam  o  solo  portuguez, 
mas  assim  mesmo  ha  Ímpios,  que  não  conhecem  o  legitimismo.  Outro 
dia  pregou  o  padre  Marcos  iconoclasta,  inimigo  dos  santos  de  vulto, 
em  Sanio  António  da  Sé,  que  se  os  mesmos  anjos  não  conhecessem  o 
legitimismo,  se  lhes  devia  atirar  (eu  estou  certo  que  os  anjos  lhe  mi- 
javam na  escorva).  Ora  não  mijem  os  do  conselho  no  meu  empenho; 
e  eu  estou  tão  doente,  que  tu,  os  do  conselho  e  todos,  me  devem  ir 
dispondo  um  habito  para  lá  me  enterrarem. 

Teu  amigo 

Casa,  23  de  abril  de  1827. 

/.  A.  de  M. 


A  JOAQUIM  ANTÓNIO  XAVIER  ANNES  DA  COSTA 


Administrador  da  Imprensa  Regia 

Agradecendo-lhe  um  nitido  exemplar  qne  este  lhe  remettera 
do  poema— ORIENTE 

111.""»  Sr. 

Recebi  o  presente,  como  cousa  sua  o  mais  precioso,  como  cousa 
minha. ..  esta  palavra  basta  para  se  saber  que  nada  valia,  e  se  lhe 
havemos  conceder  algum  mérito  este  só  lhe  pode  vir  das  suas  mãos, 
porque  o  poz  tão  Umpo,  e  tão  formoso,  que  deve  andar  pelas  mãos  de 
todos.  É  uma  prova  do  aperfeiçoamento  da  arte  typographica.  Se  em 
Portugal  não  ha  Bodonis,  é  que  em  Portugal  não  ha  uma  Catharina  II, 
que  os  anime,  nem  por  «Ha  mandado  um  cavalheiro  Azara,  que  os  pro- 
mova. Nós  somos  pobres  depois  que  fizemos  da  politica  regenerativa 
toda  a  nossa  opulência,  e  por  ella  podemos  ser  chamados  como  os  ro- 
manos—  Rerum  dominós  gentemque  togatam — e  as  nossas  togas  consu- 
lares e  senatorias  cuidam  mais  em  pôr  o  mundo  a  direito  com  theorias 
da  geral  emancipação  dos  povos,  que  em  dar  á  regia  OíScina  typogra- 
phica a  nomeada  que  tem  alcançado  a  de  Bodoni  e  a  de  Didot.  Con- 
teotemo-nos  com  a  que  temos,  mas  tendo  por  muitos  annos  o  mesmo 
administrador.  Tenho  feito  o  meu  cumprimento,  agora  a  minha  pin- 
tura. Estou  doentíssimo  com  o  que  ha  de  mais  terrível  em  moléstias 
©urinarias ;  todos  os  vasos  estão  na  ultima  ruina,  e  não  ha  mais  que 
um  doloroso  e  incessante  profluvio  de  sangue,  e  não  posso  dar  muitos 
passos  sem  delíquio;  assim  mesmo,  para  lenitivo  de  tantas  dores  não 
estou  ocioso;  não  ponho  as  Cartas  em  linha  de  trabalho,  não  são  mais 
que  desenfado  de  alguma  bebida  amarga,  visto  ter  eu  já  capitulado  com 
as  boticas;  levam  o  estylo  amargo,  que  este  também  é  remédio  para 
as  mazelas  politicas,  como  me  dizem  que  é  proveitoso  para  os  meus 
physicos  achaques  e  assim  vamos  coherentes.  Trato  de  cousas  mais  se- 
rias nos  pequenos  intervalos  de  tantas.  Olhei  para  o  poema  Newton  e 


i76  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

vi  alli  a  matriz  de  um  poema  que  obscurecia  a  Meditação  e  o  Oriente 
(se  estes  têm  algumas  luzes);  dou-lhe  outra  forma  e  outro  titulo  e  lhe 
chamo — As  quatro  Épocas  da  Litteratura — 1.*  a  do  século  de  Péricles, 
na  Grécia.— 2.'  a  do  século  de  Augusto,  em  Roma. — 3.^  a  do  século 
de  Leão  X,  na  Itália. —  4.*  a  do  século  de  Luiz  XIV,  na  França  e  na  Eu- 
ropa. Isto  tenho  preparado  e  feito,  porque  a  matéria  está  disposta  na 
historia  dos  conhecimentos  humanos;  só  tive  de  lhe  dar  a  forma  poé- 
tica sem  grande  trabalho  da  imaginação,  porque  não  ha  que  inventar  e 
tirar  como  no  Oriente;  mas  estas  quatro  épocas  em  que  época  vêm? 
Vêm  n'esta  que  vedes.  Oxalá  a  não  conhecêssemos  tanto  de  vista!  Uma 
dissertação  sobre  a  arrumação  interior  do  augusto  salão;  um  tratado 
analylico  das  capas  curtas,  determinando  na  ultima  analyse  se  ellas  se 
pareçam  mais  com  os  pobres  do  lava-pés,  se  com  a  Casa  dos  Vinte  e 
Quatro;  se  é  mais  ulil  para  a  illustração  publica  o  punhal  de  bico,  ou 
o  punhal;  se  o  poder  moderador  e  directivo  existe  mais  essencialmente 
na  classe  dos  bacalhoeiros,  que  existe  na  classe  dos  fanqueiros;  se  a 
legislação  tenha  feito  mais  progressos  no  cães  do  Sodré,  que  na  Ri- 
beira velha;  se  os  olhos  de  José  de  Sá  sejam  mais  tortos  que  os  seus 
discursos;  tudo  isto  me  levaria  mais  depressa  á  immortalidade,  que  a 
^omma  dos  conhecimentos  humanos  das  quatro  Épocas,  que  são  a  ma- 
téria dos  quatro  cantos  do  poema.  Se  eu  quizesse  fazer  um  poema  das 
quatro  épocas  da  parvoíce,  não  acharia  se  não  uma,  que  é  esta  que 
vedes;  pois  esta  também  tem  um  poema,  não  em  quatro,  mas  em  oito 
cantos,  que  a  tanto  tem  chegado  a  turba  quadrúpede. 

Senhor  meu,  para  As  quatro  Épocas  quero  eu  leltra  e  papel  tal, 
que  possa  dizer  o  mundo — Aqui  andou  a  mão  do  morgado  Malheus — 
e  que  possa  eu  responder  logo: — Não  senhor,  andou  a  mão  do  senhor 
Joaquim  António  Xavier  Annes  da  Costa,  que  é  o  morgado  dos  meus 
amigos,  porque  é  o  mais  velho  pelo  tempo  e  pelo  affecto;  e  eu  pelo 
affecto  e  pelo  tempo,  pelo  dever,  pela  obrigação,  pela  justiça  e  porque 
eu  quero,  sou  de  V.  S.^  amigo  e  tanto  basta. 


J.  A.  de  M. 


Forno  do  Tijolo,  12  de  junho  de  1827. 


A  JOAQUIM  JOSÉ  PEDRO  LOPES 


Meu  bom  amigo 

Pela  leitura  do  livro  vejo  que  soffro  duas  moléstias,  a  hematúria 
ou  efifusão  de  sangue,  quando  a  machina  se  abala  com  violência  em 
sege  ou  a  cavallo,  e  a  continência  da  ourina,  que  se  não  é  gota  a  gota 
é  de  instante  a  instante  em  pequeninas  porções;  leio  no  livro  o  que  em 
mim  sinto,  e  usarei  do  que  elle  determina,  que  é  o  mesmo  que  Fran- 
cisco Luiz  me  receitou. 

Vae  esse  primeiro  volume,  desejo  ler  o  segundo,  porque  é  a  me- 
lhor cousa  que  na  matéria  se  tem  escripto;  a  diffusão  allemã  não  en- 
fastia n'esta  obra.  Talvez  lhe  tenha  já  apparecido  alguma  prova  da  Ora- 
ção que  com  violência  me  usurpou  a  senhora  condessa,  sem  querer 
que  eu  ponha  a  mão  em  um  só  exemplar,  e  talvez  que  nem  a  vista  lhe 
ponha  em  cima;  cousa  assim  ainda  não  aconteceu I  Não  posso  dispor 
da  minha  propriedade;  d'esta  forma  o  que  convida  uma  musica  tem  di- 
reito de  tirar  aos  músicos  os  papeis  apenas  os  acabam  de  cantar.  Isto 
é  novol 

Aqui  estão  para  censurar  duas  obras;  uma  é  do  Rolland,  que  se 
elle  a  fez  é  Rollando  furioso;  outra  é  uma  gritaria  contra  os  touros  do 
Salitre,  e  contra  os  pedreiros  livres  despropositadamente;  está  mais 
um  rol  de  livros  do  Orcei;  nada  faço  sem  o  consultar  primeiro.  Algum 
dia  éramos  nós  os  cães  de  fila  do  governo,  agora  fiquei  eu  sendo  o  cão 
de  busca  dos  italianos.  Ahi  mandou  o  Núncio  esse  papel  italiano;  eu 
lhe  respondi,  que  só  o  actual  redactor  da  Gazeta  era  capaz  de  satisfa- 
zer aos  quesitos,  pela  preciosa  collecção  que  possuia  de  antigas  gaze- 
tas que  n'isso  fallavam  com  miudeza.  Veja  se  isto  tem  algum  caminho 
pelas  datas  das  mortes. 

CARTAS.  12 


178  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  Dlí  MACKDO 

Ponha  todo  o  cuidado  na  correcção  das  provas  do  Sermão  bifado; 
ao  menos  seja  lido  com  satisfação,  já  que  eu  a  não  tenho  de  dispor 
d'elle  como  desejava.  Creio  que  os  médicos  me  não  farão  o  mesmo  ao 
do  Hospital,  em  que  vou  cuidando. 

Seu  verdad/°  e  fiel  amigo 

. . .  Dezembro  de  1825. 

J,  A.  de  M. 


k  FRANCISCO  DE  PAULA  FERREIRA  DA  COSTA 


Meu  amigo 

Eu  só  sirvo  de  importuaal-o  e  de  lhe  dar  incoramodos;  aqui  veiu 
um  cónego  de  Évora,  em  toda  a  sua  pompa,  juntaado-lhe  a  qualidade 
de  bibliolhecario  da  immensa  livraria  de  ciucoenta  mil  volumes,  que 
alli  deixou  o  Bispo  Cenáculo,  que  os  leu  todos  I  E  como  entre  tantos 
não  se  encontra  um  só  que  eu  fizesse,  pretende  o  bibViothecario  levar 
tudo  o  que  haja  feito,  e  que  lhe  desse  o  catalogo. — Isso  não  é  com- 
migo  (lhe  disse  eu)  porque  sei  tanto  o  que  tenho  feito,  como  V.  III."* 
que  nada  sabe;  e  é  feliz!  — Mas  por  servir  a  V.  111.'"*,  e  os  livreiros, 
tenho  um  amigo  curioso,  que  me  poderá  servir  a  mim,  eu  lh'o  mando 
pedir. —  Veja  V.  M.*^®  se  me  pode  fazer  esse  obsequio,  e  feito  elle  eu 
o  mandarei  para  o  Arcebispo  Vigário  geral,  a  quem  se  me  pede  o  faça 
entregar.  A  minha  moléstia  está  cada  vez  mais  aggravada,  trato  de  vêr 
como  me  hei  de  arrastar  até  S.  Roque,  domingo  22;  se  lá  ficar  bom 
é  ficar  enterrado  na  Misericórdia,  tudo  fica  em  casa,  e  eu  á  sua  dis- 
posição, pois  sou  deveras 

Seu  do  coração 

J.  A.  de  M. 
II 

Meu  bom  e  muito  presado  amigo  Paula 

Recebi  o  seu  obsequio  e  lhe  peço  outro,  que  vem  a  ser  ura  só 
exemplar  da  comedia  D.  Luiz  de  Ataide,  que  com  empenho  aqui  me 
pede  pessoa  capaz.  No  Forno  é  verdade  ainda  lenho  dois;  mas  quem 


180  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

m'os  ha  de  mandar?  Os  dois  dragões  que  lá  estão  sabem  muito  bem 
furtar,  beber  e  dormir;  e  para  serem  mais  ditosos  que  tudo  isto,  nao 
sabem  ler.  Se  quizer  o  soneto,  que  lá  repetiu  o  Xavier,  eu  Ih  o  man- 
darei. Sou  muito  deveras 

Seu  amigo 
30  de  Outubro  de  1829. 

J.  Á.  de  M. 


AO  DESEMBARGADOR  JOSÉ  RIBEIRO  SARAIVA 


111.""»  Sr. 

Se  a  minha  attenuada  existência  não  fosse  n'este  momento  mais 
do  que  uma  imperfeita  morte,  eu  procuraria  pessoalmente  a  V.  S.'; 
de  tanta  monta  é  o  negocio  que  lhe  devo  expor I  Não  me  toca  a  mim, 
porque  nenhuns  lenho,  mas  toca  ao  throno,  ao  reino,  e  á  politica  eco- 
nómica do  mesmo  reino;  e  como  d'este  negocio  me  foi  dado  um  pleno 
conhecimento,  e  V.  S.*  é  n'elle  o  mais  competente  juiz,  o  mais  illus- 
Irado,  e  o  mais  recto,  e  o  mais  capaz  de  lhe  dar  a  verdadeira  direcção 
no  conceito  e  opinião  da  Junta  a  que  tão  dignamente  V.  S.*  pertence, 
confiando,  como  devo,  em  sua  benevolência,  me  animo  a  dirigir-lhe  es- 
tas, não  supplicas,  mas  reflexões  de  um  homem  que  tanto  deseja  o 
bem  publico. 

Arrematou-se  o  Contracto  do  tabaco,  como  se  não  arrematam  os 
contractos,  a  quem  menos  lançou  e  menos  dá;  o  das  carnes  arrema- 
ta-se  a  quem  por  menos  a  dá  ao  povo;  o  do  tabaco  arremata-se  a  quem 
por  mais  o  leva  a  el-rei.  Nova  operação  de  finanças,  que  ha  de  dar 
muito  em  que  cuidar  aos  auctores,  ou  contínuos  marteladores  de  Eco- 
nomias politicas.  O  actual  contractador  do  tabaco,  o  meu  honrado  amigo 
o  Sr.  José  Ferreira  Pinto  Basto,  perde  o  Contracto  porque  o  arremata 
por  mais,  e  sente  uma  quebra  em  sua  reputação,  porque  outro  o  leva 
por  menos.  Porque  motivo  se  dá  a  este,  e  porque  motivo  se  tira  áquelle? 
Razão  económica  nas  rendas  do  estado  não  pode  haver,  que  isso  seria 
contradictorio,  porque  era  desperdiçar  muito  quem  apenas  possue  quasi 
nada,  e  a  quem  a  regeneração  tem  reduzido  á  mendicidade.  Já  se  re- 
presentou respeitosamente  a  Sua  Magestade,  já  se  fez  conhecer  por 
uma  espécie  de  manifesto  aos  competentes  ministros,  ao  primeiro,  e 


182  CARTAS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 

ao  da  repartição  da  Fazenda,  que  o  Sr.  José  Ferreira  Pinto  Basto  ama 
muito  mais  o  seu  bom  nome  e  intacto  credilo,  que  sua  própria  fazenda 
e  património,  e  herança  de  seus  filhos,  querendo  continuar  no  contra- 
cto na  actualidade  de  sua  arrematação  1:435  contos  de  réis;  quer  ainda 
mais,  e  quer  o  qne  espantou  a  minha  philosophia,  porque  não  parece 
natural  procedimento  de  um  oíTendido,  quer  effectivamente  apresentar 
um  livre  e  espontâneo  donativo  de  cem  contos  de  réis,  que  immedia- 
tanienle  devem  entrar  no  real  erário:  quer,  e  quer  já  adiantar  mais 
seis  contos  de  réis,  que  deverão  ser  descontados  nas  progressivas  me- 
zadas,  além  do  avultadíssimo  deposito  de  dozentos  contos  de  réis,  como 
principal  condição  do  Contracto.  Pois  a  quem  quer  tanto  não  se  danada. 
Dizem  que  quem  tudo  quer,  tudo  o  perde;  este  não  quer  tudo,  quer 
dar  tudo,  ha  de  perder  o  que  se  lhe  tira,  que  é  a  sua  honra,  quando 
tanto  offerece,  e  tanto  dá  para  a  sua  conservação.  Isto,  111.™°  Sr.  é 
muito!  perder  o  estado  em  suas  rendas,  porque  não  recebe;  o  cidadão 
em  seu  credilo  porque  lh'o  maculam.  Também  eu  perco  a  única  cousa 
que  tenho,  que  é  a  minha  paciência,  á  vista  de  tantas  monstruosidades I 

Depois  de  tantos  erros  em  politica,  que  são  irremediáveis,  venha 
mais  um  em  economia,  não  tendo  nós  já  emplastros  que  possam  cica- 
irisar  tantas  feridas,  existindo  nós  exhaustos  de  sangue,  com  tantas 
sangrias  financeiras t 

O  pouco,  quando  vem  por  mãos  limpas  e  fieis,  parece  que  mais 
avulta  e  se  multiplica.  Quando  nos  primeiros  annos  da  regência  de  D. 
Pedro  II,  o  contracto  d'esta  magica  folha  que  se  chama  tabaco,  que  até 
passou  a  formar  um  dos  escudetes  das  bandeiras  imperiaes,  e  o  tim- 
bre que  remata  o  fechado  diadema  do  novo  mundo,  que  da  parte  de 
el-rei  quer  embutir  leis  ao  velho  mundo  que  ainda  que  nós  as  não 
queiramos,  outros  que  sabem  mais  do  que  eu,  e  mais  que  V.  S.'  que 
tanto  sabe,  como  sâo  o  marquez  de  Palmella,  o  Cândido  José  Xavier, 
que  ainda  vae  dando  uma  no  cravo,  outra  na  ferradura,  querem  e  atei- 
mam a  querer,  rendia  trinta  mil  réis,  que  tanto  alegraram  o  antigo  tri- 
bunal dos  contos,  6  chegavam  para  sustentar  os  terços  (batalhões)  nas 
fronteiras  contra  os  castelhanos.  Talvez  se  queira  agora  o  mesmo  mi- 
lagre, e  que  assentem  os  nossos  calculadores,  que  os  mil  e  quatrocen- 
tos contos  de  João  Paulo  Cordeiro  farão  mais  que  os  1:435  contos  de 
José  Ferreira  Pinto. 

111."""  Sr.  Santo  António  por  mais  um  vintém  faz  mais  milagres, 
e  a  bulia  por  mais  dois  vinténs  dá  mais  indulgências.  Dirão  que  não 
vem  da  conta,  mas  das  mãos  limpas  que  a  administram;  e  com  efifeito 
parece  que  João  Paulo  leva  o  Contracto  ás  mãos  lavadas,  e  que  também 


AO  DESEMBARGADOR  JOSÉ  RIBEIRO  SARAIVA  183 

OS  tem  OS  outros  servidores  da  toalha,  que  a  João  Paula  vêm  ajoujados. 
Nâo  tenham  elles  em  logar  das  mãos  limpas,  as  algibeiras!  Teremos 
nós  mais  alguma  especulação  mercantil  de  latrocínio?  Não  devo  ajui- 
zar assim  de  novos  varões  tão  conspícuos,  quaes  se  devem  considerar 
a  si  mesmos  os  nove  arrematadores;  comludo,  se  eu  me  devo  dirigir 
pelo  conhecimento  do  caracter  moral  dos  sujeitos,  muita  cousa  espera 
o  povo  dos  arrematantes  I  Sae  Sua  Magestade  de  Vienna;  quebram-se 
as  pernas  ao  Banco;  pois  este  banco  dos  nove  não  os  tem  mais  segu- 
ros, e  um  que  se  chama  José  Diogo  de  Bastos  não  poderá  entrar  com 
a  sua  quota  para  o  deposito  preliminar  do  contracto,  porque  tem  de 
reserva,  e  não  de  sobrecellente  alguns  tostões,  para  quem  lhe  apresen- 
tar a  cabeça  do  Marquez  de  Chaves,  como  elle  dizia  aqui  em  Pedrou- 
çosl. . .  Homem  constitucional I  E  os  mais?  Ainda  o  são  mais.  Citados 
para  apparecerem,  e  se  tratar  das  estipulações  do  Contracto,  não  ap- 
parecem;  buscados  depois  para  pagarem  o  arrendamento,  desappare- 
cerão,  e  ainda  muito  mais  se  o  recado  vier  do  Erário.  A  Inglaterra, 
que  não  tem  já  os  Estados  Unidos,  conserva  a  virtude  da  sua  hospita- 
lidade, é  a  mãe  e  a  consoladora  dos  afílictos,  e  ainda  que  na  sua  Car- 
tilha não  tenha  as  obras  de  misericórdia,  grande  pousada  dá  aos  pere- 
grinos. 

A  sua  benevolência,  amisade  e  sympathia,  me  animam  a  pôr  na 
presença  de  V.  S.*  estas  ingénuas  reflexões,  ou  estas  exhalações  de 
um  amor  verdadeiramente  pátrio;  agora  a  sua  auctoridade,  represen- 
tação, e  até  a  sua  eloquência,  mais  poderão  na  Junta,  e  onde  ainda 
mais  convier.  Os  ouvidos  do  throno  não  estão  fechados  para  V.  S.*,  e 
assim  como  é  um  oráculo  na  magistratura,  pelo  seu  vastíssimo  saber, 
para  ser  escutado,  não  o  será  menos,  se  em  algum  gabinete  se  dignar 
annunciar-se  sobre  matéria,  tanto  de  politica,  como  de  economia.  Muito 
tenho  dito  a  V.  S.*,  muito  mais  dirá  a  V.  S.*  o  portador  d'esta,  só  não 
poderá  dizer  o  que  não  sabe,  que  vem  a  ser  quanto  eu  seja  e  serei 
sempre 

De  V.  S.* 

Am.°  obrig.""  e  ven."""  sincero 

J.  Á.  de  M. 

Pedrouços,  29  de  Janeiro  de  1829. 


184  CARTAS  l)K  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 


II 

ni."»  Sr. 

Todos  os  axiomas  que  a  velha  philosophia  nos  deixou,  e  a  mo- 
derna conserva,  sobre  a  difiBculdade  que  o  homem  deve  ter  em  pedir 
a  ouiro  homem,  a  austera  e  rigorosa  sentença  de  Séneca,  que  diz  em 
ultima  instancia  que  a  cousa  mais  cara  que  ha  é  aquella  que  se  com- 
pra com  rogativas: — tudo  isto  desapparece  e  nenhum  caso  faço  de 
tudo  isto,  quando  se  trata  de  pedir  ao  111.""*  Sr.  Des."  José  Ribeiro 
Saraiva.  Então  porquê? — Eu  o  digo.  Porque  é  o  111.°°  Sr.  Des.°"  José 
Ribeiro  Saraiva  a  quem  se  pede.  Pedir  para  si  é  interesse  próprio,  pe- 
dir para  outro  é  ser  philosophicamente  generoso,  porque  fica  com  a 
vergonha  da  petição,  e  o  outro  com  o  despacho  d'ella.  Que  me  pedirá 
este  clérigo?  Dirá  V.  S.* — Eu  peço  o  que  o  portador  disser;  e  porque 
é  justo,  eu  vou  adeante  d'elle,  faço  de  moço  de  cego,  e  como  em  tudo 
•desejo  servir  a  V.  S.*  é  de  razão  que  V.  S.*  em  alguma  cousa  o  sirva 
a  elle.  O  moço  pede  com  eloquência,  porque  sem  dizer  palavra,  aponta 
para  a  cara  do  amo,  onde  se  lhe  não  vê  o  sentido  com  que  se  vê;  eu 
aponto  para  o  portador,  e  digo:  eis  aqui  um  homem  de  muitos  servi- 
ços a  pró  da  melhor  causa,  que  é  a  do  rei  e  a  do  reino,  e  a  respeito 
da  recompensa  verdadeiramente é cego,  porque  ainda  a  não  viu;  ecomo 
não  ha  causa  que  o  cego  deseje  tanto  como  é  vêr,  abra-lhe  V.  S.*  os 
olhos  com  o  seu  patrocínio,  fazendo  que  seja  bem  ouvido  e  bera  des- 
pachado um  requerimento  de  que  pende  a  sua  ventura,  e  a  ventura 
de  irmãos  orphãos  e  desamparados,  sobre  o  qual  foi  mandado  consul- 
tar o  conselho  da  Fazenda.  Esta  é  a  supplica  do  homem,  agora  vae  a 
minha,  que  pende  no  tribunal  da  amisade,  e  vem  a  ser,  saber  o  es- 
tado de  saúde  e  da  chegada  a  Inglaterra  de  seu  filho  o  Sr.  António  Ri- 
beiro Saraiva,  pois  me  prometteu  que  a  diplomacia  o  não  faria  esque- 
cer de  me  dar  noticias  suas;  já  que  elle  o  não  faz,  dê-me  V.  S.*  as 
suas  ordens  e  determinações,  para  que  execulando-as  mostre  que  sou 

De  V.  S.* 
Pedrouços,  15  de  Abril  de  1830. 

Am.*  e  creado  obrig."" 

J.  A.  de  M. 


A  CLÁUDIO  JOAQUIM  DOS  SANTOS 


Amigo  e  Sr. 

Pelo  que  falíamos  na  ultima  vez  que  v.  m."  se  dignou  honrar  esta 
casa,  conheceria  que  eu  não  só  tinha  desejo,  mas  que  estava  na  deter- 
minação de  escrever  a  ura  dos  senhores  Caixas  do  real  Contracto  do  ta- 
baco sobre  o  importante  objecto  de  remover  receios  e  destruir  calum- 
nias,  que  podessem  inquietar  os  novos  contractadores,  mas  eu  não  os 
conheço  pessoalmente,  e  considerando  a  cousa  com  mais  reflexão,  me 
persuadi  que  elles  o  estranhariam.  Eu  não  vim  a  este  mundo  para  o 
emendar;  e  que  me  poderia  dar  essa  missão  ou  quem  me  quereria  atu- 
rar? É  verdade  que  não  passa  um  só  dia  em  que  á  roda  d'esta  cama 
não  appareçam  trombetas  a  buzinar  alto  contra  todos,  e  contra  cada 
um  dos  novos  contractadores;  que  tenho  eu  com  isso,  se  eu  os  não 
conheço,  nem  nenhum  d'elles  me  oílendeu?  Assim  mesmo  as  importu- 
nações não  têm  cessado.  Eu  não  sou  instrumento  de  vinganças,  e  nin- 
guém me  poderá  arguir  de  uma  vileza.  Se  v.  m.*=®  pode  ter  alguma  in- 
timidade com  qualquer  d'esses  senhores,  pode  certificar-lhe  por  mim, 
e  em  meu  nome  expressamente,  que  sobre  elles  não  apparecerá  uma 
só  letra  minha,  que  diminua  ou  ponha  em  duvida  o  seu  credito  na  opi- 
nião publica;  e  se  algum  valor  se  dá  ao  que  eu  escrevo,  eu  os  defen- 
derei sempre,  se  elles  julgarem  isto  necessário  (e  talvez  o  sejal)  con- 
siderada a  multidão,  e  o  poder  de  seus  inimigos.  Se  com  a  confiança 
que  me  dá  este  meu  ofifereci mento,  e  se  pode  haver  recompensa  antes 
de  feito  o  serviço,  só  desejaria  que  a  escolha  de  seus  empregados  re- 
caísse sobre  sujeitos  taes,  que  por  seus  sentimentos,  caracter,  honra, 
e  costumes  tapassem  a  bocca  a  criminações  contra  os  nomeadores.  Em 
Y.  m.*^  tinham  elles  um  exemplar  ou  modello  de  homem  de  bera,  que 


186  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSl  l.NMO  DE  MACEDO 

poderia  merecer  a  approvação  minha,  e  publica;  e  estimaria  que  por 
V.  m/®  começassem  a  confundir  os  calumniadores.  Esta  lembrança  é 
minha  e  não,  é  de  v.  m.",  e  por  isso  lhe  digo  que  pode  fazer  o  uso 
que  lhe  parecer  d'esta  minha  carta.  O  terrível  estado  em  que  me  con- 
serva a  minha  enfermidade  me  obriga  a  estar,  como  v.  m.^®  me  viu, 
entrevado  e  irapossibihtado  para  tudo;  se  não  fosse  este  invencível  ob- 
stáculo eu  pessoalmente  procuraria  o  111.""°  Sr.  João  Paulo;  conheci  seu 
pae,  fui  seu  amigo,  era  da  minha  província,  homem  de  muito  respeito 
e  de  muita  honra.  As  portas  d'esta  casa  estão  sempre  abertas,  e  de 
continuo  dão  entrada  a  pessoas  de,  muita  consideração;  se  algum  d'es- 
ses  senhores,  por  occasião  de  passagem,  me  quizer  honrar  com  a  sua 
presença,  eu  excessivamente  o  estimaria;  entretanto  pode  v.  m.^^  com 
segurança  certiíicar-lhes  que  sou  sincero  em  dizer  que  os  estimo  e  re- 
speito tanto  quanto  sou 

De  V.  m.^® 

Amigo  e  obrigado 

Pedrouços,  26  de  Abril  Ide  1829. 

J.  A.  de  M. 

II 

Amigo  e  Sr. 

A  minha  enfermidade  se  tem  tornado  de  um  aspecto  terrível;  ne- 
nhum remédio  aproveita;  quasi  sempre  me  prende  na  cama,  quasi  te- 
nho perdida  a  esperança  de  melhora.  Agora  que  me  posso  conservar 
fora  da  cama,  aproveito  o  instante  para  lhe  dizer,  que  desejo  saber  al- 
guma cousa  dos  nossos  bons  amigos,  pela  obrigação  em  que  me  con- 
stituíram, e  estranho  não  me  terem  ainda  encarregado  de  cousa  al- 
guma que  eu  lhe  faça,  ou  possa  annunciar  para  credito  de  todos,  o  que 
muito  desejo  fazer;  também  quizera  saber  a  segurança  e  a  estabilidade 
em  que  vae  estando  o  principal  negocio,  ou  se  é  preciso  destruir  al- 
guma opposição.  Em  tudo  o  que  lhe  disser  respeito  sou  eu  interes- 
sado, e  lhe  peço  que  me  récommende  muito,  e  com  muita  amisade, 
porque  me  constituíram  n'esse  dever. 

Aqui  veiu  um  nosso  conhecido  pedir-me  uns  versos,  para  se  re- 
citarem não  sei  aonde;  para  a  seguinte  viagem  do  mudo  eu  lh'os  en- 
viarei. José  Daniel  também  me  pediu  um  papel  que  eu  fiz,  porém  não 
o  tenho,  e  o  sujeito  que  o  tem  me  diz  que  o  levara  ao  desembarga- 


A  CLÁUDIO  JOAQUIM  DOS  SANTOS  i87 

dor,  para  quem  José  Daniel  o  pedira.  Tenha  saúde,  e  todas  as  felici- 
dades que[lhe  deseja 

Seu  am.°  e  m/°  obrig.*^" 

J.  A.  de  M. 
Pedrouços,  19  de  Junho  de  1829. 


A  FR.  ÁLVARO  VAHIA 


Secretario  Geral  da  Ordem  de  S.  Bernardo 


111."»»  Sr. 

O  P."  M.*  Fr.  Joaquim  da  Cruz,  que  por  certo  n3o  é  correio  de 
más  novas;  perguntando-lhe  pelo  estado  da  saúde  de  V.  S.*  como  de- 
Tia  perguntar,  me  disse  que  V.  S.'  passava  muito  incommodado,  e  como 
ninguém  ha  que  mais  arruinada  a  tenha,  e  por  experiência  própria  sei 
o  que  isso  seja,  senti  a  noticia,  e  lhe  desejo  o  restabelecimento  com  a 
mesma  verdade  com  que  desejo  concluir  um  tratado  de  tréguas  com 
o  meu  insanável  padecimento,  mas  em  batalha  com  o  mal  ou  livre 
d'elle,  renovo  e  conservarei  o  protesto  de  amisade  que  a  V.  S.*  con- 
sagro, que  vem  a  ser  a  mesma  que  até  agora  lhe  consagrei.  Se  o  es- 
tado da  minha  saúde  é  máo,  o  dos  meus  negócios  é  péssimo ;  comtudo 
vejo  lampejar  não  muito  ao  longe  um  vislumbre  de  completa  felicidade. 
Propoz-se  em  conselho  ministerial  dar-me  alguma  representação  n'este 
mundo,  e  sei  de  certo  que  se  decretou  e  tem  decretado  fazer-me  aju- 
dante de  um  leigo  arrabido,  a  quem  chamam  o  P.®  Fr.  Cláudio,  inves- 
tigador das  matérias  primas  dos  oflBcios,  para  compor  a  chronica  da 
Casa  dos  Vinte  e  quatro,  e  a  quem  os  pentieiros  ofifereceram  e  deram 
um  corno,  posto  que  devamos  piamente  crer  que  muitos  teriam  mui- 
tos. A  mim  m'o  darão,  se  com  effeito  domingo  de  tarde,  que  é  o  mo- 
mento aprazado,  vier  de  Queluz  este  diploma.  Já  m'o  metteram  na 
bocca  para  não  fallar,  não  é  muito  que  m'o  dêm  por  premio  para  es- 
crever. Não  rejeito  porque  o  tinteiro  que  agora  é  de  vidro,  passará  a 
ser  de  corno,  mas  isto  não  é  ir  coherente  n'este  reinadol!  Talvez  haja 
ministro  que  possa  dizer  o  que  um  celebre  artista,  que  fazia  no  forno 
grandes  curiosidades  n'esta  matéria,  para  elle  não  inflexível:  copos, 
tinteiros,  pentes,  gargalos  de  borracha,  etc— Oh  mestre,  aonde  foi 


190  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

você  aprender  isto? — Isso  sâo  cousas  tiradas  da  minha  cabeça,  respon- 
deu elle.  O  mesmo  agente  d'este  torto  negocio  me  disse,  que  ainda  ou- 
tro dia  pedira  Sua  Magestade  a  um  tal  José  Luiz  da  Rocha,  que  lá  tem 
no  gabinete  a  Besta  27.*,  que  lh'a  dera  a  guardar  quando  veiu  na  con- 
sulta do  Desembargo  em  Novembro  de  1829;  mais  besta  me  parece 
qnem  falia  já  em  tal  Besea  27^  Disse  aqai  o  sarilho  humano  chamado 
António  Ribeiro  Saraiva,  que  a  Besta  27^  andava  arreatada  á  marcha 
politica  e  negócios  europeus  sobre  o  reconhecimento,  e  que  elle  sari- 
lho cooperara  para  a  suppressão,  para  mostrar  ás  potencias  que  nada 
apparecia  em  Portugal  que  mostrasse  opposição  ao  systema  de  mode- 
ração mandado  abraçar  pelo  que  respeita  ao  procedimento  relativo  aos 
pedreiros  Uvres,  como  mandavam  e  dispunham  as  potencias  para  o  re- 
conherimento;  de  maneira  que  a  única  prova  que  se  exige  da  legitimi- 
dade do  senhor  D.  Miguel  e  dos  seus  direitos  á  successão  ao  throno, 
é  aturar  elle  e  aturarmos  nós  os  pedreiros  livres  desencabrestados.  Va- 
mos a  outra  de  outro  género.  Entre  os  visitantes  de  boas  festas  veiu 
aqui  quarta  feira  de  tarde  António  José  Guião,  faliou,  fallou,  fallou,  e 
entre  as  cousas  que  perguntou  foi,  se  eu  sabia  onde  se  poderiam  achar 
as  fórmulas  das  sentenças  dadas  contra  desacatos.  Lá  lhe  lembrei  a  do 
antigo  de  Odivellas,  de  que  foi  advogado  o  celebre  Pegas,  que  anda  im- 
presso, e  a  do  antigo  de  Santa  Engracia,  em  que  foi  juiz  Gabriel  Pe- 
reira de  Castro,  que  também  impresso  anda.  Fallou-me  logo,  e  creio 
que  este  era  o  maior  negocio,  no  Doutor  Caruncho,  quer  dizer,  João  Pe- 
dro Ribeiro,  que  criticara  magistralmente  Fr.  Fortunato,  e  mais  a  mim, 
lhe  respondi  eu;  e  como  não  quero  dever  nada  a  ninguém,  eu  lhe  pa- 
garia o  meu  quinhão,  e  mais  ainda  o  do  senhor  Fr.  Fortunato. — Isso 
é  o  que  se  não  quer,  e  é  bom  evitar  contestações. —  Melhor  é  não  er- 
rar tanto  as  contas  da  Junta  dos  Juros. — Lá  se  foi  e  não  contente.  O 
diabo  do  Dr.  Caruncho  não  quer  que  ninguém  mais  basculhe  perga- 
minhos velhos,  ha  de  ser  elle  o  basculhador  para  encher  livros  gros- 
sos de  cousa  nenhuma.  Ora  basta  de  carta  que  o  posso  incommodar; 
e  fallando-lhe  em  incommodos  lhe  dou  mais  um,  e  vem  a  ser  o  des- 
pacho do  Ill.™°  na  prorogação  do  breve  da  religiosa,  que  apresenta  já 
acompanhado  das  primeiras  licenças;  e  eu  fico  promptissimo  para  mo- 
strar em  tudo  que  sou  de  V.  S.*  invariável  amigo 

/.  A.  de  M. 
Pedrouços,  16  de  Abril  de  1830. 


AOS  SENHORES  INVESTIGADORES 


Lisboa  18  de  Junho  de  1812. 


Ora  vossès  hão  de  ter  estranhado  o  meu  silencio,  sendo  eu  aliás 
o  ultimo  apuro  da  civilidade,  e  merecendo-a  vossés  como  duas  perso- 
nagens tão  respeitáveis!  Não  estava  em  Lisboa,  quando  chegou  o  seu 
8.°  molho  de  grelos,  e  eis  aqui  o  motivo.  Cheguei,  vi,  e  respondi;  vae 
o  impresso,  e  por  certo  vossês  tiveram  alguma  oração  boa,  que  dispoz 
a  seu  favor  a  alma  do  censor,  que  não  deixou  ir  metade  do  que  eu  ha- 
via escripto,  e  vossês  mereciam.  Dois  alentadissimos  pacovios  sentados 
na  tripode  jornalista,  e  constituídos  de  molu  próprio  julgadores  integer- 
rimos  de  producções  lilterarias,  ignorando  os  primeiros  rudimentos  de 
grammatica  portugueza,  mereciam  uma  tunda  ou  uma  surra  que  os  en- 
vergonhasse se  isto  fosse  possível.  Por  ventura  sua  a  faculdade  de  im- 
primir está  por  extremo  restricta  n'esle  infeliz  reino,  de  que  vossês  e 
os  da  confraria  tenebrosa  iam  dando  cabo  de  todo.  Vae  o  que  deixa- 
ram ir,  mas  vae  o  que  basta  para  que  o  mundo  conheça  sua  incapa- 
cidade, ignorância  e  insufBciencia.  D'esta  mesma  ignorância  tinha  elle 
já  fartos  conhecimentos,  depois  que  vossês  se  resolveram  a  pejar  a  ca- 
pital e  o  reino  de  mais  um  apontoado  de  inepcias,  chamado  o  Inve- 
stigador, como  se  não  bastasse  o  flagello  dos  folhetos,  e  de  gazetas,  que 
nos  innunda.  Porém  vossês  podiam  ser  muito  maus  rhapsodistas  e  tole- 
ráveis críticos,  ou  ajuizadores  de  obras  alheias.  Mas  são  tão  asnos  em 
aggregar  noticias  sediças  no  seu  folhetasio,  quanto  são  desproposita- 
dos em  suas  avaliações.  Eu  mesmo,  querendo  usar  de  equidade,  os 
desculpava  a  principio: — Isto  é  fome  em  dois  assassinos  de  traquita- 
na; juntaram-se,  lembrou-lhes  o  meio  de  um  periódico,  leitura  com 
que  se  occupa  o  mundo  actual,  e  fizeram  um  periódico.  Se  os  julguei 


!92  CAHTÀS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DF.  MACKDO 

famélicos,  não  pude  deixar  de  os  julgar  completamente  asnos,  quando 
nos  remetteram  a  Ode — A  corja  adusta — como  um  modello  de  poe- 
sia, e  seu  auctor,  tão  cego  por  dentro  como  por  fora,  como  um  clás- 
sico. Alguns  disseram:  —  Isto  alem  de  ser  uma  parvoíce,  é  uma  pati- 
faria; e  esta  canalha  galenica  já  que  não  pode,  como  queria,  arrui- 
nar a  nação,  vinga-se  em  a  insultar.  Que  se  podia  esperar  do  mezi- 
nheiro  Abrantes,  que  gritava  pelo  convento  da  Graça,  quando  lá  foi 
estabelecer  o  hospital:  Ham-de  ir  para  o  meio  da  rua;  o  Imperador 
ha-de  ser  servido  1  —  Esta  não  pozeram  vossês  na  apologia  das  unguen- 
tadas, entre  as  perguntas  de  Jeronymo  Lobol  Pois  d'esta  ha  vinte  tes- 
temunhas contestes,  e  de  outras  mil  ainda  mais  calvas,  que  vão  en- 
grossando a  resposta  que  o  publico  indignado  dá  ao  seu  apologético, 
e  remette  para  o  Rio  de  Janeiro.  Ora  baste  d*isto,  que  não  vem  muito 
para  o  caso  da  analyse  dos  quatro  primeiros  cantos  do  poema  Gama. 
Abriram-se  aqui  as  comportas  da  parvoíce,  e  deram-se  a  conhecer. 
Eu  mesmo,  sendo  offendido,  julgeí  que  não  era  cousa  sua  mas  d'al- 
gum  dos  irmãos  da  confraria,  que  de  cá  lh'a  remettera;  estou  porém 
desenganado,  porque  as  ultimas  provas,  que  vão  dando  de  parvoíce 
nos  números  subsequentes,  me  tiram  fora  da  duvida  em  que  estava, 
de  que  fossem  vossês  os  auctores  da  destampada  analyse.  Como  os 
não  faz  chorar  o  episodio  de  Ignez,  não  presta  o  poema!  Vossês  não 
choram  sobre  as  ruínas  da  pátria,  queriam  enternecer-se  sobre  uma 
phantastica  desventura!  Quem  achou  até  agora  resquícios  de  sensibi- 
lidade na  alma  de  um  pedreiro?  Sobre  a  dureza  de  seus  corações  se 
forma  sua  destampada  sentença.  Se  vossês  não  chorarem  bem  sacudi- 
dos com  um  arrocho,  com  versos  não  choram  por  certo.  Ora  creiam 
vossês,  que  se  não  chorarem  com  o  que  eu  compuz,  fazem  por  certo 
rir  o  mundo  sensato  com  o  que  vossês  publicam.  Eu  não  só  me  rio 
dos  seus  infelizes  cadernos,  rio  mais  do  ár  de  importância  que  vossês 
se  dão.  Desgraçados  compiladores!  Fazem  um  jornal  para  Portugal,  e 
mandam  para  Portugal  o  que  em  Portugal  tem  ja  apodrecido  pelas  es- 
quinas; com  quatro  disparates  chímíco-medícos  iníntellígíveís,  em  que 
apenas  se  pode  interessar  algum  matasanos,  como  vossês! 

O  grande  serviço  que  tem  feito  ê  estragarem  a  linguagem;  e  não 
sabendo  d'ella  metade,  a  emporcalham  com  lermos  e  phrases  taes, 
que  nos  reduzem  a  um  bárbaro  vasconço,  tão  escuro,  torto  e  òco, 
como  vossês  têem  a  alma!  Ainda  não  produziram  um  só  artigo,  ou 
novo,  ou  útil,  e  escondem  tanto  o  veneno  em  suas  parvoíces,  como 
manifesta  perversidade  o  seu  confrade  Brasíliense,  capataz  da  cáfila, 
e  varrido  mentecapto,  a  quem  já  que  a  forca  não  faz  emmudecer^  eu 


AOS  SENHORES  INVESTIGADORES  103 

farei  calar.  Tremam,  alemos  imperceptíveis  no  paiz  das  leltras,  vossês 
nada  são.  Existem  em  um  paiz  cheio  de  jornaes  de  toda  a  casta;  nem 
d'estes  mesmos  sabem  fazer  uma  compilação;  e  multiplicando-se  ahi 
as  producções  litterarias,  conforme  o  rol  que  vossès  apresentam,  não 
sabem  da  mais  insignificante  brochura  fazer  um  extracto;  muito  seccos 
são  vossés!  Apenas  servem  para  editores  de  papelada  bolorenta,  que 
de  cá  lhes  mandam;  e  n'este  estado  de  miséria  atlrevem-se  a  fallar 
no  poema  Gama!  Ora  vossès  não  esperavam  uma  resposta  impressa? 
Sei  o  que  ha  de  sofifrer  a  sua  hypocrita  vaidade,  porque  conheço  até 
que  ponto  costuma  levar  a  presumpção  um  apalpador  de  pulsos,  e  ob- 
servador de  ourinoes;  em  vossês  cresce  mais  esta  vaidade,  porque  ao 
caracter  de  enterradores  ajnntam  as  ventosidades  de  jornalistas,  nova 
espécie  de  entes  ephemeros,  conhecidos  agora,  e  cuja  nomeada  acaba 
sempre  detestada  no  Om  da  semana  ou  mez  em  que  apparece  o  tristis- 
simo  periódico.  Não  posso  consideral-os  por  lado  algum,  que  não  des- 
cubra dois  burros  coçando  reciprocamente  o  pescosso  de  outros  que 
taes.  Apresentam  as  obras  dos  confrades  acompanhadas  sempre  de  an- 
tiphonas;  se  faliam  no  estouvado  jacobino  Almeida,  tem  o  desaforo  de 
dizer  a  pag.  426  do  11.°  apontoado,  que  é  um  barão  que  procura  a 
gloria  da  pátria,  e  do  seu  príncipe,  sendo  um  patife,  que  no  botequim 
do  Madre  de  Deus,  no  Rocio,  tirou  do  chapéo  o  laço  nacional,  e  o  ati- 
rou aos  pés,  quando  aqui  consentimos  os  Franchinotes,  os  regenera- 
dores da  humanidade,  como  vossês  são.  Das  parvoíces  e  patifarias  d'este 
abridor  de  c.ões  se  conserva  aqui  um  vasto  rol;  e  lembrado  estará 
elle  do  que  disse  contra  o  Príncipe  N.  S.  em  quinta  feira  de  endoen- 
ças  a  Manoel  José  Teixeira,  saindo  do  hospital. 

D'estas  boas  rezes  sabem  vossês  elogiar  as  obras;  se  algum  d'el- 
les  se  tivesse  sabido  com  o  poema  Gama,  vossês  procurariam  leval-o 
áquella  immortalídade,  que  premettem  os  jornaes,  e  aíBançam  os  In- 
vestigadores,  em  quanto  se  não  limpa  o  cú  com  elles.  O  auctor  não  é 
da  irmandade;  e  basta  isto  para  flcar  anathematísado  por  decreto  de 
sua  absoluta  vontade.  Se  vossês  estabelecessem  as  regras  da  epopéa, 
e  considerando  o  poema  no  todo  e  nas  partes,  mostrassem  que  não 
estava  conforme  ás  mesmas  regras;  que  peccava  na  construcção,  na 
ordem,  na  forma,  nos  accidentes;  que  não  conservava  a  magestade  da 
narração  épica;  mostrariam  ao  menos  que  estavam  enlabusados  na 
Iheoria  da  tal  arte  poética;  mas  decidir  de  estalo,  com  os  cadinhos  chi- 
micos  na  mão,  e  dizer  não  presta,  só  porque  vossês  o  dizem;  isto  é 
fanfarronada  gazetal,  ou  um  publico  garante  da  sua  parvoíce. 

Se  vossês  nos  felicitassem  com  alguma  producção  sua  original, 

CARTAS.  { 3 


194  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

eu  lhes  faria  a  poda,  e  lhes  mostraria  como  se  analysa,  como  se  cri- 
tica, e  como  se  decide;  mas  não  lhes  deu  ainda  para  sairem  do  aper- 
tado circulo  de  raáos  compiladores. 

Um  de  Tossês  ja  se  sahiu  com  uma  traducção,  que  é  a  de  Dar- 
win;* mas  é  tão  nojenta  a  salgalhada  dos  Gnomos  e  dos  Sylphos,  que 
não  é  possível  devorar  uma  pagina  sem  vómitos.  Os  versos  soltos  são 
duros  como  cornos,  e  estão  de  ponta  uns  com  outros,  de  tal  arte  que 
jamais  se  ligam  entre  si;  e  com  estes  serviços  se  arvoram  vossês  em 
criticosi  Ora  baste;  o  papel  impresso  que  lhes  remetto  dirá  melhor 
o  que  vossês  fizeram;  e  ainda  que  isto  não  seja  carta  de  Alexandre  de 
Gusmão,  nem  da  cidadôa  Valleré,  bem  podiam  vossês  com  ella  afor- 
mosear  o  seu  periódico;  e  se  vossês  se  não  atrevem  com  ella,  entre- 
guem-na  a  seu  camarada  Hypolito,  esse  trombeta  da  pedreirada,  le- 
gislador de  Caracas,  ou  esse  malvado  réo  de  leza  humanidade,  que 
ainda  não  disse  senão  bafordos;  e  creia  elle,  e  de  caminho  vossês, 
que  se  pôde  escapar  do  barril  de  alcatrão  que  o  esperava  no  Rocio, 
não  me  escapará  a  mim  das  unhas;  e  pois  estou  em  um  reino,  aonde 
uma  iudalgenlissima  e  mal  empregada  moderação  não  deixa  responder 
a  impressos  com  impressos,  para  zurzir  a  elle,  a  vossês,  e  a  todos, 
serei  em  Londres. 

/.  A.  de  M. 

P.  S.  Fico  esperando  no  seu  periódico  as  descomposturas,  que  lhes 
ha  de  suggerir  esta  minha  carta;  mas  ellas  me  encherão  de  prazer, 
logo  que  venham  acompanhadas  d'esta  carta,  fielmente  transcripta,  da 
qual  vão  duas  copias  para  o  Rio  de  Janeiro  n'este  próximo  navio;  e 
se  mandou  imprimir  uma  porção,  de  que  poJem  ficar  certos  se  não 
destribuirá  sequer  uma,  senão  no  caso  de  vossês  me  descomporem 
sem  a  transcreverem. 


1  Refere -se  ao  poema  didáctico  O  Jardim  botânico,  traduzido  de  inglez  por  Vi- 
cente Pedro  Noiasco  da  Cunha.  Lisboa^  muccciii.  In- 16,  de  yiii-326  pp.  (Com  três  gra- 
vuras). 


  ANTÓNIO  FELICIANO  DE  CASTILHO* 


Acerca  das  suas  t Cartas  de  Ecoo  e  Narciso» 


111.°°  Sr.  António  Feliciano  de  Castilho. 

Tive  a  satisfação  de  lêr  e  admirar  as  suas  Cartas  de  Ecco  e  Narci- 
so, que  me  foram  enviadas  para  a  censura;  a  approvação  e  o  louvor  já 
vinham  na  primeira  pagina,  apenas  se  chegava  a  lêr  o  seu  nome.  Desde 
que  li  seus  primeiros  versos  impressos,  conheci  que  a  natureza  quiz 
fazer  uma  aberração  da  sua  marcha  ordinária,  vendo  que  principiava 
por  onde  os  outros,  e  mais  perfeitos,  acabam,  e  esperei  sempre  que 
em  cada  producção  nos  desse  um  maior  prodigio;  e  onde  parará  isto? 
Com  suas  poesias  vejo  que  não  pode  marcar  limites  a  perfectibilidade 
de  sêr  humano.  Sendo  pois  tão  seu  admirador,  não  posso  ser  seu  amigo, 
quando  me  considero  procurador  dos  Poetas  portuguezes,  que  florece- 
ram  no  tempo  dos  portuguezes.  Concedo  que  a  poesia  romântica  é  a 
primogénita  de  todas  as  poesias;  os  quadros  campestres,  e  o  amnr 
foram  os  primeiros  folies  d'esta  gaita,  hoje  tão  destemperada;  concedo 
que  Theocrito,  Bion  e  Moschus,  eram  os  modernos  de  outros  antigos, 
como  nós  somos  os  modernos  d'estes  gregos  velhos,  mas  não  concedo 
que  os  allemães  e  suissos  fossem  os  primeiros  reproductores  d'esta 
antiguidade,  como  diz  a  tal  senhora;^  fomos  nós  os  portuguezes,  e  só 
nós  portuguezes;  e  primeiro  escreveu  Bernardim  Ribeiro  que  Sanna- 
zaro,  primeiro  Christovam  Falcão,  que  Bernardino  Rotta,  que  Ludovico 
Paterno,  primeiro  Jorge  de  Monte-mór  que  Marco  de  Leo,  que  Jero- 
nymo  Benivieni,  e  primeiro  o  mimoso,  o  delicado,  o  natural  Francisco 


*  Publicado  pela  primeira  vez  na  obra  Bernardim  Ribeiro  e  o  Bucolismo,  p.  386 
a  390.  Porto  1897. 

*  Allude  a  M."»  de  Stael. 


196  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Bodrigues  Lobo,  e  o  sentimeiítal  Fernão  Alvares  do  Oriente,  que  todos 
os  pandos  e  bojudos  allemães,  porque  o  mesmo  Haller,  de  quem  te- 
nho o  retraio,  mostra  maior  cabeça  e  mais  vasta  corpulência  que  Vi- 
tplio.  Não  posso  chamar  caracter,  porém  manha  ou  mazella,  a  dos  por- 
tuguezes  não  fazerem  caso  de  cousa  nenhuma;  um  poeta,  e  a  índia 
é  para  elles  o  mesmo,  e  perder  ambas  estas  cousas  é  perder  cousa 
nenhuma;  e  para  elles  é  mais  bem  feito  um  cavallinho  allemão  com  seu 
assobio  no  rabo,  que  o  cavallo  de  bronze  com  el-rei  D.  José  em  cima. 
Todas  as  traducções  da  coUecção  de  Huber  não  valem  um  Christovam 
Falcão,  auctor  d'aquellas  namoradas  trovas,  como  diz  um  historiador 
nosso;  este  Christovam  Falcão  achou-se  com  Affonso  de  Albuquerque 
na  conquista  de  Malaca,  e  era  capitão  de  um  terço,  que  vem  a  ser  cousa 
que  por  certo  valia  mais  que  trinta  Tenentes-Generaes  dos  nossos  de 
dragonas  grandes.  Ora,  meu  amigo,  eu  julgo  que  n'essa  velha  Coimbra 
ainda  ha  algum  ginga  como  eu,  que  conheça  e  prese  as  cousas  de  Por- 
tugal velho,  porque  o  moderno  não  tem  cousas;  e  as  trovas  ahi  foram 
impressas,  como  diz  o  padre  António  dos  Reis  no  Enlhiisiasmo  Poético; 
veja  se  la  descobre  um  exemplar,  e  verá  os  allemães  corfto  fogem,  ou 
se  mettem  a  compor  assomantes  volumes  de  direito.  Olhe  que  os  an- 
tediluvianos  não  eram  mais  chorões  que  Crisfal,  quando  diz: 

E  porquanto  certo  sei 

Que  as  lagrimas  são  salgadas, 

Aquellas  doces  achei . . . 

Em  uma  roca  fiando, 
Mas  o  fuso  lhe  cahia 
Dos  dedos  de  quando  em  quando. 

Veja  se  toda  a  melodia  e  sentimentaria  dos  românticos  allemães 
eguala  a  sentimental  melodia  d'esta  prosa  de  Bernardim  Ribeiro,  que 
com  muitos,  e  com  todo  eile  conservo  na  memoria; —  «Um  freixo,  que 
algumas  das  ramas  estendia  sobre  a  agua  que  alli  fazia  tamalavez  da 
corrente,  que  impedida  de  um  penedo,  que  no  meio  d'ella  estava,  se 
dividia,  para  um  e  outro  cabo  murmurando.  Eu  que  os  olhos  levava  alli 
postos,  comecei  de  tomar  algum  conforto  no  meu  mal,  vendo  como 
aquella  pedra  imiga  de  seu  curso  natural  o  empecia,  bem  como  as  mi- 
nhas desaventuras  sabiam  em  outro  tempo  fazer  a  tudo  o  que  mais 
queria,  que  agora  ja  não  quero  nada.» — Todos  os  círculos  de  Alema- 
nha, toda  a  confederação  do  Rheno,  todos  os  cantos,  ou  canções  das 


A  ANTÓNIO  FELICIANO  DE  CASTILHO  197 

vaccas  dos  cantões  Suissos,  não  valem  metade  das  naturaes  lamurias 
<3e  Francisco  Rodrigues  Lobo: 

Se  fícas  atraz. 
Como  esta  alma  teme. 
Guiarei  o  leme 
Para  onde  vás. 

