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O MARQUEZ DE POMBAL
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o MARPZ DE POMBAL
OBRA COMMEMORATIVA
CENTENÁRIO DA SUA MORTE
MANDADA PUBÍJCAR
CLUB DE REGATAS GUANABARENSE
RIO DE JANEIRO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
l885
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FEB / 1973
7ív
^/íy OF 10^^
PRIMEIRA PARTE
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4-C>- -v-i"
COLLABORAM N'ESTA OBRA OS EXCELLENTISSIMOS SENHORES
JOSÉ MARIA LATINO COELHO— HENRIQUE CORRÊA MOREIRA
MACHADO DE ASSIS — SYLVIO ROMERO
Dr. THOMÁS ALVES JÚNIOR — CONTE ANGELO DE GUBERNATIS
Dr. GEORGE WEBER — Dr. MANUEL EMYGDIO GARCIA
OLIVEIRA MARTINS — JÚLIO MATTOS— THEOPHILO BRAGA
GRANDE COMMISSÃO EXECUTIVA
DA COMMEMORAÇÃO
DO
PRIMEIRO CENTENÁRIO DO MARQUEZ DE POMBAL
NO
RIO DE JANEIRO
Barão do Rio Bonito, prcjidcnte.
Vifconde de Siflello, vice-prejidente.
Commendador Frederico Guftavo de Oliveira Roxo, idem.
António Pollo, fecretario.
Capitão de fragata Luiz Filippe de Saldanha da Gama, idem.
Commendador António Thomás Quartim, thefotireiro.
Vifconde de Arcozello, idem.
Commendador António Jofé Ricões.
Dr. António Zeferino Cândido, encarregado da edição.
António Joaquim Xavier de Faria.
António Pinto da Silva.
António Jofé Marques de Abreu Júnior.
Alfredo Ignacio de Abreu Soares.
Bernardo Jofé de Andrade.
Dr. Carlos Auguílo de Miranda Jordão.
Eduardo Jofé de Almeida e Silva.
Ernefto Werneck Teixeira de Caftro.
Eugénio Jofé de Almeida e Silva.
Francifco Jofé Correia Quintella.
Dr. Hermogenes Pereira da Silva.
Commendador João Francifco Pirões da Cruz.
João Luiz Tavares Guerra.
Joaquim Henrique da Coll:a Reis.
Jofé de Miranda Monteiro de Barros.
Dr. Thomás Alves Júnior.
Dr. Ruy Barbofa, orador.
Leopoldo Américo Migucz, direâor da parte mtifical.
Distribuição de 50 exemplares numerados
ÚNICOS
PAPEL WHATMAN
1 Sua Mageftade Dom Pedro II, Imperador do Brazil.
2 Sua Magellade Fideliflima Dom Luiz I, Rei de Portugal.
3 Sua Alteza Conde d'Eu.
4 Sua Mageftade El-Rei Dom Fernando.
5 Marquez de Pombal.
6 Bibliotheca Publica do Rio de Janeiro.
7 Bibliotheca Publica de Lifboa.
8 Bibliotheca Publica do Porto.
Q Bibliotheca da Univerlidade de Coimbra.
10 Gabinete Portuguez de Leitura do Rio de Janeiro.
1 1 Initituto Hiftorico e Geographico da Rio de Janeiro.
12 Academia Real das Sciencias de Lifboa.
i3 Camará Municipal do Rio de Janeiro.
14 Bibliotheca Publica de Madrid.
i5 Bibliotheca Publica de Paris.
i() Bibliotheca Publica de Londres.
17 Bibliotheca Publica de Florença.
18 Bibliotheca Publica de lena.
19 Dr. Francifco Augufto Correia Barata, encarregado da collabu-
ração e edição cm I^ortiigal c no cflrangciro.
20 Dr. Ruy Barbofa.
21 Leopoldo Américo Miguez.
22 Confelheiro Pedro Luiz Pereira de Soula.
23 Commcndador João Henrique Ulrich.
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4 si»
24 Confelheiro Jofé Maria Latino Coelho.
25 Barão do Rio Bonito.
26 Vifconde de Siftello.
27 Commendador Frederico Guftavo de Oliveira Roxo.
28 António Poilo.
29 Bernardo Jofé de Andrade.
30 Commendador António Thomás Quartim.
3i Vifconde de Arcozello.
32 Dr. António Zeferino Cândido.
33 Capitão de fragata Luiz Ulippe de Saldanha da Gama.
34 Dr. Thomás Ahes Júnior.
35 Alfredo Ignacio de Abreu Soares.
36 António Joaquim Xavier de Faria.
37 Commendador António Jofé Ricóes.
38 António Jofé Marques de Abreu Júnior.
3c) António Pinto da Silva.
40 Dr. Carlos Auguíto de Miranda Jordão.
41 Eduardo Jofé de Almeida e Silva.
42 Ernefto Werneck Teixeira de Callro.
43 Eugénio Jofé de Almeida e Silva.
44 Francifco Jofé Correia Quintella.
45 Dr. Hermogenes Pereira da Silva.
4(3 Joaquim Henrique da Cofta Reis.
47 João Luiz Tavares Guerra.
48 João Francifco Fróes da Cruz.
49 Jofé de Miranda Monteiro de Barros.
50 Club de Regatas Guanabarenfe.
o MARQUEZ DE POMBAL
CAPITULO I
INTRODUCÇAO
liando um povo pelos erros dos feus mo-
narchas, pelos vicios da fua indole, e pela
influencia das circumftancias, degenerado
inteiramente da fua actividade primitiva,
da fua priflina grandeza, e da fua profpe-
ridadc nacional, chegado á ultima degra-
dação da intelligencia e dos coftumes, eftá
preftes a apagar o feu nome na lifta das nações, fó dois
caminhos fe lhe ofFerecem para frullrar o deftino, que o eftá
ameaçando. Só ha dois meios para evocar de novo á exis-
tência um povo, que raiou as extremas da fua decadência:
a revolução, que é a energia violenta da própria fociedade,
acordando do feu lethargo diuturno pela refurreição da
confciencia, ou o defpotifmo illuminado, que é a força de
um fó homem, fubftituida á dormente razão da fociedade.
Mas d'eftes dois expedientes, ambos agros e tormento-
fos, não é fácil, nem indifferente o difcernir qual poífa
utilifar-fe cm qualquer tempo ou conjuncção. A revolução
eis
4 ti»
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preluppõe necelTariamente uns clarões de lume intelledual
nas claíTes fuperiores, uns reftos de hombridade varonil nas
turbas populares. E precifo que os efpiritos de quilate mais
fubido tenham feito previamente a critica da fociedade,
e que chamando perante o feu pretório as inftituições e os
abufos, os poderes e as tradições, o paíTado e o prefente,
os interroguem e os condemnem em face da razão, do
direito, da julfiça, em nome da humanidade. Toda a revo-
lução tem de fer precedida forçofamente por uma larga
elaboração intelledual. Antes de fer acção, ha de fer efcola,
feita, philofophia. Antes de efpada, que combate, e de
camartello, que derroca, ha de fer penna, que difcute,
e livro, que evangeliza. Para que a revolução profpere e
vingue, não é forçofo, — como o pregam os fophiltas da
reacção, — que haja um povo inteiro de fabios educados nos
fegredos mais recônditos da fciencia focial, mas é precifo
que preexifta uma nação capaz de comprehender ao menos
pela paixão ou pelo inftindo a luz da revolução. E neces-
fario que haja um povo, que não tenha a razão entene-
brecida inteiramente pela mais indómita bruteza e a con-
fciencia avaíTallada pela mais torva fuperftição.
Quando eftas condições fe não realifam n'um eftado,
refta apenas que o defpotifmo, cançado de embrutecer e
opprimir, efpontaneamente fe refoh^a a opprimir e a illus-
trar. Refta apenas que o abfolutifmo em vez de eíterilifar
a gleba, que fenhorêa, fe determine a feitorizal-a com
fecundas bemfeitorias e que, julgando melhorar o feu pró-
prio fideicommiíTo, funde fem o penfar para tempos não
remotos o património popular, e cuidando encravar na terra
fundamente as raizes da fua duradoura autocracia, lance
inconfciente em volta do throno hereditário as fementes da
revolução. Trifte mas fatal expediente. Quafi ignominiofo
paradoxo, que a ventura popular haja de manar da terrível
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cornucopia, meneada pela mão agrefte e rude de um dés-
pota intratável e fomhrio ou de um torvo e inexorável
didador.
Mas é aíTim feita a humanidade. Ao povo, quando é
infantil pela efcuridade da razão ou decrépito pela degra-
dação da confciencia, não lhe é permittido dar um paíTo
fem que o leve pela mão efta ama defahrida, que fe
chama defpotifmo, ou o conduza, tirando-o por um baraço,
efte guia defalmado, que tem nome tyrannia.
E affim que a liberdade pôde por uma flagrante, mas
apparente contradicção, nafcer do deípotifmo, como a antiga
Thebas mythologica, a cidade florente da Beócia, tem no
velho mytho hellenico a lua origem nos dentes temerofos
de um dragão. O delpotilmo é então o gaftador, que prece-
dendo as hoftes da revolução, vae derrocando no caminho
as caducas inftituiçôes. Não pôde erigir folidamente o novo
edifício focial, mas cm providencial expiação de feus deli-
dos é condemnado a confumir o extremo esforço em abrir
os alicerces da revolução. Sô a liberdade é creadora. Mas
para deftruir e aíTolar bafta muitas vezes a cólera de um
defpota ou o capricho de um lenhor. Para arremeçar aos ares
a fublime eftrudura do Parthenon de Athenas ou a cúpula
formofa do diiomo de Florença é precifo que nafça um
Phidias, ou um Brunellefchi, que fão o génio, ifto é, a revo-
lução da intelligencia. Mas para aíTolar a velha Roma, a fim
de que fobre os efcombros do caduco império fe levante
uma nova civilifação, bafta a fanha brutal de um Alarico,
que é a força, ifto é, o deípotifmo da matéria.
AíTim, quando um povo eftá embrutecido fatalmente
pela duplicada fervidão a um fenhor, que lhe encadêa a
liberdade, e a um inquifidor, que lhe entorpece a con-
fciencia, fô pôde viflumbrar-fe alguma luz, fe no meio
d'aquelles dois dominadores fe levanta de improvifo um
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ejí eis
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arbitro llipremo e diz a um: «Acurva-te ante mim como
o ultimo da plebe, porque diante do meu poder lao eguaes
o magnate e o mefteiral»; e ao outro: «Apaga as tuas
fogueiras, porque eu não quero competidores á minha
poteftade temporal».
A revolução é como uma crefcente impetuofa, que fazen-
do trafbordar do alveo eítreito o rio outr'ora remanfado,
leva aos campos adjacentes ao mefmo paíTo as aguas torren-
tofas, que os aíTolam, e o propicio nateiro, que os fecunda.
O defpotifmo é como um terremoto, que vem defquiciar e
convellir a inteira conítrudtura da fociedade, e deixar difper-
fos no folo os troços e as ruinas da velha e carcomida edifi-
cação, para que dos feus deítroços fe poffa mais tarde erigir
e fabricar a nova e mais folida eftrudura. O defpotifmo
tem o pulfo forte e mufculofo para menear em duros golpes
o alvião, mas a revolução, fe n'uma das mãos não menos
vigorofas empunha o camartello deflruidor, traz na outra,
regidos pela razão e pelo direito, a efquadria e o compaífo,
fymbolos da proporção e da harmonia.
Quando porém não é ainda chegado para um povo o
dia claro da fua emancipação e liberdade, é precifo acolher
e applaudir os viflumbres de reformação e melhoria, que
tranfluzem nas trevas populares pela enérgica vontade de
um defpotifmo intelligente. É então o primeiro alvorecer da
revolução, que defce das alturas governativas e prepara em
certa maneira a revolução, que ha de fubir das profundezas
fociaes. E ainda a luz dúbia e fraca da antemanhan, que
não alcança pela fua débil intenfidade afaftar as fombras,
que fe adenfam nas quebradas e nos valles.
E a paffageira tranfacção entre o paíTado, que já fe en-
vergonha de exiftir, e o futuro, que ainda não oufa moflrar-
fe claramente. É o defpotifmo, que fe corre e fe arrepende
das fuás próprias malfeitorias, e profcrevendo a confciencia
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e a liberdade, como um tremendo facrilegio, mas procla-
mando a Iciencia e o trabalho como as condições imprete-
riveis da nova civilifação, ellá lem o cuidar forjando as ar-
mas á nafcente democracia.
Eis ahi o que íliccedcu em Portugal depois do reinado
magnifico, mas defaftrolb d'eí1:e Afurbanipal do Occidente,
ci'eíl:e pallido reflexo de Luiz XIV, d'efte monarcha voluptua-
rio e negligente, que le chamou D. João V. A nação pros-
trada no extremo abatimento, a intclligencia degenerada
quall até ao completo idiotifmo, o trabalho efquecido e des-
honrado, as claíTes fuperiores ociofas e imitadoras das
lumptuofas lafcivias do leu rei, o clero e os magnates
lugando quafi toda a fubítancia da nação, o povo oppreíTo,
milerrimo, envilecido; uma nação, que vive, como o leu
monarcha, entre o auto de fé do Santo Officio, o locutório de
Odivellas, o cantochão de Mafra, os touros do Terreiro do
Paço, e os equívocos e trocadilhos da litteratura leifcentifta.
Um povo, em cujo regaço as minas do Brazil eítão lançando
perennemente, como fe fora a mais tremenda maldicção, o
oiro e as pedrarias, — a douradora e a ironia da ric[ueza,
o ornato enganador e apparente da miferia derradeira.
Tal é a herança, que fe depara no efpolio politico do
monarcha diíTipador. Tão baixo le afundira Portugal que ao
lubir ao throno D. Jole, era improvável que podeíTe levan-
tar-fe nunca mais. Era quafi uma nação extranha á civilifa-
ção e ás idéas do leu tempo. Era uma organifação focial
incompatível com o minimo progreífo. O próprio abfolu-
tifmo, que julgava concentrar na fua férrea dominação todos
os poderes e todas as energias do paiz, vivia avalfallado a
uma potencia fuperior, contra a qual já parecia impraíli-
cavel rcfiflir. O defpotifmo temporal fó podia governar na
efcaífa nefga, que depois de crefcentes invafóes lhe deixara
a theocratica fupremacia c poteftade efpiritual. Apelar de
eh ti»
4 et)
-• .J>-l.
Ibmbrio e dilcricionario, como era o governo de um monar-
cha portuguez n'aquelle tempo, todos os terrores fe concen-
travam na tremenda jurifdicção do Santo Officio, cuja vifta
efcrutadora poderia eftender-le até o folio, reger e dominar
a confciencia do imperante e forçal-o a fubordinar o próprio
fceptro á efpada flammeante dos árbitros da fé.
O rei D. Jofé era um homem que nafcêra para conti-
nuar fem a magnificência e a galanteria do leu predeceflbr
o defmando e a negligencia, em que fob o leu reinado
tinham corrido os negócios e os intereffes da nação. E
laftima que os foberanos, que têem de fubftituir-fe á von-
tade e á intelligencia de todo um povo, não tenham as
mais das vezes nem intelligencia, nem vontade. E ainda é
mais laftimolb, que a fraqueza do carader e as trevas do
entendimento appareçam aggravadas pela efiulta convicção
da fua majeftade hereditária, e da lua miíTão providencial,
e pelo fanatilmo da confciencia timorata, rendida fuhmiífa-
mente ás miras profanas e terrenaes de um clero egoifta e
adverfo a toda a falutar innovação. Tal era infelizmente
D. Jofé. As fuás faculdades eram porventura ainda inferiores
ás do leu predeceífor, e a idéa da lua quali divina fuperio-
ridade fobreexcedia á monarchica Ibberba de leu pae. Parecia
pois condemnado a cifrar em poucos itens a lua norma de go-
verno. Aíliftir, fem mefmo a perceber, á ultima decadência e
ruina da nação; defpender em feftas e defportos de uma corte
indolente e ociofa os milhões de oiro, que lhe traziam annual-
mente as fuás frotas, aninhar em torno de fi, gratifican-
do-a de novas largições e munificencias, a turba dos fidalgos
prediledos; obedecer aos confeífores, que a ciofa companhia
de Jefus pozera nos feus paços como os poftos avançados da
theocracia univerfal; magnificar com a fua prefença no meio
de luzidos cortezãos a finistra folemnidade dos autos da fé;
manter o paiz inerme e vaífallo dos extranhos; perpetuar
-^i- -íh-^
c|3
ou accrefcer a dilapidação e a ruina da fazenda publica,
fem que o povo melhoraire na lua trifte condição de tribu-
tário; continuar a ignorância univerfal, deixando repallar-le
a frouxa intelligencia da nação na falia e decrépita Iciencia
e litteratura, que tocara o leu ápice funefto durante o reinado
calamitolb do leu anteceíTor; tal feria porventura o que a
hiftoria teria a regiftar do novo rei e da grei defditola dos
Icus povos, le a própria fraqueza do leu animo não tivera
facilitado que um homem de eminentes faculdades, por
incfperado lance da fortuna, vieíTe occupar no folio régio o
logar deftinado á acção governativa, deixando á fombra do
monarcha o fútil apparato da efteril Ibberania.
EíTe homem foi Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello.
EíTe homem era a revolução inconfciente, que vinha tomar
das mãos ao débil potentado o Iceptro, que elle mal podia
lufter e menear. Era o efpirito do xviii leculo, que irrom-
pia finalmente no Portugal da inquifição, principiando as
luas oufadas incurfóes nos paços dos monarchas. Era, fem
o fufpeitar e fem o querer, o precurfor das reformas demo-
cráticas. Era o terrível adverfario da arrogância ariftocratica,
era principalmente o incançavel antagonifta da poteftade
clerical ; e, por um confedario natural, o previdente fundador
da clafle média. Ora n'um paiz, onde como em Portugal, o
clero e a nobreza reprefentavam as duas grandes forças
Ibciaes, e repartiam entre fi a maior e mais fecunda parte
do fólo nacional, e oneravam o trabalho com as gabellas e
tributos mais pefados, e ablbrviam alentado quinhão do
fifco régio pelos officios mais pingues e eminentes, que o
favor e o privilegio lhes davam em monopólio, quanto fe
abatia e efcatimava no poder e na opulência d'eítas duas
poderofas hierarchias, tanto revertia forçofamente em bene-
ficio popular. O governo da nação refidia nas mãos do
clero, principalmente dos jefuitas, que indiredamente o
II
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exerciam. No feio de um eftado em profunda delbrgani-
fação, eram elles o único organiímo regular, rohufto, dotado
de força e de harmonia. Eram como uma republica folida-
mente conftituida entre um governo de inexcedivel laxidão
fem os brios do feu dever, e um povo inerte e ociofo fem a
confciencia do feu direito. Ora nos eftados, como nos fyílemas
da mechanica, a força de maior intenfidade em concorrência
com outras quafi nuUas, determina proximamente o movi-
mento na fua própria direcção. As fociedades fão fatalmente
conítituidas por tal modo, que, onde os poderes ofl&ciaes
exercem frouxamente a fua acção, forçofamente alguma
grande influencia extranha e anormal tomarií a feu cargo
o dirigir a vida focial. Os jefuitas tinham a feu favor a
harmónica união dos feus poderofos elementos, a difciplina
fevera e imprefcriptivel, a cega obediência aos fuperiores da
fua ordem. Eram dentro da nação como que uma potencia
forafteira, occupando militarmente com as luas hoftes inven-
cíveis o que ainda tinha nome de território portuguez. No
paço ora dominavam a timida confciencia dos monarchas
pelo influxo irrellítivel da fuprema direcção religiofa, ora
conquiftavam a valia do foberano pelas artes do cortezão
c do politico. Nos palácios da nobreza grangeavam adeptos
fervorofos e preftadios, e ligavam aos interelfes da fua cor-
poração as calas mais illuftres, recrutando no leu grémio os
feus filhos mais piedofos. Para exercitar o feu poder moral,
mas decifivo, nas claífes populares tinham como fuás cida-
dellas principaes e inexpugnáveis o confeíTionario e a evan-
gélica tribuna. No tribunal da penitencia influíam indivi-
dualmente nos turs'0s entendimentos e nas timidas vontades
populares. No púlpito, com a eloquência artificiofa, em que
eram confummados, governavam em mafla as turbas fana-
tifadas. Aífim tinham nos feus confefllonarios e nos feus
exercícios efpírituaes como que outros tantos ínfignes atira-
^-6- ■ .-íÇ>-^
dores, que preparaíTem a acção pelo combate fingular das
confciencias. No púlpito eram as cargas decifivas e como
que a peleja na ordem unida contra as hoítes cerradas dos
aíTomhrados auditórios. Os moraliftas da companhia não
reclamavam dos léus devotados penitentes uma natureza
fobrehumana e exempta de carnaes imperfeições. Mais feitos
eram á vida adiva e practica do que á alcése myftica e á
vida contemplativa. O caminho, que abriam para o céu era
pois mais lhano e fácil de trilhar do que a via efpinhofa
traçada defde a terra á bemaventurança pelos afcetas mace-
rados e libertos de toda a carnalidade, pelos Thaulers e Fr.
Luiz de la Puente, e pela efquadra numerofa de myfticos
ferventes, que fioreciam nas demais religiões. O que reftava
ainda que influir e conquiftar fora do púlpito e confeíTionario,
tinha o feu campo de batalha de certiíTimo triumpho nas
efcolas. AíTim, a poderoía companhia, a verdadeira força
viva da nação, governava lem refiftencia e lem partilha
a acção, a confciencia e a razão defde o monarcha e os
feus próceres até os mais humildes e obfcuros pegureiros.
A companhia de Jefus era, por aíTim dizer, o exercito
adivo, a primeira linha d'efta cruzada temerofa, que defde
a reforma intentava contradidar e fuspender a torrente do
progreífo c da innovação. Nas demais ordens e congregações
religiofas tinha como que as fuás milícias e ordenanças, que
ainda mefmo quando emulas ou hoftis á companhia, em
grande parte confpiravam no mefmo intento de perpetuar
a indolência, o fanatifmo, a fervidão e a ignorância popular.
Defde os tempos ominofos de D. João III e D. Sebaftião
a decadência de Portugal havia caminhado com uma efpan-
tola acceleração. Pouco reftava já d'efta raça heróica e quafi
fobrehumana, que fizera das navegações e conquiftas portu-
guezas na Africa, no Oriente e Novo Mundo uma epopea
quafi mythica pelo incrível e alfombrofo das fuás maravilho-
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4» 4»
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fas galhardias. A conquifta caftelhana viera laltear a nação
já quafi defamparada de feus brios. Fora porém como um
enérgico eftimulante e um poderofo revulfivo na enfermiça
compleição do povo portuguez, degenerado pela nefafta
influição de um fenil ahlblutifmo e de uma fufpicaz inqui-
fição. Quando Portugal defpertou para a lua independência
parecia que era a nação, que refurgia e egualava ou excedia
nos feus feitos bellicofos e na indómita hombridade as faça-
nhas e as glorias dos feus antepaífados. As próprias claífes
privilegiadas e poderofas, que em i58o tinham vendido
Portugal ao filho de Carlos V, expiando agora o delido
dos feus maiores, por civifmo, ou por defpeito, eram as
primeiras a haftear a bandeira nacional como emblema
de infurreição contra o dominio de Caftella. A pátria recu-
perou a fua tão laftimada independência, e com ella parecia
renafcerem os mais formofos dias da fua gloria e poderio.
As guerras fuftentadas em prol da liberdade portugueza
retemperaram por alguns annos as flaccidas e anemicas
fibras da nação. A dynaftia levantada nos efcudos popu-
lares a preço de tantas vidas e tão laftimofa devaftação,
bem depreífa confumiu em fcenas efcandalofas e em ludas
egoiftas entre irmãos o efcaffo vigor, que logo defde o co-
meço diftinguíra a cafa de Bragança. Ao abfolutifmo empre-
hendedor e varonil de D. João II e D. Manuel, ás virtudes
guerreiras e civis de D. João I e Aífonfo V, fuccederam os
vicios fem grandeza e o abfolutifmo abforvente, mas efteril
depois da reítauração. A medida que os monarchas vão
concentrando na fua /ciência certa e poder real e abfoluto
toda a fuprema direcção da fociedade, ao paflb que vão
fupprimindo a uma e uma todas as antigas liberdades e fran-
quias populares, quando as cortes fão apenas uma impor-
tuna tradição para a ciofa realeza, quando o povo geme
oppreífo em mais dura e eftreita fervidão, é juftamente
«1»
n'eíres tempos que o ahlblutilmo patenteia os fignaes mais
evidentes da fua infecundidade.
Os multiplices phenomenos, de que fe entretece e le
compõe a vida normal de todo um povo, fáo o produdo
neceflario das energias individuaes e colledivas liarmonica-
mente confpirando para o mefmo fim commum, — a mora-
lidade, a riqueza, a illuftração, a grandeza nacional. A liber-
dade no penfamento e nas acções, a efpontanea iniciativa
nos indivíduos, o trabalho defapreíTado de todas as pêas
officiaes, a livre cooperação de todas as forças phyficas e
mentaes da fociedade, a luz amplamente diíFundida pela
inftrucção até as mais recônditas funduras fociaes, a religião
da lei fubftituida ao fanatifmo do terror, o governo como
funcção commum e habitual dos cidadãos e não como arbi-
traria e imperativa prelcripção impofta por um fó homem
a milhões dos feus envilecidos naturaes, os encargos e os
facrificios repartidos irmanmente por todos os membros da
cidade, a inércia e a ociofidade, que nas monarchias é pri-
mor e ponto de honra das clalTes ariftocraticas, profcripta
e defhonrada como opprohriofo facrilegio, a terra, que é
património commum da humanidade, liberta, allodial e
emancipada dos vínculos feudaes, eis ahi os elementos e as
condições, d'onde refulta a crefcente melhoria e a civilifação
real e progreíTiva n'um povo, que é fomente fubdito da lei.
Eis ahi o que faz dos Eftados Unidos a primeira nação do
mundo entre as modernas e as antigas povoações. Entre
aquelle typo ideal, em máxima parte realilado na florente
União Americana, e a extrema degradação dos povos mife-
raveis e fervís, taes como a Turquia noíTa contemporânea,
ha graus intermédios de cultura, exemplificados nas moder-
nas monarchias europôas.
O Portugal de D. João V occupa n'efta elcala um infimo
logar. O ablblutifmo d'efte monarcha tem chegado aos extre-
^hi^ •H^
ti» tM
mos limites do poder. É porém um ablblutifmo inerte, indif-
ferente de todo o ponto á evolução da vida Ibcial. Durante
a maior porção do feu reinado nem ao menos tem a guerra,
que para as nações enervadas e ociofas fimula muitas vezes
a adividade e levanta por algum tempo os efpiritos e a con-
fciencia nacional. O feu manfo defpotilmo fruftra ou ani-
quila totalmente os reftos de vigor e hombridade no povo
portuguez. Uma nação, que não tem miffão alguma que
exercer na ordem focial, é como um eftancado mechanilmo,
que jaz defamparado e corroido de ferrugem no rincão de
uma ofíicina. Torna-fe bota e rude a intelligencia, deperece
e atrophia-le a vontade. O trabalho desfallece e a pobreza
contrafta nas multidões com o faufto de uma corte magnifi-
cente. O defpota intolerante não confente que uma lo das
energias fociaes participe na obra commum de fe reger e ci-
vilifar. O abfolutifmo é ao mefmo paffo o cérebro, o efto-
mago e o braço da nação; cérebro, que não penfa, eftoma-
go, que devora, braço, que não fabe nem pôde trabalhar.
É como um artífice, que no meio de uma vafla manufa-
(ítura, onde os obreiros numerofos e as machinas em movi-
mento a povoavam de harmónico trabalho, tiveíTe expulfado
os companheiros e quebrado os mechanifmos e engrenagens,
e fe deífe a lidar com a mais fomenos das ferramentas, com
a eftolida jadancia de que elle fó, fem alheia cooperação,
podeíTe trabalhar e produzir.
O poder abfoluto da cafa de Bragança tinha o fceptro
de ferro para opprimir, de canna para governar. A /ciência
certa, de que bravateava no preambulo das fuás leis e feus
decretos, era apenas a fciencia do mal e o talifman da efte-
rilidade. No reinado freiratico e diífoluto de João V, quando
o rei devoto e galanteador mefçlava em profana conlbnan-
cia o piedolb cantochão na bafilica de Mafra e os conceitos
amatorios na cella ou no locutório de Odivellas, o ablblu-
4
cia
tifmo na fua forma mais nefaíta, o abfolutifmo de cogula e
pluvial, de harém e devaíTidão, tomara conta do paiz
devaftado e abatido pela guerra. Tudo na primeira metade
do leculo xvm refledia fielmente em Portugal a Índole e o
temperamento do feu lafcivo dominador. Era a frivolidade
ufurpando os foros da fciencia, a falfa magnificência limu-
lando a civilifação: a cftrudura fria e coloíTal do novo ce-
nóbio dos arrabidos e a foturna e eíteril academia da his-
toria portugueza. Não era na verdade pefada e oppreffiva a
tyrannia. Era antes o infulfo pedantifmo, que trajando o
manto régio amoldava a nação ás fi^ias praáficas. Era o rei-
nado dos conceitos feifcentiftas, dos equívocos e trocadi-
lhos, herdeiros degenerados da Phenix renafcida. Embora
campealTe pela Europa culta d'aquelles tempos a fciencia
moderna, racional, fecunda, creadora, experimental, não
havia entreaberta uma lo frincha, por onde podeíTe coar
apenas um feixe de efcaíTa luz em Portugal. Newton era
havido quando muito como um utopilfa da natureza ou
como um facrilego e revolucionário innovador. Defcartes
era quafi um heterodoxo vifionario. Bacon, cujas obras um
judeu eminente portuguez, expatriado e foragido, aconfe-
Ihára a D. João V fizelTe traduzir e divulgar, como fecunda
preparação á nova cultura intelledual, era um herético an-
glicano, ao mefmo paíTo inimigo de Ariftoteles e adverfario
da tradição. Nos eftados regidos pelo majeítofo monarcha
portuguez, os fyftemas aftronomicos de Copérnico e de Ke-
pler eram apenas conhecidos como uma engenhofa curio-
fidade fcientifica. A terra não podia mover-fe nos efpaços
nem defcrever rodando a fiaa ellipfe, porque a fanta e infal-
livel inquifição lhe negava em nome da fé o paíTaporte.
Succediam-fe na Europa as invenções e os defcobrimentos
fcientificos. Eram os tempos de Clairaut e d'Alembert, de
Buífon e Montefquieu, de Boerhaave e de Morgagni, mas
-i-á>- -i-l-
eis CM
4fU
__ -— <j>-^
'4
as fciencias mathematicas eram quafi ignoradas cm Portu-
gal, ou os íeus imperfeitos rudimentos eram apenas profeíia-
dos nos collegios da companhia. Os livros, que fe diziam
confagrados á fciencia, vinham cheios de abufões e ignorân-
cias, tão groffeiras e ridículas, como no âmago da mais
efcura edade media. Nas cadeiras da univerfidade não podia
penetrar um fó luzeiro da fciencia, que illuminava já em
pleno dia a Europa culta. Cifrava-le todo o faber e illus-
tração em entender ou enredar ainda mais com cerebrinas
commentações os textos de Ariítoteles, de Galeno e de
Avicenna, ineftres prediledos e oráculos infalliveis, fora de
cujos âmbitos não havia falvação para a vida intelledual.
A própria theologia, o direito canónico e civil, que parece
alcançariam melhor culto e luzimento, jaziam n'aquelle es-
tado de trifte abatimento, em que os defcreve o Compendio
hijlorico da imipeijidade de Coimbra, e já antes o manifeftára
a critica fevera, mas juftiffima de Verney nas famofas Cartas
de um barbadinho. A litteratura era mefcla fingular do mais
extravagante conceptifmo e da frivolidade mais fupina. O
talento pompeava e comprazia-íe nas metaphoras abftrulas
e gongoricas, nos jogos artificiofos de palavras, nas allego-
rias e nos fimiles do golfo mais depravado. O mefmo eftylo,
a mefma falfa ornamentação de conceitos e de equívocos
reluzia com egual defpejo nas orações dos púlpitos mais
graves e nas trovas e romances dos profanos efcriptores.
As puerilidades litterarias engroílam e avolumam efpantoía-
mente os efcriptos d'aquelle tempo. Os próprios titulos das
obras contemporâneas logo defde a portada denunciam em
retumbantes allegorias a maneira dominante de penfar e de
efcrever'. Se exceptuarmos alguns raros e fiílidos eícripto-
' Um elogio fúnebre de D. João V tem o titulo de Exéquias do E:;equias
Portugue^, um fermão do jefuita Lourenço Criiveiro, intitula-fe Merenda eiicha-
1 F
CM
4sU
•^(^
res, occupados principalmente em aíTumptos de erudição, a
intelligencia nacional durante o reinado de D. João V enfei-
xa na lua copiola, mas efteril bibliographia um acervo de
fermões, onde a profanidade e a extravagância eftão confo-
ciadas aos mais altos aíTumptos religiofos ; as hiftorias ej as
lendas hagiographicas; as chronicas de varias corporações
monafticas; as poefias férias ou jocofas, heróicas ou amoro-
fas, moldadas pelas normas da Arte de conceitos e do Pojti-
Ihão de Apollo. Os panegyricos dedicados em prola ou
verlb a perlbnagens eminentes avultam na hiíloria litteraria
d'aquelle tempo. E é digno de reparo que as epochas e as
nações, onde a litteratura fe delicia principalmente na adu-
lação, ou nos encómios hyperbolicos, fão tempos e gerações
de profunda baixeza e decadência da razão e do esforço
varonil. Quando a litteratura multiplica nas fuás obras os
grandes homens e os heroes, é então que o paiz entre o
mato rafteiro e fáfaro da commum intelligencia não deixa
perceber como arvore ifolada ninguém, que fe alevante
acima da craveira univerfal. E de feito, na epocha de
D. João V não é dado contemplar um vulto de valor. Pare-
ce que o manfo defpotifmo fe compraz em paífar fatalmente
a lua ralbura, como fe fora a vara de Tarquinio, pelas mais
altas cumieiras, para que tudo fe humilhe e fe rebaixe e fo-
mente na geral defolação appareça eminente e exalçada a
figura fmirtra do imperante. No meio d'aquella immenfa es-
riftica e é dividido em féis pratos. Um dos médicos mais notáveis do leculo xviii,
Curvo Semmedo, dá a uma das luas obras com rlietorico apparato o titulo de
Atalaya da vida contra as hojlilidades da morte, e João Lopes Corrêa, para-
phraleando a mcfma allcgoria, chama a um feu grave livro medico, Cajlello forte
contra todas as enfermidades. Um fermão panegyrico do jeíuita Collares, intitu-
la-fe O nieflre de folfa da capella do céu; um fermão do mandato tem por
titulo Geometria do amor; uma obra devota do celebrado medico Braz Luiz
de Abreu intitula-fe 5o/ nafcido no occidente epojlo ao nafcer do foi Santo António
portuí^uc^.
-2-<Í- -H^
ib
curidão intellectual refaltam como intenfos, mas fuspeitos
luminares, Verney, o revolucionário do pcnlamento, com o
íeu Verdadeiro methodo de ejludar, Jacob de Caftro Sarmento,
nas fciencias medicas e naturaes. Mas eftes dois efpiritos
illuminados e nutridos nas modernas infpirações, vivem fora
da pátria, exilados, quafi profcriptos, porque ahi fó têem
logar os que enfeudam o entendimento á ignorância e á
tradição.
Toda a vida de uma nação é um effeito neceíTario da
cultura intelleftual, aíTim como toda a vida no individuo
tem o cérebro por centro e diredor. No eftado laílimofo
a que baixara a civilifação, como fciencia, não era para
aíTombrar que lhe refpondeflem cabalmente na mefma pro-
porção todas as formas pradicas da energia focial. E con-
dição infallivel da humanidade que o efpirito de um ou de
outro modo ha de manter e alimentar forçofamente a fua
adiva elaboração. No campo, onde a charrua repoufa inerte
e defmantelada, e as fementes preftadias não podem ger-
minar, hão de brotar as hervaíinhas bravas e ruins. Onde
a fciencia deixa um vácuo nos efpiritos, vem precipitar-fe
e enchêl-o o fanatifmo. Onde a intelligencia fica de poufio,
infinua-fe a puUular a fuperítição. Por ilfo o tempo de
D. João V é para as influencias clericaes a culminação do
feu poder. Ora um povo onde a aufencia da inftrucção é
aggravada pela exageração religiofa, é um povo inerte e
defcuidofo do futuro. Por iífo na primeira metade do xviii
feculo é em Portugal a agricultura pouco diíferente da que
fabem exercer os povos primitivos e infcientes. A induftria
fabril, já de fi débil e improfícua, ainda mais enfraquecida
fe moflrou com o golpe derradeiro pelo tratado de Methuen,
de lyoS. Não era o commercio muito mais propiciamente
aquinhoado que as demais induftrias fuás irmans. Uma
legiflação fifcal abfurda e arbitraria, fundada no principio
4 cia
irracional da prohibição, como inftrumento protector da
riqueza publica, difficultava as relações mercantis interna-
cionaes, excepto no que era effipulado nos tratados e con-
venções com a Inglaterra. Tudo quanto nos paizes regidos
por uma adminiftração centralifada, contribue para a maior
profperidade e florefcencia da nação, e fatisfaz ás neceíTi-
dades económicas, jazia inteiramente defcurado. Os rios de
oiro, que fluiam annualmente das minas do Brazil, não iam
defpender-le em eftradas, em pontes, em canaes, no melho-
ramento dos rios e dos portos. Coavam-íe quali todos para
as obras da magnifica vaidade ou oftentofa devoção. Erigia-
le n'um ermo a bafilica de Mafra e efcondia-fe no deívão
de uma capella, a preço de quantias inefi:imaveis, uma pre-
ciofa maravilha de mofaico. E que a jactanciofa devoção
e a vaidade lumptuofa conftituiam a Índole e o caracter do
monarcha. Apparecia a cada paíTo o leu reflexo nas obras,
com que foi aíTignalando o leu reinado. Quiz ter na lua
corte um fimulacro da Roma pontificia, e fundou a culfo
de cançadas negociações e difpendios quantiofos a opulenta
patriarchai. A religião de D. João V, mais externa e efpe-
ctaculoía do que meritória pela humildade e pela uncção,
precifava de um efplendido fcenario. A pueril e ephemera
divifão da capital em duas Lifboas, uma oriental e outra
Occidental, cada uma com o leu prelado privativo, era
como que a miniatura das duas celebradas metrópoles do
mundo antigo, de Roma e de Byzancio, incluidas na mefina
eftreita cerca e território.
Tudo o que não podia lifonjear o pendor de D. João V
para as pompofas magnificências, foi por elle defprezado
ou efquecido. O exercito depois da paz de Utrecht caíra em
tal extremo de miferia e nullidade, ^que apenas alguém lus-
peitaria n'aquelle tempo, que fora Portugal em eras ainda
próximas uma nação briola de foldados. A adminiftração,
•i-A- .-A^
i8
aggravados os abufos e as vexações pela perpetua negli-
gencia do Ibberano, deixava os mais juftos intereíTes nacio-
naes á mercê da corrupção e do favor. De toda efta pertinaz
efterilidade governativa fó reftaram para defcontar em certa
maneira nos erros do ibberano, a conftrucção do famofo
aqueducto das aguas livres, a creação das três fecretarias de
eítado, e a paíTageira hombridade e refolução, com que um
rei eíTencialmente fubmiíTo e devotado ás influencias theo-
craticas, n'um lampejo de arrogante foberania, foube ao
menos uma vez romper com o Vaticano. E n'efte rafgo de
autocrática oufadia não fe revela a brilhante explofão da
oflFendida majeftade nacional. D'aquellas duas feições proe-
minentes, que diftinguem o perfil moral do grande rei, — a
fuperfticiofa adoração da fua própria realeza, e a fanática
fujeição ao jugo da clerezia, — quando uma vez chegadas a
conflicto, a regia vaidade fobrepuja a beata devoção. Para
dominar a D. João V é neceíTario que a theocracia, ao
lançar-lhe á confciencia as ferropêas, ajoelhe diante d'elle, e
emquanto o reduz a um inftrumento das fuás ambiciofas
pretenções, obferve efcrupulofamente os ritos e as formulas
da liturgia realenga; é precifo que, á femelhança das viéfi-
mas antigas nos facrificios da culta gentilidade, lhe cinja de
coroas e de flores a fronte abatida e condemnada; é forçofo
que o rei atado á carroça triumphal da omnipotência theo-
cratica, marche, como os monarchas do Oriente nos trium-
phos romanos, moftrando na dignidade e compoíhira, que
efle captivo que ahi vae, é a fombra de um foberano.
Recapituladas como ficam fummariamente as enfermi-
dades laftimofas, de que padecia Portugal, exulceradas e en-
cruecidas pelo governo defaítrofo de D. JoãoV, é fácil adivi-
nhar quaes haviam de fer, para um eftadifta illuminado,
refoluto, patriótico, oufadamente revolucionário, mas tendo
por theatro das fuás emprezas a pura monarchia abfoluta,
^-<í>- -í^
eis e|»
4 COT
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'9
OS mais graves problemas a refolver. A nação e o governo vi-
viam acorrentados á theocracia omnipotente. A primeira nc-
ceflidade era pois forçar as potencias clericaes, e principal-
mente os jefuitas, que eram a fua mais poderofa encarnação,
a perder a fua influencia temporal e a contrahir ao íantuario
e ás funcções meramente efpirituaes a deflocada e perigo-
fa a6f ividade, com que perennemente perturbavam o governo
e a nação.
O povo permanecia nas fombras mais profundas, onde
a fciencia nem a furto reluzia, e onde a intelligencia rara-
mente encontrava algum repaífo, que não foíTe uma efleril e
depravada litteratura. Era pois milfer fundar em novos ali-
cerces a educação intelleflual, e diífundir não fomente pelo
enfino fuperior as fciencias contemporâneas e as lettras pres-
tadias, creando as claíTes mais illuífradas do paiz, fenão tam-
bém fazer de um povo de fervos ignorantes e fequeflrados á
cultura do entendimento uma raça de homens civilifados. A
bruteza e infciencia popular, e a indolência creada e fomen-
tada no regaço da torva fuperítição pelo clero ambicioíb, ha-
viam ao mefmo paílb enervado a razão para o faber e enfra-
quecido o braço para o tráfego e lavor da vida focial. Urgia
pois dilpertarpara o trabalho as forças adormecidas da nação,
aguilhoando o intereíTe próprio, eífimulando a producção, fa-
zendo refurgir as induftrias já d'antes exercitadas, ou acli-
matar as que podeíTem filhar e radicar-fe no fólo nacional.
Perdera Portugal perante as nações cultas a veneração,
em que d'antes era tido no concento e equilíbrio das poten-
cias europêas, fendo já decaído e rebaixado a tal extremo,
que andava como em provérbio o não fer mais que um
feudo ou colónia da Gran-Bretanha ou uma província re-
bellada, que vivia independente pelo favor e tolerância de
CaflcUa. Cumpria de novo levantar o brio e fidalguia por-
tugueza, e moftrar aos grandes potentados que Portugal
podia ter na dignidade e firmeza inquebrantável dos feus go-
vernos e na hombridade e no valor dos léus naturaes os ti-
tules mais indifputaveis á lua independência e foberania.
Era precifo dizer á Inglaterra, quando quizeíTe di6tar-nos a
fua lei, e á Hefpanha, quando pretendeffe impor-nos a lua
vontade, que Portugal, apefar de efcaíTo em território cá na
Europa, não era terra, onde a arrogante diplomacia ou as
cohortes infolcntes pretendeíTem humilhar-nos, fem levarem
em retorno o defengano. Achava-fe finalmente Portugal
depois de tantas glorias bellicofas inerme e indefefo, tendo
apenas por exercito um inútil fimulacro. Era pois urgente
reformar de raiz as inítituições militares de Portugal, fundar
em principios concordantes com as pradicas d'aquelle tempo
nas guerreiras nações da Europa civililada, uma nova e
proficiente força publica. Eis ahi os grandiíTimos problemas,
que o Sebaftião de Carvalho a 11 mefmo le propoz e em
cuja refolução empenhou os dotes do feu efpirito e a ener-
gia do feu aceirado temperamento. Como officina e mecha-
niímo efficaz de toda a boa e fruftuofa reformação con-
vinha reformar as leis civis, diradicar e eflirpar os velhos
abufos adminiftrativos e fifcaes, e fazer da adminiftração
não o inftrumento das oppreíTóes e dos vexames tributários,
mas o poderofo auxiliar da nova civililação.
Eítes foram os empenhos capitães do famofo miniftro de
D. Jofé, ou antes do miniftro de fi melmo, authenticando os
mandatos do feu génio com a rubrica real. Se fora dado a
um fó homem eflfeituar pelo talifman da lua vontade uma
completa revolução, têl-a-hia certamente realifado. Abriu
os caminhos ao penfamento e á inftrucção. Promoveu e glo-
rificou o trabalho nacional. Conftituiu e difciplinou a força
defenfiva do paiz. Ora um povo, que fabe penfar, trabalhar
e combater — as três funcções caraíterifticas da humani-
dade,— é um povo que, digno e merecedor da fua indepen-
^hO- — -<í^
4» 4*
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dencia, pôde viver e progredir, fatisfcito no leu lar e ref-
peitado dos extranhos. Um povo em femclhantes condiajes,
bem depreíTa conquiftará a liberdade. Empenhe-fe o abfo-
lutilmo e a realeza cm defbravar-lhe o campo, mondando-
Ihe o torrão de todas as plantas eítereis e damninhas, — do
poder e influencia deletéria das claíTes ariftocraticas, e da
tyrannia das velhas tradições, — e bem cedo na gleba rege-
nerada brotará frucluola a liberdade.
