OBRAS INÉDITAS
DE
JOSÉ HGOSTIiO OE
CARTAS E OPÚSCULOS
DOCUMENTANDO AS MEMORIAS PARA A SUA VIDA INTIMA
E SUCCESSOS DA HISTORIA LITTERARIA E POLITICA DO SEU TEMPO
COM UMA PREiAÇÃO CRITICA
TIIEOPIIILO BRAGA
Sócio effectivo da Academia
LISBOA
Por ordem e na Typograpliia da Academia Iteal das Sciencias^
1900
4 3'*'
OBRAS INÉDITAS
OSÊ AGOSTINHO DE MACEDO
CARTAS E OPÚSCULOS
TRABALHOS ACADÉMICOS
TI3:EOIȣ3:IIjO BII.A.G!--A.
Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrucção
publica portugueza.
Tomo I (1289 a 1555.) xvi-600 pag. Lisboa. 1892. In-S." gr 1 vol.
Tomo 11 (1555 a 1700.) 8i6 pag. Lisboa, 189i. In-S.» gr 1 »
Tomo Hl (1700 a 1800.) 772 pag. Lisboa, 1898. In-8.° gr 1 ..
Tomo IV (1800 a 1872.) No prelo 1 »
Dom Francisco de Lemos e a reforma da Universidade de Coimbra. In-4."
XLii-168 pag. Lisboa, 1894 1 »
(Vem publicado nas Memorias da Academia, tomo vir, parte i, da 2.*
Classe, servindo de introdueção á Relação do estado da Universidade de
Coimbra de 1772 a 1776, apresentada ao governo por Dom Francisco
de Lemos.)
Centenário do Descobrimento da America. Lisboa, 1892. In-4.° 20 pag.
(Serviu de introdueção ao volume das Memorias da Academia: Comme-
moração da descoberta da America) Folh.
Memorias para a Vida intima de José Agostinho de Macedo, por Innocen-
cio Francisco da Silva. Obra posthuma: organisada sobre três redac-
ções de 1848, 1854 e 1863, e ampliada em quanto a Documentos e Bi-
bliographia por Theophilo Braga. Lisboa, 1898. In-8.° xx-440 pag — 1 vol.
Obras inéditas de José Agostinho de Macedo — Cartas e Opusculos, do-
cumentando as Memorias para a sua Vida intima, e successos da Histo-
ria litteraria e poUtica do seu tempo. Com uma prefação por Theophilo
Braga. Lisboa, Typ. da Academia, 1900. In-8.° gr. xLvni-230 pag 1 vol.
Censuras a diversas Obras, (1824 a 1829) com varias Composições lyricas,
didácticas e dratnaticas. — Com um Estudo sobre a Censura litteraria por
Theophilo Brnga. No prelo 1 vol.
Proposta para a impressão dos Cancioneiros trobadorescos portuguezes,
apresentada na sessão da 2.* Classe da Academia em 24 de fevereiro de
1898. Typ. da Academia Folh.
(Liga-se-lhe o Parkcer da Secção de Historia, em contrario, assignado
pelos académicos Gama Barros relator. Silveira da Motta e Teixeira de
Aragão.)
A Congregação do Oratório em Portugal. Preambulo ás Cartas autographas
meditas do ?.•= Barlholomeu de Quental. (Ein preparação.)
OBRAS INÉDITAS
DE
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
CARTAS E OPÚSCULOS
DOCUMENTANDO AS MEMORIAS PARA A SUA VIDA INTIMA
E SOCGSSSOS DA HISTORIA LITTERARIA E POLITICA DO SEU TEMPO
COM UMA PREFAÇÃO CRITICA
TflEOPIIiLO DRAGA
Sócio effectivo da Academia
LISBOA
Por ordem e na Typograpliía da Academia llcal das Sciencias
1900
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in 2010 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/obrasineditasdej01mace
SOBRE ESTES INÉDITOS
Chegou a formar-se antes de 1860 uma sociedade com o fim de
publicar as Obras inéditas de José Agostinho de Macedo; o possuidor
de um grande numero de autographos e copias, José Pedro Nunes, pre-
stava-os para a impressão, e Innocencio Francisco da Silva organisava a
disposição dos volumes com annotações e commentarios, acompanhando
tudo com o livro que compozera das Memorias biographicas de José Agos-
tinho de Macedo; não faltava quem corresse com as despezas e mais tra-
balhos editoriaes, mas, por circumstancias immanentes a um meio men-
tal mesquinho, a generosa empreza não se tornara effectiva. Desmem-
braram-se os Inéditos de José Agostinho de Macedo, e as Memorias bio-
graphicas escriptas por Innocencio permaneceriam na sombra, e per-
der-se iam, se a Academia real das Sciencias não accolhesse a offerta
do seu intelligenle possuidor, dando realidade ao frustrado pensamento
de Innocencio.
Estão já publicadas as Memorias para a Vida intima de José Agos-
tinho de Macedo; *^ seguem-se agora as Cartas, que documentam mui-
^ Um volume in-8.° grande, de xxiv-436 paginas, com o retrato phototypico, im-
presso na Typographia da Academia real das Sciencias. Os herdeiros de Innocencio,
"^1 SOBRE ESTES INÉDITOS
tos successos da vida do escriptor e factos importantes da historia lilte-
raria e politica do seu tempo; bem como as Censuras, de 1824 a 1829,
por onde se conhece o estado das idéas n'esse periodo agitado da im-
plantação do regimen constitucional. A collecção de Cartas, que for-
mam este volume, não constituem a Correspondência particular com-
pleta de José Agostinho, que chegou a reunir Francisco de Paula Fer-
reira da Costa; Innocencio, não podendo obtel-as todas, comprou co-
pias d'aquellas que mais documentassem a Memoria biographica em
que trabalhava. O culto pelo grande polygrapho approximara aquelles
dois colleccionadores acérrimos, mas sempre desconfiados um do ou-
tro ; os Inéditos de Macedo eram a única receita de que vivia Ferreira
da Costa, que a final vendeu tudo para comer na sua desamparada ve-
lhice.
Das collecções de Francisco de Paula Ferreira da Costa escreve
Innocencio:
«Não é menos para notar outra amplíssima collecção por elle for-
mada, dos escriptos do P." José Agostinho de Macedo (com quem teve
por largos annos tracto de intima amizade); a qual além de completa
no que diz respeito ás Obras impressas do celebre escriptor, por mais
insignificantes que sejam, contém todas as inéditas que d' elle se conhe-
cem, tanto em verso como em prosa, inclusive algumas centenas de Car-
tas missivas de sua correspondência, sobre assumptos politicos, littera-
rios, etc.» (Dic. bibl, t. m, p. 22.)
Ferreira da Costa, tendo seguido a causa de D. Miguel, soíTreu os
accidentes da lucta, tendo de fugir de Lisboa em julho de 1833 para
unir-se ao exercito, e ficando sem nenhum dos seus empregos sob o
regimen constitucional. A consequência foi achar-se no fim da vida sem
amparo, luctando com a miséria, tendo como único recurso o vender
copias dos Manuscriptos das Obras do V." José Agostinho de Macedo,
6 por fim vendendo por um conto e quinhentos mil réis todas as suas
que receberam metade da edição, acharam em livrarias portuguezas o preço de 50 réis
por cada exemplar ! Comprehende-se por que motivo Innocencio não pensou mais em
publicar o seu importante trabalho.
SOBRE ESTES INÉDITOS "VII
collecções bibliographicas ao corretor Pereira Merello. Da opulenta col-
lecção de Poemas, que hoje flgura no Catalogo Merello, escrevia Inno-
cencio em 1839:
«Entre alguns milhares de volumes, ajuntados com diligente e in-
cansável curiosidade, e nos qnaes se comprehende bom numero de li-
vros porluguezes antigos, raros e estimáveis, conserva uma collecção
de Poemas nacionaes, impressos e manuscriptos (muitos d'estes auto-
graphos), a mais copiosa sem duvida que até agora conseguira reunir
algum bibliophilo dado a esta especialidade.» (Ib.J
As copias obtidas por Innocencio abrangem especialmente as Car-
tas dirigidas de 1828 a 1830 a Frei Joaquim da Cruz, Procurador ge-
ral do Mosteiro de Alcobaça, que então subsidiava a propaganda dou-
trinaria da Besta esfolada contra o Constitucionalismo; algumas outras
a Frei Fortunato de San Boaventura, caudilho da reacção absolutista,
a Ribeiro Saraiva e indivíduos menos representativos.
No empenho de ampliar o numero das Cartas obtivemos os atito-
graphos das que foram dirigidas a Frei Francisco Freire de Carvalho,
que nos confiou o seu sobrinho bisneto o garboso poeta Eugénio de
Castro, nosso dedicado amigo, e que abrangem uma época interessante
do escriptor, de 1806 a 1813. Também copiámos do Conimbrisense as
quatro Cartas dirigidas em 1829 e 1830 ao Dr. Frei Domingos de Car-
valho, graciano, lente de prima da Universidade, ás quaes Martins de
Carvalho, que as possuía, dera publicidade em 1871.
Ha porém no presente volume a série completa das Cartas á Freira
Trina do convento do Rato, de que Innocencio teve tradição, mas que
nunca conseguira vér, nem determinar o seu paradeiro. * Ha felicida-
des no trabalho do estudioso, como no do mineiro, que topa casual-
mente com os brilhantes de numerosos quilates, ou com os filões de
ouro que em um momento coroam todas as fadigas. Assim me aconte-
1 Nas Memorias para a Vida intima de José Agostinho de Macedo, p. 293, diz :
«Ha também uma collecçSo especial de setenta e tantas Cartas escriptas a uma Freira
trina do Convento do Rato pelos annos de 1821 e 1822, que não são por certo as me-
nos curiosas.» Erra no numero, porque a collecção é de 57 cartas.
VIII SOBRE ESTES INÉDITOS
ceu ao communicar ao meu leal amigo Brito Aranha, digno consócio
da Academia e meritissimo presidente da Associação dos Jornalistas,
o andamento em que levava a impressão das Cartas de José Agostinho
de Macedo; com a mais franca espontaneidade, e um nobilíssimo des-
interesse, confessou-me Brito Aranha que possuia no próprio autogra-
pho a coUecção das Cartas á Freira Trina do convento do Rato, e que
as punha á minha disposição para se enriquecer o monumento littera-
rio iniciado por Inuocencio Francisco da Silva. Que emoção de surpreza !
mais um raio de luz para dentro da alma do grande luctador, e ao
mesmo tempo que cooperação sincera, digna, desinteressada em an-
tinomia com os esconderijos e alçapões, tão frequentes entre os inves-
tigadores, que levam a prelibação do documento histórico até conser-
val-o mysterioso e quasi problemático. Brito Aranha contou-nos que
as Cartas á Freira Trina, que são a jóia impagável d'este livro, per-
tenceram a José Pedro Nunes; que este fervoroso colleccionador ma-
cedino tencionara vendel-as ao falecido visconde de Alemquer, e não
lhe convindo o preço as offerecera a elle como continuador do Diccio-
nario bibliographico porttiguez. Offerecendo-as para completarem este
livro, Brito Aranha conquistou mais um titulo de benemérito das let-
tras pátrias, e prestou á Academia um serviço inolvidável. E, para não
dar ao louvor a forma encomiástica, declaramos ainda que Brito Ara-
nha nos confiou o texto autographo das Censuras de José Agostinho de
Macedo, sobre o qual se faz a revisão typographica no respectivo vo-
lume.
Na coordenação das Cartas poder-se-ia ter seguido a ordem chro-
Hologica, sendo isso mais vantajoso para o estudo da vida de José Agos-
tinho de Macedo, com desvantagem dos documentos históricos, que fi-
cariam baralhados. Innocencio adoptou nas suas copias as séries, con-
forme as pessoas a quem as Cartas eram dirigidas; é plausível esta
disposição, que preferimos também, reservando para um estudo pre-
liminar o tracejar o quadro chronologico implícito n'ellas.
As Cartas mais antigas de José Agostinho de Macedo aqui reuni-
das começam em 1806, acceutuando uma época nova da sua indivi-
dualidade. Para traz ficaram as loucuras de uma mocidade turbulenta.
SOBRE ESTES INÉDITOS IX
em revolta cora a disciplina monachal, transferido de convento para
convento, expulso da communidade dos Gracianos, e sob a alçada da
Intendência da Policia, na agitação de delirio de um farte tempera-
mento que não se conforma com o seu meio. Porém esse sentimento
exagerado da sua personalidade, temperando-se n'essas mesmas vio-
lências, passou do estimulo de um delirio inconsciente a ser um im-
pulso de actividade tendente a dar um relevo superior á sua individua-
lidade. O alienista Maudsley, na Palhologia do Espirito, descreveu luci-
damente estas duas phases, quando em um caracter commum predo-
mina «um sentimento pessoal exagerado e mal temperado, em conse-
quência do qual resulta a incapacidade de ver as cousas nas suas ver-
dadeiras relações e nas suas verdadeiras proporções. Um sentimento
vivíssimo do eu, com poucos conhecimentos e pouca vontade, é o estofo
favorável ao desenvolvimento da paixão egoista, quer se trate da pai-
xão que se traduz pelos esforços que faz o individuo para se satisfa-
zer a si próprio, a ambição, a avareza, o amor, ou se trate da paixão
que indica a recção do eu contra o que se oppõe á stfa satisfação, como
a inveja, o ciúme, os resenlimentos de amor próprio, a dependência.
E a expressão natural de uma tal paixão levada ao extremo é o de-
lirio.» *
Todo o passado de José Agostinho de Macedo resultou d'este ex-
cesso de sentimento da personalidade, servindo-se os seus antagonis-
tas das deploráveis manifestações do delirio que até á morte lhe ex-
probraram.
Começou, porém, um tempo em que esse temperamento forte ven-
ceu os estimules que o desvairavam, servindo-se d'essa energia para
um maior relevo de caracter. Foi uma nova manifestação da existên-
cia, na sua mais intensa actividade pessoal e inQuxo social. Maudsley
descreve esta phase psychologica: «Apesar de tudo, ha grandes van-
tagens em ter o sentimento exagerado do seu valor; elle dá energia
e vigor ao caracter; o que por vezes é um mal, dando força a convic-
ções acanhadas, o que inflamma um zelo intemperante, pode prestar
Pathologie de 1'Esprit, p. 262.
X SOBRE ESTES INÉDITOS
serviço ao individuo, permiltindo-lhe reagir fortemente á opposição, re-
sistindo inteiramente só.» E concluindo: «Pode-se pois notar que o
sentimento do seu valor pessoal dá o poder a um individuo de tor-
nar-se ura reformador, ou o leva a ser um alienado, conforme as cir-
cumstancias da vida lhe são ou não favoráveis, e segundo o maior ou
menor gráo de capacidade intellectual ou da vontade com que elle se
acompanha.» Menos forte e saudável, menos intelligente e activo, José
Agostinho de Macedo ficaria um frade devasso, morrendo obscuramente
em algum in pace, ou na enxurrada da gentalha; esse excesso do sen-
timento da personalidade, que tantas vezes prorompe no orgulho litte-
rario, suscitou-lhe a ambição de um reformador, começando pela as-
piração a transformar a Litteratura e por ultimo a dirigir a Politica,
sendo o único elemento de resistência doutrinaria na crise da transi-
ção do regimen do Absolutismo para o das Cartas outorgadas. Toda
a sua existência é uma documentação d'essas doutrinas da psychologia
pathologica, e synthetisa-se nitidamente na fórmula de Maudsley.
Na época em que José Agostinho entra em correspondência com
Frei Francisco Freire de Carvalho, superior do Collegio da Graça, de
Coimbra, ha ainda reminiscências á vida desenvolta, mas preoccupa-o
acima de tudo a ambição de uma reforma da Litteratura portugueza.
Lêa-se a carta datada de 20 de setembro de 1806; a nação acha-se com-
primida enlre duas potencias, a França napoleonica e a Inglaterra que
dirige a reacção continental, e a Litteratura está como o espirito na-
cional, apagada e quasi extincta; José Agostinho tem uma fé: «virá um
tempo em que o gosto desperte.» Elle próprio quer metter hombros a
essa empreza e denuncia-lhe o seu plano: «Eu trago em vista uma pe-
quena Arcádia, onde poucos opponham uma barreira ao veneno das Bo-
cagiadas e das NissenadaSj, que infestam o Tejo e o Mondego. Veja se
atlrae o não sabido Costa, moço de génio, e se acorda outros.» (P. 13o.)
Em primeiro logar José Agostinho estava ainda sob a impressão
prestigiosa da Arcádia lusitana, e seguindo esses moldes imaginava
estabelecer uma disciplina de gosto, sem conhecer que o gosto é uma
resultante do aperfeiçoamento geral dos costumes e da elevação das
idéas. Aquelles que mantendo o culto de admiração por Bocage, imi-
SOBRE ESTES INÉDITOS XI
tando a sua maneira, ox)mbatiara desesperadamente contra a persona-
lidade de José Agostinho, reuniam-se no botequim de José Pedro da
Silva, a que chamaram a Arcádia das Parras, consagrando automatica-
mente esse antigo e geral prestigio.^ José Agostinho, apesar de em 1806
estar morto Bocage, ainda luctava com a sua sombra: «O astro Moniz
eclipsou-se, cousa fatal, desappareceu esta nebulosa estrella, ou lhe
não ponho a vista em cima ha oito mezes; amda não parou a desinthe-
ria que inquieta as cinzas do exlincto vataihão Bocage, que mania!» Ap-
parecera por este tempo o retrato de Bocage em uma bella gravura de
Bartholozzi; Macedo incommodou-se com isso, e na carta referida nota:
«Viu já luz a grande estampa de Bartholozzi, acceitou a dedica Antó-
nio de Araújo, veode-se a 800 réis e gasta-se.» O rancor contra Bo-
cage exacerbou-se com a publicação da Sátira Pena de Talião, e con-
* Na Sátira inédita A Vingança das Musas, ou Abreu Lima'* transformado em
Burro, ha uma referencia á Arcádia :
Qual outr'ora os das Ménalas montanhas
Da Lusitânia, os Árcades zelavam
As leis, as justas leis, que o d'Estagira
E o de Venusa oráculo, dictaram,
Hoje, quasi, entre nós desconhecidas.
Coridon inimortal, o grande Elpino,
E os sócios divinaes que começaram
Co'as lições e co'exemplo memorando
A restaurar da Pátria a gloria antiga.
Que os Sás, Camões, Bernardes e Ferreira
ISas azas de ouro aos céos guindado haviam^
Lá do cume do Monte bipartido
A um sopro seu das faldas enxotavam
Nojosas gralhas, que piar ousassem,
E ao som encantador dos alvos cysnes
Afogadas no charco as rãs morriam.
Era já nova Athenas Ulyssêa.
Notar cumpre
Que inda que os sábios Árcades se extingam
Seus raios darão luz perpetuamente.
(Bibl. nac, Ms. n." 7008.)
* Padre José Manuel de Abreu Lima, auctor das comediai : O Duque de Saboya, U Serralliciro
bollandez, A c<mquista de Lisboa, Pedro Grande, etc.
XII SOBRE ESTES INÉDITOS
ira o grupo de Elmanistas, que se reunia no Agulheiro dos Sábios^ no
botequim das Parras, dando origem á primeira elaboração do poema
os Burros. Referveram as Sátiras e as criticas em prosa na improvisa-
ção jornalística, dando logar a vários Requerimentos de José Agostinbo
ao Desembargo do Paço contra Pato Moniz e João Bernardo da Rocha
Loureiro. * A lucta dos Elmanistas prolongou-se indefinidamente, e por
si constilue um capitulo da historia lilteraria do fim do arcadismo. José
Agostinho luctava também contra as Nicenadas ou as imitações de gosto
Filiníista. O nome poético de Francisco Manuel do Nascimento era Ni-
ceno, como o conheciam no tempo da Guerra dos Poetas em 1767;
D. Leonor de Almeida (Marqueza de Alorna), quando prisioneira de es-
tado em Odivellas, deu-lhe o nome de Filinto, ao qual depois da ex-
patriação em 1778 accrescentou o epitheto de Elysio, Durante o seu
longo desterro Filinto Elysio sustentou, de 1778 a 18 i8, uma incansá-
vel cruzada a favor da Litteratura e da Lingua portugueza. Não tinha
uma doutrina esthetica, mas por intuição approximou-se das fontes po-
pulares da tradição e da linguagem; sustentava a necessidade de se es-
tudarem os escriptores Quinhentistas, de aproveitarem as riquezas do
seu vocabulário, em grande parte archaico, combatendo por esse modo
os neologismos imbecis dos francélhos, que mesclavam o portuguez com
inopportunos gallicismos. Filinto Elysio, por falta de critério histórico,
manifestara-se também inimigo declarado da Rima^ e impunha o verso
solto como a forma perfeita da métrica.
Abundaram os sectários da eschola Filintista, que consideravam
o sympathico poeta desterrado como ura génio superior; não se deu
um rompimento entre Elmanistas e Filintistas porque Bocage, pouco
antes de morrer, recebeu de Filinto a consagração devida ao génio do
numeroso Elmano, que diante de uma tal apotheose concluiu uma Ode
com o verso feliz: «Zoilos, tremei! Posteridade, és minha.» O talento
irrequieto de José Agostinho de Macedo não se conformava com estas
* Acham-se de p. 24o a 238 d'este volume. Deu-nos indicação d'esses Requeri-
mentos o nosso estudioso amigo Pedro Augusto de Azevedo, digno oífieial da Torre
do Tombo.
SOBRE ESTES INÉDITOS XIII
mntuas glorificações e pensou em atacar também as Nicenadas. Como
tinha combatido de frente com Bocage, prejudicava-o o assalto directo
com Filinto, foragido da pátria e abandonado pelos sens conterrâneos.
Suggeriu a alguém que entrasse na lucta; appareceu então uma Sátira
á influencia litteraria de Filinto com o titulo de Apologia das Obras no-
vamente publicadas por Francisco Manuel em Paris. As Obras a que se
refere são da edição de 1797 a 1801, o que nos limita o periodo da
redacção da Apologia. A sátira é anonyma, mas sabe-se, e soube-o Fran-
cisco Manuel, que a compozera a celebrada poetisa Viscondessa de Bal-
semão, D. Catherina Michaela de Sousa e Lencastre, mulher do minis-
tro Luiz Pinto de Sousa. * Mas quem moveria a poetisa Natércia, como
ella se denominava, a atacar o velho purista? Houve para isso sugges-
tão extranha; Filinto também soube que fora um frade, que era leigo,
quem suggestionara a auctora, que era velha. Effectivamente D. Cathe-
rina Michaela de Sousa nascera em 1749 e entrava muito pelos cin-
coenla annos; o frade de coroa que se tornara leigo era José Agos-
tinho de Macedo, expulso da Ordem dos Gracianos em 1792 e secula-
risado por breve de 27 de fevereiro de 1794.
Á critica de D. Catherina Michaela de Sousa allude Filinto, anno-
tando o verso: — Tu falias contra o bello consoante — : «Assim me ar-
guiu já Dcna Fufia de Rebique e Barambazes, n'uma Sátira que fez
contra os meus primeiros versos que imprimi; á qual ella (por maga-
Dice ou por estúrdia) poz o titulo de Apologia. Cá a tenho na gaveta,
cem as suas notas marginaes que lhe ajuntou o sr. Clemente de Oli-
veira e Bastos. Talvez que um dia lh'a remetta.»^ Incommodado com
as reflexões da Apologia, escreveu Filinto uma longa Sátira intitulada
Molhadura de certa Obrivha, e em nota explica-lhe o intuito: «Muitos
annos depois de correrem por este mundo algumas trovas minhas, que
primeiras imprimi, me veiu á mão uma Sátira contra ellas; e o amigo
que m'a deu nunca me quiz nomear a pessoa que a fez; somente me
disse (rindo) que a fizera uma mulher, e que a emendara um frade;
^ Innocencio^ na ecliçíio das Obras de Bocage, t. i, p. 423.
2 Obras, t. v^ p. 43. Filinto usava vários pseudonymos nos folhetos.
XIV SOBRE KSTES INKDITOS
que a mulher era velha, e tinha cara de bruxa, e que o frade era de
coroa, porém leigo. Não fiz então caso algum da Sátira, nem da velha,
nem do frade; etc.» * A questão levantada pela auctora da Apologia era
sobre a conveniência da rima na Poesia. O frade de coroa, porém leigo
ou secular, a que elle allude, era o P.® José Agostinho de Macedo, ex-
graciano, que no principio do século estava era proclamada revolta con-
tra as Nicenadas.
Apesar de resistir contra a influencia de Filinto, o P.' José Agos-
tinho de Macedo era arrebatado na corrente do estudo de Horácio, pro-
clamado como norma suprema da poesia por Filinto. Da sua traducção
das Odes de Horácio escrevia José Agostinho de Macedo a Freire de
Carvalho, em 1806: «Está impresso na Regia o primeiro volume da tra-
ducção de Horácio, em máo papel, género caríssimo» ; referia-se ape-
nas ás Odes^ e quanto ás Sátiras e Epistolas dizia-lhe: «se se gastar
(se. o 1.° volume das Odes) irá o segundo.» Do destino d'este segundo
volume, das Sátiras e Epistolas, falia mais tarde em uma carta ao
P.* Frei Joaquim da Cruz: «eu traduzi ha vinte e seis annos as Obras
de Horácio, as Odes, estrophe por estrophe e verso por verso, quanto
poude ser; aqui está um exemplar impresso, que escapou ao naufrá-
gio da maior maroteira que então se commetteu no mundo; como en-
tão sahiu a traducção de António Ribeiro dos Santos, que é basbalhada
por cabula, por intriga, por inveja, por adulação, por vaidade (como
traducçõesl!), Frei Marianno Velloso, frade de projectos botânicos e com
quem D. Rodrigo de Sousa Coutinho gastou um bom centenar de con-
tos, sumiu a minha edição, que nunca appareceu, nem se poz á venda,
e a outra metade das Obras de Horácio, que são as Sátiras e Episto-
las e a Arte poética manuscriptas, abalou no anno seguinte de 1807
com ella para o Rio de Janeiro, onde se afogou, que não vi mais tal
Horácio; fatalidades minhas!» (P. 66.) Em uma carta a Frei Domingos
de Carvalho, lente de prima de Theologia em Coimbra, torna a fallar
n'esta perda da sua traducção de Horácio. (P. 166.) Sob a influencia
íilinlista entregava-se ás traducções dos poetas latinos, empenhando-se
1 Ibidem, p. 38.
SOBKE ESTES INÉDITOS XV
a levar a cabo a versão da Thebaida de Slacio, que Bocage chegou a
rever, como o alardêa na memorável Sátira Pena de Talião, O mesmo
Francisco Freire de Carvalho, cora quem estava em communhão litte-
raria, usava o nome poético de Filinto Júnior, e o Costa era José Ma-
ria da Costa e Silva, que elle mais tarde satirisou em uma Ode, imi-
tando ou parodiando-lhe as palavras compostas com os donaires da
louçã lingua Filintia.
A corrente poética do principio do século xix esterilisava-se no
género didáctico, em um hybridisrao scientifico; Bocage entrou n'essa
corrente como traductor de poetas francezes, e José Agostinho teve
mais pujança lançando-se á ideaUsação de assumptos novos, com forma
original. D'aqui proviera a dissidência entre aquelles dois espíritos.
Macedo revelara-se com a Contemplação da Natureza, em 1802, e apre-
sentara á Censura em 1806 A Natureza, poema didáctico, que foi man-
dado denominar A Creação. Ailude a isso na Carta a Freire de Carva-
lho: «Venha a Lisboa, e dará um passo A Natureza, ou A Creação,
como quer o Tribunal (se. da Censura).» (P. 13i.)
O género didáctico tornara-se a manifestação mais predilecta do
seu talento, e em differentes épocas da vida, e através das mais acir-
radas polemicas de uma politica intransigente, ou das doenças mor-
taes que o victimaram, como a gota, a estranguria e a anasarca geral,
sempre trabalhou n'esses poemas, a Meditação, Newton e a Viagem ex-
tática ao Templo da Sabedoria. E estas elaborações poéticas, resentin-
do-se do seu génio exclusivamente rhetoricoeemphatico, desvanecem-no,
dando base ás expansões do sentimento exagerado da sua personali-
dade. Assim diz elle em uma carta a Frei Domingos de Carvalho: «O
poema Meditação, segunda edição, é único no seu género; o poema
Oriente vale mais que os Lusiadas, e avulta mais que o Caramuru do
nosso bom Durão. O poema Newton é um compendio de erudição an-
tiga e moderna. Pois meu bom amigo, nem me dão aquillo de que os
gregos eram só avarentos — Praeter laudem nullius avari. — O que os
portuguezes me não fazem, cuidam em fazer os estrangeiros. Não ha
muito me chegou de Boma um diploma da Academia Tiberina, que se
emprega no aperfeiçoamento das Sciencias e Boas Artes. De Nápoles
XVI SOBRE ESTES INÉDITOS
também me mandaram um outro diploma, e de Inglaterra me manda-
ram retratar, e alli está o artista para isso; mas com isto não se manda
ao açougue, nem melhora a minha sorte.» (P. 167.)
Todas estas circumstancias tendiam a excitar-lhe esse personalismo
que se traçava uma missão reformadora. O triampho sobre as suas an-
gustias económicas pela industria da prédica também o embalava na
segurança da sua importância pessoal; diz elle ao seu velho amigo:
«desde 1793, com o meu trabalho do púlpito, tive e conservo a mais
commoda subsistência; ele.» Os Sermões, que foram a sua primeira
fonte de receita, tornaram-se com a amplitude da aura popular e bur-
gueza uma das formas da acção politica que veiu a exercer nas luctas
do governo absolutista. Na Carta em endecasyllabos escripta a Freire
de Carvalho, em 21 de maio de 180S, descreve-lhe a sua situação de
pregador:
Eu vivo, caro amigo, pois não morre
A innumeravel turba dos carolas,
Encanzinados a louvar os Santos,
Que Lá na gloria repimpados jazem,
Zangados, como eu creio, da assuada
Que lhe fazem de cá roucas rabecas,
E as mentiras que eu prego, e mais os outros,
Que a pasmada plebécula suspendem,
Com frias Orações, Discursos ocos.
De vinténs basculhados inda ateimam. . .
(Cartas, p. IH.)
Os grandes acontecimentos da Politica europêa, que se reflectiam
em Portugal, fazendo que o seu rei o abandonasse, diante da invasão na-
poleonica, à occupação ingleza, não menos terrivel, fizeram com que a
personalidade de José Agostinho exercesse o seu critério apreciando os
acontecimentos no aspecto histórico e social. É de 29 de maio de 1808
o Parecer dado acerca da situação do estado de Portugal depois da sa-
hida de Sua Alteza Real e invasão que neste reino fizeram as tropas
francezas. (De p. 296 a 313.)
Ninguém viu mais claro o problema; emquanto os poetas e os
músicos celebravam o heroismo com que D. João VI fugira para o
SOBRK ESTES INÉDITOS XVII
Brasil, * José Agostinho via o triumpho da politica ingleza revelada no
discurso de Pitt em 1800, que resistia ao blocus continental desde que
podesse cruzar o Atlântico, e exportar para o Brasil as suas mercado-
rias e abastecer-se das matérias primas d'esse vasto território. José
Agostinho de Macedo conhecia a origem d'essa idéa do êxodo para o
Brasil: «este projecto sahiu primeiro da cabeça do maior politico de
Portugal, António Vieira.» E em nota accrescenta: «Alexandre de Gus-
mão o lembrou a el-rei D. João V; ambos se enganavam.» E diante da
realidade crua dos factos escreve: «mas nunca se realisaria, se a sup-
posta e até agora não vista força o não obrigasse; e o para sempre
dia memorável 30 de novembro de 1807 deu nova face ao mundo.» E
na conclusão do seu exame á situação desgraçada de Portugal apre-
senta-lhe o aspecto do seu futuro: «ou uma colónia do império do Bra-
sil, com uma Regência livre e honrada; ou desmembrando-se do Brasil,
rediizir-se a uma rigorosa democracia, para imitar a Hollanda no com-
í No Hymno patriótico, que se cantava no fim da guerra peninsular, e para o
qual o celebre maestro Marcos Portugal fizera a musica, exaltava-se D. João VI por
ter fugido para o Brasil^ abandonando a nação á invasão napoleonica:
Ao mar vos destes
A bem dos vassallos,
Jurando livral-os
Do ímpio poder.
E inaudita a inconsciência moral, maior ainda do qae a indignidade com que es-
tas cousas se escreviam e cantavam. Nas Rimas de Sabino : «Á partida de nosso au-
gusto Príncipe Regente para os seus estados da America pela próxima invasão dos
Francezes em novembro de 1807», lêem-se estes suggestivos tercetos:
Heroes tem Lysia ornado singulares,
. Mas nenhum lhe prestou tal garantia,
Qual foi Sexto João sulcando os mares :
Frustrando illusa a Gallia aleívosia,
João salva, deixando os pátrios Iarps_,
Ao sangue a Pátria, ao jugo a Dynastía.
{Rimas, p. 46.)
XVÍII SOBRE ESTES INÉDITOS
mercio, franquear os seus portos a todas as nações, negociar cora os
géneros do paiz, etc.» (P. 313.)
As intrigas politicas agradavam ao seu antigo génio aventureiro,
chegando a correr que fora empregado como policia secreto para se
descobrir a conspiração de Mafra pela qual D. Carlota Joaquina em
1807 planeara desthronar seu marido o rei D. João VI. Termina o
poema O Gama em 27 de janeiro de 18H, originando-lhe as virulen-
tas polemicas com Pato Moniz; ataca a mania dos Sebastianistas, que
no meio dos desastres nacionaes appellavam para um salvador, um
Soter, no apparecimenlo do vencido de Alcacer-Quibir. O poema dos
Burros torna-se o libello tremendo contra os litteratos, os frades e os
políticos do tempo que vae atravessando; está no seu vigor physico e
iníellectual, em um estado plethorico que lhe faz ser designado pela
alcunha do Padre Lagosta, e com uma fecundidade litteraria verdadei-
ramente vertiginosa. Em uma época de instabilidade de instituições e
de opiniões não admira que elle também cahisse na versatilidade de
caracter, combatendo aferradamente na velhice as idéas que proclamara
na virilidade.
José Agostinho de Macedo publicou em 1822 e 1827 as Cartas a
Joaquim José Pedro Lopes, em numero de trinta e duas, nas quaes jul-
gava os acontecimentos da Revolução de Vinte e da outorga da Carta;
Paulo Midosi, o amigo de Garrett, achava-se emigrado em Londres, e
começou a escrever uma série de Cartas em resposta a José Agostinho
sob o titulo De um Solitário da Serra de Cintra ao seu compadre La-
gosta; a primeira carta foi publicada no Porto em 1827, bastante mu-
tilada pela Censura; uma segunda e terceira Cartas foram apprehen-
didas na imprensa em Lisboa. Paulo Midosi escreveu dez Cartas, que
reuniu em um volume manuscripto, dedicado ao próprio P.^ José Agos-
tinho, em 14 de novembro de 1829, sob o pseudouymo de Simão da
Serra; n'ellas se encontram particularíssimas referencias á vida do vi-
rulento folliculario, e ás opiniões da época sobre a versatilidade do pa-
dre e contradicções das suas obras. Em uma Carta de 18 de dezembro
de 1830 a Frei Fortunato de San Boaventura escrevia Macedo: «O
Midosi e o Garrett ainda atiram.» (P. 127.)
SOBRE ESTES INÉDITOS XIX
Referia-se ás polemicas jornalisticas do Chaveco liberal do Paquete
e do Portuguez; esse período violento e final da sua vida acha-se do-
cumentado na collecção das Cartas ao Procurador geral de Alcobaça,
em que o homem odiado chega a despertar piedade. Entre a lucta
contra os Vintistas e a campanha da Besta esfolada ou contra a Carta
outorgada ha um episodio na vida de José Agostinho nada conheci-
do, e que é de um interesse vivo, em que se destaca a sua personali-
dade.
A collecção das Cartas á Freira Trina do convento do Rato com-
prehende-se entre as datas de 30 de janeiro de 1820 e fins de 1822.
Foi este o periodo mais activo de José Agostinho de Macedo, pregando
em todas as festas e arraiaes, e sendo ouvido com interesse, pela so-
noridade da sua voz e vehemencia das paixões que suscitava nas allu-
sões á crise politica do tempo. As freiras acreditavam no seu saber e
sentiam-se fascinadas pela auctoridade do padre, que as lisonjeava em
um galanteio molinosista. Na Carta xxxv conta uma anecdota caricata
de D. Joanna Thomazia de Brito Lobo de Sampaio, os seus antigos
amores do mosteiro de Odivellas, que por 1818 foram substituídos pe-
los de D. Maria Cândida do Valle, freira do convento de Goz, da ordem
das Bernardas: «A tal Mestra de Noviças me contou uma historia de
Joanna Thomazia, que eu não sabia; eil-a aqui tal e qual: As Bernar-
das, além do eterno officio, têm todos os dias o de Defuntos, e de
certo não é pelos que matam com a sua formosura e descrição ; a No-
viça, se a ha, levanta a primeira Antiphona de vésperas, e aponta o
Psalmo. Ensinou-a pois a Mestra, e disse-lhe: — Olhae, haveis de dizer
Me suscepit, de pé; e depois, DeuSj Deus meus, sentada; assim o fez
Joanna Thomazia, e disse tudo: Me suscepit j, de pé; Deus, Deus meus,
sentada, e tudo no mesmo tom latino e portuguez tudo junto, sem se
lembrar que a pé e sentada era a cerimonia; e desatando as freiras a
rir, ella muito arrenegada gritou para a Mestra: — Não me ensinasse
assim! Se você é Bernarda eu sou Dominica. Eu ri deveras, e não ha
um só destempero de Joanna Thomazia que não faça rir.» (P. 224.)
Na Carta em verso a Francisco Freire de Carvalho, Filinto Júnior,
de 21 de maio de 1808, em que manifesta inteíição de fugir de Lisboa
3X SOBRE ESTES INÉDITOS
por causa da occupação dos Inglezes, falla-lhe d'estes amores com a
freira de Odivellas:
Ha seis dias e mais, tudo anda em anciãs.
Se aos vulcaneos canhões a mecha chegam,
Lá me tens, bom Fiiinto, á desfilada,
Que não 'stou para vér moscas por cordas.
Vê se ha no monte Hermínio alguma gruta
Em que eu e uma Vestal mimosa e belln
Qtie aos ferros se evadiu, e me acompanha.
Possamos evitar a surriada
Das ameixas cruéis de todo o anno.
(Cartas, p. 142.)
José Agostinho não sahiu de Lisboa, e a Vestal volveu aos ferros
ou grades de Odivellas, continuando esse idylio freiratico; lisonjeava-a
na sua curiosidade litteraria, dedicando-lhe em 4815 as Cartas philo-
sophicas a Attico^ com um elogioso preambulo; e ainda em 1818 de-
dicou-lhe a novella Arrependimento premiado, que traduzira e publicara
anonymamente. Mas estes amores terminaram pelo triumpho de uma
rival, que D. Joanna Thomazia fizera notar a José Agostinho pela bel-
leza das suas cartas: D. Maria Cândida do Valle veiu attrahida do con-
vento de Coz para Odivellas, e d'ahi para casa do Padre, onde residiu
até á sua morte. A Lyra anacreontica, publicada em 1819, é dedicada
a D. Maria Cândida do Valle, que inspirara essas cem cançonetas. Não
admira pois que nas Cartas d Freira Trina falle com desdém de D. Joanna
Thomazia; mas o seu temperamento sarcástico também não poupava
D. Maria Cândida, pelos seus numerosos achaques de gata rósea nas
faces, segundo diagnosticava o medico Abrantes, e uma aneurisma no
pescoço. Offerecendo uma caixa preciosa á Freira Trina, que a não
queria acceitar, dizia-lhe: «Olhe que se fica vae ter ás mãos da Ma-
ria Cândida, e que esta não tem que lhe metter dentro mais que un-
guentos para a cara e ataduras para o pescoço, e das mãos da em-
plastrada é arrepanhada logo pelas gulosissimas das Portas da Cruz.»
(P. 206.)
E em outra Carta lhe refere: «desfez-se o triste encanto das mi-
nhas jornadas, pensões e cuidados, que tudo isto quer dizer que se au-
SOBRE ESTES INÉDITOS XXI
gmentou repentinamente o volume da aneurisma no pescoço da pobre e
attríbulada Maria Cândida...» (P. 227.)
Em outra carta conta-lhe uma aventura cómica passada com D. Ma-
ria Cândida, que fora apresentada a D. Miguel em uma funcção: «no
fim veiu El-rei acima tomar um refresco, já tinha conversado muito
commigo, e estando eu com a hostelenta de cara no meio de uma es-
cada por onde elle passava, beijei-lhe a mão, e elle me levantou, pe-
gando-me em ambas as mãos, e voltando-se para a Freira disse-lhe:
— Esta é sua irmã? Responde ella: — e uma fiel vassalla de F." Ex.' —
No dito não o mostra, acudi eu, e ella fazendo peor a emenda que o
soneto disse: — de V. Magestade. — Elle riu muito, e mais os que com
elle vinham, e como elle estava de confiança, pois até lhe disse que
alimpasse a cara que estava muito suada, remendei toda aquella scena
com esta exclamação: — Seja tudo para honra e gloria do bemaventu-
rado S. Bernardo! Ainda riu mais, e esqueceu-lhe por um pouco que
já não era rei.» (P. 237.)
O nome da freira que em 1822 alimentava as ideahsações de José
Agostinho de Macedo, que elle tratava por manaj, intercalando em mo-
nogramma as iniciaes de / e F (p. 206), deduz-se da própria corre-
spondência; em uma das cartas põe este fecho: «Por F. R. andará hoje
até tolo /. i.» (P. 223.) N'uma outra vem no final: «Eu não tenho ou-
tra feUcidade mais que Feliciana. Isto não é nome, é vida para mim.»
(P. 238.) E ainda n'um pequeno bilhete: «eu não quero senão Feli-
ciana, só esta fez e fará feliz J.» (P. 241.)
A correspondência termina justamente em uma época de agitação
politica, quando José Agostinho começou a combater a Constituição de
1822, e quando a sua actividade foi occupada em exercer a Censura
litteraria por incumbência do patriarchado. Pelos successos da sua vida
vê-se que fora victima dos amores profanos como o da Benigna e o da
Domingas Ebrard; com os amores freiraiicos não havia perigo, pela ne-
cessidade de mutuas cautelas ou recatos. Segundo os costumes do sé-
culo xvin, e pelas repressões legislativas mais se nota, havia uma ca-
tegoria de namoradores, que segundo a giria do tempo preferiam a
todas as mulheres o peixe de grelha; as freiras eram requestadas em
XXn SOBRE ESTES INÉDITOS
Outeiros poéticos, e em visitas assiduas aos locutórios ou grades e ás
festas dos Conventos. Na poesia satírica do fim do século xvm acham-se
fortes cargas a esse erotismo mystico.
Em uma Bulia das Indulgências concedidas aos Freiraticos vem a
seguinte Ladainha (1790):
San Bento de Cister,
Cujas freiras hão mister
Que as renoveis e reformes,
(}fa pro nobis.
Santo Agostinho,
Cujas freiras sem caminho
Tomem o caminho que podes.
Ora pro nobis.
San Bernardo,
De cujas freiras magoado,
Tu que as vês e não lhe accodes,
Ora pro nobis.
Santa Catharina,
Que foste freira divina,
Sem teres grades pregadas,
Ora pro nobis.
Santa Thereza,
Freira da maior pureza.
Sem freiraticos amores,
Ora pro nobis.
Das Freiras d'esta cidade,
Que andam de grade em grade,
Com quem temos pouca fé.
Libera nos, Domine»
Da que se finge noviça,
Da que tem tia postiça.
Da que vive de alquile.
Libera nos, Domine.
SOBRE ESTES INÉDITOS XXIII
Da que tem mano e maneira
Depois que toma a gateira
Canta sem solfa o Lé Lé,
Libera nos, Domine.
D'aquella que faz versinhos,
Da que escreve cora pontinhos,
Da que falia per sé sé,
Libera tws, Domine.
Da que de saber se preza,
E que do coro e da reza
Não saiba que cousa é,
Libera nos, Domine.
D'este sexo sem lealdade,
Cheio de toda a maldade,
Que professa nenhuma fé.
Libera nos. Domine.
Que da mais firme e leal
Nos livreis, que esta tal
É serpe feroz,
Te rogamus, audi nos.
Que dos devotos freiraticos
Livreis, Senhor, as cegueiras
Que o demónio lhe poz,
Te rogamus, audi nos.
Que fujamos sempre d'ellas,
Que roubam, sem para ellas
Haver forca, nem algoz,
Te rogamus, audi nos.
Que para nos enfadar,
Não nos deixeis enganar,
Com pratos de doce arroz.
Te rogamus, audi nos.
Que desfaçaes seus feitiços,
Que em vosso santo serviço
Vivamos sem ellas, sós,
Te rogamus, audi nos.
XXiV óOBltE ESTKS INKIjITOS
Que nos não fique fazei
Tão grande peste em pé,
Ex audi nos, Domine.
E se de seu amor nos livramos
Sem saber o que bem é,
Paixe nohis, Domine.
E porque assim ignoramos
Suas fingidas vozes,
Miserere nohis.
Ouvi, Senhor, vozes tão sentidas!
E livrae-nos de Freiras tão garridas.
O costume característico dos amores freiraticos correspondia a
uma excitação da religiosidade levada ao fanatismo, sobretudo no sexo
feminino, mais interessado nas praticas cultuaes, e pela apathia da
claustração cahindo inevitavelmente na subjectividade contemplativa ou
mystica. Maudsley explica as consequências d'esta situação especial na
Pathologia do Espirito: «Se mulhei^es não casadas têm por desgraça,
em consequência da sua condição e tendendo por isso a fazel-o, de sup-
portar o zelo ignorante e inopportuno de padres inconsiderados que
tomam por um profundo sentimento religioso aquillo que, na realidade,
não é mais do que um sentimento mórbido que tira a sua origem no
fundo de um instincto não satisfeito ou em uma outra acção uterina, o
mal é consideravelmente aggravado. — Os arrôbos extacticos das santas
mulheres, que, como Calherina de Senna e Santa Thereza, acreditavam
que eram visitadas pelo Salvador e recebidas no seu seio como verda-
deiras esposas, nenhuma outra cousa eram, apesar da sua intenção, se-
não um modo de orgasmo sexual, estado de cousas que a contempla-
ção intensa da figura de um homem nú, gravado ou esculpido sobre
uma cruz com todas as suas proporções, é o mais próprio para susci-
tar em mulheres novas de um temperamento nervoso e susceptível, do
que se pode imaginar. Todo o medico experimentado tem visto casos
de mulheres celibatárias sem filhos dedicarem-se com um zelo extraor-
SOBHE ESTES INÉDITOS XXV
dinario aos exercidos religiosos habituaes; e que, enlouquecendo no
apogeo'do seu fervor erótico, manifestaram logo a mescla a mais triste
de symptomas religiosos e symptomas eróticos, uma effervescencia de
concupiscência na voz, na expressão, nos gestos, sob a deplorável de-
gradação da doença.»* Tal e o caso do molinismo e dos directores es-
pirituaes; nas relações dos freiraticos ha este mesmo fundo de instin-
cto não satisfeito, mas a intelligencia está acima da religiosidade e de-
fine com clareza a situação, simulando mesmo o hymeneo moral.
As Carias d Freira Trina pintam todo esse viver clerical e mo-
nástico, que em breve ia transformar-se por uma revolução profunda;
José Agostinho a previra, chegando mesmo a reconhecer que as Ordens
monachaes estavam em perigo de se extinguirem, e todo o resto da
sua vida foi dispendido n'uma lucta fremente contra a marcha dos acon-
tecimentos que fatalmente se impunham. Já em 1823 era reconhecido
o seu influxo politico. Entre os vários Pasquins que a Policia arran-
cou do largo de S. Paulo, em 1823, lia-se um contra o P.® José Agos-
tinho de Macedo, que conspirava com D. Carlota Joaquina, reclusa na
Quinta do Ramalhão, d'onde dirigia a conjuração absolutista dos Apos-
tólicos :
Oh P.« José Agostinho de Macedo,
Se as rédeas te lançam da mão,
Conto que não vaes só para o Ramalhão. 2
Depois das luctas litterarias com os elmanistas da Arcádia das
Parras, que inspiraram a José Agostinho de Macedo o poema satírico
Os Burros, em quatro cantos, os seus ódios foram-se alargando, e o
poema complicava-se, abrangendo os jornalistas contemporâneos e os
Frades Bernardos, que passavam como objectivo de todas as anecdotas
de imbecilidade. Depois de um Requerimento do jornalista Luiz Se-
queira de Oliva e Sousa Cabral, que se dava por injuriado por Macedo,
foi passado um Aviso pela Secretaria do Reino, em 1 1 de fevereiro de
1812, para se fazer a apprehensão do poema Os Burros; e pelo OíBcio
^ Patholorjie de 1'Esprit, p. i53.
2 Papeis da Intendência. Correspondências, maço 135. — Pinto, Lisboa de outro
tempo, t. II, p. 144.
XXYI SOBRE ESTES INÉDITOS
da Intendência da Policia, de 18 de maio de 1815, é José Agostinho
apontado como auctor d'esse causticante poema. Parece que para o tor-
nar mais impessoal, ou por desdém intimo que Macedo nutria pelas
bcrnardices tradicionaes dos frades cistercianos, Os Burros foram de-
dicados em uma das suas ultimas redacções ao Abbade geral dos Ber-
nardos, com uma extensa justificação em prosa. Em 18H era Fr. Fer-
nando Pimentel o Geral de Alcobaça, e seria este porventura o esco-
lhido para ser encabeçado o poema? É certo que José Agostinho fez
uma nova remodelação aos Burros, eliminando todas as referencias aos
Frades Bernardos, e chegando mesmo a negar que o poema fosse seu,
e principalmente a dedicatória. Os Frades de Alcobaça conheceram
quanto os prejudicava na sua opulência feudal esse golpe sarcástico,
e com o tino de um bom conselho vieram ao encontro do poeta, e ti-
veram artes de amansal-o e mesmo de o desarmar. José Agostinho de
Macedo apaixonara-se por uma Freira do convento de Coz, que per-
tencia á regra dos Bernardos; os frades fizeram a vista grossa e trans-
igiram que o Padre vivesse de casa e pucarinho com a freira bernarda,
a doentissima D. Maria Cândida do Valle. Por esta tolerância tiveram
o poeta e folliculario sempre manietado, e, o que mais é, submeltido
ao seu serviço. Em uma carta a Freira Trina queixa-se ou descul-
pa-se José Agostinho de estar «occupado com papeladas de Frades
Bernardos, que por me tratarem bem aquella gaUinha choca os aturo
em tudo e os defendo com esta tal ou qual penna quanto posso.»
(P. 241.)
Apesar d'esta situação de dependência, em muitas cartas nunca o
génio cáustico de Macedo deixou de ferrar o dente na estupidez pro-
verbial dos Bernardos; assim na carta â Freira Trina falla-lhe dos dis-
parates de um frade que encontrou n'uma jornada a Mafra, que o moeu
«com aquelle chorrilho de parvoíces de que eu não sei se S. Bento se
Bernardo fora mais liberal para com seus filhos.» (P. 219.)
E descrevendo uma cólica de D. Maria Cândida, volta ao mesmo
estribilho: «Foi aquella Bernarda na profissão e no miolo metter-se,
sahindo quente da cama, hontera pelas cinco da manha na frigidissima
agua do mar em Paço de Arcos. . .» (P. 221.)
SOBUE ESTES INÉDITOS XXVII
Em outra carta á mesma já alludia ao cerco que os Frades de Al-
cobaça lhe faziam para apoderarem-se do seu talento de polemista para
os defenderem contra as idéas politicas dos liberaes de 1822: «Toda
esta semana passada andei eu metlido com os Frades Bernardos; está
ahi o Geral, e cuidam em se justificar de suppostos crimes com que
os têm enxovalhado n'esses papeis públicos; tenho-lhe feito vários re-
querimentos e representações, porque, emfim, tratam-me bem aquella
emplastrada; agora me mandaram aqui um caixote de pecegos que vêm
quasi todos tocados, porque metter pecegos verdes em caixote, e este
mui bem pregado com fortes pregos, só Frades Bernardos; etc.»
(P. 236.)
O resto da carta consta de bernardices de que ainda se riu mais
o rei D. Miguel.
O Procurador geral do mosteiro de Alcobaça, Fr. Joaquim da Cruz,
tratou de captar a benevolência de José Agostinho de Macedo, e por
meio de presentes de presuntos, marmelada, fructas, e ainda a lisonja
de lhe mandar imprimir obras suas, e consultal-o sobre as compras de
Livros para a rica Bibliotheca da opulenta Abbadia, apoderou-se com-
pletamente do animo do terrível pregador e polemista. Funccionava a
Junta de melhoramento das Ordens religiosas, as quaes estavam quasi
todas falidas, e era preciso um homem intelligente que defendesse a
Abbadia de Alcobaça contra veleidades reformadoras; Fr. Fortunato
de San Boaventura era especialmente um erudito, um temperamento
timorato, apesar dos seus exageros polémicos, impróprio para essa lu-
cta, em que elle quanto fizesse era pro domo sua. José Agostinho de
Macedo foi uma acquisição de primeira ordem, e a titulo de consulta
encarregaram-no de fazer requerimentos e representações varias, diante
da invasão da fazenda publica nos bens da communidade. * Quando co-
1 Sobre esta situação económica encontramos a seguinte nota manuscripta de
Ferreira da Costa ao poema Os Burros :
«É incrível o pezo das contribuições que opprimiam as Ordens monásticas em
Portugal, estabelecidas por causa das Invasões francezas, dos Systemas constitucio-
naes_, e mesmo do Governo realista, porque uma vez posta uma contribuição tudo se
extingue, menos o que fõr tirar dinheiro. É tanto o que dão as Ordens religiosas de-
XXVIII SOBRE ESTES INÉDITOS
meçou a reacção contra a Carta constitucional outorgada em 1826, José
Agostinho de Macedo tornou-se o campeão doutrinário contra os ideólo-
gos do liberalismo; era preciso um órgão jornalístico para combater
esse código politico, e Fr. Joaquim da Cruz, com os vastos recursos
pecuniários do mosteiro de Alcobaça, que elle administrava, subsidiou
uma publicação periódica, que com o titulo A Besta esfolada publicava
mensalmente o P.* José Agostinho de Macedo. A Besta era a Carta
constitucional, assim denominada por uma metaphora grosseira; a es-
fola era a analyse dos artigos, feita em uma linguagem de rhetorica
arrieiral, segundo o temperamento impetuoso de José Agostinho. Com-
prehende-se como serão cheias de curiosidade e de revelações históri-
cas as Cartas de Macedo ao P.® Fr. Joaquim da Cruz n'esse periodo
mais intenso da lucía dos Apostólicos contra o liberalismo, e tratando
em especial dos números successivos e das peripécias da Besta esfo-
lada. A collecção formada por Ferreira da Costa, fanático por Macedo
e sincero realista, começa em julho de 1828 e chega a 1830, quando
o terrível escriptor agonisa sob incomportáveis soffrimentos physicos e
se conserva em uma tensão moral nas violentas polemicas doutrinarias
contra os hberaes. (P. 1 a 90.)
Ouem escrever a historia moderna de Portugal nos desencontra-
dos e incoherentes conQictos da implantação do regimen constitucional,
ha de encontrar n'esta série de Cartas relâmpagos de luz esclarecendo
esse momento decisivo da lucta de 1828 a 1830. Ahi se verá o traba-
lho preparatório para a introducção dos Jesuítas em Portugal como
meio de consolidar o absolutismo, e como José Agostinho, forçado a de-
fender a Companhia, contra a qual escrevera annos antes, mantinha o
seu sentimento intimo, apesar das glorificações oÊQciosas.
baixo dos títulos de Decima, Meneio, Quinto de bens da Coroa, CoUectas, ete., que se
pode assegurar que, junto a Dizimos, despezas de amanhos e outras bagatellas^ nada
resta aos infelizes proprietários: — ... resultando d'aqui estarem empenhadissimas
todas as Ordens religiosas.» (Nota 1416.)
A extincção das Ordens religiosas em 1834, na sua essência foi uma liquidação
final de uma ruína económica de longa data, ficando a responsabilidade ao regimen
liberal.
SOBRE KSTES INÉDITOS XXIX
Quando em 1829 Macedo se tornava o sustentáculo doutrinário
dos Jesuítas em Portugal, usava este nome no sentido de pérfido, es-
crevendo ao Procurador de Alcobaça: «É preciso inventar alguma ;e-
suitica para nos descartarmos de tal homem. . .» (P. 30.)
Na carta de agosto dirigida a Fr. Joaquim da Cruz communica-
Ihe: «Sei que vieram os Jesuítas, porque n'elles se põe alguma con-
fiança ; o que elles fazem também os outros o podiam fazer se as cou-
sas se tratassem seriamente, e se em tudo e de tudo não dispozesse a
pedreirada, e se muitas das corporações religiosas não estivessem con-
taminadas.» (P. 35.)
Apresenta ram-lhe o projecto de defeza escripto por Fr. Fortunato
de San Boaventura, sobre o qual mandou indicações, em carta de de-
zembro, dizendo: tSim, senhor, convenho no que diz respeito aos Je-
suítas e para se publicar pela imprensa vejo que não é politico, e de-
vendo-se imprimir deve-se tirar ou accrescentar-lhe notas, pondo tudo
o que ha duro na bocca de muitos philosophos do tempo, e exhortar
Fr. Fortunato a que prosiga, e alli mesmo lhe lembrarei as cousas do
Paraguay. . .» (P. 54.)
Com um certo tino pratico Macedo aconselhava a Fr. Fortunato
que a Apologia dos Jesuítas deveria ser feita de um modo geral, evi-
tando os factos particulares e concretos, porque poderiam ser interpre-
tados diversamente. Era esse o modo como procurava conciliar a sua
alta idéa da Companhia de Jesus, que proclamava em 1830 no seu fo-
lheio Os Jesuítas e as lettras, com a carga terrível que lhe dera no
opúsculo de 1810 Os Sebastianistas. N'este folheto, em que imputava
aos Jesuítas a redacção das Prophecias sebastícas no tempo de D. João IV,
é vehemente no julgamento da Companhia:
«O mundo está cheio de livros contra os Jesuítas desde a sua ori-
gem até á sua extincção. Isto é innegavel. Homens respeitáveis por ca-
racter, por santidade, por doutrina, escreveram contra os malvados Je-
suítas, causa de tantos males. Os tribunaes de todas as nações onde
existiram, os Parlamentos da França catholica, da França illustrada,
condemnaram todos e enforcaram alguns. Os soberanos da França, de
Portugal e da Hespanha os expulsaram. O pontífice Clemente XIV os
XXX SOBUIÍ líSTES INÉDITOS
extinguiu. A bulia cl'este ponlifice, dirigida ao Cardeal Malvezi, legado
de Bolonha, os manda prender, sequestrar, exterminar.
«A historia do afifectado reino de Paraguay os faz abominar de
todos os povos, quando se viu nas calças d'aquelles feito rei Nicolau I
com artilheiros allemães a seu serviço.
«Elles arruinaram as Universidades, foram causa da decadência
da Litteratura em Portugal. A cadeira de Diogo de Teive foi substi-
tuída por um roupeta asselvajado. Ninguém podia saber senão aquillo
que os Jesuítas deixavam saber.
«A sua moral era a mais corrompida, foram convencidos de regi-
cidas, elles aguçaram os punhaes de Jacob Clemente, de Ravaillac, de
Thomaz Roberto, Francisco Damiens, tio de Robespierre, irmão de sua
mãe. Por isto foram punidos João de Mattos, João Alexandre, Gabriel
Malagrida. — Pascal, o profundo raathematico Pascal, o sublimissimo
metaphysico Pascal, empregou o seu milagroso talento em os comba-
ter sem réplica. — Em summa os Jesuítas eram péssimos, porque o di-
zem os Reis, os Papas, os Tribunaes, os sábios, os santos, e mais que
tudo a sua mesma conducta manifesta em tantos livros, tantos documen-
tos, tantos tratados existentes, partos das mais doutas pennas.»
E conw na polemica sebastica de 1810 atacaram Macedo pelo ódio
que revelava contra os Jesuítas, elle lhes replica que é absurdo o que
dizem «á face de um reino onde os Jesuítas foram origem de tantas
desgraças.» E fortificando-se na historia pátria, lembra a carta da rai-
nha D. Calharina ao geral Francisco de Borja, porque o jesuíta confes-
sor de seu neto o rei D. Sebastião «o deitava a perder, e fomenta Ím-
pias divisões e partidos entre os vassalos.» E mostrando-se compungido
com a enternecedora carta, accrescenta:
«Ora isto era na origem da mesma Companhia, e que será de-
pois que elles começaram a deitar os bracinhos de fora e a apoderar-se
dos confessionários dos príncipes e dos grandes, a dominar os povos,
a tyrannisar a mocidade com o jugo dos seus chamados Estudos!»
Depois d'estas affirmações criticas tão cathegoricas como é que
Macedo se acha em 1829 fazendo uma alta idéa da Companhia? Desde
que lhe insuflaram a idéa de que a Revolução franceza e todas as suas
SOBRE ESTES INÉDITOS XXXI
consequências temporaes até ao regimen das Cartas, que elle agora com-
batia, eram resultantes da queda dos Jesuitas no século xvm, logica-
mente era levado a considerar a restauração do Absolutismo como de-
pendente da reintegração da Companhia. Então não se via mais fundo
o problema da Revolução franceza senão como uma explosão local e
casual, quando esse phenomeno era commum á Europa inteira solida-
ria na decomposição do regimen catholico-feudal. Os políticos que tra-
balharam na reorganisação do absolutismo em França, começaram pela
readmissão da Companhia de Jesus, entregando-lhe novamente o en-
sino publico. Em Portugal seguiu-se a mesma pista, e a chamada dos
Jesuítas ligava-se á causa miguelista como um meio estratégico. Os Je-
suitas eram profundamente odiados em Portugal, conforme o declarava
D. Francisco Alexandre Lobo ao P.* Delvaux; escrevia este jesuita em
26 de novembro de 1829 para França ao seu provincial: «O bispo de
Vizeu, encarregado da Direcção dos Estudos, nos disse sem rodeios
que tínhamos contra nós a massa da nação, e n'esta massa a parte qne
elle chama influente; e que nem mesmo se devia pensar em um de-
creto de justificação.» Vê-se pois que diante d'esta antipathia geral da
nação contra os Jesuitas era preciso captar a auctoridade polemica do
P.* José Agostinho; para isso foram humildemente visital-o e pedir-lhe
conselho e informações sobre certos cathecismos. Macedo, abordado de
perto, como elle mesmo confessa, era um homem incapaz de dizer —
não — a qualquer pessoa; tinha as formas exteriores da impetuosidade
brusca e da phrase grosseira, em parte sobrexcitado por graves doen-
ças, mas no intimo era um coração benevolente. Os Jesuitas foram bem
aconselhados quando se approximaram do alhleta, e da sua conquista
escrevia para França o P.* Delvaux, em carta de 27 de maio de 1830,
ao P.* Ruillel:
«Depois da minha ultima carta, o primeiro escriptor de Portuga!
emprehendeu publicamente a nossa apologia.
<iN'uraa preciosa brochura provou que se não podia mais repellir
a Companhia do que se podia provocar a destruição da Misericórdia,
estabelecimento precioso em Portugal, que se estende a lodo o reino,
e abraça Iodas as obras de misericórdia corporal.
XXXII SOBRE ESTES INÉDITOS
«N uma segunda, que vae apparecer, elle estabelece como facto
que, quando, como impossível, todos os livros do mundo viessem a pe-
recer, salvo os escriptos pelos Padres da Companhia, nada se teria
perdido de essencial em qualquer género de conhecimentos.
«Estabelece subsidiariamente como facto que sem a destruição da
Companhia nunca haveria Revolução franceza.
«Devo dizer-vos que este auctor é um poço de sciencia, de uma
memoria prodigiosa, e um pouco original. O seu eslylo é vivo e mor-
dente; o seu primeiro numero era dedicado ao rei.»
Referia-se o P.® Delvaux ao primeiro folheto de José Agostinho
de Macedo, intitulado Os Jesuítas, ou o Problema que resolveu, e ao
muito alto 6 poderoso rei o senhor D. Miguel, como nosso senhor con-
sngrou, etc. É datado de Pedrouços, onde o padre vivia por causa de
doença, em 1830. N'este folheto escreve elle desvanecido: «Estes bons
Padres da Companhia me fizeram a honra distinctissima de me visitar,
o que eu previniria se não fosse um entrevado, e ligado a um leito de
dôr pelas mãos da enfermidade. Não lhes ouvi uma palavra que me
não edificasse; não lhes percebi uma intenção que me não satisfizesse,
e vi que os seus discursos correspondiam a alta idéa que sempre for-
mei da Companhia de Jesus.» Eram as manhas de combate; as phra-
ses escriptas para o publico em serviço da causa absolutista não con-
diziam com as que intimamente escrevia ao P." Fr. Joaquim da Cruz,
apontando os absurdos da prédica dos Jesuítas em Carnaxide.
Em março de 1830 escrevia sobre este mesmo assumpto ao Pro-
curador geral de Alcobaça :
«Muita inveja me teria hoje o sr. Fr. Fortunato se soubesse que
quinta feira estiveram aqui commigo os Jesuítas até meia hora depois
do meio dia, e me pediram a faculdade de continuarem sempre as suas
visitas. Era o prelado e um polaco; ambos se exprimiam toleravelmente
em portuguez, e n'islo admirei o polaco. Vinham e vieram para se in-
struírem em cousas pertencentes á instrucção religiosa no ministério
do púlpito, pois o Senhor Núncio os manda missionar na egreja do Lo-
reto; (esta missão pertence ao Patriarcha e não ao Senhor Núncio; va-
mos adiante.) . . . Também me disseram que este pequeno que ahi anda.
SOBRE ESTES INÉDITOS XXXUI
chamado Marquez de Pombal, lhes fora pedir que perdoassem a seu
avô (ainda vinha a tempo o perdão!)» (P. 56.)
Em uma outra carta chama com graça aos Jesuítas — filhos de
Santo Ignacio e enteados do Marquez de Pombal. N'esta primeira visita
os Jesuítas deram-lhe a conhecer que o apontavam como inimigo da
Companhia; e D'este intuito fora José Agostinho solicitado a escrever
um libello famoso, como elle conta em outra carta a Fr. Joaquim da
Cruz : «Eu não sou amigo de dinheiro ... se o fosse seria esta a occa-
sião de o ter, porque: — Vossê faz um livro em dez dias (me veiu di-
zer um alto magistrado) escreva-o e íntítule-o Exame dos factos e dou-
trinas que deram, motivo á extincção dos Jesuítas n'este Reino, dedicado
a Sua Magestade, etc, por José Agostinho de Macedo; dê vossê (como
pode) o aspecto a estes horrendos factos e analyse estas doutrinas e
verá esta cáfila posta fora do reino, e conte com avultadíssima remu-
neração.» E em seguida escreve Macedo: tagora vejo porque vieram
cá os Jesuítas, ou foi este o principal motivo porque insistiam, até na
escada, em dizer que fora seu inimigo, e que por algum motivo o po-
deria agora tornar a ser. . .» (P. 59.)
José Agostinho confessa comtudo que podia muito contra a en-
trada dos Jesuítas: «Eu não sou um mathematico (e poucos o são) como
o jansenista Pascal, que morreu de trinta e outo annos, mas lenho ati-
nado melhor que elle com as fontes do engraçado e do ridículo ... e os
meltería á bulha e faria rir mais de que o mesmo Pascal fez com as
Cartas a um, Provinciano, que tanto estampido têm feito no mundo...»
E contornando factos condemnaveis dos Jesuítas, conclue: «se Deus me
der alguma melhora no terrível estado em que me vejo, eu escreverei
duas ou três folhas, que segurarão os Jesuitas. . .» (P. 60.)
E em outra carta, fallando de varias caricaturas espalhadas con-
tra os Jesuítas em Lisboa em 1830, diz que «isso não persuade, nem
faz temer os pobres Padres da Companhia», desejando que ninguém
em Portugal conheça o livro da Monarchia Solipsorum, escripto por um
jesuíta egresso, «que os põe a pão e laranja, e sem réplica, porque
elle falia como ladrão de casa, a quem nada se occulta.» (P. Cl.)
Taes eram os preâmbulos com que se preparava para rehabilítar
c
XXXIV SOBRE ESTES INÉDITOS
politicamente os Jesuítas sob o governo miguelino. O P.° Fr. Joaquim
instava pelo escripto a favor dos Jesuítas, sem se importar se José
Agostinho se achava pouco menos que agonisante; em carta de 1 de
abril escrevia o atormentado foUiculario: «Assim mesmo, como era ar-
dentíssimo o desejo que tinha de satisfazer a determinação de Y.* S.*
sobre os Jesuítas, antes de hontem, 30, pelo meio dia, me puz a es-
crever o papel, a que faltam só duas paginas; fazia tenção de lh'o re-
metter hoje pelo mudo, mas não me foi possível, pela vehemencia das
dores, que só deitado as podia tolerar, nadando em ourina.» E n'esta
mesma carta apresenta o seu juízo sobre o folheto a favor dos Jesuí-
tas: «papel, que na verdade, em estylo sério, é o ultimo esforço do
raciocínio e talvez da eloquência portugueza. — Eu o intitulo — O Pro-
blema resolvido — e com eíTeilo resolve-se com a rasão, e a apologia
dos Jesuítas não tem que desejar mais nada. Têm os Jesuítas e os ho-
mens de bem que me agradecer, e até Deus que me premiar, dando-me
algumas melhoras.» (P. 62.)
A entrada dos Jesuítas em Portugal encontrou o mais completo
desdém fora do mundo politico, que pensava derramar as ídéas libe-
raes pela sua acção de presença. José Agostinho de Macedo, apesar
de exaltal-os por ordem superior, escrevia em 8 de junho de 1830 a
Fr. Joaquim da Cruz: «Tenho observado com muita reflexão o que eu
esperava a respeito dos Jesuítas, summa frieza e summo indifferen-
tismo, o que era de presumir, conhecendo nós os barões assignalados
em cujas mãos se depositou o pandeiro.» (p. 70.)
É esta ainda a característica da opinião publica em Portugal «summa
frieza e summo indifferentísmo.» José Agostinho queria vêr n'issouma
tendência para o reconhecimento dos quatro poderes outorgados na
Carta, e concluía com amargura: «Eis aqui o que se quer, e os Jesuí-
tas vistos pelas costas, e isso acontecerá.» E assim aconteceu. No em-
tanto os Jesuítas encetaram as suas pregações, encabeçando-as com o
milagre da Senhora Apparecida em Carnaxide. ^ Este milagre consistiu
no encontro de uma pequena e tosca imagem da Conceição por uns ra-
* Acha-se largamente descripto no Diário de Noticias de 30 de setembro de i883.
SOBRIÍ r.STES INÉDITOS XXXV
pazes, em 23 de março de 1822, em uma gruta na ribeira de Jamor;
ligou-se a opportunidade d'esse acontecimento á queda da Constituição
de 1822, tornando-se essa devoção o ponto de convergência dos senti-
mentos a favor da restauração do absolutismo. Os Jesuitas apodera-
ram-se logo dV;sse symbolo piedoso da guerra santa; e o P.® Delvaux,
em carta datada de 24 de setembro de 1829, contando ao P." Varlet o
facto do apparecimento da Senhora da Conceição da Rocha, ahi lhe re-
vela a intenção politica do milagre:
«Era o tempo da primeira Constituição; as Cortes se espantam
d'este concurso, querem impedir a aííluencia e os milagres; impossível.
— Os bons portuguezes lhe attribuem a volta do seu Rei. Não cessam
de a invocar a favor d'elle, durante a sua longa ausência; assim um dos
seus primeiros cuidados, quando chegou, foi de se ir deitar a seus pés.
«Quanto os conselhos de Deus, quanto suas misericórdias são ad-
miráveis 1 Um pouco de barro, uma pequena boa Virgem do tamanho
das dos púlpitos de vossos filhos I Oh sabedoria humana, onde eslaes
vós!
«No emlanto é muito verdade que Nossa Senhora da Rocha fez
recuar a revolução de 1823, no dia mesmo da sua apparição; que tem
feito mais milagres em Portugal do que tinha sido preciso para n'elle
plantar a sua fé.»*
E em outra carta de dezembro de 1829 escrevia de Lisboa o P.*
Delvaux para o P.'' Gury, em Paris: «Já vos fallei de Nossa Senhora
da Rocha. É a salvação de Portugal; e para nós é bem consolador vêr
que o bom Deus parece ter destinado a nossa pequena Companhia para
explorar, se posso fallar d'esta sorte, cada vez mais esta devoção n'este
reino, em seu proveito.» Confessada assim a exploração jesuítica do
milagre, vejamos como José Agostinho, que também foi levado a com-
por uma Novena para essa devoção,* chasquêa dos exploradores: fal-
* Transcripto no Conimbricense de 30 de outubro de 1888 (n." 4:297).
2 Na caria de 23 de maio de 1827 escreve ao P.« (Iruz: «Estou gravemente en-
fermo, mas não ocioso. Fiz uma Novena (cousa mui séria) da Senhora Apparecida, que
se imprime, e já vae servir. De que serve cá isto? dirão os Paes da Pátria, no meio
do derramamento das luzes do século e dos progressos da civil isação? Este diabo os
XXXVI SOBRE ESTES INÉDITOS
lando de versos como tum rapto, um exlasis, ou tombos e cabriolas
de imaginação sem freio» conclue: <e ás vezes dizem mais appareníes
desconnexos que um Padre da Companhia a pregar em Carnaxide; a
mesma gente rústica, que de lá vinha hontem de tarde, e enchia esta
larga rua (de Pedrouços), vinha ás gargalhadas. Em cá me apparecendo
eu lhe lerei a Cartilha e os porei em caminho de me não deixarem
mentiroso. Estes filhos de Santo Ignacio e enteados do Marquez de Pom-
bal, cuidarão que todos os portuguezes são crianças?» E com um des-
dém sangrento exclama em seguida: «Não ha dentista ou belforinheiro
do norte ou do sul que não apprenda primeiro a propriedade de al-
guns termos portuguezes, para abrir tenda ou armazém; mas vir e
pregar logo!» (P. 72.)
E em uma longa carta a Fr. Fortunato de San Boaventura a pro-
pósito do seu escripto intitulado Apologia dos Jesuítas^ depois de irre-
spondiveis factos históricos, diz-lhe: «Estão admiltidos os Jesuítas, eu
já vi dois, um de hombro com outro, pareceram-me homelis como os
mais, algum medo me incutiram em razão dos chapéos uniformes e
desconformes ; mas, dizia eu commigo: os chapéos são da forma de
convés de náo de alto bordo; as batinas são umas sotainas lisas como
balandráos, o gesto é estudadamente composto, os pâssos medidos como
os de recrutas na fila com sargento impertinente; mas nem estes no-
véis Jesuítas, nem os passados, que não ensinaram estes, têm a con-
dição de Jeremias, a quem Deus deu a patente ou alvará de pregador
régio.. .; o chapéo não é lição, nem o balandráo é discurso. Quem ha
de ensinar estes para depois de ensinados ensinarem aos futuros ra-
pazes Grammalica latina no curto espaço de sete annos?» * E conti-
nuando no mesmo protesto de bom senso, escreve a Fr. Fortunato:
«Quem, pois, ha de ensinar essa meia dúzia que ahi appareceu, para
atacou na resposta ao da Comraissâo da Censura, agora os suspenderá de todo com a
Novena.» (P. 82.)
Fizeram-se duas edições d'esta Novma, uma era 1827 e outra na Impressão régia
em 1832, isto é, oíficialmente para o effeito da propaganda ou exploração jesuítica.
* Macedo apodava estes sete annos de latim, a que regressámos na ultima re-
forma*
SOBRE ESTES INÉDITOS XIXVII
nos ensinarem a nós? Os seis, cuido eu que são — de toda a tribu e
de Ioda a lingua, — nós nos devemos matar para os ensinar primeiro a
elles; para elles depois nos ensinarem a nós, vindo n'isto a custar mais
cara a mecha que o cebo. Para os justos e honestos fins a que são cha-
mados e admittidos os Jesuitas tinhamos nós outros, que não espanta-
vam tanto, e aproveitavam mais, que vem a ser o chamamento dos Pa-
dres das Escholas pias. Este instituto, não mui antigo, é maravilhoso,
e grandes fructos tem d'elle colhido a Itália, e colhem todos os reinos
da christandade em que se tem estabelecido; mas não bastam que se
estabeleçam, é preciso que se sustentem; mas aonde? Os que estão,
têm a barriga vasia, e os que de novo vierem morrerão com fome.»
Alludia ao estado de fallencia em que estavam as Ordens religiosas em
Portugal em 1829, e por isso exclama na referida carta : «Pois se não
ha de comer para os que estão, como haverá de comer para os que
vêm? Elles não comem do que trazem. A Cartilha de Mestre Ignacio,
e a Prosódia de Bento Pereira não fazem sopas; sopas fazem-se com
pão, e o pão come-o Adonirão. Se foi um erro acabal-os, não é uma
discrição reproduzil-os. Ora pois eu não sou inimigo dos Jesuitas, por
que do coração não posso ser inimigo de ninguém, a não me fallarem
em Systema representativo, porque então esbarrunto, e me converto
em diabo vivo, sendo eu um bonacheirão meio morto; só conservo um
indomável ódio no coração ao Marquez de Pombal, porque extinguiu
os Jesuitas e abriu a porta á filharada de Adonirão.» (P. 103.)
O que queria dizer José Agostinho com estas referencias a Adoni-
rão e Âdoniramitas? Referia-se á seita maçónica, que tinha o seu maior
numero de adeptos na burguezia, desde o tempo em que na corte de
Luiz XIV os Jesuitas se lhe ligaram para derrubarem os Jansenistas e
conseguirem a revogação do Edito de Nantes. Os Âdoniramitas eram
a burguezia que invadia tudo, e que Macedo detestava pela sua repre-
sentação no regimen da Carla. E por isso dizia ao mesmo Fr. Fortu-
nato: «Restabelecer os Jesuitas, é impraticável; remediar os nossos
males, impossível. Deixe os Jesuitas, olhe que zomba o mundo dos
seus esforços; a frieza e indifferença que eu vejo destroe todos os ar-
gumentos e tira a força â mesma verdade.» (P. 103.)
XXWIIl SOBHE ESTKS INÉDITOS
E depois n'um arranco de cólera suscitada pelas dores, que lhe
fazem perder o bom senso, escreve: «Defender os Jesuítas? Ninguém
os offende, e pouca gente sabe em Lisboa que elles aqui existem, ou
que vieram para nos ensinar e menos para extirpar os Pedreiros; isso
não se faz com frades, faz-se com forcas.» Pela suggestão das tauto-
logias a idéa do frade suscitava-lhe a da forca. E depois diz-lhe com
amargura: «se os Jesuítas vêm (nem de outra sorte os queira cá o
nosso soberano) já vêm emendados, e eu creio que se hão de metter
mais com os rapazes para os ensinar, que com os gabinetes para os di-
rigir; nem com as beatas ricas, porque nem ricas nem pobres existe
já essa casta de despejadoras de pias de agua benta e também de cal-
dos de gallinha.» E mette a ridículo o castigo da cana, que os Jesuitas,
segundo o processo orbilianista, usavam nas suas aulas. (P. 114.)
Com sarcasmo sangrento, no momento mais critico da reacção mi-
guelina, Macedo teimina a carta vaticinando abundância de linho para
cordas: «o ponto está que se sirvam d'ellas, e os homens da maior
moderação serão obrigados a confessar que sem ellas não se faz nada.»
(P. 123.)
Este furor sanguinário não estava no caracter de José Agostinho;
era uma espécie de estertor de desesperado no equleo de uma prolon-
gada e terrível doença. Ninguém o conheceu n'esta misera situação.
Antes da doença, a senilidade cooperava na intolerância e dogma-
tismo das suas idéas; José Agostinho de Macedo contava os seus se-
tenta annos, trabalhados por uma irremediável doença. A edade não
lhe permiltia conformar-se com as novas instituições, e a doença su-
scitava os impertinentes rancores. Transcrevemos aqui o retrato que
Maudsley, na Palhologia de Espirito, faz do velho, que tanto attenua os
aspectos crus da personalidade de Macedo: «Na realidade acha-se (se.
o velho) em um estado de dissolução gradual, e é natural que elle não
tome parte em um processo de evolução; elle louva o passado, de que
se recorda emquanto aos interesses, politica e emprezas; entre os ho-
mens do presente já não encontra os gigantes do seu tempo^ e admi-
ra-se de que o mundo continue a subsistir com as suas mudanças re-
volucionarias. Além d'isso, ha um começo de depressão nas faculdades
SOBRE ESTES INÉDITOS XIXIX
moraes, que só ?e extinguem completamente na demência senil; um
máo humor, mesmo ralhador, avareza, uma vaidade excessiva, uma
teimosia obstinada nas opiniões, uma vontade absoluta, o cynismo e a
misanthropia são os differentes aspectos com que se manifesta a deca-
dência moral. — Ainda que a demência senil se estabelece ordinaria-
mente por uma decndencia gradual— em alguns casos é annunciada
por um período de excitação mental, que dá ao doente uma apparencia
passageira de energia e de potencia. Elle tem uma grande excitação
mental e grande confiança em si mesmo;... elle lança-se em espe-
culações de um caracter nitidamente insensato, e ninguém o pode per-
suadir que os seus projectos e especulações não sejam excellentes. . .
elle impacienta-se com uma advertência ou com uma opposição; etc.»* O
próprio partido que Macedo servia pedia-lhe moderação na linguagem;
elle insurge-se contra a censura ecclesiastica, e mais ainda contra o
Desembargo do Paço^ vendo em tudo maquinações da Pedreirada, que
lhe difficultava a violenta expansão da Besta esfolada^, que depois de
supprimida foi continuada com mais destempêros no Desengano. É as-
sim que se concilia esta antinomia com o seu caracter dotado de bon-
dade, mas proclamando com formas odiosas opiniões obstructivas. Além
da edade, a doença levava-o a estes delírios; nas suas cartas elle quei-
xa-se de se achar por vezes tolhido de gota. Maudsley falia da influen-
cia d'esta doença no tom mental:
«Sem que alguma mudança se haja operado nas suas relações, um
homem virá, em consequência de um excesso de bilis no sangue, a con-
siderar o presente e o futuro sob as cores as mais sombrias; algumas
horas bastarão para que as cousas lhe pareçam inteiramente differen-
tes, e ao fim de algumas horas ellas lhe apparecerão de novo sob um
differente aspecto^ sendo durante este tempo victima de um humor que
elle não pode repellir. A philosopnia de nada lhe pode servir, porque
não se pode livrar do estado do systema nervoso, que um sangue im-
puro produziu, e que occasiona as suas idéas negras e essas concepções
dolorosas. — Também a presença no sangue de um producto de nutri-
Pathologie de VEsprit, p. 504.
XL SOBRE ESTES INÉDITOS
ção incompleta dá logar a uma irritabilidade de temperamento que ne-
nhum esforço do exame próprio pode supprimir, ainda que ás vezes se
consiga dissimular-ltie as manifestações. O tom mental, sendo, como já
se disse, a expressão de uma condição physica do elemento nervoso,
algumas vezes está fora da direcção da consciência, da mesma forma
que o delirlo e as convulsões de um doente que morre de anemia es-
tão fora da vontade. Todos os auctores, que têm escripto sobre gota,
são concordes em reconhecer que a suppressão de um ataque pode
produzir uma desordem mental grave, e que o súbito desapparecimento
de uma inchação gottosa é ás vezes seguido de uma desordem seme-
Ihaate.» (P. 210.)
É interessantíssimo o processo com que este estado mórbido leva
o tom mental a fixar-se em uma causa objectiva; José Agostinho es-
grime contra a Carta outorgada, contra a Pedreirada, contra os ideó-
logos do liberalismo, contra a moderação dos reahstas que não se su-
stentam pelas forcas. A formação da illusão mental acha-se admiravel-
mente descripta por Maudsley : «O eífeito o mais ligeiro e o primeiro
em data de uma alteração do sangue não é um verdadeiro dehrio, nem
uma incoherencia de pensamento, mas um desarranjo do tom mental.
Sensações de um singular mal-estar ou de depressão, de irritabilidade
ou de inquietação, desvendam uma modiflçacão no estado stalico dos
elementos nervosos, e uma grande disposição para uma emoção peni-
vel é o lado objectivo d'este estado, a psychose, que é a expressão das
perturbações da nevrilidade.» E apontando a grandíssima irritabilidade
que a presença da ureia no sangue produz nos indivíduos goltosos, até
ao ponto da melancholia e da vesânia, descreve magistralmente: «Ainda
que elle não possa ter nenhuma illusão positiva, as perturbações emo-
cionaes existem por si mesmas, as idéas que se produzem n'estas cir-
cumstancias trahem a influencia do sentimento mórbido que as aííecta
profundamente; ellas são obscuras, peniveis, ou, em um certo sentido,
não representam claramente e fielmente as circumstancias externas. —
mas, como é uma disposição irresistível do espirito o representar os
seus estados de consciência como qualidades dos objectos exteriores,
como na nossa vida mental nós projectamos sempre exteriormente os
SOBIUC ESTES INÉDITOS XLI
nossos estados subjectivos, acontece ordinariamente que por fim de um
certo tempo a victima de uma perturbação emocional produzida por
estado intimo procura fura de si uma causa objectiva do seu estado, e
quando cuida encontral-a cae na illusão; está em desaccordo com o
exterior, e estabelece esse equilíbrio entre si e o mundo exterior, creando
as suas idéas em harmonia com a sua vida interna.» E chegado a esta
observação, Maudsley mostra como um acontecimento importante pode
suggerir esta illusão de natureza orgânica, e como um certo grtipo de
idéas se associam por habito a uma forma particular da acção mór-
bida. (P. 216.)
Nunca os críticos de José Agostinho de Macedo julgaram o pensa-
dor e escriptor sob este aspecto scientifico; começaram por ignorar os
seus grandes soffrimentos physicos.
Na carta de julho de 1828, que começa a correspondência com
Fr. Joaquim da Cruz, já faz sentir o estado deplorável da sua saúde:
tapesar da miuha desesperada enfermidade, que me faz insupportavel
a existência. . .» (P. 1.)
Em setembro do mesmo anno: «declarou-se um diabetes doloroso
e sem remédio, e os restos da rainha existência serão contados pelas
dores mais cruéis » (P. 4.)
Em novembro, em data de 13: «eslava na cama horrivelmente ata-
cado; n'ella me tenho conservado sem poder voltar o corpo de uma
para outra parte, chegando ao extremo da vida, como me succedeu
hontem, 12, pelas outo horas da noite, porque a uma dôr insupporta-
vel se seguiu uma convulsão fortissima; agora dizem que é pedra que
cahiu da bexiga na uretra e que não pode sahir.» (P. 7.)
Comprehende-se que por vezes a doença o fizesse desarrazoar,
como confessa: «Quando estou mais desesperado com a minha dese-
sperada moléstia, que não retrocede, nem sei o que digo.» (Ib.^ p. 8.)
Em dezembro d'este anno descreve a situação infernal em que se
vê com a doença e trabalhos obrigatórios: «a minha existência é mi-
lagrosa, não estou um quarto de hora sem ourinar, com dores que me
deitam no chão; de noite é preciso tomar tinturas de laudano para fe-
char por minutos os olhos. Levanto-me, forcejando sobre as minhas
XLII SOBRE ESTES INÉDITOS
forças, aqui estou assim mesmo escrevendo, ou Sermões para pessoas
de quem sou amigo, porque elles o são, ou revista e Censura de pa-
peis e Relações de Livros. . . » (P. 11.)
Era sob esta impressão terrível que elle escrevera duas laudas da
Besta esfolada; e fecha a custo com este quadro: «ás três horas da
tarde me deito gemendo, e começo com as fomentações e banhos, e
chapinhações de agua-ardente de canna, quando me faltam os pulsos;
bato todas as noites na parede das casas altas visinhas para me acudi-
rem.» Em carta de 18 de dezembro, interrompida pelos soffrimenlos,
diz: «Aqui chegava eu hontem, 17, de tarde, quando o terrível Ímpeto
do meu mal me obrigou a ir para a cama, onde das ires para as qua-
tro da noite me achei em artigos de morte, e foi preciso acudir-me até
com fortíssimo banho aos pés; a dôr da uretra diminuiu alguma cousa;
o dia vae quasi da mesma sorte na dolorosíssima soltura da ourina.»
(P. 13.)
Era n'esta agonia mortal que o partido o forçava a ir de Pedrou-
ços a Santo António da Sé pregar um Sermão na festa em acção de
graças pelas melhoras de D. Miguel: «N'este infeliz estado em que es-
tou me vejo obrigado a fazer o que não posso. Sabbado de manhã me
levarão d'aqui ás costas, para me metterem n'um bote, e levarem-me
até ao Terreiro do Paço, e de lá a Santo António, onde o Senado vae
dar graças a Deus pela melhora d'El-rei; ele.» (Ibid.)
E em janeiro de 1829: «estou feito molho de villão, picado e ras-
gado com dores, ha tantos dias de cama, sem remédio e já sem pa-
ciência, porque para tanto padecer não chega o valor humano: aqui es-
tou quasi debruços em cima de uma taboa escrevendo. . . » {Ib., p. 17.)
«Com uma baeta quente que me cinge a cintura.» (P. 18.)
Em 5 de fevereiro de 1829: «a minha enfermidade chegou até
onde só a morte pode ser o seu termo; tenho todos os signaes de uma
inflammação na bexiga; as dores são as mais violentas e não param
nem um minuto ou segundo; a ourina, em grande abundância, não pára
nunca meia hora; de noite, n'este espaço, posso seguidamente dormir:
a passada cuidei que era a ultima da minha attribulada existência:
n'este estado como posso eu escrever uma letra? Agora mesmo, nem
SOBUE ESTES INICDITOS XLllI
de pé, Dem sentado posso escrever, sem me sentir atravessado de fer-
ros era braza; este é um dos martyrios em que estou, o outro é grande,
mas é evitável, que vem a ser as importunações de toda a casta com
escriptos incessantes. . .» (P. 19.)
Quando trabalhava no n.° II da Besta esfolada escrevia para Al-
cobaça em março de 1829: «Tenho chegado a artigo de morte com es-
pasmos e desfalecimentos, sendo preciso pôr-me sobre o coração pa-
nos de \iuho ou agua-ardenle de canna. Eis aqui como eu estou quasi
sempre. — Não se admire V. S.^ de ler alguma graçola, é um esforço
que faço, mas nem assim chego a dissimular o martyrio: agora mesmo
estou supporiando lancetadas agudíssimas, e cruéis puchões que me
suffocam de dores.» (P. 20.)
Em uma carta de abril diz que o «descompõem de homem venal
e vendido a diversos e encontrados partidos; e já estou insensível a
ludo: digam e façam o que quizerem;. . . desesperadas dores me fa-
zem de pedra.» (P. 22.)
Elle conhece desde quando começou o padecimento: «gostoso es-
taria eu no Limoeiro ou nas galés, com tanto que diminuísse metade
do martyrio das minhas infernaes dores, — a moléstia é de muitos an-
nos, não foi aqui adquirida, mas sim aggravada. Sempre padeci esta
dessuria, mas não dolorosa, e já lhe conto de edade trinta e outo an-
Dos (1791.) Tem chegado ao extremo a dôr em ambas as vias, e desde
sabbado que estou como desesperado, e desejo do coração terminar a
minha existência.» (P. 26.)
«...mas, que horrível é este mall é preciso pôr de instante a instante
sobre esta região ordinária uma baeta quente, a ferver, para poder ex-
halar a respiração do peito, que até se comprime: digo-lhe a verdade
como amigo, chego em suores frios a artigo de morte.» (P. 28.)
- E em carta de 14 de junho de 1829: «ás duas horas estive quasi
a expirar e não esperava vida: deram-me uma ajuda de dormideiras
e linhaça, com que á noite senti algum allivio; eu batalho contra a na-
tureza e contra a terrível enfermidade. Hoje me levantei com dores,
é verdade; mas não d^aquellas que me deixam immovel, n'um espasmo
mortal.» (P. 29.)
XLIV SOBRK ESTES INÉDITOS
Em T de julho ainda as terríveis lamentações: «Eu estou cada vez
peor, são maiores as dores, e chegam a tanto que me sae pela bocca
o sangue do peito ha quatro dias; não posso dar um passo pela casa,
e para vir da cama sentar-me a esta mesa é preciso encostar-me ás
paredes muito curvado. . . » (P. 31.)
No meio das intrigas que por causa da Besta esfolada lhe arma-
vam diante de D. Carlota Joaquina e D. Miguel, escrevia para Fr. Joa-
quim: «Eu estou gravemente enfermo; além da moléstia habitual deito
pela bocca muito sangue pisado, cousa medonha í emfira, estou como
desesperado. . .» (P. 36.)
As cartas começam sempre por um arranco; assim em novembro
escrevia: «Estou doentissimo, e mais com certeza de morte, do que
com esperanças de vida.» (P. 40.)
E emquanto ia recebendo recados de D. Miguel por causa da Besta
esfolada, elle escrevia para Alcobaça: «aggravou-se o meu mal a ponto
de me vêr morrer com uma inflammação heraorrhoidal; não me pude
levantar, assim fiquei, e de noite mais de trinta vezes ourinei com do-
res mortaes; emfira isto é um individuo mais ou menos que existe na
terra.» (P. 44.)
Os Ímpetos da linguagem da Besta esfolada eram-lhe refreiados
pelo Desembargo do Paço; Macedo sentia-se arrebentar de desgosto e
escrevia em 9 de fevereiro de 1830: «Havia trinta e seis annos con-
secutivos em que pelo ministério do púlpito me sustentava com três
cousas: com muita honra, muita independência e muita abundância:
a doença insanável me privou d'este recurso, trabalhoso na verdade,
porém profícuo, e que alguma estimação me mereceu entre os homens;
acabou o exercício de fallar e foi substituído pelo de escrever; e de re-
pente, com a maior e mais escandalosa de todas as injustiças, me vejo
privado de tudo. El-Reí sabe que defendia seus direitos; que dirigia bem
a opinião dos povos; que me mostrei sempre intrépido em tão perigosa
contenda, antes e depois da sua vinda, o que não foram capazes de fa-
zer os seus aulicos, grandes, titulares e senhores nossos... f (P. 50.)
Abafavam-lhe a Besta esfolada, e para compensação era nomeado
Chronista-mór do reino, que elle considerava como uma ignominia sue-
SOBnE ESTES INÉDITOS XLV.
cedendo a Fr. Cláudio da Conceição. Os Frades da Graça, que tinham
expulso da Ordem em 1792 ao impetuoso Macedo, agora já lhe offe-
reciam o claujrtro para recolher-se no apaziguamento da vida; em fe-
vereiro de 1830 escrevia ao P.' Fr. Joaquim da Cruz: «Os Frades da
Graça me tem sollicitado muito e muitas vezes, mas eu não faço figu-
ras perto da morte, e eu preferirei sempre uma hospedagem caritativa
em Alcobaça como clérigo secular, ás distincções de mestre da Ordem,
e aos privilégios de pregador régio.» (P. 51.)
Chega a causar piedade o estado do soffrimenlo prolongado em
que vae avançando para a morte; em dezembro de 1829 escrevia ao
frade que o instigava ás polennicas a favor do miguelismo: «ha doze
dias que me vejo doentíssimo, porque hoje mesmo (que é uma hora),
desde que me levantei ás outo, tenho ourinado vinte e quatro vezes;
isto é estar muito doente; ajunle-se a isto uma sede coniinua, com
tanta secura que me custa a despegar os beiços, e não ha agua fria
que me farte; de noite é peor, porque se fecho os olhos é tal a sol-
tura de ourina que me acho alagado, e é preciso metter lençoes, ca-
misas sujas, e quantos trapos ha em casa, onde tudo o é, excepto a
minha lingua. Este é o meu estado miserável.» (P. 53.)
Obrigaram-no a defender a entrada dos Jesuítas em Portugal e elle
em carta de 20 de março de 1830 pinta a angustia em que se extorce:
tCom indizível trabalbo me tiraram agora (onze horas) da cama, para
me sentar n'esta cadeira; e com a perna esquerda horrivelmente in-
chada, e o pé com inflammação, e a dôr de gota, e peor do que já tive;
como o ataque é geral, renovou-se a dôr de pedra, parou a ourina com
uma irritação e dôr mortal; emfim, estou em estado lastimoso, e faz
compaixão aos mais indifferentes; não me poupo a remédios. .. estou
um martyr, e sem terminar o marlyrio, que em tal estado desejava que
fosse pela morte.» (P. 59.)
E ainda em um fragmento da carta ao mesmo: «Deitado escrevo;
quer Deus apurar a minha cansada paciência; fui acçommettido de um
tão violento ataque de gota no pé e perna esquerda, que está em mon-
struosa inflammação, com dores que juntas ás da pedra, que é melhor
a morte...» (P. 90.)
XLVI SOBRE ESTES INÉDITOS
Nas angustias da prolongada doença era ainda na idealisação lit-
teraria que Macedo procurava algum allivio. Diz elle do poema que ia
passando a limpo, a Viagem extactica: «Cuidarei (nos intervallos) em
pôr a limpo a ultima composição minha, que fará estrondo se o amor
das letlras ressuscitar e levar um estupor os secretários das Acade-
mias todas.» (P. 2.)
Já se não referia ás Arcádias, mas á Academia real das Sciencias,
onde não soubera introduzir-se, e contra a qual conservou vivo de-
speito. Depois de ter descripto um forte ataque de bexiga, torna a re-
ferir-se ao poema: «Também desejo não morrer sem trasladar para
limpo o livro de versos em que fallei a V.* S.^, cousa que se não pode
mandar fazer, porque só eu posso desembrulhar aquelle cahos, a que
dei a mais séria applicação e que bem desejo deixar como um testa-
mento de leltras a Portugal e ao mundo.» (P. 8.)
Em carta de 28 de dezembro voltava á mesma preoccupação : «Os
cirurgiões gritam que esteja fora da cama, e eu o farei se poder; e
para disfarçar tão horríveis dores verei se posso ir tirando do cahos
a obra de maior trabalho, erudição e empenho que V.* S.* aqui viu,
e que desejo veja o mundo das lettras.» (76., p. 15.)
Em carta de 5 de fevereiro de 1829, verdadeiramente impressio-
nante: «Se algum espasmo de dôr me não levar com brevidade, entre
Besta e Desta irei trabalhando o trabalhado e trabalhoso Poema, e na
verdade lhe digo que só tenha pena de morrer sem o vêr publico por
uma asseada e não mesquinha impressão; depois d'isto nada mais te-
nho cá que fazer.» (p. 20.)
Em 3 de junho escrevia ao mesmo: «Não têm intervallos as do-
res, se os tivessem eu poderia fazer o que me diz, e mais alguma
cousa; e assim mesmo o 1.° canto da Viagem estática ao Templo da Sa-
bedoria já está (irado a limpo, e que trabalho!» (P. 30.)'
Em outra carta de setembro de 1829: «Fiz o drama para os có-
micos, talvez uma das melhores cousas que eu tenho feito na minha
vida: não lh'o mando, porque esta tarde aqui ha de vir um cómico e
mais uma cómica para lhe ensinar a pronunciar os versos, e apontar-
Ihe o que se chama scenario. Que visitas tão honradas e respeitadas I
SOBRE ESTES INÉDITOS XLVII
Mijarei n'ellas, e para ellas, porque o diabelís está furioso, nem dor-
mir meia hora seguida me deixa.» (P. 40.) O drama era:
*A Volla de Astréa, Drama allegorico para se representar no Thea-
tro portuguez da rua dos Condes em 26 de outubro de 1829, no faus-
toso anniversario natalicio de Sua Magestade Fidelíssima o senhor D. Mi-
guel í, nosso amabiiissimo senhor e soberano.» Foi impresso n'esse anno
Ires vezes, sendo uma d'ellas por conla de Fr. Joaquim da Cruz. Em
carta ao Procurador de Alcobaça escrevia Macedo: «A respeito do Drama
allegorico (que não foi licenceado pelo Desembargo malhado) é cousa
de nenhuma entendidade; foi excessivamente applaudido, e por mim
desprezado, pois sei o que faço, e não queria que levasse o meu nome;
foi devoção dos cómicos, como o humilde e reverente. A palavra hu-
milde, nem para o rei;. . .» (P. 41.)
E descrevendo a sua situação^ illaqueado por pretendentes e no
meio de irremediáveis dores, exclama: «E a Viagem ao Templo? Quasi
concluído está o segundo canto, e com vagar irá, não só pelo estado
que lhe exponho da minha situação escrava, mas porque tudo mudo,
pois nunca me agrada o que' fiz, só me agrada o que faço. Tudo faço
de novo.» (p. 43.)
A doença e a polemica politica, na lucla de vida ou morte de um
partido que se batia no terrível cerco do Porio, davam ao caracter e á
linguagem de José Agostinho de Macedo um rancor que contrastava
com a sua organisação benevolente. Elle mesmo o reconhece nas suas
cartas; mas os acontecimentos e os doestos pessoaes exalta vam-o, e
elle como sincero excedia-se. Um contemporâneo seu, que o conhecera
já na velhice, escreveu passados muitos annos estas palavras: «Era o
rosto mais sympathico e bello de ancião que hei conhecido.— Quem
lesse os seus furibundos escriptos políticos diria que elle tinha ura gé-
nio irascivel e cruel; todavia no seu trato familiar era aíTabilissimo,
tinha um coração bondoso, e era excessivamente generoso e bem fa-
zejo...»* Vê-se que o homem moral esteve sempre submerso entre
instituições que o deformaram, como a vida claustral, o absolutismo
' Pinho Lcal^ Portugal antigo e modeino, t. v, p. 3G1.
XLYIII SOBRE ESTES INÉDITOS
ffionarchico, a rhetorica da prédica e das Arcádias, as refregas doutri-
narias de ideologismo liberal. Elle pouco se conheceu, e os seus con-
temporâneos julgavam-se na verdade detestando-o. O Systema raonar-
chico absoluto agonisava diante do cerco do Porto, e a vida de Macedo
exhauria-se em uma prolongada agonia. Accommeltido de uma sezão
maligna, em 2 de outubro de 1831, José Agostinho de Macedo expi-
rou, na casa que habitava em Pedrouços, ás 11 horas da manhã; em
um manuscripto contemporâneo acha-se assim consignado o facto odio-
samente: «Morreu finalmente este Padre, tendo uma edade avançada,
na sua própria casa em Pedrouços, e no seu leito, o que é para admi-
rar, tendo innumeraveis inimigos de todas as classes e gerarchias de
ambos os sexos, a quem tinha excitado grande ódio pelos seus escri-
ptosí» E conclue o acerbo necrológio: «por evitar maiores males, que
os seus escriplos podiam fazer á Nação porlugueza, enviou-lhe (a Pro-
videncia) uma Sezão maligna, que em poucos dias o levou á sepul-
tura.» Era medico assistente o Dr. João Henriques Paiva, que não con-
seguira debellar-lhe a febre, complicada por uma inflammação de be-
xiga. De uma compleição forte, Macedo manteve a sua rasão até á ago-
nia, e quando foi sacramentado pelo P.® José Barreiros, prior de Bem-
fica, fez uma prédica aos assistentes, pedindo perdão a quantos ofen-
dera em sua vida, ou se julgassem por elle offendidos. Declarou então
que desejava ser sepultado na egreja das Freiras Trinas do Rato, de-
fronte do altar de S. Thomaz, e para tal fim dava a esmola de 480)5000
réis, que entregou logo de mão, porque como clérigo não podia testar.
O seu enterro foi sumptuoso; D. Miguel mandou um coche da Casa
real, a quatro parelhas, para transportar o cadáver, que foi acompa-
nhado por alguns ministros e numerosos convidados. Era o symboio
do enterro do Systema absolutista, que succumbia com o seu valente
polemista doutrinário. As irrefreáveis paixões que o fizeram detestado
passaram; somente ás serenas emoções estheticas é que compete col-
locar em um foco de verdade esse vulto que a Historia litteraria de Por-
tugal não poderá deixar de estudar.
Theophilo Bhaga.
CARTAS
DE
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
AO P.' FR. JOAQUIM DA CRUZ
Procurador Geral do Mosteiro de Alcobaça
111.'"» Sr.
Se V. S.* me tivesse insinuado que a cousa urgia, apesar da mi-
nha desesperada enfermidade, que me faz já insupportavel a existên-
cia, no mesmo instante a teria feito; porque sei o que devo a toda a
Congregação, e á amisade especial de V. S.^ Agora, nove da manhan,
arrastando-me da cama que está no meio da casa, escrevi, e são já
nove e meia; nunca cousa tão pequena me levou tanto tempo; mas
digo-lhe a verdade, que é preciso não saber o que é latim, para es-
crever o latim curial da Dataria e Chancellaria romana, ou alfandega
marroquina. Eu não tenho melhoras; as dores são fixas, e sempre acti-
vas. A casa está sempre cheia; agora deram os guerrilheiros de alta
patente em a vir entulhar. Vasconcellos, Quadros, Cachapuz, general
Jordão, tudo aqui está: quatro frades vicentes com seus chapéos de
borlas fazem a partida a este entrevado, partida muda, porque todos
quatro são quatro doctores ouvidores. Todo o mundo pede Besta, eu
não sou o Troca; se o mundo se contentasse cora as que aqui vêm,
bastava uma viva, para supprir um cento das minhas escriptas e mor-
tas: comtudo, esta semana que entra, como poder albardarei uma. Já
disse quem era a Besta, n'esta segunda direi as manhas que tem, e
depois se irão expondo os couces que deu. Creio que não continuará
a espinotar o Freire de Andrade, e irá a cousa mais depressa: em
quanto com muita pausa, muita reflexão, e muita verdade protesto
que sou
De V. S.*
. . . Julho de 1828. Am.° cert.° e obrig."'"
J. À. de M.
CARTAS. 1
CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
II
111.""" Sr.
