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Full text of "O caso da Northern nos devidos eixos; verdades núas e crúas que ninguem disse mas que foram ditas por mim"

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Caso da Northern 



nos devidos eixos 



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VERDADES NUAS. E CRUAS 
QUE NINGUÉM DISSE MAS 
QUE FORAM DITAS POR MIM 










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S. PAULO 
1921 





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Artigos Publicados 

N'"0 ESTADO DE S. PAULO" 

EM SETEMBRO DE 1921 















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A lavoura da opulenta zona da Araraquara foi duramente 
flagellada pela administração nefasta ^da ^'Northern Railroad". 
E como, a propósito da desapropriação da estrada, os advo- 
gados de Deleuze têm intrujado o publico com um amontoa- 
do de invencionices, na defesa da causa immoral de um 
aventureiro, contra os mais vitaes interesses da população 
e dos fazendeiros servidos por aquella via-ferrea, resolvemos 
vir a publico, para restabelecer, em toda a sua nudez, a ver- 
dade dos factos, tão adulterados pela alcatéa dos explora- 
dores. 

E* necessário que essa verdade seja dita sem rodeios, para 
que S. Paulo e todo o paiz fiquem inteirados delia e possam 
ajuizar de que lado está a razão: si da lavoura, tão amar- 
gurada nos dias tenebrosos da administração da "Northern", 
ou si de uma companhia improvisada, da noite para o dia, 
sobre a massa fallida da Araraquara. 

Convém, antes de tudo, que o publico fique sabendo, em 
linhas geraes, a origem da "Northern Railroad", tornando-se 
de mister, por isso, um breve resumo dos antecedentes re- 
nK)tos desse tão falado caso da desapropriação. 

A Estrada de Ferro Araraquara foi construída pela cora- 
josa iniciativa do benemérito paulista Carlos Baptista de 
Magalhães, coadjuvado por valiosos elementos daquella zona. 

Mais tarde entraram para a empresa o engenheiro João 
Duarte Júnior e o sr. Álvaro de Menezes, que procuraram 



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.--6 — 



imprimir maior impulso á ferrovia, s^endo que este ultimo 
tratou, desde logo, de organisar um syndicato para adquirir 
as acções da respectiva sociedade anonyma. 

O sr. Álvaro de Menezes, depois de envolver a companhia 
numa série de negócios escusos, compromettendo nelles im- 
portantes capitalistas desta praça, arrastou-a para o caminho 
da fallencia, que, de facto, foi decretada a requerimento do 
sr. Francisco de Sampaio Moreira, grande credor da Arara- 
quára. No processo da fallencia, foram regularmente apura- 
das graves responsabilidades do sr. Álvaro de Menezes, 
constantes do relatório dos syndicos, publicado pela im- 
prensa. Contra elle foi movido o competente processo crime. 
E, para fugir á cadeia, o sr. Álvaro de Menezes ausentou-se 
para os Estados Unidos, onde <se acha até hoje. 

Um dos primeiros actos desse cavalheiro de industria, que 
logrou escapar á punição, refugiando-se na America do Nor- 
te, foi levantar na Allemanha um empréstimo em debentu- 
res, para a Estrada de Ferro Araraquara, na importância de 
um milhão e duzentas mil libras, por intermédio dos srs, L. 
Behrens & Sohne, que são os banqueiros mais importantes 
de Hamburgo, alli considerados como verdadeiros Rothschilcjs. 
Apesar da ferrovia funccionar como sociedade anonyma, com 
o nome de "Estrada de Ferro Araraquara", o empréstimo 
foi lançado, na Europa, em nome da "Companhia Norte de 
S. Paulo", sendo os titulos emittidos nessa conformidade. 

O mais curioso, porém, é que na Allemanha não se en- 
contrava nenhum desses titulos: todos elles foram lançados 
em Pariz e Bruxellas e subscriptos por pequenos capitalistas 
e modestos proprietários. 

A fallencia da Araraquara foi decretada antes da guerra, 
em fins de 1913 e princípios de 1914. E desde logo os cre- 
dores brasileiros, que eram todos chirographarios, tiveram 
de abrir luta tremenda contra os credores debenturistas. 

Entre outras coisas, allegavam os credores brasileiros que 
a emissão do empréstimo era nuUa, por ter sido feita sem 



■* 



— 7 — 

• 

autori sacão regular da assenibléa geral da sociedade emisso- 
ra, tanto que a acta respectiva continha varias assignaturas 
falsificadas pelo sr. Álvaro de Menezeá, — o que foi effecti- 
vãmente verificado por exame pericial. 

Mesmo, porém, que a emissão não fosse nulla, em se tra- 
tando de debentures (titulos ao portador), mister se fazia 
que os respectivas titulares se habilitassem exhibindo as 
suas debentures, de accôrdo com a lei brasileira. 

Essa apresentação, entretanto, se tornava impossível, por 
se acharem os titulos muito espalhados em mãos de diversas 
pessoas no extrangeiro, sem tempo, portanto, de se habilita- 
rem nâ fallencia. 

Os banqueiros L. Behrens & Sohne, invocando uma clau- 
sula do seu contrato de emissão e allegundo a qualidade de 
*'trustees", administradores e fiduciários do empréstimo, 
pretendiam que a habilitação do credito integral, por deben- 
tures, fosse feita em seu nome exclusivamente, pois só elles 
tinham qualidade jurídica para se entender com os portado- 
res das debentures. 

A esse argumento revidavam os credores brasileiros, mos- 
trando o seu nenhum fundamento em face da lei nacional, 
que rege a emissão de empréstimos sobre debentures. 
Além de tudo, nada tinham que vêr com um contrato entre 
Behrens e os portadores de debentures — contrato que só 
podia regular a posição das partes contratantes e nunca in- 
fluir na habilitação de créditos perante a justiça brasileira. 

Não existia ainda o estado de guerra entre a França e a 
Allemanha e, por isso, o governo francez não teve duvida 
em amparar, com o seu prestigio e influencia, a representa- 
ção de todos os credores francezes pelos banqueiros allemães, 
como meio mais pratico de reunir, nas mãos de um só repre- 
sentante, todos os direitos e interesses da coUectividade dos 
credores debenturistas. 

A these sustentada pelos banqueiros allemães foi vence- 
dora, por accordam unanime de 13 de Julho de 1914, da 



8 



nossa Camará Criminal e de Aggravos. E, em consequência, 
o credito integral, representativo da emissão por debentures, 
foi habilitado e incluido no quadro dos credores da fallencia 
no nome de L. Behrens & Sohne, que passaram assim a fi- 
gurar como credores hypothecaríos, com garantia de todos 
os bens da fallida. 

Entretanto, menos de um mez depois, rompia a guerra 
entre a França e a Allemanha. 



II 



Vamos ver o que aconteceu para os credores francezes, na 
fallencia da Araraquara, com o rompimento das hostilidades 
entre a França e a Alíemanha. 

Não suppunham certamente que a guerra estivesse tão 
próxima, quando confiaram imprudentemente o patro- 
cinio dos seus direitos aos banqueiros allemães. E, mais cedo 
do que esperavam, começaram a pagar caro a precipitação 
com que se houveram na defesa das suas debentures, pois 
ficaram na contingência tremenda de ver todos os seus direitos 
e interesses amparados pelos banqueiros do paiz inimigo — 
L. Behrens & Sohne — justamente os mesmos banqueiros 
que acabavam de ser nomeados pelo governo imperial seus 
delegados especiaes na fiscalisação e administração dos es- 
tabelecimentos de credito nas regiões invadidas pela Alle- 
manha . 

Quizeram então os credores francezes voltar atraz da te- 
meridade commettida, mas, infelizmente para elles, L. 
Behrens & Sohne já estavam munidos de uma sentença 
transitada em julgado e que, pelo seu caracter irretractavel, 
tinha que produzir todos os seus effeitos jurídicos. 

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Surge então em scena, depois de um periodo agitado de 
múltiplas tentativas para a conciliação dos magnos inter-esses 
•em jogo, a figura sinistra de Paul Deleuze, a quem estava 
reservado i:>epresentar o máximo papel na mais notável "es- 



— 10 — 

croquerie" de que ha memoria nos registros criminaes de 
todo o mundo. 

Paul Deleuze vegetava então num pequeno escriptorio em 
Pariz, numa viella escusa, nas immediações da rua Tronchet. 
E ahi, logo que percebera, com a sua larga visão de milhafre, 
que havia em perspectiva uma opulenta presa ao alcance das 
suas garras e do seu bico, tratou de organizar um centro de 
resistência dos debenturistas francezes, afim de pleitearem 
uma representação directa na fallencia da Araraquara, pro- 
curando destituir, ou, pelo menos, nullificar a acção dos ban- 
queiros allemães. 

« 

Como agia Paul Deleuze para colher os incautos na rede 
da sua trama? 

Nada mais simples : conhecendo como ninguém o "métíer" 
de intrujar os ingénuos e surprehender a boa-fé alheia, 
começou a espalhar por Pariz e Bruxellas um alluvião de 
circulares mirabolantes, nas quaes expunha aos debenturis- 
tas francezes e belgas os perigos que corriam os seus direitos, 
explicando-lhes, ao mesmo tempo, os menores incidentes 
occorridos na fallencia, de que era constantemente infor- 
mado por emissários que daqui lhe enviavam todos os escla- 
recimentos e pormenores do processo. 

O chamariz foi posto de tal forma em circulação, na re- 
tumbancia de uma reclame jamais vista na chronica da intru- 
jice, que o pequeno e modesto escriptorio montado por 
Deleuze começou a ser desde logo procurado pelos interes- 
sados, aos quaes elle fazia assignar um pequeno boletim ou 
memorandum, filiando-os á Liga de Resistência, cujo projecto 

esboçara. 

. • 

Mas é bem de ver que nunca passou pelo espirito de De- 
leuze a defesa legitima dos interesses dos seus co-nacionaes. 

Lobrigou elle, de longe, um excellente negocio. E, consta- 
tando a gravidade do momento e a difficuldade da represen- 
tação dos interessados num paiz longínquo como o Brasil, 
premeditou um grande golpe, que mais tarde veiu a realisar, 



11 



instruído e bem informado como estava do campo vasto que 
representava para sua exploração a credulidade immensa dos 
seus patricios nessa ordem de negócios, — conhecimentos 
que elle certamente adquirira em outras liquidações mais ou 
menos parecidas e em que figurara de protagonista em 
diversos paizes americanos. 

Munido de um grande numero de adhesoes, muitas das 
quaes até com assignaturas adulteradas ou falsificadas, che- 
gou o momento de Deleuze pôr em pratica a sua obra de 
"chantage*' contra ,L. Behrens & Sohne: — fez-lhes sentir 
que, ou elles concordariam com umá representação dos inte- 
resses dos debenturistas em que Deleuze interviesse, ou este 
(que, usando de um "bluff" odioso, já se intitulava represen- 
tante da maioria dos debenturistas), trataria de tornar effe- 
ctiva a responsabilidade, tanto daquelles banqueiros como 
dos bancos que os auxiliaram no lançamento do empréstimo 
em Pariz e Bruxellas, visto que uns e outros eram civilmente 
responsáveis pela integralidade da emissão, uma vez que a 
mesma fora feita com manifestas fraudes criminàes : ^a acta 
da assembléa que a autorisára era falsa, como falsos e fan- 
tasticos eram os balanços e os documentos que acompanha- 
ram os prospectos da emissão. 

Apavorados os banqueiros francezes, em cujo numero se 
achavam casas importantes e que coadjuvaram L. Behrens 
& Sohne no lançamento do empréstimo em Pariz, trataram 
de convencer, por interpostas pessoas, o^ banqueiros allemães 
da necessidade de um accôrdo com Deleuze. E o grande 
trampolineiro, vendo frutificar assim o seu plano mais de- 
pressa talvez do que esperava, deu logo os necessários passos, 
por intermédio de uns banqueiros bastante conhecidos na 
Suissa, para preparar um encontro com L. Behrens & Sohne ou 
representantes destes num território neutro, isto é, num paiz 
extfanho á guerra. 

Foi escolhida para essie fim a cidade de Genebra, na Suissa. 
E lá surgiu Deleuze, munido apenas dos boletins de adhesão 



12 — 



dos debenturistas franoezes, dos quaes não chegou a receber 
sequer uma procuração em forma legal. 

Com os boletins legítimos e com os que falsificara. De- 
leuze lançou sobre L. Behrens & Sohne o "bluff" que havia 
premeditado, virando então inteiramente o jogo que annun- 
ciara: fez crer a L. Behrens & Sohne a necessidade de en- 
trarem em accôrdo com elle, porquanto, representando estes, 
de um lado, e de outro, a maioria dos debenturistas france- 
zes, era Deleuze o único homem capaz, segundo elle af firma- 
va, de, accommodando a situação da fallencia, obter para os 
banqueiros allemães a desoneração de qualquer responsabili- 
dade ulterior, pela emissão de um empréstimo fundada em 
documentos falsos, — facto que elle dizia bem saber ter sido 
praticado pelos mesmos banqueiros na maior boa fé. 

O plano surtiu o effeito desejado. Mas uma difficuldade 
surgiu: como poderia Deleuze, na qualidade de francez, re- 
ceber procuração de uma casa alleman em plena effervescen- 
cia da guerra? Como poderia Deleuze explicar-se com os 
debenturistas francezes, — cujas assignaturas nos boletins 
de adhesão obtivera, allegando principalmente que ia agir 
contra os banqueiros allemães, — quando surgisse diante 
delles com a procuração exactamente dos mesmos banquei- 
ros allemães? 

Mas Deleuze não era homem para se apertar por tão 
pouco, mesmo porque não era marinheiro de primeira via- 
gem nessas aventuras. No artigo seguinte diremos como elle 
resolveu o caso, não dando a perceber aos debenturistas fran- 
cezes que trabalhava para os banqueiros allemães, e não 
dando a perceber aos banqueiros allemães que trabalhava 
para os debenturistas francezes... Porque, no final de tudo, 
elle só trabalhava para si próprio. 



T- 



III 



Para um "escroc" da força de Paul Deleuze, cavalheiro de 
industria muito conhecido como tal nos centros de suas fal- 
catruas, notadamente em Pariz e Nova York, não havia diffi- 
culdade alguma para se sahir da situação melindrosa em que 
o coUocaram os acontecimentos, tendo, de um lado, os deben- 
turistas francezes e, de outro, os inimigos do seií paiz, os já 
referidos banqueiros allemães L. Behrens & Sohne. 

E' assim que, lendo um jornal de Pariz em que se faziam 
annuncios de procura de empregos, dirigiu-se a um **bureau 
de placement", onde tratou, na certeza de que viria como seu 
empregado, um certo Fritz Weber, que, na maior ignorância 
deste mundo, embarcou para o Brasil na convicção de que o 
fazia como simples secretario ou empregado de Deleuze, 
mas em cujo nome este trazia a procuração outorgada por 
L. Behrens & Sohne, para epilogo da formidável tramóia que 
vinha urdindo, para consummal-a em S. Paulo. 

Fritz Weber era suisso e nenhum impedimento teve em 
sua viagem, aqui chegando no mesmo vapor em que chegara 
Deleuze. 

Lembramo-nos muito bem do typo de um e de outro. 
Vimol-os juntos, na rua Quinze, dias após o desembarque. 
Mas foi sem duvida a figura de Deleuze que mais nos im- 
pressionou, não tanto pelo rosto ou. pela estatura, como pelo 
vestuário exótico e a algaravia com que trocava idéas com 



— 14 — 

o seu "alter ego". Trajava um terno cinzento de xadrez (oh 1 
o destino!), num corte elegante de "gentleman" "yankee". 
Mas, em contraste com a "toilette" e o apuro de suas linhas, 
falava um detestável inglez de embarcadiço, a lembrar a 
lingua arrevezada dos marinheiros que se intoxicam de "gin" 
nas betesgas de Southampton ou Liverpool. 

E dizer que naquella figura de elegante, de olhar vivo e 
arregalado, a fitar curioso todos os transeuntes, estava o arca- 
bouço do maior malandro que o mundo já produziu, o "águia" 
de voos mais largos e audaciosos de que reza a chronica 
mundial de todos os tempos! 

Pois estava, conforme verá o leitor que vier acompanhando 
esta fidelissima exposição dos factos. 

Quanto ao seu companheiro, Fritz Weber, convém assigna- 
lar, desde logo, que foi causa das scenas mais hilariantes, 
porque estava certo de que havia sido ajustado para simples 
"valet de chambre" ou, quando muito, mero secretario, e 
não cuidara por iâso de se vestir melhor. Mas teve de refazer 
completamente a sua figura e a sua "toilette" para appare- 
cer na reunião dos credores da fallencia da Araraquara, 
como procurador bastante dos mais abastados e prestigiosos 
banqueiros da Allemanha. 

Devemos, porém, advertir que estes ignoravam absoluta- 
mente, como já o revelaram em publicações feitas em jor- 
naes de S. Paulo, toda a urdidura criminosa em que Deleuze 
os envolvera e toda a extensão do mal que a si próprios iam 
causar com um mandado levianamente outorgado a Fritz 
Weber. Mas se o fizeram, foi porque Deleuze lh'o tinha 
apresentado como seu sócio ou companheiro de administra- 
ção de um banco fantástico que, dias antes de vir para o 
Brasil, elle organisára em Pariz. Organisára-o, porém, ape- 
nas de letreiro e reclames. 

Como dissemos, L. Behrens & Sohne foram ílassificados 
como credores hypothecarios na fallencia da Araraquara. O 
seu credito montava então, com a depressão cambiaria da 



— 15 



época, em perto de vinte mil contos, sendo que o total dos 
créditos habilitados na fallenda não orçava por trinta mil, 
de modo que representavam elles mais de dois terços do passi- 
vo integral. 

Ora, nos termos da nossa lei das fallencias, podiam elles, 
que tinham a maioria dos liquidatários e representavam mais 
de dois terços dos créditos, determinar a forma de liquidação 
que entendessem, sem que pudessem ser obstados de qual- 
quer modo, já pelos credores brasileiros, já por qualquer 
outra intervenção judicial. 

Apenas chegados aqui, Deleuze e Weber, — este, em nome 
de L. Behrens & Sohne, em data de 17 de Janeiro de 1916, 
dirigiu uma carta aos liquidatários, declarando que, na qua- 
lidade de representante da maioria legal dos credores, acceita- 
va a proposta que Deleuze fazia, em nome da "Northern", 
para a acquisição do activo da massa fallida da Companhia 
Araraquara. 

A justiça local não tinha outro remédio senão acceitar 
essa situação, que se apresentava desde logo amparada por 
credores em numero sufficiente para determinar qualquer 
forma de liquidação. 

E, assim, poude Deleuze reunir em suas mãos a dupla 
qualidade de proponente e de representante da maioria dos 
credores e da maioria dos liquidatários. 

Eis que surge agora, pela primeira vez, a já famigerada 
"Northern". 

Mas que era essa "Northern", em cujo nome Deleuze apre- 
sentava uma proposta para a compra do activo da Arara- 
quara? 

O publico vae sabel-o e vae ficar edificado ! 

Paul Deleuze, sabedor de que a situação universal volvia 
as Suas vistas para a America do Norte, como mercado do 
ouro, na melindrosa situação mundial creada pela guerra, 
lembrou-se de que o melhor alv<itre para ludibriar os crédulos 
aqui no Brasil e vencer a possivel resistência de alguns cre- 



- 16 - . 

dores chifographaríosi seria organisar nos Estados Unidos, 
com o nome arrevesado de "S. Paulo Northern Railroad 
Company", a empresa que devia adquirir o activo da Arara- 
quara fallida. 

Quem não conhecer a legislação dominante na America 
do Norte, no tocante á organisação das sociedades anonymas, 
poderá impressionar-se com a argumentação que vamos ad- 
duzir. Mas quem souber que lá reina o regimen da mais 
completa liberdade, particularmente em certos Estados da 
União americana, no que concerne á organisação e consti- 
tuição d?is sociedades anonymas, comprehenderá desde logo 
o que fica exposto. 

Ao mesmo tempo que catechisava na Europa os banqueiras 
L. Behrens & Sohne, afim d-e obter a procuração destes e 
aproveitar-se da situação especial em que elles se collocaram 
na fallencia, Deleuze encarregava na America do Norte, no 
Estado de Delaware, uns seus representantes da organisação 
da sociedade que devia em. S. Paulo adquirir a Companhia 
Araraquara. 

No próximo artigo exporemos por miúdo toda a historia 
da constituição da "Northern Railroad". E o leitor então ha 
de boquiabrir-se de surpresa, diante da espertesa maravilhosa 
e da audácia sem limites desse extraordinário malandro que 
acode pelo nome de Paul Deleuze. 



IV 



Ha no Estado de Delaware vários escriptorios e agencias 
que se encarregam da constituição de sociedades anonymas, 
especialmente para operarem no extrangeiro. Existe mesmo, 
em Willmington, uma agencia conhecida pelo nome de Pen- 
sionato das Sociedades Anonymas, cujos directores se in- 
cumbem de organisal-as com todos os sacramentos, arran- 
jando os accionistas precisos, fazendo as publicações neces^ 
sarias e até indicando como domicilio da sociedade o 
escriptorio em que ella é constituída. 

Lá não é necessário, como aqui, que o capital seja todo 
subscripto, para que a sociedade anonyma se declare organi- 
sada, de modo que a **S. Paulo Northern", conforme se po- 
derá verificar dos papeis archivados no Rio, no Ministério da 
Agricultura, foi constituída apenas com dois ou três accio- 
nistas, que subscreveram umas dez ou doze acções, se tanto. 
E esses accionistas nada mais eram do que o chefe do es- 
criptorio, o seu dactylographo e o porteiro da mesma agencia 
ou escriptorio. 

E assim se constituiu — pasmem todos quantos nos lêm ! 
— uma empresa que, sem o empate de um único vintém ç 
sem a realisação de um dollar de capital, veiu ao Brasil ad- 
quirir o activo de uma companhia avaliado judicialmente 
cm mais de vinte mil contos ! ! 

E, no meio desse activo, Deleuze teve a habilidade de "ad- 



— 18 — 

quirir" até o dinheiro que encontrou em caixa, orçando por 
quinhentos contos de réis e que lhe serviu para pagar os en- 
cargos da acquisição, inclusive o imposto de transmissão de 
propriedade, porque, para o effeito da compra e no propósito 
de lesar o fisco, elle fez avaliar os bens por quatro mil contos, 
coliforme se poderá verificar pela escriptura de '7 de Feve- 
reiro de 1916! 

E' certo, porém, que depois o fisco lhe correu aos calca- 
nhares e, numa acção ruidosa, obrigou-o a repor a differença 
do imposto em que fora defraudadp. 

O que ha, porém, de mais original sobre esse caso da 
"Northern" é que na America do Norte não se encontrou, 

na época de sua constituição, uma só pessoa conhecida que 
quizesse ser incluída, mesmo como figura de proa, no rol 
dos seus accionistas ou na relação do seu conselho adminis- 
trativo. E então Deleuze, que sabe sahir de todas as difficul- 
dades, conseguiu- organisar uma administração fantástica, 
composta, na generalidade, de pessoas que elle dizia domici- 
liadas na França, muito embora houvesse apresentado a Com- 
panhia aqui como tendo sede na America do Norte. 

Essa relação fantástica de administradores era o pesadelo 
constante de Deleuze, tanto que todos os seus esforços con- 
vergiam para extrahir tal documento dos autos, — o que 
não sabemos se conseguiu. 

E elle tinha lá suas razões para andar apprehensivo, por- 
que muitos directores apontados como taes ignoravam com- 
pletamente essa qualidade e chegaram mesmo a declaral-a 
falsa, pela imprensa. 

O curioso, entretanto, é que as actas da "Northern", cuja 
sede e domicilio eram na America do Norte, Deleuze as for- 
gicava, de parceria com Fritz Weber, num quarto da "Rotis- 
serie", que a esse tempo era á rua de São Bento, não tomando 
para isso as cautelas precisas, pois que, de uma feita, os 
dois trampolineiros chegaram a fabricar taes documentos 
com papel que adquiriram numa casa de São Paulo. 



19 



A longanimidade do nosso governo, porém, tem tocado o 
excesso em relação a Deleuze. E um inquérito policial, feito 
com todo o rigor, poderia apurar esses factos e metter na 
cadeia o autor dessa genuína "escroquerie". Deixa-se, entre- 
tanto, injuriar e calumniar impunemente por um individuo 
que a esta hora tem na França dois processos graves em an- 
damento contra a sua pessoa: o primeiro, por entendimento 
com o inimigo em tempo de guerra, e o segundo por "escro- 
querie" e outras fraudes praticadas contra os debenturistas 
francezes. 

. No primeiro processo ficou exuberantemente apurado que 
Fritz Weber nada mais era do que um simples testa de ferro 
de Deleuze para obter procuração de banqueiros inimigos da 
França, com os quaes Deleuze manteve entendimento, che- 
gando mesmo a firmar com elles um contrato, por intermé- 
dio dos banqueiros suissos, estabelecendo a quota que lhe 
deveria caber em toda essa traficancia da liquidação da Ara- 
raquara. 

No segundo processo — em que ha até mandado de pri- 
são contra Deleuze — ficou perfeitamente apurado que elle 
illudira os credores francezes, obtendo os boletins de adhe- 
são a que já nos referimos, mercê de vários artifícios que 
creára, e por esse meio procurou lesar os mesmos credores, 
entrando em conluios para defraudal-os, como de facto de- 
fraudou, no processo da fallencia. 

Poder-se-á dizer que o dr. Cândido Motta, quando secreta- 
rio da Agricultura, no louvável empenho de dar uma lição 
merecida a esse refinadíssimo "escròc", já promoveu um in- 
quérito policial, que, entretanto, não produziu resultado ef- 
ficiente. 

Mas, sem desmerecer do louvável esforço daquelle secre- 
tario, pedimos vénia para dizer que andou mal deixando 
completamente ao desamparo, quer a acção policial, quer a 
acção "ex-officio" da justiça, quando o Estado poderia per- 
feitamente, com os meios de prova fáceis e ao seu alcance, 



— 20 — 

quer testemunhal, quer documental, obtidos aqui, no Rio c 
cm Pariz, condensar a demonstração precisa e esmagadora 
do crime de Deleuze. 

Mas não sirva de argumento contra uma nova tentativa 

de processo criminal o fracasso daquella experiência, já por- . 
que sob o ponto de vista juridico a decisão proferida não 
faz coisa julgada, já porque em diligencias policiaes melhor 
orientadas e mais cuidadosamente dirigidas, com a inter- 
venção dos credores que ahi se acham e que conhecem per- 
feitamente a situação desses negócios, poderá a policia ou 
mesmo poderão esses credores, se tiverem o bom senso de 
se colligarem, obter o resultado preciso: mettendo Deleuze 
no único logar que elle merece, isto é, na cadeia, e evitando, 
assim, que elle esteja diariamente a insultar os nossos ho- 
mens, as nossas coisas e as nossas instituições, e a rir-se da 
nossa justiça e dos nossos políticos, apontando aquella como 
possível de todo o suborno e a estes como accessiveis a todas 
as negociatas. 

Deleuze não se contenta em diffamar o nosso Estado e 
os nossos homens em successivas mofinas e em artigos da 
imprensa mercenária, no que está gastando uma verdadeira 
fortuna. Aliás, não lhe dóe gastal-a, porque o dinheiro não 
é seu, mas dos credores e dos accionistas da Companhia 
Araraquara. Leva a sua campanha, ao mesmo tempo, ao 
extrangeiro,' pois na França e nos Estados Unidos não se 
cança de cobrir das maiores aleivosias o nosso paiz, numa 
campanha de calumnias de todos os quilates, na qual o nome 
do Brasil é arrastado pela rua da amargura como o de um 
paiz de negocistas e de ladrões, quando o certo, entretanto, 
é que elle é o único que fez da fallencia da Araraquara um^ 
monstruosa negociata, merecendo por isso o epitheto e a 
qualidade que hão de mandal-o opportunamente para a en- 
xovia, quando o governo francez entender de reclamal-o 
ou quando o nosso se resolver a processal-o. 

Não se sabe como explicar que alguns credores chiro- 



Hr«M^ 




— 21 — 

grapharios da Araraquara houvessem apresentado contra 
Deleuze uma queixja-crime em que todos os factos eram 
narrados e documentados copiosamente, deixando mais tar- 
de ao inteiro abandono esse procedimento, por uma levian- 
dade, tolerância ou imbecilidade, quando, entretanto, alli 
estava a fonte primaria de um bom procedimento criminal 
contra o mesmo estellionatario, no qual uma acção conjunta 
seria de profícuos resultados e abafaria de prompto a voz 
estertorosa com que elle, nos prenúncios de sua agonia, já 
chega a fazer, como fez, na publicação de domingo, a ameaça 
de umta intervenção diplomática, que só poderia passar pelo 
espirito de um desclassificado daquelle jaez, porque não 
ha paiz do mundo, que se preze, que queira tomar sob seu 
amparo uma. obra de estellionato e de defraudação, tal como 
a que em seu bojo traz sempre a famigerada "Northern", 
que, como todos os filhos espúrios de Deleuze, não tem 
pátria. 



Os banqueiros francezes faziam da nossa justiça a m-ais 
desfavorável idéa, pelo facto de haver Deleuze adquirido, 
sem dispor de um vintém, a valiosa massa fallida da Ara- 
raquara, porque ignoravam que esse mesmo Deleuze, munido 
de uma lapresentação de L. Behrens & Sohne, havia conse- 
guido uma carta de fiança do Banco do Commercio e In- 
dustria, correspondente daquelles banqueiros allemães. 

Essa carta, que ena a mais ampla e completa, trazia a 
assignatura do digno sr. Christianò Peregrino Vianna. Por 
cila, aquelle instituto de credito se responsabilisava por to- 
das ias despesas e encargos que Deleuze assumisse na acqui- 
sição da massa fallida da Araraquara. 

Arrependeu-se profundamente o sr. Christianò Vianna de 
haver envolvido o seu nome respeitável numa carta de fiança 
firmada pelo Banco de que era director, pois não tardou a 
ver de perto a atoarda que se levantava em torno desse 
negocio, que se tomava dia a dia mais sombrio e mysterioso, 
rdativo á "Northern*' e ás suas operações em S. Paulo. 

E querem sabet os leitores a paga que Deleuze deu ao 
illustre sr. Christianò Vianna, a forma por que retribuiu a 
«ua generosidade, o modo por que correspondeu á sua requin- 
tada boa fé? Simplesmente isto: Deleuze vangloriava-se 
mais tarde de que o pedido de archivamento de um pro- 
cesso contra elle movido pela justiça local e assignado por 
mm dos dignos e honrados promotores públicos de S. Paulo 



— 24 — 

fora todo motivado pelo desejo de não ver o nome de seu 
sogro envolvido no lamaçal tremendo desse processo escan- 
daloso. 

E foi por essa forma, sapateando sobre a honra e a 
reputação da nossa justiça e dos nossos homens, que elle 
procurou atemorisar os outros, vangloriando-se e rindo-^se 
depois do resultado da própria obra de felonia que, com 
requintes de perversidade, previamente preparára. 

Mas essa carta de fiança, outorgada pelo Banco do Com- 
mercio e Industria a favor de Deleuze e da "Northern", trans- 
formou-se em dado momento num espantalho medonho do 
mesmo Deleuze, quando a justiça franceza tnatou de pro- 
cessal-o por traição á pátria, sob a accusação de ter tido 
entendimento com o inimigo, porque ahi ficava patente e 
demonstrado que elle se apresentara, como de facto se 
apresentou, na qualidade de mero representante e preposto 
de L. Behrens & Sohne, em cujo nome e proveito viera 
para o Brasil adquirir a massa fallida da Araraquara. 

Conhecidos esses antecedentes, — como se poderá in- 
criminar a justiça de S. Paulo ou accusar as autoridades pu- 
blicas envolvidas nia liquidação da Araraquara, quando de 
um lado temos Deleuze (mercê da procuração passada por 
L. Behrens & Sohne a Fritz Weber) representando a maio- 
ria necessária dos credores e dos liquidatários da massa 
fallida, e de outro lado vemol-o abonado em juizo por uma 
carta de fiança do mais importante dos nossos estabeleci- 
mentos de credito? 

Quando Deleuze viera de Pariz, fez-^se acompanhar de 
um illustre advogado fnancez, que aqui devia tratar dos 
detalhes do negocio a realisar-se. 

Informado, porém, do que pretendia Deleuze, e infor- 
mado ao mesmo tempo, pelo liquidatário, então represen- 
tante de L. Behrens & Sohne, da verdadeira situação dos 
negócios ligados á fallencia, esse advogado cahiu das nu- 
vens, ficando verdadeiramente a|pavoriado. E tão apavo- 



—•25 — 

rado, que, fazendo as malas, embarcou para o Rio, no dia 
seguinte, regressando immediatamente para a Europa. 

Contam que, ao despedir-èe do senador Adolpho Gordo, 
dissera. que não queria ver seu nome de forma alguma li- 
gado a tal negocio, que era a miaior "escroquerie" que 
jamais vira, não querendo sequer que na França soubes- 
sem o motivo de sua viagem, pois que, — diante das ma- 
nobras de perversidade de Deleuze contra os' debenturis- 
tas francezes, — temia até ser processado e fusilado! 

Na mesma occasião, um distincto cavalheiro francez 
que aqui por essa época representava os interesses de L. 
Behrens & Sohne, a elles telegraphou immediatamente, 
desonerando-se de qualquer encargo e retirando-se em se- 
guida de S. Paulo, porque o apavorava a perspectiva de 
poder chegar á sua pátria a noticia de que elle tomara 
parte directa ou indirecta nos planos que Deleuze tinha 
em vista. 

O Banco Fmncez e Italiano, que occupava um dos loga- 
res de liquidatários na fallencia, tudo fez então para de- 
monstrar o perigo em que Deleuze envolvia os interesses 
francezes ligados ao processo. E /Cxonerou-se do seu cargo, 
receioso e já convencido dos perigos futuros da acção pla- 
nejada por aquelle trampolineiro, segundo a urdidura que tra- 
çara logo que aqui chegou. 

Mas, infelizmente, as relações interrompidas pela guerra, 
a impossibilidade material de um entendimento urgente com 
L. Behrens & Sohne, banqueiros de um paiz inteiramente 
bloqueado e com os meios de communicação radicalmente 
cortados, facilitaram a Deleuze a consecução dos seus fins 
c permittiram que tudo corresse á medida dos seus dese- 
jos, sem embargo das contra-ordens vindas da França e da 
Allemanha e que não foram em tempo conhecidas pela jus- 
tiça brasileira e pelos demais interessados. 

E assim poude Deleuze, no dia 7 de Fevereiro de 1916, 
nas notas do tabellião dr. Gabriel da Veiga, desta capital, 



— 26 — 

I 

lavrar a escriptura da acquisição do activo da massa fallida 
da Araraquara, escriptura que muitos commentam, todos 
criticam e poucos conhecem, mas que será em tempo oppor- 
tuno por nós devidamente apreciada, para que a possamos 
analysar e pôr em confronto com o desenrolar dos acon- 
tecimentos occorridos nestes cinco annos que se lhe se- 
guiram. 

Deleuze era até então mero representante de L. Behrens 
& Sohne, tendo vindo aqui pleitear e defender os interes- 
ses desses banqueiros, mediante commissão previamente ajus- 
tada — e bem gorda que era ella ! — por intermédio dos ban- 
queiros suissos em cujo território fora elaborado o plano 
de sua obra criminosa de traição á pátria. 

Mas quando viu a facilidade com que os acontecimentos 
se desenrolavam e quando percebeu que as coisas marcha- 
vam mais á feição do que pudera suppôr, resolveu vibrar 
o golpe decisivo: de preposto de L. Behrens & Sohne trans- 
formou-se em adquirente da Araraquara, em nome de uma 
empresa que era única e exclusivamente a sua própria en- 
carnação e sem despender um único vintém. 

Começa ahi a obra mais surprehendente e mai^ inacredi- 
tável, na qual elle culminou os requintes da "mise-en-scene** 
criminosa, como verão os leitores no artigo seguinte. 



VI 



A massa fallida da Araraquara era devedora hypotheca- 
ria ã L. Behrens & Sohne, como já dissemos, da quantia 
de um milhão e duzentas mil libras esterlinas. O primeiro 
passo de Deleuze consistiu em fazer com que Fritz Weber, 
o *'valet de chambre" que trouxe de Pariz e a quem fizera 
aquelles banqueiros outorgar procuração, déssè quitação pura 
e rasa da hypotheca, autorisando o cancellamento da respe- 
ctiva inscripção em favor dos mesmos banqueiros allemães 
c recebendo, em pagamento de uma divida, assim garantida 
com primeira hypotheca, titulos destituídos de toda garantia, 
isto é, obrigações que a "Northern", a empresa adquirente, 
iria emittir! 

Soffriam assim os credores françezes o golpe de morte: 
a hypotheca, que constituía a segurança de suas debentures, 
era expressamente renunciada por escriptura publica pelo 
procurador bastante dos banqueiros allemães, — banqueiros 
que, por decisão unanime do Tribunal de Justiça, foram re- 
conhecidos, por força do seu contrato, como os "trustees", 
administradores, fiduciários e únicos representantes daquelle 
avultado credito. 

E em troca dessa renuncia, recebia Fritz Weber, procura- 
dor de L. Behrens & Sohne, obrigações que não valiam 
coisa alguma, emittidas por uma companhia de existência 
fantástica, como era a "S. Paulo Northern Railroad". 



— 28 — 

Julgarão, porém, os leitores que parou ahi a obra satânica 
desse homem funesto? 

Não. E pasmem! No mesmo acto ou logo depois, Fritz 
Weber declarava, por escriptura 'publica, haver recebido as 
obrigações destituidas de qualquer garantia que a "Nor- 
thern" emittira e dava quitação á mesma empresa, ficando 
assim Deleuze de um só golpe com o activo da Araraquara 
desonerado de todo e qualquer ónus hypothecario e retendo 
em suas próprias mãos as obrigaçoe:s que emittira em substi- 
tuição dessa hypotheca, — obrigações que, recebidas por Fritz 
Weber, foram no mesmo acto entregues ao próprio Deleuze! 

E consequentemente estavam os debenturistas francezcs 
sem as suas debentures e sem titulos para fazerem valer os 
seus direitos contra ^ imaginaria companhia que Deleuze 
organisára com o pomposo nome de "S. Paulo Northern 
Railroad Company" ! 

Não ha exemplo no mundo de tão monstruoso conto do 
vigário ! 

Mas neste planeta costumam surgir uns tantos precalços 
com que não contam os mais sagazes delmqueíites e que a 
crendice popular aponta como o dedo da Providencia a mos- 
trar o trilho do criminoso. 

■■1 

O "valet de chambre" Fritz Weber, procurador de L. 

Behrens & Sohne por manobras de Deleuze, começou a 
perceber, apesar da sua conhecida estupidez, o cipoal em 
que se envolvera e os perigos a que estava exposto. Pre- 
tendeu então vender caro a sua pelle, fazendo a Deleuze 
exigências originaes e hilariantes, na hora que elle reputou 
própria para a partilha do espolio da delinquência. 

E vimos então o nosso "escroc" na mais temerosa das 
atrapalhações que se lhe depararam no evolver dos aconte- 
cimentos expostos. Dia a dia Fritz. Weber augmentava as 
siuas exigências e com ellas as ameaças de vomitar nos ou- 
vidos das autoridades publicas todas as façanha-s com os 



— 29 — 

menores detalhes e apresentação de documentos compro- 
batórios, o que certamente levaria/ o authentico Rocambole 
ás portas da cadeia mais cedo que lhe era dado esperar. 

Deleuze precisava, em taes circumstancias, livrar-se de 
qualquer forma desse homem perigoso, que podia, com uma 
simples palavra, derrubar todo o ousado castello de seus 
crimes. E, após vivos esforços, conseguiu que Fritz Weber 
desapparecesse de S. Paulo, numa longa peregrinação pelo 
interior do Estado, até ir dar com os costados nas aguas 
platinas, -^ e isto depois de pago e satisfeito de uma quota, 
diminuta, é certo, mas em todo o caso em proporção ao fruto 
do crime e muito acima das ambições de quem fora contra- 
tado na Europa para vir ao Brasil como simples criado. 

E até hoje, apesar de todas as pesquisas e indagações dos 
interessados, ninguém sabe onde pára Fritz Weber, cujo 
desapparecimento está envolto nas dobras do mysterio. 

Esses exemplos frutificam. 

Deleuze contratara, como seu homem e gestor de negó- 
cios, um individuo que aqui se apresentava como engenheiro 
e a quem elle confiara a direcção technica da estrada. Quiz 
este seguir o exemplo de Fritz Weber é, arrebatando alguns 
documentos secretos do escriptorio de Deleuze, depois das 
maiores exigências, chegou a embarcar para o extrangeiro, 
onde fez á justiça criminal a entrega dos mesmos documen- 
tos, que constituem o mais importante "dossier" de accusa- 
ção contra o presidente da "Northern". 

Mas voltemos a apreciar, em suas linhas geraes, a escri- 
ptura de transferencia do activo da Araraquara a Paul De- 
leuze. 