D'onde  lhe  veiu  esta  rez, 
Que  ella  poucas  vaccas  cria? 
Ganhou-a  n'uma  porfia. 
Nas  festas  que  Ergasto  fez. 

Meu  amigo,  persuado-me  que  á  excepção  de  um  castelhano  ve- 
lho chamado  Castillejos,  ninguém  eguala  os  portuguezes  no  espirito 
e  lettra  de  poesia  primitiva.  Está  mui  moço,  em  boa  edade,  e  é  e  deve 
ser  saudado  poeta;  basculhe  esses  pulverulentos  bacamartes,  que  por 
certo  não  são  monturos  de  Ennio,  e  tenha  de  lá  mão  n'esta  carami- 
uhola  chamada  poesia,  que  se  vae  a  terra 

Inte  omniã  domus  inclinate  recumbit. 

Ja  para  mim  não  ha  a  gaita  de  Pan,  nem  a  trombeta  de  Galliope ; 
para  lhe  escrever  esta  carta  deitei  agua  no  tinteiro,  porque  a  tinta  es- 
tava reduzida  a  polme;  um  giz  me  basta  para  lavrar  atraz  da  porta  o 
rol  da  roupa. 

Ha  quatro  annos  sem  interrupção,  refazia,  polia,  e  alargava  o 
poema  Oriente.  Ja  renunciei  á  mania  de  o  tirar  do  cahos  dos  borrões. 
Fique  cá  para  os  futuros  Saumaises.  É  tolice  cantar  a  surdos.  Tive 
minhas  cócegas  de  passar  dois  mezes  de  inverno  em  Coimbra,  e  fazer 
algum  contrabando  em  letlras,  porque  n'este  meridiano  de  Lisboa  não 
são  fazendas  de  lei. 

Folgaria  de  ver-me  as  cans  e  a  fronte 
Esse  negro  esquadrão,  que  entulha  a  ponte. 

Mas  como  ahi  Minerva  é  Palias,  e  tudo  é  pancadaria,  um  arcabuz 
ou  um  cajado  não  me  parecem  muito  azados  para  bater  o  compasso  ás 
endechas  das  Musas,  que  como  raparigas  têm  muito  medo,  e  muito 
pouca  vergonha.  Vá  continuando  com  o  seu  Ecco,  que  elle  retum- 
bará pelo  universo: 


198  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Porque  eu  se  em  verso  aos  grandes  exclamara: 
— Olhae,  que  o  dom  das  Musas  não  se  herda, — 
Logo  o  eccho  dos  grandes  me  tornara: 
«Vae  tu,  e  os  versos  teus  beber  da  m. . .» 

Perdoe  esta  caduquice  de  um  velho,  e  creia  que  é 

Seu  amigo 
Lisboa,  13  de  Agosto  de  1824. 

/.  Â,  de  M. 


  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  R*** 
(Do  Convento  do  Rato) 


111.°"  Sr.* 

Vindo  de  fora  de  Lisboa,  achei  a  polida,  discreta  e  altenciosa 
carta  de  V.  S.*  e  com  mais  rasão  peço  a  V.  S.*  me  desculpe  a  de- 
mora da  resposta.  Sim,  minha  Sr.*  eu  acceito  o  Sermão  do  S.*°  Pa- 
triarcha,  com  muito  gosto  irei,  e  com  muita  applicação  cuidarei  n'elle, 
pois  vejo  agora  pela  sua  carta,  que  ha  n'essa  edificante  clausura  um 
tâo  asisado  ouvinte  como  V.  S.*  Por  certo  tão  bom  espirito  ha  de  ati- 
nar com  o  caminho  da  perfeição,  e  assim  como  é  um  Anjo  no  que 
diz,  eu  não  duvido,  que  seja  um  Anjo  no  que  obre.  Não  se  encontra 
no  mundo  isso.  Ora  pois,  eu  lhe  desejo  todos  os  bens,  desejo-lhe  o 
Céo. 

Eu  sou  de  V.  S.* 

Sincero  admirador,  e  servo 

José  Agostinho  de  Macedo. 


C.  30  Janeiro  de  1820. 


II 


111."'  Senhora 


A  estimadíssima  carta  de  V.  S.*  me  foi  aqui  entregue  em  Odivel- 
las  onde  vim  passar  estes  dias  com  minha  irmã  Religiosa  n'este  Mos- 
teiro; eu  lhe  dei  a  lêr  este  monumento  da  sua  discrição  e  civilidade» 
a  que  dei  aquelles  louvores  que  ella  lambem  merece,  e  eu  sei  conbe* 


200  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

cer;  minha  irmã  é  dotada  de  um  talento  prodigioso,  é  um  assom- 
bro de  leiras  e  intelligencia,  e  por  isto  digo  que  a  apreciou  leodo-a 
mais  de  uma  vez,  o  que  por  certo  fariam,  e  farão  sempre  os  verdadei- 
ros intelligentes.  Isto  não  é  uma  resposta  ao  negocio,  é  um  tributo 
dado  a  tão  brilhante  mérito,  com  o  de  V.  S.*  Ora  pois  estes  jus- 
tos louvores  não  devem  ser  um  fomento  de  vaidade,  mas  um  mo- 
tivo de  agradecer  ao  Céo  a  grande  dadiva  do  seu  entendimento. 

Logo  presumi  que  se  não  reaiisava  a  troca,  mas  nem  por  isso  dei- 
xarei de  ter  a  satisfação  de  fallar  n'essa  Igreja,  e  o  gosto  de  ser  es- 
cutado de  V.  S.*  Irei  na  5.*  Dominga  ás  quatro  horas;  na  5.*  feira 
santa  irei  também  á  hora  costumada.  Queira  o  céo  que  não  haja  no 
adro  a  matinada  dos  bonecos,  que  é  mais  gritaria  de  feira,  que  acção 
de  piedade.  Os  actos  da  Rehgião  não  devem  ser  ridículos,  e  se  depois 
d'isto  é  na  minha  alma  um  acto  sério,  é  aqueile  no  qual  eu  confesso, 
que  estimo  a  V.  S.%  que  uma  carta  sua  é  um  bem,  e  eu  um 

Verdadeiro  admirador  e  s.°  de  V.  S.* 

José  Agostinho  de  Macedo 

Odivellas,  i  1  de  Fevereiro  de  1820. 


III 

111.""*  Senhora 

Com  eflfeito,  amanhã  é  verdadeiramente  para  mim  um  Domingo 
de  paixão  e  de  paixões.  É  dia  de  S.  José,  e  segundo  o  costume  prego 
todos  os  annos  na  sua  Igreja  de  manhã,  e  de  tarde,  assim  me  sucede 
amanhã.  Os  músicos  que  vão  de  tarde  têm  seus  septenarios  de  Dores 
onde  devem  estar  depois  da  função  de  tarde  de  S.  José,  e  de  tal  ma- 
neira me  comphcam  as  horas  que  não  posso  ^star  na  Igreja  d'esse  Con- 
vento se  não  muito  tarde,  como  eu  já  disse  ao  Procurador  que  o  par- 
ticiparia a  V.  S.*;  n'estes  termos  fallei  a  um  bom  Pregador,  que  tam- 
bém vae  por  mim  a  S.  Sebastião  da  Pedreira,  para  que  no  caso  que 
eu  ahi  não  possa  ir  antes  de  ir  ao  2.°  sermão  de  S.  José,  elle  faça 
as  rainhas  vezes.  Espero  que  V.  S.*  condescenda,  para  se  evitarem  es- 
peras e  murmúrios.  Minha  irmã  Freira  Bernarda,  a  mais  doente  das 
creaturas  porque  tem  hum  perigoso  aneurisma  no  pescoço  e  gota  ro- 


A  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  201 

zea  na  cara,  e  o  maior  de  todos  os  talentos,*  que  via  as  cartas  de  V. 
S.*,  sae  em  Abril  e  deseja  visitar  uma  tarde  a  V.  S.*  Sou 

De  V.  S.* 

18  de  Março  de  1820. 

Servo  obrig. 


mo 


José  Agostinho  de  Macedo. 


IV 

III."*  Senhora 

Não  sei  se  isto  lhe  parecerá  ama  secatura  impertinente,  porém 
como  me  disse  que  gostava  de  ver  os  destemperos  do  tempo,  o  maior 
de  todos  elles  é  esse  que  lhe  reraetto,  e  muito  mais  recommendavel 
por  ser  parto  do  engenho  de  um  Religioso  da  SS."' Trindade  da  Redem- 
pção  de  Cativos;  se  o  auctor  estivesse  em  terra  de  Mouros  não  o  fa- 
ria peor.  Já  se  lhe  respondeu,  mas  vae  a  apparecer  coisa  melhor.  Se 
amanhã  domingo  de  tarde  ou  o  mais  certo  na  2.*  feira  não  chover 
muito,  eu  irei  por  certo  importunar  a  V.  S.*  sobre  a  ida  da  emplas- 
trada M.*  Gand.*  Sou 

De  V.  S.* 

G.  17  de  Fevereiro  de  1821. 

M.»°  V.°'  e  Servo 

José  Agostinho  de  Macedo. 


lil."»*  Senhora 

Torno  a  importunal-a,  ou  a  tomar-lhe  o  tem[>o  preciso  para  as  suas 
laboriosas  occupações,  para  lhe  dizer  uma  coisa,  e  remetter-lhe  ou- 
tra; dizer-ihe  que  hoje  19,  de  tarde,  irei  á  vossa  invisivel  presença 
para  saber  qual  seja  a  tarde  desoccupada  antes  do  Entrudo  em  que  li 
possa  ir  a  doente;  e  remetler-lhe  esses  dois  papeis  ambos  meus,  um 
sem  nome,  outro  com  elle.  No  que  tem  nome  verá  V.  S.*  o  Géo;  no 


*  Allude  a  D.  Maria  Cândida  do  Valle. 


202  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

que  o  não  tem  verá  o  Mundo,  a  mistura  não  é  boa,  mas  ria-se  do 
Mundo,  e  admire  o  Céo.  Eu  não  sei  dizer  finezas,  mas  ahi  vae  uma, 
V.  S.'  é  o  Céo  pelas  suas  virtudes,  estado  e  mérito,  eu  serei  o  Mundo 
pelas  minhas  imperfeições,  mas  entre  tanto  mal,  tenho  um  bem,  que 
é  ser 

De  V.  S.* 
C.  19  de  Fevereiro  de  1821. 

M/°  venerador 

José  Agostinho  de  Macedo. 


VI 

111.°*  Senhora 

Todo  o  Mundo  está  levantado  contra  a  Trindade  (as  Trinas  defen- 
derei eu).  Appareceu  agora  um  Barbeiro,  que  leva  coiro  e  cabello.  To- 
dos faliam  em  casa  de  Frade  que  vem  a  ser  uma  coisa,  assim  por  modo 
de  uma  coisa  muito  deslavada,  muito  dura  e  muito  estanhada,  e  tudo 
isto  é  preciso  para  soffrer  os  golpes  de  tal  navalha.  Ha  cá  por  estas 
ruas  uns  marcos  chamados  Frades  de  pedra,  porque  assim  parecem 
pelo  feitio;  julgo  que  em  cahindo  algum,  virá  o  Trino  substituir-lhe  o 
logar,  porque  é  tão  de  pedra,  que  nada  d'isto  sente.  Seja  portanto  cari- 
dade! Tomara  eu  ter  um  Fradinho  da  mão  furada,  que  me  adivinhasse, 
e  me  dissesse  se  deveras  V.  S.*  se  persuade  que  eu  sou 

M.***  seu  venerador  e  obrig.''° 
P.  S. 
Inda  não  pude,  por  doente 
ir  fallar  á  doente. 

C.  21  de  Fevereiro  de  1821. 

José  Agostinho  de  Macedo. 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  203 


VII 

111."'*  Senhora 

Esse  Padre  que  ahi  está,  e  que  tem  uma  cabecinha  assim  por 
modo  de  um  gatinho  cinzento,  me  deu  noticias  de  V.  S.*,  5.*  feira  em 
S.  João  de  Deus.  Grande  caridade  inspira  este  santo,  pois  o  P."  a  teve 
commigo  em  me  chamar  á  vida,  pronunciando  o  seu  noiue,  porque  quem 
me  quer  ver  como  um  defunto,  metta-me  entre  Frades,  e  então  se 
fossem  só  os  da  casa,  mais  por  aqui  ou  mais  por  alli.  sempre  lhe  es- 
caparia, mas  era  um  enxame  d'elles  de  todas  as  castas  e  feitios  que 
n'aquelle  dia  alli  se  appresentam,  e  sendo  o  maior  mariyrio  que  fizeram 
a  Nosso  Sr.  Jesus  Christo,  fazer-lhe  muita  pergunta,  assentou  aquelle 
embrexado  de  cacos  e  cabeças  rapadas  crucificar-me  lambem  com  per- 
guntas sobre  as  novidades  do  tempo.  Eu  já  estava  para  cahir  n'um  fa- 
nico, quando  o  seu  P.'  cabeça  de  Gatinho  me  acodiu,  dizendo-me  que 
ao  despedir-se  da  communidade  (que  saudades  lá  deixaria  I)  V.  S.*  lhe 
dissera,  que  eu  lá  estaria  no  tal  convento.  Isto  bastou,  tornei  á  vida, 
fugi  dos  Frades,  metti-me  a  um  canto,  a  titulo  de  me  lembrar  das 
virtudes  do  Santo,  mas  foi  para  me  recordar  d'aquellas  que  adornam  a 
pessoa  de  V.  S.*  e  pelas  quaes  eu  sou 

De  V.  S." 

O  mais,  o  mais,  o  mais  que 

Venerador  e  servo 
P.  S. 
Sirva-se  V.  S.*  d'esse  papel  para 
me  dizer  que  passa  bem. 

José  Agostinho  de  Macedo. 


VIII 

111.""*  Senhora 

Estou  com  muito  cuidado  em  V.  S.'  porque  me  dizia  na  sua  ul- 
tima carta,  e  ha  muito  tempo  que  ella  veiuf  que  estava  na  grade... 
Na  grade?  Nas  grades,  nas  rotulas,  nos  buraquinhos,  nns  panos,  &., 
&.,  âc.,  cercada  de  inquilinos,  de  letrados,  de  escrivães,  menos  gente 


204  CAKTAS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

terão  as  cortes!  É  de  presumir  que  lhe  causassem  dor  de  cabeça,  e 
eis  aqui  o  que  me  causa  a  mim  cuidado,  por  isso  mando  saber  de  V. 
S.'  Passam-se,  ou  fingem-se  Bulias  para  comer  carne  na  Quaresma,  só 
o  triste  de  mim,  e  os  tristes  dos  mais  não  têm  uma  Bulia  para  lá  ir 
na  Quaresma!  E  se  por  inquilino  se  pode  lá  ir,  eu  podia  allegar  esta 
razão  porque  me  parece  que  moro  na  sua  lembrança,  e  mais  bem  aco- 
modado ficava  no  seu  coração,  se  por  ahi  ha  um  cantinho  devoluto ; 
trataremos  do  escrito  da  minha  obrigação.  Como  letrado  não  devo  lá 
ir,  porque  eu  não  gosto  de  dar  sentenças,  se  fosse  para  allegar  ra- 
zões, eu  iria  produzir  as  muitas  que  tenho  para  provar,  que  não  ha 
uma  pessoa  tão  chêa  de  méritos,  tão  adornada  de  virtudes,  nem  que 
mereça  mais  respeito  que  V.  S.*  Assim  advogo  eu  a  minha  mesma  causa 
pois  mostraria  que  me  era  devedora  de  grande  affeclo.  Mas  emfim,  se 
não  ha  titulo  pelo  qual  eu  lá  possa  mandar,  que  é  o  remetter-lhe  o 
Cordão  da  peste  que  já  se  imprimiu.*  Engane  com  a  sua  leitura  algu- 
mas horas  do  seu  retiro,  e  d'estas  tire  ao  menos  dois  minutos  para  se 
lembrar  que  é 

De  V.  S.* 

M.»°  V.°^  e  Servo 

José  Agostinho  de  Macedo. 


IX 

111.°*  Senhora 

A  doente  dará  as  suas  satisfações,  eu  dou  as  minhas.  As  visitas 
d'aquella  triste  dependem  da  vontade  e  companhia  do  tal  péssimo  choco 
chamado  M.*  do  Carmo,  porque  emfim  uma  Freira  não  ha  de  andar 
só,  ou  cora  a  creada  a  latere.  Ora  o  péssimo  choco,  umas  vezes  não 
tem  a  galinhóla  da  cabelleira  prompta,  outras  vezes  diz  que  lhe  doem 
dois  tremendos  joanetes,  que  tem  em  ambos  os  pés,  outras  vezes  não 
está  o  bião  da  cal  preparado  para  as  duas  covas  que  algum  dia  forão 
bochechas,  e  as  mais  das  vezes  não  tem  dinheiro  para  sege,  porqne  o 
irmão  não  lh'a  empresta:  e  é  tão  soberba,  que  não  quer  que  a  Freira 
a  alugue.  Estes  são  os  verdadeiros  motivos  e  não  o  aneurisma,  porque 
este  seria  o  motivo  para  tudo,  mas  eu  vejo  que  vão  a  Santos  porque 


^  Lisboa,  1821.  In-8.°  de  44  pag.  Assignado  Corcunda  de  boa  fé. 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  205 

lhe  fica  ao  pé  da  porta;  mas  a  Freira  não  ha  de  dizer  que  a  duvida 
está  da  parte  d'aquelle  aranhiço.  Já  que  V.  S.*  me  não  ouve,  e  só  me 
tem  ouvido  sermões,  ahi  lhe  mando  um  de  S.**  Isabel  *  pregado  em 
grande  função,  ao  menos  lêa-me,  e  se  V.  S.*  lesse  no  meu  coração  que 
garatujas  acharia  lá?  Muitas;  porém  também  em  letra  muito  clara  acha- 
ria, que  eu  respeito  muito  essa  communidade,  que  me  edifica  essa 
clausura,  e  que  sou 

De  V.  S.* 

Ponha  aqui  o  que  lhe  parecer 

José  Agostinho  de  Macedo. 


Mana  do  coração  (pode  ser  do  coração  de  Jesus,  e  também  pode 
ser  do  meu  coração,  com  qualquer  dos  dois  não  fica  mal).  Se  o  tal 
meu  coração  não  tem  tido  socego  desde  quinta  feira  passada,  como  é 
de  presumir  que  o  não  tenha  quando  anda  cá  por  fora  d'esse  portão: 
os  meus  pés  e  a  minha  goella  ainda  o  têm  tido  menos  desde  sexta 
feira  até  agora,  e  continuarão  na  mesma  agitação  até  sabbado  ás  duas 
horas  da  tarde,  que  é  quando  em  S.  Sebastião  da  Pedreira  acabarão 
as  Dores  da  Senhora,  e  mais  as  minhas,  isto  é  as  dores  dos  pés,  as 
dores  do  peito,  da  cabeça,  e  tudo  o  que  me  fica  depois  de  tão  conti- 
nuadas gritarias,  porque  a  dor  de  não  ver  a  Mana. . .  minto,  de  não 
ouvir  a  Mana,  essa  não  tem  fim,  senão  quando  a  oiço,  porque  até  ou- 
vil-a  no  Tribunal  dando  audiência  aos  Procuradores,  Letrados  e  Con- 
fessores, me  faz  bem  á  cabeça  e  mais  ao  coração.  Veja  que  aranzel  de 
desculpas  de  não  ter  lá  mandado!  E  como  se  pode  considerar  menos  feia 
a  ingratidão  de  não  ter  mandado  saber  de  minha  Mãy?  Ora  pois  to- 
dos estes  descuidos,  e  infelicidades  minhas  se  repararão  sexta  feira, 
logo  depois  das  oito  horas,  quando  lhe  fôr  pedir  que  pelas  nove  horas 
e  meia  se  dê  principio  á  Festa,  a  ver  se  um  quarto  depois  das  onze 
posso  vir  para  S.  José.  Bom  é  que  todos  os  nossos  ajustes  estejam  fei- 
tos, como  estão  com  toda  a  segurança  e  perpetuidade.  Diga-me  agora 
como  está;  talvez  esteja  sentada,  olhe,  se  fôr  no  Cartório,  diga  lá  com- 


*  Lisboa,  1819.  In-8.»  de  36  pag. 


206  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

sigo,  não  tem  lunis  validade  todas  estas  Escrituras,  que  a  certeza  com 
J.  A.  é 

De  V.  S.» 

/.  A. 
XI 

Mana  do  meu  coração,  eu  guardo  para  a  vista  um  verdadeiro  en- 
fado, pori^ue  me  affligi  com  o  seu  excesso,  espero  que  a  mana  conde- 
scenda sem  escândalo,  que  eu  lhe  mande  a  linda  caixa.  Olhe  que  se  fica 
vae  ter  ás  mãos  da  Maria  Cândida,  e  que  esta  não  tem  que  lhe  meter 
dentro  mais  que  unguentos  para  a  cara,  e  ataduras  para  o  pescoço,  e 
das  mãos  da  emplastrada  é  arrepanhada  logo  pelas  gulosíssimas  das 
Portas  (la  Cruz,  que  lhe  não  tiram  a  fralda  porque  lh'a  não  vêem,  meias 
e  lenços  de  mão  desapparecem,  e  aqui  lhe  tenho  guardados  anéis  e 
três  relógios  preciosos,  porque  estiveram  em  perigo  remoqueados  para 
lh'os  empenliíirem;  são  contos  largos,  e  a  lindíssima  caixa,  é  pena. 
Ora  pois,  recommende-rae  á  nossa  mãe,  e  na  presença  faremos  os  nos- 
sos ajustes,  ainda  que  ha  muito  tempo  está  feito  ser  eu  da  minha  que- 
rida Mana 

Mano  para  sempre 

/.* 
XII 

Minha  M;i(ia  no  Sr.,  é  preciso  ceder  ao  mais  forte:  o  deputado 
Neri  quer  por  força  ouvir-me  da  Trindade  no  Espirito  Santo,  e  como 
elles  lá  o  têm,  fica  uma  Pessoa  de  menos,  resta-me  dar-lhe  conheci- 
mento do  Pai,  e  do  Filho;  a  hora  é  incompatível  e  a  distancia  muita. 
Lá  lhe  envio  o  Prior  de  Santos  que  é  tolerável,  ainda  que  muito  apai- 
xonado de  confissões  geraes.  EUe  nada  ha  de  receber,  que  n'essa  in- 
telligencia  vae,  e  de  sorte  alguma  lh'o  offereçara,  e  isto  não  tem  replica. 
Seja  a  festa  ás  dez  e  meia,  e  não  antes;  verdade  seja  que  o  P.®  Thomé 
a  quer  cedo  para  ir  ao  Espirito  Santo  da  Lapa,  que  começa  á  uma 
hora,  e  ás  vezes  mais  tarde,  mas  a  qualquer  hora  que  comece  em  elle 
abrindo  a  bocca,  é  tal,  que  onde  quer  que  estiver  o  Espirito  Santo, 


*  Acha-se  esla  inicial  formando  monogramma  com  um  F,  inicial  do  nome  da 
freira  Trina.  O  mesmo  monogramma  se  repete  todas  as  vezes  que  as  cartas  são  assi- 
gnadas  por  um  /. 


A  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  207 

elle  o  apanha  e  de  uma  dentada  o  leva.  Como  os  Thomés  são  duros 
dos  cascos,  e  não  crêem  o  que  se  lhes  diz,  se  elle  não  estiver  pelas 
horas  asignaladas,  Thomés  d'aquelles  não  faltam,  e  venha  outro  Thomé, 
e  tome  sentido  n'isto.  Eu  estou  doente,  e  com  uma  dor  no  pescoço 
da  parle  direita  que  me  toma  até  ao  hombro.  Lá  irá  esta  andarilha 
segunda  feira  e  dirá  tudo . . . 

Seu  Mano 
SC.  16  de  Junho  de  1821. 

J.  A. 

XIII 

Mana,  e  Sr.*  minha,  nenhuma  das  três  coisas  da  sua  carta  me 
aconteceram  ainda;  não  morri,  porque  estou  escrevendo,  não  fui  a  Odi- 
vellas,  porque  não  tenho  dôr  de  barriga;  não  deixei  a  amisade  fazer 
ablativo  porque  existe  da  mesma  maneira.  Entno  onde  estive,  e  onde 
estarei?  Em  Pedroiços,  porque  visto  ter  as  casas  pagas  por  um  anno, 
e  adiantado,  e  acabaria  este  anno  para  o  S.  João,  tendo  lá  muitos  tras- 
tes, alli  vivo  escondido,  e  mais  seguro  da  minha  vida,  que  de  certo 
não  o  está  em  Lisboa.  Eis  aqui  a  verdade,  como  o  é  lambem  que  no 
dia  8  de  Fevereiro  lá  estarei  para  o  sermão  do  S}°  Patriarca.  Então 
faltaremos,  e  direi  o  que  escrevo  agora,  que  sou  e  não  deixarei  de  ser 

Seu  Mano 

José  Agostinho  de  Macedo. 

Pedrouços,  16  de  Janeiro  de  1822. 


XIV 

J.  M.  J. 

Hontem  e  hoje!  Pois  então  a  Mãy  doente,  a  Mana  adoentada,  e  eu 
heide  ficar  assim  muito  enchuto  sem  mandar  saber  da  saúde  da  Mãy, 
e  do  coração  da  Mana?  Se  o  signal  de  estar  doente  é  ter  Padres  á  ca- 
beceira, basta  o  Lage  sempre  aos  ouvidos  para  as  considerar  em  ar- 
tigo de  morte.  Quasi  morto  se  foi  elle  embora  na  5.*  feira.  Se  não  re- 
suscitar,  nada  se  perde.  Não  cuidei  que  debaixo  d'aquellas  amarellas 
cinzas  e  amarella  cabelleira,  existisse  um  borralho  com  tanto  calor! 


208  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Ora  eu  não  sei  se  3.^  feira  me  occupará  Santa  Rita,  portanto  irei 
amanhã,  se  fôr,  lá  me  aciíarei,  nâo  prepare  o  P."  Confessor,  se  eu  lá 
apparecer,  se  mandará  chamar.  Agora  que  são  dez  horas,  vou-me  á 
Igreja  do  Hospital  a  uma  festa  de  Dores,  e  isto  é  próprio  do  logar, 
porém  nem  lá  tem  cura  aquella  que  eu  sinto  n'alma  de  não  ter  dado 
ha  vinte  annos  com  esses  buraquinhos  e  farrapinhos  para  lhe  ter  dito 
em  vinte,  o  que  digo  agora,  e  direi  em  todos,  que  sou 

Seu  mano 

/. 

XV 

Pax  Chrisli 

Minha  Mana,  a  minha  tenção  era  ir  esta  manhã  de  romaria  aos 
buraquinhos  d'esse  Sancluario  da  Trindade  onde  as  coisas  são  tão  in- 
visíveis, como  incomprehensivel  o  Mysterio.  Honlem  quando  acabei  em 
Santa  Anna,  Santa  com  quem  não  tenho  negócios  nenhuns,  porque  um 
casamento  que  eu  queria,  e  que  me  trazia  um  dote  das  mais  raras 
prendas  que  o  mundo  viu,  faça  V.  S.*  de  conta,  que  é  V.  S.*,  nem 
esse  pode  ser;  abriu-se  a  vontade  ao  P.*  Fr.  Confessor  das  Religio- 
sas, que  tem  cara  de  escumadeira,  para  me  pedir  lhe  fosse  hoje  dizer 
alguma  coisa  em  louvor  de  S.^^  Rita,  a  quem  festeja  por  devoção.  (Que 
será  impossível  a  este  Franciscano,  senhor  do  boUo,  e  director  em  chefe 
d'aquelle  bando  de  Gallinhas  do  Cairo,  que  assim  me  parecem  as  illus- 
tres  filhas  do  Serafim  abrazado?)  Não  sei,  o  que  sei  é  que  me  rou- 
bou a  manhã,  espero  que  me  não  roube  a  tarde,  salvo  se  a  festa,  por 
que  se  vae  de  lá  o  Lausperenne,  acabar  no  maior  fervor  da  tarde,  e 
tendo  de  vir  a  casa  jantar,  então  pouco  tempo  ficará;  mando  esta  mu- 
lher coxa  para  a  prevenir,  porém  muito  coxo  serei  eu  quando  não  fôr 
beijar  hoje  a  mão  á  minha  amada  e  respeitosa  Mãy,  e  dizer  a  V.  S.* 
Olhe  Menina,  o  que?  o  que?  Lá  lh'o  dirá 

Seu  Mano 

J. 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  209 


XVI 


Porque  não  pregam  os  Padres  que  são  Neris,  ou  que  são  Neros, 
ou  que  o  foram,  e  não  deixam  de  o  ser?  Nada.  Confessara  só.  Olhe,  Me- 
nina, entrando  eu  uma  vez  a  15  de  Agosto  em  busca  de  uns  músi- 
cos que  deviam  ir  para  outra  festa,  estava  pregando  o  P.®  Theodoro 
de  Almeida,  e  exagerava  a  caridade  da  Sr.*  para  com  o  próximo,  di- 
zendo que  quando  a  Sr.*  nos  seus  princípios,  depois  de  ter  sabido  da 
mestra,  estava  em  Nazareth,  e  as  visinhas  da  rua,  ou  porta  com  porta 
queriam  alguma  cousa,  a  agulba,  o  dedal,  o  novelinho  de  algodão,  ou 
a  cabecinha  de  linhas,  diziam  a  qualquer  rapariga,  á  Zabel,  á  Salomé, 
á  Magdalena: — Vae  ahi  a  casa  de  Maria  Costureira. —  Olhe  V.  S.*que 
eu  ouvi  isto  com  os  meus  ouvidos,  da  bocca  do  P.®,  velho  já  e  decré- 
pito, e  talvez  que  apatetado.  Pregar  não,  confessar  sim,  porque  aqui 
as  asneiras  não  se  ouvem,  dizera-se,  e  para  constituírem  a  gente  no 
estado  em  que  vi  (a  palavra  vi  é  excusada  para  ahi)  ouvi  a  V.  S.*  Pe- 
ço-lhe  pelas  cinco  chagas,  e  se  as  cinco  são  poucas,  pelas  que  lhe  pa- 
recer, que  tenha  dó  de  si  e  amor  á  sua  saúde  e  existência.  Jesus 
Christo,  bem  nosso,  entrava  em  casa  dos  peccadores,  e  S.  Pedro  lhe 
dizia: — Sr.  ponde-vos  na  rua,  porque  eu  sou  um  homem  peccador. — 
O  Sr.  se  deixou  ficar,  e  consta  que  revelara  á  sua  serva  Maria  do  Lado 
ou  Joaquina  da  Ilharga,  que  se  assentara  em  um  banco,  e  os  Congre- 
gados nem  cora  as  Freiras  do  Rato,  verdadeiros  Anjos,  o  querem  dei- 
xar estar.  Olhe,  Sr.*  diga  V.  S.*  ao  P."  o  que  dizia  S.  Pedro  a  Christo: 
Sr.  P.®  não  venha  cá  porque  eu  sou  grande  peccadora, —  e  se  elle  se  fôr 
assentando  no  banquinho,  saia  V.  S.*  pela  porta  fora.  Eu  também  te- 
nho minhas  tinturas  de  vida  mystica  e  governo  das  almas,  e  tenho  sido 
consultado  em  casos  muito  apertados  de  securas  de  espirito,  tibiezas, 
pouco  fervor,  raivas  e  gatos  da  visinha,  e  outras  diíBculdades  da  via 
unitiva,  e  tenho  respondido  com  muita  paz  das  consciências.  Suponha- 
mos que  V.  S.*  se  tem  rido  algumas  vezes  da  cabecinha  do  P.*  Thesou- 
reiro  com  grave  escândalo  da  mamã,  e  da  Sr.'  D.  Marianna  Victoria, 
consulte-me  que  eu  sou  de  segredo,  verá  como  eu  lhe  digo,  só  para  re- 
parar este  escândalo,  se  ria  também  da  cabelleira  do  P.*  Lage,  para  se 
não  rir  um  do  outro;  a  tudo  lhe  hei  de  ir  buscar  um  remédio,  para 
ir  já  desempoeirada,  quando  for  ao  P.*,  e  não  vir  de  lá  mais  descon- 
solada que  a  M.*  Maria  da  Agréda  nos  trinta  annos  que  a  Sr.*  lhe  não 

CARTAS.  i4 


210  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

deu  lição,  ou  a  Doutora  S.**  Thereza,  quando  viu  S.  João  da  Cruz  com 
dôres  rheumathicas. 

Sim  Sr.^  amanhã,  domingo,  me  levantarei  cedo  para  achar  o  De- 
putado Ferrão  em  casa,  e  mandar  a  insinuação  ultima  ao  Teixeira  Ho- 
mem. Tenha  V.  S.'  paz,  consolação  e  sobretudo  desafogo  de  animo. 
Recommende-me  com  o  maior  affecto  á  minha  querida  Mãe.  Muito  amor 
lhe  tenho,  e  muito  obrigado  lhe  fiquei  hontem,  por  me  fallar  como  fal- 
lou  dos  escrúpulos  da  Menina,  e  das  toUces  do  Menino.  Se  eu  lá  fôr 
algum  dia,  e  a  não  achar  alegre,  então  não  ha  de  ser 

Seu  Mano 

J.  A. 
XVII 

Nem  ao  menos  a  certeza  de  que  fica  entregue,  para  eu  andar  dias 
6  noites  entregue  a  um  cuidado  que  se  não  pode  explicar  porque  sem- 
pre me  lembro  o  peor?  Será  falta  de  saúde?  Será  abundância  de  Veiga? 
Antes  seja  falta  de  vontade.  Ora  diga-me  alguma  coisa,  para  eu  lhe 
poder  dizer  muitas.  Queira  o  céo,  que  a  resposta  seja  sua,  e  da  sua 
mão,  que  beija  em  Christo 

Seu  Mano 

J. 
XVIII 

Mana  do  meu  coração,  tinha  escrito,  e  já  fechado  uma  carta  para 
lhe  mandar,  mas  lembrei-me,  que  me  enganava  em  uma  coisa,  e  vi- 
nha a  ser,  que  lhe  annunciava  a  minha  ida  lá  Quinta  feira,  esquecido 
inteiramente  que  era  a  Ascenção;  ando  com  a  cabeça  á  roda  com 
idas  a  Pedroiços  em  busca  de  casas  para  a  doente,  e  ainda  hontem  fi- 
cou decedido  este  difQcil  negocio.  São  três  horas  da  tarde,  vou-me  ao 
Vigário  Geral  a  fallar-lhe  no  que  me  diz,  e  na  sexta  feira  lá  vou  então. 
Saudades  à  Mãy,  e  a  minha  adorável  mana  as  receba  com  todo  o  co- 
ração do 

Seu  Mano  o  mais  extremoso 

/. 


  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  2H 


XIX 

Minha  Mana,  e  Senhora  minha  (assim  escrevia  o  Venerável  Fr. 
António  das  Chagas  a  uma  que  tinha)  e  como  se  ha  de  escrever  na 
Semana  Santa,  quando  até  os  santos  estão  escondidos?  N'esse  domici- 
lio sempre  ha  semana  santa  para  nós  os  filhos  de  Eva,  por  mais  que 
gemamos,  por  mais  que  choremos  n'este  Valle  de  Lagrimas,  n^o  é 
possivel  vêr  as  santas  d'esse  Paraíso  senão  debaixo  de  véos  e  entre 
cortinas,  e  a  esperança  de  um  sabbado  de  Aleluia  é  coisa  que  não 
apparece!  Ora  6.*  feira  ia  eu  bem  contente,  cuidando  que  a  via,  mas 
nada,  ouvil-a  quanto  quizer,  até  mastigar  a  ouvi.  Se  eu  ia  agoirado! 
Encontro  a  Eternidade  na  escada,  e  lá  em  cima  o  antigo  dos  dias  cora 
sua  cabelleira  de  mais,  e  ao  pé  d'elle  não  sei  quem  a  segurar-lhe  a  chi- 
cara  para  se  não  babar  e  babujar  aqiiella  criança.  E  a  minha  querida 
mãy  com  um  crianço  d'aquelles!  Desmame-o,  engeite-o.  Na  Roda  es- 
timaria elle  muito  que  o  pozessem,  também  eu,  mas  como  sou  muito 
bravo  e  chorão,  não  me  accomodava  senão  com  uma  Ama,  estranha- 
ria todas  as  outras,  não  sei  que  lhe  faria  no  colo.  Então  quem  é  esta 
Ama?  Pergunte-m'o  a  mim,  que  eu  lhe  direi  que  é  V.  S.*  Ahf  minha 
Ama,  minha  Ama,  porém  minha  Ama  seca,  que  nem  vel-a  posso.  Inda 
a  minha  miséria  é  maior  1  Coitadinho!  Não  conheceu  Mãy!  Pois  eu  a 
não  vejo!  Ahi  vae  a  condecinha  5.*  feira  á  noite,  não  a  quero  cá  fora, 
eu  lh'a  pedirei;  e  agora  a  Mãy  a  benção,  e  a  Mana?  o  coração.  É 
muito  pedir!  Deus  o  favoreça 

Irmão 

/.  A. 

XX 

Mana,  e  querida  Mana  do  meu  coração;  hoje  6  de  setembro  pelas 
sete  horas  da  manhã  desembarquei  de  Paços  de  Arcos  onde  tenho  es- 
tado sem  vir  a  Lisboa;  assim  o  quer  a  minha  sina  com  gravissimo  en- 
comodo  meu  e  até  risco,  deixando  esta  casa  ao  desamparo  em  mãos 
de  uma  velha,  que  se  embebeda,  e  de  outra  mais  moça  que  não  tem 
juizo;  mas  que  hei  de  eu  fazer?  Deixar  em  total  desamparo  uma 
doente  a  expirar,  deitando  de  si  postas  de  sangue  com  uma  dor  aguda 
que  se  não  despede,  já  confessada  e  sacramentada!  Vim  hoje  em  ra- 
zão de  alguns  sermões  de  Sabbado  e  Domingo  e  estou  com  tanto  des- 


212  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

asocego,  que  talvez  embarque  esta  noite  para  vir  aqui  no  sabbado  de 
madrugada.  Lá  nem  um  minuto  só  me  esqueço  da  minha  F.,  e  esta 
separação  me  tem  lança io  nos  braços  de  uma  tristeza  invencível,  que 
se  augmentou  agora  á  vista  da  relação  dos  seus  encommodos  e  traba- 
lhos. Sim,  parece  impossível  que  resista.  A  doença  da  Mãy  me  conster- 
nou: mande  já  já  ás  Necessidades  buscar  as  milagrosas  papas  que  lá  dão 
com  que  repentinamente  se  cura  essa  moléstia,  eu  fallo  com  experiên- 
cia própria,  já  tive  um  na  mão  esquerda,  que  me  ia  apodrecendo,  e 
logo  sarou.  Se  eu  não  fôr  hoje,  amanhã  lá  mandarei,  e  escreverei  com 
mais  vagar,  que  alguma  coisa  tenho  que  lhe  dizer.  Supporte  com  cod- 
stancia  tantas  penalidades,  até  que  eu  lá  possa  ir.  Não  duvide  um 
instante  da  minha  extremosa  e  constante  amisade,  digo  o  mesmo  que 
tenho  por  tantas  vezes  repelido,  e  nunca  faltarei  ás  que  tenho  protes- 
tado. Cresce  todos  os  dias  o  meu  affecto,  a  minha  ternura,  a  minha 
saudade,  e  nunca  diminuirá  o  justo  amor  que  merece  a  minha  F.,  de 
quem  sou  por  escolha  mais  do  que  podia  ser  por  natureza 

Mano 
J. 

XXI 

Senhora 

Hoje  22  de  Março  ao  meio  dia  encontrei  o  P.*  Confessor;  esta 
vista  ou  este  encontro  fez  na  minha  alma  uma  commoção  que  é  im- 
possível poder-se  explicar.  Foi  um  despertador,  e  a  pena  que  eu  me- 
recia bem  a  executou  1  Agora  oiça:  a  19  de  Maio,  faz  três  annos,  fui 
atacado  fora  de  Lisboa,  de  uma  moléstia  a  que  os  Enterradores  a  quem 
nós  chamamos  Médicos,  dão  o  nome  de  gota;  e  com  tanta  violência, 
que  do  primeiro  golpe  me  teve  immovel  na  cama  32  dias.  A  semana 
que  acabou  trouxe  3  dias  e  3  noites  de  dores  do  inferno.  Isto  me  abys- 
mou  em  pélago  de  tristesa,  isto  desconcertou  todas  as  faculdades  da 
minha  alma,  deixando-me  só  mais  viva  a  memoria  para  meu  algoz. 

Eis  aqui  o  que  um  velho  tonto,  gotoso,  melancholico,  e  contra  si 
mesmo  rabugento  pode  dizer,  não  para  desculpar  de  todo,  mas  para 
fazer  algum  tanto  menos  feia  a  nota  de  ingratidão.  Se  isto  merecer  al- 
guma resposta,  já  que  não  tenho  cabeça,  se  tiver  pés,  depois  do  to- 
que de  Alleluia,  visto  gosarem  então  os  peccadores  do  perdão  geral,  irá 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  213 

pedir  o  particular  a  V.  S/  o  triste,  mas  eteroamente  lembrado  de 
V.  S.* 

Servo  e  obrigd.""* 

José  Agostinho  de  Macedo. 

Forno  do  Tijolo,  22  de  Março  de  4822. 

XXII 

Maça  do  meu  coração  (de  todo),  hoje  dia  de  S.  Matheus  pelas  oito 
horas  e  meia  se  acabou  o  meu  cativeiro  de  jornadas  por  mar  e  por 
terra,  pois  á  hora  que  digo,  desembarcou  no  Cáes  da  Fundição  de  uma 
Falua  toldada  o  costal  dos  emplastros  com  as  suas  competentes  Donas 
de  Honor,  e  camareiras  Thiofila,  Miri  Filisarda  e  Francisca,  e  eu,  que 
só  me  faltou  o  acautelado  ministério  dos  bispotes.  Aqui  estou  n'esta 
casa,  que  bem  cuidado  me  tem  dado  em  tão  longas  ausências.  Pode 
acreditar  que  esta  madrugada  me  vinha  lembrando  que  em  casa  acha- 
ria uma  carta  sua,  porque  nunca  se  me  aquietava  o  remorso  do  meu 
silencio,  mas  que  queria  a  Mana  que  eu  fizesse?  É  verdade  que  tenho 
vindo  a  algum  sermão,  e  domingo  tive  dois,  mas  sem  entrar  era  Lis- 
boa, porque  ura  foi  no  Calvário  onde  ha  umas  Recolhidas  ou  Enco- 
lhidas que  cantam  bem,  e  outro  foi  no  Lumiar,  e  de  lá  mesmo  abalei 
de  noite,  sempre  cheio  de  anciãs  com  a  enferma,  porque  além  da  noz 
do  pescoço,  postas  de  sangue,  rebentou-lhe  um  torno  de  matéria  do 
tornosello  do  pé  direito  da  parte  de  fora  com  que  lambem  está  coxa, 
compondo  eu  também  a  Brigada  das  incuráveis  com  uma  ferida  no 
coração,  que  como  se  rasga  pouco,  dóe  muito;  com  esta  carta  vae  ter 
algum  desafogo.  A  Mana  é  um  objecto  inseparável  da  minha  alma, 
e  isto  não  é  brinco;  deve-me  um  cuidado  extremo,  e  assim  o  deve 
acreditar,  e  assim  o  experimentará  em  quanto  eu  viver.  Sinto  a  molés- 
tia da  Mãy  e  sinto  tudo,  e  agora  constituído  era  mais  algum  descanço 
e  menos  ausência,  continuarei  sem  interrupção  a  escrever,  e  procural-a 
como  por  tantos  titules  devo.  Serve-me  de  consolação  e  consolação  úni- 
ca; os  tempos  vêm  trazendo  comsigo  maiores  tristesas,  e  é  preciso 
buscar-lhe  algum  desafogo,  e  não  posso  ter  outro  mais  que  communi- 
cal-a,  como  a  pessoa  de  maior  mérito  que  por  certo  existe,  isto  lhe  te- 
nho dito,  isto  direi  sempre. 

Ora  Mana,  ao  desembarcar  cahiu  esse  paio  de  uma  canastriaha, 


214  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

já  que  comeram  tantos,  fique  esse  para  lembrança  do  estrago  dos  den- 
tes, não  dos  emplastros,  mas  das  camareiras,  merende-o  a  Mana  do- 
mingo; parece  que  vae  fugido,  e  escondido  no  fundo  de  Ião  grande 
condeça  coisa  tão  pequena;  não  tenho  outra,  e  antes  ahi,  que  no  buxo 
das  taes  Arpias,  perdoe  a  tolice,  mas  Amor  he  menino,  e 

É  seu  Mano 

J. 

XXIII 

Mana  do  meu  coração,  recolhendo-me  agora  para  casa  achei  um 
excesso,  que  me  enfadou;  ora  eu  lhe  peço  que  nunca  mais  me  con- 
temple assim;  dinheiro,  eu  não  lh'o  acceito  por  sermões,  e  se  não  se 
enfastiam  de  mim,  eu,  e  eu  só  os  hei  de  pregar  todos  n'essa  Igreja  em 
quanto  viver,  eu  lh'o  remeto,  e  lhe  supplico  que  o  não  tome  por  descor- 
tezia.  Estou  muito  fatigado,  porque  me  não  pude  eximir  hontem  de  seis 
sermões,  e  todos  do  Sudário;  tem-se-me  conservado  o  coração  em  agi- 
tação grande,  e  vendo-me  obrigado  a  sahir  esta  tarde,  não  podia  an- 
dar. Amanhã,  domingo,  tenho  três  de  manhã,  na  2.*  feira  também  te- 
nho, e  trabalhoso,  na  3.*  de  tarde  devo  ir  ás  dos  folhos  com  o  des- 
tampatório de  um  S.  Francisco  Xavier,  que  não  sei  o  que  lá  fez  a 
uma  que  diz  nos  seus  cantares  que  se  chama  a  Ex.""*  Maria  Honorata. 
Não  posso,  nem  encostar  o  peito  a  esta  mesa  para  escrever.  4.*  feira 
pela  manhã  ás  oito  horas,  eu  irei  lá,  e  estarei  até  ás  onze,  e  mais,  se 
a  Mãy  se  affligir,  que  em  lhe  parecendo' me  ponha  na  rua.  Então  leva- 
rei tudo  dito. . .  Vou-me  deitar.  Se  estes  e que  aqui  tenho  me 

derem  lá  para  as  dez  horas  uma  gemada  como  um  infernal  caldo  com 
que  agora  mesmo  me  zangaram  as  tripas,  passarei  uma  noite  de  ro- 
sas. Muita  falta  me  faz  minha  Mãyl!  Maior  falta  me  faz  a  Mana,  e  sem 
ella  não  viverá 

/.  A. 
XXIV 

Mana  do  meu  coração:  que  coisa  é  deixação,  e  desamor?  Nunca 
espere  isso  d'este  triste  e  apoquentado  homem.  Eu  estou  perseguido 
por  todos  os  lados,  e  ha  contra  mim  uma  conspiração  universal  da  Pe- 
dreirada,  temo  aparecer,  não  ha  dia  em  que  me  não  façam  morto.  Como 
lhe  disse,  ficaram  as  casas  de  Pedroiços  pagas  até  ao  S.  João,  o  sitio 
é  bonito  6  retirado,  as  donas  das  casas  moram  nas  lojas,  e  são  duas 


A  FREIRA  TRINA  D.   FKLICIANA  215 

velhas,  uma  chama-se  Calherina  Beata,  outra  Cândida  não  sei  de  quê, 
fazem-me  o  comer,  e  alli  estou  tão  triste  e  só,  que  nem  lêr  posso,  e 
só  de  manhã  vou  dar  algum  passeio  pela  praia  do  mar,  e  sempre  só. 
Esta  é  a  minha  vida  ha  mezes  e  só  appareço  aqui  pela  necessidade  de 
algum  sermão,  a  que  venho.  Talvez  isto  tenha  algum  dia  mudança.  O 
n.°  da  porta  é  125,  defronte  das  casas  do  Marquez  de  Borba. 

Pode  contar  com  o  Sermão  das  Dores,  mas  cedo,  porque  talvez 
tenha  outro,  e  com  todos  os  mais.  Dê-me  muitas  saudades  á  Mãy,  e  pro- 
cure ter  saúde,  socegando  a  meu  respeito  porque  hei  de  ser  em  quanto 
viver,  com  todas  as  veras,  e  todas  as  forças  da  minha  alma 

Seu  Mano  o  mais  lembrado 

/. 

Pedroiços,  28  de  Fevereiro  de  1822. 

XXV 

Mana  do  meu  coração;  não  lenho  lá  mandado,  porque  esta  mu- 
lher adoeceu,  e  não  tenho  outra  pessoa  capaz  para  lá  mandar;  eu  tam- 
bém não  tenho  andado  bom,  cheio  de  tristeza  vendo  o  que  vae,  e  an- 
tevendo o  que  irá  dentro  em  breves  audiências.  Se  tem  alguma  carti- 
nha sua,  escrita  com  mais  vagar  que  permite  a  incessante  grade,  man- 
de-me  esse  cordeal,  ou  espeque  da  existência.  Como  o  tempo  refrescou 
6  humedeceu,  e  posso  sem  me  lavar  em  suor  dar  um  passo,  com  bre- 
vidade lhe  farei  uma  visita,  evitando  os  sabbados,  dias  terríveis,  cha- 
mados de  juizo,  em  que  os  que  cá  andamos  por  fora,  reputados  cabri- 
tos, são  precitos,  e  postos  á  esquerda;  emquanto  só  elles  ovelhinhas 
mansas,  puras,  castas  e  innocentes,  se  assentam  ou  tomam  a  direita, 
é  o  bem  à  bemaventurança,  ou  alli  a  gosam  no  ósculo  do  Sr.  e  que 
lhes  faça  muito  bom  proveito.  Mana,  tenha  saúde  perfeita,  a  mesma  de- 
zejo  á  Mãy,  e  pelo  que  me  pertence  a  mim,  bem  sabe  que  a  dezejo 
muito  vêr,  e  que  se  não  esconda  tanto.  Os  P."  da  Companhia  aucto- 
res  do  seu  Instituto  santo,  assentaram  que  eram  todas  de  alfinim  e  que 
podiam  ser  lambidas  com  os  olhos,  mas  nem  lambidas  nem  delambi- 
das são;  nasceram  feitas  mysterios  da  Fé  para  entrarem  pelos  ouvidos 
para  desvanecerem  a  esperança,  e  darem  cabo  da  caridade  que  vem  a 
ser  o  mesmo  que  amor.  Ora  se  gosta  d'este,  só  o  achará  no 

Seu 
/.  A. 


216 


CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


XXVI 

Mana,  e  senhora,  eu  ia  lá  depor  o  pezo  enorme  das  minhas  sau- 
dades, mas  fui  buscar  lã  e  vim  tosquiado,  ainda  trouxe  mais  do  que 
levei.  E  então  ir  algum  pedaço  de  pano  pardo  o  doce  nome  de  filho, 
e  o  doce  nome  de  Mano?  Estou  mais  contente  que  um  Deputado!  A 
fallar  sério,  ainda  não  tive  um  abalo,  nem  uma  surpreza  mais  agra- 
dável na  minha  vida,  do  que  a  determinação  da  Sr.^  Prelada  I  Como  a 
Mãy  lhe  hei  de  sempre  obedecer,  e  a  hei  de  sempre  respeitar.  E  que 
hei  de  eu  fazer  a  minha  Mana  adoptiva?  Muita  coisa,  tudo  quanto  ella 
quizer,  porque  não  ha  uma  pessoa  mais  benemérita.  De  vez  em  quando 
dar  por  lá  a  minha  volta,  gastar  bons  arráteis  de  olhos  pelos  buraqui- 
nhos,  e  com  os  buraquinhos  e  não  vêr  mais  que  os  buraquinhos,  que 
estão  feitos  em  forma  de  cruz,  para  tormento  dos  olhos,  e  mais  dos 
corações.  Eu  hei  de  para  a  Páscoa,  querendo  Deus,  tomar  a  lição  do 
P.®  Confessor,  com  a  sua  cabeça  muito  teza,  esse  não  se  embaraça  com 
os  buraquinhos,  falia  para  a  parede  fronteira  e  lá  irão  aquelles  suaves 
eccos,  talvez  que  cansados  do  caminho,  porque  de  ferrinho  a  ferrinho 
é  um  dia  de  jornada,  ferir  os  delicados  ouvidos  de  V.  S.*  Que  feliz 
sorte  a  d'aquelle  Padre  1  Elle  pode  fallar  nas  Demandas,  e  eu  não  posso 
fallar  na  minha!  Elle  diz  que  foi  ao  Escrivão,  que  foi  ao  Letrado,  que 
foi  ao  Juiz,  eu  ando  pelo  tribunal  de  um  cego,  que  nem  com  espe- 
rança me  despacha;  e  por  mais  que  peço  vista,  acho-me  com  a  No- 
vena de  S.  José,  tudo  como  no  primeiro  dia ! !  Mas  serei  como  o  ho- 
mem da  Quinta,  vou-me  deixando  estar,  e,  ou  boa  demanda,  ou  má 
demanda,  o  Escrivão  da  minha  banda.  Então,  não  apresentei  agora  muito 
bem  o  antigo  ditado!  Seja  para  saúde.  Ahi  remelto  a  V.  S.'  um  Li- 
vro de  Profecias  bem  applicadas,  e  eu  creio  que  Bonaparte  foi  o  Pre- 
cursor d'estes  Anti-Christos,  que  nos  estão  martyrisando.  Esse  Livro 
tem  feito  endoidecer  algumas  pessoas  cuidando  que  não  tarda  o  fim 
do  mundo,  mas  V.  S.*  não  tem  cabeça  de  endoidecer,  só  se  fôr  por 
mim. . .  Que  fui  eu  dizer?  Pelo  amor  de  Deus  não  vá  meter  isto  no 
bico  á  Mãy,  senão  quem  a  ha  de  ouvir  ralhar?  A  primeira  vez  que  lá 
fôr,  vou  tremendo  de  alguma  chocalhice  sua,  e  quando  eu  lhe  pedir  a 
benção,  logo  vejo  pelo  tom  do — Deos  o  faça  santo — se  houve,  ou  não 
houve  mexericos,  isso  logo  se  conhece.  E  V.  S.'  que  conhece?  Conhece 
como  os  seus  dedos,  que  me  deu  com  os  pés  n'alma,  e  que  eu  que 
sou  com  todo  o  coração  ggy  j^^qq 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  217 


XXVII 

Mana  em  Christo,  e  em  toda  a  Côrte  do  Céo,  apertam-me  as  sau- 
dades de  minha  Mãy,  e  desejo  saber  como  está,  da  Mana  não  tenho 
saudades,  tenho  um  formigueiro  no  miollo  que  me  não  deixa  parar  ape- 
sar de  ficar  hontem  com  os  bofes  ralados  com  um  sermão  do  Calvá- 
rio no  Desterro,  e  em  cima  d'este  outro  e  de  dormir  pouco,  de  esta- 
fado; levanlei-me  agora,  não  me  lembra  se  me  benzi,  aqui  estou  sen- 
tado, lembrando-me  de  lhe  escrever  e  esquecendo-me  que  hoje  será 
dia  occupadissimo  com  exames  de  consciência,  e  penitencies  cumpri- 
das á  pressa  para  o  que  se  ha  de  dizer  á  tarde  ao  ouvidor  das  virtudes 
e  assim  mesmo  secante  e  importuno;  não  quero  deixar  acabar  a  se- 
mana sem  novas  suas,  estou  inquieto  com  a  noticia  que  me  dava  da 
sua  constipação,  isto  é  um  objecto  sério,  e  desejo  sobre  elle  alguma 
clareza  que  me  socegue. 

