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Full text of "Obras poéticas de Bocage"

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Presenteei  to  the 

lAmLAKYofthe 

UNIVERSITY  OF  TORONTO 

by 

Professor 

Ralph  G.  Stanton 


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Bibliotlieca  da  ACTUALIDADE 


OBRAS  POÉTICAS 


BOCAGE 


VERSÕES 


DcUllr      i)A  JarfliiiH. 
/i',).'„v(7    -A  Aíj;ricul(nr{i. 


OBKAS  POÉTICAS 


BOCAGE 


VOLUME  VI 
Poemas  didácticos  traduzidos 


-^^^Dg3<^- 


PORTO 

IMPRENSA  PORTUGUEZA — EDITORA 
1875 


os  JARDINS 


ARTE  DE  AFORMOSEAR  AS  PAIZAGENS 


POEMA 


DM:ÍR.     IDEXiI3L.3LE 


TRADUZIDO  EM  VERSO 


Hic  inter  flumina  nota, 
Et  fontes  sacros  frigus  eaptàbis  opacum. 
Viro.  Eclog.  i. 


Entre  os  rios  aqui,  e  as  sacras  fontes 
Gosarás  em  repouso  a  sombra  amena. 

(Do  Traductor.) 


PROLOGO  DO  TRADUCTOR 


A  gloriosa  reputação  do  abbade  Delille,  como 
litterato,  e  como  poeta;  a  estima  geral,  dada  ao  seu 
poema  dos  Jardins^  onde  se  encontram  todo  o  ata- 
vio, toda  a  graça,  e  toda  a  philosophia,  de  que  é 
capaz  o  assumpto,  me  incitou  a  versiíical-o  em  vul- 
gar, apurando  n'isso  o  cabedal  que  possuo  em  poe- 
sia, cabedal  muito  inferior  ao  apreço,  e  acolheita, 
de  que  estou  em  divida  com  os  meus  compatriotas. 
O  amor  á  gloria,  e  á  gratidão  talvez  ainda  criem 
na  minha  alma  um  ardor  que  a  fecunde,  tornan- 
do-me  digno  do  affecto,  com  que  me  honra  o  pu- 
blico; e  entretanto  lhe  apresento  esta  versão,  a  mais 
concisa,  a  mais  fiel,  que  pude  ordenal-a,  e  em  que 
só  usei  o  circumloquio  nos  logares,  cuja  traducção 
litteral  se  não  compadecia,  a  meu  vêr,  com  a  ele- 
gância, que  deve  reinar  em  todas  as  composições 
poéticas. 


PROLOGO  1)0  AUCTOR 


Varias  pessoas  do  grande  merecimento  escre- 
veram em  prosa  acerca  dos  Jardins,  O  auctor 
d'este  poema  colheu  d'ellas  alguns  preceitos^  o  até 
descripções.  Em  bastantes  passagens  teve  a  dita  de 
encontrar-se  com  tão  bons  escriptores,  porque  este 
poema  foi  começado  antes  que  elles  publicnssem  as 
suas  obras.  Confessa  que  dá  ao  prelo  com  extrema 
desconfiança  uma  composiçcão  muito  esperada,  e 
engrandecida  de  mais:  a  indulgência  excessiva,  dos 
que  a  ouviram,  lhe  agoura  a  severidade,  dos  que  a 
lerem. 

Este  poema,  além  d'isso,  tem  um  grave  incon- 
veniente, o  de  ser  didáctico.  Tal  género  é  necessa- 
riamente um  pouco  frio,  e  mais  o  deve  parecer  a 
uma  nação,  que  lhe  custa  muito  (como  se  tem  ob- 
servado repetidas  vezes)  a  tolerar  versosr  em  não 
sendo  os  compostos  para  o  theatro,  os  que  pintam  as 


10  OBRAS  DE  BOCAGE 


paixões,  ou  as  baldas  dos  homens.  Poucas  pessoas, 
digo  mais,  até  poucos  litteratos  lêem  as  Geológicas 
de  Virgilio,  e  quasi  todos  os  que  aprenderam  latim 
sabem  de  cor  o  quarto  canto  da  Eneida, 

No  primeiro  d'estes  dous  poemas,  dá  o  poeta  a 
entender  que  sente  não  lhe  permittirem  os  limites 
do  seu  assumpto  cantar  os  Jardins.  Depois  de  ha- 
ver luctado  longamente  com  as  miúdas,  e  um  tan- 
to ingratas  particularidades  da  cultura  geral  dos 
campos,  a  modo  que  deseja  repousar  sobre  mais  ri^- 
sonhos  objectos.  Mas  estreitado  no  de  que  tracta, 
vinga-se  d'esta  subjeição  com  um  bello,  e  rápido 
esboço  dos  Jardins,  e  com  o  pathetico  episodio  de 
um  velho  feliz  no  seu  pequeno  campo,  que  elle  mes- 
mo cultiva,  e  enfeita. 

O  que  o  poeta  romano  sentia  não  poder  execu- 
tar, executou  o  P.  Rapin.  Escreveu  na  lingua,  e 
ás  vezes  no  estylo  de  Virgilio,  um  poema  em  qua- 
tro cantos  sobre  os  Jardins,  que  foi  mui  applau- 
dido,  n'um  tempo  em  que  ainda  se  liam  versos  la- 
tinos modernos.  A  sua  obra  não  é  despida  de  ele- 
gância; mas  quizera-se  que  abundasse  de  precisão, 
e  de  melhores  episódios. 

De  mais  o  plano  do  seu  poema  não  interessa, 
não  tem  variedade.  Um  canto  é  consagrado  ás 
aguas,  outro  ás  arvores,  outro  ás  flores.  Adivi- 
nha-se  o  comprido  catalogo,  e  a  enumeração  te- 
diosa, que  mais  pertence  ao  botânico  que  ao  poeta; 


PROLOGO  DO  AUCTOR  11 


e  aquelle  passo  methodico,  qne  assas  prestaria  n'uin 
tractado  em  prosa,  é  grande  defeito  n'uma  com- 
posição poética,  onde  o  espirito  pede  que  o  levem 
por  caminhos  um  pouco  desviados,  e  lhe  apresen- 
tem objectos  que  não  espera. 

Além  d'isto,  Rapin  cantou  Jardins  do  género 
regular,  e  a  monotonia  inherente  á  summa  regula- 
ridade, passou  do  assumpto  ao  poema.  A  imagina- 
ção, naturalmente  amiga  da  liberdade,  ora  vae  a 
custo  pelos  desenhos  enviezados  de  um  canteiro  de 
flores,  ora  morre  no  fim  de  uma  longa,  e  direita  ala- 
meda. Por  toda  a  parte  lhe  lembra  com  saudades 
a  formosura  um  tanto  desordenada,  e  a  chistosa 
irregularidade  da  Natureza. 

Émfim,  aquelle  auctor  não  tractou  senão  a  par- 
te mechanica  da  jardinagem.  Totalmente  esqueceu 
a  mais  imporíante,  a  que  procura  em  nossas  sen- 
sações, em  nossos  sentimentos  a  origem  do  prazer, 
que  nos  causam  as  scenas  campestres,  e  os  attra- 
ctivos  da  Natureza  aperfeiçoados  pela  arte.  Em 
summa,  os  seus  Jardins  são  os  do  architecto;  os 
outros  são  os  do  philosopho,  os  do  pintor,  os  do 
poeta. 

Este  género  tem  medrado  por  extremo  ha  an- 
nos,  e  se  isto  é  também  effeito  da  moda,  demos- 
Ihe  graças.  A  arte  dos  jardins,  a  que  se  poderia 
chamar  luxo  da  architectura,  parece  um  dos  entre- 
tenimentos mais  convenientes,  e  talvez  um  dos  mais 


12  OBRAS  DE  BOCAGE 


virtuosos  da  genfce  rica.  Como  cultura,  reconduz  á 
innocencia  das  occupações  campesinas;  como  ador- 
no apadrinha  sem  risco  a  paixão  dos  dispêndios,  que 
acompanha  as  grandes  fortunas:  finalmente,  esta 
arte  tem  para  similhante  classe  de  homens  o  du- 
plicado préstimo  de  participar,  ao  mesmo  tempo, 
dos  gostos  que  vogam  nas  cidades,  e  dos  que  exis- 
tem nos  campos. 

Este  prazer  dos  particulares  achou-se  ligado  á 
utilidade  publica :  fez  com  que  os  opulentos  folgas- 
sem de  habitar  as  suas  terras.  O  ouro,  que  susten- 
taria artifices  do  luxo,  vae  alimentar  os  cultivado- 
res e  a  riqueza  torna  á  sua  verdadeira  fonte.  Ac- 
cresce  a  isto,  que  a  cultura  se  enriqueceu  com  mui- 
tas, e  muitas  plantas,  ou  arvores  estrangeiras,  ag- 
gregadas  ás  producções  do  nosso  terreno,  e  isto 
vale  certamente  o  mármore  todo  que  perderam  nos- 
sos jardins. 

Feliz  este  poema  se  desparzir,  ainda  mais,  af- 
feições  tão  simplices,  e  puras !  Porque,  como  o  auc- 
tor  d'este  poema  o  disse  em  outra  composição, 

Quem  dos  campos  o  amor  inspira  aos  homens 
Também,  Virtudes,  vosso  amor  lhe  inspira. 


os  JARDmS 


C-A.I>T'rO  I^KIlvIEIDEtO 


Renasce  a  primavera,  influe,  e  anima 
As  aves^  os  Favonios,  flores,  Musas. 
Que  novo  objecto  á  lyra  os  sons  me  pede? 
Ah!, Quando  a  terra  despe  antigos  lutos 
Nos  campos,  nas  florestas,  sobre  os  montes 
Quando  tudo  se  ri,  tudo  se  inflamma 
De  amor,  e  de  esperança,  e  de  ventura, 
Outro  co'a  pbantasia  em  Phebo  acceza, 
Abra  os  fastos  da  Gloria  aos  grandes  nomes, 
N'um  carro  fulminante  alce  o  triumplio; 
Manche,  ensanguente  as  mãos  na  taça  horrível 
Do  vingativo  Atrêo:  sorriu-se  Flora, 
Vou  cantar  os  Jardins,  dizer  qual  arte 
Em  terreno  loução,  dispõe,  regula 
As  flores,  a  corrente,  a  relva,  as  sombras. 

Tu,  que  o  vigor,  e  a  graça  entrelaçando, 
Dás  ao  canto  didáctico  energia, 
Do  Lucrécio  na  voz,  se  outr'hora,  oh  Musa, 


14  OBRAS  DE  BOCAGE 

As  austeras  lições  amaciaste: 

Se  pôde  o  seu  rival  (sem  que  nos  lábios 

A  linguagem  dos  numes  desluzisse) 

Ao  laborioso  arado  unir  o  metro; 

Vem  mais  fértil  ornar,  mais  rico  assumpto, 

Assumpto  amável,  que  tentou  Virgílio. 

Mãos  não  lancemos  de  atavio  estranho; 

Das  minhas  mesmas  flores  vou  c'roar-me: 

Qual  pura  luz,  que  bella  nuvem  doura, 

A  expressão  tingirei  na  cor  do  objecto. 

Arte  innocente,  que  em  meus  versos  canto, 
Origem  teve  nos  cerúleos  dias. 
Nas  primaveras  do  recente  globo. 
Apenas  o  homem  submettêra  os  campos 
A  cultura  efficaz,  pôz  mil  desvelos 
De  viçosa  porção  no  tracto,  e  mimo; 
Alinhou  para  si  com  leis,  e  industria 
Plantas  selectas,  escolhidas  flores. 
De  Alcino  o  luxo,  o  gosto,  ainda  rude 
Punha  a  curto  vergel  módico  enfeite; 
Eis  com  arte  maior,  mais  sumptuosa 
Jardins  nos  ares  Babylonia  ostenta. 
Os  latinos  heróes,  de  Marte  os  filhos, 
Depois  que  Roma  agrilhoava  o  mundo, 
Davam  repouso  ameno  á  gloria,  ao  raio. 
Em  frescos  hortos,  que  a  victoria  ornara. 
Habitava  o§  jardins  óutr'hora  o  sábio, 
Doctrinando  os  mortaes  mais  ledo  que  hoje. 


POEMAS  DIDAOTKíOS  TRADUZI '.^OS  15 


Quando  a  sabedoria  elysios  teve, 
Éreis  vósj  dons  do  céo,  talvez  palácios? 
Não:  vós  éreis  um  prado,  um  rio,  um  bosque^ 
De  imperturbável  paz  ditoso  abrigo, 
Puras  delicias,  que  a  virtude  auhéla. 

Corra-se  pois,  que  é  tempo,  o  novo  espaço: 
Philippe,  e  o  bello  assumpto  a  voz  me  alentam. 

Para  aformosear  simples  terrenos 
Não  insulteis  co'a  pompa  a  Natureza; 
Este  emprf^go  requer  sisudo  artista, 
•Parco  em  disj)endios,  na  invenção  profuso; 
Jardim,  menos  fastoso  que  elegante, 
Jardim  eom  mais  belleza  que  atavio. 
Parece  aos  olhos  meus  mn  amplo  quadro. 
Sede  pintor:  o  campo,  os  seus  matizes. 
Os  reflexos  da  luz;  da  sombra  as  massas. 
As  estações,  e  as  horas,  variando 
O  giro  do  anno,  o  circulo  diurno; 
Ricos  esmaltes  de  cheirosos  prados. 
Dos  outeiros  o  alegre,  o  verde  forro. 
Aguas,  boninas,  arvores,  penedos: 
Eis  os  vossos  pincéis,  têas  e  cores. 
Podeis  ci"ear:  a  natureza  é  vossa, 
E  dóceis  para  vós  os  e^lementos. 

Mas  antes  de  jilantur,  antes  que  encete 
Instrumento  ini prudente  o  seio  á  terra, 
Para  dar  aos  jardins  mais  linda  forma 
Observai^,  reflecti,  sabei  d^  que  ai"te 


16  \,      OBBAS  DE  BíNCAGB 


Se  imita,  se  arremeda  a  natureza. 

Não  tendes  vezes  mil  em  ermos  sítios 

De  repente  encontrado  aquellas  vistas. 

Que  as  plantas,  que  os  sentidos  vos  suspendem, 

E  que  em  meditações  quietas,  longas 

Enlevam  manso,  e  manso  a  phantasia? 

Tudo  o  melhor  senhoreae  co'a  mente, 

Dos  campos  aprendei  a  ornar  os  campos. 

Logares,  que  subtil  decora  o  gosto, 
Olliae  também :  nos  escolhidos  quadros 
Ainda  lia  que  escolher;  por  vós  se  admire 
De  Cliantilli  magnifíca  elegância, 
Que  de  heróes  em  beróes,  de  edade  a  edade 
Ganha  novo  esplendor.  Beloeil,  a  um  tempo 
Campestre,  app:)ratoso,  e  tu  que  ainda 
Ufano  Chanteloup,  to  desvaneces 
De  teu  grande  senhor  com  o  desterro; 
Todos  vós  alternaes  o  bem  dos  olhos. 
Qual  purpúreo  botão,  mimoso,  e- breve, 
Timido  precursor  da  quadra  bella, 
O  amável  Tivoli,  de  forma  estranha 
A  França  descolDriu  ténue  modelo. 
Montreuil  as  Graças  desenharam  rindo, 
Maupertuis,  le  Desert,  com  que  alegria, 
Auteuil,  Rincy,  Limours,  quam  docem.ente 
Nas  vossas  lindas,  arejadas  ruas 
Olhos  se  embebem,  se  extraviam  passos! 
Do  grande  Henrique  a  venerável  sombra 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TEADUZIDOS  17 


Ama  ainda  Navarra,  e  parecido 

Comtigo  TrianoDj  deusa,  que  o  reges. 

Une  a  graça,  o  recreio  á  magestade, 

Se  adorna  para  ti,  por  ti  se  adorna. 

Grato  asjlo  d'uin  principe  adorável, 

Tu,  cujo  nome  de  apoucada  idéa 

E  indigno  de  ti;  logar  vistoso, 

Quando  lhe  devo  a  teu  senhor,  oíFVece: 

Um  plácido  retiro,  um  ócio  ledo. 

Bemíeitor  de  meus  versos,  de  meus  dias, 

Na  eleição  de  atilados  escriptores, 

Em  jardim,  que  do  Pindo  as  rosas  vestem, 

Inclue  a  Musa  minha,  e  brando  a  acolhe. 

Junto  ao  lyrio  soberbo,  e  magestoso 

Asâim  cresce  a  violrta  humilde,  e  escura. 

De  illustres  vates  não  illustre-  sócio, 

Ah !  se  coubera  em  mim  cantar  como  elles, 

Pintara  os  teus  jardins,  pintara  o  nume, 

Que  os  habita,  que  os  honra;  o  gosto,  as  artes, 

As  virtudes,  a  gloria,  os  bens  que  o  seguem, 

O  ladeam  em  ti.  Logar  formoso. 

Se  tu  sua  ventura.  Eu  se  algum  dia 

Ffndar,  por  graça  d'elle,  amena  estancia, 

Mais  beila  a  tornarei  co'a  bella  imagem 

Do  alto  meu  protector;  quero  que  sejam 

Minhas  primeiras  flores  seu  tributo. 

Para  o  busto  real  cultivo,  enlaço 

Em  virentes  festões  o  louro,  o  myrto, 


18  OBRAS  DE  BOCAGE 

Tão  caros  aos  Boiírbons;  e  se  o  repouso, 
A  liberdade,  as  sombras  me  inspirarem, 
Ao  bemfazejo  heróe  te  sagro,  oh  lyra. 

Fallei  d'esses  legares  deleitosos, 
Que  a  arte  deve  imitar:  convém  que  falle 
Dos  escolhos,  que  a  mesma  evitar  deve. 
O  engenho  imitador  também  se  engana: 
Não  dê  belleza  ao  chão,  que  o  chão  não  queira;. 
A  paragem  conheça  antes  de  tudo, 
Do  sitio  adore  o  Génio,  o  Deus  consulte: 
Impunemente  as  leis  não  se  lhe  aggravam. 
Nos  campos,  todavia,  a  cada  instante, 
Menos  audaz  que  oxtríinho  em  phantasias. 
Tudo  altera  e  confunde  artista  inerte, 
.E  desnaturalisa,  e  perde  tudo; 
Com  absurda  eleição  mil  graças  liga: 
Encantavam  na  Itália^  em  França  enjoam. 

O  que  o  terreno  teu  sem  custo  adopte 
Reconhece,  e  depois  te  apossa  d'elle. 
Isto  ainda  é  melhor  que  a  Natureza, 
Mas  isto  mesmo  é  ella,  isto  é  perfeito 
Quadro  brilhante,  que  não  tem  modelo. 
Dos  Berghems,  dos  Poussins  tal  foi  a  escolha^^ 
Do  ambos  estuda  as  producções  divinas: 
E  o  muito,  que  o  pincel  aos  campos  deve, 
Arte  cultivadora,  agradecida. 
Nos  jardins  restitua  á  Natureza. 

Os  terrenos  agora  se  examinem, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  19 


E  que  logar  se  apraz  das  leis,  que  traças. 
Houve  tempo  fatal  em  que  arte  infensa, 
Guerra  aos  mais  bcllos  sítios  declarando, 
Enchendo  os  valles,  arrazando  os  montes. 
Formou  de  chão  gentil  planicie  ingrata. 
Hoje,  rural  tvianno,  outro  artificio 
Quer,  por  contrario  abuso,  —  erguer  montanhas, 
Valles  quer  profundar.  Longe  os  excessos, 
Longe  as  lidas,  e  ardis:  tudo  é  baldado 
Contra  intractaveis,  repugnantes  serros; 
E  sobre  terra  egual  montinho  humilde 
Cuida  ser  pittoresco,  e  move  a  riso. 

Queres  a  teu  suor  logar  propicio  ? 
Foge  as  mui  desiguaes,  os  muito  planos 
Campos,  e  serras.  Eu  tomara  os  sitios 
Onde  sem  altivez  fosse  eminente 
A  rico  valle  matizado  outeiro. 
Não  tendo  insipidez,  lá  tem  brandura 
O  solo  complacente,  é  alto,  é  secco, 
Estéril  não,  não  rispido:  caminhai^; 
Obedece  o  horisonte,  ergue-se  a  terra, 
Ou  a  terra  se  abate,  aperta,  estende: 
Luzem  de  passo  a  passo  encantos  novos. 

Dos  gabinetes  no  silencio  triste. 
De  compasso  na  dextra,  embora  ordene 
Artiíice  vulgar  a  symetria 
D 'enfadoso  jardim,  confie  embora 
O  geométrico  plano  ao  papel  frio. 


20  OBRAS  DE  BOCAGE 


Tu  vae  ver  em  si  própria  a  Natureza. 

O  lápis  maneando,  ali  copia 

Este  aspecto,  estes  longes,  esta  altura, 

Meios  advinha,  obstáculos  presente: 

Só  a  difficuldade  é  mãe  de  assombros, 

E  o  chão  de  menos  graça  havel-a  pode. 

É  nu?  Florestas  a  nudez  lhe  amparem. 

É  coberto?  Os  machados  vão  despil-o. 

Húmido?  Em  lagos  de  crystal  pomposo, 

Em  ribeiros  fecundos,  transparentes 

Se  converta,  se  aclare  essa  agua  impura. 

Por  trabalho  feliz  corrige  a  um  tempo 

Melhora  as  aguas,  o  terreno,  os  ares: 

E  árido  talvez?  Procura,  sonda. 

Torna  ainda  a  sondar,  não  te  enfasties: 

Pode  ser  que,  em  traír-se  vagarosa, 

A  agua  de  rebentar  esteja  a  ponto. 

Tal  de  um  tenaz  esforço  eu  mesmo  anciado, 

Morna  individuação  maldigo,  entejo: 

Mas  de  estéril  objecto  aborrecido 

Idéa  graciosa  eis  surge,  eis  salta: 

O  verso  resuscita,  e  fácil  corre. 

Inda  mais  doces  que  estes  ha  cuidados. 
Arte  existe  inda  mais  encantadora. 
Falle-se  ao  coração,  não  basta  aos  olhos, 
As  invisiveis  relações  conheces 
Cesses  corpos  sem  alma,  e  doís  que  sentem? 
Das  aguas,  prados,  selvas  tens  ouvido 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  21 


A  calada  eloquência,  a  voz  occnlta? 
Todos  estes  effeitos  deves  dcir-rií)s. 
Do  alegre  ao  melancólico,  e  do  nobre 
Ao  engraçado,  os  trânsitos  sem  conto 
Sempre  me  aprazem  me  captivam  sempre. 
Un<^,  sirap]í'S,  e  granae.  forte,  e  bnindo, 
Todo  o  matiz j  que  a  todo  o  gosto  agrade. 
O  pintor  enriqueça  ali  a  idéa, 
A  sancta  inspiração  turbe  o  poeta. 
Ali  remansos  d'alma  o  sábio  gose, 
Memorias  o  ditoso  ali  disfructe, 
De  lagrimas  se  farte  o  miserando. 

Mas  a  audn.cia  é  commum,  e  o  si?o  é  raro, 
Grata  ás  vezes  se  crê  a  extravagância. 
Evita  que  os  efFoito^,  mal  unidos, 
De  incoherentes  imagens  formem  cabos; 
Ve  que  as  contradicções  não  são  contrastes. 

Estes  painéis  de  natural  pintura 
Requerem  longo  espaço;  em  quadro  estreito 
Não  vás  aprisionar  montanhas,  bosques, 
Nem  lagos,  nem  ribeiras.  E  costume 
Zombar  d'esses  jardins,  parodia  absurda 
Dos  rasgos,  que  a  atrevida  Natureza 
No  seu  grande  espectáculo  derrama; 
Jardins,  em  que  arte  rude,  e  inverosimil 
Um  paiz  todo  n'uma  geira  encerra. 

Em  vez  d'e3te  montão  confuso,  inerte. 
Varia  objectos,  ou  lhe  altera  a  face. 


22  OBKAS  DE  BOCAGE 


Perto,  longe,  patentes,  quasi  occultos, 
Revezem  todos  mil  diversas  vistas. 
Dos  eífeitos  seguintes  a  incerteza 
Grato  desasocego  aos  olhos  deixe. 
Ornamentos  o  gosto  emfim  colloque, 
Imprevistos  jamais  em  demasia, 
Jamais  em  demasia  annunciados. 

Presta  sobre  maneira  o  movimento; 
Sem  a  doce  magia,  a  elle  annexa, 
Em  lethargo  recáe  a  alma  ociosa. 
Sem  elle,  por  teus  campos  enfadonhos 
Em  giro  casual  vão  sempre  os  olhos. 
Citarei  outra  vez  altos  pintores  ? 
Lá  diffunde  o  pincel  pródigo,  e  fértil 
Moveis  objectos  sobre  o  panno  immovel: 
O  rio  foge,  o  vento  encurva  os  ramos. 
Globos  de  fumo  das  aldeãs  sobem, 
Os  gados,  os  pastores  brincam,  dançam. 
Cuida  em  te  apoderar  doeste  segredo, 
Dispõe  sem  parcimonia  arbustos  doces, 
Arvores  brandas,  cuja  aífavel  coma 
Das  virações  ao  hálito  obedece. 
Sejam  quaes  forem,  tu,  cultor,  venera 
A  vacillante,  undisona  verdura, 
Tolhe  que  o  ferro  a  Natureza  ultraje; 
EUa  co'a  mestra  mão  como  desenha 
D'esta  parto  os  carvalhos,  d'esta  os  olmos ! 
Olha  como  do  tronco  até  aos  ramos, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  23 


X)os  ramos  té  ás  folhas  desparzido 
Da  mãe  universal  benigno  influxo; 
Vae  das  undulações  dar-lhe  a  niolleza. 
Porém  golpes  cruéis . .  .  vedae  tal  crime, 
Correi,  nyifiphas  da  selva ...  ah !  Q'é  debalde, 
O  corte  cercou-lhe  a  gala,  o  viço. 
Já  na  copa  vivaz  não  ouço  ao  longo 
Correr  os  Aquilões,  bramir  na  rama, 
AíFastar-se,  expirar.  Tácitos,  frios. 
Mortos  do  ferro  os  vegetáveis  entes, 
D'elle  simelham  rispideza  immovel. 

Ás  plantas  deixa,  pois,  tremor  suave 
Nos  quadros  teus,  do  movimento  amigos; 
Faze  fugir,  ferver,  saltar  as  aguas. 
Vês  estes  valles,  solidões,  florestas? 
Por  vários  sitios  de  diversos  gados 
A  nédia  multidão  se  envie,  e  alongue. 
Além  vejo  a  cabrinha  roedora 
Pender  do  cume  de  remotas  penhas: 
Aqui  mil  cordeirinhos  melindrosos 
Soltam  queixumes,  que  de  serro  a  serro 
Vae  écco  em  molles  sons  amiudando. 
N'estes,  que  as  ngu.Ms  da  collina  sorvem 
Prados  lustrosos,  sobre  as  mãos  se  estende, 
E  ruminando  jaz  o  boi  pezado, 
Em  quanto  generoso,  altivo,  accezo,  - 
O  filho  do  Tridente,  o  mareio  bruto 
Ostenta,  vicejando,  em  pingues  pastos, 


24  OBRAS  DE  BOCAGE 


O  indómito  vigor,  e  o  brio  agreste. 
Quanto  me  atráe,  me  regosija,  quanto, 
A  audaz  agilidade,  o  gesto  activo! 
Ou  elle,  usado  ás  fluviaes  correntes. 
Sobre  ellas  se  arremesse,  estremecendo, 
E  luctando  depois,  c'os  pés  sacuda 
As  ondas,  que  murmuram,  que  branqueam^ 
Ou  atravez  dos  prados  salte,  e  fuja; 
Ou,  longa  crina  errante  aos  ventos  dada, 
Brotando  os  olhos  fogo,  as  ventas  fumo, 
Bello  de  orgulho,  e  amor,  voe  ás  amadas. 
Sumiu-se  já,  e  a  vista  ainda  o  segue. 

O  thesouro  exhaurindo  á  Natureza, 
Assim  terrenos,  vistas,  e  agua,  e  sombras 
Dão  ás  paizagens  movimento,  e  vida. 

Porém  se  o  movimento  encanta  os  olhos, 
De  liberdade  um  ar  não  menos  querem. 
O  limite  aos  jardins  fique  indeciso; 
Ou  cora  arte  se  esconda,  ou  se  disfarce. 
Não  ha  mais  que  esperar?  Voa  o  feitiço» 
Com  certo  dissabor  o  fim  se  toca 
De  uma  estancia  aprazível :  cedo  enfada, 
E  irrita, finalmente;  além  dos  muros, 
Importuna  barreira,  inda  se  ideam 
Logares  mais  gentis,  mais  attractivos, 
-E  a  alma  inquieta  desencanta  os    olhos. 
Quando  nossos  avós,  á  guerra  aíFeitos, 
Seus  campos  em  castellos  convertiam, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  25 


Cada  qual  em  munida,  enorme  torre 
Preso  vivia  por  viver  seguro. 
Mas  hoje  de  que  servem  taes  muralhas 
Que  o  temor  inventou,  mantém  o  orgulho? 

A  estes,  que  prendendo  outr'hora  a  vista, 
A  vista  duramente  entristeciam, 
Prefere  o  gosto  verdejantes  muros, 
Muros  tecidos  de  espinhoso  enredo. 
Muros,  por  onde  a  mão,  tremendo,  colhe 
A  rosa  inculta,  a  amora  ensanguentada. 

Mas  jardim  limitado  inda  me  ancêa. 
Surja-se  emíim  de  um  circulo  tão  breve 
A  género  mais  vasto,  e  mais  formoso, 
De  que  hoje  Ermenonville  é  só  modelo. 
Os  jardins  para  si  chamavam  campos. 
Vão  n'elles  os  jardins  entrar  agora. 

Do  cinto  d'esses  montes,  d'onde  os  olhos 
Paizagem  dilatada  abraçam,  medem, 
A  madre  Natureza  ao  Génio  disse: 
<(  Os  thesouros,  que  vês,  são  teus:  envoltos 
Na  rude  pompa,  na  opulência  bruta, 
Os  quadros  meus  tua  destreza  imploram.» 
Ella  diz,  elle  voa:  em  toda  a  parte 
Esquadrinha  esta  massa,  onde  repousam, 
Onde  dormindo  estão  bellezas  cento. 
Do  valle  á  serra,  da  floresta  ao  prado 
Vae  retocando  os  quadros,  que  varia. 
Dos  olhos  a  sabor,  une,  e  desune. 


26  OBRAS  DE  BOCAGE 


Illuniina,  escurece,  occulta^  ou  mostra: 

Não  destróe,  não  compõe,  corrige,  apura, 

O  esboço  aperfeiçoa  á  Natureza. 

Carrancudo  terror  já  despem  rochas, 

O  bosque  alegre  adoça,  encurta  as  sombras; 

Ia  perder-se  um  rio :  eis  o  encaminham ; 

De  um  lago  se  apodera  a  mão  geitosa, 

De  cristalina  fonte  se  enriquece. 

Quer,  e  veredas  mil  súbito  correm 

A  demandar,  cingir,  prender  os  membros. 

Por  aqui,  por  ali  soltos,  dispersos; 

Os  membros,  que  assombrados,  que  attraídos 

Da  engenhosa  união,  do  nó,  que  os  junta, 

Formam  de  cem  porções  um  todo  insigne. 

Talvez,  campestre  artifice,  te  espantem     ' 
Estes  grandes  trabalhos.  Entra  os  nossos 
Idosos  parques;  de  uma  vez  contempla 
Apuros  vãos,  dispendiosos  nadas; 
As  estacadas  vê,  regos,  e  tanques. 
Preço  menor  do  que  a  minúcias  coube 
Para  ornar  o  que  um  dia  apraz  somente. 
Podo  aformosear  um  campo  immenso. 
Fallaz,  e  semsabor  magnificência, 
Cáe  ante  esta  arte,  e  por  milagre  d'ella 
A  cara  pátria  minha  se  transforme 
Toda  em  vasto  jardim,  n'um  Éden  novo! 

Se  não  ousas  tentar  esta  carreira. 
Ao  menos,  franqueando  o  teu  circuito, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  27 

De  aspectos  opuleDtos  o  engrandece. 

De  um  vallcj  um  serro,  uns  agradáveis  longes 

Ajunta  posse  alhêa  á  posse  tua : 

Rege  co'a  vista,  pelos  olhos  gosa. 

Õs  varioSj  favoráveis  accidentes, 
Com  que  innumeros  campos  se  distinguem, 
Une  principalmente  a  teus  plantios. 
Aqui  jaz  um  logar,  que  cingem  bosques, 
Acolá  torreões  cidades  cVoam, 
E  a  grimpa  azul,  ferindo  ao  longe  os  olhos, 
Vae  sumir  pelos  céos  o  agudo  extremo. 

Um  rio  omittirei,  e  as  margens  suas? 
Apoz  fogazes  velas  corre  a  vista. 
Ilhas  ás  vezes  saem  do  vitreo  seio, 
Ponte  arqueada  outr'hora  o  furta  aos  olhos. 

Se  os  mares  espaçosos  descortinas, 
OíTrcce,  mas  varia  a  grave  scena. 
Mal  se  divise  aqui  por  entre  as  folhas, 
Uma  abóbada  além,  qual  no  remate 
De  tubo  extenso,  aos  olhos  o  apresente 
Em  fundo  de  odoriferas  latadas; 
Nas  voltas  de  florente  bosquesinho 
Aqui  se  encontra  o  mar,  ali  se  perde: 
Eis  súbito  apparece  em  toda  a  sua 
Fervente,  rugidora  immensidade. 

Folgue  a  attençâo  n^estes  semblantes  vários; 
Mas  com  mesquinhas  mãos  (cumpre  que  o  diga) 
Os  homens,  natureza,  o  tempo,  as  artes 


28  OBRAS  DE  BOCAGE 

Nos  cercam  de  tão  ricos  accidentes. 

Oh  planícies  da  Grrecia!  Ausonios  campos! 
Legares  divinaes,  inspiradores, 
Sempre  caros  ao  génio!  Ah!  quantas  vezes 
Embebido  n'um  magico  horisonte, 
O  pintor  vê,  se  inflamma,  e  toma  o  lápis, 
E  debuxa  esses  longes,  essas  ilhas, 
Esse  pego,  esses  portos,  esses  montes, 
Torrados  de  vulcões,  e  já  fecundos; 
As  lavas  d'elles,  que  ameaçam,  fervem, 
Palácios,  que  em  ruinas  de  o  atros  surgem, 
Um  novo  mundo,  que  do  velho  assoma 
N'estes  de  terra,  e  mar  longos  tormentos, 
Ah!  Eu  ainda  não  vi  essa  risonha, 
Essa  encantada  estancia,  onde  mil  vezes 
Soou  do  Mantuano  a  voz  divina : 
Mas,  pelo  vate,  pelo  vate  o  juro, 
Hei  de,  Apenino,  transcender  teus  cumes, 
E  cheio  do  seu  nome,  e  de  seus  versos, 
Lêl-os  n'aquelles  amorosos  sitios, 
Sitios,  cópia  do  céo,  que  os  inspiraram. 

De  encantadoras  margens  namorado, 
Por  fora  ingratos  campos  tens  somente 
Em  vez  de  aspectos,  que  interessem  a  nlma? 
De  extranha  vista,  que  atedía  o  gosto, 
Vinguem-te  objectos  de  mais  bella  escolha. 
Aprende  a  deleitar-te  em  teu  recinto, 
Se  o  emblema  do  sábio  independente, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  29 


Que  entra  em  si  mesmo,  e  que  se  apraz  cornsigo: 
N'esse  asylo  fiel  nos  entranhemos. 

Todavia  em  logares  onde  a  terra 
De  aspectos  variados  mais  abunde, 
Os  thesouros  da  vista  é  bem  que  poupes, 
E  seja  leve  giro  o  custo  d'elles. 
A  arte  os  prometta,  os  olhos  os  esperem; 
Dá  quem.  promette,  quem  espera  gosa. 
Releva  que  enfeitices,  não  que  assombres. 

Entre  minhas  lições  também  quizera 
Duas  artes  de  efFeitos  encontrados: 
Uma  os  olhos  adverte,  outra  os  saltêa. 

Mas  antes  de  dictar  preceitos  novos, 
Dous  géneros,  ha  tempo  émulos  ambos, 
Disputam  nossos  votos.  Um  presenta 
De  regular  desenho  a  ordem  grave. 
Aos  campos  dá  bellezas  que  ignoravam, 
De  pompa  desusada  os  atavia, 
E  ás  arvores  põe  leis,  põe  freio  ás  ondas; 
Brilha  entre  escravos,  déspota  orgulhoso: 
E  mais  em  magestade,  em  riso  é  menos. 

Da  Natureza  respeitoso  amante, 
O  outro  lhe  ajusta  comedido  enfeite, 
Tracta  benio:namente  os  feiticeiros 
Caprichos  seus,  o  seu  desleixo  nobre, 
O  passo  irregular,  e  extráe  com  arte 
Lindezas  da  desordem,  té  do  acaso. 

Cada  qual  tem  seu  jus,  nenhum  se  exclua; 


30  OBRAS  DE  BOCAGE 


Entre  Kent,  e  le  ísTotre  eu  não  decido. 

Ánibos  tem  leis,  tem  gniças:  um  creou-se 

Para  grandes,  e  reis:  oh  reis!  oh  grandes^ 

Sois  á  magnificência  condemnados. 

Em  torno  a  vós  o  esforço,  o  extremo,  o  apuro 

De  alto  poJer  se  espera;  ali  queremos 

Que  em  prodígios  o  luxo,  o  gosto,  as  urtes 

Excitem  pasmos,  embriaguem  vistas. 

Rebelde  a  Natureza  á  Industria  cede; 

Mas  deve  gran  triumpho  honrar  a  Industria;  * 

El!a  em  seu  esplendor  tem  seus  direitos, 

É  umn  usurpadora,  e  lhe  compete 

A  força  de  grandeza  obter  desculpa. 

Longe,  pois,  os  jardins  desengenhosos, 

Insulsa  estancia,  de  que  o  dono  insulso 

As  arvores  garridas  fofo  exalta. 

Os  pequenos  salões  bem  decotados, 

A  extrema  symictria  escrupulosa. 

Passeios,  onde  nunca  solitária 

Alameda  não  ha,  que  irmã  não  tenha; 

Caminhos  desgostosos,  enjoados 

Da  obediência  ao  cordel,  os  seus  canteiros 

Bordados,  e  os  seus  ténues  fios  de  agua; 

Das  arvores  algumas  torneadas 

Em  vasos,  em  pjramides,  em  globos, 

E  alçados  bem  na  base  os  pastorinhos. 

Gabe  o  seu  luxo  pobre:  eu  anteponho 

Um  campo  bruto  a  seu  jardim  tristonho. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  31 


Distante  d'estes  mínimos  portentos, 
Segue  meu  voo  á  pátria  dos  prestígios. 
Vô  Versailles,  Marly,  pomposos,  ledos, 
Onde  Luiz,  e  a  Natureza,  e  a  Arte 
Em  tanta  cópia  desparziram.  graças. 
Que  afouto  resplandece  ali  o  engenho  ! 
Ali  tudo  é  grandeza,  é  tudo    encanto, 
Siio  de  Alcina  os  jardins,  de  Armida  os  paços, 
Antes  os  de  um  heróe,  que  inda  procura 
Vencer,  domar  obstáculos,  sublime 
Em  seu  retiro,  em  seu  repouso  e  sempre 
Caminha,  de  milagres  circiimdado. 
Aquelias  aguas  vês,  a  terra,  os  bosques  ? 
Submettidos  também,  seu  jugo  adoram. 
Das  arvores  á  verde  architectura 
Olha  com  que  elegância  estão  casados 
De  forma  singular  palácios  doze! 
Vê  bronzes,  que  respiram,  ve  coerentes 
Que,  soltas  da  repreza,  esbravejando, 
Em  grossos  borbotões  de  fofa  espuma 
Caem,  e  se  estendem  por  canaes  soberbos; 
Em  lustrosa  espadana  alem  se  espalham, 
Em  j)avêas  brilhantes  cá  se  elevam, 
E  nos  benignos  ares  incendidas 
De  um  sol  immaculado,  eis  chovem  gotas 
Cor  de  ouro,  de  saphira,  e  de  esmeralda. 
Selvas,  por  onde  alísorto  me  extravio 
Os  Sátyros,  os  Faunos  vos  povoam, 


32  OBRAS  DE  BOCAGE 


Em  vós  Diana  influe,  e  Cjtlieréa; 

E  cada  bosquesiolio  em  vós  um  templo, 

Cada  mármore  um  deus.  Luiz,  folofaudo 

Do  pezo  marcial,  do  horror  da  guerra, 

Como  que  nVsta,  a  Jove  idónea  estancia. 

Convida  todo  o  Olympo  a  seus  festejos. 

N'cstes  grandes  effeitos  é  que  importa 

Que  a  arte  se  esmere,  avulte,  e  brillie,  o  encante» 

Facilmente  porém  o  assombro  pézíj. 
Louvo  o  orador,  que  erguidos  pensamentos 
Na  luz,  na  pompa,  na  cadencia  envolve; 
Mas  é  curto  prazer,  e  o  deixo,  e  corro 
A  escutar  corações  na  voz  de  amioos; 
Mármores,  bronzes,  que  alardêa  o  luxo. 
Arte  ostentosa  em  breve  os  olhos  cança. 
Mas  íis  correntes,  o  arvoredo,  as  sombras, 
Este  luxo  innocente,  ah !  não  fatiga. 
Não  fatiga  jamais.  Deus  mesmo  aos  homens 
Traçou  este  modelo.  Attenta  em  Milto]i: 
Quando  essa  eterna  mão,  que  rege  tudo, 
Aos  primeiros  mortaes  guarida  apresta, 
Regulares  caminhos  abre  acaso, 
Talvez  captiva  na  carreira  as  ondas? 
De  impróprias,  de  forçadas  vestiduras 
(Jobre  a  infância  do  mundo,  a  primavera 
Becemnascida?  Não,  sem  arte  alguma, 
E  sem  constrangimento,  a  Natureza 
Estreou,  exhauriu  delicias  puras, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  33 


Delicias  puras,  que  nem  ha  na  idéa. 
O  mixto  amável  de  planicie,  e  monte, 
Livres,  e  moUemente  errando  as  aguas, 
Veredas  tortuosas,  e  indecisas. 
Gratas  desordens,  novidades  gratas, 
Aspectos,  onde  os  olhos  mal  sabiam 
Escolher,  preferir,  tudo  alongava, 
Entretinha  o  prazer  na  variedade. 
Sobre  viçoso  esmalte  avelludado 
Mil  arvores,  mil  plantas,  mil  arbustos, 
D 'estes  logares  ondeante  adorno, 
Iman  da  vista,  do  sabor,  e  olfato. 
Em  grupos  elegantes,  movediços, 
Em  natural,  dispersa  negligencia, 
Já  se  fugiam,  já  se  avisinhavam. 
Seu  brando  movimento  ao  longe  ás  vezes 
Inopinada  scena  aos  olhos  dava, 
Ou  com  pendor  gentil  curvando  a  rama, 
Aos  passos  vinham  pôr  suave  estorvo; 
Ou  sobre  as  frontes  em  festões  pendiam, 
Ou,  na  passagem j  lhe  entornavam  flores. 
Lindos  bosques  direi  de  tenras  plantas, 
'Em  latadas,  e  abóbadas  travando 
Troncos  florentes,  e  florentes  braços? 

Lá  de  imaginações,  queridas,  ternas, 
Cheios  a  monte,  o  coração,  e  os  olhos, 
Deu  Era  ao  bello  amante  a  mão  mimosa, 
E  corou  como  a  Aurora  ás  portas  de  ouro. 


34  OBRAS  DE  BOCAGE 


A  natureza  toda  os  afagava. 

O  céo  co'a  luz,  com  seu  murmúrio  as  ondas; 

Tremendo  a  terra  lhes  sentia  os  gostos; 

Favonio  aos  éccos  os  suspiros  dava; 

O  arvoredo  rugia,  e  curva  a  rosa 

Cedia  ao  toro  seus  perfumes  todos. 

Oh  ventura  ineíFavel,  par  tranquillo ! 
Feliz  quem,  como  vós,  nos  seus  amados^ 
Bonançosos  jardins,  longe  dos  males 
Que  a  soberba  atormentam,  vive  rico 
De  flores,  fructos,  innocencia,  e  gosto ! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  35 


C.A.ISrTO    SEOXJISriDO 


A  lyra,  que  03  rochedos,  que  as  florestas 
Ao  Hhodope  attraía,  oh  se  eu  tivesse! 
EUa  fallára,  e  súbito  arvoredos 
Sobre  as  paizagens  lançariam  sombras; 
A  laranjeira,  o  til,  carvalhos,  cedros 
Viriam  nos  meus  campos  collocar-se 
Em  pasmosa  cadencia,  em  ordem  bella: 
Mas  perdeu  a  harmonia  os  seus  milagres, 
A  lyra  já  não  reina,  a  penha  é  suixla,    *" 
A  arvore  immovel  fica  aos  sons  mais  gratos; 
Dous  mamcos  ha  só:  trabalho,  e  arte. 

Aprende,  pois,  que  industria,  e  que  desvelo 
Prestam  mimo,  ou  riqueza  ás  varias  plantas. 

Pela  ridente  cóps,  a  flor,  e  o  fructo 
A  arvore  é  dos  j*irdÍ7is  primeiro  ornato. 
Para  agradar,  quantas  figuras  toma, 


36  OBRAS  DE  BOCAGE 

Quantas  figuras!  Acolá  se  estendem 
Pomposamente  seus  informes  braços; 
Brando,  e  ligeiro  além  se  eleva  o  tronco, 
Aqui  lhe  admiro,  lhe  namoro  a  graça, 
A  magestade  alli.  Roçada  apenas, 
Da  menor  viração,  lhe  ondêa  a  rama, 
Ou  contra  os  furacões  arrebatados 
Firma  o  corpo  nodoso,  a  rija  fronte; 
Dura^  ou  molle,  se  inclina,  ou  se  levanta, 
Prothêo  dos  vegetaes,  a  cada  instante 
Muda  o  feitio,  a  cor,  verdura,  e  fructos 
Para  dar  novo  brilho  á  Natureza. 

Eis  os  thesouros  teus,  oh  arte,  e  o  gosto 
Prohibe  que  sem  ordem  se  dispendam. 

Das  varias  plantas  a  extensão,  e  a  forma 
Se  oíFVece  aos  olhos  em  aspectos  vários. 
Ora  selva  profunda,  inculta,  e  negra 
Derrama  sombra  immensa,  ora  apparece 
Bosque  risonho  de  arvores  formosas. 
Em  ventilados  campos  mais  ao  longe 
Os  olhos  chamam,  a  attenção  dominam 
Distribuidos,  primorosos  grupos. 
Fiando-se  na  própria  louçania. 
Só,  n'outra  parte,  uma  arvore  pompêa, 
Só  ella  exorna  o  chão.  Tal,  se  é  possivel 
Que  a  paz  dos  campos  assimelhe  a  guerra, 
Cerrados  batalhões,  dispersas  turmas, 
Numero,  e  forças  ante  nós  ostentam; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TEADUZIDOS  37 


E  altivo  do  seu  nome,  e  sustentado 
Na  sua  intrepidez,  á  frente  d  'elles 
Um- só  heróe  se  avança,  e  todos  vale. 
Diversas  plantações  têm  leis  diversas. 

Nos  jardins  do  artificio  em  outros  tempos 
Olhava  o  luxo  com  desdém,  com  tédio 
As  isoladas  arvores,  e  ao;ora 
Aprazem  nos  jardins  da  natureza. 

Por  capricho  feliz,  sisudo  acaso, 
Estas  desproporções  tem  attractivos, 
Difiram  na  distancia,  aspecto,  e  forma, 
Sempre  a  grandeza,  ao  menos  a  elegância, 
Distingua  a  planta,  ou  ella,  envergonhada. 
Por  entre  a  multidão  desappareça. 
Mas  se  um  carvalho,  ou  plátano  longevo, 
Patriarcha  dos  bosques,  ergue  a  fronte 
Sombria,  venerável,  toda  a  tribu 
Disposta  emtorno,  com  respeito  o  esquive, 
Lhe  foça  corte.  Agradará  d'est'arte 
A  arvore,  que  isolada  o  campo  adorna. 

Com  mais  escolha  ainda,  e  com  mais  gosto 
Os  grupos  te  darão  prestantes  quadros. 
De  arvores  mais,  ou  menos  vigorosas. 
Em  numero  qualquer,  pequeno,  ou  grande 
Fórraa-lhe  a  massa  espessa,  ou  leves  tufos: 
Este  povo  de  irmãos  apraz  ao  longe, 
Podes  por  elles  variar  desenhos; 
Com  elles  se  aproximam,  se  removem. 


o 8  OBRAS  DE  BOCAGE 


Se  afastam,  se  reúnem  perspectivas^ 

E  com  elles  também  sobre  as  paizagens 

Se  dobra,  ou  se  desdobra  c  véo  das  sombras. 

Formáram-se  teus  grupos:  é  já  tempo 
Que  a  um  tanto  de  arte  os  bosques  se  habituem. 

Bosques  augustos  I  Bosques  venerandos ! 
Eu  vos  acato,  eu  vos  saúdo:  as  vossas 
Poéticas  abobadas  não  ouvem 
Já  do  bardo  feroz  o  horrivel  canto; 
Um  delírio  mais  doce  em  vós  habii-i. 
Vossas  grutas  ainda  em  verso  iustruem. 
Ermos  antigos,  miigestosas  sombras, 
Vós  inspiraes  os  meus:  ah!  dae  que  eu  possa 
Com  respeitosa  mão  tocar- vos  hoje, 
E  que,  sem  profanar,  aformosee: 
De  vós  aprender  quero  a  adereçar-vos. 

Arvoredos  expôr-se  aos  olhos  podem 
Em  milhares  de  aspectos.  D'este  lado 
Pressos  troncos  as  sombras  lhe  carreguem: 
Alegre-se  acolá  de  luz  escassa 
A  redolente  estancia,  travem  n'ella 
Combate  deleitoso  a  noule,  e  o  dia: 
Mais  além,  signalando  o  chão  co'as  folhas, 
Sobre  os  claros  dispersas  tremam  plantas; 
Porque,  umas  para  as  outras  fluctiiandò, 
E  sem  ousar  tocar-se,  ao  mesmo  tempo 
Pareça  que  se  fogem,  que  se  buscam. 
O  bosque  assim  por  ti  perde  a  aspereza ; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  39 


Mas  seu  grave  caracter  não  desmanches; 
Com  miúdos  objectos,  mui  frequentes 
Não  se  interrompa,  não  se  altere  o  todo. 
Um  seja  simples,  gr^inde,  e  toda  a  pompa 
Com  alguma  rudez  a  arte  lhe  deixe. 
Apresenta  esses  troncos  destroçados; 
Quero  ver,  e  seguir  negras  torrentes, 
Pelas  quebradas  concavas  fervendo. 
D'agua,  do  tempo,  do  ar  mantêm  vestígios; 
Venera  do  rochedo  os  ameaços, 
Deixa-o  pender,  e  em  fim  tudo  respire 
Sivestre,  vigorosa  formosura 
Sobre  o  terreno  masfestoso.  Ao^rada 
Assim  de  um  bosque  a  rústica  nobreza. 

Com  menor  altivez,  com  mais  brandura 
Um  bosquesinho  offrece  amenos  quadros: 
Quer  bellos^  sitios,  e  contornos  bellos; 
Foge,  torna,  em  rodeios  vae  perder-se; 
Entre  flores  estende  aguas  serenas. 
E  cuido  que  inda  n^elle,  embriagado 
De  um  extasis  suave,  em  ócio  puro, 
As  lições  do  prazer  dieta  Epicuro. 

Mas  não  basta  que  em  selva,  ou  bosquesinho 
Haja  riqueza  ou  elegante,  ou  bruta, 
Cumpro  ornar  com  primor  seus  exteriores. 
Não  vás,  symetrisando-lhe  os  limites. 
Cora  recendentes  muros  occultar-nos 
Dos  bosques  as  innumeras  familias. 


40  OBRAS  DE  BOCAGE 

Ver  quero,  penetrando  o  centro  agreste, 
Crescer  a  um  tempo  as  arvores  diversas, 
De  vigor  juvenil  umas  brilhantes, 
Outras  todas  decrépitas,  nodosas, 
Estas  rasteiras,  languidas,  e  aquellas, 
Tyrannos  das  florestas,  esgotando 
Da  substancia  o  tributo  a  seus  vassallos: 
Scena  em  que  a  idéa  vê  com  gosto  imagens 
Das  edades,  da  vida,  e  dos  costumes. 

A  par  d'estes  effeitos,  que  valia 
Terão  verdes  reparos,  cuja  íorma 
Entristece,  importuna,  afflige  os  olhos, 
Forma,  que  é  sempre  egual,  nunca  inesperada? 
Oh  delicias  da  vista!  Oh  variedade! 
Acode,  vem  romper  nivel  insulso. 
Triste  esquadro,  e  cordel  fastidioso. 

De  matiz  acertado,  interessante 
As  estremas  dos  bosques  se  guarneçam; 
E  a  uniformidade  ingrata  aos  olhos; 
Da  que  vêem  nos  jardins  elles  se  enfadam, 
Á  sua  extremidade  elles  se  avançam, 
Folgam  de  discorrer  a  inopinada 
Forma,  que  lustra  nos  limites  vários. 
Em  giros  mil  brincando  a  vista  errante. 
Ou  com  elles  se  entranha,  ou  sáe  com  elles,. 
E  nos  diversos,  flo  recentes  quadros 
De  distancia  em  distancia  alegre  pousa. 
O  bosque  se  engrandece,  e  a  cada  passo 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  41 

Seus  rodeios  varia,  e  seus  encantos. 

A  forma,  pois,  se  lhe  desenhe,  e  logo 
As  arvores  se  escolham,  a  que  o  gosto 
Prescreve  o  sacrifício;  mas  sê  tardo, 
Condemna  devagar,  condemna  a  custo: 
Antes  de  executa r-se  a  lei  severa, 
Ah !  vê  que  manso,  e  manso  as  cria  o  tempo^ 
E  altêa  manso,  e  manso;  que  impossível 
É  a  todo  o  ouro  teu  remir-lhe  as  sombras, 
E  que  já  lhe  deveste  um  fresco  amparo. 

Duro  possuidor,  com  tudo,  ás  vezes, 
E  sem  necessidade,  e  sem  remorso, 
Aos  golpes  do  machado  as  abandona. 
Eis  sobre  o  seio  da  indignada  terra 
As  miseras  baquêam,  seccam,  morrem; 
Para  sempre  d'ali  com  magoa  voam 
Doces  meditações,  cautos  amores. 
Ah !  Por  estes  sagrados  arvoredos, 
Que  aos  bailes  pastoris  prestavam  sombra, 
Por  estas  densas  comas,  que  abrigaram 
Vossos  avós,  tende  attenção,  profanos, 
Cos  troncos  rehgiosos.  Já  que  os  evos 
N'elles  a  robustez  inda  consentem. 
Não  lhe  aíFronteis  a  ancianidade  augusta. 
Tem  de  raiar,  tem  de  raiar  em  breve 
O  dia  em  qu3  estes  bosques  desmaiados, 
Para  ceder  o  império  a  tenras  plantas, 
Da  excelsa  fronte,  succumbindo  ao  ferro, 


42  OBRAS  DE  BOCAGE 


Verão  no  pó  murchar-se  a  honra  antiga. 

Oh  Versaiiles!  Oh  dor!  Oh  vós  florestas, 
De  celeste  apparencia!  Maravilhas, 
Que  fez  um  grande  rei,  Lenotre,  e  os  annos! 
Eis  soa  o  corte;  vosso  termo  é  vindo. 
Arvores,  cuja  audácia  ás  nuvens  ia. 
Feridas  na  raiz,  no  ar  balançando 
Suas  copas  louçans,  que  abala  o  ferro. 
Já  dão  ruidosa  queda,  e  já  seus  troncos 
Vão  alastrando  ao  longe  esses  passeios, 
Que  de  frescas  abobadas  cubriam 
Oom  seus  pomposos,  estendidos  braços. 
O  estrago  se  atreveu  aos  arvoredos ^ 
Cuja  gloriosa  fronte  a  fronte  heróica 
De  Luís,  o  magnânimo,  assombrava  ! 
Destruíram-se  bosques,  onde  as  aries, 
Mais  suaves  conquistas  celebrando. 
Multiplicavam  festivaes  prazeres ! 
Amor,  que  é  feito  do  encantado  abiigo, 
Que  ouviu  de  Montespan  gemer  o  orgulho? 
Que  é  do  retiro,  onde  tão  meiga,  e  bella. 
Ao  de  ouvil-a  attraído,  absorto  amante 
La  Valiere  exprimiu  segredos  ternos. 
Rendida  suspirou,  sem  crer-se  amadíi? 
Tudo  cáe,  tudo  acaba;  ao  som  terrivel 
D'esta  destruição,  não  vês,  não  sentes 
Alígero  tropel  fugir  medroso  ? 
Este  volátil  povo,  alegre,  ufano 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  43 


De  habitação  tão  bella^  e  que  entoava 
Dos  monarchas  no  asylo  os  seus  amores, 
Com  dôr  se  ausenta  dos  saudosos  lares. 
DeuseSj  de  que  estes  pórticos  honrara 
Estremado  cinzel,  deuses,  vestidos 
De  verdes,  molles  véos,  ainda  ha  pouco, 
Pela  perdida  sombra  estão  carpindo, 
Mostram-se  da  nudez  envergonhados; 
E,  receando  os  olhos,  Vénus  mef.ma, 
Vénus  se  assombra  de  se  ver  despida. 
Appressae-vos,  crescei,  mimosas  plantas, 
Tornae  a  povoar  a  estancia  cara! 
Arvores  semimortas,  consolae-vos! 
Vós,  testemunhas  da  fraqueza  humana, 
De  Corneille,  e  Turenna  os  fados  viste >, 
Vistes  morrer  o  heróe,  morrer  o  vate: 
Ao  menos,  já  contaes  cem  primaveras, 
E  os  nossos  dias  de  mr.is  luz,  mais  gloria 
Ah!  voam  logo,  e  para  sempre  voam. 

Feliz  d'aquelle,  que  possue  um  bosque 
Formado  pelo  tempo !  Mas  ditoso 
Também  quem  para  si  pôde  creal-o! 
Estas,  que  vão  medrando,  arvores  bellas, 
Eu  fui  o  que  as  plantou  (diz  como  Cyro) : 
Tu,  pois,  se  inda  dispor  das  tuas  podes, 
Teme  que  antes  de  tempo  ellas  rebentem. 
Assim  como  o  pintor  que,  demorando 
Indiscreto  pincel  na  mão  sabida, 


44  OBRAS  DE  BOCAGE 

Longamente  co'a  idéa  esboça  os  quadros: 

Tu  dos  desenhos  teus  medita  a  ordem; 

O  valor,  a  efficacia  dos  aspectos, 

E  dos  sitios  conhece;  e  o  attractivo 

Dos  bosques  nas  colinas  pendurados, 

E  a  gala  dos  que  em  plano  a  sombra  estendem. 

Como  as  amigas  formas,  como  as  cores 
Amigas,  te  é  proveito  conheceres 
As  adversas  também.  O  freixo  altivo, 
Arremessando  ao  ar  comprida  rama, 
O  inclinado  salgueiro  aborrecera: 
Do  álamo  oppõem-se  o  verde  ao  do  carvalho; 
Mas  taes  ódios  temperam-se  com  arte: 
Elege  por  feliz  intercessora 
Uma  arvore  mean,  que  os  concilie. 
D'esta  sorte  Vernet,  com  maga  tinta 
De  duas  cores  a  discórdia  extingue. 
Conhece,  pois,  o  emprego,  a  serventia 
Das  diíFVentes  verduras,  ou  brilhantes. 
Ou  sem  lustre,  mais  mortas,  ou  mais  vivas. 
Com  taes  alterações,  com  taes  matizes 
No  seio  das  paizagens  se  variam 
Formosamente  as  sombras,  se  produzem 
Effeitos  ora  doces,  e  ora  fortes. 
Grandes  contrastes,  ou  gentis  concordias. 

Observa-as  maiormente' quando  o  outono 
Perto  de  vêl-a  murcha  enfeita  a  c'roa: 
Que  pompa !  Que  esplendor !  Que  variedade ! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  45 


A  cor  alaranjada,  a  cor  purpúrea, 
A  opálica  viveza,  a  do  encarnado 
Ostentação  de  seus  thesouros  fazem. 

Ai !  Todo  este  esplendor  lhe  agoura  a  queda ! 
Eis  o  fado  commum !  Depressa  os  Euros 
Hão  de  espalhar  pelos  profundos  valles 
Os  despojos  selváticos:  a  folha 
Caindo,  já  distráe  de  quando  em  quando 
O  solitário  pensador;  mas  estas 
Mesmas  ruínas  para  mim  são  gratas; 
Ali,  se  fundas  queixas  nutro  n'alma. 
Ou  assanhar-me  a  chaga  vem  memorias, 
Gosto  de  misturar,  de  ver  conforme 
O  luto  meu  da  Natureza  ao  luto. 
Dos  seccos  bosques,  dos  raminhos  murchos 
Me  apraz  pizar  fragmentos,  só,  e  errante. 
Dias  de  embriaguez,  e  de  loucura. 
Os  mentirosos  dias  já  voaram; 
Terna  melancolia,  a  ti  me  entrego. 
Vem,  mas  não  de  atras  nuvens  carregada, 
Onde  se  envolve  a  tenebrosa  angustia : 
Por  entre  véo  ligeiro  a  vista  branda 
Dirige  á  terra,  aos  céos,  como  no  outono 
Os  vapores  traspassa  um  tibio  dia: 
Traze,  oh  dos  vates,  dos  amantes  sócia, 
Sereno  o  rosto,  os  olhos  pensativos, 
E  a  deleitosas  lagrimas  propensos. 

Mas  em  quanto  minha  alma  se  apascenta 


46  OBRAS  DE  BOCAGE 


N 'es tas  idéas,  mil  floridas  castas 

De  fragrantes,  de  trémulos  arbustos 

Chamando  estão  por  mim.  Vem,  lindo  povo, 

Tu  entre  a  arvore,  e  a  flor  tu  és  o  meio. 

Es  como  a  transição.  Teus  delicados 

Caracteres  ao;ora  a  scena  enfeitem. 

Oli!  se  não  me  instigasse  o  largo  assumpto, 

Se  ao  termo,  que  me  espera,  eu  não  corresse, 

Que  jubilo  teria  em  dirigir-vos! 

Eu  vos  reproduzira,  eu  vos  mostrara 

Em  cem  fecundas  formas,  eu  faria 

A'  sombra  vossa  murmurar  correntes, 

Vossa  rama  em  abobadas  travara ; 

Envoltos  n'estes  vividos  ulmeiros. 

Iriam  serpeando  os  vossos  braços 

Pelos  rigidos  troncos,  e,  serieis 

O  sjmbolo  da  graça,  unida  á  força. 

Fundira,  aproveitara  as  vossas  cores  :     , 

A  azul  ferrete,  a  encarnada,  a  branca; 

Dos  olhos  as  delicias  alternando. 

Vossos  pennaclios,  cálices,  e  flores, 

Formar  viriam  meus  brilhantes  quadros, 

E  o  mesmo  Vaubuysum  m'os  invejara. 

Tu,  que  estes  férteis  don^  dos  céos  houveste, 
Com  arte  economisa  arbórea  pompa: 
Fa^'ores  seus  co'as  estações  reparte. 
Co'as  cores,  e  os  perfumes  cada  arbusto 
Por  seu  turno  appareça,  e  nuncía  murche 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  47 


Na  fronte  do  anno  a  flórida  capella! 
Assim  com  elle  o  teu  jardim  varia : 
Cada  inez  tem  seu  bosque,  e  cada  bosque 
A  sua  primavera ...  ah !  cedo  extincta ! 
Tua  industria,  porém,  da  sua  instável 
Curta  riqueza  consolar-nos  pode. 
Com  prudência  estas  arvores  plantadas. 
Quando  flor  não  tiverem,  graça  tenham. 
Tal,  dilatando  o  império  de  seus  olhos, 
Já  na  declinação  dos  annos  bellos, 
A  destra  Ulina  me  seduz,  me  enlêa. 

Da  inclemência  dos  ares  a  despeito 
O  céo  não  desherdou  de  todo  o  inverno; 
Então  dos  ventos  provocando  a  raiva, 
Não  poucos  vegetaes  conservam  folhas. 
Olha  o  teixo,  olha  a  hera,  olha  o  pinheiro, 
O  pungente  azevinho,  o  sacro  louro, 
De  verdura  immortal,  que  a  terra  vingam, 
Vingam  dos  Aquilões  a  Natureza. 
De  purpura,  e  coral  ve  fructos,  bagas; 
Quí3  esmalte  aos  ramos  dão!  Seu  atavio 
Sobre  os  despidos  campos  lisonjear 
Por  menos  esperado  é  mais  formoso. 
Os  teus  jardins  de  inverno  assim  povoa: 
Lá  d(;  u.u  beniorno  dia  a  luz  te  afao;a, 
Lá,  quando  em  outra  parte  é  nua  a  terra, 
O  passarinho  adeja,  a  se  diverte 
Inda  debaixo  de  viçosas  folhas: 


48  OBRAS  DB  BOCAGE 


O  sitio  O  illude,  não  conhece  o  tempo, 

Vêl-a  imagina,  e  canta  a  primavera: 

Assim,  sem  ser  facticia  a  estancia  agrada. 

Mas  os  jardins  dos  reis  com  que  artificio, 

Com  que  apparato  esplendido  triumpham 

Dos  sanhudos  invernos !  Sempre  vei'des, 

(Oh  Mouceaux !)  teus  jardins  são  d'isto  exemplo. 

Troncos  fingidos  de  arvores  ausentes, 

Gratas  de  encanto,  magicas  latadas. 

Tudo  ali  rouba  os  olhos.  Afrontando 

A  rispida  estação  caliginosa, 

A  nascer  entre  o  gelo  aprende  a  rosa. 

Milagres  ali  domam  tempos,  climas, 

Das  fadas  o  poder  ali  se  anfolha. 

Mas  não  são  todavia  estes  encantos 
Dos  jardins  o  melhor,  mais  doce  ornato. 
Cedo  o  costume  te  desorna  os  bosques. 
Quando  os  extranhos  tuas  sombras  gostam 
Jaz  muitas  vezes  descontente  o  dono. 
Meios  não  ha,  cuja  virtude  occulta 
Sempre  a  teus  bosques  a  affeição  te  avive? 
Oh!  Quanto  dos  lapões  me  apraz  o  estylo! 
Oh !  Como  enganam  seus  invernos  duros ! 
O  til  soberbo,  os  olmos  reforçados 
Temem  d'aquelles  campos  o  regelo: 
De  alguns  tristes  pinheiros,  negros,  bravos 
Indigente,  escassíssima  verdura 
Apenas  a  geada  ali  penetra. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  49 


Mas  o  mínimo  arbusto,  que  poupassem 
Aquelles  agros  climas,  ante  os  olhos 
Dos  habitantes  seus  tem  mil  feitiços. 
E  consagrado  a  filho,  a  pae,  a  amigo, 
A  hospede,  que  parte,  e  deixa  prantos. 
Deixa  saudade  eterna,  e  de  algum  d^elles 
O 'nome,  sempre  caro,  á  planta  fica. 

Tu,  de  quem  puro  céo  elarêa  a  pátria, 
Imitar  podes  tão  feliz  industria: 
Ella  animará  tudo,  arvores,  bosques 
Não  serão  mudos,  não  serão  desertos: 
Hão  de  immensas  memorias  habital-os, 
Gostos  distantes  adornar-lhe  as  sombras. 

E  quem  prohibe,  se  o  favor  dos  numes 
Com  doce  prole  teus  desejos  farta. 
Quem  veda  consagrares  esse  dia 
Com  troncos  de  nascente  bosquesinho?. . . 
Mas  em  quanto  estes  versos,  Musa,  entoas, 
Que  popular  clamor  aos  ares  sobe ! 
Nasceu,  nasceu  o  herdeiro  aos  reis  da  Gallia! 
Nos  muros,  nas  phalanges,  sobre  as  ondas, 
Nosso  terrível,  triumphante  raio 
Troa,  corre,  e  aos  dous  mundos  o  annuncia. 
Flores  são  pouco  para  ornar-lhe  o  berço,   . 
Os  louros  lhe  trazei,  trazei-lhe  as  palmas; 
Raiem  dias  de  gloria  ante  o  primeiro 
Volver  dos  olhos  seus;  nascido  apenas. 
Da  victoria  ouça  o  hymno;  eis  o  festejo 


50  OBRAS  DE  BOCAGE 


Que  ao  puro  sangue  dos  Bourbons  se  deve. 

E  tu  por  quem  tal  dom  dos  céos^^nos  veiu^ 

Tuj  nó  mimoso^  tu  prisão  querida 

Do  germanOj  e  francez,  que  irmão^  e  esposo 

Unes  como  odorífera  grinalda 

Que  enlaça  dous  ulmeiros  m^^gestosos; 

Consorte,  mãe,  e  irmã,  teus  fados  ligam 

O  penhor  de  hymeneu  da  morte  ao  luto, 

Em  teus  olnos  misturam  pranto,  e  riso. 

Dando- te  o  filho  quando  a  mãe  te  roubam: 

ííos  transpoiies,  que  influe  este  áureo  dia, 

Ousem  almas  ferventes,  creadoras, 

Animar  os  pincéis,  a  pedra,  a  Ijra; 

Dos  campos  eu  cantor,  e  humilde  amigo, 

Irei  onde  os  Favonios,  onde  Flora 

Sós  te  compõem  a  deleitavel  corte. 

Irei  a  Trianon:  ali  risonho 

Em  único  tributo  á  prole  tua 

Arvores  sagrarei  da  sua  edade, 

TJm  bosquesinho,  que  lhe  deva  o  nome. 

Verão  teus  olhos  avultar  o  amável, 

O  simples  monumento,  aquelles  troncos, 

Dos  bosques  teus  o  mais  suave  ornato; 

E  com  ellas  crescendo,  recrear-se 

As  sombras  fraternaes  irá  teu  filho. 

Gozas,  emfim,  e  o  coração,  e  os  olhos 
Feliz  possuidor,  já  se  embellezam 
Nos  arvoredos  teus.  Também  desejas 


POEMAS  DIDACTICOvS  TRADUZIDOS  51 


Unir  ao  gosto  a  gloria^  obter  a  palma 
ÍT'esta  arte  singular  com  que  os  decoras? 
De  creador  merece,  alcança  o  nome. 
Olha  como  em  segredo  a  Natureza 
Sempre  está  fermentando,  e  como  sempre 
A  precisão  de  produzir  a  ancea! 
Não  lhe  acodes?  Quem  sabe  que  thesouros 
Inda  em  seus  cofres  para  a  industria  guarda? 
Como  esta  a  seu  arbitrio  as  ondas  guia, 
Pode  guiar  o  sueco:  outros  caminhos, 
Outros  canaes  a  seu  liquor  franquêa.        ^ 
Por  novos  hjmineus  fecunda  os  campos. 
Das  seibas  virgens  exp^^rimenta  o  mixto. 
De  seus  dons  mútuos  favorece  a  troca. 
Quantas  arvores,  fructos,  plantas,  flores 
Tem  mudado  o  perfume,  a  cor,  e  o  gosto, 
Tudo  por  arte !  O  pecegueiro  a  estas 
Metamorphoses  sua  gloria  xleve. 
Assim  com  triple  c'roa  a  rosa  brilha. 
Do  seu  pennacho  assim  blasona  o  cravo. 
Ousa!  Deus  fez  o  mundo,  o  homem  o  adorna» 
Se  a  tão  bellas  conquistas  não  te  afoutas, 
Cubertas  de  outro  céo  tens  mil  riquezas. 
Usurpa  esses  thesouros.  Tal,  mais  brando 
Vencedor,  e  mais  justo  nos  seus  roubos, 
O  romano  soberbo  á  Ausonia  trouxe 
Syrias  ameixa.-^  o  damasco  Arménio, 
Da  Gallia  a  pêra,  e  fructos  mil  diversos: 


52  OBRAS  DE  BOCAGE 


Assim  devera  subjugar-se  o  mundo. 
Lá  quando  d' Ásia  triumjDhou  LucuUo 
O  bronze,  o  ouro,  o  mármore  assombravam 
De  Roma  os  olhos,  e  entretanto,  o  sábio 
Prezou  ver-llie  nas  mãos  a  ceréijeira 
Conduzida  em  triumpho  ao  Capitólio. 
E  esses  mesmos  romanos  já  não  viram 
Nossos  avós,  em  batalhões  armados, 
Debaixo  de  outros  céos  mais  bemfazejos 
As  vinhas  ir  buscar,  votando  a  Bromio 
Tintos  pendões  em  néctar  dos  vencidos? 
Co  fructo  das  belligeras  emprezas 
Escandccida  a  turba,  os  preciosos 
Trophéos,  cantando,  aos  lares  seus  trazia. 
As  cabeças  o  pâmpano  c'roava, 
O  pâmpano  em  festões  cingia  as  lanças. 
D 'esta  arte  o  numen,  vencedor  do  Ganges, 
Tornou  triumphante :.  serranias,  valles 
Da  vindima  o  fervor  solemnisavam, 
E  por  onde  corria  o  mago  néctar 
Folgavam  brincos,  e  o  prazer,  e  a  audácia. 

Netos  dos  Gallos,  os  avós  se  imitem; 
Roubemos,  disputemos  taes  despojos. 
N'esses  jardins,  altivos  de  regel-os 
A  mão,  que  a  Themis  empunhara  o  sceptro, 
Malesherbe,  o  facundo,  o  digno  ramo 
Dos  Lamoignons,  com  troncos  orgulhosos 
Honra,  abastece  o  chão:  trazidas  plantas 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  53 

Dos  fins  da  terra,  das  eqiioreas  margens. 
De  alcantilados  carnes  de  agras  serras, 
Das  portas  do  nascente,  e  das  do  occaso; 
Plantas,  que  açouta  o  sul,  que  açouta  o  norte, 
Plantas,  filhas  do  ardor,  filhas  do  gelo, 
Mc  fazem,  n'um  logíir,  correr  mil  climas. 
Vago,  entre  aqueiia  multidão  florente, 
Ásia,  America,  Europa,  Africa,  o  mundo. 
Regosijadas  de  se  ver  no  meio 
Das  velhas  plantas  nossas,  amam  todas 
Nosso  am.oravel  céo,  e  extranhas  gentes 
Reconhecendo  as  arvores  da  pátria, 
Duvidam  já  da  sua  ausência,  ao  vel-as. 
Ou  de  terna  saudade  os  golpes  sentem. 
Moço  Potaveri,  tu  d'isto  és  prova. 

Dos  campos  d'0-taiti,  d'aquelles  campos, 
Tão  caros  n'outro  tempo  á  sua  infância. 
Onde  é  sem  pejo  amor,  amor  sem  crime. 
Este  ingénuo,  selvático  mancebo, 
Trazido  a  nossos  muros,  pranteava 
Sua  antiga,  innocente  liberdade, 
Ilha  risonha,  e  júbilos  tão  fáceis. 
Do  esplendor  das  cidades  sim  pasmado, 
Mas  farto  d'ellas,  vezes  mil  clamava: 
((Dae-me  as  florestas  minhas!» — Eis  que  um  dia 
N'esses  jardins,  onde  Luiz  congrega. 
Dispõem  n'um  sitio  só,  e  a  custo  immenso, 
Os  povos  vegetaes  de  tantos  climas, 


54  OBRAS  DE  BOCAGE 


Como  espantados  de  crescerem  juntos, 
,De  logar,  e  estação  mudando  a  um  tempo, 
E  cultos  a  Jussieu  rendendo  todos; 
N'esses  jardins  o  indiano  vagueava. 
Olhando  as  varias,  ordenadas  tribus. 
Quando  entre  estas  colónias  vicejantes 
Lhe  fere  os  olhos  arvore,  que  o  triste 
Desde  os  primeiros  annos  seus  conhece. 
Súbito,  desatando  agudos  gritos, 
A  ella  corre,  abraça-se  com  ella, 
Beijos  a  cobrem,  lagrimas  a  iunundran. 
Objectos  mil  de  inexplicável  gosto, 
Os  céos,  os  campos,  que  ditoso  o  vi  iam, 
(Céos  tão  formosos,  tão  formosos  campos!) 
Os  rios,  que  fendeu  co'as  mãos  nervosas, 
Mattas  por  onde  os  brutos  habitantes 
Tão  destro  asseteava,  as  bananeiras 
De  sombras,  e  de  fructos  abastadas, 
O  pátrio  asjlõ,  os  bosques  circumstantes, 
Que  aos  cânticos  de  amor  lhe  respondiam, 
Julgou  ver,  e  a  sua  alma  enternecida 
Um  momento  sequer  gosou  da  pátria. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  55 


CA.lSrTO  TjEIRCEII^O 


Eu  cantava  os  jardins,  vergéis,  e  bosques; 

Eis  solta  vezes  três  Bellona  o  grito, 

Eis  dos  paternos  lares  arrancado 

Voa  o  francez  guerreiro  a  extranhos  mares, 

E  de  Vénus  Mavorte  as  selvas  deixa. 

Vós,  á  paz  innocente  aíFeiçoados, 

Deuses  dos  campos,  não  temeis  a  guerra; 

Quer  o  grande  Luiz  não  destruir-vos, 

Mas  ao  longe  estender  o  império  vosso; 

Quer  que  logre  tranquillo  o  que  semêa 

Um  povo  amigo  longamente  oppresso. 

E  vós,  mancebos,  que  outro  mundo  admira, 

Se  por  cima  de  túmidas  voragens 

A  York  o  vosso  ardor  seguir  não  posso, 

Para  quando  volteis  aperfeiçoa 

Jardins  a  musa  minha.  Ordeno  as  flores 


56  OBRAS  DE  BOCAGE 

Que  para  as  frontes  vossas  vão  crescendo. 
Aprompto  para  vós  de  myrío  as  c'roas, 
O  murmúrio  das  aguas  vos  preparo, 
E  gramíneo  tapiz,  e  asylo  umbroso. 
Sentados  mollemente,  ao  Lethes  dando 
Fadigas  marciaes,  direis  a  gloria 
Das  nossas  forças  bellicas,  e  emtanto 
Entre  esperanças,  e  temor  suspensos, 
Confundirão,  tremendo,  os  filhos  vossos 
Co'a  presença  do  pVigo  a  imagem  d'elle. 

Amador  dos  jardins,  eia,  acabemos 
De  pulir  estes  plácidos  abrigos. 
Infecundo  areal,  e  secco,  e  triste, 
N'elles  o  dia  reflectindo  outr'hora 
Importunava  os  pés,  cansava  os  olhos. 
Tudo  era  ardente,  e  nu;  mas  Inglaterra 
Nos  ensinou  com  que  arte  o  chão  se  veste: 
Na  relva  cuida,  pois,  que  os  campos  brotam., 
O  regador  na  dextra,  ou  n'ella  a  fouce, 
Lhes  mate  as  sedes,  lhes  tosquie  as  tranças, 
As  leivas  o  cylindro  pize,  aplane; 
Sempre,  escolhidas  bem,  bem  apertadas, 
Bem  libertas  da  herva  usurpadora. 
Qual  macia  lanugem  finas  sejam; 
Repare-se-lhe  ás  vezes  a  velhice; 
Mas,  com  tudo,  aos  legares  não  remotos 
Se  reserve  este  luxo  de  verdura: 
Do  resto  se  componham  ricos  pastos, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  57 


E  somente  os  cultivem  teus  rebanhos. 

Terás  d'est'arte  numerosas  crias, 

Os  campos  adubío,  os  olhos  quadros. 

Não  te  envergonhe  pois  (e  grite  embora 

O  orgulho)  não  defendas  que  em  teus  parques 

Entre  a  vacca  fecunda,  o  boi  tardio: 

Nem  deshonram  teus  parques,  nem  meus  versos. 

Muito  pouco  é,  porém,  crear  somente 
Esses  tapizes  vastos,  e  viçosos: 
Cumpre  que  saibas  escolher-lhe  as  formas. 
Longe  a  monotonia,  ah!  longe  d'elles: 
Em  quadrada  feição,  feição"redonda 
Tristemente  opprimidos  os  não  quero. 
Um  ar  de  liberdade  é  seu  primeiro, 
Gracioso  attractivo:  ora  nos  bosques, 
Cuja  sombra  os  abraça,  elles  se  escondam 
Com  visos  de  mysterio,  ora  esses  mesmos 
Bosques  venham  buscal-os.  Esta  a  forma 
Da  campestre  alcatifa,  pura,  e  simples. 

Amas  o  bello?  A  Natureza  imita. 
Que  esmalta  os  prados  de  opulentas  cores: 
Dá-te  pressa;  os  jardins  te  pedem  flores; 
Flores  mimosas,  cândidas  boninas. 
Por  vós  é  m.ais  gentil  a  Natureza. 
Nos  quadros  por  modelo  a  arte  vos  toma; 
De  terno  coração  sois  dons  singelos, 
Que  arrisca  amor,  e  que  a  amisade  oífrece. 
Em  dourada  madeixa,  em  niveo  seio 


58  OBRAS  DE  BOCAGE 


Requinta-&e  comvosco  a  formosura; 
Que  a  vicfcoria  adorneis  perrnitte  o  louro. 
Do  virgíneo  pudor  também  sois  premio. 
O  mesmo,  p  mesmo  altar,  onde  repousa 
A  grandeza  de  um  Deus,  na  primavera 
Com  vossas  oblações  se  aromatisa, 
E  a  religião,  sorrindo-se,  as  acolhe; 
Mas  tendes  nos  jardins  o  domicilio. 
Do  sol,  da  aurora  vinde,  pois,  oh  filhas. 
Decorar  o  theatro  a  nossos  campos. 

Com  tudo,  não  cuideis  que,  insano  amante, 
Em  vez  de  vos  travar,  em  vez  de  unir-vos 
Em  brandos,  amorosos  ramilhetes. 
De  canteiro  em  canteiro,  attento  espere 
De  cada  nova  flor  o  nasci snen to, 
E  lhe  espie  o  matiz,  lhe  observe  as  cores. 
Sei  que  em  Harlem  ha  curiosos  tristes. 
Que  em  seus  jardins  co'as  flores  vão  fechar-se; 
Que,  por  ver  um  rainunculo,  despertam 
Antes  d'alva,  e  que  adoram,  qual  prodígio. 
Anémona  exquisita,  ou  que,  invejando 
De  um  rival  o  segredo,  a  pezo  de  ouro 
Compram  de  um  cravo  as  manchas.  Deixa  aos  loucos 
Seu  maníaco  amor:  possuam,  gosem 
Embora  quaes  ciosos,  quaes  avaros. 

Sem  de  arte  caprichosa  as  leis  seguirdes, 
Vós,  dos  olhos  prazer,  do  campo  adorno, 
Flores,  pintae  a  superfície  á  terra; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TUADUZIDOS  59 


Mas  a  vossa  belleza,  o  mimo  vosso 
Entre  curtos  limites  não  se  estreitem í 
Em  toda  a  parte  esses  tliesom'os  brilhem: 
Ora  aos  tapizes  a  verdura  esmaltem, 
Ora  de  um  lado,  e  d'outro  enfeitem  ruas; 
Em  mesclados  festões  cercae  ramadas, 
Aguas  orlae  em  lúcidos  meandros; 
Ou  comvosco  estes  muros  se  alcatifem, 
Ou,  querendo  escolher  vossos  perfumes, 
Grire,  indecisa,  no  açafate  a  abelha. 
Seguindo- vos  Rapin  nas  quadras  todas, 
Nenhum  matiz,  ou  nome  vosso  esqueça; 
A  tão  frias,  cançadas  miudezas 
Oppõem-se  o  deus  do  gosto.  Mas  quem  pode 
Negar  o  obsequio,  a  preferencia  á  rosa, 
A  rosa  de  que  Vénus  bosques  tece, 
C'roas  a  primavera,  amor  seus  mimos? 
A  flor  de  Anacreonte,  á  flor,  que  Horácio 
Nos  dias  festivaes  engrinaldava? 

Mas  tão  risonho  objecto  em  demasia 
Apraz  aos  meus  pincéis,  cujo  destino 
E  quadros  desenhar  mais  vigorosos. 
Oh  vós,  de  que  eu  trilhava  o  chão  florido, 
Bosquesinhos,  adeus,  adeus,  oh  prados! 
Attrae  minha  attenção  o  informe  aspecto 
Dos  rochedos  sem  regra  desparzidos. 

Foi  sua  alta  rudeza  em  outros  tempos 
Banida  dos  jardins,  onde  reinava 


60  OBRzVS  DE  BOCAGE 


A  inerte,  semsabor  monotonia. 

Mas  depois  que  o  pintor,  leis  dando  n'elles, 

Contra  acanhado  artifice  restaura 

Totalmente  o  seu  jns,  em  fim  se  atrevem 

A  apossar-se  os  jardins  d 'estes  effeitos. 

Por  mais  graças,  porém,  que  venha  d'ellas, 

Se  estas  rigidas  massas  magestosas 

Não  oflfrece  o  terreno,  então  debalde, 

Presumpçosa  rival  da  Natureza, 

A  arte  em  falsas  imagens  se  apurara. 

Do  cume  dos  rochedos  verdadeiros, 

Da  mãe  universal  morada  inculta, 

Ella  escarnece  de  aíFectadas  penhas, 

Misero  aborto  de  fadiga  inútil. 

Aos  campos  de  Midléton,  ás  montanhas 
De  Dovedale,  te  acompanho  os  passos, 
A  ellas,  Whateli,  comtigo  subo. 
Que  aprazivel  terror  me  assenhoreai 
Todos  esses  rochedos,  variando 
Os  cimos  colossaes,  arremessados 
Aqui  aos  céos,  ali  para  os  abysmos, 
Um  por  outro  amparados,  um  sobre  outro, 
E  no  ar  ousadamente  alguns  suspensos; 
Este  em  arcada,  em  torre  afeiçoado, 
Aqnelle  pelo  pórtico  sombrio 
Deixando  perceber  ao  longe  o  polo; 
Além  mananciaes,  aqui  regatos 
De  limpida  corrente,  alegre,  e  mansa. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  61 


Tudo,  ah !  tudo  no  espirito  revolve 
Os  mágicos  retiros,  que  os  poetas 
Cantaram,  fabulando.  Oh  quam  ditoso 
Sorás  se  teus  jardins  afformosêas 
Com  estas  grandes,  alterosas  vistas! 

Mas  para  que  a  teu  quadro  bem  se  ajustem. 
Contra  a  tosca  energia  dos  rochedos 
Cumpre  de  encantador  ter  a  efficacia. 
O  encantador  é  a  arte,  o  encanto  os  bosques; 
Ella  falia,  os  rochedos  eis  se  assombram, 
E  como  que  os  enfuna  a  pompa  extranha. 
Porém,  sua  aridez  austera  ornando, 
Sagaz  diversifica  os  teus  plantios. 
Ao  cubiçoso  espectador  off 'rece 
Das  formas,  e  das  cores  os  contrastes; 
Saiam  por  entre  as  arvores  a  espaços 
Os  mais  bellos  rochedos:  interrompe 
Summa  egualdade,  esconde,  ou  patentêa ! 
Variem-se  co'as  arvores  as  rochas. 
As  arvores  co'as  rochas  se  variem. 

Não  tens  também,  para  formar-lhe  a  gala 
Não  tens  do  baixo  arbusto  a  folha  errante? 
Gosto  de  vêr  os  dóceis  novedios 
Pelos  áridos  flancos  dos  penedos 
Em  tenrinhos  festões  ir  serpeando; 
Gosto  de  ver-lhes  a  escalvada  fronte 
Toucar-se  de  verdura,  e  ganhar  sombras. 
Isto  inda  é  pouco.  Um  valle  entre  estas  penhas, 


62  OBKAS  DE  BOCAGE 


Um  valle  precioso,  um  cliáo  mais  grato 
Ri-se  a  teu§  olhos?  Aproveita-Oj  mostra, 
Expõe  esta  riqueza  inesperada. 
É  feliz,  singular  este  contraste, 
E  a  esterilidade,  ella,  que  um  breve 
Espaço  appetecivel  de  terreno 
Cede  á  fertilidade:  assim  subjugas 
O  aspérrimo  caracter  dos  rochedos. 

Para  agradar-te  é  forca  ornal-os  sempre? 
Não;  se  a  arte  deve  o  horror  sempre  adoçar-lhes, 
Consente  ás  vezes  que  o  pavor  inspirem, 
Favoréce-os  até.SNa  extremidade 
De  um  precipício  uma  cabana  eleva, 
E  com  ella  augmentado  elle  parece: 
Ponte  audaz  de  um  rochedo  a  outro  lança; 
Eu  tremo  ao  vel-os,  e  a  medonho  abysmo 
Imminente  me  põe  a  phantasia; 
Lembram-me  esses  boatos  populares, 
Os  casos  de  perdidos  passageiros, 
D'amantes  despenhados:  contos  velhos 
Que  prendendo  attenção  maravilhada, 
A  crédula  aldeã  serões  encurtam; 
E  o  terror  do  logar  ajuda  a  crença. 

Porém  com  sobriedade  usar  se  deve 
D'estes  grandes  eíFeitos.  A  tão  duras, 
Tão  agras  coram oções,  abalos  doces, 
Molle  socego  o  coração  prefere: 
Eu  exp'rimento  om  mim  que  das  montanhas 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  63 


Me  é  preciso  baixar  aos  ledos  valles. 
Tenho-os  de  flores,  de  arvores  coberto : 
Tempo  é  que«á  sombra  d^ellas  manem  aguas. 
Bem :  já  que  os  cimos  vossos,  nus  outr'hora, 
Pelas  minhas  lições  estão  vestidos 
Tão  ricamente,  oli  rochas,  franqneae-me 
As  subterrâneas,  intimas  origens: 
Rios,  arroios,  vós  —  vós,  lagos,  fontes, 
Vinde,  espraiae  frescura,  e  vida  em  tudo. 
Ah !  Que  prazer  substituir-vos  pôde  ? 
Vosso  contente,  luzidio  aspecto 
Se  de  perto  entretém,  convida  ao  longe. 
Sois  o  primeiro  objecto  que  se  busca, 
O  ultimo  que  se  deixa.  As  aguas  vossas 
Fertilizando  a  terra,  o  céo  duplicam. 
Os  ouvidos  encanta,  encanta  os  olhos 
Vosso  crystai,  vosso  murmúrio.  Ah !  vinde. 
Dado  seja  a  meus  versos,  que  vos  seguem, 
Correr  do  coração  mais  tentadores. 
Mais  abundantes  que  o  principio  vosso; 
Mais  leves  do  que  os  Zephyros,  que  dobram 
Vossos  canaviaes;  e  brandos,  puros 
Como  esse  rnmorsinho,  essa  corrente. 

