' «:
iiMmw^-
',í^^^%í
't^y
^&\'ê>o^z^-^
Presenteei to the
lAmLAKYofthe
UNIVERSITY OF TORONTO
by
Professor
Ralph G. Stanton
/ '
Bibliotlieca da ACTUALIDADE
OBRAS POÉTICAS
BOCAGE
VERSÕES
DcUllr i)A JarfliiiH.
/i',).'„v(7 -A Aíj;ricul(nr{i.
OBKAS POÉTICAS
BOCAGE
VOLUME VI
Poemas didácticos traduzidos
-^^^Dg3<^-
PORTO
IMPRENSA PORTUGUEZA — EDITORA
1875
os JARDINS
ARTE DE AFORMOSEAR AS PAIZAGENS
POEMA
DM:ÍR. IDEXiI3L.3LE
TRADUZIDO EM VERSO
Hic inter flumina nota,
Et fontes sacros frigus eaptàbis opacum.
Viro. Eclog. i.
Entre os rios aqui, e as sacras fontes
Gosarás em repouso a sombra amena.
(Do Traductor.)
PROLOGO DO TRADUCTOR
A gloriosa reputação do abbade Delille, como
litterato, e como poeta; a estima geral, dada ao seu
poema dos Jardins^ onde se encontram todo o ata-
vio, toda a graça, e toda a philosophia, de que é
capaz o assumpto, me incitou a versiíical-o em vul-
gar, apurando n'isso o cabedal que possuo em poe-
sia, cabedal muito inferior ao apreço, e acolheita,
de que estou em divida com os meus compatriotas.
O amor á gloria, e á gratidão talvez ainda criem
na minha alma um ardor que a fecunde, tornan-
do-me digno do affecto, com que me honra o pu-
blico; e entretanto lhe apresento esta versão, a mais
concisa, a mais fiel, que pude ordenal-a, e em que
só usei o circumloquio nos logares, cuja traducção
litteral se não compadecia, a meu vêr, com a ele-
gância, que deve reinar em todas as composições
poéticas.
PROLOGO 1)0 AUCTOR
Varias pessoas do grande merecimento escre-
veram em prosa acerca dos Jardins, O auctor
d'este poema colheu d'ellas alguns preceitos^ o até
descripções. Em bastantes passagens teve a dita de
encontrar-se com tão bons escriptores, porque este
poema foi começado antes que elles publicnssem as
suas obras. Confessa que dá ao prelo com extrema
desconfiança uma composiçcão muito esperada, e
engrandecida de mais: a indulgência excessiva, dos
que a ouviram, lhe agoura a severidade, dos que a
lerem.
Este poema, além d'isso, tem um grave incon-
veniente, o de ser didáctico. Tal género é necessa-
riamente um pouco frio, e mais o deve parecer a
uma nação, que lhe custa muito (como se tem ob-
servado repetidas vezes) a tolerar versosr em não
sendo os compostos para o theatro, os que pintam as
10 OBRAS DE BOCAGE
paixões, ou as baldas dos homens. Poucas pessoas,
digo mais, até poucos litteratos lêem as Geológicas
de Virgilio, e quasi todos os que aprenderam latim
sabem de cor o quarto canto da Eneida,
No primeiro d'estes dous poemas, dá o poeta a
entender que sente não lhe permittirem os limites
do seu assumpto cantar os Jardins. Depois de ha-
ver luctado longamente com as miúdas, e um tan-
to ingratas particularidades da cultura geral dos
campos, a modo que deseja repousar sobre mais ri^-
sonhos objectos. Mas estreitado no de que tracta,
vinga-se d'esta subjeição com um bello, e rápido
esboço dos Jardins, e com o pathetico episodio de
um velho feliz no seu pequeno campo, que elle mes-
mo cultiva, e enfeita.
O que o poeta romano sentia não poder execu-
tar, executou o P. Rapin. Escreveu na lingua, e
ás vezes no estylo de Virgilio, um poema em qua-
tro cantos sobre os Jardins, que foi mui applau-
dido, n'um tempo em que ainda se liam versos la-
tinos modernos. A sua obra não é despida de ele-
gância; mas quizera-se que abundasse de precisão,
e de melhores episódios.
De mais o plano do seu poema não interessa,
não tem variedade. Um canto é consagrado ás
aguas, outro ás arvores, outro ás flores. Adivi-
nha-se o comprido catalogo, e a enumeração te-
diosa, que mais pertence ao botânico que ao poeta;
PROLOGO DO AUCTOR 11
e aquelle passo methodico, qne assas prestaria n'uin
tractado em prosa, é grande defeito n'uma com-
posição poética, onde o espirito pede que o levem
por caminhos um pouco desviados, e lhe apresen-
tem objectos que não espera.
Além d'isto, Rapin cantou Jardins do género
regular, e a monotonia inherente á summa regula-
ridade, passou do assumpto ao poema. A imagina-
ção, naturalmente amiga da liberdade, ora vae a
custo pelos desenhos enviezados de um canteiro de
flores, ora morre no fim de uma longa, e direita ala-
meda. Por toda a parte lhe lembra com saudades
a formosura um tanto desordenada, e a chistosa
irregularidade da Natureza.
Émfim, aquelle auctor não tractou senão a par-
te mechanica da jardinagem. Totalmente esqueceu
a mais imporíante, a que procura em nossas sen-
sações, em nossos sentimentos a origem do prazer,
que nos causam as scenas campestres, e os attra-
ctivos da Natureza aperfeiçoados pela arte. Em
summa, os seus Jardins são os do architecto; os
outros são os do philosopho, os do pintor, os do
poeta.
Este género tem medrado por extremo ha an-
nos, e se isto é também effeito da moda, demos-
Ihe graças. A arte dos jardins, a que se poderia
chamar luxo da architectura, parece um dos entre-
tenimentos mais convenientes, e talvez um dos mais
12 OBRAS DE BOCAGE
virtuosos da genfce rica. Como cultura, reconduz á
innocencia das occupações campesinas; como ador-
no apadrinha sem risco a paixão dos dispêndios, que
acompanha as grandes fortunas: finalmente, esta
arte tem para similhante classe de homens o du-
plicado préstimo de participar, ao mesmo tempo,
dos gostos que vogam nas cidades, e dos que exis-
tem nos campos.
Este prazer dos particulares achou-se ligado á
utilidade publica : fez com que os opulentos folgas-
sem de habitar as suas terras. O ouro, que susten-
taria artifices do luxo, vae alimentar os cultivado-
res e a riqueza torna á sua verdadeira fonte. Ac-
cresce a isto, que a cultura se enriqueceu com mui-
tas, e muitas plantas, ou arvores estrangeiras, ag-
gregadas ás producções do nosso terreno, e isto
vale certamente o mármore todo que perderam nos-
sos jardins.
Feliz este poema se desparzir, ainda mais, af-
feições tão simplices, e puras ! Porque, como o auc-
tor d'este poema o disse em outra composição,
Quem dos campos o amor inspira aos homens
Também, Virtudes, vosso amor lhe inspira.
os JARDmS
C-A.I>T'rO I^KIlvIEIDEtO
Renasce a primavera, influe, e anima
As aves^ os Favonios, flores, Musas.
Que novo objecto á lyra os sons me pede?
Ah!, Quando a terra despe antigos lutos
Nos campos, nas florestas, sobre os montes
Quando tudo se ri, tudo se inflamma
De amor, e de esperança, e de ventura,
Outro co'a pbantasia em Phebo acceza,
Abra os fastos da Gloria aos grandes nomes,
N'um carro fulminante alce o triumplio;
Manche, ensanguente as mãos na taça horrível
Do vingativo Atrêo: sorriu-se Flora,
Vou cantar os Jardins, dizer qual arte
Em terreno loução, dispõe, regula
As flores, a corrente, a relva, as sombras.
Tu, que o vigor, e a graça entrelaçando,
Dás ao canto didáctico energia,
Do Lucrécio na voz, se outr'hora, oh Musa,
14 OBRAS DE BOCAGE
As austeras lições amaciaste:
Se pôde o seu rival (sem que nos lábios
A linguagem dos numes desluzisse)
Ao laborioso arado unir o metro;
Vem mais fértil ornar, mais rico assumpto,
Assumpto amável, que tentou Virgílio.
Mãos não lancemos de atavio estranho;
Das minhas mesmas flores vou c'roar-me:
Qual pura luz, que bella nuvem doura,
A expressão tingirei na cor do objecto.
Arte innocente, que em meus versos canto,
Origem teve nos cerúleos dias.
Nas primaveras do recente globo.
Apenas o homem submettêra os campos
A cultura efficaz, pôz mil desvelos
De viçosa porção no tracto, e mimo;
Alinhou para si com leis, e industria
Plantas selectas, escolhidas flores.
De Alcino o luxo, o gosto, ainda rude
Punha a curto vergel módico enfeite;
Eis com arte maior, mais sumptuosa
Jardins nos ares Babylonia ostenta.
Os latinos heróes, de Marte os filhos,
Depois que Roma agrilhoava o mundo,
Davam repouso ameno á gloria, ao raio.
Em frescos hortos, que a victoria ornara.
Habitava o§ jardins óutr'hora o sábio,
Doctrinando os mortaes mais ledo que hoje.
POEMAS DIDAOTKíOS TRADUZI '.^OS 15
Quando a sabedoria elysios teve,
Éreis vósj dons do céo, talvez palácios?
Não: vós éreis um prado, um rio, um bosque^
De imperturbável paz ditoso abrigo,
Puras delicias, que a virtude auhéla.
Corra-se pois, que é tempo, o novo espaço:
Philippe, e o bello assumpto a voz me alentam.
Para aformosear simples terrenos
Não insulteis co'a pompa a Natureza;
Este emprf^go requer sisudo artista,
•Parco em disj)endios, na invenção profuso;
Jardim, menos fastoso que elegante,
Jardim eom mais belleza que atavio.
Parece aos olhos meus mn amplo quadro.
Sede pintor: o campo, os seus matizes.
Os reflexos da luz; da sombra as massas.
As estações, e as horas, variando
O giro do anno, o circulo diurno;
Ricos esmaltes de cheirosos prados.
Dos outeiros o alegre, o verde forro.
Aguas, boninas, arvores, penedos:
Eis os vossos pincéis, têas e cores.
Podeis ci"ear: a natureza é vossa,
E dóceis para vós os e^lementos.
Mas antes de jilantur, antes que encete
Instrumento ini prudente o seio á terra,
Para dar aos jardins mais linda forma
Observai^, reflecti, sabei d^ que ai"te
16 \, OBBAS DE BíNCAGB
Se imita, se arremeda a natureza.
Não tendes vezes mil em ermos sítios
De repente encontrado aquellas vistas.
Que as plantas, que os sentidos vos suspendem,
E que em meditações quietas, longas
Enlevam manso, e manso a phantasia?
Tudo o melhor senhoreae co'a mente,
Dos campos aprendei a ornar os campos.
Logares, que subtil decora o gosto,
Olliae também : nos escolhidos quadros
Ainda lia que escolher; por vós se admire
De Cliantilli magnifíca elegância,
Que de heróes em beróes, de edade a edade
Ganha novo esplendor. Beloeil, a um tempo
Campestre, app:)ratoso, e tu que ainda
Ufano Chanteloup, to desvaneces
De teu grande senhor com o desterro;
Todos vós alternaes o bem dos olhos.
Qual purpúreo botão, mimoso, e- breve,
Timido precursor da quadra bella,
O amável Tivoli, de forma estranha
A França descolDriu ténue modelo.
Montreuil as Graças desenharam rindo,
Maupertuis, le Desert, com que alegria,
Auteuil, Rincy, Limours, quam docem.ente
Nas vossas lindas, arejadas ruas
Olhos se embebem, se extraviam passos!
Do grande Henrique a venerável sombra
POEMAS DIDÁCTICOS TEADUZIDOS 17
Ama ainda Navarra, e parecido
Comtigo TrianoDj deusa, que o reges.
Une a graça, o recreio á magestade,
Se adorna para ti, por ti se adorna.
Grato asjlo d'uin principe adorável,
Tu, cujo nome de apoucada idéa
E indigno de ti; logar vistoso,
Quando lhe devo a teu senhor, oíFVece:
Um plácido retiro, um ócio ledo.
Bemíeitor de meus versos, de meus dias,
Na eleição de atilados escriptores,
Em jardim, que do Pindo as rosas vestem,
Inclue a Musa minha, e brando a acolhe.
Junto ao lyrio soberbo, e magestoso
Asâim cresce a violrta humilde, e escura.
De illustres vates não illustre- sócio,
Ah ! se coubera em mim cantar como elles,
Pintara os teus jardins, pintara o nume,
Que os habita, que os honra; o gosto, as artes,
As virtudes, a gloria, os bens que o seguem,
O ladeam em ti. Logar formoso.
Se tu sua ventura. Eu se algum dia
Ffndar, por graça d'elle, amena estancia,
Mais beila a tornarei co'a bella imagem
Do alto meu protector; quero que sejam
Minhas primeiras flores seu tributo.
Para o busto real cultivo, enlaço
Em virentes festões o louro, o myrto,
18 OBRAS DE BOCAGE
Tão caros aos Boiírbons; e se o repouso,
A liberdade, as sombras me inspirarem,
Ao bemfazejo heróe te sagro, oh lyra.
Fallei d'esses legares deleitosos,
Que a arte deve imitar: convém que falle
Dos escolhos, que a mesma evitar deve.
O engenho imitador também se engana:
Não dê belleza ao chão, que o chão não queira;.
A paragem conheça antes de tudo,
Do sitio adore o Génio, o Deus consulte:
Impunemente as leis não se lhe aggravam.
Nos campos, todavia, a cada instante,
Menos audaz que oxtríinho em phantasias.
Tudo altera e confunde artista inerte,
.E desnaturalisa, e perde tudo;
Com absurda eleição mil graças liga:
Encantavam na Itália^ em França enjoam.
O que o terreno teu sem custo adopte
Reconhece, e depois te apossa d'elle.
Isto ainda é melhor que a Natureza,
Mas isto mesmo é ella, isto é perfeito
Quadro brilhante, que não tem modelo.
Dos Berghems, dos Poussins tal foi a escolha^^
Do ambos estuda as producções divinas:
E o muito, que o pincel aos campos deve,
Arte cultivadora, agradecida.
Nos jardins restitua á Natureza.
Os terrenos agora se examinem,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 19
E que logar se apraz das leis, que traças.
Houve tempo fatal em que arte infensa,
Guerra aos mais bcllos sítios declarando,
Enchendo os valles, arrazando os montes.
Formou de chão gentil planicie ingrata.
Hoje, rural tvianno, outro artificio
Quer, por contrario abuso, — erguer montanhas,
Valles quer profundar. Longe os excessos,
Longe as lidas, e ardis: tudo é baldado
Contra intractaveis, repugnantes serros;
E sobre terra egual montinho humilde
Cuida ser pittoresco, e move a riso.
Queres a teu suor logar propicio ?
Foge as mui desiguaes, os muito planos
Campos, e serras. Eu tomara os sitios
Onde sem altivez fosse eminente
A rico valle matizado outeiro.
Não tendo insipidez, lá tem brandura
O solo complacente, é alto, é secco,
Estéril não, não rispido: caminhai^;
Obedece o horisonte, ergue-se a terra,
Ou a terra se abate, aperta, estende:
Luzem de passo a passo encantos novos.
Dos gabinetes no silencio triste.
De compasso na dextra, embora ordene
Artiíice vulgar a symetria
D 'enfadoso jardim, confie embora
O geométrico plano ao papel frio.
20 OBRAS DE BOCAGE
Tu vae ver em si própria a Natureza.
O lápis maneando, ali copia
Este aspecto, estes longes, esta altura,
Meios advinha, obstáculos presente:
Só a difficuldade é mãe de assombros,
E o chão de menos graça havel-a pode.
É nu? Florestas a nudez lhe amparem.
É coberto? Os machados vão despil-o.
Húmido? Em lagos de crystal pomposo,
Em ribeiros fecundos, transparentes
Se converta, se aclare essa agua impura.
Por trabalho feliz corrige a um tempo
Melhora as aguas, o terreno, os ares:
E árido talvez? Procura, sonda.
Torna ainda a sondar, não te enfasties:
Pode ser que, em traír-se vagarosa,
A agua de rebentar esteja a ponto.
Tal de um tenaz esforço eu mesmo anciado,
Morna individuação maldigo, entejo:
Mas de estéril objecto aborrecido
Idéa graciosa eis surge, eis salta:
O verso resuscita, e fácil corre.
Inda mais doces que estes ha cuidados.
Arte existe inda mais encantadora.
Falle-se ao coração, não basta aos olhos,
As invisiveis relações conheces
Cesses corpos sem alma, e doís que sentem?
Das aguas, prados, selvas tens ouvido
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 21
A calada eloquência, a voz occnlta?
Todos estes effeitos deves dcir-rií)s.
Do alegre ao melancólico, e do nobre
Ao engraçado, os trânsitos sem conto
Sempre me aprazem me captivam sempre.
Un<^, sirap]í'S, e granae. forte, e bnindo,
Todo o matiz j que a todo o gosto agrade.
O pintor enriqueça ali a idéa,
A sancta inspiração turbe o poeta.
Ali remansos d'alma o sábio gose,
Memorias o ditoso ali disfructe,
De lagrimas se farte o miserando.
Mas a audn.cia é commum, e o si?o é raro,
Grata ás vezes se crê a extravagância.
Evita que os efFoito^, mal unidos,
De incoherentes imagens formem cabos;
Ve que as contradicções não são contrastes.
Estes painéis de natural pintura
Requerem longo espaço; em quadro estreito
Não vás aprisionar montanhas, bosques,
Nem lagos, nem ribeiras. E costume
Zombar d'esses jardins, parodia absurda
Dos rasgos, que a atrevida Natureza
No seu grande espectáculo derrama;
Jardins, em que arte rude, e inverosimil
Um paiz todo n'uma geira encerra.
Em vez d'e3te montão confuso, inerte.
Varia objectos, ou lhe altera a face.
22 OBKAS DE BOCAGE
Perto, longe, patentes, quasi occultos,
Revezem todos mil diversas vistas.
Dos eífeitos seguintes a incerteza
Grato desasocego aos olhos deixe.
Ornamentos o gosto emfim colloque,
Imprevistos jamais em demasia,
Jamais em demasia annunciados.
Presta sobre maneira o movimento;
Sem a doce magia, a elle annexa,
Em lethargo recáe a alma ociosa.
Sem elle, por teus campos enfadonhos
Em giro casual vão sempre os olhos.
Citarei outra vez altos pintores ?
Lá diffunde o pincel pródigo, e fértil
Moveis objectos sobre o panno immovel:
O rio foge, o vento encurva os ramos.
Globos de fumo das aldeãs sobem,
Os gados, os pastores brincam, dançam.
Cuida em te apoderar doeste segredo,
Dispõe sem parcimonia arbustos doces,
Arvores brandas, cuja aífavel coma
Das virações ao hálito obedece.
Sejam quaes forem, tu, cultor, venera
A vacillante, undisona verdura,
Tolhe que o ferro a Natureza ultraje;
EUa co'a mestra mão como desenha
D'esta parto os carvalhos, d'esta os olmos !
Olha como do tronco até aos ramos,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 23
X)os ramos té ás folhas desparzido
Da mãe universal benigno influxo;
Vae das undulações dar-lhe a niolleza.
Porém golpes cruéis . . . vedae tal crime,
Correi, nyifiphas da selva ... ah ! Q'é debalde,
O corte cercou-lhe a gala, o viço.
Já na copa vivaz não ouço ao longo
Correr os Aquilões, bramir na rama,
AíFastar-se, expirar. Tácitos, frios.
Mortos do ferro os vegetáveis entes,
D'elle simelham rispideza immovel.
Ás plantas deixa, pois, tremor suave
Nos quadros teus, do movimento amigos;
Faze fugir, ferver, saltar as aguas.
Vês estes valles, solidões, florestas?
Por vários sitios de diversos gados
A nédia multidão se envie, e alongue.
Além vejo a cabrinha roedora
Pender do cume de remotas penhas:
Aqui mil cordeirinhos melindrosos
Soltam queixumes, que de serro a serro
Vae écco em molles sons amiudando.
N'estes, que as ngu.Ms da collina sorvem
Prados lustrosos, sobre as mãos se estende,
E ruminando jaz o boi pezado,
Em quanto generoso, altivo, accezo, -
O filho do Tridente, o mareio bruto
Ostenta, vicejando, em pingues pastos,
24 OBRAS DE BOCAGE
O indómito vigor, e o brio agreste.
Quanto me atráe, me regosija, quanto,
A audaz agilidade, o gesto activo!
Ou elle, usado ás fluviaes correntes.
Sobre ellas se arremesse, estremecendo,
E luctando depois, c'os pés sacuda
As ondas, que murmuram, que branqueam^
Ou atravez dos prados salte, e fuja;
Ou, longa crina errante aos ventos dada,
Brotando os olhos fogo, as ventas fumo,
Bello de orgulho, e amor, voe ás amadas.
Sumiu-se já, e a vista ainda o segue.
O thesouro exhaurindo á Natureza,
Assim terrenos, vistas, e agua, e sombras
Dão ás paizagens movimento, e vida.
Porém se o movimento encanta os olhos,
De liberdade um ar não menos querem.
O limite aos jardins fique indeciso;
Ou cora arte se esconda, ou se disfarce.
Não ha mais que esperar? Voa o feitiço»
Com certo dissabor o fim se toca
De uma estancia aprazível : cedo enfada,
E irrita, finalmente; além dos muros,
Importuna barreira, inda se ideam
Logares mais gentis, mais attractivos,
-E a alma inquieta desencanta os olhos.
Quando nossos avós, á guerra aíFeitos,
Seus campos em castellos convertiam,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 25
Cada qual em munida, enorme torre
Preso vivia por viver seguro.
Mas hoje de que servem taes muralhas
Que o temor inventou, mantém o orgulho?
A estes, que prendendo outr'hora a vista,
A vista duramente entristeciam,
Prefere o gosto verdejantes muros,
Muros tecidos de espinhoso enredo.
Muros, por onde a mão, tremendo, colhe
A rosa inculta, a amora ensanguentada.
Mas jardim limitado inda me ancêa.
Surja-se emíim de um circulo tão breve
A género mais vasto, e mais formoso,
De que hoje Ermenonville é só modelo.
Os jardins para si chamavam campos.
Vão n'elles os jardins entrar agora.
Do cinto d'esses montes, d'onde os olhos
Paizagem dilatada abraçam, medem,
A madre Natureza ao Génio disse:
<( Os thesouros, que vês, são teus: envoltos
Na rude pompa, na opulência bruta,
Os quadros meus tua destreza imploram.»
Ella diz, elle voa: em toda a parte
Esquadrinha esta massa, onde repousam,
Onde dormindo estão bellezas cento.
Do valle á serra, da floresta ao prado
Vae retocando os quadros, que varia.
Dos olhos a sabor, une, e desune.
26 OBRAS DE BOCAGE
Illuniina, escurece, occulta^ ou mostra:
Não destróe, não compõe, corrige, apura,
O esboço aperfeiçoa á Natureza.
Carrancudo terror já despem rochas,
O bosque alegre adoça, encurta as sombras;
Ia perder-se um rio : eis o encaminham ;
De um lago se apodera a mão geitosa,
De cristalina fonte se enriquece.
Quer, e veredas mil súbito correm
A demandar, cingir, prender os membros.
Por aqui, por ali soltos, dispersos;
Os membros, que assombrados, que attraídos
Da engenhosa união, do nó, que os junta,
Formam de cem porções um todo insigne.
Talvez, campestre artifice, te espantem '
Estes grandes trabalhos. Entra os nossos
Idosos parques; de uma vez contempla
Apuros vãos, dispendiosos nadas;
As estacadas vê, regos, e tanques.
Preço menor do que a minúcias coube
Para ornar o que um dia apraz somente.
Podo aformosear um campo immenso.
Fallaz, e semsabor magnificência,
Cáe ante esta arte, e por milagre d'ella
A cara pátria minha se transforme
Toda em vasto jardim, n'um Éden novo!
Se não ousas tentar esta carreira.
Ao menos, franqueando o teu circuito,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 27
De aspectos opuleDtos o engrandece.
De um vallcj um serro, uns agradáveis longes
Ajunta posse alhêa á posse tua :
Rege co'a vista, pelos olhos gosa.
Õs varioSj favoráveis accidentes,
Com que innumeros campos se distinguem,
Une principalmente a teus plantios.
Aqui jaz um logar, que cingem bosques,
Acolá torreões cidades cVoam,
E a grimpa azul, ferindo ao longe os olhos,
Vae sumir pelos céos o agudo extremo.
Um rio omittirei, e as margens suas?
Apoz fogazes velas corre a vista.
Ilhas ás vezes saem do vitreo seio,
Ponte arqueada outr'hora o furta aos olhos.
Se os mares espaçosos descortinas,
OíTrcce, mas varia a grave scena.
Mal se divise aqui por entre as folhas,
Uma abóbada além, qual no remate
De tubo extenso, aos olhos o apresente
Em fundo de odoriferas latadas;
Nas voltas de florente bosquesinho
Aqui se encontra o mar, ali se perde:
Eis súbito apparece em toda a sua
Fervente, rugidora immensidade.
Folgue a attençâo n^estes semblantes vários;
Mas com mesquinhas mãos (cumpre que o diga)
Os homens, natureza, o tempo, as artes
28 OBRAS DE BOCAGE
Nos cercam de tão ricos accidentes.
Oh planícies da Grrecia! Ausonios campos!
Legares divinaes, inspiradores,
Sempre caros ao génio! Ah! quantas vezes
Embebido n'um magico horisonte,
O pintor vê, se inflamma, e toma o lápis,
E debuxa esses longes, essas ilhas,
Esse pego, esses portos, esses montes,
Torrados de vulcões, e já fecundos;
As lavas d'elles, que ameaçam, fervem,
Palácios, que em ruinas de o atros surgem,
Um novo mundo, que do velho assoma
N'estes de terra, e mar longos tormentos,
Ah! Eu ainda não vi essa risonha,
Essa encantada estancia, onde mil vezes
Soou do Mantuano a voz divina :
Mas, pelo vate, pelo vate o juro,
Hei de, Apenino, transcender teus cumes,
E cheio do seu nome, e de seus versos,
Lêl-os n'aquelles amorosos sitios,
Sitios, cópia do céo, que os inspiraram.
De encantadoras margens namorado,
Por fora ingratos campos tens somente
Em vez de aspectos, que interessem a nlma?
De extranha vista, que atedía o gosto,
Vinguem-te objectos de mais bella escolha.
Aprende a deleitar-te em teu recinto,
Se o emblema do sábio independente,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 29
Que entra em si mesmo, e que se apraz cornsigo:
N'esse asylo fiel nos entranhemos.
Todavia em logares onde a terra
De aspectos variados mais abunde,
Os thesouros da vista é bem que poupes,
E seja leve giro o custo d'elles.
A arte os prometta, os olhos os esperem;
Dá quem. promette, quem espera gosa.
Releva que enfeitices, não que assombres.
Entre minhas lições também quizera
Duas artes de efFeitos encontrados:
Uma os olhos adverte, outra os saltêa.
Mas antes de dictar preceitos novos,
Dous géneros, ha tempo émulos ambos,
Disputam nossos votos. Um presenta
De regular desenho a ordem grave.
Aos campos dá bellezas que ignoravam,
De pompa desusada os atavia,
E ás arvores põe leis, põe freio ás ondas;
Brilha entre escravos, déspota orgulhoso:
E mais em magestade, em riso é menos.
Da Natureza respeitoso amante,
O outro lhe ajusta comedido enfeite,
Tracta benio:namente os feiticeiros
Caprichos seus, o seu desleixo nobre,
O passo irregular, e extráe com arte
Lindezas da desordem, té do acaso.
Cada qual tem seu jus, nenhum se exclua;
30 OBRAS DE BOCAGE
Entre Kent, e le ísTotre eu não decido.
Ánibos tem leis, tem gniças: um creou-se
Para grandes, e reis: oh reis! oh grandes^
Sois á magnificência condemnados.
Em torno a vós o esforço, o extremo, o apuro
De alto poJer se espera; ali queremos
Que em prodígios o luxo, o gosto, as urtes
Excitem pasmos, embriaguem vistas.
Rebelde a Natureza á Industria cede;
Mas deve gran triumpho honrar a Industria; *
El!a em seu esplendor tem seus direitos,
É umn usurpadora, e lhe compete
A força de grandeza obter desculpa.
Longe, pois, os jardins desengenhosos,
Insulsa estancia, de que o dono insulso
As arvores garridas fofo exalta.
Os pequenos salões bem decotados,
A extrema symictria escrupulosa.
Passeios, onde nunca solitária
Alameda não ha, que irmã não tenha;
Caminhos desgostosos, enjoados
Da obediência ao cordel, os seus canteiros
Bordados, e os seus ténues fios de agua;
Das arvores algumas torneadas
Em vasos, em pjramides, em globos,
E alçados bem na base os pastorinhos.
Gabe o seu luxo pobre: eu anteponho
Um campo bruto a seu jardim tristonho.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 31
Distante d'estes mínimos portentos,
Segue meu voo á pátria dos prestígios.
Vô Versailles, Marly, pomposos, ledos,
Onde Luiz, e a Natureza, e a Arte
Em tanta cópia desparziram. graças.
Que afouto resplandece ali o engenho !
Ali tudo é grandeza, é tudo encanto,
Siio de Alcina os jardins, de Armida os paços,
Antes os de um heróe, que inda procura
Vencer, domar obstáculos, sublime
Em seu retiro, em seu repouso e sempre
Caminha, de milagres circiimdado.
Aquelias aguas vês, a terra, os bosques ?
Submettidos também, seu jugo adoram.
Das arvores á verde architectura
Olha com que elegância estão casados
De forma singular palácios doze!
Vê bronzes, que respiram, ve coerentes
Que, soltas da repreza, esbravejando,
Em grossos borbotões de fofa espuma
Caem, e se estendem por canaes soberbos;
Em lustrosa espadana alem se espalham,
Em j)avêas brilhantes cá se elevam,
E nos benignos ares incendidas
De um sol immaculado, eis chovem gotas
Cor de ouro, de saphira, e de esmeralda.
Selvas, por onde alísorto me extravio
Os Sátyros, os Faunos vos povoam,
32 OBRAS DE BOCAGE
Em vós Diana influe, e Cjtlieréa;
E cada bosquesiolio em vós um templo,
Cada mármore um deus. Luiz, folofaudo
Do pezo marcial, do horror da guerra,
Como que nVsta, a Jove idónea estancia.
Convida todo o Olympo a seus festejos.
N'cstes grandes effeitos é que importa
Que a arte se esmere, avulte, e brillie, o encante»
Facilmente porém o assombro pézíj.
Louvo o orador, que erguidos pensamentos
Na luz, na pompa, na cadencia envolve;
Mas é curto prazer, e o deixo, e corro
A escutar corações na voz de amioos;
Mármores, bronzes, que alardêa o luxo.
Arte ostentosa em breve os olhos cança.
Mas íis correntes, o arvoredo, as sombras,
Este luxo innocente, ah ! não fatiga.
Não fatiga jamais. Deus mesmo aos homens
Traçou este modelo. Attenta em Milto]i:
Quando essa eterna mão, que rege tudo,
Aos primeiros mortaes guarida apresta,
Regulares caminhos abre acaso,
Talvez captiva na carreira as ondas?
De impróprias, de forçadas vestiduras
(Jobre a infância do mundo, a primavera
Becemnascida? Não, sem arte alguma,
E sem constrangimento, a Natureza
Estreou, exhauriu delicias puras,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 33
Delicias puras, que nem ha na idéa.
O mixto amável de planicie, e monte,
Livres, e moUemente errando as aguas,
Veredas tortuosas, e indecisas.
Gratas desordens, novidades gratas,
Aspectos, onde os olhos mal sabiam
Escolher, preferir, tudo alongava,
Entretinha o prazer na variedade.
Sobre viçoso esmalte avelludado
Mil arvores, mil plantas, mil arbustos,
D 'estes logares ondeante adorno,
Iman da vista, do sabor, e olfato.
Em grupos elegantes, movediços,
Em natural, dispersa negligencia,
Já se fugiam, já se avisinhavam.
Seu brando movimento ao longe ás vezes
Inopinada scena aos olhos dava,
Ou com pendor gentil curvando a rama,
Aos passos vinham pôr suave estorvo;
Ou sobre as frontes em festões pendiam,
Ou, na passagem j lhe entornavam flores.
Lindos bosques direi de tenras plantas,
'Em latadas, e abóbadas travando
Troncos florentes, e florentes braços?
Lá de imaginações, queridas, ternas,
Cheios a monte, o coração, e os olhos,
Deu Era ao bello amante a mão mimosa,
E corou como a Aurora ás portas de ouro.
34 OBRAS DE BOCAGE
A natureza toda os afagava.
O céo co'a luz, com seu murmúrio as ondas;
Tremendo a terra lhes sentia os gostos;
Favonio aos éccos os suspiros dava;
O arvoredo rugia, e curva a rosa
Cedia ao toro seus perfumes todos.
Oh ventura ineíFavel, par tranquillo !
Feliz quem, como vós, nos seus amados^
Bonançosos jardins, longe dos males
Que a soberba atormentam, vive rico
De flores, fructos, innocencia, e gosto !
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 35
C.A.ISrTO SEOXJISriDO
A lyra, que 03 rochedos, que as florestas
Ao Hhodope attraía, oh se eu tivesse!
EUa fallára, e súbito arvoredos
Sobre as paizagens lançariam sombras;
A laranjeira, o til, carvalhos, cedros
Viriam nos meus campos collocar-se
Em pasmosa cadencia, em ordem bella:
Mas perdeu a harmonia os seus milagres,
A lyra já não reina, a penha é suixla, *"
A arvore immovel fica aos sons mais gratos;
Dous mamcos ha só: trabalho, e arte.
Aprende, pois, que industria, e que desvelo
Prestam mimo, ou riqueza ás varias plantas.
Pela ridente cóps, a flor, e o fructo
A arvore é dos j*irdÍ7is primeiro ornato.
Para agradar, quantas figuras toma,
36 OBRAS DE BOCAGE
Quantas figuras! Acolá se estendem
Pomposamente seus informes braços;
Brando, e ligeiro além se eleva o tronco,
Aqui lhe admiro, lhe namoro a graça,
A magestade alli. Roçada apenas,
Da menor viração, lhe ondêa a rama,
Ou contra os furacões arrebatados
Firma o corpo nodoso, a rija fronte;
Dura^ ou molle, se inclina, ou se levanta,
Prothêo dos vegetaes, a cada instante
Muda o feitio, a cor, verdura, e fructos
Para dar novo brilho á Natureza.
Eis os thesouros teus, oh arte, e o gosto
Prohibe que sem ordem se dispendam.
Das varias plantas a extensão, e a forma
Se oíFVece aos olhos em aspectos vários.
Ora selva profunda, inculta, e negra
Derrama sombra immensa, ora apparece
Bosque risonho de arvores formosas.
Em ventilados campos mais ao longe
Os olhos chamam, a attenção dominam
Distribuidos, primorosos grupos.
Fiando-se na própria louçania.
Só, n'outra parte, uma arvore pompêa,
Só ella exorna o chão. Tal, se é possivel
Que a paz dos campos assimelhe a guerra,
Cerrados batalhões, dispersas turmas,
Numero, e forças ante nós ostentam;
POEMAS DIDÁCTICOS TEADUZIDOS 37
E altivo do seu nome, e sustentado
Na sua intrepidez, á frente d 'elles
Um- só heróe se avança, e todos vale.
Diversas plantações têm leis diversas.
Nos jardins do artificio em outros tempos
Olhava o luxo com desdém, com tédio
As isoladas arvores, e ao;ora
Aprazem nos jardins da natureza.
Por capricho feliz, sisudo acaso,
Estas desproporções tem attractivos,
Difiram na distancia, aspecto, e forma,
Sempre a grandeza, ao menos a elegância,
Distingua a planta, ou ella, envergonhada.
Por entre a multidão desappareça.
Mas se um carvalho, ou plátano longevo,
Patriarcha dos bosques, ergue a fronte
Sombria, venerável, toda a tribu
Disposta emtorno, com respeito o esquive,
Lhe foça corte. Agradará d'est'arte
A arvore, que isolada o campo adorna.
Com mais escolha ainda, e com mais gosto
Os grupos te darão prestantes quadros.
De arvores mais, ou menos vigorosas.
Em numero qualquer, pequeno, ou grande
Fórraa-lhe a massa espessa, ou leves tufos:
Este povo de irmãos apraz ao longe,
Podes por elles variar desenhos;
Com elles se aproximam, se removem.
o 8 OBRAS DE BOCAGE
Se afastam, se reúnem perspectivas^
E com elles também sobre as paizagens
Se dobra, ou se desdobra c véo das sombras.
Formáram-se teus grupos: é já tempo
Que a um tanto de arte os bosques se habituem.
Bosques augustos I Bosques venerandos !
Eu vos acato, eu vos saúdo: as vossas
Poéticas abobadas não ouvem
Já do bardo feroz o horrivel canto;
Um delírio mais doce em vós habii-i.
Vossas grutas ainda em verso iustruem.
Ermos antigos, miigestosas sombras,
Vós inspiraes os meus: ah! dae que eu possa
Com respeitosa mão tocar- vos hoje,
E que, sem profanar, aformosee:
De vós aprender quero a adereçar-vos.
Arvoredos expôr-se aos olhos podem
Em milhares de aspectos. D'este lado
Pressos troncos as sombras lhe carreguem:
Alegre-se acolá de luz escassa
A redolente estancia, travem n'ella
Combate deleitoso a noule, e o dia:
Mais além, signalando o chão co'as folhas,
Sobre os claros dispersas tremam plantas;
Porque, umas para as outras fluctiiandò,
E sem ousar tocar-se, ao mesmo tempo
Pareça que se fogem, que se buscam.
O bosque assim por ti perde a aspereza ;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 39
Mas seu grave caracter não desmanches;
Com miúdos objectos, mui frequentes
Não se interrompa, não se altere o todo.
Um seja simples, gr^inde, e toda a pompa
Com alguma rudez a arte lhe deixe.
Apresenta esses troncos destroçados;
Quero ver, e seguir negras torrentes,
Pelas quebradas concavas fervendo.
D'agua, do tempo, do ar mantêm vestígios;
Venera do rochedo os ameaços,
Deixa-o pender, e em fim tudo respire
Sivestre, vigorosa formosura
Sobre o terreno masfestoso. Ao^rada
Assim de um bosque a rústica nobreza.
Com menor altivez, com mais brandura
Um bosquesinho offrece amenos quadros:
Quer bellos^ sitios, e contornos bellos;
Foge, torna, em rodeios vae perder-se;
Entre flores estende aguas serenas.
E cuido que inda n^elle, embriagado
De um extasis suave, em ócio puro,
As lições do prazer dieta Epicuro.
Mas não basta que em selva, ou bosquesinho
Haja riqueza ou elegante, ou bruta,
Cumpro ornar com primor seus exteriores.
Não vás, symetrisando-lhe os limites.
Cora recendentes muros occultar-nos
Dos bosques as innumeras familias.
40 OBRAS DE BOCAGE
Ver quero, penetrando o centro agreste,
Crescer a um tempo as arvores diversas,
De vigor juvenil umas brilhantes,
Outras todas decrépitas, nodosas,
Estas rasteiras, languidas, e aquellas,
Tyrannos das florestas, esgotando
Da substancia o tributo a seus vassallos:
Scena em que a idéa vê com gosto imagens
Das edades, da vida, e dos costumes.
A par d'estes effeitos, que valia
Terão verdes reparos, cuja íorma
Entristece, importuna, afflige os olhos,
Forma, que é sempre egual, nunca inesperada?
Oh delicias da vista! Oh variedade!
Acode, vem romper nivel insulso.
Triste esquadro, e cordel fastidioso.
De matiz acertado, interessante
As estremas dos bosques se guarneçam;
E a uniformidade ingrata aos olhos;
Da que vêem nos jardins elles se enfadam,
Á sua extremidade elles se avançam,
Folgam de discorrer a inopinada
Forma, que lustra nos limites vários.
Em giros mil brincando a vista errante.
Ou com elles se entranha, ou sáe com elles,.
E nos diversos, flo recentes quadros
De distancia em distancia alegre pousa.
O bosque se engrandece, e a cada passo
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 41
Seus rodeios varia, e seus encantos.
A forma, pois, se lhe desenhe, e logo
As arvores se escolham, a que o gosto
Prescreve o sacrifício; mas sê tardo,
Condemna devagar, condemna a custo:
Antes de executa r-se a lei severa,
Ah ! vê que manso, e manso as cria o tempo^
E altêa manso, e manso; que impossível
É a todo o ouro teu remir-lhe as sombras,
E que já lhe deveste um fresco amparo.
Duro possuidor, com tudo, ás vezes,
E sem necessidade, e sem remorso,
Aos golpes do machado as abandona.
Eis sobre o seio da indignada terra
As miseras baquêam, seccam, morrem;
Para sempre d'ali com magoa voam
Doces meditações, cautos amores.
Ah ! Por estes sagrados arvoredos,
Que aos bailes pastoris prestavam sombra,
Por estas densas comas, que abrigaram
Vossos avós, tende attenção, profanos,
Cos troncos rehgiosos. Já que os evos
N'elles a robustez inda consentem.
Não lhe aíFronteis a ancianidade augusta.
Tem de raiar, tem de raiar em breve
O dia em qu3 estes bosques desmaiados,
Para ceder o império a tenras plantas,
Da excelsa fronte, succumbindo ao ferro,
42 OBRAS DE BOCAGE
Verão no pó murchar-se a honra antiga.
Oh Versaiiles! Oh dor! Oh vós florestas,
De celeste apparencia! Maravilhas,
Que fez um grande rei, Lenotre, e os annos!
Eis soa o corte; vosso termo é vindo.
Arvores, cuja audácia ás nuvens ia.
Feridas na raiz, no ar balançando
Suas copas louçans, que abala o ferro.
Já dão ruidosa queda, e já seus troncos
Vão alastrando ao longe esses passeios,
Que de frescas abobadas cubriam
Oom seus pomposos, estendidos braços.
O estrago se atreveu aos arvoredos ^
Cuja gloriosa fronte a fronte heróica
De Luís, o magnânimo, assombrava !
Destruíram-se bosques, onde as aries,
Mais suaves conquistas celebrando.
Multiplicavam festivaes prazeres !
Amor, que é feito do encantado abiigo,
Que ouviu de Montespan gemer o orgulho?
Que é do retiro, onde tão meiga, e bella.
Ao de ouvil-a attraído, absorto amante
La Valiere exprimiu segredos ternos.
Rendida suspirou, sem crer-se amadíi?
Tudo cáe, tudo acaba; ao som terrivel
D'esta destruição, não vês, não sentes
Alígero tropel fugir medroso ?
Este volátil povo, alegre, ufano
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 43
De habitação tão bella^ e que entoava
Dos monarchas no asylo os seus amores,
Com dôr se ausenta dos saudosos lares.
DeuseSj de que estes pórticos honrara
Estremado cinzel, deuses, vestidos
De verdes, molles véos, ainda ha pouco,
Pela perdida sombra estão carpindo,
Mostram-se da nudez envergonhados;
E, receando os olhos, Vénus mef.ma,
Vénus se assombra de se ver despida.
Appressae-vos, crescei, mimosas plantas,
Tornae a povoar a estancia cara!
Arvores semimortas, consolae-vos!
Vós, testemunhas da fraqueza humana,
De Corneille, e Turenna os fados viste >,
Vistes morrer o heróe, morrer o vate:
Ao menos, já contaes cem primaveras,
E os nossos dias de mr.is luz, mais gloria
Ah! voam logo, e para sempre voam.
Feliz d'aquelle, que possue um bosque
Formado pelo tempo ! Mas ditoso
Também quem para si pôde creal-o!
Estas, que vão medrando, arvores bellas,
Eu fui o que as plantou (diz como Cyro) :
Tu, pois, se inda dispor das tuas podes,
Teme que antes de tempo ellas rebentem.
Assim como o pintor que, demorando
Indiscreto pincel na mão sabida,
44 OBRAS DE BOCAGE
Longamente co'a idéa esboça os quadros:
Tu dos desenhos teus medita a ordem;
O valor, a efficacia dos aspectos,
E dos sitios conhece; e o attractivo
Dos bosques nas colinas pendurados,
E a gala dos que em plano a sombra estendem.
Como as amigas formas, como as cores
Amigas, te é proveito conheceres
As adversas também. O freixo altivo,
Arremessando ao ar comprida rama,
O inclinado salgueiro aborrecera:
Do álamo oppõem-se o verde ao do carvalho;
Mas taes ódios temperam-se com arte:
Elege por feliz intercessora
Uma arvore mean, que os concilie.
D'esta sorte Vernet, com maga tinta
De duas cores a discórdia extingue.
Conhece, pois, o emprego, a serventia
Das diíFVentes verduras, ou brilhantes.
Ou sem lustre, mais mortas, ou mais vivas.
Com taes alterações, com taes matizes
No seio das paizagens se variam
Formosamente as sombras, se produzem
Effeitos ora doces, e ora fortes.
Grandes contrastes, ou gentis concordias.
Observa-as maiormente' quando o outono
Perto de vêl-a murcha enfeita a c'roa:
Que pompa ! Que esplendor ! Que variedade !
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 45
A cor alaranjada, a cor purpúrea,
A opálica viveza, a do encarnado
Ostentação de seus thesouros fazem.
Ai ! Todo este esplendor lhe agoura a queda !
Eis o fado commum ! Depressa os Euros
Hão de espalhar pelos profundos valles
Os despojos selváticos: a folha
Caindo, já distráe de quando em quando
O solitário pensador; mas estas
Mesmas ruínas para mim são gratas;
Ali, se fundas queixas nutro n'alma.
Ou assanhar-me a chaga vem memorias,
Gosto de misturar, de ver conforme
O luto meu da Natureza ao luto.
Dos seccos bosques, dos raminhos murchos
Me apraz pizar fragmentos, só, e errante.
Dias de embriaguez, e de loucura.
Os mentirosos dias já voaram;
Terna melancolia, a ti me entrego.
Vem, mas não de atras nuvens carregada,
Onde se envolve a tenebrosa angustia :
Por entre véo ligeiro a vista branda
Dirige á terra, aos céos, como no outono
Os vapores traspassa um tibio dia:
Traze, oh dos vates, dos amantes sócia,
Sereno o rosto, os olhos pensativos,
E a deleitosas lagrimas propensos.
Mas em quanto minha alma se apascenta
46 OBRAS DE BOCAGE
N 'es tas idéas, mil floridas castas
De fragrantes, de trémulos arbustos
Chamando estão por mim. Vem, lindo povo,
Tu entre a arvore, e a flor tu és o meio.
Es como a transição. Teus delicados
Caracteres ao;ora a scena enfeitem.
Oli! se não me instigasse o largo assumpto,
Se ao termo, que me espera, eu não corresse,
Que jubilo teria em dirigir-vos!
Eu vos reproduzira, eu vos mostrara
Em cem fecundas formas, eu faria
A' sombra vossa murmurar correntes,
Vossa rama em abobadas travara ;
Envoltos n'estes vividos ulmeiros.
Iriam serpeando os vossos braços
Pelos rigidos troncos, e, serieis
O sjmbolo da graça, unida á força.
Fundira, aproveitara as vossas cores : ,
A azul ferrete, a encarnada, a branca;
Dos olhos as delicias alternando.
Vossos pennaclios, cálices, e flores,
Formar viriam meus brilhantes quadros,
E o mesmo Vaubuysum m'os invejara.
Tu, que estes férteis don^ dos céos houveste,
Com arte economisa arbórea pompa:
Fa^'ores seus co'as estações reparte.
Co'as cores, e os perfumes cada arbusto
Por seu turno appareça, e nuncía murche
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 47
Na fronte do anno a flórida capella!
Assim com elle o teu jardim varia :
Cada inez tem seu bosque, e cada bosque
A sua primavera ... ah ! cedo extincta !
Tua industria, porém, da sua instável
Curta riqueza consolar-nos pode.
Com prudência estas arvores plantadas.
Quando flor não tiverem, graça tenham.
Tal, dilatando o império de seus olhos,
Já na declinação dos annos bellos,
A destra Ulina me seduz, me enlêa.
Da inclemência dos ares a despeito
O céo não desherdou de todo o inverno;
Então dos ventos provocando a raiva,
Não poucos vegetaes conservam folhas.
Olha o teixo, olha a hera, olha o pinheiro,
O pungente azevinho, o sacro louro,
De verdura immortal, que a terra vingam,
Vingam dos Aquilões a Natureza.
De purpura, e coral ve fructos, bagas;
Quí3 esmalte aos ramos dão! Seu atavio
Sobre os despidos campos lisonjear
Por menos esperado é mais formoso.
Os teus jardins de inverno assim povoa:
Lá d(; u.u beniorno dia a luz te afao;a,
Lá, quando em outra parte é nua a terra,
O passarinho adeja, a se diverte
Inda debaixo de viçosas folhas:
48 OBRAS DB BOCAGE
O sitio O illude, não conhece o tempo,
Vêl-a imagina, e canta a primavera:
Assim, sem ser facticia a estancia agrada.
Mas os jardins dos reis com que artificio,
Com que apparato esplendido triumpham
Dos sanhudos invernos ! Sempre vei'des,
(Oh Mouceaux !) teus jardins são d'isto exemplo.
Troncos fingidos de arvores ausentes,
Gratas de encanto, magicas latadas.
Tudo ali rouba os olhos. Afrontando
A rispida estação caliginosa,
A nascer entre o gelo aprende a rosa.
Milagres ali domam tempos, climas,
Das fadas o poder ali se anfolha.
Mas não são todavia estes encantos
Dos jardins o melhor, mais doce ornato.
Cedo o costume te desorna os bosques.
Quando os extranhos tuas sombras gostam
Jaz muitas vezes descontente o dono.
Meios não ha, cuja virtude occulta
Sempre a teus bosques a affeição te avive?
Oh! Quanto dos lapões me apraz o estylo!
Oh ! Como enganam seus invernos duros !
O til soberbo, os olmos reforçados
Temem d'aquelles campos o regelo:
De alguns tristes pinheiros, negros, bravos
Indigente, escassíssima verdura
Apenas a geada ali penetra.
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 49
Mas o mínimo arbusto, que poupassem
Aquelles agros climas, ante os olhos
Dos habitantes seus tem mil feitiços.
E consagrado a filho, a pae, a amigo,
A hospede, que parte, e deixa prantos.
Deixa saudade eterna, e de algum d^elles
O 'nome, sempre caro, á planta fica.
Tu, de quem puro céo elarêa a pátria,
Imitar podes tão feliz industria:
Ella animará tudo, arvores, bosques
Não serão mudos, não serão desertos:
Hão de immensas memorias habital-os,
Gostos distantes adornar-lhe as sombras.
E quem prohibe, se o favor dos numes
Com doce prole teus desejos farta.
Quem veda consagrares esse dia
Com troncos de nascente bosquesinho?. . .
Mas em quanto estes versos, Musa, entoas,
Que popular clamor aos ares sobe !
Nasceu, nasceu o herdeiro aos reis da Gallia!
Nos muros, nas phalanges, sobre as ondas,
Nosso terrível, triumphante raio
Troa, corre, e aos dous mundos o annuncia.
Flores são pouco para ornar-lhe o berço, .
Os louros lhe trazei, trazei-lhe as palmas;
Raiem dias de gloria ante o primeiro
Volver dos olhos seus; nascido apenas.
Da victoria ouça o hymno; eis o festejo
50 OBRAS DE BOCAGE
Que ao puro sangue dos Bourbons se deve.
E tu por quem tal dom dos céos^^nos veiu^
Tuj nó mimoso^ tu prisão querida
Do germanOj e francez, que irmão^ e esposo
Unes como odorífera grinalda
Que enlaça dous ulmeiros m^^gestosos;
Consorte, mãe, e irmã, teus fados ligam
O penhor de hymeneu da morte ao luto,
Em teus olnos misturam pranto, e riso.
Dando- te o filho quando a mãe te roubam:
ííos transpoiies, que influe este áureo dia,
Ousem almas ferventes, creadoras,
Animar os pincéis, a pedra, a Ijra;
Dos campos eu cantor, e humilde amigo,
Irei onde os Favonios, onde Flora
Sós te compõem a deleitavel corte.
Irei a Trianon: ali risonho
Em único tributo á prole tua
Arvores sagrarei da sua edade,
TJm bosquesinho, que lhe deva o nome.
Verão teus olhos avultar o amável,
O simples monumento, aquelles troncos,
Dos bosques teus o mais suave ornato;
E com ellas crescendo, recrear-se
As sombras fraternaes irá teu filho.
Gozas, emfim, e o coração, e os olhos
Feliz possuidor, já se embellezam
Nos arvoredos teus. Também desejas
POEMAS DIDACTICOvS TRADUZIDOS 51
Unir ao gosto a gloria^ obter a palma
ÍT'esta arte singular com que os decoras?
De creador merece, alcança o nome.
Olha como em segredo a Natureza
Sempre está fermentando, e como sempre
A precisão de produzir a ancea!
Não lhe acodes? Quem sabe que thesouros
Inda em seus cofres para a industria guarda?
Como esta a seu arbitrio as ondas guia,
Pode guiar o sueco: outros caminhos,
Outros canaes a seu liquor franquêa. ^
Por novos hjmineus fecunda os campos.
Das seibas virgens exp^^rimenta o mixto.
De seus dons mútuos favorece a troca.
Quantas arvores, fructos, plantas, flores
Tem mudado o perfume, a cor, e o gosto,
Tudo por arte ! O pecegueiro a estas
Metamorphoses sua gloria xleve.
Assim com triple c'roa a rosa brilha.
Do seu pennacho assim blasona o cravo.
Ousa! Deus fez o mundo, o homem o adorna»
Se a tão bellas conquistas não te afoutas,
Cubertas de outro céo tens mil riquezas.
Usurpa esses thesouros. Tal, mais brando
Vencedor, e mais justo nos seus roubos,
O romano soberbo á Ausonia trouxe
Syrias ameixa.-^ o damasco Arménio,
Da Gallia a pêra, e fructos mil diversos:
52 OBRAS DE BOCAGE
Assim devera subjugar-se o mundo.
Lá quando d' Ásia triumjDhou LucuUo
O bronze, o ouro, o mármore assombravam
De Roma os olhos, e entretanto, o sábio
Prezou ver-llie nas mãos a ceréijeira
Conduzida em triumpho ao Capitólio.
E esses mesmos romanos já não viram
Nossos avós, em batalhões armados,
Debaixo de outros céos mais bemfazejos
As vinhas ir buscar, votando a Bromio
Tintos pendões em néctar dos vencidos?
Co fructo das belligeras emprezas
Escandccida a turba, os preciosos
Trophéos, cantando, aos lares seus trazia.
As cabeças o pâmpano c'roava,
O pâmpano em festões cingia as lanças.
D 'esta arte o numen, vencedor do Ganges,
Tornou triumphante :. serranias, valles
Da vindima o fervor solemnisavam,
E por onde corria o mago néctar
Folgavam brincos, e o prazer, e a audácia.
Netos dos Gallos, os avós se imitem;
Roubemos, disputemos taes despojos.
N'esses jardins, altivos de regel-os
A mão, que a Themis empunhara o sceptro,
Malesherbe, o facundo, o digno ramo
Dos Lamoignons, com troncos orgulhosos
Honra, abastece o chão: trazidas plantas
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 53
Dos fins da terra, das eqiioreas margens.
De alcantilados carnes de agras serras,
Das portas do nascente, e das do occaso;
Plantas, que açouta o sul, que açouta o norte,
Plantas, filhas do ardor, filhas do gelo,
Mc fazem, n'um logíir, correr mil climas.
Vago, entre aqueiia multidão florente,
Ásia, America, Europa, Africa, o mundo.
Regosijadas de se ver no meio
Das velhas plantas nossas, amam todas
Nosso am.oravel céo, e extranhas gentes
Reconhecendo as arvores da pátria,
Duvidam já da sua ausência, ao vel-as.
Ou de terna saudade os golpes sentem.
Moço Potaveri, tu d'isto és prova.
Dos campos d'0-taiti, d'aquelles campos,
Tão caros n'outro tempo á sua infância.
Onde é sem pejo amor, amor sem crime.
Este ingénuo, selvático mancebo,
Trazido a nossos muros, pranteava
Sua antiga, innocente liberdade,
Ilha risonha, e júbilos tão fáceis.
Do esplendor das cidades sim pasmado,
Mas farto d'ellas, vezes mil clamava:
((Dae-me as florestas minhas!» — Eis que um dia
N'esses jardins, onde Luiz congrega.
Dispõem n'um sitio só, e a custo immenso,
Os povos vegetaes de tantos climas,
54 OBRAS DE BOCAGE
Como espantados de crescerem juntos,
,De logar, e estação mudando a um tempo,
E cultos a Jussieu rendendo todos;
N'esses jardins o indiano vagueava.
Olhando as varias, ordenadas tribus.
Quando entre estas colónias vicejantes
Lhe fere os olhos arvore, que o triste
Desde os primeiros annos seus conhece.
Súbito, desatando agudos gritos,
A ella corre, abraça-se com ella,
Beijos a cobrem, lagrimas a iunundran.
Objectos mil de inexplicável gosto,
Os céos, os campos, que ditoso o vi iam,
(Céos tão formosos, tão formosos campos!)
Os rios, que fendeu co'as mãos nervosas,
Mattas por onde os brutos habitantes
Tão destro asseteava, as bananeiras
De sombras, e de fructos abastadas,
O pátrio asjlõ, os bosques circumstantes,
Que aos cânticos de amor lhe respondiam,
Julgou ver, e a sua alma enternecida
Um momento sequer gosou da pátria.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 55
CA.lSrTO TjEIRCEII^O
Eu cantava os jardins, vergéis, e bosques;
Eis solta vezes três Bellona o grito,
Eis dos paternos lares arrancado
Voa o francez guerreiro a extranhos mares,
E de Vénus Mavorte as selvas deixa.
Vós, á paz innocente aíFeiçoados,
Deuses dos campos, não temeis a guerra;
Quer o grande Luiz não destruir-vos,
Mas ao longe estender o império vosso;
Quer que logre tranquillo o que semêa
Um povo amigo longamente oppresso.
E vós, mancebos, que outro mundo admira,
Se por cima de túmidas voragens
A York o vosso ardor seguir não posso,
Para quando volteis aperfeiçoa
Jardins a musa minha. Ordeno as flores
56 OBRAS DE BOCAGE
Que para as frontes vossas vão crescendo.
Aprompto para vós de myrío as c'roas,
O murmúrio das aguas vos preparo,
E gramíneo tapiz, e asylo umbroso.
Sentados mollemente, ao Lethes dando
Fadigas marciaes, direis a gloria
Das nossas forças bellicas, e emtanto
Entre esperanças, e temor suspensos,
Confundirão, tremendo, os filhos vossos
Co'a presença do pVigo a imagem d'elle.
Amador dos jardins, eia, acabemos
De pulir estes plácidos abrigos.
Infecundo areal, e secco, e triste,
N'elles o dia reflectindo outr'hora
Importunava os pés, cansava os olhos.
Tudo era ardente, e nu; mas Inglaterra
Nos ensinou com que arte o chão se veste:
Na relva cuida, pois, que os campos brotam.,
O regador na dextra, ou n'ella a fouce,
Lhes mate as sedes, lhes tosquie as tranças,
As leivas o cylindro pize, aplane;
Sempre, escolhidas bem, bem apertadas,
Bem libertas da herva usurpadora.
Qual macia lanugem finas sejam;
Repare-se-lhe ás vezes a velhice;
Mas, com tudo, aos legares não remotos
Se reserve este luxo de verdura:
Do resto se componham ricos pastos,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 57
E somente os cultivem teus rebanhos.
Terás d'est'arte numerosas crias,
Os campos adubío, os olhos quadros.
Não te envergonhe pois (e grite embora
O orgulho) não defendas que em teus parques
Entre a vacca fecunda, o boi tardio:
Nem deshonram teus parques, nem meus versos.
Muito pouco é, porém, crear somente
Esses tapizes vastos, e viçosos:
Cumpre que saibas escolher-lhe as formas.
Longe a monotonia, ah! longe d'elles:
Em quadrada feição, feição"redonda
Tristemente opprimidos os não quero.
Um ar de liberdade é seu primeiro,
Gracioso attractivo: ora nos bosques,
Cuja sombra os abraça, elles se escondam
Com visos de mysterio, ora esses mesmos
Bosques venham buscal-os. Esta a forma
Da campestre alcatifa, pura, e simples.
Amas o bello? A Natureza imita.
Que esmalta os prados de opulentas cores:
Dá-te pressa; os jardins te pedem flores;
Flores mimosas, cândidas boninas.
Por vós é m.ais gentil a Natureza.
Nos quadros por modelo a arte vos toma;
De terno coração sois dons singelos,
Que arrisca amor, e que a amisade oífrece.
Em dourada madeixa, em niveo seio
58 OBRAS DE BOCAGE
Requinta-&e comvosco a formosura;
Que a vicfcoria adorneis perrnitte o louro.
Do virgíneo pudor também sois premio.
O mesmo, p mesmo altar, onde repousa
A grandeza de um Deus, na primavera
Com vossas oblações se aromatisa,
E a religião, sorrindo-se, as acolhe;
Mas tendes nos jardins o domicilio.
Do sol, da aurora vinde, pois, oh filhas.
Decorar o theatro a nossos campos.
Com tudo, não cuideis que, insano amante,
Em vez de vos travar, em vez de unir-vos
Em brandos, amorosos ramilhetes.
De canteiro em canteiro, attento espere
De cada nova flor o nasci snen to,
E lhe espie o matiz, lhe observe as cores.
Sei que em Harlem ha curiosos tristes.
Que em seus jardins co'as flores vão fechar-se;
Que, por ver um rainunculo, despertam
Antes d'alva, e que adoram, qual prodígio.
Anémona exquisita, ou que, invejando
De um rival o segredo, a pezo de ouro
Compram de um cravo as manchas. Deixa aos loucos
Seu maníaco amor: possuam, gosem
Embora quaes ciosos, quaes avaros.
Sem de arte caprichosa as leis seguirdes,
Vós, dos olhos prazer, do campo adorno,
Flores, pintae a superfície á terra;
POEMAS DIDÁCTICOS TUADUZIDOS 59
Mas a vossa belleza, o mimo vosso
Entre curtos limites não se estreitem í
Em toda a parte esses tliesom'os brilhem:
Ora aos tapizes a verdura esmaltem,
Ora de um lado, e d'outro enfeitem ruas;
Em mesclados festões cercae ramadas,
Aguas orlae em lúcidos meandros;
Ou comvosco estes muros se alcatifem,
Ou, querendo escolher vossos perfumes,
Grire, indecisa, no açafate a abelha.
Seguindo- vos Rapin nas quadras todas,
Nenhum matiz, ou nome vosso esqueça;
A tão frias, cançadas miudezas
Oppõem-se o deus do gosto. Mas quem pode
Negar o obsequio, a preferencia á rosa,
A rosa de que Vénus bosques tece,
C'roas a primavera, amor seus mimos?
A flor de Anacreonte, á flor, que Horácio
Nos dias festivaes engrinaldava?
Mas tão risonho objecto em demasia
Apraz aos meus pincéis, cujo destino
E quadros desenhar mais vigorosos.
Oh vós, de que eu trilhava o chão florido,
Bosquesinhos, adeus, adeus, oh prados!
Attrae minha attenção o informe aspecto
Dos rochedos sem regra desparzidos.
Foi sua alta rudeza em outros tempos
Banida dos jardins, onde reinava
60 OBRzVS DE BOCAGE
A inerte, semsabor monotonia.
Mas depois que o pintor, leis dando n'elles,
Contra acanhado artifice restaura
Totalmente o seu jns, em fim se atrevem
A apossar-se os jardins d 'estes effeitos.
Por mais graças, porém, que venha d'ellas,
Se estas rigidas massas magestosas
Não oflfrece o terreno, então debalde,
Presumpçosa rival da Natureza,
A arte em falsas imagens se apurara.
Do cume dos rochedos verdadeiros,
Da mãe universal morada inculta,
Ella escarnece de aíFectadas penhas,
Misero aborto de fadiga inútil.
Aos campos de Midléton, ás montanhas
De Dovedale, te acompanho os passos,
A ellas, Whateli, comtigo subo.
Que aprazivel terror me assenhoreai
Todos esses rochedos, variando
Os cimos colossaes, arremessados
Aqui aos céos, ali para os abysmos,
Um por outro amparados, um sobre outro,
E no ar ousadamente alguns suspensos;
Este em arcada, em torre afeiçoado,
Aqnelle pelo pórtico sombrio
Deixando perceber ao longe o polo;
Além mananciaes, aqui regatos
De limpida corrente, alegre, e mansa.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 61
Tudo, ah ! tudo no espirito revolve
Os mágicos retiros, que os poetas
Cantaram, fabulando. Oh quam ditoso
Sorás se teus jardins afformosêas
Com estas grandes, alterosas vistas!
Mas para que a teu quadro bem se ajustem.
Contra a tosca energia dos rochedos
Cumpre de encantador ter a efficacia.
O encantador é a arte, o encanto os bosques;
Ella falia, os rochedos eis se assombram,
E como que os enfuna a pompa extranha.
Porém, sua aridez austera ornando,
Sagaz diversifica os teus plantios.
Ao cubiçoso espectador off 'rece
Das formas, e das cores os contrastes;
Saiam por entre as arvores a espaços
Os mais bellos rochedos: interrompe
Summa egualdade, esconde, ou patentêa !
Variem-se co'as arvores as rochas.
As arvores co'as rochas se variem.
Não tens também, para formar-lhe a gala
Não tens do baixo arbusto a folha errante?
Gosto de vêr os dóceis novedios
Pelos áridos flancos dos penedos
Em tenrinhos festões ir serpeando;
Gosto de ver-lhes a escalvada fronte
Toucar-se de verdura, e ganhar sombras.
Isto inda é pouco. Um valle entre estas penhas,
62 OBKAS DE BOCAGE
Um valle precioso, um cliáo mais grato
Ri-se a teu§ olhos? Aproveita-Oj mostra,
Expõe esta riqueza inesperada.
É feliz, singular este contraste,
E a esterilidade, ella, que um breve
Espaço appetecivel de terreno
Cede á fertilidade: assim subjugas
O aspérrimo caracter dos rochedos.
Para agradar-te é forca ornal-os sempre?
Não; se a arte deve o horror sempre adoçar-lhes,
Consente ás vezes que o pavor inspirem,
Favoréce-os até.SNa extremidade
De um precipício uma cabana eleva,
E com ella augmentado elle parece:
Ponte audaz de um rochedo a outro lança;
Eu tremo ao vel-os, e a medonho abysmo
Imminente me põe a phantasia;
Lembram-me esses boatos populares,
Os casos de perdidos passageiros,
D'amantes despenhados: contos velhos
Que prendendo attenção maravilhada,
A crédula aldeã serões encurtam;
E o terror do logar ajuda a crença.
Porém com sobriedade usar se deve
D'estes grandes eíFeitos. A tão duras,
Tão agras coram oções, abalos doces,
Molle socego o coração prefere:
Eu exp'rimento om mim que das montanhas
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 63
Me é preciso baixar aos ledos valles.
Tenho-os de flores, de arvores coberto :
Tempo é que«á sombra d^ellas manem aguas.
Bem : já que os cimos vossos, nus outr'hora,
Pelas minhas lições estão vestidos
Tão ricamente, oli rochas, franqneae-me
As subterrâneas, intimas origens:
Rios, arroios, vós — vós, lagos, fontes,
Vinde, espraiae frescura, e vida em tudo.
Ah ! Que prazer substituir-vos pôde ?