Lá se encontra, no documento que temos ante os olhos 
ao traçar estes artigos, uma condição expressa, pela qual 
nenhum encargo ou divida poderia elle contrahir, sem que 
previamente houvesse liquidado com os credores ex-deben- 
turistas e chirographarios brasileiros. 

Lá se encontra condição bem explicita, vedando-lhe a 



— 30 — 

constituição de qualquer ónus real ou garantia a outros cre- 
dores, e por divida de qualquer natureza, que pudesse pre- 
iudicar ou antepôr-se aos credores reconhecidos da fallen- 
cia da Araraquara. 

Lá se encontra condição bem clara, pela qual uns e outros 
poderiam nomear fiscaes, para, junto de Deleuze, velarem 
pelo exacto cumprimento das condições então ajustadas. 

Lá se encontra a obrigação explicita que a "Northern" 
expressamente acceitava de reconhecer a competência ex- 
clusiva da nossa justiça e dos nossos tribunaes, regulando-se 
pelas leis brasileiras no tocante a sociedades anonymas de 
origem extrangeira, -^ obrigação, aliás, que ella havia acceito 
também quando pleiteara a sua autorisação legal para func- 
cionar no Brasil. 

Onde, pois, e quando surgiram esses interesses da Ameri- 
ca do Norte, esses credores de procedência norte-americana, 
esses accionistas domiciliados naquelle paiz e aos quacs vive 
Deleuze se referindo nos ''bluffs" diários dos seus artigos, 
quando é certo que lhe ficou defeso contrahir algures quaes- 
quer obrigações que se pretendessem antepor aos créditos 
reconhecidos na fallencia da Araraquara, isto é, os dos 
ex-debenturistas extrangeiros e dos chirographarios brasileiros? 

Onde o fundamento legal para a pretendida intervenção 
extrangeira, quando se trata de uma sociedade que expres- 
samente acceitou a competência dos nossos tribunaes e que 
ísolennemente confessou serem os únicos interessados nos 
seus negócios os credores reconhecidos e habilitados na 
fallencia da Araraquara? 

Não podemos deixar de extranhar, a esse propósito, que 
os representantes da Fazenda do Estado, tão zelosos e tão 
cheios de escrúpulos no exercicio de suas funcções, não hou- 
vessem procurado, nos autos da desapropriação e nas ques- 
tões incidentes que têm surgido, demonstrar todos esses fa- 
ctos e circumstancias, que seriam de muito peso para a apre- 



— 31 — 

ciação da causa, sob o ponto de vista moral das partes en- 
volvidas no litigio. 

Não ha juiz ou tribunal que, embora aferrando-se aos prin- 
cípios de direito que devem presidir ou dominar as suas de- 
cisões, não attenda ou aprecie os motivos de ordem moral 
que caracterisam o pleito e definam a situação das pessoas 
nelle envolvidas. 

Se assim tivesse procedido a Fazenda do Estado, não ve- 
riamos hoje Deleuze, com a arrogância que caracterisa suas 
habituaes investidas da "Secção livre", adduzir a todo o 
instante que os interessados -extrangeiros da sua empresa se 
sentem apavorados com a attitude do governo desaproprian- 
do aquella estrada e procurando mostrar ficticiamente que 
os mercados monetários do mundo ameaçam cerrar-nos a 
porta ante tal deliberação, que elle vive a classificar de ex- 
poliação. 

Expoliação, sim, foi a conducta de Deleuze durante estes 
cinco annos, não dando conta alguma, como cumpre por lei 
ás sociedades anonymas, aos seus accionistas ou credores; 
não publicando balanços; não formulando relatórios, nem 
demonstrando a applicação das rendas produzidas pela Ara- 
raquara. 

Expoliação, sim, foi tudo quanto elle praticou contra os 
debenturistas francezes, contra os banqueiros allemães e 
contra os chirographarios brasileiros. 



VII 



Vimos que, se em todo esse falado caso da Araraquara, 
houve expoHação, — quem a praticou foi Deleuze contra 
os debenturistas francezes, contra» os banqueiros allemães e 
contra os chirographarios brasileiros. 

Se, portanto, outros motivos não existissem para desapro- 
priar a estrada, — como sejam as greves continuadas na via 
férrea, os incêndios frequentes nas -estações e nos vagões, 
o assalto repetido de populares em varias zonas, a paraly- 
sação constante do trafego, produzindo verdadeiros clamo- 
res na lavoura servida pela Araraquara, a recusa obstinada 
de Deleuze em prestar contas ao governo e dar as informa- 
ções a que era obrigado pelos contratos de concessão — 
bastaria a circumstancia da expoliação innominavel praticada 
á sombra de nossas leis e de nossa justiça contra credares 
extrangeiros que "in bona fide" forneceram os seus capi- 
tães para o incremento e desenvolvimento da nossa activi- 
dade industrial, para legitimar a attitude de um governo sério 
como o nosso contra tão contumaz explorador. 

Effectivamente, era preciso que a missão social do Es- 
tado, nos tempos que correm, soffresse uma restricção de 
effeitos os mais graves, para que um governo cônscio de 
suas responsabilidades assistisse impassivelmente á obra 
nefanda executada a seus olhos por um aventureiro da força 
de Deleuze, em nome de uma empresa fantástica; sem ad- 



— 34 — 

ministração ; sem responsáveis pelos s^eus actos de gestão; 
sem pessoa alguma de idoneidade no exercício de suas func- 
ç5es technicaSy massacrando uma zona fertilissima do nosso 
Estado; privando-a de um serviço publico de inestimável 
importância, qual o consistente no transporte de suas mer- 
cadorias ; entregando a Araraquara ao mais completo aban- 
dono; sugando todas as suas receitas, que não eram sequer 
empregadas nas obras mais inadiáveis reclamadas pela es- 
trada; provocando verdadeiras revoltas e perturbações da 
ordem publica que o Estado tem o dever de prevenir e pu- 
nir; praticando, emfim, todos esses actos que, por serem do 
conhecimento publico, exgottaram a paciência longo tempo 
demonstrada pela nossa administração e a levaram ao extremo 
das medidas referentes á desapropriação feita. 

Viv€, entretanto, Deleuze a declamar que o Estado se 
apropriou da sua estrada, sem pagar a importância da des- 
apropriação, porque a tanto, segundo o conceito delle, equi- 
vale o deposito, no próprio Thesouro, da importância re- 
presentativa do preço da avaliação feita. 

Devemos, entretanto, accentuar que, ainda assim proce- 
dendo, o Estado nada mais fez do que attender á própria 
reclamação dos demais interessados — os credores debentu- 
ristas e os chirographarios brasileiros — que, como donos 
exclusivos do dinheiro resultante da venda da estrada, já 
protestaram, em processo regular, discutir preferencia sobre 
o preço da desapropriação. E, assim, está o caso affecto á 
justiça, que em ultima instancia irá dizer a quem cabe le- 
vantar a quantia depositada. 

Muito do agrado de Deleuze seria certamente se pudesse 
avançar naquella respeitabilissima somma *de quinze mil e 
seiscentos contos, embolsando-a integralmente, sem a res- 
ponsabilidade de pagar a quem quer que seja e indo com o 
producto dessa sua obra praticar alhures outras falcatruas 
semelhantes. 

Evidentemente, não ha policia organisada que possa con- 



— 35 — 

sentir, á face de uma sociedade culta, na consummação de 
actos desse jaez. 

Num dos seus últimos artigos, Deleuze ameaça-nos com a 
mtervenção extrangeira. Se esta fosse procedente ou justi- 
ficável, encontraria desde logo um obstáculo decisivo, qual 
o de não existir no mundo paiz algum civilisado que qui- 
zesse patrocinar a reclamação pleiteada por uma empresa 
que nada mais é do que a obra de chantage que já demons- 
trámos de sobejo e de modo irretorquivel . 

Depois dessa ameaça irritante de intervenção e depois 
de fazer umas tantas exhortações á Camará Civil, passa a 
procurar intimidar-nos com o requerimento que diz já es- 
tar preparando perante a justiça americana, afim de ser no- 
meado um depositário judicial ou administrador para a "Nor- 
thern", diante da situação anómala em que elle a descreve 
cm face do governo do Estado que a desapropriou. 

Parece, porém, que esse homem, tendo perdido inteira- 
mente a calma, está a imaginar que vivemos em um paiz de 

botocudos ou cretinos. 

« 

Pôde a justiça americana nomear quantos interventores 
quizer. Toda gente sabe que a justiça extrangeira nenhuma 
efficacia tem em nosso paiz, sem a prévia homologação pela 
nossa Suprema Corte de Justiça. 

O contrario importaria em um desrespeito á nossa sobera- 
nia, uma Vez que, dentro de nossas fronteiras, só reconhece- 
mos e acatamos a autoridade da nossa justiça e dos nossos 
tribunaes. E, perante o Supremo Tribunal, mesmo num pro- 
cesso de homologação de sentença extrangeira, esse mons- 
truoso disparate só poderia provocar as mais estridentes bar- 
rigadas de riso. E isto porque, quando a "Northern" pediu 
c obteve autorisação para funccionar no Brasil, expressa- 
mente se obrigou a submetter-se exclusivamente á acção 
da nossa justiça, além de que não ha, em todos os actos pra- 
ticados pelo nosso governo, coisa alguma que mereça a 
mais leve censura. 



— 36 — 

Se Deleuze se atrevesse a praticar na França ou nos Es- 
tados Unidos a enorme somma de fraudes delictuosas que 
aqui executou para se apoderar do activo da Araraquara, 
ao invés de encher a "Secção livre" dos jomaes de artigos 
of f ensiyos, estaria a encher a solidão de um cárcere com as 
suas vociferações e os seus lamentos. 

Podíamos largamente mostrar, sob o ponto de vista jurí- 
dico, que o instituto a que elle se referiu no seu ultimo artigo, 
sobre não ser modelado e não ter a extensão que elle pre- 
tende, não passa, nos paizes de sua origem, de uma medida 
mais ou menos equivalente ao nosso sequestro pendente a 
lide, ou preparatório. E' unia dessas medidas, em summa, 
de caracter privativo e de applicação exclusiva nos paizes 
que a enfeixam entre os institutos de ordem processual in- 
terna. 



VIII 



Somos obrigados a abrir um parenthesis nos artigos sobre 
a mysteriosa questão da "Northern", o que bem a contra- 
gosto fazemos, por não desejarmos que a concatenação dos 
factos, taes como têm sido expostos, soffra qualquer inter- 
rupção. 

Mas hoje, segundo estamos informados, deve a Camará 
Civil julgar, em definitiva, a questão que aquella empresa 
sustenta contra a Fazenda do Estado, por motivo da des- 
apropriação da Araraquara. 

Podem estar tranquillos os laboriosos lavradores daquella 
feracissima região, pois justiça lhes será feita, e Deleuze não 
conseguirá empalmar a presa sobre a qual tem arregalados 
•s seus olhos de milhafre damninho. 

A nossa Camará Civil, constituída de forma que faria 
konra a qualquer paiz civilisado, não é por certo, como o 
atrevido explorador o dissera, em carta ao seu "alter ego" 
de Genebra, "uma gôndola muito bem pintada e de um ex- 
terior attrahente, porém cheia de piratas". Ao contrario, é 
um tribunal selecto e de cuja justiça a ninguém é licito 
alimentar a menor duvida. 

Tão certo se acha Deleuze de seu estado pre-agonico, que, 
em desespero de causa, já teve a audácia de propor ao go- 
verno de S. Paulo a entrega do litigio á solução de um juizo 
arbitral. Rimo-nos muito da original investida, pois quem 



— 38 — 

conhece os rigores do nosso presidente, em matéria de mo- 
ralidade administrativa, e sabe a linha de sua conducta, que 
não tem flexões ou sinuosidades, não poderia por certo es- 
perar outra solução ao requerimento do afamado galopim. 

Tratava-se de um pleito já entregue, em ultima instancia, 
á solução da justiça, que irá dizer hoje a ultima palavra so- 
bre a questão. E seria irrisório que a administração publica, 
confiada a um estadista da envergadura do dr. Washington 
Luis, fosse envolver o nome e o prestigio do governo, empa- 
relhando-se com um aventureiro desclassificado e com elle 
constituindo um juizo arbitral, que, por ser voluntário, sem- 
pre suppõe que os respectivos litigantes se possam collocar 
num plano equivalente de attributos moraes. 

Mas não podemos deixar, para esclarecimento dos leitores, 
de expender ligeiras considerações, não só a respeito do 
processo de desapropriação, como também dos motivos que 
levaram o governo Altino áquella medida extrema. 

Já hoje sahiu publicado, na "Secção livre" d'"0 Estado", 
um longo trecho do relatório do sr. dr. Cândido Motta, 
insistindo pela decretação daqueUe remédio e reputando de 
verdadeira calamidade publica a situação em que se encon- 
trava a flagellada zona servida pela "Northern". 

Em verdade, o clamor alli era geral. Os lavradores acha- 
vam-se ás portas de uma verdadeira revolta. O levante estava 
por dias. O Estado, pois, como medida de verdadeira segu- 
rança publica, tinha que correr em amparo de uma região 
importantíssima do território paulista, qual aquella atraves- 
sada pela via férrea hoje incorporada ao património publico. 

Decretada a desapropriação, correu o processo os seus 
tramites regulares. A principio, Deleuze não se impressionou 
tão vivamente, como á primeira vista pôde parecer, com a 
medida judicial que o privava da incontida exploração da 
estrada. Volvia os seus olhares cúpidos para a importantís- 
sima somma de 15.600 contos, em quanto foi avaliado o pa- 
trimónio a expropriar-se. Toda a grita e atoarda surgiram 



— 39 — 

quando os credores ex-debenturistas e chirographarios, ha- 
bilitados no processo da fallencia da Companhia Araraquara 
e únicos interessados na "Northern", lhe embargaram os 
passos e obstaram o levantamento do cobre, com o qual cer- 
tamente elle pretendia, em outras terras e entre outro povo, 
"ensinar como se constitue e como se explora um caminho 
de ferro de trilhos imaginários". 

Toda discussão, entretanto, no processo da desapropriação, 
versa sobre pontos de uma futilidade inacreditável e que em 
nada abonam os gabos tão ruidosamente dirigidos aos seus 
provectos patronos. 

E' isto o que pretendemos explicar ao publico, para que 
se possa ajuizar de como, em torno de uma questão futilis- 
sima, tem o decantado farçante entretido a mais ruidosa 
polemica. 

Publica a toda hora pareceres de jurisconsultos, cujo 
questionário omitte, porque foi adrede e fraudulentamente 
confeccionado. 

Evidentemente, as respostas a um questionário desses não 
podiam ser outras senão as trazidas diariamente a publico, 
com o alarde, muito de seus hábitos, para enganar os in- 
cautos. 

Não temos o propósito de esclarecer a questão para os 
julgadores, que a estas horas, no escrupuloso desempenho 
de suas funcçÕes, já leram meticulosamente o processo e já 
formularam juizo seguro á vista das provas e allegações dos 
litigantes. 

Nosso desejo apenas é elucidar o publico, cuja opinião é a 
cada hora envenenada com as invencionices e fantasias, tão 
ruidosamente assoalhadas por Deleuze. 

No processo, Deleuze defendeu-se allegando, a principio, a 
incompetência da justiça local para processar a desapropria- 
ção, já porque a sede da "Northern" era no Rio, já porque, 
discutindo-se nos autos uma questão de propriedade, evi- 
dentemente, segundo o seu modo de pensar, a defesa era 



40 



fundada em preceito da Constituição, que garante em sua 
plenitude aquelle direito e, pois, só a justiça federal poderia 
conhecer da causa. 

Os que são versados em coisas forenses e conhecem dois 
dedos de direito vêem o absurdo de tal allegação, porque, 
a prevalecer essa doutrina, uma vez que é a Constituição 
que garante todos os direitos individuaes, todas as causas 
deveriam correr fora do juizo local... 

E quanto á questão de competência, relativamente ao do- 
micilio da exproprianda, respondeu-lhe vantajosamente a 
Fazenda do Estado, mostrando o contrato de acquisição de 
activo da fallencia da Araraquara e os documentos que Dc- 
leuze firmara para obter autorisação afim de sua empresa 
funccionar lio paiz. Em todos se obrigara a acceitar o nosso 
foro e a nossa justiça para as questões que decorressem de 
seu contrato ou que se ligassem com a "Northern". 

Restava, pois, uma única questão : a da necessidade ou utili- 
dade da desapropriação, para a qual volveu todas as suas 
baterias. 

Esta, como as demais, não tem a minima procedência, • 
que, aliás, já foi reconhecido unanimemente no julgamento 
da appellação interposta por Deleuze. 

A desapropriação, segundo a conhecida formula de Weiss, 
é um acto de soberania do Estado, superior á vontade dos 
proprietários e que se executa a despeito de sua resistência, 
porque representa a transmissão legal e forçada de uma 
coisa ou de um direito, cuja acquisição é reclamada pel© 
interesse geral de uma região ou de uma localidade. 

EUa põe termo a todos os direitos reaes e pessoaes que 
quaesquer terceiros exerçam sobre a coisa desapropriada. 
Sua matéria — sabem-no os mais bisonhos — é de DIREITO 
PUBLICO. Já a Constituição do Império a ella expressa- 
mente se referia, como excepção do direito de propriedade, 
gjarantido, então, como hoje, em toda a sua plenitude. As 
causas que a autorisam, embora produzindo os mesmos ef- 



41 



feitos, já o eram, então, como são hoje, as mesmas: a neces- 
sidade ou a utilidade publica, devendo ser o proprietário pre- 
viamente indemnisado. A lei de 9 de Setembro de 1826, de 
accôrdo com o preceito constitucional então dominante, 
apontava os casos em que a desapropriação teria logar por 
qualquer daquellas causas, que são as mesmas, aliás, com 
pequenas modificações, consagradas no art. 590 do Código 
Civil vigente. A lei de 1826, representando as tradições da 
época e reflectindo as correntes dominadoras nas legislações 
cm vigor, confiava ao poder legislativo a verificação dos 
•asos de utilidade publica, entregando ao juiz do domicilio 
ào proprietário a constatação legal dos casos de necessidade 
publica. Eram mais ou menos os mesmos principios consa- 
grados outrora e que foram evoluindo desde a Constituição 
Franceza de 1791 até ás leis napoleónicas de 16 de Setembro 
de 1807, 8 de Março de 1810, a Constituição de Orleans, de 
1830, e as leis francezas subsequentes de 7 de Julho de 1833, 
3 de Maio de 1841 e decretos imperiaes de 26 de Março de 
1852 e 25 de Dezembro do mesmo anno, os quaes todos defe- 
riam exclusivamente ao poder publico a faculdade privativa 
de apreciar a procedência ou utilidade da desapropriação, 
convertendo todos os casos no principio geral da utilidade 
publica. Mais ou menos por essa época, os outros povos fo- 
ram estabelecendo as suas legislações, norteadas pelo mesmo 
principio : — a desapropriação é um acto de soberania, regi- 
da pelo direito publico, applicavel aos casos de utilidade 
geral, — ficando a apreciação de sua necessidade e oppor- 
tunidade ao poder expropriante. 

Quando nòs referimos a poder expropriante, bem se vê 
^ue comprehendemos, não só o executivo, demonstrando ou 
reclamando a utilidade ou necessidade do acto, como também 
o Congresso, no exercicio de suas attribuições, decretando 
por lei a desapropriação reclamada. 

Effectivamente, foram esses os principios dominantes na 
lei que à Bélgica, em 27 de Abril de 1835, promulgou, como 



— 42 — 

nas que votaram a Suissa, em 10 de Maio de 1850; o Pie- 
monte, em 6 de Abril de 1839; o Estado Pontificio, em 3 de 
Julho de 1852; e a Inglaterra e a America do Norte, que, 
segundo Blackstone, foram providenciando sobre a matéria 
com ''bills" ou leis todas occasionaes. 

Nosso Código, sem embargo do seu recente apparecimento, 
não sabemos se por amor á tradição ou se por outro motivo, 
conservou ainda os mesmos fundamentos que vinham desde 
a Constituição do Império: a necessidade ou utilidade pu- 
blica, baseados nas mesmas razões já consagradas naquelle 
tempo. 

O Acto Addicional á Constituição do Império de 1824, no 
art. 10, paragrapho III, dava competência ás Assembléas 
Provinciaes para legislarem sobre os casos e forma por que 
deveria reger-se a desapropriação, somente na hypothese de 
UTILIDADE PROVINCIAL ou MUNICIPAL. 

Em resultado disso, a lei paulista n. 57, de 18 de Março de 
1836, alludia tão somente á desapropriação por utilidade pu- 
blica, porque, nesse tempo, os casos de necessidade publica 
eram apreciados pelo juiz do domicilio do expropriado, como 
já dissemos. 

O sr. Deleuze, fundado nos antecedentes apontados, pre- 
tende que é nuUa a desapropriação da "Northern", porque, 
tendo sido decretada por necessidade publica, a lei a reger o 
processo seria a geral, de 1826, e não, como se fez, a provin- 
cial, de 1836. 

Aquella admittia a discussão sobre a j^rocedencia da ne- 
cessidade invocada pelo poder publico e por isso permittia, 
nesse particular, a defesa do expropriado. 

Esta — a lei de 1836 — não permittia qualquer defesa do 
expropriado, mesmo porque só se referia aos casos de utili- 
dade publica. 

Proclamada a Republica e decretada a Federação dos 
Estados, os congressos estaduaes de hoje têm, como todo 
mundo sabe, uma competência que faltava ás antigas As- 



— 43 — 

sembléas Provinciaes. Se estas só podiam decretar desapro- 
priação por utilidade provincial ou municipal, hoje os nossos 
congressos têm a faculdade de determinal-a em todos os casos 
de necessidade e de utilidade, publica, quer estadual, quer 
municipal — coisa, aliás, expressamente consagrada no art. 
21, n. 18, letra **q" da Constituição Estadual vigente ao 
tempo em que foi decretada a expropriação da "Northern". 

De facto, sendo hoje attribuição privativa dos Estados le- 
gislar sobre o processo e sendo da competência delles decre- 
tar quaesquer desapropriações, é absurdo pretender que deve 
reger essa ordem de processo em S. Paulo a lei geral de 1826 
e não a nossa lei provincial de 1836. 

Não sabemos porque o sr. Deleuze vae escolher tão delibe- 
radamente a lei de 1826 — para applicar em S. Paulo uma 
lei de caracter geral — quando da mesma procedência então 
existiriam diversas outras de datas muito posteriores, como 
a de 1855, que não permittia ás autoridades judiciarias con- 
sentirem em reclamações sobre os motivos de ordem publica 
determinantes da desapropriação, e outras que lhe succe- 
deram, até a de 1903. 

Tudo, pois, nos leva a crer que nem esse motivo único, 
invocado por Deleuze, qual o da inapplicabilidade da lei de 
1836, tem o menor cabimento, sendo a desapropriação de que 
se trata um acto fundado em lei, decretado pelo Congresso 
no exercicio de uma faculdade que lhe é constitucionalmente 
attribuida e cuja apreciação fica exclusivamente ao poder 
publico expropriante, como um acto de soberania que é. 



IX 



Deleuze bem sabe que nada temos com os banqueiros ham- 
burguezes L. Behrens & Sohne, que para nós valem tanto 
quanto o farçante francez, desde que se mancommunaram 
numa obra memorável de felonia para prejudicar os le^- 
gitimos interessados na fallencia da Araraquara, isto é, os 
credores debenturistas francezes e os chirographarios brasi- 
leiros. 

Aquelles — os banqueiros hamburguezes e Deleuze — 
perfeitamente se equivalem, uma vez que na Suissa ajusta- 
ram, sciente e conscientemente, uma empreitada de assalto 
no Brasil ao rico património alheio. 

Está farto Deleuze de conhecer a situação legitima do ne- 
gocio. Sabe de sobra que nós nada temos com a firma de 
Hamburgo. 

Para nós, — e é bom que isto fique bem assígnalado — 
logo que aquelles banqueiros não tiveram escrúpulos, numa 
obra innominavel de luta económica contra a França, de as- 
salariar um francez degenerado para vir ao Brasil tripudiar 
sobre grandes sommas representativas da economia daquel- 
le povo laborioso e tragal-«is na voragem desse mysterioso 
negocio — elles passaram aos nossos olhos, sem embargo 
de todo o prestigio de seus milhões, a merecer o mesmo con- 
ceito que o seu comparsa na "societas sceleris" que organi- 
saram. 



— 46 — 

Na verdade, foi um requinte de perversidade, em plena 
effervescencia da luta armada mais celebre que a Historia 
regista, emquanto muitos dos portadores de debentures se 
achavam no "front", redimindo com o seu sangue a honra 
nacional, o haverem os banqueiros allemães preparado e se 
utilisado do mais vil de todos os francezes para com elle 
golpear pelas costas, emquanto lutavam, aquelles pobres co- 
nacionaes, que viram assim devoradas todas as suas econo- 
mias. 

E' bem certo que hoje L. Behrens & Sohne se penitenciam 
amargamente do que fizeram, porque, em aqui chegando, 
o seu testa de ferro Deleuze tratou de adquirir para si aquillo 
que pactuara comprar para elles. 

E é também verdade que hoje todo o opprobrio que cae 
sobre aquella casa bancaria, que sempre representou, na AUe- 
manha, uma tradição de honra, muito mais lhe custa do que 
toda ordem de prejuízos materiaes que haja soffrido na me- 
donha luta em que a sua pátria se viu envolvida. 

Orgulhosos como os de sua origem, nunca pensaram aquel- 
les banqueiros, como aliás ninguém em sua terra jamais o 
acreditou, que pudessem ser vencidos na luta em que a Alle- 
manha se empenhara e a que arrastara quasi todo o orbe; 
e por isso seguramente não deixaram tempo a que a reflexão 
lhes abrisse os olhos na temerosa aventura em que embar- 
caram com Deleuze. 

Para nós, da elevação em que nos collocámos, a luta entre 
Deleuze e os banqueiros allemães tem o mesmo effeito que 
a scena porventura contemplada por um cxtrangeiro menos 
cauto que, num pôr de sol, se aventurasse em Pariz a um 
passeio perigoso pelas redondezas de La Villette, e, no es- 
curo de uma das betesgas que enchem o arrabalde sinistro, 
deparasse a luta entre dois apaches a se destriparem por 
desavenças na partilha de um assalto consummado na vés- 
pera num dos ricos castellos de Snt. Germain : o mais que o 
alienígena poderia fazer, se bem avisado quizéra conduzir-se. 



— 47 — 

era por certo invocar o soccorro da autoridade publica para 
trancafilar os dois meliantes e apurar toda a extensão da 
pilhagem feita ou então deixal-os que, de tripas á mostra, 
aguardassem que o sói, no dia seguinte, se pudesse, exerces- 
se sua obra de prophylaxia, evitando que ellas empestassem 
o ambiente. 

Assim estamos regaladamente nós, na nossa posição : bri- 
guem elles á vontade; nada temos com o facto. Nem mesmo 
com os únicos dignos de dó, com os únicos que merecem 
consideração em toda essa trapaça, porque representam in- 
teresses legítimos — os credores debenturistas e os chiro- 
grapharios — nem mesmo com esses nada absolutamente 
temos. 

Nossa campanha não é movida por interesses subalternos, 
por vis questões materiaes. Falamos em nome de uma zona 
torturada pela "Northern", gritamos em nome daquelles la- 
vradores que representam o nosso sangue e que são o cerne 
de nossa raça e que alli vivem a trabalhar de sol a sol, numa 
luta incruenta, para transformar naquelle oceano de culturas 
uma região riquíssima que o famigerado Deleuze não teve 
outro propósito senão o de reduzir á penúria e sacrificar 
por todos os meios. 

Falamos em nome de sentimentos outros — "pequenos e 
imponderáveis", que para Deleuze nada valem e que para 
nós representam tradições, brio, cultura, amor ao nosso no- 
me e ás nossas coisas — sentimentos que nos fizeram ferver 
o sangue de paulistas, quando vimos o miserável ameaçar a 
nossa mais elevada corporação judiciaria, agitando o espan- 
talho disforme de uma grotesca intervenção extrangeira, se 
não lhe decidisse o litigio a medida dos seus appetites deli- 
ctuosos. 

Só quem não priva e não conhece a fundo aquelle remanso 
de justiça onde se quebram a cada passo os maiores vagalhões 
de interesse que cá fora se forpiam; só quem nunca se es- 
condeu á sombra daquella enseada de paz, sabe "a revolta 



justa e sagrada que alli se produziu quando os joraaes tnata- 
trnos publicaram em todas as letras a infamante ameaça de 
Deleuze. 

Houve quem não se contivesse em Ímpetos de indi|^nação 
ao saber que um advogado brasileiro, professor de direito e 
que vive dia a dia a "pensamentear" os preceitos de Ulpiano, 
após QUARENTA ANNOS DE VIDA FORENSE e sem em- 
bargo de preleccionar ethíca profissional a outros collegas, 
nesse mesmo negocio soturno, não sentisse que as suas mãos, j& 
tremulas da sclerose, se não paralysassem de súbito ao traçar 
semelhante affronta á nossa Pátria e á Justiça de sua pró- 
pria terra. 

Nada entranhamos de um desclassificado como Deleuze, 
sem pátria, sem lar, sem religião, sem tradições, vivendo 
. aqui e no Rio sempre escorraçado de todo convívio social, 
sempre isolado e fugido, como esses homens que, atacados 
de males physicos repugnantes (e elle tem mazellas ,moraes 
bem mais repellentes !) — por si só se constituem perigos 
bem graves de infecções generalisadas. E por certo Deleuze 
é um foco constante de infecção moral. 

Mas, em se tratando de um advogado já no derradeiro 
quartel da existência, a quem Deus não poude em tempo 
quebrar as arestas de sua formação moral, para recolhel-o 
ao refugio da religião cathoUca, e que deveria ter como 
culto único a Justiça, custa-nos a crer que envolva seu nome 
respeitável numa façanha dessa ordem. lia de, porém, receber 
â paga, como até hoje invariavelmente a têm recebido todos 
aquelles profissíonaes que, mal avisados ou inspirados, 
acquiesceram em contribuir com o seu amparo nos multiplofl 
litígios era que Deleuze se envolvera. 

Todos, sem excepção de um só, tiveram, mais dia menos 
dia, de desfazer-se de tão pernicioso cliente, como aconteceu 
ainda recentemente no Rio, onde um dos seus patronos, — 
illustre deputado federal que disso não faz reserva alguma 
— se viu forçado a mostrar, com uma energia mais do "que 



-49 — 

imperativa, a porta da rua ao temivel farçante, não lhe dando 
tempo sequer de contar os degraus da escada. . . 

E a propósito surge^nos ao espirito, reavivada pela me- 
moria, uma passagem que comnosco occorreu, em Maio de 
1919, quando nos achávamos em Pariz. 

A instancias de um illustre representante do "Qffice Na- 
tional", tivemos que ir ao Ministério do Exterior prestar 
esclarecimentos a um alto funccionario daquelle departa- 
mento publico, precisamente sobre os factos ligados á fallen- 
cia da Araraquara e referentes á conducta do "duo" Deleuze 
e Behrens, afim de figurarem num relatório que lá se estava 
confeccionando sobre tão tenebroso negocio e a respeito do 
qual contaremos os pormenores -no seu devido tempo. 

Aguardávamos ma sala de espera, fronteira ao gabinete do 
sub-secretario, que chegasse a vez de sermos attendidos, — 
nós e o nosso cpmpanheiro, representante do "Office Natio- 
nal", quando á porta surgiu o vulto sympathico de um poli- 
tico francez, que gosa de certo renome nos meios intelle- 
ctuaes do Parlamento e occupára mesmo posição de destaque 
no gabinete Briand, se não nos falha a memoria. 

Não tínhamos o prazer de conhecer pessoalmente tão 
conspícuo representante da mentalidade franceza, a quem 
uma ou outra vez viramos, ou nas suas investidas parlamen- 
tares, ou nas suas funcções naquelle Ministério. 

Velho conhecido do nosso companheiro, delle prompta- 
mente se acercou, com a intimidade e a graça tão caracteris- 
tica de sua raça. E, sabedor do motivo da nossa visita, vimos 
que com certa familiaridade e com perfeito conhecimento se 
referia a detalhes do caso da Araraquara, até que, em certa 
altura, alludindo a Deleuze, espirituosamente dissera não ser 
elle um francez e, sim, um caso complicado de psycho-patho- 
logia forense. 

Tal rumo teve a conversa, que não pudemos resistir á 
tentação de referir ao sympathico parlamentar que aqui, em 



— 50 — 

S. Paulo e no Rio, Deleuze se vangloriava de tel-o como seu 
patrono nas causas que pleiteava na França! 

Porque o fizemos, santo Deus ! Repentinamente, transmu- 
daram-se, num impeto de verdadeira e justa indignação, as 
feições de si calmas e de linhas tão bem traçadas daquelle 
insinuante intellectual e politico. 

Já arrependidos da nossa quasi "gaffe", pedimos-lhe muitas 
desculpas e, então, ouvimos, por entre phrases verdadeiramente 
dominadoras, o dizer aquelle politico que não acreditava que 
houvesse um advogado f rancez, que prezasse a honra e' o nome 
de sua terra, que permittisse a Deleuze a injuria de indical-o 
como §eu patrono... 

Justamente porque esta phrase talvez lhe chegou aos ou- 
vidos e lhe ardeu como ferro em brasa, é que elle termina o 
artigo de hoje, no ''Estado", dizendo não acreditar que haja 
advogado brasileiro suf f icientemente despudorado a ponto de 
assumir o patrocínio da causa de L. Behrens & Sohne. . . 

Deleuze, sem duvida, no seu intimo, e por ef feito lógico de 
sua velha moléstia visual, quiz referir-se a si próprio, quando 
alludiu aos seus companheiros de trapaça: os banqueiros 
hamburguezes . . . 

Mas o publico, talvez dentro de poucos dias, vae conhecer 
por meudo tudo o que soubemos e que occorreu no Minis- 
tério do Exterior da França, na occasião em que lá estivemos. 

De uma coisa podem os leitores estar certos : não ha uma 
affirmativa nossa que não seja inteiramente provada, não só 
nos seus detalhes, como em todo o seu conjunto. Nem mes- 
mo aquelle facto, aliás confirmado pelo illustre cavalheiro 
Christiano Peregrino Vianna, soffrerá a ligeira constestação 
que elle pretendeu fazer sobre o não ter sido illudido em sua 
boa fé, quando deu a carta de fiança ao nosso Rocambole. 
Então mostraremos que ha coisas que a gente di^, mesmo em 
gabinetes reservados de certos bancos, nos ouvidos discretos 
de um abastado industrial mui intimo, E QUE AS PAREDES 
TAMBÉM OUVEM, como, por exemplo, as referencias feitas 



— 51 — 

por aquelle honrado cavalheiro, o stj^ Christiano Vianna, 
quando o presidente interino do banco, na sala próxima, dis- 
cutia as bases do celebre empréstimo de mil e tantos 
contos a Deleuze, — referencias que por certo, trazidas a 
publico, vão mostrar que s. exa., na intimidade, não dizia o 
^uc em publico veiu affirmar. 



X 



Quando, naquella tarde luminosa de Maio de 1919, deixá- 
mos o Ministério das Relações Exteriores em Pariz, confor- 
me ficou referido no ultimo artigo, dirigimo-nos ao Hotel 
Ritz, onde tinhamos um encontro marcado com um nosso 
, distincto patricio, altamente cotado aqui nas* rodas commer- 
ciaes. 

O nosso companheiro, representante do "Office National" e 
que nos conduzira áquelle Ministério, fez questão de ir com- 
nosco até ao elegante salão de chá do referido hotel. E alli 
abancados, á mesa que justamente fica ao lado da grande 
porta que faz face para a columna histórica, poz-se a contar- 
nos o que até então estava regularmente apurado pelo juiz 
Bonin, do tribunal de primeira instancia do Departamento 
do Sena, nas rigorosas pesquisas contra o famigerado De- 
leuze, nesse soturno negocio da fallencia da Araraqriara. 

Tirando de sua pasta o volumoso "dossier" que trazia, 
leu-nos a terrível peça accusatoria produzida pelo procura- 
dor da Republica e apresentada áquelle juiz, — peça que, na 
sêcca contextura de um documento de caracter judicial, re- 
produz todos esses factos que vimos trazendo ao conheci- 
mento do publico e que Deleuze, em suas mofinas, qualifica 
de contos da carochinha. 

Leu^nos elle ainda o longo e juridico despacho do juiz 
Boinin, concluindo peremptoriamente pela responsabilidade 



— 54 — 

criminal de Deleuze como incurso nos delictos de abuso de 
confiança e estellionato. 

.Podiamos aqui transcrever do documento que temos ante 
os olhos, no rigor da technica judiciaria franceza, as próprias 
expressões daquelle juiz, se sobre a epiderme de Deleuze 
alguma coisa mais houvera que pudesse produzir effeito. 

Contou-nos então o illustre representante do "Office 
National" que naquella instrucção criminal já estavam en- 
feixadas todas as peças precisas para a cabal condemnação 
do accusado. 

Alli se reuniam as cartas de Deleuze a Litmann (os cele- 
bres banqueiros que na Suissa serviram de intermediários 
entre o farçante f rancez e os banqueiros hamburguezes) e a« 
de Litmann a Deleuze. 

Alli estavam também as declarações e os documentos 
fornecidos por Me. Gaye, o notável advogado do foro francez 
e que tão penosamente fora ludibriado por Deleuze, coma 
também se achavam as declarações de Sarran, o tal advogado 
que veiu ao Brasil trazido por Deleuze e que daqui correra 
apavorado, quando teve conhecimento das façanhas em que 
o trapaceiro o procurava envolver. 

Lá se achavam igualmente vários documentos remettidos 
do Brasil, inclusive as certidões daquelles que Pitet um dia 
arrebatara do cofre reservado de Deleuze. 

A certa altura, o illustre representante do "Office Natio- 
nal", guardando aquella compostura tão própria do francez, 
quando tem que fazer revelações sensacionaes, disse-nos, 
num tom entre enérgico e receioso : "vae agora o dr. conhe- 
cer um documento que até hoje ninguém conhece no seu 
paiz. Vae ser o brasileiro que terá as primicias de inteirtr-se 
do seu conteúdo e de ver até que extremo chega a audácia 
daquelle nosso compatriota. Peço-lhe antecipadamente que 
não se magoe no seu pundonor nacional, no que tal documen- 
to tenha de offensivo aos brios de sua pátria generosa. Aqui» 



— 55 — 

esteja certo, ninguém nelle acredita e eu apenas o leio ao 
dr. como um retrato perfeito do individuo querO traçou". 

A nossa curiosidade, àltamefnte aguçada, fez que arregalás- 
semos olhos ávidos sobre o "dossier" do nosso interlocutor. 
E elle, então, com toda a calma, nos referiu: 

— "Vou ler-lhe a defesa que Deleuze apresentou na roga- 
tória enviada pdo juiz Bonin, por intermédio da legação da 
França no Rio, e que foi devolvida como peça a ser junta á 
instrucção criminal". 

Leu-nos, então, tun documento, que é a maior affronta 
á justiça do nosso paiz; um documento que, por vezes, longe 
de nossa pátria, naquelle salão elegante em que uma multi- 
dão se entregava ás delicias de múltiplas diversões, nos fez 
tremer todas as fibras do nosso patriotismo e nos fez fremir 
da mais justa de todas as indignações. 

Deleuze, com a maior sem cerimonia, dizia ao juiz francez, 
encarregado da instrucção criminal do seu processo, que elle 
era antes uma victima de nossa odiosa justiça do que res- 
ponsável pelos factos que injustamente lhe eram attribuidos. 
li dando-se assim uns ares de martyr, a lembrar os de Cha- 
teaubriand, declarava que, quando aqui chegou, seu propósi- 
to fora, única e exclusivamente, o de salvaguardar e defen- 
der os interesses dos credores francezes. Mas a justiça local, 
dominada pelo jacobinismo que caracterisa todos os nossos 
actos em relação ao extrangeiro, se puzera inteiramente ao 
serviço dos credores xhirographarios brasileiros, obrigando-o 
a attitudes que elle nunca tivera em vista assumir. E, pois, 
se alguém devera ser punido como autor de abuso de con- 
fiança e estellionato, eram o juiz da 2.* vara commercial de 
S. Paulo, o dr. curador das massas fallidas e os liquidatários 
que funccionaram no processo da Araraquara. Que nenhum 
dos actos que lhe eram attribuidos foi por elle praticado li- 
vremente: obedeceu apenas á imposição do juiz, que, no 
alvará de venda da massa, estabeleceu como condição "sinc 
qua" a renuncia da hypotheca que garantia o credito dos 



— 56 — 

debenturistas francezes e exigiu que uns e outros — os crt- 
dores nacionaes e os extrangeiros — fossem coUocados no 
mesmo pé de igualdade. 

Deleuze mandou até diversas certidões, cavilosamente ob- 
tidas ou truncadas, para provar os gravíssimos factos que 
articulava contra a nossa justiça, aquella mesma que elle 
appellidava de "gôndola bem pintada e de aspecto exterior 
attrahente, porém sempre cheia de piratas..." 

