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Full text of "O consummado germanista (vulgo o José Gomes Monteiro) e o mercado das letras portuguezas"

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O  CONSUMMADO  GERMANISTÁ 


O  MERCADO  DAS  LETRAS  PORTUGUEZAS 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/oconsummadogermaOOvasc 


O  CONSUMADO  GERMANISTA 

(Vulgo  o  snr.  JOSÉ  GOMES  MONTEIRO) 

E 

O  MERCADO  DAS  LETRAS  PORTUGUEZAS 

ANALYSADO  . 

POR 

JOAQUIM   DE   VASCONCELLOS 

Stultus  si  tacuerit,  pro  sapiente  reputabitur. . . 

Wie  sich  Verdienst  und  Gliick  verketten, 
Das  fàllt  den  Thoren  nieraals  ein. 
Wenn  sie  den  Stein  der  Weisheit  liàtten, 
Der  Weise  mangelte  dem  Stein. 
(Goethe,  Faust.  2  Th.) 

Mangel  an  Cljarakter  der  einzelnen  for- 
schenden  und  screibenden  Individuen,  ist  die 
Quelle  alies  Uebels  unserer  neuesten  Litera- 
tur. 

(Goethe.  Eckermann,  Gespr^che. 
Vol.  I,  pag.  154.) 


PORTO 

IMPRENSA    POKTUGUEZA 


*f\BR- 


n 


OCTl 


SS* 


Se  o  néscio  se  callasse...  podia  passar  por 
sábio,  mas  fallando. .  . 

Como  o  mérito  e  a  felicidade  se  casam, 
E  cousa  que  aos  néscios  nunca  lembra. 
Se  tivessem  a  pedra  da  sapiência, 
Faltar-lhes-hia  o  sábio ! 

(Goethe,  Faust,  2.a  parte) 

A  falta  de  caracter  dos  differentes  indivíduos, 
que  escrevem  e  que  investigam,  é  a  origem  de  to- 
dos os  males  da  nossa  novíssima  litteratura. 

(Goethe,  Conversações  com  Eckermann, 
vol.  i,  pag.  154.) 


iistidex: 


Ao  leitor ....  ix-xiv 

I.  A  nossa  posição 1-17 

II.  Castilho  julgado  em  1829 19-27 

III.  «0  consmnmado  germanista » ,  como  litterato 

e  como  homem 29-56 

IV.  As  fontes  de  consulta 57-74 

V.  A  Allemanha  e  os  Allemães 75-86 

VI.  Goethe: 

a)  Goethe  e  as  leis  da  historia  litteraria 87-92  J 

6)  Goethe  avaliado  no  seu  caracter,   como  ho-               >  o7— l(_n 

mem 93-107  ) 

VII.  As  relações  entre  Goethe  e  Schiller 109-118 

VIII.  A  Tragedia: 

a)  Primeira  e  segunda  parte 119-140  )  -i  i  n   1  ^n 

6)  Preludio  no  theatro  —  Prologo  no  céo. . .   140-149  \ 

IX.  Os  personagens  da  Tragedia :  Mephistopheles 

—  Faust  —  Margarida 151-160 

X.  Bagatellas 161-178 

XI.  Conclusões  ultimas 180-185 

Notas 187-192 

Appendice  sobre  a  lenda  faustiana 193-209 

Ao  publico  (documentos) i-vrn 


AO  LEITOR 


O  publico  é  uma  grande  massa,  um  mar,  em  cujo 
seio  ha  monstros  e  bellezas  —  animaes  repugnantes,  e 
outros  d'um  organismo  tão  admirável,  tão  subtil  e  fino, 
que  facilmente  consolam  o  olhar  no  meio  de  tanto  aborto. 

Entre  a  massa  do  publico  temos  amigos  e  inimigos, 
estes  em  maior  numero,  não  porque  lhe  hajamos  dito 
alguma  verdade  que  elle  não  mereça,  mas  porque  tra- 
balhamos e  lhe  lembramos  ipso  facto  a  sua  preguiça, 
porque  lhe  antepomos  um  ideal,  que  elle  não  quer  ter, 
porque  ideal  sem  sacrifício,  ninguém  o  alcança,  e  o  maior 
numero  quer  gosar,  gosar  a  todo  o  preço,  nem  admitte 
que  ninguém  lhe  venha  fazer  reflexões  á  sua  vida  aira- 
da;  assim  se  esquecem  do  dito  de  Goethe:  «Geniessen 
macht  gemem»  —  0  gozar  envilece.  A  antipathia  é  pois 
natural ;  não  depõe  contra  a  pessoa,  está  nos  factos  e  nas 
leis  psychologicas,  embora  se  lancem  na  balança  algumas 
verdades  amargas  que  lhe  havemos  dito  —  e  que  conti- 


miaremos  a  dizer.  Oa  nossos  adversários  appellam  para 
o^  Bentímentoa  mais  baixos  d'essa  massa  —  o  publico  — ; 
appellam  para  os  seus  appetites  mais  banaes  e  mais  _ 
seiros;  tem  pois  o  applauso  dos  histriões,  que  nós  não 
podemos  ter.  Essa  litteratura  official  dá  lhes  dramas,  no- 
veUas,  romances,  brochuras  e  outras  miudezas  da  Litl 
tara,  traduzidas,  facturadas,  rapsodiadas  ou  plagiadas, 
de  Arsène  Houssaye,  Ponson  du  Terrail,  Paul  e  Henri 
de  Kock,  Dumas  filho,  P.  Féval,  et  similia,  (1)  isto 
producções  e  as  ideias  da  langue  verte. 

Por  tal  preço,  por  tal  papel  de  Judas,  não  queremos 
a  popularidade,  e  assim  como  elles  tem  do  seu  lado  a 
massa,  temos  e  contentamo-nos  nós  com  a  svmpathia 
de  alguns  poucos  amigos  e  de  mais  alguns  adeptos,  que 
não  conhecemos,  mas  que  compram  aquillo  que  escre- 
vemos. (2)  É  para  esse  estreitissimo  circulo  que  traba- 
lhamos e  damos  estas  linhas,  este  livro  e  os  outros  já 
eseriptos,  e  se  não  o  havemos  declarado,  não  é  por  não 
estar  isso  já  expresso  por  nós  indirectamente  em  outros 
trabalhos^  mas  por  não  se  ter  offerecido  um  motivo. 

I  la  nossos  adversários  admirar-se-hão  da  boa  te  e  da 
clareza  com  que  avaliamos  a  DOSBS  posição  —  estí  mes- 
ma franqueza  os  revoltará;  temos  muita  pena  que 
Beja,  maa  repetimos:  papel  de  Judas,  não  o  queremos, 
r  a  nossa  consciência  e  traficar  com  os  baixos  in- 
stinctoa  da  massa,  a  troco  de  uma  segunda,  terceira,  de- 

l)  Oa  pares  d'estcs  senhores  era  Portugal  são  Camilii'.  1' 
Chague,  Santos  Nazareth,  e  outros  habitantes  da  Lilipnt  littc- 
rari.i. 

2  De  O  Faust,  ttc.  renderam -sã  uns  100  exemplaras,  a 
Eóra  uns  30  vendidos  na  Fiança  e  Allemanha  e  alguns  poaooe 
pan  o  lírazil. 


XI 

cima  ou  vigésima  edição  (1)  —  isso  é  glória  que  recu- 
samos. 

Além  d'isso,  levamos  a  indulgência  mais  longe  ainda 
— reconhecemos  que  essa  maioria,  ainda  que  quizesse, 
não  podia  entender-nos,  e  que  os  eleitos  d'ella  pouco 
acima  ficam  do  seu  nivel  e  da  sua  percepção  intellectual. 

Ha  ainda  um  elemento  que  nos  é  adverso:  o  jorna- 
lismo em  geral,  salvo  um  ou  dous  periódicos,  porque  a 
maioria  é  dirigida  por  esses  mesmos  chefes  litterarios 
da  massa,  que  especulam  duplamente.  Desde  o  primeiro 
ensaio  recusamos  mandar  os  nossos  trabalhos  a  jornaes 
portuguezes,  quando  esta  espécie  é  tão  abjecta  (salvo 
pouquíssimas  excepções),  que  um  litterato  de  Lisboa,  do 
próprio  centro  do  Elogio-mutuo,  sócio  da  Academia  Real 
das  Sciencias  (?)  e  amigo  de  Castilho,  os  classificou  ain- 
da ha  mezes,  sic: 

«O  próprio  jornalismo  politico  (2)  parece  deixar  já 
entrever  as  sombras  do  occaso.  É  antes  uma  mercancia 
que  uma  missão  augusta.»  E  mais  acima: 

«Finalmente,  nunca  se  mostrou,  como  hoje  se  nota, 
uma  deficiência  mais  completa,  no  seio  da  litteratura 
usual  e  da  critica  activa,  de  escriptores  conceituosos, 
instruídos,  independentes  e  laboriosos.»  (3) 

(1)  O  Univers  illustré,  de  10  de  Dezembro  de  1872,  annuu- 
ciava  a  39.a  edição  de  V Homme-femme,  de  Dumas  filho;  ainda 
que  descontemos  metade,  não  deixa  o  facto  de  ser  vergonhoso 
para  a  França,  que  parece  não  haver  «nada  esquecido,  nem  na- 
da aprendido»,  segundo  o  exemplo  dos  Bourbons;  em  Portugal 
teve  o  folheto,  trad.  por  S.  Nazareth,  duas  grandes  edições! 

(2)  Que  é  ao  mesmo  tempo  litterario  (nota  do  auetor).  No- 
taremos ainda,  que  as  redacções  costumam  mandar  vender  os 
livros  offertados  com  abatimento,  e  por  vil  preço. 

(3)  J.  M.  Andrade  Ferreira.  Litteratura,  Musica  e  Bellas- 
Artes.  Lisboa,  1872,  vol.  n,  pag.  51. 


xn 

Continuaremos  a  apontar  as  chagas,  conforme  fo- 
rem irrompendo  da  gangrena  geral,  e  como  o  nosso  cam- 
po é  o  litterario,  porque  a  politica  ha  muito  que  está  en- 
trenós prostituída,  continuaremos  a  apontar  para  a  nos- 
sa ruina. 

«A  falta  de  caracter  —  diz  Goethe  —  dos  differentes 
indivíduos,  que  investigam  e  que  escrevem,  é  a  origem 
de  todos  os  males  da  nossa  novíssima  litteratura.»  (1) 
Isto  dizia-se  já  em  1825,  e  nós  estamos  no  anno  de 
1873. 

«Então  vi  eu  que  para  a  maioria  a  sciencia  só  lhe 
serve  emquanto  é  um  ganha-pão,  e  que  até  divinisam 
o  erro,  quando  d'ahi  tiram  a  subsistência. »  (2) 

A  esse  bando  de  condottieri  litterarios,  que  infectam 
o  nosso  mercado,  diremos  ainda  com  Goethe: 

c( Muitos  são  assaz  espirituosos  e  tem  conhecimen- 
tos, mas  tem  também  a  vaidade,  e  a  troco  da  admiração 
da  massa  ignorante  —  não  conhecem  o  que  é  o  pudor, 
nem  ha  nada  que  lhes  seja  sagrado.»  (3) 

A  rapidez  com  que  foi  delineada  esta  resposta,  es- 
cripta  em  12  dias,  explica-se  facilmente,  e  não  è  mila- 
gre que  seja  difficil  realisar,  uma  vez  qne  se  tenha  co- 
nhecimento do  que  se  trata  e  unia  clara  ideia  dos  pon- 
tos de  vista  da  critica.  Não  temos  a  louca  pretencão  de 
dizer  novidades  sobre  um  assumpto  discutido  por  tan- 
tos homens  de  profunda  sciencia.  Goethe  diz  algures 
n'nma  passagem  das  suas  obras:  que  tudo  o  que  nós 


(1)  Eckermann.  Gesprãche  mit  Goethe.  Leipsig,  1868.  3.1 
ed.  vol.  i,  pag.  154. 

■'    Op.  oit.,  vol.  I,  pag.  155. 
3    Op.  ri/.,  vol.  i.  pag.  156. 


XIII 

pensamos  já  foi  pensado,  mas  o  que  podemos  reivindi- 
car, é  o  processo  porque  de  novo  pensamos  e  estudamos 
os  assumptos  já  tratados.  Eis  a  modesta  parte  que  nos 
cabe  no  que  vae  escripto;  a  melhor  opinião  que  nós  for- 
mamos sobre  as  condições  da  existência  alheia  e  da  nos- 
sa própria,  á  proporção  que  vamos  estudando,  é  já  uma 
recompensa  bem  valiosa,  e  que  por  vir  do  foro  intimo  da 
nossa  consciência  ninguém  nol-a  pode  disputar.  Dáva- 
mos bem  triste  attestaclo  de  nós,  se  fossemos  procurar 
o  premio  de  nossos  esforços  á  meza  d'outro  juiz,  e  se 
por  isso  nos  offendessemos  com  as  palhaçadas  dos  ad- 
versários que  tripudiam  diante  do  publico  com  asserções 
que  são  ao  mesmo  tempo  a  própria  sentença  dos  accu- 
sadores  impudentes.  Affirmamos  aqui  o  que  ainda  mais 
vezes  repetiremos:  esta  resposta  é  um  incidente  numa 
discussão,  que  está  naturalmente  na  nossa  esphera  de 
trabalho;  é  uma  exposição  de  ideias  que  se  aqui  não  ti- 
vesse tão  bom  ensejo  para  apparecer  á  luz,  sahiria  em 
outro  logar.  Voltamos  serenamente  aos  nossos  trabalhos 
sobre  a  Archeologia  artística  (1)  para  darmos  a  nova  edi- 
ção critica  do  Catalogo  da  Livraria  d^El-Rey  D.  João  IV. 


(1)  Vae  entrar  no  prelo  o  fascículo  m : 

Os  Artistas  do  Catalogo  da  Livraria  de  Musica  oVEl-Rey 
D.  João  IV.  Séculos  xv-xvii.  Precedido  d,um"cnsaio  hietorieo- 
critico  acerca  do  mesmo  Catalogo  iu-4.°  gr.  de  cerca  de  120 
pag.  Para  se  avaliar  a  importância  capital  d'este  Catalogo,  di- 
remos só  que  extractamos  d'elle  mais  de  1:000  nomes  de  artis- 
tas, dos  quaes  cerca  de  440  não  se  encontram  citados  em  obra 
alguma,  desde  Brossard  (1703)  até%Fétis  (1866)  e  H.  Mendel 
(1873,  em  via  dr>  publicação).  O  fasciculo  iv,  cujo  manuscripto 
está  pronipto,  entrará  pouco  depois  para  indemnisar  os  assignan- 
tes  da  demora  forçada  a  que  o  difficil  estudo  do  Catalogo  nos  obri- 
gou, para  pôr  o  fasciculo  m  á  altura  do  assumpto. 


XIV 

que,  como  sabemos  pelo  nosso  gabjo  amigo  )Ir.  Fer- 
dinand  Dcnis,  é  esperada  com  impaciência  em  Pari>. 

Isto  que  escrevemos  são  documentos  modestos,  mas 
talvez  um  dia  úteis  para  ;i  nossa  futura  historia  moral 
e  litteraria,  porque  um  povo  que  tolera  que  o  colloquem 
como  um  histrião  e  um  miserável  no  palco  da  publici- 
dade—  está  perdido,  ou  prestes  d'isso: 

«Representou-se  ha  tempos,  n'um  dos  theatros  de 
Lisboa,  uma  Revista  do  anno.  Entrava  n'ella  uma  anã 
escarnecida,  ludibriada.  A  anã  representava  Portugal. 
A  platéa  ria  a  bandeiras  despregadas,  e  applaudia  na 
proporção  em  que  ria.  Este  facto  do  abatimento  próprio 
rido  e  applaudido  não  é  só  uma  pagina  significativa  de 
historia,  é  um  facto  que  merece  a  mais  sisuda  refle- 
xão.» (1) 

Não  soubemos  o  que  dizer,  quando  ha  dias  lemos  isto, 
nem  sabemos  classificar  qual  dos  sentimentos  em  nós 
prevaleceu.  Com  horror  lemos  esta  sentença,  lavrada 
em  publico  pelo  próprio  interessado:  «Portugal  escar- 
necido por  portuguezes.»  Tudo  o  que  já  referimo*  pois, 
(2)  de  Gervinus  (3)  e  de  Scherr,  (4)  acerca  da  nossa  mi- 
séria intellectual  e  moral,  ainda  era  pouco  —  e  mesmo 
nada  á  vista  d'isto. 

Porto,  5  de  maio  de  1873. 


(1)  D.  António  da  Costa.   Três  Mftndos.  Lisboa,  1873,  pa- 
gina 346. 

(2)  Batas  palavras   furam  escriptas  depois  de  terminado 
d  manuscrípto. 

(3)  Vide  <>  capitulo  i :  -1  nossa  posição. 

(4)  Vide  o  mesmo  capitulo. 


CAPITULO  I 


A  nossa  posição 


Nunca  tivemos  receio  de  affirmar  publicamente  o 
nosso  modo  de  ver  nas  cousas  de  Portugal,  com  risco 
de  perdermos  os  applausos  da  maioria  e  mesmo  d'aquel- 
les  que  se  julgam  os  privilegiados  no  meio  d'essa 
maioria. 

O  nosso  credo  affirmamol-o  já  em  1870  de  uma 
maneira  decidida,  e  das  nossas  affirmações  moraes  e 
scientificas,  não  retractamos  uma  virgula.  Os  nossos 
princípios  estão  n'esses  dois  campos,  de  pé  como  então, 
e  uma  vez  que  o  snr.  Gomes  Monteiro  estabeleceu  en- 
tre um  paiz  e  o  filho  d'esse  paiz,  deveres,  seja-nos  licito 
dizer  como  nós  os  entendemos. 

Nascemos  em  Portugal;  a  existência  physica  pren- 
de-nos  aqui,  mas  essa  é  frágil  e  pode  durar  apenas  a 
existência  regular  de  uma  vida;  a  existência  intellectual 
e  moral  devemol-a  á  Allemanka;  é  inútil  pois  avaliar 
de  que  lado  pesa  a  balança.  De  Portugal  não  temos  até 


aos  10-11  annos  (1)  outra  recordação,  senão  a  repu- 
gnância inextinguível,  e  que  ainda  dura,  de  dois  ou 
três  collegios  onde  nos  haviam  mettido  (2),  collegios, 
que  apesar  de  passarem  então  pelos  primeiros  do  Porto, 
só  podemos  classificar  pela  memoria,  de  focos  de  im- 
mundicie,  physica,  moral  e  intellectual  (3).  Em  1865 
voltávamos  da  Allemanha  para  ir  cursar  a  Universi- 
dade, que  nos  pareceu  só  em  ponto  grande,  o  que  os 
collegios  haviam  sido  para  nós  até  1859,  em  ponto  pe- 
queno (4). 

Eis  o  que  conhecemos  da  esphera  intellectual  da 
nossa  terra;  o  resultado  foi  um  retraimento  nos  esta- 
dos que  havíamos  começado  na  Allemanha,  isolamento 
tanto  mais  fatal,  em  vista  do  profundo  nojo  que  nos 
inspirava  a  sociedade  em  que  havíamos  entrado,  socie- 
dade sem  principios,  sem  seriedade,  sem  ideal,  immersa 
no  phrenesí  dos  gosos  mais  ínfimos — digna  filha  de 
déspotas  e  frades — par  nobile  fratrum. 

A  sentença  que  havíamos  proferido  no  nosso  intimo, 
não  a  formulamos  sem  dôr —  embora  não  o  acreditem 
aquelles  que  em  nada  crêem,  e  que  dão  todavia  ex- 


(1)  Sahimos  em  1859  para  Hamburgo. 

(2)  Somos  orpbfio  desde  os  4  ânuos. 

(3)  Ainda  lioje  estão  do  mesmo  DÍvel,  como  se  pôde  vêr 
pelos  edificantes  commtmicados  dos  jornaes,  com  que  os  Direc- 
tores entre  si,  Mestres  e  Directores  se  mimoseiam.  disputando-se 
a  concorrência  do  negocio-,  os  especuladores  mudaram  de  no- 
me, mas  o  trafico  continua. 

(4)  Uma  das  primeiras  surprozas  que  nos  estava  reservada, 
foi  7êrmoe  entrai,  pouco  depois  da  nossa  chegada  uns  três  len- 
tes, uni  apoa  outro,  pela  poria  dentro,  pedindo-nos  a  traducçio 
de  umas  passagens  de  um  jornal  alleinfio;  depois  Boubemos 
que  o  único  individuo  que  Babia  a  língua  allemftem  termos,  em 
Coimbra,  era  um  professor  allemão.  alli  residente. 


pressão  ao  seu  entranhado  amor  da  pátria  em  pala- 
vras ocas. 

Nós  preferimos  o  trabalho  ininterrupto  a  favor  da 
gloria  cTessa  terra,  e  para  nos  convencermos  de  que  o 
Portugal  que  viamos,  não  era  o  Portugal  de  outr'ora, 
procuramos  a  custo  de  um  constante  trabalho  e  de  con- 
stantes sacrifícios,  debaixo  da  mascara  moderna,  as  an- 
tigas e  nobres  feições  da  nossa  individualidade  nacional. 
Conseguimos  lavar  algumas  máculas,  e  esse  trabalho 
Ímprobo,  em  que  o  residtado  corresponde  tão  pouco  ao 
esforço,  continuamol-o  ainda. 

Não  nos  accusa  a  consciência,  único  juiz  que  co- 
nhecemos, de  havermos  falseado  o  principio  adoptado. 
Se  desmascaramos  misérias,  foi  porque  entendemos  que  a 
gangrena  não  se  cura  encobrindo-a  com  emplastros,  por- 
que digam,  affirmem,  escrevam,  declamem,  phantasiem 
o  que  quizerem  —  a  nossa  decadência  é  palpável  e  pro- 
funda, se  analysarmos  a  nossa  existência  com  as  duas 
únicas  medidas  possíveis,  e  sob  os  dois  aspectos  que  fa- 
zem viver  ou  morrer  uma  nação  —  a  existência  moral  e 
intellectual  (1). 

Mintam  embora  ao  publico,  torçam  e  falseiem  a  ver- 
dade—  ella  triumphará,  aqui  como  em  toda  a  parte.  E 
por  isso,  que  entre  todos  os  que  na  Europa  nos  conhe- 
cem e  julgam,  somos  nós  os  únicos  que  mentimos  á 
nossa  consciência.  0  que  a  Europa  pensa  de  nós,  não 
o  desmentem  palavras  ocas,  mas  acções  decididas  e  an- 


(1)  Podem-nos  argumentar  com  a  nossa  existência  económi- 
ca, aliás  triste,  mas  em  que  se  tem  observado  ultimamente  al- 
gumas melhoras  apparentes,  mas  a  esses  espíritos  ingénuos  lem- 
bramos a  França;  os  seus  milhares  de  milhões  não  a  salvaram. 


tes  de  nós  havermos  chegado  ás  amargas  conclusões 
que  apontamos,  já  a  sentença  havia  sido  lavrada,  por 
quem  sabia  e  podia:  «Em  nenhum  dos  povos  meri- 
dionaes  se  desenham  as  máculas  peculiares  do  typo  ro- 
manico-catholico,  de  uma  maneira  mais  viva,  do  que  nos 
portuguezes.»  (1)  Isto  escrevia-se  em  1858;  vejamos 
uma  outra  auctoridade  respeitável  em  1872:  «Portugal 
mostra  no  meio  da  sua  deplorável  ruina,  até  onde  dés- 
potas e  frades — par  nobile  fraírum  podem  conduzir 
um  paiz  que  a  natureza  inundou  em  abundância 
com  os  seus  dons  mais  ricos;  se  os  hespanhoes  salva- 
ram no  meio  dos  desastres  da  sua  decadência  politica 
uma  somma  de  qualidades  nacionaes  e  pessoaes,que  pro- 
mettem  um  futuro,  succede  com  os  visinhos  o  con- 
trario; a  bestialisação  clerical,  (sic:  kirehliehe  Ver- 
tlúerung)  a  decadência  e  abjecção  moral  e  social  dos 
portuguezes  é  tão  grande,  que  a  esperança  em  um  fu- 
turo melhor,  mal  se  deixa  entrever.  Leia-se  com  cui- 
dado a  historia  moderna  de  Portugal,  ouça-se  com  at- 
tenção  o  que  dizem  os  viajantes  e  imparciaes  investiga- 

(1)  «  Bei  Keinem  der  súdlichea  Võlker  treten  die  i-igen- 
tKiimlichen  Schattenseiten  des  romanisch=kathorischen  Ty- 
pus  greller  hervor  ais  bei  deu  Pprtugieaen  »>  (Geschichte  des 
neunzehnten  Jahrhunderts,  vol.  Ht,  Pag.  418.) 

Depois  do  grailde  historiador  haver  dito,  que  as  riquezas 
do  Oriente  haviam  sido  ainda  mais  Eata.es  para  Portugal,  «Io 
que  as  do  Occidente  para  Heapanha,  por  causa  da  nossa  maior 
indolência,  e  depois  de  mencionar  os  effeitos  da  usurp 
da  inqaisiç&o,  diz  a  Beguinte  tremenda  verdade:  i  A  tomada 
do  Brazil  aus  hollandezes  depois  da  restauração,  pôde  conside- 
rar-se  como  uma  nova  desgraça;  as  riquezas  inexhauriveis  de 
ouro  e pedras  )"  cilitaram  ao  portugunz,  imraerc 

indolência  intellectual,  moral  e  industrial,  a  continuação  da 
mesma  vida  airada  (Schlaraffenleben)  n'um  grau  ainda  mais 
intenso.     Geschichte,  vol.  m,  pag,  119  . 


dores  e  observadores  da  preguiça,  cobardia  (1)  e  da  cor- 
tezia  rasteira  e  servil  dos  portuguezes,  e  então  conhe- 
cer-se-ha  que  as  expressões  de  desprezo,  com  que  por 
exemplo  Byron  falia  d'elles,  soam  duramente,  mas  ain- 
da assim  menos  duramente  do  que  elles  o  merecem,  e 
que  o  poeta  inglez  tem  pleno  direito  de  fallar  dos 
portuguezes  como  de  poor,  paltry  slaves,  (2)  que  se  suf- 
focam  em  immundicie  physica  e  moral.  Um  povo  con- 
demnado  a  ouvir  semelhantes  accusações,  aliás  funda- 
das, mal  se  pôde  dizer  que  tenha  um  futuro.» 

Segue  emíim  uma  affirmação  psychologica,  cuja  ver- 
dade Theophilo  Braga  (3)  demonstrou  de  uma  maneira 
tão  evidente,  como  profundamente  triste :  Portugal 
symbolisado  no  Fidalgo  pobre  nos  autos  de  Gil  Vicen- 
te; no  fidalgo  pobre,  miserável  na  sua  decadência  ma- 
terial, mas  incomparavelmente  mais  miserável  na  sua 
baixeza  moral. 

«Nada  lhe  ficou  —  segue  o  Professor  (4)  Soherr  — 
além  de  uma  mania  incrível  de  ostentação,  de  um  effei- 
to  puramente  cómico;  e  é  levado  por  este  sentimento, 
que  um  d'elles  affirmou  gravemente  a  um  viajante  alle- 

(1)  0  auctor  refere-se  á  moral :  á  incapacidade  de  vencer- 
mos em  nós  os  nossos  defeitos,  a  peor  metade  emfim  o  animal, 
que  em  todos  existe. 

(2)  Poor,  paltry  slaves!  yet  born,  midst  noblest  scenes — 
Why,  Nature,  waste  thy  wonders  on  such  men? 

Child  Harold's  pilgrimage.  Canto  I,  estancia  xvm.  (The 
tvorks  of  Lord  Byron,  ed.  Tauchnitz,  1866,  vol.  n.)As  estan- 
cias relativas  a  Portugal  são  de  xiv  —  xxxiii. 

(3)  Historia  do  theatro  portuguez.  vol.  I,  Gil  Vicente  e  sua 
eschola,  na  sua  Historia  da  litteratura  Portugueza.  Porto,  1870. 

(4)  O  auctor  é  professor  de  Historia  no  Polytechnikum  de 
Zúrich  (Suissa). 


mão:  «um  portuguez  bem  fincado  basta  p;ira  pôr  milha- 
res de  indivíduos  em  debandadas;  esta  tendência  até  se 

revela  officialmente  de  um  modo  assaz  grotesco,  dando 
a  um  navio  de  guerra  da  mais  pequena  espécie  o  nome 
altisonante  de  «O  terror  do  mundo.»  (1) 

Ouvimos  já  de  longe  a  celeuma  que  estas  citações 
irão  levantar,  berreiro  de  palavriado  patriótico,  a  que 
já  respondemos  —  cão  que  ladra  não  morde  —  ;  ouvi- 
mol-os  já  gritando,  como  o  snr.  G.  M.,  movido  pelo 
«amor  patriótico  das  suas  entranhas»,  crucificae  o  «fi- 
lho desnaturado»;  mas  acalmem  as  iras  que  lhes  exci- 
tou as  citações  de  Gervinus  e  de  Scherr,  dous  escripto- 
res  heréticos. —  e  ouçam  ura  escriptor  portuguez,  um 
escriptor  official  e  um  escriptor  catholieo,  três  qualida- 
des n'uma  só  pessoa.  Trata-se  de  um  assumpto  capital, 
de  uma  questão  reconhecida  como  a  que  é  na  verdade 
—  de  vida  e  de  morte  —  para  uma  nação:  trata-se  da 
instrucção  publica  em  Portugal: 

«Detenha-se  a  penna,  e  succeda-lhe  mais  significa- 
tivo  o  triste  quadro  dos  factos. 

«Portugal,  depois  de  ter  conquistado  a  liberdade  ha 
trinta  e  cinco  annos,  deitou  de  si  duas  gerações  succes- 
sivas.  A  primeira  é  hoje  adulta  já  e  quasi  analphabeta. 
Foram  sonhos  de  poeta  os  votos  do  marquez  de  Palme- 
la, de  Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães,  de  Passos  Ma- 
noel. Vamos  ver  a  segunda  geração,  cuja  infâmia  te- 
mos n'este  momento  diante  de  nós. 

«O  numero  total  das  escolas  de  instrucção  prima- 


(1)  .!",'  eschichte  der  Literatut.  Stnttgart,  1872, 

4.1'  ed.  Vul.  i,  pag.  416. 


ria,  no  fim  do  armo  de  1868,  era  de  3:732;  sendo  2:313 
do  estado  e  1:419  livres. 

«Existindo  no  reino  700:000  creanças  de  sete  a  quin- 
ze annos  de  idade,  e  não  devendo  o  numero  de  creanças 
por  escola  exceder  a  50,  segue-se  que  o  estado  devia  ter 
para  a  instrucção  primaria  14:000  escolas,  e  tem  ape- 
nas 2:300.  Contando  também  com  as  livres,  é  um  to- 
tal de  3:700  escolas  em  vez  de  14:000. 

«  Comparemos  o  nosso  estado  com  o  das  nações  cultas. 

«Em  Hespanha  ha  1  escola  para  600  habitantes,  em 
França,  Baviera,  Itália,  Hollanda  e  Inglatei*ra,  1  para 
500  a  400.  Na  Suissa,  1  para  300.  Nos  Estados-Uni- 
dos,  1  para  160.  Na  Prússia,  1  para  150.  Em  Portugal, 
1  escola  para  1:100  habitantes. 

«Temos  só  2:300  escolas  officiaes,  e  devíamos  ter 
7:000  para  estarmos  na  proporção  em  que  se  acham  as 
de  Hespanha,  8:000  em  relação  á  França,  á  Bélgica,  á 
Baviera,  de  9  a  12:000  escolas  para  correspondermos 
proporcionalmente  á  Inglaterra,  á  Hollanda,  á  Suécia, 
á  Suissa  e  á  Prússia,  21:000  para  correspondermos  aos 
Estados- Unidos,  e,  tornamos  a  dizel-o,  não  possuímos 
senão  2:300  escolas!»  (1) 

Note-se  mais  o  seguinte: 

«Ao  conhecimento  das  escolas  siga-se  o  conheci- 
mento dos  alumnos. 

«O  numero  total  dos  alumnos  matriculados  nas  es- 
colas officiaes  e  particulares  do  ensino  primário  (no  an- 
no  de  1867)  foi  de  132:201. 

«A  primeira  consideração  lamentável  é  que,  haven- 

(1)  D.  António  da  Costa.  A  instrucção  nacional.  Lisboa, 
1870,  pag.  111-113. 


8 


do  no  reino  757:000  creanças  de  sete  a  quinze  annos  de 
idade,  se  acham  fora  das  escolas  mais  de  600:000,  sem 
fallar  das  de  cinco  e  seis  annos.  Se  attendermos  tam- 
bém a  estas,  são  800:000  creanças  privadas  da  in-rnu- 
eão. »  (1) 

Agora  a  confirmação  do  peor,  da  nossa  preguiça  e 
anemia : 

«Comparando  agora  o  alumno  portuguez  com  o  dos 
outros  povos,  vemos  que  o  numero  total  dos  alumnos  (of- 
ficiaes  e  livres)  é  de  1  alumno  para  32  habitantes.  Em 
Itália,  é  de  1  para  15.  Em  Hespanha,  de  1  para  14.  Em 
França,  de  1  para  8.  Em  Inglaterra,  Hollanda  e  Bél- 
gica, de  1.  para  7.  Na  Prússia,  de  1  para  6.  Na  Suissa, 
na  Baviera  e  na  Suécia,  de  1  para  5.  Nos  Estados- 1  .  ni- 
dos,  de  1  para  4  e  para  3.  Entre  nós,  repetimos,  é  de  1 
para  32. 

«Esta  tristeza  do  apoucado  numero  dos  nossos  alu- 
mnos é  ainda  aggravada  com  dois  factos  geraes :  a  irre- 

DO  ™ 

gularidade  da  frequência  escolar  e  a  carência  do  apro- 
veitamento. 

«Coramissarios  dos  estudos,  governadores  civis,  pro- 
fessores, são  todos  uma  só  voz  a  clamar  contra  a  irre- 
gularissima  frequência  d'esses  mesmos  diminutos  alu- 
mnos que  se  inscrevem  nas  escolas.  O  tristo  quadro  da 
frequência  relativa  ao  districto  de  Évora,  já  o  notamos 
anteriormente.  Os  que  desejarem  ver  quadro  idêntico  no 
districto  de  Lisboa  podem  consultar  o  relatório  ini pro- 
so da  visita  ás  eseolas  pelo  illustre  commissario  d< 
tudos,  o  snr.  Ghira. 

(1)  Op.  cit.,  pag.  113-114;  o  nuctor  disse  atraz  700:000  e 
nAo  757:000. 


«O  professor  de  Vallongo  relata  isto:  «Tenho  ad- 
moestado directamente  os  chefes  de  família,  e  indirecta- 
mente por  via  da  commissão  parochial  e  do  parocho  (1),  a 
fim  de  promoverem  a  maior  frequência  dos  alumnos; 
forneço  a  muitos  d'estes  papel,  tinta,  pennas  e  livros,  e 
no  meio  d'estes  sacrifícios  a  frequência  continua  muito 
irregular.  Ha  alumnos  que  em  todo  o  anno  não  chegam  a 
frequentar  um  mez.»  Pelos  lábios  d*este  professor  faliam 
todos  os  outros  professores. 

«Da  frequência irregularissima  deriva-se logicamen- 
te a  chaga  não  menor  do  pouco  aproveitamento.  Para 
os  professores  bons  é  um  martyrio.  Procuram  elles  at- 
tenuar  o  mal,  promovendo  annualmente  a  sua  festa  es- 
colar, e  premiando  os  alumnos  clistinctos,  mas  o  mal  su- 
perabunda. 

«A  primeira  inspecção  ás  escolas  do  reino,  em  1864, 
deu  a  conhecer  que  só  se  apurava  como  prompto  1  alu- 
mno  entre  50  matriculados. 

«A  segunda  inspecção  geral,  em  1867,  mostrou  que 
em  historia,  chorographia  e  grammatica  apenas  se  ha- 
bilita um  numero  insignificantíssimo,  e  que  mesmo  na 
leitura,  escripta,  contas  e  educação  moral,  apenas  a  quin- 
ta parte  dos  alumnos  de  todo  o  reino  merecia  a  qualifi- 
cação de  boa,  e  quatro  quintas  partes  a  de  medíocre  ou 
de  simples  sufficiencia,  o  que  deveras  corresponde  a  não 
mais  que  medíocre,  se  attendermos  á  propensão  do  bon- 
doso caracter  portuguez  para  julgar  com  benevolên- 
cia. (2) 

(1)  Que  interesse  pode  ter  este  fiscal  na  questão  da  instruc- 
ção  popular?!  (nota  do  auctor.) 

(2)  A  indulgência  para  com  as  fraquezas  alheias  nasce  do 


10 


«A  frequência  irregular,  e  o  pouco  aproveitamento 
aggravam,  portanto,  a  lastima  do  pequeno  numero  dos 
matriculados.))  (1) 

A  este  capitulo  do  livro  de  D.  António  da  Costa,  de 
que  extrahimos  estas  passagens,  chama  o  auctor,  com 
razão,  sudário. 

Viu-se  o  estado  do  alumno,  agora  o  da  alumna : 

«A  chaga  è  profunda. 

«Acabamos  de  ver  que  a  proporção  portugueza  de 
1  escola  para  1:000  habitantes,  comparada  com  a  da  Eu- 
ropa, é  uma  desgraça.  Pois  bem;  a  proporção  especial 
nas  escolas  do  sexo  feminino  não  é  de  1  escola  para 
1:000  habitantes,  é  de  1  para  6:000! 

«Vimos  que  era  outra  desgraça  a  proporção  de  1 
alumno  para  32  habitantes.  Pois  bem;  a  proporção  no 
sexo  feminino  é  de  1  alumna  para  80  habitantes! 

«Existem  no  reino  550:000  meninas  de  três  a  quin- 
ze annos  de  idade  que  se  deviam  matricular  nas  esco- 
las. Pois  bem;  d'estas  só  27:000  frequentam  as  escolas 
officiaes  e  particulares;  e  sendo  4:000  as  freguezi: 
350  possuem  escolas  officiaes.»  (2) 

Esta  era  a  miséria  de  1870,  vejamos  o  que  repete  o 
mesmo  auctor  em  1871  : 

«  Que  nos  diz  o  actual  momento?  Que  estrada  temos 
desbravado?  Em  que  proporção  se  acha  auginentada  a 
saúde  das  gerações  novas?  Até  que  ponto  está  illustra- 

convencimento  da  própria  friu/>ieza,'e  essa  bondado  não  ff  outra 
cousa.  Deixemo-nos  de  bonitas  palavras  o  chamemos  a  criança 
pelo  seu  nome.  (Nota  do  auctor.) 

(1)  Op.  cit.,  pag.  115-117. 

(2)  D.  António  da  Costa.  A  instrucção  nacional,  pag.  125 

el26.  * 


11 


do  este  povo?  Quanto  se  tem  aperfeiçoado  o  trabalho 
popular? 

«Para  se  pronunciar  a  suprema  sentença,  que  pro- 
gressos temos  de  lançar  na  concha  da  direita? 

«  0  numero  das  escolas  subindo,  em  trinta  annos,  de 
1:000  a  2:300;  o  numero  dos  alumnos,  de  34:000  a 
132:000;  um  orçamento  duplicado;  uma  escola  normal 
do  sexo  feminino  funccionando  e  cinco  do  sexo  mascu- 
lino em  perspectiva  (1);  o  augmento  cie  10$000  réis  (2)  no 
ordenado  dos  professores  normalistas ;  um  tentame  de  es- 
cola central  primaria ;  a  acção  local  dando  signaes  de  vi  • 
da,  por  meio  de  um  certo  numero  de  cursos  nocturnos 
e  de  despezas  escolares;  a  iniciativa  dos  particulares 
apresentando -se  como  tentativa  benemérita.  Quem,  en- 
feixando estes  esforços,  lhes  regateará  louvores? 

«Para  lançar  na  concha  da  esquerda,  o  que  vimos  ? 

«Vimos  a  organisação  da  nossa  intrucção  primaria, 
por  excepção  única  no  mundo,  basear-se  na  centralisa- 
ção  do  estado,  figurando  a  localidade,  e  a  iniciativa  par- 
ticular como  tentativas  proveitosas,  mas  não  como  ele- 
mentos nacionaes  da  educação  publica.  Vimos  que  a  nos- 
sa escola  deixa  fora  do  seu  âmbito  a  educação  physica,a 
educação  politica  e  a  educação  profissional  (3);  que  a  in- 
specção é  nulla,  que  o  ensino  obrigatório  está  decretado 
em  vão,  que  a  escola  infantil  e  o  segundo  grau  são 
letra  morta.  Vimos  que  a  verdadeira    escola   do  se- 

(1)  Em  perspectiva  !  (nota  do  auet.) 

(2)  O  temporário  tem  hoje  110:000  reis  e  o  vitalício  120:000 
(nota  do  auctor,  tirada  de  D.  Ant.  da  Costa,  A  ine.tr.  nac,  p.  196. 

(3)  Causa-nos  o  maior  espanto  que  não  nos  falle  da  educa- 
ção moral  que  está  a  cargo  dos  parochos!  Mais  adiante  indaga- 
remos a  razão  d'esta  omissão. 


12 


culo  xix  é  desconhecida  entre  nós  pela  carência  do  me- 
thodo  gera]  e  pela  falta  de  livros  próprios  que  são  o  instru- 
mento do  methodo;  que  as  bibliothecas  popul 
ainda  por  nascer.  0  magistério  sem  habilitações,  quasi 
sem  vencimento,  e  absolutamente  sem  carreira.  Como 
resultado  de  tudo  isto  vimos  que  o  numero  das  escolas, 
o  dos  aluirmos,  e  principalmente  o  das  alumnas,  a  dota- 
ção do  ensino,  o  aproveitamento  geral,  filho  da  diminu- 
ta frequência  escolar,  nos  appareciam  como  um  sudário. 

«Assim,  o  grande  problema  da  instrucção  nacional, 
não  é  a  noite  que  era  ha  trinta  annos,  mas  não  passa 
ainda  de  uma  aurora  nebulosa.  Na  presença  d 'esta  idéa 
predominante  da  instrucção  nacional,  suspendemo-nos 
com  a  alma  cheia  de  tristeza.»  (1) 

Esta  sentença,  apesar  de  ser  menos  enérgica  do  que 
as  antecedentes,  é  mais  eloquente  —  por  ser  baseada  em 
cifras  e  factos  tirados  de  documentos  officiaes  (2)  por  um 
ex-conselheiro  e  ministro  da  coroa. 

Faremos  a  estas  citações  um  reparo  capital,  a  que 
alludimos  na  pagina  anterior  (nota  3).  D.  António  da 
Costa,  apesar  de  pertencer  ás  regiões  officiaes  do  poder 
o  da  littcratura.  onde  só  por  excepção  sopram  a-  òorren- 
tes  da  Fardada,  teve  a  coragem  do  dizer  as  amarga-  BO- 

(1)  D.  António  da  Costa.  Historia  da  kutTWSÇ&O   pflj 
em  Portugal.  Lisboa,  1871.  pag.  217--J1'.». 

(2)  São  elles : 

a.)  (Vnso  officiftl  da  população. 

/-  Oa  trabalhos  resultantes  da  inspecção  geral  ás  escho- 
las  do  nino  no  anuo  de  1867. 

<•..)  O  quadro  das  escholaa  existentes  etn  1845,  publicado 
asivamente  do  1  >i<iri<>  de  ZJwòoo,  e  os  doomnentoa  officiaos 
da  direcç&o  geral  de  instrucção  publica. 

D.  António  tia  Costa,  A  itutmoçãú  nacional.  Lisboa,  1870. 
pag.  113. 


13 


vidades,  que  atraz  notamos,  no  coração  do  reino,  na  pró- 
pria capital,  onde  estão  os  réos  do  seu  processo.  Mas 
para  que  n'essa  mesma  exposição  não  faltasse  o  sophisma 
que  se  respira  na  atmosphera  catholica  em  que  vive  o 
seu  auctor — vêmol-o  andar  á  volta  do  circulo  vicioso 
sem  lhe  achar  o  centro.  0  auctor  falia  «da  omissão  de- 
plorável da  educação  physica,  da  educação  politica  (!) 
e  da  educação  profissional »  nas  nossas  escholas.  Onde 
fica  a  moral,  pois  sem  ella  o  que  valem  as  outras?  0  au- 
ctor illudiu  aqui  a  questão  principal,  não  quiz  apontar 
a  chaga,  que  é  de  todas  a  mais  virulenta.  0  mesmo  es- 
pirito catholico,  o  mesmo  parti  pris  o  levou  a  passar  em 
branco,  como  de  nenhuma  importância  no  desenvolvi- 
mento da  civilisação,  o  período  da  Reforma  no  seu 
segundo  e  ultimo  livro  sobre  a,  Historia  da  instrucção 
popular  em  Portugal  (1). 

E  não  se  diga  que  o  assumpto  não  pedia  essa  men- 
ção, pois  está  provado  que  as  ideias  da  Reforma,  ainda 
que  não  se  reflectissem  tão  vivamente  em  Portugal  como 
em  Hespanha  (2),  onde  chegaram  a  lançar  profundas 
raízes,  tiveram  aqui  echos  (3). 

Fizemos  esta  pequena  digressão  apenas  para  de- 
monstrar, que  mesmo  aquelles  escriptores  que  preten- 


(1)  Historia  da  instrucção  popular,  desde  a  fundação  da 
monarchia  até  aos  nossos  dias.  Lisboa,  1871,  in-8.°  de320pag. 

(2)  Vide  H.  Dalton.  Die  evangelische  Beweyung  in  Spanien. 
Wiesbaden,  1872,  e  a  critica  d'este  volume  no  Litterarisches 
Centralblat,  1873,  n.°  16  pag.  485. 

Era  Hespanha  citava-se  a  palavra  característica :  «Quien 
dice  mal  de  Erasmo,  ó  es  fraile,  ó  es  asno. »  (Dalton.,  op.  cit., 
pag.  9.) 

(3)  Citaremos  apenas  Gil  Vicente,  André  e  Garcia  de  Re- 
zende, Damião  de  Góes,  etc. 


14 


dem  remediar  o  mal,  não  fazem  mais  do  que  transir 
com  elle,  em  logar  de  0  destruir  pela  raiz. 

Voltemos  ao  nosso  assumpto  e  ao  exame  do  no—. 
triste  estado. 

A  exposição  d'este  quadro  de  misérias  ain  la  pede 
ser  profícua,  se  nos  deixarmos  convencer  pelos  factos,  e 
Be  em  lo^ar  de  mentirmos  á  nossa  consciência,  emba- 
lando-a  em  falsos  sonhos  patrióticos,  que  mais  cedo  ou 
mais  tarde  nos  hão-de  ser  fataes  —  nos  resolvermos  a 
um  trabalho  de  renovação  moral  e  intellectual  na  fonte 
única,  o  cumprimento  dos  nossos  deveres.  A  renovação 
deve  ser  radical,  como  dissemos,  aliás  é  inútil. 

Agora  que  provamos  o  nosso  estado  de  decadência 
de  uma  maneira  incontestável,  devemos  observar  ao  snr. 
Gr.  M.,  que  para  ter  o  direito  de  nos  chamar  «filho  des- 
naturado» era  mister  que  conhecesse  as  relações  que  nos 
prendem  á  Allemauha  e  a  Portugal,  e  saber  a  qual  dos 
dous  paizes  cabe  a  melhor  parte  da  nossa  existência. 
Honramo-nos  que  o  snr.  G.  M.  nos  chamasse  «  meio  alle- 
mão  e  um  quasi  nada  portuguez»  (pag.  161),  porque 
não  perdemos  na  troca.  Que  a  nossa  linguagem  seja 
barbara  (pag.  23)  e  não  se  amolde  ao  pseudo  cla- 
mo do  Visconde  de  Castilho,  (1)  é  para  nós  um  signa] 
da  nossa  individualidade  —  de  que  não  podemos  au- 
gmentar  os  eunuchos  da  seita,  já  miserável.  Que  o  m>— 
so  germanismo  se  reflicta  na  nossa  linguagem  (2)  e  que  o 

(1)  Que  todavia  é  ama  cila  podrída,  uma  caldeirada  oomo 
a  da  Hexenkiiche  (cosinha  da  feiticeira),  ama  mescla  do  palli- 
cisinos,  arch&ismos,  heepanholianio8,  termos  chulos,  etc.,  eto.  \  . 
OFantt.  Tabeliãs  synoptioas,  N.°  1  e  2. 

(2)  A.  Coelho  já  o  notara  muito  antes  do  snr.  Q,  M.  Bi- 
bliogr.  Critica,  pag.  16,  1."  anno);  nós  mesmo  o  reconhecemos 
pelas  provas  que  elle  nos  den  depois. 


15 

processo  do  nosso  trabalho  intellectual  não  seja  resulta- 
do da  sciencia  (?)  portugueza,  não  admira,  pois  vivemos 
n'uma  atmosphera  totalmente  differente.  A  escolha  da 
nossa  leitura,  que  é  a  final  a  origem  de  todos  os  males, 
o  primeiro  passo  e  o  mais  monstruoso  da  nossa  rebel- 
dia, é  um  direito  que  reivindicamos  como  sagrado,  a 
menos  que  o  snr.  G.  M.  e  o  Visconde  de  Castilho,  como 
catholicos  convictos  (?),  nos  queiram  applicar  o  raciocí- 
nio inquisitorial.  Nós  respondemos-lhe  com  Goethe: 

«Que  nós  nos  eduquemos,  essa  é  a  condição  princi- 
pal; de  onde  nos  educamos,  seria  uma  questão  supér- 
flua, se  não  houvesse  o  perigo  de  nos  deseducarmos  por 
falsos  modelos.»  (1) 

Ora  nós  preferimos  Luthero  ao  P.e  António  Vieira 
e  a  Bernardes,  e  a  toda  a  longa  lista  de  theologos  e  co- 
mediantes da  rhetorica;  temos  o  mau  gosto  de  preferir 
os  philosophos  e  moralistas  allemães  a  Rousseau  (2)  e  a 
Voltaire  —  uma  vez  que  os  portuguezes  os  não  tem ; 
achamos  os  princípios  da  Arte,  e  a  Arte  mesmo,  hoje 
respeitada  e  cultivada  na  Allemanha  como  em  parte  al- 
guma; achamos  a  sciencia  allemã  dando  as  leis  ao  mun- 
do e  sustentando  o  seu  logar  imminente  á  custa  de  tra- 


(1)  M.  Carriere.  Erlãuterungen  zu  Goethe's  Faust.  2."  Par- 
te..Leipzig,  1869.  vol.  ii,  pag.  269. 

(2)  Gervinus  caracterisa  de  unia  maneira  especial  a  influen- 
cia de  Rousseau  :  «  Os  escriptos  políticos  de  Rousseau  excede- 
ram nos  seuseffeitos,  e  annularam  na  sua  influencia,  a  renova- 
ção moral  e  intellectual  da  vida,  que  elle  tinha  em  vista.»  E 
d'ahi  tiramos  uma  conclusão  lógica  com  outras  palavras  do  mes- 
mo auctor :  •  A  França  tomou  por  alvo  a  libertação  politica,  em- 
quanto  que  a  Alie  manha  se  esforçou  especialmente  pela  sua  li- 
bertação espiritual.  »  Geschichte  des  neunzehnten  Jahrhunderts. 
Leipzig,  1866,  vol.  vm,  pag.  99. 


16 

balhos  incessantes,  não  descançando  nunca  —  olhamos, 
emfim,  para  a  sua  litteratura,  e  vemos  a  sua  riqueza 
prodigiosa;  o  seu  desenvolvimento  único,  o  seu  ideal, 
os  seus  elevados  principios,  sustentados  não  só  com  a 
penna,  mas  pelo  exemplo  pessoal,  pelo  caracter  —  c 
olhamos  para  a  nossa  litteratura,  rica  em  volumes,  mas 
pobríssima  de  ideias  e  de  resultados,  e  descobrimos  — 
um  immenso  deserto  com  poucos  oásis. 

Lançando  então  os  olhos  para  esses  eme  o  snr.  G.  M. 
nos  aponta  no  século  presente,  vemos  moralista.-  mui 
moral,  publicistas  sem  consciência,  falsificadores  de 
versos,  sem  ideal,  nem  convicções ;  oradores  políticos  e 
académicos,  vendendo  a  palavra  e  o  pudor,  burgu-  /.<> 
e  philisteus,  enfeitando-se  com  títulos  e  veneras,  como 
as  gralhas  com  as  pennas  do  pavão,  e  passeando  a  ar- 
vore genealógica  atravez  do  labvrintho  lamacento  das 
alcovas;  trocando  a  procedência  por  ventura  honrada, 
mas  modesta  de  seus  antepassados,  com  o  pergaminho 
da  bastardia  —  isto  tudo,  compondo  uma  turba  multi- 
forme que,  varia  todos  os  dias  a  peor  de  todas  as  tar- 
ças,  a  da  seriedade  e  da  consciência. 

0  leitor  pôde  admirar-se  como  nós  chegamos  tão 
cedo  a  conclusões  tão  tristes,  e  entrado  em  Portugal.  SÓ 
encontramos  uma  comedia  do  principio  ao  fim  —  com- 
quauto  o  snr.  G.  M.,  que  chegou  30  ânuos  mais  côdo, 
encontrou  aqui  o  seu  paraíso  e  passou  sem  pesar  e  Bem 
BKudades  da  luz  para  as  trevas.  Isso  são  mvsterios  que 
o  snr,  G.  M.  lhe  poderá  explicar  melhor  do  que  eu,  e 
teve  para  issq  talvez  motivos  que  não  mis  compete  ava- 
liar aqui.  O  nosso  adversário  teve  a  felicidade  tio  vol- 
tar ao  terreno  próprio  e  ao  ambiente  que  mais  lhe  con- 


17 


vinha,  e  manifestou  o  seu  patriotismo  como  patrão  de 
uma  casa  de  livros,  editando  á  custa  d'ella,  as  produc- 
ções  dos  seus  compadres,  collegas  e  amigos,  a  que  o  li- 
gam laços  singulares  de  amisade,  e  povoando  o  mercado 
com  a  mais  completa  collecção  decuriosidades  que  ja- 
mais tem  sahido  da  boceta  da  Pandora  litteraria. 

Assim  manifesta  o  snr.  Gr.  M.,  immerso  ha  mais  de 
40  annos  n'um  sacrosanto  far  mente,  dormindo  sobre 
os  louros  (1)  conquistados  n'esta  cocheira  litteraria  de 
Augias,  onde  o  chrismaram  de  consummado  germanista, 
por  haver  feita  uma  prodigiosa  descoberta  de  que  em 
seguida  faltaremos  (2). 

Apesar  do  snr.  G.  M.  ser  sócio  da  Academia  Real 
das  Sciencias  (?)  (3)  e  amigo  dos  seus  excellentes  amigos 
— não  trocamos  o  que  somos  pelo  que  todos  os  seus 
collegas  do  Elogio  mutuo  valem,  e  continuaremos  a  ser 
meio  allemão  e  um  quasi  nada  de  portuguez. 

Eis  a  nossa  posição. 


(1)  Que  são : 

Echos  da  Lyra  teutonica.   Porto,  1849. 
Carta  sobre  a  situação  da  ilha   de  Vénus  (dos  amores). 
Porto,  1849. 

(2)  Vid.  o  capitulo  ui.  O  consummado  germanista,  como 
litterato  e  como  homem. 

(3)  Já  não  podemos  fallar  d'este  estabelecimento  de  alta 
especulação  litteraria,  sem  lhe  pôr  o  necessário  ponto  de  inter- 
rogação (sic.?),  que  significa  a  esperançosa  expectativa  no  seu 
brilhante  futuro. 


capitulo  n 


Castilho  julgado  em  1829 


Pela  ultima  vez  nos  occupamos  de  Castilho  com 
relação  ao  Faust.  Temos  o  Visconde  por  morto,  litera- 
riamente, morto  sob  os  epigrammas  que  elle  forjou  a  si 
próprio  na  sua  versão,  e  que  são  o  seu  epitaphio;  que 
esse  epitaphio  já  estava  escripto  em  1829  pela  voz  im- 
parcial da  critica  estrangeira,  isso  é  que  poucos  saberão, 
mas  antes  de  o  provarmos,  diremos  umas  palavras 
sobre  a  maneira  como  consideramos  o  litterato  de  Lis- 
boa, desde  que  o  conhecemos,  e  por  esta  exposição  ava- 
liar-se-ha  o  tom  do  nosso  exame  á  versão  do  Fausto. 

Disseram  os  amigos  do  Visconde  que  a  nossa  ana- 
lyse  fora  violenta ;  não  o  foi  tanto,  como  o  merecia  o  at- 
tentado;  o  nosso  Prologo,  (1)  que  não  é  mais  do  que  um 
protesto,  serviu  a  um  jornalista  para  por  elle  fazer  juizo 

(1)  O  Faust,  pag.  vii-xii. 


20 


das  600  paginas  restantes!  Ladrou  á  porta,  sem  entrar. 
Sirva  o  caso  de  exemplo,  e  adiante. 

O  resto  do  volume  tinha  uma  feição  militante,  mas 
ainda  assim  modesta,  porque  tudo  o  que  dissemos,  ain- 
da que  fosse  centuplicado,  não  valia  os  insultos  obsce- 
nos (1)  de  Castilho  contra  Goethe,  fazendo  dVlle  um 
D.  João  de  obra  grossa,  chamando  á  sublime  segunda 
parte  da  tragedia  um  aborto  <2),  dizendo  que  contém 
apenas  «extravagâncias,  absurdos,  repugnantes  ao  bom 
senso»  (3),  etc,  etc. 

Um  homem  que  diz  estas  cousas  á  luz  do  século  xix 
—  deshonra-se  e  perde  todo  o  direito  á  indulgência, 
mormente  quando  esse  homem,  na  balança  da  critica 
internacional,  não  tem  nome,  não  vale  nada,  apesar  de 
todos  os  seus  cartapacios  impressos,  escriptos  e  por  es- 
crever. Castilho,  como  escriptor,  não  passa  com  o  seu 
nome  além  do  Minho,  ou  quando  muito  do  Bidassoa  (4); 
esta  sua  ultima  proeza  só  passará  á  Allemanha,  para 
receber  lá  a  confirmação  da  sua  sentença  de  morte,  pro- 
nunciada pela  opinião  da  critica,  que  felizmente  ainda 
alli  está  n'um  uivei,  acima  de  todos  os  empenhos  e  ami- 
sades  mentirosas. 

Estamos  convencidos,  que  se  as  suas  tradueções  de 
Molière  fossem  lidas  nas  associações,  (5)  a  que  o  Vis- 

(1)  O  frenesi  de  gosar  sensualmente,  o  orgulho  sem  limi- 
tes, etc.  Fausto,  notas,  pag.  406,  passim. 

(2)  Op.  cif.,  Advertência,  pag.  xvi. 

(3)  Castilho.  Op,  c/t..  notas,  pag.  406. 

(4i  Riacho  qne  marca  a  fronteira  ootre  Bespaona  e  França. 

(5)  A  Academia  das  Sciem-ias  e  Bellas-Lcttras  de  Rouen, 
dos  Ardentes  de  Viterbo,  etc.,  associações  qnasi  incógnitas.  V. 
Dicc.  Bibliogr.  de  1.  da  silva.  vol.  i.  pag.  130,  e  SuppletnaUo, 
vol.  i.  pag.   132. 


21 


conde  de  Castilho  pertence  como  sócio,  e  lidas  diante 
de  gente,  que  entendesse  bem  as  duas  línguas,  e  julgas- 
se imparcialmente  —  estamos  convencidos,  que  a  criti- 
ca franceza  repelliria  essas  versões  vestidas  com  a  lin- 
guagem das  feiras  e  dos  theatros  de  marionettes  dos  sé- 
culos xvi  e  xvii. 

O  snr.  G.  M.,  antes  de  avaliar  os  méritos  litterarios 
da  traducção  do  Fausto,  porque  não  fallou  das  glórias 
que  o  Visconde  tem  colhido  da  nacionalisação  de  Mo- 
lière?  Porque  não  fez  também  declamações  por  nós  ter- 
mos affirmado,  em  vista  das  passagens  mal  traduzidas 
do  livro  de  M.me  de  Stael,  que  Castilho  sabe  mal  o  fran- 
cez  (1).  Era  um  excellente  campo  para  dar  largas  ás 
suas  apostrophes  sentimentalistas.  A  este  respeito  dire- 
mos que  vá  o  snr.  G.  M.  bater  a  outra  porta,  em  que 
encontre  alguém  suficientemente  ingénuo  para  consi- 
derar o  Visconde  como  uma  espécie  de  Abrahão,  de  Pa- 
triarcha  invulnerável  e  sagrado.  Não  sabiamos  (Testa  in- 
fallibilidade,  não  julgávamos  que  a  classificação  da  espé- 
cie, por  barro  damasceno  (2),  resava  d'esta  excepção,  mas 
aparte  a  graça,  diremos  de  uma  vez  para  sempre,  repe- 
tindo :  que  quem  escreveu  a  sangue-frio,  com  73  annos, 
as  obscenidades  da  sua  Advertência  e  das  suas  Notas  con- 
tra Goethe,  está,  como  se  diz  em  allemão:  vogelfrei,  is- 
to é,  fora  da  lei,  que  é  n'este  caso  a  lei  litteraria. 

O  nosso  respeito,  só  o  reservamos  para  quem  é  di- 
gno de  semelhante  sentimento,  para  quem  sustenta  prin- 


(1)  Embora  tenha  muita  presumpção  de  o  fallar  bem  inter 
amicos,  como  depois  soubemos! 

(2)  Os  críticos,  pag.  69.  Vide,  para  mais  clara  explicação, 
o  Capitulo  in.  O  consummado  geriu  altista,  etc. 


22 


cipios  elevados,  não  só  com  a  palavra,  mas  com  a  acção 
incansável,  abnegadora,  e  que  prefere  o  sacrifício  á  vil 
especulação : 

Nur  rastlos  bethàtigt  sich  der  Mann  ! 

«Só  em  acção  iucessante  se  affirma  o  homem  !» 

E  aqui  tocamos  na  chaga,  que  fez  de  Castilho,  mo- 
ralmente fallando,  um  invalido,  desde  os  seus  primeiros 
passos  litterarios.  Desde  que  em  1870  lemos  o  estudo, 
ou  antes  o^processo,  que  T.  Braga  applicou  a  Castilho 
—  riscamos  para  sempre  esse  nome. 

A  feição  que  o  Visconde  de  Castilho  tem  tomado  na 
nossa  litteratura  desde  o  seu  segundo  passo  litterario, 
é  a  feição  eminentemente  especuladora.  O  poema  a  D. 
João  vi,  composto  de  «três  pilhas  de  663  versos,  7  66  e  mais 
653,  com  outros  50  versos,  ao  todo  2132  versos»  (1) 
rendeu  a  bagatella  de  4000  cruzados  de  renda  annual  e 
vitalícia  (2),  isto  é,  1  e  ib7/533  de  cruzados  por  cada  verso. 
Mau  calculo!  D'ahi  em  diante  continuou  o  negocio  em 
larga  escala;  poemas,  cartas,  odes  pequenas,  grandes  e 
máximas  a  tu/ti  quanti,  tudo  rendeu  mais  ou  monos,  ata- 
que na  edição  dos  Fastos  de  Oridio  (3),  feita  á  custa  da 
Academia  (4)  formou  para  a  factura  das  monumentaes 


(1)  Estudos  da  edade  media.  Porto,  1870,  pag.  271. 