Queria  hoje  dízer-lhe  muitas  graças,  que  a  divertissem  e  a  esses 
puros  Anjos  que  com  a  Mana  vivem  n'esse  para  mim  tão  respeitável 
domicilio,  porém  estou  consternado  até  ao  intimo  do  coração.  Já  lá  sa- 
berão da  triste  sorte  do  Patriarca;  vae  prezo  e  degradado  para  o  Bas- 
saco  entre  uma  escolta  de  cavallaria.  Isto  é  um  attentado  inaudito  que 
vae  assombrar  não  só  Portugal,  mas  o  mundo  inteiro;  o  seu  crime  é 
não  ter  querido  assignar  dois  artigos  das  bazes,  o  1.°  a  Liberdade  da 
Imprensa,  de  que  se  seguem  mil  patifarias,  desaforos  e  desordens,  o 
2.'  o  da  Liberdade  de  Consciência  para  cada  um  poder  seguir  a  Reli- 
gião que  quizer.  Quem  quizer  ser  Mouro,  pode  ser  Mouro,  pode  ser 
Judeu,  pode  seguir  o  que  lhe  der  na  cabeça.  Veja  a  Mana  o  que  se  se- 
guirá d'este  golpe  descarregado  na  cabeça  do  Primeiro  Ministro  da  Re- 
ligião; como  Cardeal,  era  a  sua  pessoa  inviolável,  tudo  se  atropella,  e 
o  partido  que  elle  devia  tomar  era  ir  para  Roma  como  Cardeal.  Quando 
elle  me  mandou  essa  honrosa  Provisão  que  remeto  á  Mana  para  lér,  e 
a  esses  Anjos,  e  a  Mana  m'a  entregará  quando  eu  lá  fôr  6.*  feira  das 
Dores,  eu  lhe  escrevi  e  o  desenganei  que  nada  faria  senão  comprome- 
ter-se  a  si  e  a  mim,  que  era  irresistivel  esta  força  que  nos  opprimia. 
Veja  a  Mana  se  eu  tivesse  escripio  que  me  succederia  agora?  Antes 
escrever  tolices  e  bagatellas,  Exorcimos  e  Cordões  ác.  Ora  a  Sr.*  para 
outra  vez,  eu  lhe  direi  muitas  coisas  que  a  divirlão,  e  a  possam  dis- 
trahir  alguns  instantes  do  pezo  do  seu  estado  e  do  seu  emprego.  Re- 


218  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACKDO 

commende-me  muito  á  minha  querida  Mãe :  eu  a  amo  e  sou  muito  seu 
amigo. 

Para  a  Mana,  não  me  basta  mandar-lhe  muitas  visitas,  é  precist 
levar-lh'as,  e  não  as  fio  de  ninguém,  hei  de  ir  eu  mesmo  em  pessoa, 
e  é  coisa  galante  que  em  me  vendo  aquella  mulher  que  está  na  porta, 
cá  de  fora,  (forte  nariz  temi)  sem  eu  lhe  dizer  nada,  parece  que  adi- 
vinha, logo  me  diz: — Procura  a  Sr.*  Prioressa?  Sim  Sr.^,  lhe  digo  eu, 
mas  olhe  que  também  procuro  a  Sr.*  Escrivã,  e  ri-se  a  mofina,  cuida 
que  é  graça !  Ora  a  Mana  gosta  dos  fechos  das  minhas  cartas,  e  te- 
nho estado  a  imaginar  com  que  hei  de  eu  fechar  agora  esta  Carta? 
Com  uma  obrêa. 

Até  3.*  feira. 

XXVIII 

1 

Minha  querida  Mana  do  meii  coração,  é  verdade  que  eu  prometti 
quarta  feira,  que  iria  lá  na  sexta,  e  o  prometti  diante  de  testemunha, 
que  tem  tanta  vista  como  cerimonia,  que  sendo  mestre  d'ellas,  todas 
lhe  esqueceram  porque  não  usa  de  nenhuma.  Ora  muita  parvoíce  co- 
bre aquella  cabelleira  í  Faltei  na  sexta  feira,  porque  não  faltou  a  chuva, 
e  eu  com  três  sermões  que  tive  na  quinta,  fiquei  ralado  e  endefluxado, 
e  por  isto  me  deixei  ficar  na  cama,  pedindo  ao  céo  que  assim  como 
deixava  cahir  tanta  chuva,  deixasse  também  cahir  uma  lage  na  cabeça 
d'elle  para  nos  livrar  de  uma  vez  do  não  convidado  pezo  da  sua  visita. 
Viu-se  coisa  assim  1  Eu  cuidei  que  era  o  dia  de  fazer  testamento !  Tudo 
estava  prompto:  o  Procurador,  o  Confessor,  o  Escrivão,  o  Agonisante, 
e  este  com  cara  de  defunto.  Cara?  Caveira:  eu  olhava  para  lodos  os 
cantos,  cuidei  que  também  estava  a  cova!  Quando  me  vi  no  pateo,  e 
em  ár  livre,  olhei  para  traz  a  vêr  se  vinha  a  morte  atraz  de  mim.  Hon- 
tem,  sabbado,  quando  encontrei  o  P.*  Confessor,  lhe  disse,  não  todo  li- 
vre de  susto: — Inda  estou  vivo! — Mando  agora  lá  e  eu  vou  para  Santa 
Appolonia  tratar  do  Sr.  da  Paciência,  que  é  hoje  a  sua  festa,  lá  lhe  pe- 
direi um  bocado,  e  que  seja  advogado  contra  Lages  e  outros  pezadelos, 
e  amanhã  que  é  segunda  feira  das  almas,  terá  esta  minha  apoquen- 
tada, a  consolação  de  beijar  a  mão  a  minha  querida  Mãe  e  de  dizer  á 
minha  amada  Mana  que  sou  e  muito,  e  muito,  e  tudo. 

Seu  Mano 

J. 


A  FREIRA  TRINA  D.  FELICUNA  219 


XXIX 

Mana,  expuz  as  causas  exteriores  do  meu  apparente  e  tormentoso 
esquecimento,  e  preciso  que  exponha  com  a  maior  fidelidade  as  inte- 
riores. Sahi  de  lá,  sim  d'essas  sombras,  penetrado  da  mais  viva  ma- 
goa, não  pelo  que  a  Mana  me  deu  a  entender,  mas  pelo  que  me  disse 
a  Mãe.  Aquelle  a  quem  alli  pozemos  o  nome  de  Veiga  pequeno  e  que 
o  Céo  apartou  d'ahi  para  casquilho  Pastor  de  ovelhas  ou  de  cabras  lá 
para  as  montanhas  d'onde  tinha  vindo,  lhe  accendeu  no  coração  um  com- 
bate entre  destampados  escrúpulos  e  as  impulsões  da  natureza.  A  Mãe 
me  fez  vêr  cem  muito  juizo  a  sua  mortal  aflQicção  em  absolvições  su- 
spensas ou  negadas,  por  quem  namorava  cá  por  este  valle  de  lagri- 
mas a  bandeiras  despregadas,  e  afiQicta  e  bem  afiQicta  conheci  eu  a 
Mana.  Resolvi  alli  mesmo  sem  hesitar  sacrificar  para  sempre  a  minha 
ventura  á  sua  tranquilidade  e  paz.  E  que  satisfação  havia  eu  dar?  Ne- 
nhuma ;  só  o  silencio  e  o  retiro,  julgasse  o  mundo  o  que  quizesse.  A 
compaixão  e  dó  que  eu  sentia  pela  Mana,  só  se  pode  medir  pela  gran- 
deza da  dôr  que  me  despedaçou  a  alma,  vendo  que  era  preciso  mos- 
trar que  a  não  amava,  para  com  este  passo  mostrar-lhe  algum  dia  que 
a  amava  muito.  Eu  paguei  esta  aborrecida  dehcadeza :  nunca  mais  tive 
nm  momento  de  consolação  e  alegria;  aluguei  uma  casa  em  Pedrouços 
e  lá  vivia  quasi  sempre.  O  Mundo  não  tinha  nem  terá  nunca  em  si  todo, 
quem  podesse  compensar  tal  perda,  porque  não  me  canso  de  o  dizer, 
e  de  o  entender,  que  a  Mana  é  a  creatura  mais  perfeita  pelos  dotes 
de  alma  que  tem  existido,  e  dizendo  eu  isto  diante  de  uma  mulher  Mes- 
quitela,  que  ahi  esteve,  acrescentou  com  muita  vivacidade: — e  também 
do  corpo. —  Eu  não  lhe  vi  senão  confusamente  os  olhos;  se  a  estes  e 
ao  tom  de  voz  o  mais  corresponde,  teve  Deus  muita  razão  em  a  que- 
rer só,  e  os  Frades  das  Necessidades  em  não  quererem  que  ninguém 
lhe  queira. 

Assim  vivi,  Senhora,  assim  vivi,  ou  assim  morri,  e  como  eu  nasci 
para  morrer  de  zangas,  em  Agosto  passado  fui  a  Mafra  em  uma  sege 
e  dentro  d'ell3  se  meteu  também  um  Frade  Bento  que  andou  por  ahi 
ás  costas  com  as  mulheres  de  Villa  Franca,  para  me  moer  o  corpo  e 
o  espirito,  o  corpo  com  as  alarvadas  dimensões  do  seu,  deitado  sem- 
pre para  cima  de  mim,  o  espirito  com  aquelle  chorrilho  de  parvoíces 
de  que  eu  não  sei  se  S.  Bento,  se  S.  Bernardo  fora  mais  liberal  para 
com  seus  filhos.  Teimou  em  fallar  em  o  nome  da  Mana  com  muito  lou- 


!á20  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

vor  é  verdade,  mas  cora  a  maior  dôr  para  o  meu  coração  pela  lem- 
brança da  minha  perda :  nem  com  dezanove  ovos  fritos  com  manteiga 
com  que  ao  almoço  n'uma  taverna  enciíeu  de  uma  vez  a  bocca,  com 
pasmo  da  taverneira,  deixou  de  fallar  no  seu  nome.  A  24  de  setembro 
também  vi  e  faltei  nas  Mercês,  porque  foi  lá  cantar  a  Missa  um  Oli- 
veira, mais  pacifico  que  Veigas  grandes  e  Veigas  pequenos,  que  pelas 
relações  de  espirito  com  a  Mana,  despertando  a  lembrança  da  minha 
desgraçada  perda,  me  fez  entrar  em  uma  palpitação  de  coração,  que 
nem  ao  sermão  me  deixou.  Domingo  à  tarde  tenho  de  ir  a  S.*^  Isabel, 
e  ainda  que  metido  na  capoeira  de  uma  sege  já  estava  temendo  a  vista 
d'esses  telhados  e  paredes.  Enaíim,  acabou  tudo  com  a  posse  da  sua 
carta,  com  uma  arguição  tão  doce  e  tão  espirituosa,  tão  digna  da  sua 
elevada  comprehensão,  que  até  é  uma  ventura  ser  criminoso  na  sua 
presença,  só  para  ser  assim  arguido.  Tenha  tantas  consolações  quan- 
tas eu  senti  em  lhe  puder  chamar  Mana  ainda  antes  da  minha  morte, 
de  lhe  poder  dizer  porque  é  minha  Mana,  que  eu  sou  seu 

Mano. 

XXX 

Minha  q.  M.  d.  m.  c.  vae-se  estreitando  este  prazo,  que  poucos 
dias  faltam!  Parece-me  que  ainda  hontem  me  dizia,  faltam  ainda  cinco 
mezes !  Séculos  me  parecem  a  mim  os  dias  em  que  não  tenho  noticias 
suas.  Já  que  hoje  é  um  dia  de  tanto  trabalho  e  tanla  zanga  para  mim, 
quero  ao  menos  a  consolação  das  suas  letras.  Talvez  que  quando  esta 
lhe  fôr  entregue  eu  esteja  já  em  S.'°  António  da  Sé  onde  El-rei  vae,  e 
onde  se  lhe  faz  pelo  Senado  uma  grande  festa  de  acção  de  graças  pela 
sua  vinda.  É  inexplicável  a  tristeza  com  que  eu  estou;  não  me  pude 
eximir  d'isto,  para  me  não  expor  a  grandes  reparos,  e  perigosos.  De 
melhor  vontade  estaria  eu  a  um  cantinho  do  Locutório  escuro,  e  antes 
vir  de  lá  com  belidas  nos  olhos,  que  ir  vèr  aquelle  apparatoso  espe- 
ctáculo, e  dar-me  eu  também  em  espectáculo.  Quiz  lá  mandar  sabbado, 
mas  lembrei-me  que  era  dia  de  Padres,  dia  tão  fatal  e  vista  tão  teme- 
rosa, que  até  as  moscas  d'ahi  desertam  n'esse  dia,  e  até  ao  Domingo 
pela  manhã  espreitam  cá  do  Paleo  se  ha  alguma  reconciUação  e  se  vae 
Padre,  e  só  depois  de  desenganadas  é  que  voltam  aos  seus  costuma- 
dos domicílios;  se  as  moscas  fogem,  que  farei  eu?  Todos  os  dias  d'esta 
semana  são  para  mim  penosos  com  Praticas  da  Novena  de  S.'*  Anna; 
a  S.**  se  lembre  de  mim,  e  me  case  com  a  vontade  da  Mana,  pois  me 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  221 

dizem  que  esta  S.**  é  advogada  d'estas  coisas.  Ora  se  já  fechou  os 
Livros  das  suas  contas,  dê-me  conta  do  seu  coração,  escrevendo-me 
uma  letrinha.  Sâo  cinco  horas  da  manhã,  mas  não  admira  que  madru- 
gue tanto,  quem  tanto  se  desvela  em  ser  unicamente 

Seu  Mano 

/. 

P.  S.— E  minha  Mãe? 
Pois  muitas  saudades. 

XXXI 

Mana  d.  m.  c.  eu  levo  uma  vida  de  cão;  desembarquei  hoje  ás 
seis  horas  da  manhã,  e  não  viria  a  Lisboa  se  não  tivesse  sermão.  Foi 
aquelia  Bernarda  na  profissão  e  no  miolo  meter-se,  sahindo  quente  da 
cama,  hontem  pelas  cinco  da  manhã  na  frigidissima  agua  do  mar  em 
Paço  de  Arcos,  deu-lhe  uma  dôr  no  baixo  ventre,  ella  chama-lhe  ta- 
boa,  seja  taboa  ou  seja  páo,  que  a  poz  ás  portas  da  morte.  Hontem 
todo  o  dia  trabalhavam  de  continuo  duas  seringas,  meteram-lhe  nas 
tripas  uma  caixa  de  assucar  mascavado,  e  uma  pipa  de  azeite,  gran- 
des ruidos  e  estrondos  ouvia  eu,  porém  a  dôr  a  continuar  toda  a  noite 
até  ás  quatro  horas  que  embarquei.  Não  bastavam  os  pinicos  da  casa, 
julgo  que  se  apenaram  os  da  visinhança,  é  certo  que  eu  não  chegava 
vez  nenhuma  á  porta  d'alcoba,  que  não  visse  aquelle  embrulho  empo- 
leirado no  pinico  em  cima  da  cama;  quebrou-se  um,  entornou-se  tudo, 
e  não  havia  quem  parasse;  eu  não  sei  que  caldos  fazia  a  moça,  talvez 
os  bebesse  ella,  porque  os  que  appareciam  eram  mais  claros  que  um 
desengano.  Deixei-lhe  dito  que  aquentassem  em  agua  ardente,  e  lhe 
pozessem  um  pano  molhado  sobre  o  logar  da  dôr,  se  eu  acabar  cedo 
talvez  vá  lá  esta  tarde.  Agora  antes  do  sermão,  se  ainda  achar  em  casa 
o  deputado  lhe  darei  o  Requerimento,  mal  feito  está,  mas  diz  o  que 
se  quer  dizer,  se  o  não  achar  em  casa  então  antes  que  vá  embarcar, 
eu  farei  outro,  porque  as  forças  alli  estão.  Sexta  feira  17  vou  pregar 
do  incomparável  S.  Mamede,  Santo  que  eu  não  conheço  nem  de  vista, 
pois  julgo  que  nem  de  páo  o  tem  na  Igreja,  antes  ou  depois  lá  irei  um 
bocadinho.  Porque  não  fui  eu  despedir-me?  Se  fica,  eu  lhe  fallarei,  se 
Dão  fica,  eu  não  sabia  de  lá  com  vida,  dizendo,  esta  é  a  ultima  vez! 
Esta  é  a  razão  mais  forte,  além  d'isto  o  calor  tem  estado  de  desespe- 
rar, e  eu  com  uma  terrível  debilidade  nos  joelhos,  que  me  aflQige  bas- 


222  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACKDO 

tante.  Tenho  dado  as  minhas  razões,  e  sâo  verdadeiras  ambas.  Vou 
para  a  estufa,  e  se  me  derreto  em  suor  a  gritar,  liquido-me  em  ternu- 
ras, e  desuzado  affecto  por  aquella  de  quem 

E  só  Mano 
J. 
P.  S. 

Menos  dizem  os  rapazes :  ó  Mãe,  pão, 
do  que  eu  digo,  ó  Mãe,  saudades. 


XXXII 

Minha  querida  Mana  do  meu  coração,  a  sua  carta  me  consternou 
como  deve  suppôr  da  minha  exaltada  brandura  e  sensibiUdade.  Pelo 
que  pertence  ás  claras  e  efficazes  intimações  que  heide  fazer  ao  tal 
Deputado,  descanse  e  confie  em  mim;  os  Requerimentos  eu  os  orde- 
narei com  a  possivel  energia.  É  lastimosa  a  situação  do  Convento,  e  o 
que  é  de  todas,  também  ha  de  envolver  a  Mana,  e  por  consequência 
também  a  Mãe;  a  isto  posso  eu  dar  o  remédio  que  o  meu  afifecto  me 
manda  dar,  e  a  subsistência  da  Mana  fica  desde  já  por  minha  conta, 
nada  deve  padecer  a  única  pessoa  a  quem  n'este  mundo  tenho  dado  o 
coração  inteiro,  a  única  em  que  descobri  merecimento,  e  a  quem  nunca 
deixarei  de  provar  a  mais  ardente  e  verdadeira  amizade.  Eu  escrevo 
isto  hoje  Domingo  á  noite,  amanhã  de  madrugada  vou  vêr  as  doentes; 
6  como  na  terça  feira  heide  pregar  na  Igreja  das  Salesias,  ou  como 
quer  que  lhe  chamam,  fico  lá  para  vir  pela  dita  Igreja  que  é  em  Be- 
lém, e  na  quarta  feira  eu  lá  mando;  nada  quero  que  falte  á  minha  ado- 
rada Mana  emquanto  eu  existir.  Deve  viver  com  commodidade  o  mais 
perfeito  de  todos  os  entes  que  existem;  e  além  d'isto,  tudo  o  que  eu 
poder  fazer  de  passos,  de  requerimentos  e  de  suppUcas,  com  a  maior 
satisfação  o  cumprirei,  desempenhando  em  tudo  as  obrigações  de  Mano, 
e  confirmando  com  obras  o  que  lhe  digo  com  palavras,  porque  é  uni- 
camente 

Seu 

/. 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  223 


XXXIII 

Minha  q.  M.  d.  m.  c.  não  cuidei  que  me  levantava  agora  para  me 
affligir  com  os  seus  excessos  e  incommodos!  Não  se  contêm!  Minha 
Mana,  eu  darei  amanhã  de  tarde  conta  de  mim,  se  poder  pessoalmente, 
e  de  manhã  escreverei  com  vagar  como  devo.  Sinto  os  seus  incommo- 
dos, afflicções  e  trabalhos.  E  começarão  elles  outra  vez?  Que  será  de 
mim  se  ellès  pararem!  Agradeça-me  muito  á  Mãe  o  seu  cuidado,  dê- 
Ihe  muitos  abraços  fihaes,  e  a  Mana?  Hontem  de  tarde  d'aqui  mais  de 
duas  léguas  me  vi  eu  abysmado  em  melancholia,  considerando  profun- 
damente na  Mana.  Ora  pois,  vou-me  d'aqui  para  as  gritarias,  primeira 
ás  roucas  pipias  de  Santa  Anna,  segunda  aos  Frades  Irlandezes  do 
Corpo  Santo,  que  tanto  me  entendem  a  mim  como  eu  a  elles;  o  que 
eu  entendo  bem  é  que  tenho  o  coração  rasgado  em  considerar  na  Mana, 
e  que  as  palpitações  que  tem  desde  8  de  fevereiro  serão  constantes  até 
ao  fim  da  vida  de 

Seu  Mano 

J. 

XXXIV 

Mana  e  Senhora  minha,  mande-me  dizer  se  o  R.""  P.*  Confessor 
entregou  n'essa  Portaria  um  abraço  meu  que  eu  mandava  para  a  Com- 
munidade;  eu  lh'o  entreguei  no  Salitre  quando  vinha  hontem  de  S.  Ma- 
mede e  lhe  pedi  que  o  não  deixasse  fora,  que  esfriava  muito,  que  o 
desse  á  Maman,  que  na  sua  mão  ficava  seguro.  Ora  a  festa  de  S.**  An- 
tónio mudou-se  para  o  dia  oito,  saiba  isto,  e  que  o  Santo  compadecido 
me  approximou  o  prazo  de  eu  ir  a  esse  sitio,  que  para  isto  não  eram 
precisos  milagres  de  S.'°  António,  e  segunda  feira  que  é  dia  da  visita- 
ção, eu  farei  esta  visita  de  tarde,  e  já  que  tudo  em  nós  foi  tarde,  ao 
menos  ficará  sabendo,  que  por  mais  cedo  que  me  levante,  o  meu  pri- 
meiro—Pelo sinal  da  S.^*  Cruz— é  dizer— Por  F.  R.  andará  hoje  até 
tollo 

/.  k. 


224  CAnxAS  de  josé  agostinho  de  macedo 


XXXV 

M.  M.  d.  m.  c.  vae  esta  cartinha  com  mais  socego,  ainda  que  com 
menos  vagar  ;  ando  feito  viajante  de  mar,  agora  que  são  sete  horas  des- 
embarco de  Pedrouços,  d'onde  sahi  antes  das  cinco,  isto  me  cança,  e  a 
moléstia  da  doente  me  dá  cuidado;  sempre  lavada  em  sangue,  ainda 
que  diz  o  enterrador  Pinheiro  que  é  proveitoso  porque  diminuo  a  acção 
do  aneurisma,  e  assim  ando  eu  entre  correios  da  morte  e  viagens  do 
mar.  Esta  tarde  vou  a  S.  Mamede  a  uma  Pratica  de  S.^°  António — a 
Obediência  do  Santo,  e  estou  á  obediência  do  Sr.  Prior,  porque  como 
vae  ao  Rato  tem  um  titulo  para  ser  obedecido:  se  não  acabasse  muito 
tarde  poderia  eu  lá  dar  uma  saltada?  Isso  dirá  a  Mana.  Já  lhe  disse 
que  fui  domingo  de  tarde,  e  bem  tarde  a  Odivellas  e  as  duas  festeiras 
Francisca  Rosa  e  Gertrudes  Palavra,  ambas  velhas  e  beatas,  me  grita- 
ram do  coro  que  fosse  a  uma  grade,  beijei  o  pé  ao  S.*°  na  Cancella  do 
coro,  o  nde  estavam  também  as  creadas  muito  enfeitadas  tocando  tam- 
bor, e  fazendo  tamanha  algazarra,  que  nada  se  ouvia,  bailharam  de- 
pois no  coro  perante  o  SS."""  Sacramento,  que  era  uma  consolação  vêl-as; 
era  um  pedaço  de  céo  com  gargalhadas  do  povo  espectador.  Fui  a  uma 
grade  chamada  pequena,  porque  todas  as  oito  mais  estavam  occupadas 
com  guitarras  e  motim  de  dez  Frades,  trinta  e  tantos  soldados  de  za- 
bumba, e  Freiras  azabumbadas,  cujo  estrépito  era  a  imagem  do  inferno 
virado  com  as  pernas  cá  para  cima.  As  duas  Beatas  que  bebem  muita 
vinho  também  m'o  pozeram;  não  bebi  porque  parecia  parente  do  do 
Calvário,  e  uns  bolos  redondos  de  farinhas  podres  chamados  esqueci- 
dos, que  não  tinham  de  bons  senão  uma  venerável  antiguidade,  pois 
me  pareciam  do  tempo  dos  Francezes.  A  lai  Gertrudes  Palavra,  Mes- 
tra eterna  de  Noviças,  me  contou  uma  historia  de  Joanna  Thomazia  que 
eu  não  sabia,  eil-a  aqui  tal  e  qual.  As  Bernardas  além  do  eterno  OfB- 
cio,  têm  todos  os  dias  o  de  Defuntos,  e  de  certo  não  é  pelos  que  ma- 
tam com  a  sua  formosura  e  discrição;  a  Noviça,  se  a  ha,  levanta  a  pri- 
meira Antífona  de  vésperas,  e  aponta  o  Psalmo.  Ensinou-a  pois  a  Mes- 
tra, e  disse-lhe: — Olhae,  vós  haveis  de  dizer  —  Me  stiscepit,  de  pé,  e 
depois — DeuSy  Deus  meus  —  sentada;  assim  o  fez  Joanna  Thomazia  — 
e  disse  tudo  —  Me  suscepit  de  pé,  Deus,  Deus  meus  sentada,  e  tudo  no 
mesmo  tom  latim  e  portuguez  tudo  junto,  sem  se  lembrar  que  a  pé  e 
sentada  era  a  ceremonia;  e  desatando  as  Freiras  a  rir,  ella  muito  ar- 
renegada, gritou  para  a  Mestra :  —  Não  me  ensinasse  assim !  Se  vossê 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  225 

é  Bernarda  eu  sou  Dominica.  Eu  ri  deveras,  e  não  ha  um  só  destem- 
pero de  Joanna  Thomazia  que  não  faça  rir.  A  Abb.*  é  toUa  e  Evange- 
lista, e  por  tanto  inimiga  do  Baptista,  coitado,  a  gritar  com  as  creadas, 
que  não  queria  no  coro  mais  tambor,  nem  mais  fandango,  e  pegou 
n'um  apagador  para  lhe  dar,  acudiu  a  tia  Ignacia  Laureanna  que  é  irmã 
da  Serpente  que  tentou  Eva,  pela  sua  edade,  e  acommodou  a  Abb.^ 

Ora  aqui  tem  a  Mana  bernardices  para  se  diyertir;  não  vá  agora 
contar  isto  aos  Padres  Casmurros,  impertinentes,  tollissimos  e  moedo- 
res, que  lhe  encham  a  consciência  de  escrúpulos,  e  que  lhe  metam  fe- 
zes no  corpo.  Aqui  não  ha  escândalo,  tudo  é  ao  Divino  e  para  maior 
gloria  do  Snr.  Eu  também  sou  Padre,  e  se  não  dirijo  espíritos,  posso 
regular  corações,  vire-o  para  cá  que  lhe  fica  seguro,  e  tão  unido  ao 
meu,  que  farão  um  só;  agora  vá  papaguear  também  isto,  que  decerto 
entorna  o  caldo,  e  deita  o  caso  a  perder.  Forte  taramella  de  coisas  ne- 
nhumas pelos  buraquinhos  imperceptíveis!  Que  mais  lhe  heide  dizerf 
Que  tenho  muitas  saudades  de  a  ouvir,  porque  de  a  vêr,  isso  fica  para 
mais  devagar,  de  tomar  á  benção  á  Mãe  a  quem  tenho  o  mais  verda- 
deiro afifecto  pelo  seu  muito  juizo  e  franqueza,  e  desejo  com  anciã  que 
essa  respeitável  Communidade  a  não  deixe  sahir  do  logar,  que  será 
uma  pena  que  me  custará  muito,  confio  na  sua  muita  virtude,  que  se 
não  ha  de  subtrahir  ao  pezo.  E  a  Mana?  Tudo  seu  me  dá  cuidado,  e 
sobre  tudo  a  sua  saúde.  Viva,  porque  é  um  anjo,  e  a  creatura  mais 
perfeita  que  existe,  e  a  mais  digna  de  existir.  Eu  estaria  coisa  de  vinte 
minutos  na  grade  de  Odivellas,  não  me  podia  nem  sentar  lembrando-me 
do  seu  pezadissimo  e  rigoroso  Instituto,  e  vendo  tanta  liberdade,  nem 
tanto,  nem  tão  pouco,  mas  não  podia  supportar  uma  coisa  com  a  lem- 
brança da  outra.  Umas  que  tanto  se  mostram,  outras  que  apenas  se 
ouvem.  Aquellas  nem  se  podem  ouvir,  e  estas  nem  se  podem  vêr.  Aquel- 
las,  tolas  supérfluas,  estas  por  excellencia  asisadas.  Para  aquellas  nem 
o  Mundo  pode  olhar,  estas  nem  o  sol  as  pode  vêr.  Aquellas  sem  ver- 
gonha na  cara,  estas  com  quatro  varas  de  panno  de  linho.  Aquellas 
uns  cavallões,  e  estas  uns  serafins;  se  ao  menos  se  trocassem  os  Dire- 
ctores I  Os  de  cá  para  lá,  os  de  lá  para  cá!  Joanna  Thomazia  vinha  di- 
zer á  Portaria,  quanto  lhe  dizia  o  P.*  no  confissionario,  e  os  arreme- 
dava:—  Olhe,  Bossa  senhoria  para  que  beio  á  religião?  Para  xer  uma 
Besta  nos  peccados.  Tanvem  eu  podia  lá  andar  pelo  Mundo,  a  bestir 
uma  cajacal  Ora  reze  três  estaçoens  —  Olhem,  disse-me  agora  isto  Fr. 
Sebastião.  Oh!  mei  Tio,  eu  mandei-o  beber,  não  fiz  bem!  Fez  sim,  e 
o  logar  era  para  isso,  continue.  Pois  olhe,  mei  Tio,  em  elle  me  cha- 
mando outra  vez  Besta,  se  cá  entrar  dentro,  quebro-lhe  a  cabeça  como 

CAUTAS.  15 


226  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

fiz  a  Fr.  Manoel  de  Mello.  Melhor  é  matal-o.  Ai!  tomara  eul  Com  esfa 
grande  secatura  a  terei  eu  mortificado,  minha  Mana,  porem  o  meu  in- 
tuito é  devertii-a,  e  o  meu  mais  firme  propósito  é  ser  emquanto  viver 

Seu  Mano  só 

/. 

XXXVI 

o  meu  extremo  cuidado  me  obriga,  hoje  mesmo,  a  buscar  alguma 
noticia  da  sua  situação.  Muito  me  aílligi  domingo  1  E  não  ha  um  Dire- 
ctor illustrado,  que  a  obrigue  por  motivo  de  consciência  a  suspender 
tantas  fadigas?  Valha-me  Deus,  eu  não  quero  que  escreva,  não  se  mor- 
tifique, nem  dobre  o  peito,  peço-lhe  só,  que  de  palavra  me  mande  di- 
zer se  experimenta  algum  alivio:  até  com  as  mãos  postas  (logo  em  aca- 
bando de  escrever,  porque  agora  estão  occupadas)  lhe  suppHco,  que  não 
cante,  nem  toque,  porque,  diz  a  lei,  que  a  vida  está  primeiro  que  a 
musica,  e  Deus  ouve  melhor  o  que  se  resa,  que  o  que  se  grita.  Para 
consolação  dos  fieis,  julgo  que  é  escusado;  porque  vi  tantas  malvas 
n'esse  Pateo,  que  assentei,  que  ahi  ninguém  entrava  já;  mas  se  alguém 
fôr,  contente-se  com  as  malvas,  excusa  de  ouvir  violas.  Beije  por  mim 
a  mão  á  nossa  boa  e  virtuosa  Mãe,  e  acceite  a  mais  viva  e  aCfectuosa 
Lembrança  de  seu 

Mano 

/. 

XXXVII 

Minha  Mana,  seis  sermões  hontem  em  Igrejas  grandes,  acabando 
o  ultimo  á  meia  noite,  me  mandam  estar  hoje  na  cama;  e  o  cuidado  e 
desasocego  em  que  estou  com  a  sua  moléstia,  me  manda  com  mais 
império,  que  procure  noticias  suas:  seja  como  fôr,  ou  de  palavra,  ou 
por  escripto,  queira  acudir  a  este  velho  caduco.  Se  eu  pozer  a  cabel- 
leira  do  Lage,  e  me  fingir  peticego,  segundo  a  moda,  ninguém  dirá 
senão  que  o  mesmíssimo  Ouvidor  das  suas  Missas,  e  secador  das  suas 
grades,  assiste  ao  Forno  do  Tijolo.  Parecendo-me  com  elle,  não  tenho 
a  ventura  que  elle  tem.  Eu  quereria  em  uma  calva  Insidia  ter  pegada 
a  sua  cabelleira,  e  até  nas  bochechas  as  bostellas  doP.®  Confessor,  com- 
tanto  que  assim  mesmo  bostelento,  e  desencabellado,  tivesse  a  ventura, 
que  tem  estes  dois  servos  de  Deus  e  Ministros  de  Christol  Nunca  a 


A  FREraA  TRINA  D.  FELICTANÂ  227 

Mana  os  veja  á  sua  cabeceira,  ainda  que  os  ature  na  sua  grade,  onde 
por  certo  estando  a  Mana  restabelecida  verá  segunda  feira  de  tarde, 
ainda  que  seja  por  um  instante 

Seu  Mano 


XXXVIII 

M.  q.  M.  d.  m.  c.  desfez-se  o  triste  encanto  das  minhas  jornadas, 
pensões  e  cuidados,  que  tudo  isto  quer  dizer  que  se  augmentou  re- 
pentinamente o  volume  do  Aneurisma  no  pescoço  da  pobre  e  atribu- 
lada Maria  Cândida,  e  foi  preciso  por  mandado  do  Pinheiro  metel-a 
logo  em  agua  salgada,  e  marchar  segunda  feira  da  semana  passada 
com  ella  para  as  praias  de  Pedrouços,  levando  também  a  carcomida 
Carmo  com  a  sua  perna  podre,  e  mais  grossa  que  um  cortiço.  Mudan- 
ças de  Irastes,  arranjos  de  casa  com  tudo  quanto  isto  comsigo  traz,  me 
tem  feito  a  mim  louco  e  doente;  eu  vim  hontem  sabbado  á  noite,  hoje 
Domingo  tive  quatro  sermões,  começando  pelo  de  S.  João  em  S,  Roque, 
onde  me  fallou  o  Principal  Gamara  para  ir  a  essa  Igreja  a  15  do  mez 
que  vem ;  o  quarto  sermão  foi  em  Odivellas,  d'onde  chego  agora  que 
são  dez  horas  da  noite,  moido,  estafado  e  aborrecido,  como  a  Mana 
deve  suppôr,  sem  se  me  desprender  do  coração  o  punhal  da  amargura 
que  me  tem  causado  o  estado  em  que  considero  a  Mana  com  o  cuidado 
em  mim.  Ora  pois,  socegue,  que  eu  estou  vivo,  e  é  o  que  basta  para 
não  ter  outro  emprego  mais  que  a  lembrança  da  Mana.  Eu  sahi  da 
grade  muito  consternado  na  1.*  oitava  do  Espirito  Santo,  com  a  ideia 
dos  Padres,  e  sobre  isto  me  explicarei  agora  com  vagar,  porque  esta 
só  vae  para  socego  da  Mana  e  para  me  recommendar  á  rainha  amada 
Mãy.  Torno  a  recommendar-lhe  que  socegue,  a  morte  é  só  rival,  mas 
antes  d'ella  é  só  de  F. 

/. 
XXXIX 

Minha  Sr.*  e  minha  Mana,  eu  devia  conforme  a  minha  promessa  ir 
á  parte  de  fora  d'esse  domicilio  hoje  terça  feira,  mas  eu  que  mando,  é 
certo  que  não  vou,  e  porque?  Porque  tendo  tido  Domingo  três  sermões, 
hontem  segunda  feira  quatro,  apparece  mais  outro  para  esta  manhã  de 
que  me  não  posso  sacudir,  e  é  de  S.  José,  e  na  Igreja  da  Pena,  e  não 
é  pequena  a  que  me  fica  de  demorar  mais  24  horas  a  minha  ida,  sendo 
tão  vehemente  o  meu  cuidado  na  saúde  da  Mana,  que  me  pôz  outro 


228  CAUTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACliDO 

dia  em  não  pequeno  susto.  Eu  estou  na  verdade  com  a  Mana,  possui- 
dor da  gloria;  que  coisa  é  a  Gloria?  É  o  Reino  do  Ceo?  E  que  coisa 
é  o  Reino  do  Géo!  É  um  thesouro  escondido  em  um  campo;  estamos 
no  caso,  a  Mana  é  um  thesouro  de  perfeições,  e  ainda  o  querem  mais 
escondido?  E  tanto  o  está,  que  eu  ainda  lhe  não  puz  a  vista  em  cima. 
E  o  campo?  Ainda  o  querem  mais  claro?  Campolide,  que  quer  dizer 
campo  da  batalha,  porque  se  o  Reino  do  Céo  padece  violência,  isto  é, 
uma  guerra  viva  de  saudades.  Ainda  a  coisa  vae  mais  por  diante;  por- 
que se  diz  que  o  homem  que  encontra  este  thesouro,  vae,  põe  com 
domno  tudo  quanto  possue  para  possuir  o  thesouro,  mais  o  campo. 
Eis  aqui  o  que  eu  fiz,  puz  tudo  a  andar.  Formosuras,  discrições  e  dis- 
cretaças,  tolas  e  toleironas,  doidas,  e  mentecaptas,  que  era  toda  a  mi- 
nha fazenda,  já  lá  vae,  já  vi  tudo  pelas  costas,  porque  eu  não  quero 
mais  que  o  thesouro  que  está  escondido  no  Campo,  e  no  Campolide. 
Logo  estou  na  Gloria,  porque  o  Reino  do  Céo  é  thesouro  escondido  no 
Campo,  mas  pelos  outros  campos  passea-se,  e  por  este  anda-se  á  roda, 
ou  faz  andar  a  cabeça  á  roda.  Depois  da  Bemaveoturança  assim  pintada 
em  papel,  tratando  das  coisas  da  terra,  digo  que  ámauhã,  quarta,  de  ma- 
nhã, lá  vou  ao  campo  onde  está  o  meu  thesouro,  meu  com  o  devido 
respeito  dos  Santos  Valois  e  Matia,  que  com  effeito  mata  a  gente  com 
a  tal  funcção  dos  buraquinhos;  n'elles  e  por  elles  darei  couta  de  mim, 
e  lá  fallarei  com  o  P.*  Confessor,  que  deu  em  Fiel  de  Feitos:  e  quem 
dissera,  que  as  grades  que  toda  a  vida  foram  theatros  das  finesas,  che- 
gariam a  ser  Escriptorios  das  Demandas  1  E  onde  me  embalaram  desde 
menino,  com  setas,  pyras,  cadêas,  chammas,  ternuras,  constancias  e  ju- 
ramentos; agora  são  Escrivães  (se  fosse  o  Escrivão  só!)  Leltra  dos  pro- 
curadores, trapassas,  e  arenguicesll  Deite-se  o  homem  fora  da  cerca, 
porém  Mana,  não  me  deite  para  fora  do  seu  coração,  nem  minha  Mãe 
da  virtude  da  sua  benção.  De  tudo  isto  pede  vista,  mas  não  a  dão  ao 
triste. 

J.  A. 
XL 

Mana  do  meu  coração,  eu  tenho  andado  dividido,  desde  sexta  feira 
até  hoje,  entre  trabalhos  do  meu  officio  e  cuidados  na  moléstia  da  mi- 
nha respeitável  Mãe,  e  não  tenho  lá  mandado  assim  mesmo,  para  não 
parecer  importuno,  ainda  que  o  motivo  me  justificava  bastante.  Não  pe- 
queno cuidado  me  causa  a  Mana  também,  porque  me  lembro  que  ha 
de  andar  muito  afflicta.  Mande-me  noticias  suas  circumstanciadas,  e 
que  diminuam  o  meu  cuidado;  estou  na  maior  impaciência  por  lá  ir, 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  229 

mas  o  não  posso  fazer  senão  quinta  feira,  eu  irei,  parece-me  que  é 
tempo.  O  Céo  permita  que  eu  ache  restabelecida  a  minha  Mãe,  e  tam- 
bém a  Mana  sem  muita  Iristesa,  porque  sem  toda  creio  que  não  poderá 
ser;  d'essa  herança  não  me  cabe  a  mim  pequena  parte,  e  só  tem  al- 
guma pausa,  quando  vejo  mecher  a  ponta  do  farrapinho,  que  da  ilharga 
da  Mana  cobre  também  o  fatal  crivo,  como  se  este  não  bastasse.  Se 
elle  estivesse  cá  da  minha  parte,  eu  joeiraria  por  elle  as  saudades,  e 
os  suspiros  de  modo  que  lá  chegassem,  mas  assim,  parece-me  que  até 
descançam  no  caminho,  e  se  algum  entra  vae  já  frio  de  neve.  Quei- 
ra-os  accolher  no  seu  peito,  a  ver  se  cobram  alento  e  calor,  e  corre- 
spondidos de  lá,  venham  dar,  e  conservar  a  vida 

Ao  seu  Mano 

/. 

XLI 

Minha  Senhora,  e  minha  Mana  em  Christo:  estou  hoje,  segunda 
feira  ás  oito  da  noite,  como  despedaçado  com  sete  sermões,  quatro  hon- 
tem,  e  três  hoje,  e  ha  duas  horas  que  descanço.  Bem  vê  que  teria  von- 
tade de  lhe  dizer  muitas  coisas,  mas  irão  algumas,  e  as  outras  um 
d'estes  dias.  Ora  comecemos  pelas  de  mais  obrigação.  Desejo  que  a 
Mana  me  recommende  sempre  á  Sr.'  Prelada,  mas  que  lhe  vão  lá  fa- 
zer as  minhas  lembranças?  Enfadal-a  no  meio  do  seu  laborioso  mini- 
stério, mas  se  lhe  podem  dar  alguma  diversão,  ahi  vão  muitas  sauda- 
des. Que  eu  as  tenho  de  lá  ir,  não  tem  duvida  nenhuma,  porque  quando 
lhe  faço  os  meus  respeitosos  cumprimentos  também  vejo  mecher  um 
vulto  da  parte  opposta,  e  abaixando  a  cabeça  rir-se  muito,  o  que  me 
não  consola  pouco.  E  as  outras  senhoras  também  não  hão  de  ter  re- 
commendações?  Sim  senhora,  e  muitas  saudades,  porque  eu  tenho  tan- 
tas d'esse  respeitado  e  respeitável  domicilio,  que  repartidas  por  todas, 
ainda  sobejam  para  a  outra  vez.  Mas  tenha  sempre  a  Mana  no  seu  car- 
tório uma  grande  reserva  d'ellas  não  só  para  seu  uso  e  gasto  parti- 
cular, porém  para  acudir  ás  mais  necessitadas  em  occasião  de  securas 
do  espirito.  Olha  que  celleiro  me  manda  fazer  I  dirá  a  Mana,  melhor 
fora  que  viesse  elle,  do  que  mandar  para  cá  essas  cargas  de  coisas 
tão  surradas  como  são  saudades,  e  se  as  tem  para  que  se  mala  lá  cora 
ellas,  venha-as  matar  cá.  Sim  Sr.*  e  talvez  que  5.*  feira  de  tarde,  por- 
que amanhã  vou  com  um  Frade  Bernardo  visitar  a  emplastrada,  na  4.* 
feira  vou  ás  dos  folhos  e  denguices  da  Encarnação  pregar  do  patriarcha 
S.  Bento,  que  bons  Burros  nos  tem  dado  ao  dizimo,  na  5.*  feira  irei 


1230  CAUTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

então  a  esse  Céo,  que  é  a  habitação  dos  verdadeiros  Anjos.  Olhe  Mana, 
por  ora  ainda  não  sei  que  sejam  outra  coisa.  Os  Anjos  ouvem-se  quando 
N.  Sr.  os  manda  fallar,  mas  pôr-lhe  a  vista  em  cima,  isso  não  acon- 
tece, e  é  o  que  lá  me  acontece  a  mim.  Oiço  um  Anjo  que  é  a  sua  Pre- 
lada, mas  ver  o  Anjo,  isso  não  é  para  mim.  Oiço  da  outra  parte  um 
serafim  abrasado  em  amor,  mas  vêr  o  serafim,  isso  não  é  para  mim. 
A  corçasinha  com  as  três  cores  não  tardou  em  se  mostrar  a  S.  João  da 
Matta,  mas  vêr  eu  âs  Ires  cores,  isso  não  ê  para  mim.  Fez-se  o  Anjo  lam- 
bem com  as  três  cores  visivel  a  S.  Félix  e  linha  dois  cativos  um  d'aqui, 
outro  d'ali.  Felizes  cativos  que  viam  o  Anjo.  Se  V.  S.*  se  mostrasse 
que  é  um  Anjo,  também  se  lhe  veria  aos  pés  um  cativo,  que  é  este  seu 
creado,  mas  este  cativo  não  tem  a  fortuna  de  vêr  o  Anjo,  que  tão  preso 
o  conserva.  O  meu  Fado  são  Anjos,  até  moro  na  freguesia  dos  Anjos. 
V.  S.*  como  Anjo,  manda-me  coisas  do  céo,  papos  de  Anjo,  bolos  ce- 
lestes, toucinho  do  céo,  e  arroz  que  não  é  de  telhado,  é  de  telhas  acima. 
(Ora  não  torne  a  mandar-me  nada  do  céo),  e  aqui  anda  metlido  n'esta 
Anjaria  este  Archanjo  velho,  sem  sabor,  repugnante,  impertinente,  e 
secador.  O  esposo  de  Santa  Cecilia,  disse  que  se  ella  visse  o  seu  Anjo, 
se  converteria  á  fé,  mais  faço  eu,  que  sem  vêr  o  Anjo  bem  convertido 
estou.  Para  quem,  dirá  V.  S.*?  Para  o  Anjo.  Quem  é  esse  Anjo?  É  a 
Mana,  e  não  o  duvide,  já  sabe  que  o  é,  porque  é  invisível;  agora  saiba 
porque  eu  lh'o  chamo.  Porque  tem  um  entendimento  angélico,  tenha 
a  certesa  que  ninguém  falia,  ninguém  se  explica,  ninguém  escreve 
como  V.  S.^  Aos  meus  olhos  é  um  verdadeiro  prodígio  de  entendimento, 
6  por  este  lado  só  Deus  a  merecia.  Os  costumes  e  os  sentimentos  são 
angélicos.  No  mundo  não  existe  coisa  nem  mais  perfeita,  nem  mais 
respeitável  que  a  Mana.  Acho-lhe  graça  em  me  arguir  de  dizer  mal  das 
mulheres;  se  todas  as  mulheres  fossem  as  Freiras  do  Rato,  eu  diria 
bem  d'ellas.  Acha  a  Mana,  que  é  coisa  muito  galante  um  exercito  de 
gaivotas  nuas  a  passearem  pelo  meio  d'esse  mundo,  sem  vergonha, 
sem  juizo,  sem  modéstia,  tolas  como  um  Frade,  namoradas  como  he- 
roinas de  comedia,  se  escrevem,  escrevem  parvoíces,  e  se  faliam,  di- 
zem asneiras.  Ora  deixe-me  pelo  amor  de  Deus.  Nunca  as  soffri,  nem 
lhe  fallo,  isso  é  constante.  Eu  não  as  posso  aturar,  tomara  esbofe- 
teal-as  a  todas,  ellas  bem  conhecem  a  minha  boa  vontade,  e  julgo  que 
lhe  correspondem.  Se  V.  S.^  fosse  uma  secular,  eu  lhe  juro,  que  en- 
tão não  queria  vér  o  Anjo.  V.  S.*  com  um  filó,  com  uns  sapatos  à 
Deusa,  com  a  feira  da  ladra  de  trapos  na  cabeça,  com  um  chalé  de 
pendurucalhos  com  um  sacco  de  fechos  dourados,  até  nem  tinha  juiso 
nenhum,  nem  se  saberia  expUcar,  era  uma  coisa  assim  por  modo  de 


À  FREIRA  TRINA  D.   FELICIaNA  231 

um  molho  de  tripas  que  alli  ia  pela  rua.  Deixe-se  estar  alii,  Menina, 
com  essa  cruzinha  no  peito,  com  esse  véo  bem  comprido  e  bem  es- 
pesso, que  vista  por  uma  peneira  ou  pelos  buraquinhos  do  crivo,  terá 
até  á  morte  por  seu 

Mano 

José  Agostinho  de  Macedo. 


XLII 

Pax  Christi 

E  seja  louvado. 

Lá  mando  agora  esta  mulher,  porque  o  moço  estava  com  muita 
pressa,  e  torno  a  certificar  a  Mana,  que  nenhum  incommodo  me  causa 
servir  a  Mana,  e  servir  a  todas,  e  n'isso  temos  assentado  de  uma  vez 
para  sempre;  tomara  eu  concorrer  para  a  sua  total  felicidade,  e  fazel-as 
independentes  de  tudo,  este  é  o  meu  desejo,  e  que  a  Mana  tenha  saúde 
e  a  Mãe  socego,  porque  me  consternou  muito  o  que  hontem  me  disse 
o  P."  confessor  do  estado  do  Convento  sem  recursos. 

Recolheram  as  Sete  Monicas  nas  ruinas  que  o  fogo  deixou,  e  di- 
zem todos,  e  todas  com  a  bocca  cheia  com  que  assopravam,  que  o  fogo 
foi  posto  pela  Fausta  dos  Inglezes,  irmã  do  diabo  que  d'ahi  foi  para 
Odivellas,  onde  se  foi  juntar  cora  ella  levada  pelo  Frade  Bento,  cuja 
cabeça  é  rapada  por  fora  de  cabello,  e  por  dentro  de  juizo.  Deus  nol-o 
conserve  até  a  hora  da  nossa  morte,  e  a  perdel-o,  só  por  F.  R.  se  lhe 
não  daria  a 

J.  A. 
XLIII 

Mana  do  meu  coração,  eu  linha  promettido  lá  ir  hoje,  mas  uma 
importunação  de  um  Cónego  de  Braga,  que  quer  uma  representação 
ás  Cortes,  e  outra  importunação  de  egual  naluresa  vinda  da  Casa  Pia, 
aqui  me  conservam  em  casa  manietado  sem  poder  fazer  a  minha  von- 
tade; mando  a  toda  a  pressa  esta  rapariga  dos  recados,  para  a  livrar 
de  cuidados,  desejando  muito  ter  letras  suas,  que  venham  dissipar-me 
a  zanga  em  que  estou.  Saudades  a  minha  respeitada  e  querida  Mãe,  e 
á  minha  Mana  o  quê?  O  coração  do 

Seu  Mano 

/. 


232  CAKTAS   DK  JOSÉ  AGOSTINHO   DK  MACIDO 


XLIV 

Não  me  pode  esquecer  a  impertinência  do  P."  nem  ha  sol  que  me 
aquente,  apesar  do  que  caiu  agora  em  cima  de  mim  desde  Santos  até 
ao  Forno,  á  vista  do  rigorismo  do  Veiguinha.  Quero-me  accommodar 
com  uma  coisa  que  me  lembrou,  convém  a  saber,  que  costumam  os 
grandes  mestres  de  espirito  provar  a  humildade  e  paciência  das  ser- 
vas do. senhor,  para  lhe  abater  a  vangloria  dos  seus  raptos  e  visões. 
Alonso  Rodrigues  nos  conta  (a  mim  não  vêm  elles  com  essas  historias) 
que  dando  uma  vez  conta  a  V.  M."  Maria  de  La  Antigua  ao  seu  Con- 
fessor o  P.®  Luiz  de  la  Puente,  de  se  ter  levantado  palmo  e  meio  do 
chão,  estando  com  muito  fervor  na  oração  para  agradecer  ao  Sr.  a 
graça  de  lhe  mostrar  as  almas  que  estão  no  Limbo,  sem  pena,  nem 
gloria,  como  os  que  vão  ao  Rato,  se  distrahira  d'este  rapto  espiritual 
com  a  dentada  de  uma  pulga  na  coxa  direita,  e  que  tendo  molhado  com 
cuspo  a  ponta  do  dedo  para  a  apanhar,  o  Sr.  permittiu  que  se  esca- 
passe, de  que  teve  tal  impaciência,  que  se  lhe  acabou  a  visão  cahindo 
em  terra  d'aquella  altura  de  palmo  e  meio  com  tanta  força,  que  íez  um 
gallo  no  traz,  e  que  estivera  em  risco  de  levar  bichas,  que  o  Sr.  com- 
padecido lhe  apparecera  d'ahi  a  dois  dias  estando  a  serva  de  Deus  no 
Cartório  e  lhe  dissera,  não  te  desconsoles:  Mana,  eu  permitti  que  des- 
ses aquelle  batecú,  para  castigar  a  impaciência  de  não  apanhares  a 
pulga  que  te  distrahia  da  oração;  eu  quero  compro var-te  na  tribulação 
dando  licença  a  um  percevejo  que  te  não  largue  de  dia  e  de  noite,  de 
que  a  serva  do  Sr.  sentiu  muita  vaidade  de  ser  julgada  digna  de  pa- 
decer por  vontade  do  Sr.  tamanho  martyrio,  e  que  ouvido  isto  pelo 
Confessor  conheceu  este  em  sonhos  que  era  disposição  divina  mortifi- 
car aquella  alma  com  um  incessante  percevejo,  lhe  chamou  iilusa  e  em- 
busteira, negando-lhe  quinze  meses  a  absolvição,  apartando-a  de  tudo 
o  que  eram  consolações  com  o  seu  Esposo;  ale  que  o  Sr.  mandou  sus- 
pender aquelle  rigor,  dizendo  que  estava  comprovado  o  seu  Espirito. 

Parece-me  que  acertei  attribuindo  a  este  motivo  a  sua  aíílicção 
de  espirito  de  quarta  feira,  pelo  caminho  dos  escrúpulos  apartando-a 
das  consolações  espirituaes  ouvindo  sem  gosto  os  passarinhos  cantando 
á  Hora,  por  tanto  não  se  deve  desconsolar;  mas  se  V.  S.*  assentar 
que  é  por  tolice  do  P.*;  e  por  elle  ter  a  cabeça  do  feitio  de  carneiro, 
então,  Menina,  faça-lhe  o  mesmo  que  eu  fiz  ás  três  cidras  do  Amor, 
os  ires  l.  l.  L,  mande-o  á  fava,  e  mande  lambem  ao  P."  Confessor,  que 


Á  FREIRA  TRINA  D.   FELIGIANA  233 

pela  manhã  logo  leva  essa  Carta  do  Sr.  Deputado  Ferrão  ao  Teixeira 
Homem,  e  que  está  o  milagre  feito,  e  eu  vou  já  a  S.^  António  pregar 
da  sua  caridade,  e  se  esta  é  também  amor,  tenha  V.  S.*  muito  a 

J.A. 

XLV 

Minha  q.  M.  d.  m.  c.  Hontem,  quarta  feira,  vindo  de  Pedroiços 
para  onde  se  transferiu  agora  o  meu  Hospital  volante,  a  que  se  jontou 
agora  mais  uma  inchação  (xM.*  do  Carmo  com  a  perna  inchada),  achpi 
a  sua  carta,  única  e  verdadeira  consolação  que  n'este  Mundo  tem,  e 
terá  a  minha  apoquentada  vida,  senti  a  injustiça  manifesta  da  sentença; 
ainda  que  não  me  admira,  porque  não  se  lisongeam  os  Imperantes  se- 
não com  aquelle  indigno  procedimento  contra  os  infelizes  Frades,  e  in- 
felicíssimas Freiras,  tudo  lhe  tiram,  e  tudo  lhe  tirarão,  que  para  isso 
lhe  pedem  roes,  e  mappas.  Ora  pois,  minha  mana,  eu  desejo  todo  o 
bem  até  ás  insensíveis  muralhas  d'essa  prisão,  porque  a  encerram,  isto 
é,  o  ente  mais  perfeito  que  existe,  e  por  isso  lhe  peço  que  quando  se 
intentar  alguma  causa,  ou  demanda,  me  deixem  vèr  os  fundamentos 
ou  documentos  que  para  ella  haja,  não  envolvam  erro,  ou  motivo  de 
decaírem  de  sua  justiça  para  se  lhes  pouparem  cuidados,  despezns  e 
desfeitas,  que  é  o  que  mais  se  deve  sentir,  e  se  eu  por  falta  de  íntelli- 
gencia  não  perceber,  consultarei  pessoas  que  entendam,  e  sejam  des- 
apaixonadas; o  nimio  zello  do  P.®  Confessor  talvez  o  engane  algumas 
vezes.  Estimo  que  esteja  mais  descançada  sobre  os  seus  escrúpulos  de 
consciência,  e  que  tenha  firmeza  nos  seus  propósitos,  e  já  que  tem 
tanta  luz  no  entendimento  em  que  por  certo  ninguém  a  eguala,  tenha 
também  resolução  constante  na  sua  vontade,  d'isto  pende  também  a 
sua  tão  melindrosa  saúde,  que  se  arruina  com  a  inquietação  de  espi- 
rito. Tenha  uma  plena  confiança  na  Divina  Misericórdia,  Deus  tem  mais 
bondade,  e  mais  juizo  que  os  homens.  Quizera  fazer-lhe  hoje  uma  vi- 
sita rápida,  porém  não  é  possível,  cansado  hontem  com  a  vinda  de 
Pedrouços  ainda  que  por  mar,  cansado  ou  aborrecido  de  ouvir  á  ve- 
lha: Aif  minha  perna;  e  á  quasi  velha:  Aif  meu  pescoço I  e  em  cima 
Pratica  de  Santo  António,  amanhã  outra  vez  Pedroiços,  porque  ainda 
lá  não  está  mais  que  metade  dos  Irastes  e  faltam  munições  de  cosinha, 
no  sabbado  Pratica  de  S.*°  António,  e  ás  três  horas  da  noite  ir  para 
Collares,  e  vir  de  lá  também  de  noite,  não  me  resta  mais  que  a  2.' 
feira,  e  quando  fôr  ao  Monserrate,  saber  n'essa  Roda  da  saúde  da  Mãe 
e  da  Mana,  e  se  poder  haver  um  quarto  de  hora  de  grade  então  le« 


234  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSIIMIO  DK  MACEDO 

varei  a  novidade  que  houver.  No  Monserrate  fesleja-se  o  Senhor  da 
Agonia,  que  vem  a  ser,  festejo-me  eu,  festeja-se  V.  S.*  porque  tudo 
são  agonias,  as  dos  meus  olhos  porque  a  não  vêem,  as  do  seu  espirito 
com  os  Anjos  dos  P/^  mas  Nosso  Sr.  J.  C.  quando  entrou  em  agonia 
diz  o  texto,  que  orava  com  mais  afinco  e  proluxidade;  eu  farei  o  mesmo, 
pedirei  á  Mana  até  com  impertinência,  que  me  queira  muito,  e  quanto 
mais  agonisado  estiver,  mais  lh'o  pedirei,  porque  só  n'isto  consiste  o 
remédio  único  das  minhas  agonias;  veja  lá  se  me  acode  ou  não,  seja 
o  Anjo  que  me  conforte,  já  que  em  tudo  é  Anjo,  o  tal  calixsinho  dos 
buraquinhos  não  é  pouco  amargo,  mas  vá,  que  mais  vale  pouco  que 
nada,  nem  eu  quero  que  d'elle  me  dispensem,  nunca  direi — aparte-se 
de  mim  este  cálix,  mas  venha  para  mim.  Ora  ande,  que  já  estou  can- 
sado de  esperar. 