Vosso contente, luzidio aspecto
Se de perto entretém, convida ao longe.
Sois o primeiro objecto que se busca,
O ultimo que se deixa. As aguas vossas
Fertilizando a terra, o céo duplicam.
Os ouvidos encanta, encanta os olhos
Vosso crystai, vosso murmúrio. Ah ! vinde.
Dado seja a meus versos, que vos seguem,
Correr do coração mais tentadores.
Mais abundantes que o principio vosso;
Mais leves do que os Zephyros, que dobram
Vossos canaviaes; e brandos, puros
Como esse rnmorsinho, essa corrente.
Tu, senhor d'estas agu is bemfeitoras,
Venera-lhe o pendor, té o capricho;
Nos livres giros seus vê como abraçam
Facilmente das margens os contornos.
E ousas, encarcerando-lhe a brandura,
64 OBRAS DE BOCAGE
Os tortuosos passos constranger-lhe !
De que lhe serve o mármore em que é presa?
Não vês co'a longa trança entregue aos ventos,
Sem arte alguma, sem postiço adorno,
Campestre, prazenteira, ingénua moça
Andar, correr, saltar? A graça d'ella
Está no solto, natural meneio.
Contempla n'um serralho a formosura :
Ella deslumbra em vão, debalde ostenta
A pompa oriental, brilho estudado :
Um triste não sei que, na face impresso,
Lhe argúe a subjeição, desbota as graças.
A agua mantenha a liberdade que ama.
Ou muda-lhe em belleza o captiveiro.
Assim, contra Morei, cuja eloquente,
E ponderosa voz pleitear soube
Os direitos da simples Natureza,
Gosto das aguas, que em canaes oppressas,
Com rápida violência partem, saltam.
Ao ver esses crystaes, que arte atrevida
Da terra faz brotar, e aos ares lança,
O homem diz : c( Eu criei estes portentos ! )>
E em taes prestigios a arte sua admira.
Nos custosos jardins dos reis, dos grandes
Reluzam, pois; mas, outra vez o digo,
Longe os luxos plebeus, o vergonhoso.
Mesquinho jacto de agua, que da terra
Mal ousando arreda r-se, apenas sobe,
POEJIiiS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 65
E em mínima distancia morre logo.
Tudo. a tanta riqueza corresponda;
Tudo grangêe á roda um ar de encanto.
Os olhos persuade, e o pensamento
De que vara eíRcaz em mão de Fada
Formara para a dona este retiro»
Tal eu vi de Saint-Cloud o amável bosque.
Pode a vista medir do jacto a altura ?
Comox{iie applaudem tanques, grutas, plantas
As aguas, que sobre aguas caem, fervem;
O ar é mais fresco ali, mais verde a relva,
Das aves o gorgeio ali se aviva
Ao som das vitreas ondas, que baquêam;
E, as rociadas testas inclinando,
Como que ao doce orvalho os bosques se abrem.
Não menos bella, mais campestre, e simples
A cascata ornará logar mais tosco.
De longe se ouve, admira-se de perto
Lympha sempre a cair, sempre suspensa;
E vária, e magestosa, anima a um tempo
Os rochedos, a terra, aguas, e bosques.
Emprega, pois, esta arte; porém longe
^ Esses tristes degráos, onde, caindo
Com movimento egual, medida certa,
As ondí^s, bem que vão precepitadas.
Até no seu furor seus passos contam.
Só tem jus de aprazer a variedade.
Gosa mais de um caracter a cascata.
5
66 OBRAS DE BOCAGE
Ora em tumiilto as aguas despenhadas
No tortuoso leito, correm, caem,
Saltam, recaem, e escumam, e esbraveam,
Ora de espaço desdobrando as ondas,
Puro, calado, remansinho ameno
Em azul véo se esparge. Os olhos folgam
De ver estes gentis amphitheatros,
De ver sobre as cerúleas espadanas
Reflectir, scintilar o ouro diurno;
Também lhe apraz a escuridão das penhas,
E a verdura das canas, e a espumosa
Argêntea cor das aguas fugidias.
Consulta, pois, artifice, os effeitos
Que intentas produzir. As lymphas, promptas
Sempre a deixar guiar-se, hão de off''recer-te,
Quer mais impetuosas, quer. mais lentas,
Quadros benignos, ou soberbos quadros,
Graves, ou deleitosos: quadros, n'alma
Sempre efficazes. Que mortal não prova
A profunda impressão, que vem das ondas?
Sempre, ou viva corrente arrebatada
Sobre seixos murmure, e ferva, e salte,
Ou ribeira indolente sobre o lodo
Em paz alargue as aguas preguiçosas.
Ou torrente feroz entre penedos
Quebre com rijo estrondo, alegre, triste,
A sua correnteza excita, applaca,
Ameaça, ou amima. Escuto á fama
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 67
Que de Vénus o cinto milagroso
Amores, e desejos incluía,
E o prazer, e a esperança, percursora
De ineíFaveis delicias. O teu cinto
E, divina Cybele, é agua: n'ella,
Não menos poderosa, estão complexos
Terror, perturbação, tristeza, e riso.
Quem melhor o sentiu do que a minha alma?
Quem o soube melhor? Mil, e mil vezes
Quando azedos, escuros pezadumes,
Inda mais pela noute enegrecidos,
Vinham martyrisar-me o pensamento,
Se ouvia os passos de visinho arroio.
Demandava estes sons consoladores.
Das aguas a frescura, a voz das aguas
Cuidados, afflições me adormeciam,
E a paz do coração resuscitava:
Tanto d'agua o murmúrio n'alma influe!
Em paga de tão gratos benefícios,
Soffre, oh ribeiro, que a arte, sem comtudo
Muito se assoberbar, te aformosêe.
Se é que aformosear-te acaso pode.
Não quadra a vasto plano um rio escasso:
Seu leito incerta linha ali traçara.
A timida corrente á luz se furta,
E quer banhar um bosquesinho escuro.
Sua doce carreira adorna as selvas,
fíó ellas o namoram. Seus caprichos
68 OBRAS DE BOCAGE
Lc4 com todo o vagar seguir-se podem,
Seus giros, seu pendor, seu lindo estorvo,
A cholcra, o fervor das bellas ondas,
Tornadas pelo obstáculo mais bellas.
Ora n'um álveo concavo, e sombrio
Co' a ramada que o cobre, ella recata
O cabedal agreste, ora presenta
Em patente canal o espelho á vista:
Sem vel-o o escuto, ou sem ouvil-o o vejo.
Ali meigos cr3^staes abraçam ilhas,
Além se torna em dous o leve arroio,
Em-dous, qiie nas carreiras competindo,
Apostam rapidez, e claridade;
E ambos depois no leito, que os ajunii
De andarem par a par murmuram ledos.
Errando sempre assim, de volta em volta.
Mudo, loquaz, pacifico, agitado,
Em mil vários aspectos se renova.
lias copiosa ribeira ás frescas margens
Me está chamando. Em campo mais aberto,
Nobre, e pomposo quadro, as ondas suas
Ondas menos modestas, vão rolando,
E c'o fulgor diurno ao longe brilham.
Deixa ao regato seu prazer lascivo,
A sua agitação, e os seus rodeios:
B segue caudalosa a curvidade,
O circuito dos valles sinuosos.
Se dos bosques o arroio adorno colhe.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 69
Ama o rio também divorsíis pl;mtas.
Quer que lhe ornem, lhe assombrem a corrente
Os descorados chôpos, e os salgueiros
Meios-verdes. Que origem tão fecunda
De scenas, de accidentes ! Ali gosto
De olhar-lhe derrubadas sobre o rio
As ramas, e tremer ao movimento
Das ^guas, e dos ares; nqui foge
Por baixo das abobadas virentes
A onda escurecida: além penetra
Por entre folha, e folha um ténue lume;
Ora as grenhas se embebem na corrente,
Ora a impede a raiz; e desmandando
De uma para outra margem a ver kn-a,
Como que avançam, que outro sitio querem.
Assim as ondas, e arvores se ajudam,
A agua remoça a planta, a planta i enfeita;
E ambas fazem, ligando- se em mil formas.
Amável cambio de frescura, e sombra.
Unil-as sabe, pois, ou se em logáres
Formosos, próprios d'ella, a Natureza
Já celebrou sem ti este consorcio, ■
Eespeita-a. Desgraçado o que presumo »
Excedel-a no engenho ! E tal (e & mente
O coração m'o traz) tal é o asylo,
Querido Watelet, onde, am.ansando,
Em sombrios canaes se parte o Sena,
O Sena encantador, tão puro, e livre
70 OBRAS DE BOCAGE
Cpmo a tua moral, como os teus dias,
E visita em segredo o lar de um sábio.
Com arte lhe acudiste, não com arte
Temerária, fallaz, profanadora
D'esses logares, que suppõe que adorna.
Viste, amaste, sentiste a Natureza,
Digno de a ver, de amal-a, e de sentil-a;
Tu a trataste como intacta virgem,
Que da nudez se corre, e teme o ornato.
Parece-me que vejo o falso gosto
Estragar esses campos feiticeiros:
(íEste moinho, cujo som ruidoso
Nutre a meditação, é importuno : ))
D'ali o arrancam súbito. Estas margens
Torneadas assim tão brandamente,
E pelo próprio Sena afeiçoadas.
Duramente se alinham. A verdura,
Que no seu molle cinto o rio encerra,
Ali já não florece. Aguas queixosas,
Seus lageados cárceres accusam.
O mármore fastoso a relva ultraja,
E tosqueadas arvores captivas
Os idosos salgueiros desapossam
Da margem linda, e cara. Ah ! Suspendei-vos,
Bárbaros ! acatae esses Jogares ;
E vós, oh rio, oh bosques deleitosos,
Se a vossa formosura hei retratado;
Se, adolescente ainda, alegres versos
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 71
Ás aguas, prados, sombras já tecia,
Ministrae longameote, oh rio, oh bosques,
Ao vosso possessor a doce imagem
Da paz sagrada, que em sua ahna reina.
Quanto na molle agilidade o rio
De margem angular teme a aspereza.
Tanto as margens agudas ornamento
São de estendidos lagos, e o mais bello.
Ora se avance a terra ao seio undoso.
Ora abra ás ondas domicilio fundo.
Com revezado amor assim se chamem,
Se busquem mutuamente aguas, e terra:
N'estes vários aspectos folga a vista.
A comprida extensão n'um lago se ama;
Dá-lhe si tios, com tudo, em que repouse.
Não se lhe interrompendo a immensidade,
Meus olhos sem prazer, sem interesse
Vão pela superfície escorregando.
Para lhe abbreviar o espaço insulso,
Edifício, das calmas venerado,
Nas ondas repetido, assome ao longe,
Ou ilha, que verdeje, entre qllas surja:
As ilhas são das aguas summo adorno.
Ou levanta-lhe as margens, ou viçosas
Arvores, em festões dispersos, ganhem
Tua contemplação, teus olhos prendam.
Se queres produzir opposto eíFeito,
Se o lago estender queres, manda ás margens
72 OBRAS DE BOCAGE
Mui Bubidas, que desçam, e ou distancia
Mais arredada os arvoredos tenham,
Ou faze com que as aguas vão sumir-se
li 'um denso bosquesinho, e que tornêem
Ao pé de uma collina. O pensamento
Por entre estas cortinas de verdura,
Onde desapparecem, vae seguindo
As aguas, e as prolonga. Assim teus olhos
Gosam do que não vênr: d'est'arte o gosto
Lindezas, perfeições confere a tudo;
E de objectos, que inventa, e dos que imita
Descobre, alonga, aperta, esconde o termo.
Agora que a arte o meu trabalho insulta
Em soberbos jardiuf?;, nos meus, ditosos,
Liberdade, e prazer tudo respira:
Rindo-se a relva, a seu sabor viceja,
Independente o bosque, allêa a rama;
Não temem a thesoura as arvores.
Nem flores a esquadria; amam as ondas
As margens suas, seu adorno a terra;
Tudo é formoso ali, simples, e grande, ^
Tudo: esta arte é a tua, oh Natureza.
Porém o lago,- o rio estão desertos,
De cidadãos se lhe povoe o seio.
Dêm-se-lhe as aves, que com agi] remo
Alados navegantes, a agua fendem.
N'ella se pavonea, e nada o cjsne,
De vanglorioso collo, argêntea pluma,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 73
O cysne, a que a ficção deu voz tão doce^
E que escusa das fobulas o auxilio.
Também não teus para animar as aguas.
Oh arte, esse apparato vacillante
Dos mastros, e das veias? Impeilida
De remo compassado, a leve barca
Deixa apenas, fu brindo, um ténue rasto.
Que logo se esvaece. Kntumecido
Dos Favonios azues, sussurra o panno,
E em cada bandeirinha os ares brincam.
Pois se a novella/ a fabula, ou a historia
Uma fonte, um ribeiro consagraram.
Da sua gloria antiga elies ufanos,
Assas se aformoseam, se ataviam
Com suaves memorias. Ah ! Quem pode,
Descobrir, encontrar, sem commover-se,
Arethusa, o Lignon, Alphêo? Quem pode
Sem cordeal saudade olhar Vauclusa?
Vauclusa, encantamento irresistivel
Dos vates, e inda mais dos amadores.
No circulo de montes, que, encurvando
Sua cadeia, com liquor sadio
Te alenta a subterrânea, doce origem,
Lá debaixo da abobada nativa,
Do antro mysterioso, onde, esquivada
A nympha tua aos olhos cubiçosos,
Some em fundo insondável teu principio;
Oh quanto me foi grato o' vêr-te as aguas,
74 OBBÁS DE BOCAGE
Que, sempre crystalinas, sempre bellas,
Ora n'um lago seus thesouros fecham,
Ora sobem, fervendo e lançam fora
Ondas, a branquejar por entre as penhas;
De cascata em cascata ao lon^e pulam,
Caem, e rolam com impeto estrondoso;
A cholera depois amaciando,
Por leito mais egual vão docemente;
E debaixo de céos sempre azulados
Por cem canaes fecundam valle ameno,
Ameno qual nenhum que os soes aclaram !
Mas estes puros céos, estas correntes.
Este delicioso, e pingue valle,
Menos o coração me penhoravam
Do que Petrarca, e Laura. Eis (eu dizia,
Eu dizia a mim mesmo) ah ! Eis as margens.
Que a lyra de Petrarca suspirosa
Outr'hora enfeitiçou ! Aqui o amante
Via, exprimindo a Laura os seus amores,
Vir devagar o dia, ir-se depressa.
Inda sobre estas rochas solitárias,
Inda, acaso, acharei das cifras de ambos
Unidos, maviosos caracteres?
Tocam meus olhos desviada gruta:
Ah ! dize-me se os vistes venturosos,
Guarida opaca? (eu pronuncio) Um tronco
Toldava encanecido á fonte a margem ?
Laura dormido havia á sombra d'elle.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 75
Ali por Laura perguntava aos eccos,
E OS ecco» O seu nome inda sabiam.
Buscáveis, olhos meus, Petrarca, e Laura
Em toda a parte, e em toda á parte os vieis.
Eram já morte, e cinza os dous amantes.
Mas inda com seus manes amorosos
Mais bello se tornava o sitio bello.
76 OBRAS DE BOCAGE
OA-isiTO (^XTJ^-Eirno
Dos campos o espectáculo Dão posso.
Não posso abandonar; e quem se aíFouta
A ter em pouco o objecto de meus cantos?
Elle inspirava de Virgílio a Musa,
Seduzia a de Homero. Homero, aquelle
Que de Achilles cantou a horrível sanha,
Que nos pinta o terror jungindo os brutos.
No dardo voador silvando a morte,
O embate dos escudos, o tridente
Do equoreo numen abalando as torres;
Esse vate immortal, cie Smyrna o cjsne
Se apraz de matizar o horror da guerra
Com bosques, prados, montes: na frescura,
No riso d'estes quadros tão suaves
Desafoga os pincéis; e quando apresta
De Thetis para o filho arnez terrível.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 77
Se os combates, e os sítios n'elle grava,
Se mostra o vencedor de pó coberto,
Se apresenta o vencido envolto em sangue,
Buril afagador depois movendo,
Traça a vinha, os rebanhos, selvas, pastos.
Vestido o heróe d'estas imagens doces.
Parte, e leva por entre horrendas turmas
A innocente vindima, e ricas messes.
A teu estro sem par, cantor divino.
Cabe reger as marciaes phalanges:
É reger os jardins meu brando emprego.
Já minhas leis conhece a dócil terra ■:
Eil-a ]'elvosa; no tapete alegre
A mãe das flores lhe entornou seu3 mimos,
E arvoredos c'roaram rochas, aguas.
Para gosar d 'estes brilhantes quadros.
Agora em campos, que discorre a vista,
E por baixo de abobadas escuras,
Gratos caminhos abrirei. Mil scenas
Creará minha voz por toda a parte;
Ab artes guiarei para adornal-as:
E o divino cinzel, e a architectura
Nobre, insigne, hão de enfim d'estes logares
Encantadores completar o ornato.
De nossos passos eugenhosas guias,
Aos olhos 03 jardins patenteando.
As ruas devem, pois, agracial-os.
Nos recentes, porém não se abram ruas;
78 OBRAS DE BOCAGE
Nas findas plantações melhor se escolhem.
Aos mais lindos aspectos as dirige.
Repara como, se aos extranhos mostras
Do teu trabalho os fructos, como destro
Buscas o bello, o que não presta evitas;
Sitios formosos, ao passar, lhe apontas,
Lhe guardas para a volta outras bellezas,
O prendes, o entreténs de pasmo em pasmo,
Em scena, que nascer faz outra scena;
E assim satisfazendo, ou provocando
Sempre os desejos seus, não poucas vezes
Retardas seu prazer para espertal-o.
Os teus passeios a ti próprio imitem.
Foge, foge, também, nas formas d'elles
Os filhos do mau gosto, os vãos systemas,
Pela moda abraçados. Lá no campo.
Como cá na cidade, a moda reina.
Quando a ordem symetrica, e pomposa
De 'itálicos jardins luziu na França,
Tudo se deslumbrou, cegou-se tudo
Com esta arte fulgente. Uma só planta
Não negou ao cordel obediência:
Em toda a parte se alinharam todas;
De um lado, e de outro lado enfileiradas.
Alamedas eternas se estenderam :
Veio outro tempo em fim, veio outro gosto.
De bellezas mais livres avisaram
Aos francezes jardins jardins britannos.
POBMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 79
SÓ linhas ondeantes, e passeios
Só tortuosos desde então se viram.
Farto de vaguear, debalde o termo
Está fronteiro a mim: cumpre que ainda,
Cumpre que, a meu despeito, erre, serpêe;
Que, importuno artificio praguejando
Mil, e mil vezes, sem cessar procure
Um fira, que sem cessar de mim se aparta.
Isto evita: os excessos duram pouco.
D 'estes vários caminhos cada espécie
Tem seu logar. Um me conduz a vistas
Pasmosas, que. de longe os olhos fixam.
Nutrem a expectação; outro me some
N 'essas mudas estancias, que parece
A algum fim, de propósito, velara
Arte mysteriosa; mas tornemos
Natural o facticio labyrintho,
E não capricho, precisão se ant'olhe.
Diversos accidentes, encontrados
Pelo caminho seu; aguas, e bosques,
Como egualmente o chão, devem regel-o.
Se quero uma feliz docilidade
Na forma sua, se a tristeza odeio,
E insipidez de alinhamentos longos.
Mais detesto um passeio embaraçado,
Que de ferida serpe á similhança,
Em convulsivas roscas se entrelaça.
Com giros duplicados cansa, enjoa.
80 OBKAS DE BOCAGE
E ríspido^ uniforme, caprichoso,
O terreno atormenta, e passos, e olhos.
Ha curvas naturaes, ha torcicolos,
De que ás vezes os campos d ao modelo.
Do carro a >x)da, a pista dos rebanhos,
Que em passo negligente a aidea buscam;
A pastoi^inha, que, no prado abstracta,
Vae talvez entretendo a phantasia
Em visões amorosas: isto ensina
Rodeios mollemente volteados.
Longe, pois, os contornos angulares^
Longe de teus -passeios^ mais ainda
Quando ao fim te encaminha um longo giro.
Co prazer galardôe-se a fadiga,
A arte se imite dos poetas grandes;
Releva, que ouses tanto. Se alta Musa,
Andando, algum desvio a si permitté,
Mais que o caminho a digressão me agrada.
Niso o seu doce E uri alo defende,
No sepulchro de Heitor a esposa geme.
Assim teu artificio me extravie
Por gratas illusões, assim me alegre
Com risonhos objectos a passagem :
Tocando o termo, indemnisado eu fique
Da extensão que soff'ri, meus olhos gosem
Aspectos singulares, episódios
De vivente poema. Alem me chamam
Verdes, propicias grutas, onde sempre
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 81
A frescura, o silencio, as sombras moram.
O pensamento ali precede aos olhos.
Mais longe vitreo lago o céo reflecte,
E confusa acolá, como fugindo.
Assoma perspectiva immensa, e nobre.
As vezes bosquesinho alegre, ameno,
Mas em si recolhido, e ricamente
Por ti, e a Natureza adereçado,^
De flores, e de sombras abundante,
Parece que te diz : — «detem-te : ah ! onde
Podes estar melhor ? )) Súbito a scena
Se altera: eis em logar de gosto, e riso
Paz, e melancholia, eis o repouso,
Eis a grave mudez, onde se embebe.
Onde a meditação se alonga, e pasce.
Lá com seu coração conversa o homem,
Attenta no presente, entra o futuro.
Da carreira vital nos males pensa.
Pensa nos bens, e recuando a vista
Ao tempo que voou, se apraz ás vezes
De perceber no circulo dos dias
Esses poucos instantes (ai !) tão caros.
Tão curtos ! Essas flores n'um deserto,
Essas quadras da vida, a que lhe apontam
Saudades do prazer, e até da magoa.
Teme, pois, imitar os que ataviam
Friamente os jardins, os que só querem
Objectos festivaes, e lisonjeiros.
6
82 OBBAS DE BOCAGE
ISTacla em suas pai?5agens é sublime^
Nada atrevido: tudo são latadas^
Tudo elegantes bosques: sempre flores,
Sempre o templo de Flora, ou dos Amores:
A alegria mouótona aborrece.
Sáe tu d'esta commum, cansada trilha;
Contrastes imagina interessantes,
E affouto os aventura. Entre si podem
Encontrados eíFeitos soccorrer-se.
Eia, segue o Poussin. Elle apresenta
Em campestre festejo alvas serranas,
Robustos aldeãos, bailando á sombra
Dos olmeiros frondosos, e ali perto
Impressas vozes taes sobre um sepulchro:
«Já fui, já fui também pastor da Arcádia,
Este painel dos gostos voadores,
Do nada da existência, está dizendo.
Ou parece que diz : C( Mortaes, cuidemos
Em lograr, tudo vae desvanecer-se;
Jogos, danças, pastores. » Dentro n'alma
Ao jubilo vivaz, alvoroçado
Mansa tristeza por degráos succede.
Imita estes eífeitos. Não receies
Em quadros ledos pôr sepulchros, e urnas,
Monumento fiel das magoas tuas.
Ali ! Quem não tem cbors\do alguma perda
Rigorosa, cruel! Eia, associa,
Longe do mundo leviano, e cego,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 83
Os bosques, aguas, flores com teu pranto.
Vêm um amigo em tudo almas sensíveis;
Já co'as sombras pacificas se curvam
Para abraçar a campa, onde suspiras,
O teixo, o agudo pinho, e tu, cypreste.
Das cinzas protector, leal aos mortos.
Teus ramos, que affeiçoam génios tristes,
Deixam a gloria, o gosto ao louro, ao myrto;
Do guerreiro, do amante a venturosa
Arvore tu não és, porém teu luto
Compadece-se, e diz co'as nossas penas.
Em todos estes monumentos nada.
Nada de apuros vãos. Aliar podes
Acaso, ante estes' lúgubres objectos
A arte co'a dor, e co'a riqueza os campos?
Longe principalmente o fingimento,
Longe tumulo falso, urnas sem magoa.
Que o capricho formou: longe as estatuas
De animal ladrador, de ave nocturna:
Isso profana o luto, insulta as cinzas.
Ah I Se as de algum amigo ali não honras,
De envelhecidos teixos lá debaixo
Não vês a sepultura onde esconder-se
^ão de ir aquelles, que, por ti curvados,
■*^ ^ ti suando sobre ingratos sulcos,
^^.-^10 da indigência a morte esperam?
^^J^ ^ ornar-lhes o sepulchio humilde
ieras ^^^,^9 -^ certo, que não podes
84 OBRAS DE BOCAGE
Gravar illustres aventuras n'elle:
Desde o incerto crepúsculo, em que os chama
Ave madrugadora a seus trabalhos,
Té ao serão em que a família tenra
Com elles vae sentar-se ao lar, que estala,
Em paz, e em lida egual seus dias correm.
Nem guerras, nem tractados os distinguem:
Nascer, soíFrer, morrer, eis sua historia.
Mas o seu coração (ah!) não é surdo
Da memoria ao rumor. E qual dos homens
No momento fatal da ausência eterna,
Qual se não volve, e tristemente alonga
A vista pelos campos da existência.
Não tem na idéa de deixar saudades
Algum gosto, e dos olhos de um amigo
Não espera uma lagrima? Epitaphios
Para adoçar-lhe a vida, a morte lhe honrem»
Aquelle, qtie, maior do que a Fortuna,
Serviu seu Deus, seu rei, familia, pátria,
E o pudor imprimiu no rosto á filha.
Merece que de pedra menos bruta
A campa se lhe dê: suas virtudes
Oontem-se ali, e as lagrimas da aldêa;
Gravem-lhe sobre a lousa : — « Aqui descansa
O bom filho, o bom pae, e o bom consorte. »
Encanto involuntário ha de mil vezes
Teus olhos attraír ao sacro sitio.
E tu, que estás cantando, antes carpindo^
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZirOS 85
Debaixo d'estas arvores piedosas^
Tu, primeiro que as deixes, Musa minha,
Suspende em oblação tua grinalda
íía rama venerável. Muito embora
Outrem celebre em verso a formosura:
Nos gostos engolphada a Musa de outrem
Da cabeça jamais deponha o myrto;
Telas trajando, fulgurantes de ouro,
Só da meiga alegria entoe os hymnos:
Verso consolador tu dás ás cinzas,
E primeiro que as outras a mão tua
Algumas flores sobre as campas solta.
Para baixo de sombras prazenteiras
Voltemos, que é já tempo. A architectura
Em selvoso logar inda me espera.
Para adornal-o de edifícios bellos.
Já não do luto os monumentos tristes.
Mais eis gostosos sitios, que em mil faces
Entre a verdura seu primor oíFertam.
O uso, porém, lhe approvo, e tolho o abuso.
Desterra dos jardins montão sem ordem
De edifícios diversos, essa pompa
De perdulária moda: os obeliscos,
Rotundas, e kioskos, e pagodes;
Esses cáhos de ingrata architectura,
Romanos, gregos, árabes, chinezes; ^
Esterilmente profusão fecunda,
Que o mundo inteiro n'um jardim concentra.
86 OBRAS DE BOCAGE
Não procures também ocioso ornato,
Antes disfarça em útil o aprazível.
De seu senhor thesouro, e seu recreio,
A herdade exige campesino adorno.
Lares, que sobre o campo ergueu o orgulho,
Magnifico solar não a desdenhe;
As riquezíis lhe deve, e d'elle ao fausto
Sobresáe tanto a singeleza d'ella.
Quanto de Annida aos artifícios todos
Sorriso ingénuo de acanhada virgem.
A herdade ! A este nome hortos, colheitas,
O pastoril reinado, o emprego doce.
Os innocentes bens dos áureos tempos.
Cujas meigas imagen> enfeitiçam
A infância, que é na vida a edade de ouro,
E tanto a infância minha enfeitiçaram;
Isto, ah! Isto, que idéas, que saudades
Dentro do coração me não desperta!
Vem, já das aves tuas ouço o canto:
Já chiam carros, da abundância áo pezo,
Que as tulhas te demandam, e a compasso
Cáe o instrumento, que debulha os milhos.
Orna, pois, o teu ])redio, mas comtanto
Que, pródigo, em palácio o não convenas.
Por seu caracter simples, e elegante
Entre os jardins, ou quintas é a herdade
O mesmo que c3ntre os versos é o idjdlio.
Pelos nunies dos campos, ah! desvia
POEMAS DIDÁCTICOS TKADtJZIDOS 87
O luxo audaz d'este lof^^ar modesto,
Desvia-o sempre; de occultares não tractes
Nem os lagares teus, nem teus celeiros;
Ver quero o trem das ceifas, das vindimas
Ver o crivo, a joeira, onde co'a palha
O grão dourado salta, e recáe puro;
A grade, o trilho, tudo o mais da granja.
Sem pejo aos olhos meus se manifestem;
Mormente de animaes o móbil quadro
Lhe dô por dentro, e fora um ar vivente.
Não vemos do solar o adorno estéril,
A graça inanimada, a immovel pompa:
Debaixo d^estes^^tectos, n'estes muros
Tudo está povoado, e tudo é vivo.
Que aves, diversas pela voz, e instincto,
Que no abrigo da toUia, ou colmo habitam,
Hepublica, nação, familia, reino,
Me entretém com seus brincos, seus costumes!
Eis á frente de todas gira o gallo,
O gallo, feliz chefe, páe, e amanie,
Que, sultão sem moUeza, dií^tribue
Pelo serralho aligero a ternura;
Une ao jus do valor o da belleza.
Impera carinhoso, altivo afaga;
Para mandar, para gosar nascido,
Nascido para a gloria, ama, combate,
Triumpha, e logo seus triumphos canta.
Ha de aprazer-te o ver como elles brincam,
88 OBRAS DE BOCAGE
Como contendem; seu amor, seus odios^
E até sua comida. Assim que assoma
Com a teiga nas mãos a dispenseira,
De repente a nação voraz, e leve
Voa d'aqui, d'ali, de toda a parte
Em turbilhão ruidoso, e quasi a um tempo.
O sôfrego tropel junto á que o ceva
Súbito forma um circulo apinhado:
Ha taes que, sempre expulsos, tornam sempre^
Perseguem o comer, e até na palma,
Affoutos parasites, vêm furtal-o.
- Este povo domestico protege;
Não soberbos, mas sãos seus pousos sejam.
Decoradas estancias que lhe prestam?
Marmóreos bebedouros, e áureas grades?
Mais lhe apraz, muito mais, um grão de milho..
Já Lafontaine o disse. Oh Lafontaine!
Oh sábio verdadeiro, eras lucrcso
N'este logar ! Cantor feliz do instincto,
Melhor te inspiraria aqui o olhal-o!
Fofo o pavão de assoalhar seu iris,
A inchação do peru, mais louco ainda,
Teus pincéis alegrara á nossa custa.
Viras aqui dos pombos teus a imagem;
De dous gallos amantes a discórdia
A dizer outra vez to obrigaria:
<íTu derrubaste. Amor, de Tróia os muros ! )>
D'e8t'arte nos apraz, e attráe a herdade.
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 89
Mas em outra prisão que vulgo fere
Por incógnitos sons os meus ouvidos?
Extranhos anirnaes ali se guardam,
Maravilhas dos olhos, ali vivem
N'um suave desterro encarcerados
Brutos da terra, do ar, e um d'outro pasmam.
Extravagantes castas não procures,
Prefere o que é mais bello ao que é mais raro.
Mosfcra-nos aves n'outros céos creadas,
Que, validas do sol, seus lumes vibram;
Da indiana gallinha o vivo esmalte,
E o ouro do faisão purpureado.
Aves de ostentação meltior se alojem;
Elias mesmas são luxo, e co'a belleza
Já que a inutilidade ellas compensam,
Brilhe a prisão como os captivos brilhar».
Rebeldes animaes, porém, não tenhas.
Cujo orgulho se irrita, e cansa em ferros.
Quem pode ver sem magoa o rei dos ares,
O pássaro feroz, que andou folgando
Lá por entre o trovão, por entre o raio,
Quem pode vel-o na gaiola indigna
Esquecer o relâmpago dos olhos,
Dos voos a altivez ! Livre de novo.
Na abobada dos céos ao sol se atreva:
Nunca pode agradar ente aviltado.
Mas com seu lustre peregrino em quanto
Parece que estes hospedes diíFrentes
90 OBliAS DE BOCAGE
Á minha escolha, á preferencia aspiram,
O olfato me convida a aquelles tectos,
Onde, do pátrio chão também roubados,
Extranhos vegetaes o vidro ampara.
Tu cerca de ar macio as débeis plantas,
Mas venera estações, vencendo climas:
Não forces a brotar na quadra feia^
Bens, que a bons tempos Natureza guarda.
Deixa aos paizes de aturado inverno.
Deixa embora essas flores, esses fructos,
De falsa primavera, e Mso estio;
Certo de que ha de o sol madorecel-os,
Sem violentar seus dons, seus dons espera.
Mas folgo em ver no tnmsparente íibrigo
Prendas diversas de diversas plagas.
Os iberos jasmins ali se animam,
Friorenta congorça esquece a pátria,
Tenro ananaz pelo calor se engana,
E usurpado thesouro em si te entrega.
Talhe a rasão teus edifícios vários, .
De flores, e animaes formoso hospieio,
Oh quantos, quantos mais, que o sitio abrace,
Que approve o gosto, recrear^nos podem !
A sombra d'esses húmidos salgueiros,
Húmidos com sadia agua corrente.
Seja do banho o solitário asylo.
Além cabana, em que a frescura assiste,
Offerte ao pescador linhas, e redes.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 91
Não vês a mansidão cUeste retiro?
Doce acolheita ali consagro ás Musas.
No seio florecido, e magestoso
Ali somente um obelisco ordeno:
Aos ares sobe o monumento augusto,
E lavro sobre a pedra enternecida:
<( A nossos destemidos mareantes^
Que pela pátria voluntários morrem.»
Assim teus variados edifícios
Nem desertos serão, nem ociosos.
Com seu logar se ageitem massa, e forma,
Cada qual se colloque onde releva.
E não se perca, não- destrua a sccna
Por sobeja extensão, por muito aperto.
O que empece ao caractei^, e utilisa
Sabe, pois: um recanto quasi occulto
Lá bem n'um descampado, é que nos pinta
Melhor o desamparo, a soledade.
Sempre a cada expressão fiel te mostra;
Um ermo a grande luz não patentêes,
Nem selva carrancuda esconda um templo:
Do monte sobre a espádo:t quer ser visto.
Movimento, esplendor, grandeza, e vida
O aéreo sitio pelo quadro espalha.
Julgo um aspecto olhar da bella Ausouia,
Esta dos edifícios, esta a graça.
Mas de taes monumentos a alegria,
Luxo moderno, e fresca mocidade
92 OBRAS DE BOCAGE
Valem de antigos restos a velhice?
D'esses aqui, e ali dispersos corpos
O já desordenado, e gran volume,
A forma pictoresca enlaça a vista.
Por elles sobre a terra está marcada
Dos evos a carreira, e, destruídos
Pelos vulcões, ou tempestade, ou guerra,
Instruem sempre, alguma vez consolam.
Sim, estas massas, que também da edade
Cedem ao pezo, como nós cedemos,
A derrota geral nos habituam,
E a perdoar á Sorte. Assim Carthago
Sobre os desfeitos muros n'outros tempos
Mário viu infeliz, e e.-tes dous restos
Tão fifrandes entre si se consolavam.
Aproveita ruinas venerandas.
E tu, que os passos meus tens variado
Pelos selvosos campos, tu, que, longe
Das vulgares estradas, vás dictando
Leis aos jardins, oh Poesia amável !
Oh irmã da Pintura ! A monumentos
De longa edade restitue a vida;
Presenta ao gosto os ricos accidentes,
Que o tempo desenhou co'a mão remissa.
Uma antiga capella ora apparece.
Modesto, e sancto asylo, onde algum dia
Iam em tosco altar, na quadra nova,
As donzellas, e as mães, e os seus filhinhos
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 93
A bem das messes implorar o Eterno.
Consagra inda o respeito estas ruinas.
Ora avulta acolá castello annoso,
Em fragosos cabeços, que tyranno
Do território e dos vassallos medo,
Co'as ameias aos céos arremettia;
Que em tempos de terror, discórdias, sangue,
Viu lançadas mortaes, viu gentilezas
De nossos invenciveis cavalleiros,
Os Bayards, os Henriques; hoje o trigo
Sobre os fragmentos seus lourêa, e treme.
Esta triste, forçosa architectura.
Cingida de verdor fresco, e risonho,
As esplanadas, e ângulos, e torres
Rotas, quasi abatidas, onde as aves
Dos amores em paz o fructo aquecem;
Os gados povoando estes guerreiros
Recintos façanhosos, e o menino,
Q'onde os avós já guerrearam, brinca,
Forma tudo isto singular contraste.
D'elle te apossa, dando aos olhos quadro
Duro, e brando, campestre, e bellicoso.
Mais ao longe um mosteiro abandonado
Entre arvoredos súbito se encontra.
Que silencio I Amadora dos desertos.
Com gosto ali meditação, te entranhas
Por baixo das abóbadas sagradas,
) \)T onde austeras virgens, algum dia
94 OBRAS DE BOCAGE
Como as turvas alampaclas, que veliiin
ÁBte a religiãOj também velavam/
E descarnadas, pallidas, ardiam
Por Deus, e emfim, por Deus se consumiam,
Sancta contemplação, paz, innocencia.
Como que ainda este silencio occupam !
Musgosos muros, o zimbório, as torres,
Os arcos d'este claustro escuro, e longo,
D'estes altares o degráo roçado
Do supplice joelho, os vidros negros.*-»
O sombrio, e profundo sanctuário,
Onde, escondidamente desgraçadas,
Almas houve, talvez, que de seus laços
As inílexiveis aras se carpissem,
E por doces memorias inda frescas
Algum medroso pranto ao céo furtassem:
Tudo com move ali, tudo ali falia.
Ali cevando a mente em soledade,
As vezes cuidarás, ao pôr do dia,
Que de alguma Heloisa a sombra geme;
Que as lagrimas, que a dor, que os ais lho sentes.
Logra, pois, estes restos de alto preço,
Ternos, augustos, pios, ou profanos.
Mas longe os monumentos, cujo estrago
Do finmmento c filho, e mal imita
Do tempo as impressões inimitáveis:
Esses antigos templos, fabricados
Inda ha pouco, as relíquias de um castello
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 95
Qne jamais existiu, pontes idosas,
Que hontem nasceram, torreão dos godos,
Que roto, e gasto, não parece antigo:
São artificio inútil, e grosseiro;
Fitando-lhe a attenção, se me figura
Que vejo um moço arremedando um velho,
Despindo as graças da amorosa edade.
Sem que retrate da velhice as rugas;
Mas estrago real dá pasto aos olhos.
Restos, que já contemporâneos fostes
De nossos bons, e simplices maiores.
Gosta meu coração de interrogar-vos,
E oosta de vos crer. De novo a historia
Estudo em vós dos tempos, e dos povos.
Quanto esses povos mais famosos foram,
E quauto mais fiunosos esses tempos.
Tanto mais n'esses restos fico absorto.
Campos de Itália ! Oh campos d'a]ta Roma !
Onde jáz, por fatal, e horrivel queda,
Oom todo o seu orgulho o nada do homem !
Ahi é que ruinas, afamadas
Por grandes nomes, por memorias grandes,
Dão sublimes hções, aspectos graves,
Thesouros, que as paizagens enriquecem.
Ve como cá, e lá por toda a parte
A rapidez dos séculos tremendos.
Das artes os prodígios destroçando,
S^^jiulchros arrojou sobre sepulchros,
96 OBRAS DE BOCAGE
Um templo derribou sobre outro templo.
Olha as edades blasonando ao longe
Co' a ruina im mortal da excelsa Roma.
Os pórticos, e os arcos (onde a pedra
Em caracter fiel conserva ainda
Do povo rei magnânimas proezas),
Pórticos, è arcos tem cansado os tempos.
Ondas suspensas por aqui bramiam,
Por baixo doestas portas dilatadas
Os despojos do mundo iam passando.
Esparzidos estão, no pó confusos
Por toda a parte, os thermes, os palácios,
Os sepulchros dos Césares, em quanto
De Virgílio, de Ovidio, Horácio, e de outros
In da grata illusão nos finge o rasto.
Oh três, e quatro vezes venturoso
O artista dos jardins! Feliz quem pôde
D'estes restos divinos apossar-se!
Já lhe vae surdamente a mão do tempo
Ajudando as tenções; já sobre pompas
Dos senhores do mundo, a Natureza
De recobrar os seus direitos folga:
Lá onde o domador dos reis, lá onde
Campeava Pompêo com fasto immenso,
Agora dos pastores se ouve a flauta,
Como nos dias do tranquillo Evandro.
Vê rir os campos, que ao cultor volveram,
E relvar os cabritos sobre os tectos,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 97
B obelisco arrogante além caído !
Oliia abraçado co'a columna altiva
O humilde espinho; as arvores, as plantas,
Subir, baixar em mil festões, mil cachos;
Aquella, que Minerva aos homens trouxe,
E a figueira, pelo hálito dos ventos
Por ^itre estes estragos semeadas,
Acabam de abalar co'a raiz branda
As veneráveis obras dos romanos;
A torta vide, a hera de cem braços,
Em torno das ruinas serpeando,
A modo que desejam, que procuram
Recatar-lhe a velhice, ou guarnecel-a.
Se não tens estes restos estupendos,
Terás, sequer, os animados bronzes.
Terás os numes das edades mortas.
Em que arte divinal forçava os cultos?
Quiz dos jardins, bem sei, gosto severo
Lançar todos os deuses dos romanos,
Dos gregos; mas porque? Nossas infâncias,
Em Athenas, em Roma cultivadas.
Sua docô magia exp'rimentáram.
Estes mimes agrícolas não eram?
Não pastores? Porque has de, pois, tolher-lhes
Os bosques, os vergéis? Podem teus fructos
Rebentar sem auxilio de Pomona?
Ou te é dado expellir do império Flora?
. 'pro essas deidades nos encantem:
98 OBKAS DE BOCAGE
Das artes inda (5 culto a idolatria;
Mas li aja perfeição^ primor na escolha.
Não queiras nos jardins impróprios deuses,
Ellfís sem magestade, eJlas sem graça.
Elege a caíja qual assento idóneo,
Seus direitos nenhum ao outro usurpe.
Deixe nas selvas Pan. Porque motivo
Co'as Dryades estão Tritões^ Nereidas?
De que serve este Nilo, em vão c'roado
De canas, e a mostrar do pó manchada
A urna, que é de pássaros abrigo?
Fora os leões, o os tigres: esses monstros
Té nas imagens suas me arripiam;
E os Césares também, mais monstros que elles,.
Sentinellas horriferas das portas
De bordadas florestas, que, nojosos
Da suspeita, e do crime, inda parece
Com os olhos as victimas apontam.
Ao risonho logar que jus têm elles?
Mostra-me objectos, que eu venere', eu ame;
A sua apotheósis sagra um sitio,
Elysios cria em que seus manes folguem.
Longe de oihos profanos, sobre valles
De verdes murtas, de cheirosos louros
Honrem seus vultos mármore de Paros;
Goste um remanso de banhar taes selvas,
E, mesclando co'a sombra os dúbios lumes,.
Seja Diana aftavel o astro d'ellas.
POKMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 99
Dos virentes dóceis a formosura
Sobre as queridas, cândidas estatuas,
D'esies homens egrégios o repouso,
A simples, a benigna magestade,
Correntes sem rumor, como as do Lethes,
Que para aquellas almas tão serenas
Parece vão rolando o esquecimento
Da crua ingratidão, e de outros males;
Bosques, e o dia, entre elles expirando,
Tudo respira a paz dos manes ledos.
Tu não consagres, pois, se não tranquillas
Estremadas virtudes n'esses campos.
Longe, longe os fataes conquistadores,
Verdugos, não heróes: esses legares
Turbariam talvez, como turbaram
Este mundo infeliz: ali colloca
Os amigos dos homens, e dos deuses:
Os de que ainda benefícios vivem
Na fama e tradição; também monarchas,
De que o seu povo não chorasse a gloria:
Mostra íihi Fenelon, mostra á saudade,
E com Sully se abrace Henrique o grande.
Dá, dá-me flores, cubrirei com ellas
Os sábios, que em longinquas, novas praias
Artes consoladoras demandaram,
Artes consoladoras desparsiram.
E tu, primariamente, heróe britanno,
Tu Cook infatigável, denodado,
100 OBRAS DE BOCAGE
Que acceito, e caro aos corações do todos,
Unes co'a magoa teu paiz, e a França;
Que a essas regiõeSj que aonde o raio
Outr'hora os europeus annunciava,
Útil, novo Triptólemo, guiaste
O serviçal cavallo, a ovelha, o touro,
O arado agricultor, e as pátrias artes,
Nossas fúrias, e roubos expiando :
Com doce paz fraterna lá surgias.
Prantos, e beneficies lá deixavas.
Recebe de um francez este tributo. . . .
E á minha gratidtão que importa o clima ?
Virtudes immortaes do illustre Nauta
Nosso concidadão já o fizeram;
No grande exemplo o nosso rei se imite,
Digno de ser seu rei. Ah! que aproveita
Ao pasmoso varão ter vezes duas
Visto os mares de gelo, os céos de fogo,
Ter estes afrontado e roto aquelles ?
Que as ondas, ventos, povos o acatassem:
Que em toda a vastidão do pego immenso
Fosse immune, e sagrada a quilha sua;
Que só com elle reprimisse a guerra
Seu hórrido furor? Do mundo o amigo
(Ai !) Morre ás mãos de bárbaros selvagens.
Oh vós, que lamentaes seu fim cruento.
Da potente Albion soberbos filhos,
Imitae-lhe, que é tempo, a ambição nobre.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 101
Porque em vossos eguaes quereis escravos ?
Dae-lhe fraternidade, e não cadêas.
Dos louros triumphaes cingida a fronte,
Dos louros, que o francez colheu de novo,
Té a mesma victoria a paz cubica.
Desce, prole do céo, Paz su-^pirada,
Doura este globo, em fim, com teus sorrisos,
Dos sitios, que eu cantei, requinta as graças;
Forma um povo feliz de tantos povos;
Aos campos abundância restituo,
E restitue ás ondas o conmiercio;
Hajam da tua mão, propicio nume,
Os dous mundos soceo-o, as artes vida.
NOTAS
PRIMEIRO CANTO
(Pag. lá, vers. 6)
Assumpto amável, que tentou Virgílio, etc.
Vê-se nas Georgicas^ liv. iv, que a composição dos
jardins, de que faliam, é mui singela, e naturalissima, e
que se acha n^elles o útil com o aprazivel : pomos, flores,
hortaliças. Mas estes jardins são os de um ordinário
habitante dos campos ; jardins, taes como, com um gosto
simples, quizera o sábio ornal-os, e cultival-os pela sua
mão ; taes como folgaria de os aformosear o amável
poeta, que os descreve. Não tractou d'aquelles jardins
famosos, que o luxo dos vencedores do mundo — os Crassos,
os Lucullos, os Pompêos, os Césares, carregaram das
riquezas da Ásia, e dos despojos do universo.
(Ibid.j vers. 19)
De Alcino o luxo, o gosto, ainda rude,
Punha a curto vei;gel módico enfeite, etc.
É um monumento precioso da antiguidade, e da his-
toria dos jardins, ã descripção, que faz Homero do de
Alcino. Vê-se, que elle distava pouco do nascimento da
arte: que todo o seu luxo estava na symetria e ordem,
'na riqueza do chão, na fertilidade das arvores, nas duas
fontes, de que era ornado ; e todos os que quizessem jar-
dim para gosar, e não para mostral-o, escusariam outro.
104 OBRAS DE BOCAGE
(Ibid., vers, 21)
Eis com arte maior, mais sumptuosa
Jardins nos ares Babylouia ostenta.
Parte d'estes jardins suspensos ainda durava mil e
seiscentos annos depois da sua creaçào ; elles foram o
assombro de Alexandre, quando entrou em Babylonia.
(Ihid., vers. 23)
Qs latinos heróes, de Marte os filhos,
Depois que Kcrna agrilhoava o mundo,
Davam repouso ameno á gloria, ao raio
Em frescos hortos, que a victoria ornara.
Existe monumento ine.=ítimavel do gosto e forma dos
jardins roípanos em uma carta de Plinio Júnior, e n'ella
se lê que já então conli^ciam a arte de affeiçoar as ar~
veres, de dar-lhes diversas figuras de vasos ou animaes;
que a architectura e o luxo dos edifícios eram dos primá-
rios ornamentos dos parques; mas que todos tinham um
objecto de utilidade, objecto em demasia esquecido nos
jardins modernos.
(Pag, 16, vers, 14)
Beloeil, a um tempo
Campestre, apparatoso, etc.
Beloeil foi uma casa de [recreio, ou quinta, do prín-
cipe de Ligne.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 105
(Ibid.j vers. 21)
Q amável Tivoli, de forma extranha
A França descobriu ténue modelo.
O local de Tivoli negava-se aos grandes efíeitos pie-
torcscos ; mas Boutin teve o merecimento do colher d'elle
a utilidade possivel, e principalmente de ser o que pri-
meiro experimentou com bom êxito o género irregular.
(Ihid.^ vers. 23)
Montreuil as Graças desenharam rindo, etc.
Montreuil era um bellissimo jardim da princeza de
Guimené, na estrada de Pariz a Versailles.
(Ihid., vers. 24)
Maupertuis, le Desert, com que alegria,
Rincy, Limours, etc.
Maupertuis. Este jardim, conhecido pelo nome de
Elysio, pertenceu ao marquez de Montesquieu. Se bellas
aguas, soberbas plantações, aprazível mixto de colinas e
valles fazem um sitio formoso, o Elysio é digno do seu
amável nome.
Le Desert. Este jardim foi desenhado com muita graça
por Monville.
Rincy. Este lindo jardim foi do duque de Orleans.
Limours. Este logar, naturalmente inculto, foi mui
aformoseado pela condessa de Brionne, e perdeu parte da
aspereza, sem perder o caracter.
106 OBRAS DJE BOCAGE
(Pag. 11, vers. 2)
' e parecido
Comtigo Trianon, deusa, que o reges, etc.
O pequeno Trianon, jardim da rainha, é modelo n^este
género. Parece que a riqueza foi n'elle empregada sem-
pre pelo gosto.
(Ibid., vers. 5)
Grato asylo d'um principe adorável,
Tu, cujo nome de apoucada idéa, etc.
É o gracioso jardim — Bagatela — composto com muita
arte para o conde de Artois, e que tem a vantagem de
se achar no meio de bosque aprasivel, que parece parte
d'elle. O pavilhão é de uma elegância rara. Nào se podo-
ram nomear n'este poema outros agradáveis jardins, feitos
alguns annos depois.
(Pag. 29, vers. 7)
A arte os prometta, os olhos os esporem :
Dá quem promette, quem espera gosa.
Este ultimo hemistichio vem n*uma epistola de Saint-
Lambert ; a reminiscência o introduziu n'este poema.
(Pag., 30 vers. 1)
Entre Kent, e Lenotre eu não decido, etc.
Kent, architecto, e famoso desenhador em Inglaterra,
foi o primeiro que tentou felizmente o género livre, que
poej!íias didácticos tkaduzidcs 107
principia a lavrar por toda Europa. Os chinezes &ão sem
duvida seus inventores.
(Pag. 32, vers. 19)
Attenta em Milton, ete.
Muitos inglezes querem que esta bella descripçâo do
paraiso terreal, e alguns logares de Spencer, dessem a
idéa do jardim irregular; e postoque é provável, como já
se disse, que, este geneio venha dos chins, o aucior ante-
poz a auctoridade de Milton como a mais poética. Além
d'isso, julgou que se olharia com gosto a magnificência
toda do maior rei do mundo, todos os milagres das artes
em opposição com os feitiços da natureza recente, com a
innocencia das primeiras creaturas que a aformoseáram,
e com o attractivo dos primeiros amores. Não traduziu,
nem tão pouco imitou Milton, que devia, e podia descre-
ver mais longamente o Éden.
SEGUNDO tJANTO
(Pag. 48, vers. 1)
Sempre verdes,
(Ob Mouceaux) teus jardins sao d'isto exemplo.
O jardim de inverno do duque de Charti-es é, com
effeito, um encantamento. A estufa especialmente é uma
das melhores que se conhecem.
108 OBRAS DE BOCxVGE
(Pag. 53, vers. 15)
Moço Potaveri, tu d'isto és prova, etc.
Este o nome de um habitante de 0-taiti, ôonduzido a
França por Bougainville, celebre pelo seu valor, e cons-
tância em varias acções, e gloriosamente conhecido quer
por navegante, quer por militar. O passo, que se refere,
do mancebo otaitiano, é mui notório e interessante. Só
o que fiZ o auctor foi alterar o logar da scena, que fin-
giu no jardim real das plantas. Quizera pôr em seus ver-
sos toda a sensibilidade, que rospira nas poucas palavras,
que o moço proferiu, abraçando a arvore, que havia conhe-
cido, e que lhe recordou a pátria — « E 0-taiti » — dizia
elle, e olhando para as outras arvores, — « Não é 0-taiti. »
— Assim estas arvores, e a sua pátria se identificavam
no seu espirito. Julgou o auctor que este lance tão terno,
e tão novo, poderia ministrar um bello episodio.
(lòid.j vers. 18)
Onde é sem pejo amor, amor sem crime.
Observou- se em todos os povos, onde a sociedade tem
feito curtos progressos, uma certa innocencia nos costu-
mes, muito diversa do resguardo, e do pejo, que sempre
acompanham a virtude nas mulhí^res das nações polidas.
Na ilha de O t ai ti, na maior parte das outras do mar do
sul, em Madagáscar, etc. as casadas julgam dever-se exclu-
sivamente a seus maridos, e quebram raras vezes a leal-
dade conjugal ; mas as solteiras não escrupulisam em se
entregar até á paixão momentânea, que os homens lhes
inspiram. Não se sujeitam nem nas palavras, nem nos
modos, nem no vestido ao que olhamos como deveres do
sexo feminino. Mas isto é n'ellas simplicidade, não é
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 109
corrupção: não desprezam as normas da decência, cilas
as ignoram. N 'estes paizes a natureza é grosseira, mas
nâo depravada. Eis o que se intentou exprimir n'aquelle
verso.
TERCEIRO CANTO
(Pag. 58, vers. 11) -
Sei que era H<arlem ha curiosos tristes
Que em seus jardins co'a8 flores vão fechar-se.
Harlem é cidade de Hollanda, onde se commercía
muito em flores, e sabe-se a que extravagância tem che-
gado os floristas no amor á raridade, e ás posses exclu-
sivas.
(Pag. 60, vers. 11)
Do cume dos rochedos verdadeiros, etc.
Em geral, não se podem imitar bem os rochedos, nem
todos os grandes eííeitos da natureza. Ella não consente
H arte emprehendor estes atrevimentos, salvo quando
orabate com todos os esforços e cabedaes do engenho,
c da opulência. Assim se formou, segundo os desenhos
de Bobert, o soberbo rochedo de Versailles, cujo effeito
só o pôde adivinhar a phantasia, que o vê d'ante mão
toucado de vistosas arvores, e ornadb de toda quanta ve-
* *'''^>.ça e belleza pôde só dar-lhe o tempo.
110 OBRAS DE rOOAGB
(Ihid., vevs. lo)
Aos campos de Mideiéton, ás inontanhas
De Dovedále te acoiDpaDlio os pf.SBOS,
A ellas, Whateli, comtigo snbo.
São dou3 sítios de Inglaterra, famoroa pelas formas
pictore;-;catí da sua cadêa de rochedo?!, descriptos por Wha-
teli, de que o arictor, assim corno Morei, no seu fonuoso
tractado dos jardins, colheram algumas passagens, taes
como a cabana e a ponte suspensas sobre despenhadeiros.
Mas Delille cuidou em exprimir de um modo seu as sen-
sações que nascem d'este8 aspectos medonhos.
QUARTO CANTO
(Fag. 82, vers. IO)
Eia, segue o Poussin, etc.
Este famoFO quadro é certamente o melhor de todos
08 de paizagens. Se não soubéssemos quanto a imagina-
ção do Poutsin se alimentou com as producçOes dos gran-
des poetas da antiguidade, este painel bastaria para o pro-
var. Quasi todas as obras voluptuosas de Horácio tem o
mesmo caracter. Por toda a parte no seio dos prazeres
e das festas, aponta ao longe a morte. « Dae-vos pressa
(diz elle), quem sabe se amanhã viveremos? Nosso fado é
iiiurrer *, será forçoso deixar esta bella casa, esta mulher
encantadora, e de todas a3 arvores que cultivaes, só o cy-
preste^ ai de mim ! seguirá seu senhor, mui ponco durá-
vel, n
Esta mesma philosophia, colhida dos antigos poetas,
é a que dictou a Chaulieu aqncllos versos cheios de nie-
lancholia tão doce :
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 111
Musas, que n'este retiro
Coineçastes meu prazer,
Plantas, que nascer me vistes,
Cedo me vereia m.orrer.
Estes contrastes de sensações, compostas de alegria^
e tri.steza, agitando a alma enj sentido contrario, fazem
sempre uma impressão profunda; e é o que obrigou o
anctor a collocar no meio das scenas risonhas do.s "jardins
a vista melancholica dos sepulchros, o urnas consagradas
á amigado ou á virtude.
(Pag. 83, vers. 22)
De envelhecidos teixos lá debaixo
Não vês aquelles, etc.
N'estes versos, dedicados ás sepulturas humildes dos
caniponezes, o auctor imitou alguns versos do «Cemité-
rio de Gray.»
(Pag. 94, vers. 24)
M;;s longe os monumentos, cujo estrago, etc.
Chabanon, em uma linda epistola, escripta a favor dos
jardins regulares, notou antes do auctor dos Jardins que
s monumentos velhos despertavam memorias, vantagem
i !ie não tem ruinas fingidas. Esta idéa se adia em outras
obras, e particularmente na de Whateli : demais, ella é
tão natural, que era fácil achal-a. Talvez o não fosse ex-
primil-a beui, mormente depois de Chabanon ; mas se o
auctor se encontrou com elle, o que todavia cuidou em
'vitar, confessa e repete, que os seus versos são poste-
K-re:^ aoH d'aquelle poeta.
112 OBRAS DE BOCAGE
(Pag. 99, vers, 27)
E tu primariamente heróe britaimo, etc.
Todos têm noticia das viagens-instructivas e animo-
sas do afamado e desditoso Cook ; todos sabem a ordem
que Luiz XVI deu para se lhe respeitar o navio em todos
os mares, ordem que honra eguahnente as soiencias, este
illustre viajante, e o rei, de que elle, por assim dizer, se
tornou vassallo, com este novo género de beneficência, e
protecção.
NOTA DO TRADUOTOR
(Canto 1., pag. 27)
Une principahuente a teus plantios.
Vem no diccionario de Souza, e a harmonia e neces-
sidade do termo animo u-me a adoptal-o, parecendo-me
todavia que os camponezes o usam. A palavra paizagens,
de cuja pureza duvidei, acha-se em bons escriptores nos-
sos, sendo um d'elles Rodrigues Lobo, para mim de tanta
decisão como os melhores.
FIM DAS NOTAS.
AS PLANTAS
POEMA
DE
TRADUZIDO EM VEKSO PORTUGUEZ
Laudo ruris amceni
Eivos, et museo drcumlita saxa, nemusque.
HoEAT. Epist. X.
Canto os bosques, os rios, as montanhas,
E as pedras, que humedece, e forra o musgo,
(Do Traductor.)
PROLOGO DO TRÂDUCTOR
Pascitur in vivis livor: post faia quiescit.
OviD.
Amave], novo dom te ofFVeço, oh Lysia,
Attraído por mim do Sena ao Tejo,
Aos campos onde Amor, onde a Virtude
Dando leis desiguaes se conciliam.
As «Plantas» de Castel vaidosas surgem
Em mais propicio chão, mais doce clima,
De mais puros Favonios amimadas.
Pátria de heróes, de vates, pátria minha,
No caro, brando seio acolhe, ameiga
Risos, perfumes, o verdor, o esmalte
Com que em versos gentis, das Graças mimo,
Florece a Natureza, a mãe de tudo.
Cordeal gratidão te deve as lidas,
O desvelo, o suor, que mim forcejam
Para teu nome honrar, e honrar meu nome.
Existência nioniL dos Fnbios vida.
Duplicada por ti me esfore;; o gviiio.
116 OBflAS DE BOCAGE
A mente me refaz, o ardor me atiça,
Me fortalece o pé na estrada immensa
Que vae da natureza á eternidade.
Soltas de umbrosas, subterrâneas grutas
O meu dia invadindo, aves sinistras
Em vão de agouros, e de peste o mancham:
Em vão corvos da inveja á gloria grasnam.
Elles malignos são, tu. Pátria, és justa;
Veda que defraudado o génio seja
De seus haveres — o louvor, a estima —
Haveres, porque enjeita os da Ventura.
Aos versos meus posteridade abonas;
Ouço a voz do Futuro, ouvindo a tua,
Ouço-a; lá me prantêa, e lá me applaude.
Em sendo morte e cinza o que hoje é fogo,
As Musas, meu thesouro, Amor, meu fado,
Do amante, do cantor, de mim saudosos
Hão de com myrto e louro ornar-me a campa,
No humilde monumento hão de carpir-me;
E até da férrea Ulina algum suspiro
Talvez me afaofue, me console os manes.
D'arvores, que dispoz co'a maga lyra
De Virgilio o rival, Delillo ameno.
Transplantadas por mim, vireis. Amores,
Vireis, filhas do céo, co'as mãos, co'as azas
Expulsar agoureiro, estygio bando,
Maldicto, grasnador, nocturno enxame,
Que, voar não podendo^ odêa os voos.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 117
Limpos serão por vós do vil negrume
Os ares, que o sepulchro me bafejem.
Musas, suaves Musas! Não me assombro,
Vates de ingente gráo não se assombraiam
De que a inveja os mordesse, os profanasse:
Ancêa resplendor, grandeza opprime
O espirito arrastado, a mente escura:
Inveja nunca sobe, e quer que baixem;
Seus nojosos baldões desdanha o sábio;
Emtanto que elia ruje, o sábio canta,
E juiz não peitado o escuta, o c'rôa.
Se em podre lodaçal negrejam Zoilos,
As margens do Permesso Ismenos brilham,
D'alma pliebêa, creadora, accêza,
A verdade em relâmpagos vibrando:
Ferve no audaz Francelio, e rompe os astros
Sacro delirio, destemida insânia:
Jacinto aperfeiçoa os sons do plectro;
Clario co'a própria mão Salicio enloura
Revive em ti, Josino, a lacia Musa:
Menalca, da puerícia apenas solto
Já conversa c'os deuses; niveas plumas
Nas costas lhe rebentam, cysne adeja.
Melindrosos pincéis menêa Alcino,
E oíF'rece'em doce quadro Amor, e as Graças.
De tão vario matiz compõe-se o mundo.
Mil vezes o veneno acode á vida.
Eia! Os ódios cevae, cevae a infâmia,
118 OBRAS DE BOCAGE
Fúrias, que evaporaes tartareas sombras
Contra olympio fulgor, que envolve o génio I
Entre essa escuridão ralúz meu nome.
A Pátria os versos meus são apraziveis;
Versos balbuciei co'a voz da infância;
Vate nasci, fui vate, inda na quadra
Em que o rosto viril macio, o tenro,
Simelha o mimo de virginea face.
So ás Musas não pertenço, eu, que a Virtude,
Philosophia, Amor, cultivo, adoro;
Eu, servo da moral, das leis amigo.
Nos outros, como em mim, prezando a gloria;
Eu, que cem vezes concebendo o Oljmpo,
Absorto com Platão «'um mundo extranho.
Ou de olhos divinaes divinisado,
Sinto no coração, na voz, na mente
Tropel de aífectos, borbotões de idéas,
E — ((Eis o Deus! eis o Deus!...» — exclamo, evôa
De repente onde mil nem vão de espaço;
Pertencereis ás Musas, vós, sem fama,
Sem alma, sem ternura?. . . Ah! Longe, longe
De meus cândidos sons, que se enxovalham
Peçonhentos dragões, na peste vossa.
Graças, oh Phebo, oh nume ! Oh Lysia, oh pátria!
Vossos dons, vosso applauso altêam, firmam
Sobre a cerviz da Inveja o meu triumpho.
PREFAÇÃO DO AUCTOR
Não exaltarei aqui as utilidades do conheci-
mento e cultura das plantas. Este é o objecto do
poema, que publico. Se meus versos não forem
parte para que mais se ame a Natureza, não devo
esperar melhor êxito em uma prefação.
Esta obra foi composta no intervallo do anno
primeiro até ao quinto, e muitas vezes me conso-
lou, occupando-me. Quem é que não tem sentido
a necessidade de se acolher ao seio da Natureza?
Busquei n'elle distracções, que me eram indispen-
sáveis, e como sempre amei as plantas, foram ellas
o primeiro objecto, que se me oííereceu ao pensa-
mento. Paguei-me logo d'isto, considerando que
ainda não tinham sido matéria de poema algum;
porque o que temos em verso acerca das estações,
e até dos jardins, bem que falia de muitos vegetaes,
não pode chamar-se poema ás plantas.
120 OBRAS DE BOCAGE
Depois do momento de alegria, que se segue a
uma invenção aprazível, as difficuldades me aca-
nharam. Quanto mais attractivo era o assumpto,
mais temia entranhar-me n'um labyrintho de arvo-
res, de arbustos, de plantas terrestres e aquáticas.
O enjoo, inseparável do género puramente descri-
ptivo, furtou em breve aos olhos o feitiço dos epi-
sódios, e vi que o leitor pediria a quem o guiasse,
o fim de um passeio afanoso. Devia pois, antes do
tudo, estabelecer as relações com que releva olhar-se
o mais amável dos três reinos da Natureza. O ho-
mem (disse comigo) é destinado a lavrar a terra,
isto é, a cultivar as plantas; mas perdas reiteradas
o fazem conhecer que o suor não basta, e que a
mesma experiência pede instrucção. Mormente na
jardinagem, onde mais varia a cultura, é que se
prova similhante verdade. Cumpre pois, em um
poema como este, unir a theoria á practica, ou por
outras palavras, ligar o estudo das plantas com o
trabalho, que as tem por objecto. Reflecti egual-
mente que havia no anno quatro grandes epochas
— primavera, estio, outomno e inverno — pelas
quaes a Natureza distribue diversas producções; e
conclui que devia, imitando-a, dividir em quatro
partes os estudos e lidas relativas a taes produc-
ções. D'est'arte se me presentaram o plano e di-
visão da obra.
Depois de haver dado no principio do primeiro
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 121
canto idéa do préstimo da botânica, e proposto mo-
delos para a distribuição de um pomar, importava
cuidar-se nos trabalhos da primavera. Deduziam-se
d'aqui necessariamente o que exigem as plantas
ainda tenras; a extirpação das hervas, que as in-
commodam; a perseguição dos insectos e dos ani-
mães, que as estragam; como também os passeios
estudiosos e campestres, chamados herborisações,
e algumas vistas encantadoras, que nos offerece a
Natureza.
Regarem-se, é um soccorro necessário aos hor-
tos, e o principal trabalho entre os ardores do verão.
Em nenhuma parte esta quadra assoalha su;is ri-
quezas com mais pompa que nas visinhanças do
equador. Entre nós muitas plantas forasteiías, e
quasi todas as aquáticas, esperam esta epocha para
brilhar com todo o seu lustre, vestidas dos caracte-
res que distinguem géneros e espécies. Todos os
vegetaes, grandemente aquecidos, sobem ao maior
gráo nas suas virtudes, e a industria corre a apa-
nhal-os para as preci>ões e delicias da sociedade.