(2)  Op.  cit.,  pag.  276. 

(3)  Os  Fastos  de  Publio  Ovídio  Nasào,  cora  traducçao  em 
verso  portdguez,  seguidos  de  copiosa»  notas  por  rjaasi  tudos  os 
escriptores  portuguezes  contemporâneos.  Lisboa  ('por  ordem) 
Typ.  tia  Af.id.  B.  <Lis  Scienciaa,  1862.  4.°  in-8.°  max.  3  <rol. 
de  cxli  —  612  pag.,  666  pag.,  o  680  pag.,  ao  todo  8049  i 

Dm  verdadeiro  monumeutol    Offerece-se  agora  por  vil  preço 
nos  alfairabistas  da  capital! 

(4)  O  Visconde  teve  sempre  a  inabilidade  de  achar  edito- 
res d'eBta  ordem. 


23 


notas  uma  companhia  de  mais  de  100  accionistas,  que  são 
outros  tantos  escriptores,  grandes,  regulares,  medianos, 
pequenos  e  mínimos  e  alguns  microscópicos. 

Esta  monumental  especulação  teve  além  d'isso  a 
vantagem  dupla  de  organisar  definitivamente  em  torno 
de  Castilho  a  numerosa  companhia  do  Elogio-mutuo, 
que  tão  bellos  resultados  tem  dado  ao  paiz. 

Os  mínimos,  pequenos,  regulares,  grandes  e  máxi- 
mos, lisonjeados  pela  distincção  do  papa  litterario,  que 
lhes  havia  aberto  de  graça,  o  paraíso,  declararam-n'o 
infallivel,  e  fizeram  d'elle  uma  encarnação  tríplice  de 
Brahma — Vishnu  —  Siva. 

D'ahi  em  diante  publicou  mais  livros  impressos  á 
custa  alheia,  concorrendo  para  isso  particularmente  a 
Academia  das  Sciencias(?),  que  tem  sido  o  Banco  litte- 
rario-commercial  d'este  poeta  portuguez,  e  que  além 
de  authorisar,  por  ordem  especial,  a  impressão  das  pro- 
fanações a  Molière,  o  nomeou,  caso  raro,  Sócio  emérito, 
com  uma  gorda  gratificação. 

Eis  o  caracter  litterario  do  Visconde  de  Castilho,  e 
como  nós  não  entendemos  um  dualismo  que  (1)  faz  do 
individuo  que  escreve  e  do  individuo  moral  perante  a  so- 
ciedade—  duas  entidades  distinctas,  das  quaes  uma  pode 
ser  desprezível  e  a  outra  respeitável,  julgamos  o  homem 
á  altura  do  litterato. 

Só  uma  sociedade,  podre  até  á  medulla  dos  ossos, 
pôde  arvorar  em  lei  o  principio  infame,  sic: 

(1)  Este  dualismo  acha  a  nossa  gente  muito  natural,  e 
ouve  ou  lê  um  trecho  de  alta  moral  de  um  escriptor  conhecido 
como  um  canalha  (sic)  e  não  se  revolta,  porque  o  escriptor 
é  uma  cousa,  eo  homem  —  é  outra.  Falíamos  por  o  ter  ouvido 
muita  vez ! 


24 

Olha  para  o  que  eu  digo  e  não  para  o  que  et  faço  (1). 

Por  isso  nos  parecem  a  feição  intellectual,  a  feição 
moral  e  a  feição  politica  da  nossa  sociedade,  egualmente 
despresiveis. 

A  nossa  litteratura  tem  sido  um  officio  indiano,  um 
meio  de  especulação,  como  o  catholicismo  o  púz  <m 
pratica  com  a  ajuda  do  despotismo.  Cabiu  este,  mas 
não  cahiu  o  peor;  libertados  politicamente,  não  o  fomos 
moral  e  intellectualmente,  e  pelo  accessorio  esqueceram 
o  principal;  d'ahi  a  nossa  ruina  em  perspectiva. 

D'abi  também  a  nossa  repugnância,  o  nosso  nojo 
por  qualquer  dos  três  vampiros. 

0  Visconde  de  Castilho  tem  sido  o  chefe  d'esta  raça. 
e  por  isso  o  máximo  culpado.  Repetimos  pela  ultima 
vez:  fomos  indulgentes  e  cremos  que  a  posteridade 
será  muito  mais  severa. 

0  que  nos  causa  admiração,  é  que  um  litterato, 
julgado  incapaz  das  faculdades  mais  indispensáveis, 
para  ser  poeta  e  pensador,  na  época  da  sua  maior  glo- 
ria, quando  tudo  cantava  hotstmna  ás  Cartas  de  Echo  t 
Narciso  (1821),  á  Primavera  (1822),  ao  Amor  e  melan- 
colia (1828),  etc,  causa-nos  admiração,  como  a  aett- 
tença  imparcial  da  critica  estrangeira  não  foi  ouvida,  e 
o  seixo  continuou  a  passar  por  diamante. 

W.  M.  Kinsey,  um  dos  escriptores  estrangeiros,  que 
mais   e   melhor   escreveu  sobre   Portugal     I  .  diz   na 

(1)  Principio  que  o  nosso  povo  cita,  tirado  da  bôoca  dos 
padres  para  desculparem  a  sua  vida  desregrada. 

(2;  Porttujal  illuatraied;  tn  <t  Btriet  o/tettere.  London,  1829. 

Trenttel  and  YViiitz,  2.»  ed.  in-8.°,  max.  xxxvi —  5G4.  0  vo- 
lume é  adornado  de  cerca  de  45  gravuras.  HgOAttW,  Btc.j  e  al- 
guns trechos  musicaes  [Modinhas). 


25 


sua  extensa  Review  of  the  litterary  history  of  Portugal, 
(pag.  525-564)  o  seguinte: 

«Entre  os  poetas  hoje  vivos  em  Portugal  notaremos 
Castilho,  que,  apesar  de  cego  desde  a  meninice,  (1)  se 
tem  todavia  incessantemente  applicado  ás  bellas-lettras 
e  ao  cultivo  das  Musas. 

«As  suas  Heroides,  no  estylo  de  Ovidio,  é  uma  das 
suas  obras  mais  notáveis.  Dá  provas  de  notável  talento 
em  alguns  outros  trechos  poéticos,  que  todavia  não  são 
em  geral  considerados  como  bons;  de  facto,  é  muito  pobre 
de  originalidade,  e  o  seu  modo  de  colorir  (isto  é :  o  senti- 
mento) não  é  conforme  á  verdade  da  natureza;  as  suas 
phrases,  postoque  habilmente  torneadas,  são  talvez  monó- 
tonas, e  é  apenas  á  harmonia  dos  seus  versos  que  deve  a 
sua  fama  como  poeta .»  (2) 

Isto  traduzido  em  outras  palavras  dá  o  seguinte  re- 
trato de  Castilho: 


(1)  Kinsey  diz :  cradle,  que  pôde  ser  também  berço,  mas 
Castilho  cegou  só  com  6  ânuos. 

(2)  Among  the  living  poets  of  Portugal  may  be  remarked 
Castilho,  who,  though  blind  from  his  cradle,  has  nevertheless 
incessantly  applied  himself  to  the  belles-lettres  and  the  culti- 
va tion  of  the  Muses.  His  Heroides,  in  the  style  of  Ovid,  is 
one  among  the  most  remarkable  of  his  works.  He  displays  con- 
siderable  talent  in  some  other  pieces  of  poetry,  which,  howe- 
ver,  are  not  generally  regarded  as  good ;  in  fact  he  is  very  de- 
ficient  in  originality,  and  his  mode  of  colouring  is  not  after 
the  truth  of  nature;  his  lines,  though  they  are  happily  turned, 
perhaps,  are  monotonous,  and  it  is  only  to  the  harmony  of  bis 
verses  that  he  is  indebted  for  his  poetical  fame. 

T.  Braga  já  se  havia  (Estudos  da  edade  media,  pag.  319) 
referido  a  Kinsey,  mas  só  o  conhecia  por  Castilho  se  defender 
do  critico  inglez;  o  excellente  livro  é  infelizmente  assaz  raro 
já,  e  não  o  havendo  encontrado  em  Paris,  semão  em  casa  do 
nosso  sábio  amigo  F.  Denis,  tivemos  de  o  mandar  vir  de  In- 
glaterra. 


2R 


1."  poeta,  mas  sem  imaginação. 

2.°  poeta,  mas  sem  o  sentimento  da  natureza. 

3.°  poeta,  mas  com  estylo  artificial. 

Conclusão  total: 

Poeta  fingido. 

Dissemos  acima,  que  nos  admirávamos,  como  um 
juizo  imparcial,  por  ser  de  um  critico  estrangeiro  que 
esteve  largo  tempo  em  Portugal,  e  não  era  nem  por 
Gregos  nem  por  Troyanos — juizo,  além  d'isso  apoiado 
na  maioria  da  opinião  —  pôde  passar  em  branco. 

Pensando  bem,  não  ha  motivo  para  espantos;  o  caso 
explica-se;  os  escriptores  que  haveriam  podido  influen- 
ciar sobre  a  opinião  e  dirigil-a,  Garrett  e  Herculano, 
eram  individualidades  quasi  tão  artificiaes  como  Casti- 
lho; os  fructos  ahi  estão,  que  os  julguem  a  sangue  frio. 
Castilho  estava  á  altura  da  época,  tanto  valia  o  publico 
como  o  poeta,  —  entenderam-se.  Depois  o  nível  intel- 
lectual  foi  sempre  decahindo,  e  Castilho  acompanhou-o. 

Hoje  o  espirito  publico  desceu  de  todo,  prostituiu-se 
completamente,  e  Castilho  desceu  até  ao  nível  geral  e 
deu-nos  o  Medico  d  força,  transformado  em  ((Manei  da 
aldeia  D,  e  o  Faust  mascarado  cm  clássico  (1)  á  Bernar- 
des, e  o  Mephisto  disfarçado  em  taberneiro    -  . 

0  poeta  e  o  emprezario  (publico)  continuarão  pois  a 


(1)  Anthero  de  Quental,  Primeiro  de  Janeiro  de  4  de  Ju- 
lho de  1872.  Este  critico  é  tanto  meDOS  suspeito,  que  m  diz 
discípulo  de  Castilho,  etnqaanto  á  linguagem  portugueza.  V.  o 
nosso  folheto:  O  Faust  ilr  Ccutilho  julgado  pelo  Eioyui-viuttft 
prestes  a  saliir  á  luz. 

(2)  Idem,  ibid. 


27 


entender-se.  Nós  diremos:  que  a  divinisação  de  Casti- 
lho, é  para  Portugal  um  facto  tão  profundamente  ca- 
racterístico, como  a  idealisação  do  demi-monde  por  Du- 
mas filho,  o  é  para  a  França  de  Napoleão  m  (1). 


(1)  En  effet,  le  2  décembre,  arriva  et  la  pièce  (Dame  aux 
Camélias,  pu  êtrejouée.  Ce  genrenouveau,  qui  consiste  à  donner 
à  la  prostitution  le  droit  de  bourgeoisie  sur  la  scène,  fut  inau- 
gure en  France  par  le  enup  d'État.>  Mais  abaixo  :  Puis  il  dé- 
die  sa  pièce  à  M.  de  Morny.  Sans  le  guet-apens  qui  niena  la 
France,  du  coup  d'État  à  Sedan,  la  scène  française  n'aurait 
pas  eu  la  Dame  aux  Camélias,  ni  Vauteur  ses  detfes  payées.  Ch. 
Potvin.  De  la  corruption  littêraire  en  France:  Etude  de  litté- 
rature  coniparée  sur  les  lois  morales  de  l'art.  Bruxelles.  C.  Mu- 
quardt,  1873,  in-8.°,  -2.e  ed.,  pag.  384. 


3 


CAPITULO  III 


«O  consummado  germanista, »  como  litterato  e 
como  homem 


Quando  em  meado  de  Setembro  de  1872,  appare- 
ceu  a  nossa  analyse  á  versão  de  Castilho,  e  o  publico  fi- 
cou avisado  (1)  da  profanação,  provada  de  uma  maneira 
completa  n'um  volume  de  mais  de  600  pag.,  que  exgo- 
tava  os  argumentos  —  soubemos,  e  depois  disse-se  vaga- 
mente, que  ia  apparecer  uma  resposta,  em  que  nós  não 
acreditamos,  sobretudo  por  um  motivo,  que  é:  a  pre- 
guiça da  nossa  gente,  que  sem  interesse  superior  por 
nada,  nem  por  amigos  nem  por  inimigos  —  é  incapaz 
para  a  simples  leitura,  quanto  mais  para  o  exame  de 
uma  obra,  que  baseada  em  argumentos  sérios  e  em  es- 

(1)  Já  anteriormente  havia  sahido  a  breve,  mas  fulmi- 
nante critica  de  A.  Coelho  (Bibliographia  critica,  n.°  1,  pag. 
3-10). 


30 


tudos,  só  podia  ser  refutada  com  as  mesmas  armas.  De- 
pois d'esse  boato  appareceu  nos  jornaes  da  capital  que 
o  Visconde  de  Castilho,  desgostoso  pelos  repetidos  ata- 
ques á  sua  infallibilidade,  sobretudo  desde  1870  para 
cá — ia  Largar  o  sceptro  e  fazer  o  papel  de  Cineinato, 
o  que  era  tanto  mais  para  lastimar,  que  o  eminente 
poeta  nos  ia  «revelar  o  immortal  Shakespeare»  (1), 
(sic).  Em  seguida  fallou-se,  em  signal  de  desforço,  da 
resolução  de  um  consummado germanista,  que  estava  pre- 
parando ao  Visconde  de  Castilho  uma  desforra  brilhan- 
te, uma  apotheose  —  que  deu  em  exéquias. 

0  consummado  germanista  era  para  nós  até  alli  um 
mytho;  falia va-se  d'elle  é  verdade,  mas  como  se  falia 
também  da  grande  cobra  marítima  com  azas,  que  nin- 
guém ainda  viu  e  que  devora  navios  inteiros,  segundo 
o  dizer  de  navegantes;  assim  se  dizia  que  o  consummado 
germanista  nos  ia  devorar  a  todos. 

Este  novo  Saturno,  que  se  preparava  a  engulir  <>- 
filhos  alheios :  era  o  snr.  José  Gomes  Monteiro. 

O  snr.  Gomes  Monteiro  havia-se  distinguido  d.  a 
a  sua  chegada  a  Portugal,  [depois  de  1835  {'2  ]  apenas 
como  chefe  commercial  de  uma  loja  de  livros  (Viuva 
More)  e  bom  amigo  dos  seus  amigos,  editando  as  obras 
dos  membros  do  Elogio-mutuo  por  conta  da  casa.  Como 
litterato  publicara  uni  livro  furos  da  Lyra  teut 
de  que  abaixo  Paliaremos,  que  lhe  grangeou  o  titulo 
de   consummado  germanista,  e  um  folheto   intitulado: 

1 1   Provavelmente  com  a  traducofio  da  Sonho  de  uma  noite 
rh  oerão,  « I» *  que  dera  uma  bonita  amostra  no  Fausto   pa_r.  411 

C  412.  Notas).  Cá  a  ficamos  esperando. 

-    Se  é  que  esta  data  é  certa,  Begundo  I.  da  Silva  (Die- 
eiohario  bibliographico,  vol.  [V,  pag.  .ifí3). 


31 


Carta  sobre  a  ilha  dos  Amores,  que  passava  por  mui 
erudito;  havia-se  fallado  em  1865  (1)  de  uns  trabalhos 
seus,  notabilissimos,  sobre  o  Amadís  de  Gaula,  estudo 
que  se  dizia  profundo,  completo  e  revelador  de  extraor- 
dinárias descobertas;  de  uma  edição  da  Menina  e  Moça 
de  Bernardim  Ribeiro,  com  uma  biographia  do  poeta, 
repleta  de  novidades;  de  um  estudo  profundo  sobre  Sá 
de  Miranda,  e  mais  outros  trabalhos  que  tinham  por 
alvo,  nem  mais  nem  menos,  do  que  uma  Historia  da  lit- 
teratura  nacional;  alguns  d'estes  trabalhos  estavam  para 
entrar  no  prelo,  e  um  d'elles  chegou  até  a  ser  annun- 
ciado, — .  .  .  mas  nada  sahiu.  Mais  uma  infinita  repe- 
tição do  Mons  parturiens;  gemeu,  gemeu,  gemeu.  .  . 
até  1873,  isto  é,  durante  oito  annos,  e  já  havia  gemido 
antes  dos  annuncios,  durante  38  annos  (2) ! 

0  snr.  Gr.  M.  desde  então  para  cá  foi  sempre  zelo- 
sos dos  interesses  da  casa  que  dirige  e  dos  de  seus  ami- 
gos, e  quando  a  nossa  critica  sahiu,  era  natural  a  fúria 
que  resulta,  em  primeiro  logar,  de  uma  especulação  lo- 
grada, fúria  tanto  maior,  quanto  havia  sido  notável  a 
despeza  com  a  nítida  impressão  do  Fausto  de  Castilho. 
A  raiva  do  snr.  G.  M.  subiu  porém  até  ao  delírio,  quan- 
do lhe  chegou  ao  ouvidos  que  o  Visconde,  ferido  pelos 
argumentos  e  repetidos  ataques  dos  adversários,  ia  ab- 
dicar ao  throno  e  ao  sceptro — perdendo-se  ainda  outra 
especulação  mercantil :  a  versão  do  Sonho  de  uma  noite 
de  verão,  em  que  o  Visconde  nos  ia  «revelar  o  génio  do 
immortal  Shakespeare  (3).» 

(1)  C.  C.  Branco.  Esboços  de  apreciações  litterarias.  Porto, 
1865,  pag.  218.  (Artigo  J.  Gomes  Monteiro,  pag.  211-220.) 

(2)  Desde  a  chegada  do  snr.  G.  M.,  depois  de  1835. 

(3)  Sic,  segundo  os  jornaes  da  capital. 


32 


Dois  golpes  mortaes,  além  de  um  pequenino  ao  seu 
amor  próprio,  porque  havendo  o  seu  collega  Camillo 
apregoado  o  snr.  G.  M.,  como  um  corrector  «(desvela- 
do» e  «attento»  (1)  da  versão  de  Castilho,  ficara  o  seu 
amigo  com  uma  parte  da  responsabilidade  das  innume- 
ras  inepcias  da  traducção,  responsabilidade  tanto  maior 
que  recáe,  não  só  sobre  a  pessoa  do  snr.  G.  M.,  mas 
sobre  o  titulo  de  consiimmado  germarásta  ! 

Como  os  amigos  são  ás  veze"s  imprudentes  e  indis- 
cretos ! 

Ha  ainda  um  motivo  secreto  da  rabina  do  snr.  <  i. 
M.  —  e  foi:  a  necessidade  de  um  estudo  bom  ou  mau,  a 
que  o  obrigava  o  nosso  trabalho.  Mais  adiante  o  expli- 
caremos, por  se  ter  de  procurar  nas  condições  da  mui 
resposta,  condições  que  só  adiante  se  anal ysarão. 

Ahi  temos  pois  os  verdadeiros  motivos  (2)  da  respos- 
ta do  snr.  G.  M.,  porque  a  sua  amisade  para  com  o  Vis- 
conde de  Castilho  parece-se  com  a  amisade  de  certos 
criminosos,  ligados  por  uma  acção  má —  que  era  n  este 
caso  a  pseudo- traducção  do  Faust  de  Goethe. 

A  natureza  das  amisades  do  snr.  G.  M.,  conhecer- 
se-ha  no  fim  d'este  capitulo;  não  o  censuramos  de  a  não 
ter  a  ninguém,  a  época  vae  de  progresso  entre  nós  j  0 
snr.  G.  M.,é  chefe  de  uma  loja  de  livros,  preois*  de  an- 
dar com  todos,  é  ecclectico,  é  prudeute  enifiin. 

0  snr.  G.  M.  defende  os  seus  elientes.  o-  tsten 
da  sua  boutiqué  apenas  desponta  a  aurora,  tal  como  o  Fi- 
oraro  de  Rossini : 

o 

(1)  Cnmmcrcio  do  Porto,  de  4  de  junho  de  1872. 

(2)  Em  seguida  indicaremos  os  caracteres  littararioa  a  mo- 
mes  delia. 


33 

« Largo  ai  factotum 
delia  città. 
Presto  a  bottega, 
chè  1'alba  é  già. » 

e  gaba-se  do  successo: 

« Tutti  mi  chiédono 
tutti  mi  vógliono 
donne,  ragazzi, 
vecehj,  fanciulle 
quà  la  parrucea. .  . 
presto  la  barba . .  . 
qnà  la  sauguigna. . . 
Figaro.  .  .  Figaro.  . . 
son  qua,  son  qua.  » 

Deixemos  o  snr.  G.  M.  como  especulador  da  litte- 
ratura  nacional,  e  vejamos  a  vibora  ferida  pelo  amor  pix>- 
prio :  o  auctor  dos  Eccos  da  Lyra  teutonica  e  da  Carta 
sobre  a  ilha  dos  Amores  (1). 

Não  nos  temos  a  occupar,  senão  da  primeira  pro- 
ducção,  como  a  que  se  refere  a  assumptos  da  litteratu- 
ra  aliem  ã. 

Esta  obrasinha  é  uma  collecção  de  poesias  allemãs 
vertidas  em  vulgar. 

Não  havíamos  até  ha  poucas  semanas  lido  cousa  al- 
guma d'estes  Eccos,  porque  nos  pareceu,  desde  que 
tivemos  o  gosto  de  fallar  ao  snr.  Gomes  Monteiro,  que 
era  incapaz  de  sentir  poesia,  e  muito  menos  poesia  alle- 
mã;  que  entendesse  Freiligrath,  Chamisso,  Hauf,  era  tal- 
vez possivel;  Biickert,  Uhland,  Lessing,  muito  menos 
provável,  e  então  Platen,  Voss,  Schiller,  Goethe  —  im- 
possível. 

(1)  O  episodio  dos  Lusíadas. 


34 

Quizemos  porém  fazer  justiça  ao  traductor;  pega- 
mos no  livro,  e  dêmos  logo  nas  primeiras  Linhas  do  pro- 
logo, com  a  seguinte  incomparável  novidade: 

«A  litteratura  alleman.  actualmente  uma  das  maifi 
brilhantes  da  Europa,  foi  comtudo  a  derradeira  a  for- 
mar-se.  No  decurso  do  xvi  século  já  todas  as  línguas 
neo-latinas  e  ainda  a  ingleza,  que  forma  o  elo  de  tran- 
sição entre  estes  idiomas  e  os  d'origem  teutonica,  con- 
tavam obras  primas  em  poesia  ou  eloquência;  quando 
a  lingua  germânica  apenas  podia  apresentar,  como  mo- 
numentos de  sua  cultura,  a  traducção  da  Bíblia  por 
Luthero  e  as  farças  e  autos  d'um  sapateiro  de  Nuren- 
berg  (1)». 

O  snr.  G.  M.  affirmava  pois  em  1848,  após  os  tra- 
balhos de  Koberstein  (2)  (1827),  Gervinus  (8)  (1835), 
Vilmar  (4)  (1845),  Guden  (5)  (1831),  Pischon  (6) 
(1838-1851),  Wackernagel  (7)  (1840, 1841, 1843,  etc), 
H.  Kurz  (8)  (1840-1842  e  1845),  G.  Schwab  (9)  (1842  . 

(1)  Lcia-se  Nurnberg,  cidade  da  Baviera  (16:000  hab.),  que 
foi  com  Augsburge  Rt-geusburgo  centio  do  movimento  da  Re- 
nascença na  Allemanha. 

(2)  Grundriss  der  Geschichte  der  deutschen  Xationallitera- 
tur.  Leipzig,  1827  (4.»  ed.  1847-1866). 

(3)  Geschichte  der  poetischen  Natioiíalliteratur  der  Deut- 
schen, (1853;  já  lia  4."  ed.).  Handluch,  já  4."  ed.  eui  1840. 

(4)  Vcrlesiniijcn  iihe.r  die  Geschichte  der  dcutxclit  n  Xationúl- 
literatur,  1845. 

(5)  Ckronologieche  Tabellen  zur  Geschichte  der  deutt 
Sprache  und  Nationalliteratur,  1831.  3  Theile. 

(6)  Denkmãler  der  deutschen  Sprache  von  deu  í>  Qhestt  »  /.<  ■'- 
ten  Li*  jetzt.  6  Theile.  1838-1851. 

(7)  Deutsches  Lesebuch.  :*  Th.  1840-1861. 

(8)  Handbuch  der  poetischen   Nationalliteratur  der  Deut- 
schen, von  Haller  bis  auf  die  ueueste  Zeit  .'>  Th.  184 
(litter.it.  moderna  |. 

(9)  Die  deutsche  Prosa.  2  Tl».  1842;  5  Bucher  deutt 
der  una  Gedichte  (litterat.  moderna). 


35 

Gódecke  (1)  (1813-1843, 1844,)  etc,  —  affirmava  aquel- 
la  monumental  proposição,  que  vem  negar  a  existência  de 
Quatro  períodos  (2)  capitães  da  litteratura  allemã,  e  o  co- 
meço do  quinto  período,  até  á  apparição  de  Hans  Sachs!!! 

De  maneira  que  toda  a  poesia  christã  de  800-1100 
todo  o  terceiro  período  da  poesia  cavalheiresca  e  popular 
(1100-1300),  toda  a  poesia  aulica  (1180-1300)  de  Hein- 
rich  von  Veldeck,  Hartmann  von  der  Aue,  Wolfram  von 
Eschenbach,  Gottfried  von  Strassburg,  e  tantos  outros 
— não  existiam  ainda  em  1848  para  o  snr.  G.  M.;  toda 
a  epopêa  popular  uo  tempo  das  cruzadas,  os  Niebe- 
lungenlied,  Gudrunlied,  toda  a  época  dos  Minnesànger 
(Troubadours)  (1-150-1300),  todo  o  quarto  período  de 
dous  séculos  (1 300-1500),  e  uma  parte  do  quinto  (1500- 
1624)  até  Hans  Sachs  (1496-1576)  —  tuda  isto  era  um 

mytho  para  o  snr.  Gomes  Monteiro em 

1848!!! 

E  se  nos  lembrarmos,  que  desde  então,  ficou  por  es- 
ta inexcedivel  façanha,  só  própria  de  um  D.  Quixote  lit- 
terario,  crismado  de  consummado  germanista  (pois  desde 
1848  até  hoje,  1873,  nada  mais  escreveu  sobre  a  Alle- 
mauha),  eutão  ser-nos-ha  licito  lembrar  que  só  a  im- 
pudência de  uma  litteratura,  que  é  a  mais  baixa  que 
conta  a  historia,  que  só  a  falta  do  ultimo  resto  de  sen- 
timento e  de  dignidade,  que  deve  ter  um  corpo  como  a 

(1)  Elf  Biicher  deutscher  Dichtnng.  Von  Seb.  Brandt  (1500) 
bis  auf  dio  Gegenwart.  2  Th.  1849. 

(2)  Vide  as  divisões  de  Koberetein  (Grundriss  der  deutschen 
National- Literatur.  Leipzig,  18G6,  4."  ed.  completamente  re- 
fundida), de  Werner  Haliu  (Gescjiichte  der  jjoetischen  Litera- 
tur der  Deutschen,  Berlin,  1873,  6.a  ed.  png.  v-vm)  de  Helbig 
(Grundriss  der  Geschichte  der  poetischen  Literatur  der  Deut- 
schen,  Leipzig,  1862,  6.a  ed.  pag.  1-13)  etc.  cte 


3tí 


Aeetd/enúã  Real  das  Sciem-ias—só  esta  máxima  da>  mi- 
sérias pode  explicar,  como  a  conferencia  e  o  voto  official 
pôde  outorgar  o  titulo  de  consummado  oermamita  ao 
snr.  Gr.  M.,  e  nomeal-o  em  premio  da  sua  ignorância, 
/Sócio  correspondente  da  Academia  Real  da*  ><■;,,,, 

Se  esta  corporação  quasi  nada  tem  feito  lia  trinta 
annos  para  cá,  e  interrompe  o  seu  sacrosanto  fat  mente 
para  publicar,  perdendo  aos  olhos  do  publico  a  ultima 
apparencia  de  vergonha,  —  as  profanações  de  Castilho 
ás  obras  de  Molière  (1)  e  dar  á  luz  outras  farçadas  no 
mesmo  estylo  —  se  essa  Academia  não  respeita  o  seu 
passado,  que  ainda  tem  nomes  que  a  ninguém  é  licito 
conspurcar  (2),  então  abdique  perante  a  Europa,  dis- 
solva-se. 

0  snr.  G.  M.  era  muito,  muitíssimo  ignorante  em 
1848,  confessar-nos-hão ;  quererão  dizer  que  de  então 
para  cá  aprendeu  o  a-b-c  da  litteratura  allemã:  bem. 
vel-o-hemos  no  decurso  deste  livro.  Que  o  nosso  ad- 
versário não  escreveria  hoje,  1873,  aquellas  palavras,  é 
possível,  mas  que  a  sua  ignorância,  remendada  mal  e  á 
pressa,  em  9  me/.es  de  trabalho  de  menino  de  eschola.  o 
fez  cahir  de  novo  do  seu  pedestal  de  oonsummack 
manista,  è  de  uma  evidencia  elementar  ein  foce  da  Mia 
resposta  e  d'esta  nossa  refutação. 

Quererão  talvez  saber,  á  vista  do  exposto,  a  noeaa 
opinião  a  respeito  dos  Eccos?  A  traduoçao  é  em  geral 

(1)  Tar/ufo   (primeira  tentativa,  Lisboa,  1870,   por  ordem 
da  Acad.  H.  das  tíciencias);  Ae  sálnchtmaê  2."  t<;,t.  (que  Dão  te- 
mos á  vista);    O  medico   á  /"ira  (3."   tent.,    Lisboa.    (& 
idem);  O  avarento,  Lisboa,  187]  (idem). 

(2)  Lembramo-aoB  «Ir  Brotero,  José  Anastácio  da  Canha, 
Jo.1o  Pedro  Ribeiro,  (.'.  áo  Amaral  e  outros. 


37 


fiel,  emquanto  ás  palavras,  o  que  não  admira,  porque  es- 
sas acham-se  em  qualquer  Diccionario  —  agora,  se  as 
ideias,  o  espirito  dos  poetas,  o  modo  de  sentir  de  cada 
um,  a  sua  philosophia  emfim,  foi  comprehendida,  d'isso 
julgue  o  leitor. 

Quem  nada  sabia  da  litteratura  allemã  em  1848, 
como  poderia  entender  a  Glocke  (1),  os  poemas:  Ritter 
Togenburg,  de  Schiller,  e  outros  de  differentes  aucto- 
res;  demais,  fundando-se  muitos  d'entre  elles  em  len- 
das e  contos  que  tem  a  sua  origem  litteraria  (2)  nos  pe- 
ríodos, cuja  existência  o  snr.  G.  M.  negou! 

Deixemos  porém  este  assumpto  em  que  o  snr.  G. 
M.  ficou  enterrado ;  o  prefacio  da  Lyra  teutonica  será  o 
seu  epitapbio  para  1848,  como  o  seu  volume  dos  Críti- 
cos o  é  para  1873;  talvez  o  snr.  G.  M.  ponha  a  coroa  á 
obra  e  publique  um  terceiro  que  os  exceda. 

Agora  os  caracteres  geraes  da  sua  resposta: 

Primeiro,  vejamos  o  estado  de  espirito  do  snr.  G.  M. 
pelo  lado  litterario,  em  seguida  veremos  os  symptomas 
moraes  d'esse  mesmo  estado. 

0  consummado  germanista  já  ha  24  annos,  isto  é 
desde  1849  (3)  que  não  pegava  na  penna;  estava  redu- 
zido ao  estado  de  invalido  na  litteratura ;  o  tempo  havia 
passado  com  rapidez  vertiginosa,  destruindo  reputações, 
erigindo  outras,  amontoando  livros,  sem  cessar;  o  con- 

(1)  A  admirável  ode  de  Schiller:  O  Sino,  um  poema  todo 
philosophico,  tão  complexo  nas  suas  allegorias  genuinamente 
allemãs. 

(2)  Ritter  Togenburg  é  uma  lenda  da  edade  media,  que  se 
funda  na  sorte  de  dous  Condes  de  Togenburg,  irmãos,  dos  quaes 
um  foi  assassinado  pelo  outro. 

(3)  Data  de  publicação  dos  Eccos  da  Lyra  (1848),  e  da 
Carta  sobre  a  Ilha  dos  Amores. 


38 


gummado  germanista,  sentiu,  quando  acordou  em  Setem- 
bro de  1873,  por  cansa  da  nossa  cri!  íca,  ínstinctiyamente 
todo  o  peso  do  movimento  de  24  annoS,  <•  vergou-ee,  do- 

brou-se,  retorceu-se  intelectualmente  para  fazei  entrar 
o  enferrujado  machinismo  do  Ben  intellecto  em  oova 
marcha.  Acordou  como  uma  toupeira  de  nm  profundo 
lethargo,  e  cegou-o  a  luz  do  dia;  viu  a  arehitectura  da 
sua  cova  ameaçada,  quiz  resistir;  metteu  hombros  á 
empreza,  mas  o  mesmo  esforço  que  o  devia  fazer  levan- 
tar, se  tivesse  forças,  o  fez  cahir  mais  miseravelmente, 
porque  as  não  tinha. 

Foi  estudar  a  lição  a  casa,  revolveu  os  calhamaços 
poeirosos,  deu-lhes  tratos  pouco  amáveis,  não  sem  graves 
imprecações  contra  os  causadores  detaesmass  idaq,  i 
nove  longos  mezes  (1)  de  madura  meditação  sahiu  trium- 
phantemente  á  luz  do  dia,  bradando  que  tinha  achado 
o  annel  de  Salomão.  Como  tomar  conta  do  movimento 
scientifico  de  um  intervallo  de  um  quarto  de  século, 
quando  se  está  decrépito,  physica  e  intellectualmente? 
Se  nos  custa  a  nós  Beguil-o,  apesar  de  uma  concentra- 
ção de  todas  as  forças,  e  todos  os  que  tem  boa  fé  dirão  o 
mesmo.  0  snr.  G.  M.,  que  havia  aprendido  em  Ham- 
burgo o  allemão  ad  umm  m-iioiiorum  trouxera  Ár  lá 
alguns  livros  velhos,  que  dormiam  a  somno  solto  ha  24 
annos  nas  estantes  da  sua  rica  (2)  livraria :  eram  algumas 
edições  de  clássicos  allemaesdo  principio  d'este  século,  da 
casa  Cotta  de  Stuttgart.  hoje  completamente  prejudica- 
das, desde  que  o  privilegio  (3)  dVsta  firma  acabon;  al- 

(1)  As  primeiras  criticas  a  Castilho  Bahiram  em  meado  do 
Julho  de  1872,  ea  resposta  do  snr.  G.  M.  ena  tios  de  abril  do  1873. 
-    Segando  dizem. 

(3)  Falíamos  do  privilegio  da   edição  dos  clássicos  alle- 
mães,  que  terminou  ha  poucos  auuos. 


39 


guns  livros  de  critica  litteraria  no  ponto  de  vista  de 
1810  e  1840,  por  homens  que  mesmo  então  eram  se- 
cundários (Laube  e  outros)  (1),  eto.  Mas  até  o  que  elles 
diziam  estava  esquecido ;  o  consummado  germanista  não 
fizera  caso  dos  livros,  nem  elles  do  seu  dono,  e  por  isso 
o  comprometteram,  abrindo-lhe  os  thesouros  da  scien- 
cia...  de  ha  60  annos  (M.me  de  Stael,  1810),  e  de  ha  32 
(Laube,  1839-1840)  (2)  — que  o  snr.  G.  M.  tomou  inge- 
nuamente á  lettra.  Não  admira  pois  que  o  consummado 
germanista,  acostumado  ha  24  annos  a  manusear  só  o 
Diário,  a  Rasão,  o  Copiador  e  outros  livros  do  commer- 
cio,  applicasse  ás  ideias  litterarias  o  mesmo  raciocínio  do 
que  ás  cifras. 

Não  extranhamos  a  novidade  do  processo ;  pelo  con- 
trario, explicamol-o  perfeitamente,  achando-o  mesmo  o 
único  lógico  e  natural  no  seu  estado  de  espirito. 

Mas  eis  que  o  próprio  snr.  G.  M.  nos  vem,  com 
uma  ingenuidade  digna  de  melhor  sorte,  dizer  a  veridica 
historia  da  sua  sciencia  de  consummado  germanista: 

«Lemos  o  Segundo  Fausto  poucos  annos  depois  da 
sua  publicação  (3).  Fatigou-nos  a  sua  leitura.  O  defeito 
estava  decerto  da  nossa  parte  (4).» 

Agora  o  seu  saber  na  lingua  allemã : 

«O  conhecimento  que  então  tínhamos  da  litteratura 

.  e  língua  alleman  não  seria,  como  ainda  agora  não  será 

talvez,  sufrl ciente  para  penetrar  a  fundo  n'um  texto  que 

se  nos  tornava  cada  vez  mais  difncil,  á  medida  que  os 


(1)  Vide  o  capitulo  iv:   As  fontes  de  consulta. 

(2)  Vide  o  capitulo  IV,  já  citado. 

(3)  Em  1833  como  posthuma.  (Nota  do  auctor.) 

(4)  Os  críticos,  pag.  84. 


40 


personagens  do  drama  se  iam  afastando  do  mundo  real 
c  ae  remontavam  a  perder  de  vista  para  regiões  phan- 
tasticas  (1).» 

Emfim  o  melhor  de  tudo : 

«Annos  depois  (2)  lemos  e  confrontamos  com  o  ori- 
ginal diversas  traducções,  e  temos  ultimamente  manu- 
seado alguns  commentadores.  As  primeiras  fizeram-nos 
conhecer  melhor  o  texto,  mas  nem  as  traducções  nem 
os  commentarios  chegaram  a  produzir  em  i; 
rito  a  convicção  por  que  almejávamos  (3).» 

0  ultimamente  é  impagável! 

Ninguém  calumnía,  falia  o  próprio  interessado  e  con- 
firma de  uma  maneira  evidente  o  que  acama  dissemos 
acerca  do  processo  de  incubação  da  sua  resposta. 

Que  ingenuidade  aos  66  annos! 

A  mesma  sciencia  rocóco,  a  que  o  snr.  G.  M.  recor- 
reu, ainda  podia  ter  o  préstimo  de  dar  ao  sen  livro  o 
mérito  da  unidade;  mas  eis  que  a  inspiração  d  leva  por 
desgraça  ultimamente  a  Dúntzer,  e  eil-o.  ora  aeeeitando 
o  que  este  commentador  diz  (4),  ora  discordando  das 
suas  opiniões,  desde  o  momento  em  que  o  escriptor  al- 
lemão  se  approxima  da  nossa  exposição  e  Be  atfasta  das 
palavras  do  Visconde,  ou  das  interpretações  que  a  am*. 
G.  M.  tira  ás  vezes  d'estas  àfortiori,  pelos  cabellos. 

E  aqui  tocamos  qo  svstema,  ou  melhor  falta  de  >y— 
tema.  que  Berviu  ao  snr.  G-.  ML  de  norma  na  sua  reer 
posta. 

(1)  Os  criticas,  png.  84. 

(2)  Calculando  5  annos,  por  muito  favor,  logo  em  1838. 

(3)  Op.  cit.,  ibid. 

(4)  Op.  cit.,  passini.  O  único,  cuja  sciencia  á  aproveitável, 
entre  os  qae  b  snr.  G.  M.  cita. 


41 


Vejamos: 

A  táctica  não  é  nova;  o  snr.  G.  M.  não  defende  o 
Visconde  de  Castilho  à  outrance;  foi  mais  impudente 
ainda;  pretende  tripudiar  em  publico  com  a  verdade, 
fazendo-lb.es  algumas  concessões,  como  se  ella  se  pres- 
tasse a  isso ! 

Nota  máculas  (1),  defeitos  (2),  na  pseudo-traducção 
do  Visconde,  diz  que  elle  «ignora  de  certo  milhares  de 
cousas»  (3),  dá-nos  razão  em  algumas  notas  —  se  tudo 
n'este  mundo  é  imperfeito !  Mas  para  que  nas  passa- 
gens capitães  (4)  possa  d'algum  modo  defender  as  inep- 
cias  de  Castilho,  estabelece  um  systema  de  approxima- 
ções  successivas  entre  o  sentido  falso  das  palavras  do 
Visconde  e  o  verdadeiro  das  de  Dúntzer,  o  que  dá  em 
resultado  um  ponto  de  contacto  entre  a  ideia  refundida 


(1)  Os  críticos,  pag.  7. 

(2)  Os  críticos,  pag.  190,  final. 

(3)  Op.  cit.,  pag.  49,   para  dizer  que  ignoramos  cem  mil ! 

(4)  Como  na  designação  de  aborto,  applicada  á  2.a  parte 
da  Tragedia,  no  estorva,  applicaçlo  a  Mephisto,  na  Lilitlia  da 
Costa  e  no  Adão  de  Barros,  no  És  meu  final,  no  frenesi  de  go- 
ear  sensualmente,  applicado  a  Goethe,  na  impossível  (scena  da 
tempestade  na  caverna,  na  scena  da  eça  e  dos  tocheiros  (scena 
da  egreja),  no  És  nada  (visão  do  espirito),  nas  iinmundicies  in- 
ventadas por  Castilho  (Fausto,  pag.  164) : 

a.)  «  O  pastar  das  pulgas  nas  damas  ». 

b.)  «0  recusar-lhe  a  inamininha»  (pag.  165). 

c.)  «Os  pássaros  maganos  accesos  co'o  verão.»  (pag.  267). 

d.)  0   «pascendo  rosas  no  seio»  (de  Margarida,  pag.  279). 

e.)  0  «fechada  (a  porta  do  quarto  de  Margarida)  em  fal- 
so—  e  então. . .   (accrescentado  ! ! »  pag.  294). 

f.)  «Eu  só  de  pôr  na  ideia  o  regabofe  que  em  Valburga 
vou  ter  co'o  femiaço»  (pag.  312). 

g.)  «Mocedo  á  tripa  forra»  (pag.  347,)  etc,  etc,  etc,  etc. 

Convidamos  o  snr.  G.  M.  a  mostrar-nos  uma  palavra  de 
tudo  isto  em  Goethe !  Vide  ainda  mais  uns  78  termos  de  taber- 
na, colligidos  nas  Tabeliãs  synopticas.   0  Faust,  etc. 


42 


de  Castilho,  e  aquella  que  o  allemão  indica.  Estas  nu- 
bamorphoses  Bophisticas  podiam  fazer  honra  a  um  prin- 
cipiante de  lógica,  e  não  duvido  que  o  próprio  líephisto 
lhes  acharia  graça,  se  o  discípulo  Lhe  sabisse  com  tal 

cousa  no  collegium  logicum  —  mas  querer  fazer  d'estafl 
artes  magicas  em  publico,  já  nem  malícia  é,  m;:>  estul- 
tícia, que  rima,  e  se  casa  melhor  do  que  vulgarmente 
se  imagina. 

Esta  approximação  das  opiniões  de  Diintzer  e  da- 
do Visconde  tem  todavia  um  inconveniente  com  que  o 
snr.  Gr.  M.  não  atinou;  estas  referencias  continuadas 
entre  o  espirito  de  Diintzer  e  o  do  Visconde,  induzem- 
nos  a  uma  suspeita  assaz  rondada,  e  que  é:  as  eetol- 
ticias  das  notas  pertencerem  ao  próprio  snr.  G.  M.  e 
não  ao  Visconde,  competindo-lhe  ao  menos  uma  grande 
parte  na  gloria.  0  Visconde  não  conhece  Diintzer.  oão 
sabe  o  allemão,  a  obra  não  foi  ainda  traduzida.  Casti- 
lho não  faz  uma  única  referencia  a  ella,  em  toda  a  sua 
pseudo-traducção  —  como  é  pois  que  nas  notas  de  Gas- 
tilho  se  encontram  vagos  indicios  de  origem  alleniã  e 
mais  propriamente  dos  commentarios  de  Diintzer  1  ': 
Lembremo-nos  que  um  collega  do  snr.  G.  M.  falia  bem 
claramente  do  modo  como  se  está  «vislumbrando  na  edi- 
ção o  attento  desvelo  do  meu  erudito  amigo  o  snr.  José 
Gomes  Monteiro  (2)?» 

Limitar-se-ia  o  mister  do  snr.  (J.  M.  a  simples  re- 
visor de  provas?  Não  o  sabemos  positivamente,  (porque 

(1)  P.  ex.  a  passagem  relativa  ao  nome  Urian.  Os  críti- 
cos, png.  168  e  169;  a  ideia  doe  três  prologoe,  da  divisão  das 
scenas,  etc.  etc. 

(2)  Covwiercio  do  Porto  de  4  de  jullio  de  1872;  folhetim 

do  seu  collega  Oamillo. 


43 


não  costumamos  devassar  mysterios  de  imprensa),  mas 
não  é  crivei  que  o  co?isummado  germanista  não  fosse 
oráculo  em  mais  alguma  cousa ;  argumentamos  só  sobre 
a  base  que  nos  fornece  o  que  atraz  deixamos  dito,  e 
muito  jocoso  seria,  se  se  verificasse  que  o  mestre  Pan- 
gloss  havia  sido  enterrado  pelo  discipulo  Candide,  e 
que  o  Visconde  soltara  o  canto  do  cysne  pela  melodia 
do  snr.  Gr.  M. 

Os  termos :  Parece-nos .  .  .  Quanto  a  nós . .  .  Cre- 
mos, etc.,  applicados,  quando  se  trata  de  refutar  aucto- 
ridades,  como  as  que  allegamos,  e  que  são  homens  de 
reconhecida  sciencia,  nada  significam  senão  a  opinião 
individual  do  snr.  G.  M.,  que  nada  vem  ao  caso.  Para 
se  refutar  uma  opinião,  segue-se  outro  processo;  op- 
põe-se-lhe  a  de  uma  auctoridade  superior  que  demons- 
tre estar  o  ponto  de  vista  do  auctor  que  se  refuta,  an- 
tiquado, ser  falso  ou  ser  apenas  parcialmente  verdadeiro. 

Esses  modos  de  ver  do  snr.  G.  M.,  apesar  de  ser 
um  consummado  germanista,  serão  muito  bons,  mas  nem 
tudo  o  que  luz  é  ouro. 

A  mesma  facilidade  e  elasticidade,  que  o  snr.  G.  M. 
se  arroga,  applica-a  elle  a  Castilho ;  nos  pontos  onde  não 
é  possível  estabelecer  uma  paridade  tal  ou  qual  entre  o 
pensamento  do  Visconde  e  o  pensamento  de  Goethe,  ou 
da  critica  allemã,  attenua,  affirmando  que  o  «modo  de 
ver»  de  Castilho  não  discorda  essencialmente,  (1)  que  se 
approxima,  que  diz  quasi  o  mesmo,  etc. 

Passemos  ao  exame  do  estado  psychologico  do  con- 
summado germanista. 


(1)  Os  críticos,  pag.  111,  passim. 


44 


Um  symptoma  mui  singular  cPelle,  é  um  azedume 
que  enche  as  paginas  de  fel,  não  lançado  contra  nó-,  Í880 
era  natural,  mas  espalhado  em  todas  as  palavras,  cm  tu- 
do o  que  toca.  Castilho  havia  dito  ingenuamente  qne  ttão 
acreditava  bem  nas  excellencias,  fia»  vantagens,  no  preèti- 
mo  real  e  effiécttvo  da  tragedia  (1);  o  Fuust  era  uma  con- 
cepção olara  de  mais  para  o  «lumesito  do  fogareiro»  do 
Visconde.  Depois,  na  Advertência  acerca  das  « Áureas 
núpcias»  declara,  sempre  ingenuamente,  «que  nenhu- 
ma outra  parte  do  livro  lhe  queimou  tanto  o  sangue 
como  esta»  (2);  e  assim  por  diante. 

0  mesmo  mal-estar,  o  mesmo  descontentamento,  o 
mesmo  cauchemar,  se  apossa  do  snr.  G.  M.  Acba-ee  pri- 
meiro em  duvidas  (3)  acerca  da  Segunda  parte,  depois 
qualifica  de  conceituosa  (4)  a  classificação  de  aborto  .r> 
e  de  absurda  (6),  dada  a  esta  parle  por  Castilho;  acha 
Goethe  egoísta,  phrenetioafrienfà  sensual,  como  o  sen  o»l- 
lega,  o  Visconde,  e  para  abafar  o  remorso  por  ter  fal- 
lado  de  tal  forma,  apesar  da  sua  profundo  veneração  (7) 
por  Goethe,  desculpa-se  gentilmente,  por  si  e  por  Cas- 

(1)  Eis  a  passagem  correspondente  da  Adueri.  :  ■  a  minha 
crença  nas  excellencias,  nas  vantagens,  no  préstimo  real  e  ef- 
fèctivo  da  tragedia  Fausto,  não  era  nem  é  ainda  hoje  táO 
toda,  tòo  ardentemente  devoto  como  a  de  meu  irmfio.  Differeu- 
ça  essa  fundamental  (é  tyjrica,  diremos  vós),  que  a  miado  ooi 
fazia  perder  em  altercações  escusadas  o  tempo  qne  melhoi 
grára  em    apressar  a  tarefa  OOUl&Oada.  »   Fau*t<>,  Advertência. 

XIII. 

2  âdvert.  ás  Áureas  nupcids,  Fausto,  pag.  364 

:;  i >s  oritioo»]  pag,  84  ;  as  ideias  do  snr    (1.  M.  acerca 
d'esta  parte  da  tragedia  são  analysadas  no  cap.  vnir-a.    e  b. 

I  ( )/>.  ri'.,  pag.  91. 

b)  Fausto,  Advertência,  pag.  wi. 

ii  ( >j>.  cif..  Notas,  pag.  È06. 

7 1  Os  críticos,  pag.  86". 


45 


tilho,  alludindo  ao  «barro  damasceno»  (1)  de  que  todos 
nós  somos  feitos  —  e  ao  nenhum  valor  «d'essas  peque- 
nas fragilidades»  (2)  -  .  .ia-lhe  quasi  escapando:  aven- 
tures galantes  à  D.  João  de  obra  grossa. 

O  sou  azedume  falia  ainda  das  bulhas  de  Goethe  com 
Herder,  Jacobi,  Merck,  Wieland  (!!)  e  até  com  o  venerável 
Klopstock.  .  . ,  «que  foram  victimas  (!)  da  orgulhosa  so- 
branceria com  que  por  vezes  lhes  fazia  intolerável  a  sua 
soberba  personalidade  (3).»  Depois  insiste:  «O  egoísmo 
de  Goethe  era  proverbial  em  toda  a  Allemanha  (4).»  An- 
tes refere  o  snr.  G.  M.,  já  com  intimo  regosijo,  o  cele- 
bre detesto-o,  que  attribue  a  Schiller,  adulterando  e  mu- 
tilando a  passagem  de  Eckermann  (5),  e  insiste  segun- 
da vez  no  mesmo  detesto-o  (6);  falia  ainda  a  propósito 
de  Goethe,  e  das  suas  innocentes  relações  amorosas :  em 
mysterios  d' 'alcova  (!!)  (7),  e  nota,  com  um  regosijo  mais 
próprio  d'um  satyro  que  entrevê  as  nymphas  no  ba- 
nho, «a, fascinante  nudez  das  Musas  (8)  e  os  prazeres  illici- 
tosàos  poetas  que  nunca  foram  celebrados  por  suas  virtudes. 
0  sr.  G.  M.  defende  as  obscenidades  (9)  do  Visconde  de 


(3)  Os  críticos,  pag.  69. 

(2)  Op.  cit.,  pag.  69.  Allude  ás  inclinações  de  Goethe. 
(1)  Op.  cit,  pag.  72. 

(4)  Op.  cit.,  pag.  72. 

(5)  Vide  o  Capitulo  vil.  As  relações  entre  Goethe  e  Schiller. 

(6)  Op.  cit.,  pag.  71,  nota,  principio  e  fim. 

(7)  Op.  cit.,  pag.  74. 

(8)  Op.  cit.,  pag.  73.  «  Os  poetas  nunca  foram  celebrados 
por  suas  virtudes  ascéticas. Os  Pacomios  e  Hilariões  achar-se-iam 
tão  constrangidos  no  Parnaso  entre  as  Musas  vestidas  de  uma 
fascinante  nudez,  como  os  poetas  nas  asperezas  da  Thebaida. » 

(9)  Vide  a  ennumeração  das  mais  flagrantes,  atraz,  pag. 
41,  nota  4. 

* 


46 


Castilho  e  nota  as  accusações  que  lhe  foram  feitas  d)  ^es- 
te sentido,  mas  som  dizer  que  o  traductor  portagaez  as 
introduziu  na  sua  versão,  sem  necessidade,  (2)  quando 
não  estão  no  original,  e  por  mero  gosto  da  indecencia  e 
da  baixeza.  Depois,  para  melhor  o  defender,  faz  reparo 
da  forma  como  traduzimos  e  imprimimos  a  toutes  let- 
tres  (3)  o  Lied  que  Margarida,  n"um  estado  inconsciente 
canta  na  prisão. 

O  snr.  Gr.  M.  tem  o  falso  pudor  d'aquelles — que  já  não 
o  tem,  aliás  não  fazia  reparo  n'uma  palavra  que  Goethe 
traz  em  completo  e  que  perde  toda  a  sua  significação 
usual,  já  pelas  circumstancias  do  estado  ole  quem  a  li- 
cita, já  por  ser  a  expressão  enérgica,  mas  ingénua  de 
uma  canção  popular,  que  não  obedece  aos  preceitos  hy- 
pocritas  de  uma  sala  (4)  nem  de  damas  que,  dotadas  sem 
duvida  com  muito  pouca  vergonha,  recuam  hoje  de  es- 
panto á  vista  d'estas  e  d'outras  palavras,  quando  as  suas 
avós,  mais  pudicas,  mais  virtuosas  e  menos  hypocritas, 
ouviam  sem  perigo  as  relações  do  Decamerone  de  Boc- 
cacio  e  dos  Cancioneiros  em  França,  Hespanha  e  mes- 
mo em  Portugal  (5).  A  impudicicia  não  está  nas  pala- 
vras, mas  sim  nos  olhos  e  nos  lábios  de  quem  as  soletra: 
a  estatua  grega  da  Vénus  de  Milo,  por  ser  nua,  nã<>  é 

(1)  A.  Coelho.  Bibliographia  critica,  pag.  8.  OFautt,  pag. 
44.3  e  444,  passim. 

(2)  Que  era  o  nosso  verdadeiro  argumento,  e  que  a  snr.  <i. 
M.  mutilou  com  a  sua  assaz  provada  má  fé. 

(3)  0  Faustt  pag.  391,  nota  148,  pag.  509  e  610. 

I    Já  havíamos  previsto  a  objecção  do  snr  G.  M.  O  Fcuut, 
pag.  444. 

(5)  Lembramos  a  liberdade  ingénua  d'algumas  poesias  do 
Cancioneiro  (/cru/  de  (íareia  de  Rezende  e  tios  Aufos  de  Gil  Vi- 
cente, lidos  e  representados  na  corte. 


47 

menos  pudica  do  que  a  própria  Pudicícia,  togada  d'alto 
a  baixo,  que  se  admira  a  seu  lado  nos  museus  e  gabine- 
tes do  Louvre,  Dresden,  Berlin  e  outras  cidades  da  Eu- 
ropa. Se  o  snr.  Gr.  M.  e  as  suas  leitoras  não  podem  en- 
trar n'uma  galeria  sem  que  sintam 

«como  Cupido  n'elles  acorda  e  estonteia»  (1) 

não  é  culpa  dos  quadros  ou  das  estatuas,  é  culpa  dos 
seus  olhos,  que  não  vêem  mais,  ou  só  vêem  isso. 

Se  pois  o  mesmo  snr.  G.  M.,  e  as  mesmas  leitoras  se 
revoltam  á  vista  do  que  escrevemos,  a  culpa  não  é  da 
lettra,  mas  da  careta. 

Leiam  antes  a  canção  popular  do  Faust  do  que  ou- 
çam as  obscenidades  de  Offenbacb,  Lecoq  e  outros,  que 
attrabem  a  alta  sociedade,  de  Lisboa  e  a  alta  e  baixa 
burguezia  do  Porto,  a  espeluncas  de  baixíssima  esphe- 
ra,  embora  se  chamem  Theatro  da  Trindade  e  se  achem 
adornados  de  sedas  e  de  velludos.  (2) 

A  razão  porque  o  snr.  G.  M.  insiste  no  egoísmo  e  na 
sensualidade  frenética  de  Goethe,  não  é  só  para  defen- 
der Castilho  e  nos  contradizer;  ha  n'isso  um  sympto- 

(1)  «Wie  sich  Cupido  regt  und  hin — und  wiederspringt.  » 
(Goethe,  Faust,  Hexenkúche.) 

(2)  Se  em  S.  Carlos,  no  templo  em  que  já  se  ouviu  o  Orfeo 
de  Gluck  (é  verdade,  em  1801 !)  brilhou  o  próprio  can-ean  dan- 
çado delirantemente  na  presença  de  SS.  MM.,  que  riam  a  ban- 
deiras despregadas,  como  haviam  rido  na  Trindade,  á  vista  das 
graças  um  pouco  fortes  d'£l-Rei  Bobêche  : 

«Hontem  tinha  uma  coroa 
Hoje  não  tenho  nem  meia.  » 

Diremos  ao  leitor  estrangeiro,  que  ha  aqui  um  gracioso  ca- 
lembourg,  porque  a  meia  (coroa)  é  uma  moeda  de  500  reis. 


48 


ma  menos  apparente  e  mais  profundamente  psycholo- 
gico:  é  o  estado  mal  content,  o  estado  da  inveja  miserá- 
vel, que  não  sabe,  nem  pode  admirar  um  homem  verda- 
deiramente grande,  e  trata  logo  de  lhe  procurar  o  cal- 
canhar de  Achilles:  é  o  ódio  do  vulgo  perante  certas  in- 
dividualidades superiores,  que  a  alma  bem  formada  ac- 
ceita  e  admira  até  com  regosijo,  vendo  n'ellas  a  divin- 
dade da  própria  natureza  humana,  emquanto  o  réprobo 
só  se  lembra  do  seu  ferrete.  Por  isso  dizia  o  celebre  Qar- 
lyle  a  Lewes,  a  propósito  do  indigno  livro  de  Menzel  (1) 
sobre  Goethe: 

«Sim,  é  o  grito  de  desespero  de  todos  os  idiota-. 
por  verem  que  o  Titão  não  era  da  espécie  d'elles;  por 
conhecerem  que  era  um  génio  divino,  sem  sombra  se- 
quer de  um  idiota  (2).» 

0  snr.  G.  M.  obedeceu  nas  suas  criticas  ao  caracter 
pessoal  e  litterario  de  Goethe  a  este  mesmo  sentimento, 
que  é  a  prova  mais  eloquente  do  seu  estado  moral.  Não 
lhe  invejamos  essa  triste  situação  de  um  espirito  en- 
fermo. 

A  Revista  contemporânea  (3)  havia  já  dado  o  retra- 
to pnysico  do  consummado  germanista;  era  preciso  fazer 
a  pintura  do  retrato  do  sábio  e  homem  de  let:ra>.  S: 
ra  tentássemos  caracterisar  ainda  mais  o  homem,  dos 
-cu-  pajsterios  psyçhologicpSj  pelo  processo  de  Lavater, 
tínhamos  de  recorrer  a  meios,  que  entram  n  um  Byste- 
ma  de  argumentação  pessoal,,  cujos  frnctos  duvidosos 

deixamos  aos  D08SOS  adversário-. 

(1)  Vide  Schi  ir.  Allgtm.  Gesch.  der  LU.,  vol.  u,  p 
^2)  G.  II.  Lewes.  Goethe»  heben,  vol.  i.  j>atr.  .">():>. 
(&)  Vol.  v  .  I  L866)  pag.  229. 


49 

O  seu  logar  na  confraria  do  Elogio-mutuo  é  o  de  mero 
negociante,  de  gerente  dos  interesses  da  sociedade. 

O  consummudo  germauista  tem  feito  á  testa  da  casa 
More  um  papel  á  moda  do  Finot  de  Balzac  (1),  e  não  ad- 
mira que  este  immortal  romancista  pintasse  em  França 
um  typo  que  se  acha  também  em  Portugal ;  o  génio  é 
cosmopolita  e  este  caso  ainda-o  confirma;  Pinheiro  Cha- 
gas ofierece-nos  mais  um  motivo  para  esta  approximação 
entre  o  seu  collega  e  o  typo  de  Balzac,  pois  o  escriptor  que 
o  snr.  Gr.  M.  intitula  «o  mais  sympathico,  o  mais  talento- 
so, o  mais  erudito,  o  mais  brilhante  dos  escriptores  por- 
tuguezes  da  novíssima  geração  (2) »,  esse  génio,  pois  não 
pode  ser  outra  cousa,  teve  a  ingenuidade  de  escrever  já 
em  lettra  redonda :  que  entrou  na  litteratura  pelo  esti/Jo  de 
um  Lucien  de,  Rubempré  (3). 

Quem  se  julga  a  si  próprio  d'esta  maneira  já  não  ca- 
rece de  elogios,  mesmo.de  um  consummadogermanista. 

Onde  o  snr.  Gr.  M.  toca  no  cómico  sublime  é  no  se- 
guinte. Depois  de  haver  fallado  do  posto  de  honra  que  Ca- 
millo  occupa  na  vanguarda  da  especulação  litteraria  e  no 
trafico  das  lettras ;  depois  de  haver  referido  os  cem  trium- 
phos  dos  cem  romances,  ou  antes  do  romance  stereoty- 
pado  cem  vezes  sobre  o  typo  mais  que  duvidoso  do  bra- 
zileiro,  a  creatura  mais  devassa  (4)  d'esta  terra  de  Deos; 

(1)  Illusions  perdues,  vol.  i. 

(2)  Os  criticas,  pag.  14. 

(3)  O  triste  heroe  do  1.°  volume  do  já  citado  romance  de 
Balzac.  Illusions  perdues. 

('4)  O  que  temos  ouvido  a  brazileiros  por  repetidas  vezes 
acerca  do  estado  moral  e  por  consequência  intellectual  do  Bra- 
zil,  excede  tudo  quanto  se  pode  imaginar,  tudo!  Basta  lembrar 
que  no  Rio  de  Janeiro  ha  umas  20  sociedades  carnavalescas  (sic) 
com  termo  médio  500  sócios  cada  uma  (ha-as  de  800);. cada  so- 


50 

depois  de  haver  fallado  nas  artes  magicas  d'este  Ponson 
du  Terrail  de  terceira  espécie,  depois  de  haver  evocado 
do  quasi  esquecimento  em  que  jazem:  Garrett  (l),hoje 
desmascarado,  Herculano  decrépito,  (segundo  elle  mes- 
mo confessa)  Rebello  da  Silva  o  celebre  historiador  do 
século  xvni  (!),  Mendes  leal,  uma  antigualha  quesóap- 
parece  nos  leilões  dos  burguezes  de  ha  40  annos;  de- 
pois de  haver  apregoado  á  laia  da  Trodelhexe,  ou  bruaa 


cio  paga  5$000  reis  fracos,  mensaes,  ou  60$000  annuaes,  o  que 
tiplicado  por  500,  dá  —  30:000^000  reis  e  esta  somma  por  20 
inúmero  de  sociedades)  é  egual  a  600:000^1000  reis  fracos  ou 
300 :000$000  fortes,  distribuídos  annualraente  por  10:000  man- 
cebos, approximadainente. 