Mandaram-me  de  Coimbra  esse  papel  a  favor  de  Frades,  que  nío 
é  máo,  mas  ha  a  pregação  dos  Baptistas  no  deserto  ou  é  o  mesmo 
que  se  me  dissessem  a  mim  que  não  seja  de  V.  S.* 

O  mais. . .  q?  tudo 


XLVI 

Minha  Mana  e  Sr.*  a  grande  e  escandalosa  questão,  não  ficou  de- 
cedida  no  sabbado,  porque  intervieram  representações  d'esses  encar- 
regados de  Negócios  Estrangeiros,  que  ahi  existem,  e  principalmente 
do  Delegado  do  Papa;  mas  eu  desconfio  muito,  porque  conheço  o  ca- 
racter dos  sujeitos,  e  sei  as  disposições  com  que  estão.  Hoje  se  ha  de 
ultimar  o  negocio,  e  creio  que  El-Rei  o  engulirá  com  a  mesma  fres- 
cura com  que  enguliu  a  desfeita  que  lhe  fizeram  na  pessoa  do  Mare- 
chal. Segundo  entendo,  isto  está  de  todo  abandonado,  pois  já  tinha 
mais  que  tempo  de  dizer — gosto,  ou  não  gosto. — Mas  nem  todos  têm 
a  sinceridade  que  eu  tenho,  porque  eu  falio  claro,  e  digo,  gosto  muito 
da  minha  Mãe,  gosto  immenso  da  minha  Mana,  não  gosto  nada  dos 
buraquinhos  da  grade  onde  os  olhos  estão  em  perpetua  Quaresma,  que 
vem  a  ser  rigoroso  jejum,  porque  se  o  vento  dá  no  panninho  preto 
que  cobre  os  buraquinhos  nunca  é  para  o  levantar  antes  é,  como  te- 
nho reparado,  para  o  abaixar  ainda  mais.  Alguns  ha  tão  ditosos  que 
o  vento  lhe  ajunta  a  lenha,  para  mim  sempre  a  espalhou;  e  alli  sopra 
o  vento  com  previlegios  de  grude,  porque  pega  o  panninho  em  logar  de 
o  despegar.  Só  falto  á  Santa  Regra  um  capitulo  que  determinasse,  e 


Á  FREIRA  TRINA  D.   FELICIANA  235 

dissesse: — Item,  mandamos,  que  quando  as  Religiosas  forem  aos  bura- 
quinhos,  vão  primeiro  ao  cubículo  da  Mãe  metter  algodão  nos  ouvi- 
dos, que  sempre  lh'o  terá  prompto,  e  bem  carpeado. — Item,  recom- 
mendamos,  que  para  o  pasmo  que  isto  causará  aos  peccadores  que  lhe 
vierem  fallar,  tenham  sempre  na  grade  da  parte  de  fora,  e  bem  pen- 
durado um  molho  de  cebollas.  Item,  mandamos  em  virtude  de  santa 
obediência  ao  P.®  Confessor  que  ao  presente  é,  e  ao  diante  fôr,  que  se 
ponha  sem  pestanejar  olhando  para  a  parede,  e  acompanhando  os  hos- 
pedes que  lá  forem,  desde  que  elles  venham  até  que  se  vão.  Item,  re- 
commendamos  ás  religiosas,  M."  Porteiras  e  Rodeiras,  e  a  quem  mais 
convier,  que  tenham  sempre  na  porta  da  parte  de  fora  uma  mulher 
gorda  fiando  n'uma  roca  com  uma  cara  de  desmamar  creanças,  com 
dois  olhos  como  duas  beringellas,  tão  temente  a  Deus,  que  para  bem 
do  próximo  não  deixe  passar  para  a  escada  das  grades  uma  sú  mosca 
de  que  não  dê  fó,  e  de  que  não  vá  cochichar  com  as  visiuhas  e  ami- 
gas que  assistirem  pelo  pateo,  e  que  faça  bem  perguntas  a  uma  velha 
que  lá  manda  a  irmã  de  J.  A.  que  é  muito  curiosa,  tola  e  intrometida. 
Ora  não  quero  fazer  mais  pesada  a  sua  lei  com  outros  capitulos. 
Divirta-se  a  Mana  com  essa  boa  e  honesta  historia,  mal  traduzida  por 
quem  nem  sabia  francez,  nem  portuguez.  Conserve-me  lá  guardados 
os  papeis  do  Patriarcha,  que  eu  os  trarei  quando  lá  fôr.  Se  não  cau- 
sar encommodo  5.*  feira,  eu  irei.  Immensas  saudades  a  minha  virtuosa 
Mãe  e  V.  S.*  as  acceite  de 

Seu  Mano 

/.  A. 
XLVII 

Mana  do  meu  coração,  hoje  não  é  dia  de  escritas,  nem  tem  sido 
dia  de  idas  e  vindas.  Eu  me  tenho  conservado  em  silencio  e  em  so- 
bresalto.  É  de  presumir  que  esta  noite  ahi  vá  ficar  o  Espirito  Santo, 
meta-o  lá  para  o  Cartório,  falle-lhe  da  minha  parte,  trate-o  com  bom 
modo,  peça- lhe  para  mim  o  que  eu  desejo.  Eu  podia  buscar  para  elle 
um  empenho  nos  Padres  que  dizem  ser  do  Espirito  Santo,  porém  creio 
que  o  mesmo  Espirito  Santo  apesar  de  ser  uma  pomba  sem  fel  os  não 
pode  já  aturar,  e  se  algum  se  vae  meter  nas  andancias  de  amanhã, 
elle  abala  e  vae-se  embora;  mas  vá-se  tudo,  e  fique  a  Mãy,  se  isto 
assim  succeder,  eu  serei  feliz. 

Vae  o  Sermão  impresso;  é  tal  o  estado  em  que  eu  estou,  que  nem 
sei  escrever,  nem  me  lembra  coisa  que  lhe  diga,  e  rindo  eu  toda  a  mi- 


236  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

nha  vida  com  uma  coisa  que  ouvi  sendo  pequeno  a  uma  discreta  Freira 
de  S.**  Clara  de  Coimbra  em  um  oiteiro  de  eleição,  que  era  um  mote 
que  ella  deu,  e  que  deixou  o  auditório  extático  de  assombro  cora  o  re- 
levante juizo  d'aquell3  extraordinária  mulher,  vejo  que  se  annunciava 
uma  coisa,  e  que  devia  vir  entender  commigo  quando  eu  tivesse  cin- 
coenta  e  seis  annos  menos  um  mez;  emfim  o  mote  era  este,  e  lá  se 
avenha  V.  S.*  com  elle 

—  Foi  eleita  sacristã  — 
Isto  que  então  fez  acabar  o  Oiteiro  ás  gargalhadas  (para  que  es- 
tamos n'este  Muodo!)  veiu  a  ser  um  objecto  de  tanta  ponderação  que 
d'elle  pende  a  vida  de 

j.Ata 

XLVIII 

Isto  já  é  outra  coisa,  e  já  tenho  logar  de  me  dar  a  mim  mesmo 
os  parabéns,  eu  os  recebo,  e  me  tico  muito  obrigado.  Fizeram  esses 
Anjos  o  que  deviam;  elles  bem  sabiam  que  esse  era  o  modo  de  me 
conservarem  em  vida.  Nosso  Snr.  lhe  pague  a  caridade  que  commigo  ti- 
veram. A  Mana  esta  tarde  antes  da  Oração  lhe  annuncie  o  meu  agra- 
decimento, porque  de  outra  sorte  era  arriscado  o  fugir  o  Touro  da 
manada.  Toda  esta  semana  passada  andei  eu  metido  com  os  Frades 
Bernardos,  está  ahi  o  Geral,  e  cuidara  era  se  justificar  de  suppostos  cri- 
mes com  que  os  têm  enxovalhado  n'esses  papeis  públicos,  tenho-lhe 
feito  vários  requerimentos  e  representações,  porque  emfim  tratam-me 
bem  aqaella  emplastrada;  agora  me  mandaram  aqui  um  caixote  de 
pêcegos  que  vêm  quasi  todos  tocados,  porque  meter  pecegos  verdes 
em  caixote,  e  esfe  muito  bem  pregado  cora  fortes  pregos,  só  Frades 
Bernardos;  ahi  reraetto  á  Mana  os  que  entre  centos  pude  achar  sem 
podridão.  Que  será  isto  de  habito  Bernardo  1  Quer  a  Mana  saber?  No 
dia  da  funcção  de  S.*"  António  apresentou-se  lá  o  Paio  de  Lingoas  com 
a  velha  Carmo,  busquei  logar,  e  o  tiverara  em  uma  tribuna.  Coisa  rara, 
no  fira  veiu  El-Rei  a  cima  tomar  um  refresco,  já  tinha  conversado  muito 
commigo,  e  estando  eu  com  a  bostelenta  de  perna,  e  cora  a  bostelenta 
de  cara  no  cimo  de  uma  escada  por  onde  elle  passava,  beijei-lhe  a  mão 
e  elle  rae  levantou  pegando-me  em  ambas  as  raãos,  e  voltando-se  para 
a  Freira,  disse-lhe:  Esta  é  sua  irmã?  Responde  ella, — e  uma  fiel  vas- 
sala de  V.  Ex^ — No  dito  não  o  mostra,  acudi  eu,  e  ella  fazendo  peor 
a  emenda  que  o  soneto  disse — de  V.  Magestade. — Elle  riu  muito,  e 
mais  os  que  com  elle  vinham,  e  como  elle  estava  de  confiança,  pois 
até  lhe  disse  que  alimpasse  a  cara  que  estava  muito  suada,  remendei 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FKLiaANA  237 

toda  aquella  scena  com  esta  exclamação:  —  Seja  tudo  para  honra  e  glo- 
ria do  bemaventurado  S.  Bernardo!  Ainda  riu  mais,  e  esqueceu-lhe 
por  um  pouco,  que  já  não  era  Rei.  Vamos  aos  pêcegos  Bernardos.  Em 
cima  do  caixote  vinha  essa  carta  de  ofiferecimento,  veja  com  que  jóia 
eu  ficol  Com  o  Procurador  de  S.  Bernardo.  Isto  só  elles  o  dizem,  por- 
que Procurador  da  Ordem  de  S.  Bento,  e  até  da  de  S.  João  de  Deus 
todos  dizem,  mas  os  Bernardos  não  são  Procuradores  da  Ordem,  são 
Procuradores  do  Santo,  que  se  cá  tivesse  demandas,  achava-os  peores 
que  José  Joaquim.  Porque  se  não  assigna  a  Mana:  Escrivã  da  SS."' 
Trindade?  Porque  não  é  tola,  e  porque  tem  tanto  juiso,  e  tão  singular 
discrição  é,  e  será  até  á  morte 

Seu  Mano 


XLIX 

Mana  do  meu  coração,  hontem  segunda  feira  foi  um  dia  de  in- 
commodo,  e  cansasso  para  mim,  tive  dois  sermões,  e  o  segundo  em  S. 
Mcolào  acabou  quando  deram  três  horas,  e  tão  fatigado  cheguei  a  casa 
que  me  deilei;  hoje  tenho  outra  pregação  de  manhã,  e  de  tarde  vou  a 
mais  pregação  a  Carnaxide,  e  sem  me  poder  eximir.  Não  sei  que  força 
occulta  nos  anda  fazendo  pirraças,  mas  eu  a  vencerei,  tomara  ouvil-a, 
porque  vel-a  tem  sua  demora,  porque  a  Mana  me  disse  ha  muito  tempo 
que  só  no  valle  de  Josafat,  mas  entre  tanta  gente,  será  buscar  agulha 
em  palheiro,  se  a  Mana  me  não  disser:  —  Olá,  cá  estou  eu,  chegue  se 
para  aqui  uma  migalha,  veja-me,  e  não  se  tire  d'aqui,  iremos  ambos 
para  o  céo.  Tudo  isto  assim  será,  mas  a  moléstia,  e  os  repetidos  ata- 
ques que  a  Mana  padece  me  tiram  todo  o  socego,  e  lh'o  digo  com  ver- 
dade. Eu  vou  já  para  fora,  mande-me  dizer  de  palavra  por  esta  triste 
mulher,  e  com  sinceridade  se  está  melhor  ou  peor,  não  me  occulte  isto, 
porque  me  traz  em  grande  sobresalto  e  inquietação.  Vou-me  a  minha 
vida  trabalhosa,  mas  em  quanto  ella  durar  serei  seu  amante,  e  affe- 
ciuoso 

Mano 
L 

Minha  q.  M.  do  meu  coração,  agora  acabo  de  desembarcar  de  uma 
terra  chamada  Trafaria,  chego  de  bem  longe  a  casa  e  devo  já  ir  de 
casa  para  bem  longe,  onde  chamara  Arroios  gritar  de  manhã  e  gritar 
de  tarde  sobre  coisas  que  fez  S.  Sebastião  quando  era  vivo,  e  de  ai- 


238  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTIIHHO  DE  MACEDO 

gumas  que  tem  feito  depois  de  morto.  Tal  é  a  minha  vida.  Dizer-lhe 
que  tenho  vivido  era  mortal  sobresalto  depois  que  a  velha  qne  lá  mando 
me  vein  dizer  que  nâo  podia  escrever,  é  dizer-lhe  o  que  deve  crer 
porque  não  me  podia  lembrar  senão  de  que  estava  doentissima,  e  se 
não  tenho  lá  mandado  (que  triste  coisa!)  foi  por  temer  me  dissessem 
já  não  está  aqui.  Deixemos  isto.  A  sua  carta  tirou-me  da  cova,  estou 
que  não  sei  o  que  lhe  devo  dizer.  Desde  aquelle  momento  em  que  a 
essa  sacristia  foi  ter  um  bocado  de  papel  com  letra  sua,  ainda  não  pas- 
sou um  quarto  de  hora,  que  eu  não  sentisse  o  que  merece  que  eu  sinta 
pelo  ser  mais  perfeito  que  existiu  e  existe.  Isto  não  é  grade  de  Frei- 
ras, é  o  coração  que  falia. 

Mana,  são  onze  horas,  devo  ir  para  a  tal  Igreja,  quando  vier  á 
tarde,  ou  quasi  noite,  eu  escreverei  com  vagar  e  amanhã  lá  tornarei 
a  mandar.  Eu  não  tenho  outra  felicidade  mais  que  Feliciana.  Isto  não 
é  nome,  isto  é  vida  para  mim.  Não  desprese  a  sua  saúde,  e  acceite 
como  quer  que  elle  seja  o  coração  de  seu 

Mano. 

P.  S. 
Mil  protestos  de  respeito  e 

saudade  á  nossa  Mãy. 

LI 

Minha  q.  Mana  do  meu  coração,  ainda  que  não  trate  já  de  doen- 
tes, trntó  de  gritarias  por  essas  Igrejas;  fui  Domingo  ao  Barreiro,  e 
por  lá  fiquei,  vim  quarta  feira  á  noite,  hontem  sexta  fui  ao  Sacramento 
de  manhã  e  de  tarde,  hoje  torno  lá,  amanhã  vou  a  S.  Sebastião  da  Pe- 
dreira, segunda  feira  vou  a  Santos;  e  com  esta  vida  ainda  que  tenha 
percevejos  em  casa,  deixo-os  morder  porque  nem  tempo  tenho  para 
os  matar;  tomara  que  passasse  o  dia  sete  de  outubro  para  ter  algum 
socego  n'este  corpo,  e  n'este  espirito,  o  do  coração  ha  muito  que  o 
perdi,  e  com  muito  gosto  porque  o  motivo  é  para  mais,  Diga-me  como 
está;  sei  que  hoje  é  dia  occnpado  não  só  por  ser  dia  de  Sr.  S.  Miguei, 
a  cujos  pés  devia  fazer  figura  mais  de  um  P.®  Director,  e  Mestre  de 
espirito,  mas  por  ser  sabbado,  dia  de  Padres  Directores,  para  os  quaes 
até  os  dias  de  maio  são  pequenos.  Estimarei  que  a  nossa  querida  Mãe 
esteja  de  todo  restabelecida  e  cedo  terei  o  gosto  de  a  ouvir.  Disse-me 
hontem  de  tarde  o  Sr.  Deputado,  que  a  sua  representação  tinha  sido 
remettida  para  a  Commissão  da  Justiça  civil,  e  que  depressa  aparece- 
ria. Ora  pois,  acabo  aqui  de  escrever  a  um  Anjo  para  ir  fallar  de  ou- 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  239 

tro,  ambos  invisíveis.  Fique-se  S.  Miguel  com  as  almas,  e  o  outro  te- 
nha dó  d'este  corpo,  ao  menos  d'estes  olhos,  porque  não  quer  ver  mais 
que  F.  R, 

J.  A. 
LII 

Mana  do  meu  coração,  nenhum  incommodo  tive,  porque  as  horas 
foram  bem  distribuídas,  e  tudo  se  fez  a  tempo  ou  o  tempo  concorreu, 
pois  fazia  vento  bastante  e  fui  depressa,  ainda  que  o  prior  da  egreja 
lhe  custa  estar  em  jejum  aié  mais  tarde,  foi  Congregado  e  por  isto 
gosta  de  todas  as  commodidades,  delicias  e  amores  d'esta  vida  mortal. 
D'aquelle  alto  de  Almada  olhava  para  o  Torreão  das  Aguas  Livres,  e 
via  também  a  ponta  do  telhado  da  Igreja,  porque  ou  de  perto  ou  de 
longe,  ahi  não  se  vê  mais  que  paredes,  telhados,  portas,  rotulas,  fer- 
ros, pannos  e  buraquinhos,  mas  nada  d'isto  faz  esquecer  o  que  está 
dentro.  Eu  frio!  Só  se  a  muita  edade  me  faz  parecer,  e  talvez  chamem 
frio  meu,  o  que  será  fastio  alheio.  Maria  Cândida  tem  agora  uma 
grande  amigalhota  em  uma  Anna  da  Costa  que  ahi  esteve,  e  lhe  conta 
grandes  coisas  dos  Padres  Espirituaes  e  corporaes  como  boas  festas, 
estes  fazem  esfriar  tudo,  e  enfastíal-as  de  tudo.  Já  disse  á  emplastrada 
que  semelhantes  coutos  não  se  ouvem,  mas  é  o  que  se  segue  da  es- 
tada de  Senhoras  em  conventos  recoletos.  Eu  não  estou  aleijado,  não 
quero  seges,  e  a  20  do  mez  que  vem  não  fará  calma,  e  com  efifeito  o 
único  motivo  porque  não  tenho  lá  ido  é  o  calor,  que  em  o  fazendo  não 
posso  andar,  nem  respirar.  Eu  não  tenho  ahi  a  quem  falle  senão  á  Sr.* 
Escrivã,  nem  ahi,  nem  em  outra  qualquer  parte.  Tomara  ter  mil  occa- 
siões  de  servir  todas  as  outras  por  amor  d'esta,  porque  só  esta  vale 
por  quantas  houve  e  pode  haver.  Ora  para  não  demorar  o  galego,  que 
é  torto,  me  não  espraio  em  saudades  para  a  Mãe,  mas  eu  lá  manda- 
rei a  costumada  mulher,  que  é  coxa,  para  que  estes  aleijões  correspon- 
dam a  rectidão  com  que  sou 

Mano 


LIII 

M.  q.  M.  d.  m.  c.  Vae  esta  cartinha  saber  de  mim  porque,  com 
o  que  eu  souber  viverei  ou  morrerei;  Gorgundofia  e  Felicidade  não  me 
deixaram  satisfeito,  porque  me  deixaram  na  mesma  ignorância.  Mas  de 
que  me  queixo  eu,  se  eu  não  mandei  lá  a  mulher  como  tinha  dito? 


240  CA.RTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

E  a  minha  vida?  Hontem  jantei  eu  ás  dez  horas  e  meia  da  noite.  Vim 
de  madrugada  de  Paço  de  Arcos,  por  mar;  tornei  a  embarcar  ás  nove 
horas,  fui  para  Almada,  desembarquei  ás  quatro  da  tarde,  não  vim  a 
casa  mas  fui  direito  á  Igreja  das  Freiras  do  Salvador  pregar  de  um 
Sr.  Jesus  assim  chamado,  de  lá  fui  para  uma  Igreja  chamada  da  Glo- 
ria, pregar  de  S.  Sebastião,  vim  depois  das  sete  horas  para  casa,  e  como 
tinham  comido  o  jantar,  foi  preciso  esperar  que  se  Gzesse  a  cêa  que 
me  serviu  de  jantar,  deitei-me,  de  escandecido  não  dormi,  bebia  agua, 
agora  são  cinco  horas,  pedi  um  pouco  de  chá,  mas  como  n'esta  casa  o 
guisado  mais  difiGcultoso  é  agua  quente,  sabe  Deus  quando  m'o  darão, 
e  estou  tão  esvaido  da  cabeça  que  nem  escrever  posso,  e  com  esta  in- 
sipidez de  carta,  vou  saber  com  certeza  o  que  é  a  Mana?  É  a  Mana. 
Mas  o  quê?  E  a  mãy  o  que  é?  E  eu  o  que  sou? 

Sou  só  da  Mana 

/. 

LIV 

Mana  do  coração:  com  effeito  a  tal  grade  pequena  faz  a  gente 
devota  de  Santa  Luzia,  ficam  por  lá  os  olhos  se  a  santa  não  acode;  e 
quando  nós  os  pecadores  nos  apanhamos  cá  fora  no  pateo,  supportando 
gradualmente  o  clarão  do  dia,  respiramos,  e  eu  cuidando  que  amanhe- 
cia, quando  desci  a  escada,  disse  á  mulher  gorda  da  porta — Salve 
Deus  a  V.  M.*'°  já  tocaram  á  missa  das  almas  no  Monserrate? — EUa  se 
sorriu  e  me  disse: — Sr.,  está  a  cahir  meio  dia!  Pois  se  cahisse  em  cima 
da  cabeça  do  P.^  Rego,  não  Ih'a  partia.  Isso  é  verdade,  tornou  ella,  por- 
que se  os  olhos  eram  de  carneiro,  os  cascos  também  eram  do  mesmo 
animar.  Emfim,  eu  esfregando  os  olhos,  costumei-me  ao  dia  e  vim  para 
casa  cheio  de  cuidados  na  doença  da  Mãi,  e  na  tosse  tão  teimosa  da 
Mana.  Digam-me  como  estão,  que  para  isso  lá  mando,  ainda  que  isto 
parece  mais  formigueiro,  que  civilidade,  e  se  é  cerimonia,  os  grandes 
Mestres  deitam  grandes  discipulos,  só  lhe  não  tenho  aprendido  uma, 
que  vem  a  ser  a  carreirinha  da  sabida  da  grade,  porque  eu  bem  mos- 
tro que  não  ha  pernas  que  me  tragam,  venho  como  cão  pela  corda;  de- 
vendo sahir  mais  leve  que  elle,  porque  eu  lá  deixo  o  coração  e  elle  não. 
Ora  já  que  por  lá  ficou,  trate-m'o  bem,  e  como  está  dado,  nunca  mais 
o  quero,  e  já  que  onde  vae  o  pião,  vae  o  ferrão,  ahi  tem  todo  o 

J.Á. 


A  FREIRA  TRINA  D.  FKLICIANA  241 


XV 


Forte  gritaria  para  nada!  Ingrato,  desconhecido,  inconstante,  vo- 
lúvel, falso,  enganador,  esquecido,  insensível,  &.  Sim  Snr.,  e  acres- 
cente-Ihe  occupado  cora  papeladas  de  Frades  Bernardos,  que  por  me 
tratarem  bem  aquella  gailinha  choca  os  aturo  em  tudo,  e  os  defendo 
com  esta  tal  ou  qual  penna  quanto  posso.  Hoje  ainda  que  quizera  não 
me  podia  demorar,  vou  para  a  grande  festanga  que  fazem  os  barbei- 
ros, cutileiros,  espadeiros  e  tudo  o  que  faz  sangue  e  leva  coiro  e  ca- 
bello,  nos  Martyres;  vem  assistir  o  nosso  que  foi  rei,  e  ás  três  da  tarde 
ainda  não  estará  a  coisa  acabada.  Vamos  ao  negocio,  quando  fôr  na 
Quinta  feira  onze  do  mez  ás  enfermidades  do  P.'  Confessor,  ajustare- 
mos a  hora  do  dia  14  porque  devendo  ir  a  Almada  é  preciso  que  ahi 
seja  muito  cedo.  Adeus  Mana,  não  me  crimine  sem  me  ouvir.  Dê  sau- 
dades a  nossa  Mãe,  e  se  as  quer  minhas  em  logar  de  palavras  ahi  vae 
todo  o 

J.  A. 
LVI 

Gorgundofia  das  Estrellas,  e  Felicidade  Perpetua  de  S.*°  Agosti- 
nho, a  felicidade  d'este  santo  antes  de  meter  a  beato,  era  diz  elle, — 
amar,  e  ser  amado.  —  Se  esta  é  a  escrivã,  eu  não  quero  outra  Felici- 
dade. Mas  será  isto  muita  felicidade  junta?  Digo  a  verdade,  eu  não  en- 
tendo I  É  preciso  que  te  expliques  mais,  e  que  eu  saiba  que  motivos  te- 
nha para  a  esperança  dos  buraquinhos.  Descança  pois,  dorme,  e  de- 
pois explica-te,  eu  mandarei  lá  a  mulher  do  costume.  Quem  quer  que 
seja  a  Perpetua  Felicidade,  eu  não  quero  senão  Felicianna,  só  esta  íez 
e  fará  feliz 

/. 
LVII^ 

Estou  pasmado!  O  que  a  Mana  sabe  ralhar!  Hei  de  escrever  pouco 
para  lhe  dar  pouca  matéria,  no  caso  que  o  escrever  pouco  não  seja 
nova  matéria  para  nova  ralhação.  Cuido  que  anda  aborrecida  com  a  en- 
trega do  ofiQcio,  eu  se  estivera  na  vontade  de  todas,  e  de  cada  uma. 


*N'esla  carta  termina  a  correspondência  cora  D.  Feiiciana;  estavam  reunidas 
ao  caderno  das  cartas  authenticas  duas  cartas  que  á  Freira  Trina  dirigira  D.  Maria 
CAilTAS.  16 


242  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

não  lhe  acceitava  tal  entrega;  a  minha  querida  mãe  também  havia  con- 
tinuar a  fazer  meia  no  mesmo  cantinho,  e  se  tivesse  calma  abanar-se 
com  o  seu  leque  de  papel.  Muita  coisa  mais  faria  eu  se  estivesse  lá  den- 
tro, ou  quero  dizer,  dentro  da  vontade  de  todos,  mas  acceitem-me  os 


Cândida  do  Valle^  Freira  bernarda  do  convento  de  Cós,  que  então  vivia  em  compa- 
nhia do  padre  José  Agostinhode  Macedo.  Transcreveraol-as  como  elucidativas: 

111.»»  Sr.« 

Se  eu  julgasse  que  o  meu  nome  lhe  era  desconhecido,  não  me  atreveria  a  escre- 
ver a  V.  S/  nem  a  ofiferecer-lhe  os  meus  respeitos;  mas  sabendo  que  uma  pessoa,  que 
08  laços  do  sangue  prendem  muito  de  perto  commigo,  lhe  tem  dado  conhecimento  de 
mim,  tomo  a  liberdade  de  aparecer  na  sua  presença,  e  de  pedir-lhe  a  sua  amisade, 
tributando-lhe  para  a  merecer,  a  admiração  que  tenho  pelo  seu  espirito,  a  qual  nas- 
ceu das  expressões  que  na  minha  presença  lhe  fez  um  seu  admirador,  o  qual  ahi  es- 
teve hontem.  Eu  dou  o  parabém  a  V.  S.»  d'esta  visita,  e  ainda  os  não  dei  a  J.  A.  de 
Macedo,  porque  ainda  o  não  vi  depois  d'isto,  e  sei  que  elle  os  ha  de  estimar  porque 
ambiciona  muito  ter  oceasiões  de  obsequiar  a  V.  S.'  Supposto  que  muito  pouco  per- 
manente nas  suas  attenções,  eu  as  julgo  realmente  sinceras.  Eu  desejo  conhecer  de 
perto  a  Y.  S.»,  mas  como  ignoro  o  modo  de  lhe  fallar,  rogo-lhe  me  queira  dizer  se 
ahi  faliam  em  grade,  porque  já  disse  ainda  não  vi  J.  A.  depois  que  ahi  foi.  Eu  re- 
speito muito  os  conventos,  e  querendo  a  ventura  que  eu  veja  a  V.  S.»  saberá  então  o 
meu  estado,  e  a  preferencia  respeitosa  com  que  eu  sou 

De  V.  S. 


Ainda  que  desconhecida  uma 
fiel  admiradora 


Lisboa,  3.*  feira. 

P.  S. 

A  Portadora  é  capaz  de  resposta; 
desculpe  a  má  nota,  mas  quem  pode 
escrever  como  V.  S.*  Que  estilo  I  que 
estilo  I  José  Agostinho  tem  razão  de 
gabal-a. 


Maria  Cândida  do  Vallt. 


111."»  Sr.« 


Eu  me  envergonho  da  falta  que  tenho  tido  com  V.  S.*  por  não  ter  ha  mais 
tempo  procurado  as  suas  noticias,  desculpando  por  este  meio  o  não  ter  ido  a  esse  con- 
vento, como  eu  tencionava  e  appetecia;  porém,  minha  Senhora,  a  minha  saúde  me 
obriga  a  cahir  em  falta  que  a  minha  razão  desapprova,  e  se  não  fosse  attendivel  esta 
desculpa,  eu  me  não  atreveria  apparecer  na  sua  presença  com  a  mancha  de  impolitica. 


Á  FREIRA  TRINA  D.  FELICIANA  243 

bons  desejos;  comludo,  muito  mal  hei  de  ficar  com  todas  se  não  fize- 
rem isto,  que  é  o  que  devem  fazer.  Se  assim  fizerem  eu  lhe  cuidarei 
com  toda  a  efficacia  de  que  sou  capaz  em  todas  as  suas  demandas,  que 
não  irão  como  têm  ido  nas  mãos  dos  zelosos  Procuradores.  Mas  quem 
me  manda  a  mim  a  meter-me  a  Espirito  Santo  d'esse  Capitulo?  Nosso 
Senhor  as  illustrará  comtanto  que  fique  a  minha  querida  mãe,  e  ao 
pé  d'ella  a  Mana,  e  em  fazendo  famiiia  continuando  a  ser  da  mãe  filho 
obediente,  e  da  Mana  amante  esperdiçado 

J.A. 


Creio  que  meu  Mano  tem  diminuído  a  minha  falta  juntando-lhe  o  estado  da  minha 
saude^  e  hoje  creio  que  elle  ahi  mandaria_,  e  que  continuaria  a  dizer-lhe  que  eu  passo 
do  mesmo  modo.  Elle  diz  que  V.  S.*  também  é  muito  doente,  o  que  me  tem  feito 
muita  compaixão ;  o  céo  queira  dar-lhe  uma  completa  melhora  e  todos  os  bens  de 
que  é  tão  merecedora.  O  nosso  estado  é  muito  doce,  mas  quando  a  saúde  padece,  tudo 
é  amargoso,  porque  não  nos  podemos  dispensar  de  certos  trabalhos  que  a  mesma  Re- 
ligião traz  corasigo.  E  não  pode  sahir?  Esse  Convento  é  tão  apertado  que  nem  á 
doença  dispense  a  clausura;  E  diga-me  isto,  porque  a  poder  sair^  meu  Mano  lhe  cui- 
daria no  Breve,  porque  uma  pessoa  tão  decente,  e  sendo  Ecclesiastico,  não  deve  fazer 

reparo.  Perdoe  estas  reflexões,  mas  como  sou  muito  sincera,  por  isso  lhe 

*  eu  desejo  a  sua  felicidade  e  se  podesse  concorrer 

para  ella,  me  julgaria  muito  venturosa.  Eu  se  este  verão  não  passar  melhor  tenciono 
recolher-me  para  o  meu  convento,  mas  heide  de  lá  mesmo  procurar  as  suas  noticias; 
e  como  meu  Irmão  pode  escrever-lhe  sem  reparo,  por  elle  heide  saber  da  sua  saúde. 
Veja  V.  S.*  se  o  meu  inútil  préstimo  a  utilisa  em  alguma  cousa,  que  eu  ambiciono 
occasiões  de  mostrar-lhe  á  evidencia  com  que  sou 

De  V.  S.« 

8  de  Março  de  1821. 

Am.»  m.'°  att» 

P.  S. 
A  portadora  pode  esperar  pela 
resposta  de  V.  S.».  Se  não  poder 
responder  ella  tornará   quando 
lhe  assignalar  o  dia. 

Maria  Cândida  do  Valle. 

*  lUegivel,  por  se  achar  moido  o  autographo.  (Da  revisão.) 


REQUEPaMENTOS 


MESA  DO  DESEMBAEaO  DO  PAÇO 


Senhor 

Diz  o  P."  José  Agostinho  de  Macedo,  Pregador  régio,  que  quando 
recorreu  a  V.  Mag.*^*  sobre  a  prohibição  de  um  periódico  —  O  Des- 
approvador — feita  pela  Mesa  do  Desembargo  do  Paço  por  motivos  in- 
cógnitos ao  supplicante,  ignorava  ainda  que  ella  se  estendia  até  ao  Es- 
pectador Portuguez,  em  que  o  Supplicante,  como  é  constante  opinião 
de  todos  os  bons,  fez  um  notável  serviço  ao  Publico,  e  não  duvida  o 
supplicante  dizer  também  ao  Estado,  pela  força  de  razões  com  que 
combateu  os  insultos  do  Correio  Brasiliense,  com  que  desmascarou  a 
perversidade  do  Maçonismo  e  Illuminismo;  sendo  todo  dedicado  a  ser- 
vir a  causa  publica  da  justiça  e  da  razão;  tomando  apenas  o  suppli- 
cante como  pequena  parte  do  dito  Espectador  para  refutar  as  inepcias 
e  até  blasfémias  nascidas  da  ignorância  que  Nuno  Alvares  Pereira  Pato 
Moniz  escrevera  em  um  livro  chamado  Parallelo  dos  Lusíadas  com  o 
poema  Oriente  do  Supplicante,  o  qual  patenteou  até  á  ultima  evidencia 
os  erros  que,  misturados  com  insultos  se  acham  no  mesmo  Parallelo. 

Não  sabia  o  supplicante,  nem  pessoa  alguma  podia  imaginal-o, 
que  punia  pela  justiça  a  favor  das  sãs  doutrinas  contra  as  da  falsa  Fi- 
losoQa  e  do  abominável  Maçónico  (ultimamente  tão  justa  como  elogio- 
samente prohibido  por  um  Alvari  de  V.  Mag.**®),  que  refutar  os  sofis- 
mas, os  aleives  e  iajurias  do  Correio  Brasiliense,  e  patentear  a  igno- 
rância, a  má  fé,  e  o  rancor  de  Pato  Moniz,  seriam  algum  dia  reputa- 
dos culpa,  e  moveriam  o  mesmo  Tribunal  que  licenciou  o  Espectador 


246  REQUEKIMENTOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

e  o  Desapprovador,  a  mandal-os  recolher,  sem  dar  ao  Publico  o  molivo. 
Isto,  Senhor,  é  uma  espécie  de  castigo  feito  ao  Supplicante,  e  é  bem 
Dotavel  que  se  lembrasse  esta  prohibição  quando  o  Supplicante  insul- 
tado verdadeiramente,  assim  como  o  Redactor  da  Gazeta,  requereu 
providencias  a  V.  Mag.''^  contra  estes  insultos  tão  manifestos.  E  que 
satisfação  se  deu  ao  Supplicante  e  ao  Redactor  da  Gazeta  insultados 
por  Moniz?  Prohibir  o  Observador:  mas  isto  é  em  apparencia  uma  sa- 
tisfação, e  em  realidade  uma  affronla,  quando  se  envolve  em  egual  pro- 
hibição o  Espfctador  e  o  Desapprovador;  e  parecerá  sem  duvida  a  to- 
dos os  homens  de  probidade  uma  medida  violenta,  e  talvez  summa- 
mente  impolitica  em  um  tempo  em  que  tão  necessários  se  fazem  os 
escritos  dedicados  a  combater  as  falsas  doutrinas  e  a  torrente  dos  vi- 
dos, não  podendo  ter  maior  triunfo  os  malévolos  do  que  verem  pro- 
hibidas  as  ditas  Obras  do  supplicante,  onde  o  Publico  aprendia  a  co- 
nhecel-os  e  a  detestal-os. 

«Á  vista  do  exposto,  e  sendo  das  leis  de  V.  Mag.''*  que  não  quer  . 
jamais  se  obre  arbitrariamente,  derivando  o  direito  da  defensa  da  pró- 
pria justiça,  o  supplicante  tem  jus  a  requerer  se  lhe  faça  constar  os 
motivos  porque  merecem  ser  prohibidos  os  seus  dois  periódicos,  pois 
Dinguem  deve  ser  castigado  sem  saber  porque;  offerecendo-se  a  fazer 
qualquer  reparação  que  de  justiça  se  deva.  E  quando  não  possa  isto 
ter  logar,  por  não  preceder  a  dita  prohibição  de  mais  que  de  se  ter 
julgado  que  a  prohibir-se  o  Observador,  que  o  insultava,  ao  Redactor 
da  Gazeta,  e  indirectamente  ao  Governo,  também  se  deviam  prohibir 
o  Espectador  e  o  Desapprovador,  dedicados  até  politicamente  á  defensa 
da  sua  Ordem,  da  Moral,  da  Religião  e  do  Throno;  n'este  caso  solli- 
cita  o  supplicante  a  graça,  de  que  não  fique  assim  sancionada  uma  de- 
cisão em  que  parece  não  ha  aquella  imparcialidade  que  reluz  e  deve 
constantemente  reluzir  n'aquelle  régio  Tribunal.  O  Espectador  e  o  Des- 
approvador estão  quasi  todos  vendidos,  pois  tanta  era  a  estima  publica 
de  que  gosavam;  e  que  fructo  se  tira  de  recolher  das  lojas  alguma  pe- 
quena porção  que  ainda  haja?  Nenhum  fructo  mais  que  o  enxovalho  da 
reputação  do  supplicante  e  o  triumfo  de  ocultos  inimigos  seus  e  do  Es- 
tado, além  mesmo  de  ser  bem  pouco  honrosa  esta  medida  assim  to- 
mada pelo  mesmo  Tribunal  que  licenciou  os  ditos  Periódicos,  que  nada 
tem  contra  as  Leis  d'este  Reino,  pois  o  mesmo  Tribunal  os  licenciou 
ouvindo  os  seus  mais  sábios  e  circumspectos  Censores.  Ao  verem  este 
desagradável  procedimento,  que  homens  de  bons  sentimentos  e  saber 
se  animarão  a  empregar  os  seus  talentos  em  defender  as  justas  Cau- 
sas, que  o  supplicante  defendeu?  Assim,  esfria  o  amor  da  pátria,  não 


Á  MESA  DO  DESEMBARGO  DO  PAÇO  247 

so  escreve  a  verdade,  e  até  se  priva  o  Estado  de  um  apoio  moral  tão 
necessário  no  tempo  em  que  existimos.  Portanto 

P.  a  V.  M.  que  em  contemplação  do 
notório  serviço  que  o  supplicante  fez 
no  Espectador  e  no  Desapprovador,  se 
sirva  expedirá  Mesa  do  Desembargo  do 
Paço  ordem  para  que  possam  correr 
livremente  os  ditos  Papeis. 

E.  R.  M.^« 

O  P.^  José  Agostinho  de  Macedo. 

=  Junte-se  aos  mais  papeis.  Lx.*  1  de  julho  de  1819. 

—  Remettido  com  Aviso  do  Secretario  dos  Negócios  do  ReiDO  de 
26  de  junho  de  1819  para  se  juntar  o  presente  requerimento  do  Sup- 
plicante, e  consultar  sobre  tudo  o  que  parecer.» 

O  Aviso  foi  dirigido  a  Manuel  Nicolau  Esteves  Negrão,  um  dos  ini- 
ciadores da  Arcádia  Lusitana. 


Senhor 

Diz  o  P.*  José  Agostinho  de  Macedo,  Pregador  Régio,  que  tendo 
requerido  a  V.  Mag.*^®  providencias  contra  alguns  n."*  do  Observador 
portuguez,  em  que  Nuno  Alvares  Pereira  Pato  Moniz  o  insulta,  assim 
como  ao  Redactor  da  Gazeta,  e  indirectamente  ao  Governo,  mandou 
Y.  Mag.''^  ouvir  a  informação  do  Desembargador  do  Paço,  Intendente 
geral  da  Policia,  e  com  ella  remetteu  os  ditos  papeis  á  Mesa  do  Des- 
embargo do  Paço.  Não  obstante  a  informação  d'aquelle  benemérito  Mi- 
nistro, julgou  a  Mesa  necessário  encarregar  o  exame  dos  papeis  a  ou- 
tro dos  seus  Membros;  e  em  consequência  de  serem  manifestos  e  gra- 
ves os  doestos  e  injurias  impressas  no  Observador,  e  escriptas  por  Mo- 
niz, decidiu  se  prohibisse  aquelle  periódico.  Mas  o  que  é  verdadeira- 
mente incomprehensivel  ao  supplicante  é  que,  como  uma  espécie  de 
compensação,  envolva  a  Mesa  em  egual  prohibição  O  Desapprovador, 
composto  pelo  supplicante,  periódico  que  todos  os  homens  probos  e 
sábios  estimam,  que  muitas  pessoas  conspicuas  têm  insinuado,  e  Ou- 
tras até  pedido  por  escrito  ao  supplicante  o  continue,  como  um  escrito 


248  REQUERIMENTOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DB  MACEDO 

que  sem  injuriar  pessoa  alguma  em  particular,  unicamente  se  dedica 
a  debellar  os  yícíos  com  rasões  solidas  revestidas  de  eslylo  joco-serio, 
pugnando  a  favor  da  Moral,  da  Religião  e  do  Estado.  Eis  o  que  os  ma- 
lévolos desejam  conseguido  por  elles  até  sem  o  requererem;  e  será  isto 
um  justo  motivo  para  os  homens  de  bem  se  espantarem  de  ver  con- 
fundir o  justo  com  o  injusto.  O  Desapprovador  perseguia  os  vicios  com 
o  ridículo,  não  insultava  pessoa  alguma  em  particular:  O  Observador, 
contra  os  dictames  da  decência  e  da  moral  publica  abertamente  se  tem 
dirigido  a  insultar  o  supplicanle  e  o  Redactor  da  Gazeta  do  Governo. 
Parece  que  deve  ser  bem  diversa  a  sorte  de  um  e  outro  papel;  e  que 
não  é  conforme  á  rectidão  com  que  costuma  proceder  aquelle  régio 
Tribunal,  envolver  ambos  em  geral  prohibição.  E  como  isto  é  natural 
proceda  de  equivocação,  ou  de  menos  profundo  exame,  recorre  o  sup- 
plicante  a  V.  Mag.^®  para  que  se  digne  mandar  eximir  o  Desapprova- 
dor (de  que  o  Auctor  tem  escrito  26  n.°*)  da  referida  prohibição  atten- 
dendo  a  que  n'este  vae  librada  a  reputação  do  supplicante  e  a  do  Cen- 
sor privativo  d'este  periódico  o  sábio  e  circumspecto  desembargador 
João  Pedro  Ribeiro;  e  não  menos  ofifeude  em  certo  modo  a  opinião  ge- 
ral, que  via  na  publicação  d'este  periódico,  assim  como  na  do  Especta- 
dor, pelo  mesmo  supplicante,  um  serviço  feito  ao  Publico  em  obstar  e 
confundir  os  funestos  princípios  do  Maçonismo  e  da  immoralidade  que 
tantos  estragos  fazem  na  sociedade.  Portanto, 

P.  a  V.  Mag.''®  seja  servido  ordenar 
á  Mesa  do  Desembargo  do  Paço  que, 
mais  bem  informada  de  quanto  está 
longe  o  Desapprovador  de  merecer  ser 
prohibido  como  o  Observador,  haja  de 
permitlir  continue  a  correr  o  mesmo 
Desapprovador,  incluso  o  n."  26,  caso 
não  tenha  censura,  pois  n'esse  caso  se 
deve  dar  vista  d'ella  ao  snpplicaote  se- 
gundo a  Lei,  para  satisfazer  a  ella:  pois 
aliás  será  dar  favor  aos  inimigos  do  sup- 
plicante, que  já  espalham  fora  prohibi- 
do de  escrever  por  ordem  do  Governo. 

E.  R.  M." 

Como  Procurador 

Joaquim  José  Pedro  Lopes. 
(Remettido  para  o  Desembargado  em  22  de  Junho  de  4819.) 


A  MESA  DO  DESEMBARGO  DO  PAÇO  249 


Senhor 


Diz  o  P.'  José  Agostinho  de  Macedo,  que  sendo  impresso  o  n.* 
26  do  Desapprovador  com  a  devida  licença  de  V.  Mag.*^"  em  virtude 
da  approvação  do  seu  privativo  e  sábio  Censor  e  Desembargador  João 
Pedro  Ribeiro,  quando  voltou  para  obter  licença  de  correr  ficou  ex- 
cusado;  e  como  o  supplicante  tem  toda  a  certeza  que  isto  só  poderia 
ser  por  equivocaçáo  e  sem  justo  motivo;  1."  porque  nada  differe  do 
original  licenciade  por  este  régio  Tribunal;  2.°  porque  nâo  contém  coisa 
algnma  em  que  contravenha  a  Lei  da  Censura,  que  o  supplicante  per- 
feitamente conhece;  3.°  porque  as  pessoas  em  quem  falia  são  elogia- 
das por  seus  conhecidos  talentos,  e  de  nenhum  modo  vituperadas  que 
é  o  que  é  justamente  vedado:  recorre  portanto  o  supplicante  a  V. 
Mag.*^®  se  digne  occorrer  a  esta  equivocação,  ou  seja  mandando-o  ou- 
tra vez  ao  Censor,  se  d'este  procedeu  o  embaraço,  ou  mandal-o  ler 
em  mesa,  para  prova  da  verdade  do  supplicante,  a  fim  de  que  por 
uma  injusta  exclusão  do  dito  numero  não  fique  desautorisada  a  recti- 
dão com  que  este  régio  Tribunal  procedeu  na  sua  permissão  para  se 
imprimir,  e  achando-a  conforme  o  original, 

P.  a  V.  Mag."*  se  digne  de  deferir  a 
Supplicante  segundo  a  justiça. 

E.  R.  M.'^» 

José  Agostinho  de  Macedo. 

=Vae  deferido.  Lix.*  19  de  junho  de  1819.= 


Senhor 

Diz  o  P."  José  Agostinho  de  Macedo,  que  mettendo  á  impressão 
o  n.**  26  do  periódico  semanal  o  Desapprovador,  que  compõe  em  be- 
neficio da  Moral  publica,  e  apoio  do  Throno  e  Governo  de  V.  Mag.*** 
censurando  os  vicios  e  debellando  perniciosas  doutrinas,  acontece  que, 
voltando  o  mesmo  numero  á  conferencia  para  correr,  e  achando-se  exa- 
ctamente conforme  cora  o  original  licenciado  por  este  régio  Tribunal, 
cuja  licença  assas  fizera  não  ter  causa  que  vede  a  sua  publicação,  fi- 


250  REQUERIMENTOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

cou  todavia  excusado,  bem  que  o  supplicante  possa  conhecer  que  justo 
motivo  assim  estorve,  depois  de  já  impresso,  o  publicar-se  um  papel 
era  que  nada  se  achou  na  censura,  visto  a  licença  que  V.  Mag.*^*  lhe 
deu  para  se  imprimir.  Está  o  Publico,  e  sobretudo  o  grande  numero 
de  assignantes  d'esta  obra  em  grande  espectação,  e  fazendo  mil  con- 
jecturas, e  desairosas  ao  supplicante,  pela  falta  d'este  numero,  che- 
gando até  muitos  a  dizer  fora  inhibido  de  escrever,  como  se  V.  Mag.*^* 
se  podasse  dar  por  mal  servido  de  quem  tanto,  de  bocca  nos  Púlpitos 
e  de  penna  nos  Escritos,  tem  profligado  os  vícios,  e  defendendo  as  so- 
lidas doutrinas  da  Moral  da  Religião. — Recorre  portanto  o  supplicante 
a  este  rectissimo  Tribunal,  onde  só  a  recta  justiça  e  nunca  a  prepo- 
tência nem  o  espirito  de  intriga  poderão  penetrar,  a  fim  de  que  no 
caso  de  estorvo  motivado  da  Censura,  se  lhe  dê  vista  d'ella,  na  forma 
da  Lei,  ou  de  outro  qualquer  motivo  que  faça  obstáculo  á  publicação 
do  dito  numero,  a  fim  do  supplicante  satisfazer  a  isso;  e  quando  a  ex- 
cusa  proceda  de  equivocação,  roga  o  supplicante  a  V.  Mag.*^*  queira 
mandar  que  esta  se  emende,  mandando  que  possa  correr  o  mesmo  nu- 
mero, 

P.  a  V.  Mag.*^®  seja  servido  deferir 
ao  suppUcante  como  requer. 

E.  R.  M." 

José  Agostinho  de  Macedo. 

=  Vae  deferido.  Lx.*  19  de  junho  de  1819. 


Senhor 

Representam  a  V.  Mag.*^"  o  P.*  José  Agostinho  de  Macedo,  Pre- 
gador régio  de  V.  Mag.*^®  e  Joaquim  José  Pedro  Lopes,  Redactor  da 
Gazeta  de  Lisboa,  que  Nuno  Alvares  Pereira  Pato  Moniz,  com  licenças 
provavelmente  subrepticias  (pois  é  impossível  houvesse  quem  lesse  e 
desse  licença  para  assim  se  imprimir),  acaba  de  enxovalhar,  doestar  e 
insultar  aíTrontosamenle  nos  n."»  7  e  8  de  um  tal  papel  chamado  (com 
vergonha  da  nossa  Litleratura)  o  Observador  portuguez,  não  só  ao  sup- 
plicante, mas  até  a  Gazeta,  os  Censores  do  Espectador  portuguez  do 
P.®  Macedo,  o  Desembargo  do  Paço  que  o  licenciou,  e  tantos  homens 
respeitáveis  por  sua  sciencia  e  jerarchia,  que  fizeram  estimação  do 


Á  MESA  DO  DESICMBARGO  DO  PAÇO  251 

mesmo  Espectador,  assim  como  do  Semanário,  que  publicou  o  suppii- 
canle  Lopes  em  1812  e  1813. 

O  atrevimento  inaudito  do  mencionado  Moniz  excede  tudo  o  que 
se  tem  visto  impresso  em  Portugal  e  está  justamente  no  caso  que  pre- 
viniu  o  art.  2o.°  da  Lei  da  Censura,  que  prohibe  libellos  famosos.  Os 
supplicantes  ajuntam  aqui  o  folheio  feito  por  Joaquim  José  Pedro  Lopes 
com  o  nome  supposto  de  Hygino  Antunes,  em  que  se  criticam  com  toda 
a  modéstia,  sisudeza  e  força  demonstrativa  os  erros  dos  n."^  8  e  9  do 
Observador  (do  1.°  trimestre);  e  em  vez  de  uma  refutação  litleraria 
decente,  se  fosse  possível  fazel-a,  solta  Moniz  dos  dilos  n.°'  7  e  8  do 
2.°  trimestre  um  chorrilho  de  descomposturas  ao  A.  das  Observações 
(e  envolvendo  n'ellas  o  P.®  Macedo),  e  entre  os  muitos  termos  affron- 
tosos  de  que  usa  em  todo  o  decurso  do  artigo  Critico  dos  ditos  dois 
números,  que  os  supplicantes  aqui  ajuntam,  (e  n'elles  em  parte  vão 
marcados  a  pag.  65,  66.  67,  68,  69  do  n."  7  e  a  pag.  78,  79  e  82 
do  n.°  8.°),  são  sobretudo  notáveis  os  com  que  designa  a  Gazeta,  de 
que  o  supplicante  Lopes  tem  a  honra  de  ser  Redactor  vae  por  seis  an- 
nos  com  approvação  do  Governo  de  V.  Mag.*^*;  e  o  Espectador  do  sup- 
plicante Padre  Macedo,  designando  a  Gazeta,  a  pag.  65 — folhas  de  pa- 
pel pardo  que  andam  todos  os  dias  por  muitas  mãos  e  mais  não  sei  por 
onde: — e  o  Espectador  e  o  Semanário,  a  pag.  67,  por  —  dois  ludihrio- 
sos  monumentos  da  ignorância  e  do  desaforo. —  Para  Pato  Moniz,  aulhor 
do  infame  artigo,  e  o  qual  é  por  elle  assignado,  é  provável  seja  des- 
aforo combater  os  Pedreiros  Livres,  como  se  fez  no  Espectador,  e  pu- 
blicar seus  verdadeiros  desaforos,  sua  correspondência  com  os  jornaes 
escriptos  em  Inglaterra  contra  este  Reino,  etc.  Mas,  se  arguisse  tudo 
isto  depois  de  refutar  com  solidas  razões  o  que  com  solidas  razões  se 
lhe  provou,  ainda  teria  desculpa,  se  bem  que  fraca;  porém  sem  nada 
provar  em  contrario,  affrontar  com  insultos  é  só  caminho  seguido  por 
perversos.  E  não  se  contentando  Moniz  com  o  nome  supposto  de  Hy- 
gino Antunes,  quiz  declarar  mesmo  quem  era  a  pessoa  que  atacava, 
como  se  vê  a  pag.  79,  onde  se  desmascara  chamando  ao  supplicante 
Joaquim  José  Pedro  Lopes — Joaquim  Camello,  José  Batoque,  Pedro 
Alarve,  Lopes  Tapuya.  E  houve  Censor  que  tal  approvasse?  Só  se  pode 
acreditar  dizendo  que  approvou  sem  lêr,  aliás. ..  não  se  sabe  quem  é 
mais  criminoso. 