Tu,  senhor  d'estas  agu  is  bemfeitoras, 
Venera-lhe  o  pendor,  té  o  capricho; 
Nos  livres  giros  seus  vê  como  abraçam 
Facilmente  das  margens  os  contornos. 
E  ousas,  encarcerando-lhe  a  brandura, 


64  OBRAS  DE  BOCAGE 


Os  tortuosos  passos  constranger-lhe ! 
De  que  lhe  serve  o  mármore  em  que  é  presa? 
Não  vês  co'a  longa  trança  entregue  aos  ventos, 
Sem  arte  alguma,  sem  postiço  adorno, 
Campestre,  prazenteira,  ingénua  moça 
Andar,  correr,  saltar?  A  graça  d'ella 
Está  no  solto,  natural  meneio. 
Contempla  n'um  serralho  a  formosura : 
Ella  deslumbra  em  vão,  debalde  ostenta 
A  pompa  oriental,  brilho  estudado : 
Um  triste  não  sei  que,  na  face  impresso, 
Lhe  argúe  a  subjeição,  desbota  as  graças. 
A  agua  mantenha  a  liberdade  que  ama. 
Ou  muda-lhe  em  belleza  o  captiveiro. 
Assim,  contra  Morei,  cuja  eloquente, 
E  ponderosa  voz  pleitear  soube 
Os  direitos  da  simples  Natureza, 
Gosto  das  aguas,  que  em  canaes  oppressas, 
Com  rápida  violência  partem,  saltam. 
Ao  ver  esses  crystaes,  que  arte  atrevida 
Da  terra  faz  brotar,  e  aos  ares  lança, 
O  homem  diz :  c(  Eu  criei  estes  portentos !  )> 
E  em  taes  prestigios  a  arte  sua  admira. 
Nos  custosos  jardins  dos  reis,  dos  grandes 
Reluzam,  pois;  mas,  outra  vez  o  digo, 
Longe  os  luxos  plebeus,  o  vergonhoso. 
Mesquinho  jacto  de  agua,  que  da  terra 
Mal  ousando  arreda r-se,  apenas  sobe, 


POEJIiiS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  65 


E  em  mínima  distancia  morre  logo. 

Tudo. a  tanta  riqueza  corresponda; 
Tudo  grangêe  á  roda  um  ar  de  encanto. 
Os  olhos  persuade,  e  o  pensamento 
De  que  vara  eíRcaz  em  mão  de  Fada 
Formara  para  a  dona  este  retiro» 
Tal  eu  vi  de  Saint-Cloud  o  amável  bosque. 
Pode  a  vista  medir  do  jacto  a  altura  ? 
Comox{iie  applaudem  tanques,  grutas,  plantas 
As  aguas,  que  sobre  aguas  caem,  fervem; 
O  ar  é  mais  fresco  ali,  mais  verde  a  relva, 
Das  aves  o  gorgeio  ali  se  aviva 
Ao  som  das  vitreas  ondas,  que  baquêam; 
E,  as  rociadas  testas  inclinando, 
Como  que  ao  doce  orvalho  os  bosques  se  abrem. 
Não  menos  bella,  mais  campestre,  e  simples 
A  cascata  ornará  logar  mais  tosco. 
De  longe  se  ouve,  admira-se  de  perto 
Lympha  sempre  a  cair,  sempre  suspensa; 
E  vária,  e  magestosa,  anima  a  um  tempo 
Os  rochedos,  a  terra,  aguas,  e  bosques. 
Emprega,  pois,  esta  arte;  porém  longe 
^  Esses  tristes  degráos,  onde,  caindo 
Com  movimento  egual,  medida  certa, 
As  ondí^s,  bem  que  vão  precepitadas. 
Até  no  seu  furor  seus  passos  contam. 
Só  tem  jus  de  aprazer  a  variedade. 
Gosa  mais  de  um  caracter  a  cascata. 

5 


66  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ora  em  tumiilto  as  aguas  despenhadas 
No  tortuoso  leito,  correm,  caem, 
Saltam,  recaem,  e  escumam,  e  esbraveam, 
Ora  de  espaço  desdobrando  as  ondas, 
Puro,  calado,  remansinho  ameno 
Em  azul  véo  se  esparge.  Os  olhos  folgam 
De  ver  estes  gentis  amphitheatros, 
De  ver  sobre  as  cerúleas  espadanas 
Reflectir,  scintilar  o  ouro  diurno; 
Também  lhe  apraz  a  escuridão  das  penhas, 
E  a  verdura  das  canas,  e  a  espumosa 
Argêntea  cor  das  aguas  fugidias. 

Consulta,  pois,  artifice,  os  effeitos 
Que  intentas  produzir.  As  lymphas,  promptas 
Sempre  a  deixar  guiar-se,  hão  de  off''recer-te, 
Quer  mais  impetuosas,  quer. mais  lentas, 
Quadros  benignos,  ou  soberbos  quadros, 
Graves,  ou  deleitosos:  quadros,  n'alma 
Sempre  efficazes.  Que  mortal  não  prova 
A  profunda  impressão,  que  vem  das  ondas? 
Sempre,  ou  viva  corrente  arrebatada 
Sobre  seixos  murmure,  e  ferva,  e  salte, 
Ou  ribeira  indolente  sobre  o  lodo 
Em  paz  alargue  as  aguas  preguiçosas. 
Ou  torrente  feroz  entre  penedos 
Quebre  com  rijo  estrondo,  alegre,  triste, 
A  sua  correnteza  excita,  applaca, 
Ameaça,  ou  amima.  Escuto  á  fama 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  67 


Que  de  Vénus  o  cinto  milagroso 

Amores,  e  desejos  incluía, 

E  o  prazer,  e  a  esperança,  percursora 

De  ineíFaveis  delicias.  O  teu  cinto 

E,  divina  Cybele,  é  agua:  n'ella, 

Não  menos  poderosa,  estão  complexos 

Terror,  perturbação,  tristeza,  e  riso. 

Quem  melhor  o  sentiu  do  que  a  minha  alma? 

Quem  o  soube  melhor?  Mil,  e  mil  vezes 

Quando  azedos,  escuros  pezadumes, 

Inda  mais  pela  noute  enegrecidos, 

Vinham  martyrisar-me  o  pensamento, 

Se  ouvia  os  passos  de  visinho  arroio. 

Demandava  estes  sons  consoladores. 

Das  aguas  a  frescura,  a  voz  das  aguas 

Cuidados,  afflições  me  adormeciam, 

E  a  paz  do  coração  resuscitava: 

Tanto  d'agua  o  murmúrio  n'alma  influe! 

Em  paga  de  tão  gratos  benefícios, 
Soffre,  oh  ribeiro,  que  a  arte,  sem  comtudo 
Muito  se  assoberbar,  te  aformosêe. 
Se  é  que  aformosear-te  acaso  pode. 

Não  quadra  a  vasto  plano  um  rio  escasso: 
Seu  leito  incerta  linha  ali  traçara. 
A  timida  corrente  á  luz  se  furta, 
E  quer  banhar  um  bosquesinho  escuro. 
Sua  doce  carreira  adorna  as  selvas, 
fíó  ellas  o  namoram.  Seus  caprichos 


68  OBRAS  DE  BOCAGE 


Lc4  com  todo  o  vagar  seguir-se  podem, 
Seus  giros,  seu  pendor,  seu  lindo  estorvo, 
A  cholcra,  o  fervor  das  bellas  ondas, 
Tornadas  pelo  obstáculo  mais  bellas. 
Ora  n'um  álveo  concavo,  e  sombrio 
Co' a  ramada  que  o  cobre,  ella  recata 
O  cabedal  agreste,  ora  presenta 
Em  patente  canal  o  espelho  á  vista: 
Sem  vel-o  o  escuto,  ou  sem  ouvil-o  o  vejo. 
Ali  meigos  cr3^staes  abraçam  ilhas, 
Além  se  torna  em  dous  o  leve  arroio, 
Em-dous,  qiie  nas  carreiras  competindo, 
Apostam  rapidez,  e  claridade; 
E  ambos  depois  no  leito,  que  os  ajunii 
De  andarem  par  a  par  murmuram  ledos. 
Errando  sempre  assim,  de  volta  em  volta. 
Mudo,  loquaz,  pacifico,  agitado, 
Em  mil  vários  aspectos  se  renova. 

lias  copiosa  ribeira  ás  frescas  margens 
Me  está  chamando.  Em  campo  mais  aberto, 
Nobre,  e  pomposo  quadro,  as  ondas  suas 
Ondas  menos  modestas,  vão  rolando, 
E  c'o  fulgor  diurno  ao  longe  brilham. 
Deixa  ao  regato  seu  prazer  lascivo, 
A  sua  agitação,  e  os  seus  rodeios: 
B  segue  caudalosa  a  curvidade, 
O  circuito  dos  valles  sinuosos. 

Se  dos  bosques  o  arroio  adorno  colhe. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  69 


Ama  o  rio  também  divorsíis  pl;mtas. 
Quer  que  lhe  ornem,  lhe  assombrem  a  corrente 
Os  descorados  chôpos,  e  os  salgueiros 
Meios-verdes.  Que  origem  tão  fecunda 
De  scenas,  de  accidentes !  Ali  gosto 
De  olhar-lhe  derrubadas  sobre  o  rio 
As  ramas,  e  tremer  ao  movimento 
Das  ^guas,  e  dos  ares;  nqui  foge 
Por  baixo  das  abobadas  virentes 
A  onda  escurecida:  além  penetra 
Por  entre  folha,  e  folha  um  ténue  lume; 
Ora  as  grenhas  se  embebem  na  corrente, 
Ora  a  impede  a  raiz;  e  desmandando 
De  uma  para  outra  margem  a  ver  kn-a, 
Como  que  avançam,  que  outro  sitio  querem. 
Assim  as  ondas,  e  arvores  se  ajudam, 
A  agua  remoça  a  planta,  a  planta  i  enfeita; 
E  ambas  fazem,  ligando- se  em  mil  formas. 
Amável  cambio  de  frescura,  e  sombra. 
Unil-as  sabe,  pois,  ou  se  em  logáres 
Formosos,  próprios  d'ella,  a  Natureza 
Já  celebrou  sem  ti  este  consorcio,  ■ 
Eespeita-a.  Desgraçado  o  que  presumo  » 

Excedel-a  no  engenho !  E  tal  (e  &  mente 
O  coração  m'o  traz)  tal  é  o  asylo, 
Querido  Watelet,  onde,  am.ansando, 
Em  sombrios  canaes  se  parte  o  Sena, 
O  Sena  encantador,  tão  puro,  e  livre 


70  OBRAS  DE  BOCAGE 


Cpmo  a  tua  moral,  como  os  teus  dias, 

E  visita  em  segredo  o  lar  de  um  sábio. 

Com  arte  lhe  acudiste,  não  com  arte 

Temerária,  fallaz,  profanadora 

D'esses  logares,  que  suppõe  que  adorna. 

Viste,  amaste,  sentiste  a  Natureza, 

Digno  de  a  ver,  de  amal-a,  e  de  sentil-a; 

Tu  a  trataste  como  intacta  virgem, 

Que  da  nudez  se  corre,  e  teme  o  ornato. 

Parece-me  que  vejo  o  falso  gosto 

Estragar  esses  campos  feiticeiros: 

(íEste  moinho,  cujo  som  ruidoso 

Nutre  a  meditação,  é  importuno : )) 

D'ali  o  arrancam  súbito.  Estas  margens 

Torneadas  assim  tão  brandamente, 

E  pelo  próprio  Sena  afeiçoadas. 

Duramente  se  alinham.  A  verdura, 

Que  no  seu  molle  cinto  o  rio  encerra, 

Ali  já  não  florece.  Aguas  queixosas, 

Seus  lageados  cárceres  accusam. 

O  mármore  fastoso  a  relva  ultraja, 

E  tosqueadas  arvores  captivas 

Os  idosos  salgueiros  desapossam 

Da  margem  linda,  e  cara.  Ah !  Suspendei-vos, 

Bárbaros !  acatae  esses  Jogares ; 

E  vós,  oh  rio,  oh  bosques  deleitosos, 

Se  a  vossa  formosura  hei  retratado; 

Se,  adolescente  ainda,  alegres  versos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  71 


Ás  aguas,  prados,  sombras  já  tecia, 
Ministrae  longameote,  oh  rio,  oh  bosques, 
Ao  vosso  possessor  a  doce  imagem 
Da  paz  sagrada,  que  em  sua  ahna  reina. 

Quanto  na  molle  agilidade  o  rio 
De  margem  angular  teme  a  aspereza. 
Tanto  as  margens  agudas  ornamento 
São  de  estendidos  lagos,  e  o  mais  bello. 
Ora  se  avance  a  terra  ao  seio  undoso. 
Ora  abra  ás  ondas  domicilio  fundo. 
Com  revezado  amor  assim  se  chamem, 
Se  busquem  mutuamente  aguas,  e  terra: 
N'estes  vários  aspectos  folga  a  vista. 

A  comprida  extensão  n'um  lago  se  ama; 
Dá-lhe  si  tios,  com  tudo,  em  que  repouse. 
Não  se  lhe  interrompendo  a  immensidade, 
Meus  olhos  sem  prazer,  sem  interesse 
Vão  pela  superfície  escorregando. 
Para  lhe  abbreviar  o  espaço  insulso, 
Edifício,  das  calmas  venerado, 
Nas  ondas  repetido,  assome  ao  longe, 
Ou  ilha,  que  verdeje,  entre  qllas  surja: 
As  ilhas  são  das  aguas  summo  adorno. 
Ou  levanta-lhe  as  margens,  ou  viçosas 
Arvores,  em  festões  dispersos,  ganhem 
Tua  contemplação,  teus  olhos  prendam. 
Se  queres  produzir  opposto  eíFeito, 
Se  o  lago  estender  queres,  manda  ás  margens 


72  OBRAS  DE  BOCAGE 


Mui  Bubidas,  que  desçam,  e  ou  distancia 
Mais  arredada  os  arvoredos  tenham, 
Ou  faze  com  que  as  aguas  vão  sumir-se 
li 'um  denso  bosquesinho,  e  que  tornêem 
Ao  pé  de  uma  collina.  O  pensamento 
Por  entre  estas  cortinas  de  verdura, 
Onde  desapparecem,  vae  seguindo 
As  aguas,  e  as  prolonga.  Assim  teus  olhos 
Gosam  do  que  não  vênr:  d'est'arte  o  gosto 
Lindezas,  perfeições  confere  a  tudo; 
E  de  objectos,  que  inventa,  e  dos  que  imita 
Descobre,  alonga,  aperta,  esconde  o  termo. 

Agora  que  a  arte  o  meu  trabalho  insulta 
Em  soberbos  jardiuf?;,  nos  meus,  ditosos, 
Liberdade,  e  prazer  tudo  respira: 
Rindo-se  a  relva,  a  seu  sabor  viceja, 
Independente  o  bosque,  allêa  a  rama; 
Não  temem  a  thesoura  as  arvores. 
Nem  flores  a  esquadria;  amam  as  ondas 
As  margens  suas,  seu  adorno  a  terra; 
Tudo  é  formoso  ali,  simples,  e  grande,  ^ 
Tudo:  esta  arte  é  a  tua,  oh  Natureza. 

Porém  o  lago,- o  rio  estão  desertos, 
De  cidadãos  se  lhe  povoe  o  seio. 
Dêm-se-lhe  as  aves,  que  com  agi]  remo 
Alados  navegantes,  a  agua  fendem. 
N'ella  se  pavonea,  e  nada  o  cjsne, 
De  vanglorioso  collo,  argêntea  pluma, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  73 


O  cysne,  a  que  a  ficção  deu  voz  tão  doce^ 
E  que  escusa  das  fobulas  o  auxilio. 

Também  não  teus  para  animar  as  aguas. 
Oh  arte,  esse  apparato  vacillante 
Dos  mastros,  e  das  veias?  Impeilida 
De  remo  compassado,  a  leve  barca 
Deixa  apenas,  fu brindo,  um  ténue  rasto. 
Que  logo  se  esvaece.  Kntumecido 
Dos  Favonios  azues,  sussurra  o  panno, 
E  em  cada  bandeirinha  os  ares  brincam. 

Pois  se  a  novella/  a  fabula,  ou  a  historia 
Uma  fonte,  um  ribeiro  consagraram. 
Da  sua  gloria  antiga  elies  ufanos, 
Assas  se  aformoseam,  se  ataviam 
Com  suaves  memorias.  Ah !  Quem  pode, 
Descobrir,  encontrar,  sem  commover-se, 
Arethusa,  o  Lignon,  Alphêo?  Quem  pode 
Sem  cordeal  saudade  olhar  Vauclusa? 
Vauclusa,  encantamento  irresistivel 
Dos  vates,  e  inda  mais  dos  amadores. 
No  circulo  de  montes,  que,  encurvando 
Sua  cadeia,  com  liquor  sadio 
Te  alenta  a  subterrânea,  doce  origem, 
Lá  debaixo  da  abobada  nativa, 
Do  antro  mysterioso,  onde,  esquivada 
A  nympha  tua  aos  olhos  cubiçosos, 
Some  em  fundo  insondável  teu  principio; 
Oh  quanto  me  foi  grato  o'  vêr-te  as  aguas, 


74  OBBÁS  DE  BOCAGE 


Que,  sempre  crystalinas,  sempre  bellas, 
Ora  n'um  lago  seus  thesouros  fecham, 
Ora  sobem,  fervendo  e  lançam  fora 
Ondas,  a  branquejar  por  entre  as  penhas; 
De  cascata  em  cascata  ao  lon^e  pulam, 
Caem,  e  rolam  com  impeto  estrondoso; 
A  cholera  depois  amaciando, 
Por  leito  mais  egual  vão  docemente; 
E  debaixo  de  céos  sempre  azulados 
Por  cem  canaes  fecundam  valle  ameno, 
Ameno  qual  nenhum  que  os  soes  aclaram ! 

Mas  estes  puros  céos,  estas  correntes. 
Este  delicioso,  e  pingue  valle, 
Menos  o  coração  me  penhoravam 
Do  que  Petrarca,  e  Laura.  Eis  (eu  dizia, 
Eu  dizia  a  mim  mesmo)  ah !  Eis  as  margens. 
Que  a  lyra  de  Petrarca  suspirosa 
Outr'hora  enfeitiçou !  Aqui  o  amante 
Via,  exprimindo  a  Laura  os  seus  amores, 
Vir  devagar  o  dia,  ir-se  depressa. 
Inda  sobre  estas  rochas  solitárias, 
Inda,  acaso,  acharei  das  cifras  de  ambos 
Unidos,  maviosos  caracteres? 
Tocam  meus  olhos  desviada  gruta: 
Ah !  dize-me  se  os  vistes  venturosos, 
Guarida  opaca?  (eu  pronuncio)  Um  tronco 
Toldava  encanecido  á  fonte  a  margem  ? 
Laura  dormido  havia  á  sombra  d'elle. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  75 


Ali  por  Laura  perguntava  aos  eccos, 
E  OS  ecco»  O  seu  nome  inda  sabiam. 
Buscáveis,  olhos  meus,  Petrarca,  e  Laura 
Em  toda  a  parte,  e  em  toda  á  parte  os  vieis. 
Eram  já  morte,  e  cinza  os  dous  amantes. 
Mas  inda  com  seus  manes  amorosos 
Mais  bello  se  tornava  o  sitio  bello. 


76  OBRAS  DE  BOCAGE 


OA-isiTO  (^XTJ^-Eirno 


Dos  campos  o  espectáculo  Dão  posso. 
Não  posso  abandonar;  e  quem  se  aíFouta 
A  ter  em  pouco  o  objecto  de  meus  cantos? 
Elle  inspirava  de  Virgílio  a  Musa, 
Seduzia  a  de  Homero.  Homero,  aquelle 
Que  de  Achilles  cantou  a  horrível  sanha, 
Que  nos  pinta  o  terror  jungindo  os  brutos. 
No  dardo  voador  silvando  a  morte, 
O  embate  dos  escudos,  o  tridente 
Do  equoreo  numen  abalando  as  torres; 
Esse  vate  immortal,  cie  Smyrna  o  cjsne 
Se  apraz  de  matizar  o  horror  da  guerra 
Com  bosques,  prados,  montes:  na  frescura, 
No  riso  d'estes  quadros  tão  suaves 
Desafoga  os  pincéis;  e  quando  apresta 
De  Thetis  para  o  filho  arnez  terrível. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  77 

Se  os  combates,  e  os  sítios  n'elle  grava, 
Se  mostra  o  vencedor  de  pó  coberto, 
Se  apresenta  o  vencido  envolto  em  sangue, 
Buril  afagador  depois  movendo, 
Traça  a  vinha,  os  rebanhos,  selvas,  pastos. 
Vestido  o  heróe  d'estas  imagens  doces. 
Parte,  e  leva  por  entre  horrendas  turmas 
A  innocente  vindima,  e  ricas  messes. 

A  teu  estro  sem  par,  cantor  divino. 
Cabe  reger  as  marciaes  phalanges: 
É  reger  os  jardins  meu  brando  emprego. 
Já  minhas  leis  conhece  a  dócil  terra ■: 
Eil-a  ]'elvosa;  no  tapete  alegre 
A  mãe  das  flores  lhe  entornou  seu3  mimos, 
E  arvoredos  c'roaram  rochas,  aguas. 
Para  gosar  d 'estes  brilhantes  quadros. 
Agora  em  campos,  que  discorre  a  vista, 
E  por  baixo  de  abobadas  escuras, 
Gratos  caminhos  abrirei.  Mil  scenas 
Creará  minha  voz  por  toda  a  parte; 
Ab  artes  guiarei  para  adornal-as: 
E  o  divino  cinzel,  e  a  architectura 
Nobre,  insigne,  hão  de  enfim  d'estes  logares 
Encantadores  completar  o  ornato. 

De  nossos  passos  eugenhosas  guias, 
Aos  olhos  03  jardins  patenteando. 
As  ruas  devem,  pois,  agracial-os. 
Nos  recentes,  porém  não  se  abram  ruas; 


78  OBRAS  DE  BOCAGE 


Nas  findas  plantações  melhor  se  escolhem. 
Aos  mais  lindos  aspectos  as  dirige. 
Repara  como,  se  aos  extranhos  mostras 
Do  teu  trabalho  os  fructos,  como  destro 
Buscas  o  bello,  o  que  não  presta  evitas; 
Sitios  formosos,  ao  passar,  lhe  apontas, 
Lhe  guardas  para  a  volta  outras  bellezas, 
O  prendes,  o  entreténs  de  pasmo  em  pasmo, 
Em  scena,  que  nascer  faz  outra  scena; 
E  assim  satisfazendo,  ou  provocando 
Sempre  os  desejos  seus,  não  poucas  vezes 
Retardas  seu  prazer  para  espertal-o. 
Os  teus  passeios  a  ti  próprio  imitem. 

Foge,  foge,  também,  nas  formas  d'elles 
Os  filhos  do  mau  gosto,  os  vãos  systemas, 
Pela  moda  abraçados.  Lá  no  campo. 
Como  cá  na  cidade,  a  moda  reina. 
Quando  a  ordem  symetrica,  e  pomposa 
De 'itálicos  jardins  luziu  na  França, 
Tudo  se  deslumbrou,  cegou-se  tudo 
Com  esta  arte  fulgente.  Uma  só  planta 
Não  negou  ao  cordel  obediência: 
Em  toda  a  parte  se  alinharam  todas; 
De  um  lado,  e  de  outro  lado  enfileiradas. 
Alamedas  eternas  se  estenderam : 
Veio  outro  tempo  em  fim,  veio  outro  gosto. 
De  bellezas  mais  livres  avisaram 
Aos  francezes  jardins  jardins  britannos. 


POBMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  79 


SÓ  linhas  ondeantes,  e  passeios 
Só  tortuosos  desde  então  se  viram. 
Farto  de  vaguear,  debalde  o  termo 
Está  fronteiro  a  mim:  cumpre  que  ainda, 
Cumpre  que,  a  meu  despeito,  erre,  serpêe; 
Que,  importuno  artificio  praguejando 
Mil,  e  mil  vezes,  sem  cessar  procure 
Um  fira,  que  sem  cessar  de  mim  se  aparta. 
Isto  evita:  os  excessos  duram  pouco. 
D 'estes  vários  caminhos  cada  espécie 
Tem  seu  logar.  Um  me  conduz  a  vistas 
Pasmosas,  que.  de  longe  os  olhos  fixam. 
Nutrem  a  expectação;  outro  me  some 
N 'essas  mudas  estancias,  que  parece 
A  algum  fim,  de  propósito,  velara 
Arte  mysteriosa;  mas  tornemos 
Natural  o  facticio  labyrintho, 
E  não  capricho,  precisão  se  ant'olhe. 
Diversos  accidentes,  encontrados 
Pelo  caminho  seu;  aguas,  e  bosques, 
Como  egualmente  o  chão,  devem  regel-o. 
Se  quero  uma  feliz  docilidade 
Na  forma  sua,  se  a  tristeza  odeio, 
E  insipidez  de  alinhamentos  longos. 
Mais  detesto  um  passeio  embaraçado, 
Que  de  ferida  serpe  á  similhança, 
Em  convulsivas  roscas  se  entrelaça. 
Com  giros  duplicados  cansa,  enjoa. 


80  OBKAS  DE  BOCAGE 

E  ríspido^  uniforme,  caprichoso, 

O  terreno  atormenta,  e  passos,  e  olhos. 

Ha  curvas  naturaes,  ha  torcicolos, 
De  que  ás  vezes  os  campos  d  ao  modelo. 
Do  carro  a  >x)da,  a  pista  dos  rebanhos, 
Que  em  passo  negligente  a  aidea  buscam; 
A  pastoi^inha,  que,  no  prado  abstracta, 
Vae  talvez  entretendo  a  phantasia 
Em  visões  amorosas:  isto  ensina 
Rodeios  mollemente  volteados. 
Longe,  pois,  os  contornos  angulares^ 
Longe  de  teus -passeios^  mais  ainda 
Quando  ao  fim  te  encaminha  um  longo  giro. 
Co  prazer  galardôe-se  a  fadiga, 

A  arte  se  imite  dos  poetas  grandes; 
Releva,  que  ouses  tanto.  Se  alta  Musa, 
Andando,  algum  desvio  a  si  permitté, 
Mais  que  o  caminho  a  digressão  me  agrada. 
Niso  o  seu  doce  E  uri  alo  defende, 
No  sepulchro  de  Heitor  a  esposa  geme. 
Assim  teu  artificio  me  extravie 
Por  gratas  illusões,  assim  me  alegre 
Com  risonhos  objectos  a  passagem : 
Tocando  o  termo,  indemnisado  eu  fique 
Da  extensão  que  soff'ri,  meus  olhos  gosem 
Aspectos  singulares,  episódios 
De  vivente  poema.  Alem  me  chamam 
Verdes,  propicias  grutas,  onde  sempre 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  81 


A  frescura,  o  silencio,  as  sombras  moram. 
O  pensamento  ali  precede  aos  olhos. 
Mais  longe  vitreo  lago  o  céo  reflecte, 
E  confusa  acolá,  como  fugindo. 
Assoma  perspectiva  immensa,  e  nobre. 
As  vezes  bosquesinho  alegre,  ameno, 
Mas  em  si  recolhido,  e  ricamente 
Por  ti,  e  a  Natureza  adereçado,^ 
De  flores,  e  de  sombras  abundante, 
Parece  que  te  diz :  —  «detem-te :  ah !  onde 
Podes  estar  melhor  ? ))  Súbito  a  scena 
Se  altera:  eis  em  logar  de  gosto,  e  riso 
Paz,  e  melancholia,  eis  o  repouso, 
Eis  a  grave  mudez,  onde  se  embebe. 
Onde  a  meditação  se  alonga,  e  pasce. 
Lá  com  seu  coração  conversa  o  homem, 
Attenta  no  presente,  entra  o  futuro. 
Da  carreira  vital  nos  males  pensa. 
Pensa  nos  bens,  e  recuando  a  vista 
Ao  tempo  que  voou,  se  apraz  ás  vezes 
De  perceber  no  circulo  dos  dias 
Esses  poucos  instantes  (ai !)  tão  caros. 
Tão  curtos !  Essas  flores  n'um  deserto, 
Essas  quadras  da  vida,  a  que  lhe  apontam 
Saudades  do  prazer,  e  até  da  magoa. 
Teme,  pois,  imitar  os  que  ataviam 
Friamente  os  jardins,  os  que  só  querem 
Objectos  festivaes,  e  lisonjeiros. 

6 


82  OBBAS  DE  BOCAGE 


ISTacla  em  suas  pai?5agens  é  sublime^ 
Nada  atrevido:  tudo  são  latadas^ 
Tudo  elegantes  bosques:  sempre  flores, 
Sempre  o  templo  de  Flora,  ou  dos  Amores: 
A  alegria  mouótona  aborrece. 
Sáe  tu  d'esta  commum,  cansada  trilha; 
Contrastes  imagina  interessantes, 
E  affouto  os  aventura.  Entre  si  podem 
Encontrados  eíFeitos  soccorrer-se. 
Eia,  segue  o  Poussin.  Elle  apresenta 
Em  campestre  festejo  alvas  serranas, 
Robustos  aldeãos,  bailando  á  sombra 
Dos  olmeiros  frondosos,  e  ali  perto 
Impressas  vozes  taes  sobre  um  sepulchro: 
«Já  fui,  já  fui  também  pastor  da  Arcádia, 
Este  painel  dos  gostos  voadores, 
Do  nada  da  existência,  está  dizendo. 
Ou  parece  que  diz :  C(  Mortaes,  cuidemos 
Em  lograr,  tudo  vae  desvanecer-se; 
Jogos,  danças,  pastores. »  Dentro  n'alma 
Ao  jubilo  vivaz,  alvoroçado 
Mansa  tristeza  por  degráos  succede. 

Imita  estes  eífeitos.  Não  receies 
Em  quadros  ledos  pôr  sepulchros,  e  urnas, 
Monumento  fiel  das  magoas  tuas. 
Ali !  Quem  não  tem  cbors\do  alguma  perda 
Rigorosa,  cruel!  Eia,  associa, 
Longe  do  mundo  leviano,  e  cego, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  83 


Os  bosques,  aguas,  flores  com  teu  pranto. 
Vêm  um  amigo  em  tudo  almas  sensíveis; 
Já  co'as  sombras  pacificas  se  curvam 
Para  abraçar  a  campa,  onde  suspiras, 
O  teixo,  o  agudo  pinho,  e  tu,  cypreste. 
Das  cinzas  protector,  leal  aos  mortos. 
Teus  ramos,  que  affeiçoam  génios  tristes, 
Deixam  a  gloria,  o  gosto  ao  louro,  ao  myrto; 
Do  guerreiro,  do  amante  a  venturosa 
Arvore  tu  não  és,  porém  teu  luto 
Compadece-se,  e  diz  co'as  nossas  penas. 

Em  todos  estes  monumentos  nada. 
Nada  de  apuros  vãos.  Aliar  podes 
Acaso,  ante  estes' lúgubres  objectos 
A  arte  co'a  dor,  e  co'a  riqueza  os  campos? 
Longe  principalmente  o  fingimento, 
Longe  tumulo  falso,  urnas  sem  magoa. 
Que  o  capricho  formou:  longe  as  estatuas 
De  animal  ladrador,  de  ave  nocturna: 
Isso  profana  o  luto,  insulta  as  cinzas. 

Ah  I  Se  as  de  algum  amigo  ali  não  honras, 
De  envelhecidos  teixos  lá  debaixo 
Não  vês  a  sepultura  onde  esconder-se 
^ão  de  ir  aquelles,  que,  por  ti  curvados, 
■*^  ^  ti  suando  sobre  ingratos  sulcos, 
^^.-^10  da  indigência  a  morte  esperam? 
^^J^  ^  ornar-lhes  o  sepulchio  humilde 
ieras  ^^^,^9  -^  certo,  que  não  podes 


84  OBRAS  DE  BOCAGE 


Gravar  illustres  aventuras  n'elle: 

Desde  o  incerto  crepúsculo,  em  que  os  chama 

Ave  madrugadora  a  seus  trabalhos, 

Té  ao  serão  em  que  a  família  tenra 

Com  elles  vae  sentar-se  ao  lar,  que  estala, 

Em  paz,  e  em  lida  egual  seus  dias  correm. 

Nem  guerras,  nem  tractados  os  distinguem: 

Nascer,  soíFrer,  morrer,  eis  sua  historia. 

Mas  o  seu  coração  (ah!)  não  é  surdo 

Da  memoria  ao  rumor.  E  qual  dos  homens 

No  momento  fatal  da  ausência  eterna, 

Qual  se  não  volve,  e  tristemente  alonga 

A  vista  pelos  campos  da  existência. 

Não  tem  na  idéa  de  deixar  saudades 

Algum  gosto,  e  dos  olhos  de  um  amigo 

Não  espera  uma  lagrima?  Epitaphios 

Para  adoçar-lhe  a  vida,  a  morte  lhe  honrem» 

Aquelle,  qtie,  maior  do  que  a  Fortuna, 

Serviu  seu  Deus,  seu  rei,  familia,  pátria, 

E  o  pudor  imprimiu  no  rosto  á  filha. 

Merece  que  de  pedra  menos  bruta 

A  campa  se  lhe  dê:  suas  virtudes 

Oontem-se  ali,  e  as  lagrimas  da  aldêa; 

Gravem-lhe  sobre  a  lousa :  —  «  Aqui  descansa 

O  bom  filho,  o  bom  pae,  e  o  bom  consorte. » 

Encanto  involuntário  ha  de  mil  vezes 

Teus  olhos  attraír  ao  sacro  sitio. 

E  tu,  que  estás  cantando,  antes  carpindo^ 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZirOS  85 

Debaixo  d'estas  arvores  piedosas^ 
Tu,  primeiro  que  as  deixes,  Musa  minha, 
Suspende  em  oblação  tua  grinalda 
íía  rama  venerável.  Muito  embora 
Outrem  celebre  em  verso  a  formosura: 
Nos  gostos  engolphada  a  Musa  de  outrem 
Da  cabeça  jamais  deponha  o  myrto; 
Telas  trajando,  fulgurantes  de  ouro, 
Só  da  meiga  alegria  entoe  os  hymnos: 
Verso  consolador  tu  dás  ás  cinzas, 
E  primeiro  que  as  outras  a  mão  tua 
Algumas  flores  sobre  as  campas  solta. 
Para  baixo  de  sombras  prazenteiras 
Voltemos,  que  é  já  tempo.  A  architectura 
Em  selvoso  logar  inda  me  espera. 
Para  adornal-o  de  edifícios  bellos. 
Já  não  do  luto  os  monumentos  tristes. 
Mais  eis  gostosos  sitios,  que  em  mil  faces 
Entre  a  verdura  seu  primor  oíFertam. 
O  uso,  porém,  lhe  approvo,  e  tolho  o  abuso. 

Desterra  dos  jardins  montão  sem  ordem 
De  edifícios  diversos,  essa  pompa 
De  perdulária  moda:  os  obeliscos, 
Rotundas,  e  kioskos,  e  pagodes; 
Esses  cáhos  de  ingrata  architectura, 
Romanos,  gregos,  árabes,  chinezes;  ^ 

Esterilmente  profusão  fecunda, 
Que  o  mundo  inteiro  n'um  jardim  concentra. 


86  OBRAS  DE  BOCAGE 


Não  procures  também  ocioso  ornato, 
Antes  disfarça  em  útil  o  aprazível. 
De  seu  senhor  thesouro,  e  seu  recreio, 
A  herdade  exige  campesino  adorno. 
Lares,  que  sobre  o  campo  ergueu  o  orgulho, 
Magnifico  solar  não  a  desdenhe; 
As  riquezíis  lhe  deve,  e  d'elle  ao  fausto 
Sobresáe  tanto  a  singeleza  d'ella. 
Quanto  de  Annida  aos  artifícios  todos 
Sorriso  ingénuo  de  acanhada  virgem. 
A  herdade !  A  este  nome  hortos,  colheitas, 
O  pastoril  reinado,  o  emprego  doce. 
Os  innocentes  bens  dos  áureos  tempos. 
Cujas  meigas  imagen> enfeitiçam 
A  infância,  que  é  na  vida  a  edade  de  ouro, 
E  tanto  a  infância  minha  enfeitiçaram; 
Isto,  ah!  Isto,  que  idéas,  que  saudades 
Dentro  do  coração  me  não  desperta! 
Vem,  já  das  aves  tuas  ouço  o  canto: 
Já  chiam  carros,  da  abundância  áo  pezo, 
Que  as  tulhas  te  demandam,  e  a  compasso 
Cáe  o  instrumento,  que  debulha  os  milhos. 

Orna,  pois,  o  teu  ])redio,  mas  comtanto 
Que,  pródigo,  em  palácio  o  não  convenas. 
Por  seu  caracter  simples,  e  elegante 
Entre  os  jardins,  ou  quintas  é  a  herdade 
O  mesmo  que  c3ntre  os  versos  é  o  idjdlio. 
Pelos  nunies  dos  campos,  ah!  desvia 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADtJZIDOS  87 


O  luxo  audaz  d'este  lof^^ar  modesto, 

Desvia-o  sempre;  de  occultares  não  tractes 

Nem  os  lagares  teus,  nem  teus  celeiros; 

Ver  quero  o  trem  das  ceifas,  das  vindimas 

Ver  o  crivo,  a  joeira,  onde  co'a  palha 

O  grão  dourado  salta,  e  recáe  puro; 

A  grade,  o  trilho,  tudo  o  mais  da  granja. 

Sem  pejo  aos  olhos  meus  se  manifestem; 

Mormente  de  animaes  o  móbil  quadro 

Lhe  dô  por  dentro,  e  fora  um  ar  vivente. 

Não  vemos  do  solar  o  adorno  estéril, 

A  graça  inanimada,  a  immovel  pompa: 

Debaixo  d^estes^^tectos,  n'estes  muros 

Tudo  está  povoado,  e  tudo  é  vivo. 

Que  aves,  diversas  pela  voz,  e  instincto, 

Que  no  abrigo  da  toUia,  ou  colmo  habitam, 

Hepublica,  nação,  familia,  reino, 

Me  entretém  com  seus  brincos,  seus  costumes! 

Eis  á  frente  de  todas  gira  o  gallo, 

O  gallo,  feliz  chefe,  páe,  e  amanie, 

Que,  sultão  sem  moUeza,  dií^tribue 

Pelo  serralho  aligero  a  ternura; 

Une  ao  jus  do  valor  o  da  belleza. 

Impera  carinhoso,  altivo  afaga; 

Para  mandar,  para  gosar  nascido, 

Nascido  para  a  gloria,  ama,  combate, 

Triumpha,  e  logo  seus  triumphos  canta. 

Ha  de  aprazer-te  o  ver  como  elles  brincam, 


88  OBRAS  DE  BOCAGE 


Como  contendem;  seu  amor,  seus  odios^ 

E  até  sua  comida.  Assim  que  assoma 

Com  a  teiga  nas  mãos  a  dispenseira, 

De  repente  a  nação  voraz,  e  leve 

Voa  d'aqui,  d'ali,  de  toda  a  parte 

Em  turbilhão  ruidoso,  e  quasi  a  um  tempo. 

O  sôfrego  tropel  junto  á  que  o  ceva 

Súbito  forma  um  circulo  apinhado: 

Ha  taes  que,  sempre  expulsos,  tornam  sempre^ 

Perseguem  o  comer,  e  até  na  palma, 

Affoutos  parasites,  vêm  furtal-o. 

-    Este  povo  domestico  protege; 

Não  soberbos,  mas  sãos  seus  pousos  sejam. 

Decoradas  estancias  que  lhe  prestam? 

Marmóreos  bebedouros,  e  áureas  grades? 

Mais  lhe  apraz,  muito  mais,  um  grão  de  milho.. 

Já  Lafontaine  o  disse.  Oh  Lafontaine! 

Oh  sábio  verdadeiro,  eras  lucrcso 

N'este  logar !  Cantor  feliz  do  instincto, 

Melhor  te  inspiraria  aqui  o  olhal-o! 

Fofo  o  pavão  de  assoalhar  seu  iris, 

A  inchação  do  peru,  mais  louco  ainda, 

Teus  pincéis  alegrara  á  nossa  custa. 

Viras  aqui  dos  pombos  teus  a  imagem; 

De  dous  gallos  amantes  a  discórdia 

A  dizer  outra  vez  to  obrigaria: 

<íTu  derrubaste.  Amor,  de  Tróia  os  muros !  )> 

D'e8t'arte  nos  apraz,  e  attráe  a  herdade. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  89 

Mas  em  outra  prisão  que  vulgo  fere 
Por  incógnitos  sons  os  meus  ouvidos? 
Extranhos  anirnaes  ali  se  guardam, 
Maravilhas  dos  olhos,  ali  vivem 
N'um  suave  desterro  encarcerados 
Brutos  da  terra,  do  ar,  e  um  d'outro  pasmam. 
Extravagantes  castas  não  procures, 
Prefere  o  que  é  mais  bello  ao  que  é  mais  raro. 
Mosfcra-nos  aves  n'outros  céos  creadas, 
Que,  validas  do  sol,  seus  lumes  vibram; 
Da  indiana  gallinha  o  vivo  esmalte, 
E  o  ouro  do  faisão  purpureado. 
Aves  de  ostentação  meltior  se  alojem; 
Elias  mesmas  são  luxo,  e  co'a  belleza 
Já  que  a  inutilidade  ellas  compensam, 
Brilhe  a  prisão  como  os  captivos  brilhar». 
Rebeldes  animaes,  porém,  não  tenhas. 
Cujo  orgulho  se  irrita,  e  cansa  em  ferros. 
Quem  pode  ver  sem  magoa  o  rei  dos  ares, 
O  pássaro  feroz,  que  andou  folgando 
Lá  por  entre  o  trovão,  por  entre  o  raio, 
Quem  pode  vel-o  na  gaiola  indigna 
Esquecer  o  relâmpago  dos  olhos, 
Dos  voos  a  altivez  !  Livre  de  novo. 
Na  abobada  dos  céos  ao  sol  se  atreva: 
Nunca  pode  agradar  ente  aviltado. 

Mas  com  seu  lustre  peregrino  em  quanto 
Parece  que  estes  hospedes  diíFrentes 


90  OBliAS  DE  BOCAGE 


Á  minha  escolha,  á  preferencia  aspiram, 
O  olfato  me  convida  a  aquelles  tectos, 
Onde,  do  pátrio  chão  também  roubados, 
Extranhos  vegetaes  o  vidro  ampara. 
Tu  cerca  de  ar  macio  as  débeis  plantas, 
Mas  venera  estações,  vencendo  climas: 
Não  forces  a  brotar  na  quadra  feia^ 
Bens,  que  a  bons  tempos  Natureza  guarda. 
Deixa  aos  paizes  de  aturado  inverno. 
Deixa  embora  essas  flores,  esses  fructos, 
De  falsa  primavera,  e  Mso  estio; 
Certo  de  que  ha  de  o  sol  madorecel-os, 
Sem  violentar  seus  dons,  seus  dons  espera. 
Mas  folgo  em  ver  no  tnmsparente  íibrigo 
Prendas  diversas  de  diversas  plagas. 
Os  iberos  jasmins  ali  se  animam, 
Friorenta  congorça  esquece  a  pátria, 
Tenro  ananaz  pelo  calor  se  engana, 
E  usurpado  thesouro  em  si  te  entrega. 
Talhe  a  rasão  teus  edifícios  vários,    . 
De  flores,  e  animaes  formoso  hospieio, 
Oh  quantos,  quantos  mais,  que  o  sitio  abrace, 
Que  approve  o  gosto,  recrear^nos  podem ! 
A  sombra  d'esses  húmidos  salgueiros, 
Húmidos  com  sadia  agua  corrente. 
Seja  do  banho  o  solitário  asylo. 
Além  cabana,  em  que  a  frescura  assiste, 
Offerte  ao  pescador  linhas,  e  redes. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  91 


Não  vês  a  mansidão  cUeste  retiro? 
Doce  acolheita  ali  consagro  ás  Musas. 
No  seio  florecido,  e  magestoso 
Ali  somente  um  obelisco  ordeno: 
Aos  ares  sobe  o  monumento  augusto, 
E  lavro  sobre  a  pedra  enternecida: 
<(  A  nossos  destemidos  mareantes^ 
Que  pela  pátria  voluntários  morrem.» 

Assim  teus  variados  edifícios 
Nem  desertos  serão,  nem  ociosos. 
Com  seu  logar  se  ageitem  massa,  e  forma, 
Cada  qual  se  colloque  onde  releva. 
E  não  se  perca,  não- destrua  a  sccna 
Por  sobeja  extensão,  por  muito  aperto. 

O  que  empece  ao  caractei^,  e  utilisa 
Sabe,  pois:  um  recanto  quasi  occulto 
Lá  bem  n'um  descampado,  é  que  nos  pinta 
Melhor  o  desamparo,  a  soledade. 
Sempre  a  cada  expressão  fiel  te  mostra; 
Um  ermo  a  grande  luz  não  patentêes, 
Nem  selva  carrancuda  esconda  um  templo: 
Do  monte  sobre  a  espádo:t  quer  ser  visto. 
Movimento,  esplendor,  grandeza,  e  vida 
O  aéreo  sitio  pelo  quadro  espalha. 
Julgo  um  aspecto  olhar  da  bella  Ausouia, 
Esta  dos  edifícios,  esta  a  graça. 

Mas  de  taes  monumentos  a  alegria, 
Luxo  moderno,  e  fresca  mocidade 


92  OBRAS  DE  BOCAGE 


Valem  de  antigos  restos  a  velhice? 
D'esses  aqui,  e  ali  dispersos  corpos 
O  já  desordenado,  e  gran  volume, 
A  forma  pictoresca  enlaça  a  vista. 
Por  elles  sobre  a  terra  está  marcada 
Dos  evos  a  carreira,  e,  destruídos 
Pelos  vulcões,  ou  tempestade,  ou  guerra, 
Instruem  sempre,  alguma  vez  consolam. 
Sim,  estas  massas,  que  também  da  edade 
Cedem  ao  pezo,  como  nós  cedemos, 
A  derrota  geral  nos  habituam, 
E  a  perdoar  á  Sorte.  Assim  Carthago 
Sobre  os  desfeitos  muros  n'outros  tempos 
Mário  viu  infeliz,  e  e.-tes  dous  restos 
Tão  fifrandes  entre  si  se  consolavam. 

Aproveita  ruinas  venerandas. 
E  tu,  que  os  passos  meus  tens  variado 
Pelos  selvosos  campos,  tu,  que,  longe 
Das  vulgares  estradas,  vás  dictando 
Leis  aos  jardins,  oh  Poesia  amável ! 
Oh  irmã  da  Pintura  !  A  monumentos 
De  longa  edade  restitue  a  vida; 
Presenta  ao  gosto  os  ricos  accidentes, 
Que  o  tempo  desenhou  co'a  mão  remissa. 

Uma  antiga  capella  ora  apparece. 
Modesto,  e  sancto  asylo,  onde  algum  dia 
Iam  em  tosco  altar,  na  quadra  nova, 
As  donzellas,  e  as  mães,  e  os  seus  filhinhos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  93 


A  bem  das  messes  implorar  o  Eterno. 
Consagra  inda  o  respeito  estas  ruinas. 

Ora  avulta  acolá  castello  annoso, 
Em  fragosos  cabeços,  que  tyranno 
Do  território  e  dos  vassallos  medo, 
Co'as  ameias  aos  céos  arremettia; 
Que  em  tempos  de  terror,  discórdias,  sangue, 
Viu  lançadas  mortaes,  viu  gentilezas 
De  nossos  invenciveis  cavalleiros, 
Os  Bayards,  os  Henriques;  hoje  o  trigo 
Sobre  os  fragmentos  seus  lourêa,  e  treme. 
Esta  triste,  forçosa  architectura. 
Cingida  de  verdor  fresco,  e  risonho, 
As  esplanadas,  e  ângulos,  e  torres 
Rotas,  quasi  abatidas,  onde  as  aves 
Dos  amores  em  paz  o  fructo  aquecem; 
Os  gados  povoando  estes  guerreiros 
Recintos  façanhosos,  e  o  menino, 
Q'onde  os  avós  já  guerrearam,  brinca, 
Forma  tudo  isto  singular  contraste. 
D'elle  te  apossa,  dando  aos  olhos  quadro 
Duro,  e  brando,  campestre,  e  bellicoso. 

Mais  ao  longe  um  mosteiro  abandonado 
Entre  arvoredos  súbito  se  encontra. 
Que  silencio  I  Amadora  dos  desertos. 
Com  gosto  ali  meditação,  te  entranhas 
Por  baixo  das  abóbadas  sagradas, 
)  \)T  onde  austeras  virgens,  algum  dia 


94  OBRAS  DE  BOCAGE 


Como  as  turvas  alampaclas,  que  veliiin 

ÁBte  a  religiãOj  também  velavam/ 

E  descarnadas,  pallidas,  ardiam 

Por  Deus,  e  emfim,  por  Deus  se  consumiam, 

Sancta  contemplação,  paz,  innocencia. 

Como  que  ainda  este  silencio  occupam  ! 

Musgosos  muros,  o  zimbório,  as  torres, 

Os  arcos  d'este  claustro  escuro,  e  longo, 

D'estes  altares  o  degráo  roçado 

Do  supplice  joelho,  os  vidros  negros.*-» 

O  sombrio,  e  profundo  sanctuário, 

Onde,  escondidamente  desgraçadas, 

Almas  houve,  talvez,  que  de  seus  laços 

As  inílexiveis  aras  se  carpissem, 

E  por  doces  memorias  inda  frescas 

Algum  medroso  pranto  ao  céo  furtassem: 

Tudo  com  move  ali,  tudo  ali  falia. 

Ali  cevando  a  mente  em  soledade, 

As  vezes  cuidarás,  ao  pôr  do  dia, 

Que  de  alguma  Heloisa  a  sombra  geme; 

Que  as  lagrimas,  que  a  dor,  que  os  ais  lho  sentes. 

Logra,  pois,  estes  restos  de  alto  preço, 

Ternos,  augustos,  pios,  ou  profanos. 

Mas  longe  os  monumentos,  cujo  estrago 
Do  finmmento  c  filho,  e  mal  imita 
Do  tempo  as  impressões  inimitáveis: 
Esses  antigos  templos,  fabricados 
Inda  ha  pouco,  as  relíquias  de  um  castello 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  95 


Qne  jamais  existiu,  pontes  idosas, 
Que  hontem  nasceram,  torreão  dos  godos, 
Que  roto,  e  gasto,  não  parece  antigo: 
São  artificio  inútil,  e  grosseiro; 
Fitando-lhe  a  attenção,  se  me  figura 
Que  vejo  um  moço  arremedando  um  velho, 
Despindo  as  graças  da  amorosa  edade. 
Sem  que  retrate  da  velhice  as  rugas; 
Mas  estrago  real  dá  pasto  aos  olhos. 
Restos,  que  já  contemporâneos  fostes 
De  nossos  bons,  e  simplices  maiores. 
Gosta  meu  coração  de  interrogar-vos, 
E  oosta  de  vos  crer.  De  novo  a  historia 
Estudo  em  vós  dos  tempos,  e  dos  povos. 
Quanto  esses  povos  mais  famosos  foram, 
E  quauto  mais  fiunosos  esses  tempos. 
Tanto  mais  n'esses  restos  fico  absorto. 

Campos  de  Itália !  Oh  campos  d'a]ta  Roma  ! 
Onde  jáz,  por  fatal,  e  horrivel  queda, 
Oom  todo  o  seu  orgulho  o  nada  do  homem ! 
Ahi  é  que  ruinas,  afamadas 
Por  grandes  nomes,  por  memorias  grandes, 
Dão  sublimes  hções,  aspectos  graves, 
Thesouros,  que  as  paizagens  enriquecem. 
Ve  como  cá,  e  lá  por  toda  a  parte 
A  rapidez  dos  séculos  tremendos. 
Das  artes  os  prodígios  destroçando, 
S^^jiulchros  arrojou  sobre  sepulchros, 


96  OBRAS  DE  BOCAGE 


Um  templo  derribou  sobre  outro  templo. 

Olha  as  edades  blasonando  ao  longe 

Co' a  ruina  im mortal  da  excelsa  Roma. 

Os  pórticos,  e  os  arcos  (onde  a  pedra 

Em  caracter  fiel  conserva  ainda 

Do  povo  rei  magnânimas  proezas), 

Pórticos,  è  arcos  tem  cansado  os  tempos. 

Ondas  suspensas  por  aqui  bramiam, 

Por  baixo  doestas  portas  dilatadas 

Os  despojos  do  mundo  iam  passando. 

Esparzidos  estão,  no  pó  confusos 

Por  toda  a  parte,  os  thermes,  os  palácios, 

Os  sepulchros  dos  Césares,  em  quanto 

De  Virgílio,  de  Ovidio,  Horácio,  e  de  outros 

In  da  grata  illusão  nos  finge  o  rasto. 

Oh  três,  e  quatro  vezes  venturoso 

O  artista  dos  jardins!  Feliz  quem  pôde 

D'estes  restos  divinos  apossar-se! 

Já  lhe  vae  surdamente  a  mão  do  tempo 

Ajudando  as  tenções;  já  sobre  pompas 

Dos  senhores  do  mundo,  a  Natureza 

De  recobrar  os  seus  direitos  folga: 

Lá  onde  o  domador  dos  reis,  lá  onde 

Campeava  Pompêo  com  fasto  immenso, 

Agora  dos  pastores  se  ouve  a  flauta, 

Como  nos  dias  do  tranquillo  Evandro. 

Vê  rir  os  campos,  que  ao  cultor  volveram, 

E  relvar  os  cabritos  sobre  os  tectos, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  97 


B  obelisco  arrogante  além  caído ! 

Oliia  abraçado  co'a  columna  altiva 

O  humilde  espinho;  as  arvores,  as  plantas, 

Subir,  baixar  em  mil  festões,  mil  cachos; 

Aquella,  que  Minerva  aos  homens  trouxe, 

E  a  figueira,  pelo  hálito  dos  ventos 

Por  ^itre  estes  estragos  semeadas, 

Acabam  de  abalar  co'a  raiz  branda 

As  veneráveis  obras  dos  romanos; 

A  torta  vide,  a  hera  de  cem  braços, 

Em  torno  das  ruinas  serpeando, 

A  modo  que  desejam,  que  procuram 

Recatar-lhe  a  velhice,  ou  guarnecel-a. 

Se  não  tens  estes  restos  estupendos, 
Terás,  sequer,  os  animados  bronzes. 
Terás  os  numes  das  edades  mortas. 
Em  que  arte  divinal  forçava  os  cultos? 

Quiz  dos  jardins,  bem  sei,  gosto  severo 
Lançar  todos  os  deuses  dos  romanos, 
Dos  gregos;  mas  porque?  Nossas  infâncias, 
Em  Athenas,  em  Roma  cultivadas. 
Sua  docô  magia  exp'rimentáram. 
Estes  mimes  agrícolas  não  eram? 
Não  pastores?  Porque  has  de,  pois,  tolher-lhes 
Os  bosques,  os  vergéis?  Podem  teus  fructos 
Rebentar  sem  auxilio  de  Pomona? 
Ou  te  é  dado  expellir  do  império  Flora? 
.        'pro  essas  deidades  nos  encantem: 


98  OBKAS  DE  BOCAGE 


Das  artes  inda  (5  culto  a  idolatria; 

Mas  li  aja  perfeição^  primor  na  escolha. 

Não  queiras  nos  jardins  impróprios  deuses, 

Ellfís  sem  magestade,  eJlas  sem  graça. 

Elege  a  caíja  qual  assento  idóneo, 

Seus  direitos  nenhum  ao  outro  usurpe. 

Deixe  nas  selvas  Pan.  Porque  motivo 

Co'as  Dryades  estão  Tritões^  Nereidas? 

De  que  serve  este  Nilo,  em  vão  c'roado 

De  canas,  e  a  mostrar  do  pó  manchada 

A  urna,  que  é  de  pássaros  abrigo? 

Fora  os  leões,  o  os  tigres:  esses  monstros 

Té  nas  imagens  suas  me  arripiam; 

E  os  Césares  também,  mais  monstros  que  elles,. 

Sentinellas  horriferas  das  portas 

De  bordadas  florestas,  que,  nojosos 

Da  suspeita,  e  do  crime,  inda  parece 

Com  os  olhos  as  victimas  apontam. 

Ao  risonho  logar  que  jus  têm  elles? 

Mostra-me  objectos,  que  eu  venere',  eu  ame; 

A  sua  apotheósis  sagra  um  sitio, 

Elysios  cria  em  que  seus  manes  folguem. 

Longe  de  oihos  profanos,  sobre  valles 

De  verdes  murtas,  de  cheirosos  louros 

Honrem  seus  vultos  mármore  de  Paros; 

Goste  um  remanso  de  banhar  taes  selvas, 

E,  mesclando  co'a  sombra  os  dúbios  lumes,. 

Seja  Diana  aftavel  o  astro  d'ellas. 


POKMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  99 


Dos  virentes  dóceis  a  formosura 

Sobre  as  queridas,  cândidas  estatuas, 

D'esies  homens  egrégios  o  repouso, 

A  simples,  a  benigna  magestade, 

Correntes  sem  rumor,  como  as  do  Lethes, 

Que  para  aquellas  almas  tão  serenas 

Parece  vão  rolando  o  esquecimento 

Da  crua  ingratidão,  e  de  outros  males; 

Bosques,  e  o  dia,  entre  elles  expirando, 

Tudo  respira  a  paz  dos  manes  ledos. 

Tu  não  consagres,  pois,  se  não  tranquillas 

Estremadas  virtudes  n'esses  campos. 

Longe,  longe  os  fataes  conquistadores, 

Verdugos,  não  heróes:  esses  legares 

Turbariam  talvez,  como  turbaram 

Este  mundo  infeliz:  ali  colloca 

Os  amigos  dos  homens,  e  dos  deuses: 

Os  de  que  ainda  benefícios  vivem 

Na  fama  e  tradição;  também  monarchas, 

De  que  o  seu  povo  não  chorasse  a  gloria: 

Mostra  íihi  Fenelon,  mostra  á  saudade, 

E  com  Sully  se  abrace  Henrique  o  grande. 

Dá,  dá-me  flores,  cubrirei  com  ellas 
Os  sábios,  que  em  longinquas,  novas  praias 
Artes  consoladoras  demandaram, 
Artes  consoladoras  desparsiram. 
E  tu,  primariamente,  heróe  britanno, 
Tu  Cook  infatigável,  denodado, 


100  OBRAS  DE  BOCAGE 


Que  acceito,  e  caro  aos  corações  do  todos, 
Unes  co'a  magoa  teu  paiz,  e  a  França; 
Que  a  essas  regiõeSj  que  aonde  o  raio 
Outr'hora  os  europeus  annunciava, 
Útil,  novo  Triptólemo,  guiaste 
O  serviçal  cavallo,  a  ovelha,  o  touro, 
O  arado  agricultor,  e  as  pátrias  artes, 
Nossas  fúrias,  e  roubos  expiando  : 
Com  doce  paz  fraterna  lá  surgias. 
Prantos,  e  beneficies  lá  deixavas. 
Recebe  de  um  francez  este  tributo.  . .  . 
E  á  minha  gratidtão  que  importa  o  clima  ? 
Virtudes  immortaes  do  illustre  Nauta 
Nosso  concidadão  já  o  fizeram; 
No  grande  exemplo  o  nosso  rei  se  imite, 
Digno  de  ser  seu  rei.  Ah!  que  aproveita 
Ao  pasmoso  varão  ter  vezes  duas 
Visto  os  mares  de  gelo,  os  céos  de  fogo, 
Ter  estes  afrontado  e  roto  aquelles  ? 
Que  as  ondas,  ventos,  povos  o  acatassem: 
Que  em  toda  a  vastidão  do  pego  immenso 
Fosse  immune,  e  sagrada  a  quilha  sua; 
Que  só  com  elle  reprimisse  a  guerra 
Seu  hórrido  furor?  Do  mundo  o  amigo 
(Ai !)  Morre  ás  mãos  de  bárbaros  selvagens. 

Oh  vós,  que  lamentaes  seu  fim  cruento. 
Da  potente  Albion  soberbos  filhos, 
Imitae-lhe,  que  é  tempo,  a  ambição  nobre. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  101 


Porque  em  vossos  eguaes  quereis  escravos  ? 
Dae-lhe  fraternidade,  e  não  cadêas. 
Dos  louros  triumphaes  cingida  a  fronte, 
Dos  louros,  que  o  francez  colheu  de  novo, 
Té  a  mesma  victoria  a  paz  cubica. 

Desce,  prole  do  céo,  Paz  su-^pirada, 
Doura  este  globo,  em  fim,  com  teus  sorrisos, 
Dos  sitios,  que  eu  cantei,  requinta  as  graças; 
Forma  um  povo  feliz  de  tantos  povos; 
Aos  campos  abundância  restituo, 
E  restitue  ás  ondas  o  conmiercio; 
Hajam  da  tua  mão,  propicio  nume, 
Os  dous  mundos  soceo-o,  as  artes  vida. 


NOTAS 

PRIMEIRO  CANTO 

(Pag.  lá,  vers.  6) 

Assumpto  amável,  que  tentou  Virgílio,  etc. 

Vê-se  nas  Georgicas^  liv.  iv,  que  a  composição  dos 
jardins,  de  que  faliam,  é  mui  singela,  e  naturalissima,  e 
que  se  acha  n^elles  o  útil  com  o  aprazivel :  pomos,  flores, 
hortaliças.  Mas  estes  jardins  são  os  de  um  ordinário 
habitante  dos  campos ;  jardins,  taes  como,  com  um  gosto 
simples,  quizera  o  sábio  ornal-os,  e  cultival-os  pela  sua 
mão ;  taes  como  folgaria  de  os  aformosear  o  amável 
poeta,  que  os  descreve.  Não  tractou  d'aquelles  jardins 
famosos,  que  o  luxo  dos  vencedores  do  mundo  —  os  Crassos, 
os  Lucullos,  os  Pompêos,  os  Césares,  carregaram  das 
riquezas  da  Ásia,  e  dos  despojos  do  universo. 

(Ibid.j  vers.  19) 

De  Alcino  o  luxo,  o  gosto,  ainda  rude, 
Punha  a  curto  vei;gel  módico  enfeite,  etc. 

É  um  monumento  precioso  da  antiguidade,  e  da  his- 
toria dos  jardins,  ã  descripção,  que  faz  Homero  do  de 
Alcino.  Vê-se,  que  elle  distava  pouco  do  nascimento  da 
arte:  que  todo  o  seu  luxo  estava  na  symetria  e  ordem, 
'na  riqueza  do  chão,  na  fertilidade  das  arvores,  nas  duas 
fontes,  de  que  era  ornado ;  e  todos  os  que  quizessem  jar- 
dim para  gosar,  e  não  para  mostral-o,  escusariam  outro. 


104  OBRAS  DE  BOCAGE 


(Ibid.,  vers,  21) 

Eis  com  arte  maior,  mais  sumptuosa 
Jardins  nos  ares  Babylouia  ostenta. 

Parte  d'estes  jardins  suspensos  ainda  durava  mil  e 
seiscentos  annos  depois  da  sua  creaçào ;  elles  foram  o 
assombro  de  Alexandre,  quando  entrou  em  Babylonia. 


(Ihid.,  vers.  23) 

Qs  latinos  heróes,  de  Marte  os  filhos, 
Depois  que  Kcrna  agrilhoava  o  mundo, 
Davam  repouso  ameno  á  gloria,  ao  raio 
Em  frescos  hortos,  que  a  victoria  ornara. 

Existe  monumento  ine.=ítimavel  do  gosto  e  forma  dos 
jardins  roípanos  em  uma  carta  de  Plinio  Júnior,  e  n'ella 
se  lê  que  já  então  conli^ciam  a  arte  de  affeiçoar  as  ar~ 
veres,  de  dar-lhes  diversas  figuras  de  vasos  ou  animaes; 
que  a  architectura  e  o  luxo  dos  edifícios  eram  dos  primá- 
rios ornamentos  dos  parques;  mas  que  todos  tinham  um 
objecto  de  utilidade,  objecto  em  demasia  esquecido  nos 
jardins  modernos. 


(Pag,  16,  vers,  14) 

Beloeil,  a  um  tempo 
Campestre,  apparatoso,  etc. 

Beloeil  foi  uma  casa  de  [recreio,  ou  quinta,  do  prín- 
cipe de  Ligne. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  105 


(Ibid.j  vers.  21) 

Q  amável  Tivoli,  de  forma  extranha 
A  França  descobriu  ténue  modelo. 

O  local  de  Tivoli  negava-se  aos  grandes  efíeitos  pie- 
torcscos ;  mas  Boutin  teve  o  merecimento  do  colher  d'elle 
a  utilidade  possivel,  e  principalmente  de  ser  o  que  pri- 
meiro experimentou  com  bom  êxito  o  género  irregular. 


(Ihid.^  vers.  23) 

Montreuil  as  Graças  desenharam  rindo,  etc. 

Montreuil  era  um  bellissimo  jardim  da  princeza  de 
Guimené,  na  estrada  de  Pariz  a  Versailles. 

(Ihid.,  vers.  24) 

Maupertuis,  le  Desert,  com  que  alegria, 
Rincy,  Limours,  etc. 

Maupertuis.  Este  jardim,  conhecido  pelo  nome  de 
Elysio,  pertenceu  ao  marquez  de  Montesquieu.  Se  bellas 
aguas,  soberbas  plantações,  aprazível  mixto  de  colinas  e 
valles  fazem  um  sitio  formoso,  o  Elysio  é  digno  do  seu 
amável  nome. 

Le  Desert.  Este  jardim  foi  desenhado  com  muita  graça 
por  Monville. 

Rincy.  Este  lindo  jardim  foi  do  duque  de  Orleans. 

Limours.  Este  logar,  naturalmente  inculto,  foi  mui 
aformoseado  pela  condessa  de  Brionne,  e  perdeu  parte  da 
aspereza,  sem  perder  o  caracter. 


106  OBRAS  DJE  BOCAGE 


(Pag.  11,  vers.  2) 

' e  parecido 

Comtigo  Trianon,  deusa,  que  o  reges,  etc. 

O  pequeno  Trianon,  jardim  da  rainha,  é  modelo  n^este 
género.  Parece  que  a  riqueza  foi  n'elle  empregada  sem- 
pre pelo  gosto. 

(Ibid.,  vers.  5) 

Grato  asylo  d'um  principe  adorável, 
Tu,  cujo  nome  de  apoucada  idéa,  etc. 

É  o  gracioso  jardim  —  Bagatela  —  composto  com  muita 
arte  para  o  conde  de  Artois,  e  que  tem  a  vantagem  de 
se  achar  no  meio  de  bosque  aprasivel,  que  parece  parte 
d'elle.  O  pavilhão  é  de  uma  elegância  rara.  Nào  se  podo- 
ram  nomear  n'este  poema  outros  agradáveis  jardins,  feitos 
alguns  annos  depois. 

(Pag.  29,  vers.  7) 

A  arte  os  prometta,  os  olhos  os  esporem : 
Dá  quem  promette,  quem  espera  gosa. 

Este  ultimo  hemistichio  vem  n*uma  epistola  de  Saint- 
Lambert ;  a  reminiscência  o  introduziu  n'este  poema. 

(Pag.,  30  vers.   1) 

Entre  Kent,  e  Lenotre  eu  não  decido,  etc. 

Kent,  architecto,  e  famoso  desenhador  em  Inglaterra, 
foi  o  primeiro  que  tentou  felizmente  o  género  livre,  que 


poej!íias  didácticos  tkaduzidcs         107 


principia  a  lavrar  por  toda  Europa.  Os  chinezes  &ão  sem 
duvida  seus  inventores. 


(Pag.  32,  vers.  19) 

Attenta  em  Milton,  ete. 

Muitos  inglezes  querem  que  esta  bella  descripçâo  do 
paraiso  terreal,  e  alguns  logares  de  Spencer,  dessem  a 
idéa  do  jardim  irregular;  e  postoque  é  provável,  como  já 
se  disse,  que, este  geneio  venha  dos  chins,  o  aucior  ante- 
poz  a  auctoridade  de  Milton  como  a  mais  poética.  Além 
d'isso,  julgou  que  se  olharia  com  gosto  a  magnificência 
toda  do  maior  rei  do  mundo,  todos  os  milagres  das  artes 
em  opposição  com  os  feitiços  da  natureza  recente,  com  a 
innocencia  das  primeiras  creaturas  que  a  aformoseáram, 
e  com  o  attractivo  dos  primeiros  amores.  Não  traduziu, 
nem  tão  pouco  imitou  Milton,  que  devia,  e  podia  descre- 
ver mais  longamente  o  Éden. 


SEGUNDO  tJANTO 

(Pag.  48,  vers.  1) 

Sempre  verdes, 

(Ob  Mouceaux)  teus  jardins  sao  d'isto  exemplo. 

O  jardim  de  inverno  do  duque  de  Charti-es  é,  com 
effeito,  um  encantamento.  A  estufa  especialmente  é  uma 
das  melhores  que  se  conhecem. 


108  OBRAS  DE  BOCxVGE 

(Pag.  53,  vers.  15) 

Moço  Potaveri,  tu  d'isto  és  prova,  etc. 

Este  o  nome  de  um  habitante  de  0-taiti,  ôonduzido  a 
França  por  Bougainville,  celebre  pelo  seu  valor,  e  cons- 
tância em  varias  acções,  e  gloriosamente  conhecido  quer 
por  navegante,  quer  por  militar.  O  passo,  que  se  refere, 
do  mancebo  otaitiano,  é  mui  notório  e  interessante.  Só 
o  que  fiZ  o  auctor  foi  alterar  o  logar  da  scena,  que  fin- 
giu no  jardim  real  das  plantas.  Quizera  pôr  em  seus  ver- 
sos toda  a  sensibilidade,  que  rospira  nas  poucas  palavras, 
que  o  moço  proferiu,  abraçando  a  arvore,  que  havia  conhe- 
cido, e  que  lhe  recordou  a  pátria  —  «  E  0-taiti »  — dizia 
elle,  e  olhando  para  as  outras  arvores,  —  «  Não  é  0-taiti.  » 
—  Assim  estas  arvores,  e  a  sua  pátria  se  identificavam 
no  seu  espirito.  Julgou  o  auctor  que  este  lance  tão  terno, 
e  tão  novo,  poderia  ministrar  um  bello  episodio. 

(lòid.j  vers.  18) 

Onde  é  sem  pejo  amor,  amor  sem  crime. 

Observou- se  em  todos  os  povos,  onde  a  sociedade  tem 
feito  curtos  progressos,  uma  certa  innocencia  nos  costu- 
mes, muito  diversa  do  resguardo,  e  do  pejo,  que  sempre 
acompanham  a  virtude  nas  mulhí^res  das  nações  polidas. 
Na  ilha  de  O  t  ai  ti,  na  maior  parte  das  outras  do  mar  do 
sul,  em  Madagáscar,  etc.  as  casadas  julgam  dever-se  exclu- 
sivamente a  seus  maridos,  e  quebram  raras  vezes  a  leal- 
dade conjugal ;  mas  as  solteiras  não  escrupulisam  em  se 
entregar  até  á  paixão  momentânea,  que  os  homens  lhes 
inspiram.  Não  se  sujeitam  nem  nas  palavras,  nem  nos 
modos,  nem  no  vestido  ao  que  olhamos  como  deveres  do 
sexo  feminino.    Mas  isto  é  n'ellas  simplicidade,  não  é 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  109 


corrupção:  não  desprezam  as  normas  da  decência,  cilas 
as  ignoram.  N 'estes  paizes  a  natureza  é  grosseira,  mas 
nâo  depravada.  Eis  o  que  se  intentou  exprimir  n'aquelle 
verso. 


TERCEIRO  CANTO 

(Pag.  58,  vers.  11)  - 

Sei  que  era  H<arlem  ha  curiosos  tristes 

Que  em  seus  jardins  co'a8  flores  vão  fechar-se. 

Harlem  é  cidade  de  Hollanda,  onde  se  commercía 
muito  em  flores,  e  sabe-se  a  que  extravagância  tem  che- 
gado os  floristas  no  amor  á  raridade,  e  ás  posses  exclu- 
sivas. 

(Pag.  60,  vers.  11) 

Do  cume  dos  rochedos  verdadeiros,  etc. 

Em  geral,  não  se  podem  imitar  bem  os  rochedos,  nem 
todos  os  grandes  eííeitos  da  natureza.  Ella  não  consente 
H  arte  emprehendor  estes  atrevimentos,  salvo  quando 
orabate  com  todos  os  esforços  e  cabedaes  do  engenho, 
c  da  opulência.  Assim  se  formou,  segundo  os  desenhos 
de  Bobert,  o  soberbo  rochedo  de  Versailles,  cujo  effeito 
só  o  pôde  adivinhar  a  phantasia,  que  o  vê  d'ante  mão 
toucado  de  vistosas  arvores,  e  ornadb  de  toda  quanta  ve- 
*    *'''^>.ça  e  belleza  pôde  só  dar-lhe  o  tempo. 


110  OBRAS  DE  rOOAGB 


(Ihid.,  vevs.    lo) 

Aos  campos  de  Mideiéton,  ás  inontanhas 
De  Dovedále  te  acoiDpaDlio  os  pf.SBOS, 
A  ellas,  Whateli,  comtigo  snbo. 

São  dou3  sítios  de  Inglaterra,  famoroa  pelas  formas 
pictore;-;catí  da  sua  cadêa  de  rochedo?!,  descriptos  por  Wha- 
teli, de  que  o  arictor,  assim  corno  Morei,  no  seu  fonuoso 
tractado  dos  jardins,  colheram  algumas  passagens,  taes 
como  a  cabana  e  a  ponte  suspensas  sobre  despenhadeiros. 
Mas  Delille  cuidou  em  exprimir  de  um  modo  seu  as  sen- 
sações que  nascem  d'este8  aspectos  medonhos. 


QUARTO  CANTO 

(Fag.  82,  vers.  IO) 
Eia,  segue  o  Poussin,  etc. 

Este  famoFO  quadro  é  certamente  o  melhor  de  todos 
08  de  paizagens.  Se  não  soubéssemos  quanto  a  imagina- 
ção do  Poutsin  se  alimentou  com  as  producçOes  dos  gran- 
des poetas  da  antiguidade,  este  painel  bastaria  para  o  pro- 
var. Quasi  todas  as  obras  voluptuosas  de  Horácio  tem  o 
mesmo  caracter.  Por  toda  a  parte  no  seio  dos  prazeres 
e  das  festas,  aponta  ao  longe  a  morte.  «  Dae-vos  pressa 
(diz  elle),  quem  sabe  se  amanhã  viveremos?  Nosso  fado  é 
iiiurrer  *,  será  forçoso  deixar  esta  bella  casa,  esta  mulher 
encantadora,  e  de  todas  a3  arvores  que  cultivaes,  só  o  cy- 
preste^  ai  de  mim !  seguirá  seu  senhor,  mui  ponco  durá- 
vel, n 

Esta  mesma  philosophia,  colhida  dos  antigos  poetas, 
é  a  que  dictou  a  Chaulieu  aqncllos  versos  cheios  de  nie- 
lancholia  tão  doce  : 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  111 


Musas,  que  n'este  retiro 
Coineçastes  meu  prazer, 
Plantas,  que  nascer  me  vistes, 
Cedo  me  vereia  m.orrer. 

Estes  contrastes  de  sensações,  compostas  de  alegria^ 
e  tri.steza,  agitando  a  alma  enj  sentido  contrario,  fazem 
sempre  uma  impressão  profunda;  e  é  o  que  obrigou  o 
anctor  a  collocar  no  meio  das  scenas  risonhas  do.s  "jardins 
a  vista  melancholica  dos  sepulchros,  o  urnas  consagradas 
á  amigado  ou  á  virtude. 

(Pag.  83,  vers.  22) 

De  envelhecidos  teixos  lá  debaixo 
Não  vês  aquelles,  etc. 

N'estes  versos,  dedicados  ás  sepulturas  humildes  dos 
caniponezes,  o  auctor  imitou  alguns  versos  do  «Cemité- 
rio de  Gray.» 

(Pag.  94,  vers.  24) 

M;;s  longe  os  monumentos,  cujo  estrago,  etc. 

Chabanon,  em  uma  linda  epistola,  escripta  a  favor  dos 

jardins  regulares,  notou  antes  do  auctor  dos  Jardins  que 

s  monumentos  velhos  despertavam  memorias,  vantagem 

i  !ie  não  tem  ruinas  fingidas.  Esta  idéa  se  adia  em  outras 

obras,  e  particularmente  na  de  Whateli :  demais,  ella  é 

tão  natural,  que  era  fácil  achal-a.  Talvez  o  não  fosse  ex- 

primil-a  beui,  mormente  depois  de  Chabanon  ;  mas  se  o 

auctor  se  encontrou  com  elle,  o  que  todavia  cuidou  em 

'vitar,  confessa  e  repete,  que  os  seus  versos   são  poste- 

K-re:^  aoH  d'aquelle  poeta. 


112  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Pag.  99,  vers,  27) 

E  tu  primariamente  heróe  britaimo,  etc. 

Todos  têm  noticia  das  viagens-instructivas  e  animo- 
sas do  afamado  e  desditoso  Cook ;  todos  sabem  a  ordem 
que  Luiz  XVI  deu  para  se  lhe  respeitar  o  navio  em  todos 
os  mares,  ordem  que  honra  eguahnente  as  soiencias,  este 
illustre  viajante,  e  o  rei,  de  que  elle,  por  assim  dizer,  se 
tornou  vassallo,  com  este  novo  género  de  beneficência,  e 
protecção. 


NOTA  DO  TRADUOTOR 

(Canto  1.,  pag.  27) 

Une  principahuente  a  teus  plantios. 

Vem  no  diccionario  de  Souza,  e  a  harmonia  e  neces- 
sidade do  termo  animo u-me  a  adoptal-o,  parecendo-me 
todavia  que  os  camponezes  o  usam.  A  palavra  paizagens, 
de  cuja  pureza  duvidei,  acha-se  em  bons  escriptores  nos- 
sos, sendo  um  d'elles  Rodrigues  Lobo,  para  mim  de  tanta 
decisão  como  os  melhores. 


FIM  DAS  NOTAS. 


AS  PLANTAS 


POEMA 

DE 
TRADUZIDO  EM  VEKSO  PORTUGUEZ 


Laudo  ruris  amceni 
Eivos,  et  museo  drcumlita  saxa,  nemusque. 
HoEAT.  Epist.  X. 


Canto  os  bosques,  os  rios,  as  montanhas, 
E  as  pedras,  que  humedece,  e  forra  o  musgo, 
(Do  Traductor.) 


PROLOGO  DO  TRÂDUCTOR 


Pascitur  in  vivis  livor:  post  faia  quiescit. 
OviD. 


Amave],  novo  dom  te  ofFVeço,  oh  Lysia, 
Attraído  por  mim  do  Sena  ao  Tejo, 
Aos  campos  onde  Amor,  onde  a  Virtude 
Dando  leis  desiguaes  se  conciliam. 
As  «Plantas»  de  Castel  vaidosas  surgem 
Em  mais  propicio  chão,  mais  doce  clima, 
De  mais  puros  Favonios  amimadas. 
Pátria  de  heróes,  de  vates,  pátria  minha, 
No  caro,  brando  seio  acolhe,  ameiga 
Risos,  perfumes,  o  verdor,  o  esmalte 
Com  que  em  versos  gentis,  das  Graças  mimo, 
Florece  a  Natureza,  a  mãe  de  tudo. 
Cordeal  gratidão  te  deve  as  lidas, 
O  desvelo,  o  suor,  que  mim  forcejam 
Para  teu  nome  honrar,  e  honrar  meu  nome. 

Existência  nioniL  dos  Fnbios  vida. 
Duplicada  por  ti  me  esfore;;  o  gviiio. 


116  OBflAS  DE  BOCAGE 


A  mente  me  refaz,  o  ardor  me  atiça, 
Me  fortalece  o  pé  na  estrada  immensa 
Que  vae  da  natureza  á  eternidade. 

Soltas  de  umbrosas,  subterrâneas  grutas 
O  meu  dia  invadindo,  aves  sinistras 
Em  vão  de  agouros,  e  de  peste  o  mancham: 
Em  vão  corvos  da  inveja  á  gloria  grasnam. 
Elles  malignos  são,  tu.  Pátria,  és  justa; 
Veda  que  defraudado  o  génio  seja 
De  seus  haveres  —  o  louvor,  a  estima  — 
Haveres,  porque  enjeita  os  da  Ventura. 
Aos  versos  meus  posteridade  abonas; 
Ouço  a  voz  do  Futuro,  ouvindo  a  tua, 
Ouço-a;  lá  me  prantêa,  e  lá  me  applaude. 
Em  sendo  morte  e  cinza  o  que  hoje  é  fogo, 
As  Musas,  meu  thesouro,  Amor,  meu  fado, 
Do  amante,  do  cantor,  de  mim  saudosos 
Hão  de  com  myrto  e  louro  ornar-me  a  campa, 
No  humilde  monumento  hão  de  carpir-me; 
E  até  da  férrea  Ulina  algum  suspiro 
Talvez  me  afaofue,  me  console  os  manes. 

D'arvores,  que  dispoz  co'a  maga  lyra 
De  Virgilio  o  rival,  Delillo  ameno. 
Transplantadas  por  mim,  vireis.  Amores, 
Vireis,  filhas  do  céo,  co'as  mãos,  co'as  azas 
Expulsar  agoureiro,  estygio  bando, 
Maldicto,  grasnador,  nocturno  enxame, 
Que,  voar  não  podendo^  odêa  os  voos. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  117 


Limpos  serão  por  vós  do  vil  negrume 
Os  ares,  que  o  sepulchro  me  bafejem. 

Musas,  suaves  Musas!  Não  me  assombro, 
Vates  de  ingente  gráo  não  se  assombraiam 
De  que  a  inveja  os  mordesse,  os  profanasse: 
Ancêa  resplendor,  grandeza  opprime 
O  espirito  arrastado,  a  mente  escura: 
Inveja  nunca  sobe,  e  quer  que  baixem; 
Seus  nojosos  baldões  desdanha  o  sábio; 
Emtanto  que  elia  ruje,  o  sábio  canta, 
E  juiz  não  peitado  o  escuta,  o  c'rôa. 

Se  em  podre  lodaçal  negrejam  Zoilos, 
As  margens  do  Permesso  Ismenos  brilham, 
D'alma  pliebêa,  creadora,  accêza, 
A  verdade  em  relâmpagos  vibrando: 
Ferve  no  audaz  Francelio,  e  rompe  os  astros 
Sacro  delirio,  destemida  insânia: 
Jacinto  aperfeiçoa  os  sons  do  plectro; 
Clario  co'a  própria  mão  Salicio  enloura 
Revive  em  ti,  Josino,  a  lacia  Musa: 
Menalca,  da  puerícia  apenas  solto 
Já  conversa  c'os  deuses;  niveas  plumas 
Nas  costas  lhe  rebentam,  cysne  adeja. 
Melindrosos  pincéis  menêa  Alcino, 
E  oíF'rece'em  doce  quadro  Amor,  e  as  Graças. 
De  tão  vario  matiz  compõe-se  o  mundo. 
Mil  vezes  o  veneno  acode  á  vida. 

Eia!  Os  ódios  cevae,  cevae  a  infâmia, 


118  OBRAS  DE  BOCAGE 


Fúrias,  que  evaporaes  tartareas  sombras 
Contra  olympio  fulgor,  que  envolve  o  génio  I 
Entre  essa  escuridão  ralúz  meu  nome. 
A  Pátria  os  versos  meus  são  apraziveis; 
Versos  balbuciei  co'a  voz  da  infância; 
Vate  nasci,  fui  vate,  inda  na  quadra 
Em  que  o  rosto  viril  macio,  o  tenro, 
Simelha  o  mimo  de  virginea  face. 

So  ás  Musas  não  pertenço,  eu,  que  a  Virtude, 
Philosophia,  Amor,  cultivo,  adoro; 
Eu,  servo  da  moral,  das  leis  amigo. 
Nos  outros,  como  em  mim,  prezando  a  gloria; 
Eu,  que  cem  vezes  concebendo  o  Oljmpo, 
Absorto  com  Platão  «'um  mundo  extranho. 
Ou  de  olhos  divinaes  divinisado, 
Sinto  no  coração,  na  voz,  na  mente 
Tropel  de  aífectos,  borbotões  de  idéas, 
E — ((Eis  o  Deus!  eis  o  Deus!...»  —  exclamo,  evôa 
De  repente  onde  mil  nem  vão  de  espaço; 
Pertencereis  ás  Musas,  vós,  sem  fama, 
Sem  alma,  sem  ternura?.  .  .  Ah!  Longe,  longe 
De  meus  cândidos  sons,  que  se  enxovalham 
Peçonhentos  dragões,  na  peste  vossa. 

Graças,  oh  Phebo,  oh  nume !  Oh  Lysia,  oh  pátria! 
Vossos  dons,  vosso  applauso  altêam,  firmam 
Sobre  a  cerviz  da  Inveja  o  meu  triumpho. 


PREFAÇÃO  DO  AUCTOR 


Não  exaltarei  aqui  as  utilidades  do  conheci- 
mento e  cultura  das  plantas.  Este  é  o  objecto  do 
poema,  que  publico.  Se  meus  versos  não  forem 
parte  para  que  mais  se  ame  a  Natureza,  não  devo 
esperar  melhor  êxito  em  uma  prefação. 

Esta  obra  foi  composta  no  intervallo  do  anno 
primeiro  até  ao  quinto,  e  muitas  vezes  me  conso- 
lou, occupando-me.  Quem  é  que  não  tem  sentido 
a  necessidade  de  se  acolher  ao  seio  da  Natureza? 
Busquei  n'elle  distracções,  que  me  eram  indispen- 
sáveis, e  como  sempre  amei  as  plantas,  foram  ellas 
o  primeiro  objecto,  que  se  me  oííereceu  ao  pensa- 
mento. Paguei-me  logo  d'isto,  considerando  que 
ainda  não  tinham  sido  matéria  de  poema  algum; 
porque  o  que  temos  em  verso  acerca  das  estações, 
e  até  dos  jardins,  bem  que  falia  de  muitos  vegetaes, 
não  pode  chamar-se  poema  ás  plantas. 


120  OBRAS  DE  BOCAGE 


Depois  do  momento  de  alegria,  que  se  segue  a 
uma  invenção  aprazível,  as  difficuldades  me  aca- 
nharam. Quanto  mais  attractivo  era  o  assumpto, 
mais  temia  entranhar-me  n'um  labyrintho  de  arvo- 
res, de  arbustos,  de  plantas  terrestres  e  aquáticas. 
O  enjoo,  inseparável  do  género  puramente  descri- 
ptivo,  furtou  em  breve  aos  olhos  o  feitiço  dos  epi- 
sódios, e  vi  que  o  leitor  pediria  a  quem  o  guiasse, 
o  fim  de  um  passeio  afanoso.  Devia  pois,  antes  do 
tudo,  estabelecer  as  relações  com  que  releva  olhar-se 
o  mais  amável  dos  três  reinos  da  Natureza.  O  ho- 
mem (disse  comigo)  é  destinado  a  lavrar  a  terra, 
isto  é,  a  cultivar  as  plantas;  mas  perdas  reiteradas 
o  fazem  conhecer  que  o  suor  não  basta,  e  que  a 
mesma  experiência  pede  instrucção.  Mormente  na 
jardinagem,  onde  mais  varia  a  cultura,  é  que  se 
prova  similhante  verdade.  Cumpre  pois,  em  um 
poema  como  este,  unir  a  theoria  á  practica,  ou  por 
outras  palavras,  ligar  o  estudo  das  plantas  com  o 
trabalho,  que  as  tem  por  objecto.  Reflecti  egual- 
mente  que  havia  no  anno  quatro  grandes  epochas 
—  primavera,  estio,  outomno  e  inverno — pelas 
quaes  a  Natureza  distribue  diversas  producções;  e 
conclui  que  devia,  imitando-a,  dividir  em  quatro 
partes  os  estudos  e  lidas  relativas  a  taes  produc- 
ções. D'est'arte  se  me  presentaram  o  plano  e  di- 
visão da  obra. 

Depois  de  haver  dado  no  principio  do  primeiro 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  121 

canto  idéa  do  préstimo  da  botânica,  e  proposto  mo- 
delos para  a  distribuição  de  um  pomar,  importava 
cuidar-se  nos  trabalhos  da  primavera.  Deduziam-se 
d'aqui  necessariamente  o  que  exigem  as  plantas 
ainda  tenras;  a  extirpação  das  hervas,  que  as  in- 
commodam;  a  perseguição  dos  insectos  e  dos  ani- 
mães,  que  as  estragam;  como  também  os  passeios 
estudiosos  e  campestres,  chamados  herborisações, 
e  algumas  vistas  encantadoras,  que  nos  offerece  a 
Natureza. 

Regarem-se,  é  um  soccorro  necessário  aos  hor- 
tos, e  o  principal  trabalho  entre  os  ardores  do  verão. 
Em  nenhuma  parte  esta  quadra  assoalha  su;is  ri- 
quezas com  mais  pompa  que  nas  visinhanças  do 
equador.  Entre  nós  muitas  plantas  forasteiías,  e 
quasi  todas  as  aquáticas,  esperam  esta  epocha  para 
brilhar  com  todo  o  seu  lustre,  vestidas  dos  caracte- 
res que  distinguem  géneros  e  espécies.  Todos  os 
vegetaes,  grandemente  aquecidos,  sobem  ao  maior 
gráo  nas  suas  virtudes,  e  a  industria  corre  a  apa- 
nhal-os  para  as  preci>ões  e  delicias  da  sociedade. 