A  applicação  d'esta  somma  é  destinada  ás  Batnrnaes  ']" 
carnaval,  onde  apenas  se  vêem  meretrizes  e  os  vadios  que  for- 
mam a  mocidade  esperançosa  do  Brazil  e  da  colónia  portugueza. 

(1)  Mui  notável  é  o  que  nos  diz  um  intimo  amigo  do  snr. 
G.  M.  acerca  das  relações  d'este  com  (iarrett: 

«  Sabes  tu  o  que  eu  queria  roubar  á  gaveta  de  José  Gromee 
Monteiro?  As  cartas  de  Almeida  Garrett,  as  confidencias  d'a- 
quelle  immenso  génio,  que  se  expandiam  na  alma  e  intelligen- 
cia  de  José  Gomes  Monteiro.  Estas  seriam  as  paginas  de  <>un> 
da  biographia  de  ambos.  Uma  sei  eu  que  existe  em  que  Almei- 
da Garrett,  em  perigo  de  vida.  ou  previsão  de  morte  próxima, 
encarrega  o  seu  amigo  de  defender-lbe  a  honra  e  a  faina 
que  a  pedra  sepulcbral  lbe  vedar  o  direito  da  defeza.  Que  su- 
blime legado  !  que  legitima  e  jubilosa  vaidade  para  o  coração 
honrado  e generoso  de  José  Gomes  Monteiro!»  (Esboços de  i<}ir<- 
ciaçòes  litterarias,  pag.  219. 

Sim,  senhor,  basta  isto  para  nos  pintar  o  janota  de  55  annos, 
que,  para  brilhar  como  um  vieux  vert  aos  olhos  das  ptlií  es  mai- 
tressesdtí  ha  30  annos,  não  teve  vergonha  de  pintar  as  suas  bar- 
bas com  elixires,  dando  com  a  sua  vida  airada  a  confirmação  de 
que  o  génio  immenso  precisa  da  bohème  para  a  sua  inspiração. 
Garrett  tinha  tanto  o  pressentimento  da  severa  sentença  que 
a  posteridade  havia  de  proferir  sobre  elle  (v.  as  moderadas  ver- 
dades que  lhe  diz  Homero  Ortix:  La  litteratura poriuymBMi 
eiglo  xix,  Madrid,  1870,  pag.  220  e  221)  que  encarregou  o  snr. 
ti.  Bi.  de  o  defender;  e  que  defensor  II 


51 


belfurinheira  (1)  estas  raridades  litterarias,  exclama  to- 
mado de  súbita  allucinação : 

«...  se  essas  tocantes  homenagens  não  servem  senão 
para  desafiar  com  redobrada  sanha  os  selvagens  impro- 
périos da  ignorância,  então  curvemo-nos  a  esta  invasão 
de  nova  espécie,  que  nos  dizem  vir  ainda  do  fundo  da 
floresta  Hercinia,  e  volvamos  contristados  á  barbárie  (2)  .d 

Folguem  ainda  um  pouco  senhores ! 

Podem  ter  mais  alguns  annos,  não  de  descanço  de 
certo,  mas  de  caricata  hegemonia  litteraria  sobre  a  mas- 
sa; poderão  continuar  a  servir  por  mais  algum  tempo  de 
guia  á  corrente  suja  e  gordorenta  que  deixa  nos  mes- 
mos que  vão  n'ella  as  nódoas  caracteristicas,  o  ferrete  das 
más  acções  —  mas,  ou  todos  os  casos  idênticos  (mil  vezes 
negados,  é  verdade,  mas  mil  vezes  confirmados)  são  men- 
tira, ou  nós  seguiremos  logicamente  o  nosso  caminho  e 
daremos  mais  uma  confirmação  á  regra.  Mil;  um  milhão 
de  vezes  se  negou  a  verdade,  e  um  milhão  de  vezes  se 
lhes  provou  a  mentira. 

Continuem  pois,  e  entretanto  console  o  snr.  Gr.  M.,  os 
seus  amigos  e  continue  apregoando,  como  a  bruxa  bel- 
furinheira : 

«  Não  passem,  freguezes,  sem  vêr  a  fazenda 

de  trinta  mil  castas,  que  trago  hoje  á  venda. 

Não  são  galanduchas,  que  nunca  alguém  visse. 

Não  vem  coisa  alguma,  que  já  não  servisse 

uma  vez  ao  menos  de  perder  a  alguém. 

Quem  vem?  quem  enfeira?  freguezes,  quem  vem?...»  (3) 


(1)  Castilho,  Fausto,  pag.  350.  Scena  da  noite  de  Valburga. 

(2)  Os  críticos,  pag.  8. 

(3)  Castilho,  Fausto,  pag.  350.  Noite  de  Valburga. 


S2 


E  com  isto  damos  a  lebre  por  corrida,  para  recapi- 
tularmos os  motivos  e  os  caracteres  da  resposta  do  snx. 
G.  M. 

I  Ig  motivos  da  resposta  resumem-.M-  em  dons:  um  oc- 
culto,  outro  claro. 

Este:  é  o  despeito,  ou  melhor  a  rabbia  de  um 
peculação  lograda  e  da  perda  de  uma  segunda,  em  per- 
spectiva. Aquelle:é  a  teudeneia  natural  de  querer  salvar 
o  Visconde  das  inepcias  em  que  se  enterrou,  para  não 
se  afogar  pessoalmente  por  as  ter  ajudado  a  íabri 

Agora  os  caraeteres  da  obra.  São  elles.  >ol>  o  ponto 
de  vista  litterario : 

1.°  A  feição  rocóco,  o  caracter  archeoh><juu  da  sua 
scieneia.  sciencia  de  livros  do  principio  d'este  século, 
obras  completamente  nullas  ou  de  nenhum  valor,  como 

\  (TrlllOS. 

2.°  O  seu  estado  de  innocencia  em  litteratura.  antes 
de  L848,  e  de  invalido,  depois  de  1*41». 

3.°  O  seu  systema  sophistico  na  exposição  das  id< 
sejam  suas  ou  alheia-,  por  meio  de  mutilações,  omii 
falsas  citações  —  emfim  a  falta  de  probidade  litteraria. 

4.°  A  falta  de  critério  litterario  nas  miuim as  coi 
a  sua  falta  de  methodo,  a  Bua  ignorância  absoluta  dos 
princípios  mais  elementares  da  philosophia  da  litteratu- 
ra :  emfim  a  Bua  ignorância  dos  processos  modernos  da 
critica. 

Sob  o  ponto  de  vista  psychologico  notaremos  «  -  - 
guintes  symptomas: 

1.°  Um  mal-estar,  uma  inveja,  uma  má  Pé,  que  tem 
a  sua  origem  na  desgraçada  situae&o  moral  do  auctor. 

2.°  L  ma  tendência  beifí^seusual,  própria  da  velhice 


53 


ociosa  e  malévola,  que  nunca  soube  o  que  é  o  pudor  e  o 
trabalho  honrado. 

D'estes  caracteres  litterarios  e  symptomas  psycholo- 
gicos  combinados',  nascem  naturalmente  muitas  cousas  : 
uma  ignorância  geral  em  tudo  o  que  diz  respeito  á  Al- 
lemanha  e  aos  allemães  (1),  em  tudo  quanto  se  refere  a 
Goethe  e  á  sua  importância  litteraria  (2),  ás  suas  rela- 
ções com  Schiller  (3)  e  ao  espirito  do  Faust.  (4) 

Tocamos  apenas  de  leve  n'estes  pontos,  que  serão 
averiguados  a  miúdo  rio  decurso  d'estas  paginas,  que 
podemos  qualificar  de  refutação  completa,  sem  que  o 
snr.  G.  M.  nos  possa  provar  depois  que  faltamos  á  ver- 
dade, como  o  provaremos  com  relação  a  elle  (5).  N'este 
livro  preferimos  adoptar  um  systema  differente  do  que 
serviu  para  a  nossa  analyse  á  traducção  do  Visconde; 
preferimos  tomar  em  globo  as  accusações  do  snr.  G.  M. ; 
pintar,  marcar  com  alguns  traços  (6)  profundos  e  ca- 
pitães, as  tendências,  a  argumentação,  o  systema  de  cri- 
tica—  emfim  o  espirito  do  livro  do  snr.  G.  M.  Mas  nem 
por  isso  descuramos  o  processo  analytico,  porque  á  pro- 
porção que  marchamos,  fomos  colhendo  os  argumentos, 
um  a  um,  e  desfolhando  essas  flores  de  rhetorica  á  me- 
dida que  lhe  examinávamos  o  cálix.  Podemos  ainda  di- 
zer que  a  feição  d'este  livro  é  mais  expositiva  e  doctri- 

(1)  Vide  o  capitulo  iv  :  As  fontes  de  consulta,  e  o  capitulo  v : 
A  Allemanha  e  os  Allemães. 

(2)  Vide  o  capitulo  vi :  Goethe  e  as  leis  da  historia  litte- 
raria. 

(3)  Vide  o  capitulo  vn  :  As  relações  entre  Schiller  e  Goethe. 

(4)  Vide  o  capitulo  viu.  A  Tragedia;  a.)  I."  e  2. a  parte ; 
o.)  Preludio  no  theatro  —  Prologo  no  cio. 

(5)  Vide  o  capitulo  x  :  Bagatellas. 

(6)  A  que  correspondem  os  diííereutes  capítulos. 


54 


naria,  e  menos  militante,  do  que  a  que  caracterisa  o  li- 
vro contra  Castilho  (1);  as  accusações  do  snr.  G.  M.,  im- 
portam-nos  menos  do  que  informar  o  publico  de  muitos 
factos  que  elle  ignora,  e  ligando-os,  determinar  a  sua 
philosophia  e  introduzir  o  leitor  no  espirito  d'essa  ad- 
mirável litteratura  allemã,  que  entre  nós  é  um  mundo 
desconhecido  (2). 

A  resposta  do  snr.  G.  M.  é  para  nós  um  mero  in- 
cidente que  nos  serve  para  expormos  em  publico  um 
certo  numero  de  cousas,  já  ditas  lá  fora,  é  verdade,  mas 
não  sabidas  aqui.  Agora  algumas  palavras  em  particu- 
lar ao  snr.  José  Gomes  Monteiro : 

Livre-se  de  nunca  mais  nos  tornar  a  fazer  insi- 
nuações falsas,  como  a  que  se  refere  á  eegueira  j>la/- 
sica  do  Visconde  de  Castilho,  que  o  snr.  G.  M.  inven- 
tou—  faltando  á  verdade,  que  é  o  termo  mais  mode- 
rado que  achamos.  Livre-se  de  ostentar  sentimentos  que 
não  tem,  como  a  sua  desinteressada  amisade  por  Casti- 
lho, quando  temos  á  nossa  disposição  documentos  que 
provam,  que  se  alguém  insultou  um  dia  a  cegueira  j>/n/- 
eicade  Castilho:  foi  o  próprio  snr.  José  Gomes  Mon- 
teiro. 0  seu  patriotismo  pode  ser  também  alumiado  com 
uma  lanterna  magica  que  mostrará  que  nem  sempre  foi 
o  mesmo,  sobretudo  no  estrangeiro. 

Saiba  o  snr.  G.  M.,  que  os  archivos  dos  tribnnaee, 
que  as  bibliothecas  estão  abertas  a  todos,  que  os  joruaes 
novos,  velhos  e  velhíssimos  se  acham  em  uns  e  outros 

(1)  Sobre  as  razões  :  Vide  o  capitulo  li :  Castilho  julgado 
Ml  1S29.  , 

(2)  Que  pese  a  Anthero  de  Quental  e  outros,  que  imagi- 
nam enganai  o  publico,  citando  os  livros  pelo  seu  titulo.... 
ou  moto.  Vide  0  Faust,  pag.  461-473. 


55 


—  que  uma  carta  para  Hamburgo  gasta  apenas  oito 
dias,  se  tanto,  e  que  a  sua  biograpkia  como  se  lê  em 
I.  da  Silva  (1)  e  na  Revista  contemporânea  (2),  está  in- 
completa, e  que  as  datas  e  os  factos,  que  a  ella  se  refe- 
rem, podem  ser  illustrados  e  rectificados  por  uma  selecta 
collecção  de  extractos  de  jornaes  allemães  e  francezes, 
que  escaparam  ainda  aos  destroços  da  communa  e  ao 
grande  incêndio  de  Hamburgo  (1842). 

Como  estas  palavras  são  particularmente  ao  snr. 
Gomes  Monteiro,  bastam  para  elle  nos  entender,  e  ficar 
sciente  de  que  á  primeira  voz,  desmascaramos  o  pas- 
sado e  publicamos  à  toutes  lettres  documentos,  que 
hão-de  ensinar  ao  publico  a  distinguir  o  joio  do  trigo. 
Sabemos  até  onde  nos  arriscamos  com  esta  declaração, 
mas  temos  também  a  certeza  que  o  snr.  José  Gomes 
Monteiro  não  gostará  de  nos  ouvir  no  Tribunal. 

Sirva-lhe  pois  isto  de  lição  e  emenda,  que  do  cora- 
ção lhe  desejamos.  As  suas  relações  de  amisade  com  Ca- 
millo,  Castilho  e  outros,  conhecemol-as  de  sobejo,  e  sa- 
bemos muito  bem  quaes  os  laços  de  mysterioso  interesse 
que  o  prendem  a  esses  senhores ;  as  relações  entre  Ca- 
millo  e  Castilho  illustram-as  os  romances  Coração, 
Cabeça  e  Estômago,  O  que  fazem  mulheres,  etc.  etc. ;  as 
entre  Camillo  e  o  snr.  Gomes  Monteiro,  o  romance: 
Retrato  de  Ricardina,  etc,  etc.  Virá  um  dia,  talvez 
não  longe,  e  que  a  justiça  dos  factos  e  a  lógica  dos  suc- 
cessos  podem  apressar,  em  que  apparecerão  em  relevo 
á  luz  do  dia  as  relações  e  os  mysterios  da  nossa  litte- 
ratura,  a  sua  historial  moral,  e  então  verá  a  Europa, 

(1)  Dicc.  Bibl.,  vol.  iv,  pag.  363-364. 

(2)  Vol.  v,  5.°  anuo,  pag.  230-240. 


56 


que  a  gangrena  exterior  não  é  tão  repugnante  como  a 
interior. 

A  verdade  é  grande,  ella  triumphará,  ainda  que  a 
queiram  transvestir  com  mil  trapos. 

Muito  enganados  andam  os  velhos  impenitentes  da 
nossa  bohemia  litteraria,  se  imaginam  que  os  mancebos 
irreverentes  ignoram  as  suas  proezas;  ainda  ha  um 
anuo  soubemos  em  Paris,  por  documentos,  coisa>  de 
Garrett,  que  o  pintam  de  um  modo  bem  singular. 

Cautela  pois,  não  chamem  muito  pelo  adtocáttí» 
diaboli,  aliás  podem-lhe  ouvir  o  S&ndbnregigA  r.  <>  sérniao 
de  penitencia. 

O  snr.  Gomes  Monteiro  que  o  entenda;  da  úo&f» 
parte  só  lhe  podemos  citar,  como  a  expressão  do  nosso 
apreço   o   verso   allemão,   que  não  traduzimos — prçh 


jjudor. 


«  Du  bist  am  Endc  —  was  du  bist. 
Spfz  dirPemiken  auf  vou  Millionen  Locken, 
Setz  deinen  Fuss  auf  ellenhohe  Socken, 
Du  bleibst  doch  immer,  was  du  bÍBt.  » 

(Goethe  —  Faust) 


CAPITULO  IV 


As  fontes  de  consulta  (1) 


1.  1810.  M.me  de  Stael.  De  VAllemagne. 

2.  1812.  W.  Sehlegel.  Ueber  dramatische  Kunst  und  Li- 

teratxir. 

3.  1840.  H.  Laube.  Geschichte  der  deatschen  Literatur. 

(foi  publicada  de  1839-1840.) 

4.  1840.  H.  Blaze.  JEssai  sur  Goethe  (na  sua  trad.). 

5.  1856.  H.  Heine.  De  l '  Allemagne : 

fi.  1857.  H.  Duntzer.  Goethe' s  Faust  erlãutert  (2.a  ed.). 

7.  1861.  Idem.  Wúrdigung  des  Goethschen  Faust. 

8.  1862.  M.me  de  Carlowitz.  Correspondance  entre  Goe- 

the et  Schiller  (com  a  introd.  de  Saint-René 
Taillandier). 

9.  1863.  J.  P.  Eckermann.  Conversations  de  Goethe,  re- 

cueillies  par.  .  .   traduites  par  Emile  Dé- 
lerot.  (introd.  de  Sainte-Beuve.) 

10.  1870.  Heinrich.  Iíistoire  de  la  littêrature  allemande. 

11.  1872.  A.  Bossert.  Goethe,  ses  précurseurs,  etc. 

(1)  Estas  são  as  obras  que  o  snr.  G.  M.  consultou  directa- 
mente para  o  estudo  do  Faust;  o  resto  é  citado  em  segunda  e 
terceira  mão,  apud  áiS. erentes  auctores,  principalmente  Duntzer. 


58 


Esta  simples  exposição  cbronologica  é  suficiente- 
mente eloquente  para  demonstrar  em  que  altura  scien- 
tifica  estão  os  conhecimentos  do  snr.  Gr.  M.,  e  dispensa- 
ria qualquer  commentario,  se  em  logar  de  um  leitor 
portuguez,  tivéssemos  um  leitor  allemão  diante  de  nós; 
assim,  temos  de  descer  á  analyse,  um  por  um. 

0  valor  do  livro  de  M.me  de  Staêl  já  o  determina- 
mos (1),  analysando  algumas  passagens  características 
da  sua  critica  ao  Faust  (2),  todavia  essas  poucas  passa- 
gens que  escolhemos  são  capitães  e  provam  que  M.me  de 
Stael  era  incapaz  de  entender  o  Faust,  mesmo  na  for- 
ma em  que  elle  era  então  conhecido.  Repetimos  de  no- 
vo (3):  «reconhecemos  o  mérito  daescriptora  em  outros 
assumptos»  e  fora  injusto  desconhecer  os  serviços  que 
prestou  o  seu  livro,  onde  ha  bom,  mau  e  péssimo,  mas 
convém,  e  n'isto  somos  justos,  que  se  saiba  o  que  é  que 
M.me  de  Staêel  podia  avaliar  na  Allemanha  do  seu  tem- 
po e  aquillo  que  estava  fora  da  sua  esphera  de  analyse. 
Eestringimo-nos  aqui  com  relação  ao  Faust. 

A  concepção  da  tragedia  é  tão  extraordinária,  que 
ainda  hoje,  apesar  de  tantos  commeutadores,  ha  diver- 
gências notáveis;  no  tempo  em  que  M.me  de  Stael  es- 
teve em  Weimar  (Dezembro  de  1803)  estavam  impres- 
sos (em  1790)  apenas  alguns  fragmentos  do  Fatut,  cu- 
ja primeira  parte  foi  só  concluída  em  1806  e  publicada 
dous  annos  depois.  Como  havia  M.me  de  Stael  avaliar 
o  Faust  por  uns  fragmentos,  embora  admiráveis,  mas 
que  não  lhe  podiam  dar  uma  ideia,  nem  do  plano  geral 

(1)  O  Faust  de  Goethe,  etc,  pag.  52-56. 

(2)  De  VAUemaijne,  pag.  284-309  (ed.  Garni.i 

(3)  O  Faust  de  Goethe,  pag.  66. 


59 


da  obra,  nem  da  concepção  philosophica ;  está  hoje  so- 
bejamente demonstrado  que  a  comprehensão,  mesmo  da 
primeira  parte  do  Faust,  depende  (1)  absolutamente  da 
comprehensão  da  Segunda  parte,  que,  embora  pese  ao 
Visconde  de  Castilho  e  ao  snr.  G.  M.,  se  entende  hoje 
perfeitamente,  quando  se  está  á  altura  da  sciencia;  os 
enigmas  da  Segunda  parte  do  Faust  estão  hoje  resol- 
vidos emquanto  ás  ideias  essenciaes  da  tragedia. 

Ora  essa  Segunda  parte,  cujo  conhecimento  é  indis- 
pensável, foi  só-publicada  como  posthuma  (1833),  e  por 
isso  pode  dizer-se  que  só  d'essa  data  em  diante  se  come- 
çou a  avaliar  a  tragedia  segundo  as  bases  racionaes;  isto 
é,  pela  critica  comparada  das  duas  partes,  auxiliada  pela 
interpretação  symbolica  e  philosophica. 

Demais,  o  que  era  M.me  de  Stael  em  1803,  quando 
visitou  a  Allemanha?  Veja-se  a  correspondência  entre 
Schiller  e  Goethe  (2),  e  para  que,  servindo-nos  dos  nos- 
sos argumentos,  não  sejamos  accusados  de  parcialidade, 
citamos  o  juizo  que  o  próprio  Goethe  e  Schiller  forma- 
vam da  escriptora  franceza.  Ouçamos  Schiller  (3) : 

<(  M.me  de  Staêl  parecer- vos-ha  tal  e  qual  como  a  ha- 
veis imaginado  já  a  priori;  tudo  n'ella  é  d'uma  mesma 
massa,  sem  o  menor  falso  indicio  pathologico;  isto  faz 
com  que  se  esteja  bem  com  ella,  e  haja  vontade  de  se  lhe 

(1)  Fr.  Kreyssig,  Vorlesungen  iiber  Goethe's  Faust.  Ber- 
lin,  1866. 

(2)  Briefwechsel  zwischen  Schiller  und  Goethe  in  den  Jahren 
1794  bis  1805.  Stuttgart,  Cotta,  1870,  3.a  ed.  Veiam-se  no  vol.  i, 
as  cartas.  N.°B  110-115  e  118,  132  e  133,  250-253,  255-257,  260, 
262,  263.  No  vol.  n.  N.«  489,  490;  925,  927,  928,  929,  933, 
935,  937-940,  944,  946,  947,  951,  952,  953  e  958. 

(3)  Briefwechsel  z.  Schiller  und  Goethe,  1870,  3.a  ed.,  vol. 
ii,  pag.  408  e  409 


(iO 


dizer  e  ouvir  tudo,  apesar  d  ti  innom^r  <li,<t<i,irin  <ln$  ,,<iin- 
rezaa  <■  </>>  modo  dê  pensar.  A  cultura  franceza  do  s.  i 
pirito  apresenta-a  pura,  e  n'uma  luz  extremamente  in- 
teressante. Em  tudo  o  que  chamamos  philosophia,  e  por 
isso  em  todos  os  pontos  extremos  e  mais  elevados,  nã<> 
ha  como  entender-se  com  ella,  apesar  de  todos  oa  dize- 
res; porém  o  seu  temperamento  e  modo  de  sentir  é  me- 
lhor do  (pie  a  sua  metaphysica,  e  a  sua  bella  razão  ele- 
va-se  até  uma  possibilidade  genial.  Ella  quer  explicar 
tudo.  comprehender  tudo,  medir  tudo,  não  admiti»-  na- 
da de  obscuro,  impenetrável,  e  onde  não  pôde  chegar 
com  o  seu  facho,  também  considera  que  nada  ali: 
te.  É  essa  a  razão  por  que  tem  um  medo  horroroso  á  phi- 
losophia  idealista  (Idealphilosophie) ,  que,  segundo 
modo  de  vèr,  conduz  ao  mysticismo  e  á  superstição  — 
e  isto  mesmo  constitue  o  ar  mephitico  em  que  ella  suc- 
cumbe.  Sentimento  poético,  ou  senso  para  aquUlo  que  nós 
chamamos  Poesii,  è  cousa  que  Ala  /"'« tem;  em  obras 
ta  ordem  comprehende  e  apropria-se  só  o  que  tila-  tem 
de  apaixonado,  rhetorico  e  geral;  não  apreciará  decerto 
uma  cousa  falsa,  sem  valor,  mas  nem  sempre  conhecerá 
o  que  seja  verdadeiro.  Podereis  vèr,  por  estas  poucas  pa- 
lavras, que  a  clareza,  a  coragem  e  vivacidade  espirituosa 
da  sua  natuivz;i.  só  podem  influenciar  do  uma  maneira 
benéfica;  o  que  lhe  acho  de  incommodativo  é  a  63 
va  volubilidade  da  lingua,  que  nos  obriga  a  tfansfofmar- 
nos  totalmente  em  um  org&o  auditivo,  para  poder  Beguir 
o  fio  do  discurso.  Como  eu.  apesar  da  minha  pouca  fa- 
cilidade no  Irancoz,  me  sustento  sottVivelmentc.  pode- 
reis vós,  graças  a  melhor  exercício,  communicar  mais 
facilmente  com  ella.» 


61 


De  propósito  nos  abstivemos  de  mutilar  a  passagem 
relativa  a  M.me  de  Stael,  que  damos  completa,  para  que 
se  não  supponha  um  parti  prig;  e  para  que  o  retrato  da 
escriptora  seja  completo,  veja-se  o  seguinte,  que  diz 
Goethe : 

«A  noticia  das  cartas  de  Rousseau  transtorna  na  ver- 
dade o  jogo  á  dama,  que  temos  presente.  Uma  pessoa 
vê-se  no  espelho  (diamantino-adamantino)  a  si  próprio, 
e  previne-se  contra  a  monomania  caricata  do  mulherio 
francez»  (1). 

Isto  explica-se.  Goethe  havia  lido,  pouco  antes  de 
conhecer  M.me  de  Stael,  uma  correspondência  entre 
Rousseau  e  duas  senhoras,  que,  a  pretexto  de  uma  sup- 
posta  veneração,  o  haviam  disfrutado,  e  depois  de  se  ha- 
verem sufficientemente  divertido  com  elle,  publicaram- 
lhe  as  cartas.  Goethe  fallou  com  M.me  de  Stael  a  res- 
peito d'esta  maliciosa  acção,  e  ouviu,  com  espanto,  que 
a  sua  hospede  tencionava  applicar  em  Weimar  o  mes- 
mo processo.  Foi  isto  o  bastante  para  o  auctor  do  Faust 
se  envolver  n'uma  reserva  quasi  absoluta,  resistindo  a 
todas  as  amabilidades  cia  franceza,  que  não  achou  em 
Goethe  a  mesma  expansão  que  em  Schiller,  que  te- 
ve a  paciência  de  a  ouvir.  Em  Schiller  havia,  segundo 
o  dito  de  Goethe  a  Zelter  (2),  «uma  tendência  de  Chris- 

(1)  Briefw.  z.  Schiller  u.  Goethe,  3."  ed.,  (1870)  vol.  li,  p.  414. 

(2)  Um  dos  mais  notáveis  compositores  da  Allemanha  no 
género  do  Lied  (canção  para  vozes  só) ;  amigo  intimo  de  Goe- 
the, e  com  quem  sustentou  uma  activa  correspondência,  publi- 
cada por  Riemer.  (Briefwenhsel  zwischen  Goethe  und  Zelter. 
Berlin,  1833-1836,  6  vol.  in-8.°)  Zelter  exerceu  uma  grande  in- 
fluencia sobre  o  ensino  musical  na  Prussia,  onde  viveu  a  maior 
parte  do  tempo,  e  formou  notáveis  discipulos,  dos  quaes  o  mais 
celebre  foi  Félix  Mendelssohn  Bartholdy. 

* 


62 


to,  uma  natureza  cheia  d'um  espirito  divino,  que  espalha- 
va, assim  como  o  semeador  do  Evangelho,  a  semente 
da  verdade,  sem  cuidar  se  era  para  os  pássaros,  se  para 
a  terra  fértil  (1).» 

Goethe  passou  provavelmente  aos  olhos  de  M.rae  de 
Stael  por  um  egoísta,  quando  era  apenas  prudente,  mas 
fugiu  ás  massadas  que  lhe  preparava  a  franceza.  e  foi 
mais  feliz  do  que  Schiller,  que  depois  de  a  ver  fora  de 
Weimar,  não  pôde  deixar  de  exclamar: 

«Também  depois  da  sahida  da  nossa  amiga  sinto-me, 
como  se  tivesse  passado  por  uma  longa  doença.  •• 

M.me  de  Stael  havia  commettido  um  erro,  que  »  - 
pa  a  muitos  hospedes,  havia  ficado  em  Weimar  mai>  de 
três  semanas,  isto  é :  demais,  e  quando  os  dois  amigos  não 
tinham  mãos  a  medir  com  trabalhos  importantíssimos. 

A  impressão  que  M.mc  de  Stael  produziu  em  W»i- 
mar,  retrata-se  do  mesmo  modo,  até  em  escriptoree  es- 
trangeiros, que  se  achavam  então  na  capital  do  duca- 
do (2).  A  escriptora,  depois  de  ter  batido  em  vã<>  ;i 
poria  de  Voss  (3),  e  quasi  em  vão  á  de  Goethe,  (pie  não 
lhe  abriu  senão  as  portas  da  sua  casa,  teve  de  se  con- 
tentar com  os  diiminorum  gentium.  Entre  estes,  figurava 
um  joven  inglez,  muito  estimado  em  Weimar  pela  sua 
intelligencia  e  sympathicas  qualidades,  que  lhe  haviam 
aberto  alli  todas  as  portas  e  todos  os  corações.   M."10  de 


(1)  E.  Palleske,  Schiller 's  Leben  und  Werke.  Rerlin,  1860, 
3.a  ed.,  vol.  ii,  pag.  569. 

(2)  Transformado  em  Grão-Ducado  só  em  1815.  depois  do 
congresso  de  Vienna. 

(3)  1751-1826.  Poeta  e  philologo  distincto;  celebre  pelu 
suas  traducções  do  grego  (Homero)  o  latim  (Virgílio,  Ovídio, 
etc). 


63 


Stael  participava  d'essa  amabilidade,  e  Crabb  Robin- 
son  (1),  que  é  de  quem  se  trata,  teve  a  paciência  de  lhe 
explicar  Schelling,  com  mais  felicidade,  do  que  Schiller 
o  fizera  para  Kant.  O  inglez  e  a  franceza  eram  em 
breve  amigos,  mas  isso  não  impediu  que  Robinson  Lhe 
declarasse  com  uma  admirável  franqueza:  «Madame, 
vós  não  entendestes  Goethe,  e  nunca  o  entendereis !  )> 

M.me  de  Stael  tinha  ainda  bastante  dignidade  para 
admirar  esta  franqueza  viril,  sem  se  agastar;  Robinson 
da  sua  parte  sustentava  a  sua  seriedade,  mesmo  em  face 
das  velleidades  de  mulher  de  M.me  de  Stael  (2). 

Eis  a  maneira  como  se  devem  entender  as  relações 
entre  M.me  de  Stael  e  os  dois  poetas,  que  se  podem  es- 
tudar por  completo  na  correspondência  original,  cujos 
resultados  aqui  condensamos  e  expomos,  segundo  a  nar- 
ração de  vários  escriptores. 

Isto  bastará  para  reduzir  os  dizeres  da  litterata  a 
respeito  do  Faust  (que  é  o  ponto  em  questão)  a  nada,  e 
provar  que  o  snr.  G.  M.,  assim  como  o  Visconde  de  Cas- 
tilho, lançando  mão  de  tal  fonte,  foram  commentar  a 
tragedia  e  a  litteratura  allemã  á  luz  do  anno  de  1803. 

(1)  Em  1869  appareceram  ein  Londres,  em3vol.,  gr.  in-4.°, 
as  suas  Memorias  e  cartas,  que  sâo  muito  importantes  para  a 
historia  da  litteratura  allemã  no  fim  do  século  xvni.  Robinson 
teve  a  felicidade  de  conviver  com  quasi  todas  as  celebridades 
da  época.  Em  1871  appareceu  um  resumo  da  obra,  com  o  ti- 
titulo :  Ein  Englãnder  iiber  deutsches  Geistesteben  im  ersten 
Drittel  dieses  Jahrhunderts .  publ.  por  K.  Eitner.  Weimar, 
1871.  Vide  a  analyse  em  Blàtter  fur  literar.  Unterhaltung, 
1873,  n.°»  9  e  10. 

(2)  Quando  esta,  antes  de  partir  para  Berlim,  mostrava  á 
meza  aos  seus  convidados  as  suas  toilettes  e  tudo  admirava, 
menos  Robinson,  respondeu  este,  interrogado,  com  toda  a  se- 
riedade:  «Madame,  vós  pedis  demais  —  não  posso  admirar  a 
um  tempo  a  vossa  pessoa  e  a  vossa  toilette  de  baile.» 


64 

O  que  W.  Schlegel  escreveu  e  publicou  em  1812 
(Ueber  dramatnche  Kunei  únd  Liitevatur)  está  boje,  as- 
sim como  os  Anfsãtze  de  seu  irmão  F.  Schlegel,  bastan- 
te antiquado  (1)  (síc),  e  o  snr.  G.  M.,  qné  é  um  mnmiot*- 
maí/o  germanista,  devia  sabel-o  em  1873.  Essa  tendeneia 
em  querer  negar  talento  e  faculdades  dramáticas  a  Goe- 
the e  a  Schiller,  em  que  Lewes  insiste  (2),  foi  reduzida 
por  Palleske  (3)  ás  devidas  proporções,  tirando  aos  ar- 
gumentos do  escriptor  inglez  as  bases,  que  este  fora  pro- 
curar em  Devrient  (4),  não  é  mister  desenvolver  aqui 
a  exposição  de  Palleske,  mas  restringindo-nos  ao  Fanet, 
refutamos,  com  uma  simples  classificação,  esses  argu- 
mentos desfavoráveis. 

A  tragedia  é,  como  diz  admiravelmente  Oarrien 

(1)  Scherr.  Allgem.  Geschichte  der  Literatur,  1872,  4.*  ed., 
vol.  n,  pag.  258. 

(2)  Goethe's  Leben,  vol.  n,  pag.  306-336. 

(3)  Schiller' s  Lelen,  vol.  n,  pag.  465-506. 

(4)  Philipp  Eduard  Devrient  pertence  a  nina  antiga  fa- 
mília hollandeza  (De  Vriend  que  emigrou  para  a  Proseia  no  sé- 
culo xviii.  Os  Beua  membros  teem,  desde  então,  brilhado  como 
cantores  distinctos  e  actores  de  primeira  ordem  nos  priuci- 
paes  theatros  da  Allcmanha.  Citaremos  Ludwig  Devrient, 
(1798-1832)  celebre  actor  no  género:  (  haracterrolUn  :  Karl  Au- 
gnst.  D.,  sobrinho  do  antecedente,  actor  também,  e  marido  da 
celebre  cantora  W.  Schõder  Devrient  ;  Philipp  Eduard,  irmão 
do  anterior,  e  auetor  da  notável  obra  a  que  nos  referimos: 
Geschichte  der deutschtn  SchauspieUcurut.  Leipzig,  1841-1861, 
4  vol.  Ha  emfim  GuBtav  Kini!  D.,  também  rrmao  dos  dois  an- 
tecedentes ;  foi  primeiro  cantor,  e  depois  actor,  rpiando  perdni 
a  voz  por  cansa  de  uma  constipação.  Ouvimos  este  celebre  ar- 
tista, oní'  acaba  de  fallecer  ba  ponco 

da    Allemanlia.  Vide  a  seu    respeito  no  :    I 
Z«t,  S.°  anuo  (1872    p*g.  369-382  um  Et  ~   bali. 

Segundo  este,  parece  que  a  Enmilia  é  de  origem   francesa,  a 
emigrou  depois  da  suspensão  do  edito  de  Nai  .  para 

a  Prússia,  como  huguenotfe  b. 

(5)  Êrtãutertíngcn  zu  Gceth>'s  JFVtusC,  vol.  i,  pag,  \. 


65 

eine  Gedankendichtung  (1),  de  uma  forma  nova  absolu- 
tamente original,  e  que  escapa  por  isso  a  todas  as  clas- 
sificações, e  a  todas  as  tesouradas  mesquinhas  e  ridicu- 
las  que  lhe  queiram  dar,  para  o  entalar  em  Scenas,  Qua- 
dros, etc.  etc. 

A  aííirmação  deDevrient: 

«  0  dualismo  vetustissimo  dos  géneros,  irrompeu  de 
novo;  o  drama  doctrinario  (gelehrt)  oppôz-se  de  novo 
ao  drama  popular  (volksthúmlich) ,  e  a  poesia  conquistou 
de  novo  a  supremacia  sobre  a  arte  dramática  (2):  a  esta 
aííirmação  responde  Palleske  com  uma  phrase  decisiva : 

«O  doctrinario,  é  entre  nós  quasi  tão  popular,  como 
o  popular  (3).)) 

É  difncil  que  n'um  paiz,  em  que  não  se  dá  este  ca- 
so, se  entenda  o  Faust;  a  culpa  não  é  de  Goethe,  mas 
sim  da  condição  inferior  dos  outros  povos,  com  relação 
ao  nivel  moral  e  intellectual  da  Allemanha. 

E  com  isto  nos  despedimos  da  passagem  archeolo- 
gica  do  snr.  Gr.  M.  (4),  acerca  dos  defeitos  dramáticos  do 
Faust. 

A  obra  de  Laube  (Gesehichte  der  deutschen  Litera- 
tur)  (5),  não  fazemos  longos  commentarios,  porque  é  um 
livro  que  não  tem  valor  algum  hoje;  qualquer  compen- 
dio elementar  de  critica  litteraria  lhe  haveria  ensinado 


(1)  Litteralmente :  poema  de  pensamentos.  V.  ocap.  vm, 

(2)  Palleskp.  Schilller's  Leben,  vol  ir,  pag.  468. 

(3)  Das  Gelehrte  ist  bei  uns  fast  eben  so  volksthúmlich 
ais  das  Volksthúmliche.  Op.  cit.,  vol.  u,  pag.  467. 

Í4)  Os  críticos,  pag.  113-121. 

(5)  Notaremos  ao  snr.  G.  M.  que  Literatur  se  escreve  em 
allemão,  em  geral,  -com  um  t,  e  não  com  dois,  como  se  vê  a  pag. 
89,  115,  117,  etc. 


66 

isto  (1);  não  são  só  as  ideias  que  desacreditam  um  livro, 
mas  sim  as  fontes  que  o  auctor  indica,  e  citar  Lanbe 
(1840)  quando  ha  as  obras  de  Gervinus,  Kobersteín, 
J.  W.  Schaffer,  Wilmar,  "YVackernagel.  Kurz,  Goede- 
cke,  Roquette,  e  tantos  outros,  é  um  triste  testemunho 
da  parte  de  um  consummado  germahista  .' 

Saiba  o  snr.  G.  M.,  se  ainda  é  susceptível  de  apren- 
der, que  a  importância  de  Laube  está  no  romance  po- 
litico e  socialista,  e  no  drama  histórico;  como  historia- 
dor litterario  é  uma  relíquia. 

H.  Blaze  (no  Essai,  que  precede  a  sua  traducçãoj 
forjou  uma  theoria  do  egoísmo  de  Goethe,  que  fez  mais 
honra  á  sua  phantasia  engenhosa,  do  que  á  verdade 
psychologica  do  caracter  essencialmente  humano  de 
Goethe;  a  sua  theoria  explica-se  pela  data  (1840  em 
que  foi  phantasiada,  e  é  um  signal  tvpico  da  preguiça 
e  da  incúria  franceza,  que  H.  Blaze  venha,  na  duodéci- 
ma edição  (1869)  da  sua  obra,  repetir  stereotypicamen- 
te  o  que  podia  talvez  passar  ha  29  annos,  mas  que  já 
depois  de  Lewes  (1855)  e  das  suas  admiráveis  pagi- 
nas (2),  era  uma  falsidade  —  e  repetido  hoje,  em  1873 
— é  uma  impudência  (3);  o  snr.  G.  M.  devia  sentir  com 


1      K.  Gr.  Helbig.  Gfrundriss  der  Gesclt.  der  pott.  l.ltera- 
tur  der  Deutséhen    6."  ed.  1801. 

Este  auctor  cita  como  fontes  de  consulta  mais  de  30  obras 
sobre  a  Litteratura  allemfi,  desde  1822  e  1827  ató  1862,  mas  nem 
sequer  menciona  Laube  . 

(2)  Goethe'8  Leben,  capitulo  viu.  Der  wahrt  Mtnachtn- 
freund:  o  verdadeiro  philantropo,  vo\.  i.  pag,  tôl  503. 

■'i  \' iil<-  o  que  dizemos  adiante  a  respeito  do  caracter  de 
Goethe.  Capítulos  vi  e  vn. 


67 

os  seus  66  annos  o  sangue  subir-lhe  ás  faces,  lembran- 
do-se  da  sua  hypocrita  veneração  por  Goethe  (1). 

0  snr.  Gr.  M.  não  podia  conjecturar,  que  se  não  nos 
aproveitamos  do  extenso  Essai  de  H.  Blaze  (pag.  3-151) 
é  porque  algumas  razões  tivemos  para  isso?  Esse  Essai 
é  uma  analyse  phantastica,  uma  pura  ficção,  que  não  re- 
vela nem  mais  nem  menos  imaginação  do  que  muitas 
phautasias,  que  se  tem  escripto  sobre  Goethe. 

Demais  o  snr.  G.  M.  não  olhou  para  a  data :  Janei- 
ro 1840,  collocada  no  fim?  Não  lhe  passou  pela  ideia 
que  alguma  cousa  se  haveria  escripto  ha  33  annos  para 
cá,  que  podesse  servir  de  melhor  guia  para  a  caracte- 
rística de  Goethe? 

As  classificações  de  «eminentes  críticos»  que  dá  a 
H.  Blaze,  Saint  René-Taillandier  (!)  e  outros,  é  res- 
ponsabilidade exclusivamente  sua;  todavia,  essas  quali- 
ficações são  mais  um  indicio  do  seu  estado  de  espirito, 
como  a  qualificação  de  grande  poeta  dada  a  Heine  (2). 

Emquanto  ao  livro  d'este  (De  VAllemagne)  diremos 
apenas  duas  palavras;  citar  a  sua  obra,  como  a  de  uma 
auctoridade  moral  e  litteraria  (porque  aliás  nada  signi- 
fica), é  uma  miséria  fácil  de  explicar;  uma  das  cousas 
que  mais  nos  admirou,  quando  chegamos  a  Portugal, 
foi  o  enthusiasmo  que  soava  na  bôcca  da  mocidade  de 
Coimbra  acerca  d'este  pseudo-genio,  que  equiparavam 
a  Goethe,  com  grande  espanto  nosso!  Para  estes  aca- 
démicos havia  a  Allemanha  do  século  xvin  e  xix  pro- 


(1)  Os  críticos,  pag.  66. 

(2)  Aprenda  o  snr.  G.  M.  a  sentença  definitiva  que  a  Al- 
lemanha formulou  ha  muito  sobre  este  vagabundo  da  bohéme 
das  lettras.  Veja  Gervinus. 


68 

(luzido  só  duas  notabilidade*:  Heine  e  Goethe,  união 
que  nos  pareceu  assaz  monstruosa — e  característica. 

Heine,  e  a  influencia  das  suas  obras,  está  ha  mui- 
to julgada,  e  essa  adoração  pestífera  a  um  homem, 
cuja  sentença  está  de  ha  muito  lavrada  na  Allcmanha, 
hasta  para  provar  até  onde  nos  havemos  desviado  do 
trilho  da  verdade  e  da  moralidade  litteraria.  Ouçamos 
duas  sentenças,  qual  d'ellas  mais  imparcial,  e  fique  se 
sahendo  de  uma  vez  para  sempre  quem  é  esse  poeta: 

«A  Heine  podemos  apenas  conceder  o  enthustas- 
mo  do  gracejo,  isto  é:  Heine  haveria  talvez  rapportar 
do  antes  alguma  cousa  má,  e  até  a  peior  de  todas  as  cou- 
sas, do  que  calar  uma  lembrança  espirituosa  que  lhe  es- 
tivesse  fazendo  cócegas  na  lingua.  Que  Heine  era  um 
maltrapilho,  moralmente  falia nd<>,  ein  moraliscfu  r  Lmn^i 
não  offerece  duvida,  ajuizando  pelas  suas  próprias  con- 
fissões; demais  está  averiguado  que  recebia  uma  annui- 
dade  dos  «fundos  secretos»  de  Louis  Philippe,  i-t<>  é,  de 
uma  fonte  que  só  beneficiava  os  Mouchards  (sic  .  espiões, 
apóstatas  e  traidores.  Abstrahindo  d'este  ferrete  inex- 
tinguível, é  também  certo,  que  Heine  manca  pôde,  por 
causa  da  falta  de  senso  moral,  crear  uma  obra  de  arte. 
como  haveria  direito  a  esperar  do  Beu  talento  genial.  O 
melhor  que  se  tem  dito  de  Heine,  é  a  sentem  a  dVIle  pró- 
prio:—  Eu  sou  fèauerkraut  (1)  preparado  com  ambró- 
sia (2).» 

Mais  severa  c  ainda  a  sentença  de  Grervinua   .">  . 


(1)  Couve  fermentada,  choucrottte  (!). 

(2)  Scherr.  AU<i.  Gettch.  der  LU.  ?ol.  H,p.  890, nota 2, fim. 

(3)  Die  romantischc  Diehtung  tmd  ihre  innertn    I- 
rungen  (em  Qesch.  dea  newm.  Jahrh.  vol.  vm,  jutg.  180-1  B7. 


69 


Comparando  as  duas  naturezas  de  Byron  (1)  e  de  Heine, 
escreve : 

«Lord  Byron  chegou,  depois  dos  desvios  da  Sua  ju- 
ventude, a  uma  conclusão  acerca  da  vida  e  do  seu  pro- 
pósito, que  achou  por  esforço  próprio  e  sustentou  com 
firmeza;  porém  a  alma  sem  caracter  de  Heine,  que  elle 
mesmo,  em  vista  da  sua  elasticidade,  que  o  levava  até 
ao  infinito,  para  depois  se  encolher  imperceptivelmente 
—  chamava  de  Caoutchouc,  não  tinha  nenhum  ponto 
seguro  de  apoio,  em  cousa  alguma,  nem  na  religião, 
nem  na  posição  social,  nem  no  estado,  nem  na  fé,  nem 
na  descrença,  nem  no  realismo,  nem  no  idealismo;  nada 
lhe  era  sagrado;  não  tomava  nenhum  estudo  a  serio, 
nem  mesmo  o  conhecimento  de  si  próprio  (2).»  Basta 
d'esta  repugnante,  mas  verdadeira  pintura;  quem  se  in- 
teressar pelo  resto,  que  é  ainda  peor,  leia-o  em  Grer- 
vinus.  Que  a  mocidade  de  Coimbra  de  1865  (3)  andasse 
enganada  no  seu  delírio  por  Heine  —  é  triste,  mas  ainda 
se  explica  no  nosso  estado  moral  e  psychologfco;  mas 
que  um  consummado  germanista  se  sirva  de  semelhante 
auctoridade  (4),  é  indicio  da  mais  crassa  iguorancia; 
e  cital-a  então  com  relação  á  segunda  parte  do  Faust  (5), 
que  Heine,  pela  sua  decadência  moral  e  intellectual  nun- 


(1)  Como  entre  nós  vogam  também  a  respeito  do  poeta  in- 
glez  as  ideias  mais  falsas,  lembramos  a  breve,  mas  admirável, 
característica  de  Gervmus.  (Op.  cit.,  vol.  Viu,  pag.  136-180.) 

(2j  Op.  cit.,  vol.  vm,  pag    183. 

(3)  E  continua  no  mesmo  estado,  cultivando  o  género  que 
Goethe  caracterisou  com  o  titulo  de  Lazarethpoesie :  poesia  de 
lazareto.  (Eekermann,  Gespr.  vol.  i,  pag.  262.) 

(4)  Os  críticos,  pag.  79. 

(5)  Os  críticos,  pag.  91. 


70 


ca  poderia  haver  comprehendido,  cital-a  com  este  fim, 
é  falta  de  pudor. 

Passamos  agora  pelas  duas  obras  de  Dúntzer,  de  que 
fatiaremos  em  ultimo  logar. 

A  correspondência  entre  Goethe  e  Schiller,  traduzi- 
da por  M.me  de  Carlowitz,  é  uma  fonte  suspeita,  como  o 
são  em  geral  as  traducções  francezas:  a  introducção  de 
Saint-René  Taillandier  sobre  Goethe,  que  precede  o  pri- 
meiro volume  (são  dois),  é  uma  fraquíssima  compilação, 
como  não  podia  esperar-se  de  outro  modo  do  académi- 
co francez  (1);  em  qualquer  dos  dois  casos  revela  o  con- 
summado  germanista  uma  pobreza  franciscana,  porque 
nem  sequer  se  soccorreu  ao  original  allemão,  nem  se- 


(1)  Ainda  ha  pouco  dava  o  Gottingische  gelehrte  Anzeigen 
(unter  der  Aufsicht  der  Kõnigl.  Gesellschaft  der  Wissensehaf- 
ten.  1873,  pag.  5Õ-64),  um  dos  primeiros,  senão  o  primeiro 
jornal  de  critica  scientitica  da  Allemanha,  uma  analyse  de  uma 
das  ultimas  obras  d'este  litterato,  em  que  se  demoustrava  o  6eu 
systema  de  compilação. 

Refere-se  ao  seguinte  trabalho:  La  Serbie.  Kara  George  et 
Mil08ch  par  Saint-René  Taillandier,  professeur  a  la  faculte 
dee  lettres  de  Paris,  secrétaire  general  du  Ministère  de  lin- 
struetion  publique  et  des"  cultes.  Paris,  1872. 

O  auetor  d'esta  analyse  (J.  G.  Kobl)  demonstra  como  este 
trabalho  é,  por  assim  dizer,  quasi  uma  mera  traduoçSo  da  notá- 
vel obra  do  historiador  allemào  Leopold  Ranke:  Die  Serbi- 
8cke  Revolutioii;  esta  obra  serve  de  mina  de  exploração  até 
1842;  d'esta  data  em  diante  serviu -se  dos  trabalhos,  também 
aliem àes  de  Kanitz,  Pirch,  Posaart,  Kappei  'apesar  de  barba- 
res !)  para  uma  compilação,  que  nem  tem  Bequer  o  mérito  de 
uma  exposição  clara  e  de  um  estylo  ÉsofErivel,  o  que  se  mostra 
pelos  extractos  de  passagens  do  livro  francez.  Notamos  isto 
mais  extensamente  para  que  se  saiba  em  que  altura  BCÍeutifioa 
está  "  auetor,  apesar  de  ser  professor  B&facuUé  des  l  et  três  de 
Paris,  e  apesar  de  ser  secrétaire  general  du  Ministert  de  Vin- 
struetion  publique.  No  prologo  da  obra  não  esquece  o  auetor  de 
fazer  as  costumadas  exclamações  patrioticaB,  e  de  fallar  nos 
pruesieru  barbares,  e  em  mais  puerilidades  da  inesina  espeeie. 


71 


quer  aproveitou  as  passagens  relativas  ao  Faust  que  se 
acham  n'essa  mesma  correspondência  (!!)  ou  por  pregui- 
ça, ou  por  ignorância;  e  finalmente,  porque  foi  servir-se, 
para  a  característica  de  um  homem  como  Goethe,  das 
tristes  migalhas  espalhadas  em  algumas  magras  pagi- 
nas por  um  académico,  dilettante  em  litteratura. 

As  Conversations  de  Goethe  com  Eckermann,  tradu- 
zidas  por  Délerot  e  com  uma  introducção  de  Sainte- 
Beuve,  estão  em  melhores  condições,  porque  a  traducção 
está  feita  com  cuidado.  Mas  de  novo  nos  admiramos  co- 
mo o  conmmmado'  germanista  foi  colher,  em  segunda 
mão,  aquillo  que  está  patente  no  original  allemão,  de- 
mais attendendo  a  que  a  sua  famosa  resposta  levou  nove 
mezes  a  sahir  á  luz !  Seria  por  o  snr.  Gr.  M.  ter  medo  á 
traducção  das  passagens  do  original? 

O  auctor  Heinrich  (Histoire  de  la  littérature  alle- 
mande)  é  um  soífrivel  compilador,  não  passa  d 'isso;  ser- 
vir-se, pois,  d' uma  fonte  tão  pobre,  quando  as  ha  riquís- 
simas, como  vimos  (1),  servir-se  d'um  compilador,  d'um 
francez  —  é  singular  phantasia  n'um  consummado  ger- 
manista! O  livro  de  A.  Bossert  (Goethe,  ses  précurseurs, 
etc),  é  uma  obra  de  fancaria,  cuja  futilidade  já  demons- 
trámos de  sobejo  em  outro  logar  (2),  e  que  apesar  de  pu- 
blicada em  1872,  está  áquem  de  1855  (3)  e  da  biogra- 
phia  de  Lewes.  É  pois  o  pendant  de  Laube,  que  o  con- 

(1)  V.  o  capitulo  m,  pag.  34  e  35. 

(2)  Bibliographia  critica,  publicada  por  A.  Coelho,  pag. 
84-91,  l.°anno. 

(3)  Na  Bibl.  crit.  lê-se  no  artigo  sobre  o  livro  de  Bossert  «Já 
Lewes  em  1845»,  etc.  (pag.  88);  rectifique-se :  1855.  Lewes  co- 
meçou a  escrever  a  sua  obra  em  1845,  mas  só  a  publicou  dez 
annos  depois. 


72 


■^nioiuido  germanista  escolheu  com  notável  critério  litte- 
rario,  não  ha  duvida  !  Bestam  cmfim  as  duas  obras  cl" 
Diintzer  (1),  e  honra  seja  feita  ao  snr.  G.  M.,  porque 
(Testa  vez  acertou,  graças  a  circumstancias,  que  não  é 
possível  certificar  (2).  Diintzer  é  sem  duvida  o  com- 
mentador  mais  minucioso  do  Faust,  mui  perspicaz,  mu- 
nem sempre  acertou;  e  depois  de  lhe  haverem  provado 
os  enganos,  teimou  nas  suas  ideias,  o  que  foi  peor,  e  re- 
verteu em  descrédito  seu.  Além  d'isso,  o  seu  primeiro 
trabalho  é  de  1857,  e  o  segunrlo  de  1861;  ora  ha  12  au- 
nos  tem  a  critica  marchado,  e  muito,  e  o  pout<>  de  fis* 
ta  que  ella  hoje  adoptou,  é  mui  differente  d"aquelle 
que  Diintzer  escolheu;  não  se  trata  hoje  d'uma  explica- 
ção minuciosa,  descendo  a  todos  os  incidentes  das  duas 
partes  da  tragedia;  a  critica  viu  que  isso  conduzia  a  uma 
rericirfende  Kleinigkeitshi'"hn>r<  l  (3), a  uma  interpretação 
ociosa  de  terminologias  e  minudencias,  que  em  logar  de 
explicar  as  palavras  de  Goethe,  as  obscurece.  Hoje,  «■ 
este  é  o  ponto  de  vista  geralmente  adoptado,  não  se  tra- 
ta d'essas  ninharias,  que  á  força  de  subtilidade  esquecem 
o  que  o  poeta  escreveu;  hoje  tratam  todos  os  comine: ;- 
tadores,  desde  Kreyssig  (1866)  até  Carriere  (J.869)  (-1) 
e  Taylor  (5)  (1872),  de  fixar  os  traços  principaes  da  a<  - 

(1)  Ensinaremos  ao  snr.  G.  M.  qne  este  nome  se  escre\e 
ajsaim,  e  não  Diinzer,  como  si?  vê  repetido  XI  vezes  com  notá- 
vel teimosia  naspaginaa  <k>  si-n  livro. 

(2)  A  liypotliese  que  allegamoa  a  pag.  42  par  i  a-noa  ac- 
ceitavel;  ou  houve  o  snr.  (t.  M .  as  noticias  >i11''  forneceu 
tillio,  de  obras  que  citam  Dântser  om  Begonda  ou  tercei?!  mfto? 

(3)  Kreyssig.  Vorlesungen,  pag.  1T."«. 

(4)  Faust,  mit  Eiuleitung  und  Èrlãuterungeií.  Leipzig,  Bro- 
ckhaue,  1869.,  2  rol. 

(5)  Faust.  A  Tragedy.  Leipzig,  Brockhaus,  1  ST"J.  com  in- 
troducçào,  notas  e  appcndices. 


73 


cão,  e  com  elles  a  ideia  do  poema,  sem  desligar  a  primei- 
ra da  Segunda  parte,  e  tomando-as  sempre  juntas  (1), 
como  sendo  duas  metades  inseparáveis  d'um  mesmo  or- 
ganismo (2).  Não  queremos  dizer  com  isto  que  os  tra- 
balhos de  Diintzer  (1857  e  1861)  ficam  inutilisados,  mas 
sim  mostrar  que  o  ponto  de  vista  é  hoje  diverso,  e  que, 
embora  se  consultem  com  muito  proveito  os  dous  livros 
para  a  interpretação,  é  mister,  mesmo  debaixo  do  pon- 
to de  vista  analytico  de  Diintzer,  alterar  muitas  cousas 
que  elle  refere,  e  completar  a  sua  exposição  com  o  pon- 
to de  vista  synthetico,  que  é  hoje  o  systema  que  a  scien- 
cia  critica  tem  applicado  com  mais  proveito  ao  Fanst. 
Segundo  Carriere,  os  melhores  commentarios  são  os  de 
Hermann  Weisse  e  H.  Theodor  Rotscher;  o  estudo  phi- 
lologico,  emquanto  á  Segunda  parte  da  tragedia,  foi  fei- 
to com  erudição  e  talento  por  Ferdinand  Deycks  e  W. 
Ernst  Weber,  «e  convém  não  desconhecer,  apesar  da 
sua  prolixidade,  o  perspicaz  conhecimento  de  causa  com 
que  Heinrich  Diintzer  auxiliou  a  interpretação  dos  an- 
teriores, applicando-a  a  toda  a  obra».  E  este  o  juizo  de 
um  commentador,  que  diverge  em  pontos  essenciaes  de 
Kreyssig,  e  por  isso  insuspeito  na  classificação  que  este 
faz  dos  «merceeiros  de  ninharias:  KleinigkeitskrãmerJ). 
0  snr.  G.  M.,  servindo-se  exclusivamente  de  Diin- 
tzer, e  desconhecendo  completamente  os  resultados  da 
sciencia  critica,  cahiu  n'um  exclusivismo  que  lhe  foi  fa- 
tal, como'  veremos,  e  demonstrou  a  sua  ignorância  dos 


(1)  Isto  só  de  per  si  prova  que  a  tentativa  de  Castilho  era 
já  por  este  lado  um  impossível. 

(2)  Kreyssig,  Vorlesungen,  Vorwort,  pag.  i-xiv, 


74 


resultados  da  sciencia,  de  ha  12  annos  para  cá,  desde  a 
data  do  segundo  livro  de  Diintzer  (1861 1. 

Resumimos : 

Das  11  fontes  de  consulta,  de  que  o  snr.  G.  M.  se 
serviu,  são  as  cinco  primeiras  (1810,  M.me  de  8l 
—  1812,  W.  Schlegel— 1840,  Laube— 1840,  H.  Bla- 
ze  — 1856,  Heine)  dequasi  nenhum  valor,  por  serem  :n- 
cheologicas;  a  oitava  (1862)  e  nona  (1863)  são  fontes 
francezas,  mais  ou  menos  suspeitas,  e  as  duas  ultimas 
(1870  e  1872)  são  obras  de  fancaria  e  de  compiladores 
egualmente  fraucezes. 

Temos  emfim  as  duas  obras  de  Diintzer  (1857  e 
1861)  de  um  mérito  relativo,  partindo  do  ponto  de  %  i  — t  :c 
de  ha  12  annos. 

Eis  a  sciencia  do  consummndo  germanista  (1). 


(1)  Não  tomamos  cm  conta  o  artigo  da  Biogr.  Unir.  sobre 
Goethe,  feito  por  Saint-René  Taillandier  —  porque,  se  o  snr. 
G.  M.  nào  se  pejou  de  ir  colher  noticias  de  Goethe  n  um  Die- 
cionario,  em  logar  de  o  fazer  n'uin:i  monographia,  conhecemos 

nós  todavia  os  limites  até  onde  a  critica  pôde  ir,  sem  se  de- 
gradar. 


CAPITULO  Y 


A  Allemanha  e  os  Allemães 


Examinados  os  elementos  de  trabalho  de  que  dispoz 
o  snr.  G.  M.,  vejamos  a  forma  por  que  os  aproveitou 
para  o  exame  múltiplo  da  questão;  primeiro,  os  seus 
pontos  de  vistas  geraes ;  e  em  seguida,  o  exame  dos  as- 
sumptos e  dos  factos  n'elles  incluídos.  Anteciparemos 
porém  d'antemão  a  sentença,  declarando  que  a  igno- 
rância do  snr.  G.  M.  excedeu  toda  a  nossa  espectativa, 
quando  o  vimos  lançar  mão  dos  argumentos  de  M.me  de 
Staél  (1803),  e  applaudir  os  absurdos  que  esta  escri- 
ptora  diz  dos  allemães  com  relação  ás  Bellas- Artes  (1). 

O  snr.  G.  M.  corrobora  a  opinião : 

«Os  allemães  tem  effectivamente  grandes  e  arroja- 
das concepções,  profundos  pensamentos,  ideias  origi- 


(1)  De  VAllemagne  (ed.  Garnier)  pag.  391-401.  Remette- 
nios  para  o  nosso  juizo  a  este  respeito  :  O  Faust.,  pag.  34. 


76 


naes;  mas  quando  se  tracta  de  expor  os  seus  systemas 
philosophicos,  as  suas  theorias  scientificas,  ou  de  dar  ao 
pensamento  poético  realidade  exterior;  as  ideias,  em 
vez  de  se  submetterem  á  disciplina  da  arte,  saem  como 
em  tropel  das  turvas  profundezas  do  espirito  em  que  se 
geraram,  e  só  imperfeitamente  ficam  dispostas  n'aquelle 
alinho,  de  que  resulta  uma  lúcida  exposição  didáctica; 
ou  mal  assuiríem  aquella  regularidade  orgânica  de  que 
nasce  a  perfeita  harmonia  da  ideia  com  a  forma.  Esse 
talento  da  forma  parece  ter  cabido  mais  especialmente 
em  partilha  ás  raças  occidentaes»  (1). 

Vê-se  evidentemente  por  esta  passagem  que  o  snr. 
Gr.  M.  quiz  harmonisar  a  suas  ideias,  quanto  podesse  ser, 
com  as  do  Visconde  de  Castilho ;  assim  como  este  enten- 
deu que  o  Faust,  a  «cordilheira  de  poesia»,  havia  reben- 
tado  a  súbitas  de  profundezas  desconh<id<is,  assim  acha 
o  seu  collega  que  as  «ideias  dos  allemães»  sahem  como 
em  tropel  das  turvas  profundezas  do  espirito.  O  discí- 
pulo não  podia  discordar  do  mestre. 

Este  modo  de  ver,  tão  j (articular  e  uniforme  dos  dois 
amigos  explica-se,  porque  nem  uni  nem  outro,  apeasr  de 
andarem  nas  pernas  de  pau  do  Elogio-mutuo,  afretam  do 
alto,  isso  que  se  chamam  leis  da  philosophia  da  littera- 
tura;  para  elles  estas  ninharias  não  existem  ;  tudo  "  que 
vêem  são  phenomenos  e  mais  phenomenos,  ou  para  di- 
zer melhor:  milagres.  Wagner  achando-se  ao  lado  de 
Faust  não  vê  senão  um  cão  como  outro  qualquer;  o  svm- 
bolo,  a  arfinidade  intima,  essa  escapa-lhe-:  e  estas  dois, 


(1)  Os  críticos,  pag.  113-114. 