Estou opprimido com o pezo de tantos obséquios, que recebo to-
dos os dias das generosas mãos de V. S.* Eu com a minha moléstia
tenho para pêras, mas estas que recebo são taes, que se Adão e Eva
as comessem, apezar da infracção da Constituição primitiva, tinhão
desculpa, e nós ficaríamos sem pagar as favas. Torno por ellas a bei-
jar as mãos de V. S.* A sua carta me encheu de consolação entre
tantos padecimentos, e me animou a proseguir na esfolação em algum
intervalo, que é só pela manhan antes de se affervorar o dia. Tira-
ram-me os facultativos da alcova em que estava, e me estenderam a
cama n'esta egualmente pequena casa de fora, e como a tomo toda, e
os importunos, como não tem onde se sentem, tem desabelhado bas-
tantes, e ainda bem, que me deixam respirar! Cuidarei (nos interva-
los) em pôr a limpo a ultima composição minha, que fará estrondo se
o amor das lettras resuscitar, e levar um estupor os secretários das
academias todas. Aqui passou hoje o Provincial do Carmo, e me disse
tinha jantado com o 111.™° sexta feira, e me deu a grande nova da con-
sulta sobre a Junta do Melhoramento: acabou-se, e aproveitou o papel;
falta dar cabo da Commissão da Censura, e no próximo numero da
Besta, que ainda se vai em preliminares e preparatórios, levará um
golpe macio, mas decisivo.
Eu me recommendo a P.® M.® Fr. Álvaro, a quem remetto esses
dous Uvros ; deixemos cousas extranhas, cá nos aproveitaremos de re-
médios caseiros, e os couces da Besta farão milagres. Queira V. S.*
dizer-lhe, que fico entregue da obra remettida, e que a remetlerei com
brevidade. Custa muito escrever na cama, sendo a raeza uma das cai-
xas de doces que tenho recebido da mão de V. S.^. De escriplorio tão
doce irão saindo amarguras para a canalha, e consolações para os ho-
mens de bem. Tremem-me muito os braços, e não posso escrever
mais, porém sempre serão firmes e vigorosos para escrever e assignar
que sou bem do coração
De V. S.*
obrig.°'° amigo
Hde Agosto de 1828.
J. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ
III
111.'»^ Sr.
Desde o dia 19 do corrente, que pelo augmento da minha terri-
vel enfermidade tenho chegado aos últimos apuros, ou ao termo da
existência: e até hoje, e até este momento em que escrevo, sinto gran-
des desfalecimentos no coração. Não tive força para responder a V. S.*
quando aqui veiu o criado, e menos tive um momento de socego para
converter aquellas poucas regras em latim da Guria romana. Domingo,
se algum alento tiver, irei pela manhan cedo a Lisboa, fazendo por che-
gar a esse domicilio, e também ao do Forno do Tijolo, e então con-
versaremos algum momento. O medico, que por sua devoção me as-
siste, 6 o cirurgião que eu chamei, e o boticário, que é o executor
d'esta justiça brava, em nada acertam; eu também não consinto que
em mim façam experiências da sua arte exterminadora: teimam com
dozes de ópio, eu não engulo nenhum, e da botica vai para a rua. Os
políticos, que já nos não adormecem, entram, é verdade, pelos ouvi-
dos, não se demoram, e lá vão como os da botica para a rua, ou para
onde elles quizerem.
Chegou a Guimarães a 14 o Visconde da Azenha: aqui me escreve
dizendo-rne que por estes dias vem a Lisboa solicitar o sea despacho,
e que fosse eu andando com a penna nas necessárias disposições. Tem
razão, eu conheço o Principal, Enfermeiro mór do Hospital ; e na en-
fermaria de baixo, que tem um pateo onde elles passeam, se cuidará
em algum quarto mais decente ! Foi fado meu atural-o da outra vez,
e é fado meu atural-o d'esta.
O intrépido Raymundo aqui me prometteu outro dia trazer-me os
diários, feitos por elle, das suas campanhas para lh'os pôr em ordem.
Elle commandou a acção grande, em que o Príncipe de Hesse teve o
cavallo ferido; — o Raimando não o foi, porque sendo a acção no adro
da egreja de S. Victor, no campo de Sancta Anna, o Raimundo com-
mandava do alto da Falperra por ajudantes de campo, e de ordens.
Alguns sargentos velhos, e inválidos, que tinham vindo de Valença, fo-
ram promovidos (diz o Raimundo) a grãos-majores. Eu lhe aconselhei,
como amigo que sou de militares de taes talentos, que com o vali-
mento do Príncipe de Hesse, se fosse offerecer como voluntário ao Im-
perador da Rússia para commandante dos primeiros cossacos que en-
trarem em Gonstautinopla. A língua dos cossacos, e a do Raimundo,
V
4 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
têm a mesma raiz, entendem-se bem. O imperador, se lhe não der o
habito de S}° André, certamente lhe dará o de S. Cornelio. Foi-se
embora o Raimundo, cheio de idéas de Carlos Magno, e a esta hora já
lerá feito a proposta ao Príncipe de Hesse; e a pátria, se fica privada
da gloria que lhe tem ganhado este general, e da que lhe dá com a.
sua presença, adquire a que elle lhe vai adquirir na tomada dos Dar-
danellos. Ora basta, e muito basta para quem escreve na cama taes
lettras, e tão tortas regras, em cima da caixa das pêras, e para pêras
tenho eu com tal enfermidade, que nem os discursos do Raimundo me
podiam distrahir da acerbidade das dores. Tenha V. S.^ saúde, que é
um bem egual ao da existência. Recommende-me respeitosamente ao
111."'°, e aífectuo sãmente ao P.® M.® Fr. Álvaro, e de uma e outra ma-
neira se recommenda a V. S.*
Seu am.° obrig."°°
26 de Agosto de 1828.
J. A. de M.
IV
111.'"'' Sr.
A minha vida é já problema entre uns enterradores chamados mé-
dicos, e cirurgiões: declarou-se um diabetis doloroso e sem remédio,
e os restos da minha existência serão contados pelas dores mais cruéis.
Farei tudo o que V. S.^ me ordena, porque tudo devo fazer quanto
me ordenar sempre. Tinha levado quasi ao meio a terceira Besia, a
mais formosa e boa que farei. Veiu aqui mandada por Sua Magestade
uma das primeiras aucloridades, com um infame impresso em Ingla-
terra contra Sua Magestade: mandou-se que logo e já respondesse
largamente, para se imprimirem outo mil exemplares, e distribuirem-se
pelo reino, e que lhe pozesse o meu nome. Nos intervalos de minha
mortal doença já tenho escripto 37 grandes paginas, e não vou no
meio da obra exigida; eis aqui porque prendi a Besía na manjadoura,
mas não fica alli. Sem attender-se ao meu lastimoso eslado, e a não
poder escrever nem uma lettra de noute, porque ainda de dia me deito,
e hontem terça feira estive sempre de cama, querem sabbado tudo prom-
pto. Guarde n'isto segredo, porque assim o mandam. José Lápis, a
quem o Marquez de Borba queria cá hoje, prometlendo vir não appa-
receu. O Marquez ficou espantado, e me mandou dizer que me agra-
decia a honra que lhe tinha feito, em lhe dar conhecimento com um
A FREI JOAQUIM DA CRUZ O
génio tão extraordinário. Veremos se apparece. Tenha V. S.* saúde,
leia como poder estas garatujas de um tremulo e até surdo, e em tudo
que eu escrever, e em tudo que eu disser leia V. S.', e lerá sempre
que sou
De V. S.»
Am.» obrig."'» e fiel
. . . Septembro de 1828.
/. A. de M.
111.°"» Sr.
Ou eu me não expliquei bem, ou V. S.* não reparou no ennun-
ciado. Eu tinha chegado ao meio do 3.° n.° da Besta, e com muito
gosto a estava albardando, quando por esta casa entrou o Intendente
geral da Policia com uma ordem d'Elrei, e um livro na mão vindo de
Inglaterra, para lhe responder extensamente, para se mandar impri-
mir outo mil exemplares, e distribuirem-se pela nação. Prendi logo a
Besta, e no miserável e lastimoso estado em que me vejo, afogado em
gente que entulha a casa sempre, e até andara aqui dentro aos mur-
ros, como succedeu hontem a dous officiaes generaes do exercito emi-
grado; e vinda, comecei a escrever, e muito tenho escripto, e muito,
e muito, e vou no meio da obra, que concluída e sem deixar copia (do
que tenho pena) a entregarei ao mesmo que a veiu encommen lar. Este
è o caso, e peço segredo, porque assim m'o ordenaram. O Intendente
já tornou, e viu o que eu tinha adiantado. E mandam que lhe ponha
o meu nome. O Visconde de Canellas aqui me mandou o presente de
um óptimo livro impresso em Paris, no mez de Agosto d'este anno, e
aqui virá também hoje : e eu, a ourinar com dores do inferno, de quarto
em quarto de hora I Vi os catálogos ; não ha cousa notável, só dous di-
gnos da livraria de Alcobaça pela sua raridade, que vão apontados com
uma cruz. Ha outro raríssimo, que vera a ser — Viagens antigas de
Pietro de la Valle. — Poucos exemplares haverá na Europa d'esta obra.
Adeus, ahi está gente, e dous cirurgiões. Adeus Besta, adeus papel
de Inglaterra^ adeus tudo, que a casa está cheia, mas nunca o meu co-
ração estará vazio da amisade, que professa a V. S.*
8 de Outubro de 1828. J. ,1. de M.
CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
VI
111.'"'' Sr.
O meu estado se torna cada vez mais lastimoso, e todos os dias
cresce sem remédio : este é o motivo porque não vou procurar já e já
a V. S.% obrigando-me a dar-lhe um incommodo, e não pequeno, que
vem a ser chegar a este sitio e trisle morada, se não poder ser áma-
nhan sabbado 18, seja no domingo 19; e como não é possivel ver esta
choupana despejada de gente, redobro o incommodo do que lhe dou,
pedindo-lhe que seja no fim da tarde, porque só a noute, ou o diabo
os leva d'aqui para fora, e o negocio pede recato e segredo. Hontem
16 ao meio dia acabei a obra, que leva 112 paginas de quarto grande
em lettra muito miúda, e mettida. Hontem mesmo esperava pela quarta
vez o Intendente, porque assim tinhamos ajustado; não veiu, porque
teria embaraço invencível nas Necessidades; hoje aqui vem, para se
determinar definitivamente o modo porque se ha de imprimir com as
duas condições que El rei apontou, que não se revelasse o segredo, e
que se não conhecesse que intervinha n'isto a sua auctoridade, e as-
sim se removia toda a suspeita de que elle mandara encommendar a
obra para se defender a si, lembrando que pozesse eu o meu nome.
Ella não deve só ser distribuída n'este reino, mas enviada a todos os
estrangeiros. N'este caso, estando eu como entrevado, e não podendo
dar um passo, proponho ao Intendente que a pessoa de mais confiança
e confidencia a quem se pode commetter esta empreza de tanta pon-
deração, é unicamente V. S.S e nenhuma outra. Já disse ao Intendente,
que outo mil exemplares que queriam era um nunca acabar com a im-
pressão, e lhe mostrei que bastariam três mil, e mais um cento em pa-
pel fino; e que antes de sair da ofQcina, apresentando-se o rol da des-
peza seria paga pelo cofre da Intendência, que estas eram as ordens
dadas. N'este caso é preciso que fallemos, para se apresentar o manu-
scripto ao Sr. Fr. Henrique de Jesus Maria, declarando-lhe com algum
rebuço uma parte d'esta marcha, para mais prompta expedição do ne-
gocio, e tractar-se do papel, se o houver capaz, na mesma OíBcina regia,
e da lettra, que não deve ser miúda ; pois segundo se me diz, não se olha
a despeza alguma. Estou hoje tão doente e penetrado de dores, que nem
escrever posso ; e assim é preciso que fallemos ámanhan sabbado, de-
pois de se desembaraçar do seu correio.
Am.° obrig.""»
17 de Octubro de 1828. i. M. de M.
A FRKI JOAQUIM DA CRUZ
VII
111.'°° Sr.
Aqui esteve hontem á noute o Intendente, e ficou contentíssimo
com a segura disposição que se deu ao negocio, como V. S.* já terá
conhecido, visto Ibe ter fallado. Não approvo o numero de exemplares,
bastam e sobejam, quatro mil. O expediente de vir licenceado ás folhas,
é perigoso, porque nos caminhos se pode perder alguma, e como se
ha de remediar, se não ha uma copia? O trabalho de noute bom será,
porque a pressa que dão é excessiva. Ajustei com o Intendente que de-
pois de paga a impressão na officina, fosse a edição para o Desterro,
e que de lá em porções se lhe daria a direcção que se determinasse.
Vamos com isto. As visitas de manhan, apezar das minhas dores e
cruel martyrio, fizeram que não saisse d'aqui hoje a Besta apparelhada
de todo; o apparelho é novo e rico, e já fico pela andadura que ha
de ter. Depois de ámanhan irá, e este rapaz será o arrieiro, e eu o ve-
lho albardador, cheio de maladuras; se tivesse, não quatro pés, isso
não, mas quatro mãos, com todas ellas escreveria em lettra bem clara,
e de modo que todos entendessem, que sou
De V. S.»
O am.° mais obrig.*^*^
20 de Octubro de 1828. /. A. de M.
VIII
111."^° Sr.
Não respondi a V. S.* porque estava na cama horrivelmente ata-
cado ; n'ella me tenho conservado sem poder voltar o corpo de uma
para outra parte, chegando ao extremo da vida, como me succedeu
hontem 12, pelas outo horas da noute, porque a uma dôr insupporta-
vel se seguiu uma convulsão fortíssima ; agora dizem que é pedra que
caiu da bexiga na uretra, e que não pode sair. Levantei-me agora um
bocado, que são noye da manhan, unicamente para lhe escrever, por-
que espero hoje o rapaz. N'este miserável estado, nem uma lettra te-
nho escripto da impugnação dos dous papeis aqui trazidos pelo Inten-
8 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
dente. Esta fatalidade da moléstia d'EI rei tudo alraza, nem o homem
encarregado das traducções, que prometteu vir para conferenciar, aqui
tem apparecido. Seja o que fôr, n'este estado nada me interessa. Lem-
bra-me só que era tempo de V. S.* apresentar ao Intendente o rol da
enormíssima despeza de papel e impressão, porque o cofre da Inten-
dência não é dos vazios, e quando as cousas se demoram, esquecem.
Toda a turba (que ninguém pode contar) aqui vem ; toda diz que é ge-
ral a acceitação do papel, e antes de hontem á noute aqui disseram os
filhos do Marquez de Borba, que a Marqueza de Bellas tinha mandado
alguns a um filho, que tem em Inglaterra. Acceitei o sermão da bulia,
e não posso acceitar o honroso convite que para o almoço se dignou
fazer-me o 111.™° Sr. Esmoler-mór, porque eu vou em uma cadeirinha
do hospital, que me deve d'aqui levar em direitura a S. Roque. Não
ha condição mais triste! Nem uma Besta posso albardar, cousa que me
levava poucas horas, e a matéria sempre disposta, e qualquer cousa
rende muito. A dotação que a nação faz ao rei, e os alimentos que lhe
determina, assim como é o ultimo desaforo, é fertilissima e vasta ma-
téria para uma parelha. Também desejo não morrer sem trasladar para
limpo o Uvro de versos em que fallei a V. S.* cousa que se não pode
mandar fazer, porque só eu posso desembrulhar aquelle cahos, a que
dei a mais séria applicação, e que bem desejo deixar como um testa-
mento de lettras a Portugal, e ao mundo. O Lopes emendador lá poz
na Gazeta algumas correcções da Refutação; algumas pessoas que aqui
vem, ou que d'aqui se não tiram, já lhe pozeram á margem os dous
pontos, e o mais que pareceu ao Lopes ; e a mim parece-me que nin-
guém é de V. S.^
Mais cordeal amigo
13 de Novembro de 1828.
J. A. de M.
IX
111.""° Sr.
Quando estoa mais desesperado com a minha desesperada molés-
tia, que não retrocede, nem sei o que digo. Como eu nada sabia, e só
me tinham dito que era para se distribuir grátis por todo o reino,
com razão me espantei de a vêr posta á venda, sem atinar com o mo-
tivo d'esta medida. O Intendente aqui veiu já, esteve muito tempo com-
migo, e me satisfez plenissimamente, e me disse que se punham á
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 9
venda muitos exemplares, para que o seu producto revertesse para seu
auctor. Nada me interessa no miserável estado em que estou, seja o
que fôr.
Hontem á noute, quando veiu o seu criado, eslava este chiqueiro
com a costumada enchente, ouvindo um sermão, que nunca acabava,
pregado pelo Senhor António de Vasconcellos Leite Pereira, general
supremo de todos os guerrilhas que houve, e ha de haver em S. Gre-
gório ; a que se seguiu a leitura de noventa e quatro ofiQcios manda-
dos a todo o género humano, que mora no Minho, e a maior parte
d'elles a Capitães mores, comraandantes^ ou senhores commandantes
dos corpos milicianos dos diversos districtos ; e para que ? para guar-
darem as costas de Raimundo José Pinheiro, nas suas tentativas sobre
Braga, creio que nas operações naturaes, pois segundo se collige, o
susto lhe tinha soltado o ventre. É fatalidade I não ha general ladrão,
nem alto guerrilheiro ratoneiro, que não venha acabar de matar com
sua honra e proezas este atribuladissimo enfermo, de cujos olhos vai
fugindo a scena do mundo. No sabbado aqui esteve também algumas
horas da tarde o Senhor Arcebisi)o de Lacedemonia; ao menos cede-
ram as armas á toga, e os louros marciaes á lingua eloquente. Falta-
ram as lettras, e ensarilharam-se as armas. Estou ameaçado de um
aproche também militar do Visconde de Canelias, que assim m'o man-
dou annunciar o Lopes. Outra visita, e também de horas: hontem do-
mingo de manhan veiu aqui um hespanhol, homem de bem, e erudito,
com uma carta do Intendente para o ouvir e resolver. Está encarre-
gado de uma traducção franceza da Refutação; e já trazia um grande
pedaço, muito bem e muito litteralmente traduzido: deve tornar, e se
o mais corresponder áquelle ensaio, bem ficaremos. EUe me disse, que
também se começara já a traducção ingleza. Tantas honrarias me obri-
gam a dizer, que depois do asno morto cevada ao rabo. Estimarei vêr
já, e sem perda de tempo o sermão do P.® M.® D.Tr. Fortunato: este
nome é para mim de summo respeito, e em cuja gloria tanto me inte-
resso, mas não é inferior a que tenho em ser
De V. S.^
Amigo obrigadissimo
.. . Novembro de 1828.
/. A. de M.
10 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
111.-"» Sr.
Recebi hontem 2 do corrente a apreciável e estimada carta, por
José Lápis, e quasi pincel, com que V. S.* tanto me honra. V. S,^ vê
em mim dous milagres, o primeiro a continuação da minha existência
no meio de tão intoleráveis tormentos, que nem por um instante se
suspendem; e se os dias são cruéis, mais atribuladas levo as noutes:
o segundo é poder eu, em algum intervalo, só de manhan, escrever
alguma cousa entre a importuna caterva que d'aqui se não tira; por-
que estando eu duas horas apenas fora da cama, mal pego na penna
se abre a porta, ou galopa pela casa dentro, porque a porta já se não
fecha. Assim mesmo, ahi vai o quarto numero da Besta. Elia fará mu-
dar de conceito o P.^ M.® Fr. Álvaro a respeito do n.° 3. Este quarto
tem cousas novas, e algumas tiradas muito eloquentes. Deixemos os
gabos da noiva, que não a quero casar. A respeito de traducções, con-
fesso-lhe que já não entendo similhante salgalhada, sem acabarem com
uma só cousa. O Lopes me mandou dizer que estava reformando e
emendando a da Refutação em francez: eu aqui tenho a ingleza, e lar-
gos dias tem cem annos; ou eu martyr de dores e anciãs mortaes não
entendo o que me dizem, porque de toda a parte me dão noticias, que
eu não posso entender. V. S.* se me fizer a honra de responder-me,
para me certificar da entrega da Besta, e se lá apparecer o José Lá-
pis, seja por elle, pois elle me disse que ia lá sexta feira, ou eu en-
tendi mal, o que me succede com todos. Pedi ao Lopes que viesse cá,
para mandar por elle a traducção ingleza, porque temo desvio na mão
do rapaz mudo ; não apparece Lopes até hoje ; também isto fica por
entender. Eu cada vez estou mais tolo: paciência; mas por certo não
sou tolo em ser de V. S.* verdadeiro amigo, e o mais obrigado e agra-
decido
J. A. de M.
Quartel dos Políticos, e estrebaria/
das Bestas, 3 de Dezembro de 1828-/'
A FREI JOAQUIM DA CRUZ li
XI
111."»» Sr.
Depois que o mudo d'aqui foi, a minha existência é milagrosa :
não estou um quarto de hora sem ourinar, com dores que me deitam
no chão; de noute é preciso tomar tinturas de laudano para fechar
por minutos os olhos. Levanto-me, forcejando sobre as minhas forças,
aqui estou assim mesmo escrevendo, ou Sermões para pessoas de quem
sou amigo, porque elles o são, ou revista e Censura de papeis, e re-
lações de livros; em fim cuidando não poder hoje nem senta r-me, e
determinando mandar vir de casa uma batina que me resta (e lá dei-
xaram as sobrepellizes por escarneo) para me amortalharem, se aqui
acabar: e não tendo esta manhan mais que um único politico, que puz
na rua, escrevi duas laudas da Besta, e não ha meia hora, a moça das
cinco mulheres da visinhança, enxotando-me as moscas, entornou o
tinteiro, e caiu um borrão em cima das margens do papel, que me
agoniou deveras, porque eu nunca deitei borrão na matéria. Interrompi
a serie das manhas para Iractar dos couces, e vai o titulo — 1." Couce
— que vem a ser, os que atiram os patifes que estão em Inglaterra.
Estimo que chegasse o P.® Fr. Álvaro, e de veras o estimo, e me
recommendo para o que eu poder n'este miserável estado. Agradeço a
V. S.^ o tabaco, mas nunca dirá ao mundo que V. S.* me foi ás ven-
tas; se o disser, eu lhe responderei que com cousas boas. Se o P.®
M.® Fr. Álvaro tem que approvar no 4." numero, o 5.° o satisfará. De
traducções e traductores, que os leve o diabo, poucos sabem tradu-
zir, fica tudo ranho em parede. Eu já não vivo, não tenho forças, se-
não apareceria do D. Miguel o que appareceu no Elogio de Pio Vil, pri-
meira e ultima traducção da minha vida. O mudo deve cá vir depois
d'ámanhan, mande-me V. S.* dizer se a Besta passou da estrebaria de
Fr. Henrique, e se se imprime a traducção franceza da Refutação. Não
digo que irá o n.° 5 depois d'ámanhan, porque ás três horas da tarde
me deito gemendo, e começo com as fomentações e banhos, e chapi-
nhações de agua-ardente de cana, quando me faltam os pulsos; bato
todas as noutes na parede das casas altas visinhas para me acudirem.
Ora não tenha V. S.' nada d'isto, mas tenha todos os bens que lhe de-
seja
Seu verdad.'" am.°
. . . Dezembro de 1828.
/. A. de M.
12 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
XII
III.""» Sr.
Que dia este para mim I O mais atribulado com dores que tenho
tido ; a casa cheia de diabos ; um com um mappa de minas de ouro
que ha no reino, e tão impertinente que lhe pedi com as mãos postas,
que me deixasse ir ao bispote: então se foi. Veiu outro com um re-
querimento para o Duque, disseram-lhe lá que não ia em forma, pede
que lhe faça um melhor; esse ainda aqui está. Assim mesmo acabei
o M.° numero agora, com o tal requerimento aqui. Ahi vai, lêa V. S.*,
que é cousa que nem me deixam fazer. Pelo que me lembro de ter es-
cripto, este primeiro Couce é a melhor cousa que haverá escripta. De-
cidirão. Mando o mudo a correr, que são três horas. Eu me preveni
com escripta para outra vez. Logo torna o do rol das minas, e eu mi-
nado de dores. Veja V. S.* se este Couce se imprime logo. Recom-
mende me ao P.® M.^ Fr. Álvaro, e com muita particularidade ao 111.""'
Sr. P.* Geral, de quem naturalmente sou amigo, e com o mesmo puro
sentimento é de V. S.^ egualmente
Amigo
1 de Dezembro de 1828.
/. A. de M.
XIII
111.'"'' Sr.
Depois que hontem 16 recebi a sua carta, com a recua das seis,
fui como dizia, deitar-me para passar a noute mais terrível de quinze
horas de tormentos : assim amanheci, assim me levantei para acabar
de albardar a Besta, o que fiz, apezar de vir primeiro o cirurgião: de-
pois veiu um acabar de matar-me com um plano de agricultura. Vae
pois, e creio que a melhor e mais gorda da mesma recua ; desejaria
que se apressasse mais a impressão, mas que se não imprimissem tan-
tos exemplares. O povo está cansado de papeis, que por mais que di-
gam, menos se faz: tudo está em perfeita frialdade, nada lhe importa,
e só quer comer, e isso lhe falta. Ficam as lojas atulhadas de livros e
papeis de toda a qualidade. Também será escusado citar os patifes
reimpressores, porque me disse hontem á noute Fr. José Machado, que
isso só tem logar quando ha privilegio especial para os escriptos, o
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 13
que DÓS não temos, e me provou isto com exemplos seus. Se El rei ao
menos lesse! mas nada deixam lá chegar. Aqui chegava euhontem 17
de tarde, quando o terrível Ímpeto do meu mal me obrigou a ir para
a cama, onde das três para as quatro da noute me achei em artigos
de morte, e foi preciso acudir-me até com fortíssimo banho aos pés ;
a dôr da uretra diminuiu alguma cousa, e à força do xarope de ópio
pude dormir alguma cousa : o dia vai quasi da mesma sorte na dolo-
rosíssima soltura da ourina. Aqui se me tem queixado do preço da
Besta, não sei se têm razão: querem que seja o preço das Cartas
três vinténs, mas as Bestas levam sempre duas folhas; n'isso fará
V. S.* o que melhor entender, que eu não me mato com similhanles
cálculos. Desejo que o senhor Fr. Henrique não demore o insignifi-
cante papel na sua mão, nem venha com escrúpulos sem entidade: eu
sei o que escrevo, já que em logar do freio ser para a Besta é para
mim ; não me íem faltado insinuações que marcam os limites, parece
que se não quer nem a defeza da justa causal N'este infeliz estado
em que estou me vejo obrigado a fazer o que não posso. Sabbado de
manhan me levarão d'aqui ás costas, para me metterem n'um bote, e
levarem-me até o Terreiro do Paço, e de lá a S. António, onde o Se-
nado vai dar graças a Deus pela melhora d'El rei : se por lá appare-
cesse, mas cedo, o P.® M.*^ Fr. Álvaro, bom seria, no caso que eu não
possa a pé tornar ao Terreiro do Paço; mas isto sem incommodo, e
lá fallariamos. Tenha V. S.* saúde, e tantas venturas quantas lhe de-
seja
Seu amigo o mais obrig.'^"
18 de Dezembro de 1828.
J. A. de M.
P. S.
Succedeu o que eu disse, aqui estou na cama, e peor que nunca.
Não dormi nem um quarto de hora. Meu amigo, isto está muito m;ío.
Vai a Besta, e recommendo ao mudo que vá em direitura ao Desterro.
Se vou continuando assim, nem mais Bestas se imprimirão.
14 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
XIV
111.'"° Sr.
Hoje 2i, na situação mais lastimosa, com o meu mal, me levan-
tei da cama, e encostado ás paredes vim sentar-me a esta meza, e en-
tre dores de expirar escrevi quasi três paginas da Besta 7/ Deu já
meio dia, e uma hora, e José Lápis não apparece, promettendo-me vir
ao meio dia. Escrevo esta, e vou esperando e desesperando com do-
res, no mais violento ataque. Isto é o que se deve considerar como
milagre, porque até a cabeça tenho tomada, e me dá estalos. Vai o
3." Couce, o P.® M.® Fr. Álvaro que decida, eu o fiz, e o não li; se
houver alguma íalta de lettra, ou de palavra, suppram lá isso como
convier. A carta patente do Imperador para os de Inglaterra, que vai
no fim, não parecerá cousa de um homem moribundo. Ora ahi vão
umas boas festas, que se devem ler em casa do 111.™° P." Geral, a quem
as desejo, e a todos esses senhores. Estimo que fizesse a diligencia de
vêr o busto, que representa o grande prodígio da espécie humana ; o
ponto está em que o José o possa copiar bem. Se na tal livraria hou-
ver um livro de folio, composto por elle, que vem a ser a compara-
ção da doctrina de Scotto com a de Saucto Agostinho^ no frontispício
está elle retratado no meio, ou entre o Scotto e o Sancto Agostinho,
6 o retrato é bem ao natural, pode servir muito ao José Lápis, que
ainda não apparece. Se com effeito se descobrir o manuscripto da tra-
ducção dos Lusíadas em verso latino, que elle fez em Paris, onde foi
mandado por D. João IV assessor e director do Marquez de Niza, seu
embaixador extraordinário a Luiz XIII, podemos dizer que se encon-
trou o maior thesouro da litteratura portugueza: eu duvido, porque
na Bibliolheca Lusitana só se faz menção d'este manuscripto existente
na livraria do Duque de Cadaval ; mas que se buscará d'esta casa que
se ache? O Padre engana-se sobre a traducção impressa, é de Fr. Thomé
de Faria, frade carmelita e bispo de Targa, e é vulgar. Ha outra tra-
ducção latina de André Baião, portuguez, e mestre de eloquência em
Roma, era manuscripta, e estava na livraria do Vaticano; por insinua-
ção minha foi buscada, e não achada. Se com effeito apparece em S.
Francisco, é o maior milagre de Sancto António II No CoUegio da Pe-
dreira, em Coimbra, onde elle professou, está o livro das profissões,
e por tanto letra da sua mão na assignatura de professo; chama va-se
o provincial capucho, que o professou, Fr. Bernardo dos Martyres : se
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 15
houvesse um José Lápis, que fizesse um fac-simile, bom seria possuir
este documento. Ah ! que miséria é o meu estado I Muito desejaria com-
por um livro sobre este homem! São duas e meia, chega o José, eu
tremendo com o mal que me não deixa suster a penna, e gastando
cera com o capucho do Botão!. . . Mas era um homem; e eu que sou?
Um João-ninguem, e fallo a verdade : um bocado de imaginação mais
viva, e disse. Mas se a imaginação é viva, o coração é sincero, quando
digo que sou
De V. S.*
Am.° e am.° obrig."""
24 de Dezembro de 1828.
/. A. de M.
XV
111.°"» Sr.
D'aqui foi pelas três horas José Lápis, e levou o n.° 7, e uma
carta minha; estimarei que hoje mesmo seja tudo entregue. Sempre
fico em cuidado, quando vai Besta, não fuja, ou se perca. São quatro
horas, eu estou só, porque a moça foi á botica; estou doentíssimo, e
desejando que venha, para me deitar. Estes dias santos me mudo
para uma casinha boa e nova, pouco abaixo d'esta, mas decente: eu
darei parte, e o numero da porta. Recebo os exemplares; agora com
a festa fará pausa a impressão da 6.^ e 7.* Os cirurgiões gritam que
esteja fora da cama, e eu o farei se poder; e para disfarçar tão horrí-
veis dores, verei se posso ir tirando do cahos a obra do maior traba-
lho, erudição, e empenho, que V. S.^ aqui viu^ e que desejo veja o
mundo das lettras. Aqui disse José tintas que Francisco papelada está
fazendo desenhos para o mais saliente e importante dos Burros: eu
deveria dizer o que é mais importante, e não Francisco papelinhos :
tomara vêr isso, e tomara n'essa casa, n'esta, e em todas poder dizer ,
que V. S.* ouvisse, que sou
De V. S.^
Am." e obrig."**
24 de Dezembro de 1828.
J. A. de M.
16 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
XVI
111.°'° Sr.
É meio dia, e atormentado de dores e frio me levantei um pouco,
porque vem chegando a hora de apparecer o mudo. Primeiro que tudo,
ahi remetto a V. S.^ esses papeis, com a sua competente Censura, que
merece ser copiada; e se o P.® M.® Fr. Álvaro fôr domingo ao senhor
Arcebispo, me fará a mercê de lhe entregar tudo. A minha penosa en-
fermidade me conserva no estado para mim o mais cruel, qual é o da
inacção. Nada tenho escripto, sempre deitado, sempre gemendo, e as-
sim se me vai a vida: cercado de importunos, que sempre vem pedir,
nem os posso evitar, e menos resistir aos peditórios de requerimen-
tos, que todos querem; aqui vem ter das províncias com a papelada
de documentos de serviços contra pedreiros; isso não è cá para este
mundo, e menos para este reino. Todas as vezes que eu escrevo, ou
fallo a V. S.* me esquece pedir-lhe que não contemple o Duque em
cousa alguma de papeis: é meu inimigo declarado, porque tenho (diz
elle) a alma cheia de acrimonia contra a facção. EUe não lê nada que
eu escreva, nem mesmo a Refutação; nem elle, nem o Borba queriam
que eu respondesse; mas El rei insistiu. Elle poz o Lopes fora da Ga-
zeta, e só elle: a Rainha está por isso muito enfadada, e se espera al-
guma cousa ; emfim, a soberba e o orgulho de alguns è muitas ve-
zes causa de desgosto, e da revolta de muitos. Eu estou no termo da
minha carreira; se assim não fora, os meus ossos não se sepultariam
em Portugal, que tanto amor e tanto interesse me tem devido. Pois só
ser fidalgo è ser tudo? O homem de bem, de alma grande, de cora-
ção limpo e generoso, o homem cheio de conhecimentos sem vaidade,
sem ostentação, que nunca n'elles falia, e sempre diz que os não tem,
nada é n'este mundo 1 Só o Duque de Caminha, e o Duque de Aveiro,
são alguma cousa, e são tudo, porque são Duques! Os verdadeiros re-
publicanos terão algumas vezes razão? Os hollandezes não foram, nem
são os estouvados pedreiros poríuguezes. Chega o mudo : eu acabo de
jantar um caldo simples de farinha, e ovos: nada mais posso levar.
Como não vem Besta, senão o rapaz, vejo que ainda ha demora, e as-
sim mais tempo tenho para a 8.^ se os requerimentos me deixarem, e
poder estar alguma hora mais fora da cama. O Imperador do Brasil
manda pôr a nossa sorte nas mãos do Imperador de Áustria, e Rei de
Inglaterra; são os dous árbitros, que hão de decidir se é rainha de
A FREI JOAQUni DA CRUZ 17
Portugal sid júris a menina, ou se deve ser rainha por casar por força
com seu tio. Estamos em boas mãos! E é possivel que nos chamem
ainda portuguezes? O Lopes me manda dizer isto, transcrevendo os
jornaes inglezes, d'este ultimo paquete, que veiu em três dias e meio.
Tenha V. S.' os bens que bem lhe deseja
Seu am.° obrig.™° e fiel
. . . Dezembro de i828.
J. A. de M.
XVII
ni.'"*' Sr.
Bem vê este Coelho, que faz o terceiro com estes dous antigos e
grandes pintores, Cláudio Coelho e Bento Coelho, como estou feito mo-
lho de villão, picado e rasgado com dores, ha tantos dias de cama,
sem remédio, e já sem paciência, porque para tanto padecer não chega
o valor humano: aqui estou quasi de bruços em cima de uma taboa
escrevendo, o quê? um eterno requerimento documentado com um mo-
lho de papeis, que espantam o mesmo Coelho, que já quer sair d'esta
toca. E por força, e de graça, escreva para ahi, e já me disse o tal
clérigo (de Cêa é elle, e não me traz de jantar!) que já tinha gastado
dezoito tostões em barcos para aqui vir, sem eu o chamar! Sou um
escravo pubhco para fazer requerimentos, e o diabo lh'o diz, que aqui
vêm ter do mais escondido cu de Judas do mundo, para me levarem
a mim d-c.^ Apparece a remessa ao Duque, pela razão do reparo. Saiba
em tanto V. S.^ que á mão de El-rei também não chegam, porque só
tem visto a 4.% 5.* e 6.* Aqui fico, e ha tantos dias, e escrever as-
sim é impossível: levantar-me-hei uma hora cada dia, passando o frio,
e escreverei a 8.^, e o mudo que espero um dia d'esta semana levará
alguma coosa, porque o Coelho com estas só pode levar agora os pro-
testos com que sou
De V. S,^
Amigo certo
. . . Janeiro de 1829.
J. A. de M.
CARTAS.
18 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
XVIII
111.'°° Sr.
Cinco representações, um longo manifesto á Junta do Tabaco, uma
longa carta a José Ribeiro Saraiva, que tomara lh'a apanhassem para
a trasladar; mil papeis de Censura; uma relação de livros mandada
pelo Lopes; um abbade de Priscos, também enviado pelo Lopes com
uns autos de demanda para lhe advogar uma causa de venda simulada
(parece que querem zombar de mira) o dia que amanheceu hoje com
o augmento da minha enfermidade, aqui me tem na cama gemendo
tristemente, e a Besta que é a mais gorda de todas, devendo ter doze
paginas, das três folhas tem só cinco e um bocado. Podia hontera de
tarde acabal-a, mas veiu o manifesto para a Junta, e esta manhã veiu
o abbade, logo vem um clérigo para se examinar de confessor, e é de
casa do Duque!! Eu estou em tal estado, que só me dá calor uma baeta
quente, que me cinge a cintura. Espero segunda feira pôr a Besta a
caminho pelo mudo. Agradeço tanto obsequio, e tão amigáveis lem-
branças; o papel é óptimo (é seu) e n'elle depois da 8.* Besta começo
a trasladar o Poema, ainda que não seja senão uma pagina cada dia;
mas com que cuidado irá elle em correcção, e empenho!
Ora, senhor meu, também eu quero mostrar a V. S.* que sou
grato, sem o ter sido mais ijae com penna e tinta. Por pouco mais de
nada, trazida por mão com fome, me appareceu aqui essa caixa; esti-
mei a occasião de lh'a oíferecer, porque ninguém mais conheço digno.
Pode José Pmcel estudar essa magnifica pintura; creio que se fartou
na Itália, e pode V. S.^ mostrar aos seus amigos que tem bom gosto,
porque no seu género é o mesmo que o Elogio de Pio VII; e eu sou
o mesmo em estimar e respeitar a V. S.* como seu
sincero amigo
... de Janeiro de 1829.
/. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 19
XIX
111.'"° Sr.
Parece-me ura verdadeiro milagre que eu possa escrever uma re-
gra, ou levantar-me uma hora da cama: a minha enfermidade chegou
onde só a morte pode ser o seu termo ; tenho todos os signaes de uma
inflammação na bexiga; as dores são as mais violentas, e não param
nem um minuto ou segundo; a ourina em grande abundância, não
pára nunca meia hora; de noute, n'este espaço, posso seguidamente
dormir: a passada cuidei que era a ultima da minha atribulada exi-
stência: n'este estado como posso eu escrever uma letra? Agora mesmo,
nem de pé, nem sentado posso escrever, sem me sentir atravessado
de ferros em braza; este é um dos martyrios em que estou, o outro
é grande, mas é evitável, que vem a ser as importunações de toda a
casta com escriptas incessantes, porque quando julgo que o que lenho
n'esta banca é a ultima, no mesmo instante apparece um feixe d'ellas,
e isto além das Censuras, que são umas atraz das outras. Pois visitas?
Hontem de tarde estiveram cinco até depois de noite; mas como ha
duas casas, fecho a porta, e fico n'esta em que escrevo, e gemo de
continuo, e lá os deixo escoucear quanto querem. Veja que socego e
silencio este para compor cousas não lidas em livros, e d'elles tresla-
dados, porém creados unicamente na imaginação I Basta, que já é ver-
gonha repetir isto tantas vezes. Aqui me disse hontem um dos visi-
tantes, que João Henriques pede a impressão de não sei que números
da Besta, porque de todo se acabaram: porque o não manda elle di-
zer a V. S.*? Outro visitante que veiu de Queluz, me disse que para
El-rei ler o numero 7.°, foi preciso mandal-o comprar a Lisboa, por-
que á sua mão não vão taes papeis. Pouco importa isto. Vae pois o
numero 8.°, creio que fará bulha pelo objecto, e que agradará muito
pelo modo. V. S.* o constituirá na mão do bom ledor mór, o P.® M.
Fr. Álvaro, e se entenderem, elle o ledor, e V. S.% e os 111.°*°^ Ouvin-
tes, que é preciso alguma coisa riscada, risquem tudo o que entende-
rem. O post scriptum do fim é para tirar as têas de aranha dos olhos
do Santo António de coquilho, o Rev.°"* Fr. Henrique. Gomo è conti-
nuada aqui a demanda pela Besta 8.*, empenhe-se V. S.^pela pressa.
Se algum espasmo de dor me não levar com brevidade, entre Besta
e Besta irei trabalhando o trabalhado e trabalhoso Poema, e na ver-
dade lhe digo, que só tenho pena de morrer sem o ver publico por
20 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
uma asseada e não mesquinha impressão; depois d'isto nada mais te-
nho cá que fazer. Aqui fico, não sq porque desmaiei agora com uma
lancetada que senti na uretra, mas porque é meio dia, e espero o
mudo, e poderá trazer carta de V. S.*^ a que haja de responder. Agora
me vão ajudando a sentar-me ao sol, para vêr se dou aos pés algum
calor. Deu uma hora, chega o mudo, e eu também o fiquei de pas-
mado, vendo que V. S.^ também o está: nem palavra 1! Seja o que fôr
não devia mandar a Besta, porque não sei o que isto seja. Ahi vae, se
não fôr á sua mão, acabou-se tudo.
5 de Fevereiro de 1829.
J. A de M.
XX
111.'^^ Sr.
Um dia só, ou uma só noite que aqui estivesse, e visse e presen-
ciasse os tormentos que de meia em meia hora eu soffro, pasmaria e
se admiraria que a fortaleza ou sofrimento humano chegasse a tanto.
Tenho chegado a artigo de morte em espasmos, e desfalecimentos,
sendo preciso pôr-me sobre o coração panos de vinho, ou aguardente
de cana. Eis aqui como eu estou quasi sempre. Hontem de tarde, por-
que entrava sol em casa me levantei para aquecer os pés; tornei logo
para a cama. Hoje também me levantei porque tinha que escrever
ainda o resto de um sermão, que se hade pregar sexta feira. Cheio de
dores violentas, assim mesmo nada fiz, porque então parece que o
diabo chama visitas. Não se admire V. S.^ de ler alguma graçola, é um
esforço que faço, mas nem assim chego a dissimular o martyrio: agora
mesmo estou supportando lancetadas agudíssimas, e cruéis puchões,
que me suffocam de dores. Aqui mandou o Lopes algumas reflexões
financeiras sobre o empréstimo; eu reduzirei tudo a ordem, e então lh'o
remetterei; e amanhã que torna aqui o mudo irá alguma coisa. Eu só
devia albardar Bestas, porque só isso convém, mas os que querem
essa roda dos altos couces, não sabem os que me dá a infernal doença.
Os importunos com papeis não me deixam nunca, e não é possível
vêr-me livre de semelhante escravidão. Um bacharel já despachado
para Souzel no Alemtejo me tem mortificado sempre com requerimen-
tos, nunca pára, já a moça lhe não quer abrir a porta, e elle protesta
da rua que nada mais quer que saber da minha saúde, e vêr-me, mais
nadai — Abre a moça a porta, desenrola um molho de papeis, e diz:
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 21
«Tenha paciência, nós devemos servir uns aos outros, faça-me já, já
um requerimento, para que eu n'aquella primeira instancia tenha o pre-
dicamento tal e tal; porque eu estive preso no Gastello, e de segredo;
meu pae foi capitão de Ordenanças, e meu avô foi almotacé era Fron-
teira, e meu bisavô creava amoreiras para bichos de seda; estes são
os documentos que alli estão. — » E hei de aturar um desavergonhado
assim? e outros que taes, ainda vêm com maiores destempêros, e eu
aqui manietado, quero fazer alguma cousa mesmo na cama nem isso
posso. Até aqui veiu um pedreiro, não hvre, mas dos que fazem ca-
sas, a pedir-me um requerimento, que me horrorisará os poucos dias
de minha vidai Pedia, que constando-lhe que El-rei queria emparedar
vivos alguns réos, elle queria ser o mestre que assim os sepultasse.
Isto parece impossível, pois assim succedeu, e já cá tornou para outra
cousa que lhe lembrou. Se os ponho pela porta fora, tornam no outro
dia com a mesma vergonha. Tal é a minha vida, e vôr-me livre é ex-
cusado. Eu não sei se a Besta 11.^ apparecerá ainda para a semana,
que tenham paciência^ e que me livrem de dores e de diabos, que me
não deixam: até versos querem, ou feitos ou emendados, e fogo na
porta, a toda a hora e instante I Gomo vêm os papeis, e o mudo ama-
nhã, mais dirá a V. S.*
Seu verdadeiro amigo
Março de 1829.
/. A. de M.
XXI
Ul.""» Sr.
Eu o que tenho feito e escripto, foi mandar vir do Forno roubado
a batina para me amortalharem, porque quero ir com aquella mesma :
tal é a situação em que a moléstia me tem posto estes dias. Nada
exagero, nem tenho para quê nem porquê. O Mastigoforo, para se
publicar sem dissabor do seu sapientissimo auctor, precisa dos remé-
dios que eu lhe hei de pôr, especialmente na venda do infante D.
Duarte feita aos Castelhanos pelo imperador da Allemanha, &c.^ ác*
— Elle quer desafogar, lambem eu quero, e não posso, porque em
casa de ladrão não se falia em corda. Tomará eu ter vida para a con-
tinuação da Monarchia Lusitana; o septimo volume de Fr. Raphael de
Jesus ha de ser posto na rua, e fazer-se outro de novo. E porque não
vem para Lisboa o P.® M.® Dr. Fr. Fortunato? Também cá temos bea-
tos e beatas que dirigir, e o Mestre da Vida que explicar; e fidalgos
22 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
e fidalgas também temos muitas, mas para as mandar á puta que as
pariu, porque ellas o são. Que Tentia, e que se deixe da farfalhada da
Universidade, que se não metta com asoos, nem ature os pedreiros.
Câ tem livros, sciencias e pergaminhos; e a mim me terá para lhe di-
zer:—Tudo isto não vale dois caracoes, nem a ponta de um corno! —
Sejamos amigos, como o é
. . Março de 1829.
XXII
De V. S.*
J. A. de M,
111.^° Sr.
Meu bom e muito respeitado amigo. Um momento me trouxe a
sorte esta manhã, em que me deixou a enfermidade levantar da cama,
poucas horas durou o alivio, veiu novo ataque agora ao meio dia, ainda
estou sentado, e chegou o mudo com a carta de V. S.* Não exagero:
cheguei a tal ponto com a doença, que outro dia á noute estando aqui
um clérigo, lhe pedi me rezasse o ofiQcio da agonia, estive em artigo
de morte: este é o meu estado, e já me envergonho de lh'o repetir tan-
tas vezes. Ia já para o Forno, o diabo as arma, abriu a parede sobre
uma janella, e agora me manda dizer o senhorio, que amanhã terça
feira vão os pedreiros : morre o Forneiro e cae o Forno. Veremos isto.
Se tiver concerto a parede, logo vou, ainda que do desembarque me
levem ás costas. Assim mesmo, no mais que deplorável estado em que
existo, forcejando de mais, sobre uma taboa tenho escripto na cama
aos intervallos, e faltam quasi três paginas para acabar a 13.*, talvez,
talvez o papel melhor que eu tenho escripto! Sei que se queixam, e
me atacam por ter usado de termos rasteiros e baixos, em estylo ri-
dículo, ou do ridículo: sei que talvez por se doerem das mataduras,
algumas das bestas que por cá andam me descompõem de homem ve-
nal, e vendido aos diversos e encontrados partidos; e já estou insen-
sível a tudo: digam, e façam o que quizerem; emende o mesmo Fr.
Henrique, ponha lá as parvoíces que quizer: desesperadas dores me
fazem de pedra; mas se parecer a V. S.* acabarei a 13.% e dirão que
é dúzia de frade. A 11.* os fez desesperar, mas esta 13.* os fará ad-
mirar. Sabe o que dizem e escrevem mais? Que eu não imprimo os
Sermões todos, porque uns dizem bem e outros dizem mal da Consti-
tuição. Quem me ouviu tal? Nem um só dos impressos foi escripto, ou
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 23
todo escripto antes de pregado. Basta de seca. Agradeçam a Fr. Hen-
rique o meu silencio, se não eu me vingaria na letra redonda de tanto
patife. Sobre o Ensaio fallaremos.
• Am.° obrig."'
Abril de 1829.
J. A. de M.
XXIII
111.'"° Sr.
A minha vida, ou a minha morte é estar na cama em gemidos e
dores, pedindo a Deus que termine a minha existência. Levanto-me
uma ou duas horas, e com incommodo e aíílicção, levantando-me a ou-
rinar de quarto em quarto de hora, escrevo alguma cousa. A Besta
14.* já vae no meio, ou mais; porém pego na penna — visitas I — Hon-
tem desde as três horas até ás nove aqui esteve o mais importuno e
insoffrivel dos mortaes, um tal Nápoles de Coimbra, que diz que é fi-
dalgo inteiro e puritano; todos estes males lhe soífrera eu com a mi-
nha invicta paciência; mas é poeta recitante, um dos flagellos mais pe-
zados com que Deus castiga o género humano. Tinha para aqui tra-
zido um poema, intitulado A Memhraida — os Membros — : é contra as
Cortes de Vinte, diz elle que para eu lh'o emendar: hontem veiu para
eu lh'o fazer imprimir á minha custa, mandar-lhe alguns exemplares
para Coimbra, e vender cá os outros por minha conta. Isto tinha uma
resposta, que era cozer já o papel para a Besta 15.^, e ser elle do rabo
até ás orelhas o objecto e a matéria. Disse-me mais, que tinha sete
volumes manuscriptos de poesias suas, e que cá os mandaria por um
almocreve, não disse se com porte pago, para eu os fazer imprimir.
Isto veiu dizer-se a um homem moribundolll Homem, que em vendo
poeta vê a morte! E é poeta um diabo d'estes, que me disse com toda
a franqueza que nunca em dias de sua vida ouvira nem sequer fallar
no Oriente, na Meditação e no Neivton! O P.® M.® Fr. Álvaro conhece
este homem ahi de casa de um tal Dornellas, que não sei se também
é poeta. Este fidalgo Nápoles foi presente que me mandou o P." M.®
Dr. Fr. Fortunato, e com carta sua, porque lhe foi dizer o fidalgo em
Coimbra que me queria vêr a caral Agora quer este poeta ainda mais
alguma cousa; quer que lhe mande tirar uma copia muito asseada, em
bom papel, do poema dos Burros; que pague cá a despeza da copia,
e que lh'a remetia pelo almocreve, que eu devo ir buscar e esperar
na Ribeira velha, e pagar-lhe o porte adeantado, dando-lhe mais ai-
24 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
guma cousa para beber a fim de o levar mais bem acondicionado ! Não
ha condição mais miserável que a minha 1 Não posso dar um passo da
cama para esta meza, e desde que amanhece até ás nove e meia da
noite, hei de soffrer d'estas, pedindo-lhe de instante a instante que me
deixem mijar, com gritos e dores que me quebram os joelhos, e pa-
rece que se arrancam as unhas dos pés! Basta d'isto. O Machado, se-
gundo creio, está aqui no Bom Successo: veja se o desencanta, e veja
se manda á regia, para se imprimir. Vae a traducção da sextina do
Abbade Casti; foi bem achada, julgo, para o meu amigo Abrantes, a
quem sou obrigado. O Ensaio aqui está, ainda esta manhã o repassei:
as impugnações não destroem cabahnente as infâmias e absurdos. O
povo mais se ha de lembrar d'estas, que das respostas: eu tenho pena
por causa do P.® M.® Dr. Fr. Fortunato. Tanta pressa têm, que não
possam esperar por alguma cousa que eu fizesse, porque ando mais ver-
sado no que elles dizem, e no que se lhes deve responder; porque de
memoria lhe posso apontar o hvro, e a pagina de onde o defuncto clé-
rigo tirou tudo aquillol Emfim o mudo vem cá amanhã; mande-me di-
zer se está por isto, senão irá; e eu fico sendo
De V. S.^
Am.° e o mais obrig.*'"
. . . Maio de 1829.
/. A. de M.
XXIV
111.'"° Sr.
O papel cozeu-se, e a albardadura começou-se, forcejando eu con-
tra o Ímpeto da enfermidade, que hontem subiu de ponto; á noite fiz
eu um remédio sympathico, e que parece supersticioso, de que falia o
Feijó, e alguma cousa se applacou o Ímpeto do inferno, ou hemor-
rhoidal, dormi espaços de hora, mas a dôr da uretra nada remettiu.
Tem razão de dizer-me — não, não! — e na verdade parece-me um mi-
lagre, que não podendo eu voltar o corpo na cama, nem a cabeça para
a ilharga, para ver um relógio pendurado, possa escrever uma letra
sentado a esta meza, e sempre inquietado com visitas, que pedem cou-
sas e secaturas que não acabam. Até um, que diz que é fidalgo de
Coimbra, João Bernardo de Nápoles, aqui veiu já três vezes, com um
poema de sua lavra, chamado a Membraida ou Membreida, para eu vêr
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 25
e emendar. De todas as manias a mais violenta ou arrastadora é a dos
versos. Matam-se os homens para os fazer, matam os outros para lh'os
empurrar! Eu bem os entendo; não querem emendas, querem applau-
sos e approvações. Eu, que nunca fallo de versos, nem de prosas, fat-
iarei agora alguma cousa de prosas. Li a Besta 12.^, e creia V. S.* que
me agoniei bastante; vem ridiculamente transfigurada, e me envergo-
nha a sua publicação. Quererá V. S.^ ter a bondade de annunciar a Fr.
Henrique que aponte o que quizer na censura, que eu remediarei tudo,
para ir a composição uniforme. Tanto me aborreceu a misturada de
grelos, que se a terrível doença me não tornasse insensível a tudo,
queimava de uma vez tudo quanto conservo escripto. Isto não é reino
em que se viva, ou não é reino em que se escreva. Talvez para a pri-
meira recovagem leve o mudo a 14.^ Ha de custar a encher, só com
as parvoíces do Pizarro I — Amigo de V. S.^ e amigo certo, e amigo
para uma e outra fortuna
/. A. de M.
. . . Maio de 1829.
XXV
111.'"» Sr.
Também eu me admiro de poder escrever uma letra, e pasmo
quando depois ólho para o que escrevi. Ha muitos dias que estou pe-
netrado de dores nas duas vias, que a vida é já para mim um mila-
gre. Comi um pouco de peixe, e umas favas, porque carne do açou-
gue, ou aves, são venenos cuja vista não posso tolerar de invencível
fastio: fizeram-me tanto mal, que nem uma hora durmo: a ourina do-
lorosíssima, o mais que se demora são vinte minutos, e depois que
saiu o pedaço de pedra lascada, a dôr é permanente. Já as casas do
Forno estão caiadas e limpas, a díÊQculdade está em eu poder dar um
passo, e não vejo por ora modo de ir d'aqui até ao embarque e do
desembarque até ao Forno. Apenas poder, se poder dar um passo,
abalo d'aqui. O desamparo para mim é o mesmo, cá e lá, e só com
a differença de estar lá na escuridão e melancholia da casa, e receio
de alguma parede me cair em cima, porque o senhorio só mandou dei-
tar remendos, sem desfazer a barriga das paredes. Que importa isto
a V. S.^ para o estar secando e zangando com estas ínsigniQcantes la-
murias, lamentações e tristezas? Fallemos n'outra cousa. Para que é a
impaciência do P.* M.® Dr. Fr. Fortunato? Ninguém mais do que eu,
porque sou seu amigo, sem dependência de cousa alguma, deseja su-
26 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
stentar a sua bem merecida reputação 1 É verdade que elle não neces-
sita de mim, que nada sou, nem de outros, que serão poucos mais do
que eu ; mas elle vivendo em Athenas, não conhece tanto o tempo pre-
sente como eu, n'este canto do mundo: irá o Ensaio na primeira re-
covagem do mudo, e eu fallarei do Ensaio na Besta 15.\ que vae de
galope.
A Membraida não é má, mas tem os versos errados; para os fa-
zer é preciso mais alguma cousa que a boa vontade: esle mal posso eu
remediar, e remediarei. Ahi vae o poema com seus appensos: pode
Francisco Papeleiro tirar uma copia, e depois eu a examinarei, e im-
primir-se-ha, porque ha grande ciúme sobre este original. A Carta do
Pizarro, em que V. S.^ me falia, aqui está já, e fallaremos. Hoje levan-
tei-me para fazer a barba, forcejarei por me conservar até ás seis ho-
ras, irei ao Ensaio, depois á albardadura da 15.*, que não vae má,
porque eu já começo com os remédios necessários para curar os ma-
les que a Besta causou. As dores, nem sentado me deixam estar; só
não podem fazer que eu não seja
De V. S.^
Certo e verdadeiro amigo
. . . Maio de 1829.
/. A. de M.
XXVI
III."" Sr.
A mim não me importa a casa, seja bonita, ou seja feia; menos
com a gente d'este, ou de outro sitio, que me é indifferente: gostoso
estaria eu no Limoeiro, ou nas galés, com tanto que diminuísse me-
tade do martyrio das minhas infernaes dores. O sitio não me faz conta
pelas importunações das visitas, todos os aias mais multiplicadas. Aqui
apparece tudo, excepto a saúde; a moléstia é de muitos annos, não foi
aqui adquirida, mas sim aggravada. Sempre padeci esta dessuria, mas
não dolorosa, e já lhe conto de edade trinta e oito annos. Tem chegado
. ao extremo a dor em ambas as vias, e desde sabbado que estou como
desesperado, e desejo do coração terminar a minha existência. Tanto
quero ir para o Forno, que não mandei pôr escriptos nas casas: to-
mara eu não vêr gente. Aqui veiu outro dia Fr. Henrique em grande
luxo, habito, corda e sege, lavado em lagrimas, e protestando-me e
jurando que elle não era culpado na capação da Besta, mas sim Joa-
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 27
quim António, e só Joaquim António. A.qui esteve lendo grande parte
da Besta 15.^, que julgo fingia admirar, pedindo-me mil perdões. Nada
me importa, façam o que quizerem, eu pouco posso durar já. Não vae
hoje a tal Besta lõ.^, porque faltando-lhe menos de duas paginas, tem
sido hoje tão grande o inferno das dores, que com muito trabalho es-
crevo fora da cama estes borrões. O Provincial do Carmo aqui esteve
também, e me disse que não era censor do Ordinário, mas sim do Des-
embargo. Seja o diabo, que é o mesmo. D'esta Besta 15.^ tomara eu
que se tirasse uma copia, porque não tendo nada que temer das cen-
suras, é de tal natureza que temo que se perca, porque nem eu, nem
ninguém fará outra assim. Ainda que o rapaz dê sempre conta de si
e a moça lh'a cosa bem na jaqueta, temo que se perca; e se o José
Coelho aqui vier sabbado, por elle a mandarei, e se não vier veremos
como poderá ir sem receio. Para a 16.* se eu não morrer, já tenho
matéria n'um patife impresso, que me mandaram com a marca do cor-
reio de Coimbra, ou fingida, ou verdadeira, que se intitula : = P^aro/
da liberdade /W5t7a«a = Lisboa, na OfBcina Mirandiana, anno de 1821.
— Com licença da Commissão de censura.=Cousa mais desavergonhada
nunca appareceul O P.^ M.® Dr. Fr. Fortunato, que se persuada que
os que cá estão em Lisboa não têm quatro mãos, ainda que haja mui-
tos que tenham quatro pés. Vou despachar o mudo, porque sabbado
me ha de trazer tabaco, e mais algumas cousas. Tenha V. S.* saúde,
que é todos os bens
De V. S.*
Am.° certo e m.^° obrig.*^"
. . . Maio de 1829.
/. A. de M.
XXVII
\\\J^° Sr.
Esta vae em letra mais direita, porque ainda que penetrado de
medonhas dores, quaes até hontem não tinha soffrido, vindo o barbeiro
e apparecendo o sol, aquelle para me lavar o couro, e este para me
aquecer, me levantei, e aqui estou olhando com dó da Besta sobre esta
banca, só com metade da pelle fora: esta tarde, se as dores me de-
rem uma hora de menos sofifrimento, levará mais alguns talhos. Tam-
bém estou cheio de furor, para escrever sobre o opúsculo impio, e ar-
razar na Carta ao P.® M.® Dr. Fr. Fortunato semelhante desaforo; mas
28 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
que horrível é este mall é preciso pôr de instante a instante sobre esta
região ordinária uma baeta quente, a ferver, para poder exhalar a re-
spiração do peito, que até se comprime: digo-lhe a verdade como amigo,
chego em suores frios a artigo de morte. Aqui me escreve o Lopes,
e algumas novidades me dá sobre o impresso de França, que chegou
hontem. Renduffe e Palmella estão em Paris. Faz de embaixador de
Portugal em Londres o embaixador de Hespanha, em quanto se não
declara o Asseca. E mais que secca são já estas cousas! No erário de
quinta feira não havia mais que quarenta mil réis, e a rainha a pedir
a sua dotação, e não apparecerem em diversas repartições mais que
três contos; e como se eu fosse financeiro, que apresente o prospecto
do empréstimo I Eul Pois não fartem tanto, que logo ha dinheiro. Te-
nha V. S.* muito, e aquella saúde, que para si deseja
J. A. de M.
... 1829.
XXVIII
111.""» Sr.
Primeiro que tudo — Ensaio. Eu formei logo o meu juizo d'este
papel, que o nome illustre do seu auctor acreditava, sem necessitar
de outros appendiculos: quiz ouvir outros votos, porque a esta impor-
tunadissima casa vem mais algum, que não sejam os ordinários falla-
dores. O Provincial do Carmo, como tem um anel muito grande, foi
um dos consultados, por ter noticia do mesmo Ensaio. Além d'este
outros mais, com anéis e sem anéis, e todos têm concordado que o
que se tira do papel é ficar a canalha decorando e repetindo as blas-
phemias contra a religião, nenhum caso fazem das respostas, que para
os doctos são ociosas, ê para os ignorantes inúteis. Isto é o que não
quer entender o P.® M.° Dr. Fr. Fortunato, que pelo que pertence ao
conhecimento do mundo actual é um sancto simples. Eu sou zeloso
do seu bom nome, assim como sou o primeiro conhecedor do seu ex-
traordinário merecimento. Será para mim uma oífensa suppôr alguém
que eu tenha interesse em que este papel se não imprima. O P.® M.®
Dr. Fr. Fortunato está em melhor posição do que eu para compor
dissertações que refutem cabalmente aquelles erros Ímpios: para ellas
vive entre exércitos de livros, eu não os tenho, não os quero, não os
posso vêr, nem quero vêr: para as puerilidades que escrevo basta a
minha imaginação. Faça elle o que quizer; — o Ensaio ahi vae. Vae
o n." 16 da Besta, para ser capada como fizeram ao n.° 15, porque
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 29
lhe falta todo o legado das peles para os doidos do hospital; são cou-
sas que fazem um vasio no discurso, que todos percebem; e se é sub-
stituído por Fr. Henrique, é ouro sobre azul! E tanto me hão de apu-
rar, que este tinteiro irá por aquella janella; para o rol da roupa, que
não é muita, basta giz: e muitos papeis, que estão no Forno, virão
para aqui n'um sacco, para se porem n'um fogareiro. A minha vida
está por um bem delegado fio, a pedra está atravessada na uretra,
já sahiu uma lasca mais, comecei a inchar muito, e como chega aos
joelhos, já não posso andar. É preciso tomar pilulas de ópio para dor-
mir meia hora; as dores são de morte, e até ella será
De V. S.*
Amigo
7. A. de M.
29 de Maio de 4829.
XXIX
111.'"'' Sr.
Hontem quarta feira foi para mim um dia de morte: ás duas ho-
ras estive quasi a expirar, e não esperava vida : deram-me uma ajuda
de dormideiras e linhaça, com que á noute senti algum allivio; eu ba-
talho contra a natureza, e contra a terrível enfermidade. Hoje me le-
vantei, com dores, é verdade; mas não d'aquellas que me deixam im-
movel, n'um espasmo mortal. Tinha vindo da tenda uma quarta de
toucinho, embrulhado em meia folha de papel impresso, era do Diá-
rio das Cortes de 1822 : n'ella achei tal matéria, que logo dei principio
ao n.** 18, que agora é meio dia, levo quasi em meio, e hão de dizer
que é o melhor, e dizem a verdade: o titulo é: — Os dois focinhos da
Besta: — queira Deus que acasos como este vão trazendo matéria, por-
que a imaginação cansa, tudo d'ella nasce, e nada por ella entra. Ad-
miro-me do vagar com que as Bestas vão! Ainda para quarta feira? Já
comecei a trasladar o grande Poema, devagar vae, porque na copia
torno a renovar tudo, e o meu estado não me dá nem tempo nem for-
ças. Hontem foi um dia, em que não escrevi uma regra. Aqui veiu o
irmão do 111.'°'° ex-Geral Fr. António da Silveira, lá lhe disse que tudo
faria para o encaminhar no que soubesse, e no que dependesse de re-
presentações e requerimentos; passos não posso dar, e com ministros
30 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
tão malhados nenhumas relações queria ter. Eu responderei sabbado
ao mesmo 111.°^°, pois me escreveu uma carta com que e em que muito
me honra; e eu a tenho, em ser
Am." verdadeiro
De Y. S.*
J. A. de M.
14 de Junho de 1829.
XXX
111.'°° Sr.
Não tem intervalos as dores, se os tivessem eu poderia fazer o
que me diz, e mais alguma coisa; e assim mesmo, o 1.° canto da Via-
gem extática ao Templo da Sabedoria já está tirado a limpo, e que tra-
balho! A Besta 20.^ está começada com três paginas. As visitas são
obstáculos ainda maiores; hontem me levaram a tarde três carcundas
de Lisboa; levou-me esta manhã um frade do Bom Successo, bom ho-
mem; de tarde verei se faço alguma cousa, apesar de me sentir mais
doente com um remédio que me receitou o medico, e aqui um cirur-
gião, que me diz que a herva de que se compunha, chamada arnica,
é ura estimulante com quasi a mesma força da machina eléctrica! Se
a natureza ia arrojando as lascas de pedra, depois do remédio não tem
saido, e sinto-as encalhadas com dores mortaes. Não sei que diga a
V. S.^ com o poeta Nápoles! É preciso inventar alguma jesuítica para
nos descartarmos de tal homem; ainda não foi possível deixar- me di-
zer uma palavra, em tantas e tão longas visitas ! Vou a fallar e logo
me atalha, fico interdicto: o que me faz a mim fará aos outros ; só elle
ha de fallar: com a doença tenho perdido o génio destampado, se não
tinha atirado pela escada abaixo com aquelle fallador, e outros quetaesi
Homem assim não ha, e lembra-me dizer-lhe que não dão licença aos
seus versos. D'elles, e d'elle livre Deus a V. S.^ e lhe dê aquella saúde,
que lhe deseja
Seu am.° obrigadissimo
30 de Junho de 1829.
J. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 31
XXXI
111.""» Sr.
Começo por fallar na Membraida e seus appendices; e sem impa-
ciência nâo posso olhar para semelhante papel. Julgo que V- S.^ não
conhece particularmente o poeta, e por isto não o ouviria ainda fallar.
Veiu aqui muitas vezes de dia, e de noite, demorando-se sempre mui-
tas horas; pois creia que me não foi possível fazer que me ouvisse uma
só palavra! Abria eu a boca, e á primeira syllaba era atalhado, de sorte
que nunca me ouviu; ás vezes com pasmo, e riso dos circumstantes:
isto não é encarecimento, nunca me ouviu uma palavra: o que me fez
a mim, julgo o fará a todos, é cousa a mais rara que appareceu na
terra! Outra raridade, elle diz que é poeta, eu sem jamais dizer que o
sou, tenho escripto, e se tem publicado immensos versos. Em Coimbra
se conhecem todos os poemas, todas as composições; elle é de Coim-
bra, e em Coimbra está, pois protestava sempre que nem um só verso
meu tinha lido, nem sabia que eu tivesse feito semelhante cousa. Quasi
o mesmo dizia das prosas, sendo tantas; e que apenas lera um ou ou-
tro artigo da Gazeta Universal. Se houvesse cousa no mundo de que
eu ao presente podesse fazer caso, seria esta, em que o devia deitar
pela escada abaixo. Já disse a V. S.* quaes eram as condições com que
me conSava os seus poemas, em ár de quem queria valer á minha po-
breza, outra injuria não menos atroz! Parece-me pois que a medida
que se deve adoptar, é remetter-lhe para Coimbra taes destemperos,
sem lhe escrever nem uma palavra, já que nunca me deixou dizer nem
uma palavra, também não deve vêr nem uma palavra escripta. Eu sou
extremamente amigo do P.® M.® Dr. Fr. Fortunato, mas não lhe per-
doarei nunca ter-me mandado para cá tal jóia! Homem com mania de
versos é cousa detestável; e ando tão farto de parvoíces em tal maté-
ria, que não posso fallar nem ouvir fallar em versos. Protesto que se
continuar a existir (de que duvido) mais algum tempo, que este orate
terá o logar mais distincto no poema dos Burros^ e que se elle nunca
viu um verso meu, então os verá!
Eu estou cada vez peor, são maiores as dores, e chegam a tanto,
que me sae pela boca o sangue do peito ha quatro dias: não posso
dar um passo pela casa, e para vir da cama sentar-me a esta meza,
é preciso encostar-me ás paredes muito curvado: agora n'este instante
que é meio dia, 7, estou supportando tal marlyrio, que é milagre não
32 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
morrer â violência das dores; vou já deitar-me outra vez: peito e ca-
beça tudo está tomado, até parece que estalam as solas dos pés, por-
que as dores vão ás extremidades! Deixemos isto. Recebi a carta do
111."° Sr. José Teixeira; a outra desde domingo estava feita, visto não
servir, elle dirá o que quer que eu faça. Estimo que as Bestas achem
tão prompto expediente no despacho, e que este confunda o pérfido
capucho. De novo agradeço a V. S.* o precioso doce; de tarde sem-
pre como um bocadinho, com que bebo um copo de agua fria, que me
refrigera. Estimarei que haja boas noticias do 111.'°° Sr. P.° Geral, e
do P.° M.® Fr. Álvaro, e que V. S.* goze as felicidades que lhe deseja
Seu am.° obrig."»"
7 de Julho de 1829.
/. A. de M.
XXXII
111."^° Sr.
Li com muito prazer a sua carta, e quanto mais ia chegando ao
fim, mais me alegrava, e me luzia o olho; mas é verdade que n'este
mundo não ha gostos completos, porque suspendendo com impaciência
a leitura do que vinha na margem, abro a enfeitada caixa, e em logar
de suavíssima abóbora, acho-me com a pimenta das murcellas; mas
como vem da mão de V. S.% não me poderão fazer mal. Da abóbora
anterior ainda tenho, porque é cousa que vae muito compassada, e com
muita economia. Vão os números do Mastigoforo; nada tem que accres-
centar, tudo tem que admirar, e muito poderão ensinar aos que com
attenção e inteligência os lerem. Levam uma censura, que é um elo-
gio, como ainda se não fez a ninguém; tem poucas regras, e eu de-
sejava que V. S.* mandasse uma copia ao P.° M.^ Dr. Fr. Fortunato,
para elle mostrar a tantos doctores seus collegas, para que vejam o
que produz a illustre e mui respeitável congregação de S. Bernardo.
Hontem de tarde comecei a Besta 22; se não fossem as minhas mor-
taes dores, e as minhas matadoras visitas, já a levaria bem adiantada.
Agora me occupará mais cousa do ministério, porque apparece ahi um
artigo da Gazeta de Munich, a que é preciso acudir, e levará tempo:
assim mesmo irei albardando, apezar de uma inflammação dolorosa no
olho esquerdo, e amanhã hei de saber se a impugnação do artigo infame
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 33
poderá ir na albardadura da mesma Besta. Deus nos livre d'8llas, e
Deus guarde a V. S.*, como deseja
Seu amigo o mais obrig.*^"
27 de jQlho de 1829.
J. A. de M.
XXXIII
Ill.°>° Sr.
Se a inclusa carta não failasse no seu nome, e se o seu auclor se
não declarasse visita sua, de camaradagem com o conhecido Visconde
de Manique, eu nem lh'a remettia, nem o importunava com a leitura
de patifarias e insolências. Esta leitura o instruirá bastantemente no
manejo dos meios infames, de que se servem, cuidam elles, para me
mortificar. A invenção de ouvirem o magote, que muito alto faltava,
para que os dois ouvissem, é infame. V. S.* deve ler a carta ao tal
Visconde, e saber d'elle se é real, se é phantastico o subjeito que se
diz seu amigo e sen collega, e que se assigna — José Pedro d'Azam-
buja — declarando-se morador no quartel da rua formosa. Creio que
tudo isto é invenção dos que mais se doem das matadnras da Besta.
Eu espero que V. S.* empregue todo o seu claro juizo, e admirável
perspicácia no exame d'esta patifaria. Bom collega tem o Visconde! Se
a Besta continuar, eu me desforrarei com estes senhores do quartel,
instrumentos promptos sempre para as nossas desgraças. Eu nada te-
nho escripto, porque alem da enfermidade habitual mais exaltada, te-
nho soffrido uma inflammação no olho esquerdo, com horríveis dores
de cabeça; estou sempre bloqueado de curiosos, uns trazem os outros,
e o tempo que posso estar fora da cama vae-se no tormento das visitas.
Hontem de tarde se apresentou aqui o poeta Membradeiro, que veiu
em ár de triumpho exprobrar-me um erro palmar que achou na Besta
21% em que digo que Leão 12° fez o que não tinha querido fazer
Urbano 8° com el-rei D. João IV, que foi mandar o Leão uma espécie
de núncio, que ahi está, o que não fez Urbano. Vinha o tal mentecapto
Membrisador em ár de me humilhar. Antes desse no P.® M.® Dr. Fr.
Fortunato uma dor de barriga forte, que quer que se imprima uma
das suas quintilhas com este verso: — E a tripa cagaiteiraí Maluicta
seja a mania dos versos! Todos os querem fazer, não sei como me hei
de ver livre d'este furioso. V. S.^ me annuncia uma cousa, que me
poz já no alvoroço e na impaciência de a fazer: venha já, e logo a
oração latina, que eu lhe porei em frente tal versão portugueza e lit-
CARTAS. 3
34 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
teral, que faça eternas ambas as cousas. O lente de prima de theologia
Fr. Domingos de Carvalho, frade da Graça, me mandou por casa do
Patriarcha uma carta com uma oração latina; mas nem carta, nem
oração eu entendo, porque não atino a decifrar ,as garatujas das letlras;
ahi está, e deixal-a estar.
Sobre a lembrança do periodo — Amalgamador — que exigiam, es-
crevi (e tanto mal fizl) ao Visconde de Queluz, para fazer vêr a El rei
que não convinha, e que nem sabiam o que pediam, mostrando-lhe que
nas actuaes circumslancias eram necessárias três cousas, e que todas
três eu faria: — i.^ uma Falia d'Elrei á nação, cousa que ainda se não
fez, e na qual mostrasse uma espécie de agradecimento aos sacrifícios
que a mesma nação por elle tinha feito, manifestando-lhe evidentemente
os direitos que o chamavam ao throno, promettendo não amnistia, que
é palavra que não deve jamais sahir da bocca do Rei, mas perdão, que
não ofifende a justiça, aos que se julgasse que o mereciam por erros
de entendimento. — 2.^ Um vigoroso Manifesto ás nações, que ainda es-
tão suspensas, com magestade e sem choradeiras. — 3.^ Um, ou mais
discursos na Besta esfolada, em que se chamem todos os portuguezes
a um centro de união, de auctoridade e de obediência, para vantagem
da mesma nação, formando um systema de interesse commum. Re-
spondeu-me, de palavra já se sabe, que elle faria vêr a carta a El-rei,
mas que eu devia recorrer pelo canal competente, que era a Intendên-
cia, dizendo aquillo mesmo ao Intendente para propor a El rei 1 Eis-me
aqui no estado miserável de pretendente, arrastado pelas estações, para
me deixarem fazer aquillo mesmo que me pedem que faça !
Aqui chegava, quando o rei dos mudos também chegou, e foi para
mim agradável o annuncio da moça (que falia de mais) quando abrindo
a porta, gritou: — Chegou o sr. João. — V. S.* me quiz logo fazer a bocca
doce, porque eu já não estava muito cousa, com a falta das suas noti-
cias, ambos nos queixamos, e nem eu, nem V. S.^ temos razão. Fallei
no acabamento da Besta, porque me deixei levar do receio de que V. S.*
se enfadaria de ser mettido nas barafundas de diligencias e passos ne-
cessários para licenças, impressões, preparos de papel, e tantas pen-
dangas indispensáveis para tão pequenas cousas, que tanto tempo re-
querem; eis aqui o único motivo da minha lembrança, e mais nada;
porque eu nos intervalos do meu insoffrivel mariyrio, e das minhas
destampações com as visitas posso escrever; a matéria sempre appa-
recCj e eu sei estendel-a a martello; gritem embora esses senhores,
que dizem ouviram na rua os do magote. Se o calor me deixar esta
arde, entre dores começarei a 23.^ Vejo que a cousa vae de través,
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 35
apezar do conciliador Lopes, que aqui esteve antes de hontem até mui
de nonte, me querer fazer palpar com as mãos a nossa felicidade. Aqui
tinha passado El rei n'esse dia, e com pasmo e até susurro festival da
gente da rua e das janellas, me disse adeus com a mão direita, pas-
sando as rédeas para a esquerda, pois ia governando as bestas, de-
pois uma cortezia com a cabeça, e finalmente meio levantado uma cor-
tezia com o chapéo até abaixo. Tudo isto é muito, mas eu comprei
hoje por setenta réis um grande linguado, uma abóbora muito grande
por meio tostão, e dez réis de pepinos, tudo com o dinheiro das Bes-
tas I Aviemos com isto, são duas horas; vai essa caria para o P.® iM.®
Fr. Álvaro Vahia ; vão os papeis para o 111.™° Sr. José Teixeira, e aqui
fica seu amigo o mais obrigado.
/. A. de M.
. . . Agosto de 1829.
XXXIV
111.'°° Sr.
Recebi a carta de V. S.* por mão de José Coelho, que muito es-
timei, por tudo que n'ella se contém ; sei que vieram os Jesuítas, por
que n'elles se põe alguma confiança : o que elles fazem também os ou-
tros podiam fazer, se as cousas se tratassem seriamente, e se em tudo
e de tudo não dispozesse a pedreirada, e se muitas das corporações
religiosas não estivessem tão contaminadas. Tudo o que nós dizemos
para o bem é governar o mundo em secco. Eu estou aqui feito uma
péla, com que todo o mundo joga; todos aqui vêm, ou aqui mandam,
para que eu ponha isto, ou aquillo na Besta; cada um quer a cousa a
seu modo; gritam-me, reprehendem-me, porque não fallo nos- emigra-
dos trasmontanos, porque não ralho, porque os não despacham; por-
que não louvo como devia os realistas ; outros vêm, que querem uma
tunda no ministro das Justiças ; outros querem tunda no Bastos ; outros
que devo ralhar da promoção; um quer o monte-pio, outro quer me-
lhor vacca para o açougue. A Rainha ralhou da observação da i2*;
logo aqui vem um clérigo por mandado d'ella dizer-me o que eu devo
escrever. Foi mostrar a El rei a Besta esfolada, porque até alli nem um
só numero appareceu diante d'elle. Entendam lá similhante inferno! A
Besta 24* está quasi acabada, e se não fossem as visitas agora a po-
deria mandar. Estou perplexo. V. S.* vai para a Venda-secca, não sei
como isto será; eu não mando tal papel por mãos extranhas, que pode
haver desvio, e cousas taes não se podem compor duas vezes, porque
36 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
é um esforço de imaginação tirar do nada tanta cousa. Se a V. S.* pa-
recer, eu paro até que V. S.* torne para Lisboa; esta mesma Besta,
quasi concluida, aqui ficará: custa-me que tanto trabalho se arrisque.
— ^ão importa que me yenbam descompor por -não apparecer a Besta.
Espero sobre isto as suas instrucções, ou as providencias que tenha
dado para o expediente. Eu estou gravemente enfermo; além da mo-
léstia habitual, deito pela boca muito sangue pizado, cousa medonha 1
O olho esquerdo inflammado, com grandes dores internas; emfim es-
tou como desesperado, sem apparencia de outo dias de alguma me-
lhora, para me ir sepultar no Forno, e vêr-me livre de tantos diabos,
que têm feito d'esta casa uma estalagem, onde cada um entra quando
quer, e vem mandar o que quer, e até dizer-me na minha cara o mal
que dizem de mim por essa Lisboa, sobre Besta má, sobre Besta boa;
só me falta virem também regular as horas em que devo ir ao bispote,
e o tempo que n'elle me devo demorar I Ahi vem logo o Visconde de
Monfalegre, e que tenho eu com as asneiras que elles fizeram em Cas-
tella? Deixemos isto. Mande V. S.^ dizer o que eu devo fazer emquanto
se demorar na Venda-secca, e como deve ser isto de impressões.
Am.° obrig.°'°
. . . Agosto de 1829.
J. A. de M.
'xxxv
111.'"° Sr.
H ontem pelas dez horas da manhan chegou a esta casa de dores
e zangas uma deputação da nação alcatruzada, composta de três mem-
bros, um lente da Universidade, um tenente-corouel de grandes ser-
viços, F. Gamboa, e um cónego de Bragança, F. Araújo, que foi pela
Besta degradado para Sagres em 1822: julgo que o lente trazia arenga
estudada, porque me aposlrophou em forma, e com acções; ella durou
tanto, que o mijo se me não conteve, e com grande dôr mijei a camisa,
e as calças todas: eu lhes respondi, que me dessem licença para me
ir alimpar, e que no emtanto estivessem certos, que a Besta 27* não
ficava na estrebaria, e que eu a ia logo acabar de albardar. Depois de
eu mudar de calças, ainda que não tivesse muita vontade de fallar, lá
lhes fiz o meu quanquam como Deus me inspirou, agradecendo á na-
ção golfinha o seu cuidado, e desvanecendo o seu sobresallo. A Besta
vai, digam isto á Nação, a Besta vai, e vai de sorte que não possam
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 37
pernear os censores bestas. Este é o discurso qae pronunciei, pouca
eloquência de corpo, ou poucas acções, porque eu não me posso me-
cher com dores. Já tive outro caso idêntico, quando disse que não con-
tinuava mais com o Desappromdor, que uma sociedade a que presidia
Ricardo Raymundo fez o mesmo, mandando-me um discurso da lavra
do mesmo Ricardo, que eu aqui conservo pela sua lettra, e é uma mi-
séria de emendas, de entre-linhas, e chamadas f Eu lh'o mandarei, ou
darei, se V. S.* quando poder, e não tenha nada que fazer, cá vier. O
Visconde de Queluz não fica pobre, porque o não é quem tem a que
se torne; a loja lá está ainda á entrada da lameda de S."* António dos
Capuchos; estojo não lhe faltará, e o P.® M.® Fr. Álvaro, que é curioso,
lhe pode acudir com um, que algumas vezes lhe vi, e é um acto de
caridade acudir a um official pobre : torne a levar couro e cabello, já
que não pode evitar esta escanhoação. — Beatissime Pater, sic transit
gloria mundi.— ^\\iò poderá dizer: — Gontenta-te, papo, que já foste
farto. — Talvez que não seja por fartar o próprio, mas por encher o
ventre alheio! Se eu lhe disser que foi muito rapaz, elle me pode re-
torquir que também isto é muito esfolar. V. S.* também me poderá di-
zer, e com razão, que também isto é muito seccar; pois eu me calo,
e só lhe digo com verdade que sou
De V. S.*
Am.** certo
/. A. de M.
. . . Septembro de i829.
XXXVI
III.'"» Sr.
Estou como cançado de fazer reflexões sobre o laço armado á
Besta; hontem depois que d'aqui sahiu o P.® M.° Fr. Álvaro, entrou um
sujeito da contadoria do Senado, homem de consideração e propósito,
o qual quinta feira tomou á sua conta averiguar tudo o que perten-
cesse ao embaraço maçónico da mesma Besta. O censor nomeado pelo
Desembargo é um Mr. Martin, engenheiro, e empregado na bibliotheca,
malhado furioso, ignorantíssimo e verdadeiro patife, e assim conhe-
cido, e segundo se disse do mesmo Desembargo para fora, escolhido
para isto : e um filho de Joaquim Ferreira dos Santos disse ao tal su-
jeito tudo, e até lhe fez vêr por extenso a censura. O primeiro passo
que deve dar é responder como pede o desaforo, ao extracto da mesma
38 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
censura, que por todos os modos se me deve apresentar: isto vai ao
Desembargo, que remelte ao censor, para este sustentar a sua deci-
são: eis aqui obra ao menos de um mez, porque se concede o espaço
que pedem, e desde este momento começa um processo infinito, por-
que o Desembargo nunca decide sem se satisfazer o censor: á vista
d'isto, o recurso é um aviso para um censor privativo; peior, e muito
peiorí Em 1827, quando escrevia as Cartas, veiu esse aviso das Cal-
das; e porque? Porque Abrantes o propoz, e logo a Infanta o mandou
passar. Creia V. S.* que se por extraordinário milagre o requerimento
chegasse ás mãos de El rei, e elle mandasse, nunca se passaria no
actual ministério 1 Sei, como sei que existo e penso, que o Duque é
capital inimigo meu, e que nunca soíTreu taes escriptos, porque eu sou
realista, e o tenho mostrado. Se fosse preciso um aviso para sahir o
viatico, todos os doentes morriam sem sacramentos. Este aviso per-
tencia aos Negócios do reino, e esse homem deseja esquartejar-me:
bem viu V. S.^ qual foi o resultado da carta, que eu lhe escrevi. Por
escripto já me dirigi ao actual Intendente, para que Sua Magestade,
visto msndar-me escrever tão positivamente, me nomeasse um censor;
nem resposta tive, nem em tal se fallou. Pela Bainha? Peior, eu não
creio impostores, que inculcam valimentos e inlroducções. Desde que
estou entrevado, e se me encheu a casa de todo o género humano,
conheço verdadeiramente os homens. Aos grandes influentes não agrada
a Besta, foi preciso indirectamente acabar com ella, e o conseguiram.
JVunca me esquecerá o que me disse Manuel Fernandes Thomaz: —
Que estimava ter o poder nas mãos, para pôr no meio da rua o Des-
embargo do Paço, que nunca fez mais que bigodear o governo.
É preciso pois, que me seja remettido o extracto da censura, eu
responderei, e se farão duas copias, uma para o Desembargo, outra
eu a darei a quem em audiência a apresente, e saiba gritar a El rei.
Para defender El rei me fiz eu victima do ódio publico, e por fim o
premio que recebo é uma desfeita, e por mãos de um patife e igno-
rantíssimo malhado í Aqui chegava hoje sabbado, pelas nove horas da
manhan, quando me appareceu o mudo com a carta de V. S.* e vejo
que o expediente que toma é o que elles querem ; porque se absolu-
tamente não supprimirem a Besta, ao menos Iodas apparecerão d'aqui
por diante mutiladas, sem sentido, e sem graça nenhuma. Christina
Alexandra I Pois que delicto é este, fallar de uma Rainha de Suécia,
do tempo de El rei D. João IV? O monge disse mais do que eu digo,
ha testemunhas, e uma d'ellas é o filho de Joaquim Ferreira dos San-
tos, que estava no coro da egreja da Victoria, que lhe ouviu, e outros
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 39
muitos que com elle estavam.* D'esta sorte, que posso eu agora es-
crever, que não seja a medo? Riscarão todos, virá tudo cheio de pon-
tinhos, e isso é para mim um grande vilipendio. É mais conveniente
e decoroso não escrever mais nada ; e venha para cá o Intendente com
a hypocrisia de dizer que El rei quer que escreva, e que malhe nos
malhados! Desejo bem deveras que se não imprima a 26*, acabou-se,
e eu estou tão doente, que posso dizer hoje que esta é a minha ultima
vontade; a horrível moléstia que tenho basta para me aterrar; mas
supponhamos que venha a morrer de fome, é mais uma doença de que
se morre, e antes isso que ser alvo do povo; levar na cara desfeitas,
e ficar como um rapaz de eschola, sujeito ás emendas do senhor mes-
tre, fazendo, como fiz a onze d'este mez sessenta e quatro annos!
Creia V. S.* que não mudaram de censor, senão para isto mesmo, es-
colhendo um tão conhecido pedreiro-Iivre para fazer d'estas. Peço pois
a V. S.*, e com a ultima resolução, que não dê mais um passo para
a impressão de tal papel ; nunca mais nenhuma lettra minha appare-
cerá impressa sobre similhanle objecto ; se lhe parecer deite tudo isso
no lume, eu já ha muito deveria ter acabado, foi hoje. Não mande im-
primir. Eu quizera dizer muito mais, porém torno já para a cama, por-
que é tal a violência do mal que hoje me ataca, que parece se exhala
a alma. Sou ' .
De V. S.*
Am.° e o mais obrig.**"
... Septembro de 1829.
/. A. de M.
XXXVII
111.""» Sr.
O mudo veiu tardíssimo, e é preciso que eu acabe de jantar, que
vem a ser queijo e uvas, porque carne 1 1 não é preciso que haja os
outros dous inimigos, mundo e diabo, basta tal carne do açougue de
Pedrouços, porque hoje, se não era de cão, era de cavallo de certo.
Li a sua carta, o outro papel ainda o não li, o que farei esta tarde, se
os meus carrascos me deixarem. Vai adiantada a 28*, e comecei hon-
tém de tarde entre os alaridos dos carrascos; ahi estavam três, que eu
empurrei. Veiu um clérigo, que nunca vi, e me disse: tEu sou o pa-
» Vid. a Besta esfolada, N.» 20^ pag.' 6 e 7.
40 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
dre João, V. M." ha de conhecer, um clérigo que veiu em um navio,
chamado Joaquim Guilherme; eu venho aqui somente para o vêr, como
V. M." é vivo, porque não me satisfiz com os retratos.» — Pois sou as-
sim, lhe disse eu, e adeus até á primeira. . . E fechei-lhe a porta. Fiz
o drama para os cómicos, talvez uma das melhoras cousas, que eu te-
nho feito na minha vida : não lh'o mando, porque esta tarde aqui ha
de vir um cómico e mais uma cómica, para lhe ensinar a pronunciar
os versos, e apontar-lhe o que se chama scenario. Que visitas tão hon-
radas e respeitáveis! Mijarei n'ellas, e para ellas, porque o diabetis
está furioso, nem dormir meia hora seguida me deixa. Se estas illus-
tres personagens não apparecem, o que é de esperar da sua capaci-
dade, então ámanhan verei se lh'o mando, para se copiar e logo im-
primir. Deram-me uma penna de aço, que esta com que escrevo não
presta; só tem a vantagem de escrever depressa, e não necessitar de
aparo, que é cousa que leva tempo, e para as Bestas não convém, por-
que vão de galope. Aqui esteve hontem o Marquez de Borba, que. me
fallou muito em V. S.*, lá lhe dei a 26^, que elle ainda não tinha. É
muito tarde para o mudo tornar. Tenha V. S.^ as venturas que lhe
deseja
Seu am." fiel e obríg.""
. . . Septembro de 4829.
/. A. de M.
XXXVIII
111.""" Sr.
Estou doentíssimo, e mais com certeza de morte, que com espe-
rança de vida. Surprehendido fiquei eu com a carta de V. S.^ O ho-
mem que lá mandei é um homem de bem, e com quem me tenho
achado para tudo.
Fiz o requerimento, porque por este homem me mandou dizer o
senhor Arcebispo, que o fizesse logo, e logo: e toda esta pratica, e
todo este recado ouviu o P." M." Fr. Álvaro, que no mesmo gabinete
do senhor Arcebispo estava; e disse-lhe também a este homem, que
me dissesse da sua parte que o fizesse, e que não me descuidasse.
Este homem é realista, não é pedreiro-livre, o mesmo senhor Arce-
bispo faz d'elle toda a estimação, e lhe franqueia a entrada na sua
casa sem se fazer annunciar por criado algum ; emfim, eu não sou de
todo pateta, e sei de quem me fio. Os patifes estão despedidos d'esta
casa, e nada temo, nem tenho porque tema; temo tanto como pode
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 41
temer um homem que sabe que morre dentro em poucos dias; assim
mesmo desejo que os outros não temam por amor de mim. Se o mal-
dicto escripto da Besta esfolada é um crime, como está provado, n'este
crime ninguém é cúmplice. Nunca me deixei abater da adversidade,
mas fico vergonhosamente abatido, quando vejo que me querem inve-
ctivar como um criminoso, por amor do mais ridiculo dos meus escri-
ptos, qae é a Besta esfolada. Torno a dizer, que ainda que não esti-
vesse moribundo, não tenho medo de becas Vieiras, e outros que taes
jacobinos. Deixemos isto para sempre, e se V. S.* poder haver o tal
requerimento da mão do individuo a quem se entregou, muito favor
me fará se lh'o pedir, não para m'o remetter, mas para o entregar ao
seu cosinheiro, que o metta na fornalha, que não fallo mais em tal,
nem quero que me fallem; porque esse temor de que vejo possuído a
V. S.* me prova que eu commetti algum crime, que o Arriaga, e os
outros maçons do Desembargo querem punir. Fico anciosamente su-
spirando pela oração do P.' M.* Dr. Fr. Fortunato ; eu farei com me-
lhor vontade do que o fiz ao frade de Nápoles, no Elogio de Pio VII di
traducção, que se não corresponder ao original, será ao menos um
panno de raz ás avessas. A respeito do drama allegorico (que não foi
licenciado pelo Desembargo malhado) é cousa de nenhuma entidade;
foi excessivamente applaudido, e por mim despresado, pois sei o que
faço, e não queria que levasse o meu nome: foi devoção dos cómicos,
como o humilde e reverente. A palavra humilde, nem para o rei; mas
para V. S.^ os protestos da mais cordeal amisade, porque sou
De V. S.»
cordeal e natural am.**
/. A. de M..
. . . Novembro de 1829.
XXXIX
III.""» Sr.
Que têm os meus honrados e verdadeiros amigos, que estão lá
na usurpada casa do Desterro, com as infernaes buzinas, que de dia
6 de noute aqui vêm para me fazerem até aborrecer a vida com três
cousas: com mentiras, com tolices e com trabalhos forçados? Eu na
verdade sou um parvo, e em não tendo o encantado tinteiro ao pé de
mim, sou mais simples e ingénuo que uma creança de quatro anãos I
42 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK VACESDO
no trato familiar não tenho a menor tintura de malicia; só as digo
quando escrevo; não posso desgostar ninguém, e contristar menos
ainda : dizer que não, é tirar-me os dias da vida. Ás vezes digo eu com-
migo : — Se aqui estivesse sem o verem um dia inteiro Fr. Joaquim da
Cruz, rompia a nuvem, e gritava com muito dó de mim: «Ponham-se
no meio da rua, desavergonhados, e não acabem de matar este pobre
homem I» — Eu já não tenho paciência! As mentiras dos três extermi-
nios tiraram-me a paz e o socego ! Hontem á noute esteve aqui um
Official da Secretaria, chamado João Torquato, quo é também Òílicial
de planos para o Duque, a quem não importara, veiu aterrar-me com
demoras de reconhecimento, e novas ordens do Imperador ao Marquez
de Palmella para proseguir na obra de pôr no throno D. Maria II; de
ter chegado, e de ter sido recebido como um soberano José Bonifácio
no Rio de Janeiro, de lhe ter morrido no mar a mulher, que eu co-
nheci p. . . em Lisboa ha trinta e outo annos, e de metter o cadáver
n'uma pipa de agua ardente, para se não corromper, e de ser levado
nos coches da Casa com a tropa das três armas em armas, para o mau-
soléo preparado. Ora ouça isto, e venha com o animo socegado com-
por tragedias e comedias, sendo a comedia a mais diíScil das compo-
sições I Espere V. S.*, que isto não é nada : ahi veiu uma castelhana
velha, chamada a senhora D. Victoria, que quer nas coutadas de Sal-
vaterra fundar uma Villa, e n'esta villa que ella ha de fundar, estabe-
lecer uma fabrica de pannos da terra, promettendo levar comsigo para
a tal villa fundada vinte e quatro meninos da Casa-pia para os crear
no temor de Deus, e depois ensinar a tecelões, e faça para isto um re-
querimento de duas folhas de papel,|que me levou o dia de hontem,
e o de hojei
Espere: ahi veiu o coronel Lemos com um soldado carregado de
papeis, para lhe fazer já e já as duas expedições Madeira e Terceira,
muito á su^ vontade, e isto com dous Hvros de Oílicios, sem ser o di-
vino, e o de defunctosi
Espere : ahi veiu um cego, que toca guitarra, e ao som d'ella can-
tava a Constituição, e hoje o JR^» chegou, para lhe fazer um requeri-
mento, que deve levar ao Conde de Basto, para El rei o fazer mer-
cieiro de D. Affonso IV 1
Espere : ahi chegou uma carta de um clérigo de Torres, que quer
lhe faça um sermão da publicação da bulia, para correr as villas e
aldeias !
Espere : ahi chegaram duas immensas cartas de uns presos, que
estavam no Aljube, e um d'elles S. Fortuna, por darem uma cacetada
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 43
n'um braço de um mercador patife, o sr. Ambrósio Simões, para lhe
fazer dous sonetos, em que se queixem de lhe premiarem com a ca-
deia o seu realismo I
Que cabeça D'este mundo não enlouqueceria? Pois n'este estado
estou eu, e porque carga de agua hei de eu fazer tudo isto, pondo-me,
como põe, o pé no pescoço, não se me tirando nem da porta a bater,
nem da casa a quebrarem-me os ouvidos, e as cadeiras? Não sei por-
que. Só me deixam cheio de louvores do meu corcundismo, de que te-
nho tirado boas fés de ofiBcio. Tal é a minha situação no meio de irre-
mediáveis dores; por isso lhe digo que teria muito dó de mim, se in-
visivelmente aqui estivesse observando a minha triste condição, ou es-
cravidão. E ainda em cima, vá o Arcebispo para aqui, o Provincial para
alli, e eu para a Casa dos OratesI
E a Viagem ao Templo? Quasi concluído está o segundo canto, e
com vagar irá, não só pelo estado que lhe exponho da minha situação
escrava, mas porque tudo mudo, pois nunca me agrada o que fiz, só
me agrada o que faço. Tudo faço novo. Tirem-me d'aqui este tinteiro,
eis-me outra vez tolo. Espere, ahi vieram dous frades "Vicentes, um diz
que já foi vice-cancellario da Universidade, dizer-me que a noute d'além,
DO campo de S.'* Santa Clara ás duas horas da noute se deitaram qua-
tro foguetes de nove respostas ; e que pela manhan se disse no mos-
teiro eram porque quatro desembargadores do paço iam para a rua, e
um d'elles o Bastos, que tem lá um filho a educar, e a aprender pre-
paratórios, para quê não me souberam dizer. Espere:... É a caste-
lhana, fundadora de villas e de fabricas, vem buscar o requerimento,
que vai no papel grande em que se escreviam as Bestas e acabaram
de escrever os Burros. Mas esta fundadora, sem ser D. Elvira Fernan-
des, que fundou Odivellas, traz um vestido velho de paninho, e uns
sapatos de cordovão russos e rotos I — E sem o fazer esperar mais,
aqui tem Y. S.^ um entremez no seu
Velho, sincero, e obrig.*^° amigo
11 Novembro de 1829.
/. Â. de M.
Pedrouços, e sem jantar, ás três da
tarde, em dia de S. Martinho, e tenho
arroz, nabos, uvas, e agua, porque car-
ne não a posso tragar, nem vêr.
44 CAi\TAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
111.""' Sr.
Meu bom e honradíssimo amigo: Hontem, 13, cuidei que era o ul-
timo dia em que V. S.* tinha que aturar este trambolho de impertinên-
cias: aggravou-se o meu mal a ponto de me vêr morrer com uma in-
flammação hemorrhoidal ; não me pude levantar, assim fiquei, e de
noute mais de trinta vezes ourinei com dores mortaes; emfim, isto é
mais um individuo, ou menos, que existe na terra. Hontem tive três
recados a respeito da Besta; um ás três da tarde, directamente d'Elrei,
que fallando-lhe na quinta debaixo o sujeito que lhe entregou o reque-
rimento, e dizendo-lhe:—: Senhor, o padre além de estar muito doente,
está desconsolado em extremo por amor da Besta: — «Pois vá-lhe di-
zer da minha parte, e que digo eu, que se não desconsole, que já man-
dei que fosse ao Patriarcha.» E isto lhe disse quasi ao ouvido, porque
se approximava o Marquez de Bellas, e fallou isto tão baixo, que cus-
tava a entender. Veja V. S.* que taes são as sombras que o seguem!
O segundo foi de V. S.^, trazido por José a óleo, o terceiro por
um homem que foi copiar do livro da porta do tal Desembargo o des-
pacho. Talvez elles não ajuntem á consulta a censura do Provincial do
Carmo, e isto devia ser requerido; mas sem o conselho de V. S.* não
faço nada. Se em cartas se pozessem despachos, eu escreveria directa-
mente a El rei, que elle não se enfada por isso. Emfim, eu nada es-
pero, porque a corda quebra sempre pelo mais fraco, e elles hão de
pintar a cousa a seu geito, ainda que se fizessem juizes e partes, con-
stituindo-se em censores, cousa nunca vista; o Provincial devia já ejá
demiltir-se, que o mais é vergonha., Recebi o tal drama, os sonetos
estão bons, e que importava que fossem máos? Um soneto compõe-se
de quatorze regras, que dizem quatorze cousas nenhumas. Eu terei
feito mais de quinhentos sonetos, e não sei que foi feito d'elles, não
seil Muitos de encommenda, a annos de mulheres, pelos quaes eu me-
recia tantas bofetadas quantos annos as mulheres furtam, quando se
lhes pergunta quantos annos têm. Com esta cara que eu tenho, fiz
cousa porque merecia não só esbofeteado, mas açoutado, que vem a
ser um drama lindíssimo, e não tem senão três adoras, que eram as
três Graças: e talvez que V. S.* ponha as mãos na cabeça, estas três
adoras, ou três Graças, eram muito suas, e mui chegadas parentas.
Isto tem mais de dez annos de edade, e me mandaram dizer, que se
A FREI JOAQUIM DA. CRUZ 45
ensaiaram também, que o fizeram segundo as instrucções maravilho-
samente.
Vamos á tia Yictoria. Esta tarasca castelhana é da raça dos Ardis-
sons, a cousa já se tentou, mas ficou esbarroncada no Conselho de Fa-
zenda : mandou-me aqui um protocollo que carregava um gallego, dos
serviços do marido, que vinham a ser espionagens que fizera da es-
tada dos francezes aqui, mandado por Evaristo Peres de Castro, e de
passaportes que obtivera para ir explorar minas de azougue; e por es-
tes serviços feitos ao diplomata Peres, quer a tia Yictoria metade das
coutadas de- Salvaterra; ao menos d'ahi tirará para mandar deitar meias
solas nos sapatos I Ella ha de ir á audiência, o senhor Esmoler-mór
lá estará, e lá se fartará de ouvir fallar e bacharelar a falladora mór de
Hespanha e índias I
Emquanto a Lemos, por dous volumes em quarto de oflQcios e
mais papeis annexos, que aqui tem e continua a mandar, parece-me
que está de boa fé; ao folheto que já appareceu fiz eu a prefação: o
ilhéo que a quiz, também me parece homem honrado; se eu o pintasse
com esta ptnna não me pareceria assim, mas quando os ouço fico de
bocca aberta e completo parvo, e não me parecem se não S. Francisco
de Assis.
Quanto a Ferreira Pinto não tenho motivo para desconfiar. Elle
agora emprestou duzentos e quarenta contos, dinheiro contado. Só cahi
n'uma, mas vi que era para salvar, não duvidei. Quando elle estava in-
famadissimo com o governo, fez-se um vigoroso requerimento, até aqui
vamos bem, era o rascunho feito em papel grande da Besta, e Burros.
N'outro dia veiu-me pedir que o copiasse pela minha lettra : eu o fiz,
como tolo que sou, já se sabe porque (talvez lhe custasse muito) se ti-
tinha armado, e se fez dizer a El rei: — Este papel é feito por José
Agostinho, e até a lettra é d'elle. — Isto fez o milagre, mas eu podia
também ir com elle para o inferno I Já estava passado o decreto, se-
não continuava no contracto ; logo El rei lhe fallou em publico com dis-
tincção, e está cabido. Emquanto ao homem, é aqui visinho, e não é
mal intencionado. Elle se oflereceu para me levar uma carta ao Vis-
conde de Queluz; este se lhe offereceu se quizesse alguma cousa; pe-
diu ser oíficial de secretaria ; disse-lhe mestre Pires, que elle não pe-
dia a El rei ; mas que me dissesse a mim, que lhe escrevesse eu uma
carta pedindo-lhe por aquelle homem; porque é tal a queda d'Elrei
para com o Padre, que tudo se fará (palavras do Pires I) E assim foi,
porque logo baixou um aviso d'El rei, e dentro o requerimento ao Vis-
conde de Santarém para lhe lavrar o despacho, e ser provido o homem,
46 CÀRTÂ6 DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
pois pedia o Padre. O Visconde tem demorado, ou mangado, ainda não
está concluído, e se não fôr para a secretaria, será para o correio ; isto
lhe dizem com certeza. E eu não digo mais, porque estou morto de
dores, e estafado, mas tudo farei sempre para mostrar que sou
De V. S.*
Am.° certo e obrig.°*
i4 Novembro de 1829.
/. A. de M.
XLI
111.""' Sr.
João Pedro pergaminho velho, basculhador de cartórios para nada,
e lente de Diplomacia para cousa nenhuma, ofiBcial de pedreiro para
enganar os corcundas, é de todos os quatro costados um pedaço de
asno, o que prova com o presente escripto : nada impugna, nada prova,
tudo são fatuidades, e tudo indícios de inveja a Fr. Fortunato, porque
quiz ser oflQcíal do mesmo officío, lettras antigas, e tolices velhas. Fr.
Fortunato é um assarapantado, e tudo para elle são bichas de sete ca-
beças; hade querer responder com muita seriedade, e o que aquillo
merece é uma descompostura, d'aquellas que estão de encommenda
n'um dos quatro ângulos d'este tinteirinho; não a perde, ainda que
gire e se espalhe manuscripta. Forte arguição I Que importa que a em-
perrada velha (e talvez conciliadora de vontades dissidentes I) a Abba-
dessa de Lorvão não quizesse mostrar o Cartório a Fr. Manuel dos San-
tos? Que desgraça veia ao mundo em não quererem os padres do go-
verno dar-lhe licença para visitar o Cartório de Évora? Os padres do go-
verno têm a seu favor a presumpção de prudência, e de direito no artigo
costella de rebellião ; eu não vou por aqui, e digo : quem sabe se Fr.