Desminta-nos Deleuze, se for capaz,, a existência deste 
documento, publicando-o na integra, embora á nossa custa, 
nos jomaes paulistas, MAS SEM TRUNCAL-0, como elle 
faz habitualmente em tudo quanto traz a publico, como 
ainda ha pouco, audaciosamente, procedeu em relação ás 
razões do dr. procurador geral do Estado, o que levou esse 
chefe do Ministério Publico a pedir enérgicas providencias 
ao governo. 

Não sabemos se os leitores conhecem esse facto. Mas, ha 
pouco tempo, começaram a apparecer em S. Paulo alguns 
folhetos contendo as razões do dr. procurador geral do Es- 
tado inteiramente adulteradas e de modo a favorecerem as 
pretenções de Deleuze. 

Já muito tarde chegou aquelle illustre funccionario a ter 
conhecimento da incrivel trapaça de que era victima. E então 
se dirigiu ao governo, publicando em todos os jornaes decla- 
rações nesse sentido e fazendo inserir no ''Correio Paulis- 
tano" o inteiro teor do seu arrazoado, tal como consta dos 
autos. 

Truncados também são sempre os pareceres publicados e 
attribuidos a vários dos nossos mais eminentes jurisconsul- 
tos, chegando a audácia de Deleuze ao extremo de attri- 
buir a ministros do Supremo Tribunal Federal, como pro- 
feridas por elles em debates públicos, ou affirmações que 
nunca fizeram ou proposições radicalmente diversas das 
que emittiram. 



— 57 — 

Publique, pois, Deleuze — para demonstrar que as nos- 
sas arguições são meros contos da carochinha — o desmen- 
tido do que acima ficou dito, transcrevendo essa peça que 
é o seu melhor retrato: a defesa que produziu na carta ro- 
gatória do juiz Bonin. 

Aventurámos, então, ao nosso obsequioso informante a 
pergunta do porque até agora mão ficou concluida a ins- 
trucção criminal contra Deleuze e não foi reclamada a sua 
extradicção, que nós, aqui, receberiamos de braços abertos. 

Respondeu-nos elle: 

— O dr. não conhece outro traço do espirito combativo de 
Deleuze nas questões judiciaes. Elle arranjou aqui um ou 
vários testas de ferro p^ra moverem contra elle certas cau- 
sas, que, constituindo "questões prejudiciaes" da instruc- 
ção criminal aberta, tiveram o effeito de sobrestar, de accôr- 
do com a legislação franceza, o andamento daquelle proce- 
dimento de caracter penal. 

Não nos pudemos conter. Soltámos, mesmo naquelle salão 
de requintado luxo e elegância, uma dessas gargalhadas ge- 
nuinamente nacionaes, patrioticamente brasileiras, que não 
guardam nem sabem guardar conveniências e logares. 

Impressionado, o sr. C, representante do "Office Natio- 
nal*', indagou curioso o motivo daquella nossa incontinência 
de humor. Explicámos-lhe, então, que aqui, em S. Paulo e no 
Rio, Deleuze não fazia outra coisa a não ser, com vários 
nomeis suppostos, ou de testas de ferro, mover acções contra 
si próprio, para allegar depois uma PRETENDIDA coisa 
julgada, publicando mais tarde, pelos jornaes, como está 
fazendo agora em relação a duas questões desse jaez, as 
decisões proferidas pela justiça e que outras não poderiam 
certamente ser, uma vez que os litigantes estavam combi- 
nados para esse fim. 

. . . Nesse momento, surgiu á porta a figura sympathica e 
insinuante do patricio que esperávamos, trajando o seu 



— 58 — 

"veston** habitual, a denotar a inimitável tesoura do Ste- 
phens, o contra-mestre do grande alfaiate da avenida da 
Opera. 

Adiante contaremos ao publico a historia dos pleitos que 
Deleuze movia, de parceria com outrem, contra elle próprio. 



/ 

s 



XI 



Alli, naquella mesa de chá do sumptuoso salão do Hotel 
Ritz, recebido com effusivas demonstrações de apreço o 
nosso patrício que chegara, puzemo-nos a contar ao repre- 
sentante do "Office National" o que sabiamos a respeito 
da conducta de Deleuze no Brasil, movendo a cada passo, 
contra si próprio, as mais variadas questões judiciaes, com 
o propósito de firmar doutrina e consolidar uma pretendida 
coisa julgada sobre vários pontos que diziam respeito á afa- 
mada "escroquerie". 

Antes, porém, quizemos contar áquelle illustre "leader" 
da associação que defende tão zelosamente os haveres fran- 
cezes empregados em rendas mobiliarias, qual era o capital 
effectivo, subscripto e declarado, da famigerada "Northern", 
com que Deleuze aqui surgira para adquirir o património da 
Araraquara. 

Por certo os leitores ignoram que o "importante" capi- 
tal daquella empresa é apenas de seis contos de réis! E 
com elle, entretanto, menos de cinco mezes depois da orga- 
nização da "Northern", ella assumia aqui, á face da nossa 
justiça, as obrigações relativas á fallencia daquella compa- 
nhia, na importância global de quarenta mil contos! 

Pasmem, pois, todos quantos podem ainda sentir estu- 
pefacção diante do desenrolar dos escândalos que temos ex- 
tendido á luz meridiana! 



— 60 — 

São esses os nossos contos da carochinha... Mas os lei- 
tores que quizerem certificar-se da verdade do que affir- 
tnamos podem recorrer ao "Diário Official", da União, de 
6 de Fevereiro de 1916. Ahi verificarão que o capital subs- 
cripto e declarado, da "Northern Railroad", é apenas de 
dois mil dollars, que, ao cambio dominante na época, cor- 
respondiam aos referidos seis contos de réis. 

E são esses os capitães extrangeiros, os volumosos in- 
teresses económicos capazes de determinar uma interven- 
ção diplomática e que produziram na epiderme super-sen- 
sivel do illustre patrono de Deleuze os tremores patrióticos 
a que elle alludiu em seu artigo de hontem, — artigo que, 
aliás, muito nos custou a comprehender, e interpretar, diante 
do cipoal constructivo em que o provecto professor mani- 
festa habitualmente o seu pensamento. 

Não pudemos também conter a nossa extranheza pela 
invocação esdrúxula do brocardo daquelle lord extravagante 
e de nome arrevezado, que por certo se achava na vigésima 
dose de whisky, quando disse que o advogado deve sobrepor 
o cliente a todos os sentimentos humanos, inclusive os da 
familia e da pátria. 

O episodio citado fez-nos lembrar a espirituosa phra- 
se que um desrespeitoso escriptor portuguez attribue a um 
criado de outro lord, — talvez irmão germano daquelle 
citado pelo patrono de Deleuze. Dizia invariavelmente ás 
visitas que procuravam o seu patrão: 

— A esta hora, elle não recebe: acabou de jantar. .. 

Foi inum desses momentos, com certeza, que o tal lord 
proferiu a phrase invocada pelo dr. João Arruda. 

Mas voltemos ao que estávamos a referir aos distinctos 
companheiros, no Hotel Ritz. 

— Temos aqui á mão — diziamos-lhes — os nomes dos 
três accionistas com que se organisou a "Northern". E — 
surpresa com que os senhores não contam — temos aqui, 
na carteira, o retrato dos três. São photographias obtidas 



— 61 — 

por um esforço inaudito e mercê da obsequiosidade de um 
secretario de legação na America do Norte. São elles: 
Norman Coffim, William Malney e Clement Egmen. 
Este é o porteiro da "Trust Corporation of Ame- 
rica", o celebre pensionato em que se organisam, para ope- 
rar no extrangeiro, quantas sociedades anonymas forem 
encommendadas. Vejam os amigos aqui, na photographia, 
o seu bonet de porteiro, com as iniciaes da agencia em que 
trabalhai O primeiro é o gerente do esqriptorio e está pho- 
tographado alli, naquelle grupo, entre os membros de uma 
associação esportiva, com aquelle signal preto assignalan- 
do-lhe a pessoa. E o segundo é o dactylographo do escri- 
ptorio, que os amigos verão em trajes de "sportman", mon- 
tando aquella motocycleta. 

Interrompeu-nos o representante do "Office National", 
para declarar que estava verdadeiramente estupefacto, pela 
excellencia dos nossos serviços como "detective" amador, 
e custara muito a crer que tudo aquillo fosse a expressão da 
verdade, — tão monstruosos eram taes factos e tal a audá- 
cia que elles traduziam. 

— Diga-nos, porém, — accrescentou — aquillo que nos 
promettera a respeito dos celebres testas de ferro, fazedo- 
res de processos no Brasil por conta e ordem de Deleuze. 

— Ah ! lamo-nos esquecendo, — tal a copiosa sementeira 
de factos e de peripécias que encerra esse escabroso caso 
da "Northern" e da Araraquara. 

Ha, em S. Paulo, no Brasil, um illustre advogado, o dr. 
Octayio Mendes, que um dia descobriu (como lá dizemos 
em nossa giria popular) um "furo" no contrato de acqui- 
sição do activo da Araraquara, effectuado pela "Northern", 
conforme a escriptura de 7 de Fevereiro de 1916, nas notas 
do tabellião Veiga. ^ 

Entendia aquelle profissional que n^ão se tratava abso- 
lutamente de um caso de acquisição ou compra de um activo 
de massa fallida, e sim do instituto assas conhecido em di- 



— 62 — 

reito e que tão largamente é estudado pelos jurisconsultos 
allemães, denominado ^'incorporação". E, assim, a empresa 
que se constituirá para incorporar a extincta passava a suc- 
ceder-lhe em todos os actos de sua vida juridica, sendo res- 
ponsável por todas as suas obrigações e não se regulando 
o caso pelo aspecto commum das compras de massas fal- 
lidas. 

Em nome de um seu cliente, grandemente prejudicado 
como credor chirographario na fallencia da Araraquara, — 
um banco inglez com filial em S. Paulo e de reconhecida 
influencia nos meios económicos brasileiros — requereu 
aquelle distincto advogado uma acção executiva contra a 
^'Northern", por varias letras de cambio que elle entendia 
constituírem responsabilidade da empresa incorporante. 

Chegou a obter despacho favorável do juiz de direito da 
1.* vara commercial, que hoje é um dos illustres ministros 
da Camará Civil que vae julgar o caso da ^'Northern" e que 
desde então teve opportunidade de se enfronhar por miúdo 
nas artimanhas de Deleuze. 

O celebre trampolineiro, o presidente da "Northern", pas- 
sou então um dos peores quartos de hora de toda a sua per- 
manência em S. Paulo, pois que o mandado de penhora 
chegara a ser expedido, tendo os officiaes comparecido no 
escriptorio da empresa, para effectivar a diligencia. Essa 
medida acarretaria a immediata fallencia da "Northern", en- 
tão apenas com menos de um mez de vida, como adquirente 
do grande espolio da Araraquara. 

Se esse facto se houvesse consummado, todos os soffrimen- 
tos moraes e todas as torturas dos credores legitimos teriam 
sido certamente evitados, e o governo e os nossos homens 
públicos não teriam recebido as granadas de lama com que 
Deleuze maneja os seus ataques. 

Foi ahi que o inimitável galopim, pela primeira vez no 
Brasil, adoptou o plano, que tão benéficos resultados lhe 



63 



tem produzido, de servir-se de testas de ferro para os seus 
pleitos imaginários. 

Realmente, emquanto por intermédio do mesmo advoga- 
do que elle vive tão injustamente a cobrir de baldões pela 
**Secção livre" dos jornaes, apresentava, no juizo da 1." 
vara commercial, uma excepção de incompetência, allegando 
que todos os factos ligados á fallencia da Araraquara só 
podiam ser tratados no juizo universal do processo, — elle 
servia-se do nome de um sympathico corretor, a isto levado 
pelos maus conselhos de um dos patronos de Deleuze, e 
fazia com que esse agente de negócios, também credor ha- 
bilitado na fallemcia Araraquara, copiasse, quasi "ipsis lit- 
teris'', a petição feita pelo dr. Octávio Mendes e apresen- 
tasse, no juízo da 2?- vara, idêntico pedido de penhora, com 
os mesmos fundamentos. Contemporaneamente, a "Nor- 
thern", visto tratar-se de uma causa em que havia mani- 
festo conluio entre as partes, apresentava longa defesa, mos- 
trando a improcedência do pedido, — defesa que foi aco- 
lhida pelo juiz da 2}- vara e confirmada pelo Tribunal de 
Justiça. 

Quando o dr. Octávio Mendes desembaraçou o terreno 
na discussão da preliminar levantada por Deleuze, aliás in- 
admissivel antes de seguro o juizo, já encontrou o campo 
inteiramente dominado, visto como Deleuze havia obtido, 
na Camará Criminal e de Aggravos, o accordam que hoje 
elle vive a transcrever pelos jornaes. 

Realmente, o golpe foi de extrema e inacreditável habi- 
lidade. Mas produziu em Deleuze um maléfico effeito, pois 
o farçante não comprehende agora outro meio ou systema 
de defesa... Propõe alguém uma causa contra a sua fami- 
gerada empresa e é certo que, no dia seguinte, um dós seus 
testas de ferro propõe contra elle acção perfeitamente igual. 
E emquanto cria todos os embaraços ao litigio que repre- 
senta uma pretenção legitima de algum interessado, faz cor- 
rer a 120 kilometros a hora o pleito de conluio architectado 



64 — 



com qualquer dos comparsas que assalaria para essa obra 
terrível de sacrifício de direitos alheios. 

Vamos, por exemplo, contar-lhes um caso que nos referiu 
Pitet e que trouxe Deleuze nos maiores embaraços, relati- 
vamente a uma acção em que serviu como testa de ferro 
um parente ou amigo desse Pitet e que, em certa altura, 
tendo virado de bordo contra Deleuze, quiz, corresponden- 
temente, imprimir novo rumo á acção, — o que quasi fez 
o nosso Rocambole, em movimentos de verdadeira epilepsia, 
dar pulos terríveis em seu escriptorio no Rio. 

. . . Mas já é noite. Vemos que as luzes na praça Vendôme 
já estão accesas. Os ruídos longínquos de automóveis pela 
rua Rivoli e pelos grandes "boulevards" annunciam que a 
elegância pariziense já volta do Bois. Fica, pois, o resto, 
para outro encontro. 

— Não, dr. — dísse-nos o representante do "Office Na- 
tional". Esses factos me estão interessando vivamente. 
Permitta-me que os coinvide para jantarmos juntos, se ou- 
tros compromissos não tiverem, para que nos possa enfro- 
nhar nessa rede complicada de artimanhas que hão de assi- 
gnalar a passagem de Deleuze pelo Brasil. 



XII 



Somos obrigados a interromper a minuciosa narração que 
vínhamos fazendo, em Pariz, ao representante do "Office Na- 
tional", relativamente aos processos de trapaça empregados 
no Brasil pelo já afamado Paul Deleuze. Vemo-nos cons- 
trangidos mais uma vez a abrir um parenthesis necessá- 
rio, porque, apesar da insensibilidade do trampolineiro, a 
pimenta hontem lhe ardeu deveras... 

Já esperávamos por esse resultado, embora não lhe te- 
nhamos ainda applicado o molho de malagueta que estamos 
preparando para a primeira opportunidade e que ha de fa- 
zel-o dar os mais incríveis pinotes. Espere uns dias e verá. 

Pensa Deleuze que o deixaremos mais pisar em ramo ver- 
de? Engana-se redondamente. 

Veiu hoje, ao explicar o caso da sua defesa no processo 
Bonin, o que constituiu objecto da interpellação do nosso 
artigo de ante-hontem, jogando, na forma do louvável cos- 
tume, o pó imponderável das suas artimanhas e falsificações 
aos olhos dos leitores incautos. 

Viu o publico, pela extensão das mofinas e das tiradas 
de hontem, que a coisa produziu effeito. 

Pois saiba agora que a defesa largamente divulgada por 
Deleuze, e com a qual pretende fazer obra perante os hon- 
rados ministros da Camará Civil, não passa das arguições 
que elle próprio produziu numa instrucção criminal adrede 



— 66 — 

preparada e promovida por um dos seus testas de ferro em 
Paríz, — processo em que elle mesmo, por via do seu assa- 
lariado e contra todas as normas da instrucção criminal 
franceza, pediu a expedição de uma carta rogatória á jus- 
tiça brasileira, para que aqui fosse elle processado, — coisa 
que ninguém conhece e legislação alguma consagra ou ad- 
mitte. 

Não fuja o illustre farçante com o "nariz" á seringa. 
Não é disso absolutamente que nos occupámos em nosso 
artigo, mas do processo que no departamento criminal do 
juiz Bonin corre "ex-officio", á requisição do governo fran- 
cez, e daquelle que, nas mesmas condições, embora por ou- 
tros crimes, corre perante o juiz Borgueil. 

Vê por ahi o publico que Deleuze é sempre o mesmo far- 
çante, inegualavel na sua obra de "stelio", a armar mysti- 
ficações em todos os cantos e a fantasiar processos adrede 
arranjados, de modo a legitimarem pretensas defesas por elle 
anteriormente combinadas. 

Foi na defesa de caracter reservado, em segredo de jus- 
tiça, na legação da França no Rio, que Deleuze produziu as 
audaciosas imputações a que nos referimos. Elle não teria 
coragem para fazel-o em rogatória distribuída á justiça 
federal do Brasil, porque, tratando-se de peça que transi- 
taria pelos nossos auditórios, o Rocambole não se animaria 
a tanto, a despeito de sua conhecida audácia. 

Não é exacto que esteja terminado o processo perante o 
Juiz Bonin, como também não se acha encerrado o processo 
perante o instructor Borgueil. E, por isso, nutrimos ainda 
esperanças de ver o pedido de extradicção de Deleuze for- 
mulado ás autoridades brasileiras. 

E já que não ha meio de convencer o farçante, a não ser 
applicando-lhe na pelle o verdadeiro ferro em brasa, aqui 
vamos transcrever, no seu próprio original, a conclusão do 
juiz Bonin, declarando-o incurso nos crimes de abuso de 
confiança e estellionato : 



— 67 — 

. . . Des Ia declaration de Ia f aillite de Ia Compa- 
gnie des Chemins de Fer du Nord de São Paulo, 
Deleuze, á la tête d*une societé anonyme constituée 
á Wilmington (Etats Unis), c*est constitué le de- 
fenseur des porteurs d'obligations du Nord de São 
Paulo et reçut d*un certain nombre d'eux le mandat 
de les representer au mieux de leurs interêts. 

. . . Les obligataires f rançais qu'i] était chargé de 

^ defendre ont ainsi perdu leur garantie de premíére 

hypotheque et Deleuze A COMMIS A' LEUR 

EGARD LES DELICTS D'ABUS DÊ CONFIAN- 

CE ET D'ESCROQUERIE- 

A audácia desse trampolineiro terrível chegou ao extremo 
de fazer o seu patrono — um homem respeitável e digno de 
<:onceito — affirmar, com a sua assignatura, factos que po- 
dem ser desmentidos e contraprovados com a maior facili- 
dade deste mundo. 

E' assim, por exemplo, que o levou a asseverar a existên- 
cia, perante o juiz Borgueil, em Pariz, de uma instrucção 
criminal contra L. Behrens & Sohne, quando a verdade é 
inteiramente outra, pois o processo corre precisamente con- 
tra Deleuze, só apparécendo ahi os banqueiros hamburgue- 
zes incidentemente, pela circumstancia de haverem celebra- 
do com Deleuze os negócios soturnos que já expuzemos 
amplamente. 

Quando aqui esteve um dos sócios daquella firma banca-' 
ria da Allemanha, viu-se na necessidade de explicar clara- 
mente ao publico esse facto, porquanto Deleuze, adoptando 
o systema que, aliás, elle hoje aconselha, numa repellente 
mofina que publica contra um respeitável senador da Re- 
publica que se acha ausente e enfermo na Europa, tem o ha- 
^bito inveterado de persistir na mentira, porque assim algu- 
ma coisa sempre fica, segundo o velho conceito de Beaumar- 
<:hais. 

Parece que, dominado por legitima desconfiança, seu pro- 



— 68 — 

prio patrono, ao referir-se, na transcripção de hontem, aos 
factos ligados ás queixas-crimes e cartas rogatórias contra 
o presidente da "Northern", cautelosamente allegou que tudo 
aquillo elle soubera por informação, — naturalmente de 
Deleuze. 

Andou acertadamente. Porque o seu cliente, muito de 
caso pensado, estabeleceu manhosamente uma confusão 
para surprehender a boa fé do publico e dos juizes, pro- 
curando assim apontar-nos como defra,udadores da verdade, 
quando é elle, Deleuze, quem systematicamente e no seu 
próprio interesse adultera todos os factos. 

Vê, pois, o trampolineiro que agora encontrou gente pela 
frente e que não pode continuar mais com aquelles planos, 
tão do seu agrado, que determinaram as suas varias inves- 
tidas perante a justiça, para arranjar, em pleitos de conluio, 
decisões que mais tarde se transformam nos seus "placards" 
pela "Secção livre" dos jornaes. 

Ha dias, alludindo a essa campanha de imprensa, teve o 
dr. João Arruda de publicar um artigo, defendendo-se de 
interpretações que eram dadas a palavras suas. Referiu en- 
tão que ellas decorriam da circumstancia de ter vindo a lume 
inteiramente truncada uma parte de suas allegações finaes. 

Entretanto, quem o fez, isto é, quem a truncou, foi o 
próprio "Justus", que não é outro senão o instrumento de 
Deleuze. 

Por ahi se vê que este, em sua voracidade e em seu 
propósito de tudo viciar, não respeita nem mesmo os traba- 
lhos forenses do seu advogado! 

Truncou as razões do dr. procurador geral do Estado; 
truncou os pareceres dos jurisconsultos trazidos a publico; 
truncou todas ás peças judiciaes em que tem baseado as 
opiniões emittidas por varias autoridades sobre o processo 
da fallencia; truncou e viciou a resposta dada á justiça 
franceza nas rogatórias vindas ao Brasil e acabou truncando^ 
o arrazoado do seu próprio patrono! 



XIII 



Somos obrigados a não techar ainda o parenthesis aberto 
«m seguimento ao nosso artigo de ante-hontem, quando ex- 
plicávamos, numa concatenação lógica de factos, varias e 
assombrosas façanhas nessa tortuosa questão da "Northern". 

Precisamos ainda hoje manter suspensa a attenção dos 
leitores, para explicarmos certos casos e incidentes indis- 
pensáveis á boa comprehensão dessa monumental falcatrua 
levada a effeito por Deleuze. 

Não costumamos apanhar nas sargetas as mofinas com 
que o trapaceiro procura, no seu vezo antigo, desviar a 
nossa attenção e o nosso ataque, quando percebe que abor- 
damos assumpto que não é do seu agrado. 

Mas hoje appareceu no "Estado" uma publicação assi- 
gnada por "Primeiroannista", na qual se pretende arguir 
de absurda a these que sustentámos de ser a deslapropriação 
matéria de Direito Publico e importar num^ acto de sobera- 
nia e num direito immanente do Estado. 

Devemos dar-nps pressa em responder a essa mofina, 
porque, pelo "estylo cipó" em que está vasada, lobrigámos 
desde logo, em suas entrelinhas, o provecto patrono de De- 
leuze, único mestre capaz, em S. Paulo, de usar da linguagem 
*'sarmentosa" em que o artigo está escripto. 

Não era preciso o atilamento de Boileau, nem o olhar 
aguçado de Brunetiére ou Fagfuet, para ver, sob aquelle 



— 70 — 

emmaranhado de idéas, os óculos do autor e exclamar : "alli 
está o homem!" E está, effectivamente. O pseudonymo que 
o subscreve é apenas um brado de consciência, .i 

O illustre professor, depois que se transformou em pa- 
trono de Deleuze e se poz a assignar as razões constantes 
do folheto que está fartamente distribuindo ao publico em 
seu escriptorio, resolveu de verdade re-iniciar o seu curso 
jurídico, matriculando-se de novo no primeiro anno da Aca- 
demia. Palpita-nos, porém, que não logrará mais concluir 
o curso . . . 

Devemos dizer-lhe, entretanto, que aquella "heresia" ju- 
rídica apontada na sua mofina não é nossa: é de Clóvis Be- 
vilacqua e é de Viveiros de Castro, no Brasil; é de Weiss,. 
é de Sabbatini, é de Bosio, é de Meucci, é de Pertili, é de 
Martelim, é, em summa, de todos os escriptores que na 
França e na Itália se occuparam do assumpto... 

Mas vamos ao que serve e continuemos a pegar Deleuze 
nas suas investidas tenazes contra a credulidade publica. 

Annuncia elle que se acha á disposição de quem quizer 
ler um folheto de 130 paginas, com a introducção da con- 
trariedade offerecida á carta rogatória de Pariz, em Agosto 
de 1918. E' o que se lê a pag. 12 d'"0 Estado", de 14 do 
corrente. Lá elle transcreve longos tópicos de sua defesa 
que diz produzida na rogatória da justiça franceza, visando 
assim demonstrar que defraudámos a verdade quando as- 
severámos que a peça authentica por elk apresentada em 
occasião opportuna é uma offensa e uma affronta á justiça 
•brasileira. 

Para demonstrar o contrario, Deleuze reproduz longos 
trechos do que então allega ter declarado, isto em Agosto 
de 1918. E alli se lêm, como dirigidos á justiça franceza, 
commentarios terríveis ao celebre caso do café, procurando 
attribuír a pessoas envolvidas nesse negocio uma funesta 
ingerência na questão da Araraquara. 

Pobre diabo! Nem mesmo as datas elle respeita! O caso 



— 71 — 

e os commentarios do negocio do café occorreram em fins 
de 1919, na França, e em principies de 1920, no Brasil. Como, 
pois, Deleuze, em Agosto de 1918, podia alludir, dirigindo-se 
á justiça franceza, a um facto que só veiu a divulgar-se 
um anno depois? 

Vê, pois, Deleuze como é fácil apanhar os mentirosos da 
sua "estirpe". E vê também o sr. dr. João Arruda como é 
perigoso a um homem de suas tradições moraes acreditar 
num farçante dessa laia. 

Tudo aquillo que elle escreveu pelos jornaes, como dito 
i justiça franceza, não passa de uma fantasmagoria agora 
arranjada para impressionar o publico e ludibriar os minis- 
tros do Egrégio Tribunal, aos quaes, segundo confessa, 
mandou os folhetos falsificados. 

Não se pôde imaginar melhor meio para provar a inver- 
dade das suas allegações, salvo se Deleuze reúne ás suas 
façanhas de "seroe" as qualidades originaes do barão de 
Ergonte. 

Podemos dizer com aquella ingenuidade do pobre e hu- 
milde cordeiro da fabula: "natus non eram..." Realmen- 
te, os factos ainda não tinham occorrido quando o farçante 
se dirigia á justiça franceza, na celebre rogatória a que nos 
referimos. 

E, a esse propósito, convém repetir que, quando na França 
se achavam em andamento os processos criminaes "ex-offi- 
cio" contra Deleuze, este arranjou um testa de ferro, como 
. muitas vezes praticou em S. Paulo, afim de que depositasse, 
perante um juiz de instrucção, uma querella contra elle 
próprio, reclamando a expedição da rogatória á justiça bra- 
sileira, afim de facilitar a apresentação da defesa que tinha 
cm vista, com o propósito, adrede preparado, de produzir 
impressão nos meios francezes. 

E' facto que essa rogatória foi dirigida á justiça federal no 
Rio. E' facto que nella Deleuze adduziu a sua defesa, acom- 
panhada de innumeros documentos. Mas a que elle fez pu- 



72 



blicar ante-hontem nos jomaes, e que anda a distribuir ao 
publico, somente agora forgicada, não é absolutamente, nem 
a adduzida naquella rogatória, nem a que produziu á requi- 
sição do juiz Bonin. 

Já viu o publico a que extremos conduz a coragem inaudita 
desse homem? 

Não podemos também deixar de referir neste artigo, para 
bem orientarmos a opinião e não vel-a colhida nas surpre- 
sas habituaes de Deleuze ã boa fé dos inoautos, uns tantos 
esclarecimentos ligados ao momento da acquisição do activo 
da Araraquana pela "Northern". 

Vive Deleuze a transcrever nos jomaes, com irritante 
insistência, a opinião do dr. João Dente, como advogado 
que foi de um dos liquidatários daquella fallencia; a do dr. 
Adolpho Gordo, como advogado quê foi de L. Behrens & 
Sohne, representante do* credito hypothecario habilitado no 
processo; a dos liquidatários, srs. Francisco de Sampaio 
Moreira, Edward Wysard e Fritz Weber; a do dr. Sylvio 
de Campos, curador fiscal das massas fallidas; a do dr. 
Sylvio Penteado, representante da fallida, e a do dr. Martins 
de Menezes, juiz do processo, — todas então favoráveis ao 
negocio que se celebrava. 

*'Quid inde"? Jamais se contestou isso. E é justamente 
ahi que está toda a façanha de Deleuze. E' exactamente tal 
coisa que constitue a "mise-en-scéne" de que falam os cri- 
minalistas, capaz de surprehender a boa fé ordinária, dando 
a crer ás victimas um facto inteiramente fantástico. 

Quando se celebrou aquelle contrato,^ evidentemente a 
"Northern", que comparecia em juizo afiançada pelo Banco 
do Commercio e Industria e amparada pelos banqueiros 
allemães L. Behrens & Sohne, era uma empresa que não 
podia deixar de receber, de todos aquelles profissionaes e 
interessados no negocio, o acatamento que devia merecer 
quem se apresentava com semelhantes titulos de seriedade. 

Não ha, pois, como demonstrar versatilidade, nem como 



— 73 — 

attribuir mudanças de attitude na conducta ulterior que ti- 
veram todos os interessados, SEM EXCEPÇÃO DE UM SO', 
contra Deleuze, quando viram, pelo desenrolar dos acon- 
tecimentos, que tinham sido victimas de uma grosseira burla. 

Então, realmente, o negocio se apresentava o mais van- 
tajoso possível. De cerca de quarenta mil contos era o pas- 
sivo verificado, e cuja responsabilidade a "Northern" assu- 
miu. Numa avaliação exaggerada, os bens da massa fallida 
foram estimados em vinte mil contos, mais ou menos. E, 
assim, nem os credores privilegiados receberiam integral- 
mente os seus créditos. Logicamente, o negocio proposto 
por uma empresa de tal forma recommendada € que se obri- 
gava a pagar, em prazos convencionados, a todos, integral- 
mente, seus créditos, era o único que na occasião poderia e 
deveria ser acceito. ' 

Resta,' porém, vêr como Deleuze^ cumpriu aquillo a que se 
compromettera. 

Um dos seus primeiros passos foi transferir a sede dí^ 
empresa para o Rio, retirando-se da acção fiscalisadora dos 
credores, a que estava obrigado, entretanto, pela escriptura 
de acquisição. 

A seguir, tendo-se compromettido a adquirir a massa para 
L. Behrens & Sohne, que iriam correspondentemente cum- 
prir as obrigações aqui contrahidas com todos os credores, 
de prompto começou a jogar as cristas com aquelles seus 
mandantes e transformou o negocio, que era delles, em ne- 
gocio exclusivamente seu. 

Qaro é que todos os credores, tanto os chirographarios 
brasileiros, como os debenturistas francezes, estariam per- 
feitamente seguros, se seus créditos fossem garantidos por 
uma casa bancaria como a de Hamburgo. Mas ficaram intei- 
ramente a descoberto quando o dono exclusivo da empresa 
passou a ser Deleuze, que de seu só tinha o terno de xadrez 
que trazia no corpo. 

Partindo para o Rio, o audacioso galopim começou a re- 



— 74 — 

• - . * 

colher em seu nome exclusivo as rendas da estrada, a ponto 
de ter, no momento da desapropriação, no seu e no nome de 
um testa de ferro, a quantia de 5.740 contos, depositados em 
dois bancos norte-americanos ! 

Durante cerca de seis annos, tantos quantos approxiina- 
damente teve a funesta gestão da ^'Northern" na Arara- 
quara, Deleuze não pagou um vintém aos debenturistas 
francezes e não pagou um real aos credores brasileiros ; não 
publicoti um só relatório ; não apresentou um único balanço ; 
não deu noticia alguma dos seus actos . . . 

E' ou não evidente que todos aquelles que em 1916 se 
manifestaram a favor do negocio têm hoje motivos de sobra 
para considerar tudo aquillo uma obra terrivel de estelliona- 
to, executada friamente por um extrangeiro audacioso á face 
da nossa justiça, que elle ainda, nos estertores de sua agonia, 
procura ludibriar e infamar? 

E, a tal respeito, não podemos encerrar estas linhas sem 
uma allusão final a esse caso nefando, em que Deleuze pro- 
cura envolver o 'nome do senador Adolpho Gordo. 

Era este o advogado de L. Behrens & Sohne. Vindo De- 
leuze ao Brasil, tinha de ser, naturalmente, apresentada 
pelos banqueiros hamburguezes a quem aqui representava os 
seus interesses. Quem era elle? Aquelle senador da Republica. 

Não havendo luta de interesse e, a:o contrario, verificando- 
se apparentemente a maior harmonia de vistas, Deleuze co- 
meçou, para execução de seu negocio, a encarregal-o de múl- 
tiplos serviços profissionaes. Onde a incompatibilidade? 
Onde a divergência de interesses? Exerce aquelle senador, 
como todos sabem, a profissão de advogado em S. Paulo e, 
pois, mui naturalmente, cobrou do seu novo cliente honorá- 
rios pelos serviços que lhe passou a prestar. Onde a memor 
offensa aos dictames da ethica profissional? 

Mas, em dado momento, pelos telegrammas de L. Behrens 
& Sohne, verificou o senador Adolpho Gordo que os seus 
primitivos clientes tinham sido ludibriados, num tecido de 



— 75 — 

fraudes criminosas, pelo insuperável trampolineiro. Procurou 
chamal-o á razão. Nada conseguiu. E por isso ficou com o 
«eu antigo cliente, numa luta moralisadora e até patriótica 
contra o farçante, que illudira, não só a sua boa fé, como a 
de todas as pessoas envolvidas no negocio. 

Onde a conducta merecedora dos revoltantes ataques com 
que diariamente o alveja pelos jornaes o terrivel Rocambole? 

Mas já vae longo este artigo e ainda temos que descamar 
uma nova gangrena desse audacioso aventureiro. 



XIV 



o illustre advogado de Deleuze não é positivamente um 
homem para discussões pela imprensa. Bem se vê que o seu 
campo de acção é outro. E* mais fácil, do alto de uma cathe- 
dra, impingir, a uns tantos neophytos em coisas de direito, 
doutrinas sobre as mais extravagantes theses, porque elles 
tudo engolem e tudo acceitam, do que sustentar com galhar- 
dia, nesta terrível arena movediça da imprensa, a posição 
falsa de patrono de um titmipolineiro contumaz. . v 

O distincto causidico tem demonstrado que não é do seu 
agrado representar as duplas posições e as equivocas attitudes 
a que Deleuze obriga habitualmente os seus próprios patronos. 

Assim, num dos seus artigos desta semana, o sr. cjr. João 
Arruda veiu a publico dizer que umas tantas interpretações 
erróneas attribuidas a um seu conceito — e bem grave era 
elle! — decorriam necessariamente de haver sido publicado 
um trecho de suas allegações inteiramente truncado. Teve o 
cuidado de pôr em versai essa expressão para bem accentuar 
que viciaram o seu pensamento. 

Revidámos immediatamente que o autor daquella fraude 
fora o seu próprio cliente, useiro e vezeiro nessa forma des- 
honesta de discutir em publico as questões que lhe interes- 
sam. 

Viu aquelle advogado a posição dif ficil em que o collocou 
Deleuze. E hoje, dando as mãos á palmatória — coisa bem 



— 78 — 

feia para quem já atravessou com certeza o cabo das Tor- 
mentas — confessa publicamente que fora de facto o seu 
cliente o autor do truncamento, mas que o fizera sem pro- 
pósito de má fé. 

E é desse modo que Deleuze deseja ser acreditado e pre- 
tende impressionar o publico e os julgadores de sua causa, 
allegfando a cada passo que as nossas arguições gravíssimas 
contra elle são contos da carochinha, destituídos de qualquer 
prova ! 

Mas não vê elle, entretanto, que citamos factos com todo» 
os pormenores, indicando os documentos públicos em que 
muitos estão provados; declinando nomes de pessoas con- 
ceituadas que até agora não nos desmentiram ; referindo to- 
das as minúcias que dão o cunho de rigorosa verdade a tudo 
quanto aqui temos denunciado? 

Mas é tempo de fechar o parenthesis que abrimos e que 
precisamos encerrar, para methodo da exposição que estáva- 
mos fazendo naquella sexta-feira de Maio de 1919, ao repre- 
sentante do **0£fice National", em Pariz. 

Cumpre, pois, que prosigamos na nossa narrativa, da qual 
a cada passo Deleuze nos procura desviar, armando uma 
atoarda qualquer, sempre que o assumpto lhe põe a desco- 
berto as baterias. 

Sentados a uma das mesas do restaurante Divans, entre 
Rivoli e Castigloni, contávamos ao representante do "Office 
National" o velho habito de Deleuze, aqui no Brazil, crear 
questões puramente imaginarias por intermédio de testas de 
ferro e contra elle próprio, com o fito de desnortear os inte- 
ressados e de preparar decisões, que são sempre por elle 
transformadas em sua pomposa reclame pela "Secção livre" 
dos jornaes. 

Tem Deleuze a mania da COISA JULGADA. Para elle — 
como se vê, aliás, na publicação que vem fazendo ha dias 
com insistência — até a decisão incidente no archivamento 
de um simples inquérito policial produz COISA JULGADA.. 



— 79 — 

E por isso, nesse falso conceito do instituto, que aliás não 
pede produzir effeito contra terceiros, extranhos aos fantás- 
ticos litigios que elle prepara, tem particular apego a essa 
arma de combate, que considera uma das mais efficazes de 
successo nos seus litigios. 

— Contava-nos Pitet, que foi um dos primeiros inspectores 
da ''Northern" na administração Deleuze, que, certa occa- 
sião, quando o dr. João Sampaio, representando um grupo 
de debenturistas francezes, interpoz um recurso qualquer em 
S. Paulo contra a decisão judicial mandando entregar a es- 
trada áquelle individuo, e quando o conselheiro António 
Prado, no Rio, tratou, em nome dos debenturistas francezes 
e por intermédio do seu advogado, dr. Prudente de Moraes, 
de annullar o negocio feito com o ''Northern", — imme- 
diatamente Deleuze se soccorreu de dois testas de ferro, 
um no Rio e outro em S. Paulo, movendo cada qual uma 
acção, que passaram a correr parallelamente com as medidas 
judiciaes requeridas por aquelles illustres profissionaes. 

A respeito do conselheiro António Prado, portador de um 
nome que em nosso paiz constitue um verdadeiro patrimó- 
nio nacional, é original o intuito que Deleuze procura attri- 
buir-lhe nesse negocio da "Northern", como se algum inte- 
resse directo elle tivesse no caso. Mas os senhores sabem 
que, em tudo isto, elle nada mais faz do que attender a uma 
insistente solicitação de interessados francezes que, inteira- 
mente ludibriados por aquelle farçante, lhe pediram accei- 
tasse um mandato para a defesa de seus direitos, afim de com 
elle constituir no Brasil um advogado que pudesse tomar 
conta da causa. E o conselheiro António Prado limitou-se a 
receber o mandato, transferindo-o, no Rio de Janeiro, a um 
advogado da integridade moral do dr. Prudente de Moraes, 
patrono que em boa hora elegeu. Só- porque o eminente bra- 
sileiro, ouvindo o que na Europa se commentava a respeito 
dessa innominavel "escroquerie" e verificando a procedência 
das accusaçÕes feitas a Deleuze, consentiu em que seu prés- 



— 80 — 

tígioso nome servisse de ponto de convergência de todos os 
debenturistas, acquiescendo assim a um pedido insistente da 
associação respectiva, — só por isso tem sido coberto dos 
mais infamantes baldões, pois que Deleuze por este meio 
procura ver se consegue afastal-o do propósito louvável 
de prestar soccorro ás pobres victimas do aventureiro. 

Quando o dr. João Sampaio tratou da medida judicial a 
que nos referimos, Deleuze, com umas poucas debentures de 
que era portador e que não chegavam talvez a um cento, 
encarregou Pitet de obter que um seu parente ou amigo 
dizendo-se dono desses títulos, propuzesse uma acção con- 
tra a "Northern", allegando os mesmos factos que o dr. 
João Sampaio, em S. Paulo, e o dr. Prudente de Moraes, no 
Rio, articularam contra a famigerada empresa, esperando 
assim ter uma decisão judicial de modo a satisfazer os seus 
interesses antes que os pleitos legitimos tivessem o seu 
desfecho final. 