O  que  especialmente  qualifica  o  outomuo  é  a 
madureza  dos  grãos  e  dos  fructos.  Tem  também 
suas  plantações  e  seus  vegetaes.  A  hortaliça  pnten- 
têa  então  toda  a  fecundidade;  então  a  terra  se  cobre 
de  cogumelos,  e  as  plantas  marinhas,  arrancadas 
dos  abysmos  pelas  tormentas  do  equinócio,  enri- 
quecem as  praias  do  oceano.  Em  breve  a  alteração 


122  OBRAS  DE  BOCAGE 


da  verdiíra  armuncia  o  declinar  do  anno,  varias 
espécies  de  aves  desertam  de  um  clima  onde  o  ali- 
mento começa  a  failecer-lhes;  os  pomares  despem 
seus  derradeiros  fructos,  e  pagam  a  divida  da  Na- 
tureza ao  homem  laborioso. 

Em  campo  aberto  quasi  nos  não  occupa  o  in- 
verno; a  estufa  é  que  requer  a  nossa  presença,  e 
nos  indemnisa  da  esterilidade  das  hortas.  Não  digo 
que  os  nossos  climas  temperados  deixem  de  incluir 
muitos  attractivos,  principalmente  em  comparação 
com  as  terras  polares,  onde  apenas  vegetam  raros 
e  miseráveis  espinhaes.  A  folha  dos  azevinhos,  a 
verdura  das  giestas,  os  pinheiros  orgulhosos  e  ou- 
tros mil  vegetaes,  ou  verdes,  ou  ainda  em  flor,  ser- 
vem para  alegrar  então  a  Natureza  tristonha;  mas 
uma  familia  deve  primariamente  convidar  nossos 
olhos  e  estudos:  fallo  dos  musgos  e  lichenes.  De- 
balde outríi  estação  quereria  revindical-os:  elles 
são  a  ale o^ ria  e  quinhão  do  inverno. 

Com  estas  idéas  fiz  o  plano  e  quasi  a  analyse 
da  minha  obra.  Travei  n'ella  os  episódios,  e  outros 
atavios,  a  que  suppuz  apta  a  matéria,  persuadido 
de  que  o  poeta  deve  pretender  menos  ensinar  e 
profundar  urna  sciencia,  que  attraír  a  ella  os  olhos 
e  fazel-a  amar. 


AS  PLANTAS 


CA-lsrTO  IPI^IOS^EIRO 


Campestres  divindades,  Pan,  Sylvanos, 
líájades,  Fauno?,  Dryades,  Favonios, 
Ou  habiteis  as  rústicas  florestas, 
Ou  de  nossos  jardins  guardeis  os  bosques, 
Seguir-vos  quero:  tutelares  numes, 
Iniciae-me  nos  mysterios  vossos. 

E  tu,  que  um  ócio  grato  aproveitando, 
Dos  sábios,  dos  heróes  prazer  tens  sido, 
Tu,  que,  lustra iid o  a  trémula  verdura. 
Dás  formoso  atavio  a  planta,  e  planta, 
Sê  minha  deusa,  oh  Flora,  e  por  meus  versos 
Dispõe  boninas  das  que  o  mundo  encantam. 
Do  Occaso  á  Aurora  teu  império  corre, 
Bordam  teus  dons  as  mauritanas  margens, 
Do  pastor  de  Lapland  attráes  a  vista, 
Ornas  as  penhas  de  engraçado  esmalte, 
Té  lá  no  pego  as  Dó  rides  te  devem 
O  mimoso  tapiz  dos  vitreos  lares; 


124  OBRAS  DE  BOCAGE 


Da  flor  no  seio  o  néctar  insinuas 
De  louro  insecto,  que  organisa  os  favos; 
Por  ti,  quando  selecta  essência  apromptas, 
Luz  a  ambrósia  nos  festins  de  Jove; 
Pejas  os  cachos  de  aprazivel  sueco, 
E  nutridora  espiga  um  de  teus  mimos; 
Dos  préstimos  do  fructo  a  planta  ignara, 
Sem  ti  dera  não  mais  que  estéril  sombra: 
As  aguas  formosêas,  o  ar,  e  a  terra, 
Teu  sopro  divinal  perfuma  o  globo. 

Riso  da  Natureza,  iman  dos  olhos, 
Desdobra  ante  elles  a  verdura  amável, 
E  como  nos  cristaes  de  um  manso  arroio 
As  flores  tuas  em  meus  versos  pinta. 

Quando,  na  infância  da  estação  mais  bella, 
As  mornas  virações  derretem  gelos, 
Que  olhos  não  folgam  no  verdor  da  relva, 
Que  se  remoça,  e  do  botão,  que  nasce? 
Mas  se  attentarem  que  as  tenrinhas  plantas 
Alçando-se,  trarão  comsigo  em  breve 
O  alimento,  a  saúde,  os  gostos  nossos, 
Quem  lhe  ha  de  os  fados  ignorar  sem  pena? 
CJuem  não  verá  que  seu  estudo  fácil 
E  proveito  aos  mortaes,  e  adorno  á  vida? 
Mil  vezes  herva  espessa  aífoga  os  trigos; 
Logo  porém  no  estio,  arando  a  terra. 
Sem  jamais  omittir  dispêndios,  lida. 
Na  joeira  o  cultor  limpou  sementes. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  125 


Mas  não  conhece  as  plantas,  cujo  enxame 
O  terreno  invadiu  das  novas  messes, 
E,  exposto  de  anno  em  anno  a  seus  insultos, 
Perde  tempo,  e  suor  sem  destruil-as. 

Aos  gados  outras  são  veneno,  e  morte. 
A  novilha,  ao  volver  da  primavera, 
Não  pode  entre  os  rocios,  e  entre  as  hervas 
No  olfato  distinguir  fallaz  cicuta. 
Morre,  e  a  ignorância  ern  vão  crimina  a  sorte: 
Pastor  menos  inculto  ao  damno  obstara. 

Es  dado  a  frequentar  piscosas  margens, 
Amas  a  nassa,  o  junco,  anzoes,  e  as  linhas?   . 
Flora  aos  prazeres  teus  o  eíFeito  abona. 
De  quantos  vegetaes  a  força,  o  cheiro 
Possante  engodo  ao  pescador  ministram ! 
Talinhos  de  herva-doce  a  rede  inclua, 
E  do  nardo  fragrante  inclua  espigas; 
Colhe  a  hortelã,  que  te  recende  ao  longe, 
E  hão  de  c'o  pezo  arrebentar-te  as  malhas: 
Flora  te  diz  também  do  peixe  a  vinda; 
Apenas  o  agrião  no  prado  assoma, 
A  porfia,  transpondo  a  equorea  estancia, 
Aos  pulos  os  salmões  entram  nos  rios. 
Ditoso  quem  trilhando  a  serra,  o  prado, 
Aprendeu,  vegetaes,  a  conhece r-v  os  ! 
Sabe  que  pasto  agrada  ao  boi  submisso, 
E  onde  os  roj antes  peitos  enche  a  cabra; 
O 3  cordeiros  brincões  qual  herva  anime, 


126  OBRAS  DE  BOCAGE 


Qual  ao  ginete  restitua  o  brio. 

Quer  que  lustre  vistoso  as  lãs  enfeite? 

VisinLos  bosques  lhe  deparam  cores: 

Quer  a  peste  abafar  de  um  mal  terrível? 

Antidotos  em  flor  lá  tem  nos  valles. 

Se  da  raivosa  fome  horrores  lavrími, 

D'elles  a  duração  não  teme  aos  filhos: 

Cuida  em  remil-os  a  sciencia  logo, 

E  expulsa  precisões,  velando  á  porta: 

Dá-lhe  luz,  patentea-lhe  o  regresso 

Dos  naturaes  thesouros,  não  pensado: 

Nos  bosques  tanto  fructo,  aos  ramos  preso, 

Tanto  occulto  na  terra.  Espalha,  ensina 

Com  que  arte  agrestes  plantas  substituem 

A  carência  fatal  dos  dons  de  Ceres; 

E  como  soube  em  pães  mudar  a  industria 

Dós  trevos  o  botão,  do  pinho  a  casca. 

Vê  pela  folha,  pela  flor  conhece 

O  desígnio  dos  sues,  o  das  procellas, 

E  a  monção  das  sementes,  e  a  das  ceifas. 

Da  sciencia  mormente  as  leis  escuta 
Tu,  que  tornas  co'a  enxada  a  terra  dócil, 
E  ordenas  os  jardins;  mas  não  to  eng/ines; 
Entre  os  bosques  somente  é  que  releva 
Estudarem-se  as  leis  da  Natureza. 
Ella  atravez  dos  campos  quer  que  a  sigam. 
Quer  que  trepem  com  ella  aos  altos  cumes, 
Que  busquem  sítios  onde  crescem,  brilham 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  127 


VegetaeSj  que  plantou  co'a  mão  prestante.  " 
Sem  interprete  ali  fallando  aos  olhos. 
Gosta  de  expor  incógnitos  portentos. 

Plantas,  que  Tauro  cria,  e  cria  Atlante, 
Desejas  cultivar?  Colhe  no  estudo 
Qual  o  caracter  é  do  chão,  do  clima 
Em  que  usam  de  medrar ;  que  ventos  amam, 
Debaixo  de  que  estrella  emfim  descobrem 
Do  seio  os  mimos :  só  então,  sustendo 
De  uma  flor  peregrina  o  molle  tronco, 
Fazes  que  a  pátria  no  teu  campo  encontre. 

Mas  anteponho  a  tudo  amigas  plantas, 
Que  a  intempérie  afrontando  ao  longo  inverno, 
Me  habitam,  por  querer,  no  chão  da  pátria. 
Se  as  voltas  explorar  vou  d'um  rochedo, 
Acho,  ao  subir,  favor  na  verde  rama; 
Se  vastos  campos  corro,  as  flores  suas 
Seguem  meus  passos,  e  detém  meus  olhos. 
Seus  ramos  complacentes,  á  porfia, 
Se  curvam  para  mim  do  fructo  ao  pezo : 
Vivo  dos  fructos,  e  meus  males  fogem 
D'ante  as  virtudes  que  .possue  o  tronco. 
Vamos  nossos  jardins  ornar  co'as  plantas, 
E  ao  lavor  nos  presida  o  deus  do  gosto. 

Douá  ufanos  rivaes  a  terra  partem  ; 
Um,  das  regras  fiscal,  nascido  em  França, 
Eatre  as  artes  caminha,  envolto  em  pompas. 
(■  ninn-lhe  a  fronte  mil  festões,  e  as  quadras, 


128  OBEAS  DE  BOCAGE 


Filhas  da  Natureza,  o  cinto  lhe  ornam 

De  ramalhetes  mil.  Ângulos  forma 

O  til,  e  assombra  além  tapiz  viçoso, 

Leito  das  iiymphas.  índios  castanheiros, 

Aqui,  tecendo  abobadas,  nos  vedam 

A  presença  dos  céos.  Cada  passeio, 

Ahrindo-se,  presenta  á  nossa  vista, 

De  Marte  os  filhos,  ou  da  Grécia  os  numes. 

iSío  chão  crava  Neptuno  o  azul  tridente, 

E  ginete  feroz  do  chão  rebenta; 

Enéas,  dos  leões  trajando  a  pelle. 

Os  deuses  de  Ilion,  e  Anchises  leva, 

Pela  sinistra  mão  tendo  o  filhinho. 

Que  de  medo  se  volve,  e  o  segue  a  custo. 

Por  não  vistos  canaes  guiada,  oppressa, 

A  nivel  dos  palácios  a  agua  sobe  ; 

Rios  de  bronze,  derramando  as  urnas, 

Como  que  nutrem  as  saltantes  ondíis. 

O  outro,  cedendo  a  pompa,  e  laxo  ás  artes, 
Do  génio  as  digressões  mais  livre  segue. 
Em  ti  se  apraz  ha  muito,  ilha  famosa, 
Que  separam  de  nós  soberbos  mares, 
Mas  que  duros  caprichos  obstinados 
Inda  separam  mais,  por  mal  do  mundo. 

Pastorinha  gentil,  vagando  á  toa, 
Dos  passeios  traçou-lhe  a  curvidade. 
Arvores,  em  festões,  em  martinetes, 
A  modo  que  por  si  lá  se  ordenaram, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  129 


.E,  sem  medo  á  tesoura,  estendem,  lançam, 
A  seu  prazer,  as  voluntárias  sombras. 
Lindas  cordeiras,  de  alvejantes  vellos, 
Retouçam  pelo  monte,  as  hervas  tózam. 
Nos  ingentes  pinhaes,  do  norte  filhos, 
Pan,  dos  cumes  do  cerro,  as  guarda,  as  vela. 
A  herdade  ostenta  aqui  campestres  graças; 
O  aceio  n'ella  mora,  e  n'ella  ha  sempre 
A  nata,  o  requeijão,  presentes  de  Io ; 
O  junco  ali  se  entrança,  o  queijo  espreme. 
Confusos  parreira  es  além  verdejam  ; 
Bróniio  risonho,  em  mármore  de  Paros, 
Ke  apraz  em  seus  dóceis,  co'a  mão  no  thyrso. 
Ora  corre,  e  murmura  occulta  a  limpha, 
Um  lustroso  canal  ora  apresenuí^ 
E,  alongando  cristaes  por  margens  de  ouro, 
Oomo  que  offrece  á  nyiíipha  solitária 
De  puro  banho  a  saluctar  frescura. 
O  mísero  Acteon  das  aguas  perto, 
Por  vingadoras  pontas  assombrado. 
Diz  a  todo  o  imprudente:  «Acata  o  pejo! D 
Taes  são  d'estes  jardins  as  leis  diversas; 
Mas  tu,  como  Catão,  prefere  a  isto, 
Preíbie  u  geira,  cujas  simples  graças 
Dão  mais  proveito  do  que  exigem  custo. 
Ao  nascer  da  manhã  comece  a  lida  : 
íCa :  sem  semente  nada  é  bello. 


130  OBRAS  DE  BOCAGE 


Prepara,  pois,  a  terra,  e  mão  robusta 
Ajude-se  do  pé,  lho  encrave  o  ferro. 
Quando  ouvires  monótono  gorgeio 
De  avo  odiada  do  hymeneu,  que  ofFende, 
Se  a  chuva  por  três  noutes  for  perenne, 
Diz-se  que  em  dias  três  surgem  sementes. 

Vedado  a  Bóreas  um  canteiro  elege, 
Que  sempre  do  zenith  os  soes  aclai-em. 
..Debaixo  de  torrões,  das  flores  berço, 
Fecha  vapores  de  fumantes  palhas. 
Cedo,  a  semente  ali  desenvolvida. 
Julga,  pelo  calor,  o  inverno  estio, 
E  sem  susio  confia  aos  meigos  lumes 
Seu  débil  tronco,  seus  botões  nascentes  ; 
Mas  n'ella  tu  vigia.  Apenas  vires 
Que  a  noute  })elo  céo  vem  negrejando, 
Abrigo  de  cristal,  e  colmo  espesso 
Dar-lhe  convém  nos  duvidosos  mezes. 
Karo  não  é  que  súbitas  geadas 
Vibrem  golpe  mortal  de  noute  ás  plantas.- 
Aquilo  furioso  zune,  atroa, 
Nos  tectos,  saltinhando,  a  pedra  soa. 
Dos  antros  boreaes  como  que  escapa, 
E  a  nós  do  gelos  volve  armado  o  inverno. 
Prógne  estremece  então,  vollea.  os  Ln-es, 
Abre  vã  meu  te  o  bico,  insectos  caça; 
Mas  o  frio  os  detém  na  estancia  immoveis. 


POEMAB  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  131 


Deofallecida  cát; :  Zéplivio  accusa. 
Que,  chamando-a  com  liáiito  ei^ganoso, 
A  vinda  lhe  apressou j  e  urdiu  seus  males. 
Sem  ti,  cultor  sagaz,  do  Flora  alumnos 
Eecemnascidos,  cairiam  todos, 
E  dos  campos  da  vida  exterminados. 
Iriam  povoar  da  morte  os  campos. 

Entretanto  do  sol  fervor  disperso, 
E  o,  que  a  nuvem  goteja)  humor  fecundo, 
Nutrindo  as  flores,  de  caminho  alteam 
A  herva,  que  as  offusca,  e  vive  d'ellas, 
Eis  o  fado  comniuui.  Da  inveja  os  ramos 
Oo'a  negrejante  sombra  o  génio  abafam, 
E  a  miúdo  o  prazer,  ílôr  doce  ao  homem, 
Se  murcha  no  trabalho,  á  dor  succumbe. 
Assim  chusma  odiosa  em  teus  canteiros. 
Mordaz  ortiga,  ethusa  peçonhenta, 
Herva,  que  de  Mercúrio  inda  se  chama, 
O  marroio,  e  mormente  as  que,  indomáveis, 
Ama  o  sabujo,  porém  Flora  odéa, 
Brotam,  co'h  triste  sombra  vexam  tudo, 
E  quantas  se  destroem  nos  longos  dias, 
Ileno^•am-se  de  noute  eHi  liora  fresca. 
Mas  d 'estes  vepetaes  o  au.omento  fácil     • 
Também  aproveitar-;5e  ás  veíses  pckle. 
Dêem-st  a  Vulcano.  A  flamma  ainda  occulta 
O  já  sccco  montão  corre  es(alando, 
Ve-se  aos  ares  subir  um  denso  fumo; 


132  OBRAS  DE  EOCAGE 


O  lume  ondêa  emfim,  caindo  as  liervas, 

E  entre  1is  cinzas  deixando  um  sal,  que  esforça 

A  languidez  díi  preguiçosa  terra. 

Nada  falta  aos  jardins,  de  aceio,  ou  pompa, 
Cada  planta  cumpriu  sua  promessa. 
Vôa-lhe  ao  seio  a  murmurante  abelha, 
Borboleta  louçã  faz  doces  fructos, 
Vae,  torna  á  flor,  ao  ar:  vagiiêa  incerta, 
E  com  seu  leva  adejo  adorna  a  scena. 

Por  aqui,  por  ali  flóreos  theatros 
As  bélgicas  cidades  alegravam. 
Lá  do  um,  lá  d'outro  objecto  á  vista  presa, 
Da  escolha  exp'rimentava  o  grato  enleio; 
Ia  indecisa  do  carmim  ao  ouro, 
Do  azul  ao  branco,  do  violete  ao  róseo. 
Tal,  ante  as  deusas,  duvidoso,  oh  Paris, 
Tinhas  nas  graças  enleado  o  voto: 
Quasi  entregando  o  pomo  a  Juno,  a  Palias, 
Vénus  olhavas,  e  co'a  mão  fugias: 
Mutuamente  as  rivaes  se  deslumbravam. 
Porém  já  de  inimigos  turba  infesta 
Invadindo  o.^  jardins,  devora  a  um  tempo 
As  hasteas,  a  raiz,  a  casca,  o  cerne. 
Seu  mal  o  arbusto  saneando,  apenas 
Cuberto  o  golpe  tem  de  fibra  nova, 
Quando,  na  cicatriz  encarniçados, 
A  tea  renasconte  elles  desfazem. 

Tal  de  ab  1  no  curvo  bico 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  133 


Renascem  para  a  dor  de  Ticio  os  membros: 
Xo  sangue,  que  se  exhaure,  e  se  renova, 
Cevar  se  dia,  e  noute  algoz  eterno; 
Gira-lhe  o  peito,  o  coração  lhe  rasga. 
Que  vive  sem  cessar,  sem  cessar  morre. 

Não  imagines  que  meus  versos  digam 
Redes,  ciladas,  e  os  engodos  vários 
Com  que  destróe  o  ardil  a  infensa  praga; 
As  aves  melhor  que  elle  hão  de  escudar-te. 
Vê  nas  florestas  voltear,  cantando, 
O  pisco  avermelhado,  a  tutinegra, 
Milheiras,  verdelhões,  e  melharucos: 
Os  damninhos  espreitam,  e  os  perseguem; 
D'elles  afie  iram,  e  á  contigua  planta 
Vão  seus  filhinhos  alentar  com  elles. 
Triste  a  toupeira  subterrânea,  tristes 
Outros  vis  animaes,  se  torre  antiga 
Ergue  as  amêas  sobre  as  terras  tuas! 
Alados  caçadores,  negros  corvos, 
Grasnando,  se  arremessam  do  alto  asylo, 
E  d'essa.  vexação  teus  campos  livram. 

Amem-se  as  aves,  pois :  os  frescos  Valles, 
O  móbil,  verde  trigo,  a  rir  nos  sulcos, 
Romansos,  grutas,  prestariam  menos 
Sem  os  brincos,  e  a  musica  das  aves. 
São  guarda  dos  jardins.  Formoso  arbusto 
Fica  mais  bello,  se  lhe  abriora  os  ninhos. 
A  mercenária  mão  quanto  aborreço, 


134  OBRAS  DE  BOCAGE 

Que  ás  miserandas  mães  a  prole  arranca! 
Ah !  Deixem-se  emplumar  nas  selvas  nossas, 
Consinta-se  que  animem  valles,  montes. 
Porque  as  prendemos?  Na  prisão  não  pode 
Dar-se-lho  o  bosque  onde  trinar  lhe  é  doce; 
Nem  a  planicie  aérea,  ou  mouta  amiga, 
Que  seus  prazeres,  seus  amores  sabem. 

Aves  acordam  no  modesto  abrigo 
Das  plantas  o  amador;  sáe  da  cidade, 
E  vae  por  entre  as  matutinas  flores 
Admirar  o  jardim  da  natureza. 
Que  encanto  !  Que  esplendor !  Por  toda  a  parte 
Lhe  oíF'rece  a  terra  graciosos  quadi-os. 
Ouro  da  primavera  esmalta  os  cerros; 
Narciso  inda  se  inclina,  e  vê  nas  aguíis; 
Como  a  virtude  no  retiro  humilde 
Tráe  as  violetas  seu  gentil  perfume. 
Nas  sombrias  florestas  entra  o  sábio; 
Das  rochas  escarpadas  sobe  ao  pico 
Para  indagar  os  vegetaes  sadios, 
Que  á  pesquiza  vulgar  Vertumno  esconde; 
E  acolhe-se,  Já  noute,  aos  lares  doctos, 
Co'a  rica  preza  carregado,  alegre. 

As  vezes  de  meninos  docii  turba 
Por  meio  o  segue  dos  lavrados  campos; 
Aos  montes  circumstantes  chegam,  trepam; 
Esquadrinhana-se  as  mattas  uma,  e  uma. 
Se  algum  canto  recata  ignota  planta, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  135 


Levam-n'a  logo  ao  sábio:  elle  a  nomêa 
A  multidão  pasmada^  e  faz  que  observe 
Figura,  e  graças,  e  caracter  d^ella, 
Que  mez  encanta,  quo  logar  matiza. 
Segui,  menitios,  tão  soave  estudo; 
Flora  seus  dons  vos  cede  ás  mãos  mimosas, 
Mas  poupae  sempre  os  botõezinhos  tenros. 
O  seu  quinhão  deixae  da  selva  aos  deuses, 
Amantes,  como  vós,  de  agrestes  plantas. 
E  fama  que  ao  luar  se  tem  já  visto 
Danças  n'um  vâlle  urdir  Faunos,  e  Nymphas, 
E  a  trança  engrinaldar.  São  estes  numes. 
Cuja  occiíltn,  benigna  providencia 
Conserva  os  montes,  e  repara  os  bosques; 
São  elles,  que  em  campestres,  ledos  jogos 
Animam  com  seus  sons  penedos,  faias, 
E  os  eccos  formam,  resoar  fazendo 
De  colina  em  colina  as  vozes  nossas. 
Também  da  Natureza  eu  namorado 
Buscava,  imberbe  ainda,  ermos,  e  sombras. 
Raramente  Versailles  me  attraía, 
Nos  bosques  de  Senars  dias  levava,' 
De  Avron  as  leivas  discorria,  e  foram 
Fontainebleau,  Compiegne  os  meus  El^sios. 
Céos !  com  que  regosijo  em  teus  passeios 
Vi,  Meudon,  a  abdhinha  portentosa, 
Insecto  vegetal,  de  flor  alada, 
Que  parece  voar,  fugir  do  tronco ! 


136  OBRAS  DE  BOCAGE 


Venha  uma  planta  egual,  cruzando  os  marcs^. 
Venha  de  Amboino,  ou  de  Ceiião  remotos; 
Ha  de  em  todo  o  logar  maravilhar-nos. 
A  riqueza  porém  de  nossos  bosques 
Se  ignora,  e  chama  em  v^o  quem  a  avalie, 
luvade  o  caçador  a  estancia  augusta, 
E  ecco  ali  só  repete  os  sons  da  morte, 
Ou  golpe,  e  golpe  do  ávido  matteiro. 

Vem,  feitiço  dos  valies,  branda  Ehsa, 
Que  de  Amor,  e  Minerva  os  dons  possues, 
Com  teu  esposo  vem.  Já  no  oHente 
Alegra,  tinge  ps  céos  manhã  de  rosas, 
E  o  sol  em  breve,  de  rubis  cVoado, 
Verás  á  porta  dos  palácios  de  ouro. 
Segue  o  trilho  orvalhoso,  aqui  por  onde 
Zéphyro  eptende  co'a  folhinha  incerta, 
B  fragrâncias  lhe  rouba,  eguaes  ás  preces 
Que  essa  bocca  innocente  aos  céos  envia. 
Junto  á  vereda,  que  rodea  o  combro, 
Ante  a  pereira  em  flor,  vês  pobre  choça? 
O  dono,  esse  bom  velho,  hontem  seguindo 
Seu  cabritinho,  que  fugia  aos  saltos. 
Caiu,  feriu-se  n'um  penedo.  Ah!  Vamos 
Buscar  algum  remédio  a  seu  tormento. 
Vê  como  nos  ajuda  o  teu  filhinho; 
Nas  melindrosas  mãos  lá  vem  trazer-te 
Simplices,  gratos  de  Epidauro  ao  nume; 
Solda  real,^  centáurea.  Ao  velho  afflicto 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  137 


Demos  de  amiga  face  o  refrigério. 

Ai!  Se  a  dôr^  que  padece,  eu  padecera, 

Que  doce,  que  efficaz  me  fora  olhar-te! 

Delicias  como  as  nossas  não  conhece 

Homem,  que  da  molleza  está  nos  braços. 

Em  vez  de  a  seus  irmãos  sarar  os  males, 

Misérrimo  entre  os  miseros  é  sempre. 

Filho  da  saciedade,  o  triste  enjoo 

Seus  mais  doces  prazeres  tolda,  empesta. 

Flores  n'um  prado,  e  n'outro  em  vão  revivem^ 

Ceres  debalde  os  sulcos  enriquece, 

Entre  seus  cortezãos  Lyêo  campeã, 

O  inverno  aos  olhos  dá  severos  quadros: 

Nunca  taes  scenas  admirou  o  inútil, 

Scenas  da  Natureza :  é  como  aqueile 

A  quem  barbara  mão  cegou  no  berço, 

E  cuja  umbrosa  vida  é  somno  eterno. 

Crescendo,  dobra  o  lustre  a  Natureza; 

Vigor  celeste  a  mocidade  anima. 

Tudo  fermenta,  existe.  Olha  o  carvalho: 

Lá  formosêa  o  chão  co'as  tardas  sombras. 

Vem  á  terra  sedeuta  húmidos  ares, 

E  a  frescura  do  céo  na  terra  induzem. 

Em  torrentes  o  sueco  inunda  os  gomos, 

Perfuma  o  valle,  aromatisa  o  bosque, 

Recrea-me  os  sentidos,  e  parece 

Que  as  origens  da  vida  em  mim  renova. 


138  OBRAS  DE  BOCAGE 


As  aves  nos  seus  ninlios  cuidam  todas; 
Colhem  crinas,  que  despe  o  mareio  bruto, 
Leves  guedelhas,  que  o  picante  espinho 
A  mansa  ovelha  na  passagem  rouba. 
Seus  mil  requebros  exprimir  quem  pode, 
Transportes,  brincos,  e  negaças  brandas? 
Vê  o  ardente  pardal,  se  o  punge  Vénus, 
Como  treme,  e  esvoaça  em  torno  á  fêmea ; 
Parece  redobrar  o  ardor  na  posse: 
Mil  vezes  morre  em  gostos,  mil  renasce. 

De  novo  myrto  Amor  já  cinge  a  fronte, 
Do  mundo  vegetal  fez  a  conquista: 
Exceptua  os  ciúmes,  e  outros  males, 
Verás  que  as  flores,  como  nós,  se  inflammam. 

Oh  tu,  que  em  Paphos,  em  Cythéra  incensam, 
(Que  digo!  O  templo  d'elle  é  toda  a  terra) 
Gran  deus  !  Co'um  volver  de  olhos  tu  me  alenta ; 
Ergue  meus  versos  ;  vou  cantar- te  a  gloria. 

Em  azues  pavilhões,  purpúreos,  verdes 
A  pompa  nupcial  dispoz  Cyprina. 
As  plantas,  que  só  Zephyro  abalava, 
íí'outros  meneios  seus  desejos  pintam. 
Abrem,  riem-se,  incliuam-se,  e  confundem 
Os  fogos,  as  paixões,  que  amor  lhe  inspira. 
Se  o  dia  se  marêa,  e  céo  de  nuvens 
Damnos  lhe  agoura,  de  repente  o  cálix 
O  ramo,  a  folha,  unanimes  se  agitam. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  139 


Para  esqiiivar-se  da  procella  instante. 
Cerrados  pavilhões  os  golpes  frustram, 
E  a  mais  snave  tempo  amor  trasladam. 

Cada  espécie  tein  leis;  guarda  uma  estancia 
As  vezes  par  a  par  o  amante,  e  a  amada: 
Em  diíF'rentes  estancias  habitando, 
Longe  um  do  leito  do  outro  ás  vezes.  vive. 
Tal  sobre  os  prados  o  salgueiro  ofí*'rece 
Sexo  diverso  nos  floridos  troncos. 
Quando  para  o  Carneiro  o  Sol  tornando, 
No  cotihe  Amor  conduz,  e  a  Primavera, 
O  macho  faz  voar  por  entre  os  campos 
Substancia  fecundante  á  verde  sócia ; 
Um  lado  de  permeio  embora  esteja: 
EUes  (mercê  de  Zephjro)  se  gosam. 

O  Rhódano  entre  as  ondas  escumantes 
Por  dez  luas  nos  furta  aos  olhos  planta 
Que  na  estação  de  amor  desmnnda  o  tronco, 
A  flor  das  aguas  sobe,  e  luz  nos  ares. 
Os  machos,  atéli  no  fundo  immoveis, 
Rompem  seus  débeis  nós,  seus  laços  curtos; 
Com  livre,  afouto  ardor  ás  fêmeas  nadam, 
Gran  séquito  lhes  formíim  sobre  o  rio: 
Festa  se  anfolha,  que  Hjmenêo  risonho 
Pelas  ondas  azues  guia,  assoalha. 
Mas  tanto  que  de  Vénus  finda  o  prazo, 
O  tronco  se  retira,  encolhe  e  torna 
Semente  a  amadurar  no  centro  d'a£:ua. 


140  OBRAS  DE  BOCAGE 


Juncto  aos  pólos  glaciaes,  nos  fins  do  mundo, 
Onde  rápido  inverno  o  estio  absorve, 
E  em  vão  deseja  sasonar-se  o  fructo, 
Derroga  Natureza  as  leis  constantes, 
Faz  do  cálix  sair  vivente  planta, 
Que  se  une  á  terra,  e,  de  vigor  provida, 
Brevemente  da  mãe  a  altura  eo:uala. 

A  noute,  amiga  do  prazer  mais  doce, 
Presta  aos  suspiros  tutelares  sombras; 
Lá  entre  os  vegetaes  o  rei  das  luzes 
Aos  mysterios  de  amor  é  quem  preside. 
Mal  que  ás  portas  dó  céo  velan  lo  as  Horas 
No  carro  as  guias  de  ouro  ao  Sol  commettem, 
E  o  primeiro  fulgor,  que  d'elle  escapa. 
Guarnece  no  horisonte  os  agros  cumes, 
Dos  súbditos  de  Flora  a  maior  parte, 
Cortejando  louçãos  a  etherea  deusa, 
Celebram  hymeneus  por  entre  os  vivas 
Das  aves  encantadas.  Outras  flores 
As  horas  querem  antes  em  que  a  terra 
Das  húmidas  manhãs  o  orvalho  exhala; 
Mas  cada  qual  de  noute  o  rosto  vela, 
E  em  ponto  certo  se  retira,  e  dorme. 

Se  alorumas  flores  de  estranofeira  ori^^em 
Evitam  entre  nos  diurnos  lumes, 
Quaes  as  bellezas,  que  na  corte  imperam. 
Velando  as  noutes,  e  dormindo  os  dias, 
É  que  lá,  d'onde  ao  seio  as  trouxe  Europa, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  141 


Nasce  a  luz  quando  cá  se  espalham  trevas; 

E  que,  segundo  as  leis  da  pátria  sua, 

Se  abrem,  sem  ter  diífrença  em  mez,  e  em  hora. 

Taes,  não  longe  de  um  lenho  aberto  de  ondas, 
Miseros  nautas,  evadindo  a  morte, 
Relíquias  ajuntando  em  ilha  ignota, 
Os  costumes  da  pátria  ali  transplantam, 
E,  mantendo-lhe  as  leis  n'outro  hemispherioj 
Seu  infortúnio,  seu  desterro  adoçam. 

Porém  que  nova  scena!  Um  leve  insecto 
Aml  núncio  das  flores  eis  se  torna. 
Desviados  no  campo  esposo,  esposa, 
Terreno,  que  os  desune,  anda,j'  não  podem? 
A  abelha,  volteando  a  elle,  a  ella, 
Do  reciproco  amor  conduz  penhores. 

O  komem  também  lhe  presta  industria  fértil. 
Onde  arde  o  clima,  e  florecente  a  palma 
Mostra  inclinada  que  ao  amante  acena, 
O  africano  ao  palmeiro  um  thyr^o  arranca, 
Sacode-o  sobre  a  fêmea,  e  vae  no  outomno 
Colher  d'esta  união  não  raros  fructos. 

Más  ao  seu  quadro  amor  me  prende  ha  muito, 
E  inda  três  estações  pincéis  me  pedem. 


142  OJBBÁS  DE  LOCAGE 


0-<íík.2>a  TO    SEGI-XJ3SriDO 


o  astro  pomposo,  ^iija  luz  fecunda 
Presta  aos  dous  mundos  o  calor,  e  a  vida, 
Transpoz  dos  Gémeos  o  brilhante  signo, 
E  no  cume  do  céo  reluz,  triumpha. 
Trajando  as  estações  diversas  galas, 
Sentadas  sobre  nuvens  o  rodeam. 
r'or  mão  d'ellas  verdura  entorna,  e  flores, 
De  Ceres  a  riqueza,  os  dons  de  Baccho, 
Rouca  tormenta,  que  liquide  os  ares, 
E  que,  apurando-os,  fertilize  a  terra. 
Eis,  volvendo  ao  Verão  benigna  face, 
ccVem,  sobe  ao  cíhto  meu  (ili/:'  :-c:\h'^  oli  filho; 
Na  gloria  minlia,  em  meu  •  ii  parte; 

Quero  illustrar  cointigo       '         ■  tzu. 
Eia,  destapa  os  moijte; .  .  .  .js 

De  altas  í^oailas,  oue  meu  raio  afroíitam; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  143 


Faze  rolar  nos  liyperbóreos  mares 
Montão  medonho  de  azulados  gelos; 
Ondas,  do  norte  ao  equador  pulsadas, 
Das  correntes,  e  fluxo  auctor  te  acclamem. 
Aguas  povoa,  e  ar;  manda  de  insectos 
Sobre  as  lagoas  adejar  negrumes. 
Manda  enxames  zunir  dVmtre  as  hervinhas. 
Seus  ténues  habitantes  dandc  ás  flores. 
Por  ti  fuh^o  metal  na  terra  bidlhe, 
Accenda-se  o  rubi  nos  teus  luzeiros; 
Inda  mais  úteis  dons  confere  ao  homem, 
Verdejantes  espigas  enlourece, 
Os  trigos  doura,  que  apiedad% Ceres 
Lhe  deu  para  ajudar-lhe  o  pezo  á  vida. 
Diz,  e  dos  fados  seus  o  Estio  ufano, 
Executa  de  Phebo  as  leis  supremas. 
Espraia  seu  fervor  no  céo,  na  terra, 
Rio  é  de  fogo,  e  se  insinua,  e  corre. 
Não  lhes  empece,  aos  campos  aproveita, 
Que  a  Natureza  em  paz  vestiu  de  plant.is, 
Onde  a  relva  confusa,  o  musgo,  o  feto 
Tapam  de  espes&os  véos  a  térrea  face, 
B  o  que  á  fecundidade  é  prestadío 
Só  deixam  n'ella  entrar  de  estivos  lumes. 
Nos  logares,  porém,  onde  a  arte  impera, 
De  Floia  nos  jardins,  nos  teus,  Favonio. 
Pola  calma  esgotado,  o  sulco  em  breve 
I.^-s  floies  suas  vê  murchar-se  a  gloria, 


144  OBBAS  DE  BOCAGE 


Se  vida  o  regador  não  restitue 

A  prostrada  verdura,  em  claras  ondas. 

Nymphas,  que  ás  fontes  presidis,  e  aos  rios, 
Vossos  puros  cristaes  prestar-nos  vinde. 
Feliz  quem  nos  seus  campos  vê  surdindo 
Vitrea  nascente  de  húmido  penedo  ! 
Ribeiras  luzem  mais,  porém  mil  vezes 
Risco  attesta  o  pomar  de  o  visintarem. 

A  terra  não  se  apraz  de  ser  banhada 
Se,  pisando-a,  simelha  os  sons  do  bronze, 
Se  o  meio- dia  accezo  a  tez  lhe  torra. 
Corre  agua,  que  lhe' dás,  em  vão  por  ella; 
Desespera  inda  ma^  sedes,  que  a  mirram, 
Nos  ares  se  evapora,  e  vae.-se  em  fumo. 

Assim  de  Yemen  o  incenso,  em  dias"  faustos, 
Mal  toca  o  lume,  que  na  pjra  estala, 
Súbito  ardendo,  súbito  exhalado, 
Aos^  deuses  voa  na  cheirosa  nuvem. 

Quando  a  Titonia  moça  enfeitam,  cobrem 
Docel  (ie  rosas,  de  jasmins  grinalda, 
Inda  mais  quando,  oh  Vénus,  o  teu  astro 
Converte  em  mansa  noute  o  dia  inquieto, 
E  que  a  terra,  da  calma  respirando, 
O  regador  chuvoso  anhela,  e  chama. 
Depois  de  estivas,  ensuadas  horas 
N'haste  pendente  desfallece  a  planta; 
Mas*se  a  frescura  lhe  penetra  o  seio, 
Logo  se  animam  seus  vencidos  órgãos, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  145 

E  reverdece  logo,  e  bella,  e  branda, 
Por  entre  virações  altêa  a  fronte. 

As  aguas  alegraram  planta,  e  planta; 
Todas  em  largo  sorvo  as  têm  gostado. 
Em  quanto  do  seu  giro  o  sol  no  termo 
A'â  sombras  inda  oppõe  de  luz  um  resto, 
Tu  visita  de  novo  as  tribus  verdes, 
Kecolhe  cá,  e  lá  seus  mil  perfumes. 
Vê  n'um,  n 'outro  logar  luzir-lhe  a  folha, 
E  a  imagem  da  ventura  em  toda  a  parte. 
Os  botões  amanhã  do  cravo  e  rosa 
Te  deixarão  prever  seus  attractivos; 
A  cereja,  o  damasco  hão  de  pagar-te 
Desvelos,  que  exerceste  em  cultival-os, 
E  serão  teus  jardins  no  estio  ardente, 
Quaes  os  legares,  do  equador  visinhos, 
Onde  sempre  escaldada  a  terra,  e  fértil, 
Delicias  nutre  ao  mundo,  e  não  se  estanca. 

Lá  nos  pulidos  campos,  lá  nos  bosques 
Seus  dons  ostenta  mais  soberba  Flora. 
Monstruoso  arvoredo  assombra  a  terra, 
E  08  tempos,  os  tufões  como  que  insulta. 
O  Seiba,  erguido  ali  qual  torre  immensa, 
Abarca  peiras  cem  co'a  vasta  rama. 
Seus  braços,  ás-  florestas  sobranceiros. 
Outras  florestas  são,  pelo  ar  suspensas. 
Oh  quantas  gerações  se  tem  sumido. 
Que  impérios  d'ante  os  olhos  tem  voado, 

10 


146  OBRAS  DE  BOCAGE 


Desde  que  este  gigante  aos  céos  levanta 
A  fronte,  que  de  séculos  blasona  I 

Mil  vegetaes^  ao  sol  não  menos  caros, 
São  de  rara  virtude  ali  munidos. 
Deleitoso  café,  o  engenho  espertas, 
Valem  teus  suecos  a  Perméssia  limpha, 
Ántidoto  celeste  ali  roxêa 
Quando  a  febre  assanhada  o  pulso  inflamma; 
Trepadora  baunilha  ali  me  alegra, 
E  a  siliqua  fragrante  une  aos  arbustos. 
Ufano  olha  Ceilão  seus  bellos  bosques, 
Das  Molucas  a  noz  festins  perfuma. 

Certa  planta  (oh  prodígio ! )  a  seus  encantos    pJI 
Liga  os  melindres  do  virgíneo  pejo. 
Se  cora  dedo  indiscreto  ousas  tocal-a, 
Quer  esconder-se  a  pudibunda  folha, 
E  ás  mesmas  leis  fiel,  o  móbil  ramo 
Se  inclina  para  o  tronco,  e  cinge  a  elle. 

Admiro  as  redes,  que,  ao  mosquito  infensas,. 
Arachne  dependura  em  torno  aos  tectos; 
Mas  do  insecto  ardiloso  o  ténue  fio 
Excedem  muito  da  Diónea  as  artes. 
A  folha  entre  lagoas  embuscada. 
Recata  n'ura  mel  puro  aguda  ponta, 
E  de  mola  infiel  se  arma,  se  ajuda. 
Mal  que  a  menêa  famulenta  mosca, 
A  folha  encolhe,  e  o  temerário  insecto 
Eis  traspassado,  e  susurrando,  expira. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  147 


De  uma  flor  tão  cruel  se  arrede  a  vista. 
Lustra *siniaryllis;  o  jasmim  branquevja, 
Festões  se  aiono^am  em  redor  da  ao-athis. 
Purpúrea  os  botões  gentil  cougorça. 
De  verde  tamarinçlo  á  fresca  sombi  a 
Quanto  fóIgo  de  olhar  paizagem  rica, 
Onde  em  seus  ramos  o  nopal  sustenta 
Da  purpura  de  Tyro  o  triste  herdeiro; 
Onde  instáveis  cipós  das  rocjias  pendem; 
Onde  a  romã  brilhante  arêas  cobre, 
Onde. .  .  não  posso  numeral-os  todos. 
Bisonhas  flores,  delicados  fructos, 
Porque  me  recordaes  a  historia  amarga 
De  extinctos  povos  cento  a  ferro,  e  fogo ! 
Patrono  de  cruéis  conquistadores, 
Devera  o  Fado  abrir-lhe  os  campos  vossos? 
Ilha  remota  se  demande,  oh  Musas, 
Vedada  pelos  céos  á  crua  Europa. 
Exponde  aos  olhos  meus  ditoso  valle, 
Tégora  dos  mortaes  não  profanado. 
Vós  me  ouvis.  Eis  magnifico  arvoredo 
Desparze  em  torno  a  mim  fragrantes  sombras. 
De  uma  fonte  commum,  qaaes  vem  dous  gémeos, 
A  prado  ameno  dous  arroios  descem. 
Suspira  sobro  o  myrto  a  bengalinha; 
Por  entre  as  palmas,  que  Favonio  lóça, 
Enbros  loris,  e  os  verdes  papagaios, 
/brigados  do  sol,  nas  folhas  saltam. 


148  OBRAS  DE  BOCAGE 

Nuvem  de  araras  magestosa  brilha, 

Pousa  nos  ramos,  e  a  floresta  occupa. 

Já  nas  palmeiras  seu  revolto  bico 

Abre  os  fructos,  que  forra  hirsuta  casca; 

Já  mimoso  ananaz,  que  sáe  das  hervas, 

Os  aéreos  convivas  junta  em  roda. 

Innumeraveis  ninhos  entre  as  flores 

Um  ar  vivificante  ali  respiram; 

A  rija  tartaruga  a  passos  lentos 

Ali  junto  do  mar  seu  pezo  arrasta, 

Quando  as  aves,  que  amima  o  deus  das  ondas, 

Os  ermos  deixam  do  Oceano  immenso, 

E  as  ruivas  praias  costeando,  aos  gritos, 

Em  tropel,  quasi  noute,  as  selvas  buscam. 

Ao  ridente  logar  ncão  pode  a  Noute 
Do  dia  o  resplendor  furtar  co'as  sombras. 
Tanto  que  desce,  numerosas  plantas 
Se  accendem  todas,  e  nas  trevas  luzem. 
De  insectos  mil,  e  mil  radiante  chusma 
Nos  áureos  laranjaes  lustrando  brinca. 
Relâmpagos  lhe  espirram  d'entre  as  azas, 
E  lá  scintilla  cada  folha  ao  longe. 
Cessa  o  recreio,  a  escuridade  reina: 
Eis  prazenteiro  enxame  a  luz  innóva, 
E  adeja,  e  vôa,  e  folga  no  ar,  que  doura. 

Mas  sombras  taes,  que  a  Natureza  inflamma, 
Montanhas  do  Peru,  planicies  d^Asia, 
Mal  podem,  França,  equivaler-te  ao  clima. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  149 


Vences  o  Egjpto,  onde  três  vezes  no  anno 
Se  c'roa  a  terra  de  opulentas  messes; 
De  Mavorte  a  cidade,  aos  reis  terrivel, 
Nos  tempos  de  ouro  te  invejar^  o  lustre. 
Pastora,  junto  ao  Sena  reclinada. 
Jamais  temeu  do  crocodilo  assaltos; 
Incauto  caçador  nunca  em  teus  bosques 
Pallido  recuou,  da  serpe  á  vista, 
Que,  d'entre  o  matto,  qual  palmeira  enorme. 
Abre,  surgindo,  as  matadoras  fauces. 
Gados  soberbos  em  teus  valles  bramam, 
Orna-te  os  cerros  pâmpano  afamado; 
Corre  teu  puro  azeite  em  rios  de  ouro; 
Ceres  te  abasta  os  próvidos  celeiros. 
Junge  Marte  a  seu  carro  os  teus  ginetes, 
E  Nerêo  de  teu  raio  ao  fonge  treme. 
Que  monumentos  de  grandeza  extranha! 
Olha:  é  Bossuet,  que  assoma,  e  que  troveja, 
É  Descartes,  que  ao  mimdo  illustra  o  cáhos; 
E  Corneille,  Pascal,  Boileau,  Pacine; 
Este  das  leis  oráculos  decifra, 
Outro  da  Natureza  expõe  piilagres; 

kE  tu,  também,  que  os  titulos  sagrados 
Restituíste  ao  mundo  em  letras  de  ouro. 
Eis,  eis  Martel,  que  na  remota  edade 
A  fúria  rebateu  do  mouro  infesto ! 
Carlos,  que,  de  reis  cento  amparo,  ou  jugo, 
Viu  a  terra,  a  tremer,  calar-se  ante  elle; 


150  OBRAS  DE  BOCAGE 


Os  Bayards,  os  Guesclius,  da  guerra  numes, 
E  cá  mais  perto  Catiiiat,  Turenna. 

Oh  páo  da  Natureza  !  Oh  grande  !  Oh  justo  I 
Este  império  protege,  onde  ordem  nova 
Com  teu  favor  divino,  á  sombra  tua, 
O  templo  social  reforça,  estêa. 
Manda  que  a  paz  celeste,  e  que  as  virtudes 
Em  luminoso  grupo  aqui  descendam, 
E  a  amisade,  esse  bem,  por  ti  creado, 
Para  se  consolar,  e  ornar-se  o  mundo. 
Dos  magistrados  esclarece  a  mente, 
A'  ventura  geral  seus  passos  guia; 
De  novos  Linos  as  vigilius  honra, 
Maravilhas  de  um  Deus  confia  ao  sábio; 
-Amável  pejo  na  donzella  influe, 
íío  rosto  a  graça,  e  candidez  lhe  apura; 
Forme,  unida  ao  consorte  a  casta  esposa, 
De  seus  filhinhos  seu  primeiro  enfeite; 
Eterniza  das  leis  o  amor  sagrado, 
D'e]las  escudo,  consistência  d'ellas, 
E  o  sol,  reflexo  teu,  jamais  aviste 
Grandeza,  que  deslumbre  a  pátria  minha. 

Entremos  outra  vez  nos  alr.os  bosques; 
Debaixo  de  ar  accezo  o  chão  se  greta. 
Sós  as  florestas  nos  off*' recém  risos, 
Sós  nos  ofí*' recém  a  frescura,  e  graças. 
Ao  pó  da  estancadeira,  ao  pé  da  esteva 
O  abrótano  levanta  azues  espigas, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  151 


Eis  junto  ao  pinho  a  teucria  resinosa; 
O  trovisco  a  familia  aqui  desparze, 
Ali  brilha  o  botão  do  cravo  agresfce; 
Rubro  medronho  as  hervas  embalsama. 
E  de  fausta  cidade  a  selva  emblema, 
Cada  espécie  concorre  ao  bem  de  todas. 
O  forte  ajuda  o  fraco;  este  atavia 
Em  anno,  e  anno  o  bemfeitor  co'as  flores; 
Como  guarda  fiel,  o  agudo  espinho 
Pósta-se  aqui,  e  ali,  rechaça  os  gados 
Com  seus  mordazes  bicos;  e  apadrinha 
As  arvores  nascentes.  Mil  renovos. 
Moço,  e  fértil  enxame,  além  presentam 
Dos  tenros  fructos  a  colheita  fácil. 
Girem  mais  alguns  soes;  verás  aos  bosques 
Ir  de  uma,  e  d'outra  aldêa  a  destro  povo, 
O  pastor  despegar  do  leve  ramo 
A  noz,  que  esmaga,  e  que  á  pastora  offrece. 
Alçam  em  tanto  ao  céo  carvalhos,  olmos, 
O  bordo,  o  freixo,  as  arrogantes  copas; 
Dos  raios  o  furor  provaram  muitos, 
Os  outros,  alargando  anuosas  sombras, 
Glorioso  reinado  illesos  findam, 
E  attestam  protecção  de  amigos  deuses. 
Longe  dos  seus  rivaes,  lá  sobre  os  troncos 
O  corvo,  em  solidão,  vae  aninhar-se. 
Mas  numerar  quem  pode  os  vários  entes, 
Que  erram  nas  folhas,  e  que  o  lenho  inclue? 


152  OBRAS  DE  BOCAGE 

Desde  o  hypo,  que  lhe  jaz  aos  pés  lançado^ 
Té  ao  ramo  entre  as  nuvens  escondido, 
Vivem  átomos  mil  em  cada  fenda; 
Um  povo  em  cada  nó  se  cria,  e  ferve. 
Nasceram  co'a  manhã,  terão  á  uoute 
Da  epheméricá  vida  extincto  o  prazo. 
As  mesmas  selvas  para  nós  derramam 
O  fluido  vital,  alma  do  mundo; 
Prestantes,  vigorosas  fibras  suas 
O  mais  profundo  chão  também  penetram; 
Sorvem  a  agua  invisível,  e  em  vapores 
Sãos,  fecundantes,  do  escondrijo  a  elevam; 
Dão  vitreo  cabedal  do  monte  á«  njmphas. 
Que  refrigere,  que  humedeça  os  campos. 

Mostrae-me,  oh  rios,  descubri-me,  oh  lagos, 
Vossos  bellos  thepouros  verdejantes. 
Quem  vos  tocara  as  húmidas  madeixas, 
Do  timido  germano  usado  abrigo  1 
Quem  vira  as  plantas,  que  alentaes  no  seio ! 
Quem  o  jardim  das  escamosas  turbas ! 
Paremos  juncto  á  florida  coUina, 
Donde  o  Marna  se  vê  regando  os  prados. 
Lá  salgueiros  sem  conto  ao  rio  inclinam. 
Ou  endereçam  para  o  })ólo  a  rama. 
Insecto  singular  nas  folhas  mora, 
E  exhala  sobre  a  margem  róseo  cheiro. 
Os  golphões  sobre  as  ondas  aplanadas 
Formam  d'aquem,  d'aléin,  tapiz  soberbo; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  15?i 


O  purpúreo  Htronio,  o  morto  cardo, 
Dão  lindo  enfeite  á  solitária  margem; 
No  próximo  espinheiro  as  campainhas 
Entrelaçando  a  flor,  que  a  neve  abate, 
Cubrindo  de  festões  seus  intervallos, 
Das  graças  vegetaes  o  nó  parecem. 

Ás  vezes  mo  extravio,  e  desde  a  aurora, 
Distante  do  logar,  vagueio  incerto. 
Eis  entre  serras  me  apparece  um  lago, 
De  que  este,  e  aquelle  extremo  as  névoas  toldam. 
Mas  tanto  que  as  penetra  o  sol  fervente, 
Dos  cumes  atravez  as  vejo  alçar-se; 
A  agua  logo  reluz,  e  a  sombra  ao  longo 
Das  vastas  selvas,  qual  espectro,  foge. 
Em  todo  o  seu  primor  olho  o  thesouro, 
Que  ao  sitio  deram  circumstantes  numes. 
Rochas  amontoadas  juncto  ás  ondas 
Mostram-me  arbustos  entre  as  longas  fendas; 
Por  baixo  esta  brilhando  o  verde  musgo, 
E  a  seda  eguala,  tão  suave  ao  tacto. 
No  lago  o  crespo  abrolho,  entre  aguas  duas, 
Estende  a  fluctuante,  a  hirta  casca. 
Se  de  Eolo  algum  filho,  ali  cruzando, 
De  erguer  as  ondas  folga,  rolam  fructos, 
Pelas  vagas,  e  o  vento  arrebatados, 
E  vem  perto  de  mim  cair  na  margem. 

Atys  assim  das  arvores  á  sombra 
Ia  es.tudar-te  as  leis,  oh  Natureza. 


154  OBRAS  DE  BOCAGE 


Tempo  viçoso,  que  se  perde,  e  chora, 
Lucrava,  ornando  no  retiro  a  mente. 
Só  vinte  primaveras  tinha  o  moço, 
E  do  contorno  as  plantas  já  sabia. 
Nem  cerro  esconso,  nem  trementes  lagos 
A  sôfrega  pesquiza  lh'as  vedaram; 
Attento  as  indagava;  em  seus  costumes, 
Seguindo-lhe  os  progressos,  se  instruía, 
E  quando  a  viração  lhes  abre  o  seio. 
Ia  colhel-as  no  virente  asylo; 
Em  dobrado  papel  a  flor  lançava, 
Mantendo-lhe  d'est'arte  a  cor,  e  a  forma. 
Eis  seu  prazer.  Lucila,  os  seus  amores, 
D'este  mesmo  prazer  participava. 
Das  filhas  do  alto  Olympo  as  graças  tinha. 
Tinha  a  bondade,  mais  celeste  ainda. 
Lá  nos  valles  de  Emílio  os  dous  moravam; 
Sabia-se  este  amor:  sua  alma  ingénua 
Occultar  não  podia  ardor  tão  puro, 
E  a  tão  puras  delicias  não  bastava. 
Danças,  e  jogos  annuaes  na  aldêa 
De  Lucila  o  natal  annunciavam: 
Realçando  o  festejo,  emfim  se  ajusta 
Ir  celebral-o  no  interior  de  um  bosque. 
E,  para  dispor  tudo,  eleito  o  amante: 
Parte,  e  com  que  fervor !  Quem  ama  o  julgue. 
Oh  !  Que  projectos  a  paixão  lhe  inspira ! 
Oh  quanto  diminue,  augmenta,  e  muda ! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  155 


Deviam-se  ajuntar  n'um  fresco  sitio, 
Onde  entre  sombra,  e  luz  fallece  o  dia. 
Onde  Zephyro  assiste,  as  plantas  folgam, 
Brilha  o  sol  no  zenith,  ou  no  horisonte. 
Ás  arvores  em  torno  se  arredondam, 
Une- as  prisão  de  amor,  prisão  de  flores. 
Forma  thronos  de  relva  a  mão  do  amante; 
Aqui  da  linda  moça  imprime  o  nome; 
Versos  do  coração,  mimosos  versos, 
No  tronco  de  uma  faia,  além  commovem. 
A  obra  se  ultimou  conforme  ao  gosto: 
Atys  gosa  o  porvir,  já  vê  na  mente 
Pela  estancia  de  Flora  entrar  Lucila; 
Vê  pudico  rubor  tingir-lhe  a  face 
Ante  o  campestre,  não  previsto  adorno, 
Onde  as  artes  de  amor  Amor  conhece. 
Emtanto  do  hemispherio  o  sol  fugira; 
Enluta-se  a  floresta,  o  som  do  raio, 
Qne  urrava  ha  muito  nas  remotas  serras, 
Em  pezadas  carrancas  se  aproxima. 
C( Adeus,  ditoso  bosque,  asylo  amado; 
Em  teu  seio  amanhã  terás  Lucila. 
Amor,  por  lhe  aprazer,  de  ti  desvie 
Os  bravos  furacões  devastadores; 
E  nada  triste  aqui  lhe  affliju  os  olhos.» 
Assim  fallava  o  misero,  eis  que  o  raio. 
Da  nuvem  rebentando,  o  colhe,  o  mata. 
Renasce  o  dia  destinado  a  prantos, 


156  OBRAS  DE  BOCAGE 


Sem  que  assalte  os  ouvidos  nova  infausta. 
Risonhas  aldeãs  cem  teigas  enchem 
De  brandos  lacticinios  saborosos, 
E  da  purpúrea  ginja,  e  dons  de  Ceres. 
Solta  madeixa  lhe  engrinaldam  rosas, 
E  em  triumpho  Lucila  ao  templo  guiam 
De  verdura,  e  de  amor.  .  .  Mal  sabe  a  triste 
A  que  horrendo  espectáculo  a  conduzem  ! 
Chegam,  cantando,  ao  bosque.  Entra  Lucila; 
Entra,  e  ve  no  pavor  de  áridas  sombras 
Inanimado,  em  pé,  sem  cor  o  amante, 
Sustendó-se  n'um  tronco,  extincto  quasi. 
«E  elle !  E  elle !  Oh  céos !»  exclama,  e  voa 
Com  face  cor  da  morte  ao  malfadado; 
Acodenà-lhe,  e,  carpindo,  as  companheira^ 
Desejam  mitigar-lhe  as  ancins  mudas; 
Seu  rosto  sem  vigor  ao  seio  encostam, 
E  a  levam  fria,  e  semimorta  aos  lares. 
Oito  luas  entregue  a  viram  sempre 
A  desesperação,  sempre  á  saudade. 
Cerrado  ao  mais,  té  surdo  á  natureza. 
Seu  coração  mantinha  o  golpe  occulto. 
Plantas,  que  tanto  amou,  não  resistiram 
Ao  duro  inverno:  pereceram  todas. 
Como  as  flores  também  murchando  a  triste, 
No  sepulchro  immatura  ia  abjsmar-se. 
Eis  menino  gentil,  que  nos  suspiros 
Explica  o  mal  da  mãe  prostrada,  enferma, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  157 


Hervas  implora,  cujo  amargo  a  livre 

Da  pertinaz  doença  raladora. 

Lucila  recordou  que  aos  infelices 

Atys  o  coração  jamais  fechara, 

E,  o  pezo  das  angustias  arrastando, 

Aos  campos,  mesmo  assim,  dirige  o  passo. 

Era  o  tempo  em  que  o  sol  das  ondas  surge; 
E  com  puniceo  raio  as  serras  cora. 
Acordando  co'a  luz,  se  erguia  a  planta, 
De  orvalhos,  de  boninas  esmaltada; 
Aroma  salutar  vagava  os  ares ; 
Saíam  d'entre  o  bosque  as  avesinhas; 
Quaes  pedem  pelo  campo  á  Natureza 
Dos  implumes  penhores  o  alimento, 
Quaes  vão  de  ramo  em  ramo,  e  lá  gorgeiam 
Os  versos  naturaes,  que  Amor  lhe  ensina. 
Lucila  os  olha,  os  ouve,  e  chora,  e  geme. 
Volve  em  si,  colhe  a  salva,  e  colhe  a  arruda, 
Vae  preparal-as,  e  em  três  dias  nota 
Que  o  mal,  sem* força  já,  desapparece. 
Folgou,  como  Atys,  de  girar  nos  campos, 
E,  adorando-lhe  as  cinzas,  foi,  como  elle, 
Esperança,  e  guarida  aos  desditosos. 

Vinde  aos  campos,  oh  vós,  que  as  magoas  finam, 
E  os  filhos  de  Chiron  aos  -campos  venham. 
Piedosa  a  mão  de  um  Deus  a  nossos  males. 
Contém  nos  vegetaos  o  seu  remédio. 
Três  elementos  os  compõem  mormente: 


158  OBRAS  DE  L OCAGE 


O  páe  do  acido  é  um,  páe  d'agua  é  outro, 
E  emfim  nec^ro  carvão.  Com  taes  princípios 
Roupas  de  flores  o  universo  envolvem. 
Segundo  os  climas  variando  espécies, 
Nos  medem  precisões  pelos  haveres. 

Quando  a  tosse  importuna  em  crebro  esforço 
Ao  velho  anciado  a  machina  fatiga, 
Molle  violeta,  em  plácido  xarope, 
Humedece,  allivia  o  peito  ardente; 
A  raiz  de  açucena  extingue  o  fogo 
De  acceza  chaga.  Machaon  em  Phrygia 
Nos  feridos  heróes  dictamo  espreme: 
Já  pára  o  sangue,  e  obediente  aos  dedos 
O  ferro  larga  a  preza,  e  cáe  do  golpe. 

Por  extremo  a  papoula  aos  grandes  presta. 
Do  sábio  frequentando  a  estancia  humilde, 
O  somno  foge  aos  nítidos  palácios. 
Onde  a  angustia  se  volve  em  seda,  em  ouro. 
Que  não  pode  a  riqueza  T  Eis  planta  nova 
Usurpa  os  sulcos,  para  o  rico  estilla 
Um  leite  soporifero,  que  os  mimos 
Do  sereno  Morpheu  mil  vezes  suppre. 
Onde  Athenas  luziu,  e  onde  era  Esparta, 
Nos  terrenos  phebêos  Argos,  Mycenas, 
Rosa  fragrante  a  candidez  ostenta, 
E  entre  as  grandes  ruínas  lá  se  eleva. 
Seu  óleo,  que  as  rainhas  prezam  tanto, 
Seu  óleo,  resguardado  em  frascos  de  ouro. 


POEMAH  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  159 


Vence  o  néctar,  que  outr'hora  aquelles  campos 
Dos  numes  aos  festins  subministraram. 

Mil  vezes  doce  antidoto  nos  bosques 
Aos  venenos  de  amor  se  tem  buscado. 
De  hervas  amigas  se  julgou  que  o  sumo 
A  ternos  corações  a  paz  trazia, 
Os  ódios,  os  desdéns  amaciava, 
E  do  errante  amador  continha  os  voos. 
Esperanç^a  fallaz!  Chiméra  insana! 
Circe,  a  filha  do  Soi,  que  transtornava 
As  leis  da  Natureza  a  seu  capricho. 
De  attonitos  mortaes  trocando  a  forma; 
E  aquella,  que  a  Jason,  depois  ingrato, 
O  drago  adormentou,  feroz,  e  horrendo, 
Co'a  a  magica  potencia  (ah !)  não  poderam 
Deter  n'um  coração  fugaz  ternura. 

Bens  não  busquemos,  que  não  ha  nas  plantas. 
Aquelles  bastem,  que  ante  os  pés  nos  brotam. 
Numeral-os  quem  pode?  O  musgo  humilde 
Dá  calor  aos  Lapões,  e  aos  Rennas  pasto; 
Abriga  os  ovos,  que  a  avesinha  aquece, 
D'elle  o  esquilo  veloz  compõe  seu  berço. 
Ao  musgo  cores  mil  se  devem  novas, 
E  até  faíscas  de  innocente  fogo. 
Na  mádida  espessura,  annuu ciando 
Subterrâneos  crystaes,  não  mente  o  musgo. 
Lá  no  monte,  no  outeiro  as  débeis  hervas 
liiííparam-lhe  as  ruinas,  lá  suspendem 


160  OBRAS  DE  BOCAGE 


Pulverulentas  nuvens,  e  as  arêas, 

E  os  mil  fragmentos,  que  assanhado  Bóreas 

Alça,  varrendo  os  resequidos  campos, 

E  em  remoinho  arroja  em  torno  ás  serras. 

No  concavo  das  rochas,  e  em  seus  flancos, 

Dos  ventos  a  pezar,  sustêm-se^i^estos. 

Que  innumeraveis  germes  apascentam. 

Corre  gentil  verdor  por  toda  a  parte, 

E  a  floresta,  os  vapores  attraindo, 

Faz  dos  cabeços  borbulhar  correntes. 

Dos  vegetaes  a  graça,  o  gosto  d'elles 
Servido  sempre  tem  de  molde  ás  artes; 
Viu-se,  imitando-os,  o  pincel  mimoso 
As  cores  variar  n'um  mesmo  quadro. 
Do  vosso,  oh  campos,  atilado  esmalte 
As  roupas  divinaes  bordou  Minerva. 
Dextra  sabida  no  macio  adorno 
Ergue  o  jasmim,  desabotoa  a  rosa. 
Entalha-os  o  cinzel  té  sobre  as  c'roas, 
E  columnas  o  acantho  aformosêa. 

Nas  flores,  ah !  que  amável  monumento 
Tem  achado  altos  dons,  altas  virtudes ! 
Que  erguidos  nomes  sorVeria  o  Lethes, 
Se  as  plantas  seu  louvor  não  consagrassem? 
Absorvem-se  os  thesouros,  vão-se  as  forças; 
O  que  o  homem  construe  abate  a  Sorte, 
Té  na  fronte  dos  reis  imprime  ultrajes, 
Os  palácios  derruba,  e  postra  os  bronzes; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS 


161 


Mais  estável  que  o  mármore,  e  que  o  ferro. 
Nutre  seu  nome  a  planta,  e  doma  os  Fados; 
E  vivente  inscripção,  que  se  renova 
Em  cada  primavera,  em  cada  inverno. 
Mas  de  sempre  viver  qual  foi  tégora 
Mais  digno  do  que  o  teu,  Linné,  qual  nome? 
Vieste,  e  veiu  a  ordem.  Luz  brilhante 
Dourou  r^xpidamente  a  Natureza; 
Dos  varies  mineraes  o  leito  escuro. 
Dos  ares  o  ágil  filho,  o  filho  d'agua, 
A  linhagem  de  Abril :  tudo  notaste, 
E,  tudo  conhecendo,  ensinas  tudo. 


ii 


162  OBRAS  DE  BOCAGE 


c-A.asra:o  terceii^o 


Quando  medindo  pela  noute  o  dia, 
Nos  céos  a  Libra  assoma,  o  fresco  Outomno 
Toma,  de  uvas,  e  pâmpanos  c'roado, 
O  sceptro  dos  vergéis  da  mão  do  Estio: 
Brincões  prazeres,  abundância,  risos 
Pregoam  a  estação  formosa,  e  leda. 
Povo,  a  que  alegre  o  Marna  os  campos  banha, 
E  vós  da  Oosta-de-ouro  habitadores. 
Os  toneis  apertae  ao  som  do  malho; 
Em  seu  convexo  bojo  os  arcos  se  unam. 
Vossos  thesouros  nas  adegas  surgem, 
E  a  rubente  vindima  escuma,  ferve. 

Eu,  que  á  sombra  dos  bosques  vou  no  rasto 
Do  bom  Vertumno,  e  campesinos  deuses. 
Em  não  remota  paz  esperançado, 
Para  cantal-os  encordoo  a  lyra. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  163 


Junto  ás  que  o  prado  enfeitam,  flores  novas, 

Sementes  madurar-se  eu  vi  risonho. 

Umas  voam  sem  risco,  e  lá  debaixo 

Ficam  das  hervas,  e  a  seu  tempo  brotam: 

Arbustos  sem  cultura  assim  renascem, 

E  Cybele  amplifica  o  verde  ornato: 

Outras,  se  em  dirigil-as  não  cuidamos, 

Caem,  morrem.  Taes  os  grãos,  que  esquece  o  rico, 

Se  o  pobre  os  não  colhesse,  em  poucos  dias 

Corruptos  jazeriam  sobre  a  terra. 

Maternamente  Natureza  rege 

Ás  varias  plantas,  que  espontânea  cria. 

É  do  homem  ao  suor  propicia  menos. 

Se  descançar  o  arado,  em  breve  os  trigos 

Deixarão  de  reinar  nos  úteis  sulcos. 

O  ponteagudo  cardo  ali  revive, 

Recupera  a  bardana  o  senhorio, 

E  os  engos  das  planícies  tomam  posse. 

Caminhe-se  inda  mais  á  Natureza: 
Erga-se  o  véo,  que  seus  mysterios  cobre. 
Vejamos,  pois,  com  que  saber,  com  que  arte 
A  semente  nas  flores  afeiçoa. 
Alta  mão,  que  extraiu  de  somno  antigo 
Germes,  na  antiga  noute  semimortos, 
E  que  a  forma  lhes  deu,  e  a  leis  constantes 
Tudo  em  fim  sotopoz,  o  Deus,  quiz  logo 
A  terra  povoar,  nascida  apenas. 
Disse,  e  o  fulvo  leão  rugiu  nos  ermos. 


164  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  ao  sol,  no  raio  as  águias  se  afoutaram; 
O  homem  alçou  depois  a  face  augusta; 
Mas  inda  os  y alies  nus^  e  nus  os  montes, 
Não  presentavam  mais  que  um  lodo  estéril. 
A  voz  omíiipoíente,  adorno  immenso 
Envolve  a  superfície  á  Natureza; 
Deus  manda  á  terra  que  ministre  sempre 
A  seus  habitadores  fructos  vários, 
E  que,  em  reproduzir-se  a  planta  exacta, 
Feche  em  seus  mimos  as  sementes  suas. 
Assim  lyrio  fastoso,  e  relva  humilde 
Órgãos  pasmosos  co'a  existência  houveram. 
Lá  no  centro  da  flor  subtis  columnas 
Vibram  da  summidade  um  pó  fecundo; 
Taes  átomos  no  ovário  se  desparzem, 
Por  occultos  canaes  ao  fundo  chegam, 
Levam  de  cavidade  em  cavidade 
A  semente  o  calor,  o  alento,  a  vida. 
Murcha-se  desde  então,  morre  a  corolla, 
E  é  dado  aos  olhos  ver  semente,  ou  fructo. 

Estas  cVoadas  plantas  todavia 
Nos  mesmos  sitios  existir  não  podem: 
Uma  deve  habitar  sedentos  cumes. 
Outra  de  um  lago  as  ensopadas  margens. 
Nos  vários  sitios  a  semente  é  vária; 
Aquella,  que  no  monte  os  soes  maduram, 
Rival  das  aves,  como  as  aves  gosta 
Não  pouco  de  adejar  n'umtjerro,  e  n'outro: 


JPOEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  165 


Moveis  peiíDachos  tem  para  elevar-se, 
Plumoso  martineie,  ou  azas  leves. 

Tal,  prenhe  de  ar  subtil,  globo  engenhoso 
Com  graça  balancêa,  e  sobe  ao  pólo. 
Exércitos  domina  em  voo  altivo, 
Gira  por  cima  de  assustadas  torres, 
Desmancha  os  planos  de  inimigo  arteiro, 
Segue  os  seus  movimentos,  vê  seus  passos; 
Guia  o  valor  francez,  e  a  dúbia  palma 
Nos  campos  de  Fleurus  por  elle  arreiga. 

Flores,  que  em  margens  prende  a  Natureza, 
Tem  bateis  que  a  semente  lhe  transportem. 
Véo  longo  ás  virações  uma  presenta, 
E  dos  lagos  discorre  o  mudo  espaço; 
Do  remo  outra  se  ajuda,  e  voga,  e  segue 
Do  rio  os  torcicolos,  no  Oceano 
Estas  fiuctuam  vegetaes  esquadras. 
Vingam,  sem  guia,  immensos  intervallos, 
Enriquecem,  passando,  estéreis  praias, 
Vão  ter  ao  fim  do  mundo,  e  tomam  terra. 
O  mar  não  temas  que  as  penetre,  e  vibre 
Golpe  mortal  aos  clausurados  germes; 
Cozeu  arte  divina  as  taboas  todas 
Dos  virentes  baixeis,  e  a  Natureza 
Cem  ve/.(  s,  por  tolher  o  ingresso  ás  aguas, 
De  cera  pegajosa  ungii-os  soube. 
Assim  da  cerieira  os  fructos  nadam, 
Dos  dons  d'ahelha  supplemento  amável; 


166  OBRAS  DE  BOOAGE 


E  assim  mil  vegefcaes,  que  vê  nas  ondas 
Correr  o  bemfadado  americano. 

Sábios  filhos  de  Penn,  em  paz  dourada 
Favores  alongae  de  pingue  terra, 
Nas  verdes  margens  das  correntes  vossas; 
Nos  montes,  que  os  limites  vos  abraçam, 
Fructos  colhei,  que  sem  ser  vistos  caem, 
E  que  roga,  talvez,  nossa  exigência. 
Já  vossos  esteliferos  asteres 
Orlam  nossos  jardins;  dos  cedros  vossos 
A  sombra  vossas  leis  cá  meditamos, 
E  de  lá  tantas  arvores  trazemos, 
Que,  abrigado  o  francez  da  copa  extranha, 
Quasi  não  sabe  que  hemispherio  habita. 

Mas  por  entre  estes  hospedes  viçosos 
Anno  vindouro  meus  trabalhos  toquem. 
Os  bulbos,  que  na  estufa  repousavam. 
Tornar  ás  hortas,  exportando,  anhelam. 
Cesta  vontade  interprete  aos  teus  olhos, 
As  folhas  alongando,  eis  enverdecem. 
Não  se  espere  a  invernada.  Assim  que  os  tordos 
Attentas  nymphas  na  floresta  encantem, 
Toma  luzente  ferro,  e  desde  a  aurora 
Prepara  ás  flores  subterrâneo  berço; 
Lá  dóceis  ao  cordel,  dispõe  por  classes 
Curvo  narciso,  e  tulipa  orgulhosa, 
E  o  junquilho  fragrante,  e  flor  suave, 
Que  do  moço  Hyacintho  a  morte  afíirma. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  167 


D^ellas  outr'hora  o  batavo  attraído, 
De  theatro  em  theatro  ia  admiral-as; 
Dando  por  simples  ílor  punhados  de  ouro, 
D'aquella  frágil  posse  alardeava. 

Taes,  não  longe  do  Euxino,  e  contra  o  Pliases, 
O  Cáucaso,  em  tropel,  eunnucos  cercam; 
Regatêam  com  ouro  a  formosura, 
Bem.  que  perde  o  valor  quando  é  comprado. 
Mimosa  escrava,  destinada  aos  gostos 
Do  sultão,  que  não  viu  (ai!)  suspirando, 
Suspirando  vãmente,  a  pátria  deixa. 
Que  a  ver  não  tornará,  por  mais  que  chore. 

Do  mérito  modesto  emblema  grato, 
A  hortaliça  também  carêa  os  olhos. 
Dos  bens,  que  ella  redobra,  e  que  varia, 
O  contente  caseiro  ao  pezo  verga. 
Cuidando  a  terra  em  premiar-lhe  as  lidas, 
Lhe  entrega  fructos  mil  por  mil  sementes ; 
E  a  arvore  ás  vezes  em  seus  dons  gostosos 
Da  sua  primavera  eguala  as  flores. 
De  um  vão  melindre  ha  pouco  o  vate  escravo, 
Nas  hortas,  nos  pomares  tropeçava; 
Só  vinha  no  estudado  circumloquio; 
O  trepador  feijão,  pegado  ao  ramo, 
A  dourada  cenoura,  a  ruiva  selga, 
Gostos  peitando,  ouvidos  oíFendiam. 
Tal  delirio  voou,  e  a  crespa  couve, 
Alarde  de  Milão,  redonda  e  belia, 


168  OBKAS  DE  BOCAGE 


Já  ousa  apparecer,  sem  desluzil-os, 
Nos  sons  cadentes  da  campestre  Musa. 

Sueco  havendo  melhor  por  arte  minha^ 
Talvez  mais  bello  te  alvejara  o  aipo, 
Mais  bello  fora  o  cerefolho,  a  azeda, 
A  salsa,  verdejante  ao  pé  das  aguas; 
E,  lá  nos  soes  de  inverno,  a  tenra  alface, 
De  um  muro  ao  longo  os  ares  insultando, 
Iria  na  florente  primavera 
Seu  tributo  pagar,  e  ornar-te  a  meza; 
Mas  não  tento  em  meus  versos  dizer  tudo; 
E  de  sobejo  que  entre  dons  tâo  vários 
D'aprazivel  pintura  encontre  objecto. 
Discorro  aqui,  e  ali,  sou  como  a  abelha. 
Ora  entre  cravos,  e  jasmins,  e  rosas 
A  pompa  dos  jardins  cantar  me  agrada; 
Ora  nativas  graças  preferindo, 
Folgo  em  veredas  de  copados  bosques. 

Retiros  demandemos,  que  a  arte  ignora, 
Guiados  por  Bulliard,  ali  se  busquem 
Aquelles  vegetaes  sem  flor,  sem  rama. 
Estirpe  do  rocio,  ou  da  procella. 
Fugazes  rebentões,  que  n'um  só  dia 
Não  raras  vezes  nascem,  crescem,  morrem. 
Com  que  insignes  feições  os  assignal-a 
A  mão  da  Natureza  entre  a  verdura ! 
Que  mingoa  é  n'elles  carecer  de  flores, 
Se  das  flores  tem  cor,  perfume,  e  graça? 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZL-OS  169 


Dos  cerros  no  pendor  sente-se  a  rosa. 
Desces  ás  margens  de  sereno  arroio? 
Tens  na  cortiça  de  húmido  salgueiro 
O  lustre  do  martinij  do  anis  o  cheiro. 
Cubertos  de  herva  os  cogumelos  brotam, 
E  ergue  o  agurico  pavilhões  ufanos. 

Querido  de  Ljêo,  o  odioso  a  Ceres, 
Nos  al(][u eives  também  florece  o  feto. 
D^elle,  abaixo  da  folha,  eu  te  apontara 
Presa  semente  em  amorosas  pregas; 
Porém  tiemendo  estrondo  atroa  os  ares, 
E  as  ondas  tumultua  o  Sul  revolto. 
Ronca  o  pélago  ao  longe,  as  crespas  vagas 
Nas  escomosas  praias  esbravejam. 
Vamos:  agora  o  túrgido  Oceano 
Cospe  os  haveres  seus  ás  margens  vastas. 
Quem  pelo  equoreo  bojo  entrar  podéra, 
Seus  profundos  milagres  quem  tocájra, 
Se  das  vedadas,  invisíveis  grutas 
A  mão  do  remoinho  os  não  roubasse? 
Vê  compridos  listões  sobre  as  arêas, 
Vê  relvíi,  que  as  Nereidas  já  trilharam, 
Vê  porção  d'esses  bosques,  onde  o  peixe 
De  monstro  devorante  illude  a  fome. 
Es  mãe  de  cada  espécie,  oh  Natureza, 
Nenhuma  se  anniquilla:  o  fraco  evita, 
Escudado  de  ardis,  com  mil  rodeios, 
Encontro  desigual,  êxito  infausto. 


170  OBRAS  DE  BOCAGE 


D 'estas  plantas  marítimas  gran  parte 
Subsiste  sem  raiz,  sem  luz  vegeta; 
Outras,  do  fundo  erguendo-se,  fl actuam 
Dos  ventos  a  sabor  na  tona  d'agua: 
Três  pinhos,  cuja  fronte  as  nuvens  fende, 
A  incógnita  grandeza  não  lhe  egualam. 

O  mar  deixemos.  No  oriente  se  abre 
Espectáculo  novo.  Oh  Phantasia, 
Fada  ligeira,  audaz!  Desmanda  os  voos, 
Este  hemispherio  corre.  Encara,  observa 
Cidades  da  Germânia,  e  seus  costumes; 
Do  Sármata,  ao  passar,  prantêa  os  fados; 
Transpõe  o  Tánais,  formidável  muro, 
Mas  que  os  Hunos  horriíicos  venceram. 
Quando  tyranno  atroz,  d 'um  Deus  flagello, 
Veiu  esmagar  de  Europa  os  tristes  filhos. 
Vê  sobre  as  margens,  que  fecunda  o  Volga, 
Recendentes  melões  sorver-lhe  as  aguas. 
Reconhece  em  Tangú  potentes  hervas. 
Que  de  sôfrega  morte  a  fouce  embotam; 
Prosegue,  e,  costeando  a  longa  China, 
No  próximo  terreno  abate  as  azas. 

A  senha  deu-se.  Com  pendões  diversos 
Mortaes  dez  vezes  mil  eis  trepam  montes. 
Não  é  para  exparzir  com  mão  cruenta 
De  logar  em  logar  o  horror  da  guerra. 
Também  não  palpiteis,  orphãos  dos  bosques: 
Não  ha  de  Ecco  aprender  gemidos  vossos. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  171 

Co'a  linda  prole,  co'as  esposas  lindas 
Podeis  livres  errar  nos  vossos  naontes. 
Este  exercito  novo  a  paz  cultiva, 
Uma- planta,  não  mais,  nas  selvas  busca. 
Em  borda  de  profunda  ribanceira, 
Ao  pé  de  rochas,  que  ameaçam  queda, 
Junto  a  cavernas,  em  fragosas  brenhas, 
E  lá  que  aos  olhos  o  ginsão  se  oíferta; 
Odêa  a  luz :  a  flor  só  abre,  e  pouco, 
Se  a  patrocina,  e  cobre  arvore  espessa. 
Do  principio  do  outomno  ao  fim  do  inverno. 
Nos  agros  climas  a  incansável  turba 
Desencanta  os  thesouros,  filhos  do  ermo, 
E  entre  os  Favonios  vem,  pezada,  ovante. 

Seu  atavio  as  arvores  mudaram. 
Parando  na  carreira  o  vago  sueco. 
Da  purpura  mais  viva  as  folhas  cora; 
E  de  um  ouro  brilhante  esmalta  os  bosques, 
Crê-se,  no  alto  das  serras  vendo  o  bordo, 
Que  de  raios  o  doura  um  sol  fulgente. 
Este  esplendor,  comtudo,  e  rico  adorno, 
Oh  Primavera,  teu  verdor  não  valem: 
Génio,  dado  á  tristeza,  observa  n'elles 
Não  tarda  ausência  de  amorosos  dias. 
Vae  tu  onde  vapores,  serpeando, 
O  passo  das  correntes  arremedam. 
Lá  o  anno,  declinante,  inda  tem  flores. 
Mas  os  golpes  do  frio  a  cor  lhe  empanam. 


172  OBRAS  DE  1.0CAGE 


Sobe  á  collina,  onde  tardias  plantas 
Curvam,  tremendo,  as  pávidas  umbellas; 
A  enlutada  saudade  ali  se  off'rece: 
Eis  a  misero  amante  a  flor  mais  grata. 
Rochedos,  solidões,  como  elle,  estima, 
As  toimontas,  como  elle,  exposta  vive. 
Ah  !  se  um  ferrenho  arbitrio,  amada  Elisa, 
Se  teu  rigido  páe  nos  dividisse. 
Se  onde  agora  a  gemente  ave  das  trevas 
Solitária,  sem  luz,  diíFunde  agouros, 
As  tranças  te  encobrisse  o  véo  sagrado; 
Se  voz  terrivel  te  ari-ancasse  um  voto .  .  . 
Tremo,  e  dos  olhos  me  escorrega  o  pranto. 
Não:  meus  males,  meus  ais  levando  ás  fragas, 
Não  me  ouvira  ninguém  co'a  historia  d'elles 
Os  penedos  cansar,  cansar  os  eceos: 
Foríi  meu  sangue  n'esse  negro  dia 
Tingir  dos  muros  teus  a  férrea  porta. 
Tu  vives,  bella,  e  para  mim  tu  vives!  _ 

Dá  mais  sancta  união  delicias  gostas. 
Tu  amas,  como  eu  amo,  a  paz  dos  campos, 
Anda  sempre  comigo  a  imagem  tua. 
Se  entre  os  objectos  em  que  ponho  a  vista 
Credores  de  aprazer-te  alguns  contemplo, 
Já  corro  a  dar-t'os,.e  as  bellezas  d'eiles 
Com  hgeiro  pincel  n'alma  te  imprimo. 
Não  vès  a  chusma  dos  aéreos  povos, 
Já  promptos  a  fugir  de  nossas  plagas? 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  173 


São  Pomona,  e  Vertumno  os  que  lhe  regram 
AuscDcia,  que  te  espanta.  Assim  que  Pliebo 
Por  mão  das  estações,  sobre  os  caminhos 
Lho  a])ercebeu  festins,  se  afastam  logo 
Das  ribas  africanas,  e  endereçam 
Ríspida  mente  para  o  norte  o  voo. 
Mr.s  depois  de  exhaurir,  de  clima  em  clima. 
Dispostos  armazéns  da  Natureza, 
Chamjim-se  mutuamente,  unem-se  as  tribus, 
Vão-se  em  amiga  tarde,  e  volvem  juntas 
Ao  equador,  onde  mais  férteis  campos 
Novas  messes  luzir,  vingar  já  viram. 
Inda  com  aza  timida,  os  filhinhos 
Não  sabem  a  que  parte  as  mães  os  guiam; 
Mas  nos  frios  do  Outomno,  e  tez  extranha 
Com  que  elle  matizou  verdura,  e  flores, 
Desconhecendo  já  propicio  bosque, 
Onde  por  entre  os  Zephyros  brincavam, 
Suspirando  em  segredo  um  ar  mais  doce, 
Seu  berço  desamparam  sem  queixume. 

Tanto  que  os  vê  partir,  cuida  Pomona 
Em  saciar  do  agrícola  esperanças. 
Já  do  r;imo  abanado  os  fructos  chovem, 
Já  SLiríií}  no  lagar  montão  vermelho. 
As  cul)MS,  os  toneis  e  a  mó  pezada. 
Que  cl  i  (/irosa  colheita  em  giro  opprime. 

Porque,  o  pátrio  caracter  esquecendo, 
O  do  ii^íítar  de  Aí  fautor  brilhante, 


174  OBRAS  DE  BOCAGE 


Co'a  satyra  manchou  liqnor  celeste, 
Que  tão  mal  conhecia!  Exalte,  embora, 
Seus  cachos  belios,  e  os  mimosos  travos, 
Que  ao  olfato  annuncia  um  brando  fumo; 
Mas,  filho  da  maçã,  tu  foste  outr'hora 
Quem  o  esforço  avivou  do  audaz  normando, 
Cujo  braço  indomável  a  seu  jugo 
Fez  curvar  Albion  cerviz  indócil. 
Accezo  no  teu  fogo  o  páe  da  Scena, 
Melpómene  da  Grécia  á  Gallia  trouxe, 
Roma  resuscitou,  e  ergueu  da  morte 
Tão  grandes  seus  heróes  como  elles  foram. 
Nas  encantadas  mezas  scintillando, 
Unes  ao  áureo  lustre  argêntea  espuma; 
A  Febre,  que  nos  vinhos  mais  se  inflamma, 
Vê-te  a  face  divina,  e  cede  a  preza. 
A  mãe,  que  te  produz,  nem  sempre  occupa 
Em  roda  ao  frágil  tronco  as  mãos  cultoras: 
EUa  é  bastante  a  si,  seus  ramos  sabem 
Dar  mil  fructos,  e  mil,  sem  desvelar-nos. 
É  a  amiga  de  Ceres:  d'ella  á  sombra 
As  chuvas,  os  tufões  despreza  o  trigo, 
E  sobre  um  campo  só  dobradas  messes 
O  alimento  nos  dão  junto  á  bebida. 
Salve,  planta  louçã,  que  a  Neustria  enramas  I 
Liquores  teus,  da  minha  pátria  néctar, 
Se  de  emulo  desdouro  os  hei  vingado, 
Minha  empreza  com  gloria  ao  fim  dirijam. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  175 

De  relíquias  das  folhas  arrancadas 
Já  diviso  alastrado  o  chão  dos  bosques. 
Do  seio  dos  paues  sáe  a  humidade; 
E  rebanhando  as  névoas,  os  vapores, 
Pelos  campos  estende  imraensa  nuvem 
Do  sol  consolador  a  imagem  vela. 
Chorando  a  terra  em  vão,  lhe  implora  os  lumes 
Para  a  tarda  semente,  e  fructo  ignavo. 
Não  madurecem:  podridão  maligna 
Com  seu  bafo  lethal  tudo  inficiona. 
Até  nos  ramos,  de  que  pende  o  fructo, 
O  enxovalha,  o  destroe  Celeno  immunda, 
Ou,  soprando  a  semente  estanciada, 
A  corrompe  inda  em  leite,  e  molle,  e  em  meio. 

Natureza  este  mal  sacode  ás  vezes: 
Abrilhantados  céos,  calor  macio, 
Ar  puro,  que  os  Favonios  embalancem, 
Valem  á  flor,  o  império  lhe  dilatam, 
E  nos  vermelhos  campos  nos  figuram 
Da  leve  primavera  o  riso,  o  esmalte. 

Também  não  temos  visto  acceza  a  terra. 
Se  no  Outomno  fallece  orvalho,  e  chuva? 
Vapores  cor  da  noute,  o  céo  toldavam, 
Quasi  apagado  o  sol,  pintava  aos  olhos 
Orbe  sanguineo,  carrancuda  imagem. 
Escumava  na  arêa  o  pego  envolto. 
Crebro  trovão   bramia,  e  por  mais  susto, 
Por  mais  horror,  em  negrejando  as  sombras, 


17(3  OBRAS  DE  BOCAGE 


O  terrível  cometa,  o  meteoro, 
Agitíivam  no  pólo  as  igneus  caudas. 
N'isto  Ibv^ria  temeu,  temeu  Germânia 
De  iíHn-itavel  mal  o  escuro  agouro: 
Eis  quo  do  estrago  teu  na  voz  da  Fama, 
Oh  (J:ilabria  infeliz,  o  annuucio  veiu! 