O que especialmente qualifica o outomuo é a
madureza dos grãos e dos fructos. Tem também
suas plantações e seus vegetaes. A hortaliça pnten-
têa então toda a fecundidade; então a terra se cobre
de cogumelos, e as plantas marinhas, arrancadas
dos abysmos pelas tormentas do equinócio, enri-
quecem as praias do oceano. Em breve a alteração
122 OBRAS DE BOCAGE
da verdiíra armuncia o declinar do anno, varias
espécies de aves desertam de um clima onde o ali-
mento começa a failecer-lhes; os pomares despem
seus derradeiros fructos, e pagam a divida da Na-
tureza ao homem laborioso.
Em campo aberto quasi nos não occupa o in-
verno; a estufa é que requer a nossa presença, e
nos indemnisa da esterilidade das hortas. Não digo
que os nossos climas temperados deixem de incluir
muitos attractivos, principalmente em comparação
com as terras polares, onde apenas vegetam raros
e miseráveis espinhaes. A folha dos azevinhos, a
verdura das giestas, os pinheiros orgulhosos e ou-
tros mil vegetaes, ou verdes, ou ainda em flor, ser-
vem para alegrar então a Natureza tristonha; mas
uma familia deve primariamente convidar nossos
olhos e estudos: fallo dos musgos e lichenes. De-
balde outríi estação quereria revindical-os: elles
são a ale o^ ria e quinhão do inverno.
Com estas idéas fiz o plano e quasi a analyse
da minha obra. Travei n'ella os episódios, e outros
atavios, a que suppuz apta a matéria, persuadido
de que o poeta deve pretender menos ensinar e
profundar urna sciencia, que attraír a ella os olhos
e fazel-a amar.
AS PLANTAS
CA-lsrTO IPI^IOS^EIRO
Campestres divindades, Pan, Sylvanos,
líájades, Fauno?, Dryades, Favonios,
Ou habiteis as rústicas florestas,
Ou de nossos jardins guardeis os bosques,
Seguir-vos quero: tutelares numes,
Iniciae-me nos mysterios vossos.
E tu, que um ócio grato aproveitando,
Dos sábios, dos heróes prazer tens sido,
Tu, que, lustra iid o a trémula verdura.
Dás formoso atavio a planta, e planta,
Sê minha deusa, oh Flora, e por meus versos
Dispõe boninas das que o mundo encantam.
Do Occaso á Aurora teu império corre,
Bordam teus dons as mauritanas margens,
Do pastor de Lapland attráes a vista,
Ornas as penhas de engraçado esmalte,
Té lá no pego as Dó rides te devem
O mimoso tapiz dos vitreos lares;
124 OBRAS DE BOCAGE
Da flor no seio o néctar insinuas
De louro insecto, que organisa os favos;
Por ti, quando selecta essência apromptas,
Luz a ambrósia nos festins de Jove;
Pejas os cachos de aprazivel sueco,
E nutridora espiga um de teus mimos;
Dos préstimos do fructo a planta ignara,
Sem ti dera não mais que estéril sombra:
As aguas formosêas, o ar, e a terra,
Teu sopro divinal perfuma o globo.
Riso da Natureza, iman dos olhos,
Desdobra ante elles a verdura amável,
E como nos cristaes de um manso arroio
As flores tuas em meus versos pinta.
Quando, na infância da estação mais bella,
As mornas virações derretem gelos,
Que olhos não folgam no verdor da relva,
Que se remoça, e do botão, que nasce?
Mas se attentarem que as tenrinhas plantas
Alçando-se, trarão comsigo em breve
O alimento, a saúde, os gostos nossos,
Quem lhe ha de os fados ignorar sem pena?
CJuem não verá que seu estudo fácil
E proveito aos mortaes, e adorno á vida?
Mil vezes herva espessa aífoga os trigos;
Logo porém no estio, arando a terra.
Sem jamais omittir dispêndios, lida.
Na joeira o cultor limpou sementes.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 125
Mas não conhece as plantas, cujo enxame
O terreno invadiu das novas messes,
E, exposto de anno em anno a seus insultos,
Perde tempo, e suor sem destruil-as.
Aos gados outras são veneno, e morte.
A novilha, ao volver da primavera,
Não pode entre os rocios, e entre as hervas
No olfato distinguir fallaz cicuta.
Morre, e a ignorância ern vão crimina a sorte:
Pastor menos inculto ao damno obstara.
Es dado a frequentar piscosas margens,
Amas a nassa, o junco, anzoes, e as linhas? .
Flora aos prazeres teus o eíFeito abona.
De quantos vegetaes a força, o cheiro
Possante engodo ao pescador ministram !
Talinhos de herva-doce a rede inclua,
E do nardo fragrante inclua espigas;
Colhe a hortelã, que te recende ao longe,
E hão de c'o pezo arrebentar-te as malhas:
Flora te diz também do peixe a vinda;
Apenas o agrião no prado assoma,
A porfia, transpondo a equorea estancia,
Aos pulos os salmões entram nos rios.
Ditoso quem trilhando a serra, o prado,
Aprendeu, vegetaes, a conhece r-v os !
Sabe que pasto agrada ao boi submisso,
E onde os roj antes peitos enche a cabra;
O 3 cordeiros brincões qual herva anime,
126 OBRAS DE BOCAGE
Qual ao ginete restitua o brio.
Quer que lustre vistoso as lãs enfeite?
VisinLos bosques lhe deparam cores:
Quer a peste abafar de um mal terrível?
Antidotos em flor lá tem nos valles.
Se da raivosa fome horrores lavrími,
D'elles a duração não teme aos filhos:
Cuida em remil-os a sciencia logo,
E expulsa precisões, velando á porta:
Dá-lhe luz, patentea-lhe o regresso
Dos naturaes thesouros, não pensado:
Nos bosques tanto fructo, aos ramos preso,
Tanto occulto na terra. Espalha, ensina
Com que arte agrestes plantas substituem
A carência fatal dos dons de Ceres;
E como soube em pães mudar a industria
Dós trevos o botão, do pinho a casca.
Vê pela folha, pela flor conhece
O desígnio dos sues, o das procellas,
E a monção das sementes, e a das ceifas.
Da sciencia mormente as leis escuta
Tu, que tornas co'a enxada a terra dócil,
E ordenas os jardins; mas não to eng/ines;
Entre os bosques somente é que releva
Estudarem-se as leis da Natureza.
Ella atravez dos campos quer que a sigam.
Quer que trepem com ella aos altos cumes,
Que busquem sítios onde crescem, brilham
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 127
VegetaeSj que plantou co'a mão prestante. "
Sem interprete ali fallando aos olhos.
Gosta de expor incógnitos portentos.
Plantas, que Tauro cria, e cria Atlante,
Desejas cultivar? Colhe no estudo
Qual o caracter é do chão, do clima
Em que usam de medrar ; que ventos amam,
Debaixo de que estrella emfim descobrem
Do seio os mimos : só então, sustendo
De uma flor peregrina o molle tronco,
Fazes que a pátria no teu campo encontre.
Mas anteponho a tudo amigas plantas,
Que a intempérie afrontando ao longo inverno,
Me habitam, por querer, no chão da pátria.
Se as voltas explorar vou d'um rochedo,
Acho, ao subir, favor na verde rama;
Se vastos campos corro, as flores suas
Seguem meus passos, e detém meus olhos.
Seus ramos complacentes, á porfia,
Se curvam para mim do fructo ao pezo :
Vivo dos fructos, e meus males fogem
D'ante as virtudes que .possue o tronco.
Vamos nossos jardins ornar co'as plantas,
E ao lavor nos presida o deus do gosto.
Douá ufanos rivaes a terra partem ;
Um, das regras fiscal, nascido em França,
Eatre as artes caminha, envolto em pompas.
(■ ninn-lhe a fronte mil festões, e as quadras,
128 OBEAS DE BOCAGE
Filhas da Natureza, o cinto lhe ornam
De ramalhetes mil. Ângulos forma
O til, e assombra além tapiz viçoso,
Leito das iiymphas. índios castanheiros,
Aqui, tecendo abobadas, nos vedam
A presença dos céos. Cada passeio,
Ahrindo-se, presenta á nossa vista,
De Marte os filhos, ou da Grécia os numes.
iSío chão crava Neptuno o azul tridente,
E ginete feroz do chão rebenta;
Enéas, dos leões trajando a pelle.
Os deuses de Ilion, e Anchises leva,
Pela sinistra mão tendo o filhinho.
Que de medo se volve, e o segue a custo.
Por não vistos canaes guiada, oppressa,
A nivel dos palácios a agua sobe ;
Rios de bronze, derramando as urnas,
Como que nutrem as saltantes ondíis.
O outro, cedendo a pompa, e laxo ás artes,
Do génio as digressões mais livre segue.
Em ti se apraz ha muito, ilha famosa,
Que separam de nós soberbos mares,
Mas que duros caprichos obstinados
Inda separam mais, por mal do mundo.
Pastorinha gentil, vagando á toa,
Dos passeios traçou-lhe a curvidade.
Arvores, em festões, em martinetes,
A modo que por si lá se ordenaram,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 129
.E, sem medo á tesoura, estendem, lançam,
A seu prazer, as voluntárias sombras.
Lindas cordeiras, de alvejantes vellos,
Retouçam pelo monte, as hervas tózam.
Nos ingentes pinhaes, do norte filhos,
Pan, dos cumes do cerro, as guarda, as vela.
A herdade ostenta aqui campestres graças;
O aceio n'ella mora, e n'ella ha sempre
A nata, o requeijão, presentes de Io ;
O junco ali se entrança, o queijo espreme.
Confusos parreira es além verdejam ;
Bróniio risonho, em mármore de Paros,
Ke apraz em seus dóceis, co'a mão no thyrso.
Ora corre, e murmura occulta a limpha,
Um lustroso canal ora apresenuí^
E, alongando cristaes por margens de ouro,
Oomo que offrece á nyiíipha solitária
De puro banho a saluctar frescura.
O mísero Acteon das aguas perto,
Por vingadoras pontas assombrado.
Diz a todo o imprudente: «Acata o pejo! D
Taes são d'estes jardins as leis diversas;
Mas tu, como Catão, prefere a isto,
Preíbie u geira, cujas simples graças
Dão mais proveito do que exigem custo.
Ao nascer da manhã comece a lida :
íCa : sem semente nada é bello.
130 OBRAS DE BOCAGE
Prepara, pois, a terra, e mão robusta
Ajude-se do pé, lho encrave o ferro.
Quando ouvires monótono gorgeio
De avo odiada do hymeneu, que ofFende,
Se a chuva por três noutes for perenne,
Diz-se que em dias três surgem sementes.
Vedado a Bóreas um canteiro elege,
Que sempre do zenith os soes aclai-em.
..Debaixo de torrões, das flores berço,
Fecha vapores de fumantes palhas.
Cedo, a semente ali desenvolvida.
Julga, pelo calor, o inverno estio,
E sem susio confia aos meigos lumes
Seu débil tronco, seus botões nascentes ;
Mas n'ella tu vigia. Apenas vires
Que a noute })elo céo vem negrejando,
Abrigo de cristal, e colmo espesso
Dar-lhe convém nos duvidosos mezes.
Karo não é que súbitas geadas
Vibrem golpe mortal de noute ás plantas.-
Aquilo furioso zune, atroa,
Nos tectos, saltinhando, a pedra soa.
Dos antros boreaes como que escapa,
E a nós do gelos volve armado o inverno.
Prógne estremece então, vollea. os Ln-es,
Abre vã meu te o bico, insectos caça;
Mas o frio os detém na estancia immoveis.
POEMAB DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 131
Deofallecida cát; : Zéplivio accusa.
Que, chamando-a com liáiito ei^ganoso,
A vinda lhe apressou j e urdiu seus males.
Sem ti, cultor sagaz, do Flora alumnos
Eecemnascidos, cairiam todos,
E dos campos da vida exterminados.
Iriam povoar da morte os campos.
Entretanto do sol fervor disperso,
E o, que a nuvem goteja) humor fecundo,
Nutrindo as flores, de caminho alteam
A herva, que as offusca, e vive d'ellas,
Eis o fado comniuui. Da inveja os ramos
Oo'a negrejante sombra o génio abafam,
E a miúdo o prazer, ílôr doce ao homem,
Se murcha no trabalho, á dor succumbe.
Assim chusma odiosa em teus canteiros.
Mordaz ortiga, ethusa peçonhenta,
Herva, que de Mercúrio inda se chama,
O marroio, e mormente as que, indomáveis,
Ama o sabujo, porém Flora odéa,
Brotam, co'h triste sombra vexam tudo,
E quantas se destroem nos longos dias,
Ileno^•am-se de noute eHi liora fresca.
Mas d 'estes vepetaes o au.omento fácil •
Também aproveitar-;5e ás veíses pckle.
Dêem-st a Vulcano. A flamma ainda occulta
O já sccco montão corre es(alando,
Ve-se aos ares subir um denso fumo;
132 OBRAS DE EOCAGE
O lume ondêa emfim, caindo as liervas,
E entre 1is cinzas deixando um sal, que esforça
A languidez díi preguiçosa terra.
Nada falta aos jardins, de aceio, ou pompa,
Cada planta cumpriu sua promessa.
Vôa-lhe ao seio a murmurante abelha,
Borboleta louçã faz doces fructos,
Vae, torna á flor, ao ar: vagiiêa incerta,
E com seu leva adejo adorna a scena.
Por aqui, por ali flóreos theatros
As bélgicas cidades alegravam.
Lá do um, lá d'outro objecto á vista presa,
Da escolha exp'rimentava o grato enleio;
Ia indecisa do carmim ao ouro,
Do azul ao branco, do violete ao róseo.
Tal, ante as deusas, duvidoso, oh Paris,
Tinhas nas graças enleado o voto:
Quasi entregando o pomo a Juno, a Palias,
Vénus olhavas, e co'a mão fugias:
Mutuamente as rivaes se deslumbravam.
Porém já de inimigos turba infesta
Invadindo o.^ jardins, devora a um tempo
As hasteas, a raiz, a casca, o cerne.
Seu mal o arbusto saneando, apenas
Cuberto o golpe tem de fibra nova,
Quando, na cicatriz encarniçados,
A tea renasconte elles desfazem.
Tal de ab 1 no curvo bico
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 133
Renascem para a dor de Ticio os membros:
Xo sangue, que se exhaure, e se renova,
Cevar se dia, e noute algoz eterno;
Gira-lhe o peito, o coração lhe rasga.
Que vive sem cessar, sem cessar morre.
Não imagines que meus versos digam
Redes, ciladas, e os engodos vários
Com que destróe o ardil a infensa praga;
As aves melhor que elle hão de escudar-te.
Vê nas florestas voltear, cantando,
O pisco avermelhado, a tutinegra,
Milheiras, verdelhões, e melharucos:
Os damninhos espreitam, e os perseguem;
D'elles afie iram, e á contigua planta
Vão seus filhinhos alentar com elles.
Triste a toupeira subterrânea, tristes
Outros vis animaes, se torre antiga
Ergue as amêas sobre as terras tuas!
Alados caçadores, negros corvos,
Grasnando, se arremessam do alto asylo,
E d'essa. vexação teus campos livram.
Amem-se as aves, pois : os frescos Valles,
O móbil, verde trigo, a rir nos sulcos,
Romansos, grutas, prestariam menos
Sem os brincos, e a musica das aves.
São guarda dos jardins. Formoso arbusto
Fica mais bello, se lhe abriora os ninhos.
A mercenária mão quanto aborreço,
134 OBRAS DE BOCAGE
Que ás miserandas mães a prole arranca!
Ah ! Deixem-se emplumar nas selvas nossas,
Consinta-se que animem valles, montes.
Porque as prendemos? Na prisão não pode
Dar-se-lho o bosque onde trinar lhe é doce;
Nem a planicie aérea, ou mouta amiga,
Que seus prazeres, seus amores sabem.
Aves acordam no modesto abrigo
Das plantas o amador; sáe da cidade,
E vae por entre as matutinas flores
Admirar o jardim da natureza.
Que encanto ! Que esplendor ! Por toda a parte
Lhe oíF'rece a terra graciosos quadi-os.
Ouro da primavera esmalta os cerros;
Narciso inda se inclina, e vê nas aguíis;
Como a virtude no retiro humilde
Tráe as violetas seu gentil perfume.
Nas sombrias florestas entra o sábio;
Das rochas escarpadas sobe ao pico
Para indagar os vegetaes sadios,
Que á pesquiza vulgar Vertumno esconde;
E acolhe-se, Já noute, aos lares doctos,
Co'a rica preza carregado, alegre.
As vezes de meninos docii turba
Por meio o segue dos lavrados campos;
Aos montes circumstantes chegam, trepam;
Esquadrinhana-se as mattas uma, e uma.
Se algum canto recata ignota planta,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 135
Levam-n'a logo ao sábio: elle a nomêa
A multidão pasmada^ e faz que observe
Figura, e graças, e caracter d^ella,
Que mez encanta, quo logar matiza.
Segui, menitios, tão soave estudo;
Flora seus dons vos cede ás mãos mimosas,
Mas poupae sempre os botõezinhos tenros.
O seu quinhão deixae da selva aos deuses,
Amantes, como vós, de agrestes plantas.
E fama que ao luar se tem já visto
Danças n'um vâlle urdir Faunos, e Nymphas,
E a trança engrinaldar. São estes numes.
Cuja occiíltn, benigna providencia
Conserva os montes, e repara os bosques;
São elles, que em campestres, ledos jogos
Animam com seus sons penedos, faias,
E os eccos formam, resoar fazendo
De colina em colina as vozes nossas.
Também da Natureza eu namorado
Buscava, imberbe ainda, ermos, e sombras.
Raramente Versailles me attraía,
Nos bosques de Senars dias levava,'
De Avron as leivas discorria, e foram
Fontainebleau, Compiegne os meus El^sios.
Céos ! com que regosijo em teus passeios
Vi, Meudon, a abdhinha portentosa,
Insecto vegetal, de flor alada,
Que parece voar, fugir do tronco !
136 OBRAS DE BOCAGE
Venha uma planta egual, cruzando os marcs^.
Venha de Amboino, ou de Ceiião remotos;
Ha de em todo o logar maravilhar-nos.
A riqueza porém de nossos bosques
Se ignora, e chama em v^o quem a avalie,
luvade o caçador a estancia augusta,
E ecco ali só repete os sons da morte,
Ou golpe, e golpe do ávido matteiro.
Vem, feitiço dos valies, branda Ehsa,
Que de Amor, e Minerva os dons possues,
Com teu esposo vem. Já no oHente
Alegra, tinge ps céos manhã de rosas,
E o sol em breve, de rubis cVoado,
Verás á porta dos palácios de ouro.
Segue o trilho orvalhoso, aqui por onde
Zéphyro eptende co'a folhinha incerta,
B fragrâncias lhe rouba, eguaes ás preces
Que essa bocca innocente aos céos envia.
Junto á vereda, que rodea o combro,
Ante a pereira em flor, vês pobre choça?
O dono, esse bom velho, hontem seguindo
Seu cabritinho, que fugia aos saltos.
Caiu, feriu-se n'um penedo. Ah! Vamos
Buscar algum remédio a seu tormento.
Vê como nos ajuda o teu filhinho;
Nas melindrosas mãos lá vem trazer-te
Simplices, gratos de Epidauro ao nume;
Solda real,^ centáurea. Ao velho afflicto
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 137
Demos de amiga face o refrigério.
Ai! Se a dôr^ que padece, eu padecera,
Que doce, que efficaz me fora olhar-te!
Delicias como as nossas não conhece
Homem, que da molleza está nos braços.
Em vez de a seus irmãos sarar os males,
Misérrimo entre os miseros é sempre.
Filho da saciedade, o triste enjoo
Seus mais doces prazeres tolda, empesta.
Flores n'um prado, e n'outro em vão revivem^
Ceres debalde os sulcos enriquece,
Entre seus cortezãos Lyêo campeã,
O inverno aos olhos dá severos quadros:
Nunca taes scenas admirou o inútil,
Scenas da Natureza : é como aqueile
A quem barbara mão cegou no berço,
E cuja umbrosa vida é somno eterno.
Crescendo, dobra o lustre a Natureza;
Vigor celeste a mocidade anima.
Tudo fermenta, existe. Olha o carvalho:
Lá formosêa o chão co'as tardas sombras.
Vem á terra sedeuta húmidos ares,
E a frescura do céo na terra induzem.
Em torrentes o sueco inunda os gomos,
Perfuma o valle, aromatisa o bosque,
Recrea-me os sentidos, e parece
Que as origens da vida em mim renova.
138 OBRAS DE BOCAGE
As aves nos seus ninlios cuidam todas;
Colhem crinas, que despe o mareio bruto,
Leves guedelhas, que o picante espinho
A mansa ovelha na passagem rouba.
Seus mil requebros exprimir quem pode,
Transportes, brincos, e negaças brandas?
Vê o ardente pardal, se o punge Vénus,
Como treme, e esvoaça em torno á fêmea ;
Parece redobrar o ardor na posse:
Mil vezes morre em gostos, mil renasce.
De novo myrto Amor já cinge a fronte,
Do mundo vegetal fez a conquista:
Exceptua os ciúmes, e outros males,
Verás que as flores, como nós, se inflammam.
Oh tu, que em Paphos, em Cythéra incensam,
(Que digo! O templo d'elle é toda a terra)
Gran deus ! Co'um volver de olhos tu me alenta ;
Ergue meus versos ; vou cantar- te a gloria.
Em azues pavilhões, purpúreos, verdes
A pompa nupcial dispoz Cyprina.
As plantas, que só Zephyro abalava,
íí'outros meneios seus desejos pintam.
Abrem, riem-se, incliuam-se, e confundem
Os fogos, as paixões, que amor lhe inspira.
Se o dia se marêa, e céo de nuvens
Damnos lhe agoura, de repente o cálix
O ramo, a folha, unanimes se agitam.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 139
Para esqiiivar-se da procella instante.
Cerrados pavilhões os golpes frustram,
E a mais snave tempo amor trasladam.
Cada espécie tein leis; guarda uma estancia
As vezes par a par o amante, e a amada:
Em diíF'rentes estancias habitando,
Longe um do leito do outro ás vezes. vive.
Tal sobre os prados o salgueiro ofí*'rece
Sexo diverso nos floridos troncos.
Quando para o Carneiro o Sol tornando,
No cotihe Amor conduz, e a Primavera,
O macho faz voar por entre os campos
Substancia fecundante á verde sócia ;
Um lado de permeio embora esteja:
EUes (mercê de Zephjro) se gosam.
O Rhódano entre as ondas escumantes
Por dez luas nos furta aos olhos planta
Que na estação de amor desmnnda o tronco,
A flor das aguas sobe, e luz nos ares.
Os machos, atéli no fundo immoveis,
Rompem seus débeis nós, seus laços curtos;
Com livre, afouto ardor ás fêmeas nadam,
Gran séquito lhes formíim sobre o rio:
Festa se anfolha, que Hjmenêo risonho
Pelas ondas azues guia, assoalha.
Mas tanto que de Vénus finda o prazo,
O tronco se retira, encolhe e torna
Semente a amadurar no centro d'a£:ua.
140 OBRAS DE BOCAGE
Juncto aos pólos glaciaes, nos fins do mundo,
Onde rápido inverno o estio absorve,
E em vão deseja sasonar-se o fructo,
Derroga Natureza as leis constantes,
Faz do cálix sair vivente planta,
Que se une á terra, e, de vigor provida,
Brevemente da mãe a altura eo:uala.
A noute, amiga do prazer mais doce,
Presta aos suspiros tutelares sombras;
Lá entre os vegetaes o rei das luzes
Aos mysterios de amor é quem preside.
Mal que ás portas dó céo velan lo as Horas
No carro as guias de ouro ao Sol commettem,
E o primeiro fulgor, que d'elle escapa.
Guarnece no horisonte os agros cumes,
Dos súbditos de Flora a maior parte,
Cortejando louçãos a etherea deusa,
Celebram hymeneus por entre os vivas
Das aves encantadas. Outras flores
As horas querem antes em que a terra
Das húmidas manhãs o orvalho exhala;
Mas cada qual de noute o rosto vela,
E em ponto certo se retira, e dorme.
Se alorumas flores de estranofeira ori^^em
Evitam entre nos diurnos lumes,
Quaes as bellezas, que na corte imperam.
Velando as noutes, e dormindo os dias,
É que lá, d'onde ao seio as trouxe Europa,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 141
Nasce a luz quando cá se espalham trevas;
E que, segundo as leis da pátria sua,
Se abrem, sem ter diífrença em mez, e em hora.
Taes, não longe de um lenho aberto de ondas,
Miseros nautas, evadindo a morte,
Relíquias ajuntando em ilha ignota,
Os costumes da pátria ali transplantam,
E, mantendo-lhe as leis n'outro hemispherioj
Seu infortúnio, seu desterro adoçam.
Porém que nova scena! Um leve insecto
Aml núncio das flores eis se torna.
Desviados no campo esposo, esposa,
Terreno, que os desune, anda,j' não podem?
A abelha, volteando a elle, a ella,
Do reciproco amor conduz penhores.
O komem também lhe presta industria fértil.
Onde arde o clima, e florecente a palma
Mostra inclinada que ao amante acena,
O africano ao palmeiro um thyr^o arranca,
Sacode-o sobre a fêmea, e vae no outomno
Colher d'esta união não raros fructos.
Más ao seu quadro amor me prende ha muito,
E inda três estações pincéis me pedem.
142 OJBBÁS DE LOCAGE
0-<íík.2>a TO SEGI-XJ3SriDO
o astro pomposo, ^iija luz fecunda
Presta aos dous mundos o calor, e a vida,
Transpoz dos Gémeos o brilhante signo,
E no cume do céo reluz, triumpha.
Trajando as estações diversas galas,
Sentadas sobre nuvens o rodeam.
r'or mão d'ellas verdura entorna, e flores,
De Ceres a riqueza, os dons de Baccho,
Rouca tormenta, que liquide os ares,
E que, apurando-os, fertilize a terra.
Eis, volvendo ao Verão benigna face,
ccVem, sobe ao cíhto meu (ili/:' :-c:\h'^ oli filho;
Na gloria minlia, em meu • ii parte;
Quero illustrar cointigo ' ■ tzu.
Eia, destapa os moijte; . . . .js
De altas í^oailas, oue meu raio afroíitam;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 143
Faze rolar nos liyperbóreos mares
Montão medonho de azulados gelos;
Ondas, do norte ao equador pulsadas,
Das correntes, e fluxo auctor te acclamem.
Aguas povoa, e ar; manda de insectos
Sobre as lagoas adejar negrumes.
Manda enxames zunir dVmtre as hervinhas.
Seus ténues habitantes dandc ás flores.
Por ti fuh^o metal na terra bidlhe,
Accenda-se o rubi nos teus luzeiros;
Inda mais úteis dons confere ao homem,
Verdejantes espigas enlourece,
Os trigos doura, que apiedad% Ceres
Lhe deu para ajudar-lhe o pezo á vida.
Diz, e dos fados seus o Estio ufano,
Executa de Phebo as leis supremas.
Espraia seu fervor no céo, na terra,
Rio é de fogo, e se insinua, e corre.
Não lhes empece, aos campos aproveita,
Que a Natureza em paz vestiu de plant.is,
Onde a relva confusa, o musgo, o feto
Tapam de espes&os véos a térrea face,
B o que á fecundidade é prestadío
Só deixam n'ella entrar de estivos lumes.
Nos logares, porém, onde a arte impera,
De Floia nos jardins, nos teus, Favonio.
Pola calma esgotado, o sulco em breve
I.^-s floies suas vê murchar-se a gloria,
144 OBBAS DE BOCAGE
Se vida o regador não restitue
A prostrada verdura, em claras ondas.
Nymphas, que ás fontes presidis, e aos rios,
Vossos puros cristaes prestar-nos vinde.
Feliz quem nos seus campos vê surdindo
Vitrea nascente de húmido penedo !
Ribeiras luzem mais, porém mil vezes
Risco attesta o pomar de o visintarem.
A terra não se apraz de ser banhada
Se, pisando-a, simelha os sons do bronze,
Se o meio- dia accezo a tez lhe torra.
Corre agua, que lhe' dás, em vão por ella;
Desespera inda ma^ sedes, que a mirram,
Nos ares se evapora, e vae.-se em fumo.
Assim de Yemen o incenso, em dias" faustos,
Mal toca o lume, que na pjra estala,
Súbito ardendo, súbito exhalado,
Aos^ deuses voa na cheirosa nuvem.
Quando a Titonia moça enfeitam, cobrem
Docel (ie rosas, de jasmins grinalda,
Inda mais quando, oh Vénus, o teu astro
Converte em mansa noute o dia inquieto,
E que a terra, da calma respirando,
O regador chuvoso anhela, e chama.
Depois de estivas, ensuadas horas
N'haste pendente desfallece a planta;
Mas*se a frescura lhe penetra o seio,
Logo se animam seus vencidos órgãos,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 145
E reverdece logo, e bella, e branda,
Por entre virações altêa a fronte.
As aguas alegraram planta, e planta;
Todas em largo sorvo as têm gostado.
Em quanto do seu giro o sol no termo
A'â sombras inda oppõe de luz um resto,
Tu visita de novo as tribus verdes,
Kecolhe cá, e lá seus mil perfumes.
Vê n'um, n 'outro logar luzir-lhe a folha,
E a imagem da ventura em toda a parte.
Os botões amanhã do cravo e rosa
Te deixarão prever seus attractivos;
A cereja, o damasco hão de pagar-te
Desvelos, que exerceste em cultival-os,
E serão teus jardins no estio ardente,
Quaes os legares, do equador visinhos,
Onde sempre escaldada a terra, e fértil,
Delicias nutre ao mundo, e não se estanca.
Lá nos pulidos campos, lá nos bosques
Seus dons ostenta mais soberba Flora.
Monstruoso arvoredo assombra a terra,
E 08 tempos, os tufões como que insulta.
O Seiba, erguido ali qual torre immensa,
Abarca peiras cem co'a vasta rama.
Seus braços, ás- florestas sobranceiros.
Outras florestas são, pelo ar suspensas.
Oh quantas gerações se tem sumido.
Que impérios d'ante os olhos tem voado,
10
146 OBRAS DE BOCAGE
Desde que este gigante aos céos levanta
A fronte, que de séculos blasona I
Mil vegetaes^ ao sol não menos caros,
São de rara virtude ali munidos.
Deleitoso café, o engenho espertas,
Valem teus suecos a Perméssia limpha,
Ántidoto celeste ali roxêa
Quando a febre assanhada o pulso inflamma;
Trepadora baunilha ali me alegra,
E a siliqua fragrante une aos arbustos.
Ufano olha Ceilão seus bellos bosques,
Das Molucas a noz festins perfuma.
Certa planta (oh prodígio ! ) a seus encantos pJI
Liga os melindres do virgíneo pejo.
Se cora dedo indiscreto ousas tocal-a,
Quer esconder-se a pudibunda folha,
E ás mesmas leis fiel, o móbil ramo
Se inclina para o tronco, e cinge a elle.
Admiro as redes, que, ao mosquito infensas,.
Arachne dependura em torno aos tectos;
Mas do insecto ardiloso o ténue fio
Excedem muito da Diónea as artes.
A folha entre lagoas embuscada.
Recata n'ura mel puro aguda ponta,
E de mola infiel se arma, se ajuda.
Mal que a menêa famulenta mosca,
A folha encolhe, e o temerário insecto
Eis traspassado, e susurrando, expira.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 147
De uma flor tão cruel se arrede a vista.
Lustra *siniaryllis; o jasmim branquevja,
Festões se aiono^am em redor da ao-athis.
Purpúrea os botões gentil cougorça.
De verde tamarinçlo á fresca sombi a
Quanto fóIgo de olhar paizagem rica,
Onde em seus ramos o nopal sustenta
Da purpura de Tyro o triste herdeiro;
Onde instáveis cipós das rocjias pendem;
Onde a romã brilhante arêas cobre,
Onde. . . não posso numeral-os todos.
Bisonhas flores, delicados fructos,
Porque me recordaes a historia amarga
De extinctos povos cento a ferro, e fogo !
Patrono de cruéis conquistadores,
Devera o Fado abrir-lhe os campos vossos?
Ilha remota se demande, oh Musas,
Vedada pelos céos á crua Europa.
Exponde aos olhos meus ditoso valle,
Tégora dos mortaes não profanado.
Vós me ouvis. Eis magnifico arvoredo
Desparze em torno a mim fragrantes sombras.
De uma fonte commum, qaaes vem dous gémeos,
A prado ameno dous arroios descem.
Suspira sobro o myrto a bengalinha;
Por entre as palmas, que Favonio lóça,
Enbros loris, e os verdes papagaios,
/brigados do sol, nas folhas saltam.
148 OBRAS DE BOCAGE
Nuvem de araras magestosa brilha,
Pousa nos ramos, e a floresta occupa.
Já nas palmeiras seu revolto bico
Abre os fructos, que forra hirsuta casca;
Já mimoso ananaz, que sáe das hervas,
Os aéreos convivas junta em roda.
Innumeraveis ninhos entre as flores
Um ar vivificante ali respiram;
A rija tartaruga a passos lentos
Ali junto do mar seu pezo arrasta,
Quando as aves, que amima o deus das ondas,
Os ermos deixam do Oceano immenso,
E as ruivas praias costeando, aos gritos,
Em tropel, quasi noute, as selvas buscam.
Ao ridente logar ncão pode a Noute
Do dia o resplendor furtar co'as sombras.
Tanto que desce, numerosas plantas
Se accendem todas, e nas trevas luzem.
De insectos mil, e mil radiante chusma
Nos áureos laranjaes lustrando brinca.
Relâmpagos lhe espirram d'entre as azas,
E lá scintilla cada folha ao longe.
Cessa o recreio, a escuridade reina:
Eis prazenteiro enxame a luz innóva,
E adeja, e vôa, e folga no ar, que doura.
Mas sombras taes, que a Natureza inflamma,
Montanhas do Peru, planicies d^Asia,
Mal podem, França, equivaler-te ao clima.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 149
Vences o Egjpto, onde três vezes no anno
Se c'roa a terra de opulentas messes;
De Mavorte a cidade, aos reis terrivel,
Nos tempos de ouro te invejar^ o lustre.
Pastora, junto ao Sena reclinada.
Jamais temeu do crocodilo assaltos;
Incauto caçador nunca em teus bosques
Pallido recuou, da serpe á vista,
Que, d'entre o matto, qual palmeira enorme.
Abre, surgindo, as matadoras fauces.
Gados soberbos em teus valles bramam,
Orna-te os cerros pâmpano afamado;
Corre teu puro azeite em rios de ouro;
Ceres te abasta os próvidos celeiros.
Junge Marte a seu carro os teus ginetes,
E Nerêo de teu raio ao fonge treme.
Que monumentos de grandeza extranha!
Olha: é Bossuet, que assoma, e que troveja,
É Descartes, que ao mimdo illustra o cáhos;
E Corneille, Pascal, Boileau, Pacine;
Este das leis oráculos decifra,
Outro da Natureza expõe piilagres;
kE tu, também, que os titulos sagrados
Restituíste ao mundo em letras de ouro.
Eis, eis Martel, que na remota edade
A fúria rebateu do mouro infesto !
Carlos, que, de reis cento amparo, ou jugo,
Viu a terra, a tremer, calar-se ante elle;
150 OBRAS DE BOCAGE
Os Bayards, os Guesclius, da guerra numes,
E cá mais perto Catiiiat, Turenna.
Oh páo da Natureza ! Oh grande ! Oh justo I
Este império protege, onde ordem nova
Com teu favor divino, á sombra tua,
O templo social reforça, estêa.
Manda que a paz celeste, e que as virtudes
Em luminoso grupo aqui descendam,
E a amisade, esse bem, por ti creado,
Para se consolar, e ornar-se o mundo.
Dos magistrados esclarece a mente,
A' ventura geral seus passos guia;
De novos Linos as vigilius honra,
Maravilhas de um Deus confia ao sábio;
-Amável pejo na donzella influe,
íío rosto a graça, e candidez lhe apura;
Forme, unida ao consorte a casta esposa,
De seus filhinhos seu primeiro enfeite;
Eterniza das leis o amor sagrado,
D'e]las escudo, consistência d'ellas,
E o sol, reflexo teu, jamais aviste
Grandeza, que deslumbre a pátria minha.
Entremos outra vez nos alr.os bosques;
Debaixo de ar accezo o chão se greta.
Sós as florestas nos off*' recém risos,
Sós nos ofí*' recém a frescura, e graças.
Ao pó da estancadeira, ao pé da esteva
O abrótano levanta azues espigas,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 151
Eis junto ao pinho a teucria resinosa;
O trovisco a familia aqui desparze,
Ali brilha o botão do cravo agresfce;
Rubro medronho as hervas embalsama.
E de fausta cidade a selva emblema,
Cada espécie concorre ao bem de todas.
O forte ajuda o fraco; este atavia
Em anno, e anno o bemfeitor co'as flores;
Como guarda fiel, o agudo espinho
Pósta-se aqui, e ali, rechaça os gados
Com seus mordazes bicos; e apadrinha
As arvores nascentes. Mil renovos.
Moço, e fértil enxame, além presentam
Dos tenros fructos a colheita fácil.
Girem mais alguns soes; verás aos bosques
Ir de uma, e d'outra aldêa a destro povo,
O pastor despegar do leve ramo
A noz, que esmaga, e que á pastora offrece.
Alçam em tanto ao céo carvalhos, olmos,
O bordo, o freixo, as arrogantes copas;
Dos raios o furor provaram muitos,
Os outros, alargando anuosas sombras,
Glorioso reinado illesos findam,
E attestam protecção de amigos deuses.
Longe dos seus rivaes, lá sobre os troncos
O corvo, em solidão, vae aninhar-se.
Mas numerar quem pode os vários entes,
Que erram nas folhas, e que o lenho inclue?
152 OBRAS DE BOCAGE
Desde o hypo, que lhe jaz aos pés lançado^
Té ao ramo entre as nuvens escondido,
Vivem átomos mil em cada fenda;
Um povo em cada nó se cria, e ferve.
Nasceram co'a manhã, terão á uoute
Da epheméricá vida extincto o prazo.
As mesmas selvas para nós derramam
O fluido vital, alma do mundo;
Prestantes, vigorosas fibras suas
O mais profundo chão também penetram;
Sorvem a agua invisível, e em vapores
Sãos, fecundantes, do escondrijo a elevam;
Dão vitreo cabedal do monte á« njmphas.
Que refrigere, que humedeça os campos.
Mostrae-me, oh rios, descubri-me, oh lagos,
Vossos bellos thepouros verdejantes.
Quem vos tocara as húmidas madeixas,
Do timido germano usado abrigo 1
Quem vira as plantas, que alentaes no seio !
Quem o jardim das escamosas turbas !
Paremos juncto á florida coUina,
Donde o Marna se vê regando os prados.
Lá salgueiros sem conto ao rio inclinam.
Ou endereçam para o })ólo a rama.
Insecto singular nas folhas mora,
E exhala sobre a margem róseo cheiro.
Os golphões sobre as ondas aplanadas
Formam d'aquem, d'aléin, tapiz soberbo;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 15?i
O purpúreo Htronio, o morto cardo,
Dão lindo enfeite á solitária margem;
No próximo espinheiro as campainhas
Entrelaçando a flor, que a neve abate,
Cubrindo de festões seus intervallos,
Das graças vegetaes o nó parecem.
Ás vezes mo extravio, e desde a aurora,
Distante do logar, vagueio incerto.
Eis entre serras me apparece um lago,
De que este, e aquelle extremo as névoas toldam.
Mas tanto que as penetra o sol fervente,
Dos cumes atravez as vejo alçar-se;
A agua logo reluz, e a sombra ao longo
Das vastas selvas, qual espectro, foge.
Em todo o seu primor olho o thesouro,
Que ao sitio deram circumstantes numes.
Rochas amontoadas juncto ás ondas
Mostram-me arbustos entre as longas fendas;
Por baixo esta brilhando o verde musgo,
E a seda eguala, tão suave ao tacto.
No lago o crespo abrolho, entre aguas duas,
Estende a fluctuante, a hirta casca.
Se de Eolo algum filho, ali cruzando,
De erguer as ondas folga, rolam fructos,
Pelas vagas, e o vento arrebatados,
E vem perto de mim cair na margem.
Atys assim das arvores á sombra
Ia es.tudar-te as leis, oh Natureza.
154 OBRAS DE BOCAGE
Tempo viçoso, que se perde, e chora,
Lucrava, ornando no retiro a mente.
Só vinte primaveras tinha o moço,
E do contorno as plantas já sabia.
Nem cerro esconso, nem trementes lagos
A sôfrega pesquiza lh'as vedaram;
Attento as indagava; em seus costumes,
Seguindo-lhe os progressos, se instruía,
E quando a viração lhes abre o seio.
Ia colhel-as no virente asylo;
Em dobrado papel a flor lançava,
Mantendo-lhe d'est'arte a cor, e a forma.
Eis seu prazer. Lucila, os seus amores,
D'este mesmo prazer participava.
Das filhas do alto Olympo as graças tinha.
Tinha a bondade, mais celeste ainda.
Lá nos valles de Emílio os dous moravam;
Sabia-se este amor: sua alma ingénua
Occultar não podia ardor tão puro,
E a tão puras delicias não bastava.
Danças, e jogos annuaes na aldêa
De Lucila o natal annunciavam:
Realçando o festejo, emfim se ajusta
Ir celebral-o no interior de um bosque.
E, para dispor tudo, eleito o amante:
Parte, e com que fervor ! Quem ama o julgue.
Oh ! Que projectos a paixão lhe inspira !
Oh quanto diminue, augmenta, e muda !
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 155
Deviam-se ajuntar n'um fresco sitio,
Onde entre sombra, e luz fallece o dia.
Onde Zephyro assiste, as plantas folgam,
Brilha o sol no zenith, ou no horisonte.
Ás arvores em torno se arredondam,
Une- as prisão de amor, prisão de flores.
Forma thronos de relva a mão do amante;
Aqui da linda moça imprime o nome;
Versos do coração, mimosos versos,
No tronco de uma faia, além commovem.
A obra se ultimou conforme ao gosto:
Atys gosa o porvir, já vê na mente
Pela estancia de Flora entrar Lucila;
Vê pudico rubor tingir-lhe a face
Ante o campestre, não previsto adorno,
Onde as artes de amor Amor conhece.
Emtanto do hemispherio o sol fugira;
Enluta-se a floresta, o som do raio,
Qne urrava ha muito nas remotas serras,
Em pezadas carrancas se aproxima.
C( Adeus, ditoso bosque, asylo amado;
Em teu seio amanhã terás Lucila.
Amor, por lhe aprazer, de ti desvie
Os bravos furacões devastadores;
E nada triste aqui lhe affliju os olhos.»
Assim fallava o misero, eis que o raio.
Da nuvem rebentando, o colhe, o mata.
Renasce o dia destinado a prantos,
156 OBRAS DE BOCAGE
Sem que assalte os ouvidos nova infausta.
Risonhas aldeãs cem teigas enchem
De brandos lacticinios saborosos,
E da purpúrea ginja, e dons de Ceres.
Solta madeixa lhe engrinaldam rosas,
E em triumpho Lucila ao templo guiam
De verdura, e de amor. . . Mal sabe a triste
A que horrendo espectáculo a conduzem !
Chegam, cantando, ao bosque. Entra Lucila;
Entra, e ve no pavor de áridas sombras
Inanimado, em pé, sem cor o amante,
Sustendó-se n'um tronco, extincto quasi.
«E elle ! E elle ! Oh céos !» exclama, e voa
Com face cor da morte ao malfadado;
Acodenà-lhe, e, carpindo, as companheira^
Desejam mitigar-lhe as ancins mudas;
Seu rosto sem vigor ao seio encostam,
E a levam fria, e semimorta aos lares.
Oito luas entregue a viram sempre
A desesperação, sempre á saudade.
Cerrado ao mais, té surdo á natureza.
Seu coração mantinha o golpe occulto.
Plantas, que tanto amou, não resistiram
Ao duro inverno: pereceram todas.
Como as flores também murchando a triste,
No sepulchro immatura ia abjsmar-se.
Eis menino gentil, que nos suspiros
Explica o mal da mãe prostrada, enferma,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 157
Hervas implora, cujo amargo a livre
Da pertinaz doença raladora.
Lucila recordou que aos infelices
Atys o coração jamais fechara,
E, o pezo das angustias arrastando,
Aos campos, mesmo assim, dirige o passo.
Era o tempo em que o sol das ondas surge;
E com puniceo raio as serras cora.
Acordando co'a luz, se erguia a planta,
De orvalhos, de boninas esmaltada;
Aroma salutar vagava os ares ;
Saíam d'entre o bosque as avesinhas;
Quaes pedem pelo campo á Natureza
Dos implumes penhores o alimento,
Quaes vão de ramo em ramo, e lá gorgeiam
Os versos naturaes, que Amor lhe ensina.
Lucila os olha, os ouve, e chora, e geme.
Volve em si, colhe a salva, e colhe a arruda,
Vae preparal-as, e em três dias nota
Que o mal, sem* força já, desapparece.
Folgou, como Atys, de girar nos campos,
E, adorando-lhe as cinzas, foi, como elle,
Esperança, e guarida aos desditosos.
Vinde aos campos, oh vós, que as magoas finam,
E os filhos de Chiron aos -campos venham.
Piedosa a mão de um Deus a nossos males.
Contém nos vegetaos o seu remédio.
Três elementos os compõem mormente:
158 OBRAS DE L OCAGE
O páe do acido é um, páe d'agua é outro,
E emfim nec^ro carvão. Com taes princípios
Roupas de flores o universo envolvem.
Segundo os climas variando espécies,
Nos medem precisões pelos haveres.
Quando a tosse importuna em crebro esforço
Ao velho anciado a machina fatiga,
Molle violeta, em plácido xarope,
Humedece, allivia o peito ardente;
A raiz de açucena extingue o fogo
De acceza chaga. Machaon em Phrygia
Nos feridos heróes dictamo espreme:
Já pára o sangue, e obediente aos dedos
O ferro larga a preza, e cáe do golpe.
Por extremo a papoula aos grandes presta.
Do sábio frequentando a estancia humilde,
O somno foge aos nítidos palácios.
Onde a angustia se volve em seda, em ouro.
Que não pode a riqueza T Eis planta nova
Usurpa os sulcos, para o rico estilla
Um leite soporifero, que os mimos
Do sereno Morpheu mil vezes suppre.
Onde Athenas luziu, e onde era Esparta,
Nos terrenos phebêos Argos, Mycenas,
Rosa fragrante a candidez ostenta,
E entre as grandes ruínas lá se eleva.
Seu óleo, que as rainhas prezam tanto,
Seu óleo, resguardado em frascos de ouro.
POEMAH DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 159
Vence o néctar, que outr'hora aquelles campos
Dos numes aos festins subministraram.
Mil vezes doce antidoto nos bosques
Aos venenos de amor se tem buscado.
De hervas amigas se julgou que o sumo
A ternos corações a paz trazia,
Os ódios, os desdéns amaciava,
E do errante amador continha os voos.
Esperanç^a fallaz! Chiméra insana!
Circe, a filha do Soi, que transtornava
As leis da Natureza a seu capricho.
De attonitos mortaes trocando a forma;
E aquella, que a Jason, depois ingrato,
O drago adormentou, feroz, e horrendo,
Co'a a magica potencia (ah !) não poderam
Deter n'um coração fugaz ternura.
Bens não busquemos, que não ha nas plantas.
Aquelles bastem, que ante os pés nos brotam.
Numeral-os quem pode? O musgo humilde
Dá calor aos Lapões, e aos Rennas pasto;
Abriga os ovos, que a avesinha aquece,
D'elle o esquilo veloz compõe seu berço.
Ao musgo cores mil se devem novas,
E até faíscas de innocente fogo.
Na mádida espessura, annuu ciando
Subterrâneos crystaes, não mente o musgo.
Lá no monte, no outeiro as débeis hervas
liiííparam-lhe as ruinas, lá suspendem
160 OBRAS DE BOCAGE
Pulverulentas nuvens, e as arêas,
E os mil fragmentos, que assanhado Bóreas
Alça, varrendo os resequidos campos,
E em remoinho arroja em torno ás serras.
No concavo das rochas, e em seus flancos,
Dos ventos a pezar, sustêm-se^i^estos.
Que innumeraveis germes apascentam.
Corre gentil verdor por toda a parte,
E a floresta, os vapores attraindo,
Faz dos cabeços borbulhar correntes.
Dos vegetaes a graça, o gosto d'elles
Servido sempre tem de molde ás artes;
Viu-se, imitando-os, o pincel mimoso
As cores variar n'um mesmo quadro.
Do vosso, oh campos, atilado esmalte
As roupas divinaes bordou Minerva.
Dextra sabida no macio adorno
Ergue o jasmim, desabotoa a rosa.
Entalha-os o cinzel té sobre as c'roas,
E columnas o acantho aformosêa.
Nas flores, ah ! que amável monumento
Tem achado altos dons, altas virtudes !
Que erguidos nomes sorVeria o Lethes,
Se as plantas seu louvor não consagrassem?
Absorvem-se os thesouros, vão-se as forças;
O que o homem construe abate a Sorte,
Té na fronte dos reis imprime ultrajes,
Os palácios derruba, e postra os bronzes;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS
161
Mais estável que o mármore, e que o ferro.
Nutre seu nome a planta, e doma os Fados;
E vivente inscripção, que se renova
Em cada primavera, em cada inverno.
Mas de sempre viver qual foi tégora
Mais digno do que o teu, Linné, qual nome?
Vieste, e veiu a ordem. Luz brilhante
Dourou r^xpidamente a Natureza;
Dos varies mineraes o leito escuro.
Dos ares o ágil filho, o filho d'agua,
A linhagem de Abril : tudo notaste,
E, tudo conhecendo, ensinas tudo.
ii
162 OBRAS DE BOCAGE
c-A.asra:o terceii^o
Quando medindo pela noute o dia,
Nos céos a Libra assoma, o fresco Outomno
Toma, de uvas, e pâmpanos c'roado,
O sceptro dos vergéis da mão do Estio:
Brincões prazeres, abundância, risos
Pregoam a estação formosa, e leda.
Povo, a que alegre o Marna os campos banha,
E vós da Oosta-de-ouro habitadores.
Os toneis apertae ao som do malho;
Em seu convexo bojo os arcos se unam.
Vossos thesouros nas adegas surgem,
E a rubente vindima escuma, ferve.
Eu, que á sombra dos bosques vou no rasto
Do bom Vertumno, e campesinos deuses.
Em não remota paz esperançado,
Para cantal-os encordoo a lyra.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 163
Junto ás que o prado enfeitam, flores novas,
Sementes madurar-se eu vi risonho.
Umas voam sem risco, e lá debaixo
Ficam das hervas, e a seu tempo brotam:
Arbustos sem cultura assim renascem,
E Cybele amplifica o verde ornato:
Outras, se em dirigil-as não cuidamos,
Caem, morrem. Taes os grãos, que esquece o rico,
Se o pobre os não colhesse, em poucos dias
Corruptos jazeriam sobre a terra.
Maternamente Natureza rege
Ás varias plantas, que espontânea cria.
É do homem ao suor propicia menos.
Se descançar o arado, em breve os trigos
Deixarão de reinar nos úteis sulcos.
O ponteagudo cardo ali revive,
Recupera a bardana o senhorio,
E os engos das planícies tomam posse.
Caminhe-se inda mais á Natureza:
Erga-se o véo, que seus mysterios cobre.
Vejamos, pois, com que saber, com que arte
A semente nas flores afeiçoa.
Alta mão, que extraiu de somno antigo
Germes, na antiga noute semimortos,
E que a forma lhes deu, e a leis constantes
Tudo em fim sotopoz, o Deus, quiz logo
A terra povoar, nascida apenas.
Disse, e o fulvo leão rugiu nos ermos.
164 OBRAS DE BOCAGE
E ao sol, no raio as águias se afoutaram;
O homem alçou depois a face augusta;
Mas inda os y alies nus^ e nus os montes,
Não presentavam mais que um lodo estéril.
A voz omíiipoíente, adorno immenso
Envolve a superfície á Natureza;
Deus manda á terra que ministre sempre
A seus habitadores fructos vários,
E que, em reproduzir-se a planta exacta,
Feche em seus mimos as sementes suas.
Assim lyrio fastoso, e relva humilde
Órgãos pasmosos co'a existência houveram.
Lá no centro da flor subtis columnas
Vibram da summidade um pó fecundo;
Taes átomos no ovário se desparzem,
Por occultos canaes ao fundo chegam,
Levam de cavidade em cavidade
A semente o calor, o alento, a vida.
Murcha-se desde então, morre a corolla,
E é dado aos olhos ver semente, ou fructo.
Estas cVoadas plantas todavia
Nos mesmos sitios existir não podem:
Uma deve habitar sedentos cumes.
Outra de um lago as ensopadas margens.
Nos vários sitios a semente é vária;
Aquella, que no monte os soes maduram,
Rival das aves, como as aves gosta
Não pouco de adejar n'umtjerro, e n'outro:
JPOEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 165
Moveis peiíDachos tem para elevar-se,
Plumoso martineie, ou azas leves.
Tal, prenhe de ar subtil, globo engenhoso
Com graça balancêa, e sobe ao pólo.
Exércitos domina em voo altivo,
Gira por cima de assustadas torres,
Desmancha os planos de inimigo arteiro,
Segue os seus movimentos, vê seus passos;
Guia o valor francez, e a dúbia palma
Nos campos de Fleurus por elle arreiga.
Flores, que em margens prende a Natureza,
Tem bateis que a semente lhe transportem.
Véo longo ás virações uma presenta,
E dos lagos discorre o mudo espaço;
Do remo outra se ajuda, e voga, e segue
Do rio os torcicolos, no Oceano
Estas fiuctuam vegetaes esquadras.
Vingam, sem guia, immensos intervallos,
Enriquecem, passando, estéreis praias,
Vão ter ao fim do mundo, e tomam terra.
O mar não temas que as penetre, e vibre
Golpe mortal aos clausurados germes;
Cozeu arte divina as taboas todas
Dos virentes baixeis, e a Natureza
Cem ve/.( s, por tolher o ingresso ás aguas,
De cera pegajosa ungii-os soube.
Assim da cerieira os fructos nadam,
Dos dons d'ahelha supplemento amável;
166 OBRAS DE BOOAGE
E assim mil vegefcaes, que vê nas ondas
Correr o bemfadado americano.
Sábios filhos de Penn, em paz dourada
Favores alongae de pingue terra,
Nas verdes margens das correntes vossas;
Nos montes, que os limites vos abraçam,
Fructos colhei, que sem ser vistos caem,
E que roga, talvez, nossa exigência.
Já vossos esteliferos asteres
Orlam nossos jardins; dos cedros vossos
A sombra vossas leis cá meditamos,
E de lá tantas arvores trazemos,
Que, abrigado o francez da copa extranha,
Quasi não sabe que hemispherio habita.
Mas por entre estes hospedes viçosos
Anno vindouro meus trabalhos toquem.
Os bulbos, que na estufa repousavam.
Tornar ás hortas, exportando, anhelam.
Cesta vontade interprete aos teus olhos,
As folhas alongando, eis enverdecem.
Não se espere a invernada. Assim que os tordos
Attentas nymphas na floresta encantem,
Toma luzente ferro, e desde a aurora
Prepara ás flores subterrâneo berço;
Lá dóceis ao cordel, dispõe por classes
Curvo narciso, e tulipa orgulhosa,
E o junquilho fragrante, e flor suave,
Que do moço Hyacintho a morte afíirma.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 167
D^ellas outr'hora o batavo attraído,
De theatro em theatro ia admiral-as;
Dando por simples ílor punhados de ouro,
D'aquella frágil posse alardeava.
Taes, não longe do Euxino, e contra o Pliases,
O Cáucaso, em tropel, eunnucos cercam;
Regatêam com ouro a formosura,
Bem. que perde o valor quando é comprado.
Mimosa escrava, destinada aos gostos
Do sultão, que não viu (ai!) suspirando,
Suspirando vãmente, a pátria deixa.
Que a ver não tornará, por mais que chore.
Do mérito modesto emblema grato,
A hortaliça também carêa os olhos.
Dos bens, que ella redobra, e que varia,
O contente caseiro ao pezo verga.
Cuidando a terra em premiar-lhe as lidas,
Lhe entrega fructos mil por mil sementes ;
E a arvore ás vezes em seus dons gostosos
Da sua primavera eguala as flores.
De um vão melindre ha pouco o vate escravo,
Nas hortas, nos pomares tropeçava;
Só vinha no estudado circumloquio;
O trepador feijão, pegado ao ramo,
A dourada cenoura, a ruiva selga,
Gostos peitando, ouvidos oíFendiam.
Tal delirio voou, e a crespa couve,
Alarde de Milão, redonda e belia,
168 OBKAS DE BOCAGE
Já ousa apparecer, sem desluzil-os,
Nos sons cadentes da campestre Musa.
Sueco havendo melhor por arte minha^
Talvez mais bello te alvejara o aipo,
Mais bello fora o cerefolho, a azeda,
A salsa, verdejante ao pé das aguas;
E, lá nos soes de inverno, a tenra alface,
De um muro ao longo os ares insultando,
Iria na florente primavera
Seu tributo pagar, e ornar-te a meza;
Mas não tento em meus versos dizer tudo;
E de sobejo que entre dons tâo vários
D'aprazivel pintura encontre objecto.
Discorro aqui, e ali, sou como a abelha.
Ora entre cravos, e jasmins, e rosas
A pompa dos jardins cantar me agrada;
Ora nativas graças preferindo,
Folgo em veredas de copados bosques.
Retiros demandemos, que a arte ignora,
Guiados por Bulliard, ali se busquem
Aquelles vegetaes sem flor, sem rama.
Estirpe do rocio, ou da procella.
Fugazes rebentões, que n'um só dia
Não raras vezes nascem, crescem, morrem.
Com que insignes feições os assignal-a
A mão da Natureza entre a verdura !
Que mingoa é n'elles carecer de flores,
Se das flores tem cor, perfume, e graça?
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZL-OS 169
Dos cerros no pendor sente-se a rosa.
Desces ás margens de sereno arroio?
Tens na cortiça de húmido salgueiro
O lustre do martinij do anis o cheiro.
Cubertos de herva os cogumelos brotam,
E ergue o agurico pavilhões ufanos.
Querido de Ljêo, o odioso a Ceres,
Nos al(][u eives também florece o feto.
D^elle, abaixo da folha, eu te apontara
Presa semente em amorosas pregas;
Porém tiemendo estrondo atroa os ares,
E as ondas tumultua o Sul revolto.
Ronca o pélago ao longe, as crespas vagas
Nas escomosas praias esbravejam.
Vamos: agora o túrgido Oceano
Cospe os haveres seus ás margens vastas.
Quem pelo equoreo bojo entrar podéra,
Seus profundos milagres quem tocájra,
Se das vedadas, invisíveis grutas
A mão do remoinho os não roubasse?
Vê compridos listões sobre as arêas,
Vê relvíi, que as Nereidas já trilharam,
Vê porção d'esses bosques, onde o peixe
De monstro devorante illude a fome.
Es mãe de cada espécie, oh Natureza,
Nenhuma se anniquilla: o fraco evita,
Escudado de ardis, com mil rodeios,
Encontro desigual, êxito infausto.
170 OBRAS DE BOCAGE
D 'estas plantas marítimas gran parte
Subsiste sem raiz, sem luz vegeta;
Outras, do fundo erguendo-se, fl actuam
Dos ventos a sabor na tona d'agua:
Três pinhos, cuja fronte as nuvens fende,
A incógnita grandeza não lhe egualam.
O mar deixemos. No oriente se abre
Espectáculo novo. Oh Phantasia,
Fada ligeira, audaz! Desmanda os voos,
Este hemispherio corre. Encara, observa
Cidades da Germânia, e seus costumes;
Do Sármata, ao passar, prantêa os fados;
Transpõe o Tánais, formidável muro,
Mas que os Hunos horriíicos venceram.
Quando tyranno atroz, d 'um Deus flagello,
Veiu esmagar de Europa os tristes filhos.
Vê sobre as margens, que fecunda o Volga,
Recendentes melões sorver-lhe as aguas.
Reconhece em Tangú potentes hervas.
Que de sôfrega morte a fouce embotam;
Prosegue, e, costeando a longa China,
No próximo terreno abate as azas.
A senha deu-se. Com pendões diversos
Mortaes dez vezes mil eis trepam montes.
Não é para exparzir com mão cruenta
De logar em logar o horror da guerra.
Também não palpiteis, orphãos dos bosques:
Não ha de Ecco aprender gemidos vossos.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 171
Co'a linda prole, co'as esposas lindas
Podeis livres errar nos vossos naontes.
Este exercito novo a paz cultiva,
Uma- planta, não mais, nas selvas busca.
Em borda de profunda ribanceira,
Ao pé de rochas, que ameaçam queda,
Junto a cavernas, em fragosas brenhas,
E lá que aos olhos o ginsão se oíferta;
Odêa a luz : a flor só abre, e pouco,
Se a patrocina, e cobre arvore espessa.
Do principio do outomno ao fim do inverno.
Nos agros climas a incansável turba
Desencanta os thesouros, filhos do ermo,
E entre os Favonios vem, pezada, ovante.
Seu atavio as arvores mudaram.
Parando na carreira o vago sueco.
Da purpura mais viva as folhas cora;
E de um ouro brilhante esmalta os bosques,
Crê-se, no alto das serras vendo o bordo,
Que de raios o doura um sol fulgente.
Este esplendor, comtudo, e rico adorno,
Oh Primavera, teu verdor não valem:
Génio, dado á tristeza, observa n'elles
Não tarda ausência de amorosos dias.
Vae tu onde vapores, serpeando,
O passo das correntes arremedam.
Lá o anno, declinante, inda tem flores.
Mas os golpes do frio a cor lhe empanam.
172 OBRAS DE 1.0CAGE
Sobe á collina, onde tardias plantas
Curvam, tremendo, as pávidas umbellas;
A enlutada saudade ali se off'rece:
Eis a misero amante a flor mais grata.
Rochedos, solidões, como elle, estima,
As toimontas, como elle, exposta vive.
Ah ! se um ferrenho arbitrio, amada Elisa,
Se teu rigido páe nos dividisse.
Se onde agora a gemente ave das trevas
Solitária, sem luz, diíFunde agouros,
As tranças te encobrisse o véo sagrado;
Se voz terrivel te ari-ancasse um voto . . .
Tremo, e dos olhos me escorrega o pranto.
Não: meus males, meus ais levando ás fragas,
Não me ouvira ninguém co'a historia d'elles
Os penedos cansar, cansar os eceos:
Foríi meu sangue n'esse negro dia
Tingir dos muros teus a férrea porta.
Tu vives, bella, e para mim tu vives! _
Dá mais sancta união delicias gostas.
Tu amas, como eu amo, a paz dos campos,
Anda sempre comigo a imagem tua.
Se entre os objectos em que ponho a vista
Credores de aprazer-te alguns contemplo,
Já corro a dar-t'os,.e as bellezas d'eiles
Com hgeiro pincel n'alma te imprimo.
Não vès a chusma dos aéreos povos,
Já promptos a fugir de nossas plagas?
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 173
São Pomona, e Vertumno os que lhe regram
AuscDcia, que te espanta. Assim que Pliebo
Por mão das estações, sobre os caminhos
Lho a])ercebeu festins, se afastam logo
Das ribas africanas, e endereçam
Ríspida mente para o norte o voo.
Mr.s depois de exhaurir, de clima em clima.
Dispostos armazéns da Natureza,
Chamjim-se mutuamente, unem-se as tribus,
Vão-se em amiga tarde, e volvem juntas
Ao equador, onde mais férteis campos
Novas messes luzir, vingar já viram.
Inda com aza timida, os filhinhos
Não sabem a que parte as mães os guiam;
Mas nos frios do Outomno, e tez extranha
Com que elle matizou verdura, e flores,
Desconhecendo já propicio bosque,
Onde por entre os Zephyros brincavam,
Suspirando em segredo um ar mais doce,
Seu berço desamparam sem queixume.
Tanto que os vê partir, cuida Pomona
Em saciar do agrícola esperanças.
Já do r;imo abanado os fructos chovem,
Já SLiríií} no lagar montão vermelho.
As cul)MS, os toneis e a mó pezada.
Que cl i (/irosa colheita em giro opprime.
Porque, o pátrio caracter esquecendo,
O do ii^íítar de Aí fautor brilhante,
174 OBRAS DE BOCAGE
Co'a satyra manchou liqnor celeste,
Que tão mal conhecia! Exalte, embora,
Seus cachos belios, e os mimosos travos,
Que ao olfato annuncia um brando fumo;
Mas, filho da maçã, tu foste outr'hora
Quem o esforço avivou do audaz normando,
Cujo braço indomável a seu jugo
Fez curvar Albion cerviz indócil.
Accezo no teu fogo o páe da Scena,
Melpómene da Grécia á Gallia trouxe,
Roma resuscitou, e ergueu da morte
Tão grandes seus heróes como elles foram.
Nas encantadas mezas scintillando,
Unes ao áureo lustre argêntea espuma;
A Febre, que nos vinhos mais se inflamma,
Vê-te a face divina, e cede a preza.
A mãe, que te produz, nem sempre occupa
Em roda ao frágil tronco as mãos cultoras:
EUa é bastante a si, seus ramos sabem
Dar mil fructos, e mil, sem desvelar-nos.
É a amiga de Ceres: d'ella á sombra
As chuvas, os tufões despreza o trigo,
E sobre um campo só dobradas messes
O alimento nos dão junto á bebida.
Salve, planta louçã, que a Neustria enramas I
Liquores teus, da minha pátria néctar,
Se de emulo desdouro os hei vingado,
Minha empreza com gloria ao fim dirijam.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 175
De relíquias das folhas arrancadas
Já diviso alastrado o chão dos bosques.
Do seio dos paues sáe a humidade;
E rebanhando as névoas, os vapores,
Pelos campos estende imraensa nuvem
Do sol consolador a imagem vela.
Chorando a terra em vão, lhe implora os lumes
Para a tarda semente, e fructo ignavo.
Não madurecem: podridão maligna
Com seu bafo lethal tudo inficiona.
Até nos ramos, de que pende o fructo,
O enxovalha, o destroe Celeno immunda,
Ou, soprando a semente estanciada,
A corrompe inda em leite, e molle, e em meio.
Natureza este mal sacode ás vezes:
Abrilhantados céos, calor macio,
Ar puro, que os Favonios embalancem,
Valem á flor, o império lhe dilatam,
E nos vermelhos campos nos figuram
Da leve primavera o riso, o esmalte.
Também não temos visto acceza a terra.
Se no Outomno fallece orvalho, e chuva?
Vapores cor da noute, o céo toldavam,
Quasi apagado o sol, pintava aos olhos
Orbe sanguineo, carrancuda imagem.
Escumava na arêa o pego envolto.
Crebro trovão bramia, e por mais susto,
Por mais horror, em negrejando as sombras,
17(3 OBRAS DE BOCAGE
O terrível cometa, o meteoro,
Agitíivam no pólo as igneus caudas.
N'isto Ibv^ria temeu, temeu Germânia
De iíHn-itavel mal o escuro agouro:
Eis quo do estrago teu na voz da Fama,
Oh (J:ilabria infeliz, o annuucio veiu!
Nas tórridas cavernas o Vesúvio
Entra a ferver, com hórridos bramidos.
Eroiie torres de fumo, as lavas solta,
Que no troant<3 bojo incendiara.
Rompem, íí unindo, e dos trementes cumes
Em colíimnas de fogo eis se arremessam.
Rochas fundidas, subterrâneos raios
Cruzam-se no ar, e as nuvens avermelham;
Em f<Ma anuvião betume, enxofre
Se ennovelam no monte, o sulcain todo.
Corram aos valles côncavos, e anfolham
Dos rios inferques a horrenda imagem.
Pelo idoso arvoredo o incêndio lavra.