Manuel dos Santos seria um chorão, e as senhoras de Castris sempre
p...? Isto é arriscar conjecturas; mas os padres do governo nunca
se escolhem tolos. A grande questão é o Dr. Fr. Bernardo de Brito.
Ora eu pegaria na cabeça d'estes dous bolorentos busca-cartorios (te-
nho pena que o tal pergaminho velho basculhasse o de Arouca, que
fresquinhas murcellas não sepultaria elle no bucho f) e marraria uma
com a outra dúzias de vezes, porque diz que não é sobre cousas rela-
tivas ao Dr. Fr. Bernardo de Brito. O pergaminho diz que elle compo-
zera a gothica inscripção do arco da serra dos Albardos ; o Fr. Assus-
À FREI JOAQUIM DA CRUZ 47
tado de S. Boaventura diz e grita que o Dr. Fr. Bernardo de Brito não
compozera a lindissima Silvia de Lizardo. É boa teima ! Eu vi em Braga
um exemplar, impresso na vida do auctor, enquadernado em perga-
minho dourado, e com as folhas também douradas, e uma nota ma-
nuscripta, que me excitou a idéa — Coz — , que eu na edade de deze-
nove annos, que para alli me mandaram a uma Cadeira, não conhecia,
e a que por amor da boa de Silvia fiquei afifeiçoado. A nota era a es-
tes versos, que nunca me esqueceram, e já lá vão os sessenta e qua-
tro e cinco mezes !
E no verão pela sesta
Aqui se virá sentar.
Bem alheia de cuidar
Que a sua vista lhe empresta
Agua para se lavar.
Um ribeirinho, que atravessava a cerca, povoado de salgueiros, e
um freixo,
Um freixo que alli fazia
Tamalkvez da corrente.
Que impedida de um penedo
Que no meio d'ella estava,
Ao repouso convidava.
Mas Fr. Escrupuloso não quer que um rapaz como elle era com-
pozesse tão suaves, e tão namoradas cousas 1 Fr. Bernardo era de Al-
meida, que é fria, mas tinha o coração quente. A boa da Silvia suppo-
nho que era menos ociosa que as Silvias de agora, e lá, porque a pinta
delicadamente fiando n'uma roca á janella:
Em uma roca fiando,
Mas o fuso lhe cahia
Dos dedos de quando em quando.
Este cahir do fuso, para quem tem o pensamento no amante, que
também a requestava, é o quadro mais bello e natural, que eu vi, e
que eu li ainda. Elle, elle, o fradinho da minha alma foi para Madrid,
e é bem de presumir que a Silvia do meu coração ficasse chorando
(logo se calava, que n'isto se parecem todas as Silvias velhas, e mo-
ças) e assim falia o discretíssimo e delambido chorão :
E por quanto certo sei
Que as lagrimas s5o salgadas,
Aquellas doces achei.
48 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Eu também, m illo tempore, fazia versos, e muitas d'estas lamu-
rias, e tive inveja dos versos, e muito mais inveja de uma verdade que
elles declarara: o rapazinho, que as achou doces, é certo que se che-
gou muito para os campos de rosas por onde ellas corriam ! Tanto não
diria eu, se ao pé d'estes campos, e d'estas pérolas liquidas visse um
papeliço de abóbora com que me fosse entretendo ; porque sou mais
amigo d'estes bens sólidos, que d'aquellas doçuras passageiras. Se este
único exemplar estiver ainda na livraria do Collegio do Populo de Braga,
eu desenganarei com elle o beatissimo antiquário servo de Deus Fr.
Fortunato. Que diria elle, se lesse a traducção das Heroidesáe Ovídio,
traduzidas em óptimos versos italianos pelo cisterciense, e seu Fr. Re-
migio Florentino ! Diria que não eram d'elle, porque parecera offensas
de Nosso Senhor, e contra os Exercícios de Santo Ignacio.— Pois vá
açoutar as cinzas do seu Doctor Sá, lente da Universidade (não é o
dos Estatutos) porque mandando de presente um congro ao Padre An-
tónio Vieira, em uns versos latinos lhe diz cousas mais frescas que o
congro vindo da Pederneira. Que mande á tabúa Fr. Pergaminho, que
eu responderei, porque ninguém conhece melhor a litteratura da Con-
gregação. Sou amigo de Fr. Fortunato, mas não sou nera raetade do
que é de V. S.*
J. A. de M.
28 de Janeiro de 1830.
P. S. — Muito doente estou hojei
XLII
Ill.'"° Sr.
As parvoíces dos Pavienses com dois piparotes vão a terra, e o
peor é fazer caso de republicanos na egreja. Fr. Fortunato, pouco cos-
tumado á guerra das contradicçôes, de tudo se assarapanta. Hoje re-
cebi eu uma carta de Fr. Domingos de Carvalho, em que me manda
recados de Fr. Fortunato, e me diz que todas as tardes se ajunta com
elle em uma quinta próxima, e que ali o consola e anima: falla-me na
carta septifolia, e m'a pede, e diz que o lente primário de Medicina era
ouvindo lêr alguma cousa de Fr. Fortunato, ou rainha, logo grita: —
Estes dous hão de ser enforcados. Fr. Fortunato cuida que já o enfor-
cam, eu não cuido. Eis aqui para que serve bem a Besta esfolada,
mas julgo isso impossível. Parece que disseram a El rei que me des-
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 49
pachasse, fazendo-me substituto de Fr. Cláudio, para escrever, debaixo
da direcção de Fr. ClaudioIII a historia do tempo desde a regeocia
de seu pae até á sua chegada a 22 de fevereiro de 1828. Veja V. S.*
a honra e ventura que me esperava! Olhe que a cousa chegou a me
mandarem fazer requerimento I — A Besta não sae, aqui m'o veiu di-
zer na minha cara António Ribeiro Saraiva, que a elle se devia a sup-
primissão, pelo que mandara de Inglaterra, pois representara que d'aqm
iam retalhos da Besta, que fallavam nos inglezes, traduzidos em inglez,
que retardavam o reconhecimento, como o retardara a prisão dos qua-
tro marinheiros que levavam o dinheiro nas canastras da hortaliça, e
como o tiro de baila que o Raimundo deu em Gascaes. Com que, 111.™"
Sr., a Besta morreu ; e só tenho viva esperança em cavalgaduras me-
nores, que se chamara Burros, que vão indo de trote. Aqui disse o
mesmo taciturno Saraiva, que lá fizera um pathetico sermão a V. S.*,
e que o convertera, fazendo-o entrar na confraria de São Duque e do
Beato Santarém: eu lhe dou os parabéns, mas não se incommode, nem
confie nos laes Santos. O clérigo de Braga é mais supportavel com a
demanda de São Fins, ou sem fim. Tantas amarguras minhas acabara
de ser adoçadas com uma das óptimas murcellas, que já não está na
caixa, está no bandulho. Deus pague a V. S.* tão opportunos benefí-
cios; e se ateimam com Fr. Cláudio I! I — Já d'aqui peço ao 111.™" Sr.
P.® Geral, e ao seu Rev.""" Definitorio me concedam um logar entre as
serranias, e saudosos horisontes (expressões de Fr. Bernardo de Brito
na chronica de S. Pedro das Águias), onde me possa sepultar sem nin-
guém me vêr mais, os poucos dias que me restara de vida. Alli irei
esconder a minha vergonha, e compor, se tiver tempo, um episodio
para os Burros, maior que os Burros todos juntos. Nada me diz sobre
a transferencia do jejum, e eu em tudo o desejo servir, porque de todo
o coração sou
De V. S.^
Amigo certo
Pedrouços, 6 de fevereiro de 1830.
J. Â. de M.
CARTAS.
50 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
XLIII
111."° Sr.
Hoje é dia de Mudo, e como elle vem tarde, e deve tornar, me
antecipo nas tristíssima escripta. Aqui veiu António Saraiva hontem de
tarde, e aqui esteve desde as cinco horas até ás oulo e meia: trazia o
5.° numero do Defensor dos Jesuítas, que levava ao Duque, terra obli-
vionis. Se lá o deixou, descansará em paz até á resurreição dos ca-
puchos, que um capucho o quiz enterrar. Talvez que n'esta terra Ín-
via e inaquosa encontre a Besta, podendo ir de ancas cora o padre
do Forno. A Besta cahu nas mãos dos ciganos, aonde irá ella para tor-
nar a apparecer? Com effeito, depois do dia 22 de fevereiro de 1828
cuidei que um tribunal era corpo não exercitasse ura despotismo im-
pudentissirao, não fosse juiz e parte, e não condemnasse ura homem
sem ser ouvido, o que se não nega ao mais facinoroso, até depois de
condemnado á morte; e depois dMsto, como um conselho de bárbaros
privasse um miserável velho e enfermo do único meio que lhe res-
tava no mundo para sua subsistência! Havia trinta e seis annos con-
secutivos em que pelo ministério do púlpito me sustentava com três
«ousas: cora muita honra, muita independência, e muita abundância;
a doença insanável me privou d'este recurso, trabalhoso na verdade,
porém profícuo, e que alguma estimação me mereceu entre os homens;
acabou o exercício de fallar, e foi substituído pelo de escrever; e de
repente, com a maior e mais escandalosa de todas as injustiças, me
vejo privado de tudo. El-rei sabe que defendia seus direitos; que di-
rigia bem a opinião dos povos; que me mostrei sempre intrépido em
tão perigosa contenda, antes e depois da sua vinda, o que não foram
capazes de fazer os seus aulicos, grandes, titulares, e senhores nossos
(que se resuscitasse Manuel Fernandes Thomaz se vestiam logo de sa-
ragoça) e nem uma palavra disse mais sobre o absolutismo do Tribu-
nal; suscitando-lhe a vergonhosíssima lembrança de Fr. Cláudio! Deus
conserve na mesma disposição os actuaes Contractaijores do tabaco; se
elles não foram, já hoje mesmo podia dizer — tenho fome!— Isto não
era desculpa, nem motivo de eu me fazer malhado, nem de me aggre-
gar a malhados loucos, patetas e ignorantes; mas era motivo de eu
me declarar fora d'aqui, isto é, fora d'esta detestável pocilga de per-
versos, verdadeiro e contumaz republicano; sei melhor que ninguém o
que isso seja, e como se pode ser; mas não sou capaz de torcer ca-
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 51
minho, já que o da vida está tão próximo do seu termo. Em nada d'isto
tenho fallado a V. S.*, porque me lembrei que nada lhe devia impor-
tar, e que só a beneficência o obrigava a tanto trabalho, tantas zan-
gas e impertinências, e conheci que se compromettiam os interesses
da Congregação nas dependências que poderia haver n'aquelle vilissimo
tribunal; fallo agora, para que V. S,* não dê credito a esses crédulos
corcundas que depois de zurzidos com palmatoadas, e rasgados com
açoutes, devoram noticias dadas por malhados, que os escarnecem e
os picam. Bom é que assim fique a Besta, para se ver e saber sem-
pre que um tribunal foi juiz e parte, e condemnou um homem sem ser
ouvido. É justo que eu também não condemne a V. S.* a lêr muito,
porque eu devo pôr limite a escriptos de toda a natureza, mas não li-
mites á obrigação de mostrar em tudo que sou
De V. S.*
Amigo certo e obrig.""*
Pedrouços, 9 de Fevereiro de 1830.
J. A. de M.
XLIV
111.™'' Sr.
Recebi a carta de V. S.^ li, e nada ainda li, que me obrigasse
tanto; deu-me a conhecer o seu coração bemfazejo, e o quanto devo á
nobre Congregação a que pertence. O meu estado é mais lastimoso
pela enfermidade, que pela indigência; eu não estou no extremo ain-
da. Os frades da Graça me têm sollicitado muito e muitas vezes, mas
eu não faço figuras perto da morte, e eu preferirei sempre uma hos-
pedagem caritativa em Alcobaça como clérigo secular, ás distincções
de mestre da Ordem, e aos privilégios de pregador régio. Deixemos
isto, que não vem a propósito, porque eu confio mais dos extranhos,
que n'aquelles loucos e desleixados domésticos. Sim senhor, eu desejo
fazer tudo o que me diz a respeito de lettras, e sobre' tudo pelo que
pertence a João Pedro Ribeiro, o aleivoso; mas tomara que V. S.* po-
desse observar a rainha situação, para conhecer que me é impossível
escrever com a rapidez costumada sobre qualquer matéria. Venha aqui,
e observe um homem infeliz, pela maldita virtude de não poder con-
tristar ninguém. Todos os dias, apenas sôa uma hora da tarde, aqui
52 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
está o clérigo do seminário de Braga; (todos os dias!) não tarda; hon-
tem yeiu com um immeaso canudo de lata cheio de papeis da demanda
de São Fins; não se quiz ir, senão quando en, cançado, eram sele ho-
ras da noite, deante d'elle me despi, e deitei quasi morto; e diz que
me não deixará emquanto em mim descubrir um só espirito de vida,
porque se vae fazer um assento no Desembargo sobre o julgado da
coroa, e quer exposição de bulias, e um breve, que eu não sei o que
ê—Âparitionis om— abrimentos de boca! Depois d'este capital inimigo
meu, e de todos, depois d'elle veiu António Ribeiro Saraiva, que vem
sempre e me trouxe o Chaveco e o Paquete, que já tinha moslradoja
V. S^, e demorou-se até ás nove horas. Hoje veiu um capucho, pro-
curador dos vinte conventos que tem no Alemtejo, que quer um dis-
curso para a eleição do provincial. Ainda elle estava, e veiu um arra-
bido, que vae para Salvaterra, que quer dois sermões feitos, um so-
bre a confissão e outro sobre o amor do próximo. Ora considere V. S.*
o Macedo que nasceu em Botão, e doente como eu seriamente estou,
e que com todos os seus talentos fizesse metade do que estes diabos
querem que faça, e logo, e com o pé no pescoço, e gritando que se
não tiram d'aqui, e que fosse logo continuar os Burros, acabar o Tem-
plo, e defender a Congregação contra os insultos do Pergaminho ve-
lho, ác* ác* — Isto faz dó, e digam-me como hei de evitar isto? OhiT?.
vá para o Forno! — Mais perto lhe fico, pois aqui veiu hoje um alfamte
de Lisboa, que porque veiu a Belém a negocio seu, aqui se ferroujdi-
zendo — que posto eu o não conhecesse, elle ouvira dizer que me ti-
nham sacramentado, e que tinham visto entrar para cá o viatico; é ver-
dade que veiu a uma casa contigua, uma d'estas noites... Espere, es-
pere; ahi vem um clérigo, fugido de Braga, que quer que lhe faça um
requerimento para el-rei lhe dar um beneficio de Coruche, que tinha
o Conde de Paraty — Insere nunc Melibce juros pone ordini vetes.— \3iO
lá fazer prosas e fazer versos, periódicos e discursos n'este estado!
Direi mais para a outra viagem, e perdoe V. S.* a secatura. O clérigo
bate, e eu acabo; pelo amor de Deus, veja se se lembra de algum re-
médio, que a isto possa dar o seu
Verdadeiro amigo
Pedrouços . . . Fevereiro de 1830.
J. A. de M.
A FKEI JOAQUIM DA CRUZ 53
XLV
III.'"» Sr.
Sem encarecimento digo a V. 8/ que ha doze dias que me vejo
doentíssimo, porque hoje mesmo (que é uma hora) desde que me le-
vantei ás oito, tenho ourinado vinte e quatro vezes; isto é estar muito
doente; ajunta-se a isto uma sele continua, com tanta seccura, que
me custa a despegar os beiços, e não ha agua fria que me farte; de
noite é peor, porque se fecho os olhos, é tal a soltura da ourina que
me acho alagado, e é preciso metter lençoes, camisas sujas, e quan-
tos trapos ha em casa, onde tudo o é, excepto a minha lingua. Este é
o meu estado miserável. V. S.* advinhou, eu estava para mandar á
botica buscar caroços^ ou pevides de marmello para se fazer uma in-
fusão, e molhar a bocca para me refrigerar a lingua, e apparece tanta
marmellada (e donde me é mandada, para não vir muita?) Não é para
consoada, é para cear, porque nem carne, nem peixe é possivol co-
mer; só couves lombardas com manteiga, leite e chá preto, é o meu
continuo alimento, e mais nada. Agora mesmo me tinha chegado de
Belém um arrátel de marmellada grosseira, como é a dos confeiteiros,
e serve, porque faz a outra mais engulivel. Beijo a mão a V. S.* e lhe
antecipo as boas festas, ao 111.™ Esmoler mór, e ao P.® Fr. Álvaro;
eu as não tenho para mim, e por isso estas que lhe annuncio, n3o são
dadas, são desejadas. Basta de fallar de mim, nem devo entristecer os
outros com a minha triste, e miserável situação. Depois que me fecha-
ram a cavallarice, e me vejo sem Bestas, não apparece aqui viva almal
Uns vinham para que lá os não pozesse, outros para lá pôr os que"el-
les queriam, agora sem mais tirar nem pôr, nem os postos, nem os
tirados aqui apparecem. Aqui veiu um Desembargador do Alemtejo, e
ex-frade, com um calhamaço manuscripto contra Fr. Fortunato, por
amor de uma passagem pag. o do Masiigoforo 6.^, para lhe dar o meu
parecer para o imprimir; era uma virulenta invectiva. Eu lhe disse
(isto não é serviço, é effeito da minha convicção intima) que se tal fl-
zesse, o levaria o diabo nas minhas mãos; aponlei-lhe para o tinteiro,
dizendo-lhe: «Senhor reverendo, o diabo alli ê que mora, e pouco lhe
custa sahir d'alli, e para se soltar não é preciso o dia. de S. Bartholo-
meu; em eu lhe dizendo o que Christo disse ao cadáver de Lazaro —
Veni fora — ainda salta mais depressa, e sempre está a deitar a cabeça
fora, a vêr se eu o chamo.»— Lá se foi com as orelhas como dois me-
54 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
dronhos; espreite V. S.* por lá se a cousa vae á regia; o capucho é
desavergonhado, e pode fazer das suas. Vamos á magna carta. Sim
senhor, convenho no que diz respeito aos Jesuitas, e para se publicar
pela imprensa vejo que não é politico, e devendo-se imprimir deve-se
tirar ou accrescentar-lhe notas, pondo tudo o que ha duro na boca de
muitos philosophos do tempo e exhortar Fr. Fortunato a que prosiga,
e ali mesmo lhe lembrarei cousas do Paraguay que immortalisam e di-
vinisam os Jesuitas, assim como o que elles fizeram nas missões do
norte do Brazil, no rio do Tocantins, e quasi até ás vertentes do Ama-
zonas. Os Jesuitas souberam mais que todos os astrónomos modernos
(o que eu calei na carta); o padre Briga, napoHtano, encovou o summo
astrónomo Bianchini, e Maraldi, e Zanolli de Bolonha, achando elle
Briga as manchas do planeta Yenus, as suas phases, pois a viu cor-
nuda; achou a parallaxe de Marle, com que determinou ao cerio a dis-
tancia da terra ao sol; — inventou uma machina (os jesuitas eram mais
diabos que eu) na qual posto o piloto, podia fixo e sem balancear, ser-
vir-se do astrolábio e do outante para saber onde estava no mar, ainda
que o navio desse saltos em tempestade, como os Desembargadores do
paço com a Besta esfolada. Ora basta, que eu vou-me ás couves, que
é hora e meia, e eu já ourinei a vigésima quinta vez; mas V. S.* faz-me
a bocca doce, e no fim das couves vae decerto meio covilhete, e irá
meia canada de agua, porq^ue se me abrazam as entranhas; máos fí-
gados tenho eu sempre para os patifes, que atacarem Fr. Fortunato,
ou enxovalharem a Congregação de S. Bernardo, ou disserem que V.
S.* não é amigo do seu
Amigo
Pedrouços ... de Dezembro de 1829.
J. A. de M.
P. S. 1.° Paula que não perca a copia, porque eu hei de vêl-a,
para dar remédio a tudo.
P. S. 2.° Desejo que o senhor Arcebispo veja a Carta, porque a
pede.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 55
XLVI
111."" Sr.
Eu eslava agora (meio dia) lendo pela oitava oa nona vez o seu
óptimo e valente papel cantra a nota do patife e hypocrita Ribeiro ou
Carreiro, que o dão a conhecer as botas, as meias brancas e o cha-
péo; alli não ba mais que dizer, e só alguma cousa no fim ha que ado-
çar, quando.se trata dos ajuntamentos e funcções em casa d'elle no
beco do Jardim: isto, e o mais não está esquecido. A vinda inopinada
do Arcebispo, que muito se demorou depois fez que não podessemos
fallar no que era preciso, e foi-se o tempo em livros velhos, que para
nada servem já, e d'estes mesmos velhos os melhores são conhecidos
apenas do bichinho traça, e da matta da poeira; mas aquelle óptimo
homem gosta doestas cousas, e com ellas talvez disfarce a affronta da
IJesta. A sogra do velho da Penha para aqui mandou dizer por escripto
que fallara ao conde na Besta esfolada, e que elle conde com um sor-
riso (havia de ser muito engraçado 1) dissera: «A Besta está afifecta a
El-rei; mas a decisão não está remota.» Isto foi ha três semanas quasi,
e depois aqui se espalhou a noticia de existir ja licenciada na secre-
taria do Desembargo; agora resta em requerimento pedir a El-rei, que
ora me leve o diabo a mim, ou aos patifes desembargadores; isto é
para desesperar d'uma vez; creia V. S,^ que hão de resistir ás ordens
de El-rei. Ninguém gosta mais de escrever do que eu, e agora muito
o preciso, para dissimular as minhas dores, a cruel diabetis, e o ar-
dor interno, que me obriga a beber copos de agua frigidissima em
jejum; mas que quer V S.^. . .Fiz a oração fúnebre em que lhe fallei,
e que se deve recitar a dez d'este mez, e que me quereriam dar por
isto? Seis cruzados novos; e não seria melhor deitar-me da janella
abaixo? La se foram dous óptimos dias de sol, e eu abrindo a gaveta,
e vendo as cousas meias feitas, e especialmente os Burros postos na
espinha, e sem ração! O Templo da Sabedoria pedindo que o tirem do
borrão 1 A Magna Carta sem poder preparal-a com os reparos e obser-
vações muito judiciosas de V. S.*, porque ainda o Arcebispo não a
mandou; isto me consome, mas que posso eu fazer, tendo só duas
mãos, que parece que tenho quatro pés? Ninguém tem mais jus do
que eu a um logar no poema dos Burros. Tomara eu que V. S.* aqui
viesse um dia pela manhã, porém munido com um robusto varapáo,
como quem anda de passeio, e que á porta me deitasse em terra o
56 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
clérigo do seminário de Braga I Esse, esse é o inimigo de tudo; se na
escada não houvesse outro morador estava eu bem; mas elle espreita
que se abra a poria da rua, não bate, apanha a porta aberta, e no
mesmo instante me bate á porta da casa, e eil-o dentro, porque se não
vê quem seja; senta-se logo, e desenrola do canudo de lata a papelada,
não se vai, nem se quer ir, e diz que ou elle, ou eu. Isto parece um
sonho, mas é assim como lhe digo. Outro clérigo de Braga, que para
aqui recambiou o Lopes, também me mortifica bastante. Dirá V. S.* que
os imponha, não o conseguia nem V. S.^ a pezar do seu severo aspecto,
e capaz de incutir respeito a um presidente das cortes! Basta d'isto.
Os seis cruzados novos não me esquecem, e lá se foi o papel ! Era óptimo,
ao menos beatificava o sancto e malhado Bispo. Ao menos mande lá
para o ouvir, e vir contar esse entendido Máximo de manjericões ra-
ros de folha amarella recortada, e de quem eu sou muito amigo, por-
que apesar dos poucos annos tem chumbo, e siso na cabeça, e eu mui-
tas dores, mas muito desejo e efficaz vontade de mostrar era tudo que
sou
De V. S.*
Amigo o mais obrig.''°
Pedrouços ... de Março de 1830.
/. A. de M.
XLVII
111.'°° Sr.
Hoje é dia de recovagem do mudo, e por isso me antecipo com
estas regras, apezar de me achar muito opprimido de dores, e inun-
dação de ourinas, que me vae consumindo. Muita inveja me teria hoje
o sr. Fr. Fortunato, se soubesse que quinta feira estiveram aqui com-
migo os Jesuítas, até meia hora depois do meio dia, e me pediram a
faculdade de continuarem sempre as suas visitas. Era o prelado e um
polaco; ambos se exprimiam toleravelmente em portuguez, e n'isto ad-
mirei o polaco. Vinham, e vieram para se instruírem em cousas per-
tencentes á instrucção religiosa no ministério do púlpito, pois o senhor
Núncio os manda missionar na egreja do Loreto; (esta missão pertence
ao Patriarcha, e não ao senhor Núncio, vamos íideante); fizeram-me
sem querer um beneficio, que foi com a sua vinda poder empurrar
pela escada abaixo o clérigo de Braga, que tinha entrado, e já estava
fallando na demanda do seminário. Lá inculquei aos padres da Compa-
nhia livros portuguezes dos padres da Companhia, bons para missões
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 57
e instrucções publicas; lá lhe inculquei Alma instruída na vida e do-
cirina christã do P.® Manuel Fernandes, confessor e mestre d'el-rei D.
Pedro II, que não sabia senão o Padre nosso, que andava sempre re-
petindo; este livro tem grande volume e chorume: — e também o P.'
Guerreiro, jesuíta, nas Instrucções para os Missionários. Depois d'isto,
com malícia os metti em conversa sobre á litteratura jesuítica, e olha-
vam como uns attonitos um para o outro, vendo um clérigo de calças
rotas, e jaqueta de chita velha e remendada, camisa suja, e chínellos
mijados, como se fosse um jesuíta francez, italiano, allemão, e até po-
laco; pois houve um jesuíta polaco chamado Casimiro Sarbieri, que
compoz Odes latinas, tão bem ou melhor que Horácio, e entre ellas
uma, á defensa de Diu, por D. João Mascarenhas, em que chama aos
porluguezes gens parva manu, isto é, gente com poucas forças, obrando
tantas façanhas na Africa e na Ásia (agora lhe chamaria só gentp parva,
porque assim a fizeram os pedreiros). Nada grande conheciam dos pa-
dres da Companhia, e me disseram que elles não foram ensinados pe-
los Jesuítas extinctos, e que desejariam ser por mim ensinados nas
suas mesmas casas. Fallaram-me era um cathecismo: eu lhes disse que
estudassem bem o cathecismo romano, o do Concílio de Trento, que é
o mesmo, e este grande compendio das sciencias theologicas, moraes,
e canónicas, não era de Jesuítas, mas de um frade portuguez chamado
Fr. Francisco Foreiro, e outro chamado Fr. Jeronymo de Azambuja, e
de outro Fr. João Soares, e de outro chamado Fr. Gaspar do Casal,
todos frades da Graça, e todos bispos; que lessem, pois me" persuadia
que sabiam latim, as Explicações orthodoxas contra Kmnisio, e contra
todas as heresias que rebentaram em o Norte, mandadas fazer pelo
mesmo Concílio de Trento; e quem as fez foi um clérigo portuguez;
chamado Diogo de Paiva de Andrade, irmão do Conde de Linhares,
(não o de Arroios) mas o creado e instruído no Collegio da Graça de
Coimbra; e que este clérigo tinha vinte e seis annos de edade, quando
el-rei D. Sebastião o mandou ao Concilio, e onde tanto assombrou os
padres, que o Cardeal Jeronymo Serípando, frade da Graça, e presi-
dente do Concilio, lhe commettía a resolução de todas as questões e du-
vidas, que se suscitavam. Disse-lhe depois que estudassem bem estas
Explicações orthodoxas, que era o que bastava para ensaiarem os po-
vos, e combaterem os herejes, e incrédulos. Os taes padres da Com-
panhia não perderam as passadas, e me pediram por muito obsequio
lhes quízesse mostrar a minha bíbliotheca; eu lhes fiz a vontade, mos-
trando-lhes o livro de João Pedro Ribeiro, único que estava sobre uma
banca; com isto abriram um palmo de bocca, e para os consolar vim
58 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
cá fóra, e levei da gaveta um livrinho, que é do Lopes, que vem a ser
o poema do jesuita Vanieri, intitulado Predium rusticum. Eu antes o
quizera ter feito que vinte Meditações, vinte Orientes, e vinte Templos
(está mui lo adiantado) e como elle tem o retrato do auctor, consola-
ram-se de vêr em Portugal ao menos uma roupeta pintada, e em casa
de um homem de quem lhe tinham dito que era inimigo dos Jesuítas.
Também me disseram que este pequeno que ahi anda, chamado Mar-
quez de Pombal, lhes fora pedir que perdoassem a seu avô (ainda vi-
nha a tempo este perdão 1) Aqui ia eu, quando chegou o mudo, faltava
um quarto para a uma hora. Ajoujar a Besta com alta diplomacia da
Europa ! Já o Lopes aqui veiu também quarta feira com essa lembran-
ça; isso é evasiva dos patifes do Desembargo, que querem ir escapando
ás apupadas com o apparecimento da Besta. Do reconhecimento ainda
não traia o parlamento; a votação de que se fallou foi a outro respeito,
e assim até á resurreição dos capuchos estará a Besta embargada na
estalagem. Pois o Arrieiro de Thomar não falia ainda peior dos fora-
gidos de Inglaterra ? Eu devo enviar um requerimento a El-rei, se a
cousa se demorar mais uns dias. Então eu hei de esperar até ao alto
verão para vêr manjericões amarellos?... Nada duvido que o calor ve-
nha a fazer esse milagre; os de melindrosa consciência que os vendem
debaixo da Arcada sabem fazer essa mudança de cores; Fr. Fernando,
que lhes vá perguntar se tem alguns azues, elles lhe dirão que sim.
Ora aqui mandou duas vezes e da segunda escreveu, e bem mal, o
marquez de Olhão, dizendo-me que o auctor do Elogio de Pio VII se
manda queixar de Nápoles de eu não ter respondido ás suas cartas,
nem sobre o presente de livros seus que me mandou. Os livros me
mandou entregar o Núncio, e eu fiz presente d'elles ao Arcebispo de
Lacedemonia, Vigário geral; cartas, não recebi mais que a de Roma,
com uns diplomas de Academias; e que se eu quizesse escrever, que
lhe mandasse a carta, que elle a mandaria ao Marquez do Lavradio, o
que eu farei, e em italiano, e cá ficará copia. O Templo, como acima
digo, vae adeantado, e hontem levou um grande empurrão, esta tarde
lhe darei outro, e em muito breves audiências estará concluído. Este
pode, e deve aqui imprimir-se (com luxo), mas os Burros? Isso me pa-
rece impossível, mas è muito fácil ao mundo conhecer quanto eu seja
De V. S.*
Am.° certo e o mais obrig."
Pedrouços ... de Março de 1830. J. A. de M.
P. S. Cedo o Ribeiro bravo ficará esgotado.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 59^
XLVIII
III.""' Sr.
Com indizível trabalho me* tiraram agora (onze horas) da cama,
para me sentar n'esta cadeira; e com a perna esquerda horrivelmente
inchada, o pé com inflammação, e a dor é dor de gota, e peor do que
já tive; como o ataque é geral, renovou-se a dor de pedra, parou a
ourina com uma irritação e dor mortal; emíim, estou em estado las-
timoso, e faz compaixão aos mais indifferentes; não me poupo a re-
médios, mas a mistura «alina que me receitou o cirurgião para trans-
pirar, aggravou mais o mal da pedra; estou um martyr, e sem ter-
minar o martyrio, que em tal estado desejava que fosse pela morte.
Eu não sou amigo de dinheiro — habenles alimenta et quibus Uga-
mur hos contenti stimus — se o fosse seria esta a occasião de o ter, por-
que— «Vossê faz um livro em dez dias (me veiu dizer um alto magis-
trado) escreva-o e inlitule-o — Exame dos factos e doctrinas, qm de-
ram motivo d extiiicção dos Jesuítas n'es(e reino, dedicado a sua Mages-
tade, ác* por José Agostinho de Macedo; dê vossê (como pode) o as-
pecto que convém a estes horrendos Jactos^ e analyse estas doctri-
nas, e verá esta cáfila posta fora do reino, e conte com uma avultadís-
sima remuneração.» — Vade, Satan, non tentabis dominum Dnim tuum,
nem com o — cmnia tibi dabo si cadens adoraveris me — nem com este
omnia eu faria tal, e agora vejo porque vieram cá os Jesuítas ou foi
este o principal motivo, porque insistiam, até na escada, em dizer que
fora seu inimigo, e que por algum motivo o poderia agora tornar a
ser, porque havendo agora tantos conventos não povoados, lhe não da-
vam um para morarem. Então porque não quiz eu? Creia V. S.* esta
verdade, da bocca de um homem em tudo independente; eu sou do
coração amigo de Fr. Fortunato; é o regular mais douto que existe
no reino; pertence a uma corporação que eu proílindamente respeito,
por me haver sempre feito e dado o mais honrado e dístincto accolhi-
mento, em particular e publicamente, por mera benevolência, porque
n'ella e nos seus prelados tenho visto e observado homens prestáveis,
verdadeiros, humanos e munificentes, tão raras qualidades em todos
os outros regulares, ác' Que seria, se eu com um livro
ainda que m'o pagassem, como os livreiros de Londres fazem e pagam
agora, a guinéo cada pagina de oitavo dos versos de um poeta que é
coxo, chamado Walter Scott? Isto não é para mim, e muito principal-
60 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK J!ACEDO
mente depois de haver escripto Fr. Fortunato a sua apologia! Tal obra
não me seria difficultosa; a Censura dos Lusíadas, dois volumes em
oitavo, fiz eu em dez dias, e os factos que estão consignados na De-
ducção chronologica, Moral dos Jesuítas, ác.*, &c^, levariam um cunho
de evidencia, que allucinaria. Eu não sou um mathematico (e poucos
o são) como o jansenista Pascal, que morreu de trinta e oito annos,
mas tenho atinado melhor que elle com as fontes do engraçado e do
ridículo, sem ter lido o tratado do jesuita P.* de Vasur — De hídrica
diciione — e os metteria mais á bulha, e faria rir mais, do que o mesmo
Pascal fez com as Cartas a um provinciano, que tanto estampido tem
feito no mundo, e que até se verteram era latim com o supposto nome
de Montalto. Já tenho dito que conheço os Jesuitas, que a sua extinc-
ção se deveu ao resentimento de Pombal, porque o quizeram tirar do
ministério e introduzirem Alexandre de Gusmão, secretario que foi
das cartas d'el-rei D. João V, cooperando em França a intriga da man-
ceba de Luiz XV, Madame Pompadour; mas também sei, e melhor
que o Cenáculo, e José Joaquim Vieira Godinho, o que os jesuitas
Luiz Gonçalves, irmão do conde da Sortelha, e Leão Henriques influí-
ram na jornada de Africa; sei o ódio dos Jesuitas á casa de Bragança,
e porque razão o Padre Manuel Pimenta e o Padre António Vieira fi-
zeram as trovas dos sebastianistas, e porque se escreveu o Quinto Im-
pério, e porque se quiz provar que D. João IV era o Encuberto; em
fim, seja por isto, ou por aquillo, eu não faço uma acção má, e dei-
xemos isto. Julgo que o homem não tornará, e se Deus me der alguma
melhora no terrível estado em que me vejo, eu escreverei duas ou três
folhas, que segurarão os Jesuitas, e mostrarei que se eu fui por pre-
cisão pregador de aluguer, não sou escriptor assalariado. Vamos ao Ri-
beirinho. É verdade que este esganarello ou manequim, tem dado pas-
sos e feito obras corcundas; mas quem sabe se isto è manobra pedrei-
ral, e que trazem um com apparencias de corcunda servilissimo para
saber o que estes fazem? porque eu vejo o Ribeirinho andar com uns,
e andar com outros; logo que o ouvi e vi sempre vacillante me lem-
brei d'islo, e talvez acerte. Não posso mais, tem inchado muito a perna,
a uretra estala, e outra vez me vão deitar na cama. Para a seguinte
recovagem dirá mais alguma cousa
Seu mais obrig." amigo
Pedrouços 20 de Março de 1830.
J. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 61
XLIX
111.°^» Sr.
Caricaturas nada provam mais que a malignidade, ou venalidade
de seus auctores ; isso não persuade, nem faz temer os pobres padres
da Companhia. Deus não permitia que os seus inimigos em Portugal
nem leiam^ nem entendam um livro composto por um allemão jesuíta,
que d'elles sahiu, e os deixou, chamado Schofer, e o livro chama-se
Monarchia Solipsorum, que quer dizer: A Monarchia dos só elles. Este
maldito egresso os põe a pão e laranja, e sem réplica, porque elle falia
como ladrão de casa, a quem nada se occulta, mas Deus nos ajudará;
em eu podendo escrever o que prometti a V. S.*; mas doze dias de
gota desesperada; os pés, que parecem madeiros, ou mós de moinho;
a posição violenta em cima de duas cadeiras, me não deixam escre-
ver, e eu, et nos cum doctrinis nostris, nós com toda a matalotagem de
engenho e capacidade, não sou capaz de dictar o rol da minha roupa,
que não pode ser mais simples, nem mais pequeno; assim como ainda
me não foi possível comprehender o jogo do truque, ou da bisca; e
obrigado uma vez n'uma grande funcção da Graça a cantar um Ite
missa est, deixei-o no meio, e os frades o acabaram ás gargalhadas;
mas eu não apertando nos três dedos a penna, começa, não um diabo,
mas uma legião a sahir do canudo. Deixe-me V. S.* poder escrever
sentado á banca, que logo, logo lhe encho a loja, que sei que é de cruz,
mas sem roza; e eu crucificado de dores, posso e devo dizer que sou
De V. S.»
Am.° fiel e o mais obrig."^**
Pedouços ... de Março de 1830.
/. A. de M.
111.""' Sr.
Meu bom amigo e senhor do coração : a minha moléstia tem to-
mado um aspecto terrível; não me mortifica tanto a inchação do pé, e
a dôr da gola, o que me torna intolerável a minha situação é não po-
der escrever dez linhas, que me não levante para ourinar, e não me
^2 CARTAS DK JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
chego a sentar que não vá ourinar outra vez, e isto de dia e de noate,
vendo e sentindo a cama alagada sem poder dormir o intervalo de meia
hora. Assim mesmo, como era ardentíssimo o desejo que tinha de sa-
tisfazer a determinação de V. S.^ sobre Jesailas, antes de honlem 30
pjlo meio dia me puz a escrever o papel, a que faltam só duas pagi-
nas; fazia tenção de lh'o remeiter hoje pelo mudo, mas não me foi
possivel, pela vehemencia das dores, que só deitado as podia tolerar,
nadando em ourina. Se V. S.* poder, e quizer mandar aqui um criado
seu, ámanhan de tarde, ou no sabbado logo pela manhan, eu lhe man-
darei com mais segurança este papel, que na verdade, em estylo sério
é o ultimo esforço do raciocínio, e talvez da eloquência portugueza.
Ninguém pode offender, porque procede com toda a cautelia, para não
encontrar a mesma malignidade em qae embirrar, nem o fatal Desem-
bargo em que possa pôr em obra as suas injustiças e desaforos. Eu o
intitulo — O Problema resoluidu — e com effeito, resolve-se com a ra-
zão, e a apologia dos Jesuítas não tem que desejar mais nada. Tem os
Jesuítas, e os homens de bem que me agradecer, e até Deus qae me
premiar dando-me algumas melhoras 1 Duas cousas peço a V. S.^ para
este, talvez que meu ultimo esforço, a favor da razão e da justiça, e
vem a ser: que se não altere uma palavra; — a segunda, que se im-
prima em bom papel, e que não sejam cegos, amaçados, e moídos os
caracteres, ao menos sejam do tamanho d"estes, e assin espacejados,
como os da Oração fúnebre quQ compoz e recitou o P.^ M.® Dr. Fr. For-
tunato. Esta Oração vou já lêr com todo o interesse que mDStro sem-
pre pela gloria d'este homem, e da illustre Congregação a que pertence.
Eu já não tenho saúde, se a tivera, eu cooperara quanto podesse para
a gloria e respeito que merece a mãe, e o filho; mas sempre farei o
que poder, e lá vai uma pennida no Problema resolvido. Agradeço a
V. S.* os preciosos bolos, e não foram sobremesa, foram mesa, com
algumas laranjas, que o mais não posso comer; e ainda que não tenha
bocca de favas, estes dias tem sido o meu único alimento: e só favas,
agua e laranjas, porque me mata um incêndio interior. Também ardo
em desejos de mostrar sempre, e em tudo que sou de V. S.^ amigo,
e deveras amigo, e seria amigo até se lhe não fosse tão
Obrigado
Pedrouços i de Abril de 1830.
/. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 63
LI
111.'"° Sr.
Não respondi hontem, 19, a V. S.*, porque hontem foi dia cheio
para mim dos incommodos da moléstia, de truz na porta, de queixo-
sos não despachados, porque emigrados, e sobretudo por algumas
providencias que foi preciso dar para a casa do Forno, porque a velha
entrevada ha cinco annos está' em artigo de morte, e até deixada dos
padres Camillos que lá tem ido chamados. Lá escrevi para a fregue-
zia, para cuidarem no enterro, e eu aqui semi-entrevado lambem. Ora
façarii lá versos que hajam de durar^ com seiscentas buzinas d'esta
magnitude aos ouvidos ! Outro dia me ficou um no meio, e me fugiu
de todo o pensamento que o devia acabar, e lá foi d'ahi a dias como
Deus foi servido, e assim é tudo ; porque esta casa^ sem ser taberna,
é casa de povo ; e eu criado nato de toda a bicharia viva : até para o
Marquez de Alvito uma carta, que elle queria escrever para o Bispo
vigário capitular de Braga, e não sabia como, sendo o negocio seul
Outra carta de empenho para José Ribeiro Saraiva, que sahiu tão boa,
que o mesmo para quem se fez aqui deixou uma copia, que remetto,
mas para collecção de quem saiba entender; e o P.® M.® Fr. Álvaro
que não seja muito pródigo, porque até uma escrevi aos frades da
Graça, para o partido do cirurgião Durão, (que muito pouco deixa du-
rar a gente) a fui vêr na mão do Marquez de Olhão. Ora impríma-se
o Problema, e os exemplares em papel florete não sejam uma dúzia,
porque de certo se compram, e alguma cousa podem dar para os gas-
tos da impressão. O meu diploma para ajudante ainda até hoje terça
feira ás outo horas não chegou; estimarei que seja em papel fino, fle-
xivel, e macio, porque algum préstimo terá logo. As favas, e as er-
vilhas serão lúbricas, e eu
De V. S.*
Verdad.™ am.°
Pedrouços 20 de Abril de 1830.
/. A. de M.
64 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACIÍDO
LII
111.'°'' Sr.
As minhas moléstias me tem incommodado mais que nunca, por-
que nem de noute posso socegar meia hora, alagado de ourina, e o
enxergão já traspassado da mesma ourina; as dores não tem limite, e
nada posso fazer. Além d'estes marlyrios do corpo vieram também os
do animo; a mulher que me aturava, entrevada de cinco annos, e
vinle e cinco de casa, morreu; incommodos do enterro, e logo veiuo
rol da freguezia. A velha que resta, e •que além de velhíssima é gaga,
atterrada, ou seja pelo que fôr, não quer lá estar, e effectivamente se
vae embora : eu como entrevado não posso dar um passo ; na casa, ou
escada do Forno não ha mais moradores, e eis aqui a casa ao desam-
paro, e os poucos trapos e cacos que lá tenho, porque as cadeiras e
duas mesas vieram para aqui, porque sem isso ficava isto casa de es-
grima, são logo roubados sem remédio: e n'este apuro, com bem re-
pugnância, e bem extrema precisão tenho de importunar a V. S.^, para
peimittir que em algum recanto d'esse corredor ou quarto, que nem
por criados esteja occupado,me deixe amontoar aquelles cacaréos, em-
quanto eu não possa ir a Lisboa, cuidar em algum pequeno hospício,
nas visinhanças do Desterro, para me recolher, porque o horror que
me causa o Forno com tal morte, me obriga a nunca mais lá pôr os
pés; este sitio é muito fora de mão, o necessário fica longe, a casa im-
portunada sempre, a minha existência está muito precária, e por ex-
tremo atenuada, e eu temo nos últimos instantes os horrores de um
hospital, que é o que me resta ; devo também procurar uma criada ca-
paz por edade, e por probidade. Com a resposta de V. S.* sobre o re-
colhimento dos tarecos em algum d'esses recantos, mandarei a Lisboa
uma pessoa, que os ajunte, e me remetta para cá o que é fato, que
formará uma trouxa, e o que é páo, e uns paleeis, e não sei que mais,
vão para esse asylo temporário. Espero a resposta de V. S.* com a
possível brevidade, porque agora mesmo recebo um recado da tal ve-
lha, que se quer ir embora, e talvez que bem carregada, porque lá fi-
cou tudo á sua disposição. Não fallo agora em lettras (que nada são)
porque o negocio exclue tudo, e não me exclua V. S.* do numero dos
seus amigos e criados, porque é uma e outra cousa
Pedrouços 24 de Abril de 1830. J. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 65
LIII
111.'^ Sr.
Vai esta pelo chamado correio da posta, para annunciar a V. S.'
que faltando-me mudos, e sobejando-me falladores, nâo tenho outro
meio de saber de V. S.* e do destino do papel dos Jesuítas, porque
ainda que não envolva politicas da sublime Deducção Chronologica, as-
sim mesmo receio naufrágio nas mãos do Fr. Diabo. Para eu haver no-
ticia e resposta de V. S.* também é preciso um rodeio : que tal é a mi-
nha miséria f Carta para mim, que vai ao correio, lá deu fundo eterna-
mente; para receber alguma é preciso que venha com o sobrescripto
para outra pessoa; de ordinário é sempre, e seja agora: — Á senhora
Francisca da Piedade, Pedrouços, n.° 97. — Outro negocio, e também
importante, e vem a ser, que d'aqui se mandou uma pequena encom-
menda, dirigida a uma rehgiosa de Coz; eu lembrei que se remettesse
para esse funil deixado á Congregação de S. Bernardo, funil que agora
lhe querem tapar, e que se entregasse a Manuel Metternich, e mais
politico ainda, e criado de V. S.', encarregado de negócios, e de con-
fidencias d'esta natureza, para a remetler por António dos Foros, cor-
reio do gabinete das Graças, costumado a estas commissões. De Coz
se manda dizer, que ainda lá se não recebeu. Eu conheço a confusão
que haverá no expediente de Manuel Metternich, e por isso peço a
V. S.* que, ou pelo postilhão Foros, ou por qualquer outro diabo d'esta
caterva, seja remettido logo para Alcobaça, porque se avisará para Coz,
a fim de o mandarem lá buscar, sabido que seja o nome do enviado
ordinário: e eu não sou ahi qualquer cousa, sou, e muito.
Pedrouços. . . de Maio de 1830.
LIV
De V. S.' Amigo
.7. A. de M.
Iil."° Sr.
A minha doença empata tudo; agora, que é uma hora da tarde,
me levantava da cama, que é ura tanque de ourina, porque já se não
contém, quando chegou o mudo com a carta de V, S.*, que muito diz,
e muito falia, sendo pequena na extensão. Eu moribundo, não deixo
CARTAS. 5
66 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
passar os restos da vida ocioso, porque não fazer nada é para mim
peôr que a doença. Sou o architeclo Adonhirão, vou adiantando o Tem-
plo, mas aquillo é para poucos, e da forma que já acabei o segundo
canto é para muito doctos, e não para o estado actual das lettras; mas
vá, porque deve dar noticias minhas aos vindouros, no caso que em
Portugal por algum plebiscito (decreto popular dos comícios, ou das
cortes) se não fechem eteroamente os lyceus ào ÂB C, que é o que
falta. Como é preciso comer para viver, ainda que seja com pão, her-
vas, leite, e a sua marmellada, também é preciso ler com que, e ainda
tenho ; ha três dias se me despertou uma idéa ; eu traduzi ha victe e
seis annos as Obras de Horácio; as Odes estrophe por estrophe, e verso
por verso, quanto ponde ser; aqui está um exemplar impresso, que
escapou ao naufrágio da maior maroteira que então se commetteu no
mundo; como então sahiu a traducção de António Ribeiro dos Santos,
que é basbalhada, por cabala, por intriga, por inveja, por adulação,
por vaidade (como traducçõesíl !) Fr. José Marianno Velloso, frade de
projectos botânicos, e com quem D. Rodrigo de Sousa Coutinho gas-
tou um bom centenar de contos, sumiu toda a minha edição, que nunca
appareceu, nem se poz á venda, e a outra metade das obras de Horá-
cio, que são as Sátiras, as Epistolas, e a Arte poí tica manuscriptas,
abalou no anno seguinte de 4807 com ella para o Rio de Janeiro, onde
se afogou, que eu não vi mais tal Horácio: fatalidades minhas! Das
obras de Horácio foge-me um capucho com o segundo volume, resta
o primeiro impresso; das obras do maior poeta latino, Stacio, lam-
bem traduzido, perde-me uma criada o primeiro volume, seis hvros,
e resta o segundo, que são outros seis livros, na mão de Lopes: que
hei de fazer? O primeiro de um, ou o segundo do outro? Farei o se-
gundo do outro, que é mais conhecido Horácio, e mais estimado do
mundo todo, porque o mundo todo lambem se engana no juizo dos
poetas, e de versos ; imprimir-se-ha tudo com uniformidade, e em pa-
pel grande, e bons caracteres ; isto é cousa que se vende por todo o
reino; e se parecer aos financeiros prudentes, abrir-se-ha uma suh-
scripção, já que me tiraram a Besta, e me puzeram a pé. Escreva-me
sobre isto, que é cousa financeirista.
João Pedro Ribeiro. Sim senhor, alU tenho eu, e por signal ao pé
do bispote, umas quadras que elle fez, e imprimiu em 1823, sobre a
realeza, para se sangrar em saúde; para m'as dar, ou impingir, andou
elle em busca de mim, mais um tal Dos Guimarães. Ainda que as qua-
dras bastem, eu estimaria vêr a nova obra, e mande dizer a Fr. For-
tunato que durma, que vá andando com os seus trabalhos, que deixe
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 67
▼ir a cousa para estar em boas mãos, que vem a ser as do diabo, que
é este seu criado. Aqui me disse o Lopes, que Fr. Velhaco de S. Pa-
tife, o capucho Henrique, não queria licencear o numero 8° do Defen-
sor dos Jesuítas; mande dizer sobre isto o que se passa. Se o Horácio,
meio impresso já, e o outro meio que eu em menos de um mez posso
dar prompto para a impressão, tiver o mesmo fado, então assentemos
de pedra e cal, que tudo é argamassa. Adeus, escreva-me, e tenha
saúde; ahi me trazem um prato de grelos de couve com azeite e vi-
nagre, um cacho de passas (bem más), uma metade de queijo saloio, e
uma bilha de agua fria, e boa, que é o lauto jantar d'este anachoreta,
porém
De V. S.* Amigo
J, A. de M.
LV
111.'"° Sr.
Se a terrível doença me deixasse, muito faria do que V. S.* me
diz; mas isto vai nos progressos da morte, desfazendo-me em oarina,
sem cinco minutos de intervallo. Farei a versão do que resta de Ho-
rácio; e é cousa tão diflBcultosa para ser boa, que no juizo de muitos
basta para immortalisar. O Stacio, sendo o mais poeta dos poetas,
isto é, o mais sublime de todos, os antigos e modernos, não é enten-
dido, e por isto não é conhecido no vulgo; os mais litteratos e mais
vistos na lingua latina ficam de queixo cabido sem atinarem com a
intelligencia. Eu me ri em Beja do universal sabedor Cenáculo, quando
lhe disse: — Ora traduza V. Ex.^ como fazem os rapazes, esta passa-
gem aqui da dedicatória, em que o poeta falia a Domiciano:
Licit arctior oranes
Limes agat stellas ...
ou abra ao acaso. — Abriu, e descrevia-se uma serpente, e entre outras
cousas dizia: — Atenuai ornas — nunca atinou o bom, e bem ingénuo
velho Cenáculo. Emfim, isto não ó para portuguezes, acabou-se. O Ho-
rácio sim, não por bem entendido, mas porque em Horácio se falia
muito. O frio me comprime tanto, que apenas ao meio dia deixo a
cama ; não sustento a penna nos dedos, por isso não peguei ainda na
Carta, e custa-me estar tirando e pondo; já me lembrou fazer outra
de novo, porque o faço mais depressa: ou borro esta, e vai para o
68 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
P.^ M.^ Dr. Fr. Fortunato, com as addições e correcções que V. S.*
lhe fez; lá se avenha elle, que tem mais paciência: diga-me V. S.' se
isto quer, para lh'a remetter. V. S.* não me falia no escripto de João
Pedro Ribeiro, e sei que é publico. E as Bestas? — Pois isto fica as-
sim? Tudo, e tudo é pedreiro. O Fr. Velhaco é reconhecido instru-
mento da pedreirada, e soffre-se este escândalo? Não ha remédio, nem
o haverá. Eu tenho demorado a conclusão dos Burros, porque desti-
nava enchel-os de pedreiros, que é melhor que tudo; mas só impri-
mindo fora, e vendendo como muitos impressos se vendem; porém
quem se encarregará d'isto? o século de pedreiros é o século de la-
drões, e senão nos fiamos dos homens por pedreiros, menos nos de-
vemos fiar por ladrões. O frio não me deixa, e por isso não me es-
pojo agora mais. Recommende-me V. S.* ao 111.'°° Sr. Esmoler-mór e
seu companheiro, que bem podia alguns domingos dar por aqui alguma
saltada. Não tenho com quem falle, e me console, e quem me anime.
Tenho-me descartado de todos os chamados amigos, mas amigos da
intriga, e dos exemplares da Besta; ainda assim aturo alguns, e taes
que me obrigam (grátis!) a fazer-lhe sermões para exéquias da Rai-
nha. Creia V. S.* que dos dous de que lhe fallo, do capador dos man-
jericões, e muito mais de V. S.^ é
Amigo
J. A. de M.
LVI
111.'"° Sr.
Também eu tenho janellas para o sul, mas a minha enfermidade
é gravíssima; esta noute que passou, cuidei que também passava para
a eternidade. A ourina por si mesma se solta, já corre sempre, e ape-
nas me deito tudo se inunda, e assim alagado não posso dormir; a se-
cura é mortal, não ha agua que me estanque a sede; ninguém padece
mais, nem com mais paciência. Que hei de escrever? Flontem de tarde
esteve aqui o Prior do Carmo, e me disse que o Provincial, que está
doente de gota, escrevera um óptimo papel, em que mostrava como
sem gravame das rendas do estado se podiam conservar e manter os
Jesuítas, applicando os recursos que elle apontava, pois no mesmo in-
stante— escusado — e supprimido, e o capucho também lhe não quiz
pegar para o vêr. Ora escreva lál Disse o senhor Annes, que a ofiQ-
cina se fechava, que assim o queriam. Estamos desenganados. Eu es-
to u determinado a fazer apparecer no senado um requerimento meu.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 69
pedindo licença para pôr aqui em Pedrouços um pequeno padejo, para
fabricar algum pão, chamado de luxo, que são merendeiros, que aqui
se vendem, e vão para Lisboa a vinte e cinco réis; de certo o faço, e
terá o publico em que falle dous, ou três dias. O requerimento vai, e
começará: «Diz José Agostinho de Macedo, presbytero secular, e pre-
gador de Sua Magestade, que tendo o Desembargo supprimidoum pa-
pel, de que lhe vinham os meios de sua subsistência, e não podendo
pregar, impedido por sua enfermidade, para viver se determina a ser
padeiro, etc^» Isto apparece infallivelmente no senado, já que a con-
sulta não apparece. Saiba isto El-rei, e o reino inteiro; porque até para
o publico ha de haver um annuncio na Gazeta, para estabelecer fre-
guezia. Sim senhor, eu acabarei o Horácio, e bem, e com muita bre-
vidade. Tenho pena do Stacio, que nunca pude lêr, nem traduzir sem
um violento arrepiamento de cabello, e tremor do cérebro; emfim, os
seis últimos livros existem, e parte do primeiro, porque eu a quiz co-
meçar, e existe na mão de um cego, filho do Castilho, que está em
Coimbra, e posso mandar vir; mas o tempo presente não é para Sta-
cio. O Cardeal Bentivoglio (Selvaggio Porpora) o* quiz traduzir, e om-
mittiu a dedicatória, porque se não atreveu com ella. O Horácio será
bem recebido, e o Horácio não é Besta, nem é Jesuíta, Quatro vezes
me tenho levantado a ourinar, depois que comecei estas tristes regras;
o frio, sem ser Stacio, me arrepia, e faz saltar a penna dos dedos, e
aos saltos ainda digo de Stacio, que a sabida de Satanaz do inferno,
no Canto Hl do Oriente é um frouxo e muito remoto arremedo da sa-
bida de uma Fúria do inferno no 1.° livro da Thebaida; tudo me lem-
bra; que desgraçada memoria!
«Sentada estava do Cocytho horrendo
Na margem negra, permittindo ás cobra»
Que os funeraes cabellos lhe toucavam.
Que um pouco lambam as sulphureas ondas.»
Tudo é d'este cunho! O 2.° livro não se pode lêr sem sufiFocação
extrema do coração, mas o latim é crespissimo, mui poucos o enten-
dem, porque no estylo não ha senão figuras elevadíssimas. Ora dê-me
o prazer da sua visita, porque é
De V. S.* Amigo
J. A. de M,
70 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
LVII
111."'° Sr.
Recebi por este Coelho a carta de V. S.* que muito estimei por-
que era sua, e como o era, devia trazer boas noticias do accolhimento
que esses senhores fizeram ao papel, a quem a novidade da composi-
ção dará alguma voga. O primeiro já chegou a Inglaterra, porque o
Lopes aqui me mandou uma carta do Saraivinha, e n'isso lhe fallava;
veremos se também lá vai ter o segundo. Tenho observado com muita
reflexão o que eu esperava a respeito dos Jestntas, summa frieza, e
summo indifferentismo, o que era de presumir, conhecendo nós os ba-
rões assignalados, em cujas mãos se depositou o pandeiro. Meu P." M.^
e meu amigo, o que se quer são pelles: os bi-camaristas querem pa-
paguear, e promover a felicidade d'esle reino, que consiste na invio-
labilidade do domicilio do cidadão; no exercicio activo dos quatro po-
deres outorgados pela Carta outorgada pelo senhor D. Pedro, que quiz
fazer a felicidade dos seus fieis súbditos, abdicando, conforme os con-
selhos da sua sabedoria, na sua filha, rainha reinante de Portugal, a
senhora D. Maria da Gloria, que conforme a lei de Lamego deve casar
com o Conde de Calhariz, filho de' Pedro Palmellão, ficando este com
as pastas todas. Eis aqui o que se quer, e os Jestdtas vistos pelas cos-
tas, e isso acontecerá. E que hei de eu escrever? Problemas? Pois fa-
rei problemas; qual é maior tolo? Um pedreiro, ou um sebastianista?...
Que acontecerá? Vem logo rebolindo uma carta do Saraivinha, em que
declare da parte do governo de Sua Magestade britannica, que não vem
o reconhecimento emquanto se chamarem tolos aos pedreiros, e que é
contra os dictames da politica europêa; moderação, moderação. O Des-
embargo escusava e supprimia tudo, grilando que era ataque directo,
porque sendo elles, como são, tolos e pedreiros, não querem que lh'o
chamem. Weste caso, sem conselho de varão prudente não sei o que
farei. Aqui me disseram hoje que se fechava brevemente a Impressão
regia; por isso, emquanto alli estiver o Coquilho, é preciso que se cuide
na impressão do Poema, seja como fôr. Creio que terá presentemente
poucos leitores, mas ahi ficará; e se o reino resuscitar antes que re-
suscitem os capuchos, então os terá, por isso bastarão poucos exem-
plares, porque sendo o papel bom, a despeza é grande. Emquanto ao
sermão do homem milagroso, existe, como disse, na livraria da Penha;
eu o vi lá em 1807 até 1809, entrando á parte esquerda na primeira
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 71
carreira do chão estão livros em quarto, com capas de pergaminho,
que são coUecçôes de sermões e papeis avulsos; em um d'estes baca-
martes estão os dous sermões, o de S. Thomé, e o das exéquias de
Luiz XIII pregado no Loreto. Como em tantos annos terá havido mu-
dança de logar nos rabecos, e se tem renovado muitas vezes as cama-
das de frades, talvez estejam n'outra parte; porém estão nas mesmas
collecções com capas de pergaminho; os frades nunca alli vão, e o
prior que era prudente, escondia o dinheiro do convento atraz dos li-
vros, porque com efifeito estava seguro. Seria ura bom serviço feito ás
leltras a reimpressão d'aquelle prodigio de saber politico, e de memo-
ria para o repetir; é verdade que nenhuma estimação lhe dariam^ por-
que o que se quer saber é determinar as vezes em que o magistrado
pode entrar no domicilio do cidadão, de dia; porque de noute o domi-
cilio do cidadão é de uma inviolabilidade absoluta, nem o poder mo-
derador com toda a extensão que lhe dá a Carta, pode ir perturbar
uma sessão pedreira ás duas horas do noute. Isto é o que convém es-
tudar, para ser sábio como um Faria Carvalho. E o P.® M.® Dr. Fr.
Fortunato que diz a isto? Em que se emprega? Onde pára? Que es-
creva, ainda que seja sobre o domicilio do cidadão; se o fizer, é logo
bispo; a Vida de Santo António é cousa boa, mas o domicilio do cida-
dão é cousa melhor; e eu digo que no actual estado de cousas, o me-
lhor é dormir, porque comer, até para isso é inviolável o domicilio do
cidadão, porque nada entra, e nada ha. Tomara ao menos que Sarai-
vinha nos mandasse o reconhecimento; no emtanto conheça e reco-
nheça V. S.* que é seu
Pedrouços 8 de junho de 1830.
LVIII
Am." o mais obrig.''"
J. A. de M.
111.'°° Sr.
Vai a carta, que não tem resposta, mas dará satisfação de não ter
escripto a quem devia escrever, se me chamam aquelles senhores tolo
por não escrever, e principiar — Aos que a presente virem — sem sa-
ber quaes sejam, teem razão, porque tolo deve ser quem anda na
Besta para ser ajudante substituto de Fr. Cláudio. Queira V. S.* fa-
zer-me o obsequio de a mandar entregar por um criado seu a quem
a quizer acceitar, mas que seja sem demora; não me façam um crime
do que também não sei. Egual favor peço também, para a outra in-
72 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
clusa, entregando-a a Francisco trasladador, que logo a entrega, pois
é amigo do tal Cláudio, sem ser frade. Começo já a correr o poema,
para tirar o accrescentado, e a levar os versos de Camões; hão de ir
como elles são, porque se eu lhe havia pôr cousa da minha lavra, en-
tão seriam todos meus. Os de Camões em um soneto são taes e que-
jandos:
O cisne, quando sente ser chegada
A hora, que põe termo á sua vida,
Musica com voz alta e mui subida
Levanta pela praia inhabítada.
Não começo logo por basbalhadas o poema de mais conhecimen-
tos e erudição que talvez haja de sahir do prelo porluguez. O ultimo
planeta descoberto em o nosso systema solar chama-se o Hercules; a
sua distancia do sol é na razão directa do tempo do seu giro; esta
nossa terra (que é boa joial) faz o seu giro em 36o dias e 6 horas, e
dista do sol trinta e três milhões de léguas, o Hercules, que faz o seu
giro em duzentos annos, em que distancia estará? Isto ê o que ha até
agora demonstrado ; e nao me venham quebrar os com livri-
nhos francezes, que mentem mais que ura secretario de estado. Seja o
que fôr; versos não são rigorosas demonstrações, ou dissertações so-
bre um ou outro ponto de astronomia no systema do mundo, são um
rapto, um extasi, ou tombos, e cabriolas de imaginação sem freio, e
sem sarrilha, e ás vezes dizem mais apparentes desconnexos que um
padre da Companhia a pregar em Carnaxide; a mesma gente rústica,
que de lá vinha hontem de tarde, e enchia esta larga rua, vinha ás
gargalhadas. Em cá me apparecendo, eu lhe lerei a cartilha, e os po-
rei em caminho de me não deixarem mentiroso. Estes filhos de Santo
Ignacio, e enteados do Marquez de Pombal, cuidarão que lodos os por-
tuguezes são creanças? Um frade da Graça irlandez, que veiu para cá
creança, e eu conheci, metteu-se já velho a pregar, e pregando das
Chagas de Christo em Lamego, disse que vinha pregar das cinco ma-
taduras de Nosso Senhor Jesus Christo; porque achou no Diccionario
de Bluieau synonimo de chagas mataduras, e lhe pareceu o termo mais
terno e mavioso. Melhor o fez o laconismo de outro frade da Graça,
escrevendo para o tal convento de Lamego, que se chama das Chagas,
a uma freira chamada D. Francisca das Chagas; e o frade também
Fr. Francisco das Chagas, que alguma cousa engatinhava rias finezas
e discrições, pondo no sobre-escripto; — Á Senhora D. Francisca das
Chagas, no convento d'ellas, de Fr. Francisco das mesmas ác* — La-
A FRKI JOAQDIM DA CRUZ 7ÍJ
mego. Este, que andava já com mataduras no lombo, picado da mosca
de amor, teve mais juizo que o mataduras do irlandez. Não ha den-
tista, ou belforinheiro do norte, ou do sul, que não aprenda primeiro
a propriedade de alguns termos portuguezes, para abrir lenda, ou ar-
mazém; mas vir, e pregar logo II Assim fizeram os primeiros que cá
appareceram, sim; e o primeiro era o P.® Simão Rodrigues, portuguez
e natural de Vizeu, pregava em portuguez; e S. Francisco de Borja,
que era castelhano, subindo ao púlpito de S. Roque, não pôde dizer
senão, a tremer — Passion de Nosso Sefior Jesus Christo — e calou-se.
Farei no fim do poema a declaração, para se depositar em Alcobaça.
Também quizera que lá por entre os livros da casa d'elles se conser-
vasse um retrato meu em grande, e a óleo, feito pelo grande pintor
chamado pelo governo para pintar o nosso Lord, e mais o outro Lord
Careca, casado com a mulher do Jerumeuha. Este meu retrato, como
pintura é cousa admirável; como eu não tenho herdeiros que lhe man-
dem fazer a moldura que merece, eu o deixo em vida ao Mosteiro de
Alcobaça, que como guarda as obras em tinta, guarde o auctor em co-
res, e Deus guarde a Y. S/, de quem sou
Am.° e obrigadissimò
Pedrouços. . . de Junho de 1830.
J. A, de M.
N. B. — Cora esta ia inclusa uma, para ser entregue ao Conde de
Basto, sobre o despacho do auctor para ajudante do Chronista do Reino.
LIX
Ul.""' Sr.
São hoje 30 de Junho, e são tantas as cousas que tenho que di-
zer a V. S.^, que seria melhor fazer um rol, que uma carta: a minha
moléstia deve ir na cabeceira d'este rol. Quasi nada tenho feito, ou es-
cripto, e isto pinta bem o meu estado. Revi o manuscripto do poema,
tirei prologo breve, tirei versos de Camões, emendados por Lopes, fiz
outros novos em logar dos que Lopes fez, e Lopes entortou. Se na co-
pia do Paula papeis, que foi para a impressão, foi o que eu tirei no
principio, é preciso emendar o frontispício, e em logar de versos de
Camões, e prologo, ir a advertência como prefação; e já que o rapaz
azougado anda e corre mais que uma noticia má, bom seria que cá
viessem, e de cá fossem as provas dos versos, que nenhuma demora
74 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
terão. Escrevi no fim a declaração do deposito em Alcobaça para se
reconhecer; deve-se enquadernar em pasta forte para durar. Como em
um verso acrescentado por Lopes eu puz uma nota, e na enquaderna-
ção se devem cortar algumas cousas as margens, bom seria arrancar
a folha, e o Paula que a traslade (só os versos) para não ir com a de-
formidade do corte. Está acabada esta parte rol carta, ou carta-rol.
Mais rol. Veiu finalmente véspera de S. Pedro o decreto, que aqui
mandou o Conde de Basto, por um modo tão honroso como o espirito
do mesmo decreto, pois o senhor commendador Simões na sua seje o
veiu trazer, cora muitos cumprimentos e ofiferecimentos da parte do
senhor Conde, disse-me que devia mandal-o ao senhor Desembargo,
para se lhe pôr o cumpra-se, e registe-se, e com os despachos do se-
nhor Desembargo ir ao Ministro da Fazenda. Eu do senhor Desem-
bargo, não quero conhecer ninguém; commetto tudo isso a V. S.*,
porque do mesmo senhor Desembargo poderá haver alguém, que in-
forme a V. S.* dos tramites que isso ainda tem que correr, e as esta-
ções por onde deve andar. Se comsigo ha de levar despezas, podem
dar a quem quizer essas honras, porque eu não tenho sacco para ca-
berem n'elle honras e gastos. O periodo de que me mandam ser Chro-
nista é o mais escabroso e malgradado de todos. Nem ao menos posso
dizer se o ordenado pende do Erário. Depois do asno morto cevada
ao rabo. Veja V. S.* d'onde hão de vir papeis, e documentos para a
historia de quatorze annos que El-rei esteve no Rio de molho I Eu fa-
rei o que poder, e entretanto morre o burro, ou quem o tange. Isto
veiu para dar incommodos a V. S.* Continua o rol. Ha duas cousas,
que eu não posso fiar do rapaz, que desde Pedrouços até subir essa
escada não encontrará nem cão, nem gato, que não leve pedrada, e
que elle não receba também egual cumprimento dos outros. A primeira
é o original do poema, e a segunda é o decreto, também original, por-
que nada d'isto pode ir cosido aos farrapos, nem bem atado ao pes-
coço, como o mudo levava as Bestas arreatadas. José desenho tem-se
feito mais invisível e inaccessivel que um primeiro ministro assistente
ao despacho; portanto ponho no rol outro incommodo a V. S.*, que é
mandar aqui o costumado criado, para conduzir as duas cousas apon-
tadas. Custa-lhe, é verdade, andar a pé, mas vá de vagar, e com sen-
tido, para não perder os papeis. Pode tirar uma copia do decreto, para
se mostrar aos curiosos, emquanto o original anda pelos tramites.
Nunca o rol da minha roupa foi mais extenso, mas ahi vai mais al-
guma cousa. Leva o rapaz apedrejante e apedrejado um livro gordís-
simo, que o Visconde de Canellas me mandou de Hollanda, que a Ca-
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 75
nellas viscondessa aqui me fez entregar: eu o offereço ao 111.°"' e R."""
Sr. EsDQoler-mór. No livro vem ura appendice de Saraivinha, e entre
os nomes dos Senhores do braço do clero vem também o do mesmo
Senhor Esmoler-mór despachado assim por Saraivinha a p. 32 «Dr. Fr.
José Doutel, D. Abbade geral, e Capellão maior de Palmella». Deve S.
S.* agradecer-lhe o despacho, porque emfim bom é um pão com um
pedaço, mas eu nunca assim vi um pedaço d'asnof O livro vem muito
forte de cousas do tempo, não publicadas ainda. Eu espero um exem-
plar da edição em quarto, que o seu auctor me mandou prometter.
São horas de acabar o rol, mas nunca chegará uma em que eu deixe
de ser
De V. S.*
Amigo obrigadissimo
/. A. de M.
Pedrouços, 30 de Junho de 1830.
P. S. Tinha acabado o rol hontem quasi á noute, para o mandar
como vai, pelo rapaz, hoje 1 de Julho; José desenho apparece com a
carta de V. S.* cujo intróito me contristou bastante; mas eu martyri-
sado com males physicos, não attendo aos destemperos moraes e polí-
ticos: o que elles quizerem, até que Pedro de Sousa (o Pasteiro) se
farte de vingança, por passear três horas na bateria d'aquella torrei...
Tem baralhado o mundo, e feito parir livros gordos, como o que re-
metto para o 111."° Sr. Esmoler-mór, e ainda não está farto Pedro Pas-
tel. Foram abolidos na Ilha Terceira os sete sacramentos para sem-
pre, já não ha missa, o matrimonio é puro contracto civil, o divorcio
foi solemnemente proclamado; não "ha frades, não ha clérigos, não ha
freiras, nem as egrejas se abrem. O batalhão sagrado tem feito em
achas as imagens; isto tudo é verdade; guerra e lavoura! eis aqui o
grito; e sofre-se isto? E dizem que para lá se encaminha o Marquez
de Sancto Amaro. Seja o que fôr, e então soará. Faça V. S.* guerra
ao Capucho, para não perder tempo, que sempre aproveitarei, para
em tudo mostrar que sou
De V. S.*
Amigo
J. A. de M.
76 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MAGIÍDO
LX
111.'°° Sr.
Hoje 5 do corrente ás quatro da tarde me tiraram para esta ca-
deira, em quanto se me concertava a cama; e aproveito a occasiâo
para escrever duas palavras antes que perca o fatal uso da escripta.
Aqui vieram os jesuitas dizer-me, que lhes deram para morada o pa-
lácio do Lavra, mas que não era convento, mas domicilio alugado. Fal-
laram-me em Fr. Fortunato; eu lhes disse que d'elle nada sabia, que
por mais que n'elle fallava por escriptos públicos, e por cartas particu-
lares, nem resposta ás cartas, nem agradecimento aos louvores, nunca
tinha recebido; e como n'aquelle instante recebia uma carta de Coim-
bra, do decano da faculdade theologica, Fr. Domingos de Carvalho,
n'elia fazia menção de uma carta que eu lhe escrevera, e que em toda
Coimbra se lia, recommendando-lhe um medico bacharel, que ia fazer
acto ou exame; a esta mesma carta não quiz dar resposta. EUe não
é malhado, mas tomaram os malhados que eu lhe escrevesse. Isto nada
é, e nada importa, o que importa é o meu padecimento, em tão hor-
rendas moléstias, que todas a um tempo me accommettem, e me vão
chegando á cova; e diz o meu amigo Fr. António, que por sobre nome
não perca, que me não deixe V. S.* estar ocioso! Já que tem tanta ca-
ridade, não virá ser meu enfermeiro? Nem um só instante estou ocioso,
ou com socego, pois passo de uma dor para outra dor, e todas insup-
portaveis. A gota não pára, a ourina não cessa, as lascas de pedra não
deixam de sahir, e de ferir a uretra; as hemorrhoidas inflammadissi-
mas, o fastio é de morte; agua e fructa; outro comer, nem vêl-o, nem
cheira 1-0 : parece-me que tenho com que me occupe; e o meu amigo
Fr. António a passar ordens a V. S.* para me não deixar estar ocioso!
Quem será este meu amigo Fr. António? É o Fr. António, que é meu
amigo, e me quer arrancar da ociosidade, que é mãe de todos os vi-
cios. — E os meus negócios? Nada de bilhete de novos direitos, nem
um passo sobre tal objecto; eu represento a El-rei, e declaro que não
tenho dez réis para tabaco, nem um vintém para a barba; e que se a
graça não for grátis dada, que faça chronistas os desembargadores do
paço, que isso é gente capaz e moços completos. Fique isto assim as-
sentado, e a chronica por fazer, e se é oCQcio de encarte, eu renuncio
a propriedade a beneficio da quinta caixa, ou da quarta, ou d'aquella
era que querem metter todo o dinheiro que houver, com carimbo, ou
À FREI JOAQUIM DA CRUZ 77
sem carimbo. Sobre o poema, além de pedir a V. S." que se appresse,
supplico a V. S.* que risque tudo o que forem versos de Lopes, ou
de outro qualquer curioso; porque não sei se na copia do homem —
Papeis — vae essa mixordia, e se lá houver alguma prova, mande-m'a
por esse miquelele, que o miquelete a levará. Se a folha da advertên-
cia não estivesse ainda tirad? a limpo, eu faria mais alguma cousa para
a encher, ainda que fosse com uma inscripção para a cova que me es-
pera. Esquecia-me dizer a V. S.* que a ultima carta que tenho de Fr.
Fortunato foi aquella em que me mandava aturar o excommungado
Memhra'da, que me poz o cabello no estado respeitável em que está
pela sua côr; para eu não fazer o mesmo a V. S.^ remato jurando que
sou
De V. S.*
O mais obrig.*^" amigo,
e mais que o do Fr. António
Pedrouços, 5 de Julho de 1830.
LXI
/. A. de M.
Ill.">° Sr.
Ha duas cousas, que parecem tornar incrível que eu possa escre-
ver uma só letlra: a primeira é o estado doloroso em que existo, pe-
dra e gota, e sem parar, e ambas ao mesmo tempo; a segunda é a in-
cessante inquietação de gente, que vem entulhar esta casa, cousa que
ainda não parou, e hontem domingo foi enchente real. Não tive logar
houtem de vêr as provas, o que íiz esta madrugada, e vão correctas
conforme os reparos de V. S.* e assim continuará. Só vae sem mu-
dança o áinda porque é um adjectivo mui usado em poesia; ha tam-
bém o substantivo avidez, que quer dizer— desejo soffrego, e ardente.
Entre os visitantes de hontem de tarde veiu também José Tintas, elle
se oífereceu para portador; eu queria mandar este cossaco pequeno,
que também é valente; mas hontem quasi á noute, indo com a bilha
buscar agua á fonte do senhor Duque, escorregou, quebrou a bilha e
pizou muito uma perna, e não pode caminhar tanto, apesar de dizer
que já lhe não doe nada. É uma perseguição por ir a Lisboa que me
atormenta, effeito do bom agasalho que lá lhe fazem, e elle merece,
78 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
porque é extraordinária a comprehensão e viveza de um rapaz de dez
annos; e o que mais admira são os sentimentos de religião e de hu-
manidade, que elle tem; quiz confessar-se, quiz commungar; reparte
com os cegos pobres alguns dez réis que lhe dão; viu dar uma facada
em um homem, e de aUlicto perdeu a falia por um dia inteiro, e o trou-
xeram em braços para casa. Se eu tiver alguma paciência mais, em
uma semana aprenderá a lêrll Vamos a outras cousas. Mandei a V. S.*
o Ra?iicio, porque a leitura de livros me serve de grande embaraço
para a composição; emfim, não posso lêr e escrever ao mesmo tempo,
confundem-se-me as idéas, fico esterilmente pasmado; não quero livros
de qualidade nenhuma. Nós não sabemos senão aquillo de que nos lem-
bramos, e a mim lembra-me muita cousa, e é o que basta. Quando
agora acabar esta, vou-me aos Frades, antes que venham os secado-
res, e os pedinchões; hontem quando chegou o seu creado estava es-
crevendo a pagina dezoito; e vejo que ainda vou no principio. Em aca-
bando este primeiro quaderno, para lá lh'o envio, que poderá logo im-
primir-se, para ir ganhando tempo. E ainda terá'bocca para fallar o
meu amigo Fr. António? Apenas o Fr. António meu amigo ler o que
estj feito, e chegar a ler o que está por fazer, deita-se a dormir como
uma lontra, e sem medo que o inquietem pedreiros; porque a rolha
que se lhes prepara ha de atarracar bem nos gorgomillos. Viu V. S.*
João Paulo Cordeiro? Pois viu um dos mais solemnes mentecaptos do
século decimo nono. A fallar, faria andar á roda a cabeça de Spinosa,
que a discorrer era a mais segura que se conhece; é bom para a so-
ciedade, porque tira o trabalho aos outros. Deus guarde a V. S.^ de
taes encontros; oihe que morre phtysico, ou zangado, que ainda é peor.
Vae tardando o José Tintas, e se fosse o Pedro foguete já lá estava a
estas horas, que são nove da manhã; e eu em todas serei
De V. S.*
Am.° obrig.""* e certo
Pedrouços, ... de Julho de 1830.
/. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 79
LXII
' m.""' Sr.
Vae o rapaz, que já não ha quem o possa conter: todos os dias
quer ir, pois vá hoje 15 do corrente. Primeiro que tudo, peço a V. S.*
que não dê um só passo a respeito do bilhete da chancellaria. Ámanhá
em Caxias se entregará a El-rei um requerimento, em que direi o que
me lembrar. Nada tão injusto como quererem converter em oÊQcio en-
cartavel, e encartado um trabalho de que El-rei me encarrega, marcan-
do-lhe a matéria, o prescrevendo-lhe os limites; acabando elle não te-
nho mais que fazer. Se é oíEcio com encarte, então posso pôr um ser-
ventuário, porque estou doente. Tal oíBcio não quero, e por isso nem
um só real de despeza, e peço a V. S.* que não cuide em tal. Para eu
escrever não necessito de decretos, nem de alvarás; não quero felici-
dades, nem honras vindas pelo Desembargo do paço. Vamos ao que im-
porta. A apologia dos Padres já chega a trinta e oito paginas de quarto
grande, e lettra miúda: ainda falta muito. Aqui disseram que o 111.°"*
P.^ Geral fora para Alcobaça, e é provável fosse também o P.® M.® Fr.
Álvaro, senão pedia a V. S.^ viesse cá com o P." M.® Fr. Álvaro, para
uma leitura mais interessante que a da Magna Carta, que de nada ser-
viu. Este apologético dos frades deve publicar-se logo, porque a cousa
decide-se, e grande estampido fará. Podia ir o que está feito, para se
ir imprimindo, mas eu não fio tal papel do rapaz, nem de moços gran-
des, nem pequenos. Se lá estiverem algumas provas do poema, para
isso vae o rapaz, eu eu fico sendo
De V. S.^
O mais devedor e obrig.**"
Pedrouços, 15 de Julho de 1830.
J. A de M.
P. S. Quando o meu amigo Fr. António vir a Apologia, se quizer
mais vá a sua casa, porque então já não somos amigos.
80 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
LXIII
111.'"° Sr.
Vão as provas emendadas, e feitos de novo os dois versos que
vinham apontados, e que com effeito tornavam o sentido escuro, e ara-
phibologico. Em quanto aos versos, em que parece faltar a harmonia,
é preciso advertir que n'estes versos de onze syllabas, que se chamam
endecassyllabos, ha sua differença, que nasce da coUocação dos accen-
tos, e por isso uns se chamam saphicos, outros alcaicos, e para evi-
tar a monotonia, que nasce dos endecassyllabos com os mesmos accen-
tos sempre uniformes, vou intermeando os de outra versificação, digo,
accentuação, ainda que nunca passem de onze syllabas, nem para mais,
nem para menos. Eis aqui porque V. S.^ extranha, e eu os recitarei
na sua presença, logo lhe sentirá a cadencia, e o ouvido ficará satis-
feito. Como elles não têm a capa de velhacos, chamada a rima, ou
as consoantes, como as outavas do Oriente, é preciso variar, para con-
servar e fechar bem o periodo. Esta arte da poesia até na sua difficul-
dade é desgraçada, e depois de vencida apenas se diz: — Isso são ver-
sos, e qualquer rapaz faz d'essas cousas. — Vamos agora a prosas. Cho-
ram-se os da Impressão regia que não têm nada que fazer, e eu lh'o
creio; pois então porque não ha de o capucho e o descapuchado Annes
apressar as cousas que não são ataques claros e directos á senhora Pe-
dreirada? O papel — Os Frades — parece que deve interessar o mesmo
capucho, porque se o atacam por malhado, não o ataquem por frade,
e quererá ter uma investida de menos. Eu não sei como as cousas
d'aqui transpiram, mas sei que um vem, e vem outro, eu estou escre-
vendo, e logo o sabem, pois já começou a procissão dos frades arra-
bidos com badaladas á porta. — Senhor padre José Agostinho, já sahiu
o papel dos Frades? — E isto ainda elle não estava acabado; veja V.
S.* o que será agora. Desejo pois que se apresse a impressão, e que
passe pelas duas fieiras, a do capacho, e a do capucho, e que se não
eternize a impressão, digo, a publicação; podiam repartir a cousa por
dois ou mais ofBciaes. Inste pois V. S.* com aquelles senhores, por-
que se começarem, escreverei mais uma folha para prefacio, porque o
necessita, pois vejo que começa mui ex-abrupto. Esta folha pode ir em
lettra gripha. Aquelle texto de Petronio, que vae no Templo, é de uma
leltra soberba e formosa; mas sem estar licenciado não escrevo o tal
prefacio. Erafim, isto é carta, e nãa é livro; mas se não leva prefacio,
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 81
levará o — Fwis Laus Deo — dando eu a V. S.* nâo só louvores, mas
agradecimentos. Cavacos, me têm dado muitos, mas cavacas, só V.
S.^; por isso, e lambem sem isso sou
De V. S.*
Ara." e mais obrig.**"
Pedrouços, 27 de Julho de 1830.
/. A. de M.
LXIV
111.'"'' Sr.
É verdade que me tenho feito invisível, mas a minha triste e do-
lorosa enfermidade a isso me obriga; dias e dias me conservo na cama,
sempre com remédios, e nunca com melhoras. N'este sitio tenho mais
commodidades e menos perseguições. O Forno é muito conhecido, e
este cadoz muito ignorado. Fui com muito trabalho domingo, 20, a Lis-
boa pregar um sermão; trouxe, é verdade, dez cruzados novos, mas
também em cima de mim mais de dez vezes o nome de apostólico, e
mais de vinte me perguntaram pelo meu dinheiro; de sorte que me
lembrei de trazer os dez cruzados novos na mão, para todos verem o
meu dinheiro, e não me perguntarem por elle. Amanhã vou a S. Ro-
que pregar da ascensão do Senhor: elle subiu ao iMonte Olivete, e es-
ses phariseus constitucionaes me farão subir ao Calvário, para me cru-
cificarem pelo meu dinheiro. E é este o systema que felizmente nos
rege? E será este sempre, pois lhe não vejo geito de acabar? Aqui es-
tão sempre commigo algum amigos, em cujo costado se divisa o mesmo
proeminente volume, que tanto avulta no meu (e eu pedi ao Raphael,
admirando elles muito o retrato que o Raphael trazia, que trouxesse
hoje alguma obra sua, para elles admirarem ainda mais); cada um d'el- •
les traz diariamente sua mentira, suave alimento da miserável corcun-
dage: a de hontem não foi das menos importantes; e vera a ser, uraa
carta do archanjo á senhora Vadre, em que lhe annunciava a sua appa-
rição. Um cónego da sé trouxe outra, egualmente gorda, e graúda:
* Em um outro caderno intitulado Cartas a diversos indivíduos encontrámos
mais três carias dirigidas a Fr. Joaquim da Cruz. (Da revisão.)
CARTAS. 6
82 CAKTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
uma carta do conde de Penafiel, vista por elle cónego da sé, escripta
de Paris, em que dizia a suas irmãs: — Aqui chegaram bagagens do
archanjo. O principal Corte Real também aqui disse: O Commissario
britannico aboletado em minha casa, disse: «O exercito se encontra em
Lisboa, para se declarar quem é o rei de Portugal». — Um castelhano
servil, que é despachante de navios, e que também aqui vem todos os
dias, disse: — O commandante inglez da torre, Miller, recebeu uma carta
de um seu irmão de Inglaterra, em que lhe dizia: tVejo que te hei de
abraçar aqui antes que parta para uma commissão ao México, porque
o exercito torna aqui, apenas ahi chegar o.infante reconhecido rei.» —
Estas foram as de hontem, veremos que taes são as de hoje. Serve
isto ao menos de disfarçar a ceia se é pequena, ou se é nenhuma. Em
quanto ao canninguismo vae triumphando, e o saldanhisnio vae as-
neando, e o esperancismo vae entysicando o corcundismo; pois já não
temos no corpo mais que a triste, mas duríssima merendeira.
Vamos ao mais que interessa, ou que talvez seja menos interes-
sante. Estou gravemente enfermo, mas não ocioso. Fiz uma Novena
(cousa mui séria) da Senhora Apparecida, que se imprime, e já vae ser-
vir. De que serve cá isto? dirão os pães da pátria, no meio do derra-
mamento das luzes do século, e dos progressos da civilisação? Este
diabo os atacou na resposta aos da commissão da censura, agora os
suspenderá de todo com a Novena. Está o summario feito, já foi or-
dem a todas as boticas para a execução da setença, e seja o golpe tão
prompto, que não dê a enfermidade tempo nem para o primeiro bole-
tim; não esteja de costas, nem de ilharga, vá logo para o cemitério.
Esta sentença terá embargos, porque ao menos o domicilio d'este cida-
dão será inviolável á entrada, não digo eu de um frasquinho, ou vidri-
nho de mammona, mas até a dez réis de malvas e violas.
Os Burros vão andando, porque é da minha obrigação tocal-os, e
dão taes urros, e taes zurros, que me vejo obrigado a alargar e es-
tender as mangedouras, mais do que tinha determinado; eu os farei
viver sempre, já que elles com seus couces tanto nos matam. Quizera
continuar com estas divinas matérias, mas a carta do P." M.® Dr. Fr.
Fortunato pede outra marcha, e outro estylo. Não me parece a oração
obra de Santo Agostinho; é verdade que este grande homem quiz por
humildade depois da sua conversão mudar de tom em seu modo de
escrever, o que se conhece na comparação dos escriptos feitos antes
da conversão com os que depois compoz. Antes de convertido compoz
os dois livros — Contra Académicos, que são um prodígio de eloquên-
cia, e de pura lalinidade, isto foi antes dos trinta annos; depois, nos
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 83
mesmos livros da Cidade de Deus, que são dezoito, começa a abater-se
no estylo muito de propósito, pois querendo pôr o nominativo os por
osso, para se não confundir com os, oris, que é o rosto, poz ossum, que
é de baixa e barbara latinidade. Em todas as suas innumeraveis obras,
sempre seguiu o que tinha dito em uma carta: iDisplicet mihi qiiod
múllum tribui liberalibus disciplmis quae multi sancti multum nesciunt;
et multi scient qui sancti non sunl.i» Apesar d'isto, acho demasiadamente
humilde e incorrecto o estylo da oração, que me parece como uma pre-
fação e profissão de fé aos sublimes livros — De Trinitate — e aos que
se lhe seguem — De Doctrina christiana. — Quando fôr a Lisboa mais
de vagar, que será para a semana, mandarei a casa do Lopes, que tem
a grande edição das obras de Santo Agostinho, buscar o volume dos
livros da Trindade, eu combinarei as cousas, escreverei outra carta ao
Prior da Graça, como a do cirurgião, para me mandar as obras de S.
Prospero, onde vem tudo quanto o santo escreveu em um completo ca-
talogo. Eu creio que o cartório de Alcobaça foi mais roubado por Fi-
lippe II, que o Thesouro nacional por Manuel Fernandes Thomaz e com-
panhia em 18201 É destino de Portugal ser em todos os tempos, e
muito mais nos presentes, roupa de francezes I
Nos intervallos de mortaes dores, e de incessantes mijadelas, nos
espaços que ha entre ração e ração que deito aos Burros, como esta-
mos em dias de Maio^ e como a penna se eu lhe não pego, salta ella
por si do tinteiro para os meus dedos, tenho visto, mudado, addicio-
nado e polido o poema Newton, e irá até ao ponto e grandeza de per-
feição, e abundância de cousas e de doutrinas, que espero que elle
diga á posteridade, mais que tudo o que tenho feito, que eu soube al-
guma cousa no mundo; e quando eu o apresentar n'esses buracos, que
as philanlropias do século lhes deixaram para morada em logar do
mosteiro, então se verá que elle merece uma edição mais nitida, e mais
rica que esta do Oriente, e a vista fará fé.
Ora senhor, não fará V. S.^ aò menos com um páo, que aquelle
azeiteiro bezunlão chamado o capucho Henrique acabe de uma vez com
a impressão da Oração fúnebre, levando o diabo a nota, em que o mal-
vado Capucho embirrou tanto, porque, não a elle, que nada entende,
mas aos outros tocou nas' mataduras? E hei de eu estar calado contra
isto, e contra tudo?. . .
Oh periódico O Portuguez, quando poderei eu lançar-te a unha,
e ferrar-te o dente? E quando se tirará aos homens de bem aquelle
retorcido corno, que na bocca lhe tem mettido o Divinal systema! Ora
pois, se elle me cahir da bocca, eu o converterei em penna, e com esta
84 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
penna corno eu zurzirei os erros de um cornudo . . . Sem mais, até à
primeira.
Am.° obrig.™" e invariável
23 do Maio de 1827.
J. A. de M.
LXV
Agradecendo-lhe uns presentes
111.'"'' Sr.
É justo acudir com pernas a quem as não tem para andar; mas
se estas duas não são pernas que me sirvam, não se poderá negar qne
sejam pernas que me ajudem; e se nem pernas lhe quizerem chamar,
conhecerão ao menos que são duas grossas moleias da existência, e
para fallarmos como se falla^ são duas seguras bases do systema esto-
macal, que sem estar cheio não se pode dizer que felizmente nos rege.
Com duas columnas não vae abaixo o ministério nervoso. Se ellas me
não viessem dar tanta substancia, com qualquer alento que tivesse eu
agradeceria a V. S.^; mas agora que outorga em tão rica dadiva uma
constituição tão robusta a este seu creado, assim como já começa a
suslentar-me a voz para lhe agradecer, também já começa a refor-
çar-me o pulso para mandar ao diabo O Portuguez; e animar-me o
peito para pedir a Deus guarde a V. S.* por muitos annos, e m'os
conceda a mim, para em tudo mostrar que sou
De V. S.*
Am.° m.^° affectuoso e obrig.'*''
Forno, 10 de Junho de 1827.
J. A. de M.
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 8S
LXVI
Sobre a reimpressão da dedicatória á Nação portugueza
do poema O ORIENTE
Ill."'« Sr.
Já é solemne importunação faliar eu no estado da minha saúde; é
verdadeiramente lastimoso e não tem remédio, e tanto que já me custa
escrever, e nem esta diversão posso ter em meu padecimento, e até
se me foi no meio de tantos pezares este único desafogo. Não posso
ter duvida alguma sobre a reimpressão da Dedicatória á Nação, que
morreu a 24 de Agosto de 1820. Até esta época tudo aquillo era ver-
dade, de então para cá é perfeitíssima caçoada, mas vá, e se mais qui-
zerem mais lhe darei, para vergonha sua, se é que a tem, porque em
logar d'esta vieram os direitos do homem, e a inviolabilidade do do-
micilio do cidadão. Parecia-me que se imprimisse no mesmo formato,
ou tamanho da actual edição do Oriente, porque, quem o tiver por en-
cadernar, lh'o poderia ajuntar. Não me admiro da pouca extracção que
tem havido de tão trabalhosa composição, e o motivo já m'o tem apon-
tado mais de uma vez os mesmos livreiros, que sabem melhor d'essas
especulações; o motivo é o excessivo preço em que a pozeram; por-
que se a vendessem a oito tostões (não se perdendo) já não haveria
um exemplar. Cousas do Lopes, que vae publicar as Cartas por junto
a 1:920 réis, como se fosse o mesmo para o povo dar isto de uma
vez, ou a 60 réis cada semana. Seja pois o que fôr, a pouca duração
da minha vida a tudo me torna indififerente. Se V. S.* se lembra do
que ouviu no sermão, eu não me lembro do que disse, porque nem
meia hora me deixaram livre em S. Roque para meditar alguma cousa.
Tornei-me alvo do povo com o diabo das Cartas, tudo se amontoa á
roda de mim em apparecendo, e não me largam. Quando subi, nem o
thema me soccorria; sahiu assim porque quiz sahir, e devendo faliar
no rigor da discipUna antiga, e penas canónicas alliviadas depois, que
isto quer dizer — indulgências — tudo ficou nos miolos, e nada veiu á
lingua mais que verbos de encher. Até nas escadas do púlpito me disse
um, que me não esquecesse bater nos pedreiros, que isto ha de ser
á vontade do povo; eu lhe respondi, que me fosse buscar um páo, e
86 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
que se Dão deniorasse. V. S.* ouviu fallar em — fidelíssima — ; talvez
eu quizesse dizer «fieis patifes», que são os que nos cercam, nos man-
dam, e nos enterram. Portuguezes pela pátria, antes fossemos
, então poderíamos ser pães da pátria, como os treze; então te-
ríamos melhor ventura. Aqui vêm a esta casa cardumes de homens de
bem, isto é, corcundas, e como taes tolíssimos, de cujas guelas o diâ-
metro é incommensuravel, podem engolir elephantes. Cada um diz uma
mentira, e vem a ser muitas mentiras, porque elles são muitos. Agora
mentem, e dizem que o Infante não quer vir sem vir feito rei; de-
pois hão de dizer que não quer vir senão feito imperador; depois dirão
que não quer vir senão feito papa; e temos aqui Fr. Patrício, que já
não ha mais que se faça, para depois ficar em nada, como Fr. Patrí-
cio. O Lopes diz que ainda pende a negociação, outros que se acabou
a negociação, outro que as potencias se ajuntam, outro que as poten-
cias reconhecem; em quanto a mim, na alma dos que isto dizem falta
uma das potencias, que é entendimento, sobejando-lhe a terceira, que
é a vontade de mentir. Se a moléstia me deixar escrever o post-scri-
ptum, já digo uma; eil-a aqui: que sou
De V. S.*
Am.° e muito deveras
Casa, 1 de Dezembro de 1827.
J. A. de M.
NOTA
Aqui acabam as Cartas dirigidas por José Agostinho ao P.^ Frei Joaquim da
Cruz; Innocencio escolheu apenas estas 66, da época mais interessante da historia e
de mais attribuiação do valente escriptor. Na Collecção de Francisco de Paula Fer-
reira da Costa ficaram ainda 141 ineditas_, que Innocencio não obteve^ por que cahi-
ram em poder do corretor Merello, como se vê pelo Catalogo da sua Livraria donde
serão dispersadas em futuro leilão. O volume da copia por letra de Ferreira da Costa,
que pertenceu a Innocencio, tem o seguinte titulo: Correspondência particular de }o%±
Agostinho de Macedo — Carias (escolhidas) dirigidas a Fr. Joaquim da Cruz, Procura-
dor geral da Ordem de S. Bernardo. Copiadas em Agosto de 18i8.
Seguem-se mais cinco cartas dirigidas ao mesmo^ que encontrámos em fragmen-
tos de uma copia annotada, que estavam entre os papeis de Innocencio.
{Da revisão.)
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 87
LXVII
111.'"° Sr.
O meu estado é por extremo lastimoso; desde domingo passado
qne me não levanto da cama; a moléstia vae tendo progressos mortaes
assim o sinto, e tanto que nem uma letra tenho escripto; nada posso,
e me parece que nada mais poderei. Aqui veiu um homem auctor do
Papel incluso ter com esse exemplar* o seu reconhecimento; eu o en-
vio a V. S.* porque é bem feito, e leva cousa que escrevi. Aqui me
escreve o Lopes, e me manda um exemplar do Sermão do P.® M.®
Dr. Fr. Fortunato, da parte de João Henriques para me entregar de
mandado de seu auctor; isto me admira! parece que não devia ser este
o canal. Eu escrevo sobre uma meza, assim mesmo estou tão tremulo
que só posso dizer com firmeza e segurança que sou
De V. S.*
Am° e o mais obrigado
/. Á. de M.
LXVIII
111.°"' Sr.
Esta noite dormi unicamente dezenove minutos, o mais passou-se
com insofifriveis dores; tinha hontem levado o dia na cama, e hoje as-
sim vae, e assim estou sem alivio. Antes de acabar a Besta farei e re-
metterei a Carta ao P." M." Dr. Fr. Fortunato; eu o admiro e respeito
por dever ou justiça. Sei toda a historia da Litteratura monástica em
Portugal, todas as corporações juntas e fundidas, nem têm deitado,
nem deitarão um Dr. Fr. Fortunato; sobre linguas orientaes tiverão os
Vicenles um D. Pedro de Figueiró, os Dominicos um Fr. Jeronymo da
^ É a obra intitulada: A legitimidade da exaltação do Muito dto e Muito Pode-
roso Rei o Senhor D. Miguel I ao Uirono de Portugal demonstrada por principioi de
Direito natural e das Gentes. Por Filippe Nery Soares de Avellar. A esta obra fex o
P.« Macedo urna pequena Censura, que vem unida á mesma obra.
88 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Azambuja, antigos; entre os modernos alguns houve até certo tempo,
agora nenhum ha; mas estes eram paios de línguas e nada mais; Fr.
Fortunato possue linguas orientaes, possue as línguas mortas e vivas,
e possue toda a Litteratura sagrada e profana, antiga e moderna; e sa-
bendo tanto, tudo sabe bem. A sua maior gloria é perguntar-se já: —
porque não foi este homem Bispo, ou Arcebispo, ou Cardeal? Isto vale
mais que dizer: porque foi este homem Bispo? Emfim, eu na carta ma-
nifestarei os meus sentimentos sobre este illustre litlerato, elle é uma
viva e ambulante apologia do Monacato, e é uma resposta que tapa a
bocca á philosophià do século. Não posso mais, estou violento escre-
vendo assim, porque encruzado, ainda que fallando-se em Cruz logo
me animo, porque este appellido me lembra V. S." de quem sou
Obrig.""" servo e amigo
/. Â. de M.
XLIX
111."»° Sr.
É verdade que podia ir a 22, porém hontem sabbado, dores e vi-
sitas mais do que é costume, e a... Não sei o que queria escrever de-
pois d'aquelle — a — , porque ha uma hora e um quarto, que entrou o
máximo Pintor a contar-me como Ibe sahiu escuzado um requerimento
que deitara na caixa do ministro Leite. Lá batem na porta . . . feliz-
mente é o aguadeiro, e por um milagre vizivel escapei de Raimundo
José Pinheiro; ainda tremo! Emfim são quasi oito horas da manhã,
elles não tardam. A Besta está quasi albardada, e com cousa muito
grave e seria, porque assentei, que o que querem pode ir nas Bestas, e
bem carregadas irão. O Mudo a levará na primeira recovagem, ou se
antes quizer mandar algum creado ao Duque o creado a levará. Estimo
que chegasse o 111.'°° com feliz saúde e o P.® M.® Fr. Álvaro, a quem
aífectuosamente me recommendo. Vão os Mastigoforos, e vae a Cen-
sura, da qual se pode tirar uma copia, porque o Sr. Arcebispo é d'isso
muito avaro. Para a mesma recovagem escreverei ao Paula. Ahi me
trazem um caldo de sagú; mas abi entrara dois realistas, e ahi está o
Cura da Ericeira, que quer Versos ou Loas para a Senhora da Naza-
reth. Ora vão lá amalgamar os partidos e dizer aos Emigrados para
Hespanha, que não gritem pelo seu despacho, porque a fome bem de-
A FREI JOAQUIM DA CRUZ 89
pressa os despachará d'este mundo; emquanto eu n'elle viver, que será
pouco, serei de V. S.*
Am.° certo e obrigadissimo
/. A. de M.
LXX
(Fragmento)
sitio eram os Jardins e Fontes e Levadas do Mosteiro de Alcobaça para
meditar e concluir a traducção do — Predium Rusticiim — ha só uma
muito má, era muito má prosa Franceza; mas eu não tenho saúde e
edade tão enfranquecida, que se não tenho 76, tenho 64. Como o Li-
vrinho está aqui em cima da encebada banca com pilulas e beberragens
do Medico do sr. Arcebispo (Medico Corcunda, e mais que corcunda)
Rara Avis in terris nigroque similina Cygno
Ave rara na Terra ou Cysne negro
Ahi vae um rasgo da pagina 234 em que o raríssimo jesuita en-
contra o espirito republicano nos perus. Eu nem pelo Natal lhe en-
contro o corpo, nem republicano, nem realista, nem lhe encontro o
espinhaço, para ver se elles são corcundas ou malhados; esse exame
é para o Marquez de Borba e para os Hypocritas meus vizinhos. Os
Jesuítas foram os primeiros que trouxeram os Perus á Europa, e os
Francezes o veja o mundo a quem devemos mais? Eu na ver-
dade antes quero um Peru, que uma camada. São mais de duas horas
é preciso que o Mudo vá com sol; mais desconsolado fico eu, porque
querendo dizer mais, só posso dizer n'esta recovagem que sou
De V. S.»
Am." e m.'° Am."
J, A. de M.
P. S. Eu me recommendo ao I1I.°° e ao P.® M.* Fr. Álvaro.
90 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
LXXI
111.'"° Sr.
O primeiro que me lembrou foi este F. . . chamado por alcunha
— o Peru de Barcellos. — Não esquece, nem as perde. Eu escrevo ao
111.™° Sr. P." Geral, remeltendo-lhe uma estampa d'El-Rei, por isso sou
breve, e serei extenso para a outra vez. Com que todos os Pregado-
res portuguezes que têm existido e existem??? Pois todos, todos? Pois
também um a quem os Jesuítas vêm perguntar como hão de pregar?
Seja tudo pelo amor de Deusl E já encommendaram ao tal pregador
alguma missão? Venham d'eslas emquanto envolto em sua ignorância
sabe bem, e muito ser de V. S.'
Am.° e obrig.*^"
/. A. de M.
LXXII
111.""" Sr.
Deitado escrevo; quer Deus apurar a minha cangada paciência;
fui acommettido de um tão violento ataque de gota no pé e perna es-
querda, que está em monstruosa inflammação, com dores que juntas
ás da pedra, que é melhor a morte; assim estou e tomando quatro ve-
zes ao dia misturas salinas a ver se transpiro. Estou em estado lasti-
moso, por isso não escrevo a beijar a mão ao 111.™", o que farei logo
que me possa assentar. Com efifeito, se não conheci, porque não sou
dos mais atilados, o Ribeiro pequeno, suspeito-o ao menos; porque
quem defende os Jesuítas, não me trazia aqui uma infame caricatura
contra elles em uma estampa lithographada agora em Paris, e que elle
veiu buscar sabbado véspera do seu embarque. Eu direi tudo. Aqui
me vieram com uma violenta tentação contra os Jesuítas e cousa de
lettras que lhe faria muito mal. Não quiz, nem quererei; era uma rede
do Inferno. Infernaes são as dores que padece
O seu mais affecto Am."
J. A. de M.
A FR. FORTUNATO DE S. BOAVENTURA
Acerca de uma obra, que compozera com o titulo
de «Alcobaça Illustrada»
111.""» P." M." Dr.
Entre as cruéis dores de uma incurável enfermidade de ourina de
sangue tive a consolação e o lenitivo de ler n'estes dois dias, 14 e 15
do corrente Novembro, o seu admirável escripto — Alcobaça Illlustrada
— a obra mais cheia, mais apontada, e de mais luminosa e severa cri-
tica que teremos n'esta migalha, ou resto de Portugal, que nos dei-
xaram os bons irmãos e melhores primos; mas ella será conhecida na
Europa, e verá que a congregação de S. Bernardo tem o seu Mabil-
lon, como a de S. Mauro teve o outro; só tem uma nódoa n'3quella
nota que me diz respeito, mas é fácil de apagar, e eu terei esse cui-
dado. Quando se tratar da impressão, em uma longa carta a tão re-
speitável erudito darei uma idéa analylica da obra, e farei conhecer o
seu merecimento, para envergonhar de uma vez a caterva dos superfi-
ciaes do século.