Nas  tórridas  cavernas  o  Vesúvio 
Entra  a  ferver,  com  hórridos  bramidos. 
Eroiie  torres  de  fumo,  as  lavas  solta, 
Que  no  troant<3  bojo  incendiara. 
Rompem,  íí unindo,  e  dos  trementes  cumes 
Em  colíimnas  de  fogo  eis  se  arremessam. 
Rochas  fundidas,  subterrâneos  raios 
Cruzam-se  no  ar,  e  as  nuvens  avermelham; 
Em  f<Ma  anuvião  betume,  enxofre 
Se  ennovelam  no  monte,  o  sulcain  todo. 
Corram  aos  valles  côncavos,  e  anfolham 
Dos  rios  inferques  a  horrenda  imagem. 

Pelo  idoso  arvoredo  o  incêndio  lavra. 
Fugindo  os  brutos  por  ignotas  sendas, 
Reciuan  de  uma,  de  outra;  em  toda  a  parte 
Os  acossa,  ou  rebate  a  morte  em  chammas. 

Lono;e  das  lavas,  e  abrazados  tectos 
Oá  habitantes  pallidos  vagueam: 
Sustí^ndo  o  esposo  a  languida  consorte, 
Do  veljio  curvo  o  trôpego  meneio, 
A  mão,  que  ao  triste  fim  roubar  presume 
Seu  lenro,  e  só  penhor,  que  tem  nos  braços: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  177 


Tudo  é  lúgubre,  é  vão.  Sanhudas  vagas 
Desolados  confins  transpõem,  bramando; 
Tremeu  nos  alicerces  o  Apenino; 
Fumegantes  abysmos  abre  a  terra, 
Muralhas,  torreões  alue,  abate, 
E  nas  rotas  entranhas  os  sepulta. 

Talvez  enternecido  ache  o  vindouro 
Debaixo  de  ruinas  espantosas 
Templos,  cidades,  pórticos,  palácios, 
Das  artes  nossas  monumento  honroso. 
Assim  aos  muros,  que  Hercules  erguera, 
Por  desventura  egual  outr'hora  absortos, 
Vamos  hoje  admirar  soberbo  estrago, 
Cavar  da  antiguidade  as  doctas  minas. 

Que  será  d'esse8  tristes,  que  escaparam 
Por  descuido  da  sorte,  ao  caso  infando  ? 
De  cinzas,  e  de  pedras  ignea  chuva 
Cobre  todo  o  paiz  de  fogo,  e  fumo. 
O  afflicto  lavrador  n'aldêa  acceza 
Viu  devorar-lhe  os  pães  a  labareda. 
Inda  no  estéril  campo  em  vão  procura 
Os  bois,  sócios  fieis  de  seus  trabalhos; 
Nunca  mais  os  verá  com  dócil  collo 
Por  calcinado  chão  levar  o  arado: 
Regresso  já  não  tem,  nem  a  esperança. 
Ai !  com  que  ha  de  alentar  a  esposa,  os  filhos  ? 
Sacudir  a  azinheira  irá  nas  selvas? 
Como,  se  tudo  as  fúrias  golpearam  ? 

12 


178  OBRAS  DE  BOCAGE 


Té  nas  raizes  os  carvalhos  seccos, 
A  ruina  horrendíssima  propagara. 

Em  meio  dos  sepulchros^  fogos,  lavas, 
Surge  a  Fome,  e,  arrastando  as  rotas  vestes^ 
Gira  cidades,  atravessa  aldeãs. 
Primeiro  exerce  a  raiva  em  tecto  humilde, 
Por  marmóreos  degráos  depois  subindo, 
Mette  em  lares  dourados  a  indigência. 

Vós,  cenhosas  Eumenides,  em  tanto 
Sopraes  d'aqui,  d'ali  mortal  peçonha. 
O  mal  se  multiplica,  e  são  do  ataque 
Longas  suffocações^  signal  medonho. 
Hálito  ardente,  na  segunda  aurora, 
Dos  queimados  pulmões  a  custo  escapa. 
Range  co'a  tosse  a  machina  abatida, 
O  humor  não  quer  sair,  inpugna  esforços; 
Tumultuosa  flamma  o  rosto  accende ; 
Mal  o  giro  do  sangue  os  pulsos  mostram, 
O  véo  mais  transparente  é  férreo  pezo; 
Aguda  ponta  o  cérebro  traspassa. 
Some-se  a  voz,  gravame  insapportavel 
Esmaga  o  coração.  Depois  da  noute, 
Da  triste  noute,  que  nas  anciãs  cresce, 
Enferruja-so  a  lingua,  a  tez  desbota. 
Attenta  mudo  Hypocrates  na  face 
O  presagio  fatal  do  ponto  extremo. 
A  esperança  voou.  O  enfermo  ancioso 
Já  nem  conhece  a  voz  da  esposa  em  prantos,. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  179 


Abrazado  co'a  febre,  e  delirante, 
Se  cre  na  solidão  de  ardente  serra, 
Suspenso  em  negro  abysmo,  e  se  arripia, 
Cos  olhos  a  medir  a  altura  immensa: 
O  cimo  do  vulcão  vê  despenhar-se^, 
E  súbito  á  vorao:em  vae  com  elle. 
Também  se  lhe  levanta  o  chão,  que  piza: 
Treme,  abre-se,  e  ao  abrir  vomita  o  raio. 
Succede  á  commoção  mortal  espasmo, 
Gelado  pára  o  sangue,  e  os  débeis  olhos 
Para  sempre  abotoa  a  mão  da  Morte, 
Antes  de  rematar-se  o  quarto  dia. 

Céos !  Quem  conhecerá  tão  férteis  campos ! 
Faustas  cidades,  prósperas  aldeãs, 
Casaes,  cingidos  de  florentes  bosques, 
O  absorto  passageiro  embellezavam. 
Duas  vezes  no  outeiro  as  ovelhinhas 
Eram  mães,  na  planície  vez(  s  duas 
Vingava  a  messe:  ali  manná  corria, 
E  o  cultor  com  seus  fructos  não  podia. 
Os  filhos  da  Abundância — Amor,  e  Gosto  — 
Regiam  cantos,  animavam  danças. 
Só  versos  pastoris  Ecco  sabia; 
Vinham  d'entre  o  penedo  a  vide,  o  cacho. 
Os  jasmins  em  abobadas,  e  os  louros 
Co'as  sombras  os  caminhos  perfumavam: 
Era  uiii  amplo  jardim,  onde  mil  fontes 
Vertiam  fresquidão  por  toda  a  parte. 


180  OBRAS  DE  BOCAGE 

Que  inopinado  horror !  Que  scenas  tristes  I 
Onde  sulphureas,  férvidas  arêas, 
Os  flagellos  do  céo,  do  inferno  as  chammas, 
Tornam  vasto  sepulchro  estes  elysios. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  181 


o-A.3srxo  GiTjJLTirco 


Vestindo  nuvens  o  rugoso  Inverno, 
A  devastar  começa  os  turvos  ares; 
Desfaz  das  três  irmãs  lavor  prestante, 
E,  rugindo,  amontoa  o  gelo,  a  neve. 
Param  cantos:  Amor  lhe  esquiva  os  sopros. 
Aos  sons  do  rouxinol,  aos  sons  da  flauta 
Succede  a  fúria  de^escumosas  cheias, 
E  o  rebombo  dos  Aquilos  potentes. 

Sustém  meu  voo,  oh  Musa,  entre  as  procellas; 
Não  mais  nos  hão  de  ornar  jasmins,  e  rosas. 
Jaz  deserto  o  jardim,  jaz  murcho  o  bosque; 
Pelos  campos  Eólo  esparze  as  folhas. 
Ah  I  Tu  me  ensina,  que  razão  pasmosa 
Esvaece  o  matiz  da  Natureza, 
A  despe,  e  n'alta  machina  agrilhoa 
Espíritos,  que  a»  molas  lhe  regiam. 


182  OBRAS  DE  BOCAGE 


De  dádivas  do  céo  nascendo  ricaj 

Da  vida  inclue  a  terra  os  germes  todos. 

N'ella  os  suecos  estão,  que  ao  pólo  a  coma 

De  teus  cedros,  oh  Líbano,  agigantam, 

E  n'ella  as  seibas,  a  que  as  várzeas  devem 

Lourejante  seara,  e  verde  relva. 

Mas  estes  germes,  sem  vigor  dispersos, 

Pedem  vivo  calor  para  brotarem. 

O  deus  das  estações,  da  terra  esposo, 

A  necessária  flamma  lhe  insinua; 

O  universo  applaudiu  dos  dous  o  laço. 

De  amor,  e  de  alegria  estremecendo. 

Quando,  espraiado  o  sol,  vestiu  de  luzes, 

E  de  gloria  celeste  a  leda  noiva. 

Cada  vez  que,  a  seu  carro  avisinhada, 

Beber-lhe  os  raios  amorosos  pode. 

De  opulento  verdor  se  aformosêa, 

E  a  fecundante  força  espalha  em  tudo. 

Mas  quando  lei  fatal  de  férrea  Sorte 

D'este  centro  divino  a  põe  distante, 

Robustez,  formosura  a  desamparam, 

Murcha-lhe  a  c'rôa,  amarellece  a  fronte: 

Do  norte  os  filhos,  a  que  o  sol  triumphante 

Co'a  presença  radiosa  impoz  silencio, 

Desmandam-se  em  tufões,  de  nuvens  cingem. 

Carregam  de  regelo  a  terra  an ciosa, 

E,  como  em  sepultura,  escondem  n'ella 

Plantas,  que  em  tempo  mais  feliz  a  ornavam. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  183 


Longe  dos  falsos  bens,  que  enjeita  o  sábio, 
Tu,  ditoso  cultor  de  parca  herança, 
Cos  vimes  dobradiços  vem  depressa 
O  arbusto,  que  vacilla,  atar  aos  muros. 
Proveitoso  rigor  de  curvo  ferro 
Talhe  ramo  importuno,  ou  ramo  estéril. 
Cesse  aqui  teu  desvelo.  Em  quanto  á  roda 
Bravios  furacões  terapestearem, 
Tranquillo,  junto  ao  lar,  campestre,  escuso, 
Do  Pórtico  ás  lições  darás  ouvidos; 
Canto  repetirás  dos  génios  grandes, 
Associando  ao  seu  talvez  teu  estro. 
Oh  vós,  de  Phebo  alumnos !  Inspirae-me 
Nas  ermas  noutes,  e  giiiae  meus  voos; 
Azas,  azas  de  fogo  a  vós  me  elevem, 
Longe  da  morte  avara,  e  tu  Sdencio, 
Amigo  das  sublimes  phantasias, 
Rumor  insano,  e  vão  de  mim  remove, 
E  enfiidosos  semblantes,  e  ouças  phrases, 
Que  a  sancta  embriaguez  nos  interrompem, 
Vigia  os  lares  meus;  só  entre  n'elles 
O  puro  amigo,  o  coração  lavado, 
Que  sonda  as  altas  leis  da  Natureza, 
E  ás  vezes,  arrancando-me  ao  retiro, 
Me  ensina  á  deslindar  bellezas  tantas 
Sumidas  em  ruinas  apparentes. 

Se  risonho  te  é  Pluto,  a  rica  planta, 
Que  do  hespério  jardim  roubou  Alcides, 


184  OBRAS  DE  BOCAGE 


Longe  do  norte,  em  pórtico  fastoso, 
Ser-te-ha  corte  magnifica,  de  inverno. 
Entre  os  outros  metaes  qual  brilha  o  ouro, 
Tal  brilha  a  laranjeira  entre  os  arbustos. 
Só,  em  cada  estação,  só  ella  offrece 
Fructo  verde,  e  maduro,  a  flor,  e  a  folha. 
Nem  o  âmbar,  que  nas  ondas  se  acrysóla, 
Nem  o  mjrto,  que  Amor  de  Paphos  trouxe, 
Nem  da  rósea  manhã  suave  alento, 
Chegam  da  planta  de  Héspero  aos  aromas. 
Vê  (sem  nunca  alterar-se)  os  pães  e  os  filhos 
Branquejar,  succumbir  da  edade  ao  peso; 
E  tal  (que  inda  hoje  admira  em  si  Versailles) 
Viu  de  reis  doze  os  funeraes  soberbos. 

Não  longe  do  logar,  que  lhes  destinam. 
Nos  transparentes  muros  vitreo  templo 
Aos  olhos  congregados  apresente 
Do  índio,  e  do  Níger  as  colónias  verdes. 
Nascendo  bafejada  de  ar  mais  grato, 
Precisam  entre  nós  de  ti,  Vulcano, 
Morreriam  sem  ti.  Seu  domicilio 
Aqueçam  dia  e  noute  accezos  vasos; 
Em  roda  se  lhe  estendam  longos  tubos, 
E  sempre  egual  calor  na  estancia  dure. 
Assim,  té  quando  as  terras  ermas,  frias 
De  alcatifas  de  gelo  estão  cobertas, 
Brindam-te  arbustos  mil  n'um  curto  espaço 
O  aroma^  o  brilho  da  estação  fagueira. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  185 


Da  Natureza,  e  Arte  eis  o  palácio; 
A  esculptura  t'o  adorne,  ousa  invocal-a. 
Ásia  em  roupas  talares  nos  alegra, 
Co'a  pérola,  e  rubi,  que  a  fronte  lhe  orlam, 
Ao  pé  da  bananeira  umbrosa,  e  sua. 
Africa  aze  vi  chada,  um  tanto  agreste, 
Risonha,  quasi  nua,  orne  a  paragem, 
Onde  lhe  hás  posto  innumeras  vergonteas. 
Mas  verdura,  mormente,  o  sitio  abaste, 
Flores  seu  atavio,  e  fructos  sejam: 
Venham  cumprir-te  as  leis  dos  fins  da  terra 
Hervas  de  Paraguai,  chinezas  folhas, 
O  c'roado  ananaz,  beijoim  de  Lybia, 
O  cravo,  a  quina,  o  bálsamo  de  Arábia, 
E  arvore,  cujo  sueco  inestimável 
Mitiga  os  numes,  perfumando  as  aras. 
A  este  povo  extranho  a  vide  unida. 
Pelos  muros  serpeja,  envolta  em  cachos. 
O  encarnado  morango  a  mãe  recama; 
No  rigor  invernal  se  tinge  a  rosa: 
EmtantOj  sem  cessar,  gotêa,  e  neva. 
Contraria  multidão,  que  instigam  fomes. 
Entrar  procura  na  cheirosa  estancia. 
Pelos  muros  lhe  sobe,  ou  lhe  anda  em  torno, 
Põe-se  ap  pé  d'onde  os  fructos  purpurêam, 
E  c'os  olhos  devora  o  tronco  ausente. 
Mas  nas  margens  do  Obi,  lá  onde  acaba. 
São  baldado  soecorro  estufa,  e  lumes. 


186  OBRAS  DE  BOCAGE 


Arvore  ali  não  cresce,  ou  quando  cresça 
(Máo  grado  a  Bóreas)  bétula,  salgueiro, 
Apenas  seus  humildes,  molles  troncos 
De  nossos  juncos  a  grandeza  egualam. 
Seis  mezes  soíFre  o  Sol  que  reinem  sombras, 
Seis  mezes  turvo  dia  ali  vislumbra. 
Ha  sempre  agudo  vento,  e  gelo  agudo, 
Que  debaixo  dos  pés  firme  resôa; 
E  o  mudo  povo,  na  prisão  coalhada, 
Não  tem  para  revolver-se  espaço  livre. 
A  neve  em  turbilhões,  que  rola  o  vento. 
Se  eleva  sem  medida,  atulha  os  valleii. 
O  alce,  de  lignea  fonte,  indo  á  carreira, 
Cáe  de  repente,  e  encrava-se  no-  abysmo: 
Lucte  o  misero  em  vão,  que  o  duro  Inverno 
No  alvejante  sepulchro  o  enterra  vivo. 
Crespa  de  escarchas,  sacudindo  a  testa, 
O  urso  brama,  e,  cedendo  ás  tempestades. 
Busca  por  entre  neves,  passo  a  passo. 
Gruta  cavada  pelas  mãos  do  tempo; 
N'ella  se  entranha,  e  solitário,  occulto. 
Em  quanto,  o  inverno  dura,  esta  sem  pasto. 
Subamos  essas  penhas,  de  ermos  cumes, 
Que,  arremettendo  ao  pólo,  o  mundo  cingem, 
Teus  olhos  solta  pelo  mar  terrível, 
Que,  espumoso  a  teus  pés,  trovões  simelha; 
Lá  onde  a  confusão,  do  cáhos  filha, 
O  império  exerce,  atormentando  as  ondas. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  187 


Escolhos  de  alta  neve  aqui  deslumbram; 
Além  montes  de  gelo  escalam  nuvens. 
Ruge  a  borrasca j  a  topetar  com  elles, 
E  em  pedaços  no  abysmo  ao  longe  os  lança. 
Má  sorte  a  do  baixel,  que  então  se  afoute 
Aquella  matadora,  horrível  plaga ! 
Ora  a  corrente  em  rochas  o  arremessa, 
E  co'a8  vagas  a  morte  o  bojo  lhe  entra; 
Ora,  qual  ferro,  a  superfície  imraovel, 
Forja  ao  lenho  infeliz  grilhões  de  gelo. 
Da  praia  ao  longo,  os  monstros  dos  desertos, 
Os  ares  com  bramidos  amedrontam: 
Das  sombras  atravez  o  vento,  os  eccos 
Levam  tão  negros  sons  ao  triste  nauta, 
E  acabam  de  abatel-o,  anticipando 
No  murcho  coração  o  horror  da  morte; 
A  tudo  o  que  lhe  é  caro  a  alma  lhe  voa. 

Taes  p'rigos  vezes  três  domou  teu  génio, 
Coolv !  Longe  de  Albion,  da  Paz  co'a  planta 
Demandando  outros  climas,  outras  gentes, 
Do  sul  ao  norte  dividindo  as  ondas. 
Correste  o  mundo,  o  mundo  accrescentaste ! 
Primeiro  que  ninguém  no  audaz  teu  voo 
Do  meiodia  rodeaste  o  pólo, 
Montões  seguiste  de  espantosos  gelos, 
Por  entre  as  fendas  formidáveis  foste, 
Com  firme  coração,  no  férreo  throno 
O  Inverno -mais  sanhudo  interro oraste. 


188  OBRAS  DE  BOCAGE 


Lá  vivente  nenhum  teus  olhos  toca, 
Maciça  immensidade,  horror  é  tudo. 
Ave  romper  não  ousa  aquelles  ares : 
Só  nos  confins  dos  hórridos  desertos, 
Só  lúgubres  petreis,  entre  as  procellas 
O  clamor  desabrido  ás  vezes  soltam. 

Mas  que  plagas  a  paz  não  formosêa ! 
Em  ilha,  onde  os  invernos  se  encruecem, 
Um  povo  de  animaes  offrece  ainda 
A  bonançosa  imagem  da  ventura. 
Verdes  leivas  subtis,  que  ás  margens  crescem, 
Os  leões  de  Amphitrite  ali  convidam; 
Moram  na  costa;  e  no  interior  da  ilha 
De  ursos  marinhos  multidão'  repousa. 
Em  quanto  os  pingoins,  de  aza  pendente, 
Na  arêa  movediça  os  ninhos  cavam. 
Bascam- se  mutuamente,  ou  se  desviam 
Todos  sem  medo,  sem  malicia  todos. 
Dir-se-ia  que,  os  temores  desterrando, 
Um  tractado  a  colónia  fraterniza. 
Tó  dos  ares  o  rei,  depondo  a  sanha, 
A  lei  commum  seu  animo  conforma: 
Pousa  em  rochas,  e  em  torno  as  aves  brincam, 
Sem  temer-lho  o  relâmpago  dos  olhos. 

Ah !  N'um  prospero  cHraa,  entre  abundância» 
O  homem  guerra  immortal  declara  ao  homem ! 
Rouba  insânia  de  Marte  o  campo  a  Ceres, 
Sanguento,  férreo  globo  os  sulcos  traça. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  189 


Tormentas  a  tormentas  aggregando, 
O  homem  leva  comsigo  ao  mar  mil  mortes; 
Do  raio  em  suas  mãos  a  fúria  passa. 
Fogo  conservador,  mimo  dos  íuses, 
ícaro  novo,  em  fim,  lá  d'entre  as  nuvens 
Aos  combates  preside,  estragos  dieta. 
Cidades  a  Ambição  além  devora, 
Cá  o  Interesse,  afeito  a  vis  cruezas; 
Cem  formas,  gestos,  vozes  toma  o  crime; 
A  Discórdia  triumpha,  e  sobre  montes 
De  irmãos,  a  que  os  irmãos  despedaçaram, 
Ei  dos  que  vivem,  ri  dos  que  morreram. 
Da  desventura  assim  a  espécie  humana 
(Cheias  por  ella  mesma)  exhaure  as  taças. 

Do  globo  mais  de  um  terço  em  tanto  é  cinza, 
E  de  áureas  messes  a  belleza  ignora: 
Nenhum  campo  vê  bois  levando  á  granja 
Quantas  espigas  ministrar  lhe  é  dado. 
Povo  nenhum  conhece  os  dons  de  preço, 
Que  Jove  semeou  por  entre  as  selvas. 
Fora  melhor,  mais  sábios,  mais  humanos, 
O  habitante  imitar  de  incultas  costas, 
D'onde  os  olhos  ao  mar  vêm  superiores 
Novo  hemispherio  dilatar  sem  ermos  I 
Lê  pela  Natureza,  estuda  alegre 
Os  caros  vegetaes  da  pátria  sua, 
E  manda  aos  netos  seus,  de  edade  a  edade, 
Seu  nome,  seu  caracter,  e  attributos. 


190  OBRAS  DE  BOCAGE 


Cruentos  europeus,  das  Ímpias  guerras 
O  trágico  delírio  em  fim  se  abjure. 
Se  a  paz  ao  coração  vos  é  pezada, 
Altercae  sobre  os  fens,  prazer,  ventura: 
Políticos  debates  estes  sejam. 
Antigos  elementos  decompondo, 
A  chimica  p'ra  vós  soprou  fornilhos, 
E  revelar- vos  quer  prodígios  novos; 
Para  vós  a  poesia,  a  doce  maga, 
O  Permesso  abrangeu  de  myrto,  e  louro; 
As  Musas,  com  fervor  de  saciar-yos, 
Sempre  a  nobres  prazeres  vos  convidam. 
Da  phantasia  aos  olhos  quanto  oíFertam 
Harmonia  dos  céos,  e  magestade! 
Quem,  quem  figura  os  extasis  sublimes 
De  alma,  que,  longe  dos  terrestres  corpos, 
Segue  na  ímmensa  esphera  as  Ígneas  massas, 
Distancias  lhe  calcula,  e  mede  os  vultos, 
Mutua  attracção  no  moto  lhes  contempla, 
Acha,  com  Herschel,  não  sabidos  astros, 
E  farta,  e  cega  emfim  de  gloria  tanta, 
Vae  repousar  n'um  Deus  o  pensamento! 
Se,  frio  em  mim  sobejamente  o  sangue, 
Me  não  deixa  empreender  o  ethero  voo. 
Correntes  seguirei,  junto  aos  penedos 
Do  occulto  rouxinol  ouvindo  os  versos. 
Murmurantes  florestas,  magas  sombras, 
Meus  amores  sereis,  e  objecto  á  Musa. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZmOS  191 


Apoz  noutes  de  ferro,  enregeladas 

Mádidos  Sues  os  campos  embrandecem. 

Esse  uniforme  alvor,  que  tapa  os  cerros, 

Desata-se  por  gráos,  em  rios  corre, 

E  as  aguas  da  ribeira  embaraçadas 

A  desfeita  prisão,  mugindo,  rolam. 

Mas  o  Inverno  inda  é  rei,  e  escravo  o  bosque; 

Choras  tua  nudez,  carvalho  altivo; 

Por  entre  a  confusão  se  vê,  com  tudo, 

A  espaços  a  verdura  estar  luzindo. 

Salve,  cor  linda,  inestimável  sombra! 
No  luto  immenso  recreaes  meus  olhos; 
Quaes  os  prazeres,  que  a  velhice  afagam, 
Douraes  o  horror  do  tenebroso  Inverno. 
Meu  animo  espertae,  inda  medroso 
Das  estradas  por  onde  o  passo  arrisco. 
Dos  gelos  boreaes^  motim  das  ondas, 
E  do  pezado,  horrendo,  austral  negrume. 

Que  lei,  que  agente  ás  arvores  conserva, 
A  despeito  do  Inverno,  o  vital  sueco? 
Ao  falto,  humano  siso  a  Natureza 
Em  véo  sombrio  estes  mysterios  furta. 
Gosêmos,  basta.  Mil  arbustos  novos, 
Eivaes  tão  gratos  nos  jardins  de  inverno, 
Co'a  bella  forma,  co'a  imprevista  graça 
Disputam  entre  si  qual  mais  encanta. 
Todavia  (dil-o-hei  ?)  prefiro  a  elles 
A  hera  de  cem  braços,  quer  circumde 


192  OBRAS  DE  BOCAGE 


Co'a  verdura  tenaz  carvalho  edoso, 
Quer  sobre  muro,  que  sustente  apenas, 
Nos  ares  alongando  a  curva  rama, 
Forme,  n'um  globo  espesso,  abrigo  ás  aves. 
Ali,  ao  pôr  do  dia,  o  tordo,  o  melro 
Vão  convocando  a  pávida  familia, 
Correm,  gorgeiam,  depinicam  fructos, 
E  assimelham  do  Outomno  os  pretos  bagos. 

Quão  doce  é  ao  sair  de  chão  lodoso 
Vagar  collinas,  onde  quebra  o  vento, 
Do  pinho  em  torno,  que  resôa  ao  longe ! 
A'  sombra  lá  de  abobadas  possantes, 
Entre  o  tojo  florido,  um  doce  canto 
Os  sons  da  Primavera  off'rece  ás  vezes. 
A  lóxia  ali  verás  prender  aos  ramos, 
E  c'o  bico  encruzado  armar  seu  berço. 
Recem-forrados  os  filhinhos  brandos, 
As  sombras  maternaes  darão  já  graça, 
E  das  aves  o  resto,  apenas  junto, 
Inda  seus  ninhos  não  terá  findado. 

O  Inverno  assim  se  adorna,  e  desenruga; 
Mas  sé  a  terra  escacêa  estes  favores, 
Quantos  em  teus  jardins  arbustos  verdes 
Ketêm  das  aves  o  inquieto  enxame  I 
Cuida,  pois,  em  juntar  aos  tristes  carpes 
O  picante  azevinho,  o  zimbro  agudo; 
Té  a  humilde  giesta,  adorno  aos  montes, 
Campestres  quadros  a  compor  te  ajuda, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  193 


Ella  mesma,  estreitando  o  frio  a  terra, 
Colheita  é  da  perdiz,  lhe  acode,  e  a  nutre. 

O  álamo,  d'agua  amigo,  as  aveleiras, 
E  as  bétulas,  de  Amor  têm  outras  graças. 
Tanto  que  Bóreas  entornando  as  neves, 
O  verdor  lhes  destróe  da  instável  coma, 
Abre  a  flor,  e  pendendo  em  ramalhetes, 
Move  os  botões  á  discrição  do  vento. 

Mas  tu,  filho  do  Inverno,  espesso  musgo, 
Presenta-te  aos  pincéis  da  Musa  minha. 
De  Aquário  á  urna  exposto,  entre  as  geadas, 
Quando  as  mais  flores  morrem,  tu  renasces, 
E  então  com  tua  fresca,  egual  verdura 
Parece  remoçar-se  a  Natureza. 
Era  em  sondar  os  teus  gentis  mysterios 
Que  de  Emilio  o  pintor,  encanecendo, 
Devia  n'um  sereno,  e  doce  estudo 
Levar  a  solidão  do  inverno  extremo. 
Agora  a  fontinal  o  embellezara, 
E  algum  dia  talvez  nos  ensinasse 
Com  que  arcano  feliz  tão  débil  folha 
Da  flamma  grassadora  estragos  veda: 
Ora  do  lycopodio  os  ramos  vira. 
Redes  no  bosque  innumeras  tecendo, 
Da  fronte,  em  ar  de  clava,  um  pó  soltando. 
Que  brilha,  que  troveja,  egual  ao  raio. 
Minimas  tribus,  povo  imperceptivel, 
Disperso  em  toda  a  parte,  lhe  mostrara 

13 


194  OBRAS  DE  BOCAGE 


Espectáculo  aos  génios  tão  pasmoso 
Como,  oh  Virgínia,  teus  aéreos  pinhos, 
Ou  cedro,  que  depois  de  mil  invernos 
Croa  o  Libano,  o  páe,  co'as  verdes  sombras. 
Soube  que  a  Natureza  inclue  ás  vezes 
Toda  a  sua  grandeza  em  curto  espaço; 
Mas  a  innocentes  fins  obstou-lhe  a  Sorte. 
No  benip-no  loofar,  onde  em  remanso 
Do  universo,  e  da  gloria  ia  esquecer-se 
Piedoso  monumento  as  cinzas  lhe  honre. 
Seja  a  simplicidade  a  que  o  construa: 
EUe,  deusa  modesta,  elle  te  amava, 
Tu  só  tens  jus  de  visinhar-lhe  os  manes. 
Das  arvores  da  morte  longe  a  sombra: 
Selva  queremos  graciosa,  e  fresca. 
Que  do  amigo  dos  deuses  cubra  o  somno. 
A  madre-silva,  grata  ás  almas  ternas, 
Já  brandamente  o  mausoléo  lhe  abraça, 
Em  quanto  o  lauro,  dos  engenhos  c'roa, 
Ergue  a  luzida,  magestosa  rama. 
De  chôpos  lá  se  alongue  um  bosque  ameno^ 
Filhos  dos  ares,  habitae-lhe  a  sombra; 
Delicias  do  philosopho,  avesinhas. 
Esta  selva  também  vo^  deva  encantos; 
Longe  de  olhos  profanos,  hão  de  os  vossos 
Brincos,  prazeres  alegrar  seus  manes. 

Se  o  Fado,  transcendendo-me  a  vontade^ 
Me  houvera  permittido  amplas  searas, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  195 


Espaçoso  arvoredo,  e  pingues  pastos, 
Em  meus  ledos  jardins  erguera  estatuas 
D'aquelles,  que  privando  co'as  deidades, 
Cantaram  docemente  a  Natureza. 
Hesiodo,  e  Rosset,  ambos  teriam 
Pel:i  mão  de  Cybéle  eterna  palma. 
Qual  olmo,  que  a  nivel  de  si  vê  quasi 
Outro  brilhar,  subir,  seu  digno  fructo, 
Assim  o  gran  pastor  da  antiga  Mantua 
A  seu  lado  haveria  o  seu  Delille. 
Theocrito,  e  Gessner  co'a  molle  avena 
Inda  ao  campestre  baile  os  sons  dariam; 
Fora  o  bom  Lafontaine  olhar  mil  vezes; 
E  á  Musa  tua,  alto  cantor  dos  mezes, 
Credora  de  outros  tempos,  de  outros  fados, 
Lamêda  de  cyprestes  consagrara. 
Crer-sería  que  Masson,  e  que  Marnesia 
Minha  fresca  paisagem  desenhavam. 
Vaniere  a  meus  vergéis  sorrisos  dera, 
Croar-se-ía  Rapin  das  flores  minhas; 
EntTe  bosque  prophetico,  e  torrentes, 
Tompson  creara  os  cânticos  sublimes; 
Bernis  (^m  laço  amante  unira  as  quadras, 
E  Saint-Lambert,  sobre  tapiz  viçoso, 
Com'^a  philosophia  inspiradora 
Nobre  aos  grandes  o  arado  apresentara. 

Feliz  quem  logra  tão  brilhante  quadro, 
Mais  feliz  quem  sem  fasto  habita  os  campos, 


196  OBRAS  DE  BOCAGE 


E,  pago  das  vigílias  d'estes  sábios, 
Nas  vivas  obras  suas  os  medita! 
Não  lhe  vôa  o  desejo  além  do  valle. 
Onde,  nascente  o  sol,  seus  lares  doura, 
Do  jardim,  que  do  mont^  aguas  amimam, 
Nem  do  sombrio,  e  próximo  arvoredo. 
Que  pediria  da  cidade  ao  luxo? 
Das  primaveras  viu  belleza,  e  pompa; 
Viu  aos  celeiros  favorável  Ceres, 
E  com  ditoso  pé  calcou  vindimas. 

Tem  no  inverno  outros  gostos.  Furta  aos  gelos 
Os  frágeis  attractivos  das  boninas, 
Orna  seu  lar,  de  sombras  se  rodêa; 
Attenta  na  campestre  economia. 
Doces  cuidados,  miudezas  doces. 
Se  amor,  e  apreço  dous  esposos  lig^m.  ^ 

Com  que  olhos  vê  grandezas  momentâneas, 
E  vãos  prazeres  e  reaes  desgraças ! 
Nas  ondas  do  universo  tormentoso 
Dos  mortaes  as  relíquias  observando, 
Folga  de  haver  n'este  commum  naufrágio 
Fiado  o  seu  destino  ás  mansas  praias. 

Para  dourar  seu  ócio,  vindo  a  noute, 
Por  Tournefort  guiado,  no  aposento 
Corre  as  ilhas  da  Grécia:  aporta  em  Samos, 
D'alta  sabedoria  antigo  berço; 
Olha  de  Minos  o  afamado  império, 
Do  Cynthio  os  cumes,  as  florestas  de  Ida; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  197 


Eecrea-se  co'as  plantas  de  que  Homero 
Celebra  nos  seus  cantos  a  virtude, 
E  á  terra  os  mesmos  numes  arrancaram. 
Para  os  heróes  cora  ellas  guarnecerem. 

Aprazível  philosopho,  e  conviva, 
Une  os  visinhos  seus  á  sóbria  mesa; 
Voluntário  também  lhes  cede  ao  gosto, 
E  d'elles  no  casal  com  elles  folga. 
De  férteis  plantas,  que  seus  hortos  guarda, 
Gosta  de  lhes  levar  o  espolio  tenro. 
Agrada-lhes  alguma?  O  novo  dia 
Vê-a  entrar  nos  jardins  de  seus  amigos. 
Satyra,  inveja,  pestes  das  cidades, 
Entre  elles  o  ar  saudável  não  corrompem; 
Um  falia  de  patheticas  delicias, 
Mimo  das  estações  aos  camponezes, 
Outro  das  glorias,  dos  triumphos  nossos, 
E  brinda-se  de  Itália  aos  vencedores. 
Corando  a  vozes  taes  Lilia,  se  lembra 
Do  imberbe  amante,  que  os  heróes  seguira, 
Mas  que  em  ditosa  paz  ser-lhe-ha  tornado. 
Quer  esconder  as  sensações,  que  a  turbam; 
A  mãe  a  estende,  e  removendo  o  assumpto 
D'est'arte  lhe  soccorre  o  doce  enleio. 
A  aflbuteza  renasce,  a  virgem  bella 
Em  segredo  palpita,  e  dissimula. 

A  estes  dias  de  ouro,  e  riso,  e  graça 
Opponde  vossos  dias  carrancudos, 


198  OBRAS  DE  BOCAGE 

VÓS,  a  quem  a  ambição  com  turva  chamma 
Ancêa  des  le  a  aurora,  e  mirra  em  sombras; 
Que,  sempre  instados  de  rivaes  zelosos 
As  freclias  lhes  cravaes,  que  vos  cravaram, 
E,  mesmo  suppkntando  a  turba  adversa. 
Vedes  voar  Fortuna,  indo  empolgal-a. 
A  Ventura  buscaes?  Nos  valles  mora. 
Com  a  fouce  na  mão  seus  trioros  céofa. 
A  Ventura  buscaes?  No  prado  hervoso 
Livres  meditações  alegre  volve; 
Ou  do  salgaeiro  á  sombra,  e  junto  ao  rio 
Dorme,  cercada  de  fagueiros  sonhos. 
Longe  assim  das  facções,  das  armas  longe, 
Os  campos,  os  jardins  eu  celebrava; 
Da  pátria  minha  aos  males  nmdo  ás  vezes 
Das  mãos  sentia  deslisar-se  a  Ijra, 
Mas  qual  are,  cantora  apoz  tormentos, 
Contentes,  novos  sons  ás  margens  dava. 

Oh  tu,  meiga  Debieu,  tu  que  em  meus  versos 
Nomeio  Elisa!  O  carinhoso  amante 
Deixa  co'a  sua  unir  tua  memoria, 
E  dividir  comtiofo  escassa  ^floria. 


NOMENCLATURA  LINNEANA 


PLAIAS  MEllONADAS  f  ESTE  POEMA 


Cauto  primeiro 

Cicuta,  Cicuta  virosa^  pliellandrium  aquaticum.  —  Acham- 
se  estas  plantas  nas  lagoas,  e  covas  aquáticas :  cres- 
cem varias  nas  ribeiras. 

Nardo,  Nardus  indica.  —  Na  índia. 

Hortelã  d'agua,  vulgo  Mentrasto,  Mentha  aquática.  — 
Junto  de  aguas. 

Agrião,  Cardamine  pratensis.  —  Pastos  húmidos. 

Trevo,  Trifolio  'pratense.  — Prados,  legares  hervosos. 

PinhMro,  Pinus  sylvestris^  cembra.  —  Bosques  do  norte 
d'Europa,  os  Alpes,  etc. 

Til,  Tilia  europoea.  —  Bosquesr 

Castanheiro  da  índia,  ^sculiis  hippocastanum.  —  índia  e 
Ásia  septentrional,  d'onde  veiu  á  Europa  quasi  em 
1576. 

Junco,  Juncos  effusus.  —  Lagoas,  'junto  a  estradas  um 
tanto  húmidas. 

Vide,  Vitis  vinifera.  —  Climas  temperados  de  todo  o 
mundo. 

Ortiga,  Urtica  dioica.  —  Hortas,  ao  pé  de  balsas. 

-^thusa  ou  Cicuta  pequena,  JEthusa  cynapium.  —  Jardins 
e  legares  cultivados. 

Mercurial,  Mercurialis  annua. — O  mesmo. 


200  OBRAS  DE  BOCAGE 


Marroio,  StacJiys  annua.  —  Jardins  e  campos. 

Grama,  Triticum  repens.  —  Campos,  espinhaes,  hortas. 

Primavera,  flor,  Primula  i;eWs.  7- Junto  á  borda  dos  pra- 
dos. 

Narciso,  Narcissus  poeticus,  pseudonarcisus. — Prados  e 
bosques.  Duas  espécies  de  lyrios. 

Violeta,  Viola  odorata. — Junto  aos  mattos,  logares  som- 
brios. 

Ofris,  ou  Abelhinha,  Ofris  insectifera  myoides.  —  Pastos 
montuosos. 

Pereira,  Pyrus  comfnunis. — Nas  quintas.  Conhecem-se 
72  castas,  havidas  pela  cultura. 

Solda  real,  Sanicula  turopcea,  —  Bosques,  e  ao  longo  dos 
espinhaes. 

Centáurea,  Gentiana  centáurea,  —  Pastos  seccos  e  vere- 
das de  bosques. 

Carvalho,  Quer  cus  ^  rohur^  cegilops.  —  Nos  bosques. 

Çarça,  Ruhus  fruticosus. —  Logares  abrigados,  campos  in- 
cultos. 

Salgueiro,  Salix  alba^  purpúrea^  viminalis,  etc.  —  Sities 
húmidos. 

Vallisneria,  Vallisneria  spiralis. — No  Rhódano  e  em  al- 
guns lagos  de  TOrne. 

Poa  vivipara,  Poa  alpina  vivipara,  —  Montes  de  Laponia» 

Boas  noutes,  Mírohilis  j alapa.  — No  México. 

Palmeira  de  tâmaras,  Phcenix  dactylifera. — Africa,  ín- 
dia. 

Canto  segundo 

Trigo,  Triticum  hyhernum,  oRstivum.  —  Oriundo  da  Ásia* 
Incenso,  Anjuniperus  lyciaf  —  Na  Arábia. 
Eosa,  Rosa  máxima,  etc.  —  Hollanda,  jardins. 
Cravo,  Dianthus  caryophillus.  —  Baldios  das  provincias 
meridionaes,  jardins. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  201 


Damasqueiro,  Prunus  armemaca  —  Vindo  da  Arménia. 

Cerejeira,  Prunus  cerasus.  —  Oriunda  do  Ponto. 

Ceiba  ou  Mangue,  Bomhax  ceiha.  —  Africa,  índia. 

Moka  ou  Café,  Coffea  arábica,  —  Arábia,  Antilhas,  etc. 

Quina,  Cinchona  officinalis.  —  Peru. 

Baunilha,  Epidendrum  vanilla.  —  México,  etc. 

Cravo,  (arvore) j  caryophillus  aromaticus.  —  Amboino,  Mo- 

lucas. 
Noz  de  Banda,  ou  muscada,  Myristica  officinalis.  —  Banda, 

Molucas. 
Sensitiva,  Mimosa  pudica.  —  Brazil. 
Dionéa,  ou  Apanha-moscas,  Dioncea  muscipula.  —  México. 
Jasmim,  Nyctantes  sambac.  —  índia. 
Amaryllis  (espécie  de  açucena),  Amaryllis  formosissima, — 

America  meridional  e  conhecida  na  Europa  em  1593. 
Agathis,  j^schinomene  grandiflora.  —  Índia. 
Congorça  rósea,  Vinca  rósea.  —  Madagáscar,  Java. 
Tamarindo,  Tamarindus  indica.  —  Na  Índia,  etc. 
Nopal,  Cactus  tuna.  —  México  e  climas  quentes  da  Ame- 
rica. ' 
Roman,  Púnica  granatum.  —  Mauritânia,  Hespanha,  etc. 
Myrto,  ou  Murta,  Myrtus  communis,  —  Europa  austral, 

Ásia,  Africa. 
Palmeira,  Chamcerops  excelsa.  —  índia.  Africa." 
Coco,  Cocus  nucifera.  — Margens  Indianas. 
Ananaz,  Bromelia  ananás.  —  Nova  Hespanha,  Surinam. 
Laranjeira,  Citrus  aurantium.  —  Oriunda  da  índia. 
Estancadeira,  Statice  armeria.  —  Bosques,  cerros,  e  terra» 

seccas. 
Esteva,  Cistus  helianthemum.  —  Idem. 
Abrótano  macho,  Verónica  spicata. — Idem. 
Pinheiro,  Pinus  sylvestris.  —  Bosques  montuosos. 
Teucria,  Teucrium  chamoepithis.  —  Bosques,  logares  sec- 

cos  e  areosos. 
Trovisco,  Euphorbia  sylvatica.  —  Florestas. 


202  OBRAS  DE  BOCAGE 


Cravo  (flor),  Dianthus  proUfer,  tarthusianorum.  —  Selvas, 
logares  incultos. 

Medronheiro,  Fragraria  vesca.  —  Idem. 

Çarça,  Ruhus  fruticosus,  ccesius.  —  Idem. 

Aveleira,  Corylus  avellana.  —  Bosques. 

Carvalho,  Quercus,  rohur.  —  Idem. 

Olmo,  TJlmus  campestris.  —  Idem. 

Freixo,  Fraxinus  excelsior.  —  Idem. 

Bordo,  Acer  pseudoplatanus,  etc.  —  Idem. 

Hypno  (espécie  de  musgo),  Hypimm  serpens,  etc. — Bos- 
ques, pés  de  arvores. 

Salgueiro,  Salix  caprcea,  etc.  —  Logares  húmidos. 

Golphâo,  Nymphcea  olha. — Ribeiras,  lagos. 

Cardo-morto,  Senecio  paludosus.  —  Margens. 

Litronio,  Lytrum  salicaria,  —  Idem. 

Campainha,  Convolvulus  sepiíim,  —  Ao  longo  das  sebes 
ou  balsas. 

Tribulo  aquático,  Trapa  natans.  —  lus.gos,  lodosos. 

Trevo,  Trifolium  repens^  filiforme^  etc.  —  Leivas. 

Tomilho,  Thimus  serpillum.  —  Mattos,  logares  seccos. 

Faia,  Fagus  sylvatica.  —  Bosques. 

Salva,  Salvia  selarea.  —  Borda  dos  prados. 

Arruda,  Ruta  graveolens.  —  Locares  estéreis. 

Violeta,  Viola  odora.  —  Estremas  de  bosques,  etc. 

Lyrio,  açucena,  lilium  candidum. — Originário  da  Syria. 

Dictamo,  Origanum  dictamnus.  —  Creta,  o  monte  Ida. 

Dormideira,  Papaver  somniferum. — Ásia,  Africa,  jar- 
dins. 

Rosa  muscada,  Rosa  moschata.  —  Moréa,  Archipelago, 
costas  de  Barbaria. 

Jasmim,  Jasminum  officinale.  —  Oriundo  da  índia. 

Acantho  ou  herva  gigante,  Acanthus  mollis.  —  Grécia, 
Itália,  Sicilia. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  203 


Canto  terceiro  _ 

Cardo,  Carduus  crispus,  etc.  —  Em  campos  incultos,  ao 
pé  das  estradas. 

Bardana,  Arctium  lappa,  —  Idem. 

Engos,  Sabugo j  samhncus  ebidus. — Idem. 

Cerieira,  Myrica  cerifera.  —  Provinda  da  America  septen- 
trional. 

Aster,  Aster  grandifloruSj  etc. — Idem. 

Tulipeiro,  Liriodendron^  tulipifera.  —  Idem. 

Narciso,  Narcisms  íase^ía.  —  Oriundo  dos  districtos  meri- 
dionaes. 

Junquilho,  Narcissus  junquilla.  —  Oriundo  do  Oriente  e 
partes  da  Hespanha. 

Tulipa,  Tulipa  gesneri.  —  Vinda  da  Capadócia  á  Europa 
em  1559. 

Jacintho,  Hyacinthus  orientalis,  —  Oriundo  da  Ásia  e 
Africa. 

Feijão,  Phaseolus  vulgaris. — Oriundo  da  índia. 

Cenoura,  Daucus  carotta.  —  Nos  prados,  á  borda  dos 
campos. 

Acelga,  Beta  vtdgaris,  v.  rubra. — Talvez  provinda  da 
acelga  maritima  estrangeira. 

Couve,  Brassioa  oleracea,  v.  capitata.  —  A  espécie  pri- 
mordial nos  logares  marítimos  da  Inglaterra. 

Aipo,  Apium  graveolens,  v.  dulce.  —  Nas  terras  encharca- 
das, junto  a  rios. 

Azeda,  Rumex  acetosa.  —  Prados  e  pastagens. 

Cerefolho,  Scandix  cerefoUum.  —  Campos  da  Europa  me- 
ridional. 

Salsa,  Apium  petroselinum.  —  Oriunda  da  Sardenha. 

Alface,  Lactuca  sativa. — Europa  meridional. 

Agarieo  comestivel,  Agaricus  edulis.  ■ —  Cerros,  leivas. 

Cogumelo  branco,  Agaricus  alhellus  autumnalis,  —  Cam- 
pos e  pastos  seccos. 


204  OBRAS  DE  BOCAGE 


Feto, 'Pterts  aquilina. -^'Bosques j  sitios  estéreis. 

Melão,  Cucumis  melo, — Vindo  do  Oriente. 

Rhuibarbo,  JRheum  undulatum,  etc.  —  Tartaria, 

Grinsão,  Panax  quinquefolium.  —  China,  Canadá. 

Bordo,  Acer  pseudoplatanus,  —  Bosques,  montes. 

Saudade,  Scábiosa  succisa. — CoUinas  seccas,  etc. 

Maceira,  Pyrus  malus.  —  Originaria  de  Neustria,  onde  a 
cultura  tem  adquirido  mais  de  duzentas  castas. 

Azinheira,  Quer  cus  ilex.  —  Europa  meridional. 

Arvore  de'  manná,  Fraxinus  Ornus.  —  Calábria,  Sicilia. 

Loureiro,  Laurus  nohilis.  —  Grécia,  Itália. 

Jasmim,  Jasminum  fruticans,  —  Itália,  Europa  meridio- 
nal, etc. 

Canto  q[uarto 

Cedro,  Pinus  cedrus.  —  Libano,  Monte-Tauro,  Sibéria. 

Vime,  Salix  vilellina.  —  Terrenos  húmidos. 

Laranjeira,  Citrus  aurantium. — ^ Oriunda  da  índia. 

Myrto,  ou  murta,  Myrtus  angustifolia.  —  Europa  meri- 
dional, Ásia,  Africa. 

Bananeira,  Musa  paradisiaca.  —  índia,  «te. 

Chá,  Tkea  bohea  viridis.  —  China  e  Japão. 

Bálsamo,  Amyris  opohalsamwn^  giliadensis.  —  Arábia. 

Salgueiro,  Salix  herbácea^  lapponum»  —  Laponia,  zona 
glacial  árctica. 

Betula  (casta  de  alamoj,  Betula  nana. — Idem. 

Hera,  Hedera  helix,  —  Nas  arvores  da  Europa. 

Pinheiro,  Pinus  ahies,  picea,  etc.  —  Montes,  selvas  do 
Norte. 

Tojo,  Ulex  europc&us,  —  Charnecas,  sitios  incultos. 

Carpe,  Carpinus  hetulus.  —  Florestas. 

Zimbro,  Juniperus  communis.  —  Bosques  areosos,  coUina» 
seccas. 

Gilbarbeira,  Purcus  aculeatus.  —  Bosques  espinhaes. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  205 


Giesta,  Spartium  scoparium. — Campos,  outeiros  areentos. 

Aveleira,  Corylus  avellana.  —  Bosques. 

Álamo,  Betula  alnus,  —  Logares  húmidos. 

Fontinal,  Fontinalis  antipyretica, — Lagos,  covas  aquá- 
ticas. 

Lycopodio,  Lycopodium  clavatum.  —  Bosques,  logares 
montuosos,  abrigados. 

Pinho  de  Virgiuia,  Pinus  canadensis.  —  America  Septen- 
trional. 

Cypreste,  Cupressus  sempervirens.  —  Oriundo  de  Creta. 

Madre -silva,  Lomcera  sempervirens.  —  Oriunda  do  Mé- 
xico e  Virginia. 

Chopo,  Populus  mgra,alba.  —  Bosques  e  logares  húmidos. 

Olmo,  Ulmus  campestris.  —  Selvas. 


NOMENCLATURA 


ANIMAES,  AVES,  AMPHIBIOS,  PEIXES,  INSECTOS 


Canto  primeiro 


Abelha,  Apis  meUifera, 
Ovelha,  Ovis,  artes. 
Salmão,  Salmo  salar. 
Boi,  Bosj  taurus. 
Cabra,  Capra,  liircus. 
Cavallo,  Equus,  cahallus. 
Cuco,  Cuculus  canorus. 
Andorinha,  Hirundo  rústica y  iirhica. 
Pisco,  Loxia  pyrrula, 
Milheira,  Fringilla  codébs. 
Verdilhão,  Loxia  chloris. 
Melharuco,  Parus  major,  etc. 
Tutinegra,  MotaciUa  pJiilomcla ,  etc. 
Rato  do  campo,  Mus  terrestris. 
Toupeira,  Taipa  europoea. 
Corvo,  Corbus  corax^  etc. 
Pardal,  Fringilla  ãomestica. 


208  OBRAS  DE  BOCAGE 


Canto  segundo 

Cochenillia,  Coccus  cacti. 
Bengalinha,  Fringilla  amadava 
Papagaio,  Psittacus  versicolor^  etc. 
Arara,  Psittacus  macaOy  etc. 
Tartaruga,  Testudo  caretta^  etc. 
Crocodilo,  Lacerta  crocodilus. 
Germano  (ave),  Anãs  querquedula^  etc. 
Capricórnio,  Cerambix  moschatus, 
Rhenna,  Cervus  tarandus. 
Esquilo,  Sciurus  vulgaris. 


Canto  terceiro 

Leão,  Felis  Leo^  etc. 
Águia,  Palco  chryscetos,  etc. 
Tordo,  Turdus  musicus^  etc. 
Ave  das  trevas,  Strix  buho,  etc. 
Touro,  BoSy  taurus,  etc. 


Canto  ifuarto 

Rouxinol,  Motacilla  luscinia. 
Alce,  Cervus  alce. 
Urso,  Urso  arctos. 
Petrel,  Procellaria  antárctica. 
Leão  marinho,  Phoca  juhata. 
Urso  marinho,  Phoca  ursina. 
Pingoim,  Alça  torda. 
Melro,  Turdus  menda. 
Loxia,  Loxia  curvirostra. 
Perdiz,  Tertrao  perdrix. 


A  AGRICULTURA 


í 


POEMA 


IS/rOR-    IDE    liOSSBT 

TRADUZIDO  EM  VERSO  POKTDGUEZ 

Hic  labor f  Mnc  laudem  fortes  spercUe  coloni. 
Vir  GIL.  Georg.  Lib.  in. 

Este  é  todo  o  trabalho,  amplos  louvores 
D'elle  aguardae,  robustos  lavradores. 
(Trad.  de  Pato-Monix.) 


ti 


A  AGRICULTURA 


Cuf^.3SrTO     I=>E,I3VtEZI?,0 


DAS  SEARAS 

Canto  os  trabalhos,  que  reg-ula  o  tempo, 
Co'as  varias  estações  modificado; 
Arte,  que  a  terra  obriga  a  dar  colheita s^ 
A  qne  A^  vinhas,  ás  arvores,  aos  prados 
Dobra  a  fecundidade,  e  nos  submette 
Tão  Titeis  animaes :  para  que  exalte 
(Bem  real)  a  cultura,  e  seus  preceitos^ 
Oriam  forças  em  mim  Luiz,  e  a  pátria. 

Deidades  surdas,  insensíveis  numes^ 
Nada  colhe  de  vós  meu  sério  canto: 
Astros,  que  os  annos  signalaes,  e  as  quadras, 
O  deus,  que  vos  conduz,  nos  dá  seus  mimos; 
Sem  Ceres  a  seara  amarellece, 
Negrejam  sem  Ljêo  na  vide  as  uvas; 
De  Pan,  o  Apollo  os  fabulosos  gados 
fíiirmonia  immortal  jamais  ouviram; 


212  OBRAS  DE  BOCAGE 


A  oliveira  não  deve  ás  leis  de  Palias 
Artes  que  a  nutrem,  artes  que  a  cultivam; 
Neptuno  é  sonho,  e  do  tridente  ao  golpe 
Da  terra  não  surgiu  o  audaz  ginete. 

Oh  Deus,  principio,  e  fim  da  natureza! 
Aponta  aos  passos  meus  segura  estrada, 
Firma,  reforça  minha  voz  tremente: 
A  fallar  de  teus  dons  tu  é  que  ensinas. 

Lá  quando  a  terra,  pela  voz  do  Immenso 
Chamada  ao  ser,  se  povoou  de  plantas, 
De  animaes;  o  homem  livre,  o  homem  submisso 
Ás  leis  do  Creador,  foi  rei  do  mundo, 
Que  só  para  seu  bem  se  ergueu  do  nada: 
Quadra  das  virações,  e  dos  suspiros, 
Tu  com  sorriso  eterno,  eterno  esmalte 
Por  toda  a  natureza  então  reinavas; 
Saíam  sem  cultura  a  flor,  e  o  fructo; 
Gostava  o  racional  no  céo  terrestre 
Bens  tão  puros  como  elle:  era  o  trabalho 
Incapaz  de  fadiga,  era  o  repouso 
Vedado  ao  tédio:  por  ingrato  orgulho 
Súbito  enxovalhada  a  natureza 
Despe  as  mimosas,  primitivas  graças, 
E,  surda  aos  votos  do  senhor,  que  a  rege, 
Aos  votos  do  homem  réo,  se  muda  a  terra 
N'um  ermo  pavoroso...  (ai!)  Já  não  lança 
Senão  cardo  importuno,  herva  ociosa! 
Porém  quando,  ao  trabalho  atado  o  homem 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  213 


Pela  herança  fatal  devida  ao  crime, 

Do  crime  a  confissão  na  terra  grava 

Com  suas  próprias  mãos,  fértil  de  novo 

Ella  em  dobro,  em  tresdobro,  ao  homem  paga 

Lidas,  cuidados,  que  a  cultura  exige : 

De  criminosos  pães  infausta  prole, 

De  celeste  eminência  derribado, 

Inda  grandezas  tem,  que  ufano  admiro ! 

A  terra,  seu  degredo,  é  seu  império; 

Declaram-se  por  elle  os  elementos; 

Presta-lhe  o  ar  co'a  frescura,  o  sol  co'a  chamma; 

Orvalho,  e  neve  os  campos  lhe  fecundam; 

Descem  dos  montes  a  buscal-o  os  rios; 

Aos  usos  seus,  ás  suas  leis  sujeitos, 

N'elle  acatam  seu  rei,  tremendo,  os  brutos; 

E  centro,  é  harmonia  do  universo; 

Sem  elle  não  tem  ordem,  tem  por  elle 

Ordem  tudo  entre  si:  alma,  instrumento, 

E  mediador  de  inanimados  corpos, 

O  seu  tributo  ao  céo,  e  o  d^ellés  manda. 

Mortaes,  o  vosso  ardor  o  ardor  me  avive; 
Conhecei  vosso  império,  e  governae-o: 
Oxalá  que,  regrando-vos  as  lidas. 
Possam  communicar  meus  úteis  versos 
Sempre  a  fertilidade  aos  campos  vossos, 
Aos  vossos  corações  sempre  a  virtude. 

Cifltor,  searas  abundantes  queres? 
Entende  o  génio  dos  terrenos  vários: 


214  OBRAS  DE  ilOOAGE 


Cada  qual  tem  o  seu:  nasce,  loureja, 

Prospera  o  trigo  aqui,  e  ali  perec*^; 

Onde  elle  se  definha  as  vides  folgam; 

Pedregoso  areal,  sulphureo  campo, 

E  de  fácil  collina  a  pobre  encosta 

Bastam  para  formar  húmidos  cachos, 

E  bosques  de  oliveiras.  Vês  do  cume 

Dos  empinados  montes,  vês  nos  valles 

Essas  mádidas  terras,  que  um  regato 

JSTa  fugida  veloz  anima,  ensopa? 

Ali  relva  infallivel  ceva  os  gados: 

Ao  barro,  ao  tufo,  aos  matao-aes,  e  etrêas 

Pede  a  arte  em  vão  colheitas;  lá  sem  força, 

Lá  careceu  te  o  chão  tolera  apenas 

Os  fetos,  03  codeços,  as  giestas: 

Forte,  opimo  iogar:  nas  quadras  todas 

De  flores,  e  verdura  ataviado, 

Por  mãos  da  Natureza  infatigável; 

E  em  que  uma,  em  que  outra  leiva,  annunciando 

Suecos,  que  a  alentam,  na  indagante  dextra 

Se  amassam  fiicilmente;  esse  responde 

Ao  constante  fervor  de  sabia  industria: 

Em  Normandia,  em  Flandres  estes  campos, 

De  fecunda  lavoura  exercitados, 

Semêam-se  cad'anno,  em  todos  luzem. 

Tal  porém  não  será  delgada  terra: 
Depois  que  as  messes  uma  vez  te  ha  dado,    ^ 
Ócio  cançada  quer,  tem  jus  ao  ócio. 


POESIAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  215 

E  as  forças  lhe  renascem  do  repouso; 
A  terra  se  exhauriu  para  abastar-te^ 
Para  mais  te  abastar  descance  a  terra. 

Os  delicados  grãos,  que  vás  soltando 
Entre  leves  torrões  na  primavera 
Sem  custo  brotam,  crescerão  sem  custo; 
Porém  do  trigo,  e  do  centeio  a  planta 
Pede  forçosa  um  chão  lodoso,  e  pingue; 
O  ténue,  grato  arroz,  avantajado 
Pelo  othomano  a  seus  manjares  todos; 
Que  Arábia,  e  Pérsia  com  razão  cultivam, 
Que  embranquece  ao  chinez  os  férteis  campos. 
Quer  húmidos  terrenos,  gosta  de  aguas: 
.*  Em  qualquer  terra  o  trigo  sarraceno 
*  Eleva  os  negros  grãos  na  densa  espiga : 
Para  ornar  de  seu  ouro  o  páe,  que  o  gera, 
O  cacho,  que  o  sustem,  quer  terras  fortes 
O  indiano  maíz :  porém,  primeiro 
Que  o  ferro  agricultor  lhe  aprompte  os  sulcos, 
Conheçam-se  estações,  o  clima,  os  ventos; 
Nk)  semblante  dos  céos  colhe  a  sciencia, 
Que  regula  do  agricola  os  trabalhos, 
E  aponta  idóneo  tempo  a  semeadura. 

Quaes  no  moto  celeste  olhos  attentos. 
Para  do  lenho  audaz  guiar  o  impulso, 
A  elevação  das  Plêiades  observam, 
E  os  dous  Carros,  e  as  Hjadas  chorosas, 
E  o  funesto  Orion;  — taes,  para  darem 


216  OBRAS  DBI  BOOAGK 


Principio  a  seu  trabalho,  os  lavradores 

Andem  co'a  vista  nos  ethereos  fachos: 

Foi  seguindo-lhe  as  leis  que,  firme  em  breve,. 

A  cultura  encetou  a  astronomia: 

Os  rudes,  os  primeiros  habitantes 

Dos  campos  de  Babel,  esses  outr'hora 

Agrícolas,  pastores,  porque  a  terra 

Lhes  fosse  mais  propicia,  mais  fecunda, 

Do  mundo  aos  pólos  a  attenção  volveram: 

Deu  leis  ás  estações  o  Auctor  das  luzes, 

O  império  renovou  nos  doze  lares; 

De  seu  giro  annual  eis  traçara  linhas, 

O  chefe  das  ovelhas  o  é  dos  signos; 

O  Touro  logo,  e  depois  d'elle  os  Gémeos 

O  nascimento  aprazam  dos  rebanhos; 

Nos  trópicos  o  Cancro,  e  Capricórnio 

Fixam  solsticios  do  verão,  e  inverno; 

Dias,  e  noutes  a  Balança  eguala; 

Das  ceifas  o  signal  compete  á  Virgem; 

O  céo  torna-se  um  livro,  a  terra  absorta 

Olha  em  letras  de  fogo  a  historia  do  anno. 

Experienc^  observou  de  dia  em  dia 
O  nascimento,  e  giro  aos  vários  astros: 
Cada  qual  tem  poder,  presagios,  nome; 
Uns  tempestade,  e  vento,  e  chuva  indicam. 
Outros  são  para  nós  os  precursores 
De  moUes  virações,  e  amenos  dias. 

Quanto  aos  humanos  a  apparencia  illude  1 


POEMAS  DIDÁCTICOS   TRADUZIDOS  217 


Signaes  das  estações  se  lhe  anfolhamiu 
Origem  d'ellas.  .  .  oh!  Poder  do  engano! 
Homem,  não  mais  do  que  miia  escolha  inútil 
O  teu  arbítrio  tem ;  e  em  teu  arbitrio 
Os  astros  exercitam  summo  império; 
A  que  a  inerme  razão  se  oppõe  debalde, 
Em  vão  quer  destruir*  de  teus  destinos 
A  despótica  estrella  o  bem  regula, 
E  o  mal,  e  a  morte,  e  a  vida:  Oh!  venturoso, 
Oh!  vezes  cento  affortunado  aquelle 
De  que  a  Balança  o  nascimento  acclare! 
Ai!  Menino  infeliz!  teus  fados  choro 
Se  o  negro  Escorpião  viu  tua  aurora! 
Desapparece  a  Lua,  o  Sol  no  eclipse.  .  . 
Este  horror,  que  desastre  ao  mundo  agoura ! 
Estremecei,  nações,  em  pranto,  em  luto; 
Aos  vencidos  fugi,  oh  vencedores; 
E  tu,  povo,  socéga:  ante  os  cometas 
Devem,  devem  tremer  só  reis,  só  grandes: 
Assim  nossa  razão  foi  de  erro  em  erro 
Por  artes  da  impostora  astrologia. 

O  agricultor  grosseiro  a  bem  dos  fructos 
Implorou  das  estrellas  a  influencia; 
Uma  lh'os  fez  medrar  com  doce  lume. 
Gemeu  arripiado  á  foce  de  outra: 
Tu,  que  reges  de  noute  o  ebúrneo  carro, 
Da  campestre  ignorância  aos  olhos  deusa, 
Por  ella  a  gráo  supremo  erguida  foste; 


218  OBRAS  DJÍ  BOCAGE 


Animaes  alteravas,  plantavS,  fructos; 

Eras  té  dos  inetaes  consumidora, 

Edifícios,  oh  Lua,  até  roííis; 

Teu  passo  desigual  encaminhava 

Ora  para  a  cultura  amigos  dias. 

Ora  dias  fataes  para  a  cultura: 

Qual  dos  homens  entílo,  qunl  se  afoutara 

A  revólver  infructuosos  campos? 

O  cantor  Mantuano  aos  lavradores 

De  chimericas  leis  fez  lei  saorada, 

E  aos  pávidos  mortaes  ainda  ha  pouco 

E..;te  longevo  engano  as  inãos  prendia: 

O  erro  eraíim  se  desfaz  pela  verdade, 

A  preoccupação  pela  experi.*ncia; 

Unicamente  o  Sol  co'a  luz  fteunda 

Reforça  a  Natureza,  exiráe  seus  mimos. 

Quando  do  Escorpião  na  estancia  entrando 
Raios  despede  com  menor  violência, 
Dêm  teus  bois,  oh  cultor,  começo  a  lavra: 
Instados  do  aguilhão,  do  juíjo  oppressos 
Em  tardo  movimento  eguaes  caminhem; 
Cardos,  hervas  arranque  o  hso  arado; 
Abre,  volve  teu  cjimpo,  e  rerre  a  terra: 
N'ella  agitados  de  repente- os  suecos 
Do  sol  maduros,  húmidos  co'a  chuva, 
O  germe  da  abundância  desenvolvem: 
Finde  no  outomno  o  teu  suor  primeiro. 

Quando  o  inverno  entristece  a  natureza 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  219 


Náo  se  armem  tuas  mãos  de  um  ferro  inútil; 

Fatigaras  a  terra  em  vãos  esforços, 

Que  impenetrável  é  na  quadra  fria: 

O  obliquo  resplendor  do  sol,  que  foge, 

Caíra  sem  virtude  em  regos  novos, 

E  Bóreas  duro,  os  inimigos  gelos 

No  seio  maternal  destruiriam 

Dos  suecos  a  substancia  adormecida: 

Mas  logo  que  mais  puro  o  dia  assome, 

Rompendo  este  lethargo,  annynciando 

Que  a  ociosa  Natureza  emfim  desperta, 

Reconduzo  teus  bois;  a  que  obedeça 

Ao  gume,  que  a  revolve,  a  terra  obriguem ; 

E,  certo  o  lavrador  de  seus  proveitos, 

Cos  olhos,  e  co'a  mão  dirija  os  sulcos. 

Já  no  ethereo  Carneiro  o  Sol  tocando 
Lhe  desvanece  a  lu:í:  ao  grato  annuncio 
O  risonho  aldeão  nos  pátrios  campos 
Lança  os  grãos  de  que  é  mãe  a  primavera : 
Se  os  desdenha,  se  os  cede  a  obscuros  entes 
O  moUe  cidadão  soberbo,  e  louco, 
Tu  não  lhe  adoptes  um  desprezo  insano, 
Que  n^elles  vezes  mil  provem  do  orgulho. 

Terás  varrido  da  memoria  acaso 
Anno  funesto  em  que,  alterado  o  clima, 
Geadas  soltas  do  intractavel  norte, 
Até  no  sul  da  França  branque^*aram? 
Murcham-se  as  plantas,  a.  raiz  definha 


220  OBKAS  DE  BOCAGE 


Na  enregelada  terra;  espera  o  povo 
Que  floreçam  de  Zephjro  ao  regresso 
Os  germes  outra  vez;  Zephyro  inerte 
Seus  males,  seus  estragos  patenteai 
Joio  em  logar  de  trigo  os  campos  veste, 
Que  off''recem  aos  mortaes  appavorados 
Perdidas  terras,  carestia,  e  morte: 
No  horror  da  fome  se  alentou  a  industria; 
Novos  dispersos  grãos  promettem  vida; 
A  esperança  renasce,  e  pouco  a  pouco 
Se  esvaece  o  terror:  mas  a  esperança 
Que  presta  contra  ti,  necessidade? 
Eis  Luiz  de  seu  povo  afasta  os  damnos; 
Só  para  ser  seu  páe,  seu  rei  se  chama: 
Do  trigo  oriental  baixeis  se  pejam, 
Em  que  a  sabor  do  vento  ondêa  o  lyrio, 
E  como  que  das  aguas  surgem  messes ! 
Cos  dons  do  farto  Egypto  assim  Augusto 
Itália  aviventou,  nutriu  Sicilia. 

Emquanto  aos  campos  teus  a  quadra  nova 
Colheitas  preparar  dos  grãos  primeiros, 
A  terra  folgue  destinada  aos  trigos, 
Ardores  do  verão  respire  em  ócio, 
E  a  frescura  também  da  primavera ; 
Se  abres  a  terra  então,  calor  funesto 
Dos  semimortos  saes  devora  o  resto:    - 
Mas,  quando  o  astro  diurno  em  eguaes  tempos 
Do  somno,  e  do  trabalho  as  horas  parte, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  221 


Outro  sulco  anteceda  a  semeadura, 
Das  substancias  da  terra  anime  a  força; 
Se  cumpre,  sem  tardar  teus  touros  junge, 
E  cruza  os  sulcos  teus  por  novos  sulcos. 

Dos  campos  a  cultura  é  sem  proveito 
Se  de  possante  adubo  os  não  reforças, 
Reproduzindo  evaporados  suecos, 
E  os  que  ávidas  espigas  devoraram ; 
D'estes  auxilies  gcnero,  e  medida 
Das  terras  tuas  a  exigência  regre, 
Regre-os  a  condição :  se  é  penetrado 
De  alimento  robusto  em  demazia, 
O  chão  co'a  força  extrema  os  pães  suífoca; 
E,  sustento  infeliz  de  vã  folhagem, 
Dá  palha  mentirosa  em  vez  de  trigo. 

De  restos  os  mais  vis,  e  estrume  é  feito 
Que  em  teu  campo  introduz,  esparge  vida: 
A  palha  em  que  animaes  diversos  pousam 
E  dos  estrumes  a  melhor  matéria; 
Para  os  multiplicar  une  aos  primeiros 
Cinza  dos  lares,  e  o  sylvestre  espolio; 
Estes  pingues  montões  se  ligam  todos, 
E  aos  ardores  phebéos  amadurecem : 
De  próvido  cuidado  assim  mantidos 
Alternam  pelo  campo  os  seus  tributos. 

Se  exhaurida  no  seio  a  Natureza 
Entra  a  degenerar,  e  quer  que  estrumes 
Mais  fortes,  mais  fecundos  a  restaurem; 


222  OBRAS  DE  BOCAGE 

O  margo,  de  que  usaram  n'outras  eras 

Nossos  priscos  avós,  á  tua  escolha 

Assim  como  a  castina,  e  cal  se  ofTrecem: 

Se  a  prudência  os  prestar,  com  taes  soccorros 

Pode  altamente  remoçar-se  a  terra; 

Com  taes  lições  o  agricultor  vê  cedo 

Atulhado  o  celeiro  aos  pães  negar-se. 

Alchimista  incansável,  que  presumes 
De  arêas,"de  metaes  colher  teu  ouro, 
Atíenta  o  lavrador:  quanto  é  mais  certa, 
Quanto  mais  a  arte  sua  é  milagrosa! 
Puro  efFeito  elie  extrae  de  um  mixto  impuro; 
Por  elle  transformado,  ennobrecido 
O  desprezivel  lodo  a  vida  estêa. 

Creu-se  por  isto  que  um  romano  outr'hora 
Os  mágicos  mysterios  exercia: 
Módica  herança,  aos  seus  trabalhos  dócil, 
Com  rica  novidade  os  premiava. 
Em  quanto  desleixados  lavradores, 
Visinhos  seus,  e  da  indigência  oppressos, 
Sem  colher,  semeavam:  dizem,  clamam. 
Que  a  seus  campos  chamou  dos  campos  d'ell0S 
Por  arte  horrível  encantadas  messes: 
Citam-no;  elle  apparece,  e  mostra  a  um  tempo 
Os  duros  enxadões,  os  bois,  o  arado; 
Presenta  a. filha,  que  enrijou  lidando: 
«  Romanos,  eis  o  mago^  eis  a  magia 
(Elle  diz),  e  inda  auxilio  me  prestaram 


\ 
POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  22': 


Outros  encantos,  que  mostrar  não  posso: 
Minhas  vigílias  são,  são  meus  suores.» 
Falia;  é  com  voz  unanime  absolvido: 
Onde  buscavam  crime  encontram  gloria. 

Tentou  multiplicar  industria  os  fructos 
Por  novas  experiências  de  anno  em  anno: 
Divide  o  curvo  arados  terra  em  folhas; 
Uma  de  áureas  espigas  se  enriquece, 
Outra  fica  vazia;  o  sementeiro 
Ha  de  espalhar,  cubrir-lhe  o  grão  nos  sulcos: 
A  que  se  deixa  ociosa,  em  pó  tornada, 
A  herva  parasita  acolhe  menos; 
Lá  con-e  o  trigo  próximo,  e  se  estende 
Com  maior  liberdade,  e  busca  ao  longe, 
E  encontra  um  fácil  nutrimento;  os  muros 
Espaça  aos  apertados  teus  celeiros; 
Filhos  do  mesmo  grão  dous  mil  maduram ! 
Quem  é  que  entre  os  mortaes  se  atreveria 
A  encher  seu  coração  de  uma  esperança. 
Que  a  Natureza  em  nós  concebe  a  custo  ? 
Adopta,  lavrador,  próvida  industria 
Que  um  quarto  de  terreno  em  prados  troca, 
flevezando-os  por  todo,'e  dá  d'est'arte 
(Unindo  novos  dons  a  dons  de  Ceres) 
Campos  aos  gados,  á  lavoura  estrumes. 

8e  n'um  comprido  espaço  a  herança  tua 
Propicies  hei  va  e  grão  dividem  sempre  ; 


224  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  se  profundos  fossos,  grandes  muros 
Em  recintos  diversos  a  repartem ; 
Se  precisa  mixtão  de  adubo,  e  terra, 
Unida  ás  tuas,  as  corrige,  as  muda; 
Nos  annos  todos,  férteis,  vigorosas 
Te  dão  searas,  te  alimentam  gados. 

Arte  annosa,  e  divina,  ab!  Tu,  tu  foste 
Nos  tempos  de  ouro,  nos  primeiros  dias 
Sublime  emprego  dos  heróes,  dos  sábios! 
Ao  latino  cultor  Gatão  deu  normas; 
Ao  cultor  oriental  seus  reis  as  deram ! 
Quando  a  virtude  residia  em  Eoma, 
E  pobre,  e  magestosa  a  sobriedade 
Inda  sentia  horror  ás  pompas  d'Asia, 
Os  feixes  alliavam-se  aos  arados, 
E  cem  vezes  o  povo  achou  lavrando 
Aquelles,  que  subira  a  dictadores ! 
Da  plaga  boreal  guerreiros  torvos 
As  necessárias  artes  desdenharam ; 
Quizeram  para  si  boçáes,  e  altivos 
A  frecha,  o  dardo,  o  alfange,  arroteando 
Seus  campos  cada  qual  por  mão  dos  servos ; 
Appareceram  taes  os  nossos  Francos; 
Rompe  a  verdade  em  fim  por  entre  as  sombras 
Dos  arredados  séculos ;  seu  facho 
Acclara  e  reconduz  sciencias,  artes; 
Mas  o  lavor  dos  campos  na  ignorância, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  225 


^a  funesta  ignorância  veiu  envolto 
Por  instineto  servil  aos  tempos  nossos: 
Arte  a  mais  útil  se  avalia  em  menos. 
O  idioma  fraacez  (cuja  harmonia 
Captiva  em  brandos  sons  Europa  inteira, 
Filho  do  sentimento,  e  nobre,  e  simples, 
De  qae  um  timido  gosto  em  demazia 
Os  direitos  coarctou)  nasceu,  formou-se 
Da  moral  nossa,  e  seus  vestígios  segue: 
As  graças,  as  paixões,  as  guerra^  canta ; 
Mas  não  se  imaginou  que  os  sons  prestantes 
A  fadiga  rural  cingir  podésse. 

■  Em  quanto  por  vingal-o  eu  velo,  eu  súo, 
Da  agricultura  protectores  nascem; 
Profícuos  cidadãos  com  docta  pluma 
Da  cega  prevenção  triumphos  logram, 
O  preço  intimam  da  perícia  agreste, 
Apontam  suas  leis,  e  dão  leis  novas, 
Que  mais  formosas  safras  nos  promettem. 
Em  meus  versos,  cultor,  podia  expor-te 
Altos  conselhos  seus,  altos  arcanos; 
Mas  da  exp'riencia  approvações  espera; 
Arbitra  do  successo,  é  lei  do  sábio ; 
E  o  que  attráe  tanto  o  mundo,  a  novidade, 
Só  recebe  valor  das  mãos  do  tempo. 

Quando  no  fogo  estivo  as  terras  ardem, 
E  os  Zepliyros,  e  as  aguas  as  temperam, 
E  o  campo  destinado  ás  sementeiras 

15 


226  OBRAS  DE  BOCAGE 


Revolto  está  por  teus  finaes  trabalhos, 
A  escolha  da  semente  é  que  te  resta.; 
Escolha,  que  avultar-te  as  ceifas  pôde: 
Toma  dos  teus  o  melhor  trigo,  ou  busca 
Nos  visinhos  terrenos  trigos  novos, 
Traze  a  teus  sulcos  esta  raça  estranha: 
O  grão,  se  o  mesmo  é  sempre,  bastardêa; 
Suecos,  que  amava,  exhaustos,  e  perdidos 
As  languidas  espigas  mais  não  tocam. 

Ha  lavradores  próvidos,  que  ajuntam 
A  agua  com  cinza,  e  nitro,  e  com  cal-viva, 
E  o  grão  preparam  n'elles,  e  expVimentam;: 
Com  isto  os  campos  teus  não  poucas  vezes 
Se  c'rôam  de  melhor,  mais  basta  messe: 
Tu  depõe  a  semente  em  brandos  tempos; 
Ou  seja  quando  o  Sol  preside  á  Libra, 
Ou  quando  elle,  deixando-a,  encurta  o  girot 
Mormente  os  dias  dos  agudos  gelos 
Cumpre  não  esporar;  produz  o  trigo 
Semeado  mui  cedo  herva  ociosa, 
Mas  tardia  semente  os  frios  matam. 

Tanto  que  a  recebeu  no  seio  a  terra, 
O  germe  impaciente  ao  grão  se  escapa, 
E  de  longa  cultura  em  breve  o  premio 
Será  verdor  gentil  ornar-te  alqueives; 
Mas  quando  em  Capricórnio  o  Sol  detido 
Só  pallido  clarão  nos  céos  diííunde, 
A  terra  é  sem  vi^or,  e  a  raiz  tenra 


POEMAíá  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  227 

Não  pode  penetrar,  subir,  nutrir-se: 

N'e5te  asylo  feliz  dormindo  os  germes  , 

O  sopro  evitam  do  inimigo  inverno. 

Mal  que  volve  a  andorinha  aos  climas  nossos 
Nuncia  leal  da  rósea  primavera, 
Se  a  herva  das  searas  te  apresenta 
Vãos  atavios,  luxo  ambicioso, 
Teme  nas  messes  abundância  estéril, 
E  ao  cordeirinho  entrega  inútil  pompa. 

De  Favonio  seus  dons  a  torra  fia. 
Brotar  com  elles  vejo  a  relva,  o  cardo; 
Ali !  Se  infesta  raiz  não  lhes  arrancas, 
Tenro  inda  o  fructo,  inda  leitoso  abafam: 
Dá-lhe  seguro  abrigo  em  seus  casulos 
A  espiga  vacillante:  eis  annuncia 
Madura  edade  nas  madeixa^  louras; 
Muro,  que  forma,  lhe  resguarda  a  fronte 
Contra  a  feroz  procella,  e  contra  as  aves. 

Inda  vemos  sorrir- se  a  ]3rimavera 
Quando  o  volúvel  Zephyro  amoroso 
Voa  ás  espigas,  e  com  ellas  brinca; 
Afagadas  da  pluma,  ao  sopro  dóceis 
No  móbil  troncosinho  ondeam  presas: 
Vejo  apertar-se,  abrir-se  a  densa  turba. 
Lá  t^e  curvou,  se  ergueu,  correr  parece: 
Dos  ventos  a  sabor,  ludibrio  d'elles, 
As.sim  rolam  no  pego  as  leves  ondas. 

Mas,  precedente  a  luz,  que  névoa  triste 


228  OBRAS  DE  rooAaE 


Cubrindo  a  espiga  vae  de  um  nitro  infenso? 
Se  o  vento  lhes  não  dá  bafejo  amigo 
Sobre  ellas  agro  influxo,  olbos  funestos 
Lança  Phebo  ao  romper;  eis  que  repassa 
Os  deploráveis  grãos  peçonha  horrenda, 
Peste,  que  os  ennegrece,  e  que  os  devora: 
Desdobrem  dous  de  vós,  oh  lavradores, 
Corda,  que  em  vossas  mãos  discorra  os  campos 
Com  rapidez  extrema;  o  trigo  agite, 
Supra  seu  movimento  as  auras  mudas. 
Antes  que  o  fira  o  sol  co'as  Ígneas  settas. 

Flagello  inda  peor  me  opprime  a  vista. 
Seu  veneno  é  mortal,  e  a  causa  ignota: 
Alteríida  folhage,  espiga  infecta 
Grãos  me  presentam,  que  nascendo  abortam; 
Ali,  tórrida,  e  sêcca  é  pó  a  espiga; 
O  fogo  matador  lambeu-a  acaso? 
Sem  de  flores  vestir-se,  além  já  feita, 
Com  fallaz  apparencia  ornando  os  males, 
A  fói-ma  inda  mantém,  lenta  carcoma  . 
Pouco  a  pouco  as  substancias  lhe  anniquila; 
Esta,  poeira  torpe,  aos  grãos  voando, 
Embeber  n'elles  seu  veneno  fora, 
E  os  campos  de  atra  cor  te  cub riria; 
Desterrar-lhes  tal  peste  a  que  arte  é  dado? 

Tendo  por  mestra  a  Natureza,  um  sábio 
Que  em  nossos  dias,  que  entre  nós  flofece, 
Viu  a  origem  do  mal,  e  a  cura  indica; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  229 


Em  agua,  em  cal,  em  cinza,  em  saes  dispostos 

Para  alterado  grão  remédio  ha  prompto: 

Luiz  sobre  este  invento  emprega  os  oljios; 

Oo'a  mão  real,  que  imita  a  mão  suprema, 

Alta  experiência  em  Trianon  confirma, 

E  os  paternos,  magnânimos  cuidados 

Do  monarcha  immortal  com  ella  instruem 

Quantos  cultores  seu  império  lavram: 

Das  artes,  e  da  França  enteio,  e  gloria 

Luiz  é  cidadão,  e  heróe  a  um  tempo; 

Dos  sábios  é  modelo,  é  páo  da  pátria; 

As  eras  todas  voará  seu  nome. 

Sua  beneficência  as  eras  todas. 

Mas  se  do  Rei  dos  reis  fu]'or  terrível 
Sobre  teus  louros  pães  seus  golpes  vibra, 
E  toda  a  industria  vã,  e  a  teus  pavores 
Não  resta  mais  que  as  preces,  mais  que  o  pranto : 
Sobe  um  vapor,  se  alonga,  e  se  condensa ; 
Foge  o  sol,  o  ar  sibila,  os  céos  negrejam; 
De  nuvem  pavorosa  em  bojo  espesso 
Procellas  amontoa  a  mão  do  Eterno, 
E  sobre  nossas  frontes  as  suspende: 
Elle  assoma:  o  relâmpago  o  precede; 
Seu  formidável  throno  occupa  o  centro 
Do  pólo,  que  fraquêa  ao  pezo  enorme; 
Phalange  de  Aquilões  lhe  ruge  em  roda; 
Fúrias,  mortes  aos  p(5s,  a  flamma  o  c'rôa; 
O  raio  abrazador  na  mão  lhe  ferve, 


230  OBKAS  DE  BOCAGE 


Salta,  bate,  derruba,  instrue  os  homens! 
Olha  rotas  por  elle  as  árduas  tori-es, 
Bosques  em  cinxas,  rochas  derrocadas! 
Jaz  a  terra  em  silencio !  O  medo  an cioso 
Murcha,  enregela  o  coração  dos  povos: 
Despiedado  granizo  alveja,  pula, 
As  espigas  saltêa,  abate-as,  quebra-as; 
Todos  os  furacões  desenfreados 
Os  trigos  d'entre  os  sulcos  desarraigam 
ífo  remoinho  envoltos;  as  torrentes 
Arrojam-se  das  serras  bravejando; 
Rios,  já  sem  barreira,  innundam  valies: 
Está  submerso  o  campo,  a  messe  é  morta!. 
Suor  de  um  anno,  destruiu-te  um  dia ! 

Se  as  leis  da  natureza  c  céo  não  tolhe. 
Contra  estes  damnos  a  arte  ás  vezes  presta: 
D'entre  os  diversos  corpos  o  homem  soube 
Extrair,  ver,  tocar  ha  pouco  a  flamnia 
Motora  do  universo:  ella,  >sumida 
Lá  na  matéria,  e  rápida  saltando. 
Rápida  mais  que  o  som,  se  oíFrece  á  vista 
Só  quando  sáe  de  um  corpo,  e,  similhante 
Do  relâmpago  á  luz,  sobre  outro  voa 
Atravessando  os  ares:  este  fogo, 
Se  industria  o  conduzir,  metaes  penetra, 
Derrete-os,  vitrifica-os;  férrea  agulha 
O  attráe,  e  accende  eléctrico  elemento, 
P.osphoro  girador,  frouxel  brilhante; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  231 


Tal  outr'hora  se  viu  lume  assombroso 
Dos  romanos  cubrir,  dourar  as  armas; 
Tal,  e  o  mesmo,  dos  nautas  ante  os  olhos 
Rutila  o  fogo,  que  lhes  é  tão  caro; 
Fogo,  que  no  pavor  das  tempestades 
Ao  mastro  electrisado  as  nuvens  mandam, 
E  brinca,  e  se  revolve,  e  obteve  o  nome 
De  Helena,  Castor,  Pollux:  a  faisca 
Eléctrica,  e  fuzil  das  nuvens  solto 
Como  um  mesmo  elemento  appareceram, 
E  emfim  aos  olhos  a  experiência  o  prova: 
Se  pezada  tormenta  os  céos  carrega, 
Vara  de  ferro  levantada,  e  presa 
Por  arte  sobre  o  monte,  ou  torre,  ou  tecto. 
Do  raio,  occulto  em  próximo  negrume, 
Bouba  a  matéria,  e  súbito  a  transmitte 
Ao  fiel  conductor,  que  sem  violência 
A  apontado  logar  a  infesta  chamma 
Em  silencio  conduz :  assim  removes 
De  fructos,  campos,  ou  cidade  os  raios, 
E  o  mal,  que  ameaçava  i\s  frontes  nossas 
Leva  o  p'rigo,  o  terror  para  outros  ares. 

Também  com  arte  audaz,  imperiosa 
Esse  ardente  phenómeno  terrível 
Pelo  fluido  eléctrico  se  forma, 
E  os  olhos  na  evidencia  absortos  ficam : 
Do  globo  na  cadêa  um  vidro  exposto 
A  luz  attráe,  e  electrisado  brilha; 


232  OBRAS  DE  BOCAGE  - 


Já  não  é  mais  que  um  céo,  faíscas  toJo; 
Rompe,  salta  o  relâmpago;  os  ouvidos, 
Exhalando-se  o  fogo  assusta,  fere 
Com  repentino,  nmiudado  estrondo, 
E  de  sulpbureo  cheiro  empasta  os  ares; 
Penetrado  o  crystal  dos  Ígneos  tiros, 
Sem  que  elles  o  traspassem,  todo  se  enche 
De  vestígios  errantes:  com  esfarte 
Um  feliz  Salmonêo  reluz,  triumpha, 
Faz  que  a  terra  assombrada  escute  o  raio; 
E,  Prometheo  sem  crime,  aos  céos  o  rouba,. 
E  em  nossas  mãos  depõe  o  ethereo  fogo. 

Mais  felizes  coro  tudo  os  habitantes 
Das  margens,  que  fecunda  alegre  o  Nilo ! 
Não  se  ouve  lá  tropel,  motim  dos  Euros 
Turbar  aos  ares  seu  murmúrio  doce; 
Em  aguas  o  vapor  não  se  resolve, 
Nem  do  seio  os  coriscos  lhe  rebentam: 
Lá  sempre  um  puro  sol  derrama  os  dias; 
O  céo  calmo,  e  risonho,  e  transparente 
Lá  de  saphira,  e  de  ouro  as  cores  veste: 
De  seis  luas  no  espaço  ao  grato  clima 
Dos  montes  de  Ethiopia  descem  chuvas; 
Reforçado  com  ellas  sobe  o  Nilo, 
Aguas  desmanda  pelo  egypcio  campo, 
Que  seus  thesouros  só  do  rio  espera: 
Quando  ás  portas  do  trópico  é  detido 
Phebo  por  Cancro,  longo  mar  se  anfolham 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  233 


As  campinas  do  Egypto;  é  ar,  é  ondas 
Tudo  quanto  appareee  slq  longe,  ao  perto: 
Cidades  se  abandonam,  formam-se  outras 
De  unidas  barcas,  onde  o  riso,  as  danças, 
Festins,  e  jogos,  e  harmonia  offertara 
Espectáculos  mil  por  toda  a  parte: 
O  Nilo  a  seus  canaes  emfim  recua; 
Fecundadas  por  elle,  e  sem  que  exijam 
Os  desvelos,  que  aponto  em  meus  preceitos, 
Sem  custo,  ou  adubío  as  messes  brotam; 
De  relva,  e  flores  no  verdor,  no  esmalte 
O  Egjpto  representa  um  prado  immenso: 
Quando  reina  entre  nós  o  brusco  Inverno, 
Cuja  grenha  erriçada  os  gelos  cVoam, 
Vós,  Zephjros,  briucaes  na  egypcia  plaga; 
E,  quando  a  relva  aqui  revive  apenas. 
Ao  ferro  ali  succu/iibe  a  flava  espiga. 

Oh  vós  com  quem  não  tanto  é  de  seus  mimos 
Pródigo  o  céo,  vivíssimos  ardores 
Esperae  do  Leão :  quando  elle  impera 
As  messes  brilliam  como  o  sol,  que  as  doura; 
A  espiga  encurva  a  testa,  e  d'entre  silvas 
Rouquejando  a  cio^arra  invoca  a  ceifa: 
Já  pacifico  exercito  se  avança, 
Toma  a  fouce  na  mão,  e  os  trigos  sega; 
Derramados  sem  ordem  ficam,  jazem 
Por  aqui,  por  ali;  depois  em  feixes 
Em  ligados  montões  amarellejam. 