77 


apesar  de  serem  dois,  não  vêem  mais  do  que  ofamulus... 
solus,  tolusj  unus. 

A  passagem,  que  o  snr.  Gr.  M.  refere  com  relação  ás 
palavras  de  Goethe,  acerca  da  differença  entre  forma  e 
ideia,  em  francezes  e  allemães,  está  mutilada,  segundo 
o  louvável  costume  do  nosso  adversário,  que  só  trans- 
creve aquillo  que  lhe  convém. 

Eil-a  por  completo,  traduzida  do  original : 

«Os  francezes,  dizia  Goethe,  fazem  muito  bem  em 
começar  a  traduzir  os  nossos  escriptores ;  pois  mesqui- 
nhos (1)  na  forma  e  nos  motivos,  como  elles  o  são,  não 
lhes  resta  outro  meio  senão  aproveitarem-se  do  que  ha 
por  fora.  Embora  nos  accusem  de  certos  defeitos,  em- 
quanto  á  forma  (2),  somos-lhes  todavia  superiores  nas 
ideias. 

«As  peças  de  Kotzebue  e  Iffland  são  tão  ricas  de 
motivos,  que  terão  ainda  muito  que  colher  n'ellas,  até 
as  haverem  esgotado  »  (3) .  Na  mesma  pagina,  mais  abai- 
xo, caracterisa  Goethe  os  francezes,  com  relação  ao  ca- 
racter nacional  de  um  modo,  que  é  apenas  a  confirma- 
ção e  contraprova  da  influencia  da  sua  litteratura. 

«Os  francezes,  continuou  Goethe,  tem  intelligencia 
e  espirito,  mas  carecem  de  seriedade,  e  não  conhecem  a 
veneração  (4) .  O  que  lhes  serve  no  momento,  é  o  que  lhes 

(1)  denn  beschrãnkt,  etc. 

(2)  eine  gewisse  Formlosigke.it. 

(3)  O  que  o  sn-r.  G.  M.  transcreve  da  traducção  franceza 
dos  Gespruche  de  Eckennann  são  só  estas  duas  linhas  : 

«Podemos  ser  accusados  de  imperfeição  de  forma,  mas  pelo 
que  toca  ao  fundo,  somos-lhes  muito  superiores.»  Os  críticos, 
pag.  114.  — Nào  lhe  convinha  traduzir  o  resto  ! 

(4)  «Die  Franzosen,  fuhr  Goethe  fort,  haben  Verstand  und 
Geist,  aber  kein  Fundament  und  keine  Pietát.» 


78 


convém.  Por  isso  nos  elogiam,  somente  quando  podem 
augmentar  o  seu  partido  com  as  nossas  ideias,  mas  nunca 
o  fazem  por  reconhecerem  os  nossos  merecimentos»  (1). 

Para  estabelecer  o  contraste,  ouçamos  como  o  mes- 
mo Goethe  pinta  os  allemães: 

«  0  allemão  exige  uma  certa  seriedade,  uma  certa  ri- 
queza de  (sentimento)  interior,  e  é  por  isso  que  Schiller 
é  tão  altamente  venerado. » 

Depois,  fallando  do  celebre  Platen  (2) : 

«Elle  manifesta  um  engenho  opulento,  intclligen- 
cia,  espirito  (3)  incisivo,  e  muita  perfectibilidade  artísti- 
ca na  forma;  todavia,  isto  só  não  basta,  sobretudo  (4)  pa- 
ra nós,  os  allemães.» 

Até  aqui  Goethe. 

(1)  Eckermann.  GespràrJie  mit  Goethe.  Leipzig,  1868,  3." 
ed.,  vol.  i,  pag.  116-117. 

(2)  August,  Conde  de  Platen  —  Hallermiinde  (1795-1835). 
Primeiro,  ligado  á  pliilosophia  de  Schelling  e  á  eschola  român- 
tica, emancipou-se  mais  tarde  d"ella,  e  feriu  a  sua  perniciosa  in- 
fluencia com  os  mais  profundos  epigrammas.  Seguiu  depois  a 
corrente  das  ideias  clássicas  (Schiller)  e  chegou,  no  Soneto,  na 
Ode,  na  Bailada  e  nos  seus  Epigrammas,  a  uma  perfeição  da 
forma,  em  que  mui  poucos  poetas  allemães  se  podem  comparar 
com  elle,  e  que  foi  desde  logo  admirada.  A  posteridade  come- 
çou a  fazer-lhe  mais  justiça,  e  a  respeitar,  dentro  da  admirável 
forma,  a  prodigiosa  riqueza  dos  seus  elevados  pensamentos. 

(3)  Geist.  Esta  palavra  é  mui  difficil  de  traduzir,  porque 
temem  allemão  uma  signilicaçào  peculiar,  que  nào  corresponde 
ao  sentido  vulgar  d'ella.  Ouçamos  como  Goethe  distingue  entre 
0  Geist,  no  sentido  allemão,  e  O  esprit ,  DO  sentido  francez  : 

(i  0  fsprit,  cm  francez,  aproxima- SC  do  que  DÓS  allemàe.» 
chamamos  Witz.  0  nosso  Geist,  traduziriam  os  francev 
vez  por  esprit  e  àme.  Nisto  se  contém  já  a  ideia  da  produeti- 
vidade,  que  o  esprit  francez  não  tem.  Neste  caso  particular,  po- 
rém, chamam-lhe:  génie.»  Eckermann.  Gespriiehe,  v.  u,  p.  218. 
I    Eckermann.  Qeeprâeke,  vol.  i,  pag.  99. 

Isto  eonstitue  o  máximo  elogio  ao  caracter  allemão,  dentro 
dos  limites  da  stricta  justiça. 


79 

Demais,  negar  essa  alliança  intima  entre  a  forma  e 
a  ideia,  formando  um  todo  harmónico,  é  ainda  admis- 
sível até  ao  apparecimento  de  Lessing,  mas  d'ahi  em 
diante,  tal  proposição  é  absurda,  porque  era  mister  ne- 
gar a  existência  de  tudo  o  que  a  Allemanha  fez,  desde 
Wínckelmann  até  ao  fim  da  existência  de  Goethe,  e  de- 
pois. 

Que  exemplos  pode  toda  a  litteratura  estrangeira 
apresentar  como  modelos  comparáveis  ás  traducções  de 
Shakespeare  por  Schlegel,  de  Homero  por  Voss;  traduc- 
ções que  são  quasi  uma  Nachdichtung ,  uma  w-producção 
do  original.  Que  talentos  estrangeiros  levaram  a  maestria 
da  forma  poética  além  do  que  Platen  e  Riickert  revela- 
ram na  sua  lingua,  não  fallando  nos  prodígios  únicos  da 
segunda  parte  do  Fanst? 

0  snr.  G.  M.  não  faz  mais  do  que  repetir  aqui  um 
logar-commum,  que  certos  críticos  francezes  tiveram  a 
pretenção  de  arvorar  em  principio ;  com  a  differença  po- 
rém, de  que  o  tropel,  e  as  turvas  profundezas,  são  episó- 
dios inventados  pelo  snr.  G.  M.  Os  escriptores  francezes 
devem  estar  hoje  convencidos,  que  sabiam,  até  1870,  tan- 
to do  verdadeiro  estado  intellectual,  moral  e  politico  da 
Allemanha,  como  do  que  se  passa  na  lua ;  depois  de  ha- 
verem conhecido  a  distancia  enorme  de  atrazo  em  que  es- 
tão com  relação  a  um  paiz,  que  até  alli  tinham  mimosea- 
do  com  os  gracejos  mais  pueris  (1)  —  cremos  que  chega- 

(1)  Fazemos  aqui  a  C.  Castello  Branco  a  honra  de  o  cara- 
cterisar  com  as  suas  próprias  palavras  ;  o  nome  do  auctor  não 
se  imprimiria  n'estas  paginas,  se  não  quizessemos  mostrar  ao 
leitor  estrangeiro,  como  uma  das  eminências  da  nossa  Liliput 
litteraria  avaliava  em  1865  a  Allemanha  e  os  allemães.  Falia 
dos  Eccos  da  lyra  teutonica: 


80 

rfi<>  d'aquí  :i  lo  ott  -"  annos  1  a  avaliar  aa  coo  lições 
reaes  rTaqffteUe  j »< >% < »,  e  então  poderão  haver  reconheci- 
do, <pie  essa  distíooção, ebtre  a  forma  e  a  ideia,  ooca  qne 

pretendem  earaeterisar —  6  OOm  elle>   0    discípulo    ROT. 

G-.  M. — duas  tendências  iifferenteB,  passou  em  julgado, 

desde  Lessino;  para  cá.  <>  snr.  <í.  M.  efltá,  apesar  de  ha- 
ver visitado  a  Allemanha  '1  .  envolvido  nos  cito-  mau 
triviaes  acerca  d'este  paiz,  o  que  é  resultado  de  haver 

consultado  as  fontes  impuras  de  BscriptoTes  ignorantes. 
Ainda  em  1869  se  escrevia  o  seguinte: 
cNottfe  nuns  oceupons  beaucoup  dVllc.  degrau  «piel- 

(pie  temps,  et  de  façon  à  >upposcr   ipl'elle    ne   no' 

point  étranirciv.  Da  moins  nou>  ne  oraigao&a  p  ;-  de  for- 
nnxler  des  ju^ements  fcrès  arrêtéfl  sur  BOfi  avenir.  nous 
n'ln'sitoi]>  pas  à  nous  prononcer  sur  la  juetesse  '1'  -  ir 
pé  rances  qu'elle  peut  nourrir  et  sur  la  grarité  de>  dé- 
ceptions  qui  peuvent  Tattendre.  Tout  cela  présnppose 
une  science  approfondie  de  son  cr-énie.  une  oomiaiM 
exacte  de  ses  aspirations  et  de  sou  peuple.  Toutetoi-  l'Al- 


«Seja  como  fôr,  devemos,  conhecida  a  iadole  aaufciw  do 
traduetor,  jurar  na  fidelidade  da  copia  Emquaoto  á  harmonia, 
crês  tu  que  <>s  allemãee  possam  teí  harmonia  ?  una  homens  qae 
faliam  com  espinhas  de  dbia  aaveie  atravessada*  dob  gorgomi- 
los poderão  rhvmar  melodicamenjte ?  Eu  creio  que  a  Allemanha 
faz  muita  som  ma  de  philosophia  bronca  por  não  poder  fazer 

-suaves.        /  '■'•'rrnriíi.y.  \r.ifS.  217. 

Notaremos  ainda,  quen'esta  nina  faz  uns  elogios  hyperbo- 
< !.  M..  quando  o  havia  cfescotnpt  gto  em  I  BtyTo  de  taberna, 
em  1850,  n'um  artigo  ■  Escriptores  portug  Mundo  ele- 

gdnte,  qae  temos  á  vista. 

(1)  Porque  agora  É  que  começam  |  h  a  oocupar-ue  BeríonMO- 
te  da  Allemanha,  como  86  vê  pelas  criticas  das  suas  revistas 
Bcientifícas. 

(2)  B  verdade  queesteve  alli  apenas  cumo  mero  r 
os  '■  molhados. 


81 

lemagne  véritable,  celle  dont  je  parlais  tout  à  l'heure, 
n'est  guère  connue  du  plus  grand  nombre.  D'ordinaire 
on  se  contente  de  la  juger  d'après  des  livres  surannés, 
et  des  plaisanteries  traditionnelles.  Sans  doute  tout  le 
monde  a  vu  Bade,  visite  les  bords  du  Rhin.  Nous  savons 
ou  l'on  pêche  les  meilleures  truites,  oíi  l'on  dine  à  la 
française.  Je  ne  veux  calomnier  personne.  Schiller  n'est 
pas  inconnu  parmi  nous,  et  le  Faust  de  M.  G-ounod  a 
beaucoup  contribué  à  nous  familiariser  avee  celui  de  Goe- 
the (!).  Pourtant  notre  savoir,  à  peu  de  chose  prés,  s'ar- 
rête  là.  Quelques  personnes,  poussées  par  leur  curiosité 
ou  leurs  aíFaires,  ont  vu  Francfort  ou  Munich.  Mais  le 
témoignage  de  ces  hardis  explorateurs  parait  moins  pro- 
pre  à  éclaircir  la  question  qu'à  l'embrouiller.  Que  pen- 
ser  d?une  nation  qui  ne  goúte  point  nos  calembours  (1) !» 

Isto  é  confissão  de  um  escriptor  francez,  que  acha  a 
França,  com  relação  á  Allemanha,  ainda  no  ponto  de  vis- 
ta de  M.me  de  Stáel  (1803).  O  consummado  germanista 
não  está  mais  adiantado,  e  em  1873  vem-nos  repetir  os 
mesmos  argumentos  d'esta  escriptora. 

Para  não  deixar  duvida  alguma  a  este  respeito,  quei- 
ra o  leitor  comparar  a  seguinte  passagem,  com  a  que  re- 
ferimos atraz  do  snr.  Gr.  M.,  acerca  do  processo  pelo  qual 
os  allemães  expõem  as  suas  ideias: 


(1)  C.  Selden.  Uesprit  moderne  en  Allemagne.  Paris,  Di- 
dier,  1869,  pag.  2-3. 

Três  annos  antes  (1866)  apparecia  era  Paris  um  livro  indi- 
gno, que  mostra  hoje  quanto  foi  útil,  mesmo  á  França  a  lição 
de  1870,  e  da  comrnune;  citamos  apenas  o  titulo  por  curiosida- 
de, pois  o  livro,  que  era  uma  especulação  torpe,  não  passou  da 
primeira  edição :  A.  Desbarolles,  Le  caractere  allemand  expli- 
que par  la  physiologie.  Paris,  Lacroix,  1866,  in-8.°  de  320  pag. 


82 


«Sans  doute,  il  v  a  pina  de  nuances,  plus  de  liou 
entre  les  pensões,  dans  ces  périodea  qui  fbrment  un  tont, 

et  rassemblent  sous  un  même  point  de  nie  Lea  divers 
rapports  qui  tiennent  au  même  sujet :  mais,  si  1'on  se 
laissait  aller  à  1'enchaínement  naturel  des  difféientea 
pensées  entre  elles,  on  finirait  par  vouloir  Lea  mettre 
toutes  dans  une  même  phrase.  L'esprit  humain  a  beaoin 
de  morceler  pour  comprendre ;  et  l'on  risque  de  pren- 
dre  des  lueurs  pour  des  véritéa,  quand  les  formes  mé- 
mes  du  langage  sont  obscures»  (1). 

Eis  a  fonte  primitiva,  o  espelho  em  que  M.me  de  Stad 
pretendeu  retratar  a  Allemanha  de  1803,  e  onde  a  maio- 
ria dos  escriptores  francezes  vão  colher  as  suas  idei-.is.  c 
procurar  as  feições  intellectuaes  da  Allemanha  de  1873. 
Agora  como  este  paiz,  cujo  modo  de  expressão  intelle- 
ctual  é  tão  obscuro  e  bárbaro,  tem  sido  a  pátria  da  mo- 
derna philosophia  desde  Leibnitz, e principalmente  'li- 
de Kant, por  Fichte,  Schelling,  Hegel,  Herbart.  Schleier- 
maelicr,Schoppenhauer,etc.,at(;  E.  von  Hartmann  2  — 
como  esse  paiz  analysou,  na  sua  lingua.  as  combinações 
mais  difficeia  e  mais  delicadas  das  faculdades  humanas  e 
as  reduziu  a  systemas  de  uma  admirável  Incidez  —  isso 
não  nos  explicam  os  partidários  da  forma  contra  a  ideia. 
E  verdade  que  os  svstemas  philosophicos  da  Allemanha 

(1)  M."10  de  Staêl.  De  VAllemagne,  pag.  Ml  [ed   Grarnier). 

(2)  Philo8ophie  des  Unbewumten.  Berlio,  1872,  4."  cii. 
Esta  obra  marcou  na  Allemanha  época,  e  provocou  uma 

discussão,  que  vae  tomando  cada  w.  proporções  m 
dinarias.  Temos  presente  a  4.*  ed.  (1."  em  1869),  todavia  cro- 
mos que  já  nppareceu  a  5.",  tal  é  o  enthusiasmo  cora   <|iit-  a 
massa  do  publico  intelligente  compra  e  lè  uma  obra  de  alta 
transcendência. 

Que  utopistas,  não  é  verdade,  snr.  G.  M.? 


83 

são  unia  cousa  supérflua,  e  por  isso  lettra  morta  para  o 
snr.  Gr.  M.;  não  passam  para  elle  de  um  tropel  de 
ideias  confusas,  sahidas  das  profundezas  do  espirito. 

Apressamo-nos  a  voltar  aos  argumentos  do  consuma- 
do germanista. 

Se  a  alliança,  que  referimos,  não  é  um  dote  do  espi- 
rito allemão  (falíamos  até  Groethe),  como  é  que  foram  exa- 
ctamente esses  allemães  que  levaram  a  virtuosidade, 
melhor,  a  perfectibilidade  exterior,  unida  á  máxima  pro- 
fundeza do  pensamento,  ao  extremo  limite,  na  arte  mais 
difficil,  na  arte  musical?  Parece-nos  pretenção  só  própria 
de  espíritos  mesquinhos,  que  querem  negar  clareza  e 
disposição  harmónica  a  certas  doutrinas  e  a  certos  es- 
criptores  de  uma  nação,  partindo  do  miserável  ponto  de 
vista :  que  aquillo,  que  desde  logo  se  não  manifesta  cla- 
ramente aos  nossos  olhos,  não  tem  as  condições  estheti- 
cas  requeridas.  Accusemos  antes  a  nossa  preguiça,  accu- 
semos  a  nossa  superficialidade,  que  deshabitaada  de  um 
processo  de  estudo  e  de  analyse  á  altura  do  assumpto, 
se  compraz  em  attribuir  a  causas  ficticias — effeitos  — 
que,  analysados  com  imparcialidade,  são  outras  tantas 
accusações  contra  nós  mesmo.  Temos  por  necessária 
uma  certa  perseverança,  um  systema  de  trabalho,  que 
consiste  em  lêr  e  reler,  estudar  e  reestudar,  o  que  a  nossa 
limitada  capacidade  não  abrange  de  um  lance,  e  acha- 
mos, com  algum  trabalho,  como  premio,  o  sentido,  o  se- 
gredo da  ideia  que  nos  parecera  obscura;  a  luz  então  é 
tanto  mais  vivida,  quanto  maior  foi  a  difficuldade  em 
achar  o  thesouro ;  uma  das  causas  mais  essenciaes,  e  de- 
certo a  mais  notável,  porque  d'essas  profundezas  do  es- 
pirito sahem  as  ideias  turvas,  de  que  tão  ingenuamente 


84 


falia  o  snr.  G.  M.,  é  o  pouco  conhecimento  da  fagllt 
aQemã  da  maior  parto  d'aquelles,  que  imaginam  oonhe- 
cel-a;  porque,  dotada  de  uma  grammatica  muito  com- 
plexa, só  se  adquirem  n'ella  os  foros  de  plena  liberdade 
de  analyse,  graças  a  um  trabalho  Laborioso,  qna  nip  i 
infelizmente  aquillo  em  que  se  avantajam  08  povM  ro- 
manicos,  cujas  línguas  fáceis  e  transparentes,  os  habi- 
tuam  a  vêr  e  conhecer,  sem  interpor  no  meio  a  refle- 
xão, e  uma  reflexão  ás  vezes  aturada.  Mas  adquirido  o 
conhecimento  do  organismo  intimo  da  lingua  alleiná, 
segue-se  o  pensamento  da  sua  litteratura  e  da  sua  Mâen* 
cia  com  toda  a  liberdade,  e  uma  grande  admiração,  a  que 
nos  força  involuntariamente  a  riqueza  de  um  mundo 
completamente  novo.  Então  cessa  esse  labvrintho,  e 
acha-se  o  fio  n'essas  admiráveis  phrases,  que  ás  vttee 
enchem  uma  pagina  inteira  com  um  desenho  extrema- 
mente complexo,  mas  também  extremamente  claro. 

Mui  característica  para  o  assumpto,  sobre  o  qual 
estamos  discorrendo,  é  a  seguinte  passagem  dos  G>* 
che  com  Eckermann.  Este  conversava  com  Goethe  so- 
bre sciencias  naturaes.  e  principalmente  sobre  a  imper- 
feição e  defficiencia  das  línguas,  que  eram  evusi  <le  se  es- 
palharem erros  e  opiniões,  que  não  se  podiam  DUÔB  tarde 
destruir  facilmente. 

«A  questão  é  simplesmente  esta, — disse  Goethe: 
Todas  as  linguas  formaram-sc  em  virtude  de  neces>ida- 
des  humanas  quasi  immediatas.  de  occupações  huma- 
nas.  v  de  sentimentos  gerae>  8  modofl  de  \  èr  Biulogoa, 
Ora,  quando  um  homem  superior  adivinha  OH  desoob» 
uma  ideia  áoeroa  da  acção  Becreta  e  da  marcha  tia  na- 
tureza, torna->e  a  linguagem  tradicional  insuficiente  pa- 


85 


ra  traduzir  o  phenomeno  tão  fora  da  percepção  das  cou- 
sas humanas.  Seria  mister  que  tivesse  á  sua  disposição 
a  linguagem  dos  espíritos,  para  dar  a  conhecer  as  suas 
percepções  singulares ;  como  porém  isto  não  se  dá,  vê-se 
obrigado  a  lançar  mão  de  expressões  hmnanas  para  ma- 
nifestar o  seu  modo  de  vêr  (Anschauung)  nas  relações 
superiores  da  natureza,  e  eil-o  envolvido  quasi  sempre 
em  difficuldades,  tendo  de  rebaixar  o  seu  objecto,  muti- 
lal-o,  ou  mesmo  destruil-o. 

«Se  dizeis  isso,  respondi  eu  (Eckermann),  vós  que 
encaraes  o  vosso  propósito  sempre  com  tanta  precisão, 
como  inimigo  que  sois  de  toda  a  palavra  vã  (phrase);  vós, 
que  sabeis  achar  para  as  vossas  percepções  superiores 
sempre  a  expressão  mais  apropriada,  torna-se  o  caso 
particularmente  notável.  Eu  penso  todavia  que  nós,  alle- 
mães,  podemos  em  geral  darmo-nos  por  satisfeitos.  A 
nossa  lingua  é  extremamente  rica,  desenvolvida,  e  ca- 
paz de  augmento  progressivo,  de  sorte,  que  embora  de 
vez  em  quando  lancemos  mão  de  um  tropo,  approxima- 
mo-nos  bastante  do  que  queremos  exprimir. 

«Os  francezes  estão  porém  a  este  respeito  muito peor do 
que  nós.  N'elles  torna-se  a  expressão  de  uma  percepção 
superior,  nas  relações  da  natureza,  logo  vulgar,  e  mate- 
rial, em  virtude  de  um  tropo  geralmente  emprestado  á 
technica  da  linguagem,  de  sorte  que  se  torna  insumcien- 
to  para  a  expressão  do  modo  de  vêr  superior. 

«Quanto  tendes  razão  —  acudiu  Goethe,  notei-o  já 
outro  dia,  a  propósito  da  discussão  entre  Cuvier  e  Geof- 
froy  de  Saint-Hilaire  (1).   Geoffroy  de  Saint-Hilaire  é 

(1)  Esta  questão,  que  já  referimos  (0  Faust,  pag.  58-59 ; 
vid.  também  Eckermaun.  Gespràche,  vol.  ix,  pag.  234),  versava 


86 

um  homem,  que  tem  uma  percepção  profunda  do  pro- 
cesso creador  da  natureza;  todavia  a  Bua  língua  /rance- 
za  atraiçoa-o,  porque  o  obriga  a  lançar  mao  de  termos 
tradicionaes.  E  isto  dá-se  n'elle,  não  só  quando  se  trata 
de  assumptos  e  relações  occul tas  e  espirituaes,  mas  tam- 
bém a  propósito  de  assumptos  e  relações  puramente  corv 
poreas.  Quando  quer  significar  as  partes  isoladas  de  um 
sêr  orgânico,  não  tem  para  isso  outra  palavra,  além  de 
materiaes  ( Mater ialxen),  de  sorte  que  vem  "-  os  <»sos — 
que,  como  partes  semelhantes,  formam  um  todo  orgânico 
— e  o  braço,  ficarem  collocados  na  escala  da  expressão 
em  um  mesmo  degrau,  juntamente  com  as  pedras,  traves 
e  taboas  de  que  se  forma  uma  casa»  (1). 

Que  aproveite  a  lição  ao  snr.  G.  M.,  e  aos  collegas. 
Um  bouquet  emfim,  o  melhor,  que  reservamos  para 
o  fim  —  e  que  damos  sem  commentarios : 

«Os  allemães,  que  tanto  devem  á  litteratnra  frau- 
ceza,  teem  por  varias  vezes  tido  a  franqueza  de  decla- 
rar, pela  bocca  de  seus  mais  notáveis  escriptores,  que  a 
ultima  consagração  de  suas  obras  capitães  lhes  vem  de 
uma  boa  traducção  franceza»  (2). 

sobre  uma  das  questões  mais  importantes  da  biologia,  acerca 
da  Unidade  da  formação  orgânica  no  reino  animal.  Goethe  ha- 
via já  expendido  antes  d'esta  questão  (1830)  as  suas  ideias  acer- 
ca da  metamorphose  no  reino  animal  e  vegetal,  e  havia  expos- 
to ideias,  que  ao  principio,  tidas  per  extravagantes  por  Cam- 
pei- e  Blumenbach,  foram  acceitea,  admiradas,  e  Begnidaa  depois 
por  Sõmmering,  Oken,  D' Alton,  Canis  e  outros.  Qmlo  grande 
não  devia  pois  ser  a  alegria  do  ancião  octogenário,  quando,  ou- 
vindo da  questão  entre  (uvier  e  Geoffroy  Saint-Hilaire,  soube 
que  est«  illustre  homem  de  scienoia  se  havia  collocado  do  seu 
lado!  (Vid.  Eckerinann.  Gespriichr,  vol.  i.  pag.  239,  6  vol.  n. 
pag.  234.  235  e  243.; 

(1)  Eckermann.  G<í}>r<ic/w,  vol.  m,  pag.  242  e  243. 

(2)  Os  críticos,  pag.  22. 


CAPITULO  YI 


Goethe 


a)  Goethe  e  as  leis  da  historia  litteraria 


Este  capitulo  é  curioso,  e  offerece-nos  revelações 
capitães  de  tal  ordem,  que  nos  custa  a  crer  como  o  snr. 
G.  M.  teve  a  audácia  de  dizer  taes  misérias. 

Ouçamos :  o  snr.  G.  M.  implicou  com  o  seguinte  pe- 
ríodo .da  nossa  obra:  «Sem  Klopstock  e  sobretudo  sem 
Lessing,  sem  Herder  e  sem  Wieland — Goethe  era  um 
impossível»  (1). 

Este  período,  que  pertence  a  uma  breve  exposição 
litteraria,  é  o  corollario  de  um  outro  anterior  (2) : 

«...  pois  a  belleza  da  forma,  encobrindo  ás  vezes 
uma  certa  em phase  na  ideia,  havia  de  dar,  passando  em 


(1)  O  Faust,  pag.  17. 

(2)  O  Faust,  pag.  2. 


processo  psychologico  pelo  espirito  profundamente  cri- 
tico de  Lessing,  pela  sciencia  cosmopolita  de  Herder, 
pelo  fogo  enthusiasta  de  Schiller,  pela  graça  e  elegân- 
cia de  Wieland ;  dizíamos  havia  de  dar,  por  via  d'este 
processo  de  aperfeiçoamento  esthetico,  um  resultado  to- 
tal, que  representasse  collectivamente  todos  os  esforços 
isolados  para  um  ideal  commum? 

Isto  fora  dito  com  relação  á  grotesca  e  falsa  ideia 
do  Visconde  de  Castilho,  que  achava  o  Faust  «uma  oor- 
dilheira  de  poesia  rebentada  a  súbitas  de  profundeza* 
desconhecidas»  (1). 

Pareceu-nos  que  em  vista  d'esta  ignorância  elemen- 
tar de  uma  das  leis  da  historia  litteraria,  a  do  encadea- 
mento lógico  dos  phenomenos  intellectuaes  e  das  pro- 
duccões  litterarias,  era  mister  mostrar  ao  leitor  (2) 
a  ligação  do  Faust,  e  a  ligação  de  Goethe  com  a  evolu- 
ção das  ideias,  desde  a  Reforma  (3).  0  snr.  G.  M.  acha 
porém,  que  esta  ligação  entre  Goethe  e  a  litteratura  al- 
lemã  anterior  é  imaginaria,  e  então  de  todo  absurda, 
se  fallarmos  na  Reforma  e  em  Hans  Sachs  «o  sapa- 
teiro», como  o  snr.  G.  M.  o  denomina  (4).  Está  pois 
em  concordância  com  o  Visconde;  embora,  não  lhe  in- 
vejamos a  companhia;  o  snr.  G.  M.  repete  o  erro.  ve- 
lhíssimo que  Goethe,  Camões  etc,  sã<>  appariçOM  lit- 


(1)  Fausto,  advertência,  pag.  vn. 

(2)  Repetimos:  ao  leitor,  porque  o  Visconde  de  Castilho, 
para  a  critica,  está  morto. 

(3)  O  Faust,  pag.  11-17. 

(4)  Veja-se  o  longo  aranzel  de  pag.  62-65. 

Se  o  snr.  G.  M.  pretende  Eazer  <  Bpirito  cem  a  qualificação 
de  sapateiro,  com  que  designa  0  genial  IIati>  S.uhs  por  repeti- 
das vezes,  lastimamos  o  seu  estado  iutellectual. 


89 


terarias  sem  precedentes,  plunomenos  inexplicáveis,  e 
é  de  opinião  «que  estas  águias  (1)  do  01ympo'da  poe- 
sia, podem  dizer  se,  como  os  habitantes  do  solo  privile- 
giado da  Attica,  autoclitonos»  (pag.  64). 

Parece-lhe  absurdo  o  que  nós  avançamos,  e  diz  : 

«  A  força  de  laboriosos  estudos  genealógicos,  des- 
cobriram-se  os  seus  ascendentes  humanos,  sem  os  quaes 
Goethe  era  um  impossível !  Parece-nos  mesquinho  este 
methodo  archeologico  para  rebaixar  a  realeza  do  gé- 
nio» (ibid.). 

Infelizmente  não  estamos  a  sós,  na  applicação  d'este 
methodo  archeologico;  estamos  ao  lado  de  Gervihus,  ao 
lado  de  Koberstein,  ao  lado  de  Carriere — ao  lado  do 
próprio  Goethe;  aprenda  o  snr.  Gr.  M.  como  estes  mes- 
mos escriptores  estabelecem  a  ligação  de  Goethe,  não 
só  com  os  outros  grandes  escriptores  do  século  xvili, 
mas  até  com  a  Reforma  e  com  Hans  Sachs. 

«De  novo  decahiu  durante  dois  séculos  a  vida  in- 
tellectual  e  politica  da  Allemanha,  immersa  nas  aguas 
lôbregas  da  theologia;  mas  eis  que  os  prenunciadores 
da  litteratura  allemã  chamam  de  novo  os  espíritos  a 
uma  vida  commum,  até  alli  não  conhecida,  reatando  a 
tradição  de  Luthero»  (2). 

Como  falíamos  ao  snr.  G.  M.  em  leis  da  historia 
litteraria,  não  nos  entendia;  é  mister  pois,  que  lhe  mos- 
tremos o  facto  como  ás  crianças,  preto  sobre  branco. 

Ouçamos  agora  a  confirmação  em  outros  auctores 
de  primeira  ordem: 

(1)  Uma  imagem  nova... 

(2)  Gervinus.  Wissenschaftspflege  in  Deutschland,  em  Ge^ 
schichte  des  neunz.  Jahrh.  vol.  viu,  pag.  8, 


90 


Que  diria  o  snr.  G.  M.,  se  alguém,  a  propósito  da  Re- 
forma e  da  sua  influencia,  se  lembrasse  de  preceder  a  ex- 
posição com  uma  analyse  do  espirito  da  litteratura  dos 
antigos? 

Parecer-lhe-hia  uma  loucura  ? 

Pois  n'esse  caso  o  louco  era  Goethe,  que  o  disse  mui 
claramente : 

«...  Pois  não  foi  a  um  exame  e  a  um  estudo  mais  la- 
to e  mais- puro  da  litteratura  grega  e  romana,  que  deve- 
mos a  libertação  da  barbárie  monachal  entre  o  xv  e  xvi 
século?))  (1). 

ErTtre  Goethe  e  a  Reforma,  entre  as  ideias  do  poe- 
ta e  as  dos  grandes  reformadores,  existem  mais  pontos 
de  contacto  do  que  o  snr.  G.  M.  suppõe — porque  não 
suppõe  nenhuns.  Se  o  snr.  G.  M.  tivesse  estudado  os 
Gesprãche  com  Eckermann,  em  vez  de  abrir  o  livro  aqui 
e  alli  na  traducção  franceza,  havia  de  lá  achar  numero- 
sas relações  que  prendem  Goethe  com  a  Reforma,  e  par- 
ticularmente com  Luthero,  que  elle  altamente  respei- 
tava : 

«Luthero  foi  um  génio  da  mais  notável  força:  ha 
muito  que  elle  exerce  a  sua  influencia,  e  c-  impo»iv.  1 
calcular  quando  é  que  cessará  de  ser  productivo  nos  sé- 
culos vindouros»  (2). 

Em  outra  passagem  ainda  Goethe  accentua  mais  a 
influencia  de  Luthero: 

«Nós  nem  sequer  sabemos,  continuou  Goethe — 
tudo  o  que  em  geral  devemos  a  Luthero  e  á  Reforma, 

(1)  Apud  CsirricreSErlàuteruif/cn,  Faust,  2.«  parte,  p.  269. 

(2)  Eckermann.  Gesprãche,  vol.  m,  pag,  1">7.  Carta  do  11 
<li"  Março  de  1828. 


91 


Libertamo-nos  dos  laços  da  bestialisação  moral  e  intel- 
lectual,  e  foi-nos  dado  tornar,  em  virtude  da  nossa  cul- 
tura progressiva,  ás  fontes  primitivas  e  comprehender 
o  christianismo  na  sua  pureza. 

«Temos  agora  de  novo  coragem,  para  estar  com  o  pé 
firme,  na  terra  de  Deus,  e  para  sentir  a  divindade  da 
nossa  condição  humana. 

«Progrida  embora  a  cultura  do  mundo,  estendam 
embora  as  sciencias  naturaes  o  seu  domínio,  aprofundan- 
do-o  e  alargando-o ;  conquiste  o  espirito  humano  á  von- 
tade novos  horizontes  —  comtudo  não  ultrapassará  a  su- 
blimidade e  a  cultura  moral  do  christianismo,  tal  como 
brilha  nos  evangelhos»  (1). 

Isto,  o  credo  da  Reforma,  modificado  á  luz  do  sécu- 
lo xix  —  escrevia  Goethe  ainda  em  1832,  com  83  annos, 
depois  de  haver  terminado  o  Faust  (Julho  de  1831). 

O  snr.  G.  M.  ri-se  também  da  relação  em  que  pu- 
zemos  Goethe  e  Hans  Sachs ;  este  prende  intimamente 
com  a  Reforma;  logo,  havendo-se  rido  o  snr.  G.  M.  da 
relação  que  achámos  entre  Goethe  e  aquelle  movimen- 
to, era  lógico  que  se  risse  também  da  segunda  relação. 

E  na  verdade  espantoso  ver  um  poeta  do  começo  e 
meado  do  século  XVI  em  relações  com  um  do  meado  e  fim 
do  século  xvin !  Fel-o  pasmar  o  intervallo.  Mas  o  peor 
é  que  os  commentadores  fazem  continuas  referencias  a 
Hans  Sachs,  a  propósito  de  Goethe  e  do  próprio  Faust ! 

«0  tom  popular  de  Hans  Sachs  resuscita  n'ellas», 
isto  é,  em  algumas  scenas  do  Faust  (2). 

(1)  Eckermann.  Gesprãche,  vol.  m,  pag.  252,  a  11  de  Mar- 
ço de  1832.  Veja-se  ainda  sobre  Luthero,  vol.  m,  pag.  33. 

(2)  Carriere.  Einleitung,  Faust  l.a  parte,  pag.  xi. 


99 


A  propósito  das  palavras  firmes  de  Mephisto  no  Pro- 
logo no céo  (1),  diz  Carriere  « Goethe  tratou  esta  scena de 
um  modo  bum  ano  e  popular,  ligando  o  tom  solemne  e 
o  jocoso,  no  espirito  ingénuo  dos  antigos  pintores  e 
com  a  liberdade  innocente  do  um  Hans  Sachs  »  (2  , 

Mais  um  testemunho  a  nosso  lavor:  Kobeist<-in. 
um  critico  e  historiador  litterario  de  primeira  ordem, 
insiste  também  sobre  a  influencia  visível  e  o  estudo  que 
Goethe  fez  das  obras  de  Hans  Sachs : 

«Também  na  versificação  se  nota  uma  grande  varie- 
dade; ora  os  metros  de  Hans  Sachs,  ora  estrophes  rima- 
das em  todas  as  medidas  e  comprimentos.    .  »  (3) 

Isto  tudo  são  attribuições  de  critieos.  dirá  o  snr.  G. 
M.,  mas  então  ouça  o  próprio  Goethe.  Fallando  da  hi>- 
toria  do  Judeu  cwautcque  ellequiz  aproveitar  poetíi  i 
mente,  diz: 

«Eu  tinha-o  (ao  Judeu)  dotado  com  o  humor  de 
um  artífice  (o  judeu  era  personificado  n'um  sapateiro) 
com  o  humor  e  et^vrito  de  //nus  Sachs,  e  havia  o  nobi- 
litado com  o  amor  a  Christo»  (4). 


d)  '  De  tempos  a  tempos.»  etc.  V.  0  Fauat,  pag.  221. 

[2)   Op.  cif.  Erlihitfntugni .  F.-uisf.l.'  n.<rt<\  p  i u .  171. 

(8)  GruAdriee.  4.  Geeóh.  dqrdeuL  Xat.Lit.  Leipzig.  1866, 
vol.  ih,  pag.  2181,  nota,  (a  paginação  ó  a  seguir). 

(4)  Dichtung  >md  Wahrheit.  3\*  jíftrtè,  pag.  646  (Gbtthtfè 

Werle,  ed.  Kurz,  1870,  vol.  ix). 

E  extremamente  curiosa  a  inaiu  ira  OOmÒ  Goethe  explica  a 

ideia  (1'iste  poema,  qae  beto  foi  escriptoj  mas  cuja  odbcepçáo 

chegou  a  realÍBar-6e  no  seu  espirito. 


93 


b)  Goethe  avaliado  no  seu  caracter,  como  homem 

Exn  minemos  agora  a  pintura  que  o  snr.  G.  M. 
nos  faz  de  Goethe  (1),  em  seguida  á  apreciação  do  nos- 
so methodo  archeoloç/ico  em  historia  litteraria.  Os  orácu- 
los a  que  snr.  G.  M.  se  encosta  são  H.  Blaze  (!),  Hei- 
ne  (!!)  Bossert  (!!!)  e  Eckermann;  e  este  ultimo  como 
foi  aproveitado! 

Já  vimos  o  que  valem  estes  escriptores  (2),  por 
isso  tomaremos  o  que  o  snr.  G.  M.  refere  d'elles  em 
globo;  H.  Blaze  fornece  ao  nosso  adversário  a  já  falla- 
da  phantasia  do  egoísmo  de  Goethe,  á  qual  responde- 
remos de  uma  vez  para  sempre.  Tomamos  só  duas  au- 
thondades  insuspeitas — Lewes,e  o  celebre  Carlyle;  estes 
dois  inglezes  esmagam  esse  logar  commum,  que  por  ser 
tantas  vezes  repetido,  e  mentido  —  é  tanto  mais  infame: 

Lewes,  depois  de  haver  referido  (3)  aquella  cele- 
bre história  cias  relações  de  Goethe  com  um  desconhe- 
cido, a  quem  por  seis  longos  annos  soccorreu  com  a 
sexta  parte  do  seu  ordenado,  e  depois  de  passar  em  re- 
vista a  sua  correspondência  com  aquelle  infeliz,  es- 
creve : 

«Não  invejo  a  philosophia  d'aquelle  que  lêr  estas 
cartas  sem  commoção.  Segundo  o  meu  modo  de  sentir, 
revellam  ellas  uma  natureza  dotada  de  um  sentimento 
tão  extremamente  carinhoso,  tão  sensível  ao  interesse 
pela  humanidade,  tão  prompta  em  alliviar  a  dôr,  mes- 

(1)  Os  críticos,  pag.  66-81. 

(2)  Vide  o  capitulo  iv.  As  fontes  de  consulto. 

(3)  Goethe's  Leben,  pag.  487-499. 


94 


mo  á  custa  de  sacrifícios,  como  raras  vezes  se  encon- 
tram entre  amigos,  e  muito  menos  para  com  um  estra- 
nho; depois  de  se  lerem  essas  cartas  soam  os  epitlu-tos 
de  /no  e  sem  coração,  que  tão  frequentemente  se  appli- 
cam  a  Goethe,  como  heresias  lançadas  contra  os  senti- 
mentos mais  nobres  da  humanidade.  Note-se  bem  que 
este  Kraft  (nome  do  favorecido)  não  offerecia  interes- 
se algum  romântico  para  o  sentimento;  não  tinha  his- 
toria alguma  a  contar,  d'aquellas  que  costumam  com- 
mover  profundamente  o  coração;  não  se  havia  aberto 
subscripção  alguma  para  elle,  não  tinha  coterie  alguma 
a  seu  favor,  que  lagrimejasse  a  sua  sorte.  Sem  amigos, 
desconhecido,  em  contradiceão  comsigo  mesmo  e  com 
o  mundo,  descobre  a  sua  miséria  em  segredo  ao  grande 
poeta,  e  também  em  segredo  lhe  aperta  este  a  mão;  lim- 
pa-lhe  as  lagrimas,  e  trata  de  prover  ás  suas  necessi- 
dades; e  não  é  isto  um  facto  isolado,  um  movimento 
passageiro  de  compaixão,  mas  uma  bondade  posta  em 
acção  durante  seis  amios. 

«Parece-me  a  mim,  o  quer  que  é  de  doloroso  e  com- 
movedor,  que  um  homem  d'esta  ordem  tosse  falsamen- 
te aceusado  de  frio  e  sem  coração,  durante  tantos  ânuos, 
não  só  na  sua  pátria,  mas  também  entre  nós,  na  Ingla- 
terra. Um  comportamento  um  pouco  reservado  e  for- 
mal, uma  certa  falta  de  enthusiasmo  politico,  na  edade 
avançada,  e  algumas  exclamações  mal  interpretadas  1 
— eis  os  factos  que  servem  de  base  á  singular  opinião: 
que  Goethe  presidia,  qual  Júpiter  olympioo,  em  um 


1     Veremos  com  que  espirito  de  critica  o  ror.  G.  M 
aproveitou  de  uma  d'estas  citações,  que  se  acha  em  Eckermann. 


95 


throno,  sobre  a  humanidade,  e  olhava  para  a  vida,  sem 
a  sentir  com  o  seu  próximo;  que  o  seu  coração  era  morto 
para  todo  o  sentimento  nobre,  e  que  toda  a  sua  vida  não 
fora  mais  do  que  egoísmo  calculado.  Agora,  como  uma 
tal  creatura,  sem  coração,  pôde  tornar-se  o  maior  poeta 
dos  tempos  modernos;  como  um  diplomata,  gelado  e 
sem  sangue  nas  veias,  pôde  estender  diante  dos  nossos 
olhos  toda  a  vida  humana — isso  é  milagre  que  ainda  a 
ninguém  approuve  explicar,  até  que  Menzel  (1)  appare- 
ceu  e  avançou,  com  um  atrevimento  sem  precedentes, 
a  proposição,  de  que  Goethe  não  era  um  génio,  mas  só 
um  talento,  e  que  todo  o  effeito  das  suas  obras  depende 
do  seu  estylo,  de  uma  certa  habilidade  na  forma  de  ex- 
posição !  Menzel  é  um  homem  que  a  Inglaterra  senten- 
ciou tão  absolutamente — a  traducção  da  sua  obra  foi 
acolhida  com  uma  indifferença  tão  radical,  que  talvez 
seja  supérfluo  gastar  uma  linha  com  elle ;  entretanto,  o 
tom  atrevido  da  sua  obra,  e  a  apparencia  de  uma  certa 
dignidade  viril  nas  suas  accusações,  ajudaram  a  propa- 
gar o  livro  de  uma  maneira,  que  não  é  todavia  o  resul- 
tado do  seu  valor.  Segundo  a  minha  opinião,  julgo-o 
completamente  incapaz  de  avaliar  um  poeta;  eu  per- 
guntaria do  mesmo  modo  pela  opinião  do  primeiro  fi- 
dalgo da  província  acerca  do  Parthenon,  e  este  teria 
decerto  algumas  phrases  enérgicas  disponíveis,  para 
mimosear  o  edifício  com  a  expressão  do  seu  desprezo; 
somente  o  que  a  sua  linguagem  desbravada  não  pode- 
ria substituir,  seria  o  sentimento,  o  gosto  e  os  conheci- 
mentos. 

(1)  Na  obra :  Die  deutsche  Literatur.  Stuttgart,  1827,  2 
vol.;  2.e  ed.  1836,  4  vol.  (Nota  do  auctor). 


96 


«Do  mesmo  modo  consideramos  que  a  brutalidade 
(sic)  de  Menzel  não  pode  preencher  te  lacQUAi  da  sua 
capacidade  natural  e  d;i  sua  educarão.  tactUMfl  que  0 
tornam  de  uma  vez  para  sempre  incapaz  para  a  inte- 
ligência da  arte  (1). 

«0  enigma  fica  pois  de  pé,  embora  peito  aos  críticos: 
um  grande  poeta,  a  quem  todos  os  sentimentos,  que  a 
poesia  representa,  são  estranhos:  —  um  espirito  pode- 
roso, sem  alma — um  homem,  que  escreve  o  W&thBr, 
Egmont,  Faust,  Wilhehn  Meisti ,-,  Hêrmanii  wtiâ  Doro- 
thea  —  e  não  conhece  as  alegrias  e  as  dores  dYste  mun- 
do! Poderá  alguém  querer  defender  a  serio  semelhan- 
tes ridicularias?  Ainda  é  notável,  que  todo>  aqudles 
que  conheciam  Goethe,  lhe  eram  affeiçoados;  crèfluç  s. 
mulheres,  copistas,  professores,  poetas,  príncipes — to- 
dos o  amavam  tanto,  como  merece  sel-o  uma  creatura 
digna  do  amor.  Até  Herder,  que  se  queixava  amarga- 
mente de  todo  o  mundo,  fallava  d'elle  com  uma  amisa- 
de  e  estima,  que  fez  pasmar  Schilier:  v.€roéthi  énotn&ado 
por  toda  a  gente  (mesmo  além  de  Herder i  n>m  uma 
pede  de  adoração,  <•  éttmãdb  e  <i<h/tir<i</n  àitida  mias  ôonfa) 
homem,  do  que  como  èêcriptòr.  Herder  concede-lhè  tttàá 
razão  clara  e  universal,  o  modo  de  sentir  in<rls  verd 
e  a  máxima  piírezh  dr  cotação  ». 

«Isto  mesmo  se  haveria  colligido  das  suas  obras, 
se  a  opinião  antecipada  acerca  da  sua  frieza  e  inditfe- 
rença.  não  houvesse  enganado  a  opinião.  »  «  Km  ttêtlhu- 
uki  Ihdxi.  diz,  < 'arlyle.  /'"//"  etle  tíont  âuretá  tífot  l»<- 
mem  algum,  e  quasi  se  pôde  dizer  sobre  cousa  (ilguuui. 

(1)  «Zuni  VerBtttndniáta  d«t  Kunst  • .  LeWôô,  vd  i,  pag.  501. 


97 


Elle  conhece  o  bom,  e  ama-o;  elle  conhece  o  mau  e  o 
repugnante,  e  condemna-o;  mas  ambas  as  cousas  fal-as 
sem  violência.  0  seu  amor  é  plácido  e  creador;  a  sua 
sentença  é  antes  indicada  do  que  claramente  expressa». 
Excepções,  como  aquella  celebre  palavra  sobre  Kotze- 
bue  (1)  e  Bottiger  (2)  «os  canalhas  mais  radicaes  que 
Deus  creou » ,  provam  só  que  também  podia  ter  o  ódio 
do  homem  honrado,  como  elle  se  encontra  numa  na- 
tureza forte. 

«  Mas  assim  succedem  as  cousas  na  vida;  um  boato, 
nascido  talvez,  ou  da  ignorância,  ou  da  leviandade,  é 
espalhado  pela  malevolencia  officiosa,  e  ganha  credito 
contra  todas  as  razões  plausíveis.  Certos  nomes  ha,  a 
que  se  liga  um  preconceito  favorável  ou  desfavorável, 
ao  qual  a  gente  se  entrega,  sem  lhe  indagar  a  origem. 
Talvez  eu  possa  esperar,  que  a  eloquência  dos  factos, 
aqui  indicados,  consiga  propagar  pouco  a  pouco  uma 


(1)  A.  F.  Kotzebue  (1761-1819)  distinguiu-se  como  auctor 
de  varias  comedias,  que  revelam  espirito  fino,  riqueza  de  imagi- 
nação, e  talento  scenico.  Infelizmente  a  ideia  moral  das  suas  pe- 
ças era  da  peor  espécie  :  uma  alliança  torpe  de  sentimentalismo 
e  immoralidade.  Por  isso  o  puzeram,  já  em  vida,  no  pelourinho  ; 
a  posteridade  sentenciou-o  ainda  mais  severamente  do  que  Pla- 
ten : 

«Er  schmierte,  wie  man  Stipfel  schmiert,  verzeiht  die  Trope, 
«  Und  úbertraf  an  Fruchtbarkeit  selbst  Calderon  und  Lope.  > 

Borrou,  como  quem  borra  botas,  desculpae  o  tropo 
E  excedeu  em  facúndia  Calderon,  e  até  Lope. 


(2)  K.  A.  Bottiger  (1760-1835),  um  dos  críticos  de  Goethe, 
que  a  posteridade  recompensou  com  o  esquecimento.  O  que 
ainda  hoje  subsiste  d'elle,  são  alguns  estudos  sobre  archeologia. 


98 


opinião  mais  favorável  acerca  do  caracter  de  Goe- 
the» (1). 

Eis  o  que  temos  a  responder  ao  snr.  <t.  M.  á<"<T«;i 
do  egoísmo  de  Goethe,  e  fecharíamos  já  aqui  esta  ca- 
pitulo, se  não  tivéssemos  a  notar  ainda  algumas  curio- 
sidades, p.  ex. : 

«Apezar  de  um  tanto  anachronicas  na  época  bri- 
lhante em  que  floresceram  os  grandes  luminares  (2)  da 
philosophia  e  da  litteratura  germânica,  essas  doutrinas 
obsoletas  (as  sciencias  cabalísticas)  tiveram  um  acérri- 
mo defensor  e  ardente  renovador  na  pessoa  de  Ha- 
mann,  espirito  extravagante,  mas  dotado  de  grande  in- 
telligencia  e  de  profundo  saber»  (p;tg.  QS  :  em  seguida: 

«Quasi  pelo  mesmo  tempo  que  este  illumiuado  dava 
á  luz  as  suasobrasde  Bciencia  hermética  •■■  •  •  Quecha- 
ma  o  snr.  G.  31.  sciencia  hermética?  Que  significa  o  <7- 
luminado,  com  relação  ao  Magu%  des  Nordensf  Quer  o 
snr.  G.  M.  fazer  passar  Hamann  por  um  espirito  ca- 
balístico, como  os  alchimistaa  do  tempo  de  Fausta  Não 
sabe  o  snr.  G.  31.,  que  o  cabalístico  em  Hamann  está 
apenas  na  fórma  singular  por  que  exprime  as  suas  ideias. 
aliás  admiráveis  (3)  —  emquanto  a  Bciencia  dos  outros 

(1)  Lewes,  Goethe 's  Leben,  vol.  í,  pag.  499-503. 

0  admirável  capitulo:  Derwàhre  Meiuchenfreund  [o  Ver- 
dadeiro philau tropo),  abrange  nada  menos  de  "-'"-'  pi  ■-■:  481-503. 

(2)  Outra  imagem  aova. 

(3)  Publicou -se  ha  mezee  um  trabalho  sobro  esto  escriptor: 
Joh.  Georg.  HaiiianuV  Schriften  und  Briefe.  Zn  leichterem 
Vorstandiiiss  im  Zaaammenhange  Beinea  Lebens  erl.  und  he- 
raasg.  vnn  Muritx.  Petri.  I.'  parto.  Bannover,  1^72.  in-8.°  de 
viu  —  424  pag.    O   Literarischea   CentralblcUt     N.     _.    ls7.;. 

56  e  -r>7  .  dava  uma  analyse  mui  severa  d'eete  trabalho, 
negando  a  rétri  capacidade  para  comprehender  um  espirito 
tSo  profundo. 


99 


era,  em  geral,  apenas  uma  phraseologia  de  charla- 
tães? 

Por  que  se  admira  d'essas  tendências  um  tanto  ana- 
chronicas,  na  época  dos  luminares  da  philosophia? 

Não  sabe  o  snr.  G.  M.  que  essas  tendências  resus- 
citaram  no  principio  da  segunda  metade  do  século  xvm, 
como  um  residtado  natural  do  impulso  extraordinário 
que  tomaram  então  as  sciencias  naturaes  e  a  philoso- 
phia? 

O  snr.  G.  M.,  na  sua  ignorância  d'esta  connexão  das 
ideias  (1),  pôde  dizer  que  phantasiamos  de  novo  uma 
relação, que  não  existiu;  mas  ouça  e  aprenda: 

«Assim  como  dois  séculos  antes  a  energia  theolo- 
gica  e  vivificadora  do  pensamento  reformista  havia 
posto  as  forças  secretas  do  sentimento  em  fermentação 
perigosa,  e  havia  pintado  em  relevo  as  sombras  profun- 
das da  superstição  fantástica,  em  frente  da  luz  fulgu- 
rante do  sol  humanitário  e  benéfico  que  havia  despon- 
tado—  assim  agora  se  via  o  enthusiasmo  da  felicidade 
e  do  progresso  d'este  renascimento,  envolvido  n'uma 
dansa  macabrea  de  phaatasmagorias  magicas  e  alchy- 
misticas,  rodeado  de  todos  os  feitiços  de  eras  passadas, 
e  que  haviam  já  sido  alcunhados  de  ingénuos.  O  fa- 
brico do  ouro,  as  prophecias  e  evocações  dos  espíritos, 
a  astrologia  e  toda  a  sorte  de  magia,  que  datava  dos 
bellos  tempos  de  Faust  e  Paracelsus,  e  que  todavia  não 
tinham  desapparecido  completamente  da  Allemanha; 
acordaram  de  novo  a  uma  vida  fantástica,  no  meio  das 
victorias  das  sciencias  naturaes  e  da  philosophia»  (2). 

(1)  Se  são  tudo  phenomenos  para  elle ! 

(2)  Kreyssig.  Vorlesungen,  pag.  31. 


100 

Agora  daremos  a  explicarão  philosophica  d'este  phe- 
nomeno: 

«Repetiu-se  o  impulso  retrogado  (que  inun-a  falta 
n'estes  momentos)  de  uma  renovação  intellectual  e  sen- 
timental, sobre  a  Imaginação  dos  contemporâneos  mais 
fracos  e  mais  impressionáveis,  que  posavam  dos  benefí- 
cios, sem  comtudo  se  sentirem  inclinados  ou  capazes 
para  o  trabalho  commum.  Sabemos,  como  é  notório  pe- 
las próprias  communicações  de  Goethe,  como  elle  se- 
guiu aquelle  movimento,  pelo  menos  na  qualidade  de 
espectador  curioso»  (1). 

Carriere  confirma  o  modo  de  ver  de  Kreissig;  de- 
pois de  fallar  no  movimento  de  renovação,  produzido 
pela  Reforma,  e  nas  luctasmoraes  da  humanidade,  diz: 
«O  que  n'um  tempo  de  ebulição  poética  eommove  o  co- 
ração da  humanidade,  incarna-se  por  meio  da  phantasia, 
n'uma  figura  poética;  assim  nasceu  a  lenda  do  Faunf, 
como  uiii  symbolo  do  espirito  d'aquelles  tempos  »    -  . 

Goethe  foi  mais  do  que  isso;  é  elle  que  o  diz  n'uma 
passagem  mui  característica  da  auto-biographia,  e  que 
nós,  pelo  que  sabemos,  ainda  não  achamos  aproveitada 
em  parte  alguma  —  passagem  que  nos  pinta  o  estado  de 
Goethe  n'um  certo  período  da  sua  vida  e  nos  dá  a  chave 
para  o  Faust: 


(1)  Kreyssig.  Famt.  EKnleikmg,  pag.  v. 

j    Kjueyssig.  Vorlasunge»,  pag  $X. 

K  com  isto  reduzimos  de  novo  a  nada,  a  tendência  innata 
para  o  maravilhoso, <jue  Castilho  attribae  a  Goethe,  opinião 
que  o  sur.  (í.  M.  se  esforça  por  defender;  a  tendência  estava 
nu  espirito  da  vpoca}  e  Goethe,  como  poeta  e  filhod'esBa  época, 
idralisou-a  numa  obra  prima.  Kis  a  raafto  de  F<ui*t  l.1  pane 
no  fim  do  século  xvm.  A  'J.*  parte  é  tilha  do  século  xix. 


101 


«Um  sentimento,  porém,  que  de  mim  se  apoderou 
com  violência,  e  se  manifestava  da  maneira  mais  singu- 
lar, era  o  sentimento  do  passado  e  do  presente,  fundi- 
do em  um  só  (1);  uma  percepção  psy enológica,  que  dava 
á  actualidade  um  tom  phantastico.  Encontra-se  ma- 
nifesta em  muitos  dos  meus  trabalhos,  grandes  e  peque- 
nos, e  faz  no  poema  sempre  bom  effeito,  ainda  que  no 
momento  em  que  se  traduzia  de  um  modo  immediato 
na  vida  e  pela  vida — parecesse  a  todos  singular,  inex- 
plicável, até  mesmo  desagradável»  (2). 

Querem  o  Faust  mais  claramente  expresso? 

Mas,  abstrahindo  de  todos  estes  argumentos,  que  o 
snr.  G.  M.  ignorou,  porque  ignorava  as  fontes  de  onde 
os  tiramos,  não  podia  o  consummàdo  germanista  lem- 
brar-se  do  facto  da  lenda  faustiana  haver  sido  tratada, 
antes  de  Goethe,  por  vários  escriptores?  Seria  isso  tam- 
bém acaso? 

O  estado  de  duvida  e  de  lueta,  era  tanío  um  sym- 
ptoma  da  época,  que,  antes  de  Goethe,  já  vários  poetas 
haviam  lançado  instinctivamente  mão  da  lenda  faustia- 
na para  a  idealisar  numa  creação  artística;  lembrare- 


(i)  Que  se  acha  realisado,  por  exemplo,  na  dedicatória  do 
Faust,  Zueignung  (nota  do  auetor). 

(2)  Difhtung  una,  Wakrheit,  3.a  parte  pag.  535.  Esta  fa- 
culdade de  unir  o  passado  e  o  presente  n'um  todo  phantastico 
encontra-se  n'uma  das  figuras  do  Faust,  onde  menos  se  espe- 
ra :  em  Margarida.  Julius  Mosen  acha  por  esta  concordância 
em  Margarida,  a  alma  poética  do  próprio  Goethe;  e  A.  Stahr 
demonstra  essa  interpretação,  analysando  a  situação  de  Marga- 
rida na  egreja  (Goethe's  Frauengestalten.  Berlin,  1872,  4  ed. 
pag.  104.  j 


102 

mos  apenas  o  poeta  Maller  Miiller,  Klinger  (1791;,  e 
sobretudo  o  celebre  Lessing  (1). 

Não  seguimos  mais  longe  a  exposição  de  KiejBBÔgi 
isto  basta  para  provar  ao  snr.  G.  M.  a  sua  ignorância 
do  movimento  do  século  xvui,e  indicar-lhea  fonte  onde 
pode  ir  aprender  o  resto. 

Por  ultimo,  as  seguintes  reflexões  do  snr.  G.  M.:  a 
respeito  de  Goethe,  como  homem  : 

«O  que  porém  irrita  mais  o  snr.  Vasconcellos,  é  o 
egoísmo,  o  orgulho,  a  sensualidade  (2)  attribuidos  ao  im- 
passível Zeus  do  Olympo  da  Poesia.  Ha  pouco  vimoscomo 
o  nosso  critico  não  escrupulisa  açoitar  nas  costas  de  Goe- 
the o  Visconde  de  Castilho,  quando  esse  proces><>  de  re- 
cochete  se  accommoda  melhor  aos  seus  intentos.  Então 
veio  Sancho  abaixo,  agora  torna  Sancho  acima.  Se  o 
Visconde  tivesse  attribuido  ao  magnata  de  Weimar  uma 
humildade  seraphica,  o  ministro  de  Carlos  Augusto  cor- 
ria o  maior  risco  de  ser  caracterisado  pelo  seu  pam  _  - 
rista  com  a  soberba  de  Satan  miltoniano;  e  se  lhe  desse 
a  pudicícia  do  famigerado  Intendente  de  Pliarao,  quem 
sabe  se  o  feriamos  transformado  nVsse  I).  Juan  </,  obra 
grossa,  de  que  nos  falia  com  tanta  indignarão?»  (3) 

Daremos  ao  snr.  G.  M.,  com  as  suas  próprias  pala- 
vras, a  resposta  a  taes  considerações : 

«O  snr.  Vasconcellos  não  tem  motivo  para  amotí- 
nar-se.  Quando  as  divindades  são  feitas  do  mesmo  bar- 


(1)  Vide  o  capitulo  iv  de  O  Faust :  A  lenda  do  Dr.  Faust. 
pag.  109-200. 

(2)  O  Visconde  diz  *  frenesi  de  gosar  sensualmente  »,  o  qae 
é  differente  (Fausto,  notas,  pag.  406). 

(3)  Os  críticos,  pag.  69. 


103 


ro  damasceno  que  nós  pobres  mortaes,  longe  de  nos  es- 
candalizarmos com  as  suas  imperfeições,  antes  deve- 
mos rever-nos  complacentes  n'essas  pequenas  fragili- 
dades» (1). 

Ha  certas  phrases  que  pintam  um  individuo — esta 
é  uma  d'ellas;  não  commentamos  pois. 

Mais  uma  passagem  característica: 

«Os  poetas  nunca  foram  celebrados  por  suas  virtu- 
des ascéticas.  Os  Pacomios  e  Hilariões  achar-se-iam  tam 
constrangidos  no  Parnaso  entre  as  Musas  vestidas  de 
uma  fascinante  nudez,  como  os  poetas  nas  asperezas  da 
Thebaida.  Para  estes  espíritos  mundanos,  as  silvas  de 
S.  Francisco  d'Assis  tem  menos  attractivos  que  as  al- 
fombras de  rosas  de  Gnido»  (2). 