Mas eis que surge uma luta tremenda entre Deleuze e 
Pitet... Ainda hoje este nos referiu que, em toda a sua 
existência, já avançada em annos, não comprehendera nunca 
que um homem pudesse ter motivos legitimos para tirar a 
vida a. um seu semelhante. Todavia, depois das façanhas de 
Deleuze e do embrulho criminoso em que o envolvera, con- 
tra a sua vontade, affectando-lhe gravemente o nome e a 
honra e podendo inutíHsar-lhe para sempre a- reputação, 
houve instantes em que se convenceu de que só a obra da 
Providencia poude suster-lhe o braço e evitar que elle, no 
escriptorio da "Northern",, no Rio, liquidasse com uma 
bala o grande patife. 

Ao mesmo tempo que em S. Paulo a acção contra a "Nor- 
thern" era proposta por esse amigo ou parente de Pitet, — 
lío Rio, outro individuo desclassificado, unindo uma ou duas 
debentures da "Northern", propoz acção idêntica, perante 
uma das varas da justiça federal, pretendendo assim Deleuze 
firmar (o que também constituiu objectivo dos seus mui ti- 



81 — 



pios conflictos de jurisdicção) a competência daquelle foro, 
fugindo de vez de S. Paulo, cuja justiça^ o apavora, pois ella 
conhece de sobra todas as suas façanhas. 

Aconteceu, entretanto, que, por motivo da briga entre 
Deleuze e Pitet, este procurou desvendar toda a tramóia e 
desmoralisar de vez a acção simulada do testa de ferro, fa- 
zendo mesmo que elle, que era seu parente ou amigo, fosse 
a juizo confessar os factos com todos os pormenores. 

Andou o nosso Rocambole aos pulos. A luta chegou mesmo 
a tomar uma feição bem séria. E elle não teve escrúpulos 
em fantasiar um processo de apropriação indébita contra 
Pitet, procurando por essa forma amedrcntal-o e desmora- 
lisar qualquer attitude ulterior que porventura aquelle as- 
sumisse. 

Foi ahi que o pobre homem, victima da má fé de Deleuze, 
vendo o seu nome infamado num processo crime, em que era 
accusado de se ter apropriado de um dinheiro que por ordem 
do próprio Deleuze elle conduzira ao Rio e entregara de 
boa fé, sem recibo, ao audacioso "erscroc", — foi ahi que Pitet 
teve o momento de desespero a que alludimos. 

. . . Mas nada ha a surprehender na vida desse farçante. 
Imaginem que aqui, em Pariz, no escriptorio do dr. Gaye, 
Deleuze se apresentou dizendo-se portador de quarerita mil 
debentures da Araraquara, isto é, de uma maioria absoluta 
dos títulos emittidos. O velho advogado mandou verificar 
o facto, no escriptorio de Deleuze, á rua das Pyramides. A 
pessoa encarregada de fazel-o teve a opportunidade de cons- 
tatar que elle effectivamente possuía os títulos, Mas, depois 
descobriu que esses títulos eram falsos, conforme o próprio 
Deleuze confessou em juizo, pois ahi declarou que, effectiva- 
mente,. possuía apenas duzentas debentures, ao todo, da 
emissão da Araraquara. E essa confissão foi plenamente 
confirmada, porque os títulos legítimos ' appareceram mais 
tarde nas mãos dos debenturistas que se reuniram para dar 



^ 



— 92 — 

procuração ao conselheiro António Prado, afim de represen- 
tal-os no Brasil. 

Agora, para rematar: 

— Queria que os srs. ouvissem a leitura da carta que 
Gaye escreveu a Littman a esse respeito e das que este c 
Gaye dirigiram ao senador Adolpho Gordo no Brasil. São 
de pasmar ! 

Não é para surprehender que um homem de tal naipe 
tivesse a audácia, quando o governo de S. Paulo desapro- 
priou a "Northern" e depositou o dinheiro no Thesouro do 
Estado, de escrever a L. Behrens & Sohne, propondo-sc 
dar-lhes a quantia de trinta mil libras, isto é, cerca de mil 
contos ao cambio do dia, com a condição de elles deixarem 
ao abandono os debenturistas francezes e os chirographarios 
brasileiros, consentindo que elle, Deleuze, levantasse os 
15.600 contos depositados! 

Mas este artigo já vae longo. E temos que nos referir 
com pormenores a essa carta, confirmatoria de um tele- 
gramma que bem retrata o audacioso aventureiro. 



XV 



Viram os leitores qae Dcleuze surgiu hoje n"'0 Estado" 
com uma das suas habituaes mofinas, pretendendo mais uma 
vez destruir as nossas informações categóricas e demonstrar 
que já pagou cerca de 2.500 contos, de prestações vencidas, 
aos credores debenturistas francezes, em consequência do 
contrato celebrado pela **Northern" para acquisição da mas- 
sa fallida da Araraquara. 

O incommensuravel farçante perdeu decididamente as 
estribeiras. 

Os leitores que têm acompanhado os nossos artigos hâO 
de estar lembrados de que, num delles, logo no inicio da 
série, contámos que Fritz Weber, comparecendo como repre- 
sentante de L. Behrens & Sohne, na escriptura de 7 de Fe- 
vereiro de 1916, renunciou á hypotheca que garantia as de- 
bentures emittidas pela fallida, e, logo depois, por outra 
escriptura publica, confessou ter recebido de Deleuze as no- 
vas obrigações emittidas pela "Northern", em substituição 
das debentures quitadas pelo instrumento acima referido. 

Tudo isso foi uma burla genuina. Nem tempo material 
teve a "S. Paulo Northern" de mandar imprimir os titulos, 
que só seis ou oito mezes depois andou offerecendo aos cre- 
dores habilitados na íallencia, em substituição dos seus 

créditos. 



84 — 



Excusado dizer que os debenturistas francezes e a quasi 
generalidade dos credores chirographarios brasileiros não 
acceitaram a trapaça dessa substituição. 

Deleuze ficou, pois, em carteira cem todos aquelles titules^ 
que, ' segundo a escriptura passada por Fritz Weber, este 
falsamente declarara haver recebido em substituição das 
debentures. 

Como sabem os leitores, Fritz Weber era o mandatário 
arranjado por Deleuze para os banqueiros allemães. 

O nosso Rocambole, tendo em seu cofre os titulos emit- 
tidos pela "Northern" e que se destinavam aos debenturistas 
francezes, de vez em quando, com a cohorte variada dos seus 
testas de ferro, simula pagamentos a elle próprio, que ainda 
retém os titulos, e faz photographar os receibos, passados 
invariavelmente pelos comparsas da sua innominavel fa- 
çanha. 

Esqúece-se, entretanto, o hábil "escroc" de que, pela es- 
criptura entre os banqueiros hamburguezes e a directoria da 
Araraquara, só aquelles têm qualidade juridica para receber 
qualquer pagamento relativo aos juros ou resgate de deben- 
tures, porque, como administradores, fiduciários e "trustees",. 
se reservaram essa qualidade. 

Esquece-se de que tal condição foi acceita pelos deben- 
turistas francezes, de modo que só ha um meio de provar 
pagamento daquelles titulos: ou a exhibição da debentuie, 
ou recibo de L. Behrens & Sohne. Mas Deleuze não apre- 
sentará nenhum documento nestas condições, a não ser no 
tocante aos poucos titulos de que é portador por acquisi- 
ção feita na Bolsa de Pariz, aproveitando-se da baixa. 

Segundo, porém, o próprio trampolineiro tem confessado 
a diversas pessoas, orçarão por umas duzentas, quando muito, 
as debentures que terá assim adquirido, — tal a resistência 
e a energia dos credores francezes em entrar em qualquer 
combinação ou conchavo com o seu famigerado patrício. 

Conta-nos elle, ainda, na sua mofina de hoje, que por vezes 



85 



já tem offerecido pagamento aos credores debenturistas 
francezes e aos chirographarios brasileiros. E' exacto. Aos 
primeiros offereceu de 60 a 80 francos por uma debenture 
do valor nominal de 500. Aos segundos offereceu dez por 
cento do valor dos seus créditos. E é isto o que elle não qui^ 
dizer na sua mofina. í^rocurou assim comprar, por quatro 
mil contos em globo, approximadamente, o direito de levantar 
em juizo a somma de 15.000 contos, depositada no Thesouro 
do Estado. 

Acreditava o terrivel mystificador que ainda conseguiria, 
mais uma vez, ludibriar a boa fé dos incautos, — boa fé tão 
duramente posta á prova no momento tenebroso da apre- 
sentação e acceitação da proposta da "Northern" para acqui- 
sição do activo da Araraquara. 

Hoje, porém, não obterá mais nada. Mas é preciso que os 
credores chirographarios, de uma vez por todas, criem juizo 
e se unam com os debenturistas francezes, constituindo uma 
liga tenaz de resistência e levantando uma muralha de aço, 
em torno do dinheiro depositado, para impedir que Deleuze 
consiga botar mãos rapaces em qualquer parcella^ daquella 
seductora bolada. Porque fugiria depois do Brasil para logar 
ignorado, a rir-se de nós e da nossa credulidade e a referir 
mais uma vez em suas cartas que a mentalidade do nosso 
povo é muito semelhante á dos coloniaes francezes, a quem 
se engabella com a offerta longínqua de contas de vidro 
multicores . 

Não tivemos opportunidade de referir nos nossos artigos 
um caso curioso a respeito de Fritz Wéber, que tão im- 
portante papel representou em toda essa falcatrua. 

Procurámos ver na relação dos- passageiros vindos pelos 
vapores em que elle e Deleuze chegaram ao Brasil o nome 
desse conspícuo personagem, nome arrévezadamente allemão 
e que Deleuze fez aqui apparecer com a partícula indicativa 
de uma nobreza fantástica, a contrastar com a modéstia do 
original "valet de chambre". Não lográmos, porém, encon- 



— 86 — 

tral-o. Causou-nos espanto, diante da rigorosa policia que os 
alliados exerciam nos mares sul-americanos, que um homem, 
portador de nome tão caracteristicamente germânico, con- 
seguisse atravessar o Atlântico sem se inscrever no registo 
de bordo com as indicações precisas de sua procedência. 

De pesquisas em pesquisas, de indagação em indagação, 
tivemos logo a explicação do facto, aliás confirmada por 
Fritz Weber na mesa de um hotel de Campinas, em presença 
de varias pessoas aqui conhecidas, quando elle mesmo disse- 
ra que Fritz Weber fora apenas um "nome de guerra", ista 
é, um nome que o terrível Rocambole lhe arranjara para 
figurar na procuração que L. Behrens & Sohne tiveram de 
lhe passar, a pedido de Deleuze, — nome que não podia 
constar do registo de bordo, pois nunca se chamara assim. . . 

Deleuze vive a assoalhar nos seus artigos, com o desplante 
que o caracterisa, que o caso da desapropriação da Arara- 
quara representa uma expoliação sem nome, porque não 
houve o deposito do equivalente e necessário para que a 
Fazenda Publica pudesse incorporar ao seu património os 
bens da empresa expropriada. 

O dinheiro, entretanto, como toda a gente está farta de 
saber, ficou regularmente depositado no Thesouro, em vir- 
tude de reclamação feita pelos únicos interessados legítimos, 
que, estabelecendo concurso de preferencia sobre o quantum* 
reclamaram aquella providencia !acauteladora dos seus di- 
reitos. 

Para que o publico ajuize do propósito primitivo de De- 
leuze, vamos ref erir-lhe o contexto de uma carta por elle 
dirigida a L. Behrens & Sohne, em 27 de Março de 1920, na 
qual peremptoriameôte declarava concordar com todos os 
factos, desde que lhe fosse assegurado o direito de avançar 
impunemente nos 15.600 contos depositados no Thesouro. 

Eis o que dizia na carta : 

"O preço a ser pago pelo Estado de Sao Paulo 
na desapropriação da nossa empresa é de 15.600 



— 87 — 

/ 

contos. Este preço não deve e nio pôde ser pago 
aos credores da Araraquara, nem aos possuidores 
de títulos da nossa Companhia, para empregal-o 
em outras empresas ou negócios". 

Prosegue, depois de outras ponderações^ offerecendo trinta 
mil libras a L. Behrens & Sohne, pára "NAO O ATRAPA- 
LHAREM NO SEU PROPÓSITO, JA' BEM ENCAMINHA- 
DO, E NEM CONSENTIREM QUE O SENADOR GORDO 
O FIZESSE, POIS COM SEU PRESTIGIO E SEU NOME 
ESTAVA ATRAPALHANDO A OBRA DELLE, DELEU- 
ZE" ! 

Conclua, afinal, pedindo a L. Behrens & Sohne, se acquie- 
scessem na proposta, a revogação do mandato outorgado ao 
senador Adolpho Gordo, passando-a para advogado que elle 
indicava. 

Vê, pois, o publico á moralidade desse individuo. E é 
manifesta a sua intenção de levantar o dinheiro e com elle 
levantar também vôo de nossas plagas, porquanto, conforme 
;se vê do "Diário Official", da União, de 6 de Fevereiro de 
1916, a "Northern" foi constituída exclusivamente "para 
acquisição de uma estrada de ferro na parte septentrional do 
Estado de S. Paulo, sendo que essa estrada foi anteriormente 
de uma sociedade brasileira — Companhia Estrada de Ferro 
Araraquara — actualmente em liquidação". 

Ora, desapparecendo o objecto da Companhia, pela des- 
apropriação da estrada que ella explorava, é evidente, em face 
de preceito daro do nosso Código Civil, que os credores com 
garantia daquelle património desapropriado tinham o indis- 
cutível direito de habilitar-se no concurso de preferencia 
sobre o preço da desapropriação. 

Que fez então Deleuze? Pretendeu, já depois de decretada a 
desapropriação, como se estivesse num paiz inteiramente 
imbecilisado, alterar os fins e o objectivo da empresa fantás- 
tica que organisara para adquirir o activo da Araraquara. E 



— 88 — 

pretendeu archivar no Ministério da Agricultura uma acta 
elaborada com os seus comparsas, na qual se declarava que 
a "Northern", além do objectivo consignado no decreto de 
sua organisação e nos çeus estatutos, qual fosse a acquisição 
do activo da Araraquara, tinha mais o fito de outras explo- 
rações industriaes, como: montar serrarias, adquirir empre- 
sas jornalisticas no interior do Estado, comprar empresas de 
illuminação publicas e particulares e outras patifarias que 
se depararam ao espirito criminosamente inventivo de 
Deleuze. 

E então os jornaes de S. Paulo, do Rio de Janeiro e do 
interior começaram a publicar vários annuncios de compra 
de empresas typographicas ou jornalisticas e outras, indi- 
cando aos interessados o endereço da famigerada "Northern" 
no Rio. 

São essas as "nossas empresas" a que Deleuze se refere na 
carta dirigida a L. Behrens & Sohne. 

A propósito, ainda, desse caso já tão celebrisado, ao pas- 
spírmos hontem as nossas vistas, numa obra de reconstituição, 
no "Diário Official" que acabamos de citar, lá encontrámos, 
entre as clausulas que acompanham o dec. n. 11.930, de 2 de 
Fevereiro de 1916, autorisando a "Northern" a funccionar 
na Republica, a seguinte determinação, que bem mostra por 
onde andava o espirito do seu provecto patrono quando reve- 
lou aquelles zelos tão originaes a respeito da ameaça de in- 
tervenção diplomática com que Deleuze injuriou grave- 
mente a nossa justiça de segunda instancia: 

''Todos os actos que a "Northern*' praticar no 
Brasil ficarão sujeitos unicamente ás respectivas 
leis e regulamentos e á jurisdicçSo dos seus tribu- 
naes judiciários e administrativos, sem que em 
tempo algum possa a referida Companhia reclamar 
qualquer excepção fundada em seus estatutoi, 
cujas disposições não poderão servir de base para 



— 89 — 

qualquer reclamação concernente á execução das 
obras ou serviços a que elles se referem". 

Ainda ao ler o mesmo "Diário Official, a nossa memoria se 
avivou ao constatar que, segundo aquella publicação, os car- 
gos administrativos da "Northern" eram exercidos unica- 
mente por Paul Deleuze e J. A. Cristin, sendo que este ultimo 
occupava cumulativamente os logares de secretario e the- 
soureiro. 

Lembrámo-nos então de um episodio original, que ainda 
não referimos. Um dia, quando a justiça franceza deu busca 
no escriptorio de Deleuze em Pariz, onde arrombou um 
cofre e apprehendeu documentos importantes que elle me- 
lhor do que ninguém sabe onde se acham, lá teve opportu- 
nidade de prender o referido J. A. Cristin, o empregado de 
Deleuze e que tomava conta, em sua ausência, da terrível 
^'BIBOCA" que elle mantinha naquella capital. 

A*s voltas com a justiça, Cristin mostrou ignorar todos os 
factos em que seu nome estava envolvido, declarando perem- 
ptoriamente que nunca fora director de empresa alguma de 
Deleuze, mesmo porque nunca arredara pé de Pariz, não 
podendo, pois, exercer funcções administrativas numa socie- 
dade cuja sede se declarava ser no Estado de Delaware, na 
America do Norte. 

Aqui, no Brasil, Deleuze teve conhecimento desse facto e 
então apresentou em juizo, como já narrámos,' em um dos 
artigos, os nomes de dois outros administradores que deve- 
riam substituir Cristin, tão celebrisadamente desmoralisado 
pela justiça franceza. 

Os nomes que appareceram na relação offerecida no Fó- 
rum são, segundo refere Deleuze, de um ministro aposentado 
da França numa republiqueta da America Central, e um 
director, ou coisa que o valha, de um banco que elle dizia 
existir em Pariz. 

Nas nossas pesquisas ultimamente, na França, no Minis- 



— 90 — 

terio do Exterior, veríficátnos que nunca aquelle paíz possuiu, 
quer no serviço activo, quer no serviço inactivo, qualquer 
ministro com aquelle nome, não passando, pois, de uma fan- 
tasia de Deleuze o nome do tal diplomata que elle apresen- 
tara á nossa justiça como exercendo um cargo administra- 
tivo em sua empresa. E quanto ao banqueiro por elle referi- 
do, não passava de outra invencionice, pois tal banco não 
era mais do que uma arapuca creada pelo próprio Deleuze, 
apenas de rotulo e papeis timbrados, de cuja directoria elle 
também dissera a L. Behrens & Sohne fazer parte Fritz 
Weber, quando pediu que em nome deste, SEU COMPA- 
NHEIRO DE DIRECTORIA E HOMEM DE TODA CON- 
FIANÇA, fosse outorgada a procuração com que elle se 
apresentou no Brasil para figurar na "escroquerie" já tão 
minuciosamente referida. 

A respeito da burla original por elle praticada junto ao 
eminente advogado Paul Gaye, quando asseverou possuir 40 
mil debentures da Araraquara, usando do processo conhecido 
dos nossos vigaristas para impingirem o "paço", eis o que, 
em carta de 8 de Março de 1915, escrevia aquelle profissional 
a Littman: 

'MI (Deleuze) s'est presente devant nous non 
pas simplement avec un groá paquet de titres, 
mais avec la presque unanimité des obligations 
placêes en France". 

Ora, estando hoje bem verificado, pela própria confissão 
repetidamente feita por Deleuze em juizo, que elle só teve 
em mãos as cem ou duzentas debentures com que andou 
agindo no Brasil, é evidente que os titulos apresentados ao 
advogado Gaye foram falsificados, — o que, aliás, é con- 
firmado pelo apparecimento dos legítimos em mãos dos 
debenturistas francezes que outorgaram procuração ao con- 
selheiro António Prado. 



— 91 — 

E por tal forma conseguira elle illudir o advogado Gaye, 
que, em resposta á carta deste, dizia Littman, em carta de 
20 de Junho de 1915 : 

*'S'il est vrai que monsieur Deleuze tient en 
mains les pouvoirs de 40.000 obligations, il est 
hors de questíon de faire un arrangement sans 
lui". 

Tão convencido se achava a principio o advogado Gaye da 
burla que Deleuze lhe preparara, apresentando como verda- 
deiros boletins de adhesão fantásticos e debentures falsi- 
ficadas, que concluía sua correspondência com o mesmo 
Littman: 

'*II est incontestable qu'il (Deleuze) a en mains 
un grand nombre de pouvoirs d^obligations, plus 
de 40.000 qu*il en aura, encore, de nombreux au- 
tres...'* 

Se Deleuze representasse, como affirmou a Gaye, e que 
este, com o prestigio de sua autoridade refere, 40 mil deben- 
tures, evidentemente não teria necessidade de L. Behrens & 
Sohne, nem de pessoa alguma para determinar qualquer si- 
tuação na fallencia da Âraraquara ou nos negócios que lhe 
succederam, não precisando, em consequência, de usar das 
fraudes altamente criminosas que empregou. 

Mas lá, como aqui, sua obra repousou única e exclusiva- 
mente na mentira sórdida e descabellada : mentira para illu- 
dir os credores debenturistas francezes e os banqueiros en- 
carregados da emissão em Pariz, fazendo crer que já possuía 
a maioria e que ia exercer sua acção benéfica em proveito 
dos credores francezes ; mentira, fazendo acreditar a Littman 
essa situação, afim de pôr-se em contacto com banqueiros 
de paiz inimigo, em plena ef fervescencia da guerra ; mentira, 
fazendo apresentar-se com o supposto nome de Fritz Weber 



— 92 — 

e como seu companheiro de administração de um banco um 
"valet de chambre" suisso que contratara para o seu serviço 
na viagem que vinha emprehender ao Brasil; mentira, des- 
crevendo a L. Behrens & Sohne a situação que determina- 
ra o accôrdo destes com elle, Deleuze; mentira apresen- 
tando no Brasil, como directores de sua empresa, a principio, 
um empregado do seu escriptorio em Pariz e depois um 
diplomata francez aposentado que nunca existiu; mentira, 
dando como real a existência da "Northern", constituída na 
America do Norte, quando não se tratava senão de uma em- 
presa forgicada para os fins que elle tinha em vista no Bra- 
sil; mentira, descrevendo á justiça brasileira e aos credores 
chirographarios nacionaes factos inteiramente imag^arios 
para arrebatar a rica presa, cujas rendas passaram a consti- 
tuir exclusivamente em seu proveito a volumosa fonte de re- 
ceita donde tem canalisado para a imprensa as caudaes àt 
opprobrio contra os nossos homens e as nossas coisas. 



XVI 



Abrimos hoje um parenthesis á exposição fidedigna dos fa- 
ctos, relativamente á monstruosa "escroquerie" praticada por 
Paul Deleuze, que, mercê de uma ininterrupta série de chanta- 
ges, aboccanhou a massa fallida da Araraquara. 

O primeiro artigo da série em que nos propuzemos contar 
por meúdo o modo como se organisou a "Northern" e as ma- 
nobras fraudulentas de Deleuze para passar a perna nos cre- 
dores legitimos e nos accionistas daquella companhia, doeu na 
cabeça do famoso aventureiro como uma cacetada imprevista: 
não só lhe abriu uma brecha formidável, como também o dei- 
xou completamente tonto. E tonto de tal forma, que não soube 
o que responder ao nosso libello, limitando-se a balbuciar, em 
linhas pallidas, estas duas coisas : 

1.* — que a nossa campanha não diz respeito á desapro- 
priação. 

2* — que, se quizermos atacar a validade da compra, pre- 
cisamos recorrer a uma acção rescisória. 

Deprehende-se dahi que Deleuze é o primeiro a reconhecer 
que a compra da massa fallida da Araraquara foi o epilogo da 
formidável trapaça que urdira e consummára, até por proces- 
sos escusos de traição á pátria, quando a França estava em 
guerra com a Allemanha e elle não hesitara em ter entendimento 
com o inimigo, no território neutro da Suissa. 

Af firmar, entretanto, que a nossa campanha não diz respeito 
á validade da desapropriação é simplesmente pilhérico. Esta- 



— 94 — 

mos ainda no principio do começo, nesta exposição fidedigna 
e sensacional dos factos com que pretendemos mostrar ao pu- 
blico do Brasil e dos paizes extrangeiros, onde Deleuze man- 
tém aòcesa a mais vil campanha contra nós, quem é esse 
refinadissimo patife de gravata branca. 

Não dissemos ainda a centésima parte do que vamos dizer, 
e já Deleuze perdeu as estribeiras^i E' quasi certo que, dentro 
de poucos dias, quando tivermos formulado outros libellos, — 
elle já não esteja no Brasil e tenha fugido para logar igno- 
rado, onde a justiça franceza não possa promover a sua ex- 
tradicção e onde a justiça brasileira não o possa segurar pda 
goUa para o metter na cadeia. 

Nesse processo de fazer as malas, elle é tão expedito como 
qualquer caixeiro viajante: fel-as de Pariz para Genebra, no 
tempo da guerra, para conferenciar alli com inimigos da sua 
pátria e entrar com elles em^^onchavos pecuniários. Fel-as em 
seguida, em toma-víagem, para contratar os serviços de um 
individuo que se annunciára por intermédio de um "Bureau 
de placement" como simples "valet de chambre" e que elle 
não poz duvida em arvorar em banqueiro e procurador dos 
credores hypothecarios da Araraquara. Fel-as mais tarde, uma 
ve/ em S. Paulo, para se estabelecer no Rio e transferir para 
lá, a seu arbitrio, a sede e o escriptorio da companhia, afim de 
difficultar todas as diligencias então requeridas contra a já 
far/iigerada "Northern Railroad". Não será, pois, para sur- 
prehender que as torne a fazer com a mesma facilidade, para 
dar ás de villa diogo do paiz onde ha longos annos vem man- 
tendo a mais injusta, clamorosa e irritante campanha de diffa- 
mação contra os nossos homens, as nossas coisas e as nossas 
instituições, para o que, infelizmente, está contando com o pa- 
trocínio de advogados brasileiros, a quem paga com o dinheiro 
arrecadado á estrada de Araraquara e que elle, maroto como é, 
teve a cautela de recolher aos bancos em seu nome individual. 

Esse trampolineiro-niór é de uma audácia de tal forma sem 
limites, que conseguiu, torcendo factos a seu talante, illudir 



— 95 — 

homens da estatura de Ruy Barbosa e ministros do Supremo 
Tribunal do vultp do saudoso mestre dr. Pedro Lessa, obtendo, 
ao^ mesmo tempo, pareceres favoráveis de eminentes jurisconsul- 
tos, que se louvaram nas invencionices da manhosa consulta que 
lhes formulara, conforme tudo demonstraremos em tempo op^ 
portuno, quando tivermos chegado ao ponto capital da desapro- 
priação da estrada, para onde caminhamos com vagar, porque, 
antes de tudo, é necessário que o publico se inteire, em todos 
os pormenores, dos antecedentes da tramóia de Deleuze. 

Assignalemos, entretanto, desde já o desplante desse auda- 
cioso "chantagista", na ameaça que nos fez hontem, por inter- 
médio do mofineiro-mór que se assigna "Justus" nas publi- 
cações pagas com o dinheiro dos credores da Araraquara. 

Ameaça-nos elle com a intervenção diplomática, se a egrégia 
Camará Civil mantiver o accordam em j^ue deu ganho de causa 
ao governo do Estado no caso da desapropriação! 

Vale isto por atrevido "ultimatum" á nossa justiça, á qual 
o patife julga intimidar com a intervenção diplomática, como 
se qualquer paiz do mundo pudesse tomar as dores desse aven- 
tureiro e como se a justiça brasileira fosse a de qualquer obscura 
republiqueta e se curvasse, no seu veridicto, á ameaça de 
uma intervenção extranha á lei de que ella é a executora 
inflexivel. 

Mas que intervenção diplomática é essa com que elle ameaça 
a justiça de S. Paulo? 

Intervenção de que paiz? Será porventura da França? Mas 
ignorará Deleuze, por acaso, que nem lá sequer pôde ir, pela 
existência de dois processos crimes contra sua pessoa, num dos 
quaes já houve até mandado de prisão preventiva? 

Deleuze não saberá da attitude tantas vezes manifestada pe- 
los poderes públicos da França contra elle e a sua famigerada 
empresa, a ponto de fazer remover de S. Paulo um cônsul, aqui 
tão estimado e tão relacionado, só porque, ludibriado e igno- 
rando as coisas na Europa em relação á ''Northern'^, acceitou, 
de uma feita, convite de Deleuze para visitar a estrada? 



— 96 — 

Acaso não se lembrará Deleuze de que um representante fi- 
nanceiro da França, que aqui esteve em 1917, se não nos falha 
a memoria, se recusou terminantemente a recebel-o, allegando 
que não podia trocar idéas com um ''escroc^' da sua marca, 
sob pena de ser gravemente responsabilisado e punido quando 
regressasse ao seu paiz? 

Já se clvidou Deleuze de que os representantes da França 
no Rio de Janeiro têm ordens expressas de não manter enten- 
dimento com elle e de não attender a reclamação alguma de 
sua empresa, envidando todos os esforços, ao contrario, para 
evitar os enormes damnos que Deleuze tem causado aos de- 
benturistas francezes? 

Mas que intervenção diplomática é essa, com que elle ameaça 
a justiça de S. Paulo? 

Acaso, refere-se á America do Norte? 

Mas que interesse poderia ter esse paiz pela "Northern", 
quando é certo que não ha um dollar de capital americano em- 
pregado na urdidura da "escroquerie" que elle armou, ser- 
vindo-se da liberdade das leis dos Estados Unidos, para alli 
construir a fachada de sua sociedade anonyma? 

Demais, que interesse poderá ter qualquer paiz extran- 
geiro, principalmente a America do Norte, numa empresa 
que é a obra do crime e da felonia de um francez degene- 
rado que não sentiu ferver-lhe o sangue quando os seus 
co-nacionaes se achavam na luta mais horrível de que a 
historia ^á conta, preparando-lhes a traição infame :em 
que deviam ser tragadas as economias dos pobres porta- 
dores de titulos da Araraquara? 

E já que nos referimos a este ponto, convém que deixemos 
bem assignalado que não ha na empresa de Deleuze outros 
interessados — o que, aliás, vae constituir completa exposição 
num dos próximos artigos — a não serem os credores chiro- 
grapharios brasileiros e os credores debenturistas francezes e 
belgas, pois que o famigerado "escroc" não trouxe nem entrou 
para a sua companhia com um vintém sequer, mesmo porque 



— 97 — 

o não tinha, chegando ao extremo de serem as despesas de 
sua viagem para o Brasil — suas e de Fritz Weber — pagas 
pelos banqueiros L. Behrens & Sohne, e as suas primeiras des- 
pesas em S. Paulo ainda pagas com o dinheiro fornecido pelo 
Banco do Commercio e Industria, mediante carta de fiança 
dos ludibriados banqueiros allemães. 

A norma da conducta de Deleuze em toda a sua existência 
Icm sido o "bluff". 

Com elle, victimou os debenturístas fr^ncezes, levando-os a 
acreditar que ia defender os seus interesses e compellindo-os 
assim a assignar os boletins de adhesão a que já nos refe- 
rimos, para constituição da Liga de Resistência. 

Com elle victimou L. Behrens & Sohne, enganando-os c ob- 
tendo delles a procuração, sob o falso pretexto de que já repre- 
sentava a quasi unanimidade dos debenturístas francezes. 

Com elle victimou os pobres credores chirographarios bra- 
sileiros. dando-lhes a perceber a enganadora miragem de que 
já tinha em suas mãos, numa solidariedade completa, os ban- 
queiros allemães e os debenturístas extrangeiros. 

Com elle ludibriou a justiça da nossa terra, arrebatando uma 
rica presa avaliada em mais de vinte mil contos, quando de. 
seu trazia da Europa apenas o temo riscado que lhe cobria a 
nudez do corpo. 

Agora, com esse mesmo "bluff", o grande trampolineiro pro- 
cura enganar o governo e a juçtiça, fazendo crer na existência 
de interesses extrangeiros numa empresa constituída sem 
capital algum e na qual não ha outros interessados além 
dos já referidos. 

Alguém extranhou esse fausto de despesas com que De- 
leuze ha vários mezes vive a encher a "Secção livre" dos 
jçrnaes, na terrível campanha movida contra o nosso go- 
verno e os nossos homens públicos. 

Mas nada ha a admirar : ha cerca de seis annos, seguramente 
que está elle na posse de uma estrada de ferro em cuja con- 
servação e obras inadiáveis não gastou vintém, Tudo que a 



— 98 — 

empresa produzia era coUocado em bancos daqui e do Rio 
cautelosamente no nome individual de Deleuze, pois elle sozi- 
nho absorve a companhia, nem mesmo podendo indicar — o 
que, aliás, nunca fez — quaes são os respectivos adminis- 
tradores. 

Ora, calculam os entendidos — e na occasião opportuna de- 
monstraremos que esses cálculos correspondem á verdade — 
que Deleuze deve ter argamassado, nesta sua obra perversa e 
criminosa, cerca de seis mil contos. Não pagou a ninguém, não 
prestou contas aos debenturistas, não publicou balanço algum 
durante seis annos, não deu satis facções aos credores chiro- 
graphariõs e arvorou-se em dono exclusivo de toda essa volu- 
mosa massa de capital. 

Não é para surprehender, aliás, que despenda tão vultuosa» 
quantias com a sua sinistra empreitada, uma vez que tem os 
olhares volvidos para os quinze mil contos depositados ou para 
a própria estrada — esta rica jóia do esforço paulista — na 
hypothese de ganho de causa. 

"Bluff ando", tem conseguido Deleuze, até hoje, todos os 
resultados. Pensa cm obtel-os, ainda pelo mesmo processo, 
fiando-se muito na credulidade do nosso povo e na indiffe- 
rença da nossa administração, que tem até agora consentido 
que tão extraordinário patife viva a intrujar a humanidade. 

Além da ameaça da intervenção diplomática na causa da 
^'Northern" — hypothese cuja extravagância demonstrámos — 
ha também na declaração de Deleuze outra ameaça: a de re- 
querer a exhibição dos autographos destes artigos, para nos 
chamar á responsabilidade criminal. 

Não precisamos dizer que tudo quanto temos escripto e tudo 
quanto vamos escrever são a expressão rigorosa da verdade. 
E' a verdade nua e crua que ninguém disse ainda, mas que 
nós diremos, em nome da lavoura expoliada e amargurada pela 
^'Northern Railroad" durante todo o tempo em que pesou como 
um guante de ferro sobre a opulenta zona da Araraquara, rou- 
bando-lhe todas as energias num trafego anarchico de linhas 



— 99 — 

-sem dormentes c de trens sem horários. E* em nome também 
dos brios da nossa terra calumniada por esse trapaceiro e da 
honra do nosso nome vilmente ultrajado por esse reu reinci- 
dente de "escroqueries" que quer, em nova "chantage", fazer 
jús á mamata de uma grossa indemnisação extorquida aos co- 
fres públicos. 

Mas é tempo de reagir contra a audácia incommensuravel 
desse aventureiro, para que não continue impunemente a atas- 
salhar-nos a reputação e a intimidar a nossa justiça com o 
"ultimatum" de uma interpellação diplomática a favor dos 
seus botes de ave de rapina. 

E* o que estamos fazendo, na exposição rigorosamente fiel 
ae todos os factos que se relacionam com a aventura rocambo- 
lesca desse "chantagista" no caso da Araraquara e cuja prova 
nos promptificamos a produzir, completa e cabal, com innume- 
ras testemunhas daqui e de Pariz e com documentos copiosos 
dos próprios autos da fallencia. 



• « • * • •> • • ■* * < . 






• • • 



XVII 



Mais um pequeno parenthesis á nossa exposição sobre os 
antecedentes da desapropriação da Araraquara: breve resposta 
a Paul Deleuze. 

Esse cavalheiro de indústria se toma, ás vezes, realmente 
impagável. Temos mesmo o desejo de não tomais) a serio. 

Hoje, por exemplo, vem elle com uma declaração na "Secção 
livre" dos jornaes, dizendo que é um acto de covardia de 
nossa parte esconder-nos atrás de um pseudonymo c que não 
perderá tempo em responder a anonymos. 

Esquece, entretanto, o famigerado "escroç" que, sob múlti- 
plos pseudonymos, como "Justus" "et reliqua", vive a atacar 
desaforadamente os nossos homens e as nossas coisas, na lin* 
guagem mais rude e mais dif famatoria possível. E quando se 
chama á responsabilidade o autor de taes mofinas, não é De- 
leuze quem apparece, nem nenhum dos seus conhecidos advo- 
gados : quem surge em scena, assumindo a responsabilidade 
desses artigos, com que elle pretende formar opinião» perante 
os nossos tribunaes e perante os governos dos paizes que vão 
reclamar medidas de caracter internacional nos negócios liga- 
dos á "Northern", — ou é o japonez Suzaki, limpador do seu 
cscriptorio, ou é o pretinho que no Rio de Janeiro serve ou 
servia de encarregado da limpeza da agencia na "Northern". 

Tal aconteceu com o senador Adolpho Gordo, que teve essa 
decepção ao requerer a exhibição de autographos de um artigo 
que lhe era altamente diffamatorio. Tal aconteceu a um enge- 



« - > •• • • 



— 102 — 









sheíro, bastante conhecido nesta capital e que sof f reu a mesma 
surpresa de todos quantos têm requerido a exhibição, em juizo^ 
de autographos de "Justus": vêem pela frente um desclassifi- 
cado qualquer, a quem Deleuze incumbe o encargo de assignar 
o termo de responsabilidade na redacção dos jomaes. 

Agora, entretanto, fica todo abespinhado, entendendo que 
08 outros não têm o direito de revidar-lhe no mesmo tom. K^ 
bem certo o velho proloquio de que pimenta não arde naquella 
coisa dos outros, o que Deleuze certamente traduzirá por unia 
forma bastante conhecida no meio f rancez em que fala. 

E já que tocamos nesses dois personagens, que servem de 
testas de ferro ao famoso trapaceiro, ainda havemos de illus* 
trar uma pagina com os mais cómicos incidentes occorridos 
certa vez no seu escriptorio no Rio, quando alguém procurava 
conhecer o pobre pretinho que tão vehementes ataques escre- 
via na imprensa paulista. 

Já o escriptorio de Deleuze foi uma grande surpresa, por- 
que, por uma fatalidade que chamaremos histórica, elle esco- 
lheu, para installar no Rio a sede da "Northern", uma casa 
que no Flamengo fica na esquina daquella rua assas conhecida 
e que faz lembrar, sob todos os aspectos, o nosso famigerado 
e antigo becco dos Mosquitos. E Deleuze não teve duvida ení 
montar a sua empresa num prédio que, numa das faces e no 
fundo, era só occupado por meretrizes, ficando a frente reser- 
vada ao funccionamento de sua arapuca. Era, aliás, o destino 
da "Northern": nascida na America do Norte, no celebre Pen- 
sionato das Sociedades Anonymas, foi passar a sua puberdade 
numa casa de marafonas. 

Não têm os leitores notado que os nossos artigos cahiram 
sobre Deleuze como o peso de uma avalanche, obrigando-o a 
não mais encher a "Secção livre" dos jornaes com aquellas 
longas tiradas do costume? Não viram por acaso como hontem 
e ante-hontem já elle não voltou a dar á manivela no chronioo 
realejo de suas invencionices e desaforos? 

Pois ainda não viram nada os leitores. Pasmados vão ficar 



— 103 — 

e tonto vae ficar Deleuze quando começarmos a dar noticia 
ao publico a respeito dos telegrammas cifrados e da correspon- 
dência particular por elle entretida com seus representantes 
reservados no extrangeiro. 

Não nos referimos certamente áquellas cartas que Pitet ar- 
rebatou de seu archivo e que andaram publicadas pela impren- 
sa, depois de convenientemente registadas em notas publicas por 
alguns interessados: trata-se de papa mais fina e que será a 
ultima pá de cal sobre esse refinado intrujão. 

Estamos já daqui a ver a cara que elle fará do como e do 
porque taes coisas nos vieram parar ás mãos. Mas o tempo 
tudo esclarecerá e não deixaremos mais artigos de Deleuze 
offendendo os nossos homens e as nossas coisas sem res- 
posta immediata, na altura do ataque e na proporção das of- 
fensas. 

Verão então os nossos ministros, verá então o nosso governo 
o modo por que esse traficante se refere á capacidade de su- 
borno dos nossos julgadores e á transigência venal que infa- 
memente attribue aos nossos politicos. 

E, fechando o parenthesis, prosigamos na nossa exposição, 
que tão funda impressão está causando no espirito publico. 

A "S. Paulo Northern" não podia pleitear a acquisição da 
massa fallida da Araraquara, por uma razão muito simples: 
não tinha autorisação para funccionar no Brasil, exigência im- 
prescindível para as sociedades anonymas extrangeiras, em face 
da nossa lei, como também porque Deleuze não dispunha de 
papel algum que pudesse apresentar para a legalisação da- 
quella empresa. 

Que fez então o famigerado "éscroc"? Forgicou, na "Rôtisse- 
rie Sportsman", os papeis necessários, fazendo o reconhecimento 
das firmas por via indirecta e por intermédio de pessoas que de 
boa fé se deixaram ludibriar pelo famigerado espertalhão. E, 
com esses papeis falsos, tratou de legalisar o funccionamento 
da "Northern" no Brasil. 