Fugindo os brutos por ignotas sendas,
Reciuan de uma, de outra; em toda a parte
Os acossa, ou rebate a morte em chammas.
Lono;e das lavas, e abrazados tectos
Oá habitantes pallidos vagueam:
Sustí^ndo o esposo a languida consorte,
Do veljio curvo o trôpego meneio,
A mão, que ao triste fim roubar presume
Seu lenro, e só penhor, que tem nos braços:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 177
Tudo é lúgubre, é vão. Sanhudas vagas
Desolados confins transpõem, bramando;
Tremeu nos alicerces o Apenino;
Fumegantes abysmos abre a terra,
Muralhas, torreões alue, abate,
E nas rotas entranhas os sepulta.
Talvez enternecido ache o vindouro
Debaixo de ruinas espantosas
Templos, cidades, pórticos, palácios,
Das artes nossas monumento honroso.
Assim aos muros, que Hercules erguera,
Por desventura egual outr'hora absortos,
Vamos hoje admirar soberbo estrago,
Cavar da antiguidade as doctas minas.
Que será d'esse8 tristes, que escaparam
Por descuido da sorte, ao caso infando ?
De cinzas, e de pedras ignea chuva
Cobre todo o paiz de fogo, e fumo.
O afflicto lavrador n'aldêa acceza
Viu devorar-lhe os pães a labareda.
Inda no estéril campo em vão procura
Os bois, sócios fieis de seus trabalhos;
Nunca mais os verá com dócil collo
Por calcinado chão levar o arado:
Regresso já não tem, nem a esperança.
Ai ! com que ha de alentar a esposa, os filhos ?
Sacudir a azinheira irá nas selvas?
Como, se tudo as fúrias golpearam ?
12
178 OBRAS DE BOCAGE
Té nas raizes os carvalhos seccos,
A ruina horrendíssima propagara.
Em meio dos sepulchros^ fogos, lavas,
Surge a Fome, e, arrastando as rotas vestes^
Gira cidades, atravessa aldeãs.
Primeiro exerce a raiva em tecto humilde,
Por marmóreos degráos depois subindo,
Mette em lares dourados a indigência.
Vós, cenhosas Eumenides, em tanto
Sopraes d'aqui, d'ali mortal peçonha.
O mal se multiplica, e são do ataque
Longas suffocações^ signal medonho.
Hálito ardente, na segunda aurora,
Dos queimados pulmões a custo escapa.
Range co'a tosse a machina abatida,
O humor não quer sair, inpugna esforços;
Tumultuosa flamma o rosto accende ;
Mal o giro do sangue os pulsos mostram,
O véo mais transparente é férreo pezo;
Aguda ponta o cérebro traspassa.
Some-se a voz, gravame insapportavel
Esmaga o coração. Depois da noute,
Da triste noute, que nas anciãs cresce,
Enferruja-so a lingua, a tez desbota.
Attenta mudo Hypocrates na face
O presagio fatal do ponto extremo.
A esperança voou. O enfermo ancioso
Já nem conhece a voz da esposa em prantos,.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 179
Abrazado co'a febre, e delirante,
Se cre na solidão de ardente serra,
Suspenso em negro abysmo, e se arripia,
Cos olhos a medir a altura immensa:
O cimo do vulcão vê despenhar-se^,
E súbito á vorao:em vae com elle.
Também se lhe levanta o chão, que piza:
Treme, abre-se, e ao abrir vomita o raio.
Succede á commoção mortal espasmo,
Gelado pára o sangue, e os débeis olhos
Para sempre abotoa a mão da Morte,
Antes de rematar-se o quarto dia.
Céos ! Quem conhecerá tão férteis campos !
Faustas cidades, prósperas aldeãs,
Casaes, cingidos de florentes bosques,
O absorto passageiro embellezavam.
Duas vezes no outeiro as ovelhinhas
Eram mães, na planície vez( s duas
Vingava a messe: ali manná corria,
E o cultor com seus fructos não podia.
Os filhos da Abundância — Amor, e Gosto —
Regiam cantos, animavam danças.
Só versos pastoris Ecco sabia;
Vinham d'entre o penedo a vide, o cacho.
Os jasmins em abobadas, e os louros
Co'as sombras os caminhos perfumavam:
Era uiii amplo jardim, onde mil fontes
Vertiam fresquidão por toda a parte.
180 OBRAS DE BOCAGE
Que inopinado horror ! Que scenas tristes I
Onde sulphureas, férvidas arêas,
Os flagellos do céo, do inferno as chammas,
Tornam vasto sepulchro estes elysios.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 181
o-A.3srxo GiTjJLTirco
Vestindo nuvens o rugoso Inverno,
A devastar começa os turvos ares;
Desfaz das três irmãs lavor prestante,
E, rugindo, amontoa o gelo, a neve.
Param cantos: Amor lhe esquiva os sopros.
Aos sons do rouxinol, aos sons da flauta
Succede a fúria de^escumosas cheias,
E o rebombo dos Aquilos potentes.
Sustém meu voo, oh Musa, entre as procellas;
Não mais nos hão de ornar jasmins, e rosas.
Jaz deserto o jardim, jaz murcho o bosque;
Pelos campos Eólo esparze as folhas.
Ah I Tu me ensina, que razão pasmosa
Esvaece o matiz da Natureza,
A despe, e n'alta machina agrilhoa
Espíritos, que a» molas lhe regiam.
182 OBRAS DE BOCAGE
De dádivas do céo nascendo ricaj
Da vida inclue a terra os germes todos.
N'ella os suecos estão, que ao pólo a coma
De teus cedros, oh Líbano, agigantam,
E n'ella as seibas, a que as várzeas devem
Lourejante seara, e verde relva.
Mas estes germes, sem vigor dispersos,
Pedem vivo calor para brotarem.
O deus das estações, da terra esposo,
A necessária flamma lhe insinua;
O universo applaudiu dos dous o laço.
De amor, e de alegria estremecendo.
Quando, espraiado o sol, vestiu de luzes,
E de gloria celeste a leda noiva.
Cada vez que, a seu carro avisinhada,
Beber-lhe os raios amorosos pode.
De opulento verdor se aformosêa,
E a fecundante força espalha em tudo.
Mas quando lei fatal de férrea Sorte
D'este centro divino a põe distante,
Robustez, formosura a desamparam,
Murcha-lhe a c'rôa, amarellece a fronte:
Do norte os filhos, a que o sol triumphante
Co'a presença radiosa impoz silencio,
Desmandam-se em tufões, de nuvens cingem.
Carregam de regelo a terra an ciosa,
E, como em sepultura, escondem n'ella
Plantas, que em tempo mais feliz a ornavam.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 183
Longe dos falsos bens, que enjeita o sábio,
Tu, ditoso cultor de parca herança,
Cos vimes dobradiços vem depressa
O arbusto, que vacilla, atar aos muros.
Proveitoso rigor de curvo ferro
Talhe ramo importuno, ou ramo estéril.
Cesse aqui teu desvelo. Em quanto á roda
Bravios furacões terapestearem,
Tranquillo, junto ao lar, campestre, escuso,
Do Pórtico ás lições darás ouvidos;
Canto repetirás dos génios grandes,
Associando ao seu talvez teu estro.
Oh vós, de Phebo alumnos ! Inspirae-me
Nas ermas noutes, e giiiae meus voos;
Azas, azas de fogo a vós me elevem,
Longe da morte avara, e tu Sdencio,
Amigo das sublimes phantasias,
Rumor insano, e vão de mim remove,
E enfiidosos semblantes, e ouças phrases,
Que a sancta embriaguez nos interrompem,
Vigia os lares meus; só entre n'elles
O puro amigo, o coração lavado,
Que sonda as altas leis da Natureza,
E ás vezes, arrancando-me ao retiro,
Me ensina á deslindar bellezas tantas
Sumidas em ruinas apparentes.
Se risonho te é Pluto, a rica planta,
Que do hespério jardim roubou Alcides,
184 OBRAS DE BOCAGE
Longe do norte, em pórtico fastoso,
Ser-te-ha corte magnifica, de inverno.
Entre os outros metaes qual brilha o ouro,
Tal brilha a laranjeira entre os arbustos.
Só, em cada estação, só ella offrece
Fructo verde, e maduro, a flor, e a folha.
Nem o âmbar, que nas ondas se acrysóla,
Nem o mjrto, que Amor de Paphos trouxe,
Nem da rósea manhã suave alento,
Chegam da planta de Héspero aos aromas.
Vê (sem nunca alterar-se) os pães e os filhos
Branquejar, succumbir da edade ao peso;
E tal (que inda hoje admira em si Versailles)
Viu de reis doze os funeraes soberbos.
Não longe do logar, que lhes destinam.
Nos transparentes muros vitreo templo
Aos olhos congregados apresente
Do índio, e do Níger as colónias verdes.
Nascendo bafejada de ar mais grato,
Precisam entre nós de ti, Vulcano,
Morreriam sem ti. Seu domicilio
Aqueçam dia e noute accezos vasos;
Em roda se lhe estendam longos tubos,
E sempre egual calor na estancia dure.
Assim, té quando as terras ermas, frias
De alcatifas de gelo estão cobertas,
Brindam-te arbustos mil n'um curto espaço
O aroma^ o brilho da estação fagueira.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 185
Da Natureza, e Arte eis o palácio;
A esculptura t'o adorne, ousa invocal-a.
Ásia em roupas talares nos alegra,
Co'a pérola, e rubi, que a fronte lhe orlam,
Ao pé da bananeira umbrosa, e sua.
Africa aze vi chada, um tanto agreste,
Risonha, quasi nua, orne a paragem,
Onde lhe hás posto innumeras vergonteas.
Mas verdura, mormente, o sitio abaste,
Flores seu atavio, e fructos sejam:
Venham cumprir-te as leis dos fins da terra
Hervas de Paraguai, chinezas folhas,
O c'roado ananaz, beijoim de Lybia,
O cravo, a quina, o bálsamo de Arábia,
E arvore, cujo sueco inestimável
Mitiga os numes, perfumando as aras.
A este povo extranho a vide unida.
Pelos muros serpeja, envolta em cachos.
O encarnado morango a mãe recama;
No rigor invernal se tinge a rosa:
EmtantOj sem cessar, gotêa, e neva.
Contraria multidão, que instigam fomes.
Entrar procura na cheirosa estancia.
Pelos muros lhe sobe, ou lhe anda em torno,
Põe-se ap pé d'onde os fructos purpurêam,
E c'os olhos devora o tronco ausente.
Mas nas margens do Obi, lá onde acaba.
São baldado soecorro estufa, e lumes.
186 OBRAS DE BOCAGE
Arvore ali não cresce, ou quando cresça
(Máo grado a Bóreas) bétula, salgueiro,
Apenas seus humildes, molles troncos
De nossos juncos a grandeza egualam.
Seis mezes soíFre o Sol que reinem sombras,
Seis mezes turvo dia ali vislumbra.
Ha sempre agudo vento, e gelo agudo,
Que debaixo dos pés firme resôa;
E o mudo povo, na prisão coalhada,
Não tem para revolver-se espaço livre.
A neve em turbilhões, que rola o vento.
Se eleva sem medida, atulha os valleii.
O alce, de lignea fonte, indo á carreira,
Cáe de repente, e encrava-se no- abysmo:
Lucte o misero em vão, que o duro Inverno
No alvejante sepulchro o enterra vivo.
Crespa de escarchas, sacudindo a testa,
O urso brama, e, cedendo ás tempestades.
Busca por entre neves, passo a passo.
Gruta cavada pelas mãos do tempo;
N'ella se entranha, e solitário, occulto.
Em quanto, o inverno dura, esta sem pasto.
Subamos essas penhas, de ermos cumes,
Que, arremettendo ao pólo, o mundo cingem,
Teus olhos solta pelo mar terrível,
Que, espumoso a teus pés, trovões simelha;
Lá onde a confusão, do cáhos filha,
O império exerce, atormentando as ondas.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 187
Escolhos de alta neve aqui deslumbram;
Além montes de gelo escalam nuvens.
Ruge a borrasca j a topetar com elles,
E em pedaços no abysmo ao longe os lança.
Má sorte a do baixel, que então se afoute
Aquella matadora, horrível plaga !
Ora a corrente em rochas o arremessa,
E co'a8 vagas a morte o bojo lhe entra;
Ora, qual ferro, a superfície imraovel,
Forja ao lenho infeliz grilhões de gelo.
Da praia ao longo, os monstros dos desertos,
Os ares com bramidos amedrontam:
Das sombras atravez o vento, os eccos
Levam tão negros sons ao triste nauta,
E acabam de abatel-o, anticipando
No murcho coração o horror da morte;
A tudo o que lhe é caro a alma lhe voa.
Taes p'rigos vezes três domou teu génio,
Coolv ! Longe de Albion, da Paz co'a planta
Demandando outros climas, outras gentes,
Do sul ao norte dividindo as ondas.
Correste o mundo, o mundo accrescentaste !
Primeiro que ninguém no audaz teu voo
Do meiodia rodeaste o pólo,
Montões seguiste de espantosos gelos,
Por entre as fendas formidáveis foste,
Com firme coração, no férreo throno
O Inverno -mais sanhudo interro oraste.
188 OBRAS DE BOCAGE
Lá vivente nenhum teus olhos toca,
Maciça immensidade, horror é tudo.
Ave romper não ousa aquelles ares :
Só nos confins dos hórridos desertos,
Só lúgubres petreis, entre as procellas
O clamor desabrido ás vezes soltam.
Mas que plagas a paz não formosêa !
Em ilha, onde os invernos se encruecem,
Um povo de animaes offrece ainda
A bonançosa imagem da ventura.
Verdes leivas subtis, que ás margens crescem,
Os leões de Amphitrite ali convidam;
Moram na costa; e no interior da ilha
De ursos marinhos multidão' repousa.
Em quanto os pingoins, de aza pendente,
Na arêa movediça os ninhos cavam.
Bascam- se mutuamente, ou se desviam
Todos sem medo, sem malicia todos.
Dir-se-ia que, os temores desterrando,
Um tractado a colónia fraterniza.
Tó dos ares o rei, depondo a sanha,
A lei commum seu animo conforma:
Pousa em rochas, e em torno as aves brincam,
Sem temer-lho o relâmpago dos olhos.
Ah ! N'um prospero cHraa, entre abundância»
O homem guerra immortal declara ao homem !
Rouba insânia de Marte o campo a Ceres,
Sanguento, férreo globo os sulcos traça.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 189
Tormentas a tormentas aggregando,
O homem leva comsigo ao mar mil mortes;
Do raio em suas mãos a fúria passa.
Fogo conservador, mimo dos íuses,
ícaro novo, em fim, lá d'entre as nuvens
Aos combates preside, estragos dieta.
Cidades a Ambição além devora,
Cá o Interesse, afeito a vis cruezas;
Cem formas, gestos, vozes toma o crime;
A Discórdia triumpha, e sobre montes
De irmãos, a que os irmãos despedaçaram,
Ei dos que vivem, ri dos que morreram.
Da desventura assim a espécie humana
(Cheias por ella mesma) exhaure as taças.
Do globo mais de um terço em tanto é cinza,
E de áureas messes a belleza ignora:
Nenhum campo vê bois levando á granja
Quantas espigas ministrar lhe é dado.
Povo nenhum conhece os dons de preço,
Que Jove semeou por entre as selvas.
Fora melhor, mais sábios, mais humanos,
O habitante imitar de incultas costas,
D'onde os olhos ao mar vêm superiores
Novo hemispherio dilatar sem ermos I
Lê pela Natureza, estuda alegre
Os caros vegetaes da pátria sua,
E manda aos netos seus, de edade a edade,
Seu nome, seu caracter, e attributos.
190 OBRAS DE BOCAGE
Cruentos europeus, das Ímpias guerras
O trágico delírio em fim se abjure.
Se a paz ao coração vos é pezada,
Altercae sobre os fens, prazer, ventura:
Políticos debates estes sejam.
Antigos elementos decompondo,
A chimica p'ra vós soprou fornilhos,
E revelar- vos quer prodígios novos;
Para vós a poesia, a doce maga,
O Permesso abrangeu de myrto, e louro;
As Musas, com fervor de saciar-yos,
Sempre a nobres prazeres vos convidam.
Da phantasia aos olhos quanto oíFertam
Harmonia dos céos, e magestade!
Quem, quem figura os extasis sublimes
De alma, que, longe dos terrestres corpos,
Segue na ímmensa esphera as Ígneas massas,
Distancias lhe calcula, e mede os vultos,
Mutua attracção no moto lhes contempla,
Acha, com Herschel, não sabidos astros,
E farta, e cega emfim de gloria tanta,
Vae repousar n'um Deus o pensamento!
Se, frio em mim sobejamente o sangue,
Me não deixa empreender o ethero voo.
Correntes seguirei, junto aos penedos
Do occulto rouxinol ouvindo os versos.
Murmurantes florestas, magas sombras,
Meus amores sereis, e objecto á Musa.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZmOS 191
Apoz noutes de ferro, enregeladas
Mádidos Sues os campos embrandecem.
Esse uniforme alvor, que tapa os cerros,
Desata-se por gráos, em rios corre,
E as aguas da ribeira embaraçadas
A desfeita prisão, mugindo, rolam.
Mas o Inverno inda é rei, e escravo o bosque;
Choras tua nudez, carvalho altivo;
Por entre a confusão se vê, com tudo,
A espaços a verdura estar luzindo.
Salve, cor linda, inestimável sombra!
No luto immenso recreaes meus olhos;
Quaes os prazeres, que a velhice afagam,
Douraes o horror do tenebroso Inverno.
Meu animo espertae, inda medroso
Das estradas por onde o passo arrisco.
Dos gelos boreaes^ motim das ondas,
E do pezado, horrendo, austral negrume.
Que lei, que agente ás arvores conserva,
A despeito do Inverno, o vital sueco?
Ao falto, humano siso a Natureza
Em véo sombrio estes mysterios furta.
Gosêmos, basta. Mil arbustos novos,
Eivaes tão gratos nos jardins de inverno,
Co'a bella forma, co'a imprevista graça
Disputam entre si qual mais encanta.
Todavia (dil-o-hei ?) prefiro a elles
A hera de cem braços, quer circumde
192 OBRAS DE BOCAGE
Co'a verdura tenaz carvalho edoso,
Quer sobre muro, que sustente apenas,
Nos ares alongando a curva rama,
Forme, n'um globo espesso, abrigo ás aves.
Ali, ao pôr do dia, o tordo, o melro
Vão convocando a pávida familia,
Correm, gorgeiam, depinicam fructos,
E assimelham do Outomno os pretos bagos.
Quão doce é ao sair de chão lodoso
Vagar collinas, onde quebra o vento,
Do pinho em torno, que resôa ao longe !
A' sombra lá de abobadas possantes,
Entre o tojo florido, um doce canto
Os sons da Primavera off'rece ás vezes.
A lóxia ali verás prender aos ramos,
E c'o bico encruzado armar seu berço.
Recem-forrados os filhinhos brandos,
As sombras maternaes darão já graça,
E das aves o resto, apenas junto,
Inda seus ninhos não terá findado.
O Inverno assim se adorna, e desenruga;
Mas sé a terra escacêa estes favores,
Quantos em teus jardins arbustos verdes
Ketêm das aves o inquieto enxame I
Cuida, pois, em juntar aos tristes carpes
O picante azevinho, o zimbro agudo;
Té a humilde giesta, adorno aos montes,
Campestres quadros a compor te ajuda,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 193
Ella mesma, estreitando o frio a terra,
Colheita é da perdiz, lhe acode, e a nutre.
O álamo, d'agua amigo, as aveleiras,
E as bétulas, de Amor têm outras graças.
Tanto que Bóreas entornando as neves,
O verdor lhes destróe da instável coma,
Abre a flor, e pendendo em ramalhetes,
Move os botões á discrição do vento.
Mas tu, filho do Inverno, espesso musgo,
Presenta-te aos pincéis da Musa minha.
De Aquário á urna exposto, entre as geadas,
Quando as mais flores morrem, tu renasces,
E então com tua fresca, egual verdura
Parece remoçar-se a Natureza.
Era em sondar os teus gentis mysterios
Que de Emilio o pintor, encanecendo,
Devia n'um sereno, e doce estudo
Levar a solidão do inverno extremo.
Agora a fontinal o embellezara,
E algum dia talvez nos ensinasse
Com que arcano feliz tão débil folha
Da flamma grassadora estragos veda:
Ora do lycopodio os ramos vira.
Redes no bosque innumeras tecendo,
Da fronte, em ar de clava, um pó soltando.
Que brilha, que troveja, egual ao raio.
Minimas tribus, povo imperceptivel,
Disperso em toda a parte, lhe mostrara
13
194 OBRAS DE BOCAGE
Espectáculo aos génios tão pasmoso
Como, oh Virgínia, teus aéreos pinhos,
Ou cedro, que depois de mil invernos
Croa o Libano, o páe, co'as verdes sombras.
Soube que a Natureza inclue ás vezes
Toda a sua grandeza em curto espaço;
Mas a innocentes fins obstou-lhe a Sorte.
No benip-no loofar, onde em remanso
Do universo, e da gloria ia esquecer-se
Piedoso monumento as cinzas lhe honre.
Seja a simplicidade a que o construa:
EUe, deusa modesta, elle te amava,
Tu só tens jus de visinhar-lhe os manes.
Das arvores da morte longe a sombra:
Selva queremos graciosa, e fresca.
Que do amigo dos deuses cubra o somno.
A madre-silva, grata ás almas ternas,
Já brandamente o mausoléo lhe abraça,
Em quanto o lauro, dos engenhos c'roa,
Ergue a luzida, magestosa rama.
De chôpos lá se alongue um bosque ameno^
Filhos dos ares, habitae-lhe a sombra;
Delicias do philosopho, avesinhas.
Esta selva também vo^ deva encantos;
Longe de olhos profanos, hão de os vossos
Brincos, prazeres alegrar seus manes.
Se o Fado, transcendendo-me a vontade^
Me houvera permittido amplas searas,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 195
Espaçoso arvoredo, e pingues pastos,
Em meus ledos jardins erguera estatuas
D'aquelles, que privando co'as deidades,
Cantaram docemente a Natureza.
Hesiodo, e Rosset, ambos teriam
Pel:i mão de Cybéle eterna palma.
Qual olmo, que a nivel de si vê quasi
Outro brilhar, subir, seu digno fructo,
Assim o gran pastor da antiga Mantua
A seu lado haveria o seu Delille.
Theocrito, e Gessner co'a molle avena
Inda ao campestre baile os sons dariam;
Fora o bom Lafontaine olhar mil vezes;
E á Musa tua, alto cantor dos mezes,
Credora de outros tempos, de outros fados,
Lamêda de cyprestes consagrara.
Crer-sería que Masson, e que Marnesia
Minha fresca paisagem desenhavam.
Vaniere a meus vergéis sorrisos dera,
Croar-se-ía Rapin das flores minhas;
EntTe bosque prophetico, e torrentes,
Tompson creara os cânticos sublimes;
Bernis (^m laço amante unira as quadras,
E Saint-Lambert, sobre tapiz viçoso,
Com'^a philosophia inspiradora
Nobre aos grandes o arado apresentara.
Feliz quem logra tão brilhante quadro,
Mais feliz quem sem fasto habita os campos,
196 OBRAS DE BOCAGE
E, pago das vigílias d'estes sábios,
Nas vivas obras suas os medita!
Não lhe vôa o desejo além do valle.
Onde, nascente o sol, seus lares doura,
Do jardim, que do mont^ aguas amimam,
Nem do sombrio, e próximo arvoredo.
Que pediria da cidade ao luxo?
Das primaveras viu belleza, e pompa;
Viu aos celeiros favorável Ceres,
E com ditoso pé calcou vindimas.
Tem no inverno outros gostos. Furta aos gelos
Os frágeis attractivos das boninas,
Orna seu lar, de sombras se rodêa;
Attenta na campestre economia.
Doces cuidados, miudezas doces.
Se amor, e apreço dous esposos lig^m. ^
Com que olhos vê grandezas momentâneas,
E vãos prazeres e reaes desgraças !
Nas ondas do universo tormentoso
Dos mortaes as relíquias observando,
Folga de haver n'este commum naufrágio
Fiado o seu destino ás mansas praias.
Para dourar seu ócio, vindo a noute,
Por Tournefort guiado, no aposento
Corre as ilhas da Grécia: aporta em Samos,
D'alta sabedoria antigo berço;
Olha de Minos o afamado império,
Do Cynthio os cumes, as florestas de Ida;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 197
Eecrea-se co'as plantas de que Homero
Celebra nos seus cantos a virtude,
E á terra os mesmos numes arrancaram.
Para os heróes cora ellas guarnecerem.
Aprazível philosopho, e conviva,
Une os visinhos seus á sóbria mesa;
Voluntário também lhes cede ao gosto,
E d'elles no casal com elles folga.
De férteis plantas, que seus hortos guarda,
Gosta de lhes levar o espolio tenro.
Agrada-lhes alguma? O novo dia
Vê-a entrar nos jardins de seus amigos.
Satyra, inveja, pestes das cidades,
Entre elles o ar saudável não corrompem;
Um falia de patheticas delicias,
Mimo das estações aos camponezes,
Outro das glorias, dos triumphos nossos,
E brinda-se de Itália aos vencedores.
Corando a vozes taes Lilia, se lembra
Do imberbe amante, que os heróes seguira,
Mas que em ditosa paz ser-lhe-ha tornado.
Quer esconder as sensações, que a turbam;
A mãe a estende, e removendo o assumpto
D'est'arte lhe soccorre o doce enleio.
A aflbuteza renasce, a virgem bella
Em segredo palpita, e dissimula.
A estes dias de ouro, e riso, e graça
Opponde vossos dias carrancudos,
198 OBRAS DE BOCAGE
VÓS, a quem a ambição com turva chamma
Ancêa des le a aurora, e mirra em sombras;
Que, sempre instados de rivaes zelosos
As freclias lhes cravaes, que vos cravaram,
E, mesmo suppkntando a turba adversa.
Vedes voar Fortuna, indo empolgal-a.
A Ventura buscaes? Nos valles mora.
Com a fouce na mão seus trioros céofa.
A Ventura buscaes? No prado hervoso
Livres meditações alegre volve;
Ou do salgaeiro á sombra, e junto ao rio
Dorme, cercada de fagueiros sonhos.
Longe assim das facções, das armas longe,
Os campos, os jardins eu celebrava;
Da pátria minha aos males nmdo ás vezes
Das mãos sentia deslisar-se a Ijra,
Mas qual are, cantora apoz tormentos,
Contentes, novos sons ás margens dava.
Oh tu, meiga Debieu, tu que em meus versos
Nomeio Elisa! O carinhoso amante
Deixa co'a sua unir tua memoria,
E dividir comtiofo escassa ^floria.
NOMENCLATURA LINNEANA
PLAIAS MEllONADAS f ESTE POEMA
Cauto primeiro
Cicuta, Cicuta virosa^ pliellandrium aquaticum. — Acham-
se estas plantas nas lagoas, e covas aquáticas : cres-
cem varias nas ribeiras.
Nardo, Nardus indica. — Na índia.
Hortelã d'agua, vulgo Mentrasto, Mentha aquática. —
Junto de aguas.
Agrião, Cardamine pratensis. — Pastos húmidos.
Trevo, Trifolio 'pratense. — Prados, legares hervosos.
PinhMro, Pinus sylvestris^ cembra. — Bosques do norte
d'Europa, os Alpes, etc.
Til, Tilia europoea. — Bosquesr
Castanheiro da índia, ^sculiis hippocastanum. — índia e
Ásia septentrional, d'onde veiu á Europa quasi em
1576.
Junco, Juncos effusus. — Lagoas, 'junto a estradas um
tanto húmidas.
Vide, Vitis vinifera. — Climas temperados de todo o
mundo.
Ortiga, Urtica dioica. — Hortas, ao pé de balsas.
-^thusa ou Cicuta pequena, JEthusa cynapium. — Jardins
e legares cultivados.
Mercurial, Mercurialis annua. — O mesmo.
200 OBRAS DE BOCAGE
Marroio, StacJiys annua. — Jardins e campos.
Grama, Triticum repens. — Campos, espinhaes, hortas.
Primavera, flor, Primula i;eWs. 7- Junto á borda dos pra-
dos.
Narciso, Narcissus poeticus, pseudonarcisus. — Prados e
bosques. Duas espécies de lyrios.
Violeta, Viola odorata. — Junto aos mattos, logares som-
brios.
Ofris, ou Abelhinha, Ofris insectifera myoides. — Pastos
montuosos.
Pereira, Pyrus comfnunis. — Nas quintas. Conhecem-se
72 castas, havidas pela cultura.
Solda real, Sanicula turopcea, — Bosques, e ao longo dos
espinhaes.
Centáurea, Gentiana centáurea, — Pastos seccos e vere-
das de bosques.
Carvalho, Quer cus ^ rohur^ cegilops. — Nos bosques.
Çarça, Ruhus fruticosus. — Logares abrigados, campos in-
cultos.
Salgueiro, Salix alba^ purpúrea^ viminalis, etc. — Sities
húmidos.
Vallisneria, Vallisneria spiralis. — No Rhódano e em al-
guns lagos de TOrne.
Poa vivipara, Poa alpina vivipara, — Montes de Laponia»
Boas noutes, Mírohilis j alapa. — No México.
Palmeira de tâmaras, Phcenix dactylifera. — Africa, ín-
dia.
Canto segundo
Trigo, Triticum hyhernum, oRstivum. — Oriundo da Ásia*
Incenso, Anjuniperus lyciaf — Na Arábia.
Eosa, Rosa máxima, etc. — Hollanda, jardins.
Cravo, Dianthus caryophillus. — Baldios das provincias
meridionaes, jardins.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 201
Damasqueiro, Prunus armemaca — Vindo da Arménia.
Cerejeira, Prunus cerasus. — Oriunda do Ponto.
Ceiba ou Mangue, Bomhax ceiha. — Africa, índia.
Moka ou Café, Coffea arábica, — Arábia, Antilhas, etc.
Quina, Cinchona officinalis. — Peru.
Baunilha, Epidendrum vanilla. — México, etc.
Cravo, (arvore) j caryophillus aromaticus. — Amboino, Mo-
lucas.
Noz de Banda, ou muscada, Myristica officinalis. — Banda,
Molucas.
Sensitiva, Mimosa pudica. — Brazil.
Dionéa, ou Apanha-moscas, Dioncea muscipula. — México.
Jasmim, Nyctantes sambac. — índia.
Amaryllis (espécie de açucena), Amaryllis formosissima, —
America meridional e conhecida na Europa em 1593.
Agathis, j^schinomene grandiflora. — Índia.
Congorça rósea, Vinca rósea. — Madagáscar, Java.
Tamarindo, Tamarindus indica. — Na Índia, etc.
Nopal, Cactus tuna. — México e climas quentes da Ame-
rica. '
Roman, Púnica granatum. — Mauritânia, Hespanha, etc.
Myrto, ou Murta, Myrtus communis, — Europa austral,
Ásia, Africa.
Palmeira, Chamcerops excelsa. — índia. Africa."
Coco, Cocus nucifera. — Margens Indianas.
Ananaz, Bromelia ananás. — Nova Hespanha, Surinam.
Laranjeira, Citrus aurantium. — Oriunda da índia.
Estancadeira, Statice armeria. — Bosques, cerros, e terra»
seccas.
Esteva, Cistus helianthemum. — Idem.
Abrótano macho, Verónica spicata. — Idem.
Pinheiro, Pinus sylvestris. — Bosques montuosos.
Teucria, Teucrium chamoepithis. — Bosques, logares sec-
cos e areosos.
Trovisco, Euphorbia sylvatica. — Florestas.
202 OBRAS DE BOCAGE
Cravo (flor), Dianthus proUfer, tarthusianorum. — Selvas,
logares incultos.
Medronheiro, Fragraria vesca. — Idem.
Çarça, Ruhus fruticosus, ccesius. — Idem.
Aveleira, Corylus avellana. — Bosques.
Carvalho, Quercus, rohur. — Idem.
Olmo, TJlmus campestris. — Idem.
Freixo, Fraxinus excelsior. — Idem.
Bordo, Acer pseudoplatanus, etc. — Idem.
Hypno (espécie de musgo), Hypimm serpens, etc. — Bos-
ques, pés de arvores.
Salgueiro, Salix caprcea, etc. — Logares húmidos.
Golphâo, Nymphcea olha. — Ribeiras, lagos.
Cardo-morto, Senecio paludosus. — Margens.
Litronio, Lytrum salicaria, — Idem.
Campainha, Convolvulus sepiíim, — Ao longo das sebes
ou balsas.
Tribulo aquático, Trapa natans. — lus.gos, lodosos.
Trevo, Trifolium repens^ filiforme^ etc. — Leivas.
Tomilho, Thimus serpillum. — Mattos, logares seccos.
Faia, Fagus sylvatica. — Bosques.
Salva, Salvia selarea. — Borda dos prados.
Arruda, Ruta graveolens. — Locares estéreis.
Violeta, Viola odora. — Estremas de bosques, etc.
Lyrio, açucena, lilium candidum. — Originário da Syria.
Dictamo, Origanum dictamnus. — Creta, o monte Ida.
Dormideira, Papaver somniferum. — Ásia, Africa, jar-
dins.
Rosa muscada, Rosa moschata. — Moréa, Archipelago,
costas de Barbaria.
Jasmim, Jasminum officinale. — Oriundo da índia.
Acantho ou herva gigante, Acanthus mollis. — Grécia,
Itália, Sicilia.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 203
Canto terceiro _
Cardo, Carduus crispus, etc. — Em campos incultos, ao
pé das estradas.
Bardana, Arctium lappa, — Idem.
Engos, Sabugo j samhncus ebidus. — Idem.
Cerieira, Myrica cerifera. — Provinda da America septen-
trional.
Aster, Aster grandifloruSj etc. — Idem.
Tulipeiro, Liriodendron^ tulipifera. — Idem.
Narciso, Narcisms íase^ía. — Oriundo dos districtos meri-
dionaes.
Junquilho, Narcissus junquilla. — Oriundo do Oriente e
partes da Hespanha.
Tulipa, Tulipa gesneri. — Vinda da Capadócia á Europa
em 1559.
Jacintho, Hyacinthus orientalis, — Oriundo da Ásia e
Africa.
Feijão, Phaseolus vulgaris. — Oriundo da índia.
Cenoura, Daucus carotta. — Nos prados, á borda dos
campos.
Acelga, Beta vtdgaris, v. rubra. — Talvez provinda da
acelga maritima estrangeira.
Couve, Brassioa oleracea, v. capitata. — A espécie pri-
mordial nos logares marítimos da Inglaterra.
Aipo, Apium graveolens, v. dulce. — Nas terras encharca-
das, junto a rios.
Azeda, Rumex acetosa. — Prados e pastagens.
Cerefolho, Scandix cerefoUum. — Campos da Europa me-
ridional.
Salsa, Apium petroselinum. — Oriunda da Sardenha.
Alface, Lactuca sativa. — Europa meridional.
Agarieo comestivel, Agaricus edulis. ■ — Cerros, leivas.
Cogumelo branco, Agaricus alhellus autumnalis, — Cam-
pos e pastos seccos.
204 OBRAS DE BOCAGE
Feto, 'Pterts aquilina. -^'Bosques j sitios estéreis.
Melão, Cucumis melo, — Vindo do Oriente.
Rhuibarbo, JRheum undulatum, etc. — Tartaria,
Grinsão, Panax quinquefolium. — China, Canadá.
Bordo, Acer pseudoplatanus, — Bosques, montes.
Saudade, Scábiosa succisa. — CoUinas seccas, etc.
Maceira, Pyrus malus. — Originaria de Neustria, onde a
cultura tem adquirido mais de duzentas castas.
Azinheira, Quer cus ilex. — Europa meridional.
Arvore de' manná, Fraxinus Ornus. — Calábria, Sicilia.
Loureiro, Laurus nohilis. — Grécia, Itália.
Jasmim, Jasminum fruticans, — Itália, Europa meridio-
nal, etc.
Canto q[uarto
Cedro, Pinus cedrus. — Libano, Monte-Tauro, Sibéria.
Vime, Salix vilellina. — Terrenos húmidos.
Laranjeira, Citrus aurantium. — ^ Oriunda da índia.
Myrto, ou murta, Myrtus angustifolia. — Europa meri-
dional, Ásia, Africa.
Bananeira, Musa paradisiaca. — índia, «te.
Chá, Tkea bohea viridis. — China e Japão.
Bálsamo, Amyris opohalsamwn^ giliadensis. — Arábia.
Salgueiro, Salix herbácea^ lapponum» — Laponia, zona
glacial árctica.
Betula (casta de alamoj, Betula nana. — Idem.
Hera, Hedera helix, — Nas arvores da Europa.
Pinheiro, Pinus ahies, picea, etc. — Montes, selvas do
Norte.
Tojo, Ulex europc&us, — Charnecas, sitios incultos.
Carpe, Carpinus hetulus. — Florestas.
Zimbro, Juniperus communis. — Bosques areosos, coUina»
seccas.
Gilbarbeira, Purcus aculeatus. — Bosques espinhaes.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 205
Giesta, Spartium scoparium. — Campos, outeiros areentos.
Aveleira, Corylus avellana. — Bosques.
Álamo, Betula alnus, — Logares húmidos.
Fontinal, Fontinalis antipyretica, — Lagos, covas aquá-
ticas.
Lycopodio, Lycopodium clavatum. — Bosques, logares
montuosos, abrigados.
Pinho de Virgiuia, Pinus canadensis. — America Septen-
trional.
Cypreste, Cupressus sempervirens. — Oriundo de Creta.
Madre -silva, Lomcera sempervirens. — Oriunda do Mé-
xico e Virginia.
Chopo, Populus mgra,alba. — Bosques e logares húmidos.
Olmo, Ulmus campestris. — Selvas.
NOMENCLATURA
ANIMAES, AVES, AMPHIBIOS, PEIXES, INSECTOS
Canto primeiro
Abelha, Apis meUifera,
Ovelha, Ovis, artes.
Salmão, Salmo salar.
Boi, Bosj taurus.
Cabra, Capra, liircus.
Cavallo, Equus, cahallus.
Cuco, Cuculus canorus.
Andorinha, Hirundo rústica y iirhica.
Pisco, Loxia pyrrula,
Milheira, Fringilla codébs.
Verdilhão, Loxia chloris.
Melharuco, Parus major, etc.
Tutinegra, MotaciUa pJiilomcla , etc.
Rato do campo, Mus terrestris.
Toupeira, Taipa europoea.
Corvo, Corbus corax^ etc.
Pardal, Fringilla ãomestica.
208 OBRAS DE BOCAGE
Canto segundo
Cochenillia, Coccus cacti.
Bengalinha, Fringilla amadava
Papagaio, Psittacus versicolor^ etc.
Arara, Psittacus macaOy etc.
Tartaruga, Testudo caretta^ etc.
Crocodilo, Lacerta crocodilus.
Germano (ave), Anãs querquedula^ etc.
Capricórnio, Cerambix moschatus,
Rhenna, Cervus tarandus.
Esquilo, Sciurus vulgaris.
Canto terceiro
Leão, Felis Leo^ etc.
Águia, Palco chryscetos, etc.
Tordo, Turdus musicus^ etc.
Ave das trevas, Strix buho, etc.
Touro, BoSy taurus, etc.
Canto ifuarto
Rouxinol, Motacilla luscinia.
Alce, Cervus alce.
Urso, Urso arctos.
Petrel, Procellaria antárctica.
Leão marinho, Phoca juhata.
Urso marinho, Phoca ursina.
Pingoim, Alça torda.
Melro, Turdus menda.
Loxia, Loxia curvirostra.
Perdiz, Tertrao perdrix.
A AGRICULTURA
í
POEMA
IS/rOR- IDE liOSSBT
TRADUZIDO EM VERSO POKTDGUEZ
Hic labor f Mnc laudem fortes spercUe coloni.
Vir GIL. Georg. Lib. in.
Este é todo o trabalho, amplos louvores
D'elle aguardae, robustos lavradores.
(Trad. de Pato-Monix.)
ti
A AGRICULTURA
Cuf^.3SrTO I=>E,I3VtEZI?,0
DAS SEARAS
Canto os trabalhos, que reg-ula o tempo,
Co'as varias estações modificado;
Arte, que a terra obriga a dar colheita s^
A qne A^ vinhas, ás arvores, aos prados
Dobra a fecundidade, e nos submette
Tão Titeis animaes : para que exalte
(Bem real) a cultura, e seus preceitos^
Oriam forças em mim Luiz, e a pátria.
Deidades surdas, insensíveis numes^
Nada colhe de vós meu sério canto:
Astros, que os annos signalaes, e as quadras,
O deus, que vos conduz, nos dá seus mimos;
Sem Ceres a seara amarellece,
Negrejam sem Ljêo na vide as uvas;
De Pan, o Apollo os fabulosos gados
fíiirmonia immortal jamais ouviram;
212 OBRAS DE BOCAGE
A oliveira não deve ás leis de Palias
Artes que a nutrem, artes que a cultivam;
Neptuno é sonho, e do tridente ao golpe
Da terra não surgiu o audaz ginete.
Oh Deus, principio, e fim da natureza!
Aponta aos passos meus segura estrada,
Firma, reforça minha voz tremente:
A fallar de teus dons tu é que ensinas.
Lá quando a terra, pela voz do Immenso
Chamada ao ser, se povoou de plantas,
De animaes; o homem livre, o homem submisso
Ás leis do Creador, foi rei do mundo,
Que só para seu bem se ergueu do nada:
Quadra das virações, e dos suspiros,
Tu com sorriso eterno, eterno esmalte
Por toda a natureza então reinavas;
Saíam sem cultura a flor, e o fructo;
Gostava o racional no céo terrestre
Bens tão puros como elle: era o trabalho
Incapaz de fadiga, era o repouso
Vedado ao tédio: por ingrato orgulho
Súbito enxovalhada a natureza
Despe as mimosas, primitivas graças,
E, surda aos votos do senhor, que a rege,
Aos votos do homem réo, se muda a terra
N'um ermo pavoroso... (ai!) Já não lança
Senão cardo importuno, herva ociosa!
Porém quando, ao trabalho atado o homem
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 213
Pela herança fatal devida ao crime,
Do crime a confissão na terra grava
Com suas próprias mãos, fértil de novo
Ella em dobro, em tresdobro, ao homem paga
Lidas, cuidados, que a cultura exige :
De criminosos pães infausta prole,
De celeste eminência derribado,
Inda grandezas tem, que ufano admiro !
A terra, seu degredo, é seu império;
Declaram-se por elle os elementos;
Presta-lhe o ar co'a frescura, o sol co'a chamma;
Orvalho, e neve os campos lhe fecundam;
Descem dos montes a buscal-o os rios;
Aos usos seus, ás suas leis sujeitos,
N'elle acatam seu rei, tremendo, os brutos;
E centro, é harmonia do universo;
Sem elle não tem ordem, tem por elle
Ordem tudo entre si: alma, instrumento,
E mediador de inanimados corpos,
O seu tributo ao céo, e o d^ellés manda.
Mortaes, o vosso ardor o ardor me avive;
Conhecei vosso império, e governae-o:
Oxalá que, regrando-vos as lidas.
Possam communicar meus úteis versos
Sempre a fertilidade aos campos vossos,
Aos vossos corações sempre a virtude.
Cifltor, searas abundantes queres?
Entende o génio dos terrenos vários:
214 OBRAS DE ilOOAGE
Cada qual tem o seu: nasce, loureja,
Prospera o trigo aqui, e ali perec*^;
Onde elle se definha as vides folgam;
Pedregoso areal, sulphureo campo,
E de fácil collina a pobre encosta
Bastam para formar húmidos cachos,
E bosques de oliveiras. Vês do cume
Dos empinados montes, vês nos valles
Essas mádidas terras, que um regato
JSTa fugida veloz anima, ensopa?
Ali relva infallivel ceva os gados:
Ao barro, ao tufo, aos matao-aes, e etrêas
Pede a arte em vão colheitas; lá sem força,
Lá careceu te o chão tolera apenas
Os fetos, 03 codeços, as giestas:
Forte, opimo iogar: nas quadras todas
De flores, e verdura ataviado,
Por mãos da Natureza infatigável;
E em que uma, em que outra leiva, annunciando
Suecos, que a alentam, na indagante dextra
Se amassam fiicilmente; esse responde
Ao constante fervor de sabia industria:
Em Normandia, em Flandres estes campos,
De fecunda lavoura exercitados,
Semêam-se cad'anno, em todos luzem.
Tal porém não será delgada terra:
Depois que as messes uma vez te ha dado, ^
Ócio cançada quer, tem jus ao ócio.
POESIAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 215
E as forças lhe renascem do repouso;
A terra se exhauriu para abastar-te^
Para mais te abastar descance a terra.
Os delicados grãos, que vás soltando
Entre leves torrões na primavera
Sem custo brotam, crescerão sem custo;
Porém do trigo, e do centeio a planta
Pede forçosa um chão lodoso, e pingue;
O ténue, grato arroz, avantajado
Pelo othomano a seus manjares todos;
Que Arábia, e Pérsia com razão cultivam,
Que embranquece ao chinez os férteis campos.
Quer húmidos terrenos, gosta de aguas:
.* Em qualquer terra o trigo sarraceno
* Eleva os negros grãos na densa espiga :
Para ornar de seu ouro o páe, que o gera,
O cacho, que o sustem, quer terras fortes
O indiano maíz : porém, primeiro
Que o ferro agricultor lhe aprompte os sulcos,
Conheçam-se estações, o clima, os ventos;
Nk) semblante dos céos colhe a sciencia,
Que regula do agricola os trabalhos,
E aponta idóneo tempo a semeadura.
Quaes no moto celeste olhos attentos.
Para do lenho audaz guiar o impulso,
A elevação das Plêiades observam,
E os dous Carros, e as Hjadas chorosas,
E o funesto Orion; — taes, para darem
216 OBRAS DBI BOOAGK
Principio a seu trabalho, os lavradores
Andem co'a vista nos ethereos fachos:
Foi seguindo-lhe as leis que, firme em breve,.
A cultura encetou a astronomia:
Os rudes, os primeiros habitantes
Dos campos de Babel, esses outr'hora
Agrícolas, pastores, porque a terra
Lhes fosse mais propicia, mais fecunda,
Do mundo aos pólos a attenção volveram:
Deu leis ás estações o Auctor das luzes,
O império renovou nos doze lares;
De seu giro annual eis traçara linhas,
O chefe das ovelhas o é dos signos;
O Touro logo, e depois d'elle os Gémeos
O nascimento aprazam dos rebanhos;
Nos trópicos o Cancro, e Capricórnio
Fixam solsticios do verão, e inverno;
Dias, e noutes a Balança eguala;
Das ceifas o signal compete á Virgem;
O céo torna-se um livro, a terra absorta
Olha em letras de fogo a historia do anno.
Experienc^ observou de dia em dia
O nascimento, e giro aos vários astros:
Cada qual tem poder, presagios, nome;
Uns tempestade, e vento, e chuva indicam.
Outros são para nós os precursores
De moUes virações, e amenos dias.
Quanto aos humanos a apparencia illude 1
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 217
Signaes das estações se lhe anfolhamiu
Origem d'ellas. . . oh! Poder do engano!
Homem, não mais do que miia escolha inútil
O teu arbítrio tem ; e em teu arbitrio
Os astros exercitam summo império;
A que a inerme razão se oppõe debalde,
Em vão quer destruir* de teus destinos
A despótica estrella o bem regula,
E o mal, e a morte, e a vida: Oh! venturoso,
Oh! vezes cento affortunado aquelle
De que a Balança o nascimento acclare!
Ai! Menino infeliz! teus fados choro
Se o negro Escorpião viu tua aurora!
Desapparece a Lua, o Sol no eclipse. . .
Este horror, que desastre ao mundo agoura !
Estremecei, nações, em pranto, em luto;
Aos vencidos fugi, oh vencedores;
E tu, povo, socéga: ante os cometas
Devem, devem tremer só reis, só grandes:
Assim nossa razão foi de erro em erro
Por artes da impostora astrologia.
O agricultor grosseiro a bem dos fructos
Implorou das estrellas a influencia;
Uma lh'os fez medrar com doce lume.
Gemeu arripiado á foce de outra:
Tu, que reges de noute o ebúrneo carro,
Da campestre ignorância aos olhos deusa,
Por ella a gráo supremo erguida foste;
218 OBRAS DJÍ BOCAGE
Animaes alteravas, plantavS, fructos;
Eras té dos inetaes consumidora,
Edifícios, oh Lua, até roííis;
Teu passo desigual encaminhava
Ora para a cultura amigos dias.
Ora dias fataes para a cultura:
Qual dos homens entílo, qunl se afoutara
A revólver infructuosos campos?
O cantor Mantuano aos lavradores
De chimericas leis fez lei saorada,
E aos pávidos mortaes ainda ha pouco
E..;te longevo engano as inãos prendia:
O erro eraíim se desfaz pela verdade,
A preoccupação pela experi.*ncia;
Unicamente o Sol co'a luz fteunda
Reforça a Natureza, exiráe seus mimos.
Quando do Escorpião na estancia entrando
Raios despede com menor violência,
Dêm teus bois, oh cultor, começo a lavra:
Instados do aguilhão, do juíjo oppressos
Em tardo movimento eguaes caminhem;
Cardos, hervas arranque o hso arado;
Abre, volve teu cjimpo, e rerre a terra:
N'ella agitados de repente- os suecos
Do sol maduros, húmidos co'a chuva,
O germe da abundância desenvolvem:
Finde no outomno o teu suor primeiro.
Quando o inverno entristece a natureza
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 219
Náo se armem tuas mãos de um ferro inútil;
Fatigaras a terra em vãos esforços,
Que impenetrável é na quadra fria:
O obliquo resplendor do sol, que foge,
Caíra sem virtude em regos novos,
E Bóreas duro, os inimigos gelos
No seio maternal destruiriam
Dos suecos a substancia adormecida:
Mas logo que mais puro o dia assome,
Rompendo este lethargo, annynciando
Que a ociosa Natureza emfim desperta,
Reconduzo teus bois; a que obedeça
Ao gume, que a revolve, a terra obriguem ;
E, certo o lavrador de seus proveitos,
Cos olhos, e co'a mão dirija os sulcos.
Já no ethereo Carneiro o Sol tocando
Lhe desvanece a lu:í: ao grato annuncio
O risonho aldeão nos pátrios campos
Lança os grãos de que é mãe a primavera :
Se os desdenha, se os cede a obscuros entes
O moUe cidadão soberbo, e louco,
Tu não lhe adoptes um desprezo insano,
Que n^elles vezes mil provem do orgulho.
Terás varrido da memoria acaso
Anno funesto em que, alterado o clima,
Geadas soltas do intractavel norte,
Até no sul da França branque^*aram?
Murcham-se as plantas, a. raiz definha
220 OBKAS DE BOCAGE
Na enregelada terra; espera o povo
Que floreçam de Zephjro ao regresso
Os germes outra vez; Zephyro inerte
Seus males, seus estragos patenteai
Joio em logar de trigo os campos veste,
Que off''recem aos mortaes appavorados
Perdidas terras, carestia, e morte:
No horror da fome se alentou a industria;
Novos dispersos grãos promettem vida;
A esperança renasce, e pouco a pouco
Se esvaece o terror: mas a esperança
Que presta contra ti, necessidade?
Eis Luiz de seu povo afasta os damnos;
Só para ser seu páe, seu rei se chama:
Do trigo oriental baixeis se pejam,
Em que a sabor do vento ondêa o lyrio,
E como que das aguas surgem messes !
Cos dons do farto Egypto assim Augusto
Itália aviventou, nutriu Sicilia.
Emquanto aos campos teus a quadra nova
Colheitas preparar dos grãos primeiros,
A terra folgue destinada aos trigos,
Ardores do verão respire em ócio,
E a frescura também da primavera ;
Se abres a terra então, calor funesto
Dos semimortos saes devora o resto: -
Mas, quando o astro diurno em eguaes tempos
Do somno, e do trabalho as horas parte,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 221
Outro sulco anteceda a semeadura,
Das substancias da terra anime a força;
Se cumpre, sem tardar teus touros junge,
E cruza os sulcos teus por novos sulcos.
Dos campos a cultura é sem proveito
Se de possante adubo os não reforças,
Reproduzindo evaporados suecos,
E os que ávidas espigas devoraram ;
D'estes auxilies gcnero, e medida
Das terras tuas a exigência regre,
Regre-os a condição : se é penetrado
De alimento robusto em demazia,
O chão co'a força extrema os pães suífoca;
E, sustento infeliz de vã folhagem,
Dá palha mentirosa em vez de trigo.
De restos os mais vis, e estrume é feito
Que em teu campo introduz, esparge vida:
A palha em que animaes diversos pousam
E dos estrumes a melhor matéria;
Para os multiplicar une aos primeiros
Cinza dos lares, e o sylvestre espolio;
Estes pingues montões se ligam todos,
E aos ardores phebéos amadurecem :
De próvido cuidado assim mantidos
Alternam pelo campo os seus tributos.
Se exhaurida no seio a Natureza
Entra a degenerar, e quer que estrumes
Mais fortes, mais fecundos a restaurem;
222 OBRAS DE BOCAGE
O margo, de que usaram n'outras eras
Nossos priscos avós, á tua escolha
Assim como a castina, e cal se ofTrecem:
Se a prudência os prestar, com taes soccorros
Pode altamente remoçar-se a terra;
Com taes lições o agricultor vê cedo
Atulhado o celeiro aos pães negar-se.
Alchimista incansável, que presumes
De arêas,"de metaes colher teu ouro,
Atíenta o lavrador: quanto é mais certa,
Quanto mais a arte sua é milagrosa!
Puro efFeito elie extrae de um mixto impuro;
Por elle transformado, ennobrecido
O desprezivel lodo a vida estêa.
Creu-se por isto que um romano outr'hora
Os mágicos mysterios exercia:
Módica herança, aos seus trabalhos dócil,
Com rica novidade os premiava.
Em quanto desleixados lavradores,
Visinhos seus, e da indigência oppressos,
Sem colher, semeavam: dizem, clamam.
Que a seus campos chamou dos campos d'ell0S
Por arte horrível encantadas messes:
Citam-no; elle apparece, e mostra a um tempo
Os duros enxadões, os bois, o arado;
Presenta a. filha, que enrijou lidando:
« Romanos, eis o mago^ eis a magia
(Elle diz), e inda auxilio me prestaram
\
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 22':
Outros encantos, que mostrar não posso:
Minhas vigílias são, são meus suores.»
Falia; é com voz unanime absolvido:
Onde buscavam crime encontram gloria.
Tentou multiplicar industria os fructos
Por novas experiências de anno em anno:
Divide o curvo arados terra em folhas;
Uma de áureas espigas se enriquece,
Outra fica vazia; o sementeiro
Ha de espalhar, cubrir-lhe o grão nos sulcos:
A que se deixa ociosa, em pó tornada,
A herva parasita acolhe menos;
Lá con-e o trigo próximo, e se estende
Com maior liberdade, e busca ao longe,
E encontra um fácil nutrimento; os muros
Espaça aos apertados teus celeiros;
Filhos do mesmo grão dous mil maduram !
Quem é que entre os mortaes se atreveria
A encher seu coração de uma esperança.
Que a Natureza em nós concebe a custo ?
Adopta, lavrador, próvida industria
Que um quarto de terreno em prados troca,
flevezando-os por todo,'e dá d'est'arte
(Unindo novos dons a dons de Ceres)
Campos aos gados, á lavoura estrumes.
8e n'um comprido espaço a herança tua
Propicies hei va e grão dividem sempre ;
224 OBRAS DE BOCAGE
E se profundos fossos, grandes muros
Em recintos diversos a repartem ;
Se precisa mixtão de adubo, e terra,
Unida ás tuas, as corrige, as muda;
Nos annos todos, férteis, vigorosas
Te dão searas, te alimentam gados.
Arte annosa, e divina, ab! Tu, tu foste
Nos tempos de ouro, nos primeiros dias
Sublime emprego dos heróes, dos sábios!
Ao latino cultor Gatão deu normas;
Ao cultor oriental seus reis as deram !
Quando a virtude residia em Eoma,
E pobre, e magestosa a sobriedade
Inda sentia horror ás pompas d'Asia,
Os feixes alliavam-se aos arados,
E cem vezes o povo achou lavrando
Aquelles, que subira a dictadores !
Da plaga boreal guerreiros torvos
As necessárias artes desdenharam ;
Quizeram para si boçáes, e altivos
A frecha, o dardo, o alfange, arroteando
Seus campos cada qual por mão dos servos ;
Appareceram taes os nossos Francos;
Rompe a verdade em fim por entre as sombras
Dos arredados séculos ; seu facho
Acclara e reconduz sciencias, artes;
Mas o lavor dos campos na ignorância,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 225
^a funesta ignorância veiu envolto
Por instineto servil aos tempos nossos:
Arte a mais útil se avalia em menos.
O idioma fraacez (cuja harmonia
Captiva em brandos sons Europa inteira,
Filho do sentimento, e nobre, e simples,
De qae um timido gosto em demazia
Os direitos coarctou) nasceu, formou-se
Da moral nossa, e seus vestígios segue:
As graças, as paixões, as guerra^ canta ;
Mas não se imaginou que os sons prestantes
A fadiga rural cingir podésse.
■ Em quanto por vingal-o eu velo, eu súo,
Da agricultura protectores nascem;
Profícuos cidadãos com docta pluma
Da cega prevenção triumphos logram,
O preço intimam da perícia agreste,
Apontam suas leis, e dão leis novas,
Que mais formosas safras nos promettem.
Em meus versos, cultor, podia expor-te
Altos conselhos seus, altos arcanos;
Mas da exp'riencia approvações espera;
Arbitra do successo, é lei do sábio ;
E o que attráe tanto o mundo, a novidade,
Só recebe valor das mãos do tempo.
Quando no fogo estivo as terras ardem,
E os Zepliyros, e as aguas as temperam,
E o campo destinado ás sementeiras
15
226 OBRAS DE BOCAGE
Revolto está por teus finaes trabalhos,
A escolha da semente é que te resta.;
Escolha, que avultar-te as ceifas pôde:
Toma dos teus o melhor trigo, ou busca
Nos visinhos terrenos trigos novos,
Traze a teus sulcos esta raça estranha:
O grão, se o mesmo é sempre, bastardêa;
Suecos, que amava, exhaustos, e perdidos
As languidas espigas mais não tocam.
Ha lavradores próvidos, que ajuntam
A agua com cinza, e nitro, e com cal-viva,
E o grão preparam n'elles, e expVimentam;:
Com isto os campos teus não poucas vezes
Se c'rôam de melhor, mais basta messe:
Tu depõe a semente em brandos tempos;
Ou seja quando o Sol preside á Libra,
Ou quando elle, deixando-a, encurta o girot
Mormente os dias dos agudos gelos
Cumpre não esporar; produz o trigo
Semeado mui cedo herva ociosa,
Mas tardia semente os frios matam.
Tanto que a recebeu no seio a terra,
O germe impaciente ao grão se escapa,
E de longa cultura em breve o premio
Será verdor gentil ornar-te alqueives;
Mas quando em Capricórnio o Sol detido
Só pallido clarão nos céos diííunde,
A terra é sem vi^or, e a raiz tenra
POEMAíá DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 227
Não pode penetrar, subir, nutrir-se:
N'e5te asylo feliz dormindo os germes ,
O sopro evitam do inimigo inverno.
Mal que volve a andorinha aos climas nossos
Nuncia leal da rósea primavera,
Se a herva das searas te apresenta
Vãos atavios, luxo ambicioso,
Teme nas messes abundância estéril,
E ao cordeirinho entrega inútil pompa.
De Favonio seus dons a torra fia.
Brotar com elles vejo a relva, o cardo;
Ali ! Se infesta raiz não lhes arrancas,
Tenro inda o fructo, inda leitoso abafam:
Dá-lhe seguro abrigo em seus casulos
A espiga vacillante: eis annuncia
Madura edade nas madeixa^ louras;
Muro, que forma, lhe resguarda a fronte
Contra a feroz procella, e contra as aves.
Inda vemos sorrir- se a ]3rimavera
Quando o volúvel Zephyro amoroso
Voa ás espigas, e com ellas brinca;
Afagadas da pluma, ao sopro dóceis
No móbil troncosinho ondeam presas:
Vejo apertar-se, abrir-se a densa turba.
Lá t^e curvou, se ergueu, correr parece:
Dos ventos a sabor, ludibrio d'elles,
As.sim rolam no pego as leves ondas.
Mas, precedente a luz, que névoa triste
228 OBRAS DE rooAaE
Cubrindo a espiga vae de um nitro infenso?
Se o vento lhes não dá bafejo amigo
Sobre ellas agro influxo, olbos funestos
Lança Phebo ao romper; eis que repassa
Os deploráveis grãos peçonha horrenda,
Peste, que os ennegrece, e que os devora:
Desdobrem dous de vós, oh lavradores,
Corda, que em vossas mãos discorra os campos
Com rapidez extrema; o trigo agite,
Supra seu movimento as auras mudas.
Antes que o fira o sol co'as Ígneas settas.
Flagello inda peor me opprime a vista.
Seu veneno é mortal, e a causa ignota:
Alteríida folhage, espiga infecta
Grãos me presentam, que nascendo abortam;
Ali, tórrida, e sêcca é pó a espiga;
O fogo matador lambeu-a acaso?
Sem de flores vestir-se, além já feita,
Com fallaz apparencia ornando os males,
A fói-ma inda mantém, lenta carcoma .
Pouco a pouco as substancias lhe anniquila;
Esta, poeira torpe, aos grãos voando,
Embeber n'elles seu veneno fora,
E os campos de atra cor te cub riria;
Desterrar-lhes tal peste a que arte é dado?
Tendo por mestra a Natureza, um sábio
Que em nossos dias, que entre nós flofece,
Viu a origem do mal, e a cura indica;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 229
Em agua, em cal, em cinza, em saes dispostos
Para alterado grão remédio ha prompto:
Luiz sobre este invento emprega os oljios;
Oo'a mão real, que imita a mão suprema,
Alta experiência em Trianon confirma,
E os paternos, magnânimos cuidados
Do monarcha immortal com ella instruem
Quantos cultores seu império lavram:
Das artes, e da França enteio, e gloria
Luiz é cidadão, e heróe a um tempo;
Dos sábios é modelo, é páo da pátria;
As eras todas voará seu nome.
Sua beneficência as eras todas.
Mas se do Rei dos reis fu]'or terrível
Sobre teus louros pães seus golpes vibra,
E toda a industria vã, e a teus pavores
Não resta mais que as preces, mais que o pranto :
Sobe um vapor, se alonga, e se condensa ;
Foge o sol, o ar sibila, os céos negrejam;
De nuvem pavorosa em bojo espesso
Procellas amontoa a mão do Eterno,
E sobre nossas frontes as suspende:
Elle assoma: o relâmpago o precede;
Seu formidável throno occupa o centro
Do pólo, que fraquêa ao pezo enorme;
Phalange de Aquilões lhe ruge em roda;
Fúrias, mortes aos p(5s, a flamma o c'rôa;
O raio abrazador na mão lhe ferve,
230 OBKAS DE BOCAGE
Salta, bate, derruba, instrue os homens!
Olha rotas por elle as árduas tori-es,
Bosques em cinxas, rochas derrocadas!
Jaz a terra em silencio ! O medo an cioso
Murcha, enregela o coração dos povos:
Despiedado granizo alveja, pula,
As espigas saltêa, abate-as, quebra-as;
Todos os furacões desenfreados
Os trigos d'entre os sulcos desarraigam
ífo remoinho envoltos; as torrentes
Arrojam-se das serras bravejando;
Rios, já sem barreira, innundam valies:
Está submerso o campo, a messe é morta!.
Suor de um anno, destruiu-te um dia !
Se as leis da natureza c céo não tolhe.
Contra estes damnos a arte ás vezes presta:
D'entre os diversos corpos o homem soube
Extrair, ver, tocar ha pouco a flamnia
Motora do universo: ella, >sumida
Lá na matéria, e rápida saltando.
Rápida mais que o som, se oíFrece á vista
Só quando sáe de um corpo, e, similhante
Do relâmpago á luz, sobre outro voa
Atravessando os ares: este fogo,
Se industria o conduzir, metaes penetra,
Derrete-os, vitrifica-os; férrea agulha
O attráe, e accende eléctrico elemento,
P.osphoro girador, frouxel brilhante;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 231
Tal outr'hora se viu lume assombroso
Dos romanos cubrir, dourar as armas;
Tal, e o mesmo, dos nautas ante os olhos
Rutila o fogo, que lhes é tão caro;
Fogo, que no pavor das tempestades
Ao mastro electrisado as nuvens mandam,
E brinca, e se revolve, e obteve o nome
De Helena, Castor, Pollux: a faisca
Eléctrica, e fuzil das nuvens solto
Como um mesmo elemento appareceram,
E emfim aos olhos a experiência o prova:
Se pezada tormenta os céos carrega,
Vara de ferro levantada, e presa
Por arte sobre o monte, ou torre, ou tecto.
Do raio, occulto em próximo negrume,
Bouba a matéria, e súbito a transmitte
Ao fiel conductor, que sem violência
A apontado logar a infesta chamma
Em silencio conduz : assim removes
De fructos, campos, ou cidade os raios,
E o mal, que ameaçava i\s frontes nossas
Leva o p'rigo, o terror para outros ares.
Também com arte audaz, imperiosa
Esse ardente phenómeno terrível
Pelo fluido eléctrico se forma,
E os olhos na evidencia absortos ficam :
Do globo na cadêa um vidro exposto
A luz attráe, e electrisado brilha;
232 OBRAS DE BOCAGE -
Já não é mais que um céo, faíscas toJo;
Rompe, salta o relâmpago; os ouvidos,
Exhalando-se o fogo assusta, fere
Com repentino, nmiudado estrondo,
E de sulpbureo cheiro empasta os ares;
Penetrado o crystal dos Ígneos tiros,
Sem que elles o traspassem, todo se enche
De vestígios errantes: com esfarte
Um feliz Salmonêo reluz, triumpha,
Faz que a terra assombrada escute o raio;
E, Prometheo sem crime, aos céos o rouba,.
E em nossas mãos depõe o ethereo fogo.
Mais felizes coro tudo os habitantes
Das margens, que fecunda alegre o Nilo !
Não se ouve lá tropel, motim dos Euros
Turbar aos ares seu murmúrio doce;
Em aguas o vapor não se resolve,
Nem do seio os coriscos lhe rebentam:
Lá sempre um puro sol derrama os dias;
O céo calmo, e risonho, e transparente
Lá de saphira, e de ouro as cores veste:
De seis luas no espaço ao grato clima
Dos montes de Ethiopia descem chuvas;
Reforçado com ellas sobe o Nilo,
Aguas desmanda pelo egypcio campo,
Que seus thesouros só do rio espera:
Quando ás portas do trópico é detido
Phebo por Cancro, longo mar se anfolham
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 233
As campinas do Egypto; é ar, é ondas
Tudo quanto appareee slq longe, ao perto:
Cidades se abandonam, formam-se outras
De unidas barcas, onde o riso, as danças,
Festins, e jogos, e harmonia offertara
Espectáculos mil por toda a parte:
O Nilo a seus canaes emfim recua;
Fecundadas por elle, e sem que exijam
Os desvelos, que aponto em meus preceitos,
Sem custo, ou adubío as messes brotam;
De relva, e flores no verdor, no esmalte
O Egjpto representa um prado immenso:
Quando reina entre nós o brusco Inverno,
Cuja grenha erriçada os gelos cVoam,
Vós, Zephjros, briucaes na egypcia plaga;
E, quando a relva aqui revive apenas.
Ao ferro ali succu/iibe a flava espiga.