Outra: 

«  O  auctor  do  voluptuoso  Divan,  o  poeta  philosopho 
que  na  pessoa  de  Fausto  «reconhece  pelo  espirito  a  in- 
sufficiencia  do  espirito,  e  revendicâ  para  a  carne  os  seus 
direitos»  (Heine)  Goethe,  em  todo  o  caso,  protestaria 
com  certeza  contra  quem  pretendesse  fazel-o  figurar 
n'um  Agiologio  do  Parnaso,  ao  lado  de  Jacopone  e  do 
fundador  dos  Franciscanos»  (3). 

Outra : 

«  É  das  mais  extensas,  no  seu  género,  a  lista  das  apai- 
xonadas do  auctor  de  Werther,  a  começar  desde  a  mais 
humilde  servente  de  uma  venda  até  ás  damas  da  mais 
alta  aristocracia.  Não  pretendamos  devassar  recônditos 
mysterios  d'alcova,  para  verificar  se,  em  todas  as  suas 


(1)  Os  críticos,  pag.  69. 
;2)  Op,  cit.,  pag.  73. 
(3)  Op.  cit.,  ibid. 


104 


relações  amorosas,  elle  se  saiu  como  homem  de  probida- 
de e  honra,  no  sentido  em  que  nol-o  afiança  <>  988  ptJ&e- 
gyrista  portuguez»  (1). 

Emfim: 

«  Reproduzindo  estes  lolemnea  testemunhos,  dados 
por  grandes  admiradores  do  génio  do  poeta,  Bio  j  »r< •;  <  1 1 
demos  inculcar  que  n'elles  se  descrê*  a  um  D.   Juan  de 
obra  grossa;   quer-nos  parecer  apenas  que  não  é  da 
mais  fina»  (2). 

O  resto  que  o  snr.  G.  M.  diz  acerca  de  Goethe  é 
copiado  do  Essai  de  H.  Blaze,já  classificado;  entretan- 
to, fazemos  uma  excepção  para  esta  passagem  relativa 
á  Frederike: 

«Assim  Frederica,  vendo-se  cruelmente  enganada, 
hlasphemou  da  poesia,  sua  atroz  rival,  e  morreu.  Pobre 
Frederica!  vieste  despedaçar  a  fronte  contra  este  egoísmo 
de  bronze  e  pediste  ao  génio  as  condições  da  humanida- 
de!» (3) 

(1)  Os  críticos,  pag.  74. 

(2)  Os  críticos,  pag.  76. 

(3)  O  snr.  G.  M.  traduz  (p.  75)  esta  pissagein  de  P> 
Essai,  pag.  12.  «Frédérique,  sevoyant  ainsi  crnellement  trom- 
pée,  blaspLéma  la  poésie,  Bon  atroce  rivale,  et  moarut.  1 
Frédérique,  qui  vins  te  briser  le  front  contre  cet  egoisme  d'ai- 
rain,  et  demandas  an  génie  les  conditions  de  1'humanitéti 

H.  Blaze  não  podia  dizer  mais  phrase»  e  mentiras,  do  que 
este  trecho  contém;  ao  snr.  Gr.  M.  rucotmnendajnoa  que  se  in- 
forme da  vida  de  Frederike.  Para  afio  faltar  o  melhor, 
ve  o  conaummado  germanista  o  contrario  de  tudo  isto  a  p  tg.  76: 

■  A  infeliz  F.  iinmortali.sou  o  seu  martyrio  pela  cobre 
gnação  com  que  supportou  o  egoísmo  do  desdenhoso  amante.  No 
caminho  da  sepultura  dizia  a  generosa  filha  d<>  Pastor  d     v 
senhein:  •  Elle  era  demasiado  grande  para  mim  ;  destinos  mais 
elevados  o  chamavam;  não, eu  nâo  tinha  direit<  I  tal-o  á 

minha  existência,  i  Onde  fica  aqui  fl  maldição  f  \à\>  tinha  o  snr. 
G.  M.  olhos,  nem  memoria,  para  vère  lembrar-se  do  <pie  havia 


105 


Agora  o  pendant  na  pagina  immediata : 

«Elle  era  demasiado  grande  para  mim;  destinos 
mais  elevados  o  chamavam :  não,  eu  não  tinha  direito  a 
encadeai- o  á  minha  existência.» 

Desejamos  saber,  como  harmonisa  a  primeira  pas- 
sagem coma  segunda?  Aquella  é  uma  mentira  de  Blaze, 
porque  ninguém  sabe  que  Frederike  fosse  «.cruelmente 
enganada,  nem  blasphemasse  da  poesia»  —  ella,  o  cora- 
ção resignado  e  angélico,  que  ficou  affeiçoado  a  Goethe 
até  á  morte,  admirando  a  sua  poesia! 

Para  remate  da  coroa,  o  seguinte: 

«  É  ainda  devido  talvez  á  prolongada  e  absoluta  dicta- 
dura  que  o  grande  Wolfgang  exerceu  na  republica  das 
lettras  allemães  (sic),  e  não  menos  á  sua  invejada  posição 
social,  sem  exemplo  na  historia  dos  poetas,  que  a  admi- 
ração pela  magnitude  do  seu  génio  não  foi  em  geral  acom- 
panhada de  uma  decidida  sympathia  da  parte  de  seus  com- 
patriotas. Goethe  o  reconhecia.  Aos  oitenta  annos  da  sua 
gloriosa  vida,  dizia  elle  a  Eckermann,  em  um  momento 
de  penosa  expansão :  «  Sei  bem  que  ha  muita  gente  para 
quem  eu  sou  como  um  espinho  no  olho ;  esses  desejariam 
ver-se  livres  de  mim,  e  como  já  não  podem  attacar  o  meu 
talento,  voltam- se  contra  o  meu  caracter.  Umas  vezes 
sou  orgidhoso,  outras  egoísta,  agora  cheio  de  inveja  con- 
tra os  talentos  da  nova  geração,  logo  mergulhado  em 
sensualidade;  dizem-me  sem  christianismo,  e  falto  em- 
fim  de  amor  da  minha  pátria  e  dos  meus  queridos  alle- 

escripto  na  pagina  antecedente;  ou  onde  tinha  o  espirito?  No- 
taremos de  novo  ainda,  que  o  snr.  G.  M.  é  mui  inexacto  nas 
refereucias  ás  suas  notas;  a  passagem  do  Essaide  Blaze,  a  que 
põe  a  referencia :  pag.  9  e  10,  só  se  acha  a  pag.  12 ! 


106 


mães.  Escriptor  allemão,  martyr  allemão.  Sim,  meu 
caro,  assim  foi  sempre.  Eu  mal  me  posso  queixar:  to- 
dos os  mais  tem  tido  a  mesma  sorte  e  peor  ainda.  Na 
Inglaterra  e  na  França,  dá-se  o  mesmo  que  entre  nós. 
Que  não  sofrreu  Molière!  Rousseau!  Voltaire!  Byron 
foi  expulso  de  Inglaterra  pelas  más  línguas  e  teria  tu- 
gido até  aos  confins  do  mundo  se  uma  morte  prematu- 
ra o  não  tivesse  livrado  dos  philisteus  e  do  mu  ódio  2  (1). 

As  phrases,  que  sublinhamos,  não  necessitam  de 
commentarios;  somente  lastimamos  que  o  snr.  G.  &L 
tenha  a  ingenuidade  de  classificar  este  admirável  frag- 
mento de  penosa  expansão!  Lastimamos,  emfim,  que  o 
snr.  Gr.  M.  seja  tão  cego,  seja  um  espirito  tão  limitado, 
que  não  achasse  n'essa  mesma  conversa  com  Eckermaun. 
de  que  cita  aquelle  trecho,  o  argumento  mais  forte  con- 
tra a  absurda  fantasia  do  egoísmo  de  H.  Blaze,  e  que 
a  reduz  de  um  só  golpe  a  nada;  e  com  ella  todo  o  capi- 
tulo iii  (pag.  66-81)  da  triste  resposta  do  snr.  G.  IL 
Eis  o  argumento  decisivo: 

«Também  não  podemos  servir  a  pátria  do  mesmo 
modo;  cada  um  faz  o  melhor  que  pôde,  Begundo  Deus 
lh'o  permittiu.  Eu  esforcei-me  bem  duramente,  durante 
meio  século.  Posso  dizer  que  não  descamei  nem  de  dia, 
)iem  de  noite,  nas  cousas,  que  a  natureza  me  havia  deter- 
minado para  o  trabalho  diário,  e  não  me  resen i  i  dea- 
canço  algum;  esforcei-me  sempre,  investiguei  e  traba- 


(1)  Os  críticos,  pag.  81.  Ha  porém  neste  trecho  um  salto. 
desde :  « Sie  kennen  —  até  —  gcsuoht  hat . 

Eckermaun.  Ge*prihhe,  ?ol.  m,  pag.  217.  0  snr.  (í.  M. 
corta  o  que  lhe  não  convém, 


107 


lhei  com  fructo,  tão  bem  e  tanto,  como  pude.  Se  cada 
um  poder  dizer  o  mesmo  de  si,  estaremos  todos  bem»  (1). 

0  snr.  G.  M.  falseou  pois  mais  esta  citação. 

Ora  quem  escreveu  a  pag.  66:  Temos  tanta  vene- 
ração pelo  nobre  vulto  de  Goethe,  e  a  pag.  135  diz,  que 
á  vista  «d'aquella  poesia  portugueza  (Prologo  no  céo) 
—  parece  inflar  (2)  o  próprio  original»  —  deve  estar 
n'um  misero  estado  de  espirito,  para  manifestar  assim 
a  baixeza  da  sua  condição  natural,  que  pintamos  com 
os  breves  extractos  do  capitulo  iii  (3),  e  revelar  assim 
a  miséria  da  sua  impotência  intellectual ! 

E  com  isto  concluímos. 


(1)  Eckermann.  Gesprache,  vol.  m,  pag.  216. 

(2)  Que  termo  é  este?  Da  cosinha  de  Castilho? 

(3)  O    « consummado  germanista,»  como  litterato  e  como 
homem,  pag.  28-74. 


CAPITULO  VII 


As  relações  entre  Goethe  e  Schiller 


Já  referimos  o  phenomeno,  que  revela  evidentemente 
o  estado  enfermo  do  espirito  do  nosso  adversário,  isto  é, 
a  tendência  aleivosa  e  malévola,  que  se  apraz  em  insis- 
tir sobre  pontos  antipathicos  e  motivos  de  repulsão,  que, 
ou  são  imaginários  e  revelam  muita  ignorância  (1),  ou 
se  existem,  são  expostos  de  uma  maneira,  que  de  modo 
algum  lhe  pode  conquistar  a  sympathia  de  ninguém, 
mormente  quando  essa  exposição  desfigura  a  verdade; 
a  symphonia  phantasmagorica  de  H.  Blaze  acerca  do 
egoísmo  de  Goethe,  de  que  atraz  falíamos,  e  que  serviu 
ao  snr.  G.  M.  para  falsear  o  caracter  de  Goethe,  uni- 
camente com  o  fim  de  nos  contradizer,  chegou  também 
para  avançar  uma  serie  de  falsidades  acerca  das  rela- 

(1)  As  relações  entre  Goethe  e  Schiller  datam  já  de  1790 
até  1806 :  logo,  16  annos,  e  não  doze,  como  diz  o  snr.  G.  M.  Os 
criticas,  pag.  70,^nota  2. 


110 


ções  entre  Goethe  e  Schiller,  falsidades  tanto  mai-  re- 
pugnantes, que  recordam  a  cada  momento  o  espirito 
sophistico  e  maldizente  do  auctor.  O  snr.  G.  M.  have- 
ria feito   melhor,  se  em  logar  de  julgar  das  rei 
entre  Groethe  e  Schiller  pelas  migalhas  de  Saint-René 
Taillandier  (1),  cuja  competência  litteraria  ficou  já 
terminada  (2),  lesse  a  correspondência  no  original  al- 
lemão.  em  logar  de  se  contentar  com  a  bradnccão  me- 
diocre,  e  assaz  livre,  de  M.me  de  Carlowitz;  não  era  de- 
certo exigência  demais,  para  um  consummado  germanis- 
ta.  A  carta  a  que  o  sur.  G.  M.  se  refere,  foi  escrita  por 
Schiller  ao  seu  amigo  Korner  (3);  todavia  o  snr.  Gr.  M. 
dá  apenas  um  extracto  d'ella.  mutUando-a,  porqu-   •  se 
mutilação  lhe  convinha,  para  desligar  o  celebre  detestn-o 
de  todas  as  circumstanciaa  attenuantes. 

Em  seguida  veremos  o  resultado  d"essa  mutilação. 
Devemos  porém  ainda  accentuar  uma  circumstaucia : 
Se  o  snr.  G.  M.  queria  dar  uma  ideia  fiel  da  impres- 
são que  Goethe  produziu  sobre  Schiller.  no  primeiro 
encontro,  por  que  é  que  escolheu  um  facto  mencionado 

(1)  O  snr.  G.  M.,  apesar  de  consummado  germanista.  oao 
Be  peja  do  revelar  a  sua  pobreza  litteraria.  citando  para 
raeteristica  de  Goethe  o  fraquíssimo  artigo  d'68te  litterato  na 
Biograpkie  Universelle.  Já  ê  seiencia! 

(2)  Yide  o  capitulo:  iv.  As  fontes  de  consulta;  e  pag.  Ti». 

(3)  Christian  Gottfried  BLõrner  1756-183]  .  pae  do  celebre 
poeta  do  mesmo  nome,  Karl  Theodor  K.  [1791-1813  Foi  inti- 
mo amigo  de  Schiller.  e  um  doa  homens  a  quem  a  Allemanha 
deve  muito,  não  só  pelos  seus  enérgicos  esforços  durante  as 
guerras  contra  Napoleão  i,  mas  sobretudo  pela  Leal  e  forte 
amisade  com  que  sustentou  o  génio  e  a  alma  de  Schiller,  dos 
seus  momentos  de  lueta.  A  casa  de  Korner,  em  Dresden,  foi 
alli  muito  tempo,  <>  (pie  o  palácio  ducal  em  YYoimar  foi  de- 
pois em  maior  escala:  o  asylo  do  talento,  do  pensamento  genial, 
e  da  acção  corajosa. 


111 


em  3  de  Fevereiro  de  1789  (que  é  a  data  da  carta  em 
questão),  quando  devia  citar  a  outra  carta  a  Korner,  que 
refere  o  resultado  da  entrevista,  a  única  legitima  pois, 
e  que  é  de  12  de  Setembro  de  1788;  isto  é,  de  5  me- 
zes antes?  Era  mister  que  o  snr.  G.  M.  tivesse  esco- 
lhido esta  ultima  carta,  que  não  é  de  modo  algum  des- 
favorável para  Goethe,  e  embora  citasse  depois  a  segun- 
da, era  sua  obrigação  explicar  imparcialmente,  por  que 
é  que  Goethe  pareceu  a  Schiller,  5  mezes  depois  da 
primeira  entrevista,  tão  differente.  Se  o  snr.  G.  M.  ti- 
vesse feito  isto,  que  nós  aqui  lhe  ensinamos,  teria  tido 
occasião  de  ver  que  o  espirito  de  Schiller  havia  sido 
influenciado  de  uma  maneira  muito  particular,  durante 
esses  5  mezes  decorridos,  o  que  explica  o  detesto-o,  e  lhe 
tira  quasi  toda  a  sua  significação. 

Primeiro  vejamos  a  carta  de  Schiller  a  Korner,  em 
que  menciona  o  resultado  da  entrevista: 

«Posso-te  fãllar  emfim  de  Goethe,  cousa  por  que  tu 
esperas  com  anciedade,  eu  bem  o  sei.  0  seu  primeiro 
aspecto  attenua  bastante  a  elevada  opinião  que  me  ha- 
viam incutido  acerca  d'esta  bella  e  attractiva  figura.  E 
de  altura  mediana,  muito  direito  e  teso,  e  anda  do  mes- 
mo modo  (1);  «a  sua  phvsionomia  é  reservada,  mas  o 
seu  olhar  expressivo,  vivaz,  e  fixa  o  nosso  com  en- 
canto. 0  semblante,  apesar  da  seriedade,  que  n'elle  se 
reflecte,  tem  o  caracter  de  muita  beuevolencia  e  bonda- 
de. A  côr  do  seu  cabello  é  castanha  (2),  e  pareceu-me 

(1)  É  preciso  notar  que  Schiller  tinha  uma  postura  e  um 
andar  totalmente  differente,  e  contrario. 

(2)  0  original  diz  simplesmente:  «Er  ist  briinett :  »  tile,  é 
briinett,  que  é  a  forma  de  dizer  allemà. 


112 

mais  idoso,  do  que  deve  ser,  segundo  os  meus  cálculos. 
A  voz  é  extremamente  agradável,  o  s,'n  modo  d»*  dizer, 
corrente,  cheio  de  vida,  de  espirito  e  de  alma,  de  modo 
que  se  escuta  com  extremo  prazer,  e  quando  está  «111 
bom  humor  (1),  como  n'este  caso,  falia  com  boa  vontade 
e  interesse.» 

«Depois  travamos  relações,  e  sem  a  menor  cerimo- 
nia; é  verdade  que  a  sociedade  era  tão  numerosa,  e  es- 
tavam todos  tão  empenhados  e  tão  ciosos  da  sua  conver- 
sa, que  foi  difficil  estarmos  muito  tempo  a  sós,  ou  passar 
da  generalidade  dos  assumptos.  .  .  Emfim,  fatiando  em 
geral,  não  posso  dizer  que  a  ideia,  na  verdade  grandiosa, 
que  d'elle  formava,  soffresse  menoscabo;  duvido  porém 
que  possamos  algum  dia  familiarisar-nos.  Muit:s  cou- 
sas, que  tem  ainda  para  mim  interesse,  já  passaram 
para  elle  em  julgado.  Conheço  que  está.  com  relação  a 
mim,  tão  adiantado  (menos  em  annos,  do  que  em  expe- 
riência), que  nunca  nos  encontraremos;  toda  a  sua  indi- 
vidualidade fixou-se,  desde  o  principio,  de  um  modo  dif- 
ferente  da  minha;  o  seu  mundo  é  ditferente  do  nu  u.  e 
o  nosso  processo  de  percepção  parece-me  essencialmente 
diverso». 

Esta  carta  harmonisa  bem  mal  com  o  detêstoro^  .">  me- 
zes  depois.  Reflecte,  é  verdade,  um  pesar  bem  legitimo, 


(1)  Humor,  é  um  estado  de  espirito  do  aHemio,  queo&ose 

traduz  ;  o  humor  allemào  é  mui  dirterente  do  huinmiv  iogle*/, 
assim  como  o  espirita  francez  é  diflerente  do  Geisi  allemào.  (v. 
pag.  78)  Jean  Paul  Richter,  e  antes  Leasing,  Hipgel  ••  \"n 
'riiiiinincl.  cnractcrisarain  a  huanev  allemào  tào  be.m,  oomo 
Swit't  e  Sterne  o  fizeram  para  o  inglas*  E'  mui  diiHeil  dar.  a 
quem  nào  conlieea  estes  escriptores,  uma  ideia  olaia  da  pala- 
vra humor  ehumou  .  nas  duas  línguas  allemà  •  imrleza. 


113 

em  vista  das  contradicções  que  o  enthusiastico  Schil- 
ler  via  entre  si  e  aquelle  que  já  esperava  com  anciedade, 
como  um  futuro  amigo  —  mas  ainda  assim,  a  nobre  alma 
conheceu  a  sua  irmã.  Goethe  voltava  da  Itália,  onde  um 
novo  céo,  uma  outra  natureza,  um  novo  mundo  de  ideias 
o  havia  transformado.  Goethe  voltava  da  Itália  com 
Iphigenie,  e  Egmont,  e  pisava  de  novo  o  solo  da  Allema- 
nha,  ainda  agitada  pelo  período  do  Sturrn  und  Drang ; 
Goethe  tornava,  purificado  pelo  génio  da  arte  antiga,  e 
encontrava  a  sua  pátria  ainda  no  fogo  de  um  enthusias- 
mo,  que  elle  julgava  passado,  e  que  lhe  pareceu  fatal,  por 
impedir  a  transição  para  um  grau  superior  de  elevação 
moral  e  litteraria.  Goethe  ouvia  as  queixas  dos  seus 
editores,  que  não  vendiam  a  nova  edição  das  suas  obras, 
emquanto  o  Ardinghello  de  Heinse  (1)  e  os  Rãuber  de 
Schiller  desappareciam  das  estantes.  Se  devia  haver  um 
queixoso,  era  Goethe,  e  não  Schiller ;  todavia  5  mezes 
depois  da  primeira  carta,  escrevia  este  a  Korner  a  outra 
missiva,  a  que  o  snr.  G.  M.  se  refere.  Collocamos  a  tra- 
ducção  do  snr.  G.  M.  em  frente  da  nossa,  para  melhor 
exame : 


(1)  W.  Heinse,  escriptor  de  talento  do  período  do  Sturm 
und  Drang,  e  auctor  de  outros  romances  característicos  (Hild- 
gard  von  Hohenthal,  etc),  em  que  trata  de  alliar  a  forma  perfei- 
ta, com  as  paixões  do  romantismo ;  no  Ardinghello  tenta  o  au- 
ctor estabelecer  a  theoria  de  um  estado  baseado  na  liberda- 
de, nas  leis  da  natureza  e  nos  princípios  do  bello.  Schiller  deu  a 
esta  theoria,  em  gérmen,  uma  forma  mais  determinada,  propon- 
do, em  logar  da  educação  moral  do  homem,  a  esthetica  (Scherr 
Vol.  li.,  pag.  213). 


114 


Trad.  do  allemão 


« Estar  frequentes  vezes 
junto  de  Goethe,  tornar-me- 
hia  infeliz ;  nem  sequer  para 
com  os  seus  amigos  mais  Ínti- 
mos tem  um  momento  de  ex- 
pansão ;  uào  ha  modo  de  o  in- 
teressar, e  creio,  na  verdade, 
que  elle  é  um  egoista  fora  do 
vulgar  (in  ungewõhnlichcm 
Grade).  Possue  o  talento  de 
captivar  os  homens,  e  de  se 
tornar  credor  de  pequenas  e 
de  grandes  attençòes,  mas 
conservando  sempre  plena  li- 
berdade de  acção  para  si. 

Manifesta  a  sua  existên- 
cia de  um  modo  bemfasejo, 
mas  á  feiçào  de  um  Deus, 
sem  se  offerecer  a  si  próprio; 
parece-me  isto  um  modo  de 
proceder  lógico,  planeado  de 
antemão,  e  calculado  para  o 
extremo  prazer  do  amor  pró- 
prio. Eis  o  que  m'o  torna 
odioso  (1),  ainda  que  eu  ame 
o  seu  espirito  de  todo  o  cora- 
ção, e  pense  d'elle  de  uma 
maneira  grandiosa.  O  que 
acordou  em  mim  foi  um  mix- 
to  mui  singular  de "  ódio  e 
de  amor,  um  sentimento,  que 
não  é  mui  differente  d'aquelle 
que  deviam  ter  Brutus  e  Cas- 
sius  para  com  César;  eu  era 
capaz  de  matar  o  seu  espi- 
rito, e  de  amal-o  de  novo  de 
todo  o  coração»  (2). 


Trad.  do  snr.  G.  M. 

(do  francez) 

i  Eu  seria  infeliz  se  me 
encontrasse  muitas  vezes  com 
Goethe,  dizia  o  auetor  dos 
Salteadores.  Não  ha  D'elle 
um  só  momento  d'expansào, 
mesmo  com  seus  mais  Íntimos 
amigos ;  não  ha  captival-o  de 
modo  algum;  em  verdade 
creio-o  supremamente  egois- 
ta.»—  O  snr.  G.  M.  salta 
tudo  o  que  segue! 


A  sua  existência  é  assi- 

gnalada  por  benefícios,  mas 
á  maneira  de  um  deus,  sem 
nunca  se  dar  a  si.  E  um 
theor  da  existência  muito 
consequente,  muito  apro- 
priado ao  plano  de  vida  que 
tem  adoptado,  perfeitamente 
calculado  para  os  supremos 
gosos  do  amor  propri.. 
Salta  tudo  <>  mais. 


(1)  ilir  ist  er  dadurch  VtrhfUtt. 

(2)  O  snr.  G.  M.  escreve   ainda  o  seguinte,  que  se  liga  a — amor  próprio : 
«Os  homens  nunca  deveriam  consentir  que  um  ente  de  ~.  uicllianU1  natureza 

se  acercasse  dYlles.,   |>ag.  71.   .Voo  achamos  esta  passagem  no  original  allrmâo, 
apud  Lewes,  v.  11,  pag.  118. 

:;    ><.  critico*,  p&g.  7 1 ,  nota. 


115 


Esta  expansão  singular  é  o  fructo  de  um  momento 
psychologico,  que  se  analysa  e  se  explica  todavia  de 
uma  maneira  fácil. 

Goethe  havia  deixado  em  Rudolstadt,  onde  os  dois 
se  avistaram,  impressões  invejáveis  nas  pessoas  que  se 
haviam  acercado  d'elle;  entre  estas  figuravam  Charlotte 
e  Karoline  von  Lengefcld,  amadas  ambas  com  extremo 
platonismo  por  Sohiller.  Goethe  chega,  e  revoluciona  o 
animo  das  duas  damas  —  Goethe  é  tudo,  tudo  é  Goethe. 
Além  d'isto  (se  não  fosse  já  o  bastante)  havia  Schiller 
estado  em  Weirnar,  antes  de  Goethe  chegar  da  Itália,  e 
viu  como  o  seu  amigo  Voigt,  e  outros,  sustentavam  o 
peso  dos  encargos  administrativos,  que  Goethe  devia  sol- 
ver, mas  que  haviam  passado,  na  sua  ausência,  para  ou- 
tros menos  afortunados: 

«Emquanto  elle  pinta  na  Itália,  são  os  Voigts  e 
Schmidts  obrigados  a  suar  como  animaes  de  carga.  Elle 
absorve  ociosamente  na  Itália  uma  pensão  de  1:800  tha- 
lers,  e  elles  vêem-se  obrigados  a  sustentar  uma  carga  du- 
pla, por  metade  do  preço»  (1). 

E  antes  de  Goethe  se  encontrar  com  elle,  lança  Schil- 
ler, apesar  da  expectativa  de  uma  apresentação  eminen- 
te, contra  o  seu  rival,  já  celebre  e  poderoso,  a  sua  no- 
tável, mas  dura  critica  ao  Egmont  no  Allgemeine  Lite- 
raturzeitung . 

Já  vimos  o  resultado  da  entrevista;  já  vimos  o  resul- 
tado da  carta  que  a  commenta,  e  a  posterior,  citada  pelo 
snr.  G.  M.;  vejamos  mais  a  seguinte.  E  egualmente  a 


(1)  E.  PalleRke.  Schiller' 8  Leben.  vol.  i,  pag.  137. 


116 


Kõrner  (1);  este  havia-llie  lenibvado  cocajosasMÉie  o 
mirii'  io  Hon  pittore,  a  que  Scliillcr  reapondjH 

«  Não  me  posso  medir  com  I  roethe,  quando  alfa  qper 

reunir  todas  as  suas  forras.  Elle  tem  muito  maia  génio  do 
que  eu,  e  além  d'isso.  muito  majg  riqueza  de  saber,  uma 
sensualidade  sã  (2),  e  emfim  um  senso  artístico,  purifica- 
do e  aperfeiçoado  por  conhecimentos  de  toda  a  esjx  cie, 
falta  que  sinto  tanto,  que  posso  classifical-a  de  igno- 
rância». 

Korner  responde-lhe  a  esta  depreciação  exagesada 
do  seu  valor: 

«Duvido  muito  que  Goethe  tenha  mais  génio  do  que 
tu»;  e  em  seguida  explica-lhe  epm  amisade  leal  a  razão 
da  inferioridade  de  Schiller  em  outros  pontos,  achando-* 
no  ardor  impaciente  com  que  o  amigo  aspira  ao  ideai,  es- 
quecendo o  valor  da  unidade  e  da  relatividade.  Schiller 
responde  então  com  nobre  franqueza: 

«Vejo-me  obrigado  a  rir,  pensando  no  que  te  liei  88- 
cripto  de  Goethe,  e  sobre  Goethe.  Deves  ter  tido  ocea- 
sião  de  me  observar  nos  meus  lados  fracos,  e  ha\erás 
rido  interiormente  de  mim,  o  que  eu  te  concedo.  Este 
homem,  este  Goethe,  estorva-me,  ineomnioda-me  (3),  e 
lembra-me  muitas  vezes,  que  a  sorte  me  tratou  cruel- 
mente. Como  não  foi  o  seu  génio  ajudado  pofl  ella,  e 
qual  não  é  a  minha  hicta,  lueta  que  dura  ainda  n'e>te 
mesmo  minuto?» 


(1)  Lewes.  Goe-the1*  Lebtn.   Vol.  n.  p*g.  114,  e  PsH 
Schiller'8  Leben.  Vol.  li,  pag.  154. 

2    Estas  palavras  teem  aqui  a  BÍgDÍficaçfto  do  tempera- 
mento, de  natureza  eâ. 

(3)   d  ist  mir  oinmal  im  Wc^c 


117 


Mas  23  dias  depois,  já  lhe  vemos  escrever  a  Karo- 
line  von  Beulwitz  (1): 

«Quando  cada  um  trabalha  com  toda  a  sua  força, 
não  pode  permanecer  occulto  aos  outros.  Este  é  o  meu 
plano.  E  quando  esteja  n'esta  posição,  que  possa  fazer 
valer  todas  as  minhas  forças,  então  elle,  e  outros,  me  co- 
nhecerão, como  eu  conheço  agora  o  seu  espirito. ))  Schiller 
ficara  resentido,  e  injustamente;  mas  teve  a  franqueza 
de  que  é  dotada  toda  a  alma  grande.  Schiller  não  ti- 
nha razão;  o  egoísta  não  era  o  rival;  Goethe  havia  elo- 
giado (2),  ou  antes,  tinha-se  pronunciado  com  estima 
acerca  da  sua  severa  critica  ao  Egmont;  Goethe  havia 
lido  com  agrado  os  Gótter  Griechenlands ,  e  havia  levan- 
tado da  mesa  a  caderneta  do  Mevhur,  em  que  appare- 
cêra  a  poesia,  durante  a  entrevista  em  Rudolstadt,  le- 
vando-a  para  casa.  Isto  tudo,  que  era  muito,  fizera  um 
homem,  que  começava  a  critica  por  si,  appiicando-a  a 
todas  as  suas  acções  com  o  máximo  vigor.  Schiller  não 
podia  ser  para  Goethe  mais  do  que  umjonen  iahnte  que 
desabrochava (3),  ea  maneira  porque  Goethe  o  acolheu 
foi  digna,  se  attendermos,  a  que  um  era  já  mestre,  e  o 
outro  apenas  discípulo  promettedor  da  arte.  Lembre- 
mo-nos  emfim  das  antitheses  litterarias  e  dos  principios 
estheticos,  em  que  ambos  divergiam  diametralmente,  e 
digamos  que  houve  lealdade  em  Goethe;  se  houve  fra- 
queza em  Schiller,  deu  ella  apenas  um  resultado:  o  ad- 
mirarmos mais  o  seu  caracter. 

(1)  Palleske.  Schiller'*  Leben,  vol.  n,  pag.  lõõ. 

(2)  «dass  Goethe  sich  ruit  Achtnng...  ausgesprochen » . 
Palleske.  $chiller's  Leben,  vol.  n,  pag.  14. 

(3)  « damals  galt  er  doch  nicht  mehr  ais  fur  ein  aufstreben- 
des  jungea  Talent».  Lewes.  Goethe.' s  Leben,  vol.  n,  pag.  115. 


118 

Schiller  sujei  to  u-se,  apoz  os  sucessos  que  relatam"-. 
a  um  systema  de  trabalho  e  de  purificarão  intelectual 
de  tal  ordem,  que  esteve  a  beira  do  tumulo.  Em  Maio 
de  1795  eucontrava-o  Goethe,  n'um  passeio,  era  Jena; 
a  impressão  foi  profunda;  Schiller  pareeeu-lhe:  ca  fi- 
gura do  crucificado»  (l)j  a  prostrarão  era  extrema,  mas 
Schiller  e  Goethe  eram  já  amigos. 

A  torpeza  do  snr.  G.  M.  necessitava  d'*\>ta  lição,  por 
ter  ousado  tocar  na  pureza  d'um  laço  que.  mesmo  nos 
primeiros  momentos  de  hesitação,  foi  sempre  egualm.-n- 
te  honroso  para  ambos.  A  Allemanha  considera  esta 
amisade  como  um  dos  factos  mais  transcendentes  da 
sua  historia;  e  com  razão,  porque  a  amisade  entre  os 
dous  poetas  é  a  pedra  de  toque  de  ambos  os  caracteres. 

«Achamos  natural,  que  almas  congéneres,  como 
Klopstock  e  Giesecke,  Lessing  e  Kleist  (2).  nascidas 
tia  nova  poesia  —  harmonisassem;  mas  nem  por  isso  li- 
gamos a  estes  casos  valor  algum.  Por  que  nos  eommove 
e  nos  abala  tão  poderosamente  a  alliança  entre  Schiller 
e  Goethe?  Porque  era  uma  conciliação  3  ,  porque  era, 
tanto  uma  acção  espontânea,  como  um  effeito  myste- 
rioso  das  ideias  dominantes»  (4). 

Como  podia  a  natureza  expansiva  de  Schiller  viver 
16  annoa  em  perfeita  communidade  de  ideias  com  <» 
Goethe,  egoísta,  frio,  de  marmor< —  mas  fn  m  tioameaii 
sensual,  segundo  Heine  —  Castilho  —  Gomes  Monteiro?.' 

(1)  «das  Bild des  Grekreuzigteii  .  Palleske.  SchitUr^i  1  - 
ben,  vol.  n,  pag.  328. 

(2)  Lembramo-nofl  ainda  de  Mozart  a  de  Haydn! 

(3)  A  alliança  dos  dóus  modos  de  sentir,  objeotivo  a  sub- 
jectivo i .Nota  ilo  auctor). 

(4)  Palleske.  Schiller'*  laben,  rol.  a,  pag.  823. 


CAPITULO  YIII 


A  Tragedia 

a)  Primeira  e  segunda  parte 

A  leviandade  da  nossa  litteratura  é  um  dos  sym- 
ptomas  mais  profundamente  característicos  do  nosso 
miserável  estado;  e  ainda  que  ella  se  revele  com  a  má- 
xima insolência,  como  ahi  o  vemos  todos  os  dias  —  ainda 
assim,  apesar  do  nosso  minucioso  exame  á  traducção 
do  Visconde  de  Castilho;  apesar  das  innumeras  misé- 
rias, que  havemos  demonstrado  n'ella  —  apesar  de  tudo 
isto,  ainda  não  cessou  o  nosso  espanto,  á  vista  da  audá- 
cia, sem  exemplo,  com  que  o  Visconde  se  lançou  sobre 
o  Faust  de  Goethe,  sem  guia,  sem  o  conhecimento  mais 
elementar  da  lingua  allemã,  do  espirito  allemão,  do  es- 
pirito do  poema,  das  tradições  da  lenda  e  da  época  em 
que  ella  se  formou,  da  vida  do  poeta,  da  existência  po- 
litica, moral  e  intellectual  da  Allemanha,  antes  de  Goe- 
the e  do  tempo  do  poeta  —  emfim  se  lançou  sobre  o 


120 


Faust,  n'um  estado  de  espirito  infantil,  inconsciente, 
perfeitamente  simples  e  ingénuo.  O  snr.  G.  M.,  que- 
rendo encobrir  as  misérias  da  traducção,  á  força  de  so- 
phismas,  de  mentiras,  e  de  falseamentos  de  textos,  mu- 
tilações de  citações,  e  outras  artimanhas  próprias  do  seu 
caracter,  não  fez  mais  do  que  lançar  sobre  aquella  tra- 
ducção pustulenta,  um  lençol  assaz  sujo,  em  que  fica- 
ram estampadas  ainda  mais  a  vivo  os  humores  e  as  cha- 
gas da  própria  traducção.  Assim,  á  força  de  querer  en- 
cobrir, fez  ainda  peor  serviço  ao  seu  collega. 

Vejamos: 

O  processo  de  formação  da  tragedia  é  tão  compli- 
cado, foi  sujeito  a  tantas  circumstancias,  influencias  e 
accidentes,  como  os  que  actuaram  sobre  o  animo  de 
Goethe,  durante  60  annos,  que  é  o  tempo  da  formação 
da  Tragedia,  l.a  e  2.R  parte,  1772-1832  (1),  que  o  seu 
estudo  se  torna  complicadíssimo,  e  de  extrema  difficul- 
dade,  para  ser  feito  debaixo  do  único  ponto  de  vista  ac- 
ceitavel,  isto  é:  o  estudo  comparativo  e  mhultóMÒ  das 
duas  partes  da  tragedia,  porque  é  impossível  enten- 
der-se  o  pensamento  fundamental,  a  ideia  do  Todo  (die 
Idee  des  Ganzen),  sem  se  haver  estudado  egualmentr  d 
segunda.  Poderão  adduzir  contra  esta  opinião  a  circum- 
stancia,  que  tem  sido  ao  mesmo  tempo  o  argumento  mais 
forte  d'aquelles  traduetores  (2i,  que  apenas  se  tem  oc- 
cupado  da  primeira  parte  da  tragedia,  descurando 
gunda  —  este  argumento  é:  a  circumstanoia  de  quasi  to* 

(1)  Bayard  Taylor.   Favvt  —  The  chronologv —  pag.  S 
appendix  n. 

(2)  Póde-se  dizer,  que  foi,  porque  este  ponto  <!••  visti  estf 
hoje  antiquado,  como  veremos  por  provas  sem  conta. 


121 


dos  os  traductores,  de  todas  as  nações,  terem  escolhido  só 
a  primeira  parte,  offerecendo-a  como  um  todo  completo. 

Isto  poderá  satisfazer  a  consciência  própria  dos 
mesmos  traductores,  e  poderá  contentar  a  prima  vista 
o  observador  inconsciente;  mas  é  argumento  (se  argu- 
mento pode  ser!)  que  não  tem  força  alguma,  pelas  se- 
guintes razões: 

1.°  Não  admira  que  os  traductores,  geralmente  tra- 
ditore,  recuassem,  por  commodidade,  por  ignorância,  e 
mesmo  por  secreta  antipathia  —  diante  das  grandes  dif- 
ficuldades  da  segunda  parte  da  tragedia,  fosse  ella  tra- 
duzida em  prosa  ou  em  verso." 

As  difficuldades,  n'este  ultimo  caso,  augmentavam 
prodigiosamente;  todavia  os  escolhos  da  interpretação 
symbolica  e  philosophica,  subsistiam  em  qualquer  dos 
dois  modos. 

2.°  Tenha-se  em  conta,  que  os  trabalhos  críticos  so- 
bre a  tragedia  (1),  só  muito  depois  de  publicada  a  se- 
gunda parte  [1832  (2)],  é  que  chegaram  a  um  ponto  de 
vista,  que  admittia  alguma  concordância  entre  as  inter- 


(1)  EntendeniQS  sempre  as  duas  partes  juntas. 

(2)  Appareceu  n'este  anno  no  vol.  41  da  edição  de  Cotta 
(Stuttgart);  o  poema  foi  concluido  no  verão  de  1831.  (Grund- 
riss  d.  Gesch.  der  d.  National- Literatttr.  Leipzig,  1866,  4.a) 
ed.,  vol.  ni,  pag.  2573;  a  numeração  é  a  seguir). 

Segundo  Taylor  (Faust,  a  tragedy,  appendix  ir,  pag.  304. 
temos  o  seguinte : 

«No  começo  de  1831  faltava  só  o  quarto  aeto,  e  as  see- 
nas  de  introducção  do  quinto.  Era  a  parte  mais  laboriosa  da 
tragedia,  e  n'ella  ficaram  traços  visíveis  do  trabalho;  mas  em 
fins  de  Julho  estava  a  obra  prompta,  e  no  seu  82.°  anniversa- 
rio  (28  de  Agosto  de  1831),  sellou  Goethe  todo  o  manuscripto 
completo  da  segunda  parte,  para  ser  aberto  e  publicado  como 
posthumo.» 


122 


pretaçõc's  tão  differentes,  que-  cada  um  lhe  dava,  de  ma- 
neira que  os  traduetores  até  alli,  sem  guia,  sem  princi- 
pio certo,  sem  ponto  de  vista  fixo  —  só  agora  (publicada 
a  segunda  parte)  é  que  poderam  começar  o  estudo  simul- 
tâneo e  comparado  das  duas. 

Todavia,  os  resultados  da  critica  foram  tão  fruetife- 
ros,  que  desde  logo  pensaram  outros  traduetores  em  es- 
tudar de  novo  a  creação  de  Goethe  por  esses  novos 
princípios,  e  bem  depressa  se  manifestaram  os  resulta- 
dos (1). 

3.°  Uma  terceira  razão,  emfim,  que  se  liga  á  ante- 
rior, era  o  atraso  e  o  pouco  conhecimento  da  historia 
litteraria  de  Allemanha;  o  pouco  conhecimento  do  seu 
espirito  em  geral,  e  a  sua  exhuberante  riqueza  —  de  im- 
menso  proveito  para  os  naturaes — ,  mas  que  constituía 
para  o  estrangeiro  antes  um  labyrintho  com  difficil  en- 
trada, e  peor  sahida  ainda. 

Que  o  Visconde  de  Castilho  não  tinha  (nem  ainda 
tem)  a  minima  ideia  de  tudo  isto,  dil-o  a  grotesca  tra- 
ducção;  que  o  snr.  G.  M.  está,  apesar  de  anuummado 
geimanista,  tão  adiantado  como  o  seu  alter  ego,  pro- 

val-o-hemos  até  á  saciedade. 

i 

Vejamos : 

These:  O  Visconde  de  Castilho  e  o  snr.  Gomo 
Monteiro  ignoraram  completamente  o  principio  capital 
para  a  traducção  do  Faust. 

Este  principio  é : 

Que  a  primeira  e  a  segunda  parte  da  tragedia  for- 

(1)  Foram  as  traducçõps  fque  incluíram  a  segunda  parte 
de  G.  de  Nerval,  H.  Blaze,  dos  ingleses :  Birch,  A.  Grarney, 
Re.rnays,  etc. 


123 


mam  um  todo  orgânico,  inseparável,  e  que  para  a  in- 
telligencia  da  primeira  parte,  é  indispensável  a  intel- 
ligencia  da  segunda ;  d'ahi  a  necessidade  impreterivel 
do  estudo  simultâneo  e  comparado  das  duas  partes  da 
tragedia. 

Em  face  d'esta  nossa  affirmação,  colloquemos  a  se- 
guinte do  Visconde  de  Castilho: 

«Na  segunda  parte,  dizem  allemães,  é  que  o  autor 
mais  se  despendeu  em  gentilezas  e  esmeros  líricos.  Po- 
de ser:  contemplado  nos  reflectores  não  o  parece;  e 
depois  quando  essas  excellencias  accidentaes  e  de  mera 
forma,  rara  vez  fraduziveis,  sejam  taes  como  nol-as 
querem  encarecer,  tantos  e  tão  crespos  são  no  ultimo 
Fausto  os  enigmas  filosóficos,  tão  abstruzo  o  senso  das 
ficções,  e  as  ficções  mesmas  tão  desnaturaes,  tão  inve- 
rosímeis, tão  impossíveis  (ia-me  qussi  escapando  tão 
absurdas)  que  o  bom  gosto  e  o  bom  senso,  que  tão  be- 
névolos perdoaram  e  receberam  a  lenda  velha  do  Dr. 
Fausto,  não  sei  como  se  haveriam  com  o  Fausto  ultimo. 
O  primeiro,  o  nosso,  foi  um  gigante ;  o  ultimo  figura-se 
ao  espirito  da  nossa  consciência  o  homunculo,  um  pro- 
ducto  abusivo  das  forças  da  arte»  (1). 

Agora  o  snr.  Gr.  M. 

«Para  estes  críticos  etc  .  .  não  seriam  de  certo  tão 
escandalosas,  como  para  os  nossos  dois  aristarchos  (2) 
as  conceituosas  palavras  com  que  o  snr.  Castilho  resu- 


(1)  Castilho.  Fausto;  advertência,  pag.  xvi,  24.*,  25. a,  e 
26. a  linha. 

(2)  F.  Adolpho  Coelho,  e  nós. 


124 


me  o  seu  juizo  acerca  dos  dois  Faustos  (1):  <  0  primei- 
ro. •  .  etc. 

Mestre  e  discípulo  continuam  pois  em  lurmonia:  a 
concordância  é  completa. 

Agora  o  peor:  os  resultados  da  critica: 

1.°  Falia  o  próprio  Goethe  [Carta  de  17  de  Março 
de  1832  (2)]: 

«Ha  sessenta  annos,  que  a  concepção  do  Fetuti  Be 
apresentou  ao  meu  espirito  juvenil,  desde  logo  clara, 
ainda  que  a  sequencia  total  me  fosse,  e.rtensini.  k  nte,  me- 
nos evidente»  (3). 

A  unidade  das  duas  partes  parecia  a  Goethe  tão 
plausível,  que  mais  abaixo  escreve:  «e  eu  não  tenho  o 
menor  receio,  que  se  possa  distinguir  o  velho  do  novo, 
o  posterior  do  anterior — e  assim  o  queremos  enti 
ao  futuro  leitor  para  benévolo  exame»  (4  . 

Um  pouco  atraz  ha  ainda  uma  passagem  mais  de- 
cisiva : 


(1)  Esta  classificação  de  dois,  já  é  typica.  {Oa  rriticos, 
pag.  91,  fim). 

(2)  Dia  em  que  adoeceu  mortalmente,  e  cinco  dias  antes 
da  sua  morte,  22  de  .Março. 

(3)  Goeihe's  Werke,  edic.  Kmv..  HQburghausen,  1870. 
Vol.  xm,  pag.  448.  Carta  a  II.  Mover:  já  citada  no  MMM  tra- 
balho, pag.  SR 

(4)  Op.  cit.  Ainda  que  hoje  Be  conheçam  quaea  as  pi 
antigas  e  modernas,  eo  processo  isolado  da  sua  formação, gra- 
ças a  chronologia  quasi  completa,  que  se  descobriu  para  èllas 
(Koberstein.  Grundriss,  vol.  a,  pag.  1548,  notawen;  vol.  m, 
pag.  -joio  e  2041,  unta  b;  2115-2117,  nota  o  e  r>;  «•  B.  Taylor 
Fmist.  A  Tragcdy,  ■  ■-.  Appcndix  u,  pag.  298-305  sThe  enro- 
nology  of  Fatist),  com  o  auxilio  das  cartas  a  Schiller,  Kicincr 
e outro-  . 


125 


«Já  sahia  ha  muito,  o  quê,  e  até  como  eu  o  queria  (1), 
e  trouxe-o,  como  uma  lenda  interior,  já  ha  tantos  annos 
commigo  mesmo;  executava  porém  as  partes  (2)  isola- 
damente, segundo  me  agradavam  mais,  de  tempos  a 
tempos»  (3). 

Isto  não  deixa  dúvida  alguma  sobre  a  concepção 
claríssima,  que  Goethe  tinha  do  organismo  (4)  da  sua 
obra  prima;  e  isto  corroboram  todos  os  críticos,  philo- 
sophos,  e  historiadores  litterarios  mais  notáveis,  que  tem 
tido  a  Allemanha,  desde  que,  publicada  toda  a  segun- 
da parte  (1832),  a  tragedia  se  mostrou  em  toda  a  sua 
vastíssima  unidade  e  completa  belleza. 

Apesar  da  primeira  apparição  do  Faust  haver  sido 
em  fragmentos  (5),  e  não  ter  produzido,  por  isso  mes- 
mo, uma  impressão  agradável  (6),  todavia,  ainda  assim 


(1)  « Ieh  wusste  schon  lange  her,  zoas,  ja  sogar  tcie  ichs 
■\vollte».  O  snr.  G.  M.  nào  quiz  tomar  conta  alguma  (Testas 
passagens,  citadas  já  todas  no  nosso  trabalho!  (pag.  189). 

(2)  Note-se  a  singular  concordância  com  aquella  celebre 
passagem  da  auto-biographia  :  «  Die  bedeutende  Puppenspiel- 
fabel  des  andem  klang  und  suminte  gar  vieltõnig  in  mir 
wieder»:  «A  importante  fabula  do  Puppeiispiel,  do  outro  (refe- 
riu-se  anteriormente  ao  Gõtz  vou  Berlichingen)  soava  e  zumbia, 
em  mil  modos,  dentro  de  mim. »  (Dichtung  und  Wahrheit,  2.a  p. 
pag.  356,  ed.  Kurz.  1870,  vol.  ix  de  Goethe'*  Werke).  O  poeta 
diz  n'esta  mesma  carta,  em  plena  concordância  com  o  que  acima 
referimos,  que  os  assumptos  do  Gotz  e  do  Faust,  radicados  no 
seu  espirito,  se  haviam  transformado  pouco  a  pouco  («nach 
und  nach»)  em  concepções  poéticas.  .(Dichtung  und  Wahrheit. 
ibid.) 

(3)  Op.  cit.,  Vol.  xii,  pag.  446,  onde  se  pôde  lêr  o  resto 
(Testa  admirável  carta. 

(4)  Usamos  d'esta  palavra,  no  sentido  mais  lato,  que  ella 
tem  em  allemào. 

(5)  Edição  das  obras  de  Goethe  (Leipzig,  1790 — Gõschen). 

(6)  O  effeito  da  publicação  nào  foi  animador;  o  fragmento 
não  foi  entendido  em  geral ;  e  a  força  evidente  das  scenas  isola- 


126 


dois  homens  houve,  que  presentíram  a  intenção  de 
Goethe  e  a  grandeza  do  seu  trabalho  fragmentário.  Fo- 
ram elles,  K.õrner  e  A.  W.  Schlegel    1  .  Isto  já  era  em 

171*0!.  .  .  e  esta  intuição  d'estes  dois  homens  notai 
não  vem  senão  confirmar  que  Goethe  não  Be  engana- 
va, dizendo  que  a  concepção  da  Bua  tragedia  já    es- 
lava «completa  e  fiara  em  1772 >>   2  . 

A  necessidade  pois  da  publicação  completa  da 
gwnda  parte,  para  a  inteUigencia  da  primeira,  vae-ae 
tornando  cada  vez  mais  evidente;  porque,  se  em  17íi<> 
só  dois  homens  presentíram  o  plano  geral  de  toda  a  tra- 
gedia, que  Goethe  já  tinha  presente  cm  1772 — não  é 
para  admirar,  que  em  1*<J*  (3),  data  em  que  appare- 
ceu  ;i  primeira  i»irt<-.  não  -  ■  po  lesse  avaliar  uma  ob 
completada  só  em  1832,  com  a  publicação  da  segunda! 

Goethe  fallára   verdade.  Dois  homens  notáveis  já 
haviam  presentido  a  ideia  em  1790,  e  Be  depois 
seram  e  escreveram  muitos  erros,  e  ainda  se  estão  i    - 

das,  só  foi  parcialmente  apreciada  Taylor.  Op.  ctf.,  appendix  u. 
pag.  301  .  Isto  mesmo  é  a  melhor  prova,  de  que  >'■  impossível 
alcançar  uma  ideia  legitima  tia  tragedia,  poram  estado  frag- 
mentarioâe  ama  só  das  suas  partes. 

1  Apud  Taylor.  <>/>.  cit.,  pag.  301,  nota.  Schiller  ficoa 
satisfeito  com  os  fragmentos;  Wieland  lastimou  que  fosse  um 
amalgama  de  trechos  aovoe  e  antigos. 

(2)  Sendo  a  carta  a  II.  Meyer,  cm  qae  se  encontra  i 
passagem,  de  17  de  .Marro  de  1832  temos:  subtrabindo  d'esta 
data,  60  annos=a  data  1 7 T J .  Está  hoje  porém  averiguado,  qi  e 
os  primeiros  trabalhos  escriptos,  datam  de  1773.  Taylor.  '>/•■ 
pag.  299,  appendix  n.) 

•"!  A  primeira  )><irte  ficou  concluida  para  a  impressão  no 
inverno  de  L806-1807;  eappareceu  em  1808,  no  vol.  vm  tia  edi- 
ediçâo  ilas  ninas  de  Goethe  Cotta,  Tiibingen  .  começada  a  im- 
primir  em  1806.  Koberstein.  Gmndriss,  vol.  m,  pag.  25-70, 
nota  ii.  Rectifique-se  o  que  dissemos  em:  0  G      /'"■. 

pag.  l'K>. 


127 


crevendo  todos  os  dias,  não  se  lance  a  culpa  d'elles  á 
conta  do  sentido  obscuro  da  tragedia,  mas  sim  á  con- 
ta do  extenso  rói  da  ignorância  atrevida,  que  se  mette 
em  emprezas  impossíveis,  e  quer  voar  até  ao  sol  com 
azas  de  cera.  Não  admira  que  caiam  nos  mares,  onde 
se  afogaram  já  miserrimamente  tantos  d'aquelles. .  .  ex 
numero  stultorxim,  cuja  conta  é  infinita. 

Não  é  nossa  intenção  crivar  este  capitulo  de  cita- 
ções, a  que  nos  força  a  ignorância  geral  da  nossa  gente, 
emquanto  á  synthese  e  analyse  da  litteratura  allemã  — 
ás  ideias  geraes  e  aos  innumeros  factos  — ;  tomaremos 
apenas,  de  entre  os  numerosos  commentadores,  os  mais 
notáveis  e  os  mais  modernos,  que  servem  particular- 
mente, porque  tiveram  ao  mesmo  tempo  occasião  de 
consubstanciar,  aprofundar,  e  enriquecer  mais  a  scien- 
cia  dos  seus  antecessores  (1). 

Primeiro  deixamos  fallar  Goethe,  como  de  direito 
lhe  competia;  e  depois  de  havermos  tomado  de  relan- 
ce a  opinião  dos  contemporâneos,  vejamos  os  succes- 
sores : 

2.°  Falia  Kreyssig  (2) : 

«Se  Gloethe  affirmou,  em  face  da  obra,  já  completa, 
que  o  seu  plano  estava  presente  á  sua  alma,  desde  o  co- 
meço (3),  de  um  modo  claro  e  evidente,  julgámos  que 

(1)  Citámos  com  frequência  Taylor,  porque,  como  já  re- 
ferimos, elle  declara  haver  estudado  o  Flu/òí,  mais  de  20  an- 
nos(pag.  v,  prefaee),  e  haver  lido  todos  os  commentarios  (pag. 
195  desde  Schubarth  (1820;  e  Hinriuchs  (182õ/),até  Kreyssig 
(1866). 

(2)  Vorlesuugen  iiber  Goethe^  Faust.  Berlin,  1866,  pag.  vr 
e  vii,  (Vorwort). 

(3)  O  auctor  referiu  anteriormente  a  passagem,  que  já  no- 
tamos atraz ;   tivemos  a  felicidade  de  achar,  intuitivamente, 


128 


ninguém  tem  o  direito  de  duvidar  sequer  chi  existência 
d' esse  plano,  e  seria  obrigação  e  dever  nosso  (1),  par;i 
com  o  primeiro  poeta  do  nosso  povo,  procurar  ÍBCança- 
velmente  esse  plano,  ainda  quando  elle  não  rargist 
claramente,  e  de  um  modo  tão  patente,  ao  olhar  investi- 
gador, que  quizer  aprofundar  a  obra  com  seriedade.» 

Segue: 

«Por  isso  considerámos  n'este  logar,  como  fim  prin- 
cipal, mostrar  esse  plano,  com  evidencia  e  com  a  clare- 
za convincente,  o  mais  possível ;  a  demora,  no  exame  de 
passagens  isoladas,  que  requerem  explicação,  será  res- 
tringida, aos  estreitos  limites,  que  nos  prescrevem  — 
além  da  própria  natureza  da  solução,  as  circumstaneias 
do  maior  circulo  de  leitores  (2)»  para  o  qual  destinámos 
estas  paginas.  Porém  (3),  prevenido  pela  sorte  de  nume- 
rosos predecessores,  muitos  dos  quaes  altamente  respei- 
táveis, esforcar-nos-hemos  por  distinguir,  quão  difleren- 


e  de  aproveitar,  quanto  pôde  ser,  em  vista  da  rapidez  foram 
dois  inezes  com  que  esboçámos  a  nossa  passada  critica 
passagens  mais  necessárias  para  a  intelligencda  da  tr.  _ 
nos  differentes  auctores,  que  consultámos;  com  intima  satisfa- 
ção notámos,  haver  escolhido  muitas  das  passagens,  que  Kreys- 
sig  cita  como  capitães,  Bem  comtudo  termos  então  conhecimen- 
to das  suas  opiniões  sabiamos  apenas  da  sua  existência  ;  e 
achámos  concordância  nas  partes  essenciaes;  isto  c  uma  prova 
de  que  os  nossos  esforços,  para  penetrar  no  espirito  da  trage- 
dia, foram  fructíféros. 

1    Quão  característica  não  é.  em  vista  d'este  dever,  que 
Kreyssig  impõe  ao  povo  allsm&o,  o  que  Castilho  propõe  • 
so  publico,  bíc:  «que todos  a  entendam  (a  tragedia    • 
e  a  possam  escutar  sem  desagrado  nem  estranheza  ».  Castilho, 
Fausto,  advertência,  pag.  zu  .  isto  pinta  uma  sociedade! 

(2)  Kreyssig  fez  estas   Vorlesungen   prelecções)  diante  de 
um  numeroso  publico. 
."■    Op.  cit.,  pag.  viu. 


129 

te  é  o  plano  de  um  poema;  e  o  systema  de  um  philoso- 
pho. . .  (1)» 

Depois  do  auctor  fallar  do  processo  complicado  da 
formação  do  Faust;  e  da  differença  de  methodo,  que  a 
critica  tem  por  isso  de  applicar  á  analyse  d'esta  extraor- 
dinária tragedia,  que,  como  muito  bem  diz  Taylor:  «é 
a  única  grande  obra  de  litteratura,  de  todas  as  línguas, 
que  exige  uma  biographia»  (2) — depois  de  estabelecer 
essa  differença,  continua  Kreyssig  (3): 

«Períodos  tão  longos,  além  d'isso  preenchidos  por 
uma  actividade  múltipla,  infatigável  (4)  exigem  todavia 
— aparte  a  veneração  pela  ideia  fundamental,  sustentácu- 
lo da  construcção  gigantesca  —  o  exame  mais  cuidadoso; 
tendo  em  vista  a  influencia  inevitável,  que  elles  exerce- 
ram, não  sobre  o  plano,  mas  sobre  o  desenvolvimento  e  so- 
bre o  tom  (a  cor)  das  partes,  que  elle  determinava;  note- 
se  ainda,  que  se  trata  aqui  de  uma  confissão  geral  (5), 
poética,  scientifica  e  politica,  de  um  homem,  que  mais  do 
que  nenhum,  navegou  na  plena  corrente  da  vida,  fami- 
liarisado  com  o  mundo  dos  factos,  tanto,  como  com  o 
mundo  dos  pensamentos,  da  phantasia  e  do  sentimento 
—  dum  homem,  que  soube  gozar  no  interior  do  seu  pro- 

(1)  Welch  ein  anderes  Ding  es  ist  um  den  Plan  eines  Ge- 
dichtes  ais  ..m  das  System  eines  Denkers  (propriamente  =pen- 
saãor=  ).  Fsta  distincçào  capital  prevê  já  a  allegaçào  dos 
enunciados  apparentemente  contradictorios,  que  espirites  mes- 
quinhos acharam  no  Faust,  por  nào  distinguirem,  no  meio  das 
negativas  da  tragedia,  as  afirmações  admiráveis,  que  ficam  de 
pé  (nota  do  auctor). 

(2)  The  chronology  of  Faust,  appendix  n,  pag.  298. 

(3)  Vcniesungen,  pag.  rx. 

(4)  Onde  fica  o  Goethe  egoísta? 

(5)  Nós  haviamos,  sem  conhecer  Kreyssig,  dado  esta  mes- 
ma definição,  apenas  com  outras  palavras:  O  Faust,  pag.  101. 


130 

prio  ser  (1),  (soffrendo  também  provavelmente)  aquillo 
que  era  dado  em  partilha  á  humanidade  soffredora — 
mas  tudo  isto,  dentro  dos  firmes  limites,  que  a  sua  natu- 
reza havia  traçado,  e  que  elle,  por  vontade  própria,  sus- 
tentou sempre  com  firmeza  (2). 

Diz  finalmente  uma  outra  passagem  de  Kre\ 
(pag.  xii): 

« Podemos  emfim  caracterisar  o  conjuncto  das  exi- 
gências n'este  sentido  (3): 

«  Um  desenvolvimento  da  ideia  do  poema  (no  sen- 
tido platónico  da  palavra),  desenvolvimento,  sustentai  lo 
e  fiscalisado,  passo  a  passo,  pela  critica  histórica  e  phi- 
lologica.  Para  satisfazer  essas  exigências  aqui.  Begundo 
a  medida  das  nossas  forças,  e  do  nosso  fim  particular.  1  . 
começaremos  por  tentar  reconhecer  as  condições  pré- 
vias do  poema,  no  estado  intellectual  e  moral  da  época 
do  seu  nascimento  (5),  e  por  avaliar  os  elementos  pri- 
mordiaes,  offerecidos  ao  poeta  pela  lenda.  Segui remos 
depois  o  poema,  passo  a  passo,  nas  phases  mais  impor- 
tantes do  seu  desenvolvimento,  fazendo  primeiro  justiça 
ao  fragmento  primitivo  —  depois,  observando  nas  scenas 

d)  «In  seinem  innereu  Selbst...      A   isto  opponha  - 
que  Castilho  attribue  a  Goethe:  « frenesi  de  gosar  sensualmen- 
te». (Fausto,  noras,  pag.  U)6,  linha  4.a) 

2  Esta  passagem  em  Kreyssig  p.  \.  .  é  diffici]  de  tradu- 
zir; todavia  forcejámos  poi  dar  d  pensamento,  Berna  menor  um- 
dança,  embora  a  formação  da  phrase  Boflresse  com  isso.  O  que 
nus  importa.  ó  respeitar  <>  pensamento  allemào;  a  coseria  das 
gralhas  clássicas,  diverte  nos. 

(3)  Para  a  intelligencia  do  Kunstwerlt  da  obra  d'arte  . 
I    Creyssig  refere  Be  ao  numeroso  auditório,  que  u 
tiu  ás  suas  prelecç  es. 

(5)  o  que  aos  fizemos  0  Faust,  pag.  109-200,  ca]).  i\.  A 
Lenda  do  l  >r.  Pausl  .  e  que  o  Bnr.  (J.  M.  julgou  supérfluo 
o  Visconde  não  o  haver  feito. 


131 

da  primeira  parte,  posteriormente  accrescentadas  (1), 
como  o  plano  total  vae  crescendo  progressivamente; 
para  reconhecer  os  fios  intellectuaes,  que  partindo 
d'elle  se  ligam,  de  um  lado  ao  tronco  fundamental  do 
poema  (2),  e  do  outro,  servem  de  meio  conductor  para 
a  segunda  parte  (3). 