É n'ell:e figniíicado que o miniftro omnipotente foi o pri-
meiro e grande revolucionário em Portugal. Penfando confir-
mar e robuftecer o throno do feu rei, amontoando-lhe em
redor os efcombros e ruinas da velha fociedade, efteve real-
mente enfraquecendo a regia poteftade e apparelhando o
triumpho no porvir á pura democracia. É fegundo eíte con-
ceito que o Pombal, apelar das apparentes contradicçõcs na
lua idéa, entra no catalogo, onde fe infcrevem os grandes
fautores da civililação, d'aquelles, que não fouberam ou
não poderam traçar á revolução o feu caminho fem o
affignalar lugubremente com um rafto de langue e de
terror, nem decretar as fuás fecundas innovaçõcs fem ter
por finiftro collaborador a hacha do carnifice; na mefma
pagina, onde eftá D. João II, Richelieu, Oliver Cromwell,
e maior que todos elles o grande legiílador da era nova,
a terrível, mas luminofa Convenção.
CAPITULO II
os PRIMEIROS ANNOS DE POMBAL
O marquez de Pombal é, em grande parte, em Portugal
e dentro da própria monarchia abfoluta, a idéa da revo-
lução, e o gladio do terror.
Para a lignificação moral das grandes reformas intenta-
das pelo miniftro de D. Jole, feria quafi indiíFerente que o
deílino lhe tiveíTe pofto o berço nas mais altas regiões arifto-
craticas ou nas mais humildes profundezas fociaes. Parece
porém que a fortuna o fez nafcer a um nivel médio entre o
foberbo faítigio da nobreza mais illuftre e a modeíta condição
da gente popular, quafi a egual diftancia entre os Aveiros ou
os Tavoras e os plebeus e rudes promotores da infurreição
contra a nova companhia do Alto Douro. A fua prolapia e
geração nem foi tão efclarecida, que affombraíTe, nem tão
baixa, que perante os preconceitos nobiliários do feu tempo
lhe cerraíTe para fempre as portas do poder. Como quem
havia de fer o primeiro inftituidor do terceiro eítado ou do
que hoje appellidàmos claíTe média ou burguezia, nafceu de
uma d'eflas familias de efquecida nobreza provinciana, que
fem hiítorico luftre ou poderio, mais fe acercam á gente do
commum, defdenhadas como de linhagem quafi obfcura
pelos grandes fidalgos e fenhores.
Foi^o pae do grande reformador Manuel de Carvalho
e Ataíde, que depois de ter fervido nas armadas, paífou
ao exercito de terra no pofto de capitão de cavallos. Do leu
cafamento com D. Thereza Luiza de Mendonça, filha de
João de Almada e Mello, alcaide mór de Palmella, nafce-
ram alem de outros filhos, Sebaftião de Carvalho, Paulo
de Carvalho, c|ue depois foi levantado ás maiores dignidades
feculares e ecclefiafticas pelo favor e beneficio do irmão
omnipotente, e Francifco Xavier de Mendonça, que Ibb os
mefmos aufpicios veiu a fer fecretario de eflado da marinha
e dominios uhramarinos.
O primeiro d'entre os feus antepaífados, que apparece
exercitando officios importantes, é o terceiro avô, Sebaftião
de Carvalho. Depois de ter fervido como defcmbargador na
relação do Porto e na cafa da fupplicação, foi deputado da
eis
-. — •-<í>-^
mela da confciencia e ordens em 1620, e delembargador do
paço em 1634. E o primeiro, a quem a genealogia eftam-
pada pelo Padre António de Carvalho da Cofta na fua
Chorograpliia menciona como tendo o foro de fidalgo e o
habito de Chriífo. Foi elle quem inftituiu com fua mulher
- D. Maria de Braga e Figueiredo um morgado, em que
entravam bens em S. João da Pefqueira, em Sernancelhe e
em Lifboa. Paulo de Carvalho, o íilho primogénito d'aquelle
primeiro Sebaftião, exerceu como leu pae elevadas magis-
traturas, fendo flicceíTivamente promovido a defembarga-
dor da relação do Porto e da cala da íupplicação, defem-
bargador do paço, vereador da camará de Lifboa e prove-
dor da alfandega. Teve como feu pae o foro de fidalgo e
o habito de cavalleiro na ordem de Chrifto. Com fua mu-
lher D. Maria Pereira de Sande inftituiu o morgado das
Mercês na capital. Teve por irmão fecundogenito a Sebas-
tião de Carvalho, que á femelhança de feu pae e do primo-
génito, fe dedicou á magilfratura e foi defembargador da
cafa ^do Porto, d'onde foi trafladado á de Lifboa. D'efte
magiftrado, que teve por mulher D. Luiza de Mello, nafceu
um íilho do mefmo nome de leu pae, o qual fuccedeu no
morgado de feu avô e no de feu tio Paulo de Carvalho,
porque efte não tendo defcendencia, o nomeou por leu pri-
meiro adminiftrador. Foi moço fidalgo da cala real, e caval-
leiro da ordem de Chrifto. Tendo fido capitão de infanteria
paífou depois a capitão de cavallos da companhia dos privi-
legiados do Santo Oííicio. D'efte novo Sebaftião e de lua es-
pofa D. Leonor Maria de Ataíde, filha de Gonçalo da Cofta
Coutinho, governador de Aveiro, procederam alem de outros
filhos, Manuel de Carvalho e Ataíde, pae do grande legis-
lador, e Paulo de Carvalho, que foi lente na univerfidade
de Coimbra e depois cónego da capella real. Pôde, pois,
affirmar-fe com verdade que a familia de Pombal fó come-
-i-<Ç»-. -i-i-
c|9
24
çou a ter illuftração e valimento, principalmente como nobre-
za de toga, defde o terceiro avô do eftadiíla. Antes d'eíte, fe
a eftirpe não era inteiramente plebeia, ou confundida com o
eftado chão e popular, e vivia em Sernancelhe com o elcalTo
luzimento de cavalheiros de provincia, era ao menos hiftori-
camente obfcura e fem valia na corte e nos grandes officios
da republica.
Manuel de Carvalho parece não era defprovido de
algum entendimento, como fe manifeíta do livro, que fob o
pleudonymo de D. Tivifco de Nazao Zarco y Colona efcre-
veu e publicou, íingindo-o eítampado em Nápoles, com o
titulo de Theatro genealógico. Vivia em Soure, pequena
aldeia ou povoação a pouca diítancia de Coimbra, e fe acre-
ditámos um biographo infufpeito, alliado por eftreita afíini-
dade ao mais illuftre defcendente de Pombal, não devia fer
poíTuidor de grandes cabedaes '. Em Soure viu a primeira
luz o grande legillador, a 1 3 de maio de 1 699, quali na
tranfição do feculo xvii, a edade florente do velho abfolutis-
mo, para o xviii feculo, a era da revolução. Ao appellido
paterno de Carvalho juntou o futuro marquez de Pombal
o nome gentilicio de Mello, que era o de feu avô materno,
João de Almada e Mello, como quem já defde os primeiros
I O fr. John Smith, (hoje conde da Carnota), antigo fecretario particular e
amigo íntimo e cunhado do marechal duque de Saldanha, e porventura d'entre
todos os biographos, o mais enthufialla na glorificação do miniílro de D. Jofé,
e que tinha inveítigado certamente os antecedentes da familia, omittindo as
particularidades genealógicas, limita-fe a dizer: «His father, Manuel de Carva-
lho, was a country gentleman of moderate, but indcpendent fortune, belonging
to that class who are diftinguished in Portugal by the title of Fidalgo de Pro-
vincia. (Seu pae, Manuel de Carvalho, era um cavalheiro provincial, de media-
nos, mas independentes haveres, pertencente a eíla clalTe, que fe diflingue em
Portugal pelo titulo às fidalgo de provincia.J Memoirs of the marquis 0/ Pombal
by John Smith, Lond. 1843, vol. i, pag. Sg.
«Emanuel di Carvalho, gentiluomo povero di Soure.» Vita di Seb. Ciufeppe
di Carvalho e Mello. Sem logar de impreílão, 1781, vol. i, pag. i.
25
annos legava mais valor á illuftre afcendencia de fua mãe
que á modefta profapia de feu pae.
A femelhança do que fempre fuccedeu aos mais infignes
varões da nolTa hiftoria, a Valco da Gama e a Camões, —
feus companheiros immortaes na trilogia das glorias portu-
guezas, — os primeiros annos de Pombal cerrados apparecem
a toda a luz, e o hiographo já citado, que teria ao leu difpor
os archivos mais fecretos da familia, quaíi nada pôde ras-
trear acerca da puerícia e adolefcencia do eftadifta'. Quaes
folTem os feus primeiros eíludos na humilde e fertaneja
pátria lua, é totalmente ignorado. Dizia-fe até agora que em
fua adolefcencia entrou a curfar a univerfidade, fem que
foíTe poíTivel deflindar fe apenas para efludar as humani-
dades frequentara o collegio das artes, regido então pelos
jefuitas, ou fe andara matriculado n'alguma das faculdades
e em qual d'ellas, que os biographos aífentam feria prova-
velmente, fegundo o exemplo de feus maiores, a de câno-
nes ou a de leis. Eítá porém hoje demonftrado que o futuro
innovador do direito pátrio nunca fe infcreveu como difci-
pulo nos regiftros da decadente academia. E deífino fin-
gular que dos grandes homens portuguezes nenhum pôde
condecorar-fe com os académicos lauréis. A mcfma forte
coube fem damno ou mingua da fua intelligencia a Sebas-
tião Jofé de Carvalho e Mello. Era tão baça e indecifa a
efcaífa luz, que a Alma mater portugueza irradiava nos pri-
meiros annos do feculo xviii, que nenhum efpirito verda-
deiramente fuperior poderia contentar-fe com a fciencia que
d'ali fe ditfundia, nem um animo livre e inlbífrido de tutela
intelledual refpirar defaffombrado na Ibturna eítreiteza dos
feus geraes.
' "Of the particulars of the early life of Pombal it is to be regretteJ little
is known.» Smith, Memnirs, vol. i, pag. 40.
49
eis
eis
26
Ainda mefmo que tivefle entrado a ouvir os curfos co-
nimbricenfes, é plaufivel que defde logo os houveíTe deíam-
parado, defgoftolb de uma efcola, onde nada fe aprendia
que podeíTe illuminar os largos horizontes de um nobre
entendimento. N'aquelle tempo aos homens, que pelo nas-
cimento fe elevavam acima do commum, apenas três pro-
fiíTões eram decorofas e conformes aos preconceitos nobi-
liários; a magiftratura, onde a valia ou a fortuna faziam
muitas vezes afcender os feus diledos ás mais eminentes di-
gnidades; a egreja, onde os groífos benefícios e prebendas,
as prelazias e os capellos, podiam acrefcentar o efplendor
e a riqueza da família; e o eftado militar, cujas vantagens
eram certamente inferiores, porque os feus poftos mais fubi-
dos eram quafi exclufivo privilegio das grandes famílias ti-
tulares, ou da mais qualificada ariftocracia. Não podendo
ou não querendo confeguir na univerfidade os diplomas,
que lhe deíTem livre entrada aos chamados logares de let-
tras, e não o convidando a beata manfidão da vida eccle-
fiaftica, reítava-lhe bufcar outro currículo, onde podeífe dar
azo á fua irrequieta actividade. Elegeu, pois, as armas por
officio, feguindo o exemplo de feu pae. Aífentou praça de
foldado n'um regimento, que feria provavelmente de caval-
laria. Em breve, dizem, foi promovido a cabo de efquadra,
e n'eíta humilde graduação continuou por algum tempo
com a efperança de fubir talvez a capitão, porque não era
então raro o elevar-fe de falto a maiores poftos, quem ti-
nha na corte benignos e poderofos valedores. Alguns refe-
rem que Sebaftião de Carvalho, fiando-fe n'eftas interceíTões,
efperára fer mui cedo official, e que havendo em lySS,
por occafião de recear-fe a guerra com Hefpanha, uma
grande promoção, e não fendo n'ella contemplado, fe des-
goftára profundamente e refolvêra deixar uma carreira, a
qual pela extrema degradação, a que o exercito chegara
n'aquelles tempos, ío lhe podia oíferecer, em vez das glorias
e dos louros, a pouco invejável perfpectiva da quieta e en-
fadonha obfcuridade. Vohando á vida civil parece que foi
viver em Soure, onde lhe não feria de feguro mui aprafivel
o demorar-fe longa temporada.
É por aquelles tempos, quando Sebaftião de Carvalho
deixa por inconfiftente com as fuás grandiofas vocações a
vida militar, que alguns biographos, uns d'elles feus impla-
cáveis inimigos, outros feus grandes apologiftas, referem as
mocidades e verduras, em que o pretendem figurar como
um heroe de aventuras e pendências na turbulenta capital
de D. João V. E facto averiguado, que na aufencia quafi
completa de policia na corte de Lifboa, eram frequentes e a
la moda as rixas, em que de noite bufcavam cruenta diver-
fão e culpofo conceito de valentes os fidalgos mais illuftres.
Nos paizes, onde é mais diminuta a liberdade, e mais into-
lerante o defpotifmo, ahi é também mais defpejada e mais
fem freio a licença individual. Quando a lei e a audoridade
teem apenas a força por fancção, em vez do confenib volun-
tário dos cidadãos, ahi é fempre fi-ouxa ou inefíicaz a acção
da lei e do poder na manutenção da paz e ordem publica.
Ora fuccedia naturalmente que em tempos do magnifico
monarcha a illimitada realeza do foberano era baftante para
prender ou exilar as peíToas da mais eminente hierarchia.
Mas o poder publico, aquelle que tem as luas raizes na lei
e na conftituição normal da fociedade, não alcançava facil-
mente o fazer-fe refpeitar e obedecer. Era quafi divina e
inccnfada a majeftade do monarcha, mas era quafi nulla e
defprezivel a majeftade da lei e da juftiça.
As ruas de Lifboa eram eftreitas, declives, tortuofas,
como de cidade, que em moldes mourifcos, e em terra
montuofa, fe fora adenfando e comprimindo dentro da limi-
tada cerca dos feus antigos muros torreados. A cada paflb
-^<r>-. ^ *<>-^
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28
havia arcos e paíTagens efcuras e azadas para os que fe
compraziam em renhir por vingança ou delenfado, ou em
fahear os viandantes por cubica e malvadez. Não havia
iUuminação. Apenas a efpaços bruxuleavam aqui e acolá
as lâmpadas mortiças e as baças candeínhas, accefas pela
devoção diante dos nichos confagrados ás imagens da Vir-
gem ou dos fantos de maior veneração. As rondas, que
andavam correndo os bairros da cidade, levando á fua
frente os miniftros criminaes, quando, arraftadas pela turbu-
lência endémica e habitual, e invertendo a fua protedora
inftituição, não eram as primeiras a romper em brigas e
difturbios, viam-fe acommettidas pelos bandos de armados
e inlblentes aventureiros, ou de refolutos e impenitentes
malfeitores. Os fidalgos zombavam da policia, porque ti-
nham por efcudo os privilégios da nobreza e o favor de uma
corte, onde os coftumes diíTolutos fe chamavam galanteria.
Os bandoleiros já não temiam a lettra draconiana do livro
5° da ordenação, emquanto as juftiças do pacifico monar-
cha dormiam a fomno folto e deixavam jazer confundidos
nos mefmos cárceres durante largos annos fem os condem-
nar ou abfolver os perpetradores dos maiores crimes e as
viítimas innocentes da prepotência ou da calumnia'.
N'aquella quafi anarchica fituação da capital, fendo ele-
gância e fidalguia o andar renhindo em nodurnas correrias,
como lias velhas comedias hefpanholas, não feria para extra-
nhar que Sebailião de Carvalho, impetuolb de caracter, fe-
guiíTe por algum tempo a corrente univerfal. Era mancebo,
ociofo, bem apeíToado e gentil homem, de vigorofa complei-
I Era tal, durante o reinado de D. João V a fomnolencia da julliça, que na
collecção das leis e decretos d'aquelle tempo le deparam a cada palTo providen-
cias para que a cafa da fupplicação julgue fem detença numeroíbs encarcerados,
fó com o fim de tomar menos denfa nas cadeias a miferavel povoação, onde
com frequência eftavam lavrando perigofas epidemias.
29
ção, e eftatura mais de mediana, de animo inquebrantável e
orgulholb, de indómita bravura e galhardia. Era galantea-
dor, como preceituava a cartilha do homem de qualidade.
Tinha no feu rei o primeiro exemplar e meftre de aventuras
elegantes; no infante D. António, que ás anecdotas do tem-
po nos defenham como um brapo de coração duro e alma
perdida, brigolb, efpadachim e homem perverfo, a juftifica-
ção das palTageiras mocidades, a que porventura o impel-
liíTe o ócio, a adolelcencia, o temperamento. Se a nobreza
de Lifboa vivia no eftado natural, realifando o homo homi-
ni liipiis do celebre philolbpho inglez, era licito a cada um
aperceber-le para efta guerra quotidiana e inteftina, e pro-
ver á própria defensão, emquanto indolente dormitava a
magiftratura e a policia. Não é licito aíTeverar feguramente
o que haveria de verdade n'eftes primeiros epifodios juvenis
do grande e fevero legiflador. O que porém raia em dema-
fiado romanefco e inverolimil, é que Sebaftião de Car\'alho,
fazendo oíRcio de nodurno batalhador, conlbciaíTe ás íuas
aventuras um companheiro e irmão de armas, e que verti-
dos ambos de branco, para fe reconhecerem facilmente na
efcuridade, fc delTem a acommetter os ranchos de fidalgos
e bandidos, que cruzavam as efpadas em rixas iangrentas e
ferozes nas viellas mais efcufas da cidade".
> Dumouriez, Etat préfent du Portugal, liv. iv, cap. 10. — Na obra que ttm
por titulo Uadminijlralion de ScbaJUen Jofeph de Carvalho et Mello, AmítL-r-
dam, 1785, tom. i, pag. 2o5, lè-fe: «On croit que ce qui retarda fon avancement,
fut quelqu'emportement de jeunelTe, fur le quel il ne faut jamais jugerles hom-
mes. . . La jeunelTe eft une maladie de râme, qui doit avoir íon cours. . . Tous
les Catons de vingt ans font morts des fcélérats». Efta obra é o mais alto pane-
gyrico do marquez de Pombal, e por eíla qualidade parece digna de fé, quando
a algum defeito do feu heroe fe refere fugitivamente, como que para o diffmiu-
lar e efconder. — Vej. Portrait hijlorique du marquis de Pombal, continuação ás
Lettres écrites de Portugal, impreíTas cm feguimento ao Tableau de Lifbonne en
I7g6, pag. 432-433. O Portrait é na fua brevidade de oito paginas um pompo-
fo elogio de Pombal.
«is
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3o
Paulo de Carvalho, tio do grande legiflador, era então
prelado na egreja patriarchal e n'eíla eminente dignidade
ecclefiaftica tinha na corte valimento e privava em certa
maneira com o cardeal da Motta, primeiro miniftro de
D. João. Anceiava Sebaftião de Carvalho naturalmente por
exercer algum officio, onde podeíTe revelar os feus talentos
e os dotes da lua Índole emprehendedora e avôíTa á quieta
ociofidade. Ia o tempo decorrendo preíTurolb. Era Sebas-
tião entrado em annos já maduros. Corria-fe provavelmente
de que fendo paíTada a primavera juvenil, o vieffe colher o
inverno da velhice na efteril moradia de uma aldeia. Tinha
então, ao que parece, quarenta annos, e para quem era de li
tão cubiçolb de gloria e luzimento haviam de fer os dias
monótonos de Soure bem amargurados de ambições e de
efperanças mallogradas. Hoje que aos vinte annos qual-
quer obfcuro bacharel já começa a menear no parlamento,
nos corrilhos ou nos gabinetes dos miniftros, os mais gra-
ves negócios da nação, hoje que aos trinta annos qualquer
mediano jornalifta ou orador fe julga defairado em não voar
para a cadeira curul do minifterio, não é fácil comprehen-
der como um homem verdadeiramente grande e fuperior
aos efpiritos contemporâneos, ainda eftiveíTe efperando no
átrio do poder, já com as primeiras cans a alvejarem-lhe,
fem que ninguém lhe abriíTe a porta dos officios e digni-
dades. Mas onde podia um homem d'aquelle feculo, por
mais notáveis que foíTem os feus talentos, denunciar publi-
camente o que valia? Não havia então o minimo fignal de
vida publica; nem tribuna, nem jornal, nem aífembléas e
comícios populares. A ninguém era dado franquear fó pela
força do génio e da palavra a fenda, que conduz á influen-
cia e ao poder. Os que afcendiam aos graus mais eminen-
tes, não fubiam pelo esforço próprio o declivio efcabrofo
dos públicos empregos, antes era neceífario que um patro-
«Is
no e valedor os eftiveíTe alando ás eminências defcfas aos
defvalidos do favor e da fortuna. Felizmente para que fe
não perdeíTe em gérmen uma das maiores glorias portugue-
zas, o tio de Sehaftião acolheu-o benigno á Ília fombra, e
aprefentando-o com valiola recommendação ao cardeal, al-
cançou que principiafTe a ter entrada na corte portugueza.
Que Sebartião de Carvalho havia cultivado o feu efpi-
rito, confeguindo por feus particulares efludos alguma já
notável inftrucção, fe patentea pelo fado de ter fido eleito
membro da Academia de hijloria portitgueia defde o anno
de 1733 e de haver lido n'uma das fuás conferencias um
difcurfo, que vem impreífo nas coUecções d'ac[uella erudita,
mas eftreita corporação. Sem fallar nos magnates, que a
illuftravam á maneira d'aquelle tempo, mais pela claridade
e efplendor da fua nobreza que pela fua pedante erudição
e profa gongorifta, fem contar os marquezes de Abrantes,
de Tancos e de Alegrete, tinham aíTento n'aquellc inftituto
predileófo do monarcha todos os homens, que primavam
em lettras e faber, Diogo Barbofa Machado, o redador da
Bibliotheca liifitana, Soares da Silva, o audor das Memorias
de D. João I, o padre D. António Caetano de Soufa, que na
Historia genealógica atteftou a fua paciência egual á dos
benedidinos, Caetano Jofé da Silva Sottomayor, o Camões
do Rocio, o bel-ejprit d'aquelle tempo e o companheiro de
D. João V nas fuás romanefcas mocidades e aventuras, e
outros mais laboriofos inveftigadores de hiftoricos fucceffos,
recontados materialmente fem critica, nem philofophia. Não
é plaufivel que n'um congreífo de varões tão refpeitaveis,
attenta a pouca e ruim fciencia d'aquelle feculo, tivera Se-
baítião de Carvalho uma cadeira, fe não andaífem bem aqui-
latados os feus méritos e havida em grande conta a fua lit-
teratura.
Na conferencia celebrada pela Academia em prefença
eis e|í
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cia
do magnifico Mecenas, no próprio dia do leu anniverfa-
rio natalicio a 24 de outubro de lySS, o conde da Ericeira,
depois de recitar o panegyrico do monarcha, fegundo era
eftylo habitual d'aquella companhia, mais de cortezãos do
que de fabios, declarou eftar eleito como novo académico
Sehaftião de Carvalho, ao qual o fidalgo eruditiíTimo com a
fua hyperbolica maneira de dizer teceu n'eíra occafião honra-
. dos elogios. Da oração do conde da Ericeira fica manifefto
que o futuro miniftro de D. Jofé até pouco antes do íeu in-
greíTo na academia vivera quafi fempre retirado na provín-
cia, onde nos ócios de uma vida campeftre e defoccupada
coníeguíra pelo eítudo accumular copiofos caudaes de eru-
dição. Era por aquelles tempos frequentifíimo o coítume
litterario de fundar por aflim dizer a cada canto um d'eí1:es
grémios, ou particulares academias, onde fe exercitavam os
engenhos nos conceitos e rhetoricas então apreciadas. Sebas-
tião de Carvalho tinha já áquella fafão pertencido, com as
honras de protedor, a uma d'eíl:as microfcopicas e obscuras
congregações. Tinha o nome de Illujlrada. Dizia o conde
panegyrifta que Sebaftião de Carvalho, florefcendo até ali no
campo, tinha roubado á corte os frudos, com que na elo-
quência, na hiftoria, na poefia e em muitas linguas e erudi-
ções acreditara serem as fciencias na fi.ia familia não fó he-
reditárias, mas adquiridas. Repartia pelos feus membros a
academia, onde Carvalho era agora recebido, o trabalho de
efcrever as hiftorias efpeciaes dos differentes reis de Portu-
gal, as dos bifpados e das ordens de cavallaria, e todas as
mais, de que podeffe a final compaginar-fe a hiíforia geral
d'efta nação. Commetteu a Sebaftião de Carvalho o efcrever
as dos reis D. Pedro I e D. Fernando, nas quaes nunca che-
gou a trabalhar.
Na própria conferencia, em que pela primeira vez tomou
aíTento em meio dos fabios hiftoriadores, leu o novo aca-
-%-í>^ -i^
cia
33
demico o feu difcurlb inaugural. Ajuftava-fe á cortezania
dos feus confrades, e ás pradicas da adulação e lifonjaria,
que eram facramcntaes e impreteriveis na liturgia d'aquella
corte. «Grande dita (exclamava o orador) confagrar nas
aras d'en:a eruditiílima affembléa o primeiro facrificio da
minha fujeição, quando n'ellas le Iblemnifam os facros pre-
lúdios do mais feliz império!» Encarecendo o pompoío en-
cómio do monarcha, fegundo prefcreviam os eftylos aulicos
ás mufas d'aquelle tempo, dizia o pancgyrifta que a ventura
refultante de tão faufto acontecimento, qual era o nafcimcnto
commemorado na Iblemne conferencia, não ló enchia de
júbilo aquelle lahio mufeu (era a academia), mas que d'elle
fobejando, inundava de gloria todos eftes reinos, e de as-
fombro o mundo inteiro. E no final da oração, comparando-
fe a Prometheu, alludindo ás glorias litterarias, prorompia
n'eíta exclamação, fundida fielmente nos depravados moldes
litterarios tão queridos e mimoíbs n'aquelle tempo: «Am-
bos fubimos, vapores obfcuros, ao pólo refplandecente : elle
porém a cair, eu a me illuftrar; elle a fervir de efcandalo com
infultos; eu de exemplo ás felicidades». Palavras, que profe-
ridas porventura fem nenhuma intenção alheia á litteratura,
encerravam todavia como que a prophecia das grandezas,
a que de mediana condição haveria de afcender o grande
legiflador. Somente n\im ponto fe enganava no fauftiílimo
prognoítico, porque depois de arrebatar o fogo lacro da
omnipotência em Portugal, teria ao cabo de uma exiftencia
gloriofa, no exilio cruciante do Pombal, o penedo e os gri-
lhões de Prometheu.
Por aquelles tempos cafou Sebafiião de Carvalho com
D. Thereza de Noronha, filha de um irmão do conde dos
Arcos e viuva de feu primo António de Mendonça. Anda na
tradição que efte cafamento fe enlaçou com uma verdadeira
aventura de românticos amores.
«is
eis
34
Se acalb podemos conjecturar como plaufiveis as fuás
andantes cavallarias durante a primeira refidencia na corte
de Lifboa, não fera de todo o ponto defconforme o prefup-
por que na conquifta de uma dama de tão qualificado nafci-
mento, qual era D. Thereza de Noronha, algo intersãeífe
de extraordinário e romanefco, e attento o profundiflimo
defpeito da alta fidalguia, ultrajada pelo conforcio oppro-
hriofo, deífe o oufado galanteador evidentes fignaes da al-
teza dos feus brios e de como fabia executar em face das
maiores contrariedades as fuás animofas refoluções.
Affrontaram-fe os parentes da noiva, foberbos e infoífri-
dos de allianças defeguaes, com a audácia de quem fora, ao
que parece, quafi um intrépido raptor. Valer-lhe-hia fegura-
mente a influencia de feu tio e a protecção do cardeal.
Alguns annos decorreram fem que os talentos de Sebas-
tião achaífem arena própria, onde fe podeíTem expandir.
Não era certamente o recinto obfcuro e eíl:reito da pobre
academia horizonte accommodado á indefeífa energia do
feu efpirito. Ali os olhos volviam-fe continuamente ás memo-
rias dos tempos já pretéritos, não para contemplar na hifto-
ria, profundamente meditada, as leis que regulam a huma-
nidade na lua larga diffusão no tempo e no efpaço. Defen-
tranhavam-fe lapides e cippos e infcripções. Compunham-fe
panegyricos, difcreteavam-fe conceitos e celebrava-fe peren-
nemente a apotheofe do emulo de Luiz XIV, do magnifico
monarcha portuguez, de cujo reinado o Camões do Rocio fa-
zia, n'uma das conferencias celebradas perante a majeftade,
a mais abflrufa e fervil amplificação, defenhando-o em tra-
ços cortezãos como a epocha mais florente das fciencias e das
lettras. Ali eftudava-fe o paífado e adulava-fe o prefente.
E Sebaftião de Carvalho tinha a vifta perfpicaz e dominadora
cravada no futuro, e com a ironia refledfida nos feus lábios
vincados como os de Voltaire na commiíTura, forria natural-
Íeis
-• — •-<{>-§►
35
mente das milerias grandiofas do leu Mecenas régio e da
mefquinha terra, onde imperava.
Felizmente deparou-lhe a fortuna occafião para faír da
erudita ociofidade. Os bons officios do cardeal da Motta
lograram fazel-o acceito a D. João V para que lhe commet-
teíTe encargo correlpondente á fua grande capacidade. No-
meou-o feu enviado extraordinário na corte da Gran-Bre-
tanha. Raiava então já nos quarenta annos, boa edade para
ter encelleirados os fruílos proveitofos da reflexão e da ex-
periência, quafi já porém provecta para dar principio á fua
carreira, quem eftaria já traçando alevantar-fe á fuprema
direcção da fua pátria.
Acabava de fer exonerado da enviatura na Inglaterra
Marco António de Azevedo Coutinho, que ali refidíra defde
abril de lySõ, como reprefentante de Portugal. Fora nomeado
fecretario de eftado dos negócios extrangeiros e da guerra e
devia partir de Londres a tomar poíTe do feu alto ofiicio
minifterial. Succedeu-lhe Sebaftião de Carvalho, que em
agoíto de lySS havia já defembarcado n'um porto da Gran-
Bretanha, e a 29 de novembro d'aquelle anno, foi recebido
em folemne e publica audiência pelo rei George II'.
Não podia a nomeação vir mais a talho para quem
defejaria ver exemplificadas as doutrinas dos grandes publi-
ciftas nas praííicas de uma realeza moderada, que em face
do abfolutifmo dominante em todas as monarchias conti-
nentaes, era uma verdadeira e curiofa raridade. Ainda que
o governo de George II e do feu aftuto miniftro, o fami-
gerado Sir Robert Walpole, que então confolidava no meio
de tormentofas convulfões a nova dynaftia de Hannover,
não era feguramente o mais illuminado e progreíTivo, fem-
I Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal,
tom. XVIII, pag. 33g e 340.
CM
X
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tis
36
pre um efpirito inquiridor das fciencias politicas e fociaes
experimentalmente aprenderia muito mais n'um paiz de opi-
nião, de imprenla e parlamento, do que na terra da inquiíi-
ção, dos jefuitas e das beatas orgias de Odivellas. Sebaftião
de Carvalho não tinha, na verdade, a Índole propicia ás mo-
narchias temperadas por uns longes fequer de legaes in-
fluencias democráticas, fegundo a norma, que então preva-
lecia em Inglaterra, fob o regimen parlamentar do groíTeiro
e imperiofo George II e do feu miniftro Walpole, o modelo
dos corruptores. Mas no governo e adminiftração, apcfar
do leu grande atrazo em muitos pontos e das luftas fan-
grentas, em que viveu pela infurreição dos jacobitas ou
partidários dos Stuarts até 1745, fempre era a Gran-Breta-
nha melhor efcola de eftadilías do que o monaftico e deca-
dente Portugal. Ainda que, fegundo parece dos aftos legis-
lativos de Pombal, pouco le infpiraíTe nas tradições e nas
praxes politicas da Inglaterra, teria ao menos ali onde adex-
trar-fe no meneio dos negócios, como útil preparação e pro-
pedêutica para o governo dos eftados.
Se outra coufa, porém, não podeíTe aproveitar o enviado
portuguez durante a fua refidencia na Gran-Bretanha, ao
menos haveria de concitar-lhe a attenção o eftado já floren-
te das fuás induftrias, e as qualidades, que a tornavam a
primeira entre as nações navaes e mercantis. Se não cogi-
tava em trafladar á fua pátria as inftituições, os coftumes,
a legiflação, o mechanifmo politico e focial da Inglaterra,
poderia eftudar e inquirir por que proceflbs a poderofa na-
ção fe levantara ao faftigio do poder marítimo e da profpe-
ridade económica e induftrial. A fciencia praílica e o enge-
nho fabril dos inglezes eftava já n'ac[uella edade preludiando
os fecundos defcobrimentos, que na fegunda metade do xvm
feculo haveriam de multiplicar a força produdiva, — aquel-
las preciofas invenções, que fizeram memoráveis os nomes
4
3?
de Hargrcaves, de Arkwright, de Watt, de Whitney e de
Cartwright. Para quem já porventura penlaria em erguer do
laítimoío abatimento o trabalho e a induftria nacional, ne-
nhum paiz poderia ler mais fecunda e ampla doutrinação ao
génio do grande reformador.
Eítava alem d'iflb confagrada pelo ufo a regra de que os
miniítros portuguezes nas principaes cortes europêas, quan-
do as interceíTões ou os talentos lhes faziam conquiftar as
boas graças do Ibberano, da milTão diplomática fubiíTem ao
ofiicio minifterial, prelidindo á lecretaria dos negócios ex-
trangeiros. Affim no reinado de D. João V o fecretario de
eftado Pedro da Motta e Silva, irmão do cardeal do melmo
appellido, havia fido anteriormente enviado extraordinário na
corte de Roma, António Guedes Pereira, fecretario de efta-
do da marinha, exercera a legação na corte de Madrid,
Marco António de Azevedo Coutinho, fecretario de eftado
dos negócios extrangeiros e da guerra, havia fido reprefen-
tante de Portugal em Londres e em Paris. Baftava pois que
Scbaftião de Carvalho alcançaíTe honrada reputação na fua
enviatura para que mais tarde o capricho do monarcha ou
o favor dos protedores o chamaíTe na primeira vacatura
ao fufpirado pofto de confelheiro e miniftro do foberano.
Não deixou de deparar-fe ao novo enviado portuguez na
corte de Saint-James propicia occafião para moftrar a fua
valiofa capacidade. Não havia por aquelles tempos nenhu-
ma grave circumftancia internacional, que exigiíTe do gover-
no portuguez demoradas e efcabrofas negociações. Portugal
vivia então em paz, gratiíTmia ao dynafta, pouco propenfo
ás ambições e lances bellicofos de Luiz XIV, feu modelo na
grandeza e majeftade.
As razões, que haviam motivado a enviatura de Marco
António, longamente experimentado nos negócios, e torna-
ram difficil e efpinhofa a miífáo portugueza na corte de Geor-
eis
cl9
38
ge II já não fubfiftiam com tamanha gravidade. A pendência
lufcitada entre Portugal e a Hefpanha, vizinhos n'aquelle
tempo lempre em vefpera de contenderem e pleitearem pe-
las armas as fuás encontradas pretenções e a íua mutua des-
confiança, eftava por então aquietada. DiíTipára-le o receio
de que o defaggravo das reciprocas oíTenfas fe houveíTe de
commetter ao fallivel julgamento dos canhões.
Os negócios, que pendiam entre Portugal e a Inglaterra
fe bem de fumma importância para o primeiro, eram d'ell:es,
que demandam mais zelo e energia do que talentos aíTigna-
lados no difcreto negociador. A miífão de Car\'alho, fcgun-
do elle próprio o deixou efcripto', tinha por aílumptos prin-
cipaes o inquirir as caufas, pelas quaes era activo e opulento
o commercio dos extrangeiros em Portugal, e paífivo e mife-
ravel o dos noíTos nacionaes; occorrer á defegualdade, com
que eram tratados em Londres os portuguezes, em cambio
dos amplos e valiofos privilégios, que fruiam os inglezes em
Portugal; pôr um termo ás infolencias commettidas em
noíTos portos pelos commandantes dos navios de guerra da
Gran-Bretanha. De todas as tranfacções diplomáticas de
Sebaftião de Carvalho, a que parece mais difficil e capaz
de revelar a fua dextreza diplomática, foi a que entre elle
e o gabinete inglez fe travou acerca de alguns vexames fis-
caes, a que em Londres eram fujeitos os negociantes portu-
guezes pelos exaítores de uma impofição, a cujo pagamento
fe julgavam defobrigados pelos tratados em vigor. Succedia
efte debate diplomático pelos annos de lySg. Redigiu o
enviado portuguez e aprefentou ao gabinete britannico uma
extenfa memoria, compendiando as razões e fundamentos,
em que se eftribava a reclamação ^
1 Appenfo II da Contrariedade ao libello, g 2.°
2 Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal,
tom. XVIII, pag. 341.
39
O minifterio brltannico deferiu ás inftancias do reprefen-
tante portuguez. N'um defpacho de 20 de novembro de
lySg lhe aíTegurou o duque de Newcaftle que o rei da
Gran-Bretanha, para dar a D. João V uma prova do íeu
affedo e confideração, havia determinado exemplar os nego-
ciantes portuguezes de todas as taxas e contribuições, que
eítiveffem eftabelecidas ou houveíTem de ler lançadas por
ado do parlamento fobre todos os habitantes do reino unido.
Por aquelles tempos teve Sehallião de Carvalho que
dirigir uma nova reclamação ao governo de George II. Fora
efcaíTa em Portugal a colheita de cereaes, que ainda mefmo
nos annos mais fecundos e apefar de diminuta a povoação,
não podia baítar ao feu confumo. O governo inglez, inci-
tado por egual deficiência, prohihíra a exportação. Eleva-
ram-fe em Portugal os preços nimiamente, como em quadras
de grande efterilidade. Padeciam as gentes populares com
aquella careflia exagerada e os bandoleiros congregados em
quadrilhas e eftimulados pela fome infeftavam oufadamente
a própria capital. Ordenou o governo portuguez ao leu
enviado em Inglaterra que perante o minifterio britannico
reclamaíTe contra a nociva prohibição e a fizelTe revogar
por excepção em favor dos portuguezes. E taes foram e tão
perfuafivas e efficazes as ponderações e as inftancias de
Carvalho, que já a 26 de janeiro de 1741 o reprefentante de
Inglaterra em Lifboa, Lord Tyrawley, aíTegurava ao minis-
tério portuguez, que, apenas as circumftancias o permitiílem,
feria decretada em favor de Portugal a pedida revogação".
Neftas pendências diplomáticas e em outra, que fe origi-
nou por caufa do medico da legação, foi Sebaftião de Car-
valho um dos principaes cooperadores para que melhor fe
I Qtiadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal,
tom. xviii, pag. 342.
(|9
cia
eis
40
deíànilTem os privilégios e exempções aos reprefentantes das
potencias extrangeiras.
Os exadores de uma taxa local na parochia de Santa
Catharina em Londres, para aíTegurar o pagamento, tinham
feito uma penhora ao medico da legação de Portugal. Era o
fabio e illuftre judeu portuguez, Jacob de Caftro Sarmento.
Reclamou o enviado contra o ado judicial, que offendia as
fuás immunidades. Foi completa e defufada a reparação.
AnnuUou-fe a execução e foi ao medico reítituida a impor-
tância da coUeda. Em officio de 20 de março de 1743
efcrevia o duque de Nev^^caftle ao enviado portuguez, pedin-
do-lhe fixaíTe o dia, em que os reprefentantes da parochia
haviam de ir á legação oíferecer-lhe as fuás efcufas. A 25
d'aquelle mez davam plena fatisfação pela aggravo recebi-
do, e deixavam a Sebaítião de Carvalho um auto publico
das refoluções tomadas acerca da pendência.
As negociações encaminhadas a pôr termo ás violências
e ultrages commettidos pelos officiaes da marinha britannica
procederam com tão profpero fucceífo, que a 16 de janeiro
de 1743 communicava o duque de Newcaftle a Sebaftião
de Carvalho que todos os inglezes, réus de violências e de
crimes perpetrados nos territórios portuguezes, poderiam fer
prefos, proceífados e punidos pelos magiftrados dos logares,
e que efta jurifprudencia fe entenderia applicavel aos offi-
ciaes da marinha britannica'.
Se o enviado portuguez na corte de Londres não pôde
notavelmente diftinguir-fe pela importância e efplendor das
fuás negociações politicas, teve ao menos occafião para dila-
tar os feus conhecimentos e applicar-fe á leitura de muitas
obras, que eram talvez então defconhecidas em Portugal.
Não podia ler os livros inglezes, porque não alcançou nunca
Appenfo II da Contrariedade ao libello, § 4.°
41
induílriar-fe no idioma, em que por aquelles tempos le illiil-
trava Thomlbn, o poeta das EJtações, Young, o celebrado
auctor das Noites, Gray, cujo nome anda aíTociado á mais
pathetica elegia, Fielding, o audor de Tom Jones e Richard-
Ibn, o noveliifta melancólico da fentimental e interminável
Clariffe Haiioip. Apefar de não poíTuir o conhecimento da
lingua ingleza, Sebaftião de Carvalho não deixou de fe
applicar afliduamente a eftudar tudo quanto le referia á
Gran-Bretanha, e principalmente ás luas leis e inílituiçóes.
A forma politica da Inglaterra não feria já então muito con-
forme ás politicas noções, de que fe compunha o leu credo
governativo, fegundo o veiu depois a exemplificar nos feus
actos e na lua legiílação. A omnipotência do foberano feria
já então o feu principio fundamental e fuperior ao exame
e difcuíTão. Era o rei de higlaterra, apelar das externas
apparencias de abfoluta majeftade, um fâmulo do parla-
mento. Dominava ali principalmente a mais poderofa arilfo-
cracia, e a camará dos communs, comquanto quaíl tida em
monopólio pela influencia irrefillivel da nobreza ou defhon-
rada pela lua venalidade e corrupção, era ainda aíFim uma
fomhra e fimulacro da vontade popular. E Sebaftião de
Carvalho, cujos traços capitães na fua norma de governo
eftariam já então profundamente meditados, odiaria poi-\'en-
tura a ordem patrícia, como um pcrigolb contrapefo ao
abfolutifmo do monarcha, e a influencia das multidões,
como um tremendo facrilegio á origem divina do poder.
Demorou-fe Carvalho em higlaterra até 1745, em que
voltou a Lifboa, exonerado da miíTão. O ultimo officio, que
da fua legação em Londres exifte no archivo dos negócios
extrangeiros, é datado a i3 de abril de 1745. E provável,
' Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal,
tom. xviii, pag. 344.
cts
eis
CM
42
porém, que ainda tiveíTe expedido mais algum, porque não
ha n'aquelle documento a minima referencia ao feu próximo
regreíTo a Portugal.
A legação portugueza em Londres fó teve novo chefe
em 1747, quando el-rei D. João V para aquelle cargo, agora
tornado mais importante pelas graves diílldencias fubfis-
tentes entre a Hefpanha e Inglaterra, e a planeada mediação
de Portugal, nomeou a António Freire de Andrade Encerra-
hodes, que mais tarde, quando já Sebaftião de Carvalho era
miniftro e didador omnipotente, jazeu por fua ordem largos
annos nos triftes calabouços da Junqueira.
Não fe fabe fe foi a feu pedido, ou por alguma rafão de
conveniência governativa, que Sebaftião de Carv^alho deixou
a legação. Não foi de certo, como efcreve um dos feus mais
implacáveis inimigos, porque lhe faltaíTe a protecção de feu
tio Paulo de Carvalho e o favor do cardeal da Motta, que
o parcialiffimo efcriptor dá como fallecidos antes que Se-
baftião deixaífe Inglaterra. Ora o purpurado primeiro minis-
tro de D. João V deixou de exiftir a 4 de outubro de 1747,
e o feu futuro e grande fucceífor já em 1745 terminara em
Londres a enviatura.
Não feria certamente, — como pretende o biographo
libellifta, que citámos, — o defamor do rei, nem a pouca
aflfeição do novo primeiro miniftro, Pedro da Motta, para
com o enviado portuguez, o que determinou a fua demiíTão.
Porque, paífado pouco tempo, o achámos nomeado para ir
a Vienna de Auftria defempenhar uma difíicil commiífáo,
que prefuppunha em quem a exercitaífe a alta confiança
do governo. Tratava-fe nada menos que da mediação de
Portugal para levar a bom termo de conciliação a diíTi-
dencia, que fe havia levantado entre a corte de Roma e a
rainha de Hungria e de Bohemia, que mais tarde foi a
celebrada imperatriz Maria Thereza. Dava aífumpto a efta
43
quebra nas boas relações das duas cortes a extincção do
patriarchado de Aquileia. Não era fácil concertar efte con-
flido, porque a violenta oppofição entre o fecretario de
eftado pontifício, o cardeal Valenti, e o conde de Welfeld,
grão-chanceller da rainha de Hungria, tornava impolTivel
toda a pacifica Iblução diredamente negociada entre os dois
adverfarios ' . O papa, que era então Benedido XIV, defe-
java aquietar elta differença, que poderia accender-fe e per-
turbar a paz efpiritual no império auftriaco, já propenfo a
lacudir o jugo temporal da fanta le. Bufcou pois por media-
dora a rainha de Portugal, D. Maria Anna, que por fervo-
rofa filha da Egreja, como efpofa do fideliílimo foberano
portuguez, e por auftriaca, a quem eram fempre caros os
intereffes da fua dynall;ia, fe empenharia em accommodar a
paíTageira diíTenfão. Governava então o reino como regente
durante uma longa doença do monarcha. Elegeu, prova-
velmente por indicação do cardeal da Motta, a Sebaftião
de Carvalho, para que paíTando a Vienna defde logo, inter-
pozeffe na queftão os bons officios de Portugal e envidalle
os feus esforços em reítaurar os vincules amigáveis entre a
cúria e Maria Thereza.