Como fazel-o, porém, com os documentos deficientes que 



— 104 — 

apresentava? Recorreu ao senador Adolpho Gordo, a quem 
garantia a authenticidade dos papeis exhibidos, conseguindo 
que esse illustre parlamentar, de boa fé, assignasse no Ministé- 
rio da Agricultura um termo de responsabilidade. E o senador 
Adolpho Gordo assignou-o, louvando-se na palavra de Deleuze, 
que promettera, dentro de certo prazo que lhe foi concedido, 
o complemento de algumas formalidades não preenchidas e a 
apresentação de documentos supplementares exigidos naquelle 
departamento publico. 

Não precisamos accrescentar que Deleuze não cumpriu a 
palavra. Vangloriava-se, ao contrario, de haver abusado da boa 
fé daquelle illustre politico, confessando deslavadamente o que 
fizera e dizendo que muito de propósito envolvera no caso um 
senador da Republica, porque, se alguma coisa lhe viesse 
acontecer, tinha as suas costas amparadas pelo prestigio de um 
nome respeitado na politica do paiz. E a paga que elle tem 
dado a esse eminente parlamentar é a campanha temerária de 
diffamação que move contra elle, cuja única falta, de que 
certamente ha de ter-se penitenciado mil vezes, foi o haver 
dado apoio, credito e confiança a um t3rpo que em Pariz e em 
toda parte gosa do mais deprimente conceito, um homem 
que fugiu de S. Paulo e que não tem a coragem de ir a qual- 
quer cidade da zona da Araraquara, porque lá corre o risco 
de ser esbordoado e até lynchado, taes os damnos que causou 
á lavoura, ao commercio e á população em geral, quando esteve 
sob a administração da fantástica "Northern" a estrada de ferro 
que em boa hora o governo desapropriou. 

A principio causou a mais viva surpresa e até commentarios 
injustamente desrespeitosos á justiça de S. Paulo a noticia che- 
gada aos meios financeiros francezes, quando lá se soube que 
DeJeuze, sobejamente conhecido alli como trampolineiro, havia 
conseguido no nosso Estado, sem recurso de espécie alguma^ 
sem um único vintém, aboccanhar a Estrada de Ferro Ara- 
raquara. 

Essa impressão desfavorável ainda perdurava viva na Ea- 



— 105 — 

I 

ropa, sendo objecto dos mais desarrazoados commentanos, 
quando lá chegaram dois brasileiros illustres, que foram então 
mterpellados nesse sentido pelas pessoas mais directamente in- 
teressadas no negocio. 

Para acalmar tão insistentes ruidos, tiveram de reagir e dis- . 
tríbuir profusamente uma longa circular, explicando minucio- 
samente os factos, — circular que nos tem servido de fonte de 
informações em muitas das affirmativas constantes destas ex- 
plicações ao publico. 

Só entáo poude o meio financeiro francez conhecer toda a 
extensão da burla de que foram victimas os debenturistas, que 
por essa occasião novamente se coUigaram para constituir um 
novo representante no Brasil. 

A escolha recahiu no conselheiro António Prado, que nobre- 
mente, no interesse unico de salvaguardar as avultadas econo- 
mia"* francezas tragadas na voragem do abysmo que Deleuze 
lhes preparara, acceitou a espinhosa incumbência, vendo então 
o seu nome, sempre acatado e cercado de consideração, alvo 
dos ataques grosseiros e das injurias soezes do grande tram- 
polineiro. 

Não podiam comprehender os. financeiros francezes como 
Deleuze, sem fiança ou garantia alguma, usando do nome de 
uma sociedade inteiramente fantástica, sem capitães invertidos 
cm qualquer espécie de negócios e transacções, sem conheci- 
mento nos meios commerciaes da America do Norte, da Europa 
ou do Brasil, sem vida própria, sem trazer para o paiz qual- 
quer importância em dinheiro ou demonstrar a existência de 
quaesquer fundos disponíveis, pudesse em juizo adquirir o 
activo da massa fallida da Araraquara. 

Mas comprehenderam afinal tudo isso e mais alguma coisa, 
quando informados minuciosamente dos passos dados por De- 
leuze para consummar a grande falcatrua. 



XVIII 



Entre as publicações que Deleuze faz insistentemente 
pela "Secção livre" dos jornaes, para impressionar os lei- 
tores ignorantes da formidável trapaça por elle consummada 
impunemente contra os credores legitimos da Araraquara, 
figura a transcripção dos pareceres dos representantes da 
fallida, dos liquidatários, de alguns credores e até do juiz 
<lo processo, uniformemente favoráveis á proposta apresen- 
tada pela "Northern" para acquisição da massa. 

Já mostrámos que, na occasião em que se celebrou esse 
contrato, não havia melhor negocio para os interessados, 
pois a proposta do famigerado trampolineiro, que ainda 
não havia descoberto as baterias do seu innominavel conto 
do vigário, era a mais acceitaveí de quantas tinham então 
apparecido, accrescendo a circumstahcia de se ter apresen- 
tado em juizo com a fiança do Banco do Commercio e 
Industria e o amparo dos banqueiros L. Behrens & Sohne, 
o que, só por si, lhe outorgava incontestáveis títulos de 
honestidade. 

Já então Deleuze, por detrás das cortinas, urdia a trama 
dos seus testas de ferro, que offereciam em juizo as quan- 
tias mais irrisórias pela massa, sendo que um delles chegou 
ao desplante de se propor pagar a somma de dois milhões 
de francos, quando se sabia que pouco tempo antes os ban- 
queiros hamburguezes haviam emprestado trinta milhões 
á Araraquara, mediante hypotheca. E assim conseguiu a 



— 108 — 

'*Northern" o seu objectivo velhaco, qual o de desvalorisar 
quanto possível o activo a adquirir, por meio de propostas 
ridiculas, afim de accentuar ainda mais as vantagens da sua, 
que parecia até cabida do céu para salvaguardar os direitos 
dos credores. 

Dabi a excellencia do negocio e o parecer uniforme de 
todos os interessados, — esse parecer que o incorrigível 
intrujão insiste em transcrever diariamente, para armar 
a effeito. Mas a escriptura lavrada nas notas do tabellião 
Veiga, com as garantias de seriedade que Ibe davam as 
respectivas clausulas, não passava de grosseira burla, por- 
que desde logo a preoccupação única do trampolineiro foi 
violal-a em seu beneficio exclusivo e em prejuizo de todos 
os credores, despojados de seus haveres pelas manobras 
reiteradamente praticadas desde aquella época até hoje pelo 
audacioso *'escroc". 

Porque Deleuze, para esclarecer devidamente o publico 
alheio a esse legitimo conto do vigário, não traz a lume os 
factos que se seguiram á acquisição da massa da Arara- 
quara, reproduzindo o que se passou nesta capital, logo 
que os interessados perceberam, em toda a sua extensão, a 
esperteza indecorosa de que tinham sido victimas? 

Seria exigir muito a um pantomineiro da sua laia um 

gesto qualquer de lealdade para com os leitores a quem 

pretende informar sobre os antecedentes desse tenebroso 
negocio da "Northern". 

Mas o que Deleuze não fez nós vamos fazer, em nome 
da verdade. 

Os liquidatários Francisco de Sampaio Moreira e Edward 
Wysard, cuja opinião sobre a proposta da "Northern" tem 
sido transcripta como titulo de reclame da honestidade da 
transacção, dirigiram ao juiz do feito, a 13 de Fevereiro de 
1917, isto é, um anno depois da acquisição do activo da 
Araraquara, uma longa e fundamentada petição, na qual 
se lê: 



— 109 — 

"Todo o mundo sabe que, na fallencia da Companhia Ara- 
xaquara, o passivo orçava em mais 30.000 contos. Só os 
créditos privilegiados andavam, ein cerca de 20.000. 

Por decisão unanime do Tribunal de Justiça, foi reconhe- 
cido que só a L. Behrens & Sohne, banqueiros, domiciliados 
em Hamburgo, cabia a representação dos credores privile- 
giados — os debenturistas. Era intuitivo que, dada essa 
posição soberanamente reconhecida pela instancia superior, 
aquelles banqueiros passaram a ter na fallencia uma posição 
decisiva, piorque elles sós representavam mais de dois terços 
do passivo verificado: podiam destituir livremente os liqui- 
datários, sem dar razoes de sua deliberação ; podiam acceitar 
propostas ou formas de liquidação, etc. 

Um dia, porque não fosse possivel, por temerária, outra 
forma de liquidação, os liquidatários, attendendo ás delibe- 
rações daquelles credores privilegiados, chamaram concor- 
rentes á compra da massa por propostas. Vários concorrentes 
appareceram. Entre elles a "S. Paulo Northern Railroad 
Cò", amparada por aquelles credores privilegiados, que, 
como dissemos, representavam por si sós mais de dois 
terços do passivo admittido á fallencia. E' preciso não 
esquecer que L. Behrens & Sohne são dos maiores e dos 
mais reputados banqueiros germânicos, gosando na Alle- 
manha a mesma reputação dos Rothschilds, na Inglaterra. 

Os liquidatários, não contentes com isso, exigiram outras 
credenciaes para que tomassem em consideração a proposta 
da "S. Paulo Northern Railroad Co.". 

Esta, effectivamente, as apresentou e das melhores ima- 
gináveis : exhibiu uma carta de fiança do Banco Commercio 
t Industria — um dos primeiros estabelecimentos bancários 
do paiz — declarando-se fiador da proponente por todos os 
encargos que elle devesse assumir para a acquisição da 
massa, encargos por impostos, despesas judiciaes, honorá- 
rios de liquidatários, syndicos e credores privilegiados, 
excluidos os debenturistas. Era uma fiança altamente abo- 



— 110 — 

natoria. Quem conhece as cautelas daquelle estabelecimento 
bancário bem pode imaginar que alguma razão fortemente 
acauteladora de seus interesses havia inspirado sua conducta. 

Os liquidatários ainda não pararam ahi. Tiveram a 
acquiescencia dos credores chirographarios. Preenchidas 
todas as formalidades legaes, foi minutada a escriptura, na 
qual foram salvaguardados os interesses da massa e dos 
credores. A escriptura foi sujeita á approvação dos interes- 
sados, e depois da concordância destes foi lavrada, cum- 
prindo salientar que antes a concorrente havia obtido auto- 
risação para funccionar no Brasil, conforme decreto do 
governo federal que, publicado no "Diário Official", da 
União, foi, em tempo hábil, junto aos autos da fallencia. 

Isto posto, verifica-se que os liquidatários agiram com 
toda a prudência, com todo o critério, com toda a cautela, 
não sendo de esquecer que os credores chirographarios, se 
não fosse a acção benéfica dos liquidatários, teriam na fal- 
lencia da Araraquara a mesma sorte que tiveram na Com- 
panhia S. Paulo-Goyaz, pois os bens da massa da Arara- 
quara, avaliados por 25.000 contos (numa estimativa em 
que foi attribuido ao valor commercial da empresa a somnia 
de cerca de 10.000 contos) — respondiam por uma divida 
hypothecaria de mais de 20.000 contos 1 Este é o primeiro 
aspecto da questão e o primeiro ponto da resposta dos liqui- 
datários, resposta que deixa patente a conducta correcta dos 
mesmos e do juizo, nesse negocio da fallencia da Araraquara. 

Mas, occorrida a venda, em virtude de uma escriptura 
em forma legal, passou effectivamente a adquirente, mezes 
depois, a praticar uma série de actos que constituem graves 
violações do contrato que celebrou. Esses actos passaremos 
a aprecial-os detalhadamente: 

a) — Pela escriptura de 7 de Fevereiro de 1916 devia a 
adquirente entregar, devidamente inutilisadas, aos liquida- 
tários, todas as debentures da emissão da fallida, deben- 
tures que deveriam ser substituídas pelos titulos da adqui- 



— 111 — 

rente. Ora, exgottado o prazo, a adquirente exhibiu em juizo 
20 debentures resgatadas, quando devera exhíbir um total 
de 60.000 debentures. Este facto gravíssimo constitue a 
mais flagrante violação da escriptura condicional de 7 de 
P^evercnro; e, por si só, demonstra a necessidade de uma 
mediJa acauteladora dos interesses geraes. Não se pôde 
tomar a serio a conducta da adquirente, exhibindo, apenas, 
20 debentures. 

E' um Judibrio ao juizo e á boa fé que preside á forma- 
ção de todos os contratos. Tomamos aquella exhibição, 
como devemos tomal-a: uma confissão da impossibilidade 
de cumprir uma clausula capital do contrato, clausula cujo 
único inimplemento é o suffiçiente para determinar sua 
rescisão. Nem se allegue o facto do estado de guerra actual, 
entre vários paizes da Europa, pois esse estado já era 
existente, e, portanto, conhecido dos contratantes, quando 
foi lavrada a escriptura de 7 de Fevereiro de 1916. 

b) — Ainda outro facto grave praticou a adquirente. 
Mudou bruscamente sua sede desta capital para o Rio, car- 
regando livros e archivo, difficultando assim a producção 
de qualquer prova, por parte dos interessados, e violando 
o contrato e as próprias clausulas. das concessões feitas pçlò 
governo do Estado. 

c) — Não é só: a adquirente obrigou-se a consentir que 
os credores chirographarios tivessem um conselho consul- 
tivo, junto de sua administração, para zelar pela boa fis- 
calisação e pelo cumprimento das clausulas contratuaes. 

Mudou sua sede para o Rio, burlando essa clausula e 
impossibilitando a fiscalisação, pois quasi todos os interes- 
sados chirographarios são domiciliados em São Paulo 
(clausula 6.*, fls. 1.718). Não dá conta alguma das rendas 
da Estrada e não publica balanços nem balancetes. 

Não cuida, de forma alguma, do material fixo e rodante, 
entregando-os ao mais completo abandono, como é notório. 



— 112 — 

c não appHcando, como lhe cumpria, o estríctamente neces- 
sário na melhoria do material e conservação da estrada. 

d) — Onerou as rendas de 13 mezes da estrada para o 
pagamento de despesas de acquisição, que deviam ser sol- 
vidas com o capital a que se obrigou — capital cuja reali- 
sacão não effectivou até hoje, contra a disposição da 
clausula 4.*. 

e) — Tem posto em estabelecimentos bancários e em 
nome individual de Paul Deleuze as rendas da estrada, tra- 
tando, segundo se affirma, de apurar recursos, deixando até 
de pagar em dia os operários e trabalhadores das linhas, 
que estão em atraso, o que sempre se procurou evitar, até 
mesmo no periodo da fallencia. 

f) — Além destes, praticou a adquirente outros factos 
graves, que serão apurados no correr de um procedimento 
regular, factos que definem a superveniente incapacidade 
da mesma para continuar na exploração da estrada, objecto 
do contrato de fls. 1.713 a 1.724, tanto mais que é publico 
e notório que os ex-debenturistas não acceitam qualquer 
situação de negocio com a "S. Paulo Northern Railroad 
Co.", conforme documentos que constam dos autos". 

Na mesma occasião, o sr. Sylvio Penteado, cuja opinião, 
favorável ao negocio, Deleuze vive também a reproduzir 
nos jornaes, assim se dirigia ao mesmo magistrado: 

''Tendo o infra-assignado exercido as funcções de repre- 
sentante da Companhia E. F. Araraquara, e nessa qualidade 
assistido aos principaes actos da fallencia, notadamente ao 
da venda da massa — julga de seu indeclinável dever 
representar a v. exa. sobre o que passa a expor. 

Acaba o supplicante de ter conhecimento de um enérgico 
protesto dos liquidatários daquella massa fallida, contra a 
adquirente da mesma, a "S. Paulo Northern Railroad Co.", 
pela inobservância e violação flagrante de clausulas essen- ' 
ciaes da escriptura condicional de 7 de Fevereiro de 1916, 



— us- 
em virtude da qual lhe foram transferidos os bens da Com- 
panhia E. F. Araraquara. 

E de tal gravidade são os factos consignados no citado 
protesto, que os liquidatários concluem pedindo o seques- 
tro das rendas dá Estrada ç dos bens vendidos pela escri- 
ptura condicional de 7 de Fevereiro de 1916. Assim agindo 
para salvaguarda dos colossaes interesses em jogo, cum- 
prem os liquidatários um dever e um direito, pois foram 
clles os outorgantes daquella escriptura, com a qual con- 
cordou egualmente o supplicante, como representante da 
fallida. 

Na citada escriptura de 7 de Fevereiro de 1916, desta- 
cam-se, como condições essenciaes a que expressamente se 
obrigou a "S. Baulo Northern Railroad Co.", as seguintes: 

A — Nos termos da clausula 1.* — ao resgate das 
60.000 debentures emittidas em Pariz pela i allida Compa- 
nhia E. F. Araraquara, mediante substituição por 60.000 
obrigações preferenciaes da "S. Paulo Northern"; 

B — Nos termos da clausula 2.* — ao resgate do passivo 
chirographario da fallida, por meio das obrigações ordi- 
nárias creadas pela "S. Paulo Noríhern"; 

C — Nos termos da clausula 4.% se obrigou a "S. Paulo 
Northern" a não contrahir qualquer empréstimo, salvo se 
o seu producto se destinar ao augmento ou melhoramento 
do activo adquirido"; 

D — Nos termos da clausula 6.% se obrigou a fornecer 
aos seus credores as informações que normalmente pedis- 
sem sobre os negócios da Companhia; 

E — Nos termos da clausula 7.% a "S. Paulo Northern" 
assumiu o formal compromisso de entrar com o capital 
subscripto, de $600.000. 

Ora, affirmam os liquidatários no seu parecer de fls. 
1713, e é hoje publico e notório, que a "S. Paulo Nor- 



— 114 — 

them", no decurso de um anno de exploração da Estrada, 
não somente deixou de cumprir as citadas clausulas es- 
senciaes, da escriptura da acquisição da massa, como vio- 
lou indecentemente todos os solennes compromissos assu- 
midos perante os interessados! 

Effectivamente, para prova do não cumprimento da 
clausula 1.* da escriptura, basta a petição apresentada a fl. 
1729, por onde se vê que a "S. Paulo Northern" não con- 
jseguiu o resgate senão de 20 debentures da fallida Com- 
panhia E. F. Araraquara, em vez de 60.000 debentures que 
st obrigou a resgatar no prazo de um anno. Isto não é 
serio, não é decente, nem simplesmente tolerável ! 

Que a "S. Paulo Northern" não conseguiu, tão pouco, 
o resgate do passivo chirographario da fallida, provam-no 
os documentos de fls. 1.627/9; a apuração dos acceitantes 
do papel sujo, offerecido sob a denominação de obriga- 
ções ordinárias, não attinge sequer a dez por cento do 
total dos créditos! 

Facto particularmente grave é o de haver a "S. Paulo 
Northern", logo após a escriptura de 7 de Fevereiro de 
1916, empenhado as rendas de 13 mezes da estrada, em 
uma operação de credito das mais suspeitas, para levantar 
a avultada somma de 1.200 contos, assim violando, com 
inaudita desenvoltura, a clausula 4.* da escriptura! 

Qual a applicação dada a estes 1.200 contos? 
E' um mysterio que só a investigação séria, que seg^ir- 
se-á ao sequestro, poderá apurar devidamente. 

Por clausula expressa da escriptura de acquisição da 
(massa, a clausula 6.*, a "S. Paulo Northern" ou digamos 
com mais precisão, o seu presidente e "fac-totum" Paul 
Deleuze, se obrigou a fornecer aos credores as informa- 
ções que normalmente pedissem relativamente aos negó- 
cios da estrada. 

Entretanto, não somente nada tem dado a conhecer so- 
bre ditos negócios, não somente nenhum balanço publicou 



— 115 — 

até á presente data — como, para fugir por completo á 
fiscalisação dos interessados, na sua quasi totalidade re- 
sidentes nesta capital, transferiu furtiva e precipitadamente 
^ sede da "Northern" e todo o archivo da fallida Compa- 
nhia K F. Araraquara para o Rio de Janeiro! 

Este procedimento, digno dos mais vehementes qualifi- 
cativos e gerador das mais sérias apprehensões, provocou 
a máxima indignação nos meios interessados — sendo que 
o próprio governo do Estado tem reclamado com energia 
contra tal transferencia de sede, sem o seu consentimento, 
por constituir violação de clausulas . expressas dos contra- 
tos e concessões da E. F. Araraquara. 

Nos termos da clausula 7.* da escriptura, a "S. Paulo 
Northern" assumiu o formal compromisso de entrar com 
o capital subscripto de $600.000 — sendo que, conforme se 
lè a fl. 1.638 dos autos da fallencia: 

"a outorgada compradora destina-o expres- 
samente ás despezas de impostos, pagamento 
de commissÕes de syndicos, liquidatários e mais 
despesas de sua organisação e acquisição da 
activo da fallida". 

Ora, é certo que tal promessa não passou de uma ve- 
Ibacaria sem nome, de um ardil ignóbil empregado por 
Paul Deleuze, para obter dos liquidatários da massa, do 
representante da fallida e dos credores da Companhia E- 
F. Araraquara, a acceitação da sua convidativa proposta! 

E' intuitivo que, se tal capital de $600.000 ou cerca de 
rs. 2.400 :000$000, tivesse sido reabsado. Paul Deleuze não 
teria sacado antecipadamente as rendas de 13 mezes da 
fistrada (como consta da escriptura de credito com garan- 
tia de penhor, lavrada em 9 de Março de 1916, em netas 
do 2.° tabellião), tanto mais quanto, em virtude da escri- 
ptura de fl. 1.713, a "Northern" recebeu, como parte com- 



— 116 — 

ponente da massa, a avultada somma de rs. 462:984$410, em 
dinheiro. 

Não é só. Além destas deshonestidades que lançam jus- 
tificado alarme nos meios interessados, outras circums- 
tancias têm occorrido que reclamam do m. juiz do feito 
as mais radicaes decisões, taes como o immediato seques- 
tro das rendas e bens da fallida Companhia E. F. Arara- 
quara. 

Ao conhecimento dos interessados recentemente chegou 
mais uma gravissima irregularidade, ou que outro nome 
mais expressivo tenha, que projecta um extranho clarão 
sobre a existência tenebrosa da "S. Paulo Northern" e 
sobre os verdadeiros intuitos do seu presidente. 

Paul Deleuze invariavelmente manda creditar em seu 
próprio nome, nesta capital e no Rio, as avultadas recei- 
tas da estradai 

Tal facto certamente explica, melhor que qualquer outro 
argumento, porque Deleuze foge cynicamente á fiscalisa- 
ção a que têm direito os legítimos interessados no nego- 
cio. Isto explica tatiibem porque o material fixo e rodante 
da estrada se encontra no maior descalabro, a ponto de 
haver constantes accidentes, que põem em risco a propria. 
vida dos nossos infelizes conterrâneos, condemnados a se 
servirem de uma empresa que um audacioso aventureiro 
saqueia até o ultimo vintém das receitas. 

A 28 de Outubro de 1916 — para citar um exemplo re- 
cente — occorreu um desastre horrível, commentadissimo 
por toda a imprensa paulista: um trem de passageiros, ao 
chegar a Araraquara, entrou pela estação a dentro a toda 
velocidade, produzindo um estrago indescriptivel e demo- 
lindo a metade. do edifício! Investigada a causa do sinistro,, 
verificou-se que todos os freios falharam, tal era o seu 
péssimo estado de conservação e funccionamento. 

Por ultimo, um boato que os precedentes tornam per- 



— 117 — 

feitatnente verosímil. Ha quem affirme que o presidente 
da ''Northern" nutre o criminoso propósito de, quando se 
sinta satisfeito, evadir-se do Rio — com a mesma desen- 
voltura com que embarcou furtiva e precipitadamente des- 
ta capital ... 

Ora pergunta-se, m. juiz, acaso isto é sério, é decente, 
ou simplesmente tolerável?! Então uma -empresa em que 
estão empenhados formidáveis capitães, de dezenas de mi- 
Jhares de contos, uma empresa de interesse publico e de- 
pendente do Estado, pôde ficar assim á mercê de um golpe 
de audácia do primeiro espertalhão que aqui aporta?! In- 
dubitavelmente, uma providencia enérgica e immediata se 
impõe ! 

Em synthese, a situação sobremodo critica, que se an- 
tolha ao m. juiz, assim se define nitidamente: de um lado 
se encontram credores brasileiros, representando mais de 
10.000 contos de créditos, e credores, franceses, portadores 
de 59.980 titulos de 500 frs., equivalentes a 29.990.000 fran- 
cos ; de outro lado, em violento contraste, se encontra uma 
empresa de velhacos, sem nenhum vintém de capital e 
apresentando. 20 titulos, no valor de 10.000 francos, como 
todo empate de dinheiro no negocio! 

Seria, por certo, uma injuria ao elevado critério do m. 
juiz,, duvidar um só instante de que elle saiba discernir de 
que lado está o Direito, de que lado a Iniquidade, em caso 
semelhante. 

As leis brasileiras não podem assim continuar a servir 
de capa de velhacos — ao mesmo tempo anniquilando os 
mais lidimos interesses particulares e sacrificando os pró- 
prios principios de segurança publica." 

Perguntamos nós agora: porque o Rocambole não trou- 
xe a lume esses dois documentos, se sua intenção é orien- 
tar o publico a respeito dos negócios da Araraquara? 

Mas é natural a razão por que não o fez: esses doeu- 






— 118 — 

mentos põem em accentuado relevo o conto do vigário que 
<elle passou em todos os interessados na fallencia da Ara- 
raquara, quando teceu os pauzinhos para que a proposta 
da "Northern" fosse acceita por Fritz Weber, em nome 
de L. Behrens & Sohne, para acquisiçao da preciosa massa. 



XIX 



o presidente da "Northern", no seu propósito de illu- 
dir o publico a respeito da acquisiçáo do activo da Arara- 
quara, tem mantido até hoje rigoroso silencio sobre os 
factos que se seguiram á celebre escriptura com que pre- 
gou aos credores daquella companhia o famoso conto do 
vigário a que se referiram, em petições ao honrado juiz 
ílo feito, os liquidatários e o representante da fallida. 

Como, entretanto, assumimos o compromisso de lhe ar- 
rancar a mascara, mostrando-o tal qual é, continuaremos 
hoje a narrar aos leitores os nossos... contos da caro- 
<:hinha. 

Ao mesmo passo que os liquidatários e o representante 
da fallida se dirigiam ao juiz da 2.* vara, denunciando as 
manobras fraudulentas de Deleuze, que faltava aos com- 
promissos assumidos na escriptura de acquisição da Arara- 
quara, os credores desta promoviam uma assembléa, no 
edifício do Centro de Commercio e Industria, para tratar 
dos me»os de defesa e salvaguarda dos seus interesses, ante 
a situação anómala da ''Northern". 

Temos á vista a acta original dessa reunião, que se effe- 
ctuou a 22 de Março de 1917, e á qual compareceram, en- 
tre outros, um dos advogados de Deleuze e o patrono de 
;um dos muitos testas de ferro do celebre aventureiro, os 
quaes, por signal, não tiveram uma palavra siqu-er de de- 
fesa do seu cliente, diante das accusações positivas que ahi 



— 120 — 

Ibe foram feitas, já pelo representante da fallida, já pelo 
procurador de um dos liquidatários. Este ultimo expôz 
longamente a situação diversa entre o momento da acqui- 
fiição da massa fallida pela "Northern" e o momento de 
então, mostrando que não se cogitava de vícios ou defei- 
tos do contrato da venda da massa, mas, sim, de violações, 
pela adquirente, do contrato de compra da Araraquara. 

Vê por ahi o publico a que fica reduzida a publicação 
dos pareceres que Deleuze vive a impingir aos leitores da 
fecção livre, favoráveis ao contrato da acquisição, pela 
**Northern", da preciosa massa fallida, magnifico negocio 
que elle realisou exclusivamente para si e com cujos lu- 
cros está mantendo ha longos mezes a campanha de diffa- 
mação dos nossos homens e das nossas coisas, com uma 
cusadia de tal modo sem limites, que já chega a ameaçar 
a justiça de S. Paulo de intervenção extrangeira, se ella 
não lhe der ganho de causa! 

E a propósito do tenebroso conluio entre o farçante e o 
seu comparsa Fritz Weber, convém registar que os dois 
individues se achavam hospedados na antiga "Rotisserie", 
á rua de São Bento, quando deram a ultima demão no 
golpe premeditado contra os credores da Araraquara, isto 
é, quando combinaram a acceitação da proposta da "Nor- 
thern" para compra do activo da massa. 

Era ahi, num dos quartoi desse hotel, que os dois forgi- 
cavam as actas da fantástica sociedade anonyma organi- 
zada nos Estados Unidos, — actas que eram datadas da 
America, embora o respectivo papel almasso fosse adqui- 
rido numa casa commerciai da rua de São Bento. Foi ahi 
também que Fritz Weber escreveu, sob ditado de Deleuze, 
a seguinte carta aos liquidatários da fallencia e que se 
acha junto aos respectivos autos, trazendo impressos os 
dizeres: "Grand Hotel de la Rôtisserie Sportsman", con- 
forme certidão em nosso poder: 



— 121 — 

r 

"S. Paulo, le 17 Janvier 1916. 

Messieurs les Hquidateurs de la Companhia Estrada de 
Ferro Araraquara. — ' J'aí Thonneur de vous informer 
qu'en vertu des pouvoírs qui m'ont été donnés par M. M. 
L. Behrens Sohne dans la faillite de la Companhia Estrada 
de Ferro de Araraquara, j'accepte en leur nom et par con- 
séquement au nom de plus des deux tiers des créanciers 
admis á la dite faillite Toífre constitué par la premiére 
proposition contenue dans la soumission de la S. Paulo Nor- 
thern Railroad Company poúr Tachat de Tactif de la masse 
faillite de la Companhia de Estrada de Ferro de Arara- 
quara, et ceei, en vertu de Tarticle 124 de la loi des failH- 
tes (cette proposition est celle qui offre de payer le dit 
actif en obligations de Ia S. Paulo Northern Railroad Com- 
pany). Veuillez agréer, messieurs, mes salutations distin- 
gues. — F. WEBER." 

E já que estamos injuriando, calumniando e diffamando 
o presidente da "Northern", aqui vae outro... conto da 
carochinha : 

Um dos primeiros cuidados de Deleuze para prejudicar 
os credores da Araraquara foi adoptar, na estrada, uma 
escripturação dupla e em livros legalisados na Junta Com- 
mercial, sendo uma dessas escriptas fantástica e organisa- 
da com o propósito manifesto de passar a perna aos mes- 
mos credores, conforme se vê da seguinte certidão: 

"Certifico, em cumprimento do despacho retro, quanto 
ao quesito "A", que a "Northern Railroad Co." registou 
nesta repartição, em treze de Março do anno próximo fin- 
do, um livro "Diário", com trezentas folhas, sob n. 56.718: 
certifico mais, quanto ao quesito "B", que a Companhia 
Estrada de Ferro Norte de S. Paulo registou, nesta repar- 
tição, sob o n. 58.186, em vinte e três de Agosto do anno 
próximo passado, um "Diário", com duzentas e cincoenta 
folhas, do que dou fé. • — Junta Commercial do Estado de 
S. Paulo, vinte e um de Março de 1917. Eu, Renato San- 



— 122 — 

tos, a escrevi e assígno. Renato Santos. Eu, Renato Maia, 
secretario, a subscrevi e assigno. Renato Maia." 

Vem também a talho de foice, uma vez que estamos 
pondo em foco a audácia de Deleuze, mostrar como elle 
conseguiu legalisar, no Ministério da Agricultura, a com- 
panhia fantástica que fundara na America do Norte espe- 
cialmente para aboccanhar a massa fallida da Araraquaia. 

Lê-se n'o "Diário Official", da União, de 6 de Fevereiro 
de 1916: 

"Estado de Delaware, Secretaria do Estado. 

Eu, Geo. H. Hall, secretario de Estado do Estado de 
Delaware, certifico pelo presente que o documento retro 
é copia authentica e exacta de um certificado de incorpo- 
ração da "S. Paulo Northern Railroad Cy." passado e le- 
galisado nesta secretaria, aos 10 de Agosto de 1915, á 1 
hora da tarde. Em testemunho do que, ponho o meu sello 
official em Dover, aos 10 de Agosto de 1915. — (a.) Geo 
H. Hall, secretario de Estado. 

Estavam o sello da secretaria e uma estampilha de dez 
cêntimos. Em seguida: Estado de S. Paulo, Republica do 
Brasil. Compareceram pessoalmente perante mim, Robert 
Larrick Keiser, vice-consul dos Estados Unidos em São 
Paulo, aos 5 de Janeiro de 1916, Paul Deleuze e também 
Louis Sarran, que prestaram juramento e declararam co- 
nhecer a firma supra de George H. Hall, secretario de 
Estado do Estado de Delaware, Estados Unidos da Ame- 
rica, e que é authentica a que consta do documento an- 
nexo. — (a.) P. Deleuze (sello). L. Sarran (sello). Em tes- 
temunho do que ponho o meu sello e firma, aos 5 de Ja- 
neiro de 1916, com o sello do consulado. — (a.) Roberto 
Larrick, vice-consul dos Estados Unidos. S. Paulo. Brasil. 
Estava o sello do consulado." 

Este documento, que se lê no "Diário Official", da 
União, é um dos mais curiosos no género. Elle prova que 



— 123 — 

-os francezes Paul Deleuze e Louís Sarran, no Brasil^ re- 
conheceram e juraram que a assignatura feita nos refe- 
ridos papeis em que tinham immediato interesse era do 
jproprio punho do secretario do Estado de Delaware, nos 
JEstados Unidos! 

E assim Deleuze intrujou o Ministério da Agricultura, 
<:om papeis sem as necessárias formalidades legaes, como 
intrujou depois todo o mundo nesse formidável conto do 
vigário que foi a acquisição da massa fallida da Araraquara 
pela famigerada "Northern". 



XX 



o sr. dr. João Arruda veiu, pelos jornaes destes últimos 
dias, dizendo que, com uma inacreditável crueldade, pro- 
curámos, torturar-lhe o ultimo quartel da velhice, amar- 
ou rando-lhe a vida e lançando os mais injustificáveis bal- 
dões sobre o seu nome de professor. 

"Não façais a outrem o que não quereis que vos façam" 
— é o velho preceito dessa san philosophia que por certo 
o distincto mestre não ensina de sua cathedra, dominado 
como sempre teve o seu espirito por um característico 
^theismo. Mas quem, como nós, nas camadas subterrâneas 
de nossa razão ao alvorecer, teve o espirito norteado pela 
doutrina daquella moral christan que o preceito transcri- 
pto consubstancia, delle jamais se esquece nas entreaber- 
tas varias das tempestades da vida. 

Houvera o provecto professor meditado e reflectido, no 
ambiente calmo de sua sala de estudos, sobre a razão oc- 
culta de muitos de seus actos, e certamente comprehende- 
.ria que o que ora lhe occorre é o mesmo que, com idêntica 
crueldade, praticara contra outrem. 

Também velho, no derradeiro quartel da existência e 
com a circumstancia ponderosa de haver sido aggredido 
pelas costas, é o senador Adolpho Gordo, a quem o distincto 
professor cobriu dos mais torturantes opprobios num fo- 
lheto que divulgou largamente e do qual transcreveu tre- 
chos pela imprensa, chegando ao extremo de imputar ao 



— 126 — 

velho servidor da pátria a mais absoluta ausência de es- 
crúpulos moraes, de consciência e de respeito á ethica pro- 
fissional, — e tudo isso no exaggero de immerecida de- 
fesa em prol de um bandido extrangeiro. 

Velho, alquebrado, no ultimo quartel da existência, toda 
consagrada a serviços de inestimável valor á causa publica 
c que lhe valeram um titulo que outrora não se menosca- 
bava, — é também o conselheiro António Prado, homem 
que em S. Paulo soube constituir a mais alevantada fama 
€ o mais merecido prestigio, como das figuras de maior 
relevo da nossa nacionalidade. E também elle, sem liga- 
ção alguma com esse negocio, sem interesses na causa, in- 
teiramente extranho ao choque de ambições que o litigio 
traduz, foi aggredido pelas costas pelo mesmo patrono e 
em defesa do mesmo trampolineiro no momento em que 
não pôde sequer, por sua ausência, repellir a infâmia do 
ataque. 

E acima dessas duas personalidades, também a nossa 
justiça e a nossa própria pátria foram ultrajadas pelo re- 
calcitrante mystificador e por seu illustre patrono, que, 
em troca de uma moeda que Shakespeare synthetisán 
numa pagina eloquente, assalariou a sua penna profissio- 
nal para aggredir, em proveito de um individuo univer- 
salmente repellido, pela sua gangrena moral, nossos ho- 
mens, nossas coisas e nossos sentimentos mais respeitá- 
veis. E agora, quando nós surgimos na arena, procurando 
revidar-lhe, não com a mesma linguagem, mas nnm tom 
elevado, vem o egrégio professor dizer que estamos amar- 
gurando o seu ultimo quartel de existência, sem se recor- 
dar de que os outros também têm honra, têm tradições de 
fajiiilia, têm entes queridos que se chocaram e se revolta- 
ram diante dos aleives que lhes foram atirados. 

Entende o sr. dr. João Arruda que lhe cobrimos o nome 
de baldões. Entretanto, quem lêr os nossos artigos só en- 
contrará, a cada passo, no tratamento que lhe dispensámos, 



— 127 — 

estas expressões: "emérito mestre", "distincto causidico" 
"respeitável cidadão", "illustre professor" — que certa- 
mente não merecem o qualificativo que lhes é attribuido 
pelo alvejado, salvo se, num movimento de consciência, 
uuiiia manifestação do "Nosce te ipsum", elle próprio re- 
conhece o immerecido dos elogios e suppoz quiçá que hou- 
ve, na nossa linguagem, laivos de ironia... 

Mas já que o illustre professor tão profundamente se 
magoou comnosco e entendeu de relegar-nos, do alto de 
pua superioridade, ao mais absoluto desprezo, creia since- 
ramente que não nos entristecemos com isto. E assim, 
sem espirito de penitencia, pedimos que, em uma de suas 
horas de lazer, passe os olhos por uma pagina que Quin- 
tiliano escreveu para os de sua egualha no orgulho e em 
idêntica situação profissional. 

E quanto a nós, não queira saber quem nós somos. Epa- 
íminondas é um symbolo. Fora o egrégio mestre algo ver- 
sado na nossa literatura clássica e não dedicasse todas as 
ísuas horas aos problemas de uma philosophia "sui gene- 
ris", e dir-lhe-iamos que nesse debate surgimos como 
aquelle personagem mysterioso que na região do Calpe 
apparece a vibrar golpes de todos os lados, incertos porém 
-efficientes, duros porém merecidos, fortes porém justos, 
ígempre impenetrável no sombrio do seu mysterio, contra 
a "mouresma" que^ avançava atacando os mais respeitá- 
veis sentimentos da honra, da religião e da pátria. 

E quanto ao professor, não entrará mais em nossos ar- 
tigos. Não pense, porém, que haja passado pelo nosso 
espirito qualquer ameaça de damno physico á sua pessoa, 
— intenção que só uma qualquer razão desequilibrada po- 
dia ter lobrigado no que escrevemos. Ao contrario, votos 
PS mais sinceros formulamos por sua longa existência, 
para poder penitenciar-se do mal que tem feito a tanta 
gente innocente nesse tortuoso caso da desapropriação da 
"Northern". 

Voltemos agora ao mystificador incorrigível. 



— 128 — 

Hoje, no "Estado", sem coragem de dizer porque o fa- 
zia, transcreveu vários trechos referentes á discussão do 
ícaso do café, que nada absolutamente tem com esse nego- 
cio e para o qual não nos desviaremos, por maiores esfor- 
ços que Deleuze faça. 

Mas vê-se, desde logo, que o seu propósito foi mostrar 
um erro ou fraude á verdade, quando dissemos que as ra- 
zões publicadas pelo Rocambole no jornal, como produzidas 
na rogatória vinda de Pariz, foram inteiramente forgica- 
das agora para os effeitos e fins da discussão em que está 
empenhado. 

Dissemos então que era impossivel que, em 1918, data 
attribuida por Deleuze áquellas allegaçÕes, elle liouvera 
feito referencias á repercussão do caso do café, occorrida 
ao Rio em fins de 1919 e principios de 1920. 

Hoje o trapaceiro procura confundir estas duas coisas: 
o negocio propriamente do café, verificado em 1917 e 1918, 
com os escândalos formados em torno do caso e que só 
succederam em 1920. 

Diziamos, pois, que a prova irretorquivel da fantasia de 
Deleuze estava exactamente no facto de fazer referencias, 
nas razões publicadas com a data de 1918, aos factos rela- 
tivos ao escândalo do café e só occorridos dois annos 
depois. 

Sabem todos que o quatriennio actual, em consequência 
do fallecimento do inolvidável paulista conselheiro Rodri- 
gues Alves, foi iniciado pelo seu substituto, o saudoso dr. 
Delfim Moreira, em 1918, estando então na Europa, como 
representante da Brasil no Congresso da Paz, o egrégio 
patrício que em boa hora foi culminado á suprema magis- 
tratura do paiz. Só por occasião do regresso do sr. Epita- 
(Cio Pessoa ou, melhor, só depois disto foi que, em 1920, 
começaram as discussões relativas ao caso do café, origi- 
nadas pelas referencias ao mesmo attribuidas e decorrentes 
do ambiente desfavorável que encontrara na Europa a 
respeito do negocio, lá mal apreciado. E ainda hoje o au- 



— 129 — 

dacioso aventureiro reproduz vários trechos publicados 
em jornaes do Rio, em 1920, referindo as mesmas circums- 
tancias que em suas razões, dadas como feitas em 1918, 
elle transcreveu no mesmo tom! 