«Preparados  d'esta  maneira  tentaremos  uma  revista 
pelas  allegorias  da  segunda  -parte,  não,  sem  alguma  es- 
perança de  facultar,  ainda  que  peze  aos  scepticos  (4), 
lima  intelligencia  sufficiente  do  total  (5),  para  generali- 
sar  o  conhecimento  de  thesouros  preciosíssimos  da  sabe- 
doria de  Goethe,  de  verdadeira  sciencia  allemã,  e  de 
verdadeira  sciencia  da  vida  humana». 

3.°  Deixemos  agora  a  palavra  a  Carriere  (6):  «0 
Faust  é  um  poema  de  pensamentos  \_Gedankendieh- 
tung  (7)];  o  melhor  da  sciencia  do  século,  entrelaçou 
aqui  o  sábio  poeta.  0  pensamento  nasce  primeiro,  no  meio 
<]<t.  lucta  de  um  estado  'psychologico  (8),  apaixonado  (9); 

(1)  Notaremos,  que  estas  scenas  são  as  que  estabelecem  a 
ligação  externa  entre  a  primeira  e  segunda  parte.  Vide  o  que 
dissemos  em  O  Faust,  pag.  48. 

(2)  I,sto  é :  aos  primeiros  fragmentos,  1773  (nota  do  auctor). 

(3)  E  pois  evidente  a  ligação  intima  das  duas  partes  in- 
separáveis. 

(4i  Ziveiflern,  antes  =  aos  que  duvidam.  — 

(5)  «Im  ganzen  und  Grossen  ». 

(6)  Faust.  Eine  Tragõdie.  Mit  Einleitung  und  Erlãute- 
rungen  von  Moritz  Carriere.  Leipzig,  Brockhaus,  1869,  2  vol. 
in-8.°,  pag.  xvii.  Eitdeitung. 

(7)  Vide  atraz,  pag.  65. 

(8)  Carriere  escreve :  « lcidenschaftlich  erregtem  Gemiith » , 
mas  como  a  palavra  Gèmitth  corresponde  a  um  estado  psycho- 
logico, próprio  do  allemào,  que  nós  não  conhecemos ;  preferimos 
uma  significação  geral  a  um  termo  positivo,  que  mutilasse  a 
ideia,  res,tringindo-a. 

(9)  E  esse  o  caracter  da  primeira  parte. 


132 


do  esforço  para  a  verdade  (l)j  depois  domina  (2)  elle  (o 
pensamento)  vivaz  e  claro,  no  espirito  consciente,  e  ma- 
terialisa-se  (3)  em  figuras  e  situações,  que  o  revelam  de 
uma  maneira  plena  e  pura. 

Em  certos  intervallos,  esconde-se,  de  vez  em  quan- 
do, em  mascaras  allegoricas;  porém  a  verdadeira  poesia 
triumpha  sempre  de  novo,  transfigurando  o  Real  no  seu 
Ideal  & 

Se  não  basta  esta  demonstração  claríssima,  eis  mais 
um  argumento,  que  nós  deduzimos  (4)  de  outra  citação 
de  Carriere  (5) : 

«Esta  passagem  (G)  pertence  já  também  aos  frag- 
mentos mais  primitivos  e  antigos  do  poema.  FaueA 
falia  aqui  da  aspiração  (Streben)  para  o  ideal  huma- 

(1)  Este  período  de  transição,  que  decorre  desde  a  intro- 
ducção  á  segunda  parte  —  resorve-se  no  renascimento  moral  de 
Faust  (  Wiedergeburt  .  que  (segundo  os  commentadores)  se  ope- 
ra, quando  Faust  desce  ao  domínio  das  Mutter  mães.  onde 
Mephisro  nào  pôde  descer,  porque  o  império  das  mSi  - 
reino  da  Verdade  ;  Carriere.  vol.  n,  pag.  249.  Vide  também 
Eckermann,  Gesprãche,  vol.  n,  para  116-118  ;  depois  recon- 
quista Faust,  renascido,  os  seus  deveres,  mi  acção  en 
(That). 

(2)  Eis  o  movimento  da  segunda  parte. 

(3)  » verkõrpert  sich » ,  Litteralmante:  corporisa-se. 

(4)  A  exposição  é  nossa. 

5    ','/'■  '''"'••  v°l-  J)  pag-  1^1- 

(6)  E  a  seguinte,  que  se  encontra  na  primeira  parte  do 
Faust,  i  Bcena  do  pacto j : 


■  Und  mi  der  ganzen  Mensehheit  zugotheilt  ist. 
iWIll  ich  in  meincm  innorn  Belbsl  geniesaen.  » 


Trad. 


E  o  que  é  dado  Pm  partilha  a  t-ida  a  humanidade. 
Quero  ou  uo  meu  intimo  BCI  p<i/.;u\ 


Vide  a  nossa  trad.  0  Fmut,  pag.  319  . 


133 


no  (1)  —  isto  é,  para  a  união  das  antitbeses  do  espiritual 
e  do  natural,  do  intellectual  e  do  sensual,  da  acção  e 
do  gôso,  dos  prazeres  sensuaes  e  da  salvação  da  alma 
—  como  da  aspiração  dos  corações  da  juventude,  no  pe- 
ríodo do  Sturm  und  Drang  (2). 

Ora  a  união  das  duas  antitheses  não  se  verifica,  se- 
não na  segunda  parte,  e  o  enunciado  da  these  philoso- 
phica  aqui,  na  primeira  parte,  n'um  dos  trechos  mais 
primitivos  e  mais  antigos,  como  diz  Carriere,  prova  evi- 
dentemente a  verdade  do  que  dizia  Goethe :  que  a  con- 
cepção fundamental,  a  ideia  do  todo,  lhe  appareceu  logo, 
«evidente  e  clara  ao  seu  espirito  juvenil»  (3). 

4.°  Citamos  finalmente  um  commentador,  que  teve 
occasião  de  aprofundar  os  problemas  do  Faust,  talvez 
como  ninguém,  n'um  estudo  aturado  e  profundo, de  mais 
de  vinte  annos  (4) ;  e  que  examinou  todos  os  commenta- 


(1)  Vollmenschlichen,  termo  intraduzível. 

(2)  Violência  e  ímpeto,  litteralinente ;  ou  melhor :  origina- 
lidade e  génio,  que  é  a  significação  litteraria. 

« Kant  e  Schiller  haviam  evocado  a  ideia  do  dever,  do  sa- 
crifício, da  justiça  e  do  desinteresse,  lembrando  a  escravidão 
da  vontade,  sob  a  influencia  do  parem  si  do  goso,  e  da  sensuali- 
dade «.  Gervinus  Geimige  Rewegurtgen,  em  Gesch.  d,  neunz. 
■/< .a /.  h,  vol.  viu,  pag.  Iõ7.  Goethe  accentuou  não  menos  energi- 
camente, que  na  repressão  dos  seus  instinctos  baixos,  e  na  ele- 
vação do  seu  nivel  intellectual,  é  que  consiste  a  dignidade  do 
individuo  e  de  uma  nação.  Esta  tendência  ideal  imprimiu  no 
movimento  intellectual  da  Allemanha  do  secido  xvui,  um  cu- 
nho indelével. 

(3;  Vide  o  que  dissemos  em  o  Faust,  pag.  36. 

(4)  B.  Taylor.  Faust,  pag.  v,  preface :  « It  is  twenty  years 
since  I  first  determined  to  attempt  the  translation  of  Faust, 
in  the  original  metres  ». 

Esta  traducçâo  foi  classificada  como  a  melhor,  que  se  tem 
feito,  n'uma  lingua  estrangeira ;  os  jornaes  inglezes :  Athenamm 
e  Saturday  Review  fizeram  ao  auctor  os  maiores  elogios  e  nós, 


134 


dores,  desde  ScmAarth  (1820  até  Kreyssig   L866     1. 
isto  é,  os  resultados  da  crítica  durante  quasi  me 

culo. 

Diz  Bayard  Taylor  (pag.  xvin): 

«Por  isso  mesmo  que  esta  parte  foi  incluída  'reíi- 
re-se  á  segunda)  no  plano  original  de  Goethe,  por  isso 
mesmo  a  primeira  parte,  comquanto  ;i]i]iarentemente 
completa,  como  episodio  trágico  (2),  é  na  verdade,  ape- 
nas um  fragmento,  onde  os  problemas  mais  profundos, 
sobre  os  quaes  a  obra  se  baseia,  ficam  por  resolver. 
Considero  pois,  que  a  segunda  parte  è  necessária  tã<» 
necessária,  na  verdade,  como  o  Paraíso  á  Divm 
media  do  Dante):  e  o  meu  esforço,  no  segundo  volume 
d'esta  traducção,  terá  por  fim,  pôr  em  clara  evidencia 
essa  necessidade;  tanto  diante  dos  olhos  do  leitor  in 
como  dos  d'aquelles  críticos  inglezes  e  allemães,qne  pre- 
lendem  degradar  o  original». 

E  com  isto  terminámos  a  revista,  que  podíamos  ana- 


temos sobre  o  meza  um  artigo  de  quasi  •">  grandes,  paginas,  gr. 
in-4.°,  dos  Blãtter  fur  literarísche  Unterhaltvng  'annode  1872, 
n."  11,  pag.  171-173),  um  dos  primeiros  jornaea  litterarioa  da 
Allemanha,  que  confirma  o  mesmo  voto.  0  nosso  eia 
soai,  só  o  podemos  formular  n'uma  sincera  admiração  pelo  ex- 
plendido  trabalho;  os  metros  do  original,  até  <>  rhytn 
ram  quasi  sempre  fielmente  conservados;  e  a  traducção  é  tão 
nVl,  que  se  encontram  passagens  inteiras,  <»mle  as  palavra-  al- 
lemas  Be  acbam  repetidas  por  outras  tantas  inglezas,  absoluta- 
equival entes ;  pôde  dizer  se  affbitamente  de  !>   Taylor, 

0  que  elle  applica  a  om  bom  traductor:  Rendendo  se  elle 
próprio  ao  in  eiró  domínio  do  espirito,  que  ha-de  fallar  por 
elle,   recebe  também  uma  porção  il>>  mesmo  poder  creador.  ■ 

1  Faust,  preface,  pag.  \. 

1    Op.  cif.,  [ntroduction  ás  notas,  pag.  196, 
■_'    Mas  não  é  este  o  fim  da  tragedia;  a  id 
sentido  platónico  [nota  do  auctor  . 


135 


raentar  cora  mais  alguns  nomes  cios  investigadores  mais 
recentes,  se  as  proporções  d'esta  resposta  fossem  outras. 
Recapitulamos  de  novo  a  nossa  these : 
Que  a  primeira  e  a  segunda  parte  da  tragedia  for- 
mam um  todo  orgânico,  inseparável,  e  que  para  a  in- 
telligencia  da  primeira  parte,  é  indispensável  a  intel- 
ligencia  da  segunda;  d'ahi  a  necessidade  impreterivel 
do  estudo  simultâneo  e  comparado  das  duas  partes  da 
tragedia. 

Repetimos  a  affirmação  do  Visconde  de  Castilho: 
«Na  segunda  parte,  dizem  allemães,  é  que  o  autor 
mais  se  despendeu  em  gentilezas  e  esmeros  líricos.  Po- 
de ser:  contemplado  nos  reflectores  não  o  parece;  e 
depois  quando  essas  excelleneias  accidentaes  e  de  mera 
forma,  rara  vez  traduziveis,  sejam  taes  como  nol-as 
querem  encarecer,  tantos  e  tão  crespos  são  no  ultimo 
Fausto  os  eniofinas  filosóficos,  tão  abstruzo  o  senso  das 
ficções,  e  as  ficções  mesmas  tão  desnaturaes  tão  inve- 
rosímeis, tão  impossíveis  (ia-me  quasi  escapando  tão 
absurdas)  que  o  bom  gosto  e  bom  senso,  que  tão  be- 
névolos perdoaram  e  receberam  a  lenda  velha  do  Dr. 
Fausto,  não  sei  como  se  haveriam  com  o  Fausto  ultimo. 
O  primeiro,  o  nosso,  foi  um  gigante;  o  ultimo  figura-se 
ao  espirito  da  nossa  consciência  o  homunculo,  um  pro- 
ducto  abusivo  das  forças  da  arte»  (I). 

Emfim,  o  commentario  approvativo  do  snr.  G.  M.: 
«Para  estes  críticos  (2)  etc...  não  seriam  de  certo  tão 


(1)  Fausto,  advertência,  pag.  xvi. 

(2)  Mencionámos  os  sens  nomes: 

G.  H.  Heinrich,  já  analysado  (pag.  71). 
Saint  René-Taillandier,  idem  (pag.  70,  nota). 


136 


escandalosas,  como  para  os  nossos  dois  aristarcnoi    1  . 

as  conceituosas  palavras  com  que  o  snr.  Castilho  resu- 
me o  seu  juízo  acerca  dos  dois  Faustos:  fl  0  primei- 
ro. .  .  etc.»  (2). 

Podem  em  vista  das  razões  expostas:  podem  em 
vista  das  opiniões  do  próprio  Goethe,  e  da  sua  declara- 
i/ao formal,  que  deve  ser  sagrada;  podem  subsistir  con- 
tra Schiller,  A.  W.  Schlegel,  Kiirner,  Koberstein,  Dún- 
tzer,  Kreyssig,  Carriere,  Taylor,  e  todas  as  auctorida- 
des  modernas  de  primeira  ordem  — as  miseráveis  e  ra- 
chiticas  opiniões,  que  o  snr.  G.  M.  allega? 

É  o  organismo  das  duas  partes  da  tragedia  Faust 
evidente?  São  ellas  inseparáveis  ou  não?  Commetteo 
ou  não  o  Visconde  de  Castilho  e  o  seu  alter  ego    3    o 

II.  Laube,  idem  (pag.  65-66). 

Vischer  (de  que  o  snr.  Gr.  M.  faz  Bise/ter,  pag. 
já  refutado  por  Diintzer,  o  mais  fervoroso  defensor  da  segun- 
da porte. 

Schnetger;  e  outroBtres  —  egualmente  apud  Dãn1 

H.  Heine —  por  ultimo,  analysado  a  pag.  67-70. 

Effectivamente,  de  sua  casa,  adduzpoia  o  snr.  <í.  M.  ape- 
nas 4  auctores  (Saint  René-Taillandier,  Heinrich,  Laube  e 
Heine  .  craal  d'elles  de  menos  valor. 

(1 )  F.  Adolpho  <  loelho,  i  nós. 
J    Os  críticos,  pa<?.  91  e  92. 

(3)  Para  notarmos  também  a  Força  de  lógica  do  snr.  <•. 
M.  lembraremos,  que  servindo-se  elle  quasi  exclusivamente  de 
Diintzer  (o  único  livro  de  valor,  de  que  lançou  mão  para 
tar  as  nossas  ideias,  e  oppôl-as  ás  de  Lewes,  que  adoptamos  no 
íKissu  primeiro  trabalho;  discorda  logod'elle,  desde  o  momento 
em  que  Diintzer  se  approxima  da  nossa  exposição;  n'este  acto 
capital  da  avaliação  da  segunda  partt  — tem  o  snr.  <;.  M.  o 
atrevimento  de  dar  ;i  Lógica  :i  máxima  bofetada,  classificando 
os  elogios  de  Diintzer  (o  mais  decidido  defensor  <la  m 
jinr/i  ide  absurdos;  nào  <>  declara,  mas  i*t<>  resulta  fatalmente 
da  classificação  de  aborto,  uma  vez  ipii'  Diintzer  acha  — • 
aborto,  ama.  obra  prima.  A  opinião  'lo  snr.  <;.  M..  istoé,  osnr. 
G.  M.,  apesar  de  consummaao  germanista,  e  apesar  da  enca- 


137 

crime  de  lesa-magestade  contra  o  génio,  classificando 
de  aborto,  e  de  absurdo,  o  trabalho  synthetico  de  um 
dos  cérebros  mais  poderosos,  que  a  humanidade  tem  co- 
nhecido; o  fructo,  que  é  o  resultado  de  sessenta  annos 
dos  mais  laboriosos  sacrifícios? 

0  leitor  que  responda ;  não,  —  responde-lhes  o 
próprio  poeta  (1). 

Podemos  declarar  publicamente,  embora  pese  ao  snr. 
Gr.  M.  e  ao  Visconde  de  Castilho,  que  os  estudos  que 
fizemos  em  Kreyssig,  Carriere,  e  tantas  outras  fontes, 
não  foi  baldado,  ao  menos  para  nós;  e  que  a  interpre- 
tação tão  philosophica,  tão  elevada,  e  ao  mesmo  tempo 
tão  humana,  dos  notáveis  commentadores  (principal- 
mente a  de  Kreyssig),  nos  facultou  um  olhar  sufíicien- 
temente  claro  n'esse  aborto,  para  distinguirmos,  com 
regosijo  intimo,  o  fio  admirável,  a  ideia  fundamental  — 

neeido  nas  profundas  lucubrações  de  unia  vida  de  66  annos," 
ainda  nào  tem  opinião  acerca  da  segunda  parte  da  tragedia) 
eil-a : 

« Começamos  por  declarar  ingenuamente  que,  apesar  da 
nossa  boa  vontade,  nunca  nos  foi  possível  formar  uma  con- 
vicção profunda  acerca  das  apregoadas  excellencias  d'essa 
composição  extraordinária.  Lemos  o  Segundo  Fausto  poucos 
annos  depois  da  sua  publicação.  Fatigou-nos  a  sua  leitura». 
(pag.,84). 

E  tão  natural ! 

(1)  Goethe  dizia  a  Eckermann  acerca  A&  segunda  parte  do 
Faust,  quando  este  avançou  a  opinião,  de  que  n'esta  apparecia 
um  mundo  muito  mais  rico  : 

«  Também  me  parece  —  disse  Goethe —  «  A  primeira  par- 
te é  quasi  toda  subjectiva;  sahiu  tudo  de  um  individuo  mais  li- 
mitado, mais  apaixonado-,  esse  claro-escuro  éo  que  agrada  tan- 
to aos  homens  Na  segunda  parte  quasi  que  nada  ha  de  subje- 
ctivo ;  apparece  n'ella  um  mundo  superior,  mais  vasto,  mais 
claro,  e  menos  apaixonado  ;  quem  não  houver  alcançado  alguma 
experiência  e  saber,  não  saberá  o  que  fazer  com  ella  »  («). 

(*)  Eckermann.  Gespráche,  vol.  n,  pag.  186. 


13* 


a  ideia  platónica  d'esse  todo  orgânico:  O  snr.  GK  M.  c  o 
seu  mentor  poderão  ainda  eorrer  o  mondo  até  ao  sen  fim, 
gritando  contra  o  aborto,  que  isso  não  nos  rira  i 
lo,  que  é  .hoje  a  nossa  convicção. 

O  que  é  extremamente  curioso,  é  ver  como  o  snr. 
G.  M.  se  enrosca  n'um  inextricável  labvrintho.  a  pro- 
pósito da  segunda  parte  da  tragedia,  para  desculpar  o 
titulo  de  aborto  e  de  absurda,  que  o  Visconde  lhe  deu. 

Apesar  do  que  atraz  fica  dito,  ainda  não  se  sabe 
bem  o  que  o  snr.  G.  M.  pensa  d'essa  parte,  ou  por 
outra  sabe-se,  que  elle  nada  pensa  a  esse  respeito.  Ás 
duvidas  (1),  que  ainda  lhe  assaltíim  hoje  o  espirito,  res- 
ponde elle  mesmo  s  «não  podemos  nem  pretendemos  ar- 
vorar-nos  em  aristarchos  a  favor  nem  contra  o  Segun- 
do Fausto'»  (2); — todavia  acha  eoneetíuosas  (S)  as  pala- 
vras, com  que  o  Visconde  classifica  de  aborto  a  respe- 
ctiva parte  da  tragedia!!  Que  havemos  de  dizer á  vista 
d'este  vae  e  vem  de  contradicções,  separadas  apenas  pi- 
lo intervallo  de  quatro  paginas? 

O  snr.  G.  M.  tributa  respeito  ás  obras  do  genio, 
o  invioláveis  até  nos  seus  defeitos  e  (4),  mas  isso  não  tira 
ao  Visconde  o  direito  de  misturar  os  trapos  da  sua  casa 
com  as  explendidas  roupagens  do  original : 

«O  snr.  Castilho — porque  o  não  diremos? — pre- 
cisou de  encher  uma  oitava,  forma  métrica  que  lhe  vinha 


(1)  Os  críticos,  pag.  84,  e  atraz.  pag.  136,  nota  3. 

(2)  Op.  efe,  pag.  §7. 

(3)  «...as  eoneeituosas  palavras  com  que  o  snr.  Castilho 
resume  ojtrizo  acerca  doa  dou  i  d  primeiro,  etc.  Os 
críticos,  pag.  91  e  92. 

(4)  Cs-  critico8f  pag.  35. 


139 


imposta  do  original,  e  escreveu  esse  verso  a  maior»  (1). 

Mas  a  que  propósito  vem  o  imposta,  para  descul- 
par o  atrevimento  do  Visconde,  quando  o  snr.  G.  M. 
reivindica  para  o  poeta-traductor  plena  liberdade  para 
a; condensar  ou  ampliar  um  pensamento  do  original»  (2)  ? 

Que  ligação  lógica  ha  n'estas  três  affirmações  col- 
locadas  todas  na  mesma  pagina !  ?  Teremos  também  de 
ensinar-lhe  de  novo  o  compendio  que  devia  ter  deco- 
rado ha  50  annos,  como  calouro,  em  Coimbra? 

O  snr.  Gr.  M.,  apesar  da  sua  «profunda  veneração» 
(pag.  66)  por  Goethe,  acha  no  Faust,  defeitos  de  forma 
(pag.  114),  confusão  na  marcha  da  acção  (pag.  116); 
acha  conceituosa  (pag.  91)  a  qualificação  de  Castilho, 
applicada  á  segunda  parte.  Acha  Goethe,  como  ho- 
mem, bulhen  to  (pag.  72);  «supremamente  egoísta»,  se- 
não um  D.  João  de  obra  grossa,  como  o  entende  Casti- 
lho, ao  menos  «não  da  mais  finai)  (sic,  pag.  76),  etc,  etc. 

Por  ultimo,  para  que  também  não  fique  duvida 
acerca  do  modo  por  que  pensam  os  dois  collegas,  rela- 
tivamente á  primeira  parte  do  Faust,  transcrevemos  as 
classificações  (3),  que  o  Visconde  de  Castilho  faz  da  pri- 
meira parte  da  tragedia,  e  que  o  seu  alter  ego  approva 
plenamente,  nas  varias  passagens  da  sua  critica. 

Seja  esta  a  coroa  final  d'este  capitulo. 

«  Castilho  ama  as  definições  para  illudir  com  ellas 
difficu Idade  da  explicação. 

«Vejamos,  sommando,  que  bonita  collecção! : 


(1)  Os  críticos,  pag.  35 

(2)  Op.  cit.,  pag.  35. 


(3)  Enriquecidas  com  mais  duas,  que  ultimamente  acha- 
mos. V.  a  antiga  lista :  O  Faust,  p.  30. 


140 


A  tragedia  Faut/tô  ê   «■  obra  única  no  seu  género.)) 

»  »  »        »  «cordilheira  de  poesia,  rebenta  ri  a 

a  súbitas  de  profundeza-  des- 
conhecidas, e  povoada  de  tre- 
vas e  monstros. » 
»         »  9       »  (verdadeiro  padrão  que  estre- 

mou o  mundo  poético  antigo 
do  mundo  poético  hodierno.» 
»  «Biblia,  ou  » 
»  «Alcorão,  p 

»  «philosophia  mal  distincta.» 
»  «reforma  da  religião  poética.  •• 
»   «terribillissimo    e    verdadeira- 
mente diabólico  poema.» 
»  «nova  região  da  arte.» 
»  «a  mais  famigerada  de  todas  as 

obras  fantásticas,  l 
»   «uma    maravilha  germânica. 
»  «um  gigante. » 
Esta  comedia  de  definições,  lembra  certa  seena  im- 
mortal  do. . .  Médecin  malgré  lui»  (O  Fatut,  pag.  30). 


» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

» 

D 

» 

» 

» 

» 

h)  1.  Preludio  no  theatro    1   —  2.  Prologo  no  céo 

0  snr.  G.  M.  impugna  na  sua  critica  a  interpreta- 
ção que  nós  dêmos  aos  dois  prólogos,  assim  como  á  De- 
dicatória (Zueignnng- — em   Castilho:   Prologo  do  au- 

1     Definições  do  Dialogo   preliminar,   verdadeiramente 

í'irh/,iin  no  theatro,  feitas  pelo  Visconde  de  CaatiUn    Fauttoj 

notas,  p.  406): 


141 


dor!),  e  impugna  a  nossa  opinião  com  razões  respeitá- 
veis, que  achou  em  Diintzer,  a  única  taboa  de  salvação 
do  snr.  G.  M. 

É  pois  de  justiça,  que  consideremos  os  seus  ^argu- 
mentos— isto  é:  os  de  Diintzer. 

Este  auctor,  como  já  dissemos  (1),  tem  soffrido  sé- 
rias, impugnações,  tanto  ao  seu  trabalho  de  1857,  como 
ao  de  1861,  que  é  o  seu  ultimo  sobre  o  Faust.  Os  escripto- 
res  Vischer,  Kostlin,  Schnetger,  Rinne,  Rõnnefart,  Da- 
vid Asher,  foram  por  elltj  maltratados,  e  atacados  com 
extrema  violência.  Alguns  d'entre  elles,  Asher  (2),  e  o 
Professor  Kostlin  já  responderam ;  e  este  ultimo  reduziu 
Diintzer  a  um  humilde  silencio,  com  uma  resposta  se- 
vera e  digna. 

Não  queremos  com  isto  attenuar  o  grande  mérito  de 
Diintzer ;  mas  sim  provar,  que  as  suas  opiniões  são  me- 
nos reconhecidas,  do  que  o  snr.  G.  M.  imagina;  e  até  gra- 
vemente impugnadas.  0  nosso  adversário  haveria  pois 
feito  bem,  em  se  pôr  ao  facto  d'estas  discussões  da  critica 


«Sob  este  titulo  encerrou  o  autor,  uào  sabemos: 

1.°  se  o  seu  credo  poético, 

2.o  se  uma  apologia  das  novidades  da  tragedia, 

3.°  se  uma  desculpa  antecipada  das  novidades  da  sua  tra- 
gedia, 

4.°  se  uma  curiosa  satyra  do  theatro  allemão, 

5.°  se  seja  alguma  d'estas  coisas, 

6.°  se  o  complexo  de  todas  ellas. 

Nào  repetimos  aqui  o  que  já  lhe  ensinamos;  queira  pois  o 
leitor  ver,  O  Faust,  pag.  40-41,  e  20Õ-209 ;  com  Castilho  nào  te- 
mos cousa  alguma. 

Do  Prologo  no  céo  (em  Castilho,  1.°  Quadro  da  tragedia) 
nào  dá  o  Visconde  explicação  alguma. 

(1)  Vide  pag.  72-74. 

(2)  Veja-se  o  que  este  diz  em  Blãtter  fúr  literarische 
Unterhaltung ,  1872,  pag.  173. 

* 


142 


moderna,  antes  de  acceitar,  sem  condições,  as  ideias  do 
distincto  commentador.  Não  devia  o  snr.  G.  ML,  <■<>>,- 
gummado  germanista,  esperar  que  um  ignorante  escri- 
ptor,  de  vinte  e  quatro  annos,  lhe  viesse  agora  ensinar 
o  que  não  sabe  aos  sessenta  e  seis. 

Mas  emfim.  já  que  o  ignora,  queira  ouvir: 

1.°  A  Dedicatória  (Zueignung). 

A  interpretação  que  nós  demos  a  este  admirável  tre- 
cho (1),  era  em  summa  a  seguinte  (2):  que  Goethe,  che- 
gando já  a  lima  época,  em  que  a  maior  parte  d^tquelles 
seus  amigos  e  collegas  das  Lactas  passadas,  qne  haviam 
contribuído  com  conselhos,  ideias,  lembranças,  elogios  e 
censuras  animadoras  para  o  processo  da  formação  do 
vasto  poema  —  em  que  parte  d'elles  já  não  existiam   3   ; 


1  < »  Visconde  de  Castilho  Faust,  pag.  1)  havia  pre- 
cedido esta  dedicatória,  com  a  seguinte  impagável  rubrica: 
i  Kstá  o  Poeta  no  seu  camarim,  passeando  e  fallando  corasigo 
mesmo...  ANTES  de  compor  o  livro: 

Ora  a  dedicatória,  segundo  hoje  é  positivamente  sabido. 
nào  foi  escripta  antes  de  1797:  Qoteaxlierthan  theyear  1797. 
Taylor,  m>tea  pag.  199,  e  The  chronology  of  Faust,  appendix, 
pag.  302). 

Em  1797  estava  Goethe  elaborando  a  segunda  pari* 
primeiras  20  acenas  do  Faust  foram  publicadas,  como  fragmen- 
tos, já  em  1790   edição  Gdschen,  Leipzig  - 

Pretende  o  Visconde,  que  a  Dedicatória,  escripta  7  ân- 
uos depois  de  publicadas  as  primeiras  20  acenas,  representa  o 
estado  dò  poeta  A.NTES  de  compor  o  livro?  K  diz  o  snr.  c.  II. 
.1  vista  d'isto,  e  da  demonstração,  que  já  dêmos  com  outras  pa- 
lavras, no  nosso  primeiro  trabalho  O  Faust,  pag.  99-100  :  0 
snr.  Castilho  conhecia  muito  melhor  do  que  0  seu  critico  a  bio- 
graphia  de  Goethe     pag.  76  . 

■_'    Vide  o  desenvolvimento  em  0  Faust,  pag.  99—108. 

."•    Cornélia,    sua    irmã   amada.   Merck.    I.enz.    Basodow, 
Gotter  eram  mortos;  Klopstock,  Lavater,  e  os  dois  Cond 
Stolberg  estavam  divorciados  com  elle;  Jacobi,  Klinger,  Kest- 
ner  e  outros  andavam  longe,    seguindo  cada  um  0  seu  cami- 
nho na  vida. 


143 


chegado  a  um  período  adiantadíssimo  do  seu  poema,  não 
pôde  lembrar-se  sem  melancholia  dos  successos  preté- 
ritos; desceu  ao  seu  intimo  ser,  e  evocou  o  passado. 

Segundo  nós  — e  esta  é  a  differença  com  que  o  snr. 
G.  M.  não  concorda  —  este  passado  não  está  povoado 
só  das  imagens  e  das  concepções  da  tragedia,  mas  sim 
das  recordações  dos  amigos,  que  pela  sua  grande  in- 
fluencia sobre  o  espirito  de  Goethe,  ajudaram  e  provo- 
caram as  metaniorphoses,  que  soffreram  as  figuras  da  tra- 
gedia, e  as  ideias  do  próprio  poema  (1). 

Esta  é  a  opinião  de  Kreyssig,  Carriere,  Taylor,  e  de 
todos  os  commentadores. 

Querer  determinar  minuciosamente  quaes  as  linhas, 
que  se  referem  aos  amigos,  e  ás  visões  do  poema;  é  ap- 
plicar  na  analyse  o  mesquinho  ponto  de  vista  da  Klei- 
nigkeitskrámerei,  das  «ninharias  só  próprias  de  um  mer- 
cieiro»,  de  que  falia  Kreyssig,  ponto  de  vista  que  o  pró- 
prio snr.  G.  M.  acha  falso  (2). 

O  mesmo  snr.  G  M.  concede  «que  as  sombras  dos 
amigos  apparecem  depois»  (pag.  96),  como  não  pode  dei- 
xar de  conceder: 


(1)  Vide  o  Briefweehsel  com  Schiller,  com  Riemer,  Wil- 
helm  von  Humboldt,  H.  Meyer,  e  outros,  de  que  já  citamos  al- 
guns trechos  capitães. 

(2)  « Intenções  recônditas  que  á  força  de  quererem  ser  ar- 
gutas descambam  no  ridículo ».  (Os  criticas  pag.  103)  O  snr.  G. 
M.  serve-se  aqui  de  um  ponto  de  vista  verdadeiro,  só  para  re- 
futar a  opinião  de  Lewes,  que  nós  adoptamos,  oppondo-lhe 
a  de  Duntzer,  auctor  que  elle  regeita,  logo  que  a  sua  opinião 
se  approxima  da  nossa. 

Que  lógica ! 


144 


i  \'i'.s  trazeis  eomvosco  as  imagens  de  alegres  dias 
E  ama  e  outra  cara  sombra  appai*ece:    lj 
Qual  velha  lettda,  (júasi  â&hóãdâ, 
\'i'in  o  primeiro  amor  e  a  amizade.  »  (2) 


O  snr.  G.  M.  pretende  ainda: 

«Não  é  tampouco  ás  sombras  dos  amidos,  mas  á 
prcsmo  dos  phantasmas  poéticos  que  elle  se  rende.  Tu- 
do isso  é  uma  falsa  visão  da  phantasia  do  snr.  Vascon- 
cellos»  (3). 

Não  é  phantasia,  ouça,  e  aprenda: 

«A  dôr,  por  causa  dos  que  haviam  falleeido,  e  que 
haviam  escutado  outr'ora  o  seu  canto,  leva-<>  á  convic- 
ção (BeicHssfscui)  de  uma  comnumidade  duradoura  com 
elles;  em  vista  da  saudade  pelo  reino  dos  espíritos,  que 
os  acolheu,  e  sob  a  pressão  ( Schauefigefâhl)  do  Infinito. 
desapparece  o  Terrestre,  o  Presente:  e  a  Posteridade, 
appareutemeute  passada,  torna-se  o  eterno  Ser  (reali- 
dade)» (4). 

E  pois  exactamente  o  contrario  do  que  o  snr.  Gr. 
M.  affirma,  e  aquillo  mesmo  que  nós  dissemos,  e  confir- 
mamos agora. 

Outro  tanto  diz  B.  Taylor: 


(1)  Estes  dois  pontos  (:)  sào  explícitos,  e  ligam  o  que  se 
segue. 

(2)  «Thr  bringt  mit  euch  die  Bildex  MÊ/U  Ta.uo. 
Und  mancha  liebe  Bobatten  Bteigen  aut : 

<<li'irh  eixiec  alten,  linlhvtu-klunirnon  Sago 

Kmiiinr  erete  Lséb'  «nd  fVdtiactecàaft  mit  bêittbf*. 

I    M.  Carriere.  Erlàuterungen  i  .  L>\p- 

■/.ílt.  i 869,  vul.  i.  pag.  165. 


145 


«As  formas  nevoentas  do  drama,  que  elle  de  novo 
tenta  alcançar  e  segurar,  trazem  comsigo  (bring  with 
them)  os  pliantasmas  dos  amigos,  a  quem  as  suas  primei- 
ras canções  foram  recitadas»  (1). 

Carriere  liga  á  ideia,  acima  enunciada,  o  seguinte: 

«Lembro  a  expressão  de  Kant  — :  que  nós  estamos 
também  n'esta  vida,  em  communicação  indissolúvel  com 
todas  as  naturezas  immateriaes,  e  pertencemos,  com  os 
ausentes,  a  uma  mesma  republica»  (2). 

Em  um  ponto  admittimos  a  divergência  do  snr. 
G.  M. 

Segundo  um  dos  mesmos  commentadores  (Carriere), 
não  é  com  effeito  aos  amigos,  que  se  refere  a  passagem ; 

«  Vós  approximais-vos,  figuras  indecisas » 

(l.a  est.  1.»  linha) 

mas  sim  ás  ideias  antigas  do  poema  —  á  realisação  ma- 
terial d'essas  ideias,  em  figuras. 

É  a  única  cousa  que  admittimos,  porque  é  a  ver- 
dade; fixar  em  que  linha  da  primeira  ou  segunda  es- 
tancia apparecem  os  amigos,  é,  repetimol-o,  uma  pue- 
rilidade, porque  segundo  B.  Taylor  diz  claramente:  «As 
formas  do  drama . .  .  trazem  comsigo  os  phantasmas  dos 
amigos »  (3) ;  é  impossivel  dizer  pois,  qual  das  duas  ap- 
parições  vem  primeiro. 


(1)  Faust,  Notes,  pag.  198. 

(2)  Faust,  Erláuterungen.  Vol.  i,  pag  165. 

(3)  Faust,  Notes:  «The  shaclowy  fornis  of  the  drama, 
which  he  again  attempts  to  seize  and  hold,  bring  with  them 
the  phantoms  of  the  friends » . . . 


HO 


Agora  vejamos  a  relação  e  a  razão  de  ser  dos  dois 
prólogos.  0  -nr.  G.  M.  pretende  refutar  Lewes  isto  «'• 
nossa  opinião)  com  Diintzer. 

O  Preludio  np  theatro,  é  boje  sabido,  tem  por  fim  sa- 
tirísar  a  recepção  que  a  maioria  do  publico  fez  aos  frag- 
mentos do  Faust,  em  1790;  e motivar  as  cansas  d,esse 
frio  acolhimento,  pondo  em  evidencia  as  relações  do 
«Poeta»  com  o  publico,  por  meio  do  «Director»,  que 
representa  os  seus  interesses,  e  o  instincto  banal  das 
massas;  a  «Pessoa  divertida  D,  commenta  o  dialogo  e  as 
ideias  dos  dois,  conservando  a  média — i*to  <'•:  repre- 
sentando alli,  por  assim  dizer:  o  senso  commum,o  sen- 
sato partidário,  que  liga  o  ideal  e  real. 

O  Prologo  no  céo  tem  por  fim  «avançar  o  problema 
moral  e  intellectual,  que  serve  de  base  a<>  drama  d    1  . 

E  pois  indispensável;  o  outro,  que  tinha  uma  im- 
portância especial  para  Goethe,  por  determinar  a-  suas 
relações  com  a  massa — e  que  tinha  uma  significação, 
á  vista  (Tessas  relações,  deixou  de  ter  hoje  a  mesma  im- 
portância, porque  o  publico  allemão,  diante  do  qual  se 
representa  o  Faust,  é  agora  outro,  felizmente. 

Ainda  assim  certas  verdades  ha  no  Preludio  no 
theatro,  que  são  de  todos  os  tempos. 

A  sua  necessidade  e  utilidade  é  pois  relativa. 

Agora  a  connexão  dos  dois.  a  necessidade  i 
e  as  divergências  do  snr.  G.  M.: 

Um  ponto  fica  já  respondido,  com  o  que  enuncia- 
mos; pois,  se  o  Prologo  d<>  <■•'<>  n avança  o  problema  da 

tragedia  9,é  claro  que  Lewes(e  1108)  temos  razão,  esiabe- 
1     B.  Taylor.  Faust,  u<>tn  8,  pag,  201, 


147 

lecendo:  «no  segundo  prologo  põe  Deus  e  Mephisto- 
pheles  as  pessoas  do  verdadeiro  drama  em  acção»  (1). 

A  relação  do  primeiro  prologo  (Preludio  no  theatro) 
com  as  duas  partes  da  tragedia,  é  menos  evidente,  mas 
ainda  existe,  o  que  o  snr.  G.  M.  diz,  é  falso: 

«  De  todas  estas  diversas  espécies  participa  o  Pre- 
ludio de  Goethe,  menos  do  prologo  e  expositivo  ou  ar- 
gumento do  drama,  ao  qual  o  poeta  se  abstém  de  fazer 
referencias»  (2). 

Repetimos,  é  falso;  veja  e  aprenda;  e  leia  outra  vez 
o  Preludio,  para  ver  lá  uma  referencia  bem  evidente  na 
seguinte  passagem: 


« Recorrei  pois  n'esta  estreita  barraca 
Todo  o  circulo  da  creaçào, 
E  atravessae,  com  rapidez  pensada, 
Do  céo  pelo  mundo  até  ao  inferno». 

(O  Director,  Faust. 


isto  mesmo  é  o  que  faz  o  protagonista  na  tragedia. 

Podíamos  pois  dizer,  á  vista  do  exposto,  que  o  snr. 
G.  M.  não  leu  o  Faust,  assim  como  diz,  que  nós  não  le- 
mos a  segunda  parte  (3);  mas,  menos  atrevido  que  o 
nosso  adversário,  preferimos  dizer,  que  leu  mal,  e  fallou 
sem  pensar. 


Vi)  O  Faust,  pag.  48. 

(2)  Os  críticos,  pag.  108. 

(3)  Apesar  de  citarmos  d'ella  numerosos  trechos  (pag.  181, 
182,  183,  184,  185,  186,  187,  193,  197,  etc,  que  colligimos  do 
próprio  original,  na  edic.  Kurz. 


148 

E  pois  evidente  que  ambofl  08  prologo»,  tanto  o  Pre- 
ludio no  theatro,  como  o  Prologo  no  eéo  t<-m  relação  in- 
tima com  o  organismo  </<>  poema;  um  mais,  porque  es- 
tabelece o  próprio  enunciado,  o  outro  menos;  mas  lá 
existe  todavia,  porque  se  estabelece  o  mesmo  enunciado, 
só  numa  forma  menos  ideal  e  mais  real,  porque  um  se 
passa  no  mundo  e  o  outro  no  céo.  Goníroate-ee  isto  com 
o  que  dissemos  já  (1),  e  ver-se-ha,  que  o  que  tio-a  dito,  é 
o  mesmo,  apenas  n'uma  nova  demonstração.  Receitamos 
pois  a  opinião  de  Diintzer,  com  as  inexactidões  que  o 
snr.  G.  M.  lhe  accrescentou  da  sua  lavra    _  . 

Entre  estas,  não  esqueçamos  emfim  uma,  que  re- 
vela ignorância,  mais  do  que  elementar: 

Diz  o  snr.  G.  M. 

«Façamos  pela  nossa  parte  algumas  considera»      -. 

O  prologo  dramático  é  quasi  tam  antigo  tomo  o 
mesmo  drama»  (3). 

Saiba  o  snr.  G.  M.,  que  a  concepção  do  drama  es- 
tava, segundo  a  passagem  do  próprio  Goethe,  já  tan- 
tas vezes  citada  (4),  prompta  em  1772;  começou  a  tra- 
balhar na  tragedia  (Taylor  e  outros)  em  177o;  tinha  pu- 
blicado os  fragmentos  em  1790 — e  o  prologo  aromáti- 
co (5),  como  lhe  chama,  data  de  1798;  como  podem 
pois  as  datas  1772  e  1798  serem  contemporânea-': 


(1)  O  Faust,  pag.  42-49. 

(2)  Os  Críticos,  pag.  108;  desde:  iDtotodai  —  «té  —  rafe- 
renoiasx  :  Yide  atraz,  pag.  147 

(3)  Os  rriticDK,  pag.    1"7. 

(4i  Vide  atra/.,  pag.  1- 1. 

•     A 1  i;\s  Vi*  ludio  no  llttatro. 


149 


Isto  só  se  pôde  comparar  á  phantasia  do  seu  collega 
Castilho  (porque  é  fatal  a  mania  imitativa)  que  sonha  o 
poeta  a  escrever  a  dedicatória  (1797)  «ANTES  de  com- 
por o  livro»  (1)  (1772-1773)!! 

Ah!  meus  consummados  germanistas  ! 


(1)  Castilho.  Fausto,  pag.  1. 


CAPITULO  IX 


Os  personagens  da  tragedia 

Faust  —  Mephistopheles  —  Margarida 

Este  capitulo  devia  intercalar-se  no  antecedente,  a 
que  está  intimamente  ligado,  todavia  para  estabelecer, 
nos  pontos  a  demonstrar,  a  maior  clareza,  isolamol-o 
aqui. 

Três  passagens  ha  no  poema  que  são  capitães,  e 
que  se  referem,  uma  a  Mephisto,  uma  a  Faust,  e  outra 
que  estabelece  as  relações  dos  dois,  no  poema. 

A  que  caracterisa  o  primeiro  é  a  celebre  falia: 


«Eu  sou  o  espirito  que  nega  sempre»  (1). 
(1)  k  Ich  bin  der  Geist,  der  stets  verneint » . 


152 
Que  Castilho  traduziu: 

« Sou  o  espirito  que  estorva  sempre »  (1). 

A.  Coelho  já  havia  demonstrado  até  que  ponto  se 
comprometteu  o  Visconde,  com  esta  definirão,  que  allue 
metade  do  seu  edifício  chinez. 

Não  nos  cançaremos  pois,  e  remettemos  o  leitor 
para  as  fontes  da  refutação  (2). 

A  outra  passagem  importante  para  a  ld*  ia  funda- 
mental da  tragedia,  é  a  ultima  phrase  de  Mephisto  na 
primeira  parte;  a  phrase  que  estabelece  as  suas  rela- 
ções com  Faust,  e  as  liga  para  a  êegunéa  parte. 


(Trad.  de  Castilho) 

MEPHISTOPHELES 

Sentenciada ! 

CORO  DE  ANJOS 

Salva ! 

MEPHISTOPHELES 

(cupoesando-se  de  Faust  e 
levando -o  comeigo) 

És  meu. 


(Nossa  traduoção) 

HEPHISTOPHEI.K.s 

Está  sentenciada! 

voz  (de  cirna  i 
Está  salva ! 

MEPHISTOPHELES    (Cl  Fa 

Aqui,  para  mim ! 
(Desapparece  com  Fau.-' 


Ás   nossas    observações    relativamente    a   este  non 
8en8e,  responde  o  snr.  G.  M. : 


(1)  O  Faust,  paff.  96. 

(2)  Bibliographta  critica,  n.°  1.  pag.  T-.  e  (.'  Fau$t,  paj. 
47,  456,  e  a  nota  84  (pag.  497-498  . 

(3)  O  Faiut,  pag.  412-413. 


153 

«  O  final  da  tragedia  provocou  da  parte  do  snr.  Vas- 
concellos  aspérrimas  censuras  contra  o  illustre  tradu- 
ctor.  O  nosso  critico,  que  n'este  lance  podemos  sem  en- 
carecimento qualificar  de  terribilissimo,  sahe  do  campo 
da  critica  litteraria,  e  arvora-se  em  theologo  ou  antes 
em  familiar  do  Santo  Oíficio.  O  caso,  segundo  nos  diz, 
in volve  erro  de  fé,  e  o  snr.  Castilho  é  demandado  como 
incurso  nas  penas  de  pravidade  herética.  Ainda  n'esta 
ultima  censura  discordamos  do  zeloso  censor  e  salvare- 
mos o  nosso  orthodoxo  poeta  das  carochas  da  Inquisição. 

«  Pretende  o  snr.  Vasconcellos  que  a  fraze  do  V.  de 
Castilho  Es  meu!  correspondente  (??)  aoallemão  Herzu 
mir!  com  que  termina  o  drama,  não  deixa  a  menor  duvi- 
da de  que  o  Senhor  perdera  a  aposta  com  o  diabo.  N'esta 
proposição  mal-soante  consiste  a  denunciada  heresia.  Mas 
é  por  ventura  essa  a  rigorosa  illação  a  tirar  da  traducção 
do  snr.  Castilho?  Sustentamos  que  não,  e  temos  para  o 
provar  os  melhores  fundamentos.  Vejamos. 

(.(Margarida  regeita  com  firmeza  a  vida  que,  no  tran- 
se extremo,  seu  amante  viera  offerecer-lhe  ao  cárcere. 
Purificada  por  seus  incomportáveis  sofirimentos  na  ter- 
ra, se  não  está  isenta  dos  erros  que  são  punidos  inexora- 
velmente pela  justiça  dos  homens,  sua  alma  é  pura  pe- 
rante a  justiça  divina,  em  cujo  tribunal  as  acções  do  pec- 
cador  são  julgadas  somente  pelas  intenções.  A  fé  forta- 
lece a  sua  esperança  e  a  martyr  do  amor  entrega-se  con- 
fiadamente á  misericórdia  do  supremo  juiz. 

«  Margarida  desapparece  da  scena,  e  Mephistopheles 
exclama  com  satânico  triunfo : 

Está  julgada ! 


151 
Uma  voz  de  cima  responde: 

Está  salva ! 

Fausto  fica  como  assombrado  e  Mephitopheles  grita-lhe 
imperiosamente : 

A  mim !  A  mim !  (Her  zu  mir  ! 

«Adoptamos  esta  versão  por  nos  parecer  que  asam 
exprimimos  melhor  em  portuguez  a  energia  do  original, 
conservando  comtudo  um  indeciso  (sic?)  que  não  preju- 
dica a  final  solução  do  pleito  entre  o  Senhor  e  Satanaz. 
Se  quizessemos  adiantar  mais  um  passo  |  para  o  enér- 
gico Her  zu  mir!  diriamos :  Vem,  entrega-te !  0  snr.  I  s- 
tilho  desvendou  (!!)  de  todo  a  intenção  de  Mephistophe- 
les,  dizendo:  És  meu!  E  dizemos  a  intenção  de  Mophis- 
topheles,  porque  o  erro  do  critico  consiste  em  pensar  que 
a  orgulhosa  apostrophe  do  Espirito  do  mal  resolve  de- 
finitivamente a  aposta  contra  •>  Senhor.  Mephistopheles 
diz  o  que  julga  ser  verdade  e  não  o  (pie  é  realmente  ver- 
dade. 

«Desde  a  publicação  do  Faustoera  geralmente  Begui- 
da  na  Allemanha  a  interpretação  dada  pelo  snr.  Casti- 
lho á  fraze  de  Mephistopheles  e  qne  nós  também  llie  da- 
mos. Goethe  parecia  havel-a  calculado  de  propósito  para 
dar  um  desfecho  provisório  á  Primeira  Parte  do  seu  dra- 
ma, produzindo  com  aquella  fraze  uma  forte  impressão 
DO  animo  do  espectador.  0  espirito  do  mal.  em  >ua  pre- 
cipitada sofreguidão,  pode  soltar  atpielle  grito  de  triunfo. 

persuadido  como  está  de  qne  a  condemnação  de  Fausto 


lõõ 


é  inevitável  depois  da  catastrophe  de  Margarida.  A  fra- 
ze  És  meu!  é  verdadeira  emquanto  exprime  os  senti- 
mentos de  quem  a  profere,  embora  seja  falsa  em  quan- 
to á  situação»  (1). 

Isto  não  se  discute,  repetimol-o;  archiva-se. 

0  que  dissemos  fica  de  pé  (2). 

Não  nos  cançaremos  tão  pouco  a  provar  novamente, 
que  o  Visconde,  com  esta  traducção,  provou  que  enten- 
dia, tanto  da  ideia  fundamental  e  do  prohlema  da  trage- 
dia, como  da  vida  de  Goethe,  como  do  espirito  da  phi- 
losophia  allemã,  etc. 

Nem  demonstraremos,  o  que  aliás  se  torna  evidente 
por  si  mesmo;  que  a  traducção  d'aquelle  trecho  era 
mais  um  argumento  capital  para  a  justificação  de  um 
dos  capítulos  passados  (3). 

Mas  pedimos  licença  ao  snr.  Gr.  M.  para  lhe  fazer 
mais  um  empréstimo,  e  transcrever  o  que  o  consummado 
germanista  diz  sobre  estes  dois  gravíssimos  pontos: 

«No  dialogo  entre  o  Senhor  e  Mephistopheles,  diz  o 
Senhor :  «  Eu  nunca  odiei  os  teus  similhantes.  De  todos 
os  espíritos  que  negam,  o  astucioso  é  o  que  menos  me 
enfada».  Sobre  esta  passagem  faz  o  snr.  Coelho  o  se- 
guinte commentario :  «  Ha  aqui  duas  cousas  essenciaes : 
a  primeira  é  que  Deus  affirma  que  nunca  odiou  os  se- 
melhantes de  Mephistopheles»,  a  segunda  é  que  os  es- 
píritos diabólicos,  são  chamados  «os  espíritos  que  ne- 
gam», sendo  a  palavra  negar  empregada  aqui  no  seu 
sentido  absoluto,  são  duas  concepções  philosophicas». 

(1)  Os  críticos,  pag.  183-185. 

(2).  0  Faust,  pag.  190-193,  e  pag.  456-457. 

(3)  Capitulo  viu.  A  Tragedia,  pag.  119-149. 


166 


aConfi'ss<iiiins  não  perceber  em  queconeieU  a  phi 
•phia  da  primeira  proposição,  assim  deart  mo  o 

8nr.  Coelho  a  apresenta »  (1). 

O  snr.  (i.  M.  é  um  mixto  de  ingenuidade  e  de  m;i- 
li  cia,  como  vemos.  A^ora  nm  salto  a  pag.  40. 

«A  denominação  de  espiritas  qne  negam, 
demónios,  é  com  effeito  derivada  de  uma  cone 
taphiaica:  o  mal,  considerado  abstzi  d  mente, 
ção  ou  opposição  do  bem.  Em  harmonia  com  essa  con- 
cepção abstracta^  definiu-se  Mephistophelea  a  si  mesmo 
—  um  espirito  que  nega  sempre,  cujo  elemento,  aceres- 
centa: 

é  o  que  chamais  vós  outros 

Destruição,  Peccado,  o  Mal  em  summa. 
Tead.  Cast. 

u  0  snr.  Castilho  entendendo,  e  até  certo  ponto  ; 
que  para  destruir  e  para  causar  o  mal  se  íaz  mister  em- 
pregar tanta  ou  quasi  tanta  actividade  como  para  pro- 
duzir o  liem  (do  que  são  claros  exemplos  ;  lemo- 
lidores,  os  nihilistas,  para  os  quaes  na  frase  do  grande 
espirito  negativo,  tudo  quanto  existe  deveria  bot  arra- 
zado);  entendendo  talvez  que  a  essa  maléfica  acta 
de  se  oppunlm  a  idéa  absoluta  de  negação,  àes\ 
do  termo  technico  das  Bciencras  metaphisi<    9,        nuan- 
do-o  mas  Bem  prejudicar  a  concepção  philosophica,  /.-- 
torvar  o  bem.  empregando  para  isso  a  necessária  i 
conduz  fatalmente  ao  mal.  Este  parece-nos  ter  -ido  <» 
pensamento  do  snr.  Castilho;  e  n'este  sentido  i 
<•  Sou  o  espirito  qu<   eston  i  sempre.               .  como  dia 

l     '>.-■  critiboif  pag.  3S. 


157 


o  snr.  Coelho,  uma  fraze  tomada  ao  acaso ;  entre  estor- 
var sempre  e  anniquillar  não  se  dá  a  falta  de  connexão 
que  imagina.  Para  o  Espirito  de  negação,  tudo  o  que 
existe  é-lhe  objecto  d'odio;  desejaria  vêr  tudo  anniquil- 
lado,  mas  entre  o  desejo  e  o  acto  vai  toda  a  differença. 
A  impotência  de  Mephistopheles  para  produzir  o  mal 
que  deseja,  é  por  elle  mesmo  confessada.  Quando  Fausto 
lhe  pergunta :  «  Quem  és  ?  »  responde  : 

Ein  Theil  von  jener  Kraft, 

Die  stets  das  Bõse  will  und  stets  das  G-ute  schafft. 

Faust,  p.  55,  ed.  1840. 

« Sou  uma  parte  d'aquella  força  que  sempre  quer  o  mal  e 
sempre  produz  o  bem. » 

«Assim  estorvar  não  é  destruir,  mas  é  um  dos  meios 
de  promover  a  destruição»  (1). 

Isto  não  se  discute,  repetimol-o,  archiva-se. 

Vejamos  a  passagem  que  se  refere  exclusivamente  a 
Faust,  que  é : 

« Trovejou-me 
tremenda  voz:  És  nada!» 

«A  propósito  d'esta  fraze,  que  exprime  com  tanta 
energia  o  pensamento  de  Fausto,  repellido  com  desdém 
pelo  Espirito  da  Terra  que  evocara,  escreve  o  snr.  Vas- 
concellos  a  seguinte  Nota  (43)  á  sua  traducção:  Uma 
voz  de  trovão  anniquilon-me:  —  O  Visconde  de  Casti- 
lho altera  tudo,  porque  pretende  aqui  que  o  espirito  lhe 

(1)  Os  críticos,  pag.  40-41. 


158 

dissera:  És  nada — não  se  lembrando  que  a  pag.  23K 
escrevera : 

Segundo  um  Ber,  tua  invenção, 

mas  a  mim  uào. 

((Confessamos  não  attingira  supposta  contradicção. 
0  que  se  percebe  é  que  o  snr.  Vaseoncelh»  Dão  enten- 
de aquiilo  que  se  affastar  um  ápice  da  sua  traducção 
litteral.  Não  se  diz  alli  que  o  Espirito  da  Terra  di 
se  a  Fausto  aquellas  palavras,  mas  que  as  que  Fansto 
ouvira  lhe  soaram  como  se  uma  voz  de  trovão  lhe  bra- 
dasse: És  nada!-»  (1) 

A  isto  respondemos  com  o  que  está  já  dito    -  . 

Este  capitulo  fica  sendo  o  mais  curto,  todavia  o 
mais  curioso,  um  archivo:  ad  eternam  rei  memoriam. 

♦Uma  passagem  finalmente,  para  não  faltar  também 
n'este  capitulo  a  coroa: 

((Temos  observado,  durante  o  decurso  d'este  exame. 
que  o  snr.  Vasconcellos  usa  immoderadaniente  da  pala- 
vra aspiração;  e  que  este  uso  ou  abuso  nã<>  rara-  vezes 
o  induz  a  falsas  interpretações  do  texto»  (3). 

Depois  o  seguinte: 

«.Das  Streben  meiner  ganzen  Kraft,  á  lettra:  c< 
forço  de  toda  a  minha  força. »  A  isso  corresponde  a  fraze 
do  snr.  Castilho:  «As  minhas  po><e>  todas  já  d'aqui  t"as 
obrigo.»  Não  se  tracta  aqui  de  nenhuma  aspiração; 
tnieta-se  da  energia  e  tenacidade  com  que  Fausto  Be  en- 
golphava  em  todos  os  seus  emprehendimentos,  energia 
própria  da  sua  forte  natureza,  que  Mepbistopheles  devia 

(1)  Os  criticoa,  pag.  149-150. 

(2)  O  Fanuto,  pag.  456  e  457.  «•  neta  li.  pag.  490. 

(3)  Oê  eriUcoe,  pag.  172. 


159 

ter  reconhecido,  e  que  Fausto  põe  á  disposição  de  seu 
seductor»  (1). 

Diremos,  sem  mais  commentarios  ao  snr.  Gr.  M., 
que  se  repetimos  muitas  vezes  a  palavra  aspiração,  dez 
vezes,  cem  vezes  mais  se  acha  ella  repetida  no  original; 
porque  essa  aspiração  é  a  alma  do  organismo  de  todo 
o  poema;  é  o  próprio  Faust;  é  o  próprio  Goethe;  é  em- 
fim,  o  que  em  todos  nós  ha  de  superior,  de  espiritual, 
quando  a  bestialidade  da  nossa  natureza  não  faz  de  nós 
um  animal: 

Geniessen  macht  gemein  (2),  dizia  Goethe  —  o  gôso 
é  a  antithese  da  aspiração;  sublime  palavra,  que  tão 
pouca  gente  entende  (3). 

No  nosso  primeiro  .trabalho  não  podemos  fallar  da 
maneira  como  o  Visconde  interpretou  a  poética  figura 
de  Margarida,  porque  nos  trechos  do  poema,  que  esco- 
lhemos para  a  argumentação,  preferimos  aquelles,  que 
pela  sua  significação  mais  profunda  e  philosophica, 
eram  os  mais  difnceis  de  traduzir  —  e  que  por  isso  fo- 
ram mais  desfigurados  na  profanação  de  Castilho. 

As  scenas  em  que  apparece  a  figura  de  Margarida 
ficaram  excluídas ;  mas  embora  não  apontássemos  a  ca- 
ricatura que  Castilho  fez  d'aquella  admirável,  creação, 


(1)  Os  críticos,  pag.  173-174. 

(2)  O  gozar  (no  sentido  sensual  e  materialista)  envilece. 

(3)  Agora,  se  nós  traduzimos,  bem  ou  mal,  essa  palavra, 
nos  differentes  logares  do  poema,  veja  o  snr.  G.  M.  nas  tra- 
ducções  inglezas  de  Lebahn  e  Taylor ;  nas  francezas  de  G.  de 
Nerval,  Blaze  e  Porchat ;  na  hespanhola  de  P.  Briz ;  e  sobre- 
tudo nos  commentarios  de  Carriere  (vol.  i,  pag.  191,  vol.  n, 
pag.  257)  de  Kreyssig  (pag.  48,  89,  176,  210),  de  Taylor;  nas 
analyses  de  Koberstein,  Scberr,  W.  Hahn,  e  em  todos  emfim 
que  entenderam  o  Faust. 


160 


entendi  a-se  isso  naturalmente  no  estado  de  espirito  do 

traductor. 

«  Margarida  é,  como  fica  dito,  a  alma  Ivrica  do  povo 
allcnião;  é  o  espirito  da  canção  allemá  popular  e  amo- 
rosa, condensada  n'uma  figura  positiva;  d'e8sa  canção, 
que  attingiu  no  lyrismo  de  Goethe  o  seu  complemento 
ideal,  e  ficou  inexcedivel,  inattingivel  entre  todas  as 
dos  outros  povos.  E  o  aroma  da  canção  allemá  n'uma 
forma  determinada;  é  6686  aroma,  que  segundo  um  phi- 
losopho  aliem  ao,  está  para  a  canção  allemá,  como  a  flor 
está  para  o  vinho  das  margens  do  Ilheno;  é  o  signa  1  do 
terreno  e  do  pais  em  que  nasceu»  (1). 

Mais  abaixo: 

«Que  Goethe  fizesse  de  Margarida  uma  filha  do 
povo;  que  contrapuzesse  a  Faust,  o  representante  da 
suprema  cultura  intellectual  —  a  natureza  inconsciente 
da  alma  popular,  cuja  belleza.  felicidade  e  encanto  está 
na  sua  innocencia,  e  na  insciencia  commovedora  do 
seu  próprio  valor  —  esta  concepção  será  um  dos  eternos 
traços  do  poema  faustiano»  (2). 

Que  podia  o  Visconde  entender  de  tu  lo  isto? 

E  philosophia  obscura!  Goethe  —  tysabotisando  em 
Margarida  a  bella  alma  Ivrica  do  povo  alfamão  —  que 
ideia  tão  abstrusa! 

Isto  Beria  mais  do  que  grego  para  Castilho,  seria  — 
nada. 

A  sua  Margarida  é  um  disfarce;  é  irrisória,  eomo 
o  seu  Mephistopheles  e  o  seu  Fausto. 

(1)  Adolf  Stahr.  Gtoethe'*  Framengmêmltn*.  Berlin.  tfjRSt. 
t  ed.,  pa--.  77. 

2]  A.  Stahr.  Op.  cit.,  pag.  78 


CAPITULO  X 


Bagatellas 


Incluímos  n'este  capitulo  alguns  pontos  ein  que  não 
tocamos,  porque  desejamos  que  a  resposta  seja  completa, 
e  para  este  fim  não  queremos  deixar  escapar  mesmo  as 
bagatellas,  para  não  faltarmos  á  verdade,  como  o  fez  o 
snr.  Gr.  M.,  que  avançando  fatuamente:  «também  que- 
remos (1)  que  esta  refutação  seja  completa»  (2)  —  achou, 
apesar  dos  nove  rtiezes  da  sua  laboriosa  gestação,  aborre- 
cida cca  tarefa  de  ir  seguindo,  nota  a  nota,  o  nosso  cri- 
tico» (3).  Saltou  capítulos  inteiros  (4),  cerca  de  130 


(1)  Entre  querer  e  poder. . . 

(2)  Os  criticas,  pag.  66. 

(3)  Op.  cif.,  pag.  128. 