Á  vista  do  que  os  supplicantes  levemente  têm  exposto,  e  que  a 
simples  leitura  dos  dois  números  juntos  do  Observador  mais  ampla- 
mente manifesta,  demonstrando  os  supplicantes  oÊfendidos  em  suas  pes- 
soas, e  attendida  a  injustiça  que  se  faz  alli  aos  sábios  Censore  dos  Es- 


252  REQUERIMENTOS  DE  JOSÉ  AGOSTLNHO  DE  MACEDO 

pectador  e  ao  Régio  Tribunal  do  Desembargo  do  Paço,  que  o  licenciou 
bem  como  aos  Ex.""'  Governadores  do  Reino,  e  tantas  pessoas  conspi- 
cuas  que  o  leram  com  satisfação  e  o  possuem,  recorrem  a  V.  Mag.**' 
para  que  haja  por  bem  commetter  a  averiguação  d'este  negocio  (as- 
sas bastante)  ao  111.'°°  Desembargador  do  Paço,  Intendente  geral  da 
Policia,  para  que  em  satisfação  das  referidas  injurias  mande  prender  e 
impor  qualquer  outra  pena  que  bem  for  legal,  ao  sobredito  Moniz,  que 
assignou  os  ditos  artigos,  (ou  ao  Editor  no  caso  do  Moniz  não  appare- 
cer);  mandando  outrosim  a  Mesa  do  Desembargo  do  Paço  prohibir  e 
recolher  o  dito  Observador  n."  7  e  8  (e  mesmo  o  n.°  6,  que  já  princi- 
piou a  insultar  os  supplicantes  o  merece);  fazendo  se  publico  na  Gazeta 
o  castigo  do  A.  do  Art.°  e  a  prohibição  dos  ditos  números  para  evitar 
com  este  exemplo  de  justiça  semelhantes  abusos  da  imprensa,  em  ura 
paiz  onde  esta  se  acha  regulada  por  sabias  Leis.  O  individuo  author 
do  referido  artigo  é  assas  conhecido  como  correspondente  do  Redactor 
do  Portuguez  em  Inglaterra,  como  author  de  um  injuriosíssimo  escrito 
chamado  Agostinheida,  em  que  inventou  afifrontosissimos  alsives  ao  P.° 
Macedo,  e  por  outras  taes  feitos.  Um  homem  que  vae  impune  commet- 
tendo  desaforos  é  um  enxovalho  da  sociedade;  e  contra  um  tal  sujeito 
que  até  assigna  com  —  Moniz  —  no  artigo  de  que  se  trata,  invocam  os 
supplicantes  a  justiça  de  V.  Mag.*'®  e  a  protecção  das  Leis. 

E.  R.  M." 

O  P.^  José  Agostinho  de  Macedo.     . 
Joaquim  José  Pedro  Lopes} 


*  Recebido  na  Secretaria  do  Reino^  foi  expedido  para  o  Desembargo  do  Paço 
por  João  António  Saller  de  Mendonça  em  Aviso  de  22  de  Maio  de  1819,  dirigido  a 
Manuel  Nicoláo  Esteves  Negrão. 

Ha  um  outro  requerimento  de  Joaquim  José  Pedro  Lopes,  com  certeza  redigido 
por  Macedo  contra  Pato  Moniz^  que  no  Observador  o  apontou  como  requerente  a  car- 
rasco. 


OPÚSCULOS  INÉDITOS 


DE 


JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


SOBKE  VAEIOS  ASSUMPTOS 


RESPOSTA' 


GENERAL     M  A  R  M  O  N  T 

AO 

ANTIGO  AUCTOR  DO  YELEO  "TELEGRAPHO' 

1812 

Aquella  urbanidade,  civilidade  ou  politesse  franceza,  de  que  tanto 
faliam  as  antigas  chronicas  gallicas,  ainda  não  está  de  todo  extincla, 
ao  menos  n'aquelles  homens  que  avultavam  alguma  coisa  antes  da 
época  da  nossa  revolução,  que  começando  em  asnos  acabou  em  ti- 
gres, e  eis  aqui  o  que  me  obriga  a  responder-vos,  e  a  romper  o  si- 
lencio observado  pelos  meus  predecessores  ás  vossas  piedosos  cartas 
e  salutiferos  conselhos.  Antes  que  partisse  de  França  a  substituir  o 
logar  de  meu  camarada  o  príncipe  de  Massena,  eu  já  tinha  noticia  e  co- 
nhecimento das  vossas  cartas,  porque  todas  ellas  foram  religiosamente 
recolhidas  no  palácio  dos  Sonhos,  e  depositadas  no  somnifero  salão  da 
Mediocridade,  no  armário  n.°  1  da  Politica  de  dedo.  Não  imagineis,  Mr. 
de  L'0,  que  tenha  sido  descortezia  a  demora  da  resposta,  esperava-se 
pela  ultima  vossa,  porque  respondendo  a  esta,  se  respondia  a  todas  as 
outras  tão  eguaes,  e  semelhantes  na  substancia  como  em  os  acciden- 
tes.  Não  sois  conhecido  em  França,  nem  mesmo  declaraes  aos  portu- 
gueses o  vosso  nome,  senão  pela  letra  O,  que  é  uma  interjeição  admi- 
rativa. O  coxo  Talleyrand,  o  patife  Savary,  por  noticias  havidas  do  des- 


1  As  cartas  a  que  a  presente  serve  de  resposta  encoritram-se  no  periódico  O  Te- 
legrapho.  A  l.'  no  n.°...  de  1811;  2.»  no  n.°6de  1812  e  3.*non.°35  do  mesmo  anno. 
S5o  assignadas  com  a  única  inicial  O  (que  significa  Oliva)  e  por  isso  o  auctor  é  desi- 
nado  por  José  Agostinho  com  o  nome  de  Mr.  de  L'0. 


256  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

cabellado  Lagarde,  combinadas  com  o  contexto  das  vossas  cartas,  vos 
marcaram  por  um  caixeiro,  ou  cómico  arilhmetico  de  alguma  reparti- 
ção; porque  todos  os  vossos  conselhos,  planos,  estimativas,  prophecias 
e  arbítrios,  se  reduzem  a  uma  bem  manejada,  porém  mal  succedida 
taboada.  A  regra  de  Ires  é  a  vossa  ancora  medicinal,  com  ella  daes 
batalhas,  determinaes  conquistas,  e  até  apeaes,  ou  levantaes  a  corja  de 
Marechaes,  que  como  capinhas  têm  vindo  um  apoz  outro,  cada  qual  por 
valente,  fazer  sua  sorte  aos  indomáveis  touros  portuguezes,  que  uma 
vez  que  fizeram  ir  pelos  ares  a  embolação  em  que  os  quizeram  meter 
eui  1807  e  parte  de  1808,  não  ha  forças,  nem  manhas  francezas  que 
os  possam  subjugar,  e  o  boléo  que  levou  o  capinha  Massena  chegan- 
do-se  ás  formidáveis  trincheiras,  era  para  aventar  com  elle  até  aos 
curnos  da  lua.  Sois  pois  julgado  em  França  por  um  arilhmetico  falla- 
dur:  cada  carta  vossa  é  um  Deve  e  Ha  de  haver.  Sois  semelhante  a  vós 
mesmo,  e  como  todos  os  exórdios  das  vossas  idênticas  carias  acabam 
sempre  por  um  lá  vae — lá  vae  lambem. 

Mr.  de  L'0,  quando  um  principio  é  falso,  todas  as  consequências 
d'elle  tiradas,  ou  queridas  tirar,  não  são  somente  falsas  porém  des- 
tampadas. Desde  que  vos  metestes  a  conselheiro  dos  marechaes  har- 
pias, e  prognosticador  de  futuros  successos  peninsulares,  estaes  em 
um  falso  principio,  que  é  causa  dos  vossos  erros  arilhmeticos-politi- 
cos,  e  das  continuas  risadas  que  dão  á  vossa  cusla  os  milhafres  do 
quarto  voto,  que  compõem  o  conselho  aulico  e  intimo  do  ladrão  Bona- 
parte (ninguém  o  conhece  e  detesta  tanto  como  eu,  iMarmont).  Vós  vos 
persuadis  que  elle  intenta  conquistar  a  Hespanha.  Aqui  é  que  para  o 
vosso  entendimento  torce  a  porca  verdadeiramente  o  rabo.  Vós  estaes 
em  Portugal,  não  estaes  na  Hespanha,  não  sabeis  o  que  cá  vae,  nem 
o  que  tem  ido,  nem  o  que  irá  estes  dezoito  meses,  que  nos  devemos 
demorar  cá.  Conquistar  a  Península  é  coisa  que  Bonaparte  nunca  ima- 
ginou seriamente,  nem  deliberadamente  quiz.  Esta  minha  proposição 
requer  uma  prova,  porque  parece  que  os  factos  públicos  estão  de- 
struindo a  mesma  proposição.  Na  Península  existem  exércitos,  tem  suas 
prescriptas  e  deliberadas  posições;  em  Madrid  existe  um  tal  boneco 
de  comedia  chamado  rei,  e  á  roda  d'elle  quatro  infelizes  castelhanos, 
tão  asnos  como  elle;  as  províncias  estão  occupadas,  e  cada  uma  tem 
seu  cardador,  chamado  governador;  eu  mesmo  me  chamo  o  Duque 
Alarmont,  conquistador  in  fiieri  de  Portugal.  E  para  que  é  tudo  isto? 
Não  é  para  conquistar,  subjugar  e  possuir  a  Península?  Não  senhor, 
senhor  contador,  não  é  para  isso.  Em  a  Hespanha  estando  reduzida  ao 
estado  da  Áustria,  ao  estado  da  Prússia,  ao  estado  da  Suissa,  ao  es- 


RESPOSTA  DO  GENERAL  MARMONT  257 

tado  da  Dinamarca,  v.  m.*^®  verá  largar  a  Hespanha,  como  se  deixa 
uma  borracha,  depois  de  muito  bem  escorrupichada.  Não  gaste  o  seu 
tempo,  Mr.  de  L'0,  em  me  mostrar  que  a  Hespanha  é  inconquistavel, 
e  que  Portugal  nos  tem  feito  ir  tantas  vezes  a  falia  ao  bucho.  Agrade- 
ço-Ihe  o  bom  zelo  que  tem  em  me  aconselhar  para  me  evadir  á  cólera 
do  patife  de  meu  amo.  V.  m.^  não  o  conhece  por  certo!  Ide  roubar  a 
Península,  diz  elle  aos  seus  favoritos;  e  o  que  vem  primeiro  dá  a  co- 
nhecer maior  gráo  de  privança,  porque  vindo  era  primeiro  logar  tem 
mais  onde  meta  o  braço  até  ao  cotovello.  O  primeiro  enviado  a  Portu- 
gal foi  Junol,  o  mais  inepto,  o  mais  miope  de  todos  os  soldados  frau- 
cezes,  porém  o  mais  vahdo  e  o  mais  querido;  deu-llie  a  divisão  do 
exercito  mais  pobre  que  havia  em  França;  era  uma  enfiada,  ou  cam- 
bada de  mendigos  esfarrapados;  o  general  não  tinha  roubado  a  Itália, 
a  Alemanha  a  Holanda,  á-c*  era  preciso  vestir  aquelles  nus,  saciar 
aquelles  famintos,  e  dar  alguma  coisa  ao  triste  granadeiro  Junot.  Tão 
asno  faz  v.  m/®  a  Bonaparte,  que  se  persuadisse  que  com  aquella  mi- 
serável canalha  se  conquistava  um  reino  como  o  de  Portugal?  Isso  era 
trro  que  o  não  commetteria  um  cabo  de  esquadra.  Para  os  mandar 
vestir  e  comer;  para  dar  alguma  cousa  (e  levou  mais  que  todos)  a  Ju- 
not, que  preparos,  que  antecedencias  não  houve?  Que  bons  veadores 
e  apontadores  achou  elle  nos  maiores  desavergonhados  que  viu  no 
mundo,  que  são  aquelles  pérfidos  portuguezes,  que  metteram  a  sua 
pátria  nas  mãos  d'aquelle  hebetado  arlequim!  Encheu-se  como  ninguém; 
sempre  com  a  grelha  n'alma,  porque  nunca  se  deitou  na  cama  que  se 
não  lembrasse  que  amanheceria  feito  era  frangalhos  nas  mãos  dos  ra- 
pazes da  rua,  patriotas  mestres,  cujo  fatal  assobio  é  mais  medonha 
para  ouvidos  franceses,  que,  que  toda  a  artilheria  das  linhas.  Foi  ba- 
lido Junot,  commetteu  mil  erros^  expoz  os  Girondios  a  serem,  como  fo- 
ram, açoutados;  tornou  para  França  sem  reino,  sem  ducado,  sem  exer- 
cito, e  sem  as  sagradas  águias,  porque  se  lá  appareceu  alguma  foi  der- 
rabada;  mas  com  muito  dinheiro,  muitas  jóias,  muitos  quadros  riquís- 
simos, muita  preciosidade;  e  que  lhe  succedeu?  Nada;  porque  desem- 
penhou a  sua  missão,  que  era  roubar,  representando  bem  uma  come- 
dia por  nove  meses,  que  levou  por  fim  a  mais  formidável  paleada  que 
se  tem  escutado.  Ora  parece  que  meu  amo,  vendo  as  suas  tramas  des- 
cobertas, e  seus  veadores  conhecidos;  os  inglezes  empenhados  na  de- 
fensa do  reino,  tudo  em  armas  de  norte  a  sul,  e  o  rapazio  prompto 
para  o  assobio,  que  tanto  nos  aterra,  que  devia  desistir  do  projecto  da 
conquista  de  Portugal,  ou  se  a  intentasse,  mandar  um  exercito,  tal  que 
podesse  abafar  de  um  jacto  o  reino  (que  na  verdade  parece  que  tem 

CARTAS.  47 


258  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

mandinga,  porque  não  ha  entrar  com  elle!)  mas  Soult  era  compadre, 
e  ainda  não  tinha  levado  rasca,  era  preciso  contental-o:  vede  para  onde 
o  mandou,  para  o  Porto,  onde  Junot  não  tinha  empolgado  2S  garras, 
porque  Taranco  e  companhia,  ainda  que  ladrões,  tinham  mais  vergo- 
nha que  o  miserável  Junot.  Veiu  Soult  ao  Porto,  roubou  e  fugiu,  por- 
que não  vinha  senão  roubar,  e  o  projecto  da  conquista  estável  e  per- 
manente ainda  não  entrou  na  cabeça  ao  desavergonhado  de  meu  amo. 
Não  vos  pareça,  meu  amigo  arithmelico,  que  por  elles  trazerem  com- 
sigo  ofiQciaes  civis  empregados  e  por  empregar,  financeiros  e  juriscon- 
consultos,  taes  como  o  Lagarde,  que  querem  estabelecer  alguma  forma 
de  governo  permanente;  tudo  isso  são  sanguixugas  que  vêm  engros- 
sar-se  cada  uma  pela  sua  repartição,  como  a  experiência  vos  mostrou 
em  nove  meses,  nos  quaes  se  não  cuidou  mais  que  em  levar  couro  e 
cabello.  Tornemos  á  Hespanha  que  é  a  vossa  teima,  Mr. 

Para  roubar  um  reino  á  vontade  é  preciso  primeiro  que  tudo  en- 
fraquecer este  mesmo  reino,  desorganisal-o,  e  mais  que  tudo  corrom- 
pel-o  e  desmoralisal-o;  mettel  o  em  confusões,  tirar-lhe,  alterar-lhe, 
confundir-lhe  o  governo,  e  dar-lhe  cabo  das  forças  physicas,  para  não 
haver  quem  resista  á  escandalosa  violência  da  empalmação  universal. 
Nenhuma  razão  de  politica  militar  obrigou  o  ladrão  de  meu  amo  a  magi- 
dar  para  as  margens  do  Báltico  quarenta  mil  castelhanos,  exercito  re- 
speitável, exercito  temivel;  este  golpe  de  mão  de  um  ladrão  mestre, 
era,  e  foi  o  exórdio  da  ladroeira  que  até  hoje  se  tem  seguido  desde  a 
farça  de  Bayona:  logo  vereis  outros  motivos  da  nossa  estada  em  Hes- 
panha, sem  o  projecto,  ou  presupposto  de  conquista.  O  mais  opulento 
reino  do  mundo  era  a  Hespanha.  Se  fores  a  Cantão  lá  vereis  correr 
patacas;  se  vieres  ao  Oder  vereis  as  mesmas  patacas;  o  dinheiro  que 
na  Europa  anda  em  visível  circulação  é  o  dinheiro  hespanhol;  parece 
que  nasce  n'aquelle  Potosi  como  nascem  as  batatas;  eis  aqui  o  que 
fez  cócegas  ao  ladrão  de  meu  amo,  quiz  e  quer  e  quererá  sempre  rou- 
bar a  Hespanha;  para  isto  é  esta  farça  apparatosa  de  reis,  de  minis- 
tros, de  governadores,  de  empregados.  Se  vós  aqui  estivéreis,  verieis 
as  formigas  em  grande  ponto;  ha  quatro  annos  que  acarretamos  para 
aquelle  infernal,  profundo,  insondável  formigueiro  da  França,  e  em 
quanto  acharmos  que  acarretar  não  nos  vamos  embora.  O  estado  mi- 
serável da  França  em  commercio,  agricultura  e  artes  obriga  ao  prose- 
guimento  da  teimosa  expoliação  da  Hespanha.  É  moralmente  impossí- 
vel fazer  da  Hespanha  um  reino  francez:  (veiu  com  o  direito  de  herança). 
Se  Filippe  V  veiu  succeder  na  sua  coroa,  veiu  com  o  direito  de  he- 
rança, a  que  assentiram  os  povos;  agora  não  estamos  n'esse  caso,  é 


RESPOSTA  DO  GENERAL  MARMONT  2o9 

coisa  muito  differente,  e  para  aqni  estabelecermos  um  reino  francez  era 
preciso  abolir,  e  exterminar  de  todo  a  gente  hespanhola,  o  que  é  im- 
possível; este  roubo,  que  nós  temos  agora  feito  com  alguma  facilidade, 
se  nos  tornaria  impossível  existindo  aqui  o  antigo  exercito,  que  levou 
La  Romana,  existindo  a  dynastia  dos  Bourbons,  existindo  o  caracter  da 
nação;  era  preciso  remover  tudo  isto  para  roubar  á  vontade,  postoque 
desde  o  dia  2  de  Maio  de  1808,  logo  vimos  que  nos  havia  custar  al- 
guma cousa. 

Não  imagineis,  Mr.  das  contas,  que  se  podia  fazer  na  Hespanha, 
subsistindo  a  Monarchia  e  o  exercio,  o  que  se  fez  na  Alemanha;  meu 
amo  é  ladrão  sagacíssimo,  e  sabe  o  que  faz.  Na  Hespanha,  para  des- 
graça da  nação,  havia  e  ha  pedreirada,  mas  não  tanta,  nem  tão  fina  e 
superlativa  como  a  pedreirada  de  Alemanha,  que  abrissse  voluntaria- 
mente as  portas  de  Ulm,  ou  a  pedreirada  da  Prússia,  que  deixasse 
cortar  e  envolver  os  formidáveis  batalhões  de  Frederico,  e  eis  aqui 
porque  lá  fomos  roubar,  sem  cuidar  primeiro  em  furtar  monarchas, 
desorganisar  exércitos,  e  entrar  com  pés  de  lã,  como  fizemos  na  Hes- 
panha, occupando  as  fortalezas  para  que  os  inglezes  não  entrassem, 
que  é  o  nosso  universal  pretexto,  e  com  o  qual  até  expoliámos  os  Es- 
tados do  venerável  Pontífice   Tivemos  a  dita  de  encontrar  aquella  boa 
alma,  aquella  jóia  de  Godoy,  o  maior  patife  que  o  sol  tem  aquentado 
desde  Caim  até  aos  nossos  dias.  Entrámos  á  nossa  vontade,  sem  oppo- 
sição  de  e.xercitos,  sem  governo,  no  meio  do  pasmo  e  universal  obstu- 
pefacção  do  povo,  sem  apoio,  sem  união,  sem  foco  ou  centro  de  governo 
fixo,  sem  armas,  sem  forças  moraes,  aturdido  com  a  tempestade  dos 
nossos  mentirosíssimos  boletins,  suppondo-nos  homens  de  ferro,  in- 
venciveis-,  e  sobre  tudo  génios  de  ordem  superior;  e  n'estas  favoráveis 
disposições  começámos  a  roubar,  e  a  acarretar  para  França.   Quiz  o 
supremo  salteador  da  Europa,  embuir  ou  embalar  o  povo  hespanhol, 
fazendo-lhe  crer  que  tinha  um  chefe,  ou  cabeça;  por  isso  appareceu 
em  Madrid  o  grão  Murat,  cora  alçada  pelo  mesmo  senhor,  mostrando 
que  se  organisava  ura  reino,  e  que  o  povo  mudava  de  chefe,  mas  não 
de  Constituição  ou  soberania;  e  se  o  ladrão  Murat  não  roubasse  e  ma- 
tasse tanto  ás  descancaras,  a  nação  avezava-se  ao  jugo  temporário,  que 
duraria  até  ficar  de  todo  cardada;  mas  o  ladrão  Murat  tanto  quiz  co- 
mer por  junto,  que  arrebentou,  e  fez  entornar  o  caldo  da  ladroeira  pa- 
cifica e  moquenca;  e  eis  aqui,  Mr.  o  Calculador,  porque  o  ladrão  su- 
premo veiu  com  a  farça  do  triste  José,  fazel-o  e  appellidal-o  rei  de  Hes- 
pnnha,  índias  e  suas  annexas;  quiz  vêr  se  aquietava  a  nação,  que  as- 
sim mesmo  desarmada,  e  sem  governo,  deu  cabo  do  bravo  Dupont. 


260  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Ora  como  a  lábia  do  reisinho  Pepe  não  pegou,  e  o  roubo  não  podia  ir 
continuando  pacificamente,  venham  exércitos  para  Hespanha.  Cada  ge- 
neral seja  um  rei  de  uma  provincia,  que  roube  com  força  descoberta, 
como  até  agora  temos  feito,  e  continuaremos  a  fazer  até  que  se  acabe 
de  pellar  a  Hespanha,  ou  que  alguma  força  imprevista  nos  obrigue  a 
entrouchar  mais  depressa  a  fatiota.  N'este  caso  fica  a  comedia  acabada, 
vae  o  panno  abaixo,  a  Hespanha  fica  exhausta,  nós  os  marechaes  ri- 
cos, e  premiados  como  queremos  e  não  podemos  ser  dentro  da  Fran- 
ça, e  os  castelhanos  em  tal  estado  que  nem  uma  arvore,  ou  uma  única 
rez  lhe  fique,  com  que  não  possa  transmittir  um  real  para  Inglaterra 
que  é  o  verdadeiro  projecto  do  Salteador  imperial. 

Rleu  Mr.,  nunca  a  França  poderá  dispor  de  uma  força  tal  que 
occupe  simultaneamente  todos  os  reinos  que  compõe  a  vasta  monar- 
chia  hespanhola  na  mesma  península,  e  de  maneira  que  esta  mesma 
força  seja  permanente,  e  fixa  para  subjugar  d'esl'arte  os  castelhanos. 
Sem  isto  são  inconquistaveis,  porque  não  vos  pareça  que  meu  amo  é 
tão  parvo,  que  não  calcule  até  ao  ultimo  quadrante  o  resentimento  do 
povo  hespanhol,  que  em  qualquer  das  províncias,  e  em  qualquer  tempo 
que  se  conhecer  com  maior  força  que  a  franceza  alli  existente,  não  se 
levante  desde  logo,  e  não  dê  cabo  dos  franchínotes  francezes;  a  chaga 
do  escândalo  é  incurável  no  coração  dos  hespanhoes,  e  o  vulcão  da 
vingança  não  tardará  de  arrebentar,  apenas  vir  que  pode  repellír  tão 
bárbaros  usurpadores.  Ora  vós  que  fazeis  tantas  contas  de  sommar,  que 
sois  Ião  calculador  dos  que  morrem  cada  mez,  que  me  pareceis  guar- 
da-lívros  de  cemitério,  não  me  direis  quando,  ou  como  poderá  a  França 
conservar  na  Península  exércitos  que  cubram^  abafem,  tyranisem  e  sub- 
juguem sempre  e  simultaneamente  toda  a  vastíssima  extensão  da  pe- 
nínsula? Não  vos  mateis  em  cálculos,  que  fazem  rir  os  nossos  rapazes 
da  eschola,  nem  em  propheclas,  que  desconcertam  a  circumspecção 
dos  sebastianistas  francezes;  Bonaparte  não  quiz,  nem  quer  conquistar 
a  Hespanha,  porque  não  pôde;  se  elle  poderá  ter  em  todos  os  reinos 
exércitos,  tudo  fora  seu;  porém  como  é  Impossível  esta  conservação 
de  forças,  rouba  e  abala.  Os  povos  delxam-se  roubar  era  quanto  são 
escanhoados  por  forças  a  que  não  podem  resistir;  em  estas  forças  abal- 
lando,  como  a  Injuria  não  esquece,  ell-os  ahl  levantados  logo.  Tal  é  o 
motivo  porque  se  conserva  a  Áustria  e  a  Prússia  com  uma  apparen- 
cia  de  soberania;  bons  desejos  tem  da  rapina,  mas  depois  de  desor- 
gauisadas  com  que  exércitos  permanentes  as  ha-de  conservar  em  res- 
peito, vassallagem,  e  submissão?  Se  o  ladrão  corso  fosse  um  conquis- 
tador generoso  como  eram  os  romanos,  então  segura  estava  a  Hespa- 


RESPOSTA  DO  GENERAL  MARMONT  26i 

nha:  por  exemplo,  já  que  a  Hespanha  é  a  vossa  teima,  e  o  assumpto 
das  vossas  ociosas  cartas.  Os  romanos  não  roubavam  tudo,  não  alte- 
ravam as  leis,  os  costumes,  a  religião  dos  povos,  respeitavam  a  huma- 
nidade, conservaram  os  soberanos,  enchiam  de  nobresa  as  mesmas  ci- 
dades com  os  privilégios  de  municípios,  e  para  terem  os  pobres  sub- 
jeitos  a  um  moderado  tributo  bastava  a  presença  de  um  simples  pro- 
cônsul com  uma  guarda.  Vede  o  que  praticaram  na  Palestina  com  os 
judeus;  até  conservaram  com  respeito  o  culto  publico,  sacrificando  el- 
les  mesmo  no  templo;  e  bastava  Pilatos,  e  a  mulher  de  Pilatos,  e  uma 
patrulha  de  pretorianos  para  ter  avassallado  nobremente  a  Palestina. 
Nós  por  ordem  de  nosso  amo  não  somos  assim:  esfolamos  até  aos  ossos, 
escravisaraos,  matamos,  profanamos,  violamos,  escandalisamos  as  mes- 
mas cinzas  fechadas  nas  sepulturas,  porque  não  nos  cheiram  a  defun- 
clo,  cheirara-nos  a  ouro,  e  por  isto  vos  digo  que  o  'intento  de  quem 
nos  manda  não  é  conquistar,  é  sim  roubar,  e  abalar.  Não  imagineis, 
Mr.,  que  somos  asnos,  e  que  queremos  ser  reis  de  desertos.  Meu  ca- 
marada Massena  entrou  em  Portugal,  e  então  o  seu  procedimento  é  o 
de  um  conquistador,  que  se  quer  conservar?  Não.  Assolou  o  terreno 
que  pisou;  se  pudese  entrar  na  fadada  Lisboa,  que  é  bocado  que  não 
passa  das  goelas  a  Bonaparte,  assolava,  roubava,  e  abalava;  porque, 
crede,  a  conservação  da  conquista  portuguesa  é  impossível;  isto  é  tão 
conhecido  por  meu  amo,  que  se  não  tivera  medo  d'elle,  eu  vos  parti- 
cipara as  instrucções  particulares  que  trago,  já  que  na  distribuição  do 
roubo  universal  cahiu  a  rainha  sorte  em  ultimo  logar.  Eu  vira  ao  ra- 
bisco, não  vim  á  conquista,  ficae  n'isto,  e  conhecei  de  uma  vez  a  po- 
litica de  Bonaparte.  Sem  guerras  no  coração  da  Europa  ha  três  annos, 
com  que  diabo  havia  de  sustentar,  vestir,  calçar,  pagar  ao  enxame  in- 
finito dos  farroupilhas  de  seus  exércitos,  conservando-os  estacionados 
no  coração  da  França  desde  a  infaraissima  convenção  de  Tilsit?  Esta 
canalha  brava  berrando  com  fome,  tiritando  com  frio,  dentro  da  França, 
aturava  lá  aquelle  ladrão?  Não  vos  admireis  de  virem  levas  e  garga- 
lheiras desde  a  Polónia,  da  Holanda,  e  de  Nápoles  para  o  degoladouro 
da  Península;  vós  não  conhecestes  quando  estivestes  em  França  quem 
era  Bonaparte;  é  um  monstro,  e  tem  mais  malicia  e  dissimulação  que 
Tibério:  o  que  elle  quer  é  enfraquecer  os  paizes  em  que  domina,  por- 
que a  cada  momento  teme  o  grito  da  liberdade,  que  seria  infructuoso 
se  não  tivesse  forças  que  o  auxiliassem,  e  a  politica  sanguinária  d'este 
Atila  ê  remover  todos  os  obstáculos  da  tyrannia,  e  sabe  bem  que  o  ca- 
minho mais  breve  de  lhe  dar  cabo  é  envial-os  para  Hespanha,  e  ex- 
pol-os  ao  formidável  assobio  do  rapazio  português,  que  em  duas  pa- 


262  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

lavras  só  nos  faz  o  processo,  e  dá  a  sentença :  aMata,  que  é  francez* ;  o 
crime  é  o  nome,  o  summario  é  a  presença,  a  sentença  é  morra,  e  o 
instiuraento  é  o  assobio,  que  aqui  mesmo  junto  aos  muros  de  Toledo 
me  torna  húmidas  as  panlalonas  do  lado  posterior. 

Outra  cenreira  é  a  vossa,  nas  vossas  cartas,  supplementos,  testa- 
mentos e  codicilios,  que  vera  a  ser,  que  não  lemos  que  comer  em  Hes- 
panha;  vindes  com  a  acaixeirada  regra  de  três:  —  se  em  i8H  tem  só 
um  alqueire  de  cevada  para  comer,  em  1813  quantos  selamins  terão? 
Quando  escrevestes  a  vossa  primeira  carta  ao  assalvajado  José,  já  lhe 
allegaes  o  artigo  fome  como  uma  poderosa  arma,  e  concordo  comvosco 
que  a  fome  é  coisa  terrível,  mas  é  para  quem  a  tem,  por  ora  ainda 
os  francezes  a  não  sentiram  deveras  na  península,  porque  vós  que  tanto 
sabeis  contar,  também  deveis  saber  discorrer  d'esta  maneira: — Quem 
vive,  come;  os  francezes  duram,  logo  os  francezes  comem. — Na  vossa 
carta  a  Massena  insistis  no  artigo  fome;  na  que  me  escreveis  agora 
também  me  ameaçaes  com  o  grande  exercito  da  fome.  Mr.  famulento, 
eu  commando  bárbaros,  que  em  quanto  existir  o  ultimo  burro  de  um 
aguadeiro  não  ficam  sem  jantar;  até  agora  se  não  é  muito  lauta  a  nossa 
mesa,  não  sentimos  a  rafa  com  que  nos  ameaçaes.  É  pasraosa  a  fer- 
tilidade d'estas  províncias,  e  como  a  primeira  lei  do  exercito  francez 
é  sustentar-se  â  custa  dos  paizes  invadidos,  é  certo  que  elles  não  dei- 
xam de  encontrar  papa  onde  quer  que  a  procuram.  Em  quanto  osta- 
mos  roubando  não  é  a  fome  que  nos  atrapalha;  e  olhae  que  nem  por 
isso  são  magros  os  que  por  la  têm  apparecido  apanhados  por  esses  in- 
trépidos portuguezes  que  na  verdade  vos  digo  que  são  leões  indómi- 
tos, e  conheço  que  é  ainda  mui  pouco  o  que  se  diz  das  suas  antigas 
façanhas.  Com  que,  meu  agcireiro  da  fome,  desenganae-vos,  que  por 
mais  contas  de  diminuir  que  façaes,  poderá  faltar  que  comer  aos  cas- 
telhanos, mas  a  nós,  verdadeiras  aves  de  rapina,  nunca  a  côdea  ha  de 
faltar;  e  não  è  d'esla  razão  ião  rebatida  em  todas  as  vossas  carias, 
que  nasce  a  vossa  prometlida  inconquistabilidade  da  Hespanha.  Somos 
capazes  de  ir  tirar  das  barrigas  alheias  o  sustento  recebido  ainda  de- 
pois de  passadas  vinte  e  quatro  horas. 

Mr.,  sobre  a  inconquistabilidade  de  Castella,  muito  tinha  que  vos 
dizer.  Esta  parte  preciosa  da  Europa  já  foi  conquistada  e  possuída  pe- 
los Phenicios  e  Carthagineses;  foi  conquistada  pelos  Romanos,  e  lam- 
bem a  vossa  formidável  Lusitânia;  é  por  isso  que  por  uma  traição,  mas 
n'isse  somos  nós  mestres,  e  é  a  nossa  primeira  arma,  foi  conquistada 
e  possuída  desde  o  quinto  até  o  oitavo  século  pelos  Suevos,  pelos  Ala- 
nos, e  pelos  Godos,  que  aqui  em  Toledo  levantaram  o  sólio  de  uma 


RESPOSTA  DO  GKNKRaL  mahmont  263 

brilhante  moDarchia,  desde  o  reinado  de  Athaulfo,  até  ao  reinado  de 
Rodrigo;  foi  finalmente  conquistada  e  possuída  tranquillamente  desde 
a  entrada  do  Conde  D.  Julião  pelos  Sarracenos,  até  á  ultima  expulsão 
d'estes  do  reino  de  Granada  nos  dias  de  Fernando  e  Isabel:  crede, 
meu  amigo  calculador,  que  quando  por  Tariffa  entraram  os  mouros, 
não  acharam  a  Hespanha  em  peior  estado,  nem  mais  corrompida,  nem 
mais  dividida  em  partidos  e  facções  do  que  nós  a  achámos,  quando 
entrámos  por  Bayona,  e  por  Irun;  nós  primeiro  nos  encaixámos  para 
dentro  como  amigos,  e  depois  nos  declarámos  possuidores,  porque  á 
viva  força  não  mettiamos  cá  o  cachaço  dentro,  assim  como  o  não  met- 
temos  em  Portugal,  depois  da  surra  de  açoutes  que  levou  o  triste  Ju- 
not;  porque  deveis  saber,  meu  curador  de  debilidades,  que  cedemos 
sempre,  todas  as  vezes  que  seriamente  e  sem  pedreirada  somos  ata- 
cados. Esta  é  a  grande  verdade,  a  cuja  reverberante  luz  ainda  as  mais 
bellicosas  nações  da  Europa  não  têm  querido  abrir  os  olhos.  Ora,  se 
o  nosso  intento  fosse  não  roubar,  como  eu  vos  digo,  mas  conquistar  a 
Hespanha,  o  que  poderam  fazer  os  Sarracenos,  nós  mais  bárbaros,  mais 
atrozes,  mais  ladrões,  mais  Ímpios  que  elles,  não  o  poderíamos  fazer 
também?  Se  o  meu  aladroado  amo  podasse  primeiro  empalmar  as  ín- 
dias, e  fazer-se  senhor  de  três  potentíssimos  impérios,  de  que  ellas 
constam.  Peru,  México  e  Chili,  então  contásseis  com  a  absoluta  con- 
quista da  Hespanha;  mas  de  que  serve  a  meu  amo  este  pão  sem  aquelle 
pedaço?  Sem  patacas,  e  sem  de  onde  ellas  venham,  de  que  lhe  serve 
am  terreno  quasi  tão  grande  como  a  França,  cheio  de  desesperados,  e 
com  essa  corcunda  de  Portugal,  aonde  se  não  pode  metter  dente,  que 
não  acudam  os  malditos  rapazes  com  o  detestável,  e  redutavel  assobio 
atemorisador  dos  mais  resolutos  Duques  da  moderna  França!  Não  vos 
canseis  pois  com  os  cálculos  da  inconquisiabilidade  da  Hespanha,  que 
são  ociosos  e  inutes:  Murat,  Augereau,  Victor,  Regnier,  Soult,  Mas- 
sena,  Suchet,  Macdonald,  tudo  tem  vindo  roubar;  não  são  depostos, 
são  substituídos,  para  chegar  a  todos,  e  todos  levarem  rasca.  Quem 
não  diria  que  Massena  levava  lombo  de  gozo,  apenas  chegasse  a  Pa- 
ris com  as  mãos  abanando?  Pois  não  foi  assim,  riu-se  Bonaparte,  e 
disse-lhe  com  o  vosso  Camões: 

Oh  lá,  Massena  amigo,  aquelle  outeiro 
É  melhor  de  descer  que  de  subir  I 

Âquelles  bichos  portuguezes  não  são  os  macarronis  da  Itália;  aili 
fostes  vós  grande  cousa;  e  então,  que  me  trazeis  de  presente?  Junot 


264  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

veiu  desnarigado,  e  vós  que  éreis  anjo  vindes  desazado!  Se  pega, 
pega,  se  não  era  graça.  Lá  em  França  crê-se  que  ahi  estão  as  minas 
de  Cata-preta,  quem  pode  furtar  que  furte,  que  para  isso  se  tentam 
essas  invasões  em  ár  de  conquista.  Eis  aqui  porque  eu  me  não  quero 
metter  em  camisas  de  onze  varas,  e  porque  sei  que  de  lá  venho  tos- 
quiado, não  me  resolvo  a  ir  lá  buscar  lã;  aqui  estou  até  encher  os 
alforges,  em  os  abarrotando  marcho,  para  vir  outro,  e  dos  ladrões  ti- 
tulares não  faltam,  para  vindimarem  a  Hespanha,  mais  que  Davoust 
e  Oudinot;  estes  dois  não  são  mais  queridos  de  meu  amo,  por  isso  vi- 
rão ao  lavar  dos  cestos;  que  ainda  então  se  chama  vindima,  ainda  que 
não  haja  nem  um  cacho.  Se  vierem  não  lhe  escrevaes,  que  eu  lhes 
mostrarei  a  vossa  carta,  que  é  o  mesmo;  os  cálculos  que  me  fazeis 
são  os  mesmos  que  tendes  feito,  e  que  fareis,  porque  as  circumstan- 
cias  são  idênticas,  e  as  vossas  cartas  são  parentas  das  nossas  unifor- 
mes proclamações. 

Vós  me  fazeis  um  rol  ou  mappa  das  terríveis  partidas  que  nos. 
acossam  por  lodos  os  lados,  sem  nos  deixar  repousar;  que  nos  rou- 
bam o  que  roubámos,  e  que  nos  tornam  doidos,  sem  aquella  união  de 
correspondência,  sem  a  qual  o  plano  rapinanle  não  pode  ir  por  deante; 
eu  as  temo,  até  os  seus  nomes  são  terríveis:  o  Chaleco  e  o  Manco  são 
dois  diabos  no  nome,  e  na  coisa;  mas  o  mais  terrível  é  o  Medico;  este 
é  um  César,  mata  com  a  espada,  e  com  a  penna;  tristes  das  águias 
se  lhe  engolem  um  rècipe;  isto  é  que  mata,  e  não  a  vossa  annunciada 
fome;  três  médicos  bastariam  para  metterem  na  cova  os  Marenguistas 
todos  do  mundo. 

Ora  sabei  que  estranho  muito  aqnella  passagem  da  vossa  carta, 
em  que  soltaes  as  azas  ao  espirito  prophetico,  e  annunciaes  o  futuro 
estado  dos  francezes  e  hespanhoes  na  península;  dizeis  que  isto  aca- 
bará na  guerra  mourisca;  escaramuçarem  e  recolherem-se  aos  seus 
respectivos  castellos.  Isto  é  boa  consolação  para  o  pae  da  creança,  e 
vos  devem  ficar  muito  obrigados  os  castelhanos.  Depois  que  Pelaio  sa- 
híu  das  Astúrias  e  começou  a  escaramuçar  com  os  mouros,  até  que 
sahiram  de  Granada,  passaram  séculos,  e  se  por  esta  sabida  dos  fran- 
cezes esperam  os  castelhanos,  não  vos  dôa  a  cabeça  até  então,  que  lar- 
gos dias  tem  cem  annos,  e  perdido  o  tendes  se  para  lá  o  guardaes. 
Isto  não  dura  muito,  e  não  estejaes  fundando  castellos  em  Hespanha, 
em  acabando  a  rapina,  o  primeiro  que  se  põe  a  andar  é  o  mano  José, 
que  não  pode  tardar,  porque  de  rei  está  reduzido  a  uma  capatazia,  e 
apanhou  por  empenhos  um  numero  no  Terreiro  de  Madrid  para  ven- 
der trígo  por  miúdo;  a  vossa  gazeta  o  disse,  e  é  uma  verdade,  e  já 


RESPOSTA  DO  GENERAL  MARMONT  2C5 

eu  lhe  embarguei  alguns  moios;  creio  que  está  agora  vendendo  aveia 
para  as  galinhas  que  o  cercam.  Eu  vou-me  atraz  d'elle;  os  mais  to- 
marão as  de  Villa  Diogo,  em  nâo  tendo  que  empalmar,  pois  não  viemos 
cá  para  outra  coisa. 

A  respeito  de  Portugal,  não  faliemos;  coisa  de  o  conquistar,  isso 
é  o  mesmo  que  pedir  verdade  a  um  francez  ou  marmellos  a  um  car- 
rasco. Aqui  em  se  fallando  em  Lord,  tudo  fica  amarello,  e  eu  não  te- 
nho receita  mais  apta  para  os  accommodar  quando  se  amotinam,  se 
não  dizer-lhe:  Oh  Elanistas  e  Austerlzianos,  parece-me  que  ouço  o  as- 
sobio dos  rapazes  do  Terreiro  do  Paçol — Moita,  tudo  fica  calado,  e 
ainda  aqui  me  contam  alguns  restos  do  n.°  70,  o  que  lhes  fizeram  os 
sapateiros  da  praça,  quando  sahiram  de  S.  Domingos  com  o  rabo  en- 
tre as  pernas  para  embarcarem. 

Aqui  chegou  Girard  com  as  calças  na  mão,  e  uma  dentada  no  ca- 
chaço; pergunto-lhe  pelo  seu  exercito,  pelo  bravo  Mont-Brun,  pelo  fa- 
çanhoso Aremberg,  encolhe  os  hombros,  e  diz  que  apparecera  o  diabo 
á  não  da  índia  em  rio  de  Molinos:  olha  de  vez  em  quando  para  traz, 
e  diz  delirante  e  espavorido:  «Lá  vêm  os  rapazes  a  assobiarl. .  .» 
Com  que,  em  Portugal  não  faliemos,  o  passado,  passado.  Se  n'esta 
hora  arrebentasse  Bonaparte,  sem  esperarmos  pela  vossa  guerra  mou- 
risca, nem  eu  pelo  Manco  e  pelo  Medico,  tudo  se  punha  a  andar,  por- 
que acabado  o  capataz  dispersava-se  a  companhia  dos  ladrões,  e  fa- 
liam n'um  momento  todos  os  vossos  cálculos. 

Agradeço-vos  o  conselho  que  me  daes,  de  aconselhar  Pepe  que 
marche  commigo  para  a  America,  ou  que  vá  commigo  visitar  seu  ir- 
mão Luciano,  eu  excuso  de  levar  commigo  trambolhos;  Bonaparte  que 
o  ature  quando  acabada  a  cardada  se  recolher  cora  os  outros  ao  ves- 
tuário. Ora  já  que  me  daes  tantos  conselhos,  também  eu  vos  quero 
dar  um,  que  vem  a  ser,  que  não  sejaes  propheta,  que  sois  miserável 
n'isso.  Vós  dissestes  a  6  de  junho  de  1810  que  não  iria  lá  Massena, 
que  tinha  chegado  a  Valhadolid,  e  foi;  raáo  propheta  sois.  Vós  pro- 
phelisastes  a  31  de  outubro  do  mesmo  anno,  que  a  Rússia,  Dinamarca 
e  Prússia  declarariam  guerra  á  França,  já  lá  vae  o  anno,  e  ainda  o 
nâo  fizeram.  Vós  prophetisastes  no  mesmo  dia,  dando  a  prophecia  como 
uma  verdade,  que  haveria  uma  revolução  na  Suécia,  e  ainda  não  ap- 
pareceu.  Vós  no  mesmo  dia  e  hora  dissestes  que  Pepe  dentro  em  oito 
meses  abdicaria  voluntária  ou  involuntariamente,  a  mal  posta  coroa  de 
Hespanha;  já  lá  vão  mais  oito  meses,  e  ainda  o  não  fez.  Vós  dissestes 
e  prophetisastes  que  n'esse  tempo  as  Cortes  nomeariam  um  regente 
e  ainda  o  não  fizeram.  Vós  dissestes  que  n'esse  instante  haveria  por 


266  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

todas  as  províncias  de  Hespanha  umas  Vésperas  sicilianas,  e  o  sino 
ainda  não  acha  horas  de  locar  a  vésperas.  Vós  prophetisastes  que  Bo- 
naparte desenganado  dentro  em  dois  annos,  que  a  segunda  mulher 
não  lhe  dá  successão  á  coroa,  terá  guerra  com  o  imperador  de  Áus- 
tria, e  u'esse  mesmo  tempo  a  mulher  estava  prenhe,  e  vae  parindo 
como  uma  rata,  e  a  paz  e  harmonia  continua  sem  alteração  entre  o 
imperador  de  Áustria  e  Bonaparte.  Ora  que  lai  está  o  propheta?  Vós 
sereis  como  os  sebastianistas  de  vosso  reino?  Como  quereis  que  se 
acreditem  os  vossos  cálculos  aritlimelicos,  se  as  vossas  politicas  prophe- 
cias  falham  por  este  feitio?  Ainda  continuo  com  a  liberdade  de  vos 
aconselhar,  e  vos  digo  que  vos  deixeis  da  mania  de  escriptor  publico, 
mania  que  tem  invadido  n'esse  reino  tantas  cabeças,  e  que  vos  deixeis 
da  moda  de  fallar  no  ladrão  de  Bonaparte,  coisa  já  tão  fastidiosa  e 
impertinente;  aproveitae  os  vossos  talentos  empregando-os  em  coisas 
úteis  e  gloriosas  á  vossa  pátria.  Annunciaes  certa  facilidade  no  estylo, 
que  vos  distingue  da  caterva  infinita  dos  borradores  de  papel  que  tem. 
entulhado  esse  reino,  onde  não  entrará  mais  um  francez  armado;  em- 
pregae  esta  facilidade  em  objectos  interessantes.  Eu  sou  um  marechal 
francez,  mas  tive  educação,  e  fui  alguma  coisa  antes  da  peste  revolu- 
cionaria, conheço  os  francezes,  e  crede  que  dizer-lhes  verdades  é  pre- 
gar aos  hereges.  Da  Hespanha  não  saem  se  não  depois  de  bem  rou- 
bada, ou  então  a  páo,  e  deveras,  que  é  o  modo  de  os  levar.  Cartas 
e  cálculos  são  armas  inúteis.  Livrae-me,  já  que  sois  meu  amigo,  li- 
vrae-me  vós  do  terrível  Lord,  que  é  capaz  de  moer  a  paciência  a  um 
santo;  único  homem  no  mundo,  que  nos  sabe  pôr  sal  na  moleira,  con- 
tra o  qual  não  ha  planos,  porque  parece  que  falia  com  o  diabo  á  meia 
noite  para  advinhar  tudo,  desconcertar  tudo,  e  encher  ludo  de  espanto 
e  medo;  e  se  eu,  como  governador  de  Cidade-Rodrigo,  Mont-Brun  e 
companhia,  fôr  ler  alguma  vez  ás  praças  de  Lisboa,  pilhado  pelo  infa- 
tigável Hill,  livrae-me,  eu  vos  peço,  do  assobio  dos  rapazes,  que  é  o 
que  basta  para  confundir  lodo  o  S.  Cloud,  e  aterrar  os  mais  campa- 
nudos  Friedlandistas,  e  é  lambem  o  que  mais  assusta  vosso  conhecido 

Marmont,  o  Duque. 
27  de  Novembro  de  1811. 


CARTA 


DO 


M,  MANUEL  MENDES  FOGAÇA 

AO  SEU   AMIGO   TRASMONTANO 
SOBRE  OS  PERIÓDICOS  DO  TEMPO 

Deixae  das  artes  o  estudo, 
Allucinados  inortaes; 
Quem  chega  a  ler  os  Jornaes 
É  doutor,  e  sabe  tudo. 
Bandakra,  Trova  das  Tezouras. 


PROEMIO 

A  obrigação  do  christão  é  dar  credito  ao  que  Deus  disse,  porque 
e!le  o  disse;  a  obrigação  do  vassallo  é  dar  credito,  e  prestar  inteira 
obediência  ás  leis  do  soberano;  a  Deus  porque  é  Deus,  ao  rei  porque 
o  representa.  Depois  d'isto,  ha  na  historia  factos,  que  negal-os  seria 
oíTender  o  consenso  publico,  e  a  auctoridade  humana.  Mas  tomara  que 
me  dissessem  que  lei  divina,  que  lei  de  soberano  legitimo,  que  con- 
senso universal  de  séculos  e  de  homens,  me  manda  que  dê  credito  a 
uma  gazeta?...  Não  quero  dar  credito  a  nenhuma  gazeta  do  mundo 
desde  o  alto  Monitor  até  ao  baixo  Investigador.  É  verdade  que  o  mundo 
em  pezo  não  lê,  nem  quer  ler  senão  gazetas;  e  chegou  isto  a  um  ace- 
pipe  de  phreuesi  epidemico,  como  se  não  bastassem  as  que  temos  em 
Portugal  vêm  de  fora,  como  \êm  drogas  para  as  boticas,  e  em  se  jun- 
tando dois  homens  que  tenham  fome,  o  recurso  é  este: — Façamos  um 
periódico —  e  um  periódico  é  feito.  Depois  do  periódico  feito,  olha  um 
para  o  outro,  e  diz:  «Muito  bom  é  o  nosso  periódico I  Como  fica  a  na- 
ção! que  luzes  espalhamos!  Como  fica  o  povo  instruido!  sem  lêr  o 
nosso  periódico,  como  podem  os  homens  saber  alguma  cousa?. . . » Ora 


268  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

quem  são  estes  periódicos,  a  quem  com  prodigioso  emphase  chamara 
—  as  folhas  publicas?  —  São  uns  aggregados  de  inepcias,  de  baixíssi- 
mas assentações,  de  vergonhosíssimas  lisonjas,  de  destampadissimas 
e  soleranissimas  mentiras,  de  arbítrios,  ou  alvitres  oucos,  de  discur- 
sos e  reflexões  eminentemente  pueris;  e  sobretudo  são  uns  raios  es- 
tragadores  e  exterminadores  da  língua  portugueza,  que  está  tão  des- 
figurada, tão  invertida,  tão  adulterada  com  o  pestilente  sarapatel  de 
novas  phrases,  e  novos  termos,  que  a  não  conheço  já,  principalmente 
nos  periódicos  que  vêm  de  fora.  Andam  os  homens  tão  enfrascados, 
tão  atolados  n'esíes  monturos,  que  não  ha  já  paciência  humana  para 
tal  soffrer. 

Ora,  inimigos  leitores,  além  do  ides  lèr  n'esta  carta,  sabei  e  pas- 
mae  que  desde  que  Bonaparte  sahiu  de  Burgos  (se  é  qne  lá  esteve) 
tem  sabido  até  hoje  9  de  março  de  1812  seiscentes  e  vinte  e  três  es- 
quadrões de  cavallaria  do  guarda  imperial  de  Castella  para  França. 
Tantos  tenho  escrupulosamente  contado  nas  gazetas  castelhanas  tran- 
scriptas  em  os  nossos  periódicos.  Pelas  contas  diárias  dos  mortos  nos 
hospilaes  (onde  não  são  assistidos)  acho  que  em  quatro  annos  tem 
morrido  nos  hospitaes  setecentos  mil  francezes.  Á  vista  d'isto,  meus 
inimigos  leitores,  dizei-rae:  quando  encontraes  na  rua  um  jornalista, 
que  inchando  as  bochechas  vos  diz: — Já  viu  o  nosso  periódico  n.° 
1:000?  —  dizei-me  se  não  tendes  vontade  afogar  um  periodiquista? 
Pois  tenho  eu. 

Vale. 
CARTA 

Amigo,  recebi  a  vossa  carta,  e  com  ella  o  curioso  mappa,  que  re- 
mettestes.  Só  a  vossa  paciência  poderia  levar  ao  cabo  uma  obra  de 
tanto  pezo.  É  verdade  que  conservaes  os  preciosos  monumentos  dos  pa- 
peis chamados  periódicos,  único  deposito  dos  humanos  conhecimentos, 
e  fora  dos  quaes  não  ha  mais  do  que  trevas,  ignorância  e  erros;  elles 
são  a  guia  do  entendimento,  a  paz  do  coração,  e  a  única  regra  fixa  que 
existe  do  gosto,  e  da  critica;  encerram  em  si  o  verdadeiro  archetypo 
do  bello  ideal  (como  tão  erradamente  chamava  Marco  Tullio  á  historia) 
os  mestres  da  vida,  os  esteios  seguros  da  velhice,  os  únicos  fachos  a 
cujo  indefenito  e  universal  clarão  nos  podemos  seguramente  conduzir 
pelas  tortuosas  e  obscuríssimas  veredas  da  politica.  As  nações  e  os 
monarchas  lhes  estão  sujeitos,  d'elles  pende,  como  de  um  fio  o  destino 
vacillanle  dos  povos;  desenvolvem  e  aclaram  o  labyrintho  das  leis,  dão 
o  verdadeiro  preço  ás  producções  lilterarias;  o  nome,  e  a  reputação 


CAUTA  DO  DR.  MANUEL  MENDES  FOGAÇA  269 

á  eternidade,  ou  á  sepultura  dos  sábios  alli  se  encontram;  penetram 
os  sanctuarios  dos  gabinetes,  e  determinam  com  justiça  os  interesses 
das  monarchias,  o  seu  estabelecimento,  progressos  e  decadência:  alli 
são  notados  os  erros,  e  os  acertos  dos  generaes  de  exércitos;  a  con- 
servação, dilatação  e  prosperidade  do  commercio  d'alli  pendem,  e  alli 
finalmente  se  encontram  dictames,  e  lições  de  moral,  regras  infalliveis 
de  prudência,  cânones  da  mais  sublime  philosophia,  os  sábios  de  to- 
dos os  séculos  são  obrigados  a  reconhecer  a  superioridade  de  um  pe- 
riódico, e  a  confessar  quão  pouco  se  adiantaram  no  conhecimento  da 
natureza,  quão  pouco  promoveram  a  felicidade  da  espécie  humana, 
quando  comparam  os  immensos  fructos  de  suas  vigílias  e  estudos  com 
uma  gazela,  com  um  diário  I  E  com  effeito,  meu  bom  amigo,  que  águia 
Dão  abaterá  seus  altanados  voos,  quando  vir  remontado  muito  para 
cima  das  nuvens  um  periodiquisla!  Que  encolhimento  o  de  Platão,  o 
de  um  Archimedes,  de  um  Galileo,  se  o  destino  os  conservasse  para 
verem  o  Conciso,  o  Compostellario,  a  Estrella,  a  Abelha  e  o  Lagarde 
depois  de  jantar?  Que  pouco  se  conheceriam  adiantados  na  eloquência 
um  Massillon,  um  cardeal  Passionei,  se  entre  suas  estudiosas  fadigas 
chegasse  a  ler: 

«Noticias  confidenciaes:  O  partidário  Caracol  com  o  partidário  Cha- 
veco,  ajudados  pelo  partidário  Manco,  se  embuscaram  no  Curral  de 
Naval  Carnero,  cahiram  sobre  a  columna  inimiga  depois  do  mais  bem 
dirigido  fogo,  tomaram  um  mulo  com  três  sacos  de  cevada,  ficou  o 
campo  juncado  de  cadáveres;  da  sua  parle  tiveram  uma  cavalgadura 
menor  contusa,  espera-se  por  horas  o  detalhe  da  acção.» 

Ora  meu  amigo,  na  verdade,  um  entendimento  que  se  pode  le- 
vantar tanto,  que  chega  a  traçar  um  tão  soberbo  quadro  com  tanta 
força  de  colorido  na  expressão,  com  um  estillo  tão  verdadeiramente 
castiço,  que  é  estar  a  gente  a  ver  aprisionar  e  desalbardar  o  mulo,  e 
os  inimigos  precipitada  e  vergonhosamente  fugindo,  e  os  três  partidá- 
rios, senão  com  os  direitos  à  coroa  mural,  ao  menos  com  o  jus  â  ova- 
ção, ou  pequeno  triumpho,  deve  contemplar  todos  os  outros  escripto- 
res  não  só  covados,  mas  léguas  abaixo  de  si,  repimpando-se  na  ca- 
deira magistral,  e  ornear  d'esta  maneira:  «Povos  da  terra,  sábios,  ma- 
gistrados, generaes,  legisladores,  philosophos,  historiadores  e  todos 
vós,  oh  mortos  que  estivestes  no  congresso  de  Ulrecht,  e  de  Meeres- 
ter,  vinde  a  meus  pés,  que  eu  vos  ensinarei  a  todos  o  que  deveis  fa- 
zer; e  guardae-vos  bem,  olhae,  não  erreis,  porque  possuo,  dada  pela 
mesma  sabedoria,  a  vara  censória  para  vos  zurzir.» 