Apanhado assim num delicto de manifesta mendacidade, 
pensou mais uma vez em atirar a poeira imponderável de 
»sua mystificação aos olhos do leitor, trazendo a lume aquel- 
les trechos e acreditando que os interesados não lançariam 
as vistas percucientes á data das publicações. 

Fica, pois, de pé o que dissemos: são inteiramente fan- 
tasiadas as razões que o mystificador publicou como pro- 
duzidas em 1918, numa rogatória vinda de Pariz e aliás 
originada de um processo lá simulado por um dos seus 
habituaes testas de ferro. 

Tivemos, como se vê, de interromper hoje a ordem na- 
tural de nossa narração. Uma coisa, porem, já consegui- 
•mos: todos os personagens que mais ou menos apparecem 
em nossos contos da carochinha são de existência real e 
(CONFESSADA pelo próprio Deleuze em sua publicação 
jde hoje. Não têm aquelle ar mysterioso do celebre diplo- 
mata francez aposentado em uma republiqueta da Ame- 
rica Central, na qual nem a França tem legação, nem nunca 
surgiu esse personagem creado pelo espirito inventivo do 
surprehendente intrujão para figurar como um dos timo- 
neiros nessa nau pirata que se chama a "S. Paulo Nor- 
thern Railroad Company". 



XXI 



Por mais esforços que faça o insuperável farçante Paul 
Deleuze, duas coisas jamais poderá demonstrar: a vinda 
de qualquer capital extra ngeiro para os negócios relativos 
ao tortuoso caso da acquisição da Araraquara e o paga- 
mento effectivo a qualquer dos interessados, isto é, os le- 
gítimos credores daquella fallencia. 

Por muito hábil que seja no segredo de todas as mysti- 
iícações, o nosso Rocambole não descobriu ainda o meio 
de dar ao dinheiro a "volatilisação" que tem emprestado 
a certos personagens envolvidos na façanha. 

Fácil seria ao famigerado trampolineiro desmentir-nos, 
a esse respeito, de forma cabal e categórica: bastaria apre- 
sentar um documento qualquer, de rigorosa authenticidade, 
provando a vinda de um vintém sequer do extrangeiro para 
a acquisição da massa da Araraquara. E assim poderia, 
ao mesmo tempo, demonstrar a legitimidade do interesse 
desses fantásticos credores norte-americanos em cujo nome 
e proveito vive a ameaçar-nos com pretensas intervenções 
diplomáticas e a reproduzir imaginários effeitos nos meios 
bancários de alcm-mar, relativamente á desapropriação da 
•'Northern". 

Nunca, porém, sem embargo de sua notória proficiên- 
cia na trapaça, Deleuze conseguirá documentar a vinda de 
um dollar para o Brasil, retnettido pelos fantásticos accio- 
nistas de sua não menos fantástica empresa. 



— 132 — 

Entretanto, se alguma somma legitima houvera sido re- 
mettida da America do Norte para o nosso paiz, certamente 
deixaria traços bem accentuados de sua passagem atra- 
vés dos bancos remettentes e dos encarregados da effecti- 
vidade do pagamento, pois ainda não se conhecem remes- 
sas de numerário de uma praça para outra, a não ser pela 
mediação dos bancos, intermediários indispensáveis nessa 
ordem de operações commerciaes. 

Mas Deleuze nada disso poderá provar, visto como a 
"Northern" se constituiu pela reunião dos interessados 
únicos — os credores habilitados na fallencia da Arara- 
quara — os quaes em sua totalidade absoluta, sem exce- 
pção de um só, se revoltam contra a burla de que foram 
victímas por parte do aventureiro. 

Deleuze não trouxe nem mesmo o dinheiro necessário 
para as primeiras despesas, porque encontrou na caixa da 
fallida, honrada e escrupulosamente administrada pelos 
syndicos e liquidatários, a quantia de 463 contos, que des- 
tinou ao pagamento das primeiras despesas. E não só 
estas, como também algumas despesas effectuadas no ex- 
trangeiro com a organisação fantástica da "Northern" e 
com os primeiros encargos de sua vida criminosa, foram 
pagas com a moeda que elle aqui retirou da presa rica, 
arrebatada á credulidade do nosso povo e á confiança exag- 
gerada da nossa justiça. 

Basta referir que, pouco tempo depois da açquisição do 
activo da Araraquara, exgottado que foi o numerário que 
encontrara em caixa, Deleuze não se animou a chamar os 
accionistas de sua ^ criminosa nau pirata á realisação de 
qualquer capital subscripto, nem mesmo da quota dos 600 
mil dollars, a que se obrigara solennemente por escriptura, 
importância que devia de prompto effectivar para cobrir 
as despesas de administração da fallida. Nem mesmo essa 
veiu para o Brasil, porque na America do Norte, em reali- 
dade, não ha pessoa alguma que tenha subscripto qualquer 
acção da fantástica empresa. 



— 133 — 

O que Deleuze fez logo, quando se viu sem recursos, foi 
lançar mão de um empréstimo de mil e duzentos contos, 
contrahido no Banco do Commercio e Industria, com ga- 
rantia pignoraticia das rendas da estrada que dias antes 
adquirira. E esse negocio não deixa de fornecer assumpto 
para uns commentarios bem impressionantes. 

Pela escriptura de acquisição da Araraquara, lavrada a 
7 de Fevereiro de 1916, nas notas do tabellião Veiga, De- 
leuze assumiu o compromissso formal de não contrahir 
qualquer divida com garantia dos bens que adquirira ou 
em prejuízo dos direitos dos credores habilitados na fal- 
lencia. 

Disto era perfeito sabedor o Banco do Commercio e In- 
dustria, que outorgou, em favor da "Northern", a carta 
de fiança com que ella se apresentou em juizo e que está 
junta aos autos da fallencia. 

Como se explica, pois, que um instituto de credito da 
alta moralidade do referido banco e do exaggerado escrú- 
pulo que elle põe em todas as suas transacções concordasse 
em fornecer a um traficante extrangeiro, contra o qual se 
jcomeçava a erguer a onda da indignação collectiva diante 
das suas trapaças no negocio, uma quantia tão avultada 
como aquella, sem garantia alguma, porque a tanto equi- 
valia o penhor outorgado contra clausula expressa da 
escriptura de acquisição e que era do perfeito conheci- 
mento do banco mutuante? 

A explicação do facto é simples e mostra outra face desse 
original negocio. 

A principio, o banco começou a fornecer a Deleuze certas 
jC determinadas quantias, imprescindíveis á realisação da 
compra, mediante a fiança ou abono que os banqueiros 
allemães L. Behrens & Sohne haviam firmado em favor 
do farçante. Já confessou em publico um dos ex-directores 
do Commercio e Industria que aquelles banqueiros eram os 



— 134 — 

seus correspondentes na Allemanha, da mesma forma que 
o Commercio e Industria era o delles em S., Paulo. 
Começavam, porém, a surgir no horisonte as primeiras 

nuvens carregadas em relação á nossa attitude no tocante 
á conflagração universal. Já os prognósticos eram bem 
vivos relativamente á nossa próxima coparticipação na 
luta em que tantos povos estavam envolvidos. Além disto, 
uma grave situação se tinha creado para Deleuze, no pro- 
cesso contra elle movido pela justiça militar franceza, por 
entendimento com o inimigo durante a guerra. E a carta de 
fiança passada pelos banqueiros hamburguezes em prol do 
estellionatario francez era, como effectivamente o foi, o 
documento mais cabal da accusação formulada contra o 
aventureiro pelo encarregado militar da grave investigação 
por tão infame delicto — qual o de entreter relações com 
o inimigo. 

Para legitimar e garantir, mesmo na apparencia, uma 
situação que a todos se apresentava difficil, viu-se o Banco 
do Commercio e Industria na obrigação de acceitar — por- 
que dos males o menor — a solução única que se lhe apre- 
sentava, isto é, em segurança de um empréstimo avultado, 
uma garantia real na verdade inexistente . . . 

E então, emquanto no gabinete da directoria se discutia 
o grave negocio, tratado na occasião por um dos mais dis- 
linctos directores daquelle estabelecimento bancário com 
um dos advogados de Deleuze, — numa sala próxima, outro 
director alludia chistosamente, em conversa com um conhe- 
cido industrial, que a Dissidência acreditava por certo 
extender as suas redes até á vida intima do banco, fazendo 
negócios daquella ordem, tão arriscados e tão de compadrio, 
referindo-se assim á circumstancia, toda fortuita^ de estar 
de um lado defendendo os interesses de Deleuze e de outro 
patrocinando os do banco, dois eminentes patrícios que 
outrora, em quadra que já cahiu no dominio das coisas 



— 135 — 

mortas, fizeram parte da mesma importante e assas temida 
agremiação politica. 

Aliás, quem ler a escriptura do empréstimo entre o banco 
c Deleuze, — a qual se encontra nas notas do tabellião An- 
. tenor Liberato de Macedo, onde foi lavrada a 9 de Março 
ide 1916, — verificará um facto original e contra todas as 
normas habituaes daquelle importante instituto de credito: 
os fins do empréstimo eram constantes de uma carta reser- 
vada a que o instrumento publico. faz referencia e que não 
foi reproduzida e certamente não o podia ser, pela perigosa 
consequência de serem conhecidas em detalhe as quantias 
pagas' a diversos, por força da combinação feita. 

Excusado dizer que o banco em si nada tinha com os 
titulares desses créditos a pagar: concordou apenas — é 
bem de ver — que as importâncias representativas do em- 
préstimo ficassem constando de um documento occulto, 
evidentemente no único e exclusivo interesse de Deleuze 
e dos banqueiros hamburguezes. 

Nada de tortuoso houve na conducta do grande estabe- 
lecimento de credito, que, como sempre, se manteve na sua 
inalterável linha de absoluta correcção bancaria. Procurou, 
é €xacto, evitar negócios com banqueiros que, dentro em 
pouco, pela supervéniencia da declaração de guerra entre 
<o nosso paiz e a Allemanha, iriam ficar em situação espe- 
cial para com os seus correspondentes no Brasil, e tratou, 
assim de defender os seus respeitáveis interesses da me- 
lhor forma que na occasião se lhe deparava possível. 

O facto em si serve para demonstrar qu-e para o Brasil 
não veiu um único dollar da America do Norte, sede simu- 
lada' da fantástica empresa, como também, até hoje, de 
qualquer paiz de além-mar, não veiu qualquer importância 
destinada aos negócios da "Northern", alimentada e sus- 
tentada sempre, exclusivamente, com os recursos de sua 
própria situação interna, toda creada pelos legítimos inte- 
ressados: os debenturistas francezes e os chirographarios 
brasileiros. 



— 136 — 

Se, como deixámos provado, nenhum real extrangeiro 
aqui entrou, vamos no nosso próximo artigo provar tam- 
bém, desmentindo de vez as ballelas de Deleuze, que até 
íioje nenhuma quantia elle pagou aos únicos, reaes e legí- 
timos credores da Araraquara, que são, por sua vez, os 
«nicos titulares de direitos contra a "Northern", por força 
de clausula expressa da escriptura de acquisição da estrada. 



XXII 



Provámos hontem que para o Brasil não veiu do extran- 
geiro um real sequer destinado á acquisição do activo da 
Araraquara. ^ 

Não passa, pois, de tola invencionice e de fantasia fútil 
para impressionar as galerias a allegação frequente que o 
famigerado mystificador vive a reproduzir pela imprensa, 
dizendo que nos meios bancários extrangeiros tem causado 
a mais penosa impressão o facto de haver o Estado, sem 
causa ou motivo legal, desapropriado a estrada pertencente 
a uma empresa norte-americana. 

Não ha centros de créditos da Europa ou da America do 
Norte que possam ter interesse nesse negocio, pois de parte 
Alguma veiu numerário para constituição, exploração e 
custeio da Araraquara, a não serem os capitães resultantes 
do empréstimo sobre debentures emittido por L. Behrens & 
Sohne e de que são titulares os credores francezes. 

Cumpre-nos hojô demonstrar que é também inteiramente 
fantástica a allegação do referido salteador, quando assevera 
ter pago cerca de 2.500 contos aos portadores de obriga- 
ções da "Northern". 

Podemos provar o facto com documentos de irretorquivel 
procedência juridica. 

Quando o insuperável trapaceiro adquiriu o activo da 
Araraquara, ficou certo e evidenciado que a "Northern'^ 
dentro do prazo fatal de um anno, deveria resgatar, substi- 



— 138 — 

tuindo-as pelas novas obrigações, as debentures anterior- 
mente emíttidas e em mãos dos portadores francezss. Ficou 
einda estabelecido que os titulos substituidos seriam apre- 
sentados em juizo e entregues aos liquidatários, para o 
effeito de serem assim reputados pagos e desonerada a 
•adquirente da obrigação expressamente assumida. 

Não ha ninguém, por mais bisonho em conhecimentos 
jurídicos, que não saiba que a debenture, como titulo ao 
jportador, só se considera paga, pela respectiva apresenta- 
ção de seu instrumento, porquanto — como muito bem 
dizia Inglez de Souza — se paga ao titulo em si, c nãò a 
quem eventualmente o retém. 

Ora, no cumprimento de um dever legal, os liquidatários 
não podiam abrir mão dessa exigência, isto é, a apresentação 
dos titulos substituidos, porque, emquanto isso não fosse 
feito, subsistiria sempre a responsabilidade da empresa 
cmittente — a fallida Araraquara — pelos titulos de sua 
emissão. Pouco importaria ao caso a desistência ou renun- 
cia da hypotheca, outorgada na escriptura publica de 7 de 
Fevereiro de 1916 por Fritz Weber, como procurador, aliás 
illegitimo, de L. Behrens & Sohne. 

Decorrido o prazo que lhe fora marcado para apresentar 
os titulos substituidos, o incomparável trampolineiro veiu 
a juizo, com a audácia que o caracterisa, e ahi apresentou, 
em vez de 60 mil debentures que devia resgatar, apenas 
vinte titulos! Somente vinte! 

Mais audaciosamente ainda, confessou que os demais 
debenturistas se recusaram á substituição, pelo que a 
"Northern" se viu forçada a conservar em carteira os 
titulos que, a pretexto da substituição, havia emittido. 

Lá está nos autos a declaração, para quem quizer ler. 

Cumpre, entretanto, desde já, fechar uma porta que 
poderá ser arrombada amanhan pelo audaz salteador. 

Effectivamente, conforme dissemos em artigos anterio- 
res, Deleuze fizera Fritz Weber, em nome de L. Behrens 
9í Sohne, outorgar-lhe uma escriptura, allegando o rece- 



— 139 — 

bimento de todas as novas obrigações emittidas pela. 
"Northern" e chamando a si o encargo de operar a substi- 
tuição. Mas toda gente sabe que Fritz Weber não passava 
de um testa de ferro de Deleuze, arranjado adrede para a 
sua obra de estellionato no Brasil. E, por força dessa mys- 
tificação, taes obrigações ficaram de facto nos próprios 
cofres da "Northern", uma vez que Fritz Weber, preen- 
chida a sua funcção de auxiliar do refinadissimo "escroc" 
<ia acquisição do activo da Araraquara, passou a ser, me- 
diante pingues ordenados, alto funccionario da companhia 
em S. Paulo. Occorreu depois a grave desavença a que já 
nos referimos entre os dois trampolineiros, e, em conse- 
quência, o antigo criado de quarto de Deleuze poz-se a 
contar a meio mundo o que havia de verdade em toda a 
sua intervenção no negocio. E Deleuze achou prudente^ 
por isso mandal-o para o Rio da Prata, depois de pa- 
gar-lhe a sua parte no crime, tendo, porém, Fritz Weber, 
antes dessa viagem, emprehendido longa excursão pelo- 
inteifior de S. Paulo. Ha mesmo quem diga que Deleuze 
onandou dar cabo da vida de seu comparsa, para sepultar 
assim, na obra sinistra de outro crime, o segredo de todas* 
as façanhas que de conluio aqui praticara. 

O certo, porém, é que Fritz Weber, antes de partir para 
o Prata, contou a muitas pessoas que estão vivas e san^, 
aqui e em Campinas, todos os pormenores desses gravís- 
simos factos. 

Se, pois, todos os títulos emittidos pela "Northen" — 
papeis sujos que Deleuze mandara lithographar em S. Paulo 
• — ficaram nos cofres da própria empresa, porque, de 
,accôrdo com a confissão judicial feita pela "Northern", 
,ninguem açceitou a substituição, — como pretende elle 
dizer que pagou cerca de 2.5CX) contos aos obrigacionistas 
da famigerada empresa cujos títulos foram emittidos em 
substituição das antigas debentures? 

Uma vez que todos «sses papeis sujos ficaram em seu 
poder, nada mais fácil do que distribuil-os por diversas 



— 140 — 

pessoas, aqui, na America do Norte, na China ou no Japão, 
jpara o effeito de fazer com que os seus testas de ferro 
firmassem os recibos, cujas photographias imprimiu espa- 
lhafatosamente em seus folhetos. 

Mas o que é difficil, mesmo difficilimo, senão impossivel, 
é provar que os titulos, cujas rendas dá como pagas em 
Genebra, foram entregues, em substituição dos antigos, 
aos debenturistas da Araraquara e, como taes, portadores 
de titulos da empresa fallida. 

Entretanto, se a substituição se houvesse operado, 
Deleuze tinha um meio fácil de provar á evidencia o facto, 
não mandando photographar recibos dos seus testas de 
ferro, mas offerecendo em juizo as debentures substituídas 
e cumprindo assim uma obrigação que lhe está affecta pelo 
próprio instrumento de acquisição da estrada. 

Nada mais fácil a quem possue, em seus cofres, todas as 
obrigações emittidas pela "Northern" e que foram recusa- 
das por seus legítimos destinatários, do que mandar para 
Genebra, a qualquer banco daquella praça, uma certa porção 
delias e fazer alli apparecer, como portadores dos titulos 
que conserva em carteira, vários credores simulados ou 
testas de ferro, para "consagrar" de forma definitiva uma 
fita que devia produzir effeito no Brasil. 

Demais, os antecedentes do mystificador, useiro e veseiro 
nessas trampoUnagens, justificam perfeitamente a nossa 
argumentação, porque outra coisa não tem feito no Brasil 
desde que aqui chegou senão servir-se de figuras de palha 
para toda sua obra innominavel de "escroquerie". 

A nossa argumentação, porém, torna-se irrespondivel, 
quando, no concurso de preferencia que se agita cm Arara- 
quara, se verifica que quasi todos os credores chirogra- 
pharios e debenturistas francezes reclamam a discussão de 
seus direitos c mostram não haver recebido, em substitui- 
ção, os títulos emittidos pela "Northern" para pagamento 
dcs credores habilitados na fallencia da Araraquara. 

A quem, pois, Deleuze pagou? Duas ordens de credores 



— 141 — 

iinicos se habilitaram e foram reconhecidos naquelle pro- 
cesso. Elle se obrigou expressamente a não contrahir 
novas dividas, sem liquidar as existentes. Todos os credo- 
res já habilitados ahi estão a gritar fragorosamente contra 
a burla de que foram victimas. Ahi estão a reclamar o 
deposito do dinheiro, producto da desapropriação, afim de 
evitar que Deleuze lhe dê o sumiço que tem dado até hoje 
a todas as rendas da estrada. Ahi estão, em massa com- 
pacta, reclamando seus respectivos pagamentos e decla- 
rando publica e solennemente que não acceitaram quaesquer 
títulos da nova empresa em substituição dos créditos de 
que eram titulares. Onde, pois, se acham e como se origi- 
jnaram os novos títulos traduzidos pelas obrigações para 
cujo simulado pagamento Deleuze allega ter enviado a um 
banco de Genebra determinada quantia? 

E' assim que respondemos, com provas resultantes dos 
autos, com factos de indiscutivel procedência, ás investidas 
contra a verdade, formuladas aqui e alli pelo audacioso 
aventureiro e impenitente estellionatario. 



XXIII 



Quem, como nós, da collina em que voluntariamente nos 
«collocámos, contemplar nas planuras o engálfihhamento de 
todos os interessados nesse mysterioso negocio da acqui- 
fiição da Araraquara, não pode deixar de receber na retina 
uma impressão viva, determinadora de considerações bera 
suggestivas. 

Todos quantos, no vario desenrolar dos acontecimentos, 
tomaram parte nesse escabroso caso, acabaram, mais dia 
«nenos dia, revoltando-se contra Deleuze e apontando-o á 
execração publica, como o mais audacioso dos mystifica- 
dores. 

Será por acaso que todas essas pessoas, algumas notoria- 
mente conhecidas e respeitáveis, por suas tradições de 
honra e de civismo, se esqueceram, de uma hora para outra, 
•de elementares sentimentos de probidade? 

Será que Deleuze, em f^ce de toda essa avalanche que 
se ergue contra elle, é o unico homem que conserva intacto 
o' sentimento de dignidade que os outros olvidaram tão 
proniptamente? 

Essas interrogações nos assaltam o espirito, levando-nos 
a uma peregrinação através das múltiplas viellas condu- 
centes ao porto final em que atracara a nau pirata que se 
chama **S. Paulo Northern Railroad Company". 

Effectivamente: Deleuze começou em Pariz a sua obra, 
traçando os primeiros delineamentos da sua. trama diabo- 



— 144 — 

liça e ainciando os debenturistas lá residentes para o plano 
iconjuncto de uma defesa de seus direitos no Brasil, no 
processo da fallencia da Araraquara. Passam os tempos e 
toda aquella legião de interessados, que antes se agglome- 
rára em torno do patricio, se volve indignada contra o 
aventureiro, apontando-o á justiça franceza em três pro- 
cessos crimes, como um perigoso "escroc" e um francez 
indigno, — "escroc", pelas artimanhas praticadas para lhes 
illudir a boa fé; francez indigno, pelo entendimento com o 
inimigo na effervescencia da guerra. 

São as primeiras pedras que se levantam na estrada tor- 
tuosa de Deleuze para lapidal-o como intrujão terrivel. 

Dalli volve elle suas vistas .para Hamburgo e, por mano- 
bras já conhecidas do leitor, entra em confabulações com 
L. Behrens 5? Sohne. Estes, sem embargo da censura que 
jamais lhes perdoaremos, são considerados, em todas as 
praças mundiaes, como dos mais importantes banqueiros da 
Allemanha. Algum tempo é decorrido e também esses novos 
alliados de Deleuze se insurgem contra elle, atirando-lhe 
as mais rijas pedradas e não se cançando de consagral-o o 
«nais audaz e impenitente bandido que o sói illumina á face 
da terra. Aliás, basta ler o que consta das repetidas pole- 
micas entre elles a respeito do caso. 

Chega o nosso Rocambole ao Brasil e aqui lança ferro a 
ísua nau pirata. Os primeiros administradores geraes de 
seus negócios também de prompto se collocaram contra 
elle. Fritz Weber, o original criado de quarto trazido para 
os fins já tão largamente explicados, nem esse — um indi- 
viduo assalariado para uma obra daquella natureza — achou 
que !he era digno ficar ao lado de Deleuze e, na sua incon- 
tida revolta, andou a propalar "urbi et orbi" as façanhas 
ido seu comparsa. 

Da Europa veiu com Deleuze, por elle ajustado mediante 
pingues honorários, para tomar a direcção geral e technica 
da estrada, um belga illustre, o sr. E. Wissinger, que, dias 
depois de haver aqui chegado, perfeitamente ao par do 



— 145 — 

que Deleuze delle pretendia, correu pressuroso á presença 
do sr. Teplitz, então gerente do Banco Francez e Italiano, 
pedindo que juntos fossem ao respectivo cônsul explicar 
a trama de que fora victima e mostrar que, na maior 
insciencia do caso, se prestara a firmar um. contrato para 
administrador e director geral da estrada. . 

Esse engenheiro illustre, afinal, em verdadeiro estado de 
inquietação, deixou a capital paulista e foi trabalhar num 
caminho de ferro, no Paraná ou no Rio Grande do Sul, 
estando prompto a repetir a quem quizer ouvir a inacredi- 
tável patifaria que representava o negocio urdido por 
Deleuze no Brasil. 

A seguir passou a exercer o mesmo cargo o sr. Qiarles 
Pitet. Já sabe o leitor a attitude do novo administrador 
gferal, quando verificou qual era o negocio em si que 
iJeleuze viera executar em S. Paulo. E, depois das graves 
scenas aqui desenroladas, em que tornou publicas varias 
cartas confidenciaes do trapaceiro, profundamente affron- 
tosas aos nossos mais eminentes e respeitáveis homens 
públicos, regressou á França, onde foi, nos . processos lá 
instaurados, dizer tudo quanto sabia, para se exonerar de 
futuras responsabilidades no "Dies irae" de Deleuze, perante 
a justiça franceza. 

Outro administrador e director geral de seus negócios, 
o sr. Ed. Burle, foi então admittido nos serviços da "Nor- 
thern", em substituição do demissionário. Mezes, entre- 
tanto, eram passados, e andava. esse novo representante de 
Deleuze a dizer a todo mundo, no Rio de Janeiro, pelos 
cafés, que nunca vira estellionato mais friamente executado 
« jamais conhecera justiça mais longahime do que a nossa, 
a cuja face se concebia e se executava uma obra temerosa 
como a consistente na acquisição do activo da Araraquara. 

Entendeu então Deleuze não haver quem, respeitando-se 
e respeitando o próprio nome, pudesse desempenhar a 
funcção de gestor geral de seus negócios. Passou por isso 
elle próprio a administral-os no Rio, no escriptorio lá 



— 146 — 

mantido. Mas, mesmo assim, não evitou que todos os 
superintendentes da estrada, successivamente admittidos 
em Araraquara, se volvessem indignados contra o patrão, 
cjuando viram que não sé tratava de um negocio licito de 
«exploração de uma estrada de ferro, e sim de cumplicidade 
•fria num crime revoltante, tudo quanto delles se reclamava. 

Sem excepção alistaram-se também os administradores 
geraes dos negócios de Deleuze e os inspectores da estrada 
jno grupo já formado pelos debenturistas francezes e ban- 
queiros hamburguezes. 

Aqui chegando, os primeiros entendimentos de Deleuze, 
•— para não sahirmos ainda do núcleo dos directamente 
interessados no negocio — foram com os maiores repre- 
sentantes de créditos chirographarios. Também estes, que 
receberam Deleuze de braços abertos e que eram represen- 
tados pelos seus verdadeiros "leaders", — os srs. Sylvío 
Penteado e Teixeira Leite — não tardaram a conhecer a 
burla de que foram victimas e sahiram a gritar ruidosamente 
pelos jornaes contra o autor da "escroquerie^', tendo como 
«atellites, na proclamação geral do crime, os demais inte- 
xessados, sem excepção de um só. 

Não ha quem em S. Paulo ignore a attitude assumida 
pelo sr. Sylvio Penteado contra o famigerado aventureiro. 
E lá estão no Fórum Criminal, no cartório do 4.® Officio, 
os autos da queixa-crime apresentada pelo sr. Teixeira 
Leite contra o ladrão, autos de que muitas vezes nos soc- 
ccrremos na exposição e deducção de tudo quanto temos 
trazido a publico. 

E a esse propósito, sem querermos interromper a nar- 
ração ora feita, não nos é licito deixar de referir ao leitor 
lum episodio que responde a uma das muitas investidas 
anonymas de Deleuze contra nós. 

Ha dias, bradando contra a nossa "cretinice", dizia c 
íarçante francez que era absurdo que se pudesse interrom- 
per a marcha de um processo crime com qualquer questão 



— 147 — 

piejudicial, visto que» se assim fora, um estellionatario do 
6eu jaez evitaria indefinidamente a acção da justiça. 

Pois bem. Na queixa apresentada pelo sr. Teixeira Leite, 
o procedimento judicial foi sustado em virtude de um con- 
flicto de jurisdicção levantado no ^io por Deleuze, e de 
«cuja inteira exactidão fica o publico orientado pela trans- 
cripção do seguinte officio: 

"N.** 845 — Supremo Tribunal Federal — Rio de Janeiro, 
y26 de Janeiro de 1918 — Havendo "The S, Paulo Northern 
Railroad Company" suscitado a este Tribunal conflicto de 
jurisdicção entre esse juizo, o juizo commercial da 2.* vara 
e o juizo seccional desse Estado, recommendo-vos que 
sobrestejaes no andamento do processo crime que Luiz 
António Teixeira Leite move contra a dita "The S. Paulo 
Northern" ou seu presidente Paul Deleuze, até decisão 
final deste Tribunal, e bem assim presteis as necessárias 
informações no prazo de dez dias, em face da petição por 
copia junta. Saudações. — ANDRÉ' CAVALCANTI, vice 
presidente. — Ao sr. dr. juiz de direito da 4.* vara criminal 
da capital de S. Paulo". 

Foi mais ou menos por essa forma que conseguira elle 
na França obstar até hoje a acção da justiça criminal, 
1 — acção, entretanto, que mais dia menos dia ha de se mani- 
festar em toda a extensão do seu rigor» punitivo. 

Sahindo do circulo dos interessados no negocio e inva- 
dindo outra esphera, ainda vamos encontrar um facto que, 
ao que suppomos, é virgem nos annaes judiciários do nosso 
(Estado. 

Deleuze, para execução de seus projectos, e em contacto 
,com a justiça brasileira, teve necessidade de soccorrer-se 
<ias luzes de vários advogados. Procurou-os naturalmente 
entre os de melhor renome no paiz. Pois bem. Elles todos, 
quer os de S. Paulo, quer os do Rio de Janeiro, entenderam 
' — uns agressivamente e outros menos rudemente — alijar 
de seu escriptorio o pernicioso cliente. Vendo-se quási na 
impossibilidade de encontrar advogados em S. Paulo, por- 



— 148 — 

que muitos, consultados, entenderam de graves riscos o 
patrocínio de tão perigoso aventureiro, — teve de soccor- 
rer-se do que se lhe apresentou... 

Ora, este facto é sobremodo impressionante. Come se 
pôde explicar que, no evolver de um negocio tão compli- 
cado como esse, todas as pessoas, que directa ou mdirecta- 
imcntc tomaram nelle parte, se voltem indignadas contra o 
companheiro de dantes e o apontem como trapaceiro con- 
tumaz, — senão pela explicação natural e lógica de terem 
sido victimas, em sua boa fé, das artimanhas do "escroc"? 

E o facto não está porventura a demonstrar que Deleuze 
não pode pretender, diante das circumstancias e dos ele- 
mentos accumulados, a inaudita qualidade de detentor 
único da verdade, da honra e da lisura, para apontar a todos 
os demais como trapaceiros, versáteis» gananciosos e des- 
peitados? 

Não é esse um dos meios concludentes de prova, qual o 
que decorre da narrativa circúmstanciada de todos que, ou 
por suas funcçSes, ou por seus interesses, alg^m dia tive- 
ram negócios com o aventureiro — numero que amanhan 
necessariamente ha de augmentar com a coparticipação dos 
ique hoje ainda procuram defendel-o? 

De facto. Essas circumstancias necessariamente pesaram 
muito em nosso espirito e prepararam, em suas linhas geraes, 
a narrativa que fizemos, servindo ainda para orientar 
amanhan a nossa conducta» ao lançarmos a derradeira pá 
de cal sobre o salteador. 



XXIV 



Dissemos que o famigerado "escroc" não remetteu para 
o extrangeiro quantia^ alguma destinada ao pagamento dos 
legitimos credores da Araraquara, porque estes não accei- 
taram a substituição de seus títulos pelas novas obrigações 
emittidas pela "Northern". E accrescentámos que, se algum 
pagamento foi effectuado pelo Banco Federal de Genebra, 
certamente se trata de nova trapaça do aventureiro e de 
facillima execução, uma vez que todos os titulos destinados 
a uma eventual substituição ficaram em carteira da empresa 
emittente. 

Com a audácia que lhe é habitual, respondeu-nos o insi- 
gne trampolíneiro, dizendo que enviara para Genebra 
quantia superior a 2.500 contos, para o resgate de uns 
tantos "coupons" vencidos, conforme photographia dos 
respectivos recibos, publicada em folheto que está sendo 
largamente distribuído por seu patrono. 

Já prevendo que no caso houvesse uma das repetidas 
fraudes á verdade, muito dos hábitos do nosso Rocambole, 
mandámos ao escriptorio do seu advogado buscar um exem- 
plar dos tão annunciados folhetos. 

Pasmem os que nos lerem! As photographias dos reci- 
bos de 2.500 contos são, nada mais nada menos, as photo- 
graphias de quatro únicos recibos, orçando na importância 
total de menos de 7 contos, porque a somma dos pagamen- 
tos que ahí se diz terem sido effectuados pelo patife importa 



— 150 — 

apenas em 10.531 francos francezes, ou seja, ao cambio de 
600 réis, a ninharia de 6:318$600! 

E ha, entretanto, um advogado e um cliente que, á face 
do publico e para intrujar os ingénuos, se permittera a 
liberdade conjunta de alardear que 6 contos e pouco repre- 
sentam 2.500 contos! 

Claro é que, com semelhantes processos de discussão, não 
ha meio de se chegar a um resultado positivo. Deleuze não 
conhece outra arma que não a perfidia, outro processo além 
da simulação e outro meio de discutir senão o da mais 
absoluta deslealdade. 

Mesmo, porém, esses poucos contos de réis, á volta dos 
quaes tanto espalhafato tem feito, a ponto de mandar pho- 
tographar os recibos, não representam pagamentos a legí- 
timos credores da Araraquara, mas apenas uma fita armada, 
aliás muito economicamente, á incrível tolerância das nossas 
autoridades. 

Quando surgimos na imprensa, tínhamos o espirito vol- 
tado para a imprescindível necessidade de deixar patente 
aos olhos do publico quem era esse audacioso farçante que 
acode ao nome de Paul Deleuze. 

Estávamos no extrangeiro, numa longa viagem, quando 
repentinamente ouvimos os mais desfavoráveis commenta- 
rios á acção da nossa justiça e á tolerância de nossas auto- 
ridades relativamente a esse tortuoso caso da Companhia 
Araraquara. Jurámos aos nossos deuses que, com esforço 
e solicitude, havíamos de reconstituir toda essa trama 
delictuosa e, em chegando á pátria, deixaríamos bem escla- 
recida a lisura da administração de São Paulo e todo o ban- 
ditismo do mystificador. 

Voltámos confiados de que, dentro em pouco, os factos 
haviam de ter o seu necessário desfecho. E então armaze- 
námos toda copia de documentos e todas as indicações de 
testemunhas que poderiam pôr a descoberto, de forma com- 
pleta e cabal, a acção nefasta do aventureiro francez. 



— 151 — 

Aqui chegados, volvemos para a nossa lavoura, situada 
precisamente na zona flagellada pela estrada sinistra. Lá, 
em contacto diário com a nossa Natureza, na sua expansão 
de força e de belleza, mais se inflammou o grande amor á 
nossa terra, a semelhança daquelle personagem de Eça que 
fora retemperar o espirito e fortalecer a fibra patriótica 
nas serras de sua província. 

Diariamente', na paz bucólica de nossa fazenda, recebía- 
mos os jornaes de S. Paulo, que devorávamos com a sof- 
freguidão de quem dispõe de muitas horas de lazer. Não 
se passava dia em que não encontrássemos, em suas 
columnas, os maiores opprçbios e as maiores infâmias, 
atiradas ao rosto dos homens que occupavam as mais altas 
posições na administração publica do Estado. O presidente 
de então era apontado como um quadrilheiro vulgar, sócio 
de empresas suspeitas e arranjador de negócios escusos. 
Seu secretario da Agricultura era lançado á execração 
geral, como um homem capaz de assaltar os cofres públicos, 
para satisfazer os mais condemnaveis appetites. 

E tudo isto era obra de um extrangeiro audaz, de um 
aventureiro sem escrúpulos e sem nome, amaldiçoado pela 
própria pátria, infamado em sua própria terra e que aqui, 
á face de nossa população e ao abrigo de leis liberaes, vivia 
a atirar diariamente os mais cruéis baldões sobre tudo 
quanto temos de mais caro e extremecido. E esse extran- 
geiro era Paul Deleuze. 

Um dia, passeávamos pelos talhões dos nossos cafeeiros^ 
em cujos arbustos, na pujança de seu desenvolvimento, já 
começavam a enrubescer as crystallisaçpes do sangue pau- 
lista, consubstanciado nos fructos preciosos. Eis que de 
repente vemos que os colonos, amotinados, cercavam a 
casa do administrador. Suppuzémos uma greve. Corremos^ 
a indagar do que se tratava. Era a nossa colónia que, apa- 
vorada, inquiria se effectivamente as Caixas Económicas do 
Estado haviam fallido. Porque era isso que um emissário 
occulto andava a propalar pelas fazendas da zona, da mesma 



— 152 — 

forma por que largamente se divulgou o facto na secção 
livre dos jornaes de S. Paulo. 

Todos sabem o que foi essa campanha que determinou 
uma corrida em nossas Caixas Económicas e perturbou de 
modo sensivel a economia da população agrícola, a qual, em 
grande parte, alarmada, se encaminhou para o extrangeiro. 

De quem essa obra satânica? Ainda do mesmo audaz 
trampolineiro, do mesmo extrangeiro desclassificado, do 
mesmo farçante indigno, do mesmo homem maldito que 
não escolhe meios, nem elege occasiões para aggredir e 
infamar todos quantos se lhe apresentem na estrada, a em- 
baraçar a consummação dos seus assaltos. Era ainda Paul 
Deleuze. 

Quando desembarcámos no Rio, de regresso de nossa 
viagem alludida, encontrámos um advogado que fora pa- 
trono do aventureiro naquella capital. Contou-nos elle en- 
tão que Deleuze se vangloriava de ter sido chamado pelo 
eminente estadista que Koje occupa o mais alto cargo na 
administração de S. Paulo, afim de lhe propor uma com- 
posição, porque não queria pactuar com os "actos vergo- 
nhosos'* praticados por seu antecessor no tocante á desa- 
propriação da "Northern". E ao mesmo tempo nos narrou 
o referido advogado que Deleuze lhe communicára ser cer- 
to o seu ganho de causa nà appellação que interpuzera da 
sentença julgando a desapropriação, porquanto já conhe- 
cia na integra o parecer do respectivo relator. 

Replicámos-lhe immediatamente, com toda energia, que 
as gaboHces de Deleuze não passavam de mais uma de 
suas infâmias habituaes. O relator do feito era a encarna- 
ção viva desses juizes que D'Aguesseau pintara como ver- 
dadeiros super-homens : era o prototypo da honra e a in- 
corruptibilidade em pessoa. 

Dias depois, o julgamento da causa vinha demonstrar 
o quanto de audácia tem o refinado patife: sua appellação 
foi negada por unanimidade de votos. E quanto ás blaso- 
nices relativas ao chefe do nosso poder executivo, a linha 



— 153 -^ 

recta desse homem, cuja tempera de aço é o mais severo 
espantalho dos trampolineiros, ahi está a attestar o que 
delle deve esperar a população da zona flagéllada. 

Um dia, porém, já tínhamos procurado restituir o espi- 
rito á calma necessária para o exercício da nossa activi- 
dade rural, quando, numa folha da manhan, vimos formu- 
lada, em todo^ os tons e com todas as letras, a mais teme- 
rosa ameaça á nossa justiça, á qual era dirigido, em ter- 
mos insolentes, um "ultimatum" de intervenção extran- 
geira, se o litigio de Deleuze não fosse julgado de accôrdo 
com os seus appetites delictuosos. 

Não nos pudemos conter. E foi então que resolvemos 
vir á imprensa e publicar estes artigos, que nada mais são 
do que um appello sincero e vehemente de pauliffca ás nos- 
sas autoridades constituídas para que sem detença mandem 
abrir e processar um inquérito rigoroso a respeito de to- 
dos os factos relativos á acquisição da massa da Arara- 
quara, para severa punição de todos os culpados, sejam 
elles quaes forem, afim de que qualquer aventureiro audaz 
não se ria da nossa terra e nos aponte como berço favo- 
rável a todas as expoliaçoes e a todos os crimes. 

E é preciso que assim se faça, sem delongas, para que 
no extrangeiro se possa conhecer quem é o homem que 
vive a ínfamar-nos e quem é o sacripante que soube lu- 
dibriar a boa fé a tanta gente, inclusive seus patrícios. 

Reunimos todos os elementos de prova que hoje vimos 
òfferecer á apreciação das autoridades. 

Não ha um só facto, dos que foram por nós articulados, 
que não possa ser provado immediatamente com documen- 
tos acima de toda suspeita e com uma prova testemunhal 
completa e robusta, constituída pelas declarações de pes- 
soas idóneas. 