(4)  Os  capítulos  iv  (A  Lenda),  vi  (Da  linguagem  e  estylo), 
vu  (Conclusões  ultimas),  vm  (Os  críticos),  isto  é  :  132  paginas ! 


162 


notas  (1),  e  quasi  toda  a  nossa  confrontação  doa  tex- 
tos (2);  e  imaginou  que  havia  dado  uma  refutação  com- 
pleta a  uma  obra,  construída  sobre  centenas  de  provas, 
tomando  só  em  conta  a  confrontação  eloquente  dos  tre- 
chos do  poema. 

Osnr.  Gr.  M.  leva  a  amabilidade  a  ponto  de  julgar 
que  o  nosso  «conhecimento  da  lingua  allemã,  é  muito 
superior»  ao  de  A.  Coelho:  vê-se  obrigado  a  discutir  so- 
bre pontos  importantes,  oppondo  ás  nossas  opini< 
(Lewes  e  Lebahn)  as  de  Diintzer,  torcendo-as,  mutilan- 
do-as,  falseando-as.  etc;  admitte  as  nossas  refuta' 
algumas  notas  do  Visconde,  acha  mesmo  que  somos  um 
protestante  incorrigível  (4),  meio  attemão  e  um  quasi  im- 
ola portuguez  —  mas  entende,  que  isso  não  prejudica  a 
nossa  crassa  ignorância,  em  tudo  e  por  tudo. 

0  snr.  Gr.  M.  não  podia  deixar  de  vir  com  o  argu- 
mento  dos  plagiatos,  com  que  pretendeu  enterrar    ! 


(1)  O  snr.  G.  M.  falia,  analvsando-as,  talvez  d.>  uma  dú- 
zia: toca  levemente  em  outra  dúzia,  sem  as  analysar,  e  nào  se 
lembra  que  sào  IfVJ !  Iíeparr-se  t\\w  das  notas,  ijuc  aualysa,  con- 
cede haver  Castilho  disparatado  em  i  ou  5.  Etem  a  impudência 
de  chamar  a  isto  refutação  completa  .' 

(2)  Abrange  nada  menos  de  116  pag.;  são  na  verdade  233 
pag.  \<\f  201-434),  mas  metade  é  occupada  pelo  texto  de  Cas- 
tilho.Osnr.  (í.  M.  refere  do  texto  apenas  algumas  passagens: 
a  do  esconjuro  contra  o  cão   Mephisto  .  pag.  163  e  165;  da 

do  pacto,  p.  172:  da  scena  da  floreste,  p.  178;  e  da  do  cárcere 
p.  182,  as  únicas  passagens,  em  que  o  snr.  Gr.  M.  ousou  arriscar 
as  palavras  de  <  !astilho  ao  lado  dâ  bossa  traducção.  São  ao  todo 
34  linhas,  em  llii  paginas,  exceptuando  uma  linha  na  dedicató- 
ria pag.  95).  A  estas  116  paginas  chama  o  snr.  G.  M.  alguns 
trechos  (sic.  Os  críticos,  pag  60  .  Esteé  o  balanço  da  refutação 
completa. 

3  Que  são  em  geral  as  de  Lewes,  com  relação  á  \.'  parte 
do  Faust :  e  de  Lebahn,  com  relação  as  Notas. 

1    õs  críticos,  pag.  125,  pag.  161,  ete. 


163 


A.  Coelho;  lembra-nos  um  cTesses  dilettanti  de  S.  Car- 
los, que  vão  para  o  theatro  aguçar  a  sua  perspicácia,  so- 
nhando plagiatos  em  tudo  o  que  ouvem;  plagiatos  em 
Mozart,  plagiatos  em  Meyerbeer,  plagiatos  em  Rossini, 
e  sempre  plagiatos !  Os  únicos  sugeitos  originaes  cTeste 
mundo  são  elles ! 

Plagiato,  segundo  a  significação  que  esta  palavra 
tem  em  toda  a  parte,  é  a  apropriação  subrepticia  de  um 
pensamento  alheio,  quando  se  occulta  a  fonte,  de  onde 
elle  foi  tirado.  Ora,  quando  se  cita  essa  fonte  a  cada 
passo,  como  pode  haver  plagiato'? 

Se  o  snr.  G.  M.  se  lembrasse,  que  nós  citámos  Le- 
bahn  a  cada  pagina  da  nossa  obra,  não  nos  vinha  ac- 
cusar  de  plagiatos,  já  apontados  em  dezenas  de  notas. 

Emquanto  áquillo  que  o  snr.  G.  M.  affirma  a  pro- 
pósito do  vergonhoso  caso  da  Lilith  (1),  diremos  que 
falseia  a  nossa  citação;  a  accusação  é  grave,  mas  jul- 
gue o  leitor. 

Diz  o  snr.  G.  M.  (pag.  48): 

«Repare  o  nosso  precoce  sabiosinho  que  o  seu  Falk 
Lebahn,  cujos  commentarios  entende  mal,  não  o  reinei - 
te  á  Bíblia  para  authorisar  a  historia  de  Lilith.  Os  ver- 
sículos do  Génesis  I.  27  e  II.  18,  citados  por  esse  com- 
mentador,  contém  só  as  duas  versões  contradictorias  da 
citarão  da  mulher.  Na  primeira,  diz-se  que  Deus  creá- 
ra  o  homem  macho  e  fêmea;  a  segunda,  refere-se  á  crea- 
ção  da  mulher  formada  da  costella  de  Adão.  Esta  dupla 
versão  é  que  serviu  de  fundamento  á  invenção  da  legen- 
da  rabbmica  de  Lilith.  E  isto  o  que  quer  dizer  Lebahn 

(1)  Castilho,  Fausto,  pag.  352;  e  uota  ibid.,  a  pag.  410. 


1W 


;i  pag.  ó!i!i.  O  mr.  VasconceUos  papagueom-o  -cm  o 
o  entender  parque  nunca  leu  a  Biblk  nem  como  <-a- 
tholieo  bom  ou  mau,  nem  como  protestante.  No  Géne- 
sis não  .-c  encontra  similhante  indicação  acerca  <lc  L30 
ânuos  cm  que  Lilith  esteve  parindo  Legiões  de  diabos. 
Afoysés,  a  respeito  de  Lilith,  era  tam  grande  ignorante 
como  o  snr.  Visconde  de  Castilh 

1."  Não  dissemos  que  a  Bíblia  foliasse  da  Lilith, 
mas  sim  «que  Castilho  encontrava  alli  a  explicação  do 
caso»  (1),  como  de  feito  se  encontra. 

2.'  Citámos  os  versículos  do  Gt  nesis  2),  que  Lebalm 
traz,  mas  puzemos  na  nota:  ed.  lwbr.  =  edição  hebraica, 
ou  rabbinica. 

0  snr.  G.  M.  mutilou  pois  a  oossa  citação! 

3."  A  citação  da  Lilith  acha-se  em  Moysés,  que  não 
era  tão  grande  ignorante  (3)  como  o  Visconde  de  Casti- 
lho, nem  como  o  snr.  G.  M,  suppõem;  prora: 

«Em  1.  Moysés  i.  21.  diz-se:  que  Deus  formou  ,, 
homem  á  sua  imagem;  e  elle  creou  um  homenzinho 
(ein  Mãnnlem  mui  riu  Frãulein)  e  uma  mulherzinha;  no 
capitulo  immediato  acha-se  Adão  só.  e  da  sua  oostella  é 
então  formada  a  Eva.  A  critica  ni<><i<  m<>  proi 
bejo,  que  se  trata  aqui  de  dous  symboloa  diversos,  como 
se  acham  cm  geral  interlaçados  no  (i>/i>.-is  1  :  porem 
os  rabbinos  explicam  o  caso  differentemente 

4.°  Não  é  só  no  Génesis,  i\\w  se  Paliada  Lilith,  mas 


(1)  0  Fauat,  pag.  77. 
2    Op.  cit.,  pag.  77.  nota  1.  •">.•'  linha. 
. '•    0«i   iticos,  pag    18. 

I    Aprenda  poiso  snr.  <;.  M..  Be  ainda  é  tempo. 
itíitc  Fatut,  Erlãuterangen,  vol.  i.  pag.  217, 


16õ 


também  em  Esaias  34,  y,  onde  se  refere  um  phantas- 
m ;i  nocturno,  chamado  Lilith. 

Logo,  falia  a  Bíblia,  em  dous  pontos  diversos,  da 
Lilith. 

O  snr.  Gr.  M.  mutilou  emfim  segunda  vez  a  nossa 
nota,  omittindo  a  referencia  á  passagem  do  Esaias  (1). 

Temos  pois: 

Duas  mutilações  flagrantes  ;  duas  passagens  (3.°  e 
4.°)  da  Bihlia  protestante,  em  que  se  falia  da  Lilith,  que 
o  Visconde  poderia  haver  consultado,  e  cuja  significação 
o  snr.  G.  M.  ignorou  completamente. 

A  vista  do  exposto,  com  que  direito  diz  o  snr.  G.  M : 

«  .  .  .  porque  nunca  leu  a  Biblia  nem  como  catholico 
bom  ou  mau,  nem  como  protestante»  (2). 

Com  que  direito  nos  argue  o  snr.  G.  M.  de  uma 
mentira? 

Que  austeridade  é  essa,  que  mutila  citações,  e  fal- 
seia os  textos? 

Outro  ponto  é  a  defeza  do  titulo: 

a  Sonho  de  uma  noite  de  S.  João»,  modo  como  Cas- 
tilho traduziu  em  varias  passagens  das  suas  notas,  o  ti- 
tulo de  Shakespeare:  Midsummer  nighfs  dream. 

Julgamos  achar  na  traducção  d1 es te  titulo  (3)  pelo 
Visconde,  a  sua  monomania  de  querer  nacionalisar  tudo; 
titulos,  nomes  próprios  (4),  etc,  etc. 


(1)  O  Fmist,  pag.  77,  nota  1,  linha  2.a 

(2)  Os  criticou,  pag.  48. 
Í3)  O  Fausf,  pag.  80-81. 
(4)  No  seu  Fausto,  passim  : 

Frosch traduzido     Eans 

Brander »  Botafogo 


1H6 


Adolpho  Coelho  (1)  fez  reparo  da  nossa  observaç&o, 
todavia  parece-nos  que  sem  motivo.  Em  nenhuma  tru- 
ducção  da  obra  de  Shakespeare  (2)  achamos  outra  ver- 
são differente  de:  Sonho  de  tima  noite  de  verão;  temos  á 
vista  as  melhores  traducções  allemãs  da  obra  ingleza, 
por  Schleorel  e  Tieck  (3),  e  F.  Bodenstedt  (4);  todavia, 
não  só  n'estas,  mas  em  mais  traducções  francezas,  e  em 
innumeras  citações,  muitas  das  quaes  temos  á  vista, 
achamos  sempre: 

Sommernachstraum, 

Songe  d' une  nuit  d'été, 

Sueno  de  una  noche  de  verano,  etc.,  etc. 

Não  podemos  pois  concordar,  nem  com  a  observa- 
ção de  A.  Coelho,  nem  com  as  do  snr.  G.  M.,  a  quem  lem- 


Siebel traduzido     Peneira 

Altmayer »  Quinteirão 

Martha  Schwertlein  »  Martha  espadinha 

etc,  etc.  Note-se  que  nem  Blaze,  nemG.  de  Nerval,  nem  Tay- 
lor, nem  Porchat,  nem  P.  Briz  ;  nem  sequer  A.  d'Ornellas.  tra- 
duetores,  que  temos  á  vista  —  traduziram  os  nomes  próprios  do 
poema,  e  só  o  Visconde,  atacado  do  spleen  da  naeionalisaçào,  po- 
dia ser  levado  a  uma  lógica  tào  transcendente. 
1  i  Bibliographia  critica,  pag.  47,  1.°  anuo. 

(2)  Lembramos,  a  propósito,  as  burlescas  apreciações  do 
snr.  G.  M..  acerca  d'este  poeta.  Oa  critico*,  \>  ■•  159. 

(3)  Shakespeare.  Berlim,  1797-lSlo.  em  i»  volumes,  con- 
tinuado com  menos  talento)  e  commehtado  por  L.  Tieck  em 
12  vol.,  1839-1841. 

(4)  WiUiam  Shakespeare' 'a  Dramatische  Werke.X\ 

vou.  Friedricb  Bodenstedt,  Nicolaus  1  >»'lius.  ( >rti>  (iildemci- 
Bter,  Georg  Herwegh,  Paul  Heyse,  Eermann  Km-/..  Adolf 
Wilbrant.  Leipzig,  Brockhaus,  1872,  em  '.'  vol.  in-8.e,  com 
commentariofl  o  noras.  Está  nova  traduoção  veiu  aubstituii  a 
ilo  Bchlegel  e  Tieck,  admirável  para  :\  época  em  que  appare- 
ceu  (1797—1810),  mas  prejudicada  depois  pelos  trabalha  - 
cessivos  da  critica. 


167 


braremos,  para  aprender  quem  é  Shakespeare,  sem  lan- 
çar mão  de  um  Diccionario  qualquer,  que  leia  a  obra  de 
Gervinus,  de  que  já  falíamos  no  nosso  primeiro  traba- 
lho (1);  e  se  o  Visconde  tiver  rosto  com  que  apparecer 
ainda  em  publico,  lembramos-lhe  que  leia  o  mesmo  Ger- 
vinus, se  o  poder  entender;  ou  que  peça  a  algnem  que 
lh'o  traduza;  não  esqueça  também  de  consultar  o  com- 
mentario  de  Delius  (2),  talvez  o  melhor,  e  que  prejudicou 
em  parte  o  de  Gervinus,  apesar  d'este  ser  de  1862  (3); 
a  critica  allemã,  meus  senhores  e  consummados  germa- 
nistas,  marcha  muito  em  11  annos.  Cuidado,  pois. 

O  snr.  G.  M.,  referindo-se  aos  reparos  que  A.  Coelho 
faz  a  propósito  do  titulo :  Sonho  de  uma  noite  de  verão, 
estava  no  seu  direito,  embora  lançasse  mão  de  argumen- 
tos alheios;  mas  causa-nos  grande  admiração,  que  pas- 
sasse em  branco  um  outro  reparo,  e  nada  dissesse  so- 
bre a  observação  de  A.  Coelho  acerca  do  nosso  modo 
de  considerar  Mephistopheles ;  estranhamos  tanto  mais 
esta  omissão,  que  A.  Coelho  envolveu  no  seu  reparo 
uma  critica,  que  não  podemos  acceitar,  critica  que  re- 
sultou de  havermos  negado  a  allusão  a  Merck,  no  per- 
sonagem de  Mephisto. 

«A  opinião  do  snr.  J.  de  Vasconcellos  leva-o  n'esta 
parte  naturalmente  a  falsas  apreciações  de  Merck  e  Me- 
phistopheles» (4). 

Isto  seria  grave,  se  tivesse  fundamento,  porque  im- 


(1)  O  Faust,  pag.  81,  e  87-89. 

(2)  Shakspere  (sic).  Elberfeld,  3.a  ed.,  em  2  vol. 

(3)  Shakespeare.  Leipzig,  1862,  3.a  ed.,  em  2  vol.  Acaba 
de  sahir  uma  4.a  ed.,  mais  correcta. 

(4)  Bibl.  crit.,  l.°  armo,  pag.  47. 


K38 


plicava  a  falta  de  comprehensão  de  uma  das  figuras 
principaes  da  tragedia.  A  opinião  do  critico  do  jornal 
francèz  (1),  que  é  a  base  em  que  A.  Coelho  se  apoia 
—  não  nos  parece  razão  sufficiente  para  nos  contradi- 
ctar.  0  que  escrevemos  (2),  c  assa/,  notório;  é  o  que 
o  próprio  Goethe  diz  de  Merck,  na  sua  auto-biogra- 
phia  (3).  E  também  n'esta  mesma  fonte,  que  se  tem  de 
ir  procurar  a  origem  da  allusão.  Goethe  intitula  alli 
quatro  vezes  (4)  o  seu  amigo:  Mephistopheleê  Merck  bíc  . 
o  quedeulogará  tradição;  todavia  isto,  de  per  si.  pouco 
vale;  o  que  importa  é  conhecer  o  caracter  de  Merck, 
retratado  alli  pelo  próprio  Goethe,  e  vêr  se  ha  analo- 
gia entre  o  seu  espirito,  e  o  que  Goethe  incarnou  em 
Mephisto;  repetimos,  essa  analogia  não  existe;  a  ten- 
dência critica  de  Merck  obedecia  a  impulsos  totalmente 
differentes,  e  produziu  resultados  totalmente  d i Aferen- 
tes. Sendo  este  o  ponto,  que  julgam  ser  o  segredo  da 
allusão  —  então  tanto  pôde  ser  Merck,  o  Mephisto.  como 
Basedow,  e  até  este  com  mais  razão;  quem  duvidar,  leia 
com  attenção  a  auto-biographia. 

É  tanto  verdade  o  que  dissemos  (5),  que  insensível* 

(1)  Revue  critique,  ISTO,  i,  pag.  79. 

(2)  «A  supposição  de  Philarète  Chaales  ô  uma  hypotbeee 
gratuita;  Merck  foi  o  hmi  r/.VjV  de  ftoethe,  e  se  o  critico  fran- 
cèz tomou  o  caso  a  serio,  Lembrando-se  do  espirito  eminente- 
mente critico  de  Merck,  deveria  ter  entendido  (JUS  entre  a 
critica  de  Mepbjstopueles,  que  geralmente  passa  a  ascarneo,  á 
critica  produetiva  e  fruetifera  de  Merck  sobre  Goethe  e  per- 
der, vae  moa  difierença  capital    !    0  Faust,  pag.  50.) 

(3)  Dichtung  uná  Wahrheit,  '■>:■'  e   l.:i  parte,  em  Q\ 
H        .  ed.  Kurz,  1870,  vol.  i.\. 

(■A)  Xào  nos  lembrámos  das  paginas  tm  que  estão,  porque 
lemos  a  anto-biogsapkia,  já  ba  bastante  tempo; mas  sío  ape- 
nas quatro,  e  por  isto  respondemos. 

(5)  O  Faust,  pag.  EjO 


169 


mente  escrevemos  o  que  mais  tarde  encontramos  no 
commentario  de  Kreyssig,  obra  que  só  depois  de  im- 
presso o  nosso  volume  nos  veiu  á  mão. 

O  que  alli  se  lê  (1),  é,  emquanto  ao  essencial,  a 
confirmação  do  que  fica  dito. 

Repetimos:  extranhamos  que  o  snr.  G.  M.,  andando 
á  procura  de  ninharias,  não  repetisse  este  reparo,  que 
podia  ser  serio,  se  fosse  verdadeiro;  —  talvez  não  o  fi- 
zesse com  receio  do  resultado,  ou  por  não  ter  opinião 
própria. 

A  respeito  das  palavras  intraduzíveis,  como  o  Dru- 
denfuss,  o  Wanst,  etc.  (2),  não  voltaremos  aos  nossos 
antigos  argumentos.  Para  confirmar  o  que  dissemos, 
basta  a  auctoridade  de  Taylor,  que  aprofundou  o  Faust 
«durante  20  annos»,  e  que  diz,  com  relação  a  outras  pa- 
lavras allemãs,  que  ha  termos  intraduzíveis,  e  por  isso 
mesmo  os  conservou  em  allemão  (3).  Não  foi  decerto  o 
escrúpulo  que  levou  Castilho  a  traduzir  até  aquillo,  que 
é  intraduzível,  mas  sim  a  sua  monomania  nacionalisa- 
dora. 

Com  relação  á  differença  entre  a  palavra  Mõnch  (4) 
e  Pfaff,  lembramos  ao  snr.  Gr.  M.  que  consulte  um  dic- 
cionario  qualquer  allemão  e  portuguez. 

(1)  Kreyssig.   Vorleswngen,  pag.  63,  64  e  65. 

(2)  Vide  as  outras  atraz,  pag.  165-166.  e  compare-se  com 
D  que  diz  o  snr.  G.  M.  (Os  criticou,  pag.  168.) 

(3)  Faust,  pag.  302,  appendix.  Por  exemplo,  na  palavra 
Faust reckt :  « an  utitranslatable  pun  »■ 

Este  termo  pertence  a  uma  passagem  de  uma  carta  de 
Bchiller  a  Goethe,  de  13  de  Septembro  de  1800,  Brieficechsel, 
vol.  li,  pag.  294. 

(4)  Nós  dissemos:  «  Pfaffen  » ,  fradalhõea,  termo  desprezí- 
vel, em  logar  de  «  Mõnch  »,  frade,  que  ó  o  lpgitimo,  traduz  Cas- 
tilho por  padres.  (O  Faust,  pag.  484,  nota  17). 


170 

«Pfaff,  m.  (voz  dedjesprezo)    1   ».  ou  em  Bom  e   - 

<t Pfaffenrolk  =  i'r'àà'Ar\'à.  f.  'termo  de  desprezi 

O  snr.  G.  M.,  que  cita  algures  o  Diccionario  de  Wa- 
gener,  podia  tel  o  consultado  antes  de  fallar — ou  ter 
verificado  o  termo  em  qualquer  outro  diccion;iri<>  ]><>r 
ex.  o  de  Wolheim  da  Fonseca),  porque  presumimo-  que 
deve  ter  algum  em  casa  (3).  Demais,  a  situação  em  que 
apparece  essa  palavra  é  no  monologo  de  introducçâo  de 
Faust,  onde  elle  diz : 


«  Sou,  é  verdade,  mais  sensato  do  que  todos  os  petulantes 
Doutores,  magisters,  escrevinhadores  e  fradalhòm :  »     4 


0  sentido  é  pois  irónico,  e  significa  o  desprezo  ]><>r 
todos  esses  comediantes,  ou  parvos  (Laffen)    5  . 

0  termo  Pfaff,  e  o  seu  composto  Pfaffenbhum,  ainda 
tem  hoje  a  mesma  significarão:  ainda  lia  uni  anuo  pu- 
blicou o  escriptor  Kohut  o  seguinte: 


(li  J.  D.    Wagener.  Ncues  portuí/.-deufsc/fs   und  ■  '• 
povtug.  Lexicoit.  Leipzig,  1812,  3  vol.  in-8.°,  2.*  parte,  pag 

(2)  Xeues  voUstãndiges  Handwõrterbuck  derport.  und 
Sprache.  Hamburg,  2.*  parte,  pag.  47."/. 

(3)  Além  d'isso,  a  etymologia  de  Pfaff,  Dfio  é   i'"t- 
gundo   o  snr.  G.  M.  (pag.  141  \  mas  sim  popa,  porque  um  ter 
latino  nunca  poderia  ser  representado  em  allemfio  per  f. 

(4)  0  Faust,  pag.  223. 

O  snr.    (i.    Si.   nàt>   ?••  envergonha  de  se  citar,  a  propósito 
do  Pfaff  (inglez,  prieeUj,  a  tradacç&o  de  Anster  de  Í837,  uma 
versão  miserável,  uma  dynamitaç&o  incrível  do  origina 
almost  incredible  dilutioo  of  the  original  •>.    1!.  Taylor,  . 
1872,  pag.  x,  Preface.) 

(5)  «  Zwar  bin  icli  gesoheiter  ais  alie  die  /  ■  > 
Doctoren,  Magister,  Schreiber  und  Pfafi 


171 


«As  nossas  três  summidades  poéticas  (1)  e  a  sucia 
ecclesiastica.  Uni  trifolio  de  testemunhos  clássicos  con- 
tra o  ultramontanismo,  jesuitismo  e  beaterio»  (2). 

0  que  o  snr.  Gr.  M.  diz,  com  relação  ao  sentido  do 
termo  famulus  (3),  e  á  significação  de  Haupt-und 
Staatsaction ,  não  merece  mais  uma  só  palavra;  que  nós 
disséssemos,  que  na  «fraze  alleman  se  contém  duas  es- 
pécies de  drama»  (4)  —  é  uma  mentira  (5).  0  que  dis- 
semos foi:  «Aquelles  dous  títulos  pertencem  á  littera- 
tura  allemã»  (6). 

Queria  isto  dizer  duas  espécies  de  drama,  como  o  snr. 
Gr.  M.  falseou?  Não  pode  haver  dois  títulos  para  um 
mesmo  género?  Alem  d'isso,  dando  nós  a  explicação  de 
Helbig  (7)  acerca  do  género  de  Haupt-und  Staatsaction, 
e  citando  ainda  Lowe,  apud  Diintzer  em  Lebahn  (8),  e 

(1)  Dichterheroen ;  aqui  temos  mais  uma  palavra  intradu- 
zível. 

(2)  A.  Kohut.  Utisere  drei  Dichterheroen  und  das  Pfaffen- 
thum.  Ein  Trifolium  klassicher  Zeu^eu  gegen  Ultramontanis- 
mus,  Jesuitismus  und  Muckerthum.  Leipzig,  A.  Hermann,  1872. 

Hoje,  que  o  frade  deixou  de  existir,  fundiu-se  definitiva- 
mente na  palavra  Pfaff,  a  ideia  de  frade  e  padre. 

(3)  0  Faust,  pag.  487,  nota  31 ;  a  passagem  contra  :  Os 
criticas,  pag.  145  e  146. 

(4)  Os  críticos,  pag.  148. 

(5)  Resuscitámos  esta  palavra,  litterariamente.  É  um  dos 
symptouias  característicos  do  nosso  estado,  que  para  tudo  o  que 
é  illicito  e  infame,  se  achasse  uma  palavra  bonita,  com  que  se 
podésse  mascarar  o  vicio;  ou  como  diz  Gervinus,  avaliando  o 
movimento  litterario  moderno,  depois  de  liyron,  «  que  se  tirasse 
ao  vicio  o  ferrete  da  infâmia  ».  (Geistige  Bewegungen  em  Gesch. 
d.  neun".  Jahrh.,  vol.  viu,  pag.  158.)  O  faltar  á  verdade,  em 
logar  de  menti)-,  é  uma  invenção  da  nossa  sociedade,  onde  se 
respira  a  mentira  e  a  impudência,  com  o  ar  da  vida. 

(6)  0  Faust,  pag.  488. 

(7)  Grundríss  der  Geschichte  der poet .  Literatur .  d.Dext- 
schen.  Leipzig,  1862.  pag.  18. 

(8)  Faust,  with  copious  notes,  etc,  pag.  416. 


172 


citando  finalmente  0.  Magnin  1  ;  como  imaginou  <>  snr. 
(í.  M..  que  dós  podíamos  ignorar  o  sentido  da  palavra, 
com  três  auctorea  á  vista?  É  a  sua  má  fé,  a  mentira, 
mil  vezes  repetida ! 

Não  escrevemos  nós  (2  : 

«DYst;;  espécie  dramática  diz  J.  Fr.  Loven  t  eto. — ? 
isto,  que  nós  saibamos,  é  singular^  logo  <■  mr.  <t.  M. 
mentiu. 

O  snr.  G.  M.  ridicutisa  a  nossa  palavra  lilia  3  | /<- 
e  não  se  lembrou,  de  que  nas  Erratas  p;Lr.  594  aeacha 
emendada  a  passagem:  aolyrvo  cagado/ 

Ou  não  viu  —  ou  mentiu. 

Para  que  seguiremos  mais  as  puerilidades  das  n!;;- 
iiias  paginas,  porque  talvez  escapasse  uma  ou  outra?  Pa- 
ra demonstrar,  que  o  Bnr.  G.  M.  mentiu  pela  centésima 
vez? 

0  snr.  G.  M.  ha-de  ter  estado  a  suspirar  pelo  v 
c  estejaê  (4),  não  é  verdade?  Vieram  tarde,  mas  vieram; 
e  temos  ainda  o  atrevimento  de  tãllar  if  isso,  não  é  ver- 
dade?. .  .  mas  não  esqueça  também  o  apt         -         5). 

Aqui  rnetteu  o  snr.  G.  M.  três  lama-  em  Africa 
—  c  cantou  victoria. 

Damos  de  barato  a  creacão  de  dois  verbos  no"  s: 
seiâr  e  estejar;  seja  o  snr.  G.  M.  benévolo,  e  deixe  amol- 
lecer  o  seu  ooração  feroz;  imagine  que  qós  enriquece- 
mos a  Iingua  com  dois  neologismos  •  •  •.  mas  aparte  o 

(1)  Histnire  des  JIarioitnc.tex,  pag.  307-816. 

(2)  O  Faust,  pag.  489. 

(3)  Os  críticos,  }<:\s.  156. 

(4)  Os  críticos,  pag.  131,  133,  183  e  ITT.  N&o  omittímoe 
passagem  alguma. 

5    Op.  <■//.,  pag.  95. 


173 


hunour,  é  realmente  grande  achado,  encontrar  em  606 
pag.,  pensadas,  escriptas,  emendadas  e  impressas  em 
ãous  mezes;  é  grande  achado,  quando  os  erros  no  seu 
magro  livro  de  128  (1)  paginas,  parto  laborioso  de 
profunda  cogitação,  pullulam  em  enxames,  como  as 
nuvens  de  mosquitos  numa  tarde  de  calor! 

A  ignorância  do  snr.  G.  M.  revela-se  nas  mínimas 
cousas.  O  nome  de  Diintzer,  que  cita  repetidamente, 
escreve  elle  47  vezes :  Díinzer ! 

Vischer,  que  elle  cita  apud  Diintzer  (2),  e  que  este 
refere  repetidas  vezes  (3),  para  refutar  as  opiniões  de 
Karl  Kostlin,  seu  discípulo  em  esthetica,  escreve  o 
snr.  G.  M. :  Bischer  (4).  Kostlin  fica  transformado  em 
Kõstling  (5),  Weisse,em  Weise  (6),  Falck  em  Falk,  etc. 

Esta  monomania  de  estropear  nomes,  ainda  não  pára 
aqui.  O  nome  de  Lewes,  biographo  de  Goethe,  é  citado 
9  vezes  (7)  Lews  (sic)!!  Serão  tudo  isto  erros  de  im- 
prensa? Demais,  o  snr.  G.  M.  é  de  uma  incúria  a  toda 
a  prova,  nas  suas  citações;  falia  da  tragedia,  e  não  se 
sabe  a  que  edição  se  refere ;  apenas  cita  a  data  da  que 
consultou,  e  esta  é  1840!! 

(1)  Sâo  ao  todo  190,  mas  as  primeiras  60  occupam-se  com 
A.  Coelho,  e  as  3  ultimas  sào  reflexões  estheticas  e  sentimen- 
taes  do  snr.  Gr.  M. 

(2)  Wiirdir/ung  cies  Goetheschen  Faust,  seine  neuesten  Kri- 
tiker  und  Ausleger.  Leipzig,  1861,  pag.  1. 

(3)  Op.  cif.  pag.  2,  e  seguintes. 

(4)  Os  criticas,  pag.  89  e  90.  Acaso  já  nào  saberá  o  snr. 
C.  M.  distinguir  o  alphabeto  gothico  do  latino? 

(5)  idem,  ibid. 


(6)  idem,  ibid. 

(7)  Os  críticos. 

3  vezes  a  pag.  103 

3       D     a      »      105 

2       »     a      »      106 

1     vez   a      »      107 

174 


X'mii;i  das  paginas  anteriores  l"it*>  indicamos  a 
passagem,  <'in  que  o  snr.  <í.  ML  bos  revela  :i  citada 
data:  1840. 

As  citações  doa  títulos  das  outras  obras  não  obede- 
cem a  svstema  algum. 

O  seu  livro  nem  sequer  tem  um  Imlr.r! 

E  todavia  nove  mezes.  .  .  são  270  dias  ! 

E  não  são  só  erros  de  factos;  esses  pódem-se  per- 
doar em  certos  casos,  mas  erros  de  primeira  importân- 
cia, e  num  wnmmmadó germanigta.  Temos  a  convicção 
que  o  que  nós  demos  ao  publico,  é  suficientemente  in- 
teressante, novo  (entre  nós),  substancial,  e  exposto  com 
algum  senso  critico  e  inethodo  —  para  salvar,  não  três 
lapsus  ccdami,  mas  trinta,  em  tiOfi  paginas. 

Divididos  os  nossos  esforços  por  tão  differentf»  as- 
sumptos; luctando  o  nosso  espirito  com  as  dificuldades 
do  meio  intellectual,  de  uma  educação  litteraria.  que  i 
nossa  sahida,  sempre  deplorada,  da  Allemanlia  —  dei- 
xou incompleta;  luctando  arduamente  par  i  harmonisar 
c  fundir  um  novo  processo  Bcientifico  em  uma  forma 
exterior,  plausível;  todavia,  apesar  d 'esta  luctadifficil, 
reconhecemos,  com  intima  satisfação,  que  avançam 
nosso  estylo  livre,  a  nossa  linguagem,  apesar  d»'  «bar- 
bara», não  a  trocamos  pelo  ouropel,  roubado  nos  fer- 
ros velhos,  onde  o  Visconde  de  Castilho,  e  quejandos, 
se  vão  surtir  das  suas  raridades.  A  nossa  linguagem,  de- 
feituosa e  barbara^  como  é  —  ê  nossa. 

«Os  antigos  allemães  chamavam  á  linguagem  dos 
romanos  —  barbara,  tétrica,  e  insolente,  porque  a  consi- 
deravam o  órgão  desgraçado,  que  dictava  ás  caçoes 
livres  as  leis  despóticas,    Por  isso  recuavam  os  alie- 


175 


mães  diante  d'ella,  e  batalhavam   invencíveis  contra 
elia»  (1). 

Imagine  o  snr.  Gr.  M.  que  somos  bárbaros,  e  que 
achamos  a  linguagem  do  Visconde  de  Castilho,  não  des- 
pótica, mas  miseravelmente  bernardiana. 


Para  chegarmos  todavia  a  um  ajuste  de  contas  fi- 
nal, lembraremos  que  Castilho,  apesar  da  sciencia  dos 
seus  73  annos;  apesar  de  haver  feito  um  celebre  Tra- 
tado de  metrificação  (2),  com  receitas  para  fazer  versos 
pequenos  e  grandes  —  apesar  de  ser  emfim  um  mestre 
de  linguagem,,  e  um  latinista  de  primeira  força,  —  errou 
na  metrificação  de  uns  versos  elementares  da  hymno- 
dia  latina  —  uns  versos,  que  qualquer  menino  do  coro 
sabe  de  memoria.  Vejamos: 

No  original  de  Goethe  (3)  I  Em  Castilho  (pag.  324-327) 


Dies  irse,  dies  illa 
Solvet  sseclum  in  favilla. 

Judex  ergo  cum  sedebit, 
quidquid  latet  adparebit, 
nil  inultum  renianebit. 

Quid  sum  miser  tunc  dicturus? 
Quem  patronum  rogaturus? 
Cum  vix  justus  sit  securus, 

Quid  sum  miser  tunc  dicturus— 


Dies  irae,  dies  illa, 
Solvet  sascidum  in  favilla, 

Judex  ergo  qmim  sedebit, 
quidquid  latet  apparebit, 
nil  inultum  remanebit. 

Quid  sum  miser  tunc  dicturus  ? 
Quem  patronum  rogaturus, 
Quum  vix  justus  sit  securus? 

Quid  sum  miser  tunc  dicturus? 


(1)  Herder,  apud  Kreyssig,  Vorlesungev ,  pag.  9.  Encon- 
tramos a  citação  original  nos  Fragmente  zur  deutschen.  Litera- 
tnr,  na  collecçào  completa  das  obras:  iSámmtliche  Werke,  ed. 
Cotta,  1853,  vol  xix,  pag.  6  e  7. 

(2)  Que  o  snr.  G.  M.  ("casa  More),  quer  editar,  com  propó- 
sito louvável,  em  2."  edição,  para  alimentar  a  pépinière  dos 
nossos  jovens  e  esperançosos  poetas. 

(3;  Goethes  Werke.,  ed.  Kurz,  v.  Faust,  1870,  p.  122-124. 
Era  mister,  também,  que  Castilho  houvesse  conservado  fiel- 


i  th 


Temos  pois  am  erro  <lc  versifi  e  palmatória, 

e  se  o  Visconde  se  desculpa  com  o  seu  alter  ego,  o  con- 
swrnnado  gervrvanista,  por  haver  sido  um  mau  revisor, 
então  applicamos  metade  da  dose  a  cada  iim.  e  ao  gnp. 
(i.  M.  maia  «nitro  tanto,  visto  Camillo  (1)  dizer,  que  até 
na  correcção  se  está  vislumbrando  o  aattento  desvelo 
do  meu  erudito  amigo  o  snr.  José  Gomes  .Monteiro»  — 
«cuja  admiração  pelos  dous  ingentes  poetas  '1  .  Goethe 
e  <  astilhoj  explica  a  liberalidade  (3  d'esta  primorosa 
edição»  (4). 

Ora  aqui  tem  o  snr.  G.  M.  o  eejaé  <  :  8  como 

os  amidos  se  servem  uns  aos  outros. 

I 

Por  ultimo,  um  ponto  interessante,  que  devia  haver 
sido  tratado  no  capitulo  i:  .1  nossa  posição;  mas,  como 
o  que  vae  dizer-se  sobre  as  nossas  relações  litterarias 
com  o  Elogio-mutuo  nunca  passou  de  uma  hypothese, 
que  esses  senhores  não  chegaram  a  realisar,  collocàmos 
esta  passagem  no  capitulo  das  Bagatellas,  dos  cálculos 
pequenos.  Fique-se  sabendo,  pelo  que  vaeler-se,  que  to- 
mos nós  que  recusámos  acceitar  uma  alliança  desleal. 

mente  as  formas  do  baixo  latim  (cum,  em  legar  de  guita);  toda- 

é  rrrn  crasso,  porque  perra  ooutrao  rli 
a  metrificação;  em  nenhuma  edição  Be  encontra,  nem  no  origi- 
nal (temes  i  vista  (i  originaes,3  tarad.  Eranceaas,  1  heapanhola 
e  2  inglezas)  nem  nas  traducçòes.  A  pontuação  também  é  arbi- 
traria era  *  lastilho. 

i     •-,  :  ■  do  Porto,  de  1  de  Junho  de  1 87S 

•_'    I.  eu  ;,-,,.  é  pouco;  "  romanciBta  injuria  o  atam 
conde,  pois  Be  o  Bnr.  Gr.M.  íííe  .pie  Castilho  i  imfiar 

isie.  i>.   i:;.">  em  algumas  partes  o  próprio  original  de  Goethe ! 
3     A  custa  «la  easa  More,  á  qual  o  snr.  Cr.  M.  tez  ta  mina  n 
pagar  a  bus  ga  de  Castilho. 

'i  trabalho  typographieo  é  oom  efifeito  a  malhor  do  vo- 
lume; d'esta  vez  Camillo  fallon  verdade,  por  exeepi 


177 


porque  a  mão  que  nol-a  offerecia,  era  a  mesma  mão  im- 
pura, que  tem  realisaclo  as  mais  torpes  especulações  do 
nosso  -mercado  das  lettras. 

0  snr.  Gr.  M.  pretende  insinuar  que  atacámos  Cas- 
tilho, porque  o  «Hercules  nem  sequer  os  enxerga  do 
fastígio  da  sua  grandeza».  Ha  aqui  suas  duvidas,  por- 
que a  grandeza  do  Visconde  depende  do  microscópio 
com  que  o  snr.  G.  M.  o  examina. 

0  consummado  germanista  ignora  o  que  seja  o  sen- 
timento da  justiça,  e  a  forca  da  verdade;  por  isso  attri- 
bue  a  nossa  analyse  á  profanação  de  Castilho  só  a  mo- 
tivos pessoaes.  Pois  saiba  então,  que  se  não  temos  hoje 
a  apresentar  em  publico  elogios  escriptos  (1)  do  Vis- 
conde de  Castilho,  Pinheiro  Chagas,  e  outros,  é  porque, 
apesar  de  nos  havermos  estreiado  nas  lettras  só  com 
21  annos — já  então  sabíamos  o  que  é  dignidade  e  de- 
cência, e  retirámos  a  nossa  mão,  a  quem  nol-a  esten- 
dia pouco  limpa. 

0  Visconde  mandou-nos  oíferecer,  por  segunda  pes- 
soa, no  inverno  de  1870  para  1871,  uns  additamentos, 
acerca  dos  Músicos  Portuguezes,  que  então  appareceram 
no  Conimbricense;  já  os  conhecíamos,  agradecemos  so- 
mente. Todavia  a  intenção  da  oíferta  era  clara.  Pinheiro 
Chagas  appareceu-nos  pela  primeira  vez  na  loja  do  li- 
vreiro C.  Afra,  de  Lisboa,  que  nos  disse  que  o  escriptor 
tinha  «muita  vontade»  (sic)  de  conhecer-nos ;  a  apre- 
sentação effectuou-se  quasi  á  má  cara  (2),  porque  já  co- 

(1)  É  verdade  que  elles  estào,  a  menos  de  real,  no  nosso 
mercado  das  lettras. 

(2)  O  interessado  C.  Afra  que  o  desminta,  se  nào  se  lem- 
bra, que  foi,  indo  de  passagem  pela  sua  loja,  que  nos  forçou  a 
entrar,  para  presenciarmos  a  comedia,  que  alli  fez  P.  Chagas. 


178 


nheciamos  quem  era  I*.  Chagas,  como  homem  e  como 

litterato.  As  amabilidades  e  os  elogios,  que  o  famoso 
critico  nos  disse,  fizeram- nos  rir — sob  o  véo  da  serieda- 
de da  apresentação —  da  figura  humana,  que  Be  presta  a 

todos  os  disfarces.  .  .  homo  t/u/ile.r. 

Um  outro  litterato,  não  menos  illustre,  Teixeira  de 
Yaseoncellos,  fez  o  favor  de  nos  dizer  em  casa  do  Mi- 
nistro de  Hespanha,  na  noite  da  leitura  do  Fausto  por~ 
tuguez — -varias  mentiras  amáveis,  accentuando  que  ha- 
via comprado  os  Músicos,  e  os  havia  lido  com  interesse! 

Houve  alguém,  que  se  lembrou  então  de  nos  dizer 
para  offertarmos  o  livro  a  varias  notabilidades,  como 
Mendes  Leal  et  si)iti!i<t:  mas  para  isso  era  mister  menos 
vergonha,  do  que  a  que  nos  ensinaram    1  . 

Por  isto  se  vè,  que  Be  não  estamos  hoje  filiados  nó 
Elogio-mutuo,  onde  passaríamos  a  estas  horas  por 
criptor  eminente»  ou  sabe  Deus  o  quí — é  porque  tal 
companhia  não  nos  servia,  nem  nos  serve;  aufiram  os 
interessados  a  usura  de  Shyloek,  que  não  seremos  nós 
quem  sujará  as  mãos  com  semelhante  nu  tal.  0  que  a 
amisade  e  a  camaradagem  d'esses,  e  d'outros  senhores 
vale  —  quem  o  não  sabe?  E  a  questão  dos  trinta  di- 
nheiros de  Judas;  dinheiro,  dinheiro  —  e  os  amigos 
de  hoje  serão  os  traidores  oVamankcL. 


(1)  Um  dos  jornaea  maia  acreditados  entre  a  burguesia  o 
os  philisteua  da  mediocridade,  ••  que  Be  publica  n'esta  invicta 
cidade  do  Porto,  offereceu-se  para  publicar  um  folhetim  tlo- 
giador  sobre  n  obra,  -  Ih  •  mand  ies<  m  rira  ei  mph  r.  Eetn  trans- 
ignobil  i"i  proposta  e  regeitada  varias  vezes,  i  m  outro 
jornal  de  Lisboa,  recusou -se  a  publicar  uma  crítica  favorável, 
porque  nâo  lhe  baviamoa  mandado  um  exemplar  —  para  o  ir 
depois  vender  a  vil  preço.  Canalha,  emfim. 


CAPITULO  XI 


Conclusões  ultimas 


180 


Fontes  de  consulta  do  snr.  Gomes  Monteiro  (1) 


1.  1810.  Ma'd.  de  Staiil.  De  VAllemagne. 

2.  1812.  W.  Sehlegfil.   Veber  dramatUche  Kun&t  und  Literatur. 

3.  1840.  H.  Laube.  Geschichte   der  deutschen  Literatur  (foi  publicada  de  1839- 

1840). 

4.  1840.  H.  Blaze.  Essai  sur  Goethe  (na  sua  trad.). 

5.  1856.  H.  Heine.  De  VAllemagne. 

6.  1857.  H.  Dúntzer.  Goethe's  Faimt  erlãutert  (2.*  ed.). 

7.  1861.  Idem.    Wiirdigung  des  Goeihschen  Faust. 

8.  1862.  Mad.  de  Carlowitz.  Correspondance  entre  Goethe  et  Scliiller  (com  a  in- 

trod.  de  Saim-René  Taillandier). 

9.  1863.  3.  P.  Eckeriuann.  Òonversations  de  Goethe,  recuillies  par. . .  tradnites 

par  Emile  Délm-ot  (introd.  de  Sainte-Ueuve). 

10.  1870.  Heinrich.  Ilistoire  de  la  littérature  allemande. 

11.  1872.  A.  Bossert.  Goethe,  ses  précurseurs,  etc. 


i     Estas    iSo  as  obras  que  <>  snr.  ti.  M.  consultou  directamente  pai  . 
tudo  'i"  Faust;  o  resto  é  citado  em  segunda  <■  terceira  atito,  oonid  dtflerentei 
auetori  -,  principalmente  DOntw  i . 


181 


As  nossas  fontes  de  consulta 


1.  1853.  Falk  Lebahn.  Faust :  A  Tragedy. . .  with  copious  notes,  gramra  atiçai, 

philologieal,  and  exegetical.  London,  Longniann  (1). 

2.  ISCO.  E.  Palleske.  Schiner's  Lében  und  WcrJce.  Berlin,  Duncker,  1860,  2  vol., 

3.a  ed.  (2). 

3.  1861.  G.  H.  Lewes.  Goethe^  Leben  und  Schriften.   Trad.  allemã  do  Dr.  J. 

Frese.  iierlin,  Duncker,  1861.  2  vol.,  6.a  ed.  (3). 

4.  1862.  IC.  G.  Helbig.   Grundriss   der   GescMchte  der  poetischen  Literatur  der 

Deutschen.  Leipzig,  Arnold,  1862.  6.a  ed. 

5.  18GG.  A.  Koberstoin.  Grundriss  der  Geschichte  der  deutschen  Nationallitera- 

íur.  Leipzig,  Vogel,  1847-1866.  3  vol.,  4.a  ed.  de  3301  pag.  (4). 

6.  1866.  G.  Gervinus.    Geschichte  des  neunzehnten  lahrhunderts.  Leipzig,  En- 

gelmann,  1855-1866.  8  vol. 

7.  1866.  Fr.  Kreyssig.    Vorlesungen  iiber  Goethe's  Faust.  Berlin,  Nicolai,  1866. 

8  1868.  J.   P.  Eckermann.    Gesprãche  mil   Goethe.  Leipzig,  Brockhaus,  1868, 
3  vol.,3.a  ed. 

9.  1869.  M.  Carriore.  Faust.  etc. ;  mit  Einleitung  und  Erlàuterungen.  Leipzig, 
Brockhaus,  1869.  2  vol.  (5). 

10.  1869.  C.  Solden .  L'esprit  moderne  cn  Allemagne.  Paris,  Didier,   1869. 

11.  1870.   Schillers   sãmmtliche    Werke.   Edição   de   H.   Kurz.  Hildburghausen, 

Bibl.  Institut,  1868-1870,  9  vol. 

12.  1870.   Goethes   Werke.  Edição  de  H.  Kurz.  Ibid,  idem.  1870,  12  vol. 

13.  1870.  Briefwechsel  zivischen  Schiller  und  Goethein  den  Jabren  1794  bis  1805. 

«tuttgart,  Cotta,  1870,  2  vol.,  3.a  ed. 

14.  1872.  A.  Stahr.   Goethe's   FrauengestaJten.  Berlin,  Guttentag,  1872,  4.a  ed. 

15.  1872.  Bayard  Taylor.  Faust.  A  Tragedy.  Leipzig  Brockaus,  1872.  Com pre- 

face,  notes  e  introdnction  a  cilas,  e  appendix,  i  e  II. 

16.  1872.  Dr.  3.  Scherr.  AUgemeine  Geschichtc.  der  Literatur.  Stuttgart,  Conradi, 

1872,  2  vol.,  4.a  ed. 

17.  187H.  Werner  Hatra.  Geschichte  der  poethschen  Literatur  der  Deutschen.  Ber- 

lin, Hertz,  1873,  6.a  ed. 

(1)  Esta  obra  serviu-nos  apenas  para  a  confirmação  das  nossas  anteriores 
opiniões. 

(2)  Já  lia  uma  5.a  ed.,  1871. 

(3)  Ha  uma  ultima   ed.  de  Brockhaus,  1872,  em  inglez  (paitly  rewritten). 

(4)  Ha  uma  5.a  ed.  frita  por  Bartsoli. 

(õ)  Esta  ed.  pertence  á  Bibliothek  der  deutschen  Natinnalliteraiur  des  XVIII 
und  XIX  Jahrh  underts. 

Esta  collecçJio  oompleta-se  com:  Deutsche  Classiker  des  Mittelalters,  12  vol., 
editada  pela  casa  Brockhaus;  Deutsche  DiclUer  des  XVI  Jahrh.,  7  vol.;  Deut- 
sclie  Dichur  ães  X  VII  Jahrh.,  4  vol. ;  e  a  já  citada  primeiramente,  com  31  vol. 
publicados.  Ao  todo:  54  vol. 


182 


Esta  confrontado  das  fontes  de  consulta  do  >nr.  Go- 
mes Monteiro,  na  .sua  roposta.  ••  da>  no»:i>.  ijut-  acaba 
de  lêr-se,  dá  a  ultima  prova  e  a  mais  palpável  do  esta- 
do em  que  se  acha  a  sciencia  do  consutnmado  germa- 

nista. 

Devemos  notar,  que  não  nos  ntilisámos  de  nenhuma 
Ponte,  das  que  serviram  para  o  nosso  trabalho  de  1872, 
salvo  de  Lebahn;  os  materiaes  são  completamente  no- 
vos ;  e  apesar  d'isso,  só  nos  deram  a  confirmação  do  que 
havíamos  escripto  anteriormente,  menos  em  um  caso  de 
interpretação  da  Zueignung  (Dedicatória)  (1). 

Poderiamo-nos  ter  ainda  servido  para  este  trabalho 
de  outros  subsidios,  que  tivemos  patentes  (e  que  possuí- 
mos), como  os  dois  trabalhos  de  Dimtzer  (2  .a  correspon- 
dência entre  Goethe  e  o  Grão-Duque  Cari  August  (3), 
os  recentes  trabalhos  dr  K.  Keil  (4),  do  Dr.  Karl 
iSchwartz  (5);  as  opiniões  de  Hegel  (6),  de  Schasler  7  . 
e  d'outros  mais  —  todavia  já  assim,  vae  o  volume  criva- 
do de  notas,  aliás  nrccssirias.  attento  o  otado  analpha- 


(1)  Vide  atraz,  pag.  145. 

(2)  Goethe1  s  Faust,  erlãutert.  Leipzig,  Dyk,  1857.  War- 
digung  des  Goetheschen  Faust,  etc.  Leipzig,  l>yk.  1861. 

(o)  Briefwcclisel  des  Grossherzoyx  Lar/  Avgitêi  von  5 
sen-  Weimar-  Eieenach  mil  Goethe,  inden  Tahren  von  11' 
1828.  Weimar,  1863,  2  vol.,  gr.  in.  8.",  ed.  official. 

(4)  Fniii  Rath.  Briefwechsel  von  Katharina  Elisabeth 
Goethe.  Naeh  deu  Originalen  mitgetheilt.  Leipzig,  Brockhaos, 
1871,  in.  8.°. 

(5)  Albertint  von  Griin  und  Une  Freundt .  Leipzig,  Flei- 
scher,  1872  in.  8.°. 

6  Aesthetík.  Ed.  Hotho  Berlin,  1843,3  vol.,in.  s.°.  Vol  \. 
<\a^  <  fbras,  em  3  partes! 

(7)  Aesfhetik  ala  Philoeophie  dea  Schõnen  und  der  K>i»st. 
e  Kritiêche  Gtschichtt  der  Aesthetik.  Berlin,  Nicolai,  1872. 
in.  8."  gr.  de  1218  pag. 


183 


beto  da  nossa  critica — para  não  fallar  no  estado  de 
idiotismo  da  massa  do  publico. 

Diremos  a  razão  porque  renunciamos  aos  trabalhos 
de  Diintzer;  em  primeiro  logar,  porque  os  seus  dois  vo- 
lumes teem  a  sua  importância  no  ponto  de  vista  analy- 
tico,  na  exegese  minuciosa ;  e  se  são  mui  valiosos  para  a 
interpretação  do  texto  do  poema,  tornam-se  n'este  nosso 
trabalho,  que  se  limita  aos  grandes  pontos  de  vista  lit- 
terarios,  e  cultur-historicos  (1),  menos  urgentes.  Em 
segundo  logar  não  os  consultámos,  por  o  nosso  adver- 
sário se  haver  servido  d'elles;  isto  é,  por  mera  genero- 
sidade, para  lhe  provar,  que  mesmo  sem  Diintzer,  lhe 
destruímos  o  edifício  pelas  bases,  assim  como  o  havía- 
mos feito  á  traducção  do  Visconde,  sem  o  mesmo  auxi- 
lio. N'uma  terra,  em  que  o  saber-se  a  lingua  allemã,  é 
uma  das  maravilhas  notáveis,  que  se  apontam  como  ra- 
ríssimas excepções  —  não  admira,  que  um  sujeito  com- 
pletamente leigo  em  litteratura  allemã,  e  que  estudou  o 
allemão  apenas  para  uso  das  suas  especulações  com- 
merciaes,  de  secos  e  molhados,  ficasse  sendo  um  consum- 
mado  germanista, .  .  .  por  haver  dado  umas  traducções 
de  poesias  allemãs,  vertidas  em  vulgar,  e  as  haver  can- 
tado qual  Orpheu  de  41  annos,  n'uma  Lyra  (2)  ferru- 
genta, ou  n'um  arabél  (3)  portuguez». 

(1)  Innovamos  aqui  esta  palavra ;  introduzimos  este  ger- 
manismo, no  sentido  próprio  allemão;  o  ponto  de  vista  cultur- 
historico  considera  o  processo  histórico  debaixo  do  ponto  de 
vista  quádruplo:  politico,  moral,  intellectual,  e  material,  segun- 
do as  bases  da  instituição  allemã  da  Associação  dos  Cultur -histo- 
riadores aliem ães.  (Verein  Deutscher  Culturhistoriker  1857). 
Os  clássicos  bernardianos  berrarão,  e  nós  diremos:  E  pur. .  . 

(2)  Vulgo  :  Eccos  da  Lyra  tentonica. 

(3)  Vide,  op.  cit.}  prologo  :  «  Também  eu  agora  tento,  aiu- 


184 


Os  ares  pedantescos  do  ses  anotar,  dando  audiência, 
do  alto  da  sua  escrevaninha,  aos  relhos  vagabundos,  que 

frequentam  a  sua  Loja  de  livros:  brazileiros  viciado-  e 
viciosos,  generaes  reformados  em  parasitas  do  orça- 
mento,  janotas,  e  wmx-tieM  de  toda  a  espécie,  poetas» 
feros  satânicos  e  idyllicos.  aspiradores  de  todos  os  infini- 
tos illicitos — esses  uns  oircnmspectos, e essa  população 
ambulante  ajudaram  a  dotar  o  snr.  Gr.  M.  com  oa  epi- 
thetosmais  inchados, depois  <la  -  leademia  Real  das  Seu  n- 
cíob  (?)  haver  ratificado  os  dispauterios  da  hyra 
nica,  nomeando  o  Orpheu  seu  associado  provi  mini. 

Arranque-se  pois  a  mascara  á  impostura;  aponte-se 
a  mentira,  tal  como  ella  é  :  e  fíqoe-se  sabendo,  <le  uma 
vez  para  sempre,  quem  é  esse  ignorante,  e  <>  que  signi- 
fioa  esse  incógnito  de  conswnmado  germanista.  Fique-se 
sabendo,  quem  são  esses  habitues  analphabetos,  q« 
o  pretexto  de  se  informarem  dos  progressos  das  Lettras, 
andam  a  quebrar  as  esquinas,  roídos  pelo  spleen  de  uma 
vida,  vazia  de  toda  a  ideia,  e  de  toda  a  vergonha.  Fi- 
que-se sabendo  emfim,  como  nYsta  terra  se  arvoram  os 
charlatães  em  sábios,  e  como  ha  uma  Academia,  que  >e 
diz:  das  Sáencias,  que  os  lega  á  hnmortalidade  dos  Patr 
quinos  e  Polichinellos. 

Que  havemos  de  dizer,  como  sentença  final,  do  vo- 
lume do  consummado  germanista^ 

Que  ('•  um  dos  livros  mais  desavergonhados,  que  se 

tem  escripto:  não,  por  nos  haver  attacado,  ÍS80  -cria  na- 
tural, ainda  que  o  fizesse  com  dez  vezes  mais  violência; 

da  'ine  s°  (Mn  secos  esmorecidos,  fazer  ressoai  nas  cordas  do 
rabél  portuguez  algumas  vibraoOes  do  alao.de  teubonico  •   Qae 

cstylo ! 


185 


mas  um  dos  livros  mais  desavergonhados,  que  se  tem  es- 
cripto,  pelo  caracter  immoral  d'elle,  pelas  suas  tendên- 
cias baixas,  impudentes,  e  pelos  seus  fins  ignóbeis. 

Para  que  dizer  finalmente  ao  snr.  G.  M.  a  opinião 
irrevogável,  que  formamos  a  seu  respeito? 

Para  declarar,  que  o  consideramos  como  um  adver- 
sário desleal,  como  um  falsificador  de  textos,  que  mu- 
tila citações  (1),  que  inventa  palavras,  linhas,  notas,  e 
que  conta  com  a  preguiça  do  publico,  para  poder  falsi- 
ficar impunemente  o  que  dissemos? 

Seria  inútil  e  nojoso. 

0  snr.  Gr.  M.  perde,  ipso  facto,  o  direito  de  bellige- 
rante;  é  um  salteador  da  palavra  alheia,  que  está  em 
embuscada  traiçoeira,  quando  o  adversário  o  procura  á 
luz  do  dia.  Quem  de  tal  modo  procede,  colloca-se  fora 
do  campo  da  lei  litteraria,  e  dá-nos  o  direito  de  dizer 
em  geral  da  sua  resposta,  como  conclusão  final  —  e  com 
o  sangue  frio  do  desprezo : 

O  seu  livro  mente. 

(1)  Vide  para  prova  as  seguintes  paginas  d'este  livro  : 

a)  Mutilações  flagrantes  dos  nossos  textos: 

pag.  77,  e  nota  3,  ibid. 

>»  114 

.  164 

»  165 

b)  Mutilações  flagrantes  d' outros  textos: 

pag.  107 
»       114  (duas  mutilações). 

c)  Mentiras : 

pag.     54 

»  102,  nota  2."  (mentira  a  favor  de  Castilho). 

8  171 

».  172. 


NOTAS 


A  pag.  65. 

Precisamos  de  explicar  a  razão  porque  traduzimos 
o  gelehrt,  por  «doctrinario»,  applicado  ao  drama  da  épo- 
ca de  Goethe  e  Schiller.  O  termo  doctrinario  tem  aqui 
uma  relação  mais  profuuda  com  as  creações  dramáticas 
da  época  (principalmente  com  o  Faust),  do  que  o  leitor 
imagina.  A  verdadeira  critica  reconheceu  hoje  unani- 
memente, que  na  Segunda  parte  do  Faust  se  collocou  o 
auctor  n'um  ponto  de  vista  puramente  objectivo  (1).  0 
mundo  da  acção  (2),  em  que  Faust  se  move  n'este  segun- 
do periodo  do  poema,  colloca-o  em  face  de  problemas,  que 
o  heroe  define  perante  a  sua  consciência,  e  resolve.  Essas 
definições  e  essas  resoluções  dos  grandes  problemas  da 


(1)  Nào  se  tome  esta  proposição  n'um  sentido  todo  abso- 
luto, mas  simplesmente  no  sentido  em  que  Goethe  a  definiu 
pessoalmente.  Vide,  para  evitar  repetições,  \  pag.  137,  nota  i, 
as  próprias  palavras  do  poeta,  apud.  Eckermann. 

(2)  Vide  atraz,  pag.  132,  nota  i. 

13 


1*8 


existência,  constituem  as  nono  is  da  Bciencia  da  «ida    1 
(Lebensweisheit);  o  thesouro  da  doctrina  de   Goethe; 
aqui,  (Segunda  parte)  já  elle  pão  é  o  individuo  apaixo- 
nado, limitado  ao  circulo  doB  Sena  sentimentos,  subje- 
ctivo, emfim  (Primeira  parte). 

Na  Primeira  parte  é  Goethe  sem  duvida  o  poeta, 
sentindo  com  toda  a  sua  força  subjectiva,  que  domina : 
na  outra  é  o  sábio,  que  abre  os  thesouros  da  sua  e 
cia  incomparável;  é  o  mestre,  que  n<»  explica  a  vida  e 
os  seus  altos  deveres.  O  primeiro  papel  era  admirável, 
este  ultimo  foi  venerável;  e  que  Goethe  chegasse  intacto 
e  forte  a  essa  segunda  phase  da  vida;  intacto  e  i 
moral  e  intellectualmente,  isso  é  uma  gloria,  não  só  para 
a  Allemanha,  mas  uma  das  maiores  glorias  para  o  espi- 
rite humano. 

Esta  traducção  de  doctrinario  casa-se  também  per- 
feitamente com  a  definição,  que  Camere  dá  do  Fhiut. 
«0  Faust  é  um  poema  de  pensamentos»  (2  :  ligando 
esta  definação,  com  o  que  o  mesmo  commentador  diz  : 
«o  sábio  poeta  entrelaçou  aqui  o  melhor  da  sciencia  do 
século»  (3),  podemos  deíerminal-a  m  lis  propriau, 

0  Faust  é  um  poema  de  máximas  Bobse  a  vida  e  a  -ciên- 
cia, isto  <'  doctrinario.    . 

A  pag.  148  e  149. 

Temos  de  retirar  uma  censura,  que  fizemos  a<>  siir. 
G.  M.,  emquanto  á  passagem: 

«0  prologo  dramático  é  qnasi  tam  antigo  como  o 

(1)  Vide  atrnz,  pag.  131:  i  Preparados — até  —  hunsaa   . 

(2)  Vido  atra/.,  pag.  6õ  e  131. 

(3)  Vide  atraz,  pag.  131. 


189 


mesmo  drama»  (Os  críticos,  pag.  107).  Suppozemos,  que 
o  snr.  G.  M.  se  referia  aqui  ao  prologo  no  céo,  do  drama 
de  Goethe,  de  que  se  falia  no  período  anterior.  Manda 
a  boa  fé  todavia  declarar,  que  por  um  exame  mais  at- 
tento,  notámos  que  a  passagem  está  desligada  do  ante- 
cedente, e  se  refere  em  geral  ao  uso  do  prologo,  no  dra- 
ma litterario. 

A  pag.  165-167. 