Oh vós com quem não tanto é de seus mimos
Pródigo o céo, vivíssimos ardores
Esperae do Leão : quando elle impera
As messes brilliam como o sol, que as doura;
A espiga encurva a testa, e d'entre silvas
Rouquejando a cio^arra invoca a ceifa:
Já pacifico exercito se avança,
Toma a fouce na mão, e os trigos sega;
Derramados sem ordem ficam, jazem
Por aqui, por ali; depois em feixes
Em ligados montões amarellejam.
234 OBUAS DE BOCAGE
De míseros que chusma (oh céos!) é esta?
Colhe laboriosa a passo lento
A espiga, que escapara aos segadores:
Ah ! não lhe arrebateis, deixae-lhe, avaros,
Tão ténue parte de tão vasta herança;
Dos dias seus esse alimento escasso
Perdido foi por vós^ e que vos presta?
Deve-se ao pobre o que sobeja ao rico. . .
Kesto (ai!) único resto do áureo tempo
Que os homens via irmãos, sem dono a terra;
Áureo tempo era que tudo era de todos!
Deixae que um monumento ao menos dure
Do sagrado poder, que a seu monarcha
A Natureza deu, as leis tiraram.
Entretanto na herdade amontoadas
Róçam-te os tectos as pavêas tuas,
Emtorno aos muros; tens no meio a eira,
E instrumento, que açouta os louros fructos.
Força a depor seus grãos avara espiga;
Volteando com arte outro mil vezes
Cáe, e recáe nas ordenadas messes.
Ao repetido embate o chão resôa,
Co'a palha misturado o trigo voa.
Nos climas onde o sol não se annuncia,
Onde mui raro tempestêa o vento,
Dispõe firme terreno á eira tua,
Que herva, ou formiga penetrar não possam,
E que, as planícies dominando em roda,
POKMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 235
Granhe o bafo subtil de aragem mansa:
Lá teus ai mos depósitos se levam,
Lá da celeste abobada se fiam,
E arte do segador com taes auspicios
Ergue as brilhantes, as barbadas torres,
Que tem debaixo dos dourados tectos
Era aperto, em resguardo os teus thesouros.
Depois na eira, em circulo ordenadas,
Vós, pavêas, sofFreis a planta equina:
Ao pezo de seus crebros, duros passos
As amarellas hastes arrebentam,
E escapa inteiro grão da rota espiga;
O crivo, meneado em máo ligeira
Do estranho, leve pó separa o trigoj
A palha voa, foge, e o grão já puro
Altamente os celleiros te abastece.
O tempo da abundância è da alegria,
O homem possue a principal riqueza:
Como, extincta a procella, os nautas gosam
Doce repouso na enseada amiga,
Taes quietos na eira os lavradores
Vêm dos trabalhos seus o fim, e o premio;
Tudo pinta o prazer, são risos tudo;
Parece que Hymenêo de dia em dia
N'esta aldêa, e n'aquella accende os fachos:
Eis aqui, eis ali campestres jogos,
Festins, canções d'alto arvoredo á sombra;
O gado, o fuso á pastorinha esquecem,
236 OBRAS DE BOCAGE
Aparta-se o pastor de seus rebanhos,
De seus campos o agrícola se aparta;
Meninos em tropel com anciã os seguem,
E atraressam, pulando, agrestes danças;
Sobre a palha novinha os ouço, os vejo,
Matizando os prazeres da innocencia,
Na lucta, na carreira exerci tar-se,
Vejo-os cair, erguer-se, e rir da queda:
Mais longe amantes, que a ternura inflamma,
Sentados sobre o colmo apprestam laços
* Encanto da existência, origem d'ella,
* Taes que se a eterno ardor m'os não vedara
* Muro erguido entre nós por mão do Fado,
* Se prisão tua, e de um mortal não fossem,
* Comtigo, Analia, me fariam nume.
Felizes aldeãos ! Sua alma ingénua
Da profana cidade ignora os vicios;
De volúvel paixão caprichos firmam,
E em corações, que nem desprende a moite,
Se une Hymeneo a Amor, pureza ao gosto.
Tu celleiros propicies cauto escolhe.
Ao frio, á calma impenetráveis sejam;
Francos aos Nortes, satisfeitos d'elles.
Teu louro cabedal dos Sues preservem;
Desvelados teus olhos o examinem,
E com robustas mãos se espalhe, e mova:
Teme a quente estação; n'ella apparece
O gorgulho cruel; esse inimigo,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 237
Contagioso insecto os grãos traspassa,
Os come, ou inficiona: inda o não sabes,
E o numero fatal de seus enxames
Já dos trigos ao numero equivale ;
Não destruindo a raça matadora
Fica o roído grão poeira todo:
Do vinho o cheiro activo, e plantas, flores,
O álbo importuno, que ao colono é grato,
O óleo também que de um rochedo emana;
São dons da Natureza úteis venenos.
Caterva de formigas sáe das covas.
Investe as eiras, o celeiro investe;
Longo exercito marcha em campo estreito
No transporte do espolio ferve a turba:
Esta o pezado grão conduz na boca,
E aquella maior furto a rastos leva;
Regem outras o passo, á obra incitam :
Suas próvidas leis convém que imites,
O exemplo d'ellas teu desleixo emende ;
Mas cerra os armazéns á negra chusma,
E atulha os subterrâneos onde habitam :
Ha para as destruir mais fácil meio;
Entorna-lhe no asylo agua fervente,
Colhe as formigas na innuudada estancia,
E em Ígneas ondas o inimigo affoga.
Porque 03 thesouros de teus campos durem,
Arte simples, e nova dá leis certas :
Na joeira se alimpe, e da humidade
238 OBRAS DE BOCAGE
Isempto para sempre o trigo seja;
Uma estufa prepara, onde ar, que a enche,
Se abraze em fogo occulto, e creste, e mate
O insecto devorante, o germe ignoto;
Esta, que Duhamel lia dado á França,
Arte profícua te defende os trigos;
Este asvlo não soffre o bicho, as aves.
Mas quer ventilador, que o ar lhe innóve.
Ou um moinho o agite, e ao grão já quente
Allivio salutar nas azas mande.
Ou dous flexiveis folies á porfia
Aspirem sempre o ar, que o grão refresque:
Ar segue o ar que o foge, aperta, e entra,
B se insinua, e sáe rapidamente;
D'est'arte o trigo teu refrigerado
De todo o mixto impuro está liberto.
Meio mais fácil, da experiência filho.
Grãos, e semente ao lavrador conserva:
Quando da ardente abóbada, que os coze,
Já prestes a nutrir-te os pães se tiram.
Se ali, d'onde elles saem, se ali o amédas
Necessário calor o trigo encontra,
E forte apoz dous dias secco, e puro
O verás salvo do inimigo insecto.
Sáe a colheita emfim de teus celleiros.
Leva a mil partes abundância, vida,
E, por diversas plagas circulando,
Ella anima, repara, escora o mundo:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 23&
De pródigos verões ceifa ditosa
Soccorros affiance a estéreis annos;
Debaixo da cal-viva agasalhado,
E em funda cavidade incluso o trigo
De Invernos cento, ou mais não teme afrontas.
Mas vós, que d'e3tes bens, ó camponezes,
Não podeis nos casaes erguer montanhas,
Ah ! que fareis, se a carestia horrenda
Semear amargura em vossos lares
N 'esses tempos fataes? Que é do regresso?
A opulência obterá de férteis climas
O que infecundas terras vos negarem,
E não descubrireis n'um campo ingrato
Mais que a fome voraz, e logo a morte:
Oh vós, a que a abundância o luxo apura,
Indigência adoçae de mil, que gemem ;
E titulo a penúria, um jus sagrado
Tem á vossa piedade, e é uma, é uma
Das nossas precisões fazer ditosos:
Cidades imitae, que oppõem á fome
Deposito commum, zelados trigos;
N 'esses ricos montões se alenta o pobre :
Eis os campos que tem quem não tem campos.
Lá das margens do Escaut que gritos soam !
Povos cultores das flamengas terras.
Vingava o trigo vosso ; a nova quadra
Ampla colheita promettia aos votos:
De repente a discórdia o medo esperta;
240 OBRAS DE BOCAGE
A paz ao som das armas treme, e voa ;
Respira tudo raiva, e guerra, e morte,
Dos ávidos soldados tudo é preza:
Nas tristes margens atterrado o rio
Vê consternadas mães fugir ante elies;
Os convulsos, attonitos pastores
Incitam para as próximas aldeãs
Do timido rebanho os lentos passos;
Aos olhos do colono o ferro brilha,
Desampara gemendo os bois, o arado,
E a vista com saudade aos campos volve;
Campos, que não lavrou para inimigos !
O bronze atroa os céos, baquêam. muros,
Defensores não ha; morreram, morrem:
As torres crê Tournai remir do estrago:
Onde, oh germanos, batavos, inglezes.
Onde ides? Que produz o auxilio vosso?
Vinga r-vos Curaberland debalde empreende:
Luiz voa ao perigo, a gloria o chama:
Vede de Fontenoi, vede nos campos
Destemidos, magnânimos guerreiros
Que, olhando-os, elle inflam ma, e guia aos louros ;
Reluz prudência do meu rei ao lado,
Reluz grandeza heróica, e brio ufano;
Nas phalanges adversas bramam, lavram
Esperança fallaz, e presumpçosa,
Temeridade insana, insano oroulho:
Entre elles, e entre nós audaz braveza
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 241
De fileira em fileira esparge a morte;
Mas o Thréicio numen carrancudo
Costa scena de horror corta o progresso,
E só furores vãos deixa aos vencidos.
Os passos de Luiz segue a victoria;
O heróe triumphante a humanidade escuta,
Lamenta o sangue, que os trophéos lhe importam,
E, porque outorgue a paz, só quiz a palma.
Delicias do teu povo, oh rei sublime!
A tão recto desejo os céos annuem:
Já, já vão renovando os lavradores
Seus puros passatempos; e, a teu nome
Co'a voz do coração mil vivas dando,
Dirão a nossos netos: «Messes, festas
Devemos a Luiz; não preza menos
Venturas nossas que proezas suas. »
16
242 OBRAS DE BOCAGE
Ojí?L3Sra?0 SEO-XJKTIDO
DAS YINHAS
Já celebrei cultura, e dons de Ceres :
Acode, vinhateiro, ás vozes minhas;
Teus outeiros dispõe, sazone o cacho,
Nas adegas depois se envase o néctar.
Eu vou cantar beneficências tuas :
Meu estro altêa, 'oh Deus, que preservaste
Do naufrágio do mundo um ente pio,
Gran patriarcha das edades duas,
Que, da vinha cultor, seus usos soube.
O homem, subido da maldade ao cume,
O raio vagaroso assoberbava;
E disposto á vingança emfim o Eterno
Já ia exterminar perjura estirpe:
Um justo o suspendeu;— Noé somente,
Só em todo o universo, obteve a gloria
De que os céos d'entre os ímpios o estremassem !
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 243
Assim que a lignea estancia elle findara,
A terra com seus povos foi proscripta ;
Ferrenho o pólo, o pólo inexorável
Ante OS olhos attonitos derrama
Torrentes até 'li nos ares presas;
Solto o Oceano da barreira im movei.
Onde a mão do seu Deus lhe estreita as fúrias,
Sáe, corre, ferve, brama, innunda a terra;
Tudo morre entre as ondas, tudo morre:
A arca só do universo é a esperança.
N'isto o senhor, e o páe da Natureza,
Por sua rectidão desaggravado,
A cholera mitiga, acena aos ventos,
Que, os céos acrysolando, a terra enxugam :
Pouco a pcuco resargem penhas, serras;
O remi dor baixel no Arménio monte
Encalha finalmente; as ondas fogem
Por aqui, por ali a estrada abrindo,
E como que as montanhas nascem d'ellas;
Entra mugindo o mar no leito enorme,
E volve etherea lympha ao seio ethereo.
Mas do salvo mortal qual é o espanto !
Que lugnbr.es mudanças pavorosas
Vê no seu domicilio ! Eis alterada,
Eis d'íAgua a terra abeita em fundas bocas
Os matizes perdeu, perdeu o esmalte,
K confuso montão de lodo, e rochas;
Já nas rotas, misérrimas entranhas
244 OBRAS DE BOCAGE
Os suecos lhe não correm : fero ainda
De nuvens todo o ar se entenebrece :
O homem treme, e recêa outros nauframos.
Mortalj Ucão descorçôes; Deus promette
Que nunca a terra ingrata os mares sorvam:
Attenta no arco, de alliança abono,
Que d'hora avante a divinal clemência
Entre si, e entre nós de todo firma.
Eterna mão por benefícios novos
A terra formosêa, onde gravara
Do seu vasto furor signaes tremendos;
Um Deus se digna de ensinar aos homens
Arte ditosa, que em liquor celeste
Muda espremidos, saborosos cachos:
Este néctar possante innova as forças
Do mortal quebrantado ; os risos gera,
E co'a fecunda, cordeal virtude
O mundo consolou do equóreo estrago.
Juntas cepas Noé dispôz em ordem.
Armado do podão talhou sarmentos;
Ao pezo de seus pés purpureados
O cacho rebentam, e ante seus olhos
Correu, pondo-lhe espanto, o vinho em ondas.
Arménia te gostou, nectareo sueco;
A Grécia com fervor te quiz no seio;
De colónia^ e colónia em mãos a vinha
Passou dos orientaes ao campo Ausonio;
O Ebro vestiu com ella as praias suas,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 245
E para haver seus dons o gallo antigo
Eochedos commetteu, transpoz montanhas:
Cedo o Erídano o viu co'as mãos ovantes
Roubar-]he o sumo dos vinósos bagos :
Antes de submetter-se ás leis de Roma
O Arecómico volco em nossos climas^
Já do Rhodano a vinha ornava as margens:
Centre seus hioros MaPiielone admira
o o
Ladeiras, que de pâmpanos se adornam:
Submisr^o ao jugo do adorável Probo
Desdenha os fructos da azinheira o coita,
Os bosques arrancando, acolhe as vides;
E com seus vinhos e^ual mente o belp-a
As frias ax^uas tincre ao Vossa, ao Rheno.
Tocando a rica phmta o chão germano
Seus verdes braços á Panonia estende;
Mas, porque aos tenros, melindrosos filhos
Recêa os golpes da geada infesta,
Climas foge onde a Ursa, o Carro assomam, ,
E da fogosa ecliptica os ardores
Sobre arêa africana escádeas torram.
Entre estas flammas, e os gelados pólos
A sombra de um céo brando existem plagas
Onde os Favonios amaciam Bóreas,
Onde chuveiros o calor temperam,
E na carreira obliqua o sol constante
Abre para os mort^ies, lhes assegura
Fructos formosos, e formosos dias;
246 OBRAS DE BOCAGE
Eis O terreno ás cepas deleitoso:
Lá surge a parra, madurece o cacho;
Mas ha paragens ali mbsmo ingratas,
A que repugna sem virtude a cepa,
E a que nunca se afaz. Parca, ou estéril
E sobre chão barrento; é forte em pingue;
Mas tristemente fértil: esconder-lhe
Cumpre no abrigo de amoravel clima
Septentrioual carranca, e ventos bravos.
Ama o escasso pendor do um bello outeiro,
Onde a terra sulphurea, leve, unida
Em chão fragoso co'a volante arêa,
Recebe toda a luz do sol mais vivo.
Ali (mercê dos reflectidos lumes)
De óptimos fructos se enriquece a vinha ;
Seixos, por lavra e lavra alija gastos,
Cospem chamma efficaz, que aos troncos salta:
Assim vemos a pedra onde elle, occulto^
Do frio, duro seio é arrancado;
O aço prompto a golpea, sáe do embate
ígnea scen telha, e pula, e brilha, e morro.
De altíssimos outeiros no recosto,
Onde a cepa firmar-se apenas pode,
Fervente g^lluvião, que vem dos montes,
Valles com teus plantios alastrara.
Se duplicados, vigorosos muros
Da procedia ao furor não fossem diques;
Esfarte o atavio é dos fecundos
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 247
Serros, que o Tarn, e o Rhodano humedecem :
Lá diligentes mãos vi dia, e dia
Trazer dos valles os torrões lodosos,
Cubrir das rochas a nudez agreste,
Comraunicar-lhes vida, e fecundal-as:
Emendando a madrasta Natureza,
Assim, oh arte, amphitheatro fóimas
De flores, fructos, e arvores, que erguido
Em ledas gradações aos montes sobe,
Onde as messes, e as cepas nascem, pendem.
Cavaste os regos; á experiência toca
Escolha dos plantios, e distancia:
De arraigados pimpolhos, que verdejem
Com primaveras três, servir- te podes;
D'es3es alumnos teus, que no viveiro
Primicias de raizes te ofFertaram :
Mas isto, assas custoso, assas inútil.
De experto vinhateiro é rejeitado; -
Imita-o, corta essas estacas fáceis
Que houveras escolhido em troncos férteis;
Arrancados á mãe renovos tenros,
Enfeixados, captivos n'agua, ou terra,
Gráos esperando a que os destiae a sorte,
Logrem frescura, e sem raizes vivam.
Lá quando o turvo Aquário em nossos climas
Faz que reinem com elle a neve, os gelos,
Conduze ténues hastes ; a esquadria
Em angular feição divida a terra :
248 OBRAS DE BOCAGE
Quer vigoroso chão que mais se apertem^
Que se desunam mais quer uma encosta;
Dê-se extensão maior aos seus carreiros,
Se provar devem da charrua o ferro.
Que mão destra, os plantios concordando,.
Misturar saberá géneros vários?
Bebida singular compor desejas?
Faze liga gentil de uvas diversas:
Esta, que abunda de calor, de força.
Dá corpo aos vinhos, lhes carrega as cores;
Aquella, de sabor mais aprazível,
De condição mais branda, oíf'rece aos lábios
Liquor deh cioso, e vivo, e leve;
Cacho de superfície alambreada
Vinho annuncia espirituoso, ardente,
Mas que em breve se altera: alguém que saiba
As misturas, e os números contar-lhes,
As ondas contará, que sobre as praias.
Ou contra as árduas penhas vem romper-se.
Segue-lhe usos, e leis em todo o sitio;
Regra austera, excepções porém sofFrendo;
Segura nos seus votos, a experiência
Do consummado vinhateiro é guia:
Morrendo algum renovo, abaixa, enterra
De cepa um mergulhão com que visinhe;
Successora do irmão, do sitio herdeira.
Mãe seja ali de descendência nova.
Fácil, prompto em subir, não pouca^ vezes
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 24&
Dobra a prazer dos ares o sarmento,
E a custo se mant<^rn; d'elle apiedada,
Soccorre a natureza o débil ramo.
Com turtiiosas mãos o corpo lhe arma:
Eis o pâmpano alonga os verdes braços,
Ajudador visinho em torno busca,
S se ampara com elle; é necessário
Prevê r-lhe as preci-ões. Alta na Hetniria
Casa-se a vinha ao olmo inda creança:
]3esde o seu nascimento ambos unidos.
Um por outro abraçados, vivem, crescein
Os ramos amorosos, e não tarde
A arvore offrece aos olhos admirados
De^uvas, e parras orgulhosa a fronte.
E profícuo tancíião bastante apoio
Ao sarmento, entre nós menos altivo:
Da ufana Ibéria nos ardentes combros,
Nos que a margem do Rhodano acompanham^
Jamais soccorro alheio elles imploram ;
Força própria os sustem, sem risco sobem,
Não temem fúrias de contrários ventos,
E os ramos seus com desafoo^o estendem.
Honra de teus vergéis, a vinha ás vezes
Ouro alardêa, e purjmra dos cachos ;
Por formosa latada eleva os fructos,
Trepa, e roça no cume encaniçado;
Ou, curvando inda tenra a dócil rama,
Os parreiraes de pavilhões te c'rôa.
250^ OBRAS DE B'.<(: <JE
Quando o murcho sarmens^ is galas despe,
Vae podar, bem que ainda <iã- voltasse
Do cultivo a sazão; se aca^o mltas
Ordinário vagar dos vinbatcii <.
Se do geral costume és cego • *r;ivo,
Té que os primeiros Zephjro .íspirem
Mando não ousas ter nas vinli > tuas:
Em vindo a primavera acord * sueco,
Anda de vêa em vêa, anima <» ramos;
E, encontrando a ferida abeit:! e frescn.
Em lagrimas demais elle se e>( òa,
Evapora-se emfim; porém o in -rao
No podado sarmento aperta, «' < ura
Quantos canaes Ibe lacerara o t i ro;
Modera os prantos seus, e as^in' captivo
O sueco se mantém, que augni uta os fructos.
Ás lavras finalmente a priniaxera
Solto exercício dá: nas mãos nr \ o.-as
Tomam férreo instrumento os \ inhateiros;
Aos golpes os torrões lá se amolb^cera,
Róçam-se as pedras, se atavia o campo;
E, de saibro visinlio as cepas li\ les.
Do sol aos raios a raiz devassam.
Tens as collinas destinado á 1 ivi-a?
O mestiço animal, e os bois conlnze;
Entre fileiras de arredados troncos
A indómita cerviz lhe afaze ao jugo:
Assim que a primavera adoça o clima
POEMAS DJDACTIGOS TRADUZIDOS 251
Abre os olhos a vinha, e choros verte;
Recolhe attento as valiosas gotas ;
Na vista, qtie a despiu^ renovam graça,
Com ellas volve á face a tez de rosas,
E a pedra, intensa dor, bebendo-as, vae-se.
Teme porém que Zephyro a secluza,
E fervorosa, e de chorar canc;ada,
Desdobre a vinha não prudentes flores;
Muda Favonio, primavera engana:
Da plaga nossa rechaçado ás Ursa-,
Oh ! quantas vexes o medonho inverno
Torce a negra carranca, e retrocede!
Por entre virações entoi'na gelos,
Rouba á terra os thesouros, e dev^ora
Gratas promessas dos raminhos tenros.
Se da saraiva impetuoso embate
Rompe do germe os rebentões primei ro>.
Sê também, sê cruel para salval-os :
Do cepa logo, logo, as novas folhas,
O sarmento verás tornar~se á vida;
Mas os renovos seus menos valentes
Provam-lhe o esforço, e juntamente o danmo.
Se até na cepa volteando o sueco.
Impróprios frios os sarmentos crestam,
Cumpre que a estéril fronte lhe cercees,
Cumpre que lhe abras os gelados corpos,
E que outro fértil ramo ali situes:
252 OBRAS DE BQpAGE
O tronco o adopta, e mais feliz, mais farto
Dá novos fructos, numerosa prole.
C'roam-se em tanto os pâmpanos de flores,
E recolhem do sol eàlor propicio;
Mas, se o planeta por mais ampla estrada
Sobe ao cuflTe da abobada celeste.
Porque aos raios phebeos a vinha esquive
O cauto vinhateiro ampara as cepas;
Com a enxada nas mãos abre o terreno,
A pérfida raiz destróe das hervas,
Em visinhança ao tronco estacas planta,
Que os braços lhe mantém quando se alonga;
Rege os pimpolhos, que no extremo abundam,
Um ramo se condemna, outro se escolhe.
Prende a altivez de ambiciosa folha,
E, se lhe empece, um botãosinho arranca:
Mais fecundo perdendo ávidos filhos,
Só ramos úteis fortalece o tronco.
Formam-se os cachos, e o calor bem cedo
Ha de pintar-lhes duvidosas cores:
Quando, cubrindo-os a folhagem densa,
' Oppõe á luz diurna um v<30 sombrio,
Tornem-lhe a luz, e mais vermelho o fructo
Vê-se que ao sol de purpura se tinge:
Em vicejando sem arrimo as cepas,
Basta entrança r-lhes a madeixa longa.
Jamais das vinhas te enfastie o amanho^
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 25o
Elias soccorros teus assíduos querem:
Já forte, e nova terra estão rogando,
Já nutrimento de abundoso estrume;
Herva destróes em vão, e em vão repulsas,
Ella se reproduz; teima em tiral-a:
A nojosa lagarta, occulta aos olhos,
Prole depõe no pâmpano recente,
Se esconde, envolve, e da folhage infecta
No curvo seio em segurança vive.
Pernicioso insecto eis sáe da terra,
E, roendo a raiz, fez guerra ao fructo:
Dos caracóes o rojador enxame
Com a escuma tenaz corrompe as uvas;
Contra taiito inimigo ar mar- te deves,
E os damnos com desvelo acautelar-lhe :
Ergue uma balsa, os herriçados muros
D'ali rebanhos com o espinho arredem ;
Da cabra mais que tudo o infenso dente
Para a cepa, que fere, é peçonhento:
De trabalhos um circulo te abrange;
O anno aponta, voltea, e retrocede.
A quadra mais feliz, mais opulenta,
O outomno a teus desejos apparece:
Cal:i-se, e dorme o vento, o sol no giro
Distribue egualmente a noute, e o dia;
De importunos ardores livre a terra
Espira os molles Zephyros; a planta,
Toda pomposa dos seus dons mais bcllo'';
254 OBKz\S DE BOCAGE
Já para nos brindar inclina os ramos;
De fructos mil c'roada a Natureza
Nos convida ao festim, que lhe orna a meza;
O cacho aos olhos sasonado oíferta,
E envolto em superfície azul, ou roxa.
Dado o signal, encota-se a vindima;
Enxame camponez caminha á pressa,
Dirige-os o prazer; co'as mãos activas,
Da cantilena ao som, cercêam cachos;
Porém fructos com eiva, ou abortivos
Do thesouro commum são refugados;
Deixa esses bagos, alimento de aves,
Não te manche os toneis seu podre sumo:
Aos cachos apanhados n'um só dia
Não dás um só destino; estes se elegem
Entre mil para a meza, e se mergulham
N'agua fervente de que surgem brandos;
O sol murchou-lhe a flor da mocidade,
B rugas a velhice antecederam;
Aquelles, cujo preço é venerado
Da quadra fria, engelham-se nos tectos,
Pendentes envelhecem manso e manso.
Acolheu-se a teus muros a vindima,
Folhas enjeití^s, e a despida esgalha;
Sobre taboas depois, com arte unidas,
Nús, vigorosos pés espremem cachos:
O sumo em grossas ondas vae manando;
Preso nas pipas, nos toneis captivo
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 255
Fuma, ruge o liquor. e sobe, e ferve;
E co'a pelíe, que ti- ir", misturado
Toma o lustre, o cn do um vivo fogo.
Cinco vezes a iv- ■ os véos desdobra,
Cinco vezes o sol (i í' z as trevas,
E ofota a ^ota nos c \ staes filtrado,
Qual brilhante rubi, -áe puro o vinho;
Convém que saia então da cuba, e seja
Das fezes desviado: <>s ligueos muros
Dos vasos, que encli i, o cárcere lhe apertem.
Era em Grécia, em Ausonia um tosco barro
Estancia frágil dos f aventes mostos:
Ou no seio de um o ire amotinados
Não poucas vezes a {nisão rompiam:
Teu povo, oh mãe, oh Grallia industriosa,
Soube em curva ma(l^M'ra obstar-lhe ás fúrias,
Taboas juntando, circumdadas de arcos,
De invencivel cadea os opprimiam.
Quando fallece o viulio á cuba exhausta
Toma dos bagos o funia«te espolio:
Eil-os já, no lagur accumuludos.
Ao pezo gemem de abatidos fusos;
>Sáem da uva esmagada os sumos logo,
E regatos de vinho a terra innundam;
Tropel vindimador ao vel-os folga,
Tomam copos nas mãos, dão g?'andes sorvos;
E, se outra vez na cuba introduzirem
Estas já fezes languiu. is, cançadas,
256 OBRAS DE BOCAGE
E as afogíirem n'agua, em breve a coram;
Apparejíciji de vinho engana os olhos,
Sueco (l* expressos bagos a presumem.
Mas do falso h*quor o travo insulso
Mostra a. franqueza da mistura imprópria.
Eia, engenhoso amante de áureo vinho,
Queres que, rindo aos olhos, saiba ao néctar?
Nunca doá cachos te allicie o alambre,
Dão liquor fraco, amarelleja em breve;
Nasce vivo liquor das uvas negras,
E experto, e scintillante a^ quadras vence:
Arte se deve de Champanha aos povos
Que um corpo aos vinhos dá firme, e durável;
Est'arte presta só. Depois da aurora
Aos lumes de um sol puro escolhe, apanha
TJvas tintas de azul, e inda orvalhosas;
Esteude-as mollemente, e vae d'espaço
Lançal-as n'esse dia em teus lacrares,
Sintam do fuso os golpes; ser costumam
Primeiros prantos seus seus dons mais doces;
Humor, que sse lhe extráe do seio á força.
De um pallido rubi tem cor incerta.
Lá nas adegas que ruido soa!
Que ondas são estas, que em toneis escumam!
Deixa liv]e abertura ao mosto accezo,
E sem custo entre o ar, saia, e murmure:
D'est'ar;ej quando tubos aprisionam
Ondas, que vão cair n'um tanque va , ,
POEMA.S DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 257
Recêas que do vento o bafo incluso,
E, agua, espertada na prisão por elle,
Unindo-se, os canaes arrombem todos,
E abres então respiradouros livres:
No cárcere egualmente o vinho ruge,
Levanta borbulhões, e crê que o rompe ;
Escumando se apura; ajuda-lhe o erro,
Nutre-lhe a fúria, porque amanse o fogo;
Ardores juvenis tempera a edade;
Repousam finalmente, e se amaciam.
Então dos lares teus os subterrâneos
Emtorno aos muros os toneis acolham :
Resguardar-te as adegas deve a terra;
Se os éccos do trovão teu vinho assustam,
Move-se, ferve, turba-se, descora:
O aceio impere na tranquilla estancia,
E a todo o cheiro inaccessivel seja:
Longe ess'arte impostora, essa que os nossos
Puros bens viciando, ao vinho ajunta
Agradáveis peçonhas; sobre a escoria
Quando mui longo esquecimento o d-eixe
Que elle se allie co'a inimiga temam;
Do lodo corruptor largue a morada.
Remoto d'elle, e preservado exista.
Queres que os vinhos á clareza, ao pico
Aggreguem seus rubis, ou viva espuma ?
Do seio dos toneis convém que os tires
No tempo em que renasce a Natureza.
17
258 OBRAS DE BOCAGE
Seiba, que a mocidade á vide acorda,
Opera no liquor, e anima-o sempre:
Depois da primavera amadurece
Aos vinhos o vigor, elles alcançam
Do socegOj e da edade um preço novo.
Se a despeito porém de teus desvelos
Se evapora o liquor empobrecido,
Ou finalmente azeda, o vicio d'elle
Certas virtudes tem ; seu gosto, e cheiro
Insípido manjar corrige, aduba;
Contra cem males, cujo ardor curtimos.
Triste mortal nas afflicções o implora;
Dos venenos da peste a fúria extingue,
E o fogo precursor da raiva horrenda:
Aquelles, cujo braço a pátria escuda,
Abona vezes cento a força, -e vida;
Saxe aos francezes, aos romanos César
Seu uso impondo, seus eíFeitos viram.
Oh! Quanto, e quanto é devedora ao vinho
Arte assombrosa, que o divide, e apura -
Por meio de um fornilho ! Em ígneas azas
O espirito se eleva, e resfriado
Tardia, frouxamente se distilla:
Tacs os lumes phebêos, ou térrea chamma
Vapores erguem dos trovões ao clima;
Os corpos no calor se lhe dilatam,
O frio lh'os aperta, lh'os condensa, ■
E descem, prccipitam-se dos ares:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 259
A aguardente no lar se faz d'est'arte;
Se por novo trabalho a rectificam,
O espirito do vinho eis despe a fleugina;
E livre sobe, e cáe purificado.
Povo de Montpeliier, a industria vc^^sa
Do vinho usa formar útil ferrugem,
Útil, mas arriscada. Ali no fundo
De escura adega raergulhaes os cachos
Em urnas, onde o vinho se lhe embebe:
Batido cobre de estendidas folhas
No cacho longo tempo está confuso;
O vinho ali se a-zéda, ali fermenta,
B o exhalado espirito derrama
Verde vapor na ferruginea massa.
Bátâvo, subsistir com taes venenos
Vcs os teus diques, e as cidades tuas;
Seguros dentro d'agua os alicerces
D'insecto estranho tal peçonha os livra:
Tu, cuja mão copia a Natureza,
Tu^ cujo audaz pincel dá vida aos quadros,
Enche-o d'este útil pó; com elie exprime
Louçã verdura, que ameniza os serros.
Quando o vinho nas fezes, novo aiii la,
Vae fermentando, seu fervor se apuia
Dos mais grosseiros sáes; endurecido
O sarro nos toneis, d'ali tirado
Se aprompia pára mil necessi.i
ima, que dispuie á França
260 ' OBRAS DE EOCAGB
Dos seus famosos serros a excellencia:
L'Hermitage, e Cahors aos gostos nossos
Dão generosos, dão maduros vinhos,
Vinhos fartos de espirito, e constantes.
Madureza co'a força emparelhando,
Os de Occitania, e Rhodano assignalam;
Lóte-os experta mão com outros vinhos,
E affoutos vão luzir dos reis nas mezas.
Liquores que, oh Vienlia, aromatizas
Quão gratos me seriam, se a mal-firme
Razão minha o vapor lhes não temesse !
Nas aguas seus thesouros estendendo,
Vê Garôna o solicito britanno
Que os perturbados vinhos lhe carrega
Nos seus lenhos innuraeros; os vinhos.
Que sobre as aguas em passagem longa
Austera condição despir costumam.
Deleitoso Borgonha, a ti se inclinem
Tão claros nomes, e o seu rei venerem:
Une-se alegre bando á face tua.
Bebe prazer, saúde a largos sorvos:
Rival digno de ti, também Champanha
Risos, jogos conduz, e Amor, e as Graças;
Do vivo seu líquor. a espuma bella.
Fendendo o ar, que a aperta, sobe, e pula;
Na luz vence o crystal, no gosto é néctar:
E mulos immortaes, ambos contentes
Da vossa fama, sem victoria ob terdes,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 261
Contendei-a entre vós, armae sequazes;
As guerras suas são risonhos brincos,
; Mimos, e amores a peleja expertam.
Ha dourado liquor, brilhante vinho
[ Que parece os prazeres o aprestaram;
Seu calor salutar, depois de ledo
Opíparo festim, fomenta, aquece
De já cangado estômago a tibieza:
* Nos campos, que de Tubal houra o nome,
* Nectáreo moscatel, assim prosperas.
Reconheço os teus dons, e teus perfumes
Amo, oh suave humor, que a custo entornam
Bagos de Frontignan ! O precioso
Tokay, teu digno contendor, te eguala,
Se acaso não te excede. Ouro, escondido
Entre o terreno onde seus cachos surgem,
D'elles no seio co'a substancia casa:
Inferiores a ti, no gráo segundo*
Repartem nossa escolha os outros vinhos;
Canárias, Alicante, e Syracus^,
Chiras, e Pacaret, Málaga, Ibéria
O gosto acariciam: Grécia exalta
Inda de Lesbos os vinosos cumes,
E o néctar vosso, oh Tenedos, oh Chio.
Sobre ardente brazeiro a Creta em Gnossia
Condensa pouco a pouco as malvasias:
D'internas brazas o Vesúvio accezo
262 OBRAS DE BOCAGK
Vô junto a seus vulcões, ás lavas suas
Dos cachos emanar liquor fragrante.
Ao promontório, cujo pé carrega
No Oceano feroz, * onde alta Musa
* (Das Camenas do Tejo honra, e saudade)
* Grigante, em olhos negro, e negro em boca,
* De tormentas coroou, cingiu de agouros;
^ Lá quando, sobranceiro á Natureza, ^
* Talhando a pego immenso as virgens ondas,
"^ Esperanças colheu por entre horrores
*'0 Occidental Jason, ao promontório,
Cujo nome os baixeis acoroçòa.
De nossos campos trasladadas cepas
Dão vinhos, cujo succo^avelludado
Toma, africanos céos, á sombra vossa
Aroma encantador, qual não gosáia
Próximo ás fontes d'oude corre o Sena.
Bem que vinhos de nome a Hetruria aíFamem,
Degenerado tem na Hesperia toda:
Esses, que sobre as azas d'aureos versos
* (Versos qug^íam privar co'a eternidade)
O cysne de Venusa aos céos erguia;
Alba, e Cales, e Massico, e Falerno,
Fracos, doces de mais, desenxabidos.
Ha longos tempos seu louvor perderam :
* No espirito, e sabor diversos d'estes
* Em altos vinhos se abalisa o Douro.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 263
Herdeiros dos romanos, os francezes,
As artes amimando, a guerra exercem;
De quem subjuga o mundo o vinho é premio.
Tu, que deste canções ao terno Horácio,
Corre, mago liquor, teus dons se acclamem;
Com elles nossos males tu guareces,
Escoras a fraqueza, e restitues
O juvenil fervor ao velho inerte;
Es alma dos festins; quando os não bonras
Se torna sem-sabor manjar mimoso:
Substancias, que provém do trigo, e fructos;
As perfumadas, as chinezas folhas;
Dos grãos de Yemen a singular bebida;
O cacáo negrejante, alimentoso,
Taciturnos liquores, — nada usurpam
A tranquilla rlTzão na mente immovel:
Tu só, néctar divino, é que insinuas
Nas almas todas esperança, e gosto.
Da sociedade medianeiro amável,
Os que ódio desuniu, reconcilias;
Dás-lhes sereno olhar, benigna face,
E união cordeal de ti renasce.
Cego nos cultos seus, o tempo antigo
Fez das vindimas tutelar deidade
O filho de Semeie; á sacra fronte
De eterna primavera unia-lhe^s graças:
Em carro, a que ligou panthéras, lynces.
Aos crédulos thebanos Baccho ensina
264 OBRAS DE BOCAGE
Seus ritos, seus mysterios vãos, fallazes;
De uvas, e de hera engrinaldado assoma,
Pâmpano sempre verde o thyrso lhe orna:
As soqias, pelo mosto avermelhadas,
No monte Cjtheron orgias celebram;
Faunos lhe estão d'aqui, d'ali Sylvanos;
Silêno ou cambalêa, ou vae-lhe em braços.
Da turba os phrenesís irrita Brómio;
Eis Lycurgo, Penthêo despedaçados,
* A mãe (ah! já não mãe!) lacera o filho:
Aos vicios consagrado o culto infando,
E ás virtudes fatal, do sábio é ódio:
No ardente fanatismo o povo accezo
De ramos allegoricos se cobre,
Pelles de tigre veste, e sobe aos montes
Ismaro, ou Pélio; rápido os vaguêa;
Religião, piedade o torna insano:
Ménades em torrente o campo innundam.
Ferem o éneo instrumento, uivam nas serras^
E a douda embriaguez, gerando excessos,
Muda-lhe o culto em crime, o zelo em fúria.
Das festas de Lyêo bando atrevido
Cedo em Athenas a tragedia forma.
Éschylo a cria, Sóphocles a eleva,
E era seus versos de fogo a adora o mundo:
Est'arte, que, pathetica, terrível.
Grande, sublime, audaz, maior que todas,
Galardoa a virtude, atterra o crime,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 265
De brutaes espectáculos nascida,
Filha da Insânia, em Grécia ennobreceií-se,
Em Roma descaiu, puliu-se em França.
Rival dos gregos, e das orgias suas,
D'elles as saturnaes colheste, oh Roma:
A par de seu senhor sentado o servo
Egualdade exprimiu dos tempos de ouro ;
Licença, embriaguez por toda a parte
Séculos de innocencia ousaram crer-se:
O carnaval emfim d'este proscripto
Tumultuario culto exclue o pejo,
Mas o espiriro seu tem conservado.
Politica firmando até nos gostos
Sagrou-lhe sobre o mar Veneza um templo:
Dos tribunaes ás venerandas portas,
Sorrindo-se, apparece a Liberdade,
E rigor, subjeição d'ali remove;
O instante, que seus jogos annuncia,
Da cidade atinada o siso varre;
Bellezas mil e mil, que lá no centro
Dos tristes lares seus, entre altos muros,
Dias arrastam como a noute escuros.
Curvas ás férreas leis de seus tyrannos,
Victimas do ciúme, e sempre em medos,
Súbito passam da amargura ao riso.
Do extremo jugo á liberdade extrema :
Então não tem poder, nem jus o esposo;
266 OBRAS DE BOCAGE
Então lei respeitável crê Veneza
Vestir-se o rosto de emprestada face;
EUa ao mysterio dá se^^uro asylo,
Um mortal mascarado é quasi um nume.
Que impostores de espberas se rodôam^
De caractei'es vãos^ compassos, vidros !
Que insensatos suppõem que arte dolosa
Allumie o porvir, n'alma lhes lêa !
Levando melhor guia os amadores
Nos olhos do seu bem vão ler seus fados:
Esfoutros á Fortuna altar levantam,
Ali depõe o avaro infames votos;
Medo, esperança, e boa ou má ventura
Cem palpitantes corações esforçam.
Tremendo aos golpes do erradio Acaso,
Da Sorte, que ora dá, que outr'hora usurpa
Thesouros, por cegueira á Sorte entregues,
Todos, té quando seu favor lhe acode.
Todos (caterva iniqua!) sentem menos
Do lucro a posse que o terror da perda.
A scena prazenteira os jogos abre;
Surgindo lume, e lume os ares crestam;
Aos lúcidos festejos sobre as aguas
Succede a melodia, apoz seus passos
A dança faz voar gentil enredo;
As margens do canal, palácios, praças
Tudo ri, tudo brilha, assombra, encanta;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 267
E OS Gostos, as Delicias, vencedores
Da Razão grave, e da Moral severa,
Por entre seus trophéos ali recordam
Artes, feitiços, illusões das Fadas,
Té ao dia em que as leis de novo imponham
Jugo aos transportes, aos delirios termo.
268 OBRAS DE BOCAGE
OufíLHSTTO TEI^^CErRO
DAS ARYORES
Bosques, jardins, vergéis, mostrae-me o seio;
Eu canto~ os vossos dons, e abrio^os vossos:
Dado ao transporte, que influíra outr'hora
O vate Mantuano, o velho de Ascra,
Sou dos francezes o primeiro, que abre
Incógnitos caminhos no Parnasso.
Tu, que para exaltar plantas, e bosques
O mais sábio dos reis. Deus, inspiraste,
Lhe ergueste o génio, os sons lhe dirigiste,
Anima-me a cantar-te as maravilhas.
Cavernas, arvoredos, gratas sombras
Com doce embriaguez minh'alma innundam;
Brando a meu verso applaude-me o carvalho,
A fronte inclina, os ramos lhe susurram,
E os éccos d'entre as penhas, d'entre as selvas
Duplicam seu murmúrio, e me respondem.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 269
A Grécia presumiu, sonhou que os deuses
Povoavam jardins, montanhas, bosques ;
Que Pan, Delia, Priápo ali se viam
E morava uma Nympha em cada tronco:
De Dódona os milagres admirando,
Consultavam prophetico arvoredo:
Sobre carvalho, aos povos adorável,
Iam colher o agárico sagrado
Feros ministros, druydas cruentos;
Ante o culto plebeu se expunha em aras
Penhor ílcticio do celeste amparo.
Cumpre á Verdade, oh bosques venerandos,
Vosso préstimo, e mimos pôr patentes:
Os primeiros avós nos abrigastes,
As vossas grutas os seus lares foram,
Cidades suas os recintos vossos:
Quando errantes mortaes por leis se uniram,
E ergueram muros, e elevaram tectos,
Em tectos converteram-se arvoredos,
E cub riram com regra os edifícios;
O cedro se accendeu, na umbrosa estancia
O dia resurgiu por entre a noute;
O penetrante ardor de accezos troncos
Amacia do inverno os agros gelos: v
O pinho sáe dos montes, desce ás aguas,
E curvam-so em baixeis as moveis selvas;
O Oceano, que divide ao mundo as plagas,
O laço é mesmo que reúne as terras;
270 OBRAS DE BOCAGE
O liomem vae promptamente aos climas todos,
Fica todo o universo uma cidade.
Amplas florestas, alterosos troncos,
Mortal, ao teu suor não se reservam:
Dos arbustos cuidado o céo te incumbe,
Plantas, bem como tu, frágeis, caducas;
Pódès co'a mão cbegar-lhe ás dóceis testas,
E colher nos jardins em seus raminhos
O tributo das flores, e o dos fructos;
Os bosques são jardins do Deus do mundo,
Elie só, que os plantou, é que os cultiva:
Sobre as azas do vento o £rão fumndo,
Voa, em mil partes cáe por ordem sua;
Deus lhe tira do seio altivos corpos,
Firma-lhe os pés, e sempre lhe remoça
As frontes immortaes de novas folhas:
A floresta de Hercynia inda aos germanos
Troncos presenta, que os romanos viram;
O francez em seu clima reconhece
As antigas Ardennas, onde o bardo
Tingia o chão com victimas humanas.
O homem, cópia cíe um Deus, pó(le imital-o
Semear, transplantar como lhe apraza
Os dóceis troncos, as pevides leves.
Ornar, fazer fecundo estéril campo,
E, entre o útil favor de sombras frescas,
Do sol desafiar todos os raios.
Tu, que olhíis para lá da tua edade^
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 271
E ornar queres de nm bosque a herança tua,
Quando a neve dos annos te encaneça
Colhes sempre algum fructo aos teus desejos;
Educas facilmente a mocidade
Das plantaSj cubiçosas de agradar-te;
Prazer da creação vale o da posse:
Vê seu verde nascente rir, e abrir-se:
A linda rama passarinhos voam,
E o gorgeio de amor encauca os bosques:
Deves a teus avós tuas florestas.
Teus avós para ti lá semearam,
Tu semêa também para teus netos.
A selva tua aos Aquiles voltada
Tenha-lhe os sopros entre a rama presos:
Quando, crestada dos primeiros frios,
O vento a folha ás arvores arranca,
Dos campos mais visinhos uns trasladam
Renovos tenros, de raiz mimosa.
Que rápidos crescendo, mas sem força,
Seccam de languidez em campo extranho:
Outros cingem-se ás leis da Nutureza,
E a semente mais tarda, e mais segura
De sombras immortaes seus prédios c'roa:
Os segundos imito, approvo aquelles;
Quizera logo que em trilhadas sendas
Os olhos discorressem fundos bosques.
O ferro em tuas mãos na sua infância
Dos arbustos os ramos affeicôe;
272 OBRAS DE BOCAGE
Não esperes demais; na meninice
Grangea-se o costuiDe, e vae seu jugo
Té á velhice reforçando o pezo:
Se de humilde arvoredo te contentas
Dirige-lhe o machado apoz dous lustros;
Se por invernos trinta os troncos poupas
Assombram altas arvores teas olhos;
E, se illesa medrasse em annos cento
A rama pelos céos se roçaria.
Em pedregoso chão folga o carvalho ;
CoUoca junto d'elle o róbre, a faia;
A sorveira se cria em terra fértil,
E ós freixoSj a nogueira, o til, o bordo,
O plátano (que já co'as doctas sombras
Do sublime Platão cubriu a eschola,
E o banquete cubriu dos sete sábios)
Do terreno indiano os castanheiros,
E o olmo, que em teu seio achaste, oh Galha:
O álamo, o chôpo, que de margens gostam,
Co'a pallida folhagem toldam rios;
E, alçando a rama, seus amphibios corpos
Tem sobre a terra o tronco, o pé nas aguas.
Em fragosas, em áridas coliinas.
Das humidades longe o castanheiro
Co'a folha herriça Os espinhosos frucíos;
Que eram sem elle teus saibrosos serros,
Limousin, terra ingrata, infructuosa,
Cevennes, que elle afaga, e só prospera!
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 273
Seus fructos são teus pães; o âmago d'elles
Se enruga, e se endurece em fogo brando;
I Da pelle escura, e sêcca o murcho corpo
l- Sem custo se desveste a crebros golpes,
^ E em durador sustento assim se muda:
Seu lenho orna, mantém, cobre edifícios;
Talhado ainda em moço á mão, que o dobra
Os arcos dá, com que depois o ligam.
Tu nos montes expõe o alvar pinheiro,
Mostra o cedro, o cypreste, o pinho manso:
De Boreas irritado affrontam raivas,
E o vento sopros vãos nas folhas perde;
Dos vastos corpos seus liquor viscoso
Faz que os invernos sua sombra dome :
; Porém do próprio sueco a força temem,
Promptos sempre a entregal-o, a casca rompem;
Se os ganhares por mão, d'entre seus vasos
Verás vir dimanando o sumo em rios:
Mansos pinheiros, e pinheiros bravos
Uns o pez, a resina outros derramam:
Sua terebentina ostenta Chio,
E Judá com seus bálsamos é rico,
^ E Tolu, Canadá, Peru, e a Meca;
Dos freixos de Calábria o pranto admira :
Myrrha oíFVece aos sabéos humor, que encanta,
E colhe a religião n'aquelles campos
O incenso, cujo aroma os céos estimam.
ÉDão-nos as plantas para os usos nossos
274 OBRAS DS BOCAGE
Raízes, fructos^ a semente, e a folha:
Néctar cheiroso, de calor suave,
Que accende o génio, o coração reanima.
Perfuma com seus grãos Medina, e Meca;
Ricas folhas na China o chá desdobra;
Nos campos do Indostan caca o vegeta,
Do algodoeiro o fructo, e noz do coco:
Taes plantas, cujo sueco apraz, e experta,
Aos thesouros da abelha o preço abatem»
Gabou seus bosques longamente a Grécia,
Que os altos vates seus cantaram tanto:
Não me deslumbro, não, co'a gloria sua:
Erymantho jamais, jamais Oyllene,
Nem Dódona também, nem tu, Neméa,
A prole humana bemfazejos fostes;
França, oh pátria, a teus bosques cedem elles:
E nunca vossos troncos orgulhosos
Egaaláram, e as sendas, e as latadas
Das abobadas vossas, oh Compiegne;
Creci, Dreux, Orleans, Couci, e Ardennas,
Chantilli, Cerilli, vistosas selvas,
E tu Fontainebleau, do Elysio imagem.
A Gallia, quasi inculta, entre seus bosques
Da sua adoração contra os objectos
O ferro a manear não se attrevia:
Se os campos em nutril-os eram parcos,
Demandavam seus povos outros climas,
Ao gran numero idóneos; antepunham
POEMAS. DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 275
Troncos a homens úteis: — as ciáades
Ermas deixavam por manterem bosques;
T)'est'arte a novas leis o Pó submisso,
Os gallos succeder viu a seus povos;
Ceíles gemeu ao pezo Itália curva,
E foi Roma em seus muros sepultada;
Aos campos de Gallacia deram nome;
Por Apollo tremeu, ao vel-os, Delphos.
Veiu a Verdade emíim, varreu chiraeras;
A arvore foi só arvore, e não teve
Mais victimas: os bosques, deshonrados
Pelos bardos impuros, se fizeram
Asylo d'es8es homens veneráveis.
Que, voluntariamente desterrados
Do orbe profano, povoaram bosques
Dados por nossos pães: no manto envoltos
Dos Bentos, dos Bernardos, dos Norbertos
Um povo industrioso arou desertos.
Os carvalhos attonitos caíram
A golpe, e golpe; os campos, que assombravam,
Douraram-se de espigas; (ai!) e os fructos
De seus úteis suores nos moveram
Mais inveja, que amor suas virtudes!
Por toda a parte baquearam selvas.
Os campos, as cidades estenderam:
Incautos, que fazeis ! Deixae aos netos
Thesouros das edades venerados
A bem d'elles: a França já não mostra
276 OBRAS DE BOCAGE
Senão precisos bosques; e os veremos
De temerárias mãos cair debaixo?
NãOj por leis assisadas, leis prudentes
As arvores seguras já não temem
Do lizo ferro os immaturos golpes;
Elevam-se em tranquilla adolescenciaj
B em velhas só lhe roubam vida inútil;
Elias crescem, alongam-se, e as estradas
Offertam dos jardins frescura, e sombra.
Arbustos ha, e humildes bo-quesinhos
Que das selvas não tem fastosas sombras;
Respeitoso o lapão d'est'arte admira
A franceza estatura magestosa;
Taes nos diversos climas se formaram
A estirpe dos pjgmeus, e dos gigantes:
Tem menos altivez, mas tem mais graça
Estes bosques, se menos admiráveis,
Comtudo para mim mais agradáveis.
j-;^j;Lá, vindos aos jardins por mão das artes,
Nascem familias de gentis arbustos:
O alfeneiro, a roseira, a madre-silva,
E aveleira, e loureiro, e teixo, e myrtho,
E outros mil, ctijas frontes subjugadas
Grratos Protheos polo artificio tornas:
Seu lenho aos parreiraes um subj citando,
Para os muros vestir, aos tectos sobe:
Outro a rama pomposa ao longe estende,
E os passeios divide em vivo muro;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 277
Ou labyrintho iucognito fabrica,
E ao desgarrado pé faz doce engano:
Outros, dóceis á mão, que os encaminha,
Já são vasos, pyraniides, est relias;
O azevinho, o alaterno prateado
(E não só estes) a belleza ajudam
Dos arbustos floridos: sabiamente
Arte as formas, e adornos lhe varia
Em portas, berços, tectos de verdura.
Arvores destinadas a nutrir-nos '
Pezam com fructos mil, que ás mãos nos cedem,
Para oíFertar seus dons a testa inclinam;
Prestes os troncos sempre a contentar-nos
Sobem rapidamente, e desde a infância
De preciosos dons seus ramos c'roam;
Em tanto que do matto inférteis plantas
Mal dão depois de um século úteis bosques:
Do céo, que te ama, reconhece os mimos,
E aprende o que estes bens aperfeiçoa.
Oh dos jardins oráculo infallivel
Docto La Quintiniè! A Musa ensina
Que arte potente, que propicio génio
Tem submissa a teu mando a Natureza;
Aos campos mais ingratos leva ramos,
Que elles não conheciam; e, innovando-os
Té nas entranhas suas, lá com fructos
Do mundo inteiro enriqueceu Versãilles !
Como que a terra se mudou ao ver-te!
278 OBRAS DE BOCAGE
Tu seus diversos vicios emendaste:
A que mui rija foi, leve, ou fragosa
Viu em si confuudir-se extranha terra ;
Dos defeitos oppostos, e vencidos
Mutuamente, união bem combinada
Virtude se tornou; cavar mandaste
Os rebeldes torrões até ao seio,
E por novos torrões eil-os fecundos.
Quizeste que os jardins, do vento illesos,
Provassem do zenith o vivo lume;
A essência de mil arvores soubeste,
Que aspecto lhes convém, que leis us pulem:
Assim vários terrenos, climas vários
Do mundo transportaste aos jardins nossos;
Extranhas plantações no chão da França,
Renascendo a seu grado, e vegetando.
Pareciam surgir no chão da pátria.
De transparente céo favorecidos,
Os campos da Chaldéa o berço foram
Dos mais buscados, saborosos fructos;
A primeira semente a Grécia trouxe,
E do trophéo suave ornou viveiros;
— Roma a venceu, e dos vencidos povos
— Ignotas plantas admirou a Itália:
O pêcego, da Pérsia á Europa vindo.
De seus vários destinos inda pasma ;
Salutar para nós, seu mago sueco
Nos é delicia, aos persas é veneno:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 279
O damasco odorífero de Arménia,
E a moUe sjria ameixa são colónias:
Foi Lucullo o primeiro entre os romanos
Que, d'elles ignorados, co'a mão própria
Os fructos cultivou de Cerasonte;
A pereira, nascida em ti, oh Gallia,
E as maceiras, em Neustria tão fecundas,
Apostam no sabor, no sueco apostam
Com estes bellos, peregrinos fructos;
Não são, como elles, transitórios, brandos,
O asylo, que os contém, domando invernos,
Dos fructos, que perdeu, compensa a terra.
Cova profunda em seu espaço admitta
Tenro plantio que escolheste, e arraigas:
Une aos auxilios da cultura, o forte
Crasso alimento de poupado estrume.
Taes lidas serão vãs, se teus desvelos
Não saciam das arvores a sede:
Feliz se em teus jardins ha vivas fontes,
Se de algum rio tens quinhão nas ondas;
Sendo esquivo a teus prédios, tu procura,
Abrindo fundos poços, agua n'elles;
De tanques, onde o mármore a contenha,
Roda girante sobre o chão a eleve.
Co'a esquadria na mão outros te ensinem
A formar de um jardim com arte os quadros:
Talvez cantem que próvidos trabalhos
Florescer por seu turno as hervas fazem,
280 OBRAS DE BOCAGE
E as raizes, e os fructos delicados,
Remédio aos males, dos festins apuro:
Eu, inda temeroso, eu me contento
Nas próximas lamêdas em mostrar- te
As congregadas plantas; o que valem
Folhas, e fructos seus, sempre colhidos.
Regenerados sempre: a fim de achares
Por teu suor as arvores mais férteis.
Lições profícuas te darão meus versos.
Em torno aos quadros teus algumas plantas
Nos jardins ficarão rasteiras sempre:
Taes como a sarça, espessam-se-lhe os ramos,
E, talhando-os em vaso os arredonda;
Outras, mais duro tracto inda soffrendo.
Feitas latadas entapizem muros,
Os ramos seus dobrados, e subjeitos
Em lignea grade, co'a prisão formosos.
Amam seu captiveiro: assim, aos dotes
Da simples gentileza, amável nympha
Une emprestado lustre, e as bellas tranças
* Nos elegantes nós de branda seda
* Prende co'as alvas mãos, inda mais brandas;
Soltas madeixas apraziam menos,
O^laço lhes apura o doce chiste.
Aina o sol estas arvores validas,
Nutrir lhe agrada teus alumnos caros.
Ao artificio teu seu lume é dócil,
E os muros o reflectem duplicado;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 281
Sasonados assim por elle os fructos,
As cores accendendo, o sueco adoçam.
Feição tomando ás vezes da latada,
E rico adorno a laranjeira aos muros;
De um vaso habita o seio inda mais vezes, '
Dos quadros de um jardim orna o desenho:
De graças que mistura oífrece aos olhos!
De aromas os pasj^eio^ te embalsama,
Com flores sempre alveja; e lhe alça o preço
Viva esmeralda de nascentes fructos,
Ouro vivaz de fructos sasonados;
Voam séculos três, e a flor é nova,
O tempo lhe venera a formosura;
Mas as geadas teme á doce planta;
Arma-lhe um tecto, que do inverno a escude,
E se lhe ant'olhe a primavera ausente:
Em mais amigos, fervorosos climas.
Sem cuidado exigir, floresce livre,
E livre a laranja ira aos ares sobe,
Quasi egualando em magestade as selvas;
Taes foram teus jardins, ditosa Hesperia,
Taes d'Hjéra os bosques são, taes os d'Hetruria.
Tu, que regulas da latada os ramos,
Forma-os n'um anno, e n'outro, e desvelado
Sê das leis ao rigor sempre aferrado ;
Damno a grato defeito é a indulgência:
Co'a foucinha na mão proscreve a um tempo
Ramo sem olhos, e goloso, ou secco;
282 OBRAS DK BOCAGE
Ás tuas leis o sueco obediente
D'arvore por egual caminha ás veas;
Se de folhagens vãs fastosa, ornada,
E ricamente pobre estéril fica,
Tira-lhe o vicio ao tronco, útil fraqueza
Lhe muda em fructos a opulência inútil.
Homem, lerás nas arvores teu fado:
Ao vel-as desmedrar, ao vel-as murchas
Has de carpir-lhe a morte; amplos viveiros
Perto de teus jardins lhes assegurem
N'um futuro benigno herdeiras plantas;
As arvores, dos fructos renascendo, -
Parecem reviver, vivas ainda;
Em breve, de seus pães doce esperança.
Haste mimosa lhe succede, oecupa
O sitio d'elles, e prospera, e cresce:
Assim junto ás muralhas, onde os nossos
Altivos, generosos veteranos
Ultrajados do ferro, ou curvos do annos.
Depois de mil façanhas, em repouso
Tem do heroísmo as cicatrizes nobres,
Novo asylo erigiu Luiz ha pouco,
Fausto viveiro, honroso, alto principio
Onde de antigo tronco ingente, e murcho
, Crescem renovos, em que a p.itria espera.
De um tronco virtuoso indigna prole
Bastardêa, e dá sempre amargos fructos;
O garfo, sua essência renovando,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 283
Muda em sueco aprazível sueco ingrato:
Um de arvore tronqhada o tronco fende,
Raminho mais felix lhe induz no seio;
As cortiças casando, os golpes cerra,
E da chuva, e do vento injurias tolhe;
A maneira d'escudo outros costumam
De um'arvore tirar pingue de fructos,
A casca com seus nós; a agreste planta
Útil ferida sente, onde se embebe
O enxerto, que lhe muda a natureza:
Pela casca de um ramo outro é coberto,
Em figura de rolo ás vezes solta:
lio meio de raiz mui vigorosa
A enxertar ensinastes, oh germanos.
Pimpolhos, que a cultura lhe desuna.
Legislador, e rei de teus pomares
A teus súbditos maus dás bons costumes;
Familias entre si com regra enlaças,
Arvores outras arvores perfilham;
Seu nascimento illustram, e exaltadas
Por novos, gratos vinculos, admiram
Em si fructos não seus, folhas não suas:
Por est'êirte se allia o pecegueiro
Co'a planta mãe da amêndoa, e por est'arte
Gamboa junto á pêra amarellece;
O salgueiro flexivel tem no tronco
Os ramos da maceira, e se transforma
284 OBKAS DE BOCAGE
Em doce ameixieira o freixo absorto;
Náo de outra sorte vemos que adoptado
Pelo espinheiro alvar é a azeróla.
Mas fútil não a torne o abuso d'arte:
Rei, não tyranno, as arvores submissas
Nunca violentes; seu amor consulta,
Mas seu ódio respeita; a custo algumas
As substancias misturam, e, obrigadas
A penosa união, só folha estéril
Só maus fructos produzem: nunca pode
A vide co'a oliveira assoxíiar-se ;
Teme do olmo. e carvalho antipathias;
Co loureiro a cereja mal se casa,
E n planta do limão com a amoreira:
N'um mesmo tronco estes contrários vivos
São monstros, não prodigios; todavia
Approvo que, engenhoso, e ledo encanto
N'um só tronco apresente arvores quatro,
E que na amendoeira a um tempo colhas
Lisa ameixa, damasco appetitoso,
E o pomo, que o simelha em cor, e em forma.
Annue a meu fervor, e a meus transportes,
Oh rei do mundo, oh pae da Natureza!
Os seus thesouros me franquêa, e dá-me
Para os patentear verdades tuas.
Vive a arvore, e respira imagem nossa;
Circulando em seu seio, o sueco a nutre;
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 285
Avultn, fructos dá, declina e morre,
E nos seus descencjentes se renova:
E a espécie im mortal, mortaes os corpos.
Quando os tempos creou, creou o Eterno
Todos os corpos, que apparecem n'elles:
Gruardou no homem primeiro os homens todos,
De alma não, mas formados taes quaes somos;
Cada planta, cada arvore no seio
Fechou todas as arvores futuras,
Todos os fructos seus: vivo, invisível
O germe vê nas faxas ir findando
Seu captiveiro; então nascer figura,
Porém só crescimento é que recebe,
Nada n'elle mudou: nota o carvalho
De profunda raiz, de coma ufana,
E hoje o que na lande era algum dia;
Taes foram dentro d'elle os que ha gerado:
Porém no asylo seu dormindo o germe
Jamais d'aquelle somno expertaria,
Se os sáes, o enxofre, mádidos co'a chuva,
Pelas flammas do sol, pelo ar movido
A vida provocando-o, o não chamassem;
Rompe com elles a prisão, que o liga,
Abre-se em fim aos beneficies d'elles;
Já nos seus vasos alimentos correm,
Correm novos espirites, que o nutrem,
Continuamente, e cada dia avulta;
A rojante raiz, já não captiva,
286 OBRAS DE BOCAGE
Rasgando a terra, de seus suecos vive;
O tronco para o céo vergonteas lança;
O ar, que todos os corpos vivifica,
N'arvore eleva os suecos que digere;
Entra-lhe o seio, e lhe enche os vasos todos.
Circula, e sempre com eguaes esforços,
Successor de si mesmo, elle se foge,
Se attráe, fazendo que respire a planta.
Bem como o sangue espesso que, disposto
Dentro do coração, depois filtrado
Apura seu liquor de vêa em vêa ;
E tornando-se logo as ondas d'elle
Espíritos subtis, imperceptiveis.
Os raminhos do cérebro aviventam;
Tal, recebido logo em amplos vasos,
Mais estreitos os ramos encontrando
Alternativamente, e levantado
Das raizes das arvores ás frontes,
Lá, sem nunca parar, se esparge o sueco;
Depois volvendo aos pés por giros novos,
Continuo circulando, innova o passo;
Por toda a parte em que a arvore o contenha
Do germe ao berço vae, e acorda o germe;
Flores bafeja com celeste aroma,
De que a abelha compõe na primavera
Dourado espolio, roubo appetecivel;
E inda mais delicado alenta os fructos,
Maga doçura aos âmagos prés tinido.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 287
Como dos mesmos suecos os princípios
Dão fructos, que enfcre si tanto desdizem?
E humor fecundo, entrado em cada planta,
Porque sempre parece o mesmo, e outro?
Depois que em seus avós se formam germes,
Tomam da estirpe sua as feições todas:
Fiel o sueco ao prazo, os germes brota,
Sem lhe alterar a essência, desenvolve
Seus corpos: quando os vários alimentos
Pelo ar levados de tropel se offVecem
Aos francos vasos seus, escolha certa
Os germes fazem de saudáveis mimos,
E 08 que adversos lhe são rejeitam sempre:
Assim quando infructifera no tronco
Adopta, e junta os nós de rico enxerto
Um 'arvore qualquer, em nenhum d^elles
Se altera a primitiva natureza;
N'um sempre manam desabridos suecos,
O segundo os enjeita, e quer, e acolhe
Só puros, só filtrados, só perfeitos.
Arte ajude, e acompanhe a Natureza
Vasta, fecunda, invariável, certa:
Se queres pois que as fructuosas plantas
Subam sem risco, e teus vergéis povoem,
Da pátria não mui longe se trasladem;
Temem plantas do sul fúrias do norte,
E o fogo austral ás boreaes empece;
Mas, quando o sitio lhe convém íio gosto,
288 oímÀs DE BOOAOPJ
Dos mimos, e desvelos satisfeitas
Que á tenra sua infância foram dados,
Surgem mesmo por si, regem seus fados,
E na fecundidade em breve egualam
Dos pátrios fructos o primor e a graça.
Tal na Occitania, e campos de Provença
Sempre verde a oliveira ama seu berço:
D'aquelles campos Hercules á Grécia
Foi o primeiro, que levou seus ramos;
Pela mão da Victoria affeiçoados
O nome, a fama eternizar soíam
Do vencedor de Olympia: ante a oliveira
Deixa o ferro cair, foge a Discórdia,
B reconhece a Paz: suppôz Athenas
Que est^arvore devia á deusa sua,
D'ella o symbolo fez da Sapiência.
Em nebulosos, em gelados climas
Baldará teus desejos, teus suores;
Recea os Aquilões, paiz demanda
Que os olhos do áureo Phebo acclarem sempre:
Dos serros se namora ao mar visinhos
D'onde a terra se abaixa, e desce ás ondas:
Gran tempo esperarás que a tarda rama
Se c'rôe a teu prazer de pingues fructos;
Gran tempo é fértil, e entre a folha humilde
A verde producção não soffre aggravo; ^
Seu útil amargor lhe serve de arma,
E vingador poder no seio esconde:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 289
Assoma um dia emfim, que lhe convertej
A bem do possessor, o amargo em doce;
A azeitona se móe, se torna em massa,
Seu liquor, espremido em graves fusos,
D'agua ao calor sé escoa em abundância,
E facilmente emfim se aparta d'ella;
Sobre-nadando sempre, e recolhido
Por mercenária mão, por mão ligeira
Dá-te óleo puro, bálsamo saudável.
Do meio-dia as nuvens enganosas.
Dos lagos o vapor guardando, ás vezes
Em logar de espargir propicias aguas
Voraz peçonha na azeitona embebem;
Aquilo fende as arvores absortas.