Já em meado de 1745 eivava na capital da Auftria o
enviado portuguez, ainda lem carader ofíicial, procurando
induftriar-fe na pendência e preparar tudo quanto podeíTe
facilitar a defejada conciliação. Sebaftião de Carvalho che-
gou a Vienna de Auftria em principies de julho d'aquelle
anno. A 7 devia fer, conforme o deixou efcripto o próprio
enviado^ No officio de 3o de agofto de 1745, no archivo dos
negócios extrangeiros, diz Sebaftião de Carvalho haver dois
mezes que era chegado á capital do império. Que para a
Appcnfo II da Contrariedade ao libello, § 8.
Appenfo II da Contrariedade ao libello, § 9.
44
nova commiíTão partiu directamente de Lifboa, e não de
Londres, fem volver de novo á pátria, como affirmam erra-
damente alguns biographos, íe manifefta do leu officio com
data de 3i de maio de 1746, em que diz textualmente:
«Empreguei o maior dilVelo em render ferviço ao papa,
como fempre foi meu defejo defde que lai de Lifboa». No
anno feguinte de 1746 recebia o decreto, em que nos mais
honrofos termos era defignado para exercer officialmente a
mediação. E tal foi a diligencia e bom confelho, com que
fe defempenhou do feu encargo, que logrou ver diíTipada
finalmente a borrafca diplomática, e aflignada a convenção
ou concordata de 1 2 de março de 1 747, que eftreitou nova-
mente as relações entre os dois dilcordantes potentados.
O grão-chanceller, conde de Welfeld, eicreveu em agra-
decidos termos a Carvalho, notificando-lhe a plena fatisfação
da fua corte. A negociação, em que fe empenhara para
reftabelecer a concordância entre o pontífice romano e a
rainha de Hungria e de Bohemia, já então imperatriz, não
podéra vir mais de molde a quem um dia, na fuprema
gerência dos negócios, haveria de contender tão rijamente
com o poder efpiritual e conflrangel-o a refpeitar os direitos
da foberania.
Foi aquella a fua efcola primaria na arte diííicil, mas
neceífaria, de dar talho vigorofo nas extranhas pretenfõcs do
pontificado, e feparar, por limites bem traçados, o facerdocio
e o império. Então era apenas medianeiro para congraçar
os dois poderes. Mais tarde, na pátria, em mais graves diíTi-
dencias entre as duas mal avindas poteítades, haveria de
intimar com voz imperativa e forçar o Vaticano a con-
firmar, após uma lufla porfiada, a politica religiofa da fua
adminiflração.
Tão bom nome conquiítou para Cai-valho a fua difcreta
e hábil mediação, que bem depreíTa alcançou novo triumpho
ela
45
como engenhofo e prudente negociador. Levantára-fe uma
ditferença entre o papa Benediíto XIV e o eleitor arcebifpo
de Moguncia Ibbre a confirmação de certos benefícios ec-
clefiarticos. A corte de Vienna, — tal era a lua illimitada
coníiança no reprefentante portuguez, — declarou ao núncio
pontifício, não daria ou^■idos a nenhuma propofíção, que
não foíTe aprefentada por intermédio de Carvalho'. Tão boas
traças fe deu o enviado portuguez, que logrou defvanecer a
paflageira tcmpcfíade entre o pontifíce romano e o príncipe
mithrado, que n'uma carta de lo de junho de 1748 agrade-
ceu o empenho e os bons officios do portuguez mediador.
O tefíemunho de um diplomata francez, que por efta
occafíão era minifíro junto da corte de Maria Thereza, não
deixa a menor duvida Ibbre quaes foffem os dotes diplomá-
ticos, revelados por Sebafl:ião de Carvalho, durante a lua
refidencia na corte de Vienna. Efcrevendo ao leu governo
aíleverava o plenipotenciário Blondel que nas duas negocia-
ções, na que era concernente ao patriarchado de Aquileia, e
na do eleitor arcebifpo de Moguncia, o enviado portuguez
havia dado provas da Ília habilidade e bom juizo, da fíja
rectidão e amenidade, e Ibbretudo da lua extrema paciência,
qualidades, com que tinha grangeado não fomente as boas
graças dos Ibberanos intereífados nas queftões, fenão tam-
bém a confíderação de todos os reprefentantes extrangeiros
e das peíToas de maior autoridade. Encarecendo ainda mais
os dotes, que o faziam recommendavel e diftiníto entre os
feus coUegas de Vienna, acrefcenta o enviado de Luiz XV
que Seballião de Carvalho «era em tudo nobre fem ofíen-
tação, de concertado juizo e prudência fíngular, rico de
honrados fentimentos e principios, tendo por alvo fempre
o bem geral». E fínalmente referia que ao deixar Sebalfião
' Appenfo II da Contrariedade ao libello, S 14.
( I
4 si»
_ .h(>-^
dc Cai-valho a legação, e ao partir para Lifhoa, tinha fido
laftimada a fua aufencia pela corte e pela cidade".
As negociações de Carvalho em Londres e em Vienna
tão longe eítavam de fer, como os íeus inimigos apregoavam,
fobre aíTumptos fáceis de concluir, antes tinham aos olhos
do próprio negociacior tal valia e importância, que ainda
mefmo depois de levantado ás mais altas dignidades fe com-
prazia em commemoral-as com largueza e referil-as como
ferviços meritórios da fua primeira vida publicai
Não é provável que um homem de tão certeiro difcer-
nimento tiveífe em grande preço o que fizera nas fuás lega-
ções, fe em confciencia não fentiffe que d'ellas fe podia
envanecer.
Foi durante a fua refidencia na corte de Maria Thereza,
que Sebaflião de Carvalho recebeu a nova da lua viuvez.
D. Thereza de Noronha baixando ao fepulchro, ainda que
laftimada naturalmente de quem no meio de tamanhas
contradicções havia conquiftado o feu amor, deixava-lhe
vacante o coração e miniftrava-lhe occafião a novo e mais
brilhante defpoforio.
A condeífa Leonor Erneftina Daun, fobrinha do mare-
chal Daun, tão famolb durante a guerra da fucceífão de
Auftria, attrahira as attenções do enviado portuguez. Ella era
joven e formofa, elle, fe bem já não mancebp, comtudo
pelas fuás qualidades merecedor das aíTeições de uma mu-
lher. Era ainda gentil e bem difpoífo, a eítatura elevada,
1 Documento extrahido dos archivos do miniílerio dos negócios extrangei-
ros de França, de lo de janeiro de lySo. Citado em Smith, Memoirs of the mar-
quis of Pombal, vol. ii, pag. 53 e 54.
2 Em officio do conde de Bachi ao feu governo, de 4 de março de
1755, dizia eíle embaixador francez na corte de Lisboa: que quando elle (Car-
valho) acertava de entrar em converfação fobre o que havia feito nas cortes
de Vienna e de Londres, era para nunca acabar. Quadro elementar, tom. vi,
pag. 53.
-S-i- -i-i-
(I}
-'<^
47
nobre, varonil; o rofto mais graciofo, que fevero; o efpirito
exornado dos talentos, que fervem para os altos negócios do
governo, e não menos para as donairofas converlações no trato
polido e focial; a palavra infinuante e attradiva. O melmo
génio, que n'elle tornava irrellftivel a fua dominação nos ho-
mens mais agreftes, amoldava-le com egual fuperioridade á
conquifta da mulher. Recrefceram, porém, dificuldades ao
principio para que podeíTe eífeituar-fe o conforcio defejado.
Era a noiva de eftirpe efclarecida e de terra, onde a aha
nobreza hereditária mais afincadamente fe governa pelos
preconceitos da fua feudal hierarchia. A condeífa daria de
barato os muitos quilates mais, que a fua nobreza levava
de vantagem á obfcura fidalguia do feu galanteador. Mas
eram, ao parecer, mais efcrupulofos os parentes. Fizeram-fe
inquirições fobre o nafcimento e afcendencia de Carvalho.
Confultou-fe a rainha de Portugal, que informou favoravel-
mente e atteftou que o enviado portuguez era de familia
qualificada. Era deflino de Carvalho que houveíTe de afpirar
em feus amores ás eminentes fummidades, e que entre elle
e as fuás confortes fe levantaíTe, como importuna contra-
dicção, a altiveza ariftocratica das familias, com quem pre-
tendia aparentar-fe. Fez-fe a final o cafamento. Efte enlace
não foi talvez extranho á fua próxima fortuna. A condeífa
Daun, como fobrinha do afamado vencedor de Frederico II,
e como compatriota da rainha de Portugal, lhe ganharia
facilmente as boas graças e contribuiria talvez efficazmente
a que o marido, afpirando aos altos cargos do governo,
podeíTe triumphar dos feus inimigos e rivaes. O talento nos
homens, que nas monarchias abfolutas não valem pelo alto
nafcimento, é como uma alavanca, que não pôde empregar-
fe fem um fulcro. Ainda nos próprios governos populares
o mérito para afcender e refulgir nas eminentes regiões pre-
cifa muitas vezes dos impulfos externos do favor. O próprio
CM
4^
«-ò-i*
Bonaparte, fem os bons officios de Barras, teria porventura
vegetado largos annos, e talvez não lograria as fafces do
confulado e o fceptro de imperador.
Eftava conduzida a feliz termo a negociação, que o
levara á corte de Vienna. Havia Sebaftião de Carvalho
padecido grave detrimento na laude. O celebrado medico
Van Sw^ieten aconfelhava-o a que faííTe de Vienna, onde
mais um inverno rigorolb o poderia pôr em grande perigo.
Urgiam-n'o circumlíancias particulares a volver de novo
á pátria. Via imminente um novo reinado. Era aquella a
fazão mais opportuna para vir a Lifboa e aíTiftir ao trifte
defmoronar do reinado longo e efteril do monarcha lum-
ptuofo. Teria talvez rebates de que poderia fer chamado
pelo novo foberano ao minifterio. Deixou Vienna a 3 de
feptembro de 1 749 e eftava já defde o i .° de dezembro
em Lifboa', quando o piedoíb D. João V legava a D. Jofé
uma extenfa monarchia, decadente e debilitada por todos
os vicios e corruptelas de um governo, que teve por arbi-
tro um abfoluto e voluptuofo dominador, e nos degraus do
throno a fervidão dos confelheiros e o fanatilmo dos con-
feíTores.
CAPITULO III
POMBAL NO MINISTÉRIO
Defde que Sebaftião de Carvalho chegou a Portugal até
que D. João V a 3 1 de julho deixou o throno vago ao fuc-
celTor, efteve o antigo e benemérito enviado portuguez, fem
que deíTem novo emprego ás luas eminentes faculdades. Não
havia por então vacante nenhuma das mais importantes
Appenfo II da Contrariedade an libello, §S '7 e 18.
CM
«I»
49
legações. Dos miniftros que compunham o ultimo gabinete
de D. João V, o cardeal D. João da Motta e Silva havia
terminado a lua mortal carreira a 4 de outubro de 1747.
O francifcano recolleto, Fr. Gafpar da Encarnação, tio do
duque de Aveiro, nos annos derradeiros de D. João V domi-
nava, como primeiro miniftro, o animo do monarcha enfra-
quecido por dilatada enfermidade. O lecretario de eftado da
marinha e domínios ultramarinos, António Guedes Pereira,
tinha fallecido em 1 747, e Marco António de Azevedo Couti-
nho, que dirigira a repartição dos negócios extrangeiros e da
guerra, precedia de poucos mezes no íepulchro, em i75o,
ao leu régio protedor. De todos quantos haviam exercido o
minifterio defde 1736, em que D. João V inftituira as três
íecretarias de eftado, fomente Pedro da Motta era ainda o
limulacro de um miniftro, quebrantadas as antigas faculda-
des pela doença e invalidez. Era elle quem preíidia, delde
a lua recamara ou do leu leito, a todos os negócios da nação.
Um reinado novo foi lempre em todos os tempos c em
todos os logares, fob todas as formas de monarchia, a qua-
dra mais fecunda em ambições e em efperanças, em intrigas,
em bandos e facções. Em redor da nova realeza, que appa-
rece, agham-le, revolutèam e contendem prellurofos os cor-
tezãos e os pretendentes, como os peixinhos n'uma lagoa
furgem improvifamente dos feus efconderijos, e acodem em
cardume á flor da agua a debater-fe, quando inefperada mão
lhes atira um mendrugo minimo de pão. Os que haviam
no reinado antecedente desfrudado com largueza os proven-
tos da privança no animo do foberano, bufcavam no reinado,
que nalcia, confirmar a lua antiga preponderância. Os que
não tinham alcançado influencia, esforçavam-fe por grangear
as graças e a valia do príncipe inexperiente e apoucado, que
ia inaugurar a lua duradoura foberania. Os aulicos difputa-
vam o favor, os políticos o poder, os jeluitas a confciencia
eis
cl?
5o
do novo dominador. E fácil adivinhar como do paço, onde
efteve durante largos mezes moribundo o rei D. João V,
faziam feu theatro os intereffes encontrados e as ardentes
ambições.
Os ferviços de Carvalho nas fuás enviaturas e a reputa-
ção dos feus talentos já o eífavam aprefentando candidato
a uma das fecretarias de eftado.
Mas n'aquelle tempo os homens mais illuftres pela lua
dexteridade, fciencia e bom confelho nos negócios de gover-
no, não entravam facilmente no poder, fe os não chamaíTe a
efficaz recommendação de algum alto valedor.
Eram muitos os méritos de Carvalho e zelofos os que
apregoavam fua fama. Eram porém mais numerolbs os feus
émulos, que procuravam deíTervil-o no animo do principe e
aííaftal-o para fempre do governo.
Os efcriptores ainda contemporâneos de Pombal, que
antes infpirando-fe na calumnia dos odientos libelliftas do
que no efpirito imparcial dos graves hiftoriadores, fe propo-
zeram a vingar no efladifta decaído os aggravos da Compa-
nhia e da nobreza, aíTeveram que Sebaífião de Carvalho á
fua volta de Vienna andara alhanando o feu caminho ao
minifterio, cortejando fervilmente os homens de maior auto-
ridade e os que tinham melhor entrada com el-rei D. João V.
Os que nos annos derradeiros do monarcha dominavam o
feu animo débil e enfermiço eram principalmente e em pri-
meiro grau o jefuita napolitano João Baptiíta Carboni, o fran-
cifcano Fr. Gafpar da Encarnação e o padre Jofé Moreira,
jefuita, confeífor de D. Jofé, então príncipe do Brazil. Afiir-
mam efles inexoráveis inimigos que Sebaftião de Carvalho fe
proftrava humilde, antes rafteiro pretendente, aos pés d'eftes
amigos e confelheiros do monarcha, procurando com indignos
artifícios alcançar o feu favor e recommendação, e moftran-
do-fe fervorofo adepto e defenfor da omnipotente Compa-
5i
nhia. Acrefcentam que os jefuitas, e os da fua parcialidade,
enganados pelo profpedo lifonjeiro de ter nos confelhos do
foberano, na peíToa de Carvalho, um inílrumento obediente, o
recommendavam com inftancias fervorolas a D. João V, indi-
cando-o como o fujeito mais capaz de reger a vafta monar-
chia, e que el-rci, adverfo ao pretendente, fe recufava tenaz-
mente a admittil-o ao feu governo, allegando que tinha,
como fe diz em phrale familiar, cabellos no coração". O
que parece verolimil e provável é que Sebaftião de Carvalho,
depois de ter defempenhado honrofamente as duas impor-
tantes legações, não ficaria ociofo e indolente na capital
fem que a lua energia fe mefclaífe ás agitações politicas
do tempo, quando eftava próximo a inaugurar-fe um novo
reinado. A elevada fituação, em que fe achava no mundo
official, lhe facilitaria naturalmente o acceífo aos homens do
governo ou do confelho. Sabendo que nas monarchias
abfolutas, e ainda em grande parte nas reprefentativas, a
eleição dos miniftros pende fempre da aífeição e alvedrio
do imperante, e que nas fuás rcfoluções figura como fador
o influxo dos validos, não deixaria de grangear os bons
officios dos que mais preponderavam no efpirito de el-rei.
Não é pois contra a boa razão que Sebaítião de Carvalho
fe acercaíTe do francifcano e do jefuita, cujo ódio ou bem-
querença lhe poderia cerrar ou delbbflruir o ingreflb no
poder. Não é porém crivei que, fegundo refere o feu maior
e mais cruel adverfario, fe fingifle jefuita e fe gloriaífe d'cfte
nome na prefença dos feus imaginados protectores.
Se havemos de acreditar no teftemunho de um agente
diplomático francez na corte de D. Jofé, o recolleto Fr. Gas-
' Vita di Sebafl. J. de Carvalho, tom. i, pag. 1 1 e i6. D'ertas defhonrofas im-
putações de baixeza e fervilifmo o defende e o vinga com fervor a obra, que
fe intitula Uadniiniflration du Marquis de Pombal, vol. i, pag. 227 e 228.
52
par da Encarnação, longe de ter favorecido a elevação de
Carvalho ao minifterio, ao contrario fentiria defprazer com
femelhante nomeação '. O francifcano ambiciofo, apefar da
humildade e rudeza do feu habito, havendo já por algum
tempo libado á cabeceira do moribundo D. João V a taça
do poder, mal poderia agora interceder por quem o fubfti-
tuiíTe na privança e audloridade. O alcetico mentor do frei-
ratico foberano cuidara porventura ter firmado com tamanha
folidez os feus créditos de eftadifta, que a paíTagem do fce-
ptro portuguez de umas a outras mãos não viria abalar ou
deítruir a fua preponderância no governo-.
Não é improvável, ainda que não atteflado por docu-
mentos, que os jefuitas favoreceíTem as ambições do leu
futuro e terrível antagonifta. Até áquelle tempo nenhuma
demonftração denunciara o ódio de Pombal contra a pode-
rofa e abforvente Companhia. Não era ainda chegada a fazão
própria, e talvez n'aquelle tempo o grande legiflador não
tiveíTe contra o inftituto de Santo Ignacio as mefmas pre-
venções, que lhe armaram depois em damno irreparável o
braço [vigorofo. Os jefuitas, diga-fe em verdade, efpiavam
diligentes cada novo talento que apparecia, anciofos por
ahflal-o em fuás hofles, ou contal-o fequer por alliado.
Sobradamente conheciam os méritos de Sebaftião, defejariam
porventura annuncial-o entre os feus devotados parciaes.
A diíTimulação e a prudência, a difcrição e a tenacidade
em faber efperar eram dotes preeminentes no carader de
Pombal. E próprio dos mundanos efladiftas o eleger os
alliados, fegundo o demanda a conjuncção, e aproveitar os
1 Oíficio do encarregado de negócios de França, Duvernay, ao feu governo,
de 4 de agoflo de lySo. Vifconde de Santarém, Quadro elementar das relações
politicas e diplomáticas, tom. vi, pag. i.
2 Ofricio do encarregado de negócios de França, Duvernay, de 1 1 de agoUo
de 17 5o, Quadro elementar, tom. vi, pag. 2.
53
auxílios dos próprios, que mais tarde haverão de perleguir
e profcrever. Ora SebaíHão de Carvalho era um d'eft:es polí-
ticos aa vida aftiva e praáhca. Acceitemol-o apenas Ibb cite
afpeílo, e não efperemos da fua indole, do feu tempo e da
atmofphera governativa, em que viveu, um afecta defpren-
dido de todas as terrenas ambições, rendido aos eftriftos
preceitos da ethica mais pura, e extranho por altiva indigna-
ção ás traças e artifícios da corte e da politica. Se foíTe poli-
tico ideal, governando com o Evangelho n'uma das mãos,
e a Imitação de Chrijlo na outra, o feu caminho não era para
os paços da realeza, nem para os gabinetes do governo.
A fua efí:rada era ou para os myfticos c filenciofos ermos
do BuíTaco ou para a vida agrefte c campefína da fua natal
e fertaneja povoação. Até os máximos talentos na moderna
arena parlamentar para fubirem e crefcerem e coroarem as
alturas do poder, precifam de cortejar. Os mais nobres cor-
tejam a popularidade, os medianos os chefes dos partidos,
os menos efcrupulofos a coroa, fonte e difpenfadora das
graças e mercês. Sebaftião de Carvalho não tinha tribuna,
onde patentear os feus talentos, nem povo, a quem apre-
fentar candidatura. Tinha fomente o rei, os confeííores e os
validos.
A rainha D. Maria Anna parece que era, porém, a fua
mais efficaz patrocinadora. A rainha era auftriaca e defde
Portugal efl;endia olhos faudofos á pátria e á dynaftia. hite-
reíravam-n'a em fummo grau os negócios do império. Car-
valho preíMra um bom ferviço a Maria Thereza. A mulher
de D. João V havia já facilitado o conforcio de Sebaftião.
Tinha agora junto de fi a condeíTa Daun, c[ue por fer com-
patriota lhe era mui acceita. As mulheres foram em todos
os tempos excellentes mediadoras em negócios de politica e
de ambição. Excluídas dos públicos oflfícios, fempre foi
n'ellas inclinação o vingarem a fua inferioridade legal exer-
eis
cendo o governo das recamaras e dos íalões, e ganhando na
direcção da fociedade pelas graças e attradivos da debilida-
de feminil o que muitas vezes os homens não confeguem
pelas traças e empenhos do feu máfculo vigor.
El-rei D. Jole fuccedeu no throno dos Braganças no i .°
de agofto de lySo. No dia feguinte conftituiu o feu miniíte-
rio, confervando como fecretario de eftado dos negócios do
reino ao invalido Pedro da Motta e Silva, e nomeando para
os negócios extrangeiros e da guerra a Sebaftião Jofé de
Carvalho e Mello. O abbade Diogo de Mendonça Corte-
Real, fobrinho do notável miniftro do mefmo nome em
tempos de D. João V, teve a repartição dos negócios da ma-
rinha e domínios ultramarinos, e foi quem exerceu o officio
de efcrivão da puridade no auto folemne da acclamação e
juramento do monarcha portuguez.
O novo gabinete, em que Pedro da Motta deveria repre-
fentar, como tradição do antigo reinado, o elemento confer-
vador, achava-fe formado, fegundo a norma dos miniflerios
portuguezes na antiga monarchia. Não era propriamente um
miniíferio na moderna accepção d'eíl:e vocábulo, fenão antes
propriamente o confelho do imperante. Os eftadiftas, que
n'elle figuravam, não eram obrigados a profeíTar eguaes opi-
niões fobre os mais altos aíTumptos da politica. Era quafi
habitual que entre elles fe paífaílem ao revez as mais fla-
grantes diíTidencias de doutrina e de aífeições. O rei elegia
um fecretario de eftado como nomeava um eftribeiro mór,
fem inquirir fe o novo eleito podia harmonicamente conviver
com os feus collegas do governo ou com os outros oflficiaes
da fua cafa. As invejas, as intrigas, as malquerenças, as ten-
fões interiores d'aquelle mal combinado fyftema de heterogé-
neos elementos, faziam neceíTariamente malbaratar grande
parte da força útil e produífiva e os negócios padeciam as
confequencias da aufencia de unidade no governo. Um efpi-
CM
55
rito vidente, enérgico, reformador, fentia-fe encerrado eftrei-
tamente n'aquelle âmbito, onde a largueza das concepções
mal acharia efpaço, em que expandir-fe. Ou o eftadifta emi-
nente haveria de refignar-fe a defpachar na fua dourada
oblcuridade o rafteiro e quotidiano expediente, ou teria de
levantar-fe tão llihido no animo e na confiança do íbberano,
que na altura a que fe ergueffe, deixaíTe abaixo do feu vulto
a figura quafi invifivel do imperante, e confi-indiíTe os collegas
obedientes e fijbmiíTos na turba dos feus efcribas e clientes.
No leio do gabinete não era, porém, difficil a Sebaílião
de Carvalho o tornar-le de fado o primeiro miniítro de
D. Jofé e avaíTallar ao feu talento os que com elle eram par-
tícipes no poder. Pedro da Motta era homem de edade já
proveóta, canfado de trabalhos, enfraquecido pela doença
pertinaz, que durante os últimos dez annos lhe não confen-
tia laír de cafa.. A fua cooperação no gabinete era por iífo
quafi nulla, e o embaixador francez d'aquelle tempo na corte
de Lifboa não lhe fazia com certeza uma oftenfa bem pun-
gente, quando efcrevia ao feu governo que Pedro da Motta
nada mais era que um autómato'. Todavia a fua longa
permanência no gabinete, aonde entrara em lySõ, e os res-
peitos, que a fua velhice e lealdade mereciam ao novo rei,
obrigavam Sebaftião de Carvalho a ter com o feu collega
obfequiofas deferências e a confultal-o com frequência nos
negócios do govenio-. O abbade Diogo de Mendonça era
antes um primorofo cortezão que um eftadifta mediano,
mais zelofo e diligente em amimar a innata propenfão de
D. Jofé para as diverfões e monterias, que esforçado em
" Memoria do conde de Bachi, embaixador de França, ao leu miniftro dos
negócios extrangeiros, de 5 de fcptemhro de 1754. Qiiadro elementar, tom. vi,
pag. 47.
2 Officio do conful francez Duvcrnay ao leu governo, de 3o de novembro
de 1751. Quadro elementar, tom. vi, pag. 18.
(|3
1 f
56
alTignalar por enérgicas reformas a fua breve paíTagem no
poder ' .
Sebaftião de Carvalho fobreexcedia os feus collegas de
toda a immenfa altura do leu talento, da fua longa e illumi-
nada experiência, e d'eíte dote ingenito, d'efta perfpicaz in-
tuição, com que fe nafce general ou eftadifta, com que defde
o principio da carreira fe alcança no campo de batalha uma
viftoria, como Conde ou Buonaparte, ou nos gabinetes do
governo um civico triumpho, como Sully e Richelieu.
Sebaftião de Carvalho não era homem, que depois de
tomar nas cumiadas a fua primeira pofição, fe contentaífe
em a defender paíTivamente. Doia-lhe no coração o eftado
laftimofo de Portugal. Ardia-lhe no animo o zelo fervorofo
de o reformar. Sentia-fe com pullb para obras tão gigantes,
que feriam quafi nova edificação fobre ruinas, como defbra-
var de charneca pedregofa apoz milhares de annos de mani-
nha. Os miniftros, que tinha de companheiros, eram homens
de entendimento mediano, incapazes de voos aherofos; um
por velho, enfermo, acoftumado a um regimen, onde a arte
de governar fe refolve em impedir os progreífos nacionaes,
o outro com ambições fem proporção com a fua capacidade
e, como fuccede fempre com os vaidofos e medíocres, fof-
frendo de maus olhos o talento fuperior.
Antes que o novo legiílador podeífe pôr em obra os vas-
tiíTimos planos, que porventura trazia já traçados na mente
penfadora, tinha de porfiar com grandes contradicções. Não
era o mais favorável e feguro o theatro, onde tinha de
exercitar-fe a fua indómita energia. Para que um incanfavel
reformador podeífe pôr o peito com vantagem á empreza de
infufflar novos efpiritos n'uma velha monarchia decadente,
' Officio do conful de França ao feu governo, de 3o de novembro de \-jbi.
Quadro elementar, tom. vi, pag. ig.
abatida, quafi a pique de cair na ultima ruina, era neceífario
que em meio do ambiente corrompido, onde havia de refpi-
rar, tiveíTe algumas propicias condições, que lhe ferviíTem
de valiofo adjutorio: um rei illuftrado, zelofo, empenhado
fer^'orofamente em expiar com generofos facrificios os erros
e abulbs do reinado antecedente e em intereíTar-fe com pro-
funda finceridade n'elta quafi rellirreiçáo da fua pátria. Era
alem d'ilTo neceíTario que as peflbas dominantes no animo e
na valia de D. João V, deixaíTem vacante o feu logar a novos
elementos congruentes com as idéas de larga reformação.
Cumpria ademais que fe as claíTes mais poderofas contradic-
taíTem o novo teor e norma do governo, as turbas popula-
res, pelo inítindo do feu próprio intereíTe, circumdallem o
audaz legillador com uma atmofphera de lenlata opinião.
Todas eflas circumftancias eftavam, porém, mui longe de
exiftirem n'aquella conjundura.
O rei não tinha um fó dos eminentes predicados, que
podem Juftificar o capricho da fortuna, ao confiar pelo acafo
do nafcimento a um homem predeftinado a fuprema e irres-
ponfavel direcção dos léus compatriotas. O feu eí piri to não
rafgava largos voos e a fua illuftração, defcurada fegundo o
ufo da cafa de Bragança, não podia contrapefar a mingua
dos talentos.
No rei a timidez completava a irrelblução.
As diverfões e palTatempos, entre elles, principalmente
as operas, as caçadas e monterias, conítituiam a fua mais
dileda occupação'. A rainha participava com el-rei nas mes-
mas venatorias predilecções e na mefma frivolidade corte-
zan^ N'efte ponto parecia continuar, fem a magnificência do
> OfRcio do conful francez Duvernay para o feu governo, de 7 de novembro
de 1752. Quadro elementar, tom. vi, pag. 24.
2 Memoria do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de 5
de feptembro de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 47.
eis
cl»
58
reinado precedente, a leviana complacência com as munda-
nas deleitações. O embaixador francez dizia ao feu governo
que era lem egual a diíTipação, em que vi\ia a curte por-
tugueza'. O thefouro empobrecido, apefar da aftluencia
inexhaurivel do oiro do Brazil, mal podia fatisfazer aos pro-
digiofos difpendios, com que o rei e a rainha tornavam apra-
ziveis e fauftofas as fuás diverfões^ Ainda mefmo defcon-
tando largamente nas exageradas proporções, a que os
teítemunhos contemporâneos elevam os gaftos do rei e da
rainha nas fuás continuas recreações, podemos acreditar que
os régios appetites deíTangravam com frequência as quafi
defertas arcas do thefouro-'. O embaixador francez não fe
alongava por extremo da verdade, quando aífeverava ao feu
governo que á indolente corte portugueza mais a preoccu-
pava a opera italiana e o feu cantor Cafarelli do que os gra-
viíTimos fucceífos que no mundo fe paífavam"'.
As influencias, que haviam predominado em tempos de
D. João V, não eftavam ainda inteiramente debelladas. A rai-
nha D. Maria Anna de Auftria, que pela fua extremada pie-
dade não deveria fer harto propicia a reformas e innovações
no poder ecclefiaftico, tinha acceífo aos confelhos de feu filho,
que com ella conferia em grande parte os negócios do gover-
' Officio do embaixador francez, conde de Bachi, ao feu governo de i3 de
fevereiro de 1 753, Quadro elementar, tom. vi, pag. 28. — Officio do mefmo embai-
xador, de 27 de fevereiro de 1753, ibid., pag. 3o.
2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 17 de janeiro de 1754:
«Que a familia real partira para Salvaterra e deixara o erário fem vintém». Quadro
elementar, tom. vi, pag. 42.
3 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 21 de janeiro de 1/55:
«Que el-rei partira para Salvaterra e. . . aquellas jornadas eramfobremaneiradis-
pendiofas ; que el-rei, eftando em Palma fem guardas, fem cafa, nem pagens e fo-
mente com a rainha, gaitara em quinze dias quinhentos mil cruzados". Quadro
elementar, tom. vi, pag. 5i.
4 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 29 de abril de 1755. Qua-
dro elementar, tom. vi, pag. 45.
«I»
59
no. Fr. Gafpar da Encarnação, faudofo d'aquelles áureos
tempos, em que o leu francifcano burel fe fazia obedecer da
regia purpura, não via com bons olhos o novo confelheiro
do Ibberano'. Alexandre de Gufmão, o antigo fecretario
particular de D. João V, não continha o feu animo irrequieto
nos limites de uma grave moderação, nem deixava ociofos
os feus grandes talentos de politico, empregando-os n'uma es-
pécie de furda oppofição". A alta nobreza. Já defde os prin-
cípios fufpeitára que em Sebaftião de Carvalho não teria
um ertrenuo dcfenfor. Eftava acoftumada a ingerir-fe indire-
ctamente no governo, não manifeftava uma notável affeição,
a quem não confentiria facilmente na partilha do poder \ As
machinações e os meneios encobertos ou hoflis não fahavam
em redor do monarcha inexperiente e irrefoluto ''.
O povo nos começos de um reinado novo faudava apenas
a novidade, porque fempre nos povos de fervente imaginação
é bemvindo e feítejado o que é defconhecido. Os longos e
monótonos reinados, como fora o de el-rei D. João V, fatigam
e aborrecem finalmente como um drama de eflirada contex-
tura. Mas os applaufos populares á fituação inaugurada não
fignificavam defejos vehementes de radical e ampla refor-
mação. Seria um erro o prefuppor que a geral opinião era
adverfa ao predomínio clerical, e que o tribunal da inquifição
e a companhia de Jefus fó na corte encontrariam favor e pa-
trocínio. A fuperftição, o fanatifmo, a ignorância alaflravam-fe
no paiz como um véu efpeíTo e impenetrável á luz da razão
1 Officio do conful francez, de 7 de novembro de 1752. Quadro elementar,
tom. VI, pag. 2 5.
2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 8 de janeiro de 1754.
Quadro elementar, tom. vi, pag. 40.
? Officio do conful francez, de 3o de novembro de 1751. Quadro elemen-
tar, tom. VI, pag. 18.
4 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 27 de dezembro de 1 752.
Quadro elementar, tom. vi, pag. 25.
CM
6o
e da fciencia. Sob os governos inquifitoriaes e obfcurantes
pôde ás vezes o povo murmurar; mas não fabe refleftir.
Taes eram os elementos, de que difpunha Sebaftiáo de
Carvalho ao tentar os primeiros paíTos na fua carreira minis-
terial. Era tão defanimadora e irremediável ao parecer a fi-
tuação de Portugal, que não feriam demafiados os máximos
esforços e talentos para o refurgir e animar. Todos quantos
órgãos fe neceílitam no complexo mechanifmo do governo,
eftavam em tão laftimofo eflado, que não era fácil difcernir
a qual d'elles primeiro acudira com providencias efficazes.
A adminiftração deforganifada; os rendimentos públicos es-
caíTos e lifados nas mãos dos exadores; o thefouro quafi
exhauflo ' ; o exercito reduzido á mais deplorável condição ;
a marinha quafi nulla; a defeza nacional inteiramente des-
prezada.
Se durante os primeiros annos do reinado precedente nas
relações de Portugal com os governos extrangeiros, principal-
mente com as grandes potencias europêas, mais de uma vez
um rafgo de altiva dignidade havia rememorado os velhos
brios portuguezes, nos tempos derradeiros de D. João V,
a nação caíra novamente na fubferviencia a extranhos orgu-
Ihofos. Da inhabilidade e fraqueza governativa de D. João V
havia faido como o frutílo mais damnofo o tratado de 1 3 de
janeiro de lySo, em que Portugal cedera á Hefpanha a coló-
nia do Sacramento, e que durante o reinado inteiro de
D. Jofé foi a femente ou o pretexto de acrimoniofas difllden-
cias entre as duas coroas peninfulares.
Em taes e tão adverfas condições principiava Sebaftião
de Carvalho o longo e memorável minifterio. As fuás facul-
> Os rendimentos públicos não chegavam n'aquelle tempo a dez milhões
de cruzados, fegundo uma memoria enviada pelo embaixador francez, conde de
Bachi, ao feu governo em 1754. Qiiadro elementar, xora. vi, pag. 49.
HÍ« «-V^
6i
dades eminentes, fafonadas pela experiência, não eram, po-
rém, inferiores á empreza, que tentava. Logo defde os pri-
meiros dias de miniftro a energia do feu animo fe defen-
tranhava em úteis providencias. Era activo, indefeíTo o leu
trabalho. Os próprios, a quem era mal acceito ou fufpeitofo,
rendiam efpontaneo teítemunho dos feus altos dotes de eftadis-
ta c da fua incanfavel applicação aos negócios do governo".
Um efpirito luperiormente illuminado, quando fe acom-
panha de uma enérgica vontade e de uma audácia inque-
brantável, fempre alcança levantar-fe acima do vulgar. A
pouco trecho depois de nomeado para o officio miniílerial
já o vulto de Carvalho começava a enlbmbrar as figuras dos
coUegas, affim como uma eítatua coloflal deixa quali imper-
ceptíveis os pequenos medalhões que lhe jazem aos pés ex-
ornando o pedeftal.
Ainda não era decorrido largo tempo após a fua entrada no
minifterio e já era voz commum que Sebaftião de Carvalho
conquiftaria em maior grau que os feus coUegas a confiança
do foberano. Era no feio do gabinete o vulto principal,
e dirigindo os negócios políticos da nação, já não reconhecia
egual nem fuperior-. Deixando apenas aos feus collegas os
negócios de puro expediente, era elle quem realmente prefidia
á adminiítração e á politica em todos os aífumptos importan-
' "O povo fazia juftiça aos feus talentos, e até a própria nobreza, que o fus-
peitava de querel-a arredar o mais poffivel do governo.» Officio do conful fran-
cez para o feu governo, de 3o de novembro de 1751. Qiiadro elementar, tom. vi,
pag. 18.
- «Sebaftião Jofé de Carvalho, fecretario de eltado dos negócios extran-
geiros e da guerra. . . podia fer confiderado como o principal miniftro; infati-
gável no trabalho, adivo e expedito, tinha conquiftado a confiança de el-rei,. . .
e no que refpeitava á direcção dos negócios políticos, ninguém mais a tinha.»
Officio do conful de França para o feu governo, de 3o de novembro de ijSi. Qua-
dro elementar, tom. vi, pag. 18. — Cf officio do mefmo conful, de 26 de janeiro de
1751. Ibid., pag. 1 1 1.
eis ftM
62
tes internacionaes ou interiores. Para acudir ao defpacho de
mil queftões e dependências em reino carecente de remédio
em tantas e tão graves enfermidades fociaes, a fortiíTima
tempera do feu animo e a fua robufta conftituição não fica-
vam inferiores á multiplicidade e afpereza do trabalho. Logo
defde os feus primeiros paíTos no governo fe põe de mani-
feíto que á frente do poder eftá realmente um eftadiíta,
infpirado em idéas e praxes mui diíferentes das que haviam
affignalado os frouxos miniíterios do monarcha devoto e ga-
lanteador.
Não é n'eítes primeiros annos de governo que Sebaflião
de Carvalho revela as fuás mais eminentes faculdades e fe
levanta defde logo ao nivel dos mais illuftres eftadiftas. Será
mais tarde, quando extraordinárias circumftancias exigirem
todo o esforço de talento e de energia, que o infigne refor-
mador apparecerá com toda a majeftade e refplendor do
rniniftro, que domina ao mefmo paífo os acontecimentos e
os homens, o rei e a nação, a adverfidade e a fortuna. No
tempo, que vamos agora contemplando, o previdente legiíla-
dor prova e enfaia a fua aéfividade em reformas e negócios,
que não têem ainda o vuho e a importância dos que mais
tarde o terão de aíTignalar ao aífombro e ao terror. O campo,
onde trabalha, ainda não confente ampliíTima cultura. Ainda
Sebaftião de Carvalho não impera omnipotente no animo
do rei. Ainda não fe vê defapreífado de todas as influencias
rivaes e de todas as contradicções palacianas. Ainda não pôde
tomar nas mãos a argilla informe de um paiz inculto e arrui-
nado, e modelal-a a leu talante, fegundo o archetypo ideal,
que o feu efpirito concebeu e madurou. Nos feus primeiros
aftos de governo é como um grande artifta, que na officina
ainda eítreita e mal illuminada experimenta o efcopro e o
cinzel, e exercita em efboços imperfeitos o eftro na conce-
pção e a deftreza no trabalho. É a epocha do eftudo e in-
^
bò
quirição. É o architecto contrafeito, que procede ás mais
urgentes reparações no vetufto edifício focial, para que não
venha a terra derribado, emquanto apparelha a nova traça
com que íblidamente o ha de reííaurar.
Os léus cuidados mais inílantes fão defde logo dedicados
ao que elle reputava juílamente a primeira neceffidade e con-
dição de um povo independente e policiado. Trabalhar, pro-
duzir, commutar, refgatar-íe quanto poffivel da tutela econó-
mica e politica de extranhos, crear pelo effeito da própria
adividade a maior Ibmma de produclos, aproveitar da ma-
neira mais dilcreta os recurfos naturaes, eis ahi o problema
capital, que uma nação ha de forçolamente relblver, fe pre-
tende infcrever-fe honrolamente na liíta dos povos civilifados
e engrandecer-fe pelas conquiftas incruentas, mas as únicas
reaes e verdadeiras, da intelligencia e do trabalho.
A induftria, que nunca em Portugal fora florente, chegara
a decair de tal feição, que até dos mais humildes artefados
fe provia nos mercados exteriores.
A agricultura, avexada ao mefmo paíTo pelas ablurdas
e iníquas leis agrarias, pela irracional conftituição da proprie-
dade territorial, e pelo defleixo e ignorância das claíTes agri-
cultoras, obrigava Portugal a pedir aos extranhos perenne-
mente que lhe enviaíTem em grande parte os cereaes de que
fe nutria. O commercio, que em tempos não remotos fizera
de Portugal o grande empório, eftava quafi de todo concen-
trado nas mãos dos extrangeiros. O immenfo território, que
portuguezes tinham avaífallado em todo o globo, quando
portuguez e conquiftador eram fynonymos, deixavam-n'o
governos indolentes defaproveitado para os lucros mercantis.
O oiro e os diamantes do Brazil faldavam as prodigalidades
realengas e a quieta ociofidade nacional. Portugal recortado
languidamente nos coxins, onde em efpirito e corpo dormi-
tava, alongava os olhos cubiçofos para as terras auríferas,
eis
^4
que julgava inexhauriveis, e á lemelhança dos feus morgados
foberbos e preguiçofos, defdenhando o trabalho por fervil, e
a induftria por plebêa, efperava a nau dos quintos com a
anciofa expeítação, com que a plebe romana faminta, mas
altiva, aguardava as naves onerarias carregadas de trigos
extrangeiros.
O primeiro e mais urgente dos problemas governativos
era pois reanimar a induftria e o trabalho, produzir e fixar a
riqueza em Portugal. As foluçóes, com que o miniftro bufca
fatisfazer efta queftão, nem fempre, confideradas á luz da
moderna fciencia focial, merecem elogio.
E porém fempre louvável a intenção. Não era n'aquelle
tempo ainda formada como corpo doutrinal e pofitivo, a eco-
nomia politica. Vogavam como axiomas muitas doutrinas,
que hoje fe condemnam por erróneas e funeftas á profperidade
nacional. O fyftema mercantil, fundado na falfa interpretação
das grandezas económicas de Veneza, de Génova, de Hol-
landa, de Portugal, quando fenhor do commercio no Oriente,
dominava feguro nos efpiritos. A nação, que abforvia e con-
centrava a maior fomma de metaes preciofos, era julgada a
mais opulenta e a mais feliz. Trafladando para o governo
dos eftados a máxima fundamental da avareza inerte e cubi-
çofa, cifrava-fe no oiro toda a riqueza das nações. Era Por-
tugal um dos eftados, que a natureza mais favorecera com
efta benção apparente e enganadora. Mas confumindo o paiz
as mercadorias extrangeiras, principalmente as inglezas, e
não tendo como retorno produdos fuíficientes da fua indus-
tria ou do feu folo, o oiro filtrava-fe naturalmente para fora
de Portugal atravez do crivo das feveras prohibições. A cor-
rente duplicada dos extranhos artefaéfos e das efpecies pre-
ciofas, em virtude das leis económicas, tão foberanas e impe-
riofas como a lei da gravidade, refiftia ás mais feveras
comminações. O contrabando por uma fatal neceíTidade
CM
65
reftitue o equilíbrio, quando a cega legillação vem pertur-
bal-o com as luas inconfideradas reftricções.
Carvalho com a penetrante intuição do grande talento,
que prefente e adivinha, alcançava já romper os efpeíTos
nevoeiros das velhas monarchias, e antecipar-fe ás modernas
e verdadeiras concepções da economia Ibcial. As luas máxi-
mas juftas e concordantes com a pura theoria apparecem já
mefcladas com os erros económicos. Por mais vidente que
um elpirito fe alteie, nunca pôde inteiramente libertar-fe dos
preconceitos do tempo, em que viveu. Carvalho admittia
que uma nação, que das outras depende para a lua própria
fubfiítencia, bem depreíTa cairá na fervidão, e fera a fácil
preza de um vulgar conquiflador. ProfeíTando claramente
que fó a agricultura e o trabalho fabril conflituem a felicida-
de focial e lao o firme fundamento da lua permanência,
Carvalho, diíTentindo dos erróneos princípios confagrados
no reinado antecedente, aflevera que fe uma nação concentra
unicamente nas minas do oiro e prata a fua predilecção e
o feu esforço, terá necelfariamente de perecer. Exaggerando
fobremaneira as próprias verdades económicas, acredita que
os metaes preciofos lao apenas riquezas fidlicias e apparen-
tes, os feus jazigos thefouros funeíllífimos, e os eftados, que
os poífuem, apenas os feus meros diftribuidores.