Folguei muito da noticia que nos dá de haver achado u'esse the-
souro precioso dos manuscriptos do cartório alguns tratados de Fran-
cisco Petrarcha; eu conheço as obras impressas d'este homem immor-
tal, até nas primeiras edições de Basiléa, e algumas vi impressas an-
tes de 1500, e quizera dever a V. S.^ o singular obsequio de me man-
dar os títulos d'esses tratados manuscriptos; talvez seja algum iné-
dito, e que possuamos o que muito desejariam ter os modernos ita-
lianos. Se n'essa copiosa bibliolheca estiver a Vida de Petrarcha, es-
cripta pelo abbade Sade, em 4 volumes de quarto, n'elles encontrará
noticia exacta de tudo o que o mesmo Petrarcha escrevera : os nossos
bons escriptores o conheciam e liam, e trasladavam muito. Os Diálo-
gos de Fr. Heitor Pinto, e os de Amador Arraes, meu patrício em Pe-
92 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
trarcha, conservam a saa matriz; e é versão o da — Vida solitária — de
Heitor Pinto.
Muito pois desejo saber se ha cousa não impressa de Petrarcha;
a este homem, e a Lourenço Valia deve tudo a actual litteratura euro-
pêa, que conservada nos mosteiros, appareceu primeiro ao mundo pe-
las mãos d'estes homens, que se aproveitaram dos trabalhos monásti-
cos pára se fazerem grandes e nós doclos.
Lembrou-se uma Academia de Itália, estabelecida em Assis, e in-
titulada— Properciana — de me consultar sobre a intelligencia e varias
lições de um verso do mesmo Propercio; peço a V. S.* queira ter o
trabalho de ver se na livraria existe alguma edição antiga, ou algum
manuscriplo entre os muitos do cartório. O mundo politico nos cha-
mará doudos e mentecaptos, fanáticos e toleirões, por nos empregar-
mos u'estas puerilidades; e qualquer fanqueiro nos olhará. com um riso
de compaixão, porque tendo nós (como se imprime e canta pelas ruas)
a Divinal Constituição, cuidamos em lettras, e do tempo do absolu-
tismo e da ignorância. Pois seja assim, e seja a Divinal Constituição
um d'aquelles exemplares gregos, que Horácio nos mandava virar d'aqui
para alli com mão nocturna e diurna: eu vou ser outro Mendes a Cas-
tro, a minha vida será commentar este código divinal, que nos tirou
do abysmo; faça V. S.* outro tanto, e eu farei o mais que poder por
ser
De V. S.^^
Servo e amigo
46 de Novembro de 1826.
/. A. de M.
II
Sobre o mesmo assumpto
111.'"° Sr.
Ainda que me guardo para escrever um juizo e parecer mais am-
plo, e com mais cuidado sobre o seu eruditíssimo livro, que eu desejo
se imprima no seu principio como uma espécie de prefação extranha,
para dar a conhecer sem suspeita de parcialidade o merecimento da
obra, como sempre d'ella cuido, e d'ella me lembro, não me posso ca-
lar, que não diga de vez em quando em seu louvor a V. S.^ alguma
cousa. Este período parecerá longo, e espraiado aos professores de
A FRKI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 93
eloquência da Universidade, que escrevem tão boas cousas, como é um
tysico Emaio da historia lilteraria de Portugal; mas sem tão largo arn-
bilo de palavras, eu não podia dizer o que tão profundamente sinto.
Eu só posso julgar das bellezas intrínsecas da sua comppsição, sem
deixar conhecer o Ímprobo e insano trabalho que foi preciso ler para
a levar ao fim. E porquê? — me perguntarão: eu só posso respondei-
representando-me a mim no meu gabinete, e na minha hibliotheca.
Uma pequena casa com quatro paredes nuas, e tão nuas como são
de juizo as cabeças dos nossos salvadores publicistas e legisladores,
de ambos os andares alto e baixo; uma meza de gosto antigo, sobre
ella um tinteiro de onde tem sabido bom e máo, como da boceta de
Pandora; uma penna, de cujo canudo, como da bombarda de Diu se
tem arremeçado pelouros, que tem lançado por terra, dando n'elles
Sanct-Iago, muralhas, bastiões, revelins, andaimes e pedreiros; uma
cadeira, que nos gemidos que ás vezes dá parece que se sente da sua
longevidade, e que na funda cova do assento mostra os annos que me
tem aturado. Eu aqui só, em um silencio ascético, e só inlerrornpido
pela impetuosa eloquência de uma velha, que com bocca de favas nunca
acaba de pedir munições de bocca para a cosinha, e eu sem outro dote,
livro, ou soccorro mais que uma imaginação um pouco viva. Este é o
meu estado nu e cru; e como posso eu fazer cabal juizo de um livio
de recôndita erudição, cujo substracto são escripturas e documentos,
memorias e pergaminhos, que eu nunca vi, e tudo está lido, compa-
rado e combinado entre si conforme as mais apuradas regras da diplo-
macia? Este conhecimento inirinseco só o pode conhecer, e avaliar
quem se tenha dado a tão difficultoso estudo. Se as diplomacias de João
Pedro Ribeiro tivessem dado os fructos, que eu admiro no livro de V.
S.% não teria eu feito tanta zombaria dos trabalhos diplomáticos de
João Pedro, e do Ftiero de Sobrarbe cora que tanto me moeu a paciên-
cia. Das bellezas externas da nobre composição de V. S.^ posso cu
formar o devido conceito, e com muito prazer annuncial-o. A disposi-
ção da obra e seu andamento, a sua critica e bom uso da dialéctica,
a solidez dos argumentos a connexão do estylo, as mortaes lamanca-
das e fulminantes cordoadas nos lombos de Fr. Viterbo, e fmalmrnle
a apologia do grande Fr. Bernardo de Brito, que tanto deve envergo-
nhar Viterbo, Ribeiro (grammaticões!), Fr. Joaquim de Sancto Agosti-
nho e companhia, são cousas de cujo preço e valia posso eu ser juiz
competente; e virá tempo em que o mesmo livro seja texto em porlu-
guez. Se eu tivera cabedal para o fazer e compor, lhe poria não com
aíTouteza, mas com propriedade, este titulo: * Historia chronologira e
94 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
mtica da real Abbadia de Alcobaça da Congregação Cisterciens e de Por-
tugal, para servir de continuação d Alcobaça illustrada do chronista môr
Fr. Manuel dos Sanctos, por Fr. Fortunato de S. Boaventura.-»
A idéa da obra fica para a minha prefação; pois n'ella farei vêr
pelos três diversos artigos — virtudes — trabalhos ruraes — litteratura
— as vantagens que, desde o berço da monarchia, nos mais assigna-
lados serviços tem trazido a esta nação portugueza a ilhistre congre-
gação de S. Bernardo, tão condecorada pelos monarchas portuguezes,
6 tão benemérita da religião chrislã.
Isto è lembrança minha e não emenda do titulo lançado por V.
S.% e já que o devora como bom filho tanto zelo pela gloria da sua
esclarecida ordem, e é tão capaz de revolver e conhecer os depósitos
de litteratura conservados n'esse memorando e notável mosteiro, tam-
bém quizera que o devorasse egual zelo, e possuísse egual cuidado de
uma cousa, de que apenas se conhecerá presentemente metade, cha-
ma-se esta cousa a língua portugueza. Walchio escreveu a Historia da
lingua latina; o sábio Dr. Fr. Fortunato só poderia dignamente escre-
ver a Historia da lingua portugueza. Parece-me que n'esse archivo,
assim como existem tantos documentos em máo latim, também existi-
rão alguns na lingua vernácula, desde os primeiros annos da monar-
chia; estes poderiam fazer a primeira época da lingua até ao anno
de 1446, que é o da invenção da imprensa; porque o Decor puellarum,
os Sermões de Bernardino de Bustos, os livros da Cidade de Deus,
que existem na livraria, ou casa de livros e de têas de aranha dos in-
dolentissimos frades da Graça, a quem nem já capítulos importam, e
o de Lactancio de Monte-Cassino, com a Biblia de Moguncia, tudo alli
entre as mesmas têas existe, foram e são os primeiros que em tal anno
entraram na imprensa; e começar d'aqui a segunda época, notando
a progressiva formação e aperfeiçoamento da mesma lingua, sendo o
primeiro notado Fr. Bernardo de Alcobaça, revolvendo os melhores,
desde o mesmo Fr. Bernardo até Francisco de Andrade na Chronica
de D. João Hl, e poema Cerco de Diu. Começa a terceira época em
os sermões ie Diogo de Paiva de Andrade, nos de Fr. Filippe da Luz,
nos de Fr. João de Ceita, para chegar ao seu polimento summo, do
qual se não passa. E quem poz estas columnas? Pois não foi António
Vieira? Não senhor, não foi; este ííercules é o padre Manuel Bernar-
des. Eu assim o presenti sempre, desde que comecei a ler, e o que
digo agora disse-o aos onze annos de edade. O paciento Lopes, o ex-
gazeteiro exornado, collegiu só das Florestas mais de duas mil phra-
ses e vocábulos, qne escaparam aos nossos melhores diccionaristas.
A FftEI FORTUNATO DE S. BOAVENTUE\A 9o
Como eu não tenho senão um livro chamado Breviário, que me custou
dois cruzados novos, da livraria immensa e óptima do mesmo gazeteiro
que foi nos interregnos dos constitucionaes trago ás vezes meu livrinho
para os intervalos das minhas cruéis dores, contento-me agora com as
únicas Florestas, e cada vez admiro mais o thesouro das palavras la-
tinas, com que enriqueceu como jóias próprias a lingua portugueza.
Eis aqui uma obra, que só V. S.* é capaz de fazer, e eu de o ajudar;
mas quando???... Agora não ha, nem pode haver, nem deve haver
outra sciencia mais que a exegética constitucional. Oh minha querida
Constituição 1 Eu te desfiarei I Já lhe disse que eu seria para ella um
Mendes a Castro, agora serei, porque da minha terra sahiu outro ex-
positor, que é — Pegas á Ordenação. — Elle era de Beja, eu sou tam-
bém de Beja: elle era Pegas, e eu pegarei melhor; ja me chamaram
de Londres — cão de fila — , pois filarei agora de beiço e de orelha.
Benjamin Constant, o amigo dos homens, o pae da humanidade, o ar-
rumador da platéa social, o Bruto dos Toranos, o alma das camarás,
e o bispote d'ellas, o carrasco do despotismo, e mais do absolutismo,
6 por accesso ao maior posto, o capitão dos ladrões, sahiu-se agora
com uma obra, que aqui me mandaram á censura — Politica constitu-
cional:— esià será o meu Veni-mecum, ou o meu badameco Não ha-
verá um olho só n'um corpo portuguez, por onde eu não metta a Con-
stituição com quanta força eu poder, até encaixar no mesmo intestino
recto, e no cólon o que tantos tem no coração, e nos cascos. Eu não
acho estudo mais digno do homem de bem. Os beneméritos da pátria
foram treze, serão agora quaiorze, e farei que esta maligna acabe ao
quatorzeno: se treze a fizeram, o quatorze commentará. O meu busto
estará entre os bustos de Jeremias Benthara, e de Benjamin Constant
com um letreiro que diga: — Este do meio matou os dous das ilhar-
gas.—
Para carta missiva ja passa de aranzel ; ahi vae o papel de Itália ;
sobre elle peço a V. S.* faça alguma indagação nos códices manuscriptos
d'essa bibliotheca, atraz de cujos livros pode o mosteiro esconder al-
gum dinheiro, que lhes sobrar das decimas, quintas caixas, e alçava-
las, porque de certo os costitucionaes não vão lá; mas onde não che-
gará o faro de taes cães podengos e perdigueiros? E pois os cães se
não levam mais do que a páo, tanto não deixará de lhes malhar, como
não deixará de ser
De V. S.''
Am.° e obrigado
J. A. de M.
96 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DR MACEDO
III
Acerca da «Apologia dos Jesuítas»
III.'"" e R.""" Sr.
Este seu amigo, e o mais justo apreciador e admirador, sem es-
perar informações, nem ter RR nos exames, está em miserável situa-
ção com três cousas que tem: primeira, na bocca um corno; — nos de-
dos algemas, segunda; — e terceira os pés na cova: assim mesmo sou
muito zeloso e apaixonado do nome e litteraria gloria de V. S.*, por-
que é um homem verdadeiramente benemérito, não do Porto, mas das
lettras. Onde foi esconder esta oração gratulatoria natalícia? Eu não
lhe encommendei o sermão, mas quero-lh'o pagar; como? se ella não
tem preço!. . . Pois também o não terá a paga, que vem a ser a sua
versão portugueza, para chegar a todos o que muitos, nem lá n'esse
salão sem ser augusto, mereciam ouvir. Veja V. S.^ que se diz isto a
todos em Coimbra, um diluvio de pragas cáe sobre o louvador; mas
venham, porque ellas não são o phosphoro fulminante com que em
Galiza intentaram matar, ou mataram o general Eguia. Vamos a ou-
tro negocio, não de menor importância. Tenho lido a Apologia dos Je-
suítas, e como era cousa sua não podia deixar de ser por mim appro-
vada: se o não foi, ou se o não é pelo Desembargo, isso não é de es-
tranhar; mas tenho ouvido murmurar da Apologia dos Jesuítas; eu
defendo, mas sou como Alfranius Burrhus — Et mcerens Btirrhtis, ac
laudam — e porque me entristeço no coração, se o louvor assoma nos
beiços? Louvo com os beiços, para fazer calar a incontenlavel male-
volencia, entres teço-me no coração, porque os Jesuítas não deviam ser
assim defendidos. Eu conheço talvez melhor que ninguém os Jesuítas,
e eu perdoaria a todos por amor de dous: um italiano, outro francez.
O italiano, que ha pouco morreu em Bassano, cidade do estado de Ve-
neza, chamado João Baptista Roberti, escreveu em sua lingua vulgar
doze volumes em outavo, e com taes cousas, e de tal sorte que o seu
extinguidor Ganganelli lhe destinou uma pensão extraordinária, (não
do thesouro da Egreja, que são indulgências, mas do thesouro ponti-
fício, que então tinha dobrões porluguezes, monetário de que poucos
antiquários curiosos, especialmente portuguezes, se podem agora gabar)
e o cardeal Passionci, que foi o compositor da bulia da extincção, e
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 97
que antes se contentara com a pasmosa oração fúnebre do Príncipe
Eugénio, foi o declarado amigo do P.* Roberti. Entre os doze volumes,
ha um Tracíado da Probidade natural, que excede tudo quanto em phi-
losophia moral e eloquência se tem feito. Vade in pace, está absolvido
este jesuita, e metade dos Jesuítas por amor d'elle. Vamos ao outro,
por amor do qual se perdoará á outra metade. É francez, não é nem
Petau, nem Sirmond, nem Sallíen, nem Rapin, nem a mais roupetada,
é Jacob Vanière; e o Praedium riistkum tem dezeseís livros; não digo
que é este, ou que é aquelle, djgo que qualquer folha d'este ou d'a-
quelle, merece que a outra metade dos Jesuítas leve o outro vade in
pace, ou venham em paz. Aqui^ e sò com este venham se ha de asere-
nar e alegrar o severo semblante de V. S.% e depois de V. S.^, de
muitos poucos mais; eu fico assim. . . como a minha costumada cara
alvar. Estão absolvidos; chamar-me-hão /)assa culpas; é verdade que
não tenho a moral rigída de Concína, ou de Rilhafoles; sou um triste
clérigo, natural de Beja, e pregador de aluguer, mijão, potroso, rabu-
jento, moribundo, mas amigo de Fr. Fortunato, porque è muito ho-
mem de bem, e mui letrado. Fica V. S.* aqui com a bocca doce? Fica;
e sabe para que lh'a faço? Eu lh'o digo; para lhe declarar o meu pa-
recer sobre a Apologia dos Jesuitas. Meu P.® M.® D.°'', não os devia de-
fender assim; devia-os defender em grande, e não em detalhe. Olhe
que isto não é impertinência, porque em detalhe lhe posso retorquir,
é mostrar que outra qualquer das corporações regulares os eguala e
vence; eu escolho os Capuchos na parte Htteraria. Capuchos!... Oh
homem f. . . Capuchos? Sim senhor, Capuchos; e se ha cousa menos
que Capuchos, são os Mínimos, e antes que me metta Capucho, ouça-
me Y. S.* mínimo. O P.® Marino Merseno inventou a cycloíde; em in-
ventora philosophia na exposição do Génesis excede os Jesuitas, e em
transcedente geometria, mestre e amigo de Descartes. Como está em
Coimbra, onde eu estive ha quarenta e sete annos, vá ao Collegio da
Graça, entre na livraria, e no topo da parte direita, ao lado de Ex-
positores, está o Padre Marino Merseno, e logo á entrada, da parte di-
reita, ao pé de S'Gravesend, está Renato Descartes; combine devagar
o discípulo com o mestre, e verá um Mínimo menor que Capuchos, e
maior que os máximos Jesuitas. E o outro Mínimo, maior que os Je-
suitas, já que falia em Pedro da Fonseca, eu Christovam Gil, natural
de Torres Vedras, é o padre Francisco Jacquíer no seu Curso de Phi-
losophia; ningem entendeu melhor Newton. Vou-me aos Capuchos, que
o Guardião é amigo e também é Pateiro, que é consoante de Celeírei-
ro, não chegará a tanto. Logo me mostram á entrada, pintado n'uma
CARTAS. 7
98 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
parede Fr. Marcos de Lisboa, que vale mais que Balthasar Telles, e
António de Vasconcellos ; deixemos que as historias d'aquelle se com-
parem com as historias d'estes, e vamos á Itália.
O capucho com barbas Cardeal Quirini, em leltras, eloquência e
politica faz frente á grande maioria dos Jesuítas, com o seu único Car-
deal Belarmino á testa da columna. O capucho Fortunato de Brixia em
seu Curso philosophico foi o primero que no meio dia da Europa tratou
a Philosophia como methodicamente se deve tratar, e isto quando os
Jesuítas andavam ás marradas com Aristóteles, e seus Árabes, e scho-
lasticos commentadores. O capucho Serafino de Vicença, o capucho
Jaco de Nápoles, o capucho Gabrielis antigos, não fazem lembrar muito
o jesuíta Paulo Segneri; e se querem ura capucho, que encove em
politica de gabinete, e em direcção de monarchas, não busquem o je-
suíta La Chaise ou Le Tellier, busquem o capucho Père Joseph, mes-
tre assoprador e director do politico Richelieu. Bastam Capuchos uni-
camente para fazer grandes encontros aos Jesuítas; Capuchos, gente
de corda e cie barba; e se fizéssemos uma resenha, e déssemos um
varejo por todas as outras ordens monásticas, mendicantes e mixtas
(d'estas mixtas o barnabita Gerdil, e o servita Sarpi, inventor da Óptica,
que depois Newton chamou sua, e do prisma que foi só do Sarpi, e
da circulação do sangue, que não foi do inglez Harvey, nem do alveitar
Francisco de la Reyna, como quer o galego de Orense chamado Fei-
joo, mas do mesmo servita Sarpi) fariam desapparecer os Jesuítas,
ainda que ahi em Coimbra apparecesse a V. S.^ em sonhos o jesuíta
Cristovam Clavio com a sua geometria embrulhada; e de Catalunha
viesse o Padre Dechalles. Em detalhe nunca se poderá dar a prefe-
rencia aos Jesuítas, nem buscar por aqui a sua defensa; se os consi-
dera velhacos, isto é, profundos políticos, porque são jesuítas, salta-
vam logo em V. S.^ dous franciscanos, de que Deus o livre, Fr. Fran-
cisco Cisneros, e Fr. Félix Peretti, cada um com seu globo de Mappa
mundi, e diziam-lhe; «Oh meu Dr. Fr. Fortunato, vê aqui este mundo"?
Pois governei-o eu.» Nas outras cousas em detalhe os outros frades
encovam os Jesuítas. Dístínguiram-se, é verdade, nas missões remotas,
ultramarinas, na Ásia opulentíssima e na America fértil, eriça; para
a Africa se encostaram elles pouco, ou nada; não se quizeram enten-
der nem com o árabe da Mauritânia, nem com os sons quasi inartícu-
lados dos pretos jalofos, e bravios, desde o cabo de Não, e de volta
pelo das Tormentas até ao rio dos Bons-signaes; sim, pelas missões
do Ultramar grandes são os Jesuítas, e não se pagam cá os sermões
como elles por lá se pagaram dos que faziam; mas ja os outros fra-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 99
des OS tinham precedido e vencido; e V. S.* não poderá negar que el-
rei D. Manuel é primeiro que D. João 3.°; este 3.° foi o que metteu
cá os Jesuítas, que como ingnorantes que então eram, comçaram por
ensinar o Padre nosso aos lava-chocos da ribeira. Não falta quem diga
e menos falta quem prove, que o sancto Xavier não era jesuíta, quando
Paulo III para cá os mandou, era um pio sacerdote secular, e pouco
instruído, porque João de Lucena não lhe compoz a Vida, corapoz um
romance; ora basta d'isto. El-rei D. Manuel antes dos Jesuítas, man-
dou fazer umas instrucções para os missionários apostólicos ultramari-
nos; existem manuscriptas, e seu auctor é Fr. Sebastião Toscano, frade
da Graça; se V. S.* vier a Lisboa, vá de passeio até ao convento, e em
um casarão, que forma a ante-livraria, estão uns caixões velhos cheios
de papeis velhos, escríptos á mão; ahí jazem as instrucções feitas pelo
frade, e não pelos Jesuítas que ainda não existiam, ou nunca as fize-
ram, porque n'isto e em muito mais havia monita secreta, e verá que
o frade fallou tão bem portuguez como Fr. Thomé de Jesus, porque o
o frade foi escolhido para pregar na entrada dos ossos de Affonso de
Albuquerque, e alli se depositaram quando os trouxeram de Goa; existe
o sermão impresso, mas um só exemplar, e na mão de um homem
que faz planos, e fecha dinheiro na Junta dos Juros.
Que trará digno de tamanho hiato
Este promettedor? Com dôr estranha,
Stava posta a parir uma montanha :
Tremem as gentes, e appareee um rato.
São precisas muitas cousas para que a humana sociedade exista
bem e prospere; fallo das cousas mandadas e ensinadas pela religião;
juntarei depois algumas mandadas pela politica: Educação religiosa e ci-
vil da mocidade em toda a latitude de seus deveres. Propagação e dila-
tação do evangelho (para maior gloria de Deus) nos paizes catholicos,
nos- heterodoxos, e entre as nações barbaras e incultas; civílisação d'es-
tes mesmos povos nas conquistas e descobrimentos ; conservação das
boas doctrinas, ensinadas nas escholas publicas, e nas universidades;
extirpação das heresias, combatendo e impugnando os seus sectários;
soccorrer a humanidade em todas as situações da vida e da morte;
illustrar e dirigir os soberanos, ou como mestres, ensinando-os, ou
como ministros da penitencia, governando-lhes as consciências, e como
políticos religiosos, intervindo nos negócios públicos com lisa dextri-
dade, e fazer praticamente um enlace vigoroso de todas as sciencias,
e de todas as virtudes moraes, civis e religiosas. Unicamente o corpo
100 CARTAS DE JCSK AGOSTINHO DK MACF.DO
dos Igcacianos se dedicou a tudo isto. Desde a sua introducção até á
sua extincção em Portugal se deram a tudo isto, e tudo isto é das
suas constituições mauifeslas. Se ha monita (arcana verba, quae non
licet htmini loqui) até S. Paulo teve suas reservas, e não ha ti atado
politico, que não tenha artigos secretos; nas famílias ha segredos de
família (só eu hei de ser a porta aberta a toda a bicharia viva, que me
queira embutir as crueldades de malhados, e as parvoíces de corcun-
das 1) Deixe V. S.^ fallar Sebastião José de Carvalho, José de Seabra,
José Pereira Ramos, Francisco de Lemos, Francisco Vieira (letrado),
José Joaquim Vieira Godinho, e todos os mais falladores e architecto-
res da Deducção chronohgica, e do seu apaixonado, verbosissimo, fal-
ladorissimo, e confusíssimo Manuel do Cenáculo, (e era meu amigo,
mas eu sou mais amigo de quem sabe pouco e bem, do que iruíto e
mal) mentiram muito, e atassalharam tudo. Não foram as visões do
Malagrida, nem os Eocercicios de Santo Ignacio dados á Marqueza de
Távora pelos Padres João de Mattos e João Alexandre, quem os ex-
tinguiu em Portugal, nem antigamente os conselhos do Padre Leão
Henriques dados a el-rei D. Sebastião; foi a exclusão de Sebastião José
do gabinete, ou ministério, entrando depois 'para se vingar. São ques-
tões n'este tempo frívolas, e que não tem remédio; e eis aqui porque
€u nunca entendi com a Deducção chronologica. Os Jesuítas dedica-
ram-se a tudo quanto podia contribuir para a prosperidade do estado,
para a gloria da rehgião, e para os progressos das lettras, abrangendo
todas, todas. Eu sou alguma cousa grammatícão, e elles eram gran-
des e melhores grammaticões. Se tiraram do Pateo Diogo de Teive,
D. João III Dão era amigo de Diogo Teive. Ora esta simultaneidade de
cousas só se viu no corpo jesuítico, e em nenhum outro. Não podiam
ser em tudo óptimos, mas foram alguma cousa em tudo; porém con-
siderados singularmente foram excedidos pelos outros. A primeira das
scieucias é a theologia, e ainda que me inculque Petau, o tratado De
TrinUate não o livra dos laivos do socinianismo, e arianismo, e não é
um theologo que possa sustentar o parallelo com o dominicano Goti,
ou com o augustiniano Berti, ou ainda mesmo com oulro Gusmão,
Melchior Cano. O tratado De Locis não tem entre os Jesuítas outro ir-
mão gémeo. O Soares Granatense tem pezo, mas não tem feitio, e por
ser árabe, como os malhados de agora, está desligado do corpo. Natal
Alexandre e Jacinto Serry não eram jesuítas, nem lá os tiveram as-
sim.—Theclogia! (dirá V.* S.^) de onde veiu a Pedro fallar gallego?
Pois quem apenas pode fazer uma decima em outeiro de abbadessado,
mettese a fallar de theologia? É muito querer saber tudo! Pois pacien-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA iOi
cia, talvez eu seja jesuíta disfarçado. O único Padre Pedro Lemoine
quiz fazer um poema épico em sua língua vulgar, pois foi dar com os
bodes na areia, que n'isso foram elles miseráveis, e apenas o jesuíta An-
tónio Milliftu no Moysés Viator (como épico) fez cousa tolerável, mas em
latim.
E onde fica o modo de defender os Jesuítas? Eu vou já, que eu
não quero cantar fora do coro. Os factos faliam, as suas chronicas exi-
stem, e a chronica geral não é a Monarchia dos Solipsos, que os põe a
pão e laranja. Em cada um dos artigos em que eu faço consistir tanto
a prosperidade dos estados, como a gloria e manutenção da religião,
achará mil factos que comprovem a asserção geral, e a conclusão ló-
gica será, que nenhum dos corpos regulares servira tanto a humana
sociedade no estado religioso, e no estado politico; porque nenhum por
seu instituto abrangera tanta cousa, trabalhando era todas com conhe-
cido e ainda hoje desejado fructo. Mas dirão: De bono opere non lapida
mtiste. — Então porque são as pedradas? São porque até os do Collegio
de Cochim na índia vendiam por bons pardáos as pérolas que colhiam
em ura grande lago salgado, que tinham era uma fazenda suai Gom-
merciantes! E os frades Bentos em Lisboa não vendem couves e alfa-
ces da cerca por uma janelinha com grades, que deita para a rua? Em
acabando a Meza do Melhoramento vae Fr. Matheus para esse ramo
de finanças.
Estão admittidos os Jesuítas, eu já vi dois, um de hombro com
outro, pareceram-rae homens como os mais, algum medo me incuti-
ram em razão dos chapéos uniformes e desconformes; mas dizia eu
commigo: os chapéos são da forma de convez de náo de alto bordo;
as batinas são umas sotainas lizas como balandraus, o gesto é estuda-
damente composto, os passos medidos como os de recrutas na fila com
sargento impertinente; mas nem estes novéis Jesuítas, nem os passa-
dos, que não ensinaram estes, têm a condição de Jereraias, a quem
Deus deu a patente ou alvará de pregador régio, nem os fez prophe-
tas dos gentios antes que sahissem do ovário materno, e pegados a
uma placenta especial; o chapéo não é lição, nem o balandrau é dis-
curso.— Quem ha de ensinar estes, para depois de ensinados ensina-
rem aos futuros rapazes graramatica latina no curto espaço de sete an-
nos? Dos grammalicões Jesuítas eu exceptuo sempre o P.® Vaníeri, e
Rapin no poema De cultura Horíorum; mas inculcando os Jesuítas pelo
maxirao latinista o Padre Famiano Strada na sua Historia de Bello bel-
gico, Gaspar Scioppio escreveu um livro intitulado — Infâmia Famiani,
em que lhe descobre mais erros, que em um thema de rapaz de es-
102 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
chola. Quem pois ha de ensinar esta meia dúzia que ahi appareceu,
para nos ensinarem a nós? Os seis, cuido eu que são — de toda a tribu
e de toda a língua — nós nos devemos matar para os ensinar primeiro
a elies, para elles depois nos ensinarem a nós, vindo n'isto a custar
mais cara a mecha que o cebo. Para os justos e honestos fins para
que sâo chamados e admittidos os Jesuitas, tínhamos nós outros, que
não espantavam tanto, e aproveitavam mais, que vem a ser o chama-
mento dos Padres das Escholas Pias. Este instituto, não mui antigo, é
maravilhoso, e grandes fructos tem d'elle colhido a Itália, e colhem to-
dos os reinos da christandade, em que se tem estabelecido; mas não
bastam que se estabeleçam, é preciso que se sustentem; mas aonde?
Os que estão têm a barriga vasia, os que de novo vierem morrerão
com fome, A grande e multiplicadissima família do palriarcha Adoni-
rão não quer a alienação dos bens nacionaes, que são exclusivamente
seus. Todos os frades são a respeito dos Adonhiramitas como aquelles
cães de que falia a Cananéa no evangelho — qtii comedimt de mieis quae
cadtmt de mensis dominorum suoriim, — e pouco falta já para lhe levan-
tarem a cesta d'essas mesmas migalhas; e se Christo, senhor nosso,
perguntasse agora aos frades se tinham alguma cousa que comer?
Custaria a achar pelas ordens um S. Philippe, que podesse dizer, sem
parecer basofia: — Temos aqui cinco pães de cevada e dois peixes, que
Dão passariam de sardinhas, em quanto os filhos de Adonirão se ban-
queteam esplendidamente, e os filhos de Bento e de Bernardo já não
têm para a socéga, em logar da emina de vinho, mais que a descon-
soladora certeza de os chamarem á meia noite para entoarem os divi-
nos louvores em nunca terminada psalmodia. Ora se estes que rotea-
ram os mattos com suas euchadas, e regaram com o próprio suor os
ferregiaes, e que levaram ás costas a viga do seu lagar e o pizão da
sua azeitona, e fizeram para se divertir com prazer a empa das suas
vinhas, e se os seus antigos abbades encostando o bago, empimharam
o severo podão para reprimir a videira luxuriante, ou o previdente sa-
cho, para quebrarem o torrão, e conchegar a terra á pavêa de milho
attenuada, sendo as cousas suas e feitas por elles, não têm quo comer,
porque os filhos de Adonirão não só embargam bestas, mas embargam
e levantam as rações aos donos, e aos operários. Parece, meu P.° M.®
Dr., que o propheta devassador do futuro tinha em vista os presentes
tempos, quando disse — Hominis, et jumenta salvaves Dotriim — vós,
senhor, salvareis os homens, e as bestas, porque só Deus, e não as
creaturas, salvará agora as bestas, e mais os homens que d'ellas vivem,
condemnados a viver com elias. Pois se não ha de comer para os que
A FHEl FORTUNATO DE S. BOAYliNTUHA 103
estão, como haverá de comer para os que vêm? Elles não comera do
que trazem. A Cartilha do Mestre Ignacio, e a Prosódia de Bento Pe-
reira não fazem sopas; sopas fazem-se cora pão, e o pão come-o Ado-
nirão. Se foi um erro acabal-os, não é uma discripção reproduzil-os.
Ora pois, eu não sou inimigo dos Jesuitas, porque do coração não
posso ser inimigo de ninguém, a não me fallarem em Systeraa repre-
sentativo, porque então esbarrunto, e me converto em um diabo vivo,
sendo eu um bonacheirão meio morto; só conservo um indomável ódio
no coração ao Marquez de Pombal, porque extinguiu os Jesuitas, e abriu
a porta á filharada de Adonirão. É melhor um rei sachristão cora Diogo
de Mendonça Corte Real, que um rei philosopho com Sebastião José
de Carvalho. Restabelecer os Jesuitas, é impraticável; remediar os nos-
sos males, impossível. Deixe os Jesuitas, olhe que zomba o mundo dos
seus esforços; a frieza e indifferença que eu vejo destroe todos os ar-
gumentos e lira a força á mesma verdade.
Deixe V. S.* também os Jansenistas, favorecendo tanto os Moli-
nistas; olhe que se lhe seccam os miolos; não ha quem entenda estes
demónios ergotistas. Eu não entendo Luiz de Molina, eu não entendo
o Bispo de Ypres, nem o teimoso Quesnel; as cinco proposições con-
demnadas no livro intitulado — Âugustinus — coudemnadas estão; lá se
avenha o inferno com ellas; se pariram Pavia, se pariram Pistola, Tam-
burini que lhe toque o tambor, e os padres d'aquelle concilio que que-
brem lá as emperradas cabeças; ninguém cuida em tal, não falta quem
lhes atribua os princípios da crença Adonhiramita, mas quem o cuida
delira. Eu não os entendo, nem os creio, nem os defendo. Os Molinis-
tas amotinam-se, ouvindo fallar em Porto-Real; eu nunca tratei-estas
questões já tão debatidas, da graça efficaz e da siifjiciente ; peçaraos a
Deus, que nos dê a sua graça, que é o orvalho do céo, já que a gor-
dura da terra parece que se não creou senão para engordar os pe-
dreiros. Olhei sempre para o que fizeram os solitários de Porto-Real,
e o que fizeram os testarudos Molinistas do Collegio de la Flèche. Dou
mais pela Biblia de Sacy, que pela Biblia de Cornelio à Lapide. Acho
mais galanteria na Arte de pensar, ou na Lógica de Porto-Real, que na
Lógica do Padre Aranha; mais razão e religião nos Ensaios de Moral
de Nicole, que na Moral do P.® Diana, qui tollit peccata mundi; mais
nos Tractados de António Arnauld, que nas lucubrações de Busem-
baum. Então que ha de fazer com seu saber iramenso o P.* M.° Dr.
Fr. Fortunato? Defender os Jesuitas? Ninguém os offende, e pouca
gente sabe em Lisboa, que elles aqui existem, ou que vieram para nos
ensinar, e menos para extirpar os pedreiros ; isso não se faz com fra-
104 CAKTAS !)!•: JOSÉ AGOSTINHO DE MACKDO
des, faz-se com forcas. Que hade fazer pois o P/ M.® Dr. Fortunato?
Eu lh'o digo. Desembrulhar o cahos da vinda do Conde D. Henrique
a este reino, seu casamento, e com que dote, e partir d'este ponto
como primário principio do que se deve chamar — Historia de Portu-
gal, que eu quizera dividir por épocas: — 1.* Desde o governo do Conde
até á deposição de D. Sancho II; — 2.* desde o reinado de D. AíTonso
III, até à morte de D. Fernando; — 3.* desde a morte de D. Fernando
até á morte de D. João II; — 4.^ desde o chamamento d'el-rei D. Ma-
nuel até o reinado do Cardeal rei; — 5.^ desde a entrada de Fiiippe II
até a acclamação de D. João IV — (O reinado dos três Filippes do pe-
ríodo de sessenta annos é mui pouco sabido entre nós); — 6.* desde a
elevação da dynastia de Bragança, até á exaltação ao throno do Senhor
Rei D. Miguel I. Olhe que isto não é fundar castellos na Hespanha, é
começar a escrever antes que me fuja o ultimo alento da vida. Nós
temos em portuguez o que ha em latim, Historia Aiigustae Scriptores,
são os diários dos reis, mas não é a historia da nação ; deve-se fallar
dos reis, mas não d'elles unicamente. Os reis governam, e a nação
obra. Francisco de Andrade escreveu a volumosíssima Chronica de D.
João III; — Damião de Góes a de D. Manuel; pois nem uma única re-
flexão sobre o engrandecimento da nação, buscado pelos seus próprios
esforços nas sciencias e nas artes; é uma vergonha, nunca se falia em
marinha como construcção naval; nunca no astrolábio, nunca n'um ou-
tante; nunca na barquinha; nunca no nocturlabio, tudo invenções por-
tuguezas! É verdade que diz Barros no titulo das Décadas — Dos fei-
tos que os porluguezes fizeram — feitos d'armas, disparar bombardas
contra os Índios vestidos de algodão; mas nem palavra sobre o des-
cobrimento da índia como acontecimento politico, e influente na parte
não dominadora, mas conquistadora do globo, que é, e será sempre a
Europa?. . . Dirá V. S.* que uma cousa é dizer como deve ser com-
posta a Historia portugueza, outra cousa é compor esta mesma cousa
chamada — Historia Portugueza. Seria cousa diíBcaltosissima se todos
os materiaes não estivessem promptos; é uma pisarra tosca, mas ci-
randada e divertida, deitará a fina prata de onze dinheiros. Pôde um
homem só, como Mr. de Thou compor tão grandes e volumosos livros
das historias do seu tempo; pôde um homem só como Mr. Mezeray
compor a historia geral da França desde Pharamundo até ao seu tempo,
e não poderão dous homens costumados a trabalhar, e um d'elles que
escreve mais depressa do que algum tempo se escrevia á raza, empre-
hender esta historia, e com o pulso de Raynal, tendo como disse, os
materiaes para a obra, ainda que não se encontrassem senão era o
A FRKI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 405
uuico Damião António de Lemos! Temos os materiaes promptos, e o
estylo para se adoptar e imitar, que é o do veneziano Saggredi na His-
toria dos Turcos, ou do Império Othomano, que emquanto a mim ati-
nou cora o verdadeiro estylo histórico entre os antigos e modernos, en-
trando esses dois de que se enctiem as selectas do5 rapazes do Páteo,
Velleio Paterculo e Sallustio, e entre os das letlras renascidas na Itá-
lia, Guicchiardini, e Carlos Dati ou Villani. Basta de erudições, e de
estylo histórico. Mas esse velho EIntello, e esse moço Daretes não sâo
como os phariseos do evangelho, que diziam e não faziam; estes dous
podem fazer aquillo que sabem dizer.
Meu P.® M.® Dr. confesso, e V. S.' concordará que o projecto é
gigantesco e diíTiculloso, e que se pode dizer aos dois Phaetontes: —
Magna petis —s>q é presumível o precipício, porque a historia sem ver-
dade é um corpo sem alma; se dos passados se não pode dizer, por-
que offende os presentes; se dos presentes se não pode dizer porque
a não querem escutar, ou a politica que pode tudo, não o permitte
descubrir; para que se ha de compaginar um corpo de historia, e di-
zer-se ao povo: — Aqui tendes um quadro de óptimo colorido, mas in-
fiel, porque não representa com fidelidade os seus originaes? — É o
mesmo que dizer aos frades: — Aqui tendes um refeitório de boa ar-
chitectura; o Quadro da Cea é de Leonardo de Vinci, as mesas são de
mogano, e as toalhas de Flandres, mas nunca aqui achareis nem uma
mixa que possaes comer; — de que serviria aos frades este refeitório?
Talvez dissessem de nossa historia o que Juvenal diz das historias gre-
gas, sem expungir a do mesmo Thucydides — Quid qtiid Grécia mendax
aiídet in historiae. — Além d'esle inconveniente que faz desvanecer o
projecto dos nossos trabalhos, não haveria cousa notável em nenhuma
das nossas seis épocas, que não ficasse excusada ou supprimida: A
conspiração do Duque de Vizeu, morto em Setúbal pela mão d'el-rei
D. João II. — A conspiração do Duque de Bragança, D. Fernando II
degolado na praça de Évora por mandado do mesmo rei. — A conspi-
ração e fugida do Duque D. Raimundo de Alencastre. — A conspiração
do Duque de Caminha, sua morte, e a de seus sócios no meio do Ro-
cio.—A conspiração do Duque de Aveiro, e companhia, rodados na
praça de Belém; veja V. S.* só n'esta classe ducal que cousas tão me-
lindrosas para receberem a luz da verdade n'uma pagina da historial
Nem o mesmo Tácito se atreveu a ser imparcial e sincero na conjura-
ção de Pizão. Esta única reflexão tem força bastante para nos afastar
d'esta temerária empresa. Além d'isto, nós estamos ameaçados de uma
continuação da historia de Laclede até aos nossos dias, obra em que
106 CARTA5 DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
são collaboradores os nossos mais sábios transfugas, residentes em Pa-
ris. O prospecto já ahi anda e não mui escondido, e para que V. S.*
conheça o que nos espera em iiistoria, e o perigo a que nos exporía-
mos eu lhe faço o obsequio (e bem grande) de trasladar o paragrapho
2.° da pagina 4.^ do mesmo prospecto; falia da volta do senhor rei D.
João VI, para a Europa: «Só em 1821, depois da revolução que re-
stabeleceu em seus estados da Europa as cortes, cuja reunião cessara
em 1697, entrou D. João VI em sua metrópole. Aqui começa nova éra
para a monarchia porlugueza, e os factos que se seguiram, e muda-
ram a face d'este império são importantíssimos, porque atrelando-se
ao movimento geral que agita ambos os continentes, tomam a direcção
a que parece os leva o impulso da sua mesma massa para onde o es-
pirito de independência se combina com o exercício do poder. A Con-
stituição hespanhola acceita e jurada por D. João VI; a insurreição de
1823 que proclam.ou o poder absoluto em Lisboa; os abalos políticos,
que precederam e acompanharam a publicação da Carta de D. Pedro
IV; os attentados praticados contra a magestade real no desprezo dos
decretos do legitimo herdeiro do throno; Traz-os-Montes invadido pe-
los conspiradores e rebeldes; a Beira em armas, e as outras províncias
agitadas, e tomadas de justo temor de uma guerra civil; a Inglaterra
occupando o território de seu alliado, para o preservar de uma inva-
são inimiga; a regência e ambas as camarás luctando com muito tra-
balho, ainda que com muita vontade e sublime valor contra os insur-
gentes; a Hespanha fazendo tantos e tão grandes preparativos, que
presagiavam um rompimento, ou próximas hostilidades; a Europa com
os olhos fitos sobre taes acontecimentos, e prompta, e disposta a pre-
venil-os, ou a tomar parte n'elles; e D. Miguel tenente general de seu
augusto irmão, tomando as rédeas do governo, jurando solemnemente
e em presença da nação congregada observar o pacto social outorgado
por seu rei. . . Tal é o quadro immenso, que se offerece n'este período
dos Annaes de Portugal ao buril da historia, á observação do philoso-
pho, 6 ás meditações do homem de estado.»
Este prospecto impresso em Paris gira por todas as mais notá-
veis cidades, e por todas as capitães dos reinos e senhorios da Euro-
pa. Ora veja V. S.* se o prospecto é assim, que fará a Historia? Deve
formar dez grossos volumes em oitavo; pode escrever-se e imprimir-se
maior enfiada de patifarias? Este é o tempo em que vivemos, e tão
ociosa cousa é defender Jesuítas, e flagellar os Jansenistas, como com-
por a Historia de Portugal. Esta nobre tarefa, ou este nobre emprego
do homem de bem, está nas mãos dos maiores scelerados do universo.
A FREI FORTUNATO DK S. BOAVENTURA 107
que são os nossos transfugas conspiradores, que havendo-nos roubado
dentro, nos estão atacando de fora, o que é a mais verdadeira das his-
torias, porque ó o mais evidente dos factos. Quem não quer a sua pu-
blicação, é cúmplice com os malvados. Meu P.® M.® Dr. deixemo-nos
á vista d"isto de Historia; porque tratar de Historia é historia. Se a
tentação fòr mais forte, então façamos como Freishemius fez á historia
de Alexandre Magno, por Quinto Curcio, um supplemento á historia de
Carlos Magno. Ponha V. S.* mais um par, que eu porei outro, ficam
quatorze, e o ultimo o casamento de Floripes, e verifiquemos a data
da segunda passagem da Ponte de Mantible, e com escrúpulo de inda-
gador académico deveremos inserir no supplemento alguma memoria
que se nos enviar sobre o logar onde Ferrabraz recebeu os santos óleos
depois que Oliveiros lhe ministrou o baptismo, quando entrou com elle
no rio. Depois do prospecto em que havemos de cuidar?
Como as dores me trazem cruéis insomnias, longas horas me dei-
xam para formar projectos de lettras, e não de leis, e nunca me deixam
a sublime mania de engrandecer a nossa pátria, e dilatar a sua gloria
6 a fama do seu nome. As biographias são muito do gosto e do uso
d'este século. Quantas diariamente nos oíferece a França? E quantos
homens iliustres tem produzido Portugal em todos os séculos da sua
duração politica na toga, nas lettras, nas artes, em tudo quanto tem
ganhado tão estrondosa nomeada ás outras nações? A V. S.*, a quem
só falta mudar a cama para a livraria, e que por seus trabalhos pode
ser contado no numero d'aquelles a quem Berti no Compendio de His-
toria ecclesiastica, chama Ubrorum Heloung, comedores e tragadores de
livros, podia dos dispersos retalhos da nossa retalhada historia tirar o
nome de muitos, ou dos mais distinctos barões, que ali jazem como os
mesmos livros, no sepulchral bandulho do bichinho traça. Oh que ga-
leria de quadros poderia apparecer, que encovasse a galeria do palá-
cio Pitli em França f Um Diccionario biographico, sem muitos e gran-
des volumes, bastariam quatro de quarto; isto seria o maior serviço
feito á nação portugueza. Estes retratos, que trazem o desenho corre-
ctíssimo em si mesmos, e aos quaes esta penna daria no estylo o co-
lorido, como aquelle que a seus quadros deram como pincel Guercini,
e André dei Sarto, talvez hombreassem com aquelles que Paulo Jovio
immortalisou em seu latim puríssimo, semelhante, sem as impuridades
ao de Patronio Arbitro, ou com os retratos de Jano Nicio Erylhrêo,
em sua Pinacothéca. (Lá saberá V. S.* como tão grego, o que diz esta
palavra), estes retratos de varões iliustres, que tanto illustraram a nossa
pátria com o ferro da cinta, e com a penna dos seus dedos, assim como
108 CARTAS DE JOSK AÍIOSFINIIU Dlí MACEDO
para os de fora serviriam de admiração e assombro, para os de dentro
deveriam servir de estimulo, e de exemplo, -sendo uma lição perma-
nente, que ensinasse os actuaes a fazer o mesmo, ou mais ainda, que
fizeram seus gloriosos antepassados, estimulando-lhes ou despertando-
Ihes o desejo de que os futuros biographos lhes fizessem o que eu
biographo, e V. S.* biographo também intentamos fazer. Chegávamos
nós á letra F dos nossos biographados, e biographavamos o infante D.
Fernando, preso em uma masmorra em Fez; e que diríamos? Que este
magnânimo Regulo, e mais que Regulo em Carthago, regeitara a sua
liberdade a preço da entrega de Ceuta aos mouros. Este memorando
exemplo que faria? Á vista d'este quadro seria logo excusado e sup-
primido na presença de qualquer pequeno morgado, a quem para de-
fender e sustentar a pátria exigissem d'elle que se levantasse mais cedo
em uma manhã de janeiro; ou de um grande, que tivesse menos uma
parelha, por não dizer outra cousa... Stantes in curribus Emilianos —
dizia Juvenal fallando a um grande romano, dos quadros que de seus
antepassados conservava nas galerias de seus palácios, ou entre as es-
tatuas de seus pórticos: — Tu vês alli teus avós e teus tios, os Emilianos
com a lança em riste, ou com a espada em recto, de pé, e mui direi-
tos nos carros falcados arremettendo aos inimigos; faze o que elles fi-
zeram, e não vivas mal na presença d'estas imagens. — Ora ponha V. S.*
estas figuras bem biographadas, deante dos olhos de tantos transfugas
crirainosissiraos, e descendentes de taes Emilianos, stantes postos de
pé nos carros falcados em qualquer das três conhecidas partes do mundo
ameaçando com a ponta da lança cerrados esquadrões de inimigos, em
quanto elles, ou com as armas nas mãos, ou em conferencia com os
boticários, ou com as boccas bilingues, tratam de dar cabo da pátria,
e dos homens de bem, que pela pátria se matam, que aconteceria?
Fora, fora da biographia com estes Emilianos, isto não vem cá fazer
mais que offender muitos indivíduos presentes, e classes respeitáveis ;
a tendência do século, o derramamento das luzes, mostram o pendor
geral que ha para a moderação. Todos os governos têm um centro, e
para elle convergem, e este centro é a moderação; não é só o evan-
gelho, também a politica quer o perdão das injurias, e o amor dos ini-
migos; mas sendo o evangelho para lodos sem excepção, a politica
n'esta parte tem suas reservas; quando os filhos de Adonirão estão,
como se diz, debaixo, então evangelho para elles; e quando dirigem o
timão da republica, então coitados dos que não são Adonhiramitasf
Cárceres, desterros, misérias, infâmias, perseguições e mortes; aca-
bou-se a tendência do século para a moderação. Appareça qualquer
A FREI FORTUNATO DE 5. BOAVENTURA 109
dos nossos biographados, cujas acções antigas reprehendiam as revo-
luções presentes, ainda que estivéssemos na ultima letra do abeceda-
rio no Diccionario, verbi gralia, Zacuto Lusitano, judeu e medico, as-
sim como abríamos o diccionario com a primeira do alphabeto com ou-
tro judeu medico (e natural do Porto!) chamado Abraham Guedelha;
assim como estes dois judeus médicos, o Abraham e o Zacuto despo-
voaram os hospitaes de doentes, e as casas de moradores, enterrando
tudo, nos enterrariam a nós o nosso biographico diccionario. A(jui dou
eu logar a uma reflexão, e vem a ser, que sempre eu vou dar cora os
médicos! Não senhor, elles é que vêm dar commigo na cova. Aqui me
appareceu um, e não era o mandado por amigo nosso, e de alta je-
raicliia; sic orsus ab alto, começou logo a failar da alta tripeça, que-
rendo-me apalpar a barriga, que alguns visos me dá de hydropesia,
mostrando-me primeiro as palmas das mãos lizas, e nuas, e abrindo
os dedos para eu \èT que não havia alli empalmado instrumento al-
gum, agudo e perfurante, ainda que com qualquer movimento podia
correr para a palma da manga do fraque; não consenti ser apalpado,
porque eu não ia para o segredo, ainda que estivesse em lermos de
ir para o sepulchro; se pude ter mão naapalpação, não pude atarra-
car o batoque n'aque]Ia bocca, que se vazava como torneira de tanque.
Yeiu cem eíTeito a dissertação feita no quarto anno do seu curso, e
repetida depois da foimatura tantas vezes quantas são as cabeceiras a
que tem chegado, depois que ha trinta e tantos annos exercita a medi-
cina chnica n'esta corte, seu termo, e fora de lodos os termos. Todas
as suas melaphoras e comparações eram tiradas do âmago, e do cerne
do syslema representativo... Seja com uma camará só, e não com
duas, senhor doctor, porque do mal o menos (lhe disse eu). — Ambas
(tornou elle) garantun as liberdades pátrias.— Pois vamos á minha
moléstia, disse eu sem mais réplica. — Pois meu padre, bem sobe que
da combinação dos quatro temperamentos, e do equilíbrio dos quatro
humores resulta a saúde, e a conservação da nossa vida como do equi-
líbrio dos quatro poderes políticos, legislativo, executivo, moderador e
judiciário resulta a força e a vitalidade do celestial systema represen-
tativo— entende, meu padre? — Ah, senhor dcctor, agora é que eu vi
a luz; até aqui era um. pedaço d'asm)! Assim, assim é que se tiríim as
pedras da bexiga, e as malditas almorreimas deixam de me assassi-
nar...— E ccmo vae, m.eu padre, de evacuações alvinas? — Eu não
olho para isso, mas pela manhã lá vão sahindo. . . — Pois fora com tudo
isso; é preciso que o canal intestinal esteja purificado... eu me ex-
plico: o canal intestinal da vitalidade do systema representativo é a es-
110 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACKDO
colha dos deputados; é preciso purificar as listas nas asserabléas elei-
toraes, expellir o máo e deixar ficar o bom; entende? — Ah senhor
doctor, isso é tão claro, que por V. S.* mesmo vem provado! — E como
vae isso com o furor da hemorroide apertante e congestante? — Eu
não sei, que isso seria ver por dentro, sei que estou ahi horas, e nem
para traz, nem para deante. . . — O clister, o clister emolliente; é cus-
toso na verdade, mas eu me explico: o domicilio do cidadão é invio-
lável, ninguém pode entrar na casa alheia contra a vontade do cidadão;
mas a lei previdente marca os casos em que se deve entrar, ou o ci-
dadão queira, ou o cidadão não queira. . . entende, meu padre? — Pois
quem não ha de entender; mas é que eu não quero, e rua já. — Meu
padre, está no caso dos rebeldes, que regeitam o beneficio celestial da
Carta, que vem fazer o homem cidadão livre, e defender as liberdades
pátrias. As moléstias exercitam no corpo um governo, ou um dominio
tyrannico e despótico; a medicina é um governo, ou um systema re-
presentativo, que destroe o absolutismo, e destroe os abusos. As fle-
gmacias da prostrata são os aulicos, e os lisongeiros, que contaminam
o systema monarchico. . . — Ah senhor doctor, se se não cala, e se não
vae embora, eu tenho aqui cousa debaixo da cama que lhe vae á ca-
beça!. . . — Pois flque-se para ahi, e saiba que está no caso dos scele-
rados, que estiveram a ponto de apedrejar os mesmos representantes
da nação. . . — Pois senhor doctor, esses pagaram-se das suas visitas,
e eu não lhe dou nem cinco réis.
Meu P.® M.® Dr., a digressão foi longa, mas precisa e illustrativa;
mas se eu contasse na biographia as mortes que fizeram os dois mé-
dicos judeus, Abraham Guedelha, natural do Porto como diz o Abbade
Barbosa na Biblioiheca Lusitana, e o judeu medico Zacuto Lusitano,
que esquadra de Epidauro, e de três pontes se lhe atravessaria na proa,
e lá ficava a biographia supprimidada no fundo dos mares! N'esta ma-
téria de biographia, eu não vejo mais que cinzas, que encobrem fogo
ardentíssimo, ou chammas devastadoras. Os crimes d'este século nem
toleram, nem perdoam ás virtudes dos passados, e os heroes d'este
tempo não querem que os houvesse nos outros; e clamam que são in-
vectivas feitas a elles aquelles louvores que se dão aos que já não vi-
vem. Fatal mudança de portuguezes, ou fatal corrupção de costumes I
Não ha na Itália uma só cidade notável em tão diversos estados
e senhorios de que se compõe aquella península, sempre grande, ou
vencedora ou vencida, que não tenha uma biographia particular dos
varões illustres que alli nascessem e florecessem; entre nós apparece-
ram os Retratos de. Varões e Donas, mas isto não são biographias, são
A FRlíl FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 4 1 i
umas grosseiras gravuras, que pararam no meio do caminho, como
tudo que pareceria bom, como são os edifícios, que os meliiores nunca
se acabaram, nem acabarão. V. S.* está no seio da Athenas porlugue-
za, ou na Tecua dos judeus, que era a cidade das lettras, de onde veiu
aquella mulher que fez embatucar David; está cercado de philosophos,
que deviam ser pintados pelo Urbinate, quero dizer, Raphael, como
pintou os da Eschola de Aihetias; estes philosophos o aturdirão sem-
pre com a repizadissima palavra patriotismo; mas a que ideia corre-
sponderá esta palavra? Pelo que elles fazem vemos que esta palavra é
synonimo de revolução, porque não conhecem outro amor da pátria
que não seja isto; na successão de tantos séculos de existência da mo-
narchia portugueza não conhecem homens illustres e dignos de se lhe
perpetuar a memoria em uma patriótica biographia, que não sejam
aquelles que parece haverem descido da mais remota região dos ares
em 1820, para levarem ao cabo a regeneração e a salvação de Portu-
gal, procedendo como atilados e perspicassissimos médicos, como elles
costumam ser, que vendo o corpo succulento, fartíssimo e obeso, o ate-
nuam pelas purgas e pelas reiteradas sangrias, e fazendo-o assim mais
ligeiro, o deixam phtysico. Seguiram esta marcha na ordem politica;
o corpo do estado estava engorgitado^ era a imagem da fartura, da
robustez, e da saúde; as treze lancetas, e as trezentas mil que se lhe
aggregaram logo, lhe abriram todas as veias, e lhe esgotaram todo o
sangue, e do volume de um elephante que linha, o pozeram logo na
tenuidade e leveza de um camaleão. Ora quererá V. S.* compor a bio-
graphia d'estes varões illustres, e só d'estes? Não por certo, me dirá
V. S.*, pois então deixemo-nos d'esta espécie de escriptos, nem queira
com as virtudes dos passados reprehender tão asperamente os vícios
dos presentes. Nem os quadros da historia, nem os retratos da biogra-
phia servem para este tempo. Nós não temos biographias escriptas, te-
raos biographias vivas, e que andam pelo seu pé. Não vê V. S.* esses
varões assignalados, como diz o nosso torto Gamões (torto, porque
manquejava de um olho, como elle confessa) que andam como canta
Virgílio — Acti Falis maria omnia circum — á roda de todos os mares
e de todas as ilhas, para fundarem como diz Horácio, que em tudo
meltia vinho, como eu em tudo metto os médicos, elle por gosto, e eu
por justiça, para fundarem uma nova Salamina, como fizera Teucro
expulso por seu pae, dizendo aos companheiros, que se enfrascassem
em bastante vinho, porque no dia seguinte eras tinham de fazer longo
caminho no largo mar? Pois Senhor P.® M." Dr., esses são os biogra-
phos de si mesmos, a sua biographia é viva, e é essa a que se quer,
H2 GARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DB MACEDO
e a que se louva. — Fugiram da pátria não porque lh'a queimassem
como Troya, mas porque a queriam, e querem alies queimar, e se
aqui não houve Enéas, que levassem os pães ás costas, houveram pães
que arrastaram os filhos; e as Creusas não houve mister apertar muito
com ellas, para também tomarem as de Villa Diogo, e isto para segui-
rem um areogueiroSinão, dolis instructus, ei arte Pelasga, — Nas gre-
gas artes de mentir mui douto — e cujos trastes vão sendo postos era
vagarosa almoeda. Este Sinão nos queria cá metter, como em Troya,
ura cavallo de páo, pejado de Cartas, e de alvitres para nossa total
ruina e acabamento. Escreva V. S.^ a biographia d'estes varões illus-
tres, e eu o ajudarei; mas havemos de começar por lhes chamar j^aes
da pátria, que por não poderem supportar a carranca medonha do
que elles chamam usurpações, nem terem o valor do sábio da Ode de
Horácio encarando o rosto do impendente lyranno, se ausentaram da
pátria em perigo. Quando passarmos a louval-os depois de seus feitos
pelos seus escriptos, lhe chamaremos como elles se chamam, os ho-
mens mais sábios da nação: (entre elles Fr. Fortunato sabe tanto das
línguas orientaes, como ura donato da Penha de França sabe contra-
ponto) porque em seus livros, por lá escriptos, e para cá mandados,
regalam o mundo com as mais insolentes invectivas ao augusto sobe-
rano de Portugal, seus ministros e seu governo: — Qui lapide inci-
denda, cedro qui digna Locutus — diz o epitaphio de Mendo de Foyos,
gravado no seu moimento, que está na sachristia da Graça, e que não
foi composto pelos padres da Companhia; diremos pois que elles dizem
e escrevem cousas
Dignas só de gravar-se em jaspe, % em cedro,
Que injuriam Miguel^ e exaltam Pedro.
Aqui tenho quarenta Gazelas, mais feias que um janeiro, e mais
lodacentas que um rio, que são peças justificativas do que acima acabo
de dizer, materiaes do nosso edifício biographico, se d'esta guisa o in-
tentarmos, e a seu fira o conduzirmos. O Mastigoforo será amnistiado
a V. S.% e a minha querida Besta, que me ganhava o pão para a bocca
e para a botica, não será condemnada a uma perpetua atafona. Appa-
recendo assim esta nossa tão bem cuidada biographia, eu lhe fico que
passados menos de quinze dias, se os ventos forem de servir, appareça
logo no Constitucional de França, e no Courier de Londres em phrase
mais assucarada: «Ora o Padre é por certo o diabo, mas não tão feio
como o pintam; tem suas idéas, e sabe alguma cousa o maldito; (^n-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 113
testou-se de monarchismo, mas vae cahindo em si. Â nação faria n'elle
uma boa acquisição, e nos vae deixando aos sábios essa esperança
(fora, patifes 1) — E tratando de V. S.^ dirão: É um grande lente da Uni-
versidade; da sua mão não cae um R na fatal urna. No Pateo, pela la-
linidade, philologia e historia, arremeda bem o antigo escocez Bucha-
nan, que por lá esteve e zangando-se com Cypriano Soares, e os mais
roupetas do Collegio das Artes, despediu-se em laiim (e óptimo!) veiu
para Inglaterra acabar de traduzir e de polir do texto hebreu os Psal-
mos, deixando á Universidade, e a Portugal aquelles terríveis jambos,
que vem no segundo volume das suas obras em quarto, e que come-
çam:
Valete miserae terrae Lusitaniae,
«Adeus, adeus, das terras lusitanas,
«AdeuS;, oh pobres, míseras choupanas.
O nosso Sir Carlos Slward, o maior diplomático do mundo velho,
e que é capaz de dar quanto lhe peçam por um livro velho, sediço e
bolorento, ha de gostar muito dos seus inéditos. Bem desejaria a na-
ção que elle lançasse mão de outras tarefas para os progressos da ci-
vilisação e derramamento das luzes!!. . . (Fora, patifes, também V. S.*
dirá, e não diz mai).
Tomara vôr, diz o Doctor Velasco,
D'estes heroes biographo o carrasco I
E também diz optimamente o Dr. Velasco, e eu sou do voto do
Dr. Velasco, ainda que elles tanto se incham com a doctrina de outro
Doctor Velasco, mas de Gouvêa, sobre a auctoridade popular na elei-
ção ou successão dos monarchas; talvez, meu P.® M.^ que essa sua
Coimbra já cheirasse a Coimbra no tempo d'este Dr. Velasco na sua
cadeira de prima, de véspera ou de noite!
Proscripta pois a Apologia dos Jesuítas como cousa ociosa, para
não cahirmos na censura do adagio latino, e também paraphraseado
por Desiderio Erasmo — Actiim agere — que é fazer o que está feito;
porque se os Jesuítas vêm (nem de outra sorte os queira cá o nosso
soberano) já vêm emendados, e eu creio que se hão de metter mais
com os rapazes para os ensinar, que com os gabinetes para os diri-
gir; nem com as beatas ricas, porque nem ricas, nem pobres existe
já essa casta de despejadores de pias de agua benta, e também de cal-
CARTAS. 8
H4 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
dos de galinha. Também creio que estes que Têm, e alguns mais que
vierem, quando d'aqui a annos souberem portuguez, se acaso é lingua
que os estrangeiros fallem sem fazerem rir quem os ouve, e sahirem
a ensinar a doctrina aos rapazes, pelos recantos das ruas e escadaria
dos adros, não levarão, segundo costumavam, empunhada na mão uma
cana muito comprida para darem coques nos que, ou não responderem
(e hão de ouvir boas cousas!) ou não estiverem quietos. Ura coque rijo
na cabeça de um rapaz é fazer dar gargalhadas a todos os outros; e
senão com a deliberada vontade, por certo machinalmente; eu mesmo
que ando bem pouco para me rir, obedeceria ao impulso da natureza,
ou ao excesso do ridículo, e ainda o fiz ha poucos dias na sacristia
de S. Roque, contemplando os painéis de S. Francisco Xavier pintados
pelo leigo jesuita Francisco Pereira; alli está a scena da canada; não
é o santo que a dá, é um leigo executor; e o artista estudou tanto a
natureza, que o rapaz está em acto de ir com as mãos á cabeça, o que
dá a conhecer que o irmão leigo carregara a mão contra vontade do
santo, que a não quereria tão rija, e muito mais do rapaz, qne não
gostou d'ella tão forte. Venham pois os Jesuítas, mas nãn venham por-
teiros da cana, porque se lhes pode metter na cabeça serem camaris-
tas. Deixemos pois os Jesuítas, que elles fallarão por si e por mim;
creio que a sua conducta actual desmentirá os testemunhos antigos;
assim como também creio que as luzes que espalharem não serão para
os olhos dos presentes, serão para as suas covas, se os clérigos do
acompanhamento se contentarem com essas lombrigas; mas, não tarda
quem vem, e mais vale tarde que nunca.
Deixemo-nos egualmente de ódio, ou de amor aos Jansenistas; se-
rão uns grandes hereges, mas diz S. Paulo — Oportet haereses esse. —
Este oráculo é um mysterio profundo. Se V. S.* assenta que no livro
dô Cornelio Jansenio — Augustimis — com os erros dos pelagianos, cuja
historia magistralmente escripta por o frade da Graça Cardeal Henri-
que Noris, está também mettido á surrelfa o systema representativo
de uma Gamara, ou de duas Gamaras; então caia-lhe V. S.* á perna
com toda a força da honra e da dialéctica, e conte commigo, que eu
também farei uma perna. No abbade Raynal, que também foi jesuita,
vejo eu grandes sementes do republicanismo, e no mesmíssimo Braz
Pjscal, jansenista furioso, mas christão penitente, pois lhe acharam
quando o amortalharam um cilicio de ferro encravado nos descarnados
lumbos, por mais que lhe commente e recomente os pensamentos não
lhe encontro vestígios do divinal systema, que põe os povos a pedir
por portas, e por consequência ás da morte. Olhe V. S.*, chame V. S.*
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA H5
aos de Pavia, e aos de Pistoia wicleffistas, que não queriam mais que
republicanismo na egreja, e republicanismo no estado, como parece
queriam depois João Hus, e Jeronymo de Praga, e não se entronque
esta raça fina com os Jansenistas; talvez eu diga isto porque os não
enteodo, nem tal quero, gosto do meu socego, e se me não dá a dor
de pedra, não quero que m'o tire uma questão, cujos termos bem de-
finidos, todos ficariam concordes, porque a graça é um dom gratuito
de Deus — Non valentes, nec correntis, sed miserentis est Dei. — (S. Paulo,
Epist. aos Rom., cap. ix, t. 16.)
De biographia é bom deixar, porque dizer dos presentes o que
elles são, e dos passados o que elles foram, é accender uma guerra,
e gritarão que é sátira o que Dão é mais que retrato ao natural, isto
é accender o facho ás fúrias.
V. S.* é intrépido, nem o assustam grossos volumes, nas suas
mais que Ambrosianas livrarias de Milão, nem se enfarrusca e cega
com a poeirada e caruncho de seus cartórios Mathusalens. Impávido
Capuneo, vocat in certamina divos, entra por essas portas mais defen-
didas que as de Brandeburgo; dois exércitos o assaltam, e caminha o
exercito «la traça, e o exercito da aranha; Xerxes não trazia mais bi-
charia atraz de si quando passou o Helesponto para conquistar a Gré-
cia, onde vinha buscar lã para ficar tosquiado; ou para me explicar
melhor, entra V. S.* nas antigas catacumbas da antiga Roma, a visitar
a região dos mortos e dos esquecidos, tudo é pó, e tudo são cadáve-
res; alli jazem sem distincção como bacalhaus albardados em pastas
de massa, em camadas de poeira, ou em folio máximo, ou em oitavo
pequeno; com um assopro faz desapparecer a traça, e com uma vas-
soura faz ir em debandada o exercito das aranhas. Salve-se quem po-
der, grita um granadeiro aranhiço, como nos campos de Waterloo gri-
tou um granadeiro francez, quando com a cavallaria forçou o flanco di-
reito o espantoso Bulow. V. S.* é o espantoso Bolow da cavallaria ma-
nuscripta, apparece V. S.% foge a traça, somera-se as aranhas, ras-
gam-se as têas, dissipa-se o pó e dá a liberdade áquelles prisioneiros do
esquecimento, e salva aquellas bagagens da simplicidade, ou da sapiên-
cia antiga. Está quebrantada a paz dos mortos, e violado o domicilio das
cinzas; resgata V. S.* um manuscripto captivo, não pelas mãos dos
mouros, mas do tempo dos mouros; não é uma alma sahindo do purga-
tório, mas é um corpo sem alma que vem vêr a luz do mundo, m?s
para tornar logo ás sombras vestido de outra mortalha. Á poria d'a-
quelle jazigo dos pergaminhos e das garatujas, está esperando a V. S.*
o seu criado, ou o da sala, ou o particular do seu quarto, com uma vas-
116 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
soura de piassá, para o basculhar de tantos barambazes de lêas, e de
tanta poeira dos séculos porque não ha de subir á cadeira como um en-
farinhado do entrudo. V. S.^ recusa, não consente, não quer e faz be;n,
porque o timbre do guerreiro vencedor é apparecer coberto de pó e
sangue, que lhe deve salpicar os louros que traz na frente. Não sei que
diga a V. S.* O Imperador Aureliano não entrou mais soberbo as portas
de Roma no carro de seu triumpho por levar presa em cadeias de ouro
a discreta Zenobia, rainha de Palmira, e atraz sem palmatória seu mes-
tre Longino, com o seu Tratado do Sublime (que ainda se não sabe o
que é, e nenhum mestre de Rhetorica diz o que seja) como V. S.^ ca-
minha magestoso, levando sobraçado o seu querido e empoeirado ma-
nuscripto.
Não tornaram de Colcho mais contentes os Argonautas cora o vel-
locino de ouro, nem a nâo Cavallo branco vinha de Tunes mais empave-
zada com o rico deposito d'aquelles pannos recamados de ouro que lá
roubaram os portuguezes. O prazer, a alegria e contentamento vinham
como chantados no venerando rosto de V. S.^ Os philoiogos, latinisías
e grammaticos da Athenas Lusitana (d'onde n'estes dias de regenera-
ção tem apparecido os melhores barros, que se tem dado ao dizimo,
teste Condeixa) dava nos reiterados appiausos os mesmos signaes de
satisfação litteraria, cuidando que V. S.* tinha encontrado o que falta
nas Décadas de Tilo Livio, ou que V. S.* o tinha arrancado da livra-
ria do serralho em Constantinopla, e d'onde Luiz XIV o mandou por
seu embaixador pedir, e não lh'o deram, e lá existe (esta entrega {-.o-
deria ser um dos preliminares da paz, porém a Nicoláo não importa o
que os romanos fizeram, importa o que elle faz, e imporle-nos a nós
o que devemos fazer). E que vae V. S.* fazer com o seu manuscriplo?
Talvez se impaciente por ter de esperar três ou quatro horas, em que
o tenha ao sol, para lhe consumir o bolor e a humidade; se o achasse
nas ruinas de Herculano ou de Pompeia, ser-lhe-ia preciso eniregal-o
ao frade de Nápoles, que achou o modo de os desenrolar sem se des-
pedaçarem, ou reduzirem a pó negro e impalpável. Emfim ao sol posto
tirando V. S.* aquelle frangalho do estendal, já enchuto, ou encham-
brado, adeus somno e adeus refeitório! Óculos, lentes, microscópios,
tudo se emprega, a cousa é legivel, e trasladavel, o caracter é gothico
puro, ou allemão quadrado. É do século undécimo 1 E a matéria? Cousa
importante na verdade, como o foram alguns rolos achados em Her-
culano, um fragmento de versos de Alcêo, e de Stesichoro, meio capi-
tulo de Xenophonte, e o tratado dos átomos de Demócrito; e para cer-
tos philosophos dois exemplares mais correctos pela mão do auctor, os
A FBEI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 147
pensamentos de Timêo de Locres e de Ocello Lucaao, isto era as ruí-
nas de Pompeia. E cà em o cartório? cousa melhor, e eu o creio, por-
que se trata de religião. V. S.* lê, traslada, corrige, passa a limpo, e
tremendo-lhe as mãos como Varas verdes, manda para o Desembargo;
é applaudido, entra no prelo, sae, distribuem-se os exemplares, lá es-
tão nas lojas dos livreiros, uns vestidos de soberbo e purpurino mar-
roquim, com manifesta inveja d'aquelles que se vestem da modesta e
acapachada carneira.
Chegámos, meu P.® M.® Dr., chegámos ao grande ponto; qual é
o destino, qual é a sorte d'estes tão trabalhosos e trabalhados impres-
sos, em que a sua tão generosa e tão benemérita Congregação despen-
dera tanto, sem outro interesse mais do que merecer o respeito paru
seus filhos, a gloria para si, a utilidade para a pátria, porque se sa-
crifica tanto que se empobrece para a opulentar, porque desde a sua
fundação o tira da bocca para lh'o pôr na mesa. Tremo com esta ideia!
A sorte d'estes impressos é a mesma que tinham antes de o serem.
A Sociedade dos bibliomaniacos de Londres, lá manda buscar um exem-
plar, como destacaram dois commissarios a Vienna d' Áustria, só para
verem no gabinete das raridades do Imperador aquella, cuja folha de
papel com suas emendas e variantes contém a ultima oitava da Jeru-
salém de Tasso, escripta pela mão de seu auctor. E os outros exem-
plares? Lá estão nas baiucas dos livreiros, esmagados e entalados en-
tre os outros na terra do esquecimento, chorando pelo repouso e an-
tiga folgança do seu querido cartório, onde ao menos tinham poeira
em que molemente se deitassem e dormissem. O inédito que muitos
querem, é aquelle que nunca tinha visto a luz publica em Portugal,
que vem a ser uma revolução, em que os atrevidos medrara, os gulo-
sos comem, os ladrões se abastam, e os ambiciosos pulam, e depois
atropellam e esmagam os outros; estes são os inéditos buscados, e os
inediíos queridos, e com tanta sofifreguidão devorados. Os que V. S.*
publica e pode publicar, ficara assim escondidos para os futuros sé-
culos, se lá apparecer outro Fr. Fortunato, (duvido que o produzam
semelhante ao presente) que torne a dar preço a estes thesouros es-
condidos e encantados. É verdade que em algumas curiosas mãos vejo
depositados alguns, mas isto não é mais que effeito da generosidade
de animo de um de seus irmãos, homem de mãos rotas e coração
largo, que sabe dar a tempo, que ama as lettras como outros thesou-
ros, 6 as grandezas do mundo.
Persuado-me que V. S.* estará já enfadado com esta tão comprida
arenga, e lhe dará aquelle nome que Juvenal dava áquellas cartas que
Ii8 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Tibério escrevia de Caprea ao seu valido Sejaoo, que governava ou ty-
ranisava ^oma-- Longa et verbosa epistola venit a Caprei. — Esta minha
é longa, mas não verbosa, e tendo já até aqui este comprimento, ainda
aqui não fica. — Tenet insanabile muitos scribendis cachoethes. — Eu serei
um d'estes, — trahit sua quemque vohiptas — uns bebem, outros dor-
mem, estes galanteara, outros architectam republicas, aquelles outros
(estes são os mais loucos) lisonjeara os grandes, alguns intrigam nas
Cortes, outros querem que o mundo lhes chame Rabbi, isto é, mestres
6 até grãos-mestres, sem ser de Rhodes, ou de Malta; outros vivem
de calotes, a que chamam industria; outros, de quem falia Juvenal,
— quid nigra in cândida vertimt. — Eu entendo, e levado também n'este
turbilhão maníaco, engeitado do mundo, desconhecido da fortuna, per-
seguido do ódio, e seguro na virtude, obedeço a um irresistível impul-
so:— escrevo. Nos versos acho fumo, ena prosa desgostos; morro por
saber, e morro ignorante; leio e não me adianto; medito, e não de-
paro com a verdade; mas vou teimando, e vou escrevendo; e queria
nas minhas debilitadas forças o adminiculo, sustentáculo, ou concor-
rência do pulso athletico de V. S.*; mas nas matérias já por mim offe-
recidas á erudita penna de V. S.*, não encontro mais que insuperáveis
diíBculdades e manifestos inconvenientes, e ainda que ao fim levásse-
mos as indicadas emprezas, seriam por certo recebidas por esmola,
cora uma fria indifferença, ou pelo orgulho regenerador com um insul-
tante despreso.
Eu desfaço-me em projectos, que são filhos da solidão, da incom-
municabilidade, e do retiro; ura dos projectos, cuja execução só para
mim reservava sem intenção extranha, era combater as rebeliões pela
illustração dos povos, porque sendo a arma a verdade mais poderosa
para vencer tudo, sendo esta nua, não perde por se vestir de roupas
mais agradáveis, e costuma-se adoçar a orla de um vaso, era que se
dá ao menino enfermo a medicina amarga. A pátria altamente demanda
este recurso, mas não sei que desconcerto seja esta da natureza; esta
verdade não sei de quem conceba para parir este ódio, como ha tan-
tos séculos nos disse o cómico romano ou deraidiado Menandro; aíBan-
çava-rae na publica experiência; com a verdade festivalmente annun-
ciada, a efifervescencia das províncias se accalma, o phrenesi se affrouia
e os ânimos se ligam; o ferraento revolucionário não leveda a massa
disposta na população do reino; erafira eu queria, que n'um forno de
credito se cozesse um pão sera saibo, e sem hervinha. Mais desfez a
lingua de Cicero a conjuração de Catilina, que a espada de César! O
mais sincero e nunca desmentido patriotismo, a força e a perspicui-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 119
dade de fluida e natural eloquência, sem estudo e sem preparados ar-
rebiques; o órgão, cujos sons lisonjeavam os ouvidos populares, o ar-
chote de dia, que aclarava os caminhos da honra e da justiça, não ser-
viram de outra cousa, que não fosse depositar em ânimos pervertidos,
e desgraçadamente influentes, um rancor sempre resentido, e um ódio
pertinazmente conservado; que sem me incutir medo, me encheu de
uma tão motivada indignação, que se me não extinguiu o amor da pá-
tria, que isso era impossível, ao menos extinguiu em mim toda a sen-
sibilidade moral, mais forte que a physica; porque as fibras moraes
são mais delicadas, e as suas vibrações mais vivamente pronunciadas,
fazendo calar uma lingua, que só bateu o ár para articular os sons, ou
as palavras, que sempre fizeram escutar e perceber o mais fino amor
da pátria, a mais segura adhesão ao throno, o mais desinteressado affe-
clo aos monarchas; tornando rombo ou obtuso um entendimento que
nunca estendeu um raciocínio ou dispoz ura syllogismo que não pro-
vasse a legitimidade do rei que temos; d'este rei que tanto merecera
os bons corao temem os mãos. Quizeram que o silencio era mim fosse
forçado, mas eu o faço voluntário. Roma conheceu o que devia a Mar-
cello, e o chamou do desterro; mas tantas sem razões, ou da minha
estrella ou da malignidade dos homens, ou da contumácia de uma seita
me farão sempre surdo, e opporei a contumácia de uma resolução hon-
rada ao proseguimento de um ódio implacável.
Meu P.^ M.* Dr., poupar as rebeliões é ser rebelde; não amar o
legitimo soberano, que a providencia tão visivelmente cobre, e cubrirá
com as suas azas, não é ser portuguez; o maçon que se obstina é um
demónio que nos flagella. Eu conservo um profundo respeito aos gran-
des, que são virtuosos, e que conservam com o sangue que lhes gira
nas veias a herança da fidelidade, que em acções heróicas lhes deixa-
ram os seus maiores; mas repare V. S.* no que lhe digo, fite os olhos
no quadro das sedições e revoluções romanas, e achará que só uma
foi architectada por um plebeu, por um escravo, Spartaco; porque os
Gracchos nunca passaram de Tribunos; tudo achará na ordem eques-
tre, na senatoria, e na consular; sem me [tornar a lembrar Catilina,
Bruto e Cassio d'esta ordem eram, ou d'esta gerarchia; se julgarem
isto uma allusão, julguem embora; talvez possa ser ao Conde d'Essex,
ou a Philippe Egalité, Duque de Orleans; esta lembrança se me de-
sperta com o espectáculo de uma sentença impressa, e vulgarisada^ que
condemna tantos, antes tão grandes, em publico cadafalso á morte in-
fame de garrote. Estes, que não seHam o que foram, e os que perde-
ram, se não existissem as monarchias, não querem as monarchias, que
J20 CAUTAS DIS JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
OS sustentam na grandeza, e lhe afiSançam seus foros, e com espanto
da razão humana, odeiam de morte, despresam e perseguem affinca-
damente aquelles que com seus escriptos, e com seus estudos defen-
dem os governos monarchicos com aquella mesma forma com que fo-
ram instituídos; quero dizer, com a conservação e unidade do poder,
e indivisibilidade da soberania, contentando-se de fazer uma inglória
figura, onde tem preponderância, que os põe distantes dos thronos ena
quanto não acabam com os thronos, e com elles; mas se quem defende
a soberania, que sustenta com todos os seus.Jóros a nobreza, é obri-
gado ao silencio, onde acharão advogados? O século presente offerece
poucas contradicções d*esta magnitude; só me persuado que estes ob-
scuridissimos problemas só podem ser resolvidos pela analyse de uma
já não enigmática associação.
E que havemos de escrever, meu P.® M.^ Dr. ? A resposta é tão
fácil, como é fácil escrevel-a.— Cousa nenhuma. — Passarmos da vida
activa da banca para a vida sedentária e contemplativa das scenas do
mundo moral, mais variáveis e variadas que as da natureza. V. S.*
appellará para os milagres da iiitroducção e instituição jesuitica; eu co-
nheço e confesso a sua eííicacia para o presente, ou talvez para o fu-
turo, mas eu que olho para os homens d'estas nossas eras, digo com
o vulgo: — pretos velhos não aprendera línguas — e não ha assopros
que abalem a arvore da morte. Muitas vezes se lhe tem deitado o ma-
chado ao tronco, e parece abatido, mas ficam na terra as raizes, co-
meçam de pullular renovos, os suecos vegetaes n'ella são muito fortes,
e o terreno sempre adubado... Gosto pouco das allegorias, e um animo
sem refolhos não se deve servir de expressões mascaradas. V. S.* sabe
que se declarou guerra a dois objectos, os mais importantes para o ho-
mem, e dos quaes pende a sua ventura, — sociedade e religião; —
guerra á sociedade pela política, guerra á religião pela incredulidade;
d'esta guerra não se desiste; se as circumstancias parece trazerem al-
guma trégoa, não é mais que u;n espaço buscado pela malícia para
novos preparativos, e para encher os trens de novuS petrechos e de
novas munições. Outras circumstancias vêm abrir a campanha; reno-
vam-se as jornadas, e se avivam e encarniçam mais os combates. Isto
na infeliz Europa não tem já remédio, porque aquelles que como mi-
nistros da auctorídade lh'o poderiam dar, estão (por desgraçai) pos-
suídos do mesmo espirito bellicoso.
Gustavo Adolpho accendeu e proseguiu na Alleraanha uma guerra
por espaço de trinta annos, mas por fira acabou-se. Frederico II, rei
da Prússia, sustentou outra guerra na mesma AUemanha por sete an-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAYENTURA 121
uos; terminou, e veiu a paz. Se me lembro de tempos mais antigos,
os Belgas, Hollandezes, ou Flamengos, sustentavam contra Filippe II
e seus successores uma guerra de quarenta annos; encheu-se este pe-
ríodo, e acabou-se. Os sanguinários bandos dos Guelfos e Gibelinos na
Itália, por mais de um século se encarniçaram, mas acabaram; só não
acaba, nem acabará aquella Ordem, que a não quer; Ordem que não
morre, porque assim como se propaga, se renova em todas as gera-
ções, e como ella não acaba, não termina a guerra á religião e á socie-
dado. Se esta guerra publica e universal se reduzisse a um certamen
singular, como a dos Philistêos contra os Israelitas, ainda que d'este
exercito de tão desmedidos gigantes apparecesse o maior gigante ves-
tido de todas as suas armas brancas e negras, sobpezando uma lança,
cujo ferro fosse como o da lança de Golias, do tamanho da laçadeira
do maior tear, talvez apparecesse um pequeno David, que com uma
só pedrada o derribasse, e se acabasse e decidisse d'esta guiza a fa-
tal contenda; mas não é assim, morre um Golias, e ficam os outros;
a guerra é geral, é publica e é eterna; e chega a tanto o seu orgulho
que esperam não ter inimigos que combater, porque aspiram a alistar
todos os homens debaixo das suas bandeiras. Elles têm dois generaes
ou generalíssimos, um quiz ser urso com os ursos, elles o querem tam-
bém, e eis aqui desfeita a sociedade. Outro diz que é filho do acaso,
este é o pae, e da fortuita concorrência e adherencia dos átomos, esta
é a mãe; quer o atheismo, isto querem todos, e eis aqui depois de
dissolvida a sociedade acabada a religião: a estas razões de loucos ajun-
tam a violência do poder, e a maligna dextridade da politica, tem a
força nas armas, e a politica nos ministérios, porque Vergennes foi sa-
plantado por Necker. Não convence a razão, nem persuade a eviden-
cia, a quem não conhece as leis da sociedade, e considerada como de-
lírios da ingnorancia e furores do fanatismo, as que se chamam eter-
nas, e aos homens reveladas. Gomo estes scelerados se assoalham mes-
tres do mundo, e exigem uma obediência cega, e uma crença absoluta
a quanto querem dizer, a nenhum d'elles ouvi ainda uma reposta que
não fosse o sorriso do despreso, e o gesto da ameaça: querer empre-
gar contra elles o talento, é azedar-lhes a tyrannia, e o dia do seu po-
der manifesto seria o dia da sua publica, ainda que até alli dissimu-
lada vingança. Eis aqui bastantes razões para um silencio eterno. Que
se ha-de escrever? se o que se escrever é remédio, não o querem; se
é luz logo a apagam. Mas a mania de escrever?
Tu licet expelias furca, tamen usque recurrit?
122 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MAOTDO
«Se intentas expulsal-a co'um forcado,
«Vem de novo investir, tudo é baldado 1»
Assim o parece n'esta carta, porque devendo dar fundo e abra-
çar a terra, torna de novo a engolfar-se nos mares. Se eu poderá
dar fim ao escrever, como pude dar fim ao ler, ja gosaria d'aquella
deliciosa paz, que é para mim invejada herança dos mandriões, e dor-
mira aquelle somno que o céo outorga aos seus queridos. — Cum de-
derit dilectus suis somniim. — Deixei por uma vez de ler e de estudar:
como eu tinha lido muito, muita cousa me ficou na cabeça, porque
para desgraça minha tenho a memoria tenacissima» e porque até esta
potencia d'aima a tenho nos sentidos, cores, cheiros, sabores, situa-
ções, logares, sons, d-c, tudo lenho presente como permanentes sen-
sações que se succedem, mas não se destroem. As vezes me vem á
bocca cousas hdas ha cincoenta annos, o que me succedeu com a se-
guinte passagem de Séneca na sexta carta a Lucilio.— Turpe est se-
ntei commentario sapere. Hoc Zeno dixit; tu qiiid? Hoc Cleanthes; tu
quid? Quoitsque sub alio moveris? Aliquid et de tuo profer. — Não para
V. S.% que é maior latinista que Lourenço Vala, e para o consolar de
todo, que o mesmo jesuíta Bento Pereira, o Prosódia, mas porque esta
carta pode ir ás mãos de quem não sabe latim, que é cousa que vae
succedendo a quasi todo Portugal, eu o converto era romance: — É
cousa feia e torpe em um velho, saber por apontamentos, ou estra-
nhos retalhos. Isto disse Zeno; e tu quo dizes? Isto disse Cleantes; e
que dizes tu? Quando começarás a dar um passo sem direcção alheia?
Deixa os mais, e apparece no mundo com fructos da tua própria la-
wa. — Isto foi trovão, que me acordou; despedi os livros para sempre
e comecei a cavar no terreno próprio. Não será ninguém culpado do
que eu escrevo; porque se é máo é só meu, e se é bom também não
é extranho. Como é irresistível a força que me arrasta para o tinteiro,
escreverei não o que os outros disseram e fizeram, não o que se fez
nem o que se faz, escreverei cousa nova e tão nova que ainda não está
feita. António Vieira escreveu a Historia do Futuro; pois eu escreve-
rei um Sarrabal, ou reportório para o anno que vem, e queira o céo
que elle não sirva para todos, como o Lunario perpetuo! Os meus pro-
gnósticos serão tão infalliveis como o costumam ser os factos presen-
tes; o que logo se fará conhijcer pelo juízo geral do anno, e suas qua-
dras. Grandes colheitas haverá, e que fructos!!! Eu já não posso con-
ter o espirito vaticínador, que me agita como a sybilla de Virgílio; es-
tou sentado na tripode, porque esta cadeira também o é, e como é
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 123
pouco segura dos pés, produz um movimento de trepidação, que me
anda tudo á roda. Non vullus, non color mus — não tenho o mesmo
rosto, as mesmas cores. Ahi vae já uma que eu não posso conter. En-
tre os vegetaes haverá muita abundância de linho para cordas; o ponto
está que se sirvam d'eilas, e os homens da maior moderação serão
obrigados a confessar que sem ellas não se faz nada.
Dirá V. S."* que eu depois de compor tanta cousa vim a parar em
compor reportorios; os d'esta qualidade são originaes; o que eu disse
não o disse Cleanthes, nem o disse Zeno; hão de ser cousas da minha
própria lavra; ninguém se queixará de mim, porque não são sujeitos
ou cousas que existam, mas que hão de existir. Os que vierem não
serão tão impertinentes, nem o tempo será tão diíBcil, que d'elle se
possa dizer o que eu digo do presente.— /)aí veniam corvis, vexat cen-
sura cohmbas. Este futuro, de que eu sou prognosticador, eu o leio
no passado e no presente. Quem vê o que vae agora, verbi-gratia, a
creação que se dá á mocidade, pode vaticinar o que esta mocidade
dará, quando for velha, á mocidade que então existir. V. S.* pode co-
nhecer desde já o grande credito que este seguro modo de vaticinar
dará ao meu sarrabal! Emfim dei um salto de censor do presente a
retratista do futuro, e nos intervallos lerei nas unhas de alguns la
buena dicha de muitos. A chiromancia também entra com os sarrabaes
na classe das artes divinatorias.
Concluo, meu P.® M.® Dr., afirmando a V. S.* que tudo quanto
até aqui tenho escripto é uma parenesis, ou uma exhortação indirecta
para o persuadir que é melhor e mais útil dormir que escrever; foi
já este o pensamento de Horácio. — Ni melius dormire putem, gitam fa-
cere versus. — Que excellentes commodidades tem V. S.* para isto, e
para evitar desgostos, que são guzanos que nos vão roendo a existen-
cial V. S.* dá a conhecer, impressa em seu rosto, a esplendida saúde
e athletica robustez; a paz cenobitíca só se encontra em seus veneran-
dos mosteiros. Alcobaça, pela situação é o Tempe e a Thessalia de Por-
tugal. Ahl Quem colhera alU um soalheiro no inverno, e a fresca vi-
ração por entre as arvores no verão! O socego do espirito, e o volume
do corpo alli se me augmentariam a olho; alli como de um baluarte
seguro, eu veria apathicamente as tempestades no mar, e as tempes-
tades na terra, as cabeçadas nos homens e as leviandades nas mulhe-
res; alli me veria a politica, mas não ouviria esta palavra, porque a
reduziria ao bom acolhimento e tracto dos que vivem dentro e de al-
guns desenganos que me viessem de fora. Se os Dardanellos ficaram
— se os Dardanellos se foram — se o equilíbrio se guarda — se a ba-
124 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DR MACIiDO
lança pende, porque na Europa se as cousas se não pezam, ao menos
todas se vendem; tudo isto seriam para mim os objectos do paiz das
chimeras, e recostado como um dormente sobre o moUe tapiz das flo-
res e das hervas, mais dormiria, e mais assobiados seriam os meus
roncos; e se o sol ao esconder-se por detraz das montanhas com o ul-
timo raio me ferisse os olhos e despertasse, eu daria alguns passos
não para o gabinete a seccar os miolos, mas para o refeitório a povoar
o estômago. Se me apodassem ou motejassem por essa injuria da na-
tureza, chamada corcova ou corcunda, eu lhe diria que era impulso de
um coração que me não cabia no peito, entumecido por um achaque
chamado honra; que elle tinha pulsações como um aneurisma; que se
se rompesse acabaria, mas com elle a vida. Se corresse de novo a bus-
car o somno, que é a pausa da existência, quando a languida cabeça
chegasse ao travesseiro já chegaria dormindo; então, então é que eu
depararia com a verdadeira felicidade do mundo, já definida e deter-
minada por Juvenal — Mens sana in corpore sano — é uma alma tran-
quilla n'um corpo sadio. Isto que eu só posso ver em pintura, V. S.*
o pode gosar em realidade. A hora extrema sem a desejar, e sem a
temer, aqui lhe soaria; mas lembre-se a toda a hora, que mais vale
burro vivo, que doutor morto, e que uma philosophica indolência é
melhor que a estrepitosa fortuna. As aguas do Alço, e do Baça lhe en-
sinarão como corre a vida, como a mim n'esta choupana litoral os bra-
midos do Oceano, além dos baluartes d'aquellas arêas, me ensinam a
despresar as bravatas dos soberbos e a ignorância dos poderosos.
Passe V. S.* muito bem, que assim lh'o deseja
Seu amigo
Pedrouços, 6 de dezembro de 4829.
J. A. de M.
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 125
IV
Pedindo-lhe protecção
para o estudante José Pedro Ferreira de Oliveira,
que fazia acto do quarto anno medico
jll m. e j^ mo gr
Até aqui o candidato, agora en que o uão sou e sem ter qualida-
des para o ser, me vejo feito patrono, e sem ser isto cousa que se
pegue, também quero que V. S.* o seja, e perante que juizes? — Apud
quos, nec te Lttcius Crassiis defendit^ ne Marcus Aníonitis, et qtioniam
apud Graecos, Judaeiís res hábetur possis ad hiberem Demosthenem —
Ah meu P.* M.® Dr., estes juizes gregos são os nossos Hypocrates;
aqui ha dois grandes riscos, um para V. S.*, outro para o candidato.
V. S.* está de perfeita saúde e ainda bem! Pedindo-lhe que falle aos
médicos o ponho em grande perigo, porque basta só fallar-lhe para dar
um alegrão á morte e ao coveiro. Para o candidato, porque é impossí-
vel ^ue igDore que nunca um medico começa a escrever (nunca o fa-
rão em minha casa!) que não comece por R. — Recipe; e como elles
são muito amigos de abreviar, especialmente a vida, talvez no seu juizo
de exame, para abreviarem, até rnachinalmente larguem um R. Isto
não quer o candidato e menos o quero eu, com o valimento, interven-
ção 6 auctoridade de V. S.* Isto seria uma fatalidade, porque havendo
em os nomes e appellidos do candidato cinco RR, viesse ainda mais
um, e mais de um; então poderia eu dizer — arre! — porque ainda que
me tiraram as Bestas, não me tiraram a musica com que ellas andam.
Dirá V. S.* que eu pedindo-lhe um favor, o exponho a um perigo, como
eu confesso; é verdade, mas "V. S.* é prudentissimo; falle sim, porém
meça o terreno, calcule a distancia, pode ouvir a artilheria, comtanto
que esteja fora do alcance; e não será u'elles tão prompta a morte pelo
ouvido, como é sempre pela bocca. Faça-se este milagre, que merecerá
um painel como aquelle que eu, entre velhos que para dar logar aos
novos, se vão tirando das paredes da ante-sacristia da Penha de Fran-
ça, vi e tive na mão e dizia a legenda: — Milagre que fez Nossa Se-
nhora da Penha de França a uma filha de Thomaz Pinto Brandão, em
a livrar de dois médicos, que a queriam matar.» — Basta, não diga V.
S.^ que medico lhe pareço eu, e que o quero malar com uma tão com-
126 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
prida arenga. Ora ao menos deixe-me dizer o que importa mais que
tudo, e o que esses senhores do calculo podem pôr entre as verdades
demonstradas na sciencia exacta, que eu sou
De V. S.*
Pedrouços, 15 de Maio de 1830.
Verdadeiro amigo
/. A. de M.
V
III mo e j^ mo Sj.^
Por mão do 111.""° P.® M.® Cruz recebi as muito interessantes no-
ticias de V. S.*, escriptas pela leltra de V. S.* Disse bem o Dr. Fr.
Domingos de Carvalho, que eu as desejava, mas não as exigia ; o que
é para mim um favor singularissimo, era em V. S.* mercê e não obri-
gação. Sempre e a todos os que me podiam illustrar sobre este objecto
perguntava por V. S.^, e como tão conhecido do Marquez de Borba,
vindo no mez de Outubro, emquanlo se demorava n'este Tusculano,
verdadeiramente delicioso, quatro vezes a esta casa, recahia a conver-
sação sobre V. S.% e por fonte segura, que é El-rei nosso senhor, pois
este disse que emquanto ouvira o seu sermão chorara sempre. — Go-
vernando-me por mim, lhe tornei eu, o extemporâneo é o melhor, por-
que o discurso sae do coração, e não é filho do estudo; e é mais dex-
tra parteira a natureza do que a arte. Estas são as novas que tenho
de V. S.* agora darei minhas. Da minha saúde não lh'as dou porque
nenhuma tenho, nem tenho a ultima cousa que deixa os desgraçados
que é a esperança; não tem remédio, não tem remédio; uma confir-
mada dissuria dolorosa, que me inunda de dia, e me alaga de noite,
continuada ejecção de lascas escabrosas de pedra, maiores que o diâ-
metro da uretra que se rasga, uma atenuação progressiva, e um fas-
tio invencível a outra cousa que não seja agua, e de uma fonte pró-
xima a este domicilio, sem outra consolação e outro lenitivo, entre tan-
tas dores e pezares, mais do que não vêr, nem querer vêr, nem a vinte
passos de distancia, um só medico, ainda que venha desarmado, sem
traquitana, sem o nunca exhausto e verbosissimo erário, sem o oitavo
de papel, que traz por sello a fouce da morte; sem Benjamin Con-
stanl dentro dos cascos, e Jeremias Bentham na lingua badaladora; ve-
nha como vier, não me verá, nem eu o verei. Já Iriumphei de um me-
dico! Não ha muitas semanas, que ouvi um grande estrépito de fogo-
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 127
sas bestas parar a esta poria; era a indiscreta philantropia de um meu
amigo, que por devoção sua me trazia um medico, que se tem em
maior conta que Hipócrates e Boerhaave, chamado Leal de Gusmão;
cansaram de bater á porta, eu mesmo lhes disse da janella abaixo que
lh'a não abria, nem abri; o meu amigo tratou-me mal, e elle o inimigo
apezar da sua não viril, mas adocicada expressão brazileira, proferiu
palavras, cada uma d'ellas mais peçonhenta e mortifera que uma re-
ceita! Eu, que não teria medo dos morteiros e obuzés de Souvarrow,
não acceitei o combate, e confesso que foi medo e não descortezia. Ou-
tro amigo, 6 bem intencionado, me trouxe aqui um cirurgião — /sséo
torrentior — apenas conheci que tinha laivos de medicina, e da actual
escola liberal do hospital de S. Joseph, e que mui repimpado na ca-
deira junto á cama. tossindo muito e limpando os beiços, fazendo uma
fricção na estolidissima testa com a palma da mão direita, vendo o
relógio, mandando-me deitar a lingua fora, o que eu não quiz — sic
orus ah alto — «O canal intestinal. . . — Basta, basta, disse eu ao illus-
tre preopinante; e como sou um tanto resoluto, continuei: — «Ponha-se
já no andar da rua, venha a morte, mas calada; onde ia v. m.*^ ter
por esse canal intestinal? Pois vá pelo canal da escada abaixo, e se
faltar o carrasco pode acceitar, que fará fortuna.» — Lá se foi blasphe-
mando, mas eu estou vivo. Taes são as noticias da minha saúde; agora
as darei das minhas lettras, com cujo louvor V. S.* tanto me enver-
gonha. As minhas lettras, Sr. P.' M.® Dr., as minhas lettras são gor-
das, ou nem gordas nem magras. Eu não tenho mais que alguma ima-
ginação, um pouco não digo viva, mas ardente; olhe bem que mais
nada tenho, e sou sincero. Não passo do 10° Desengano; ahi estão na
arena grandes luctadores; isto foijjogo politico, foi uma diversão que a
caverna quiz fazer á questão principal de que El-rei me mandou tra-
tar. Melteram na dança o frade bento, que metteu empenho a V. S.*
para o approvar em grego. Se lá lhe fôr dar o Desengano 5.", fará idéa
da manobra maçónica. Beijo a mão a V. S.* por tomar a minha defensa
(que eu ainda não vi); no Chaveco, que ataca a Senhora da Rocha, sou
eu investido, e no Paquete muito mais. O Midosi e o Garrett ainda ati-
ram. Eu devo servir em tudo a Congregação de São Bernardo, e em
duas palavras o declaro; o P.^ M.® Cruz ha mais de dois annos aqui
me traz com que tenho jantado, e me sobra com que jantar ainda, e
que cear e lautamente por muitas noites, e isto sempre, e até cousas
que se não entram na barriga, cobrem a pelle; tanta generosidade
pede bem a recompensa da publicidade. Em defender a Congregação
faço um acto de justiça, e na recompensa do trabalho ha um acto con-
128 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
tinuo de grandeza; é preciso que eu assim faile, porque os pobres não
devem ser soberbos, e se eu alguma soberba tenho é em gosar da
amisade de V. S.*, porque sou
Pedrouços, 18 de Dezembro de 1830.
VI
Seu amigo
J. A. de M.
111.'"° Sr.
Recebi as tão desejadas lettras de V. S.* e também depois d'ellas
os três impressos, nos quaes admirando tudo, me desagradam duas
cousas: uma por carta de mais, outra por carta de menos; por carta
de mais, o bem que me trata, merecendo-o eu tão pouco; por carta
de menos o pouco que zurze o almocreve de Âdo7urão, merecendo-o
elle muito. Para mim foi lisonja, e para elle caridade; para mim a li-
sonja é ociosa, porque me conbeço; para elle a caridade é inútil, por-
que a soberba é cega. Ora pois, o que V. S.* não faz por caridade,
farei eu por justiça, e se lhe amargurar os últimos dias da vida, nin-
guém o mandou escrever parvoíces, ou pedreirices. Não é só Alcobaça
ou o que tem, ou verdadeiramente teve Alcobaça, o que elle indirecta-
mente ataca sempre, porque os pedreiros julgam usurpação o que el-
les não podem furtar; este almocreve, até no gesto e nas botas sem-
pre atacou o culto catholico. Que tem cora Memorias Chronologicas e
diplomáticas, a miúda e escrupulosa descripção das momices, serpes,
dragos, danças e folias, que os do Porto faziam na procissão de Cor-
pus Christi ha dozentos annos? Que temos nós agora que levassem o
sacramento n'uma charola de vidraças, por amor das chuvas, e outras
tripei radas d'este calibre! Tudo isto é metter á bulha n'este século das
luzes a simplicidade dos nossos maiores. Trata-se de Jesuítas, vem logo
n'este ultimo volume das chamadas Dissertações chronologicas uma sen-
tença do Procurador da coroa Thomé Pinheiro da Veiga, porque estes
queriam que na pessoa do procurador da índia fosse citado o provin-
cial do Japão. Trata-se da boticária de Lamego, que quiz adoptar por
filho um rapaz para ser seu herdeiro, vem logo uma tirada contra o
Juízo ecclesíastico. Eis aqui as Dissertações chronologicas do Almocreve
e o orgulho, com que a si mesmo se cita e allega. Isto e tudo o mais
que elle escreveu, que é ínutilissimo, será em grosso bem espíolhado,
não com a applicação das regras da arte diplomática com que elle nos
cança e nos aturde, mas com o fel da sátira, e perspicácia do diabo.
JL FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 129
e ao diabo dará elle a cardada de se metter com o clérigo mijão, go-
toso e septuagenário. Deixemos esta primeira jornada com o almocreve
de terra, vamos ao piloto ou contramestre do mar. — Quis te Palinure
Deorum — diz Virgilio, e digo eu: Vem cá, Palinuro do inferno nebu-
loso, que demónio te raelteu na cabeça desafiar os intervallos das mi-
nhas dores e das minhas viagens ao ourinor?Teu camarada oChaveco
atacou com Ímpios epigraramas a Senhora da Rocha; n'esse numero
fui eu bem convidado, com espanto de alguns bem conhecidos como o
Saraivinha, o amnistieiro; não respondi, porque nunca vi um aggre-
gado de maiores e mais vergonhosos disparates; conheci claramente
que tudo aquillo era fome, n'aquelíes esfaimados gosos, que de tão
longe ladram, e dão bem a conhecer de que espirito sejam. V. S.* se
dignou defender-me e bem visto ficava que com tal patrono eu não fi-
caria criminoso. Não podem taes burros deixar de doer-se das mata-
duras, e o poema que os immortalisa devia ser impresso era Londres,
para que elles primeiro o vissem e se regalassem. Deixemos os tolos,
que não ha quem os possa soffrer, ainda que para onde quer que
aproemos o seu numero é infinito. Dou os parabéns a V. S.* e á nossa
historia litteraria pelo achado no Cartório dos fragmentos d'esse homem
de cérebro grande (pois se acharem o duplo no craneo do jesuíta Dio-
nysio Petavio, n'este capucho de Botão podiam achar o quádruplo).