234  OBUAS  DE  BOCAGE 


De  míseros  que  chusma  (oh  céos!)  é  esta? 
Colhe  laboriosa  a  passo  lento 
A  espiga,  que  escapara  aos  segadores: 
Ah !  não  lhe  arrebateis,  deixae-lhe,  avaros, 
Tão  ténue  parte  de  tão  vasta  herança; 
Dos  dias  seus  esse  alimento  escasso 
Perdido  foi  por  vós^  e  que  vos  presta? 
Deve-se  ao  pobre  o  que  sobeja  ao  rico.  .  . 
Kesto  (ai!)  único  resto  do  áureo  tempo 
Que  os  homens  via  irmãos,  sem  dono  a  terra; 
Áureo  tempo  era  que  tudo  era  de  todos! 
Deixae  que  um  monumento  ao  menos  dure 
Do  sagrado  poder,  que  a  seu  monarcha 
A  Natureza  deu,  as  leis  tiraram. 

Entretanto  na  herdade  amontoadas 
Róçam-te  os  tectos  as  pavêas  tuas, 
Emtorno  aos  muros;  tens  no  meio  a  eira, 
E  instrumento,  que  açouta  os  louros  fructos. 
Força  a  depor  seus  grãos  avara  espiga; 
Volteando  com  arte  outro  mil  vezes 
Cáe,  e  recáe  nas  ordenadas  messes. 
Ao  repetido  embate  o  chão  resôa, 
Co'a  palha  misturado  o  trigo  voa. 

Nos  climas  onde  o  sol  não  se  annuncia, 
Onde  mui  raro  tempestêa  o  vento, 
Dispõe  firme  terreno  á  eira  tua, 
Que  herva,  ou  formiga  penetrar  não  possam, 
E  que,  as  planícies  dominando  em  roda, 


POKMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  235 


Granhe  o  bafo  subtil  de  aragem  mansa: 

Lá  teus  ai  mos  depósitos  se  levam, 

Lá  da  celeste  abobada  se  fiam, 

E  arte  do  segador  com  taes  auspicios 

Ergue  as  brilhantes,  as  barbadas  torres, 

Que  tem  debaixo  dos  dourados  tectos 

Era  aperto,  em  resguardo  os  teus  thesouros. 

Depois  na  eira,  em  circulo  ordenadas, 
Vós,  pavêas,  sofFreis  a  planta  equina: 
Ao  pezo  de  seus  crebros,  duros  passos 
As  amarellas  hastes  arrebentam, 
E  escapa  inteiro  grão  da  rota  espiga; 
O  crivo,  meneado  em  máo  ligeira 
Do  estranho,  leve  pó  separa  o  trigoj 
A  palha  voa,  foge,  e  o  grão  já  puro 
Altamente  os  celleiros  te  abastece. 

O  tempo  da  abundância  è  da  alegria, 
O  homem  possue  a  principal  riqueza: 
Como,  extincta  a  procella,  os  nautas  gosam 
Doce  repouso  na  enseada  amiga, 
Taes  quietos  na  eira  os  lavradores 
Vêm  dos  trabalhos  seus  o  fim,  e  o  premio; 
Tudo  pinta  o  prazer,  são  risos  tudo; 
Parece  que  Hymenêo  de  dia  em  dia 
N'esta  aldêa,  e  n'aquella  accende  os  fachos: 
Eis  aqui,  eis  ali  campestres  jogos, 
Festins,  canções  d'alto  arvoredo  á  sombra; 
O  gado,  o  fuso  á  pastorinha  esquecem, 


236  OBRAS  DE  BOCAGE 


Aparta-se  o  pastor  de  seus  rebanhos, 
De  seus  campos  o  agrícola  se  aparta; 
Meninos  em  tropel  com  anciã  os  seguem, 
E  atraressam,  pulando,  agrestes  danças; 
Sobre  a  palha  novinha  os  ouço,  os  vejo, 
Matizando  os  prazeres  da  innocencia, 
Na  lucta,  na  carreira  exerci tar-se, 
Vejo-os  cair,  erguer-se,  e  rir  da  queda: 
Mais  longe  amantes,  que  a  ternura  inflamma, 
Sentados  sobre  o  colmo  apprestam  laços 

*  Encanto  da  existência,  origem  d'ella, 

*  Taes  que  se  a  eterno  ardor  m'os  não  vedara 

*  Muro  erguido  entre  nós  por  mão  do  Fado, 

*  Se  prisão  tua,  e  de  um  mortal  não  fossem, 

*  Comtigo,  Analia,  me  fariam  nume. 
Felizes  aldeãos !  Sua  alma  ingénua 
Da  profana  cidade  ignora  os  vicios; 
De  volúvel  paixão  caprichos  firmam, 

E  em  corações,  que  nem  desprende  a  moite, 
Se  une  Hymeneo  a  Amor,  pureza  ao  gosto. 

Tu  celleiros  propicies  cauto  escolhe. 
Ao  frio,  á  calma  impenetráveis  sejam; 
Francos  aos  Nortes,  satisfeitos  d'elles. 
Teu  louro  cabedal  dos  Sues  preservem; 
Desvelados  teus  olhos  o  examinem, 
E  com  robustas  mãos  se  espalhe,  e  mova: 
Teme  a  quente  estação;  n'ella  apparece 
O  gorgulho  cruel;  esse  inimigo, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  237 


Contagioso  insecto  os  grãos  traspassa, 

Os  come,  ou  inficiona:  inda  o  não  sabes, 

E  o  numero  fatal  de  seus  enxames 

Já  dos  trigos  ao  numero  equivale ; 

Não  destruindo  a  raça  matadora 

Fica  o  roído  grão  poeira  todo: 

Do  vinho  o  cheiro  activo,  e  plantas,  flores, 

O  álbo  importuno,  que  ao  colono  é  grato, 

O  óleo  também  que  de  um  rochedo  emana; 

São  dons  da  Natureza  úteis  venenos. 

Caterva  de  formigas  sáe  das  covas. 
Investe  as  eiras,  o  celeiro  investe; 
Longo  exercito  marcha  em  campo  estreito 
No  transporte  do  espolio  ferve  a  turba: 
Esta  o  pezado  grão  conduz  na  boca, 
E  aquella  maior  furto  a  rastos  leva; 
Regem  outras  o  passo,  á  obra  incitam : 
Suas  próvidas  leis  convém  que  imites, 
O  exemplo  d'ellas  teu  desleixo  emende ; 
Mas  cerra  os  armazéns  á  negra  chusma, 
E  atulha  os  subterrâneos  onde  habitam : 
Ha  para  as  destruir  mais  fácil  meio; 
Entorna-lhe  no  asylo  agua  fervente, 
Colhe  as  formigas  na  innuudada  estancia, 
E  em  Ígneas  ondas  o  inimigo  affoga. 

Porque  03  thesouros  de  teus  campos  durem, 
Arte  simples,  e  nova  dá  leis  certas : 
Na  joeira  se  alimpe,  e  da  humidade 


238  OBRAS  DE  BOCAGE 


Isempto  para  sempre  o  trigo  seja; 
Uma  estufa  prepara,  onde  ar,  que  a  enche, 
Se  abraze  em  fogo  occulto,  e  creste,  e  mate 
O  insecto  devorante,  o  germe  ignoto; 
Esta,  que  Duhamel  lia  dado  á  França, 
Arte  profícua  te  defende  os  trigos; 
Este  asvlo  não  soffre  o  bicho,  as  aves. 
Mas  quer  ventilador,  que  o  ar  lhe  innóve. 
Ou  um  moinho  o  agite,  e  ao  grão  já  quente 
Allivio  salutar  nas  azas  mande. 
Ou  dous  flexiveis  folies  á  porfia 
Aspirem  sempre  o  ar,  que  o  grão  refresque: 
Ar  segue  o  ar  que  o  foge,  aperta,  e  entra, 
B  se  insinua,  e  sáe  rapidamente; 
D'est'arte  o  trigo  teu  refrigerado 
De  todo  o  mixto  impuro  está  liberto. 

Meio  mais  fácil,  da  experiência  filho. 
Grãos,  e  semente  ao  lavrador  conserva: 
Quando  da  ardente  abóbada,  que  os  coze, 
Já  prestes  a  nutrir-te  os  pães  se  tiram. 
Se  ali,  d'onde  elles  saem,  se  ali  o  amédas 
Necessário  calor  o  trigo  encontra, 
E  forte  apoz  dous  dias  secco,  e  puro 
O  verás  salvo  do  inimigo  insecto. 

Sáe  a  colheita  emfim  de  teus  celleiros. 
Leva  a  mil  partes  abundância,  vida, 
E,  por  diversas  plagas  circulando, 
Ella  anima,  repara,  escora  o  mundo: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  23& 


De  pródigos  verões  ceifa  ditosa 

Soccorros  affiance  a  estéreis  annos; 

Debaixo  da  cal-viva  agasalhado, 

E  em  funda  cavidade  incluso  o  trigo 

De  Invernos  cento,  ou  mais  não  teme  afrontas. 

Mas  vós,  que  d'e3tes  bens,  ó  camponezes, 
Não  podeis  nos  casaes  erguer  montanhas, 
Ah  !  que  fareis,  se  a  carestia  horrenda 
Semear  amargura  em  vossos  lares 
N 'esses  tempos  fataes?  Que  é  do  regresso? 
A  opulência  obterá  de  férteis  climas 
O  que  infecundas  terras  vos  negarem, 
E  não  descubrireis  n'um  campo  ingrato 
Mais  que  a  fome  voraz,  e  logo  a  morte: 
Oh  vós,  a  que  a  abundância  o  luxo  apura, 
Indigência  adoçae  de  mil,  que  gemem ; 
E  titulo  a  penúria,  um  jus  sagrado 
Tem  á  vossa  piedade,  e  é  uma,  é  uma 
Das  nossas  precisões  fazer  ditosos: 
Cidades  imitae,  que  oppõem  á  fome 
Deposito  commum,  zelados  trigos; 
N 'esses  ricos  montões  se  alenta  o  pobre : 
Eis  os  campos  que  tem  quem  não  tem  campos. 

Lá  das  margens  do  Escaut  que  gritos  soam ! 
Povos  cultores  das  flamengas  terras. 
Vingava  o  trigo  vosso ;  a  nova  quadra 
Ampla  colheita  promettia  aos  votos: 
De  repente  a  discórdia  o  medo  esperta; 


240  OBRAS  DE  BOCAGE 


A  paz  ao  som  das  armas  treme,  e  voa ; 

Respira  tudo  raiva,  e  guerra,  e  morte, 

Dos  ávidos  soldados  tudo  é  preza: 

Nas  tristes  margens  atterrado  o  rio 

Vê  consternadas  mães  fugir  ante  elies; 

Os  convulsos,  attonitos  pastores 

Incitam  para  as  próximas  aldeãs 

Do  timido  rebanho  os  lentos  passos; 

Aos  olhos  do  colono  o  ferro  brilha, 

Desampara  gemendo  os  bois,  o  arado, 

E  a  vista  com  saudade  aos  campos  volve; 

Campos,  que  não  lavrou  para  inimigos ! 

O  bronze  atroa  os  céos,  baquêam.  muros, 

Defensores  não  ha;  morreram,  morrem: 

As  torres  crê  Tournai  remir  do  estrago: 

Onde,  oh  germanos,  batavos,  inglezes. 

Onde  ides?  Que  produz  o  auxilio  vosso? 

Vinga r-vos  Curaberland  debalde  empreende: 

Luiz  voa  ao  perigo,  a  gloria  o  chama: 

Vede  de  Fontenoi,  vede  nos  campos 

Destemidos,  magnânimos  guerreiros 

Que,  olhando-os,  elle  inflam  ma,  e  guia  aos  louros ; 

Reluz  prudência  do  meu  rei  ao  lado, 

Reluz  grandeza  heróica,  e  brio  ufano; 

Nas  phalanges  adversas  bramam,  lavram 

Esperança  fallaz,  e  presumpçosa, 

Temeridade  insana,  insano  oroulho: 

Entre  elles,  e  entre  nós  audaz  braveza 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  241 


De  fileira  em  fileira  esparge  a  morte; 

Mas  o  Thréicio  numen  carrancudo 

Costa  scena  de  horror  corta  o  progresso, 

E  só  furores  vãos  deixa  aos  vencidos. 

Os  passos  de  Luiz  segue  a  victoria; 

O  heróe  triumphante  a  humanidade  escuta, 

Lamenta  o  sangue,  que  os  trophéos  lhe  importam, 

E,  porque  outorgue  a  paz,  só  quiz  a  palma. 

Delicias  do  teu  povo,  oh  rei  sublime! 
A  tão  recto  desejo  os  céos  annuem: 
Já,  já  vão  renovando  os  lavradores 
Seus  puros  passatempos;  e,  a  teu  nome 
Co'a  voz  do  coração  mil  vivas  dando, 
Dirão  a  nossos  netos:  «Messes,  festas 
Devemos  a  Luiz;  não  preza  menos 
Venturas  nossas  que  proezas  suas. » 


16 


242  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ojí?L3Sra?0    SEO-XJKTIDO 


DAS  YINHAS 


Já  celebrei  cultura,  e  dons  de  Ceres : 
Acode,  vinhateiro,  ás  vozes  minhas; 
Teus  outeiros  dispõe,  sazone  o  cacho, 
Nas  adegas  depois  se  envase  o  néctar. 

Eu  vou  cantar  beneficências  tuas : 
Meu  estro  altêa,  'oh  Deus,  que  preservaste 
Do  naufrágio  do  mundo  um  ente  pio, 
Gran  patriarcha  das  edades  duas, 
Que,  da  vinha  cultor,  seus  usos  soube. 

O  homem,  subido  da  maldade  ao  cume, 
O  raio  vagaroso  assoberbava; 
E  disposto  á  vingança  emfim  o  Eterno 
Já  ia  exterminar  perjura  estirpe: 
Um  justo  o  suspendeu;—  Noé  somente, 
Só  em  todo  o  universo,  obteve  a  gloria 
De  que  os  céos  d'entre  os  ímpios  o  estremassem ! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  243 


Assim  que  a  lignea  estancia  elle  findara, 

A  terra  com  seus  povos  foi  proscripta ; 

Ferrenho  o  pólo,  o  pólo  inexorável 

Ante  OS  olhos  attonitos  derrama 

Torrentes  até 'li  nos  ares  presas; 

Solto  o  Oceano  da  barreira  im movei. 

Onde  a  mão  do  seu  Deus  lhe  estreita  as  fúrias, 

Sáe,  corre,  ferve,  brama,  innunda  a  terra; 

Tudo  morre  entre  as  ondas,  tudo  morre: 

A  arca  só  do  universo  é  a  esperança. 

N'isto  o  senhor,  e  o  páe  da  Natureza, 
Por  sua  rectidão  desaggravado, 
A  cholera  mitiga,  acena  aos  ventos, 
Que,  os  céos  acrysolando,  a  terra  enxugam : 
Pouco  a  pcuco  resargem  penhas,  serras; 
O  remi  dor  baixel  no  Arménio  monte 
Encalha  finalmente;  as  ondas  fogem 
Por  aqui,  por  ali  a  estrada  abrindo, 
E  como  que  as  montanhas  nascem  d'ellas; 
Entra  mugindo  o  mar  no  leito  enorme, 
E  volve  etherea  lympha  ao  seio  ethereo. 

Mas  do  salvo  mortal  qual  é  o  espanto ! 
Que  lugnbr.es  mudanças  pavorosas 
Vê  no  seu  domicilio !  Eis  alterada, 
Eis  d'íAgua  a  terra  abeita  em  fundas  bocas 
Os  matizes  perdeu,  perdeu  o  esmalte, 
K  confuso  montão  de  lodo,  e  rochas; 
Já  nas  rotas,  misérrimas  entranhas 


244  OBRAS  DE  BOCAGE 


Os  suecos  lhe  não  correm :  fero  ainda 

De  nuvens  todo  o  ar  se  entenebrece : 

O  homem  treme,  e  recêa  outros  nauframos. 

Mortalj  Ucão  descorçôes;  Deus  promette 
Que  nunca  a  terra  ingrata  os  mares  sorvam: 
Attenta  no  arco,  de  alliança  abono, 
Que  d'hora  avante  a  divinal  clemência 
Entre  si,  e  entre  nós  de  todo  firma. 
Eterna  mão  por  benefícios  novos 
A  terra  formosêa,  onde  gravara 
Do  seu  vasto  furor  signaes  tremendos; 
Um  Deus  se  digna  de  ensinar  aos  homens 
Arte  ditosa,  que  em  liquor  celeste 
Muda  espremidos,  saborosos  cachos: 
Este  néctar  possante  innova  as  forças 
Do  mortal  quebrantado ;  os  risos  gera, 
E  co'a  fecunda,  cordeal  virtude 
O  mundo  consolou  do  equóreo  estrago. 

Juntas  cepas  Noé  dispôz  em  ordem. 
Armado  do  podão  talhou  sarmentos; 
Ao  pezo  de  seus  pés  purpureados 
O  cacho  rebentam,  e  ante  seus  olhos 
Correu,  pondo-lhe  espanto,  o  vinho  em  ondas. 

Arménia  te  gostou,  nectareo  sueco; 
A  Grécia  com  fervor  te  quiz  no  seio; 
De  colónia^  e  colónia  em  mãos  a  vinha 
Passou  dos  orientaes  ao  campo  Ausonio; 
O  Ebro  vestiu  com  ella  as  praias  suas, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  245 

E  para  haver  seus  dons  o  gallo  antigo 
Eochedos  commetteu,  transpoz  montanhas: 
Cedo  o  Erídano  o  viu  co'as  mãos  ovantes 
Roubar-]he  o  sumo  dos  vinósos  bagos : 
Antes  de  submetter-se  ás  leis  de  Roma 
O  Arecómico  volco  em  nossos  climas^ 
Já  do  Rhodano  a  vinha  ornava  as  margens: 
Centre  seus  hioros  MaPiielone  admira 

o  o 

Ladeiras,  que  de  pâmpanos  se  adornam: 
Submisr^o  ao  jugo  do  adorável  Probo 
Desdenha  os  fructos  da  azinheira  o  coita, 
Os  bosques  arrancando,  acolhe  as  vides; 
E  com  seus  vinhos  e^ual mente  o  belp-a 
As  frias  ax^uas  tincre  ao  Vossa,  ao  Rheno. 

Tocando  a  rica  phmta  o  chão  germano 
Seus  verdes  braços  á  Panonia  estende; 
Mas,  porque  aos  tenros,  melindrosos  filhos 
Recêa  os  golpes  da  geada  infesta, 
Climas  foge  onde  a  Ursa,  o  Carro  assomam, , 
E  da  fogosa  ecliptica  os  ardores 
Sobre  arêa  africana  escádeas  torram. 

Entre  estas  flammas,  e  os  gelados  pólos 
A  sombra  de  um  céo  brando  existem  plagas 
Onde  os  Favonios  amaciam  Bóreas, 
Onde  chuveiros  o  calor  temperam, 
E  na  carreira  obliqua  o  sol  constante 
Abre  para  os  mort^ies,  lhes  assegura 
Fructos  formosos,  e  formosos  dias; 


246  OBRAS  DE  BOCAGE 


Eis  O  terreno  ás  cepas  deleitoso: 

Lá  surge  a  parra,  madurece  o  cacho; 

Mas  ha  paragens  ali  mbsmo  ingratas, 

A  que  repugna  sem  virtude  a  cepa, 

E  a  que  nunca  se  afaz.  Parca,  ou  estéril 

E  sobre  chão  barrento;  é  forte  em  pingue; 

Mas  tristemente  fértil:  esconder-lhe 

Cumpre  no  abrigo  de  amoravel  clima 

Septentrioual  carranca,  e  ventos  bravos. 

Ama  o  escasso  pendor  do  um  bello  outeiro, 
Onde  a  terra  sulphurea,  leve,  unida 
Em  chão  fragoso  co'a  volante  arêa, 
Recebe  toda  a  luz  do  sol  mais  vivo. 
Ali  (mercê  dos  reflectidos  lumes) 
De  óptimos  fructos  se  enriquece  a  vinha ; 
Seixos,  por  lavra  e  lavra  alija  gastos, 
Cospem  chamma  efficaz,  que  aos  troncos  salta: 
Assim  vemos  a  pedra  onde  elle,  occulto^ 
Do  frio,  duro  seio  é  arrancado; 
O  aço  prompto  a  golpea,  sáe  do  embate 
ígnea  scen telha,  e  pula,  e  brilha,  e  morro. 

De  altíssimos  outeiros  no  recosto, 
Onde  a  cepa  firmar-se  apenas  pode, 
Fervente  g^lluvião,  que  vem  dos  montes, 
Valles  com  teus  plantios  alastrara. 
Se  duplicados,  vigorosos  muros 
Da  procedia  ao  furor  não  fossem  diques; 
Esfarte  o  atavio  é  dos  fecundos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  247 


Serros,  que  o  Tarn,  e  o  Rhodano  humedecem : 
Lá  diligentes  mãos  vi  dia,  e  dia 
Trazer  dos  valles  os  torrões  lodosos, 
Cubrir  das  rochas  a  nudez  agreste, 
Comraunicar-lhes  vida,  e  fecundal-as: 
Emendando  a  madrasta  Natureza, 
Assim,  oh  arte,  amphitheatro  fóimas 
De  flores,  fructos,  e  arvores,  que  erguido 
Em  ledas  gradações  aos  montes  sobe, 
Onde  as  messes,  e  as  cepas  nascem,  pendem. 

Cavaste  os  regos;  á  experiência  toca 
Escolha  dos  plantios,  e  distancia: 
De  arraigados  pimpolhos,  que  verdejem 
Com  primaveras  três,  servir- te  podes; 
D'es3es  alumnos  teus,  que  no  viveiro 
Primicias  de  raizes  te  ofFertaram : 
Mas  isto,  assas  custoso,  assas  inútil. 
De  experto  vinhateiro  é  rejeitado;    - 
Imita-o,  corta  essas  estacas  fáceis 
Que  houveras  escolhido  em  troncos  férteis; 
Arrancados  á  mãe  renovos  tenros, 
Enfeixados,  captivos  n'agua,  ou  terra, 
Gráos  esperando  a  que  os  destiae  a  sorte, 
Logrem  frescura,  e  sem  raizes  vivam. 

Lá  quando  o  turvo  Aquário  em  nossos  climas 
Faz  que  reinem  com  elle  a  neve,  os  gelos, 
Conduze  ténues  hastes ;  a  esquadria 
Em  angular  feição  divida  a  terra : 


248  OBRAS  DE  BOCAGE 

Quer  vigoroso  chão  que  mais  se  apertem^ 
Que  se  desunam  mais  quer  uma  encosta; 
Dê-se  extensão  maior  aos  seus  carreiros, 
Se  provar  devem  da  charrua  o  ferro. 

Que  mão  destra,  os  plantios  concordando,. 
Misturar  saberá  géneros  vários? 
Bebida  singular  compor  desejas? 
Faze  liga  gentil  de  uvas  diversas: 
Esta,  que  abunda  de  calor,  de  força. 
Dá  corpo  aos  vinhos,  lhes  carrega  as  cores; 
Aquella,  de  sabor  mais  aprazível, 
De  condição  mais  branda,  oíf'rece  aos  lábios 
Liquor  deh cioso,  e  vivo,  e  leve; 
Cacho  de  superfície  alambreada 
Vinho  annuncia  espirituoso,  ardente, 
Mas  que  em  breve  se  altera:  alguém  que  saiba 
As  misturas,  e  os  números  contar-lhes, 
As  ondas  contará,  que  sobre  as  praias. 
Ou  contra  as  árduas  penhas  vem  romper-se. 

Segue-lhe  usos,  e  leis  em  todo  o  sitio; 
Regra  austera,  excepções  porém  sofFrendo; 
Segura  nos  seus  votos,  a  experiência 
Do  consummado  vinhateiro  é  guia: 
Morrendo  algum  renovo,  abaixa,  enterra 
De  cepa  um  mergulhão  com  que  visinhe; 
Successora  do  irmão,  do  sitio  herdeira. 
Mãe  seja  ali  de  descendência  nova. 

Fácil,  prompto  em  subir,  não  pouca^  vezes 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  24& 


Dobra  a  prazer  dos  ares  o  sarmento, 
E  a  custo  se  mant<^rn;  d'elle  apiedada, 
Soccorre  a  natureza  o  débil  ramo. 
Com  turtiiosas  mãos  o  corpo  lhe  arma: 
Eis  o  pâmpano  alonga  os  verdes  braços, 
Ajudador  visinho  em  torno  busca, 
S  se  ampara  com  elle;  é  necessário 
Prevê r-lhe  as  preci-ões.  Alta  na  Hetniria 
Casa-se  a  vinha  ao  olmo  inda  creança: 
]3esde  o  seu  nascimento  ambos  unidos. 
Um  por  outro  abraçados,  vivem,  crescein 
Os  ramos  amorosos,  e  não  tarde 
A  arvore  offrece  aos  olhos  admirados 
De^uvas,  e  parras  orgulhosa  a  fronte. 

E  profícuo  tancíião  bastante  apoio 
Ao  sarmento,  entre  nós  menos  altivo: 
Da  ufana  Ibéria  nos  ardentes  combros, 
Nos  que  a  margem  do  Rhodano  acompanham^ 
Jamais  soccorro  alheio  elles  imploram ; 
Força  própria  os  sustem,  sem  risco  sobem, 
Não  temem  fúrias  de  contrários  ventos, 
E  os  ramos  seus  com  desafoo^o  estendem. 

Honra  de  teus  vergéis,  a  vinha  ás  vezes 
Ouro  alardêa,  e  purjmra  dos  cachos ; 
Por  formosa  latada  eleva  os  fructos, 
Trepa,  e  roça  no  cume  encaniçado; 
Ou,  curvando  inda  tenra  a  dócil  rama, 
Os  parreiraes  de  pavilhões  te  c'rôa. 


250^  OBRAS  DE  B'.<(:    <JE 

Quando  o  murcho  sarmens^    is  galas  despe, 
Vae  podar,  bem  que  ainda  <iã-    voltasse 
Do  cultivo  a  sazão;  se  aca^o  mltas 
Ordinário  vagar  dos  vinbatcii    <. 
Se  do  geral  costume  és  cego  •     *r;ivo, 
Té  que  os  primeiros  Zephjro      .íspirem 
Mando  não  ousas  ter  nas  vinli    >  tuas: 
Em  vindo  a  primavera  acord    *    sueco, 
Anda  de  vêa  em  vêa,  anima  <»    ramos; 
E,  encontrando  a  ferida  abeit:!    e  frescn. 
Em  lagrimas  demais  elle  se  e>(  òa, 
Evapora-se  emfim;  porém  o  in    -rao 
No  podado  sarmento  aperta,  «'  <  ura 
Quantos  canaes  Ibe  lacerara  o  t  i  ro; 
Modera  os  prantos  seus,  e  as^in'  captivo 
O  sueco  se  mantém,  que  augni uta  os  fructos. 

Ás  lavras  finalmente  a  priniaxera 
Solto  exercício  dá:  nas  mãos  nr  \  o.-as 
Tomam  férreo  instrumento  os  \  inhateiros; 
Aos  golpes  os  torrões  lá  se  amolb^cera, 
Róçam-se  as  pedras,  se  atavia  o  campo; 
E,  de  saibro  visinlio  as  cepas  li\  les. 
Do  sol  aos  raios  a  raiz  devassam. 

Tens  as  collinas  destinado  á  1  ivi-a? 
O  mestiço  animal,  e  os  bois  conlnze; 
Entre  fileiras  de  arredados  troncos 
A  indómita  cerviz  lhe  afaze  ao  jugo: 
Assim  que  a  primavera  adoça  o  clima 


POEMAS  DJDACTIGOS  TRADUZIDOS  251 


Abre  os  olhos  a  vinha,  e  choros  verte; 

Recolhe  attento  as  valiosas  gotas ; 

Na  vista,  qtie  a  despiu^  renovam  graça, 

Com  ellas  volve  á  face  a  tez  de  rosas, 

E  a  pedra,  intensa  dor,  bebendo-as,  vae-se. 

Teme  porém  que  Zephyro  a  secluza, 
E  fervorosa,  e  de  chorar  canc;ada, 
Desdobre  a  vinha  não  prudentes  flores; 
Muda  Favonio,  primavera  engana: 
Da  plaga  nossa  rechaçado  ás  Ursa-, 
Oh !  quantas  vexes  o  medonho  inverno 
Torce  a  negra  carranca,  e  retrocede! 
Por  entre  virações  entoi'na  gelos, 
Rouba  á  terra  os  thesouros,  e  dev^ora 
Gratas  promessas  dos  raminhos  tenros. 

Se  da  saraiva  impetuoso  embate 
Rompe  do  germe  os  rebentões  primei ro>. 
Sê  também,  sê  cruel  para  salval-os : 
Do  cepa  logo,  logo,  as  novas  folhas, 
O  sarmento  verás  tornar~se  á  vida; 
Mas  os  renovos  seus  menos  valentes 
Provam-lhe  o  esforço,  e  juntamente  o  danmo. 

Se  até  na  cepa  volteando  o  sueco. 
Impróprios  frios  os  sarmentos  crestam, 
Cumpre  que  a  estéril  fronte  lhe  cercees, 
Cumpre  que  lhe  abras  os  gelados  corpos, 
E  que  outro  fértil  ramo  ali  situes: 


252  OBRAS  DE  BQpAGE 


O  tronco  o  adopta,  e  mais  feliz,  mais  farto 
Dá  novos  fructos,  numerosa  prole. 

C'roam-se  em  tanto  os  pâmpanos  de  flores, 
E  recolhem  do  sol  eàlor  propicio; 
Mas,  se  o  planeta  por  mais  ampla  estrada 
Sobe  ao  cuflTe  da  abobada  celeste. 
Porque  aos  raios  phebeos  a  vinha  esquive 
O  cauto  vinhateiro  ampara  as  cepas; 
Com  a  enxada  nas  mãos  abre  o  terreno, 
A  pérfida  raiz  destróe  das  hervas, 
Em  visinhança  ao  tronco  estacas  planta, 
Que  os  braços  lhe  mantém  quando  se  alonga; 
Rege  os  pimpolhos,  que  no  extremo  abundam, 
Um  ramo  se  condemna,  outro  se  escolhe. 
Prende  a  altivez  de  ambiciosa  folha, 
E,  se  lhe  empece,  um  botãosinho  arranca: 
Mais  fecundo  perdendo  ávidos  filhos, 
Só  ramos  úteis  fortalece  o  tronco. 

Formam-se  os  cachos,  e  o  calor  bem  cedo 
Ha  de  pintar-lhes  duvidosas  cores: 
Quando,  cubrindo-os  a  folhagem  densa, 
'  Oppõe  á  luz  diurna  um  v<30  sombrio, 
Tornem-lhe  a  luz,  e  mais  vermelho  o  fructo 
Vê-se  que  ao  sol  de  purpura  se  tinge: 
Em  vicejando  sem  arrimo  as  cepas, 
Basta  entrança r-lhes  a  madeixa  longa. 

Jamais  das  vinhas  te  enfastie  o  amanho^ 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  25o 


Elias  soccorros  teus  assíduos  querem: 
Já  forte,  e  nova  terra  estão  rogando, 
Já  nutrimento  de  abundoso  estrume; 
Herva  destróes  em  vão,  e  em  vão  repulsas, 
Ella  se  reproduz;  teima  em  tiral-a: 
A  nojosa  lagarta,  occulta  aos  olhos, 
Prole  depõe  no  pâmpano  recente, 
Se  esconde,  envolve,  e  da  folhage  infecta 
No  curvo  seio  em  segurança  vive. 

Pernicioso  insecto  eis  sáe  da  terra, 
E,  roendo  a  raiz,  fez  guerra  ao  fructo: 
Dos  caracóes  o  rojador  enxame 
Com  a  escuma  tenaz  corrompe  as  uvas; 
Contra  taiito  inimigo  ar  mar- te  deves, 
E  os  damnos  com  desvelo  acautelar-lhe : 
Ergue  uma  balsa,  os  herriçados  muros 
D'ali  rebanhos  com  o  espinho  arredem ; 
Da  cabra  mais  que  tudo  o  infenso  dente 
Para  a  cepa,  que  fere,  é  peçonhento: 
De  trabalhos  um  circulo  te  abrange; 
O  anno  aponta,  voltea,  e  retrocede. 

A  quadra  mais  feliz,  mais  opulenta, 
O  outomno  a  teus  desejos  apparece: 
Cal:i-se,  e  dorme  o  vento,  o  sol  no  giro 
Distribue  egualmente  a  noute,  e  o  dia; 
De  importunos  ardores  livre  a  terra 
Espira  os  molles  Zephyros;  a  planta, 
Toda  pomposa  dos  seus  dons  mais  bcllo''; 


254  OBKz\S  DE  BOCAGE 


Já  para  nos  brindar  inclina  os  ramos; 

De  fructos  mil  c'roada  a  Natureza 

Nos  convida  ao  festim,  que  lhe  orna  a  meza; 

O  cacho  aos  olhos  sasonado  oíferta, 

E  envolto  em  superfície  azul,  ou  roxa. 

Dado  o  signal,  encota-se  a  vindima; 
Enxame  camponez  caminha  á  pressa, 
Dirige-os  o  prazer;  co'as  mãos  activas, 
Da  cantilena  ao  som,  cercêam  cachos; 
Porém  fructos  com  eiva,  ou  abortivos 
Do  thesouro  commum  são  refugados; 
Deixa  esses  bagos,  alimento  de  aves, 
Não  te  manche  os  toneis  seu  podre  sumo: 
Aos  cachos  apanhados  n'um  só  dia 
Não  dás  um  só  destino;  estes  se  elegem 
Entre  mil  para  a  meza,  e  se  mergulham 
N'agua  fervente  de  que  surgem  brandos; 
O  sol  murchou-lhe  a  flor  da  mocidade, 
B  rugas  a  velhice  antecederam; 
Aquelles,  cujo  preço  é  venerado 
Da  quadra  fria,  engelham-se  nos  tectos, 
Pendentes  envelhecem  manso  e  manso. 

Acolheu-se  a  teus  muros  a  vindima, 
Folhas  enjeití^s,  e  a  despida  esgalha; 
Sobre  taboas  depois,  com  arte  unidas, 
Nús,  vigorosos  pés  espremem  cachos: 
O  sumo  em  grossas  ondas  vae  manando; 
Preso  nas  pipas,  nos  toneis  captivo 


POEMAS  DIDÁCTICOS   TRADUZIDOS  255 


Fuma,  ruge  o  liquor.  e  sobe,  e  ferve; 
E  co'a  pelíe,  que  ti-  ir",  misturado 
Toma  o  lustre,  o  cn       do  um  vivo  fogo. 

Cinco  vezes  a  iv-      ■  os  véos  desdobra, 
Cinco  vezes  o  sol  (i     í'  z  as  trevas, 
E  ofota  a  ^ota  nos  c  \  staes  filtrado, 
Qual  brilhante  rubi,   -áe  puro  o  vinho; 
Convém  que  saia  então  da  cuba,  e  seja 
Das  fezes  desviado:  <>s  ligueos  muros 
Dos  vasos,  que  encli  i,  o  cárcere  lhe  apertem. 

Era  em  Grécia,  em  Ausonia  um  tosco  barro 
Estancia  frágil  dos  f aventes  mostos: 
Ou  no  seio  de  um  o  ire  amotinados 
Não  poucas  vezes  a  {nisão  rompiam: 
Teu  povo,  oh  mãe,  oh  Grallia  industriosa, 
Soube  em  curva  ma(l^M'ra  obstar-lhe  ás  fúrias, 
Taboas  juntando,  circumdadas  de  arcos, 
De  invencivel  cadea  os  opprimiam. 

Quando  fallece  o  viulio  á  cuba  exhausta 
Toma  dos  bagos  o  funia«te  espolio: 
Eil-os  já,  no  lagur  accumuludos. 
Ao  pezo  gemem  de  abatidos  fusos; 
>Sáem  da  uva  esmagada  os  sumos  logo, 
E  regatos  de  vinho  a  terra  innundam; 
Tropel  vindimador  ao  vel-os  folga, 
Tomam  copos  nas  mãos,  dão  g?'andes  sorvos; 
E,  se  outra  vez  na  cuba  introduzirem 
Estas  já  fezes  languiu. is,  cançadas, 


256  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  as  afogíirem  n'agua,  em  breve  a  coram; 
Apparejíciji  de  vinho  engana  os  olhos, 
Sueco  (l*  expressos  bagos  a  presumem. 
Mas  do  falso  h*quor  o  travo  insulso 
Mostra  a.  franqueza  da  mistura  imprópria. 

Eia,  engenhoso  amante  de  áureo  vinho, 
Queres  que,  rindo  aos  olhos,  saiba  ao  néctar? 
Nunca  doá  cachos  te  allicie  o  alambre, 
Dão  liquor  fraco,  amarelleja  em  breve; 
Nasce  vivo  liquor  das  uvas  negras, 
E  experto,  e  scintillante  a^  quadras  vence: 
Arte  se  deve  de  Champanha  aos  povos 
Que  um  corpo  aos  vinhos  dá  firme,  e  durável; 
Est'arte  presta  só.  Depois  da  aurora 
Aos  lumes  de  um  sol  puro  escolhe,  apanha 
TJvas  tintas  de  azul,  e  inda  orvalhosas; 
Esteude-as  mollemente,  e  vae  d'espaço 
Lançal-as  n'esse  dia  em  teus  lacrares, 
Sintam  do  fuso  os  golpes;  ser  costumam 
Primeiros  prantos  seus  seus  dons  mais  doces; 
Humor,  que  sse  lhe  extráe  do  seio  á  força. 
De  um  pallido  rubi  tem  cor  incerta. 

Lá  nas  adegas  que  ruido  soa! 
Que  ondas  são  estas,  que  em  toneis  escumam! 
Deixa  liv]e  abertura  ao  mosto  accezo, 
E  sem  custo  entre  o  ar,  saia,  e  murmure: 
D'est'ar;ej  quando  tubos  aprisionam 
Ondas,  que  vão  cair  n'um  tanque  va  ,   , 


POEMA.S  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  257 


Recêas  que  do  vento  o  bafo  incluso, 
E,  agua,  espertada  na  prisão  por  elle, 
Unindo-se,  os  canaes  arrombem  todos, 
E  abres  então  respiradouros  livres: 
No  cárcere  egualmente  o  vinho  ruge, 
Levanta  borbulhões,  e  crê  que  o  rompe ; 
Escumando  se  apura;  ajuda-lhe  o  erro, 
Nutre-lhe  a  fúria,  porque  amanse  o  fogo; 
Ardores  juvenis  tempera  a  edade; 
Repousam  finalmente,  e  se  amaciam. 

Então  dos  lares  teus  os  subterrâneos 
Emtorno  aos  muros  os  toneis  acolham : 
Resguardar-te  as  adegas  deve  a  terra; 
Se  os  éccos  do  trovão  teu  vinho  assustam, 
Move-se,  ferve,  turba-se,  descora: 
O  aceio  impere  na  tranquilla  estancia, 
E  a  todo  o  cheiro  inaccessivel  seja: 
Longe  ess'arte  impostora,  essa  que  os  nossos 
Puros  bens  viciando,  ao  vinho  ajunta 
Agradáveis  peçonhas;  sobre  a  escoria 
Quando  mui  longo  esquecimento  o  d-eixe 
Que  elle  se  allie  co'a  inimiga  temam; 
Do  lodo  corruptor  largue  a  morada. 
Remoto  d'elle,  e  preservado  exista. 

Queres  que  os  vinhos  á  clareza,  ao  pico 
Aggreguem  seus  rubis,  ou  viva  espuma  ? 
Do  seio  dos  toneis  convém  que  os  tires 
No  tempo  em  que  renasce  a  Natureza. 

17 


258  OBRAS  DE  BOCAGE 


Seiba,  que  a  mocidade  á  vide  acorda, 
Opera  no  liquor,  e  anima-o  sempre: 
Depois  da  primavera  amadurece 
Aos  vinhos  o  vigor,  elles  alcançam 
Do  socegOj  e  da  edade  um  preço  novo. 

Se  a  despeito  porém  de  teus  desvelos 
Se  evapora  o  liquor  empobrecido, 
Ou  finalmente  azeda,  o  vicio  d'elle 
Certas  virtudes  tem ;  seu  gosto,  e  cheiro 
Insípido  manjar  corrige,  aduba; 
Contra  cem  males,  cujo  ardor  curtimos. 
Triste  mortal  nas  afflicções  o  implora; 
Dos  venenos  da  peste  a  fúria  extingue, 
E  o  fogo  precursor  da  raiva  horrenda: 
Aquelles,  cujo  braço  a  pátria  escuda, 
Abona  vezes  cento  a  força,  -e  vida; 
Saxe  aos  francezes,  aos  romanos  César 
Seu  uso  impondo,  seus  eíFeitos  viram. 

Oh!  Quanto,  e  quanto  é  devedora  ao  vinho 
Arte  assombrosa,  que  o  divide,  e  apura    - 
Por  meio  de  um  fornilho !  Em  ígneas  azas 
O  espirito  se  eleva,  e  resfriado 
Tardia,  frouxamente  se  distilla: 
Tacs  os  lumes  phebêos,  ou  térrea  chamma 
Vapores  erguem  dos  trovões  ao  clima; 
Os  corpos  no  calor  se  lhe  dilatam, 
O  frio  lh'os  aperta,  lh'os  condensa,  ■ 
E  descem,  prccipitam-se  dos  ares: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  259 


A  aguardente  no  lar  se  faz  d'est'arte; 
Se  por  novo  trabalho  a  rectificam, 
O  espirito  do  vinho  eis  despe  a  fleugina; 
E  livre  sobe,  e  cáe  purificado. 

Povo  de  Montpeliier,  a  industria  vc^^sa 
Do  vinho  usa  formar  útil  ferrugem, 
Útil,  mas  arriscada.  Ali  no  fundo 
De  escura  adega  raergulhaes  os  cachos 
Em  urnas,  onde  o  vinho  se  lhe  embebe: 
Batido  cobre  de  estendidas  folhas 
No  cacho  longo  tempo  está  confuso; 
O  vinho  ali  se  a-zéda,  ali  fermenta, 
B  o  exhalado  espirito  derrama 
Verde  vapor  na  ferruginea  massa. 

Bátâvo,  subsistir  com  taes  venenos 
Vcs  os  teus  diques,  e  as  cidades  tuas; 
Seguros  dentro  d'agua  os  alicerces 
D'insecto  estranho  tal  peçonha  os  livra: 
Tu,  cuja  mão  copia  a  Natureza, 
Tu^  cujo  audaz  pincel  dá  vida  aos  quadros, 
Enche-o  d'este  útil  pó;  com  elie  exprime 
Louçã  verdura,  que  ameniza  os  serros. 

Quando  o  vinho  nas  fezes,  novo  aiii  la, 
Vae  fermentando,  seu  fervor  se  apuia 
Dos  mais  grosseiros  sáes;  endurecido 
O  sarro  nos  toneis,  d'ali  tirado 
Se  aprompia  pára  mil  necessi.i 

ima,  que  dispuie  á  França 


260  '  OBRAS  DE  EOCAGB 


Dos  seus  famosos  serros  a  excellencia: 
L'Hermitage,  e  Cahors  aos  gostos  nossos 
Dão  generosos,  dão  maduros  vinhos, 
Vinhos  fartos  de  espirito,  e  constantes. 
Madureza  co'a  força  emparelhando, 
Os  de  Occitania,  e  Rhodano  assignalam; 
Lóte-os  experta  mão  com  outros  vinhos, 
E  affoutos  vão  luzir  dos  reis  nas  mezas. 
Liquores  que,  oh  Vienlia,  aromatizas 
Quão  gratos  me  seriam,  se  a  mal-firme 
Razão  minha  o  vapor  lhes  não  temesse ! 
Nas  aguas  seus  thesouros  estendendo, 
Vê  Garôna  o  solicito  britanno 
Que  os  perturbados  vinhos  lhe  carrega 
Nos  seus  lenhos  innuraeros;  os  vinhos. 
Que  sobre  as  aguas  em  passagem  longa 
Austera  condição  despir  costumam. 

Deleitoso  Borgonha,  a  ti  se  inclinem 
Tão  claros  nomes,  e  o  seu  rei  venerem: 
Une-se  alegre  bando  á  face  tua. 
Bebe  prazer,  saúde  a  largos  sorvos: 
Rival  digno  de  ti,  também  Champanha 
Risos,  jogos  conduz,  e  Amor,  e  as  Graças; 
Do  vivo  seu  líquor.  a  espuma  bella. 
Fendendo  o  ar,  que  a  aperta,  sobe,  e  pula; 
Na  luz  vence  o  crystal,  no  gosto  é  néctar: 
E mulos  immortaes,  ambos  contentes 
Da  vossa  fama,  sem  victoria  ob terdes, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  261 


Contendei-a  entre  vós,  armae  sequazes; 

As  guerras  suas  são  risonhos  brincos, 
;   Mimos,  e  amores  a  peleja  expertam. 

Ha  dourado  liquor,  brilhante  vinho 
[  Que  parece  os  prazeres  o  aprestaram; 

Seu  calor  salutar,  depois  de  ledo 

Opíparo  festim,  fomenta,  aquece 

De  já  cangado  estômago  a  tibieza: 

*  Nos  campos,  que  de  Tubal  houra  o  nome, 

*  Nectáreo  moscatel,  assim  prosperas. 

Reconheço  os  teus  dons,  e  teus  perfumes 
Amo,  oh  suave  humor,  que  a  custo  entornam 
Bagos  de  Frontignan !  O  precioso 
Tokay,  teu  digno  contendor,  te  eguala, 
Se  acaso  não  te  excede.  Ouro,  escondido 
Entre  o  terreno  onde  seus  cachos  surgem, 
D'elles  no  seio  co'a  substancia  casa: 
Inferiores  a  ti,  no  gráo  segundo* 
Repartem  nossa  escolha  os  outros  vinhos; 
Canárias,  Alicante,  e  Syracus^, 
Chiras,  e  Pacaret,  Málaga,  Ibéria 
O  gosto  acariciam:  Grécia  exalta 
Inda  de  Lesbos  os  vinosos  cumes, 
E  o  néctar  vosso,  oh  Tenedos,  oh  Chio. 
Sobre  ardente  brazeiro  a  Creta  em  Gnossia 
Condensa  pouco  a  pouco  as  malvasias: 
D'internas  brazas  o  Vesúvio  accezo 


262  OBRAS  DE  BOCAGK 


Vô  junto  a  seus  vulcões,  ás  lavas  suas 
Dos  cachos  emanar  liquor  fragrante. 

Ao  promontório,  cujo  pé  carrega 
No  Oceano  feroz,  *  onde  alta  Musa 

*  (Das  Camenas  do  Tejo  honra,  e  saudade) 

*  Grigante,  em  olhos  negro,  e  negro  em  boca, 

*  De  tormentas  coroou,  cingiu  de  agouros; 
^  Lá  quando,  sobranceiro  á  Natureza,  ^ 

*  Talhando  a  pego  immenso  as  virgens  ondas, 
"^  Esperanças  colheu  por  entre  horrores 

*'0  Occidental  Jason,  ao  promontório, 
Cujo  nome  os  baixeis  acoroçòa. 
De  nossos  campos  trasladadas  cepas 
Dão  vinhos,  cujo  succo^avelludado 
Toma,  africanos  céos,  á  sombra  vossa 
Aroma  encantador,  qual  não  gosáia 
Próximo  ás  fontes  d'oude  corre  o  Sena. 

Bem  que  vinhos  de  nome  a  Hetruria  aíFamem, 
Degenerado  tem  na  Hesperia  toda: 
Esses,  que  sobre  as  azas  d'aureos  versos 

*  (Versos  qug^íam  privar  co'a  eternidade) 
O  cysne  de  Venusa  aos  céos  erguia; 
Alba,  e  Cales,  e  Massico,  e  Falerno, 
Fracos,  doces  de  mais,  desenxabidos. 

Ha  longos  tempos  seu  louvor  perderam : 

*  No  espirito,  e  sabor  diversos  d'estes 

*  Em  altos  vinhos  se  abalisa  o  Douro. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  263 


Herdeiros  dos  romanos,  os  francezes, 
As  artes  amimando,  a  guerra  exercem; 
De  quem  subjuga  o  mundo  o  vinho  é  premio. 

Tu,  que  deste  canções  ao  terno  Horácio, 
Corre,  mago  liquor,  teus  dons  se  acclamem; 
Com  elles  nossos  males  tu  guareces, 
Escoras  a  fraqueza,  e  restitues 
O  juvenil  fervor  ao  velho  inerte; 
Es  alma  dos  festins;  quando  os  não  bonras 
Se  torna  sem-sabor  manjar  mimoso: 
Substancias,  que  provém  do  trigo,  e  fructos; 
As  perfumadas,  as  chinezas  folhas; 
Dos  grãos  de  Yemen  a  singular  bebida; 
O  cacáo  negrejante,  alimentoso, 
Taciturnos  liquores,  —  nada  usurpam 
A  tranquilla  rlTzão  na  mente  immovel: 
Tu  só,  néctar  divino,  é  que  insinuas 
Nas  almas  todas  esperança,  e  gosto. 
Da  sociedade  medianeiro  amável, 
Os  que  ódio  desuniu,  reconcilias; 
Dás-lhes  sereno  olhar,  benigna  face, 
E  união  cordeal  de  ti  renasce. 

Cego  nos  cultos  seus,  o  tempo  antigo 
Fez  das  vindimas  tutelar  deidade 
O  filho  de  Semeie;  á  sacra  fronte 
De  eterna  primavera  unia-lhe^s  graças: 
Em  carro,  a  que  ligou  panthéras,  lynces. 
Aos  crédulos  thebanos  Baccho  ensina 


264  OBRAS  DE  BOCAGE 


Seus  ritos,  seus  mysterios  vãos,  fallazes; 
De  uvas,  e  de  hera  engrinaldado  assoma, 
Pâmpano  sempre  verde  o  thyrso  lhe  orna: 
As  soqias,  pelo  mosto  avermelhadas, 
No  monte  Cjtheron  orgias  celebram; 
Faunos  lhe  estão  d'aqui,  d'ali  Sylvanos; 
Silêno  ou  cambalêa,  ou  vae-lhe  em  braços. 

Da  turba  os  phrenesís  irrita  Brómio; 
Eis  Lycurgo,  Penthêo  despedaçados, 
*  A  mãe  (ah!  já  não  mãe!)  lacera  o  filho: 
Aos  vicios  consagrado  o  culto  infando, 
E  ás  virtudes  fatal,  do  sábio  é  ódio: 
No  ardente  fanatismo  o  povo  accezo 
De  ramos  allegoricos  se  cobre, 
Pelles  de  tigre  veste,  e  sobe  aos  montes 
Ismaro,  ou  Pélio;  rápido  os  vaguêa; 
Religião,  piedade  o  torna  insano: 
Ménades  em  torrente  o  campo  innundam. 
Ferem  o  éneo  instrumento,  uivam  nas  serras^ 
E  a  douda  embriaguez,  gerando  excessos, 
Muda-lhe  o  culto  em  crime,  o  zelo  em  fúria. 

Das  festas  de  Lyêo  bando  atrevido 
Cedo  em  Athenas  a  tragedia  forma. 
Éschylo  a  cria,  Sóphocles  a  eleva, 
E  era  seus  versos  de  fogo  a  adora  o  mundo: 
Est'arte,  que,  pathetica,  terrível. 
Grande,  sublime,  audaz,  maior  que  todas, 
Galardoa  a  virtude,  atterra  o  crime, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  265 


De  brutaes  espectáculos  nascida, 

Filha  da  Insânia,  em  Grécia  ennobreceií-se, 

Em  Roma  descaiu,  puliu-se  em  França. 

Rival  dos  gregos,  e  das  orgias  suas, 
D'elles  as  saturnaes  colheste,  oh  Roma: 
A  par  de  seu  senhor  sentado  o  servo 
Egualdade  exprimiu  dos  tempos  de  ouro ; 
Licença,  embriaguez  por  toda  a  parte 
Séculos  de  innocencia  ousaram  crer-se: 
O  carnaval  emfim  d'este  proscripto 
Tumultuario  culto  exclue  o  pejo, 
Mas  o  espiriro  seu  tem  conservado. 

Politica  firmando  até  nos  gostos 
Sagrou-lhe  sobre  o  mar  Veneza  um  templo: 
Dos  tribunaes  ás  venerandas  portas, 
Sorrindo-se,  apparece  a  Liberdade, 
E  rigor,  subjeição  d'ali  remove; 
O  instante,  que  seus  jogos  annuncia, 
Da  cidade  atinada  o  siso  varre; 
Bellezas  mil  e  mil,  que  lá  no  centro 
Dos  tristes  lares  seus,  entre  altos  muros, 
Dias  arrastam  como  a  noute  escuros. 
Curvas  ás  férreas  leis  de  seus  tyrannos, 
Victimas  do  ciúme,  e  sempre  em  medos, 
Súbito  passam  da  amargura  ao  riso. 
Do  extremo  jugo  á  liberdade  extrema : 
Então  não  tem  poder,  nem  jus  o  esposo; 


266  OBRAS  DE  BOCAGE 


Então  lei  respeitável  crê  Veneza 
Vestir-se  o  rosto  de  emprestada  face; 
EUa  ao  mysterio  dá  se^^uro  asylo, 
Um  mortal  mascarado  é  quasi  um  nume. 

Que  impostores  de  espberas  se  rodôam^ 
De  caractei'es  vãos^  compassos,  vidros ! 
Que  insensatos  suppõem  que  arte  dolosa 
Allumie  o  porvir,  n'alma  lhes  lêa ! 
Levando  melhor  guia  os  amadores 
Nos  olhos  do  seu  bem  vão  ler  seus  fados: 
Esfoutros  á  Fortuna  altar  levantam, 
Ali  depõe  o  avaro  infames  votos; 
Medo,  esperança,  e  boa  ou  má  ventura 
Cem  palpitantes  corações  esforçam. 
Tremendo  aos  golpes  do  erradio  Acaso, 
Da  Sorte,  que  ora  dá,  que  outr'hora  usurpa 
Thesouros,  por  cegueira  á  Sorte  entregues, 
Todos,  té  quando  seu  favor  lhe  acode. 
Todos  (caterva  iniqua!)  sentem  menos 
Do  lucro  a  posse  que  o  terror  da  perda. 

A  scena  prazenteira  os  jogos  abre; 
Surgindo  lume,  e  lume  os  ares  crestam; 
Aos  lúcidos  festejos  sobre  as  aguas 
Succede  a  melodia,  apoz  seus  passos 
A  dança  faz  voar  gentil  enredo; 
As  margens  do  canal,  palácios,  praças 
Tudo  ri,  tudo  brilha,  assombra,  encanta; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  267 


E  OS  Gostos,  as  Delicias,  vencedores 

Da  Razão  grave,  e  da  Moral  severa, 

Por  entre  seus  trophéos  ali  recordam 

Artes,  feitiços,  illusões  das  Fadas, 

Té  ao  dia  em  que  as  leis  de  novo  imponham 

Jugo  aos  transportes,  aos  delirios  termo. 


268  OBRAS  DE  BOCAGE 


OufíLHSTTO  TEI^^CErRO 


DAS  ARYORES 


Bosques,  jardins,  vergéis,  mostrae-me  o  seio; 
Eu  canto~  os  vossos  dons,  e  abrio^os  vossos: 
Dado  ao  transporte,  que  influíra  outr'hora 
O  vate  Mantuano,  o  velho  de  Ascra, 
Sou  dos  francezes  o  primeiro,  que  abre 
Incógnitos  caminhos  no  Parnasso. 

Tu,  que  para  exaltar  plantas,  e  bosques 
O  mais  sábio  dos  reis.  Deus,  inspiraste, 
Lhe  ergueste  o  génio,  os  sons  lhe  dirigiste, 
Anima-me  a  cantar-te  as  maravilhas. 

Cavernas,  arvoredos,  gratas  sombras 
Com  doce  embriaguez  minh'alma  innundam; 
Brando  a  meu  verso  applaude-me  o  carvalho, 
A  fronte  inclina,  os  ramos  lhe  susurram, 
E  os  éccos  d'entre  as  penhas,  d'entre  as  selvas 
Duplicam  seu  murmúrio,  e  me  respondem. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  269 


A  Grécia  presumiu,  sonhou  que  os  deuses 
Povoavam  jardins,  montanhas,  bosques  ; 
Que  Pan,  Delia,  Priápo  ali  se  viam 
E  morava  uma  Nympha  em  cada  tronco: 
De  Dódona  os  milagres  admirando, 
Consultavam  prophetico  arvoredo: 
Sobre  carvalho,  aos  povos  adorável, 
Iam  colher  o  agárico  sagrado 
Feros  ministros,  druydas  cruentos; 
Ante  o  culto  plebeu  se  expunha  em  aras 
Penhor  ílcticio  do  celeste  amparo. 

Cumpre  á  Verdade,  oh  bosques  venerandos, 
Vosso  préstimo,  e  mimos  pôr  patentes: 
Os  primeiros  avós  nos  abrigastes, 
As  vossas  grutas  os  seus  lares  foram, 
Cidades  suas  os  recintos  vossos: 
Quando  errantes  mortaes  por  leis  se  uniram, 
E  ergueram  muros,  e  elevaram  tectos, 
Em  tectos  converteram-se  arvoredos, 
E  cub riram  com  regra  os  edifícios; 
O  cedro  se  accendeu,  na  umbrosa  estancia 
O  dia  resurgiu  por  entre  a  noute; 
O  penetrante  ardor  de  accezos  troncos 
Amacia  do  inverno  os  agros  gelos:      v 
O  pinho  sáe  dos  montes,  desce  ás  aguas, 
E  curvam-so  em  baixeis  as  moveis  selvas; 
O  Oceano,  que  divide  ao  mundo  as  plagas, 
O  laço  é  mesmo  que  reúne  as  terras; 


270  OBRAS  DE  BOCAGE 


O  liomem  vae  promptamente  aos  climas  todos, 
Fica  todo  o  universo  uma  cidade. 

Amplas  florestas,  alterosos  troncos, 
Mortal,  ao  teu  suor  não  se  reservam: 
Dos  arbustos  cuidado  o  céo  te  incumbe, 
Plantas,  bem  como  tu,  frágeis,  caducas; 
Pódès  co'a  mão  cbegar-lhe  ás  dóceis  testas, 
E  colher  nos  jardins  em  seus  raminhos 
O  tributo  das  flores,  e  o  dos  fructos; 
Os  bosques  são  jardins  do  Deus  do  mundo, 
Elie  só,  que  os  plantou,  é  que  os  cultiva: 
Sobre  as  azas  do  vento  o  £rão  fumndo, 
Voa,  em  mil  partes  cáe  por  ordem  sua; 
Deus  lhe  tira  do  seio  altivos  corpos, 
Firma-lhe  os  pés,  e  sempre  lhe  remoça 
As  frontes  immortaes  de  novas  folhas: 
A  floresta  de  Hercynia  inda  aos  germanos 
Troncos  presenta,  que  os  romanos  viram; 
O  francez  em  seu  clima  reconhece 
As  antigas  Ardennas,  onde  o  bardo 
Tingia  o  chão  com  victimas  humanas. 

O  homem,  cópia  cíe  um  Deus,  pó(le  imital-o 
Semear,  transplantar  como  lhe  apraza 
Os  dóceis  troncos,  as  pevides  leves. 
Ornar,  fazer  fecundo  estéril  campo, 
E,  entre  o  útil  favor  de  sombras  frescas, 
Do  sol  desafiar  todos  os  raios. 

Tu,  que  olhíis  para  lá  da  tua  edade^ 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  271 


E  ornar  queres  de  nm  bosque  a  herança  tua, 

Quando  a  neve  dos  annos  te  encaneça 

Colhes  sempre  algum  fructo  aos  teus  desejos; 

Educas  facilmente  a  mocidade 

Das  plantaSj  cubiçosas  de  agradar-te; 

Prazer  da  creação  vale  o  da  posse: 

Vê  seu  verde  nascente  rir,  e  abrir-se: 

A  linda  rama  passarinhos  voam, 

E  o  gorgeio  de  amor  encauca  os  bosques: 

Deves  a  teus  avós  tuas  florestas. 

Teus  avós  para  ti  lá  semearam, 

Tu  semêa  também  para  teus  netos. 

A  selva  tua  aos  Aquiles  voltada 
Tenha-lhe  os  sopros  entre  a  rama  presos: 
Quando,  crestada  dos  primeiros  frios, 
O  vento  a  folha  ás  arvores  arranca, 
Dos  campos  mais  visinhos  uns  trasladam 
Renovos  tenros,  de  raiz  mimosa. 
Que  rápidos  crescendo,  mas  sem  força, 
Seccam  de  languidez  em  campo  extranho: 
Outros  cingem-se  ás  leis  da  Nutureza, 
E  a  semente  mais  tarda,  e  mais  segura 
De  sombras  immortaes  seus  prédios  c'roa: 
Os  segundos  imito,  approvo  aquelles; 
Quizera  logo  que  em  trilhadas  sendas 
Os  olhos  discorressem  fundos  bosques. 

O  ferro  em  tuas  mãos  na  sua  infância 
Dos  arbustos  os  ramos  affeicôe; 


272  OBRAS  DE  BOCAGE 


Não  esperes  demais;  na  meninice 
Grangea-se  o  costuiDe,  e  vae  seu  jugo 
Té  á  velhice  reforçando  o  pezo: 
Se  de  humilde  arvoredo  te  contentas 
Dirige-lhe  o  machado  apoz  dous  lustros; 
Se  por  invernos  trinta  os  troncos  poupas 
Assombram  altas  arvores  teas  olhos; 
E,  se  illesa  medrasse  em  annos  cento 
A  rama  pelos  céos  se  roçaria. 

Em  pedregoso  chão  folga  o  carvalho ; 
CoUoca  junto  d'elle  o  róbre,  a  faia; 
A  sorveira  se  cria  em  terra  fértil, 
E  ós  freixoSj  a  nogueira,  o  til,  o  bordo, 
O  plátano  (que  já  co'as  doctas  sombras 
Do  sublime  Platão  cubriu  a  eschola, 
E  o  banquete  cubriu  dos  sete  sábios) 
Do  terreno  indiano  os  castanheiros, 
E  o  olmo,  que  em  teu  seio  achaste,  oh  Galha: 
O  álamo,  o  chôpo,  que  de  margens  gostam, 
Co'a  pallida  folhagem  toldam  rios; 
E,  alçando  a  rama,  seus  amphibios  corpos 
Tem  sobre  a  terra  o  tronco,  o  pé  nas  aguas. 

Em  fragosas,  em  áridas  coliinas. 
Das  humidades  longe  o  castanheiro 
Co'a  folha  herriça  Os  espinhosos  frucíos; 
Que  eram  sem  elle  teus  saibrosos  serros, 
Limousin,  terra  ingrata,  infructuosa, 
Cevennes,  que  elle  afaga,  e  só  prospera! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  273 


Seus  fructos  são  teus  pães;  o  âmago  d'elles 
Se  enruga,  e  se  endurece  em  fogo  brando; 
I    Da  pelle  escura,  e  sêcca  o  murcho  corpo 
l-    Sem  custo  se  desveste  a  crebros  golpes, 
^    E  em  durador  sustento  assim  se  muda: 
Seu  lenho  orna,  mantém,  cobre  edifícios; 
Talhado  ainda  em  moço  á  mão,  que  o  dobra 
Os  arcos  dá,  com  que  depois  o  ligam. 

Tu  nos  montes  expõe  o  alvar  pinheiro, 
Mostra  o  cedro,  o  cypreste,  o  pinho  manso: 
De  Boreas  irritado  affrontam  raivas, 
E  o  vento  sopros  vãos  nas  folhas  perde; 
Dos  vastos  corpos  seus  liquor  viscoso 
Faz  que  os  invernos  sua  sombra  dome  : 
;    Porém  do  próprio  sueco  a  força  temem, 

Promptos  sempre  a  entregal-o,  a  casca  rompem; 
Se  os  ganhares  por  mão,  d'entre  seus  vasos 
Verás  vir  dimanando  o  sumo  em  rios: 
Mansos  pinheiros,  e  pinheiros  bravos 
Uns  o  pez,  a  resina  outros  derramam: 
Sua  terebentina  ostenta  Chio, 
E  Judá  com  seus  bálsamos  é  rico, 
^    E  Tolu,  Canadá,  Peru,  e  a  Meca; 

Dos  freixos  de  Calábria  o  pranto  admira : 
Myrrha  oíFVece  aos  sabéos  humor,  que  encanta, 
E  colhe  a  religião  n'aquelles  campos 
O  incenso,  cujo  aroma  os  céos  estimam. 

ÉDão-nos  as  plantas  para  os  usos  nossos 


274  OBRAS  DS  BOCAGE 


Raízes,  fructos^  a  semente,  e  a  folha: 
Néctar  cheiroso,  de  calor  suave, 
Que  accende  o  génio,  o  coração  reanima. 
Perfuma  com  seus  grãos  Medina,  e  Meca; 
Ricas  folhas  na  China  o  chá  desdobra; 
Nos  campos  do  Indostan  caca  o  vegeta, 
Do  algodoeiro  o  fructo,  e  noz  do  coco: 
Taes  plantas,  cujo  sueco  apraz,  e  experta, 
Aos  thesouros  da  abelha  o  preço  abatem» 

Gabou  seus  bosques  longamente  a  Grécia, 
Que  os  altos  vates  seus  cantaram  tanto: 
Não  me  deslumbro,  não,  co'a  gloria  sua: 
Erymantho  jamais,  jamais  Oyllene, 
Nem  Dódona  também,  nem  tu,  Neméa, 
A  prole  humana  bemfazejos  fostes; 
França,  oh  pátria,  a  teus  bosques  cedem  elles: 
E  nunca  vossos  troncos  orgulhosos 
Egaaláram,  e  as  sendas,  e  as  latadas 
Das  abobadas  vossas,  oh  Compiegne; 
Creci,  Dreux,  Orleans,  Couci,  e  Ardennas, 
Chantilli,  Cerilli,  vistosas  selvas, 
E  tu  Fontainebleau,  do  Elysio  imagem. 

A  Gallia,  quasi  inculta,  entre  seus  bosques 
Da  sua  adoração  contra  os  objectos 
O  ferro  a  manear  não  se  attrevia: 
Se  os  campos  em  nutril-os  eram  parcos, 
Demandavam  seus  povos  outros  climas, 
Ao  gran  numero  idóneos;  antepunham 


POEMAS. DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  275 


Troncos  a  homens  úteis:  —  as  ciáades 
Ermas  deixavam  por  manterem  bosques; 
T)'est'arte  a  novas  leis  o  Pó  submisso, 
Os  gallos  succeder  viu  a  seus  povos; 
Ceíles  gemeu  ao  pezo  Itália  curva, 
E  foi  Roma  em  seus  muros  sepultada; 
Aos  campos  de  Gallacia  deram  nome; 
Por  Apollo  tremeu,  ao  vel-os,  Delphos. 

Veiu  a  Verdade  emíim,  varreu  chiraeras; 
A  arvore  foi  só  arvore,  e  não  teve 
Mais  victimas:  os  bosques,  deshonrados 
Pelos  bardos  impuros,  se  fizeram 
Asylo  d'es8es  homens  veneráveis. 
Que,  voluntariamente  desterrados 
Do  orbe  profano,  povoaram  bosques 
Dados  por  nossos  pães:  no  manto  envoltos 
Dos  Bentos,  dos  Bernardos,  dos  Norbertos 
Um  povo  industrioso  arou  desertos. 

Os  carvalhos  attonitos  caíram 
A  golpe,  e  golpe;  os  campos,  que  assombravam, 
Douraram-se  de  espigas;  (ai!)  e  os  fructos 
De  seus  úteis  suores  nos  moveram 
Mais  inveja,  que  amor  suas  virtudes! 
Por  toda  a  parte  baquearam  selvas. 
Os  campos,  as  cidades  estenderam: 
Incautos,  que  fazeis !  Deixae  aos  netos 
Thesouros  das  edades  venerados 
A  bem  d'elles:  a  França  já  não  mostra 


276  OBRAS  DE  BOCAGE 

Senão  precisos  bosques;  e  os  veremos 
De  temerárias  mãos  cair  debaixo? 
NãOj  por  leis  assisadas,  leis  prudentes 
As  arvores  seguras  já  não  temem 
Do  lizo  ferro  os  immaturos  golpes; 
Elevam-se  em  tranquilla  adolescenciaj 
B  em  velhas  só  lhe  roubam  vida  inútil; 
Elias  crescem,  alongam-se,  e  as  estradas 
Offertam  dos  jardins  frescura,  e  sombra. 
Arbustos  ha,  e  humildes  bo-quesinhos 
Que  das  selvas  não  tem  fastosas  sombras; 
Respeitoso  o  lapão  d'est'arte  admira 
A  franceza  estatura  magestosa; 
Taes  nos  diversos  climas  se  formaram 
A  estirpe  dos  pjgmeus,  e  dos  gigantes: 
Tem  menos  altivez,  mas  tem  mais  graça 
Estes  bosques,  se  menos  admiráveis, 
Comtudo  para  mim  mais  agradáveis. 
j-;^j;Lá,  vindos  aos  jardins  por  mão  das  artes, 
Nascem  familias  de  gentis  arbustos: 
O  alfeneiro,  a  roseira,  a  madre-silva, 
E  aveleira,  e  loureiro,  e  teixo,  e  myrtho, 
E  outros  mil,  ctijas  frontes  subjugadas 
Grratos  Protheos  polo  artificio  tornas: 
Seu  lenho  aos  parreiraes  um  subj citando, 
Para  os  muros  vestir,  aos  tectos  sobe: 
Outro  a  rama  pomposa  ao  longe  estende, 
E  os  passeios  divide  em  vivo  muro; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  277 


Ou  labyrintho  iucognito  fabrica, 
E  ao  desgarrado  pé  faz  doce  engano: 
Outros,  dóceis  á  mão,  que  os  encaminha, 
Já  são  vasos,  pyraniides,  est relias; 
O  azevinho,  o  alaterno  prateado 
(E  não  só  estes)  a  belleza  ajudam 
Dos  arbustos  floridos:  sabiamente 
Arte  as  formas,  e  adornos  lhe  varia 
Em  portas,  berços,  tectos  de  verdura. 

Arvores  destinadas  a  nutrir-nos  ' 
Pezam  com  fructos  mil,  que  ás  mãos  nos  cedem, 
Para  oíFertar  seus  dons  a  testa  inclinam; 
Prestes  os  troncos  sempre  a  contentar-nos 
Sobem  rapidamente,  e  desde  a  infância 
De  preciosos  dons  seus  ramos  c'roam; 
Em  tanto  que  do  matto  inférteis  plantas 
Mal  dão  depois  de  um  século  úteis  bosques: 
Do  céo,  que  te  ama,  reconhece  os  mimos, 
E  aprende  o  que  estes  bens  aperfeiçoa. 

Oh  dos  jardins  oráculo  infallivel 
Docto  La  Quintiniè!  A  Musa  ensina 
Que  arte  potente,  que  propicio  génio 
Tem  submissa  a  teu  mando  a  Natureza; 
Aos  campos  mais  ingratos  leva  ramos, 
Que  elles  não  conheciam;  e,  innovando-os 
Té  nas  entranhas  suas,  lá  com  fructos 
Do  mundo  inteiro  enriqueceu  Versãilles ! 
Como  que  a  terra  se  mudou  ao  ver-te! 


278  OBRAS  DE  BOCAGE 


Tu  seus  diversos  vicios  emendaste: 
A  que  mui  rija  foi,  leve,  ou  fragosa 
Viu  em  si  confuudir-se  extranha  terra ; 
Dos  defeitos  oppostos,  e  vencidos 
Mutuamente,  união  bem  combinada 
Virtude  se  tornou;  cavar  mandaste 
Os  rebeldes  torrões  até  ao  seio, 
E  por  novos  torrões  eil-os  fecundos. 
Quizeste  que  os  jardins,  do  vento  illesos, 
Provassem  do  zenith  o  vivo  lume; 
A  essência  de  mil  arvores  soubeste, 
Que  aspecto  lhes  convém,  que  leis  us  pulem: 
Assim  vários  terrenos,  climas  vários 
Do  mundo  transportaste  aos  jardins  nossos; 
Extranhas  plantações  no  chão  da  França, 
Renascendo  a  seu  grado,  e  vegetando. 
Pareciam  surgir  no  chão  da  pátria. 
De  transparente  céo  favorecidos, 
Os  campos  da  Chaldéa  o  berço  foram 
Dos  mais  buscados,  saborosos  fructos; 
A  primeira  semente  a  Grécia  trouxe, 
E  do  trophéo  suave  ornou  viveiros; 

—  Roma  a  venceu,  e  dos  vencidos  povos 

—  Ignotas  plantas  admirou  a  Itália: 
O  pêcego,  da  Pérsia  á  Europa  vindo. 
De  seus  vários  destinos  inda  pasma ; 
Salutar  para  nós,  seu  mago  sueco 
Nos  é  delicia,  aos  persas  é  veneno: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  279 


O  damasco  odorífero  de  Arménia, 
E  a  moUe  sjria  ameixa  são  colónias: 
Foi  Lucullo  o  primeiro  entre  os  romanos 
Que,  d'elles  ignorados,  co'a  mão  própria 
Os  fructos  cultivou  de  Cerasonte; 
A  pereira,  nascida  em  ti,  oh  Gallia, 
E  as  maceiras,  em  Neustria  tão  fecundas, 
Apostam  no  sabor,  no  sueco  apostam 
Com  estes  bellos,  peregrinos  fructos; 
Não  são,  como  elles,  transitórios,  brandos, 
O  asylo,  que  os  contém,  domando  invernos, 
Dos  fructos,  que  perdeu,  compensa  a  terra. 

Cova  profunda  em  seu  espaço  admitta 
Tenro  plantio  que  escolheste,  e  arraigas: 
Une  aos  auxilios  da  cultura,  o  forte 
Crasso  alimento  de  poupado  estrume. 

Taes  lidas  serão  vãs,  se  teus  desvelos 
Não  saciam  das  arvores  a  sede: 
Feliz  se  em  teus  jardins  ha  vivas  fontes, 
Se  de  algum  rio  tens  quinhão  nas  ondas; 
Sendo  esquivo  a  teus  prédios,  tu  procura, 
Abrindo  fundos  poços,  agua  n'elles; 
De  tanques,  onde  o  mármore  a  contenha, 
Roda  girante  sobre  o  chão  a  eleve. 

Co'a  esquadria  na  mão  outros  te  ensinem 
A  formar  de  um  jardim  com  arte  os  quadros: 
Talvez  cantem  que  próvidos  trabalhos 
Florescer  por  seu  turno  as  hervas  fazem, 


280  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  as  raizes,  e  os  fructos  delicados, 
Remédio  aos  males,  dos  festins  apuro: 
Eu,  inda  temeroso,  eu  me  contento 
Nas  próximas  lamêdas  em  mostrar- te 
As  congregadas  plantas;  o  que  valem 
Folhas,  e  fructos  seus,  sempre  colhidos. 
Regenerados  sempre:  a  fim  de  achares 
Por  teu  suor  as  arvores  mais  férteis. 
Lições  profícuas  te  darão  meus  versos. 

Em  torno  aos  quadros  teus  algumas  plantas 
Nos  jardins  ficarão  rasteiras  sempre: 
Taes  como  a  sarça,  espessam-se-lhe  os  ramos, 
E,  talhando-os  em  vaso  os  arredonda; 
Outras,  mais  duro  tracto  inda  soffrendo. 
Feitas  latadas  entapizem  muros, 
Os  ramos  seus  dobrados,  e  subjeitos 
Em  lignea  grade,  co'a  prisão  formosos. 
Amam  seu  captiveiro:  assim,  aos  dotes 
Da  simples  gentileza,  amável  nympha 
Une  emprestado  lustre,  e  as  bellas  tranças 

*  Nos  elegantes  nós  de  branda  seda 

*  Prende  co'as  alvas  mãos,  inda  mais  brandas; 
Soltas  madeixas  apraziam  menos, 

O^laço  lhes  apura  o  doce  chiste. 
Aina  o  sol  estas  arvores  validas, 
Nutrir  lhe  agrada  teus  alumnos  caros. 
Ao  artificio  teu  seu  lume  é  dócil, 
E  os  muros  o  reflectem  duplicado; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  281 


Sasonados  assim  por  elle  os  fructos, 
As  cores  accendendo,  o  sueco  adoçam. 

Feição  tomando  ás  vezes  da  latada, 
E  rico  adorno  a  laranjeira  aos  muros; 
De  um  vaso  habita  o  seio  inda  mais  vezes,  ' 

Dos  quadros  de  um  jardim  orna  o  desenho: 
De  graças  que  mistura  oífrece  aos  olhos! 
De  aromas  os  pasj^eio^  te  embalsama, 
Com  flores  sempre  alveja;  e  lhe  alça  o  preço 
Viva  esmeralda  de  nascentes  fructos, 
Ouro  vivaz  de  fructos  sasonados; 
Voam  séculos  três,  e  a  flor  é  nova, 
O  tempo  lhe  venera  a  formosura; 
Mas  as  geadas  teme  á  doce  planta; 
Arma-lhe  um  tecto,  que  do  inverno  a  escude, 
E  se  lhe  ant'olhe  a  primavera  ausente: 
Em  mais  amigos,  fervorosos  climas. 
Sem  cuidado  exigir,  floresce  livre, 
E  livre  a  laranja  ira  aos  ares  sobe, 
Quasi  egualando  em  magestade  as  selvas; 
Taes  foram  teus  jardins,  ditosa  Hesperia, 
Taes  d'Hjéra  os  bosques  são,  taes  os  d'Hetruria. 

Tu,  que  regulas  da  latada  os  ramos, 
Forma-os  n'um  anno,  e  n'outro,  e  desvelado 
Sê  das  leis  ao  rigor  sempre  aferrado ; 
Damno  a  grato  defeito  é  a  indulgência: 
Co'a  foucinha  na  mão  proscreve  a  um  tempo 
Ramo  sem  olhos,  e  goloso,  ou  secco; 


282  OBRAS  DK  BOCAGE 


Ás  tuas  leis  o  sueco  obediente 
D'arvore  por  egual  caminha  ás  veas; 
Se  de  folhagens  vãs  fastosa,  ornada, 
E  ricamente  pobre  estéril  fica, 
Tira-lhe  o  vicio  ao  tronco,  útil  fraqueza 
Lhe  muda  em  fructos  a  opulência  inútil. 

Homem,  lerás  nas  arvores  teu  fado: 
Ao  vel-as  desmedrar,  ao  vel-as  murchas 
Has  de  carpir-lhe  a  morte;  amplos  viveiros 
Perto  de  teus  jardins  lhes  assegurem 
N'um  futuro  benigno  herdeiras  plantas; 
As  arvores,  dos  fructos  renascendo,  - 
Parecem  reviver,  vivas  ainda; 
Em  breve,  de  seus  pães  doce  esperança. 
Haste  mimosa  lhe  succede,  oecupa 
O  sitio  d'elles,  e  prospera,  e  cresce: 
Assim  junto  ás  muralhas,  onde  os  nossos 
Altivos,  generosos  veteranos 
Ultrajados  do  ferro,  ou  curvos  do  annos. 
Depois  de  mil  façanhas,  em  repouso 
Tem  do  heroísmo  as  cicatrizes  nobres, 
Novo  asylo  erigiu  Luiz  ha  pouco, 
Fausto  viveiro,  honroso,  alto  principio 
Onde  de  antigo  tronco  ingente,  e  murcho 
, Crescem  renovos,  em  que  a  p.itria  espera. 

De  um  tronco  virtuoso  indigna  prole 
Bastardêa,  e  dá  sempre  amargos  fructos; 
O  garfo,  sua  essência  renovando, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  283 


Muda  em  sueco  aprazível  sueco  ingrato: 
Um  de  arvore  tronqhada  o  tronco  fende, 
Raminho  mais  felix  lhe  induz  no  seio; 
As  cortiças  casando,  os  golpes  cerra, 
E  da  chuva,  e  do  vento  injurias  tolhe; 
A  maneira  d'escudo  outros  costumam 
De  um'arvore  tirar  pingue  de  fructos, 
A  casca  com  seus  nós;  a  agreste  planta 
Útil  ferida  sente,  onde  se  embebe 
O  enxerto,  que  lhe  muda  a  natureza: 
Pela  casca  de  um  ramo  outro  é  coberto, 
Em  figura  de  rolo  ás  vezes  solta: 
lio  meio  de  raiz  mui  vigorosa 
A  enxertar  ensinastes,  oh  germanos. 
Pimpolhos,  que  a  cultura  lhe  desuna. 

Legislador,  e  rei  de  teus  pomares 
A  teus  súbditos  maus  dás  bons  costumes; 
Familias  entre  si  com  regra  enlaças, 
Arvores  outras  arvores  perfilham; 
Seu  nascimento  illustram,  e  exaltadas 
Por  novos,  gratos  vinculos,  admiram 
Em  si  fructos  não  seus,  folhas  não  suas: 
Por  est'êirte  se  allia  o  pecegueiro 
Co'a  planta  mãe  da  amêndoa,  e  por  est'arte 
Gamboa  junto  á  pêra  amarellece; 
O  salgueiro  flexivel  tem  no  tronco 
Os  ramos  da  maceira,  e  se  transforma 


284  OBKAS  DE  BOCAGE 


Em  doce  ameixieira  o  freixo  absorto; 
Náo  de  outra  sorte  vemos  que  adoptado 
Pelo  espinheiro  alvar  é  a  azeróla. 

Mas  fútil  não  a  torne  o  abuso  d'arte: 
Rei,  não  tyranno,  as  arvores  submissas 
Nunca  violentes;  seu  amor  consulta, 
Mas  seu  ódio  respeita;  a  custo  algumas 
As  substancias  misturam,  e,  obrigadas 
A  penosa  união,  só  folha  estéril 
Só  maus  fructos  produzem:  nunca  pode 
A  vide  co'a  oliveira  assoxíiar-se ; 
Teme  do  olmo.  e  carvalho  antipathias; 
Co  loureiro  a  cereja  mal  se  casa, 
E  n  planta  do  limão  com  a  amoreira: 
N'um  mesmo  tronco  estes  contrários  vivos 
São  monstros,  não  prodigios;  todavia 
Approvo  que,  engenhoso,  e  ledo  encanto 
N'um  só  tronco  apresente  arvores  quatro, 
E  que  na  amendoeira  a  um  tempo  colhas 
Lisa  ameixa,  damasco  appetitoso, 
E  o  pomo,  que  o  simelha  em  cor,  e  em  forma. 

Annue  a  meu  fervor,  e  a  meus  transportes, 
Oh  rei  do  mundo,  oh  pae  da  Natureza! 
Os  seus  thesouros  me  franquêa,  e  dá-me 
Para  os  patentear  verdades  tuas. 

Vive  a  arvore,  e  respira  imagem  nossa; 
Circulando  em  seu  seio,  o  sueco  a  nutre; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  285 


Avultn,  fructos  dá,  declina  e  morre, 
E  nos  seus  descencjentes  se  renova: 
E  a  espécie  im mortal,  mortaes  os  corpos. 

Quando  os  tempos  creou,  creou  o  Eterno 
Todos  os  corpos,  que  apparecem  n'elles: 
Gruardou  no  homem  primeiro  os  homens  todos, 
De  alma  não,  mas  formados  taes  quaes  somos; 
Cada  planta,  cada  arvore  no  seio 
Fechou  todas  as  arvores  futuras, 
Todos  os  fructos  seus:  vivo,  invisível 
O  germe  vê  nas  faxas  ir  findando 
Seu  captiveiro;  então  nascer  figura, 
Porém  só  crescimento  é  que  recebe, 
Nada  n'elle  mudou:  nota  o  carvalho 
De  profunda  raiz,  de  coma  ufana, 
E  hoje  o  que  na  lande  era  algum  dia; 
Taes  foram  dentro  d'elle  os  que  ha  gerado: 
Porém  no  asylo  seu  dormindo  o  germe 
Jamais  d'aquelle  somno  expertaria, 
Se  os  sáes,  o  enxofre,  mádidos  co'a  chuva, 
Pelas  flammas  do  sol,  pelo  ar  movido 
A  vida  provocando-o,  o  não  chamassem; 
Rompe  com  elles  a  prisão,  que  o  liga, 
Abre-se  em  fim  aos  beneficies  d'elles; 
Já  nos  seus  vasos  alimentos  correm, 
Correm  novos  espirites,  que  o  nutrem, 
Continuamente,  e  cada  dia  avulta; 
A  rojante  raiz,  já  não  captiva, 


286  OBRAS  DE  BOCAGE 


Rasgando  a  terra,  de  seus  suecos  vive; 
O  tronco  para  o  céo  vergonteas  lança; 
O  ar,  que  todos  os  corpos  vivifica, 
N'arvore  eleva  os  suecos  que  digere; 
Entra-lhe  o  seio,  e  lhe  enche  os  vasos  todos. 
Circula,  e  sempre  com  eguaes  esforços, 
Successor  de  si  mesmo,  elle  se  foge, 
Se  attráe,  fazendo  que  respire  a  planta. 

Bem  como  o  sangue  espesso  que,  disposto 
Dentro  do  coração,  depois  filtrado 
Apura  seu  liquor  de  vêa  em  vêa ; 
E  tornando-se  logo  as  ondas  d'elle 
Espíritos  subtis,  imperceptiveis. 
Os  raminhos  do  cérebro  aviventam; 
Tal,  recebido  logo  em  amplos  vasos, 
Mais  estreitos  os  ramos  encontrando 
Alternativamente,  e  levantado 
Das  raizes  das  arvores  ás  frontes, 
Lá,  sem  nunca  parar,  se  esparge  o  sueco; 
Depois  volvendo  aos  pés  por  giros  novos, 
Continuo  circulando,  innova  o  passo; 
Por  toda  a  parte  em  que  a  arvore  o  contenha 
Do  germe  ao  berço  vae,  e  acorda  o  germe; 
Flores  bafeja  com  celeste  aroma, 
De  que  a  abelha  compõe  na  primavera 
Dourado  espolio,  roubo  appetecivel; 
E  inda  mais  delicado  alenta  os  fructos, 
Maga  doçura  aos  âmagos  prés  tinido. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  287 


Como  dos  mesmos  suecos  os  princípios 
Dão  fructos,  que  enfcre  si  tanto  desdizem? 
E  humor  fecundo,  entrado  em  cada  planta, 
Porque  sempre  parece  o  mesmo,  e  outro? 
Depois  que  em  seus  avós  se  formam  germes, 
Tomam  da  estirpe  sua  as  feições  todas: 
Fiel  o  sueco  ao  prazo,  os  germes  brota, 
Sem  lhe  alterar  a  essência,  desenvolve 
Seus  corpos:  quando  os  vários  alimentos 
Pelo  ar  levados  de  tropel  se  offVecem 
Aos  francos  vasos  seus,  escolha  certa 
Os  germes  fazem  de  saudáveis  mimos, 
E  08  que  adversos  lhe  são  rejeitam  sempre: 
Assim  quando  infructifera  no  tronco 
Adopta,  e  junta  os  nós  de  rico  enxerto 
Um 'arvore  qualquer,  em  nenhum  d^elles 
Se  altera  a  primitiva  natureza; 
N'um  sempre  manam  desabridos  suecos, 
O  segundo  os  enjeita,  e  quer,  e  acolhe 
Só  puros,  só  filtrados,  só  perfeitos. 

Arte  ajude,  e  acompanhe  a  Natureza 
Vasta,  fecunda,  invariável,  certa: 
Se  queres  pois  que  as  fructuosas  plantas 
Subam  sem  risco,  e  teus  vergéis  povoem, 
Da  pátria  não  mui  longe  se  trasladem; 
Temem  plantas  do  sul  fúrias  do  norte, 
E  o  fogo  austral  ás  boreaes  empece; 
Mas,  quando  o  sitio  lhe  convém  íio  gosto, 


288  oímÀs  DE  BOOAOPJ 


Dos  mimos,  e  desvelos  satisfeitas 
Que  á  tenra  sua  infância  foram  dados, 
Surgem  mesmo  por  si,  regem  seus  fados, 
E  na  fecundidade  em  breve  egualam 
Dos  pátrios  fructos  o  primor  e  a  graça. 

Tal  na  Occitania,  e  campos  de  Provença 
Sempre  verde  a  oliveira  ama  seu  berço: 
D'aquelles  campos  Hercules  á  Grécia 
Foi  o  primeiro,  que  levou  seus  ramos; 
Pela  mão  da  Victoria  affeiçoados 
O  nome,  a  fama  eternizar  soíam 
Do  vencedor  de  Olympia:  ante  a  oliveira 
Deixa  o  ferro  cair,  foge  a  Discórdia, 
B  reconhece  a  Paz:  suppôz  Athenas 
Que  est^arvore  devia  á  deusa  sua, 
D'ella  o  symbolo  fez  da  Sapiência. 

Em  nebulosos,  em  gelados  climas 
Baldará  teus  desejos,  teus  suores; 
Recea  os  Aquilões,  paiz  demanda 
Que  os  olhos  do  áureo  Phebo  acclarem  sempre: 
Dos  serros  se  namora  ao  mar  visinhos 
D'onde  a  terra  se  abaixa,  e  desce  ás  ondas: 
Gran  tempo  esperarás  que  a  tarda  rama 
Se  c'rôe  a  teu  prazer  de  pingues  fructos; 
Gran  tempo  é  fértil,  e  entre  a  folha  humilde 
A  verde  producção  não  soffre  aggravo;  ^ 

Seu  útil  amargor  lhe  serve  de  arma, 
E  vingador  poder  no  seio  esconde: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  289 


Assoma  um  dia  emfim,  que  lhe  convertej 
A  bem  do  possessor,  o  amargo  em  doce; 
A  azeitona  se  móe,  se  torna  em  massa, 
Seu  liquor,  espremido  em  graves  fusos, 
D'agua  ao  calor  sé  escoa  em  abundância, 
E  facilmente  emfim  se  aparta  d'ella; 
Sobre-nadando  sempre,  e  recolhido 
Por  mercenária  mão,  por  mão  ligeira 
Dá-te  óleo  puro,  bálsamo  saudável. 