Se Carvalho, porém, não confiderava o oiro do Brazil
como o efplendido cimento da profperidade e riqueza nacio-
nal, antes á fua Irrefiftivel feducção attribuia a decadência e
o lethargo do trabalho no folo e na ofíicina, via com maus
olhos que a Inglaterra cubiçofa, a troco da fua alllança nem
fempre cordial e dos feus auxílios mais de uma vez ineffica-
zes nos tranfes mais dlfficeis, dominaífe Portugal pelo feu
ampllíTuTio commercio e pela fua politica ambiclofa para com
as menos poderofas e enérgicas nações. Portugal era na phrafe
do eftadlfta como um vafto amphltheatro, em que os portu-
e|»
66
guezes eram apenas efpcdadores, lem que lhes folTe permit-
tido participar na reprefentação. Os inglezes, dizia o miniftro
de D. Jofé, monopolifavam de todo o ponto o commercio
do Brazil. Nada havia n'elle de portuguez, fenão o nome.
Em meio do feu immenfo trafico, que parecia opulentar e
engrandecer a Portugal, a fua força decaía a cada paíTo, e os
inglezes embolfavam os proventos das extenfas grangearias.
As allianças, continuava o eftadifta, fão apenas vinculos inte-
reíTeiros e egoiítas, porque o eítado que para ellas contribue
com o máximo poder, efpera também o máximo proveito.
A dependência de Portugal a refpeito da Inglaterra era, no
fentir do reformador, quafi tão vexatória e oppreíTiva, qual
fora a lujeição aos reis de Hefpanha. Emancipar o feu paiz
da tutela politica e mercantil das grandes potencias euro-
pêas, e principalmente da higlaterra, é o penfamento, que
tranfparece defde os feus primeiros tempos de minirtro nos
ados legiflativos de Carvalho.
D'ahi procedem os rigores inefiíicazes, com que pretende
cohibir a illegal exportação do oiro, e as acertadas provi-
dencias, com que logo de principio fe confagra a crear de
novo a induftria nacional, a favorecer a agricultura, a infuf-
flar novos efpiritos no commercio quafi preítes a extinguir-
fe. Tornar Portugal independente dos extranhos, na vida
económica e politica, tanto quanto o pôde permittir a har-
monia internacional, eis ahi a fua confiante e larga afpira-
ção. E por iffo que as fuás primeiras providencias fifcaes fe
encaminham a facilitar e proteger o trafico das principaes
produções agrarias do Brazil". E por ilTo que bufca prote-
ger a induftria das fedas, outr'ora florefcente, promovendo
com eftimulos e prémios valioíbs a plantação das amoreiras
' Regimento dos direitos do tabaco e do aíTucar, de i6 de janeiro de !~5i.
Decreto de 27 de janeiro do mefmo anno. Decreto de i5 de dezembro de 1752.
HC»- -<í>-^
e prohibindo leveramente a exportação da matéria prima';
é n'eíre intento que fe empenha em fomentar a refinação do
aíTucar^, concedendo notáveis privilégios a Henrique Schmitz
e prohibindo a importação extrangcira; é por iíTo que con-
cede a todos a plena liberdade de defcobrirem novas minas
de prata e outros metaes na America portugueza^.
As vaftiffimas colónias de Portugal no antigo e novo
mundo, tão fecundas e opulentas pela próvida mão da na-
tureza, tão defaproveitadas e ociofas pela incúria dos gover-
nos, attrahem defde logo a attenção do folicito legiflador.
Portugal havia perdido para fempre a fupremacia mer-
cantil no Oriente. O trafico da Afia, reduzido a diminutas
proporções, atteítava a indolência de uma nação, que abrira
aos demais povos europeus o caminho da índia oriental.
Não era já poffivel evocar um paíTado riquiffimo de glorias
e não menos de grangeios commcrciaes. Porém o patriotifmo
de Carvalho, illufo, mas não menos fincero e fervorofo, ima-
ginou que o monopólio alcançaria o que a liberdade mer-
cantil não poderá conquiftar. E em verdade não era indes-
culpável o erro do minifiro. Se o campo aberto largamente
á concorrência e ao livre tráfego, o deixava a inércia na-
cional cada vez mais decadente e infecundo, porventura lo-
graria o monopólio a miraculofa refiarreição do commercio
oriental. Eis ahi a explicação do exclufivo decretado por dez
annos com privilégios quafi majeftaticos em favor do opulen-
to contratador do tabaco, Feliciano Velho Oldemberg, e as
efperanças deluforias de que efte mercador faria reflorir o
trato portuguez na índia e na China*.
' Lei de 20 de fevereiro de 1752.
2 Decreto de 14 de julho de 175 i. Decreto de i3 de janeiro de 1755. Pro-
vifão regia de 24 de maio de 1753.
3 Alvará de 4 de maio de lyóS.
4 Decreto de 16 de março de 1753.
4» «Jí
68
As inexhauriveis riquezas da America, haftantes a crear e
nutrir um grande império, ferviam unicamente a enriquecer
os inglezes, em cujas mãos ambiciofas, mas enérgicas, fe en-
feixavam as emprezas commerciaes.
Não bailava declamar contra a britannica avareza, que
era a confequencia juftiflima e natural da adtividade e do
talento mercantil da Gran-Bretanha, e da conhecida negação
de Portugal para os intentos económicos e para o trabalho
produótor. Se a America, entregue apenas á liberdade e á es-
téril iniciativa dos indivíduos, é como um immenfo e bravio
latifúndio, invoque-fe como eftimulo e remédio o privilegio
commercial. Contraponha-fe ao monopólio natural de uma
nação adiva e induftriofa o monopólio artificial de uma po-
derofa companhia. Tal foi em parte a infpiração que produ-
ziu a companhia do Grão-Pará e Maranhão inftaurada pelo
impulfo governativo e bafejada com a mais larga protecção
e os máximos favores e privilégios". Era convidativo e tenta-
dor o exemplo da celebrada companhia das índias, fob cujos
aufpicios fe confolidára e engrandecera o império britannico
no Oriente. Outras menos famofas em diverfas nações com-
merciaes eftavam egualmente incitando o legiflador a confiar
ás poderofas aíTociações o trato mercantil nas fecundas re-
giões americanas. Era o penfamento que no feculo antece-
dente tinha forrido como eííicaciífimo recurfo para cultivar
fruftuofamente em proveito da metrópole as colónias portu-
guezas. Era ao mefmo paíTo a primeira tentativa de natu-
ralifar em Portugal eftes poderofos inftrumentos económi-
cos, fem os quaes feriam impoíTiveis as emprezas coloíTaes,
que pela cooperação dos capitães e dos esforços colledivos
operaram os milagres portentofos da prefente civilifação. Se
nos tempos de agora fe deixaíTe ao alvedrio de cada um o
■ Alvará de 7 de junho do 1755.
conftruir e grangear os caminhos de ferro, que exigem capi-
tães mui fuperiores aos do mais opulento particular, as na-
ções do mundo policiado ainda hoje eftariam condcmnadas
aos lentos e difpendiofos meios de communicação e de trans-
porte. Sem a poderofa alavanca das grandes companhias to-
das as emprezas induftriaes de largo tomo feriam impoíTiveis
ou illuforias. Ao principiar a adminiítração de Sebaftião de
Carvalho, o commercio e o grangeio dos vaftiífimos territó-
rios portuguezes na America não achava nos indivíduos
particulares a refolução e o cabedal, com que podeíTem tor-
nar-fe proveitofas e fecundas as riquezas do Novo Mundo.
A liberdade é o principio falutar, de que dimanam todas as
profperidades e progreíTos de uma nação, que a fabe ou a
pôde aproveitar. A liberdade fó por fi é apenas um ambiente,
mas para fer fruftuofa e produftiva é neceíTario que com ella
fe aíTocie a educação e a energia peíToal. E enorme, é vivifi-
cante a maíTa da atmofphera, mas é precifo ter órgãos accom-
modados para ahi viver e refpirar. Ora o povo, que D. João V
legava ao feu herdeiro, era um povo incapaz de acção indi-
vidual. Era precifo que o poder, ou fe fubftituiffe fatalmente
á vontade popular, ou commetteíTe á defidia e inacção pro-
verbial o encargo de levar o paiz á ultima ruina. O ideal do
bom governo de uma nação chegada, como a União ameri-
cana, á mais larga expanfão do penfamento e da adividade,
é que as fuás funcções habituaes fe contraiam e limitem ao
que intereífa á inteira fociedade e não pôde caber no arbítrio
de cada cidadão. A milfão capital do poder publico é então
o manter a liberdade, e para a defender e recatar o prover á
juífiça e á fcgurança da nação. É apenas como o volante
n'um perfeito mechanifmo. Modera e equilibra, mas não pô-
de diredamente produzir, nem trabalhar.
É fob eíte afpedo que, para fermos juftos e verdadeiros,
havemos de contemplar as providencias económicas de Se-
eis
baftião de Carvalho. Confrontal-as com os rigorofos theore-
mas económicos, e condemnal-as por abfurdas, feria como
fe aquilatando o edifício tofco e paíTageiro, levantado, fegun-
do a occafião, para abrigo neceíTario contra as bravas intem-
péries, rijamente o cenfuraíTemos por difcorde das regras
architectonicas de Vitruvio ou de Vignola. A economia politi-
ca é em verdade uma fciencia experimental e pofitiva nas fuás
doutrinas fundamentaes, aífim como a mechanica racional
é nos feus fundamentos inabalável. Nas applicações, porém,
de uma e de outra aos problemas particulares, o dogma
ideal, o archetypo theorico ha de forçofamente modificar-fe,
n'uma ás condições indeílrudiveis da matéria, na outra ás
temporárias condições de cada fociedade.
Também o principio eífencial de toda a induftria real-
mente nacional e produtiva, é a liberdade e a iniciativa An-
gular ou livremente cooperativa. Porém, quando eftas quali-
dades inteiramente faltam n'um paiz, o governo abfoluto e
omnipotente, arrogando-fe a fuprema direcção n'uma efpecie
de meio-focialifmo, fe transforma, fe é adtivo e diligente, em
mercador e fabricante univerfal. As induftrias, que elle infti-
tuiu e bafejou, podem talvez um dia fer o gérmen do traba-
lho efpontaneo e inteUigente, defpeiado de todas as tutelas e
coacções governativas. O empenho do enérgico reformador
é pois como os defvelos e carinhos, com que o perfeverante
e próvido cultor eíleve animando a planta exótica e ainda
rebelde, que mais tarde aclimatada largamente poderá avul-
tar em bofque extenfo.
A fituação moral do paiz não era mais rifonha que o feu
eftado adminiftrativo e económico. Era lafíimofa a diífolução
dos coítumes, precária a fegurança das peífoas e proprieda-
des ainda mefmo no feio da própria caphal. A nação abun-
dava principalmente em ociofos. O ócio conduz naturalmente
á íbltura dos coftumes, e d'ahi facilmente fe defcae nos atten-
tados e nos crimes, que perturbam a paz publica e degra-
dam a nação.
Os falteadores e bandoleiros infeftavam infolentes e im-
punes a capital e as provincias, em maior grau a do Alem-
tejo, que por mais defpovoada, com os léus immenfos lati-
fúndios e charnecas, fe accommodava com mais facilidade ás
correrias e latrocínios dos audazes malfeitores. Era frouxa a
autoridade, não a temiam os culpados. Era urgente acudir
com promptas providencias e reflaurar o império da lei e da
juftiça. A efle fim focial fe dirigiram vários diplomas legiflati-
vos logo defde os primeiros tempos, em que pelo vigor e
acerto das reformas fe eílava denunciando a prefença de
Carvalho, o indefeíTo infpirador do minifterio. Reprime-fe
a impunidade e a frequência dos ladrões formigueiros e
damninhos'. Legiflam-fe penas feveriíTimas contra os que
fe opponham á juftiça e arrebatem das fuás mãos os delin-
c[uentes fem exceptuar as peífoas da mais eminente qualida-
de*. Promulgam-fe providencias efpeciaes para eftirpar de vez
os aífaltos e as violências das cjuadrilhas no Alemtejo^, e
para tornar prompta e eííicaz a acção da juftiça criminaH.
Procura o miniftro debellar o abufo funeftiffimo com que a
força militar, em vez de contribuir á fegurança interna e ao
refpeito da lei e do poder, fe eximia a auxiliar os magiftra-
dos na perfeguição dos criminolbs e muitas vezes contradizia
as diligencias judiciaes\
Defde os feus primeiros paífos no governo a pcrfpicacia
do novo miniftro de D. Jofé comprehende que é o Brazil a
1 Alvará de lei de 12 de septembro de 1750.
2 Alvará de lei de 8 de julho de ijSi.
3 Decreto de 7 de agofto de 1751.
4 Alvará de 14 de agoílo de ij5i. Lei de ig de outubro de 1754, para fe
prenderem os delinquentes fem culpa formada em cafos de pena capital.
5 Decreto de 22 de outubro de lybi.
1 '
CM
4S^
.h5>-§.
fonte principal da riqueza para a metrópole e o fundamento
eíTencial da ília grandeza e profperidade. A companhia do
Grão-Pará e Maranhão era o inítrumento, que fe lhe afigu-
rava mais poderofo para reanimar o commercio n'aquellas
vaftas e opulentas regiões. Mas como condição impreterível
para a fua florefcencia era neceíTario que no Brazil fe exci-
taíTe a cultura e aproveitamento dos produdos naturaes. Era
pois conveniente e politico o convidar por meio de providen-
cias humaniíTimas os indios incultos e fylveftres á commu-
nhão civilifada, admittindo-os como irmãos na fé e na liber-
dade ao grémio da nação. Um dos adlos mais infignes de
Carvalho foi pois a lei ', em que fe favoreceram com privilé-
gios Angulares as peíToas de procedência portugueza, que na
America fe cafaífem com indios do Brazil, e fe declarou não
incorrerem em infâmia por eífe fa6to, antes fe haveriam por
merecedoras do favor e da graça do foberano.
Não fatisfeho o Icgiflador com efta primeira providencia,
que eítimulava o augmento da povoação, falu pouco de-
pois com outra lei- ainda mais humana e memorável, em
que fe declarou ferem livres os indios do Brazil, e fe reno-
vou e fufcitou a obfervancia de outros aflos legiflativos,
que fobre o mefmo aífumpto fe tinham promulgado defde
iSyo até 1680. No mefmo tempo fez Carvalho publicar a
bulia Immenfa pajtorum, em que o papa Benedido XIV de-
clarava livres aquellas povoações até alli oppreífas e avexa-
das pela cubica e immanidade dos colonos. Feitos agora em
tudo eguaes aos europeus, fuj eitos á coroa de Portugal, fal-
tava completar a emancipação dos indios do Pará e Mara-
nhão, reduzindo-os á lei commum, quanto ao governo tempo-
ral. Os miíTionarios, principalmente os jefuitas, confundindo
■ Lei de 4 de abril de 1755.
2 Lei de 6 de junho de ijSi.
7J
como fuccede com frequência, as raias, que íeparam da in-
fluencia efpiritual o poder politico inamiíTivel e inherente á
Ibberania, haviam convertido a lua direcção religiola em tu-
tela profana e temporal. Toda a legiflação da egreja defen-
dia aos religiofos o ingerirem-fe na adminiftração civil dos
territórios, onde eftavam exercitando as fuás miíTôes. Mas os
jefuitas, que aíTrontavam os defcommodos e os perigos das
fuás perfeverantes emprezas no Ultramar, ambiciofamente
pretendiam governar politicamente as felvaticas gentes, que o
preftigio do feu verbo e o esforço da fua acção attrahiam ao
redil. Como operários incanfaveis lidando com mil fadigas no
amanho da vinha efpiritual, não fe efqueciam de ajuntar ao fa-
lario divino e evangélico as gages profanas e mundanaes, não
para fi, porque o individuo defapparecia no intereíTe com-
mum da fua ordem, fenão para acrefcentar a força e o po-
der do inftituto deftinado a dirigir e governar com as appa-
rencias da abnegação e da humildade, os monarchas e as na-
ções. Carvalho, completando a legiflação acerca dos indios
no Brazil, como preludio da fua longa e tenaz oppofição ás
invafóes temporaes do poder eccleíiaftico, e em confirmação
de mais antigas leis, legifla as difcretas providencias, que
prohibem aos miíTionarios o mefclarem-fe no governo poli-
tico e civil dos indios americanos'. É a primeira vez que a
poderofa Companhia apparece mencionada na legiflação do
grande e oufado reformador. E a primeira vez que elle re-
memora aos ambiciofos invafores a manifelfa profanação com
que, tranfgredindo a fantidade dos feus votos e a lettra ex-
preífa dos cânones e conftituições apoítolicas, fe arrogam o
minifterio e governo temporal.
Todos eftes actos legiflativos, que excediam o modeílo
I Alvará com força de lei de 7 de junho de 1755, renovando e fufcitando a
lei de 12 de septembro de i653.
74
nivel do ordinário expediente e denunciavam o propofito de
mais ampla reformação, não podiam menos de excitar a
malquerença, e a fanha implacável dos que defejavam perpe-
tuar a indolência do reinado antecedente. A companhia do
Grão-Pará levantou defde logo em muitos homens de nego-
cio uma violenta oppofição. A confraria do Efpirito Santo
da Pedreira, com o titulo de Mefa dos homens de negocio
que conferem o bem commiim do Commercio, reprefentou
energicamente contra a nova inftituição, que traíladava á
companhia do Grão-Pará a melhor parte do trafico portu-
guez na America do Sul. Aqui fe manifcífou a primeira vez
a tempera e a feição governativa do miniftro inexorável, que
não foíTria contradicções. A Mefa do bem commum foi imme-
diatamente dilTolvida. Inftituiu Carvalho em feu logar a
Junta do Commercio, corno pura repartição official, forman-
do-a de homens de negocio, que mereciam a confiança do
governo. E para que fe viíTe defde logo qual era a forte des-
tinada aos que oufaíTem tolher ou ohflruir o caminho das
reformas, os membros da extindfa confraria efpiaram com o
deíterro o abufo de fe opporem ás idéas económicas cio au-
daz reformador. O advogado João Thomaz de Negreiros,
que minutara a reprefentação da Mefa do bem commum, foi
fentir n'um degredo de vinte annos em Mazagão quanto é
perigofo profeíTar opiniões n'uma irrefponfavel e abfoluta
monarchia. Os mefarios padeceram egualmente a pena de
defterro, defde féis até dois annos; alguns n'aquella mefma
praça de Africa, outros em terras de Portugal'.
Já áquelle tempo eram decorridos cinco annos defde que
o novo confelheiro do monarcha tomara nas mãos robuftas
o leme do governo. Os intereíTes oífendidos tinham já dado
rebate, bufcando dar um talho vigorofo ao crefcente poderio
Decreto de 3o de septembro de 1755.
(I9
de Carvalho. A rainha viuva, que porventura junto do fobe-
rano teria abroquelado o eftadiíía contra as inlidias e meneios
dos feus adverlarios já feitos em corpo de oppofição, ceíTára
de viver cm 1754. Os jefuitas, antevendo o rumo que ia le-
guir a governança, andavam já de íbbreavifo e pelo menos
em mal coberta hoftilidade. As providencias, que aboliam
o fcu império temporal no Grão-Pará e Maranhão, vibradas
como o primeiro golpe ás ambições da Companhia, denun-
ciavam que o inimigo, fem tentar ainda os rijiffimos recon-
tros e as batalhas decifivas, que a haviam de render e ani-
quilar, invocava contra ella a humildade e o deíapego dos
interelTes mundanos e carnaes. Firmando-fe, como em po-
fição inexpugnável, na evangélica doutrina de que não é d'es-
te mundo o reino de Deus, já fe eftava armando e aperce-
bendo para as ultimas vidorias contra o poder abXorvente
da invafora fociedade.
Os jefuitas não eram pois talvez extranhos á oppofição,
que ia engroíTando e elcondendo as fuás miras egoiftas na
defenfão dos públicos intereíTes, e dando aos feus clamores
e aos feus ódios a fancção das vozes populares. O jefuita
Manuel Balleil:er, pregando na fé de Lifboa na occafião
de promulgar-fe a inftituição mercantil do Grão-Pará, cifra-
va a fua prédica n'uma allegoria, em que a fociedade efpiri-
tual de Deus com os homens fe figurava femelhante a uma
companhia de commercio, onde os homens tinham a me-
lhor parte no grangeio. Alguns quizeram ver no fimile do
orador uma allufão direita e aggreíTiva á nova inftituição tão
predilefta de Carvalho. O padre Ballefter, apefar de valiofas
interceífões, expiou com o exilio a fogofa indifcrição das
fuás parenéfes.
O mais inexorável inimigo de Carvalho e o mais ardente
apologifta da fociedade de Jefus efcreve que o jefuita Bento
da Fonfeca experimentara egual rigor, porque, fendo conful-
CM
76
tado por alguns negociantes fobre as vantagens da compa-
nhia do Grão-Pará, manifeftára opiniões hoílis áquella empre-
za commercial'.
Attentando nos intereíTes que ligavam os jefuitas ao Pam
e ao Maranhão, e cotejando-os com eftes fados cnarrados
por teftemunha tão livre de fufpeições, é licito o aventurar
que os jefuitas moveriam contra Carvalho todas as armas,
que lhes miniftrava no púlpito a influencia da fua palavra,
no confeíTionario a fua dominação nas confciencias, na corte
a fua intimidade com a nobreza, no paço a fua entrada com
el-rei. Já por aquelles tempos o embaixador francez, conde de
Bachi, inimigo declarado de Carvalho, contradiftor das fuás
reformas, e parcial dos fidalgos portuguezes, efcrevia ao leu
governo que o miniífro era aborrecido de todos os grandes
e dos que tinham algum valimento com o foberano". Egual-
mente annunciava por eíta occafião que o eíladifta padecia
frequentes diífabores, e que apefar dos meneios dos Icus
antagoniítas mais e mais fe confirmava na confiança do mo-
narcha. E de feito já n'aquelle tempo era vifivel que o minis-
tro dos negócios extrangeiros e da guerra predominava nos
confelhos e concentrava em fuás mãos a fuprema direcção
dos negócios públicos-*. Pedro da Motta, encarcerado em fua
recamara pela enfermidade e a velhice, não podia certa-
mente difputar ao feu collega o primeiro logar na admi-
niftração. Mas o fecretario de eftado da marinha, Diogo
de Mendoça, não fe defcuidava de fomentar no feio do
gabinete a diíTidencia. Parece que nos primeiros tempos do
> Vila di Seb. Giiifeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 5o e 5i.
2 Ofllcio do embaixador francez, conde de Bachi, de 5 de feptembro de
1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 17.
3 «Sebaftião Jofé de Carvalho, miniítro dos negócios extrangeiros, era o
único e verdadeiro depofitario do poder e autoridade real.» Officio citado. Qiia-
dro elementar, tom. vi, pag. 48.
-^<í>- —^
|-4>- -H^-f-
minirterio, ainda a Ibmbra de íeu tio, o principal fecretario
de eítado de D. João V, o protegia e amparava para que fos-
fe preferido no favor do novo rei. Affim o vemos fer defi-
gnado para exercer as altas e honorificas funcções de efcri-
vão da puridade no auto da acclamação e juramento de D.
Jofé. Affim o vemos egualmente fubfcrever os principaes e
mais importantes diplomas governativos nos impedimentos
do fecretario de eftado de maior graduação e antiguidade.
Não é temerário o fufpeitar que Diogo de Mendoça, como
hábil e fino cortezão, empregava as fuás mais efficazes dili-
gencias para conquiílar no animo do rei a graça e a valia.
Nas frequentes diverfões, a que feguia a corte, nas caçadas
de Palma e Salvaterra, não fe efquecia de aproveitar a au-
fencia de Carvalho para o deíTervir e malquiftar, fegundo é
eftylo de aulicos medíocres, mal foífridos e invejofos dos mé-
ritos alheios".
Além da inftituição da Companhia do Grão-Pará muitas
outras providencias affignalaram os primeiros cinco annos do
minirterio de Carvalho. O commercio de Moçambique foi
declarado aberto e livre a todos os moradores da Afia por-
tugueza com a única excepção de uma fazenda, conítituida
em régio monopólio ^ Na pragmática ou lei fumptuaria de
24 de maio de 1749, em vão intentara D. João V, o mais
luxuofo e magnifico monarcha, fob penas feveriffimas en-
frear o luxo em feus eftados, e reduzir os feus fieis vaífallos
a efpartana fimpleza no trajar e no viver. Procurara ao mes-
■ "O miniftro Carvalho partira também logo para Salvaterra, por iffo que
eftava efcarmentado do mau effeito que produzira a fua aufencia de Palma,
aonde não tendo podido acompanhar a el-rei, o feu contrario, o abbade de
Mendoça, foubera tirar d'ino todo o proveito." Officio do embaixador francez,
conde de Bachi, para o feu governo, de 2i de janeiro de 1755. Quadro elemen-
tar, tom. VI, pag. 5i.
2 Lei de 10 de junho de ijSí, declarando livre o commercio de Moçam-
bique, exceptuado o vellorio.
^T*"
w
T*
mo tempo, por um meio indiredo, mas illulbrio, deílerrar
do mercado portuguez as mercadorias extrangeiras e oppor
um dique frágil á corrente natural do oiro do Brazil para fora
de Portugal. Era eíte um abfurdo económico tão flagrante,
que parecia urgente corrigir com algum aviíado tempera-
mento as fuás extravagantes prefcripções. Um diploma le-
giflativo' occorreu a emendar as mais oppreíTivas difpoíi-
ções, mantendo porém o penfamento de proteger e animar,
a foro de prohibir as fazendas extrangeiras, os produdos da
induftria nacional. O officio dos cortadores era havido no
preconceito nobiliário, tão vulgar em terra de fenhores e de
fidalgos, como viliflimo e quali infame. A pragmática de
D. João V defendia aos ofíiciaes mechanicos o trazerem es-
pada ou efpadim. Pois agora, fob o novo regimen fumptua-
rio, efta inlignia de fidalguia fera concedida aos cortadores,
e um d'eíl:es humildes officiaes depois de exercer no talho
o feu mifter, poderá pompear na rua a fua efpada, roçando
com a ponteira no efpadim cinzelado e preciofo dos Avei-
ros e dos Tavoras. O mefmo privilegio comprehendia a to-
dos os mefteiraes embandeirados e a outros honrados tra-
balhadores, porc[ue (dizia o legiflador) «aos referidos é minha
intenção honrar como peíToas úteis ao meu ferviço e ao bem
commum de meus reinos-». Aílim preludiava o miniflro de
D. Jofé ás futuras providencias, com que havia de precipitar
das fuás arrogantes eminências a nobreza hereditária e ocio-
sa e levantar defde o feu abjedto vilipendio a plebe trabalha-
dora e defprezada.
Entre as mais difcretas providencias decretadas pelo mi-
nifterio de Carvalho figuram os numerofos regulamentos,
em que fe fixaram os vencimentos de todos os tribunaes e
• Alvará de 21 de abril de ly.Si.
2 Alvará de 21 de abril de lySi.
de muitos officios públicos". Não devemos omittir a provi-
fão, com que fe bufcou favorecer a inftrucção publica, au-
gmentando de mais a terça parte os melquinhos ordenados
aos lentes e officiaes da univerfidade^.
Taes foram os enérgicos eftimulos, com que o pulfo vi-
gorofo de Carvalho intentou reanimar a decadente vida na-
cional, que ainda os feus mais odientos inimigos não pode-
ram determinar-fe a conteftar-lhc o mérito e o elogio pelos
ados que illuftraram o feu governo durante os primeiros
annos, e emquanto não fe empenhou em guerra aberta com
os jefuitas e a nobreza de Portugal ^
Nos annos derradeiros do reinado de D. João V a frou-
xidão ou lethargia do governo tinha feito defcer as relações
de Portugal com as potencias extrangeiras a grande aba-
timento e humilhação. O magnifico foberano, que durante
os áureos tempos da fi.ia dominação tinha ás vezes demons-
trado a altivez da fua Índole e quafi pretendido hombrear
com as nações de primeira ordem na decifão das máximas
queftÕes internacionaes, deixara finalmente o feu papel de
mediador, e como quem deteíta a guerra e as contenções, le-
gava ao fucceffor o tratado de limites de 17 5o, em que Por-
tugal cedia á Hefpanha a colónia do Sacramento a troco de
pouco valiofas compenfações. A alliança ingleza degenerara
pela fraqueza do governo em quafi proteílorado. Á contem-
plação do eftadifta, que tinha agora a principal direcção dos
negócios públicos, offerecia-fe como problema capital o le-
vantar o feu paiz no conceito da Europa e attefiar que fe
bem era pequeno pela fua nefga na Peninfula, egualava no
brio e dignidade ás nações mais arrogantes e poderofas. Aos
' Regimentos, com força de lei, pelos quaes ha por bem lua majeftade ac-
crefcentar os ordenados e emolumentos dos defembargadores, etc. Lifboa, 1754.
2 Provirão de 29 de junho de 1754.
-' Vita di Seb. Ghifeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 25 e 26.
8o
citados inferiores pelo território e povoação impende mais
do que aos grandes potentados não diffimular as quebras
de refpeito, nem a prepotência internacional. As nações pe-
quenas, como os homens de mefquinha força e eftatura, hão
de ter em energia nervofa o que lhes falta em rija mufcula-
tura.
Carvalho tinha a repartição dos negócios extrangeiros,
onde lhe era dado, fem invadir a jurifdicção privativa dos
coUegas, imprimir á politica exterior o cunho da fua tempera
e dos feus inftinítos peíToaes. Por iíTo o vemos logo de prin-
cipio manter em lua pureza a majeítade e foberania da na-
ção, e forçar os governos forafteiros a reprimir e enfrear as
fuás pretenfões.
Uma queflão de ceremonial e formulário lhe deu occa-
fião a moftrar-fe inflexível nas fuás relações com o rei de
França Luiz XV. O papa Benedido XIV, por um motu pró-
prio de 21 de abril de 1 749, defejando galardoar com uma
graça pontifícia os ferviços que D. João V preftára a chris-
tandade, havia-lhe conferido e aos feus fúcceífores o hono-
rifico predicado de fidelijfimo, que o rei, tão vaidofo e tão
devoto como era, comprara á cufta de efpantofa prodiga-
lidade e que haveria de prezar como titulo de valia inefti-
mavel. Ficava por efle modo equiparado ás coroas de Fran-
ça e de Hefpanha, porque a nova qualificação era de certo
equivalente ao diífado de chrijliauijjimo ou de catholico, de
que tanto fe envaneciam e honravam, como piedofos filhos
da Egreja, os dois maiores monarchas da familia de Bour-
bon.
O governo francez, ciofo de que um didado femelhante ao
da fua coroa diftinguiíTe o rei de Portugal, parecia não reco-
nhecer o novo tratamento, e nas cartas de chancellaria conti-
nuava a omittir o titulo de fidelijjimo. Carvalho recufa ou
manda recambiar as cartas de Luiz XV e de outras perfona-
gens eminentes. Levanta-fe n'eíie ponto uma prolixa dilcuflao
entre os dois governos e demora-fe por efta caula largo tempo
a vinda do embaixador francez, nomeado para a corte por-
tugueza. Tal era a hombridade com que o fecretario de es-
tado dos negócios extrangeiros fe havia com os reprefentan-
tes das nações de primeira ordem, que o embaixador conde
de Bachi efcrevia ao feu governo que o de Portugal punha
a mira em elevar eíte paiz á categoria das grandes potencias
europêas". Mais tarde o orgulhofo diplomata amargamente
fe queixava á fua corte de que o miniílerio portuguez tra-
tava com diminuta contemplação os reprefentantes das na-
ções extranhas'. Ponderando ao feu governo que não era com
civilidades e attençõcs que fe podia conquiftar a amifade dos
portuguezes, aconfelhava contra elles a maior feveridade'.
Tal era a fobranceria e altivez com que o miniftro Carva-
lho zelava honrofamente a dignidade nacional e efboçava
n'eftas queítões de etiqueta diplomática o que haveria de fer
depois em aífumptos de maior ponderação a norma e o
teor da fua politica. As conteftações levantadas por Sebas-
tião de Carvalho a propofito do privilegio íingular cha-
mado Aubaine, pelo qual os monarchas francezes fe arroga-
vam o direito de fucceder na herança dos forafteiros, que
em feus eftados falleciam fem herdeiros neceífarios, e a for-
mal comminação de que Portugal em jufta reprefalia ob-
fervaria o mefmo eftylo com os fubditos da França, exa-
cerbaram a acrimonia habitual do feu embaixador. Por efta
occafião dizia elle ao feu governo o fer para extranhar que
um reino tão pequeno quizeífe em tudo emparelhar-fe com
' Officio do embaixador francez, de 21 de maio de 1754. Quadro elemen-
tar; tom. VI, pag. 43.
5 Officio do embaixador francez, de 6 de agoílo de 1754. Quadro elemen-
tar, tom. VI, pag. 44 c 45.
^ Officio de 27 de agoílo de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 48.
eis
cl»
82
a poderola monarchia, exigindo nas fuás ordinárias relações
a completa reciprocidade '.
N'outra grave pendência diplomática fe tiveram de exer-
cer os talentos de Carvalho. D'efta vez era, porém, o mais
íntimo alliado que expandia os feus queixumes. A pro-
videncia" com que, lufcitando-fe a obfervancia de leis ante-
cedentes, fe havia ordenado a máxima vigilância no exame
de todas as mercadorias que entraífem nas alfandegas, com
o fim de obviar á fraudulenta exportação do oiro, excitara
unifono clamor entre os inglezes, que em numero crefcido e
preponderante negociavam em Lifboa. Os officiaes da alfan-
dega haviam redobrado os rigores aduaneiros. Os fubdi-
tos britannicos, apefar da fevera prohibição, continuavam a
extrahir a preciofa mercadoria. O decreto do governo orde-
nava que não houveífe n'eíle ponto os minimos refpeitos á
qualidade das peíToas. As perquifições multiplicavam-fe para
obviar á falda do que era então julgado o mais folido the-
fouro. Os mercadores britannicos de Lifboa queixavam-fe
amargamente ao feu governo. A feveridade fifcal não hefita-
va em perfeguir os próprios officiaes dos navios de guerra
inglezes, quando tentavam fubtrahir-fe á lei prohibitiva e
conduziam para bordo o oiro difputado^ Multiplicavam-fe
com o rigor os confiiflos entre o fifco e os bretões. Não fo-
mente os inglezes fe affrontavam com eíles, que julgavam ty-
rannicos vexames, fenão que eftremeciam ao profpedfode que
Portugal, bufcando facudir o jugo mercantil da Inglaterra,
1 Officio do embaixador conde de Bachi, de 21 de outubro de 1755.
Quadro elementar, tom. vi, pag. 64. O direito de Aiibaine foi nos principies do
reinado de D. Maria I abolido em relação aos portuguezes, pela convenção de
21 de abril de 1778 entre Portugal e a França.
2 Decreto de 10 de março de 1755.
3 Documento no archivo do miniílerio dos negócios extrangeiros de Fran-
ça, vol. Lxxxiv da correfpondencia de Portugal. Qiiadro elementar, tom. xviii,
pag. 35 1.
(|3
83
reítauraíTe felizmente o commercio portuguez '. O gabinete de
Saint-James julgou prudente e neceílario negociar com o de
Lifboa febre efte aílumpto, de que pendiam os intereflcs da
colónia britannica em Portugal. Defpachou pois em miffão es-
pecial a lord Tyrawley, que em tempos de D. João V tinha já
refidido em Portugal como enviado extraordinário de Ingla-
terra, conhecia a fundo a corte portugucza e fora fempre bem
acceito ao rei e ao governo. Trazia o inglez por encargo parti-
cular o dirigir inftantes reclamações para que não foíTem ave-
xados em Lifboa os feus compatriotas e, aflfrouxados os rigo-
res, fe deífe fatisfafloria conclufão ás diífidencias acerca dos
negócios mercantis. O novo reprefentante, chegando a Lis-
boa a 1 1 de abril de 1752, defde logo entrara a conferir com
o miniítro dos negócios extrangeiros. Duraram até julho as
negociações, e n'eíte mez fe retirava lord Tyrawley, dando por
terminada a enviatura. O penfamento, que didára as provi-
dencias, contra as quaes fe levantavam em unifono as re-
clamações da higlaterra, era, quanto ao fito a que mirava, cer-
tamente defculpavel. A intenção de Carvalho era feguramente
patriótica, porque toda fe cifrava em proteger e emancipar
da britannica tutela o trafico e a riqueza nacional. A errónea
doutrina, em que eífribava, era corrente, vulgar, audori-
fada pelos governos e nações contemporâneas, que todas
zelavam egualmente, como poderofo talifman da bemaven-
turança focial, a poífe do oiro. Mas as leis económicas não
trepidam, nem receiam perante as audazes intimações do
mais fevero legiílador, aíTim como a agua do Hellefponto,
fegundo a anecdota da antiguidade, não fe encolheu, ficando
immovel, quando Xerxes n'um aífomo de jadanciofa ma-
jefiade, enlaçando-o nas fuás cadeias illuforias, lhe prohibiu
a invafão. Eram por aquelles tempos efcaffiífimas as colhei-
' Smolelt, Hijloria de Inglaterra, pag. i.
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84
tas em Portugal, onde em aiinos de boa latra mal chegavam
para o commum fuftento popular. A ameaça da fome favore-
ceu o triumpho ás reclamações britannicas. Moderaram-fe as
rigorofas providencias, e entrou-fe em compofição com os
que, nos lances de urgência e apertura, eítavam os portugue-
zes coftumados a invocar por valedores. Mandou o governo
reítituir aos negociantes inglezes os metaes que lhes haviam
fido fequeftrados'. O êxito da extraordinária enviatura não
havia fido, porém, tão lifonjeiro que os negociantes inglezes fe
não defataíTem em queixas e em reproches contra o feu repre-
fentante, o qual não dera plena fatisfação a todas as fuás am-
biciofas pretenfões^
CAPITULO IV
o TERREMOTO
A natureza phyfica domina e fenhoreia a humanidade. Os
deílinos fociaes enlaçam-fe intimamente com os phenome-
nos da terra. A hiftoria tem por feu commentario em cada
pagina as alterações que foi fucceffivamente padecendo o
noífo globo. N'eíl:a grande reprefentação, que fe chama a vida
humana, o theatro modifica o drama. Os adtores têem de
accommodar á fcena a acção que reprefentam. A natureza,
como que ciofa de que o homem a fubjugue e violente a feu
ferviço, parece defquitar-fe das aífombrofas oufadias do no-
vo Prometheu, enleiando-o perpetuamente em fuás cadeias e
forçando-o a mudar a cada paífo o rumo e o deítino.
' Documento no archivo do minifterio dos negócios extrangeiros de Fran-
ça, vol. Lxxxv da correfpondencia de Portugal, foi. 5i. Quadro elementar, tom.
xvni, pag. 354.
2 Documento no archivo do minifterio dos negócios extrangeiros de Fran-
ça, vol. Lxxxv da correfpondencia de Portugal, foi. 5i. Quadro elementar, tom.
xviii, pag. 354.
85
Um tremendo fuccelTo natural decidiu em grande parte
da forte de um paiz e da gloria de um legiflador. O terre-
moto de Lifboa no i.° de novembro de lySõ, é como um
ponto de inflexão na curva defcripta pelo povo portuguez.
Com elle le tranfmudam as condições da vida Ibcial. Com
elle íe delcortinam ampliíTimos e novos horizontes ao efta-
difta, que teria acafo, no meio da quieta natureza e de pa-
cificos humanos, efcondido na fombra de um governo domes-
tico e vulgar os dotes fingulares do feu efpirito.
Quando os homens, como os vencedores tempeftuofos
da Baftilha, não fazem revoluções para defconjundar em feus
cimentos uma velha fociedade corroída, é bem que a natu-
reza, com as fuás temerofas convulfões, dê rebate a uma na-
ção, que adormece na corrupção e na indolência, e lhe faça
extrahir dos efcombros fumegantes uma nova civilifação;
para que da defolação e da miferia furja por um milagre de
energia e de talento uma nova e mais culta fociedade.
O terremoto foi o terrível infpirador do miniftro, que fera
defde agora omnipotente. Até ali o feu vulto não excede á
craveira vulgar dos eftadiftas, apparece meio efcondido nas
pregas da chlamyde real. Agora é o ludador, que tem em
frente, n'um amplo amphitheatro, o inimigo, a quem ven-
cer. Agora é o grande artifta de governo, que perante uma
calamidade fem exemplo não tem modelos, nem didados,
que fcguir e copiar, nem Richelieus, nem Sullys, nem Col-
berts, em cujas memorias fugitivas poífa aprender a acção
e o penfamento. Agora o legiflador, alteando-fe fobre as ruí-
nas de uma cidade, outr'ora a grande metrópole do com-
mercio do Oriente, fará das fuás pedras defconjundas o im-
menfo e gloriofo pedeftal.
O terremoto foi, com a tremenda e anguftiofa deflruição,
quafi uma benção para o fenil e defventurado Portugal. Na
hifloria nacional ha três grandes epochas, nas quaes fe revo-
eis
(l^
-<>-l-
S6
lucionou profundamente o crer e o viver de Portugal. O des-
cobrimento do caminho maritimo da índia em 1497; o ter-
remoto de 1755; a revolução politica de 1820. Portugal,
que fe expande para fora dos feus eflreitos âmbitos, e funda
impérios e dominações em todo o globo; Portugal, que depois
da orgia das fuás grandezas e conquiflas, fe concentra na fua
própria individualidade e penitenciando-fe dos feus erros go-
vernativos, procura na educação e no trabalho o que já lhe
não é dado confeguir pela conquifta e pela efpada; Portu-
gal, emfim, que a fi próprio fe proclama adulto e eman-
cipado para o governo de fi mefmo no exercício das fran-
quias populares.
Todas três fão egualmente epochas de iniciação e tirocí-
nio. Na primeira o Gama enlina Portugal a conquiftar pela
quilha e pela bombarda um mundo de fonhadas opulências.
Na fegunda o Pombal indica-lhe os caminhos, por onde o es-
pirito fe defenleia ao mefmo paíTo do jugo clerical e ariftocra-
tico e pela moderna educação ha de emergir do feu longo ecli-
pfe intelleílual. Na terceira os homens immortaes, que fe
chamam Fernandes Thomás, Borges Carneiro e mais tarde
Moufinho da Silveira, acordam os humillimos vaífallos da rea-
leza abfoluta e os chamam ao convívio triumphal da liber-
dade. A primeira é a efcola da gloria nacional. Mas a gloria
é um fonho, que entorpece, e uma ebriedade, que debilita
os que libaram largamente em fua copa. Por iífo a fegunda
quadra convoca os portuguezes ao viver intimo na efcola, na
granja, na ofTicina, mas ainda fob a tutela protedora de um
poder quafi divino. Ora a vida nacional, que fe defenvolve e
fortalece aos pés de um throno, é como a herva, que fe
enrofca e ennovela ao tronco alheio, é viçofa, mas efcrava.
Por iífo no terceiro momento hiítorico a nação fe defenro-
la das mantilhas infantis, em que a trouxera envolta a mo-
narchia abfoluta e começa a renafccr para a forte adolefcen-
e|í
(is
87
cia da liberdade. A primeira epocha faz heroes, a fegunda ho-
mens, a terceira finalmente cidadãos. Na primeira Portugal
attinge a culminação das fuás glorias, porém logo declina
rapidamente até cair com D. João III, o rei fanático, nas
cadeias artificiolas da companhia e nos piedofos brazeiros
do Santo Officio, e com D. Henrique, o rei inquilidor, nas
hachas cruéis do duque de Alba e nos cruentos grilhões de
Filippe II. Na fegunda phafe nacional a nação levanta-fe
d'aquelle dourado muladar de D. João V, e procura refgatar
com esforços fobrehumanos o que vae de atrazada na civilifa-
ção, arraítando-fe decrépita na reçaga das nações policiadas,
mas vae de novo tropeçar no beato genuflexório, onde a her-
deira de D. Jofé, a rainha devota e reaccionária, converte em
leis os didames dos feus padres efpirituaes e confunde o con-
feífionario com a cadeira curul da fuprema magiítratura. Na
terceira quadra finalmente a nação, empolgando ao mefmo
paífo o ferro dos íbldados e a audácia dos eftadiftas revolu-
cionários, começa a conquifiar os feus foros imprefcriptiveis
e confegue levantar-fe ao mefmo nivel e egualar-fe em cer-
ta maneira com o folio dos feus reis.
O terremoto, que foi uma laftimofa calamidade phyfica,
foi ao mefmo paífo o começo de uma epocha de regenera-
ção e melhoria focial.
Aífolando Lifboa, como que fepultou nas ruinas ao mes-
mo tempo a velha povoação e a antiga fociedade; a cidade
material, com as fuás rvias tortuofas, ladeirentas, obfcuras, e
a cidade moral, com as fuás profundas defegualdades, com
os feus iniquos privilégios, com as fuás trevas intelleduaes.
Deífruiu Lifboa para que fe levantaífe rejuvenecida, mas
aplainou também o Iblo, onde havia de principiar a erigir-fe
o edificio da moderna revolução.
A tremenda calamidade tornou mais evidente o vuUo do
grande reformador. Já tinha cm boa parte conquiítado as
eis sh
^%^ •-<!>-^
88
graças do Ibberano. Mas a improvila e fuiíeftiliima cataltro-
phe accrefcentou-o largamente na valia.
Ao afpedo d'aquella temerofa ofcillação e das ruínas fu-
megantes, de que alaflréira os mais populofos bairros de Lis-
boa, interrompendo quali inteiramente a vida focial, pertur-
bando e confundindo todas as relações, difperfando o povo,
a juítiça, os tribunaes, fazendo defapparecer momentanea-
mente a publica au6toridade, o rei desfallecia no auge do ter-
ror. Paralyfado o animo pelo máximo infortúnio, temendo a
cada inftante que a terra, zombando da fua regia e divina
poteftade, convelliíTe com concuffljes novas a cidade devora-
da pelo incêndio, e apagaíTe os últimos veftigios da antiga e
aíTolada povoação, deixava cair das mãos nativamente irre-
folutas as rédeas já frouxas do governo, olhava em torno de
fi, e anceiava por que um animo exornado da mais inque-
brantável fortaleza, do arrojo mais indómito e da providen-
cia mais enérgica lhe vieíTe acudir no lance defefperado.