Isto,  e  muito  mais  pode  um  periodiquisla,  com  a  auctoridade  que 


270  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

elle  tem,  dada  por  seu  sobrehnmano  mister.  E  vós,  meu  amigo,  aca- 
baes  de  enriquecer  o  mundo  com  uma  obra  de  que  já  a  imortalidade 
se  foz  senhora,  e  com  ella  e  por  ella  podeis  dizer  com  a  mesma  mo- 
déstia de  Horácio: 

O  docto  ibero  estudará  meu  livro, 
E  o  bebedor  do  Rhodano  pasmado 
Ha  de  ler  meu  politico  tratado: 
Nem  de  todo  morreu.  Focinho  agudo 

Pernas  em  vez  de  pello 
Eu  já  sinto  nos  hombros  o  cabello^ 
E  em  branco  cysne  me  transformo  e  mudo. 

(Ode  20.%  Liv.  2.°). 

Mas  também  deveis  ser  ingénuo  e  confessar  que  não  chegareis  a 
tocar  a  immortaiidade  com  as  mãos,  podendo  dizer  como  o  outro  mi- 
serável com  duas  trovas  de  Fiiinto:  —  Posteridade  és  rainha! — se  não 
fossem  os  perioiliquistas.  Está  a  vossa  livraria  riquissima,  e  mais  opu- 
lenta que  era  a  do  Vaticano,  cora  a  iramensa  collecção  de  gazetas  que 
tendes  feito  desde  o  dia  2  de  Maio  de  1808  até  22  de  Fevereiro  de 
1812,  e  d'estas  minas  inexhauriveis  das  sciencias  humanas,  vós  ten- 
des extrahido  por  semana,  por  mez,  por  anno,  uma  lista  exacta  dos 
francezes  mortos  na  Hespaniia,  a  ferro  frio  e  quente,  e  por  conta  que 
não  pode  mentir,  porque  é  puchada  a  somma  ao  sabbado  de  cada  se- 
mana á  margem  das  mesmas  gazetas,  e  daes  em  conta  corrente,  sem 
dolo,  fraude,  malicia  ou  cousa  que  duvida  faça,  porque  lá  está  tudo,  e 
todos  podem  contar,  —  um  milhão  novecentos  trinta  e  quatro  mil  seis- 
centos e  dezeseis  soldados  francezes  mortos  na  Hespanha,  a  maior  parte 
pelas  guerrilhas,  e  quasi  tudo  cora  bala  raza. — Com  effeito,  meu  bom 
amigo,  quando  vejo  estas  verdades  arithmeticas,  infalliveis  de  sua  mesma 
natureza,  não  posso  conter  a  minha  indignação  contra  aquelle  malévolo 
castelhano  chamado  Feijó,  que  se  atreveu  a  compor  um  grande  dis- 
curso, que  \niilu\ou  —  Fabulas  gazetaes! — Pois  um  periódico  pode  men- 
tir? Oh  sacrílega  audácia  de  um  escriptor  pervertido!  e  talvez  com- 
prado pelo  partido  dos  homens  de  juizo,  que  se  chama  o  partido  ar- 
mado contra  o  diluvio  gazetal!  Não  pode  mentir,  nem  enganar-se  ja- 
mais, porque  se  ha  homem  que  se  possa,  e  que  se  deva  de  justiça  cha- 
mar eminentemente  sábio,  é  o  auctor  de  um  periódico;  as  suas  deci- 
sões são  oráculos,  a  sua  sciencia  toca  as  extremidades  do  universo; 
comprehende  em  grande  e  pequeno  todo  o  quadro  da  natureza,  o  que 
BuíTon  fez  e  conseguiu  em  quarenta  annos,  um  jornalista  consegue 


CAUTA  DO  DR.   MANUEL  MENDES  FOGAÇA  271 

em  um  folheio  mensal.  Buffon  preparou  por  quinze  annos  os  materiaes 
para  o  primeiro  volume  da  Historia  da  Natureza,  um  diarista  faz  dois 
primeiros  volumes  d'aquelles  em  meia  folha  dos  seus  portentosos  nú- 
meros. Oh  sciencia  immortal!  oh  curadora,  oh  mezinheira  dos  débeis, 
dos  fracos,  dos  coxos,  dos  mancos,  dos  tímidos  f  oh  espancadora  po- 
derosíssima da  ignorância!  oh  convertedora  de  praças  da  quarta  or- 
dem em  praças  da  segunda  ordem  I  Sciencia  sobrehumana!  Tu  pintas 
apparelhos,  tu  quebras  as  chicaras,  tu  lhe  deitas  gatos.  Tu  só  és  ca- 
paz de  conservar  um  commercio  epistolar  cora  os  maiores  generaes  do 
mundo!  Tu  és  a  verdadeira  mineralogia,  tu  achas  mais  ferro  em  Pu- 
nhete,  que  em  toda  a  Suécia  em  pezo.  Tu  commentas,  tu  calculas,  tu 
adivinhas,  tu  prometles,  tu  prognosticas,  tu  mentes  que  fedes,  tu  con- 
solas, tu  levantas,  tu  prostras,  tu  indagas!  Oh  Burleta  italiana  filha  do 
Papaver  egypcio,  pela  tua  narcótica  virtude,  a  quem  deves  tu  o  conhe- 
cimento das  diposições  que  para  ti  tem  os  indivíduos  privilegiados  do 
Destino  (e  privilegiados  também)  para  fazerem  essas  enormes  e  arre- 
ganhadas carantonhas,  boccas  de  fúrias,  dentuças  de  cavallo  marinho, 
a  quem  deves  tu  tudo  isto?  A  um  periódico!  Os  teus  bufos,  as  luas 
primas  bufas  caricatas,  a  quem  devem  seu  mérito,  sua  nomeada,  se- 
não a  um  periódico? 

Ah  meu  amigo,  estas  minhas  vigorosas  apostrophes  de  nada  ser- 
vem quando  os  fados  faliam.  Vós  sabeis,  que  depois  da  diplomacia  não 
ha  sciencia  mais  diíDculluosa,  e  trabalhosa  que  a  chronologia  (deixas 
fallar  os  pedantes,  e  crede  estas  verdades):  pois  sabei  que  um  perio- 
diquista  de  uma  pennada  só  reúne  todos  os  conhecimentos  chronolo- 
gicos,  os  mais  profundos  e  dilatados;  determina  com  tanta  exactidão 
uma  época,  e  uma  data,  que  os  sábios  todos  e  da  primeira  magni- 
tude, que  trabalharam  na  correcção  gregoriana,  ficam  postos  a  um  lado 
e  de  queixo  cabido.  Ora  vós  sabeis  que  eu  me  tenho  dado  a  estes  es- 
tudos, com  algum  amnco,  e  por  muitos  annos,  e  vos  aííirmo  que  em 
ajustar  a  época  do  diluvio  variam  muito  o  douto  Usserio,  o  profundo 
José  Gesar  Scaligero,  o  portentoso  Petavio,  o  sublime  Newton,  o  vas- 
tíssimo Saliano,  o  sábio  e  muito  sábio  Sírmondo,  emfim  não  é  coisa 
de  brinco,  epresuppõe  estudos  teimosíssimos.  Pois,  meu  amigo,  em  um 
d'esles  dias  do  passado  Janeiro  me  veiu  á  mão  um  relevantíssimo  diá- 
rio. Admirei  a  hora  do  preamar,  não  gostei  do  jejum  annunciado,  ardi 
deveras  com  o  fatal  cambio  a  2574;  mas  o  que  me  fez  entrar  em  ex- 
lasi  e  pasmaceira  embaçante,  foi  esta  portentosíssima  sentença:  — 
«N'este  dia  abriu  Noé  a  janella  da  Arca,  e  a  tornou  a  fechar.»  Como 
fiquei?  Semelhante  ao  medroso  pae  Enéas,  o  mais  chorão  dos  heroes. 


272  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACUDO 

Ficou-me  a  voz  pegada,  o  pello  a  pino.  Apenas  pude  dizer:  o  Noè 
teve  razão  em  tornar  a  fechar  a  janella;  se  na  Arménia  fizesse  tanto 
frio,  como  hoje  está  fazendo  em  Lisboa,  em  trinta  e  oito  gráos  de  la- 
titude norte.  Depois  que  tornei  a  mim  e  que  o  cabello  se  me  amaciou, 
comecei  de  ver  e  conhecer  plena  e  cabalmente  que  coisa  seja  um  pe- 
riódico e  um  periodiquistal  É  uma  sciencia  verdadeiramente  de  infusa. 
Tantos  sábios  discordantes,  consumidos  em  contínuos  estudos,  ura  Pe- 
tavio,  com  três  alentadissimos  volumes  in-foHo  sobre  a  rasão  e  ordem 
dos  tempos,  não  determina  esta  época;  os  annaes  de  Saliano  ficam 
indecisos,  e  um  periodiquista  diz:  —  Hoje  abriu  Noé  a  janella  da  Arca, 
e  a  tornou  a  fechar! — Oh  sciencia  immortal!  Sem  um  Diário,  sem  uma 
Abelha,  sem  um  Conciso,  sem  um  Correio,  sem  um  Investigador,  que 
seria  do  mundo!  Como  se  aquietariam  era  suas  lubricidades  os  bandu- 
lhos humanos  sem  um  Café  para  depois  do  jantar!  Ah  meu  amigo!  a 
minha  vasta  bibliolheca  é  um  armário,  lá  estavam  alguns  livrecos  (nem 
um  só  em  francez)  a  moça  pedia-rae  serradura  para  fazer  furao  a  chou- 
riços, lá  lh'os  entreguei,  acabaram  na  chaminé  hojo;  hoje  24  de  feve- 
reiro teve  logar  esta  espantosa,  mas  bera  merecida  conflagração.  Já 
não  lenho  livros,  e  de  que  me  servem  elles?  Uma  gazeta,  um  perió- 
dico calculante  suppre  tudo. —  Eu  sou  pregador  (e  de  aluguer!)  é  pre- 
ciso estudar  os  modellos  ou  exemplares  da  eloquência:  oh  Cypriano 
admirável  e  dulcissimo!  Oh  agudo  e  ardentíssimo  TertuUiano!  delicado 
Ambrósio,  fluentíssimo  Chrysostomo,  e  tu,  oh  águia  sobre  todos,  Na- 
zianzeno,  de  que  me  servis  vós,  se  um  meu  amigo  chapelleiro  me  deixa 
ler  a  Gazeta,  e  outro  meu  amigo  amador  das  boas  lellras,  me  empresta 
o  Investigador?  Oh  Telegrapho!  Oh  tu,  que  és  mina  de  diamantes  de 
Visapur,  tu  me  espirituahsas,  me  enleias,  me  fecundas,  me  empanzinas! 
Harmonioso  Roberli,  as  tuas  divinas  paginas  me  encantavam;  mas  se 
eu  tenho  o  Diário,  de  que  serves  tu?  Eu  devo  fallar  bem  portuguez, 
porque  fallo  em  publico,  e  porque  sem  pureza  e  elegância  varonil  não 
ha  eloquência;  deveria  estudar  Lucena,  Ceita,  Heitor  Pinto,  Vieira,  e 
a  ti  também  mimoso  e  discreto  Jacinto  Freire:  ah!  charlatães,  charla- 
tães, ide-vos  d'ahi,  ide-vos  envolver  no  pó  da  vossa  antiguidade;  de 
que  me  servis  vós,  se  eu  lenho  a  linguagem  mais  apurada,  mais  cas- 
tigada, mais  dilatada,  mais  rica,  mais  farta,  mais  abundante,  mais  har- 
moniosa, mais  castiça,  e  menos  bastarda  no  meu  rico  Investigador! 
Além  de  vêr  alli  dilatada  infinitamente  a  esphera  de  meus  conhecimen- 
tos, podendo  ir  marcar  com  o  dedo  a  cova  onde  se  enterram  os  bur- 
ros, e  os  cães  mortos  para  fazer  velas  de  espermacetli!  Já  sei  que  ha 
o  chinchonino,  e  que  vão  muitas  gentes  ás  invejas  para  serem  vacci- 


CARTA  DO  DR.  MANUEL  MENDES  FOGAÇA  273 

Dadas  pelo  doutor  Laranjadas;  alli  tenho  o  meu  thesouro  da  linguaf 
Quero  dizer  explicação,  digo  esclarecimento;  quero  dizer  Junta,  digo  Co- 
mité; quero  dizer  comarca,  digo  arrondecime?ito;  quero  dizer  barreiras 
altas,  digo  insurmontaveis;  quero  dizer  proponho,  digo  movo;  quero  di- 
zer Presidente  do  Erário,  digo  Chanceller  do  Exchequier;  quero  dizer 
rebater  os  esforços  do  inimigo,  digo  depreciar;  quero  dizer  Iticta  can- 
çada,  digo  lucta  penitel;  quero  dizer  itidex  do  que  se  trata  n'esle  livro, 
digo  contentos;  quero  dizer  honrado  senhor  F.,  digo  honorable;  quero 
finalmente  citar  uma  passagem  de  um  clássico  portuguez,  pois  traslado 
a  Ode — Corja  adusta — do  botequim.  Ora,  meus  amigos  quinhentistas, 
mettei-vos  a  um  canto,  isto  é  outro  fallar.  O  destino  da  lingua  portu- 
gueza  está  nas  mãos  de  um  periodiquista;  e  bem  dizia  aquelle  verso 
impresso  de  Garção: 

Estuda  portuguez  pela  Gazeta. 

Quem  quizer  escrever  uma  historia  da  nação  com  tanta  gravidade, 
pureza,  propriedade  e  elegância  como  João  de  Barros,  não  largue  das 
mãos  a  Gazeia  e  o  Diário,  olhe  que  vae  perdido.  A  philosophia,  a  his- 
toria, a  critica,  a  hermenêutica,  a  politica,  a  eloquência,  e  sobretudo 
a  verdade,  estão  nos  jornaes.  Isto,  meu  amigo,  isto  ainda  é  andar  pela 
rama,  ha  coisas  muito  mais  essenciaes,  ponderáveis  e  utilíssimas.  O 
destino  das  nações,  a  liberdade  dos  povos,  a  queda  do  coUossal  impé- 
rio, lyrannico  e  oppressor,  alli  estão  marcados,  descriptos,  assignala- 
df  s  em  seus  impreteriveis  períodos,  e  sobretudo  eu  alli  admiro  a 
sciencia  symbolica:  parece  que  viajaram  no  Egypto,  que  foram  inicia- 
dos pelos  sacerdotes  cophtas  nos  mysterios  e  hierogliphicos  de  Isis, 
alli  está  tudol  A  consolação  das  nações  oppressas  alli  está;  alli  está  o 
termo  das  suas  esperanças  muitas  vezes  falliveis  e  fallidas;  porque  o 
implacável  Conciso,  como  rival  pertinacíssimo,  faz  pregar  uma  mentira 
quando  se  tinha  feito  uma  promessa!  —  Que  mysterio,  meu  amigo f  Que 
Bandarrices  supérfluas  I  Eis  o  momento  da  inspiração  do  delirio  extá- 
tico 1 

No  alto  Aragão 
Manobra  o  Durão; 
O  Empecinado 
Anda  arrenegado 
No  baixo  Aragão : 
Acode  depressa 
Suchet  mandrião  I 

E  vae  senão  quando  toma-se  Valência  I  Ah  Conciso,  Conciso,  tu 

CARTAS.  18 


274  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

é  que  me  enganaste!  Por  amor  de  ti  flquei  com  um  palmo  de  bocca 
aberta,  e  não  tenho  outro  remédio  mais  que  encampar-te  uma  men- 
tira!... Vede,  meu  amigo,  o  que  acabo  de  dizer,  e  como  me  transporta 
a  leitura  do  resuscitado,  que  parece  que  me  assento  na  tripode  de  Del- 
phos,  que  entro  na  cova  de  Trophonio,  que  me  alapardo  na  concavidade 
de  um  carvalho  de  Dodona. 

Nós  os  homens  de  vista  curta,  e  que  não  somos  periodiquistas, 
e  a  quem  a  madrasta  natureza  não  quiz  dotar  de  talentos  tão  delga- 
dos e  subtis  que  podessemos  com  elles  armar  um  jornal,  ou  uma  pa- 
tifaria como  o  Correio  Brasiliense,  e  fallarmos  e  calumniarmos  por  um 
tostão,  e  calarmo-nos  por  dois  tostões;  nós  os  homens  pequenos,  e  que 
apenas  poderemos  chegar  com  o  entendimento  a  conservar  o  nome  do 
intrépido  Longa,  do  destemido  Caracol;  nós  que  nem  poderemos  se- 
guir com  a  imaginação,  por  tarda,  pennugenta  e  pesada,  nas  marchas 
o  próprio  Manco,  apenas  vemos  os  fados,  mas  não  nos  foi  dado  nem 
conhecer  as  suas  causas,  nem  abranger  as  suas  consequências;  para- 
mos como  pupillos,  e  se  o  mestre  nos  não  allumia  ficaremos  para  sem- 
pre atolados  nas  sombras  do  erro.  Vimos  a  rendição  da  Cidade  de  Ro- 
drigo; para  nós  ficou  na  classe  de  um  facto  ordinário  da  guerra; 
sitiou-se,  formaram-se  parallelas,  abriram-se  brechas,  foram  praticá- 
veis, assaltaram-se,  entrou-se  a  praça,  rendeu-se,  ganhou-se,  entre- 
gou-se  com  inaudita  generosidade  a  seus  antigos  possuidores;  este  é 
o  facto  para  nós  os  pequenos.  Não  viajamos,  fomos  tão  asnos  qae  toda 
a  vida  levamos  no  estudo  ioulilissimo  da  historia,  da  philosophia  e 
das  boas  artes.  Cosidos,  pegados  e  grudados  em  uma  banca,  na  solta 
e  ligada  oração  fizemos  algumas  coisas  que  geito  têm;  assim  perdemos 
o  nosso  tempo,  quando  para  sermos  sábios  uma  só  coisa  era  precisa 
e  uma  só  coisa  bastava: — O  Monitor  chimica  e  passear. — Emfim  não 
nascemos  para  voar  sobre  as  azas  do  Diário,  e  assim  ficámos,  e  por 
isto  é  para  nós  a  rendição  da  Cidade  de  Rodrigo  um  acontecimento  não 
extraordinário,  mas  ordinárias  vicissitudes  da  guerra.  Mas  um  jorna- 
lista, um  jornalista!  Que  é  mais  do  que  dizia  o  marujo  a  Architas  na 
Ode  de  Horácio: — Que  corre  o  polo  com  a  mente,  que  conta  a  terra  e 
o  mar,  e  a  areia  que  não  tem  numero. — Um  jornalista  com  este  fado 
da  rendição,  pega  na  Europa  toda,  põe-na  no  collo,  e  começa  a  olhar 
para  ella  de  cabo  a  rabo.  Considera  o  vasto  império  do  ladrão,  os  rei- 
nos furtados  de  que  se  compõe,  ou  compagina  e  diz  muito  serio:  — 
Ora  o  grão-Cão  perdeu  tudo  com  a  rendição  da  Cidade  de  Rodrigo. — 
Isto  seria  assim,  mas  tinha  sua  dureza  fazel-o  engulir  assim  aos  piís- 
simos leitores.  Tu  só,  oh  sciencia  periodiqueira,  tu  só  podias  inventar 


í 


CARTA  DO  DR.  MANUEL  MENDES  FOGAÇA  275 

um  symbolo  qae  fizesse  conhecer  aos  homens  obstupefactos  o  seu 
grande  achado.  Gonfesso-vos,  meu  amigo,  que  nunca  admirei  tanto 
uma  lembrança  tão  profunda  e  me  desgostei  tanto  de  mimi  Com  a 
argilla  de  Mismia,  oh  conto  dos  contos!  tu  serás  sempre  contado!  Com 
a  argilla  de  Sevennes  se  fez  para  o  ladrão  um  famoso  apparelho  de 
chá;  a  porcellana  do  Japão  eram  panellas  da  Panasqueira  á  sua  vista, 
e  a  obra  e  o  feitio  ainda  sobrepujava  á  matéria;  a  pintura  excedia  á 
matéria  e  feitio,  os  desenhos  eram  de  Raphael  resascitado;  no  bule  es- 
tava pintada  a  batalha  Marenga;  na  manteigueira  a  batalha  de  Wagram; 
no  assucareiro  a  de  Eylaii;  na  leiteira  a  de  Jena;  e  na  grande  tigella 
de  lavar  a  de  Âusterlitz;  nas  chicaras  e  nos  pires  estavam  as  campa- 
nhas de  Itália,  a  empalmação  de  Bayona  e  a  incorporação  da  Hollanda; 
os  reisinhos  do  Rhin,  a  nesga  do  Piemonte,  a  ladroeira  da  Etruria,  o 
roubo  de  Veneza,  o  escandalosíssimo  latrocínio  da  Romania,  a  intrusão 
de  Nápoles,  as  maquias  de  Valais,  o  trambolinho  de  Génova,  a  politica 
da  Prússia,  o  serventuário  da  Suécia,  emfim  todas  as  peças  do  mon- 
struoso edifício  da  lyrannia,  e  todos  os  espeques  d'aquelle  collossal 
phantasnia.  Ei  ara  já  distribuídas  as  chávenas,  o  pérola  recendia,  e  o 
perfume  chinez  toldava  a  dourada  abobada  do  pavilhão  de  Flora;  só  se 
dislri!)uia  com  cautela  o  assucar,  por  ter  sido  o  anno  escasso  d'essa 
colheita,  e  ter  dado  o  peco  nas  beterrabas  no  raomeulo  da  destillação. 
A  longos  sorvos  se  levava  o  anti-somnifero  elixir,  e  ia  quasi  vasando 
a  sua  envernizada  malaga  o  empanturrado  ladrão;  n'este  comenos  che- 
gam Manuel  Berthier  e  António  Xivier  Gambaceres,  e  dizem: — Senhor 
meu  amo,  aqui  está  de  oflicio  a  rendição  da  Gidade  de  Rodrigo!  —Pala- 
vras não  eram  ditas,  como  se  aquillo  fosse  saúde  de  toast,  já  quando  nin- 
guém sabe  de  que  freguezia  é,  cahiram  as  chicaras  no  meio  do  chão, 
esmigalhou-se  o  apparelho,  porque  não  houve  alli  mãos  de  aranha  que 
se  podessem  segurar  a  essas  moitas.  Acabou-se,  meu  amigo,  a  histo- 
ria toda  do  pavilhão  de  Flora,  das  chicaras  pintadas,  e  aqui  também  eu 
não  acabara  de  abrir  a  bocca,  e  se  tivesse  um  páo  na  mão  lambem  o 
deixava  cahir  nas  costas  de  alguém. 

Vós  sois  curioso,  e  desejareis  saber  aonde  se  encaminha,  e  que 
queira  dizer  esta  obscuríssima  allegoria.  Ora  crede  que  se  o  auctor, 
quem  quer  que  seja,  porque  é  anonymo,  a~não  deixara  explicada,  por 
mais  que  os  Saumaisses  futuros  se  matassem  em  commentarios,  e  suas- 
sem todos  os  Brumanos,  todos  os  Douzas,  todos  os  Lambinos,  todos  os 
Turnebos  do  mundo,  nunca  atinariam  com  o  genuino  sentido  d'esta  fa- 
tal caqueirada,  vista  e  acontecida  no  pavilhão,  ou  no  salão  de  Flora. 
Quer  dizer,  meu  amigo,  diz  o  periódico,  quer  dizer  que  com  a  rendi- 


276  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 

çõo  da  Cidade  de  Rodrigo  cahiu  todo  o  fatal  império  dn  ladrão  Corso; 
que  a  rendição  fora  a  pedra  que  buscou  os  pés  de  barro  do  grande 
collosso  que  viu  Nabuco;  que  tantas  victorias  ou  alcançadas  ou  com- 
pradas; que  tantos  reinos  ou  entregados  ou  roubados;  que  tantas  pro- 
vincias  sorvidas  na  França;  que  tantos  thronos  ou  captivos  ou  vilipen- 
diados; que  tão  férreo  poder  esmagador  de  tantas  cabeças,  que  a  pre- 
potência absoluta  de  Bonaparte;  que  os  enxames  de  soldados  com  que 
elle  enche  e  suja  a  Europa;  que  tantas  fortalezas  occupadas  e  guarne- 
cidas, tantos  procônsules  sanguinários  espalhados  pelo  vasto  domínio 
do  monstro;  tão  severas,  tão  barbaras,  Ião  desconfiadas  cautelas  do 
policia  com  que  elle  especa  e  escora  seu  infernalissimo  throno,  que 
sua  luciferina  malícia  e  perfídia,  sua  insaciável  ambição,  sua  implacá- 
vel vingança,  finalmente  que  todas  as  garras  e  todas  as  presas  d'este 
sanguinário  tigre,  tudo  isto  junto,  em  uma  palavra,  todos  os  oppres- 
sores  resultados  da  fatal  Revolução  franceza  se  acabaram,  se  extingui- 
ram, se  aniquilaram  com  a  única  rendição  da  Cidade  de  Rodrigo,  pe- 
quena praça  da  Hespanha  occidental,  escondida  na  fronteira  montuosa 
da  Lusitânia.  Sen  baque  não  somente  soou  de  uma  extremidade  á  ou- 
tra da  Europa,  mas  faz  rebelar  a  Hollanda,  libertar-se  a  Hespanha,  co- 
nhecer-se  a  Áustria,  revolvcr-se  a  Rússia,  armar-se  a  Itália,  organi- 
sar-se  a  Prússia,  restabelecer-se  a  Confederação  Germânica,  consoli- 
dar-se  a  Suécia,  decidir-se  a  Dinamarca,  e  inulilisarem-se  tantas  bata- 
lhas e  as  conquistas  ou  rapinas  de  vinte  e  dois  annos  continues.  A 
rendição  da  Cidade  de  Rodrigo  desperta  do  lethargo  a  inteira  França, 
e  faz-lhe  sacudir  o  jugo  que  apathica  ou  verdadeiramente  estúpida  tem 
arrastado.  Tudo  isto  quer  dizer  o  repentino  esmigalhamento  do  appa- 
relho  de  Napoleão,  á  única  voz  da  re?idição  da  Cidade  de  Rodrigo.  Ora 
isto,  á  primeira  vista,  e  a  entendimentos  curtos,  grossos  e  obtusos  como 
o  meu,  parece  estar  judiando  cora  o  género  humano!  Mas  não  é  assim, 
meu  amigo!  Oh  profunda  sciencia  periodiqueira!  Tu  não  só  o  dizes, 
tu  o  comprehendes,  e  tu  só  vês  ao  longe  tão  remetas  e  tão  disparata- 
das consequências!  Nós  não  temos  viajado,  meu  amigo,  e  de  opera- 
ções chimicas  apenas  conhecemos  as  da  nossa  panella  na  cozinha,  e 
nos  dias  mais  memoráveis  lá  nos  estendemos  ao  extracto  da  perdiz  e 
do  presunto;  fermentação  de  líquidos  conhecemos  a  dos  toneis,  cujo 
gaz  nos  levanta  mais  que  o  voador  Lunardi.  Temos  uma  cabeça  tão 
mofina  que,  ainda  que  se  não  perca  nos  mais  profundos  labyrinthos  da 
metaphysica  de  Locke,  não  pode  conservar  os  nomes  dos  guerrilheiros; 
mezinheiros  de  frouxidões  e  debilidades  não  podemos  ser,  porque  isso 
é  obra  de  empíricos  e  de  charlatães;  emfim  não  somos  dos  mimosos 


CARTA  DO  DR  MANUEL  MENDES  FOGAÇA  277 

filhos  da  sciencia,  e  ainda  que  nos  ligamos  ambos  para  investigar,  quem 
nos  ha  de  mandar  as  Cartas  de  Alexandre  de  Gusmão?  e  que  corre- 
spondência temos  nós  para  Caracas  e  Venezuela?  No  mundo  não  ha  se- 
não dois  caminhos  para  a  fama,  para  a  honra  e  para  a  immortaUdade; 
ou  pedreiro  ou  periodiquista;  para  um  quer-se  pouca  vergonha,  para 
o  outro  muita  sciencia,  muita  chimica,  muitas  viagens,  e  um  Concisa 
que  não  minta,  um  Monitor  qué  nunca  engane;  eu  estou  velho  para  tudo 
e  nada  direi  até  que  venham  os  gloriosos  resultados  que  esperamos  do 
sul  da  Hespanha.  Pedi  a  Deus  que  nunca  venha  e  nunca  chegue  o 
grande  exercito  da  fome,  porque  primeiro  hão  de  morrer  os  donos  das 
casas  que  os  hospedes,  e  eu  creio  que  se  não  pode  descarregar  mais 
acerbo  e  profundo  golpe  no  coração  dos  consternados  hespanhoes  que 
annunciar-se-lhes  que  os  malvados  marenguistas  só  despejarão  seu  ty- 
rannisado  reino  quando  a  imperiosa  fome  os  obrigar.  Isto  é  ultrajar 
aqueila  generosa  nação,  porque  é  dizer-lhe  tacitamente  que  não  tem 
forças  que  oppôr  a  seus  bárbaros  aggressores,  que  os  recursos  estão 
exhauridos,  que  os  exércitos  são  nuUos,  e  que  esta  fome  que  obrigará 
a  retirar  os  bárbaros  para  além  dos  Pyreneos  deixará  primeiro  des- 
povoada e  erma  a  Hespanha,  que  o  ultimo  boccado  de  pão  que  houver 
ha  de  existir  na  mão  de  um  francez  e  não  na  mão  de  um  castelhano, 
porque  se  os  castelhanos  não  têm  forças  para  os  combater  no  campo, 
também  não  terão  forças  para  lhes  vedar  a  rapina  que  de  suas  colhei- 
tas hajam  de  fazer  os  francezes  para  se  sustentarem  a  si.  Não  posso 
com  socego  ouvir  e  lêr  estes  destemperos.  E  que  paciência,  meu  amigo, 
é  precisa  para  vêr  um  homem,  em  longas  paginas,  prophetisando  a  re- 
tirada dos  francezes  de  Hespanha,  e  depois  de  estarmos  todos,  Tyrios 
e  Teucros,  pendentes  por  largas  horas  da  boccarra  do  Enéas  contador, 
sahir-se  —post  vários  casiis,  post  tot  discrimina  rerum  —  sahir-se  com  o 
grande  e  porlentosissimo  achado,  que  a  época  da  retirada  dos  maren- 
guistas será  quando  não  tenham  que  comer  1  Que  tal  está  a  consolação 
para  o  pae  da  creança?  Qual  é  o  ladrão  que  se  demora  muito  em  uma 
casa  onde  não  acha  nem  uma  bilha  de  agua?  E  gasta  um  homem  does- 
tes longos  rodeios  e  longos  cálculos  para  chegar  a  este  resultado?. . . 
Hespanhoes,  animo,  que  isto  não  é  nadai  Os  francezes  hão  de  estar 
no  vosso  território  emquanto  acharem  que  comer I  Ora  seja  pelo  amor 
de  Deus!  É  verdade  que  esta  lembrança  de  matar  os  francezes  á  fome 
não  é  nova;  não  sei  (ou  sei)  em  qual  d'elles  li  ha  muito  que  os  hes- 
panhoes deviam  não  cuidar  em  lavouras,  e  só  esconder  batatas  em  co- 
vas pelos  montes;  embreuharem-se  n'esles  mesmos  montes,  e  quando 
os  apertasse  a  fome  comerem  batatas.  Que  batatada  seria  precisa  para 


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sustentar  mezes,  e  talvez  annos,  uma  inteira  cidade  refugiada  em  ura 
monte,  onde  os  francezes  não  podessem  ir?  Mas  não  é  só  este  o  incon- 
veniente que  soíTreria  em  sua  execução  o  plano  batatal.  Lembra-me 
outro.  Vós  sabeis  que  as  batatas  são  inquietíssimas,  e  duas  horas  que 
se  demorassem  na  cova  grelavam  todas,  e  lá  se  ia  o  plano,  as  bata- 
tas e  os  batativoros  todos  que  existissem  na  montanha,  de  dia  ao  sol 
e  de  noite  ao  relento.  Eia  pois,  meu  amigo,  paciência;  o  diluvio  das 
gazetas  é  universal,  já  em  1646  as  havia  em  Lisboa,  e  as  que  desde  en- 
tão houve  até  1762  (anno  do  meu  illustre  nascimento)  eram  cheias 
d'aquella  sisudeza,  simplicidade  nobre  e  pura  linguagem  portugueza 
que  tiveram  nossos  bons  avós.  Morreu  José  Freire  Mascarenhas  Mon- 
tarroyo,  morreram  em  Portugal  os  periódicos  dignos  de  Portugal;  e 
dizem  dois  periodiquistas  em  Inglaterra  que  a  Gazeta  de  Lisboa  é  a 
peor  do  mundo!  Pois  sabei  que  um  hortelão  ata  melhor  um  molho 
de  grelos  que  elles  a  mixordia  do  seu  jornal. 

Talvez  me  digaes,  e  me  pergunteis,  se  eu  não  temo  crear-me  ini- 
migos? Quem,  eu?  vós  não  me  conheceis!  Sabei  que  isso  é  para  mim 
um  sobrehumano  prazer.  Quando  eu  disse  que  tinha  morrido  el-rei  D. 
Sebastião,  mais  de  cincoenta  escriptores  (quarenta  e  nove  foram  ecrle- 
siasticos),  para  me  provarem  que  elle  estava  vivo,  fizeram  todos  unifor- 
memente este  grande  e  invencível  enthymema: — Vossê  é  um  ladrão, 
um  perjuro,  um  falsario,  um  delator,  um  asno,  um  endemoninhado, 
um  faccioso,  um  tolo:  logo  está  vivo,  e  ha  de  vir  d'aqui  a  três  ou  qua- 
tro tesouras  mais,  el-rei  D.  Sebastião. . .  E  então,  não  são  para  dese- 
jar inimigos  d'estes?  Depois  d'isso,  meu  rico  amigo,  um  a  um  são  taes 
os  taes  inimigos,  que  cada  vez  se  recolhe  mais  tarde  o 


29  de  Março  de  1812. 


Vosso  cordeal  amigo 
Manuel  Mendes  Fogaça. 


P.  S. 


Vou  fazer- vos  mais  comprida  esta  carta  com  um  Post-scriptnm, 
mas  como  a  viva  roda  dos  periódicos  não  pára,  e  são  semelhantes  ás 
sezões,  uns  todos  os  dias,  outros  com  alguma  intermitlencia,  outros  com 
intervallos  mais  longos,  como  pertinacíssimas  quartans,  eu  os  leio,  e 
ainda  que  abata  o  entendimento  a  seus  pés,  pelo  que  pertence  á  hu- 
milde 6  cega  crença  que  se  lhes  deve  dar,  como  oráculos  da  verdade 
humana,  não  deixo  comtudo  de  commetter  um  enorme  e  horrorosis- 


CARTA  DO  1;R.    MANUEL  ME.NDKS  FOGAÇA  279 

simo  attentado,  que  é  fazer  algumas  reflexões  sobre  os  artigos  da 
mesma  crença  a  que  nos  obrigam;  conheço  que  é  um  escandaloso 
atrevimento,  porque  á  vista  de  um  periódico  não  fica  no  miserável 
mortal  outra  funcção  mais  que  lér,  acredilar  e  eramudecer  de  re- 
speito e  temor...  As  nossas  intellectuaes  faculdades  devem  ficar  pa- 
^•alyticas,  e  seria  mais  desculpável  duvidar  de  uma  verdade  geomé- 
trica ou  arithmetica  que  de  um  annuncio  gazetal;  eu  ultrajarei  me- 
nos a  razão  se  disser  que  dois  e  dois  não  são  quatro,  do  que  se 
dis?er  que  a  partida  do  Amor  não  se  retirara  por  lhe  faltar  o  car- 
tuchame,  mas  sim  porque  se  lhe  introduziu  o  medo  nas  tripas.  Ora 
pois,  meu  amigo,  eu  sou  um  criminoso,  aventurei-me  a  fazer  uma  re- 
flexão sobre  outra  reflexão  periodiquista.  Sim,  dizia  o  papel: — Porque 
razão  Blacke,  que  ha  cinco  anoos  era  coronel,  e  tem  andado  envolto 
na  guerra  desde  2  de  maio  de  1808,  chegou  a  capitão  general  (mare- 
chal) e  o  Empecinado  com  o  mesmo  tempo  de  milicia  ha  de  estar  em 
brigadeiro? — í^u  não  podia  resolver  esta  questão  senão  depois  dever 
resolvida  outra  questão,  que  vera  a  ser:  Entre  quaes  dos  dois  pontos 
ha  maior  distancia?  de  coronel  a  marechal,  ou  de  carvoeiro  das  ser- 
ias de  Cuenca  a  brigadeiro  dos  reaes  exércitos?  Meu  amigo,  tal  foi  o 
meu  atrevimento,  e  não  sei  o  que  será  de  mim  pelo  haver  dito.  Pare- 
ce-me  que  ha  mais  alguma  distancia  de  carvoeiro  a  brigadeiro  que  de 
coronel  a  marechal:  logo  o  Empecinado  tem  corrido  maior  espaço  em 
menos  tempo,  e  a  pátria  premiou  e  promoveu  mais  depressa  o  Empe- 
cinado que  o  Blacke;  faz  mais  quem  de  um  carvoeiro  faz  um  briga- 
deiro, que  quem  de  um  coronel  faz  um  capitão  general.  É  verdade, 
meu  amigo,  que  eu  poderia  resolver  a  questão  por  outro  caminho  ou 
atalho  mais  breve;  e  concedendo  que  fora  muito  maior  o  adiantamento 
de  Blacke  que  o  do  Empecinado,  e  concedendo  a  este  maior  somma 
de  serviços,  dizer: — Senhor,  queira  o  senhor  lembrar-se  de  que  o  Em- 
pecinado tinha  um  oíTicio  só  e  o  Blacke  tinha  dois;  o  Empecinado  era 
carvoeiro,  mas  não  era  pedreiro,  o  Blacke  era  coronel  e  era  pedreiro. 
Olhe,  senhor,  aqui  tem  a  chave  de  todos  os  mysterios  do  século.  Por- 
que se  abriu  a  fortaleza  de  Ulm,  estando  lá  dentro  vinte  e  cinco  mil 
allemães,  com  boa  côdea  para  dois  annos,  e  de  fora  doze  mil  france- 
zes  sem  pão  e  sem  artilheria?  Porque  Mack,  sendo  general,  era  tam- 
bém pedreiro.  Porque  vencia  Hoffer,  e  contra  os  interesses  reaes  de 
um  grande  império  é  teimoso  Romanzow?  Porque  um  não  era,  e  o 
outro  é  pedreiro.  E  porque  razão  innumeraveis  velhacos  e  desavergo- 
nhados inimigos  jurados  da  nossa  pátria,  que  eram  descobertamente 
apaixonados  sequazes  e  agentes  dos  francezes,  viraram  a  casaca,  por- 


280  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DK  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

que  virara  o  caldo  entornado,  e  declamam,  mas  com  riso  pardo,  con- 
tra os  mesmos  francezes,  promptos  á  primeira  das  duas?  Porque  não 
acaba  de  levar  o  diabo  de  uma  vez  a  raça  infame  dos  pedreiros,  que 
não  são  os  das  obras  publicas,  são  os  das  obras  occultas.  Ora  basta, 
meu  amigo:  não  se  me  diga  o  que  me  disse  já  um  pedreiro  achanfa- 
nado:  «Que  as  minhas  palavras  nunca  chegaram  a  entrar  por  umas  sa- 
las excellentesi!. . .» 

P.  S.  íá." 

Está  para  sahir  impressa  uma  obra  badala  contra  o  triste  poema 
Gama;  esperae  com  alvoroço  esta  obra,  e  com  dois  alvoroços  a  sua 
resposta. 


o  BOI  NO  CHÃO 

Obra  extraliida  dos  Manuscriptos  do  defuncto 

ENXOTA-CÃES   DA   SÉ   DE   LISBOA 
Dada  á  luz  por  seu  sobrinho 


ADVERTÊNCIA  DO  EDITOR 

Meu  lio,  que  Deus  haja,  proxinao  a  espichar  o  rabo,  e  a  encostar 
para  sempre  aquelle  alto  bordão  que  no  porlico  da  nossa  santa  Sé 
era  o  terror  dos  cães,  porque  bordoada  sua  nunca  mais  teve  remédio, 
chamando-rae  junto  á  sua  cabeceira,  me  disse: 

«André,  é  verdade  que  tu  tens  a  supervivencia  do  meu  honrado 
e  tremendo  officio,  e  que  aquelle  bordão  de  que  só  a  raorle  me  podia 
despojar  vae  ser  depositado  em  tuas  mãos;  é  preciso  que  eu  te  deixe 
as  minhas  advertências  e  conselhos,  único  legado  e  única  herança  de 
que  eu  posso  dispor  e  tu  receber:  dinheiro  do  meu  ordenado  e  emo- 
lumentos tu  bem  sabes  onde  fica  depositado,  mas  sem  reversão  a 
meus  legítimos  herdeiros,  porque  os  taberneiros,  nem  lembrados  da 
muita  agua  que  deitaram  no  vinho  com  prejuízo  das  partes,  nunca  se 
lembraram  de  restituições;  deixo  aquelle  páo,  e  o  jus  a  elle,  por  força 
do  alvará  que  confirma  a  supervivencia;  e  como  tu  sabes  latim,  por- 
que o  tens  ouvido  ensinar,  e  bem,  aos  meninos  do  coro,  sempre  te 
lembro  um  verso  de  Virgílio,  poeta  muitos  furos  abaixo  do  nosso  di- 
vino Camões: 

Et  Pater  Eneas  et  Avunculus  excitei  Hector. 

E  para  morrer  sem  escrúpulos,  sempre  t'o  digo  em  portuguez: 

Do  tio  Enxota  exeite-te  a  lembrança 
Fazer  nos  cães  horrífica  matança. 

Esta  é  a  minha  primeira  advertência,  que  baldada  é,  porque  te 


282  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACKDO 

conheço  o  genio,  e  sei  que  dirá  a  posteridade: — O  André  sae  ao  tio. — 
Não  és  capaz  de  contemplação  com  cães,  sejam  de  que  jerarchia  forem; 
sei  que  em  te  Geando  ao  alcance  do  páo,  sem  se  sentirem  do  lombo 
e  coxearem  de  todos  os  quatro  pés,  não  deixarão  o  adro;  ganirão  muito, 
mas  dentada  não  te  hão  de  dar,  pois  nunca  as  deram  n'este  teu  mori- 
bundo tio;  emfim,  saberás  sustentar  o  nome  Enxota,  sempre  memorá- 
vel nos  annaes  da  pancadaria,  como  se  viu  nas  ultimas  guerras  na 
derrota  dos  exércitos  das  cinco  classes.  Outro  legado,  mais  importante 
talvez,  eu  te  vou  consignar,  conforme  as  disposições  de  direito  em 
nossas  ultimas  vontades,  e  já  declarado  em  meu  testamento,  para  o 
livrar  dos  harpeos  dos  resíduos.  Vês  aquelle  caixão  velho  e  carunchoso?» 
— Vejo,  lhe  disse  eu. — «Pois  alli  estão  depositados  os  meus  manuscri- 
ptos  e  n'elles  eternisada  a  memoria  de  raortaes  lambadas,  que  eu  des- 
carreguei com  aquelle  páo,  minha  e  lua  insígnia,  e  já  conhecido  em 
cabeça  de  morgado  dos  Enxotas.  Muitos  desejarão  vêr  queimado  aquelle 
Archivo  e  Torre  do  Tombo,  e  tombos  que  levaram  muitos  cães!  É  um 
Ihesouro,  André,  é  um  thesourol  Elle  servirá  de  illustração  a  muitos 
séculos,  e  se  pode  converter  em  utilidade  tua  quando  te  escassearem 
as  mezadas  do  teu  ordenado;  nunca  vás  ao  Banco  ou  a  maltez  com  re- 
batimentos, nada  de  esfolações;  quem  tem  a  que  se  torne  não  é  pobre; 
vae  ao  caixão,  tíia  a  eito  e  a  esmo  um  dos  empilhados  manuscríptos, 
e  como  vêem  mais  quatro  olhos  que  dois  vae  sempre  com  elle  ao  Forno 
do  Tijolo,  que  se  lhe  faltarem  adubos  lá  se  lhe  porão,  e  não  só  adu- 
bos, porém  mãos  e  boa  vontade;  pois  sempre  se  julgaram  armas  in- 
vencíveis a  pá  do  Forno  e  o  páo  do  Enxota;  e  de  lá,  André,  imprensa 
com  elle,  e  com  elle  poderás  deitar  mais  uma  sardinha  nas  brazas  e 
beber  mais  um  quartilho  pela  alma  de  teu  tio. ..»  Como  fallou  em  quar- 
tilho, se  lhe  avivaram  mais  as  cores  do  rosto  já  enfiado,  tomou  um 
viso  de  alegria,  mas  foi  a  visita  da  saúde,  porque  d'alli  a  dois  momen- 
tos, sem  o  ministério  dos  médicos,  porque  então  não  teria  vivido  tanto 
tempo,  mas  nas  mãos  do  tempo  e  no  regaço  da  natureza,  deu  aquella 
alma  envinagrada  ao  creador,  com  aquella  paz  com  que  morre  o  ho- 
mem a  quem  a  consciência  diz  que  cumprira  os  seus  deveres,  e  nin- 
guém o  fez  melhor  no  exercício  e  funcções  de  Enxota. 

Como  me  apertaram  circumstancias  para  me  utilísar  da  minha  le- 
gitima, metti  a  mão  no  fatal  cofre  e  sahiu  o  manuscrípto  que  dou  á  luz 
com  o  titulo  de  Boi  no  Chão.  Não  me  compete  failar  do  seu  merecimento, 
pois  sou  parte  interessada;  o  publico  lhe  fará  justiça,  e  me  dará  os 
agradecimentos,  e  dirá: — Mal  o  haja  quem  fez  calar  o  Enxota!...  Mas 
ainda,  graças  ao  sobrinho,  gosamos  da  sua  alma  nos  seus  escriptosl 


o  BOI  NO  CHÃO 


O  Boi,  que  dava  manada 
Como  tiro  de  canhão, 
Sentindo-se  farpeado 
Deitou  outro  Boi  no  chão. 

(De  um  máo  Poeta.) 

Poucos  dias  ha  que  acabando  completas  Da  Sé,  e  com  ellas  a  mi- 
nha obrigação,  porque  ainda  que  fique  a  porta  aberta  para  a  devoção 
da  Senhora  da  Rocha  os  cães  fogem  com  a  escandalosa  bulha  que  fa- 
zem os  pobres  ao  guarda-vento,  sahi  a  dar  o  meu  passeio,  e  um  pouco 
dilatado,  porque  custa  a  achar  ermida  em  que  não  haja  misturadas  de 
vinho  novo,  e  succedeu-me  ir  pela  rua  das  Portas  de  S/*  Catharina, 
como  diz  o  novo  oval  letreiro,  mysterios  da  figura  elíptica  em  geome- 
tria, e  vi  um  ajuntamento  na  loja  de  um  livreiro,  e  me  admirou,  por 
que  não  tratavam  de  politica  em  tom  serio,  soltavam  gargalhadas,  e 
ainda  que  ha  coisas  em  polilica  que  as  mereça,  não  é  este  o  costume 
dos  leitores  de  periódicos:  cheguei-me  mais  de  perto,  e  vi  que  um  dos 
sessores  lia  um  folhetote,  e  os  outros  escutavam:  fizeram  pausa  geral 
quando  me  viram,  porque  a  preseoça  do  Enxota  sempre  é  de  algum 
peso  no  meio  das  mataduras  dos  congressos  do  Chiado;  comtudo,  pela 
matéria  do  escripto,  julgada  da  minha  competência,  me  disseram  que 
se  riam  do  maior  destampatório  que  tinha  apparecido  em  letra  redonda 
desde  que  as  imprensas  trabalharam  e  deixaram  de  trabalhar;  pe- 
di-lhes  que  proseguissem  na  leitura,  e  tiveram  commigo  a  contempla- 
ção de  começarem — dà  capo. — Logo  o  titulo  produziu  em  mim  um 
d'aquelles  movimentos  irreflectidos  com  que  a  natureza  exprime  a 
verdade;  virei-me  para  um  canto,  cuidando  que  tinha  alli  encontrado 
o  páo  da  enxotaria.  O  dono  da  loja  me  offereceu  grátis  um  exemplar, 
porque  emfim  alguns  não  podem  deixar  de  confessar  que  tiveram  em 
mim  pae  e  mãe;  ainda  que  poderá  haver  algum  que  me  obrigue  a  ac- 
crescentar  a  esta  palavra  a  phrase — que  o  pariu!!— Recolhi-me  mais 
cedo,  porque  a  curiosidade  apertava,  e  accendendo  um  coto  d'aquellas 
propinas  que  na  egreja  já  se  não  dão,  com  impaciência  e  sofreguidão 
me  assentei,  e  com  um  palmo  de  bocca  aberta  de  espanto  li: 


284  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

«Resultados  dignos  de  toda  a  admiração,  condignos  da 
maior  contemplação,  talvez  nunca  vistos  e  observados  na  his- 
toria da  magistratura  portugueza,  provenientes  de  horrorosas 
conspirações  e  das  maiores  cabalas,  prevaricações  e  attenta- 
dos  a  que  estão  sujeitas  todas  ou  quasi  todas  as  auctoridades 
rectas,  incorruptíveis  e  imparciaes,  qae  podem  dizer  com  Ho- 
rácio— Impavidum  feritnt  ruinae.^ 

Eu  disse  commigo,  benzendo-me:  — Ou  isto  é  titulo  para  alguma 
edição  do  Carlos  Magno  accrescenlado  com  exposições  e  notas,  ou  en- 
tão é  a  historia  da  perseguição  que  fez  um  ministro  de  um  bairro  a 
um  homem  honrado,  que  mora  aqui  na  rua  das  Cruzes,  ao  pé  de  S. 
João  da  Praça,  na  qual  o  dilo  ministro  inventou  e  forjou  mais  patra- 
nhas, mentiras,  tramóias,  calumnias  e  testemunhos  falsos,  do  que  ca- 
raminholas  e  sonhos  se  acham  em  toda  a  historia  de  Carlos  Magno  e 
dos  seus  Doze  Pares;  e  pelos  quaes  testemunhos  falsos  o  dito  magis- 
trado merecia  que  lhe  fizessem  o  que  os  turcos  queriam  fazer  a  Gui 
de  Borgonha,  se  os  onze  Pares  não  lhe  acudissem,  como  consta  da 
mesma  historial 

Virei  a  pagina  e  fiquei-me  no  meu  pensamento;  e  com  que  me 
enganarei  eu,  conhecendo  a  canzoada  toda?  Porque  o  dito  ministro, 
querendo  em  seu  prologo  fallar  dos  outros,  se  retratou  a  si  mesmo  ao 
natural,  dizendo  em  portuguez  bastardo  e  com  nova  syntaxe: 

«Os  calumniadores  e  prevaricadores  inficionam  e  pertur- 
bam os  estados,  e  as  nações  mais  cultas  (que  parvoíce  I)  mere- 
cem ura  ódio  eterno,  assim  como  todo  o  louvor  e  applauso 
aqnelle  cavalleiro  e  artista  intrépido  e  impávido,  que  no  meio 
do  combate  e  da  victoria  entrega  o  rojão  ao  capinha  (isto  de- 
via ser  depois)  e  á  gente  de  Guiné  o  mrnigo.  —  Proaebuit  hiimi 
boi. — » 

À  vista  d'isto  o  empeçado  Couto,  o  enigmático  Magriço,  o  obscuro 
Pato  e  o  Diário  do  Governo  eram  a  mesma  clareza  e  perspicuidade, 
primeiras  virtudes  do  estylol  Pois  o  tremendo  titulo  ou  arrepiador 
frontispício  vem  desaguar  em  um  prologo  com  a  mais  insulsa  de  to- 
das as  chocarrices,  concluindo  e  rematando  com  o  antigo  Favasecca,  ou 
Talaia,  a  tourear,  que  no  meio  do  combate  dá  o  rojão  ao  capinha,  e 
diz  aos  pretos  que  acabem  o  combate  com  as  devidas  cortezias  ao  me- 
ritíssimo  dos  Romulares;  ficando  com  o  titulo  do  boi  de  Virgílio  e  jul- 


o  BOI  NO  CHÃO  286 

gar-se  vencedor  de  um  inimigo  casado,  e  chamar-lhe  boi,  não  é  muita 
corlezia. 

Assentei  de  levar  ao  fim  este  impávido  de  Horácio,  cujas  idéas 
escriptas  são  lambem  do  mesmo  Horácio: 

Como  vãos  sonhos  d'um  febricitante. 

As  cabalas,  as  horrorosas  conspirações,  os  horrorosos  attentados, 
que  o  tal  Juiz  commetleu  contra  o  honrado  e  innocenle  vizinho  meu 
José  Luiz  da  Silva,  destroem-se,  e  se  verifica  o  crime  de  moeda  falsa, 
que  o  preclarissimo  ministro  lhe  empurrou,  por  se  lhe  acharem  entre 
alguns  centenares  de  contos  de  réis  em  papel  dois  bilhetes  de  meia 
moeda  falsos,  o  que  mil  vezes  se  acha  em  só  dois  bilhetes  de  meia 
moeda,  sem  que  o  miserável  a  quem  os  empurraram  faça  moeda  falsa, 
com  um  er.gano  que  houve  numa  decima  de  demanda  de  calote  em 
casa  de  pasto. 

Ora  eu,  que  desejo  que  se  embacem  e  se  empanziuem  com  calo- 
tes mestres  todos  os  tasqueiros  das  casas  de  pasto,  porque  não  ha  um 
só  que  não  embuta  gato  por  lebre,  cu  burro  morto  por  vitella,  quiz 
profundar  esla  matéria  tão  bem  qualificada  na  obra  do  ministro  Fur- 
tado, ou  bifado,  com  o  titulo  de  horrorosa  conspiração!  pois  diz  elle 
que  lhe  imputaram  o  crime  da  embofia  ao  tasqueiro  para  se  vingarem 
dos  males  que  elle  causou  a  um.  terceiro  com  a  imputação  de  moeda 
falsa,  sem  elle  ser  tasqueiro,  nem  arrematante  da  decima. 

Um  tasqueiro,  assim  como  a  todos  logra  na  comid;i,  e  haja  vista 
a  qualquer  d'esses  Cambaios,  não  quer  que  nenhum  o  logre  na  paga; 
e  quando  vêem  que  esta  se  demora,  nenhum  é  tão  asno  que  deixe  cres- 
cer muito  a  divida  sem  que  no  mesmo  instante  levante  a  cesta,  enrole 
a  manta,  peça  a  chave  do  quarto  e  ponha  a  andar  o  pechincheiro;  el- 
les  descobrem  bem  na  cara  quem  tenha  lombrigas;  ora  demos  por  de- 
monstrado um  postulado.  Os  que  caloteam  os  estalajadeiros,  tasquei- 
ros, hospedeiros,  ele,  sempre  mudam  o  nome,  pelo  que  pode  succe- 
der,  e  até  o  mudam  no  passaporte  quando  vêm  de  fora.  Podia  ir  o 
caloteiro  em  questão  aboletar-se  á  estalagem  da  Ribeira  velha,  e  dando 
o  seu  nome  lembrar-se  de  dizer,  eu  sou,  por  exemplo,  José  Ignacio; 
abala  o  Furtante  da  estalagem  sem  se  despedir  do  dono  da  casa;  bus- 
ca-se  este  homem,  e  o  diabo,  que  já  carregou  uma  tranca,  vae  depa- 
rar com  um  d'este  nome,  que  foi  ministro  de  um  bairro;  este  nega; 
convence-se  pela  negação,  cae-lhe  a  dizima  em  cima;  o  contractador  o 
que  quer  ê  a  dizima;  torna  o  diabo  a  carregar  outra  tranca,  e  este  con- 


286  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

tractador  é  cunhado  de  José  Luiz  da  Silva.  Que  tem  J.  L.  da  S.  com 
as  dizimas  que  o  cunhado  cobra  por  virtude  da  arrematação?  E  que 
importa  ao  contractador  que  o  amigo  caloteante  da  estalagem  se  chame 
Manuel  ou  Gonçalo?  Mas  o  ministro  diz: — Gomo  é  cunhado  de  J.  L. 
da  S.,  por  este  foi  persuadido  que  pregasse  aquella  surra  ao  ministro. 
Pergunto,  e  pergunto  como  Enxota,  a  quem  até  os  cães  importam: 
quem  condemna  os  réos  negativos,  quem  os  sentenceia  a  pagarem  por 
isto  a  dizima,  são  os  ministros  incorruptíveis  ou  é  o  contratactador  das 
sizas?  Vem  cá,  homem,  ou  animal  deitado  no  chão,  humi  boi:  porque 
te  queixas  do  contractador,  que  cobra  a  dizima,  depois  de  condemnado 
o  réo  meliante,  e  não  te  queixas  dos  ministros  que  o  condemnaram? 
Não  me  queixo  (diz  o  boi  no  chão),  não  me  queixo  dos  ministros,  por- 
que estes  não  são  cunhados  de  J.  L.  da  S.,  que  me  aqueceu  deveras, 
por  amor  da  diligencia  da  moeda  falsa,  a  que  eu  não  fui )- queixo-me 
do  contractador  da  siza,  porque  tem  parentesco  com  elle.  Logo  me  não 
passou  pela  malha  vér  eu  tão  torta  a  balança,  que  o  boi  no  chão  pinta 
no  seu  folhetote,  como  todos  podem  vér,  e  admirar  o  fiel  tombado. 