Nossas informações — e hoje não fazemos reserva em 
declaral-o — foram colhidas; preliminarmente, nas peças 
dos três processos existentes em Pariz contra Deleuze, e 
no boletim largamente distribuído naquella capital pela 



— 154 — 

"Association Nationale des Porteurs Français de Valeurs 
Mobiliéres", no qual são reproduzidas de forma sympto- 

r 

matica todas as narrações capitães, enfeixadas em muitos 
de nossos artigos. 

Soccorremo-nos ainda das peças de um processo inten- 
tado na capital franceza por Cohen & Zamette, contra De- 
leuze, e dos documentos que então foram offerecidos, alem 
das informações reunidas no Ministério do Exterior da 
França, como base de uma reclamação que deve ser ou 
já foi apresentada na liquidação dos damnos soffridos pelos 
debenturistas francezes e attribuidos aos banqueiros ham- 
burguezes L. Behrens & Sohne. 

Em S. Paulo, recorremos aos autos de um processo cri- 
me existe§te no 4.® officio, em que se acham muitos dos 
documentos que reproduzimos, inclusive a acta original da 
reunião dos credores chirographarios, realisada na Asso- 
ciação Commercial, pouco tempo depois da acquisição do 
activo da Araraquara pela "Northern". 

Mas acima de tudo vamos apontar á justiça todas as 
pessoas que em Pariz e aqui podem depor sobre os factos 
e esclarecel-os em toda a sua nudez. Não consultámos uma 
só delias e nem lhes pedimos autorisação para aqui decli- 
nar expressamente os seus nomes. Não temos, todavia, o 
menor escrúpulo em fazel-o. Estamos certos de que nem 
uma só se recusará a prestar o seu serviço á justiça, ma- 
ximé numa questão de interesse verdadeiramente patrió- 
tico, como é essa da falcatrua innominavel de Deleuze. 
Desafiamos, á face da sociedade paulista, qualquer das pes- 
soas apontadas a desmentir-nos por sua honra sobre os 
factos que respectivamente cada uma delias sabe no to- 
cante ao escraboso negocio. Certo é que a prova produzida 
por essas testemunhas, como toda demonstração real que 
não é de encommenda, só pôde ser feita por cada uma 
delias no que respeita aos factos em que tomaram parte. 

Podem em S. Paulo referir se o que aqui dissemos é ver- 
dade ou mentira os três administradores geraes que De- 



— 155 — 

» 

leuze preliminarmente teve: E. Vissinger, Charlet Pitet 
c E. Burle. 

Pôde depor ainda o comparsa de toda a trama, Fritz 
Weber, se fôr descoberto o seu paradeiro. 

Não se negará a referir os factos que expuzemos o sr. 
Carlos Neck, que foi superintendente da estrada no mo- 
mento em que Deleuze tomou conta da mesma. 

Sabem ainda do caso, em S. Paulo, o^ directores do 
Banco Italiano, srs. Teplitz e Frontini, — aquelle, que 
acompanhou muito de perto a correspondência vinda da 
Europa quando os debenturistas francezes se empenhavam 
por que fosse sustada a acção de Deleuze no Brasil e que 
teve em mãos toda a correspondência epistolar e telegra- 
phica relativa a esse negocio; este, o sr. Frontwi, que foi 
um dos liquidatários da fallida. 

Não ignoram também todos os pormenores do iacto os 
liquidatários da Companhia Araraquara, srs. R. de Rote, 
delegado no Brasil do "Comité" dos debenturistas fran- 
cezes ; E. Wysard e o abastado negociante sr. José de Sam- 
paio Moreira, filho do. saudoso capitalista sr. Francisco de 
Sampaio Moreira, que também foi liquidatário da estrada. 

São ainda testemunhas os srs.: conde Sylvio Alvares 
Penteado, dr. Luiz Teixeira Leite, dr. José Ulpiano Pinto 
de Souza, dr. Adolpho Gordo, dr. António Mercado, dr. 
João Gonçalves Dente, dr. José Benedicto dos Santos, dr. 
Angelo Gabriel da Veiga, senador Ignacio Uchôa, dr. Ma- 
noel Tamandaré Uchôa, dr. Luiz dos Santos Dumont, Luiz 
António de Souza, dr. João Sampaio, dr. Octávio Mendes, 
dr. R. Kock, dr. Eduardo da Fonseca Cotching, dr. José 
Corrêa Borges, conselheiro António Prado, dr. Paulo Pra- 
do, dr. Alfredo Pujol, dr. Ernesto Pujol, dr. Taylor de 
Oliveira, dr. Augusto de Macedo Costa, Joaquim Marti- 
niano de Vasconcellos, dr. Álvaro Guimarães, Carlos Whi- 
tacker, dr. Campos Lara, Francisco Nobre Vieira e dr. José 
de Góes Artigas. 

No Rio: dr. João de Aquino e Júlio da Costa Pereira. 



— 156 — 

Em Pariz, podem prestar esclarecimentos sobre o caso» 
além de Clemenceau e Briand, o sr. Chevalier, director do 
Banco de França; o dr. Paul Gaye, advogado; os srs. Ja- 
cques Cohen & Zamette; os directores da "Banque Tran- 
satlantique" e da casa bancaria Allard; todos os directores 
da "Association Nationde des Porteurs Français de Va- 
leurs Mobiliéres"; o dr. L. Sarran e os cônsules francez 
« belga de S. Paulo, no tempo em que a operação se rea- 
lisou e em cujo poder se acham os documentos officiaes 
de toda a parte da "escroquerie" occorrida no extrangeiro. 

Também conhecem os factos, em Pariz, os srs. Dapples, 
Zuccoli e Borsono, directores do Banco Francez e Italiano; 
« os directores da secção sul-americana no Ministério do 
Exterior da França. 

Ainda podem referir circumstancias bem minuciosas os 
directores da casa bancaria L. Behrens & .Sohne, de Ham- 
burgo, e da casa Littman, de Genebra. 

Vê, pois, o publico que não avançamos proposições in- 
fundadas: tudo quanto asseverámos pode ser cabalmente 
provado. 

O julgamento da causa está próximo. Não devemos per- 
turbar a serenidade da justiça que vae agora exercer a 
sua obra de consolidação do Direito, mantendo seg^ira- 
mente os julgados anteriores que incorporaram ao patri- 
mónio do Estado a rica presa arrebatada pela rapacidade 
de Deleuze. 

Não é licito que nessa hora, em que a mais elevada 
Corte de Justiça do nosso Estado vae cumprir a sua mis- 
são social, procuremos com atoardas na imprensa pertur- 
bar a tranquillidade necessária aos íntegros julgadores. 

Muito tínhamos que dizer ainda, muita coisa grave a 
referir. Entendemos, porém, que as nossas ultimas bate- 
rias devem ser reservadas para qualquer novo ataque que o 
-contumaz trampolineiro venha a executar contra os nossos 
homens e as nossas coisas. 

Voltamos tranquillos para a nossa propriedade agrícola. 



— 157 — 

Lá continuaremos a contribuir para a prosperidade daquel- 
la zona que a "Northern*' sempre procurou flagellar. Lá 
o modesto Epaminondas, que por tantos dias occupou es- 
tas columnas, vae esperar que se confirme o "ultimatum" 
com que Deleuze affrontou a nossa justiça e ameaçou a 
nossa soberania. 

Epaminondas é um symbolo — dissemos num dos úl- 
timos artigos. Effectivamente: no momento em que por- 
ventura aquella infâmia se consummasse, Deleuze veria 
surgir de todos os recantos de nossa terra outros tantos 
Epaminondas, que se multiplicariam na obra de indigna- 
ção e defesa collectiva, mostrando que é lá e sempre lá — 
na nossa zona agrícola, — que se encontram as grandes 
reservas da nossa nacionalidade, para as horas de reivin- 
dicação e para os momentos de defesa nacional. 



> 



o CASO 



OA 



"S. PAULO NORTHERN" 



O JULGAMENTO NO TRIBUNAL 
DE JUSTIÇA. — REJEIÇÃO UNA- 
NIME DOS EMBARGOS DA COM- 
PANHIA. ■ 

(SESSXO-DE 30 DE SETEMBRO DE 192t) 



Nos processas de desapropriação, não pôde o jt;iiz entrar 
na analyse dos motivos que levaram o poder publico a de- 
cretar a desapropriação. 

A competência para decretar a desapropriação, no Estado 
de São Paulo, quer se trate de desapropriação por utilidade 
•publica, quer por necessidade publica, é do Congresso Estadual. 

O processo para fixação da indemnisação, nos casos de 
desapropriação por utilidade, ou por necessidade publica, é o 
traçado na lei n. 18, de Março de 1836. 

Os Tribupaes só podem recusar applicação aos decretos que 
desapropriam bens particulares, quando forem elles manifes- 
tamente inconstitucionaes. 

O direito de propriedade, embora garantido pela Constituá- 
ção Federal, não constitue matéria que se prenda essencial- 
mente áquella Constituição e que, portanto, só possa ser deba- 
tido perante a justiça federal. Regulado, como é, por leis 
espcciaes, do Estado e do municipio, pode elle ser e tem sido 
ventilado em processos movidos perante a justiça estadual. 

Não podem ter effeito suspensivo os aggravos de instru- 
mento, quando esse effeito não tem as próprias appellações 
interpostas das sentenças, que julgam as causas em que taes 
aggravos forem apresentados. 

Nos processos de desapropriação, o laudo dos peritos c uma 
verdadeira decisão arbitral, que só os juizes da segunda ins- 
tancia podem modificar. 

Se credores do expropriado reclamam preferencia sobre o 
preço da expropriação, é de boa cautela mandar o juiz que 
esse preço fique depositado, até que a preferencia se discuta 
regularmente, em processo especial. Nem o deposito, nem a 
preferencia influem no andamento da desapropriação. 

Julgaram hontem no Tribunal de Justiça os embargos oppostos pela 
SSio Paulo Northern Railroad Company ao accordam que manteve a 
desapropriação daquella estrada decretada pelo governo do Estado. Os 
embargos foram rejeitados por unanimidade de votos. 



— 162 — 

O caso é o seguinte: em 21 de Dezembro de 1918, a l«i n. 1.627, do 
Congresso do Estado, autorisou o governo a encampar ou desapropriar 
a Estrada de Ferro de Araraquara a São José do Rio Preto, inclusive 
o ramal de Sylvania a Tabatinga, com todo o material fixo e rodantc 
Pelo decreto n. 3.101, de 15 de Outubro de 1919, o Poder Executivo pez 
em pratica a autorisação e declarou de necessidade publica, para ser 
desapropriada, a referida estrada de ferro, com todos os seus ben^ e 
concessões. Logo depois, um dos procuradores da Fazenda iniciou o 
processo judicial, mandado observar pela lei n. 57, de 18 de Março de 
1836) requerendo a citação da companhia, proprietária da estrada, para 
se louvar em arbitro que fixasse o valor da indemnisação. Emquanto 
se praticavam as diligencias da citação, que se fez por editaes, compa- 
receu em juizo um cidadão e requereu o deposito do preço, allegando 
ter direitos preferenciaes que deviam nelle ficar subrogados. No curso 
da causa, muitos outros credores, privilegiados ou não, fizeram igual 
ped'do, Sendo intentado um concurso creditório que ainda está sendo 
processado na primeira instancia. Realisando-se a audiência de louvação, 
a e'Ia compareceu a proprietária da esitrada, e nomeou o seu perito, de- 
pois* de apresentar uma excepção de incompetência de juizo, que, fmme- 
diatamente impugnada pela parte contraria, foi logo rejeitada *' in limi- 
ne ^ pelo juiz processante. A excipiente aggravou do despacho do juiz, 
que não deu cf feito suspensivo ao recurso, como ella pretendia. O 
processo, pois, continuou a caminhar. Effectuada a diligencia da ava- 
liação, na qual a companhia não apresentou documentos «ou esclareci- 
mentos, nem fez quaesquer considerações, veiu ella por petição avulsa, 
pretendendo oppor artigos de attentado, por ter o juiz proseguido no 
feito, antes de resolvida a questão da competência. Esses artigos não 
fo/am admittjdos. A companhia e o Estado apresentaram diversos que- 
sitcs para serem respondidos pelos árbitros. Fixada, por unanimidade 
de votos, a importância da indemnisação em 15.600 contos de réis, ad- 
duzlram os peritos considerações justificativas dessa conclusão, mas dei- 
xaram de responder pormenorisadamente aos quesitos das partes. Apre- 
sentado o laudo, o juiz ordenou o deposito daquella quantia no Thesou- 
10 do Estado, o que se fez, sendo cm seguida proferida a sentença, 
homologando a decisão arbitral e declarando os bens incorporados 
ao património do Estado. 

A estrada appellou da sentença. O Tribunal, porém, conforme noti- 
ciámos na occasião, negou provimento á appellação. A estrada não 
deianimou e embargou o accordam, allegándo, mais ou menos, o seguinte: 

Profunda é a differença, em face da doutrina, entre a desapropriação 
por necessidade e por utilidade publica. Na desapropriação por neces- 
sidade, trata-£e de tomar a propriedade particular para delia usar sem 
a modificar. E isso se dá só em casos extremos, quando exige a con- 
servação da communhão social e é medida que sé vae tornando sempre 



— 163 — 

«de mais rara applicação com o progresso dos povos. A desapropriação 
por utilidade, longe de se apresentar nos casos propriamente de con- 
servação da comniunhão social, surge quando se pretende fazer um 
melhoramento e, em tal circumstancia, toma o poder publico a proprie- 
dade do particular para com ella fazer uma obra, ou para modifical-a, 
contrariamente do que succede no caso de desapropriação por necessi- 
dade. Essa distincção, pre^cripta na lei geral de 1826, vem reproduzida 
no Código Civil, no art. 590. A doutrina não é alterada pelo facto áe 
liaver a lei da Provincia de S. Paulo, de 1836, abrangido casos que 
parecem de desapropriação por necessidade. Em matéria de utilidade é 
a lei que enumera os casos concretos em que é licifta a desapropriação. 
E essa enumeração é taxativa. 

Em matéria de necessidade, a lei só estabelece principios geraes 
« deixa ao Poder Judiciário a incumbência de verificar se taes princi- 
pios legaes foram applicados nos casos concretos em que o Poder Exe- 
cutivo toma a propriedade em virtude desses principios. Sendo assim, 
deixar de admittir, no processo de desapropriação, a verificação pelo 
Poder Judiciário da legalidade do caso de necessidade allegado pelo 
Poder Administrativo, não é só deixar de applicar o preceito expresso 
da ki geral sobre a matéria, mas ainda desconhecer os principios fun- 
^nentaes do instituto. A circumstancia de ter hoje o Estado de São 
Par.lo a competência para decretar a desapropriação por necessidade 
(ponto discutido) e de formular leis sobre o modo de se tomar a pro- 
priedade particular, quando útil ou necessária á communhão social, não 
significa que tenha implicitamente posto em vigor a lei provincial de 1836 
para os casos de processo de desapropriação por necessidade, ou, nou; 
Aias palavras, que tenha extendido a lei provincial de/ 1836 aos casos 
de utilidade que rege para os casos de necessidade. Mesmo quando essa 
lei de 36 fosse applicada aos casos de necessidade, não devia ser respei- 
tadrt na parte em que não admitte defesa perante a autoridade judicia- 
ria por parte do expropriado. Não é verdade que a defesa do particular 
só pode ser apreciada em acção especial, como tem decidido o tribunal 
paulista, por ser matéria " ad agendum " e não ad excipiendum ". Abo- 
lido como foi o Contencioso Administrativo e consagrado o principia 
de que a propriedade particular deve ser respeitada em toda a sua ple- 
nitude, não ha como recusar a um particular o direito de, nos processos 
de desapropriação, analysar a legalidade do acto cxpropriatorio pra- 
ticado pelo poder púbico. A verdade era, porém, que a lei applicada 
á espécie era a lei geral de 1826, única que regula as degapropriações 
por necessidade publica. Sendo assim, estava radicalmente nullo o pro- 
cesso. Além disso, a avaliação não se^fez de accôrdo com a lei, nem a 
incorporação da estrada ao património do Estado foi precedida do paga- 
mento do preço. Simulou o governo um deposito da importância devida 



— 164 — 

em seus próprios cofres e isso por ordem do juiz, sem que tivesse ha- 
vido credores hypotheoarios com direito â somma da expropriação. 
Nestas condições, o processo devia ser annullado, em parte, para se re- 
ceber a defesa da expropriada, ou, então, se devia mandar entregar a 
esta o dinheiro que se acha em poder do Thesouro do Estado. 

Feito o relatório da causa pelo sr.- ministro Costa Manso, teve a 
palavra o procurador da companhia embargante. S. s. declarou que 
seria breve. A causa já tivera larga discussão no processo e larguissima 
na imprensa, talvez mais do que conviesse. Usava da palavra apenas 
parzL tratar do conflicto de jurisdicção, que na véspera foi julgado pelo 
Supremo Tribunal Federal. Narra os differentes conflictos que a com- 
panhia tem levantado; accentua a nova feição que elk tem procurado 
dar ás suas causas, mostrando que nellas se debatem pontos de direito 
imternacional privado e conclue, assignalando que, embora incidente^ 
mente, decidiu o Supremo Tribunal que a lei de 1826 sobre desapro- 
priação por necessidade publica ainda está em vigor. 

O procurador geral do Estado rebate, também em poucas palaviias, a 
exposição do advogado da embargante e sustenta que, ainda quando es^ 
tivesse em vigor a lei de 1826, nenhuma efficacia teria ella nas des- 
apropriações decretadas pelo Estado ou pelo município. Para estas des- 
apropriações, a única lei em vigor é a de 1836. 

Terminadas as exposições dos advogados, tomou a palavra o sr. 
ministro COSTA MANSO, que proferiu o seu voto, o qual foi, mais 
ou menos, nos seguintes termos: 

A conclusão dos embargos é a seguinte: "P. que, nos melhores ter- 
mos de direito, devem estes embargos ser recebidos, para que, afinal 
julgados provados, se annulle o processo ou se dê provimento ao re- 
curso, nos termos do pedido final das razões de appellaçao, cuja alter- 
nativa foi frisada no venerando accordam embargado". O final das 
razões de appellaçao a que os embargos se reportam é este: "Deve, 
poÍ5, o processo ser completamente annullado, por incompetência do 
juizo, ou annullado em parte, para ser discutida a competência; ou 
annullado em parte para se receber a defesa da Appellante, ou annullado 
somente para o ef feito de se fazer nova avaliação, sendo illegalissima a 
feita; ou, augmentado o valor da indemnisação por força do arbitrio de 
bom varão, visto ter a Appellante fornecido elementos para esse au- 
gmento, com documentos que juntou aos autos; ou, finalmente, confir- 
mada a sentença, mas mandando o Tribunal se entregue â Appellante 
o d*nheiro que se acha em poder do Thesouro do Estado de S. Paulo**. 

Antes de examinar cada um desses pontos da defesa, o sr. Costa 
Manso achou necessário expor alguns princípios do nosso direito rela- 
tivos á expropriação. Foram estes: a Constituição do Império estabe- 
lecia, no art. 179, paragnapho 22 : " E* garantido o direito de propriedade 



— 165 — 

«m toda a sua plenitude. Se o "bem publico'', legralmente verificado, 
«xigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será elle previamente 
indemnisado do valor delia. A lei marcará os casos em que terá logar ' 
>esta única excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisa- 
ção". Como se vê, o principio superior, que dominava o direito de des- 
apropriação, era o ** bem publico ". Não o definiu a Carta Constitucional 
de 1824: mandou que o fizesse a lei ordinária. A lei de 9 de Setembro 
de 1826 desenvolveu o preceito constitucional, estabelecendo os casos de 
desapropriação e capitulando-os em dois grupos, uns, que correspon- 
diam á *• necessidade publica'', e outros á ** simples utilidade". Foram 
declarados casos de "necessidade publica": 1) — a defesa do Es- 
tado; 2) — a segurança publica; 3) — o soccorro publico, em tempo 
de fome, ou outra extraordinária calamidade; 4) — a salubridade pu- 
blica. Eram casos de " utilidade publica " : 1 ) — as instituições de ca- 
ridade; 2) — a fundação de casas de instrucçao da mocidade; 3) — a 
conimodidade geral; 4) — a decoração publica. Qual o critério que 
serviu de guia ao legislador nesta classificação? Os escriptores diver- 
gem quando tentam estabelecer a distincção doutrinaria. Uns vêem na 
"necessidade" apenas os casos em que o Eàtado não pode deixar de pre- 
servar-se de um damno, que attingiria o próprio senhor da coisa ; outros 
exduem apenas as obras de mero embellezamento, pois que tudo quanto 
pode concoirer para o progresso do Estado, não só é útil, mas também 
é necessário. O illustre Scalvanti estabelece, entre as duas palavras, 
não uma re-ação antithetica, mas a de causa e meio de rcalisaçáo. As- 
sim, diz elle, a causa da expropriação deve ser a "utilidade publica"; 
a causa ** do facto ", da desapropriação, em confronto com os direitos do 
individuo por ella aíttingido, deve ser. a "necessidade". 

Verificada a utilidade, resta apurar se, para realisal-a, se torna a ex- 
propriação ** necessária ". Se a obra " útil " pode ser executada sem 
sacrificio da propriedade privada, a desapropriação não é "necessária". 
Sc a "utilidade" exige o uso da propriedade privada, a desapropriação 
é " recessaria ". " Útil " nos fins, " necessária " nos meios, tal a forma 
justificativa da desapropriação. "Útil" em relação ao bem publico; 
*>necessaria em reflação á coisa desapropriada. O illustre professor, 
^ue defende, com o brilhantismo habitual, a causa da Embargante, sus- 
tenta que a "necessidade publica" se caracterisa pela tomada da pro- 
priedade particular para ser utilisada sem modificação; quando, porém, 
a coisa expropriada deva ser transformada, o caso é "de utilidade". 
Não me parece acertado esse conceito, diz o sr. Costa Manso. A al)er- 
tura de uma rua ou estrada está incluida entre os casos de "utilidade". 
Entretanto, é possível seja desapropriada uma rua ou estrada parti- 
cular para ser entregue, sem modificação, ao transito publico. O nosso 
viaducto do Chá foi construido por uma empresa particular, que cobrava 



— 166 — 

aos transeuntes uma pequena contribuição. Supponhamos que, para 
adc;uinl-o, não tivesse havido accôrdo entre a empresa e a municipa- 
lidade. Esta o desapropriaria, abrindo-o, como abriu, ao transito pur* 
blico, tal qual estava: eis um caso frisante de desapropriação ''por uti- 
lidade ", sem transformação. Desapropriam-se caias, mattas, cultura» 
existentes em ponto da costa onde se devam levantar fortalezas: ahi 
está um caso de "necessidade" publica, com transformação da coisa. 
Um exercito em campanha toma, numa estancia, o gado vaccum e o 
cavallar. Aquelle é utilisado na alimentação da tropa; este na remonta 
da cavãllaria: eis a "necessidade" publica, seguida de uso com trans- 
formação c sem ella. O verdadeiro critério foi este: correspondem os 
casos de "necessidade" publica aos serviços indispensáveis á "conser- 
vação" do Estado: a defesa physica do território, a manutenção dm 
ordem interna e o combate aos flagellos da natureza. O Estado exerce,, 
então, aquellas funcções que alguns constitucionalistas denominam "ne- 
cessárias ". A utilidade, porém, refere-se ás chamadas funcções " facul- 
tai' vas" do Estado ou sejam: a educação e a instrucção do povo, a 
assistência publica, o desenvolvimento económico, os meios de trans- 
portes e communicação do pensamento, a commodidade geral, etc... 
A classificação, no emtanto, é puramente doutrinaria. Da execução de 
um serviço "necessário" resulta sempre "utilidade", 'assim como não 
se admitte que o Estado recorra á desapropriação por utilidade para 
executar obras desnecessárias. Só é necessário o que é útil; só se con- 
sidrra util o que é necessário. Nem se pode, principalmente hoje, dis- 
tinguir a acção necessária da acção facultativa do Estado, A instrucção 
primaria, por exemplo, cujo serviço determinaria a desapropriação por 
sinirJes utilidade, é, no Estado moderno, tão essencial como a alimen- 
tação publica. A própria Constituição Monarchica, no mesmo artigo em 
que tratou da desapropriação, estabeleceu a gratuidade do ensino como 
um dos direitos fundamentaes do cidadão. Imagine-se S. Paulo privado 
da illuminação ou dos bondes e diga-se se a providencia destinada a 
impedir semelhante situação não corresponderia a uma premente ne- 
cessidade publica... 

Parece que, empregando as duas expressões, o legislador de 1826 teve 
dois objectivos. Teria sido o primeiro dar elasticidade á expressão 
constitucional "bem publico", evitando interpretações em prejuízo da 
acção do Estado; a segunda foi tornar dependente da homologação le- 
gislativa as desapropriações, cuja necessidade não fosse immediata. E' 
fac*I explicar: "a declaração dos direitos do homem" votada pela As- 
sembléa Nacional franceza, em 1789, a primeira lei escripta que solea- 
ne.Tcnte declarou a propriedade " inviolável e sagrada ", só admittia a 
desapropriação em caso de "necessidade publica" (art. 17), Todo o 
revc iucionario é exaggerado na applicação dos principios que consegue 



— 167 — 

fazer triumphar. Dahi a interpretação rigorosa dada ao no^o texto: os 
juristas da grande revolução entendiam que a desapropriação só se jus- 
tificava quando a impuzesse a defesa ou a conservação do Estado. As 
obras destinadas â commodidade ou decoração publicas não eram tidas 
como ** necessárias", e, portanto, não autorisavam a violação do "sa- 
grado dir&ito". A formula da declaração dos direitos do homem foi 
copiada nas constituições de 1791, de 1793 e de 1795. Não passou, po- 
rém, para a do anno VIII, e Napoleão, aproveitando-se da lacuna, fez 
redigir o art. 545, do Código Civil francez, de modo mais compatível 
com os grandes melhoramentos que tinha em vista. A palavra ''neces- 
8id<ide" foi substituída pelo vocábulo "utilidade" e a disposição ficou 
assim redigida: "Ninguém pode ser constrangido a ceder a sua pro- 
priedade, senão por "utilidade** publica e mediante justa e prévia in- 
demni sacão '*. O legislador brasileiro podia ter tido receio de que entre 
nós, que acabávamos de conquistar a liberdade politica, também se pre- 
tendesse exaggerar o sentido da expressão "bem publico", empregada 
pela Constituição. Definindo-o como correspondente, não só á neces- 
sidade, mas, também, â simples utilidade, quaesquer duvidas se dissipa- 
riam e os poderes públicos não encontrariam entraves ao desenvolvi- 
mento do paiz. Além disso, havia convenienoia na discriminação das 
duas espécies, para, nos casos de simples utilidade, em geral 'menos ur- 
gentes, exigir-se a intervenção do Parlamento, conforme ficou estipu- 
lado no art. 3.® da lei de 1826, medida que, aliás, desappareceu com a 
lei n. 353, de 12 de Julho de 1845. A legislação posterior, inclusive a 
Constituição Federal (art 72, paragrapho 17) e o Código Civil (art 
590) manteve a distincção entre a "utilidade** e a "necessidade'*, como 
simples classificação doutrinaria, pois, nenhum cffeito pratico ella pro- 
duz actualmente. Clóvis Bevilacqua o af firma no seu commentario ao 
referido artigo do Código Civil, onde diz : " Censuram alguns o systema 
do direito pátrio, que distingue duas ordens de causas, que autorisam 
a desapropriação: a necessidade e a utilidade publica. Não ha, real- 
mente, differença alguma, quer de effeito, quer de processo, entre á 
desapropriação por necessidade publica e a desapropriação por utilidade 
geral. Todavia, é incontestável que os casos mencionados como de neces- 
sidade apresentam um caracter de maior gravidade e urgência de que 
os de utilidade, e esta consideração justifica a distincção tradicional 
de direito paitrio**. Pura doutrina, portanto. 

Com estas noções já se pode comprehender mais facilmente a dispo- 
sição da reforma constitucional de 12 de Agosto de 1834, denominadla 
Acto Addicional, cujo artigo decimo, n. III, declarou competir ás as- 
sembléas provinciaes legislar "sobre os casos e a forma por que pode 
ter logar a desapropriação por utilidade municipal, ou provincial". Qual 
a significação da palavra "utilidade**, neste preceito constitucional? Te- 



— 168 — 

ria sido empregada no sentido da lei de 1826, em opposi^o â neces- 
sidade publica? Seria uma expressão genérica, equivalente âs palavras 
*bem publico", da Constituição de 1824, comprehendendo não só a 
utilidade propriamente dita, mas, também, a necessidade publica? Pa- 
rece fora de duvida que esta ultima intelligencia é a verdadeira. Fa- 
ça-se, por um momento, a abstracção da lei de 1826 e approximem-«e 
nnicameote os dois textos conslitucionaes : o da carta de 1824 e o do 
Acto Addicional. Naquelle, a desapropriação tem por fundamento o 
•^bem publico"; neste; a "utilidade publica". Esta ultima expressão, já 
se viu, é a do Código Civil francez. E' também a do Código Italiano, 
art. 438; do hcspanhol, art 349; do austríaco, art 365; do suisso, art. 
666, e de todos os que defluiram do código de Napoleão. E em todaf 
essas legislações abrange os casos de "necessidade". Sustentar-se que 
o Acto Addicional negou ás províncias o direito de desapropriar por 
"necessidade publica", municipal ou provincial, é sustentar que nos 
pai/es cujas leis usam da mesma forma, não pode o Estado lançar mão 
da propriedade particular para a defesa do território, para prevenir 
as calamidades publicas, para assegurar a ordem interna! E' evidente 
que recorrer â propriedade privada num caso de necessidade é menos 
grave do que fazel-o no de simples utilidade. O necessário é indispen- 
sável, inadiável. O útil, comquanto vantajoso, pode ser demorado. 
Ora, se o Acto Addicional deu ás províncias a desapropriação por uti- 
lidade, mesróo empregada a palavra no sentido restricto, implicitamen- 
te, Ih*a concedeu no caso de necessidade, que é m«nos extenso. Seria 
um despropósito que o legislador tivesse declarado ás províncias: "Po- 
deis tomar a propriedade particular para commodidade dos povos, para 
o tmbellezamento das vossas cidades, mas não podereis fazel-o para 
a satísfacção das vossas necessidades! Podereis abrir ruas, construir 
parques e jardins, mas, se uma epidemia vos assolar, se uma secca pro- 
longada lançar o povo na miséria, devereis cruzar os braços! Dou-vos o 
útil ; nego-vos, porém, o necessário ! " 

O próprio Acto Addicional, no art. 11, n, VIIT, concedia ás provín- 
cias o poder de suspender as garantias constitucionaes em caso de 
invasão e rebellião. Podiam ellas, portanto, adoptar medidas de defesa 
e de segurança, que eram caso de desapropriação por necessidade. O 
pensamento do legislador do Acto Addicional não foi, pois, "limitar" 
a capacidade das províncias, visto como lhes conferira a attribuiçâo 
que mais podia prejudicar os direitos indíviduaes. Do exposto se con- 
clue que, quando a Assembléa Provincial de S. Paulo votou a lei n. 57 
(antiga 38), de 18 de Março de 1836, agiu dentro dos poderes que lhe 
haviam sido conferidos. Determinou os casos e estabeleceu a forma 
da desapropriação, tal qual a autorisara o Acto Addicional. E, alinhan- 
do sob a designação genérica de utilidade provincial e municipaU todos os 



— 169 — 

casos que a lei ordinária de 1826 classificava em dois grupos, obedeceu 
ao pensamento que inspirou a reforma constitucional e seguiu a dou- 
trina corrente em todos os povos cultos. Não procedem, portanto, as 
arguições da embargante cont;ra a applicação da lei provincial aos casos 
ée desapropriação por necessidade. 

Admitta-se, entretanto, que a lei provincial, que atravessou incólume 
o regimen decahido, sem protesto do poder central, que tinha como re- 
presentante na província o seu mais alto funccionario, fosse exorbi- 
tante da compefenoia legislativa da assembléa. Admiltta-se a inconsti- 
tucionalidade da referida lei na parte em que definia os casos e o 
processo de desapropriação "por necessidade". Sobreveiu, porém, a 
Republica. A Constituição Federal não reservou para os poderes da 
União a faculdade de legislar sobre a forma e os casos da desapropria- 
ção em qualquer das suas modalidades. Logo, segundo a regra do art. 
65, n. 2, na parte referente ás obras de utilidade ou necessidade es- 
tadual, ficou a matéria subordinada ás leis dos Estados. A embargante,, 
pela inimitável dialéctica de um de seus illustres patronos, Ruy Bar- 
bosa, sustenta que a averiguação da necessidade e da utilidade para a 
desapropriação constitue questões constitucionaes, e, portanto, o seu 
direito é federal, o seu processo é federal e a sua justiça é federal. 
Com immensa timidez — accrescenta o sr. Costa Manso — ouso di- 
vergir do maior dos nossos jurisconsultos. Em primeiro logar, não 
parece possível que a Republica ** federal ** haja retirado aos Estados 
tuna prerogativa que, pelo menos no caso de utilidade, gosavam as 
províncias do Império "unitário**. Em segundo logar, pretender que 
todos os direitos e garantias constitucíonaes sejam subordinados ás leis 
c aos juizes federaes seria inverter o art 65, n. 2, e eliminar a legis- 
latura e a justiça dos Estados, porque a Constituição é a fonte de 
todos os direitos civis e políticos. A Constituição, por exemplo, assegura 
a laicidade do ensino: logo, á União devia competir legislar sobre o 
ensino e fiscalisar as escolas para evitar a inclusão de matéria religiosa 
nos programmas. A Constituição assegura também a autonomia muni- 
cipal: a lei orgânica dos municípios brasileiros, portanto, devia estar 
a cargo da União. A Constituição, como garante a propriedade, asse- 
gura o livre exercício de qualquer profissão moral, intellectual ou in- 
dustrial: logo, não poderiam os Estados, ou municípios, regular a acti- 
vidade individual, estabelecendo prescripções sobre os conductores de 
vehiculos, mercadores de géneros explosivos, negociantes ambulantes, 
assim como sobre as hospedarias, fabricas, etc. Não se vê o motivo 
pelo qual se devam reservar á União as leis que regulem direitos asse- 
iTurados mesmo directamente pela Constituição. Pôde abusar a legis- 
latura estadual? Ahi está o Poder Judiciário para restabelecer o di- 
reito violado. A justiça do Estado, por ignorante ou fraca, não corrige 



— 170 — 

o abuso? Na Constituição se encontra o remédio, que é o recurso ex- 
traordinário para o Supremo Tribunal Federal. **As questões consti- 
tucionaes", pois, nunca se liquidam nos Estados em definitiva, e isso 
é bastante para que a lei fundamental ampare sempre os direitos do 
individuo. Note-se ainda que a própria Constituição Federal declara 
competir aos Estados prover ás suas próprias necessidades, mesmo, em 
regra, no caso de calamidade publica (art 5), assim como estabelecer 
medidas de defesa da ordem interna (art 6, n. 3). Como, pois, lhes 
recusar a faculdade de regular os modos por que taes attribuições devam 
ser exercidas? 

Chegando a este ponto, admittido, como foi, que a província não 
podia legislar sobre a desapropriação por necessidade, que, porém, tal 
poder fosse outorgado ao Estado pela Constituição Federal, cumpre 
inddgar: qual deve ser a lei reguladora da desapropriação por necessi- 
dade? Deve-se applicar a lei provincial, que se diz valida apenas quanto 
á desapropriação por utilidade, ou a lei geral de 1836, na parte relativa 
a ortra modalidade? O caso seria de uma ** lacuna" da legislação esta- 
dual, sobre o exercício de funcção recemcreada. Ora, a Constituição 
estadual de 1891, no art. 9, das disposições transitórias, declarou sub- 
sistentes as leis do antigo regimen no que, implicita ou explicitamente, 
não cffendesse a nova legislação. A lei provincial de 1836 era, porven- 
tura, contraria, á Constituição e ás leis do Estado? Evidentemente não, 
pois que, dado mesmo que tivesse sido antes inconstitucional, esso 
vicio teria desapparecido com o advento da Republica. Logo, a Cons- 
tituição estadual a revalidou. Porque invocar a lei geral, se no Estado 
havia lei a applicar? As lacunas das leis de circumscripção não se sup- 
prem com disposições do direito de outra entidade politica, a não ser 
no caso de ausência absoluta de um texto similar. 

Mas, objecta-se ainda, a lei provincial of fende a Constituição sob ou- 
tros aspectos. Estabelece um processo meramente administrativo, cm 
que a parte rão pôde atacar o acto governamental sob o aspecto da sua 
desnecessidade ou inutilidade; estabelece regras para fixação da in- 
dernnisação, em virtude das quaes o proprietário não pôde discutir o 
laudo dos peritos e apresentar provas no sentido de invalidal-o; cer- 
ceia, em summa, a defesa. A lei de 1836 não é, de facto, um acto le- 
gislativo digno do Estado de S. Paulo e é inexplicável que ainda não 
tenha sido reformado. Contém innumeros defeitos e regula de modo 
deficiente o processo da desapropriação. Adopta, entretanto, os princípios 
clássicos relativos á matéria e é mais liberal do que a legislação da Re- 
publica, pois admitte recurso sobre o quantitativo da indemnisação (art 
5.*), expressamente negado pela lei de 1845, art 29, e pelo decreto — 
consolidação, n. 4.956, de 9 de Setembro de 1903, art 29. A lei paulista 
limita o processo judicial á fixação do "quaatum" a ser pago ao 



— 171 — 

proprietário. Outra coisa não determinam as leis geraes. A de 1826, no 
art 3, declara que os casos de utilidade serão verificados pelo Poder 
Legislativo, competindo ao judiciário declarar verificados os de neces- 
«idade. Mas, verificar se o acto governamental é fundado num dos 
casos legaes, não é o mesmo que declarar se, effectivamente, a obra 
planejada é necessária ou útil. A citada consolidação de 1903, no art 
15, explicitamente prescreve que, **a forma judicial da desapropriação 
não tem outro fim senão regular e estatuir sobre as indemnisações e pré- 
TÍo pagamento ou deposito da quantia, ou quantias fixadas para o 
leffeito da inimissão da posse do desapropriante... E, realmcuLe, como diz 
O>oley, o proprietário não tem o direito de ser ouvido sobre a conve- 
tiiencia da desapropriação, porque, se tal succeJcsse, o fim publico po- 
deria ser illidido por alguma sentença. Resolver sobre a utilidade ou a 
necessidade da obra e determinar a coisa que deva soffrer a expropria- 
ção é funcçâo privativa da administração publica. O juiz não pode 
exercel-a, obstar que a exerça o governo, ou regular o exercicio delia. 
Deve averiguar se o funccionario desapropriante era o competente para 
agir; se o acto de desapropriação se reveste da forma prescripta pela 
lei; se é invocado um dos casos em que a lei permitteo uso da pro- 
priedade individual. Assim, verificada a legalidade extrinseca do acto^ 
somente cabe ao juiz regular os seus "ef feitos", sem admittir que se 
discuta a opportunidade ou a conveniência da medida que intrinseca- 
mente escapa ao seu exame. Do contrario, o juiz é que séria o admi- 
nísirador supremo. O magistrado, inteiramente estranho ás convenien- 
cíaií publicas, sem aptidões technicas para governar, não pôde resolver 
se uma fortaleza projectada é necessária á defesa nacional, se a aber- 
tura de uma rua convém, ou não, ao desenvolvimento da cidade, e um 
determinado traçado de estrada de ferro é o mais vantajoso ao pro- 
gresso de certa zona. O acto governamental, revestido das solennidades 
externas impostas pela lei, é, pois, "definitivo". A relação de direito 
Que se forma entre o desapropriante e o desapropriado versa unica- 
mente sobre a indemnisação : no processo judicial, portanto, nada ha 
a discutir senão a indemnisação. A lei paulista determina que o arbi- 
tra.nento se effectue administrativamente, sem as formalidades das ac- 
ções judíciaes. Dahi resulta naturalmente que as questões de alta inda- 
gação devem ser afastadas, salvo o uso da competente acção conten- 
ciosa. Mas, em que isto of fende aos princípios constitucionaes? A par- 
tilha não é um processo administrativo ^que não comporta a alta indaga- 
ção? Não occorre o mesmo cm não pequeno numero de questões, entre 
as qiiaes figura o caso análogo ao que se discute, da fixação do preço 
da coisa vendida, quando deixado ao arbítrio de terceiro, nos termos 
da Ordcnaçãc IV, 1, paragrapho 1.* (Ribas, - Consolidação ", art. 921, 
paragrai>ho 7). A limitação da defesa nas causas administrativas e 



— 172 — 

summarias é corrente no foro. Sempre que o legislador julgou neces- 
sário accelerar a marcha do processo, delimStou a extensão da defesa 
produzida na própria causa, sem prejuízo da acção ordinária. Isso 
acontece no executivo cambiai, no executivo hypothecario, no executivo 
fiscal, nas acções possessórias de força nova, nas acções d« despejo, 
noá casos dos arts. 250, 252, 273, 354 e 297, do decreto n. 737, de 1850, 
nos embargos da execução, etc. As questões de direito, especialmente as 
arguições de inconstitucionalidade de kis, ou illegalidade de actos adr 
ministrativos, não foram vedadas pela nossa lei de desapropriação, que, 
igualmente, não impede argua a parte a suspeição ou a incompetência 
do juiz, a suspeição dos árbitros, a nullidade do processo. Nenhuma 
dif^posição da referida lei obsta que o proprietário ou o desapropriantc 
compareçam â diligencia de avaliação, apresentem documentos, teste- 
mu:ihas informantes, esclarecimentos e infortnações. Conferindo ao juiz 
de direito a funcção de homologar ou não a decisão dos árbitros, a !fi 
implicitamente lhe confia a verificação das formalidades externas do 
acto desapropriantc e da regularidade do processo. Para elle, só ''é ter- 
minante", segundo a expressão legal, a decisão dos árbitros; e isso 
acontece porque o processo, na primeira instancia, corre em "juizo arbi- 
tral ", Ha um juiz de direito que preside e juizes de facto que esta- 
belecem o preço da coisa. A lei não os denoniina arbitradores e sim 
árbitros. Ao laudo por elles proferido não dá 9 nome de parecer, nas 
o de decisão. 