O fecretario de eftado Pedro da Motta, exacerbada com
o efpantofo acontecimento a enfermidade, já aggravada pela
quaíi decrepidez, não eflava ali para ordenar as mais urgen-
tes providencias. O abbade de Mendoça não era homem
para altear-fe impávido e diligente acima dos tranfes mais
difficeis. Era no i.° de novembro de lySS, dia confagra-
do pela Egreja á commemoração de todos os fantos. De-
fabavam com medonho eítridor os mais folidos e mais
cuftofos edifícios. As ruas eftreitas e angulofas, atulhadas
dos efcombros de altos prédios, nem deixavam perceber
por onde havia pouco levavam o feu curfo. Os templos,
onde o povo fe juntara para aíTiftir aos ofiicios divinos,
citavam derrocados, efmagando íbb acervos de pedras, de
tijolos, de madeiras, os que pouco antes faudavam des-
cuidofos o efplendido foi d'aquelle dia. O fogo, confo-
ciando-fe ás terríveis ondulações repetidas com frequência,
-S-i- -ò-l-
89
completava, fem que ninguém o podcíTe reprimir, a obra ne-
fartiffima das energias fubterraneas. Os que logravam es-
capar ao extemporâneo ruir dos edifícios e á fúria das cham-
mas voraciíTimas, fugiam defacordados a uma e outra parte
com dolorofos e altiffimos clamores, invocando a celefte mi-
íericordia. Os malfeitores e vagabundos, que habitualmente
pullulavam na grande capital, faziam agora das ruinas a fua
preia mais valioía, e convertiam a geral calamidade em pro-
veitofa e rica mercancia. No meio da horrível confufão, o
egoifmo fubftituia os vínculos moraes da fociedade. Cada um
bufcava defamparar as habitações, tranfmudadas em lepul-
chros, deixando quanto de preciofo poffuia para pôr em
falvamento a exiítencia attribulada. Correndo efpavoridos,
os que deixavam apreíTadamente o lar domeftico, eram na
fugida falteados pelas denfas cafarias, que defabando os fe-
pultavam no caminho. A anarchia do terror correfpondia
cabalmente ao defpotifmo da natureza. Todas as clalTes e
condições fociaes andavam mefcladas e confufas, efqueci-
das as antigas e odiofas diftincções. As freiras, que em nu-
mero efpantofo povoavam n'aquelle tempo os conventos e
morteiros de Lifboa, divagavam pela cidade, preferindo á
claufura cenobitica nos arruinados edifícios a mundana liber-
dade. Os que podiam com o trabalho acudir a refrear os
eftragos recrecentes, fugiam aíTombrados pela inopinada e
tremenda convulíão. Deiertavam os foldados, antepondo o
terror á obediência. Os bandoleiros, que laíam das cadeias ar-
razadas, furgiam de feus antros, pretendendo que a povoação,
inteiramente defamparada, lhes deixaíTe livre o campo ás fuás
depredações, e andavam efpalhando entre o defanimado po-
vo, que reftava, as vozes accommodadas a exacerbar a geral
confternação. Novas e mais violentas vibrações, diziam elles,
iam em breve derrocar o que de rotos ou alquebrados edifí-
cios ainda podia offerecer abrigo e habitação. Os reftos da ci-
Ai sU
-Í-<Í>- «-«v^
9°
dade voariam no ultimo dcftroço, quando á pólvora exiítente
no Caítello chegaíTe o incêndio, que lavrava impetuofo. Indis-
cretos e fanáticos pregadores, indoutos clérigos ou frades im-
prudentes, cruzavam pelas ruinas, funeftos Savonarolas, ater-
rando com fuás declamações e prophecias os efpiritos do
vulgo propenio á credulidade e ao defanimo. Exhortavam o
povo a procurar nos campos, com a penitencia e a expiação,
o feguro contra o braço vingador do Omnipotente, indigna-
do pelas iniquidades e torpezas da nova Sodoma do Occi-
dente. Nem o incêndio de Roma, em tempos de Nero, com
a fua vafta defolação encarecida na eloquente hypotypofe
de Cornelio Tácito, poderia porventura raftrear em fugitiva
femelhança o terror e a devaftação da cidade portugueza.
Com inteira propriedade quadravam ás fcenas tremendiíTi-
mas do terremoto as palavras, em que o facundo hiftoriador
debuxou n'aquelle paflb a pavorofa condição da gente ro-
mana".
No meio de tão nefaífa calamidade, qual nunca experi-
mentara nenhuma populofa capital, não era para extranhar
que fe abatelTem os ânimos da mais aceirada fortaleza. No
meio das tormentas da matéria, não era de certo defnatural
que as ofcillações do efpirito efcureceíTem e entibiafem a von-
tade mais enérgica. Um homem fó, porém, refiftia inexpu-
gnável ao tremendo contagio do terror. Era Sebaífião Jofé
de Carvalho e Mello. Figuremos a um general, que no mo-
mento deciíivo de uma grandiffima batalha vê as luas co-
lumnas repellidas e efmagadas pela artilheria e pelas cargas
dos feus adverfarios, as tropas ainda ha pouco mais dcflemi-
das e briofas, a ennovelarem-fe n'um impetuofo turbilhão
diante da procella irrefiftivel de milhares de ginetes inimigos,
e que no meio do geral deftroço e confufão, ante a orchellra
i acito, .Innal., lib. xv, J) 38.
9'
infernal de cem canhões, rellrugindo a unilbna trovoada dos
combates, n'um campo alaítrado de acer\'os de cadáveres,
fob uma abobada cerrada de projedeis, que em mil direcções
eftão cortando os ares, vendo cair junto de fi os mais prcítan-
tes officiaes do feu eftado maior, conferva o efpirito defan-
nuveado, tranquillo, inabalável, penlador e difpõe com a fua
rápida e previdente comprehenlao, como por methodica e
legura retirada pôde ainda falvar as relíquias do exercito
e fazer menos funefto o terrivel defbarato. Tal fe moftra o
animolb miniftro de D. Joíe. Tudo ofcilla em volta d'elle, a
terra, o mar, as caías mais humildes e os palácios mais Ib-
berbos; íó o leu animo não treme, nem vacilla a lua vonta-
de. E como um d'eítes rochedos altiffimos, aprumados, que
nas margens do Oceano fe levantam, e contra cujas efcarpas
embatem em vão ha milhares de annos as vagas efcumofas,
fem confeguirem aluir e defthronar o gigante inquebrantável.
O rei tremia, como a terra, como o Oceano. Em pé, dian-
te d'elle, com a figura grave, dominadora, majeflofa, eífava
o impávido miniftro. Nunca a obfcura majeftade do acalb foi
mais pequena e mais humilde perante a majeftade radio-
la do talento. O rei, eftupefado e irrelbluto, pergunta ao feu
miniftro, o que havia de fazer n'aquelle trance dolorolb. A
tradição refere que a refpofta foi lacónica e peremptória :
«Sepultar os mortos e cuidar dos vivos». Verdadeira ou fabu-
lada, refumiu efta expreíTão toda a incrível energia do grande
reftaurador n'aquella tremenda conjuncção. Logo no mefmo
dia do terremoto as ordens e as providencias partem das fuás
mãos, como raios de luz de um foca intenfo e inextinguivel.
Nada efcapa á actividade e penetração do feu efpirito. E
elle como o centro de toda a vida nacional; o coração ainda
palpitante de todo aquelle organifmo em convulfão. As nu-
merofas vidimas da cataftrophe jaziam foterradas nos es-
combros. Temia-fe que a infecção accrefcentaífe á ruina e ao
u
ti»
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9^
fogo a epidemia. Mas a cidade era então quafi delerta. Ás
tropas, que iVella eftavam de guarnição, fe expediram as or-
dens mais urgentes para que procedeíTem ao defentulho e fe
empregaíTem egualmente em extinguir os incêndios e impe-
dir que de novo fe ateaíTem nos edifícios ainda illefos. Ex-
hortam-fe os ecclefiafticos regulares e feculares a que dêem
fepultura aos que pereceram.
A fome eítava ameaçando confummar a obra do terremo-
to. Acode Sebaftião de Carvalho com difcretas providencias
a fazer conduzir para Lifboa a maior copia de provifões.
Acautela com feveras determinações o monopólio e traveíTia
dos mantimentos. Provê á fua juíta e equitativa repartição
pela gente popular. Sufpende todas as taxas, que pefavam
nos comeftiveis á fua entrada na cidade, e confegue que a
abundância vá defterrando as ameaças da extrema penúria
e efcaíTez.
N'aquelles tempos de ominofo defpotifmo não havia ci-
dadãos. Não podia tampouco exiftir aquella fundamental
inftituição, que faz da cafa de uma familia ainda a mais
defherdada e defvalida, o feu alcaçar impenetrável aos ex-
tranhos. Pelo odiofo privilegio da apofentadoria aífiva, po-
diam as claíTes, que o disfruítavam, expellir do próprio lar
a quem n'elle vivia anteriormente. Pelo encargo fervil da
apofentadoria paíTiva, era obrigado o homem do povo a dei-
xar a fua habitação para que a vieíTe occupar o arrogante
privilegiado. Sebaftião de Carvalho fufpende por iniqua
efta oppreíTora prerogativa e mantém o ufo do próprio domi-
cilio aos que a fortuna exceptuara da commum deftruição.
Dá ordem o miniftro vigilante a que fe reftabeleçam no
vigor, que demanda a conjuntura, as varias citações, de que
pende a adminiftração. Provê á proviforia accommodação
das repartições e tribunaes, cujos edifícios os eftragos do ter-
remoto fizeram incapazes de habitação. Emprega os meios
93
fuaforios ou coadivos para que voltem á cidade os que n'ella
tem de trabalhar nas obras mais urgentes.
A defordem e confufão, determinada pelo fucceffo tre-
mendiíTimo, eftava provocando a anarchia na capital. Era
antes de tudo neceíTario o acudir á paz e fegurança de Lis-
boa. Ordena o eftadifta que fe concentrem na cidade as tropas
indifpenfaveis á policia e ao trabalho. Manda vir aprcíTada-
mente o regimento de dragões de Évora, e os regimentos de
infanteria de Setúbal, de Peniche e de Cafcaes, e o que ti-
nha por coronel o conde de Soure.
A repreíTão e o caftigo dos ladrões e malfeitores era a
mais inílante neceflldade. Urgia que a cidade, onde a lei e
o poder haviam padecido momentânea interrupção, fe pur-
gaíTe d'aquella nova calamidade, que ia acrefcentando ás
ruinas caufadas pelo mal inevitável os damnos produzidos
pelo crime. Delega-fe para cada bairro um magiítrado fu-
perior, que, auxiliado pelas tropas, ponha em eftreito cerco
e á mefma hora em todas aquellas circumfcripções colha ás
mãos da juftiça os bandoleiros. N'aquella occafião, ceifando
as leis ordinárias e fendo inexequíveis as formas de proceífo,
é precifo que o terror aífombre os defnaturados falteadores
e homicidas. A lei marcial, de que os governos abufam tan-
tas vezes cruelmente para fegurar contra o voto popular a
tyrannia, é d'eíla vez poíta a ferviço da miferavel e aíílida
humanidade. E terrível o julgamento dos culpados. Nos dif-
ferentes bairros de Lifboa levantam-fe patíbulos de grande
altura, e os corpos dos padecentes ficam ali por largos dias,
como exemplo e terror a novos attentados.
Mas os ladrões podem, fugindo a tempo da cidade, ir es-
conder feus latrocínios longe d'ella, internando-fe no paiz ou
faindo pelo Tejo. Acode o miniífro, que diríamos quafi omni-
vidente, ordenando, que a ninguém fe permitta o fair da capi-
tal ou tranfitar pelas provindas fem as mais rigorofas caute-
T"
4sk
■*— -<^
94
las policiaes. Multiplicam-fc as rondas pelo rio para que
ninguém fe traflade á margem meridional. Redobra-fe a vigi-
lância nas torres, que defendem a foz do Tejo, para que não
faia nenhuma embarcação. Dão-fe bufcas feveras, minuciofas
em todos os navios furtos no porto de Lifboa. Chegara nova
de que chavecos argelinos, que n'aquelle tempo infefta-
vam com feu corfo as coitas de Portugal, fe apparelhavam a
prear nas ruinas da cidade. Manda o miniftro aperceber con-
tra os corfarios a neceífaria defenfão.
Erravam pela trifte povoação os vagabundos, na maior
parte ciganos e defertores, gentes fem lar e fem ofíicio, que
não fendo ainda abertamente incurfos em delido, podiam
n'um momento avuhar ainda mais os execrandos facrilegios
dos que eram já profeífos na rapina. Ordena o miniftro
pelo decreto de 4 de novembro, que fejam prelos e conde-
mnados a trabalhar com braga nas obras mais urgentes, fem
que efta didatoria penalidade lhes irrogue de futuro a infâ-
mia do caftigo.
Prefcreve Sebaftião de Carvalho as regras mais prom-
ptas e falutares para que fe reftituam a feus donos as peças
e valores, de que os bandidos tinham defvalifado as cafas ar-
ruinadas ou defertas nos primeiros momentos da cataftrophe.
Recolhem-fe próvidamente quantos viveres fe podem en-
contrar nas ruinas de Lifboa, e fão poftos a bom recado
para fe repartirem ao povo neceíTitado. Manda o miniftro
vir para a capital a maior copia de mantimentos, provendo
ao mefmo paífo á lua prompta conducção pela terra e pelo
rio, embargando, fem excepção das mais qualificadas perfo-
nagens, quantos barcos e tranfportes fe fazem neceífarios.
Aífegurada em poucos dias a cidade contra os progreíTos
do incêndio voracilTimo, contra as depredações dos bando-
leiros, contra a fome e o contagio, reftaurada a publica au-
doridade, reftituido ao feu movimento, agora mais enérgico,
1 I
93
o mechanifmo do governo, vencido o terror da povoação
pelas providencias do miniftro, o primeiro cuidado, que
defvela o incanfavcl legiflador, é a mais prompta reedifica-
ção da aíTolada capital. Agora fão as providencias para fa-
zer tranfitaveis as ruas e as praças de mais urgente ferventia,
que o terremoto convertera em acervos de ruinas e de entu-
lhos. Emprega n'eíl:as obras, além de numerofos trabalhado-
res, grande copia de artilheiros e íbldados de infanteria. Ago-
ra fe prohibc o edificar no íblo das habitações já demolidas
emquanto fe não decreta o plano regular das novas conftruc-
ções. Agora fe eftatuem as regras, fegundo as quaes, depois
das exaftas medições executadas por hábeis engenheiros, fe
dgve defcriminar no meio do efpantolb labyrinto de rui-
nas e deftroços o terreno, que pertence a cada proprietário.
Agora fe faculta o acudir com os reparos mais urgentes aos
prédios, que deixara o terremoto ainda habitáveis. Agora fe
procura abaratar o falario dos obreiros, e o preço dos mate-
riaes, prevenindo os monopólios, exemptando de tributos as
madeiras deftinadas ás novas edificações, e defendendo o
elevar os preços das fubfiftencias além da taxa, por que fe
vendiam no mez antecedente á efpantofa calamidade. Egual-
mente fe prohibe o alterar os alugueres das calas, que ao
terremoto refiftiram ainda immunes, e a renda dos terrenos
deftinados a erigir as barracas de madeira para abrigo provi-
forio da mifera população. Para que o terror de que a antiga
cidade feja de novo convellida e arrafada nas luas ultimas re-
líquias, não induza o povo a edificar em fitios mui remotos,
demarca o legillador a fuperficie, em que é licito levantar os
novos prédios. Eftimula pela perfuafão e com o preceito a
dormente energia dos moradores a que proceda cada um a
erigir fegundo as poífes os edificios particulares.
Como fe fora para manter foUicito e vigilante o efpi-
rito do grande rcftaurador, a terra continuava fempre a es-
96
pertar-lhe os brios e o valor, tremendo com frequência, fe
bem com menos temerofas fecuíTões. Eram como os recon-
tros e efcaramuças de poftos avançados após uma batalha
renhida e fanguinofa, ficando ainda em prefença os dois in-
conciliáveis contendores. Era vulgar a opinião de que a nova
cidade não podia levantar-fe nas ruinas da primeira'. Quan-
to mais fe ia acercando o trifte anniverfario da tremenda ca-
lamidade, mais ia também tomando corpo o terror de que
uma nova e mais violenta commoção acabaíTe de tranfmu-
dar n'uma vaftiíTima necropole a antiga e florente capital.
Os malfeitores divulgavam a funeíta prophecia para que o
povo, em grande parte já então reconduzido, fugiíTc nova-
mente defanimado e largaíTe a povoação á rapacidade infame
dos bandidos. A turba dos fanáticos, não menos nefafta que
os ladrões e vagabundos, enfombrava a timorata imaginação
dos populares com o profpedo das novas fcenas de horrorofa
deítruição, em pena e expiação de fuás mundanas iniquida-
des. Ficaria Lif boa em breves dias novamente deferta e pos-
ta a facco pelos impenitentes bandoleiros a quem, fegundo
fuccede fempre infelizmente, o exemplo dos fupplicios mais
atrozes é efteril e perdida pregação. A efte novo lance acode
logo a providencia do incanfavel didador. Cerrem-fe e vi-
giem-fe as portas da cidade nas vefperas do fatal anniverfario.
Appellidem-fe as tropas, que eítão acampadas nos fuburbios.
Declare-fe, como diríamos agora, o eítado de fitio. Períigam-
fe, prendam-fe, cafliguem-fe os qvte por malvadez ou fanatis-
mo andam temerariamente divulgando em povo crédulo as
prophecias de uma nova e mais cruel ofcillação. Era em ver-
I «El-rei eílava determinado a reedificar a cidade no mefmo logar em
que eílava; projeélo que lhe parecia inexequível, comquanto tiveffe fido refo-
luto e decidido.» Officio do embaixador fi-ancez, conde de Bachi, para o feu go-
verno, de i5 de novembro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. G7.
^-Ò- -Ó-l-
4
^
dade fingular a doutrina d'eftes geólogos do crime, ou d'eí1:es
naturaliftas da fimpleza, que n'aquella edade férrea para a
Iciencia em Portugal ajuftavam os terremotos ao movimento
elliptico da terra, e attribuiam a um phenomeno, ainda hoje
obfcuro em fuás cauías, uma empírica lei de rigorofa perio-
dicidade.
PaíTou finalmente o dia i .° de novembro de lySõ, e a
terra negando-le d'efl:a vez a ofcillar, deixou por mentirofos
os vaticínios das lúgubres lybillas, e reftabelecida a quieta-
ção nos efpiritos débeis e crendeiros.
Para emprehender a prompta edificação da capital tor-
navam-le precifos recurfos extraordinários. A fazenda publi-
ca era ainda infufficiente. Seriam groíTos os difpendios nas
obras, que fe intentavam. Mas o foUícito reformador tinha
entre os mais acaudalados homens de negocio grande credi-
to. Propoz-lhes o concorrerem com algum fi_ibfidio valiofo
para a breve reftauração, que de perto lhes tocava, porque
renafcida Lifboa mais florente e voltando a fer grande ci-
dade, a favor das providencias já promulgadas em beneficio
do commercio e de outras, que na mente já trazia o provi-
dente legiflador, engroíTaria o trafto mercantil e a riqueza
brotaria d'entre a própria defolação. Refponderam os mais
opulentos mercadores aos defejos do miniftro. Oífereceram
efpontaneo o donativo de quatro por cento Ibbre todas as
fazendas entradas nas alfandegas.
O terremoto fizera os feus eftragos mais damnolbs nos
bairros da cidade, que decorriam defde o Terreiro do Paço
até o Rocio pelo valle mui dilatado entre o monte do Cas-
tello e o de Santa Catharina. Ali fora o centro da adivida-
de e do commercio. Ali cumpria também reítabelecel-o em
fua morada.
Era porém agora o enfejo de fazer redundar em me-
lhoria e beneficio a própria calamidade. O terremoto fize-
eis
4SÍ9
-* .-<>-§.
ra fummariamente como que a improvila expropriação dos
edifícios, agora convertidos em entulhos. Era bem que o fo-
lo fe aproveitaíTe para n'elle erigir decorofas habitações em
ruas alinhadas, efpaçofas, congruentes a uma grande e civili-
fada povoação. A parte da cidade quafi inteiramente arruina-
da compunha-fe de um inextricável labyrinto de ruas angu-
lofas e apertadas, de becos eftreitiffimos, de viellas torpes e
efcuriíTimas, de arcos numerofos, como o dos Pregos, o da
Confolação, o dos Barretes, onde o ar não tinha circulação,
onde a luz andava em mefquinho monopólio dos andares
mais elevados, onde os delpojos inlalubres e hediondos fe
accumulavam livremente nos alfuges, infedando a povoação
com feus miafmas. Já não feria dado a cada um levantar o
prédio a feu talante, como outr'ora ao acafo fe tinham fabri-
cado as demolidas habitações. Nivelaram e abalifaram os en-
genheiros o terreno. Aplainou-fe regularmente a fuperficie.
Traçaram-fe entre a nova praça do Commercio e o Rocio as
ruas parallelas, e, para aquelle tempo, de grande formofura e
majeftade. Cortaram-fe em angulo reíto por traveífas. Efta-
tuiu-fe o profpeíto e architedura, que deveriam ter as fron-
tarias. Decretou-fe a maneira de expropriar ou como então fe
dizia, devaífar e fazer publico o íblo, que nas ruas des-
truidas pertencia a cada proprietário.
Era agora chegada a occafião de reparar os damnos do
terremoto. Começava com diligencia inufitada o trabalho da
grande reftauração. Era LilTDoa então como um vaftiíTimo
arfenal, uma officina commum e aítiviffima, onde os mcílres
e os obreiros incanfaveis, fob as viítas vigilantes do miniftro,
iam defentranhando das ruinas uma grande e regrada povoa-
ção. Emquanto, porém, as novas e mais decorofas habitações
não furgem á poderofa evocação do grande reftaurador, tcm-
fe levantado, como proviforios domicilios nos logares accom-
modados, numerofas barracas de madeira, que fubfhlucm
-l-A- -è^
99
as egrejas, os palácios, as moradas. Mais de nove mil fe con-
tavam já poucos tempos depois do terremoto.
Não foram certamente mui conformes aos princípios da
liberdade, nem ajurtadas pelas normas da economia politi-
ca, as providencias, com que Sebaftião de Carvalho acudiu
a remediar a terrível calamidade. A coacção é o feu inífru-
mento predilefto. O eífado, fegundo o conceito do miniftro,
fobrepõe-fe a todos os direitos individuaes. O governo é não
fomente a cabeça politica da fociedade, mas é nas multifor-
mes relações da vida económica e focial o feu abfoluto guia
e diredor. Ninguém pôde vender, nem alugar, fenão pelas
taxas que elle impõe. Ninguém pode edificar, fenão quando
elle o permittir ou ordenar. A lei da concorrência defappare-
ce revogada pelas feveras prefcripções do autocrata legifla-
dor. A expropriação do folo particular é feita fem compenfa-
ção pecuniária. O governo patriarchal reapparece em toda a
fua illimitada e primeva aufloridade. E uma femelhança de
focialifmo, em que o eftado ordena a cada um o c|ue deve
ceder em commum proveito. A liberdade civil foge efpavori-
da, d'onde os foros políticos deixaram o feu logar ao poder
abfoluto de um fó legiflador. E Carthago, edificada pelos co-
lonos fugitivos da Phenicia, fob o mando imperativo da rai-
nha, na formofa epopêa de Virgílio. Tudo é regulado pelo nuto
de quem manda ; o preço dos mantimentos, o valor dos mate-
riaes, a taxa dos falarios. Attentemos, porém, em que o poder
real tinha em fi habitualmente concentradas todas as faculda-
des legiflativas, ainda mefmo quando a fociedade vivia quieta
e focegada. Lembremo-nos de que a liberdade politica, lon-
ge de exiftir, era quafi reputada um facrilegio contra o mo-
narcha, vigário e logar tenente de Deus no governo tempo-
ral. Confidcrcmos que a economia publica em grande parte,
ainda em tempos de paz e de abundância, pendia do fupre-
mo arbítrio do imperante, e que o commercio livre e a li\'re
tis
induftria não podiam exercer-fe n'um paiz, onde os officios
eram corporações ciofas e cerradas. No defanimo geral, em
que o terremoto deixara a povoação, já de íi inclinada á in-
dolência, com o egoifmo infrene, que fempre nafce das gran-
des calamidades, aos males do terremoto vieram acrefcer as
mais graves perturbações da fociedade. Lifboa, nos dias que
feguiram o i.° de novembro, era como uma cidade fitiada.
Todos os poderes e jurifdicções deviam enfeixar-fe nas mãos
de quem podeíTe alevantar-fe acima das ruinas, e impor á fa-
talidade o feu talento, e ao terror a lua vontade. A diótadura
era inevitável n'aquelle trance. As leis normaes da econo-
mia fão como a hygiene regular dos corpos fociaes, emquan-
to fãos. Quando chegam, porém, as terríveis enfermidades, é
precifo combater por algum tempo a defordem da natureza
com recurfos efficazes, mas difcordantes da ordem habitual.
Sebaftião de Carvalho é pois benemérito da pátria, da hiflo-
ria, da humanidade, porque, fem exemplo que feguir, nem
modelo que imitar, faz furgir da potente energia do feu efpi-
rito a força que levantou de feus efcombros, para a entregar
de novo á paz, ao trabalho e á opulência, a lacrymofa capital.
As promptas e efficazes providencias, com que fem re-
poufo o miniftro de D. Jofé acudira com remédios faluta-
res aos damnos do terremoto, dcfpertaram em nacionaes e
extrangeiros a mais imparcial admiração. Os agentes acre-
ditados na corte de Lifboa não amcfquinhavam, relatando-os
aos feus governos, os ferviços relevantes, que a elles próprios
redundaram em faudaveis benefícios'. Os mais fanhudos ini-
I «Que as providencias, que fe liaviam tomado para abaftecer de viveres
a cidade, para enterrar os mortos, atalhar os roubos e refrear o zelo indiícre-
to dos pregadores fanáticos, que eram também outro género de flagello, tinham
fido prudentes e efficazes.» Officio do embaixador francez, conde de Bachi,
para o feu governo, de 8 de novembro de 1735. Quadro elementar; tom. vi,
pag. G6. «Que fe devia fazer juftiça ao miniflerio ou antes ao miniftro Carvalho
migos do miniftro, nos efcriptos de mais cruel objurgação,
dellembram por momentos o feu ódio para não elcatima-
rem n'efte ponto o leu louvor ás providencias decretadas;
attribuem-n'as porém principalmente por uma ficção adula-
dora á diligencia do monarcha.
Já antes do terremoto as faculdades fuperiores de Carva-
lho o tinham levantado acima dos feus collegas na opinião
e na confiança do feu rei. Mas defde aquelle dia fempre me-
morável, em que o impávido minil1:ro fora para o povo e pa-
ra o rei a providencia e a falvação, eil-o de faflo conftituido
na mais alta eminência do governo. Não é ainda o primeiro
miniftro por diploma, mas c já na auirtoridade o fupremo de-
pofitario do poder. E como um audaz mordomo de palácio
junto de um novo carlovingio, contrapeíando pela fua inde-
feíTa actividade a indolência, e pelo feu talento admirável a
curteza do efpirito real. Poucos tempos depois do terremoto
o fecretario de eftado, Pedro da Motta, efconde-fe no tumulo
e deixa vago a Sebaftião de Carvalho o feu logar. Era ape-
nas uma fombra, que defapparecia, e não um eftadifta, que
legara o officio a um fucceíTor. Da fua antiga repartição
paífava Carvalho para a dos negócios interiores do reino, e
aífumia fegundo o eftylo obfervado a dignidade e as funcções
de primeiro miniftro. D. Luiz da Cunha, que era então en-
viado portuguez em Inglaterra, afcendia a 5 de maio de
1756 a miniftro dos negócios extrangeiros e da guerra, e,
devotado como era ao feu novo c poderofo companheiro,
e mediano de talento e de energia, entrava a fer o agaloa-
do amanuenfe, o fiel executor das ordens e arbítrios de Car-
valho.
que ordenara promptas e bem entendidas providencias no meio d'aquclla cala-
midade geral; que a abundância reinava na cidade fem careítia.» Officio do
mefmo embaixador, de ii de novembro de ijb5. Qitadrn elementar, tom. vi,
pag. 66.
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A nova da cataftrophe, ainda exaggerada pela fama, voa-
ra pela Europa, confternando os extranhos, que fuppunham
deftruida inteiramente a famofa e opulenta capital. A geral
commiferação não ficou inferior á graveza do infortúnio.
Apreffou-fe a Gran-Bretanha por um ado do parlamento a
enviar a Lifboa fubliftencias e dinheiro, com que folTe mais
fácil occorrer ás urgências de tão efpantofa calamidade.
Defpachou a lord Townfend em extraordinária legação para
que fignificaffe á corte portugueza a laftima fincera do leu
alliado mais antigo. Segundo as mais auftorifadas relações a
liberalidade compaffiva da Inglaterra mandou de prefente ao
povo de Liftoa duzentos mil alqueires de trigo e outros tan-
tos de farinha, féis mil barricas de carne falgada, quatro mil
de manteiga, arroz e bolacha em grande copia e um crefcido
material de utenfilios e ferramentas neceíTarias para as obras
coloffaes, que em Lifboa começavam com grande celeridade.
Aos navios de guerra, que traziam efte generofo donativo,
mandara o governo de Inglaterra que ficaífem ás ordens de
el-rei de Portugal". Era o prefente direitamente remettido ao
miniftro de D. Jofé. O gabinete de Londres, receiando que o
príncipe orgulhofo o recufaífe, fe lhe foífe peífoalmente diri-
gido, accordára em que foífe feita a dadiva ao miferrimo
povo de Lifboa. Não foi menos foUícita a Hefpanha nos feus
caritativos otferecimentos. Os vínculos, que prendiam aos
Bourbons a familia reinante em Portugal, eítimulavam a cor-
te de Madrid a foccorrer a devaftada povoação.
O rei de França, Luiz XV, egualmente fe deu preífa
em efcrever ao feu bom irmão de Portugal, oíferecendo-lhe
como prova da lua inquebrantável amifade quanto era em
feu poder para minorar as neceífidades e angullias do paiz
em tão inopinada e laítimofa provação. Ordenou egual-
QuaJro elementar, tom. xviii, png. 363.
mente ao feu embaixador que renovaíTe de viva voz o régio
oíferecimento de um copiofo donativo de dinheiro". Não eram,
porém, livres de toda a Ibmbra de egoilmo os bons officios
do governo francez n'aquella defgraçada conjundura Inflava
defde muito com o gabinete de Lifboa para que entre as duas
nações fe concluiíTe um tratado de commercio, cujas negocia-
ções fe liaviam iniciado defde lySg.
Parece que ao minifterio francez fe antolhava então mais
fácil o caminho de alcançar o que, apefar dos feus esforços
diplomáticos, não havia podido confeguir. Suppunha-fe que
tendo ficado exhauridas inteiramente as arcas do régio íifco
e impoíTibilitado o apercebimento de frotas portuguezas para
o Brazil, feria aquelle o mais opportuno enfejo para que a
França por uma hábil negociação, e a favor de alguns Ibccor-
ros de dinheiro em lance de tanto aperto, achaífe compla-
cente aos feus defejos o governo portuguez-.
Percebeu Sebaítião de Carvalho, que o acceitar os oífe-
recimentos feitos a D. Jofé pelo próprio Luiz XV, poderiam
conífituir Portugal em perigofa dependência para com uma
corte, com quem não eram eftreitas e cordiaes em fummo
grau as noífas relações. Bufcou maneira de protelar a ac-
ceitação com palavras de grande cortezia e delicado reco-
nhecimento á lembrança affeduofa do chefe dos Bourbons.
Primeiro lhe declarou com politica fimulação, que fe ao rei
de Portugal, nas laftimofas condições do feu paiz, o eítreitas-
fe a neceífidade, não teria duvida em recorrer ao foberano
cbrirtianiffimo para que o ajudaíTe com dinheiro, architedos,
ou outros indifpenfaveis fubfidios para acudir á prompta
■ Quadro elementar, tom. vi, pag. 72.
2 Memoria junta ao dcfpacho do miniftro dos negócios extrangeiros em
França, Rouillé, ao embaixador francez em Lifboa, de 7 de dezembro de 1557.
Quadro elementar, tom. vi, pag. 73.
(|3
eis
104
reedificação'. Repetiram-fe as inftancias, ao parecer amora-
veis e finceras, do embaixador francez para que Portugal
acolheíTe favoravelmente o generofo oíferecimento, até que
fendo já entrado o mez de março de lySõ, fe refolveu Se-
baílião de Carvalho em declinar expreffamcnte os auxílios
officiofos do Bourbon. A relpofta do miniftro foi de quem
fabia manter, no auge da publica miferia, entre efcombros
ainda quafi fumegantes, no meio da fituação mais dolorofa,
a dignidade e fidalguia da nação, a qual, ainda mefmo reduzi-
da á jaftura e miferia derradeira, não havia de eftender a mão
humilde e mendicante á efmola de quem parecia mcfclar á ca-
ridade a efperança do retorno. Refpondeu Carvalho digna-
mente que os offerecimentos delicados os agradecia Portugal,
como fe realmente fe viífe forçado a ufar d'elles ; que, porém,
os feus alliados fe tinham enganado, exaggerando a fituação
depois do terremoto ; que fora em verdade immenfo o damno,
que tão grande calamidade produzira; mas que era princi-
palmente o luxo, que teria de padecer as forçofas confequen-
cias da cataftrophe. Haveria menos faufto, feriam menos nu-
merofos e mais modeítos os palácios, menos fumptuofas as
alfaias, os coches, os painéis, as tapeçarias. Volveria Portugal
á antiga fimpleza no viver. As egrejas leriam menos grandiofas
e opulentas, com o que Deus mais fe pagaria de culto menos
pompofo. Os fidalgos, cujas magnificas habitações o terremo-
to ou o incêndio tinham aíTolado, iriam cultivar as fuás terras,
deixada a ociofidade cortezan pela ciiligencia produétiva do
trabalho. O commercio haveria de renafcer, e o Brazil, que era
um thefouro inexhaurivel, compenfaria largamente no futuro
a adual efcaífefa e neceífidade-. O difcurfo de Sebaftião de
1 Officio do embaixador francez, conde de Bacht, para o feu governo, de
3i de dezembro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. 76.
2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de
9 de março de 1756. Quadro elementar, tom. vi, pag. 81.
io5
Carvalho, ao embaixador francez, fe bem defconcertaria de
algum modo os intentos diplomáticos da França, provocou
da parte do governo de Luiz XV o louvor aos dotes emi-
nentes do fecretario de eítado portuguez. As fuás reflexões
fobre os eífeitos económicos do terremoto eítavam, dizia o
miniftro Rouillé, denunciando que Sebaftião de Carvalho era
ao mefmo paíTo um eftadifta e um philofopho chriflão'.
O miniftro não diíTimulava todavia as luas duvidas de que
fe realifalfem as rifonhas perfpeftivas do grande reformador.
A cidade, levantada em breves annos d'entre as ruinas, a
induftria e o commercio já florente, a riqueza publica favore-
cida pelas enérgicas e illuminadas providencias de Carva-
lho, deixariam em poucos annos por infubfiftentes e fallazes
os receios do gabinete francez.
CAPITULO V
PRIMEIRAS INCURSÕES CONTRA OS JESUÍTAS
Não é fácil difcernir fe o miniftro de D. Jofé teria defde
longos annos ou logo em princípios do feu governo as pre-
venções e as malquerenças, que depois o infpiraram a travar
com os jefuitas uma porfia tormentofa, na qual um dos dois
poderofos contendores haveria forçofamente de cair. Se não
fão dignas de todo o credito as narrações, em que os feus ad-
verfarios mais cruéis o figuram cortejando a Companhia para
infinuar-fe na confiança e patrocínio dos jefuitas, confeífores
ou confidentes dos foberanos, e alcançar por feu favor a en-
trada no minifterio, não fe pôde, cm face de irrecufaveis do-
' Defpacho do miniflro dos negócios cxtrangeiros, em França, para o em-
baixador francez em Lifboa, de 6 de abril de lySô. Quadro elementar, tom. vi,
pag. 82.
4S^
-• ^ -Ò-l-
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cumentos, conteftar que no animo de Carvalho até pouco
depois do terremoto não eftaria ainda encruecida a profunda
defaífeição ou ódio implacável contra a poderola Compa-
nhia, ou que ao menos o miniftro íàberia aftutamente diíTi-
mular as fuás intenções até fer chegado o momento opportu-
no de proftrar o feu tremendo antagonifta.
Logo após o terremoto vemol-o ordenar ao miniftro por-
tuguez em Roma, António Freire de Andrade Encerrabodes,
que follicite do fanto padre a mercê efpiritual de conceder a
Portugal, como patrono e advogado contra os terremotos, a
S. Francifco de Borgia, um dos geraes mais celebrados na
ordem de Jefus, condecorado com todas as honras litúrgicas,
que no ritual romano fe confagram aos maiores e mais illus-
tres fantos. O papa Benedido XIV pelo breve Omnipotens
rerwn, dado em Roma fob o annel do pefcador, a 24 de
maio de 1756, publicado por decreto de 5 de feptembro fe-
guinte, promovia o bemaventurado Jeluita á eminente cate-
goria de patrono e protedor de Portugal, devendo celebrar-le
a fua feftividade com rito de primeira clafle, com oitava e
miffa folemne. Para que n'efta piedofa invocação a tão notá-
vel fanto da Companhia appareceífe egualmente glorificada
a fociedade, que o tivera por feu chefe, e o numerava entre
as fuás glorias mais luzidas, ordenavam as lettras pontifícias,
a inftancias de D. Jofé, que a folemnidade religiofa em honra
do fanto Borgia, fe houveífe de celebrar nas egrejas dos je-
fuitas, e, onde não as houveífe, nas cathedraes ou nas matri-
zes, aíTiftindo a efta annual commemoração as camarás de
todas as cidades e villas de Portugal.
Seria talvez a piedade religiofa do monarcha, e não a
própria deliberação do feu miniftro, quem feria parte principal
n'aquella nova graça pontifícia concedida ao reino fidcliífimo
pelo fupremo paftor univerfal. Já depois de começada a lufta
gloriofa de Cars^alho contra as ufurpações e prepotências dos
jefuitas em Portugal e seus domínios, ainda o miniftro enca-
recia n'um documento official as heróicas virtudes dos gran-
des e gloriofos eponymos da Companhia, Santo Ignacio,
S. Francilco Xavier e S. Francilco de Borgia, os quaes (es-
crevia o eftadifta) reluzindo como relplandecentes luminares,
não fomente na fua ordem, fe não também em toda a egreja,
deixaram os exemplos mais illuftres'. Ou ainda n'eíres primei-
ros tempos o miniftro não tinha revolvido no feu profundo en-
tendimento a inteira luppreíTão da Companhia em Portugal e
a fua abolição em toda a egreja, ou com diífimulada venera-
ção ao feu fundador e aos feus luzeiros mais infignes, enco-
bria a traça, que já tinha meditada, á femelhança de um as-
tuto conquiftador, que marchando contra o inimigo, ainda
colorêa com vifos de reparar um aggravo paífageiro a futura
deftruição do feu contrario.
Nos monumentos legiflativos anteriores a eífa epocha
alguns da mais alta importância fe nos deparam, os quaes
fe podem bem confiderar como as pequenas efcaramuças, que
precedem os grandes recontros e batalhas contra a impeniten-
te Companhia. As leis que em ij55 declararam a completa
liberdade dos indios no Pará e Maranhão, inhibindo fevera-
mente os religiofos, nomeadamente os jefuitas, de fe mefcla-
rem no governo temporal d'aquellas chriftandades, eftatuindo
as regras fundamentaes da fua adminiftração económica e
politica, tornando-os exclufivamente fubditos do império tem-
poral, favorecendo com prémios e mercês os cafamentos en-
tre os brancos e os indígenas, eram todas encaminhadas a
conftítuír n'aquellas rudes e filveftres povoações uma focíe-
dade puramente civil, emancipada inteiramente do jugo de
Companhia, e a diffundir n'aquelles americanos uma civi-
■ Infírucçáo de 8 de outubro de 1757 ;io miniflro de Portugal em Roma,
Francifco de Almada e Mendonça.
cl)
(Is
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lifação laical. Ora os jefuitas dominavam ablblutos n'aquellas
extenfas e fecundas regiões. Erigir em frente da civilifação
promovida por ambiciofos miíTionarios, uma cultura focial
que lhe foffe contrapofta, era ferir, como por tiro indireílo, os
intereíTes capitães da Companhia, era defalojal-a das obras
avançadas antes de a commetter no recinto principal da
fua extenfa e bem delineada fortificação, que fe dilatava des-
de a Afia, paffando por Lifboa, até as ribas do Amazonas.
Eram os jefuitas, que na máxima parte em feu proveito
grangeavam a lavoura e o commercio do Pará e Maranhão.
Ao trafico da ordem não era fufiiciente oppor os cânones,
as lettras e breves pontificios de Urbano VIII, em i633, de
Clemente IX, em 1669, de Benedido XIV, em 1741, que ful-
minavam a excommunhão maior latae jententiae, e a priva-
ção de todos os officios e dignidades aos religiofos empenha-
dos em ufuras e tratos mercantis. Como na decadência do
império as guardas pretorianas, inftituidas para defenfáo dos
cefares, fe levantavam acima d'elles e os fuj citavam á fua do-
minação, a poderofa Companhia, a cohorte efpiritual do fum-
mo pontificado, confeguíra altear o feu poder por detraz do
folio pontificio. Sabendo que o fupremo paftor a amimava
como a filha fua dileda, recebia pelo feu valor convencio-
nal as moftras de fevero fobrecenho que o papa era algumas
vezes obrigado a contrafazer por não defcontentar de todo o
ponto os príncipes da chriftandade. Ás cenfuras ecclefiafticas,
illudidas ou defprezadas por aquelles religiofos mercantis,
era precifo accrefcentar algum efíicaz expediente de feição
puramente temporal. Tal foi o alvo a que mirou principal-
mente na fua fignificação politica a inftituição da companhia
do Grão-Pará e Maranhão.
Por eftes primórdios bem podiam os jefuitas prefuppor
que não ia fer quieta e remanfada a fua vida cm Portugal, e
que nos ares até ali ferenos e rofados, onde tinham exercita-
^Í-Íh. ►H^
log
do nos paços e nas turbas a fua dominação univerfal, prin-
cipiavam a encaftellar-íe as nmens precurlbras de próxima
tormenta e cerração.
Acoftumados, durante o frouxo e devotiffimo reinado an-
tecedente, ao obfcuro governo de miniftros em grande parte
ecclefiafticos, imbuídos nas máximas e preconceitos de con-
fervadores impenitentes, extranhavam agora que um minillro
de acção e de energia fe refolveíTe a implantar no decaído
Portugal as normas de governo civilifador e progreíTivo, e a
abrir á luz do feculo a cerrada inteliigencia do paiz. Logo
deram rebate clamorofo contra o eftadifta preponderante nos
confelhos do foberano. AíTombravam-fe de que um homem,
levantado defde as camadas da nobreza mais próximas da
plebe ás altas eminências do poder, fe atreveíTe a immolar
ao bem commum o egoilmo das claíTes privilegiadas na or-
dem ecclefiaftica e civil. De todos os defcontentes, que já
fe contavam numerofos defde os primeiros tempos da nova
adminiftração, eram os jefuitas os que pela força, unidade e
cohefão do feu bem travado e harmónico inftituto, podiam
fer o centro d'efta furda confpiração, que agitava os ânimos
e os intereífes contra as feveras providencias do eftadifta. Os
meneios e machinações dos jefuitas apparecem logo na infti-
tuição da companhia do Grão-Pará e Maranhão. Os mais
acerbos accufadores do miniftro e os mais facciofos de-
fenfores da ordem de Santo Ignacio, não conteftam, antes
afíirmam, que um jefuita, o padre Bento da Fonfeca, procu-
rador da província do Maranhão, confultado por alguns ho-
mens de negocio, reprovara o novo eftabelecimento mer-
cantil '. E não é provável que um rcligíofo, o qual devia fer
aufteramente confagrado á fua milfão puramente efpíritual,
e defapegado de toda a participação em negócios munda-
Vita di Seb. Giu/eppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 5i.
eis
naes, n'eftas queftões fe intrometteíTe, fe o não aguilhoaffe
alguma conveniência temporal.
Já porém de mais longe procedia a agitação dos jefuitas
contra o novo miniíterio. Entre os legados mais funeftos dei-
xados pelo frouxo D. João V ao feu ainda mais débil fucces-
for, foi talvez o mais fatal o tratado concluído com a Hefpa-
nha em i6 de janeiro de lySo para a commum demarcação
dos limites entre as poíTeíTões americanas de uma e outra mo-
narchia. Após uma longa ferie de acrimoniofas controverfias
e de convenções celebradas e desfeitas, que mais iam accen-
dendo em reciprocas defconfianças e quafi hoftilidades a am-
bas as nações, parecia finalmente chegado o termo ás diutur-
nas diíTidencias. Cedia Portugal a colónia do Sacramento na
margem oriental do Rio da Prata. Em retorno transferia-lhe
a Hefpanha o feu dominio nas miífões do Paraguay. Queixa-
vam-fe os portuguezes, com rafão, de que perdeífem com a
colónia do Sacramento o porto, que occupavam ás ribas
d'aquelle rio, fronteira natural do Brazil para a parte meri-
dional. Laítimavam-fe egualmente os hefpanhoes, havendo-
fe por mal quinhoados no efcambo. Aproveitaram habilmente
os jefuitas as mutuas reconvenções, machinando em uma e
outra corte para que não chegaífe a ter adimplemento a pa-
duada tranfacção. Era o feu incentivo capital o terem inífi-
tuido no Paraguay entre as felvagens multidões uma forma
de governo feu patriarchal.