Como é manuscripto e tem as addições de um seu discípulo, tomara
saber se são diversos os caracteres da letlra, para se ajuizar sem soc-
coros do almocreve, se era a lettra do homem prodigioso, que diz an-
dara de gatinhas sobre os pleclros, e as lyras pelas margens do Mon-
dego, e já n'aquella tenra infância era arrastado e impellido para os
versos e não por escolha ou arbítrio da sua edade, e que aos onze au-
nos já repetia de cor todo o Virgílio; repito em latim as suas ultimas
palavras: — Et undécimo cetatis anno Virgilium omnem palam memori-
ter recitabam. — Que me diz V. S.* á creança? Que mal empregados
miolos na frivolidade que se encontra nos setenta volumes de que se
chama pae? — Septuagenta voluminum pater, et aliorum plurimorum
libroriim, maiorum, minorum,manuscriptorum~ como acaba o seu elo-
gio o Abbade Rancatí, italiano de Pádua! N'esta biblíotheca de burel
só acho cousa que deveras me pasma, que é um Elogio em latim ao
Bispo de Lamego D. Luiz de Sousa, embaixador a Fernando VII, im-
presso em Roma e digno de se constituir entre o de Plinio a Trajano,
e o de Pacato a Theodosiol Os gordos volumes da conciliação da dou-
trina de Scotto e de Santo Agostinho fizeram perder um tempo, que
serviria para escrever a historia do reino de Portugal até D. João IV,
CARTAS. 9
430 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
e se a quizesse escrever em lalim, para as cousas da índia não neces-
sitariamos de Angelo Policiano, nem que este se desculpasse a el-rei
D. João II na mais bella caria que ainda se escreveu ; nem do jesuita
de Bergamo João Pedro, sem ser Ribeiro, mas MnfTei, convidado por
el-rei D. João III. Emfim o capucho foi o maior talento perdifio que
tem apparecido no mundo; mas eu, a quem não são conhecidos Otto,
Galba e Vitelio nem por injurias, nem por benefícios, digo que o fra-
dinho de Botão era espadachim. Quando o frade cardeal Noris, de vas-
tíssima erudição, imprimiu era Roma a sua Historia Pelagiana, e os
magníficos factos ou eras dos Cyros e Macedonios, com os documen-
tos das medalhas d'aquelles reinados dos successores de Alexandre,
veiu o filhote coimbrão metter atrevidamente os seus dois oiros no jogo,
o fradalhão Noris se estimulou, porque o fradete de Botão tinha mui-
tas idéas, mas. tumultuosas, e sem aquella ordem symmetrica em que
consiste o saber; deu-lhe pelas ventas com o livro que se deve ler —
Macedonius Mille armatus Plaiilino sale pi^rfrictus.—l&lo obrigou o Fr.
Ricardo da Normandia a escrever um cartel de desafio, para que am-
bos corpo a corpo fossem combater, argumentar ou esfaquear-se em
Bolonha, como dois rapazes de escola argumentando em taboada em
um sabbado de tarde; rematou o cartel — Em Bononice — O frade No-
ris se riu, e o capucho morreu, sabendo e fallando vinte e duas lín-
guas. Eu também não devia dar tanto á minha sobre estes contos pas-
sados, que por serem de letti;fis fariam dormir um liberal, ainda que
elle absorvido estivesse na contemplação e na divisão dos quatro po-
deres; que são a par d'elles as épocas dos livros Macedonicos ? Sendo
quatro, o rei fica sem nenhum. Veja o Noris e veja o capucho se achara
isto na historia portugueza. Venha pois o escripto, e venha a traduc-
ção, depois faremos alguma cousa mais sobre outro prodígio portuguez,
chamado o hellenista Achilles Estacio. Quando o capucho esteve em
Roma, alli existia também um escossez charaado João Barclay, que
escreveu era latim ura livro, a que o cardeal de Richelieu chamava o
seu breviário, e o profundíssimo philosopho Leibnitz o trazia sempre
na algibeira, e com elle descançava na contemplação de suas abstra-
ctas idéas; chamava-se o livro — Argenis e Poliarcho. — Ora já que V.
S.* é tão amigo, e deve ser, d'El-rei nosso senhor, deixe ao menos um
mez de tratar da fundação de ura mosteiro, e traduza em portuguez
este livro, que eu salvaria só do naufrágio ou do incêndio de todos el-
les; e pelo maior serviço que possa fazer a El-rei nosso senhor, dedi-
que-lhe este livro; e do que n'elle são versos eu me encarrego. El-rei
D. João IV mandou a António de Sousa de Macedo, que compozesse
A FREI FORTUNATO DE S. BOAVENTURA 431
uma Politica para o principe D. Theodosio, o que elle fez, mas podia-a
guardar. Féaelon compoz o Telemaco para o Delphim; mas o Telemaco
é copia, e tem original; a Argenis não o tem, e diz o auclor, fallando
do livro e Luiz XIII a quem o dedica: — Nec in latine, ante viso. — D.
Miguel I terá uma guia de reinantes; faça V. S.* isto, e servirá deve-
ras a El-rei. Ha uma traducção em hespanhol, e duas em francez, mas
todas três detestáveis e desgraçadas. E porque o não tenho eu feito?
Porque eu sempre ou gritasse nas egrejas ou escrevesse em casa, gri-
tei e escrevi sempre para comer; e fora isto, em tão longos annos de
gritarias e de escriptos, não Unhamos um principe, que pela leitura o
aprendesse a ser. Olhe que o livro, sendo de dois dias, o ha impresso
em Hollanda, cum notis varionim. — Hoc fac, et vives. — Mas não se des-
cuide de proseguir na Contramina; dê-lhe fogo e faça ir pelos ares
tantos patifes d'áquem e d'além mar, e dará n'isto o maior prazer e,
a maior gloria ao
Seu amigo
Pedrouços, 26 de Dezembro de 1830.
/. A. de M,
A FR. FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO
Superior no CoUegio da Graça em] Coimbra
Amigo
Respondi logo á sua primeira carta, e como me dizia que de Gas-
tello de Vide se transferia a Portalegre, dirigi a reposta a Portalegre;
Tejo que se desencaminhou; recebo a sua segundí carta que eu es-
perava com alvoroço, porque na verdade eu sou muito do coração seu
amigo. Eslimo que lenha passado bem, pelo que pertence ao physico.
O clima, as perdizes, a apathia lhe poderão grangear a corpulência
de Vitelio; sei que o moral, ou isto que se designa por este nome,
ha de ter padecido; a etiqueta prioral, a theologia, os cânones epis-
copaes, o chá mesurado e compassado, tudo isso amofina, e caga na
paciência a uma alma costumada á sucia grossa e mofina, que a Pro-
videncia aqui depara em tantos brejeiros, de que eu sou o mínimo col-
lega; almas grandes, que em pacificas orgias sabem encontrar a bem-
aventurança. Gompadeço-me d'este seu estado tão gene. (Vivam os Ma-
nes de Manuel Bernardo, que nos enriqueceu a lingua). Porem, amigo,
viva e supporte esses Getas, chamemos-lhe antes Palestinos, que elles
não se injuriam; absorva a elipse prioral, e venha, que eu o credito
dos meus infinitos conhecidos, com deligencia, e o fatal feijão capitu-
lar, se conseguirá a entrada na fortaleza da Penha de França, que é
o elyseo da Augustiniana (que alluvião de p. . . verei eu lá amanhã, dia
do glorioso S. Matheus, o genealógico! Sim, meu amigo, vivam as
p..., que hão de ir á feira, e a sua rainha, a discreta Domingas!)
Engorde e volte, e vá dispondo ao menos com pano de linho os apro-
ches á Penha, e diga-se adeus ás doctissimas cadeiras; venha antes
regentar os quatro donatos a corso de cobre, e será feliz.
Eu tenho passado bem; conhece o repouso do meu espirito — si
134 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
fracfus illahatur orbis etc, — a palavra voga, rende, e não pára. As let-
tras sumiram-se, exlinguiram-se, anniquilaram-se. O astro Moniz ecli-
pscu-se, cousa fatal, desappareceu esta nebulosa estrella, que lhe não
ponho a vista em cinia ha oito mezes; ainda não parou a desintheria
que inquieta as cinzas do extincto vatalhão Bocage, que mania! Viu já a
luz a grande estampa de Bartholozzi, acceitou a dedica António de Araú-
jo, vende-se a 800 réis, e gasta-se. Está impresso na Regia o primeiro
Tolume da traducção de Horácio, em máo papel, género caríssimo; eu
o remelterei, porque ainda não está encadernado; se se gastar, irá o
segundo. No dia em que recebi a sua primeira carta vieram a emen-
dar as primeiras provas. Tenho sentido a sua falta para o poema da
Natureza; não canso de o polir; mas quem o trasladará? — Eu não.
Ánles escondfrme inglório no cemitério que me espera. Venha a Lis-
boa, 6 dará um passo a Natureza, ou a Creação, como quiz o Tribu-
nal. Os nossos amigos vivem; mas d'elles o chronicão despede-se para
a eternidade. Foi atacado de um tenesmo, os médicos o reduziram ao
estado de um cadáver; foi ás Caldas, e existe moribundo em Odivellas,
onde eu só o tenho ido visitar muito de propósito. É bom, e sympa-
thisava; temo muito pela sua vida, e me dá summa pena o longo pa-
decimento d'este infeliz. Aquelles hombros de alheleta desapparece-
ram; do Botelho resta a macilenta pelle; e de Botelho não ha mais
que o desleixo, o descuido, a indifferença, a ingenuidade, e as namo-
radas canções. O Magalhães, e o Pedro são inseparáveis de mim; to-
dos os dias nos vemos, ajuntamos, "conferimos. O Magalhães é moço
de bom juizo, boas qualidades, viu já a luz, e vive commigo. Quem dis-
sera que ainda hcntem á noite, 19 de Septembro, em a nova e luxu-
riosa loge de José Pedro, o Pedro ateimou sobre^«i ténue fenda, que
tae dar com ellel* Pois teimou, meu amigo, e dura o prurito de não
mudar o verso. Que objecto tão prodigiosamente frívolo! Emfim, eu
os deixei ás nove horas, elles foram f. . ., e eu também. Tomámos or-
chata, e Pedro foi propagar o reverendo esquentamiento com que lucta
ha três mezes. O Magalhães mais seguro, tem ambas as divisões da
Brigada dentro na barriga. Este Quixote das p. . . foi corrido á pedra
uma d'estas noites desde o theatro de S. Carlos até á rua do Ouro,
6 merecia-o, porque pagou com meio tostão, o que lhe tiraram do corpo
com pedradas; cura-se das contusões, e ri-se.
Novidades externas Bella, hórrida bella. A este porto chegou o
grande almirante Jervis, com seis formidáveis náos, e cruzam mais
vinte e quatro defronte da barra; o motivo ignora-se no publico; os
m eus amigos de corte me dizem que se previne uma invasão de certa
A FREI FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO 135
Potencia com estas formidáveis forças; eu, e os amigos acima temos
ido a bordo da náo Hibernia, onde está o redutavel Jervis, tem cento
e trinta e seis peças, é uma cidade flucluante; os soberbos inglezes
nos recebem muito bem; corre o vinho em ondas; as p... temem as
náos os Goiazes. Giram os guineos, que mettera em um chinelo os
nossos magros e engoiados pintos. P... de alto bordo falia em uma
peça apenas abre a porta, e afugenta o denodado Pedro, que f . . .
em pleno Rocio apenas anoulece. Emíim, o meu amigo lembra-me
mil vezes, quando vamos ás náos. Jervis tomou casas, vae ao thea-
tro, e até ás grandes festas de egreja, onde eu fallo. Assim se volve
o tempo, entre delicias e zangas. Vive-se em Lisboa, e creio que só
em Lisboa; entre esses sarmatas não tem a existência mais que a du-
ração. Escreva-me, meu amigo, mas seja na oração ligada, que eu lhe
tornarei na mesma moeda ; aproveite as longas noites do inverno, que
se apressa, e venham em bons versos as bellas Cartas do Ponto. F...
quanto quizer e poder, mas faça versos; virá um tempo em que o
gosto desperte. Eu trago em vista uma pequena Arcádia, onde poucos
opponham uma barreira ao veneno das Bocagiadas e Nissenadas, que
infestam o Tejo e o Mondego. Veja se atrahe o não sabido Costa, moço
de génio, e se acorda outros.
A sua Ode está na gaveta; as coisas não estão para lisonjear o
Cão grande ác* Vae o Epicedio. Vença a preguiça, e d'esse hyperboreo
castello venham versos, pois os estima, e mais a sua pessoa e me-
moria
Seu amigo deveras
Lisboa 20 de Septembro de 1806.
/.•
II
Amigo
Acontecimentos tristes, a quem todo o estoicismo em pezo não
resistiria, me tem conservado em silencio para tudo: veja se elles são
de calibre — ultra philosophiam: morreu de parto a espirituosa Do-
mingas, rainha das p. • ., dos motejos, e das agudezas; a 14 de De-
zembro fui roubado em casa, ficando com a única camisa que tinha no
espinhaço, sem roupa, sem trastes, sem cama, e sem dinheiro; digo,
sem cama, porque até os cobertores levaram. Só não arrombaram uma
carteira, porque o baflo de versos alli alapardados afugentava ladrões;
com os versos escapou o Breve da secularisação, a carta de ordens,
136 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
e O diploma regio, trastes taes, que nem os ladrões os quizeram! A
4 d'este morreu o Botelho em Odivellas, e no mesmo dia o sepulta-
ram na egreja das Freiras; teimou a ir moribundo para Odivellas con-
tra os conselhos e supplicas de um amigo como eu.
Insere nunc Melibeae piros, pone ordine vites f
Amigo, eu só me ri hontera á noite, porque parecia mal não me
rir com o mundo inteiro apinhado na terrivel e redutavel plaléa da
Rua dos Condes, com a representação de uma tragedia do Moniz, no
beneficio do Victorino ; ainda nas esquinas jaz o cartaz, qne a annun-
cia, e diz em lettra vermelha e garrafal:
A Alcaideça de Castello de Vide
Tr-ag-ediâ,
Por um bem conhecido engenho da Capital
que já o anno passado 'se fez vér com a tragedia denominada
A pateada foi mais estrondosa que as catadupas do Nilo; á mi-
nha parte quebrei um páo, e um banco; achava-me em um camarote
com uma corja de desavergonhados taes como eu, que na catastrophe
levantaram tamanha grita, que nem a de — Senhor Deus, mesericordia !
— nos naufrágios de Fernão Mendes; era para isto a tal catastrophe-
sinha. Era uma moura namorada de um mouro, sem saber que era
seu irmão; no fim apparece um mouro velho do feitio de Fr. Octavia-
no, reitor do Colleginho e n'elle regente dos Estudos, que disse:
Mouro velho : «Vós ambos sois irmãos do mesmo ventre . . .
Mouro moço:* «Pois tu és minha irmã? Éu morro, eu morro,
Aprende n'esta triste punhalada. . .
(mata-sej.
MouaA moça: «Este era meu irmão? Levae-me, oh Fúrias 1
Com o mesmo punhal dou de mim cabo.
(mata-seJ.
A FREI FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO 137
Ora que queria V. Reverencia que nós fizéssemos? O que fez o
povo, começando a grita, a assobiada da baixa platéa. A agnação é a fra-
ternidade uterina; a fraternidade é sem mais nem mais a causa da
morte t Cada acto levou uma pateada, e aindíi não linha acabado o pri-
meiro, ja Moniz se havia sumido. E no fim d'isto vem um endiabrado
entremez de José Daniel, intitulado — O Taful desmascarado. Chorou
todo o fôlego vivo, e acabou com maior pateada, porque o não deixa-
ram acabar. Ora aqui tem o motivo do meu silencio, do meu pranto,
6 do meu riso.
Dê-me novas suas. Continue na cultura das lettras, não deixe
esmorecer o bello fogo da Poesia, que o anima, e que no meu con-
ceito o destingue de toda a irmandade do Parnaso, ora existente na
egreja de Deus. Venha para Lisboa, aqui vive-se, e fora d'aqui dura-
se. Ja corre o Venusino; eu mandarei por almocreve alguns exem-
plares.
Recommenda-se o bom e atilado Magalhães; eu sou muito seu
amigo, e elle merece que todos o sejam. Creia que até hontem á noite
6 de Fevereiro, teimava Pedro o podre, com o maldicto verso: A ténue
fenda que vae dar com elle.
Completamente endoideceu. Cuide nas Cartas de Ovidio, e veja se
traz comsigo as poesias melancólicas traduzidas; aproveite o tempo, e
já que não podemos fazer cousas que os mais escrevam, façamos cou-
sas que os mais lêam. Viva certo que o seu maior amigo é
Jozé Agostinho.
Lisboa, 7 de Fevereiro
de 1807.
III
Amigo
Recebi a sua carta por mão do honrado pygmêo, e com a carta
os preciosos queijos, de que eu, e o que me pertence, temos gostado
como elles merecem. Approvo-lhe, e justifico-lhe o sentimento pela
morte prematura do Botelho; Nulli flebilius quam mihi. Seriamente
me perturbei, e se apoderou de mim uma profunda melancholia, que
tarde se dissipará. Elle, é verdade, apressou os fados, como se estes
fossem tardos, entregando-se indiscretamente na mão de assassinos,
ou deputados da junta da morte, que taes são os médicos, e um d'el-
438 CAHTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
les O propinador da terrível agua de cal, talvez fosse seu rival em amor.
Emíim, lá jaz mesmo em Odivellas, e os olhos da querida todos os dias
se fitam, talvez com indifferença, na raza campa do infeliz Botelho.
Eu vou existindo, cheio de fadigas quaresraaes, que se me amontoa-
ram mais que nunca, e assim é preciso, para ressarcir o immenso roubo
que me fizeram. Não posso approvar a sua indolência, porque serve
de damno á republica dos versos, e nenhuma situação deve paralisar
as faculdades intellectuaes, nem embolar os talentos, e á prosperidade
da vegetação também pende da cultura das terras. Os gelos da Scy-
thia não entorpeceram, antes emquanto a mim deram mais solido e
temperado vigor ao prodigioso engenho de Ovidio. Não deixe as bel-
las Cartas d'este homem, e se entre talentos ha analogia, eu descubro
muita semelhança entre o seu e o do desterrado romano.
A sua pretenção foi logo o primeiro objecto da minha lembrança,
e da minha deligencia, mas uma e outra baldadas, porque quasi no
mesmo dia foi provido um Arrabido; mas nem por isso deixará V. M.*^*
de ser pregador rcgio, porque eu sei ser amigo verdadeiro, e quando
trato de obsequiar o talento, nenhum sacrificio me parece grande. Te-
nho destinado ceder eu do meu logar, para V. M.*^® entrar, e já pro-
puz isto ao Rebello, mostrando-lhe que nenhum interesse ou depen-
dência me obrigava mais do que a pura amisade.
De nada me serve o logar, as vantagens são unicamente para os
Regulares; tu não fico nem menos buscado, nem menos ouvido; emfim,
nada me importa ser pregador régio, trabalho unicamente para me não
accêitarem em má parte a livre demissão, que eu quero só se verifi-
que com a sua entrada. Deixe vir o Rebello de Mafra, que se ultimará
sem duvida este negocio, porque alguém offereceu contos de réis; eu
estimo muito poder dar-lhe esta prova de pura amisade, em que só
busco o interesse da sua companhia n'esla terra. Virá para a Penha
de França, e não queira outro convento, e alli nos daremos em ócio á
indagação da verdade, e á contemplação d'este admirável quadro da
Natureza, e insigne espectáculo dos seus prodígios, em que eu encon-
tro mais prazer que na posse de todas as delicias. E V. M.*^' renun-
ciará a tudo o mais, e até á importuna magistratura, cujos privilegies
ficam inúteis.
Não remetti o Horácio pelo almocreve, porque o livreiro m'o não
deu a tempo enquadernado; irá na primeira occasião, e talvez que todo
porque está a sahir do prelo o segundo volume. Tenho adiantado muito
uma obra, cujo titulo é — Republica litteraria — Sonho philosophico, —
convém a saber, um giro extático pela Republica das lettras, em que
A FREI FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO 139
á excepção da sagrada theologia, em qne se não falia, todas as scien-
cias, artes e seus cultores são mettidos á bulha com uma erudição im-
mensa e uma chalaça contínua; nada escapa, meu amigo, e hoje acabo
com os Philosophos, cujos systemas vão analysados, e o ultimo é o ce-
lebre Kant. O Magalhães vem todos os dias ler o que se vae fazendo.
O Pedro (proh dolorl) completamente doido ha mais de dois mezes,
arredio, fugitivo, e embrenhado no Passeio publico, ha quinze dias, sem
querer ouvir os amigos, por amor d'este ulillissimo mote:
«Tu me fazes a alma em mil pedaços^
que diz ser de uma endiabrada mulher ou solemne p.. ., conhecidas
do Pedro I
Novidades: Ha dias chegou ao Tejo uma fragata ingleza emban-
deirada e a tripulação bêbeda, segundo o costume britannico, com a no-
ticia da completa derrota de Napoleão. Foi batido vinte e cinco léguas
além de Varsóvia. O exercito russiano é commandado por um sobri-
nho de Sowarou, que eslava nas fronteiras da Pérsia; traz comsigo
tártaros, calmucos e cossacos, ^í'w/é'5 opostratias. Depois da fragata che-
garam dois paquetes com o detalhe da acção, nada resta dos invencí-
veis e fugiu Napoleão com dois ajudantes de ordens e já não pára em
Varsóvia, e commandava Napoleão em pessoa; foi a batalha a 26 de
Dezembro e tem continuado muitas victorias, mas não constam ofiScial-
mente. Os russos estão a esta hora em Constantinopla com outro exer-
cito, e faz horrível fogo á cidade o almirante Luiz, moço de vinte e qua-
tro annos com vinte e cinco náos de linha, e eis aqni os russos abar-
cando a Europa por dois lados, e veriGcando-se a prophecia de João
Jacques no Contracto social: — Os russos serão os senhores da Europa.
Defronte da boca do Tejo está outra esquadra ingleza de doze náos e
fragatas; defronte de Cadiz outra de trinta e duas náos. Mas seja V.
M." pregador régio, e emquanto os russos derramam sangue, vivamos
tranquillos e felizes. Veja se lhe serve de alguma cousa em Lisboa o
seu amigo
José Agostinho de Macedo.
Lisboa, 7 de Março
de 1807.
140 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
IV
Epistola
Bifam-se as cartas todas no correio;
Três me escreveste, respondi-lhe logo,
Agradecendo orbiculares qufiijos,
D'essa charneca producções suaves.
Pasto mimoso de gulosas boccas
Que, por decretos do vendado enchalmo,
Sempre em roda de mim se abrem de palmo.
Vê que versos tão chochos vío sahindo
Da apoquentada cachimonia minha!
Envolto, bom amigo, ando em sombrios
Véos de tristeza, que me pousam n'alma.
Eclipsou-se de todo a lusa gloria ;
Em logar de saber, honra e virtude
Veiu ignorância vil, perfídia, engano,
Kapina universal, que tudo assola.
Tudo mudado está! Quasi da vida
O triste Magalhães vae despedir-se,
Hoje luctava co'a patifa morte;
Gavallos, mulas, parolins á sota
Coraeram-lhe a substancia; hoje dois negros
Enlabuzados sórdidos Camillos,
Chamados por decência, e por costume,
Grandes sandices lhe arrumavam graves;
Pesado hyssope de latão (que os outros
Sem ser nas mãos de Ovidio, se mudaram
Em novas formas, differentes corpos)
Lançando um chorro d'agua afugentava
Tentador Satanaz, brejeiro antigo;
Eu quasi o vi sahir pela janella
De ilharga, porque os cornos lhe vedavam,
Immensos, retorcidos, ponte-agudos,
Quaes se ergueram na frente a Jove Ammonio,
Ou quaes puUulam na raiz do pello
A FREI FRANCISCO FREIRE LE CARVALHO 141
Aos que moTendo a conjugai carroça
Na fatal esparrella se despenham
De ser amigos meus, e amigos nossos!
Eia, pois, Magalhães vae a finar-se,
Lá vae para o paiz onde se sabe
Como se dá do circulo quadrado,
E outras asneiras mais, que cá se ignoram.
Pedro o teimoso, Pedro o cabeçudo.
De todo endoideceu, fez-se vinagre;
Com que frescura clama que os amigos
Pés de boi, portuguezes de outras eras,
Inda que vates sejam quaes Filinto,
E Elmiro, preso á banca e dado a versos.
Devem varrer-se da memoria todos,
E banir-se da sucia, e da amisade,
Quando elle Pedro a dita conseguira
De um alferes francez morar-lhe em casa!
Isto diz, isto clama, a todos foge.
Não por vergonha, por soberba e insânia!
Ora c. . . no Pedro, e mais nos versos
Magros de lima, magros de trabalho,
Que chamados a exame em zero ficam;
Com anciã te esperava, oh caro amigo.
Entre os padres conscriptos dos comícios.
Gérmen de sedições, de enredos fonte,
Em que se acclama o dictador dos filhos
Do eterno fallador, águia da Lybia;
Mas decreto fatal suspende os passos
Aos tribunos do povo tonsurado,
E redobra a alta magoa que me opprime.
Na longa, triennal, tyranna ausência
Do vate que mais preso e mais estimo
Eu vivo, caro amigo, pois não morre
A innumeravel turba dos carolas,
Encanzinados em louvar os santos.
Que lá na gloria repimpados jazem,
Zangados, como eu creio, da assuada
Que lhe fazem de cá roucas rebecas,
E as mentiras que eu prego, e mais os outros,
Que a pasmada plebecula suspendem.
142 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Com frias Orações, Discursos occos.
De vinténs basculhados inda ateimam. . .
Não queiras, caro amigo, que entre n'esse
Labyrintho politico do tempo;
Mate-me embora Deus, mas nunca as balas
Que satis façon no corpo se aquartelam
Por dá cá aquella palha; eu só te peço
Que antes leias a Bíblia, que as Gazetas.
Os filhos de Albion soberba e rica,
Co'o cachimbo na bocca, o c. . . na pipa
Jazem na foz do Tejo amedrontado
Em mais de cem ignivomas montanhas;
Tem nas mãos o murrão, e em nós a mira.
Míseras p . . . , míseros f . . . ,
Tristes gatos pingados, quaes tu viste,
E a quem talvez berrando a pansa encheste,
Se três diabos, émulos de Nelson,
Gramber, Cotton e Cotter, e o primeiro
D'estes diabos três fez cinza e nada
A infeliz Copenhague, a um só aceno
Mandam as divisões, que a trovoada
Façam soar nos torreados muros
Da corte dos c. . . Ahf só de vêl-os
Quantas calças por dentro frescas ficam I
É comedia, Filinto; até não dormem
Os galos no poleiro, e são galinhas
Os ursos comilões d'alta Sibéria,
Inda aqui jazem no curral fechados
Ha seis dias e mais, tudo anda em anciãs.
Se aos vulcaneos canhões a mecha chegam,
Lá me tens, bom Filinto, á desfilada,
Que não 'slou para ver moscas por cordas.
Vê se ha no monte Hermínio alguma gruta
Em que eu, e uma vestal mimosa e bella,
Que aos ferros se evadiu, e me acompanha,
Possamcs evitar a surriada
Das ameixas cruéis de todo o anno.
M;is basta de aranzel. O padre Horácio
É todo convertido em lusos versos.
Santos Ribeiro o seu também publica,
A FREI FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO 143
Em papel imperial, vinhetas, tarjas,
E notas, prefações, lições variantes;
N'isto me acaniia, no demais é bolas.
O sabujo Moniz me ladra ao longe
Com mi! sonetos da oíBcina d'elle;
Do campeão ie Apúlia a longa espada
Eu já nas mãos tomei, fendi-lhe as costas
Co'uma Sátira longa, meu Filinto.
Apanham longas cartas no correio.
Por isso se não manda a papelada;
Ella aos poucos irá; sou teu amigo,
Acabou-se o papel e adeus, FiUnto.
Rocio de Lisboa, 21 de Maio de 1808.
Amigo do G.
N'este instante, 6 da tarde, 30 d'este Maio, me entregam na Loge
da Gazeta duas cartas suas atrazadissimas. Foi um presente para mim.
A todos pergunto por V. m.*'^ e só o Ferrão me deu noticias suas, di-
zendo-me que estava em uma quinta junto a Coimbra. Ora pois o cor-
reio parte. Exista, e eis ahi o que eu quero. Muito lhe direi sobre o
Gama no primeiro correio. Saiba comtudo que sae em doze cantos, e
leva 1:020 oitavas; inteiramente novo o nono e decimo Canto, encerram
os quadros da rehgião, começando no — In principio creavit — até ao es-
tabelecimento e progressos do christianismo em Portugal, e conquistas
de Africa, ác. Esta semana que entra se publica a resposta aos dois
í No sobrescripto do mesmo papel :
Ao Rev."'° Snr. P.' M.' Fr. Francisco Freire
Collegio da Graça
Ooixii1t>]ra.
Esta carta é de 1812, pois que a ella se refere na carta de 3 de junho do mesmo
anno. (Da revisão.)
144 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Investigadores, em que os leva o diabo nas minhas mãos. Vão escova-
dos infinitamente; tudo lhe remetterei. Um novo poema, intitulado —
A Meditação— em quatro cantos, dedicado á Universidade, vae appare-
cer já, e o primeiro canto está impresso, e pubhco mandarei. Supprimi
o da Natureza; este é maior e melhor. Eis o assumpto: — Primeiro
canto: Quem sou eu?— Segundo: Onde estou eu?— Terceiro: Com
quem estou? — Quarto: D'onde vim eu?
Seja meu amigo, porque sempre o ama e defende e louva, como
deve
Seu amigo
J. Âgost.° de Macedo.
Lisboa, 30 de Maio
seis da tarde.
VI
Amigo do C.
'o
Com muita pressa lhe escrevi outro dia, porque partia o correio e
a escrevia entre a açougada e motim da loge da Gazeta, onde me en-
tregaram as suas cartas. Tenho passado bem de saúde, e menos mal
no artigo finanças, porque ainda não acabaram as festas; mas as-
sim mesmo vae já para cinco annos me tenho conservado em nm es-
tade de guerra contra um exercito de Burros, que peja e entulha esta
capital da parvoíce. Desde que sahi com o hvro — Os Sebastianistas —
posso dizer que se abriu trincheira contra mim, e um dos primeiros
mentecaptos que me assestou uma cagalhoada de inepcias foi o Mo-
niz, e um seu camarada, ainda mais asno que elle chamado João Ber-
nardo— Árcades amho, et cantare pares et respondere parati. — Isto pro-
duziu uma tempestade de escriptos, a que eu sempre respondi enfei-
chando-os victoriosamente. Lancei mão de outro expediente, era que os
expuzesse, como expuz, a um ridículo eterno; dei com elles no Thea-
tro, em muitas comedias que os imniortalisarão no templo da asneira
e continuam a immortalisar, porque continuam a representar-se. Ca-
laram-se então, mas levautou-se outra camada de orates, quando im-
primi os quatro grossos volumes dos Solilóquios ou Mulim Litterario,
que julgo terão apparecido por esse Atheneo dos alumnos de Minerva
transformados em filhos de Marte ou Quixotes vingadores dos aggra-
vos feitos á pátria; respondi também, e calaram-se. Imprimi também
um pequeno poema em quatrocento versos, intitulado — O Argonauta —
A FRi:i FHANCISGO FUF.IRE DE CAKVALHO 145
cujo assumpto é a portentosa viagem que em um pequeno barco fez
um algarvio ao Rio de Janeiro; nova guerra, e novos impressos, que
aterrou a corja do botequim de José Pedro no Rocio. Finalmente por
uma teima que tive a 27 de dezembro de 1810 com o sabichão Ri-
beiro dos Santos e companhia, dei-lhe acabado a 7 de março de 1811
o poema Gama; nova tempestade levantada, e mais terrível e espan-
tosa que as precedentes; tenho respondido, e esta semana em que es-
tamos sahiu impressa a resposta aos dois estouvados Investigadores, e
aposto que os senhores Censores, nossos senhores, foram muito indul-
gentes para com elles, mutilando grandes tiradas da tunda tremendíssi-
ma, assim mesmo vão bem servidos e coçados como verá. Como me que-
bravam os tomates com o episodio do Adamastor no 5.° Canto dos Lu-
síadas, imprimi uma longa carta critica, em que mostro que o tal episo-
dio é um solemue destempero; eis em campo um orate, professor de
grego, chamado o Couto, com um aggregado de sandices; leva nas ven-
tas uma resposta, que também sae impressa esta semana junta á dos In-
vestigadores. Como o Theatro está de todo estragado, e não apparecem
na scena mais que inepcias, imprimi três Carias criticas, em que esmiu-
ço três dramas, que deram aqui muito no gosto da populaça. O senhor
Ricardo disse, que depois de Pope não flcava campo a poeta algum
para tratar matérias philosopliicas em verso; fiz o levantado poema —
A Meditação — de que já lhe dei uma ideia, e tem mais versos que o
— Gatna; já está impresso o primeiro canto, e eu o dedico á Univer-
sidade, e creio que fará seu estampido. Finalmente assentei que a me-
lhor resposta preparada para a posteridade sobre o Gama, era fazer
o poema de novo; eu o fiz, e vae em doze cantos, com mais oitavas
que o de Camões, e puz quanto pude em o aperfeiçoar e pulir, de ma-
neira que levantei de todo a mão, e lá vae a licencear-se. Cancei-me,
meu amigo, a ponto de me enfadar, e se me enfraquecer sensivelmente
a vista, mas emfim, ou vou ficar por uma vez enterrado, ou fazer es-
quecer o que ha na repartição Epopêas até agora. Isto é o que aqui
vê, e verá a luz publica; porém como me tem esporeado bastante a
alluvião de orates, que tem aqui crescido a olho, compuz um poema
regular em quatro cantos, que terá quasi cinco mil versos, intitulado
Os Burros, sátira amarga, em que tudo e todos são envolvidos com
mais fel que o de Juvenal; e tanto me tenho empenhado, que me re-
solvo a ir a Londres, onde só o poderei imprimir, e com elle me dei-
xarei ou repousarei da mania poética, que já basta, pois tenho qua-
renta e nove annos.
Desejo mandar-lhe toda esta enorme papelada impressa, que deita
CARTAS. 10
446 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
a uns quatorze volumes, além de seis Sermões também impressos; mas
isto pelo correio é de um frete ou porte escandalisador; lembra-me
que d'essa cidade vem a esta um recoveiro dos Frades Gruzios, cha-
mado António, que me conhece e sabe onde eu moro — Calçada do Forno
do Tijolo, n.° 45; — escreva-me por elle, que por elle lh'a remetterei.
Esquecia-me dizer-lhe que o titulo do novo poema é este — O Oriente.
Como me diz que existe no Collegio de Coimbra,. creio que estará
empregado; mas as cousas estão tão baralhadas ainda, essas terras tão
pensionadas ainda e inquietas, que a melhor habitação é Lisboa; veja se
quer que me interesse com o Provincial, ou quando isto não aproveite,
eu tenho conhecidos no Rio de Janeiro, e a nomeação ds pregador régio
o podia constituir aqui em tranquillidade e independência da fradaria,
cuja existência eu vejo muito vacillante; responda-me sobre este obje-
cto com brevidade. Depois da necessária mania militar, tem acabado o
amor das lettras; já não ha livros, nem livreiros, nem instituições litte-
rarias, e limita-se este furor manso a um ou outro individuo, que em
silencio busca o — Dulcia oblivia vitae. — Um inventor de chuços passa
aqui por um Galileo ou por um Descartes, e reconhece-se por archi-
poeta de botequins o Moniz e o Cego e coxo de Hospital. Tenha saúde
e conte com a araisade invariável do seu
Amigo
/.* Âgost.° de Macedo.
Lisboa 3 de Julho
de 1812.
VII
(Fragmento)
A pena é ter eu rebolindo, respondido ao senhor apenas recebi as
suas cartas, e continuar a escrever, e ir eu mesmo com as rainhas ben-
tas mãos deitar as cartas no buraco do Sr. S. Domingos, e quei-
xar-se o senhor que não recebera as cartas; se o senhor não mente,
então não duvidamos da louvável curiosidade dos eximios doutores
d'esse Collegio de Artes. Eu vivo, e vivo em guerra, que é o meu ali-
mento e divisa, em logar do — vitam impendere vero.
Declaro guerra aos papelões da terra. E a papelada impressa tem
crescido a ponto de poder em volumes pedir messas o Macedo de
A FRKI FRANCISCO FREIRE DE CARVALHO 147
Beja a esse seu Macedo do Botão. Em uma das cartas lhe dizia, que
visto vir d'essa cidade regularmente o azemel António dos Cónegos Re-
gulares, por elle me escrevesse, para por elle lhe mandar a papelada
da polemica. Imprime-se o poema — Meditação. — Vae a isso o novo
poema — O Oriente — em doze cantos, que tem 1:070 oitavas, que vem
a ser 8:560 versos para servir a v. m.*'®; e guarde v. m." esse apo-
logetico-analytico (isto é ter laivos de Universidade) para quando sair
esta almanjarra, que talvez faça dizer: — Cedite Romani scriptores, ce-
di te Graii.
Não escrevo mais, sem saber se com efifeito é entregue d'esta que é
Do seu verd.® am.®
José Agostinho de Macedo.
Lisboa, dia de S. Judas de 1812.
(A lápis: Outubro.)
VIII*
Queixa-se s. m.* do meu silencio; queixa-se da falta de resposta
ás suas cartas; a ultima que recebi sua me mandava calar, calei-me;
agora falia, fallo eu também. Já lá chegaram os Burrosl Têm viajado!
Ora digo-lhe a verdade, que me zanga seriamente a desgraça dos meus
jumentos; sairam da minha estrebaria, limpos, nédios, anafados e lu-
zidios; bastou a primeira copia que se tirou, para se adulterar tudo;
é uma lastima o estado a que tão bom poema está reduzido I Tem ti-
*0s autographos d'e3ta3 oito Cartas fôram-nos confiados pelo nosso antigo
alumno Eugénio de Castro, que em carta de 1 de maio de 1894, nos communicava :
«As Cartas são dirigidas a Fr. Francisco Freire de Carvalho, primo-coirmâo do meu
bisavô o Desembargador Francisco José Freire de Carvalho, e irmão de José Liberato
Freire de Carvalho e D. António da Visitação Freire, que foi sócio da Academia real
das Sciencias e grande amigo de Bocage.» Por parte de seu avô materno o Dr. Fran-
cisco de Castro Freire é que se conservaram estas cartas na familia.
Em presença dos autographos vimos quanto imperfeitas, e por vezes inintelli-
gentes eram as copias alcançadas por Innocencio, evitando assim deploráveis erros.
{Da reviíão.)
148 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DR MACEDO
rado mais de uma terça parte, e tem introduzido Mordomos por devo-
ção, sem eu ser ouvido; tem estropeado versos, e tem maculado o
todo, até na ordem. Obrigaram-me a uma nova edição, que acabei;
este rapaz poderá para outubro levar uma copia para se conhecer n'essa
cidade. Tenho concluído o poema — O Oriente — em doze cantos, que
contém 1:071 oitavas; cinco vezes o fiz e refiz; julgo que consegui a
possível perfectibilidade, e que não cabe mais nas forças humanas.
Talvez me resolva a imprimil-o n'essa Ofíicina da Universidade. Não ha
colher uma obra impressa das oíficinas de Lisboa; a Regia, que tem ex-
cellente typo, está pejada dos malditos periódicos, de tal arte que desde
Janeiro até hoje 10 de Julho só estão impressas do poema da Medita-
ção oito folhas, e do poema Newton três folhas. Nenhum official é livre
dos periódicos de m. . ., e só em horas de descanço ou de noite, me
compõem alguma cousa.
A hiteratura, meu senhor, morreu n'esta capital; ninguém lê mais
que Gazetas, nem quer ler mais que Gazetas. Os livreiros que ainda
têm a porta aberta estão ás moscas, as togas cederam ás armas.
Aqui diz o rapaz geometra que s. m." busca obras de Delille; dei-
xe-se de poetas francezes, que nada são; por essa livraria talvez haja
um exemplar de Estacio, leia-o, medite-o, tome-lhe o sabor, achará
mais poesia em uma só pagina bem conhecida, que em quantos es-
creveram versos antigos e modernos; eu assim o sinto e fallo com co-
nhecimento de causa, sendo por desgraça da Irmandade do bicorneo
monte.
Pouco avulta o que tenho feito até agora, mas d'isso mesmo irá
o que ajuntar; espere pela Meditação e pelo Newton; depois appare-
cerá O Oriente, e basta. Cuide nas lettras antes que se acabem; ado-
çam a existência, e depois de bem cultivadas, trazem a vantagem por
fim de nos mostrarem que morremos perfeitamente asnos e ignoran-
tes; eu já cheguei no circulo ao ponto de que partira, e se me per-
gunto quem é Deus? — respondo-me com o Mestre Ignacio, o que ea
dizia na eschola: — É um senhor infinito, eterno, todo poderoso, que
dá a gloria aos bons, e aos máos o inferno para sempre. Amen. — Es-
tou adiantado 1 Eis aqui a Philosophia. Tinha vontade de passar um
mez ainda sentado por esses sinceiraes do Mondego; ouvir por ahi es-
ses Plalões, Chrissipos e Diagoras; se uma estalagem me não fosse in-
ço mmoda, ia para os fins de outubro ver a imprensa e cuidar no Orien-
te. A Meditação é um poema digno e único, a que se pode chamar
philosophico; eu o dedico á Universidade, e ella devia mandar fazer
segunda edição com pompa, e enriquecel-a com notas — cegri somnia
k FREI FRANCISCO FREIRE DK CARVALHO 149
vana! — A Universidade!., . Se elles trocaram a borla em capacetes,
e os frades que ficaram encanecem no profundo estudo do Larragaf
Divirta-se, meu senhor, e creia que é
Seu amigo
/." Âg.'* de Macedo.
Lisboa 10 de Julho
1813.
A UM AMIGO DO VIGÁRIO GERAL
111."»" Sr.
Peço-lhe um favor, e vem a ser: O Duque de Cadaval segunda
feira me encarregou da traducção de umas bulias que impetrou, para
pôr certos prestimonios em algumas das muitas egrejas do seu pa-
droado, a beneficio de seus irmãos, permanecendo no estado de sol-
teiros, e passando aos outros se elles casassem. Estas bulias vão exe-
cutar-se perante S. Ex.* o senhor Arcebispo de Lacedemonia, e esta
execução já eslá em caminho, tendo ido com vista ao promotor Lima,
logar de novo creado, para lhe dar de comer alguma cousa, e com
que elle come muito, e come tudo. Este Lima é um clérigo, que sim-
plicíssimo em lettras, enxotado ha muitos annos da CoUegiada de Ou-
rem, e aqui com aquella impostura que é filha das luzes do século, e
do presente estado dos progressos da civilisação (Diccionario de 24
de Agosto), se tem introduzido em quantos togares ha, e creio que o
senhor Arcebispo de Lacedomonia precendente estará no céo pelo ha-
ver posto no meio da rua aos quinze dias de o aturar. Algum dia ti-
nha dois tostões por cada duvida que punha nos breves; poz cin-
coenta e duas em um breve de banhos de uma freira da Esperança,
6 mamou 10j5400, metal I E se José Gonçalves não acode com justiça
de mouro, ainda a estaria a mamar os dois tostões. Nas bulias do
Duque não tinha duvidas que pôr, que tem o beneplácito, e n'elle o
substanciado conteúdo nos rescriptos apostólicos, e como não achou
duvidas, lembrou-se de condições, e já mamou oito tostões pela pri-
meira, que é esta: — cApresente traducção exacta d'estas bulias.» O
Duque me pediu lh'as traduzisse, e eu o não faria por lodo o ducado
de Cadaval, como lh'o disse, porque são tão compridas, que mais de-
pressa traduziria as Pandectas, e ambos os Digestos, e todo o Isidoro
Mercador; que antes traduziria de portuguez para portuguez um dis-
152 CARTAS DS JOSÉ AOOSTINHO DE MACEDO
curso do sr. Annes de Carvalho, e todo o Filangieri do cónego Cas-
tello Branco. Disse ao Duque que eu lhe faria, e fiz, um requerimento
ao senhor Arcebispo, como executor das mesmas bulias, para se jun-
tar aos autos, para que sem embargo da condição se passasse a prova
das premissas até a final sentença executorial. Que diabo de desem-
bargador e de promotor é este, que não entende nem o latim da mo-
derna Roma, e que precisa de ter em portuguez aquiilo que deve en-
tender? Se o senhor Arcebispo não fora de tanta bondade, o despacho
á condição devia ser este: — «Qs Padres de Rilhafolles fechem n'uma
cela este clérigo, e por quarenta quarentenas lhe ensinarão á palma-
tória os rudimentos da lingua latina, e no fim do anuo darão conta
n'esta secretaria do seu adiantamento. A. A. de Lacedemonia.» — E se
quizesse pôr com guarda, melhor seria, mas ha de ser de dois Padres
de Rilhafoles em horas de estudo do réo recluso. — Pois tu. Promotor
infernal, não sabes que lendo as bulias no original entenderias melhor
a força das clausulas, e termos curiaes das mesmas bulias? Para cer-
tos termos do estylo da Guria não ha equivalentes na lingua portu-
gueza.
Como uão tenho accesso algum na presença de S. Ex.*, peço a
V. S.* lhe queira ponderar estas razões, pois desejo satisfazer ao Du-
que, a quem devo amisade, lembrando-lhe que na mesma sentença exe-
cutorial se costuma transcrever a substancia dos mesmos rescriptos
apostólicos, e que isso é da competência do escrivão, e como aquelle
impostor devia comer os oito tostões, sempre havia de dizer alguma
cousa, ainda que fosse uma parvoíce. Nos mesmos breves das freiras
nunca se mandou juntar traducções, e o mesmo Duque me mostrou a
sentença executorial da bulia impetrada pela Rainha para a suppres-
são da CoUegiada de Torres Novas para património do convento da Es-
trella, e não vem lá tal traducção! Eu nem para sacristão tenho pré-
stimo, mas se fosse Arcebispo uma hora, punha-lhe este despacho: —
O promotor as mande traduzir á sua custa, ou elle as traduza ex-offi-
cto.— No mesmo instante acabava o de promotor, e folgavam as bol-
ças dos impetrantes.
Espero de V. S.* este obsequio e occasiões em que mostre ser
De Y. S.*
Forno, 30 de julho de 1829.
Invariável amigo
J. A. de M.
AO ARCEBISPO VIGÁRIO GERAL
D. António José Ferreira de Sousa
Ex."® e R.»" Sr.
O livreiro Orcei declara que o primeiro volume de Condillac, que
annuncia, vem para um particular, que tendo o Curso de Estudos para
instrucção do Duque de Parma, se lhe desencaminhou o primeiro, e
quer ter a obra completa. Como não é o que expressamente trata das
Sensações, pode passar, e V. Ex.' inclui-lo na licença geral.*
Aproveitando esta occasião, passo a expor a V. Ex.' matéria que
não é da censura, mas de muito maior importância. Hoje 21 de Sept-
embro, indo pregar ás Mercês, fui testemunha da murmuração pu-
blica, e lá a expuz a dois Desembargadores da Relação ecclesiastica.
Oliveira, e o Prior da mesma egreja João Gamillo. O frade arrabido
Argea, preso por tantos tempos no Limoeiro, e de lá desterrado; o
padre Marcos, ex-encommendado da Pena, o Heliodoro dos nossos tem-
pos, expoliador dos templos, appareceram em Lisboa, e S. Em.* a este
só deu licença para dizer missa, e ambos sem licença se mettem a
pregar com escândalo e murmuração publica; o frade na egreja do
Sacramento, terça feira 28 do corrente, e o Marcos na egreja da Ma-
gdalena a 29; clama o povo sem razão contra o senhor Patriarcha, que
tal licença não deu; e me parece que para evitar tumultos e escân-
dalos, e acudir-se á reputação e nome de S. Em.*, usasse V. Ex.* de
um meio suave e politico, e auctorisado pela constituição do Patriar-
chado: Que mandasse sem perda de tempo ordem por escripto aos
dois priores, que pedissem aos dois pregadores a actual licença por
escripto, ou a provisão de licença; e assim ninguém pode ser arguido.
* Vid. a Censura de 15 Setembro 1824.
{54 CAUTAS DB JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
por cumprir com a sua obrigação, e obviando-se o motim, e gritos de
que eu fui testemunha. O perdão dos crimes políticos d'estes dois após-
tolos não subentende a licença para pregar, que S. Ex.* não deu, nem
devia dar, sem escândalo; porque se os priores vindos não tiveram
de S. Em.* a faculdade do ministério parochial, como podiam ter li-
cença para o ministério apostólico o frade, que nas sacristias mostrava
uma faca para matar corcundas, e o divinisador de Manuel Fernandes
em suas exéquias, em que declamou contra o poder real? Parece-me
muito acertado este aviso. Deus guarde a V. Ex.* como deseja, e lhe
roga o que é de V. Ex.*
Súbdito m.'" obed.*»
24 Septembro de 1824.
J. A. de M.
II
Remettendo-lhe um exemplar da traducção da Oração fúnebre
recitada nas exéquias de Pio VII
111.»° e Ex.^"" Sr.
Quanto posso, e quanto devo, agradeço a V. Ex.* a efBeacia com
que procura satisfazer o pio desejo com as boas irlandezas religiosas
do convento do Bom-Successo para se lhe conceder a graça que sup-
plicaram da exposição do sagrado lausperenne; pedem agora que se-
jam consideradas em a nova folhinha que se fizer para o dia 23 de
junho futuro. Eu para então não conto com a vida pelo estado de mo-
léstia que tão horrivelmente me atormenta; e a philosophica Lisboa
contará então com lausperenne! É já muito grande o derramamento das
luzes, muito rápidos os progressos da civilisação, para se cuidar em
taes actos de piedade, quando ha muito que fazer em sustentar a Carta,
e defender as sabias instituições com a penna, e com a espada. Es-
pere por ora o catholicismo, é preciso primeiro derrotar o servilismo,
e manter os inauferíveis direitos do senhor D. Pedro 4.°, e depois se
cuidará no menos interessante.
Offereço a V. Ex.* esse exemplar do Elogio fúnebre de Pio 7.**,
que eu fiz apenas comecei a ler o original italiano, que me mandou o
Núncio (não digo apostólico, porque esta palavra por si só é um crime
mais atroz que o regicídio I) digo só Núncio. É a segunda traducção
que faço em minha vida; a primeira foi a de todas as obras de Hora-
ÁO ARCEBISPO YIGARIO GERAL 155
cio em versos menos máos; imprimiu-se o primeiro volume, que con-
tem as Odes, e que se tem feito muito raro; o segundo foi levado ma-
nuscripto, sem eu saber, para o Rio de Janeiro, por um frade capu-
cho, e botânico, grande architector de Floras, e lá se perdeu como o
Brasil, que também era propriedade portugueza. A segunda é essa que
apresento a V. Ex.*; eu não vi, não li, nem conheço cousa mais admi-
rável; verdade seja, eu ainda não tinha ouvido fallar na Camará alta o
Conde de Lumiares, e na baixa o General operatório Claudino, e o Li-
curgo doctor Magalhães, nem o bedel da faculdade iManuel Borges Car-
neiro, n'aquelle grande arrazoado em que pediam uma estatua colossal
do Senhor D. Pedro 4.°, para a collocar em cima da primeira obra
publica, isto no mesmo momento em que pegadas ao Rocio se con-
cluía e ultimava a grande obra das magnificas cloacas nacionaes, que
logo começaram a servir, e vão muito commodamente servindo.
Apezar d'estas riquezas domesticas, não deixará V. Ex.* de admi-
rar e estimar este thesouro extranho, dando-lhe aquella altenção que
merece a mais sublime dialelica, e a mais pomposa eloquência. Eu estava
persuadido que se não podia exceder em uma e outra cousa a Oração
fúnebre nas exéquias do Príncipe Eugénio, feita por outro italiano, o
cardeal Domingos Passionei, que os francezes logo traduziram, e sem-
pre tem louvado; vejo agora que nada se pode egualar a este prodí-
gio, que a frivolidade presente não julgará tal, mas que o profundo
entendimento de V. S.* reconhecerá, como eu respeitosamente lhe sup-
plico que reconheça que sou
Em 23 de Junho de 1827.
III
De V. Ex.* ác*
/. A. de M.
III.'»*» e Ex.""" Sr.
A distincta honra e especial bondade, com que V. Ex.* se digna
tratar-me, me anima e me dá a confiança de me dirigir d'esta ma-
neira a V. Ex.* Está próximo a passar-se a sentença executorial de um
breve de prorogação para uso de remédios a beneficio de uma reli-
giosa, a quem V. Ex.' concedeu por virtude de um rescripto do Nún-
cio dois mezes de hcença, para se ultimar a execução do breve, que
novamente impetrou. O profundo promotor, que acha duvidas na bulia
do Duque de Cadaval, apezar de saber que a freira me pertence pe-
los mais estreitos vínculos de sangue, de ter cincoenta e três annos
156 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
de edade,* de estar cuberla de lepra (gota rósea, lhe chama o medico
Abrantes) e de ter um aneurisma na artéria carótide no pescosso, já
com pulsasões sensíveis em perigo de vida, como também sabe que
me interesso n'isto, e com tanta razão, ha de multiplicar as suas illo-
sorias duvidas, e o tempo dos dois mezes se finalisa; peço a V Ex.*
lodo o favor compatível cora a justiça, em rejeitar ou entupir a mina
das parvoíces em que insistir o nunca assas louvado promotor, e n'islo
receberá a maior mercê o que é
De V. Ex.*
Súbdito obdiente
/. A. de M.
Ex.'"° R.""> Sr.
4828
IV
O portador d'esta me tem feito algumas vezes obsequio de se en-
carregar do dever que eu nâo podia desempenhar, tolhido pela rai-
nha terrível e desesperada enfermidade: que é saber do estado de
saúde de V. Ex.*, porque me encheu de um serio cuidado, tanto que
vi que V. Ex.' tinha transferido o despacho. Eu beijo a mão a V. Ex.*
pelo bom accolhimento que lhe tem dado, pois me apparece aqui até
compungido de gratidão e de respeito pela sagrada pessoa de V. Ex.*
Agradeço muito a generosa offerta, que V. Ex.* me faz, tanto do hon-
rado facultativo, que eu fiquei estimando muito, porque lhe conheci
o jtacto medico, sem dilatar as philaterias da ridícula presumpção e
nojentíssima verbosidade, mais mortífera que as mesmas doenças, que
elles não curam, e menos conhecem. Egualmente agradeço a V. Ex.*
o beneâcio da agua sympathica, que ja começa a augmentar e avivar
a minha fé. Vivo em um interminável martyrio, quasí sempre confi-
nado na cama, e sempre víctima de permanentes dores; sem um veio
de alivio, nem de dia, nem de noite, luctando cora este trabalho, para
o qual não tem forças o composto humano; não padeço menos na for-
çada ínnacção da minha alma, pois vejo passar inteiros e tão longas
dias sem ler uma pagina, ou escrever uma linha, e pasmo ás vezes,
quando em algumas horas de escripta vejo que chego ao fim com um
ou outro numero d'esse pueril e insignificante divertimento da esfo-
lação, com o desprazer de escrever a medo, porque os senhores co-
* Aliás 48, tinha nascido em 1780. {Nota de Inn.')
AO ARCEBISPO VIGÁRIO GERAL 157
bertos de mazellas dizem, que tudo lhes váe dar n'ellas; e é tanla a
soberba titular, que até querem contemplações com os mesmos que
com titulo 6 tudo merecem a forca. Ainda querem mais melindre com
os extranhos, falta mandarem-me que lhes beije a mão, pela zomba-
ria que de nós fazem, e não lhes faltava mais que fazerem-nos pupi-
los, o que me faz lembrar o que um pregador disse aos saloios de
Loures, em um sermão de paixão na quinta feira de endoenças á noite.
Pediu o sudário, e estando dois embrulhos sobre os caixões da sacri-
stia, um do sudário, outr-o lambem de panno, de Santo António, tro-
cam a cousa, e levam-lhe o do santo, que também tinha dois paus nas
extremidades, como costuma ter o sudário, e têm os mappas. — «Os
judeus (disse o pregador) fizeram tudo qnanlo quizeram de nosso se-
nhor Jesus Christo; mas fazel-o frade capucho, isto só os bêbados de
Loures 1» — De nós têm feito o que querem; mas fazerem-nos pupil-
losl. . . Seja pelo divino amor de Deus! Assim escrevo a medo, e os
cabeções, que se deviam pôr na Besta, tenho-os eu. . .
Muito me lembro sempre da htteraria e patriota resolução de
V. Ex.", com a edição do grande Fernão Mendes Pinto, para cuja pre-
facção eu me offereci; e deseja que V. Ex.* visse a prefação da tra-
traducção hespanhola, e o que diz o Abbade Prevost na Gollecção das
Viagens, e também a antiga traducção franceza, feita por um portu-
guez F. Figueira. Demos o devido apreço a tão grande escriptor, que
merecia um commentario, ou uma illustracção ao que nos diz da China,
6 da dynaslia tártara, que então começon; assim como dos grandes
descobrimentos no mar do sul, isto é, das ilhas dos Papuas, Ceiebes,
e Mindanous. Não deixaríamos levar isso aos inglezes, assim como nos
levavam tudo, que muito è o senhor Cook fallar nas terras de Quei-
roz. Mas em que tempo estamos nós? Fallar em lettras aos portugue-
zes, que chegaram a querer só Panem et Circenses!
Aqui me disse um cavalheiro procurador por Coimbra, que a fal-
lar poderia cançar Fábio, o fallador, que o Ex.""" Sr. Bispo de Vizeu
tinha composto e publicado algumas memorias sobre escriptores por-
tuguezes, que o mesmo Ex."*" Sr. Bispo lhe mostrara agora em casa
do Principal Freire; tomara que este tão erudito prelado se não esque-
cesse dos seus e meus patrícios Fr. Amador Arraes, e Jacinto Freire
de Andrade, e sobre todos, do quasi nosso patrício, pois nasceu na
Vidigueira, Achilles Estacio, a quem tanto se deve, mas não conhe-
ceu tudo o Abbade Barbosa, porque de quasi todas as obras de S. João
Chrysostoroo fez a traducção latina, que se conserva manuscripta e in-
tacta na sua inteira bibliotheca, legada por elle em Roma aos Congre-
158 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
gados do Oratório; assim como não desejava que se esquecesse de An-
tónio e Marçal de Gouvêa, também de Beja, e que tão grandes pare-
ceram á França, onde ensinaram. Eu já nada posso, estou sempre a
braços com a morte, em dores intermináveis, e no espasmo perturba-
se-me a cabeça, e muito terei que agradecer ao céo se poder tirar de
um borrador indecifrável o poema, em que o mundo cá poderá conhe-
cer que eu desejei saber alguma cousa.
V. Ex.* por amizade me favorecerá, mandando aos clérigos po-
bres, de quem sou irmão, que ponham na lapide da minha cova este
epitaphio:
Debaixo d'esta pedra mudo e quedo
Jaz o moído e moedor Macedo ;
No mundo nada foi quando vivia,
Nem sócio foi da magra Academia.
Não me quizeram lá, porque diziam que eu ia para lá dizer mal
de todos; talvez se não enganassem, porque todos o mereciam; po-
rém o que elles não quizeram fazer, fizeram agora os romanos, man-
dando-me um diploma de sócio da Academia Tiberina, em que entram
só os primeiros litteratos da Itália; e eu, que nunca me esqueço dos
portuguezes, no meu agradecimento lhes pedi quizessem examinar nos
manuscriptos da Vaticana os manuscriptos de André Baião, successor
de Marco António Mureto na cadeira de eloquência, e fazerem uma
copia da traducção latina das Lusíadas, mais exacta e muito melhores
versos que os da paraphrase, e não traducção de Fr. Thomé de Faria,
6 que viesse isto pela legação, que eu cá pagaria o frete, e a quem
elles aqui quizessem o trabalho da copia, porque fazer gastar um tos-
tão a um italiano é tirar-lhe um olho da cara, ou ambos os olhos. Se
assim o fizerem, será mais um tropheo levantado á gloria do poeta,
e que valha mais alguma cousa que a edição rica do Morgado Matheus.
Não se enfade V. Ex.*, se um moribundo em logar de uma carta mis-
siva faz um testamento. Se o meu fraco é fazer conhecer ao mundo a
litteratura portugueza, este fraco é tão forte que a tudo me obriga, e
o pouco que me tem a mim obrigado me obrigaria agora a mim a dei-
xar Portugal, e a dizer com o bom Juvenal:
Vivat Asturius illic
Vivant qui nigra in cândida vertuntem. . .
Mas, viva V. Ex.* para timbre da egreja lusitana, para estimador
ÀO ARCEBISPO VIGÁRIO GERAL 159
das lettras, e para ser, como é, um Vigário geral, de quem nenhum
clérigo diz mal, e de quem é
Com o mais sincero respeito
Súbdito e amigo m.*° affectuoso
Pedrouços, 15 de Junho de 1829.
/. A. de M.
V
111.'"*' e R."" Sr.
Com muito respeito beijo a mão a V. Ex.* pelo distincto e gene-
roso obsequio, que se dignou fazer-me; aqui appareceu o honrado fa-
cultativo, muito de espaço, e não com a rapidez do relâmpago, de suas
costumadas visitas, que só se podem desculpar pelo muito que tem
que fazer a morte, e lhes basta um sopro para nos apagar a candeia
da vida. Veiu pois, e sentenciou, e eu com uma docilidade, que eu
não sabia que tinha, lhe puz o cumprase, e lá foi logo para o execu-
tor, o boticário; veiu, e V. Ex.* não pode considerar a Sócrates com
mais intrepidez, tendo o vaso de cicuta na mão; eu n'uma cousa ex-
cedi a Sócrates, porque não consta da historia que elle Gzesse a ca-
reta que eu fiz apenas me passou o esofago o primeiro trago. Viram-se
tentados os circumstantes a me rezar o responso, porque me viram por
muito tempo com os olhos fechados, e com a bocca aberta. Emfim, lá
foi, e eu ainda aqui estou; no seguinte dia passei duas horas menos
dolorosas, mas parece que o mal recuou para accommetter com mais
faria; comtudo, como o remédio não é espingarda, para produzir logo
o effeito, continuarei com as mesmas caretas a despejar a segunda
garrafa, e darei parte. Visto a agua annunciada ser feita pela phar-
macopola natureza, e não costumar esta empurrar e embutir um qui
pro qiio, muito desejarei fazer d'ella alguma experiência, porque na ver-
dade o meu estado é miserável, e só a religião me pôde tornar sup-
portavel a existência.
Ando sempre luctando com a enfermidade, e para fugir ao maior
tormento da vida, que é para mim o não fazer nada, na pausa das mais
excessivas dores, porque alguma cousa remittem, ainda que pouco,
lanço no papel essas linhas impressas, que por ahi apparecem, e tiro
do cahos de um inintelligivel borrão o poema, em que me parece que
ja fallei a V. Ex.* O primeiro dos quatro cantos hoje mesmo me ficou
160 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACKDO
em limpo; tudo vae de vagar, não pelo dito do philosopho, festina lente,
mas porque é um milagre poder escrever uma só lettra.
Ha muito tempo que estou em divorcio com os livros, e muito
mais depois que a dor de pedra se casou commigo; mas aqui me ap-
pareceu um livro, que até ao anuo de 1731 era inter rariores rarissi-
mtis, e depois de 1731 não é muito vulgar; talvez V. Ex.' o não te-
nha em sua estante, ainda que deva estar sempre em cima da sua
meza, ou bofete; vem a ser a — Historia do descubrimento das Anti-
lhas e Índia — por António Galvão, a quem premiaram com dezesete
annos de hospital, e na morte um lençol pelo amor de Deus para o
amortalharem. Óptimo livro! É uma synopse chronologica de todos os
descobrimentos por mar, e illustra muito Fernão Mendes peio que per-
tence ás ilhas do Oceano pacifico. Eu o acho mais exacto em datas,
em topographia, cosmographia, pelo que respeita ás índias de Hespa-
nha, que os mesmos dois grandes historiadores Fernando de Herrera,
e António de Solis. É um epitcme, como o de Eutropio, ou de Jus-
tino; e muitas vezes em pouco diz mais e melhor que o áspero e di-
fuso João de Barros; porque este Galvão pinta o que viu, e João de Bar-
ros o que lhe disseram. Eu o offereço pois a V. Ex.*, porque é um lit-
terato, que d'elle pode fazer um excellente uso. É notável o ,que diz
a paginas 22, sobre um mappa achado no Cartório de Alcobaça no
anno de 1S28; eu sabia da existência d'este mappa, que é de Martim
de Bohemia, mas não sabia que o infante D. Fernando fallara n'elle,
nem que do Cartório se tirara; e fallando eu n'elle a Ricardo Raymun-
do, a Regência me mandou a casa um aviso, para que fosse examinar
esta e outras cousas de importância no paiz das leltras. Como eu de-
via ir á minha custa, porque o Erário estava muito alcançado, cuidei
em ir aturar os carolas das irmandades, para lhes gritar algum ser-
mão, que em me fazer busca-mappas á minha custa. Saibam lodos
quantos o quizerem saber, que em Portugal lançar-se no partido das
lettras, é o mesmo que emigrar para Hespanha com o Marquez de Cha-
ves, todos a eito e a esmo criminosos, dignos de áspero castigo, e so-
lemne desamparo. Eu dei na fina, estou com o milord Bollingbroock
quando sahiu do nrinisterio no tempo da rainha Anna; retirou-se, e
não lia nem queria ler senão os livros mais ineptos que apparecessem.
Elle não foi tão feliz como eu n^esta resolucção, porque lhe não ap-
pareceu o que me appareceu a mim, que é a — Defeza dos Direitos
nacicnaes e reaes — pelo maior mentecapto do mundo, tanto velho
como novo, o Desembargador Doclor José António de Sá. — Nocturna
versate manu, versate diurna — Isto é verdadeiramente o exemplaria
AO ARCEBISPO VIGÁRIO GERAL 461
grceca; o que aquillo seja, ainda aié hoje ninguém entendeu, e abra-
çado com o meu Sá, acabarei a minha vida. Quando os facultativos
me querem impingir laudano, digo á moça: — Traze-me cà o Sá — que
ella perfeitamente conhece, por ser aqui o filho único, e estar sempre
n'uma cadeira ao pé da outra em que me assento. V. Ex.* estará sem-
pre desejando ver terra, porque parece que não acaba a viagem d'esta
carta; pois Ex.°"* Sr., aqui dá fundo, ficando insondável o profundo
respeito com que sou
De V. Ex.*
Súbdito obed.'® e afifecluoso am.°
/. A. de M.
Pedrouços, 27 de Junho de 1829.
VI
EX."^ R mo Sj.
Ligado em uma cama, com o mais terrível ataque de gota, que
me despedaça o pé direito, com trabalho indizível vou á presença de
V. Ex.* para valer a um innocente, qual é este P.' Joaquim José Pi-
nheiro, não porque eu o diga, mas porque assim é lido na freguezia,
(jue está em alvoroço e commoção, vendo-o tão atrozmente calum-
liiado. Eu dou a V. Ex.* uma idéa do seu accusadcr com as palavras
de Juvenal — Monstriim nidla virtute redempttim. — Um genovez, que
aqui appareceu, e poz uma fabrica de papel pardo em um palheiro e
estrebaria na Rua do Telhai, defronte do muro das parreiras; aca-
bou-se logo o papel pardo, e arvorou-se em vice-consul de Sua Ma-
gestade Sarda, isto é, criado do cônsul sardo, que é dentista genovez;
calotes, contrabandos, gatos por lebres, eis aqui a vida do accusador;
e até a mim cum doctrinis nostris me enganou com um canastrel de
macarrão de torna viagem por três cruzados novos, ião duro e ava-
riado, que nem os pobres o quizeram á porta. Convidou o clérigo para
sua casa por 4)^800 por mez, malou-o á fome, e o clérigo fugiu de lá;
pedia nas tendas em nome do clérigo, que elie pagou com lingua de
palmo. Eu me constituo advogado do clérigo; o accusador ha de vir
com seu libeilo, quando chegar a estes lermos eu responderei por ar-
tigos; elle deve ter juntado documentos á sua accusação; ponha-se a
cousa em tela judiciaria, e verá V. Ex.* quem é o vice-consul sardo,
CARTAS. H
462 CAUTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
fabricante de papel pardo; elle merecia que V. Ex.* o mandasse para
a cadeia por calumniador, ou que mandasse pôr silencio a semelhante
impostor, e se consolasse o pobre clérigo, que é verdadeiramente o
infamado.
Tolhido de dores, e ardendo em febre, só posso escrever agora
que sou
De V. Ex.»
Súbdito e am.° obrig.""*
Pedrouços, 21 de Maio de 1830.
/. A. de M.
AO DR. FR. DOMINGOS DE CARVALHO*
Graciano, lente de prima de Theologia na Universidade de Coimbra
18S©— leso
Meu antiquíssimo amigo, e meu muito eradilo collega. Hontem 6
do corrente Agosto, dia da Transfiguração, também eu me transfigu-
rei; e na presença de muitos corcundas que estavam commigo — Viden-
tibus illis — porque, ou pelo pezo da enfermidade, ou peia Índole das
circumstancias, esta minha cara sempre annuviada de tristesa, ficou
banhada de uma vivíssima luz de contentamento e alegria, ao receber
a tua presadissima carta, que despertou em minha alma as mais en-
ternecedoras recordações. Coimbra I O GoUegiol A quinta de Valmeãof
Isto para o meu coração, que tem as fibras tão irritáveis I Accresce
mais para augmentar estas emoções incomprehensiveis, ser mandada
a tua carta do palácio do nosso tão respeitado e tão venerado collega
o Em.""" Sr. Cardeal da Silva. Tudo isto — post vários casus, post tota
discrimina rerumt — Casos e cousas que me tem apparecido no dila-
tado periodo de 51 annos! E que coincidência de cousas! Recebo a
tua carta no momento em que estava revolvendo os papeis que aqui
me deixou o Dr. Faustino Simões Ferreira, mais um documento dos
absurdos constitucionaes d'essa, agora tão reformada Universidade!
Se a providencia me não houvesse posto n'este lastimoso estado de in-
sanável enfermidade, que me torna immovel, por que com muito tra-
balho posso apenas sahir da cama para sentar-me n'esta cadeira, este
era o instante de realisar o presupposto que ha muilo se me tinha
apresentado na alma, que era o de reverter para a Ordem, com a
única condição de permanecer para sempre n'esse Collegio, e ahi em
• Impressa em 1871 no Conimbricense, n.°' 2:449 e 2:450.
164 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
ocio absoluto seguir o impulso que me deu a Natureza para o estudo
das Boas-Letras em uma cidade conhecida pela sua cultura. Este im-
pulso se desenvolveu em mim na edade de 30 annos, por um phe-
noioeno inexplicável em physologia, pois por um accidente adquiriu
nova forma o mechanisrao do cérebro. Isto pede explicações, que nem
são para uma carta missiva, nem para o presente momento. Desvane-
ceu-se esta minha determinação pela minha enfermidade. Vamos á tua
carta, a que eu não darei uma só resposta. Conservo— a//a mente re-
posium ~ ãmhos os varões assignalados, S. Luiz e o Quixote Sá, olim
Fr. José da Piedade, orate sem vergonha, o que prova o facto seguinte.
Poucos tempos antes da morte, ou assassínio d'el-rei D. João VI, fa-
zendo-se por subscripção uma festa em acção de graças pelas melho-
ras da Infanta, depois Regente, a que El-rei assistiu, quando o Prior
da Freguezia, que ainda hoje é ex illis, porque assim o faz manifesto
a sua loquella, foi dar parte a El-rei da hora a que devia começar a
festa, na véspera da mesma festa, lhe perguntou El-rei: quem era o
Pregador? — O Sr. lente Sá, — lhe respondeu este. Pois eu não quero
que seja esse, e vá já convidar da minha parte José Agostinho. As-
sim o fez, vindo aqui a Pedrouços lavado em lagrimas; mas vingou-se,
convidando o mesmo Sá para ir cantar o Evangelho, e teve tão pouco
pejo que foi. El-rei não esperou que a missa acabasse, abalou. Não
era preciso tanto para se conhecer Sá, ainda que não tardaram as car-
tas, em que mais se conheceu. Tanto elle como o actual monge, não
já de Cassino, mas da Serra d'Ossa, com o seu liberalismo, com os
seus gallicismos e com os seus Synonimos, tem um jus inquestionável
a occupar um logar distinctissimo na Esfolada Besla. Eu te vingarei
das injustiças, ainda que nos fragmentos da tua Oração não vão mal
aquinhoados. São bem trazidos os versos de fecundo Ovidio nas pra-
gas contra Ibis. As expressões de S. João Chrysostomo, este eloquen-
tíssimo varão, e o mais eloquente de quantos escreveram, como lhe
chama António Vieira, são muito bem trazidas, e muito melhor apro-
priado o texto de S. Paulo. Jubilaram-te na cadeira? Muito melhor,
se te conservaram o ordenado; juntarás mais livros á tua soberba col-
leção, a que me parece faltam o Luciano de Odempdorpío, 2 vol. em
grande 4.^ e o Tácito — variortim, que é a melhor edição, em que se
ajuntam os trabalhos de todos especialmente os de Justo Lipsio, pois me
não lembro que n'este me fallasses. Boa invtja te tenho, e antes que-
ria estar comtigo na quinta de Valmeão, oblitus meorum oblivescendus
et illis, que n'este Tusculano de Pedrouços. Estou cançado do munda
e de políticos. . . Vanitas vanitatum et omnia muitas, para dar os ul-
AO DR. FHEl DOMINGOS DE CARVALHO l'65
timos cuidados, e chamar ainda á bigorna um poema, em que tenho
consumido tempos, intitulado — Viagem extática ao Templo da Sabe-
doria.— Com este fecho o circulo da minha sempre triste e trabalhosa
existência. As folhas volantes da Besta Esfolada são diversões ás minhas
dores, e me entretenho como Erasmo com o Encomiom Morae ou Elo-
gio da Loucura. Estimo que te lembrasses do homem extraordinário
Fr. Francisco de S.*° Agost." de Macedo; pena é que homem tão grande
se perdesse em nadas; só dou preço a três producções suas, duas são
as iinicas que escreveu em portuguez, o Sermão de S. Thomé na Ca-
pella Real, e o das Exéquias de Luiz XIII na egreja do Loreto, e a
terceira o Elogio em latim dito a D. Luiz'de Souza, Bispo de Lamego e
Embaixador a Roma. Que tempo perdeu este homem único na tedi-
osa e volumosa comparação da douctrina de S. Agostinho com a do
subtil Scoto! Assim mesmo merecia que os de Coimbra, ou de Botão,
onde nascera, lhe levantassem uma estatua, como a outros que menos
as mereceram levantaram tantos povos! — Et ta.men tantm hic vir mo-
nástico dum taxat indtitits habitu, et domesticis insignitus honoribus, se-
pelitur. Disseram de Petavio, que lhe acharam no craneo o duplo do cé-
rebro dos outros homens: se anatomisassem o d'este capucho, por vida
minha lhe achariam o quádruplo. Só por desenfado dize ao reverendo
Guardião que te mostre a carunchosa cadeira em que elle se assen-
tava para ensinar, e que no livro das profissões te faça vêr a sua as-
signatura no triennio do provincial Fr. Bernardo dos Martyres. Isto
são pequenas cousas, mas eu lhes dou um grande preço, porque lhes
acho um grande sabor, e ha pouco tempo mandei um perfeitíssimo
desenhador que me tirasse uma copia exacta do precioso e magnifico
basto de mármore de Garrara que existe na livraria de S. Francisco
da Cidade em frente do busto de Lucas Wadingo, analista dos Fran-
ciscanos, cujas obras em doze volumes de folio mandou imprimir em
Roma com sua costumada magnificência El-rei D. João V. Os frades
da Graça de tudo se esquecem (e de mim); elles deviam ter feito as
mesmas honras a Fr. Egidio da Apresentação, admirável escholatico e
profundo engenho. Deixemo-nos de homens de lettras, porque isso é
um titulo para sermos apupados. Se te encontrares com o P.® M." Dr.
Fr. Fortunato de S. Boaventura, dize-lhe que eu me recommendo. Lis-
boa, 7 de Agosto de 4829. Sou teu am.°, porque o sou ha 51 annos
/. A. de M.
P. S. Se me escreveres, põe no sobrescripto — Á Sr.* D. Maria
Cândida. — Pedrouços — Lisboa.
166 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
II
Meu bom amigo, antigo e aproveitado cocdiscípulo; mestre insi-
gne e consumado litleralor. Não respondi á tua muito presada carta,
porque accessos imprevistos do meu terrivel mal me não deixam fazer
o que quero. Hoje, quinta feira 19 de Agosto, que com mais desafogo
posso mover estes três dedos, me preparo com estas regras para o
correio de sabbado. Em primeiro logar, chamem embora ao amor dos
livros, e á nobre paixão pelos melhores, — Biblomania — eu lhe cha-
marei óptimo juizo, apurado gosto, e virtuosíssima ambição. Por isso
louvo e approvo muito o teu procedimento na escolha, porque quanto
a mim o luxo mais digno do homem grande, é o luxo typographico.
Eu o goso por intervenção de um meu amigo, o ex-Gazeteiro Joaquim
José Pedro Lopes. Se algum dia viesses a Lisboa admirarias uma rica
e bem escolhida bibliotheca, em um homem particular, de que se pode
dizer o que se disse de Ant." Maggliabechi, bibliothecario de Florença:
Que os livros o punham na rua, porque lhe não cabiam em casa, e tanto
a entulhavam, que não cabia elle.
Verias uma collecção completa de todos os clássicos gregos e ro-
manos; isto terás e tens muitos, mas ninguém ajuntou uma completa
collecção de todos elles traduzidos em hespanhol desde o tempo de
Carlos V até Filippe IV, até de Suetonio, que os Fraucezes nunca tra-
duziram senão agora; e de Valério Flacco, etc. etc. — Elle também
tem muitas edições variornm que talvez tu não lenhas ainda, como
a de Séneca Philosopho, a de Quinto Curcio, de Petisco, e de Estacio,.
que eu lhe dei. Sobre este valentíssimo poeta vae uma digressão.
Sempre me tocou muito seu fogoso enthusiasmo, e logo depois da
minha transformação aos trinta annos eu traduzi todos os doze livros
da Thebaida em óptimos versos, que por bons que fossem nunca po-
deriam corresponder ao Ímpeto e ao fogo do original, mas emfim ou a
conclui, e deitava a obra a dois volumes em 4.° Que fatalidade! Em-
presto a um amigo o primeiro volume que continha os primeiros seis
livros, depois mandando-o buscar, o moço o perdeu na rua juntamente
com uns calções que me trazia de casa do alfaiate! Restam os seis
últimos, que ahi estão, e eu sem animo para nova traducção dos pri-
meiros. Outra egual fatalidade com Horácio. Eu o traduzi todo, desde
Mecenas até Non missura cvtem. O primeiro volume das Odes ahi está
impresso, e é mais alguma cousa que a traducção de António Ribeiro
AO DR. FRKI DOMINGOS DE CARVALHO 467
dos Santos. E o segundo? Abalou-me com elle mais para o Rio de
Janeiro um frade capucho, que era botânico, e se chamava Fr. José
Mariano Velloso, e nunca mais o vi, lá ficou livro e frade, e eu cá fi-
quei tão aborrecido de traducções, que não tornei a fazer outra senão
a que fiz ha dois annos do Elogio de Pio VII, que se imprimiu, e é
cousa espantosa. Fr. Fortunato iá terá algum exemplar, que t*o faça
vêr. Na collecção castelhana do Lopes ha a traducção de Tito Livio, e
a de Plinio Naturalista, que tu deves ter, mas da edição do jesuita
Harduino. Nós em Portugal existimos na época das ruinas da Litte-
ratura, d'aqui amanhã ninguém estuda latim. Eu estou cançado de lei-
turas e de composições. Para diversão das minhas inierminaveis do-
res calamo ludimiis. Ninguém tem mais amor ás letras, e d'isso tenho
dado provas. Rio-me do livro de Cornelio Agripa — Devanietate Scien-
tiarum, e do Discurso do seu copiador plagiário João Jacques coroado
pelo Academia de Dijon; a vaidade das sciencias não está nas sciencías,
está no fructo e galardão das mesmas sciencias, no despreso e estima
que d'ellas fazemos os que as deviam adorar e recompensar. O poema
Meditação, segunda edição, é único no seu género; o poema Oriente
vale mais que os Lusíadas, e avulta mais que o Caramuru do nosso
bom Durão. O poema Newton é um compendio de erudição antiga e
moderna. Pois meu bom amigo, nem me dão aquillo de que os gregos
só eram avarentos — Praeter laudem nullius avari. — O livro intitulado
— A Existência de Deus a priori, é o ultimo esforço da dialéctica; ou
nâo o entendera, ou a ninguém importa. O que os portuguezes me não
fazem, cuidam em fazer os estrangeiros. Não ha muito me chegou de
Roma um diploma da Academia Tiberina, que se emprega no aperfei-
çoamento das Sciencias e Boas-Artes. De Nápoles também me manda-
ram um outro diploma, e de Inglaterra me mandam retratar, e ahi está
o artista para isso; mas com isto não se manda ao açougue, nem me-
lhora a minha sorte.
Uma parte da tua carta occupou o meu espirito, outra enterneceu
meu coração, porque conheço a sinceridade da tua generosa ofiFerta.
Não, meu bom amigo; nada me falta senão saúde, e desde 1793 com
o meu trabalho do púlpito tive e conservo a mais commoda subsistên-
cia; nada me falta, torno a dizer, senão a saúde, e não deixo de ter
com que me trate na enfermidade, e com abundância. Em 18á6 me
deu o Governo uma pensão de 300)$ÍOOO réis, porque é costume dar-se
alguma cousa a quem prega nas exéquias do rei, quando são manda-
das celebrar pelo que lhe succede; isto não anda bem pago, mas assim
mesmo contribue para a minha indepente subsistência. Beijo-te pois a
168 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
mão pela lembrança, e pela offerta. Sim eu desejava recolher-me e ir
viver n'esse Collegio, mas o meu estado de saúde, a minha edade de
64 annos, fazem que se amorteça esse desejo; nada posso trabalhar,
e depois, se um Provincial me desse essa moradia, outro viria que m'a
tirasse, e mandasse servir á taboa na Graça; isto depois de eu ter ap-
parecido na grande scena do mundo entre applausos e respeitos de
todo quanto ha grande, e de levar outro dia uma publica demonstra-
ção de affecto e consideração d"El-Rei, porque passando por aqui, me
fez três cortezias, uma com a mão, e outra com o chapéo, tirando-o da
cabeça, e levando-o até abaixo! Isto faz desvanecer o meu desejo, e
acabarei tranquillo no estado em que estou. Se eu tivesse saúde iria
estar seis meses em Coimbra, e lá imprimiria a minha ultima compo-
sição. Gosa tu das luas acquisições litterarias, e entre tantas, da que
mais te invejo, as Obras de Erasmo. Escreve-me que eu corresponde-
rei, e não te esqueças do sobrescripto que puzeste na ultima que re-
cebi tua. Vé se te sirvo para alguma cousa, tudo fará
Teu am.® bem deveras e bem obrig.*^"
J. Á. de M.
Lisboa e Pedrouços, 49 de agosto de 1829.
III
Meu bom, meu velho, meu querido amigo e companheiro; recebi
a tua carta de 3 do corrente Fevereiro, e n'ella não vejo novas de uma
que não ha muito tempo te havia escripto; talvez se desviasse. Pedes-
me a carta para o nosso amigo o Dr. Fr. Fortunato; fallemos n'isto.
Sentei-me â mesa, ou banca para lhe escrever, como a ti te escrevo,
em meia folha de papel, uma missiva e breve, em que lhe offerecia o
meu parecer sobre o verdadeiro modo, ou methodo de defender os Je-
suítas; foi o inverso de Horácio — currente rota — não sahiu um púcaro
mas uma talha do Alemtejo, de duzentos almudes, o septifolio. Dizia-
Ihe que defendesse os Jesuítas em grande, e não em detalhe; porque
a individuo se podia oppôr individuo das outras ordens regulares, e
para o convencer lhe lembrava duas, que me parecem de menos vulto,
que vem a ser os Capuchos e os Minimos, e menos que Mínimos não
ha; e para lhe mostrar esta verdade o mandava á livraria do Collegio
da Graça, onde no fundo, da parte direita, e ao pé dos Expositores
AO DB. FREI DOMINGOS bV. CARVALHO 169
acharia as obras do Minimo ou máximo P.' Marino Merseno, amigo e
mestre de Descartes; que também acharia á entrada da parte direita,
ao pé de Sgravesend, que lá acharia outro Minimo, Jaquier, o melhor
entendedor de Newton, etc. Se eu me quizesse lembrar de outros de
outras ordens, os Jesuitas não tiveram lá nem Noris, nem Onufrio Pan-
vinio, basta d'estes. D'aqui passava a persuadil-o e dissuadil-o de es-
crever a historia e biographia, etc, tudo em uma continuada ironia,
que ^e convertia na sátira da presente indifferença com que se tratam
as letras e os litteratos. Esta carta que fez estampido, correu logo com
temporal de má fortuna, porque foi ter a mãds que por devoção a ris-
caram e emendaram muito; assim mesmo, como por baixo das riscas
se lê bem o texto, está nas mãos do Sr. Arcebispo, nosso honradissimo
amigo, e ura dos homens mais estimáveis que existem, por todos os
tilulos. Elle mandou tirar uma exacta copia, que remetterei para esse
«mporio das letras, e o Dr. Fr. Fortunato t'a mostrará, e a quem elle
quizer, certo que eu sustentarei tudo o que digo, no que parecer pa-
radoxo, em qualquer espécie da litteratura que toco na mesma carta.
Meu Decano dos sentimentí)s honrados, sabe que nada se pode escre-
ver, porque nada se deixa imprimir. Eu para enganar dores e vingar
injurias, vou ampliando o poema dos Burros, que vem a ser a chro-
nica escandalosa dos presentes tempos em Portugal, e ha quem faça
imprimir esta Iliada de Borabardadas nos patifes e mais nas patifas.
Ora sabe que se eu tiver alguns visos de melhoras até o meado
de Maio, e aqui (encommendando-se) apparecer uma liteira, vou pas-
sar meia dúzia de dias em uma estalagem de Coimbra, comerei um
quarteirão de laranjas das Sete Fontes, e mostrarei esta cara a muitos
figurões malhadissimos d'essa Athenas, sem ser a do tempo de Peri-
des. Isto pende de algumas melhoras com que possa sofifrer os leves
balanços de uma liteira. Não é este o fim principal, mas o vêr os ca-
racteres da imprensa, e como isso por ahi vae a respeito de correcção,
pois intento n'essa officina imprimir o poema — Viagem extática aopaiz
da Sabedoria. — Tenho-o de todo concluído, e com elle intento despe-
dir-me dos homens e das letras. As letras me enfadam, e os homens
me desgostam. Podes assegurar isto aos curiosos, e eu prometto uma
novena ao Senhor do Arnado, se não der commigo um João Bernardo
de Vilhena e Nápoles, que mil vezes aqui me desconjuntava os miolos
com secaturas, e taes diarrheas de palavras, que muitas vezes lhe re-
petia no meio da arenga o texto sagrado — Sicasti fluvios Ethan — e isto
com a insanável mania de versos detestáveis do narcótico poema A Mem-
braida, em que mui seriamente fallava na tripa cagaiteira e nas suas
i70 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
funcçôes. Agora acabo, pedindo-te não me demores as tuas letras, de
que muito gosto, ainda que no principio me custassem a ler. Dize ao
Dr. Fortunato que o seu livro — Historia chronologica — é muito atacado
por João Pedro Ribeiro, o Pergaminho velho; eu também entro no es-
tádio, mas que eu me despriorei a mim e a elle; que já saberá d'isto,
porque Fr. Joaquim da Cruz Itie terá participado. Aqui Oco esperando
carta tua, e rol de livros que tenhas comprado, e determinações que
execute
O teu velho amigo
/. A. de M.
Lisboa e Pedrouços, 7 de Fevereiro de 1830.
IV
Meu bom amigo: Noli esse increduhis sed fidelis: — infer digiliim
tutim hic. — Olha bem para esta carta. Como eu sou aqui o irmão mais
velho, e n'este tempo só a primogenitura faz os reis, governo eu ao
menos em mim. É verdade que a doença não me tem deixado ir aonde
tenho querido, assim mesmo tenho ido onde os outros têm querido que
eu vá. A 22 d'ebte mez, faz um anno que El-Rei quiz que eu fosse
pregar na festa que elle mesmo fazia na Sé, o que verás por essa carta
de agradecimento. D'aqui me levaram á praia da Torre, e me embar-
caram em um escaler de mnitos romeiros, e desembarcando no Ter-
reiro do Paço, em uma carruagem me levaram á Sé, e isto por debaixo
de tal tempestade sonora, com tão espantosos trovões, que só me lem-
brava ver e soffrer outra quasi egual n'essa terra, em a noite que em
Semide morreu o velho bispo D. Miguel, dizendo no dia seguinte o
medico Gato, no Collegio, que a trovoada fora tal, que até os seus fi-
lhos se pozeram de joelhos. Harto lo has encarecido! A 22 de novem-
bro do mesmo anno me fez sair d'aqui o Esmoler mór, Commissario
geral da Bulia e lá fui incommodo em uma sege a S. Roque pregar na
publicação da mesma Bulia. A 22 de Janeiro d'este anno me fez sair
d'aqui o Presidente da Sé para pregar do padroeiro S. Vicente; sofifri
os balanços, e vim melhor. Ora para os princípios de Agosto, como
dizes, tempo quente, e com o uso das aguas que me mandou o Arce-
bispo nosso amigo, e em uma liteira, cujo movimento é doce e uni-
forme, e com jornadas pequenas e marcadas, não poderei dispor de
ÀO DR. FBEI D(;MINGOS DE CARVALHO 174
mim, Dão poderei tentar a requisição de outro ambiente? Sou eu por
ventura o Sancto Milagre, que não sáe senão em casos muito extraor-
dinários, e com licença da Secretaria de Estado? Esta expedição pende
de alguns visos de melhoras, que é presumi^el com a mudança da es-
tação e temperatura da atmosphera; o frio me contrae os vasos ouri-
narios, e com o aperto da uretra se augmenta a dor. Não comerei la-
ranja de mais, mas comerei melancias de agosto. Sei qual seria o bom
accolhimento que me farias no CoUegio, mas também sei que não devo
causar incommodos. Quando em 27 de novembro de 1823 fui pregar
á Graça na estrondosa festa que o Senado fez pela restauração do Rei
em Villa Franca, jantei na cella de Fr. Christovão, muito compellido,
que nem isso eu queria; emíim, torno a dizer que apontando-me alli-
vios, ou vindo estado menos incommodo, eu vou, e sobre o sermão do
Patriarcha lá me dirão o que querem, já que querem soffrer Menino
entre os Doutores, mas velho no oíScio. Eu me figuro o que Fr. For-
tunato diria sem se conter, porque não pode, e tem razão Eu ainda
não preguei do assumpto, mas estou certo que em se acabando o moi-
mento ou tumulo, que se está fazendo na capella do Ramaihão, vindo
o corpo, que alli está perto na freguezia de S. Pedro, alli irei pois me
dizem que El-Rei assim o determina, mas vem o aviso na véspera, como
aconteceu com a sua funcção da Sé. Sexta feira 12 do corrente á noite
se entregou ao duque de Cadaval o numero do Defensor dos Jesuítas
a quem não quizeram dar licença; veremos se elle faz o milagre. O
Directório Central Maçónico não quer que se imprima cousa alguma que
possa revelar mysterios. Mal sabe Fr. Fortunato como é tratado nos
papeis inpressos em Inglaterra, na muito nobre e casta lingua portu-
gueza, com especialidade em dois, um chamado O Chaveco, outro cha-
mado O Paquete! N'uma lhe chamam indigesto, n'outra masmarro; mas
que se console commigo, que o meu quinhão é centuplicado, não só
nos porluguezes, mas nos mesmos inglezes, até ministeriaes, Morning
Journal, Times, ác. Eu gosto de pagar logo as minhas dividas, e aquillo
são para mim letras pagas á vista, e eu tenho meio e modo de inserir
nos jornaes inglezes e francezes as minhas respostas. Talvez façam ar-
repender os patifes que d'aqui mandam, e lá escrevem. É incrível o
que se espalha na Europa sobre a questão portugueza, e uma das pro-
vas da preponderância pedreiral é não estar ainda decidida. Vi e li hon-
tem uma carta de Paris, em que se dizia que o Conde de Sales, alli
Embaixador dEl-Rei da Sardenha, tivera medo de acceitar até como
presente um nosso livro agora novamente composto sobre os direitos
de D. Miguel, soberbamente impresso, e mais soberbamente enquader-
i72 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
nado; e assim se me remette um exemplar pela nossa legação de Iq-
glaterra, porque até por lá se conhece este estropeado Entello, mas
batalhador; chegado que seja eu t'o enviarei. A carta já não parece
missiva, mas ainda digo que um Cónego Regrante, ainda mui rapaz,
que é do CoUegio da Sapiência, e que ahi pregou dois sermões que
imprimiu, aqui veiu e m'os deixou. Gostei do typo, por isto fallei na
impressão do poema n'essa typographia. Eu lhe paguei com um exem-
plar do Oriente, tirado em papel fino e de grande formato em 8." Eu
nunca tive paciência de rever provas, mas dizem-rae que ha ahi um
José Vicente de Moura, homem muito capaz de sofifrer esse tormento;
atormentar-te não quero eu com mais dilatada ou comprida arenga,
acabando com dizer-te que sou
Teu am.° ant.° e coll.' obrig.™"
/. A. de M.
Pedrouços, 16 de Fevereiro de 1830.
A que se refere esta Carta
El-Rei N. S. foi servido ordenar-rae que em seu real nome fizesse
constar a V. M." o quanto Sua Mag.' ficou satisfeito de que V. M."
podesse ir no dia Í22 do corrente pregar na egreja da Sé; e do mesmo
modo o quanto lhe foi agradável o seu eloquenlissimo Sermão. O que
tudo de ordem de Sua Mag." participo a V. M." para seu conhecimento
e satisfação. Deus guarde a V. M." Palácio de Queluz 24 de Fevereiro
da 1829. Visconde de Queluz. — Sr. P.® José Agostinho de Macedo.
A FR. CHRISTOVAM HENRIQUES*
Religioso no Couvento da Graça
Intercedendo pelo Cirurgião João José Durão, que pretendia sel-o
do mesmo Convento
Meu Christovam
Eu não pediria por um medico, porque sou amigo dos frades da
Graça, e desejo a sua vida e conservação. Sei quantos golpes lhe tem
cabido em casa, para lhes pedirem e levarem a fazenda; e se eu pe-
disse por um medico lhes faria cair o raio em casa, que lhes alimpasse
a vida, e á custa das relíquias da fazenda que lhes tem deixado. Um
cirurgião, quando não conspira com os médicos para despovoar um
convento, é outro cantar. O senhor Durão, portador d'esta, é conhe-
cido, acreditado, estabelecido e respeitado; e tendo elle vindo a esta
casa muitas vezes, chamado por mim e para mim, bem vês que estou
vivo, pois te escrevo esta carta. Sei que o cirurgião d'esse partido vae
para Bissau; cuidei que só os médicos deviam ser mandados para este
paraíso do mundo, e suas annexas, Gacheu, Cabinda, Pedras de An-
gonche e Negras; mas emfim, fica o partido vago pela ausência, e
d'aqui a pouco pela morte do actual empregado. Desejo, e effectiva-
mente desejo que o portador seja admittido. Falia da minha parte ao
Prior, a quem me recommendo muito; eu lhe preguei na sua missa
nova, quando eu ainda a não dizia; quero agora a esmola do sermão,
que vem a ser, não ficar frustrado o meu empenho. Elle Prior é o pre-
sidente do Conselho, talvez de tanta importância como de estado, dei-
xemo-nos da questão se tem voto consultivo ou deliberativo, o que eu
quero é que não fique a cousa no ár, e que depois de redigido o al-
vará da nomeação não venha o Provincial dizendo — Sua Reverendís-
sima quer meditar — e não seja a meditação mais comprida que a que
• Publicada em 1871 ao Conimbricense.
174 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DR MAClilDO
nos fazia ter pelo Alonso Rodrigues o reitor Fr. Lourenço em Braga,
quando de Coimbra me mandaram para lá. No conselho haverá um ou
outro membro preopinante, que tenha empenho por este ou por aquelle ;
mas dize da minha parte ao Prior que tenha em vista aquella pergunta
que fazia Fr. João do Rosário, que nos dava em Coimbra pasteis de
tutano de prato do meio, quando se tratou em conselho de prover o
ministério de carreiro, vago pela borracheira e morte do empregado;
dizia um membro: — Eu conheço um que é um santo, confessa-se a
miúdo, ouve missa todos os dias, e é muito escrupulosa em matérias
rapinantes. — É elle um bom carreiro? — perguntava o reitor. — Faça
a mesma pergunta o digno Prior, que elle ahi é único, e não é par.
Eu responderei, sem ser do conselho, cá de fora, já que a mania de
hoje é quererem todos metter o focinho no governo : — É bom cirurgião,
muito prompto, e muito activo, e será pouco receilador, porque a bo-
tica é do convento. Eu ia pondo fora do partido o medico Pequeno,
quando em sua alia sabedoria intentou outorgar-me, ou empurrar-me
uma ajuda em uma inflammação de olhos. O ataque devia ser feito pelo
leigo Fr. Joaquim, filho do Desembargador Silveira Prelo, que era pe-
ticego; eu disse taes cousas ao commandante das operações que elle
me chamou judeu, sendo-o elle, e se quiz despedir do partido, mas eu
não levei a ajuda. Agora peço para se dar o partido, não a um me-
dico, mas a um cirurgião hábil; não duvido que malará alguém, mas
não malará muitos, que é o que devemos pedir a Deus.
Estou maguado cora a sorte do rapaz pretendente; eu estava certo
que cingiria a corrêa de Santo Agostinho; mas ao sair da missa na
cgreja de Belém, lhe cingiram outras corrêas mais largas e enverni-
sadas, e o obrigaram a deixar pae e mãe, não pelo claustro, que é
cousa inútil, mas por uma espingarda. A sagrada causa da divinal
Carta pede defensores; os rebeldes já não profanam o solo portuguez,
mas assim mesmo ha Ímpios, que não conhecem o legitimismo. Outro
dia pregou o padre Marcos iconoclasta, inimigo dos santos de vulto,
em Sanio António da Sé, que se os mesmos anjos não conhecessem o
legitimismo, se lhes devia atirar (eu estou certo que os anjos lhe mi-
javam na escorva). Ora não mijem os do conselho no meu empenho;
e eu estou tão doente, que tu, os do conselho e todos, me devem ir
dispondo um habito para lá me enterrarem.
Teu amigo
Casa, 23 de abril de 1827.
/. A. de M.
A JOAQUIM ANTÓNIO XAVIER ANNES DA COSTA
Administrador da Imprensa Regia
Agradecendo-lhe um nitido exemplar qne este lhe remettera
do poema— ORIENTE
111.""» Sr.
Recebi o presente, como cousa sua o mais precioso, como cousa
minha. .. esta palavra basta para se saber que nada valia, e se lhe
havemos conceder algum mérito este só lhe pode vir das suas mãos,
porque o poz tão Umpo, e tão formoso, que deve andar pelas mãos de
todos. É uma prova do aperfeiçoamento da arte typographica. Se em
Portugal não ha Bodonis, é que em Portugal não ha uma Catharina II,
que os anime, nem por «Ha mandado um cavalheiro Azara, que os pro-
mova. Nós somos pobres depois que fizemos da politica regenerativa
toda a nossa opulência, e por ella podemos ser chamados como os ro-
manos— Rerum dominós gentemque togatam — e as nossas togas consu-
lares e senatorias cuidam mais em pôr o mundo a direito com theorias
da geral emancipação dos povos, que em dar á regia OíScina typogra-
phica a nomeada que tem alcançado a de Bodoni e a de Didot. Con-
teotemo-nos com a que temos, mas tendo por muitos annos o mesmo
administrador. Tenho feito o meu cumprimento, agora a minha pin-
tura. Estou doentíssimo com o que ha de mais terrível em moléstias
©urinarias ; todos os vasos estão na ultima ruina, e não ha mais que
um doloroso e incessante profluvio de sangue, e não posso dar muitos
passos sem delíquio; assim mesmo, para lenitivo de tantas dores não
estou ocioso; não ponho as Cartas em linha de trabalho, não são mais
que desenfado de alguma bebida amarga, visto ter eu já capitulado com
as boticas; levam o estylo amargo, que este também é remédio para
as mazelas politicas, como me dizem que é proveitoso para os meus
physicos achaques e assim vamos coherentes. Trato de cousas mais se-
rias nos pequenos intervalos de tantas. Olhei para o poema Newton e
i76 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
vi alli a matriz de um poema que obscurecia a Meditação e o Oriente
(se estes têm algumas luzes); dou-lhe outra forma e outro titulo e lhe
chamo — As quatro Épocas da Litteratura — 1.* a do século de Péricles,
na Grécia.— 2.' a do século de Augusto, em Roma. — 3.^ a do século
de Leão X, na Itália. — 4.* a do século de Luiz XIV, na França e na Eu-
ropa. Isto tenho preparado e feito, porque a matéria está disposta na
historia dos conhecimentos humanos; só tive de lhe dar a forma poé-
tica sem grande trabalho da imaginação, porque não ha que inventar e
tirar como no Oriente; mas estas quatro épocas em que época vêm?
Vêm n'esta que vedes. Oxalá a não conhecêssemos tanto de vista! Uma
dissertação sobre a arrumação interior do augusto salão; um tratado
analylico das capas curtas, determinando na ultima analyse se ellas se
pareçam mais com os pobres do lava-pés, se com a Casa dos Vinte e
Quatro; se é mais ulil para a illustração publica o punhal de bico, ou
o punhal; se o poder moderador e directivo existe mais essencialmente
na classe dos bacalhoeiros, que existe na classe dos fanqueiros; se a
legislação tenha feito mais progressos no cães do Sodré, que na Ri-
beira velha; se os olhos de José de Sá sejam mais tortos que os seus
discursos; tudo isto me levaria mais depressa á immortalidade, que a
^omma dos conhecimentos humanos das quatro Épocas, que são a ma-
téria dos quatro cantos do poema. Se eu quizesse fazer um poema das
quatro épocas da parvoíce, não acharia se não uma, que é esta que
vedes; pois esta também tem um poema, não em quatro, mas em oito
cantos, que a tanto tem chegado a turba quadrúpede.
Senhor meu, para As quatro Épocas quero eu leltra e papel tal,
que possa dizer o mundo — Aqui andou a mão do morgado Malheus —
e que possa eu responder logo: — Não senhor, andou a mão do senhor
Joaquim António Xavier Annes da Costa, que é o morgado dos meus
amigos, porque é o mais velho pelo tempo e pelo affecto; e eu pelo
affecto e pelo tempo, pelo dever, pela obrigação, pela justiça e porque
eu quero, sou de V. S.^ amigo e tanto basta.
J. A. de M.
Forno do Tijolo, 12 de junho de 1827.
A JOAQUIM JOSÉ PEDRO LOPES
Meu bom amigo
Pela leitura do livro vejo que soffro duas moléstias, a hematúria
ou efifusão de sangue, quando a machina se abala com violência em
sege ou a cavallo, e a continência da ourina, que se não é gota a gota
é de instante a instante em pequeninas porções; leio no livro o que em
mim sinto, e usarei do que elle determina, que é o mesmo que Fran-
cisco Luiz me receitou.
Vae esse primeiro volume, desejo ler o segundo, porque é a me-
lhor cousa que na matéria se tem escripto; a diffusão allemã não en-
fastia n'esta obra. Talvez lhe tenha já apparecido alguma prova da Ora-
ção que com violência me usurpou a senhora condessa, sem querer
que eu ponha a mão em um só exemplar, e talvez que nem a vista lhe
ponha em cima; cousa assim ainda não aconteceu I Não posso dispor
da minha propriedade; d'esta forma o que convida uma musica tem di-
reito de tirar aos músicos os papeis apenas os acabam de cantar. Isto
é novol
Aqui estão para censurar duas obras; uma é do Rolland, que se
elle a fez é Rollando furioso; outra é uma gritaria contra os touros do
Salitre, e contra os pedreiros livres despropositadamente; está mais
um rol de livros do Orcei; nada faço sem o consultar primeiro. Algum
dia éramos nós os cães de fila do governo, agora fiquei eu sendo o cão
de busca dos italianos. Ahi mandou o Núncio esse papel italiano; eu
lhe respondi, que só o actual redactor da Gazeta era capaz de satisfa-
zer aos quesitos, pela preciosa collecção que possuia de antigas gaze-
tas que n'isso fallavam com miudeza. Veja se isto tem algum caminho
pelas datas das mortes.
CARTAS. 12
178 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO Dlí MACKDO
Ponha todo o cuidado na correcção das provas do Sermão bifado;
ao menos seja lido com satisfação, já que eu a não tenho de dispor
d'elle como desejava. Creio que os médicos me não farão o mesmo ao
do Hospital, em que vou cuidando.
Seu verdad/° e fiel amigo
. . . Dezembro de 1825.
J, A. de M.
k FRANCISCO DE PAULA FERREIRA DA COSTA
Meu amigo
Eu só sirvo de importuaal-o e de lhe dar incoramodos; aqui veiu
um cónego de Évora, em toda a sua pompa, juntaado-lhe a qualidade
de bibliolhecario da immensa livraria de ciucoenta mil volumes, que
alli deixou o Bispo Cenáculo, que os leu todos I E como entre tantos
não se encontra um só que eu fizesse, pretende o bibViothecario levar
tudo o que haja feito, e que lhe desse o catalogo. — Isso não é com-
migo (lhe disse eu) porque sei tanto o que tenho feito, como V. III."*
que nada sabe; e é feliz! — Mas por servir a V. 111.'"*, e os livreiros,
tenho um amigo curioso, que me poderá servir a mim, eu lh'o mando
pedir. — Veja V. M.*^® se me pode fazer esse obsequio, e feito elle eu
o mandarei para o Arcebispo Vigário geral, a quem se me pede o faça
entregar. A minha moléstia está cada vez mais aggravada, trato de vêr
como me hei de arrastar até S. Roque, domingo 22; se lá ficar bom
é ficar enterrado na Misericórdia, tudo fica em casa, e eu á sua dis-
posição, pois sou deveras
Seu do coração
J. A. de M.
II
Meu bom e muito presado amigo Paula
Recebi o seu obsequio e lhe peço outro, que vem a ser ura só
exemplar da comedia D. Luiz de Ataide, que com empenho aqui me
pede pessoa capaz. No Forno é verdade ainda lenho dois; mas quem
180 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
m'os ha de mandar? Os dois dragões que lá estão sabem muito bem
furtar, beber e dormir; e para serem mais ditosos que tudo isto, nao
sabem ler. Se quizer o soneto, que lá repetiu o Xavier, eu Ih o man-
darei. Sou muito deveras
Seu amigo
30 de Outubro de 1829.