Que  diabo  de  vingança  era  esta  do  pagamento  de  uma  dizima  de 
sentença  de  calote,  por  alguma  tigella  de  feijões  comidos  n'uma  esta- 
lagem, que  contrabalançasse  as  enormes  perdas,  os  incalculáveis  pre- 
juízos no  commercio,  e  mais  que  tudo  no  credito  e  reputação  de  um 
dos  conlractadores  do  Tabaco,  por  cujas  mãos  passam  milhões,  infa- 
mado publicamente,  preso  e  atormentado,  porque  se  acharam  dois  bi- 
lhetes de  meia  moeda  em  sua  casa  e  quatro  patacões  castelhanos  do 
mesmo  jaez?  Se  ao  Erário  em  pagamentos  vae  também  ter  papel  falso, 
porque  não  apparecerá  também  em  uma  casa  de  grosso  commercio? 
Segue-se  que  o  Erário  faz  papel,  porque  lá  apparece  algum  bilhete? 
Queriam  que  J.  L.  da  S.  pregasse  os  patacões  no  balcão,  como  se  faz 
no  açougue  ou  na  taberna? 

Vamos  ao  que  o  ministro  chama — Triumpho  da  victoria. — O  Du- 
que da  Victoria  sei  eu  quem  fora,  mas  triumpho  da  victoria  nunca 
cuidei  que  tão  calva  parvoíce  se  escrevesse  em  portuguez,  e  pela  mão 
e  penna  de  um  magistrado  biqueiro,  porque  estava  persuadido  que 
um  homem  que  veste  uma  toga,  e  põe  por  cima  uma  capa,  era  um  ho- 
mem não  só  que  soubesse  fazer  o  seu  nome,  mas  que  conhecesse  que 
de  inimigos  e  contrários  se  pode  alcançar  um  triumpho;  mas  alcançar 
um  triumpho  de  uma  victoria,  esta  só  o  antigo  Gouto  ou  o  moderno 
togado.  Dos  senhores  becas  alguns  provam  bem  mall  Não  se  diga  que 
o  Enxota  é  injusto  e  que  prolonga  o  páo,  tanto  contra  um  cão  cadel- 
leiro  como  contra  um  pacifico  e  modesto.  Que  coisa  mais  própria  de 


o  BOI  NO  CHÃO  287 

um  magistrado  que  fazer  bem  uma  petição,  pelas  muitas  que  despa- 
cham a  torto  e  a  direito?  Faz  este  ministro  uma  petição,  para  que  o 
douto  escrivão  Vera  Brandão  lhe  passasse  uma  certidão  da  sentença 
de  absolvição  da  dizima,  em  que  elle  ou  outro  em  seu  nome  fora  con- 
demnado  por  negar  ter  comido  sem  pagar  na  estalagem  de  João  Ma- 
nuel, que  é  a  questão  de  que  se  trata,  limitando-se  ao  contractador, 
que  pede  a  dizima  seja  de  quem  fôr,  e  o  demandado  que  a  não  quer 
pagar,  porque  não  foi  elle  o  que  comera,  que  fora  outro  que  tinha  o 
mesmo  nome,  e  se  isto  não  fora  não  iriam  pedir  a  dizima  a  este  mi- 
nistro. N'esta  demanda  de  João  Manuel  Redogoneiro  auctor,  e  Furtado 
comedor  o  réo,  não  se  trata  de  outra  coisa,  e  pede  o  ministro  ao  mi- 
nistro que  o  escrivão  lhe  passe  por  certidão  que  o  contractador  da 
dizima  é  cunhado  de  J.  L.  da  S.,  e  que  por  isso  se  lhe  pede  a  elle 
ministro  a  dizima,  só  por  lhe  fazer  uma  pirraça ! 

Querem-nos  fazer  a  todos  loucos  n'este  século  das  luzes?  Pois  o 
contractador  pede  a  dizima  por  ser  cunhado  de  J.  L.  da  Silva,  ou  pede 
a  dizima  por  ter  sido  n'ella  condemnado  o  réo  pela  sentença  do  juiz? 
Pedir  um  ministro  ao  ministro  que  mande  ao  escrivão  que  certifique 
que  os  conlractadores  são  cunhados  ou  parentes  de  J.  L.  da  Silva? 
Pois  o  escrivão  Vera  Brandão  é  o  cura  da  freguezia,  e  também  tem 
no  seu  esçriptorio  o  livro  dos  assentos  dos  baptisados  e  casamentos? 
Eis  aqui  uma  usurpação  do  poder  do  Ex."*"  Vigário  geral,  feita  pelo 
ministro,  que  manda  ao  escrivão  que  passe  certidão  de  óbitos,  casa- 
mentos, baptisados  e  enterramentos  I 

Ainda  aqui  não  pára  a  petição  do  ministro,  porque  assim  como 
um  abysmo  chama  por  outro  abysmo,  uma  parvoíce  chama  por  outra 
parvoíce.  O  Pede  da  petição  é  mais  destampado  que  a  mesma  petição! 
Já  sabemos  de  que  a  petição  trata:  vejamos  o  seu  resumo  no  Pede: 

«P.  a  V.  S.^  seja  servido  mandar-lhe  passar  a  certidão  re- 
querida das  respectivas  sentenças,  com  a  declaração  das  com- 
petentes custas,  e  o  mais  que  supplica  summariamonte  e  de 
que  faz  menção  o  presente  requerimento;  bem  entendido  que 
a  referida  moeda  papel  falso  veiu  a  custar  á  nação  talvez  acima 
de  oito  milhões.  E  receberá  mercê.» 

Pela  dizima,  ou  pelo  dizimo  d'isto,  levou  algum  dia  o  Couto  mui- 
tas grozas  de  palmatoadas.  Se  a  petição  pede  a  certidão  das  respecti- 
vas sentenças,  isto  é,  do  calote  da  tasca  e  da  condemnação  da  dizima, 
diga-me  toda  a  magistratura,  e  olhem  que  faliam  jcom  o  Enxota,  que 


288  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

vem  aqui  fazer  este  appendice: — «Bem  entendido  que  a  referida  moeda 
papel  falso  veiu  a  custar  á  nação  talvez  acima  de  oito  milhões? — Des- 
cobrem-se  nas  carteiras  de  J.  L.  da  Silva  dois  bilhetes  de  meia  moeda 
falsos,  talvez  á  surrelfa  introduzidos  pelos  seraphins  investigantes,  e 
isto  custa  á  nação  acima  de  oito  milhões  1  Isto  não  é  o  trmmpho  da  vi- 
ctoria,  isto  chama-se  o  triumpho  da  parvoíce  ou  da  malicial  Que  fe- 
cundas duas  meias  moedas  1  Pariram  oilo  milhões f  Porque  não  vão  para 
o  império  do  Brazil,  pois  vi  outro  dia  na  Gazeta  que  lá  sobeja  terreno 
e  falta  a  população  1  Onde  tem  chegado  a  lógica  do  século f  Condem- 
nam  um  caloteiro  na  dizima,  quem  o  condemna  é  a  sentença  do  juiz; 
depois  da  sentença  o  arrematante  das  dizimas;  este  arrematante  podia 
ser  outro;  succedeu  ser  cunhado  de  J.  L.  da  Silva:  logo,  como  em  casa 
de  J.  L.  da  S.  se  acharam  dois  bilhetes  de  meia  moeda  falsos,  segue-se 
que  J.  L.  da  S.  fabricou  no  seu  laboratório  oito  milhões  de  papel  falso; 
e  alcançou  o  ministro  um  triumpho  da  victoria,  visto  o  escrivão  Vera 
Brandão  ter  certificado  que  um  dos  dois  irmãos  Esteves  Alves  é  cu- 
nhado de  J.  L.  da  S.,  e  que  aquelle  para  desaggravar  o  cunhado  foi 
pedir  uma  dizima  a  quem  a  não  devia  pagar,  como  se  o  arrematante 
fosse  julgador  e  não  cobrador,  ou  como  se  este  podesse  cobrar  antes 
que  a  sentença  do  juiz  mandasse  pagar  I  E  que  culpa  tem  J.  L.  da  S. 
do  que  fez  o  cunhado,  mandado  pela  sentença  condemnatoria  do  mi- 
nistro? Este  é  que  devia  ser  aperreado,  e  como  boi  deitado  no  chão, 
humi  boi,  porque  antes  de  proferir  sua  sentença  na  causa  intentada 
por  Manuel  João,  tasqueiro  do  mal-co>'inhado,  se  não  certificou  da  iden- 
tidade da  pessoa  do  réo  caloteante,  e  que  queria  comer  de  mofo  na 
taberna. 

Ora  eu  quero  ser  justo,  como  um  homem  revestido  do  poder 
executivo,  porque  cão  que  a  mereça  nunca  deixcu  de  a  levar  no  lombo; 
dou  e  não  concedo  que  J.  L.  da  S.  pedisse  a  seu  cunhado  Alves  Es- 
teves ou  Esteves  Alves,  que  vem  a  ser  o  mesmo,  estando  ambos  a  to- 
mar café,  depois  de  jantar,  no  caso  que  jantassem  juntos,  e  lhe  dissesse: 
« Ó  Manuel,  tu  não  me  farás  um  favor?»—  «O  quê?...  se  estiver  na  mintía 
mão,  (Oiita  com  elle.»— «Queria  que,  em  logar  de  ires  cobrar  a  dizima 
da  sentença  caloteira  ao  melcatrefe  que  logrou  o  chanfaneiro  do  Cães 
da  Moita,  a  fosses  pedir  ao  que  foi  ministro  de  Belém,  porque  tem  o 
mesmo  nome;  e  emquanto  a  coisa  se  não  acclara  fazer-lhe  dar  qua- 
tro cuadas,  como  elle  me  fez  dar  a  mim  quando  me  mandou  dar  busca 
de  nioeda  falsa,  sem  elle  vir,  me  prendeu  e  intentou  arruinar-me.» — 
«Sim,  eu  vou  logo  a  essa  diligencia.»  — «Demos  este  delicio  hypothetico 
cm  J.  L.  da  S.,  de  que  o  réo  se  livrou,  mostrando  que  nunca  comera 


o  BOI  NO  chAo  289 

na  estalagem  sem  pagar,  e  que  se  a  sentença  condemnava  um  Fulano 
Furtado,  que  havia  mais  Marias  na  terra,  que  os  Furtados  são  muitos 
€  os  furtantes  muito  mais;  e  que  a  esta  deslindação  do  equivoco  de 
nome  elle  deu  caracter  de  primeiro  triíimpho  da  victoria  com  sua  ba- 
lancinha  torta  pintada  em  cima;  justifica  isto  por  ventura  o  deslindado 
Furtado,  e  livre  do  crime  de  comer  de  calote,  d'aquella  serie  de  cri- 
mes attenlados,  e  atrocidades,  de  que  foi  convencido  pelos  tribunaes 
de  uma  maneira  tão  evidente,  que  talvez  não  haja  d'ella  exemplo  em 
toda  a  historia  de  processos  criminaes  e  conclusos  cora  o  maior  escrú- 
pulo e  observância  das  regras  de  direito? 

Isto  é  uma  imputação  de  tal  natureza  que  á  vista  d'ella  tremeria 
o  mais  intrépido  dos  homens,  o  Enxota  Cães  da  Sé,  Amaro  André,  se 
não  vira  tudo  não  só  demonstrado  legalmente  pelas  decisões  e  senten- 
ças dos  tribunaes.  pelas  régias  determinações,  pela  existência  dos  fa- 
ctos, mas  pela  publicidade  da  imprensa,  oíferecendo-se  ao  conheci- 
mento do  mundo,  ao  exame  até  dos  maiores  inimigos  da  justiça  e  da 
verdade,  em  um  folheto  de  105  paginas  em  4.°  A  não  ser  a  clemên- 
cia dos  augustos  Monarchas  portuguezes,  este  homem  que  deita  o  boi 
110  chão,  porque  mostra  que  não  comera  grátis  na  taberna,  casaria  tão 
ligitimamente  com  a  forca,  que  não  se  desatariam  estes  laços  mairi- 
moniaes  sem  se  desatar  primeiro  a  corda,  em  que  bem  e  seguramente 
o  tivesse  pendurado  o  mestre  carrasco. 

A  defensa  que  em  todos  os  seus  comprovados  crimes  allega  este 
cordeiro  innocente  e  perseguido,  é  atribuir  tudo  á  intriga  e  vingança 
de  um  tal  J.  L.  da  Silva,  que,  diz  elle,  prendera  por  moede  falsa,  que 
vem  a  ser,  acharem-se  na  mão  do  diclo  J.  L.  da  S.  dois  bilhetes  de 
meia  moeda,  que  lhe  haviam  empurrado  entre  contos  e  contos,  e  mais 
contos  de  reis  em  papel,  no  giro  do  seu  negocio.  Assim  o  diz  o  au- 
ctor  do  livro  de  19  paginas  intitulado  n Resultados  dignos  de  toda  a  ad- 
miração e  condignos  de  maior  contemplação*  a  pagina  10  do  mesmo  li- 
vro, na  certidão  u.°  2,  no  segundo  triumpho  da  victoria,  por  estas  pa- 
lavras: «Que  todas  as  imputações  e  crimes,  que  se  lhe  arguiram,  e 
denuncias  que  se  deram  em  juizo,  foram  producções  de  uma  intriga  e 
machinação  urdida  por  J.  L.  da  S.» 

Este  homem  que  isto  diz,  começou  a  mostrar-se  criminoso,  e  a 
levar  alentadissimas  tundas  dadas  pela  justiça,  desde  que  começou  a 
apparecer  e  a  figurar  na  sociedade  civil.  Quero  que  J.  L.  da  S.  ur- 
disse tudo  o  que  no  ministério  de  Corregedor  elle  commeteu  de  fal- 
sidades atrocíssimas  na  funcção  de  dois  bilhetes  de  meia  moeda,  e  que 
no  anno  de  18 i9  amotinaram  Lisboa  inteira  e  seu  termo,  quero  tudo 

CAÍ'.TAS.  49 


290  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

isso;  mas  quem  poderá  dizer  que  a  era  de  4800  é  a  mesma  que  a  de 
1819?  ha  a  differença  de  dezenove  annos  contados:  bem.  Em  1800 
era  o  homem  do  Boi  no  chão  (humi  bos)  vereador  na  sua  terra  Alpe- 
drinha, (como  eu  sou  velho  no  adro  do  Sé,  lembra-me  passar  muitas 
vezes  para  baixo,  com  muita  companhia,  e  para  cima  com  menor,  um 
carrasco  muito  hábil,  chamado  o  Alpedrinha,  porque  era  natural  d'esta 
notável  villa),  e  como  vereador  mais  velho  serviu  de  Juiz  na  ausência 
do  outro,  que  seria  tal  como  elle:  fez  tão  escandalosos  attentados,  e 
commetteu  taes  despotismos,  que  por  um  accordão,  ou  resolução  do 
Desembargo  do  Paço  de  27  de  Março  de  1800,  foi,  não  só  reprehen- 
dido  e  suspenso,  mas  prohibido  para  sempre  de  entrar  em  pauta  para 
outra  qualquer  funcção  da  governança^com  cinco  rubricas  dos  mi- 
nistros do  Desembargo  do  Paço,  e  registado  nos  livros  da  Gamara  da 
mesma  Alpedrinha. 

Também  esta  seria  intriga  e  machinação  de  J.  L.  da  S.,  que  es- 
tava em  Lisboa,  sem  advinhar  que  em  Alpedrinha  existia  una  camarento 
F.  Fortunato,  que  dezenove  annos  depois  veiu  desgraçadamente  a  co- 
nhecer, quando  lhe  meiteu  em  caso  Justiniano  Joaquim,  e  Félix  Joa- 
quim da  Costa,  e  outros  mais,  para  lhe  darem  busca,  e  para  o  tranca- 
fiarem  na  cadêa?  E  chama  o  homem  do  Boi  no  chão  (humi  bos)  trium- 
pho  da  victoria  a  uns  rabos  de  palha  d'este  comprimento,  e  que  se 
não  podem  esconder,  pois  andam  e  correm  por  quantos  auditórios  ha, 
promptos  a  passarem  certidões  de  comprimento  e  grossura  dos  refe- 
ridos rabos,  como  iremos  vendo,  porque  quem  tem  telhado  de  vidro  não 
atira  ao  do  visinho,  e  é  de  direito  natural  e  positivo,  divino  e  humano, 
repellir  a  força  com  outra  força,  e  desmascarar  o  calumniador  com  as 
suas  mesmas  heróicas  proezas. 

Quer  um  homem  que  tinha  uma  filha,  ou  para  a  perder,  ou  para 
algum  por  força  casar  com  ella,  que  esta  filha  estivesse  prenhe,  cousa 
por  certo  que  não  é  muito  difficultosa,  nem  são  precisas  grandes  di- 
ligencias, segundo  aífirmam  os  peritos;  para  provar  judicialmente  e 
conforme  o  direito  esta  prenhez  perante  o  magistrado  territorial  e  au- 
ctoridade  constituída,  conforme  começaram  a  dizer  ha  tempos  a  esta 
parte,  houve  mister  que  se  chamassem  duas  parteiras  examinadas  e 
exprimentalmente  vistas  n'aquellas  danças,  as  quaes  segundo  as  infai- 
liveis  regras  da  sua  arte  obstetrícia,  vejam,  observem,  palpem,  e  co- 
nheçam com  o  contacto  de  suas  mãos  e  instrumentos  perfurantes,  e 
naturaes  tentas  de  seus  dedos,  se  ha  alguma  creatura  que  se  mecha, 
dentro  de  outra  que  também  se  bulia,  como  consta  dos  autos  que  em 
taes  galhofas  se  costumam  fazer,  e  de  que  se  extraem  certidões  para 


o  BOI  NO  CHÃO  291 

as  mãos  curiosas  e  juntadoras  de  importantes  papeis  e  processos  ra- 
ros. Devem  pois  ir  a  casa  do  ministro  a  ré,  que  se  julga  mais  gorda 
e  nutridinha  do  que  devia  andar,  as  duas  mestras  buscadeiras,  e  que 
devem  conhecer  que  não  é  obstrucção  nem  hydropesia  o  objecto  em 
questão,  mas  creatura  viva,  que  a  seu  tempo  sahirá  d'aque!le  domi- 
cilio. As  parteiras  examinantes  e  perscrutantes  foram  a  casa  do  mi- 
nistro de  Belém,  não  viram  a  ré,  nem  estrotegaram  com  as  mãos  o 
corpo  de  delicio  incluso  no  ventre  da  mesma  ré,  que  isso  em  casa  do 
tal  ministro  não  era  preciso,  mas  seduzidas  por  elle  pae  da  creança 
que  devia  ser  reconhecida  prenhe,  assignaram  o  auto  do  exame,  sem 
lh'o  lerem;  no  qual  juraram  pelos  gráos  recebidos  em  sua  faculdade, 
que  a  mulher  estava  prenhe;  porque  o  que  se  queria  era  infamar  a  mu- 
lher: mas  como  parteiras  de  consciência,  estimuladas  de  remorsos,  ou 
mais  depressa  do  temor  do  castigo  do  perjúrio,  em  matéria  de  honra,  se 
foram  denunciar,  e  protestar  contra  o  engano  do  ministro,  declarando 
que  nunca  viram  a  mulher  prenhe,  nem  tal  barriga  apalparam,  e  entre- 
tanto por  um  auto  de  exame  não  feito  ficou  a  mulher  eternamente  infa- 
mada. Este  facto,  muito  anterior  á  moeda  falsa,  e  seu  achamento  por  Jus- 
tiniano Joaquim  e  seus  adjuntos,  também  foi  preparado  por  J.  L.  da  S., 
para  se  vingar  do  ministro,  não  lhe  tendo  este  feito  ainda  o  catalão? 
Facto  que,  junto  aos  mais,  grangeou  ao  mesmo  ministro  a  sua  suspen- 
são, determinada  pelo  Governo. 

Ora  na  verdade,  o  ministro  tem  razão  em  dizer  na  fachada  da  sua 
obra,  que  são  factos  nunca  vistos  e  observados  na  historia  da  magis- 
tratura [lortugueza! — Desde  que  ha  ministros  em  Portugal,  tão  re- 
speitáveis em  geral  pela  sua  integridade  e  luzes,  ainda  não  appareceu 
um  com  tantas  prevaricações,  e  de  tudo  é  causa  J.  L.  da  S.,  que  até 
á  funcção  dos  dois  bilhetes  nunca  tal  burro  tinha  albardado!  O  mesmo 
escrivão  se  denunciou  sobre  aquella  inaudita  falsidade.  O  réo  auctor 
da  celebrada  obra  da  prenhez,  tão  vulgar  e  ordinária,  que  sem  ella 
acabaria  o  género  humano,  em  breves  audiências  foi  solto,  com  o 
seu  direito  salvo  para  pedir  perdas  e  damnos,  a  quem  o  tinha  feito, 
ou  queria  fazer,  pae  por  força. 

A  coisa  mais  divertida,  que  eu  tenho  tido  na  minha  vida  d'Enxota, 
entre  milhares  de  rebaldarias  de  cães,  ou  tolos  ou  matreiros,  que  eu 
tenho  legitimamente  enxotado  e  escovado,  foi  a  leitura  de  uma  pas- 
sagem da  sentença  absolvente,  que  o  ministro  transcreve  a  folha  17, 
quasi  na  ultima,  da  sua  grande  obra  a Resuliados  dignos. . .» 

«Não  podem  (dizem  os  ministros  que  fizeram  a  sentença) 


292  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

não  podem  ser  admittidas  em  direito,  nem  fazer  prova  as  de- 
nuncias que  de  si  mesmo  fizeram  as  parteiras,  jurando  que 
nunca  Tiram  a  mulher  prenhe  (tendo  posto  tantas  a  parir!)  e 
que  só  assignaram  um  papel,  cuidando  que  eram  alguns  preli- 
minares para  a  abertura  do  congresso  da  grande  victoria,  mas 
que  tal  mulher  nunca  viram,  nem  sobre  ella  tinham  posto  olho, 
mão,  ou  dedo.» 

As  razões  em  que  se  fundam  os  três  togados  julgadores  são  estas^ 
pag.  17  da  grande  obra: 

«Em  egual  monta  se  devem  ter  as  denuncias  das  parteiras, 
uma  vez  que  se  tenha  em  consideração  o  pouco  que  merecem 
pelo  seu  sexo,  subjeito  a  suggestões,  e  interesses  de  que  são 
susceptíveis.» 

Como  o  sexo  da  parteira  é  o  mesmo,  e  do  mesmo  feitio,  pouco 
mais  ou  menos,  que  o  das  outras  mulheres,  todas  ficam  bem  servidas 
pela  docla  sentença  proferida;  todas  devem  ficar  em  regra  de  obriga- 
ção, porque  ainda  que  todas  não  sejam  parteiras,  todas  têm  o  mesmo 
sexo,  parteiras  e  não  parteiras,  e  os  três  magistrados  firmam-se  no 
sexo,  e  não  na  profissão.  Finalmente,  não  se  deve  fazer  caso  em  juizo 
das  dietas  parteiras,  porque  têm  um  sexo  subjeito  e  atlreito  a  sugges- 
tões. Muito  bem,  e  eu  concordo  n'isto  com  os  magistrados.  Mas  que 
magistrados  são  estes,  que  na  mesma  pagina,  e  poucas  linhas  abaixo, 
querendo  provar  que  tal  mulher  prenhe  parira  (e  se  não  parisse  ar- 
rebentava!) se  referem  e  allegam  por  prova  incontestável  o  testemu- 
nho de  uma  parteira!  Eis  aqui  as  suas  palavras: 

«Dando  á  luz  três  mezes  depois  uma  menina,  como  tes- 
tifica a  própria  parteira,  que  lhe  assistira  n'aquella  hora!...» 

Oh  ílôr,  oh  honra  das  parteiras  todas!  Parece-me  que  o  teu  sexo 
é  de  outra  natureza,  e  de  outro  feitio!  A  tua  palavra  honrada  é  um  pé 
de  evangelho!  Não  ha  duvida  que  a  mulher  pariu,  porque  a  parteira 
o  diz...  Mas,  oh  gloria  e  honra  da  jurisprudência!  Esta  mesma  par- 
teira, que  diz  que  a  mulher  pariu,  é  a  mesma,  ou  uma  d'aquellas  que 
fora  ao  exame,  pag.  17.  Ah,  senhores  desembargadores!...  Quando  a 
parteira  diz  que  não  vira  a  mulher  no  exame,  mente:  quando  o  diz 


o  BOI  NO  CHÃO  293 

que  ella  parira,  falia  verdade! . . .  No  parto  é  forte  o  sexo,  e  não  está 
subjeito  a  suggestões;  no  exame  é  frágil,  e  susceptível  de  interesses  t 

E  quem  tem  culpa  de  tudo  isto'  Quem  ha  de  ser?  É  J.  L.  da  S., 
porque  sendo  este  caso  muito  anterior  ao  achado  das  duas  meias  moe- 
das, elle  foi  o  que  corrompeu  a  mesma  parteira  para  fallar  verdade. 
Mente  a  parteira,  quando  diz  que  não  vira  a  mulher  prenhe,  falia  ver- 
dade a  parteira,  quando  diz  que  a  mulher  pariu;  tem  sexo,  e  não  tem 
sexo!l  As  testemunhas  têm  crédito  para  condemnarem  J.  L.  da  S.,  e 
não  têm  crédito  para  condemnar  o  ministro  que  o  condemnou  a  ellef 
Isto  è  que  são  resultados  nunca  vistos  na  historia  da  magistratura  por- 
tugueza ! 

No  meu  Promptuario  de  casos  raros,  que  tenho  entre  os  meus  ma- 
nuscriptos,  e  que  deixo  aos  meus  herdeiros,  consignei  um  d'aquelles 
successos,  que  eu,  envolvido  sempre  em  canzoadas,  julgei  sempre  o 
mais  extraordinário,  e  que  nenhum  cão  contra  outro  cão  era  capaz  de 
fazer,  ou  inventar.  Achou  ò  ministro,  auctor  da  obra  máxima  dos  <i  Re- 
sultados dignos  e  condignos*  uns  autos  velhos,  em  que  se  tratava  de 
uma  alicantina  de  um  certo  José  Luiz  de  Novaes,  o  qual  despachando 
cincoenta  rolos  de  tabaco  para  Palermo,  porque  não  era  pelerma,  deu 
cora  elles  em  Setúbal,  e  com  a  vista  gorda  das  justiças  d'aquella  Villa 
os  introduziu  pela  terra  dentro,  ou  como  se  diz,  pelo  sertão  da  mesma 
villa.  Que  achado!  (disse  o  auctor  do  livro  dos  Resultados  condignos). 
Este  tratante  dos  rolos  chama-se  José  Luiz,  o  sobrenome  não  faz  ao 
caso:  eu  posso  empurrar  este  panai  a  José  Luiz  da  Silva,  porqae 
como  são  idênticos  os  dois  primeiros  nomes,  metto  no  escuro  o  Novaes 
de  um,  e  o  Silva  do  outro,  e  dou  cabo  do  Silva  como  se  fosse  o  Novaes. 
Ora  aqui  nos  autos  vera  o  nome  de  um  catraeiro,  chamado  MaDuei 
Leal,  que  acarretou  os  rolos:  se  elle  fosse  vivo,  campava  eu!  Mas  a 
diligencia  é  mãe  da  boa  ventura.  Oh  Justiniano,  vê  tu  se  ahi  pela  Jun- 
queira, ao  pé  do  Porto-franco,  encontras  um  catraeiro  velho,  chamado 
Manuel  Leal,  ou  alguém  que  o  conheça,  e  traze-mo  cá,  que  é  preciso 
para  uma  diligencia  de  serviço.  Dicto  e  feito.  Quem  escaparia  ao  tal 
Justiniano?  Foi,  achou,  falou,  e  conduziu.  Deve  advertir-se  que  o  caso 
dos  rolos  do  Novaes  tinha  acontecido  havia  dez  annos:  o  Leal  jurou 
que  andara  com  os  rolos  de  José  Luiz,  e  não  dizia  Novaes  porque  não 
sabia  que  o  homem  que  lhe  affretou  o  bote  tinha  este  sobrenome:  e 
o  integerrimo  ministro,  assim  que  o  Leal  dizia  José  Luiz  accrescentava 
elle  —  da  Silva.  Lembrou-se  em  casa  o  Leal,  que  tinha  um  recibo  de 
uma  divida,  que  pagara  a  José  Luiz  de  Novaes,  e  que  a  mulher  o  ti- 
nha guardado  no  seu  cartório,  e  lhe  disse  como  bom  algarvio:  «Oh  mu- 


294  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Iher  do  diabo,  tu  não  guardaste  um  papel  que  te  dei  ha  dez  annos?» 
—  «Sim,  marido,  marido  de  um  anjo;  aqui  está  o  recibo  que  dizes; 
porque  se  tu  és  Leal  no  nome,  eu  sou-te  leal  em  todos  os  meus  pro- 
cedimentos, ác*  —  Então  é  que  o  Leal  cahiu  em  si,  e  foi  desdizer-se  ao 
ministro,  protestando  que  o  José  Luiz  contra  quem  jurava  não  era  Silva, 
mas  Novaes,  e  que  ia  barrada  toda  a  emboQa  em  que  S.  S.^  o  mettera, 
pois  tal  Silva  nunca  servira,  nem  conhecera.  Não  lhe  quiz  acceitar  esta 
retractação,  chamando-lhe  ainda  em  cima  tolo;  e  por  conselho  de  An- 
tónio Marcelino,  seu  compadre,  e  de  outras  pessoas  de  probidade  da 
taberna  do  Mendes,  na  Junqueira,  se  foi  denunciar  á  Intendência,  onde 
pelos  documentos  que  apresentou  se  lhe  tomara  sua  denuncia. 

Ora  á  vista  d'isto,  que  havemos  de  dizer,  senão  qne  o  auctor  dos 
Resultados  condignos  é  um  homem  que  sabe  bem  aproveitar  os  cabidos 
dos  outros  homens,  sem  se  embaraçar  com  as  bagatellas  de  nomes, 
de  épocas,  de  datas,  ou  de  factos?  Fez-se  um  desaforo  de  empalma- 
ção  de  tabaco  por  um  sujeito  chamado  José  Luiz;  pois  então  não  tem 
duvida,  este  empalmador  de  tabaco  é  José  Luiz  da  Silva.  Tudo  o  que 
fizeram  os  Josés  Luizes  ha  de  ser  feito  por  força  por  José  Luiz  da  Silva. 
Se  o  armador,  que  queimou  a  patriarchal  ha  mais  de  cincoenta  annos, 
se  chamasse  José  Luiz,  apesar  de  José  Luiz  da  Silva  não  ter  ainda  nas- 
cido, ou  ser  de  mama,  segundo  o  auctor  dos  Resultados  condignos^ 
por  força  era  este,  ou  tivesse  ou  não  tivesse  nascido,  e  para  o  raeri- 
tissimo  corregedor  um  triumpho  da  victoria,  e  para  o  mundo  um  boi 
no  chão  (humi  bos). 

Desde  que  tenho  o  páo  d'Enxota  n'estas  mãos  limpas  e  impar- 
ciaes,  semeando  arrochadas  nos  cães  á  direita  e  á  esquerda,  sem  me  es- 
capar goso  por  manhoso  e  surrateiro  que  fosse,  tendo-se-me  feito  os 
cabellos  brancos  n'esta  honrada  profissão,  ainda  ao  meu  conhecimento 
não  veiu  caso  semelhante  a  este,  por  isso  o  deixo  consignado  em  meus 
escriptos  para  que  a  mais  remota  posteridade  conheça  em  que  mãos 
tem  sido  por  muitas  vezes  depositado  o  pandeiro  da  governança  bair- 
ral.  Pelo  único  titulo  da  obra  de  19  paginas  escassas  e  incompletas, 
se  conhecerá  o  subido  ponto  a  que  chegara  entre  nós  a  insipiência  e 
a  ignorância;  e  depois  d'isto  os  limitados  conhecimentos  de  um  ho- 
mem, que  fez  os  Rurros,  que  mettendo  tantos  na  estribaria,  lhe  es- 
capou este,  por  certo  o  mais  alto  da  agulha  que  entre  as  mesmas  ra- 
ças de  Alter  tem  apparecido !  í 


o  BOI  NO  CHÃO  295 


* 
* 


Eu,  André  Calado,  fallo,  e  declaro  que  apesar  de  apertar  as 
mãos  na  cabeça  quando  li  este  manuscripto  de  meu  lio,  por  me  pare- 
cer impossível  que  taes  cousas  tivessem  acontecido  em  Portugal,  com- 
tudo,  duas  rasões  fortíssimas  me  obrigaram  a  publical-o:  a  1.*  é  o  co- 
nhecimento practico,  que  tive  sempre,  e  ainda  tenho,  da  verdade  e  in- 
teireza de  meu  lio,  cujo  caracter  era  tão  direito  como  o  páo  que  em- 
punhava, e  com  que  cumpria  as  obrigações  do  seu  oíScio,  não  dizendo 
nem  escrevendo  nunca  cousa  que  assim  não  fosse,  nem  zurzindo  viva 
alma  que  o  não  merecesse:  —  e  a  2,'  vêr  eu  com  os  meus  olhos  im- 
pressas agora,  e  com  todas  as  faculdades  e  licenças  necessárias,  tanto 
as  acções  do  ministro,  legalisadas  até  perante  Tribunaes  supremos, 
como  impresso  e  publico  o  livro  de  dezenove  paginas,  intitulado  (í  Re- 
sultados dignos  e  resultados  condignos.-»  Meu  lio  não  se  mettia  em  cal- 
ças pardas,  e  camisas  de  onze  varas,  se  não  podesse  com  documentos 
impressos  com  licença  tapar  a  bocca  a  alguns  curiosos,  que,  ou  por 
amor  ao  tal  ministro,  seja  quem  fôr,  ou  por  ódio  ao  Enxota,  pois  lh'o 
têm  sediço,  se  atrevessem  a  grazinar  sobre  a  veracidade  e  evidencia 
dos  factos  tão  solemnemente  comprovdos. 

Se  o  auclor  do  livro  ^Resultadosn  não  apparecesse  com  elles,  nin- 
guém se  resolveria  a  renovar  memorias  passadas;  e  ha  certa  cousa  que 
é  peor  mecher-lhe.  Mas  quem  ha  tão  de  ferro,  que  vendo  por  cima  dos 
balcões  dos  livreiros,  que  vendem  livros  postos  em  pilha  os  exemplares 
do  livro  «05  Resultados  dignos  e  condignos*  se  contenha,  e  não  queira 
vêr  uma  balança  gravada  em  páo,  com  o  fiel  torto,  com  o  boi  no  chão, 
e  por  timbre  4.°  — 2.°  —  eS."  triumpho  da  vicloria,  e  um  homem  im- 
pávido ferido  com  as  ruinas  do  universo,  e  no  fim  um  vereador  da  Ga- 
mara do  Senado  (sendo  até  agora  o  Senado  da  Gamara,  talvez  esforço 
do  século  das  luzes,  que  alterou  não  só  as  palavras,  mas  as  idéas)  um 
homem  que  chama  aos  outros  homens  —  meus  inimigos  antagonistas  —  e 
querendo  mostrar  seus  crimes,  lhes  chama  tenacissimos,  execrandos:  um 
homem  que  chama  ás  auctoridades  incorniptivas,  não  sabendo  que  ha- 
via incorruptíveis! 

Que  muito,  se  para  emenda  dos  outros,  se  diga  alguma  cousa 
d'este,  sem  transgredir  os  limites  da  caridade  christã,  e  os  da  corlezã, 
civilidade?  Escrever  assim  e  imprimir,  é  assentar  em  sua  consciência, 
que  todos  os  homens  são  uns  pedaços  d'asnos. 


296  OPÚSCULOS  liSKDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DK  MACEDO 

Está  cumprida  a  prophecia  de  meu  tio  Enxota,  que  com  as  lagri- 
mas nos  olhos,  e  a  voz  intercadente  me  disse  poucos  dias  antes  de  es- 
pichar: «André,  isto  está  acabado!  aqui  andaram  correndo  ha  tempos 
uns  sete  quartos  de  papel  chamados  1.*,  2.*,  3.*  ác*  Falia  aos  Por- 
tuguezes,  e  eram  producçôes  de  uma  toga  conselheira:  toma  sentido, 
André;  algumas  pessoas  dizem  que  eu  fallo  com  o  diabo  á  meia  noite; 
não  importa:  toma  sentido,  André:  estas  sete  palavras,  ou  fallinhas, 
eram  o  estertor  do  enfermo  —  Lettras — :  outra  toga  conselheira  appa- 
recerá  com  um  escripto,  que  será  o  ultimo  bocejo  do  enfermo  — Let- 
tras— ;  depois  d'isto  ninguém  mais  escreverá;  começará  então  a  espa- 
Ihar-se  uma  sombra  espessa  de  pasmaceira;  que  entre  ella  girará  como 
um  cometa  de  rabo  por  este  escuro  espaço,  a  Gazeta:  só  ella  formará 
uma  summa  de  todas  as  sciencias,  será  um  novo  Pedro  Lombardo, 
Mestre  das  Sentenças:  as  suas  variedades,  os  seus  casamentos  por  lo- 
teria  rifadeira,  as  suas  noticias  recônditas  da  Arábia,  do  Thibet,  de 
Calcutá,  e  de  Tonkim;  o  seu  cadastro  de  Travancor,  com  as  minas  do 
monte  Oral,  é  o  que  basta:  á  vista  d'isto  todos  os  conhecimentos  hu- 
manos são  cousa  nenhuma,  e  com  isto  mostrarão  os  portuguezes  de 
ambos  os  hemispherios  quanto  tenham  aproveitado  com  as  luzes  do  sé- 
culo.» 

Se  isto  não  é  ser  propheta,  então  digam  que  o  foi  Gonçalo  Annes 
Bandarra.  El  Rei  D.  Sebastião  ainda  não  veiu,  e  a  parvoíce  já  cá  está. 


PARECER 


DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL 


DEPOIS  DA  SAHIDA  DE  SUA  ALTEZA  REAL 


INVASÃO  QUE  NESTE  REINO  FIZERAM  AS  TROPAS  FRANCEZAS 


O  homem  de  bem,  e  amante  da  sua  pátria,  não  deve  ser  infiel  á 
sua  mesma  consciência,  nem  dissimular  seus  sentimentos,  até  n'aquelle 
momento  em  que  vir  sobre  seu  pescosso  pendente  o  ferro  da  tyrannia. 
A  verdade  ousa  apparecer  e  annunciar-se  até  na  presença  de  oppres- 
sores;  e  como  se  me  pede  o  meu  parecer  sobre  o  estado  d'este  reino, 
e  consequências  da  sua  usurpação,  eu  o  darei  com  aquella  ingenuidade 
e  liberdade,  que  teria  se  fallasse  no  meio  de  uma  republica,  e  opinasse 
sentado  entre  os  livres  membros  do  parlamento  de  Inglaterra.  O  pri- 
meiro resultado  da  inconsiderada  paz  de  Tilsit  foi  a  invasão  de  Hes- 
panha  e  Portugal;  n'este  tratado  se  começou  a  divisar  o  plano  de  Bo- 
naparte sobre  a  monarchia  universal.  O  orgulho  e  ambição  que  o  des- 
lumbra, nunca  lhe  fez  desconhecer  a  desporporção  dos  meios  que  toma 
com  o  irrealisado  fim  do  abatimento  de  Inglaterra  pela  sua  exclusão  do 
continente.  Bonaparte  é  homem  de  muita  malícia,  mas  de  nenhum  es- 
tudo, e  de  limitados  talentos.  É  certo  que  se  aíBança  sobre  os  effeitos  de 
suas  primeiras  missões,  porque  perpara  um  punhado  de  malvados,  no 
meio  de  uma  nação.  Não  se  lembra  que  roubando  e  cativando  os  mo- 
narchas  indispõe  os  povos. 

O  Principe  de  Portugal  podia  mallograr  os  seus  ardis  até  depois 
de  ter  dentro  da  capital  um  exercito  de  mendigos  salteadores.  Eva- 
diu-se  ao  seu  refalsado  furor,  e  Bonaparte  com  este  furor  abateu  e 
quasi  arruinou  o  mesmo  reino,  a  que  chama  conquista  e  possessão  sua. 


298  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Deixou  de  ser  reino,  e  quem  poderá  resolver  o  problema;  quando  e 
como  o  poderá  ainda  ser?  Desde  a  sua  fundação  até  á  morte  do  decimo 
sexto  monarcha,  se  manteve,  se  dilatou,  e  se  enriqueceu  tanto,  que 
de  nenhum  outro  depois  da  queda  do  Império  romano  se  podem  con- 
tar tantos  prodígios,  valor,  espirito  patriótico,  politica,  liíteratura,  ras- 
gos heróicos,  tentativas  árduas  e  felizmente  acabadas,  o  fizeram  para 
sempre  memorável.  O  maior  dos  seus  monarchas,  D.  João  \.°  conheceu 
o  génio  da  nação  que  o  firmou  no  throno,  viu  que  era  preciso  dilatar- 
se,  estender-se,  e  conquistar.  Foi  o  primeiro  soberano  que  deixou  por 
um  momento  o  throno  para  se  entregar  ao  Oceano,  e  ser  conquistador; 
levou  de  um  golpe  Ceuta;  eis  aberto  o  passo  para  a  gloria  de  Portu- 
gal, que  chegou  depois  a  não  caber  no  globo.  O  commercio  do  Oriente, 
feito  por  algumas  potencias  marilimas  do  Mediterrâneo,  as  enriquecia. 
Portugal  busca  pela  conquista  de  Africa  a  do  Oriente.  Era  preciso  con- 
stância, paciência,  e  valor.  Nos  reinados  de  Duarte,  Afifonso  5.°,  João 
2.°,  e  Manuel,  tudo  se  tentou,  e  tudo  se  conseguiu,  e  nos  últimos  annos 
de  João  3.",  Portugal  na  carta  geographica  do  globo  occupava  maior 
espaço  que  tinham  occupado  os  antigos  Romanos,  e  que  talvez  não 
chegue  a  occupar  nenhum  império  no  mundo.  São  ingénuos  os  seus 
historiadores;  porém,  se  quizermos  dizer  que  não  são  acreditáveis,  por- 
que são  parciaes,  LafiQtau  e  Raynal  dão  claro  testemunho  a  esta  ver- 
dade, e  fica  a  toda  a  sua  luz  pelo  estudo  da  geographia  antiga  e  mo- 
derna. Ás  possessões  da  Berbéria  se  ajuntaram  todas  as  costas  occiden- 
taes  de  Africa  desde  Gabo  Verde,  Serra  Leoa,  Castelio  da  Mina  até  ao 
Cabo  da  Boa-Esperança;  toda  a  costa  oriental  de  Africa  até  ao  Cabo  de 
Guardafu,  as  boccas  do  Erythrêo,  e  Pérsico,  com  a  ilha  de  Ormuz,  toda 
a  enseada  de  Cambaya  até  Diu;  toda  a  Costa  do  Malabar  até  ao  Cabo 
Comorim,  a  ilha  de  Ceilão  e  costa  de  Coromandel,  e  desde  Meliapor 
até  Malaca,  tudo  conheceu  o  septro  portuguez,  e  correu  victorioso  até 
Bengala,  e  península  de  Macau;  estabeleceu  o  commercio  do  Japão, 
quasi  todas  as  ilhas  d'aquelle  imenso  archipelago,  possuiu  Timor,  Ti- 
dore,  e  Ternat,  não  tinha  mais  que  vêr,  e  que  conquistar  na  Ásia.  Di- 
latou-se  na  America,  parte  do  globo  despresada  em  o  começo,  e  onde 
pode  agora  lançar  os  alicerces  ao  mais  florento,  formidável,  e  poderoso 
império  do  mundo.  Desde  o  rio  das  Amazonas  até  ao  da  Prata  tem  mil 
e  quatrocentas  legoas  de  costa;  e  desde  a  costa  até  ás  cordilheiras  ou 
Andes,  pelo  menos  mil  e  duzentas;  o  interior  é  incógnito,  mas  será 
ainda  povoado,  pela  fatal,  forçada  emigração  da  Europa. 

N'esle  esplendor  se  conservou  até  á  morte  de  Sebastião.  O  domí- 
nio estranho  de  Castella,  a  politica  soberba  de  Filippe  Prudente,  a  con- 


PARECER  DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL       299 

ducta  de  seu  filho  e  neto,  a  teima  de  fazer  Hollanda  uma  republica  po- 
derosa, a  força  de  quarenta  annos  de  guerra,  abalaram  o  grande  col- 
losso  da  monarchia  portugueza,  que  restabelecendo-se  depois  não  fi- 
cou em  toda  a  sua  integridade;  porém,  um  portuguez  digno  de  eterna 
memoria,  e  o  maior  homem  da  nação,  dentro  dos  limites  de  Portugal, 
quasi  o  restituiu  *  ao  antigo  esplendor,  magnificência,  e  representação, 
com  planos  vastíssimos,  e  destramente  executados,  com  politica  pro- 
funda, com  constância  heróica,  e  com  verdadeiro  amor  da  pátria,  á 
qual  se  votou  de  um  modo  que  honrará  sempre  a  humanidade;  e  por 
isto  nunca  Portugal  se  pode  com  justiça  chamar  uma  potencia  secun- 
daria na  Europa.  A  necessidade,  .as  relações,  o  commum  interesse  o  li- 
gou sempre  intimamente  á  Inglaterra;  e  se  esta  só  pela  sua  illurainada 
legislação  se  soube  fazer  em  tudo  superior  a  Portugal,  deve-lhe  a  sua 
mesma  grandeza,  parte  de  seus  thesouros,  e  a  vasta  extensão  e  opu- 
lência do  seu  commercio. 

Um  só  dia  acabou  a  obra  de  muitos  séculos,  e  Portugal  retrogrado 
não  poderá  por  tempos  ofiferecer  mais  que  o  espectáculo  que  offereceu 
desde  Sancho  1.°  até  Affonso  4.°^  Cem  léguas  de  extensão  desde  a 
barra  de  Caminha  até  ao  Cabo  de  S.  Vicente;  pouco  mais  de  trinta  lé- 
guas de  largura,  eis  aqui  a  que  está  reduzido  o  que  se  chamou  vasto 
império  Lusitano.  Seis  pequenas  províncias,  que  não  sustentam  seus 
habitantes,  pouca  cultura,  nenhum  commercio  externo,  as  artes  eitin- 
ctas  com  a  opulência  e  o  luxo,  não  farão  vêr  mais  que  a  scena  da  pe- 
núria, e  da  miséria.  Não  tem  exercito,  não  tem  fabricas,  falta  em  que 
empregue  a  industria,  e  n'este  estado  é  impossível  a  repentina  passa- 
gem para  a  primitiva  friigaiidade,  ou  pobresa.  Eis  aqui  o  que  foi,  e  o 
que  Portugal  agora  é.^  O  maior  erro  politico,  que  até  agora  se  tem 
commettido  no  mundo  foi  reduzil-o  a  este  estado;  e  este  erro  nunca 


*  O  Marquez  de  Pombal. 

2  Esta  proposição  é  verdadeira  nas  circumstaneias  em  que  os  Francezes  pozeram 
o  reino^  descarregando  taes  golpes  nas  suas  bazes,  que  a  esperança  do  seu  restabele- 
cimento seria  illusoria.  Não  se  previa  a  insurreição  em  Hespanha,  n'este  facto  prende 
o  encadeamento  das  causas  que  concorrem  para  a  nossa  liberdade.  Do  estado  da 
Hespanha  pendeu  a  resolução  dos  Portuguezes,  e  da  resolução  dos  Portuguezes  o  de- 
sembarque dos  Inglezes. 

3  Este  papel  foi  feito  no  dia  um  que  se  cumpriram  seis  mezes  da  invasão  fran- 
ceza.  Agora  se  conhece  que  nenhum  plano  politico  obrigou  os  Francezes  a  invadir  o 
reino,  elies  então  reduzidos  á  necessidade  de  roubar,  e  vieram  unicamente  roubar. 
Boube-se,  ainda  que  se  se  arruine  uma  nação :  este  é  o  grande  principio  ou  base  de 
todas  as  operações  do  grande  covil  de  salteadores,  ou  gabinete  das  Tulherias;  todas 
as  nações  primeiro  se  queixam  de  roubadas,  que  de  perdidas. 


300  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

se  poderá  remediar,  porque  já  a  Inglaterra  não  deve,  nem  pode  ata- 
lhar a  sua  grandeza,  o  seu  domínio,  e  a  preponderância  que  vae  a  ter, 
e  terá  sempre  no  mundo. 

Este  erro  politico  abrange  toda  a  Europa,  e  esta  vae  a  sentir  ter- 
ríveis efifeitos  da  queda,  ou  ruina  de  Portugal;  a  sua  conservação,  in- 
tegridade, e  independência  convinham  a  todas  as  nações;  e  era  do  in- 
teresse commum  a  continuação  da  monarchia  portugueza  no  estado  em 
que  existia  antes  da  sua  destruição;  esta  destruição  enfraquece  as  po- 
tencias do  continente,  e  só  engrosa  infinitamente  o  poder,  a  opulência, 
e  a  soberania  de  Inglaterra:*  remove  para  sempre  a  época  de  uma 
paz  solida,  vantajosa,  e  permanente,  e  reduz  á  extrema  desgraça  os 
míseros  portuguzes  europeus.  Estas  proposições  não  entraram  nunca 
nos  cálculos  dos  mais  profundos  políticos.  Se  a  Inglaterra  ha  muito  ti- 
nha intentado  para  utilidade  sua  fazer  por  politica  o  que  agora  ura  ím- 
peto inconsiderado,  ou  o  que  é  mais  verdade,  um  plano  abortado  lhe 
foi  metter  nas  mãos  muito  á  medida  do  seu  desejo,  podendo  até  esta 
época  desvanecer  a  esperança  de  o  conseguir.  A  lisongeira  pintura 
do  discurso  do  immortal  Pítt  em  1800,  não  offerece  mais  que  uma  espe- 
culação brilhante,  que  deslumbra  por  um  momento,  porque  conhecia 
este  politico  que  realisando-se  alcançaria  a  Inglaterra  a  maior  e  mais 
vantajosa  de  todas  as  víctorias,  e  augmentava  a  somma  dos  seus  inte- 
resses até  ao  infinito.  Ê  formoso  um  quadro  de  uma  nova  Lisboa  no 
interior  do  Brasil,  de  novas  conquistas,  novas  leis,  novo  commercio, 
este  projecto  sahiu  primeiro  da  cabeça  do  maior  politico  de  Portugal, 
António  Vieira;*  mas  nunca  se  realisaria,  se  a  supposta  e  até  agora 


*  Todas  ai  tentativas  do  ministério  francez  contra  a  Inglaterra  tem  sido  em  favor 
d'esta^  e  prejuízo  d'aquelle.  Querem  dar  um  golpe  no  commercio  da  Ásia  tomando  o 
Egypto,  perdem  uma  expedição  que  custou  oitenta  milhões  de  cruzados,  uma  esqua- 
dra, um  exercito.  Querem  a  ilha  de  Malta  para  fazer  damno  aos  Inglezes;  perdem 
Malta,  e  fica  nas  mãos  dos  Inglezes.  Querem  o  Cabo,  arruinam  os  HoUandezes,  e  fica 
o  Cabo  nas  mãos  dos  Inglezes.  Preparam  esquadra  em  Copenhague  para  attaear  os 
Inglezes^  perdem  Copenhague,  e  a  esquadra  passa  para  poder  dos  Inglezes.  Querem 
excluir  os  Inglezes  de  Portugal,  dão-lhe  a  entrada  no  Brasil,  perdem  o  exercito  de 
Portugal,  e  existem  em  Portugal  e  na  America  os  Inglezes.  Pretendem  assenhorear-se 
da  Hespanha  para  excluírem  os  Inglezes  do  continente,  perdera  a  flespanha,  e  a  esqua- 
dra de  CadiZj  e  penetram  os  Inglezes  o  interior  da  Hespanha.  Trata-se  de  paz,  e  Bo- 
naparte mostra-se  ao  mundo  um  aggregado  de  fraqueza,  e  de  ignorância. 

2  Alexandre  de  Gusmão  o  lembrou  de  novo  a  El-Rei  D.  João  6.°;  ambos  se  en- 
ganavam. Para  equilíbrio  da  Europa  e  prosperidade  d'este  reino  convém  que  o  throno 
se  não  transfira  jamais.  Portugal  e  a  Europa  decahirâo  no  momento  em  que  o  Brãsii 
deixar  de  ser  uma  colónia. 


PARECER   DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL      301 

Dão  Tista  força  o  não  obrigasse;  e  o  para  sempre  dia  memorável  30  de 
Novembro  de  4807  deu  nova  face  ao  mundo.  Desenvolvamos  estas  gran- 
des proposições,  e  possa  a  Europa  conhecer-se  no  quadro  fiel  que  lhe 
vou  apresentar  no  parecer  que  me  pedem. 


1.'  PROPOSIÇÃO 

A  forçada  emigração  do  Príncipe  Regente  deixou  o  Portugal  europeu 
em  estado  de  não  poder  ser  reino  independente^  nem  continuando  a 
guerra,  nem  depois  de  feita  a  paz. 

Demonstra-se: 

Portugal  era  uma  potencia  marítima  e  mercantil,  e  só  começou 
a  sentir  vantagem  depois  da  descoberta  de  ambas  as  íodias;  a  sua  po- 
sição local  só  o  forçou  a  ser  uma  potencia  guerreira  com  um  reino  li- 
milrophe,  cioso  sempre  da  sua  prosperidade,  e  nunca  esquecido  das 
suas  antigas  pretenções;  mas  a  politica,  os  tratados,  as  allianças,  ti- 
nham de  todo  supprimido  o  rancor,  e  feito  esquecer  as  duas  épocas 
de  uma  liberdade  e  independência  felizmente  conseguidas;  e  n'este  es- 
tado devia  Portugal  dar-se  lodo  ao  coramercio,  utilisando  as  suas  vas- 
tas possessões  com  o  verdadeiro  caminho  da  sua  felicidade.  Portugal  co- 
nhecia o  que  tinha  dentro  em  si.  A  pezar  de  todas  as  especulações  so- 
bre a  agricultura,  todas  as  leis,  todas  as  providencias  dadas  pela  eco- 
nomia politica,  nunca  pode  haver  trigo  sufQciente  para  o  consumo  an- 
nual  da  sua  população:  eis  aqui  um  género  indispensável,  que  lhe  era 
preciso  haver  de  paiz  extranho,  e  este  género  era  comprado,  ou  era 
havido  pelo  metal  representativo  do  seu  valor.  Depois  d'este  género 
de  primeira  necessidade,  seguem-se  os  outros  de  que  carecia,  e  que 
o  coslun;e  convertido  em  natureza  linha  feito  indispensáveis,  e  até  os 
do  luxo,  cousa  necessária  em  as  monarchias,  apesar  das  declamações 
de  moralistas  melancholicos.  Isto  era  o  que  Portugal  não  linha;  mas 
nas  vastíssimas  possessões  ultramarinas,  as  mais  ricas  do  globo,  tinha 
tudo,  tudo  aquillo  de  que  as  nações  europêas  necessitavam,  e  as  suas 
transacções  mercantis  faziam  passar  pela  praça  de  Lisboa  trezentos  mi- 
lhões de  cruzados  annuaes.  Só  Londres  lhe  excedia.  Um  governo,  em 
apparencia  frouxo,  mas  profundamente  sábio  e  politico,  tinha  conver- 
tido com  apparente  condescendência,  Lisboa  em  um  porto  franquissimo: 
a  informação  dos  tratados  de  commercio  com  a  Inglaterra,  que  pare- 
cia impune,  e  não  procedia  de  frouxidão,  era  o  meio  de  tornar  o  com- 


302  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MA.CEDO 

mercio  mais  florecente,  e  de  enriquecer  sem  risco  a  praça  de  Lisboa 
(tenha  esta  asserção  dureza  no  commercio,  deve-se  altender  mais  para 
a  pratica,  que  para  as  occas  theorias).  Acima  de  quatrocentos  navios 
andavam  na  carreira  do  Brasil,  as  fazendas  exportadas  d'aquelie  vasto 
paiz,  em  tanta  abundância  como  diversidade,  eram  em  parte  compra- 
das em  Lisboa  pelas  nações  da  Europa,  e  era  parte  depois  de  estabe- 
lecido o  commercio  directo  como  Norte,  conduzidas  aos  seus  portos, 
por  especuladores  portuguezes.  Esta  abundância  dos  géneros  coloniaes, 
e  a  riqueza  inexhaurivel  do  numerário,  que  nunca  cessaram  de  dar  as 
minas  do  Brasil,  attrahiram  a  Portugal  todas  as  nações,  e  affluiram  to- 
dos os  objectos  de  necessidade,  ou  de  luxo.  Sabe-se  (nem  é  do  meu  in- 
stituto mostrar)  o  que  n'este  reino  importava  a  Rússia,  a  Suécia,  a  Di- 
namarca, a  Hollanda,  as  Cidades  livres,  a  França,  as  mesmas  potencias 
Berberescas,  e  sobretudo  a  Inglaterra,  ou  para  o  consumo  d'este  reino, 
ou  para  se  transferir  ao  Brasil,  fechado  com  a  mais  constante  severidade 
a  todas  as  nações  europêas,  para  fazer  a  opulência  de  Portugal,  ficava 
o  bem  que  agora  não  possue,  nem  possuirá  jamais.  O  reino  ficou  re- 
duzido pela  emigração  do  Príncipe  aos  seus  primitivos  limites  depois 
da  ultima  expulsão  dos  Mouros  do  Algarve  no  reinado  de  AíTonso  3.°, 
6  ficando  com  o  mesmo  território,  não  tem  os  mesmos  costumes,  as 
mesmas  necessidades,  o  mesmo  caracter,  as  mesmas  paixões,  o  mesmo 
espirito  que  então  linha  í  não  pode  por  isto  ser  a  mesma  monarchia 
que  então  foi. 