A principio haviam fido apenas miíTionarios occupados
em reduzir á fé chriftan e a uma fombra de civilifação aquel-
las incultas gentilidades. Pouco a pouco, porém, fe foram infi-
nuando nos ânimos d'aquelle povo, e grangeando por tal for-
ma a fua confiança e devoção, que vieram brevemente a
degenerar de evangélicos paftores e catcchifias em fenhores
abfolutos. E não contentes com a larga influencia efpiritual,
arrogaram a fi próprios exclufiva a temporal dominação. Em-
-i-<S- •H^
•g-cp-
quanto os jefuitas encadeavam pela fé os efpiritos débeis
d'aquellas rudes povoações, não le deícuidavam de ir fenho-
reando ao mefmo paíTo a terra e o trabalho, convertendo os
felvaticos americanos em fervos adfcripticios devotados á
auítoridade e poder da Companhia. Tinham os miffionarios
jefuitas fundadas no Paraguay numerofas aldeias ou povoa-
ções, cuja económica e civil adminiítração elles fós exercita-
vam, mantendo os indios paraguayos em real e eítreita fer-
vidão. Á fombra da religião que lhes pregavam, foram-lhes
fazendo crer, como dogma eílencial da fua fé, a mais efcrupu-
lofa obediência aos feus diítames temporaes, imbuindo-lhes
os ânimos na firme perfuafão de que além dos miffionarios
não havia na terra outro poder, a quem deveíTem guardar
acatamento e fujeição. Trataram de aíTegurar o feu dominio,
acoftumando os indios a ter em ódio ou fi.ifpeição aos eu-
ropeus, que não trajaíTem a roupeta da Companhia. Enfi-
naram-lhes o ter por mui perigofo á fua temporal commo-
didade e ao bem efpiritual de fuás almas todo o trato e
communicação com gentes originarias do velho continente.
Mantiveram como idioma o guarany, defendendo que nin-
guém fallaffe a linguagem caftelhana. E porque a demais
da abfoluta dedicação d'aquelles indios, era neceíTario aos
jefuitas, para aíTegurar efta fua ufurpada foberania, o fub-
fidio das armas materiaes, os foram providamente induftrian-
do na arte militar, dando-lhes algum modo conveniente de
organifação e difciplina, exercitando-os na tadica e no ma-
nejo, quanto o podia permittir a rudeza de gente bifonha, e
acoflumada á foltura e liberdade dos fertões. Adextraram-
n'os em aproveitar a fortificação de campanha para tornar
difficeis ou impradicaveis os desfiladeiros e os palTos, por
onde tropas europêas os poderiam acommetter.
Se os jefuitas nas cortes europêas, no meio de uma flo-
rente civilifação, affrontando-fe com as poderofas influencias
cia
de uma forte cultura intelledual, tendo por cenfores e adver-
farios os efpiritos mais livres e mais rebeldes a toda a fupre-
macia theocratica, alcançavam aíTim mefmo egualar o con-
feílionario ao folio dos potentados, e confundir na mefma
eíTencia o confeíTor e o valido, os aíTumptos da confciencia
com os negócios do governo, fe affim acontecia entre as na-
ções, onde havia um Pafcal, um Arnault, um Nicole, para os
accufar, um theologo piedofo, como era Melchior Cano, para
os defmafcarar, janfeniftas para os combater, lutheranos, cal-
viniftas, anglicanos para os contrapefar, o que feria n'quellas
agreftes e remotas regiões, onde a completa aufencia de in-
fluencias feculares e a efcuridão total dos entendimentos no
gentio deixavam aos jefuitas livre o paíTo para a conqviiíta
material, disfarçada na afcefe e na homilia?
Ninguém fabia melhor que os jefuitas infinuar-fe nos
ânimos das mais intradaveis e rebeldes gentilidades. Reuniam
ao cultivo da intelligencia, á tempera do feu caraíter, á difci-
plina rigorofa, em que eram adextrados, á palavra fimples,
fácil, perfuafiva, a amenidade no feu trato, a brandura no feu
geíto, a accommodaticia tolerância para com as humanas
venialidades, a perfeverança inquebrantável, o animo audaz
e esforçado, o defprezo dos perigos, e a indifferença, com que,
foldados animofos e fuhmiífos á regra e ao dever, contempla-
vam de frente e fem temor o profpedo do martyrio. Era por
extremo attradiva, feduftora, a apparente fimpleza, que aífe-
dtavam os que a fi próprios fe diziam focios de Jefus, a
gravidade auílera, de que fe revertiam, a abnegação e o des-
apego, com que a fi mefmos fe baniam moralmente dentro
da fociedade catholica, acceitando para fi as viagens extenfas
e perigofas, as excurfões pelos mattos mais bravios e as fer-
ranias mais inhofpitas, as pregações e catechefes ás mais
duras e cruéis tribus felvagens, deixando ás outras ordens re-
iigiofas as tiaras, as mitras os rochetes, e as murças, as pin-
ii3
gues e rendofas abbadias. Nunca houvera no mundo ne-
nhuma outra Ibcicdade, onde, pela voluntária abdicação do
próprio alvedrio e utilidade, o individuo defappareceíTe,
como que intimamente diluído, na maíTa condenlada e ho-
mogénea da apertada e poderofa corporação. Ali fe reali-
fava a confubftanciação de cada membro d'aquella harmóni-
ca cidade no todo individual. No efpirito de cada jefuita vivia
o efpirito de toda a Companhia. Era uma efpecie de novo
pantheiímo, em que o fingulare o diílerentc fe confundiam na
indilfoluvel unidade. O egoifmo peífoal, defterrado como um
crime da confciencia, reapparecia tranfmudado no egoifmo
coUedivo, com que a omnipotente aífociação aífoberbava e
fubmettia á fua illimitada fujeição as nações e os potentados.
Era uma femelhança dos inftitutos fpartanos no completo
defapego, com que o obfcuro cidadão d'aquella myítica repu-
blica fe offerecia aos trances mais cuftofos e aos mais duros
facrificios em honra e beneficio da inteira communidade.
O fpartano nafcia e educava-fe para morrer gloriofamente
pela pátria. O jefuita profeífava e inítruia-fe para oíferecer
a vida humildemente nas aras facrofantas da Companhia.
Imagine-fe uma nação, cujos membros, repartidos em
províncias e em colónias, eftiveíTem diífundidos por todos os
povos do univerfo, influindo nas cortes, dominando nas mul-
tidões, expungindo pradicamente as fronteiras dos eftados,
abjurando a pátria nativa para fe fazerem cidadãos de uma
nova pátria efpiritual, eítrcitando os vínculos, que entre fi os
enlaçavam e os prendiam firmemente ao fupremo caudilho
irrefponfavel, c ter-fe-ha delineado a imagem ainda imper-
feita do que era a Companhia. Nenhuma ordem religiofa
alcançara jamais a cohefão, a unidade, a fortaleza, a fubor-
dinação incondicional, a difciplina inviolável, que fazia da
fociedade jefuitica um império diífeminado por todo o orbe.
Como a hera frondofa e luxuriante fe enrofca nos caules mais
«is
"4
robustos, e os vefte e os encobre com a folhagem, aílim a or-
dem dos jefuitas le eftivera por tal feição durante dois fecu-
los ennovelando no tronco dos eftados, que não era já mui
fácil difcriminar por debaixo das fuás crefcentes invafões o
que ainda fubfiftia de império temporal, que não fe efcon-
deíTe e humilhaíTe inteiramente fob as frondes da nova theo-
cracia.
O credito, que a principio conquiftaram, fora devido em
grande parte ao zelo com que, defdenhando na apparencia
todos os cuidados terrenaes e todas as mundanas ambições,
fe confagravam, como operários evangélicos, a diífundir as
doutrinas religiofas e a ampliar entre as remçtas gentilidades
os âmbitos da fé. Não contribuiram talvez menos a augmentar
a reputação da Companhia os numerofos mifllonarios, que
exilando-fe para as mais diftantes e intragáveis regiões da
Afia e da America haviam alTrontado com impávida fortaleza
os lances mais perigofos, oíferecendo-fe ás cruciantes provas
do martyrio, comtanto que lograífem efparzir nas trevas das
barbaras ou fylveítres povoações algum raio de luz efpi-
ritual. O nome do padre Jofé de Anchieta, o evangelifador
dos Índios no Brazil, a fama de S. Francifco Xavier, o apos-
tolo da índia, eram faudados como heróicos teftemunhos em
favor do novo inl^ituto religiofo. Os illuftres luminares, que
do grémio da Companhia eftavam efclarecendo o horizonte
da fciencia, os Kirchers, os Grimaldis, os Scheiners, os Cla-
vios, os Guldins, os Ricciolis, os Gregorios de Saint-Vincent,
honrofamente commemorados na hiftoria das mathematicas
puras, da phyfica e da aftronomia, circumdavam de uma
auréola brilhante o inftituto religiofo, que não fomente vol-
via os olhos ao céo myftico dos bemaventurados, fenão tam-
bém ao cofmico firmamento dos aftronomos, para inquirir
os feus phenomenos e perfcrutar as fuás leis.
Era já antigo o ciúme ou a averfão, que os miíTionarios
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da Companhia confagra\am a toda a audoridade ou mando
fecular. Eram frequentes os queixumes, em que os jefuitas
portuguezes do Maranhão fe aggravavam dos officiaes e das
justiças temporaes, que ali reprefentavam a soberana potes-
tade. O jefuita com jaclanciofa convicção acreditava que nas
floreftas virgens do Novo Mundo, no meio das tribus mais
indomefticas e rebeldes á poHciada e culta íbciedade, elle
fó podia operar aíTombrofos milagres de converfão, não fo-
mente defbravando para a fé os inhofpitos fertões, mas con-
duzindo e guiando as luas gentes pelo redil de Chriíto ás
formas temporaes da civilifação. Do padre Nóbrega, primei-
ro miíTionario do Brazil, refere o grande António Vieira,
que com mullca e harmonia de vozes fe atrevia a trazer a fi
todos os gentios da America'. Tal era a illimitada confiança
que a induftriofa Companhia fe acoftumára a pôr na brandu-
ra e artificio dos feus meios para converter a fi e confervar
na fua abfoluta dependência as ferozes nações do Novo
Mundo. Com eíta ambiciofa convicção da fua moral fuperio-
ridade fobre os poderes feculares, que dominavam na Ame-
rica, não é para aífombrar que os jefuitas fempre viílem
com maus olhos levantarem-fe ao lado da fua theocracia os
reprefentantes e delegados da metrópole, e com elles vives-
fem em eífado de maior ou menor hoftilidade. Ajudava a
efta fupremacia dos miífionarios o favor, que nos indios lhe
grangeava o confiderarem que eram imbelles e incruentas as
conquiflas efpirituaes, e fempre executadas ao eftrepito das
armas as invaíoes da audoridade fecular nos mattos e fer-
tões onde viviam. E diga-fe em verdade que o procelfo ado-
ptado geralmente pelos capitães e pelos foldados não era o
mais conforme a avaífallar pacificamente o gentio, habitua-
do á fua indómita e fera independência. As violências e ex-
Vieira, Vo^es /aitdofas, T'oj- hijlorica, pag. 37 e 38.
c|3
c|3
ti»
ii6
torfões, com que fatisfaziam a cubica e a torpeza", manti-
nham e afervoravam a hoftilidade entre os indios e os por-
tuguezes, que os avexavam e opprimiam. N'uma confulta
dirigida ao confelho ultramarino dizia o máximo orador de
Portugal: «Os poucos (indios do Maranhão) que fe poderão
ainda defcobrir, eftão tão efcandalifados de fe lhes não
guardar, o que fe lhes promette e das tyrannias, que com
elles fe tem ufado, que fera muito difficultofo arrancal-os de
fuás terras e mais tendo tantas experiências de que, defcen-
do para as noíTas, todos morrem e fe têem confumido*.»
E vindo a laftimar a deftruição, em que fe achava o eftado
do Maranhão, trinta e fete annos depois de haverem ali en-
trado os portuguezes, capitula o eminente jefuita fer a caufa
única e original de toda aquella triíte devaítação «a infaciavel
cubica e impiedade d'aquelles moradores e dos que lá os
vão governar, e ainda de muitos ecclefiafticos, que fem fcien-
cia, nem confciencia ou julgavam por licitas eftas tyrannias
ou as executavam, como fe o foífem». E mais dizia o aus-
tero miíTionario: «Não era poíTivel, nem parece o fera que a
juítiça divina não acuda por fua providencia, e que o caftigo
de um eílado fecundado em tanto fangue innocente pare fó
na prefente miferia'».
O ciúme, com que os jefuitas no Brazil olhavam para o
governo temporal exercido pelos delegados da coroa, reífum-
bra a cada paíTo das queixas do eloquentiíTimo Vieira, nos
feus papeis políticos, e ainda em alguns dos feus fermões''.
Já n'aquelle tempo fe attribuia geralmente aos miíTionarios
' "Onde (na fortaleza do Ceará) em certo modo fe pôde dizer que eftava e
eftá o demónio mais forte pela cubica dos capitães e torpeza dos foldados.»
Vo^es faudófas, Vo^ hiftorica, pag. 47.
2 Vo^es faiidofas, Fof politica, pag. gS.
3 Vo^es faudófas, Vo:; politica, pag. 97.
4 Vo:jes faudófas, Voj politica, pag. 106 e feguintes. T 07 defenganada,
pag. i33.
da Companhia o terem mais a peito as mundanas utilidades,
que lhes refultavam de fujeitar os Índios a leu lerviço, do que
o mérito efpiritual da fua converfão". Era eíl:a já então no
conceito do grande orador a pedra de efcaiidalo, que entur-
vava na opinião dos portuguezes a boa fama, que entre
elles alcançara nos primeiros annos apoz a inftituição a
ambiciofa fociedade. As luftas e porfias entre os magiftra-
dos feculares e os jefuitas, continuamente difputando acerca
da fua dominação fobre os indios avaíTallados, acompanha-
vam fem intermilTão os progreíTos da Companhia no Mara-
nhão. Em 1661 a camará e a gente principal da cidade de
Bethlem do Grão-Pará expulfára d'aquelle território os jefui-
tas, tirando-lhes a adminillração, que nas aldeias exerciam
como parochos e miíTionarios. Contra aquella oufada provi-
dencia, exclamava António Vieira no protefto dirigido ao fe-
nado municipal: «Quão grande macula e aíTronta fera do
nome portuguez dizer-fe no mundo, que os que têem dilata-
do a fé por todo elle, fão agora os que prendem e deíferram
os pregadores da mefma fé e os que os tem ido bufcar e tirar
por força de fuás miílíjes e de entre os gentios e novos
chriftãos, que eftão convertendo; e que exemplo é eíte para
as gentilidades, e que refpeito terão os indios aos facerdotes,
quando aíTim os vêem tratar pelos portuguezes^?»
Arrogavam-fe os jefuitas os méritos de quanto bem tem-
poral adviera ao Maranhão e ao Pará, com o que tacitamen-
te averbavam de adverfa ao bom governo e civilifação dos
' "Acabarão de entender (os do confelho ultramarino) a verdiide do zelo
que lá nos leva (ao Maranhão) e defenganar-fe quão errado é o conceito, que
tem de nós, em cuidarem que queremos mais os indios, que fuás almas: muito
refolutos imos a procurar arrancar efla pedra de efcanJalo dos ânimos dos por-
tuguezes, e a não fallar em indios mais que no confefTionario.» Vojesfaudofas,
Vo^ de/enganada, pag. i35.
- Vo^es Jaudofas, Vo^ exhortatoria, pag. 195 e 196.
4sU
-<}^
iiS
Índios a natural intervenção da audoridade Iccular'. O
maior e porventura o mais rigido, fincero e patriótico je-
fuita portuguez, confeíTava a averfão, em que era tida no
Maranhão e no Pará a fua religiofa corporação-. Efcreven-
do a D. AíTonfo VI, logo em princípios do feu reinado, de-
clarava António Vieira as perfeguições e os ultrages, com
que em feu entender eram galardoados os ferviços da Com-
■ panhia em reduzir á fé chriftan e á vida civilifada os gentios
do Maranhão, e admirava-fe de que fendo tão benemérita
tiveífe contra fi a geral opinião. Depois de relatar as iniqui-
dades commettidas contra os Índios e o que os jefuitas faziam
em fua defeza, exclamava: «E sendo ifto aíTmi, fenhor, fó os
que defendem efta juftiça, fão perfeguidos ; fó os que falvam
eítas almas fão affrontados; fó os que tomam á fua conta
efte tão grande ferviço de Deus, têem contra fi os homens'» .
Tão antiga e pertinaz era no Maranhão a luda entre os re-
prefentantes do poder temporal e os obreiros evangélicos da
Companhia. Tão aíincadamente bufcavam os jefuitas defen-
der o dominio temporal, que fobre os Índios largamente
exercitavam.
Não é jufto, porém, efcurecer que fe os chamados focios
de Jefus, dellembrando o defapego, a humildade e a man-
fidão do Redemptor, lidavam por accrefcentar o feu munda-
■ "Todo o bem temporal, que ha no eftado, foi procurado c confeguido e
confervado por minha diligencia e. . . houvera outros muitos bens temporaes,
que eu quiz accrefcentar n'elle, fe houvera quem quizelTe concorrer para
iffo, e. . . os não ha, porque não quizeram.» Vo:;es faudofas, Vo:^ exhortatoria,
pag. 200.
2 «Papeis feitos por inimigos e por miniflros incompetentes e com tantas
outras nullidades não fazem prova alguma e muito menos em terra, onde to-
dos voíTas mercês (a camará e nobreza da cidade do Pará) fe queixam de fal-
fos teflemunhos e em tempo, onde os padres da Companhia e eu particular-
mente eflamos tanto no ódio de todos, como vofías mercês e os effeitos o
dizem.» Vo^es faudofas, Vo:^ exhortatoria, pag. 202.
i Vo^es faiido/as, Vo^ íelofa, pag. 23o.
( I T
"9
no império, não era chrillan, nem paternal a acção da aucto-
ridade, reprefentada nos governadores, capitães, magiftrados
e juftiças, nem benévolo e caritativo o procedimento dos por-
tuguezes moradores para com os pobres e oppreíTos naturaes
das terras conquiftadas. A lede infaciavel do oiro inficciona-
va os que punham pé em terras americanas defde os que
meneavam o lupremo baftão e a vara da judicatura até os
aventureiros e colonos, que iam eftabelecer-fe no Brazil. Não
andava mui diftante da verdade o immortal jefuita portuguez
quando n'um Ímpeto de generofa indignação prorompia n'es-
tas vozes laftimadas: «As injuftiças e tyrannias, que fe têem
executado nos naturaes d'eíl:as terras excedem muito as que
íe fizeram na Africa; em efpaço de quarenta annos fe mata-
ram e fe deflruiram por efta cofta e fertões mais de dois mi-
lhões de Índios e mais de quinhentas povoações, como gran-
des cidades e d'ifio nunca fe viu caftigo ... e não fó fe
requer diante de voífa majeftade a impunidade d'eftes deli-
dos, fenão licença para os continuar'». N'efta porfia laftimo-
fa entre os feculares, que defhumanamente profeguiam em
opprimir e efpoliar os indios americanos, e as miífões da
Companhia, que tenazmente defendiam o feu ambiciofo mo-
nopólio de os dirigir e aproveitar, confundindo a catechefe
com o governo, e o crucifixo do miíFionario com a infignia
do magiftrado, refolvêra a coroa o pleito, confiando por uma
lei de i655 aos jefuitas a adminiftração temporal dos indios
nas aldeias, confolidando na mefma poteftade a direcção civil
e o officio paftoral. Por eíta providencia revogara D. João IV,
no penúltimo anno do feu reinado, outra difpofição, c|ue cm
1654 decretara, inclinando em favor dos intereífes feculares
e contra as ambições da Companhia, a ofcillante balança
do poder. Agora ficavam os jefuitas invertidos na pilena au-
' Vo^es faudofas, Fof ^elo/a, pag. 228.
e|í ela
ftoridade. Agora, contrabalançando as diligencias dos por-
tuguezes moradores, propunham a el-rei pela boca facun-
diíTima de Vieira, então provincial no Maranhão, as mais
feveras demonítrações contra os que oufalTem contradizer e
tranfgredir as regias providencias". Não bastou a fraqueza
de Aífonfo VI a ferenar as tempeftades, que da ambição da
Companhia e da cubica na gente fecular, fe defencadeavam
a cada paíTo nas terras do Brazil. A lei de 12 de feptembro
de 16 63 tirou finalmente aos jefuitas a jurifdicção civil dos
Índios no Maranhão, mantendo-lhes apenas no efpiritual a
concorrência com os miffionarios das ordens religiofas. Era,
porém, a fociedade tão poderofa, e tão débil e infeudado á
theocracia o fceptro de D. João V, que não tiveram os jefui-
tas grande cufto em defobedecer ás feveras prefcripções e dei-
xar efquecer como obfoleta a previdente legiflação canónica
e civil, que lhes defendia o intrometterem-fe na adminiítração
civil das indianas povoações. Com a regia tolerância e pro-
tecção, com a perícia crefcente dos jefuitas na arte de cate-
chifar e dirigir a rude fimpleza dos naturaes, com o trato por-
ventura mais humano que o dos officiaes e dos magiftrados
e dos outros portuguezes no Brazil, vieram a aífentar em fir-
miífimos cimentos a fua conquifta e dominação. Envelheci-
dos na ambição e enraizados no animo dos indios, poderiam
agora intimar feguramente á poteftade temporal as fuás leis
no que tocava aos naturaes por elles aldeados e convertidos.
As providencias adoptadas pelo governo portuguez, para
a prompta execução do tratado de limites, vieram pôr de ma-
nifefio a irregular fituação, em que viviam na America os
jefuitas, não fomente ingerindo-fe abufivamente no governo
temporal das fuás miífões, íenão eftabelecendo n'ellas for-
malmente uma verdadeira theocracia. A que parecera d'an-
(|3
Vo^es faudofas, Vo^ ^elo/a, pag. 2j2.
eis
elj
tes má vontade e paíTiva contradicção ao império temporal,
veiu agora a demudar-fe em aberta rebellião.
Um dos primeiros cuidados de Pombal, logo em princí-
pios do leu longo miniílerio, fora accudir aos grandes males
promovidos no Brazil pelos miíTionarios da Companhia. Des-
pachou em lySi para o Rio de Janeiro, como capitão ge-
neral e commiíTario fuperior para a intentada demarcação,
a Gomes Freire de Andrade, em a nau NoJJa Senhora da
Lampadofa, levando ás fuás ordens os aftronomos, enge-
nheiros e geographos indifpenfaveis para aíTignar as fron-
teiras americanas entre os domínios portuguezes e hefpa-
nhoes. Ao mefmo tempo nomeava o minilfro a feu irmão
Franciíco Xavier de Mendoça Furtado, para que, no cargo
de governador e capitão general do Maranhão, proveíTe com
mão fegura e firme ás defordens, que então dilaceravam
aquelle ampliíTimo eftado americano, onde os jefuitas portu-
guezes tinham aíTentado a fua ambiciofa foberania. Refor-
çava o miniítro previdente as tropas d'aquella capitania com
três regimentos na mefma occafião partidos de Lifboa.
Quando, porém, o commiíTario de Portugal, Freire de
Andrade, com o commiíTario de Hefpanha, marquez de Vai
de Lirios, determinaram dar principio á delimitação entre as
poíTeíT(3es dos dois eflados, acharam-fe impedidos pela belli-
coTa refiftencia, que lhes oppozeram os indios do Paraguay e
Uruguay, dirigidos e acaudilhados pelos jeTuitas, Teus padres
eTpirituaes e Teus mundanos governadores. Conheceu-Te en-
tão que os Tocios da Companhia faziam impraticável a pa-
cifica execução do tratado de limites, e que Teria forçoTo aos
commiíTarios o empenharem-Te n'uma guerra com os indios
pertinazes e rebeldes. Repugnavam eftes incultos naturaes á
mão armada a mudarem de Tenhor, paíTando da foberania
caftelhana para o dominio portuguez. Não era certamente
reprehenfivel que os indios paraguayos, inftigados pelo Tenti-
eis
mento generolb da lua própria liberdade e humana condição,
reíifliffem a um convénio, que os tornava em matéria de es-
cambo e negociação entre duas coroas conquiftadoras. Se
porém os indios rudes licitamente defendiam os feus lares
contra os portuguezes, que julgavam inimigos e oppreíTores,
eram os jefuitas pelo contrario merecedores de alpera cenfura
e de prompta repreffão; porque fendo europeus, civilifados,
chrillãos, religiofos de uma ordem confagrada, em leu dizer,
á obediência, abnegação e defapego de todos os bens e com-
modos terrenos, e de toda a participação em negócios profa-
nos e temporaes, e eftando incurfos nas penas fulminadas pelo
breve Immenfa pajlorwn de Benediíto XIV e pelos de alguns
dos feus predeceíTores, perfeveravam em fua rebeldia ás dis-
pofições dos cânones, ás conftituições pontifícias e ás leis ex-
preíTas dos foberanos. Eram dobradamente culpofos, primei-
ramente por terem inftituido e confervado contra os preceitos
evangélicos e prohibições canónicas e civis um eftado em
certa forma independente em território de um foberano, e em
fegundo logar, porque em vez de perfuadirem os indios á mo-
deração, á paz e á conformidade com as determinações do
legitimo poder, os incitavam á completa rebellião, aliftan-
do-os em exercito, armando-os e adextrando-os para a
guerra, e tomando á fua frente o logar de chefes e officiaes.
Na Relação abreviada da Republica, que os reli giojos jefuitas
das proj'iiicias de Portugal e de Hefpanha ejlabeleceram nos
domínios ultramarinos das duas monarchias, mandada colligir
e publicar por Sebaftião de Carvalho, apparecem vigorofa-
mente fubítanciados os proceíTos, a que os jefuitas fe foccor-
reram para eífabelecer e confolidar o leu império nas crédu-
las e quafi infantis povoações. Diííicultavam com ciúme todo
o trato e communicação dos naturaes com os hefpanhoes e
principalmente com as auftoridades ecclefiafticas e fecula-
res, que fempre fora leu propofito íigurar-lhes como hoftis á
-si
fua felicidade terrena e efpiritual. Fortaleciam e roboravam
continuamente os vínculos, que ligavam os jefuitas aos indí-
genas, pela relação de fervos a fenhores, abdicado nas mãos
da Companhia o próprio alvedrio e liberdade.
Se defcontamos na Relação abbreinada os encarecimen-
tos e hyperboles, com que o elpirito de partido coftuma lem-
pre mefclar á verdade inconteftavel o fombrio colorido das
paixões, das luas narrações em todo o calo fe deprehende que
os jefuitas collocaram os dois exércitos ás ordens de Gomes
Freire e Vai de Lirios na dura condição de converterem uma
troca pacifica de territórios n'uma campanha difficilima em
paiz fanatisado e inimigo. Attrihue-le aos jeluitas a atrocida-
de crueliíTima de encommendar aos paraguayos que não des-
fem quartel aos portuguezes, e para que, matando-os, não os
viíTem refiifcitar, decapitaílem a quantos lhes caiffem em
poder, porque fó aíTim ficariam certos de tornar-fe impoíTi-
vel a reíurreição. Cufta em verdade a acreditar que tal e tão
infame prefcripção faíffe da bocca, não já de homens conla-
grados a Deus e ao fervente amor do próximo, fenão de gen-
te, na qual ainda viílumbraíTcm uns lampejos de cultura e
humanidade. E provável que na fragua das facções foíTe for-
jada aquella tremenda imputação.
Não é porém invenção calumniofa que defde 1752 até
1756 as tropas de Portugal e da Helpanha não poderam
avançar fem que fe lhes deparaífem na fua marcha as maio-
res contradicções, caviladas e dirigidas pelos miíTionarios
jefuitas, alma e infpiração dos indios, cegamente devotados
aos feus diredores efpirituaes. Foram numerofos os recontros
e combates, innumcraveis as cruezas commettidas pelos Ín-
dios contra os foldados portuguezes e hefpanhoes.
Emquanto nos fertões, que demoram nas margens do
Umguay, fe paífavam as fcenas tormentofas, em que era
protagonifta a Companhia, nas fronteiras feptentrionaes do
s|3
eis
4S^
124
Maranhão achava-fe o governador e capitão general Fran-
cilco Xavier de Mendoça, nomeado commiíTario portuguez
para a demarcação ao norte do Brazil, a braços com uma
fefnelhante rebellião. Ali eram jefuitas portuguezes os que
bufcavam perpetuar o feu antigo império theocratico. Ali
predominava o principio fundamental, que o padre An-
tónio Vieira confagrára n'uma carta a Affonfo VI, quando,
queixando-fe amargamente dos magiftrados feculares, pe-
dia ao rei que houveíTe de tomar no tocante ás miíTóes dos
jefuitas uma ultima refolução, com a qual os livraíTe por uma
vez de requerimentos e demandas com os officiaes e delega-
dos da coroa n'aquellas regiões. «Porque, dizia o eloquen-
te pregador, fe não eítivermos totalmente exemptos d'elles,
nunca poderemos confeguir o fim para que viemos ' » .
O procedimento dos jefuitas na America tinha vindo pôr
o fêllo á profunda fufpeição, em que era tida a Companhia,
como perigofa e incompatível com o poder e aitiftoridade fe-
cular. Não eram unicamente os inimigos e invejofos os que
denunciavam a ordem poderofiíTn-na. No próprio feio d'aquel-
la religião cofmopolita fe haviam levantado clamores contra
a immoderada intervenção dos jefuitas em tratos feculares
políticos ou mercantis. Quando em princípios do feculo deci-
mo feptimo a Companhia foi juftamente contraftada por gran-
des tempeftades e accudiu ao pontífice Paulo V, para que de
novo a confirmaffe e levalfe á toa atraz da barca de S. Pe-
dro, ella mefma lhe aprefentou os decretos de reforma, que
na fua quinta congregação geral fe haviam accordado para
que, além da correcção de outros abufos, os jefuitas fe não
mefclaíTem em negócios políticos e temporaes". Já então a
chamada fociedade de Jefus confeíTava que a fua religião fe
■ Vieira, Cartas, tom. i, cart. x
2 Lettras pontifícias de Paulo V, de 4 de Icptcmbro de 1606.
^Í^Íh- -«í^
th ejs
125
via mal reputada em diverfas regiões e efpecialmente decaída
no conceito de muitos potentados. Apefar d'eítes paliiativos e
da benevolência, com que o Vaticano amimava a fua mais di-
leda legião efpiritual, não pôde nos tempos ulteriores o fum-
mo facerdocio forrar-fe aos maiores empenhos, ainda que fem
frudo de religiofa reformação, para reftituir (fão palavras de
Benedido XIV) a paz á Egreja por muitas e falutares confti-
tuições, para que os jefuitas não exercitaíTem negócios fecu-
lares, já foíTe nas miffões, ou por lua occafião, já a reípeito
dos graviffimos diíTidios e contenções, que contra os prelados
ordinários dos logares, contra as demais ordens religiofas,
os inftitutos de piedade, e toda a forte de communidades
fe haviam excitado na Europa, na Afia e na America, não
fem grande ruina das almas e aífombro das povoações'.»
Nos esforços para a inteira extirpação dos abufos e vicios
inveterados na invafora fociedade tinham fido participantes
os pontífices romanos Urbano VIII, Clementes IX, X, XI c
XII, Alexandres VII e VIII, Innocencios X, XI, XII e XIII, e
finalmente o papa Benedido XIV, que ao tempo de rompe-
rem contra ella em Portugal as hoftilidades, prefidia, com
applauíb, no folio pontificio. Aífim no decurfo de cem annos
a Egreja patenteava, pela bocca do fupremo pontificado, os
enormes defvios, com que os humildes e ferventes operá-
rios evangélicos da primeira fundação fe tinham ido afas-
tando da vinha efpiritual, não fomente para marcharem na
eftrada real dos negócios e manejos temporaes, fenão para fe
entranharem e perderem nas fendas e nos atalhos tortuofos
de enredos profaniíTimos.
Podia, porém, o bullario romano avolumar-fe com os no-
vos edidos pontifícios, podia o papa Lambertini, Benedido
' Bulia de Benediclo XIV, Dominus ac Redemplnr nojler, de 21 de julho de
17-3, abolindo a Companhia de Jefus, § 21.
126
XIV, renovar com afperrimas cenfuras a ingerência dos ob-
durados jefuitas nos aíTumptos feculares e concernentes ao
governo dos eftados, com o fim de accrefcentar a fua valia e
enthefourar os bens terrenos. Os jefuitas, como poderofa e
privilegiada milicia efpiritual, deixavam dormir as lettras
apoftolicas nas fuás volumofas collecções e perfiítiam cega-
mente na fua encanecida impenitencia.
Paífando em Portugal de um reinado menos piedofo que
fanático a uma adminiftração mais zelofa da verdadeira fo-
berania, comprehenderam que o miniftro de D. Jofé não era
antagoniíta, com quem valeífem demafiado o coítume e a
tradição. O feu enérgico e vigorofo minifterio a cada provi-
dencia, que lançava defde o paço com a fancção nominal
do monarcha indolente e mundano em fummo grau, levan-
tava contra fi os intereífes egoiftas, que iam fer immolados
ao bem commum. Não ha quafi uma lei ou um alvará, que
não deixe uma íerida infanavel e dolorofa n'alguma das clas-
fes, em que eftavam repartidas as ordens privilegiadas. Alem
d'iíro um governo exercido por um quafi plebeu, um homo 110-
piis, fem imagens venerandas de maiores e avoengos, um go-
verno fem a influencia prepotente da alta nobreza e a artifi-
ciofa dominação da Companhia, era um phenomeno politico
extranho, fingular, uma abominação, um facrilegio, pofto em
contrafte laftimofo com a fubferviencia do eítado ás duas
ambiciofas hierarchias defde os tempos de D. João III, o
fundador da inquifição e o introduiílor dos jefuitas, até
D. João V, o amigo da famofa fociedade e o favorecedor do
Santo Ofiicio.
A guerra fem quartel ao miniftro audaz e innovador era
pois infallivel, confederadas contra elle a nobreza e a Compa-
nhia. Os fidalgos, habituados a contrapefar o poder official
dos miniftros com a fua entrada e valia nas recamaras dos
reis, difparavam contra Sebaftião de Carvalho as hervadas fré-
1 f
ti»
chás da fatyra e do epigramma, emquanto não podiam Ibc-
correr-fe ás mais potemes armas da aberta infurreição. Os
jefuitas, encaftellados no íntimo do paço, como régios con-
feíTores, como que eftavam occupando a cidadella, d'onde a
falvo podiam aíTeftar os tiros efficazes e dirigir os ramaes
das fuás minas contra o miniftro, encerrado no recinto prin-
cipal da fortaleza. Quando o governo refide n^um fó homem
que herdou o fceptro e a majeftade, e quando eífe homem
confere com os feus direílores efpirituaes os mais graves ne-
gócios da republica, então acima da realeza temporal vem
erguer-fe arrogante e irrefponfavel uma temerofa theocracia.
Ao poder legiflativo do fobcrano oppõe-fe com o feu veto o
poder moderador do confeíTionario. O governo cifra-fe então
fomente no facerdocio, e os miniftros fão apenas os acoly-
tos, que aíTiftem obedientes e refignados ao laftimavel facri-
íicio da nação, immolada ao egoifmo clerical.
Sebaftião de Carvalho refufava-fe tenazmente ao papel
inglório e humiliante dos fecrctarios de eítado em tempos de
D. João V. Ou lhe havia de bailar para reger a monarchia a
vara de Saul, ou deixaria a outrem fem partilha a uncção de
Samuel. Seftario fervorofo da independência do poder fobe-
rano e temporal, correr-fe-ía de governar, pedindo a vénia
aos duques e aos marquezes, e beijando a fímbria da roupeta
aos filhos efpirituaes de Santo Ignacio. Governar é combater,
e não contemporifar. N'efl:a dura peleja ou fe impõe oufada-
mente a lei ao adverfario ou fe lhe cáe reverente aos pés,
fupplicando-lhe a fombra do poder, como uma ignominio-
fa conceífão. Quando um homem fe levanta com a omnipo-
tente diétadura ou em nome da revolução, como Danton e
Robefpierrc, ou por mercê do defpotismo, como Pombal
e Richelieu, é forçofo que o defpotifmo ou a revolução
perfonificada no fupremo diftador, paífem com a fua car-
roça triumphal por cima dos dcflroços do paífado, como o
II ir
-i-Ò- -iÇk^
e|» tis
A-
c|3
12S
carro de Jaggernath efmaga, no feu tranfito, os fanáticos
hindus.
A luda de Carvalho com os nobres e os jefuitas era pa-
tente defde os primórdios do governo. Nas machinações con-
tra a companhia do Grão-Pará haviam procurado enredar a
gente mercantil de mais groíTos cabedaes na furda confpira-
ção. As pregações e prophecias divulgadas por occafiáo do
terremoto e depois d'elle, os manejos dos jefuitas e barbadi-
nhos junto de D. Jofé para o eítimularem á penitencia e ex-
piação, não eram fenão tremendas allufões áquelle miniftro
defnaturado, que pelas fuás impias refoluções havia provoca-
do a divina indignação e attrahíra fobre a noviíTima Gomor-
rha o flagello vingador.
Os ares enfombravam-fe em redor do impávido miniftro.
A borrafca annunciava-fe temivel nas orlas do horizonte. Co-
meçavam a defatar-fe contra elle as linguas, tanto mais peri-
gofas e mais difíiceis de calar ou defmentir, quanto é menos
extenfa n'um paiz a liberdade popular. Quando não ha im-
prenfa livre, os homens públicos e os negócios do governo
difcutem-le na fombra e no fecreto, confundindo na commum
murmuração o capitulo jufto e verdadeiro e a calumnia, que
fe vae propagando e diffundindo, e não pôde confutar-fe,
porque anda refugida á luz do dia.
De um notável ^decreto datado a 17 de agofto de lySõ
deprehende-fe que chegara n'aquelle tempo a grandes oufa-
dias a hoftilidade e averfão contra o famofo miniftro de D. Jo-
fé. Uma tão fevera providencia repreffiva não podia certa-
mente decretar-fe para conter gente mordaz e deflinguada,
que apenas defentranhaíTe em fatyras verbaes o feu ódio con-
tra Carvalho. Devia feguramente fer mui grave a circumftan-
cia, que didou uma tão dura e cautelofa prevenção. Hou-
vera, dizia o rei no feu decreto, peífoas taes e tão barbaras,
que fe atreveram a proferir que haveria talvez quem atten-
129
taffe contra a vida de algum dos feus miniftros. Ordenava
que defde logo íe procedeffe a exacta averiguação e devaíTa,
que ficaria fempre aberta. Promettia vinte mil cruzados de
premio a quem defcobriíTe os auítores das tremendiíTimas
palavras ou outras de lemelhante imputação. Prefcrevia-le
nas delações um íegredo inviolável. Tornavam-fe cumulati-
vas todas as juftiças reaes e dos donatários, e audorilavam-
fe os particulares a prender os que prefumiíTem incurfos no
delido. Era o tribunal revolucionário, que furgia antecipado
em pleno ablblutifiiio.
Chegcíra á fi^ia culminação n'aquelles dias a animadverfão
contra o miniftro, que ameaçava as claíTes privilegiadas com
uma inaudita revolução. Não eram fomente as fatyras e os
donaires allufivos e maliciofos os canaes, por onde agora íe
efcoava o aggreíTivo bom humor dos praguentos e dicazes'.
Dos fecretos conciliábulos paíTavam os inimigos a tramar os
feus enredos nas recamaras do paço, bufcando enleiar e at-
trahir o animo do rei. Apefar de que Sebaftião de Carvalho,
principalmente depois do terremoto, havia lançado raizes mui
profundas na regia confiança, era comtudo cada vez mais dif-
ficil ao hábil timoneiro marear a fua barca, levando firme o
rumo por entre os recifes e as reítingas, de que lhe aparcella-
vam as oufadas fingraduras. Bailaria um momento de irrefo-
lução no animo apoucado do foberano, um capricho de po-
tentado, uma noite mal dormida após as noílurnas correrias
amorofas, para que D. Jofé com a credulidade fácil de um
efpirito pouco allumiado, deífe credito aos inimigos de Car-
valho, para que o grande reformador, iniciada apenas a fua
obra memorável, e difpoftos fomente os primeiros e débeis
fios no tear da immenfa renovação, caiífe precipitado da al-
' Em officio de 29 de janeiro de rySli dizia o embaixador francez, que fe
haviam clpalhado pafquins contra o governo. Quadro elementar, tom. vi, pag. go.
ris
i3o
tura vertiginofa, em que haveria de hombrear com a majes-
tade.
Trama^'am contra elle no paço os confeíTores, enredavam
os fidalgos. Traçavam-lhe a queda prompta e eítrepitola
para que volveíTem a dominar, como nos annos derradeiros
do rei devoto e galanteador. Logo depois do terremoto, quan-
do o animo de D. Jofé, aíTom brado pela terrivel calamidade,
teria talvez ainda mais torvada a lua pouca lucidez e fortale-
za, redobraram os affaltos, com que a turba dos conjurados
fe afadigava por deílruir na fraqueza ingenita do rei a con-
fiança no miniftro e no fyftema, que elle fe propunha appli-
car. E então que introduzem no paço os dois barbadinhos
italianos, o padre Clemente e o padre Illuminato, para que
eífabelecendo uma miflao religiofa nas próprias eminências
do poder, perfuadam o monarcha á penitencia e deteítação
dos feus peccados.
A principal de todas as culpas do foberano era fem du-
vida o ter ao lado feu o intrépido eftadifta, que nas horas de
terror univerfal e de geral defmaio e defconforto, foubera
contrapor á defordem apparente da natureza, a boa ordem
e concerto das providencias falutares. E era tão perfiftente
a obfcíTão, com que os facciofos inimigos de Carvalho o efia-
vam aíTediando junto ao rei, que o embaixador francez, um
dos feus mais acerbos contradidores, dizia para o feu gover-
no a efte refpeito, a tal ponto ler chegado o fanatifmo dos fra-
des, que tinham oufado ir a Belém exhortar el-rei a fazer uma
confiíTão publica dos feus peccados'. Mas não era fomente
fob a cllamcnha e o burel dos capuchinhos, que fe efcondiam
as armas para expugnar o miniftro odiado pela clerezia e pe-
los grandes. Martinho Velho Oldcmberg, filho do opulento
' Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 25 de novembro de
1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. 6g.
i3i
mercador, a quem Sebaftião de Carvalho concedera em mo-
nopólio a navegação e commercio do Oriente, era um dos
principaes inftrumentos da oulada reacção contra o minis-
tro. Teftemunhas infufpeitas, porque todas lhe profeíTavam
um ódio implacável e ferino, fáo conteftes em affirmar a tra-
ma delineada'.
Era Martinho Velho grande amigo e familiar dos harha-
dinhos, e na cerca do feu convento depois do terremoto eri-
gira uma barraca, onde fizera lua morada. Privava particu-
larmente com os padres Clemente e lUuminato. Eram eftes
cabalmente os que logo após a ruina de Lif boa, pelas entradas
que já tinham com o rei, fe apreflaram em ir ao paço a esfor-
çal-o no infortúnio com os foccorros e confortos efpirituaes.
Deram os barbadinhos começo á fua miíTão, em que, fegun-
do plaufiveis apparencias, infiítiam fortemente no caftigo tre-
mendo, que no terremoto era cifrado contra os peccados e
abominações d'aquelle tempo, e na urgência de aplacar por
feveras expiações a cólera divina. N'aquella mefma occafião
indo Oldemberg ao paço de Belém e pradicando com el-rei
acerca da commum e terrivel calamidade, propoz-lhe vários
arbitrios, com que fe remediaíTem os eífragos e fe accudiífe
á miferia da nação. E dizendo-lhe o foberano, que foífe con-
ferir com o feu miniftro os planos, que lhe tinha bofquejado,
o alvitrifta denunciando defde logo o feu ódio irreconciliável
a Carvalho, defatou a lingua e a malquerença n'uma corren-
te de impropérios, proteftando que com tal homem não queria
nenhum trato, e fobre ifto ejaculou as mais acerbas accufa-
ções contra o eftadifia benemérito-. N'aquelles dias lacrymo-
' Vita di Seb. Giujeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 67 e fegg. — Rela-
ção individual dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de Alorna, ti-
tulo Dos barbadinhos italianos, manufcripto da Academia das Sciencias.
2 Relação individual dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de
Alorna, titulo Dos barbadinlms italianos.
eis
l32
fos os abalos e fecufloes não ceifavam de convellir a cidade
de Lifboa, e conturbar e abater os ânimos de maior impavi-
dez e ferenidade. O elpirito do rei, fraco e vacillante como
era, ofcillava entre a efperança e o terror ao compaífo das
terreftres vibrações. N'eft:as occafiões e trances dolorofos,
quando o defanimo e o temor tomam o paífo ao bom confe-
Iho, cruzam-fe nos ares os alvitres e os queixumes, e lança-fe
á conta de quem governa o que pertence á fatalidade ou á
fortuna.