A lei federal, que obedece ao systema francez, applica á espécie oi 
princípios relativos ao jury. O recurso, alli, apenas versa sobre as 
formalidades processuaes. O Tribunal superior pôde somente annullar 
a decisão dos árbitros e mandar escolher outros árbitros que, então, 
decidem sem recurso. A lei paulista, mais liberal, admitte a appella- 
cão até sobre o quantitativo, de modo que o Tribunal de Justiça, não 
somente pode julgar de direito, como também de facto. Maior ampli- 
tude não se poderia conceder ã defesa numa simples questão de fixação 
"de preço e questão que o bem publico ordinariamente exige seja 
resolvida promptamente. 

Expostos estes principios, passou o sr. ministro Costa Manso a 
analysar a espécie em julgamento. Foi arguida na primeira instancia 
e na appellação, observou s. exa., a incompetência do juizo onde se 
processou a causa. O juiz summariamente rejeitou a excepção, depois de 
impugnada pela parte contraria. E rejeitou de accôrdo com a lei de 
1836, sendo de notar que o Supremo Tribunal, não obstante a formi- 
dável argumentação de Ruy Barbosa, não deu pela incompetência. A 
Embargante queixa-se de não ter o juiz mandado discutir a excepção 
e de, depois de rejeital-a **in limine", negar ef feito suspensivo ao 
aggravo interposto. Parece, entretanto, que o juiz agiu correctameníe. 



— 173 — 

O decreto n. TSJ, art. 78, manda qtfe, ouvida a parte contraria, o juiz 
r«ccba, ou rejeite a excepção de incompetência, devendo ser ella 
discutida na primeira hypothesc. Nada impedia que a parte fadasse, 
como falou, no próprio momento «n que a excepção foi adduzida, e 
que immediatamente o juiz a rejeitasse. Quanto ao effeiío do aggravo, 
não parece acertada á razão apresentada pelo juiz, que mandou pro- 
ieguir, por se tratar de um processo administrativo. A verdade é que 
os aggravos não podem ser suspensivos nos processos em que a 
appellação da sentença final é meramente devolutiva, como acontece 
com este. Não se comprehende porque se ha-de conferir â decisão 
proferida sobre um incidente da causa ef feito mais amplo do que o 
assignado á que resolve o próprio litigio e que, portanto, pode igual- 
mente conhecer das questões incidentes. A primeira preliminar da 
Embargante no sentido de annullar todo o processo por incompetência 
do juizo, ou annullar em parte para ser discutida a competência, não 
podia, portanto, ser acolhida. 

Também não merecia acolhida a segunda preliminar, em qtíe se 
pedia a annullação parcial para ser recebida a defesa. A lei não 
determina a forma da defesa. O processo não comporta contestação ou 
embargos, mesmo segundo a lei federal. Quaesquer arguições, pois, 
sobre a legalidade do acto de desapropriação, ou á regularidade do 
processo, devem ser produzidas por petições escriptas ou requerimen- 
tos verbaes, em audiência. Desse direito utilisou-se largamente a Em- 
bargante. Os seis alentados volumes dos autos o demonstram cabal- 
mente. Contra o mérito da decisão arbitral só na segunda instancia 
poderia ella falar, pois esse é o meio de se impugnar qualquer julga- 
do do juízo inferior. Ainda a esse respeito falou amplamente a ora 
Embargante neste Tribunal. A defesa, pois, está nos autos. Se ha ques- 
tões dependentes de acção contenciosa, a ella recorra a parte. 

Se a defesa está nos autos, cumpre ao Tribunal tomar conhecimento 
delia? Sem a menor duvida. Que allega, porém, a embargante? A il- 
legalidade da desapropriação por não estar justificada a necessidade. 
Entretanto: primeiro, quem decretou a desapropriação foi o presi* 
dente do Estado, autorisado pelo poder legislativo. Já foram mencio- 
oados a lei e o decreto promulgados para aquelle fim. O acto, pois,, 
emanou da autoridade competente; segundo, a forma do acto é a legal. 
O governo expediu um decreto, assignado pelo chefe do poder exe- 
cutivo, referendado pelo competente secretario de Estado e publicado 
pela folha of ficial. Terceiro, trata-se de um caso em que o bem pub i- 
co autorisa a desapropriação. Se a construcção de estradas de ferro 
constitue um desses casos, o mesmo forçosamente ha-de succeder em 
se tratando de uma estrada já construida. Demais, salvo estipulação 



k 



— 174 — 

especial, como no caso da S. Paulo Railway ("Revista dos Tribur 
nacs", vol. 39, pag. 236), as estradas de ferro são consideradas coisas 
do domínio publico. As empresas, que as exploram em virtude de con- 
cessão do Estado, executam um serviço publico por delegação. Essa de- 
legação é revogável "ad nutum", sem prejuizo patrimonial, é claro, da 
concessionário. A embarganie não está fora deste regimen commum. 
Nenhuma clausula do seu contrato a isenta das disposições do nosso 
direito, que assim estatue. Uma de las, mesmo, faz referencia expres- 
sa ao decreto n. 7995, de 29 de Dezembro de 1880, cuja clausula 32 re- 
salva o direito de resgate e de desapropriação. E* inadmissível, pois, 
pretender a embargante insurgir-se contra o direito do Estado c mes- 
mo discutir a conveniência de chamar elle a si um serviço da sua com- 
petência, cujo exercício, por motivos de ordem pratica, se achava con- 
fiado temporariamente á empresa. 

O acto de desapropriação, pois, reúne os necessários requisitos pau 
se tornar effectivo. 

O processo também está isento de vícios. Foi instruído com- os do- 
cumentos legaes. Foi observada a forma processual estabelecida. .0 
juiz era competente. Contra o laudo arbitral argue-se ter deixado sem 
resposta os quesitos, mas, segundo já se mostrou, não se trata de uma 
peritagem e sim de uma decisão. Os quesitos, pois, figuram como os 
artigos do libello ou da contestação sobre os quaes o juiz calca a sen- 
tença, sem comtudo alludir a cada, especificadamente. **0 "quantum* 
foi fixado sob motivos largamente desenvolvidos e contra os quaes O 
processo não fornece elemento sufficiente. 

Restava a questão do deposito do preço. Esta questão offerece dois 
aspectos: um relativamente ao Estado; outro com referencia aos cre-' 
dores. 

Quanto ao primeiro: a Constituição exige o prévio pagamento da 
indemnisação. Mas o pagamento, segundo o direito, assume diversas 
formas. Uma delias é a consignação judicial. Quem deposita o preço, 
paga. Nas desapropriações, outra coisa não pode fazer ò desaproprian- 
te. Fixado o preço pelo juiz, nas mãos do juiz tem de ser elle entre- 
gue. O juiz é que o transmitte ao expropriado ou lhe dá o destino le- 
gal. Isso está no art. n. 4, da nossa lei n. 57: " — . .. e, depositado que 
seja o preço arbitrado... ". Está nos arts. 30 e 31 da lei geral de 1845, 
que expressamente mandam applicar as Ordenações IV, 6.' princ, pa- 
ragrapho 1.", assim concebidas: "Comprando alguém alguma coisa 
movei ou de raiz, se quizer ser relevado de o poderem mais demandar, 
em razão da coisa ser a outrem obrigada, tanto que a comprar, leve 
logo e offereça o preço por que a comprar, perante o juiz ordinário 
(do logar onde a venda foi feita e requeíra-lhe que o mande pôr 



— 175 -^ 

em sequestro. . . ". Mas, o depasito, reclama a embargante, foi feito no 
protprio Thesouro do Estado. Houve, portanto, retenção do preço. Não 
é assim. O Estado apenas obedeceu á ordem do juiz. Este era o com- 
petente para nomear o depositário: nomeou o próprio Estado. Se at- 
tendesse ao pedido da embargante, mandando recolher o dinheiro ao 
deposho publico, a situação não mudaria, porque os depositários publico» 
são obrigados a recolher ao Thesouro as quantias que recebem. E a 
embargante ainda ficaria sujeita a pagar ao depositário os seus emo- 
lumentos — nada menos de 156 contos... Em todo o caso, o dinheiro 
foi retirado da caixa commum e recolhido â de deposito, onde, a qual- 
quer momento, por um simples requisitório do juiz, poderá ser retirado. 

Quanto ao segundo aspecto da questão: é regular a manutenção 
4ess>e deposito, não obstante, segundo argue a embargante, não haver 
credores hypothecarios ou privilegiados, nem mesmo titulares de obri- 
gações exigiveis e liquidas? E* licito admittir-se uni concurso creditó- 
rio, onde não ha credor com penhora, ao qual outros disputem a pre- 
ferencia ou o rateio? Como prejulgar neste momento tal questão, que 
é objecto de um processo em andamento na primeira instancia? Ins- 
taurado, acertadamente ou não, o concurso creditório, é necessário qu« 
oã respectivos artigos sejam julgados pelo juiz de direito. Da senten- 
ça caberá appellação para o Tribunal de Justiça. Então é que este se 
pronunciará sobre a admissibilidade ou a procedência da disputa. O 
reu que fosse condemnado e soffresse immediata penhora, por não ter 
a appellação effeito suspensivo, não poderia arguir na segunda instan- 
cia a nullidade da execução; o recurso adequado seria o de embargos á 
penhora, não obstante estar em discussão a sentença exequente. O mes- 
mo acontece aqui. Por esses motivos, s. exa. rejeiltava os embargos. 

O sr. ministro GODOY SOBRINHO, que fora um dos julgadores 
<da appellação, votou em seguida. Como já o fizera na appellação, s. exa. 
repelliu todas as arguições da embargante. Era simples a questão que 
66 debatia nos autos — observou s. exa. — não obstante a celeuma que 
em torno delia se tem levantado. A lei de 1826 definiu os dois casos de 
desapropriação, o de necessidade e o de utilidade publica, e estabeleceu 
o rito processual. Essa lei vigorou em São Paulo. até 1836, data em que 
a Assembléa Provincial votou a lei de 18 de Março que até hoje re- 
gula as desapropriações e que abrange, tanto as desapropriações por 
utilidade, como as por necessidade publica. Os casos de necessidade 
que ella aponta são os mesmos que o Código Civil brasileiro hoje enu- 
mera. Por mais velha que seja aquella lei, e por mais defeituosa, ella 
ainda se acha em vigor e é a única que regula em São Paulo as des- 
apropriações, quer estaduaes, quer municipaes, sejam de que natureza 
forem, por utilidade ou por necessidade publica. Não tendo encontra- 



— 176 — 

do motivo a^gum para modificar o voto que dera na appellação, rejei- 
tava os embargos. 

O sr. ministro POLYCARPO AZEVEDO, que foi o relator do ac- 
cordam proferido na appellação, também rejeitou os embargos. O vo- 
to de s. exa. já foi publicado nesta folha, em 27 de Novembro do an- 
no passado e encontra-se no volume 36, pag. 511, da "Revista dos Tri- 
bunaes". Pode ser resumido, entretanto, cm poucas palavras. Entende 
.";. exa., com Clóvis Bevilacqua, que não existe motivo para distinc^ 
entre desapropriação por necessidade e por utilidade publica. Nos cf- 
feitos e nos processos são iguaes. Por qualquer aspecto que se encare 
tal distincção, o certo é que os Estados têm competência para legislar 
sobre desapropriação. Num ou noutro caso, á justiça compete fixar a 
respectiva indemnisação e da decisão que homologar o laudo dos ár- 
bitros não cabe outro recurso senão o que se referir ao quantitativo. 
Não tem o poder judiciário de conhecer da constitucionalidade ou le- 
galidade do acto expropriatorio, E quando tivesse, só poderia entrar 
no exame dessas questões quando a inconstitucionalidade fosse paten- 
te ou quando manifesta fosse a illegalidade. Ora, nada disso acontecia 
na causa em debate. A desapropriação não foi decretada fora dos ca- 
sos legaes. Quanto â falta de indemnisação prévia, allegação a que tamr 
bem se apegava a embargante, eram igualmente improcedentes as quei- 
xas da companhia. A incorporação dos bens só foi decretada pelo juiz. 
depois que a Fazenda do Estado depositou a impoitancia fixada pelos 
peritos. Se essa importância ainda não poude ser levantada pela em- 
bargante foi porque o juiz resoVeu, prudentemente, mantel-a em de- 
posito para acautelar direitos de terceiros, que allegam preferencia 
sobre aquecia somma. Se a preferencia é procedente ou não, é matéria 
que só pode ser debatida no processo que ^ está fazendo e do qual 
o Tribunal só poderá tomar conhecimento, quando conhecer, por via 
de recurso ordinário, do alludido processo. 

O sr. ministro ELYSEU GUILHERME, depois de relembrar os 
princípios dominantes no instituto da desapropriação, assignalou que 
pelo facto de haver o Código Civil enumerado casos de desapropriação 
por necessidade publica, não se segue que o Estado ficasse privado de 
lançar mão dessa medida, sempre que entenda haver outros casos, em 
que aquella necessidade se manifeste. A faculdade de desapropriar c 
inherente ao poder publico e é definida pela Constituição Federal. A 
enumeração feita no Código Civil não tem a importância que se 
lhe pretende dar. Não é uma enumeração taxativa e exclusiva. O pró- 
prio progresso da humanidade pode suscitar frequentemente casos de 
desapropriação, além dos que alli se acham comprehendidos. Aliás, se 
o poder publico decretasse desapropriação sem ser por necessidade ou 



— 177 — 

utilidade publica, o expropriado teria o direito de recorrer á justiça 
para annullar o acto do poder, com fundamento no texto constitu- 
cional, que só autorisa desapropriações por utilidade ou necessidade 
publicas. Era tambetn infundada a allegaçáo da embargante quanto 
ao processo estabelecido pela lei de 1836. A necessidade e a utilidade 
publica confundem-se quasi completamente. Aos Estados da União é 
reconhecido aliás o direito de desapropriar, tanto por necessidade, co- 
^o por utilidade publica. O que o governo de São Paulo desapropriou 
foi uma estrada de ferro, isto é, uma empresa de utilidade publica. A 
desapropriação foi, portanto, determinada por uma razão de utilidade 
publica. Pouco importa que no decreto expropriatorio se falasse em 
necessidade publica, uma vez que se trata manifestamente de um caso 
de utilidade. Mesmo, 'pois, que se acceitasse a doutrina da embargante 
de que os casos de necessidade publica só podem ser regulados pela 
lei de 1826, o processo estaria bem feito, sendo feito como foi pe^a 
lei de 1836, porque o caso não era de necessidade, mas de utilidade. 
Mas, nem essa doutrina da embargante é verdadeira. A lei de 1836 
applica-se tanto aos casos de utilidade, como de necessidade publica. 
A lei de 1826, que nunca foi applicada pela província, no Império, e 
pelo Estado, na Republica, não podia vigorar em São Paulo depois 
que este adoptou a de 1836. Por esses fundamentos e outros que ad- 
duziu, s. exa. rejeitava os embargos. 

O sr. miniaftro LUIZ AYRES não achou necessidade de ampliar o 
seu voto. As questões mais importantes, que se debatiam na cau- 
sa, já foram decididas uniformemente, quer em primeira, quer çm 
segunda instancia, e acabavam de ser esplanadas, em todas as suas 
faces, pelo voto brilhante do relator, sr, ministro Costa Manso. Ana- 
lysa s. exa. rapidamente as differentes arguições da embargante, com- 
batendo-as, para concluir que a lei de 1836, tanto se applica aos pro- 
cessos de desapropriação por necessidade publica, como aos processos 
de desapropriação por utilidade pjublica. E* verdade que essa lei não 
está á altura do progresso de São Paulo, mas emquanto não for 
«ubstituida por outra, deve ser obedecida pelos juizes e por todos 
cumprida, 

O sr. ministro SORIANO DE SOUZA declarou que só a impor- 
tância de algumas questões levantadas na causa levavam s. exa. a 
fumdamentar o seu voto, pois o caso já estava bem esclarecilo pela 
exposição dos votos dos outros ministros. O fundamento capital das 
arguições da embargante, a allegação por ella feita que maior exame 
provocava era a de que não lhe consentiram discutir a legalidade da 
desapropriação. Comquanto s. exa. entenda, conforme opportunamente 
se manifestou, embora incidentemente nos primeiros tempos da sua 
•entrada para o tribunal, comquanto entenda que a excepção de incon« 



— 178 — 

^titucionalidade, seja esta interna ou externa, do acto ftmdamental 
é uma questão eminentemente prciudicial, da qual o juiz não se poderi* 
considerar com liberdade de conhecer ou não, não acolhia os embargos 
da expropriada. A alkgação de inconstitticáooalidaKle imlpoirta, cm 
fundo, a allegação da nullidade do acto em que se apoia o processo. 
Não é natural que a autoridade do juiz sanccione aquillo que não é 
legal. Erguer-se um processo sobre rnn acto inconstitucional é cons- 
truir sobre areia. Em principio, concorda com a embargante. Nem 
fyorisso, entretanto, anntilla o processo e manda que o juiz inferior 
conheça a allegação de inconstitucionalidade. Es>sa allegação tem a 
natureza e o caracter de embargos. Ora, os embargos são actos pro- 
cessuaes dê que o juiz pode conhecer, quando os julgar relevantes «> 
que pode desprezar, quando assim não o julgar. Examinando os autos. 
tratou s. exa. de encarar a causa pelo aspecto da legalklade, paa-a re- 
solver sobre a relevância ou não dos embargos, afim de nortear a 
sua decisão. Desde que lhe pareceram irrelevantes^ prescindiu àt 
mandar descer os autos â primeira instancia, para o conhecimento de 
taes allegações. Com isso desappareceu a apparente irregularidade que 
se poderia notar na sentença de primieára instancia. 

A Constituição Federal, que é a base do nosso systema politico, 
consagrou o direito do Estado desapropriar a propriedade particular 
sempre que haja motivo de necessâdade ou utilidade publica. Limittiando 
o direito de desapropriação unicamente aos casos em que o interesse 
^rticular entra em con flicto com o interesse publico, teve a Cons- 
tituição o intento de garantir a propriedade privada. A quem, porém, 
cabe a faculdade de verificar a necessidade ou a utilidade publica, 
afim de decretar a desapropriação — ao E^ado, ou ao poder federal? 
A Constituição não resolve explicitamente essa duvida. Tem eHa, por- 
tanto, de ser resoflvida pelbs princípios geraes. Por estes, a conclusão 
que se impõe é de que esisa faculdade cabe, tanto ao poder federal, como 
ao estadual, trate-se de desapropriação por utilidade, ou trate-se de 
desapropriação por necessidade publica. O art 65, parag. 2.\ da Cons- 
tituição federal, que é a chave do nosso edifício constitucional, consa- 
gra o princápio de que é facultado aos Estados, em geral, todo e qual^ 
quer i)oder ou direito que lhes for negado por clausuJa exípressa, ou, 
implicitamente contida nas clausulas expressas da Constituição. Ora, 
não ha clausula alguma na Constituição federal que, expressamente, 
tire aos Estados a faculdade de decretar expropriações por necessidade 
ou utilidade publica. Não ha também nella clausula expressa, na qual 
se contenha implicitamente essa prohibição. Póde^se, pois^ affirroar 
que os Estados têm competência para decretar desapropriação. Nem 
podiam deixar de tel-a. O direito de desapropriar decorre da soberania 



— 179 — 

^ esta está» no regimen neipublicano do Brasil, subdividida entre o poder 
central e os poderes locaes. Ha funcções, que são privativas do centro 
« cutras que o são dos poderes locaes» como ha faculdades que são 
communs a amlbos, e outras que a ambos são vedadas. Sempre se 
«reconheceu a faculdade ao Estado, ou ao rei, como antigamen<te se dizia, 
^e desapropriar a propriedade particular em beneficio de interesse 
jpublico justo. E* manifesito que o Estado não podia prescindir desse 
direilto. Pouco importa, analysando a legislação do Esitado de São Paulov 
que o Acto Addicional, de 1834, tivesse limitado esse direito, em São 
Paiilo, â desapropriação por uti- idade publica. No tempo em que foi 
votado o Acto Addicional, as provindas do Império, embora gosassem 
<le certa autonomia, não eram como os Estados de hoje. Não tinham 
soberania. Concedeu-Ihes o centro o direito de legisHar sobre desapro- 
priação por utilidade publica, unicamente, sem lhes dar o mesmo di- 
reito quanto á desapropriação por necessidade publica, porque não o 
julgou preciso: as desapropriações por necessidade eram determinadas 
pelo poder central, E eram só porque se verificavam em casos de de- 
fesa territorial, de policia, etc, para os quaes só o poder central 
tinha competência. E' difficil, por outro lado, estabelecer uma linha 
divisória nítida entre os dois conceitos, — o da utilidade e o da neoes- 
(sMade publica. Um se contém no outro. Quem diz necessidade diz 
trtiíid^ade. A necessidade é, no final das contas, uma utilidade 
urgente e imprescindivel. A única differença, que entre ellas pa- 
rece existir na legislação do Império, era a seguinte: no caso 
dje utilidade, o decreto de desapropriação partia do Poder Legislativo, 
e nos de necessidade partia, por solicitação do Executivo, do Poder 
Judâciario, dandoHlhe a forma estabelecida na lei. Mas, diversa é a 
tivo, decretando-a ; o Executivo, promovendo-lhe o processo, e o 
Judiciário, dando-^lhe a forma estabelecida na lei. Mas diversa é a 
xodlaboração desses poderes conforme o caso: se de necessidade, se 
de utilidade publica. Nas desapropriações por necessidade não ha uma 
lei que decrete que o cidadão ficará privado da sua propriedadie em 
nome deste ou daquelle interesse publico. Não podendo o Executivo, 
por seu turno, decretar a privação da propriedade particular sem au- 
torisação do Poder Legislativo, ao Judiciário cabia, nos casos de des- 
apropriação por necessiidade, verificar se havia tal necessidade, isto é, 
se aquillo que o Executivo pedia estava ou não previsto na lei, de 
modo a autorisar a desapropriação. A responsabilidade das desapro- 
{>riações por necess-idade publica recahia, portanto, sobre o Poder Ju- 
diciário. Elle era quem proferia o decreto expropriativo. Só no caso de 
utilidade publica é que o decreto partia do Legislativo. Nesse caso, 
A intervenção do Judiciário só se verificava para examinar se o de- 



— 180 — 

crcto apresentava os caracteres legaes. Nisto, repete, é que se cifrava 
a differença entre os dois conceitos da desapropriação por necessidade 
e por utilidade. Desnecessário o acto do Poder Legislativo no primeiro 
caso, era el!e imprescindivel no segundo. 

Mas, essa faculdade do Executivo promover a desapropriação no» 
casos de necessidade e do Judiciário decretal-a, tira ao Legislativo o 
direito de também decretar essa espécie de desapropriação? Não. Desd« 
que a faculdade de desapropriar compete hoje, tanto ao poder Le^ 
gislativo federal, como ao poder Legislativo estadual, uma vez que 
esse poder a decrete para um fim especial, reveste o seu acto o ca- 
racter de decreto de autoridade publica. Pouco importava, na hypo- 
these em debate, que o Congresso houvesse decretado a desapropriaçãí^ 
da estrada de ferro da Embargante por necessidade ou por utilidade 
publica. O Poder Judiciário, no exame dessa desapropriação, estav? 
em face de um acto praticado por outro poder publico, pelo orgam 
da vontade do Estado, qual é o poder Legislativo. A lei de 1836 servia 
perfeitamente para o caso. Só se tinha que fixar o valor da indemni- 
sação. 

Os outros pontos das arguições da Embargante, embora secundários», 
eram também improcedentes. Ella atacava, por exemplo, o laudo dos 
peritos. S. exa. se abstém o mais possivel de modificar laudos, lavrados 
por peritos escolhidos a aprazimento das partes. No caso não via mo- 
tivo ponderoso para fazer as modificações que a Embargante recla- 
mava. Outro ponto que também apparentemente impressionava nas 
allegações da Embargante era o de que a incorporação dos bens ao pa- 
trimónio do Estado se fez sem a prévia indemnisação. Temos de at- 
tender, porém, ao seguinte: o preço da desapropriação foi depositado 
por ordem do juiz e a deliberação do juiz sobre o deposito, deliberação 
tomada em virtude de credores da Embargante, não podia affectar 
o processo de desapropriação. Esse deposito foi, por assim dizer, pos- 
terior á incorporação. Desde que o Estado guardou o dinheiro, a ti- 
tulo de deposito, á disposição do Poder Judiciário, ficou despojado 
dessa quantia. Não pode dispor delia. Tem de entregal-a a qualquer 
momento. Se houve com esse deposito injuria ou damno á Em- 
bargante, não é questão que possa ser a-preciada no processo expro- 
priatorio. Poderá a Embargante demandar a reparação daquelles que 
deram causa a esse damno ou injuria, isto é, dos credores que reque- 
reram a preferencia. Isso, porém, só poderá ser effectivado em acção 
competente e não é motivo para que se altere o accordam embargada 
Rejeitava por isso os embargos apresentados. 

O sr. ministro URBANO MARCONDES achou também, por sua 
Tez, que as allegações da embargante não tinham grande consistência 



— 181 — 

juridlca. A Ccmstituição do Império, no art. 179, n. 22, garantia, em 
toda a sua plenitude, o direito de propriedade, salvo caso em que o 
l>em publico exigisse seu uso ou emprego pelo Estado, sendo, porém, 
previamente indemnisado o proprietário do immovel expropriado. A*s 
assembléas geraes e provinciaes foi dada pela mesma Constituição a 
faculdade de regular os casos de desapropriação e a forma de processo. 
A Constituição Imperial não distinguia os casos de necessidade oú 
utilidade publica. Enfeixava-os numa só expressão: o bem publico. 
Foi uma lei ordinária, a lei de 1826, que fez a distincçâo. Mas 
essa lei só regia as desapropriações geraes; as provinciaes eram re- 
g'idas por leis provinciaes. Quando o Acto Addicional, de 1834, no art 
10, n. 3, conferiu ás . Assembléas Provinciaes a faculdade de legislar 
sobre desapropriação, não restringiu essa faculdade aos casos de uti- 
lidade publica unicamente. Essa restricçâo não podia ser feita sem 
oífensa á Constituição Imperial : primeiro, porque não estava no texto 
desta; segundo, porque é exclusivamente theorica; terceiro, porque teria 
sido um absurdo conceder ás províncias o mais e negar-lhes o menos. 
Se as províncias podiam legislar sobre desapropriação por utilidade 
publica, poderiam **a fortiori" legislar também sobre as desapropria- 
^çGes por necessidade publica. A necessidade é muito maior, quan- 
titativamente, do que a utilidade. Seria estranho que pudessem as pro- 
"vincias decretar desapropriações por motivos de decoração, por exem- 
plo, e não as pudesse decretar por motivos urgentes, como, por exem- 
plo, nos casos de calamidade, nos casos de defesa e nos casos de salubri- 
dade. Este absurdo não passou, evidentemente, pela* cabeça do legis- 
lador, A faculdade concedida ás províncias de legislar sobre desapro- 
priação comprehendia, indiscutivelmente, todos os casos, quer os de 
utilidade, quer os de necessidade publica. Usando da expressão "uti- 
lidade**, tomou-a o legislador no sentido genérico, isto é, quiz dizer 
que a desaj)ropriação era realisavel em todos os casos cm que o bem 
publico a exigisse. O Estado de S. Paulo adoptou para os processos 
de desapropriação a lei de 1836, Nessa lei figuram, indistincíamente, 
tanto os casos de utilidade, como os de necessidade, da lei de 1826, 
a qual ficou assim derogada na parte em que fazia essa classificação 
thecrica. No que toca propriamente ao processo, a lei de 1836 revogou, 
completamente, a de 1826, Por esta ultima, a desapropriação por ne- 
<:essidade era decretada pelo Poder Judiciário, e a por utilidade, pelo 
Poder Legislativo. Por aquella, é feita pelo Executivo, como um acto 
de governo. Só o poder expropriante é quem julga da necessidade ou 
títilidade da expropriação. Nem o Legislativo, nem o Judiciário, têm 
que entrar no exame dessa questão. O Judiciário só intervém para pre- 
sidir ao processo e fixar o " quaatum **, Ora, o preço da desapropria- 



— 182 — 

çâo da estrada de ferro da Embargante foi fixado com todas as for- 
malidades processuaes. A indemnisaçáo previa tombem se fez, pois 
o deposito determinado pelo juiz equivale a pagamento. Esse dc^^osito 
obedeceu, por seu turno, ás exigências do Código Civil. 

O sr. ministro FIRMINO WHITAKER foi o uHimo a votar. A 
sua opinião a respeito da causa já era conhecida. Foi publicada por 
nós quando se julgou a appellação e encontra-se no citado vo-ume da 
"Revista dos Tribimacs". S. cxa. sustento que a lei de 1836 c a que 
regula os casos de desapropriação e que esto lei não admitte a interven- 
ção dos juizes nos processos expropriatorios, senão para fixar o preço. 
O fundamento da desapropriação, trate-se de necessidade ou utilidade 
publica, é sempre um: o do interesse publico, preponderando sobre 
o particular. A distincção que se faz entre utilidade e necessidade é 
meramente theorica. Seja por necessidade ou seja por utilidade, a des- 
aipropríação opera-se sempre do mesmo modo e produz o mesmo 
effeito. A le.i de 1836 abrange todos os casos, quer de utilidade publica, 
quer de necessidade, definidos na lei de 1826. E' possível que ao temço 
da sua promulgação ella constitui^se uma usurpação de poderes. Mas, 
aos juizes, no Império, não resto va outro recurso senão o de cum- 
pri! -a. Não tinham elles então a compâtencia, que hoje têm, para decreitor 
a inconstitucionalidade das leis. Hoje, compete aos Estados legislar 
sobre desapropriação. Não temos sobre essa matéria lei nova. A que 
entre nós vigora ainda é a de 1836. Essa lei não fere a Constituição 
do Estado, nem a Federal, e regula, como já disse, as desapropriações, 
tanto por utilidade, como por necessidade publica. Mas, observa a em- 
bargante, não se pode negar que essa lei veda discussão sobre a 
causa da desapropriação e isso é contrario aos preceitos constitu- 
cionaes. O argumento não procede. A desapropriação tem dois pro- 
cessos distinctos: o administrativo e o judiciário. Naquelle, declara-«e 
a uti idade do acto e neste fixa-se o "quantum" da indemnisaçáo. No 
administrativo, o poder publico verifica os casos legaes de desapro- 
.priação e determina o objecto que deve ser desapropriado. No Judi- 
iciario, o juiz, recebido o decreto de desapropriação, nomeia os arl»-^ 
tros e preside ao processo para, depois, recebel-o em deposito, e de- 
cretar a incorporação do immovel expropriado ao património do poder 
expropriante. Pode o juiz deixar de proceder ao processo quando 
. foi manifestamente inconstitucional a desapropriação? Pode. Mas, 
quando é que se verifica essa hypothese? Quando, por exemplo, partir 
a desapropriação de autoridade incompetente, ou quando do próprio 
decreto se mostre que não foi resolvida no interesse publico, mas sim 
no interesse particular. 

E' o que aconteceria, por exemtplo, com tima desapropriação muni- 



— 183 — 

• ..7j 

:^al, decretada exclusivamente pelo prefeito, ou com aquelda em que 
dissesse que o immovel era desapropriado para dar mais espaço a 
uma casa bancaria, isto é, para servir a um interesse particular. Desde, 
porém, que o decreto de desapropriação declare que a desapropriação 
foi determinada por um motivo de utilidade publica, embora não es- 
pecifique qual esse motivo, não podem os juizes deixar de oumpril-o. 
Se o não faz, irá invadir as attribuições de outros poderes, ficando 
fiuma preeminência contraria ao nosso systema constitucional. Desde 
que o decreto de desapropriação baixou do poder competente, com todas 
as formalidades da lei, qualquer discussão sobre elle, no prxxesso ex- 
propriatorio, será inadmissivel. As leis federaes de 45 e de 1903 ne- 
nhtuma reclamação admittem em taes processos, uma vez fixado o preço. 
Meucci ensina que a desapropriação é um acíto de império, que não 
es-tá sujeito ao exame do poder Judiciário. Weiss, analysando os vá- 
rios systemas existentes a respeito da matéria, chega também á con- 
clusão de que o Poder Judiciário não tem o direito de apreciar ques- 
tões desse género. E' essa a opinião de innumeros outros escriptores 
e. especialmente, de Cooley. A desapropriação é um mal necessário. 
Se o objecto expropriado não é applicado ao fim, que lhe destinou o 
poder publico ao lhe decretar a expropriação, tem o proprietário o di- 
reito de rotrocessão, para rchavel-o. Não pode, porém, como pretendia 
a embargante, discuitir-lhe a legalidade ho próprio processo da dcs^ 
apropriação. 

O sr. ministro Octaviano Vieira não votou, por se achar impedkto 
(Embargos n. 10.599). 

(D* "O Estado de S. Paulo", de t.' de Outubro de 1921). 



o PERFIL DE DELEUZE 



Aqui jdstamios em Taquariítkiga, na paz elysea 
da nossa fazenda de café^ não "sub tegmine 
fagi", mas em pleno daanpo, conduzimdo 
nós mesmos a charrua, a semelhança de Cinci- 
nsLto, no trabalho bemdito do amanho da terra 
diaidivosa. E é aqui« nesta zona opulenta flagiedlada 
pida "Northern" e redimida em feliz hora pelo 
governo do Estado, que nos chega hoje, pelo cor- 
reio, o jornal que insere o "Perfil do dr. Dcileuze". 

Corremos a saboreal-o sob frondosa jabotica- 
bcíira do noisso pomar, com aquelle jubilo do soli- 
tSDrio de Val-de-Lobos quando, nos intervallos do 
trabalho agrícola, se sentava â sombra das suas 
olivieiras, para ler as ultimas folhas da dapital. 

São periodois lapidares que nos deliciam du- 
rante o breve espaço dei meia hora. Gosamol-06 
como se lêssemos uma piagina do historiador e 
moralista que traçou as "Vidas dos honnens illuis- 
tres da Grécia e de Roma". 

Pena é que PlutaTcho não haja conhecido esse 
novo varão, para inscrevel-o nia sua galeria. Mas 
ha de haver por ahi algum "rapaz de talento" 
que certamente salvará da vida ephemera dte um 
jornia<l para a vida menos breve de um livro ols 
traços característicos desse homem lextraordínario 
que, segundo o biographo, é "cabra destorcido". 
E o hodierno Pliitarcho deverá começar o capitulo 
precioso usando das eloquenteis expres^sões que 
rematam o "Perfil": 

"Este Dèleuze é cabrla destorcido. Gosto de um 
sujeito assim. Não tem medp do Washington. 
Tietti dado agua pela barba do governo, que deve 
saber que elle não é molle, não, n«m naída." 



— 188 — 

£ffectivaniie'nte é assim mcisino. Não tem medo, 
principalmente, da oadeia, embora não se resolva 
a voltar para Pariz, nem a aventurar-se a uma 
viagem cá por nossas bandas... £ não é molle: 
chegou ao Brasil sem um vintém no bolso, mat 
apenas com uma carta de fiança; á custa desta, 
sacou de um banco duzentos e poucos contos; 
abusou da boa fé de um senador da Republica, 
para obter a legalisaçao da companhia fantástica 
que organcsára na America do Norte; adquiriu « 
massa da Araraqutara sem despender um ceitil, 
pois pagou as despesas de escriptura e ciza con 
o dinheiro que enconitrãra nos cofres da fallida; 
para custear a ôstrada, nos primeiros mezes, con- 
trahiu um empréstimo com o mesmo banco que 
lhe dera o credito e que com essa operação visoa 
apenas salvar o cobne que já lhe havia adiantado; 
eng^azopou meio mundo, ludibriou a justiça e in- 
trujou os próprios advogados. £ como é mesmo 
um "cabra destorcido*"*, o seu primeiro acto na 
administração da estrada foi recolher aos bancos, 
em seu nome individual, o producto das resp-ecti- 
vas rendats, — cerca de seis mil contos — com quo 
vem ha longos mezes diffamando o credito de S< 
Paulo, atassalhando a reputação idos nossos mais 
emintentes homens de governo e ameaçando, afi- 
mad, de intervenção extrangeira, a nossa juistiça, 
s»e esta não lhe der ganho de causa. 

Não é apenas um "cabra destorcido**. Segundo 
o sr. Pupo Nogueira, que foi sjcu empregado e 
que hoje se acha com um conhecido imdustrial 
dessa praça, "ia intelligtencia de Deleuze frisa 
com o génio'*. Realment«e. Que o diga, por exem- 
plo, o illustre moço que exerce as funcçÕes dt 
secretario da Junta Commercial. O "génio ** fez, 
nieissa repartição^ diversos registos. Pediu depois 
ao secretario uma certidão desses registos, mas 
por meio de perguntas subrepticias. O secretario 
não lh'a deu. £ foi o próprio sr. Pupo Nogueira 
quem o felicitou calorosamente, por haver nega- 
do a certidão pedida, insinuando que o "getnio" 
alcançaria coisas assombrosas se se visse armai* 
desise documenito... 



189 



Não é mo lie, nan naida» repetimos com o seu 
biogTapho. Transferiu a sede da companhia para 
o Riòy onde tem o seu quartel general, longe da 
fiis>aaili>9ação dos credores. Organisou alli um ad- 
miravred protocollo. £ organispu ao mesmo tempo 
uma es cr ipt oração dupla dos negócios da "Nor- 
thern": uma, reaL para uso próprio; outra, fan- 
tastidá, para emíbrulhair a ju&tiça quando esta o 
chamar a contas, para que explique o destino que 
deu aos dinheitros indebiitamentie recebidos da 
Arartaíquara. 

£' notável o modo por que assimila qualquer 
doutrina juridka peculiar ao direito pátrio. Sabe 
de cór e salteado as nossas leis e, por isisio, tetm 
sabido mystifioar até hoje a justiça, fugindo ás 
queixas-^crdmes por meio de conflictois de juris- 
dicção. 

Também conhecemos Deleuze. £ muiito mais do 
que o autor do "Perfil". Se algum "rapaz de ta- 
lento" não lhe traçar em livro a biographia, com- 
promettemo-nos nós a fazíed-o. Por aanor á verda- 
de, não nos esqueceremos de daguerreotypaJr o 
retrato delle tal como appareceu num jornal da 
Bolsa de Pariz, em que se conta, com grande 
•cqpia de minudencias^ quem é o original corretor 
de "affiaires vereuses", que, com granide surpresa 
nossa, é laipresentado aqui como banqueiro e fi- 
nancista notável. 

Qiie finório I Havemos de miaindar o "Perfil do 
dr. Deleuze" ao redactor da "Gazeta da Bolsa", 
afim de quie elle saiba que neste paiz ideal não só 
8« adquirem estradas de ferro sem dinheiro, mtas 
também se operam conversões admiráveis: o an- 
tigo rato de Bolsa, cavador de negócios suspeitos, 
transformado em banqueiro I 

Depoiís que aqui chegámos, lemos que Deleuze 
tem uma morada particular em Pariz, onde se 
hospieda habitualmente o diplomata fantástico 
cuja residência é apontada á rua Necker, em 
Genebra. 

Vamos recomimendal-»a; á justiça militar fran- 
ceza, afim de ver se pôde proceder lá, como 
procedeu no seu escriptorio, a uma busca em 



_ 190 — 

«regra, salro se, em Pariz, elle a-do|>toti o systemA 
do Rio, d« morar com maiFaíomaj... 



Aoa/bamos de neceber noticia telegraphica de 
que o Tribunal d>e Justiça rei(e<itou, por unanimi- 
dade de yotoSj os embargos da "Noirthem". 

Ddeuze vae ameaçar-nois agora com o Supremo 
Tribunal, onde — segundo elle — a sua questão 
jâ ewtá prejulgadia. 

£' o que vamos ver. No Rio hav<emK>s de nos 
«ncontrar. Iremos opportunamente dizer á nossa 
mais alta corte de justiça quem é o trampolineiro 
que quer forçar suas portas respeitáveis arma-lo 
•de gazÚA. 

EPAMINONDAS 



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