Exisie  em  guerra,  não  tem  exercito,  nem  organisando-o  o  pode 
manter,  vestir,  e  pagar;  não  tem  raetaes,  e  despojado  do  numerário 
que  existia  em  circulação  por  uma  exorbitanlissima  contribuição,  nem 
tem  dentro  em  si,  nem  tem  com  que  haver  de  fora  pelas  transacções 
mercantis  com  que  possa  refazer  esta  immensa  e  irreparável  perda: 
e  não  só  não  pode  já  adquirir  a  abundância,  mas  nem  ao  menos  sa- 
tisfazer a  necessidade.  A  classe  a  mais  opulenta,  e  a  mais  essencial, 
que  era  a  do  commercio,  está  constituída  ás  portas  da  mendicidade; 
os  fundos  que  ainda  possuía  dentro  do  paiz,  estão  exhauridos  pelo  pezo 
das  exacções,  e  pelo  progressivo  consumo:  os  fundos  que  tinha  nas  co- 
lónias estão  para  sempre  alienados,  ou  passe,  ou  não  passe  o  reino  a 
mãos  estranhas.  Os  proprietários  dos  navios  não  os  verão  cruzar  a  barra 
de  Lisboa.  Como  cessou  a  abundância,  e  a  riqueza  do  commercio,  fi- 
cou e  estará  sempre  paralisada  a  classe  dos  artistas  mechanicos;  aca- 
baram todos  os  objectos  de  luxo,  e  existe  mais  de  um  milhão  de  bra- 
ços ociosos,  innumeraveis  famílias  reduzidas  à  extrema  penúria;  a  po- 
pulação decrescerá,  e  diminuirá  diariamente,  e  por  isto  o  ultimo  re- 


PARECER  DADO  ÁCKHCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL       303 

curso  da  necessidade,  que  é  a  agricultura,  que  se  diz  agora  a  base  da 
grandesa  das  monarchias,  para  dar  um  ár  de  justiça  ao  desasisado  pro- 
jecto de  abater  uma  potencia  *  pela  ruina  de  todas  as  outras,  irá  em 
dinainuição.  A  emigração,  apesar  de  se  tomarem  as  medidas  mais  vio- 
lentas para  a  vedar,  augmentar-se-ha  todos  os  dias,  e  ficará  o  reino 
despedido  de  uma  terceira  parte  dos  seus  habitantes;  e  faltando  o  com- 
mercio  externo  e  interno,  é  chimera  querer  fazer  do  simples  Portugal 
uma  monarchia  independente  no  estado  de  guerra.  As  rendas  publi- 
cas, e  do  estado,  ou  se  extinguirão  de  todo,  ou  se  reduzirão  a  uma  tão 
pequena  somma,  que  não  bastarão  a  manter  uma  sombra  da  magestade 
e  do  decoro  de  um  monarcha;  e  consumidos  que  sejam  por  uma  vez 
na  terra  aquelles  géneros  que  o  paiz  em  si  não  tem,  e  que  vedado  o 
mar  lhe  é  preciso  atrahir  de  fora  com  despezas  incalculáveis,  ficam 
para  sempre  estancados  todos  os  recursos  de  haver  mais  (salvo  se  os 
homens  se  quizerem  reduzir  juntamente  com  os  monarchas  áquelle  es- 
tado de  intolerável  frugalidade  em  que  Portugal  existiu  nos  seus  dois 
primeiros  séculos).  Se  na  especulação  isto  parece  realisavel,  na  pratica 
é  impossivel.  E  que  poderá  representar  no  quadro  da  Europa  um  mo- 
narcha de  mendigos,  não  por  vicio,  mas  por  necessidade?  É  pois  ir- 
realisavel  a  soberania,  e  até  mesmo  a  conservação  de  Portugal  no  es- 
tado da  guerra  marítima,  que  uma  potencia  invencível  n'este  elemento 
faz  a  toda  a  Europa,  e  um  anno  de  tão  teimoso  bloqueio  reduzirá  os 
povos  europeus  á  mesma  condição  de  Portugal. 

Poderia  o  reino  manter  o  commercio  continental  com  as  potencias 
confinantes?  Não  poderá  existir  este  commercio,  ou  a  Hespanha  fique 
com  as  suas  colónias,  ou  as  perca.  Se  fica,  não  tem  que  tirar  de  Por- 
tugal, ainda  que  Portugal  podesse  haver  algj^mas  prodacções  do  Ultra- 
mar; se  não  fica  não  pode  trazer  a  Portugal  os  géneros  territoriaes, 
em  primeiro  logar  porque  lhe  não  sobram;  em  segundo  logar  porque 
tem  tudo  dentro  em  si  quanto  Portugal  lhe  podia  dar  em  commutação. 
Mas  feita  a  paz  marítima,  e  accelerando  esta  época,  poderá  Portugal 
ter  um  monarcha,  ser  independente  e  subsistir? 


^Este  é  o  especioso,  o  grande  pretexto  com  que  Bonaparte  pertende  curar  to- 
das as  suas  tentativas.  Diz  que  quer  abater  a  Inglaterra,  e  obrigal-a  no  abatimento  a 
fazer  a  paz.  Eile  sabe  que  a  Inglaterra^  bem  desenganada  como  está,  nunca  lhe  accei- 
taria  proposição  alguma.  Eile  suppõe  que  os  povos  desejam  subtrahir-se  á  influencia 
ingleza,  e  a  pezar  dos  protestos  dos  povos,  lhe  vae  introduzindo  exércitos,  que  nin- 
guém lhe  pede.  Roube-se  tudo,  e  seja  a  minha  família  de  reis;  eis  aqui  a  influencia 
d'Inglaterra  de  que  eile  quer  livrar  o  mundo  f 


304  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 


2.'  PROPOSIÇÃO 


No  estado  da  paz,  Portugal  desmembrado  do  Brasil  não  pode  ser  uma 
monarchia. 


CoDcedendo  por  um  inslante  só,  que  a  Inglaterra  por  algum  inci- 
dente accedia  á  paz  continental,  e  que  por  base  d'esta  paz  concordava 
na  desmembração  de  Portugal,  que  o  mesmo  Príncipe  do  Brasil  assen- 
tia á  perda  do  seu  incontestável  direito  á  posse  d'este  reino,  e  que 
n'elle  reconhecia  uma  potencia  estranha  e  independente;  com  todos 
estes  impossíveis  realisados  não  mudava  a  condição  presente  de  Por- 
tugal, nem  sabia  do  abatimento  de  miséria,  e  de  infelicidade  a  quem 
um  só  dia  o  reduziu.  Eu  ainda  concedo  mais  um  impossível,  que  é  o 
livre  accesso,  e  coramercio  aos  povos  do  Brasil.  N'estas  falsíssimas  sup- 
posições,  que  possue  Portugal  que  transfira  ao  Brasil,  porque  possa  ha- 
ver o  seu  ouro,  e  as  suas  producções?  Sal,  e  vinho,  e  algum  azeite; 
o  primeiro  género  o  pode  haver  no  Brasil,  e  se  até  agora  se  não  per- 
mittiu,  assim  o  pedia  o  interesse  do  estado.  O  segundo  não  é  de  ex- 
trema necessidade  n'aquelle  clima;  o  povo,  e  classe  Ínfima  lhe  sub- 
stituo a  aguardente;  para  as  classes  superiores,  das  ilhas,  e  do  Cabo 
se  lhe  subministrará  em  abundância.  O  terceiro  género  é  muito  incerto 
em  Portugal;  tirando  o  necessário  para  o  consumo  interno,  pouco  so- 
beja, e  ainda  sobejando  muito,  que  pode  avultar,  para  cora  elle  extra- 
hir  do  Brasil  todos  aquelles  géneros,  e  em  tanta  copia  que  possam  re- 
produzir, ou  fazer  ver  um  pequeno  e  passageiro  vislumbre  do  antigo 
esplendor?  Trazer  do  Brasil,  da  índia  as  drogas  com  que  commerciar 
com  as  outras  nações,  eis  aqui  o  que  nunca  consentirá  a  Inglaterra,  nem 
pode  consentir.  Ainda  que  em  Portugal  se  desenvolva,  se  promova,  e 
se  dilate  a  industria  franceza,  e  chegem  aqui  á  ultima  perfeição  as  ma- 
nufacturas, os  tecidos  de  algodão,  de  lã,  e  de  seda,  o  estabelecimento 
de  fabricas  em  o  Brasil,  que  o  novo  monarcha  deve  de  necessidade  es- 
tabelecer, e  aperfeiçoar,  as  colónias  de  artistas  inglezes,  que  todos  os 
dias  crescerão  a  olho  n'aquelle  immenso  paiz;  a  introdução  infinita  das 
mesmas  manufacturas  inglezas  a  um  preço  commodo,  porque  os  ingle- 
zes, como  é  constante,  sabem  perder  a  tempo,  a  alluvião  dos  géneros 
da  Ásia  que  os  mesmos  inglezes  vasarão  no  Brasil,  tudo  isto  dará  desde 
logo  golpes  decisivos  e  mortaes  n'este  imaginado  commercio  de  Por- 


PARECEU  DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL      305 

tugal  independente.  Se  para  Portugal  como  potencia  independente  no  es- 
tado da  paz,  se  abrirem  os  postos  do  Brasil,  porque  se  não  abrirão  tam- 
bempara  as  outras  nações  europêas?  e  estabelecendo  com  ellas  um  com- 
mercio  directo,  que  poderá  figurar  no  meio  d'ellas  este  retalho  de  terra, 
pobre,  desprovida,  e  até  aqui  pouco  industriosa,  porque  até  aqui  foi 
excessivamente  rica?  Ainda  com  estes  dados  nada  poderá  ser  Portu- 
gal, que  devemos  olhar  desde  já  extincto  como  monarchia,  e  como  na- 
ção. Depois  d'isto,  quem  não  vê  que  depressa  se  despovoará  este  reino 
no  meio  de  uma  paz  constante,  e  que  ficará  reduzido,  ou  a  uma  char- 
neca continua,  ou  a  admitlir  colónias  francezas  para  conservar  a  sua 
população?  Os  interesses  de  família,  a  adhesão  ao  Príncipe,  aos  cos- 
tumes, ás  leis,  aos  usos,  á  liberdade  nobre,  que  têm  todos  os  portu- 
guezes,  as  mesmas  preoccupações  que  conservará  sempre  pelos  foros, 
pela, nobreza,  pela  corte;  o  invariável  respeito  e  amor,  que  conserva 
á  religião;  a  aversão  ao  trabalho,  que  é  do  caracter  nacional,  a  penú- 
ria domestica,  a  exclusão  dos  empregos  públicos  que  ha  seis  mezes 
completos  hoje  experimenta,  a  extincção  necessária  que  deve  haver 
em  repartições  do  exercício  de  justiça  e  fazenda,  a  certeza  de  um  es- 
tabelecimento commodo  em  um  novo  império  que  se  vae  a  crear, 
obrigará  a  uma  total  emigração  de  todas  as  classes.  Ficará  por  isto  para 
este  infehz  reino  tão  prejudicial  a  guerra  como  a  paz,  tornando-se  im- 
possível a  conservação  de  uma  monarchia  independente,  salva  sempre 
a  mania  de  reduzir  os  homens  ao  primitivo  estado  do  Pacto  social. 


5.»  PROPOSIÇÃO 

Portugal,  assim  como  as  outras  nações  cmlisadas  da  Europa,  não  pode 
ser  reduzido  ao  estado  primitivo. 

A  emigração  precipitada  do  Príncipe  isolou  a  Europa,  acendeu 
mais  o  facho  horrível  da  gerra,  e  removeu  indefinidamente  a  época 
da  paz,  influiu  em  todas  as  constituições  dos  povos.  Vemos  rompidos 
de  lodo  os  vínculos  que  nos  uniam  ao  novo  mundo,  e  que  faziam 
communs  os  bens  de  ambos  os  hemispherios.  O  uso  converteu  em  ne- 
cessidade inevitável  as  producções  da  America,  só  privativas  a  este  paiz, 
que  produzidas  em  tanta  copia  só  podem  bastar  ao  consumo  das  nac- 
ções  europêas.  As  riquezas  d^alli  vindas  estabeleceram  e  arraigaram  o 
luxo,  e  deram  outro  caracter  aos  costumes,  e  houve  mister  progressões 

CARTAS.  20 


306  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

lentas  e  infinitas  para  chegar  a  este  estado.  Depois  que  se  dissipou  a  se- 
gunda barbaridade  da  Europa  com  o  estabelecimento  das  artes  e  cul- 
tura das  sciencias,  começou  a  mesma  Europa  a  gastar  algumas  drogas 
orientaes,  vindas  a  Aleppo  e  Alexandria  pelo  isthmo  de  Suez,  e  con- 
duzidas pelos  Venezianos,  Pisanos,  e  Genovezes,  derramou-se  este 
gosto  por  todas  as  nações,  porque  também  vinha  com  elle  a  opulência. 
Despertaram  a  actividade  dos  Portuguezes,  franquearam  pelo  mar  a  pas- 
sagem para  a  índia,  e  esta  espantosa  descoberta  alvoroçou  e  mudou  a 
face  da  Europa,  estimou-se  o  que  era  regalo,  amoUeceram-se  os  cos- 
tumes com  o  luxo  asiático,  e  a  Europa  quiz  comer,  quiz  trajar  com  a 
mesma  pompa,  e  tudo  conseguiu  de  sorte  que  em  1550  ja  não  era  a 
mesma  Europa  de  1497.  Assim  progressiva  e  gradualmente  chegou  a 
dar  o  espectáculo  que  deu  a  França  sob  Luiz  14.°,  Portugal  sob  José 
1.°,  6  as  outras  nações  no  estado  em  que  as  vimos.  A  impulsão  que  as 
conduziu  a  este  ponto  foi  muito  vagarosa,  e  que  impulsão  bastará  para 
as  reduzir  ao  estado  de  que  ha  tantos  annos  (séculos  digo)  sairam,  e 
que  é  para  ellas  estranho,  repugnante,  intolerável?  A  momentânea  e 
repentina?  Eis  .aqui  um  sonho  politico,  e  que  não  se  metteu  ainda  em 
cabeça  ao  mais  esturrado  publicista.  Suspirou  por  este  estado,  e  até 
pelo  insocial  o  atrabiliário  João  Jacques,  e  esta  chimera  ficou  nos  seus 
incendiários  escriptos^  e  como  pode  esta  chimera  realisar-se  agora  por 
um  capricho  tomado  por  vingança ?2  Para  excluir  os  Inglezes  de  todos 
os  portos  do  continente  poderão  todos  os  povos  renunciar  a  todas  as 
commodidades,  prazeres,  riquezas,  commercio,  artes  liberaes  e  fabris, 
luxo,  e  reduzir-se  á  simples  agricultura  para  o  simples  necessário,  e 
farão  isto  em  um  só  momento,  sem  violência,  sem  o  sentimento  das 
privações,  e  do  estado  de  polidez  passarão  ao  de  semibarbaros,  com 
a  mesma  pressa  com  que  se  muda  no  theatro  a  vista  de  um  palácio  na 


1  Joãa  Jacques  é  o  mais  contradictorio  de  todos  os  homens.  Suspira  pelo  estado 
insocial,  e  escreve  o  Contracto  Social;  grita  cora  veheraencia  contra  os  romances,  e 
escreve  uma  novella  voluptuosa :  grita  contra  os  theatros,  e  escreve  comedias.  Deita 
os  filhos  na  roda,  e  escreve  o  Emilio.  Levanta-se  contra  a  musica,  e  vive  de  a  trasla- 
dar. Suspira  pelos  bosques,  e  não  ha  forças  que  o  arranquem  de  Paris.  Declara  guerra 
aos  grandes  por  toda  a  parte,  e  morre  em  casa  de  um  marquez.  E  é  este  o  idolo  dos 
regeneradores  do  globo  I 

2  Os  Krancezes,  que  annunciavam  e  assoalhavam  com  todo  a  emphase  da  impos- 
tura esta  pretendida  frugalidade  pela  extincção  do  commercio^  e  abandono  das  coló- 
nias^ se  mostraram  em  Portugal  insaciáveis  de  luxo,  e  de  delicias  asiáticas!  miserá- 
veis, que  sempre  andaram  descalsos  por  pobresa,  não  se  fartaram  de  carruagens,  co- 
miam pelas  ruas  assucar  aos  punhados^  adoravam  o  café,  e  até  quereriam  coser  o  ouro 
na  própria  pelle.  Os  Francezes  não  são  moralistas,  nem  políticos;  são  ladrões. 


PARECER  DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL       307 

Tista  de  uma  choupana?  Viverá  por  ventura  contente  a  Rússia,  redu- 
zida a  pastar  com  os  ursos  da  Livonia  e  da  Sibéria,  e  deixará  ou  po- 
derá deixar  a  navegação,  o  commercio,  olhará  com  indifferença,  e  até 
com  despreso  para  os  seus  teares,  para  as  suas  cordoarias,  e  um  mi- 
lhão de  artistas  opulentos  retirar-se-hão  para  a  Ukrania  e  Polónia  a 
cultivar  a  terra  para  só  comerem,  e  não  venderem?  A  mesma  França 
poder-se-ha  dividir  em  duas  partes,  mandará  os  velhos  para  a  lavoura, 
os  mancebos  para  a  milicia,  ir-se-ha  despovoado  quanto  se  fôr  derra- 
mando em  vasta  conquista,  onde  lhe  é  forçoso  manter  exércitos  sempre 
renovados?  E  persuadir-se-ha  que  acha  sempre  recursos  constantes 
fora  do  commercio,  da  navegação,  e  das  artes  de  luxo,  de  que  foi  sem- 
pre um  inexhaurivel  manancial,  e  com  que  soube  conservar-se  na  opu- 
lência, no  fausto  e  na  gloria,  sem  lagrimas  e  sem  sustos?  Poderá  a 
Itália  passar  do  século  dos  bailarinos,  gorgeadores,  e  jardineiros,  re- 
pentinamente para  o  século  dos  Fabricios,  Emilios,  Cincinnatos,  e  Ser- 
ranos? Deixará  as  poucas  sedas  que  tece  para  pegar  no  arado?  Mas 
esta  passagem,  ainda  que  violenta,  não  será  durável;  abatida  que  seja 
a  Inglaterra  pela  exclusão  das  suas  manufacturas,  syncope  do  seu  com- 
mercio, as  nações  tornarão  ao  seu  antigo  estado,  recobrarão  o  per- 
dido esplendor,  e  então  deixada  a  agromania  serão  ricos  peio  com- 
mercio. * 

4.»  PROPOSIÇÃO 

Com  a  guerra  feita  ao  commercio  não  se  abate  a  Inglaterra;  os  seus  re- 
cursos se  estenderão  até  ao  infinito  pela  emigração  do  Principe  de 
Portugal. 

Todos  os  princípios  que  estabelece  a  França  para  o  abatimento  da 
Inglaterra,  produzem  consequências  oppostos  e  contrarias  á  mesma 
França.  Creio  que  ha  para  as  cabeças  calculantes  entestadas  com  o  es- 
tranho Systema  continental  uma  moléstia  epideraica,  que  é  o  delirio. 


*  A  teima  mais  conhecida  de  Bonaparte  é  tirar  aos  Inglezes  o  senhorio  dos  ma- 
res; constituamol-o  por  ura  momento  nas  mãos  dos  Franeezes^  eis  aqui  a  Europa 
mais  desgraçada.  Com  o  mesmo  descaramento  com  que  Bonaparte  se  diz  o  déspota 
do  continente,  se  diria  e  se  faria  o  déspota  dos  mares.  Concedam-Ihe  no  mar  as  mes- 
mas forças  dos  Inglezes,  qual  seria  o  povo  que  não  ficasse  escravo  do  maior  tyranno 
que  viu  o  mundo?  Para  ter  tanto  império  como  César,  é  preciso  ter  os  talentos  de 
César. 


308  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

Não  só  parecem  desprovidas  de  conhecimentos  commerciaes,  mas  até 
mostram  que  não  têm  a  idea  que  exita  a  palavra  —  Commercio — .  Quan- 
do se  faz  guerra  ao  commercio  de  uma  nação  como  a  Ingleza,  faz-se 
ao  de  todas  as  outras  nações.  Só  ha  uma  nação  no  globo,  cujo  com- 
mercio se  arruinaria  sem  que  as  outra  so£fressem,  que  é  a  China,  por- 
que nada  recebe  das  mãos  extranhas  mais  que  o  anfião,  que  paga  aos 
Inglezes  de  Bengala.  Para  mais  nada  sahiu  ainda  dinheiro  da  China. 
Se  os  Inglezes  fizessem  só  o  commercio  da  importação,  fechado  tudo 
nada  lhe  restava,  mas  talvez  que  a  exportação  exceda  a  importação. 
Por  um  mappa  eslatislico  do  anuo  de  1807  entraram  nos  portos  da 
Rússia  nos  dois  mezes  de  Junho  e  Julho  mil  e  duzentos  navios  ingle- 
zes em  lastro,  para  exportarem;  este  anno  de  1808  nenhum  entrará, 
salvo  as  formidáveis  esquadras,  que  nenhum  poder  destróe.  Não  nos 
apartemos  d'esle  paiz:  estão  fechados  os  seus  portos  ás  manufacturas 
inglezas,  e  não  está  estagnado  o  commercio  da  Rússia:  primo,  porque 
os  Inglezes  não  exportam;  secundo,  porque  os  Inglezes  não  deixam 
exportar  as  outras  nações.  Se  a  Rússia  tem  em  si  recursos  internos 
que  a  façam  subsistir  sem  luxo,  e  pode  soffrer  as  privações  dos  géne- 
ros coloniaes,  e  permanecer  particularmente  ociosa,  se  pode  dar  nova 
destinação  aos  seus  artistas,  e  deixar  estacionarias  as  suas  fabricas, 
quem  disse  aos  calculadores  que  falharão  aos  Inglezes  os  mesmos  re- 
cursos, e  a  mesma  tolerância  nas  privações,  e  nova  destinação  que  dar 
aos  seus  fabricantes?  Quem  disse  que  esta  supposía  estagnação  do  seu 
commercio  com  os  povos  europeus  acabará  na  Inglaterra  o  espirito  pa- 
triótico, e  desunirá  o  povo,  estancará  os  thesouros  do  mundo  de  que 
é  senhora,  e  a  obrigará  a  anniquilar  a  sua  marinha,  e  com  ella  perder 
o  senhorio  dos  mares,  e  a  pedir  ou  acceitar  as  vergonhosas  condições 
de  uma  paz  precária,  que  seria  em  todos  os  casos  mais  funesta  e  pre- 
judicial para  a  Grã-Bretanha  que  a  guerra  de  muitos  séculos?  Eis  aqui 
o  que  é  impossível  realisar-se;  e  querer  intentar  a  ruina  d'esta  nação 
por  um  golpe  parcial  dado  no  seu  commercio  é  um  rematado  delirio, 
é  orna  ignorância  crassissima  dos  immensos  recursos  da  Iglaterra.  A 
violenta  emigração  do  Príncipe  de  Portugal  forneceu  á  Grã-Bretanha 
meios  efficacissimos  de  eternisar  a  guerra,  de  engrossar  o  poder,  de 
dilatar  o  commercio,  de  amontoar  thesouros,  e  de  se  construir  sobe- 
rana absoluta  no  império  dos  mares.  Accrescentou-se  ao  seu  domínio 
uma  porção  da  America  maior  que  a  Europa  desde  o  Volga  até  ao  Me- 
diterrâneo, desde  o  Cabo  de  Finisterra  até  ao  Bosphoro  da  Thracia. 
É  verdade  que  não  tem  população  proporcionada  á  sua  extensão  por 
agora,  mas  virá  tempo  em  que  a  maior  parte  da  Europa  vá  povoar  o 


PARECER  DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL      309 

Brasil*  a  emigração  é  indispensável,  e  talvez  que  não  esteja  muito  re- 
mota a  época  em  que  toda  a  immensa  porção  do  globo,  que  corre 
desde  o  isthmo  de  Panamá  até  á  ponta  da  terra  dos  Pátagões,  ou  do 
Fogo,  banhada  pelos  dois  Oceanos,  Pacifico  e  Atlântico,  não  reconheça 
mais  que  um  senhor,  e  que  este,  o  maior  dos  impérios,  seja  uma  ver- 
dadeira e  vigorosa  colónia  ingleza.  Cortar-se-iam  estas  vantagens  á 
Inglaterra,  se  á  pancada  de  uma  vara  magica  apparecessem  repentina- 
mente em  todos  os  mares  forças  navaes  superiores  ás  suas,  que  se  po- 
dessem  apossar  com  a  rapidez  do  raio  de  todos  os  pontos  essenciaes 
que  ella  occupa.  Era  preciso  que  voasse  aos  ares  feito  em  pedaços  o 
fatal  propugnaculo  de  Gibraltar,  escolho  onde  se  quebram  as  impoten- 
tes fúrias  de  uma  nação  rival:  era  preciso  que  se  lhe  arrancasse  das 
mãos  a  ilha  de  Malta,  o  dominio  indirecto  da  Sicília,  que  perdesse  o 
Cabo  da  Boa-Esperança,  a  ilha  de  Ormuz,  a  de  Ceilão,  o  passo  do 
Sunda,  as  torres  e  os  baluartes  de  Malaca,  as  boccas  do  Ganges,  e 
ambas  as  suas  margens  do  norte  e  sul  até  Calcutá,  e  os  vastíssimos  e 
opulentíssimos  estabelecimentos  de  Bengala;  que  retrocedendo  os  ex- 
pulsassem do  Indostão  que  todo  é  seu  na  costa  e  contra-costa  do  Ma- 
labar, que  se  lhe  arrazassem  os  dois  famosos  empórios  do  seu  com- 
mercio,  as  cidades  de  Baçaim  e  Bombaim;  que  perdessem  o  que  tão 
gloriosamente  defendem  nas  rehquias  do  império  portuguez,  em  Goa, 
Bardes  e  Salsete.  Dêmos  por  um  instante  os  Inglezes  excluídos  de 
ambos  os  mundos,  e  sem  os  recursos  que  tiram  já  do  Brasil,  cujo  ouro 
passa  lodo  para  as  suas  mãos.  Obrigar-se-iam  a  acceitar  a  paz?  Nãol 
Eis  aqui  a  voz,  que  parece  ainda  sahir  do  mausoleo  de  Pitt.  Nós  se- 
riamos depois  de  todas  estas  ruinas  ainda  mais  projudiciaes  e  formi- 
dáveis aos  nossos  inimigos,  poderia  dizer  com  verdade  este  grande 
homem.  Com  effeito,  transtornados  todos  os  vastos  projectos  e  planos 
de  Pitt,  transferido  o  Brasil  a  outras  mãos,  que  não  fossem  portugue- 
zas,  arruinados  os  estabelecimentos  do  Cabo  da  Boa-Eesperança,  e  po- 
dendo alguns  milhares  de  Persas  organisados  em  exercito  por  aven- 
tureiros Francezes  em  um  dia  expulsar  os  Inglezes  da  Ásia,  e  corre- 
rem desde  a  ilha  de  Ormuz  até  á  enseada  de  Ainão  e  Cabo  de  Singa- 
pura, para  os  espancar  de  quantas  bahias,  surgidouros,  ancoradouros, 
portos,  praças,  fortalezas,  ilhas,  que  possuem  pelo  espaço  mais  de  três 
mil  léguas  pelo  norte  e  sul  de  toda  a  Ásia,  e  para  isto  atravessando 
tantos  impérios  diversos,  tantas  cordilheiras  de  montanhas  inaccessi- 
veis,  ramificados  do  Cáucaso  e  Gate,  quantas  correm  desde  as  fronteiras 


*Eu  procedo  na  hypothese  da  permanente  usurpação  de  Portugal,  e  d'aqaella 
cavillosa  divisão,  que  agora  nos  descobre  o  escripto  de  Cevallos. 


3iO  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

da  Pérsia  até  não  só  ao  Ganges,  onde  não  chegou  Alexandre,  que  não 
passou  do  Hydaspe,  rio  que  desemboca  no  Indo,  mas  até  Cantão,  exe- 
cutando-se  esla  façanha  rodamontica  pelo  exercito  Gallo-Persa,  ainda 
que  o  seu  monarcha  para  o  conduzir  deixasse  imperfeito  o  poema-epico  * 
que  anda  compondo,  annunciado  em  uma  gazeta  de  França,  execu- 
tando-se  tudo  isto,  não  restando  aos  Inglezes  mais  que  a  sua  ilha,  e  a 
inexpugnável  praça  de  Gibraltar,  devia  a  nação  jurar  a  guerra  eterna 
como  apoio  da  sua  independência  e  soberania.  Mas  que  guerra?  A  que 
talvez  não  lembrasse  ao  mesmo  Pitt,  porque  talvez  os  seus  cálculos 
profundíssimos  não  se  fundavam  sobre  dados  impossíveis.  A  guerra  de 
piratas,  com  que  infestariam  e  assustariam  o  mundo  inteiro,  arrui- 
nando o  commercio  e  a  navegação  de  todos  os  povos,  não  deixando 
coalhar  a  mais  pequena  esquadra.  Eis  aqui  tornados  em  formidáveis 
ladrões  os  que  não  quizeram  deixar  ser  commercianíes.  Não  podem 
ser  invadidos  na  sua  ilha,  por  que  os  Bretões  do  decimo-nono  século 
não  são  os  do  século  de  Júlio  César  e  de  Cláudio;  o  Oceano  e  as  Dunas 
lhes  formam  um  propognaculo  invencível.  É  uma  nação  toda  energia, 
toda  fogo,  e  um  só  espirito  anima  todos  os  cidadãos.  Deixemos  delí- 
rios, vejamos  a  nova  situação  da  Inglaterra,  e  a  influencia  que  n'ella 
teve  a  emigração  pretendida  do  Príncipe  de  Portugal  para  o  Brasil. 
Querendo  que  a  Inglaterra  não  tenha  outras  bases  mais  que  o  com- 
mercio, este  começou  ja  a  prosperar  e  a  dilatar-se  sobre-raaneira.  Eu 
prometto  ao  Brasil  colónias  de  todas  as  nações  europêas.  Rebus  sic 
stantibus;  a  primeira  que  de  necessidade  deve  emigrar  é  a  Hollanda, 
povo  activo,  paciente,  industrioso,  e  de  uma  fleugma  especuladora,  e 
que  conheceu  o  Brasil  por  experiência  e  posse;  prometto  a  emigração 
da  Dinamarca  e  da  Suécia:  eis  aqui  o  Brasil  povoado  de  colonos  e  de 
artistas.  A  emigração  de  Portugal  o  povoará  de  soldados,  de  proprie- 
tários 6  de  capitahstas,  as  minas  não  estão  ociosas;  aos  gentis  do- 
mesticados por  outra  politica  não  observada  até  agora  se  ajuntarão  os 
Africanos  conduzidos  sem  ferros,  e  eis  aqui  a  Europa  nos  confins  do 
Brasil.  São  incalculáveis  as  vantagens  que  a  Grã-Bertanha  tirará  d'este 
immenso  império.  Todos  os  metaes  encontrados  já  em  tanta  abundân- 
cia que  parece  vegetarem  com  as  plantas,  madeiras  de  construcção, 
eternas  na  duração,  nenhum  navio  seu  irá  mais  a  Riga  buscar  os  pi- 
nhos de  Livonia;  o  consumo  infinito  das  suas  manufacturas,  e  expor- 
tação exclusiva  das  producções  d'aquelle  vasto  paiz,  de  que  a  Europa 


*  Annuncia-se  esta  grande  obra  juntamente  cem  a  invenção  das  seges  de  aluguer 
pelos  especuladores  Persas,  em  a  Gazeia  de  Lisboa,  riferindo-se  ao  Monitor,  no  an- 
tigo—  Pérsia — . 


PARECER  DADO  ACERCA  DA  SITUAÇÃO  E  ESTADO  DE  PORTUGAL       3H 

toda,  até  a  enfraquecida  llalia  e  a  mesma  Turquia  necessita:  a  posse 
das  ilhas  da  Madeira  e  Açores  para  deposito  d'est3S  mesmas  produc- 
ções;  eis  aqui  mananciaes  inexhauriveis  de  riquezas  para  a  Inglaterra; 
e  no  estado  de  paz,  que  não  convém  á  Grã-Bertanha,  eu  prometto  todo 
o  commercio  do  Brasil  feilo  immediatamente  pelas  suas  mãos,  aquelle 
commercio  que  os  Inglezes  que  até  agora  faziam  no  infelicíssimo  Por- 
tugal. E  é  assim  que  a  França  intentou  abater  a  Inglaterra?  Parece 
que  assim  lhe  quiz  augmentar  o  poder,  e  accumulnr  os  thesouros.  O 
golpe  contra  ella  fulminado  resvalou  unicamente  sobre  Portugal,  não 
só  agonisante,  mas  extincto  para  sempre.  Se  houvesse  um  congresso 
de  representantes  de  todas  as  nações  para  ultimarem  a  grande  e  ne- 
cessária obra  de  uma  paz,  eu  votaria  que  se  não  começasse  a  delibe- 
rar sobre  este  objecto  da  consolidação  da  Europa  sem  que  o  voto  una- 
nime de  todos  os  povos  pedisse  o  restabelecimento  do  Príncipe  emi- 
grado no  throno  de  Portugal.  A  nenhuma  das  nações  seria  a  paz  van- 
tajosa sem  que  ella  se  levantasse  sobre  esta  base.  Mas  concordaria, 
accederia  a  Inglaterra  a  esta  proposição?  Ella  o  não  fará,  sem  attentar 
contra  a  sua  mesma  gloria,  poder,  riqueza,  e  soberania.  A  conserva- 
vão  do  Príncipe  no  Brasil  assegura  á  Inglaterra  para  sempre  o  senho- 
rio absoluto  dos  mares,  dá  um  consumo  infinito  ás  suas  manufacturas 
em  um  império  creado  de  novo,  e  que  necessita  de  tudo:  indemnisa-a 
da  perda  (se  alguma  sente)  do  vedado  com.mercio  continental;  obriga 
por  termos  as  outras  nações  a  haverem  das  mãos  dos  Inglezes  todos 
os  géneros  coloniaes,  ou  a  soffrerem  privações  continuas:  esta  conser- 
vação offerece  aos  Inglezes  dobrados  meios  de  perpetuarem  a  guerra, 
e  de  continuarem  o  fatal  bloqueio  do  continente,  em  que  os  povos  es- 
talarão, e  com  terrivel  e  espantosa  reacção  cahirão  sobre  a  origem  e 
causa  dos  males  do  mundo:  ^  esta  conservação  oíTerecerá  aos  Inglezes 
novos  recursos  para  o  commercio  e  defesa  das  suas  possessões  orien- 
taes.  Os  seus  transportes,  as  suas  esquadras  farão  a  sua  primeira  es- 
cala pelos  portos  do  Brasil,  ficando-lhes  mais  commoda  a  navegação 
do  que  lhes  ficaria  demandando  primeiro  a  ilha  de  Santa  Helena  e  depois 


iNão  foi  precisa  a  continuação  do  bloqueio  para  a  insurreição  da  Peninsula :  a 
inaudita  maldade  de  Bonaparte,  a  sevícia  e  a  rapina  levadas  ao  ultimo  excesso  pelos 
seus  malvados  satélites;  o  sacrílego  roubo  dos  monarchas  de  Hespanha,  despertou  os 
povos;  todos  se  armaram,  e  as  vantagens  constantes  dos  Ilespanhoes  são  o  thermo- 
metro  da  decadência  do  sanguinário  e  tyranuico  império  francez.  Todas  as  apparen- 
cias  indicam  o  ultimo  período  da  sua  existência,  e  o  Imperador  corso  terá  a  mesma 
sorte  que  o  seu  patrício  e  concidadão,  o  Rei  Theodoro:  tal  o  destino  dos  aventurei- 
ros sem  talentos,  e  dos  usurpadores  como  Phocas. 


312  OPÚSCULOS  INÉDITOS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

O  Cabo,  sendo  por  tudo  isto  a  emigração  do  Príncipe  para  o  Brasil  van- 
tajosa á  Inglaterra,  e  funesta  a  todos  os  outros  povos.  E  qual  será  a 
sorte  de  Portugal? 

5.»  PROPOSIÇÃO 

Portugal^  pela  emigração  do  Príncipe,  fica  o  mais  desgraçado  de  todos 
os  povos,  e  imitil  a  todas  as  potencias. 

Pela  primeira  e  segunda  proposição,  Portugal  nem  no  estado  de 
guerra,  nem  no  estado  de  paz,  desmembrado  das  possessões  ultrama- 
rinas, e  supposto  vago  de  direito  e  de  facto,  pôde  ser  uma  monarchia 
independente:  está  pois  reduzido  á  condição  mais  deplorável  a  que  até 
agora  tem  chegado  nação  alguma,  e  de  que  não  ha  exemplo  no  vasto 
quadro  da  historia  do  mundo.  As  conquistas  e  o  domínio  dos  Roma- 
nos no  tempo  da  republica,  ou  do  império,  não  reduziram  a  este  es- 
tado nação  alguma  das  subjugadas.  Era  um  reino  marítimo,  e  não  tem 
forças  navaes;  era  mercantil  e  não  tem  coramercio;  era  guerreiro  e 
não  tem  exercito;  era  conquistador  atê  aos  limites  da  terra,  e  não  tem 
nem  um  palmo  de  terra  das  conquistas  de  ultramar,  nem  as  Berlen- 
gas;  era  o  mais  rico  dos  secundários,  e  é  pobre  sem  recurso;  era 
activo  e  perfeito  nas  suas  manufacturas,  a  que  se  dava,  e  não  tem  nem 
uma  fabrica;  e  para  ser  ainda  mais  funesta  esta  espantosa  e  repentina 
metamorphose,  até  mudou  na  ordem  moral:  tinha  uma  legislação  fixa, 
e  passou  para  a  arbitraria,  tinha  caracter  seguro,  generoso,  egual,  in- 
tolerante de  costumes  extranhos,  e  passou  repentinamente  para  a  bai- 
xeza, para  a  infâmia,  para  a  vileza  da  adulação  *  e  para  sentimentos 
tão  servis,  que  não  só  devem  enjoar  os  seus  mesmos  dominadores,  mas 
fazel-o  o  horror  da  humanidade,  e  o  aborrecimento  dos  povos  da  terra. 
A  apathia,  a  indolência,  a  indifferença,  tendo  seus  limites  podem  cha- 
mar-se  virtudes  heróicas;  mas,  transgredidos  estes  limites  não  podem 
ser  mais  do  que  infâmia;  podia  subjeitar-se  nobremente,  deliberar,  e 
representar,  sem  que  perscindisse  d'estes  direitos  deixados  intactos. 


^A  este  funesto  estado  se  reduziu  pela  infidelidade  de  alguns  indivíduos  inimi- 
gos da  pátria;  elles  a  entregaram  aos  Francezes,  elles  os  aeclamaram  em  publico  the- 
atro,  e  está  demonstrado  que  existia  entre  nós  uma  seita  de  conspiradores  de  todos 
os  estados,  homens  iramoraes,  ou  tão  ingnorantes,  que  se  deixaram  illudir  das  cavil- 
losas  promessas  de  ladrões,  e  praza  a  Deus  que  ainda  este  pernicioso  espirito  de  par- 
tido não  permaneça  com  a  força  do  incêndio  debaixo  de  cinzas  I  Era  axioma  entre  estes 
perversos,  que  todo  o  homem  de  talentos  devia  ser  do  partido  francez,  e  estes  mal- 
vados fazem  votos  pela  ruina,  para  se  salvarem  na  destruição  da  pátria. 


PARECER  DADO  ACERCA  DA  SíTUACAO  E  ESTADO   DE  PORTUGAL      313 

até  á  mais  abjecta  escravidão;  emfim,  transformou-se  do  reino  flo- 
rescente, fundado  com  tanto  valor,  conservado  com  tanta  sabedoria, 
dilatado  com  tanta  gloria,  famoso  por  tantas  acções  illustres,  respeitado 
pelas  suas  virtudes,  distincto  pelos  varões  notáveis  em  todas  as  classes 
de  lilteratura,  em  um  aggregado  de  misérias,  opprobrios  e  ludíbrios 
sempiternos.  As  províncias  assolladas,  a  capital  soberbissima  e  opu- 
lentíssima, quasi  erma,  sem  fausto,  e  sem  representação.  Dentro  em 
si  não  tem  trigos,  não  tem  metaes  (tendo  aliás  minas  de  todos  elles) 
não  tem  géneros  coloniaes,  não  tem  pannos,  não  tem  dinheiro,  está  re- 
duzido á  simples  agricultura,  á  pescaria  litoral,  e  para  isto  mesmo 
falto  de  braços,  porque  a  diminuição  de  população  será  na  rasão  di- 
recta do  augmento  da  penúria  e  indigência.  Lisonjear-se  com  o  cha- 
mado futuro  brilhante,  é  querer  cegar-se  nas  bordas  do  abysmo  em  que 
vae  a  cahir  para  se  precipitar  mais  apressadamente.  Nunca  as  desgra- 
ças foram  caminho  para  a  felicidade;  estão  não  só  obstruídos,  mas  ex- 
línctos  de  todo  os  canaes  que  a  podiam  conduzir  unicanente  a  esta  rou- 
bada felicidade.  Se  a  Inglaterra  tentasse  com  força  armada  a  liber- 
dade e  restauração  de  Portugal*  veria  inutílisado  o  seu  risco,  aborta- 
das as  suas  delígencias,  apenas  apontassem  nas  fronteiras  imaginadas 
forças  que  o  quizessem  domar;  á  mais  pequena  intimação,  largaria 
tudo,  e  pagaria  uma  vil  continuação  da  existência  a  troco  de  voluntária 
escravidão.  O  seu  remédio  seria  considerar-se  uma  colónia  do  impé- 
rio do  Brasil,  com  uma  regência  livre  e  honrrada;  ou  desmembran- 
do-se  do  Brasil,  reduzir-se  a  uma  rigorosíssima  democracia,  para  imi- 
tar a  Hollanda  no  commercio,  franquear  os  seus  portos  a  todas  as  na- 
ções, negociar  com  os  géneros  do  paiz,  promovendo  mais  a  cultura 
dos  vinhos,  e  aperfeiçoando  as  suas  salinas,  navegando,  que  é  este  o 
génio,  e  traficando  com  os  géneros  exportados  da  America,  consen- 
tindo-o  a  Inglaterra,  pela  lembrança  da  antiga  adhesão;  estes  os  meios 
de  uma  tolerável  existência  para  os  Portuguezes:  se  não  é  que  sobre 
elles  se  realisa  algum  d'aquelles  fataes  decretos,  que  assignal-a  ás  mo- 
narchias  impreterível  termo. — Non  stabit,  et  non  erit  hoc,  et  adhuc  se- 
xaginta  et  quinque  anni  et  desinet  Ephraim  essepopulos.  Isaías,  cap.  7. 

Lisboa  29  de  Maio  de  1808. 

José  Agostinho  de  Macedo, 


^  Este  papel  foi  feito  a  29  de  Maio  de  1808;  ainda  a  Hespanha  nSo  tinha  desper- 
tado do  letliargo,  e  ainda  Portugal  não  conhecia  pela  ultima  experiência  a  intenção  dos 
Francezes.  Os  dois  principaes  objectos  que  o  devem  occupar  são:  primeiro  —  exlio- 
guir  a  raça  dos  conspiradores: — segundo  —  conservar-se  na  defesa,  ainda  depois  de 
segura  a  sorte  da  Hespanha,  e  restabelecido  Fernando  7.» 


3>T-B- 


Este  papel,  de  que  não  tinha  anterior  conhecimento,  foi-me  em- 
prestado em  11  de  Fevereiro  de  1848;  o  Iransumpto  estava  porém 
Ião  desfigurado,  não  só  por  uma  multidão  de  iDcorrecções  orthographi- 
cas  (em  geral  de  fácil  emenda),  mas  muito  principalmente  por  faltas  e 
erros  de  sentido,  que,  tratando  de  o  copiar,  foi  por  vezes  necessário 
adivinhar  o  que  o  auctor  disse,  e  ainda  apesar  de  todo  o  cuidado  al- 
guns logares  escaparam  em  que  não  foi  possível  completar  as  phrases, 
havendo  todavia  por  melhor  deixal-o  assim,  do  que  inserir  nos  perío- 
dos coisa  que  não  se  podia  reputar  inteiramente  conforme  á  letra  do 
original.  Se  no  futuro  encontrar  outra  copia  mais  correcta  farei  as  con- 
venientes emendas,  mencionando  as  variantes  que  se  offerecem.  —  En- 
tretanto, ninguém  versado  na  matéria  deixará  de  reconhecer  aqui  o 
estylo,  as  ideias,  e  os  sentimentos  de  J.  A.,  e  ainda  que  por  ventura  se 
occultasse  o  nome  do  auctor,  o  contexto  o  daria  facilmente  a  conhecer. 

Innocencio  Fran."  da  Silva. 


índice 


CARTAS  E  OPÚSCULOS  INÉDITOS 


PAO. 

Sobre  estes  Inéditos v 


Ao  Padre  Fr.  Joaquim  da  Cruz, 
Procurador  geral  do  Mosteiro  de  Alcobaça 


L—     ?      Julho 

de  1828 

1 

II. — 11  de  Agosto 
m.— 26  de  Agosto 
lY, —     ?      Setembro 

u               

2 

u 

3 

4 

V.—  8  de  Outubro 

5 

VI.— 17  de  Outubro 

s          

6 

Vil.— 20  de  Outubro 

7 

VIIL— 13  de  Novembro 

7 

IX. — •     ?      Novembro 

8 

X. —   3  de  Dezembro 

10 

XI. —     ?      Dezembro 

11 

XII. —   1  de  Dezembro 

12 

XIII.— 18  de  Dezembro 

12 

XIV.— 24  de  Dezembro 

14 

XV.—  24  de  Dezembro 

15 

XVI.—     ?      Dezembro 

16 

XVII.—     ?      Janeiro 

de  1829 

17 

JÍVIlI.—     ?      Janeiro 

18 

XIX. —  5  de  Fevereiro 

>       

19 

316  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

PAG. 

XX.—     ?     Março        de  1829 20 

XXI.—     ?     Março             .       21 

XXII.—     ?      Abril              .       22 

XXIII.—     ?      Maio               .       23 

XXIV.—     ?      Maio               »       24 

XXV.—     ?      Maio               »       25 

XXVI.—     ?     Maio               .      26 

XXVII.—     ?        ?                 .      27 

XXVIIL— 29  de  Maio               »      28 

XXIX.— 14  de  Junho             »      29 

XXX.— 30  de  Junho             »       30 

XXXI.—  7  de  Julho             »      31 

XXXII.— 27  de  Julho              »      32 

XXXIIL—     ?      Agosto            . 33 

XXXIV.—     ?      Agosto            »       35 

XXXV.—     ?      Setembro         »       36 

XXXVI.—     ?      Setembro        «       37 

XXXVII—     ?      Setembro        »       39 

XXXVIII.—     ?      Novembro       »       40 

XXXIX.— 11  de  Novembro       .       41 

XL. — 14  de  Novembro       »       44 

XLI.— 28  de  Janeiro       de  1830 46 

XLII. —  6  de  Fevereiro        »       48 

XLIII.—  9  de  Fevereiro        »       50 

XLIV.—     ?      Fevereiro        »       51 

XLV.—     ?     Dezembro    (1829) 53 

XLVI.—     ?      Março        de  1880 55 

XLVIL—     ?      Março             .       56 

XLVÍIL— 20  de  Março             .       59 

XLIX.—     ?      Março             »       61 

L. —   1  de  Abril               »       » 

LI.— 20  de  Abril              »      63 

LII.—  2Í  de  Abril               »       64 

LIIL—     ?     Maio              »      65 

LIV. —  Sem  data » 

LV.—        .        67 

LVÍ.—        .        68 

LVIL—  8  de  Junho       de  1830 70 

LVIIL—     ?      Junho             .       71 

LIX.— 30  de  Junho             »       73 

LX.—  5  de  Julho             »       76 

LXL—     ?      Julho             »       77 

LXII.— 15  de  Julho             »       79 

LXIIl.— 27  de  Julho              »       80 

LXIV.— 23  deMaio              »       81 

LXV.— (10  de  Junho  de  1827) 84 

LXVI— (1  de  Dezembro  de  1827) 85 


índice  317 

PAG. 

LXVII.— Sem  data 87 

LXVm.— Sem  data 

LXIX—        "        88 

LXX.—        »         (Fragmento) 

LXXL-        »        90 

Lxxn.—     »      

A  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura 

I.— 16  de  Novembro  de  1826 91 

II.— Sem  data 92 

III.—  6  de  Dezembro  de  1829 96 

IV.— 15  de  Maio          de  1830 Í25 

V.— 18  de  Dezembro        »       126 

VL—  26  de  Dezembro        »      i28 

A  Fr.  Francisco  Freire  de  Carvalho, 
Superior  no  Collegio  da  Graça  de  Coimbra 

I.—  20  de  Setembro  de  1806 133 

U._  7  de  Fevereiro  de  1807 135 

III. —   7  de  Março             »      137 

IV.— 21  de  Maio         de  1808 140 

V.— 30  de  Maio              » i43 

VL—  3  de  Julho        de  1812 144 

Vn.—     ?      Outubro        »      146 

VIU.— 10  de  Julho        de  1813 147 

A  um  amigo  do  Vigário  Geral 

30  de  Julho  de  1829 151 

Ao  Arcebispo  Vigário  Geral  D.  António  José  Ferreira  de  Sousa 

I.— 24  de  Setembro  de  1824 153 

n.— 23  de  Junho       de  1827 154 

lU.— de  1828 155 

IV.— 15  de  Junho   de  1829 156 

V.— 27  de  Junho     "   159 

VL— 21  de  Maio        de  1830 161 

Ao  Dr.  Fr.  Domingos  de  Carvalho,  graciano, 
lente  de  prima  de  Theologia  na  Universidade  de  Coimbra 

L—  7  de  Agosto      de  1829 163 

II.— 19  de  Agosto          .      1^6 


318  CARTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

PAG. 

III.—  7  de  Fevereiro  de  1830 168 

IV.— 16  de  Fevereiro       » 170 

Aviso  régio 172 

A  Fr.  Christovam  Henriques,  religioso  do  Convento  da  Graça 
20  de  Abril  de  1827 173 

A  Joaquim  António  Xavier  Annes  da  Costa, 
Administrador  da  Imprensa  regia 

12  de  Junho  de  1827 175 

A  Joaquim  José  Pedro  Lopes 
?     Dezembro  de  1825 17T 

A  Francisco  de  Paula  Ferreira  da  Costa 

I.—  Sem  data 179 

II.— 30  de  Outubro  de  1830 » 

Ao  Desembargador  José  Ribeiro  Saraiva 

I.—  29  de  Janeiro  de  1829 181 

IL— 15  de  Abril     de  1830 184 

A  Cláudio  Joaquim  dos  Santos 

I.— 26  de  Abril  de  1829 185 

II.— i9  de  Junho       »      188 

A  Fr.  Álvaro  Vahia, 
Secretario  geral  da  Ordem  de  S.  Bernardo 

10  de  Abril  de  1830 189 

Aos  Senhores  Investigadores 
18  de  Junho  de  1812 191 

A  António  Feliciano  de  Castilho 

13  de  Agosto  de  1824 195 


índice  319 
Á  Freira  Trina  D.  Feliciana  R . . .  do  Convento  do  Rato  , 

PA». 

L— 30  de  Janeiro     de  1820 199 

ÍI. —  1 1  de  Fevereiro       »       > 

III  — 18  de  Março            »       200 

IV.— 17  de  Fevereiro  de  182 201 

V. — 19  do  Fevereiro       »      » 

VI. —  21  de  Fevereiro       »      202 

VII.—  Sem  data 203 

VIII.—       »        » 

IX.—       »        204 

X—        "        20o 

XI.—       r,        206 

XII.— 16  de  Junho    de  1821 „ 

XIII.— 16  de  Janeií-o  de  1822 207 

XIV.— Sem  data 

XV.—       »        208 

XVI.—       »        209 

XVn.-       210 

xvm.—     .      „ 

XIX._       .        211 

XX. —           »             n 

XXÍ.— 22  de  Março  de  1822 212 

XXII.—  Sem  data 213 

XXIII.—       » 214 

XXIV.— 28  de  Fevereiro  de  1822 „ 

XXV.—  Sem  data 215 

XXVI.—       »        216 

XXVU.—       «        217 

XXVIII.—       .        218 

XXIX.—       219 

XXX.—       »        220 

XXXI.—       n        221 

XXXII.—       »        222 

XXXIII.—       ..        223 

XXXIV.—       »        » 

XXXV.—       »        224 

XXXVI.—       ..        226 

XXXVII.—       «        „ 

XXXVIIL—        .        227 

XXXIX.—       >>        , 

XL.—       »        228 

XLI.—       » 229 

XLII-—       ..        231 

XLIII.—       .        , 

XLIV.—       »        .   332 

XLV.—       »        233 


320  CAUTAS  DE  JOSÉ  AGOSTINHO  DE  MACEDO 

PAG. 

XLVL—  Sem  data 334 

XLVII.—       »        235 

XLVIIL—       »        236 

XLIX.—       »        237 

L. —       »        » 

LI.—       »        238 

LIL—       »        239 

Lin.—       »        » 

LIV.—       «        240 

LV.—       »        241 

LVL—       »       » 

LVIL—       »        » 

Requerimentos  á  Mesa  do  Desembargo  do  Paço 

?     Junho  de  i819 , 245 

22  de  Junho       »      247 

?      Junho       »      249 

Outro » 

Representação,  conjunctamente  com  J.  J.  Pedro  Lopes 250 


OS^TJSOXJILOS    laSTEIDITOS 


Kesposta  do  General  Marmont  ao  antigo  Auctor  do  velho  Telegrapho, 

Mr.  de  TO 255 

Carta  do  Dr.  Manuel  Mendes  Fogaça  ao  seu  Amigo  transmontano  sobre 

os  Periódicos  do  tempo 267 

O  Boi  no  chão.  Obra  extrahida  dos  Manuscriptos  do  defuncto  Enxota-cães 

da  Sé  de  Lisboa_,  dado  á  luz  por  seu  sobrinho  André  Calado 281 

Parecer  dado  acerca  da  Situação  e  estado  de  Portugal,  depois  da 
sabida  de  Sua  Alteza  Real,  e  Invasão  que  n'este  reino  fizeram  as  Tropas 
francczas 296 


N.  B.  De  Innocencio  Francisco  da  Silva 314