Do  meio-dia  as  nuvens  enganosas. 
Dos  lagos  o  vapor  guardando,  ás  vezes 
Em  logar  de  espargir  propicias  aguas 
Voraz  peçonha  na  azeitona  embebem; 
Aquilo  fende  as  arvores  absortas. 
Gela  o  sueco,  e  de  mortos  cobre  os  campos: 
De  um  memorando  inverno,  oh  pátria  minha, 
Inda  não  te  esqueceu  a  horrível  fúria; 
Os  tenros  olivaes,  que  em  ti  verdejam. 
Bem  que  afíamados  já,  com  tudo  obrigam 
Inda  de  seus  avós  a  ter  saudades. 

Feliz  mil  vezes,  célebre  Occitania, 
Quem  pode  em  ti  viver!  O  incenso,  a  myrrha, 
E  as  cannas,  que  n' America  rebentam, 
Uão  te  enriquecem  os  vistosos  montes; 
A  terra  de  rubis  não  tinge  as  vêas 
Em  teu  chão,  nem  converte  arêas  tuas 
Em  finas  porcelanas  o  artificio; 
Mas  de  Ceres  os  dons  em  ti  lourejam, 


290  OBRAS  DE  BOCAGE 


Leva  teu  vinho  ao  longe  encanto,  e  força; 
O  canhamoj  o  pastel  t-eu  seio  amimanij 
E  opimos  gados  nos  teus  serros  pascem; 
Das  leis  á  sombra  as  artes  engenhosas 
Telas  de  preço  em  fabricar  se  esmeram : 
A  teu  povo  és  bastante,  e  nunca  imploras 
Com  tributarias  mãos  a  estranhas  terras 
Seus  productor-,  os  teus  antes  lhe  offreces; 
Francos  lhe  tens  os  portos,  e  a  bem  d'ellas 
Uniram  teus  trabalhos  os  dous  mares; 
Tua  industria  acabou  obra  sublime. 
Que  defcevo  do  mundo  os  vencedores. 

Direi  que  cie  saphira,  e  de  ouro  accezos 
Sempre  em  teu  clima  os  céos  têm  dias  puros? 
Que  longa  primavera  em  ti  floresce, 
E  os  Zephyros  no  inverno  ás  vezes  voam? 
Que  os  ursos,  que  os  leões,  que  os  dragos  feros 
^No  teu  feliz  torrão  jamais  nasceram? 
Da  tua  amenidade  enfeitiçadas 
Gregas  catervas  sabe-se  que  a  Jonia 
Polas  margens  do  Rhodano  esqueceram: 
Eoma  essa  estancia  amou,  seu  grande  povo 
Os  vencidos  ergueu  ao  gráo  de  filhos; 
O?  romanos,  da  pátria  embriagados, 
Em  ti  se  imaginavam  n'outra  Hetruria; 
Eis  d'onde  os  monumentos  emanaram 
Domadores  do  tempo,  esses  prodigios 
Nunca  das  artes  nossas  alcançados. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  291 

Por  nossas  vistas  admirados  sempre: 

Que  de  antigas,  de  esplendidas  cidades. 

Rios  famosos,  e  ribeiros  férteis  I 

Em  ti,  bem  como  em  Cusco^  a  terra  offrece 

Thesouro  dos  metaes  d'alta  valia; 

O  óleo  das  pedras  sm-de,  e  fontes  forma , 

E  arêas  fluviaes  se  tingem  de  onro. 

Ignorada  na  Europa  longos  tempos 
A  amoreira,  onde  os  Seres  sem  trabalho 
Anreos  fios  colheram,  preza  os  campos 
Da  Occitania,  e  co'a  verde,  e  rica  folha 
E  pasto  ali  de  precioso  insecto: 
Lavradores,  esfarvore  obedeça 
As  vossas  leis,  mas  os  ilireitos  vossos 
Aos  bichos  não  se  estendam,  que  ellr?  nutre; 
A  jugo  mais  suave  a  sorte  os  liga: 
Bellezas  juvenis,  a  vós  só  cumpre 
Regel-os;  elles  súbditos  vos  nascem, 
Alegres  de  trocar  por  utíl  jugo 
A  doce  liberdade:  no  indo  clima, 
Onde  debaixo  das  nascentes  sombras 
Vê  a  amoreira  em  leitos  de  folhagem 
-Os  bichinhos  nascer,  se  desenvolvem 
Pelo  mesmo  calor,  que  d 'entre  a  planta 
As  flores  faz  sair  na  primavera: 
A  quadra,  preguiçosa  em  nossos  climas, 
Punge,  e  faze  calor  propicio  ao  germe ; 
Um  povo,  a  um  tempo  em  toda  a  parto  exposto, 


292  OBBAS  DE  BOCAGE 


Ferve  ante  os  olhos  teus  no  oitavo  dia; 
A  folha  da  amoreira,  assim  como  elles 
No  nascimento  seu,  leite  é  disposto 
A  nutrir-lhes  a  infância,  e  para  tantos 
Vassallos  que  á  lei  tua  estão  subj  eitos 
Uma  caixa,  uma  folha,  é  pátria,  é  mundo. 

Crescem,  e  já  familias  numerosas 
A  teu  cuidado  vastas  camas  pedem, 
Onde  os  transfiras  ao  sair  do  berço; 
No  vime  entretecido,  e  molles  cannas 
Postas  umas  sobre  outra,  em  bairros,  classes 
Politico  a  republica  lhe  ordena: 
Tal  Roma  outr'hora  viu  entre  seus  muros 
Em  tribus  dividido  um  povo  immenso. 

Prestar  eo^ual  calor  á  sua  estancia 
E  das  primarias  leis  para  regel-os: 
Indicador  do  tempo,  ali  o  vidro 
Liquor  móbil  encerre  ante  os  teus  olhos 
Que  se  abaixe,  se  eleve,  e  cuja  regra 
Do  calor,  e  do  frio  o  gráo  designe; 
Senhor  das  estações  a  teus  contentes 
Pequenos  povos,  do  sou  tecto  á  sombra, 
Darás  inalterável  primavera 
E  a  funesta  inconstância  do  ar  adverso 
Não  mais  os  fere  co'a  influencia  triste; 
Ditosos  cidadãos  de  um  brando  clima 
Vivem  sem  susto,  e  de  riqueza  te  enchem. 
^^Mas  nos  seus  lares  que  silencio  reina ! 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  293 

A 

Que  feitiço  os  detêm  do  leito  immoveis! 
Em  lethargo,  em  jejum  dous  dias  jazera, 
E  isto  ás  dores  da  muda  lhe  é  remédio: 
Vês  por  gráos  a  lagarta  erguer  a  custo 
Á  languida  cabeça;  eis  que  se  agita, 
Eis  que  rompe  o  caí^ulo,  eis  que  se  despe, 
E  em  novas  vestiduras  fica  envolta; 
Cresce-lhe  o  corpo,  as  vestes  lhe  rutilam: 
Vária  nos  giros  seus  por  vezes  quatro 
Quatro  vezes  a  lua  entorpecer-se 
Os  vê,  vê-os  mechcr,  e  engrandecer-se. 

Mas  sôfregos  então  de  dia  em  dia, 
Crescendo  vão  com  rápido  progresso: 
Seus  olhos  para  sempre  o  somno  impugnam: 
Outr'hora  em  ti  es  comidas  se  fartavam, 
Hoje  regra  não  ha  que  prescrever-lhes; 
Contentar  seu  depejo  apenas  podes; 
Cercados  de  manjares,  que  lhe  oífertal, 
São  comprido  festim  seus  doces  dias: 
Folhas  seccas  demais  teme  ofFVecer-lhe, 
E  duplica  o  temor  se  húmidas  forem; 
Colhe-as  só  quando  vires  que  nas  plantas 
Já  bebeu  Phebo  as  lagrimas  da  Aurora: 
Tormentas,  se  poderes,  acautela; 
E,  se  as  folhas  banhou  chuva  imprevista. 
Repara  pelo  fogo  injurias  d'agua, 
Que  a  seus  mais  bellos  dias  é  veneno. 


294  OBliAS  DE  BOCAGE 


Algum  remédio  tem  quando  começa 
No  bicho  a  languidez;  ás  vezes  cede 
Aos  perfumes  o  mal,  porém,  se  teima, 
Não  te  quero  illudir,  proscreve  os  dias 
De  súbditos  glotões,  e  preguiçosos; 
Tranquillos  parasites  entre  os  sócios, 
Espectadores  vãos  d'arte  prestante. 

Do  ócio  cançados,  livres  dt3  seus  males 
Dar  começo  ao  trabalho  os  bichos  querem : 
Soccorre  uma  esperança,  que  te  é  doce ; 
Nos  pequeninos  corpos  transparentes 
Reluz  o  ouro  da  seda:  eis  elles  sobem, 
Dar-lhes  ramos  convém,  onde  suspendam, 
E  fiem  seus  sepnlchros:  lá  debaixo 
Dos  moventes  anneis,  que  to  apresentam, 
Lhes  serpêam  no  seio  em  longas  dobras 
Vasos  dous;  e,  formando-se  inda  bruta^ 
Inda  liquida  a  seda,  embebe,  estende 
Por  seus  bellos  canaes  as  ondas  de  ouro: 
Na  ultima  estrada  este  liquor  se  espessa, 
Muda-se  em  fio,  e  sáe  pela  fieira. 

Quando  a  lagarta  emfim  conhece  o  prazo, 
Liberalisa  reservados  suecos; 
Primeiro  em  longos  circulos  fabrica 
De  fios  um  frouxel,  que  a  obra  estêa ; 
Movimentos  mais  curtos  forma  em  breve, 
E  em  breve  os  fios  seus  mais  apertados 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  295 

Unidos  por  mil  voltas,  mil  rodeios, 

Maravilhosa  têa  construindo, 

Em  ovo  de  ouro,  ou  prata  se  afFeiçôam. 

Admira  taes  insectos:  este  apenas 
Entra  a  formar  no  cárcere  o  casulo; 
Aquelle,  já  sumido  em  nuvem  densa. 
Dos  fios  deixa  ver  iuda  o  complexo: 
Nas  mesmas  redes  encerrando-se  outros, 
Como  na  vida  unidos  estiveram 
Unem-se  nos  s(^pulcliros;  mas  se  acaso 
(Ai!)  n'estes  dias  o  trovão  rebrama 
Amedrontando  a  terra,  os  tenros  entes 
Estremecem  de  horror,  e  caem,  morrem 
Imperfeitas  deixando  as  finas  têas. 

Debaixo  de  seus  tectos  entretanto 
Troca  extincta  lagarta  om  negras  vestes 
As  roupas  transpjirentes;  sem  cabeça, 
Sem  pés,  um  corpo  immovel,  e  enrugado 
Como  que  succedeu  ao  corpo  antigo. 

Presa  em  seus  laços,  transformada  em  nympha^ 
Jaz  só  adormecida,  ou  jaz  sem  alma? 
Por  entre  um  véo,  que  tráe  seus  attractivos. 
Borboleta  luzente  ali  vislumbra; 
Mas  este  véo  conde nsa-se  depressa, 
E  a  borboleta  se  escurece,  e  occulta. 

Queres  haver  do  seu  trabalho  o  fructo? 
Antes  que  ella,  espertando,  obstar-te  possa, 
Despoja  os  ramos,  e  calor  possante 


296  OBRAS  DE  BOCAGE 


Em  seus  lares  suffoque  a  débil  nymplia: 
O  fio  então  das  têas,  que  amollecem, 
Em  agua  tíbia  se  despega,  e  rola; 
Dócil  por  tuas  mãos  é  regulado, 
Por  ordem  se  desdobra,  e  finalmente 
Em  meadas  se  forma,  e  dá-te  seda. 

Mas,  porque  novos  cidadãos  possuas, 
Vivos  na  sepultura  avós  lhes  guarda; 
Da  borboleta  o  corpo,  que  incluida 
Na  nympha  está,  se  desenvolve  em  breve; 
Tem  solidez,  firmeza,  o  Ihço  rompe 
Das  faixas;  a  lagarta  destruiu-se. 
Seu  corpo  é  nada;  mascara  somente 
Ella  foi,  foi  brilhante  vestidura, 
Da  borboleta  viva  vivo  manto: 
Ella,  qual  terna  mãe,  lhe  preparava 
Manjares,  que  no  seio  digeria, 
E  que  sobejamente  fortes  lhe  eram: 
Ella  nutriu-lhe  assim  a  infância  débil, 
Que  enrijando  repulsa  inútil  veste, 
E  os  ricos  muros  do  palácio  rompe: 
Destróe  a  borboleta  os  que  ergue  o  bicho/ 
Da  nobre  empreza  ao  êxito  ella  basta; 
É  ariete  a  fronte,  e  bate,  e  quebra; 
O  muro  cede,  estala;  esforços  crescem, 
Apparecendo  vem  o  alado  insecto, 
Abre  caminho,  e  sáe :  todo  assombrado 
Do  resplendor  de  suas  graças  novas, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  297 


O  corpo  admira,  despregando  as  azas : 

Porém  não  ousa  aventurar  se\i  voo, 

Do  que  foi  n'outro  tempo  inda  se  lembra ; 

Anda,  agita-se,  as  azas  lhe  estremecem, 

Sócia  procura  a  que  seus  gostos  ligue : 

Das  communs  borboletas  imitando 

Desatinado  ardor,  como  costumam. 

De  flor  em  flor  não  vae;  consagra  a  vida 

Ao  doce  objecto  que  elegeu,  e  a  morte 

Ha  de  romper  somente  o  nó,  qne  os  ata: 

O  ardor  vae  sempre  a  mais ;  teme  um  momento 

Furtar-lhe  seus  dias,  morre  amando; 

A  terna  companheira  agonisante 

Depõe  nas  tuas  mãos  nascente  prole; 

Semente  delicada,  ovos  sem  conto. 

Ovos  fecundos,  esperança,  e  germe 

De  uma  linhagem  destruída;  filhos 

Dos  quaes  o  nascimento  á  mãe  é  morte; 

Filhos  sempre  a  seu  páe  desconhecidos ; 

E  que,  sem  lhes  haver  notado  a  industria, 

Como  elles  fiarão  pomposas  telas. 


298  OBRAS  DE  BOCAGE 


GJ^ISITO    QTJ-A.K.TO 


DOS  PRADOS 


Adornos  immortaes  da  térrea  face, 
Kiqueza  sem  traballio  aos  homens  certa, 
Eu  canto  vossos  dons;  assas,  oh  prados, 
As  fadigosas  lavras  dei  meus  versos. 

Sapiência,  que  do  Éden  discorrendo 
O  Eljsio  divinal,  qual  vasto  rio 
Dividido  em  canaes,  fertilisavas 
Teus  prados,  teus  jardins;  se  a  ti  meus  cantos 
Sagrei  de  todo,  e  tuas  aguas  vivas 
Do  Permesso  antepuz  á  lympha,  aos  sonhos, 
A  teus  arroios  cândidos,  celestes 
Guia  meu  passo  errante,  e  dá  que  eu  possa 
Beber  tua  corrente  a  largos  sorvos. 

Tu  que,  cingido  ás  leis  da  Natureza, 
Preferes  a  campestre,  a  doce  vida 
Aos  ferros  da  Fortuna,  aos  vãos  prazeres, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  299 


Ao  luxo  ostentador;  tu,  que  só  amas, 
Em  teus  desejos  curto,  os  bens  modestos 
Que  não  grangêa  o  crime,  e  de  que  a  terra 
Um  tributo  legitimo  te  píJga; 
Se  fáceis  fecundar-te  as  aguas  podem 
O  chão  de  que  és  senhor,  cuida  em  forral-o 
De  valiosa  relva,  e  com  profundas 
Lavouras  o  dispõe;  nunca  lhe  alterem 
Os  seixos  a  egualdade;  e,  se  releva. 
Sobre  o  liso  terreno  ageita,  forma 
Insensivel  pendor,  onde  escorreguem 
As  aguas  lentas,  dóceis,  livres,  fáceis : 
De  leivas,  filhas  de  abundosos  prados, 
Na  primavera  combinando  os  germes 
Semeia-os  logo,  e  teus  trabalhos  findam ; 
Em  sempre  novas  flores  taes  sementes 
Para  ti  sobre  o  campo  hão  de  manter-se. 

Ha  géneros  diversos  entre  os  prados; 
Um,  que  mais  se  deseja,  e  tem  mais  preço, 
Onde  agua  surda  por  caminhos  certos 
Corre,  o  serpêa,  no  interior  da  terra; 
Lá,  por  si  mesmo  vigoroso,  o  prado 
Attráe  agua  escondida,  e  vive  d'ella: 
Quer  outro  que  lhe  reguem  sempre  a  face 
Repartidos  crystaes  de  limpa  fonte. 

Mil  vezes  ao  cultor  os  campos  vendem 
Caro  os  bens  que  se  julga  haverem  dado: 
Sua  esperança  illudem ;  falso  alqueive 


300  OBRAS  DE  BOCAGE 


De  milito  secca,  ou  de  húmida  no  extremo 
A  quadra  accusa;  os  fructos  eis  se  mirram 
Co  importuno  calor,  e  o  fero  Bóreas 
Dilacera  os  jardins:  ventos,  e  invernos 
Jamais  em  seus  phreneticos  impulsos 
Hão  murchado  o  tapiz,  que  os  prados  cobre. 

Só  de  rio  innundante  as  soltas  aguas 
No  consternado  campo  afogam  messes. 
Deixa  o  pranto  ao  cultor,  deixa  os  suspiros; 
O  que  a  elle  intimida,  a  ti  recrêa: 
As  aguas,  em  que  pedras  não  se  envolvem, 
De  um  lodo  molle  ao  prado  auxilio  trazem; 
Se  do  Leão  raivoso  o  ardente  signo 
Vae  torrando  a  verdura^  e  fende  a  terra, 
Aguas  então  da  relva  estancam  sedes, 
Em  prado  e  prado  amenisando  as  flores. 

Prospero  asylo  de  Petrarca,  e  Laura, 
Vauclusa,  onde  inda  vive,  inda  respira 
Seu  estremado  amori  Oh  testemunha 
Dos  mil  transportes,  dos  suspiros  de  ambos; 
Tu,  que  tão  bella  foste  aos  dous  amantes, 
Tens  do  tempo  da  Grécia  o  gráo,  e  a  fama 
Pelos  thesouros,  que  nas  aguas  vertes. 

Se  a  corrente  de  próximo  ribeiro, 
Desviada  demais,  tocar  não  pode 
O  prado  sobranceiro,  em  vão  rebelde 
A  teus  desejos  foge,  e  ao  chão  sedento: 
Um  dique  as  aguas  prenda,  obrigue  as  aguas 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  301 


A  transcender  seu  leito;  ou  niuro  occulto 

Reforçado  alicerce  entre  ellas  tenha; 

Ou  constante,  enterrada  estacaria 

Em  vínculos  de  ferro  unida  seja: 

O  captivo  regato  inda  parece 

A  custo  obedecer,  saudades  sente 

Do  natural  pendor,  e  antiga  estrada; 

Mas,  apesar  da  fúria,  ás  leis  subjeito 

Detem-se  a  teu  sabor,  se  eleva,  e  corre; 

Em  prateados  sulcos  se  reparte, 

E  ás  flores  tuas  homenagem  rende: 

Aguas  partidas  por  esfarte,  ás  vezes, 

Indo,  empobrecem,  e  esgotadas  morrem; 

Não  de  outra  sorte  o  Xúcar  orgulhoso 

De  Valência  nos  campos  vê  sangrar-se, 

E  ao  mar,  que  ruge,  e  que  lhe  exige  as  aguas, 

Vil  feudo  leva  de  regatos  pobres. 

Nos  torrões  onde  as  aguas  são  mesquinhas; 
Por  industria  económica  parecem 
Menos  raras:  seu  uso  ali  se  vende; 
A  cada  possessor  egual  espaço 
Abre,  e  fecha  um  canal,  seus  curtos  mimos 
Revezados  ali  de  tempo  a  tempo 
Repartem-se  com  um,  com  outro  prado. 

Se  agua  em  tempos  diversos  cobre,  e  deixa 
A  terra  tua,  os  fructos  seus  variam 
Nas  quadras  todas:  um  torrão  pasmoso 
Lá  no  húngaro  terreno  se  transforma 


302  OBRAS  DE  BOCAGE 


Em  campo  lavradio,  em  tanque,  em  prado: 
De  uma  serra  visinha  em  roda  se  ergue 
Longa,  pezada  nuvem,  qne  vomita 
Do  boje  de  titra  cor  ventos,  e  raios; 
Por  súbitas  colura  nas  eis  torrente 
Das  subterrâneas  grutas  sáe  mugindo; 
Ií'um  momento,  não  mais,  se  forma  um  lago, 
Onde  armado  de  anzóes  o  peixe  enganas: 
Quando  Bóreas  agudo  as  ondas  gela 
Aos  carros  ellas  dão  seo;ura  estrada: 
Desgosta-se  no  fim  da  primavera 
A  agua  d'esta  mansão,  e  entra  de  novo 
Na  estancia  natural  co'a  prole  sua; 
Levanta-se  onde  as  aguas  se  estendiam 
Hervagem  pingue  dos  rebanhos  pasto ; 
Em  breve  o  lavrador  lá  sulcos  traça, 
E  em  breve  a  terra  com  seus  dons  o  amima: 
O  regresso  do  outomno  ali  renova 
Relva  abundante;  o  matador  salitre 
Voando  alcança  os  pássaros,  as  lebres, 
E  os  outros  das  florestas  moradores, 
Que  o  fresco  pasto  fervorosos  buscam: 
Taes  entretenimentos  dia  e  dia 
Te  chamam,  porém  curtos  são  teus  gostos; 
Durar  não  podem  mais  que  até  ao  prazo 
Em  que  a  seu  leito  recuando  as  aguas 
Vão  de  novo  occupar  a  estancia  antiga. 
Venturosos  os  campos,  venturosos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  303 


Onde  se  filtram  no  interior  da  terra, 

Ou  pelo  sol  nos  ares  se  evaporam. 

Sem  pedir  teu  cuidado,  e  livres  prestam 

O  alimento  invisivel  da  frescura ! 

Admiro  essas  pastagens,  esses  cumes 

A  que  as  hervas  anima  o  Loire,  o  Sena; 

Amo  do  Rheno  as  ondas  magestosas, 

E  as  margens  do  Lignon,  que  Amor  passeia. 

Rica,  e  vasta  planicie.  oh  férteis  prados, 
Ornamento,  esplendor  da  antiga  Neustria, 
Onde  nédeas,  cornigeras  manadas 
Erram  sem  guardador  por  grandes  pastos ! 
Herva,  que  engolem  nos  mais  longos  dias, 
Lá  na  mais  curta  noute  é  reparada: 
Para  se  vigiar  todos  se  ajuntam; 
Postos  por  ordem,  sobre  as  mãos  lançados, 
Um  circulo  formando,  a  torva  fronte 
Muro  invencível  apresenta  ao  lobo: 
Taes  os  prados  que,  ás  ondas  submettidos, 
Aos  olhos  do  universo  Hollanda  mostra. 

Nas  margens  onde  o  mar  o  Escaut  repulsa, 
E  com  elle  se  ajunta  n'elle  entrando, 
Bstendiam-se  outr'hora  infectos  lagos 
Temido3  sempre  dos  visinhos  povos; 
O  Escaut,  o  Môsa,  o  Rheno,  entre  herva,  e  junco 
Esquecendo  a  carreira  impetuosa, 
Sem  gloria  se  espargiam  lutulentos 
Formando  aqui,  e  ali  paúes  nojosos: 


304  OBRAS  DE  BOCAGE 


O  belga  disputou  graa  tempo  ás  aguas 

A  terra,  e  guerreou  por  fim  com  ellas; 

Seccos  por  arte  sua  os  negros  tanques, 

Surgem  paizes,  que  tapava  o  lodo: 

Absorto  o  mundo  viu  nascer  a  HoUanda; 

O  sol  nas  ondas  admirou  Zelanda, 

Que  a  vez  primeira  então  provou  seus  lumes; 

Trasbordados  arroios,  rios  cento 

Para  se  reunir  deixando  as  margens, 

Partidos  em  canaes,  viram  captivas 

As  aguas  suas  abraçar  a  Hollanda, 

E,  melhor  que  os  tractados,  lá  poderam 

Com  suas  divisões  ligar  cidades : 

O  alto  Oceano,  que,  escapando  ao  leito, 

Sempre  usurpadas  margens  engolia, 

Já  sabe  respeitar,  nas  suas  preso, 

Reparos  que  a  soberba  lhe  agrilhoam: 

Arvores  descem  ás  arêas  fundas, 

E  do  centro  do  mar  florestas  sobem ; 

ífão  tinham  já  na  fronte  essas  folhagens 

Tão  bellas,  essas  flores  tão  mimosas, 

Amável  ornamento  á  ÍTatureza; 

Mas  por  arte  feliz  mudadas  foram 

Em  robusto  alicerce,  e  carregadas 

D'immensa  terra;  suas  frontes  viram 

Morrer  a  equórea  fúria,  e  sustentaram 

Molle  alcatifa  de  verdura,  e  flores: 

Debaixo  d'esto  abrigo  em  campos  novos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  305 


O  batavo  ajuntou  riquezas  certas ; 

Duros  cavallos,  gados  numerosos 

Ao  longo  das  collinas  despargidos 

A  relva  seguem,  que  jamais  se  extingue: 

Ha  margens  onde  trémulo  o  terreno, 

Suspenso,  móbil,  e  a  nadar  nas  aguas 

Parece  que  dos  gados  cede  ao  pezo:   * 

Tranquilio  viajante  em  ágeis  barcas 

A  seu  prazer  o  batavo  discorre 

Suas  cidades;  quando  os  rios  presos, 

Congelados  nos  leitos  frustram  barcas, 

Elias  captivas  ficam,  voam  carros 

Por  estradas  de  gelo;  e  tal,  qual  fende 

As  planicies  azues  ave  ligeira, 

Sobre  os  canaes,  c'os  pés  de  ferro  armados, 

O  rápido  hoUandez  escorregando. 

Mas  firme  todavia,  assim  passeia 

Por  cima  do  maciço,  e  claro  espelho. 

Os  rios,  sobejando  ás  margens  suas, 
Não  raras  vezes  os  desvelos  oaldam, 
E  férvidos  nos  prados  se  derramam; 
O  Oceano  se  indigna  de  que  ousadas 
As  duras  mãos  do  batavo  ardiloso 
Escravo  o  tenham,  seu  império  estreitem; 
Soffre  mal,  que  em  grilhões  as  ondas  suas 
Praias  não  cubram,  que  regiam  d'antes, 
E  que  do  antigo  jus  da  Natureza 
Arte  o  despoje;  o  ríspido  Oceano 


306  OBRAS  DE  BOCAGE 


A  si  mesmo  provoca  ao  seu  despique, 
E  contra  os  muros,  que  amedronta  iroso 
As  ondas  rompe  sempre,  e  sempre  formar 
Se  elle  triumpha  (povos,  ah !  temei-o) 
Quebra  mugindo  os  diques,  e  os  derruba, 
As  cidades  engole,  e  sobre  as  vagas. 
As  vagas  vencedoras,  mostra  os  tectos. 
Seus  horríveis  trophéos,  e  prantos  nossos. 

Vós  que  as  praias  cubrís  do  mar  quieto 
Que  os  Vólcos  ao  suor  tornaram  dócil, 
Nunca  ousareis,  industriosas  gentes. 
Converter  lodaçaes  em  pingues  prados? 
Lá  outr'hora  se  viu  de  húmidas  grutas 
Negrejantes  delphins  correr  aos  mares: 
A  voz  do  pescador  voavam  logo, 
Sócios  lhe  eram,  quinhão  nas  pescas  tinham : 
Diante  dos  baixeis  saltando  em  chusma 
Rapidamente  as  aguas  dividiam, 
E  das  redes  em  torno  apinhoados . 
Os  feros  contendores  costumavam 
Tornar  ao  laço  os  escapados  peixes. 

Por  onde  o  Rheno  impetuoso  rola 
Rápidas  ondas  nos  famintos  mares. 
Ao  seio  dos  paúes  em  dia  e  dia 
Seixos  vomita  de  espumosas  bocas. 
Seixos,  que  na  carreira  ia  levando; 
Pouco  a  pouco  ás  lagoas  enche  o  fundo* 
Do  assalto  equóreo  suas  margens  vinga: 


POEMAS  DIDÁCTICAS   TRADUZIDOS  307 


Felizes  habitantes,  dae-vos  pressa, 
Tbesòuros  ajuntae  ás  terras  vossas 
Sumidos  ii'esses  lagos:  de  mãos  dada< 
Lá  procede  comvotjco  a  Natureza; 
As  aguas  arreclando-se  vos  sei' vem, 
Antecipam-se  a  vós;  e  d'entre  os  Lígos 
Francos  á  vossa  vista,  nasce  a  terr;i, 
E  de  uma,  e  de  outra  parte  ella  vos  chama: 
Regei,  regei  o  império  d'agua  expulsa, 
E  ao  ar  na  arêa  o  peixe  exhale  a  ^ida; 
Em  vez  de  amargas,  navegáveis  ondas, 
Te  engorde  os  gados  eíScaz  verdura. 

Terás  por  arte  prósperas  colheitas: 
Soltas  arêas  n'esse  lodo  envolve; 
Do  seio  d'esses  mádidos  terrenos 
O  lirio  roxo,  o  junco  desarraiga; 
Por  seu  cortante  ramo  ensanguentrida 
Dos  cavallos,  dos  bois  não  poucas  vtzes 
Se  escandalisa  a  boca,  e  se  desgosta: 
Canat  3  profundos  aguas  sempre  afFastt:j!i, 
Que  faz  o  kSíhi  pendor  ciibrir  teus  lagos. 

Prados  crearido,  a  visinliança  teme 
De  um  rio,  que  devora  as  njargens  ^eiupi\-: 
Tal  das  terríís  que  banlia,  e  vae  roeiulu 
Tacitamente  o  Rhodano  costuma 
Alicejces  niinar:  quando  enfunados 
Da  borrasca  estridente  o  Isero  ajunta, 


308  OBRArf  DE  BOCAGE 

E  O  Saôna  seus  Ímpetos  aos  d'ellaj 

Eis  de  repente  o  Ehodano  se  engrossa, 

Brame^  e  a  terra,  escutando-o,  geme  ao  longe; 

Ya^os  fluctuam  nas  soberbas  ondas 

Co'a  messe  os  regos,  e  co'a  relva  os  prados; 

Do  seu  chão  arrancada  inteira  herdade 

Yoga  rapidamente  a  chão  remoto; 

Pela  terra  fugaz  debalde  chama 

O  senhor  consternado,  outro  a  possue, 

E  a  une  a  seu  torrão :  já  se  tem  visto, 

Cançadas  dos  seus  giros  novas  Delos 

Escorar-se  nas  ondas;  a  miúdo 

O  Rhodano  alteroso  ás  vivas  aguas 

Abre  vários  caminhos,  entra,  invade, 

Cava  os  campos  misérrimos,  que  foram 

Em  vão  lavrados  para  fins  melhores ; 

Onde  messes  cresciam,  correm  aguas, 

E  o  que  já  foi  corrente  é  chão  fecundo : 

Ai!  Margens  de  Aramon,  vós  o  soubestes, 

E  vós  oh  Tarascon,  Montfrin,  Beaucaire, 

Yalabregues,  campinas  vezes  cento 

Do  Rhodano  animadas,  e  outras  tantas 

Desoladas  por  elle !  Alta  barreira^ 

Engenhosos  desvelos  contra  os  golpes 

Do  rio  denodado  escudos  sejam : 

TJm  forte  dique  ali  combate  as  ondas; 

Além  solido  muro  a  mar:-  '   ; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  309 


Mais  longe  debi]  vime  o  rio  espera 
Sobre  a  arêa;  resiste-llie,  cedendo, 
E  os  esforços  lhe  engana,  e  lb'os  malogra. 

Que  hade  ser  freio  ás  aguas  indigentes 
Que,  os  prados  a  nutrir  bastando  apenas, 
De  improviso  em  torrentes  se  convertem, 
E  em  ondas  fervorosas  saem  das  margens? 
Tudo  foge  á  violência,  que  arrebata 
Rochedos,  e  rebanhos,  e  a  ti  mesmo ! 
Tal  junto  d'Ilion  o  irado  Xantho 
Ovantes  cabedaes  desenrolava 
Na  terra  circumstante;  e,  era  quanto  aos  Teucros 
Era  seu  leito  asylo,  esbravejando 
Campos  vexava,  e  perseguia  Achilles: 
Escoa- se  por  ultimo  a  corrente. 
Mas  debaixo  da  arêa  os  prados  ficam 
Sepultados  ás  vezes;  livra  os  olhos 
D 'esses  tristes  objectos,  e  contempla 
Maro^ens  mais  ledas,  mais  ditosas  mar^fens. 

Aos  prados  resfitue  a  primavera 
O  brilhante  matiz;  as  flores  suas 
Assegure  o  pastor,  venere  o  gado^ 
Teme  que,  desmandando-se  com  ellas, 
Devore  em  fim  seu  ávido  appetite 
Os  thesouros  de  um  anno  em  um  só  dia. 

Vós  movei  pelo  prado  as  lindas  plantas, 
Njmphas,  que  de  attractivos  innocentes 
Ornadas  vedes  as  boninas  tenras; 


310  OBRAS  DE  BOCAGE 


Lavor  da  Natureza,  o  flóreo  esmalte 
Seja  da  simples  graça  enfeite  simples: 
O  fogo  dos  rubis,  e  dos  diamantes, 
Altivo  adorno  das  que  regem  sceptros. 
Em  vossos  corações  não  cria  inveja; 
Deixamos,  e  seguis  a  Natureza: 
A  terra  para  vós  urdiu  tapizes, 
Taes  leivas  estendeu,  travou  taes  cores 
Só  para  os  vossos  pés,  e  os  olhos  vossos. 

Como  que  ao  homem,  que  a  seu  rei  querendo 
Mais  bella,  e  mais  lustrosa  a  terra  dar- se, 
De  roupas  fulgurantes  se  atavia: 
O  seu  tãò  vario,  tão  risonho  esmalte 
E  ai^e  com.  que  a  destra  Natureza 
Lhe  ornou  mimosamente  a  formosura; 
Por  isto  é  que  floresce  a  relva,  e  sobe 
Nutrindo  n'agua,  e  refazendo  os  suecos; 
Mas  isto  mesmo  ás  hervas  damno  fora 
Que  humildes  sempre  são  sem  sjr  banhadas, 
Densas  com  tudo,  e  que  jamais  se  exhaurem: 
Este  campestre  viço  aos  gados  cede; 
Vê  como,  errando  á  toa  os  pastos  buscam; 
Aqui,  livre  do  jugo,  o  boi  ocioso. 
Deitado  sobre  as  mãos,  remóe  d'espaço; 
Saccode  o  freio  além  ginete  ufano, 
K  rincha,  e  salta,  e  pelos  pastos  voa. 

Teus  olhos  em  teus  prados  sempre  attentem, 
IJtil  espectador  os  enriquece: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  311 


Desarraigas  aqui  sinistras  hervas, 
Imiteis  para  ti,  fataes  aos  gados ; 
Ali  vás  escolher  do  acaso  as  plantas 
Que  Natureza  dá  sem  que  arte  a  ajude, 
Fartas  de  suecos  bemfazejos,  simples; 
Plantas  do  teu  suor  independentes, 
Que  da  frágil  saúde  amigo  esttiio 
A  peçonha  dos  males  aíFugentam: 
O  luxo  dos  jardins  altera,  ou  mata 
Virtude  tão  suave  a  teus  desejos. 

Se  rara,  e  triste  a  relva  sáe,  floresce, 
Esparge-Ihe  por  cima  um  rico  estrume: 
Se  o  terreno  te  deu  na  flórea  quadra 
Em  vez  de  herva  profícua  musgo  estéril, 
Cobre-o  de  cinza;  aos  prados  tal  soccorro 
Renove  o  lustre  de  seus  bellos  dias: 
'Oonsome-os  a  velhice  a  teu  despeito? 
Tentaras  a  fraqueza  em  vão  curar-lhe: 
Para  sempre  destróe  tapiz  inútil, 
E  alimentosa  espiga  o  substitua; 
Desafogado  o  chão  mudando  o  enfeite, 
Sem  custo  como  d'antes  en\%i'dece. 

Nos  fins  da  primavera,  quando  Phebo 
Annuncia  o  verão,  da  fouce  te  arma: 
Abre  caminho,  abate  aos  golpes  d'ella 
As  hervas  de  pascer;  largo  tridente 
As  agite,  e  depois  ao  sol  se  murchem: 
Da  chamma  perigosa  o  resto  exhalem ; 


312  OBRAS  DE  BOCAGE 


Se  a  funesta  colheita  apertas  logo 
O  calor  se  lhe  anima,  e  tráe  seus  lumes 
Condensado  vapor;  flammeja  em  breve, 
E  debaixo  dos  tectos  incendidos 
O  fogo  te  consome  a  ti,  e  a  elia. 

luda  mais  p'rigos.  ha :  teus  carros  vedem 
Que  ameaços  do  tempo  se  eíFeituem: 
Mui  longa  duração  de  aéreas  aguas 
Dissipa  os  suecos  da  sedenta  relva; 
Súbito  ás  vezes  fervida  torrente, 
Ou  ante  os  x)lhos  teus  a  tempestade 
A  arrasta,  os  bens  te  rouba,  e  n'outras  margens 
Assombra  teus  visinhos,  lh'os  entrega. 

Feudos,  que  dão  á  primavera  os  prados, 
Nos  seus  primeiros  dons  não  se  restringem, 
Tem  de  se  renovar:  dispõe  o  estio 
Novos  suecos,  que  o  outomno  aperfeiçoa; 
Té  o  inverno,  que  gela,  e  murcha  o  mundo, 
Não  ousa  deslustrar-te  a  verde  relva. 

Em  nossos  tempos  cresce,  e  reina  industria 
Que  faz  de  uma  raiz  nascer  um  prado: 
De  lavras,  e  de  estrumes  farto  o  campo 
Soccorro  assiduo  não  requer  das  aguas; 
O  mais  rebelde  -emíim  se  torna  dócil, 
E  fácil  abre  o  seio  á  planta  amiga. 

Torrão  pingue,  lodoso  é  que  sustenta 
O  trevo,  que  renasce  ali  três  annos: 
Em  medíocre  terra  onde  a  colloques 


POF.MAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  313 


Vivaz  luzerna  quatro  lustros  dura: 
Cascalho,  arêa  fazem  que  prospere 
O  sóbrio  candeal,  e  o  trevo  grande. 

Cada  anno  em  primavera,  estio,  outomno 
Usam  de  reparar  sua  existência^ 
E  a  fouce  lh'a  destróe;  n'aquellas  quadras 
As  novas  hervas  suas  ganham  forças, 
fí  ao  orado  excitam  fome:  em  se  exEauríndo 
Estraga-lhe  a  raiz,  e  d 'esse  estrago 
O  trigo  surgirá  mais  vigoroso, 
Em  quanto  desterradas  por  lei  tua 
Renascer,  vicejar  vão  n'outros  campos. 

Uma  semente,  ou  planta  ennobrecida 
D^esfarte,  e  só,  para  nutrir- te  os  gados 
Mais  abundância  tem  que  amenos  prados, 
Da  mãe  universal  mimosos  filhos, 
Composto  casual  de  germes  vários: 
Dentro  em  pouco,  assombrando  o  chão  que  habita, 
Qualquer  d'ella8  impera,  e  já  não  teme 
Com  herva  parasitica  humilhar-se, 
Emagrecer,  ficar  qual  era  outr'hora 
No  logar  onde  próvido  a  escolheste. 

Se  n'um  prado  vulgar  qualquer  plantio 
Houver,  que,  digno  de  melhor  ventura 
Definhe,  ou  bastardêe,  e  se  no  lodo 
Jaz  abatido,  á  mingoa  de  cultura, 
E  por  visinhos  seus  dos  suecos  falto, 
Que  ali  buscava,  d'esse  damno  o  livra, 


»314  OBRAS  DE  BOCAGE 


Cria-0  só;  firme  então  de  dia  em  dia 
O  tronco,  honroso  ás  experiências  tuas, 
Não  menos  que  os  irmãos  irá  medrando. 

Da  planície  onde  ri  tanta  verdura 
Os  thesouros  admiro,  e  prézò  o  enfeite; 
Livra-se  a  terra  de  um  repouso  infausto. 
Tudo  é  fértil,  risonho,  e  te  enriquece: 
Longe  os  tristes  alqueives  ociosos, 
Que  do  abortivos  cardos  se  herriçavam, 
Um  grão  succede  a  outro;  eis  que,  mudando 
A  sua  habitação,  nasce,  destróe-se. 
Renasce  por  seu  turno:  á  terra  deram 
Teus  suores,  e  auxilio  renovados 
O  esforço  de  perpetua  mocidade: 
Assim,  por  sempre  compensados  mimos. 
Teus  gados,  e  teus  campos  se  refazem. 

Ha  entre  as  flores,  que  ataviam  prados. 
Espécies  caras,  distinguidos  germes : 
Ante  teus  os  olhos  congregar  tu  podes 
D'estes  plantios  as  dispersas  graças: 
Attento  cultivando-as  n'um  canteiro 
Ali  creadas  são  com  leis  melhores, 
Dão-lhe  á  simplicidade  um  lustre  novo; 
Mas  aos  jardins  quaesquer  é  berço  o  prado. 
As  tuas  precisões  o  chão  úz  útil, 
Agora  aos  teus  prazeres  fértil  seja. 

Tu,  que  dignas  de  amor  pesquizas  flores, 
Dispõe  vivenda  aos  hospedes  mimosos: 


POEMAS  DJDACTICOS  TRADUZIDOS  315 


Debaixo  de  céo  puro.  em  branda  terra 
Com  seu  raio  nascente  os  lustre  Phebo : 
Sem  arte  ou  eleição  lá  n 'outros  tempos 
Confusamente  as  flores,  e  ao  descuido 
Aqui,  e  ali  nasciam,  contentadas 
Dos  dotes  da  singela  Natureza: 
Os  que  a  cultura  empresta  não  sabiam: 
Assim  de  Alcino  a  ilha  povoavam, 
E  os  jardins  de  Semiramis,  suspensos: 
ikthenas  dos  jardins  entre  seus  muros 
O  uso  alegre  deveu  ao  páe  virtuoso 
Do  pruzer  philosophico;  Epicuro 
Ali  mostrou  suas  bellezas  novas, 
E  os  campos  transferiu  para  as  cidades; 
Mas  Grécia^  de  que  as  artes  foram  filhas, 
A  regra  dos  canteiros  ignorava : 
A  França  6  que  os  formou,  que  os  pôz  em  ordem; 
DVste  luxo  campestre  ornou  palácios, 
Orla  inventou  de  arbustos  volteados, 
Dispôz  aífeiçoada,  e  lisa  relva, 
Fértil  xadrez  c'roou-lh.e  extremidades, 
E  das  mais  bellas,  escolhidas  flores 
O  thesouro  ostentaram.  Sois  dos  olhos 
Doce  attractivo,  oh  flores;  entre  aquelles 
Longos  circuitos  vos  ergueis  mais  lindas: 
Tal  aos  metaes  o  solido  diamante 
Dobra  fulgores  no  emprestado  throno. 
Em  meio  do  canteiro  aquosa  origem 


316  OBRAS  DE  BOCAGE 


Leve  a  teus  tanques  borbulbões  ferventes: 
Sedes  o  regador  ás  flores  mate; 
Mormente  quando  a  terra  arder  eo'as  calmas, 
Quando  ferrenhos  céos,  manhãs  sem  pranto 
Ameaçam  da  flor  belleza,  ou  vida, 
Com  aguas  mais  assiduas  as  soccorre, 
As  graças  lhe  renova,  estêa  os  dias: 
Sem  ella  tudo  morre;  onde  é  detida 
Vae  buscal-a,  e  consigam-na  desvelos: 
Agua  outr'hora  cubria  o  vasto  mundo, 
Mas  Deus  a  ca  p  ti  vou  no  equóreo  abysmo. 
E  lá  que  as  ondas  insoíFridas  querem 
Seus  muros  arrombar,  lá  que  mugentes 
Na  praia  immovel,  espumando,  expiram: 
A  cada  instante  o  sol  do  mar  levanta 
Vapores,  que  dilata,  e  que,  levados 
Rapidamente  nas  aéreas  plumas. 
Menos  graves  que  o  ar  que  nos  rodêa, 
Sobem  onde  mais  livres,  mais  ligeiros 
Na  sublime  atmosphera  andam  nadantes; 
Geram  d 'aurora  cada  dia  o  choro, 
Branquêam  flores  distillando  orvalhos; 
Quando  os  tufões  desferrolhados  bramam, 
E  nas  fundas  cavernas  erguem  lodo, 
Ondas,  betume,  do  terrivel  centro 
Sáe  mais  negro  vapor  turbando  os  ares, 
Brinco  de  seus  caprichos  formam  nuvens 
Mães  das  procellas,  filhx*  do  Oceano; 


POEMA.S  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS 


Em  seus  grávidos  corpos  bate  o  vento, 
E  pelos  ares  caem  mais  leves  que  ellas: 
As  planicies  baixando,  um  mar  suspenso 
Rios,  e  fontes  pelo  mundo  entorna: 
Fácil  caminho  a  preparar-lhes  prompta 
Abre  a  esponjosa  terra  o  seio  ás  aguas: 
Mormente  os  serros  nas  internas  grutas 
As  fugazes  correntes  dão  guarida; 
Pélago  de  vapores  espargido 
Nos  picos  d'ellas,  os  montões  gelados 
Das  neves  invernaes  (que  o  sol  fervente, 
E  os  húmidos  Favonios  tocam,  rompem 
Entre  os  risos  de  Abril)  vão  tortuosos 
Seguindo  por  caminhos  variados 
Os  meandros  de  arêas,  e  rochedos: 
Pelas  vêas  do  monte  as  gotas  filtra 
Agua  peré^ne,  e  abobadas  penetra 
Té  aos  barrosos  leitos,  onde  ha  posto 
Reservatórios  d'ella  a  Natureza: 
Lymphas,  juntas  ali,  dos  montes  fogem; 
Eil-as  arroios  são,  e  as  terras  lambem. 

Cumes  da  Ibéria,  onde  morreu  Pyrene, 
Os  que  Annibal  transpôz,  Vosgos,  e  Jura, 
Do  seio  o  Pó,  e  o  Rhodano  desatam, 
Rheno,  e  Garumna,  Sóccona,  e  Ticino: 
Débeis  junto  da  fonte  os  prados  molham, 
OfTrecem-se  aos  rebanhos  -sequiosos; 
Mas  eis  se  esquecem  da  acanhada  origem, 


318  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  na  carreira  sua  abastecidos 

Do  tributo  de  arroios,  que  lecolhem, 

Com  Ímpeto  rolando  altiras  ondas, 

Cubertos  de  baixeis  qual  o  Oceano, 

Vão  no  bojo  marítimo  abysmar-se, 

E  as  ondas  tornarão,  que  somem  n'elle; 

Sobre  as  azas  dos  Sues  ás  férteis  serras. 

Vê  d 'esta  pedregosa,  esconsa  altura 
Com  tremendo  rumor  lançar-se  as  aguas; 
Lá  debaixo  da  terra  em  férreos  tubos 
Superior  artificio  as  fechej  e  aperte; 
Eneo  canal  em  teus  jardins  coUoca, 
Que  dê  caminho  estreito  ás  aguas  promptas, 
Elias  furiosas  saem,  e  aos  ares  saltam 
Tanto  quanto  na  queda  se  abateram  ; 
Seu  pezo  as  fez  cair;  d'agua,  que  as  segue, 
Pezo  urgente  as  eleva,  e  manda  aos  aves: 
E  quando  ellas  se  escapam,  se  acham  liv]*  -. 
Equilibradas  sempre  estão  co'a  fonte: 
Pular  aos  tanques  teus  virão  dest'ai'te, 
E  em  teus  jardins  brincar  de  varias  sorte>. 

Junto  d'impia  caterva  em  rãs  muJada, 
D'agua,  que  ella  vomita,  injurias  soffre 
A  mão  do  Apollo;  um  Titan  enraivado 
Debaixo  do  Etna,  que  lhe  esmaga  os  membr^ 
Rio  aos  céos  arremessa  em  vez  de  flammn: 
Mais  longe  por  canaes,  que  estreitam  aguas. 
Sobem,  não  vistas,  muro  que  as  esconde  : 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  319 


Já  patentes  ao  dia  eis  se  desílobram, 
Multiplicadas  caem  de  tanque  em  tanque. 

E  st 'arte  portentosay  e  sempre  grata 
Oo'a3  aguas  brinque;  o  sábio  lhe  prefere 
Dos  compridos  caaaes  a  simples  arte, 
Que  na  rica  abundância  egualam  rios: 
Praz-me  uma  fonte  ás  tuas  leis  submissa. 
Que  a  ordem  que  a  divide  á  risca  observa: 
Entre  as  flores  aqui  remanso  ameno 
Volve  em  áreas  de  ouro  ondas  de  p^uta; 
Ornam-lhe  as  margens  mármore,  verdura, 
E  apenas  corre,  murmurando  apenas; 
Mais  abaixo  serpêa,  e  por  cem  voltas 
Erra  nos  bosques,  a  carreira  esquece; 
Acolá,  qual  torrente  as  ondas  pulam 
De  rocha  em  rocha,  rompem-se  escumando 
Com  pavoroso  estrépito,  e  lhe  applaude 
Os  mugidos  horrisonos  a  terra. 

Onde  illusões  amáveis  me  transpoitam  ! 
Apraziveis  estancias  quiz  mostrar- te, 
E  dos  reis  aos  jardins  levei  teu-^  passos: 
As  aguas,  como  as  terras,  lhe  obedeçam; 
Tu  regula  os  desejos,  mede  as  forças. 
De  um  prazer  seductor  o  engodo  teme. 

Porém  na  escolha  de  ao^radaveis  flores 

o 

Azas  livres  concedo  a  teus  desvelos: 
D'extranhos  climas  <reneros  oabados 
Da  Grailia  ao  seio  conduzidos  foram; 


320  OBRAS  DE  BOCAGE 


Cada  flor  n'ella  crê  que  a  pátria  gosa, 

Um  jardim  no  recinto  inclue  o  mundo; 

Floresce  aqui  a  anémona  indiana^ 

E  junto  d'eila  a  tulipa  africana: 

America  egualmente  a  par  lhe  arraiga 

Bellezas  varias  de  seus  amplos  climas; 

A  tenra  hemerocál^  cujo  destino 

E  nascer,  e  morrer  n'um  mesmo  dia; 

E  as  que  outr'hora  agradaram  tanto  aos  Incas, 

Que  para  as  figurar  na  quadra  trisfce, 

Imitando-as  cru  flores  de  ouro,  ou  prata. 

Nos  seus  ricos  jardins  a  Natureza 

Usavam  reparar.  .  .  ah!  Não  previam 

Que  das  longínquas  margens  do  occidente 

O  hespanhol,  mais  cruel  que  inverno,  e  ventos, 

Roubar-llie  iria  tâo  fatal  riqueza. 

Oh !  Quantas  flores,  concurrentes  d'estas, 
Mobil  quadro  variam^  nos  off' recém 
Das  cores  o  espectáculo  não  visto! 
Como  arte  bella  em  nravediça  têa 
Aos  olhos  enlevados  apresenta 
Os  paços  de  Plutão,  de  Phebo  o  coche, 
Grutas  de  The  tis,  e  de  Amor  florestas; 
Tal  em  nossos  jardins,  aonde  a  guia 
Sua  própria  estação,  vem  cada  espécie 
Dar  o  atavio,  e  novidade  á  scena: 
O  seu  século  está  na  quadra  .síui, 
Nascem  tantas  nações,  n'um  azmo,  e  morrem. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  321 


A  violeta  gentil  na  densa  folha 
Oomo  que  foge  á  luz,  e  ama  o  retiro; 
Seu  perfume  a  descobre,  e  seus  encantos 
Modestos,  virginaes  melhor  conseguem 
Honras,  que  esquivam;  sobre  o  flóreo  plano 
A  anémona  reluz;  o  vivo  esmalte. 
De  que  é  cVoada,  reunira  os  gostos 
Se  no  mesmo  logar  não  campeasse 
A  tulipa  formosa;  quanto  as  cores 
Um  mixto  formam  n'ella  extravagante 
Tanto  é  mais  de  admirar,  e  a  espécie  é  rara: 
Da  Syria  o  mais  christão  dos  reis  da  Gallia 
Trouxe  a  flor,  que  entre  nós  co'a  variedade 
De  seus  doces  caprichos  graciosos 
E  dos  amantes  seus  prazer  supremo; 
Revivendo  a  semente,  as  flores  torna 
Similhantes,  mas  varias,  taes  quaes  vemos 
Delicadas  irmãs.  Oh!  Natureza, 
São  estes  brincos  teus,  são  lindas  manchas 
Que  aos  olhos  assignalam  tanta  espécie, 
E  03  ijLomes  dos  heróes  lhes  attribuem: 
Nos  jardins  nascem  Alexandre,  e  Oesar. 

Prompto  a  deixar-nos,  Zephyro  abre  a  rosa, 
E  ao  primeiro  calor  a  oífrece  amigo: 
Dá-te  pressa,  dous  dias  não  subsiste 
Tão  suave  esplendor;  são  muitas  vezes 
Os  mais  bellos  destinos  os  mais  curtos. 

Que  aroma  singular  me  prende,  e  encanta  I 


322  OBRAS  DE  BOCAGE 

Fragrante  aos  olliòs  meus  pompêa  o  craro: 
Erguido  sobre  o  tronco,  e  fresco,  e  bello 
Nativa  candidez  ostenta  o  lírio: 
Teus  pendões  invenciveis  borde,  oh  França, 
Tua  gloria  annuticie  em  toda  a  parte; 
Mas  dos  sentidos  meus  desvie  o  cheiro. 

Dos  perfumes  que  dás  também  o  excesso 
E  desabrido,  oh  flor  do  mundo  novo, 
Mais  ditosa  entre  nós,  e  que  os  francezes 
Nominam  tuberoza;  em  tu  surgindo 
A  pomifera  quadra  retrocede, 
Vem  dar-te  irmãs,  que  hão  de  formar-lhe  a  corte.; 
O  amaraního  im mortal,  papoula,  e  myrtho, 
E  a  que,  amante  do  Sol,  coiii  elle  gira; 
Por  sua  formosura,  e  variedade. 
Pelos  destinos  seus,  da  China  a  rosa 
Nos  assombra  os  jardins;  em  sós  três  dias 
Que  á  vida  lhe  aprazou  a  Natureza 
Muda  três  vezes  o  inconstante  adorno; 
Entre  as  flores  Prothêo,  nascendo  é  branca, 
Vermelha  já  maior,  ]3urpurea  em  velha. 

Quando  o  inverno,  chamando  á  terra  os  frioS;, 
Ordena  aos  ventos  que  a  verdura  arranquem; 
E  quando  nos  jardins  por  elle  murchos 
Das  flores  o  espectáculo  nos  furta; 
No  tempo  em  que  o  taláspis  d'alva  fronte 
Ousa  ainda  brilhar  perante  os  gelos, 
E  entfe  ^cus  pés  o  caminhante  admira 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  323 


Flor  que,  sempre  affrontando  o  feio  inverno. 
Em  gelado  torrão  sáe  da  semente, 
Se  abre,  e  penetra  sobre-postas  neves, 
D'ellas  triumpha;  em  preparada  estancia. 
Contra  o  frio  rigor  seguro  asjlo, 
Flores  faze  nascer;  lumes  desperta 
Cujo  módico  ardor  Zephjro  imite;  ' 
Çoiil  este  brando  sopro  a  flor  se  illude, 
A  flor  parece  que  Favonio  torna, 
E  deve  ao  doce  engano  a  doce  vida. 

Aos  desvelos,  que  influe  arte  assisada, 
Amoroso  delirio  não  se  aggregue: 
Junto  de  um  cravo  moribundo  chore. 
Murche  com  elle  pallido  florista; 
Outro,  perdendo  tulipa  mimosa, 
Guarde  como  um  thesouro  o  espolio  secco; 
Estes  insanos  creadores  tristes, 
Estes  rivaes  do  céo  vão  muito  embora 
Mudar  o  esmalte  ás  flores,  e  o  perfume, 
Alterem-ihe  no  seio  a  Natureza 
Imprimindo-lhe  a  cor  d'agua  tingida 
Pelo  artificio:  quaes  prodígios  contem 
Açucena  purpúrea,  e  negro  cravo, 
Gabem-se  do  que  podem;  tu  desdenha 
D'arte  minu<iosa  apuro  estéril, 
E  gosa-te  dos  dons  da  fácil  terra. 

Multipliquem-se  as  flores  onde  a  abelha 
í  Usa  pelas  manhãs  colher  seu  néctar: 


324  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ás  antigas  nações  elle  preciso 

Dos  cuidados  domésticos  objecto 

Útil,  e  amável  fui;  de  Mantua  o  cysne 

Excitou-lhe  o  fervor,  cantou  costumes, 

E  thesouros  da  abelha,  os  seus  trabalhos, 

A  sua  economia,  a  ordem  sua. 

Seu  amor  a  seus  reis,  civis  discórdias, 

O  lucto  de  Aristêo  perdendo  o  enxame, 

Pelos  deuses,  e  a  mãe  restituído 

Aos  prantos  do  infeliz:  mas  dando  apenas 

Ao  hemispherio  nosso  o  Novo-Mundo 

Sabor  de  sueco  estranho,  as  canas  foram 

Antepostas  por  nós  ao  doce  favo: 

Da  massa,  com  que  engenha  os  edifícios 

O  insecto  susurrante,  inda  até'gora 

ííada  o  notório  préstimo  ha  supprido. 

Adquire  pois  a  cera,  e  vae  creando 
O  tomilho,  o  serpol,  herva-cidreira, 
O  jacintho,  o  açafrão,  e  as  perfumadas 
Flores,  que  enxame  alígero  carêam; 
A  estancia  lhe  construe,  a  obra  excita, 
Poupa-lhe  os  bens,  e,  por  sarar-lhe  os  males, 
Dos  sábios,  que  inda  existem,  colhe  industria, 
Que  as  abelhas  mantém  melhor  qne  outr'hora. 

Seguem  flores  o  Amor,  Sorrisos,  Graças; 
De  Timante  a  Oephisa  os  mimos  levam; 
Unem-se  na  madeixa,  o  seio  adornam ; 
As  festas  mais  pomposas  formosêam ; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  325 


Travados  n'um  festim  seus  ramalhetes 
Com  saborosos,  delicados  fructos 
Movediço  jardim  nas  mezas  formam: 
Por  desusado  mixto  algumas  vezes 
A  imagem  dos  mortaes  nos  apresentam: 
Assim,  sem  fabricar  vãos  numes  feros. 
Que  em  flores  desgraçados  convertiam. 
São  animadas  por  contrario  encanto, 
Nymphas,  lieróes  se  tornam :  das  mais  bellas 
Artes  brilhantes  o  atilado  esmero 
Imita-lhes  a  graça,  esmalte,  e  forma. 

Mais  forte  em  tuas  mãos,  que  industria,  oh  França, 
Te  aíFeiçôa.  e  submette  o  dócil  barro? 
ÍTós  o  desconhecemos,  nós  julgamos 
Ver  o  brilho,  o  matiz,  ver  o  caracter 
Das  flores  mais  lustrosas,  e  parece 
Que  os  olhos,  d'estas  graças  seduzidos, 
O  insulso,  preguiçoso  olfacto  argúem. 

Os  séculos  rerpotos  conheceram 
Plantas,  cuja  virtude  expulsa  os  males; 
Descubriu  (oh  portento !)  a  nossa  edade, 
Que  a  flor  vida  recebe,  a  flor  dá  vida 
Como  o  homem  a  dá,  como  a  recebe: 
Cubiçosos  de  unir-se  os  vivos  órgãos 
De  dous  sexos  fecundos  n'ella  existem; 
Do  pistflo  no  seio  os  fllamentos, 
O  pó,  que  elles  contém,  nações  inteiras 
Criam  de  vários  géneros;  seus  fachos 


326  OBRAS  DE  BOCAGE 


Une  Amor,  e  Hjmeneu,  conservadores 
Da  flórea  estirpe:  em  desmaiando  a  força 
Do  diurno  calor^  parece  a  planta 
Immovel,  como  nós,  jazer  no  somno: 
Desapparece  o  dia?  Eil-a  se  murcha, 
E  perde  o  movimento,  e  sccca,  e  morre. 

Ás  que  privadas  sempre  estão  d'ebposo 
Não  têm  fecundidade:  ha  taes,  que  tecem 
Ille^itimo  vinculo,  acceitando 
Os  mimos,  a  paixão  d'estranha  espécie; 
Porém  d'estas  a  prole  é  sempre  estéril, 
E  vinga  a  Natureza:  outras,  affeitas 
A  vicejar  com  languida  cultura, 
Enervam-se  por  arte  industriosa; 
Sua  grandeza,  e  esmalte,  em  breve  agradam; 
A  serventia  perderão  seus  órgãos; 
Os  filamentos  seus,  demais  nutrido-, 
Hão  de  alongar-se  em  folhas;  a  belleza 
Ha  de  supprir-lhe  os  destruídos  sexos, 
Serão  fecundidade  o  luxo,  o  adorno. 

Aqui  valida  flor  da  Natureza 
Possúe  hermaph redita  ambos  os  sexos, 
Arde  nas  chammas,  que  ella  própria  accende, 
Mata  os  desejos,  que. ella* mesma  incita: 
Dos  apartados  sexos  lar  distante 
Em  vão  presumes  que  Hymeneu  desvia; 
As  auras  servi çaes  da  flor  ao  seio 
Levam  do  esposo  a  preciosa  oflTrenda: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  327 


Taes  as  palmeiras  nas  fecundas  margens 
Que  humedeces,  oh  Nilo,  ind.i  que  ausentes, 
Para  se  unirem  com  prisão  de  amores 
Em  anno,  e  anuo  por  Favonio  esperam; 
Elle  é  seu  mensageiro,  azas  lhe  empresta; 
Mas  se  o  vê  preguiçoso  em  demasia. 
Do  Egypto  o  morador  vae  diligente 
Da  amada  aos  braços  conduzir  o  amante: 
Sem  tal  soccorro  a  planta  estéreis  flores 
Dera,  e  dera  murchando  inúteis  fructos. 

Tempo  de  amor  ás  flores  é  a  aurora, 
Renascem  co'a  manhã,  co'a  luz  se  animam, 
D'ellas  susurra  em  torno  o  flavo  enxame, 
Applaude  a  borboleta  os  doces  brincos, 
E  o  terno  rouxinol  em  paphio  myrtho 
Canta  os  ardores,  o  commercio  d'ellas. 


328  OBRAS  DE  BOCAGE 


c^jL:ssTrr<D  gíxjijstto 


DOS  GADOS 


Vós,  que  exerceis  das  terras  a  cultura, 
Vós,  que  lhes  daes  os  bens,  lhes  daes  o  adorno, 
Mortaes,  quanto  estas  leis  vos  eram  graves, 
Que  trabalho  exigiam,  se  as  sentísseis 
Desajudados,  sós!  A  Divindade 
Submette  a  humana  espécie  a  taes  suores; 
Mas  a  pena  é  paterna ;  e,  moderando-a, 
Aprouve-lhe  curvar  ao  jugo  do  homem 
Profícuos  animaes,  que  em  parte  a  soffram: 
Devem  obedecer,  vós  governal-os; 
Súbditos  são,  que  o  reino  vos  povoam. 
Este  imperito  tão  rico,  e  tão  potente. 
Quanto  d'esse  desdiz,  que  possuia 
O  homem,  pela  innocencia  enriquecido  ? 
Submissos  animaes  seu  rei  serviam, 
E  apenas  foi  culpado  os  viu  rebeldes; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  329 


Sem  armaSj  sem  soccorro  estremecendo 

Dos  tigreSj  dos  leões  temia  a  fúria; 

Aguas,  e  grutas,  ligeireza,  e  v6o 

A  seu  illuso  ardil  roubavam  prezas: 

Mas  assim  que  inventou  pelo  trabalho 

Artes  o  racional,  e  assim  que  o  Eterno 

Lhe  restabeleceu  poder  nos  brutos. 

Forçou,  veuceu-lhes  repugnante  instincto; 

Cedeu  colhido  o  pássaro  nas  redes; 

Teve  o  touro,  o  cavallo  um  jugo,  um  freio: 

De  noute  discorrendo  a  serra,  o  valle 

Os  selváticos  monstros  buscam  pasto; 

Nasce  a  luz,  o  homem  sáe,  elles  o  acatam, 

E  d'elle  entre  as  florestas  vão  sumir-se: 

Aos  úteis  animaes  deu  regras  úteis; 

Nos  serros  espargiu  seus  dcceis  gados; 

D'est'arte  um  foi  escravo,  outro  temeu-o, 

E  ás  leis  de  seu  senhor  curvou-se  o  mundo: 

O  cabrito-montez,  e  o  cerro,  ainda 

Que  em  forma  ao  renna  eguaes,  não  se  arrebanham; 

O  búbalo  indomável  mora  em  selvas, 

E  a  cabra  montezina  esquiva  o  jugo; 

D'estes  as  gerações,  que  a  Natureza 

Cria  selvagens,  e  selvagens  deixa. 

Não  podemos  dobrar  aos  usos  nossos; 

Mas  n'estes  animaes,  intumecidos 

Com  sua  independência,  e  liberdade, 

Limitado  poder  sempre  exercemos. 


330  OBRAS  DE  BOCAGE 


Oh  Deus,  de  que  um  pastor,  tremendo,  amando, 
Viu  nos  cimos  do  Horeb  a  magestade ; 
Tu  que,  chamando-o  a  ti,  d'eutre  ignea  sarça, 
Que  ardia  em  fogo  teu  sem  consumir-se, 
O  teu  nome,  o.  teu  ser  lhe  revelaste, 
O  primeiro  dos  vates  o  fizeste, 
O  fizeste  o  pastor  de  eleito  povo; 
No  lume  divinal  niinh'alma  inflamma, 
O  inculto  guardador  por  mim  se  instrua, 
Saiba  usar  de  teus  dons,  e  te  agradeça 
O  império  seu  pela  homenagem  d'elle. 

Se  bellos  fructos,  se  abundosas  messes 
Teus  desejos  expertam,  gados  cria; 
Venturosa  experiência,  ampla  fartura, 
Verás  galardoar  teus  mil  desvelos: 
Dos  antigos  mortaes  este  o  costume; 
Os  súbditos,  c'os  reis  eram  pastores: 
A  fabula  indicou  por  véllos  de  ouro 
Das  ovelhas  de  Atrêo,  e  Eéta  o  preço; 
O  esposo  de  Penélope  em  seus  gados 
Tinha  os  thesouros  seus;  de  Fauno  a  prole 
Os  seus  thesouros  em  seus  gados  tinha : 
Esta  industria  cubriu  de  povo  immenso 
Judéa,  Egypto,  e  foi  sua  opulência. 

Africanos,  arábigos,  os  vossos 
Mansos  camelos  o  joelho  accurvam 
Para  que  os  carregueis;  sem  medo  á  sede. 
Pagos  de  áridas  hervas,  os  desertos 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  331 


Cruzam  da  zona  ardente:  a  índia  ofFVece 
Aos  olhos  meus  o  válido  elephante, 
Espantoso  animal,  que  de  um  menino 
Se  deixa  governar,  altivo,  e  brando; 
Torres  sustenta,  e  impávido  costuma 
Levar  guerreiros  onde  a  gloria  os  guia: 
Por  estrada,  que  o  gelo,  a  neve  atulham 
Puxa  08  frios  lapões  o  renna  activo; 
Só  para  si  querendo  agreste  musgo, 
Vestiduras  lhes  dá,  manjar,  bebidas: 
Mas  nunca  teus  rivaes  serão  taes  povos, 
Oh  gente,  cujas  terras  alimentam 
Os  serviçaes  cavallos;  seus  empregos, 
Préstimos  vários,  o  animo,  a  belleza 
Aos  outros  aniraaes  este  avantajam. 

Cria  em  ledos  outeiros  teus  rebanhos, 
De  moderados  céos  procura  o  clima:  ' 

Bando  feliz  d'innumeros  ginetes 
Lá  se  faz  ágil,  são,  robusto,  e  vivo; 
Mas  em  lodosos  prados  tendo  a  estancia, 
Ou  tendo-a  em  valles  húmidos  no  extremo, 
Grosseiro  pasto  d'este  chão  nocivo 
Lhe  enerva  os  corações,  se  augmenta  os  corpos; 
Ficam  pezados,  sem  vigor,  sem  brio, 
E  receam-se  do  ar  ou  denso,  ou  frio: 
Vê  do  hespanhol  o  ardor,  vê-lhe  a  nobreza, 
A  fleugma  do  hollandez,  e  a  cobardia! 
Taes,  á  face  de  um  céo  macio,  e  puro, 


332  OBRAS  DE  BOCAGE 


As  arvores,  que  a  terra  alegre  nutre. 

As  graças,  que  lhe  vem  da  Natureza 

Unem  sumo  aprazível,  unem  fructos 

Provindos  da  cultura:  outras  desmaiam 

Em  soltos  areáes,  em  seccos  montes, 

Que  o  vento  insulta,  ou  nos  profundos  valles 

Toleram  sombra  pérfida,  e  somente 

De  sem-sabor  substancia  engrossam  fructos. 

A  França  ao  teu  desejo  em  sítios  vários 
OfFrece  outeiros,  que  de  pasto  abundam, 
Manifestos  á  luz:  são  taes  os  prados 
De  Hiesme,  do  Garumna,  e  taes  se  mostrara 
Do  Rhodano  fervente  as  frescas  margens. 

Que  é  do  vosso  artificio,  oh  destros  povos? 
Roma,  Roma  deveu  proezas  suas 
De  vossos  bons  maiores  ao  cuidado; 
Vossos  ginetes,  para  a  guerra  idóneos, 
Creados  para  a  guerra,  aos  seus  horrores 
Conduziram  do  mundo  os  vencedores. 
Escolhe  o  garanhão,  que  d'esta  escolha 
Depende  a  sorte  da  manada  equina: 
O  andaluz  nos  apraz,  e  o  barbaresco; 
D'este  o  filho  n'altura  o  páe  transcende, 
E  o  cavallo  d'Iberia  excede  a  estirpe: 
O  garanhão,  que  estimo,  é  novo,  é  forte, 
Soberbo,  e  manso,  dócil,  e  animoso, 
Alto  pescoço  tem,  e  audaz  cabeça. 
Redondo  é  na  garupa,  e  cheio  em  lados; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  333 


Caminha  ufano,  rápido  galopa. 
Insulta  OS  medos,  desafia  os  pVigos; 
Se  ouve  mavórcia  tuba,  os  sons  da  guerra, 
Agita-se,  re touca,  e  fere  a  terra; 
Chama  seu  rincho  ousado  os  estandartes, 
Fogo  lhe  luz  nos  olhos,  sáe  das  veiítas, 
As  orelhas  altêa,  herriça  as  crinas, 
Estremece-lhe  o  corpo,  a  bocca  espuma. 

De  ura  pello  assignalado  a  cor  mais  nobre 
Denote  seu  valor,  o  aíFormosêe; 
E  a  teus  rebanhos  dê  gentil  tintura 
De  raça  em  raça  este  útil  atavio: 
Busca  alazões,  prefere  os  mosqueados, 
O  azevichado,  o  baio,  o  de  três  cores 
Que  a  das  carnes  imita,  e  de  ouro,  e  neve; 
Ou  cinzenta,  ou  mal  tinta,  ou  deslavada 
A  pelle  n'um  cavallo  o  indica  frouxo: 
Assim  nas  variadas  cores  suas 
A  Natureza  brinca,  e  pinta  os  génios; 
Mas  isto  mente  ás  vezes,  e  quem  prova 
Seus  occultos  defeitos?  A  experiência: 
Na  belleza  envolver-se  o  vicio  pode; 
Falso,  vil,  rebelão,  espantadiço 
Pode  o  cavallo  ser,  ser  caprichoso; 
As  pechas  de  seus  páes  em  si  guardando, 
Hereditário  mal  transmitte  á  raça. 

Ardente  garanhão,  que  de  annos  sete 
Cheio  é  de  forças,  as  conserva  aos  vinte; 


334  OBRAS  DE  BOCAGE 


Depois  aíFraca,  e  sua  ardência  estéril 
E  de  um  desejo  vão  fallaz  impulso; 
Serve  a  egoa  em  mais  moça,  e  quinze  estios 
Fecundos,  bellos  dias  lhe  rematam. 

Seja  livre,  ociosa,  e  de  seu  pasto 
Se  regre  attentamenle  a  quantidade; 
A's  lidas  amorosas  destiuado,    _ 
A  seu  tenaz  ardor  se  dê  o  esposo; 
Mas  tempera-Ihe  o  fogo,  em  doze  amadas 
Ás  ferventes  caricias  lhe  restringe; 
ífelles,  como  entre  nós,  não  ha  ternura, 
Escandece-os  Amor  co'as  fúrias  todas: 
Em  vindo  a  primavera,  e  quando  as  egoas 
SoíFrem  dos  gamnhões  o  activo  assalto, 
Experto  conductor  una,  e  contente 
Desenfreada  amante,  amante  insano; 
Contenha  em  subjeição  té  íios  prazeres 
De  amor  agreste  os  Ímpetos  soberbos. 

Onze  mezes  passaram,  nasce  o  potro, 
O  desvelo  em  creal-o  agora  occupa: 
Poupa  fraqueza  da  tenriuha  edade; 
A  infância  brinque,  a  mocidade  espera; 
Deixa  correr,  saltar  mimosas  crias, 
E  acompanhar  as  mães  ao  prado,  ao  monte. 

íío  meio  de  seus  brincos,  desde  a  infância 
O  presagio  lerás  de  seus  costumes; 
Aquelle,  que  arrojar-se  aos  campos  vires. 
Correr,  embalançando-se  nas  curvas, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  385 


Desdenhar  vão  rumor  de  rio,  ou  fonte, 
Os  outros  provocar,  vencer,  correndo, 
Nos  brilhantes,  magnânimos  ensaios 
De  um  bruto  generoso  offVece  as  mostras; 
Independentes  vivem,  vivem  ledos, 
E  do  freio  vindouro  a  força  ignoram. 

A  edade  eis  útil,  no  terceiro  estio 
Subjugam  tuas  mãos  o  indócil  potro; 
Edade  é  folgazã,  porém  flexivel: 
Longe, ameaços,  picador  sanhudo; 
Um  castigo  cruel  produz  só  medo: 
Tu  prefere  ao  rigor  bnmdura,  e  mimo: 
O  cavallo  ama  o  homem,  quer  prazer-lhe; 
Sua  docilidade  é  voluntária. 
Mais  cede  á  voz  do  que  obedece  ao  freio. 

Das  varias  crias  o  destino  ordena : 
Dê-se  a  boçal,  e  a  frouxa  ao  carro,  ás  lavras; 
Convém  primeiro  que  um  vazio  arraste, 
Com  leve  arreio;  em  breve  os  pezos  graves 
D'espumante  suor  seus  lados  tingem, 
O  eixo  grita  nos  carros,  e  se  inflamma : 
A  voz  deve-o  guiar;  mas,  se  repugna, 
Succede-lhe  o  castigo,  e  vence  as  teimas. 

Impávido  ginete,  que  á  victoria 
Tem  de  voar  c'o  impávido  guerreiro. 
Desde  a  mimosa  edade  a  estrondos  feito, 
Escuta  sem  terror  trovões  de  bronze; 
Pelas  armas  ufano  os -olhos  corre. 


336  OBRAS  DE  BOCAGE 


Das  trombetas  a  voz  lhe  é  som  gostoso, 

SofFre  os  arções,  e  plácido  sustenta 

O  dono,  que  lhe  opprirae  as  lizas  costas : 

Submisso  ás  ordens  ou  se  avança,  ou  pára : 

Recua  e  se  levanta,  e  se  arremessa; 

Mais  prompto  que  elles,  precedendo  os  ventos, 

Apenas  sobre  a  arêa  imprime  o  passo;    . 

Ama  os  louvores,  e  reluz  seu  fogo 

Se  branda  mão  lhe  bate,  e  o  lisonjêa. 

Úteis  no  mareio  campo,  assim  ginetes 
Altivos  aos  certames  te  conduzem; 
Rompendo  os  esquadrões,  lá  saltam,  voam, 
A  matança  os  anima,  o  p'rigo  os  punge: 
Crivados  de  feridas,  entre  mortos, 
Cheios  de  pó,  de  sangue  elles  parecem 
Esquecer-se  de  si,  de  nós  lembrar-se; 
Se  a  força  os  desampara,  inda  animosos 
D'cntro  os  horrores  saem,  nos  livram  d'elles. 
Mostram  por  nós  temer  quanto  aíFrontáram, 
E  expiram  satisfeitos  com  salvar-nos. 

Este  doce  pendor,  que  a  Natureza 
Inspira  aos  corações,  Amor,  que  a  vida 
Confere  a  quanto  existe.  Amor,  nem  sempre 
E  pelas  suas-ieis  guiado:  ha  brutos 
Que  seduz  falso  instincto,  e  que,  inflammados 
De  perversa  paixão,  seguir  costumam 
Animaes  d'outra  espécie;  o  tigre,  unido 
À  leoa  feroz,  gera  o  leopardo, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  337 


Producção  monstruosa,  e  doeste  laço, 
Que  a  falsêa,  indignada  a  Natureza 
Abominável  raça  estéril  torna: 
Entre  animaes,  que  a  seus  desejos  prestam, 
O  homem,  multiplicando  impróprios  laços, 
Por  arte  os  reproduz,  e  de  anno  em  anno 
Novos  adquire,  a  Natureza  illude; 
Renovados  assim  os  machos  nascem, 
E  outros,  que  a  Natureza  não  perfilha. 

Da  egoa  o  macho  é  prole;  a  altivez  sua, 
Se  o  páe  lhe  nomeasse,  eu  affrontára, 
E  abatera  meus  versos  com  seú  nome; 
Mas  o  préstimo  seu  diga-se  ao  menos : 
Tem  manso  o  natural,  o  humor  paciente, 
Tolera  as  fomes,  e  o  contenta  um  cardo. 
Proveitoso  á  charrua  os  touros  suppre. 
Das  cargas  que  lhe  impõem  deixa  opprimir-se; 
Mas  ás  vezes  de  purpuras  o  adornam, 
E  nas  costas  mantêm,  conduz  ufano 
De  nympha  encantadora  o  doce  pezo : 
Em  fogoso  ginete  o  lindo  sexo 
Treme,  e  anbepõe-lhe  um  passo  brando,  e  lento. 

Rochas  subir,  do  precipicio  á  margem, 
É  do  bom  macho  o  préstimo  primeiro; 
O  homem,  sem  se  abalar,  n'elle  se  fia, 
Vae  por  caminhos,  a  que  olhar  não  ousa. 

Sóbria,  lidante,  ás  paternaes  virtudes 
Une  a  força  da  mãe,  e  orgulho  a  mula: 


338  OBRAS  DE  BOCAGE 


Rhodes,  Poitiers,  Saint-Flonr  taes  gados  criam^ 
Hespanha  é  rival  sua,  e  não  lhes  cede; 
I)'ella  os  cavallos  para  a  guerra  nascem, 
As  tarefas  ruraes  a  mula  é  própria, 
Preza  a  charrua,  e  se  lhe  affaz  sem  custo; 
Regra-lhe  tu  vivíssimos  transportes. 

Menos  em  fogo,  em  ânimos  não  menos, 
De  forças  é  dotado  o  boi  tardio : 
Cria-se  para  a  lavra,  ella  o  recrêa, 
Cede-lhe  tudo  aos  músculos  nervosos; 
Para  os  campos  não  ha  melhores  gados; 
E,  se  tens  para  dar-llie  hervas  fecundas, 
A  ordem  que  dictei,  regendo-os,  segue: 
Um  touro  quasi  indómito  se  estima; 
E  de  feroz  olhar,  de  sanha  ardente, 
E  o  corno  ameaçador,  mugindo,  abaixa. 
Ignora  estes  furores  a  novilha, 
Tem  seu  sexo  mais  brando  outros  costumes; 
De  abertas  ventas  é,  caídos  beiços. 
Fronte  larga,  olho  negro,  orelha  hirsuta; 
De  pello  mosqueado,  espesso,  e  molle 
Desce  aos  joelhos  a  barbella  instável; 
*  Soberba  caminhando  ergue  a  cabeça, 
E  a  cauda  buliçosa  o  pó  levanta: 
Terceira  primavera  amor  lhe  atêa, 
E  apaga-se  este  ardor  aos  quinze  invernos: 
Grandes  pezos  convém  que  então  não  puxe,. 
Té  do  menor  trabalho  então  se  isempte: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  339 


Não  lhe  consintas  que  atravesse  as  aguas, 
Que  montes,  espinhaes,  barrancos  passe; 
Erre  em  pingues  pastagens  livremente, 
E  em  limpas  margens  d 'algum  bosque  á  sombra. 

No  campo  onde  os  Teutões  já  guerrearam, 
E  de  seu  vencedor  tem  inda  o  nome, 
Nas  ribas  onde  o  Rbodano  lhe  é  dócil, 
E  segue  outro  caminho  a  elles  útil, 
Corrompe  os  ares  odioso  insecto. 
Que  em  fúria  horrível  assaltêa  os  gados; 
Os  gados  temem  seu  ferrão  cruento, 
E  da  picada  é  fructo  a  morte  ás  vezes; 
Os  touros,  do  susurro  amedrontados, 
Eompem  na  fuga  os  ares  com  brami^Jos: 
Fecha-os  no  tempo  adverso  em  que  os  calores 
O  insecto  irritam,  e  implacável  tornam. 

Quando  da  vacca  se  avisinha  o  parto. 
Pastores,  não  queiraes  que  ella  vos  pague 
O  tributo  do  seio;  e,  produzindo 
Da  ternura  o  penhor,  soíFrei  que  o  crie 
Sem  partilha  de  alguém;  não  tarda  o  tempo 
Em  que  seu  leite,  de  nectáreo  gosto, 
Corre  só  para  vós:  em  dia,  e  dia 
Nas  vêas  suas  o  liqnor  filtrado 
Duas  vezes  lh'os  enche,  e  sae  dos  peitos; 
Foi  primeiro  manjar  nos  tempos  de  ouro, 
E,  do  luxo  a  pezar,  tem  preço  ainda; 
Ou  variamente,  e  por  industria  occulto 


340  OBKAS  DK  BOCAGE 


Nosso  melindre  affague;  ou  refrigério 
Esteio  á  languidez,  o  triste  enformo 
D'entre  as  portas  da  morte  arranque,  e  salve: 
Doce,  mas  prompto  em  azedar-se  o  leití) 
Só  por  attenta  mão  pode  manter-se: 
Simples  queijeira  com  asseio  agrade: 
Para  estas  obras  rústicas  hei  visto 
Entre  mármore,  e  entre  ouro  ergue-se  portas, 
Onde  em'  chinejícs  vasos  se  honra  o  leite 
De  humedecer  dos  reis  as  mãos  augustas; 
A  pezar  do  impostor,  do  vão  seu  brilho, 
Teu  jus  conhece  o  luxo,  oh  Natureza. 

Mas  de  trabalhos  taes  o  doce  emprego 
De  mais  útil  cuidado  o  tempo  acate : 
Teme,  se  tu  co'a  voz  os  não  suspendes, 
A  mocidade  indómita  dos  touros  : 
Dobra-lhe  um  simples  vime  em  torno  ás  pontas, 
Ou  forma-lhe  um  collar  de  ramos  leves : 
Dous  novos  bois,  eguaes  na  edade,  e  força, 
A  subjeição  do  arado  aprendem  juntos 
Vão  a  passos  eguaes  por  chão  de  arcas, 
Brevemente  abrirão  torrões  lodosos: 
Para  os  avassallar,  mais  fácil  meio 
Une  a  touro  rebelde  um  menos  duro; 
Este  é  mestre  d^aquelle,  •  pelo  exemplo. 
Que  pôde  mais  que  tu,  se  faz  tractavel. 

Dous  bois  em  breve  se  acostumam  juntos  ; 
Mais  que  o  jugo  amisade  os  concilia : 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  341 


Com  reciproco  ardor,  e  eguaes  esforços 
Elles  se  ajudam;  se  os  desune  a  morte, 
Vê-se  o  que  resta  pranteando  a  falta 
Do  seu  querido  irmão:  recentes  prados, 
Bosques  sombrios,  crystallino  arroio 
Não  lhe  dão  gosto  já,  são-lhe  indiferentes; 
Cos  olhos  melancholicos,  e  fitos, 
A  pezada  cabeça  inclina  á  terra. 

Povo  aflpamado,  em  Apís  te  morrendo, 
De  que  prantos,  de  que  ais  enchias  Memphis ! 
Adorador  de  um  boi  lhe  ergueste  um  templo, 
CoUocavas  no  altar  deus,  que  pascia ! 
Prostrados  a  seus  pés  mortaes  estultos 
O  fado  em  seus  mugidos  consultavam ! 
A  Grécia  aos  gados' seus  co'a  mesma  insânia 
Deuses  fez  presidir;  já  Pan,  já  Phebo, 
E  os  Sylvanos,  e  os  Satjros:  meus  versos, 
Meus  sons  tem  mais  poder  que  esses  phantasmas: 
Rebanhos,  acodi,  correi  a  ouvir-me; 
Attentos  os  pastores  me  rodêem. 

A  cordeira,  a  pezar  das  lãs  que  a  forram. 
Teme  os  invernos:  voltem-lhe  os  abrigos 
A  parte  austral,  encerre-se,  e  nutrida 
Seja  ali  com  desvelo;  hervas  se  elevem 
E  vegetaes  ali  que  lhe  escaparam; 
Densas  camas  de  feto  amontoado 
Dos  males  imminentes  a  preservem. 

Se  é  puro  o  sol,  se  é  amoroso  o  dia, 


342  OBRAS  DE  BOCAGE 

Ou  se  acaso  abrilhanta  opaca  nuvem, 
Ten  gado  á  margem  próxima  encaminha, 
Sem  que"  o  deixes  no  campo  extraviar-se ; 
Porém  d'esta  lei  rígida  exceptuo 
Climaj  que  nunca  os  gelos  entristeçam; 
Lá  n'um  parque  ambulante  a  ovelha  mora, 
B  vê  continuo  variar  a  estancia : 
Assim  de  teus  rebanhos  a  vivenda 
Ora  aqui,  ora  ali  te  aduba  os  campos : 
De  um  ar  subtil,  e  vivo  a  frialdade 
Faz-lhe  o  vello  mais  brando,  a  lã  mais  pura ; 
Mas  fecha-os  quando  o  polo  se  ennegreça, 
E  aguas  se  endurem,  volteando  as  neves: 
Segue  este  uso  tão  prospero  Occitania, 
Elle  o  preço,  oh  Segóvia,  ás  lãs  te  altêa. 

NTa  ilha  onde  os  avós  anniquilaram 
Do  lobo  a  raça,  d'Albion  pastores, 
Livres  das  fúrias  do  inimitro  astuto, 
As  neves,  ao  rigor  de  húmido  clima 
Não  recearam  callejar  seus  gados; 
Ousam  ainda  mais:  ao  desabrigo 
De  ar  intractavel  as  ovelhas  deixam 
Nas  geladas  planicies,  e  conseguem 
Com  isto  suas  lãs  o  gráo  primeiro. 

Apenas  se  abre  a  terra  ao  brando  raio 
Da  meiga,  flórea  mãe,  cordeiras  podem 
Saltar  na  relva,  que  do  chão  rebenta; 
Mas  esperar  convém  que  o  frio  orvalho 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  343 


Se  extinga  ao  sol :  o  affogueado  estio 

Quer  outras  leis;  a  matutina  estrella 

Vê  nos  mattos  vagar,  pascer  carneiros; 

E  ali  se  reconduzam  quando  a  tarde 

Húmida,  e  grata  restituo  á  relva 

Alterada  frescura;  ao  meio-dia 

Tu  porém  desce  os  montes,  busca  os  valles, 

Demanda  os  rios;  teu  rebanho  anhéla 

Repouso,  virações;  ali  se  estenda 

A  sombra  de  um  carvalho,  ao  pé  de  um  bosque. 

Té  sítios  ha  que,  pelo  sol  cresrados, 
De  rebanhos  no  estio  estão  desertos : 
Então  vê  o  Esperou  chegar  de  ovelhas 
Lentas  catervas,  d 'acolá  banidas; 
Longevos  bosques  seus  ao  pólo  se  erguem, 
OfTrece  no  mais  alto,  e  fértil  cimo 
Amplo  torrão,  jardins  da  natureza, 
Ricos  de  flores  sem  cultura,  ou  arte ; 
Os  filhos  de  Chiron  vem  de  mil  campos 
Olhos  ali  fitar,  sondar  virtudes: 
Desdenha  aquelle  monte,  aos  ecos  visinho. 
Das  procellas  o  horror;  lá  vi  cem  vezes 
Debaixo  de  meus  pés  juntar-se  as  nuvens, 
E,  em  quanto  aos  olhos  meus  sol  puro  ardia, 
Sobre  os  valles  a  noute  o  véo  lançava ; 
Os  raios,  os  trovões  se  iam  creando 
Longe  de  mim,  e  a  terra  espavoriam. 
Ditosas  cordeirinhas,  quanto  é  doce 


344:  OBRAS  DE  BOCAGE 


Vosso  destino  ali!  Feliz  quem  livre 

Vive  em  paz,  como  vós,  n'aquelles  campos. 

Em  quaesquer  climas  a  que  o  céo  te  chame^ 
Nunca  de  teus  carneiros  te  descuides; 
A  sua  mansidão  requer  ternura, 
Merece  amor,  e  amando  t'o  agradecem: 
O  cajado  ao  pastor  não  serve  ás  vezes, 
Rege  um  grito,  um  signal  todo  o  rebanho; 
O  principal  carneiro  aos  mais  precede, 
E  seu  guia  elle  só,  regula  o  passo, 
E  o  povo  o  segue:  por  barrancos  salte, 
Recue,  ou  se  adiante,  a  chusma  toda 
Ou  pára,  ou  se  arremessa  apoz  o  chefe: 
Assim  que  o  predominio  lhe  concedes 
Um  carneiro  é  senhor,  dá  leis  aos  outros; 
Basta-lhe  teu  favor,  no  mesmo  instante 
De  seus  e<íuaes  obediência  loo^ra. 