Segundo a narrativa do máximo detrador de Sebaftião
de Carvalho, o rei, no feu afogo e tribulação, defabafou
com Martinho Velho as fuás laftimas, perguntando-lhe quan-
do acafo teriam fim tantos defaftres e de novo furgiria a paz
e quietação na terra e nos efpiritos. Aqui foi no fogofo in-
terlocutor o defatar-fe em violentas imprecações contra o
miniítro, increpando-o odiofamente de fer o que por feus ma-
lefícios provocava a cólera divina, defrefpeitando a religião,
conculcando a juftiça, exercitando as prepotências e os efcan-
dalos em progreíTivo crefcimento. E por aqui foi enfartando
reparos e calumnias, com as quaes, ao que parece, alcançou
deixar perplexo o animo do rei. Ordenou-lhe D. Jofé que po-
zeífe por efcripto as queixas e os arbítrios. Valeu-fe Marti-
nho Velho de um advogado feu amigo, jurifconfulto de bom
nome, que logo redigiu um vehemente arrafoado. Mandou
el-rei que o deífe o arbitrifta ao barbadinho Fr. Clemente,
que aíFim veiu a fer o interventor para que chegaífe ás regias
mãos. Deu o capuchinho o feu parecer acerca do papel, opi-
nando que, a fer verdade o feu conteúdo, era o foberano
certamente enganado pelo miniftro.
Continuava entretanto Fr. Clemente a frequentar o paço
de Belém, onde profeguia fazendo as fuás miífões. Referem
os inimigos de Carvalho que lhe não eram aprazíveis eftas
idas e venidas, em que ao zelo efpiritual andava confociado
i33
O enredo politico e profano. Todos os que têem exercido o
poder junto de reis, fabem quanto é perigofa fobre importuna
eíta frequência de maliciofos cortezãos, que fob color de bem
fervir a confciencia ou o intereíTe do monarcha, andam mi-
nando em feu conceito o poder e a influencia dos feus legiti-
mos conlelheiros. E evidente que, effando já a conjuração
alojada na própria refidencia do imperante, ou o miniilro re-
formador haveria de renunciar o feu oíiicio, ou proftrar ven-
cidos e imbelles os feus antagoniítas. Mas vencel-os com
brandura, nem condizia com o leu altivo e impetuofo tem-
peramento, nem com a urgência das circumftancias, nem
com os coftumes políticos d'aquelle tempo de agrefte e omni-
potente abíblutifmo. Se damos credito a um infuipeitiflimo
efcriptor, o marquez de Alorna, um dos encarcerados no for-
te da Junqueira, os conjurados pretendiam levantar ao pri-
meiro logar no miniíterio, em vez de Sebaftião de Carvalho,
a António Freire de Andrade Encerrabodes, que era então
enviado portuguez junto do papa. Um Fr. Manuel de Gui-
marães, confidente e amigo de Martinho Velho, efcrevêra
para Roma ao fuppofto fucceffor, encarecendo-lhe os defejos
e as efperanças, com que elle e os barbadinhos e ainda ou-
tros confpiradores lidavam por conduzir o Encerrabodes ás
mais altas eminências do poder.
E quafi certo, e o Alorna afllm o affirma, que o fecre-
tario de eftado, Diogo de Mendoça, com o ódio, que inlpira
fempre a mediocridade avaíTallada pelo talento, cooperava
efficazmente na fervorofa reacção. Vieram as indifcretas cor-
refpondencias ter ás mãos do miniftro, que fabia parar em
fafão própria os golpes imprudentes dos contrários. A 29
de junho de lySõ foram prefos e interrogados os dois bar-
badinhos Clemente e Illuminato, Martinho Velho, Fr. Ma-
nuel de Guimarães e Francifco Xavier Teixeira, o letrado,
que traçara o politico libello. Alguns jazeram por largos an-
ei»
■34
nos no forte da Junqueira, outros foram degredados para
Angola.
Que os jefuitas não eram extranhos a cites enredos le de-
prehende das queixas e aggravos, que já tinham do miniftro
e fe confirma com a fingela narração de um inimigo de
Carvalho. O Alorna refere que Fr. Clemente, eítando já en-
carcerado, pedia para confeíTar-fe com o padre Jofé Moreira,
que ainda era áquelle tempo o confelTor de D. Jofé, bufcan-
do por efle meio fazer chegar uma fua inftancia aos ouvidos
do monarcha".
Não eítaria defarmada a rebellião, emquanto nos pró-
prios confelhos do governo eftiveffe um fecretario de eftado,
não fomente defavindo em fummo grau com o homem emi-
nente, que lhe imprimia a direcção e o efpirito, mas participe
e connivente com os principaes caudilhos na defabrida oppo-
fição. Diogo de Mendoça Corte Real vivia, fegundo a própria
coníàíTão dos feus apologiftas, em perpetua hoífilidade ao
feu coUega mais poderofo. Quem fabe o que fuccede com
frequência nos gabinetes da monarchia parlamentar, onde os
miniftros, na apparencia concordes e unidos no mefmo pen-
famento, difpendem o melhor dos feus esforços em luffas
domeíticas e interiores e em contínuas emulações de in-
fluencia e de valia, adivinha facilmente o cjue feria n'aquelles
tempos de realeza abfoluta, quando não havia para os mem-
bros do governo outro fundamento do poder, fenão as boas
graças do imperante. O fecretario de eflado da marinha e
domínios ultramarinos via-fe, pela fuperioridade irrefiítivel do
collega, reduzido á funcção fubordinada de um mero execu-
tor do alheio arbítrio. «Não fabia accommodar-fe, efcreve o
mais duro inimigo de Carvalho, a algumas idéas de Sebas-
tião, por mais que fe empenhaífe em diíTmiular os próprios
Relação dos cárceres no forte da Junqueira, titulo Dos barbadiultos-
i35
refentimentos, receiando incorrer na lua indignação". E
pois certo que não fe forraria aos meneios, ardis e enredos,
com que o podeíTe precipitar do minifterio, e que não veria
com maus olhos o esforço inceffante dos conjurados, que
impugnavam rijamente a figura principal do gabinete. A 3o
de agoífo de lySõ entrava o fecretario de eftado dos negó-
cios extrangeiros, D. Luiz da Cunha, nos apofentos do feu
defpercebido collega da marinha, e acompanhado do defem-
bargador João Ignacio Dantas, corregedor do crime da corte
e cafa, lhe intimava o decreto, em que n'aquelle mefmo dia o
rei vibrava os raios vingadores da majeftade contra o fâmulo
infiel. Os miniítros eram, de feito, n'aquella edade férrea os
domeíficos do arbitro llipremo. Como nos velhos defpotis-
mos orientaes, a demiíTão dos régios confelheiros confun-
dia-fe na mefma tcrrivel penalidade com o exilio ou a pri-
fão.
O decreto de 3o de agofto de ij56 exprobrava em afper-
rimas palavras o procedimento de Diogo de Mendoça, como
réu de lefa majeftade. Por um exceíTo de clemência com-
mutava-lhe a pena correfpondente ao feu delido, ordenan-
do-lhe que no termo de três horas faiíTe de Lifboa e fe afas-
taíTe para logar diífante quarenta léguas, d'onde lhe era
defefo perpetuamente o apparecer de novo na capital. Dio-
go de Mendoça, referem os feus panegyriflas, recebeu com
eítoica ferenidade a improvifa condemnação. Sobraçando o
feu breviário, e aíiirmando que das três horas concedidas fó
o primeiro minuto lhe baftava a aperceber-fe para a jornada,
diífe ao feu collega, transformado em aguazil: «Vamos exe-
I \'ita di Seb. Ciufeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 72. A Vida de
Sebajliáo Jofé de Carvalho e Mello, por A., pag. 66, manufcripto da Academia
das Sciencias, diz a efle rcfpeito: «Como tinha génio pouco foffredor, em al-
guma occafião fe opporia ás máximas do companheiro, caufa íufficiente para o
leparar do lado do principe».
c|3
4 si»
i3õ
cutar o preceito do noffo rei'.» Singelos e felizes tempos
eram aquelles, nos quaes fobravam cortezãos, que até reve-
renciavam a realeza, quando á femelhança do grão turco
antes de fer culto e parlamentar, enviava o cordão de feda
aos feus effendis e pachás. Logo o antigo e complacente
companheiro das monterias e defportos pouco efpirituaes do
piedofo D. Jofé, fe poz a feu caminho, feguindo efcoltado
por foldados na direcção de Aveiro. Tempos depois foi de-
gredado a Mazagão, e d'ali o trafladaram á Berlenga, onde
vieram a dar fim todas as fuás grandezas e ambições.
António Freire de Andrade Encerrabodes era o eftadifta
preconifado pelos caudilhos e fautores da conjuração para
fucceder no ofíicio de fecretario de eftado ao miniftro que
temiam e odiavam. Os próprios inimigos de Carvalho o ava-
liam em feus efcriptos como aquelle, a quem pelas fuás qua-
lidades e ferviços competia o aho cargo-. A lua íntima
communicação com os barbadinhos, um dos quaes era feu
diredor efpiritual, é atteítada por tão irrefragavel teftemu-
nho, qual é o de um grande parcial e panegyriífa-. EUe pró-
prio confeífava que nas cartas de ofíicio, que de Roma diri-
gia ao feu governo, fe exprimira muitas vezes com fobrada
rifpidez, denunciando por eíta forma o feu defamor ao mi-
niftro preeminente e o quanto fe empenhava em o deífervir e
contraítar^ Ainda em governo livre e democrático feria irre-
gular o manter na mais importante enviatura de Portugal
n'aquella conjundura, a um homem não fomente devotado
á facção clerical e uhramontana, fenão também lingua e me-
dianeiro em feus conluios para abater e diíTamar o vulto
1 Vida de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por A., commentada e ana-
lyfada pelo defembargador do paço, dr. Jofé Joaquim Vieira Godinho, manus-
cripto da Academia das Sciencias, pag. 64.
2 Relação dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de Alorna,
titulo Do Encerrabodes.
4sU
principal do gabinete. Encerrabodes foi logo deporto da le-
gação, que junto ao Vaticano exercitava. Na renhida peleja,
que o miniftro de D. Jole tinha empenhada com a poderofa
theocracia, principalmente reprefentada pelos jefuitas e léus
propugnadores, era forçolb ter em Roma, quem em vez de
contradizer ao eftadifta os léus propofitos, os ferviíTe com
lealdade e com fervor, quem foíTe participante na lua for-
tuna, como fedario e profeíTor da mefma fé politica. Era
Francifco de Almada e Mendoça, primo de Sebaftião de
Carvalho, quem melhor poderia comprehender e executar os
feus preceitos na difficil enviatura. Se lhe era conjundo pelo
fangue, não menos lhe era affim pela femelhança nos prin-
cípios que feguia. D'cfte poderia o miniftro certificar-fe de
que fempre le manteria confidente. Seria apenas o zelofo
mandatário, como que um diligente procurador para cum-
prir em Roma pela acção o que prefcreveíTe de Lif boa o in-
fatigável penlamento do grande reformador. Em logar de
Diogo de Mendoça foi nomeado fecretario da marinha Thomé
Joaquim da Cofta Corte Real, que era então conlelheiro do
ultramar. Um contemporâneo, inveterado inimigo de Carva-
lho, faz do novo miniftro das colónias portuguezas um retrato,
que o não abona certamente como cftadifta e labedor. Se-
gundo efte perfil breve e pouco favorecido, o novo mem-
bro do gabinete mal fallava a lingua pátria e era incapaz de
qualquer grave occupação. O leu mérito era apenas o da
obediência incondicional a quem mandava. N'elle ficava o
logar provido, e vacante o exercicio como d'antes'. A fijb-
millao porém, tão decantada pelo odiento hiftoriador, não
obviou a que Thomé Joaquim da Cofta Corte Real pade-
celTe d'ahi a poucos annos fortuna egual á do leu anteceíTor.
I Vida de SebajUdo Jofé de Carvalho e Mello, por A., pag. 67, manufcripto
da Academia das Scicncias.
e|j 4*
i38
CAPITULO VI
A COMPANHIA DOS VINHOS DO ALTO DOURO
Era trabalhofa e cortada de obftaculos a empreza, em
que lidava o miniftro principal de D. Jofé. Mas os feus al-
tos efpiritos e a indómita fortaleza do feu animo crefciam e
roboravam-fe ao compaíTo da continua e violenta oppofição.
Coftumam os eftadiftas medianos laftimar-le de que os feus
inimigos, empeçonhando pela calumnia as mais reftas inten-
ções, embargando-lhes o caminho a cada inftante, enredan-
do-os no labyrinto das fuás cavillofas machinações, lhes não
confentem pôr em obra as miríficas reformas, que trazem
planeadas. Mas os repúblicos verdadeiros, como os grandes
navegadores, quafi folgam na cerração e fúria das tormen-
tas, porque fe correriam de fingrar em mares de leite, onde
os ventos bonançofos e fagueiros teriam todo o mérito da
feliz navegação. Redobra com a vehemente contradicção o
vigor do homem de eftado. O governo é então a guerra; e
é pela guerra ou pelejada nos campos de batalha, com as ar-
mas materiacs, ou ferida entre as facções pela civica energia,
que as fociedades fe avigoram, fe adiantam, fe transformam
e refurgem para os triumphos mais brilhantes da liberdade e
da rafão. Governar é combater. Um eftadifta fem contrários
é um athleta n'um ermo amphitheatro. Na paz e na folidão
o poder, que é então uma vaidade pueril, inebria com os
feus fumos deletérios o pacifico homem de eftado. Á paz
fuccede o torpor, ao torpor o fomno, ao fomno a obfcurida-
de. Dos miniftros, que regeram fem encarniçados inimigos,
é muda a hiítoria. A auréola, que circumda a fronte dos Ri-
chelieus e dos Pombaes, fêl-a principalmente a luz, que os
ódios lhes jorraram na terrível explofão dos feus rancores.
'•^^ -<Ò>-^
4 cts
.-<i>-^
■39
Na tragedia antiga o heroe é grande e épico fomente por que
luíta fem quebra do leu animo com a tremenda fatalidade.
A gloria dos politicos immortaes ha de ter em extremo grau
a feição dramática, entretecida de aventuras fingulares. Pa-
rece que, como nas antigas folemnidades religioías, o langue
vem fempre completar a glorificação e a apotheofe.
Não ha heroes coroados de rofas e de myrthos, tangendo
citharas e cantando dithyrambos em folgados contubernios,
com túnicas immaculadas e incruentas.
Era formidável e tremenda a oppofição, que de toda a
parte fe levantava contra o audaz reformador. Era a princi-
pal a liga da nobreza e dos jefuitas. Mas digâmol-o em ver-
dade, também nas gentes populares não efcaífeavam os inimi-
gos de Carvalho. Porque eíte é condão impreterível de todos
os grandes innovadores, que tenham a principio contra fi os
mefmos, a quem intentam defopprimir de pefadas e duras
vexações. Não fe pôde conteftar que não era branda, nem
amoravel a maneira de governar, que as publicas urgências
haviam infpirado ao animo fevero do miniftro. Com elle ap-
parecia mais torvo e intraítavel do que nunca o abfolutifmo
puro, eftreme, fem miftura de nenhum extranho influxo ou
legalidade'. Mas também com elle era a primeira vez que o
defpotifmo, para juftificar os feus golpes terríveis e certeiros,
poderia invocar em feu favor o fer inexorável e duriíTimo
para geral utilidade e commum beneficio da nação. Os que
porém nas acções humanas, e principalmente nas politicas,
vêem fomente a cortiça bronca e afperrima, que eftá enco-
' Em ofRcio de 29 de junho de 17Í6, efcrevia o embaixador francez con-
de de Bachi ao feu governo que era mal olhado o miniílro Carvalho pelo po-
der abfoluto, com que governava. Quadro elementar, tom. vi, pag. go. Em offi-
cio de 9 de feptembro de 1756, dizia o mefmo embaixador, «que l'e não podia
fazer idéa da indignação e do ódio, que todos os dias fe engroíTava contra aquel-
le miniílro." Quadro elementar, tom. vi, pag. 95.
-^-ò^ *^-h
4» e^
4 9Íi
140
brindo o cerne prefladio, os que fó attentam no que as fe-
veras providencias têem de acerbo no prefente fem poderem
prefcrutar o que d'ellas no porvir le ha de colher, não acer-
tavam a ajuizar que de tamanhas leveridades fe haveria de
compor a primeira emancipação do povo portuguez e a pros-
cripção dos abufos e preconceitos Ibciaes. Eram como o
vulgo infciente, que ao ver cruentadas as mãos do impla-
cável operador, não repara que no gume dos feus ferros
eítá para o enfermo defefperado a derradeira falvação.
Ao fogo do intereíTe chamou o conceituofo e elegante
D. Francifco Manuel, cúmplice dos maiores incêndios das
republicas. Os intereíTes e as ambições dos poucos oífendi-
dos pelas reformas, confeguem muitas vezes abafar nos feus
queixumes e aggravos o que ellas tèem de falutar e previ-
dente para a commum profperidade. Um privilegiado, a
quem privaram do feu hereditário monopólio, fente, enca-
rece, vinga, quanto pôde, a oífenfa recebida. Um povo, a
quem fe fazem benefícios, que não fão individualmente re-
partidos, raras vezes fabe agradecer á mão, que no futuro
lhe apercebe mais profpero deítino.
Nas monarchias abfolutas, quafi defpoticas, a populari-
dade não é precifa como elemento de governo. Suppre-a lar-
gamente o favor real. Com uma das mãos o valido omnipo-
tente efcreve os feus decretos reformadores, e com a outra
empunha a vara, prompta fempre a abater e humilhar os que
murmuram ou confpiram. No meio das fupplantadas conju-
rações e dos enredos fubterraneos dos feus numerofos adver-
farios, Sebaftião de Carvalho profegue impaffivelmente nas
fuás cogitações de melhoria e de reforma nas condições po-
liticas e económicas de Portugal.
A nota fundamental no fyfíema governativo, profeíTado
e feguido pelo miniftro de D. Jofé, é a emancipação do rei e
da nação. Do rei, exalçando o throno á plenitude do poder,
-S-<Vt — •-ò-S^
4c|9
-. -•-«i>-§-
'4'
libertando-o largamente de toda a influencia do clero e da
nobreza, egualando-os, quanto á lua nullidade politica, aos
Ínfimos eftratos do vulgo obediente. Da nação, tornando-a
independente de toda a vaflallagem direda ou indireda ás
potencias extrangeiras. Para relblver o primeiro problema,
é neceíTario que o fceptro do monarcha, abatendo as cabe-
ças, que fe alteam na turba dos vaíTallos, paíTe fobre ellas
nivelando as mais erguidas eminências com as mais humil-
des profundezas fociaes. Do tronco da monarchia ablbluta
é precifo amputar as plantas epiphytas, que ainda a enlbm-
bram e afogam na pujança da folhagem. E urgente deftruir
os veftigios derradeiros das inftituições feudaes, em que os
barões e os fenhores confideram o foberano como o pri-
meiro dos feus pares. A poteftade regia, como emanando ef-
fenciaimente de uma origem Ibbrenatural, não pôde confen-
tir competidores em nenhum grau. O rei é na terra como o
Jehovah biblico no céu. O rei é quem é. Só elle tem exiften-
cia real, omnipotente, creadora, perpetua, indeftrudivel pela
ferie indefinida dos feus herdeiros e fucceíTores.Tudo o mais
fão feituras da fua graça, que vivem para o fervir e acatar.
Mas como o rei é na terra a corporificada providencia, vela
paternal e amorofamente pelo bem temporal da fua grei. Eis
ahi a ultima expreíTão do poder real e abfoluto, da fciencia
certa, com que o rei, allegando-a na cabeceira dos feus de-
cretos, juftifica a fua inerravel infallibilidade e exclue como
torpiíTima blafphemia toda a extranha participação no exer-
cício do poder. Efla é a doutrina politico-theologica do Ba-
filikon Doron, do livro celebrado, onde o rei James I de
higlaterra e VI de Efcocia, deu o ultimo retoque á theoria
do defpotifmo dynaítico e traçou o caminho que levou os
Stuarts ao cadafalfo ou ao exilio.
Efta é, delineada em traços rigorofos nos preâmbulos das
leis e alvarás, e confirmada cm fevcras execuções nas incon-
-i-i- -á»-^
4S^
•-«$»-§»
142
fidencias e nas alçadas, a philofophia politica de Sebaftião
de Carvalho.
Eis aqui de que maneira o miniftro no auge do poder
eífeítivo e inconteftavel, celebrava a apotheofe da realeza
abfoluta, perfonificada em D. Jofé: «Em todo o Portugal e
feus dominios não foam outras vozes, que não lejam as que
baixam do real throno de fua majeftade, que d'clles (lubditos)
fão ouvidas com fumma reverencia por fe acharem todos os
vaflallos do mefmo fenhor conftituidos na firmiffima fé de
que elle fó refolve e determina o que é mais útil aos feus
vaíTallos'».
Seria efta porventura a fua crença intima, fincera, inaba-
lável? E poíTivel que em pleno feculo xviii, na edade, em
que fe abalam e eftremecem todos os velhos preconceitos fo-
ciaes e em que eftão fendo minados os cimentos de todas as
abfurdas tradições, no tempo de Montefquieu, de Rouflfeau
de Alembert e de Voltaire, no meio de tanta luz, que irradia-
va pela Europa, prognofticando a já não remota condemnação
do mundo antigo pela voz e pelo braço da revolução, um
efpirito de tão clara lucidez em fua confciencia profeífaífe,
como verdade geométrica, o puro abfolutifmo? Não é dado
irrogar ao fuperior talento de Carvalho efta laftimofa aberra-
ção do entendimento. Bafta ver de perto um rei, ter com elle
íntimo trato e converfação, conhecer as fuás fraquezas e pai-
xões, a curteza do feu efpirito, e a rafteira eftatura do leu vul-
to moral, para ver que não é mais que um homem, e um
homem, quafi fempre bem vulgar, bem achegado ao barro
biblico, bem informado de mefquinha humanidade. E efte é
que fera o deus terreno do puro abfolutifmo? E efte é que
ha de fer o vigário e logar tenente da divina omnipotência?
' Ohfervaçóes jecretijfimas do marque'^ de Pombal fobre a collocação da es-
tatua equejlre.
II > '
e|j 4'
Efte o eleito? Efte o predeítinado:' Efte o paftor, de quem os
demais homens lejam as rezes fem alvedrio, lem voz, lem
liberdade? Eíte não é pois deus, fenão idolo, não é divindade
de gente culta e racional, fenão feitiço de irracional e bruta
cafraria.
Ora o rei D. Jole refpondia juftamente a efta imagem.
Como poderia pois um agudo e penetrante entendimento,
qual era o de Carvalho, cair em fer^'orofa e confciente ado-
ração diante do idolo groíTeiro, em cujos contornos mal talha-
dos, em cujas feições de rude compoftura eftava reflumbran-
do em cada ponto fob artificiofa douradura, o madeiro tolco,
onde a ignorância popular, indouto e infeliz imaginário, fora
efculpindo pouco a pouco o vulto do fobrehumano abfolu-
tifmo?
Sebaftião de Carvalho não acreditava feguramente no
régio defpotilmo como divina inltituição. Mas cumpria-lhe
profeffal-o na apparencia e roboral-o Iblidamente, porque era
elle o fecundo inítrumento da fua adminiftração. Governava
em nome do rei e á fombra d'elle. Se lhe faltaffe aquelle es-
teio, le a luprema poteífade abíbluta fe minguaffe ou divi-
diíTe, entrando algum outro elemento politico na partilha do
poder, a queda eftrepitofa do miniftro feria infallivel e fegu-
ra, ou confervando-fe Carvalho ainda no governo, teria de
renunciar ás fuás largas e inauditas reformações. Era mais
fácil cortejar um potentado abfoluto, omnipotente, irrefpon-
favel, do que feria a um demagogo, como Péricles ou De-
moífhenes, o firmar no favor e no applaufo popular a fua do-
minação. O único elemento politico poderofo, forte e cíficaz
era a regia audoridade. Cumpria pois ao miniftro aprovei-
tal-a ou abdicar o propofito de grandes e falutarcs innova-
ções. A fegurança e a força de fcu braço feria tanto mais
enérgica e certeira, quanto foífe mais íirme e incontrovcrfo
o régio defpotifmo, que lhe fervia de ampliíTimo broquel.
«i-A* •-<è-i*
4^
-*. ^ •^ò^
144
Sem o inconteítavel abfolutifmo de um monarcha fupe-
rior a todos os intereíTes particulares e a todas as forças fo-
ciaes, o audaz reformador teria caído irremillivelmente ás
primeiras inveftidas dos feus contradi6lores. Era elle a força
e o motor, mas o machiniírno, pelo qual o podia utilifar e
converter em trabalho util, era a regia poteftade, onde lhe
era dado reduzir ao minimo poíTivel todas as refiítencias pas-
fivas e todas as perdas de força viva para refolver comple-
tamente o feu grande problema de mechanica focial.
Fortalecido e roborado o poder régio de feição que n'elle,
á maneira de Luiz XIV, fe confubtanciaíTe a própria eíTen-
cia do eftado, que feria apenas d'elle uma pura emanação,
era forçofo defopprimir Portugal de toda a externa e oppro-
briofa fujeição. Um paiz, que para accudir ás mais inftantes
precifões da fua exiítencia politica ou económica, eftá fem-
pre e em tudo dependente dos extranhos, não merece, nem
pôde ser nação. E bem que os povos, como n'uma tacita con-
federação e fincera fraternidade, uns a outros fe encadeiem pe-
los vínculos da mutua ligação internacional, reciprocando os
bons officios e ajudando-fe uns a outros em amigáveis e fru-
ftuofas relações. Mas é neceífario que feja troca efpontanea,
egualmente proveitofo para todos o reciproco trato mercantil.
E um erro tão grave como infantil o pretender que uma nação
viva enclauftrada ciofamente em feu recinto, cerrando as fuás
fronteiras a todo o commercio económico ou civil com os
demais povos, fabricando tudo quanto poífa baftar aos feus
confumos. A natureza, mais próvida e mais difcreta que as
falfas legiflações, ao repartir diverfamente os climas e as
aptidões da terra e do trabalho, eíleve como que tacitamente
impondo aos homens efta falutar communidade, que fe es-
treita e perpetua no efcambo dos produftos, fuperíluos n'um
paiz, por outros, que a fua induftria ou não pôde produzir, ou
fomente a muito cufto confegue remedar e contrafazer. O
^hò-* *y-^
4 cia
143
principio racional cifra-le n'elle ponto em que uma nação
produza por li mefma o que, lem esforços fobrehumanos e
fem artificiaes aclimatações, mais eíteja em confonancia com
as fuás faculdades induftriaes. Mas é forçofo que o trabalho,
difcretamente dirigido, poíTa crear a riqueza, que fe ha de dar
em retorno ao extrangeiro pelos artefaftos e produólos im-
portados. E indifpenfavel pois a todo o povo culto e merece-
dor da fua independência e liberdade uma induítria nacional.
E forçofo que os extranhos fó exerçam em um paiz uma in-
ííuencia mercantil equivalente á que elle mefmo alcança em
terra alheia. Fora d'efl:as condições de equilíbrio económico
o povo, que viver a expenfas de outro, é um fer\^o ou um
mendigo, fervo coroado e mendigo com bandeira. A eíte
propofito commemorava Sebaítião de Carvalho n'um feu
efcripto o defdem e menofpreço, em que tinham a Portu-
gal os extrangeiros, «havendo a nação portugueza por bifo-
nha, rude, inerte e deftituida de todos os elementos e prin-
cípios das artes fabris e libcraes'».
Tal era a fituação de Portugal no meado do feculo xviii.
A alliança e convivência com a Inglaterra, fe bem nos fora
útil politicamente, havia não raro defcaido em odiofa fuze-
rania commercial. Era Portugal indiredamente feudatario
da grande potencia infulana e mercantil. Eíta era a porta,
fempre aberta, para que a feu talante podeífe entrar no
continente. A adividade britannica foubera converter cm
proveito próprio a inércia e laflidão proverbial dos portu-
guezes, mais propenfos á guerra que ao trabalho. Em-
quanto das minas do Brazil jorraífe o oiro em torrentosa
inundação, bem ia certamente á defidia e ignavia popular.
O metal faldava facilmente a nolfa mefquinhez induftrial.
' Objervaçòes fecrctijfnnas do marquei; da Pombal Jobrc a collocação da
eftalua equeftre.
ei» eis
4 9^
-• ■ -<^
Havia com que comprar o pão quotidiano, as telas, os efto-
fos, os tecidos, as alfaias domeílicas e habituaes. Um povo,
que embevecido em viciofas fidalguias, pôde arremeíTar oiro
ás mãos cheias aos menos quinhoados extrangeiros, lidados
e endurecidos no trabalho, é como um herdeiro opulentiíTi-
mo, que defbarata na ociofidade os feus thefouros, havendo
que das arcas inexhauítas nunca ha de chegar a ver o fun-
do. Mas o oiro efgota-le finalmente, a miferia bate á porta,
e a penúria inexorável força o indolente perdulário á depen-
dência e fervidão.
O oiro portuguez quafi todo fe filtrava para os cofres da
Gran-Bretanha. As providencias coadivas de Carvalho para
obftar á corrente forçofa e natural feriam improfícuas. O oiro
é bom, mas o trabalho é melhor. Em vez de trocar o valor
metallico pelas riquezas, de que nos abaftecia a Inglaterra,
era mais feguro e proveitofo que lhe deíTemos em cambio
algumas valiofas producções, de que a natureza nos prove-
ra. A melhor, que poíTuiamos, além dos géneros coloniaes,
— o afTucar e o tabaco, — era certamente o vinho, principal-
mente o do Alto Douro. Mas o leu trafico lucrativo concen-
trava-fe em grande parte nas mãos dos commerciantes in-
glezes, na feitoria britannica do Porto.
Decaía rapidamente eíta principal entre as minguadas in-
duftrias agrícolas de Portugal, então ainda atrazadiífimo na
cultura. Na qualidade peioravam os noíTos vinhos, depre-
ciava-fe o valor. Com a quebra da antiga e univerlal repu-
tação reftringiam-fe os mercados, que fe abriam com fubida
predilecção aos vinhos francezes e hefpanhoes. Urgia, pois,
accudir aos males, que ameaçavam a ultima ruina á primeira
e mais copiofa fonte da riqueza nacional, prefles a exhaurir-
fe. N'efta defventurada fituação queixavam-fe os cultores de
que toda a fua indurtria vivia agorcntada e fubdita aos nego-
ciantes inglezes, desfallecia a olhos viftos o commercio por-
-i-<í>- -<Y^
cts
■47
tuguez, que em concorrência com poderofos e foraíleiros
mercadores, não tinha cabedaes com que luctar.
Nenhum dos contendores n'efta porfia acceitava para fi
a culpa do eftado laftimoíb, a que chegara a cultivação e o
fabrico. Cada um attribuia ás artes maHciofas do contrario,
e á cubica immoderada de lucros avultados, a degeneração
da induftria vinhateira. Queixava-fe a feitoria ingleza, impu-
tando aos lavradores e aos commifTarios portuguezes os no-
civos ingredientes, com que eftavam aduherando os vinhos
generoíbs. Refpondiam os accufados, achacando á feitoria
britannica a raiz de todo o mal.
Era n'aquelle tempo grande arbitrifta de remédios econó-
micos um Fr. João de Manfilha, dominicano, que depois veiu
a fer provincial da ordem dos pregadores. Entendeu-fe com
alguns dos proprietários e lavradores, e com homens de ne-
gocio, que no Porto faziam o feu trafico em vinhos do Alto
Douro. O fupremo recurfo das grandes e poderofas compa-
nhias, como remédio extremo e íalutar contra as enfermida-
des mercantis, era então preconifado como axioma na econo-
mia publica d'aquelle tempo. A fciencia, que no feu eftado
prefente de perfeição e evidencia, quanto aos feus theoremas
fundamentaes, ainda hoje padece tantas quebras e infracções
na fua applicação á pratica do governo, era então ainda im-
perfeitiíTima. Não é pois para aíTombrar que um efpirito de
tamanha claridade, como era o de Carvalho, perfiftiíTe em
acreditar nos grandes monopólios e nas privilegiadas compa-
nhias, como panacea efiicaciffima. E de feito, fe a extrema
liberdade mercantil tem méritos inconteftaveis, não é me-
nos verdadeiro que a defordenada concorrência n'um paiz
ainda mal convalefcido de profundos achaques económicos,
é ás vezes harto perturbadora da producção e da riqueza
nacional. Quando vemos que a fciencia juflamente fe eítá
infurgindo hoje em dia a cada paífo contra o fyfiema prohi-
4 «la
-. *<^
bitivo ou ciofamente protector, quando vemos as alfande-
gas denunciadas pela boa economia como um trifte expe-
diente fifcal e oppreíTor do livre-cambio, vemol-as também
multiplicando a fua vigilância, e a fua acção, ora cerrando
as fronteiras de um paiz á livre circulação das mercadorias,
ora eífabelecendo ás portas das povoações e no interior do
feu mefmo território um exercito numerofo de agentes adua-
neiros, para que as próprias lubfiftencias mais urgentes le não
poffam efquivar ás garras impiedolas do fifco implacável. E
todas eítas continuadas tranfgreffões dos principies da fcien-
cia, Ou para encher as arcas do thefouro ou para amimar
em fuás faxas e andadeiras uma induftria, que nunca chega
a tornar-fe adolefcente, fe eífão paíTando á noíTa viíta, e fão
pelos governos abfolvidas facilmente á conta da conveniência
e neceíTidade.
Sebaftião de Carvalho reconhecia, como os mais illumi-
nados eftadiftas do noíTo tempo, o axioma capital de que a
liberdade é o principio creador de todo o trato mercantil.
No preambulo do decreto de 17 de agoíto de lySS, que ap-
provou o diredorio, pelo qual fe devia regular a adminiftra-
ção civil e económica dos Índios novamente libertados no
Pará e Maranhão, dizia com luminofa verdade o legiílador:
«É certo indifputavelmente que na liberdade confiífe a alma
do commercio». Nem Baítiat, nem Cobden ou Stuart Mill
podiam affirmar em mais categóricas palavras o lemma fun-
damental da economia. Mas aíTim como na linguagem do
legiílador os indios, apefar de emancipados, não eítavam
ainda pela fua felvatica rudeza habilitados a gerir, longe da
publica tutela, os feus intereíTes, affim também elle entendia
que na fituação de Portugal, enfeudado aos inglezes em to-
das as relações commerciaes, as temporárias excepções da
liberdade poderiam fer porventura mais benéficas do que a
rigorofa applicação das abílradas theorias.
4 9U
n^^
149
Para obviar á rápida ruina da induftria vinicola no Dou-
ro, e oppor ao effedivo monopólio dos inglezes um valiofo
contrapefo, deliberou o miniftro providente que o meio mais
feguro feria a inftituição de uma poderofa e opulenta compa-
nhia. Conferiu fobre eíte ponto com Fr. João de Manfilha,
que em verdade não era pontualmente obfervante dos câno-
nes e conftituições pontifícias, pelo muito que activamente se
mefclava ás profanas negociações, que o minifíro juftamente
condemnára nos jefuitas mercadores.
Procedeu Sebaílião de Carvalho a tomar exaítas e mi-
nuciofas informações fobre o que relatava o fagaz domini-
cano. Confultaram-fe os que eram intereífados na lavoura
e no commercio dos vinhos do Alto Douro. Refultaram ver-
dadeiras ou mui próximas á verdade as palavras, com que
Fr. João de Manfilha retratava a miferia, a que chegara a
extenfa e fecunda região, onde mais que nas minas do Bra-
zil havia profperado a melhor e menos contingente riqueza
nacional.
Entrou a participar nas conferencias fobre o aíTumpto o
meítre de campo general Manuel da Maia, o grande enge-
nheiro portuguez. Fizeram-fe com fua cooperação os eftatu-
tos de 3 I de agoífo de lySõ', exarou-fe o alvará de 10 de
feptembro do mefmo anno, em que era confirmada a nova
aífociação. Eítava conftituida legalmente a Compmihia geral
da agricultura das vinhas do Alto Douro.
Eram em verdade extenfos e extraordinários os privilé-
gios concedidos á nova inftituição, fimilhantes aos que fe ti-
nham decretado em favor da companhia do Grão-Pará. Era
como que uma republica mercante inferida e encravada no
eftado, mas quafi d'elle independente, excepto para o auxilio
' Apologia 3." do marque:^ de Pombal, manufcripto da Academia das Scien-
m
i5o
e protecção. A nova fociedade ficava, quanto ao feu corpo e
ás peíToas intereíTadas, exempta de toda a jurifdicção civil
e criminal exercida pelas juftiças ordinárias ainda as mais
eminentes e graduadas. Com o feu juiz conlervador tinha
um foro privativo e fingular. Competia-lhe a faculdade de
embargar a feu labor os carros e embarcações para os feus
tranfportes, de coagir ao feu ferviço os trabalhadores, os ta-
noeiros e os vendedores de retalho. Gofava plenitude abfo-
luta do direito de apofentadoria, tomando a feus proprietá-
rios as cafas e armazéns, que lhe foífem neceífarios. O ca-
pital da poderofa aífociação era de um milhão e duzentos
mil cruzados, repartidos em acções de quatrocentos mil réis.
Tinha entre as fuás obrigações a companhia a de preftar
aos viticultores os benefícios do credito rural, mutuando-lhes
dinheiro a três por cento, ficando hypothecado o vinho que
produziífem. Taxavam-fe-lhe os preços perpetuamente, arbi-
trando-fe vinte e cinco mil réis a cada pipa de primeira qua-
lidade, e vinte mil réis por egual medida dos que foífem me-
nos apreciados. Regulavam-fe os fretes, que na conducção
dos vinhos para o Brazil nenhum navio poderia nunca exce-
der, entre dez mil réis, que era a taxa de cada pipa trans-
portada para o Rio de Janeiro e fete mil e duzentos réis para
Pernambuco. A venda chamada do ramo dentro do Porto e
em três léguas de diftancia nas terras circumvizinhas, era
conftituida em monopólio da companhia. Mandavam os es-
tatutos proceder á exada demarcação dos territórios vinico-
las, cuja producção poderia ter falda pela foz do Douro. Li-
mitava-fe a noventa e cinco o numero das lojas, em que o
vinho de ramo haveria de fer vendido na cidade. Deveria a
nova inftituição durar vinte annos, e seria a fua exiftencia
prorogada por mais dez, fe foífe conveniente.
A breve duração aíTignada á companhia defde logo a de-
nunciava como uma experiência commercial, e era ao mes-
e|j
si» cIq
mo tempo o corredivo do que os feus privilégios defcom-
munaes poderam ter de impopular e odiolb.
Percorrendo a legiflação d'aquelle tempo é fácil inferir
como a nova inftituição era a filha mimofa e predileda da
politica mercantil e económica do oufado reformador. Os di-
plomas legiílativos íliccedem-fe a efpaços breves uns aos
outros para auxiliar e proteger a companhia e remover-lhe do
caminho os embaraços recreícentes ou as disfarçadas oppo-
íições.
Não eram abundantes no Porto os cabedaes, que podes-
fem afíluir á nova inftituição. Mas os cofres da opulenta mi-
fericordia portuenfe e de outros pios inítitutos da cidade en-
cerravam fommas groffas, que era precifo indireétamente
encaminhar ás arcas da companhia. Os feus inimigos apres-
tavam-íe a abforver os dinheiros em emprcftimos particula-
res para defviar-lhes a corrente e levantar difficuldades á
formação do capital. O avifo de lo de feptembro de lySõ
prohibe aos eilabelecimentos de religião e caridade mutuar
quantia alguma fem licença do Ibberano. A carta regia de
27 do mcfmo mcz preicreve que dos cofres da mifericor-
dia e das outras piedofas corporações fe empreite dinheiro a
todos os que defejem entrar com elle na fundação da com-
panhia.
Era urgente reanimar a navegação mercante portugueza,
fem a qual feriam deluforias todas as efperanças já firmadas
na companhia do Grão-Pará e as que tornavam aufpiciofa
a das vinhas do Alto Douro. Os marinheiros portuguczes,
attrahidos pelo natural defejo de foldadas mais crefcidas, na-
vegavam numerofos em navios inglezes do commercio'.
■ Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal,
tom. xviH, pag. 366, citando um documento do archivo dos negócios extrangei-
ros, em Paris.
^^-^ -i^
Para obviar feveramente a efte mal acudiu o alvará de
27 de feptembro de 1756, defnaturalifando de portuguezes
os que da pátria fe aufentaíTem para fervir em navios cx-
trangeiros, confifcando-lhes os bens e as fazendas, e commi-
nando-lhes além dTíTo a pena de dez annos de galés, quan-
do foliem encontrados em terras de Portugal.
A ufura, que depois do terremoto fe tornara grande e ha-
bitual, era um dos impedimentos, que fe oppunham a alcança-
rem cabedaes a juro módico os que defejaífem entrar como
accioniítas em a nova companhia. Uma providencia de Car-
valho prohibe fob graves penas, que a taxa de juro fe levan-
te acima de cinco por cento".
Um dos mais beneméritos ferviços, preftados a Portugal
pelo incanfavel reformador, foi fem duvida o esforço e tena-
cidade, com que para favorecer e accrefcentar as forças pro-
dutivas da nação, fe empenhou em expvtngir a nota de vi-
leza ou ao menos de ariftocratico defdem, em quen'uma terra
de fidalgos foberbos e ociofos eram tidas as honeflas profis-
fões, que pelo trabalho e diligencia criam a riqueza e fundam
em feguros alicerces a profperidade focial. A legiílação do
eftadifta, fuperior aos preconceitos do feu tempo, faz ouvir
a cada paífo eíta nota fundamental. Nos eílatutos da nova
companhia, como nos da que fora inftituida para o Grão-
Pará e Maranhão, declara o legiflador em termos formaes,
que o entrar n'eífas úteis aífociações de mercadores, « não de-
roga a nobreza herdada, antes é meio para alcançar a adqui-
rida». Os diredores e os outros officiaes d'eftas fociedades
mercantis ficavam habilitados a receber as ordens militares,
e os feus filhos poderiam ler no defembargo do paço fem o
que então fe appellidava «a difpenfa da mechanica», quer
dizer, a generofa abfolvição de tal peccado, qual era o ha-
' Alvará de 7 de janeiro de 1757.
4«u
_ : .hJ»-^
i53
ver tido humilde nafcimento e exercer como plebeo o traba-
lho honefto e produítor, em vez de ter vifto a luz em áureos
berços e de infamar na ociofidade e na torpeza o nome her-
dado. E para ainda confirmar que o trato mercantil não era
incompativel com as funcções publicas, havidas por mais
qualificadas e infignes, decretava o honrador illuftre das úteis
occupações, que todos os magiftrados judiciaes, os oííiciaes
de guerra e os de fazenda, poderiam fem defaire, antes com
publico louvor, entrar na companhia do Alto Douro'.
Não baftava porém confignar n'efta legiflação, precurfo-
ra de rafgados principios democráticos, a doutrina de que
a honrada mercancia não deíluílrava os mais efplendidos
brazões. Era conveniente o eftimular a própria fidalguia a con-
fociar-fe nas emprezas produótoras. Por iffo na carta official,
em que Sebaftião de Carvalho enviava ao defembargador
Bernardo Duarte de Figueiredo a minuta dos eftatutos^ para
que no Porto os aíTignaíTem os accioniítas, que ha^■iam de fer-
vir de provedor e deputados nos primeiros três annos a da-
tar da inftituição, ordenava, que nos oflficios da companhia
além dos commerciantes entraíTem peíToas nobres. «Porque,
diz o miniftro . . . d'efia forte, vendo-fe a nobreza a lervir
com os homens de negocio, promifcua e indifhndamente
fe deíferra a irracional e prejudicialiffima prevenção de que
é mechanico o commercio, que fe faz em groífo por meio
da navegação mercantil». N'aquella mefma carta o efta-
difia denunciava ao defembargador, fervindo então de chan-
celler da Relação e Cafa do Porto, que na cidade havia
homens de negocio, que eftavam confpirando contra a no-
va inítituição, limitando-fe por emquanto fem manifeífa
' Alvará de 5 de janeiro de 1757.
2 Carta de 9 de agoíto de 17.^6, na coUecção impreíTa e manufcripta de legis-
lação de Trigofo, nabibliotheca da Academia das Sciencias.. annos de 1754 a 1758.
II 11
ti» tia
■34
rebeldia, a minar e difficultar a fua fundação, e prefcrevia
ao magiítrado que a refpeito d'aquellas hoftilidades adoptas-
fe as providencias opportunas.
É que a oppofição veliemente, indefeíTa, inconciliável
furgia impenitente a cada nova creação do famofo innovador.
Apenas fupplantada qualquer machinação infidiofa, logo ou-
tra fe levantava mais audaz a tomar o paíTo á reformação.
Agora que no Porto fe deparava enfejo próprio, a perpetua
conjuração deixaria com vantagem a corte de Lifboa para
bufcar na terra mercantil por excellencia o theatro das fuás
operações.