Gela o sueco, e de mortos cobre os campos:
De um memorando inverno, oh pátria minha,
Inda não te esqueceu a horrível fúria;
Os tenros olivaes, que em ti verdejam.
Bem que afíamados já, com tudo obrigam
Inda de seus avós a ter saudades.
Feliz mil vezes, célebre Occitania,
Quem pode em ti viver! O incenso, a myrrha,
E as cannas, que n' America rebentam,
Uão te enriquecem os vistosos montes;
A terra de rubis não tinge as vêas
Em teu chão, nem converte arêas tuas
Em finas porcelanas o artificio;
Mas de Ceres os dons em ti lourejam,
290 OBRAS DE BOCAGE
Leva teu vinho ao longe encanto, e força;
O canhamoj o pastel t-eu seio amimanij
E opimos gados nos teus serros pascem;
Das leis á sombra as artes engenhosas
Telas de preço em fabricar se esmeram :
A teu povo és bastante, e nunca imploras
Com tributarias mãos a estranhas terras
Seus productor-, os teus antes lhe offreces;
Francos lhe tens os portos, e a bem d'ellas
Uniram teus trabalhos os dous mares;
Tua industria acabou obra sublime.
Que defcevo do mundo os vencedores.
Direi que cie saphira, e de ouro accezos
Sempre em teu clima os céos têm dias puros?
Que longa primavera em ti floresce,
E os Zephyros no inverno ás vezes voam?
Que os ursos, que os leões, que os dragos feros
^No teu feliz torrão jamais nasceram?
Da tua amenidade enfeitiçadas
Gregas catervas sabe-se que a Jonia
Polas margens do Rhodano esqueceram:
Eoma essa estancia amou, seu grande povo
Os vencidos ergueu ao gráo de filhos;
O? romanos, da pátria embriagados,
Em ti se imaginavam n'outra Hetruria;
Eis d'onde os monumentos emanaram
Domadores do tempo, esses prodigios
Nunca das artes nossas alcançados.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 291
Por nossas vistas admirados sempre:
Que de antigas, de esplendidas cidades.
Rios famosos, e ribeiros férteis I
Em ti, bem como em Cusco^ a terra offrece
Thesouro dos metaes d'alta valia;
O óleo das pedras sm-de, e fontes forma ,
E arêas fluviaes se tingem de onro.
Ignorada na Europa longos tempos
A amoreira, onde os Seres sem trabalho
Anreos fios colheram, preza os campos
Da Occitania, e co'a verde, e rica folha
E pasto ali de precioso insecto:
Lavradores, esfarvore obedeça
As vossas leis, mas os ilireitos vossos
Aos bichos não se estendam, que ellr? nutre;
A jugo mais suave a sorte os liga:
Bellezas juvenis, a vós só cumpre
Regel-os; elles súbditos vos nascem,
Alegres de trocar por utíl jugo
A doce liberdade: no indo clima,
Onde debaixo das nascentes sombras
Vê a amoreira em leitos de folhagem
-Os bichinhos nascer, se desenvolvem
Pelo mesmo calor, que d 'entre a planta
As flores faz sair na primavera:
A quadra, preguiçosa em nossos climas,
Punge, e faze calor propicio ao germe ;
Um povo, a um tempo em toda a parto exposto,
292 OBBAS DE BOCAGE
Ferve ante os olhos teus no oitavo dia;
A folha da amoreira, assim como elles
No nascimento seu, leite é disposto
A nutrir-lhes a infância, e para tantos
Vassallos que á lei tua estão subj eitos
Uma caixa, uma folha, é pátria, é mundo.
Crescem, e já familias numerosas
A teu cuidado vastas camas pedem,
Onde os transfiras ao sair do berço;
No vime entretecido, e molles cannas
Postas umas sobre outra, em bairros, classes
Politico a republica lhe ordena:
Tal Roma outr'hora viu entre seus muros
Em tribus dividido um povo immenso.
Prestar eo^ual calor á sua estancia
E das primarias leis para regel-os:
Indicador do tempo, ali o vidro
Liquor móbil encerre ante os teus olhos
Que se abaixe, se eleve, e cuja regra
Do calor, e do frio o gráo designe;
Senhor das estações a teus contentes
Pequenos povos, do sou tecto á sombra,
Darás inalterável primavera
E a funesta inconstância do ar adverso
Não mais os fere co'a influencia triste;
Ditosos cidadãos de um brando clima
Vivem sem susto, e de riqueza te enchem.
^^Mas nos seus lares que silencio reina !
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 293
A
Que feitiço os detêm do leito immoveis!
Em lethargo, em jejum dous dias jazera,
E isto ás dores da muda lhe é remédio:
Vês por gráos a lagarta erguer a custo
Á languida cabeça; eis que se agita,
Eis que rompe o caí^ulo, eis que se despe,
E em novas vestiduras fica envolta;
Cresce-lhe o corpo, as vestes lhe rutilam:
Vária nos giros seus por vezes quatro
Quatro vezes a lua entorpecer-se
Os vê, vê-os mechcr, e engrandecer-se.
Mas sôfregos então de dia em dia,
Crescendo vão com rápido progresso:
Seus olhos para sempre o somno impugnam:
Outr'hora em ti es comidas se fartavam,
Hoje regra não ha que prescrever-lhes;
Contentar seu depejo apenas podes;
Cercados de manjares, que lhe oífertal,
São comprido festim seus doces dias:
Folhas seccas demais teme ofFVecer-lhe,
E duplica o temor se húmidas forem;
Colhe-as só quando vires que nas plantas
Já bebeu Phebo as lagrimas da Aurora:
Tormentas, se poderes, acautela;
E, se as folhas banhou chuva imprevista.
Repara pelo fogo injurias d'agua,
Que a seus mais bellos dias é veneno.
294 OBliAS DE BOCAGE
Algum remédio tem quando começa
No bicho a languidez; ás vezes cede
Aos perfumes o mal, porém, se teima,
Não te quero illudir, proscreve os dias
De súbditos glotões, e preguiçosos;
Tranquillos parasites entre os sócios,
Espectadores vãos d'arte prestante.
Do ócio cançados, livres dt3 seus males
Dar começo ao trabalho os bichos querem :
Soccorre uma esperança, que te é doce ;
Nos pequeninos corpos transparentes
Reluz o ouro da seda: eis elles sobem,
Dar-lhes ramos convém, onde suspendam,
E fiem seus sepnlchros: lá debaixo
Dos moventes anneis, que to apresentam,
Lhes serpêam no seio em longas dobras
Vasos dous; e, formando-se inda bruta^
Inda liquida a seda, embebe, estende
Por seus bellos canaes as ondas de ouro:
Na ultima estrada este liquor se espessa,
Muda-se em fio, e sáe pela fieira.
Quando a lagarta emfim conhece o prazo,
Liberalisa reservados suecos;
Primeiro em longos circulos fabrica
De fios um frouxel, que a obra estêa ;
Movimentos mais curtos forma em breve,
E em breve os fios seus mais apertados
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 295
Unidos por mil voltas, mil rodeios,
Maravilhosa têa construindo,
Em ovo de ouro, ou prata se afFeiçôam.
Admira taes insectos: este apenas
Entra a formar no cárcere o casulo;
Aquelle, já sumido em nuvem densa.
Dos fios deixa ver iuda o complexo:
Nas mesmas redes encerrando-se outros,
Como na vida unidos estiveram
Unem-se nos s(^pulcliros; mas se acaso
(Ai!) n'estes dias o trovão rebrama
Amedrontando a terra, os tenros entes
Estremecem de horror, e caem, morrem
Imperfeitas deixando as finas têas.
Debaixo de seus tectos entretanto
Troca extincta lagarta om negras vestes
As roupas transpjirentes; sem cabeça,
Sem pés, um corpo immovel, e enrugado
Como que succedeu ao corpo antigo.
Presa em seus laços, transformada em nympha^
Jaz só adormecida, ou jaz sem alma?
Por entre um véo, que tráe seus attractivos.
Borboleta luzente ali vislumbra;
Mas este véo conde nsa-se depressa,
E a borboleta se escurece, e occulta.
Queres haver do seu trabalho o fructo?
Antes que ella, espertando, obstar-te possa,
Despoja os ramos, e calor possante
296 OBRAS DE BOCAGE
Em seus lares suffoque a débil nymplia:
O fio então das têas, que amollecem,
Em agua tíbia se despega, e rola;
Dócil por tuas mãos é regulado,
Por ordem se desdobra, e finalmente
Em meadas se forma, e dá-te seda.
Mas, porque novos cidadãos possuas,
Vivos na sepultura avós lhes guarda;
Da borboleta o corpo, que incluida
Na nympha está, se desenvolve em breve;
Tem solidez, firmeza, o Ihço rompe
Das faixas; a lagarta destruiu-se.
Seu corpo é nada; mascara somente
Ella foi, foi brilhante vestidura,
Da borboleta viva vivo manto:
Ella, qual terna mãe, lhe preparava
Manjares, que no seio digeria,
E que sobejamente fortes lhe eram:
Ella nutriu-lhe assim a infância débil,
Que enrijando repulsa inútil veste,
E os ricos muros do palácio rompe:
Destróe a borboleta os que ergue o bicho/
Da nobre empreza ao êxito ella basta;
É ariete a fronte, e bate, e quebra;
O muro cede, estala; esforços crescem,
Apparecendo vem o alado insecto,
Abre caminho, e sáe : todo assombrado
Do resplendor de suas graças novas,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 297
O corpo admira, despregando as azas :
Porém não ousa aventurar se\i voo,
Do que foi n'outro tempo inda se lembra ;
Anda, agita-se, as azas lhe estremecem,
Sócia procura a que seus gostos ligue :
Das communs borboletas imitando
Desatinado ardor, como costumam.
De flor em flor não vae; consagra a vida
Ao doce objecto que elegeu, e a morte
Ha de romper somente o nó, qne os ata:
O ardor vae sempre a mais ; teme um momento
Furtar-lhe seus dias, morre amando;
A terna companheira agonisante
Depõe nas tuas mãos nascente prole;
Semente delicada, ovos sem conto.
Ovos fecundos, esperança, e germe
De uma linhagem destruída; filhos
Dos quaes o nascimento á mãe é morte;
Filhos sempre a seu páe desconhecidos ;
E que, sem lhes haver notado a industria,
Como elles fiarão pomposas telas.
298 OBRAS DE BOCAGE
GJ^ISITO QTJ-A.K.TO
DOS PRADOS
Adornos immortaes da térrea face,
Kiqueza sem traballio aos homens certa,
Eu canto vossos dons; assas, oh prados,
As fadigosas lavras dei meus versos.
Sapiência, que do Éden discorrendo
O Eljsio divinal, qual vasto rio
Dividido em canaes, fertilisavas
Teus prados, teus jardins; se a ti meus cantos
Sagrei de todo, e tuas aguas vivas
Do Permesso antepuz á lympha, aos sonhos,
A teus arroios cândidos, celestes
Guia meu passo errante, e dá que eu possa
Beber tua corrente a largos sorvos.
Tu que, cingido ás leis da Natureza,
Preferes a campestre, a doce vida
Aos ferros da Fortuna, aos vãos prazeres,
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 299
Ao luxo ostentador; tu, que só amas,
Em teus desejos curto, os bens modestos
Que não grangêa o crime, e de que a terra
Um tributo legitimo te píJga;
Se fáceis fecundar-te as aguas podem
O chão de que és senhor, cuida em forral-o
De valiosa relva, e com profundas
Lavouras o dispõe; nunca lhe alterem
Os seixos a egualdade; e, se releva.
Sobre o liso terreno ageita, forma
Insensivel pendor, onde escorreguem
As aguas lentas, dóceis, livres, fáceis :
De leivas, filhas de abundosos prados,
Na primavera combinando os germes
Semeia-os logo, e teus trabalhos findam ;
Em sempre novas flores taes sementes
Para ti sobre o campo hão de manter-se.
Ha géneros diversos entre os prados;
Um, que mais se deseja, e tem mais preço,
Onde agua surda por caminhos certos
Corre, o serpêa, no interior da terra;
Lá, por si mesmo vigoroso, o prado
Attráe agua escondida, e vive d'ella:
Quer outro que lhe reguem sempre a face
Repartidos crystaes de limpa fonte.
Mil vezes ao cultor os campos vendem
Caro os bens que se julga haverem dado:
Sua esperança illudem ; falso alqueive
300 OBRAS DE BOCAGE
De milito secca, ou de húmida no extremo
A quadra accusa; os fructos eis se mirram
Co importuno calor, e o fero Bóreas
Dilacera os jardins: ventos, e invernos
Jamais em seus phreneticos impulsos
Hão murchado o tapiz, que os prados cobre.
Só de rio innundante as soltas aguas
No consternado campo afogam messes.
Deixa o pranto ao cultor, deixa os suspiros;
O que a elle intimida, a ti recrêa:
As aguas, em que pedras não se envolvem,
De um lodo molle ao prado auxilio trazem;
Se do Leão raivoso o ardente signo
Vae torrando a verdura^ e fende a terra,
Aguas então da relva estancam sedes,
Em prado e prado amenisando as flores.
Prospero asylo de Petrarca, e Laura,
Vauclusa, onde inda vive, inda respira
Seu estremado amori Oh testemunha
Dos mil transportes, dos suspiros de ambos;
Tu, que tão bella foste aos dous amantes,
Tens do tempo da Grécia o gráo, e a fama
Pelos thesouros, que nas aguas vertes.
Se a corrente de próximo ribeiro,
Desviada demais, tocar não pode
O prado sobranceiro, em vão rebelde
A teus desejos foge, e ao chão sedento:
Um dique as aguas prenda, obrigue as aguas
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 301
A transcender seu leito; ou niuro occulto
Reforçado alicerce entre ellas tenha;
Ou constante, enterrada estacaria
Em vínculos de ferro unida seja:
O captivo regato inda parece
A custo obedecer, saudades sente
Do natural pendor, e antiga estrada;
Mas, apesar da fúria, ás leis subjeito
Detem-se a teu sabor, se eleva, e corre;
Em prateados sulcos se reparte,
E ás flores tuas homenagem rende:
Aguas partidas por esfarte, ás vezes,
Indo, empobrecem, e esgotadas morrem;
Não de outra sorte o Xúcar orgulhoso
De Valência nos campos vê sangrar-se,
E ao mar, que ruge, e que lhe exige as aguas,
Vil feudo leva de regatos pobres.
Nos torrões onde as aguas são mesquinhas;
Por industria económica parecem
Menos raras: seu uso ali se vende;
A cada possessor egual espaço
Abre, e fecha um canal, seus curtos mimos
Revezados ali de tempo a tempo
Repartem-se com um, com outro prado.
Se agua em tempos diversos cobre, e deixa
A terra tua, os fructos seus variam
Nas quadras todas: um torrão pasmoso
Lá no húngaro terreno se transforma
302 OBRAS DE BOCAGE
Em campo lavradio, em tanque, em prado:
De uma serra visinha em roda se ergue
Longa, pezada nuvem, qne vomita
Do boje de titra cor ventos, e raios;
Por súbitas colura nas eis torrente
Das subterrâneas grutas sáe mugindo;
Ií'um momento, não mais, se forma um lago,
Onde armado de anzóes o peixe enganas:
Quando Bóreas agudo as ondas gela
Aos carros ellas dão seo;ura estrada:
Desgosta-se no fim da primavera
A agua d'esta mansão, e entra de novo
Na estancia natural co'a prole sua;
Levanta-se onde as aguas se estendiam
Hervagem pingue dos rebanhos pasto ;
Em breve o lavrador lá sulcos traça,
E em breve a terra com seus dons o amima:
O regresso do outomno ali renova
Relva abundante; o matador salitre
Voando alcança os pássaros, as lebres,
E os outros das florestas moradores,
Que o fresco pasto fervorosos buscam:
Taes entretenimentos dia e dia
Te chamam, porém curtos são teus gostos;
Durar não podem mais que até ao prazo
Em que a seu leito recuando as aguas
Vão de novo occupar a estancia antiga.
Venturosos os campos, venturosos
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 303
Onde se filtram no interior da terra,
Ou pelo sol nos ares se evaporam.
Sem pedir teu cuidado, e livres prestam
O alimento invisivel da frescura !
Admiro essas pastagens, esses cumes
A que as hervas anima o Loire, o Sena;
Amo do Rheno as ondas magestosas,
E as margens do Lignon, que Amor passeia.
Rica, e vasta planicie. oh férteis prados,
Ornamento, esplendor da antiga Neustria,
Onde nédeas, cornigeras manadas
Erram sem guardador por grandes pastos !
Herva, que engolem nos mais longos dias,
Lá na mais curta noute é reparada:
Para se vigiar todos se ajuntam;
Postos por ordem, sobre as mãos lançados,
Um circulo formando, a torva fronte
Muro invencível apresenta ao lobo:
Taes os prados que, ás ondas submettidos,
Aos olhos do universo Hollanda mostra.
Nas margens onde o mar o Escaut repulsa,
E com elle se ajunta n'elle entrando,
Bstendiam-se outr'hora infectos lagos
Temido3 sempre dos visinhos povos;
O Escaut, o Môsa, o Rheno, entre herva, e junco
Esquecendo a carreira impetuosa,
Sem gloria se espargiam lutulentos
Formando aqui, e ali paúes nojosos:
304 OBRAS DE BOCAGE
O belga disputou graa tempo ás aguas
A terra, e guerreou por fim com ellas;
Seccos por arte sua os negros tanques,
Surgem paizes, que tapava o lodo:
Absorto o mundo viu nascer a HoUanda;
O sol nas ondas admirou Zelanda,
Que a vez primeira então provou seus lumes;
Trasbordados arroios, rios cento
Para se reunir deixando as margens,
Partidos em canaes, viram captivas
As aguas suas abraçar a Hollanda,
E, melhor que os tractados, lá poderam
Com suas divisões ligar cidades :
O alto Oceano, que, escapando ao leito,
Sempre usurpadas margens engolia,
Já sabe respeitar, nas suas preso,
Reparos que a soberba lhe agrilhoam:
Arvores descem ás arêas fundas,
E do centro do mar florestas sobem ;
ífão tinham já na fronte essas folhagens
Tão bellas, essas flores tão mimosas,
Amável ornamento á ÍTatureza;
Mas por arte feliz mudadas foram
Em robusto alicerce, e carregadas
D'immensa terra; suas frontes viram
Morrer a equórea fúria, e sustentaram
Molle alcatifa de verdura, e flores:
Debaixo d'esto abrigo em campos novos
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 305
O batavo ajuntou riquezas certas ;
Duros cavallos, gados numerosos
Ao longo das collinas despargidos
A relva seguem, que jamais se extingue:
Ha margens onde trémulo o terreno,
Suspenso, móbil, e a nadar nas aguas
Parece que dos gados cede ao pezo: *
Tranquilio viajante em ágeis barcas
A seu prazer o batavo discorre
Suas cidades; quando os rios presos,
Congelados nos leitos frustram barcas,
Elias captivas ficam, voam carros
Por estradas de gelo; e tal, qual fende
As planicies azues ave ligeira,
Sobre os canaes, c'os pés de ferro armados,
O rápido hoUandez escorregando.
Mas firme todavia, assim passeia
Por cima do maciço, e claro espelho.
Os rios, sobejando ás margens suas,
Não raras vezes os desvelos oaldam,
E férvidos nos prados se derramam;
O Oceano se indigna de que ousadas
As duras mãos do batavo ardiloso
Escravo o tenham, seu império estreitem;
Soffre mal, que em grilhões as ondas suas
Praias não cubram, que regiam d'antes,
E que do antigo jus da Natureza
Arte o despoje; o ríspido Oceano
306 OBRAS DE BOCAGE
A si mesmo provoca ao seu despique,
E contra os muros, que amedronta iroso
As ondas rompe sempre, e sempre formar
Se elle triumpha (povos, ah ! temei-o)
Quebra mugindo os diques, e os derruba,
As cidades engole, e sobre as vagas.
As vagas vencedoras, mostra os tectos.
Seus horríveis trophéos, e prantos nossos.
Vós que as praias cubrís do mar quieto
Que os Vólcos ao suor tornaram dócil,
Nunca ousareis, industriosas gentes.
Converter lodaçaes em pingues prados?
Lá outr'hora se viu de húmidas grutas
Negrejantes delphins correr aos mares:
A voz do pescador voavam logo,
Sócios lhe eram, quinhão nas pescas tinham :
Diante dos baixeis saltando em chusma
Rapidamente as aguas dividiam,
E das redes em torno apinhoados .
Os feros contendores costumavam
Tornar ao laço os escapados peixes.
Por onde o Rheno impetuoso rola
Rápidas ondas nos famintos mares.
Ao seio dos paúes em dia e dia
Seixos vomita de espumosas bocas.
Seixos, que na carreira ia levando;
Pouco a pouco ás lagoas enche o fundo*
Do assalto equóreo suas margens vinga:
POEMAS DIDÁCTICAS TRADUZIDOS 307
Felizes habitantes, dae-vos pressa,
Tbesòuros ajuntae ás terras vossas
Sumidos ii'esses lagos: de mãos dada<
Lá procede comvotjco a Natureza;
As aguas arreclando-se vos sei' vem,
Antecipam-se a vós; e d'entre os Lígos
Francos á vossa vista, nasce a terr;i,
E de uma, e de outra parte ella vos chama:
Regei, regei o império d'agua expulsa,
E ao ar na arêa o peixe exhale a ^ida;
Em vez de amargas, navegáveis ondas,
Te engorde os gados eíScaz verdura.
Terás por arte prósperas colheitas:
Soltas arêas n'esse lodo envolve;
Do seio d'esses mádidos terrenos
O lirio roxo, o junco desarraiga;
Por seu cortante ramo ensanguentrida
Dos cavallos, dos bois não poucas vtzes
Se escandalisa a boca, e se desgosta:
Canat 3 profundos aguas sempre afFastt:j!i,
Que faz o kSíhi pendor ciibrir teus lagos.
Prados crearido, a visinliança teme
De um rio, que devora as njargens ^eiupi\-:
Tal das terríís que banlia, e vae roeiulu
Tacitamente o Rhodano costuma
Alicejces niinar: quando enfunados
Da borrasca estridente o Isero ajunta,
308 OBRArf DE BOCAGE
E O Saôna seus Ímpetos aos d'ellaj
Eis de repente o Ehodano se engrossa,
Brame^ e a terra, escutando-o, geme ao longe;
Ya^os fluctuam nas soberbas ondas
Co'a messe os regos, e co'a relva os prados;
Do seu chão arrancada inteira herdade
Yoga rapidamente a chão remoto;
Pela terra fugaz debalde chama
O senhor consternado, outro a possue,
E a une a seu torrão : já se tem visto,
Cançadas dos seus giros novas Delos
Escorar-se nas ondas; a miúdo
O Rhodano alteroso ás vivas aguas
Abre vários caminhos, entra, invade,
Cava os campos misérrimos, que foram
Em vão lavrados para fins melhores ;
Onde messes cresciam, correm aguas,
E o que já foi corrente é chão fecundo :
Ai! Margens de Aramon, vós o soubestes,
E vós oh Tarascon, Montfrin, Beaucaire,
Yalabregues, campinas vezes cento
Do Rhodano animadas, e outras tantas
Desoladas por elle ! Alta barreira^
Engenhosos desvelos contra os golpes
Do rio denodado escudos sejam :
TJm forte dique ali combate as ondas;
Além solido muro a mar:- ' ;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 309
Mais longe debi] vime o rio espera
Sobre a arêa; resiste-llie, cedendo,
E os esforços lhe engana, e lb'os malogra.
Que hade ser freio ás aguas indigentes
Que, os prados a nutrir bastando apenas,
De improviso em torrentes se convertem,
E em ondas fervorosas saem das margens?
Tudo foge á violência, que arrebata
Rochedos, e rebanhos, e a ti mesmo !
Tal junto d'Ilion o irado Xantho
Ovantes cabedaes desenrolava
Na terra circumstante; e, era quanto aos Teucros
Era seu leito asylo, esbravejando
Campos vexava, e perseguia Achilles:
Escoa- se por ultimo a corrente.
Mas debaixo da arêa os prados ficam
Sepultados ás vezes; livra os olhos
D 'esses tristes objectos, e contempla
Maro^ens mais ledas, mais ditosas mar^fens.
Aos prados resfitue a primavera
O brilhante matiz; as flores suas
Assegure o pastor, venere o gado^
Teme que, desmandando-se com ellas,
Devore em fim seu ávido appetite
Os thesouros de um anno em um só dia.
Vós movei pelo prado as lindas plantas,
Njmphas, que de attractivos innocentes
Ornadas vedes as boninas tenras;
310 OBRAS DE BOCAGE
Lavor da Natureza, o flóreo esmalte
Seja da simples graça enfeite simples:
O fogo dos rubis, e dos diamantes,
Altivo adorno das que regem sceptros.
Em vossos corações não cria inveja;
Deixamos, e seguis a Natureza:
A terra para vós urdiu tapizes,
Taes leivas estendeu, travou taes cores
Só para os vossos pés, e os olhos vossos.
Como que ao homem, que a seu rei querendo
Mais bella, e mais lustrosa a terra dar- se,
De roupas fulgurantes se atavia:
O seu tãò vario, tão risonho esmalte
E ai^e com. que a destra Natureza
Lhe ornou mimosamente a formosura;
Por isto é que floresce a relva, e sobe
Nutrindo n'agua, e refazendo os suecos;
Mas isto mesmo ás hervas damno fora
Que humildes sempre são sem sjr banhadas,
Densas com tudo, e que jamais se exhaurem:
Este campestre viço aos gados cede;
Vê como, errando á toa os pastos buscam;
Aqui, livre do jugo, o boi ocioso.
Deitado sobre as mãos, remóe d'espaço;
Saccode o freio além ginete ufano,
K rincha, e salta, e pelos pastos voa.
Teus olhos em teus prados sempre attentem,
IJtil espectador os enriquece:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 311
Desarraigas aqui sinistras hervas,
Imiteis para ti, fataes aos gados ;
Ali vás escolher do acaso as plantas
Que Natureza dá sem que arte a ajude,
Fartas de suecos bemfazejos, simples;
Plantas do teu suor independentes,
Que da frágil saúde amigo esttiio
A peçonha dos males aíFugentam:
O luxo dos jardins altera, ou mata
Virtude tão suave a teus desejos.
Se rara, e triste a relva sáe, floresce,
Esparge-Ihe por cima um rico estrume:
Se o terreno te deu na flórea quadra
Em vez de herva profícua musgo estéril,
Cobre-o de cinza; aos prados tal soccorro
Renove o lustre de seus bellos dias:
'Oonsome-os a velhice a teu despeito?
Tentaras a fraqueza em vão curar-lhe:
Para sempre destróe tapiz inútil,
E alimentosa espiga o substitua;
Desafogado o chão mudando o enfeite,
Sem custo como d'antes en\%i'dece.
Nos fins da primavera, quando Phebo
Annuncia o verão, da fouce te arma:
Abre caminho, abate aos golpes d'ella
As hervas de pascer; largo tridente
As agite, e depois ao sol se murchem:
Da chamma perigosa o resto exhalem ;
312 OBRAS DE BOCAGE
Se a funesta colheita apertas logo
O calor se lhe anima, e tráe seus lumes
Condensado vapor; flammeja em breve,
E debaixo dos tectos incendidos
O fogo te consome a ti, e a elia.
luda mais p'rigos. ha : teus carros vedem
Que ameaços do tempo se eíFeituem:
Mui longa duração de aéreas aguas
Dissipa os suecos da sedenta relva;
Súbito ás vezes fervida torrente,
Ou ante os x)lhos teus a tempestade
A arrasta, os bens te rouba, e n'outras margens
Assombra teus visinhos, lh'os entrega.
Feudos, que dão á primavera os prados,
Nos seus primeiros dons não se restringem,
Tem de se renovar: dispõe o estio
Novos suecos, que o outomno aperfeiçoa;
Té o inverno, que gela, e murcha o mundo,
Não ousa deslustrar-te a verde relva.
Em nossos tempos cresce, e reina industria
Que faz de uma raiz nascer um prado:
De lavras, e de estrumes farto o campo
Soccorro assiduo não requer das aguas;
O mais rebelde -emíim se torna dócil,
E fácil abre o seio á planta amiga.
Torrão pingue, lodoso é que sustenta
O trevo, que renasce ali três annos:
Em medíocre terra onde a colloques
POF.MAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 313
Vivaz luzerna quatro lustros dura:
Cascalho, arêa fazem que prospere
O sóbrio candeal, e o trevo grande.
Cada anno em primavera, estio, outomno
Usam de reparar sua existência^
E a fouce lh'a destróe; n'aquellas quadras
As novas hervas suas ganham forças,
fí ao orado excitam fome: em se exEauríndo
Estraga-lhe a raiz, e d 'esse estrago
O trigo surgirá mais vigoroso,
Em quanto desterradas por lei tua
Renascer, vicejar vão n'outros campos.
Uma semente, ou planta ennobrecida
D^esfarte, e só, para nutrir- te os gados
Mais abundância tem que amenos prados,
Da mãe universal mimosos filhos,
Composto casual de germes vários:
Dentro em pouco, assombrando o chão que habita,
Qualquer d'ella8 impera, e já não teme
Com herva parasitica humilhar-se,
Emagrecer, ficar qual era outr'hora
No logar onde próvido a escolheste.
Se n'um prado vulgar qualquer plantio
Houver, que, digno de melhor ventura
Definhe, ou bastardêe, e se no lodo
Jaz abatido, á mingoa de cultura,
E por visinhos seus dos suecos falto,
Que ali buscava, d'esse damno o livra,
»314 OBRAS DE BOCAGE
Cria-0 só; firme então de dia em dia
O tronco, honroso ás experiências tuas,
Não menos que os irmãos irá medrando.
Da planície onde ri tanta verdura
Os thesouros admiro, e prézò o enfeite;
Livra-se a terra de um repouso infausto.
Tudo é fértil, risonho, e te enriquece:
Longe os tristes alqueives ociosos,
Que do abortivos cardos se herriçavam,
Um grão succede a outro; eis que, mudando
A sua habitação, nasce, destróe-se.
Renasce por seu turno: á terra deram
Teus suores, e auxilio renovados
O esforço de perpetua mocidade:
Assim, por sempre compensados mimos.
Teus gados, e teus campos se refazem.
Ha entre as flores, que ataviam prados.
Espécies caras, distinguidos germes :
Ante teus os olhos congregar tu podes
D'estes plantios as dispersas graças:
Attento cultivando-as n'um canteiro
Ali creadas são com leis melhores,
Dão-lhe á simplicidade um lustre novo;
Mas aos jardins quaesquer é berço o prado.
As tuas precisões o chão úz útil,
Agora aos teus prazeres fértil seja.
Tu, que dignas de amor pesquizas flores,
Dispõe vivenda aos hospedes mimosos:
POEMAS DJDACTICOS TRADUZIDOS 315
Debaixo de céo puro. em branda terra
Com seu raio nascente os lustre Phebo :
Sem arte ou eleição lá n 'outros tempos
Confusamente as flores, e ao descuido
Aqui, e ali nasciam, contentadas
Dos dotes da singela Natureza:
Os que a cultura empresta não sabiam:
Assim de Alcino a ilha povoavam,
E os jardins de Semiramis, suspensos:
ikthenas dos jardins entre seus muros
O uso alegre deveu ao páe virtuoso
Do pruzer philosophico; Epicuro
Ali mostrou suas bellezas novas,
E os campos transferiu para as cidades;
Mas Grécia^ de que as artes foram filhas,
A regra dos canteiros ignorava :
A França 6 que os formou, que os pôz em ordem;
DVste luxo campestre ornou palácios,
Orla inventou de arbustos volteados,
Dispôz aífeiçoada, e lisa relva,
Fértil xadrez c'roou-lh.e extremidades,
E das mais bellas, escolhidas flores
O thesouro ostentaram. Sois dos olhos
Doce attractivo, oh flores; entre aquelles
Longos circuitos vos ergueis mais lindas:
Tal aos metaes o solido diamante
Dobra fulgores no emprestado throno.
Em meio do canteiro aquosa origem
316 OBRAS DE BOCAGE
Leve a teus tanques borbulbões ferventes:
Sedes o regador ás flores mate;
Mormente quando a terra arder eo'as calmas,
Quando ferrenhos céos, manhãs sem pranto
Ameaçam da flor belleza, ou vida,
Com aguas mais assiduas as soccorre,
As graças lhe renova, estêa os dias:
Sem ella tudo morre; onde é detida
Vae buscal-a, e consigam-na desvelos:
Agua outr'hora cubria o vasto mundo,
Mas Deus a ca p ti vou no equóreo abysmo.
E lá que as ondas insoíFridas querem
Seus muros arrombar, lá que mugentes
Na praia immovel, espumando, expiram:
A cada instante o sol do mar levanta
Vapores, que dilata, e que, levados
Rapidamente nas aéreas plumas.
Menos graves que o ar que nos rodêa,
Sobem onde mais livres, mais ligeiros
Na sublime atmosphera andam nadantes;
Geram d 'aurora cada dia o choro,
Branquêam flores distillando orvalhos;
Quando os tufões desferrolhados bramam,
E nas fundas cavernas erguem lodo,
Ondas, betume, do terrivel centro
Sáe mais negro vapor turbando os ares,
Brinco de seus caprichos formam nuvens
Mães das procellas, filhx* do Oceano;
POEMA.S DIDÁCTICOS TRADUZIDOS
Em seus grávidos corpos bate o vento,
E pelos ares caem mais leves que ellas:
As planicies baixando, um mar suspenso
Rios, e fontes pelo mundo entorna:
Fácil caminho a preparar-lhes prompta
Abre a esponjosa terra o seio ás aguas:
Mormente os serros nas internas grutas
As fugazes correntes dão guarida;
Pélago de vapores espargido
Nos picos d'ellas, os montões gelados
Das neves invernaes (que o sol fervente,
E os húmidos Favonios tocam, rompem
Entre os risos de Abril) vão tortuosos
Seguindo por caminhos variados
Os meandros de arêas, e rochedos:
Pelas vêas do monte as gotas filtra
Agua peré^ne, e abobadas penetra
Té aos barrosos leitos, onde ha posto
Reservatórios d'ella a Natureza:
Lymphas, juntas ali, dos montes fogem;
Eil-as arroios são, e as terras lambem.
Cumes da Ibéria, onde morreu Pyrene,
Os que Annibal transpôz, Vosgos, e Jura,
Do seio o Pó, e o Rhodano desatam,
Rheno, e Garumna, Sóccona, e Ticino:
Débeis junto da fonte os prados molham,
OfTrecem-se aos rebanhos -sequiosos;
Mas eis se esquecem da acanhada origem,
318 OBRAS DE BOCAGE
E na carreira sua abastecidos
Do tributo de arroios, que lecolhem,
Com Ímpeto rolando altiras ondas,
Cubertos de baixeis qual o Oceano,
Vão no bojo marítimo abysmar-se,
E as ondas tornarão, que somem n'elle;
Sobre as azas dos Sues ás férteis serras.
Vê d 'esta pedregosa, esconsa altura
Com tremendo rumor lançar-se as aguas;
Lá debaixo da terra em férreos tubos
Superior artificio as fechej e aperte;
Eneo canal em teus jardins coUoca,
Que dê caminho estreito ás aguas promptas,
Elias furiosas saem, e aos ares saltam
Tanto quanto na queda se abateram ;
Seu pezo as fez cair; d'agua, que as segue,
Pezo urgente as eleva, e manda aos aves:
E quando ellas se escapam, se acham liv]* -.
Equilibradas sempre estão co'a fonte:
Pular aos tanques teus virão dest'ai'te,
E em teus jardins brincar de varias sorte>.
Junto d'impia caterva em rãs muJada,
D'agua, que ella vomita, injurias soffre
A mão do Apollo; um Titan enraivado
Debaixo do Etna, que lhe esmaga os membr^
Rio aos céos arremessa em vez de flammn:
Mais longe por canaes, que estreitam aguas.
Sobem, não vistas, muro que as esconde :
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 319
Já patentes ao dia eis se desílobram,
Multiplicadas caem de tanque em tanque.
E st 'arte portentosay e sempre grata
Oo'a3 aguas brinque; o sábio lhe prefere
Dos compridos caaaes a simples arte,
Que na rica abundância egualam rios:
Praz-me uma fonte ás tuas leis submissa.
Que a ordem que a divide á risca observa:
Entre as flores aqui remanso ameno
Volve em áreas de ouro ondas de p^uta;
Ornam-lhe as margens mármore, verdura,
E apenas corre, murmurando apenas;
Mais abaixo serpêa, e por cem voltas
Erra nos bosques, a carreira esquece;
Acolá, qual torrente as ondas pulam
De rocha em rocha, rompem-se escumando
Com pavoroso estrépito, e lhe applaude
Os mugidos horrisonos a terra.
Onde illusões amáveis me transpoitam !
Apraziveis estancias quiz mostrar- te,
E dos reis aos jardins levei teu-^ passos:
As aguas, como as terras, lhe obedeçam;
Tu regula os desejos, mede as forças.
De um prazer seductor o engodo teme.
Porém na escolha de ao^radaveis flores
o
Azas livres concedo a teus desvelos:
D'extranhos climas <reneros oabados
Da Grailia ao seio conduzidos foram;
320 OBRAS DE BOCAGE
Cada flor n'ella crê que a pátria gosa,
Um jardim no recinto inclue o mundo;
Floresce aqui a anémona indiana^
E junto d'eila a tulipa africana:
America egualmente a par lhe arraiga
Bellezas varias de seus amplos climas;
A tenra hemerocál^ cujo destino
E nascer, e morrer n'um mesmo dia;
E as que outr'hora agradaram tanto aos Incas,
Que para as figurar na quadra trisfce,
Imitando-as cru flores de ouro, ou prata.
Nos seus ricos jardins a Natureza
Usavam reparar. . . ah! Não previam
Que das longínquas margens do occidente
O hespanhol, mais cruel que inverno, e ventos,
Roubar-llie iria tâo fatal riqueza.
Oh ! Quantas flores, concurrentes d'estas,
Mobil quadro variam^ nos off' recém
Das cores o espectáculo não visto!
Como arte bella em nravediça têa
Aos olhos enlevados apresenta
Os paços de Plutão, de Phebo o coche,
Grutas de The tis, e de Amor florestas;
Tal em nossos jardins, aonde a guia
Sua própria estação, vem cada espécie
Dar o atavio, e novidade á scena:
O seu século está na quadra .síui,
Nascem tantas nações, n'um azmo, e morrem.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 321
A violeta gentil na densa folha
Oomo que foge á luz, e ama o retiro;
Seu perfume a descobre, e seus encantos
Modestos, virginaes melhor conseguem
Honras, que esquivam; sobre o flóreo plano
A anémona reluz; o vivo esmalte.
De que é cVoada, reunira os gostos
Se no mesmo logar não campeasse
A tulipa formosa; quanto as cores
Um mixto formam n'ella extravagante
Tanto é mais de admirar, e a espécie é rara:
Da Syria o mais christão dos reis da Gallia
Trouxe a flor, que entre nós co'a variedade
De seus doces caprichos graciosos
E dos amantes seus prazer supremo;
Revivendo a semente, as flores torna
Similhantes, mas varias, taes quaes vemos
Delicadas irmãs. Oh! Natureza,
São estes brincos teus, são lindas manchas
Que aos olhos assignalam tanta espécie,
E 03 ijLomes dos heróes lhes attribuem:
Nos jardins nascem Alexandre, e Oesar.
Prompto a deixar-nos, Zephyro abre a rosa,
E ao primeiro calor a oífrece amigo:
Dá-te pressa, dous dias não subsiste
Tão suave esplendor; são muitas vezes
Os mais bellos destinos os mais curtos.
Que aroma singular me prende, e encanta I
322 OBRAS DE BOCAGE
Fragrante aos olliòs meus pompêa o craro:
Erguido sobre o tronco, e fresco, e bello
Nativa candidez ostenta o lírio:
Teus pendões invenciveis borde, oh França,
Tua gloria annuticie em toda a parte;
Mas dos sentidos meus desvie o cheiro.
Dos perfumes que dás também o excesso
E desabrido, oh flor do mundo novo,
Mais ditosa entre nós, e que os francezes
Nominam tuberoza; em tu surgindo
A pomifera quadra retrocede,
Vem dar-te irmãs, que hão de formar-lhe a corte.;
O amaraního im mortal, papoula, e myrtho,
E a que, amante do Sol, coiii elle gira;
Por sua formosura, e variedade.
Pelos destinos seus, da China a rosa
Nos assombra os jardins; em sós três dias
Que á vida lhe aprazou a Natureza
Muda três vezes o inconstante adorno;
Entre as flores Prothêo, nascendo é branca,
Vermelha já maior, ]3urpurea em velha.
Quando o inverno, chamando á terra os frioS;,
Ordena aos ventos que a verdura arranquem;
E quando nos jardins por elle murchos
Das flores o espectáculo nos furta;
No tempo em que o taláspis d'alva fronte
Ousa ainda brilhar perante os gelos,
E entfe ^cus pés o caminhante admira
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 323
Flor que, sempre affrontando o feio inverno.
Em gelado torrão sáe da semente,
Se abre, e penetra sobre-postas neves,
D'ellas triumpha; em preparada estancia.
Contra o frio rigor seguro asjlo,
Flores faze nascer; lumes desperta
Cujo módico ardor Zephjro imite; '
Çoiil este brando sopro a flor se illude,
A flor parece que Favonio torna,
E deve ao doce engano a doce vida.
Aos desvelos, que influe arte assisada,
Amoroso delirio não se aggregue:
Junto de um cravo moribundo chore.
Murche com elle pallido florista;
Outro, perdendo tulipa mimosa,
Guarde como um thesouro o espolio secco;
Estes insanos creadores tristes,
Estes rivaes do céo vão muito embora
Mudar o esmalte ás flores, e o perfume,
Alterem-ihe no seio a Natureza
Imprimindo-lhe a cor d'agua tingida
Pelo artificio: quaes prodígios contem
Açucena purpúrea, e negro cravo,
Gabem-se do que podem; tu desdenha
D'arte minu<iosa apuro estéril,
E gosa-te dos dons da fácil terra.
Multipliquem-se as flores onde a abelha
í Usa pelas manhãs colher seu néctar:
324 OBRAS DE BOCAGE
Ás antigas nações elle preciso
Dos cuidados domésticos objecto
Útil, e amável fui; de Mantua o cysne
Excitou-lhe o fervor, cantou costumes,
E thesouros da abelha, os seus trabalhos,
A sua economia, a ordem sua.
Seu amor a seus reis, civis discórdias,
O lucto de Aristêo perdendo o enxame,
Pelos deuses, e a mãe restituído
Aos prantos do infeliz: mas dando apenas
Ao hemispherio nosso o Novo-Mundo
Sabor de sueco estranho, as canas foram
Antepostas por nós ao doce favo:
Da massa, com que engenha os edifícios
O insecto susurrante, inda até'gora
ííada o notório préstimo ha supprido.
Adquire pois a cera, e vae creando
O tomilho, o serpol, herva-cidreira,
O jacintho, o açafrão, e as perfumadas
Flores, que enxame alígero carêam;
A estancia lhe construe, a obra excita,
Poupa-lhe os bens, e, por sarar-lhe os males,
Dos sábios, que inda existem, colhe industria,
Que as abelhas mantém melhor qne outr'hora.
Seguem flores o Amor, Sorrisos, Graças;
De Timante a Oephisa os mimos levam;
Unem-se na madeixa, o seio adornam ;
As festas mais pomposas formosêam ;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 325
Travados n'um festim seus ramalhetes
Com saborosos, delicados fructos
Movediço jardim nas mezas formam:
Por desusado mixto algumas vezes
A imagem dos mortaes nos apresentam:
Assim, sem fabricar vãos numes feros.
Que em flores desgraçados convertiam.
São animadas por contrario encanto,
Nymphas, lieróes se tornam : das mais bellas
Artes brilhantes o atilado esmero
Imita-lhes a graça, esmalte, e forma.
Mais forte em tuas mãos, que industria, oh França,
Te aíFeiçôa. e submette o dócil barro?
ÍTós o desconhecemos, nós julgamos
Ver o brilho, o matiz, ver o caracter
Das flores mais lustrosas, e parece
Que os olhos, d'estas graças seduzidos,
O insulso, preguiçoso olfacto argúem.
Os séculos rerpotos conheceram
Plantas, cuja virtude expulsa os males;
Descubriu (oh portento !) a nossa edade,
Que a flor vida recebe, a flor dá vida
Como o homem a dá, como a recebe:
Cubiçosos de unir-se os vivos órgãos
De dous sexos fecundos n'ella existem;
Do pistflo no seio os fllamentos,
O pó, que elles contém, nações inteiras
Criam de vários géneros; seus fachos
326 OBRAS DE BOCAGE
Une Amor, e Hjmeneu, conservadores
Da flórea estirpe: em desmaiando a força
Do diurno calor^ parece a planta
Immovel, como nós, jazer no somno:
Desapparece o dia? Eil-a se murcha,
E perde o movimento, e sccca, e morre.
Ás que privadas sempre estão d'ebposo
Não têm fecundidade: ha taes, que tecem
Ille^itimo vinculo, acceitando
Os mimos, a paixão d'estranha espécie;
Porém d'estas a prole é sempre estéril,
E vinga a Natureza: outras, affeitas
A vicejar com languida cultura,
Enervam-se por arte industriosa;
Sua grandeza, e esmalte, em breve agradam;
A serventia perderão seus órgãos;
Os filamentos seus, demais nutrido-,
Hão de alongar-se em folhas; a belleza
Ha de supprir-lhe os destruídos sexos,
Serão fecundidade o luxo, o adorno.
Aqui valida flor da Natureza
Possúe hermaph redita ambos os sexos,
Arde nas chammas, que ella própria accende,
Mata os desejos, que. ella* mesma incita:
Dos apartados sexos lar distante
Em vão presumes que Hymeneu desvia;
As auras servi çaes da flor ao seio
Levam do esposo a preciosa oflTrenda:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 327
Taes as palmeiras nas fecundas margens
Que humedeces, oh Nilo, ind.i que ausentes,
Para se unirem com prisão de amores
Em anno, e anuo por Favonio esperam;
Elle é seu mensageiro, azas lhe empresta;
Mas se o vê preguiçoso em demasia.
Do Egypto o morador vae diligente
Da amada aos braços conduzir o amante:
Sem tal soccorro a planta estéreis flores
Dera, e dera murchando inúteis fructos.
Tempo de amor ás flores é a aurora,
Renascem co'a manhã, co'a luz se animam,
D'ellas susurra em torno o flavo enxame,
Applaude a borboleta os doces brincos,
E o terno rouxinol em paphio myrtho
Canta os ardores, o commercio d'ellas.
328 OBRAS DE BOCAGE
c^jL:ssTrr<D gíxjijstto
DOS GADOS
Vós, que exerceis das terras a cultura,
Vós, que lhes daes os bens, lhes daes o adorno,
Mortaes, quanto estas leis vos eram graves,
Que trabalho exigiam, se as sentísseis
Desajudados, sós! A Divindade
Submette a humana espécie a taes suores;
Mas a pena é paterna ; e, moderando-a,
Aprouve-lhe curvar ao jugo do homem
Profícuos animaes, que em parte a soffram:
Devem obedecer, vós governal-os;
Súbditos são, que o reino vos povoam.
Este imperito tão rico, e tão potente.
Quanto d'esse desdiz, que possuia
O homem, pela innocencia enriquecido ?
Submissos animaes seu rei serviam,
E apenas foi culpado os viu rebeldes;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 329
Sem armaSj sem soccorro estremecendo
Dos tigreSj dos leões temia a fúria;
Aguas, e grutas, ligeireza, e v6o
A seu illuso ardil roubavam prezas:
Mas assim que inventou pelo trabalho
Artes o racional, e assim que o Eterno
Lhe restabeleceu poder nos brutos.
Forçou, veuceu-lhes repugnante instincto;
Cedeu colhido o pássaro nas redes;
Teve o touro, o cavallo um jugo, um freio:
De noute discorrendo a serra, o valle
Os selváticos monstros buscam pasto;
Nasce a luz, o homem sáe, elles o acatam,
E d'elle entre as florestas vão sumir-se:
Aos úteis animaes deu regras úteis;
Nos serros espargiu seus dcceis gados;
D'est'arte um foi escravo, outro temeu-o,
E ás leis de seu senhor curvou-se o mundo:
O cabrito-montez, e o cerro, ainda
Que em forma ao renna eguaes, não se arrebanham;
O búbalo indomável mora em selvas,
E a cabra montezina esquiva o jugo;
D'estes as gerações, que a Natureza
Cria selvagens, e selvagens deixa.
Não podemos dobrar aos usos nossos;
Mas n'estes animaes, intumecidos
Com sua independência, e liberdade,
Limitado poder sempre exercemos.
330 OBRAS DE BOCAGE
Oh Deus, de que um pastor, tremendo, amando,
Viu nos cimos do Horeb a magestade ;
Tu que, chamando-o a ti, d'eutre ignea sarça,
Que ardia em fogo teu sem consumir-se,
O teu nome, o. teu ser lhe revelaste,
O primeiro dos vates o fizeste,
O fizeste o pastor de eleito povo;
No lume divinal niinh'alma inflamma,
O inculto guardador por mim se instrua,
Saiba usar de teus dons, e te agradeça
O império seu pela homenagem d'elle.
Se bellos fructos, se abundosas messes
Teus desejos expertam, gados cria;
Venturosa experiência, ampla fartura,
Verás galardoar teus mil desvelos:
Dos antigos mortaes este o costume;
Os súbditos, c'os reis eram pastores:
A fabula indicou por véllos de ouro
Das ovelhas de Atrêo, e Eéta o preço;
O esposo de Penélope em seus gados
Tinha os thesouros seus; de Fauno a prole
Os seus thesouros em seus gados tinha :
Esta industria cubriu de povo immenso
Judéa, Egypto, e foi sua opulência.
Africanos, arábigos, os vossos
Mansos camelos o joelho accurvam
Para que os carregueis; sem medo á sede.
Pagos de áridas hervas, os desertos
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 331
Cruzam da zona ardente: a índia ofFVece
Aos olhos meus o válido elephante,
Espantoso animal, que de um menino
Se deixa governar, altivo, e brando;
Torres sustenta, e impávido costuma
Levar guerreiros onde a gloria os guia:
Por estrada, que o gelo, a neve atulham
Puxa 08 frios lapões o renna activo;
Só para si querendo agreste musgo,
Vestiduras lhes dá, manjar, bebidas:
Mas nunca teus rivaes serão taes povos,
Oh gente, cujas terras alimentam
Os serviçaes cavallos; seus empregos,
Préstimos vários, o animo, a belleza
Aos outros aniraaes este avantajam.
Cria em ledos outeiros teus rebanhos,
De moderados céos procura o clima: '
Bando feliz d'innumeros ginetes
Lá se faz ágil, são, robusto, e vivo;
Mas em lodosos prados tendo a estancia,
Ou tendo-a em valles húmidos no extremo,
Grosseiro pasto d'este chão nocivo
Lhe enerva os corações, se augmenta os corpos;
Ficam pezados, sem vigor, sem brio,
E receam-se do ar ou denso, ou frio:
Vê do hespanhol o ardor, vê-lhe a nobreza,
A fleugma do hollandez, e a cobardia!
Taes, á face de um céo macio, e puro,
332 OBRAS DE BOCAGE
As arvores, que a terra alegre nutre.
As graças, que lhe vem da Natureza
Unem sumo aprazível, unem fructos
Provindos da cultura: outras desmaiam
Em soltos areáes, em seccos montes,
Que o vento insulta, ou nos profundos valles
Toleram sombra pérfida, e somente
De sem-sabor substancia engrossam fructos.
A França ao teu desejo em sítios vários
OfFrece outeiros, que de pasto abundam,
Manifestos á luz: são taes os prados
De Hiesme, do Garumna, e taes se mostrara
Do Rhodano fervente as frescas margens.
Que é do vosso artificio, oh destros povos?
Roma, Roma deveu proezas suas
De vossos bons maiores ao cuidado;
Vossos ginetes, para a guerra idóneos,
Creados para a guerra, aos seus horrores
Conduziram do mundo os vencedores.
Escolhe o garanhão, que d'esta escolha
Depende a sorte da manada equina:
O andaluz nos apraz, e o barbaresco;
D'este o filho n'altura o páe transcende,
E o cavallo d'Iberia excede a estirpe:
O garanhão, que estimo, é novo, é forte,
Soberbo, e manso, dócil, e animoso,
Alto pescoço tem, e audaz cabeça.
Redondo é na garupa, e cheio em lados;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 333
Caminha ufano, rápido galopa.
Insulta OS medos, desafia os pVigos;
Se ouve mavórcia tuba, os sons da guerra,
Agita-se, re touca, e fere a terra;
Chama seu rincho ousado os estandartes,
Fogo lhe luz nos olhos, sáe das veiítas,
As orelhas altêa, herriça as crinas,
Estremece-lhe o corpo, a bocca espuma.
De ura pello assignalado a cor mais nobre
Denote seu valor, o aíFormosêe;
E a teus rebanhos dê gentil tintura
De raça em raça este útil atavio:
Busca alazões, prefere os mosqueados,
O azevichado, o baio, o de três cores
Que a das carnes imita, e de ouro, e neve;
Ou cinzenta, ou mal tinta, ou deslavada
A pelle n'um cavallo o indica frouxo:
Assim nas variadas cores suas
A Natureza brinca, e pinta os génios;
Mas isto mente ás vezes, e quem prova
Seus occultos defeitos? A experiência:
Na belleza envolver-se o vicio pode;
Falso, vil, rebelão, espantadiço
Pode o cavallo ser, ser caprichoso;
As pechas de seus páes em si guardando,
Hereditário mal transmitte á raça.
Ardente garanhão, que de annos sete
Cheio é de forças, as conserva aos vinte;
334 OBRAS DE BOCAGE
Depois aíFraca, e sua ardência estéril
E de um desejo vão fallaz impulso;
Serve a egoa em mais moça, e quinze estios
Fecundos, bellos dias lhe rematam.
Seja livre, ociosa, e de seu pasto
Se regre attentamenle a quantidade;
A's lidas amorosas destiuado, _
A seu tenaz ardor se dê o esposo;
Mas tempera-Ihe o fogo, em doze amadas
Ás ferventes caricias lhe restringe;
ífelles, como entre nós, não ha ternura,
Escandece-os Amor co'as fúrias todas:
Em vindo a primavera, e quando as egoas
SoíFrem dos gamnhões o activo assalto,
Experto conductor una, e contente
Desenfreada amante, amante insano;
Contenha em subjeição té íios prazeres
De amor agreste os Ímpetos soberbos.
Onze mezes passaram, nasce o potro,
O desvelo em creal-o agora occupa:
Poupa fraqueza da tenriuha edade;
A infância brinque, a mocidade espera;
Deixa correr, saltar mimosas crias,
E acompanhar as mães ao prado, ao monte.
íío meio de seus brincos, desde a infância
O presagio lerás de seus costumes;
Aquelle, que arrojar-se aos campos vires.
Correr, embalançando-se nas curvas,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 385
Desdenhar vão rumor de rio, ou fonte,
Os outros provocar, vencer, correndo,
Nos brilhantes, magnânimos ensaios
De um bruto generoso offVece as mostras;
Independentes vivem, vivem ledos,
E do freio vindouro a força ignoram.
A edade eis útil, no terceiro estio
Subjugam tuas mãos o indócil potro;
Edade é folgazã, porém flexivel:
Longe, ameaços, picador sanhudo;
Um castigo cruel produz só medo:
Tu prefere ao rigor bnmdura, e mimo:
O cavallo ama o homem, quer prazer-lhe;
Sua docilidade é voluntária.
Mais cede á voz do que obedece ao freio.
Das varias crias o destino ordena :
Dê-se a boçal, e a frouxa ao carro, ás lavras;
Convém primeiro que um vazio arraste,
Com leve arreio; em breve os pezos graves
D'espumante suor seus lados tingem,
O eixo grita nos carros, e se inflamma :
A voz deve-o guiar; mas, se repugna,
Succede-lhe o castigo, e vence as teimas.
Impávido ginete, que á victoria
Tem de voar c'o impávido guerreiro.
Desde a mimosa edade a estrondos feito,
Escuta sem terror trovões de bronze;
Pelas armas ufano os -olhos corre.
336 OBRAS DE BOCAGE
Das trombetas a voz lhe é som gostoso,
SofFre os arções, e plácido sustenta
O dono, que lhe opprirae as lizas costas :
Submisso ás ordens ou se avança, ou pára :
Recua e se levanta, e se arremessa;
Mais prompto que elles, precedendo os ventos,
Apenas sobre a arêa imprime o passo; .
Ama os louvores, e reluz seu fogo
Se branda mão lhe bate, e o lisonjêa.
Úteis no mareio campo, assim ginetes
Altivos aos certames te conduzem;
Rompendo os esquadrões, lá saltam, voam,
A matança os anima, o p'rigo os punge:
Crivados de feridas, entre mortos,
Cheios de pó, de sangue elles parecem
Esquecer-se de si, de nós lembrar-se;
Se a força os desampara, inda animosos
D'cntro os horrores saem, nos livram d'elles.
Mostram por nós temer quanto aíFrontáram,
E expiram satisfeitos com salvar-nos.
Este doce pendor, que a Natureza
Inspira aos corações, Amor, que a vida
Confere a quanto existe. Amor, nem sempre
E pelas suas-ieis guiado: ha brutos
Que seduz falso instincto, e que, inflammados
De perversa paixão, seguir costumam
Animaes d'outra espécie; o tigre, unido
À leoa feroz, gera o leopardo,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 337
Producção monstruosa, e doeste laço,
Que a falsêa, indignada a Natureza
Abominável raça estéril torna:
Entre animaes, que a seus desejos prestam,
O homem, multiplicando impróprios laços,
Por arte os reproduz, e de anno em anno
Novos adquire, a Natureza illude;
Renovados assim os machos nascem,
E outros, que a Natureza não perfilha.
Da egoa o macho é prole; a altivez sua,
Se o páe lhe nomeasse, eu affrontára,
E abatera meus versos com seú nome;
Mas o préstimo seu diga-se ao menos :
Tem manso o natural, o humor paciente,
Tolera as fomes, e o contenta um cardo.
Proveitoso á charrua os touros suppre.
Das cargas que lhe impõem deixa opprimir-se;
Mas ás vezes de purpuras o adornam,
E nas costas mantêm, conduz ufano
De nympha encantadora o doce pezo :
Em fogoso ginete o lindo sexo
Treme, e anbepõe-lhe um passo brando, e lento.
Rochas subir, do precipicio á margem,
É do bom macho o préstimo primeiro;
O homem, sem se abalar, n'elle se fia,
Vae por caminhos, a que olhar não ousa.
Sóbria, lidante, ás paternaes virtudes
Une a força da mãe, e orgulho a mula:
338 OBRAS DE BOCAGE
Rhodes, Poitiers, Saint-Flonr taes gados criam^
Hespanha é rival sua, e não lhes cede;
I)'ella os cavallos para a guerra nascem,
As tarefas ruraes a mula é própria,
Preza a charrua, e se lhe affaz sem custo;
Regra-lhe tu vivíssimos transportes.
Menos em fogo, em ânimos não menos,
De forças é dotado o boi tardio :
Cria-se para a lavra, ella o recrêa,
Cede-lhe tudo aos músculos nervosos;
Para os campos não ha melhores gados;
E, se tens para dar-llie hervas fecundas,
A ordem que dictei, regendo-os, segue:
Um touro quasi indómito se estima;
E de feroz olhar, de sanha ardente,
E o corno ameaçador, mugindo, abaixa.
Ignora estes furores a novilha,
Tem seu sexo mais brando outros costumes;
De abertas ventas é, caídos beiços.
Fronte larga, olho negro, orelha hirsuta;
De pello mosqueado, espesso, e molle
Desce aos joelhos a barbella instável;
* Soberba caminhando ergue a cabeça,
E a cauda buliçosa o pó levanta:
Terceira primavera amor lhe atêa,
E apaga-se este ardor aos quinze invernos:
Grandes pezos convém que então não puxe,.
Té do menor trabalho então se isempte:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 339
Não lhe consintas que atravesse as aguas,
Que montes, espinhaes, barrancos passe;
Erre em pingues pastagens livremente,
E em limpas margens d 'algum bosque á sombra.
No campo onde os Teutões já guerrearam,
E de seu vencedor tem inda o nome,
Nas ribas onde o Rbodano lhe é dócil,
E segue outro caminho a elles útil,
Corrompe os ares odioso insecto.
Que em fúria horrível assaltêa os gados;
Os gados temem seu ferrão cruento,
E da picada é fructo a morte ás vezes;
Os touros, do susurro amedrontados,
Eompem na fuga os ares com brami^Jos:
Fecha-os no tempo adverso em que os calores
O insecto irritam, e implacável tornam.
Quando da vacca se avisinha o parto.
Pastores, não queiraes que ella vos pague
O tributo do seio; e, produzindo
Da ternura o penhor, soíFrei que o crie
Sem partilha de alguém; não tarda o tempo
Em que seu leite, de nectáreo gosto,
Corre só para vós: em dia, e dia
Nas vêas suas o liqnor filtrado
Duas vezes lh'os enche, e sae dos peitos;
Foi primeiro manjar nos tempos de ouro,
E, do luxo a pezar, tem preço ainda;
Ou variamente, e por industria occulto
340 OBKAS DK BOCAGE
Nosso melindre affague; ou refrigério
Esteio á languidez, o triste enformo
D'entre as portas da morte arranque, e salve:
Doce, mas prompto em azedar-se o leití)
Só por attenta mão pode manter-se:
Simples queijeira com asseio agrade:
Para estas obras rústicas hei visto
Entre mármore, e entre ouro ergue-se portas,
Onde em' chinejícs vasos se honra o leite
De humedecer dos reis as mãos augustas;
A pezar do impostor, do vão seu brilho,
Teu jus conhece o luxo, oh Natureza.
Mas de trabalhos taes o doce emprego
De mais útil cuidado o tempo acate :
Teme, se tu co'a voz os não suspendes,
A mocidade indómita dos touros :
Dobra-lhe um simples vime em torno ás pontas,
Ou forma-lhe um collar de ramos leves :
Dous novos bois, eguaes na edade, e força,
A subjeição do arado aprendem juntos
Vão a passos eguaes por chão de arcas,
Brevemente abrirão torrões lodosos:
Para os avassallar, mais fácil meio
Une a touro rebelde um menos duro;
Este é mestre d^aquelle, • pelo exemplo.
Que pôde mais que tu, se faz tractavel.
Dous bois em breve se acostumam juntos ;
Mais que o jugo amisade os concilia :
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 341
Com reciproco ardor, e eguaes esforços
Elles se ajudam; se os desune a morte,
Vê-se o que resta pranteando a falta
Do seu querido irmão: recentes prados,
Bosques sombrios, crystallino arroio
Não lhe dão gosto já, são-lhe indiferentes;
Cos olhos melancholicos, e fitos,
A pezada cabeça inclina á terra.
Povo aflpamado, em Apís te morrendo,
De que prantos, de que ais enchias Memphis !
Adorador de um boi lhe ergueste um templo,
CoUocavas no altar deus, que pascia !
Prostrados a seus pés mortaes estultos
O fado em seus mugidos consultavam !
A Grécia aos gados' seus co'a mesma insânia
Deuses fez presidir; já Pan, já Phebo,
E os Sylvanos, e os Satjros: meus versos,
Meus sons tem mais poder que esses phantasmas:
Rebanhos, acodi, correi a ouvir-me;
Attentos os pastores me rodêem.
A cordeira, a pezar das lãs que a forram.
Teme os invernos: voltem-lhe os abrigos
A parte austral, encerre-se, e nutrida
Seja ali com desvelo; hervas se elevem
E vegetaes ali que lhe escaparam;
Densas camas de feto amontoado
Dos males imminentes a preservem.
Se é puro o sol, se é amoroso o dia,
342 OBRAS DE BOCAGE
Ou se acaso abrilhanta opaca nuvem,
Ten gado á margem próxima encaminha,
Sem que" o deixes no campo extraviar-se ;
Porém d'esta lei rígida exceptuo
Climaj que nunca os gelos entristeçam;
Lá n'um parque ambulante a ovelha mora,
B vê continuo variar a estancia :
Assim de teus rebanhos a vivenda
Ora aqui, ora ali te aduba os campos :
De um ar subtil, e vivo a frialdade
Faz-lhe o vello mais brando, a lã mais pura ;
Mas fecha-os quando o polo se ennegreça,
E aguas se endurem, volteando as neves:
Segue este uso tão prospero Occitania,
Elle o preço, oh Segóvia, ás lãs te altêa.
NTa ilha onde os avós anniquilaram
Do lobo a raça, d'Albion pastores,
Livres das fúrias do inimitro astuto,
As neves, ao rigor de húmido clima
Não recearam callejar seus gados;
Ousam ainda mais: ao desabrigo
De ar intractavel as ovelhas deixam
Nas geladas planicies, e conseguem
Com isto suas lãs o gráo primeiro.
Apenas se abre a terra ao brando raio
Da meiga, flórea mãe, cordeiras podem
Saltar na relva, que do chão rebenta;
Mas esperar convém que o frio orvalho
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 343
Se extinga ao sol : o affogueado estio
Quer outras leis; a matutina estrella
Vê nos mattos vagar, pascer carneiros;
E ali se reconduzam quando a tarde
Húmida, e grata restituo á relva
Alterada frescura; ao meio-dia
Tu porém desce os montes, busca os valles,
Demanda os rios; teu rebanho anhéla
Repouso, virações; ali se estenda
A sombra de um carvalho, ao pé de um bosque.
Té sítios ha que, pelo sol cresrados,
De rebanhos no estio estão desertos :
Então vê o Esperou chegar de ovelhas
Lentas catervas, d 'acolá banidas;
Longevos bosques seus ao pólo se erguem,
OfTrece no mais alto, e fértil cimo
Amplo torrão, jardins da natureza,
Ricos de flores sem cultura, ou arte ;
Os filhos de Chiron vem de mil campos
Olhos ali fitar, sondar virtudes:
Desdenha aquelle monte, aos ecos visinho.
Das procellas o horror; lá vi cem vezes
Debaixo de meus pés juntar-se as nuvens,
E, em quanto aos olhos meus sol puro ardia,
Sobre os valles a noute o véo lançava ;
Os raios, os trovões se iam creando
Longe de mim, e a terra espavoriam.
Ditosas cordeirinhas, quanto é doce
344: OBRAS DE BOCAGE
Vosso destino ali! Feliz quem livre
Vive em paz, como vós, n'aquelles campos.
Em quaesquer climas a que o céo te chame^
Nunca de teus carneiros te descuides;
A sua mansidão requer ternura,
Merece amor, e amando t'o agradecem:
O cajado ao pastor não serve ás vezes,
Rege um grito, um signal todo o rebanho;
O principal carneiro aos mais precede,
E seu guia elle só, regula o passo,
E o povo o segue: por barrancos salte,
Recue, ou se adiante, a chusma toda
Ou pára, ou se arremessa apoz o chefe:
Assim que o predominio lhe concedes
Um carneiro é senhor, dá leis aos outros;
Basta-lhe teu favor, no mesmo instante
De seus e<íuaes obediência loo^ra.
Pastor, conhece os cumes onde ha flores,
Que teu gado procura: os gordos pastos
(Húmida nutrição) não mais lhe oífrecem
Que um pérfido alimento: aos sitios foge
Crespos de cardos que, ferindo os corpos.
As guedelhas arrancam; vae-te a um serro
Que brote herva cheirosa em magra tei^ra*;
A suave alfazema os gados correm,
E ao alecrim, serpól, tomilho, e nardo:
Taes de Armo rico, e Ardênnas os carneiros^
De remotas provia cias tão buscados.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 345
Aos muros de Salon corre visinlio
Campo fragoso de abundantes pastos
Para muito rebanho: a vista absorta
Só planície infecunda ali descobre;
Aclía o carneiro industrioso a herva
Occulta em móbil pedra, e vê pascendo
Tomilho sempre extincto^ e renascente.