Pastor,  conhece  os  cumes  onde  ha  flores, 
Que  teu  gado  procura:  os  gordos  pastos 
(Húmida  nutrição)  não  mais  lhe  oífrecem 
Que  um  pérfido  alimento:  aos  sitios  foge 
Crespos  de  cardos  que,  ferindo  os  corpos. 
As  guedelhas  arrancam;  vae-te  a  um  serro 
Que  brote  herva  cheirosa  em  magra  tei^ra*; 
A  suave  alfazema  os  gados  correm, 
E  ao  alecrim,  serpól,  tomilho,  e  nardo: 
Taes  de  Armo  rico,  e  Ardênnas  os  carneiros^ 
De  remotas  provia  cias  tão  buscados. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  345 

Aos  muros  de  Salon  corre  visinlio 
Campo  fragoso  de  abundantes  pastos 
Para  muito  rebanho:  a  vista  absorta 
Só  planície  infecunda  ali  descobre; 
Aclía  o  carneiro  industrioso  a  herva 
Occulta  em  móbil  pedra,  e  vê  pascendo 
Tomilho  sempre  extincto^  e  renascente. 

Os  mesmos  alimentos  entejando 
A  ovelha,  como  nós,  também  se  enjoa, 
Variedade  lhe  apraz ;  não  se  lhe  negue 
Remédio  certo,  que  lhe  esperte  a  fome; 
No  tempo  em  que  pascer,  ante  seus  olhos 
O  sal  branqueje;  de  repente  a  ovelha 
Corre  a  elle,  e  seu  ávido  appetite 
Eis  trabalha  entre  os  dentes  esmagal-o; 
Renasce  o  gosto,  a  sede  se  lhe  irrita, 
E  em  breve  de  seu  leite  a  origem  cresce. 

Ha  propicios  torrões,  que  dão  ás  hervas 
Suecos^  que  adnba  o  sal:  teus  bons  pascigos, 
Oh  Presalé,  são  taes,  taes  esses  campos 
Que  do  mar  foram  leito,  hoje  são  margem. 

Ganges  segue  outras  leis:  da  mãe  se  aíFasta 
O  cordeiro,  e  teus  lares  quer,  e  habita; 
N'elles,  ou  no  redil  avulta,  engorda 
Dos  sobejos  mensaes,  ou  da  castanha. 

Existem  sobre  a  terra  inda  legares 
Onde  o  pastor  co'a  voz  ajuste  a  avena? 
Para  os  sons  admirar,  de  que  se  encanta, 


346  OimAS  DE  liOCAGB 


Deixa  o  sensível  gado,  e  esquece  a  relva : 

Porque  em  nossas  aldêas  já  não  vemos 

Dos  antigos  pastores  as  contendas? 

Cantavam  primavera  engrinaldada, 

Guarnecido  o  verão  de  espigas  de  ouro, 

Ourvo  dos  fructos  seus  o  outomno  ao  pezo: 

As  selvas  magestosas  celebravam, 

Que  o  cimo  enramam  de  alterosos  montes  ; 

Caindo  as  aguas,  e  espumando  em  rochas, 

Ou  girando  nos  valles,  e  entre  os  prados: 

Em  versos  amebêos  soavam  penas, 

E  delicias  de  amor,  seus  bens,  seus  males; 

Um  de  Lilia  gentil  pintava  encantos, 

Filis  outro  accusava,  ou  falsa,  ou  dura; 

Em  premio  o  vencedor  tinha  uma  cabra, 

Ou  dous  cordeiros,  e  o  pastor  vencido 

Entre  as  convulsas  mãos  partia  a  flauta: 

Turba  rival,  arcádicos  pastores, 

O  Ménalo  occupou  de  taes  combates; 

O  Hebro  nas  margens,  o  Ismaro  em  seus  bosques 

De  Orphêo,  e  Lino  a  consonância  ouviram; 

Sensível  Árethusa,  d 'entre  as  aguas 

Os  siculos  pastores  escutaste; 

Suspirar  Corydon  tu,  Man  tua,  ouviste, 

E  cantar  Melibêo,  Damon:  seus  versos 

Os  tigres,  os  leões  embrandeceram, 

D'envolta  c'o  rebanho  os  attrahiani; 

Enterneceu-se  a  penha  aos  sons  campestres, 


POHMAS  DIDÁCTICOS  TliADUZIDOS  347 


Pararam  rios,  arvores  tremeram. 
Áureos  dias  de  paz,  vida  innocente, 
Mais  não  sois  para  nós  que  vã  pintura ! 
E  nos  seus  gados  os  pastores  nossos 
Todo  o  cuidado  restingindo,  apenas 
Em  rústico  assobio  a  boca  exercem. 

Ao  menos  saibam  com  que  fácil  meio 
A  ovelha  a  seus  desejos  é  mais  útil: 
Esperança  fallaz  não  te  allucine, 
Não  deves  exigir  que  n'um  sp  anno 
Vezes  duas  a  ovelha  dê  seu  fructo; 
Um  consorcio  a  contenta;  em  vão  forçaras 
Seu  apagado  ardor  a  amores  novos : 
Queres  na  renascente  primavera 
Que  o  manso  cordeirinho  hervagem  goste 
Tenra  como  elle?  Une  o  carneiro  á  fêmea 
Quando  o  outomno  as  promessas  desobriga 
Que  a  primavera  fez;  mas,  saciado 
Das  ovelhas  o  ardor,  não  mais  permittas 
Ternos  assaltos  d'importilno  esposo. 

Eis  junto  ás  mães  os  cordeirinhos  gemem, 
Arredam-se  ao  principio;  mão  propicia 
O  leite,  que  vem  logo,  e  que  é  veneno, 
Lhe  rouba,  e  só  lhe  deixa  útil  bebida: 
Quando  co'a  edade  enrija  o  débil  corpo, 
O  filho  apoz  a  ovelha  aos  pastos  corra: 
Egual  em  forma,  e  côr  sempre  o  rebanho 
Do  esperto  pegureiro  aos  olhos  mente; 


348  OBRAS  DE  BOCAGB 


Mas  a  Amor  nada  escapa;  o  cordeirinlio 
Conliece  a  mãe,  e  a  mãe  desvia-o  de  outra, 
Ou  foge  d'elle;  entre  ellas  todavia 
Rixas  não  ha;  pacíficos  estados 
Governaes,  oh  pastores:  mas  apenas 
Annos  ferventes  aos  cordeiros  vossos 
De  amoroso  transporte  a  cham ma  inspiram, 
Estes  ardores  apagando  o  ferro 
Nos  apreste  o  sabor  de  tenras  carnes: 
Se  houver  longa  demora,  hão  de  atear-se 
Entre  elles  pelo  campo  eternas  lides: 
Dous  soberbos  rivaes  se  arrostam  feros, 
Se  investem  pela  arêa,  e  se  topetam, 
Fomentam  seu  furor  c'os  mesmos  golpes, 
Corre  o  sangue,  e  a  ferida  irrita  as  fúrias. 
Dóceis,  com  tudo,  ovelhas,  e  carneiros 
Vivem  só  para  vós,  de  bens  vos  enchem : 
Uma  te  off'rece  um  leite  inexhaurivel, 
Outro,  grata  iguaria,  ornar-te  a  meza; 
Ambos  nos  dias  da  estação  mimosa. 
De  lãs  espessas  carregados,  despem 
Os  seus  para  aprestar  vestidos  nossos, 
E  as  mãos  da  Natureza  outros  lhe  apromptam: 
Debaixo  da  veloz,  cruel  tesoura 
Immovel  jaz  pacifica  ovelhinha, 
E  nem  sóka  um  queixume,  inda  que  ás  vezes 
Movido  por  mão  dura,  e  pouco  attenta 
Vestígios  sanguinosos  deixe  o  ferro: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  349 


Humanos,  aprendei:  sois  d'esta  sorte 
Constantes  no  revez,  nas  dores  mudos? 

Podéra  aqui  também  dizer  porque  arte 
As  lãs  com  férreo  pentem  se  preparam; 
E  debaixo  das  mãos  como,  formando 
As  confusas  meadas,  a  pastora 
Vê  o  fuso  engrossar  ao  som  do  canto: 
Já  subindo  o  sarilho,  o  já  descendo, 
Posto  entre  os  fios  se  uniria  á  trama: 
Com  o  lápis  na  mão  firmando  as  cores. 
Mesclara  extracto  de  metaes,  e  flores; 
Julgaras  ver  brilhar  vivo  amarantho, 
A  pallida  violeta,  a  rubra  rosa : 
Arte  dos  Grobelins,  talvez  comtigo 
Aprendera  a  traçar  altos  desenhos, 
Montanhas  debuxara,  o  bosque,  o  serro. 
Rios  e  gados  na  campina  errantes; 
Té  ousara  a.  teus  olhos  deslumbrados 
Mostrar  Ypres,  Tournay.  Fribourg  ardendo 
Nos  raios  de  Luiz :  mas  só  credoras 
Da  habitação  dos  reis  tão  nobres  telas 
Aos  colmados  tugúrios  não  competem; 
Mudam  por  arte  a  natureza,  e  n'ellas 
O  pastor  desconhece  a  lã  da  ovelha. 

Cabra  europêa  para  têas  varia» 
A  industria  dos  mortaes  não  dá  tributo 
Como  o  vello  que  nós,  multiplicando-as, 


350  OBRAS  DE  BOCAGE 


Podíamos  obter  das  do  oriente; 

Mas  duas  vezes  no  anno  é  mãe  de  gémeos, 

E  leite  a  ovelha  dá  menos  sadio: 

Apraz  valle,  e  planície  aos  outros  gados, 

A  cabra  gosta  de  trepar  montanhas, 

E  caprichosa  um  precipicio  affronta 

Para  haver  um  codêço ;  a  si «[  entrega 

Lançado  o  guardador  na  relva  moUe, 

E  em  pendente  rochedo  a  vê  segura : 

Ella  nas  montas  pasce,  e  vae  no  bosque 

Dos  arbustos  morder  cortiça,  e  folha: 

Oh !  Nunca  meus  jardins,  pomares,  e  hortas 

Provem  seu  dente  peçonhento  !  Oh !  Sempre 

Longe  da  habitação  de  férteis  campos 

Viva  lá  nas  montanhas  degradada. 

Doeste  lascivo  gado  esposo  digno, 
Passos  tardios  encaminha  o  bode: 
Quasi  as  fúrias  do  amor  com  elle  nascem, 
E  desde  a  tenra  edade  o  inflammam  todo; 
Do  ardor  que  o  affoguêa  escravo  é  sempre; 
De  prazeres  se  cança,  e  não  se  farta; 
Mas  peado  co'a  gota,  e  velho  em  moço 
A  triste  esfalfamento  em  fim  succumbe; 
Com  podre  cheiro  os  ares  envenena, 
E  prompta  morte  lhe  remata  os  dias. 

Néscia  pastora  desculpar  não  posso. 
Que  vários  gados  n'um  rebanho  ajunta: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  351 


Em  3Ítios  vários  divididos  pastem; 

Pelos  prados  o  boi  segue  o  cavallo, 

A  cabra  quer  o  monte,  a  ovelha  os  mattos. 

Raras  de  javalis  ha  castas  duas: 
Uma,  dos  bosques  susto,  ardente,  e  fera, 
Se  irrita,  e  contra  um  tronco  a  preza  aguça; 
Presenta  irada  ao  caçador,  que  treme. 
Espumoso  focinho,  olhos  em  braza; 
Fomes  a  apertam,  voa,  arrosta  os  p'rigos, 
Vinhas,  sulcos  destróe,  destróe  pomares: 
Outra  inquieta,  e  dócil,  nossa  escrava 
Ronca,  mas  cede,  e  vive  em  nossos  lares; 
Pasce  em  longos  rebanhos  nas  florestas, 
No  lodo  se  revolve,  ou  nas  lagoas; 
Impura  ao  culto  hebreu,  e  abominosa, 
De  varias  artes  nossas  mezas  cobre; 
Se  o  mais  vil  animal  nos  é  aos  olhos, 
IJtil  a  precisões  também  a  achamos. 

Se  o  chão,  traído  de  exquisito  aroma, 
Mostra  que  esconde  a  túbera  no  seio. 
Do  porco  o  ardor  t'a  indica;  elle  precede 
Guia,  abre,  segue  a  estrada,  e  mostra  o  fructo; 
Muitas  vezes  fecunda  n'um  só  anno 
D'innumeros  leitões  a  mãe  cercada 
A  continua  exigência  lhe  é  bastante ; 
Cuida  em  ceval-a  n'esse  prazo  urgente: 
Fora  surda  co'a  fome  á  natureza. 
Desconhecera  os  filhos,  e  os  tragara. 


352  OBRAS  DE  BOCAGE 


O  grosseiro  cultor,  que  não  conhece 
Mais  do  que  os  carnpos  onde  o  pôz  seu  fado, 
Limite  as  luzes  em  saber  de  alqueives; 
Minha  estancia  eu  transponho,  um  vivo  raio 
Aos  horisontes  dous  me  chama  os  olhos; 
Lá  procuro  outros  bens,  mais  férteis  gados. 

Nos  campos  do  Indostan  a  ovelha,  a  vacca 
São  duas  vezes  mães,  e  amas  n'um  anno; 
A  cabra,  sua  egual,  aos  dons  d'aqueilas 
Une  o  tributo  de  seus  ricos  vellos: 
Da  plaga  oriental  estas  espécies 
D'uteis  colónias  cubrirão  teus  campos: 
De  servir-nos  co'a  lida  enriquecendo, 
O  hollandez,  de  Carthago,  e  Tyro  herdeiro, 
Estes  hospedes  vê  nas  terras  suas 
Préstimos  conservar  do  pátrio  clima; 
Enchem  campos  do  belga,  e  se  apascentam 
As  margens  do  Charente:  assim  congrega. 
Escassa  natureza  arte  supprindo. 
Assim  congrega  os  bens,  que  ella  separa: 
O  homem  quer;  ordem  sua  obedecida 
Colhe  tributos  do  universo  inteiro. 

Seriam  frágeis  bens  teus  muitos  gados, 
Se  pago  só  da  utilidade  sua, 
Os  males  em  vencer  não  te  instruísses. 
Que  ferem  brutos,  como  os  homens  ferem: 
Languida  chusma  em  seus  trabalhos  vejo 
Arrastar-se,  e  cair  mortal  nos  campos; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  353 


Cavallos,  bois  no  asylo  adormentados, 

Várzeas  sem  trigo,  sem  adubo  as  terras: 

França  es t'arte  ignorou,  que  em  Roma  os  sábios 

Nos  doctos  seus  escriptos  ensinaram : 

Esfarte  se  enterrou  co'a  agricultura; 

Revivem  ambas,  e  do  Lethes  surgem; 

Os  olhos  de  Luiz  lhe  tornam  vida. 

Sábios  nossos  também  a  industria  movem; 

O  êxito  a  segue,  e  prósperos  eíFeitos 

Já  de  seus  benefícios  premio  doce 

Ao  real  coração  gostar  fizeram. 

Gados  possues,  falta-me  dizer-te 
Que  soccorro  importante  os  guarda,  e  rege; 
Das  ordens  do  pastor  fiel  ministro, 
Este  efficaz  auxilio  o  cão  lhe  offVece; 
Sofí*re  com  elle  da  regência  o  ^ezo. 
Vela  os  rebanhos,  os  defende,  os  ama, 
Seus  passos  determina,  e  vae  seguindo,  "~ 
Elle  mesmo  é  pastor:  se  em  torno  ao  gado 
Vê,  sôfrego  de  sangue,  errante  o  lobo. 
De  seus  roucos  latidos  enche  os  campos, 
E  o  trémulo  inimigo  aos  montes  foge; 
Se  outro  mais  famulento,  e  mais  sanhudo 
Saltêa  o  cordeirinho,  e  t'o  arrebata, 
Elle  o  persegue,  vôa-lhe  no  rasto, 
E  do  purpúreo  dente  a  preza  arranca; 
Vigia  a  par  do  ti,  leal  rechaça 
Os  inimigos  teus,  lhe  apara  os  golpes: 

23 


354  OBRAS  DE  BOCAGE 

E  de  enorme  tamanho  o  que  eu  prefiro, 

E  de  fero:5  carranca  se  gloria; 

E  cholérico,  activo,  ágil,  robusto, 

E  ladra  horrivelmente  ao  som  mais  brando; 

Atêa-se-lhe  a  fúria,  assim  que  tivista 

O  nocturno  ladrão,  dos  olhos  fogo 

Lhe  salta,  e  se  arremessa,  espuma,  e  brama. 

-^    Os  outros  animaes  a  ti  sujeitos 

Tremam  de  ouvir-te,  miseros  escravos; 

O  cão  é  teu  amigo,  elle  te  segue, 

Sensivel  a  teu  gosto  os  mais  ignora ; 

Regula  por  teus  gestos  seus  costumes, 

Alegre  se  te  ris,  triste  se  choras: 

Permitte  que  te  siga;  eil-o  saltando : 

Ordena  que  te  deixe;  eil-o  gemendo, 

E  gemendo  mitigívo  seu  desgosto: 

Mas  quem  folga  como  elle  em  teu  regresso  ? 

Mimos  d'esposa,  filial  ternura 

São  mui  frouxas  caricias  junto  ás  d'elle: 

Unido  em  laços,  que  refaz  a  estima, 

O  homem,  o  racional,  quer  mais  ao  homem? 

Bem  que  dos  vários  cães  differe  o  génio, 
Egualmente  a  agradar-te  aspiram  todos : 
Um  nasce  para  os  brincos,  e  aíFagado 
No  grémio  da  belleza  pousa,  e  dorme: 
Outros  n'agua,  no  bosque,  e  pelas  grutas 
Declaram  guerra  aos  animaes  trementes ; 
Cada  qual  parte,  voa,  torna,  pára 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  355 


Ao  som  da  tua  voz :  quem  poderia 

As  diversas  proezas  numerar-lhe? 

Satisfeitos  co'a  gloria,  em  triumpliando, 

Do  vencimento  o  premio  aos  pés  te  lançam: 

No  covil  as  raposas  um  commette; 

O  galgo  na  corrida  a  lebre  alcança; 

Os  de  pello  annelado  ern  sedas  longas 

Arremessam- se  n'agua  apoz  a  preza; 

Outro  dá  co'a  perdiz  por  entre  o  colmo, 

E  em  seus  olhos  attonitos  emprega 

Olhos  ameaçadores ;  não  se  atreve 

A  perdiz  a  voar,  elle  a  suspende, 

Diz,  sem  fallar,  que  a  victima  está  prompta; 

Tu  corres,  elle  fica;  ella,  partindo, 

Por  se  esquivar  ao  p'rigo,  encontra  a  morte: 

Elle  então  se  abalança,  e,  conduzindo-a 

Em  seus  lábios  fieis,  alegre,  e  á  pressa 

De  seu  zelo  o  tributo  eis  vem  pagar-te. 

Que  escuto,  que  ruído  atroa  os  valles ! 
Caninos  batalhões  onde  se  arrojam? 
Diligentes  monteiros  os  commandam, 
Ensinam-nos  co'a  voz,  e  os  acorçôam, 
Siirnalam-Jhe  as  fileiras,  e  a  buzina 
Lhe  reg-ra  o  movimento  em  sons  diversos : 
Já  despargido  o  bando  está  nos  bosques, 
Seu  clamor  fere  o  ar,  e  os  bosques  tremem : 
Busca-se  a  preza;  descoberto,  aíílicto 
O  cervo  é  por  sabujos  acoçado; 


356  OBRAS  DE  BOCAGE 


Parie,  foge,  o  temor  aos  pés  dá-lhe  azas, 
Vale-se  aqui,  e  ali  de  astúcias  novas, 
Cruza  rochedos,  mette-se  por  selvas, 
Engana  os  cães,  e  seus  esforços  balda ; 
Mas  a  toda  esta  industria  o  bando  aífeito    - 
Com  isto  na  peleja  mais  se  anima; 
Sobre  os  joelhos  cáe  forçado  o  cervo, 
E  tenta  era  vão  cora  lagrimas  dobral-os; 
Todos  tem  gloria  em  lacerar-lhe  o  corpo, 
E,  se  elle  não  morrer,  não  crêem  que  vencem. 

Ardente  javali  sae  da  guarida: 
Por  animosos  cães  eil-o  apertado; 
Foge,  e  mostra  ao  principio  um  medo  extremo, 
Terrível  finalmente  os  cães  persegue; 
Pára,  e  de  raiva  intrépido  fumando 
Faz,  acuado  a  um  tronco,  a  todos  frente ; 
Nos  olhos  sangue  tem,,  na  boca  espuma, 
E  á  força  de  matança  aguça  os  dentes: 
Em  vão  teus  campeões  o  esforço  apuram. 
De  mortos,  de  feridos  se  enche  o  campo; 
A  soccorrel-os  vôa,  o  monstro  foge; 
Dous  vigorosos  cães  o  acócem  logo; 
Elles  correm,  detendo-o  pela  orelha 
O  inimigo  te  entregam ;  de  repente 
Acode  a  chusma  toda,  e  com  mil  golpes 
Lava  no  sangue  alheio  injurias  próprias ; 
Elle  freme,  e  se  agita,  e  se  revolve; 
O  venábulo  emfim  termina,  e  c'rôa 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  »S57 


Teu  mareio  jogo,  traspassando  a  féra, 
Apoz  longos  combates.  A  cruenta 
Perseguição  do  lobo  inda  é  mais  útil, 
E  tão  brilhante :  a  cabra  montanheza, 
O  touro  furibundo  á  tua  ardência 
OíF'recem  não  vulgar  gentil  façanha. 

Os  guerreiros,  os  grandes  se  exercitem, 
Exercitem-se  os  reis,  calejem  n'isto, 
Imagem  da  mavoítica  fereza: 
Seu  ócio  proveitoso  affiíste,  espanque 
D'entre  as  searas  o  furor  dos  brutos : 
Tu,  longe  do  espectáculo  sanguento, 
Sempre  occupado,  inalterável  sempre, 
Ama,  oh  bom  lavrador,  o  asylo  agreste; 
Tuas  fadigas  são  riquezas  tuas. 
Só  n'ellas  os  desejos  circumscreve: 
Feliz,  se  é  teu  dever  também  teu  gosto. 


358  OBKAS  DE  BOCAGE 


OjA.ISTTO     SE^SIOTO 


DAS  AYES 


Qual,  próximo  ao  logar  do  seu  destino, 
Sentado  o  viandante  em  árduo  cume, 
E  de  longos  caminhos  fatigado, 
Tranquillo  observador  mede  a  eminência 
Dos  montes,  que  passou;  tal  eu,  já  quasi 
Tocando  o  extremo  da  espinhosa  estrada 
Que  ousei  trilhar  com  atrevidos  passos, 
Folgo,  de  contemplar,  escapo  aos  pVigos, 
Do  aberto  precipicio  a  aguda  escarpa. 

Dóceis  a  meu  ensino,  os  lavradores 
Colhem  dos  campos  seus  mais  amplas  messes; 
Além  a  cepa  nos  visinhos  serros, 
Cos  cachos  a  vergar,  estende  os  braços; 
Erguem  bosques  ao  ceo  ramosas  frontes, 
Adornam  os  jardins  frnctuosos  troncos. 
Rindo,  os  canteiros  c'roam-se  de  flores, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  359 


Do  mais  vivo  matiz  se  esmaltam  prados. 
De  todo  o  gado,  ás  tuas  leis  reunido, 
Vejo  as  tuas  planicies  povoadas, 
Cobertos  os  teus  campos;  e  inda  podes 
A  teus  amplos  rebanhos,  e  manadas 
Novos  teus  cidadãos  juntar  mais  perto; 
Em  largo  pateo,  em  rústica  morada 
Podes  crear,  nutrir  caseiras  aves. 
Que  teus  campestres  fructos  participam, 
E  ao  depois  darão  preço  aos  teus  banquetes. 

A'  voz  do  Eterno  as  ondas  congregadas 
Tornaram-se  fecundas,  produziram 
Toda  essa  multidão  de  varia  espécie 
Que  as  aguas  corta,  e  pelos  ares  cruza; 
Vimos  então  ás  nuvens  remontar-se 
Aves  ferozes,  cuja  garra  adunca 
Primeiro  derramou  na  terra  o  sangue: 
Tua  bondade,  oh  Deus,  approximou-nos 
O  aéreo  povo,  que  descanta  alegre 
Ao  prazer,  á  ternura,  á  liberdade: 
Dócil  canário,  e  rouxinol  mavioso 
Não  são  muito  altaneiros,  e  povoam 
Nossos  jardins,  vergéis,  e  amenos  prados; 
E  a  nossa  melhor  musica  assimelha 
Seus  gorgeios  suaves:  Tu  puzeste 
Bem  mesmo  á  nossa  vista  as  brandas  aves, 
Que  a  nossa  habitação  comnosco  habitam: 


360  OBRAS  DK  BOCAGE 


Ama  a  gallinha  o  nosso  captiveiro, 
Cerra  a  pomba  entre  nós  fugazes  plumas. 

Se  me  ajudar  o  céo,  oh  lavradores, 
Cantarei,  por  meu  canfco  ennobrecidos, 
D'especies  vis,  e  para  vós  pasmosas, 
Valentes  povos,  incansáveis  chefes; 
E  de  muitas  nações  vereis  a  um  tempo 
Policia,  e  leis,  costumes  e  combates. 

Defendida  por  nós,  e  a  nós  subjeita 
A  gallinha  é  das  aves  a  mais  útil: 
É  sua  pátria  o  campo;  quer  vivenda 
N'um  espaço  entre  muros  circumscripto; 
E  ali  se  lhe  constroe  n'aquelle  espaço 
Mesquinha  habitação  de  humildes  tectos, 
Onde  vae  habitar  seu  povo  inteiro: 
Alizem-se  estes  muros;  e  os  seus  ninhos 
Com  pedra,  ou  com  madeira  se  dividam, 
Ou  já  também  com  preparados  vimes; 
Cada  uma  quer  ter  um  próprio  asjlo 
D'onde  repulse  outra  ave  usurpadora: 
De  uma  parede  a  outra  uns  ramos  presos 
São  outros  tantos  leitos  suspendidos, 
Onde  ficam  de  noute  empoleiradas 
Repousando  em  tranquilla  segurança: 
Mas  tenham  prompta  a  saciar-lhe  a  sede 
Agua  n'um  vaso  a  miúdo  renovada, 
E  nunca  turva  ]3elo  lodo  impuro. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  361 


Grosseiros  aldeãos,  vós  não  sois  próprios 
Para  cuidardes  do  rebanho  alado ; 
Elle  requer  mais  mimo,  e  mãos  mais  brandas: 
Vigilantes,  cuidosas  lavradoras, 
Das  aves  a  morada  é  vosso  império ; 
Sois  vós  que  o  asseaes,  vós  o  mantendes 
Em  ordem  boa,  e  n'um  sadio  estado; 
Vós  lhe  distribuis  diário  pasto, 
E  os  ovos  recolheis,  que  estão  dispersos; 
Uns,  que  ao  nosso  regalo  se  destinam. 
Por  diversa  maneira  preparados 
Volver-se-hão  de  um  manjar  em  mil  manjares^; 
E  outros,  d'eleita  mãe  sendo  cobertos, 
Com  seu  calor  acordarão  á  vida. 

Das  que  produz  innumeras  gallinhas 
N'um,  e  n'outro  paiz  o  mundo  todo, 
Podem  juntar-se  os  géneros  diversos: 
Esta  enfeita  uma  crista  levantada. 
Por  grande  aquella  é  vagarosa  e  frouxa ; 
Uma  em  compridos  pes  se  eleva  altiva, 
Outra  com  pés  anões  leve  rasteja ; 
Casta  africana,  aos  europeus  trazida, 
Cobre  de  branca  pelle  os  negros  ossos; 
Algumas  ha  de  reluzente  popa, 
Outras  em  cujos  pés  fluctuam  pennas: 
Seu  amarello,  e  azul,  seu  branco,  e  negro, 
E  as  plumas  crespas  sua  pátria  indicam. 

A  frente  das  irmãs  caminhe  o  gallo, 


362  OBRAS  BE  BOCAGB 


Seu  esposo,  e  seu  rei  elle  as  governe; 
Dez  annos  pode  amal-as,  e  regel-as; 
Para  amar,  e  reinar  elle  ha  nascido, 
Que  n'altivez,  no  amor  não  tem  parceiro: 
Tem  na  fronte  real  purpúrea  crista ; 
Os  negros  olhos  seus  scentelhas  vibram ; 
O  corpo  todo,  e  as  azas  lhe  matiza, 
Doura-lhe  o  collo  esplendida  plumagem 
Que  longa  lhe  fluctúa:  tem  por  armas 
Sanguentos  esporões  nos  pés  nervosos; 
E  ondeando  a  cauda  se  lhe  alonga,  e  curva 
Té  chegar  a  assombrar-lhe  a  fronte  altiva. 

Dos  gregos,  e  romanos  venerado. 
Já  foi  o  gallo  interprete  dos  deuses; 
Julgavam-no  inspirado,  e  os  agoureiros 
Por  elle  os  fados,  e  o  futuro  abriam: 
Povo,  e  senado  em  vão  deliberavam. 
Mudava  o  gallo  as  leis,  fixava  os  fados. 

Omitiindo-lhe  as  néscias  honrarias, 
O  seu  préstimo  canto:  quando  a  aurora. 
As  primicias  do  dia  conduzindo. 
Alveja  por  montanha,  e  povoado, 
D'este  herauto  do  sol  a  voz  se  escuta;     . 
Elle  o  chama,  o  saúda,  o  annuncia; 
Que  a  noute  em  meio  vae,  cantando,  indica; 
Designa  por  seu  canto  o  seu  progresso; 
Marca  as  horas  do  somno;  determina 
O  trabalho,  o  repouso,  e  a  nova  lida; 


POEMAS  DIDACTlCOy  TRADUZIDOS  363 


E  ó  do  tempo  fugaz  vivo  compasso : 
Com  activa  ternura  vigilante 
Defende  o  povo,  que  feliz  domina; 
Qual  compassivo  rei,  qual  terno  esposo, 
As  suas  precisões  vigia;  e  ama 
OfF'recer-lhe  alguns  grãos,  na  terra  occultos, 
Com  pé  escrutador  por  eile  achados. 
O  dominio  de  um  gallo  se  limite; 
Seu  ardor  se  reprima;  e  os  seus  desejos 
Quinze  esposas,  não  mais,  contentem,  matem: 
Em  seu  reino  ha  também  facções,  e  intrigas; 
O  amor,  e  a  ambição,  o  império,  e  Helena 
Dous  soberbos  rivaes  á  guerra  incitam; 
São  eguaes  no  furor,  e  eguaes  no  esforço; 
Erguidos  sobre  os  pés,  batendo  as  azas, 
Encontram-se,  e  do  choque  ambos  vacillam: 
Cos  bicos,  e  esporões  se  dilaceram; 
Já  voam  pennas,  e  já  corre  o  sangue: 
Em  fim,  do  seu  rival  forçando  a  audácia, 
O  aterra  o  vencedor,  e  em  cima  salta: 
As  azas  despregando  então  se  applaude, 
E,  altivo  celebrando  o  seu  triumpho, 
Victorioso  canto  aos  céos  levanta; 
Chama  com  repetidos  cacarejos 
Esposas,  que  brigando  conquistara, 
E  as  duas  rêgo  em  paz  subjeitas  cortes: 
O  outro,  que  o  seu  esforço,  e  amor  traíram, 
Seu  usurpado  império  abandonando, 


364  OBRAS  DE  BOCAGE 

Irado  foge  do  rival  odioso^ 

E  vae  longe  esconder  vergonha,  e  raiva. 

Com  sedições  ás  vezes,  e  discórdias 
Dividem-se  estes  povos ;  e  os  seus  chefes, 
Dando-lhe  exemplo,  sua  audácia  animam: 
Acudi,  dae  por  gestos  o  ameaço, 
Vereis  logo  ceder  com  vosso  aspecto 
Ao  respeito  o  furor,  e  á  paz  a  guerra. 

Assim  quando  entre  nós  súbito  arrojo 
Subleva  furioso  o  vulgo  insano. 
Que  já  tudo  respira  horror,  tumulto, 
E  armas  volve  o  furor  quanto  se  apanha; 
Se,  por  gráo,  por  virtudes  respeitado. 
Um  homem  venerando  se  apresenta, 
Cala-se  a  multidão,  todos  o  escutam, 
E  elle  com  seus  discursos  vencedores 
Os  génios  doma,  os  corações  captiva. 

Para  evitar-lhe  as  guerras,  seja  morto 
O  chefe,  que  conduz  os  revoltosos, 
E  voltêa  as  fileiras,  incitando 
Com  seu  clamor  o  timido  rebanho: 
D'est'arte  ficarão  em  paz  durável, 
E  as  gallinhas  por  premio  a  teu  desvelo 
Cada  dia  darão  tributos  novos. 

Exceptua-se  o  tempo  annual  da  muda 
Em  que  se  vestem  de  plumagem  nova: 
Benôvo  occulto,  que  a  nascer  se  apresta, 
Os  canos  faz  cahir  da  velha  pluma; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  365 


Nasce,  e  nas  cores  quasi  sempre  imita 

Pennas,  que  substitue;  porém  ás  vezes 

D'esta  sua  continua  similhança 

Cança-se^  e  altera  as  leis  a  Natureza: 

O  Índio  pardal  tem  azas  azuladas, 

E  surge  d'aurea  pluma  revestido: 

Assim  também  no  gallo,  e  na  gallinha 

DifFere  do  primeiro  o  novo  adoriio, 

E  tal,  que  antes  da  muda  era  argentada^ 

Se  faz  desconhecer  com  plumas  negras. 

A  Natureza  o  astuto  americano 

Colhe  seofredos,  e  a  belleza  au cimenta 

Pondo  mais  variedade  em  seus  encantos: 

Quando  está  prestes  a  fazer  a  muda 

O  habitador  aéreo,  que  repete 

Tudo  o  que  nós  dizemos,  felizmente 

Usurpando  o  direito  á  Natureza 

Seu  dono,  que  o  previne,  a  seu  bom  grado 

Lhe  imprime  as  cores,  que  elegeu  mais  bellai. 

Co'a  muda  enfraquecendo  se  entristecem 
As  aves  espantadas,  e  inquietas; 
E,  em  lhe  formar  as  plumas  empregado, 
Seu  alento,  e  vigor  mais  nada  pode; 
Todos  calam  seus  mélicos  gorgeios; 
Não  canta  o  rouxinol,  e  o  papagaio 
Torna-se  mudo;  estéril  a  gallinha 
Não  preenche  os  desejos  de  seu  dono 
Com  seus  diários  dons:  presume  o  vulgo 


366  OBRAS  DE  BOCAGE 


(Jue  este  mal  Tem  do  frio;  mas  o  inverno 
E  d'elle  o  tempo  fixo,  e  não  é  causa; 
Em  vão,  para  curar-lhe  nm  mal  sem  cura, 
Se  lhe  melhora,  e  se  lhe  aquece  o  pasto, 
Que,  interrompendo  o  tio  á  poedura, 
A  muda  torna  vão  qualquer  soccorro: 
Prevenindo,  e  forçando  a  Natureza, 
Quem  mais  cedo  souber  tirar-lhe  as  pennas 
Os  seus  dons  gosará  nas  quadras  todas. 

Os  Aquilões  do  Zephyro  á  bafagem 
Já  da  terra,  e  do  ar  o  império  deixam ; 
Seu  hálito  prolifico,  e  sereno 
Influe  de  novo  pelo  mundo  a  vida: 
Renovam-se  as  canções  das  meigas  aves, 
Que,  ledas  de  aguardar  vindoura  prole, 
Suspensos  ninhos  a  formar  começam: 
Dados  a  este  emprego  abutres,  e  águias 
São  já  menos  cruéis ;  de  amor  o  fogo 
Vae  os  peixes  queimar  no  centro  d'agua ; 
E  de  Cancro  no  ardor  leões,  e  tigres 
Com  seus  rugidos  Africa  apavoram: 
Em  ares,  agua,  e  terra  Amor  triumpha, 
Tudo  de  novos  cidadãos  povoa; 
E,  assim  como  elles  no  verdor  da  infância. 
Formam  plantas,  e  flores,  inda  tenras, 
Leitosos  suecos  para  raças  novas. 

N'este  tempo  também  cacarejando 
Roubados  ovos  seus  pede  a  gallinha, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  367 


E  aspira  de  ser  mãe  ao  doce  emprego: 
Não  se  acuda  mui  cedo  aos  seus  desejos; 
Exp'rimentem-se  os  ovo»^  e  se  escolham 
Os  de  maior  longura,  e  maior  pezo. 
Que  são  signaes  de  um  germe  venturoso; 
E  a  sua  pequenez,  sua  leveza 
Indicam  frouxidão,  denotam  vicio; 
São  fructo  inútil,  miseros  abortos 
Ou  de  mui  nova  mãe,  ou  já  mui  velha. 

Ás  boas  mães  são  poucas;  não  se  attenda 
Seu  vão  cacarejar,  e  não  se  empreguem 
No  dever  maternal  as  que,  inda  moças, 
Talvez  lhes  custaria  a  sujei tar-se: 
E  vária,  é  inconstante  a  mocidade; 
Precisa  ter  dous  annos  a  gallinha 
Para  tomar  os  maternaes  cuidados; 
E  também  se  não  deite  em  sendo  velha, 
Que  amor  a  illude,  e  em  seu  gelado  seio 
Morreu  todo  o  calor:  deve  escolher-se 
A  de  madura  edade;  mas  não  tenha 
Os  pés  armados  de  esporão  sanguineo, 
Que  rompe  antes  de  tempo  a  casca  do  ovo ; 
E  o  embrião,  á  luz,  e  ao  ar  exposto. 
Nem  um,  nem  outro  supportar  podendo, 
Onde  acharia  vida,  encontra  morte. 

Quando,  dispondo  prevenida  o  ninho, 
Com  musgo,  e  flores  amollece  a  cama. 
Aguarda- vos  a  mãe,  podeis  confiar-lhe 


368  OBRAS  DE  BOCAGE 

Quantos  ovos  com  peito,  e  azas  cubra: 
Porém  tende-lhe  sempre  ao  lado  promptas 
Comida  em  abundância,  agua  bem  limpa; 
Que,  se  isto  não  tiver,  fraca,  e  esfaimada. 
Para  o  pasto  buscar,  o  ninho  deixa; 
E  ás  vezes,  esquecendo  o  amor  materno, 
Abandona-o  de  todo,  e  esp'ranças  balda. 

Por  sete-vezes-tres  inteiros  dias 
A  ninhada  dos  ovos  animando 
Com  vivifico  fogo,  e  sempre  assidua, 
Espera  que  formado  o  pintainho 
Do  seu  encerramento  a  casca  rompa; 
E,  com  feliz  instincto  em  todo  o  choco 
Aos  ovos  todos  o  logar  mudando. 
Uma  quentura  «egual  reparte  a  todos. 

Em  quanto  avançam  lentamente  á  vida, 
Da  Natureza  admirem-se  os  segredos. 

Como  apegado  aos  cachos  o  bagulho. 
Assim,  dourado  globo,  nasce  o  ovo 
Da  galhnha  nas  costas  suspendido; 
Madurece,  desliga-se,  e  no  ovário 
Corre  de  rosca  em  rosca,  até  que  o  envolve 
Casca  formada  de  húmida  substancia: 
Do  gallo  em  tanto  se  lhe  ajunta  o  germe, 
E  da  fecundidade  o  dom  lhe  leva: 
O  calor  que  o  excita  apenas  sente. 
Parece  que  um  ponto  vivo;  já  palpita. 
Já  bate  o  caração;  sáe  de  uma  vêa. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRAI^UZIDOS  369 


Que  voga  no  liqiior,  sanguínea  gota 
Que  para  elle  corre,  e  o  enche;  e  logo 
Duas  de  redor  d'elle  informes  massas 
Da  cabeça,  e  do  busto  o  espaço  occupam; 
Formam-se  em  pouco  tempo  as  partes  todas; 
Arredonda-se  o  cérebro;  as  meduUas 
Pelos  OSSOS' se  alongam;  corre  em  ondas 
O  sangue  nas  artérias;  sob  o  ardente 
Estômago  se  enlaçam  as  entranhas ; 
Músculos  cobre  a  pelle,  e  a  pelle  o  pello. 

Dá  primeiro  alimento  ao  pintainho 
A  leitosa  substancia,  a  clara  do  ovo; 
Quando  está  já  mais  forte,  a  gema  o  nutre ; 
Do  ar,  que  dentro  no  ovo  se  renova, 
O  vital  movimento  se  duplica: 
Então  por  elle  penetrado  o  ovo 
Diminue  e  transpira;  e  então  com  elle 
íío  cárcere  a  avesinha  vive,  e  cresce : 
Eil-a  por  baixo  d'aza  avança  o  bico, 
E  fere,  e  rompe  os  muros  que  a  cingiam; 
Gira  sobre  si  mesma,  e  em  seu  caminho 
A  fenda  no  ovo  em  circulo  prolonga; 
Ergue  a  abobada  emfim,  e  surge  ao  dia; 
De  cabeça  emproada  eil-a  caminha; 
Piando  se  annuncia,  o  bico  exerce; 
E,  só  por  instrucção  da  natureza. 
Logo  o  sustento  seu  procura,  e  toma. 

O  industrioso  egjpcio  ousou  primeiro, 

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370  OBEAS  DE  BOCAGE 


Por  um  segredo  felizmente  achado, 

Vivificar  os  ovos  sem  gallinha: 

Do  fogo  soube  achar  o  gráo  preciso, 

E,  seu  calor,  com  arte  dirigido. 

Ao  materno  calor  equivalendo, 

Immensa  multidão  de  pintainhos 

Toda  a  um  tempo  animada,  e  produzida. 

Dos  fornos  de  Bermé  se  ergueu  á  vida. 

Mas  não  teve  rivaes  n'est'arte  o  Egypto, 
Foi  arte,  antes  mysterio,  de  que  é  elle 
O  só  depositário  em  todo  o  mundo. 

Com  egualmente  próspero  successo 
Em  nossa  edade  a  França  viu  c'roados 
Do  sábio  Reaumur  os  exp'rimentos: 
No  abobadado  lar,  que  o  pão  nos  coze, 
Elle  o  segredo  achou,  que  esconde  o  Egypto: 
Dentro  em  toneis,  cercados  pelo  estrume 
Que  ajunta  o  lavrador  para  seus  campos, 
Os  ovos  ordenou  á  vida  eleitos; 
E  este  brando  calor  continuado, 
D'egual  temperatura  o  ar  mantendo, 
O  gráo  manteve  do  calor  do  ninho: 
D'est'arte  obteve  innumeras  ninhadas. 
Vindas  á  luz  sem  mãe,  sem  mãe  creadas. 

Para  as  fazer  nascer  tudo  conspira, 
Mas  não  para  as  crear;  é  necessário 
Que  as  tenras  avesinhas,  filhas  d'arte. 
Sejam  na  sua  infância  ás  mães  entregues: 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TKADUZIDOS  371 


O  ar,  o  frio,  o  calor  enganam  muito, 
E  melhor  que  nenhuma  vigilância 
Em  suas  precisões  as  mãos  vigiam. 

Por  espaço  de  um  mez  um  eôvo  encerre 
Os  pintos  e  a  gallinha:  então  liberta 
Sáe,  e  conduz  aos  campos  convisinhos 
O  alado  bando,  que  ligeiro,  experto, 
Sollicito  apoz  d'ella  vae  correndo, 
Com  repetidos  pios  a  circumda, 
E  debaixo  das  azas  se  lhe  aquece: 
Elles  alternam  brincos,  e  combates; 
Chama-os  a  mãe,  com  elles  so  recrêa, 
Busca,  esgravata,  e  com  ternura  extrema, 
Esquecida  de  si,  reparte  o  achado: 
Insaciável  foi,  e  agora  é  sóbria; 
Mãe  carinhosa  a  tenra  prole  abriga. 
E,  sendo  fugitiva,  e  temerosa. 
Já  com  intrepidez  affronta  os  pVigos. 

Se  pelo  alto  dos  aços  voando  observa 
Ave  espantosa,  preces  a  arrojar-se 
Sobre  ella,  e  sobre  o  seu  rebanho  amado, 
Segue-a  co'a  vista,  ergue  um  clamor  piedoso, 
E  offrece  aos  filhos  por  abrigo  as  azas: 
Escondidos  ali,  desapparecem, 
Ella  se  expõe  somente,  e  d 'ira  acceza, 
Inquieta,  terrivel,  furiosa. 
Com  um  brado  feroz  atiôa  os  ares: 
Revoa  íi  prumo  seu,  o  sobe,  e  desce, 


372  OBKAS  DE  BOCAGE 


E  foge  em  fim  o  abutre,  que  illudira 
Seu  grito  ameaçador;  então  alegre 
Solta  jucundo  canto,  a  prole  surge, 
E  a  cerca,  e  enche  das  caricias  suas. 

Vós,  que  regeis  este  volátil  gado, 
Precisões  preveni-lhe,  e  soccorrei-o: 
Aquella  ave,  sem  pasto,  desflillece; 
A  lingua  tern  espessa;  e  branca,  e  dura 
Uma  pelle  lh'a  envolve,  e  se  lhe  estende, 
E  cerca-lhe  o  padar;  não  percaes  tempo. 
Funesta  pode  ser  qualquer  demora; 
Logo  co'os  dedos  arrancae-lhe  a  pelle 
Pela  raiz,  que  á  lingua  tem  pegada. 

Quando  já  seus  desvelos  não  carecem 
Deixa  a  gallinha,  e  desconhece  os  pintos; 
Mas  ás  vezes  sem  tempo  os  abandona, 
E  a  orphã  multidão  concorre,  e  pia: 
De  mãe  pode  o  capão  em  vez  servir-lhe; 
Mas,  antes  de  exercer  tal  ministério. 
Alguns  dias  com  elles  encerrado 
Se  acéstume  a  prestar-lhe  os  seus  desvelos: 
Prestes  então  vae  educando,  e  guia 
O  bando  todo  a  seu  dominio  entregue: 
Arroga  de  gallinha  o  jus,  o  afago, 
E  até  a  imita  nas  femineas  vozes; 
Aio  fiel  que,  em  sendo  tempo,  ajunta 
Ao  povo  seu  sua  familia  nova. 

Uns  para  a  meza  criam-se  do  parte, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  373 


Vivem  fechados,  priva m-se  do  sexo; 
E,  sem  limite  saciando  a  fome, 
Engordam,  e  engordar  lhes  custa  a  vida: 
Outros,  menos  tractados  e  mais  livres. 
Vivem  com  egualdade  entre  o  seu  povo, 
E  a  enoher-vos  de  seus  dons  consagram  todos 
Todos  os  dias  de  uma  vida  escassa. 

Ha  outras  varias  aves,  que  reúnem 
Utilidade  ao  numero,  e  belleza: 
Multiplique-se  a  raça,  que  das  índias 
ífos  trouxeram  d'Ignacio  os  companheiros; 
Esta  raça  é  altiva,  e  desdenhosa. 
Afagos  ao  peru  mal-soffre  a  fêmea; 
Terno  e  soberbo  amante  junto  d'ella 
A  aza  lhe  arrasta  em  vão,  a  cauda  ostenta, 
Erriça  as  plumas,  todo  se  intumece, 
E  em  seus  grasnidos  seu  amor  lhe  exprime; 
Orgulhoso  debalde  o  rubro  monco 
Da  cabeça  inda  além  do  bico  estende; 
Que  a  perua,  indiffVente  a  seus  transportes, 
Marcha,  sem  contemplar  o  seu  amante. 

Débil  na  infância,  esta  ave  delicada 
Exige  a  mais  attenta  vigilância; 
De  bico  aberto  n'um  clamor  continuo 
Morre  de  fome  se  lE'a  não  saciam: 
A  gema  do  ovo,  e  a  renascente  ortiga 
Na  sua  meninice  é  seu  sustento; 


374  OBRAS  DE  KOCAGE 

Mas,  co'a  idade  enrijando,  excede  em  força, 
E  as  outras  aves  na  grandeza  excede. 

Vejo  bambolear-se  a  passos  lentos 
Ruidoso  pato,  e  ganso  vigilante; 
Estas  aves  são  úteis,  são  precisas; 
Mhs  sua  turba  aquática  esmorece 
Se  não  tem  ou  nascente,  ou  lago,  ou  tanque 
Aonde  ledamente  concorrendo 
Se  alimentam,  mergulhara,  nadam,  folgam. 

A  sua  espécie  rara  vez  se  fiem 
Ovos,  que  á  producção  se  destinaram, 
Que  ás  vezes  sua  penna  húmida,  ou  fria. 
Ou  o  germe  destróe,  ou  mata  o  feto: 
Bntregae-os  á  provida  gallinha, 
Com  seu  calor  ella  os  fará  fecundos, 
E  ufana  guiará  o  bando  extranho 
Das  tenras  aves,  que  seus  filhos  julga: 
Porém,  mal  que  um  regato  se  lhe  off'rece, 
Eil-os  lhe  fogem;  ella  se  encaminha 
A's  margens,  que  a  largar  se  não  resolve, 
E  parece  querer  precipita r-se; 
Avança,  corre,  geme,  afflicta  os  chama, 
E  volta  emfim  sosinha,  e  maofoada. 

Dae  á  turba  famélica  bom  pasto, 
E  depressa,  alimento  delicado, 
Vel-os-heis  adornar  a  meza  vossa. 
O  que  salvou,  grasaando,  o  Capitólio 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  375 


Junto  ás  casas  vigia,  e  nunca  foge, 

E  dá  do  seio  seu,  das  azas  suas 

Aos  leitos  o  frouxel,  á  dextra  a  pluma. 

A  gallinha  africana,  mais  formosa. 
Dá  mais  gentil  adorno  aos  vossos  lares, 
Do  quaeste  amphibio  povo;  delicado 
Teme  dos  gelos  o  rigor,  e  sobiia 
•Para  seu  alimento  o  grão  lhe  basta: 
Não  pode  arte  imitar  a  graça,  a  ordem 
Das  graves  cores,  que  lhe  deu  Natura; 
E,  quanto  mais  os  olhos  as  contem.plam, 
Mais  pasmo  causa  a  symetria  d'el]as. 

Rico  serieis  de  plumagem  rara 
Domesticando  os  cysnes  argentados; 
Porém  mesquinha  habitação  desdenha 
Dos  prados  do  Asio,  e  do  Caystro  a  prole; 
Ama  em  jardins  reaes  as  aguas  puras. 
Onde  ligeira,  revoando,  folga, 
Ou  repousa  acolhida  na  abrigada 
Sobre  as  ondas  a  custo  edificada. 

Quando  do  cysne  a  morte  se  avisinha 
Não  espereis,  como  se  conta,  ouvir-lhe 
Meigo  canto  dulcisono,  e  saudoso. 
Que  tanto  gaba  erradamente  o  vulgo; 
É  desfave  gentil  odioso  o  canto; 
Mas  seu  nobre,  e  engraçado  movimento, 
Sua  esplendida  alvura  agrada,  encanta: 


376  OBKAS  DE  BOCAGE 


Grrecia  fingiu  que  em  ejsne  transformado 
Foi  Júpiter  de  Leda  namorado. 

O  phaisão  é  feroz  por  natureza^ 
Maí  é  bello,  e  na  sua  mocidade 
Por  algum  tempo  a  escravidão  supporta; 
Porém  logo,  a  clausura  aborrecendo, 
Com  fugitivas  azas  corta  os  campos, 
E  vae  buscar  o  prado,  a  fonte,  os  bosques.- 

O  pavão,  mais  domestico  e  constante, 
A  vossa  habitação  não  deixa  nunca: 
Em  sitio  que  elle  ignore  a  fêmea  sua 
Esconde  os  ovos,  que  chocar  pretende: 
Debalde  elle  se  mostra  magoado 
Se  acaso  a  vae  achar;  em  vão  co'as  azas 
Lhe  faz  caricias,  e  a  belleza  ostenta; 
Estando  ella  presente  é  tudo  afago, 
Porém  apenas  ella  se  desvia. 
Nos  filhos  seus  o  seu  desdém  castio^a. 

Da  creação  o  tempo  exceptuando. 
Em  que  lhe  foge  esquiva,  arde  por  elle 
Com  todo  o  fogo  que  a  tertiura  accende; 
Se  elle  morre,  ella  vive  amargurada. 
Definha  de  afflicção,  de  amor  se  mirra. 

Das  outras  aves  o  pavão  cercado, 
Como  se  fora  só,  só  elle  admira; 
Mostra  em  pescoço  azul  dourada  testa; 
Brilhantes  como  as  flores,  como  os  astros^ 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  377 


Ostenta  os  olhos  da  orgulhosa  cauda; 
E  o  diurno  clarão  lhe  augmenta,  e  muda 
O  pomposo  espectáculo  attractivo 
Das  plumas,  c'o  reflexo  embellecidas. 

Não  ama  o  caçador  caseiras  aves, 
Congrega,  e  nutre  as  aves  carniceiras, 
Aves  ao  sangue,  á  morte  acostumadas, 
Que,  seus  próprios  irmãos  assassinando, 
Contentam  os  desejos  de  seu  dono 
Com  fera  garra  adunca,  e  mercenária. 

O  rápido  falcão,  o  gerifalte 
A  quem  os  ensinou,  se  a  colhem,  trazem 
Ave,  que  timorata  vae  fugindo: 
Nas  florestas  deixae-lhe  a  raça  odiosa, 
Sempre  tinta  de  sangue,  e  sempre  horrivel; 
Gaviães,  esmerilhões,  trecos,  açores, 
O  cruel  avestruz,  a  águia  soberba. 

Não  prendaes  em  viveiro,  nem  gaiola 
Avesinhas  volúveis,  e  amorosas; 
CanarioSj^ chamarizes,  tutinegras, 
E  o  suave  cantor  da  primavera: 
Estas  aves  captivas  emudecem, 
E  livres  pelos  bosques  divagando 
Deleitam,  sonorosas  gorgeando. 

Tenho  em  vossas  herdades  reunido 
Ao  jugo  de  uma  lei  diversas  aves : 
D'indole  diíFrente  a  leve  pomba 
Quer  viver  livre,  a  liberdade  a  encanta; 


378  OBKAS  DE  BOCAGJS 


Mas  casta,  que  tractada  com  desvelo 
Chega  a  òsquecer  os  paternaes  costumes, 
Sujeita-se  a  perpetuo  captiveiro; 
Suas  famílias  para  sempre  escravas 
Amara  suas  prisões,  pousadas  suas: 
Quando  se  lhe  abrem,  de  redor  esperam 
Que  se  lhes  distribua  o  pasto  usado; 
E  quando  a  fome  se  lhes  não  sacia, 
A  morte  aíFrontam  por  cuidar  na  vida. 

Outras,  dando-se  ás  leis  de  um  dócil  trato, 
O  voo  alargam  como  as  pombas  bravas; 
Voluntárias  captivas,  por  escolha 
O  jugo  acceitam,  que  lhes  mais  agrada: 
Torre,  onde  luza  o  resplendor  da  aurora. 
Domine  os  campos,  e  a  mansão  lhe  indique; 
Seja  aceiada,  lúcida,  espaçosa, 
Brilhante  assim  como  eUas,  que  mil  vezes 
Fugazes,  maa  fieis  ali  revoam. 

Prestes  chamae  os  cidadãos  mancebos, 
Que  devem  povoar  este  alto  muro: 
Raça  normanda,  as  pombas  argentadas 
Com  pés  plumosos,  cor  de  rosa  o  bico 
Às  de  pluma  azulada  a  gloria  empatam 
De  embeliecer  o  preparado  asylo: 
De  unidas  castas  á  mixtão  brilhante 
Juntae  colónias  d'estrangeiros  cHmas, 
Que  em  génio,  em  côr  os  hospedes  diffrentes 
Dão  prole,  que  os  simelha  em  côr,  em  génio. 


POEMA.S  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  379 

Costumados  um  mez  a  viver  juntos, 
Reunidos  presos  no  fechado  asylo, 
Já  certos  d'elle,  e  por  amor  ligados, 
Alternativamente  ou  saem,  ou  entram; 
Nos  campos  de  redor  ligeiros  voam, 
E  08  grãos  escolhem  do  torrão  mais  fértil. 

Mas,  quando  o  inverno  esterilisa  os  campos, 
E  quando,  renascente  a  primavera, 
De  flores,  e  verdura  embellecida, 
Reveste  a  Natureza  um  luxo  inútil 
De  Idalia  ás  aves;  de  manliã,  e  á  tarde 
Em  copia  a  seu  asylo  os  grãos  se  levem : 
Mais  facilmente  do  que  as  outras  aves 
A  quem  lhes  lança  o  grão  concorrem  pombos; 
Desconfianças  não  tem,  para  ajuntal-os 
Basta  a  hora,  um  signal,  um  grito  basta. 

Quanto  mais  farta  for  vossa  conquista 
Mais  vasto  povo  habitará  seus  muros; 
Mais  fecunda  se  faz  d'est'arte  a  pomba: 
x^Lquella  que,  sem  ter  assíduo  pasto, 
Pelos  campos  voeja  em  liberdade, 
Interrompe  no  inverno  a  poedura; 
Se  ás  vossas  leis  em  captiveiro  engorda, 
Dous  gémeos  cada  mez  produz  seu  ninho: 
Cuidoso  de  a  ali  ter,  chegado  o  tempo 
De  o  seu  logar  supprir,  roçando-lhe  a  aza 
A  adverte,  a  sollicita  seu  esposo; 
Companheiro  fiel  em  seus  desvelos 


380  OBRAS  DE  BOCAGE 


Alternativamente  aquece  os  ovos, 

De  um  mutuo  a^nor  penhores  preciosos : 

EUa  torna  outra  vez  ao  ninho  amado; 

EUe  voa,  e  viaja,  e  volve,  e  parte 

Com  sua  companheira  os  grãos,  que  trouxe; 

Mas  é  breve  esta  edade  venturosa, 

Seu  brando  natural  (quem  tal  pensara !) 

Não  poucas  vezes  bárbaro  se  torna. 

Aos  quatro  annos  as  pombas  são  estéreis, 
E  vexam  por  ciúme  a  casta  sua: 
Ha  quem,  sem  distincção,  tyranno  exerce 
Oruel  matança  no  volátil  povo; 
Sede  mais  brando,  e  com  regrados  golpes 
A  velhice  extirpae  de  cada  espécie. 

As  vezes,  apesar  de  mil  desvelos, 
Ha  desertores  cidadões  ingratos, 
Que  não  bas,ta  o  costume,  o  amor,  o  exemplo 
Para  contel-os  no  seu  pátrio  ninho; 
Kompem  os  laços  sociaes,  preferem 
A  liberdade,  os  bosques:  este  habita 
N'um  concavo  rochedo,  ou  tronco  antigo: 
í]st'outro  onde  o  provoca  o  seu  instincto. 

O  aceio  prende  á  casa  os  moradores; 
Se  o  desprezaes  no  outomno  e  primavera, 
E  se,  inda  mais  a  miúdo,  da  immundicie 
Não  livraes  este  povo,  que  murmura, 
A  immunda  habitação  presto  abandona: 
Aquelles  vis  montões  d'impuras  fezes 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  381 


São  de  uma  preciosa  utilidade, 

Fortes  estrumes  são,  que  alentam,  nutrem 

Os  fructos  ao  jardim,  verdura  aos  prados: 

Com  elles  a  seara  é  mais  fecunda, 

Mais  generoso  o  vinho;  mas  o  excesso 

Por  seu  muito  vigor  os  faz  nocivos; 

E,  se  usados  em  conta  não  reforçam, 

Seu  fogo  abraza  o  campo,  a  vinha,  os  prados. 

Off''rece-nos  o  céo  n'esta  ave  pura 
Molde  em  costumes,  da  virtude  a  imagem; 
Só  ella  tem,  ingénua  e  sociável, 
Leis  immutaveis,  e  communs  penates; 
Vive  o  seu  povo  sem  tyrannos;  nunca 
Sua  paz  e  innocencia  os  crimes  mancham; 
Ê,  na^sua  republica,  a  concórdia 
Conduz  os  cidadãos,  e  os  une,  e  anima: 
Juntos  ou  no  trabalho,  ou  no  repouso, 
Quando  o  sol  vem  das  ondas  resurgindo, 
Qual  densa  nuvem,  a  campina  assombram, 
E  de  Vénus  a  estrella  os  volve  ao  ninho; 
Arrulam  docemente,  e  á  torre  voam; 
Entram,  e  logo,  antes  que  morra  o  dia, 
Cada  qual  em  silencio  immovel  fica, 
Cançados  gosam  de  tranquillo  somno. 

Amo  ver  seus  desejos  innocentes. 
Ternos  gemidos,  vividos  prazeres: 
Os  biquinhos  unindo,  longamente 


382  OBKAS  DE  BOCAGE 

Com  reciproco  afago  arrulam  juntos, 

E  hymeneu^  que  os  prendeu,  conserva  sempre 

Terno  o  seu  coração,  casto  o  seu  ninho; 

Vaga  pomba  torquaz,  e  a  rola  imita 

No  desviado  bosque  as  mansas  pombas. 

Os  homens  com  proveito  exp'rimentaram 
Seu  voo  obediente  em  ida  e  volta : 
Arte  avezou-as  a  levar  nas  azas 
Fiel  mensagem  de  um  logar  ao  outro; 
Muitas  vezes  serVindo  a  Amor,  e  muitas 
Soccorro  annunciando  a  oppressos  muros. 
Dando  socego,  e  espVança  á  consternada 
Terna  amisade,  que  gemia  ausente: 
Alexandretta,  Alep,  e  Lesbos  sabem 
Dar-lhe  este  ensino,  e  regular  seus  voos. 

Parte  este  ágil  correio  ao  sol  nascente, 
E  volve  antes  que  a  luz  na  sombra  expire; 
A  falsidade,  o  engano  tem  ousado 
Domal-a,  e  dar-lhe  empregos  criminosos; 
Guiada  pelo  vicio  a  singeleza 
Fez-lhe  serviços,  sem  convir  com  elle.    , 

Acreditou  a  edade  fabulosa 
Que,  a  Amor  fiel,  em  Paphos  e  Cythera 
Seguia  a  sua  corte,  e  lá  no  Olympo, 
Pelos  gregos  aos  numes  consagrada, 
D'esta  ave,  a  mais  pudica,  adeusa  é  Vénus: 
Muitas  vezes  de  Meca  o  vão  propheta 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  382 


Usou  como  impostor  mensagens  suas; 
Creu-se  que  a  seus  ouvidos  revelava, 
Interprete  do  céo,  mysterios  d'elle. 

Feliz  ,quem  d'innocentes  passatempos, 
De  tranquillos  prazeres  satisfeito, 
Do  seu  casal  co'as  aves  entretido 
Sua  formosa  cor,  seus  dons  contempla! 
Qual  dos  jardins  o  espectador  assiduo 
Sempre  acha  novo  seu  jucundo  esmalte. 
Cada  dia  indagando  as  varias  cores 
Das  que  elle  desposou  diversas  flores; 
D'est'arte,  e  mais  feliz  vereis  das  aves 
A  plumagem  brilhante,  os  novos  trajos: 
As  cores  no  jardim  perdem-se,  e  murcham, 
Nas  aves,  augmentando,  aíformoseam. 

Busca-se  em  vão  nos  hospedes  aéreos, 
Que  as  florestas,  o  rio,  o  mar  povoam, 
Aquella  cor  de  azul,  de  prata,  e  de  ouro 
Com  que  em  vossos  casaes  as  bellas  aves 
Tão  pródiga  adornou  a  Natureza: 
Separae  cada  espécie,  e,  assim  distinctas, 
Achareis  o  prazer  na  variedade; 
Sem  escolha,  e  sem  ordem  sendo  unidas 
Familias  degeneram,  raças  morrem: 
Sobre  isto  viHae,  fazei  a  escolha 
Das  castas,  em  que  Amor  o  gosto  approva. 

Sensivel  a  gallinha  á  formosura 
Da  ave  de  Gólchos,  seu  ardor  lhe  é  grato, 


384  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  as  patas  juntamente  o  afago  attendem 
A  sua  própria  espécie,  e  ao  gallo  ardente. 

Felizes  se  esta  união  vos  amostrasse 
Um  segredo,  que  os  sábios  inda  ignoram  ! 
Da  existência  animal  qual  dos  esposos 
Contém  no  seio  o  creador  principio, 
Ou  se  ambos  juntos  de  vindoura  prole 
Por  ditoso  concurso  o  ser  produzem. 

Os  diversos  systemas  n'este  cabos 
Escassa  luz  tem  reflectido  apenas : 
Por  lei  constante  as  aves  assim elbam 
A  seus  páes  em  plumage,  em  cor,  e  em  gesto; 
E  a  que  nasceu  de  géneros  distincfcos 
Tem  um  mixto,  que  de  ambos  degenera, 
Mas  siraelha  com  ambos:  assim  vemos 
Da  égoa  e  do  animal  longui-orelliudo 
A  prole,  que  ao  serviço  é  tão  prestante; 
Une  alteradas  ambas  as  espécies. 
Uma  nem  outra  é,  tem  visos  de  ambas. 

Cada  espécie  animal  por  vario  modo 
Se  reproduz:  caricias  desdenhando 
O  fofi^oso  mnete,  o  ceo^o  touro 
Se  arremessam  a  unir-se  á  sua  amada; 
Com  gemidos,  com  beijos,  com  suspiros 
Alonga  o  seu  prazer  a  terna  rola: 
O  peixe  sem  unir-se,  segue,  anima. 
Fecunda  os  ovos,  que  depôz  nas  aguas 
A  fêmea  sua:  em  seu  palácio  occulta 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  385 


Produz  a  abelha  a  multidão  sonora, 
Que  em  continuo  trabalho  a  vida  emprega, 
E  os  zangãos,  turba  vil,  e  preguiçosa, 
Que  fazem  sua  corte  á  mestra-abelha : 
O  pulgão,  ruinoso  ao  tronco  e  aos  fructos, 
É  de  si  próprio  amante,  e  reproduz-se: 
Sobrevivendo  a  golpes,  e  mais  golpes 
B,epara-se  o  polypo  de  seus  damnos; 
Pelos  fragmentos  seus  reparte  a  vida, 
E  um  novo,  em  cada  um,  polypo  brota! 
Tal  se  não  viu  em  Lerna  a  hydra  horrenda, 
Cujas  cortadas  testas  renasciam; 
Dá  menos  pasmo  o  monstro  fabuloso 
Que  este  verme  nas  aguas  escondido ! 

Egual,  e  variada  em  seus  productos, 
E  contraria  a  si  mesmo,  em  toda  a  parte 
Para  nós  é  mysterio  a  Natureza! 
Indágo-a,  em  vão:  brilha-me  um  raio,  e  logo 
Outro  mais  vivo  m'o  destróe !  Debalde 
Ligar  quero  as  cadêas  de  um  systema; 
Que  ellas,  como  Frothêo,  a  cada  instante 
Diíferem  de  si  mesmas!  Deslumbrado 
Por  um  clarão  facticio  me  suspendo, 
E  tudo  volve  á  antiga  obscuridade ! 
Tal  de  noute  o  relâmpago  medonho. 
Rasgando  o  seio  ás  nuvens,  se  arremessa. 
Dos  objectos  a  imagem  nos  descobre, 

25. 


386  OBRAS  DE  BOCAGE 


Vôa,  brilha,  e  se  esváe  sulcando  os  ares; 

E  a  noute,  inda  mais  negra,  esconde  o  mundo- 

Com  arte  corrigindo  a  Natureza, 
Eu  aos  homens  em  versos  ensinava 
Das  terras  o  lavor,  no  tempo  em  quanto 
Luiz,  o  rei  melhor,  e  o  mais  excelso, 
De  seus  feitos  co'a  fama  enchia  o  mundo; 
Em  quanto  a  Itália  e  Flandres  soçobradas, 
Viam  tudo  ceder  ás  armas  suas; 
E  caro  ao  povo  seu,  e  aos  seus  alliados, 
D'inimigos  terror,  do  mundo  assombro, 
De  seus  trophéos  o  fructo  repartindo 
Sós  para  si  guardava  amor,  e  gloria. 

Eu,  quando  a  meu  "sabor  gastando  o  tempo- 
Pude  esquivar  judiciaes  querelas, 
E  o  popular  bulicio,  demandava 
Asylo  aos  campos  de  paterna  herança: 
Ali  não  vinha  o  orgulho  da  grandeza. 
Nem  vinha  dos  prazeres  o  tumulto 
Meu  coração  turbar,  nem  meu  repouso; 
Vivia  só  commigo,  e  sem  cuidados 
A  vida  consagrava  ao  grato  estudo; 
Amei  rebanhos,  arvores,  campinas, 
E  á  borda  dos  regatos  cristalinos, 
E  á  sombra  das  florestas  retirado, 
Em  solidão  obscura,  mas  tranquilla, 
Juntamente  quiz  ser  poeta,  e  sábio. 


NOTAS 


PRIMEIRO  CANTO 

(Pag,  211,  vers.  8) 

Criam  forças  em  mim  Luiz,  e  a  pátria. 

Luiz  XV,  rei  de  França. 

(Pag.  214,  vers,  12) 

Ao  barro,  ao  tufo,  aos  matagaes,  e  etrêas. 

O   tufo  é  uma  espécie  de  terra  branca  e  secca;  e  é 
também  uma  pedra  esbranqueada  e  esponjosa. 

(Pag.  215,  vers,  14) 

^  Em  qualquer  terra  o  trigo  sarraceno 
*  Eleva  os  negros  grãos  na  densa  espiga. 

Estes  dous  versos  escaparam  a  Bocage  ao  correr  da 
traducção. 

(Ihid,,  vers,  18) 

O  indiano  maiz 


O  maiz  é  outra  espécie  de  trigo. 


388  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Pag.  216,  vers.  6) 

Dos  campos  de  Babel,  esses  outr'hora. 

Tem -se  por  certo  que  os  descendentes  de  Sem,  e  não 
os  egypcios,  fizeram  as  primeiras  observações  astronó- 
micas. 

(Ibid.,  vers.  18) 

O  chefe  das  ovellias  o  é  dos  signos. 

O  Carneiro  \  porque  é  o  signo  do  mez  de  Março,  que 
os  antigos  contavam  por  primeiro  do  anno. 

(Ihid,,  vers,  14) 

O  Touro  logo,  e  depois  d'elle  os  Gémeos. 

O  Touro  é  o  signo  do  mez  de  Abril,  e  os  G-emeòs  do 
de  Maio. 

(Ihid.j  vers,  16) 

Nos  trópicos  o  Cancro,  e  Capricórnio. 

O  Cancro  é  o  signo  do  mez  de  Junho,  no  fim  do  qual 
se  faz  o  solsticio  do  veráo  \  Capricórnio  é  o  de  Dezembro, 
e  também  no  fim  d'este  se  faz  o  solsticio  hyberno. 

(Ihid.,  vers.  18) 

Dias  e  noutes  a  Balança  eguala. 

No  mez  de  Septembro,  cujo  signo  é  a  Balança. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  389 

(Ihid.j  ver 8. 19) 

Das  ceifas  o  sígnal  compete  á  Virgem. 

Astréa,  que  é  o  signo  do  mez  de  Agosto. 

(Pag.  217,  vers,  13) 

Se  o  negro  Escorpião  viu  tua  aurora. 

Signo  do  mez  de  Outubro. 

(Ihid.,  vers.  21) 

Por  artes  da  impostora  astrologia. 

Os  abusos  astrológicos  chegaram,  não  só  a  induzir  a 
crença  de  que  certos  planetas,  e  a  sua  conjuncção  de  tal 
ou  tal  modo,  eram  felizes,  ou  desgraçados;  e  que  os  ecli- 
pses e  cometas  annunciavam  grandes  desastres ;  se  não 
até  que  a  nossa  vontade  era  regulada  pela  influencia  dos 
astros. 

(Pag.  219,  vers.  16) 

Já  no  etbéreo  Carneiro  o  Sol  tocando 
Lhe  desvanece  a  luz 

Por  que  entrar  o  sol  em  um  signo,  vem  a  ser  passar- 
lhe  por  baixo ;  e  então  nol-o  escurece. 

(Pag.  221,  vers.  4) 

E  cruza  os  sulcos  teus  por  novos  sulcos. 

Este  preceito  só  tem  logar  nas  terras  fortes,  e  nunc» 
nas  que  forem  húmidas,  ou  delgadas. 


390  OBRAS  DE  BOCAGE 


(Pag,  222,  vers.  1) 

-     O  margO;  de  que  usaram  n'outras  eras 
Nossos  priscos  avós,  etc. 

O  margo  é  uma  espécie  de  barro  branco  ou  terra  fér- 
til, pingue  e  branda,  que  serve  pára  adubar  as  terras 
áridas :  —  a  castina  é  uma  espécie  de  pedra  ou  terra  es- 
branqueada  e'  secca,  própria  para  adubar  as  que  sâo 
fortes  e  húmidas ;  assim  como  a  cal  é  conveniente  para 
as  que  são  delgadas,  etc. 


(Ihid.^  vers,  16) 
Os  mágicos  mysterios  exercia. 
Foi  um  liberto,  por  nome  Caio  Furio  Cresino. 

(Pag,  223,  vers,  9) 

Outra  fica  vazia ;  o  sementeiro 
Ha  de  espalhar,  etc. 

Machina  para  semear  melhor,  e  com  mais  economia. 

(Ibid,,  vers,  12) 

A  herva  parasita  acolhe  menos. 

Chamam-se  hervas,  ou  plantas  parasitas  aquellas  que 
vegetam  sobí'e  outras,  e  se  nutrem  da  sua  substancia. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  391 


(Pag,  226,  vers.  10) 

Ha  lavradores  próvidos,  que  ajuntam 
Agua  com  ciuza,  etc. 

Esta  preparação  faz-se  por  diversas  maneiras,  e  tem 
por  objecto  conhecer  o  grão  melhor  para  a  semeadura ; 
mas  não  é  infallivel. 

(Pag.  228,  vers.  20) 

lenta  carcoma 

Pouco  a  pouco  as  substancias  lhe  anniquila. 

Corrupção. 

(Ihid.,  vers.  26) 

Tendo  por  mestra  a  Natureza,  um  sábio,  etc. 

O  auctor  falia  de  Mr.  Tillet,  que  sobre  este  assumpto 
«screveu  uma  memoria,  premiada  pela  Academia  de  Bor- 
deauz. 

(Pag.  230,  vers.  18) 

Extrair,  ver,  tocar  ha  pouco  a  flamma. 

O  fogo  eléctrico :  reiteradas  experiências  tem  demons-v 
trado  ser  elle  o  mesmo  que  o  fogo  elementar. 

(Pag.  231,  vers.  2) 

Dos  romanos  cobrir,  dourar  as  armas. 

Refere-se  ao  que  César  deixou  escripto  nos  seus  Com- 
mentarios — Eadem  nocté  quintce  legionis  pilorum  cacu- 


392  OBRAS  DE  BOCAGES 


mina  sua  sponte  arserunt.  —  « N'essa  uoute  se  inflamma- 
ram  por  si  mesmas  as  pontas  das  lanças  da  quinta  le- 
gião.» 


(Ihid.,  vers.  7) 

obteve  o  nome 

De  Helena,  Castor,  Pollux .... 


É  o  fogo  a  que  nós  chamamos  Santelmo,  e  que  os  an- 
tigos tinham  por  estrella :  quando  apparecia  um  só  fas- 
ciculo  luminoso,  chamavam-lhe  Helena;  e  quando  appa- 
reciam  dous,  chamavam-lhe  Castor  e  Pollux. 

(Ibid.,  vers.  11) 

Ao  fiel  conductor,  que  sem  violência-. 

Chama-se  c conductor»  um  corpo,  pelo  qual  a  matéria 
eléctrica  se  dirige,  e  se  transmitte  de  um  ponto  a  outra 
sem  se  espalhar. 

(Pag,  232,  vers.  18) 

Nem  do  seio  os  coriscos  lhe  rebentam. 

■'    No  Egypto  nunca  ha  trovoadas;  e  as  poucas  Vezes 
que  se  lhe  tolda  o  céo,  apenas  derrama  um  orvalho. 

(Pag.  233,  vers.  17) 

Ao  ferro  alli  succumbe  a  flava  espiga. 

Os  egypcios  semeam  em  Novembro,  e  fazem  colheita 
em  Março. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  393 

(Ibid.^  ver 8.  19) 

Vivíssimos  ardores 

Esperae  do  Leão 

Mez  de  Julho. 

(Pag,  234,  vers,  1) 

De  míseros  que  chusma  (oh  céos!)  é  esta? 

Os  rabiscadores,  ou  mais  propriamente  —  respigado- 
res. 

(Pag.  236,  vers.  11) 

Encanto  da  existência^  origem  d'ella, 

Taes  que,  etc.  ^ 

Todos  os  versos  com  asteriscos  são  accrescentados 
por  Bocage. 

(Pag,  237,  vers.  9) 

O  óleo  também,  que  de  um  rochedo  emana. 

O  auctor  falia  do  óleo,  que  nasce  de  um  rochedo,  e 
forma  uma  fonte,  perto  de  Grabian,  aldeia  pouco  distante 
de  Besiers,  no  Languedoc. 

<jf*ag,238,  vers.  5) 

Esta,  que  Duhamel  ha  dado  á  França, 

No  seu  Tractado  da  conservação  dos  grãos. 


394  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Ibid.j  vers.  8) 
Mas  quer  ventilador,  que  o  ar  lhe  innove. 
Machina  para  dar  novo  ar  aos  logares  fechado». 

(Pag.  240,  vers.  20) 

Vede  de  Fontenoi,  vede  nos  campos. 

A  batalha  de  Fontenoi  foi  ganhada  pelo  marechal 
conde  de  Saxe  em  1745. 


SEGUNDO  OANTO 

(Pag.  244y  vers,  18) 

O  mundo  consolou  do  equoreo  estrago. 

Isto  diz,  porque  (segundo  a  opinião  mais  recebida)  o 
fabrico  do  vinho  só  foi  conhecido  depois  do  diluvio. 

(Ibid.f  vers.  24) 

Arménia  te  gostou,  néctar eo  sueco. 

Primeiro  na  Arménia,  porque  alli  viveu  Noé  depois 
do  diluvio. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  395 

(Pag.  245,  vers.  6) 

O  Arecómico  Volco  em  nossos  climas. 

VolcoB  Arecoraicos  se  chamavam  os  povos  do  baixo 
Languedoc  •,  assim  como  os  do  alto  Languedoc  se  cbama- 
Tam  Volcos  Tectosagos. 

(Ihid.,  vers.  11) 

O  celta, 

Os  bosques  arrancando,  acolhe  as  vides. 

Porque  Domiciano  lhe  havia  prohibido  a  plantação 
das  vinhas,  e  Probo  lh'a  concedeu. 

(Ihid.y  vers.  21) 

Sobre  arêa  africana  escadeas  torram. 

Escadeas  propriamente  são  esgalhos,  ou  raminhos  do 
cacho  de  uvas ;  mas  aqui  tomam-se  pelos  mesmos  cachos. 

(Pag.  247,  vers.  25) 

Lá  quando  o  turvo  Aquário  em  nossos  climas. 

Em  Janeiro. 

(Pag.  253,  vers.  3) 

Já  nutrimento  de  abundoso  estrume. 

Os  estrumes  augmentam  o  vigor,  e  a  producção  das 
vinhas ;  porém  de  ordinário  alteram-lhe  a  qualidade. 


396  OBKAS  DE  BOCAGE 

(Ibid.y  ver 8,  10) 
Pernicioso  insecto  eis  sáe  da  terra, 
O  escaravelho. 

(Pag.  255,  vers.  18) 

De  invencível  cadeia  os  opprimiam. 

Os  gallos  cisalpinos  sâo  tidos  por  inventores  dos  to- 
neis. 

(Pag,  257,  vers.  17) 

E  a  todo  o  cheiro  ínaccessivel  seja. 

Porque  todos  os  maus  cheiros  alteram  o  vinho. 

(Pag.  258,  vers.  16) 

Abona  vezes  cento  a  força  e  vida. 

O  uso  do  vinagre,  proveitoso  nos  exércitos,  é  conhe- 
cido não  só  desde  os  tempos  primitivos  da  republica  ro- 
mana, senão  que  também  o  foi  pelos  carthaginezes,  6  já 
pelos  gregos. 

(Ihid.j  vers.  20) 

Arte  assombrosa,  que  o  divide  e  apura. 

A  chimica. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  397 

(Pag,  259,  vers.  6) 

Do  vinho  usa  formar  útil  ferrugem, 

E  o  verdete,  ou  azinhavre :  ferrugem  esverdeada,  que 
cria  o  cobre,  e  que  é  um  veneno  violento,  mas  de  que  sé 
tiram  algumas  utilidades. 

(Ihid.,  vers.  18) 

ã 

De  insecto  extranho  tal  peçonha  os  livra. 

Diz -se  que  os  hoUandezes  misturam  verdete  nas  ma- 
térias resinosas  com  que  rebocam  os  seus  diques,  e  que 
com  a  acrimonia  do  mesmo  veneno  matam  uns  insectos 
americanos,  que  lhe  arruinam  o  madeiramento, 

(Ibid.,  vers.  22) 

Louça  verdura,  que  amenisa  os  serros. 

O  verdete  é  também  de  muita  serventia  para  os  pin- 
tores. 

(lUd.j  vers.  26) 

D'alli  tirado 

Se  aprompta  para  mil  necessidades. 

E  o  tártaro,  que  entra  em  muitas  composições  medi- 
cinaes. 

(Pag.  261,  vers.  14) 

Tokay,  teu  digno  contendor,  te  eguala. 

O  vTnho  de  Tokay  é  uma  espécie  de  moscatel;  acha-se 


398  OBRAS  DE  BOCAGE 


ouro  nos  serros  que  o  produzem  •,  e  em  Vienna,  no  gabi- 
nete de  recreio  do  imperador,  está  uma  cepa  de  Tokay, 
que  tem  enrolado  um  fio  de  ouro  nativo. 


(Ibid.y  vers.  24) 
E  o  néctar  vosso,  oh  Tenedos,  oh  Chio. 


Foram,  e  sâo  muito  estimados  os  vinhos  d'e3tas  ilhas 
do  Archipelago ;  porém  os  do  promontório  Arvisio,  na 
ilha  de  Chio,  o  eram  com  tanta  especialidade,  que  lhe» 
chamavam  néctar :  ouça-se  Virgílio,  na  écloga  V : 

Ante  focum,  si  frigus  erit;  si  messis,  in  umbro 
Vina  novum  fundam  calathis  Arvisia  néctar. 

« De  inverno  ao  lume,  e  de  verão  á  sombra 

«Derramarei  por  copos  espaçosos 

«O  novo,  em  vinea  forma,  Arvisio  néctar.» 

Ou.  • .  «O  Arvisio  vinho,  que  parece  néctar.» 


Digo  por  copos  espaçosos,  porque  o  calathis  do  texto 
quer  dizer  em  copos,  ou  cálices  da  feição  de  cestos  — 
pois  que  (( cestos»  é  propriamente  a  significação  de  cala- 
thus, 

(Pag.  262,  vers.  2) 

Dos  cachos  emanar  liquor  fragrante. 

E  o  vinho  chamado  Lacryma, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  399 


(Ibid.,  vers,  4) 

Alta  Musa 

Das  Camenas  do  Tejo  honra,  e  saudade,  6tc. 

Quem  deixará  de  entender  que  Bocage  falia  aqui  do 
nosso  immortal  Camões,  no  seu  admirável  Adamastor? 
Por  certo  hâo  de  entendel-o,  e  interiormente  achar-lhe 
razão,  até  aquelles  que  dizem —  Que  o  episodio  de  Ada- 
mastor^ entre  os  disparates  de  Luiz  de  Camões^  é  o  maior 
disparate, 

(Ibid.,  vers.  11) 

O  Occidental  Jason,  etc. 

Entende-se  o  nosso  Vasco  da  Gama:  bella  aparidade 
de  Bocage ;  pois  que  Vasco  da  Gama  foi  o  chefe  da  nossa 
armada,  para  o  descobrimento  da  índia,  assim  como  Ja- 
son a  foi  da  náo  Argus,  para  a  conquista  do  Vellocino. 

(Ibid.y  vers.  17) 

Próximo  ás  fontes  d*onde  corre  o  Sena. 

De  Borgonha,  Champanha,  etc.  levaram  os  hoUande- 
zes  ao  Cabo  da  Boa-Esperança  cepas,  que  ali  plantaram, 
e  que  produzem  um  vinho  muito  estimado. 

(Ibid.j  vers.  22) 

O  cysne  de  Venusa  aos  céos  erguia. 

Horácio;  pois  que  era  natural  de  Venusa,  antiga  ci- 
dade no  reino  de  Nápoles. 


400  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Pag,  263,  vers.  12) 
As  perfumadas,  as  chinezas  folhas. 

O  chá. 

(Ihid.y  vers.  13) 

Dos  grãos  de  Yemen  a  singular  bebida. 

O  melhor  café  colhe -se  em  Yemen  (Arábia -Feliz)  e 
d'ahi  o  transportam  para  a  cidade  de  Moka,  d'onde  se  lhe 
dá  impropriamente  o  nome. 

(Ibid.j  vers.  14) 

O  cacau  negrejante,  alimentoso. 

Falia  do  cacáo  como  droga  essencial  no  chocolate. 

(Pag.  264,  vers.  10) 

*  A  mâe  (ah !  já  não  mãe)  lacera  o  filho. 

Este  verso,  que  na  edição  do  terceiro  volume  não  tem 
asterisco,  é,  não  obstante,  accrescentado  por  Bocage,  e 
com  toda  a  propriedade,  pois  que  Penthêo  foi  despeda- 
çado por  sua  mãe  Agave,  que  Baccho  enfurecera. 

(Ibid.,  vers,  24) 

Eschylo  a  cria,  Sophocles  a  eleva. 

^  Verdadeiramente  o  seu  inventor  foi  Thespis ;  mas 
Eschylo  é  quem  lhe  deu  magestade  e  energia :  creou-a 
por  tanto.  (Nota  de  Bocage). 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  401 

(Pag.  265,  vers.  14) 

Sagrou-lhe  sobre  o  mar  Veneza  um  templo. 

Falia  da  Veneza  republica.  (Nota  dt  Bocage,.) 

(Pag.  267,  vers.  6) 

Jugo  aos  transportes,  aos  delírios  termo. 

Creio  que  este  quadro  de  Veneza  e  os  antecedentes, 
pelas  imagens  e  expressão,  devem  aprazer  ao  leitor, 
(Nota  de  Bocage.) 


TERCEIRO  OANTO 

(Pag.  268,  vers.  4) 

O  vate  Mantuano,  o  velho  de  Ascra. 

Virgílio  nasceu  em  Andes,  aldeia  perto  de  Mantua 
(na  Itália)  e  por  isso  é  vulgarmente  cognominado  Man- 
tuano.  Hesiodo  nasceu  em  Cumas  (na  Etolia),  mas  foi 
«ducado  em  Ascra  (na  Beócia);  e  esta  se  tem  por  sua  pá- 
tria ;  d'aqui  o  cognominaram  Ascrêu,  como  o  fez  Virgílio 
no  livro  segundo  das  suas  Greorgicas ; 

Ascrmumqut  cano  Romana  per  oppida  carmen, 

«Versos  como  os  de  Ascrêu  em  Roma  canto.» 

Isto  diz  Virgílio  alludindo  a  um  poema  georgico  com- 
posto por  Hesiodo,  do  qual  (segundo  a  opiuiao  ínais  re- 
26 


402  OBRAS  DE  BOCAGE 


•ebida)  só  nos  chegaram  fragmentos.  O  mesmo  Virgílio^ 
sa  sua  écloga  sexta,  lhe  chama  —  velho  de  Ascra. 

Hos  tihi  dant  calamus^  en  acctpe,  Musas, 

Ascrcea  quos  ante  seni, 

«Recebe- a,  dâo-te  as  Musas  esta  frauta, 
«Que  deram  n'outro  tempo  ao  velho  de  Ascra.» 

(Ihid.y  vers.  8) 

O  mais  sábio  dos  reis,  Deus,  inspiraste. 

Salomão :  elle  escreveu  das  arvores,  desde  o  cedro  até 
ao  hysopo ;  isto  é^  desde  a  maior  até  á  menor.  Esta  obra 
perdeu-se;  mas  é  a  que  allude  o  auctor. 

(Pag.  269,  vers.  6) 

Consultavam  prophetico  arvoredo. 

Junto  a  Dodona  (cidade  da  Chaonia  no  Epiro)  havia 
um  bosque  consagrado  a  Júpiter,  e  todo  de  carvalhos, 
que  se  dizia  prophetarem  os  oráculos  d'aqu«lle  numen- 

(Ihid.j  vers.  8) 

Iam  colher  o  agárico  sagrado. 

Agárico  ou  visco:  planta  parasita,  ou  excrescência 
esponjosa,  que  nasce  de  inverno  no  tronco  das  arvores. 
O  do  carvalho  era  tido  pelos  gallos  como  um  poderoso 
preservativo  contra  todos  os  males;  e  os  supersticiosos 
druidas  ou  bardos,  o  colhiam  nos  fins  de  Dezembro,  sa- 
crificando victimas  humanas;  depositavam-no  em  seus 
altares,  e  o  distribuíam  ao  povo  no  primeiro  do  anno. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  403 

(Rid.j  vers.  21) 

O  cedro  se  accendeu,  na  umbrosa  estancia. 

Os  antigos,  antes  de  conhecido  o  uso  da  cera,  ser- 
viam-se  em  logar  d'ella  das  madeiras  resinosas  e  odorí- 
feras; especialmente  do  cedro.  Sirva  de  prova  o  que  diz 
Virgilio,  Eneid.  lib.  VII. 

Próxima  Circce  raduntur  littora  terrce; 
Dives  inaccessos  uhi  solis  filia  lueos 
Assiduo  rosonat  cantu^  tectis  que  siiperbis 
TJrit  odoratam  nocturna  in  lumina  cedrum, 
A  rguto  ténues  percurrens  pectine  telas. 

«Junto  ás  terras  de  Circe  as  ondas  corta; 
«Onde  a  filha  do  Sol  os  Ínvios  bosques 
«Faz  resoar  com  repetido  canto, 
«Opulenta  em  magnifico  palácio 
«Odorifero  cedro  a  noute  accende, 
«E  com  sonoro  pente  as  telas  urde.)) 

(Pag.  270,  vers.  11) 

A  floresta  de  Hercynia  inda  aos  germanos. 

A  Floresta-negra  (na  Suabia),  e  a  de  Bohemia  sâo 
restos  da  floresta  Hercynia,  que  se  estendia  por  toda  a 
Germânia  até  á  Pannoniia. 