J. Á. de M.
AO DESEMBARGADOR JOSÉ RIBEIRO SARAIVA
111.""» Sr.
Se a minha attenuada existência não fosse n'este momento mais
do que uma imperfeita morte, eu procuraria pessoalmente a V. S.';
de tanta monta é o negocio que lhe devo expor I Não me toca a mim,
porque nenhuns lenho, mas toca ao throno, ao reino, e á politica eco-
nómica do mesmo reino; e como d'este negocio me foi dado um pleno
conhecimento, e V. S.* é n'elle o mais competente juiz, o mais illus-
Irado, e o mais recto, e o mais capaz de lhe dar a verdadeira direcção
no conceito e opinião da Junta a que tão dignamente V. S.* pertence,
confiando, como devo, em sua benevolência, me animo a dirigir-lhe es-
tas, não supplicas, mas reflexões de um homem que tanto deseja o
bem publico.
Arrematou-se o Contracto do tabaco, como se não arrematam os
contractos, a quem menos lançou e menos dá; o das carnes arrema-
ta-se a quem por menos a dá ao povo; o do tabaco arremata-se a quem
por mais o leva a el-rei. Nova operação de finanças, que ha de dar
muito em que cuidar aos auctores, ou contínuos marteladores de Eco-
nomias politicas. O actual contractador do tabaco, o meu honrado amigo
o Sr. José Ferreira Pinto Basto, perde o Contracto porque o arremata
por mais, e sente uma quebra em sua reputação, porque outro o leva
por menos. Porque motivo se dá a este, e porque motivo se tira áquelle?
Razão económica nas rendas do estado não pode haver, que isso seria
contradictorio, porque era desperdiçar muito quem apenas possue quasi
nada, e a quem a regeneração tem reduzido á mendicidade. Já se re-
presentou respeitosamente a Sua Magestade, já se fez conhecer por
uma espécie de manifesto aos competentes ministros, ao primeiro, e
182 CARTAS DK JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
ao da repartição da Fazenda, que o Sr. José Ferreira Pinto Basto ama
muito mais o seu bom nome e intacto credilo, que sua própria fazenda
e património, e herança de seus filhos, querendo continuar no contra-
cto na actualidade de sua arrematação 1:435 contos de réis; quer ainda
mais, e quer o qne espantou a minha philosophia, porque não parece
natural procedimento de um oíTendido, quer effectivamente apresentar
um livre e espontâneo donativo de cem contos de réis, que immedia-
tanienle devem entrar no real erário: quer, e quer já adiantar mais
seis contos de réis, que deverão ser descontados nas progressivas me-
zadas, além do avultadíssimo deposito de dozentos contos de réis, como
principal condição do Contracto. Pois a quem quer tanto não se danada.
Dizem que quem tudo quer, tudo o perde; este não quer tudo, quer
dar tudo, ha de perder o que se lhe tira, que é a sua honra, quando
tanto offerece, e tanto dá para a sua conservação. Isto, 111.™° Sr. é
muito! perder o estado em suas rendas, porque não recebe; o cidadão
em seu credilo porque lh'o maculam. Também eu perco a única cousa
que tenho, que é a minha paciência, á vista de tantas monstruosidades I
Depois de tantos erros em politica, que são irremediáveis, venha
mais um em economia, não tendo nós já emplastros que possam cica-
irisar tantas feridas, existindo nós exhaustos de sangue, com tantas
sangrias financeiras t
O pouco, quando vem por mãos limpas e fieis, parece que mais
avulta e se multiplica. Quando nos primeiros annos da regência de D.
Pedro II, o contracto d'esta magica folha que se chama tabaco, que até
passou a formar um dos escudetes das bandeiras imperiaes, e o tim-
bre que remata o fechado diadema do novo mundo, que da parte de
el-rei quer embutir leis ao velho mundo que ainda que nós as não
queiramos, outros que sabem mais do que eu, e mais que V. S.' que
tanto sabe, como sâo o marquez de Palmella, o Cândido José Xavier,
que ainda vae dando uma no cravo, outra na ferradura, querem e atei-
mam a querer, rendia trinta mil réis, que tanto alegraram o antigo tri-
bunal dos contos, 6 chegavam para sustentar os terços (batalhões) nas
fronteiras contra os castelhanos. Talvez se queira agora o mesmo mi-
lagre, e que assentem os nossos calculadores, que os mil e quatrocen-
tos contos de João Paulo Cordeiro farão mais que os 1:435 contos de
José Ferreira Pinto.
111.""" Sr. Santo António por mais um vintém faz mais milagres,
e a bulia por mais dois vinténs dá mais indulgências. Dirão que não
vem da conta, mas das mãos limpas que a administram; e com efifeito
parece que João Paulo leva o Contracto ás mãos lavadas, e que também
AO DESEMBARGADOR JOSÉ RIBEIRO SARAIVA 183
OS tem OS outros servidores da toalha, que a João Paula vêm ajoujados.
Nâo tenham elles em logar das mãos limpas, as algibeiras! Teremos
nós mais alguma especulação mercantil de latrocínio? Não devo ajui-
zar assim de novos varões tão conspícuos, quaes se devem considerar
a si mesmos os nove arrematadores; comludo, se eu me devo dirigir
pelo conhecimento do caracter moral dos sujeitos, muita cousa espera
o povo dos arrematantes I Sae Sua Magestade de Vienna; quebram-se
as pernas ao Banco; pois este banco dos nove não os tem mais segu-
ros, e um que se chama José Diogo de Bastos não poderá entrar com
a sua quota para o deposito preliminar do contracto, porque tem de
reserva, e não de sobrecellente alguns tostões, para quem lhe apresen-
tar a cabeça do Marquez de Chaves, como elle dizia aqui em Pedrou-
çosl. . . Homem constitucional I E os mais? Ainda o são mais. Citados
para apparecerem, e se tratar das estipulações do Contracto, não ap-
parecem; buscados depois para pagarem o arrendamento, desappare-
cerão, e ainda muito mais se o recado vier do Erário. A Inglaterra,
que não tem já os Estados Unidos, conserva a virtude da sua hospita-
lidade, é a mãe e a consoladora dos afílictos, e ainda que na sua Car-
tilha não tenha as obras de misericórdia, grande pousada dá aos pere-
grinos.
A sua benevolência, amisade e sympathia, me animam a pôr na
presença de V. S.* estas ingénuas reflexões, ou estas exhalações de
um amor verdadeiramente pátrio; agora a sua auctoridade, represen-
tação, e até a sua eloquência, mais poderão na Junta, e onde ainda
mais convier. Os ouvidos do throno não estão fechados para V. S.*, e
assim como é um oráculo na magistratura, pelo seu vastíssimo saber,
para ser escutado, não o será menos, se em algum gabinete se dignar
annunciar-se sobre matéria, tanto de politica, como de economia. Muito
tenho dito a V. S.*, muito mais dirá a V. S.* o portador d'esta, só não
poderá dizer o que não sabe, que vem a ser quanto eu seja e serei
sempre
De V. S.*
Am.° obrig."" e ven.""" sincero
J. Á. de M.
Pedrouços, 29 de Janeiro de 1829.
184 CARTAS l)K JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
II
ni."» Sr.
Todos os axiomas que a velha philosophia nos deixou, e a mo-
derna conserva, sobre a difiBculdade que o homem deve ter em pedir
a ouiro homem, a austera e rigorosa sentença de Séneca, que diz em
ultima instancia que a cousa mais cara que ha é aquella que se com-
pra com rogativas: — tudo isto desapparece e nenhum caso faço de
tudo isto, quando se trata de pedir ao 111.""* Sr. Des." José Ribeiro
Saraiva. Então porquê? — Eu o digo. Porque é o 111.°° Sr. Des.°" José
Ribeiro Saraiva a quem se pede. Pedir para si é interesse próprio, pe-
dir para outro é ser philosophicamente generoso, porque fica com a
vergonha da petição, e o outro com o despacho d'ella. Que me pedirá
este clérigo? Dirá V. S.* — Eu peço o que o portador disser; e porque
é justo, eu vou adeante d'elle, faço de moço de cego, e como em tudo
•desejo servir a V. S.* é de razão que V. S.* em alguma cousa o sirva
a elle. O moço pede com eloquência, porque sem dizer palavra, aponta
para a cara do amo, onde se lhe não vê o sentido com que se vê; eu
aponto para o portador, e digo: eis aqui um homem de muitos servi-
ços a pró da melhor causa, que é a do rei e a do reino, e a respeito
da recompensa verdadeiramente é cego, porque ainda a não viu; ecomo
não ha causa que o cego deseje tanto como é vêr, abra-lhe V. S.* os
olhos com o seu patrocínio, fazendo que seja bem ouvido e bera des-
pachado um requerimento de que pende a sua ventura, e a ventura
de irmãos orphãos e desamparados, sobre o qual foi mandado consul-
tar o conselho da Fazenda. Esta é a supplica do homem, agora vae a
minha, que pende no tribunal da amisade, e vem a ser, saber o es-
tado de saúde e da chegada a Inglaterra de seu filho o Sr. António Ri-
beiro Saraiva, pois me prometteu que a diplomacia o não faria esque-
cer de me dar noticias suas; já que elle o não faz, dê-me V. S.* as
suas ordens e determinações, para que execulando-as mostre que sou
De V. S.*
Pedrouços, 15 de Abril de 1830.
Am.* e creado obrig.""
J. A. de M.
A CLÁUDIO JOAQUIM DOS SANTOS
Amigo e Sr.
Pelo que falíamos na ultima vez que v. m." se dignou honrar esta
casa, conheceria que eu não só tinha desejo, mas que estava na deter-
minação de escrever a ura dos senhores Caixas do real Contracto do ta-
baco sobre o importante objecto de remover receios e destruir calum-
nias, que podessem inquietar os novos contractadores, mas eu não os
conheço pessoalmente, e considerando a cousa com mais reflexão, me
persuadi que elles o estranhariam. Eu não vim a este mundo para o
emendar; e que me poderia dar essa missão ou quem me quereria atu-
rar? É verdade que não passa um só dia em que á roda d'esta cama
não appareçam trombetas a buzinar alto contra todos, e contra cada
um dos novos contractadores; que tenho eu com isso, se eu os não
conheço, nem nenhum d'elles me oílendeu? Assim mesmo as importu-
nações não têm cessado. Eu não sou instrumento de vinganças, e nin-
guém me poderá arguir de uma vileza. Se v. m.*=® pode ter alguma in-
timidade com qualquer d'esses senhores, pode certificar-lhe por mim,
e em meu nome expressamente, que sobre elles não apparecerá uma
só letra minha, que diminua ou ponha em duvida o seu credito na opi-
nião publica; e se algum valor se dá ao que eu escrevo, eu os defen-
derei sempre, se elles julgarem isto necessário (e talvez o sejal) con-
siderada a multidão, e o poder de seus inimigos. Se com a confiança
que me dá este meu ofifereci mento, e se pode haver recompensa antes
de feito o serviço, só desejaria que a escolha de seus empregados re-
caísse sobre sujeitos taes, que por seus sentimentos, caracter, honra,
e costumes tapassem a bocca a criminações contra os nomeadores. Em
Y. m.*^ tinham elles um exemplar ou modello de homem de bera, que
186 CARTAS DE JOSÉ AGOSl l.NMO DE MACEDO
poderia merecer a approvação minha, e publica; e estimaria que por
V. m/® começassem a confundir os calumniadores. Esta lembrança é
minha e não, é de v. m.", e por isso lhe digo que pode fazer o uso
que lhe parecer d'esta minha carta. O terrível estado em que me con-
serva a minha enfermidade me obriga a estar, como v. m.^® me viu,
entrevado e irapossibihtado para tudo; se não fosse este invencível ob-
stáculo eu pessoalmente procuraria o 111.""° Sr. João Paulo; conheci seu
pae, fui seu amigo, era da minha província, homem de muito respeito
e de muita honra. As portas d'esta casa estão sempre abertas, e de
continuo dão entrada a pessoas de, muita consideração; se algum d'es-
ses senhores, por occasião de passagem, me quizer honrar com a sua
presença, eu excessivamente o estimaria; entretanto pode v. m.^^ com
segurança certiíicar-lhes que sou sincero em dizer que os estimo e re-
speito tanto quanto sou
De V. m.^®
Amigo e obrigado
Pedrouços, 26 de Abril Ide 1829.
J. A. de M.
II
Amigo e Sr.
A minha enfermidade se tem tornado de um aspecto terrível; ne-
nhum remédio aproveita; quasi sempre me prende na cama, quasi te-
nho perdida a esperança de melhora. Agora que me posso conservar
fora da cama, aproveito o instante para lhe dizer, que desejo saber al-
guma cousa dos nossos bons amigos, pela obrigação em que me con-
stituíram, e estranho não me terem ainda encarregado de cousa al-
guma que eu lhe faça, ou possa annunciar para credito de todos, o que
muito desejo fazer; também quizera saber a segurança e a estabilidade
em que vae estando o principal negocio, ou se é preciso destruir al-
guma opposição. Em tudo o que lhe disser respeito sou eu interes-
sado, e lhe peço que me récommende muito, e com muita amisade,
porque me constituíram n'esse dever.
Aqui veiu um nosso conhecido pedir-me uns versos, para se re-
citarem não sei aonde; para a seguinte viagem do mudo eu lh'os en-
viarei. José Daniel também me pediu um papel que eu fiz, porém não
o tenho, e o sujeito que o tem me diz que o levara ao desembarga-
A CLÁUDIO JOAQUIM DOS SANTOS i87
dor, para quem José Daniel o pedira. Tenha saúde, e todas as felici-
dades que[lhe deseja
Seu am.° e m/° obrig.*^"
J. A. de M.
Pedrouços, 19 de Junho de 1829.
A FR. ÁLVARO VAHIA
Secretario Geral da Ordem de S. Bernardo
111."»» Sr.
O P." M.* Fr. Joaquim da Cruz, que por certo n3o é correio de
más novas; perguntando-lhe pelo estado da saúde de V. S.* como de-
Tia perguntar, me disse que V. S.' passava muito incommodado, e como
ninguém ha que mais arruinada a tenha, e por experiência própria sei
o que isso seja, senti a noticia, e lhe desejo o restabelecimento com a
mesma verdade com que desejo concluir um tratado de tréguas com
o meu insanável padecimento, mas em batalha com o mal ou livre
d'elle, renovo e conservarei o protesto de amisade que a V. S.* con-
sagro, que vem a ser a mesma que até agora lhe consagrei. Se o es-
tado da minha saúde é máo, o dos meus negócios é péssimo ; comtudo
vejo lampejar não muito ao longe um vislumbre de completa felicidade.
Propoz-se em conselho ministerial dar-me alguma representação n'este
mundo, e sei de certo que se decretou e tem decretado fazer-me aju-
dante de um leigo arrabido, a quem chamam o P.® Fr. Cláudio, inves-
tigador das matérias primas dos oflBcios, para compor a chronica da
Casa dos Vinte e quatro, e a quem os pentieiros ofifereceram e deram
um corno, posto que devamos piamente crer que muitos teriam mui-
tos. A mim m'o darão, se com effeito domingo de tarde, que é o mo-
mento aprazado, vier de Queluz este diploma. Já m'o metteram na
bocca para não fallar, não é muito que m'o dêm por premio para es-
crever. Não rejeito porque o tinteiro que agora é de vidro, passará a
ser de corno, mas isto não é ir coherente n'este reinadol! Talvez haja
ministro que possa dizer o que um celebre artista, que fazia no forno
grandes curiosidades n'esta matéria, para elle não inflexível: copos,
tinteiros, pentes, gargalos de borracha, etc— Oh mestre, aonde foi
190 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
você aprender isto? — Isso sâo cousas tiradas da minha cabeça, respon-
deu elle. O mesmo agente d'este torto negocio me disse, que ainda ou-
tro dia pedira Sua Magestade a um tal José Luiz da Rocha, que lá tem
no gabinete a Besta 27.*, que lh'a dera a guardar quando veiu na con-
sulta do Desembargo em Novembro de 1829; mais besta me parece
qnem falia já em tal Besea 27^ Disse aqai o sarilho humano chamado
António Ribeiro Saraiva, que a Besta 27^ andava arreatada á marcha
politica e negócios europeus sobre o reconhecimento, e que elle sari-
lho cooperara para a suppressão, para mostrar ás potencias que nada
apparecia em Portugal que mostrasse opposição ao systema de mode-
ração mandado abraçar pelo que respeita ao procedimento relativo aos
pedreiros Uvres, como mandavam e dispunham as potencias para o re-
conherimento; de maneira que a única prova que se exige da legitimi-
dade do senhor D. Miguel e dos seus direitos á successão ao throno,
é aturar elle e aturarmos nós os pedreiros livres desencabrestados. Va-
mos a outra de outro género. Entre os visitantes de boas festas veiu
aqui quarta feira de tarde António José Guião, faliou, fallou, fallou, e
entre as cousas que perguntou foi, se eu sabia onde se poderiam achar
as fórmulas das sentenças dadas contra desacatos. Lá lhe lembrei a do
antigo de Odivellas, de que foi advogado o celebre Pegas, que anda im-
presso, e a do antigo de Santa Engracia, em que foi juiz Gabriel Pe-
reira de Castro, que também impresso anda. Fallou-me logo, e creio
que este era o maior negocio, no Doutor Caruncho, quer dizer, João Pe-
dro Ribeiro, que criticara magistralmente Fr. Fortunato, e mais a mim,
lhe respondi eu; e como não quero dever nada a ninguém, eu lhe pa-
garia o meu quinhão, e mais ainda o do senhor Fr. Fortunato. — Isso
é o que se não quer, e é bom evitar contestações. — Melhor é não er-
rar tanto as contas da Junta dos Juros. — Lá se foi e não contente. O
diabo do Dr. Caruncho não quer que ninguém mais basculhe perga-
minhos velhos, ha de ser elle o basculhador para encher livros gros-
sos de cousa nenhuma. Ora basta de carta que o posso incommodar;
e fallando-lhe em incommodos lhe dou mais um, e vem a ser o des-
pacho do Ill.™° na prorogação do breve da religiosa, que apresenta já
acompanhado das primeiras licenças; e eu fico promptissimo para mo-
strar em tudo que sou de V. S.* invariável amigo
/. A. de M.
Pedrouços, 16 de Abril de 1830.
AOS SENHORES INVESTIGADORES
Lisboa 18 de Junho de 1812.
Ora vossès hão de ter estranhado o meu silencio, sendo eu aliás
o ultimo apuro da civilidade, e merecendo-a vossés como duas perso-
nagens tão respeitáveis! Não estava em Lisboa, quando chegou o seu
8.° molho de grelos, e eis aqui o motivo. Cheguei, vi, e respondi; vae
o impresso, e por certo vossês tiveram alguma oração boa, que dispoz
a seu favor a alma do censor, que não deixou ir metade do que eu ha-
via escripto, e vossês mereciam. Dois alentadissimos pacovios sentados
na tripode jornalista, e constituídos de molu próprio julgadores integer-
rimos de producções lilterarias, ignorando os primeiros rudimentos de
grammatica portugueza, mereciam uma tunda ou uma surra que os en-
vergonhasse se isto fosse possível. Por ventura sua a faculdade de im-
primir está por extremo restricta n'esle infeliz reino, de que vossês e
os da confraria tenebrosa iam dando cabo de todo. Vae o que deixa-
ram ir, mas vae o que basta para que o mundo conheça sua incapa-
cidade, ignorância e insufBciencia. D'esta mesma ignorância tinha elle
já fartos conhecimentos, depois que vossês se resolveram a pejar a ca-
pital e o reino de mais um apontoado de inepcias, chamado o Inve-
stigador, como se não bastasse o flagello dos folhetos, e de gazetas, que
nos innunda. Porém vossês podiam ser muito maus rhapsodistas e tole-
ráveis críticos, ou ajuizadores de obras alheias. Mas são tão asnos em
aggregar noticias sediças no seu folhetasio, quanto são desproposita-
dos em suas avaliações. Eu mesmo, querendo usar de equidade, os
desculpava a principio: — Isto é fome em dois assassinos de traquita-
na; juntaram-se, lembrou-lhes o meio de um periódico, leitura com
que se occupa o mundo actual, e fizeram um periódico. Se os julguei
!92 CAHTÀS DE JOSÉ AGOSTINHO DF. MACKDO
famélicos, não pude deixar de os julgar completamente asnos, quando
nos remetteram a Ode — A corja adusta — como um modello de poe-
sia, e seu auctor, tão cego por dentro como por fora, como um clás-
sico. Alguns disseram: — Isto alem de ser uma parvoíce, é uma pati-
faria; e esta canalha galenica já que não pode, como queria, arrui-
nar a nação, vinga-se em a insultar. Que se podia esperar do mezi-
nheiro Abrantes, que gritava pelo convento da Graça, quando lá foi
estabelecer o hospital: Ham-de ir para o meio da rua; o Imperador
ha-de ser servido 1 — Esta não pozeram vossês na apologia das unguen-
tadas, entre as perguntas de Jeronymo Lobol Pois d'esta ha vinte tes-
temunhas contestes, e de outras mil ainda mais calvas, que vão en-
grossando a resposta que o publico indignado dá ao seu apologético,
e remette para o Rio de Janeiro. Ora baste d*isto, que não vem muito
para o caso da analyse dos quatro primeiros cantos do poema Gama.
Abriram-se aqui as comportas da parvoíce, e deram-se a conhecer.
Eu mesmo, sendo offendido, julgeí que não era cousa sua mas d'al-
gum dos irmãos da confraria, que de cá lh'a remettera; estou porém
desenganado, porque as ultimas provas, que vão dando de parvoíce
nos números subsequentes, me tiram fora da duvida em que estava,
de que fossem vossês os auctores da destampada analyse. Como os
não faz chorar o episodio de Ignez, não presta o poema! Vossês não
choram sobre as ruínas da pátria, queriam enternecer-se sobre uma
phantastica desventura! Quem achou até agora resquícios de sensibi-
lidade na alma de um pedreiro? Sobre a dureza de seus corações se
forma sua destampada sentença. Se vossês não chorarem bem sacudi-
dos com um arrocho, com versos não choram por certo. Ora creiam
vossês, que se não chorarem com o que eu compuz, fazem por certo
rir o mundo sensato com o que vossês publicam. Eu não só me rio
dos seus infelizes cadernos, rio mais do ár de importância que vossês
se dão. Desgraçados compiladores! Fazem um jornal para Portugal, e
mandam para Portugal o que em Portugal tem ja apodrecido pelas es-
quinas; com quatro disparates chímíco-medícos iníntellígíveís, em que
apenas se pode interessar algum matasanos, como vossês!
O grande serviço que tem feito ê estragarem a linguagem; e não
sabendo d'ella metade, a emporcalham com lermos e phrases taes,
que nos reduzem a um bárbaro vasconço, tão escuro, torto e òco,
como vossês têem a alma! Ainda não produziram um só artigo, ou
novo, ou útil, e escondem tanto o veneno em suas parvoíces, como
manifesta perversidade o seu confrade Brasíliense, capataz da cáfila,
e varrido mentecapto, a quem já que a forca não faz emmudecer^ eu
AOS SENHORES INVESTIGADORES 103
farei calar. Tremam, alemos imperceptíveis no paiz das leltras, vossês
nada são. Existem em um paiz cheio de jornaes de toda a casta; nem
d'estes mesmos sabem fazer uma compilação; e multiplicando-se ahi
as producções litterarias, conforme o rol que vossès apresentam, não
sabem da mais insignificante brochura fazer um extracto; muito seccos
são vossés! Apenas servem para editores de papelada bolorenta, que
de cá lhes mandam; e n'este estado de miséria atlrevem-se a fallar
no poema Gama! Ora vossès não esperavam uma resposta impressa?
Sei o que ha de sofifrer a sua hypocrita vaidade, porque conheço até
que ponto costuma levar a presumpção um apalpador de pulsos, e ob-
servador de ourinoes; em vossês cresce mais esta vaidade, porque ao
caracter de enterradores ajnntam as ventosidades de jornalistas, nova
espécie de entes ephemeros, conhecidos agora, e cuja nomeada acaba
sempre detestada no Om da semana ou mez em que apparece o tristis-
simo periódico. Não posso consideral-os por lado algum, que não des-
cubra dois burros coçando reciprocamente o pescosso de outros que
taes. Apresentam as obras dos confrades acompanhadas sempre de an-
tiphonas; se faliam no estouvado jacobino Almeida, tem o desaforo de
dizer a pag. 426 do 11.° apontoado, que é um barão que procura a
gloria da pátria, e do seu príncipe, sendo um patife, que no botequim
do Madre de Deus, no Rocio, tirou do chapéo o laço nacional, e o ati-
rou aos pés, quando aqui consentimos os Franchinotes, os regenera-
dores da humanidade, como vossês são. Das parvoíces e patifarias d'este
abridor de c.ões se conserva aqui um vasto rol; e lembrado estará
elle do que disse contra o Príncipe N. S. em quinta feira de endoen-
ças a Manoel José Teixeira, saindo do hospital.
D'estas boas rezes sabem vossês elogiar as obras; se algum d'el-
les se tivesse sabido com o poema Gama, vossês procurariam leval-o
áquella immortalídade, que premettem os jornaes, e aíBançam os In-
vestigadores, em quanto se não limpa o cú com elles. O auctor não é
da irmandade; e basta isto para flcar anathematísado por decreto de
sua absoluta vontade. Se vossês estabelecessem as regras da epopéa,
e considerando o poema no todo e nas partes, mostrassem que não
estava conforme ás mesmas regras; que peccava na construcção, na
ordem, na forma, nos accidentes; que não conservava a magestade da
narração épica; mostrariam ao menos que estavam enlabusados na
Iheoria da tal arte poética; mas decidir de estalo, com os cadinhos chi-
micos na mão, e dizer não presta, só porque vossês o dizem; isto é
fanfarronada gazetal, ou um publico garante da sua parvoíce.
Se vossês nos felicitassem com alguma producção sua original,
CARTAS. { 3
194 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
eu lhes faria a poda, e lhes mostraria como se analysa, como se cri-
tica, e como se decide; mas não lhes deu ainda para sairem do aper-
tado circulo de raáos compiladores.
Um de Tossês ja se sahiu com uma traducção, que é a de Dar-
win;* mas é tão nojenta a salgalhada dos Gnomos e dos Sylphos, que
não é possível devorar uma pagina sem vómitos. Os versos soltos são
duros como cornos, e estão de ponta uns com outros, de tal arte que
jamais se ligam entre si; e com estes serviços se arvoram vossês em
criticosi Ora baste; o papel impresso que lhes remetto dirá melhor
o que vossês fizeram; e ainda que isto não seja carta de Alexandre de
Gusmão, nem da cidadôa Valleré, bem podiam vossês com ella afor-
mosear o seu periódico; e se vossês se não atrevem com ella, entre-
guem-na a seu camarada Hypolito, esse trombeta da pedreirada, le-
gislador de Caracas, ou esse malvado réo de leza humanidade, que
ainda não disse senão bafordos; e creia elle, e de caminho vossês,
que se pôde escapar do barril de alcatrão que o esperava no Rocio,
não me escapará a mim das unhas; e pois estou em um reino, aonde
uma iudalgenlissima e mal empregada moderação não deixa responder
a impressos com impressos, para zurzir a elle, a vossês, e a todos,
serei em Londres.
/. A. de M.
P. S. Fico esperando no seu periódico as descomposturas, que lhes
ha de suggerir esta minha carta; mas ellas me encherão de prazer,
logo que venham acompanhadas d'esta carta, fielmente transcripta, da
qual vão duas copias para o Rio de Janeiro n'este próximo navio; e
se mandou imprimir uma porção, de que poJem ficar certos se não
destribuirá sequer uma, senão no caso de vossês me descomporem
sem a transcreverem.
1 Refere -se ao poema didáctico O Jardim botânico, traduzido de inglez por Vi-
cente Pedro Noiasco da Cunha. Lisboa^ muccciii. In- 16, de yiii-326 pp. (Com três gra-
vuras).
 ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO*
Acerca das suas t Cartas de Ecoo e Narciso»
111.°° Sr. António Feliciano de Castilho.
Tive a satisfação de lêr e admirar as suas Cartas de Ecco e Narci-
so, que me foram enviadas para a censura; a approvação e o louvor já
vinham na primeira pagina, apenas se chegava a lêr o seu nome. Desde
que li seus primeiros versos impressos, conheci que a natureza quiz
fazer uma aberração da sua marcha ordinária, vendo que principiava
por onde os outros, e mais perfeitos, acabam, e esperei sempre que
em cada producção nos desse um maior prodigio; e onde parará isto?
Com suas poesias vejo que não pode marcar limites a perfectibilidade
de sêr humano. Sendo pois tão seu admirador, não posso ser seu amigo,
quando me considero procurador dos Poetas portuguezes, que florece-
ram no tempo dos portuguezes. Concedo que a poesia romântica é a
primogénita de todas as poesias; os quadros campestres, e o amnr
foram os primeiros folies d'esta gaita, hoje tão destemperada; concedo
que Theocrito, Bion e Moschus, eram os modernos de outros antigos,
como nós somos os modernos d'estes gregos velhos, mas não concedo
que os allemães e suissos fossem os primeiros reproductores d'esta
antiguidade, como diz a tal senhora;^ fomos nós os portuguezes, e só
nós portuguezes; e primeiro escreveu Bernardim Ribeiro que Sanna-
zaro, primeiro Christovam Falcão, que Bernardino Rotta, que Ludovico
Paterno, primeiro Jorge de Monte-mór que Marco de Leo, que Jero-
nymo Benivieni, e primeiro o mimoso, o delicado, o natural Francisco
* Publicado pela primeira vez na obra Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, p. 386
a 390. Porto 1897.
* Allude a M."» de Stael.
196 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Bodrigues Lobo, e o sentimeiítal Fernão Alvares do Oriente, que todos
os pandos e bojudos allemães, porque o mesmo Haller, de quem te-
nho o retraio, mostra maior cabeça e mais vasta corpulência que Vi-
tplio. Não posso chamar caracter, porém manha ou mazella, a dos por-
tuguezes não fazerem caso de cousa nenhuma; um poeta, e a índia
é para elles o mesmo, e perder ambas estas cousas é perder cousa
nenhuma; e para elles é mais bem feito um cavallinho allemão com seu
assobio no rabo, que o cavallo de bronze com el-rei D. José em cima.
Todas as traducções da coUecção de Huber não valem um Christovam
Falcão, auctor d'aquellas namoradas trovas, como diz um historiador
nosso; este Christovam Falcão achou-se com Affonso de Albuquerque
na conquista de Malaca, e era capitão de um terço, que vem a ser cousa
que por certo valia mais que trinta Tenentes-Generaes dos nossos de
dragonas grandes. Ora, meu amigo, eu julgo que n'essa velha Coimbra
ainda ha algum ginga como eu, que conheça e prese as cousas de Por-
tugal velho, porque o moderno não tem cousas; e as trovas ahi foram
impressas, como diz o padre António dos Reis no Enlhiisiasmo Poético;
veja se la descobre um exemplar, e verá os allemães corfto fogem, ou
se mettem a compor assomantes volumes de direito. Olhe que os an-
tediluvianos não eram mais chorões que Crisfal, quando diz:
E porquanto certo sei
Que as lagrimas são salgadas,
Aquellas doces achei . . .
Em uma roca fiando,
Mas o fuso lhe cahia
Dos dedos de quando em quando.
Veja se toda a melodia e sentimentaria dos românticos allemães
eguala a sentimental melodia d'esta prosa de Bernardim Ribeiro, que
com muitos, e com todo eile conservo na memoria; — «Um freixo, que
algumas das ramas estendia sobre a agua que alli fazia tamalavez da
corrente, que impedida de um penedo, que no meio d'ella estava, se
dividia, para um e outro cabo murmurando. Eu que os olhos levava alli
postos, comecei de tomar algum conforto no meu mal, vendo como
aquella pedra imiga de seu curso natural o empecia, bem como as mi-
nhas desaventuras sabiam em outro tempo fazer a tudo o que mais
queria, que agora ja não quero nada.» — Todos os círculos de Alema-
nha, toda a confederação do Rheno, todos os cantos, ou canções das
A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO 197
vaccas dos cantões Suissos, não valem metade das naturaes lamurias
<3e Francisco Rodrigues Lobo:
Se fícas atraz.
Como esta alma teme.
Guiarei o leme
Para onde vás.
D'onde lhe veiu esta rez,
Que ella poucas vaccas cria?
Ganhou-a n'uma porfia.
Nas festas que Ergasto fez.
Meu amigo, persuado-me que á excepção de um castelhano ve-
lho chamado Castillejos, ninguém eguala os portuguezes no espirito
e lettra de poesia primitiva. Está mui moço, em boa edade, e é e deve
ser saudado poeta; basculhe esses pulverulentos bacamartes, que por
certo não são monturos de Ennio, e tenha de lá mão n'esta carami-
uhola chamada poesia, que se vae a terra
Inte omniã domus inclinate recumbit.
Ja para mim não ha a gaita de Pan, nem a trombeta de Galliope ;
para lhe escrever esta carta deitei agua no tinteiro, porque a tinta es-
tava reduzida a polme; um giz me basta para lavrar atraz da porta o
rol da roupa.
Ha quatro annos sem interrupção, refazia, polia, e alargava o
poema Oriente. Ja renunciei á mania de o tirar do cahos dos borrões.
Fique cá para os futuros Saumaises. É tolice cantar a surdos. Tive
minhas cócegas de passar dois mezes de inverno em Coimbra, e fazer
algum contrabando em letlras, porque n'este meridiano de Lisboa não
são fazendas de lei.
Folgaria de ver-me as cans e a fronte
Esse negro esquadrão, que entulha a ponte.
Mas como ahi Minerva é Palias, e tudo é pancadaria, um arcabuz
ou um cajado não me parecem muito azados para bater o compasso ás
endechas das Musas, que como raparigas têm muito medo, e muito
pouca vergonha. Vá continuando com o seu Ecco, que elle retum-
bará pelo universo:
198 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Porque eu se em verso aos grandes exclamara:
— Olhae, que o dom das Musas não se herda, —
Logo o eccho dos grandes me tornara:
«Vae tu, e os versos teus beber da m. . .»
Perdoe esta caduquice de um velho, e creia que é
Seu amigo
Lisboa, 13 de Agosto de 1824.
/. Â, de M.
 FREIRA TRINA D. FELICIANA R***
(Do Convento do Rato)
111.°" Sr.*
Vindo de fora de Lisboa, achei a polida, discreta e altenciosa
carta de V. S.* e com mais rasão peço a V. S.* me desculpe a de-
mora da resposta. Sim, minha Sr.* eu acceito o Sermão do S.*° Pa-
triarcha, com muito gosto irei, e com muita applicação cuidarei n'elle,
pois vejo agora pela sua carta, que ha n'essa edificante clausura um
tâo asisado ouvinte como V. S.* Por certo tão bom espirito ha de ati-
nar com o caminho da perfeição, e assim como é um Anjo no que
diz, eu não duvido, que seja um Anjo no que obre. Não se encontra
no mundo isso. Ora pois, eu lhe desejo todos os bens, desejo-lhe o
Céo.
Eu sou de V. S.*
Sincero admirador, e servo
José Agostinho de Macedo.
C. 30 Janeiro de 1820.
II
111."' Senhora
A estimadíssima carta de V. S.* me foi aqui entregue em Odivel-
las onde vim passar estes dias com minha irmã Religiosa n'este Mos-
teiro; eu lhe dei a lêr este monumento da sua discrição e civilidade»
a que dei aquelles louvores que ella lambem merece, e eu sei conbe*
200 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
cer; minha irmã é dotada de um talento prodigioso, é um assom-
bro de leiras e intelligencia, e por isto digo que a apreciou leodo-a
mais de uma vez, o que por certo fariam, e farão sempre os verdadei-
ros intelligentes. Isto não é uma resposta ao negocio, é um tributo
dado a tão brilhante mérito, com o de V. S.* Ora pois estes jus-
tos louvores não devem ser um fomento de vaidade, mas um mo-
tivo de agradecer ao Céo a grande dadiva do seu entendimento.
Logo presumi que se não reaiisava a troca, mas nem por isso dei-
xarei de ter a satisfação de fallar n'essa Igreja, e o gosto de ser es-
cutado de V. S.* Irei na 5.* Dominga ás quatro horas; na 5.* feira
santa irei também á hora costumada. Queira o céo que não haja no
adro a matinada dos bonecos, que é mais gritaria de feira, que acção
de piedade. Os actos da Rehgião não devem ser ridículos, e se depois
d'isto é na minha alma um acto sério, é aqueile no qual eu confesso,
que estimo a V. S.% que uma carta sua é um bem, e eu um
Verdadeiro admirador e s.° de V. S.*
José Agostinho de Macedo
Odivellas, i 1 de Fevereiro de 1820.
III
111.""* Senhora
Com eflfeito, amanhã é verdadeiramente para mim um Domingo
de paixão e de paixões. É dia de S. José, e segundo o costume prego
todos os annos na sua Igreja de manhã, e de tarde, assim me sucede
amanhã. Os músicos que vão de tarde têm seus septenarios de Dores
onde devem estar depois da função de tarde de S. José, e de tal ma-
neira me comphcam as horas que não posso ^star na Igreja d'esse Con-
vento se não muito tarde, como eu já disse ao Procurador que o par-
ticiparia a V. S.*; n'estes termos fallei a um bom Pregador, que tam-
bém vae por mim a S. Sebastião da Pedreira, para que no caso que
eu ahi não possa ir antes de ir ao 2.° sermão de S. José, elle faça
as rainhas vezes. Espero que V. S.* condescenda, para se evitarem es-
peras e murmúrios. Minha irmã Freira Bernarda, a mais doente das
creaturas porque tem hum perigoso aneurisma no pescoço e gota ro-
A FREIRA TRINA D. FELICIANA 201
zea na cara, e o maior de todos os talentos,* que via as cartas de V.
S.*, sae em Abril e deseja visitar uma tarde a V. S.* Sou
De V. S.*
18 de Março de 1820.
Servo obrig.
mo
José Agostinho de Macedo.
IV
III."* Senhora
Não sei se isto lhe parecerá ama secatura impertinente, porém
como me disse que gostava de ver os destemperos do tempo, o maior
de todos elles é esse que lhe reraetto, e muito mais recommendavel
por ser parto do engenho de um Religioso da SS."' Trindade da Redem-
pção de Cativos; se o auctor estivesse em terra de Mouros não o fa-
ria peor. Já se lhe respondeu, mas vae a apparecer coisa melhor. Se
amanhã domingo de tarde ou o mais certo na 2.* feira não chover
muito, eu irei por certo importunar a V. S.* sobre a ida da emplas-
trada M.* Gand.* Sou
De V. S.*
G. 17 de Fevereiro de 1821.
M.»° V.°' e Servo
José Agostinho de Macedo.
lil."»* Senhora
Torno a importunal-a, ou a tomar-lhe o tem[>o preciso para as suas
laboriosas occupações, para lhe dizer uma coisa, e remetter-lhe ou-
tra; dizer-ihe que hoje 19, de tarde, irei á vossa invisivel presença
para saber qual seja a tarde desoccupada antes do Entrudo em que li
possa ir a doente; e remetler-lhe esses dois papeis ambos meus, um
sem nome, outro com elle. No que tem nome verá V. S.* o Géo; no
* Allude a D. Maria Cândida do Valle.
202 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
que o não tem verá o Mundo, a mistura não é boa, mas ria-se do
Mundo, e admire o Céo. Eu não sei dizer finezas, mas ahi vae uma,
V. S.' é o Céo pelas suas virtudes, estado e mérito, eu serei o Mundo
pelas minhas imperfeições, mas entre tanto mal, tenho um bem, que
é ser
De V. S.*
C. 19 de Fevereiro de 1821.
M/° venerador
José Agostinho de Macedo.
VI
111.°* Senhora
Todo o Mundo está levantado contra a Trindade (as Trinas defen-
derei eu). Appareceu agora um Barbeiro, que leva coiro e cabello. To-
dos faliam em casa de Frade que vem a ser uma coisa, assim por modo
de uma coisa muito deslavada, muito dura e muito estanhada, e tudo
isto é preciso para soffrer os golpes de tal navalha. Ha cá por estas
ruas uns marcos chamados Frades de pedra, porque assim parecem
pelo feitio; julgo que em cahindo algum, virá o Trino substituir-lhe o
logar, porque é tão de pedra, que nada d'isto sente. Seja portanto cari-
dade! Tomara eu ter um Fradinho da mão furada, que me adivinhasse,
e me dissesse se deveras V. S.* se persuade que eu sou
M.*** seu venerador e obrig.''°
P. S.
Inda não pude, por doente
ir fallar á doente.
C. 21 de Fevereiro de 1821.
José Agostinho de Macedo.
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 203
VII
111."'* Senhora
Esse Padre que ahi está, e que tem uma cabecinha assim por
modo de um gatinho cinzento, me deu noticias de V. S.*, 5.* feira em
S. João de Deus. Grande caridade inspira este santo, pois o P." a teve
commigo em me chamar á vida, pronunciando o seu noiue, porque quem
me quer ver como um defunto, metta-me entre Frades, e então se
fossem só os da casa, mais por aqui ou mais por alli. sempre lhe es-
caparia, mas era um enxame d'elles de todas as castas e feitios que
n'aquelle dia alli se appresentam, e sendo o maior mariyrio que fizeram
a Nosso Sr. Jesus Christo, fazer-lhe muita pergunta, assentou aquelle
embrexado de cacos e cabeças rapadas crucificar-me lambem com per-
guntas sobre as novidades do tempo. Eu já estava para cahir n'um fa-
nico, quando o seu P.' cabeça de Gatinho me acodiu, dizendo-me que
ao despedir-se da communidade (que saudades lá deixaria I) V. S.* lhe
dissera, que eu lá estaria no tal convento. Isto bastou, tornei á vida,
fugi dos Frades, metti-me a um canto, a titulo de me lembrar das
virtudes do Santo, mas foi para me recordar d'aquellas que adornam a
pessoa de V. S.* e pelas quaes eu sou
De V. S."
O mais, o mais, o mais que
Venerador e servo
P. S.
Sirva-se V. S.* d'esse papel para
me dizer que passa bem.
José Agostinho de Macedo.
VIII
111.""* Senhora
Estou com muito cuidado em V. S.' porque me dizia na sua ul-
tima carta, e ha muito tempo que ella veiuf que estava na grade...
Na grade? Nas grades, nas rotulas, nos buraquinhos, nns panos, &.,
&., âc., cercada de inquilinos, de letrados, de escrivães, menos gente
204 CAKTAS DK JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
terão as cortes! É de presumir que lhe causassem dor de cabeça, e
eis aqui o que me causa a mim cuidado, por isso mando saber de V.
S.' Passam-se, ou fingem-se Bulias para comer carne na Quaresma, só
o triste de mim, e os tristes dos mais não têm uma Bulia para lá ir
na Quaresma! E se por inquilino se pode lá ir, eu podia allegar esta
razão porque me parece que moro na sua lembrança, e mais bem aco-
modado ficava no seu coração, se por ahi ha um cantinho devoluto ;
trataremos do escrito da minha obrigação. Como letrado não devo lá
ir, porque eu não gosto de dar sentenças, se fosse para allegar ra-
zões, eu iria produzir as muitas que tenho para provar, que não ha
uma pessoa tão chêa de méritos, tão adornada de virtudes, nem que
mereça mais respeito que V. S.* Assim advogo eu a minha mesma causa
pois mostraria que me era devedora de grande affeclo. Mas emfim, se
não ha titulo pelo qual eu lá possa mandar, que é o remetter-lhe o
Cordão da peste que já se imprimiu.* Engane com a sua leitura algu-
mas horas do seu retiro, e d'estas tire ao menos dois minutos para se
lembrar que é
De V. S.*
M.»° V.°^ e Servo
José Agostinho de Macedo.
IX
111.°* Senhora
A doente dará as suas satisfações, eu dou as minhas. As visitas
d'aquella triste dependem da vontade e companhia do tal péssimo choco
chamado M.* do Carmo, porque emfim uma Freira não ha de andar
só, ou cora a creada a latere. Ora o péssimo choco, umas vezes não
tem a galinhóla da cabelleira prompta, outras vezes diz que lhe doem
dois tremendos joanetes, que tem em ambos os pés, outras vezes não
está o bião da cal preparado para as duas covas que algum dia forão
bochechas, e as mais das vezes não tem dinheiro para sege, porqne o
irmão não lh'a empresta: e é tão soberba, que não quer que a Freira
a alugue. Estes são os verdadeiros motivos e não o aneurisma, porque
este seria o motivo para tudo, mas eu vejo que vão a Santos porque
^ Lisboa, 1821. In-8.° de 44 pag. Assignado Corcunda de boa fé.
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 205
lhe fica ao pé da porta; mas a Freira não ha de dizer que a duvida
está da parte d'aquelle aranhiço. Já que V. S.* me não ouve, e só me
tem ouvido sermões, ahi lhe mando um de S.** Isabel * pregado em
grande função, ao menos lêa-me, e se V. S.* lesse no meu coração que
garatujas acharia lá? Muitas; porém também em letra muito clara acha-
ria, que eu respeito muito essa communidade, que me edifica essa
clausura, e que sou
De V. S.*
Ponha aqui o que lhe parecer
José Agostinho de Macedo.
Mana do coração (pode ser do coração de Jesus, e também pode
ser do meu coração, com qualquer dos dois não fica mal). Se o tal
meu coração não tem tido socego desde quinta feira passada, como é
de presumir que o não tenha quando anda cá por fora d'esse portão:
os meus pés e a minha goella ainda o têm tido menos desde sexta
feira até agora, e continuarão na mesma agitação até sabbado ás duas
horas da tarde, que é quando em S. Sebastião da Pedreira acabarão
as Dores da Senhora, e mais as minhas, isto é as dores dos pés, as
dores do peito, da cabeça, e tudo o que me fica depois de tão conti-
nuadas gritarias, porque a dor de não ver a Mana. . . minto, de não
ouvir a Mana, essa não tem fim, senão quando a oiço, porque até ou-
vil-a no Tribunal dando audiência aos Procuradores, Letrados e Con-
fessores, me faz bem á cabeça e mais ao coração. Veja que aranzel de
desculpas de não ter lá mandado! E como se pode considerar menos feia
a ingratidão de não ter mandado saber de minha Mãy? Ora pois to-
dos estes descuidos, e infelicidades minhas se repararão sexta feira,
logo depois das oito horas, quando lhe fôr pedir que pelas nove horas
e meia se dê principio á Festa, a ver se um quarto depois das onze
posso vir para S. José. Bom é que todos os nossos ajustes estejam fei-
tos, como estão com toda a segurança e perpetuidade. Diga-me agora
como está; talvez esteja sentada, olhe, se fôr no Cartório, diga lá com-
* Lisboa, 1819. In-8.» de 36 pag.
206 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
sigo, não tem lunis validade todas estas Escrituras, que a certeza com
J. A. é
De V. S.»
/. A.
XI
Mana do meu coração, eu guardo para a vista um verdadeiro en-
fado, pori^ue me affligi com o seu excesso, espero que a mana conde-
scenda sem escândalo, que eu lhe mande a linda caixa. Olhe que se fica
vae ter ás mãos da Maria Cândida, e que esta não tem que lhe meter
dentro mais que unguentos para a cara, e ataduras para o pescoço, e
das mãos da emplastrada é arrepanhada logo pelas gulosíssimas das
Portas (la Cruz, que lhe não tiram a fralda porque lh'a não vêem, meias
e lenços de mão desapparecem, e aqui lhe tenho guardados anéis e
três relógios preciosos, porque estiveram em perigo remoqueados para
lh'os empenliíirem; são contos largos, e a lindíssima caixa, é pena.
Ora pois, recommende-rae á nossa mãe, e na presença faremos os nos-
sos ajustes, ainda que ha muito tempo está feito ser eu da minha que-
rida Mana
Mano para sempre
/.*
XII
Minha M;i(ia no Sr., é preciso ceder ao mais forte: o deputado
Neri quer por força ouvir-me da Trindade no Espirito Santo, e como
elles lá o têm, fica uma Pessoa de menos, resta-me dar-lhe conheci-
mento do Pai, e do Filho; a hora é incompatível e a distancia muita.
Lá lhe envio o Prior de Santos que é tolerável, ainda que muito apai-
xonado de confissões geraes. EUe nada ha de receber, que n'essa in-
telligencia vae, e de sorte alguma lh'o offereçara, e isto não tem replica.
Seja a festa ás dez e meia, e não antes; verdade seja que o P.® Thomé
a quer cedo para ir ao Espirito Santo da Lapa, que começa á uma
hora, e ás vezes mais tarde, mas a qualquer hora que comece em elle
abrindo a bocca, é tal, que onde quer que estiver o Espirito Santo,
* Acha-se esla inicial formando monogramma com um F, inicial do nome da
freira Trina. O mesmo monogramma se repete todas as vezes que as cartas são assi-
gnadas por um /.
A FREIRA TRINA D. FELICIANA 207
elle o apanha e de uma dentada o leva. Como os Thomés são duros
dos cascos, e não crêem o que se lhes diz, se elle não estiver pelas
horas asignaladas, Thomés d'aquelles não faltam, e venha outro Thomé,
e tome sentido n'isto. Eu estou doente, e com uma dor no pescoço
da parle direita que me toma até ao hombro. Lá irá esta andarilha
segunda feira e dirá tudo . . .
Seu Mano
SC. 16 de Junho de 1821.
J. A.
XIII
Mana, e Sr.* minha, nenhuma das três coisas da sua carta me
aconteceram ainda; não morri, porque estou escrevendo, não fui a Odi-
vellas, porque não tenho dôr de barriga; não deixei a amisade fazer
ablativo porque existe da mesma maneira. Entno onde estive, e onde
estarei? Em Pedroiços, porque visto ter as casas pagas por um anno,
e adiantado, e acabaria este anno para o S. João, tendo lá muitos tras-
tes, alli vivo escondido, e mais seguro da minha vida, que de certo
não o está em Lisboa. Eis aqui a verdade, como o é lambem que no
dia 8 de Fevereiro lá estarei para o sermão do S}° Patriarca. Então
faltaremos, e direi o que escrevo agora, que sou e não deixarei de ser
Seu Mano
José Agostinho de Macedo.
Pedrouços, 16 de Janeiro de 1822.
XIV
J. M. J.
Hontem e hoje! Pois então a Mãy doente, a Mana adoentada, e eu
heide ficar assim muito enchuto sem mandar saber da saúde da Mãy,
e do coração da Mana? Se o signal de estar doente é ter Padres á ca-
beceira, basta o Lage sempre aos ouvidos para as considerar em ar-
tigo de morte. Quasi morto se foi elle embora na 5.* feira. Se não re-
suscitar, nada se perde. Não cuidei que debaixo d'aquellas amarellas
cinzas e amarella cabelleira, existisse um borralho com tanto calor!
208 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Ora eu não sei se 3.^ feira me occupará Santa Rita, portanto irei
amanhã, se fôr, lá me aciíarei, nâo prepare o P." Confessor, se eu lá
apparecer, se mandará chamar. Agora que são dez horas, vou-me á
Igreja do Hospital a uma festa de Dores, e isto é próprio do logar,
porém nem lá tem cura aquella que eu sinto n'alma de não ter dado
ha vinte annos com esses buraquinhos e farrapinhos para lhe ter dito
em vinte, o que digo agora, e direi em todos, que sou
Seu mano
/.
XV
Pax Chrisli
Minha Mana, a minha tenção era ir esta manhã de romaria aos
buraquinhos d'esse Sancluario da Trindade onde as coisas são tão in-
visíveis, como incomprehensivel o Mysterio. Honlem quando acabei em
Santa Anna, Santa com quem não tenho negócios nenhuns, porque um
casamento que eu queria, e que me trazia um dote das mais raras
prendas que o mundo viu, faça V. S.* de conta, que é V. S.*, nem
esse pode ser; abriu-se a vontade ao P.* Fr. Confessor das Religio-
sas, que tem cara de escumadeira, para me pedir lhe fosse hoje dizer
alguma coisa em louvor de S.^^ Rita, a quem festeja por devoção. (Que
será impossível a este Franciscano, senhor do boUo, e director em chefe
d'aquelle bando de Gallinhas do Cairo, que assim me parecem as illus-
tres filhas do Serafim abrazado?) Não sei, o que sei é que me rou-
bou a manhã, espero que me não roube a tarde, salvo se a festa, por
que se vae de lá o Lausperenne, acabar no maior fervor da tarde, e
tendo de vir a casa jantar, então pouco tempo ficará; mando esta mu-
lher coxa para a prevenir, porém muito coxo serei eu quando não fôr
beijar hoje a mão á minha amada e respeitosa Mãy, e dizer a V. S.*
Olhe Menina, o que? o que? Lá lh'o dirá
Seu Mano
J.
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 209
XVI
Porque não pregam os Padres que são Neris, ou que são Neros,
ou que o foram, e não deixam de o ser? Nada. Confessara só. Olhe, Me-
nina, entrando eu uma vez a 15 de Agosto em busca de uns músi-
cos que deviam ir para outra festa, estava pregando o P.® Theodoro
de Almeida, e exagerava a caridade da Sr.* para com o próximo, di-
zendo que quando a Sr.* nos seus princípios, depois de ter sabido da
mestra, estava em Nazareth, e as visinhas da rua, ou porta com porta
queriam alguma cousa, a agulba, o dedal, o novelinho de algodão, ou
a cabecinha de linhas, diziam a qualquer rapariga, á Zabel, á Salomé,
á Magdalena: — Vae ahi a casa de Maria Costureira. — Olhe V. S.*que
eu ouvi isto com os meus ouvidos, da bocca do P.®, velho já e decré-
pito, e talvez que apatetado. Pregar não, confessar sim, porque aqui
as asneiras não se ouvem, dizera-se, e para constituírem a gente no
estado em que vi (a palavra vi é excusada para ahi) ouvi a V. S.* Pe-
ço-lhe pelas cinco chagas, e se as cinco são poucas, pelas que lhe pa-
recer, que tenha dó de si e amor á sua saúde e existência. Jesus
Christo, bem nosso, entrava em casa dos peccadores, e S. Pedro lhe
dizia: — Sr. ponde-vos na rua, porque eu sou um homem peccador. —
O Sr. se deixou ficar, e consta que revelara á sua serva Maria do Lado
ou Joaquina da Ilharga, que se assentara em um banco, e os Congre-
gados nem cora as Freiras do Rato, verdadeiros Anjos, o querem dei-
xar estar. Olhe, Sr.* diga V. S.* ao P." o que dizia S. Pedro a Christo:
Sr. P.® não venha cá porque eu sou grande peccadora, — e se elle se fôr
assentando no banquinho, saia V. S.* pela porta fora. Eu também te-
nho minhas tinturas de vida mystica e governo das almas, e tenho sido
consultado em casos muito apertados de securas de espirito, tibiezas,
pouco fervor, raivas e gatos da visinha, e outras diíBculdades da via
unitiva, e tenho respondido com muita paz das consciências. Suponha-
mos que V. S.* se tem rido algumas vezes da cabecinha do P.* Thesou-
reiro com grave escândalo da mamã, e da Sr.' D. Marianna Victoria,
consulte-me que eu sou de segredo, verá como eu lhe digo, só para re-
parar este escândalo, se ria também da cabelleira do P.* Lage, para se
não rir um do outro; a tudo lhe hei de ir buscar um remédio, para
ir já desempoeirada, quando for ao P.*, e não vir de lá mais descon-
solada que a M.* Maria da Agréda nos trinta annos que a Sr.* lhe não
CARTAS. i4
210 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
deu lição, ou a Doutora S.** Thereza, quando viu S. João da Cruz com
dôres rheumathicas.
Sim Sr.^ amanhã, domingo, me levantarei cedo para achar o De-
putado Ferrão em casa, e mandar a insinuação ultima ao Teixeira Ho-
mem. Tenha V. S.' paz, consolação e sobretudo desafogo de animo.
Recommende-me com o maior affecto á minha querida Mãe. Muito amor
lhe tenho, e muito obrigado lhe fiquei hontem, por me fallar como fal-
lou dos escrúpulos da Menina, e das toUces do Menino. Se eu lá fôr
algum dia, e a não achar alegre, então não ha de ser
Seu Mano
J. A.
XVII
Nem ao menos a certeza de que fica entregue, para eu andar dias
6 noites entregue a um cuidado que se não pode explicar porque sem-
pre me lembro o peor? Será falta de saúde? Será abundância de Veiga?
Antes seja falta de vontade. Ora diga-me alguma coisa, para eu lhe
poder dizer muitas. Queira o céo, que a resposta seja sua, e da sua
mão, que beija em Christo
Seu Mano
J.
XVIII
Mana do meu coração, tinha escrito, e já fechado uma carta para
lhe mandar, mas lembrei-me, que me enganava em uma coisa, e vi-
nha a ser, que lhe annunciava a minha ida lá Quinta feira, esquecido
inteiramente que era a Ascenção; ando com a cabeça á roda com
idas a Pedroiços em busca de casas para a doente, e ainda hontem fi-
cou decedido este difQcil negocio. São três horas da tarde, vou-me ao
Vigário Geral a fallar-lhe no que me diz, e na sexta feira lá vou então.
Saudades à Mãy, e a minha adorável mana as receba com todo o co-
ração do
Seu Mano o mais extremoso
/.
 FREIRA TRINA D. FELICIANA 2H
XIX
Minha Mana, e Senhora minha (assim escrevia o Venerável Fr.
António das Chagas a uma que tinha) e como se ha de escrever na
Semana Santa, quando até os santos estão escondidos? N'esse domici-
lio sempre ha semana santa para nós os filhos de Eva, por mais que
gemamos, por mais que choremos n'este Valle de Lagrimas, n^o é
possivel vêr as santas d'esse Paraíso senão debaixo de véos e entre
cortinas, e a esperança de um sabbado de Aleluia é coisa que não
apparece! Ora 6.* feira ia eu bem contente, cuidando que a via, mas
nada, ouvil-a quanto quizer, até mastigar a ouvi. Se eu ia agoirado!
Encontro a Eternidade na escada, e lá em cima o antigo dos dias cora
sua cabelleira de mais, e ao pé d'elle não sei quem a segurar-lhe a chi-
cara para se não babar e babujar aqiiella criança. E a minha querida
mãy com um crianço d'aquelles! Desmame-o, engeite-o. Na Roda es-
timaria elle muito que o pozessem, também eu, mas como sou muito
bravo e chorão, não me accomodava senão com uma Ama, estranha-
ria todas as outras, não sei que lhe faria no colo. Então quem é esta
Ama? Pergunte-m'o a mim, que eu lhe direi que é V. S.* Ahf minha
Ama, minha Ama, porém minha Ama seca, que nem vel-a posso. Inda
a minha miséria é maior 1 Coitadinho! Não conheceu Mãy! Pois eu a
não vejo! Ahi vae a condecinha 5.* feira á noite, não a quero cá fora,
eu lh'a pedirei; e agora a Mãy a benção, e a Mana? o coração. É
muito pedir! Deus o favoreça
Irmão
/. A.
XX
Mana, e querida Mana do meu coração; hoje 6 de setembro pelas
sete horas da manhã desembarquei de Paços de Arcos onde tenho es-
tado sem vir a Lisboa; assim o quer a minha sina com gravissimo en-
comodo meu e até risco, deixando esta casa ao desamparo em mãos
de uma velha, que se embebeda, e de outra mais moça que não tem
juizo; mas que hei de eu fazer? Deixar em total desamparo uma
doente a expirar, deitando de si postas de sangue com uma dor aguda
que se não despede, já confessada e sacramentada! Vim hoje em ra-
zão de alguns sermões de Sabbado e Domingo e estou com tanto des-
212 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
asocego, que talvez embarque esta noite para vir aqui no sabbado de
madrugada. Lá nem um minuto só me esqueço da minha F., e esta
separação me tem lança io nos braços de uma tristeza invencível, que
se augmentou agora á vista da relação dos seus encommodos e traba-
lhos. Sim, parece impossível que resista. A doença da Mãy me conster-
nou: mande já já ás Necessidades buscar as milagrosas papas que lá dão
com que repentinamente se cura essa moléstia, eu fallo com experiên-
cia própria, já tive um na mão esquerda, que me ia apodrecendo, e
logo sarou. Se eu não fôr hoje, amanhã lá mandarei, e escreverei com
mais vagar, que alguma coisa tenho que lhe dizer. Supporte com cod-
stancia tantas penalidades, até que eu lá possa ir. Não duvide um
instante da minha extremosa e constante amisade, digo o mesmo que
tenho por tantas vezes repelido, e nunca faltarei ás que tenho protes-
tado. Cresce todos os dias o meu affecto, a minha ternura, a minha
saudade, e nunca diminuirá o justo amor que merece a minha F., de
quem sou por escolha mais do que podia ser por natureza
Mano
J.
XXI
Senhora
Hoje 22 de Março ao meio dia encontrei o P.* Confessor; esta
vista ou este encontro fez na minha alma uma commoção que é im-
possível poder-se explicar. Foi um despertador, e a pena que eu me-
recia bem a executou 1 Agora oiça: a 19 de Maio, faz três annos, fui
atacado fora de Lisboa, de uma moléstia a que os Enterradores a quem
nós chamamos Médicos, dão o nome de gota; e com tanta violência,
que do primeiro golpe me teve immovel na cama 32 dias. A semana
que acabou trouxe 3 dias e 3 noites de dores do inferno. Isto me abys-
mou em pélago de tristesa, isto desconcertou todas as faculdades da
minha alma, deixando-me só mais viva a memoria para meu algoz.
Eis aqui o que um velho tonto, gotoso, melancholico, e contra si
mesmo rabugento pode dizer, não para desculpar de todo, mas para
fazer algum tanto menos feia a nota de ingratidão. Se isto merecer al-
guma resposta, já que não tenho cabeça, se tiver pés, depois do to-
que de Alleluia, visto gosarem então os peccadores do perdão geral, irá
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 213
pedir o particular a V. S/ o triste, mas eteroamente lembrado de
V. S.*
Servo e obrigd.""*
José Agostinho de Macedo.
Forno do Tijolo, 22 de Março de 4822.
XXII
Maça do meu coração (de todo), hoje dia de S. Matheus pelas oito
horas e meia se acabou o meu cativeiro de jornadas por mar e por
terra, pois á hora que digo, desembarcou no Cáes da Fundição de uma
Falua toldada o costal dos emplastros com as suas competentes Donas
de Honor, e camareiras Thiofila, Miri Filisarda e Francisca, e eu, que
só me faltou o acautelado ministério dos bispotes. Aqui estou n'esta
casa, que bem cuidado me tem dado em tão longas ausências. Pode
acreditar que esta madrugada me vinha lembrando que em casa acha-
ria uma carta sua, porque nunca se me aquietava o remorso do meu
silencio, mas que queria a Mana que eu fizesse? É verdade que tenho
vindo a algum sermão, e domingo tive dois, mas sem entrar era Lis-
boa, porque ura foi no Calvário onde ha umas Recolhidas ou Enco-
lhidas que cantam bem, e outro foi no Lumiar, e de lá mesmo abalei
de noite, sempre cheio de anciãs com a enferma, porque além da noz
do pescoço, postas de sangue, rebentou-lhe um torno de matéria do
tornosello do pé direito da parte de fora com que lambem está coxa,
compondo eu também a Brigada das incuráveis com uma ferida no
coração, que como se rasga pouco, dóe muito; com esta carta vae ter
algum desafogo. A Mana é um objecto inseparável da minha alma,
e isto não é brinco; deve-me um cuidado extremo, e assim o deve
acreditar, e assim o experimentará em quanto eu viver. Sinto a molés-
tia da Mãy e sinto tudo, e agora constituído era mais algum descanço
e menos ausência, continuarei sem interrupção a escrever, e procural-a
como por tantos titules devo. Serve-me de consolação e consolação úni-
ca; os tempos vêm trazendo comsigo maiores tristesas, e é preciso
buscar-lhe algum desafogo, e não posso ter outro mais que communi-
cal-a, como a pessoa de maior mérito que por certo existe, isto lhe te-
nho dito, isto direi sempre.
Ora Mana, ao desembarcar cahiu esse paio de uma canastriaha,
214 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
já que comeram tantos, fique esse para lembrança do estrago dos den-
tes, não dos emplastros, mas das camareiras, merende-o a Mana do-
mingo; parece que vae fugido, e escondido no fundo de Ião grande
condeça coisa tão pequena; não tenho outra, e antes ahi, que no buxo
das taes Arpias, perdoe a tolice, mas Amor he menino, e
É seu Mano
J.
XXIII
Mana do meu coração, recolhendo-me agora para casa achei um
excesso, que me enfadou; ora eu lhe peço que nunca mais me con-
temple assim; dinheiro, eu não lh'o acceito por sermões, e se não se
enfastiam de mim, eu, e eu só os hei de pregar todos n'essa Igreja em
quanto viver, eu lh'o remeto, e lhe supplico que o não tome por descor-
tezia. Estou muito fatigado, porque me não pude eximir hontem de seis
sermões, e todos do Sudário; tem-se-me conservado o coração em agi-
tação grande, e vendo-me obrigado a sahir esta tarde, não podia an-
dar. Amanhã, domingo, tenho três de manhã, na 2.* feira também te-
nho, e trabalhoso, na 3.* de tarde devo ir ás dos folhos com o des-
tampatório de um S. Francisco Xavier, que não sei o que lá fez a
uma que diz nos seus cantares que se chama a Ex.""* Maria Honorata.
Não posso, nem encostar o peito a esta mesa para escrever. 4.* feira
pela manhã ás oito horas, eu irei lá, e estarei até ás onze, e mais, se
a Mãy se affligir, que em lhe parecendo' me ponha na rua. Então leva-
rei tudo dito. . . Vou-me deitar. Se estes e que aqui tenho me
derem lá para as dez horas uma gemada como um infernal caldo com
que agora mesmo me zangaram as tripas, passarei uma noite de ro-
sas. Muita falta me faz minha Mãyl! Maior falta me faz a Mana, e sem
ella não viverá
/. A.
XXIV
Mana do meu coração: que coisa é deixação, e desamor? Nunca
espere isso d'este triste e apoquentado homem. Eu estou perseguido
por todos os lados, e ha contra mim uma conspiração universal da Pe-
dreirada, temo aparecer, não ha dia em que me não façam morto. Como
lhe disse, ficaram as casas de Pedroiços pagas até ao S. João, o sitio
é bonito 6 retirado, as donas das casas moram nas lojas, e são duas
A FREIRA TRINA D. FKLICIANA 215
velhas, uma chama-se Calherina Beata, outra Cândida não sei de quê,
fazem-me o comer, e alli estou tão triste e só, que nem lêr posso, e
só de manhã vou dar algum passeio pela praia do mar, e sempre só.
Esta é a minha vida ha mezes e só appareço aqui pela necessidade de
algum sermão, a que venho. Talvez isto tenha algum dia mudança. O
n.° da porta é 125, defronte das casas do Marquez de Borba.
Pode contar com o Sermão das Dores, mas cedo, porque talvez
tenha outro, e com todos os mais. Dê-me muitas saudades á Mãy, e pro-
cure ter saúde, socegando a meu respeito porque hei de ser em quanto
viver, com todas as veras, e todas as forças da minha alma
Seu Mano o mais lembrado
/.
Pedroiços, 28 de Fevereiro de 1822.
XXV
Mana do meu coração; não lenho lá mandado, porque esta mu-
lher adoeceu, e não tenho outra pessoa capaz para lá mandar; eu tam-
bém não tenho andado bom, cheio de tristeza vendo o que vae, e an-
tevendo o que irá dentro em breves audiências. Se tem alguma carti-
nha sua, escrita com mais vagar que permite a incessante grade, man-
de-me esse cordeal, ou espeque da existência. Como o tempo refrescou
6 humedeceu, e posso sem me lavar em suor dar um passo, com bre-
vidade lhe farei uma visita, evitando os sabbados, dias terríveis, cha-
mados de juizo, em que os que cá andamos por fora, reputados cabri-
tos, são precitos, e postos á esquerda; emquanto só elles ovelhinhas
mansas, puras, castas e innocentes, se assentam ou tomam a direita,
é o bem à bemaventurança, ou alli a gosam no ósculo do Sr. e que
lhes faça muito bom proveito. Mana, tenha saúde perfeita, a mesma de-
zejo á Mãy, e pelo que me pertence a mim, bem sabe que a dezejo
muito vêr, e que se não esconda tanto. Os P." da Companhia aucto-
res do seu Instituto santo, assentaram que eram todas de alfinim e que
podiam ser lambidas com os olhos, mas nem lambidas nem delambi-
das são; nasceram feitas mysterios da Fé para entrarem pelos ouvidos
para desvanecerem a esperança, e darem cabo da caridade que vem a
ser o mesmo que amor. Ora se gosta d'este, só o achará no
Seu
/. A.
216
CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
XXVI
Mana, e senhora, eu ia lá depor o pezo enorme das minhas sau-
dades, mas fui buscar lã e vim tosquiado, ainda trouxe mais do que
levei. E então ir algum pedaço de pano pardo o doce nome de filho,
e o doce nome de Mano? Estou mais contente que um Deputado! A
fallar sério, ainda não tive um abalo, nem uma surpreza mais agra-
dável na minha vida, do que a determinação da Sr.^ Prelada I Como a
Mãy lhe hei de sempre obedecer, e a hei de sempre respeitar. E que
hei de eu fazer a minha Mana adoptiva? Muita coisa, tudo quanto ella
quizer, porque não ha uma pessoa mais benemérita. De vez em quando
dar por lá a minha volta, gastar bons arráteis de olhos pelos buraqui-
nhos, e com os buraquinhos e não vêr mais que os buraquinhos, que
estão feitos em forma de cruz, para tormento dos olhos, e mais dos
corações. Eu hei de para a Páscoa, querendo Deus, tomar a lição do
P.® Confessor, com a sua cabeça muito teza, esse não se embaraça com
os buraquinhos, falia para a parede fronteira e lá irão aquelles suaves
eccos, talvez que cansados do caminho, porque de ferrinho a ferrinho
é um dia de jornada, ferir os delicados ouvidos de V. S.* Que feliz
sorte a d'aquelle Padre 1 Elle pode fallar nas Demandas, e eu não posso
fallar na minha! Elle diz que foi ao Escrivão, que foi ao Letrado, que
foi ao Juiz, eu ando pelo tribunal de um cego, que nem com espe-
rança me despacha; e por mais que peço vista, acho-me com a No-
vena de S. José, tudo como no primeiro dia ! ! Mas serei como o ho-
mem da Quinta, vou-me deixando estar, e, ou boa demanda, ou má
demanda, o Escrivão da minha banda. Então, não apresentei agora muito
bem o antigo ditado! Seja para saúde. Ahi remelto a V. S.' um Li-
vro de Profecias bem applicadas, e eu creio que Bonaparte foi o Pre-
cursor d'estes Anti-Christos, que nos estão martyrisando. Esse Livro
tem feito endoidecer algumas pessoas cuidando que não tarda o fim
do mundo, mas V. S.* não tem cabeça de endoidecer, só se fôr por
mim. . . Que fui eu dizer? Pelo amor de Deus não vá meter isto no
bico á Mãy, senão quem a ha de ouvir ralhar? A primeira vez que lá
fôr, vou tremendo de alguma chocalhice sua, e quando eu lhe pedir a
benção, logo vejo pelo tom do — Deos o faça santo — se houve, ou não
houve mexericos, isso logo se conhece. E V. S.' que conhece? Conhece
como os seus dedos, que me deu com os pés n'alma, e que eu que
sou com todo o coração ggy j^^qq
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 217
XXVII
Mana em Christo, e em toda a Côrte do Céo, apertam-me as sau-
dades de minha Mãy, e desejo saber como está, da Mana não tenho
saudades, tenho um formigueiro no miollo que me não deixa parar ape-
sar de ficar hontem com os bofes ralados com um sermão do Calvá-
rio no Desterro, e em cima d'este outro e de dormir pouco, de esta-
fado; levanlei-me agora, não me lembra se me benzi, aqui estou sen-
tado, lembrando-me de lhe escrever e esquecendo-me que hoje será
dia occupadissimo com exames de consciência, e penitencies cumpri-
das á pressa para o que se ha de dizer á tarde ao ouvidor das virtudes
e assim mesmo secante e importuno; não quero deixar acabar a se-
mana sem novas suas, estou inquieto com a noticia que me dava da
sua constipação, isto é um objecto sério, e desejo sobre elle alguma
clareza que me socegue.
Queria hoje dízer-lhe muitas graças, que a divertissem e a esses
puros Anjos que com a Mana vivem n'esse para mim tão respeitável
domicilio, porém estou consternado até ao intimo do coração. Já lá sa-
berão da triste sorte do Patriarca; vae prezo e degradado para o Bas-
saco entre uma escolta de cavallaria. Isto é um attentado inaudito que
vae assombrar não só Portugal, mas o mundo inteiro; o seu crime é
não ter querido assignar dois artigos das bazes, o 1.° a Liberdade da
Imprensa, de que se seguem mil patifarias, desaforos e desordens, o
2.' o da Liberdade de Consciência para cada um poder seguir a Reli-
gião que quizer. Quem quizer ser Mouro, pode ser Mouro, pode ser
Judeu, pode seguir o que lhe der na cabeça. Veja a Mana o que se se-
guirá d'este golpe descarregado na cabeça do Primeiro Ministro da Re-
ligião; como Cardeal, era a sua pessoa inviolável, tudo se atropella, e
o partido que elle devia tomar era ir para Roma como Cardeal. Quando
elle me mandou essa honrosa Provisão que remeto á Mana para lér, e
a esses Anjos, e a Mana m'a entregará quando eu lá fôr 6.* feira das
Dores, eu lhe escrevi e o desenganei que nada faria senão comprome-
ter-se a si e a mim, que era irresistivel esta força que nos opprimia.
Veja a Mana se eu tivesse escripio que me succederia agora? Antes
escrever tolices e bagatellas, Exorcimos e Cordões ác. Ora a Sr.* para
outra vez, eu lhe direi muitas coisas que a divirlão, e a possam dis-
trahir alguns instantes do pezo do seu estado e do seu emprego. Re-
218 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACKDO
commende-me muito á minha querida Mãe : eu a amo e sou muito seu
amigo.
Para a Mana, não me basta mandar-lhe muitas visitas, é precist
levar-lh'as, e não as fio de ninguém, hei de ir eu mesmo em pessoa,
e é coisa galante que em me vendo aquella mulher que está na porta,
cá de fora, (forte nariz temi) sem eu lhe dizer nada, parece que adi-
vinha, logo me diz: — Procura a Sr.* Prioressa? Sim Sr.^, lhe digo eu,
mas olhe que também procuro a Sr.* Escrivã, e ri-se a mofina, cuida
que é graça ! Ora a Mana gosta dos fechos das minhas cartas, e te-
nho estado a imaginar com que hei de eu fechar agora esta Carta?
Com uma obrêa.
Até 3.* feira.
XXVIII
1
Minha querida Mana do meii coração, é verdade que eu prometti
quarta feira, que iria lá na sexta, e o prometti diante de testemunha,
que tem tanta vista como cerimonia, que sendo mestre d'ellas, todas
lhe esqueceram porque não usa de nenhuma. Ora muita parvoíce co-
bre aquella cabelleira í Faltei na sexta feira, porque não faltou a chuva,
e eu com três sermões que tive na quinta, fiquei ralado e endefluxado,
e por isto me deixei ficar na cama, pedindo ao céo que assim como
deixava cahir tanta chuva, deixasse também cahir uma lage na cabeça
d'elle para nos livrar de uma vez do não convidado pezo da sua visita.
Viu-se coisa assim 1 Eu cuidei que era o dia de fazer testamento ! Tudo
estava prompto: o Procurador, o Confessor, o Escrivão, o Agonisante,
e este com cara de defunto. Cara? Caveira: eu olhava para lodos os
cantos, cuidei que também estava a cova! Quando me vi no pateo, e
em ár livre, olhei para traz a vêr se vinha a morte atraz de mim. Hon-
tem, sabbado, quando encontrei o P.* Confessor, lhe disse, não todo li-
vre de susto: — Inda estou vivo! — Mando agora lá e eu vou para Santa
Appolonia tratar do Sr. da Paciência, que é hoje a sua festa, lá lhe pe-
direi um bocado, e que seja advogado contra Lages e outros pezadelos,
e amanhã que é segunda feira das almas, terá esta minha apoquen-
tada, a consolação de beijar a mão a minha querida Mãe e de dizer á
minha amada Mana que sou e muito, e muito, e tudo.
Seu Mano
J.
A FREIRA TRINA D. FELICUNA 219
XXIX
Mana, expuz as causas exteriores do meu apparente e tormentoso
esquecimento, e preciso que exponha com a maior fidelidade as inte-
riores. Sahi de lá, sim d'essas sombras, penetrado da mais viva ma-
goa, não pelo que a Mana me deu a entender, mas pelo que me disse
a Mãe. Aquelle a quem alli pozemos o nome de Veiga pequeno e que
o Céo apartou d'ahi para casquilho Pastor de ovelhas ou de cabras lá
para as montanhas d'onde tinha vindo, lhe accendeu no coração um com-
bate entre destampados escrúpulos e as impulsões da natureza. A Mãe
me fez vêr cem muito juizo a sua mortal aflQicção em absolvições su-
spensas ou negadas, por quem namorava cá por este valle de lagri-
mas a bandeiras despregadas, e afiQicta e bem afiQicta conheci eu a
Mana. Resolvi alli mesmo sem hesitar sacrificar para sempre a minha
ventura á sua tranquilidade e paz. E que satisfação havia eu dar? Ne-
nhuma ; só o silencio e o retiro, julgasse o mundo o que quizesse. A
compaixão e dó que eu sentia pela Mana, só se pode medir pela gran-
deza da dôr que me despedaçou a alma, vendo que era preciso mos-
trar que a não amava, para com este passo mostrar-lhe algum dia que
a amava muito. Eu paguei esta aborrecida dehcadeza : nunca mais tive
nm momento de consolação e alegria; aluguei uma casa em Pedrouços
e lá vivia quasi sempre. O Mundo não tinha nem terá nunca em si todo,
quem podesse compensar tal perda, porque não me canso de o dizer,
e de o entender, que a Mana é a creatura mais perfeita pelos dotes
de alma que tem existido, e dizendo eu isto diante de uma mulher Mes-
quitela, que ahi esteve, acrescentou com muita vivacidade: — e também
do corpo. — Eu não lhe vi senão confusamente os olhos; se a estes e
ao tom de voz o mais corresponde, teve Deus muita razão em a que-
rer só, e os Frades das Necessidades em não quererem que ninguém
lhe queira.
Assim vivi, Senhora, assim vivi, ou assim morri, e como eu nasci
para morrer de zangas, em Agosto passado fui a Mafra em uma sege
e dentro d'ell3 se meteu também um Frade Bento que andou por ahi
ás costas com as mulheres de Villa Franca, para me moer o corpo e
o espirito, o corpo com as alarvadas dimensões do seu, deitado sem-
pre para cima de mim, o espirito com aquelle chorrilho de parvoíces
de que eu não sei se S. Bento, se S. Bernardo fora mais liberal para
com seus filhos. Teimou em fallar em o nome da Mana com muito lou-
!á20 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
vor é verdade, mas cora a maior dôr para o meu coração pela lem-
brança da minha perda : nem com dezanove ovos fritos com manteiga
com que ao almoço n'uma taverna enciíeu de uma vez a bocca, com
pasmo da taverneira, deixou de fallar no seu nome. A 24 de setembro
também vi e faltei nas Mercês, porque foi lá cantar a Missa um Oli-
veira, mais pacifico que Veigas grandes e Veigas pequenos, que pelas
relações de espirito com a Mana, despertando a lembrança da minha
desgraçada perda, me fez entrar em uma palpitação de coração, que
nem ao sermão me deixou. Domingo à tarde tenho de ir a S.*^ Isabel,
e ainda que metido na capoeira de uma sege já estava temendo a vista
d'esses telhados e paredes. Enaíim, acabou tudo com a posse da sua
carta, com uma arguição tão doce e tão espirituosa, tão digna da sua
elevada comprehensão, que até é uma ventura ser criminoso na sua
presença, só para ser assim arguido. Tenha tantas consolações quan-
tas eu senti em lhe puder chamar Mana ainda antes da minha morte,
de lhe poder dizer porque é minha Mana, que eu sou seu
Mano.
XXX
Minha q. M. d. m. c. vae-se estreitando este prazo, que poucos
dias faltam! Parece-me que ainda hontem me dizia, faltam ainda cinco
mezes ! Séculos me parecem a mim os dias em que não tenho noticias
suas. Já que hoje é um dia de tanto trabalho e tanla zanga para mim,
quero ao menos a consolação das suas letras. Talvez que quando esta
lhe fôr entregue eu esteja já em S.'° António da Sé onde El-rei vae, e
onde se lhe faz pelo Senado uma grande festa de acção de graças pela
sua vinda. É inexplicável a tristeza com que eu estou; não me pude
eximir d'isto, para me não expor a grandes reparos, e perigosos. De
melhor vontade estaria eu a um cantinho do Locutório escuro, e antes
vir de lá com belidas nos olhos, que ir vèr aquelle apparatoso espe-
ctáculo, e dar-me eu também em espectáculo. Quiz lá mandar sabbado,
mas lembrei-me que era dia de Padres, dia tão fatal e vista tão teme-
rosa, que até as moscas d'ahi desertam n'esse dia, e até ao Domingo
pela manhã espreitam cá do Paleo se ha alguma reconciUação e se vae
Padre, e só depois de desenganadas é que voltam aos seus costuma-
dos domicílios; se as moscas fogem, que farei eu? Todos os dias d'esta
semana são para mim penosos com Praticas da Novena de S.'* Anna;
a S.** se lembre de mim, e me case com a vontade da Mana, pois me
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 221
dizem que esta S.** é advogada d'estas coisas. Ora se já fechou os
Livros das suas contas, dê-me conta do seu coração, escrevendo-me
uma letrinha. Sâo cinco horas da manhã, mas não admira que madru-
gue tanto, quem tanto se desvela em ser unicamente
Seu Mano
/.
P. S.— E minha Mãe?
Pois muitas saudades.
XXXI
Mana d. m. c. eu levo uma vida de cão; desembarquei hoje ás
seis horas da manhã, e não viria a Lisboa se não tivesse sermão. Foi
aquelia Bernarda na profissão e no miolo meter-se, sahindo quente da
cama, hontem pelas cinco da manhã na frigidissima agua do mar em
Paço de Arcos, deu-lhe uma dôr no baixo ventre, ella chama-lhe ta-
boa, seja taboa ou seja páo, que a poz ás portas da morte. Hontem
todo o dia trabalhavam de continuo duas seringas, meteram-lhe nas
tripas uma caixa de assucar mascavado, e uma pipa de azeite, gran-
des ruidos e estrondos ouvia eu, porém a dôr a continuar toda a noite
até ás quatro horas que embarquei. Não bastavam os pinicos da casa,
julgo que se apenaram os da visinhança, é certo que eu não chegava
vez nenhuma á porta d'alcoba, que não visse aquelle embrulho empo-
leirado no pinico em cima da cama; quebrou-se um, entornou-se tudo,
e não havia quem parasse; eu não sei que caldos fazia a moça, talvez
os bebesse ella, porque os que appareciam eram mais claros que um
desengano. Deixei-lhe dito que aquentassem em agua ardente, e lhe
pozessem um pano molhado sobre o logar da dôr, se eu acabar cedo
talvez vá lá esta tarde. Agora antes do sermão, se ainda achar em casa
o deputado lhe darei o Requerimento, mal feito está, mas diz o que
se quer dizer, se o não achar em casa então antes que vá embarcar,
eu farei outro, porque as forças alli estão. Sexta feira 17 vou pregar
do incomparável S. Mamede, Santo que eu não conheço nem de vista,
pois julgo que nem de páo o tem na Igreja, antes ou depois lá irei um
bocadinho. Porque não fui eu despedir-me? Se fica, eu lhe fallarei, se
Dão fica, eu não sabia de lá com vida, dizendo, esta é a ultima vez!
Esta é a razão mais forte, além d'isto o calor tem estado de desespe-
rar, e eu com uma terrível debilidade nos joelhos, que me aflQige bas-
222 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACKDO
tante. Tenho dado as minhas razões, e sâo verdadeiras ambas. Vou
para a estufa, e se me derreto em suor a gritar, liquido-me em ternu-
ras, e desuzado affecto por aquella de quem
E só Mano
J.
P. S.
Menos dizem os rapazes : ó Mãe, pão,
do que eu digo, ó Mãe, saudades.
XXXII
Minha querida Mana do meu coração, a sua carta me consternou
como deve suppôr da minha exaltada brandura e sensibiUdade. Pelo
que pertence ás claras e efficazes intimações que heide fazer ao tal
Deputado, descanse e confie em mim; os Requerimentos eu os orde-
narei com a possivel energia. É lastimosa a situação do Convento, e o
que é de todas, também ha de envolver a Mana, e por consequência
também a Mãe; a isto posso eu dar o remédio que o meu afifecto me
manda dar, e a subsistência da Mana fica desde já por minha conta,
nada deve padecer a única pessoa a quem n'este mundo tenho dado o
coração inteiro, a única em que descobri merecimento, e a quem nunca
deixarei de provar a mais ardente e verdadeira amizade. Eu escrevo
isto hoje Domingo á noite, amanhã de madrugada vou vêr as doentes;
6 como na terça feira heide pregar na Igreja das Salesias, ou como
quer que lhe chamam, fico lá para vir pela dita Igreja que é em Be-
lém, e na quarta feira eu lá mando; nada quero que falte á minha ado-
rada Mana emquanto eu existir. Deve viver com commodidade o mais
perfeito de todos os entes que existem; e além d'isto, tudo o que eu
poder fazer de passos, de requerimentos e de suppUcas, com a maior
satisfação o cumprirei, desempenhando em tudo as obrigações de Mano,
e confirmando com obras o que lhe digo com palavras, porque é uni-
camente
Seu
/.
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 223
XXXIII
Minha q. M. d. m. c. não cuidei que me levantava agora para me
affligir com os seus excessos e incommodos! Não se contêm! Minha
Mana, eu darei amanhã de tarde conta de mim, se poder pessoalmente,
e de manhã escreverei com vagar como devo. Sinto os seus incommo-
dos, afflicções e trabalhos. E começarão elles outra vez? Que será de
mim se ellès pararem! Agradeça-me muito á Mãe o seu cuidado, dê-
Ihe muitos abraços fihaes, e a Mana? Hontem de tarde d'aqui mais de
duas léguas me vi eu abysmado em melancholia, considerando profun-
damente na Mana. Ora pois, vou-me d'aqui para as gritarias, primeira
ás roucas pipias de Santa Anna, segunda aos Frades Irlandezes do
Corpo Santo, que tanto me entendem a mim como eu a elles; o que
eu entendo bem é que tenho o coração rasgado em considerar na Mana,
e que as palpitações que tem desde 8 de fevereiro serão constantes até
ao fim da vida de
Seu Mano
J.
XXXIV
Mana e Senhora minha, mande-me dizer se o R."" P.* Confessor
entregou n'essa Portaria um abraço meu que eu mandava para a Com-
munidade; eu lh'o entreguei no Salitre quando vinha hontem de S. Ma-
mede e lhe pedi que o não deixasse fora, que esfriava muito, que o
desse á Maman, que na sua mão ficava seguro. Ora a festa de S.** An-
tónio mudou-se para o dia oito, saiba isto, e que o Santo compadecido
me approximou o prazo de eu ir a esse sitio, que para isto não eram
precisos milagres de S.'° António, e segunda feira que é dia da visita-
ção, eu farei esta visita de tarde, e já que tudo em nós foi tarde, ao
menos ficará sabendo, que por mais cedo que me levante, o meu pri-
meiro—Pelo sinal da S.^* Cruz— é dizer— Por F. R. andará hoje até
tollo
/. k.
224 CAnxAS de josé agostinho de macedo
XXXV
M. M. d. m. c. vae esta cartinha com mais socego, ainda que com
menos vagar ; ando feito viajante de mar, agora que são sete horas des-
embarco de Pedrouços, d'onde sahi antes das cinco, isto me cança, e a
moléstia da doente me dá cuidado; sempre lavada em sangue, ainda
que diz o enterrador Pinheiro que é proveitoso porque diminuo a acção
do aneurisma, e assim ando eu entre correios da morte e viagens do
mar. Esta tarde vou a S. Mamede a uma Pratica de S.^° António — a
Obediência do Santo, e estou á obediência do Sr. Prior, porque como
vae ao Rato tem um titulo para ser obedecido: se não acabasse muito
tarde poderia eu lá dar uma saltada? Isso dirá a Mana. Já lhe disse
que fui domingo de tarde, e bem tarde a Odivellas e as duas festeiras
Francisca Rosa e Gertrudes Palavra, ambas velhas e beatas, me grita-
ram do coro que fosse a uma grade, beijei o pé ao S.*° na Cancella do
coro, o nde estavam também as creadas muito enfeitadas tocando tam-
bor, e fazendo tamanha algazarra, que nada se ouvia, bailharam de-
pois no coro perante o SS.""" Sacramento, que era uma consolação vêl-as;
era um pedaço de céo com gargalhadas do povo espectador. Fui a uma
grade chamada pequena, porque todas as oito mais estavam occupadas
com guitarras e motim de dez Frades, trinta e tantos soldados de za-
bumba, e Freiras azabumbadas, cujo estrépito era a imagem do inferno
virado com as pernas cá para cima. As duas Beatas que bebem muita
vinho também m'o pozeram; não bebi porque parecia parente do do
Calvário, e uns bolos redondos de farinhas podres chamados esqueci-
dos, que não tinham de bons senão uma venerável antiguidade, pois
me pareciam do tempo dos Francezes. A lai Gertrudes Palavra, Mes-
tra eterna de Noviças, me contou uma historia de Joanna Thomazia que
eu não sabia, eil-a aqui tal e qual. As Bernardas além do eterno OfB-
cio, têm todos os dias o de Defuntos, e de certo não é pelos que ma-
tam com a sua formosura e discrição; a Noviça, se a ha, levanta a pri-
meira Antífona de vésperas, e aponta o Psalmo. Ensinou-a pois a Mes-
tra, e disse-lhe: — Olhae, vós haveis de dizer — Me stiscepit, de pé, e
depois — DeuSy Deus meus — sentada; assim o fez Joanna Thomazia —
e disse tudo — Me suscepit de pé, Deus, Deus meus sentada, e tudo no
mesmo tom latim e portuguez tudo junto, sem se lembrar que a pé e
sentada era a ceremonia; e desatando as Freiras a rir, ella muito ar-
renegada, gritou para a Mestra : — Não me ensinasse assim ! Se vossê
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 225
é Bernarda eu sou Dominica. Eu ri deveras, e não ha um só destem-
pero de Joanna Thomazia que não faça rir. A Abb.* é toUa e Evange-
lista, e por tanto inimiga do Baptista, coitado, a gritar com as creadas,
que não queria no coro mais tambor, nem mais fandango, e pegou
n'um apagador para lhe dar, acudiu a tia Ignacia Laureanna que é irmã
da Serpente que tentou Eva, pela sua edade, e acommodou a Abb.^
Ora aqui tem a Mana bernardices para se diyertir; não vá agora
contar isto aos Padres Casmurros, impertinentes, tollissimos e moedo-
res, que lhe encham a consciência de escrúpulos, e que lhe metam fe-
zes no corpo. Aqui não ha escândalo, tudo é ao Divino e para maior
gloria do Snr. Eu também sou Padre, e se não dirijo espíritos, posso
regular corações, vire-o para cá que lhe fica seguro, e tão unido ao
meu, que farão um só; agora vá papaguear também isto, que decerto
entorna o caldo, e deita o caso a perder. Forte taramella de coisas ne-
nhumas pelos buraquinhos imperceptíveis! Que mais lhe heide dizerf
Que tenho muitas saudades de a ouvir, porque de a vêr, isso fica para
mais devagar, de tomar á benção á Mãe a quem tenho o mais verda-
deiro afifecto pelo seu muito juizo e franqueza, e desejo com anciã que
essa respeitável Communidade a não deixe sahir do logar, que será
uma pena que me custará muito, confio na sua muita virtude, que se
não ha de subtrahir ao pezo. E a Mana? Tudo seu me dá cuidado, e
sobre tudo a sua saúde. Viva, porque é um anjo, e a creatura mais
perfeita que existe, e a mais digna de existir. Eu estaria coisa de vinte
minutos na grade de Odivellas, não me podia nem sentar lembrando-me
do seu pezadissimo e rigoroso Instituto, e vendo tanta liberdade, nem
tanto, nem tão pouco, mas não podia supportar uma coisa com a lem-
brança da outra. Umas que tanto se mostram, outras que apenas se
ouvem. Aquellas nem se podem ouvir, e estas nem se podem vêr. Aquel-
las, tolas supérfluas, estas por excellencia asisadas. Para aquellas nem
o Mundo pode olhar, estas nem o sol as pode vêr. Aquellas sem ver-
gonha na cara, estas com quatro varas de panno de linho. Aquellas
uns cavallões, e estas uns serafins; se ao menos se trocassem os Dire-
ctores I Os de cá para lá, os de lá para cá! Joanna Thomazia vinha di-
zer á Portaria, quanto lhe dizia o P.* no confissionario, e os arreme-
dava:— Olhe, Bossa senhoria para que beio á religião? Para xer uma
Besta nos peccados. Tanvem eu podia lá andar pelo Mundo, a bestir
uma cajacal Ora reze três estaçoens — Olhem, disse-me agora isto Fr.
Sebastião. Oh! mei Tio, eu mandei-o beber, não fiz bem! Fez sim, e
o logar era para isso, continue. Pois olhe, mei Tio, em elle me cha-
mando outra vez Besta, se cá entrar dentro, quebro-lhe a cabeça como
CAUTAS. 15
226 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
fiz a Fr. Manoel de Mello. Melhor é matal-o. Ai! tomara eul Com esfa
grande secatura a terei eu mortificado, minha Mana, porem o meu in-
tuito é devertii-a, e o meu mais firme propósito é ser emquanto viver
Seu Mano só
/.
XXXVI
o meu extremo cuidado me obriga, hoje mesmo, a buscar alguma
noticia da sua situação. Muito me aílligi domingo 1 E não ha um Dire-
ctor illustrado, que a obrigue por motivo de consciência a suspender
tantas fadigas? Valha-me Deus, eu não quero que escreva, não se mor-
tifique, nem dobre o peito, peço-lhe só, que de palavra me mande di-
zer se experimenta algum alivio: até com as mãos postas (logo em aca-
bando de escrever, porque agora estão occupadas) lhe suppHco, que não
cante, nem toque, porque, diz a lei, que a vida está primeiro que a
musica, e Deus ouve melhor o que se resa, que o que se grita. Para
consolação dos fieis, julgo que é escusado; porque vi tantas malvas
n'esse Pateo, que assentei, que ahi ninguém entrava já; mas se alguém
fôr, contente-se com as malvas, excusa de ouvir violas. Beije por mim
a mão á nossa boa e virtuosa Mãe, e acceite a mais viva e aCfectuosa
Lembrança de seu
Mano
/.
XXXVII
Minha Mana, seis sermões hontem em Igrejas grandes, acabando
o ultimo á meia noite, me mandam estar hoje na cama; e o cuidado e
desasocego em que estou com a sua moléstia, me manda com mais
império, que procure noticias suas: seja como fôr, ou de palavra, ou
por escripto, queira acudir a este velho caduco. Se eu pozer a cabel-
leira do Lage, e me fingir peticego, segundo a moda, ninguém dirá
senão que o mesmíssimo Ouvidor das suas Missas, e secador das suas
grades, assiste ao Forno do Tijolo. Parecendo-me com elle, não tenho
a ventura que elle tem. Eu quereria em uma calva Insidia ter pegada
a sua cabelleira, e até nas bochechas as bostellas doP.® Confessor, com-
tanto que assim mesmo bostelento, e desencabellado, tivesse a ventura,
que tem estes dois servos de Deus e Ministros de Christol Nunca a
A FREraA TRINA D. FELICTANÂ 227
Mana os veja á sua cabeceira, ainda que os ature na sua grade, onde
por certo estando a Mana restabelecida verá segunda feira de tarde,
ainda que seja por um instante
Seu Mano
XXXVIII
M. q. M. d. m. c. desfez-se o triste encanto das minhas jornadas,
pensões e cuidados, que tudo isto quer dizer que se augmentou re-
pentinamente o volume do Aneurisma no pescoço da pobre e atribu-
lada Maria Cândida, e foi preciso por mandado do Pinheiro metel-a
logo em agua salgada, e marchar segunda feira da semana passada
com ella para as praias de Pedrouços, levando também a carcomida
Carmo com a sua perna podre, e mais grossa que um cortiço. Mudan-
ças de Irastes, arranjos de casa com tudo quanto isto comsigo traz, me
tem feito a mim louco e doente; eu vim hontem sabbado á noite, hoje
Domingo tive quatro sermões, começando pelo de S. João em S, Roque,
onde me fallou o Principal Gamara para ir a essa Igreja a 15 do mez
que vem ; o quarto sermão foi em Odivellas, d'onde chego agora que
são dez horas da noite, moido, estafado e aborrecido, como a Mana
deve suppôr, sem se me desprender do coração o punhal da amargura
que me tem causado o estado em que considero a Mana com o cuidado
em mim. Ora pois, socegue, que eu estou vivo, e é o que basta para
não ter outro emprego mais que a lembrança da Mana. Eu sahi da
grade muito consternado na 1.* oitava do Espirito Santo, com a ideia
dos Padres, e sobre isto me explicarei agora com vagar, porque esta
só vae para socego da Mana e para me recommendar á rainha amada
Mãy. Torno a recommendar-lhe que socegue, a morte é só rival, mas
antes d'ella é só de F.
/.
XXXIX
Minha Sr.* e minha Mana, eu devia conforme a minha promessa ir
á parte de fora d'esse domicilio hoje terça feira, mas eu que mando, é
certo que não vou, e porque? Porque tendo tido Domingo três sermões,
hontem segunda feira quatro, apparece mais outro para esta manhã de
que me não posso sacudir, e é de S. José, e na Igreja da Pena, e não
é pequena a que me fica de demorar mais 24 horas a minha ida, sendo
tão vehemente o meu cuidado na saúde da Mana, que me pôz outro
228 CAUTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACliDO
dia em não pequeno susto. Eu estou na verdade com a Mana, possui-
dor da gloria; que coisa é a Gloria? É o Reino do Ceo? E que coisa
é o Reino do Géo! É um thesouro escondido em um campo; estamos
no caso, a Mana é um thesouro de perfeições, e ainda o querem mais
escondido? E tanto o está, que eu ainda lhe não puz a vista em cima.
E o campo? Ainda o querem mais claro? Campolide, que quer dizer
campo da batalha, porque se o Reino do Céo padece violência, isto é,
uma guerra viva de saudades. Ainda a coisa vae mais por diante; por-
que se diz que o homem que encontra este thesouro, vae, põe com
domno tudo quanto possue para possuir o thesouro, mais o campo.
Eis aqui o que eu fiz, puz tudo a andar. Formosuras, discrições e dis-
cretaças, tolas e toleironas, doidas, e mentecaptas, que era toda a mi-
nha fazenda, já lá vae, já vi tudo pelas costas, porque eu não quero
mais que o thesouro que está escondido no Campo, e no Campolide.
Logo estou na Gloria, porque o Reino do Céo é thesouro escondido no
Campo, mas pelos outros campos passea-se, e por este anda-se á roda,
ou faz andar a cabeça á roda. Depois da Bemaveoturança assim pintada
em papel, tratando das coisas da terra, digo que ámauhã, quarta, de ma-
nhã, lá vou ao campo onde está o meu thesouro, meu com o devido
respeito dos Santos Valois e Matia, que com effeito mata a gente com
a tal funcção dos buraquinhos; n'elles e por elles darei couta de mim,
e lá fallarei com o P.* Confessor, que deu em Fiel de Feitos: e quem
dissera, que as grades que toda a vida foram theatros das finesas, che-
gariam a ser Escriptorios das Demandas 1 E onde me embalaram desde
menino, com setas, pyras, cadêas, chammas, ternuras, constancias e ju-
ramentos; agora são Escrivães (se fosse o Escrivão só!) Leltra dos pro-
curadores, trapassas, e arenguicesll Deite-se o homem fora da cerca,
porém Mana, não me deite para fora do seu coração, nem minha Mãe
da virtude da sua benção. De tudo isto pede vista, mas não a dão ao
triste.
J. A.
XL
Mana do meu coração, eu tenho andado dividido, desde sexta feira
até hoje, entre trabalhos do meu officio e cuidados na moléstia da mi-
nha respeitável Mãe, e não tenho lá mandado assim mesmo, para não
parecer importuno, ainda que o motivo me justificava bastante. Não pe-
queno cuidado me causa a Mana também, porque me lembro que ha
de andar muito afflicta. Mande-me noticias suas circumstanciadas, e
que diminuam o meu cuidado; estou na maior impaciência por lá ir,
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 229
mas o não posso fazer senão quinta feira, eu irei, parece-me que é
tempo. O Céo permita que eu ache restabelecida a minha Mãe, e tam-
bém a Mana sem muita Iristesa, porque sem toda creio que não poderá
ser; d'essa herança não me cabe a mim pequena parte, e só tem al-
guma pausa, quando vejo mecher a ponta do farrapinho, que da ilharga
da Mana cobre também o fatal crivo, como se este não bastasse. Se
elle estivesse cá da minha parte, eu joeiraria por elle as saudades, e
os suspiros de modo que lá chegassem, mas assim, parece-me que até
descançam no caminho, e se algum entra vae já frio de neve. Quei-
ra-os accolher no seu peito, a ver se cobram alento e calor, e corre-
spondidos de lá, venham dar, e conservar a vida
Ao seu Mano
/.
XLI
Minha Senhora, e minha Mana em Christo: estou hoje, segunda
feira ás oito da noite, como despedaçado com sete sermões, quatro hon-
tem, e três hoje, e ha duas horas que descanço. Bem vê que teria von-
tade de lhe dizer muitas coisas, mas irão algumas, e as outras um
d'estes dias. Ora comecemos pelas de mais obrigação. Desejo que a
Mana me recommende sempre á Sr.' Prelada, mas que lhe vão lá fa-
zer as minhas lembranças? Enfadal-a no meio do seu laborioso mini-
stério, mas se lhe podem dar alguma diversão, ahi vão muitas sauda-
des. Que eu as tenho de lá ir, não tem duvida nenhuma, porque quando
lhe faço os meus respeitosos cumprimentos também vejo mecher um
vulto da parte opposta, e abaixando a cabeça rir-se muito, o que me
não consola pouco. E as outras senhoras também não hão de ter re-
commendações? Sim senhora, e muitas saudades, porque eu tenho tan-
tas d'esse respeitado e respeitável domicilio, que repartidas por todas,
ainda sobejam para a outra vez. Mas tenha sempre a Mana no seu car-
tório uma grande reserva d'ellas não só para seu uso e gasto parti-
cular, porém para acudir ás mais necessitadas em occasião de securas
do espirito. Olha que celleiro me manda fazer I dirá a Mana, melhor
fora que viesse elle, do que mandar para cá essas cargas de coisas
tão surradas como são saudades, e se as tem para que se mala lá cora
ellas, venha-as matar cá. Sim Sr.* e talvez que 5.* feira de tarde, por-
que amanhã vou com um Frade Bernardo visitar a emplastrada, na 4.*
feira vou ás dos folhos e denguices da Encarnação pregar do patriarcha
S. Bento, que bons Burros nos tem dado ao dizimo, na 5.* feira irei
1230 CAUTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
então a esse Céo, que é a habitação dos verdadeiros Anjos. Olhe Mana,
por ora ainda não sei que sejam outra coisa. Os Anjos ouvem-se quando
N. Sr. os manda fallar, mas pôr-lhe a vista em cima, isso não acon-
tece, e é o que lá me acontece a mim. Oiço um Anjo que é a sua Pre-
lada, mas ver o Anjo, isso não é para mim. Oiço da outra parte um
serafim abrasado em amor, mas vêr o serafim, isso não é para mim.
A corçasinha com as três cores não tardou em se mostrar a S. João da
Matta, mas vêr eu âs Ires cores, isso não ê para mim. Fez-se o Anjo lam-
bem com as três cores visivel a S. Félix e linha dois cativos um d'aqui,
outro d'ali. Felizes cativos que viam o Anjo. Se V. S.* se mostrasse
que é um Anjo, também se lhe veria aos pés um cativo, que é este seu
creado, mas este cativo não tem a fortuna de vêr o Anjo, que tão preso
o conserva. O meu Fado são Anjos, até moro na freguesia dos Anjos.
V. S.* como Anjo, manda-me coisas do céo, papos de Anjo, bolos ce-
lestes, toucinho do céo, e arroz que não é de telhado, é de telhas acima.
(Ora não torne a mandar-me nada do céo), e aqui anda metlido n'esta
Anjaria este Archanjo velho, sem sabor, repugnante, impertinente, e
secador. O esposo de Santa Cecilia, disse que se ella visse o seu Anjo,
se converteria á fé, mais faço eu, que sem vêr o Anjo bem convertido
estou. Para quem, dirá V. S.*? Para o Anjo. Quem é esse Anjo? É a
Mana, e não o duvide, já sabe que o é, porque é invisível; agora saiba
porque eu lh'o chamo. Porque tem um entendimento angélico, tenha
a certesa que ninguém falia, ninguém se explica, ninguém escreve
como V. S.^ Aos meus olhos é um verdadeiro prodígio de entendimento,
6 por este lado só Deus a merecia. Os costumes e os sentimentos são
angélicos. No mundo não existe coisa nem mais perfeita, nem mais
respeitável que a Mana. Acho-lhe graça em me arguir de dizer mal das
mulheres; se todas as mulheres fossem as Freiras do Rato, eu diria
bem d'ellas. Acha a Mana, que é coisa muito galante um exercito de
gaivotas nuas a passearem pelo meio d'esse mundo, sem vergonha,
sem juizo, sem modéstia, tolas como um Frade, namoradas como he-
roinas de comedia, se escrevem, escrevem parvoíces, e se faliam, di-
zem asneiras. Ora deixe-me pelo amor de Deus. Nunca as soffri, nem
lhe fallo, isso é constante. Eu não as posso aturar, tomara esbofe-
teal-as a todas, ellas bem conhecem a minha boa vontade, e julgo que
lhe correspondem. Se V. S.^ fosse uma secular, eu lhe juro, que en-
tão não queria vér o Anjo. V. S.* com um filó, com uns sapatos à
Deusa, com a feira da ladra de trapos na cabeça, com um chalé de
pendurucalhos com um sacco de fechos dourados, até nem tinha juiso
nenhum, nem se saberia expUcar, era uma coisa assim por modo de
À FREIRA TRINA D. FELICIaNA 231
um molho de tripas que alli ia pela rua. Deixe-se estar alii, Menina,
com essa cruzinha no peito, com esse véo bem comprido e bem es-
pesso, que vista por uma peneira ou pelos buraquinhos do crivo, terá
até á morte por seu
Mano
José Agostinho de Macedo.