Aos  argumentos  que  nos  serviram  no  primeiro  tra- 
balho (O  Faust,  pag.  80-81),  para  demonstrar  a  impro- 
priedade da  traducção  do  titulo  Midsummer  night's  dream 
(em  Castilho:  Sonho  de  rima  noite  de  S.  João),  e  aos  que 
apresentamos  atraz,  a  paginas  165-167,  juntaremos  os 
seguintes,  que  decidem  a  questão : 

E  absurdo  suppôr  a  acção  do  poema  de  Shakespea- 
re, na  noite  de  S.  João  (24  de  Junho),  porque  a  época 
em  que  ella  se  desenrola  é  apenas  um  mez  antes,  na 
manhã  e  noite  do  primeiro  de  Maio.  E  Gervinus  (1) 
que  o  diz ;  é  Bodenstedt  (2)  que  o  repete,  fundando-se 
ambos  nas  palavras  do  próprio  Shakespeare.  O  poeta 
falia  repetidas  vezes  no  Maienmorgen  (3),  e  na  festa  al- 
legorica  d'este  dia;  no  Maibaum  (4),  etc.  E  sabido  o 

(1)  Shakespeare.  Leipzig,  Engelmann,  1862,  v.  i,  p.  237. 

(2)  William  Shakespeare'*  dramatische  Werke,  traduzidas 
por  vários  auctores  ( Vide  atraz  pag.  166)  e  publicadas  com  in- 
troducçòes  e  notas,  por  F.  Bodenstedt.  Leipzig.  Brockhaus, 
1872,  vol.  i,  pag.  78,  e  82  das  Notas. 

(3)  K.  Simrock.  H andbv wh  der  deutschen  Mythologie.  Bonn, 
Marcus,  1864,  2."  ed.,  pag.  581,  583,  590. 

(4)  A  manha  em  que  se  procedia  á  ceremonia  da  festa. 
Vide  idem,  Op.  cit.,  nas  palavras:  Maibaum,  blumen,  braut, 
ftihrer,  fest,  graf,jinde,  kàfer,  kõnig,  lehn,  ritt,  tag,  e  Maitags- 
horn. 


190 


modo  como  os  povos  da  raça  céltica  e  germânica  feste- 
javam :i  primavera  no  Maierdager,  ou  MaÁenfeld,  onde 
Be  executavam  as  ceremonias  religiosas,  que  precediam 
a>  eleições  dos  chefes  (Gaugraven).  E  certo, que  nm  ou 

outro  uso  da  festa  de  Maio  passou  para  a  de  S.  João, 
mas  isso  foi  devido  á  influencia  do  christíanismo  1  . 
e  o  assumpto  de  Shakespeare  nada  tem  que  ver  <"m 
elle.  0  Midsummer  niglvCs  dream  é  uma  reunião  de  epi- 
sódios, enfeitados  com  allegorias  e  factos  tirados  da  my- 
fchologia  assvrica  (episodio  de  Pyramo  e'  Thisbe)  (2), 
do  mundo  hellenico  (episodio  entre  Hermia  e  I. 
dro,  e  Demétrio  e  Helena),  da  mythologia  germânica 
(Oberon  (3),  Feenkõnigin,  as  Elfen  1  .  etc.  .  da  mytho- 
logia romana  (Titania-  Ovídio),  etc. 


(1)  K.  Simrock,  Op.  cif.,  pag.  585. 

(2)  Vide  o  episodio  de  Ovidio,  em  Metamorphoses,  livro  iv. 

(3)  Note-se,  que  o  nome  Oberon  apparece  do  romance  de 
Huon  <\p  Bordeanx,  mas  também  se  encontra  no  livro  pop  dar 
do  hohin  GoodfeUow.  A  Feenkõnigin  é  em  geral  denominada 
Frau  Mab;  o  nome  de  Titania  é  provavelmente  uma  reminis- 
cência de  Ovidio  (Apud  Gervinus,  pag.  252  . 

(4)  A  maneira  como  Shakespeare  aproveitou  o  mytho  'las 
Elfen,  tirado  da  tradição  saxonia,  é  admirável;  aegundi 
tradição  8ào  espíritos  sombrios,  taciturnos.  íío» antigos  roman- 
ces de  cavallana  as  Elfen  ali.ís  Feen  nào  teem  caracter  defini- 
do, assim  como  em  Chaucer  e  Spenser,  predecessores  '1"  Shakes- 
peare. O  poeta  serviu  s"  da  tradição  saxonia,  e  renunciou  4 
feição  romântica  dos  poetas  idyllicos,  para  a  retemperar  nas 
fontes  da  alma  popular.  Shakespeare  transporto!  esses  phan- 
tasmas  das  regiões  irias  da  Escócia  e  da  Germânia  as  planí- 
cies odoríferas  da  índia,  ao  paiz  em  que  a  humanidade  vive 
quasi  cm  sonhos.  <>  fez  das  Elfen  o  Bvmbolo  da  phantasia  no- 
cturna. «São  pintados  como  sendo  almas  da  natureza,  mas 
sem  as  faculdades  superiores  do  homem,  apenas  com  o  poder 
das  faculdades  dos  sentidos,  e  do  encanto  da  phantasia  pag. 
■j  17  .  A  rel&cào  que  Gervinus  demonstra,  com  admirável  sa- 
gacidade, entre  este  caracter  das  Elfen,  e  certos  tvpos  na  na- 
tureza humana,  é  surprehendente.  mas  clara.  Gervinus  toma. 


191 


Como  é  que  n'estes  elementos,  puramente  pagãos, 
se  descobre  uma  allusão  a  factos  do  mundo  christão? 

Quem  descobre  aqui  o  S.  João? 

Episódios  reaes,  no  Midsummer  nightfs  dream,  ha 
apenas  a  admirável  allegoria  (Love  in  idleness),  a  trágica 
historia  dos  amores  entre  o  Conde  de  Leicester  e  a 
Condessa  Lettice  de  Essex  (1).  Mas  que  relação  ha 
ainda  aqui  com  o  S.  João? 

0  Visconde  de  Castilho  ignorou  e  ignora  tudo  isto; 
é  um  pobre  ignorante,  que  não  passa  de  uma  medíocre 
latinidacle,  e  que  á  vista  d'esta  breve  exposição  dos  ele- 
mentos da  creação  cie  Shakespeare — ficará  absorto,  hor- 
rorisado  ante  esse  imbróglio  inglez,  composto  de  elemen- 
tos apparentemente  inconciliáveis.  A  alliança  d'esses  epi- 
sódios tão  differentes,  e  d'essas  allegorias  tão  extraordi- 
nárias, é  o  segredo  do  génio.  Não  pretendemos  haver 
explicado  o  Midsummer  nigMs  dream,  mas  sim  extra- 
ctado  o  necessário  para  o  nosso  propósito;  quem  se  in- 
teressar pelo  resto,  pode  lel-o  em  Gervinus  (2).  0  nosso 
fim,  que  era  demonstrar  a  absurda  traducção  do  titulo 


como  ponto  de  comparação,  certas  naturezas  femininas,  cujas 
tendências  se  harmonisam  com  a  natureza  das  E/f  eu  de  Shakes- 
peare ;  do  outro  lado  essa  demonstração  explica  a  allegoria 
do  Love  in  idleness,  porque  a  natureza  cia  Condessa  Lettice  de 
Essex  é  uma  cTessas  naturezas  sylphidicas.  E  assim  vae  Ger- 
vinus estabelecendo  a  reciprocidade  e  a  ligação  admiravel- 
mente delicada  dos  episódios  d'esse  lavor  poético  quasi  aéreo. 
E  era  o  Visconde,  que,  com  a  sua  brocha  de  trolha  clássico  nos 
havia  de  esboçar  este  sonho  poético  ?  ! 

(1)  Notaremos  que  um  filho  d'esta  dama,  o  mais  tarde  ce- 
lebre Conde  Roberto  de  Essex,  amante  de  Isabel  d'Inglaterra, 
foi  um  dos  protectores  de  Shakespeare. 

(2)  Shakespeare.  Ein  Sommefnachtstrawm,  v.  i,  p.  235-256. 


192 


em:  Sonho  de  uma  noite  de  8.  João,  realisamol-o.  Os 
nossos  conhecimentos  serão  poucos,  mas  ainda  chegam, 
e  sobejam,  para  dar  uma  lição  ao  snr.  Gomes  Monteiro, 
a  Castilho,  e  á  confraria  do  Elogio  mutuo,  reunida  em 
conciliábulo. 


APPENDIGE 


SOBRE    A    LENDA    FAUSTIANA 


(A    GRAÇA    BARRETO) 


Quando  a  resposta  d'este  cavalheiro  sahiu  á  luz,  es- 
tava o  nosso  manuscripto,  já  ha  oito  dias,  completo,  na 
Imprensa  Portugueza;  não  podemos  pois  referirmo-nos 
a  elle,  nas  paginas  escriptas,  razão  pela  qual  aqui  inse- 
rimos este  post-scriptum. 

Fazemos  esta  declaração  ainda  por  um  motivo;  pa- 
ra explicar  duas  concordâncias  entre  Graça  Barreto,  e 
nós,  e  que  podem  dar  aos  caçadores  de  plagiatos  azo  a 
novas  phantasias. 

São  ellas:  o  modo  como  nos  defendemos  da  insinua- 
ção á  cegueira  physica  do  Visconde,  e  os  argumentos  com 
que  defendemos  o  que  fora  dito  por  nós  (1),  com  relação 
ao  caso  da  Lilith,  citações  que  o  snr.  Gr.  M.  mutilou  e 
falseou. 

(1)  O  Faust,  pag.  76-80. 


194 


Emquanto  á  primeira  concordância,  diremos  que  el- 
la  nada  tem  que  ver  com  as  razões  de  G.  Barreto,  por 
isso  que  o  nosso  com  mun  içado  ao  Primeiro  de  Janeiro  1  . 
foi  escripto,  quando  o  folheto  do  nosso  collega  ainda  nem 
sequer  estava  delineado. 

A  segunda  concordância  explica-se  por  havermos 
ambos  consultado  fontes  allemãs,  que  indicam  os  mes- 
mos resultados  —  com  a  differença,  porém,  que  as  nossas 
fontes  são:  a  Bíblia  protestante,  Lebabn  e  Carriere;  em- 
quanto G.  Barreto  colheu  as  suas  informações,  não  >ú 
de  livros  allemães,  mas  até  transcreveu  as  passagens 
directamente  do  texto  hebraico. 

Voltemos  á  resposta  de  Graça  Barreto. 

Os  seus  conhecimentos  especiaes  da  litteratura 
faustiana  dão-lhe  pleno  direito  de  intervir  n'esta  ques- 
tão, e  de  julgar  gregos  e  troianos;  o  Visconde  terá  de- 
certo no  futuro  trabalho  (2)  de  G.  Barreto,  um  juiz  não 
menos  severo  do  que  nós  o  fomos,  assim  como  o  snr. 
G.  M.  soffreu  já  a  primeira  correcção,  que  a  sua  igno- 
rância merecia. 

G.  Barreto  notou  no  nosso  livro,  a  «  falta  de  gravi- 
dade serena  do  espirito  scientifico,  desprevenido  e  im- 
passivel.í  E  verdade  isto,  que  A.  Coelho  já  disse:  3  . 
verdade,  no  sentido  amplo  da  palavra:  mas.  confessado 
o  defeito,  consintam-nos  uma  declaração. 


*  1 1  Vide  ob  documentos  finaes  (Teste  volume. 

2    Do  ti  tbalho  dt  '  es  século*  na  elaboração  de  um  ;■■  ■ 
Investigações  e  observações  sobra  o  caminho  pêra  rrido  desde 
as  tradições  anteriores  á  lenda  do  Fausto,  oommenteda  por 
Widmann,  até  á  tragedia  de  Goethe. 

•'!    BibUograpkia  Critica,  l.o  annõ,  pag.  46. 


195 


Foi-nos  completamente  impossível  conservar,  no 
meio  dos  insultos  a  Goethe,  no  meio  das  blasphemias 
aos  princípios  mais  elevados,  que  a  Allemanha  conquis- 
tou á  humanidade  (1);  no  meio  da  impudência,  sem  pre- 
cedentes, com  que  a  menor  nullidade  da  litteratura  mais 
liliputiana  da  Europa,  se  atreveu  á  creação  mais  ex- 
traordinária dos  tempos  modernos. 

Oolloquem  na  balança  as  nossa  phrases,as  mais  enér- 
gicas; augmentem-lhe  o  peso  com  tudo  aquillo  que  qui- 
zeramos  haver  dito,  mas  que  era  impossível  dizer-se  se- 
quer n'um  in-folio — e  colloquem  do  outro  lado  uma  só 
affirmação  de  Castilho;  a  de  aborto  e  de  absurda,  ap- 
plicada  á  segunda  parte  do  Faust;  e  veremos  qual  a  sen- 
tença, que  a  critica  imparcial  dará  sobre  o  castigo,  que 
merecia  o  culpado,  e  se  a  nossa  correcção  foi  excessiva. 

Houve  falta  de  objectivismo  scientifico  na  nossa  cri- 
tica, escripta  no  meio  da  indignação,  causada  pelo  atten- 
tado  do  Visconde,  e  dirigida  pelo  espirito  dos  23  an- 
nos.  Do  outro  lado  houve  impudência  num  velho  de 
73,  que  depois  de  se  haver  deshonrado  litterariamente, 


(1)  Faltaremos  sem  cessar  da  Reforma,  que  a  philosophia, 
assim  como  o  espirito  da  historia,  julgou  uma  conquista  supe- 
rior â  de  1789  \  os  resultados  d'esta  revolução  foram  em  grande 
parte  paralysados  pelo  estado  moral  e  intellectual  da  raça,  que 
a  proclamou;  os  direitos  d<>  homem  haveriam  sido  uma  conquista 
egualmente  grandiosa,  se  esses  homens,  que  os  enunciaram, 
houvessem  realisado  a  liberdade  primeiro  no  campo  moral  e 
intellectual.  A  Reforma  fora  regeitada  pela  França,  e  com  ella 
a  única  garantia  da  futura  revolução.  Veja-se  o  desenvolvi- 
mento em  Gervinus,  Geistige  Bewegungen  ia.  riem  driften  Jahr- 
zehnte,  em  Geseh  d.  neuz.  Jahrh,  vol.  viu;  assim  como  as  pas- 
sagens em  O  Faust,  pag.  5,  nota;  e  n'este  livro,  pag.  89-91. 


196 


pôz  ii  coroa  ao  escândalo,  na  sua  velhice,  cominei 

um  attentado,  sem  exemplo  na  nossa  historia  litteraria. 

Eis  a  qnest9b  posta  nos  mus  termos. 

Falta  notar  ainda  um  outro  ponto  era  <  i.  Barrete. 

As  nossas  paginas,  com  relação  ao  movimento  da  Re- 
forma  (1),  pareceram-lhe  «irritadas,  como  as  de  um 
sectários  (2). 

Diz  G.  Barreto,  «que  n'um  século  de  lucta  como  o 
nosso,  precisa  a  consciência  de  cada  um  de  ser  afhrma- 
da  por  provas». 

D'accôrdo;  eil-as,  no  que  escrevemos.  Que  a  propó- 
sito do  Fauet  iallassemos  da  Reforma,  nada  mais  natu- 
ral, nada  mais  lógico.  ' 

Não  sabemos  até  que  ponto  G.  Barreto  desenvolve- 
rá a  sua  these  histórica  e  moral,  com  relação  a  lenda 
faustiana;  mus  attendendo  a  que  a  seguirá  até  Goe- 
the (3) — devemos  crer  que  lhe  dará  a  interpretação 
mais  lata.  Sob  que  ponto  de  vista  o  escriptor  tratará  a 
lenda,  sobretudo  desde  o  principio  do  século  xvi.  não  o 
sabemos,  todavia  aqui  deixámos  ditas  algumas  palavras. 
que  lhe  podem  ser  úteis,  e  que  lhe  explicarão  ao  mesmo 
tempo  a  nossa  insistência  sobre  a  relação  intima  da 
lenda  faustiana  com  a  Reforma. 

0  que  em  seguida  dizemos,  é  o  resultado  consub- 
stanciado de  um  extenso  artigo  do  Dr.  A.  Lindiur    A 


(1)  O  Faust,  pag.  4-7. 

(2)  Lição,  cap.  ih.  pag.  l v. 

•">    Vide  <>  titulo  (pag.  194)  que  diz: 
anteriores  A  lenda  —  até  Goethe*. 

(4)  Lindner  é  auctor  de  varioa  dran 
ollatinus     istit;  .   Stauf  und    I  -   7  .   Bhttk 

187]  .  ate.  O  primeiro  foi  premiado  com  0  SchUlerpreit,  um 


197 


acercada  Faustsage  (1),  publicado  na  National- Zeitung 
de  28  de  Março  de  1869.  0  auctor,  referindo-se  aos 
trabalhos  publicados  sobre  a  lenda,  nota  uma  interrup- 
ção, desde  a  obra  de  Reichlin-Meldegg  (1849),  salvo 
alguns  artigos  ena  jornaes,  e  o  livro,  aliás  inútil,  de 
Housse,  escriptor  luxemburguez.  As  lacunas  que  Lin- 
dner  acha  no  assumpto,  referem-sea  três  partes: 

1.°  Por  quem  foi  escripto  o  Puppenspiel  original,  e 
em  que  data?  • 

2.°  Até  onde  se  pode  avaliar  o  mérito  de  Marlowe, 
com  relação  á  litteratura  faustiana  allemã? 

3.°  A  importância  da  lenda  faustiana,  e  a  sua  mis- 
são protestante  (2). 

Este  ultimo  ponto  é  sustentado  com  uma  demon- 
stração tão  concludente,  que  é  impossivel  deixar  de  ac- 
ceital-a. 

Quizeramos  traduzir  tudo  o  que  lhe  diz  respeito,  mas 
a  extensão  d'este  volume  obriga-nos  a  uma  restricção, 
que  não  deixará  todavia  de  tocar  nos  pontos  capitães. 

«A  insistência  sobre  esta  missão  (a  protestante) 
da  lenda,  é  tanto  mais  convidativa,  que  a  interpretação, 


premio  de  1:000  thalers,  que  se  applica  a  composições  dramá- 
ticas notáveis,  e  que  é  costeado  pelos  rendimentos  da  associa- 
ção denominada  «de  Schiller»  (Shillerstiftuvg). 

(1;  Este  artigo  foi-nos  remettido  de  Berlim  pela  Senhora 
Caroline  Michaèlis,  notável  romanista,  a  quem  renovamos  em 
publico  os  nossos  agradecimentos. 

(2)  K.  Simrock,  um  dos  mais  notáveis  historiadores  littera- 
rios  da  Allemanha,  escrevia  ainda  ha  pouco  um  artigo  em  que 
accentua  esta  mesma  proposição,  dizendo:  que  foi  o  protestan- 
tismo, que  desenvolveu  a  lenda  faustiana  (pag.  26);  Simrock 
ainda  iusiste  mais  n'este  ponto  nas  paginas  30  e  36  do  seu 
Aufsatz,  publicado  no  Iahrbuch  deutscher  Dichter  und  Gelehr- 
ten.  Erster  Jahrgang,  1873.  Berlin,  Heiuersdorff. 


198 


que  a  arte  lhe  deu,  turvou  o  olhar,  e  deshabituou-o,  da 
analyse  do  caracter  primitivo  da  lenda  ". 

Mais  abaixo: 

«A  lenda  faustiana  é  um  dos  notáveis  depósitos  lit- 
terarios  para  o  processo  de  fermentação  da  It>i><ru<<>  ». 
E  por  isso  se  justificam  as  palavras  anteriores  do  auetor, 
que  nota  haverem-se  quasi  todos  os  povos  da  raça  ger- 
mânica apoderado  da  lenda,  como  de  uma  propriedade 
nacional,  creando-se  assim  uma  litteratura  inteira,  em 
prosa  e  verso,  como  se  com  a  lenda  se  houvesse  des- 
prendido a  lingua  ao  espirito  da  época,  e  este  lan 
então  ao  mundo  uma  verdade,  para  a  qual  faltava  ape- 
nas o  titulo. 

«A  lenda  é  um  chãos,  ao  qual  affluem  os  elementos 
do  mundo  latino,  na  easpectactiva  de  uma  nova  <■*■ 
mas  sobre  esse  chãos  paira  a  consciência  protestante. 

«0  prqtestantismo  começou  com  uma  critica  da  cere- 
ja românica,  partindo  da  Bíblia;  depois  tocou  a  vez  a 
esta,  e  erafim,  sujeitaram  a  razão  a  um  exame  idêntico. 

«A  lenda  faustiana  não  toca  nVste  lado  positivo,  por- 
que não  procedeu  em  sentido  reformador,  mas  simples- 
mente por  um  protesto. 

«Todo  o  protestante  tem  a  consciência  de  ser  um  sa- 
cerdote;  não  julga  asna  salvação  dependente  de  clero 
algum  —  é  o  seu  próprio  sacerdote.  Pode  também  ser  o 
seu  próprio  demónio,  por  isso  que  está  sobre  si,  Bobre  o 
seu  livre  arbítrio.  Faust,  isto  é.  a  consciência  do  povo 
germânico     1  .   sente  a  divindade  da  sua   origem  pela 

]     Sxactami  ate  •  st:i  mesma  ideia  Be  encontra  em  0  F 
pag.  36,  aem  que  nós,  escrevendo-a,  tivéssemos  conhecimento 
do  artigo  de  Lindner. 


199 


primeira  vez.  Quer  experimental-a,  mas  transviado  pelo 
orgulho  cTessa  consciência,  erra,  e  exerce-a  no  mal. 
Primeiro  protesta  contra  a  tutela  da  sua  liberdade,  e 
depois  abusa  no  exercício  d'ella.  Colloque-se  o  dedo  so- 
bre um  raio  de  agua,  que  irrompe  sobre  a  pressão  — 
eis  a  relação  da  egreja  romana  para  com  a  liberda- 
de moral  do  homem.  Retire-se  o  dedo,  e  a  agua,  refrea- 
da, saltará  no  primeiro  Ímpeto  acima  do  seu  nivel  le- 
gal. 0  mesmo  faz  Faust;  mas  o  impulso  do  raio  d'agua 
diminue,  abate,  e  ella  corre  plácida  com  o  andar  dos  sé- 
culos. E  a  Reforma  em  todos  os  campos  da  crença  e  do 
saber.  A  lenda  faustiana  significa, "para  a  Reforma,  o  sa- 
lutar aviso  sobre  o  modo,  como  não  devemos  procurar 
a  liberdade;  a  sua  influencia  foi  pois  em  sentido  ne- 
(jatiro.  O  ideal  germânico  da  liberdade  foi  aqui  pro- 
curado, por  uma  vereda  illicita,  porque  só  a  critica 
do  próprio  ser  habilita  o  individuo  para  a  critica  do 
mundo)*). 

0  auctor  estabelece  em  seguida  três  períodos  para  a 
historia  da  lenda  faustiana. 

1.°  Desde  os  tempos  mais  remotos  até  1520,  accu- 
mula-se  o  material  para  a  verdadeira  lenda. 

A  ideia  resume-se  em  pactos  com  poderes  sobrenatu- 
raes,  attrihuidos  a  muitos  nomes. 

2.°  Desde  1520-1600.  As  lendas  são  reunidas  de- 
baixo do  nome  commum :  Faust. 

A  lenda  absorve  o  espirito  da  Reforma,  e  serve  de  po- 
lemica á  egreja. 

3.°  De  1600  —  até  aos  tempos  mais  modernos. 

A  lenda  perde  o  caracter  protestante ;  o  espirito  desap- 


200 


parece,  e  fica  a  indiferença,  transformada  em  <u  ■ 
nada  (1). 

G  auctor  define  em  seguida  a  natureza  dos  tymbo- 
los,  que  a  humanidade  creou,  para  significar  a  soa  as- 
piração a  um  conhecimento  superior  das  condições  da 
existência.  Falia  do  peccado  original  da  Bíblia,  dos  my- 
thos  de  Phaetonte,  Prometheo,  Numa,  Gyges,  e  emfim 
dos  elementos  legendários,  porém  mais  systematicos, 
de  Salomão. 

A  magia  dos  antigos  não  teve  uma  influencia  per- 
niciosa, porque  apenas  entretinha  a  phantasia.  e porque 
a  antiguidade  abstrairia  da  ideil  le  um  mundo  incogni- 
to.  A  magia  tomou  a  feição  do  mytho,  incarnou-se  na 
arte,  e  apenas  no  ultimo  decennio  antes  de  Christo  ad- 
quiriu ella  maior  importância,  ferindo  a  consciência.  0 
mundo  sobrenatural  tomou  uma  feição  mais  positiva. 
em  virtude  do  contacto  com  o  christianismo  ;  e  o  desejo 
de  levantar  o  véo  do  futuro,  de  conhecer  o  destino  da 
alma,  acordou  naturalmente.  D'aqui,  ao  desejo  illicito 
de  avassalar  esse  mundo  desconhecido,  ha  a  pequenís- 
sima distancia,  que  separa  dois  extremos. 

Chegado  o  espirito  da  época  ii  este  ponto,  tomou 
dois  rumos  diversos,  mas  parallelos.  O  fim,  B  sujeição 
d'esse  mundo  sobrenatural,  era-lhes  commum,  m;i>  di- 
vergiam nus  motivos,  que  obedeciam  a  dois  impais 

O  primeiro  era  a  anda  do  goso;  o  segundo,  a  do 
ber;  ambos  os  impulsos  distinguenvee  claramente, 

oontram  em  lenda  alguma  antes  dê  FausL  Batamos 


(1)  i  I>a>  Phlegmableibt  ais  Hanswurstiade  tlbrig   .  Nio 

sabemos  traduzir  melhor. 


201 


ainda  no  terreno  catholico.  «A  cultura  system atiça  da 
magia  era  obra  da  egreja  catholica,  e  a  Reforma  não 
cessou  de  accentual-o.  Luthero  combateu,  na  theoria 
das  indulgências,  uma  ideia  que  conduzia  á  morte  mo- 
ral: a  ideia,  que  só  a  acção  exterior,  sem  o  auxilio  do 
sentimento  intimo,  que  só  o  opus  operatum,  isto  é,  a  ac- 
ção sem  crença,  conduzia  á  salvação».  O  auctor  refere 
depois  as  ideias  do  reformador,  que  condemua  as  cere- 
monias  rnechanicas,  a  mise  en  scène  do  catholicismo,  a 
comedia  collectiva  na  egreja,  depois  da  comedia  isolada 
de  cada  um,  perante  a  sua  consciência.  Depois,  volta  de 
novo  a  accentuar  os  dois  impulsos,  que  caracterisa- 
vam  a  lenda  fausiiana,  para  determinar  a  feição  pro- 
testante dos  Fausibiicher  (livros  da  lenda).  As  duas  ten- 
dências caracterisavam-se  nas  duas  soluções,  que  se  da- 
va á  lenda;  a  solução  catholica  terminava  por  uma  con- 
versão e  pela  salvação  do  culpado ;  o  diabo  era  sempre 
burlado  por  artimanhas  jesuíticas. 

A  solução  protestante  revoltou-se  contra  isto  (1),  e  o 
catholicismo,  para  accentuar  mais  a  sua  ideia,  sacrificou 
até  alguns  papas  (Silvestre  II,  Gregório  vil,  Paulo  li) 
que  são  os  heroes  de  algumas  poucas  lendas,  e  que  vão, 
caso  raro,  directamente  para  o  inferno.  Mas  era  necessá- 
ria esta  abnegação  catholica,  porque  lhe  importava,  so- 
bretudo, affirmar  a  proposição:  de  que  saber  de  mais  (2), 
é  que  perde  o  homem,  e  para  a  sustentar  vendeu  três 
papas. 

(1)  Simrock  fop,  cit.,  pag.  30J  nota  também  esta  difieren- 
ça  da  solução  protestante. 

(2)  Simrock  (op.  cif.,  pag.  36)  refere  egualmente  a  diffe- 
rença  dos  motivos,  que  define  o  Faust,  segundo  as  duas  tradi- 
ções, a  catholica  e  a  protestante. 


202 


Uma  outra  combinação  monstruosa  foi  a  interven- 
ção da  virgem;  o  culto  mariano  influenciou  sobre  o  des- 
fecho da  lenda;  a  virgem  é  que  intercede,  porque  era 
mister  também  não  esquecer  os  santos. 

Lindner  mostra,  em  seguida,  como  todas  u-  historias 
de  magia  confluíram  no  Faustbuch;  fechando  assim  os 
antecedentes  da  lenda,  passa  á  biographia  do  heroe.  Do 
meio  das  principaes  versões,  que  estão  levemente  indica- 
das, resalta  o  seguinte: 

O  período,  que  geralmente  fixam  para  a  existência 
de  Faust,  é  de  1521-1540;  a  relação  com  Fust  (1),  im- 
pressor, é  filha  do  século  xvin,  e  deve-se  a  Klinger  e 
Klingemann,  notando-se  porém  que  a  imprensa  era  já  ao 
século  xvi  uma  arte  magica  aos  olhos  do  povo,  ;i  quem  os 
frades  haviam  contado  a  sua  historia  diabólica.  O  nome  de 
Faust  era,  além  d'isso,  vulgar  na  Állemanha :  oèfakratr 
de  Schiiler  (scolastíd  vagantes),  sujeitos  de  má  nota,  can- 
didatos infelizes,  corriam  o  mvindo,  enganando  o  povo 
com  todas  as  receitas  do  charlatanismo;  tudo  especula- 
va, depois  de  haver  aprendido  na  melhor  eschola —  o  car 
tholi  cismo. 

<(  Supponhamos  que  Faust  era  um  d'esses  charlatães : 
a  sua  homonymia  com  o  celebre  impressor  é  um  excel- 
lente  ensejo  para  impor  á  massa.  O  nome  Hemitheus  II-- 
delbergensis  è  um  dos  muitos  nomes, que  fizeram  quebrar 
a  cabeça  aos  eruditos  e  architectos  de  hypotheses,  até 

(1)  Simrock defende  (op.cU.,  pag  31,32,  33  e  ">1  com  par- 
ticular interesse  a  relação  do  personagem  Fausr  OOm  0  unpres- 
Bor  Johannes  Faust  Joannis  ruat,  Trithemius,  (  hron.  Hirtava. 
a.  421'  e  ainda  que  regeite  a  fabula  do  seu  processo  em  Paris 
(segundo  Walch,  Decaafabul.  argent,  L604.  39-30,  refutado  por 
Schwab)  BuppSe  haver  n'ella  um  fundo  de  verdade. 


203 


que  o  Dr.  Ullmann  examinou  os  papeis  da  Universida- 
de de  Heidelberg,  e  achou  n'elles  um  Johannes  Faust, 
inscripto  em  1509,  como  bacharel  em  theologia.» 

Lindner  julga  porém  secundaria  esta  descoberta : 

«A  natureza  da  lenda  nada  sofrre  com  isso;  a  lenda 
estava  madura,  a  ponto  de  cahir,  e  para  heroe  servia 
qualquer  pantomineiro ;  se  a  sua  reputação  era  mesqui- 
nha, restava-lhe  a  fortuna  da  lenda,  para  que  fosse  um 
homem  rico.» 

Acerca  da  morte  de  Faust,  fornece  Lindner  uma 
conjectura,  que  não  deve  admirar,  á  força  de  ser  natu- 
ral; porque  o  que  é  mais  evidente,  acha-se  só  tarde,  as 
mais  das  vezes. 

Todas  as  noticias  dizem  que  Faust  fora  encontrado 
com  o  pescoço  torcido,  e  com  os  membros  desconjunta- 
dos ;  e  repetem,  a  una  você,  que  se  sentiu  um  tremor  na 
sua  casa.  Ora  Faust  occupava-se  com  preparações  chi- 
micas,  e  uma  relação  de  1715  conta  uma  historia  de  uns 
caçadores  de  thesouros  (um  estudante  e  dois  burguezes) 
que  foram,  n'uma  noite  de  natal,  escavar  n'uma  casa, 
situada  n'uma  vinha;  para  se  aquecerem,  accenderam 
carvão  n'um  vaso  de  flores,  mas  a  evocação  não  che- 
gou a  concluir-se.  Weber  (o  estudante)  adormeceu,  e 
os  dois  burguezes  do  mesmo  modo,  apparecendo  mor- 
tos no  dia  immediato;  o  estudante  foi  o  único  que  es- 
capou. Em  seguida  enviou  o  magistrado  três  guardas 
á  caça  do  diabo;  como  o  frio  era  o  mesmo,  accenderam 
mais  carvão  ainda,  num  vaso  ainda  maior,  e  morre- 
ram .  .  .  asphyxiados  por  acido  carbónico;  o  povo  teimou 
porém  que  fora  o  diabo,  que  lhes  torcera  o  pescoço. 

Voltando  á  lenda,  diz  Lindner: 


204 


«O  processo  de  condensação  do  Faust  começou  pro- 
vavelmente já  em  vida  dYlle.  O  assumpto  estiava  em  de- 
posito, e  onde  Faust  apparecia,  absorvia  elle  tudo.  como 
o  magneto  attrahe  a  limalha. 

«O  povo  poetisa  a  seu  modo,  e  n'este  caso  dárse  uma 
verdadeira  condensação  poética,  (pie  nos  faz  adivinhar 
como  as  canções  de  Homero  e  08  Niebelunge*  M  agru- 
param em  torno  dos  respectivos  horoes.  ate  (pie  appare- 
ceu  o  compilador,  o  herdeiro  que  entrou  de  graça  na 
herança»  (1). 

«Em  1587  apoderou-se  um  homem  de  instincto  ge- 
nial do  assumpto,  e  escreveu  o  Fauttbuch,  fundindo 
tudo  numa  biographia,  a  (pie  pôz  o  nome  de  FaMtê. 

«  Desde  este  momento  nada  temos  já  que  fazer  com 

0  charlatão  das  praças,  mas  só  com  o  Faust  do  Faust- 
buchy>.  A  polemica  protestante  apoderou— e  em  segui- 
da dos  differentes  Fauêibuchem  (1587,  1588,  1589  :  pri- 
meiro timidamente,  sem  tendência  clara.  Widmann 
realisou-a  n  uma  polemica  decidida,  ne  seu  trabalha  de 

1  ~> i ' í ' .  As  suas  reflexões  moràes  (2-)  são  múltiplas,  e  <  >- 
criptas  prolixamente,  mas  devem-se-  considerar  como  a 
base  dos  traJaalhtQS  posteriores,  e  como  uma  asposiote  da 

itltiii  iifn/rsfiD/tO)  . 

Lindner  aponta  as  numerosas  edições.  <|ue  se  fize- 
ram dos  Fàustbúehw*,  assim  como  a  sua  propagação  pro- 
digiosamente rápida  pela  Allemanha.  llollauda.  Ingla- 

(1)  Parece-nos  o  único  modo  de  traducçào  de  i  ais  Lacben- 
der  Erbe». 

Siinrock    òp.  cif.,  piiir.  26)  >%>ti  •  1  ■  -  a. rdo  MH  htO; 

■■  Como  Faust  é  p  magico  mais  moderno,  absorve  alie 
cilmente  a  herança  áe  todas  as  anteriores  lendas  maravilhosas  . 
Vide  0  Faust,  pag.  111  — A  lenda  úo  Pr.  Panai 


205 


terra,  França  e  Polónia,  em  doze  mezes  apenas,  como  uma 
prova  evidente  da  opportunidade  do  assumpto  faustiano. 
Voltando  Lindner  á  tendência  da  obra  do  collector  de 
1599,  insiste: 

«Widmann  accentua,  tanto  no  prologo,  como  no 
texto,  expressamente  a  ideia  protestante,  e  para  o  pro- 
var, bastarão  as  seguintes  indicações : 

1.°  Widmann  conta  que  Faust  se  entrega  á  magia, 
graças  á  leitura  de  livros  de  papas;  e  que  aprendera  a 
divinação  de  ciganos,  e  outra  gente  pagã. 

2.°  Diz  que  os  papas  e  cardiaes  se  entregavam  á 
magia. 

3.°  Que  tinha  relações  com  os  frades;  o  que  se  con- 
firma pelo  grande  numero  de  cartas  a  padres  catholi- 
cos,  que  se  acharam  no  seu  expolio. 

4.°  Widmann  acha  o  habito  do  frade,  a  melhor  ves- 
timenta para  Mephistopheles  (1). 

5.°  Quando  Faust  está  na  agonia  final,  trata  de  se 
defender  com  a  fradaria  (2),  mas  o  diabo  não  faz  caso 
d^lles,  e  leva  a  victima.  Este  indicio  é  claro,  mas  o  mais 
importante,  eil-  o : 

6.°  Segundo  Widmann,  prohibe  o  diabo  a  Favst  to- 
dos os  documentos  em  que  se  funda  a  crença  na  salva- 
ção, segundo  a  ideia  protestante:  «Fogede  João  (Evan- 
gelho de  S.  João)  —  diz  elle,  e  do  grande  fallador  Pau- 
lo». Mas  ao  mesmo  tempo  dá-lhe  licença  para  discutir: 
sobre  a  Missa;  sobre  o  purgatório ;  sobre  a  theologia  escho- 

(1)  Aqui  cita  Lindner  a  passagem  de  Widmann,  com  re- 
lação ao  Fiat  e  Fuat. 

(2)  Lindner  diz  :  Messpfaffen,  isto  é  :  fradaria,  que  dizia 
missa  (Messe),  provavelmente  uma  espécie  do  tempo  da  Re- 
forma. 


2or> 


lastica;  sobre  ceremomas,  e  memio  até  sobre  S.  .)/<i//>>  U8, 
Marcos  e  Lucas,  por  serem  excellentes  meios  para  se 
embrutecer  (1),  ideia  de  uma  ironia  verdadeiramente 
protestante!» 

«O  celibato  é  atacado  com  particular  violência,  e 
entre  as  5  condições  do  pacto,  está  a  que  prohibe  a  Faiuá 
de  entrar  no  matrimonio.  Esta  condição,  segando  W  i  I - 
mann,  foi  imposta  a  Faust  pelo  diabo,  para  o  levar  á 
vida  sodomitica,  como  a  que  os  papas  e  cardeaes  prati- 
cavam. Faust  visita  durante  uma  excursão  a  cidade  de 
Roma,  e  convence-se  da  vida  corrupta  da  curte  papal. 
E  possível  que  Widmann  se  recordasse  da  viagem  de 
Lutbero  a  Roma,  que  tão  abençoados  fruetos  produziu 
para  a  egreja.  Marlowe  aproveitou  esta  circumstancia». 

Lindner  passa  emfim  a  demonstrar  a  existência  da 
polemica  religiosa  nos  Faustbiicher  mais  antigos,  de 
1587,  1588,  1589,  provando-a  com  o  seguinte: 

1.°  0    Wagnerbnch  de  1593,  uma  stereotypisaçào 
(Abklatsch)  da  lenda  faustiana,  cujo  anctor  affiança  es 
pressamente  «que  não  tem  a  menor  intenção  áeoffenâer 
a  egreja»,  o  que  presupõe,  que  o  clero  catbolico  já  havia 
anathematisado  os  FaustbúcJu  r. 

2.°  O  drama  de  Marlowe,  em  que  se  reflecte  viva- 
mente a  tendência  polemisadora  da  fonte,  que  lhe  serviu 
de  base,  o  Faustbuch  de  1587. 

3.°  0  argumento  mais  curioso,  que  data  de  1862, 
e  que  vem  do  próprio  seio  da  egreja  catholica:  o  livro 
do  Professor  Housse,  de  Luxemburg,  sobre  o  Faust :  em 
qne  elle  quer  provar  que  heroe  fez  com  effeito  mila- 

1    Sic,  «  ftlrtreffliche  Mittel  xnr  Yerdammxmg >• 


207 

grés,  com  o  auxilio  do  diabo,  fundando-se  no  ponto  de 
vista  da  Biblia  (!)  e  da  doutrina  positiva.  As  explica- 
ções da  physica,  mais  que  sufficientes  para  desmasca- 
rar aquella  magia:  por  exemplo,  a  relação  do  sangue 
humano  com  os  mineraes — são  para  o  snr.  Housselet- 
tra  morta;  os  fructos  de  uma  sciencia  duas  vezes  secu- 
lar, não  existem  para  elle!» 

E  emfim  uma  verdadeira  relíquia  de  professor,  um 
extraviado  da  velha  guarda  —  diremos  nós,  fechando  a 
exposição  de  Lindner. 

O  publico  pode  passar  em  branco  o  que  fica  escri- 
pto,  como  communicação  particular  a  G.  Barreto;  du- 
vidamos mesmo,  que  o  snr.  Gr.  M.  entenda  isto,  ou  as 
paginas  antecedentes. 

Nós  fazemos-lhe  a  justiça  de  não  pedir  mais,  do  que 
a  lógica  nos  permitte;  onde  não  entenderem,  passem 
adiante,  como  fazem  as  crianças.  A  nossa  intenção  foi 
particular,  e  tem  a  vantagem  de  preencher  no  nosso  pri- 
meiro trabalho  (1)  uma  lacuna  mais  sensivel,  como  ou- 
tras que  lá  existem,  e  hão-de  existir  sempre  em  ensaios. 

Ahi  tem  Gr.  Barreto  a  razão  por  que  accentuamos  o 
movimento  da  Reforma,  com  relação  á  lenda  do  Faust; 
fizemol-o  sem  conhecer  os  trabalhos  de  Lindner  e  de 
Simrock,  mas  por  estarmos  ao  facto  dos  resultados  da 
sciencia.  Se  ha  algum  movimento  que  mereça,  na  nossa 


(1)  O  Faust.  A  lenda  do  Dr.  Faust,  pag.  109-200.  N'es- 
se  capitulo  tratámos  apenas  da  propagação  erudita  da  lenda. 


208 


actua!  condição  1  .  de  ser  profundamente  estudado  — «' 
o  da  Reforma;  e  diremos,  que  è  aquelle  de  que  menos 
faliam,  mesmo  os  que  entre  nos  escrevem  maia  e  me- 
lhor 1 2) :  uns  ígnoram-o  ;  or  má  Pé ;  outros  fingem  igno- 
ral-o,  affectando  ama  certa  « superioridade  perante  o 
sentimento  religioso,  como  sendo  uma  meticulosidade 
de  espíritos  pequenos»  (3). 

Que  se  admitiam  em  completo,  on  modificadas,  as 
conquistas  moraes  do  protestantismo,  parece-nos  accei- 
tavel :  isso  é  questão  de  cada  um,  que  procura,  perante 
a  sua  consciência,  a  base  moral  das  Buas  acções  n'este 
ou  n'aquelle  principio  superior,  modificado  n'este  ou 
n'aquelle  sentido ;  mas  (pie  se  riam  das  ideias  protestan- 
tes, é  uma  consequência  lógica  n*um  estado  de  impu- 
dência, como  o  nosso,  em  que  não  lia  nada  a  perder. 

Estamos  convencidos,  que  o  que  levou  Grraça  Barre- 
to a  descobrir  o  «sectário  irritado»  (4"),  foi  apenas  o  en- 
tlmsiasmo  das  nossas  palavras;  a  culpa  já  foi  confessada. 

Se  o  nosso  publico  já  não  comprehende,  nem  avalia 
a  nossa  indignação,  perante  o  attentado,  é  porque  esque- 

(1)  Nào  falíamos  só  de  Portugal,  mas  do  mundo  catholioo 
em  geral. 

(2)  Já  vimos,  a  pag.  12  o  13,  a  propósito  da  Historia  da 
inetrucçâo  nacional  da  1>.  António  da  Costa,  como  este  anotar 
[Iludiu  a  questão;  é  um  exemplo  entre  muitos. 

(3)  «  Religionsempfindung  ais  KleingeiBterei. 
Grervinus.  Gtistige  Beivegimoen,  em  Gesch.  d.  «eus.  Jakrk., 

vol.  viu,  pag.  158;  onde  a  moderna  geração  litteraria  em  geral, 
pode  ver  o  seu  retrato,  a  propósito  da  analyse  da  influencia  de 
Byron;  onde  são  contemplados, com  a  autboridade  que  dâuma 
aciencia  superior,  i  tinias  aquellaa  naturezas  de  livrespensado- 
res,  que  julgam  attingir  (»  supremo  gráo  intellechial  •  •  líliite  <i«'s 
Geisteslebensu  .  abalando  os  pontos  de  apoio,  na  religião,  no  es- 
tado e  no  Lai  domestico  ■  [pags  L68  . 

(4)  JJçào,  pag.  Ift, 


209 


ceu  o  que  é  a  vergonha ;  se  acha  irrisório  o  nosso  enthu- 
siasmo  por  um  principio  moral,  que  tem  sido  a  base  da 
nossa  conducta,  é  porque  é  incapaz  de  senso  moral,  e 
se  ri  d'aquillo,  que  é  sagrado  —  a  convicção,  d'aquillo, 
que  foi,  com  a  invenção  da  Imprensa,  o  facto  mais  gi- 
gantesco dos  tempos  modernos,  o  facto  que  um  Kant, 
um  Lessing,  um  Goethe,  que  um  Hegel,  que  um  Hum- 
boldt,  que  um  Schlosser,  que  uma  nação  inteira,  que  dá 
as  leis  no  mundo  da  sciencia  e  das  conquistas  moraes, 
reconhece  ainda  ser  o  principio  vital  da  sua  existência. 
Isto  não  tira  á  critica  imparcial  o  direito  de  notar  os 
nossos  defeitos,  como  escriptor;  e  depois  de  haver  G. 
Barreto  escutado  a  nossa  defeza,  confessámos  de  novo 
ao  nosso  collega,  que  tem  razão  —  e  que  não  fomos,  com 
relação  a  Castilho,  objectivamente  critico,  porque  não 
podemos  sel-o,  no  momento  psychologico. 


AO  PUBLICO 


Devemos  expor  finalmente  ao  publico,  em  geral, 
um  assumpto,  que  por  ter  sido  repetido  em  vários  jor- 
naes  (1),  e  se  referir  a  insinuações  pessoaes,  aleivosas, 
falsas,  e  forjadas  de  propósito  para  illudir  o  publico,  cir- 
culou com  uma  certa  publicidade,  ainda  que  a  artima- 
nha, e  a  mentira  não  passasse  desapercebida  para  mui- 
tos. Os  documentos  que  em  seguida  vão  ler-se  foram 
levados  por  nós  á  Redacção  do  Primeiro  de  Janeiro,  e 
como  o  proprietário  estivesse  ausente,  deixámol-os  acom- 
panhados de  uma  carta,  que  em  seguida  se  lerá.  0  pro- 
prietário appareceu,  na  manhã  immediata,  a  visitar- 
nos ;  e  como  então  não  lhe  podessemos  fallar,  procurou- 
nos  novamente  mais  tarde,  sendo  o  resultado  da  entre- 
vista, não  se  publicar  o  nosso  communicado,  promptifi- 
cando-se  todavia  o  proprietário  a  fazer  uma  declaração, 
com  o  fim  de  satisfazer  o  nosso  melindre.  Recusámos, 
fazendo-lhe  vêr,  que  o  que  pedíamos,  era  simplesmente 
a  publicação  dos  documentos,  nem  mais  nem  menos. 

(1)  Primeiro  de  Janeiro,  Diário  Illustrado,  etc. 


II 

Desfez-se  então  o  proprietário  em  mil  explicações,  que 
aos  haveriam  provado  até  á  evidencia,  (Be  o  não  sou- 
béssemos já)  a  que  triste  posição  desce  nm  proprietário 
de  uma  folha  portugueza,  por  causa  dos  seus  inter 
porque  a  fiual  chegamos  a  declarar-lhe,  que  comprehen- 
diamos  as  suas  duvidas,  e  a  dizer-lhe  aqnillo  mesmo. 

O  snr.  Gr.  M.  fica  previamente  avisado  (1)  doqneo 
espera,  se  tiver  a  lembrança  de  lazer  novas  insinuações 
pessoaes;  recomméndamos-lhe,  que  medite  bem  o  final 
do  nosso  capitulo  111  (2).  Aos  outros  seus  collegas  pode 
succeder,  com  a  publicação  de  documentos  inéditos, 
que  possuimos  em  parte  (sabemos  onde  procurar  e  resto) 
—  alguma  surpresa,  não  que  os  desmascare,  porque  já 
não  teem  vestigios  sequer  de  vergonha,  mas  que  poderá 
comprometel-os  mais  gravemente  perante  a  opinião  pu- 
blica. 

Eis  o  communicado: 


0  Cavalheirismo  do  snr.  José  Gomes  Monteiro 

Snr.  Redactor  do  Primeiív  de  Janeiro. 

No  seu  jornal  de  terça -feira.  22  de  Abril,  lia-se  um 
folhetim,  que  contém  allusOes  pessoaes,  que  >ão  prohibi- 
«las  em  geral,  e  muito  mais  n'uina  folha  publica,  que  de- 
via repellir  OS  insultos,  em  logar  de  lhes  dar  franca  hos- 

(1)  Vide  atraz,  pag.  54  e,  55. 

(2)  O  consummado  germanista  como  litterat<>  e  corno  ho- 
mem. 


III 

pedagem  nas  suas  columnas.  Venho  pois  requerer  o  que 
a  justiça  civil  me  concede,  reclamando  de  V.  a  inserção 
das  seguintes  linhas,  no  mesmo  logar  do  seu  jornal,  em 
que  os  insultos  sahiram  impressos.  Creia-me  com  toda  a 
attenção  de  V. 

M.t0  att.°  ven.r  e  cr.d0 
Joaquim  de  Vasconcellos. 


Na  ultima  columna  do  folhetim  de  Camillo,  lê-se: 

«.  E  em  cada  pagina  se  repetem  allusões  semelhantes 
a  esta:  Tentamos  o  seguinte  paralello  para  mostrar  a 
quem  não  vê  o  que  é  ter  vista.» 

« Isto,  accrescenta  o  snr.  G.  Monteiro :  «  E  baixo,  é 
vil.  é  ignóbil !  » 

«Que  doridas  e  nobres  reflexões  escreve  a  paginas 
58  o  auctor  dos  «Críticos  do  Fausto»  com  referencia 
á  villania  do  insultador  da  cegueira  de  Castilho !  Aquella 
escuridão  exterior  que  nos  internece  a  lagrimas,  e  nos 
dobra  o  joelho  respeitoso  deante  da  brilhante  alma  que 
lá  se  está  abrindo  em  torrentes  de  luz,  foi,  no  discorrer 
de  setenta  e  três  annos,  duas  vezes  improperada  como 
um  delicto:  uma  vez  por  Theophilo  Braga,  outra  por 
Joaquim  de  Vasconcellos;  e  por  mais  ninguém;  diga- 
mol-o  em  desafronta  d'este  paiz  e  da  humanidade.  » 

Estas  considerações  do  romancista  foram  sugeridas 
pelo  que  se  lê  a  pag.  58  do  volume  do  snr.  José  Gomes 
Monteiro,  e  que  vae  adiante  marcado  em  grifo.  Ora,  pa- 
recendo-nos  que  o  romancista  havia  deturpado  o  pensa- 
mento do  nosso  adversário,  para  nos  collocar  em  luz  des- 


IV 

favorável,  fazendo  uma  insinuação  ignóbil,  dirigimos  ao 
snr.  José  Gomes  Monteiro  a  seguinte  carta : 

V.  respondeu  á  minha  critica,  direito  que  tanguem 
contesta,  e  que  eu  serei  o  primeiro  a  reconhecer  u'uma 
refutação  que  preparo;  dirijo-me  a  V.  com  outro  Hm, 
porque  lendo  em  repetidos  logares  do  seu  livro  ]>a_ 
98,  etc.)  que  V.  confia  na  minha  lealdade  de  cavalheiro 
(sic),  tenho  o  direito  de  pedir-lhe  o  seu  testemunho  para 
me  descartar  de  uma  insinuação  baixa  e  indigna  do 
snr.  Camillo  Castello  Branco,  feita  a  propósito  do  livro 
de  V.,  insinuação  que,  embora  deduzida  das  linhas  da 
sua  resposta,  eu  não  creio  que  fossem  o  echo  das  suafl 
ideias,  ao  escrevêl-as.  Refiro-me  á  seguinte  passagem: 

«E  em  cada  pagina  se  repetem  allusões  similhantes 
aesta:  Tentamos  o  seguinte paraUelo para  mostrara  qvt  m 
não  vê  o  que  é  a  vista  ! » 

«Ha  mais  de  três  mil  annos  que,  desde  Homero  até 
Milton,  e  desde  Milton  até  Castilho,  a  humanidade  se 
curva  reverente  e  compungida  diante  d<>  infortúnio  " 
que  se  allude;  infortúnio  sagrado  que  centuplica  a  no>srl 
admiração  por  estes  génios  que  a  Providencia  parece  ter 
escolhido  para  mais  claramente  patentear  a  natureza  es- 
piritual e  divina  da  alma  humana.  E  o  snr.  Vasconoel- 
los,  o  despresador  de  todas  as  conveniências,  degrada-ee 
a  ponto  de  insultar  esta  augusta  calamidade!» 

Isto  não  podia  etitender-se  de  maneira  alguma  com 
o  Visconde  de  Castilho;  primeiro,  porque  declarei  em 
mais  de  um  logar  da  minha  obra.  que  o  que  escrevia 
não  era  para  o  Visconde  de  Castilho,  nem  me  importa- 
va que  elle  tieasse  entendendo  melhor  o  Faiut,  depois  de 


haver  lido  o  meu  volume,  do  que  o  entendia  antes;  re- 
ferencias que  V.  copiou  no  seu  volume,  n'uma  pagina 
de  que  agora  não  me  recordo. 

Segundo,  porque  as  insinuações  pessoaes  nunca  fo- 
ram argumento  para  mim  (1) ;  terceiro,  e  este  é  o  ponto 
principal,  porque  na  pagina  XI  se  lê  evidentemente  a 
quem  se  refere  o  dito  da  pag.  IX.  Transcrevemos  as  pas- 
sagens em  frente  uma  da  outra: 

«...  tentamos  o  seguinte  parallelo  para  mostrar  a 
quem  não  vê,  o  que  é  a  vista»  (pag.  ix). 

«  Saiba  o  publico  è  aquelles  que  até  hoje  tem  perma- 
necido com  os  olhos  fechados,  não  querendo  vêr  nem  ou- 
vir a  verdade»,  etc.  (pag.  x). 

Na  mesma  pagina  se  lê,  nos  pontos  das  nossas  ac- 
cusações  contra  Castilho : 

«  3.°  Que  Castilho  ignora  a  existência  dos  commen- 
tadores,  e  que  entrou  no  Faust  ás  cegas,  intelectual- 
mente fallando»  (pag.  xi)  (2). 

Quero  pois  crer,  que  a  allusão,  que  V.  achou  ao 
Visconde  de  Castilho,  foi  resultado  de  um  descuido  na 
leitura,  e  que  a  agitação  que  transluz  nas  palavras .  .  . 
É baixo!  évilf  é  ignóbil!  —  o  impediu  de  conhecer  a  ver- 
dadeira relação  das  minhas  palavras. 

(1)  Se  uo  fim  do  capitulo  m  fazemos  umas  allusões  pes- 
soaes ao  snr.  G.  M.,  é  porque  o  consideramos  desde  a  sua  res- 
posta a  nossa  carta,  como  um  adversário  desleal,  e  um  es- 
criptor  de  má  fé;  hoje,  em  vista  da  resposta,  ainda  o  julgámos 
mais:  como  um  falsificador  de  textos,  que  perdeu  todo  o  direi- 
to á  menor  contemplação  ;  se  fazemos  insinuações,  é  porque  são 
verdadeiras,  e  baseadas  em  documentos  authenticos,  que  temos 
á  vista. 

(2)  Esta  ultima  prova,  a  nosso  favor,  não  existe  na  nossa 
carta  particular  ao  snr.  José  Gomes  Monteiro,  como  faltam  alli 
outras  muitas,  tão  decisivas  como  esta. 


VI 

Repito:  que  me  parece  haver  sido  resultado  de  um 
descuido  ou  lapso  de  leitura,  pois  é  justo,  que  acredi- 
tando V.  no  meu  cavalheirismo,  como  por  mftifl  de 
uma  vez  affirma,  eu  não  duvido  do  seu,  porque  o  do 
snr.   Camillo  Castello  Branco  é  para  mim  indim-n  nte. 

Confio  pois  que  V.  me  responda,  sem  rodeios,  em 
carta  autographa,  reconhecendo  o  seu  engano,  para  eu 
fazer  o  uso  conveniente,  publicando-a;  aliás  vejo  (Be  EU 
dura  necessidade  de  duvidar  da  sua  boa  fé  e  cavalhei- 
rismo. 

0  portador  d'esta,  o  snr.  Anselmo  de  Moraes,  r 
bera  a  resposta  de  V. 

Creia-me  de  V. 

M.*0  att.°  ven.r  e  cr.0 
Joaquim  de    Vasconeellos. 
S.  C,  22  de  Abril  de  1873. 


0  snr.  José  Gomes  Monteiro,  em  logar  de  respon- 
der acto  continuo,  como  o  pedia  a  civilidade,  bõ*  após  2 1 
horas  é  que  deu  resposta,  deixando  a  insinuação  de  pé. 

0  snr.  José  Gomes  Monteiro,  em  logar  de  respon- 
dei lealmente,  e  MM  TodeÚK,  eomo  homem  que  tem  ain- 
da poiacU  tl'ln>tiin ■nr,  preferiu  áar-nóa  a  seguinte  resposta, 
digna  de  um  Tartmfo, 

Eil-a : 

o  Em  resposta  á  carta  de  V.  que  hontem  me  fbi  entre- 
gue pelo  Snr,  Anselmo  de  Morae»,  permitta-me  declarar- 


VII 

lhe  que  não  reconheço  em  V.  nem  em  pessoa  alguma  o 
direito  que  V.  diz  assistir-lhe  de  me  interpellar  acerca 
da  interpretação  que  o  snr.  Camillo  Castello  Branco  dá 
ás  palavras  que  eu  escrevo. 

De  V. 

M.t0  att.°  ven.r  e  cr.0 
23-4  —  73.  J.    Gomes  Monteiro. » 


Em  primeiro  logar,  não  ha  interpretação ;  o  snr.  Ca- 
millo não  fez  mais  do  que  copiar  o  que  o  snr.  José  Go- 
mes Monteiro  escreveu;  a  resposta  do  nosso  adversário 
é  pois  um  sophisma  pueril,  triste  salvaterio  de  um  di- 
lemma  em  que  o  snr.  Gomes  Monteiro  se  collocou ;  isto 
é  :  ou  dar  uma  bofetada  moral  no  seu  collega,  o  snr.  Ca- 
millo, desmentindo-se  assim  a  si  próprio  e  a  elle,  em 
abono  das  repetidas  classificações  de  cavalheiro,  que  me 
concede — ou  deixar  as  insinuações  de  pé,  cahindo  em 
peor  contradicção,  e  minando  as  bases  da  sua  resposta, 
que  já  não  pode  consiclerar-se  haver  sido  feita  com  boa  fé. 

Emquanto  ao  seu  cavalheirismo,  devo  classifical-o  na 
cathegoria  do  do  seu  collega,  e  considerar  o  snr.  José 
Gomes  Monteiro,  que  tinha  ainda  alguma  cousa  a  per- 
der, como  o  snr.  Camillo,  isto  é :  fora  da  lei  moral  e  lit- 
teraria  (1). 

Ao  snr.  Camillo  não  respondo,  porque  as  suas  cen- 

(1)  É  este  o  ponto  de  vista  moral,  que  nos  serviu  para  a 
nossa  resposta. 


VIII 

surasj- considero-as  como  honrosas;  os  seus  elogio-  -u- 
jar-me-hiam.  Demais,  para  se  saber  o  que  vale  o  roman- 
cista, pergunte-se  em  qualquer  praça  publica  (1). 

Isto  fica  dito  emquanto  ás  insinuações  pessoaes ;  em 
outro  logar  provaremos,  debaixo  do  ponto  de  vista  Bcien- 
tifico,  que  o  snr.  José  Gomes  Monteiro  está  egaálmente 
tora  da  lei  litteraria. 

Até  á  vista  pois. 

Joaquim  de  Vasconcellos. 
Porto,  23  de  Abril  de  1873. 


(1)  Ou  veja-se  o  processo,  entre  o  snr.  Ciunillo  e  o  pro- 
prietário da  Imprensa  Portugtteza,  que  o  romancista  pretendeu 
espoliar — e  em  que  foi  condemnado  pelos  tribnnaes,  publicado 

sob  o  titulo:  Qfiéatâo  de  propriedade  lideraria. 


ERRATAS 


PAG. 

NOTAS 

LIKH. 

ERROS 

EMENDAS 

17 

7 

Assim  manifesta 

Assim  se  mani- 
festa 

17 

11 

por  haver  feita 

por  haver  feito 

17 

Nota  1 

2 

Porto,  1849 

Porto,  1848 

20 

Nota  4 

Riacho  que 

Riacho  que 

33 

10 

parucea 

parucea 

40 

24 

à  fortiori 

a  fortiori 

45 

Nota  3 

chamada  (3) 

leia-se  (1) 

45 

Nota  1 

chamada  (1) 

leia-se  (3) 

58 

17 

M.me  de  Staeel 

M.me  de  Staêl 

77 

2 

tolas 

totus 

81 

23 

atraz  do 

atraz,  do 

84 

13 

a  que  nos  força 

a  que  nos  força 

85 

26 

insufficiento 

insufficiente 

88 

7 

ideal  commum? 

ideal  commum». 

89 

25 

entendia 

entendeu 

125 

1 

Já  sahia 

Já  sabia 

126 

Nota  1 

2 

Schiller    ficou    sa- 
tisfeito 

Schiller  ficou  pouco 

satisfeito 

164 

4 

acerca  de  130  an- 
nos 

acerca  dos  130 
annos 

170 

Nota  4 

2 

de  se  citar 

de  citar 

PORTO IMPRESSA    PORTTJGtTEZA 


Iii)  MESMO  AICTOR 


OS  MÚSICOS  PORTUGUEZES,  (biographia-cri- 
tíca— historia-bibliographia).   Porto,  L870.  2 
volumes  cin  8.°  gr.,  de  xxxvi— 600  pagin 
ti  mappas  Etynopticos _.- 

LUIZA  TODI, estudo  cri tíco. ] '<  >rto,  MDCCCLX x 1 1 1 , 
em  4."  gr.,  de  xn-164  pag.  Tiragem,  bó  l'")(i 
ex.,  numerados.  Avulso,  2s4'»();  para  os 
signantes  da  Archeólogia  Artística 1$200 

E  a  primeira  caderneta  da  Archeólogia  Artística,  publica- 
ção periódica  para  a  Historia  da  arte  om  Portugal;  com  a  eol- 
laboração  de  alguns  especialistas  nacionaes  e  estrangein 

os  prospectos. 

0  FAUST  de  GOETHE  e  a  traducção  do  Visconde 
de  Castilho.  Porto,  L872,em  8.°,  de  xn-594 
pag.,  e  unia  tabeliã 1  \ 

Analyse  completa  da  traducção  portuguesa,  confrontada 
com  a  traducção  literal  do  auetor,  em  face  do  original  allemão. 

No  prelo : 

0  FAUSTO  de  CASTILHO  julgado  pelo  Elogio- 
mutuo,  artigos  colleccionados  e  glossados  por 
J.  de  V.  Em  8.°,  de  cerca  de  50  paginas. 

A  entrar: 

OS  ARTISTAS  DO  CATALOGO  DA  LIVRARIA 
DE  MUSICA  D'EL-REI  D.  JOÃO  IV.  Séculos 
xv-xvii.  Precedido  de  om  ensaio  bistorico- 
critico  acerca  do  niesnio  catalogo.  Em  I. 
de  cerca  de  120  pag.  É  <>  fascículo  111  da 
Archeólogia  artística. 

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itonio  da  Fonseca  e 
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