'(Ihid.jvers.  19). 

O  francea  em  seu  clima  reconhece 
As  antigas  Ardennas,  etc. 

As  florestas  de  Compicgnc,   Couci,  Fontaiuebleau, 


404  OBRAS  DE  BOCAGE 


etc.  faziam  parte  da  grande  floresta  das  Ardennas  (ao 
longo  do  rio  Mosa)  onde  os  bardos  ou  druidas  sacrifica- 
vam. 

(Pag.  271,  vers.  20) 

Seccam  de  languidez  em  campo  extranho. 

As  arvores  assim  plantadas  sâo  sempre  mais  fracas 
e  menos  duradouras:  e  espécies  ba,  que  nunca  medram 
com  este  género  de  cultura, 

(Vay.  272,  vers.  16) 

E  o  banquete  cubriu  dos  sete  sábios. 

Os  n'este  numero  contados  foram:  Thales,  natural  de 
Mileto;  Plttaco,  de  Mitiline;  SoloUj  de  Atbenas;  Cleo- 
bulo,  de  Linde:  Bias,  de  Priene;  Cliilon,  de  Sparta  ou 
Lacedomonia-,  Periandro^-de  Corintho. 

(Ibid.y  vers,  18) 

E  o  olmo,  que  em  teu  seio  achaste,  oh  Grallia. 

Espécie  diversa  de  outra,  originariamente  produzida 
na  Itália. 

(Pag.,  273,  vers.  13) 

Dos  vastos  corpos  seus  liquor  viscoso 
Faz  que,  etc. 

Todas  as  arvores  resinosas  conservam  no  inverno  a 
folha,  excepto  o  larico:  e  creio  que  com  esse  fundamento 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  405 


Bocage  o  excluiu  da  sua  traducção,  quando  aliáa  Rosset 
o  inclue  n*este  verso: 

Le  cedre,  le  cyprésy  le  mélesCy  et  le  pin. 

Do  cedro  só  ha  uma  espécie  conhecida,  e  é  vulgar  na 
Arábia  e  no  Egypto;  na  Europa,  se  usassem  plantal-o, 
produziria,  como  tem  produzido  em  Paris  e  em  Londres. 


(Ibid.,  ver 8,  20) 
Uns  o  pez,  a  resina  outros  derramam. 
O  pez  os  mansos,  a  resina  os  bravos. 

(Ihid.,  vers.  21) 
Sua  terebenthina  ostenta  Chio. 
Terebenthina  ou  tormentina:  resina  do  terebintho. 

(Tbid.y  vers.  24) 
Dos  freixos  de  Calábria  o  pranto  admira. 
Manná,  que  distillam  nos  mezes  de  Junho  e  Julho. 

(Ibid,,  vers,  2ô) 
Myrrha  offVece  aos  sabéos  humor,  que  encanta. 
Ka  Arábia- Feliz. 


406  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Pag.  275,  vers.  4) 
Os  gallos  succeder  viu  a  seus  povos. 
Foram  os  chamados  gallos-cisalpinos. 

(Ihid,,  vers.  6) 
E  foi  Roma  em  seus  muros  sepultada. 
AUude  á  invasão  de  Brenno. 

(Ibid.,  vers.  7) 

Aos  campos  de  Gallacia  deram  nome. 

Provincia  d'Asia-menor,  povoada  pelo  terceiro  exer- 
cito gallo  que  entrou  na  Grécia. 

(Ihid.,  vers.  8) 

Por  Apollo  tremeu  ao  vel-os  Delphos 

Até  alli  chegou  o  segundo  exercito  gallo  que  entrou 
na  Grécia:  mas  foi  destruido  como  o  primeiro. 

(Pag.  276,  vers.  13) 

A  franceza  estatura  magestosa. 

Porque  os  lapões,  ou  habitantes  da  Laponia  (paiz  ao 
norte  da  Europa)  têm,  quando  muito,  quatro  pés  e  meio 
de  altura. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  407 

(Ihid.,  vers.  22) 

E  aveleira,  e  loureiro,  e  teixo,  e  myrto. 

Bocage  excluiu  da  traducção  o  arbusto2<(buxo»  que  o 
original  dá  n'e8te  verso : 

La  rose,  le  lilás,  le  buis,  le  coudier, 

talyez  porque  julgou  o  vocábulo  dissonante  em  metro. 

(Pag.  277,  vers.  5) 

O  azevinho,  o  alaterno  prateado. 

Também  excluiu  o  iroesne  do  texto  (que  significa  o  al- 
feneiro  aliem  ao)  talvez  por  não  repetir  alfeneiro,  e  evi- 
tar periphrasis  :  mas  acrescentou  o  parenthesis — (E  não 
«ó  estes.) 

(Pag.  278,  vers.  23) 

*  Koma  a  venceu,  e  dos  vencidos  povos 

*  Ignotas  plantas  admirou  a  Itália. 

Também  passaram  a  Bocage  essoutros  versos  : 

Home  triompha  d^elle,  et  des  peuples  vaincus 
.  Ultálie  kdmira  les  arbes  inconnus. 

(Ibid.,  vers.  28) 

Nos  é  delicia,  aos  persas  é  veneno. 

AflSrma-se  que  os  pêcegos,  entre  nós  tâo  deliciosos, 
são  tâo  nocivos  na  Pérsia,  que  o  seu  veneno  é  mortal : 


408  OBRAS  DE  BOCAGE 


por  isso  o  nosso  immortal  Camões  (que  soube  quanto  po- 
dia saber-se  no  seu  tempo)  disse  nos  Lusíadas  cant.  IX, 
estancia  58 :  ' 


«  O  pomo,  que  da  pátria  Pérsia  veiu, 
«  Melhor  tornado  no  terreno  alheio.  » 


(Pag,  219,  vers.  1) 
O  damasco  odorífero  de  Arménia. 


O  mesmo  que  dos  pêcegos  na  Pérsia,  se  diz  dos  da- 
mascos na  Arménia,  e  querem  alguns  que  também  na 
Piemonte. 


(Ibid,,  vers.  5) 

Os  fructos  cultivou  de  Cerasonte. 

Cidade  na  Cappadocia,  que  deu  o  seu  nome  ás  cere- 
jas, e  d'onde  Lucullo  as  levou  a  Roma;  do  que  tál  jac- 
tância teve,  que  com  ellas  ornou  o  seu  carro  de  triumpho, 
quando  venceu  Mithridates. 

(Ihid.f  vers,  7) 
E  as  maceiras,  em  Neustria  tâo  fecundas. 
Agora  se  lhe  chama  Normandia    ' 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  409 

(Pag.  280,  vtrs,  21) 

*  Nos  elegantes  nós  dè  branda  seda 

*  Prende  co'as  alvas  mãos,  inda  mais  brandas.    . 

Ponho  asterisco  n'estes  dous  versos,  por  seretoi  ele- 
gantissimamente  paraphraseados  d'este  frouxo  verso  : 

Captive  ses  cheveux  que  la  soie  entrelace, 

(Pag.  283,  vers.  5) 

E  da  chuva,  e  do  vento  injurias  tolhe. 

E  o  que  chamam  enxertar  de  garfo. 

(Ibid.,  vers.  10) 

O  enxerto,  que  lhe  muda  a  natureza. 

Chama- se —  enxerto  de  borbulha. 

(Ibid.f  vers.  12) 

Em  figura  de  rolo  ás  vezes  solta 

Enxerto  de  annei. 

(Pag.  288,  vers.  8) 

D*aquelles  campos  Hercules  á  Grécia 
Foi  o  primeiro,  etc. 

Nâo  se  duvida  ser  Hercules  que  primeiro  letoti  á  Gré- 
cia a  oliveira,  e  instituiu  o  uso  de  se  coroarem  d'ellíi  o» 


410  OBRAS  DE  BOCAGE 

vencedores  dos  jogos  olympicos  \  é  porém  duvidoso  o  lo# 
gar  d*onde  elle  a  levou. 

(Ibid,^  vers.  15) 

Que  est 'arvore  devia  á  deusa  sua. 

Minerva  ou  Palias. 

(Ibid.j  vers.  22) 

D'onde  a  terra  se  abaixa,  e  desce  ás  ondas. 

Sabe-se  por  experiência;  mas  a  causa  ignora-se. 

(Pag.  289,  vers.  16) 

De  um  memorando  inverno,  oh  pátria  minha, 

Refere-se  ao -inverno  de  1709,  que  destruiu  todos  os 
olivaes  no  Languedoc,  ou  Occitania. 

(Pag.  290,  vers.  2) 

O  cânhamo,  o  pastel  teu  seio  amimam. 

Herva  de  tinturaria,  espécie  de  lápis. 

(Ibid.y  vers.  10) 

Uniram  teus  trabalhos  os  dous  mares. 

Falia  do  canal  de  communicação  do  Mediterrâneo  com 
o  Oceano,  feito  no  reinado  de  Luiz  XIV. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  411 

(Ihid.j  vers.  23) 

Os  vencidos  ergueu  ao  gráo  de  filhos. 

Dando-lhes  o  direito  de  cidadãos  romanos. 

(Pag.  292j  vers.  2) 

A  folha  da  amoreira,  assim  como  elles. 

Porque  o  bicho  e  a  folha  precisam  o  mesmo  gráo  do 
calor. 

(Ihid.,  vers.  11) 

Indicador  do  tempo,  ali  o  vidro,  etc. 

O  thermometro. 

(Pag.  295,  vers.  20) 

Presa  ém  seus  laços,  transformada  em  nympha, 

Nympha,  chrysalida,  aureiia,  ou  fava,  sâo  os  nomes 
que  se  lhe  dâo,  quando  encerrada  no  envoltório  dos  fios 
de  seda,  em  vésperas  da  sua  metamorphose. 


QUARTO  CANTO 

(Pag.  302,  vers.  27) 
Vâo  de  novo  occupar  a  estancia  antiga. 

Todo  este  episodio  diz  relação  ao  celebre  lago  de  Zir- 
chnitzersée,  que  no  mez  de  Junho  começa  a  seccar-se,  e 
torna  a  começar  a  encher-  em  Setembro. 


412  OBRAS  DÊ  BOCAGE 

(Pag.  803,  vers.  19) 

Taes  os  prados,  que  ás  ondas  submettidos,  etc. 

As  ondas  snhmettidos,  porque  na  Hollanda  nâo  é  a  ter- 
ra sobranceira  ao  mar,  fica  o  mar  sobranceiro  á  terra. 

(Pag.  304,  vers.  4) 

Surgem  paizes,  que  tapava  o  lodo. 

A  sua  grande  obra  da  dessecação  das  aguas  foi  em- 
prehendida  pelos  annos  de  1180;  antes  d'isso  a  Hollanda 
era  um  pântano. 

(Ihid.j  vers.  7) 

Que  a  vez  primeira  então  provou  seus  lum^. 

Porque  esta  província  (uma  das  Sete-Unidas)  era 
alagadiça,  e  só  deixa  de  o  ser  pelos  seus  famosos  dique». 

(Pag.  306,  vers.  5) 

Quebra  mugindo  os  diques,  e  os  derruba. 

Apezar  de  todas  as  cautelas,  os  diques  sao  ás  vezes 
forçados  pela  violência  das  aguas,  que  submergem  cida- 
des inteiras :  as  duas  mais  famosas  innundações  foram 
as  de  1532  e  1563.     > 

(Pag.  307,  vers,  16) 

O  lirio  roxo,  o  junco,  etc. 

Lirio  roxo,  ou  espadana :  glayeul  diz  o  texto. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  413 

(Ihid.^  vers.  21) 

Da  borrasca  estridente  o  Isero  ajunta. 

Ha  outro  rio  Isero,  que  nascendo  nos  confins  do  Tirol 
e  da  Baviera,  vae  desembocar  no  Danúbio;  este  de  que 
se  tracta  nasce  nos  extremos  do  Piemonte  e  de  Sabóia,  e 
desemboca  no  Rhodano.  \  ^ 

(Pag.  308,  vers.  Ij  ISS^ 

-  E  o  Saona  seus  imptos  aos  d'ella.  3;^S    S^32 

No  uianuscripto  de  Bocage  achei  Sequana;  porém 
aqui  olvidou-se,  bem  como  se  olvidara  de  traduzir  alguns 
versos  :  porque  Sequana  é  o  nome  latino  do  rio  Sena,  que 
vae  desembocar  no  Oceano;  e  o  Saone,  que  dá  o  texto, 
vae  desaguar  no  RhodanO;  e  em  latim  é  Arar  e  Soceona, 
mas  nao  Sequana. 

(Pag.  309,  vers.  10) 
Tal  junto  de  Ilion  o  irado  Xantho,  etc. 
Allude  ao  que  diz  Homero  no  canto  XXI  d  a  Iliada, 

(Pag.  315,  vers.  8) 
Assim  de  Alcino  a  ilha  povoavam. 
Coreyra;  ou  Corfu,  ilba  no  mar  Jonio. 


414  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Ibid.j  vers.  14) 

E  os  casnpos  transferiu  para  as  cidades. 

Assim  o  diz  Plínio  o  Naturalista :  — Primus  hoc  insti- 
tuit  Athenis  Epicurus,  otii  magisfer,  usque  ad  eum  maris 
non  fuerat  in  oppidis  habiiari  ritra :  —  «  Epicuro,  o  mes- 
tre do  repouso,  foi  quem  primeiro  os  ordenou  em  Athenas : 
até  aos  eu  tempo  não  costumavam  os  jardins  medrar  no 
seio  das  cidades. » 

(Pag.  317,  vers.  22) 

Cumes  da  Ibéria,  onde  morreu  Pyrene. 

Os  montes  Pyreneos,  que  dividem  as  Hespanhas  da 
França. 

(Ihid.f  vers.  23) 

Os  que  Annibal  transpoz,  Vosgos,  e  Jura.  ^ 

Os  Alpes,  que  separam  a  Itália  da  França  e  da  Alle- 
manha. — Vosgos  é  uma  cordilheira  de  montanhas,  que  se 
estenda  até  á  floresta  das  Ardennas,  separando  de  Lo- 
rena a  Alsacia,  e  o  Franco- Condado;  — Jura  é  uma  mon- 
tanha, que  separa  a  Suissa  do  FranoD-Condado. 

(Pag.  318,  vers.  22) 

Junto  de  impia  caterva  em  ras  mudada,  ete, 

AUusâo  aos  jardins  de  Versailles,  onde  estas  fabulas 
estão  representadas. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  415 

(Pag.  320,  vers.  7) 
A  tenra  hemerocal,  cujo  destino,  etc. 

Espécie  de  lirio :  as  flores,  que  successivamente  bro- 
tam do  seu  tronco,  duram  somente  um  dia. 

(Ib{d,y  vers.  9) 
E  as  que  outr'hora  agradaram  tanto  aos  Incas. 

Príncipes  peruvianos,  que  Diogo  de  Almagro  em  1557 
sujeitou  ao  dominio  de  Hespanha :  em  seus  jardins  nâo 
somente  imitavam  as  varias  flores  com  ouro  e  prata ;  po- 
rém até  as  searas,  os  arvoredos,  os  insectos,  as  aves,  etc. 

(Pag,  321,  vers.  12) 
Da  Syria  o  mais  christao  dos  reis  da  Gallia. 

S.  iLuiz  (IX  dVste  nome  entre  os  reis  de  França) 
quando  voltou  da  Syria  trouxe  aos  francezes  o  rainunculo. 

(Pag.  322 j  vers.  9) 

e  que  os  francezes 

Nominam  tuberosa 

ííós  lhe  chamamos  «r angélica»:  os  france2KíS  a  trou- 
xeram da  America,  e  primeiros  a  cultivaram. 


416  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Ibid.y  vers.  14) 
E  a  que,  amante  do  Sol,  com  elle  gira. 
O  heliotropio  ou  girasol. 

flhid.,  vers.  16) 
Da  China  a  rosa,  etc. 


Commummente  chamada  « rosa  japonica  » :  o[[arbusto 
que  a  produz  é  maior  do  que  as  nossas  roseiras. ' 


(Ihid.,  vers,  26) 
No  tempo  em  que  o  talaspis  d'alva  fronte. 
Flor,  que  abre  á  maneira  de  um  chapéo  de  sol. 

(Pag.  324,  vers.  8) 
O  luto  de  Aristêo,  perdendo  o  enxame. 
Veja-se  o  livro  IV  das  Georgicas  de  Virgilio^ 

(Pag.  326,  vers.  12) 
Mais  forte  em  tuas  mâos;  que  industria,  oh  França,  etc. 
Falia  das  flores  de  porcellana. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  417 

(lUd.,  vers.  22) 

Que  a  flor  vida  recebe,  a  flor  dá  vida. 

Systema  de  Mr.  Vaillant,  adoptado  por  Jodos  os  bo- 
tânicos modernos. 

(Ihid.,  vers.  26) 

Do  pistilo  no  seio  os  filamentos. 

Parte  onde  a  flor  encerra  a  semente  ou  seu  orgâo  fe- 
minino. 

(Pag.  326,  vers.  4) 

Immovel,  como  nós,  jazer  no  somno. 

E  opinião  de  Linnêo. 


QUINTO  CANTO 

(Pag.  830,  vers.  1) 

Oh  Deus,  de  quem  um  pastor,  etc. 

Moysés. 

(Ihid.f  vers.  19) 

Das  ovelhas  de  Atrêo,  e  Eéta  o  preço. 

,    O  primeiro,  rei  de  Argos :  o  segundo,  rei  de  Colchos. 
E  este  de  quem  se  conta  que  guardava  o  vellocino  rou- 
bado por  Jason. 
47 


418  OBRAS  DE  BOCAGE  - 

(Ibid.,  vers.  21) 

De  Fauno-  a  prole,  etc. 

Latino,  rei  de  Laurente,  parte  do  antigo  Lacio. 

(Pag.  381,  vers.  8) 

Puxa  os  frios  In  pões  o  renna  activo. 

O  renna  assimelha-se  ao  veado  e  ao  cavallo;  e  é  a 
principal  riqueza  doB  habitantes  da  Laponia  :  tira-lbes 
os  seus  carros,  alimenta-os  de  carne  e  leite,  e  veste-os 
da  sua  pelle. 

(Pag.  836,  vers.  27) 

O  tigre  unido 

A  leoa  feroz,  gera  o  leopardo. 

Alguns  modernos,  e  com  elles  Mr.  de  Buffon,  têm  que 
o  leopardo  é  uma  espécie  distincta  :  o  auctor  segue  a  vul- 
gar e  antiga  opiniíTo  :  podia  escolher  como  poeta,  porque 
03  poetas  têm  grandes  licenças  e  mais  quando  escrevem 
tâo  bem  como  elle  acaba  de  o  fazer  sobre  o  préstimo  e  ge- 
nerosidade dos  ginetes. 

(Pag.  557,  vers.  9) 

E  outros,  que  a  Natureza  não  perfilha. 

O  texto  diz  : 

Les  mídets,  lef^  jumarts  qíCelle  71' adopte  pas. 

Nós  não  ternos,  vocábulo  propriamente  significativo  de 
jumart ;  Bocage  suppriu  a  mingoa,  dizendo  —  E  ovfms-. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  419 


—  Jumart  cbamam  á  prole  do  touro  e  burra^  ou  burra  e 
vacca,  ou  cavallo  e  vacca,  ou  touro  e  egoa.  Mr.  de  Buf- 
fon  diz  que  o  jiwiart  é  um  ente  cbiuierico :  nâo  sei  se  tem 
rajíào,  decidam  os  outros  senbores  naturalistas:  mas  cer- 
to é  que.  se  se  dá"tal  casta,  é  eila  de  bem  pouca  utili- 
dade, pois  que  se  Ibe  não  promove  a  multiplicação. 


(Pag.  338,  vers.  23) 
^  Soberba  caminhando  ergue  a  cabeça. 
E  outro  verso,  que  Bocage  passou  na  traducção : 
Dans  la  marche  on  la  voit  lever  sa  iHt  ahiere. 

(Poçj.  889^  vers.  6) 

E  de  seu  vencedor  tem  inda  o  nome. 

O  vencedor  foi  Mário,  e  o  campo  é  o  de  Comargue, 
illia  da  Provença,  na  embocadura  do  departamento  das 
Bocas-do-Rhodano,  e  á  qual  em  latim  se     '  ".//////.v 

Mariij  ou  Camaria. 

Corrompe  or4  ares  odioso  insecto. 
Falia  do  tabâo.  ou  moscardo. 


420  OBRAS  DE  BOCAGE 

(Pag.  341,  vers,  9) 

Povo  afamado,  em  Apis  te  morrendo. 

Os  egypcios  debaixo  do  nome  de  Apis,  Osíris  ou  Se- 
rapiS;  adoravam  um  boi,  malhado  de  brai:||po  e  preto. 

(Pag.  343,  vers.  13) 

Então  vê  o  Esperou  chegar  de  ovelhas,  etc. 

Montanha  das  Cevennas,  no  baixo  Langiiedoc,  mui 
frequentada  pelos  botânicos. 

(Pag.  344,  vers.  SIJ 

Taes  de  Armórico  e  Ardennas  os  carneiros. 

Armóricos  se  chamavam  os  habitantes  d'entre  o  Loi- 
re e  o  Sena,  sobre  a  margem  do  Oceano.  A  respeito  de 
Ardennas,  veja-se  a  nota  ao  terceiro  cauto  a  pag.  403. 

(Pag.  345,  vers.  2) 

Campo  fragoso  de  abundantes  pastos. 

É  o  campo  chamado  Grau,  junto  de  Salon  (cidade  da 
Provença)  entre  o  Rhodano  e  o  lago  de  Berre,  a  que  os 
antigos  chamavam  Campi  lapidei,  campos  pedregosos : 
onde  se  conta  que  Hercules  combateu  contra  dous  gigan- 
tes filhos  de  Neptuno,  e  acabando-se-lhe  as  frechas,  Jú- 
piter fez  chover  aquella  multidão  de  pedras,  com  que  os 
venceu.  Plinio,  Hist.  lib.  III,  cap.  I,  o  menciona  n^estas 
palavras :  —  Campi  lapidei  Herculis  proceliorum  memoria 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  421 


insignes:  «  Os  pedregosos  campos,  celebres  pela  memoria 
dos  combates  de  Hercules. » 

(Ibid.j  vers.  19) 

teus  bons  pascigos, 

Oh  Présalé,  etc. 

Terreno  da  alta  Normandia,  que  ainda  de  tempos  em 
tempos  é  innundado. 

(Ibíd.,  vers.  22) 

Ganges  segue  outras  leis 

Villa  do  baixo  Languedoc. 

(Pag.  349,  vers.  14) 

Arte  dos  Gobelins,  talvez  comtigo,  etc. 

Allude  a  Gil  Gobelin,  famoso  tintureiro  em  lã,  que 
viveu  no  reinado  de  Francisco  I. 

(Pag.  350,  vers.  21) 

De  prazeres  se  cança,  e  não  se  farta. 

Imitação  de  Juvenal  (satyra  VI)  fallando  de  Messa- 
lina : 

Et  lassata  viris,  necdum  satiata  recessit. 

« Cançada  de  prazeres  indecentes, 
Porém  não  saciada  se  retira, 

O  verso  do  texto  parece-me  que  deixa  em  embrião  a 


422  OBRAS  DE  BOCAGE 


idéa  de  Juvenal  •  nem  julgo  possível  dal-a  em  um  só 
verso,  sem  que  a  phi-ase  ofíenda  a  modéstia. 

(Pag.  353,  vers,  3) 

França  esfarte  ignorou,  que  em^Roma  os  sábios,  etc. 

Columella  (lib.  VI  cap.  3. o)  faz  menção  da  medicina 
veterinária  ou  alveitaria,  n'estes  termos  :  ^=  Veterinarice 
medicince  prudens  esse  dehit  pecoris  inagister  :  "  Os  guar- 
dadores devem  saber  alveitaria.  » 

(Ibid.j  vers.  8) 

Sábios  nossos  também  a  industria  movem. 

Allude  ás  escholas  de  medicina  veterinária,  que  se  es- 
tabeleceram em  Paris  e  em  Lião,  sendo  seu  director  ge- 
ral Mr.  Bourgelat. 

(Pag,  357,  vers.  9) 

Imagem  da  mavortica  fereza. 

Parece-íne  se  Bocage  existisse,  e  fizesse  esta  edição, 
seria  este  um  dos  versos  que  emendasse,  dizendo  antes: 

Imagem  das  ferezas  de  Mavorte, 

ou  similliantemente:  porque  o  epitheto  «  mavortieo  »  não 
me  lembra  que  seja  usado  por  algum  de  nossos  bons  auc- 
tores,  e  é  absolutamente  desnecessário;  pois  que  temos 
í^marcio.  mavórcio»,  além  de  outros,  que  dão  o  mesmo 
significado.  Como  porém  não  pode  ser  accusado  de  gallí- 
cismo,  eu  o  deixo  ir ;  por  não  ser  minha  intenção  a  de 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  423 


emendar  alguns  minutíssimos  defeitos,  que  poderiam  en- 
contrar-se  na  traducção  de  Bocage,  mas  somente  a  de 
corrigir  aquelles  descuidos,  que  são  infalliveis  em  todos 
os  primeiro»  manuocriptos,  bem  que  os  de  Bocage  sejam 
os  mais  correctos  em  que  eu  tenho  posto  oâ  olhos. 


SEXTO  CANTO 

(Pag.  362,  vers.  14) 

Já  foi  o  gallo  interprete  dos  duuaes. 

Os  grego-s  tinham-nb  como  attrihuto  de  Minerva,  de 
Mercúrio  e  da  Vigilância,  e  o  sacrificavam  aos  deuses 
Lares  e  a  Priapo :  os  romanos,  mais  que  nenhum  outro 
povo  o  tiveram  em  veneração. 

(Pag.  363,  vers.  12) 

O  amor,  a  ambição,  o  império  o  Helena. 

E  excellente  e  digna  da  phantasia  de  um  poeta,  que 
sabe  dar  alma  aos  seus  quadros,  esta  allusão  á  esposa  de 
Meneláo,  que  foi  causa  da  guerra  de  Tróia,  e  é  este  ura 
facto  histórico  tão  conhecido,  que  por  pouco  que  eu  d'olle 
dissesse  me  açcusariam  de  prolixidade. 

(Pag.  364,  vers.  9) 

Assim  quando  entre  nós  súbito  arrojo  etc. 

Esta  comparação  c  tão  proximamente  imitada  de  Vir- 


424  OBRAS  DE  BOCAGE 


gilio  (Eneid.  lib.  1.)  que  julgo  dever  poupar-me  ao  tra- 
balho de  traduzir  o  poeta  latino.  Eis  aqui  os  seus  versos; 

Ac  veluti  magno  in  populo  cum  scepe  eoorta  est 

Seditio,  soevit  que  animis  ignohile  vulgus, 

Jamque  faces,  et  saxa  volant^  furor  arma  ministrat; 

Tiiirij  pietate  gravem^  ac  meritis,  si  forte  virum^  quem 

Conspexere,  silent^  arrectisque  aurihus  astant, 

Ille  regit  dictis  ânimos,  et  pectora  m^ulcet. 

Mas  ainda  assim,  como  não  faltará  quem  queira  cote- 
jar a  imitação  com  a  traducção,  aqui  ajunto  a  de  João 
Franco  Barreto,  que  é  elegante,  postoque  o  remate  da 
estancia  seja  pouco  fiel: 

«  Como  acontece  muitas  vezes,  quando 
Anda  em  gran  povo  o  vulgo  alvorotado, 
Já  as  pedras,  paus,  e  cantos  vão  tirando, 
Dá-lhe  armas  o  furor  desatinado: 
Se  algum  varão  acaso  venerando, 
E  em  méritos  aos  mais  avantajado 
Viram,  cessa  o  furor,  pára  a  demanda, 
E  com  brandas  razões  elle  os  abranda.  » 

O  nosso  Camões  porém  {Lusíadas,  canto  1,  estancia 
91)  disse  com  mais  próprio  verbo: 

«A  pedra,  o  páu,  o  canto  arremeçando.9 

(Pag.  365,  vers,  19) 

Lhe  imprime  as  cores,  que  elegeu  mais  bellas. 

Diz-se  que  arrancando  algumas  pennas  ao  papagaio, 
e  esfregándo-lhe  n'e8ses  logares  a  carne  com  sangue  de- 
ra, lhes  fazem  nascer  pennas  de  varias  cores. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  425 

(Pag.  370y  vers.  14) 

Do  sábio  Reaumiir  os  exp'rimentos. 

Mr.  de  Reaumur  escreveu  a  Arte  de  erear  as  gallinhas 
e  foi  elle  o  primeiro  d'entre  os  modernos,  que  tirou  pin- 
tos por  esta  maneira.  Eu  faço  Reaumur  trisyllabo,  como 
no  original. 

(Pag.  372,  vers.  9) 

Uma  pelle  lh'a  envolve,  e  se  lhe  estende. 

E  ao  que  se  chama  «pevide». 

(Pag.  373,  vers.  7) 

Todos  08  dias  de  uma  vida  escassa. 

Ora  com  effeito,  acabou-se  o  tractado  das  gallinhas ! 
Pois  protesto  que  me  enfastiou.  Perto  de  quatrocentos 
versos !  E  muito  !  Rosset  creio  que  pegou  na  Arte  de 
Reaumur,  e  pondo-se  mui  de  seu  vagar  a  metrificar  os 
preceitos  do  naturalista,  esqueceu-se  do  mister  de  poeta, 
e  esgotou  o  assumpto:  isto  será  sempre  um  defeito  em 
poesia,  e  menos  desculpável  em  Rosset,  porque  de  culpas 
taes  accusa  elle  o  F.  Vaniere,  dizendo  no  seu  discurso 
sobre  a  poesia  georgica:  —  Les  details  de  la  Maison  Rus- 
tique  sont  fort  agreables,  et  peints  avec  grace ;  mais  ih 
sont  si  multipliés,  et  souvent  si  petits  et  si  puerils,  que, 
malgré  les  ornemens  dont  ils  sont  revetus,  on  desireroit  de 
ne  pas  les  trouver:  ils  donnent  a  cet  ouvrage  Vair  d\in 
Traité  plutot  que  d^un  Poente.  « As  particularidades  do 
«Prédio  Rústico»  são  muito  agradáveis,  e  descriptas  com 


426  OBRAS  DE  BOCAGE 


graça;  porém  são  tão  multiplicadas,  e  muitas  vezes  tão 
pueris,  que  não  obí-tarite  os  adornos  de  que  são  revesti- 
das, ee  desejaria  não  as  acliar  :  ellas  dão  a  tfsta  obra  maia 
o  aspecto  de  um  Tractado,  que  o  de  um  Poema.»  Pare- 
ce-me  que  Kosset  deu  uma  sentença,  que  justamente  lhe 
pôde  ser  applicada;  mas  em  lim,  deixal-o  dormitar,  por- 
que quando  que  bo7ius  dormitat  Homer-us:  feliz  aquelle 
escriptor  em  quem,  con:o  em  Ro.sset,  se  nota  o  numero 
das  belltzas  mui  superior  ao  dos  defeitos ! 


(Ibid.j  vers.  11) 
Nos  trouxeram  de  Ignacio  os  companheiros. 

Os  jesuitas,  que  primeiro  trouxeram  o  pcrú  das  índias 
Orientaes. 

(Pag.  314,  vers.  27) 
O  que  salvou,  grasnando,  o  Capitólio. 

Os  gansos  despertaram  no  Capitólio  os  guardas  roma- 
nos, que  rechassaram  o  assalto  dos  soldados  de  Breuno. 

(Pag.  376,  vers.  3) 
O  phaisão  é  feroz  por  natureza. 

Estas  aves  derivam  o  seu  nome  do  rio  Phasis.  d'onde 
é  tradição  que  os  Argonautas  as  levaram  á  Grrecia. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  427 

(Pag,  577,  vers.  16) 
Gaviões,  esmerilhões,  treçós,  açores. 

O  treçó  é  o  macho  das  aves  de  rapina  ;  e  isto  quer  di- 
zer o  emouchet  do  original. 

(Ihid.j  vers.  21) 
E  o  suave  cantor  da  primavera. 

O  rouxinol. 

(Ibid.,  vers.  23) 

E  livres  pelos  bosques  divagando,  etc. 

A  experiência  mostra  que  esta  regra  soffre  muitas  ex- 
cepções ;  porém  é  certo  que  estas  avesinhas  cantam  mais 
agradavelmente,  quando  gosam  da  liberdade  que  lhes  deu 
a  natureza. 

(Pag.  382,  vers.  11) 
Soccorro  annunciaudo  a  oppressos  muros. 

Modena,  defendida  por  Decimo  Bruto ;  Jerusalém, 
cercada  por  Gofredo  de  Bouillon;  Ptolemaida  ou  S.  João 
de  Acre,  cercada  pelos  francezes  e  venezianos,  tiveram, 
além  de  outras,  aviso  de  soccorro,  levado  em  cartas  de 
que  os  pombos  foram  mensageiros. 


428  OBKAS  DE  BOCAGE 

(Ihid.j  vers.  15) 

Dar-lhe  este  ensino,  e  regular  seus  voos. 

Não  somente  n'estas  terras,  mas  em  todas  as  do  Le- 
vante, é  uso  antiquíssimo  levarem  os  pombos,  e  traze- 
rem, cartas  presas  ao  pescoço,  ou  aos  pés,  ou  debaixo 
das  azas. 

(Pag.  383,  vers.  27) 

Sensivel  a  gallinha  á  formosura 
Da  ave  de  Colchos,  etc. 

É  o  phaisão,  porque  o  rio  Phasis,  de  que  deriva  o  seu 
nome,  corta  a  ilha  de  Colchos. 

(Pag.  384,  vers.  9) 

Os  diversos  systemas  n'este  cahos,  etc. 

O  auctor  quiz  aqui  indicar  as  grandes  difficuldades 
dos  diversos  systemas  philosophicos  sobre  esta  matéria. 
Veja-se  a  Physiologia  de  Mr.  Haller  na  exposição  dos 
phenomenos  relativos  á  geração. 

(Pag.  385,  vers.  10) 

E  um  novo,  em  cada  um,  polypo  brota. 

Veja-se  a  obra  de  Mr.  Trembley,  auctor  d'esta  desco- 
berta. 


o  CONSORCIO  DAS  FLORES 


EPISTOLA 


JsjSllEl^    LuôuCROIS: 


A  HWIJJ  IRMÃO 


TRADUZIDA   DO  ORIGINAL  LATINO  EM   VERSO  PORTUGUEZ 


Urít  Amor  plantas  ttiam  suus. 

AUCTORIS. 

Qual  fere  os  corações,  as  plantas  fere. 
Bocage. 


DEDICATÓRIA  DO  TRADUCTOR 


AOS  3JANES  DO  LMMORTAL  LINNE 


Alma  gentil,  qne  no  fragrante  império 

A  vária  Natureza  esquadrinhaste; 

Tu,  que  vias  Amor  brincar  co'as  flores, 

Sagaz  insinuar-lhe  ?rdoce  chamma, 

Principio  d'ellas,  e  principio  nosso: 

Que  dóceis,  ledos  os  Favonios  vias, 

Prestando  a  dom  suave  as  ténues  plumas, 

Ministros  do  Hymenêo  no  flóreo  reino, 

Delicias  esparzir  de  planta  em  planta, 

E  sorrir-se  os  jardins,  sgrrir-se  os  bosques, 

Viçosos  templos  da  iinião  mimosa: 

Oh  manes  de  Linné,  se  inda  entre  as  sombras 

Do  arvoredo  im.raortal,  da  selva  immensa, 

Folgaes  de  meditar,  de  embellezar-vos, 

Na  tenra  estirpe  de  mais  linda  Flora, 

E  dos  Eiysios  no  thesouro  ameno 

Avareza  manter,  que  adorna  o  sábio; 

Oh  manes  de  Linné,  sagrados  manes, 

O  tributo  afagac,  que  a  vós  consagro 


432  OBRAS  DE  BOCAGE 


Na  estancia  bella,  no  retiro  amável, 

Onde  ás  Musas  me  dou,  e  á  paz,  e  á  gloria, 

Gostando  a  eternidade,  inda  no  tempo. 

Aquém  das  illusões,  áquem  dos  nadas, 

Salvo  do  orgulho,  que  entumece  os  grandes, 

E  do  ouro  inútil,  adorado  em  tantos, 

Que  apenas  homens  são,  e  impõem  de  numes. 

Philosopho  tranquillo,  aqui  repouso, 

Em  quanto  semideus  os  deuses  te  honram. 

Espirito  gentil,  que  honraste  o  mundo. 


ADVERTÊNCIA 


A  planta  é  um  corpo  orgânico,  que  não  tem 
de  si  mesmo  movimento  algum  progressivo,  e  que 
se  alimenta  em  qualquer  logar  pela  raiz,  cresce,  ve- 
geta, e  pode  propagar-se  de  muitas  formas:  ou  es- 
teja presa  aos  cachopos,  occultos  no  mar,  como  o 
<íoral;  ou  nos  escolhos  visiveis,  como  o  musgo;  ou 
vague  pelas  ondas,  como  a  stratiotes  no  Nilo;  ou 
brote  na  terra,  como  a  rosa;  ou  nasça  em  arvores, 
como  o  visco;  ou  nos  craneos  insepultos,  como  a 
usnea;  ou  nos  couros  como  o  bolor,  o  que  se  prova 
pelo  microscópio ;  ou  finalmente  no  mesmo  ar  hú- 
mido, como  a  cebola  e  a  batata. 

Raiz  é  o  montão  dos  tubos,  que  recebem  o 
sueco  nutritivo,  o  qual  corre  em  uns  pela  pressão 
das  traqueas  oscillantes  em  todo  o  tegumento  da 
planta  e  reflue  em  outros  com  um  giro  perenne  até 
á  raiz. 

28 


434  OBRAS  DE  BOCAGE 


Assim  como  o  tronco  em  plantas  mais  duras, 
assim  nas  mais  molles  o  talo  produz  e  cria  os  ra- 
mos, as  folhaSj  as  flores  e  as  sementes. 

Cálix  é  vulgarmente  o  invólucro  verde  da  flor. 

Petalos  são  os  tegumentos  colorados  da  flor. 

Estames  são  as  vaginas  cylindriformes  dos 
vasos  esperm áticos,  amplificados  as  mais  das  vezes 
em  ápice  que  na  sua  parte  superior,  ou  folículos, 
a  que  o  auctor  chama  (testículos)  testes. 

Ovário  é  o  claustro  do  gérmen,  ora  único, 
ora  multíplice. 

Tuba  é  o  appendix  cylindrico,  que  assenta  no 
ovário,  e  commummente  aberta  na  parte  superior, 
á  maneira  de  uma  buzina. 

Placenta  é  o  visgo  glanduloso,  subtraído  pro- 
ximamente do  ova^no^  d'onde  saem  ora  um,  ora 
muitos  canaesinhos,  á  similhança  de  cordão  umbi- 
lical, cada  um  dos  quaes  pertence,  e  é  inserido  no 
seu  ovo,  ou  embrjão. 

Semente  é  o  compendio  da  flor,  assim  como 
se  vê  pelo  microscópio  nas  cebolas  das  tulipas  e  nas 
glândulas  do  carvalho. 

Radicula  não  se  difíerença  da  raiz  da  planta, 
senão  pelo  tamanho. 

Pluma  é  o  pequeno  tronco  ou  talinho  com 
seus  appendices. 

MamillOS  são  duas  vísceras  em  feição  de  glân- 
dulas, que  se  communicam  de  uma  parte  com  a  ra- 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  435 


dicula,  e  da  outra  cora  a  pluma^  nas  quaes  o  sueco 
trazido  da  raiz  se  filtra  e  se  defeca,  com  o  que  se 
habilita  mais  a  nutrir  o  feto;  dado  este  á  luz,  se 
transforma  em  duas  folhas,  mui  similhantes  entre 
si,  mas  diíFerentiíS  d'aquellas,  que  ao  depois  deve 
ter,  as  quaes  são  destinadas  a  nutrir  a  planta 
creança;  mas.  tanto  que  esta  cresce  e  está  capaz 
de  digerir  os  suecos,  espontaneamente  caem  as  pri- 
meiras. 

Flor  propriamente,  não  é  outra  cousa  mais,  do 
que  o  mesmo  órgão  da  geração;  se  é  macho,  então 
fce  conhece  pelos  estames,  se  é  fêmea,  pelos  ovários, 
se  é  hermaphrodita,  por  ambos. 

Toda  Vi.  flor  ou  é  vestida,  ou  é  destituida  de  cá- 
lix, d'onde,  ou  é  completa  ou  incompleta. 

Ou  Apetala,  ou  petaloidea  ; 

Ou  Monopetala^  ow.  polypetala ; 

E  ou  regular,  ou  irregular,  ou  simples;  ou  com- 
posta, on  Jlosculosa,  ou  semifloscidosa,  ou  mixta^  ou 
i-adiosa. 


o  CONSORCIO  DAS  FLORES 


Qual  do  espirito  fosse  a  natureza, 
Qual  das  cousas  a  fabrica,  e  das  cousas 
O  Ártifice  immortal,  desde  a  puerícia 
Indaguei,  caro  irmão:  foi-me  suave, 
E  achei  útil  fadiga,  inda  que  longa. 
De  Newton,  e  Descartes  ir  no  alcance, 
Também  medir  essas  ethereas  massas. 
Que  em  diversos  espaços  luzem,  rodam. 

Explorar  quiz  depois  co'a  mão,  e  a  mente 
De  Flora  os  campos,  o  formoso  império: 
De  conductor  peia  votiva  estrada 
Carecia,  porém,  quando  eis  que  assoma 
Ante  mim,  clara  dadiva  dos  numes, 
O  prestante  Vaillant,  cultor  supremo 
Dos  jardins  machaónios;  Philomela 
Aos^ bosques  o  chamava:  elle  ia  aos  bosques, 
D'escalpello  nas  mãos,  e  o  microscópio, 
Um  obra  de  Vulcano,  outro  de  Palias: 
Vidro  negado  a  Athenas,  dado  a  Londres, 
Vidro,  que  em  si  reúne  o  sol  disperso, 
Vidro,  que  os  ténues  corpos  engrandece. 


438  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  tanto,  e  tanto,  que  visíveis  toma 
Do  insecto  zunidor  té  os  olhinhos. 
Com  guia  tal,  e  de  Minerva  influxos, 
Penetrei  o  que  Rays  não  penetraram; 
E  ignotos  aos  Malpighis  soube  arcanos. 

Flora,  benigna  mãe,  Flora,  mãe  sua, 
Dera  apenas  Vaillant  á  luz  da  vida, 
E  apenas  o  menino  em  torno  ao  berço 
Sento  as  plumas  subtis  de  mil  Favonios 
Soltar  fragrâncias  mil,  susurro  alegre, 
A  tenra  mão  com  pequenino  aceno 
Brincos,  que  pede  á  mãe,  se  as  vê,  são  flores. 
Cresceu:  cousas  maiores  eis  concebe. 
Nos  hortos  madrugar  é  seu  recreio. 
Seu  recreio  é  girar,  correr  florestas, 
Esquadrinhando  as  plantas  cuidadoso: 
Folga  de  ir  por  chuveiros,  de  ir  por  neves, 
E  de  ir  por  soes  apascentar  o  instincto. 
Tanto  o  estudo  lhe  apraz  das  varias  flores! 

Vendo-o  colher j  e  examinar  boninas 
N'um,  n'outro  prado,  as  Dryades  mil  vezes, 
Instadas  de  amorosa  competência, 
O  moço  amável  para  si  quizeram; 
Porém,  da  primazia  a  ti  credora, 
Deu  elle,  oh  Bosonea,  esta  alta  gloria. 
Vertumno  a  escolha  approva,  e  Flora  annue, 
Coréas  festivaes  Pomona  engenha, 
E  susurra  dos  Zephyros  o  applauso. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TBADUZIDOS  439 


Vão  por  antiga  senda  rastejando 
Almas  vulgares,  Índoles  escravas; 
A  si  Vaillant  abriu  caminlio  intacto; 
Viu  com  que  arte  Cupido  as  brandas  settas. 
As  sensações  dirige  até  ás  flores, 
E  olhou  primeiro  os  vegetaes  amores. 
A  que  enxovalha,  que  persegue  as  cinzas, 
A  Inveja  detractora,  ah!  iSFão  lhe  exprobre 
Que,  astuta  gralha,  com  furtivas  pennas 
Elle  tentou  luzir;  não,  não  se  afoute 
Co'a  vil  calumnia  a  profanar-lhe  os  manes. 

Milagres  ouve,  oh  Roma,  oh  Grécia,  escuta. 
Também,  também  de  amor  as  plantas  ardem; 
A  flor  namora  a  flor  que  lhe  é  visinha, 
E  egual  paixão  lhe  retribue  a  amada. 
E  n'elles  par  a  edade,  a  espécie,  a  forma, 
A  graça,  o  dote,  o  gosto,  o  ser,  e  a  flamma. 

Assim  que  o  lindo  amante,  e  a  virgem  bella 
Provam  no  seio  os  cupidineos  golpes. 
Tenham  commum,  ou  separada  estancia, 
Seus  mimos,  seus  desejos,  seus  ardores 
Une  Hymeneo, — e  Amor,  e  a  mãe  triumpham. 
Co'as  azinhas  trementes  brinca  em  tanto 
Dourada  borboleta  entre  as  abelhas; 
Folga  o  jardim,  e  o  rouxinol  canoro 
O  verso  genial  no  ulmeiro  entoa. 

Se  duas  flores  uma  estancia  inclue, 
Dá  Prónuba  o  signal,  rompendo  a  aurora; 


440  OBKAS  DE  BOCAGE 


Filamentos  enrijam^  abre  a  anthéra. 

Súbito  adeja  viração  fecunda, 

E,  pelo  flóreo  tecto  reflectida, 

Penetra  velozmente  as  cavidades 

Da  tuba,  da  placenta,  e  logo  errante 

Nos  ténues,  eguaes  tubos  se  insinua, 

Nos  germes  pousa;  os  germes  se  entum^ecera^ 

E  ri-se  a  fêmea  flor,  que  a  prole  espera: 

D'est'arte  a  dormideira,  a  opliris  pejam. 

Se  os  domicilios  são  porém  diversos, 
A  masculina  flor  seus  dons  expulsa 
Da  tenra  habitação,  té 'li  cerrada. 
Zephyro  acolhe  o  gerador  principio, 
A  volátil  semente,  e  sobre  as  azas 
A  leva  ao  grémio  da  consorte  amena. 
Ella  responde  á  conjugal  ternura, 
E  co'a  prole  gentil,  que  o  páe  simelha. 
Fiel  se  abona  ao  desviado  esposo. 

Quasi  ás  margens  do  Nilo  assim  é  fama 
Que  desunidas  palmas  se  desposam; 
Mas  se  as  macias  virações  não  voam 
Quando  é  seu  mez,  quando  florecem  bosques, 
Toma  o  colono  masculinos  ramos, 
E  agita-os  junto  á  fêmea,  que  incha,  e  brota 
A  tâmara  depois,  não  derradeiro 
Auxilio  de  Esculápio,  ou  se  destine 
A  mitigar  as  importunas  tosses, 
Ou  dor  aguda,  que  as  entranhas  fere. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  441 


Ou  Sirva  eiíiíim  de  conduzir  ao  prazo, 
Ao  termo  justo  a  producção  dos  entes. 

Gravido  assim  verdeja  o  terebintho 
Lá  nos  campos  de  Cóa,  proveitoso 
Em  males  cem,  se  os  Austros  o  bafejam. 
Tanto  que  foge  o  friorento  inverno, 
Tanto  que  se  ergue  o  sol,  e  ás  ursas  volve, 
E  em  distancias  egnaes  divide  o  globo, 
Roxeando  a  manhã,  mancebos  voam, 
E  os  troncos  vão  romper  com  largas  hastes. 
De  uns,  d'outros  golpes  bálsamo  gotêa, 
Bálsamo,  que,  app] içado  em  ponto  idóneo, 
Phtysicas  mirradoras  afugenta, 
E  o  frio  humor,  que  pelas  fauces  lavra, 
E  as  fezes,  que  das  vísceras  se  apossam. 

Agricultoras  mãos  na  primavera 
Talham  troncos  também:  se  os  não  talhtirem, 
Opprime  os  troncos  abundância  aquosa. 
Damnos  mil  se  lhe  seguem,  nós,  carcomas, 
E  a  sequiosa  planta  murcha,  e  morre. 
Do  máo,  do  redundante  humor  pejada. 

Não  de  outra  sorte  os  homens  (ah !)  perecem, 
Que  en^lauta  mezti,  em  aturados  somnos. 
Em  sedentário  luxo  a  vida  gostam. 
Estes  de  humores  aò  principio  abundam. 
Depois  arrastam  corpulência  fofa; 
Tardo,  e  limoso  lhes  circula  o  sangue; 
Cerram-se  á  cútis  mansamente  os  poros, 


442  OBRAS  DE  BOCAGE 


Duas  também  das  principaes  entranhas 
SofFrem  esta  oppressão;  vibram-se  a  custo 
No  cérebro  dormente  os  frouxos  nervos; 
Rubro  liquor,  que  pelas  veias  gira, 
Em  Ijmphas  viciosas  degenera, 
E  o  misérrimo  enfermo  em  breve  espaço, 
Se  a  tempo  não  lhe  acode  a  arte  de  Apollo, 
Cáe,  qual  caíra  a  accommettel-o  o  raio. 
A  alma  se  embota,  dos  sentidos  nua; 
E  a  fatal  redundância  instiga  a  morte. 

Tu  prezarás,  talvez,  saber  se  hei  visto 
Estas  cousas,  que  ouvi:  náo  é  custoso 
Dar-se  com  certa  planta  de  que  o  sumo 
Poros  franquêa  em  nós  de  interna  parte, 
E  innocente,  interior  prurido  excita. 
Quer  nitroso  logar:  por  isso  afferra 
Parede  annosa,  de  que  vem  seu  nome. 
Esta  planta  núbil  pôr-te-ha  jiatente 
Mutua  paixão,  que  senhorea  as  flores. 

Quando  alvor  matutino  o^  céos  bordava, 
Eu  de  Moinoranci  aos  gratos  campos, 
Ou  aos  virentes  Surenêos  outeiros, 
Ou  do  Mouro  ás  florestas,  ou  aos  prados  # 
Do  ameno  Chantiliy,  ou  ás  que  em  torno 
Matrona  lambe,  Spórades  chamadas, 
Seguia  o  sábio  mestre.  Então,  se  acaso 
Mais  grave  somno  pelos  muros  tinha 
Oppressa  a  parietaria,  e  se  eram  lentas 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  443 


A  estímulos  d'Áiirora  iis  flores  suas, 
Meu  sagaz  preceptor,  munido  de  alta, 
Longa  experiência,  e,  meditando  astúcias, 
Com  a  agulha  subtil  sollicitava 
Logo  os  estames,  que  enrijavam  logo. 
Súbito,  roto  o  cárcere,  podia 
O  espirito  sair,  voar  aos  germes, 
Largamente  soprados,  e  a  tardia, 
Pulverea  chuva  com  tenaz  apego 
Parar  das  tubas  nas  serventes  margens. 

Sôfrega  a  mãe  cheirosa  alenta  o  fructo, 
E  morre  alegre  ao  ver  que  avulta,  e  fica 
Hábil  a  renovar  seus  páes  extinctos. 

Ha  outra  terra  productora,  é  quando 
Colhe,  abriga  as  sementes  deslizadas 
No  fértil  grémio,  quando  os  sáes  desfeitos, 
Alexando  os  cana  es,  os  píftenteam. 
Bate  o  vagante  humor  nos  ténues  tubos, 
Abrem-se  os  tenros  vasos,  que  amollecem, 
E  a  pequena  raiz,  a  pouco  e  pouco, 
Vae  concebendo  os  vagorosos  suecos: 
Em  tardo  movimento  eis  elles  sobem 
Por  ení*ii  a  contextura  inexplicável, 
Por  fendas  cento  ás  glândulas,  que  jazem 
De  um  lado,  e  d'outro  lado  ali  dispostas: 
Agitados  depois,  os  introduzem 
Estradas  mil  nas  viscoras  da  pluma,. 
E  existência,  e  sustento  ali  diffundem. 


444  OBPvAS  DE  BOCAGE 


Está  primeiro  occulta  a  molle  hervinha, 
Apparece  depois,  converte  em  folhas 
Nutritivas  porções,  e  ao  ar  exulta. 

Oh  tu,  que  as  flores  amas,  tem  cautela: 
Vê  que  barbara  dextra  a  débil  vida 
Não  corte  antes  de  tempo  a  aquelias  folhas. 
Falta  de  nutrição,  morrera  a  hervinha, 
E  esperara  o  cultor  em  vão  grinaldas. 

Chuvas  em  tanto,  e  zéphyros,  e  orvalhos 
Dão  que  á  porfia  as  tenras  hervas  surjam. 
O  seu  banho  interior  sois  vós,  chuveiros, 
Sois,  oh  rocios,  o  exterior  seu  banho. 
Bebe  as  chuvas  a  terra,  as  chuvas  entram 
Nas  intimas  raizes,  e  conduzem 
Ao  tronco  seu,  e  a  seus  folhosos  braços 
As  aéreas  correntes  prestadias. 
Nos  meatos  da  cútis  enAebidos 
Os  orvalhos,  do  céo  volátil  nitro. 
Dão  ânimos  aos  suecos,  e  embrandecem 
Os  rijos  rasos.  Com  lascivo  adejo 
De  mil  artes  Favonio  exerce  a  rama, 
E  do  adejo  efficaz,  do  affavel  brinco 
Vida,  por  leis  eguaes,  as  fibras  ganham,  :^ 
B  transpira  d'ali  o  humor  inútil. 

Como  quando  co'as  roscas  apertadas 
Se  estende  o  coração  d'um  lado,  e  d'outro, 
E  quando  para  baixo  emfim  se  alonga, 
E  vomita  a  corrente  rubicunda, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  445 


Ella,  abundosa^  e  rápida,  fervendo, 
Por  onde  encontra  estrada  se  derrama: 
Os  superiores,  oscillantes  vasos 
A  alluvião  sanguínea  acolhem,  lançam, 
E  os  menores  canaes  sanguíneo  arroio: 
Yae  por  membros,  e  membros  a  existência; 
Mas  tanto  que  na  vivida  carreira 
O  purpúreo  meandro  se  empobrece, 
A  fonte,  ao  coração  girando  volta. 
Onde  outra  vez  se  filtra,  e,  reforçado 
Pela  substancia,  do  alimento  expressa, 
As  coréas  vitaes  mais  livre  exerce. 

Assim  quando,  ora  aberta,  ora  apertada, 
A  arvore  na  recente  primavera 
Co'a  raiz  sorvedora  embebe  os  suecos, 
A  força  faz  caminho,  o  humor  se  eleva, 
E  tortuoso  as  vísceras  discorre: 
Rios  por  toda  a  parte  o  tronco  animam, 
E  ávidos  ramos,  e  sedentas  folhas; 
Mas  liquida  porção,  que  entrar  não  sabe 
As  fartas  fibras,  e  crescer  com  ellas, 
E  a  que,  luctando  em  vão,  sair  não  pode 
Por  entre  os  poros  da  rugosa  casca, 
Prompta  recua  por  canaes  diversos 
A  unir-se  na  raiz  a  novos  suecos. 

Estímulos  a  isto  o  sol  empresta, 
E  o  moto  principia,  ajuda,  augmenta. 
O  ar  se  escandece  nos  pulmões  arbóreos. 


446  OBRAS  DE  BOCAGE 


E  a  mais  amplos  espaços  vae  correndo. 
Opprimem-se  os  canaes,  o  humor  se  opprime, 
E  de  tal  arte  a  descrever  aprendem 
Não  interrupta,  orbicular  carreira. 

Sáe  de  xima  planta  purpura  rubente, 
Sangue  dimana,  parecido  ao  nosso, 
Para  os  que  usam  talhar  os  Cáspios  mares; 
Ou  rocem  do  Boristhenes  as  bocas, 
Ou  Ásia,  e  reinos  Cólchicos  demandem. 
Maravilhoso  objecto  ali  se  admira; 
O  bórames  assoma;  em  tronco  altivo 
Um  quadrúpede  está,  e  é  fructo  d'elle. 
O  crespo  véllo  lhe  resguarda  os  membros, 
Pontas  lhe  avultam  na  lanosa  fronte, 
E  olhos  em  seu  logar  lhe  não  fallecem. 
O  rude  habitador  d'aquelles  campos 
Animal  o  suppõe,  suppõe  que  dorme 
Em  quanto  é  dia,  e  vela  em  quanto  é  noute, 
E  pelas  hervas,  que  o  rodeam,  pasce; 
Que  tem  nas  carnes  da  ambrósia  o  gosto, 
E  que  vermelhos  suecos  o  humedecem, 
Suecos  de  tal  sabor,  que  os  preferira 
Borgonha  ao  pátrio,  deleitavel  néctar. 
Se  a  Natureza  permittido  houvesse 
Ao  raro  vegetal  d'ali  mover-se, 
Se,  balando,  implorar  podésse  auxilio 
Contra  o  lobo  voraz,  tu  presumiras 
Lanígero  cordeiro  estar-  no  tronco; 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  447 


E  a  teus  olhos  absortos  branquearam 
Gramineos  serros  com  rebanhos  d'elles. 

D 'esta  fonte,  a  meu  ver,  fabula  estranha 
Proveio  á  Grécia.  Pavorosos  dragos, 
Touros  de  brônzeo  pé,  n'outr'hora  espertos. 
Guardaram  véllos  taes;  com  este  dote 
Fugindo  pelas  ondas  foi  Medéa; 
Eson  se  renovou  com  estes  fructos, 
Celles  pela  efficaz  substancia  pôde 
O  ancião  revocar  viçosa  edade. 

Que  existem  plantas  que  animaes  simelham, 
Isto  não  prova  só.  A  stratiotes 
Vês,  que  em  pouso  nenhum  parar  costuma, 
Esta  planta  ama  o  Nilo,  e  de  alimento 
Nadando  se  provê.  A  um  leve  toque 
Foge  logo  a  mimosa,  ou  sensitiva 
Estremecendo  se  contráe,  se  esconde 
Entre  as  dobradas  folhas;  mas,  expulso 
Depois  o  medo,  ao  ar  se  expõe  de  novo. 

Ha  flor  (e  isto  assegura  auctor  não  leve) 
Amor  chamada:  nos  caminhos  nasce 
Do  anno,  e  do  sol;  nem  orgulhoso  Atlante, 
Nem  cerrado  arvoredo  ali  dão  sombras. 
Roxêa-lhe  o  pudor  na  linda  face; 
E  se  o  tostado,  o  péssimo  africano, 
Quando  ao  lume  phebêo  risonha  ondêa, 
Dolos  ousa  exprobrar-lhe,  e  acções  impuras, 
Voz  barbara,  e  terrivel  reforçando. 


448  OBRAS  DE  BOCAGE 


Súbito  a  virgem  mísera,  innocente 

Em  fúrias  se  desfaz,  lacera  as  tranças. 

E  pelos  ares  a  existência  pura 

Foge  indignada,  com  horror  do  opprobrio. 

Mas  porque  assombros  peregrinos  canto, 
Se  a  Gallia  creadora  off'rece  ao  vate 
Mais  subidos  portentos?  Eia,  oh  Musa, 
Aqui  o  ardor  se  apure,  aqui  releva. 
Que  soem  versos  teus,  quaes  entre  os  brindes 
Seus  versos  o  Garona  quer  que  soem; 
Ou  quaes,  depois  que  os  dons  possuem  d'elle, 
O  batavo,  o  britanno  urdir  costumam. 
Lá  onde  o  Herálcio  túmido  susurra, 
Léspero  assoma,  consagrado  a  Flora: 
A  deusa  da  fragrância  ali  primeiro 
Veste  as  roupas  louçãs  da  primavera, 
E  a  deusa  da  saúde,  a  Medicina 
Ali  conduz  os  seus;  ali  se  enleva 
No  semblante  immortal  da  irmã  deidade : 
E  Hebe  ali  colhe  do  Tonante  as  c'rôas. 
Se  de  Ímprobo  ginete  o  pé  ferrado 
Ousa  afrontar  os  veneráveis  cumes, 
Súbito  as  hervas  o  protervo  assaltam, 
Acodem  as  irmãs  com  prompto  auxilio: 
Não  cessam,  não  repousam,  ferve  a  lida, 
B  o  sacrílego  pé  manquêa  inerme. 

Auctor  nenhum,  porém,  me  persuade 
Que  nas  plantas  existe  alma,  sentido: 


POEMàS  DIDÁCTICOS  TEADUZIDOS  449 


Aos  homens  estes  ,dons  só  foram  dados. 
As  arvores,  arbustos,  flores,  hervas, 
São  macbinas  s(5mente,  e  a  contextura 
E  varia  era  muitas,  é  pasmosa  em  todas: 
N'ellas  juntou  sagaz  a  Natureza 
A  menores  canaes  canaes  maiores: 
Recto  caminho  elegem  parte  d'elles, 
E  parte  d'elles  por  veredas  curvas, 
Para  aqui,  para  ah,  com  mil  rodeios 
Se  dobram,  já  subindo,  e  já  baixando; 
Obliquamente  a  planta  correm  toda; 
E,  agitados  nos  vasos,  que  os  dirigem, 
Surgem  n'esie  logar  com  lento  sueco: 
Surgem  com  sueco  rápido  n'aquelle. 

As  forças  do  terreno,  e  céo  concorrem, 
E  a  riqueza  das  aguas  nutridoras; 
^  As  que  vem  desatadas  d'entre  nuvens 
Para  as  densas  abóbadas,  e  aquellas 
Que,  roubados  á  terra  os  saes  fecundos. 
Lá  no  centro,  apurando-se  nas  cavas. 
Em  fontes  sobem,  pelo  chão  serpêam. 

Rico  baixando  do  Abyssinio  cume 
Em  rápidas  voragens  volve  o  Nilo 
Do  torrado  colono  as  esperanças. 
Anda  a  sabor  do  rio  a  statriotes, 
E  co'a  vaga  raiz  o  vae  sorvendo: 
Cresce,  cria  depois  nas  pátrias  ondas 
A  prób,  e  em  toda  a  parte  hospede  é  grato, 


450  OBRAS  DE  BOCAGE 


As  causas  ignorando  a  Antiguidade, 
Do  moto  enganador  deixou  cegar-se, 
Presumiu-a  animal;  não  d'outra  sorte 
Vemos  dos  leitos  seus  sair  ás  vezes, 
E  pelos  campos  espraiar-se  os  lagos. 

Próximo  lá  de  Limerik  aos  muros, 
Das  subterrâneas  aguas  por  violência, 
Venham  dos  mares,  ou  das  serras  venham, 
Seu  senhor  desampara,  e  busca  as  ondas 
Ilha  assombrosa.  O  possessor  se  irrita, 
Segue  a  fugaz,  e  examinar  procura 
Porque  principio  foge;  mas  decide 
A  favor  d'ella  o  Dublineu  Senado. 

Tal  a  ilha  Conti,  tal  a  Delphina, 
Nos  relvosos  torrões,  ambos  insignes, 
A  ti,  oh  Saint-Omer,  fronteiras  nadam; 
E  a  vagabunda  irmã  taes  se  associam. 

E  não  ténue  trabalho  investigar-se 
Da  Mimosa  o  recôndito  artificio, 
Expôr-lhe,  descrever-lhe  a  natureza; 
Porém  tental-o  cumpre.  Influxo,  oh  Musas ! 
Nos  articulos  seus  é  cada  membro 
Mui  distincto  dos  mais.  Arte  divina 
Tanto  com  a  raiz  enlaça  o  tronco, 
Tanto  com  elle  os  ramos,  e  com  elles 
As  folhas  liga  tanto !  E  maravilha 
Ver-lhe  os  miúdos  nós  nas  moveis  fibras. 
Quando  n'hastoa  pendente  os  ramos  nutam, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  451 


Na  parte  em  que  ha  prisão,  que  ligue  a  planta, 

Estreitam-se  os  canaes,  e  pára  o  sueco; 

Nos  membros  todos  adormece  a  vida, 

Desmaia  a  folha,  sem  poder  comsigo. 

Mas  dentro  dos  compressos  tubosinhos 

O  ar  se  irrita  do  freio,  e  reforçado 

De  succoso  vigor,  sacode  estorvos. 

Torna  á  mimosa  o  doscaido  alento. 

Surge  outra  vez,  e  vencedora,  e  leda 

Os  astros  olha,  que  a  victoria  applaudem. 

Nem  da  getula  flor,  nem  te  allucinem 
Os  milagres  também,  patente  a  causa. 
Lá  onde  a  prumo  o  sol  dardeja  raios 
Sobre  o  negro  africano,  onde  arde  a  terra. 
Das  folhas  tardo  humor  se  desvanece, 
Corasigo  a  secca  flor  se  prende  a  custo: 
Eis  pelos  ares  férvidos,  que  abala, 
Rebomba,  qual  trovão,  clamor  terrível; 
Ao  Ímpeto  recuam  ramos,  folhas, 
De  novo  soa  o  grito  apenas  volvem: 
D'um  lado  se  combate,  e  d'outro  lado, 
Pugna  a  força  maior  co'a  menor  força. 
Té  que  das  tíbras  os  estames  se  abrem, 
E  cáe  desfeita  a  flor,  e  jaz  sem  vida. 

Do  enregelado,  nebuloso  Arcturo 
Teus  raios,  oh  Yulcano,  a^-sim  ruiram, 
Quando  o  soberbo  Inglejs  tragar  queria 
Co'as  brônzeas  fauces  os  Maclovios  muros. 


452  OBRAS  DE  BOCAGE 

O  pélago  tremeu,  tremeram  torres; 

A  cabeça  Nerêo  sumiu  no  fundo. 

Assim  quando  também  por  entre  as  brechas 

Da  atterrada-Nãmur  caminho  abriam 

As  francezaSj  magnânimas  j^hahingeSj 

Ao  súbito  clangor,  ao  som  guerreiro 

O  inimigo  enfiou,  caíram  rotos 

Vítreos  reparos  contra  o  sol,  e  o  vento: 

Emíim  cede  o  sicambro,  e  rende  as  armas. 

Vê  que  virtude  ao  Léspero  foi  dada: 
De  céos  contrários  duas  auras  sopram; 
Esta  demanda  o  Sul,  e  aquella  o  Norte.    ^ 
Estão  tortas  partículas  viradas 
Em  curvas  desiguaes,  umas  ao  Euro, 
Para  o  Zephyro  as  outras:  com  três  sulcos 
Assignaladas  são;  mostre-se  ;i  causa. 
Soberba  desdenhando  a  baixa  |-erra, 
Ouse  insânia  phebéa  ir  de  astro  em  astro. 
E  cada  estrella  um  sol,  e  brilha,  e  ferve ; 
Solta  eífiuvios,  que  os  vórtices  transpondo, 
Do  adverso  turbilhão  nos  pólos  entram; 
Os  ares  o  fulgor  discorre  manso. 
Mas  depois  que  por  globos  apoticados 
Lá  onde  é  mais  tardia  a  ethérea  massa 
Colhe  a  agua  os  ares,  e  se  esforça,  e  tenta 
Tocar  no  meio  o  sol,  cancada,  frouxa 
Pelos  rodeios  do  caminho  andado, 
Desmaia  pouco  a  pouco,  e  se  condensa 


POrMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  453 


Egual  ao  grude,  ou  liquidada  cera. 
Emtanto  os  globosinhos  pelos  claustros 
Triangulares,  admittindo  o  grude 
Tardamente  nos  rádios  esculptores, 
Até  três  com  três  sulcos  assignalam, 
E  o  sequaz  torcem  por  vereda  recta, 
E  formam  spiras,  caminhando.  Ainda 
Que  adejem  pelo  céo  contrários  ventos, 
Ama  o  discorde  irmão  o  irmão  discorde, 
E  para  o  mesmo  fim  concorrem  ambos. 

Elles,  quando  das  luzes  despojada 
Se  doe  a  madre  Terra,  e  fica  envolta 
No  espesso,  triste  véo,  depois  que  as  manchas 
São  fáceis  a  dobrar,  e  é  molle  a  crusta, 
Abrem  na  azul  esphera  eguaes  caminhos, 
E  ambos  eternamente  fugiriam 
Por  direitos  espr»çcs,  não  lhe  obstando 
O  crasso  nevoeiro,  ou  ar  mais  denso. 
Ou  se  aura  opposta  emfim  não  repellisse 
Aura  cançada.  Em  giro  pois  movidos 
Por  terra,  mar,  e  céos,  e  pólo  d'ella. 
Demandam  o  que  d^antes  demandaram; 
Depois  por  onde  foram  retrocedem. 
Invento  dos  francezes  se  imagina 
Aquelle  turbilhão,  e  regra  aos  nautas. 

Porém  quando  a  aura  em  giros  lassa  volve, 
Se  por  mais  livre  espaço  encontra  minas 
De  aço,  ou  magn-ete,  ou  planta  prenhe  d'este^ 


454  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ou  planta,  que  d'aquelfe  se  impregnasse, 
Cáe  logo  ali,  e  odêa  a  estrada  antiga. 

Folga,  blasona,  oh  Léspero:  estes  sopros 
Nomeada  te  dão.  Mal  que  ligeiros 
Do  ferro  pelas  minas  se  escoaram, 
Fogem  subitamente  lá  por  onde 
D'entrei  os  respiradouros  da  montanha 
Sobe  do  aço  o  vapor;  depois  nas  hervas 
Se  estendem,  se  derramam,  e  attraídos 
Dos  idóneos  meatos,  é  seu  gosto 
Vorticulos  formar,  quaes  os  grangêa 
Na  torre  em  longo  espaço  a  férrea  grimpa, 
Quaes  empresta  o  magnete  á  equórea  agulha. 

Eis  com  que  armas  o  Lcspero  combate. 
Apenas  o  profanam  pés  ferrados, 
Toda  a  força  os  vorticulos  apuram; 
O  aço  accommettem.  Sáe,  como  de  forja, 
O  ar  já  livre,  e  saltando  arrebatado 
A  parte  onde  se  prende  a  uoha  ao  ferro. 
Com  Ímpeto  violento  os  aços  bate, 
E  do  bruto  assombrado  exiráe,  sacode 
Os  duros  cravos,  as  pedestres  armas. 
Tanto  em  laço  pasmoso  estão  ligados 
Todos  os  corpos!  Lei  suprema  é  isto 
Da  mão,  que  os  astros,  e  que  as  terras  liga 
Em  nó  constante,  como  liga  as  flores. 

'Nas  mesmas,  que  signaes  o  sexo  indiquem 
Vou  mostrar,  e  talvez  te  agrade  o  lêl-o. 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  455 


Tem  regra  firme  em  tudo  a  Natureza, 
Género,  que  procrêa,  é  viril  sempre, 
E  sempre  feminino  o  que  concebe; 
Co'as  armas  genitaes  as' plantas  Folgam, 
E  as  omnigenag  flores  geram  todas. 

Mas  pétalos,  e  cálices  das  flores 
Não  têm  tal  dignidade.  Embora  o  vulgo 
Grite,  e  á  contraria  opinião  se  aferre. 
Tu,  freixo  altivo,  os  pétalos  desdenhas, 
A  palustre  tabúa  é  d'elles  falta; 
A  grama,  o  trigo,  a  avêa,  esse  reforço 
Do  guerreiro  animal,  carecem  d'elles. 
Tulipa,  e  selga  os  pétalos  odêam, 
D'elles  também  o  heleboro  prescinde. 
Pernicioso  á  razão,  sem  elles  vivem 
A  açucena  gentil,  a  ingrata  armoles, 
O  amarantho  immortal,  de  rubra  face. 
Que  tão  formoso  nos  jardins  campeã; 
E  estas  flores  não  só,  mas  outras  muitas, 
Numero,  que  ao  dos  astros  equivale. 

Se  esmiuçar  as  flores  te  recrêa, 
Ou  lhes  descubrirás  sós  os  estames 
No  órgão  procreador,  e  duplicado. 
Ou  só  o  ovário,  sotoposto  ás  tubas. 
As  placentas  imposto,  ou  todos  juntos. 
De  filamentos  é  provido  aquelle, 
E  provido  este  cânhamo  de  ovários: 
Unem-se  nos  jasmins,  e  althéa,  e  rosas. 


456  OBRAS  DE  BOCAGE 


Jamais  notei  que  as  estamineas  flores 
Abundassem  de  prole;  a  vida  exhalam 
Depois  que  Vénus  seus  desejos  c'rôa. 
Curvas  nos  tristes  lares,  murcham  logo. 
Ou  ludibries  do  vento,  o  vento  as  leva. 
Mas  o  ovário  viuvo  os  páes  exiinctos 
Cedo  renova;  o  género  revive, 
E  leda  surge  a  posthuma  progénie. 
Se,  todavia,  antes  do  tempo  idóneo. 
Antes  das  niípcias  mão  cruel  cercêa, 
Fecundo  castanheiro,  os  teus  estames, 
Que  em  ramos  apartados  sempre  nascem, 
Co'a  esperança  baldada  a  sócia  planta 
Mirra-se  de  tristeza,  estéril  morre. 
Se  o  vento  sobre  as  azas  lhe  não  guia 
Aura  fecunda  do  remoto  esposo. 

Esta  aura  ás  vezes  rege,  instrue  ás  vezes 
Por  mar  não  conhecido  errantes  nautas, 
B  porto,  já  propinquo,  lhes  promette. 
Os  hispanos  baixeis,  do  afoutas  velas. 
Muito  além,  muito  além  correr  ousavam 
Do  sol  cadente,  e  das  hercúleas  metas: 
Colombo  exhortador  lhes  dava  o  rumo. 
Galernas  virações  lhes  dava  Eólo, 
Eram  pharóes  as  nitidas  estrellas. 
Olham  com  pasmo  occidentaes  Nereidas 
Os  bosques,  invasores  do  alto  pego. 
Olham  com  pasmo  nas  soberbas  popas 


poeíías  DíDACttcos  traduzidos         457 


Dura  phalange  audaz,  votada  á  guerra, 

Flâmulas,  que  entre  os  Aquilos  floream, 

E  o  bronze,  que  arremessa  ao  longe  o  raio. 

Tinham  crescido,  mino^oado  haviam, 

E  deposto  o  fulgor  já  sette  luas; 

De  Ceres,  de  Lyêo  se  aniquilaram 

As  dadivas  emfim:  debalde  observa 

Attento  Palinuro  a  agulha,  os  astros, 

O  céo  por  toda  a  parte,  o  mar  por  toda. 

Braveja  o  marinhei ro^  arde  o  soldado. 

Ata  grilhão  nefando  ao  mastro  o  chefe, 

Que,  de  Minerva  cheio :  «  Eu  sinto  flores, 

Os  remos  apressae  (lhes  diz  seguro). 

Terra  vereis  em  breve:»  Os  lenhos  voam. 

Eis  montanhas  ao  longe,  eis  surgem  campos, 

E  apenas  os  baixeis  fundeam  ledos, 

Flora  cVôas  lhes  dá,  Flora  atavia 

O  seu  Colombo  com  seus  dons  brilhantes. 

A  Florida,  que  extráe  da  deusa  o  nome, 

D'ali  nos  manda  o  sasafrás  cheiroso, 

E  ás  vezes  Cytheréa  ali  prepara 

Liquor,  a  que  pospõe  festins  de  Jove. 

Mas  ao  deixado  a^^sumpto  as  Musas  volvam. 

Ou  é  feminea  a  flor,  ou  viril  toda, 
Ou  de  género  mixto.  Se  apparece 
Alguma  nos  jardins  lustrosa,  e  bella, 
De  véo  fragrante,  e  pétalos  viçosos. 
Que  não  possa  entre  as  fêmeas  numerar-se. 


458  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ou  entre  as  de  viril  poder,  ou  entre 
Hermaphroditas,  esta  flor  nonieam 
Da  spadonica  espécie;  é  triste  monstro, 
Desvario  infeliz  da  natureza. 
Eis  da  malva,  e  das  rosas  o  accidente; 
Os  pé  talos  traidores  lhe  arrebatam 
Toda  a  substancia;  estames  bastardeam, 
E  a  sua  antiga  forma  elles  esquecem. 
De  vital  néctar  o  embrião  fraudado, 
Languece,  morre,  e  vem  depois  o  aborto. 

Não  basta  o  sexo  conhecer  das  flores; 
Por  diíFerentes  signaes  se  classifiquem. 
Têm  estas,  não  têm  cálices  aquellas; 
Unjas  não  curam  de  habitar  seus  lares, 
De  estremdo  lavor;  Zéphyro  as  gosa. 
Outras  brilhantes  de  ambrósia  e  fartas. 
Na  estancia  natural  ufanas  vivem, 
Na  estancia,  que  em  candor  transcende  a  neve, 
Que  na  viveza  a  purpura  transcende, 
Mandando  ao  iris,  seu  rival  nas  cores. 
Entre  as  sombrias  nuvens  esconder-se. 

Ha  género,  que  d'este  assas  discorda 
Na  condição,  que  ao  ar  não  se  afoutara 
A  erguer  a  fronte,  receando  a  vida. 
Se  eterna  providencia,  mãe  de  tudo, 
Dous  engenhosos  tectos  lhe  não  desse. 
Os  pétalos,  os  cálices,  guarida 
Contra  extremo  calor,  e  frio  extremo, 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  459 


Vem  d'esta  classe  numerosa  turba; 
Mas  a  flor  da  tristeza,  a  passiflora 
A  todas  sobrepuja.  Eu  sei  tua  alma; 
Tal  flor,  querido  irmão,  te  enternecera. 
Que  absorto  a  vi !  No  meio  uma  columna 
Está  não  sei  que  horror  ameaçando! 
Insta  golpe  cruel  de  férreo  malhoj 
Crôa  como  de  espinhos  jaz  tecida 
Em  logar  inferior,  e  de  três  cores 
O  matiz  lastimoso  oíF'rece  á  vista : 
As  do  coalhado  sangue,  o  sangue  fresco, 
E  a  que  da  morte  a  visinhança  agoura. 
Súbito  aos  olhos  meus  se  representa 
Victima  um  Deus  pender  do  lenho  infame, 
Lá  nas  impias,  sacrílegas  montanhas 
Da  blasphema  Sion,  de  um  só  por  culpa, 
E  por  delirio  só  de  Adão  rebelde. 

Os  pétalos  indicam  varias  classes; 
Uma  veste-se  de  um,  de  muitos  outra. 
Vê  da  boheravia  a  face,  olha  a  da  malva; 
Sempre  o  mesmo  logar,  não  cabe  a  todos;  ' 
Na  margem  superior  da  flor  inclusa 
Só  metade  de  alí^uns  abraça  os  ares: 
Tal  forma  apraz  á  thlápsia,  ás  campainhas; 
^E  outras  (género  informe)  outras  em  parte 
Desdizem  mais  de  flor,  e  em  parte  menos, 
Alongados  cercando  estames,  tubas. 
D^esfarte  a  salva  aos  médicos,  d'est'arte 


4(30  OBRAS  DE  BOCAGE 


Ás  madrastras  o  acónito  aproveita. 

Espécies  ha,  porém,  que  em  sorle  houveram 

Leito  brilhante  no  aprazivel  centro, 

E  em  cuja  parte  posterior  se  encostam 

Os  tubos^  as  antherns.  Tal  florece 

Ledo  em  palustre  prado  o  roxo  lirio, 

Efficaz  á  sedenta  hydropesia, 

As  tosses  arquejantes:  d'estes  males 

Vi  três,  e  a  todos  três  foi  elle  a  cura. 

Meu  verso  expôz  tégora  as  flores  simples. 
Por  ordf^m  as  compostas  se  resumam. 
Se  miil  flores  mil  cálices  possuem, 
Ha  mil  no  mesmo  cálice  envolvidas. 
Oasta,  que  breves  tubos  entretecem, 
Em  forma  orbicular  surge,  á  maneira 
Dos  espinhosos,  dos  hortenses  cardos; 
Diz-se  chicórea  biformada  espécie. 
Certa  flor  ténues  tubos  apresenta 
Em  loo;ar  inferior,  mas  tem  nor  cima 
Uma  espécie  de  lingua  breve,  aguda, 
Ou  espalmada^  ou  áspera  de  sulcos; 
Esta  na  flor  assoma,  ou  recta,  ou  curva, 
E  ora  ameaça  com  pungente  bico, 
Ora  profundamente  está  fendida. 
Mas  estas  classes  duas  o  Austro  abraça, 
E  o  bem-mequer,  ás  virgens  consagrado, 
E  a  tua,  oh  Phebo,  immarcessivel  c'rôa. 

Sobre  este  objecto  em  opportuno  instante 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  461 

Mostrava  o  preceptor  qual  estriictura 
Aos  caliees  apraz,  qual  ás  placentas 
E  forma  grata,  e  de  que  chão  costumam 
Folhas,  tallo,  niizes  namorar-se: 
E  iuda  mil  cousas,  que  na  voz  apenas 
Do  divino  Marão  caber  poderam. 
Por  isso  de  Fafron  alta  amisade 
Houve  gran  tempo,  de  Fagon,  que  tanto 
Aos  médicos  dos  reis  sobresaía, 
Quanto  co'a  f?*onte  laureada,  excelsa 
Se  avantaja  Luiz  aos  reis  do  mundo. 
Com  seus  votos  unanimes,  e  ardentes 
Clara  Academia  a  si  te  uniu  por  isso, 
E  teu  nome,  oh  Vaillant,  soou  no  globo. 

Que  espectáculo  vi  nos  flóreos  campos ! 
De  com  partes  da  terra  ali  correram 
Filhos  do  nume,  auctor  da  medicina: 
Os  que  bebem  do  Tánais,  os  que  bebem 
Do  Danúbio,  do  Támisis,  do  Tejo, 
Os  da  fria  Suécia,  e  culta  Ausonia, 
Como  aquelles,  que  Erigena  frequentam, 
Aptos  ás  guerras,  ás  sciencias  aptos, 
Promptos  á  morte  pelo'  altar,  e  o  tlirono. 
Ante  a  primeira  turba,  a  Phebo  acceitos, 
Guarida  contra  a  morte,  e  dos  monarchas 
Derradeira  esperança,  egrégios  moços, 
Com  que  a  fecunda  GallLi  lioníára  o  mundo, 
Nas  dextras  os  seus  lirios  tremulavam. 


462  OBRAS  DE  BOCAGE 


Concorreram  também  quantos  na  Grécia 

Arvoram  teus  pendões,  oh  Medicinaj 

E  os  que  o  Peru  mandou  por  vastas  ondas, 

E  arménios,  vindos  lá  da  plaga  Eôa. 

Mas  nenhum  bem  perfeito  ha  sobre  a  terra. 

Eis  chusma  usada  a  cercear  nas  faces 

Pello  viril  com  mercenário  gume, 

Vácuos  os  templos  bacchanaes  deixando, 

Caminha  apoz  os  mais;  porém  diversa 

E  da  nossa  vontade  a  mente  sua. 

Vivo  ardor  de  saber  ali  nos  guia, 

E  elles,  ou  soltam  desregrados  cantos, 

Ou  co'a  gralhada  vã  nos  ensurdecem. 

Que  opposta  multidão!  Não  d'outra  sorte 
Voam  d'aqui,  d'ali  zangãos,  e  abelhas 
Emtorno  ao  rei,  mal  que  na  quadra  amena 
Susurram  o  signal,  e  o  chefe  alado 
De  Flora  nos  festins  vae  regalar-se. 
Unem-se  as  turbas,  o  logar  se  aponta, 
Corre-se  aos  campos.  Co'uma  flor  nos  dedos, 
O  nosso  guia  então  desprende  as  vozes ; 
Das  hervas  mostra  os  géneros,  e  mostra 
Virtudes  salutiferas,  que  encerram. 
Da  boca  de  Sherardo  attentos  pendem 
Olhos,  e  ouvidos;  a  carreira  esquece 
Para  escutal-o  o  Séq^i-nin  :  pasmadas 
Vós,  Dryades,  estii  Diana. 

Elle  ensinava  comu  m    ;.;  o.igom 


POEMAS  DIDÁCTICOS  TRADUZIDOS  463 


Do  tenro  mundo  seu  Auctor  fizera 

Epitomes  das  plantas  as  sementes: 

A  sua  luz  é  Deus,  Deus  é  lei  sua. 

Concebe  a  terra  no  virgíneo  seio 

O  gérmen  amoroso,  os  fruetos  crescem, 

E  em  aprazado  tempo  ali  rebenta 

Uma  flor,  aqui  outra.  Alegre,  aíFavel 

Cynthia  esclarece  os  hospedes  recentes 

Com  fulgor  avivado;  o  sol  mais  puro 

Pelo  attonito  céo  lhes  presta  o  lume. 

A  mão  do  Eterno  desparzira  os  germes, 

Mas  outros  mui  subtis  pôz  dentro  d^elles 

Que  dos  olhos  mortaes  á  luz  se  negam ; 

Germes  tão  numerosos  como  as  plantas, 

Que  Dóris,  e  que  as  Náyades  nas  aguas, 

As  Dryades  nos  bosques,  e  as  Napéas, 

As  fragueiras  Oreades  nos  montes, 

Pomona  em  hortos,  pelos  campos  Ceres, 

Tem  creado  até'gora,  e  todas  quantas 

Hão  de  crear,  té  dissolver-se  o  mundo. 

Nenhuma  existe,  que  não  preste  á  vida, 

A  todas  o  gran  Numen  bemfazejo 

Deu  salutar  virtude:  ellas  expulsam 

A  fêa,  assustadora  enfermidade; 

Com  ellas  os  banquetes  se  ataviam: 

Um  Deus  em  quantas  vês,  um  Deus  conheces. 

Mas  porque,  desmanchando  amenas  c'rôas. 

Flora,  as  Nymphas  dão  ais?  Vaillantl . . .  morreste. 


464  OBEAÍS  DE  BOCAGE 


O  SOU  Édipo  ás  flores  foi  roubado. 
Ai!  Em  tão  breve  tempo!  Ái!  Eu  já'gora, 
Eu  nuncíi  mais  discorrerei  comti<^o, 
Meu  caro  preceptor,  bordados  campos; 
Não  me  ha  de  alumiar  tua  doctrina, 
Não,  rico  de  despojos  das  florestas, 
A^olverei  quando  os  véos  desdobre  a  Noute. 
Oh  dor!  Oh  desventura!  Imagiuava 
Que  das  flores  a  deusa,  a  mãe  das  flores 
De  ti  colhesse,  incólume,  robusto. 
Luz,  e  gloria  immortal;  que  a  Medicina 
Segura  desse  pelo  mundo  inteiro 
Passos  audazes,  sendo  tu  seu  guia, 
E  que  a  fuga  da  rápida  existência 
Grau  tempo,  em  teu  favor,  se  retardasse. 

Elle,  expirando,  elle,  nos  céos  absorto, 
A  ti,  que  amava  mais  que  as  outras  flores, 
A  ti,  lustral  emblema,  e  triste  imagem 
D'aquHlla  morte  porque  todos  vivem, 
A  ti,  oh  passiflora,  inda  sustinha 
Não  já  languida  mão,  buscavam-te  inda 
A  boca  desmaiada,  a  vista  errante; 
De  lagrimas  piedosas  te  cubria, 
E  a  alma  exhalou,  regando-te  com  ellas. 

O  plectro  aqui  me  cáe  da  mão  convulsa. 
Aqui  seu  tei-mo  a  epistola  me  roga. 
Cousas,  prezado  irmão,  que  rcmanecem, 
Serão  com  brando  verso  em  outra  expostas. 


NOTAS 


CONSORCIO  DAS  FLORES 


(Pag,  437,  vers.  14) 

O  prestante  Vaillant 

Sebastião  Vaillant,  celebro  botânico.  (Natural  de  Vi- 
gni,  em  França,  nascido  em  1669,  e  fallecido  em  22  de 
Maio  de  1722.  Escreveu  varias  obras,  e  entre  ellas  algu- 
mas de  grande  merecimento.) 

(Pag.  488,  vers.  4) 

Penetrei  o  que  Rays  não  penetraram. 

João  Ray,  illustre  naturalisia.  (Nascido  em  1628,  no 
condado  de  Essex,  em  Inglaterra,  e  fallecido  a  17  de  Ja- 
neiro de  1706.  E'  auctor  de  uma  Historia  das  Plantas, 
impressa  em  1686,  3  volumes  em  folio,  e  de  muitas  ou- 
tras obras.) 

(Ibid.,  vers.  õ) 

E  ignotos  aos  Malpighis  soube  arcanos.  » 

Marcello  Malpighi,  medico  insigne.  (Nasceu  em  Cie- 
valmore,  nos  arredores  de  Bolonha,  em  1628,  e  morreu 
30 


4Í6  OBRAS  DE  BOCAGE 


em  Eoma  no  palácio  Quirinal  em  29  de  Novembro  de  1694. 
As  suas  obra8  foram  colligidas  e  impressas  em  Londres, 
1686,  2  vol.  em  folio,  e  varias  veze»  reimpressas.) 


(Pag.  446^  vers.  1) 

O  borames  assoma 

Agnus  Scgthicus,  o  cordeiro  da  Scythia. 

(Pag,  459,  vers.  2) 
Mas  a  flor  da  tristeza,  a  pas^flora,  etc. 
Fios  passionisj  o  martyrio. 

(Pag.  462,  vers.  24) 
Da  boca  de  Sherardo,  attentos  pendem,  etc. 
Guilherme  Sherardo,  famoso  botânico. 


N.  I^.  -  -  No  volume  v  das  Obras  de  Bocage,  onde  se  lê 
Fasfoí^,  devia  escrever-se  Metamorphoses. 


ÍNDICE 


PlG. 

Os  Jardins  ou  Arte  de  aformosear  as  Paizagens.  . .  5 

Prologo  do  traductor T 7 

Prologo  do  auctor 9 

Canto  I 13 

»      II 35 

))      III 55 

»      IV. 76 

Notas 103 

As  plantas 113 

Prologo  do  traductor 115 

Prefacção  do  auctor 119 

Canto  1 123 

,)      11 142 

»      III 162 

»      IV 181 

Nomenclatura  das  plantas  mencionadas  n*este  poe- 
ma  ' 199 

Nomenclatura  dos  animaes,  aves,  etc 207 

A  Agricultura 209 

Canto  i  —  Das  searas 211 

»      II  — Das  vinhas 242 

))      III  —  Das  arvores 268 

»      IV  —  Dos  prados ^ 298 

»      V  —  Dos  gados 328 

»      VI  —  Das  aves 358 

Notas 387 

O  Consorcio  das  flores 429 

Dedicatória  do  traductor 431 

Advertência 433 


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