Os mesmos alimentos entejando
A ovelha, como nós, também se enjoa,
Variedade lhe apraz ; não se lhe negue
Remédio certo, que lhe esperte a fome;
No tempo em que pascer, ante seus olhos
O sal branqueje; de repente a ovelha
Corre a elle, e seu ávido appetite
Eis trabalha entre os dentes esmagal-o;
Renasce o gosto, a sede se lhe irrita,
E em breve de seu leite a origem cresce.
Ha propicios torrões, que dão ás hervas
Suecos^ que adnba o sal: teus bons pascigos,
Oh Presalé, são taes, taes esses campos
Que do mar foram leito, hoje são margem.
Ganges segue outras leis: da mãe se aíFasta
O cordeiro, e teus lares quer, e habita;
N'elles, ou no redil avulta, engorda
Dos sobejos mensaes, ou da castanha.
Existem sobre a terra inda legares
Onde o pastor co'a voz ajuste a avena?
Para os sons admirar, de que se encanta,
346 OimAS DE liOCAGB
Deixa o sensível gado, e esquece a relva :
Porque em nossas aldêas já não vemos
Dos antigos pastores as contendas?
Cantavam primavera engrinaldada,
Guarnecido o verão de espigas de ouro,
Ourvo dos fructos seus o outomno ao pezo:
As selvas magestosas celebravam,
Que o cimo enramam de alterosos montes ;
Caindo as aguas, e espumando em rochas,
Ou girando nos valles, e entre os prados:
Em versos amebêos soavam penas,
E delicias de amor, seus bens, seus males;
Um de Lilia gentil pintava encantos,
Filis outro accusava, ou falsa, ou dura;
Em premio o vencedor tinha uma cabra,
Ou dous cordeiros, e o pastor vencido
Entre as convulsas mãos partia a flauta:
Turba rival, arcádicos pastores,
O Ménalo occupou de taes combates;
O Hebro nas margens, o Ismaro em seus bosques
De Orphêo, e Lino a consonância ouviram;
Sensível Árethusa, d 'entre as aguas
Os siculos pastores escutaste;
Suspirar Corydon tu, Man tua, ouviste,
E cantar Melibêo, Damon: seus versos
Os tigres, os leões embrandeceram,
D'envolta c'o rebanho os attrahiani;
Enterneceu-se a penha aos sons campestres,
POHMAS DIDÁCTICOS TliADUZIDOS 347
Pararam rios, arvores tremeram.
Áureos dias de paz, vida innocente,
Mais não sois para nós que vã pintura !
E nos seus gados os pastores nossos
Todo o cuidado restingindo, apenas
Em rústico assobio a boca exercem.
Ao menos saibam com que fácil meio
A ovelha a seus desejos é mais útil:
Esperança fallaz não te allucine,
Não deves exigir que n'um sp anno
Vezes duas a ovelha dê seu fructo;
Um consorcio a contenta; em vão forçaras
Seu apagado ardor a amores novos :
Queres na renascente primavera
Que o manso cordeirinho hervagem goste
Tenra como elle? Une o carneiro á fêmea
Quando o outomno as promessas desobriga
Que a primavera fez; mas, saciado
Das ovelhas o ardor, não mais permittas
Ternos assaltos d'importilno esposo.
Eis junto ás mães os cordeirinhos gemem,
Arredam-se ao principio; mão propicia
O leite, que vem logo, e que é veneno,
Lhe rouba, e só lhe deixa útil bebida:
Quando co'a edade enrija o débil corpo,
O filho apoz a ovelha aos pastos corra:
Egual em forma, e côr sempre o rebanho
Do esperto pegureiro aos olhos mente;
348 OBRAS DE BOCAGB
Mas a Amor nada escapa; o cordeirinlio
Conliece a mãe, e a mãe desvia-o de outra,
Ou foge d'elle; entre ellas todavia
Rixas não ha; pacíficos estados
Governaes, oh pastores: mas apenas
Annos ferventes aos cordeiros vossos
De amoroso transporte a cham ma inspiram,
Estes ardores apagando o ferro
Nos apreste o sabor de tenras carnes:
Se houver longa demora, hão de atear-se
Entre elles pelo campo eternas lides:
Dous soberbos rivaes se arrostam feros,
Se investem pela arêa, e se topetam,
Fomentam seu furor c'os mesmos golpes,
Corre o sangue, e a ferida irrita as fúrias.
Dóceis, com tudo, ovelhas, e carneiros
Vivem só para vós, de bens vos enchem :
Uma te off'rece um leite inexhaurivel,
Outro, grata iguaria, ornar-te a meza;
Ambos nos dias da estação mimosa.
De lãs espessas carregados, despem
Os seus para aprestar vestidos nossos,
E as mãos da Natureza outros lhe apromptam:
Debaixo da veloz, cruel tesoura
Immovel jaz pacifica ovelhinha,
E nem sóka um queixume, inda que ás vezes
Movido por mão dura, e pouco attenta
Vestígios sanguinosos deixe o ferro:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 349
Humanos, aprendei: sois d'esta sorte
Constantes no revez, nas dores mudos?
Podéra aqui também dizer porque arte
As lãs com férreo pentem se preparam;
E debaixo das mãos como, formando
As confusas meadas, a pastora
Vê o fuso engrossar ao som do canto:
Já subindo o sarilho, o já descendo,
Posto entre os fios se uniria á trama:
Com o lápis na mão firmando as cores.
Mesclara extracto de metaes, e flores;
Julgaras ver brilhar vivo amarantho,
A pallida violeta, a rubra rosa :
Arte dos Grobelins, talvez comtigo
Aprendera a traçar altos desenhos,
Montanhas debuxara, o bosque, o serro.
Rios e gados na campina errantes;
Té ousara a. teus olhos deslumbrados
Mostrar Ypres, Tournay. Fribourg ardendo
Nos raios de Luiz : mas só credoras
Da habitação dos reis tão nobres telas
Aos colmados tugúrios não competem;
Mudam por arte a natureza, e n'ellas
O pastor desconhece a lã da ovelha.
Cabra europêa para têas varia»
A industria dos mortaes não dá tributo
Como o vello que nós, multiplicando-as,
350 OBRAS DE BOCAGE
Podíamos obter das do oriente;
Mas duas vezes no anno é mãe de gémeos,
E leite a ovelha dá menos sadio:
Apraz valle, e planície aos outros gados,
A cabra gosta de trepar montanhas,
E caprichosa um precipicio affronta
Para haver um codêço ; a si «[ entrega
Lançado o guardador na relva moUe,
E em pendente rochedo a vê segura :
Ella nas montas pasce, e vae no bosque
Dos arbustos morder cortiça, e folha:
Oh ! Nunca meus jardins, pomares, e hortas
Provem seu dente peçonhento ! Oh ! Sempre
Longe da habitação de férteis campos
Viva lá nas montanhas degradada.
Doeste lascivo gado esposo digno,
Passos tardios encaminha o bode:
Quasi as fúrias do amor com elle nascem,
E desde a tenra edade o inflammam todo;
Do ardor que o affoguêa escravo é sempre;
De prazeres se cança, e não se farta;
Mas peado co'a gota, e velho em moço
A triste esfalfamento em fim succumbe;
Com podre cheiro os ares envenena,
E prompta morte lhe remata os dias.
Néscia pastora desculpar não posso.
Que vários gados n'um rebanho ajunta:
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 351
Em 3Ítios vários divididos pastem;
Pelos prados o boi segue o cavallo,
A cabra quer o monte, a ovelha os mattos.
Raras de javalis ha castas duas:
Uma, dos bosques susto, ardente, e fera,
Se irrita, e contra um tronco a preza aguça;
Presenta irada ao caçador, que treme.
Espumoso focinho, olhos em braza;
Fomes a apertam, voa, arrosta os p'rigos,
Vinhas, sulcos destróe, destróe pomares:
Outra inquieta, e dócil, nossa escrava
Ronca, mas cede, e vive em nossos lares;
Pasce em longos rebanhos nas florestas,
No lodo se revolve, ou nas lagoas;
Impura ao culto hebreu, e abominosa,
De varias artes nossas mezas cobre;
Se o mais vil animal nos é aos olhos,
IJtil a precisões também a achamos.
Se o chão, traído de exquisito aroma,
Mostra que esconde a túbera no seio.
Do porco o ardor t'a indica; elle precede
Guia, abre, segue a estrada, e mostra o fructo;
Muitas vezes fecunda n'um só anno
D'innumeros leitões a mãe cercada
A continua exigência lhe é bastante ;
Cuida em ceval-a n'esse prazo urgente:
Fora surda co'a fome á natureza.
Desconhecera os filhos, e os tragara.
352 OBRAS DE BOCAGE
O grosseiro cultor, que não conhece
Mais do que os carnpos onde o pôz seu fado,
Limite as luzes em saber de alqueives;
Minha estancia eu transponho, um vivo raio
Aos horisontes dous me chama os olhos;
Lá procuro outros bens, mais férteis gados.
Nos campos do Indostan a ovelha, a vacca
São duas vezes mães, e amas n'um anno;
A cabra, sua egual, aos dons d'aqueilas
Une o tributo de seus ricos vellos:
Da plaga oriental estas espécies
D'uteis colónias cubrirão teus campos:
De servir-nos co'a lida enriquecendo,
O hollandez, de Carthago, e Tyro herdeiro,
Estes hospedes vê nas terras suas
Préstimos conservar do pátrio clima;
Enchem campos do belga, e se apascentam
As margens do Charente: assim congrega.
Escassa natureza arte supprindo.
Assim congrega os bens, que ella separa:
O homem quer; ordem sua obedecida
Colhe tributos do universo inteiro.
Seriam frágeis bens teus muitos gados,
Se pago só da utilidade sua,
Os males em vencer não te instruísses.
Que ferem brutos, como os homens ferem:
Languida chusma em seus trabalhos vejo
Arrastar-se, e cair mortal nos campos;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 353
Cavallos, bois no asylo adormentados,
Várzeas sem trigo, sem adubo as terras:
França es t'arte ignorou, que em Roma os sábios
Nos doctos seus escriptos ensinaram :
Esfarte se enterrou co'a agricultura;
Revivem ambas, e do Lethes surgem;
Os olhos de Luiz lhe tornam vida.
Sábios nossos também a industria movem;
O êxito a segue, e prósperos eíFeitos
Já de seus benefícios premio doce
Ao real coração gostar fizeram.
Gados possues, falta-me dizer-te
Que soccorro importante os guarda, e rege;
Das ordens do pastor fiel ministro,
Este efficaz auxilio o cão lhe offVece;
Sofí*re com elle da regência o ^ezo.
Vela os rebanhos, os defende, os ama,
Seus passos determina, e vae seguindo, "~
Elle mesmo é pastor: se em torno ao gado
Vê, sôfrego de sangue, errante o lobo.
De seus roucos latidos enche os campos,
E o trémulo inimigo aos montes foge;
Se outro mais famulento, e mais sanhudo
Saltêa o cordeirinho, e t'o arrebata,
Elle o persegue, vôa-lhe no rasto,
E do purpúreo dente a preza arranca;
Vigia a par do ti, leal rechaça
Os inimigos teus, lhe apara os golpes:
23
354 OBRAS DE BOCAGE
E de enorme tamanho o que eu prefiro,
E de fero:5 carranca se gloria;
E cholérico, activo, ágil, robusto,
E ladra horrivelmente ao som mais brando;
Atêa-se-lhe a fúria, assim que tivista
O nocturno ladrão, dos olhos fogo
Lhe salta, e se arremessa, espuma, e brama.
-^ Os outros animaes a ti sujeitos
Tremam de ouvir-te, miseros escravos;
O cão é teu amigo, elle te segue,
Sensivel a teu gosto os mais ignora ;
Regula por teus gestos seus costumes,
Alegre se te ris, triste se choras:
Permitte que te siga; eil-o saltando :
Ordena que te deixe; eil-o gemendo,
E gemendo mitigívo seu desgosto:
Mas quem folga como elle em teu regresso ?
Mimos d'esposa, filial ternura
São mui frouxas caricias junto ás d'elle:
Unido em laços, que refaz a estima,
O homem, o racional, quer mais ao homem?
Bem que dos vários cães differe o génio,
Egualmente a agradar-te aspiram todos :
Um nasce para os brincos, e aíFagado
No grémio da belleza pousa, e dorme:
Outros n'agua, no bosque, e pelas grutas
Declaram guerra aos animaes trementes ;
Cada qual parte, voa, torna, pára
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 355
Ao som da tua voz : quem poderia
As diversas proezas numerar-lhe?
Satisfeitos co'a gloria, em triumpliando,
Do vencimento o premio aos pés te lançam:
No covil as raposas um commette;
O galgo na corrida a lebre alcança;
Os de pello annelado ern sedas longas
Arremessam- se n'agua apoz a preza;
Outro dá co'a perdiz por entre o colmo,
E em seus olhos attonitos emprega
Olhos ameaçadores ; não se atreve
A perdiz a voar, elle a suspende,
Diz, sem fallar, que a victima está prompta;
Tu corres, elle fica; ella, partindo,
Por se esquivar ao p'rigo, encontra a morte:
Elle então se abalança, e, conduzindo-a
Em seus lábios fieis, alegre, e á pressa
De seu zelo o tributo eis vem pagar-te.
Que escuto, que ruído atroa os valles !
Caninos batalhões onde se arrojam?
Diligentes monteiros os commandam,
Ensinam-nos co'a voz, e os acorçôam,
Siirnalam-Jhe as fileiras, e a buzina
Lhe reg-ra o movimento em sons diversos :
Já despargido o bando está nos bosques,
Seu clamor fere o ar, e os bosques tremem :
Busca-se a preza; descoberto, aíílicto
O cervo é por sabujos acoçado;
356 OBRAS DE BOCAGE
Parie, foge, o temor aos pés dá-lhe azas,
Vale-se aqui, e ali de astúcias novas,
Cruza rochedos, mette-se por selvas,
Engana os cães, e seus esforços balda ;
Mas a toda esta industria o bando aífeito -
Com isto na peleja mais se anima;
Sobre os joelhos cáe forçado o cervo,
E tenta era vão cora lagrimas dobral-os;
Todos tem gloria em lacerar-lhe o corpo,
E, se elle não morrer, não crêem que vencem.
Ardente javali sae da guarida:
Por animosos cães eil-o apertado;
Foge, e mostra ao principio um medo extremo,
Terrível finalmente os cães persegue;
Pára, e de raiva intrépido fumando
Faz, acuado a um tronco, a todos frente ;
Nos olhos sangue tem,, na boca espuma,
E á força de matança aguça os dentes:
Em vão teus campeões o esforço apuram.
De mortos, de feridos se enche o campo;
A soccorrel-os vôa, o monstro foge;
Dous vigorosos cães o acócem logo;
Elles correm, detendo-o pela orelha
O inimigo te entregam ; de repente
Acode a chusma toda, e com mil golpes
Lava no sangue alheio injurias próprias ;
Elle freme, e se agita, e se revolve;
O venábulo emfim termina, e c'rôa
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS »S57
Teu mareio jogo, traspassando a féra,
Apoz longos combates. A cruenta
Perseguição do lobo inda é mais útil,
E tão brilhante : a cabra montanheza,
O touro furibundo á tua ardência
OíF'recem não vulgar gentil façanha.
Os guerreiros, os grandes se exercitem,
Exercitem-se os reis, calejem n'isto,
Imagem da mavoítica fereza:
Seu ócio proveitoso affiíste, espanque
D'entre as searas o furor dos brutos :
Tu, longe do espectáculo sanguento,
Sempre occupado, inalterável sempre,
Ama, oh bom lavrador, o asylo agreste;
Tuas fadigas são riquezas tuas.
Só n'ellas os desejos circumscreve:
Feliz, se é teu dever também teu gosto.
358 OBKAS DE BOCAGE
OjA.ISTTO SE^SIOTO
DAS AYES
Qual, próximo ao logar do seu destino,
Sentado o viandante em árduo cume,
E de longos caminhos fatigado,
Tranquillo observador mede a eminência
Dos montes, que passou; tal eu, já quasi
Tocando o extremo da espinhosa estrada
Que ousei trilhar com atrevidos passos,
Folgo, de contemplar, escapo aos pVigos,
Do aberto precipicio a aguda escarpa.
Dóceis a meu ensino, os lavradores
Colhem dos campos seus mais amplas messes;
Além a cepa nos visinhos serros,
Cos cachos a vergar, estende os braços;
Erguem bosques ao ceo ramosas frontes,
Adornam os jardins frnctuosos troncos.
Rindo, os canteiros c'roam-se de flores,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 359
Do mais vivo matiz se esmaltam prados.
De todo o gado, ás tuas leis reunido,
Vejo as tuas planicies povoadas,
Cobertos os teus campos; e inda podes
A teus amplos rebanhos, e manadas
Novos teus cidadãos juntar mais perto;
Em largo pateo, em rústica morada
Podes crear, nutrir caseiras aves.
Que teus campestres fructos participam,
E ao depois darão preço aos teus banquetes.
A' voz do Eterno as ondas congregadas
Tornaram-se fecundas, produziram
Toda essa multidão de varia espécie
Que as aguas corta, e pelos ares cruza;
Vimos então ás nuvens remontar-se
Aves ferozes, cuja garra adunca
Primeiro derramou na terra o sangue:
Tua bondade, oh Deus, approximou-nos
O aéreo povo, que descanta alegre
Ao prazer, á ternura, á liberdade:
Dócil canário, e rouxinol mavioso
Não são muito altaneiros, e povoam
Nossos jardins, vergéis, e amenos prados;
E a nossa melhor musica assimelha
Seus gorgeios suaves: Tu puzeste
Bem mesmo á nossa vista as brandas aves,
Que a nossa habitação comnosco habitam:
360 OBRAS DK BOCAGE
Ama a gallinha o nosso captiveiro,
Cerra a pomba entre nós fugazes plumas.
Se me ajudar o céo, oh lavradores,
Cantarei, por meu canfco ennobrecidos,
D'especies vis, e para vós pasmosas,
Valentes povos, incansáveis chefes;
E de muitas nações vereis a um tempo
Policia, e leis, costumes e combates.
Defendida por nós, e a nós subjeita
A gallinha é das aves a mais útil:
É sua pátria o campo; quer vivenda
N'um espaço entre muros circumscripto;
E ali se lhe constroe n'aquelle espaço
Mesquinha habitação de humildes tectos,
Onde vae habitar seu povo inteiro:
Alizem-se estes muros; e os seus ninhos
Com pedra, ou com madeira se dividam,
Ou já também com preparados vimes;
Cada uma quer ter um próprio asjlo
D'onde repulse outra ave usurpadora:
De uma parede a outra uns ramos presos
São outros tantos leitos suspendidos,
Onde ficam de noute empoleiradas
Repousando em tranquilla segurança:
Mas tenham prompta a saciar-lhe a sede
Agua n'um vaso a miúdo renovada,
E nunca turva ]3elo lodo impuro.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 361
Grosseiros aldeãos, vós não sois próprios
Para cuidardes do rebanho alado ;
Elle requer mais mimo, e mãos mais brandas:
Vigilantes, cuidosas lavradoras,
Das aves a morada é vosso império ;
Sois vós que o asseaes, vós o mantendes
Em ordem boa, e n'um sadio estado;
Vós lhe distribuis diário pasto,
E os ovos recolheis, que estão dispersos;
Uns, que ao nosso regalo se destinam.
Por diversa maneira preparados
Volver-se-hão de um manjar em mil manjares^;
E outros, d'eleita mãe sendo cobertos,
Com seu calor acordarão á vida.
Das que produz innumeras gallinhas
N'um, e n'outro paiz o mundo todo,
Podem juntar-se os géneros diversos:
Esta enfeita uma crista levantada.
Por grande aquella é vagarosa e frouxa ;
Uma em compridos pes se eleva altiva,
Outra com pés anões leve rasteja ;
Casta africana, aos europeus trazida,
Cobre de branca pelle os negros ossos;
Algumas ha de reluzente popa,
Outras em cujos pés fluctuam pennas:
Seu amarello, e azul, seu branco, e negro,
E as plumas crespas sua pátria indicam.
A frente das irmãs caminhe o gallo,
362 OBRAS BE BOCAGB
Seu esposo, e seu rei elle as governe;
Dez annos pode amal-as, e regel-as;
Para amar, e reinar elle ha nascido,
Que n'altivez, no amor não tem parceiro:
Tem na fronte real purpúrea crista ;
Os negros olhos seus scentelhas vibram ;
O corpo todo, e as azas lhe matiza,
Doura-lhe o collo esplendida plumagem
Que longa lhe fluctúa: tem por armas
Sanguentos esporões nos pés nervosos;
E ondeando a cauda se lhe alonga, e curva
Té chegar a assombrar-lhe a fronte altiva.
Dos gregos, e romanos venerado.
Já foi o gallo interprete dos deuses;
Julgavam-no inspirado, e os agoureiros
Por elle os fados, e o futuro abriam:
Povo, e senado em vão deliberavam.
Mudava o gallo as leis, fixava os fados.
Omitiindo-lhe as néscias honrarias,
O seu préstimo canto: quando a aurora.
As primicias do dia conduzindo.
Alveja por montanha, e povoado,
D'este herauto do sol a voz se escuta; .
Elle o chama, o saúda, o annuncia;
Que a noute em meio vae, cantando, indica;
Designa por seu canto o seu progresso;
Marca as horas do somno; determina
O trabalho, o repouso, e a nova lida;
POEMAS DIDACTlCOy TRADUZIDOS 363
E ó do tempo fugaz vivo compasso :
Com activa ternura vigilante
Defende o povo, que feliz domina;
Qual compassivo rei, qual terno esposo,
As suas precisões vigia; e ama
OfF'recer-lhe alguns grãos, na terra occultos,
Com pé escrutador por eile achados.
O dominio de um gallo se limite;
Seu ardor se reprima; e os seus desejos
Quinze esposas, não mais, contentem, matem:
Em seu reino ha também facções, e intrigas;
O amor, e a ambição, o império, e Helena
Dous soberbos rivaes á guerra incitam;
São eguaes no furor, e eguaes no esforço;
Erguidos sobre os pés, batendo as azas,
Encontram-se, e do choque ambos vacillam:
Cos bicos, e esporões se dilaceram;
Já voam pennas, e já corre o sangue:
Em fim, do seu rival forçando a audácia,
O aterra o vencedor, e em cima salta:
As azas despregando então se applaude,
E, altivo celebrando o seu triumpho,
Victorioso canto aos céos levanta;
Chama com repetidos cacarejos
Esposas, que brigando conquistara,
E as duas rêgo em paz subjeitas cortes:
O outro, que o seu esforço, e amor traíram,
Seu usurpado império abandonando,
364 OBRAS DE BOCAGE
Irado foge do rival odioso^
E vae longe esconder vergonha, e raiva.
Com sedições ás vezes, e discórdias
Dividem-se estes povos ; e os seus chefes,
Dando-lhe exemplo, sua audácia animam:
Acudi, dae por gestos o ameaço,
Vereis logo ceder com vosso aspecto
Ao respeito o furor, e á paz a guerra.
Assim quando entre nós súbito arrojo
Subleva furioso o vulgo insano.
Que já tudo respira horror, tumulto,
E armas volve o furor quanto se apanha;
Se, por gráo, por virtudes respeitado.
Um homem venerando se apresenta,
Cala-se a multidão, todos o escutam,
E elle com seus discursos vencedores
Os génios doma, os corações captiva.
Para evitar-lhe as guerras, seja morto
O chefe, que conduz os revoltosos,
E voltêa as fileiras, incitando
Com seu clamor o timido rebanho:
D'est'arte ficarão em paz durável,
E as gallinhas por premio a teu desvelo
Cada dia darão tributos novos.
Exceptua-se o tempo annual da muda
Em que se vestem de plumagem nova:
Benôvo occulto, que a nascer se apresta,
Os canos faz cahir da velha pluma;
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 365
Nasce, e nas cores quasi sempre imita
Pennas, que substitue; porém ás vezes
D'esta sua continua similhança
Cança-se^ e altera as leis a Natureza:
O Índio pardal tem azas azuladas,
E surge d'aurea pluma revestido:
Assim também no gallo, e na gallinha
DifFere do primeiro o novo adoriio,
E tal, que antes da muda era argentada^
Se faz desconhecer com plumas negras.
A Natureza o astuto americano
Colhe seofredos, e a belleza au cimenta
Pondo mais variedade em seus encantos:
Quando está prestes a fazer a muda
O habitador aéreo, que repete
Tudo o que nós dizemos, felizmente
Usurpando o direito á Natureza
Seu dono, que o previne, a seu bom grado
Lhe imprime as cores, que elegeu mais bellai.
Co'a muda enfraquecendo se entristecem
As aves espantadas, e inquietas;
E, em lhe formar as plumas empregado,
Seu alento, e vigor mais nada pode;
Todos calam seus mélicos gorgeios;
Não canta o rouxinol, e o papagaio
Torna-se mudo; estéril a gallinha
Não preenche os desejos de seu dono
Com seus diários dons: presume o vulgo
366 OBRAS DE BOCAGE
(Jue este mal Tem do frio; mas o inverno
E d'elle o tempo fixo, e não é causa;
Em vão, para curar-lhe nm mal sem cura,
Se lhe melhora, e se lhe aquece o pasto,
Que, interrompendo o tio á poedura,
A muda torna vão qualquer soccorro:
Prevenindo, e forçando a Natureza,
Quem mais cedo souber tirar-lhe as pennas
Os seus dons gosará nas quadras todas.
Os Aquilões do Zephyro á bafagem
Já da terra, e do ar o império deixam ;
Seu hálito prolifico, e sereno
Influe de novo pelo mundo a vida:
Renovam-se as canções das meigas aves,
Que, ledas de aguardar vindoura prole,
Suspensos ninhos a formar começam:
Dados a este emprego abutres, e águias
São já menos cruéis ; de amor o fogo
Vae os peixes queimar no centro d'agua ;
E de Cancro no ardor leões, e tigres
Com seus rugidos Africa apavoram:
Em ares, agua, e terra Amor triumpha,
Tudo de novos cidadãos povoa;
E, assim como elles no verdor da infância.
Formam plantas, e flores, inda tenras,
Leitosos suecos para raças novas.
N'este tempo também cacarejando
Roubados ovos seus pede a gallinha,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 367
E aspira de ser mãe ao doce emprego:
Não se acuda mui cedo aos seus desejos;
Exp'rimentem-se os ovo»^ e se escolham
Os de maior longura, e maior pezo.
Que são signaes de um germe venturoso;
E a sua pequenez, sua leveza
Indicam frouxidão, denotam vicio;
São fructo inútil, miseros abortos
Ou de mui nova mãe, ou já mui velha.
Ás boas mães são poucas; não se attenda
Seu vão cacarejar, e não se empreguem
No dever maternal as que, inda moças,
Talvez lhes custaria a sujei tar-se:
E vária, é inconstante a mocidade;
Precisa ter dous annos a gallinha
Para tomar os maternaes cuidados;
E também se não deite em sendo velha,
Que amor a illude, e em seu gelado seio
Morreu todo o calor: deve escolher-se
A de madura edade; mas não tenha
Os pés armados de esporão sanguineo,
Que rompe antes de tempo a casca do ovo ;
E o embrião, á luz, e ao ar exposto.
Nem um, nem outro supportar podendo,
Onde acharia vida, encontra morte.
Quando, dispondo prevenida o ninho,
Com musgo, e flores amollece a cama.
Aguarda- vos a mãe, podeis confiar-lhe
368 OBRAS DE BOCAGE
Quantos ovos com peito, e azas cubra:
Porém tende-lhe sempre ao lado promptas
Comida em abundância, agua bem limpa;
Que, se isto não tiver, fraca, e esfaimada.
Para o pasto buscar, o ninho deixa;
E ás vezes, esquecendo o amor materno,
Abandona-o de todo, e esp'ranças balda.
Por sete-vezes-tres inteiros dias
A ninhada dos ovos animando
Com vivifico fogo, e sempre assidua,
Espera que formado o pintainho
Do seu encerramento a casca rompa;
E, com feliz instincto em todo o choco
Aos ovos todos o logar mudando.
Uma quentura «egual reparte a todos.
Em quanto avançam lentamente á vida,
Da Natureza admirem-se os segredos.
Como apegado aos cachos o bagulho.
Assim, dourado globo, nasce o ovo
Da galhnha nas costas suspendido;
Madurece, desliga-se, e no ovário
Corre de rosca em rosca, até que o envolve
Casca formada de húmida substancia:
Do gallo em tanto se lhe ajunta o germe,
E da fecundidade o dom lhe leva:
O calor que o excita apenas sente.
Parece que um ponto vivo; já palpita.
Já bate o caração; sáe de uma vêa.
POEMAS DIDÁCTICOS TRAI^UZIDOS 369
Que voga no liqiior, sanguínea gota
Que para elle corre, e o enche; e logo
Duas de redor d'elle informes massas
Da cabeça, e do busto o espaço occupam;
Formam-se em pouco tempo as partes todas;
Arredonda-se o cérebro; as meduUas
Pelos OSSOS' se alongam; corre em ondas
O sangue nas artérias; sob o ardente
Estômago se enlaçam as entranhas ;
Músculos cobre a pelle, e a pelle o pello.
Dá primeiro alimento ao pintainho
A leitosa substancia, a clara do ovo;
Quando está já mais forte, a gema o nutre ;
Do ar, que dentro no ovo se renova,
O vital movimento se duplica:
Então por elle penetrado o ovo
Diminue e transpira; e então com elle
íío cárcere a avesinha vive, e cresce :
Eil-a por baixo d'aza avança o bico,
E fere, e rompe os muros que a cingiam;
Gira sobre si mesma, e em seu caminho
A fenda no ovo em circulo prolonga;
Ergue a abobada emfim, e surge ao dia;
De cabeça emproada eil-a caminha;
Piando se annuncia, o bico exerce;
E, só por instrucção da natureza.
Logo o sustento seu procura, e toma.
O industrioso egjpcio ousou primeiro,
24
370 OBEAS DE BOCAGE
Por um segredo felizmente achado,
Vivificar os ovos sem gallinha:
Do fogo soube achar o gráo preciso,
E, seu calor, com arte dirigido.
Ao materno calor equivalendo,
Immensa multidão de pintainhos
Toda a um tempo animada, e produzida.
Dos fornos de Bermé se ergueu á vida.
Mas não teve rivaes n'est'arte o Egypto,
Foi arte, antes mysterio, de que é elle
O só depositário em todo o mundo.
Com egualmente próspero successo
Em nossa edade a França viu c'roados
Do sábio Reaumur os exp'rimentos:
No abobadado lar, que o pão nos coze,
Elle o segredo achou, que esconde o Egypto:
Dentro em toneis, cercados pelo estrume
Que ajunta o lavrador para seus campos,
Os ovos ordenou á vida eleitos;
E este brando calor continuado,
D'egual temperatura o ar mantendo,
O gráo manteve do calor do ninho:
D'est'arte obteve innumeras ninhadas.
Vindas á luz sem mãe, sem mãe creadas.
Para as fazer nascer tudo conspira,
Mas não para as crear; é necessário
Que as tenras avesinhas, filhas d'arte.
Sejam na sua infância ás mães entregues:
POEMAS DIDÁCTICOS TKADUZIDOS 371
O ar, o frio, o calor enganam muito,
E melhor que nenhuma vigilância
Em suas precisões as mãos vigiam.
Por espaço de um mez um eôvo encerre
Os pintos e a gallinha: então liberta
Sáe, e conduz aos campos convisinhos
O alado bando, que ligeiro, experto,
Sollicito apoz d'ella vae correndo,
Com repetidos pios a circumda,
E debaixo das azas se lhe aquece:
Elles alternam brincos, e combates;
Chama-os a mãe, com elles so recrêa,
Busca, esgravata, e com ternura extrema,
Esquecida de si, reparte o achado:
Insaciável foi, e agora é sóbria;
Mãe carinhosa a tenra prole abriga.
E, sendo fugitiva, e temerosa.
Já com intrepidez affronta os pVigos.
Se pelo alto dos aços voando observa
Ave espantosa, preces a arrojar-se
Sobre ella, e sobre o seu rebanho amado,
Segue-a co'a vista, ergue um clamor piedoso,
E offrece aos filhos por abrigo as azas:
Escondidos ali, desapparecem,
Ella se expõe somente, e d 'ira acceza,
Inquieta, terrivel, furiosa.
Com um brado feroz atiôa os ares:
Revoa íi prumo seu, o sobe, e desce,
372 OBKAS DE BOCAGE
E foge em fim o abutre, que illudira
Seu grito ameaçador; então alegre
Solta jucundo canto, a prole surge,
E a cerca, e enche das caricias suas.
Vós, que regeis este volátil gado,
Precisões preveni-lhe, e soccorrei-o:
Aquella ave, sem pasto, desflillece;
A lingua tern espessa; e branca, e dura
Uma pelle lh'a envolve, e se lhe estende,
E cerca-lhe o padar; não percaes tempo.
Funesta pode ser qualquer demora;
Logo co'os dedos arrancae-lhe a pelle
Pela raiz, que á lingua tem pegada.
Quando já seus desvelos não carecem
Deixa a gallinha, e desconhece os pintos;
Mas ás vezes sem tempo os abandona,
E a orphã multidão concorre, e pia:
De mãe pode o capão em vez servir-lhe;
Mas, antes de exercer tal ministério.
Alguns dias com elles encerrado
Se acéstume a prestar-lhe os seus desvelos:
Prestes então vae educando, e guia
O bando todo a seu dominio entregue:
Arroga de gallinha o jus, o afago,
E até a imita nas femineas vozes;
Aio fiel que, em sendo tempo, ajunta
Ao povo seu sua familia nova.
Uns para a meza criam-se do parte,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 373
Vivem fechados, priva m-se do sexo;
E, sem limite saciando a fome,
Engordam, e engordar lhes custa a vida:
Outros, menos tractados e mais livres.
Vivem com egualdade entre o seu povo,
E a enoher-vos de seus dons consagram todos
Todos os dias de uma vida escassa.
Ha outras varias aves, que reúnem
Utilidade ao numero, e belleza:
Multiplique-se a raça, que das índias
ífos trouxeram d'Ignacio os companheiros;
Esta raça é altiva, e desdenhosa.
Afagos ao peru mal-soffre a fêmea;
Terno e soberbo amante junto d'ella
A aza lhe arrasta em vão, a cauda ostenta,
Erriça as plumas, todo se intumece,
E em seus grasnidos seu amor lhe exprime;
Orgulhoso debalde o rubro monco
Da cabeça inda além do bico estende;
Que a perua, indiffVente a seus transportes,
Marcha, sem contemplar o seu amante.
Débil na infância, esta ave delicada
Exige a mais attenta vigilância;
De bico aberto n'um clamor continuo
Morre de fome se lE'a não saciam:
A gema do ovo, e a renascente ortiga
Na sua meninice é seu sustento;
374 OBRAS DE KOCAGE
Mas, co'a idade enrijando, excede em força,
E as outras aves na grandeza excede.
Vejo bambolear-se a passos lentos
Ruidoso pato, e ganso vigilante;
Estas aves são úteis, são precisas;
Mhs sua turba aquática esmorece
Se não tem ou nascente, ou lago, ou tanque
Aonde ledamente concorrendo
Se alimentam, mergulhara, nadam, folgam.
A sua espécie rara vez se fiem
Ovos, que á producção se destinaram,
Que ás vezes sua penna húmida, ou fria.
Ou o germe destróe, ou mata o feto:
Bntregae-os á provida gallinha,
Com seu calor ella os fará fecundos,
E ufana guiará o bando extranho
Das tenras aves, que seus filhos julga:
Porém, mal que um regato se lhe off'rece,
Eil-os lhe fogem; ella se encaminha
A's margens, que a largar se não resolve,
E parece querer precipita r-se;
Avança, corre, geme, afflicta os chama,
E volta emfim sosinha, e maofoada.
Dae á turba famélica bom pasto,
E depressa, alimento delicado,
Vel-os-heis adornar a meza vossa.
O que salvou, grasaando, o Capitólio
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 375
Junto ás casas vigia, e nunca foge,
E dá do seio seu, das azas suas
Aos leitos o frouxel, á dextra a pluma.
A gallinha africana, mais formosa.
Dá mais gentil adorno aos vossos lares,
Do quaeste amphibio povo; delicado
Teme dos gelos o rigor, e sobiia
•Para seu alimento o grão lhe basta:
Não pode arte imitar a graça, a ordem
Das graves cores, que lhe deu Natura;
E, quanto mais os olhos as contem.plam,
Mais pasmo causa a symetria d'el]as.
Rico serieis de plumagem rara
Domesticando os cysnes argentados;
Porém mesquinha habitação desdenha
Dos prados do Asio, e do Caystro a prole;
Ama em jardins reaes as aguas puras.
Onde ligeira, revoando, folga,
Ou repousa acolhida na abrigada
Sobre as ondas a custo edificada.
Quando do cysne a morte se avisinha
Não espereis, como se conta, ouvir-lhe
Meigo canto dulcisono, e saudoso.
Que tanto gaba erradamente o vulgo;
É desfave gentil odioso o canto;
Mas seu nobre, e engraçado movimento,
Sua esplendida alvura agrada, encanta:
376 OBKAS DE BOCAGE
Grrecia fingiu que em ejsne transformado
Foi Júpiter de Leda namorado.
O phaisão é feroz por natureza^
Maí é bello, e na sua mocidade
Por algum tempo a escravidão supporta;
Porém logo, a clausura aborrecendo,
Com fugitivas azas corta os campos,
E vae buscar o prado, a fonte, os bosques.-
O pavão, mais domestico e constante,
A vossa habitação não deixa nunca:
Em sitio que elle ignore a fêmea sua
Esconde os ovos, que chocar pretende:
Debalde elle se mostra magoado
Se acaso a vae achar; em vão co'as azas
Lhe faz caricias, e a belleza ostenta;
Estando ella presente é tudo afago,
Porém apenas ella se desvia.
Nos filhos seus o seu desdém castio^a.
Da creação o tempo exceptuando.
Em que lhe foge esquiva, arde por elle
Com todo o fogo que a tertiura accende;
Se elle morre, ella vive amargurada.
Definha de afflicção, de amor se mirra.
Das outras aves o pavão cercado,
Como se fora só, só elle admira;
Mostra em pescoço azul dourada testa;
Brilhantes como as flores, como os astros^
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 377
Ostenta os olhos da orgulhosa cauda;
E o diurno clarão lhe augmenta, e muda
O pomposo espectáculo attractivo
Das plumas, c'o reflexo embellecidas.
Não ama o caçador caseiras aves,
Congrega, e nutre as aves carniceiras,
Aves ao sangue, á morte acostumadas,
Que, seus próprios irmãos assassinando,
Contentam os desejos de seu dono
Com fera garra adunca, e mercenária.
O rápido falcão, o gerifalte
A quem os ensinou, se a colhem, trazem
Ave, que timorata vae fugindo:
Nas florestas deixae-lhe a raça odiosa,
Sempre tinta de sangue, e sempre horrivel;
Gaviães, esmerilhões, trecos, açores,
O cruel avestruz, a águia soberba.
Não prendaes em viveiro, nem gaiola
Avesinhas volúveis, e amorosas;
CanarioSj^ chamarizes, tutinegras,
E o suave cantor da primavera:
Estas aves captivas emudecem,
E livres pelos bosques divagando
Deleitam, sonorosas gorgeando.
Tenho em vossas herdades reunido
Ao jugo de uma lei diversas aves :
D'indole diíFrente a leve pomba
Quer viver livre, a liberdade a encanta;
378 OBKAS DE BOCAGJS
Mas casta, que tractada com desvelo
Chega a òsquecer os paternaes costumes,
Sujeita-se a perpetuo captiveiro;
Suas famílias para sempre escravas
Amara suas prisões, pousadas suas:
Quando se lhe abrem, de redor esperam
Que se lhes distribua o pasto usado;
E quando a fome se lhes não sacia,
A morte aíFrontam por cuidar na vida.
Outras, dando-se ás leis de um dócil trato,
O voo alargam como as pombas bravas;
Voluntárias captivas, por escolha
O jugo acceitam, que lhes mais agrada:
Torre, onde luza o resplendor da aurora.
Domine os campos, e a mansão lhe indique;
Seja aceiada, lúcida, espaçosa,
Brilhante assim como eUas, que mil vezes
Fugazes, maa fieis ali revoam.
Prestes chamae os cidadãos mancebos,
Que devem povoar este alto muro:
Raça normanda, as pombas argentadas
Com pés plumosos, cor de rosa o bico
Às de pluma azulada a gloria empatam
De embeliecer o preparado asylo:
De unidas castas á mixtão brilhante
Juntae colónias d'estrangeiros cHmas,
Que em génio, em côr os hospedes diffrentes
Dão prole, que os simelha em côr, em génio.
POEMA.S DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 379
Costumados um mez a viver juntos,
Reunidos presos no fechado asylo,
Já certos d'elle, e por amor ligados,
Alternativamente ou saem, ou entram;
Nos campos de redor ligeiros voam,
E 08 grãos escolhem do torrão mais fértil.
Mas, quando o inverno esterilisa os campos,
E quando, renascente a primavera,
De flores, e verdura embellecida,
Reveste a Natureza um luxo inútil
De Idalia ás aves; de manliã, e á tarde
Em copia a seu asylo os grãos se levem :
Mais facilmente do que as outras aves
A quem lhes lança o grão concorrem pombos;
Desconfianças não tem, para ajuntal-os
Basta a hora, um signal, um grito basta.
Quanto mais farta for vossa conquista
Mais vasto povo habitará seus muros;
Mais fecunda se faz d'est'arte a pomba:
x^Lquella que, sem ter assíduo pasto,
Pelos campos voeja em liberdade,
Interrompe no inverno a poedura;
Se ás vossas leis em captiveiro engorda,
Dous gémeos cada mez produz seu ninho:
Cuidoso de a ali ter, chegado o tempo
De o seu logar supprir, roçando-lhe a aza
A adverte, a sollicita seu esposo;
Companheiro fiel em seus desvelos
380 OBRAS DE BOCAGE
Alternativamente aquece os ovos,
De um mutuo a^nor penhores preciosos :
EUa torna outra vez ao ninho amado;
EUe voa, e viaja, e volve, e parte
Com sua companheira os grãos, que trouxe;
Mas é breve esta edade venturosa,
Seu brando natural (quem tal pensara !)
Não poucas vezes bárbaro se torna.
Aos quatro annos as pombas são estéreis,
E vexam por ciúme a casta sua:
Ha quem, sem distincção, tyranno exerce
Oruel matança no volátil povo;
Sede mais brando, e com regrados golpes
A velhice extirpae de cada espécie.
As vezes, apesar de mil desvelos,
Ha desertores cidadões ingratos,
Que não bas,ta o costume, o amor, o exemplo
Para contel-os no seu pátrio ninho;
Kompem os laços sociaes, preferem
A liberdade, os bosques: este habita
N'um concavo rochedo, ou tronco antigo:
í]st'outro onde o provoca o seu instincto.
O aceio prende á casa os moradores;
Se o desprezaes no outomno e primavera,
E se, inda mais a miúdo, da immundicie
Não livraes este povo, que murmura,
A immunda habitação presto abandona:
Aquelles vis montões d'impuras fezes
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 381
São de uma preciosa utilidade,
Fortes estrumes são, que alentam, nutrem
Os fructos ao jardim, verdura aos prados:
Com elles a seara é mais fecunda,
Mais generoso o vinho; mas o excesso
Por seu muito vigor os faz nocivos;
E, se usados em conta não reforçam,
Seu fogo abraza o campo, a vinha, os prados.
Off''rece-nos o céo n'esta ave pura
Molde em costumes, da virtude a imagem;
Só ella tem, ingénua e sociável,
Leis immutaveis, e communs penates;
Vive o seu povo sem tyrannos; nunca
Sua paz e innocencia os crimes mancham;
Ê, na^sua republica, a concórdia
Conduz os cidadãos, e os une, e anima:
Juntos ou no trabalho, ou no repouso,
Quando o sol vem das ondas resurgindo,
Qual densa nuvem, a campina assombram,
E de Vénus a estrella os volve ao ninho;
Arrulam docemente, e á torre voam;
Entram, e logo, antes que morra o dia,
Cada qual em silencio immovel fica,
Cançados gosam de tranquillo somno.
Amo ver seus desejos innocentes.
Ternos gemidos, vividos prazeres:
Os biquinhos unindo, longamente
382 OBKAS DE BOCAGE
Com reciproco afago arrulam juntos,
E hymeneu^ que os prendeu, conserva sempre
Terno o seu coração, casto o seu ninho;
Vaga pomba torquaz, e a rola imita
No desviado bosque as mansas pombas.
Os homens com proveito exp'rimentaram
Seu voo obediente em ida e volta :
Arte avezou-as a levar nas azas
Fiel mensagem de um logar ao outro;
Muitas vezes serVindo a Amor, e muitas
Soccorro annunciando a oppressos muros.
Dando socego, e espVança á consternada
Terna amisade, que gemia ausente:
Alexandretta, Alep, e Lesbos sabem
Dar-lhe este ensino, e regular seus voos.
Parte este ágil correio ao sol nascente,
E volve antes que a luz na sombra expire;
A falsidade, o engano tem ousado
Domal-a, e dar-lhe empregos criminosos;
Guiada pelo vicio a singeleza
Fez-lhe serviços, sem convir com elle. ,
Acreditou a edade fabulosa
Que, a Amor fiel, em Paphos e Cythera
Seguia a sua corte, e lá no Olympo,
Pelos gregos aos numes consagrada,
D'esta ave, a mais pudica, adeusa é Vénus:
Muitas vezes de Meca o vão propheta
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 382
Usou como impostor mensagens suas;
Creu-se que a seus ouvidos revelava,
Interprete do céo, mysterios d'elle.
Feliz ,quem d'innocentes passatempos,
De tranquillos prazeres satisfeito,
Do seu casal co'as aves entretido
Sua formosa cor, seus dons contempla!
Qual dos jardins o espectador assiduo
Sempre acha novo seu jucundo esmalte.
Cada dia indagando as varias cores
Das que elle desposou diversas flores;
D'est'arte, e mais feliz vereis das aves
A plumagem brilhante, os novos trajos:
As cores no jardim perdem-se, e murcham,
Nas aves, augmentando, aíformoseam.
Busca-se em vão nos hospedes aéreos,
Que as florestas, o rio, o mar povoam,
Aquella cor de azul, de prata, e de ouro
Com que em vossos casaes as bellas aves
Tão pródiga adornou a Natureza:
Separae cada espécie, e, assim distinctas,
Achareis o prazer na variedade;
Sem escolha, e sem ordem sendo unidas
Familias degeneram, raças morrem:
Sobre isto viHae, fazei a escolha
Das castas, em que Amor o gosto approva.
Sensivel a gallinha á formosura
Da ave de Gólchos, seu ardor lhe é grato,
384 OBRAS DE BOCAGE
E as patas juntamente o afago attendem
A sua própria espécie, e ao gallo ardente.
Felizes se esta união vos amostrasse
Um segredo, que os sábios inda ignoram !
Da existência animal qual dos esposos
Contém no seio o creador principio,
Ou se ambos juntos de vindoura prole
Por ditoso concurso o ser produzem.
Os diversos systemas n'este cabos
Escassa luz tem reflectido apenas :
Por lei constante as aves assim elbam
A seus páes em plumage, em cor, e em gesto;
E a que nasceu de géneros distincfcos
Tem um mixto, que de ambos degenera,
Mas siraelha com ambos: assim vemos
Da égoa e do animal longui-orelliudo
A prole, que ao serviço é tão prestante;
Une alteradas ambas as espécies.
Uma nem outra é, tem visos de ambas.
Cada espécie animal por vario modo
Se reproduz: caricias desdenhando
O fofi^oso mnete, o ceo^o touro
Se arremessam a unir-se á sua amada;
Com gemidos, com beijos, com suspiros
Alonga o seu prazer a terna rola:
O peixe sem unir-se, segue, anima.
Fecunda os ovos, que depôz nas aguas
A fêmea sua: em seu palácio occulta
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 385
Produz a abelha a multidão sonora,
Que em continuo trabalho a vida emprega,
E os zangãos, turba vil, e preguiçosa,
Que fazem sua corte á mestra-abelha :
O pulgão, ruinoso ao tronco e aos fructos,
É de si próprio amante, e reproduz-se:
Sobrevivendo a golpes, e mais golpes
B,epara-se o polypo de seus damnos;
Pelos fragmentos seus reparte a vida,
E um novo, em cada um, polypo brota!
Tal se não viu em Lerna a hydra horrenda,
Cujas cortadas testas renasciam;
Dá menos pasmo o monstro fabuloso
Que este verme nas aguas escondido !
Egual, e variada em seus productos,
E contraria a si mesmo, em toda a parte
Para nós é mysterio a Natureza!
Indágo-a, em vão: brilha-me um raio, e logo
Outro mais vivo m'o destróe ! Debalde
Ligar quero as cadêas de um systema;
Que ellas, como Frothêo, a cada instante
Diíferem de si mesmas! Deslumbrado
Por um clarão facticio me suspendo,
E tudo volve á antiga obscuridade !
Tal de noute o relâmpago medonho.
Rasgando o seio ás nuvens, se arremessa.
Dos objectos a imagem nos descobre,
25.
386 OBRAS DE BOCAGE
Vôa, brilha, e se esváe sulcando os ares;
E a noute, inda mais negra, esconde o mundo-
Com arte corrigindo a Natureza,
Eu aos homens em versos ensinava
Das terras o lavor, no tempo em quanto
Luiz, o rei melhor, e o mais excelso,
De seus feitos co'a fama enchia o mundo;
Em quanto a Itália e Flandres soçobradas,
Viam tudo ceder ás armas suas;
E caro ao povo seu, e aos seus alliados,
D'inimigos terror, do mundo assombro,
De seus trophéos o fructo repartindo
Sós para si guardava amor, e gloria.
Eu, quando a meu "sabor gastando o tempo-
Pude esquivar judiciaes querelas,
E o popular bulicio, demandava
Asylo aos campos de paterna herança:
Ali não vinha o orgulho da grandeza.
Nem vinha dos prazeres o tumulto
Meu coração turbar, nem meu repouso;
Vivia só commigo, e sem cuidados
A vida consagrava ao grato estudo;
Amei rebanhos, arvores, campinas,
E á borda dos regatos cristalinos,
E á sombra das florestas retirado,
Em solidão obscura, mas tranquilla,
Juntamente quiz ser poeta, e sábio.
NOTAS
PRIMEIRO CANTO
(Pag, 211, vers. 8)
Criam forças em mim Luiz, e a pátria.
Luiz XV, rei de França.
(Pag. 214, vers, 12)
Ao barro, ao tufo, aos matagaes, e etrêas.
O tufo é uma espécie de terra branca e secca; e é
também uma pedra esbranqueada e esponjosa.
(Pag. 215, vers, 14)
^ Em qualquer terra o trigo sarraceno
* Eleva os negros grãos na densa espiga.
Estes dous versos escaparam a Bocage ao correr da
traducção.
(Ihid,, vers, 18)
O indiano maiz
O maiz é outra espécie de trigo.
388 OBRAS DE BOCAGE
(Pag. 216, vers. 6)
Dos campos de Babel, esses outr'hora.
Tem -se por certo que os descendentes de Sem, e não
os egypcios, fizeram as primeiras observações astronó-
micas.
(Ibid., vers. 18)
O chefe das ovellias o é dos signos.
O Carneiro \ porque é o signo do mez de Março, que
os antigos contavam por primeiro do anno.
(Ihid,, vers, 14)
O Touro logo, e depois d'elle os Gémeos.
O Touro é o signo do mez de Abril, e os G-emeòs do
de Maio.
(Ihid.j vers, 16)
Nos trópicos o Cancro, e Capricórnio.
O Cancro é o signo do mez de Junho, no fim do qual
se faz o solsticio do veráo \ Capricórnio é o de Dezembro,
e também no fim d'este se faz o solsticio hyberno.
(Ihid., vers. 18)
Dias e noutes a Balança eguala.
No mez de Septembro, cujo signo é a Balança.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 389
(Ihid.j ver 8. 19)
Das ceifas o sígnal compete á Virgem.
Astréa, que é o signo do mez de Agosto.
(Pag. 217, vers, 13)
Se o negro Escorpião viu tua aurora.
Signo do mez de Outubro.
(Ihid., vers. 21)
Por artes da impostora astrologia.
Os abusos astrológicos chegaram, não só a induzir a
crença de que certos planetas, e a sua conjuncção de tal
ou tal modo, eram felizes, ou desgraçados; e que os ecli-
pses e cometas annunciavam grandes desastres ; se não
até que a nossa vontade era regulada pela influencia dos
astros.
(Pag. 219, vers. 16)
Já no etbéreo Carneiro o Sol tocando
Lhe desvanece a luz
Por que entrar o sol em um signo, vem a ser passar-
lhe por baixo ; e então nol-o escurece.
(Pag. 221, vers. 4)
E cruza os sulcos teus por novos sulcos.
Este preceito só tem logar nas terras fortes, e nunc»
nas que forem húmidas, ou delgadas.
390 OBRAS DE BOCAGE
(Pag, 222, vers. 1)
- O margO; de que usaram n'outras eras
Nossos priscos avós, etc.
O margo é uma espécie de barro branco ou terra fér-
til, pingue e branda, que serve pára adubar as terras
áridas : — a castina é uma espécie de pedra ou terra es-
branqueada e' secca, própria para adubar as que sâo
fortes e húmidas ; assim como a cal é conveniente para
as que são delgadas, etc.
(Ihid.^ vers, 16)
Os mágicos mysterios exercia.
Foi um liberto, por nome Caio Furio Cresino.
(Pag, 223, vers, 9)
Outra fica vazia ; o sementeiro
Ha de espalhar, etc.
Machina para semear melhor, e com mais economia.
(Ibid,, vers, 12)
A herva parasita acolhe menos.
Chamam-se hervas, ou plantas parasitas aquellas que
vegetam sobí'e outras, e se nutrem da sua substancia.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 391
(Pag, 226, vers. 10)
Ha lavradores próvidos, que ajuntam
Agua com ciuza, etc.
Esta preparação faz-se por diversas maneiras, e tem
por objecto conhecer o grão melhor para a semeadura ;
mas não é infallivel.
(Pag. 228, vers. 20)
lenta carcoma
Pouco a pouco as substancias lhe anniquila.
Corrupção.
(Ihid., vers. 26)
Tendo por mestra a Natureza, um sábio, etc.
O auctor falia de Mr. Tillet, que sobre este assumpto
«screveu uma memoria, premiada pela Academia de Bor-
deauz.
(Pag. 230, vers. 18)
Extrair, ver, tocar ha pouco a flamma.
O fogo eléctrico : reiteradas experiências tem demons-v
trado ser elle o mesmo que o fogo elementar.
(Pag. 231, vers. 2)
Dos romanos cobrir, dourar as armas.
Refere-se ao que César deixou escripto nos seus Com-
mentarios — Eadem nocté quintce legionis pilorum cacu-
392 OBRAS DE BOCAGES
mina sua sponte arserunt. — « N'essa uoute se inflamma-
ram por si mesmas as pontas das lanças da quinta le-
gião.»
(Ihid., vers. 7)
obteve o nome
De Helena, Castor, Pollux ....
É o fogo a que nós chamamos Santelmo, e que os an-
tigos tinham por estrella : quando apparecia um só fas-
ciculo luminoso, chamavam-lhe Helena; e quando appa-
reciam dous, chamavam-lhe Castor e Pollux.
(Ibid., vers. 11)
Ao fiel conductor, que sem violência-.
Chama-se c conductor» um corpo, pelo qual a matéria
eléctrica se dirige, e se transmitte de um ponto a outra
sem se espalhar.
(Pag, 232, vers. 18)
Nem do seio os coriscos lhe rebentam.
■' No Egypto nunca ha trovoadas; e as poucas Vezes
que se lhe tolda o céo, apenas derrama um orvalho.
(Pag. 233, vers. 17)
Ao ferro alli succumbe a flava espiga.
Os egypcios semeam em Novembro, e fazem colheita
em Março.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 393
(Ibid.^ ver 8. 19)
Vivíssimos ardores
Esperae do Leão
Mez de Julho.
(Pag, 234, vers, 1)
De míseros que chusma (oh céos!) é esta?
Os rabiscadores, ou mais propriamente — respigado-
res.
(Pag. 236, vers. 11)
Encanto da existência^ origem d'ella,
Taes que, etc. ^
Todos os versos com asteriscos são accrescentados
por Bocage.
(Pag, 237, vers. 9)
O óleo também, que de um rochedo emana.
O auctor falia do óleo, que nasce de um rochedo, e
forma uma fonte, perto de Grabian, aldeia pouco distante
de Besiers, no Languedoc.
<jf*ag,238, vers. 5)
Esta, que Duhamel ha dado á França,
No seu Tractado da conservação dos grãos.
394 OBRAS DE BOCAGE
(Ibid.j vers. 8)
Mas quer ventilador, que o ar lhe innove.
Machina para dar novo ar aos logares fechado».
(Pag. 240, vers. 20)
Vede de Fontenoi, vede nos campos.
A batalha de Fontenoi foi ganhada pelo marechal
conde de Saxe em 1745.
SEGUNDO OANTO
(Pag. 244y vers, 18)
O mundo consolou do equoreo estrago.
Isto diz, porque (segundo a opinião mais recebida) o
fabrico do vinho só foi conhecido depois do diluvio.
(Ibid.f vers. 24)
Arménia te gostou, néctar eo sueco.
Primeiro na Arménia, porque alli viveu Noé depois
do diluvio.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 395
(Pag. 245, vers. 6)
O Arecómico Volco em nossos climas.
VolcoB Arecoraicos se chamavam os povos do baixo
Languedoc •, assim como os do alto Languedoc se cbama-
Tam Volcos Tectosagos.
(Ihid., vers. 11)
O celta,
Os bosques arrancando, acolhe as vides.
Porque Domiciano lhe havia prohibido a plantação
das vinhas, e Probo lh'a concedeu.
(Ihid.y vers. 21)
Sobre arêa africana escadeas torram.
Escadeas propriamente são esgalhos, ou raminhos do
cacho de uvas ; mas aqui tomam-se pelos mesmos cachos.
(Pag. 247, vers. 25)
Lá quando o turvo Aquário em nossos climas.
Em Janeiro.
(Pag. 253, vers. 3)
Já nutrimento de abundoso estrume.
Os estrumes augmentam o vigor, e a producção das
vinhas ; porém de ordinário alteram-lhe a qualidade.
396 OBKAS DE BOCAGE
(Ibid.y ver 8, 10)
Pernicioso insecto eis sáe da terra,
O escaravelho.
(Pag. 255, vers. 18)
De invencível cadeia os opprimiam.
Os gallos cisalpinos sâo tidos por inventores dos to-
neis.
(Pag, 257, vers. 17)
E a todo o cheiro ínaccessivel seja.
Porque todos os maus cheiros alteram o vinho.
(Pag. 258, vers. 16)
Abona vezes cento a força e vida.
O uso do vinagre, proveitoso nos exércitos, é conhe-
cido não só desde os tempos primitivos da republica ro-
mana, senão que também o foi pelos carthaginezes, 6 já
pelos gregos.
(Ihid.j vers. 20)
Arte assombrosa, que o divide e apura.
A chimica.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 397
(Pag, 259, vers. 6)
Do vinho usa formar útil ferrugem,
E o verdete, ou azinhavre : ferrugem esverdeada, que
cria o cobre, e que é um veneno violento, mas de que sé
tiram algumas utilidades.
(Ihid., vers. 18)
ã
De insecto extranho tal peçonha os livra.
Diz -se que os hoUandezes misturam verdete nas ma-
térias resinosas com que rebocam os seus diques, e que
com a acrimonia do mesmo veneno matam uns insectos
americanos, que lhe arruinam o madeiramento,
(Ibid., vers. 22)
Louça verdura, que amenisa os serros.
O verdete é também de muita serventia para os pin-
tores.
(lUd.j vers. 26)
D'alli tirado
Se aprompta para mil necessidades.
E o tártaro, que entra em muitas composições medi-
cinaes.
(Pag. 261, vers. 14)
Tokay, teu digno contendor, te eguala.
O vTnho de Tokay é uma espécie de moscatel; acha-se
398 OBRAS DE BOCAGE
ouro nos serros que o produzem •, e em Vienna, no gabi-
nete de recreio do imperador, está uma cepa de Tokay,
que tem enrolado um fio de ouro nativo.
(Ibid.y vers. 24)
E o néctar vosso, oh Tenedos, oh Chio.
Foram, e sâo muito estimados os vinhos d'e3tas ilhas
do Archipelago ; porém os do promontório Arvisio, na
ilha de Chio, o eram com tanta especialidade, que lhe»
chamavam néctar : ouça-se Virgílio, na écloga V :
Ante focum, si frigus erit; si messis, in umbro
Vina novum fundam calathis Arvisia néctar.
« De inverno ao lume, e de verão á sombra
«Derramarei por copos espaçosos
«O novo, em vinea forma, Arvisio néctar.»
Ou. • . «O Arvisio vinho, que parece néctar.»
Digo por copos espaçosos, porque o calathis do texto
quer dizer em copos, ou cálices da feição de cestos —
pois que (( cestos» é propriamente a significação de cala-
thus,
(Pag. 262, vers. 2)
Dos cachos emanar liquor fragrante.
E o vinho chamado Lacryma,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 399
(Ibid., vers, 4)
Alta Musa
Das Camenas do Tejo honra, e saudade, 6tc.
Quem deixará de entender que Bocage falia aqui do
nosso immortal Camões, no seu admirável Adamastor?
Por certo hâo de entendel-o, e interiormente achar-lhe
razão, até aquelles que dizem — Que o episodio de Ada-
mastor^ entre os disparates de Luiz de Camões^ é o maior
disparate,
(Ibid., vers. 11)
O Occidental Jason, etc.
Entende-se o nosso Vasco da Gama: bella aparidade
de Bocage ; pois que Vasco da Gama foi o chefe da nossa
armada, para o descobrimento da índia, assim como Ja-
son a foi da náo Argus, para a conquista do Vellocino.
(Ibid.y vers. 17)
Próximo ás fontes d*onde corre o Sena.
De Borgonha, Champanha, etc. levaram os hoUande-
zes ao Cabo da Boa-Esperança cepas, que ali plantaram,
e que produzem um vinho muito estimado.
(Ibid.j vers. 22)
O cysne de Venusa aos céos erguia.
Horácio; pois que era natural de Venusa, antiga ci-
dade no reino de Nápoles.
400 OBRAS DE BOCAGE
(Pag, 263, vers. 12)
As perfumadas, as chinezas folhas.
O chá.
(Ihid.y vers. 13)
Dos grãos de Yemen a singular bebida.
O melhor café colhe -se em Yemen (Arábia -Feliz) e
d'ahi o transportam para a cidade de Moka, d'onde se lhe
dá impropriamente o nome.
(Ibid.j vers. 14)
O cacau negrejante, alimentoso.
Falia do cacáo como droga essencial no chocolate.
(Pag. 264, vers. 10)
* A mâe (ah ! já não mãe) lacera o filho.
Este verso, que na edição do terceiro volume não tem
asterisco, é, não obstante, accrescentado por Bocage, e
com toda a propriedade, pois que Penthêo foi despeda-
çado por sua mãe Agave, que Baccho enfurecera.
(Ibid., vers, 24)
Eschylo a cria, Sophocles a eleva.
^ Verdadeiramente o seu inventor foi Thespis ; mas
Eschylo é quem lhe deu magestade e energia : creou-a
por tanto. (Nota de Bocage).
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 401
(Pag. 265, vers. 14)
Sagrou-lhe sobre o mar Veneza um templo.
Falia da Veneza republica. (Nota dt Bocage,.)
(Pag. 267, vers. 6)
Jugo aos transportes, aos delírios termo.
Creio que este quadro de Veneza e os antecedentes,
pelas imagens e expressão, devem aprazer ao leitor,
(Nota de Bocage.)
TERCEIRO OANTO
(Pag. 268, vers. 4)
O vate Mantuano, o velho de Ascra.
Virgílio nasceu em Andes, aldeia perto de Mantua
(na Itália) e por isso é vulgarmente cognominado Man-
tuano. Hesiodo nasceu em Cumas (na Etolia), mas foi
«ducado em Ascra (na Beócia); e esta se tem por sua pá-
tria ; d'aqui o cognominaram Ascrêu, como o fez Virgílio
no livro segundo das suas Greorgicas ;
Ascrmumqut cano Romana per oppida carmen,
«Versos como os de Ascrêu em Roma canto.»
Isto diz Virgílio alludindo a um poema georgico com-
posto por Hesiodo, do qual (segundo a opiuiao ínais re-
26
402 OBRAS DE BOCAGE
•ebida) só nos chegaram fragmentos. O mesmo Virgílio^
sa sua écloga sexta, lhe chama — velho de Ascra.
Hos tihi dant calamus^ en acctpe, Musas,
Ascrcea quos ante seni,
«Recebe- a, dâo-te as Musas esta frauta,
«Que deram n'outro tempo ao velho de Ascra.»
(Ihid.y vers. 8)
O mais sábio dos reis, Deus, inspiraste.
Salomão : elle escreveu das arvores, desde o cedro até
ao hysopo ; isto é^ desde a maior até á menor. Esta obra
perdeu-se; mas é a que allude o auctor.
(Pag. 269, vers. 6)
Consultavam prophetico arvoredo.
Junto a Dodona (cidade da Chaonia no Epiro) havia
um bosque consagrado a Júpiter, e todo de carvalhos,
que se dizia prophetarem os oráculos d'aqu«lle numen-
(Ihid.j vers. 8)
Iam colher o agárico sagrado.
Agárico ou visco: planta parasita, ou excrescência
esponjosa, que nasce de inverno no tronco das arvores.
O do carvalho era tido pelos gallos como um poderoso
preservativo contra todos os males; e os supersticiosos
druidas ou bardos, o colhiam nos fins de Dezembro, sa-
crificando victimas humanas; depositavam-no em seus
altares, e o distribuíam ao povo no primeiro do anno.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 403
(Rid.j vers. 21)
O cedro se accendeu, na umbrosa estancia.
Os antigos, antes de conhecido o uso da cera, ser-
viam-se em logar d'ella das madeiras resinosas e odorí-
feras; especialmente do cedro. Sirva de prova o que diz
Virgilio, Eneid. lib. VII.
Próxima Circce raduntur littora terrce;
Dives inaccessos uhi solis filia lueos
Assiduo rosonat cantu^ tectis que siiperbis
TJrit odoratam nocturna in lumina cedrum,
A rguto ténues percurrens pectine telas.
«Junto ás terras de Circe as ondas corta;
«Onde a filha do Sol os Ínvios bosques
«Faz resoar com repetido canto,
«Opulenta em magnifico palácio
«Odorifero cedro a noute accende,
«E com sonoro pente as telas urde.))
(Pag. 270, vers. 11)
A floresta de Hercynia inda aos germanos.
A Floresta-negra (na Suabia), e a de Bohemia sâo
restos da floresta Hercynia, que se estendia por toda a
Germânia até á Pannoniia.
'(Ihid.jvers. 19).
O francea em seu clima reconhece
As antigas Ardennas, etc.
As florestas de Compicgnc, Couci, Fontaiuebleau,
404 OBRAS DE BOCAGE
etc. faziam parte da grande floresta das Ardennas (ao
longo do rio Mosa) onde os bardos ou druidas sacrifica-
vam.
(Pag. 271, vers. 20)
Seccam de languidez em campo extranho.