XLII
Pax Christi
E seja louvado.
Lá mando agora esta mulher, porque o moço estava com muita
pressa, e torno a certificar a Mana, que nenhum incommodo me causa
servir a Mana, e servir a todas, e n'isso temos assentado de uma vez
para sempre; tomara eu concorrer para a sua total felicidade, e fazel-as
independentes de tudo, este é o meu desejo, e que a Mana tenha saúde
e a Mãe socego, porque me consternou muito o que hontem me disse
o P." confessor do estado do Convento sem recursos.
Recolheram as Sete Monicas nas ruinas que o fogo deixou, e di-
zem todos, e todas com a bocca cheia com que assopravam, que o fogo
foi posto pela Fausta dos Inglezes, irmã do diabo que d'ahi foi para
Odivellas, onde se foi juntar cora ella levada pelo Frade Bento, cuja
cabeça é rapada por fora de cabello, e por dentro de juizo. Deus nol-o
conserve até a hora da nossa morte, e a perdel-o, só por F. R. se lhe
não daria a
J. A.
XLIII
Mana do meu coração, eu linha promettido lá ir hoje, mas uma
importunação de um Cónego de Braga, que quer uma representação
ás Cortes, e outra importunação de egual naluresa vinda da Casa Pia,
aqui me conservam em casa manietado sem poder fazer a minha von-
tade; mando a toda a pressa esta rapariga dos recados, para a livrar
de cuidados, desejando muito ter letras suas, que venham dissipar-me
a zanga em que estou. Saudades a minha respeitada e querida Mãe, e
á minha Mana o quê? O coração do
Seu Mano
/.
232 CAKTAS DK JOSÉ AGOSTINHO DK MACIDO
XLIV
Não me pode esquecer a impertinência do P." nem ha sol que me
aquente, apesar do que caiu agora em cima de mim desde Santos até
ao Forno, á vista do rigorismo do Veiguinha. Quero-me accommodar
com uma coisa que me lembrou, convém a saber, que costumam os
grandes mestres de espirito provar a humildade e paciência das ser-
vas do. senhor, para lhe abater a vangloria dos seus raptos e visões.
Alonso Rodrigues nos conta (a mim não vêm elles com essas historias)
que dando uma vez conta a V. M." Maria de La Antigua ao seu Con-
fessor o P.® Luiz de la Puente, de se ter levantado palmo e meio do
chão, estando com muito fervor na oração para agradecer ao Sr. a
graça de lhe mostrar as almas que estão no Limbo, sem pena, nem
gloria, como os que vão ao Rato, se distrahira d'este rapto espiritual
com a dentada de uma pulga na coxa direita, e que tendo molhado com
cuspo a ponta do dedo para a apanhar, o Sr. permittiu que se esca-
passe, de que teve tal impaciência, que se lhe acabou a visão cahindo
em terra d'aquella altura de palmo e meio com tanta força, que íez um
gallo no traz, e que estivera em risco de levar bichas, que o Sr. com-
padecido lhe apparecera d'ahi a dois dias estando a serva de Deus no
Cartório e lhe dissera, não te desconsoles: Mana, eu permitti que des-
ses aquelle batecú, para castigar a impaciência de não apanhares a
pulga que te distrahia da oração; eu quero compro var-te na tribulação
dando licença a um percevejo que te não largue de dia e de noite, de
que a serva do Sr. sentiu muita vaidade de ser julgada digna de pa-
decer por vontade do Sr. tamanho martyrio, e que ouvido isto pelo
Confessor conheceu este em sonhos que era disposição divina mortifi-
car aquella alma com um incessante percevejo, lhe chamou iilusa e em-
busteira, negando-lhe quinze meses a absolvição, apartando-a de tudo
o que eram consolações com o seu Esposo; ale que o Sr. mandou sus-
pender aquelle rigor, dizendo que estava comprovado o seu Espirito.
Parece-me que acertei attribuindo a este motivo a sua aíílicção
de espirito de quarta feira, pelo caminho dos escrúpulos apartando-a
das consolações espirituaes ouvindo sem gosto os passarinhos cantando
á Hora, por tanto não se deve desconsolar; mas se V. S.* assentar
que é por tolice do P.*; e por elle ter a cabeça do feitio de carneiro,
então, Menina, faça-lhe o mesmo que eu fiz ás três cidras do Amor,
os ires l. l. L, mande-o á fava, e mande lambem ao P." Confessor, que
Á FREIRA TRINA D. FELIGIANA 233
pela manhã logo leva essa Carta do Sr. Deputado Ferrão ao Teixeira
Homem, e que está o milagre feito, e eu vou já a S.^ António pregar
da sua caridade, e se esta é também amor, tenha V. S.* muito a
J.A.
XLV
Minha q. M. d. m. c. Hontem, quarta feira, vindo de Pedroiços
para onde se transferiu agora o meu Hospital volante, a que se jontou
agora mais uma inchação (xM.* do Carmo com a perna inchada), achpi
a sua carta, única e verdadeira consolação que n'este Mundo tem, e
terá a minha apoquentada vida, senti a injustiça manifesta da sentença;
ainda que não me admira, porque não se lisongeam os Imperantes se-
não com aquelle indigno procedimento contra os infelizes Frades, e in-
felicíssimas Freiras, tudo lhe tiram, e tudo lhe tirarão, que para isso
lhe pedem roes, e mappas. Ora pois, minha mana, eu desejo todo o
bem até ás insensíveis muralhas d'essa prisão, porque a encerram, isto
é, o ente mais perfeito que existe, e por isso lhe peço que quando se
intentar alguma causa, ou demanda, me deixem vèr os fundamentos
ou documentos que para ella haja, não envolvam erro, ou motivo de
decaírem de sua justiça para se lhes pouparem cuidados, despezns e
desfeitas, que é o que mais se deve sentir, e se eu por falta de íntelli-
gencia não perceber, consultarei pessoas que entendam, e sejam des-
apaixonadas; o nimio zello do P.® Confessor talvez o engane algumas
vezes. Estimo que esteja mais descançada sobre os seus escrúpulos de
consciência, e que tenha firmeza nos seus propósitos, e já que tem
tanta luz no entendimento em que por certo ninguém a eguala, tenha
também resolução constante na sua vontade, d'isto pende também a
sua tão melindrosa saúde, que se arruina com a inquietação de espi-
rito. Tenha uma plena confiança na Divina Misericórdia, Deus tem mais
bondade, e mais juizo que os homens. Quizera fazer-lhe hoje uma vi-
sita rápida, porém não é possível, cansado hontem com a vinda de
Pedrouços ainda que por mar, cansado ou aborrecido de ouvir á ve-
lha: Aif minha perna; e á quasi velha: Aif meu pescoço I e em cima
Pratica de Santo António, amanhã outra vez Pedroiços, porque ainda
lá não está mais que metade dos Irastes e faltam munições de cosinha,
no sabbado Pratica de S.*° António, e ás três horas da noite ir para
Collares, e vir de lá também de noite, não me resta mais que a 2.'
feira, e quando fôr ao Monserrate, saber n'essa Roda da saúde da Mãe
e da Mana, e se poder haver um quarto de hora de grade então le«
234 CARTAS DE JOSÉ AGOSIIMIO DK MACEDO
varei a novidade que houver. No Monserrate fesleja-se o Senhor da
Agonia, que vem a ser, festejo-me eu, festeja-se V. S.* porque tudo
são agonias, as dos meus olhos porque a não vêem, as do seu espirito
com os Anjos dos P/^ mas Nosso Sr. J. C. quando entrou em agonia
diz o texto, que orava com mais afinco e proluxidade; eu farei o mesmo,
pedirei á Mana até com impertinência, que me queira muito, e quanto
mais agonisado estiver, mais lh'o pedirei, porque só n'isto consiste o
remédio único das minhas agonias; veja lá se me acode ou não, seja
o Anjo que me conforte, já que em tudo é Anjo, o tal calixsinho dos
buraquinhos não é pouco amargo, mas vá, que mais vale pouco que
nada, nem eu quero que d'elle me dispensem, nunca direi — aparte-se
de mim este cálix, mas venha para mim. Ora ande, que já estou can-
sado de esperar.
Mandaram-me de Coimbra esse papel a favor de Frades, que nío
é máo, mas ha a pregação dos Baptistas no deserto ou é o mesmo
que se me dissessem a mim que não seja de V. S.*
O mais. . . q? tudo
XLVI
Minha Mana e Sr.* a grande e escandalosa questão, não ficou de-
cedida no sabbado, porque intervieram representações d'esses encar-
regados de Negócios Estrangeiros, que ahi existem, e principalmente
do Delegado do Papa; mas eu desconfio muito, porque conheço o ca-
racter dos sujeitos, e sei as disposições com que estão. Hoje se ha de
ultimar o negocio, e creio que El-Rei o engulirá com a mesma fres-
cura com que enguliu a desfeita que lhe fizeram na pessoa do Mare-
chal. Segundo entendo, isto está de todo abandonado, pois já tinha
mais que tempo de dizer — gosto, ou não gosto. — Mas nem todos têm
a sinceridade que eu tenho, porque eu falio claro, e digo, gosto muito
da minha Mãe, gosto immenso da minha Mana, não gosto nada dos
buraquinhos da grade onde os olhos estão em perpetua Quaresma, que
vem a ser rigoroso jejum, porque se o vento dá no panninho preto
que cobre os buraquinhos nunca é para o levantar antes é, como te-
nho reparado, para o abaixar ainda mais. Alguns ha tão ditosos que
o vento lhe ajunta a lenha, para mim sempre a espalhou; e alli sopra
o vento com previlegios de grude, porque pega o panninho em logar de
o despegar. Só falto á Santa Regra um capitulo que determinasse, e
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 235
dissesse: — Item, mandamos, que quando as Religiosas forem aos bura-
quinhos, vão primeiro ao cubículo da Mãe metter algodão nos ouvi-
dos, que sempre lh'o terá prompto, e bem carpeado. — Item, recom-
mendamos, que para o pasmo que isto causará aos peccadores que lhe
vierem fallar, tenham sempre na grade da parte de fora, e bem pen-
durado um molho de cebollas. Item, mandamos em virtude de santa
obediência ao P.® Confessor que ao presente é, e ao diante fôr, que se
ponha sem pestanejar olhando para a parede, e acompanhando os hos-
pedes que lá forem, desde que elles venham até que se vão. Item, re-
commendamos ás religiosas, M." Porteiras e Rodeiras, e a quem mais
convier, que tenham sempre na porta da parte de fora uma mulher
gorda fiando n'uma roca com uma cara de desmamar creanças, com
dois olhos como duas beringellas, tão temente a Deus, que para bem
do próximo não deixe passar para a escada das grades uma sú mosca
de que não dê fó, e de que não vá cochichar com as visiuhas e ami-
gas que assistirem pelo pateo, e que faça bem perguntas a uma velha
que lá manda a irmã de J. A. que é muito curiosa, tola e intrometida.
Ora não quero fazer mais pesada a sua lei com outros capitulos.
Divirta-se a Mana com essa boa e honesta historia, mal traduzida por
quem nem sabia francez, nem portuguez. Conserve-me lá guardados
os papeis do Patriarcha, que eu os trarei quando lá fôr. Se não cau-
sar encommodo 5.* feira, eu irei. Immensas saudades a minha virtuosa
Mãe e V. S.* as acceite de
Seu Mano
/. A.
XLVII
Mana do meu coração, hoje não é dia de escritas, nem tem sido
dia de idas e vindas. Eu me tenho conservado em silencio e em so-
bresalto. É de presumir que esta noite ahi vá ficar o Espirito Santo,
meta-o lá para o Cartório, falle-lhe da minha parte, trate-o com bom
modo, peça- lhe para mim o que eu desejo. Eu podia buscar para elle
um empenho nos Padres que dizem ser do Espirito Santo, porém creio
que o mesmo Espirito Santo apesar de ser uma pomba sem fel os não
pode já aturar, e se algum se vae meter nas andancias de amanhã,
elle abala e vae-se embora; mas vá-se tudo, e fique a Mãy, se isto
assim succeder, eu serei feliz.
Vae o Sermão impresso; é tal o estado em que eu estou, que nem
sei escrever, nem me lembra coisa que lhe diga, e rindo eu toda a mi-
236 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
nha vida com uma coisa que ouvi sendo pequeno a uma discreta Freira
de S.** Clara de Coimbra em um oiteiro de eleição, que era um mote
que ella deu, e que deixou o auditório extático de assombro cora o re-
levante juizo d'aquell3 extraordinária mulher, vejo que se annunciava
uma coisa, e que devia vir entender commigo quando eu tivesse cin-
coenta e seis annos menos um mez; emfim o mote era este, e lá se
avenha V. S.* com elle
— Foi eleita sacristã —
Isto que então fez acabar o Oiteiro ás gargalhadas (para que es-
tamos n'este Muodo!) veiu a ser um objecto de tanta ponderação que
d'elle pende a vida de
j.Ata
XLVIII
Isto já é outra coisa, e já tenho logar de me dar a mim mesmo
os parabéns, eu os recebo, e me tico muito obrigado. Fizeram esses
Anjos o que deviam; elles bem sabiam que esse era o modo de me
conservarem em vida. Nosso Snr. lhe pague a caridade que commigo ti-
veram. A Mana esta tarde antes da Oração lhe annuncie o meu agra-
decimento, porque de outra sorte era arriscado o fugir o Touro da
manada. Toda esta semana passada andei eu metido com os Frades
Bernardos, está ahi o Geral, e cuidara era se justificar de suppostos cri-
mes com que os têm enxovalhado n'esses papeis públicos, tenho-lhe
feito vários requerimentos e representações, porque emfim tratam-me
bem aqaella emplastrada; agora me mandaram aqui um caixote de
pêcegos que vêm quasi todos tocados, porque meter pecegos verdes
em caixote, e esfe muito bem pregado cora fortes pregos, só Frades
Bernardos; ahi reraetto á Mana os que entre centos pude achar sem
podridão. Que será isto de habito Bernardo 1 Quer a Mana saber? No
dia da funcção de S.*" António apresentou-se lá o Paio de Lingoas com
a velha Carmo, busquei logar, e o tiverara em uma tribuna. Coisa rara,
no fira veiu El-Rei a cima tomar um refresco, já tinha conversado muito
commigo, e estando eu com a bostelenta de perna, e cora a bostelenta
de cara no cimo de uma escada por onde elle passava, beijei-lhe a mão
e elle rae levantou pegando-me em ambas as raãos, e voltando-se para
a Freira, disse-lhe: Esta é sua irmã? Responde ella, — e uma fiel vas-
sala de V. Ex^ — No dito não o mostra, acudi eu, e ella fazendo peor
a emenda que o soneto disse — de V. Magestade. — Elle riu muito, e
mais os que com elle vinham, e como elle estava de confiança, pois
até lhe disse que alimpasse a cara que estava muito suada, remendei
Á FREIRA TRINA D. FKLiaANA 237
toda aquella scena com esta exclamação: — Seja tudo para honra e glo-
ria do bemaventurado S. Bernardo! Ainda riu mais, e esqueceu-lhe
por um pouco, que já não era Rei. Vamos aos pêcegos Bernardos. Em
cima do caixote vinha essa carta de ofiferecimento, veja com que jóia
eu ficol Com o Procurador de S. Bernardo. Isto só elles o dizem, por-
que Procurador da Ordem de S. Bento, e até da de S. João de Deus
todos dizem, mas os Bernardos não são Procuradores da Ordem, são
Procuradores do Santo, que se cá tivesse demandas, achava-os peores
que José Joaquim. Porque se não assigna a Mana: Escrivã da SS."'
Trindade? Porque não é tola, e porque tem tanto juiso, e tão singular
discrição é, e será até á morte
Seu Mano
XLIX
Mana do meu coração, hontem segunda feira foi um dia de in-
commodo, e cansasso para mim, tive dois sermões, e o segundo em S.
Mcolào acabou quando deram três horas, e tão fatigado cheguei a casa
que me deilei; hoje tenho outra pregação de manhã, e de tarde vou a
mais pregação a Carnaxide, e sem me poder eximir. Não sei que força
occulta nos anda fazendo pirraças, mas eu a vencerei, tomara ouvil-a,
porque vel-a tem sua demora, porque a Mana me disse ha muito tempo
que só no valle de Josafat, mas entre tanta gente, será buscar agulha
em palheiro, se a Mana me não disser: — Olá, cá estou eu, chegue se
para aqui uma migalha, veja-me, e não se tire d'aqui, iremos ambos
para o céo. Tudo isto assim será, mas a moléstia, e os repetidos ata-
ques que a Mana padece me tiram todo o socego, e lh'o digo com ver-
dade. Eu vou já para fora, mande-me dizer de palavra por esta triste
mulher, e com sinceridade se está melhor ou peor, não me occulte isto,
porque me traz em grande sobresalto e inquietação. Vou-me a minha
vida trabalhosa, mas em quanto ella durar serei seu amante, e affe-
ciuoso
Mano
L
Minha q. M. do meu coração, agora acabo de desembarcar de uma
terra chamada Trafaria, chego de bem longe a casa e devo já ir de
casa para bem longe, onde chamara Arroios gritar de manhã e gritar
de tarde sobre coisas que fez S. Sebastião quando era vivo, e de ai-
238 CARTAS DE JOSÉ AGOSTIIHHO DE MACEDO
gumas que tem feito depois de morto. Tal é a minha vida. Dizer-lhe
que tenho vivido era mortal sobresalto depois que a velha qne lá mando
me vein dizer que nâo podia escrever, é dizer-lhe o que deve crer
porque não me podia lembrar senão de que estava doentissima, e se
não tenho lá mandado (que triste coisa!) foi por temer me dissessem
já não está aqui. Deixemos isto. A sua carta tirou-me da cova, estou
que não sei o que lhe devo dizer. Desde aquelle momento em que a
essa sacristia foi ter um bocado de papel com letra sua, ainda não pas-
sou um quarto de hora, que eu não sentisse o que merece que eu sinta
pelo ser mais perfeito que existiu e existe. Isto não é grade de Frei-
ras, é o coração que falia.
Mana, são onze horas, devo ir para a tal Igreja, quando vier á
tarde, ou quasi noite, eu escreverei com vagar e amanhã lá tornarei
a mandar. Eu não tenho outra felicidade mais que Feliciana. Isto não
é nome, isto é vida para mim. Não desprese a sua saúde, e acceite
como quer que elle seja o coração de seu
Mano.
P. S.
Mil protestos de respeito e
saudade á nossa Mãy.
LI
Minha q. Mana do meu coração, ainda que não trate já de doen-
tes, trntó de gritarias por essas Igrejas; fui Domingo ao Barreiro, e
por lá fiquei, vim quarta feira á noite, hontem sexta fui ao Sacramento
de manhã e de tarde, hoje torno lá, amanhã vou a S. Sebastião da Pe-
dreira, segunda feira vou a Santos; e com esta vida ainda que tenha
percevejos em casa, deixo-os morder porque nem tempo tenho para
os matar; tomara que passasse o dia sete de outubro para ter algum
socego n'este corpo, e n'este espirito, o do coração ha muito que o
perdi, e com muito gosto porque o motivo é para mais, Diga-me como
está; sei que hoje é dia occnpado não só por ser dia de Sr. S. Miguei,
a cujos pés devia fazer figura mais de um P.® Director, e Mestre de
espirito, mas por ser sabbado, dia de Padres Directores, para os quaes
até os dias de maio são pequenos. Estimarei que a nossa querida Mãe
esteja de todo restabelecida e cedo terei o gosto de a ouvir. Disse-me
hontem de tarde o Sr. Deputado, que a sua representação tinha sido
remettida para a Commissão da Justiça civil, e que depressa aparece-
ria. Ora pois, acabo aqui de escrever a um Anjo para ir fallar de ou-
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 239
tro, ambos invisíveis. Fique-se S. Miguel com as almas, e o outro te-
nha dó d'este corpo, ao menos d'estes olhos, porque não quer ver mais
que F. R,
J. A.
LII
Mana do meu coração, nenhum incommodo tive, porque as horas
foram bem distribuídas, e tudo se fez a tempo ou o tempo concorreu,
pois fazia vento bastante e fui depressa, ainda que o prior da egreja
lhe custa estar em jejum aié mais tarde, foi Congregado e por isto
gosta de todas as commodidades, delicias e amores d'esta vida mortal.
D'aquelle alto de Almada olhava para o Torreão das Aguas Livres, e
via também a ponta do telhado da Igreja, porque ou de perto ou de
longe, ahi não se vê mais que paredes, telhados, portas, rotulas, fer-
ros, pannos e buraquinhos, mas nada d'isto faz esquecer o que está
dentro. Eu frio! Só se a muita edade me faz parecer, e talvez chamem
frio meu, o que será fastio alheio. Maria Cândida tem agora uma
grande amigalhota em uma Anna da Costa que ahi esteve, e lhe conta
grandes coisas dos Padres Espirituaes e corporaes como boas festas,
estes fazem esfriar tudo, e enfastíal-as de tudo. Já disse á emplastrada
que semelhantes coutos não se ouvem, mas é o que se segue da es-
tada de Senhoras em conventos recoletos. Eu não estou aleijado, não
quero seges, e a 20 do mez que vem não fará calma, e com efifeito o
único motivo porque não tenho lá ido é o calor, que em o fazendo não
posso andar, nem respirar. Eu não tenho ahi a quem falle senão á Sr.*
Escrivã, nem ahi, nem em outra qualquer parte. Tomara ter mil occa-
siões de servir todas as outras por amor d'esta, porque só esta vale
por quantas houve e pode haver. Ora para não demorar o galego, que
é torto, me não espraio em saudades para a Mãe, mas eu lá manda-
rei a costumada mulher, que é coxa, para que estes aleijões correspon-
dam a rectidão com que sou
Mano
LIII
M. q. M. d. m. c. Vae esta cartinha saber de mim porque, com
o que eu souber viverei ou morrerei; Gorgundofia e Felicidade não me
deixaram satisfeito, porque me deixaram na mesma ignorância. Mas de
que me queixo eu, se eu não mandei lá a mulher como tinha dito?
240 CA.RTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
E a minha vida? Hontem jantei eu ás dez horas e meia da noite. Vim
de madrugada de Paço de Arcos, por mar; tornei a embarcar ás nove
horas, fui para Almada, desembarquei ás quatro da tarde, não vim a
casa mas fui direito á Igreja das Freiras do Salvador pregar de um
Sr. Jesus assim chamado, de lá fui para uma Igreja chamada da Glo-
ria, pregar de S. Sebastião, vim depois das sete horas para casa, e como
tinham comido o jantar, foi preciso esperar que se Gzesse a cêa que
me serviu de jantar, deitei-me, de escandecido não dormi, bebia agua,
agora são cinco horas, pedi um pouco de chá, mas como n'esta casa o
guisado mais difiGcultoso é agua quente, sabe Deus quando m'o darão,
e estou tão esvaido da cabeça que nem escrever posso, e com esta in-
sipidez de carta, vou saber com certeza o que é a Mana? É a Mana.
Mas o quê? E a mãy o que é? E eu o que sou?
Sou só da Mana
/.
LIV
Mana do coração: com effeito a tal grade pequena faz a gente
devota de Santa Luzia, ficam por lá os olhos se a santa não acode; e
quando nós os pecadores nos apanhamos cá fora no pateo, supportando
gradualmente o clarão do dia, respiramos, e eu cuidando que amanhe-
cia, quando desci a escada, disse á mulher gorda da porta — Salve
Deus a V. M.*'° já tocaram á missa das almas no Monserrate? — EUa se
sorriu e me disse: — Sr., está a cahir meio dia! Pois se cahisse em cima
da cabeça do P.^ Rego, não Ih'a partia. Isso é verdade, tornou ella, por-
que se os olhos eram de carneiro, os cascos também eram do mesmo
animar. Emfim, eu esfregando os olhos, costumei-me ao dia e vim para
casa cheio de cuidados na doença da Mãi, e na tosse tão teimosa da
Mana. Digam-me como estão, que para isso lá mando, ainda que isto
parece mais formigueiro, que civilidade, e se é cerimonia, os grandes
Mestres deitam grandes discipulos, só lhe não tenho aprendido uma,
que vem a ser a carreirinha da sabida da grade, porque eu bem mos-
tro que não ha pernas que me tragam, venho como cão pela corda; de-
vendo sahir mais leve que elle, porque eu lá deixo o coração e elle não.
Ora já que por lá ficou, trate-m'o bem, e como está dado, nunca mais
o quero, e já que onde vae o pião, vae o ferrão, ahi tem todo o
J.Á.
A FREIRA TRINA D. FKLICIANA 241
XV
Forte gritaria para nada! Ingrato, desconhecido, inconstante, vo-
lúvel, falso, enganador, esquecido, insensível, &. Sim Snr., e acres-
cente-Ihe occupado cora papeladas de Frades Bernardos, que por me
tratarem bem aquella gailinha choca os aturo em tudo, e os defendo
com esta tal ou qual penna quanto posso. Hoje ainda que quizera não
me podia demorar, vou para a grande festanga que fazem os barbei-
ros, cutileiros, espadeiros e tudo o que faz sangue e leva coiro e ca-
bello, nos Martyres; vem assistir o nosso que foi rei, e ás três da tarde
ainda não estará a coisa acabada. Vamos ao negocio, quando fôr na
Quinta feira onze do mez ás enfermidades do P.' Confessor, ajustare-
mos a hora do dia 14 porque devendo ir a Almada é preciso que ahi
seja muito cedo. Adeus Mana, não me crimine sem me ouvir. Dê sau-
dades a nossa Mãe, e se as quer minhas em logar de palavras ahi vae
todo o
J. A.
LVI
Gorgundofia das Estrellas, e Felicidade Perpetua de S.*° Agosti-
nho, a felicidade d'este santo antes de meter a beato, era diz elle, —
amar, e ser amado. — Se esta é a escrivã, eu não quero outra Felici-
dade. Mas será isto muita felicidade junta? Digo a verdade, eu não en-
tendo I É preciso que te expliques mais, e que eu saiba que motivos te-
nha para a esperança dos buraquinhos. Descança pois, dorme, e de-
pois explica-te, eu mandarei lá a mulher do costume. Quem quer que
seja a Perpetua Felicidade, eu não quero senão Felicianna, só esta íez
e fará feliz
/.
LVII^
Estou pasmado! O que a Mana sabe ralhar! Hei de escrever pouco
para lhe dar pouca matéria, no caso que o escrever pouco não seja
nova matéria para nova ralhação. Cuido que anda aborrecida com a en-
trega do ofiQcio, eu se estivera na vontade de todas, e de cada uma.
*N'esla carta termina a correspondência cora D. Feiiciana; estavam reunidas
ao caderno das cartas authenticas duas cartas que á Freira Trina dirigira D. Maria
CAilTAS. 16
242 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
não lhe acceitava tal entrega; a minha querida mãe também havia con-
tinuar a fazer meia no mesmo cantinho, e se tivesse calma abanar-se
com o seu leque de papel. Muita coisa mais faria eu se estivesse lá den-
tro, ou quero dizer, dentro da vontade de todos, mas acceitem-me os
Cândida do Valle^ Freira bernarda do convento de Cós, que então vivia em compa-
nhia do padre José Agostinhode Macedo. Transcreveraol-as como elucidativas:
111.»» Sr.«
Se eu julgasse que o meu nome lhe era desconhecido, não me atreveria a escre-
ver a V. S/ nem a ofiferecer-lhe os meus respeitos; mas sabendo que uma pessoa, que
08 laços do sangue prendem muito de perto commigo, lhe tem dado conhecimento de
mim, tomo a liberdade de aparecer na sua presença, e de pedir-lhe a sua amisade,
tributando-lhe para a merecer, a admiração que tenho pelo seu espirito, a qual nas-
ceu das expressões que na minha presença lhe fez um seu admirador, o qual ahi es-
teve hontem. Eu dou o parabém a V. S.» d'esta visita, e ainda os não dei a J. A. de
Macedo, porque ainda o não vi depois d'isto, e sei que elle os ha de estimar porque
ambiciona muito ter oceasiões de obsequiar a V. S.' Supposto que muito pouco per-
manente nas suas attenções, eu as julgo realmente sinceras. Eu desejo conhecer de
perto a Y. S.», mas como ignoro o modo de lhe fallar, rogo-lhe me queira dizer se
ahi faliam em grade, porque já disse ainda não vi J. A. depois que ahi foi. Eu re-
speito muito os conventos, e querendo a ventura que eu veja a V. S.» saberá então o
meu estado, e a preferencia respeitosa com que eu sou
De V. S.
Ainda que desconhecida uma
fiel admiradora
Lisboa, 3.* feira.
P. S.
A Portadora é capaz de resposta;
desculpe a má nota, mas quem pode
escrever como V. S.* Que estilo I que
estilo I José Agostinho tem razão de
gabal-a.
Maria Cândida do Vallt.
111."» Sr.«
Eu me envergonho da falta que tenho tido com V. S.* por não ter ha mais
tempo procurado as suas noticias, desculpando por este meio o não ter ido a esse con-
vento, como eu tencionava e appetecia; porém, minha Senhora, a minha saúde me
obriga a cahir em falta que a minha razão desapprova, e se não fosse attendivel esta
desculpa, eu me não atreveria apparecer na sua presença com a mancha de impolitica.
Á FREIRA TRINA D. FELICIANA 243
bons desejos; comludo, muito mal hei de ficar com todas se não fize-
rem isto, que é o que devem fazer. Se assim fizerem eu lhe cuidarei
com toda a efficacia de que sou capaz em todas as suas demandas, que
não irão como têm ido nas mãos dos zelosos Procuradores. Mas quem
me manda a mim a meter-me a Espirito Santo d'esse Capitulo? Nosso
Senhor as illustrará comtanto que fique a minha querida mãe, e ao
pé d'ella a Mana, e em fazendo famiiia continuando a ser da mãe filho
obediente, e da Mana amante esperdiçado
J.A.
Creio que meu Mano tem diminuído a minha falta juntando-lhe o estado da minha
saude^ e hoje creio que elle ahi mandaria_, e que continuaria a dizer-lhe que eu passo
do mesmo modo. Elle diz que V. S.* também é muito doente, o que me tem feito
muita compaixão ; o céo queira dar-lhe uma completa melhora e todos os bens de
que é tão merecedora. O nosso estado é muito doce, mas quando a saúde padece, tudo
é amargoso, porque não nos podemos dispensar de certos trabalhos que a mesma Re-
ligião traz corasigo. E não pode sahir? Esse Convento é tão apertado que nem á
doença dispense a clausura; E diga-me isto, porque a poder sair^ meu Mano lhe cui-
daria no Breve, porque uma pessoa tão decente, e sendo Ecclesiastico, não deve fazer
reparo. Perdoe estas reflexões, mas como sou muito sincera, por isso lhe
* eu desejo a sua felicidade e se podesse concorrer
para ella, me julgaria muito venturosa. Eu se este verão não passar melhor tenciono
recolher-me para o meu convento, mas heide de lá mesmo procurar as suas noticias;
e como meu Irmão pode escrever-lhe sem reparo, por elle heide saber da sua saúde.
Veja V. S.* se o meu inútil préstimo a utilisa em alguma cousa, que eu ambiciono
occasiões de mostrar-lhe á evidencia com que sou
De V. S.«
8 de Março de 1821.
Am.» m.'° att»
P. S.
A portadora pode esperar pela
resposta de V. S.». Se não poder
responder ella tornará quando
lhe assignalar o dia.
Maria Cândida do Valle.
* lUegivel, por se achar moido o autographo. (Da revisão.)
REQUEPaMENTOS
MESA DO DESEMBAEaO DO PAÇO
Senhor
Diz o P." José Agostinho de Macedo, Pregador régio, que quando
recorreu a V. Mag.*^* sobre a prohibição de um periódico — O Des-
approvador — feita pela Mesa do Desembargo do Paço por motivos in-
cógnitos ao supplicante, ignorava ainda que ella se estendia até ao Es-
pectador Portuguez, em que o Supplicante, como é constante opinião
de todos os bons, fez um notável serviço ao Publico, e não duvida o
supplicante dizer também ao Estado, pela força de razões com que
combateu os insultos do Correio Brasiliense, com que desmascarou a
perversidade do Maçonismo e Illuminismo; sendo todo dedicado a ser-
vir a causa publica da justiça e da razão; tomando apenas o suppli-
cante como pequena parte do dito Espectador para refutar as inepcias
e até blasfémias nascidas da ignorância que Nuno Alvares Pereira Pato
Moniz escrevera em um livro chamado Parallelo dos Lusíadas com o
poema Oriente do Supplicante, o qual patenteou até á ultima evidencia
os erros que, misturados com insultos se acham no mesmo Parallelo.
Não sabia o supplicante, nem pessoa alguma podia imaginal-o,
que punia pela justiça a favor das sãs doutrinas contra as da falsa Fi-
losoQa e do abominável Maçónico (ultimamente tão justa como elogio-
samente prohibido por um Alvari de V. Mag.**®), que refutar os sofis-
mas, os aleives e iajurias do Correio Brasiliense, e patentear a igno-
rância, a má fé, e o rancor de Pato Moniz, seriam algum dia reputa-
dos culpa, e moveriam o mesmo Tribunal que licenciou o Espectador
246 REQUEKIMENTOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
e o Desapprovador, a mandal-os recolher, sem dar ao Publico o molivo.
Isto, Senhor, é uma espécie de castigo feito ao Supplicante, e é bem
Dotavel que se lembrasse esta prohibição quando o Supplicante insul-
tado verdadeiramente, assim como o Redactor da Gazeta, requereu
providencias a V. Mag.''^ contra estes insultos tão manifestos. E que
satisfação se deu ao Supplicante e ao Redactor da Gazeta insultados
por Moniz? Prohibir o Observador: mas isto é em apparencia uma sa-
tisfação, e em realidade uma affronla, quando se envolve em egual pro-
hibição o Espfctador e o Desapprovador; e parecerá sem duvida a to-
dos os homens de probidade uma medida violenta, e talvez summa-
mente impolitica em um tempo em que tão necessários se fazem os
escritos dedicados a combater as falsas doutrinas e a torrente dos vi-
dos, não podendo ter maior triunfo os malévolos do que verem pro-
hibidas as ditas Obras do supplicante, onde o Publico aprendia a co-
nhecel-os e a detestal-os.
«Á vista do exposto, e sendo das leis de V. Mag.''* que não quer .
jamais se obre arbitrariamente, derivando o direito da defensa da pró-
pria justiça, o supplicante tem jus a requerer se lhe faça constar os
motivos porque merecem ser prohibidos os seus dois periódicos, pois
Dinguem deve ser castigado sem saber porque; offerecendo-se a fazer
qualquer reparação que de justiça se deva. E quando não possa isto
ter logar, por não preceder a dita prohibição de mais que de se ter
julgado que a prohibir-se o Observador, que o insultava, ao Redactor
da Gazeta, e indirectamente ao Governo, também se deviam prohibir
o Espectador e o Desapprovador, dedicados até politicamente á defensa
da sua Ordem, da Moral, da Religião e do Throno; n'este caso solli-
cita o supplicante a graça, de que não fique assim sancionada uma de-
cisão em que parece não ha aquella imparcialidade que reluz e deve
constantemente reluzir n'aquelle régio Tribunal. O Espectador e o Des-
approvador estão quasi todos vendidos, pois tanta era a estima publica
de que gosavam; e que fructo se tira de recolher das lojas alguma pe-
quena porção que ainda haja? Nenhum fructo mais que o enxovalho da
reputação do supplicante e o triumfo de ocultos inimigos seus e do Es-
tado, além mesmo de ser bem pouco honrosa esta medida assim to-
mada pelo mesmo Tribunal que licenciou os ditos Periódicos, que nada
tem contra as Leis d'este Reino, pois o mesmo Tribunal os licenciou
ouvindo os seus mais sábios e circumspectos Censores. Ao verem este
desagradável procedimento, que homens de bons sentimentos e saber
se animarão a empregar os seus talentos em defender as justas Cau-
sas, que o supplicante defendeu? Assim, esfria o amor da pátria, não
Á MESA DO DESEMBARGO DO PAÇO 247
so escreve a verdade, e até se priva o Estado de um apoio moral tão
necessário no tempo em que existimos. Portanto
P. a V. M. que em contemplação do
notório serviço que o supplicante fez
no Espectador e no Desapprovador, se
sirva expedirá Mesa do Desembargo do
Paço ordem para que possam correr
livremente os ditos Papeis.
E. R. M.^«
O P.^ José Agostinho de Macedo.
= Junte-se aos mais papeis. Lx.* 1 de julho de 1819.
— Remettido com Aviso do Secretario dos Negócios do ReiDO de
26 de junho de 1819 para se juntar o presente requerimento do Sup-
plicante, e consultar sobre tudo o que parecer.»
O Aviso foi dirigido a Manuel Nicolau Esteves Negrão, um dos ini-
ciadores da Arcádia Lusitana.
Senhor
Diz o P.* José Agostinho de Macedo, Pregador Régio, que tendo
requerido a V. Mag.*^® providencias contra alguns n."* do Observador
portuguez, em que Nuno Alvares Pereira Pato Moniz o insulta, assim
como ao Redactor da Gazeta, e indirectamente ao Governo, mandou
Y. Mag.''^ ouvir a informação do Desembargador do Paço, Intendente
geral da Policia, e com ella remetteu os ditos papeis á Mesa do Des-
embargo do Paço. Não obstante a informação d'aquelle benemérito Mi-
nistro, julgou a Mesa necessário encarregar o exame dos papeis a ou-
tro dos seus Membros; e em consequência de serem manifestos e gra-
ves os doestos e injurias impressas no Observador, e escriptas por Mo-
niz, decidiu se prohibisse aquelle periódico. Mas o que é verdadeira-
mente incomprehensivel ao supplicante é que, como uma espécie de
compensação, envolva a Mesa em egual prohibição O Desapprovador,
composto pelo supplicante, periódico que todos os homens probos e
sábios estimam, que muitas pessoas conspicuas têm insinuado, e Ou-
tras até pedido por escrito ao supplicante o continue, como um escrito
248 REQUERIMENTOS DE JOSÉ AGOSTINHO DB MACEDO
que sem injuriar pessoa alguma em particular, unicamente se dedica
a debellar os yícíos com rasões solidas revestidas de eslylo joco-serio,
pugnando a favor da Moral, da Religião e do Estado. Eis o que os ma-
lévolos desejam conseguido por elles até sem o requererem; e será isto
um justo motivo para os homens de bem se espantarem de ver con-
fundir o justo com o injusto. O Desapprovador perseguia os vicios com
o ridículo, não insultava pessoa alguma em particular: O Observador,
contra os dictames da decência e da moral publica abertamente se tem
dirigido a insultar o supplicanle e o Redactor da Gazeta do Governo.
Parece que deve ser bem diversa a sorte de um e outro papel; e que
não é conforme á rectidão com que costuma proceder aquelle régio
Tribunal, envolver ambos em geral prohibição. E como isto é natural
proceda de equivocação, ou de menos profundo exame, recorre o sup-
plicante a V. Mag.^® para que se digne mandar eximir o Desapprova-
dor (de que o Auctor tem escrito 26 n.°*) da referida prohibição atten-
dendo a que n'este vae librada a reputação do supplicante e a do Cen-
sor privativo d'este periódico o sábio e circumspecto desembargador
João Pedro Ribeiro; e não menos ofifeude em certo modo a opinião ge-
ral, que via na publicação d'este periódico, assim como na do Especta-
dor, pelo mesmo supplicante, um serviço feito ao Publico em obstar e
confundir os funestos princípios do Maçonismo e da immoralidade que
tantos estragos fazem na sociedade. Portanto,
P. a V. Mag.''® seja servido ordenar
á Mesa do Desembargo do Paço que,
mais bem informada de quanto está
longe o Desapprovador de merecer ser
prohibido como o Observador, haja de
permitlir continue a correr o mesmo
Desapprovador, incluso o n." 26, caso
não tenha censura, pois n'esse caso se
deve dar vista d'ella ao snpplicaote se-
gundo a Lei, para satisfazer a ella: pois
aliás será dar favor aos inimigos do sup-
plicante, que já espalham fora prohibi-
do de escrever por ordem do Governo.
E. R. M."
Como Procurador
Joaquim José Pedro Lopes.
(Remettido para o Desembargado em 22 de Junho de 4819.)
A MESA DO DESEMBARGO DO PAÇO 249
Senhor
Diz o P.' José Agostinho de Macedo, que sendo impresso o n.*
26 do Desapprovador com a devida licença de V. Mag.*^" em virtude
da approvação do seu privativo e sábio Censor e Desembargador João
Pedro Ribeiro, quando voltou para obter licença de correr ficou ex-
cusado; e como o supplicante tem toda a certeza que isto só poderia
ser por equivocaçáo e sem justo motivo; 1." porque nada differe do
original licenciade por este régio Tribunal; 2.° porque nâo contém coisa
algnma em que contravenha a Lei da Censura, que o supplicante per-
feitamente conhece; 3.° porque as pessoas em quem falia são elogia-
das por seus conhecidos talentos, e de nenhum modo vituperadas que
é o que é justamente vedado: recorre portanto o supplicante a V.
Mag.*^® se digne occorrer a esta equivocação, ou seja mandando-o ou-
tra vez ao Censor, se d'este procedeu o embaraço, ou mandal-o ler
em mesa, para prova da verdade do supplicante, a fim de que por
uma injusta exclusão do dito numero não fique desautorisada a recti-
dão com que este régio Tribunal procedeu na sua permissão para se
imprimir, e achando-a conforme o original,
P. a V. Mag."* se digne de deferir a
Supplicante segundo a justiça.
E. R. M.'^»
José Agostinho de Macedo.
=Vae deferido. Lix.* 19 de junho de 1819.=
Senhor
Diz o P." José Agostinho de Macedo, que mettendo á impressão
o n.** 26 do periódico semanal o Desapprovador, que compõe em be-
neficio da Moral publica, e apoio do Throno e Governo de V. Mag.***
censurando os vicios e debellando perniciosas doutrinas, acontece que,
voltando o mesmo numero á conferencia para correr, e achando-se exa-
ctamente conforme cora o original licenciado por este régio Tribunal,
cuja licença assas fizera não ter causa que vede a sua publicação, fi-
250 REQUERIMENTOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
cou todavia excusado, bem que o supplicante possa conhecer que justo
motivo assim estorve, depois de já impresso, o publicar-se um papel
era que nada se achou na censura, visto a licença que V. Mag.*^* lhe
deu para se imprimir. Está o Publico, e sobretudo o grande numero
de assignantes d'esta obra em grande espectação, e fazendo mil con-
jecturas, e desairosas ao supplicante, pela falta d'este numero, che-
gando até muitos a dizer fora inhibido de escrever, como se V. Mag.*^*
se podasse dar por mal servido de quem tanto, de bocca nos Púlpitos
e de penna nos Escritos, tem profligado os vícios, e defendendo as so-
lidas doutrinas da Moral da Religião. — Recorre portanto o supplicante
a este rectissimo Tribunal, onde só a recta justiça e nunca a prepo-
tência nem o espirito de intriga poderão penetrar, a fim de que no
caso de estorvo motivado da Censura, se lhe dê vista d'ella, na forma
da Lei, ou de outro qualquer motivo que faça obstáculo á publicação
do dito numero, a fim do supplicante satisfazer a isso; e quando a ex-
cusa proceda de equivocação, roga o supplicante a V. Mag.*^* queira
mandar que esta se emende, mandando que possa correr o mesmo nu-
mero,
P. a V. Mag.*^® seja servido deferir
ao suppUcante como requer.
E. R. M."
José Agostinho de Macedo.
= Vae deferido. Lx.* 19 de junho de 1819.
Senhor
Representam a V. Mag.*^" o P.* José Agostinho de Macedo, Pre-
gador régio de V. Mag.*^® e Joaquim José Pedro Lopes, Redactor da
Gazeta de Lisboa, que Nuno Alvares Pereira Pato Moniz, com licenças
provavelmente subrepticias (pois é impossível houvesse quem lesse e
desse licença para assim se imprimir), acaba de enxovalhar, doestar e
insultar aíTrontosamenle nos n."» 7 e 8 de um tal papel chamado (com
vergonha da nossa Litleratura) o Observador portuguez, não só ao sup-
plicante, mas até a Gazeta, os Censores do Espectador portuguez do
P.® Macedo, o Desembargo do Paço que o licenciou, e tantos homens
respeitáveis por sua sciencia e jerarchia, que fizeram estimação do
Á MESA DO DESICMBARGO DO PAÇO 251
mesmo Espectador, assim como do Semanário, que publicou o suppii-
canle Lopes em 1812 e 1813.
O atrevimento inaudito do mencionado Moniz excede tudo o que
se tem visto impresso em Portugal e está justamente no caso que pre-
viniu o art. 2o.° da Lei da Censura, que prohibe libellos famosos. Os
supplicantes ajuntam aqui o folheio feito por Joaquim José Pedro Lopes
com o nome supposto de Hygino Antunes, em que se criticam com toda
a modéstia, sisudeza e força demonstrativa os erros dos n."^ 8 e 9 do
Observador (do 1.° trimestre); e em vez de uma refutação litleraria
decente, se fosse possível fazel-a, solta Moniz dos dilos n.°' 7 e 8 do
2.° trimestre um chorrilho de descomposturas ao A. das Observações
(e envolvendo n'ellas o P.® Macedo), e entre os muitos termos affron-
tosos de que usa em todo o decurso do artigo Critico dos ditos dois
números, que os supplicantes aqui ajuntam, (e n'elles em parte vão
marcados a pag. 65, 66. 67, 68, 69 do n." 7 e a pag. 78, 79 e 82
do n.° 8.°), são sobretudo notáveis os com que designa a Gazeta, de
que o supplicante Lopes tem a honra de ser Redactor vae por seis an-
nos com approvação do Governo de V. Mag.*^*; e o Espectador do sup-
plicante Padre Macedo, designando a Gazeta, a pag. 65 — folhas de pa-
pel pardo que andam todos os dias por muitas mãos e mais não sei por
onde: — e o Espectador e o Semanário, a pag. 67, por — dois ludihrio-
sos monumentos da ignorância e do desaforo. — Para Pato Moniz, aulhor
do infame artigo, e o qual é por elle assignado, é provável seja des-
aforo combater os Pedreiros Livres, como se fez no Espectador, e pu-
blicar seus verdadeiros desaforos, sua correspondência com os jornaes
escriptos em Inglaterra contra este Reino, etc. Mas, se arguisse tudo
isto depois de refutar com solidas razões o que com solidas razões se
lhe provou, ainda teria desculpa, se bem que fraca; porém sem nada
provar em contrario, affrontar com insultos é só caminho seguido por
perversos. E não se contentando Moniz com o nome supposto de Hy-
gino Antunes, quiz declarar mesmo quem era a pessoa que atacava,
como se vê a pag. 79, onde se desmascara chamando ao supplicante
Joaquim José Pedro Lopes — Joaquim Camello, José Batoque, Pedro
Alarve, Lopes Tapuya. E houve Censor que tal approvasse? Só se pode
acreditar dizendo que approvou sem lêr, aliás. .. não se sabe quem é
mais criminoso.
Á vista do que os supplicantes levemente têm exposto, e que a
simples leitura dos dois números juntos do Observador mais ampla-
mente manifesta, demonstrando os supplicantes oÊfendidos em suas pes-
soas, e attendida a injustiça que se faz alli aos sábios Censore dos Es-
252 REQUERIMENTOS DE JOSÉ AGOSTLNHO DE MACEDO
pectador e ao Régio Tribunal do Desembargo do Paço, que o licenciou
bem como aos Ex.""' Governadores do Reino, e tantas pessoas conspi-
cuas que o leram com satisfação e o possuem, recorrem a V. Mag.**'
para que haja por bem commetter a averiguação d'este negocio (as-
sas bastante) ao 111.'°° Desembargador do Paço, Intendente geral da
Policia, para que em satisfação das referidas injurias mande prender e
impor qualquer outra pena que bem for legal, ao sobredito Moniz, que
assignou os ditos artigos, (ou ao Editor no caso do Moniz não appare-
cer); mandando outrosim a Mesa do Desembargo do Paço prohibir e
recolher o dito Observador n." 7 e 8 (e mesmo o n.° 6, que já princi-
piou a insultar os supplicantes o merece); fazendo se publico na Gazeta
o castigo do A. do Art.° e a prohibição dos ditos números para evitar
com este exemplo de justiça semelhantes abusos da imprensa, em ura
paiz onde esta se acha regulada por sabias Leis. O individuo author
do referido artigo é assas conhecido como correspondente do Redactor
do Portuguez em Inglaterra, como author de um injuriosíssimo escrito
chamado Agostinheida, em que inventou afifrontosissimos alsives ao P.°
Macedo, e por outras taes feitos. Um homem que vae impune commet-
tendo desaforos é um enxovalho da sociedade; e contra um tal sujeito
que até assigna com — Moniz — no artigo de que se trata, invocam os
supplicantes a justiça de V. Mag.*'® e a protecção das Leis.
E. R. M."
O P.^ José Agostinho de Macedo. .
Joaquim José Pedro Lopes}
* Recebido na Secretaria do Reino^ foi expedido para o Desembargo do Paço
por João António Saller de Mendonça em Aviso de 22 de Maio de 1819, dirigido a
Manuel Nicoláo Esteves Negrão.
Ha um outro requerimento de Joaquim José Pedro Lopes, com certeza redigido
por Macedo contra Pato Moniz^ que no Observador o apontou como requerente a car-
rasco.
OPÚSCULOS INÉDITOS
DE
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
SOBKE VAEIOS ASSUMPTOS
RESPOSTA'
GENERAL M A R M O N T
AO
ANTIGO AUCTOR DO YELEO "TELEGRAPHO'
1812
Aquella urbanidade, civilidade ou politesse franceza, de que tanto
faliam as antigas chronicas gallicas, ainda não está de todo extincla,
ao menos n'aquelles homens que avultavam alguma coisa antes da
época da nossa revolução, que começando em asnos acabou em ti-
gres, e eis aqui o que me obriga a responder-vos, e a romper o si-
lencio observado pelos meus predecessores ás vossas piedosos cartas
e salutiferos conselhos. Antes que partisse de França a substituir o
logar de meu camarada o príncipe de Massena, eu já tinha noticia e co-
nhecimento das vossas cartas, porque todas ellas foram religiosamente
recolhidas no palácio dos Sonhos, e depositadas no somnifero salão da
Mediocridade, no armário n.° 1 da Politica de dedo. Não imagineis, Mr.
de L'0, que tenha sido descortezia a demora da resposta, esperava-se
pela ultima vossa, porque respondendo a esta, se respondia a todas as
outras tão eguaes, e semelhantes na substancia como em os acciden-
tes. Não sois conhecido em França, nem mesmo declaraes aos portu-
gueses o vosso nome, senão pela letra O, que é uma interjeição admi-
rativa. O coxo Talleyrand, o patife Savary, por noticias havidas do des-
1 As cartas a que a presente serve de resposta encoritram-se no periódico O Te-
legrapho. A l.' no n.°... de 1811; 2.» no n.°6de 1812 e 3.*non.°35 do mesmo anno.
S5o assignadas com a única inicial O (que significa Oliva) e por isso o auctor é desi-
nado por José Agostinho com o nome de Mr. de L'0.
256 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
cabellado Lagarde, combinadas com o contexto das vossas cartas, vos
marcaram por um caixeiro, ou cómico arilhmetico de alguma reparti-
ção; porque todos os vossos conselhos, planos, estimativas, prophecias
e arbítrios, se reduzem a uma bem manejada, porém mal succedida
taboada. A regra de Ires é a vossa ancora medicinal, com ella daes
batalhas, determinaes conquistas, e até apeaes, ou levantaes a corja de
Marechaes, que como capinhas têm vindo um apoz outro, cada qual por
valente, fazer sua sorte aos indomáveis touros portuguezes, que uma
vez que fizeram ir pelos ares a embolação em que os quizeram meter
eui 1807 e parte de 1808, não ha forças, nem manhas francezas que
os possam subjugar, e o boléo que levou o capinha Massena chegan-
do-se ás formidáveis trincheiras, era para aventar com elle até aos
curnos da lua. Sois pois julgado em França por um arilhmetico falla-
dur: cada carta vossa é um Deve e Ha de haver. Sois semelhante a vós
mesmo, e como todos os exórdios das vossas idênticas carias acabam
sempre por um lá vae — lá vae lambem.
Mr. de L'0, quando um principio é falso, todas as consequências
d'elle tiradas, ou queridas tirar, não são somente falsas porém des-
tampadas. Desde que vos metestes a conselheiro dos marechaes har-
pias, e prognosticador de futuros successos peninsulares, estaes em
um falso principio, que é causa dos vossos erros arilhmeticos-politi-
cos, e das continuas risadas que dão á vossa cusla os milhafres do
quarto voto, que compõem o conselho aulico e intimo do ladrão Bona-
parte (ninguém o conhece e detesta tanto como eu, iMarmont). Vós vos
persuadis que elle intenta conquistar a Hespanha. Aqui é que para o
vosso entendimento torce a porca verdadeiramente o rabo. Vós estaes
em Portugal, não estaes na Hespanha, não sabeis o que cá vae, nem
o que tem ido, nem o que irá estes dezoito meses, que nos devemos
demorar cá. Conquistar a Península é coisa que Bonaparte nunca ima-
ginou seriamente, nem deliberadamente quiz. Esta minha proposição
requer uma prova, porque parece que os factos públicos estão de-
struindo a mesma proposição. Na Península existem exércitos, tem suas
prescriptas e deliberadas posições; em Madrid existe um tal boneco
de comedia chamado rei, e á roda d'elle quatro infelizes castelhanos,
tão asnos como elle; as províncias estão occupadas, e cada uma tem
seu cardador, chamado governador; eu mesmo me chamo o Duque
Alarmont, conquistador in fiieri de Portugal. E para que é tudo isto?
Não é para conquistar, subjugar e possuir a Península? Não senhor,
senhor contador, não é para isso. Em a Hespanha estando reduzida ao
estado da Áustria, ao estado da Prússia, ao estado da Suissa, ao es-
RESPOSTA DO GENERAL MARMONT 257
tado da Dinamarca, v. m.*^® verá largar a Hespanha, como se deixa
uma borracha, depois de muito bem escorrupichada. Não gaste o seu
tempo, Mr. de L'0, em me mostrar que a Hespanha é inconquistavel,
e que Portugal nos tem feito ir tantas vezes a falia ao bucho. Agrade-
ço-Ihe o bom zelo que tem em me aconselhar para me evadir á cólera
do patife de meu amo. V. m.^ não o conhece por certo! Ide roubar a
Península, diz elle aos seus favoritos; e o que vem primeiro dá a co-
nhecer maior gráo de privança, porque vindo era primeiro logar tem
mais onde meta o braço até ao cotovello. O primeiro enviado a Portu-
gal foi Junol, o mais inepto, o mais miope de todos os soldados frau-
cezes, porém o mais vahdo e o mais querido; deu-llie a divisão do
exercito mais pobre que havia em França; era uma enfiada, ou cam-
bada de mendigos esfarrapados; o general não tinha roubado a Itália,
a Alemanha a Holanda, á-c* era preciso vestir aquelles nus, saciar
aquelles famintos, e dar alguma coisa ao triste granadeiro Junot. Tão
asno faz v. m/® a Bonaparte, que se persuadisse que com aquella mi-
serável canalha se conquistava um reino como o de Portugal? Isso era
trro que o não commetteria um cabo de esquadra. Para os mandar
vestir e comer; para dar alguma cousa (e levou mais que todos) a Ju-
not, que preparos, que antecedencias não houve? Que bons veadores
e apontadores achou elle nos maiores desavergonhados que viu no
mundo, que são aquelles pérfidos portuguezes, que metteram a sua
pátria nas mãos d'aquelle hebetado arlequim! Encheu-se como ninguém;
sempre com a grelha n'alma, porque nunca se deitou na cama que se
não lembrasse que amanheceria feito era frangalhos nas mãos dos ra-
pazes da rua, patriotas mestres, cujo fatal assobio é mais medonha
para ouvidos franceses, que, que toda a artilheria das linhas. Foi ba-
lido Junot, commetteu mil erros^ expoz os Girondios a serem, como fo-
ram, açoutados; tornou para França sem reino, sem ducado, sem exer-
cito, e sem as sagradas águias, porque se lá appareceu alguma foi der-
rabada; mas com muito dinheiro, muitas jóias, muitos quadros riquís-
simos, muita preciosidade; e que lhe succedeu? Nada; porque desem-
penhou a sua missão, que era roubar, representando bem uma come-
dia por nove meses, que levou por fim a mais formidável paleada que
se tem escutado. Ora parece que meu amo, vendo as suas tramas des-
cobertas, e seus veadores conhecidos; os inglezes empenhados na de-
fensa do reino, tudo em armas de norte a sul, e o rapazio prompto
para o assobio, que tanto nos aterra, que devia desistir do projecto da
conquista de Portugal, ou se a intentasse, mandar um exercito, tal que
podesse abafar de um jacto o reino (que na verdade parece que tem
CARTAS. 47
258 OPÚSCULOS INÉDITOS DK JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
mandinga, porque não ha entrar com elle!) mas Soult era compadre,
e ainda não tinha levado rasca, era preciso contental-o: vede para onde
o mandou, para o Porto, onde Junot não tinha empolgado 2S garras,
porque Taranco e companhia, ainda que ladrões, tinham mais vergo-
nha que o miserável Junot. Veiu Soult ao Porto, roubou e fugiu, por-
que não vinha senão roubar, e o projecto da conquista estável e per-
manente ainda não entrou na cabeça ao desavergonhado de meu amo.
Não vos pareça, meu amigo arithmelico, que por elles trazerem com-
sigo ofiQciaes civis empregados e por empregar, financeiros e juriscon-
consultos, taes como o Lagarde, que querem estabelecer alguma forma
de governo permanente; tudo isso são sanguixugas que vêm engros-
sar-se cada uma pela sua repartição, como a experiência vos mostrou
em nove meses, nos quaes se não cuidou mais que em levar couro e
cabello. Tornemos á Hespanha que é a vossa teima, Mr.
Para roubar um reino á vontade é preciso primeiro que tudo en-
fraquecer este mesmo reino, desorganisal-o, e mais que tudo corrom-
pel-o e desmoralisal-o; mettel o em confusões, tirar-lhe, alterar-lhe,
confundir-lhe o governo, e dar-lhe cabo das forças physicas, para não
haver quem resista á escandalosa violência da empalmação universal.
Nenhuma razão de politica militar obrigou o ladrão de meu amo a magi-
dar para as margens do Báltico quarenta mil castelhanos, exercito re-
speitável, exercito temivel; este golpe de mão de um ladrão mestre,
era, e foi o exórdio da ladroeira que até hoje se tem seguido desde a
farça de Bayona: logo vereis outros motivos da nossa estada em Hes-
panha, sem o projecto, ou presupposto de conquista. O mais opulento
reino do mundo era a Hespanha. Se fores a Cantão lá vereis correr
patacas; se vieres ao Oder vereis as mesmas patacas; o dinheiro que
na Europa anda em visível circulação é o dinheiro hespanhol; parece
que nasce n'aquelle Potosi como nascem as batatas; eis aqui o que
fez cócegas ao ladrão de meu amo, quiz e quer e quererá sempre rou-
bar a Hespanha; para isto é esta farça apparatosa de reis, de minis-
tros, de governadores, de empregados. Se vós aqui estivéreis, verieis
as formigas em grande ponto; ha quatro annos que acarretamos para
aquelle infernal, profundo, insondável formigueiro da França, e em
quanto acharmos que acarretar não nos vamos embora. O estado mi-
serável da França em commercio, agricultura e artes obriga ao prose-
guimento da teimosa expoliação da Hespanha. É moralmente impossí-
vel fazer da Hespanha um reino francez: (veiu com o direito de herança).
Se Filippe V veiu succeder na sua coroa, veiu com o direito de he-
rança, a que assentiram os povos; agora não estamos n'esse caso, é
RESPOSTA DO GENERAL MARMONT 2o9
coisa muito differente, e para aqni estabelecermos um reino francez era
preciso abolir, e exterminar de todo a gente hespanhola, o que é im-
possível; este roubo, que nós temos agora feito com alguma facilidade,
se nos tornaria impossível existindo aqui o antigo exercito, que levou
La Romana, existindo a dynastia dos Bourbons, existindo o caracter da
nação; era preciso remover tudo isto para roubar á vontade, postoque
desde o dia 2 de Maio de 1808, logo vimos que nos havia custar al-
guma cousa.
Não imagineis, Mr. das contas, que se podia fazer na Hespanha,
subsistindo a Monarchia e o exercio, o que se fez na Alemanha; meu
amo é ladrão sagacíssimo, e sabe o que faz. Na Hespanha, para des-
graça da nação, havia e ha pedreirada, mas não tanta, nem tão fina e
superlativa como a pedreirada de Alemanha, que abrissse voluntaria-
mente as portas de Ulm, ou a pedreirada da Prússia, que deixasse
cortar e envolver os formidáveis batalhões de Frederico, e eis aqui
porque lá fomos roubar, sem cuidar primeiro em furtar monarchas,
desorganisar exércitos, e entrar com pés de lã, como fizemos na Hes-
panha, occupando as fortalezas para que os inglezes não entrassem,
que é o nosso universal pretexto, e com o qual até expoliámos os Es-
tados do venerável Pontífice Tivemos a dita de encontrar aquella boa
alma, aquella jóia de Godoy, o maior patife que o sol tem aquentado
desde Caim até aos nossos dias. Entrámos á nossa vontade, sem oppo-
sição de e.xercitos, sem governo, no meio do pasmo e universal obstu-
pefacção do povo, sem apoio, sem união, sem foco ou centro de governo
fixo, sem armas, sem forças moraes, aturdido com a tempestade dos
nossos mentirosíssimos boletins, suppondo-nos homens de ferro, in-
venciveis-, e sobre tudo génios de ordem superior; e n'estas favoráveis
disposições começámos a roubar, e a acarretar para França. Quiz o
supremo salteador da Europa, embuir ou embalar o povo hespanhol,
fazendo-lhe crer que tinha um chefe, ou cabeça; por isso appareceu
em Madrid o grão Murat, cora alçada pelo mesmo senhor, mostrando
que se organisava ura reino, e que o povo mudava de chefe, mas não
de Constituição ou soberania; e se o ladrão Murat não roubasse e ma-
tasse tanto ás descancaras, a nação avezava-se ao jugo temporário, que
duraria até ficar de todo cardada; mas o ladrão Murat tanto quiz co-
mer por junto, que arrebentou, e fez entornar o caldo da ladroeira pa-
cifica e moquenca; e eis aqui, Mr. o Calculador, porque o ladrão su-
premo veiu com a farça do triste José, fazel-o e appellidal-o rei de Hes-
pnnha, índias e suas annexas; quiz vêr se aquietava a nação, que as-
sim mesmo desarmada, e sem governo, deu cabo do bravo Dupont.
260 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Ora como a lábia do reisinho Pepe não pegou, e o roubo não podia ir
continuando pacificamente, venham exércitos para Hespanha. Cada ge-
neral seja um rei de uma provincia, que roube com força descoberta,
como até agora temos feito, e continuaremos a fazer até que se acabe
de pellar a Hespanha, ou que alguma força imprevista nos obrigue a
entrouchar mais depressa a fatiota. N'este caso fica a comedia acabada,
vae o panno abaixo, a Hespanha fica exhausta, nós os marechaes ri-
cos, e premiados como queremos e não podemos ser dentro da Fran-
ça, e os castelhanos em tal estado que nem uma arvore, ou uma única
rez lhe fique, com que não possa transmittir um real para Inglaterra
que é o verdadeiro projecto do Salteador imperial.
Rleu Mr., nunca a França poderá dispor de uma força tal que
occupe simultaneamente todos os reinos que compõe a vasta monar-
chia hespanhola na mesma península, e de maneira que esta mesma
força seja permanente, e fixa para subjugar d'esl'arte os castelhanos.
Sem isto são inconquistaveis, porque não vos pareça que meu amo é
tão parvo, que não calcule até ao ultimo quadrante o resentimento do
povo hespanhol, que em qualquer das províncias, e em qualquer tempo
que se conhecer com maior força que a franceza alli existente, não se
levante desde logo, e não dê cabo dos franchínotes francezes; a chaga
do escândalo é incurável no coração dos hespanhoes, e o vulcão da
vingança não tardará de arrebentar, apenas vir que pode repellír tão
bárbaros usurpadores. Ora vós que fazeis tantas contas de sommar, que
sois Ião calculador dos que morrem cada mez, que me pareceis guar-
da-lívros de cemitério, não me direis quando, ou como poderá a França
conservar na Península exércitos que cubram^ abafem, tyranisem e sub-
juguem sempre e simultaneamente toda a vastíssima extensão da pe-
nínsula? Não vos mateis em cálculos, que fazem rir os nossos rapazes
da eschola, nem em propheclas, que desconcertam a circumspecção
dos sebastianistas francezes; Bonaparte não quiz, nem quer conquistar
a Hespanha, porque não pôde; se elle poderá ter em todos os reinos
exércitos, tudo fora seu; porém como é Impossível esta conservação
de forças, rouba e abala. Os povos delxam-se roubar era quanto são
escanhoados por forças a que não podem resistir; em estas forças abal-
lando, como a Injuria não esquece, ell-os ahl levantados logo. Tal é o
motivo porque se conserva a Áustria e a Prússia com uma apparen-
cia de soberania; bons desejos tem da rapina, mas depois de desor-
gauisadas com que exércitos permanentes as ha-de conservar em res-
peito, vassallagem, e submissão? Se o ladrão corso fosse um conquis-
tador generoso como eram os romanos, então segura estava a Hespa-
RESPOSTA DO GENERAL MARMONT 26i
nha: por exemplo, já que a Hespanha é a vossa teima, e o assumpto
das vossas ociosas cartas. Os romanos não roubavam tudo, não alte-
ravam as leis, os costumes, a religião dos povos, respeitavam a huma-
nidade, conservaram os soberanos, enchiam de nobresa as mesmas ci-
dades com os privilégios de municípios, e para terem os pobres sub-
jeitos a um moderado tributo bastava a presença de um simples pro-
cônsul com uma guarda. Vede o que praticaram na Palestina com os
judeus; até conservaram com respeito o culto publico, sacrificando el-
les mesmo no templo; e bastava Pilatos, e a mulher de Pilatos, e uma
patrulha de pretorianos para ter avassallado nobremente a Palestina.
Nós por ordem de nosso amo não somos assim: esfolamos até aos ossos,
escravisaraos, matamos, profanamos, violamos, escandalisamos as mes-
mas cinzas fechadas nas sepulturas, porque não nos cheiram a defun-
clo, cheirara-nos a ouro, e por isto vos digo que o 'intento de quem
nos manda não é conquistar, é sim roubar, e abalar. Não imagineis,
Mr., que somos asnos, e que queremos ser reis de desertos. Meu ca-
marada Massena entrou em Portugal, e então o seu procedimento é o
de um conquistador, que se quer conservar? Não. Assolou o terreno
que pisou; se pudese entrar na fadada Lisboa, que é bocado que não
passa das goelas a Bonaparte, assolava, roubava, e abalava; porque,
crede, a conservação da conquista portuguesa é impossível; isto é tão
conhecido por meu amo, que se não tivera medo d'elle, eu vos parti-
cipara as instrucções particulares que trago, já que na distribuição do
roubo universal cahiu a rainha sorte em ultimo logar. Eu vira ao ra-
bisco, não vim á conquista, ficae n'isto, e conhecei de uma vez a po-
litica de Bonaparte. Sem guerras no coração da Europa ha três annos,
com que diabo havia de sustentar, vestir, calçar, pagar ao enxame in-
finito dos farroupilhas de seus exércitos, conservando-os estacionados
no coração da França desde a infaraissima convenção de Tilsit? Esta
canalha brava berrando com fome, tiritando com frio, dentro da França,
aturava lá aquelle ladrão? Não vos admireis de virem levas e garga-
lheiras desde a Polónia, da Holanda, e de Nápoles para o degoladouro
da Península; vós não conhecestes quando estivestes em França quem
era Bonaparte; é um monstro, e tem mais malicia e dissimulação que
Tibério: o que elle quer é enfraquecer os paizes em que domina, por-
que a cada momento teme o grito da liberdade, que seria infructuoso
se não tivesse forças que o auxiliassem, e a politica sanguinária d'este
Atila ê remover todos os obstáculos da tyrannia, e sabe bem que o ca-
minho mais breve de lhe dar cabo é envial-os para Hespanha, e ex-
pol-os ao formidável assobio do rapazio português, que em duas pa-
262 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
lavras só nos faz o processo, e dá a sentença : aMata, que é francez* ; o
crime é o nome, o summario é a presença, a sentença é morra, e o
instiuraento é o assobio, que aqui mesmo junto aos muros de Toledo
me torna húmidas as panlalonas do lado posterior.
Outra cenreira é a vossa, nas vossas cartas, supplementos, testa-
mentos e codicilios, que vera a ser, que não lemos que comer em Hes-
panha; vindes com a acaixeirada regra de três: — se em i8H tem só
um alqueire de cevada para comer, em 1813 quantos selamins terão?
Quando escrevestes a vossa primeira carta ao assalvajado José, já lhe
allegaes o artigo fome como uma poderosa arma, e concordo comvosco
que a fome é coisa terrível, mas é para quem a tem, por ora ainda
os francezes a não sentiram deveras na península, porque vós que tanto
sabeis contar, também deveis saber discorrer d'esta maneira: — Quem
vive, come; os francezes duram, logo os francezes comem. — Na vossa
carta a Massena insistis no artigo fome; na que me escreveis agora
também me ameaçaes com o grande exercito da fome. Mr. famulento,
eu commando bárbaros, que em quanto existir o ultimo burro de um
aguadeiro não ficam sem jantar; até agora se não é muito lauta a nossa
mesa, não sentimos a rafa com que nos ameaçaes. É pasraosa a fer-
tilidade d'estas províncias, e como a primeira lei do exercito francez
é sustentar-se â custa dos paizes invadidos, é certo que elles não dei-
xam de encontrar papa onde quer que a procuram. Em quanto osta-
mos roubando não é a fome que nos atrapalha; e olhae que nem por
isso são magros os que por la têm apparecido apanhados por esses in-
trépidos portuguezes que na verdade vos digo que são leões indómi-
tos, e conheço que é ainda mui pouco o que se diz das suas antigas
façanhas. Com que, meu agcireiro da fome, desenganae-vos, que por
mais contas de diminuir que façaes, poderá faltar que comer aos cas-
telhanos, mas a nós, verdadeiras aves de rapina, nunca a côdea ha de
faltar; e não è d'esla razão ião rebatida em todas as vossas carias,
que nasce a vossa prometlida inconquistabilidade da Hespanha. Somos
capazes de ir tirar das barrigas alheias o sustento recebido ainda de-
pois de passadas vinte e quatro horas.
Mr., sobre a inconquistabilidade de Castella, muito tinha que vos
dizer. Esta parte preciosa da Europa já foi conquistada e possuída pe-
los Phenicios e Carthagineses; foi conquistada pelos Romanos, e lam-
bem a vossa formidável Lusitânia; é por isso que por uma traição, mas
n'isse somos nós mestres, e é a nossa primeira arma, foi conquistada
e possuída desde o quinto até o oitavo século pelos Suevos, pelos Ala-
nos, e pelos Godos, que aqui em Toledo levantaram o sólio de uma
RESPOSTA DO GKNKRaL mahmont 263
brilhante moDarchia, desde o reinado de Athaulfo, até ao reinado de
Rodrigo; foi finalmente conquistada e possuída tranquillamente desde
a entrada do Conde D. Julião pelos Sarracenos, até á ultima expulsão
d'estes do reino de Granada nos dias de Fernando e Isabel: crede,
meu amigo calculador, que quando por Tariffa entraram os mouros,
não acharam a Hespanha em peior estado, nem mais corrompida, nem
mais dividida em partidos e facções do que nós a achámos, quando
entrámos por Bayona, e por Irun; nós primeiro nos encaixámos para
dentro como amigos, e depois nos declarámos possuidores, porque á
viva força não mettiamos cá o cachaço dentro, assim como o não met-
temos em Portugal, depois da surra de açoutes que levou o triste Ju-
not; porque deveis saber, meu curador de debilidades, que cedemos
sempre, todas as vezes que seriamente e sem pedreirada somos ata-
cados. Esta é a grande verdade, a cuja reverberante luz ainda as mais
bellicosas nações da Europa não têm querido abrir os olhos. Ora, se
o nosso intento fosse não roubar, como eu vos digo, mas conquistar a
Hespanha, o que poderam fazer os Sarracenos, nós mais bárbaros, mais
atrozes, mais ladrões, mais Ímpios que elles, não o poderíamos fazer
também? Se o meu aladroado amo podasse primeiro empalmar as ín-
dias, e fazer-se senhor de três potentíssimos impérios, de que ellas
constam. Peru, México e Chili, então contásseis com a absoluta con-
quista da Hespanha; mas de que serve a meu amo este pão sem aquelle
pedaço? Sem patacas, e sem de onde ellas venham, de que lhe serve
am terreno quasi tão grande como a França, cheio de desesperados, e
com essa corcunda de Portugal, aonde se não pode metter dente, que
não acudam os malditos rapazes com o detestável, e redutavel assobio
atemorisador dos mais resolutos Duques da moderna França! Não vos
canseis pois com os cálculos da inconquisiabilidade da Hespanha, que
são ociosos e inutes: Murat, Augereau, Victor, Regnier, Soult, Mas-
sena, Suchet, Macdonald, tudo tem vindo roubar; não são depostos,
são substituídos, para chegar a todos, e todos levarem rasca. Quem
não diria que Massena levava lombo de gozo, apenas chegasse a Pa-
ris com as mãos abanando? Pois não foi assim, riu-se Bonaparte, e
disse-lhe com o vosso Camões:
Oh lá, Massena amigo, aquelle outeiro
É melhor de descer que de subir I
Âquelles bichos portuguezes não são os macarronis da Itália; aili
fostes vós grande cousa; e então, que me trazeis de presente? Junot
264 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
veiu desnarigado, e vós que éreis anjo vindes desazado! Se pega,
pega, se não era graça. Lá em França crê-se que ahi estão as minas
de Cata-preta, quem pode furtar que furte, que para isso se tentam
essas invasões em ár de conquista. Eis aqui porque eu me não quero
metter em camisas de onze varas, e porque sei que de lá venho tos-
quiado, não me resolvo a ir lá buscar lã; aqui estou até encher os
alforges, em os abarrotando marcho, para vir outro, e dos ladrões ti-
tulares não faltam, para vindimarem a Hespanha, mais que Davoust
e Oudinot; estes dois não são mais queridos de meu amo, por isso vi-
rão ao lavar dos cestos; que ainda então se chama vindima, ainda que
não haja nem um cacho. Se vierem não lhe escrevaes, que eu lhes
mostrarei a vossa carta, que é o mesmo; os cálculos que me fazeis
são os mesmos que tendes feito, e que fareis, porque as circumstan-
cias são idênticas, e as vossas cartas são parentas das nossas unifor-
mes proclamações.
Vós me fazeis um rol ou mappa das terríveis partidas que nos.
acossam por lodos os lados, sem nos deixar repousar; que nos rou-
bam o que roubámos, e que nos tornam doidos, sem aquella união de
correspondência, sem a qual o plano rapinanle não pode ir por deante;
eu as temo, até os seus nomes são terríveis: o Chaleco e o Manco são
dois diabos no nome, e na coisa; mas o mais terrível é o Medico; este
é um César, mata com a espada, e com a penna; tristes das águias
se lhe engolem um rècipe; isto é que mata, e não a vossa annunciada
fome; três médicos bastariam para metterem na cova os Marenguistas
todos do mundo.
Ora sabei que estranho muito aqnella passagem da vossa carta,
em que soltaes as azas ao espirito prophetico, e annunciaes o futuro
estado dos francezes e hespanhoes na península; dizeis que isto aca-
bará na guerra mourisca; escaramuçarem e recolherem-se aos seus
respectivos castellos. Isto é boa consolação para o pae da creança, e
vos devem ficar muito obrigados os castelhanos. Depois que Pelaio sa-
híu das Astúrias e começou a escaramuçar com os mouros, até que
sahiram de Granada, passaram séculos, e se por esta sabida dos fran-
cezes esperam os castelhanos, não vos dôa a cabeça até então, que lar-
gos dias tem cem annos, e perdido o tendes se para lá o guardaes.
Isto não dura muito, e não estejaes fundando castellos em Hespanha,
em acabando a rapina, o primeiro que se põe a andar é o mano José,
que não pode tardar, porque de rei está reduzido a uma capatazia, e
apanhou por empenhos um numero no Terreiro de Madrid para ven-
der trígo por miúdo; a vossa gazeta o disse, e é uma verdade, e já
RESPOSTA DO GENERAL MARMONT 2C5
eu lhe embarguei alguns moios; creio que está agora vendendo aveia
para as galinhas que o cercam. Eu vou-me atraz d'elle; os mais to-
marão as de Villa Diogo, em nâo tendo que empalmar, pois não viemos
cá para outra coisa.
A respeito de Portugal, não faliemos; coisa de o conquistar, isso
é o mesmo que pedir verdade a um francez ou marmellos a um car-
rasco. Aqui em se fallando em Lord, tudo fica amarello, e eu não te-
nho receita mais apta para os accommodar quando se amotinam, se
não dizer-lhe: Oh Elanistas e Austerlzianos, parece-me que ouço o as-
sobio dos rapazes do Terreiro do Paçol — Moita, tudo fica calado, e
ainda aqui me contam alguns restos do n.° 70, o que lhes fizeram os
sapateiros da praça, quando sahiram de S. Domingos com o rabo en-
tre as pernas para embarcarem.
Aqui chegou Girard com as calças na mão, e uma dentada no ca-
chaço; pergunto-lhe pelo seu exercito, pelo bravo Mont-Brun, pelo fa-
çanhoso Aremberg, encolhe os hombros, e diz que apparecera o diabo
á não da índia em rio de Molinos: olha de vez em quando para traz,
e diz delirante e espavorido: «Lá vêm os rapazes a assobiarl. . .»
Com que, em Portugal não faliemos, o passado, passado. Se n'esta
hora arrebentasse Bonaparte, sem esperarmos pela vossa guerra mou-
risca, nem eu pelo Manco e pelo Medico, tudo se punha a andar, por-
que acabado o capataz dispersava-se a companhia dos ladrões, e fa-
liam n'um momento todos os vossos cálculos.
Agradeço-vos o conselho que me daes, de aconselhar Pepe que
marche commigo para a America, ou que vá commigo visitar seu ir-
mão Luciano, eu excuso de levar commigo trambolhos; Bonaparte que
o ature quando acabada a cardada se recolher cora os outros ao ves-
tuário. Ora já que me daes tantos conselhos, também eu vos quero
dar um, que vem a ser, que não sejaes propheta, que sois miserável
n'isso. Vós dissestes a 6 de junho de 1810 que não iria lá Massena,
que tinha chegado a Valhadolid, e foi; raáo propheta sois. Vós pro-
phelisastes a 31 de outubro do mesmo anno, que a Rússia, Dinamarca
e Prússia declarariam guerra á França, já lá vae o anno, e ainda o
nâo fizeram. Vós prophetisastes no mesmo dia, dando a prophecia como
uma verdade, que haveria uma revolução na Suécia, e ainda não ap-
pareceu. Vós no mesmo dia e hora dissestes que Pepe dentro em oito
meses abdicaria voluntária ou involuntariamente, a mal posta coroa de
Hespanha; já lá vão mais oito meses, e ainda o não fez. Vós dissestes
e prophetisastes que n'esse tempo as Cortes nomeariam um regente
e ainda o não fizeram. Vós dissestes que n'esse instante haveria por
266 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
todas as províncias de Hespanha umas Vésperas sicilianas, e o sino
ainda não acha horas de locar a vésperas. Vós prophetisastes que Bo-
naparte desenganado dentro em dois annos, que a segunda mulher
não lhe dá successão á coroa, terá guerra com o imperador de Áus-
tria, e u'esse mesmo tempo a mulher estava prenhe, e vae parindo
como uma rata, e a paz e harmonia continua sem alteração entre o
imperador de Áustria e Bonaparte. Ora que lai está o propheta? Vós
sereis como os sebastianistas de vosso reino? Como quereis que se
acreditem os vossos cálculos aritlimelicos, se as vossas politicas prophe-
cias falham por este feitio? Ainda continuo com a liberdade de vos
aconselhar, e vos digo que vos deixeis da mania de escriptor publico,
mania que tem invadido n'esse reino tantas cabeças, e que vos deixeis
da moda de fallar no ladrão de Bonaparte, coisa já tão fastidiosa e
impertinente; aproveitae os vossos talentos empregando-os em coisas
úteis e gloriosas á vossa pátria. Annunciaes certa facilidade no estylo,
que vos distingue da caterva infinita dos borradores de papel que tem.
entulhado esse reino, onde não entrará mais um francez armado; em-
pregae esta facilidade em objectos interessantes. Eu sou um marechal
francez, mas tive educação, e fui alguma coisa antes da peste revolu-
cionaria, conheço os francezes, e crede que dizer-lhes verdades é pre-
gar aos hereges. Da Hespanha não saem se não depois de bem rou-
bada, ou então a páo, e deveras, que é o modo de os levar. Cartas
e cálculos são armas inúteis. Livrae-me, já que sois meu amigo, li-
vrae-me vós do terrível Lord, que é capaz de moer a paciência a um
santo; único homem no mundo, que nos sabe pôr sal na moleira, con-
tra o qual não ha planos, porque parece que falia com o diabo á meia
noite para advinhar tudo, desconcertar tudo, e encher ludo de espanto
e medo; e se eu, como governador de Cidade-Rodrigo, Mont-Brun e
companhia, fôr ler alguma vez ás praças de Lisboa, pilhado pelo infa-
tigável Hill, livrae-me, eu vos peço, do assobio dos rapazes, que é o
que basta para confundir lodo o S. Cloud, e aterrar os mais campa-
nudos Friedlandistas, e é lambem o que mais assusta vosso conhecido
Marmont, o Duque.
27 de Novembro de 1811.
CARTA
DO
M, MANUEL MENDES FOGAÇA
AO SEU AMIGO TRASMONTANO
SOBRE OS PERIÓDICOS DO TEMPO
Deixae das artes o estudo,
Allucinados inortaes;
Quem chega a ler os Jornaes
É doutor, e sabe tudo.
Bandakra, Trova das Tezouras.
PROEMIO
A obrigação do christão é dar credito ao que Deus disse, porque
e!le o disse; a obrigação do vassallo é dar credito, e prestar inteira
obediência ás leis do soberano; a Deus porque é Deus, ao rei porque
o representa. Depois d'isto, ha na historia factos, que negal-os seria
oíTender o consenso publico, e a auctoridade humana. Mas tomara que
me dissessem que lei divina, que lei de soberano legitimo, que con-
senso universal de séculos e de homens, me manda que dê credito a
uma gazeta?... Não quero dar credito a nenhuma gazeta do mundo
desde o alto Monitor até ao baixo Investigador. É verdade que o mundo
em pezo não lê, nem quer ler senão gazetas; e chegou isto a um ace-
pipe de phreuesi epidemico, como se não bastassem as que temos em
Portugal vêm de fora, como \êm drogas para as boticas, e em se jun-
tando dois homens que tenham fome, o recurso é este: — Façamos um
periódico — e um periódico é feito. Depois do periódico feito, olha um
para o outro, e diz: «Muito bom é o nosso periódico I Como fica a na-
ção! que luzes espalhamos! Como fica o povo instruido! sem lêr o
nosso periódico, como podem os homens saber alguma cousa?. . . » Ora
268 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
quem são estes periódicos, a quem com prodigioso emphase chamara
— as folhas publicas? — São uns aggregados de inepcias, de baixíssi-
mas assentações, de vergonhosíssimas lisonjas, de destampadissimas
e soleranissimas mentiras, de arbítrios, ou alvitres oucos, de discur-
sos e reflexões eminentemente pueris; e sobretudo são uns raios es-
tragadores e exterminadores da língua portugueza, que está tão des-
figurada, tão invertida, tão adulterada com o pestilente sarapatel de
novas phrases, e novos termos, que a não conheço já, principalmente
nos periódicos que vêm de fora. Andam os homens tão enfrascados,
tão atolados n'esíes monturos, que não ha já paciência humana para
tal soffrer.
Ora, inimigos leitores, além do ides lèr n'esta carta, sabei e pas-
mae que desde que Bonaparte sahiu de Burgos (se é qne lá esteve)
tem sabido até hoje 9 de março de 1812 seiscentes e vinte e três es-
quadrões de cavallaria do guarda imperial de Castella para França.
Tantos tenho escrupulosamente contado nas gazetas castelhanas tran-
scriptas em os nossos periódicos. Pelas contas diárias dos mortos nos
hospilaes (onde não são assistidos) acho que em quatro annos tem
morrido nos hospitaes setecentos mil francezes. Á vista d'isto, meus
inimigos leitores, dizei-rae: quando encontraes na rua um jornalista,
que inchando as bochechas vos diz: — Já viu o nosso periódico n.°
1:000? — dizei-me se não tendes vontade afogar um periodiquista?
Pois tenho eu.
Vale.
CARTA
Amigo, recebi a vossa carta, e com ella o curioso mappa, que re-
mettestes. Só a vossa paciência poderia levar ao cabo uma obra de
tanto pezo. É verdade que conservaes os preciosos monumentos dos pa-
peis chamados periódicos, único deposito dos humanos conhecimentos,
e fora dos quaes não ha mais do que trevas, ignorância e erros; elles
são a guia do entendimento, a paz do coração, e a única regra fixa que
existe do gosto, e da critica; encerram em si o verdadeiro archetypo
do bello ideal (como tão erradamente chamava Marco Tullio á historia)
os mestres da vida, os esteios seguros da velhice, os únicos fachos a
cujo indefenito e universal clarão nos podemos seguramente conduzir
pelas tortuosas e obscuríssimas veredas da politica. As nações e os
monarchas lhes estão sujeitos, d'elles pende, como de um fio o destino
vacillanle dos povos; desenvolvem e aclaram o labyrintho das leis, dão
o verdadeiro preço ás producções lilterarias; o nome, e a reputação
CAUTA DO DR. MANUEL MENDES FOGAÇA 269
á eternidade, ou á sepultura dos sábios alli se encontram; penetram
os sanctuarios dos gabinetes, e determinam com justiça os interesses
das monarchias, o seu estabelecimento, progressos e decadência: alli
são notados os erros, e os acertos dos generaes de exércitos; a con-
servação, dilatação e prosperidade do commercio d'alli pendem, e alli
finalmente se encontram dictames, e lições de moral, regras infalliveis
de prudência, cânones da mais sublime philosophia, os sábios de to-
dos os séculos são obrigados a reconhecer a superioridade de um pe-
riódico, e a confessar quão pouco se adiantaram no conhecimento da
natureza, quão pouco promoveram a felicidade da espécie humana,
quando comparam os immensos fructos de suas vigílias e estudos com
uma gazela, com um diário I E com effeito, meu bom amigo, que águia
Dão abaterá seus altanados voos, quando vir remontado muito para
cima das nuvens um periodiquisla! Que encolhimento o de Platão, o
de um Archimedes, de um Galileo, se o destino os conservasse para
verem o Conciso, o Compostellario, a Estrella, a Abelha e o Lagarde
depois de jantar? Que pouco se conheceriam adiantados na eloquência
um Massillon, um cardeal Passionei, se entre suas estudiosas fadigas
chegasse a ler:
«Noticias confidenciaes: O partidário Caracol com o partidário Cha-
veco, ajudados pelo partidário Manco, se embuscaram no Curral de
Naval Carnero, cahiram sobre a columna inimiga depois do mais bem
dirigido fogo, tomaram um mulo com três sacos de cevada, ficou o
campo juncado de cadáveres; da sua parle tiveram uma cavalgadura
menor contusa, espera-se por horas o detalhe da acção.»
Ora meu amigo, na verdade, um entendimento que se pode le-
vantar tanto, que chega a traçar um tão soberbo quadro com tanta
força de colorido na expressão, com um estillo tão verdadeiramente
castiço, que é estar a gente a ver aprisionar e desalbardar o mulo, e
os inimigos precipitada e vergonhosamente fugindo, e os três partidá-
rios, senão com os direitos à coroa mural, ao menos com o jus â ova-
ção, ou pequeno triumpho, deve contemplar todos os outros escripto-
res não só covados, mas léguas abaixo de si, repimpando-se na ca-
deira magistral, e ornear d'esta maneira: «Povos da terra, sábios, ma-
gistrados, generaes, legisladores, philosophos, historiadores e todos
vós, oh mortos que estivestes no congresso de Ulrecht, e de Meeres-
ter, vinde a meus pés, que eu vos ensinarei a todos o que deveis fa-
zer; e guardae-vos bem, olhae, não erreis, porque possuo, dada pela
mesma sabedoria, a vara censória para vos zurzir.»
Isto, e muito mais pode um periodiquisla, com a auctoridade que
270 OPÚSCULOS INÉDITOS DK JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
elle tem, dada por seu sobrehnmano mister. E vós, meu amigo, aca-
baes de enriquecer o mundo com uma obra de que já a imortalidade
se foz senhora, e com ella e por ella podeis dizer com a mesma mo-
déstia de Horácio:
O docto ibero estudará meu livro,
E o bebedor do Rhodano pasmado
Ha de ler meu politico tratado:
Nem de todo morreu. Focinho agudo
Pernas em vez de pello
Eu já sinto nos hombros o cabello^
E em branco cysne me transformo e mudo.
(Ode 20.% Liv. 2.°).
Mas também deveis ser ingénuo e confessar que não chegareis a
tocar a immortaiidade com as mãos, podendo dizer como o outro mi-
serável com duas trovas de Fiiinto: — Posteridade és rainha! — se não
fossem os perioiliquistas. Está a vossa livraria riquissima, e mais opu-
lenta que era a do Vaticano, cora a iramensa collecção de gazetas que
tendes feito desde o dia 2 de Maio de 1808 até 22 de Fevereiro de
1812, e d'estas minas inexhauriveis das sciencias humanas, vós ten-
des extrahido por semana, por mez, por anno, uma lista exacta dos
francezes mortos na Hespaniia, a ferro frio e quente, e por conta que
não pode mentir, porque é puchada a somma ao sabbado de cada se-
mana á margem das mesmas gazetas, e daes em conta corrente, sem
dolo, fraude, malicia ou cousa que duvida faça, porque lá está tudo, e
todos podem contar, — um milhão novecentos trinta e quatro mil seis-
centos e dezeseis soldados francezes mortos na Hespanha, a maior parte
pelas guerrilhas, e quasi tudo cora bala raza. — Com effeito, meu bom
amigo, quando vejo estas verdades arithmeticas, infalliveis de sua mesma
natureza, não posso conter a minha indignação contra aquelle malévolo
castelhano chamado Feijó, que se atreveu a compor um grande dis-
curso, que \niilu\ou — Fabulas gazetaes! — Pois um periódico pode men-
tir? Oh sacrílega audácia de um escriptor pervertido! e talvez com-
prado pelo partido dos homens de juizo, que se chama o partido ar-
mado contra o diluvio gazetal! Não pode mentir, nem enganar-se ja-
mais, porque se ha homem que se possa, e que se deva de justiça cha-
mar eminentemente sábio, é o auctor de um periódico; as suas deci-
sões são oráculos, a sua sciencia toca as extremidades do universo;
comprehende em grande e pequeno todo o quadro da natureza, o que
BuíTon fez e conseguiu em quarenta annos, um jornalista consegue
CAUTA DO DR. MANUEL MENDES FOGAÇA 271
em um folheio mensal. Buffon preparou por quinze annos os materiaes
para o primeiro volume da Historia da Natureza, um diarista faz dois
primeiros volumes d'aquelles em meia folha dos seus portentosos nú-
meros. Oh sciencia immortal! oh curadora, oh mezinheira dos débeis,
dos fracos, dos coxos, dos mancos, dos tímidos f oh espancadora po-
derosíssima da ignorância! oh convertedora de praças da quarta or-
dem em praças da segunda ordem I Sciencia sobrehumana! Tu pintas
apparelhos, tu quebras as chicaras, tu lhe deitas gatos. Tu só és ca-
paz de conservar um commercio epistolar cora os maiores generaes do
mundo! Tu és a verdadeira mineralogia, tu achas mais ferro em Pu-
nhete, que em toda a Suécia em pezo. Tu commentas, tu calculas, tu
adivinhas, tu prometles, tu prognosticas, tu mentes que fedes, tu con-
solas, tu levantas, tu prostras, tu indagas! Oh Burleta italiana filha do
Papaver egypcio, pela tua narcótica virtude, a quem deves tu o conhe-
cimento das diposições que para ti tem os indivíduos privilegiados do
Destino (e privilegiados também) para fazerem essas enormes e arre-
ganhadas carantonhas, boccas de fúrias, dentuças de cavallo marinho,
a quem deves tu tudo isto? A um periódico! Os teus bufos, as luas
primas bufas caricatas, a quem devem seu mérito, sua nomeada, se-
não a um periódico?
Ah meu amigo, estas minhas vigorosas apostrophes de nada ser-
vem quando os fados faliam. Vós sabeis, que depois da diplomacia não
ha sciencia mais diíDculluosa, e trabalhosa que a chronologia (deixas
fallar os pedantes, e crede estas verdades): pois sabei que um perio-
diquista de uma pennada só reúne todos os conhecimentos chronolo-
gicos, os mais profundos e dilatados; determina com tanta exactidão
uma época, e uma data, que os sábios todos e da primeira magni-
tude, que trabalharam na correcção gregoriana, ficam postos a um lado
e de queixo cabido. Ora vós sabeis que eu me tenho dado a estes es-
tudos, com algum amnco, e por muitos annos, e vos aííirmo que em
ajustar a época do diluvio variam muito o douto Usserio, o profundo
José Gesar Scaligero, o portentoso Petavio, o sublime Newton, o vas-
tíssimo Saliano, o sábio e muito sábio Sírmondo, emfim não é coisa
de brinco, epresuppõe estudos teimosíssimos. Pois, meu amigo, em um
d'esles dias do passado Janeiro me veiu á mão um relevantíssimo diá-
rio. Admirei a hora do preamar, não gostei do jejum annunciado, ardi
deveras com o fatal cambio a 2574; mas o que me fez entrar em ex-
lasi e pasmaceira embaçante, foi esta portentosíssima sentença: —
«N'este dia abriu Noé a janella da Arca, e a tornou a fechar.» Como
fiquei? Semelhante ao medroso pae Enéas, o mais chorão dos heroes.
272 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACUDO
Ficou-me a voz pegada, o pello a pino. Apenas pude dizer: o Noè
teve razão em tornar a fechar a janella; se na Arménia fizesse tanto
frio, como hoje está fazendo em Lisboa, em trinta e oito gráos de la-
titude norte. Depois que tornei a mim e que o cabello se me amaciou,
comecei de ver e conhecer plena e cabalmente que coisa seja um pe-
riódico e um periodiquistal É uma sciencia verdadeiramente de infusa.
Tantos sábios discordantes, consumidos em contínuos estudos, ura Pe-
tavio, com três alentadissimos volumes in-foHo sobre a rasão e ordem
dos tempos, não determina esta época; os annaes de Saliano ficam
indecisos, e um periodiquista diz: — Hoje abriu Noé a janella da Arca,
e a tornou a fechar! — Oh sciencia immortal! Sem um Diário, sem uma
Abelha, sem um Conciso, sem um Correio, sem um Investigador, que
seria do mundo! Como se aquietariam era suas lubricidades os bandu-
lhos humanos sem um Café para depois do jantar! Ah meu amigo! a
minha vasta bibliolheca é um armário, lá estavam alguns livrecos (nem
um só em francez) a moça pedia-rae serradura para fazer furao a chou-
riços, lá lh'os entreguei, acabaram na chaminé hojo; hoje 24 de feve-
reiro teve logar esta espantosa, mas bera merecida conflagração. Já
não lenho livros, e de que me servem elles? Uma gazeta, um perió-
dico calculante suppre tudo. — Eu sou pregador (e de aluguer!) é pre-
ciso estudar os modellos ou exemplares da eloquência: oh Cypriano
admirável e dulcissimo! Oh agudo e ardentíssimo TertuUiano! delicado
Ambrósio, fluentíssimo Chrysostomo, e tu, oh águia sobre todos, Na-
zianzeno, de que me servis vós, se um meu amigo chapelleiro me deixa
ler a Gazeta, e outro meu amigo amador das boas lellras, me empresta
o Investigador? Oh Telegrapho! Oh tu, que és mina de diamantes de
Visapur, tu me espirituahsas, me enleias, me fecundas, me empanzinas!
Harmonioso Roberli, as tuas divinas paginas me encantavam; mas se
eu tenho o Diário, de que serves tu? Eu devo fallar bem portuguez,
porque fallo em publico, e porque sem pureza e elegância varonil não
ha eloquência; deveria estudar Lucena, Ceita, Heitor Pinto, Vieira, e
a ti também mimoso e discreto Jacinto Freire: ah! charlatães, charla-
tães, ide-vos d'ahi, ide-vos envolver no pó da vossa antiguidade; de
que me servis vós, se eu lenho a linguagem mais apurada, mais cas-
tigada, mais dilatada, mais rica, mais farta, mais abundante, mais har-
moniosa, mais castiça, e menos bastarda no meu rico Investigador!
Além de vêr alli dilatada infinitamente a esphera de meus conhecimen-
tos, podendo ir marcar com o dedo a cova onde se enterram os bur-
ros, e os cães mortos para fazer velas de espermacetli! Já sei que ha
o chinchonino, e que vão muitas gentes ás invejas para serem vacci-
CARTA DO DR. MANUEL MENDES FOGAÇA 273
Dadas pelo doutor Laranjadas; alli tenho o meu thesouro da linguaf
Quero dizer explicação, digo esclarecimento; quero dizer Junta, digo Co-
mité; quero dizer comarca, digo arrondecime?ito; quero dizer barreiras
altas, digo insurmontaveis; quero dizer proponho, digo movo; quero di-
zer Presidente do Erário, digo Chanceller do Exchequier; quero dizer
rebater os esforços do inimigo, digo depreciar; quero dizer Iticta can-
çada, digo lucta penitel; quero dizer itidex do que se trata n'esle livro,
digo contentos; quero dizer honrado senhor F., digo honorable; quero
finalmente citar uma passagem de um clássico portuguez, pois traslado
a Ode — Corja adusta — do botequim. Ora, meus amigos quinhentistas,
mettei-vos a um canto, isto é outro fallar. O destino da lingua portu-
gueza está nas mãos de um periodiquista; e bem dizia aquelle verso
impresso de Garção:
Estuda portuguez pela Gazeta.
Quem quizer escrever uma historia da nação com tanta gravidade,
pureza, propriedade e elegância como João de Barros, não largue das
mãos a Gazeia e o Diário, olhe que vae perdido. A philosophia, a his-
toria, a critica, a hermenêutica, a politica, a eloquência, e sobretudo
a verdade, estão nos jornaes. Isto, meu amigo, isto ainda é andar pela
rama, ha coisas muito mais essenciaes, ponderáveis e utilíssimas. O
destino das nações, a liberdade dos povos, a queda do coUossal impé-
rio, lyrannico e oppressor, alli estão marcados, descriptos, assignala-
df s em seus impreteriveis períodos, e sobretudo eu alli admiro a
sciencia symbolica: parece que viajaram no Egypto, que foram inicia-
dos pelos sacerdotes cophtas nos mysterios e hierogliphicos de Isis,
alli está tudol A consolação das nações oppressas alli está; alli está o
termo das suas esperanças muitas vezes falliveis e fallidas; porque o
implacável Conciso, como rival pertinacíssimo, faz pregar uma mentira
quando se tinha feito uma promessa! — Que mysterio, meu amigo f Que
Bandarrices supérfluas I Eis o momento da inspiração do delirio extá-
tico 1
No alto Aragão
Manobra o Durão;
O Empecinado
Anda arrenegado
No baixo Aragão :
Acode depressa
Suchet mandrião I
E vae senão quando toma-se Valência I Ah Conciso, Conciso, tu
CARTAS. 18
274 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
é que me enganaste! Por amor de ti flquei com um palmo de bocca
aberta, e não tenho outro remédio mais que encampar-te uma men-
tira!... Vede, meu amigo, o que acabo de dizer, e como me transporta
a leitura do resuscitado, que parece que me assento na tripode de Del-
phos, que entro na cova de Trophonio, que me alapardo na concavidade
de um carvalho de Dodona.
Nós os homens de vista curta, e que não somos periodiquistas,
e a quem a madrasta natureza não quiz dotar de talentos tão delga-
dos e subtis que podessemos com elles armar um jornal, ou uma pa-
tifaria como o Correio Brasiliense, e fallarmos e calumniarmos por um
tostão, e calarmo-nos por dois tostões; nós os homens pequenos, e que
apenas poderemos chegar com o entendimento a conservar o nome do
intrépido Longa, do destemido Caracol; nós que nem poderemos se-
guir com a imaginação, por tarda, pennugenta e pesada, nas marchas
o próprio Manco, apenas vemos os fados, mas não nos foi dado nem
conhecer as suas causas, nem abranger as suas consequências; para-
mos como pupillos, e se o mestre nos não allumia ficaremos para sem-
pre atolados nas sombras do erro. Vimos a rendição da Cidade de Ro-
drigo; para nós ficou na classe de um facto ordinário da guerra;
sitiou-se, formaram-se parallelas, abriram-se brechas, foram praticá-
veis, assaltaram-se, entrou-se a praça, rendeu-se, ganhou-se, entre-
gou-se com inaudita generosidade a seus antigos possuidores; este é
o facto para nós os pequenos. Não viajamos, fomos tão asnos qae toda
a vida levamos no estudo ioulilissimo da historia, da philosophia e
das boas artes. Cosidos, pegados e grudados em uma banca, na solta
e ligada oração fizemos algumas coisas que geito têm; assim perdemos
o nosso tempo, quando para sermos sábios uma só coisa era precisa
e uma só coisa bastava: — O Monitor chimica e passear. — Emfim não
nascemos para voar sobre as azas do Diário, e assim ficámos, e por
isto é para nós a rendição da Cidade de Rodrigo um acontecimento não
extraordinário, mas ordinárias vicissitudes da guerra. Mas um jorna-
lista, um jornalista! Que é mais do que dizia o marujo a Architas na
Ode de Horácio: — Que corre o polo com a mente, que conta a terra e
o mar, e a areia que não tem numero. — Um jornalista com este fado
da rendição, pega na Europa toda, põe-na no collo, e começa a olhar
para ella de cabo a rabo. Considera o vasto império do ladrão, os rei-
nos furtados de que se compõe, ou compagina e diz muito serio: —
Ora o grão-Cão perdeu tudo com a rendição da Cidade de Rodrigo. —
Isto seria assim, mas tinha sua dureza fazel-o engulir assim aos piís-
simos leitores. Tu só, oh sciencia periodiqueira, tu só podias inventar
í
CARTA DO DR. MANUEL MENDES FOGAÇA 275
um symbolo qae fizesse conhecer aos homens obstupefactos o seu
grande achado. Gonfesso-vos, meu amigo, que nunca admirei tanto
uma lembrança tão profunda e me desgostei tanto de mimi Com a
argilla de Mismia, oh conto dos contos! tu serás sempre contado! Com
a argilla de Sevennes se fez para o ladrão um famoso apparelho de
chá; a porcellana do Japão eram panellas da Panasqueira á sua vista,
e a obra e o feitio ainda sobrepujava á matéria; a pintura excedia á
matéria e feitio, os desenhos eram de Raphael resascitado; no bule es-
tava pintada a batalha Marenga; na manteigueira a batalha de Wagram;
no assucareiro a de Eylaii; na leiteira a de Jena; e na grande tigella
de lavar a de Âusterlitz; nas chicaras e nos pires estavam as campa-
nhas de Itália, a empalmação de Bayona e a incorporação da Hollanda;
os reisinhos do Rhin, a nesga do Piemonte, a ladroeira da Etruria, o
roubo de Veneza, o escandalosíssimo latrocínio da Romania, a intrusão
de Nápoles, as maquias de Valais, o trambolinho de Génova, a politica
da Prússia, o serventuário da Suécia, emfim todas as peças do mon-
struoso edifício da lyrannia, e todos os espeques d'aquelle collossal
phantasnia. Ei ara já distribuídas as chávenas, o pérola recendia, e o
perfume chinez toldava a dourada abobada do pavilhão de Flora; só se
dislri!)uia com cautela o assucar, por ter sido o anno escasso d'essa
colheita, e ter dado o peco nas beterrabas no raomeulo da destillação.
A longos sorvos se levava o anti-somnifero elixir, e ia quasi vasando
a sua envernizada malaga o empanturrado ladrão; n'este comenos che-
gam Manuel Berthier e António Xivier Gambaceres, e dizem: — Senhor
meu amo, aqui está de oflicio a rendição da Gidade de Rodrigo! —Pala-
vras não eram ditas, como se aquillo fosse saúde de toast, já quando nin-
guém sabe de que freguezia é, cahiram as chicaras no meio do chão,
esmigalhou-se o apparelho, porque não houve alli mãos de aranha que
se podessem segurar a essas moitas. Acabou-se, meu amigo, a histo-
ria toda do pavilhão de Flora, das chicaras pintadas, e aqui também eu
não acabara de abrir a bocca, e se tivesse um páo na mão lambem o
deixava cahir nas costas de alguém.
Vós sois curioso, e desejareis saber aonde se encaminha, e que
queira dizer esta obscuríssima allegoria. Ora crede que se o auctor,
quem quer que seja, porque é anonymo, a~não deixara explicada, por
mais que os Saumaisses futuros se matassem em commentarios, e suas-
sem todos os Brumanos, todos os Douzas, todos os Lambinos, todos os
Turnebos do mundo, nunca atinariam com o genuino sentido d'esta fa-
tal caqueirada, vista e acontecida no pavilhão, ou no salão de Flora.
Quer dizer, meu amigo, diz o periódico, quer dizer que com a rendi-
276 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
çõo da Cidade de Rodrigo cahiu todo o fatal império dn ladrão Corso;
que a rendição fora a pedra que buscou os pés de barro do grande
collosso que viu Nabuco; que tantas victorias ou alcançadas ou com-
pradas; que tantos reinos ou entregados ou roubados; que tantas pro-
vincias sorvidas na França; que tantos thronos ou captivos ou vilipen-
diados; que tão férreo poder esmagador de tantas cabeças, que a pre-
potência absoluta de Bonaparte; que os enxames de soldados com que
elle enche e suja a Europa; que tantas fortalezas occupadas e guarne-
cidas, tantos procônsules sanguinários espalhados pelo vasto domínio
do monstro; tão severas, tão barbaras, Ião desconfiadas cautelas do
policia com que elle especa e escora seu infernalissimo throno, que
sua luciferina malícia e perfídia, sua insaciável ambição, sua implacá-
vel vingança, finalmente que todas as garras e todas as presas d'este
sanguinário tigre, tudo isto junto, em uma palavra, todos os oppres-
sores resultados da fatal Revolução franceza se acabaram, se extingui-
ram, se aniquilaram com a única rendição da Cidade de Rodrigo, pe-
quena praça da Hespanha occidental, escondida na fronteira montuosa
da Lusitânia. Sen baque não somente soou de uma extremidade á ou-
tra da Europa, mas faz rebelar a Hollanda, libertar-se a Hespanha, co-
nhecer-se a Áustria, revolvcr-se a Rússia, armar-se a Itália, organi-
sar-se a Prússia, restabelecer-se a Confederação Germânica, consoli-
dar-se a Suécia, decidir-se a Dinamarca, e inulilisarem-se tantas bata-
lhas e as conquistas ou rapinas de vinte e dois annos continues. A
rendição da Cidade de Rodrigo desperta do lethargo a inteira França,
e faz-lhe sacudir o jugo que apathica ou verdadeiramente estúpida tem
arrastado. Tudo isto quer dizer o repentino esmigalhamento do appa-
relho de Napoleão, á única voz da re?idição da Cidade de Rodrigo. Ora
isto, á primeira vista, e a entendimentos curtos, grossos e obtusos como
o meu, parece estar judiando cora o género humano! Mas não é assim,
meu amigo! Oh profunda sciencia periodiqueira! Tu não só o dizes,
tu o comprehendes, e tu só vês ao longe tão remetas e tão disparata-
das consequências! Nós não temos viajado, meu amigo, e de opera-
ções chimicas apenas conhecemos as da nossa panella na cozinha, e
nos dias mais memoráveis lá nos estendemos ao extracto da perdiz e
do presunto; fermentação de líquidos conhecemos a dos toneis, cujo
gaz nos levanta mais que o voador Lunardi. Temos uma cabeça tão
mofina que, ainda que se não perca nos mais profundos labyrinthos da
metaphysica de Locke, não pode conservar os nomes dos guerrilheiros;
mezinheiros de frouxidões e debilidades não podemos ser, porque isso
é obra de empíricos e de charlatães; emfim não somos dos mimosos
CARTA DO DR MANUEL MENDES FOGAÇA 277
filhos da sciencia, e ainda que nos ligamos ambos para investigar, quem
nos ha de mandar as Cartas de Alexandre de Gusmão? e que corre-
spondência temos nós para Caracas e Venezuela? No mundo não ha se-
não dois caminhos para a fama, para a honra e para a immortaUdade;
ou pedreiro ou periodiquista; para um quer-se pouca vergonha, para
o outro muita sciencia, muita chimica, muitas viagens, e um Concisa
que não minta, um Monitor qué nunca engane; eu estou velho para tudo
e nada direi até que venham os gloriosos resultados que esperamos do
sul da Hespanha. Pedi a Deus que nunca venha e nunca chegue o
grande exercito da fome, porque primeiro hão de morrer os donos das
casas que os hospedes, e eu creio que se não pode descarregar mais
acerbo e profundo golpe no coração dos consternados hespanhoes que
annunciar-se-lhes que os malvados marenguistas só despejarão seu ty-
rannisado reino quando a imperiosa fome os obrigar. Isto é ultrajar
aqueila generosa nação, porque é dizer-lhe tacitamente que não tem
forças que oppôr a seus bárbaros aggressores, que os recursos estão
exhauridos, que os exércitos são nuUos, e que esta fome que obrigará
a retirar os bárbaros para além dos Pyreneos deixará primeiro des-
povoada e erma a Hespanha, que o ultimo boccado de pão que houver
ha de existir na mão de um francez e não na mão de um castelhano,
porque se os castelhanos não têm forças para os combater no campo,
também não terão forças para lhes vedar a rapina que de suas colhei-
tas hajam de fazer os francezes para se sustentarem a si. Não posso
com socego ouvir e lêr estes destemperos. E que paciência, meu amigo,
é precisa para vêr um homem, em longas paginas, prophetisando a re-
tirada dos francezes de Hespanha, e depois de estarmos todos, Tyrios
e Teucros, pendentes por largas horas da boccarra do Enéas contador,
sahir-se —post vários casiis, post tot discrimina rerum — sahir-se com o
grande e porlentosissimo achado, que a época da retirada dos maren-
guistas será quando não tenham que comer 1 Que tal está a consolação
para o pae da creança? Qual é o ladrão que se demora muito em uma
casa onde não acha nem uma bilha de agua? E gasta um homem does-
tes longos rodeios e longos cálculos para chegar a este resultado?. . .
Hespanhoes, animo, que isto não é nadai Os francezes hão de estar
no vosso território emquanto acharem que comer I Ora seja pelo amor
de Deus! É verdade que esta lembrança de matar os francezes á fome
não é nova; não sei (ou sei) em qual d'elles li ha muito que os hes-
panhoes deviam não cuidar em lavouras, e só esconder batatas em co-
vas pelos montes; embreuharem-se n'esles mesmos montes, e quando
os apertasse a fome comerem batatas. Que batatada seria precisa para
278 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
sustentar mezes, e talvez annos, uma inteira cidade refugiada em ura
monte, onde os francezes não podessem ir? Mas não é só este o incon-
veniente que soíTreria em sua execução o plano batatal. Lembra-me
outro. Vós sabeis que as batatas são inquietíssimas, e duas horas que
se demorassem na cova grelavam todas, e lá se ia o plano, as bata-
tas e os batativoros todos que existissem na montanha, de dia ao sol
e de noite ao relento. Eia pois, meu amigo, paciência; o diluvio das
gazetas é universal, já em 1646 as havia em Lisboa, e as que desde en-
tão houve até 1762 (anno do meu illustre nascimento) eram cheias
d'aquella sisudeza, simplicidade nobre e pura linguagem portugueza
que tiveram nossos bons avós. Morreu José Freire Mascarenhas Mon-
tarroyo, morreram em Portugal os periódicos dignos de Portugal; e
dizem dois periodiquistas em Inglaterra que a Gazeta de Lisboa é a
peor do mundo! Pois sabei que um hortelão ata melhor um molho
de grelos que elles a mixordia do seu jornal.
Talvez me digaes, e me pergunteis, se eu não temo crear-me ini-
migos? Quem, eu? vós não me conheceis! Sabei que isso é para mim
um sobrehumano prazer. Quando eu disse que tinha morrido el-rei D.
Sebastião, mais de cincoenta escriptores (quarenta e nove foram ecrle-
siasticos), para me provarem que elle estava vivo, fizeram todos unifor-
memente este grande e invencível enthymema: — Vossê é um ladrão,
um perjuro, um falsario, um delator, um asno, um endemoninhado,
um faccioso, um tolo: logo está vivo, e ha de vir d'aqui a três ou qua-
tro tesouras mais, el-rei D. Sebastião. . . E então, não são para dese-
jar inimigos d'estes? Depois d'isso, meu rico amigo, um a um são taes
os taes inimigos, que cada vez se recolhe mais tarde o
29 de Março de 1812.
Vosso cordeal amigo
Manuel Mendes Fogaça.
P. S.
Vou fazer- vos mais comprida esta carta com um Post-scriptnm,
mas como a viva roda dos periódicos não pára, e são semelhantes ás
sezões, uns todos os dias, outros com alguma intermitlencia, outros com
intervallos mais longos, como pertinacíssimas quartans, eu os leio, e
ainda que abata o entendimento a seus pés, pelo que pertence á hu-
milde 6 cega crença que se lhes deve dar, como oráculos da verdade
humana, não deixo comtudo de commetter um enorme e horrorosis-
CARTA DO 1;R. MANUEL ME.NDKS FOGAÇA 279
simo attentado, que é fazer algumas reflexões sobre os artigos da
mesma crença a que nos obrigam; conheço que é um escandaloso
atrevimento, porque á vista de um periódico não fica no miserável
mortal outra funcção mais que lér, acredilar e eramudecer de re-
speito e temor... As nossas intellectuaes faculdades devem ficar pa-
^•alyticas, e seria mais desculpável duvidar de uma verdade geomé-
trica ou arithmetica que de um annuncio gazetal; eu ultrajarei me-
nos a razão se disser que dois e dois não são quatro, do que se
dis?er que a partida do Amor não se retirara por lhe faltar o car-
tuchame, mas sim porque se lhe introduziu o medo nas tripas. Ora
pois, meu amigo, eu sou um criminoso, aventurei-me a fazer uma re-
flexão sobre outra reflexão periodiquista. Sim, dizia o papel: — Porque
razão Blacke, que ha cinco anoos era coronel, e tem andado envolto
na guerra desde 2 de maio de 1808, chegou a capitão general (mare-
chal) e o Empecinado com o mesmo tempo de milicia ha de estar em
brigadeiro? — í^u não podia resolver esta questão senão depois dever
resolvida outra questão, que vera a ser: Entre quaes dos dois pontos
ha maior distancia? de coronel a marechal, ou de carvoeiro das ser-
ias de Cuenca a brigadeiro dos reaes exércitos? Meu amigo, tal foi o
meu atrevimento, e não sei o que será de mim pelo haver dito. Pare-
ce-me que ha mais alguma distancia de carvoeiro a brigadeiro que de
coronel a marechal: logo o Empecinado tem corrido maior espaço em
menos tempo, e a pátria premiou e promoveu mais depressa o Empe-
cinado que o Blacke; faz mais quem de um carvoeiro faz um briga-
deiro, que quem de um coronel faz um capitão general. É verdade,
meu amigo, que eu poderia resolver a questão por outro caminho ou
atalho mais breve; e concedendo que fora muito maior o adiantamento
de Blacke que o do Empecinado, e concedendo a este maior somma
de serviços, dizer: — Senhor, queira o senhor lembrar-se de que o Em-
pecinado tinha um oíTicio só e o Blacke tinha dois; o Empecinado era
carvoeiro, mas não era pedreiro, o Blacke era coronel e era pedreiro.
Olhe, senhor, aqui tem a chave de todos os mysterios do século. Por-
que se abriu a fortaleza de Ulm, estando lá dentro vinte e cinco mil
allemães, com boa côdea para dois annos, e de fora doze mil france-
zes sem pão e sem artilheria? Porque Mack, sendo general, era tam-
bém pedreiro. Porque vencia Hoffer, e contra os interesses reaes de
um grande império é teimoso Romanzow? Porque um não era, e o
outro é pedreiro. E porque razão innumeraveis velhacos e desavergo-
nhados inimigos jurados da nossa pátria, que eram descobertamente
apaixonados sequazes e agentes dos francezes, viraram a casaca, por-
280 OPÚSCULOS INÉDITOS DK JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
que virara o caldo entornado, e declamam, mas com riso pardo, con-
tra os mesmos francezes, promptos á primeira das duas? Porque não
acaba de levar o diabo de uma vez a raça infame dos pedreiros, que
não são os das obras publicas, são os das obras occultas. Ora basta,
meu amigo: não se me diga o que me disse já um pedreiro achanfa-
nado: «Que as minhas palavras nunca chegaram a entrar por umas sa-
las excellentesi!. . .»
P. S. íá."
Está para sahir impressa uma obra badala contra o triste poema
Gama; esperae com alvoroço esta obra, e com dois alvoroços a sua
resposta.
o BOI NO CHÃO
Obra extraliida dos Manuscriptos do defuncto
ENXOTA-CÃES DA SÉ DE LISBOA
Dada á luz por seu sobrinho
ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Meu lio, que Deus haja, proxinao a espichar o rabo, e a encostar
para sempre aquelle alto bordão que no porlico da nossa santa Sé
era o terror dos cães, porque bordoada sua nunca mais teve remédio,
chamando-rae junto á sua cabeceira, me disse:
«André, é verdade que tu tens a supervivencia do meu honrado
e tremendo officio, e que aquelle bordão de que só a raorle me podia
despojar vae ser depositado em tuas mãos; é preciso que eu te deixe
as minhas advertências e conselhos, único legado e única herança de
que eu posso dispor e tu receber: dinheiro do meu ordenado e emo-
lumentos tu bem sabes onde fica depositado, mas sem reversão a
meus legítimos herdeiros, porque os taberneiros, nem lembrados da
muita agua que deitaram no vinho com prejuízo das partes, nunca se
lembraram de restituições; deixo aquelle páo, e o jus a elle, por força
do alvará que confirma a supervivencia; e como tu sabes latim, por-
que o tens ouvido ensinar, e bem, aos meninos do coro, sempre te
lembro um verso de Virgílio, poeta muitos furos abaixo do nosso di-
vino Camões:
Et Pater Eneas et Avunculus excitei Hector.
E para morrer sem escrúpulos, sempre t'o digo em portuguez:
Do tio Enxota exeite-te a lembrança
Fazer nos cães horrífica matança.
Esta é a minha primeira advertência, que baldada é, porque te
282 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACKDO
conheço o genio, e sei que dirá a posteridade: — O André sae ao tio. —
Não és capaz de contemplação com cães, sejam de que jerarchia forem;
sei que em te Geando ao alcance do páo, sem se sentirem do lombo
e coxearem de todos os quatro pés, não deixarão o adro; ganirão muito,
mas dentada não te hão de dar, pois nunca as deram n'este teu mori-
bundo tio; emfim, saberás sustentar o nome Enxota, sempre memorá-
vel nos annaes da pancadaria, como se viu nas ultimas guerras na
derrota dos exércitos das cinco classes. Outro legado, mais importante
talvez, eu te vou consignar, conforme as disposições de direito em
nossas ultimas vontades, e já declarado em meu testamento, para o
livrar dos harpeos dos resíduos. Vês aquelle caixão velho e carunchoso?»
— Vejo, lhe disse eu. — «Pois alli estão depositados os meus manuscri-
ptos e n'elles eternisada a memoria de raortaes lambadas, que eu des-
carreguei com aquelle páo, minha e lua insígnia, e já conhecido em
cabeça de morgado dos Enxotas. Muitos desejarão vêr queimado aquelle
Archivo e Torre do Tombo, e tombos que levaram muitos cães! É um
Ihesouro, André, é um thesourol Elle servirá de illustração a muitos
séculos, e se pode converter em utilidade tua quando te escassearem
as mezadas do teu ordenado; nunca vás ao Banco ou a maltez com re-
batimentos, nada de esfolações; quem tem a que se torne não é pobre;
vae ao caixão, tíia a eito e a esmo um dos empilhados manuscríptos,
e como vêem mais quatro olhos que dois vae sempre com elle ao Forno
do Tijolo, que se lhe faltarem adubos lá se lhe porão, e não só adu-
bos, porém mãos e boa vontade; pois sempre se julgaram armas in-
vencíveis a pá do Forno e o páo do Enxota; e de lá, André, imprensa
com elle, e com elle poderás deitar mais uma sardinha nas brazas e
beber mais um quartilho pela alma de teu tio. ..» Como fallou em quar-
tilho, se lhe avivaram mais as cores do rosto já enfiado, tomou um
viso de alegria, mas foi a visita da saúde, porque d'alli a dois momen-
tos, sem o ministério dos médicos, porque então não teria vivido tanto
tempo, mas nas mãos do tempo e no regaço da natureza, deu aquella
alma envinagrada ao creador, com aquella paz com que morre o ho-
mem a quem a consciência diz que cumprira os seus deveres, e nin-
guém o fez melhor no exercício e funcções de Enxota.
Como me apertaram circumstancias para me utilísar da minha le-
gitima, metti a mão no fatal cofre e sahiu o manuscrípto que dou á luz
com o titulo de Boi no Chão. Não me compete failar do seu merecimento,
pois sou parte interessada; o publico lhe fará justiça, e me dará os
agradecimentos, e dirá: — Mal o haja quem fez calar o Enxota!... Mas
ainda, graças ao sobrinho, gosamos da sua alma nos seus escriptosl
o BOI NO CHÃO
O Boi, que dava manada
Como tiro de canhão,
Sentindo-se farpeado
Deitou outro Boi no chão.
(De um máo Poeta.)
Poucos dias ha que acabando completas Da Sé, e com ellas a mi-
nha obrigação, porque ainda que fique a porta aberta para a devoção
da Senhora da Rocha os cães fogem com a escandalosa bulha que fa-
zem os pobres ao guarda-vento, sahi a dar o meu passeio, e um pouco
dilatado, porque custa a achar ermida em que não haja misturadas de
vinho novo, e succedeu-me ir pela rua das Portas de S/* Catharina,
como diz o novo oval letreiro, mysterios da figura elíptica em geome-
tria, e vi um ajuntamento na loja de um livreiro, e me admirou, por
que não tratavam de politica em tom serio, soltavam gargalhadas, e
ainda que ha coisas em polilica que as mereça, não é este o costume
dos leitores de periódicos: cheguei-me mais de perto, e vi que um dos
sessores lia um folhetote, e os outros escutavam: fizeram pausa geral
quando me viram, porque a preseoça do Enxota sempre é de algum
peso no meio das mataduras dos congressos do Chiado; comtudo, pela
matéria do escripto, julgada da minha competência, me disseram que
se riam do maior destampatório que tinha apparecido em letra redonda
desde que as imprensas trabalharam e deixaram de trabalhar; pe-
di-lhes que proseguissem na leitura, e tiveram commigo a contempla-
ção de começarem — dà capo. — Logo o titulo produziu em mim um
d'aquelles movimentos irreflectidos com que a natureza exprime a
verdade; virei-me para um canto, cuidando que tinha alli encontrado
o páo da enxotaria. O dono da loja me offereceu grátis um exemplar,
porque emfim alguns não podem deixar de confessar que tiveram em
mim pae e mãe; ainda que poderá haver algum que me obrigue a ac-
crescentar a esta palavra a phrase — que o pariu!!— Recolhi-me mais
cedo, porque a curiosidade apertava, e accendendo um coto d'aquellas
propinas que na egreja já se não dão, com impaciência e sofreguidão
me assentei, e com um palmo de bocca aberta de espanto li:
284 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
«Resultados dignos de toda a admiração, condignos da
maior contemplação, talvez nunca vistos e observados na his-
toria da magistratura portugueza, provenientes de horrorosas
conspirações e das maiores cabalas, prevaricações e attenta-
dos a que estão sujeitas todas ou quasi todas as auctoridades
rectas, incorruptíveis e imparciaes, qae podem dizer com Ho-
rácio— Impavidum feritnt ruinae.^
Eu disse commigo, benzendo-me: — Ou isto é titulo para alguma
edição do Carlos Magno accrescenlado com exposições e notas, ou en-
tão é a historia da perseguição que fez um ministro de um bairro a
um homem honrado, que mora aqui na rua das Cruzes, ao pé de S.
João da Praça, na qual o dilo ministro inventou e forjou mais patra-
nhas, mentiras, tramóias, calumnias e testemunhos falsos, do que ca-
raminholas e sonhos se acham em toda a historia de Carlos Magno e
dos seus Doze Pares; e pelos quaes testemunhos falsos o dito magis-
trado merecia que lhe fizessem o que os turcos queriam fazer a Gui
de Borgonha, se os onze Pares não lhe acudissem, como consta da
mesma historial
Virei a pagina e fiquei-me no meu pensamento; e com que me
enganarei eu, conhecendo a canzoada toda? Porque o dito ministro,
querendo em seu prologo fallar dos outros, se retratou a si mesmo ao
natural, dizendo em portuguez bastardo e com nova syntaxe:
«Os calumniadores e prevaricadores inficionam e pertur-
bam os estados, e as nações mais cultas (que parvoíce I) mere-
cem ura ódio eterno, assim como todo o louvor e applauso
aqnelle cavalleiro e artista intrépido e impávido, que no meio
do combate e da victoria entrega o rojão ao capinha (isto de-
via ser depois) e á gente de Guiné o mrnigo. — Proaebuit hiimi
boi. — »
À vista d'isto o empeçado Couto, o enigmático Magriço, o obscuro
Pato e o Diário do Governo eram a mesma clareza e perspicuidade,
primeiras virtudes do estylol Pois o tremendo titulo ou arrepiador
frontispício vem desaguar em um prologo com a mais insulsa de to-
das as chocarrices, concluindo e rematando com o antigo Favasecca, ou
Talaia, a tourear, que no meio do combate dá o rojão ao capinha, e
diz aos pretos que acabem o combate com as devidas cortezias ao me-
ritíssimo dos Romulares; ficando com o titulo do boi de Virgílio e jul-
o BOI NO CHÃO 286
gar-se vencedor de um inimigo casado, e chamar-lhe boi, não é muita
corlezia.
Assentei de levar ao fim este impávido de Horácio, cujas idéas
escriptas são lambem do mesmo Horácio:
Como vãos sonhos d'um febricitante.
As cabalas, as horrorosas conspirações, os horrorosos attentados,
que o tal Juiz commetleu contra o honrado e innocenle vizinho meu
José Luiz da Silva, destroem-se, e se verifica o crime de moeda falsa,
que o preclarissimo ministro lhe empurrou, por se lhe acharem entre
alguns centenares de contos de réis em papel dois bilhetes de meia
moeda falsos, o que mil vezes se acha em só dois bilhetes de meia
moeda, sem que o miserável a quem os empurraram faça moeda falsa,
com um er.gano que houve numa decima de demanda de calote em
casa de pasto.
Ora eu, que desejo que se embacem e se empanziuem com calo-
tes mestres todos os tasqueiros das casas de pasto, porque não ha um
só que não embuta gato por lebre, cu burro morto por vitella, quiz
profundar esla matéria tão bem qualificada na obra do ministro Fur-
tado, ou bifado, com o titulo de horrorosa conspiração! pois diz elle
que lhe imputaram o crime da embofia ao tasqueiro para se vingarem
dos males que elle causou a um. terceiro com a imputação de moeda
falsa, sem elle ser tasqueiro, nem arrematante da decima.
Um tasqueiro, assim como a todos logra na comid;i, e haja vista
a qualquer d'esses Cambaios, não quer que nenhum o logre na paga;
e quando vêem que esta se demora, nenhum é tão asno que deixe cres-
cer muito a divida sem que no mesmo instante levante a cesta, enrole
a manta, peça a chave do quarto e ponha a andar o pechincheiro; el-
les descobrem bem na cara quem tenha lombrigas; ora demos por de-
monstrado um postulado. Os que caloteam os estalajadeiros, tasquei-
ros, hospedeiros, ele, sempre mudam o nome, pelo que pode succe-
der, e até o mudam no passaporte quando vêm de fora. Podia ir o
caloteiro em questão aboletar-se á estalagem da Ribeira velha, e dando
o seu nome lembrar-se de dizer, eu sou, por exemplo, José Ignacio;
abala o Furtante da estalagem sem se despedir do dono da casa; bus-
ca-se este homem, e o diabo, que já carregou uma tranca, vae depa-
rar com um d'este nome, que foi ministro de um bairro; este nega;
convence-se pela negação, cae-lhe a dizima em cima; o contractador o
que quer ê a dizima; torna o diabo a carregar outra tranca, e este con-
286 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
tractador é cunhado de José Luiz da Silva. Que tem J. L. da S. com
as dizimas que o cunhado cobra por virtude da arrematação? E que
importa ao contractador que o amigo caloteante da estalagem se chame
Manuel ou Gonçalo? Mas o ministro diz: — Gomo é cunhado de J. L.
da S., por este foi persuadido que pregasse aquella surra ao ministro.
Pergunto, e pergunto como Enxota, a quem até os cães importam:
quem condemna os réos negativos, quem os sentenceia a pagarem por
isto a dizima, são os ministros incorruptíveis ou é o contratactador das
sizas? Vem cá, homem, ou animal deitado no chão, humi boi: porque
te queixas do contractador, que cobra a dizima, depois de condemnado
o réo meliante, e não te queixas dos ministros que o condemnaram?
Não me queixo (diz o boi no chão), não me queixo dos ministros, por-
que estes não são cunhados de J. L. da S., que me aqueceu deveras,
por amor da diligencia da moeda falsa, a que eu não fui )- queixo-me
do contractador da siza, porque tem parentesco com elle. Logo me não
passou pela malha vér eu tão torta a balança, que o boi no chão pinta
no seu folhetote, como todos podem vér, e admirar o fiel tombado.
Que diabo de vingança era esta do pagamento de uma dizima de
sentença de calote, por alguma tigella de feijões comidos n'uma esta-
lagem, que contrabalançasse as enormes perdas, os incalculáveis pre-
juízos no commercio, e mais que tudo no credito e reputação de um
dos conlractadores do Tabaco, por cujas mãos passam milhões, infa-
mado publicamente, preso e atormentado, porque se acharam dois bi-
lhetes de meia moeda em sua casa e quatro patacões castelhanos do
mesmo jaez? Se ao Erário em pagamentos vae também ter papel falso,
porque não apparecerá também em uma casa de grosso commercio?
Segue-se que o Erário faz papel, porque lá apparece algum bilhete?
Queriam que J. L. da S. pregasse os patacões no balcão, como se faz
no açougue ou na taberna?
Vamos ao que o ministro chama — Triumpho da victoria. — O Du-
que da Victoria sei eu quem fora, mas triumpho da victoria nunca
cuidei que tão calva parvoíce se escrevesse em portuguez, e pela mão
e penna de um magistrado biqueiro, porque estava persuadido que
um homem que veste uma toga, e põe por cima uma capa, era um ho-
mem não só que soubesse fazer o seu nome, mas que conhecesse que
de inimigos e contrários se pode alcançar um triumpho; mas alcançar
um triumpho de uma victoria, esta só o antigo Gouto ou o moderno
togado. Dos senhores becas alguns provam bem mall Não se diga que
o Enxota é injusto e que prolonga o páo, tanto contra um cão cadel-
leiro como contra um pacifico e modesto. Que coisa mais própria de
o BOI NO CHÃO 287
um magistrado que fazer bem uma petição, pelas muitas que despa-
cham a torto e a direito? Faz este ministro uma petição, para que o
douto escrivão Vera Brandão lhe passasse uma certidão da sentença
de absolvição da dizima, em que elle ou outro em seu nome fora con-
demnado por negar ter comido sem pagar na estalagem de João Ma-
nuel, que é a questão de que se trata, limitando-se ao contractador,
que pede a dizima seja de quem fôr, e o demandado que a não quer
pagar, porque não foi elle o que comera, que fora outro que tinha o
mesmo nome, e se isto não fora não iriam pedir a dizima a este mi-
nistro. N'esta demanda de João Manuel Redogoneiro auctor, e Furtado
comedor o réo, não se trata de outra coisa, e pede o ministro ao mi-
nistro que o escrivão lhe passe por certidão que o contractador da
dizima é cunhado de J. L. da S., e que por isso se lhe pede a elle
ministro a dizima, só por lhe fazer uma pirraça !
Querem-nos fazer a todos loucos n'este século das luzes? Pois o
contractador pede a dizima por ser cunhado de J. L. da Silva, ou pede
a dizima por ter sido n'ella condemnado o réo pela sentença do juiz?
Pedir um ministro ao ministro que mande ao escrivão que certifique
que os conlractadores são cunhados ou parentes de J. L. da Silva?
Pois o escrivão Vera Brandão é o cura da freguezia, e também tem
no seu esçriptorio o livro dos assentos dos baptisados e casamentos?
Eis aqui uma usurpação do poder do Ex."*" Vigário geral, feita pelo
ministro, que manda ao escrivão que passe certidão de óbitos, casa-
mentos, baptisados e enterramentos I
Ainda aqui não pára a petição do ministro, porque assim como
um abysmo chama por outro abysmo, uma parvoíce chama por outra
parvoíce. O Pede da petição é mais destampado que a mesma petição!
Já sabemos de que a petição trata: vejamos o seu resumo no Pede:
«P. a V. S.^ seja servido mandar-lhe passar a certidão re-
querida das respectivas sentenças, com a declaração das com-
petentes custas, e o mais que supplica summariamonte e de
que faz menção o presente requerimento; bem entendido que
a referida moeda papel falso veiu a custar á nação talvez acima
de oito milhões. E receberá mercê.»
Pela dizima, ou pelo dizimo d'isto, levou algum dia o Couto mui-
tas grozas de palmatoadas. Se a petição pede a certidão das respecti-
vas sentenças, isto é, do calote da tasca e da condemnação da dizima,
diga-me toda a magistratura, e olhem que faliam jcom o Enxota, que
288 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
vem aqui fazer este appendice: — «Bem entendido que a referida moeda
papel falso veiu a custar á nação talvez acima de oito milhões? — Des-
cobrem-se nas carteiras de J. L. da Silva dois bilhetes de meia moeda
falsos, talvez á surrelfa introduzidos pelos seraphins investigantes, e
isto custa á nação acima de oito milhões 1 Isto não é o trmmpho da vi-
ctoria, isto chama-se o triumpho da parvoíce ou da malicial Que fe-
cundas duas meias moedas 1 Pariram oilo milhões f Porque não vão para
o império do Brazil, pois vi outro dia na Gazeta que lá sobeja terreno
e falta a população 1 Onde tem chegado a lógica do século f Condem-
nam um caloteiro na dizima, quem o condemna é a sentença do juiz;
depois da sentença o arrematante das dizimas; este arrematante podia
ser outro; succedeu ser cunhado de J. L. da Silva: logo, como em casa
de J. L. da S. se acharam dois bilhetes de meia moeda falsos, segue-se
que J. L. da S. fabricou no seu laboratório oito milhões de papel falso;
e alcançou o ministro um triumpho da victoria, visto o escrivão Vera
Brandão ter certificado que um dos dois irmãos Esteves Alves é cu-
nhado de J. L. da S., e que aquelle para desaggravar o cunhado foi
pedir uma dizima a quem a não devia pagar, como se o arrematante
fosse julgador e não cobrador, ou como se este podesse cobrar antes
que a sentença do juiz mandasse pagar I E que culpa tem J. L. da S.
do que fez o cunhado, mandado pela sentença condemnatoria do mi-
nistro? Este é que devia ser aperreado, e como boi deitado no chão,
humi boi, porque antes de proferir sua sentença na causa intentada
por Manuel João, tasqueiro do mal-co>'inhado, se não certificou da iden-
tidade da pessoa do réo caloteante, e que queria comer de mofo na
taberna.
Ora eu quero ser justo, como um homem revestido do poder
executivo, porque cão que a mereça nunca deixcu de a levar no lombo;
dou e não concedo que J. L. da S. pedisse a seu cunhado Alves Es-
teves ou Esteves Alves, que vem a ser o mesmo, estando ambos a to-
mar café, depois de jantar, no caso que jantassem juntos, e lhe dissesse:
« Ó Manuel, tu não me farás um favor?»— «O quê?... se estiver na mintía
mão, (Oiita com elle.»— «Queria que, em logar de ires cobrar a dizima
da sentença caloteira ao melcatrefe que logrou o chanfaneiro do Cães
da Moita, a fosses pedir ao que foi ministro de Belém, porque tem o
mesmo nome; e emquanto a coisa se não acclara fazer-lhe dar qua-
tro cuadas, como elle me fez dar a mim quando me mandou dar busca
de nioeda falsa, sem elle vir, me prendeu e intentou arruinar-me.» —
«Sim, eu vou logo a essa diligencia.» — «Demos este delicio hypothetico
cm J. L. da S., de que o réo se livrou, mostrando que nunca comera
o BOI NO chAo 289
na estalagem sem pagar, e que se a sentença condemnava um Fulano
Furtado, que havia mais Marias na terra, que os Furtados são muitos
€ os furtantes muito mais; e que a esta deslindação do equivoco de
nome elle deu caracter de primeiro triíimpho da victoria com sua ba-
lancinha torta pintada em cima; justifica isto por ventura o deslindado
Furtado, e livre do crime de comer de calote, d'aquella serie de cri-
mes attenlados, e atrocidades, de que foi convencido pelos tribunaes
de uma maneira tão evidente, que talvez não haja d'ella exemplo em
toda a historia de processos criminaes e conclusos cora o maior escrú-
pulo e observância das regras de direito?
Isto é uma imputação de tal natureza que á vista d'ella tremeria
o mais intrépido dos homens, o Enxota Cães da Sé, Amaro André, se
não vira tudo não só demonstrado legalmente pelas decisões e senten-
ças dos tribunaes. pelas régias determinações, pela existência dos fa-
ctos, mas pela publicidade da imprensa, oíferecendo-se ao conheci-
mento do mundo, ao exame até dos maiores inimigos da justiça e da
verdade, em um folheto de 105 paginas em 4.° A não ser a clemên-
cia dos augustos Monarchas portuguezes, este homem que deita o boi
110 chão, porque mostra que não comera grátis na taberna, casaria tão
ligitimamente com a forca, que não se desatariam estes laços mairi-
moniaes sem se desatar primeiro a corda, em que bem e seguramente
o tivesse pendurado o mestre carrasco.
A defensa que em todos os seus comprovados crimes allega este
cordeiro innocente e perseguido, é atribuir tudo á intriga e vingança
de um tal J. L. da Silva, que, diz elle, prendera por moede falsa, que
vem a ser, acharem-se na mão do diclo J. L. da S. dois bilhetes de
meia moeda, que lhe haviam empurrado entre contos e contos, e mais
contos de reis em papel, no giro do seu negocio. Assim o diz o au-
ctor do livro de 19 paginas intitulado n Resultados dignos de toda a ad-
miração e condignos de maior contemplação* a pagina 10 do mesmo li-
vro, na certidão u.° 2, no segundo triumpho da victoria, por estas pa-
lavras: «Que todas as imputações e crimes, que se lhe arguiram, e
denuncias que se deram em juizo, foram producções de uma intriga e
machinação urdida por J. L. da S.»
Este homem que isto diz, começou a mostrar-se criminoso, e a
levar alentadissimas tundas dadas pela justiça, desde que começou a
apparecer e a figurar na sociedade civil. Quero que J. L. da S. ur-
disse tudo o que no ministério de Corregedor elle commeteu de fal-
sidades atrocíssimas na funcção de dois bilhetes de meia moeda, e que
no anno de 18 i9 amotinaram Lisboa inteira e seu termo, quero tudo
CAÍ'.TAS. 49
290 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
isso; mas quem poderá dizer que a era de 4800 é a mesma que a de
1819? ha a differença de dezenove annos contados: bem. Em 1800
era o homem do Boi no chão (humi bos) vereador na sua terra Alpe-
drinha, (como eu sou velho no adro do Sé, lembra-me passar muitas
vezes para baixo, com muita companhia, e para cima com menor, um
carrasco muito hábil, chamado o Alpedrinha, porque era natural d'esta
notável villa), e como vereador mais velho serviu de Juiz na ausência
do outro, que seria tal como elle: fez tão escandalosos attentados, e
commetteu taes despotismos, que por um accordão, ou resolução do
Desembargo do Paço de 27 de Março de 1800, foi, não só reprehen-
dido e suspenso, mas prohibido para sempre de entrar em pauta para
outra qualquer funcção da governança^com cinco rubricas dos mi-
nistros do Desembargo do Paço, e registado nos livros da Gamara da
mesma Alpedrinha.
Também esta seria intriga e machinação de J. L. da S., que es-
tava em Lisboa, sem advinhar que em Alpedrinha existia una camarento
F. Fortunato, que dezenove annos depois veiu desgraçadamente a co-
nhecer, quando lhe meiteu em caso Justiniano Joaquim, e Félix Joa-
quim da Costa, e outros mais, para lhe darem busca, e para o tranca-
fiarem na cadêa? E chama o homem do Boi no chão (humi bos) trium-
pho da victoria a uns rabos de palha d'este comprimento, e que se
não podem esconder, pois andam e correm por quantos auditórios ha,
promptos a passarem certidões de comprimento e grossura dos refe-
ridos rabos, como iremos vendo, porque quem tem telhado de vidro não
atira ao do visinho, e é de direito natural e positivo, divino e humano,
repellir a força com outra força, e desmascarar o calumniador com as
suas mesmas heróicas proezas.
Quer um homem que tinha uma filha, ou para a perder, ou para
algum por força casar com ella, que esta filha estivesse prenhe, cousa
por certo que não é muito difficultosa, nem são precisas grandes di-
ligencias, segundo aífirmam os peritos; para provar judicialmente e
conforme o direito esta prenhez perante o magistrado territorial e au-
ctoridade constituída, conforme começaram a dizer ha tempos a esta
parte, houve mister que se chamassem duas parteiras examinadas e
exprimentalmente vistas n'aquellas danças, as quaes segundo as infai-
liveis regras da sua arte obstetrícia, vejam, observem, palpem, e co-
nheçam com o contacto de suas mãos e instrumentos perfurantes, e
naturaes tentas de seus dedos, se ha alguma creatura que se mecha,
dentro de outra que também se bulia, como consta dos autos que em
taes galhofas se costumam fazer, e de que se extraem certidões para
o BOI NO CHÃO 291
as mãos curiosas e juntadoras de importantes papeis e processos ra-
ros. Devem pois ir a casa do ministro a ré, que se julga mais gorda
e nutridinha do que devia andar, as duas mestras buscadeiras, e que
devem conhecer que não é obstrucção nem hydropesia o objecto em
questão, mas creatura viva, que a seu tempo sahirá d'aque!le domi-
cilio. As parteiras examinantes e perscrutantes foram a casa do mi-
nistro de Belém, não viram a ré, nem estrotegaram com as mãos o
corpo de delicio incluso no ventre da mesma ré, que isso em casa do
tal ministro não era preciso, mas seduzidas por elle pae da creança
que devia ser reconhecida prenhe, assignaram o auto do exame, sem
lh'o lerem; no qual juraram pelos gráos recebidos em sua faculdade,
que a mulher estava prenhe; porque o que se queria era infamar a mu-
lher: mas como parteiras de consciência, estimuladas de remorsos, ou
mais depressa do temor do castigo do perjúrio, em matéria de honra, se
foram denunciar, e protestar contra o engano do ministro, declarando
que nunca viram a mulher prenhe, nem tal barriga apalparam, e entre-
tanto por um auto de exame não feito ficou a mulher eternamente infa-
mada. Este facto, muito anterior á moeda falsa, e seu achamento por Jus-
tiniano Joaquim e seus adjuntos, também foi preparado por J. L. da S.,
para se vingar do ministro, não lhe tendo este feito ainda o catalão?
Facto que, junto aos mais, grangeou ao mesmo ministro a sua suspen-
são, determinada pelo Governo.
Ora na verdade, o ministro tem razão em dizer na fachada da sua
obra, que são factos nunca vistos e observados na historia da magis-
tratura [lortugueza! — Desde que ha ministros em Portugal, tão re-
speitáveis em geral pela sua integridade e luzes, ainda não appareceu
um com tantas prevaricações, e de tudo é causa J. L. da S., que até
á funcção dos dois bilhetes nunca tal burro tinha albardado! O mesmo
escrivão se denunciou sobre aquella inaudita falsidade. O réo auctor
da celebrada obra da prenhez, tão vulgar e ordinária, que sem ella
acabaria o género humano, em breves audiências foi solto, com o
seu direito salvo para pedir perdas e damnos, a quem o tinha feito,
ou queria fazer, pae por força.
A coisa mais divertida, que eu tenho tido na minha vida d'Enxota,
entre milhares de rebaldarias de cães, ou tolos ou matreiros, que eu
tenho legitimamente enxotado e escovado, foi a leitura de uma pas-
sagem da sentença absolvente, que o ministro transcreve a folha 17,
quasi na ultima, da sua grande obra a Resuliados dignos. . .»
«Não podem (dizem os ministros que fizeram a sentença)
292 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
não podem ser admittidas em direito, nem fazer prova as de-
nuncias que de si mesmo fizeram as parteiras, jurando que
nunca Tiram a mulher prenhe (tendo posto tantas a parir!) e
que só assignaram um papel, cuidando que eram alguns preli-
minares para a abertura do congresso da grande victoria, mas
que tal mulher nunca viram, nem sobre ella tinham posto olho,
mão, ou dedo.»
As razões em que se fundam os três togados julgadores são estas^
pag. 17 da grande obra:
«Em egual monta se devem ter as denuncias das parteiras,
uma vez que se tenha em consideração o pouco que merecem
pelo seu sexo, subjeito a suggestões, e interesses de que são
susceptíveis.»
Como o sexo da parteira é o mesmo, e do mesmo feitio, pouco
mais ou menos, que o das outras mulheres, todas ficam bem servidas
pela docla sentença proferida; todas devem ficar em regra de obriga-
ção, porque ainda que todas não sejam parteiras, todas têm o mesmo
sexo, parteiras e não parteiras, e os três magistrados firmam-se no
sexo, e não na profissão. Finalmente, não se deve fazer caso em juizo
das dietas parteiras, porque têm um sexo subjeito e atlreito a sugges-
tões. Muito bem, e eu concordo n'isto com os magistrados. Mas que
magistrados são estes, que na mesma pagina, e poucas linhas abaixo,
querendo provar que tal mulher prenhe parira (e se não parisse ar-
rebentava!) se referem e allegam por prova incontestável o testemu-
nho de uma parteira! Eis aqui as suas palavras:
«Dando á luz três mezes depois uma menina, como tes-
tifica a própria parteira, que lhe assistira n'aquella hora!...»
Oh ílôr, oh honra das parteiras todas! Parece-me que o teu sexo
é de outra natureza, e de outro feitio! A tua palavra honrada é um pé
de evangelho! Não ha duvida que a mulher pariu, porque a parteira
o diz... Mas, oh gloria e honra da jurisprudência! Esta mesma par-
teira, que diz que a mulher pariu, é a mesma, ou uma d'aquellas que
fora ao exame, pag. 17. Ah, senhores desembargadores!... Quando a
parteira diz que não vira a mulher no exame, mente: quando o diz
o BOI NO CHÃO 293
que ella parira, falia verdade! . . . No parto é forte o sexo, e não está
subjeito a suggestões; no exame é frágil, e susceptível de interesses t
E quem tem culpa de tudo isto' Quem ha de ser? É J. L. da S.,
porque sendo este caso muito anterior ao achado das duas meias moe-
das, elle foi o que corrompeu a mesma parteira para fallar verdade.
Mente a parteira, quando diz que não vira a mulher prenhe, falia ver-
dade a parteira, quando diz que a mulher pariu; tem sexo, e não tem
sexo!l As testemunhas têm crédito para condemnarem J. L. da S., e
não têm crédito para condemnar o ministro que o condemnou a ellef
Isto è que são resultados nunca vistos na historia da magistratura por-
tugueza !
No meu Promptuario de casos raros, que tenho entre os meus ma-
nuscriptos, e que deixo aos meus herdeiros, consignei um d'aquelles
successos, que eu, envolvido sempre em canzoadas, julgei sempre o
mais extraordinário, e que nenhum cão contra outro cão era capaz de
fazer, ou inventar. Achou ò ministro, auctor da obra máxima dos <i Re-
sultados dignos e condignos* uns autos velhos, em que se tratava de
uma alicantina de um certo José Luiz de Novaes, o qual despachando
cincoenta rolos de tabaco para Palermo, porque não era pelerma, deu
cora elles em Setúbal, e com a vista gorda das justiças d'aquella Villa
os introduziu pela terra dentro, ou como se diz, pelo sertão da mesma
villa. Que achado! (disse o auctor do livro dos Resultados condignos).
Este tratante dos rolos chama-se José Luiz, o sobrenome não faz ao
caso: eu posso empurrar este panai a José Luiz da Silva, porqae
como são idênticos os dois primeiros nomes, metto no escuro o Novaes
de um, e o Silva do outro, e dou cabo do Silva como se fosse o Novaes.
Ora aqui nos autos vera o nome de um catraeiro, chamado MaDuei
Leal, que acarretou os rolos: se elle fosse vivo, campava eu! Mas a
diligencia é mãe da boa ventura. Oh Justiniano, vê tu se ahi pela Jun-
queira, ao pé do Porto-franco, encontras um catraeiro velho, chamado
Manuel Leal, ou alguém que o conheça, e traze-mo cá, que é preciso
para uma diligencia de serviço. Dicto e feito. Quem escaparia ao tal
Justiniano? Foi, achou, falou, e conduziu. Deve advertir-se que o caso
dos rolos do Novaes tinha acontecido havia dez annos: o Leal jurou
que andara com os rolos de José Luiz, e não dizia Novaes porque não
sabia que o homem que lhe affretou o bote tinha este sobrenome: e
o integerrimo ministro, assim que o Leal dizia José Luiz accrescentava
elle — da Silva. Lembrou-se em casa o Leal, que tinha um recibo de
uma divida, que pagara a José Luiz de Novaes, e que a mulher o ti-
nha guardado no seu cartório, e lhe disse como bom algarvio: «Oh mu-
294 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Iher do diabo, tu não guardaste um papel que te dei ha dez annos?»
— «Sim, marido, marido de um anjo; aqui está o recibo que dizes;
porque se tu és Leal no nome, eu sou-te leal em todos os meus pro-
cedimentos, ác* — Então é que o Leal cahiu em si, e foi desdizer-se ao
ministro, protestando que o José Luiz contra quem jurava não era Silva,
mas Novaes, e que ia barrada toda a emboQa em que S. S.^ o mettera,
pois tal Silva nunca servira, nem conhecera. Não lhe quiz acceitar esta
retractação, chamando-lhe ainda em cima tolo; e por conselho de An-
tónio Marcelino, seu compadre, e de outras pessoas de probidade da
taberna do Mendes, na Junqueira, se foi denunciar á Intendência, onde
pelos documentos que apresentou se lhe tomara sua denuncia.
Ora á vista d'isto, que havemos de dizer, senão qne o auctor dos
Resultados condignos é um homem que sabe bem aproveitar os cabidos
dos outros homens, sem se embaraçar com as bagatellas de nomes,
de épocas, de datas, ou de factos? Fez-se um desaforo de empalma-
ção de tabaco por um sujeito chamado José Luiz; pois então não tem
duvida, este empalmador de tabaco é José Luiz da Silva. Tudo o que
fizeram os Josés Luizes ha de ser feito por força por José Luiz da Silva.
Se o armador, que queimou a patriarchal ha mais de cincoenta annos,
se chamasse José Luiz, apesar de José Luiz da Silva não ter ainda nas-
cido, ou ser de mama, segundo o auctor dos Resultados condignos^
por força era este, ou tivesse ou não tivesse nascido, e para o raeri-
tissimo corregedor um triumpho da victoria, e para o mundo um boi
no chão (humi bos).
Desde que tenho o páo d'Enxota n'estas mãos limpas e impar-
ciaes, semeando arrochadas nos cães á direita e á esquerda, sem me es-
capar goso por manhoso e surrateiro que fosse, tendo-se-me feito os
cabellos brancos n'esta honrada profissão, ainda ao meu conhecimento
não veiu caso semelhante a este, por isso o deixo consignado em meus
escriptos para que a mais remota posteridade conheça em que mãos
tem sido por muitas vezes depositado o pandeiro da governança bair-
ral. Pelo único titulo da obra de 19 paginas escassas e incompletas,
se conhecerá o subido ponto a que chegara entre nós a insipiência e
a ignorância; e depois d'isto os limitados conhecimentos de um ho-
mem, que fez os Rurros, que mettendo tantos na estribaria, lhe es-
capou este, por certo o mais alto da agulha que entre as mesmas ra-
ças de Alter tem apparecido ! í
o BOI NO CHÃO 295
*
*
Eu, André Calado, fallo, e declaro que apesar de apertar as
mãos na cabeça quando li este manuscripto de meu lio, por me pare-
cer impossível que taes cousas tivessem acontecido em Portugal, com-
tudo, duas rasões fortíssimas me obrigaram a publical-o: a 1.* é o co-
nhecimento practico, que tive sempre, e ainda tenho, da verdade e in-
teireza de meu lio, cujo caracter era tão direito como o páo que em-
punhava, e com que cumpria as obrigações do seu oíScio, não dizendo
nem escrevendo nunca cousa que assim não fosse, nem zurzindo viva
alma que o não merecesse: — e a 2,' vêr eu com os meus olhos im-
pressas agora, e com todas as faculdades e licenças necessárias, tanto
as acções do ministro, legalisadas até perante Tribunaes supremos,
como impresso e publico o livro de dezenove paginas, intitulado (í Re-
sultados dignos e resultados condignos.-» Meu lio não se mettia em cal-
ças pardas, e camisas de onze varas, se não podesse com documentos
impressos com licença tapar a bocca a alguns curiosos, que, ou por
amor ao tal ministro, seja quem fôr, ou por ódio ao Enxota, pois lh'o
têm sediço, se atrevessem a grazinar sobre a veracidade e evidencia
dos factos tão solemnemente comprovdos.
Se o auclor do livro ^Resultadosn não apparecesse com elles, nin-
guém se resolveria a renovar memorias passadas; e ha certa cousa que
é peor mecher-lhe. Mas quem ha tão de ferro, que vendo por cima dos
balcões dos livreiros, que vendem livros postos em pilha os exemplares
do livro «05 Resultados dignos e condignos* se contenha, e não queira
vêr uma balança gravada em páo, com o fiel torto, com o boi no chão,
e por timbre 4.° — 2.° — eS." triumpho da vicloria, e um homem im-
pávido ferido com as ruinas do universo, e no fim um vereador da Ga-
mara do Senado (sendo até agora o Senado da Gamara, talvez esforço
do século das luzes, que alterou não só as palavras, mas as idéas) um
homem que chama aos outros homens — meus inimigos antagonistas — e
querendo mostrar seus crimes, lhes chama tenacissimos, execrandos: um
homem que chama ás auctoridades incorniptivas, não sabendo que ha-
via incorruptíveis!
Que muito, se para emenda dos outros, se diga alguma cousa
d'este, sem transgredir os limites da caridade christã, e os da corlezã,
civilidade? Escrever assim e imprimir, é assentar em sua consciência,
que todos os homens são uns pedaços d'asnos.
296 OPÚSCULOS liSKDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DK MACEDO
Está cumprida a prophecia de meu tio Enxota, que com as lagri-
mas nos olhos, e a voz intercadente me disse poucos dias antes de es-
pichar: «André, isto está acabado! aqui andaram correndo ha tempos
uns sete quartos de papel chamados 1.*, 2.*, 3.* ác* Falia aos Por-
tuguezes, e eram producçôes de uma toga conselheira: toma sentido,
André; algumas pessoas dizem que eu fallo com o diabo á meia noite;
não importa: toma sentido, André: estas sete palavras, ou fallinhas,
eram o estertor do enfermo — Lettras — : outra toga conselheira appa-
recerá com um escripto, que será o ultimo bocejo do enfermo — Let-
tras— ; depois d'isto ninguém mais escreverá; começará então a espa-
Ihar-se uma sombra espessa de pasmaceira; que entre ella girará como
um cometa de rabo por este escuro espaço, a Gazeta: só ella formará
uma summa de todas as sciencias, será um novo Pedro Lombardo,
Mestre das Sentenças: as suas variedades, os seus casamentos por lo-
teria rifadeira, as suas noticias recônditas da Arábia, do Thibet, de
Calcutá, e de Tonkim; o seu cadastro de Travancor, com as minas do
monte Oral, é o que basta: á vista d'isto todos os conhecimentos hu-
manos são cousa nenhuma, e com isto mostrarão os portuguezes de
ambos os hemispherios quanto tenham aproveitado com as luzes do sé-
culo.»
Se isto não é ser propheta, então digam que o foi Gonçalo Annes
Bandarra. El Rei D. Sebastião ainda não veiu, e a parvoíce já cá está.
PARECER
DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL
DEPOIS DA SAHIDA DE SUA ALTEZA REAL
INVASÃO QUE NESTE REINO FIZERAM AS TROPAS FRANCEZAS
O homem de bem, e amante da sua pátria, não deve ser infiel á
sua mesma consciência, nem dissimular seus sentimentos, até n'aquelle
momento em que vir sobre seu pescosso pendente o ferro da tyrannia.
A verdade ousa apparecer e annunciar-se até na presença de oppres-
sores; e como se me pede o meu parecer sobre o estado d'este reino,
e consequências da sua usurpação, eu o darei com aquella ingenuidade
e liberdade, que teria se fallasse no meio de uma republica, e opinasse
sentado entre os livres membros do parlamento de Inglaterra. O pri-
meiro resultado da inconsiderada paz de Tilsit foi a invasão de Hes-
panha e Portugal; n'este tratado se começou a divisar o plano de Bo-
naparte sobre a monarchia universal. O orgulho e ambição que o des-
lumbra, nunca lhe fez desconhecer a desporporção dos meios que toma
com o irrealisado fim do abatimento de Inglaterra pela sua exclusão do
continente. Bonaparte é homem de muita malícia, mas de nenhum es-
tudo, e de limitados talentos. É certo que se aíBança sobre os effeitos de
suas primeiras missões, porque perpara um punhado de malvados, no
meio de uma nação. Não se lembra que roubando e cativando os mo-
narchas indispõe os povos.
O Principe de Portugal podia mallograr os seus ardis até depois
de ter dentro da capital um exercito de mendigos salteadores. Eva-
diu-se ao seu refalsado furor, e Bonaparte com este furor abateu e
quasi arruinou o mesmo reino, a que chama conquista e possessão sua.
298 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Deixou de ser reino, e quem poderá resolver o problema; quando e
como o poderá ainda ser? Desde a sua fundação até á morte do decimo
sexto monarcha, se manteve, se dilatou, e se enriqueceu tanto, que
de nenhum outro depois da queda do Império romano se podem con-
tar tantos prodígios, valor, espirito patriótico, politica, liíteratura, ras-
gos heróicos, tentativas árduas e felizmente acabadas, o fizeram para
sempre memorável. O maior dos seus monarchas, D. João \.° conheceu
o génio da nação que o firmou no throno, viu que era preciso dilatar-
se, estender-se, e conquistar. Foi o primeiro soberano que deixou por
um momento o throno para se entregar ao Oceano, e ser conquistador;
levou de um golpe Ceuta; eis aberto o passo para a gloria de Portu-
gal, que chegou depois a não caber no globo. O commercio do Oriente,
feito por algumas potencias marilimas do Mediterrâneo, as enriquecia.
Portugal busca pela conquista de Africa a do Oriente. Era preciso con-
stância, paciência, e valor. Nos reinados de Duarte, Afifonso 5.°, João
2.°, e Manuel, tudo se tentou, e tudo se conseguiu, e nos últimos annos
de João 3.", Portugal na carta geographica do globo occupava maior
espaço que tinham occupado os antigos Romanos, e que talvez não
chegue a occupar nenhum império no mundo. São ingénuos os seus
historiadores; porém, se quizermos dizer que não são acreditáveis, por-
que são parciaes, LafiQtau e Raynal dão claro testemunho a esta ver-
dade, e fica a toda a sua luz pelo estudo da geographia antiga e mo-
derna. Ás possessões da Berbéria se ajuntaram todas as costas occiden-
taes de Africa desde Gabo Verde, Serra Leoa, Castelio da Mina até ao
Cabo da Boa-Esperança; toda a costa oriental de Africa até ao Cabo de
Guardafu, as boccas do Erythrêo, e Pérsico, com a ilha de Ormuz, toda
a enseada de Cambaya até Diu; toda a Costa do Malabar até ao Cabo
Comorim, a ilha de Ceilão e costa de Coromandel, e desde Meliapor
até Malaca, tudo conheceu o septro portuguez, e correu victorioso até
Bengala, e península de Macau; estabeleceu o commercio do Japão,
quasi todas as ilhas d'aquelle imenso archipelago, possuiu Timor, Ti-
dore, e Ternat, não tinha mais que vêr, e que conquistar na Ásia. Di-
latou-se na America, parte do globo despresada em o começo, e onde
pode agora lançar os alicerces ao mais florento, formidável, e poderoso
império do mundo. Desde o rio das Amazonas até ao da Prata tem mil
e quatrocentas legoas de costa; e desde a costa até ás cordilheiras ou
Andes, pelo menos mil e duzentas; o interior é incógnito, mas será
ainda povoado, pela fatal, forçada emigração da Europa.
N'esle esplendor se conservou até á morte de Sebastião. O domí-
nio estranho de Castella, a politica soberba de Filippe Prudente, a con-
PARECER DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 299
ducta de seu filho e neto, a teima de fazer Hollanda uma republica po-
derosa, a força de quarenta annos de guerra, abalaram o grande col-
losso da monarchia portugueza, que restabelecendo-se depois não fi-
cou em toda a sua integridade; porém, um portuguez digno de eterna
memoria, e o maior homem da nação, dentro dos limites de Portugal,
quasi o restituiu * ao antigo esplendor, magnificência, e representação,
com planos vastíssimos, e destramente executados, com politica pro-
funda, com constância heróica, e com verdadeiro amor da pátria, á
qual se votou de um modo que honrará sempre a humanidade; e por
isto nunca Portugal se pode com justiça chamar uma potencia secun-
daria na Europa. A necessidade, .as relações, o commum interesse o li-
gou sempre intimamente á Inglaterra; e se esta só pela sua illurainada
legislação se soube fazer em tudo superior a Portugal, deve-lhe a sua
mesma grandeza, parte de seus thesouros, e a vasta extensão e opu-
lência do seu commercio.
Um só dia acabou a obra de muitos séculos, e Portugal retrogrado
não poderá por tempos ofiferecer mais que o espectáculo que offereceu
desde Sancho 1.° até Affonso 4.°^ Cem léguas de extensão desde a
barra de Caminha até ao Cabo de S. Vicente; pouco mais de trinta lé-
guas de largura, eis aqui a que está reduzido o que se chamou vasto
império Lusitano. Seis pequenas províncias, que não sustentam seus
habitantes, pouca cultura, nenhum commercio externo, as artes eitin-
ctas com a opulência e o luxo, não farão vêr mais que a scena da pe-
núria, e da miséria. Não tem exercito, não tem fabricas, falta em que
empregue a industria, e n'este estado é impossível a repentina passa-
gem para a primitiva friigaiidade, ou pobresa. Eis aqui o que foi, e o
que Portugal agora é.^ O maior erro politico, que até agora se tem
commettido no mundo foi reduzil-o a este estado; e este erro nunca
* O Marquez de Pombal.
2 Esta proposição é verdadeira nas circumstaneias em que os Francezes pozeram
o reino^ descarregando taes golpes nas suas bazes, que a esperança do seu restabele-
cimento seria illusoria. Não se previa a insurreição em Hespanha, n'este facto prende
o encadeamento das causas que concorrem para a nossa liberdade. Do estado da
Hespanha pendeu a resolução dos Portuguezes, e da resolução dos Portuguezes o de-
sembarque dos Inglezes.
3 Este papel foi feito no dia um que se cumpriram seis mezes da invasão fran-
ceza. Agora se conhece que nenhum plano politico obrigou os Francezes a invadir o
reino, elies então reduzidos á necessidade de roubar, e vieram unicamente roubar.
Boube-se, ainda que se se arruine uma nação : este é o grande principio ou base de
todas as operações do grande covil de salteadores, ou gabinete das Tulherias; todas
as nações primeiro se queixam de roubadas, que de perdidas.
300 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
se poderá remediar, porque já a Inglaterra não deve, nem pode ata-
lhar a sua grandeza, o seu domínio, e a preponderância que vae a ter,
e terá sempre no mundo.
Este erro politico abrange toda a Europa, e esta vae a sentir ter-
ríveis efifeitos da queda, ou ruina de Portugal; a sua conservação, in-
tegridade, e independência convinham a todas as nações; e era do in-
teresse commum a continuação da monarchia portugueza no estado em
que existia antes da sua destruição; esta destruição enfraquece as po-
tencias do continente, e só engrosa infinitamente o poder, a opulência,
e a soberania de Inglaterra:* remove para sempre a época de uma
paz solida, vantajosa, e permanente, e reduz á extrema desgraça os
míseros portuguzes europeus. Estas proposições não entraram nunca
nos cálculos dos mais profundos políticos. Se a Inglaterra ha muito ti-
nha intentado para utilidade sua fazer por politica o que agora ura ím-
peto inconsiderado, ou o que é mais verdade, um plano abortado lhe
foi metter nas mãos muito á medida do seu desejo, podendo até esta
época desvanecer a esperança de o conseguir. A lisongeira pintura
do discurso do immortal Pítt em 1800, não offerece mais que uma espe-
culação brilhante, que deslumbra por um momento, porque conhecia
este politico que realisando-se alcançaria a Inglaterra a maior e mais
vantajosa de todas as víctorias, e augmentava a somma dos seus inte-
resses até ao infinito. Ê formoso um quadro de uma nova Lisboa no
interior do Brasil, de novas conquistas, novas leis, novo commercio,
este projecto sahiu primeiro da cabeça do maior politico de Portugal,
António Vieira;* mas nunca se realisaria, se a supposta e até agora
* Todas ai tentativas do ministério francez contra a Inglaterra tem sido em favor
d'esta^ e prejuízo d'aquelle. Querem dar um golpe no commercio da Ásia tomando o
Egypto, perdem uma expedição que custou oitenta milhões de cruzados, uma esqua-
dra, um exercito. Querem a ilha de Malta para fazer damno aos Inglezes; perdem
Malta, e fica nas mãos dos Inglezes. Querem o Cabo, arruinam os HoUandezes, e fica
o Cabo nas mãos dos Inglezes. Preparam esquadra em Copenhague para attaear os
Inglezes^ perdem Copenhague, e a esquadra passa para poder dos Inglezes. Querem
excluir os Inglezes de Portugal, dão-lhe a entrada no Brasil, perdem o exercito de
Portugal, e existem em Portugal e na America os Inglezes. Pretendem assenhorear-se
da Hespanha para excluírem os Inglezes do continente, perdera a flespanha, e a esqua-
dra de CadiZj e penetram os Inglezes o interior da Hespanha. Trata-se de paz, e Bo-
naparte mostra-se ao mundo um aggregado de fraqueza, e de ignorância.
2 Alexandre de Gusmão o lembrou de novo a El-Rei D. João 6.°; ambos se en-
ganavam. Para equilíbrio da Europa e prosperidade d'este reino convém que o throno
se não transfira jamais. Portugal e a Europa decahirâo no momento em que o Brãsii
deixar de ser uma colónia.
PARECER DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 301
Dão Tista força o não obrigasse; e o para sempre dia memorável 30 de
Novembro de 4807 deu nova face ao mundo. Desenvolvamos estas gran-
des proposições, e possa a Europa conhecer-se no quadro fiel que lhe
vou apresentar no parecer que me pedem.
1.' PROPOSIÇÃO
A forçada emigração do Príncipe Regente deixou o Portugal europeu
em estado de não poder ser reino independente^ nem continuando a
guerra, nem depois de feita a paz.
Demonstra-se:
Portugal era uma potencia marítima e mercantil, e só começou
a sentir vantagem depois da descoberta de ambas as íodias; a sua po-
sição local só o forçou a ser uma potencia guerreira com um reino li-
milrophe, cioso sempre da sua prosperidade, e nunca esquecido das
suas antigas pretenções; mas a politica, os tratados, as allianças, ti-
nham de todo supprimido o rancor, e feito esquecer as duas épocas
de uma liberdade e independência felizmente conseguidas; e n'este es-
tado devia Portugal dar-se lodo ao coramercio, utilisando as suas vas-
tas possessões com o verdadeiro caminho da sua felicidade. Portugal co-
nhecia o que tinha dentro em si. A pezar de todas as especulações so-
bre a agricultura, todas as leis, todas as providencias dadas pela eco-
nomia politica, nunca pode haver trigo sufQciente para o consumo an-
nual da sua população: eis aqui um género indispensável, que lhe era
preciso haver de paiz extranho, e este género era comprado, ou era
havido pelo metal representativo do seu valor. Depois d'este género
de primeira necessidade, seguem-se os outros de que carecia, e que
o coslun;e convertido em natureza linha feito indispensáveis, e até os
do luxo, cousa necessária em as monarchias, apesar das declamações
de moralistas melancholicos. Isto era o que Portugal não linha; mas
nas vastíssimas possessões ultramarinas, as mais ricas do globo, tinha
tudo, tudo aquillo de que as nações europêas necessitavam, e as suas
transacções mercantis faziam passar pela praça de Lisboa trezentos mi-
lhões de cruzados annuaes. Só Londres lhe excedia. Um governo, em
apparencia frouxo, mas profundamente sábio e politico, tinha conver-
tido com apparente condescendência, Lisboa em um porto franquissimo:
a informação dos tratados de commercio com a Inglaterra, que pare-
cia impune, e não procedia de frouxidão, era o meio de tornar o com-
302 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MA.CEDO
mercio mais florecente, e de enriquecer sem risco a praça de Lisboa
(tenha esta asserção dureza no commercio, deve-se altender mais para
a pratica, que para as occas theorias). Acima de quatrocentos navios
andavam na carreira do Brasil, as fazendas exportadas d'aquelie vasto
paiz, em tanta abundância como diversidade, eram em parte compra-
das em Lisboa pelas nações da Europa, e era parte depois de estabe-
lecido o commercio directo como Norte, conduzidas aos seus portos,
por especuladores portuguezes. Esta abundância dos géneros coloniaes,
e a riqueza inexhaurivel do numerário, que nunca cessaram de dar as
minas do Brasil, attrahiram a Portugal todas as nações, e affluiram to-
dos os objectos de necessidade, ou de luxo. Sabe-se (nem é do meu in-
stituto mostrar) o que n'este reino importava a Rússia, a Suécia, a Di-
namarca, a Hollanda, as Cidades livres, a França, as mesmas potencias
Berberescas, e sobretudo a Inglaterra, ou para o consumo d'este reino,
ou para se transferir ao Brasil, fechado com a mais constante severidade
a todas as nações europêas, para fazer a opulência de Portugal, ficava
o bem que agora não possue, nem possuirá jamais. O reino ficou re-
duzido pela emigração do Príncipe aos seus primitivos limites depois
da ultima expulsão dos Mouros do Algarve no reinado de AíTonso 3.°,
6 ficando com o mesmo território, não tem os mesmos costumes, as
mesmas necessidades, o mesmo caracter, as mesmas paixões, o mesmo
espirito que então linha í não pode por isto ser a mesma monarchia
que então foi.
Exisie em guerra, não tem exercito, nem organisando-o o pode
manter, vestir, e pagar; não tem raetaes, e despojado do numerário
que existia em circulação por uma exorbitanlissima contribuição, nem
tem dentro em si, nem tem com que haver de fora pelas transacções
mercantis com que possa refazer esta immensa e irreparável perda:
e não só não pode já adquirir a abundância, mas nem ao menos sa-
tisfazer a necessidade. A classe a mais opulenta, e a mais essencial,
que era a do commercio, está constituída ás portas da mendicidade;
os fundos que ainda possuía dentro do paiz, estão exhauridos pelo pezo
das exacções, e pelo progressivo consumo: os fundos que tinha nas co-
lónias estão para sempre alienados, ou passe, ou não passe o reino a
mãos estranhas. Os proprietários dos navios não os verão cruzar a barra
de Lisboa. Como cessou a abundância, e a riqueza do commercio, fi-
cou e estará sempre paralisada a classe dos artistas mechanicos; aca-
baram todos os objectos de luxo, e existe mais de um milhão de bra-
ços ociosos, innumeraveis famílias reduzidas à extrema penúria; a po-
pulação decrescerá, e diminuirá diariamente, e por isto o ultimo re-
PARECER DADO ÁCKHCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 303
curso da necessidade, que é a agricultura, que se diz agora a base da
grandesa das monarchias, para dar um ár de justiça ao desasisado pro-
jecto de abater uma potencia * pela ruina de todas as outras, irá em
dinainuição. A emigração, apesar de se tomarem as medidas mais vio-
lentas para a vedar, augmentar-se-ha todos os dias, e ficará o reino
despedido de uma terceira parte dos seus habitantes; e faltando o com-
mercio externo e interno, é chimera querer fazer do simples Portugal
uma monarchia independente no estado de guerra. As rendas publi-
cas, e do estado, ou se extinguirão de todo, ou se reduzirão a uma tão
pequena somma, que não bastarão a manter uma sombra da magestade
e do decoro de um monarcha; e consumidos que sejam por uma vez
na terra aquelles géneros que o paiz em si não tem, e que vedado o
mar lhe é preciso atrahir de fora com despezas incalculáveis, ficam
para sempre estancados todos os recursos de haver mais (salvo se os
homens se quizerem reduzir juntamente com os monarchas áquelle es-
tado de intolerável frugalidade em que Portugal existiu nos seus dois
primeiros séculos). Se na especulação isto parece realisavel, na pratica
é impossivel. E que poderá representar no quadro da Europa um mo-
narcha de mendigos, não por vicio, mas por necessidade? É pois ir-
realisavel a soberania, e até mesmo a conservação de Portugal no es-
tado da guerra marítima, que uma potencia invencível n'este elemento
faz a toda a Europa, e um anno de tão teimoso bloqueio reduzirá os
povos europeus á mesma condição de Portugal.
Poderia o reino manter o commercio continental com as potencias
confinantes? Não poderá existir este commercio, ou a Hespanha fique
com as suas colónias, ou as perca. Se fica, não tem que tirar de Por-
tugal, ainda que Portugal podesse haver algj^mas prodacções do Ultra-
mar; se não fica não pode trazer a Portugal os géneros territoriaes,
em primeiro logar porque lhe não sobram; em segundo logar porque
tem tudo dentro em si quanto Portugal lhe podia dar em commutação.
Mas feita a paz marítima, e accelerando esta época, poderá Portugal
ter um monarcha, ser independente e subsistir?
^Este é o especioso, o grande pretexto com que Bonaparte pertende curar to-
das as suas tentativas. Diz que quer abater a Inglaterra, e obrigal-a no abatimento a
fazer a paz. Eile sabe que a Inglaterra^ bem desenganada como está, nunca lhe accei-
taria proposição alguma. Eile suppõe que os povos desejam subtrahir-se á influencia
ingleza, e a pezar dos protestos dos povos, lhe vae introduzindo exércitos, que nin-
guém lhe pede. Roube-se tudo, e seja a minha família de reis; eis aqui a influencia
d'Inglaterra de que eile quer livrar o mundo f
304 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
2.' PROPOSIÇÃO
No estado da paz, Portugal desmembrado do Brasil não pode ser uma
monarchia.
CoDcedendo por um inslante só, que a Inglaterra por algum inci-
dente accedia á paz continental, e que por base d'esta paz concordava
na desmembração de Portugal, que o mesmo Príncipe do Brasil assen-
tia á perda do seu incontestável direito á posse d'este reino, e que
n'elle reconhecia uma potencia estranha e independente; com todos
estes impossíveis realisados não mudava a condição presente de Por-
tugal, nem sabia do abatimento de miséria, e de infelicidade a quem
um só dia o reduziu. Eu ainda concedo mais um impossível, que é o
livre accesso, e coramercio aos povos do Brasil. N'estas falsíssimas sup-
posições, que possue Portugal que transfira ao Brasil, porque possa ha-
ver o seu ouro, e as suas producções? Sal, e vinho, e algum azeite;
o primeiro género o pode haver no Brasil, e se até agora se não per-
mittiu, assim o pedia o interesse do estado. O segundo não é de ex-
trema necessidade n'aquelle clima; o povo, e classe Ínfima lhe sub-
stituo a aguardente; para as classes superiores, das ilhas, e do Cabo
se lhe subministrará em abundância. O terceiro género é muito incerto
em Portugal; tirando o necessário para o consumo interno, pouco so-
beja, e ainda sobejando muito, que pode avultar, para cora elle extra-
hir do Brasil todos aquelles géneros, e em tanta copia que possam re-
produzir, ou fazer ver um pequeno e passageiro vislumbre do antigo
esplendor? Trazer do Brasil, da índia as drogas com que commerciar
com as outras nações, eis aqui o que nunca consentirá a Inglaterra, nem
pode consentir. Ainda que em Portugal se desenvolva, se promova, e
se dilate a industria franceza, e chegem aqui á ultima perfeição as ma-
nufacturas, os tecidos de algodão, de lã, e de seda, o estabelecimento
de fabricas em o Brasil, que o novo monarcha deve de necessidade es-
tabelecer, e aperfeiçoar, as colónias de artistas inglezes, que todos os
dias crescerão a olho n'aquelle immenso paiz; a introdução infinita das
mesmas manufacturas inglezas a um preço commodo, porque os ingle-
zes, como é constante, sabem perder a tempo, a alluvião dos géneros
da Ásia que os mesmos inglezes vasarão no Brasil, tudo isto dará desde
logo golpes decisivos e mortaes n'este imaginado commercio de Por-
PARECEU DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 305
tugal independente. Se para Portugal como potencia independente no es-
tado da paz, se abrirem os postos do Brasil, porque se não abrirão tam-
bempara as outras nações europêas? e estabelecendo com ellas um com-
mercio directo, que poderá figurar no meio d'ellas este retalho de terra,
pobre, desprovida, e até aqui pouco industriosa, porque até aqui foi
excessivamente rica? Ainda com estes dados nada poderá ser Portu-
gal, que devemos olhar desde já extincto como monarchia, e como na-
ção. Depois d'isto, quem não vê que depressa se despovoará este reino
no meio de uma paz constante, e que ficará reduzido, ou a uma char-
neca continua, ou a admitlir colónias francezas para conservar a sua
população? Os interesses de família, a adhesão ao Príncipe, aos cos-
tumes, ás leis, aos usos, á liberdade nobre, que têm todos os portu-
guezes, as mesmas preoccupações que conservará sempre pelos foros,
pela, nobreza, pela corte; o invariável respeito e amor, que conserva
á religião; a aversão ao trabalho, que é do caracter nacional, a penú-
ria domestica, a exclusão dos empregos públicos que ha seis mezes
completos hoje experimenta, a extincção necessária que deve haver
em repartições do exercício de justiça e fazenda, a certeza de um es-
tabelecimento commodo em um novo império que se vae a crear,
obrigará a uma total emigração de todas as classes. Ficará por isto para
este infehz reino tão prejudicial a guerra como a paz, tornando-se im-
possível a conservação de uma monarchia independente, salva sempre
a mania de reduzir os homens ao primitivo estado do Pacto social.
5.» PROPOSIÇÃO
Portugal, assim como as outras nações cmlisadas da Europa, não pode
ser reduzido ao estado primitivo.
A emigração precipitada do Príncipe isolou a Europa, acendeu
mais o facho horrível da gerra, e removeu indefinidamente a época
da paz, influiu em todas as constituições dos povos. Vemos rompidos
de lodo os vínculos que nos uniam ao novo mundo, e que faziam
communs os bens de ambos os hemispherios. O uso converteu em ne-
cessidade inevitável as producções da America, só privativas a este paiz,
que produzidas em tanta copia só podem bastar ao consumo das nac-
ções europêas. As riquezas d^alli vindas estabeleceram e arraigaram o
luxo, e deram outro caracter aos costumes, e houve mister progressões
CARTAS. 20
306 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
lentas e infinitas para chegar a este estado. Depois que se dissipou a se-
gunda barbaridade da Europa com o estabelecimento das artes e cul-
tura das sciencias, começou a mesma Europa a gastar algumas drogas
orientaes, vindas a Aleppo e Alexandria pelo isthmo de Suez, e con-
duzidas pelos Venezianos, Pisanos, e Genovezes, derramou-se este
gosto por todas as nações, porque também vinha com elle a opulência.
Despertaram a actividade dos Portuguezes, franquearam pelo mar a pas-
sagem para a índia, e esta espantosa descoberta alvoroçou e mudou a
face da Europa, estimou-se o que era regalo, amoUeceram-se os cos-
tumes com o luxo asiático, e a Europa quiz comer, quiz trajar com a
mesma pompa, e tudo conseguiu de sorte que em 1550 ja não era a
mesma Europa de 1497. Assim progressiva e gradualmente chegou a
dar o espectáculo que deu a França sob Luiz 14.°, Portugal sob José
1.°, 6 as outras nações no estado em que as vimos. A impulsão que as
conduziu a este ponto foi muito vagarosa, e que impulsão bastará para
as reduzir ao estado de que ha tantos annos (séculos digo) sairam, e
que é para ellas estranho, repugnante, intolerável? A momentânea e
repentina? Eis .aqui um sonho politico, e que não se metteu ainda em
cabeça ao mais esturrado publicista. Suspirou por este estado, e até
pelo insocial o atrabiliário João Jacques, e esta chimera ficou nos seus
incendiários escriptos^ e como pode esta chimera realisar-se agora por
um capricho tomado por vingança ?2 Para excluir os Inglezes de todos
os portos do continente poderão todos os povos renunciar a todas as
commodidades, prazeres, riquezas, commercio, artes liberaes e fabris,
luxo, e reduzir-se á simples agricultura para o simples necessário, e
farão isto em um só momento, sem violência, sem o sentimento das
privações, e do estado de polidez passarão ao de semibarbaros, com
a mesma pressa com que se muda no theatro a vista de um palácio na
1 Joãa Jacques é o mais contradictorio de todos os homens. Suspira pelo estado
insocial, e escreve o Contracto Social; grita cora veheraencia contra os romances, e
escreve uma novella voluptuosa : grita contra os theatros, e escreve comedias. Deita
os filhos na roda, e escreve o Emilio. Levanta-se contra a musica, e vive de a trasla-
dar. Suspira pelos bosques, e não ha forças que o arranquem de Paris. Declara guerra
aos grandes por toda a parte, e morre em casa de um marquez. E é este o idolo dos
regeneradores do globo I
2 Os Krancezes, que annunciavam e assoalhavam com todo a emphase da impos-
tura esta pretendida frugalidade pela extincção do commercio^ e abandono das coló-
nias^ se mostraram em Portugal insaciáveis de luxo, e de delicias asiáticas! miserá-
veis, que sempre andaram descalsos por pobresa, não se fartaram de carruagens, co-
miam pelas ruas assucar aos punhados^ adoravam o café, e até quereriam coser o ouro
na própria pelle. Os Francezes não são moralistas, nem políticos; são ladrões.
PARECER DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 307
Tista de uma choupana? Viverá por ventura contente a Rússia, redu-
zida a pastar com os ursos da Livonia e da Sibéria, e deixará ou po-
derá deixar a navegação, o commercio, olhará com indifferença, e até
com despreso para os seus teares, para as suas cordoarias, e um mi-
lhão de artistas opulentos retirar-se-hão para a Ukrania e Polónia a
cultivar a terra para só comerem, e não venderem? A mesma França
poder-se-ha dividir em duas partes, mandará os velhos para a lavoura,
os mancebos para a milicia, ir-se-ha despovoado quanto se fôr derra-
mando em vasta conquista, onde lhe é forçoso manter exércitos sempre
renovados? E persuadir-se-ha que acha sempre recursos constantes
fora do commercio, da navegação, e das artes de luxo, de que foi sem-
pre um inexhaurivel manancial, e com que soube conservar-se na opu-
lência, no fausto e na gloria, sem lagrimas e sem sustos? Poderá a
Itália passar do século dos bailarinos, gorgeadores, e jardineiros, re-
pentinamente para o século dos Fabricios, Emilios, Cincinnatos, e Ser-
ranos? Deixará as poucas sedas que tece para pegar no arado? Mas
esta passagem, ainda que violenta, não será durável; abatida que seja
a Inglaterra pela exclusão das suas manufacturas, syncope do seu com-
mercio, as nações tornarão ao seu antigo estado, recobrarão o per-
dido esplendor, e então deixada a agromania serão ricos peio com-
mercio. *
4.» PROPOSIÇÃO
Com a guerra feita ao commercio não se abate a Inglaterra; os seus re-
cursos se estenderão até ao infinito pela emigração do Principe de
Portugal.
Todos os princípios que estabelece a França para o abatimento da
Inglaterra, produzem consequências oppostos e contrarias á mesma
França. Creio que ha para as cabeças calculantes entestadas com o es-
tranho Systema continental uma moléstia epideraica, que é o delirio.
* A teima mais conhecida de Bonaparte é tirar aos Inglezes o senhorio dos ma-
res; constituamol-o por ura momento nas mãos dos Franeezes^ eis aqui a Europa
mais desgraçada. Com o mesmo descaramento com que Bonaparte se diz o déspota
do continente, se diria e se faria o déspota dos mares. Concedam-Ihe no mar as mes-
mas forças dos Inglezes, qual seria o povo que não ficasse escravo do maior tyranno
que viu o mundo? Para ter tanto império como César, é preciso ter os talentos de
César.
308 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
Não só parecem desprovidas de conhecimentos commerciaes, mas até
mostram que não têm a idea que exita a palavra — Commercio — . Quan-
do se faz guerra ao commercio de uma nação como a Ingleza, faz-se
ao de todas as outras nações. Só ha uma nação no globo, cujo com-
mercio se arruinaria sem que as outra so£fressem, que é a China, por-
que nada recebe das mãos extranhas mais que o anfião, que paga aos
Inglezes de Bengala. Para mais nada sahiu ainda dinheiro da China.
Se os Inglezes fizessem só o commercio da importação, fechado tudo
nada lhe restava, mas talvez que a exportação exceda a importação.
Por um mappa eslatislico do anuo de 1807 entraram nos portos da
Rússia nos dois mezes de Junho e Julho mil e duzentos navios ingle-
zes em lastro, para exportarem; este anno de 1808 nenhum entrará,
salvo as formidáveis esquadras, que nenhum poder destróe. Não nos
apartemos d'esle paiz: estão fechados os seus portos ás manufacturas
inglezas, e não está estagnado o commercio da Rússia: primo, porque
os Inglezes não exportam; secundo, porque os Inglezes não deixam
exportar as outras nações. Se a Rússia tem em si recursos internos
que a façam subsistir sem luxo, e pode soffrer as privações dos géne-
ros coloniaes, e permanecer particularmente ociosa, se pode dar nova
destinação aos seus artistas, e deixar estacionarias as suas fabricas,
quem disse aos calculadores que falharão aos Inglezes os mesmos re-
cursos, e a mesma tolerância nas privações, e nova destinação que dar
aos seus fabricantes? Quem disse que esta supposía estagnação do seu
commercio com os povos europeus acabará na Inglaterra o espirito pa-
triótico, e desunirá o povo, estancará os thesouros do mundo de que
é senhora, e a obrigará a anniquilar a sua marinha, e com ella perder
o senhorio dos mares, e a pedir ou acceitar as vergonhosas condições
de uma paz precária, que seria em todos os casos mais funesta e pre-
judicial para a Grã-Bretanha que a guerra de muitos séculos? Eis aqui
o que é impossível realisar-se; e querer intentar a ruina d'esta nação
por um golpe parcial dado no seu commercio é um rematado delirio,
é orna ignorância crassissima dos immensos recursos da Iglaterra. A
violenta emigração do Príncipe de Portugal forneceu á Grã-Bretanha
meios efficacissimos de eternisar a guerra, de engrossar o poder, de
dilatar o commercio, de amontoar thesouros, e de se construir sobe-
rana absoluta no império dos mares. Accrescentou-se ao seu domínio
uma porção da America maior que a Europa desde o Volga até ao Me-
diterrâneo, desde o Cabo de Finisterra até ao Bosphoro da Thracia.
É verdade que não tem população proporcionada á sua extensão por
agora, mas virá tempo em que a maior parte da Europa vá povoar o
PARECER DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 309
Brasil* a emigração é indispensável, e talvez que não esteja muito re-
mota a época em que toda a immensa porção do globo, que corre
desde o isthmo de Panamá até á ponta da terra dos Pátagões, ou do
Fogo, banhada pelos dois Oceanos, Pacifico e Atlântico, não reconheça
mais que um senhor, e que este, o maior dos impérios, seja uma ver-
dadeira e vigorosa colónia ingleza. Cortar-se-iam estas vantagens á
Inglaterra, se á pancada de uma vara magica apparecessem repentina-
mente em todos os mares forças navaes superiores ás suas, que se po-
dessem apossar com a rapidez do raio de todos os pontos essenciaes
que ella occupa. Era preciso que voasse aos ares feito em pedaços o
fatal propugnaculo de Gibraltar, escolho onde se quebram as impoten-
tes fúrias de uma nação rival: era preciso que se lhe arrancasse das
mãos a ilha de Malta, o dominio indirecto da Sicília, que perdesse o
Cabo da Boa-Esperança, a ilha de Ormuz, a de Ceilão, o passo do
Sunda, as torres e os baluartes de Malaca, as boccas do Ganges, e
ambas as suas margens do norte e sul até Calcutá, e os vastíssimos e
opulentíssimos estabelecimentos de Bengala; que retrocedendo os ex-
pulsassem do Indostão que todo é seu na costa e contra-costa do Ma-
labar, que se lhe arrazassem os dois famosos empórios do seu com-
mercio, as cidades de Baçaim e Bombaim; que perdessem o que tão
gloriosamente defendem nas rehquias do império portuguez, em Goa,
Bardes e Salsete. Dêmos por um instante os Inglezes excluídos de
ambos os mundos, e sem os recursos que tiram já do Brasil, cujo ouro
passa lodo para as suas mãos. Obrigar-se-iam a acceitar a paz? Nãol
Eis aqui a voz, que parece ainda sahir do mausoleo de Pitt. Nós se-
riamos depois de todas estas ruinas ainda mais projudiciaes e formi-
dáveis aos nossos inimigos, poderia dizer com verdade este grande
homem. Com effeito, transtornados todos os vastos projectos e planos
de Pitt, transferido o Brasil a outras mãos, que não fossem portugue-
zas, arruinados os estabelecimentos do Cabo da Boa-Eesperança, e po-
dendo alguns milhares de Persas organisados em exercito por aven-
tureiros Francezes em um dia expulsar os Inglezes da Ásia, e corre-
rem desde a ilha de Ormuz até á enseada de Ainão e Cabo de Singa-
pura, para os espancar de quantas bahias, surgidouros, ancoradouros,
portos, praças, fortalezas, ilhas, que possuem pelo espaço mais de três
mil léguas pelo norte e sul de toda a Ásia, e para isto atravessando
tantos impérios diversos, tantas cordilheiras de montanhas inaccessi-
veis, ramificados do Cáucaso e Gate, quantas correm desde as fronteiras
*Eu procedo na hypothese da permanente usurpação de Portugal, e d'aqaella
cavillosa divisão, que agora nos descobre o escripto de Cevallos.
3iO OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
da Pérsia até não só ao Ganges, onde não chegou Alexandre, que não
passou do Hydaspe, rio que desemboca no Indo, mas até Cantão, exe-
cutando-se esla façanha rodamontica pelo exercito Gallo-Persa, ainda
que o seu monarcha para o conduzir deixasse imperfeito o poema-epico *
que anda compondo, annunciado em uma gazeta de França, execu-
tando-se tudo isto, não restando aos Inglezes mais que a sua ilha, e a
inexpugnável praça de Gibraltar, devia a nação jurar a guerra eterna
como apoio da sua independência e soberania. Mas que guerra? A que
talvez não lembrasse ao mesmo Pitt, porque talvez os seus cálculos
profundíssimos não se fundavam sobre dados impossíveis. A guerra de
piratas, com que infestariam e assustariam o mundo inteiro, arrui-
nando o commercio e a navegação de todos os povos, não deixando
coalhar a mais pequena esquadra. Eis aqui tornados em formidáveis
ladrões os que não quizeram deixar ser commercianíes. Não podem
ser invadidos na sua ilha, por que os Bretões do decimo-nono século
não são os do século de Júlio César e de Cláudio; o Oceano e as Dunas
lhes formam um propognaculo invencível. É uma nação toda energia,
toda fogo, e um só espirito anima todos os cidadãos. Deixemos delí-
rios, vejamos a nova situação da Inglaterra, e a influencia que n'ella
teve a emigração pretendida do Príncipe de Portugal para o Brasil.
Querendo que a Inglaterra não tenha outras bases mais que o com-
mercio, este começou ja a prosperar e a dilatar-se sobre-raaneira. Eu
prometto ao Brasil colónias de todas as nações europêas. Rebus sic
stantibus; a primeira que de necessidade deve emigrar é a Hollanda,
povo activo, paciente, industrioso, e de uma fleugma especuladora, e
que conheceu o Brasil por experiência e posse; prometto a emigração
da Dinamarca e da Suécia: eis aqui o Brasil povoado de colonos e de
artistas. A emigração de Portugal o povoará de soldados, de proprie-
tários 6 de capitahstas, as minas não estão ociosas; aos gentis do-
mesticados por outra politica não observada até agora se ajuntarão os
Africanos conduzidos sem ferros, e eis aqui a Europa nos confins do
Brasil. São incalculáveis as vantagens que a Grã-Bertanha tirará d'este
immenso império. Todos os metaes encontrados já em tanta abundân-
cia que parece vegetarem com as plantas, madeiras de construcção,
eternas na duração, nenhum navio seu irá mais a Riga buscar os pi-
nhos de Livonia; o consumo infinito das suas manufacturas, e expor-
tação exclusiva das producções d'aquelle vasto paiz, de que a Europa
* Annuncia-se esta grande obra juntamente cem a invenção das seges de aluguer
pelos especuladores Persas, em a Gazeia de Lisboa, riferindo-se ao Monitor, no an-
tigo— Pérsia — .
PARECER DADO ACERCA DA SITUAÇÃO E ESTADO DE PORTUGAL 3H
toda, até a enfraquecida llalia e a mesma Turquia necessita: a posse
das ilhas da Madeira e Açores para deposito d'est3S mesmas produc-
ções; eis aqui mananciaes inexhauriveis de riquezas para a Inglaterra;
e no estado de paz, que não convém á Grã-Bertanha, eu prometto todo
o commercio do Brasil feilo immediatamente pelas suas mãos, aquelle
commercio que os Inglezes que até agora faziam no infelicíssimo Por-
tugal. E é assim que a França intentou abater a Inglaterra? Parece
que assim lhe quiz augmentar o poder, e accumulnr os thesouros. O
golpe contra ella fulminado resvalou unicamente sobre Portugal, não
só agonisante, mas extincto para sempre. Se houvesse um congresso
de representantes de todas as nações para ultimarem a grande e ne-
cessária obra de uma paz, eu votaria que se não começasse a delibe-
rar sobre este objecto da consolidação da Europa sem que o voto una-
nime de todos os povos pedisse o restabelecimento do Príncipe emi-
grado no throno de Portugal. A nenhuma das nações seria a paz van-
tajosa sem que ella se levantasse sobre esta base. Mas concordaria,
accederia a Inglaterra a esta proposição? Ella o não fará, sem attentar
contra a sua mesma gloria, poder, riqueza, e soberania. A conserva-
vão do Príncipe no Brasil assegura á Inglaterra para sempre o senho-
rio absoluto dos mares, dá um consumo infinito ás suas manufacturas
em um império creado de novo, e que necessita de tudo: indemnisa-a
da perda (se alguma sente) do vedado com.mercio continental; obriga
por termos as outras nações a haverem das mãos dos Inglezes todos
os géneros coloniaes, ou a soffrerem privações continuas: esta conser-
vação offerece aos Inglezes dobrados meios de perpetuarem a guerra,
e de continuarem o fatal bloqueio do continente, em que os povos es-
talarão, e com terrivel e espantosa reacção cahirão sobre a origem e
causa dos males do mundo: ^ esta conservação oíTerecerá aos Inglezes
novos recursos para o commercio e defesa das suas possessões orien-
taes. Os seus transportes, as suas esquadras farão a sua primeira es-
cala pelos portos do Brasil, ficando-lhes mais commoda a navegação
do que lhes ficaria demandando primeiro a ilha de Santa Helena e depois
iNão foi precisa a continuação do bloqueio para a insurreição da Peninsula : a
inaudita maldade de Bonaparte, a sevícia e a rapina levadas ao ultimo excesso pelos
seus malvados satélites; o sacrílego roubo dos monarchas de Hespanha, despertou os
povos; todos se armaram, e as vantagens constantes dos Ilespanhoes são o thermo-
metro da decadência do sanguinário e tyranuico império francez. Todas as apparen-
cias indicam o ultimo período da sua existência, e o Imperador corso terá a mesma
sorte que o seu patrício e concidadão, o Rei Theodoro: tal o destino dos aventurei-
ros sem talentos, e dos usurpadores como Phocas.
312 OPÚSCULOS INÉDITOS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
O Cabo, sendo por tudo isto a emigração do Príncipe para o Brasil van-
tajosa á Inglaterra, e funesta a todos os outros povos. E qual será a
sorte de Portugal?
5.» PROPOSIÇÃO
Portugal^ pela emigração do Príncipe, fica o mais desgraçado de todos
os povos, e imitil a todas as potencias.
Pela primeira e segunda proposição, Portugal nem no estado de
guerra, nem no estado de paz, desmembrado das possessões ultrama-
rinas, e supposto vago de direito e de facto, pôde ser uma monarchia
independente: está pois reduzido á condição mais deplorável a que até
agora tem chegado nação alguma, e de que não ha exemplo no vasto
quadro da historia do mundo. As conquistas e o domínio dos Roma-
nos no tempo da republica, ou do império, não reduziram a este es-
tado nação alguma das subjugadas. Era um reino marítimo, e não tem
forças navaes; era mercantil e não tem coramercio; era guerreiro e
não tem exercito; era conquistador atê aos limites da terra, e não tem
nem um palmo de terra das conquistas de ultramar, nem as Berlen-
gas; era o mais rico dos secundários, e é pobre sem recurso; era
activo e perfeito nas suas manufacturas, a que se dava, e não tem nem
uma fabrica; e para ser ainda mais funesta esta espantosa e repentina
metamorphose, até mudou na ordem moral: tinha uma legislação fixa,
e passou para a arbitraria, tinha caracter seguro, generoso, egual, in-
tolerante de costumes extranhos, e passou repentinamente para a bai-
xeza, para a infâmia, para a vileza da adulação * e para sentimentos
tão servis, que não só devem enjoar os seus mesmos dominadores, mas
fazel-o o horror da humanidade, e o aborrecimento dos povos da terra.
A apathia, a indolência, a indifferença, tendo seus limites podem cha-
mar-se virtudes heróicas; mas, transgredidos estes limites não podem
ser mais do que infâmia; podia subjeitar-se nobremente, deliberar, e
representar, sem que perscindisse d'estes direitos deixados intactos.
^A este funesto estado se reduziu pela infidelidade de alguns indivíduos inimi-
gos da pátria; elles a entregaram aos Francezes, elles os aeclamaram em publico the-
atro, e está demonstrado que existia entre nós uma seita de conspiradores de todos
os estados, homens iramoraes, ou tão ingnorantes, que se deixaram illudir das cavil-
losas promessas de ladrões, e praza a Deus que ainda este pernicioso espirito de par-
tido não permaneça com a força do incêndio debaixo de cinzas I Era axioma entre estes
perversos, que todo o homem de talentos devia ser do partido francez, e estes mal-
vados fazem votos pela ruina, para se salvarem na destruição da pátria.
PARECER DADO ACERCA DA SíTUACAO E ESTADO DE PORTUGAL 313
até á mais abjecta escravidão; emfim, transformou-se do reino flo-
rescente, fundado com tanto valor, conservado com tanta sabedoria,
dilatado com tanta gloria, famoso por tantas acções illustres, respeitado
pelas suas virtudes, distincto pelos varões notáveis em todas as classes
de lilteratura, em um aggregado de misérias, opprobrios e ludíbrios
sempiternos. As províncias assolladas, a capital soberbissima e opu-
lentíssima, quasi erma, sem fausto, e sem representação. Dentro em
si não tem trigos, não tem metaes (tendo aliás minas de todos elles)
não tem géneros coloniaes, não tem pannos, não tem dinheiro, está re-
duzido á simples agricultura, á pescaria litoral, e para isto mesmo
falto de braços, porque a diminuição de população será na rasão di-
recta do augmento da penúria e indigência. Lisonjear-se com o cha-
mado futuro brilhante, é querer cegar-se nas bordas do abysmo em que
vae a cahir para se precipitar mais apressadamente. Nunca as desgra-
ças foram caminho para a felicidade; estão não só obstruídos, mas ex-
línctos de todo os canaes que a podiam conduzir unicanente a esta rou-
bada felicidade. Se a Inglaterra tentasse com força armada a liber-
dade e restauração de Portugal* veria inutílisado o seu risco, aborta-
das as suas delígencias, apenas apontassem nas fronteiras imaginadas
forças que o quizessem domar; á mais pequena intimação, largaria
tudo, e pagaria uma vil continuação da existência a troco de voluntária
escravidão. O seu remédio seria considerar-se uma colónia do impé-
rio do Brasil, com uma regência livre e honrrada; ou desmembran-
do-se do Brasil, reduzir-se a uma rigorosíssima democracia, para imi-
tar a Hollanda no commercio, franquear os seus portos a todas as na-
ções, negociar com os géneros do paiz, promovendo mais a cultura
dos vinhos, e aperfeiçoando as suas salinas, navegando, que é este o
génio, e traficando com os géneros exportados da America, consen-
tindo-o a Inglaterra, pela lembrança da antiga adhesão; estes os meios
de uma tolerável existência para os Portuguezes: se não é que sobre
elles se realisa algum d'aquelles fataes decretos, que assignal-a ás mo-
narchias impreterível termo. — Non stabit, et non erit hoc, et adhuc se-
xaginta et quinque anni et desinet Ephraim essepopulos. Isaías, cap. 7.
Lisboa 29 de Maio de 1808.
José Agostinho de Macedo,
^ Este papel foi feito a 29 de Maio de 1808; ainda a Hespanha nSo tinha desper-
tado do letliargo, e ainda Portugal não conhecia pela ultima experiência a intenção dos
Francezes. Os dois principaes objectos que o devem occupar são: primeiro — exlio-
guir a raça dos conspiradores: — segundo — conservar-se na defesa, ainda depois de
segura a sorte da Hespanha, e restabelecido Fernando 7.»
3>T-B-
Este papel, de que não tinha anterior conhecimento, foi-me em-
prestado em 11 de Fevereiro de 1848; o Iransumpto estava porém
Ião desfigurado, não só por uma multidão de iDcorrecções orthographi-
cas (em geral de fácil emenda), mas muito principalmente por faltas e
erros de sentido, que, tratando de o copiar, foi por vezes necessário
adivinhar o que o auctor disse, e ainda apesar de todo o cuidado al-
guns logares escaparam em que não foi possível completar as phrases,
havendo todavia por melhor deixal-o assim, do que inserir nos perío-
dos coisa que não se podia reputar inteiramente conforme á letra do
original. Se no futuro encontrar outra copia mais correcta farei as con-
venientes emendas, mencionando as variantes que se offerecem. — En-
tretanto, ninguém versado na matéria deixará de reconhecer aqui o
estylo, as ideias, e os sentimentos de J. A., e ainda que por ventura se
occultasse o nome do auctor, o contexto o daria facilmente a conhecer.
Innocencio Fran." da Silva.
índice
CARTAS E OPÚSCULOS INÉDITOS
PAO.
Sobre estes Inéditos v
Ao Padre Fr. Joaquim da Cruz,
Procurador geral do Mosteiro de Alcobaça
L— ? Julho
de 1828
1
II. — 11 de Agosto
m.— 26 de Agosto
lY, — ? Setembro
u
2
u
3
4
V.— 8 de Outubro
5
VI.— 17 de Outubro
s
6
Vil.— 20 de Outubro
7
VIIL— 13 de Novembro
7
IX. — • ? Novembro
8
X. — 3 de Dezembro
10
XI. — ? Dezembro
11
XII. — 1 de Dezembro
12
XIII.— 18 de Dezembro
12
XIV.— 24 de Dezembro
14
XV.— 24 de Dezembro
15
XVI.— ? Dezembro
16
XVII.— ? Janeiro
de 1829
17
JÍVIlI.— ? Janeiro
18
XIX. — 5 de Fevereiro
>
19
316 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
PAG.
XX.— ? Março de 1829 20
XXI.— ? Março . 21
XXII.— ? Abril . 22
XXIII.— ? Maio . 23
XXIV.— ? Maio » 24
XXV.— ? Maio » 25
XXVI.— ? Maio . 26
XXVII.— ? ? . 27
XXVIIL— 29 de Maio » 28
XXIX.— 14 de Junho » 29
XXX.— 30 de Junho » 30
XXXI.— 7 de Julho » 31
XXXII.— 27 de Julho » 32
XXXIIL— ? Agosto . 33
XXXIV.— ? Agosto » 35
XXXV.— ? Setembro » 36
XXXVI.— ? Setembro « 37
XXXVII— ? Setembro » 39
XXXVIII.— ? Novembro » 40
XXXIX.— 11 de Novembro . 41
XL. — 14 de Novembro » 44
XLI.— 28 de Janeiro de 1830 46
XLII. — 6 de Fevereiro » 48
XLIII.— 9 de Fevereiro » 50
XLIV.— ? Fevereiro » 51
XLV.— ? Dezembro (1829) 53
XLVI.— ? Março de 1880 55
XLVIL— ? Março . 56
XLVÍIL— 20 de Março . 59
XLIX.— ? Março » 61
L. — 1 de Abril » »
LI.— 20 de Abril » 63
LII.— 2Í de Abril » 64
LIIL— ? Maio » 65
LIV. — Sem data »
LV.— . 67
LVÍ.— . 68
LVIL— 8 de Junho de 1830 70
LVIIL— ? Junho . 71
LIX.— 30 de Junho » 73
LX.— 5 de Julho » 76
LXL— ? Julho » 77
LXII.— 15 de Julho » 79
LXIIl.— 27 de Julho » 80
LXIV.— 23 deMaio » 81
LXV.— (10 de Junho de 1827) 84
LXVI— (1 de Dezembro de 1827) 85
índice 317
PAG.
LXVII.— Sem data 87
LXVm.— Sem data
LXIX— " 88
LXX.— » (Fragmento)
LXXL- » 90
Lxxn.— »
A Fr. Fortunato de S. Boaventura
I.— 16 de Novembro de 1826 91
II.— Sem data 92
III.— 6 de Dezembro de 1829 96
IV.— 15 de Maio de 1830 Í25
V.— 18 de Dezembro » 126
VL— 26 de Dezembro » i28
A Fr. Francisco Freire de Carvalho,
Superior no Collegio da Graça de Coimbra
I.— 20 de Setembro de 1806 133
U._ 7 de Fevereiro de 1807 135
III. — 7 de Março » 137
IV.— 21 de Maio de 1808 140
V.— 30 de Maio » i43
VL— 3 de Julho de 1812 144
Vn.— ? Outubro » 146
VIU.— 10 de Julho de 1813 147
A um amigo do Vigário Geral
30 de Julho de 1829 151
Ao Arcebispo Vigário Geral D. António José Ferreira de Sousa
I.— 24 de Setembro de 1824 153
n.— 23 de Junho de 1827 154
lU.— de 1828 155
IV.— 15 de Junho de 1829 156
V.— 27 de Junho " 159
VL— 21 de Maio de 1830 161
Ao Dr. Fr. Domingos de Carvalho, graciano,
lente de prima de Theologia na Universidade de Coimbra
L— 7 de Agosto de 1829 163
II.— 19 de Agosto . 1^6
318 CARTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
PAG.
III.— 7 de Fevereiro de 1830 168
IV.— 16 de Fevereiro » 170
Aviso régio 172
A Fr. Christovam Henriques, religioso do Convento da Graça
20 de Abril de 1827 173
A Joaquim António Xavier Annes da Costa,
Administrador da Imprensa regia
12 de Junho de 1827 175
A Joaquim José Pedro Lopes
? Dezembro de 1825 17T
A Francisco de Paula Ferreira da Costa
I.— Sem data 179
II.— 30 de Outubro de 1830 »
Ao Desembargador José Ribeiro Saraiva
I.— 29 de Janeiro de 1829 181
IL— 15 de Abril de 1830 184
A Cláudio Joaquim dos Santos
I.— 26 de Abril de 1829 185
II.— i9 de Junho » 188
A Fr. Álvaro Vahia,
Secretario geral da Ordem de S. Bernardo
10 de Abril de 1830 189
Aos Senhores Investigadores
18 de Junho de 1812 191
A António Feliciano de Castilho
13 de Agosto de 1824 195
índice 319
Á Freira Trina D. Feliciana R . . . do Convento do Rato ,
PA».
L— 30 de Janeiro de 1820 199
ÍI. — 1 1 de Fevereiro » >
III — 18 de Março » 200
IV.— 17 de Fevereiro de 182 201
V. — 19 do Fevereiro » »
VI. — 21 de Fevereiro » 202
VII.— Sem data 203
VIII.— » »
IX.— » 204
X— " 20o
XI.— r, 206
XII.— 16 de Junho de 1821 „
XIII.— 16 de Janeií-o de 1822 207
XIV.— Sem data
XV.— » 208
XVI.— » 209
XVn.- 210
xvm.— . „
XIX._ . 211
XX. — » n
XXÍ.— 22 de Março de 1822 212
XXII.— Sem data 213
XXIII.— » 214
XXIV.— 28 de Fevereiro de 1822 „
XXV.— Sem data 215
XXVI.— » 216
XXVU.— « 217
XXVIII.— . 218
XXIX.— 219
XXX.— » 220
XXXI.— n 221
XXXII.— » 222
XXXIII.— .. 223
XXXIV.— » »
XXXV.— » 224
XXXVI.— .. 226
XXXVII.— « „
XXXVIIL— . 227
XXXIX.— >> ,
XL.— » 228
XLI.— » 229
XLII-— .. 231
XLIII.— . ,
XLIV.— » . 332
XLV.— » 233
320 CAUTAS DE JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
PAG.
XLVL— Sem data 334
XLVII.— » 235
XLVIIL— » 236
XLIX.— » 237
L. — » »
LI.— » 238
LIL— » 239
Lin.— » »
LIV.— « 240
LV.— » 241
LVL— » »
LVIL— » »
Requerimentos á Mesa do Desembargo do Paço
? Junho de i819 , 245
22 de Junho » 247
? Junho » 249
Outro »
Representação, conjunctamente com J. J. Pedro Lopes 250
OS^TJSOXJILOS laSTEIDITOS
Kesposta do General Marmont ao antigo Auctor do velho Telegrapho,
Mr. de TO 255
Carta do Dr. Manuel Mendes Fogaça ao seu Amigo transmontano sobre
os Periódicos do tempo 267
O Boi no chão. Obra extrahida dos Manuscriptos do defuncto Enxota-cães
da Sé de Lisboa_, dado á luz por seu sobrinho André Calado 281
Parecer dado acerca da Situação e estado de Portugal, depois da
sabida de Sua Alteza Real, e Invasão que n'este reino fizeram as Tropas
francczas 296
N. B. De Innocencio Francisco da Silva 314