As arvores assim plantadas sâo sempre mais fracas
e menos duradouras: e espécies ba, que nunca medram
com este género de cultura,
(Vay. 272, vers. 16)
E o banquete cubriu dos sete sábios.
Os n'este numero contados foram: Thales, natural de
Mileto; Plttaco, de Mitiline; SoloUj de Atbenas; Cleo-
bulo, de Linde: Bias, de Priene; Cliilon, de Sparta ou
Lacedomonia-, Periandro^-de Corintho.
(Ibid.y vers, 18)
E o olmo, que em teu seio achaste, oh Grallia.
Espécie diversa de outra, originariamente produzida
na Itália.
(Pag., 273, vers. 13)
Dos vastos corpos seus liquor viscoso
Faz que, etc.
Todas as arvores resinosas conservam no inverno a
folha, excepto o larico: e creio que com esse fundamento
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 405
Bocage o excluiu da sua traducção, quando aliáa Rosset
o inclue n*este verso:
Le cedre, le cyprésy le mélesCy et le pin.
Do cedro só ha uma espécie conhecida, e é vulgar na
Arábia e no Egypto; na Europa, se usassem plantal-o,
produziria, como tem produzido em Paris e em Londres.
(Ibid., ver 8, 20)
Uns o pez, a resina outros derramam.
O pez os mansos, a resina os bravos.
(Ihid., vers. 21)
Sua terebenthina ostenta Chio.
Terebenthina ou tormentina: resina do terebintho.
(Tbid.y vers. 24)
Dos freixos de Calábria o pranto admira.
Manná, que distillam nos mezes de Junho e Julho.
(Ibid,, vers, 2ô)
Myrrha offVece aos sabéos humor, que encanta.
Ka Arábia- Feliz.
406 OBRAS DE BOCAGE
(Pag. 275, vers. 4)
Os gallos succeder viu a seus povos.
Foram os chamados gallos-cisalpinos.
(Ihid,, vers. 6)
E foi Roma em seus muros sepultada.
AUude á invasão de Brenno.
(Ibid., vers. 7)
Aos campos de Gallacia deram nome.
Provincia d'Asia-menor, povoada pelo terceiro exer-
cito gallo que entrou na Grécia.
(Ihid., vers. 8)
Por Apollo tremeu ao vel-os Delphos
Até alli chegou o segundo exercito gallo que entrou
na Grécia: mas foi destruido como o primeiro.
(Pag. 276, vers. 13)
A franceza estatura magestosa.
Porque os lapões, ou habitantes da Laponia (paiz ao
norte da Europa) têm, quando muito, quatro pés e meio
de altura.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 407
(Ihid., vers. 22)
E aveleira, e loureiro, e teixo, e myrto.
Bocage excluiu da traducção o arbusto2<(buxo» que o
original dá n'e8te verso :
La rose, le lilás, le buis, le coudier,
talyez porque julgou o vocábulo dissonante em metro.
(Pag. 277, vers. 5)
O azevinho, o alaterno prateado.
Também excluiu o iroesne do texto (que significa o al-
feneiro aliem ao) talvez por não repetir alfeneiro, e evi-
tar periphrasis : mas acrescentou o parenthesis — (E não
«ó estes.)
(Pag. 278, vers. 23)
* Koma a venceu, e dos vencidos povos
* Ignotas plantas admirou a Itália.
Também passaram a Bocage essoutros versos :
Home triompha d^elle, et des peuples vaincus
. Ultálie kdmira les arbes inconnus.
(Ibid., vers. 28)
Nos é delicia, aos persas é veneno.
AflSrma-se que os pêcegos, entre nós tâo deliciosos,
são tâo nocivos na Pérsia, que o seu veneno é mortal :
408 OBRAS DE BOCAGE
por isso o nosso immortal Camões (que soube quanto po-
dia saber-se no seu tempo) disse nos Lusíadas cant. IX,
estancia 58 : '
« O pomo, que da pátria Pérsia veiu,
« Melhor tornado no terreno alheio. »
(Pag, 219, vers. 1)
O damasco odorífero de Arménia.
O mesmo que dos pêcegos na Pérsia, se diz dos da-
mascos na Arménia, e querem alguns que também na
Piemonte.
(Ibid,, vers. 5)
Os fructos cultivou de Cerasonte.
Cidade na Cappadocia, que deu o seu nome ás cere-
jas, e d'onde Lucullo as levou a Roma; do que tál jac-
tância teve, que com ellas ornou o seu carro de triumpho,
quando venceu Mithridates.
(Ihid.f vers, 7)
E as maceiras, em Neustria tâo fecundas.
Agora se lhe chama Normandia '
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 409
(Pag. 280, vtrs, 21)
* Nos elegantes nós dè branda seda
* Prende co'as alvas mãos, inda mais brandas. .
Ponho asterisco n'estes dous versos, por seretoi ele-
gantissimamente paraphraseados d'este frouxo verso :
Captive ses cheveux que la soie entrelace,
(Pag. 283, vers. 5)
E da chuva, e do vento injurias tolhe.
E o que chamam enxertar de garfo.
(Ibid., vers. 10)
O enxerto, que lhe muda a natureza.
Chama- se — enxerto de borbulha.
(Ibid.f vers. 12)
Em figura de rolo ás vezes solta
Enxerto de annei.
(Pag. 288, vers. 8)
D*aquelles campos Hercules á Grécia
Foi o primeiro, etc.
Nâo se duvida ser Hercules que primeiro letoti á Gré-
cia a oliveira, e instituiu o uso de se coroarem d'ellíi o»
410 OBRAS DE BOCAGE
vencedores dos jogos olympicos \ é porém duvidoso o lo#
gar d*onde elle a levou.
(Ibid,^ vers. 15)
Que est 'arvore devia á deusa sua.
Minerva ou Palias.
(Ibid.j vers. 22)
D'onde a terra se abaixa, e desce ás ondas.
Sabe-se por experiência; mas a causa ignora-se.
(Pag. 289, vers. 16)
De um memorando inverno, oh pátria minha,
Refere-se ao -inverno de 1709, que destruiu todos os
olivaes no Languedoc, ou Occitania.
(Pag. 290, vers. 2)
O cânhamo, o pastel teu seio amimam.
Herva de tinturaria, espécie de lápis.
(Ibid.y vers. 10)
Uniram teus trabalhos os dous mares.
Falia do canal de communicação do Mediterrâneo com
o Oceano, feito no reinado de Luiz XIV.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 411
(Ihid.j vers. 23)
Os vencidos ergueu ao gráo de filhos.
Dando-lhes o direito de cidadãos romanos.
(Pag. 292j vers. 2)
A folha da amoreira, assim como elles.
Porque o bicho e a folha precisam o mesmo gráo do
calor.
(Ihid., vers. 11)
Indicador do tempo, ali o vidro, etc.
O thermometro.
(Pag. 295, vers. 20)
Presa ém seus laços, transformada em nympha,
Nympha, chrysalida, aureiia, ou fava, sâo os nomes
que se lhe dâo, quando encerrada no envoltório dos fios
de seda, em vésperas da sua metamorphose.
QUARTO CANTO
(Pag. 302, vers. 27)
Vâo de novo occupar a estancia antiga.
Todo este episodio diz relação ao celebre lago de Zir-
chnitzersée, que no mez de Junho começa a seccar-se, e
torna a começar a encher- em Setembro.
412 OBRAS DÊ BOCAGE
(Pag. 803, vers. 19)
Taes os prados, que ás ondas submettidos, etc.
As ondas snhmettidos, porque na Hollanda nâo é a ter-
ra sobranceira ao mar, fica o mar sobranceiro á terra.
(Pag. 304, vers. 4)
Surgem paizes, que tapava o lodo.
A sua grande obra da dessecação das aguas foi em-
prehendida pelos annos de 1180; antes d'isso a Hollanda
era um pântano.
(Ihid.j vers. 7)
Que a vez primeira então provou seus lum^.
Porque esta província (uma das Sete-Unidas) era
alagadiça, e só deixa de o ser pelos seus famosos dique».
(Pag. 306, vers. 5)
Quebra mugindo os diques, e os derruba.
Apezar de todas as cautelas, os diques sao ás vezes
forçados pela violência das aguas, que submergem cida-
des inteiras : as duas mais famosas innundações foram
as de 1532 e 1563. >
(Pag. 307, vers, 16)
O lirio roxo, o junco, etc.
Lirio roxo, ou espadana : glayeul diz o texto.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 413
(Ihid.^ vers. 21)
Da borrasca estridente o Isero ajunta.
Ha outro rio Isero, que nascendo nos confins do Tirol
e da Baviera, vae desembocar no Danúbio; este de que
se tracta nasce nos extremos do Piemonte e de Sabóia, e
desemboca no Rhodano. \ ^
(Pag. 308, vers. Ij ISS^
- E o Saona seus imptos aos d'ella. 3;^S S^32
No uianuscripto de Bocage achei Sequana; porém
aqui olvidou-se, bem como se olvidara de traduzir alguns
versos : porque Sequana é o nome latino do rio Sena, que
vae desembocar no Oceano; e o Saone, que dá o texto,
vae desaguar no RhodanO; e em latim é Arar e Soceona,
mas nao Sequana.
(Pag. 309, vers. 10)
Tal junto de Ilion o irado Xantho, etc.
Allude ao que diz Homero no canto XXI d a Iliada,
(Pag. 315, vers. 8)
Assim de Alcino a ilha povoavam.
Coreyra; ou Corfu, ilba no mar Jonio.
414 OBRAS DE BOCAGE
(Ibid.j vers. 14)
E os casnpos transferiu para as cidades.
Assim o diz Plínio o Naturalista : — Primus hoc insti-
tuit Athenis Epicurus, otii magisfer, usque ad eum maris
non fuerat in oppidis habiiari ritra : — « Epicuro, o mes-
tre do repouso, foi quem primeiro os ordenou em Athenas :
até aos eu tempo não costumavam os jardins medrar no
seio das cidades. »
(Pag. 317, vers. 22)
Cumes da Ibéria, onde morreu Pyrene.
Os montes Pyreneos, que dividem as Hespanhas da
França.
(Ihid.f vers. 23)
Os que Annibal transpoz, Vosgos, e Jura. ^
Os Alpes, que separam a Itália da França e da Alle-
manha. — Vosgos é uma cordilheira de montanhas, que se
estenda até á floresta das Ardennas, separando de Lo-
rena a Alsacia, e o Franco- Condado; — Jura é uma mon-
tanha, que separa a Suissa do FranoD-Condado.
(Pag. 318, vers. 22)
Junto de impia caterva em ras mudada, ete,
AUusâo aos jardins de Versailles, onde estas fabulas
estão representadas.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 415
(Pag. 320, vers. 7)
A tenra hemerocal, cujo destino, etc.
Espécie de lirio : as flores, que successivamente bro-
tam do seu tronco, duram somente um dia.
(Ib{d,y vers. 9)
E as que outr'hora agradaram tanto aos Incas.
Príncipes peruvianos, que Diogo de Almagro em 1557
sujeitou ao dominio de Hespanha : em seus jardins nâo
somente imitavam as varias flores com ouro e prata ; po-
rém até as searas, os arvoredos, os insectos, as aves, etc.
(Pag, 321, vers. 12)
Da Syria o mais christao dos reis da Gallia.
S. iLuiz (IX dVste nome entre os reis de França)
quando voltou da Syria trouxe aos francezes o rainunculo.
(Pag. 322 j vers. 9)
e que os francezes
Nominam tuberosa
ííós lhe chamamos «r angélica»: os france2KíS a trou-
xeram da America, e primeiros a cultivaram.
416 OBRAS DE BOCAGE
(Ibid.y vers. 14)
E a que, amante do Sol, com elle gira.
O heliotropio ou girasol.
flhid., vers. 16)
Da China a rosa, etc.
Commummente chamada « rosa japonica » : o[[arbusto
que a produz é maior do que as nossas roseiras. '
(Ihid., vers, 26)
No tempo em que o talaspis d'alva fronte.
Flor, que abre á maneira de um chapéo de sol.
(Pag. 324, vers. 8)
O luto de Aristêo, perdendo o enxame.
Veja-se o livro IV das Georgicas de Virgilio^
(Pag. 326, vers. 12)
Mais forte em tuas mâos; que industria, oh França, etc.
Falia das flores de porcellana.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 417
(lUd., vers. 22)
Que a flor vida recebe, a flor dá vida.
Systema de Mr. Vaillant, adoptado por Jodos os bo-
tânicos modernos.
(Ihid., vers. 26)
Do pistilo no seio os filamentos.
Parte onde a flor encerra a semente ou seu orgâo fe-
minino.
(Pag. 326, vers. 4)
Immovel, como nós, jazer no somno.
E opinião de Linnêo.
QUINTO CANTO
(Pag. 830, vers. 1)
Oh Deus, de quem um pastor, etc.
Moysés.
(Ihid.f vers. 19)
Das ovelhas de Atrêo, e Eéta o preço.
, O primeiro, rei de Argos : o segundo, rei de Colchos.
E este de quem se conta que guardava o vellocino rou-
bado por Jason.
47
418 OBRAS DE BOCAGE -
(Ibid., vers. 21)
De Fauno- a prole, etc.
Latino, rei de Laurente, parte do antigo Lacio.
(Pag. 381, vers. 8)
Puxa os frios In pões o renna activo.
O renna assimelha-se ao veado e ao cavallo; e é a
principal riqueza doB habitantes da Laponia : tira-lbes
os seus carros, alimenta-os de carne e leite, e veste-os
da sua pelle.
(Pag. 836, vers. 27)
O tigre unido
A leoa feroz, gera o leopardo.
Alguns modernos, e com elles Mr. de Buffon, têm que
o leopardo é uma espécie distincta : o auctor segue a vul-
gar e antiga opiniíTo : podia escolher como poeta, porque
03 poetas têm grandes licenças e mais quando escrevem
tâo bem como elle acaba de o fazer sobre o préstimo e ge-
nerosidade dos ginetes.
(Pag. 557, vers. 9)
E outros, que a Natureza não perfilha.
O texto diz :
Les mídets, lef^ jumarts qíCelle 71' adopte pas.
Nós não ternos, vocábulo propriamente significativo de
jumart ; Bocage suppriu a mingoa, dizendo — E ovfms-.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 419
— Jumart cbamam á prole do touro e burra^ ou burra e
vacca, ou cavallo e vacca, ou touro e egoa. Mr. de Buf-
fon diz que o jiwiart é um ente cbiuierico : nâo sei se tem
rajíào, decidam os outros senbores naturalistas: mas cer-
to é que. se se dá"tal casta, é eila de bem pouca utili-
dade, pois que se Ibe não promove a multiplicação.
(Pag. 338, vers. 23)
^ Soberba caminhando ergue a cabeça.
E outro verso, que Bocage passou na traducção :
Dans la marche on la voit lever sa iHt ahiere.
(Poçj. 889^ vers. 6)
E de seu vencedor tem inda o nome.
O vencedor foi Mário, e o campo é o de Comargue,
illia da Provença, na embocadura do departamento das
Bocas-do-Rhodano, e á qual em latim se ' ".//////.v
Mariij ou Camaria.
Corrompe or4 ares odioso insecto.
Falia do tabâo. ou moscardo.
420 OBRAS DE BOCAGE
(Pag. 341, vers, 9)
Povo afamado, em Apis te morrendo.
Os egypcios debaixo do nome de Apis, Osíris ou Se-
rapiS; adoravam um boi, malhado de brai:||po e preto.
(Pag. 343, vers. 13)
Então vê o Esperou chegar de ovelhas, etc.
Montanha das Cevennas, no baixo Langiiedoc, mui
frequentada pelos botânicos.
(Pag. 344, vers. SIJ
Taes de Armórico e Ardennas os carneiros.
Armóricos se chamavam os habitantes d'entre o Loi-
re e o Sena, sobre a margem do Oceano. A respeito de
Ardennas, veja-se a nota ao terceiro cauto a pag. 403.
(Pag. 345, vers. 2)
Campo fragoso de abundantes pastos.
É o campo chamado Grau, junto de Salon (cidade da
Provença) entre o Rhodano e o lago de Berre, a que os
antigos chamavam Campi lapidei, campos pedregosos :
onde se conta que Hercules combateu contra dous gigan-
tes filhos de Neptuno, e acabando-se-lhe as frechas, Jú-
piter fez chover aquella multidão de pedras, com que os
venceu. Plinio, Hist. lib. III, cap. I, o menciona n^estas
palavras : — Campi lapidei Herculis proceliorum memoria
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 421
insignes: « Os pedregosos campos, celebres pela memoria
dos combates de Hercules. »
(Ibid.j vers. 19)
teus bons pascigos,
Oh Présalé, etc.
Terreno da alta Normandia, que ainda de tempos em
tempos é innundado.
(Ibíd., vers. 22)
Ganges segue outras leis
Villa do baixo Languedoc.
(Pag. 349, vers. 14)
Arte dos Gobelins, talvez comtigo, etc.
Allude a Gil Gobelin, famoso tintureiro em lã, que
viveu no reinado de Francisco I.
(Pag. 350, vers. 21)
De prazeres se cança, e não se farta.
Imitação de Juvenal (satyra VI) fallando de Messa-
lina :
Et lassata viris, necdum satiata recessit.
« Cançada de prazeres indecentes,
Porém não saciada se retira,
O verso do texto parece-me que deixa em embrião a
422 OBRAS DE BOCAGE
idéa de Juvenal • nem julgo possível dal-a em um só
verso, sem que a phi-ase ofíenda a modéstia.
(Pag. 353, vers, 3)
França esfarte ignorou, que em^Roma os sábios, etc.
Columella (lib. VI cap. 3. o) faz menção da medicina
veterinária ou alveitaria, n'estes termos : ^= Veterinarice
medicince prudens esse dehit pecoris inagister : " Os guar-
dadores devem saber alveitaria. »
(Ibid.j vers. 8)
Sábios nossos também a industria movem.
Allude ás escholas de medicina veterinária, que se es-
tabeleceram em Paris e em Lião, sendo seu director ge-
ral Mr. Bourgelat.
(Pag, 357, vers. 9)
Imagem da mavortica fereza.
Parece-íne se Bocage existisse, e fizesse esta edição,
seria este um dos versos que emendasse, dizendo antes:
Imagem das ferezas de Mavorte,
ou similliantemente: porque o epitheto « mavortieo » não
me lembra que seja usado por algum de nossos bons auc-
tores, e é absolutamente desnecessário; pois que temos
í^marcio. mavórcio», além de outros, que dão o mesmo
significado. Como porém não pode ser accusado de gallí-
cismo, eu o deixo ir ; por não ser minha intenção a de
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 423
emendar alguns minutíssimos defeitos, que poderiam en-
contrar-se na traducção de Bocage, mas somente a de
corrigir aquelles descuidos, que são infalliveis em todos
os primeiro» manuocriptos, bem que os de Bocage sejam
os mais correctos em que eu tenho posto oâ olhos.
SEXTO CANTO
(Pag. 362, vers. 14)
Já foi o gallo interprete dos duuaes.
Os grego-s tinham-nb como attrihuto de Minerva, de
Mercúrio e da Vigilância, e o sacrificavam aos deuses
Lares e a Priapo : os romanos, mais que nenhum outro
povo o tiveram em veneração.
(Pag. 363, vers. 12)
O amor, a ambição, o império o Helena.
E excellente e digna da phantasia de um poeta, que
sabe dar alma aos seus quadros, esta allusão á esposa de
Meneláo, que foi causa da guerra de Tróia, e é este ura
facto histórico tão conhecido, que por pouco que eu d'olle
dissesse me açcusariam de prolixidade.
(Pag. 364, vers. 9)
Assim quando entre nós súbito arrojo etc.
Esta comparação c tão proximamente imitada de Vir-
424 OBRAS DE BOCAGE
gilio (Eneid. lib. 1.) que julgo dever poupar-me ao tra-
balho de traduzir o poeta latino. Eis aqui os seus versos;
Ac veluti magno in populo cum scepe eoorta est
Seditio, soevit que animis ignohile vulgus,
Jamque faces, et saxa volant^ furor arma ministrat;
Tiiirij pietate gravem^ ac meritis, si forte virum^ quem
Conspexere, silent^ arrectisque aurihus astant,
Ille regit dictis ânimos, et pectora m^ulcet.
Mas ainda assim, como não faltará quem queira cote-
jar a imitação com a traducção, aqui ajunto a de João
Franco Barreto, que é elegante, postoque o remate da
estancia seja pouco fiel:
« Como acontece muitas vezes, quando
Anda em gran povo o vulgo alvorotado,
Já as pedras, paus, e cantos vão tirando,
Dá-lhe armas o furor desatinado:
Se algum varão acaso venerando,
E em méritos aos mais avantajado
Viram, cessa o furor, pára a demanda,
E com brandas razões elle os abranda. »
O nosso Camões porém {Lusíadas, canto 1, estancia
91) disse com mais próprio verbo:
«A pedra, o páu, o canto arremeçando.9
(Pag. 365, vers, 19)
Lhe imprime as cores, que elegeu mais bellas.
Diz-se que arrancando algumas pennas ao papagaio,
e esfregándo-lhe n'e8ses logares a carne com sangue de-
ra, lhes fazem nascer pennas de varias cores.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 425
(Pag. 370y vers. 14)
Do sábio Reaumiir os exp'rimentos.
Mr. de Reaumur escreveu a Arte de erear as gallinhas
e foi elle o primeiro d'entre os modernos, que tirou pin-
tos por esta maneira. Eu faço Reaumur trisyllabo, como
no original.
(Pag. 372, vers. 9)
Uma pelle lh'a envolve, e se lhe estende.
E ao que se chama «pevide».
(Pag. 373, vers. 7)
Todos 08 dias de uma vida escassa.
Ora com effeito, acabou-se o tractado das gallinhas !
Pois protesto que me enfastiou. Perto de quatrocentos
versos ! E muito ! Rosset creio que pegou na Arte de
Reaumur, e pondo-se mui de seu vagar a metrificar os
preceitos do naturalista, esqueceu-se do mister de poeta,
e esgotou o assumpto: isto será sempre um defeito em
poesia, e menos desculpável em Rosset, porque de culpas
taes accusa elle o F. Vaniere, dizendo no seu discurso
sobre a poesia georgica: — Les details de la Maison Rus-
tique sont fort agreables, et peints avec grace ; mais ih
sont si multipliés, et souvent si petits et si puerils, que,
malgré les ornemens dont ils sont revetus, on desireroit de
ne pas les trouver: ils donnent a cet ouvrage Vair d\in
Traité plutot que d^un Poente. « As particularidades do
«Prédio Rústico» são muito agradáveis, e descriptas com
426 OBRAS DE BOCAGE
graça; porém são tão multiplicadas, e muitas vezes tão
pueris, que não obí-tarite os adornos de que são revesti-
das, ee desejaria não as acliar : ellas dão a tfsta obra maia
o aspecto de um Tractado, que o de um Poema.» Pare-
ce-me que Kosset deu uma sentença, que justamente lhe
pôde ser applicada; mas em lim, deixal-o dormitar, por-
que quando que bo7ius dormitat Homer-us: feliz aquelle
escriptor em quem, con:o em Ro.sset, se nota o numero
das belltzas mui superior ao dos defeitos !
(Ibid.j vers. 11)
Nos trouxeram de Ignacio os companheiros.
Os jesuitas, que primeiro trouxeram o pcrú das índias
Orientaes.
(Pag. 314, vers. 27)
O que salvou, grasnando, o Capitólio.
Os gansos despertaram no Capitólio os guardas roma-
nos, que rechassaram o assalto dos soldados de Breuno.
(Pag. 376, vers. 3)
O phaisão é feroz por natureza.
Estas aves derivam o seu nome do rio Phasis. d'onde
é tradição que os Argonautas as levaram á Grrecia.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 427
(Pag, 577, vers. 16)
Gaviões, esmerilhões, treçós, açores.
O treçó é o macho das aves de rapina ; e isto quer di-
zer o emouchet do original.
(Ihid.j vers. 21)
E o suave cantor da primavera.
O rouxinol.
(Ibid., vers. 23)
E livres pelos bosques divagando, etc.
A experiência mostra que esta regra soffre muitas ex-
cepções ; porém é certo que estas avesinhas cantam mais
agradavelmente, quando gosam da liberdade que lhes deu
a natureza.
(Pag. 382, vers. 11)
Soccorro annunciaudo a oppressos muros.
Modena, defendida por Decimo Bruto ; Jerusalém,
cercada por Gofredo de Bouillon; Ptolemaida ou S. João
de Acre, cercada pelos francezes e venezianos, tiveram,
além de outras, aviso de soccorro, levado em cartas de
que os pombos foram mensageiros.
428 OBKAS DE BOCAGE
(Ihid.j vers. 15)
Dar-lhe este ensino, e regular seus voos.
Não somente n'estas terras, mas em todas as do Le-
vante, é uso antiquíssimo levarem os pombos, e traze-
rem, cartas presas ao pescoço, ou aos pés, ou debaixo
das azas.
(Pag. 383, vers. 27)
Sensivel a gallinha á formosura
Da ave de Colchos, etc.
É o phaisão, porque o rio Phasis, de que deriva o seu
nome, corta a ilha de Colchos.
(Pag. 384, vers. 9)
Os diversos systemas n'este cahos, etc.
O auctor quiz aqui indicar as grandes difficuldades
dos diversos systemas philosophicos sobre esta matéria.
Veja-se a Physiologia de Mr. Haller na exposição dos
phenomenos relativos á geração.
(Pag. 385, vers. 10)
E um novo, em cada um, polypo brota.
Veja-se a obra de Mr. Trembley, auctor d'esta desco-
berta.
o CONSORCIO DAS FLORES
EPISTOLA
JsjSllEl^ LuôuCROIS:
A HWIJJ IRMÃO
TRADUZIDA DO ORIGINAL LATINO EM VERSO PORTUGUEZ
Urít Amor plantas ttiam suus.
AUCTORIS.
Qual fere os corações, as plantas fere.
Bocage.
DEDICATÓRIA DO TRADUCTOR
AOS 3JANES DO LMMORTAL LINNE
Alma gentil, qne no fragrante império
A vária Natureza esquadrinhaste;
Tu, que vias Amor brincar co'as flores,
Sagaz insinuar-lhe ?rdoce chamma,
Principio d'ellas, e principio nosso:
Que dóceis, ledos os Favonios vias,
Prestando a dom suave as ténues plumas,
Ministros do Hymenêo no flóreo reino,
Delicias esparzir de planta em planta,
E sorrir-se os jardins, sgrrir-se os bosques,
Viçosos templos da iinião mimosa:
Oh manes de Linné, se inda entre as sombras
Do arvoredo im.raortal, da selva immensa,
Folgaes de meditar, de embellezar-vos,
Na tenra estirpe de mais linda Flora,
E dos Eiysios no thesouro ameno
Avareza manter, que adorna o sábio;
Oh manes de Linné, sagrados manes,
O tributo afagac, que a vós consagro
432 OBRAS DE BOCAGE
Na estancia bella, no retiro amável,
Onde ás Musas me dou, e á paz, e á gloria,
Gostando a eternidade, inda no tempo.
Aquém das illusões, áquem dos nadas,
Salvo do orgulho, que entumece os grandes,
E do ouro inútil, adorado em tantos,
Que apenas homens são, e impõem de numes.
Philosopho tranquillo, aqui repouso,
Em quanto semideus os deuses te honram.
Espirito gentil, que honraste o mundo.
ADVERTÊNCIA
A planta é um corpo orgânico, que não tem
de si mesmo movimento algum progressivo, e que
se alimenta em qualquer logar pela raiz, cresce, ve-
geta, e pode propagar-se de muitas formas: ou es-
teja presa aos cachopos, occultos no mar, como o
<íoral; ou nos escolhos visiveis, como o musgo; ou
vague pelas ondas, como a stratiotes no Nilo; ou
brote na terra, como a rosa; ou nasça em arvores,
como o visco; ou nos craneos insepultos, como a
usnea; ou nos couros como o bolor, o que se prova
pelo microscópio ; ou finalmente no mesmo ar hú-
mido, como a cebola e a batata.
Raiz é o montão dos tubos, que recebem o
sueco nutritivo, o qual corre em uns pela pressão
das traqueas oscillantes em todo o tegumento da
planta e reflue em outros com um giro perenne até
á raiz.
28
434 OBRAS DE BOCAGE
Assim como o tronco em plantas mais duras,
assim nas mais molles o talo produz e cria os ra-
mos, as folhaSj as flores e as sementes.
Cálix é vulgarmente o invólucro verde da flor.
Petalos são os tegumentos colorados da flor.
Estames são as vaginas cylindriformes dos
vasos esperm áticos, amplificados as mais das vezes
em ápice que na sua parte superior, ou folículos,
a que o auctor chama (testículos) testes.
Ovário é o claustro do gérmen, ora único,
ora multíplice.
Tuba é o appendix cylindrico, que assenta no
ovário, e commummente aberta na parte superior,
á maneira de uma buzina.
Placenta é o visgo glanduloso, subtraído pro-
ximamente do ova^no^ d'onde saem ora um, ora
muitos canaesinhos, á similhança de cordão umbi-
lical, cada um dos quaes pertence, e é inserido no
seu ovo, ou embrjão.
Semente é o compendio da flor, assim como
se vê pelo microscópio nas cebolas das tulipas e nas
glândulas do carvalho.
Radicula não se difíerença da raiz da planta,
senão pelo tamanho.
Pluma é o pequeno tronco ou talinho com
seus appendices.
MamillOS são duas vísceras em feição de glân-
dulas, que se communicam de uma parte com a ra-
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 435
dicula, e da outra cora a pluma^ nas quaes o sueco
trazido da raiz se filtra e se defeca, com o que se
habilita mais a nutrir o feto; dado este á luz, se
transforma em duas folhas, mui similhantes entre
si, mas diíFerentiíS d'aquellas, que ao depois deve
ter, as quaes são destinadas a nutrir a planta
creança; mas. tanto que esta cresce e está capaz
de digerir os suecos, espontaneamente caem as pri-
meiras.
Flor propriamente, não é outra cousa mais, do
que o mesmo órgão da geração; se é macho, então
fce conhece pelos estames, se é fêmea, pelos ovários,
se é hermaphrodita, por ambos.
Toda Vi. flor ou é vestida, ou é destituida de cá-
lix, d'onde, ou é completa ou incompleta.
Ou Apetala, ou petaloidea ;
Ou Monopetala^ ow. polypetala ;
E ou regular, ou irregular, ou simples; ou com-
posta, on Jlosculosa, ou semifloscidosa, ou mixta^ ou
i-adiosa.
o CONSORCIO DAS FLORES
Qual do espirito fosse a natureza,
Qual das cousas a fabrica, e das cousas
O Ártifice immortal, desde a puerícia
Indaguei, caro irmão: foi-me suave,
E achei útil fadiga, inda que longa.
De Newton, e Descartes ir no alcance,
Também medir essas ethereas massas.
Que em diversos espaços luzem, rodam.
Explorar quiz depois co'a mão, e a mente
De Flora os campos, o formoso império:
De conductor peia votiva estrada
Carecia, porém, quando eis que assoma
Ante mim, clara dadiva dos numes,
O prestante Vaillant, cultor supremo
Dos jardins machaónios; Philomela
Aos^ bosques o chamava: elle ia aos bosques,
D'escalpello nas mãos, e o microscópio,
Um obra de Vulcano, outro de Palias:
Vidro negado a Athenas, dado a Londres,
Vidro, que em si reúne o sol disperso,
Vidro, que os ténues corpos engrandece.
438 OBRAS DE BOCAGE
E tanto, e tanto, que visíveis toma
Do insecto zunidor té os olhinhos.
Com guia tal, e de Minerva influxos,
Penetrei o que Rays não penetraram;
E ignotos aos Malpighis soube arcanos.
Flora, benigna mãe, Flora, mãe sua,
Dera apenas Vaillant á luz da vida,
E apenas o menino em torno ao berço
Sento as plumas subtis de mil Favonios
Soltar fragrâncias mil, susurro alegre,
A tenra mão com pequenino aceno
Brincos, que pede á mãe, se as vê, são flores.
Cresceu: cousas maiores eis concebe.
Nos hortos madrugar é seu recreio.
Seu recreio é girar, correr florestas,
Esquadrinhando as plantas cuidadoso:
Folga de ir por chuveiros, de ir por neves,
E de ir por soes apascentar o instincto.
Tanto o estudo lhe apraz das varias flores!
Vendo-o colher j e examinar boninas
N'um, n'outro prado, as Dryades mil vezes,
Instadas de amorosa competência,
O moço amável para si quizeram;
Porém, da primazia a ti credora,
Deu elle, oh Bosonea, esta alta gloria.
Vertumno a escolha approva, e Flora annue,
Coréas festivaes Pomona engenha,
E susurra dos Zephyros o applauso.
POEMAS DIDÁCTICOS TBADUZIDOS 439
Vão por antiga senda rastejando
Almas vulgares, Índoles escravas;
A si Vaillant abriu caminlio intacto;
Viu com que arte Cupido as brandas settas.
As sensações dirige até ás flores,
E olhou primeiro os vegetaes amores.
A que enxovalha, que persegue as cinzas,
A Inveja detractora, ah! iSFão lhe exprobre
Que, astuta gralha, com furtivas pennas
Elle tentou luzir; não, não se afoute
Co'a vil calumnia a profanar-lhe os manes.
Milagres ouve, oh Roma, oh Grécia, escuta.
Também, também de amor as plantas ardem;
A flor namora a flor que lhe é visinha,
E egual paixão lhe retribue a amada.
E n'elles par a edade, a espécie, a forma,
A graça, o dote, o gosto, o ser, e a flamma.
Assim que o lindo amante, e a virgem bella
Provam no seio os cupidineos golpes.
Tenham commum, ou separada estancia,
Seus mimos, seus desejos, seus ardores
Une Hymeneo, — e Amor, e a mãe triumpham.
Co'as azinhas trementes brinca em tanto
Dourada borboleta entre as abelhas;
Folga o jardim, e o rouxinol canoro
O verso genial no ulmeiro entoa.
Se duas flores uma estancia inclue,
Dá Prónuba o signal, rompendo a aurora;
440 OBKAS DE BOCAGE
Filamentos enrijam^ abre a anthéra.
Súbito adeja viração fecunda,
E, pelo flóreo tecto reflectida,
Penetra velozmente as cavidades
Da tuba, da placenta, e logo errante
Nos ténues, eguaes tubos se insinua,
Nos germes pousa; os germes se entum^ecera^
E ri-se a fêmea flor, que a prole espera:
D'est'arte a dormideira, a opliris pejam.
Se os domicilios são porém diversos,
A masculina flor seus dons expulsa
Da tenra habitação, té 'li cerrada.
Zephyro acolhe o gerador principio,
A volátil semente, e sobre as azas
A leva ao grémio da consorte amena.
Ella responde á conjugal ternura,
E co'a prole gentil, que o páe simelha.
Fiel se abona ao desviado esposo.
Quasi ás margens do Nilo assim é fama
Que desunidas palmas se desposam;
Mas se as macias virações não voam
Quando é seu mez, quando florecem bosques,
Toma o colono masculinos ramos,
E agita-os junto á fêmea, que incha, e brota
A tâmara depois, não derradeiro
Auxilio de Esculápio, ou se destine
A mitigar as importunas tosses,
Ou dor aguda, que as entranhas fere.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 441
Ou Sirva eiíiíim de conduzir ao prazo,
Ao termo justo a producção dos entes.
Gravido assim verdeja o terebintho
Lá nos campos de Cóa, proveitoso
Em males cem, se os Austros o bafejam.
Tanto que foge o friorento inverno,
Tanto que se ergue o sol, e ás ursas volve,
E em distancias egnaes divide o globo,
Roxeando a manhã, mancebos voam,
E os troncos vão romper com largas hastes.
De uns, d'outros golpes bálsamo gotêa,
Bálsamo, que, app] içado em ponto idóneo,
Phtysicas mirradoras afugenta,
E o frio humor, que pelas fauces lavra,
E as fezes, que das vísceras se apossam.
Agricultoras mãos na primavera
Talham troncos também: se os não talhtirem,
Opprime os troncos abundância aquosa.
Damnos mil se lhe seguem, nós, carcomas,
E a sequiosa planta murcha, e morre.
Do máo, do redundante humor pejada.
Não de outra sorte os homens (ah !) perecem,
Que en^lauta mezti, em aturados somnos.
Em sedentário luxo a vida gostam.
Estes de humores aò principio abundam.
Depois arrastam corpulência fofa;
Tardo, e limoso lhes circula o sangue;
Cerram-se á cútis mansamente os poros,
442 OBRAS DE BOCAGE
Duas também das principaes entranhas
SofFrem esta oppressão; vibram-se a custo
No cérebro dormente os frouxos nervos;
Rubro liquor, que pelas veias gira,
Em Ijmphas viciosas degenera,
E o misérrimo enfermo em breve espaço,
Se a tempo não lhe acode a arte de Apollo,
Cáe, qual caíra a accommettel-o o raio.
A alma se embota, dos sentidos nua;
E a fatal redundância instiga a morte.
Tu prezarás, talvez, saber se hei visto
Estas cousas, que ouvi: náo é custoso
Dar-se com certa planta de que o sumo
Poros franquêa em nós de interna parte,
E innocente, interior prurido excita.
Quer nitroso logar: por isso afferra
Parede annosa, de que vem seu nome.
Esta planta núbil pôr-te-ha jiatente
Mutua paixão, que senhorea as flores.
Quando alvor matutino o^ céos bordava,
Eu de Moinoranci aos gratos campos,
Ou aos virentes Surenêos outeiros,
Ou do Mouro ás florestas, ou aos prados #
Do ameno Chantiliy, ou ás que em torno
Matrona lambe, Spórades chamadas,
Seguia o sábio mestre. Então, se acaso
Mais grave somno pelos muros tinha
Oppressa a parietaria, e se eram lentas
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 443
A estímulos d'Áiirora iis flores suas,
Meu sagaz preceptor, munido de alta,
Longa experiência, e, meditando astúcias,
Com a agulha subtil sollicitava
Logo os estames, que enrijavam logo.
Súbito, roto o cárcere, podia
O espirito sair, voar aos germes,
Largamente soprados, e a tardia,
Pulverea chuva com tenaz apego
Parar das tubas nas serventes margens.
Sôfrega a mãe cheirosa alenta o fructo,
E morre alegre ao ver que avulta, e fica
Hábil a renovar seus páes extinctos.
Ha outra terra productora, é quando
Colhe, abriga as sementes deslizadas
No fértil grémio, quando os sáes desfeitos,
Alexando os cana es, os píftenteam.
Bate o vagante humor nos ténues tubos,
Abrem-se os tenros vasos, que amollecem,
E a pequena raiz, a pouco e pouco,
Vae concebendo os vagorosos suecos:
Em tardo movimento eis elles sobem
Por ení*ii a contextura inexplicável,
Por fendas cento ás glândulas, que jazem
De um lado, e d'outro lado ali dispostas:
Agitados depois, os introduzem
Estradas mil nas viscoras da pluma,.
E existência, e sustento ali diffundem.
444 OBPvAS DE BOCAGE
Está primeiro occulta a molle hervinha,
Apparece depois, converte em folhas
Nutritivas porções, e ao ar exulta.
Oh tu, que as flores amas, tem cautela:
Vê que barbara dextra a débil vida
Não corte antes de tempo a aquelias folhas.
Falta de nutrição, morrera a hervinha,
E esperara o cultor em vão grinaldas.
Chuvas em tanto, e zéphyros, e orvalhos
Dão que á porfia as tenras hervas surjam.
O seu banho interior sois vós, chuveiros,
Sois, oh rocios, o exterior seu banho.
Bebe as chuvas a terra, as chuvas entram
Nas intimas raizes, e conduzem
Ao tronco seu, e a seus folhosos braços
As aéreas correntes prestadias.
Nos meatos da cútis enAebidos
Os orvalhos, do céo volátil nitro.
Dão ânimos aos suecos, e embrandecem
Os rijos rasos. Com lascivo adejo
De mil artes Favonio exerce a rama,
E do adejo efficaz, do affavel brinco
Vida, por leis eguaes, as fibras ganham, :^
B transpira d'ali o humor inútil.
Como quando co'as roscas apertadas
Se estende o coração d'um lado, e d'outro,
E quando para baixo emfim se alonga,
E vomita a corrente rubicunda,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 445
Ella, abundosa^ e rápida, fervendo,
Por onde encontra estrada se derrama:
Os superiores, oscillantes vasos
A alluvião sanguínea acolhem, lançam,
E os menores canaes sanguíneo arroio:
Yae por membros, e membros a existência;
Mas tanto que na vivida carreira
O purpúreo meandro se empobrece,
A fonte, ao coração girando volta.
Onde outra vez se filtra, e, reforçado
Pela substancia, do alimento expressa,
As coréas vitaes mais livre exerce.
Assim quando, ora aberta, ora apertada,
A arvore na recente primavera
Co'a raiz sorvedora embebe os suecos,
A força faz caminho, o humor se eleva,
E tortuoso as vísceras discorre:
Rios por toda a parte o tronco animam,
E ávidos ramos, e sedentas folhas;
Mas liquida porção, que entrar não sabe
As fartas fibras, e crescer com ellas,
E a que, luctando em vão, sair não pode
Por entre os poros da rugosa casca,
Prompta recua por canaes diversos
A unir-se na raiz a novos suecos.
Estímulos a isto o sol empresta,
E o moto principia, ajuda, augmenta.
O ar se escandece nos pulmões arbóreos.
446 OBRAS DE BOCAGE
E a mais amplos espaços vae correndo.
Opprimem-se os canaes, o humor se opprime,
E de tal arte a descrever aprendem
Não interrupta, orbicular carreira.
Sáe de xima planta purpura rubente,
Sangue dimana, parecido ao nosso,
Para os que usam talhar os Cáspios mares;
Ou rocem do Boristhenes as bocas,
Ou Ásia, e reinos Cólchicos demandem.
Maravilhoso objecto ali se admira;
O bórames assoma; em tronco altivo
Um quadrúpede está, e é fructo d'elle.
O crespo véllo lhe resguarda os membros,
Pontas lhe avultam na lanosa fronte,
E olhos em seu logar lhe não fallecem.
O rude habitador d'aquelles campos
Animal o suppõe, suppõe que dorme
Em quanto é dia, e vela em quanto é noute,
E pelas hervas, que o rodeam, pasce;
Que tem nas carnes da ambrósia o gosto,
E que vermelhos suecos o humedecem,
Suecos de tal sabor, que os preferira
Borgonha ao pátrio, deleitavel néctar.
Se a Natureza permittido houvesse
Ao raro vegetal d'ali mover-se,
Se, balando, implorar podésse auxilio
Contra o lobo voraz, tu presumiras
Lanígero cordeiro estar- no tronco;
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 447
E a teus olhos absortos branquearam
Gramineos serros com rebanhos d'elles.
D 'esta fonte, a meu ver, fabula estranha
Proveio á Grécia. Pavorosos dragos,
Touros de brônzeo pé, n'outr'hora espertos.
Guardaram véllos taes; com este dote
Fugindo pelas ondas foi Medéa;
Eson se renovou com estes fructos,
Celles pela efficaz substancia pôde
O ancião revocar viçosa edade.
Que existem plantas que animaes simelham,
Isto não prova só. A stratiotes
Vês, que em pouso nenhum parar costuma,
Esta planta ama o Nilo, e de alimento
Nadando se provê. A um leve toque
Foge logo a mimosa, ou sensitiva
Estremecendo se contráe, se esconde
Entre as dobradas folhas; mas, expulso
Depois o medo, ao ar se expõe de novo.
Ha flor (e isto assegura auctor não leve)
Amor chamada: nos caminhos nasce
Do anno, e do sol; nem orgulhoso Atlante,
Nem cerrado arvoredo ali dão sombras.
Roxêa-lhe o pudor na linda face;
E se o tostado, o péssimo africano,
Quando ao lume phebêo risonha ondêa,
Dolos ousa exprobrar-lhe, e acções impuras,
Voz barbara, e terrivel reforçando.
448 OBRAS DE BOCAGE
Súbito a virgem mísera, innocente
Em fúrias se desfaz, lacera as tranças.
E pelos ares a existência pura
Foge indignada, com horror do opprobrio.
Mas porque assombros peregrinos canto,
Se a Gallia creadora off'rece ao vate
Mais subidos portentos? Eia, oh Musa,
Aqui o ardor se apure, aqui releva.
Que soem versos teus, quaes entre os brindes
Seus versos o Garona quer que soem;
Ou quaes, depois que os dons possuem d'elle,
O batavo, o britanno urdir costumam.
Lá onde o Herálcio túmido susurra,
Léspero assoma, consagrado a Flora:
A deusa da fragrância ali primeiro
Veste as roupas louçãs da primavera,
E a deusa da saúde, a Medicina
Ali conduz os seus; ali se enleva
No semblante immortal da irmã deidade :
E Hebe ali colhe do Tonante as c'rôas.
Se de Ímprobo ginete o pé ferrado
Ousa afrontar os veneráveis cumes,
Súbito as hervas o protervo assaltam,
Acodem as irmãs com prompto auxilio:
Não cessam, não repousam, ferve a lida,
B o sacrílego pé manquêa inerme.
Auctor nenhum, porém, me persuade
Que nas plantas existe alma, sentido:
POEMàS DIDÁCTICOS TEADUZIDOS 449
Aos homens estes ,dons só foram dados.
As arvores, arbustos, flores, hervas,
São macbinas s(5mente, e a contextura
E varia era muitas, é pasmosa em todas:
N'ellas juntou sagaz a Natureza
A menores canaes canaes maiores:
Recto caminho elegem parte d'elles,
E parte d'elles por veredas curvas,
Para aqui, para ah, com mil rodeios
Se dobram, já subindo, e já baixando;
Obliquamente a planta correm toda;
E, agitados nos vasos, que os dirigem,
Surgem n'esie logar com lento sueco:
Surgem com sueco rápido n'aquelle.
As forças do terreno, e céo concorrem,
E a riqueza das aguas nutridoras;
^ As que vem desatadas d'entre nuvens
Para as densas abóbadas, e aquellas
Que, roubados á terra os saes fecundos.
Lá no centro, apurando-se nas cavas.
Em fontes sobem, pelo chão serpêam.
Rico baixando do Abyssinio cume
Em rápidas voragens volve o Nilo
Do torrado colono as esperanças.
Anda a sabor do rio a statriotes,
E co'a vaga raiz o vae sorvendo:
Cresce, cria depois nas pátrias ondas
A prób, e em toda a parte hospede é grato,
450 OBRAS DE BOCAGE
As causas ignorando a Antiguidade,
Do moto enganador deixou cegar-se,
Presumiu-a animal; não d'outra sorte
Vemos dos leitos seus sair ás vezes,
E pelos campos espraiar-se os lagos.
Próximo lá de Limerik aos muros,
Das subterrâneas aguas por violência,
Venham dos mares, ou das serras venham,
Seu senhor desampara, e busca as ondas
Ilha assombrosa. O possessor se irrita,
Segue a fugaz, e examinar procura
Porque principio foge; mas decide
A favor d'ella o Dublineu Senado.
Tal a ilha Conti, tal a Delphina,
Nos relvosos torrões, ambos insignes,
A ti, oh Saint-Omer, fronteiras nadam;
E a vagabunda irmã taes se associam.
E não ténue trabalho investigar-se
Da Mimosa o recôndito artificio,
Expôr-lhe, descrever-lhe a natureza;
Porém tental-o cumpre. Influxo, oh Musas !
Nos articulos seus é cada membro
Mui distincto dos mais. Arte divina
Tanto com a raiz enlaça o tronco,
Tanto com elle os ramos, e com elles
As folhas liga tanto ! E maravilha
Ver-lhe os miúdos nós nas moveis fibras.
Quando n'hastoa pendente os ramos nutam,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 451
Na parte em que ha prisão, que ligue a planta,
Estreitam-se os canaes, e pára o sueco;
Nos membros todos adormece a vida,
Desmaia a folha, sem poder comsigo.
Mas dentro dos compressos tubosinhos
O ar se irrita do freio, e reforçado
De succoso vigor, sacode estorvos.
Torna á mimosa o doscaido alento.
Surge outra vez, e vencedora, e leda
Os astros olha, que a victoria applaudem.
Nem da getula flor, nem te allucinem
Os milagres também, patente a causa.
Lá onde a prumo o sol dardeja raios
Sobre o negro africano, onde arde a terra.
Das folhas tardo humor se desvanece,
Corasigo a secca flor se prende a custo:
Eis pelos ares férvidos, que abala,
Rebomba, qual trovão, clamor terrível;
Ao Ímpeto recuam ramos, folhas,
De novo soa o grito apenas volvem:
D'um lado se combate, e d'outro lado,
Pugna a força maior co'a menor força.
Té que das tíbras os estames se abrem,
E cáe desfeita a flor, e jaz sem vida.
Do enregelado, nebuloso Arcturo
Teus raios, oh Yulcano, a^-sim ruiram,
Quando o soberbo Inglejs tragar queria
Co'as brônzeas fauces os Maclovios muros.
452 OBRAS DE BOCAGE
O pélago tremeu, tremeram torres;
A cabeça Nerêo sumiu no fundo.
Assim quando também por entre as brechas
Da atterrada-Nãmur caminho abriam
As francezaSj magnânimas j^hahingeSj
Ao súbito clangor, ao som guerreiro
O inimigo enfiou, caíram rotos
Vítreos reparos contra o sol, e o vento:
Emíim cede o sicambro, e rende as armas.
Vê que virtude ao Léspero foi dada:
De céos contrários duas auras sopram;
Esta demanda o Sul, e aquella o Norte. ^
Estão tortas partículas viradas
Em curvas desiguaes, umas ao Euro,
Para o Zephyro as outras: com três sulcos
Assignaladas são; mostre-se ;i causa.
Soberba desdenhando a baixa |-erra,
Ouse insânia phebéa ir de astro em astro.
E cada estrella um sol, e brilha, e ferve ;
Solta eífiuvios, que os vórtices transpondo,
Do adverso turbilhão nos pólos entram;
Os ares o fulgor discorre manso.
Mas depois que por globos apoticados
Lá onde é mais tardia a ethérea massa
Colhe a agua os ares, e se esforça, e tenta
Tocar no meio o sol, cancada, frouxa
Pelos rodeios do caminho andado,
Desmaia pouco a pouco, e se condensa
POrMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 453
Egual ao grude, ou liquidada cera.
Emtanto os globosinhos pelos claustros
Triangulares, admittindo o grude
Tardamente nos rádios esculptores,
Até três com três sulcos assignalam,
E o sequaz torcem por vereda recta,
E formam spiras, caminhando. Ainda
Que adejem pelo céo contrários ventos,
Ama o discorde irmão o irmão discorde,
E para o mesmo fim concorrem ambos.
Elles, quando das luzes despojada
Se doe a madre Terra, e fica envolta
No espesso, triste véo, depois que as manchas
São fáceis a dobrar, e é molle a crusta,
Abrem na azul esphera eguaes caminhos,
E ambos eternamente fugiriam
Por direitos espr»çcs, não lhe obstando
O crasso nevoeiro, ou ar mais denso.
Ou se aura opposta emfim não repellisse
Aura cançada. Em giro pois movidos
Por terra, mar, e céos, e pólo d'ella.
Demandam o que d^antes demandaram;
Depois por onde foram retrocedem.
Invento dos francezes se imagina
Aquelle turbilhão, e regra aos nautas.
Porém quando a aura em giros lassa volve,
Se por mais livre espaço encontra minas
De aço, ou magn-ete, ou planta prenhe d'este^
454 OBRAS DE BOCAGE
Ou planta, que d'aquelfe se impregnasse,
Cáe logo ali, e odêa a estrada antiga.
Folga, blasona, oh Léspero: estes sopros
Nomeada te dão. Mal que ligeiros
Do ferro pelas minas se escoaram,
Fogem subitamente lá por onde
D'entrei os respiradouros da montanha
Sobe do aço o vapor; depois nas hervas
Se estendem, se derramam, e attraídos
Dos idóneos meatos, é seu gosto
Vorticulos formar, quaes os grangêa
Na torre em longo espaço a férrea grimpa,
Quaes empresta o magnete á equórea agulha.
Eis com que armas o Lcspero combate.
Apenas o profanam pés ferrados,
Toda a força os vorticulos apuram;
O aço accommettem. Sáe, como de forja,
O ar já livre, e saltando arrebatado
A parte onde se prende a uoha ao ferro.
Com Ímpeto violento os aços bate,
E do bruto assombrado exiráe, sacode
Os duros cravos, as pedestres armas.
Tanto em laço pasmoso estão ligados
Todos os corpos! Lei suprema é isto
Da mão, que os astros, e que as terras liga
Em nó constante, como liga as flores.
'Nas mesmas, que signaes o sexo indiquem
Vou mostrar, e talvez te agrade o lêl-o.
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 455
Tem regra firme em tudo a Natureza,
Género, que procrêa, é viril sempre,
E sempre feminino o que concebe;
Co'as armas genitaes as' plantas Folgam,
E as omnigenag flores geram todas.
Mas pétalos, e cálices das flores
Não têm tal dignidade. Embora o vulgo
Grite, e á contraria opinião se aferre.
Tu, freixo altivo, os pétalos desdenhas,
A palustre tabúa é d'elles falta;
A grama, o trigo, a avêa, esse reforço
Do guerreiro animal, carecem d'elles.
Tulipa, e selga os pétalos odêam,
D'elles também o heleboro prescinde.
Pernicioso á razão, sem elles vivem
A açucena gentil, a ingrata armoles,
O amarantho immortal, de rubra face.
Que tão formoso nos jardins campeã;
E estas flores não só, mas outras muitas,
Numero, que ao dos astros equivale.
Se esmiuçar as flores te recrêa,
Ou lhes descubrirás sós os estames
No órgão procreador, e duplicado.
Ou só o ovário, sotoposto ás tubas.
As placentas imposto, ou todos juntos.
De filamentos é provido aquelle,
E provido este cânhamo de ovários:
Unem-se nos jasmins, e althéa, e rosas.
456 OBRAS DE BOCAGE
Jamais notei que as estamineas flores
Abundassem de prole; a vida exhalam
Depois que Vénus seus desejos c'rôa.
Curvas nos tristes lares, murcham logo.
Ou ludibries do vento, o vento as leva.
Mas o ovário viuvo os páes exiinctos
Cedo renova; o género revive,
E leda surge a posthuma progénie.
Se, todavia, antes do tempo idóneo.
Antes das niípcias mão cruel cercêa,
Fecundo castanheiro, os teus estames,
Que em ramos apartados sempre nascem,
Co'a esperança baldada a sócia planta
Mirra-se de tristeza, estéril morre.
Se o vento sobre as azas lhe não guia
Aura fecunda do remoto esposo.
Esta aura ás vezes rege, instrue ás vezes
Por mar não conhecido errantes nautas,
B porto, já propinquo, lhes promette.
Os hispanos baixeis, do afoutas velas.
Muito além, muito além correr ousavam
Do sol cadente, e das hercúleas metas:
Colombo exhortador lhes dava o rumo.
Galernas virações lhes dava Eólo,
Eram pharóes as nitidas estrellas.
Olham com pasmo occidentaes Nereidas
Os bosques, invasores do alto pego.
Olham com pasmo nas soberbas popas
poeíías DíDACttcos traduzidos 457
Dura phalange audaz, votada á guerra,
Flâmulas, que entre os Aquilos floream,
E o bronze, que arremessa ao longe o raio.
Tinham crescido, mino^oado haviam,
E deposto o fulgor já sette luas;
De Ceres, de Lyêo se aniquilaram
As dadivas emfim: debalde observa
Attento Palinuro a agulha, os astros,
O céo por toda a parte, o mar por toda.
Braveja o marinhei ro^ arde o soldado.
Ata grilhão nefando ao mastro o chefe,
Que, de Minerva cheio : « Eu sinto flores,
Os remos apressae (lhes diz seguro).
Terra vereis em breve:» Os lenhos voam.
Eis montanhas ao longe, eis surgem campos,
E apenas os baixeis fundeam ledos,
Flora cVôas lhes dá, Flora atavia
O seu Colombo com seus dons brilhantes.
A Florida, que extráe da deusa o nome,
D'ali nos manda o sasafrás cheiroso,
E ás vezes Cytheréa ali prepara
Liquor, a que pospõe festins de Jove.
Mas ao deixado a^^sumpto as Musas volvam.
Ou é feminea a flor, ou viril toda,
Ou de género mixto. Se apparece
Alguma nos jardins lustrosa, e bella,
De véo fragrante, e pétalos viçosos.
Que não possa entre as fêmeas numerar-se.
458 OBRAS DE BOCAGE
Ou entre as de viril poder, ou entre
Hermaphroditas, esta flor nonieam
Da spadonica espécie; é triste monstro,
Desvario infeliz da natureza.
Eis da malva, e das rosas o accidente;
Os pé talos traidores lhe arrebatam
Toda a substancia; estames bastardeam,
E a sua antiga forma elles esquecem.
De vital néctar o embrião fraudado,
Languece, morre, e vem depois o aborto.
Não basta o sexo conhecer das flores;
Por diíFerentes signaes se classifiquem.
Têm estas, não têm cálices aquellas;
Unjas não curam de habitar seus lares,
De estremdo lavor; Zéphyro as gosa.
Outras brilhantes de ambrósia e fartas.
Na estancia natural ufanas vivem,
Na estancia, que em candor transcende a neve,
Que na viveza a purpura transcende,
Mandando ao iris, seu rival nas cores.
Entre as sombrias nuvens esconder-se.
Ha género, que d'este assas discorda
Na condição, que ao ar não se afoutara
A erguer a fronte, receando a vida.
Se eterna providencia, mãe de tudo,
Dous engenhosos tectos lhe não desse.
Os pétalos, os cálices, guarida
Contra extremo calor, e frio extremo,
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 459
Vem d'esta classe numerosa turba;
Mas a flor da tristeza, a passiflora
A todas sobrepuja. Eu sei tua alma;
Tal flor, querido irmão, te enternecera.
Que absorto a vi ! No meio uma columna
Está não sei que horror ameaçando!
Insta golpe cruel de férreo malhoj
Crôa como de espinhos jaz tecida
Em logar inferior, e de três cores
O matiz lastimoso oíF'rece á vista :
As do coalhado sangue, o sangue fresco,
E a que da morte a visinhança agoura.
Súbito aos olhos meus se representa
Victima um Deus pender do lenho infame,
Lá nas impias, sacrílegas montanhas
Da blasphema Sion, de um só por culpa,
E por delirio só de Adão rebelde.
Os pétalos indicam varias classes;
Uma veste-se de um, de muitos outra.
Vê da boheravia a face, olha a da malva;
Sempre o mesmo logar, não cabe a todos; '
Na margem superior da flor inclusa
Só metade de alí^uns abraça os ares:
Tal forma apraz á thlápsia, ás campainhas;
^E outras (género informe) outras em parte
Desdizem mais de flor, e em parte menos,
Alongados cercando estames, tubas.
D^esfarte a salva aos médicos, d'est'arte
4(30 OBRAS DE BOCAGE
Ás madrastras o acónito aproveita.
Espécies ha, porém, que em sorle houveram
Leito brilhante no aprazivel centro,
E em cuja parte posterior se encostam
Os tubos^ as antherns. Tal florece
Ledo em palustre prado o roxo lirio,
Efficaz á sedenta hydropesia,
As tosses arquejantes: d'estes males
Vi três, e a todos três foi elle a cura.
Meu verso expôz tégora as flores simples.
Por ordf^m as compostas se resumam.
Se miil flores mil cálices possuem,
Ha mil no mesmo cálice envolvidas.
Oasta, que breves tubos entretecem,
Em forma orbicular surge, á maneira
Dos espinhosos, dos hortenses cardos;
Diz-se chicórea biformada espécie.
Certa flor ténues tubos apresenta
Em loo;ar inferior, mas tem nor cima
Uma espécie de lingua breve, aguda,
Ou espalmada^ ou áspera de sulcos;
Esta na flor assoma, ou recta, ou curva,
E ora ameaça com pungente bico,
Ora profundamente está fendida.
Mas estas classes duas o Austro abraça,
E o bem-mequer, ás virgens consagrado,
E a tua, oh Phebo, immarcessivel c'rôa.
Sobre este objecto em opportuno instante
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 461
Mostrava o preceptor qual estriictura
Aos caliees apraz, qual ás placentas
E forma grata, e de que chão costumam
Folhas, tallo, niizes namorar-se:
E iuda mil cousas, que na voz apenas
Do divino Marão caber poderam.
Por isso de Fafron alta amisade
Houve gran tempo, de Fagon, que tanto
Aos médicos dos reis sobresaía,
Quanto co'a f?*onte laureada, excelsa
Se avantaja Luiz aos reis do mundo.
Com seus votos unanimes, e ardentes
Clara Academia a si te uniu por isso,
E teu nome, oh Vaillant, soou no globo.
Que espectáculo vi nos flóreos campos !
De com partes da terra ali correram
Filhos do nume, auctor da medicina:
Os que bebem do Tánais, os que bebem
Do Danúbio, do Támisis, do Tejo,
Os da fria Suécia, e culta Ausonia,
Como aquelles, que Erigena frequentam,
Aptos ás guerras, ás sciencias aptos,
Promptos á morte pelo' altar, e o tlirono.
Ante a primeira turba, a Phebo acceitos,
Guarida contra a morte, e dos monarchas
Derradeira esperança, egrégios moços,
Com que a fecunda GallLi lioníára o mundo,
Nas dextras os seus lirios tremulavam.
462 OBRAS DE BOCAGE
Concorreram também quantos na Grécia
Arvoram teus pendões, oh Medicinaj
E os que o Peru mandou por vastas ondas,
E arménios, vindos lá da plaga Eôa.
Mas nenhum bem perfeito ha sobre a terra.
Eis chusma usada a cercear nas faces
Pello viril com mercenário gume,
Vácuos os templos bacchanaes deixando,
Caminha apoz os mais; porém diversa
E da nossa vontade a mente sua.
Vivo ardor de saber ali nos guia,
E elles, ou soltam desregrados cantos,
Ou co'a gralhada vã nos ensurdecem.
Que opposta multidão! Não d'outra sorte
Voam d'aqui, d'ali zangãos, e abelhas
Emtorno ao rei, mal que na quadra amena
Susurram o signal, e o chefe alado
De Flora nos festins vae regalar-se.
Unem-se as turbas, o logar se aponta,
Corre-se aos campos. Co'uma flor nos dedos,
O nosso guia então desprende as vozes ;
Das hervas mostra os géneros, e mostra
Virtudes salutiferas, que encerram.
Da boca de Sherardo attentos pendem
Olhos, e ouvidos; a carreira esquece
Para escutal-o o Séq^i-nin : pasmadas
Vós, Dryades, estii Diana.
Elle ensinava comu m ;.; o.igom
POEMAS DIDÁCTICOS TRADUZIDOS 463
Do tenro mundo seu Auctor fizera
Epitomes das plantas as sementes:
A sua luz é Deus, Deus é lei sua.
Concebe a terra no virgíneo seio
O gérmen amoroso, os fruetos crescem,
E em aprazado tempo ali rebenta
Uma flor, aqui outra. Alegre, aíFavel
Cynthia esclarece os hospedes recentes
Com fulgor avivado; o sol mais puro
Pelo attonito céo lhes presta o lume.
A mão do Eterno desparzira os germes,
Mas outros mui subtis pôz dentro d^elles
Que dos olhos mortaes á luz se negam ;
Germes tão numerosos como as plantas,
Que Dóris, e que as Náyades nas aguas,
As Dryades nos bosques, e as Napéas,
As fragueiras Oreades nos montes,
Pomona em hortos, pelos campos Ceres,
Tem creado até'gora, e todas quantas
Hão de crear, té dissolver-se o mundo.
Nenhuma existe, que não preste á vida,
A todas o gran Numen bemfazejo
Deu salutar virtude: ellas expulsam
A fêa, assustadora enfermidade;
Com ellas os banquetes se ataviam:
Um Deus em quantas vês, um Deus conheces.
Mas porque, desmanchando amenas c'rôas.
Flora, as Nymphas dão ais? Vaillantl . . . morreste.
464 OBEAÍS DE BOCAGE
O SOU Édipo ás flores foi roubado.
Ai! Em tão breve tempo! Ái! Eu já'gora,
Eu nuncíi mais discorrerei comti<^o,
Meu caro preceptor, bordados campos;
Não me ha de alumiar tua doctrina,
Não, rico de despojos das florestas,
A^olverei quando os véos desdobre a Noute.
Oh dor! Oh desventura! Imagiuava
Que das flores a deusa, a mãe das flores
De ti colhesse, incólume, robusto.
Luz, e gloria immortal; que a Medicina
Segura desse pelo mundo inteiro
Passos audazes, sendo tu seu guia,
E que a fuga da rápida existência
Grau tempo, em teu favor, se retardasse.
Elle, expirando, elle, nos céos absorto,
A ti, que amava mais que as outras flores,
A ti, lustral emblema, e triste imagem
D'aquHlla morte porque todos vivem,
A ti, oh passiflora, inda sustinha
Não já languida mão, buscavam-te inda
A boca desmaiada, a vista errante;
De lagrimas piedosas te cubria,
E a alma exhalou, regando-te com ellas.
O plectro aqui me cáe da mão convulsa.
Aqui seu tei-mo a epistola me roga.
Cousas, prezado irmão, que rcmanecem,
Serão com brando verso em outra expostas.
NOTAS
CONSORCIO DAS FLORES
(Pag, 437, vers. 14)
O prestante Vaillant
Sebastião Vaillant, celebro botânico. (Natural de Vi-
gni, em França, nascido em 1669, e fallecido em 22 de
Maio de 1722. Escreveu varias obras, e entre ellas algu-
mas de grande merecimento.)
(Pag. 488, vers. 4)
Penetrei o que Rays não penetraram.
João Ray, illustre naturalisia. (Nascido em 1628, no
condado de Essex, em Inglaterra, e fallecido a 17 de Ja-
neiro de 1706. E' auctor de uma Historia das Plantas,
impressa em 1686, 3 volumes em folio, e de muitas ou-
tras obras.)
(Ibid., vers. õ)
E ignotos aos Malpighis soube arcanos. »
Marcello Malpighi, medico insigne. (Nasceu em Cie-
valmore, nos arredores de Bolonha, em 1628, e morreu
30
4Í6 OBRAS DE BOCAGE
em Eoma no palácio Quirinal em 29 de Novembro de 1694.
As suas obra8 foram colligidas e impressas em Londres,
1686, 2 vol. em folio, e varias veze» reimpressas.)
(Pag. 446^ vers. 1)
O borames assoma
Agnus Scgthicus, o cordeiro da Scythia.
(Pag, 459, vers. 2)
Mas a flor da tristeza, a pas^flora, etc.
Fios passionisj o martyrio.
(Pag. 462, vers. 24)
Da boca de Sherardo, attentos pendem, etc.
Guilherme Sherardo, famoso botânico.
N. I^. - - No volume v das Obras de Bocage, onde se lê
Fasfoí^, devia escrever-se Metamorphoses.
ÍNDICE
PlG.
Os Jardins ou Arte de aformosear as Paizagens. . . 5
Prologo do traductor T 7
Prologo do auctor 9
Canto I 13
» II 35
)) III 55
» IV. 76
Notas 103
As plantas 113
Prologo do traductor 115
Prefacção do auctor 119
Canto 1 123
,) 11 142
» III 162
» IV 181
Nomenclatura das plantas mencionadas n*este poe-
ma ' 199
Nomenclatura dos animaes, aves, etc 207
A Agricultura 209
Canto i — Das searas 211
» II — Das vinhas 242
)) III — Das arvores 268
» IV — Dos prados ^ 298
» V — Dos gados 328
» VI — Das aves 358
Notas 387
O Consorcio das flores 429
Dedicatória do traductor 431
Advertência 433
■>^mi^
^^"SÍM-
:^.^r
N^^tViál
^***^Mrá:^Í^' '*r<r