Ia tomando vigor e corpulência o poder e valimento do
miniítro no animo do rei. Era tronco de roble ainda novo,
mas já de tamanho viço e tão bem filhado na terra, que, fe
não logravam derribal-o antes que alaftraífe as raizes profun-
damente, não haveria depois fazel-o baquear. Bufcavam pois
os inimigos todo o pretexto e occafião para lhe dar fortiíTimos
combates. Principiaram aífediando-o nas próprias recamaras
do rei, influindo-lhe pela voz dos jefuitas efcrupulos de timo-
rata confciencia. Aífeítaram contra o miniftro os mercadores
da fua facção, para que levantando feus clamores contra a
companhia do Grão-Pará, obrigaífem o rei, que ainda tinham
por fraco e irrefoluto, a defpedil-o do cargo e da valia. Mas
tudo lhes faíra tanto ao revez, que em logar de abalarem o
animo real, mais o tinham roborado na confiança e intimi-
dade com o vaífallo. A companhia do Alto Douro deparava-
Ihes porém monção propicia com que podeífem marear a
novo rumo. Azava-fe-lhes o enfejo de fazerem apparecer na
fcena publica uma nova e mais terrível perfonagem do que os
fidalgos e jefuitas, que até ali haviam tido os primeiros papeis
n'aquelle drama. Agora faíria á praça rugindo bravamente o
povo de uma cidade, que a todas as povoações de Portugal
fempre coftumou antecipar-fe na defeza e vindicação dos fó-
e|í
ti»
4tU
. •A-g.
ros populares. O que Lifboa, aíToberbada pela prelença do
rei e do governo, não oularia emprehender, havia de cum-
pril-o a plebe portuenfe, dando vidoriofamente o fignal da
infurreição em todo o norte de Portugal.
Mal havia começado a companhia a exercer o feu lucro-
fo privilegio, efcudada com a protecção do miniftro já pode-
rofo, eis que a 23 de fevereiro de lySy rompe no Porto uma
formidável fublevação, que os inimigos de Carvalho, depois
que a viram frullrada e punida com rigor, bufcaram amefqui-
nhar ás quall imbelles proporções de um pequeno tumulto e
arruido. Referem que immenfa mó de gente popular, em que
as mulheres eram parte não pequena, irrompera infrene e im-
petuofa contra as cafas da companhia, e ali revogando llirn-
mariamente a lei, que havia por tyrannica e odiofa, entregou
ás chammas os papeis da fociedade e proclamou de novo a
liberdade no trafico dos vinhos. Elmaram alguns em féis mil
peíToas as que participaram n'aquella turbulência e fedição.
O que feria e aggravava em grau extremo a plebe enfureci-
da era o monopólio concedido á companhia para que ella fó
vendeíTe na cidade os vinhos a retalho. Era dura na verda-
de a providencia, como é fempre o eífancar qualquer merca-
doria, concentrando o feu commercio n'uma fó companhia
ou no eftado. Defculpa-fe e em certa maneira juftiíica-fe a
fúria popular, fe da fua infpiração, fcm influxo alheio, nas-
cera efpontanea e inftindiva a eflrondofa e fevera protefla-
ção. Mas as paixões politicas, os ódios infanaveis, as invejas
retrahidas, os intereíTes oíFendidos da nobreza e da clerezia,
não fe deícuidavam certamente de alToprar o incêndio, que
lavrava, antes da final e tremenda explofão. Conta-fe que os
jefuitas principalmente, apoífados a envidar os golpes derra-
deiros contra o feu mal diíTimulado antagonifta, andaram efti-
mulando os efpiritos já propenfos á revolta, utilifando na
cruzada quantas armas lhes fornecia largamente o feu copio-
*í-«Íh. -A-i*
4sU
^ — . — *<^
fiíTimo arfenal. Diz-fe que nas prédicas troou clamorofamen-
te a fua facúndia contra a injuriofa inftituição. Refere-fe que
do púlpito abaixo proclamaram que os vinhos da nova com-
panhia eram impróprios para a celebração do incruento fa-
crificio do altar. Pôde fer que os jefuitas portuenfes foffem
tão férteis em claras allufões reprehenforas dos ados gover-
nativos, como em tempos anteriores havia fido a oratória vi-
brante e popular do feu grande parenetico, António Vieira.
Não é fora de razão que os mais adivos e aftuciofos jefuitas,
de operários evangélicos tranfmudados em políticos tribunos,
andaíTem entre o povo e a gente mercantil, creando efcrupu-
los e reprovando a companhia do Alto Douro, aíTim como
em Lifboa o padre Bento da Fonfeca pouco antes dera vo-
to contra a companhia do Grão-Pará. Accufou-os Sebaftião
de Carvalho de terem fido os fautores e caudilhos da infur-
reição. hicrepou-os de haverem defentranhado dos archi-
vos a hiíloria da fedição do Porto em 1661, e de traçarem
fegundo eíte modelo a nova rebellião. Não é fácil deítrinçar a
parte, que no motim direófamente pertencera á companhia
de Jefus. As aííirmações officiaes podem fer porventura
exageradas, porque o ódio reciproco entre os partidos tem
coítume de alterar a fubflancia dos fucceíTos e dá quafi fem-
pre em vez do feu defenho correíto e fideliíTimo uma desfigu-
rada anamorphofe. No conceito de Carvalho, onde apparece
uma grande malfeitoria, lá eftão fempre efcondidos dctraz
d'ella os focios da ordem infamada. Efpelhadas na torva ani-
madverfão dos jefuitas contra o feu inflexível competidor,
todas as acções mais proveitofas ou mais juftas de Carvalho
apparecem refledidas como oppreífões e tyrannias. Se o mo-
vimento, confiderado como explofão da vontade popular, tem
hoje certamente jufiificação pelo direito de refiftencia, era
comtudo n'aquelle tempo aos olhos da mais temperada e Iene
monarchia um dos mais atrozes attentados entre os que defi-
4sU
-* •-^^
nia a lei penal como crimes de lela-majeftade. A ordenação
do livro V declarava pertencer a efta categoria qualquer rebel-
lião contra o rei e feu eftado'. O legiílador mandava punir o
nefando facrilegio com a pena, que na linguagem criminal
d'aquelle tempo fe chamava de uiorte cruel. Uma íedição
em plena monarchia abfoluta, quafi defcaindo em aberto,
ainda que illuftrado defpotifmo, não era, como nas moder-
nas monarchias mais ou menos liberaes, um crime politico,
fobre o qual, após a primeira ejfervefcencia, caííTe o manto
régio, adoçando a afpereza judicial em clemência e amniftia
Apezar do que o profundo Montefquieu no E/pirito das leis -
efcrevêra a relpeito dos crimes de lela-majeftade e da jus-
tiça politica, nas praxes judiciarias e no direito efcripto das
nações, ainda as mais illuminadas em aíTumptos crimi-
naes, vivia a tradição da barbárie penal, que maculava de
fangue os códigos da edade media. O grande e humaniíTimo
jurifconfulto marquez Beccaria ainda no feu livro immortal
Dos delidos e das penas, não levantara n'aquelle tempo a fua
voz, condemnando em nome da humanidade a praífica atro-
ciíTima, em que a juftiça punia com um crime legal e medi-
tado o crime inconfciente, commettido no momentâneo as-
fomo das paixões.
A infurreição do povo portuenfe aos olhos do rigorofo
legiílador, que feguia imperterrito a fua traça de governo^
aífumia mais extranhas proporções do que a tomada da Bas-
tilha, preambulo cruento da máxima e mais gloriofa revolu-
ção, tomaria trinta e dois annos depois, no conceito da ve-
lha monarchia de S. Luiz. Em relação á foberania do mo-
narcha era a rebellião, como tinham dito os jurifconfultos
1 «O quinto (cafo de lefa-majeflade), fc alguém fizelTe confelho e confede-
ração contra o rei e feu eílado ou tratalTe de fe levantar contra elle, ou para
ido defle ajuda, confelho e favor." Ordeii., liv. v, titulo 6, § 5."
2 Montefquieu, De Vefprit dcs loix, liv. xii, cap. vii, viii, ix e x.
4 4'
_ •-<{»-§.
redadores do código filippino, infpirando-fe nas doutrinas
e nas tradições imperialiftas da lei Júlia de majejtate, crime
tão grave e abominável, e que os antigos fahedores tanto
extranharam, que o compararam á lepra'.
Em relação ao miniftro o crime tinha porém praticamen-
te mais grave fignificação. Era a confpiração latente e diíTimu-
lada, que defde largo tempo o acoíTava, trazida agora á praça
publica na forma de eftrondofa fedição, e na cidade mais no-
tável e podcrofa depois da capital. Era imminente o perigo
de que o exemplo da fublevada povoação contagiaíTe o nor-
te de Portugal, onde por ler mais avultada a viticultura, po-
deria com maior intenfidade e rapidez lavrar o incêndio co-
meçado. O intereíTe da própria confervação, ainda mais que o
zelo da olTendida realeza, impellia o miniftro a enfrear e a
punir a fanha popular.
Delpachou defde logo para o Porto ao defembargador do
paço João Pacheco Pereira de Vafconcellos, como prefiden-
te da alçada, que devia conhecer do crime perpetrado. Le-
vava o juiz por efcrivão um filho feu, Joíe Mafcarenhas Pa-
checo Coelho e Mello, defembargador da fupplicação: o pae,
fegundo contam, magiftrado fevero e zelador da majeftade,
o filho, juiz de duriífimas entranhas, mais para algoz que
julgador; um, tendo a afpereza da lei por trifte neceífidade, o
outro havendo por delicia a crueza do caftigo. Mandou Carva-
lho guarnecer com forças militares a povoação capitulada de
rebelde. Eftava ali então um fó regimento privativo da cidade.
Era feu coronel e governava ao melmo tempo as armas do
partido do Porto, João de Almada e Mello, primo de Carva-
lho, irmão do outro Almada, que exercia em Roma a envia-
tura. Marcharam para o Porto dois regimentos de infanteria,
um do Minho, outro de Traz os Montes, o regimento de
' Ordeu., liv. V, tit. 6.
dragões da Beira, e um efquadrão de dragões ligeiros de
Chaves. Occuparam a povoação militarmente. Durava ain-
da a agitação. Alguns dos populares ainda fe aflfoutaram a
apparecer diante das cafas, onde fe apofentava o defembar-
gador Pacheco Pereira, dando vozes denunciadoras de povi-
co hofpedeiro gafalhado. Um piquete de dragões, de efpadas
nuas, diíTipou n'um momento o povo inerme.
Impoz-íe defde logo ao Porto a obrigação de manter e
alojar pelas cafas dos moradores as tropas da guarnição, car-
regando principalmente o encargo penofiíTimo nos bairros,
onde houvera principio a fedição. Tirou-fe á gente popular
o antigo privilegio de ferem reprefentados os officios me-
chanicos pelo juiz do povo e cafa dos vinte e quatro, e pelos
mefteres e procuradores, que affiftiam na vereação. Logo o
prefidente da alçada abriu a devaífa, em que foram compre-
hendidos quatrocentos vinte e quatro homens e cincoenta e
quatro mulheres. Continuou o proceífo durante muitos mezes
até que a i 2 de outubro de lySy foi pronunciada a fenten-
ça pelo defembargador João Pacheco, tendo por adjundos
a onze defembargadores da Relação e Cafa do Porto. Con-
demnaram os feveros julgadores á pena capital a vinte e
um homens e cinco mulheres. Dos homens fó treze padece-
ram a execução no fitio da Porta do Olival, onde o tumulto
começara, os outros, porque a tempo fe haviam pofto em
falvo, tiveram apenas em eftatua o fimulacro do fupplicio.
Das mulheres, que a fentença qualificava entre as mais ter-
ríveis promotoras do motim, em quatro fomente defde logo
fe exerceu a fereza cruel da lei penal. Das mais peífoas de-
claradas cúmplices no crime, umas foram condemnadas em
açoutes e galés, outras em degredo para terras africanas. Al-
gumas, culpadas em menor grau, expiaram a fua participação
no levantamento com defterro para Caflro Marim, ou para
fora da comarca. A muitas deram os juizes em caftigo féis
4sU
-• »-<è^
lOo
mezes de prifão em S. João da Foz, e multas, que variaram
defde fetecentos e vinte até doze mil réis. Com os impú-
beres foi a juftiça menos fevera, fentenceando-os a prefencear
as execuções, fendo logo açoutados em feguida em forma de
correcção. Abfoltos e immunes de toda a culpa fairam trinta
e dois homens e quatro mulheres. Antes do final julgamento
haviam fido poítos em liberdade cento e oitenta e três ho-
mens e doze mulheres, porque não refultaram comprehendi-
dos na devaífa.
Era tal n'aquelle tempo a abfurda e perigofa pretenção,
com que o monarcha abfoluto, irrefponfavel, com a fua alta
omnipotência em íi confubftanciava todos os poderes do eíta-
do, que vemos o rei a cada paíTo intervir nos julgamentos e
fobrepor-fe ás decifões judiciaes. Alguns dos juizes que fir-
maram a fentença, tinham oufado proferir que o tumulto por-
tuenfe não era crime de lefa-majeftade. Opinavam de certo
erroneamente ^em face da legiflação penal, que então regia.
Defejariam, porém, com branda e epicheia humanidade exi-
mir á crueza do verdugo os pobres populares. Mas logo o po-
der real mandou ao "prefidente da alçada, que em feíTão do
tribunal extranhaífe feveramente tão perniciofa opinião. Efles
fão os fruftos 'deletérios, que pendem fempre e em toda a par-
te do tronco funeftiífm-io do poder abfoluto. Só a liberdade, fi-
lha e dileéla companheira da civilifação, fabe fazer que feja
refpeitavel a juftiça fem invocar em feu favor o arbítrio e a
oppreífão.
Attentemos, porém, em que não era de maior doçura
e lenidade a juftiça politica em paizes de mais temperada
monarchia. Poucos annos eram apenas decorridos após as
cruas e inexoráveis condemnações, com que tinham fido cas-
tigados na que chamavam livre Gran-Bretanha os fedarios
do pretendente, Carlos Stuart, depois da infurreição de 1745,
e da perda da batalha de Culloden pelo romanefco aventu-
4tU
_ -<(>-§.
i6i
reiro. As fummarias e cruéis execuções, em que toram im-
molados os infurgentes, paíTavam-le n'uma nação parlamen-
tarmente governada. Mas aquellas terríveis reprefalias foram
taes, que o próprio filho do rei George II, o duque de Cum-
berland, ficou perpetuamente cognominado the bittcher, o car-
niceiro. E eftes ados de ferocidade politica eram exercidos
quafi fem figura de juizo, emquanto que nos julgamentos
mais feveros durante o miniíterio de Carv^alho, fe refpeitaram
quanto á forma as legaes Iblemnidades.
CAPITULO VII
os jesuítas
Se os juizos hiftoricos tiveíTem de firmar-fe exclufiva-
mente na certeza e na evidencia, feria temerário o afifirmar
que na oppofição á nova fociedade mercantil intervieíTe aber-
tamente a companhia de Jefus.
Na fentença proferida contra os réus da revolta portuen-
fe não fe depara a minima allufão aos perigofos regulares,
que tinham a parte principal nas machinações contra os no-
vos princípios de governo, infiaurados e feguidos por Sebas-
tião de Carvalho. Não vae porém fora de razão o prefuppor
que não ficariam indifi'erentes á furda agitação, que prece-
deu e bofquejou o movimento realifado a 23 de fevereiro.
Parece incontroverlb que religiofos de outras ordens haviam
cooperado em eftimular a fanha da plebe portuenfe contra a
odiada companhia do Alto Douro. Os próprios efcriptores,
que defendem os jefuitas por extranhos á fedição, aífeveram
que muitos francifcanos foram diligentes em fuggerir ou con-
citar a fublevação. Sebaftião de Carvalho em feus efcriptos
apologéticos afíirma expreífamente a participação dos jcfui-
*5-<Ç>-« — — •-O-^
162
tas. Attribue-lhes o haverem fido elles os que defentranha-
ram dos archivos a relação do movimento popular do Porto
em 1661, e o preconifaram como norma e exemplar da nova
infurreição'.
A meíma accufação apparece formalmente confignada
n'um documento officiaP. N'elle aíTevera Sebaftião de Car-
valho pelo órgão do fecretario de eftado D. Luiz da Cunha,
que os jefuitas, defconcertados em Lifboa nos feus políticos
enredos, trabalharam no Porto por mak|uil1:ar o rei e o feu
governo, repetindo as imputações e impofturas, que haviam
divulgado em Portugal e fora d'elle, e animando com as
fuás obfeífões a outros regulares, que feriam provavelmente,
fe bem o documento o não declare, os religiofos de S. Fran-
cifco.
Os jefuitas, havidos pelo miniftro zelador da audoridade
fecular na conta dos mais adivos e efficazes inítigadores de
toda a violenta oppofição ao feu governo, eftavam ainda no
paço encaftellados e ainda podiam ter de fua mão a débil
confciencia do foberano. Eram elles os confeífores do rei e
de feus parentes. Não pode padecer a menor duvida que, de
parceria com os fidalgos e fâmulos reaes, todos elles inimigos
de Carvalho, formariam o que hoje appellidâmos camarilha,
latente e perpetua conjuração contra os minilfros, que de-
fejam debellar em beneficio da nação os abufos clericaes e
ariftocraticos. Os tumultos do Porto miniftravam a Carvalho
enfejo accommodado a expulfar do paço os confeífores da
ordem já mais do que fufpeita, condemnada. A ig de fe-
ptembro de 1757, já de noite, fão intimados a fair fem dila-
ção do palácio de Belém. D'eíl:a maneira foram defpedidos
(Is
' Apologia S." Appenfos da contrariedade ao libello de Aíendaiiha.
2 In/lrucção dirigida na data de lO de fevereiro de j-5S a Francifco de
Almada de Mendoça, miniílro de Portugal na cúria de Roma.
-• «-v-?*
i63
e enviados á caía profeíTa de S. Roque e ás outras cafas e
collegios da Companhia. Em feu logar entraram a dirigir a
confciencia do rei e da lua familia religiofos quafi todos per-
tencentes ás ordens mendicantes.
Eftava dado o primeiro golpe na podcrofa Companliia,
em Portugal. Eram eftas as primeiras hoftilidades. Eram os
jefuitas defalojados da mais forte e dominante pofição, onde
tinham o leu principal pofto avançado; combate vigorofo de
atiradores, precedendo e preparando uma batalha bem fe-
rida e uma vidoria bravamente difputada.
Eftava rota e declarada a rija conteftação, da qual ou
lairiam mais confirmados e poíTantes os jefuitas, ou vinga-
riam em Portugal os primeiros e ainda timidos rebentos da
moderna liberdade.
E provável que o miniftro de D. Jofé, cada vez mais irri-
tado com os dilcipulos de Santo Ignacio de Loyola, e tendo
já radicada e funda a convicção de que Ibb a fua influencia
fe tornaria impoíTivel todo o bom governo temporal e toda
a progreíliva civilifação, já n'aquelle tempo traria delineada
em feu efpirito não fomente a futura expulfão dos jefuitas
do folo portuguez, fenão também a extincção da Companhia
em todo o orbe catholico. O problema era porém difiicil e
complexo, e não podia relblver-fe com um fó rafgo, embo-
ra violento do poder. Efta milicia efpiritual foubera por tal
maneira conquiftar para a lua dominação a maior porção da
Europa e fuás dependências na Alia e na America, de tal
feição fe havia infinuado no animo dos povos e na benevolên-
cia dos governos, que feria neceíTario antes de tudo fuperar
as refiftencias, que na commum opinião ainda acalb podes-
fem levantar-fe contra a condemnação final da pofTante focie-
dade. Na expugnação de tão notável inimigo, convinha antes
de tudo deftruir no conceito da gente imparcial a Ibmbra de
uma duvida Ibbrc a degeneração, a que chegara o inílituto.
e|9
4tU
-. ^-^^
164
que ainda teria para o abonar os venerandos nomes dos Xa-
vieres e dos Anchietas, a virtude dos Cardins e a gloria dos
Vieiras. AíTim como contra as maíTas confiftentes, fortes, dis-
ciplinadas de uma bem ordenada e valente infanteria, ainda
intadla de fogos inimigos, feria perigofo e imprevidente lan-
çar os mais ardentes e velozes efquadrões, fem que uma bem
fervida e tremenda artilheria, chovendo o feu granifo de pro-
jeíleis levaífe a confufão ao feio das columnas e as íizeífe
tremer, defordenar-fe, vacillar; aíTim também houvera fido
imprudente e aleatório vibrar contra a firme e bem enraizada
Companhia o golpe decifivo, fem haver, por acertadas ope-
rações preparatórias, abalado rijamente as fuás fileiras.
O génio de Carvalho comprehendeu lucidamente, não o
que feria mais audaz, fenão o que feria mais feguro. O im-
pério exiftia n'aquelle tempo, — e ainda hoje em grande par-
te,— em tão intima travação com o facerdocio, que os mais
refolutos reformadores hcfitavam e tremiam ante a folução
do problema referente ás relações da Egreja e do Eítado.
O abfolutifmo é n'eft:a parte menos favorecido que a revo-
lução. Um povo, que no auge do triumpho a fi próprio fe
invefhu na fua inalienável foberania, pôde mais n'eftes as-
fumptos do que o mais poderofo rei. Carlos V prendia bru-
talmente o papa Clemente VII no caftello de Santo Angelo,
e deixava fubfiítir as ufurpações da poteítade efpiritual. A
França republicana didava a lei, na peífoa de Pio VI, ao fu-
premo pontificado, e levantava realmente acima das preten-
fóes temporaes do facerdocio a majeftade inauferivel do po-
der civil. Henrique VIII, de Inglaterra, podia impunemente
legalifar o movimento religiofo da reforma, abolir e feculari-
far os mofteiros e abbadias, e ajuntar ao diadema temporal
a infignia de fupremo chefe da egreja anglicana, ainda não
remodelada emquanto ao dogma e á difciplina. Depois da
guerra da liberdade podia um miniftro oufado e grandemen-
ftM
-§-<í»-. •■4>-^
i65
tc reformador, Joaquim António de Aguiar, annuUar por um
rasgo da Ília penna francamente revolucionaria, no decreto
da extincção das ordens religiolas, o C[ue muitos feculos de
mal entendida piedade e religião tinham fundado e accrefci-
do ate o abufo intolerável. Mas o poder monarchico do li-
bidinofo rei-theologo tinha por efteio a agitação produzida
largamente nos elpiritos britannicos pela reforma e pela aver-
lao, já desde João Wicliífe proclamada, á fuzerania c lujei-
ção pontifical. O miniftro liberal decretava a abolição das
ordens religiofas, ao eftrondo das vidorias alcançadas contra
o duplicado defpotifmo do rei e da clerezia n'uma verdadei-
ra e tremenda revolução, no meio da triumphal excitação
contra as caducas inftituições da velha fociedade. Sebaítião
de Carvalho vivia n'outra epocha, e refpirava mal defafoga-
do n'uma atmolphera ainda inficionada pelos preconceitos e
abufões de barbaras cdadcs.
O feu empenho género fo c o das mais fecundas confe-
quencias para a humanidade e civililação, era firmar a fo-
ciedade em fundamentos puramente civis e feculares, deixan-
do como deve fer, á religião, expurgada de toda a fijperftição
e fanatifmo, o feu império nas confciencias e o feu brando
jugo efpiritual acceito e recebido livremente. Repugnava-lhe
que o Evangelho, onde reílumbra a cada pagina o defapego
dos intereífes mundanaes e das profanas carnalidadcs, nas
mãos de um clero ambiciofo e terrenal, facrilegamentc fe ti-
veífe convertido no código de uma larga theocracia. Accen-
dia-fe em vehemente indignação ao attentar em que haven-
do Jefu Chrifto gravado como epigraphe na frontaria do feu
grande edificio religiofo, a cxprcífa aíTirmação de que o/e»
reino não era d'ejle mundo, os que fe diziam feus operários e
miniftros, tomaífem ao revez por feu lemma capital, que era
fua a terra inteira com tudo o que em fi contem de material, e
que todas as nações cuhivadas ou gentílicas, e todos os poten-
cia
ibt)
tados e governos caíam por divina inftituição fob a lua alçada
e poderio. A linha, que devera feparar como fronteira e linde
natural o facerdocio e o império, eftava por tal guiza oblitte-
rada e confundida pelas antigas e modernas ufurpações da
poteftade efpiritual, que era feguramente empreza difiicilli-
ma o erguer de novo os marcos demolidos. Era precifo for-
çar o facerdocio a que, fob color de dirigir e fubjugar almas
chriftans pelos vínculos fuaves da amoravel catechefe e da
branda e fraterna correcção, não encadeaíTe os corpos dos
fieis com os grilhões de um mundano captiveiro, nem as-
fombraíTe a razão e a conlciencia, como le o caminho do ccu,
a eífancia myftica da luz, houveíTe de ler traçado em meio
de tenebrofa efcuridão.
Eftes eram os propofitos do benemérito miniífro, mas o
feu génio emprehendedor e arrojado naturalmente le eílreita-
va nos âmbitos anguftos, onde tinha de exercer a fua acção.
Eftava collocado entre um rei débil e timorato, e uma nação
defalumiada e fuperfticiofa. De um lado o delpotifmo de
um fó homem, do outro lado o fanatilmo da multidão.
Cumpria avançar pautadamente e como quem navega
entre baixios. Eram fáceis os golpes desfechados Ibbre a
gente fecular. Eram difificeis contra homens, a quem a rou-
peta ou a famarra aíTegurava a immunidade, e que na cré-
dula phantafia popular podiam apparecer, em vez de faccio-
fos agitadores, hoílias innocentes, coroadas com a laura do
martyrio.
Começou pois Sebaftião de Carvalho por Ibllicitar do
Vaticano as providencias occorrentes á faudavel reformação
da Companhia em Portugal e léus domínios. Bem lábia elle
que era inexequível o que pedia. O que elle prelumia ferem
enfermidades, que eflavam corrompendo e afeando o antigo
inftituto de Santo Ignacio, eram as próprias leis e condições
orgânicas da fua exiflencia collediva. A famofa fociedade ou
-!-<>-• -<>-^
havia de acabar inteiramente ou manteria intemeratas as fuás
tradições e os léus proceíTos. Os que Ic afiguravam por abu-
fos, eram antes os coftumes convenientes á ília inílituição. Os
que le julgavam erros paíTageiros, eram os axiomas, em que
eftribava a lua influencia e o feu poder. Tirar-lhe a direcção
das conlciencias nas clafles mais poderofas, a começar do
próprio rei, arrebatar das fuás mãos o enfmo e a educação da
juventude, limitar-lhe á evangélica parenefe, fem mefcla de
profana direcção, nem commercios lucrativos, o exercicio das
miíTões no Oriente e Novo Mundo, era abater a Companhia
ao nivel das vulgares congregações, e condemnal-a, em vez
dos léus efplendidos triumphos nas cortes e nas praças, ao
obfcuro pfalmear no coro das fuás egrejas, quali defertas de
fieis. A Companhia não a creára aquelle myftico, mas fogo-
fo e enérgico eftadifta, leu primeiro inflituidor, para a vida
contemplativa, e para a afcefe folitaria, fenão para o comba-
te fem remanfo, para a conquifta moral de todo o orbe pela
ambição e pela fé, para o governo fem refponfabilidade,
para a foberba dominação nas apparencias da evangélica hu-
mildade. Era o exercito adivo da foberania clerical. O bre-
viário, na fefta de Santo Ignacio, cantava exalçando o ferviço
relevante do famolb fundador: Nopo per bcatiim Ignathim
fiill/iíiio militautem eclejiam roborajti, quafi dizendo em lin-
guagem: »Por induftria e obra de Santo Ignacio fortalecefte
com um novo auxiliar e novo prefidio a egreja militante».
Apelar de tudo prefuppoz ou fingiu Carvalho que a So-
ciedade poderia ter em feus defeitos correcção, em fcus des-
mandos emenda e melhoria. Lembravam-lhe as palavras,
em que theologos tão doutos e piedofos como os dois emi-
nentes hefpanhoes. Árias Montano e o bifpo de Canárias,
Melchior Cano, haviam debuxado a imagem da Companhia
em termos, que excluem da parte d'elles toda a crença na
fua proveitofa reformação. Lembravam-lhe c citava-os. Mas
168
era ainda neceíTario admittir porventura como um milagre
o que, fegundo a ordem natural, não era já poíTivel realifar.
Era como transformar um corfel impetuoíb, altivo, quafi in-
dómito, coftumado a correr velociílimo no circo, em ovelha
humilde, quieta, e remanfada na paz innocente e ociofa
do redil.
Ordenou Sebaftião de Carvalho ao miniftro de Portugal
na corte de Roma, Francilco de Almada e Mendoça, que
impetraíTe do pontífice Benedido XIV as providencias ne-
ceíTarias para que em Portugal fe procedeíTe á vifita e re-
formação da Companhia. Expediu-lhe para efle fim as duas
inftrucções de 8 de outubro de lySy e de 10 de fevereiro
do feguinte anno.
A primeira, a que fervia de explanação e commentario
o opufculo publicado por ordem do governo fob o titulo de
Relação abreviada da republica que os religiqfos jefuitas de
Portugal e Hejpaiiha ejiabeleceram nos doiniiúos ultramarinos
das duas monarchias, devia fer prefente ao pontífice romano,
e n'ella deduzia o eftadifta os delidos, pelos quaes os jefui-
tas fe haviam tornado infeítos a Portugal, concitando princi-
palmente os Índios da America a opporem-fe pelas armas á
execução do tratado de limites entre as duas coroas peninfu-
lares. Dava Sebaftião de Carvalho ao mefmo tempo conta
ao papa de como os confeíTores da familia reinante haviam
fido lubffituidos por facerdotcs de outras ordens religiofas.
Na fegunda inftrucção recapitulava o miniftro de D. Joie
os procedimentos dos jefuitas para obftar ao cumprimento
do tratado, combater a inftituição da companhia do Grão-
Pará, influir no animo do rei pelas miífões exercidas nos
próprios paços, e fublevar contra a companhia das vinhas do
Alto Douro a plebe portuenfe. Criminava o miniflro os jefui-
tas pela tenacidade impenitente, com que divulgaram no pu-
blico portuguez as mais calumniofas imputações ao governo
ti»
169
de D. Jofé, acculando-o de querer abolir o Tanto ofíicio, infti-
tuir a liberdade de confciencia e cafar a princeza do Brazil
com o duque de Cumberland, filho legundo-genito do rei
George II. AíTeverava Sebaftião de Carvalho que na fen-
tença da alçada por occafião do tumulto popular no Porto,
«faria uma grande e enorme figura o proceíTo d'aquelles
religiofos fe a piedade fi.imma do monarcha não houvelTe
defde o principio mandado feparar o que foíTe pertencente
aos ecclefiafi:icos » .
As diligencias de Carvalho fijrtiram o effeito defejado.
O pontífice Benedifto XIV, Profpero Lambertini, era um dos
mais illuminados, juftos e venerandos, entre os que haviam
meneado o leme á nave de S. Pedro. Era adverfario e cor-
redor dos abulbs, que via introduzidos na egreja, theologo
e canonifta de vafia erudição, piedofo como papa, clemente
como príncipe, modelto como particular. Era aquelle, de
quem o filho de Walpole, do miniftro omnipotente de Geor-
ge II, traçara n'uma infcripção em fiia honra, que fora ama-
do dos papirtas c pelos proteítantes elfimado. Era um ho-
mem que, pelas luas qualidades eminentes, purificava o tri-
regno pontifício de todas as impurezas, com que lhe haviam
embaciado o efplendor; que pela manfidão quafi eicurecia a
arrogância irrequieta de Gregório VII, e pela virtude como
que expiava a mundana diífipação de Alexandre VI; pontí-
fice paftor, e não guerreiro; amigo da paz e da juftiça, ini-
migo de quanto podelTe defluftrar a virtude e a chriftanda-
de. Não era adverlb aos jefijitas, antes venerava no inftituto
a memoria dos feus grandes luminares. AfFligiam-n'o porém
as turbulências, que os focios da Companhia efiavam exci-
tando em Portugal, a cujos reis havia poucos annos conce-
dera, como infignc teftemunho da fiia piedade e religião, o
honorifico diftado de //deli//ii)i(>s. A inílancias de Carvalho,
propoftas pelo miniftro portuguez Franciíco de Almada, ex-
eis
(Is
170
pediu Benedido XIV o breve In fpecula fupremae dignitatis,
datado de Roma no i." de abril de lySS. N'efte memorável
diploma pontifício citava o lummo paftor as inconveniências
e abufos, que o rei de Portugal lhe havia reprefentado com-
mettidos pelos jefuitas, pedindo-lhe que houvcffe de acudir
com providencias paftoraes a atalhar os efcandalos, que po-
deriam recreícer. Para a vifita e reformação da Companhia
ern Portugal conferia o papa ampliffimos poderes ao cardeal
Francifco de Saldanha, o qual deveria tomar por adjundo
uma peíToa conftituida em dignidade ecclefiaftica, e verfada
nas conítituições e coftumes das ordens regulares. O pontífi-
ce, que n'eftas lettras apoftolicas aífirmava o feu amor á
fufpeita fociedade, «e os atfeiftos paternaes, com que a fi
mefmo a eftreitava'» não eftava por iíTo menos convencido
de quanto era urgente a fua reforma. Ordenava a todos os
jefuitas de Portugal e feus domínios que obedecelTem ao
cardeal e fe fujeitaíTem ás fuás determinações. Declarava
contra os remiíTos e contumazes as máximas penas eccle-
fiaflicas, a excommunhão latae fententiae, a fufpenfão à di-
innis, a privação de feus ofiicios, além das mais, em que
ipfo fado incorreriam, e lhes feriam impoftas a arbítrio do
pontífice romano.
Era efte o primeiro golpe dirigido á Companhia por uma
audoridade, c]ue ella fem faír do próprio catholicifmo e rene-
gar o feu inflituto, não poderia declarar incompetente ou il-
ludida nas fuás decifões. Os jefuitas em efcriptos numerofos
haviam profeífado a infallibilidade pontificia, durante largos
tempos antes da fua temerária definição no concilio do Vati-
cano. Os feus canoniftas e theologos haviam levado a adora-
ção do pontificado ate ao extremo de afiirmar acerca da fua
omnipotência os abfurdos mais rifiveis. Se a ordem, pois.
I «Nos, qui focietatem praedÍL^am paternis compleélimur afícdibus.»
cl»
não era ainda formalmente condemnada, ao menos um papa
de virtude tão auílera e de tão immaculada religião, robo-
rava em luas novas lettras pontifícias as tremendas imputa-
ções, que lhe fizera no antigo breve Lwnenfa pa/íoriiin, ac-
cuíando-os de fe mefclarem na America em commercios e
ufuras incompatíveis com o eftado clerical. E era tal a boa
vontade no pontífice, que fendo expedidas em fevereiro as
inftrucções ao plenipotenciário portuguez, já no i ." de abril,
com brevidade pouco ufada na expedição dos negócios cu-
riaes em aíTumptos de menor gravidade e ponderação, era
exarado o breve da reforma.
Apenas inveftido no cargo de vifitador c reformador, o
cardeal Saldanha, nomeando por feu adjunífo a Eítevão Luiz
de Magalhães, monfenhor da patriarchal, fe deu preífa em
começar a inquirição acerca dos abufos introduzidos nas
províncias religiofas da Companhia em todos os territórios
de Portugal. A i 5 de maio de lySS ordenava o cardeal vifi-
tador em feu decreto a todos os provinciaes, vice-provin-
ciaes, prepofitos, reitores e mais prelados, e aos fubditos da
fociedade de Jefus, que ao fer-lhes aprefentado eífe diplo-
ma, logo pozeífem cobro, fem o minimo effugio ou pretexto
de delonga, aos negócios, em que andavam envolvidos. O
extenfo preambulo, que precedia a parte decretoria do man-
damento, era uma formal requifitoria fundada em copiolos
textos evangélicos contra os abufos e tratos mercantis, em
que, apezar das expreífas prohibições de Urbano VIII, de
Clemente IX e de Benedióío XIV, os jefuitas fe obftina-
vam tenaciífimos em fazer, como os mercadores expulfos
do templo por Jefu Chrifto, o officio de nummularios, e
de fuás cafas de oração e de pobreza, efpeluncas de la-
drões. Accufava o cardeal publicamente os jefuitas de ac-
ceitar e expedir lettras de cambio, como fe as cafas religio-
fas foífem bancos e efcriptorios de mercadores, c de traficar
cl»
em mercadorias transfretadas da Africa, da Afia c do Novo
Mundo.
A defejada reformação teve o êxito, que defde o princi-
pio fe podéra adivinhar. A Companhia, que fe julgava aíTm-
te vilipendiada pelo feu implacável perleguidor, fez o que
pradicam fempre os que eítáo contendendo rijamente n'uma
luóta politica apaixonada. Não podia abertamente refiftir. II-
ludiu. Chegou em breve a termos o negocio, que o patriar-
cha de Lifboa, D. Jofé Manuel, pelo edital de 7 de junho de
1758, fufpendeu do exercicio de confeíTar e de pregar aos
padres da Companhia.
A poderofa fociedade, offendida em um dos léus mem-
bros mais preciofos e vitaes, qual era a corporação de Por-
tugal, agitava-fe, forcejando por anteparar os novos golpes e
defender a fua integridade. A 3 i de julho o prepofito geral,
o padre Lourenço Ricci, o foberano irreíponíavel de toda a
fociedade, reprelentava a Benedifto XIV, ponderando-lhe,
em termos de aíTedada manlidão e humildade, as iniquas
decifões, pelas quaes os jefuitas em Portugal haviam fido
pelo cardeal viíltador declarados réus de profanas grangea-
rias, e pelo cardeal patriarcha inhibidos de empregar as fuás
melhores armas, as mais acicaladas e certeiras, o púlpito e o
confeífionario. Acrefcentava o prepofito geral que a vifita
commettida ao cardeal Saldanha, em vez de fer útil para a
reforma, fe temia podelfe occafionar difturbios inúteis, efpe-
cialmente nas poífeífões ultramarinas. Mandou o papa ouvir
em Roma fobre a reprefentação do padre Ricci a congrega-
ção dos cardeaes. Opinaram contrariamente á pretenfão dos
jefuitas, e aconfelharam que mantida e refpeitada a autori-
dade e jurifdicção do cardeal viíitador, para elle recorreífem
os jefuitas, que o prepofito geral affigurava tão ottendidos
e aggravados.
173
CAPITULO VIU
A CONJURAÇÃO
Tudo parecia correr á maravilha e ageitar-fe ás efperan-
ças e defejos do miniftro. Tinha no throno um rei, em cuja
confiança vivia radicado, no folio pontifício um papa, que pa-
recia inclinado a robuftecer com o poder das chaves o braço
lecular no feu empenho de abater e humilhar os jefuitas.
A violenta oppofição não fe dava porem ainda por ven-
cida, nem remittia facilmente, antes mais incendia a lanha
perdurável. Os jefuitas haveriam de trafmudar-fe realmente
de homens com paixões e refentimentos em creaturas fobre-
humanas e angélicas, fe não padeceílem cruelmente com o
opprobrio e o defcredito, em que do auge do feu grande es-
plendor os tinham precipitado as providencias decretadas,
fob a infpiração do miniih'0 inexorável, pelos dois purpura-
dos portuguezes. Eram ainda havia pouco os religiofos de
maior fama e auíforidade. Tinham de fua mão a confciencia
do monarcha. Confundindo na regia confciencia os negócios
profanos do governo com a falvação do feu coroado peniten-
te, podiam fubordinar á fua influencia ecclefiaftica as mais
graves razões de eftado. Eram confultados pelo Ibberano na
folução das queftões mais efpinhofas'. Um dos mais terriveis
I «11 Ibvrano ne avea troppa ftima. AUevato da eíli penfava alia loro ma-
niera e voleva in tutti gli affari íentirc il configlio dcl P. Moreira fuo confes-
fore." Vita di Seb. Ghifeppe di Carvalho e Mello (efcripta por jefuitas, ou fob
a fua infpiração), tom. 1, pag. 100.
"O ódio, que aquelle miniílro (Carvalho) lhes tinha (aos jefuitas) nafcia
do grande credito e influencia, que elles tinham no animo d'el-rei: que ... ti-
nha por coftume . . . encommendar a feu confeflbr negócios de fumma ponde-
ração, coufa que não convinha ao minilíro, que entendia governar f ó . . . a fu-
ga dos religiofos do Maranhão, o grande commercio, que faziam no Brazil,
174
inimigos de Carvalho, o au6tor de uma larga e diffufa refu-
tação da fentença proferida contra os Tavoras, affirma com
fegurança que o jefuita Jofé Moreira, confeíTor do rei e da
rainha, gofára da mais ampla amizade e confiança do monar-
cha, fendo pouco menos que leu primeiro miniftro'.
O povo ignorante ainda havia pouco reputava os jefuitas
fervorofos evangelifadores, indemnes de toda a fombra de
peccado, ignorando que na fua apparente fimpleza e humil-
dade a roupeta encobria e recatava as ambições immodera-
das, e muitas vezes egualava ou excedia a purpura dos gran-
des potentados. A elles fe podia accommodar o que o feu
mais eloquente confocio portuguez havia dito dos que fem
ofíicio de corte e de governo imperam nos monarchas «vali-
do, que fem nome é a maior dignidade, e fem jurifdicção
o maior poderá».
Ainda hontem no paço eram archontes e didadores, na
praça demagogos e tribunos. Ainda hontem eram no púlpito
publiciítas, efcutados com reverencia pelas turbas, no con-
feíTionario curadores das confciencias populares. E agora
eftavam reclufos nas fuás cafas, nos feus collegios, nos feus
noviciados, inhibidos de toda a acção publica, defpojados
das luas armas principaes, repúblicos fem foriiin, eíladiftas
fem fenado. Accufados, offendidos, vilipendiados; engeitados
pela cúria, renegados pela corte, fufpeitos á cidade. Era im-
todas eftas circumftancias levadas ao conhecimento do foberano fizeram com
que elle fe determinaíTe a deixar operar o miniflro conforme entendeíVe.» Offi-
cio do encarregado de negócios de França, em Lifboa, ao feu governo, i.° de
maio de lySg. Quadro elementar, tom. vi, pag. 142 e 143.
' A mentira manifefla por fi me/ma, ou analyfe da fentença proferida em
12 de janeiro de ijSg. É um enorme volume manufcripto de folio, da bibliothe-
ca da Academia das Sciencias, e contém a dcfeza e apologia dos Tavoras e do
Aveiro, que tem por innocentes e beneméritos. E efcripto nos primeiros annos
do reinado de D. Maria I.
2 Vieira, Sermões, part. iii, pag. igi, ferindo da quarta dominga da qua-
resma.
■4^ •-<{>-§*
■ 75
poílivel a conformidade e reíignação em trance tão cuftolb. O
exigir dos jefuitas que affrontados n'uma face oífcreceíTcm
humilhados a outra face ao aggreíTor, era fuppor apagado
fob a roupeta o uhimo brazido das paixões. Os morahftas da
Companhia, os feus famigerados probabihífas, não raiavam
tão alto na obfervancia do Evangelho, antes permittiam a
repreíalia e o desforço neceíTario á própria confervação. Os
feus mais famofos jurifconfultos e profeíTores de theologia
moral, João de Mariana, Leffio, Efcobar, Molina, Laymann,
Bufembaum, e muitos outros dos feus mais celebrados es-
criptores, com as fuás doutrinas acerca do regicidio e da le-
gitima refiftencia á tyrannica poteftade temporal, não eram
os mais feguros confelheiros para influir e confirmar nos op-
primidos a paciência c humildade nas quebras do poder, nos
damnos da fazenda e nos aggravos da honra maculada.
Pode pois aíTcverar-fe, quando mefmo não houveíTe in-
contelfaveis documentos, que nos jefuitas eftaria exacerbado
contra o miniflro, que feveramente, pofto que em legitima
defeza, os oífendêra, um ódio entranhavel e infpirador das
ultimas vindiífas. Tinham os jefuitas entre os fidalgos prin-
cipaes os feus mais fervorofos alliados. A nobreza participa-
va com os focios da Companhia na averfão ao miniftro, que
empolgara fem partilha a audoridade e os excluíra da pri-
vança e da valia, em que cfantes haviam eítado longa-
mente empadroados.
A alta fidalguia de Portugal, como fuccede fempre ás
defapoífadas hierarchias, não podia refignar-fe a erguer-fe
apenas fobre o povo pelos privilégios honoríficos, ou pelas
graças e mercês do foberano. Lembravam-lhe com faudade
aquelles tempos, em que eram quafi eguaes com o imperante
e em que pelo organifmo feudal da fociedade, mais ou menos
diffundido em toda a I-Àiropa chriftan nos feculos da edade
media, lhes cabia uma parcclla conlideravel na publica júris-
^^-^ '^^
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■7Q
dicção e aufloridade. De ricos homens e fenhores infolentes e
quafi abfolutos, com os feus coutos, as luas honras e behc-
trias, com o feu quafi pleno lenhorio nas terras, de que eram
donatários, tinham, pela crefcente confolidação do poder
régio, defcaido mais e mais em fâmulos da coroa, e dis-
putavam no paço pela valia com o monarcha, o que tinham
perdido em direito próprio nas fuás ambições de arrogante
dominação. Podia ter fido em tempos mais antigos a nobreza
uma inftituição hiftoricamente neceíTaria, como organifmo
intermédio entre a anarchia, fubfequente ás invaíoes dos bár-
baros e a fundação de um poder central e unitário. Mas, ao
paíTo que as nações modernas haviam conquiftado cohefão e
unidade, enfeixando nas mãos de um fó dynafta o poder re-
partido entre os fenhores de feudos ou os poderofos donatá-
rios, a nobreza, como corporação politica, em vez de fer útil
aos públicos progrelfos, era um órgão, que na eftructura fo-
cial fe tornara, como dizem os biólogos, dyjleleologico, ou
difconforme ao feu íim primordial. Um novo elemento moral
e económico, uma nova influencia irrefiftivel, fe havia levan-
tado e batia á porta do poder e requeítava o feu logar no
complexo mechanifmo da nação. Os villões e os inalados, ou-
tr'ora defdenhados e opprimidos pelos fenhores, e por elles
avexados com as multíplices impofições territoriaes em pro-
veito das ariítocracias feculares ou clericaes, começavam a
fer agora eíta formidolofa claífe media, que fez a revolução
de 89 e fundou a prefente phafe da humana evolução, á
efpera que de inferiores eftratos fociaes brotem, impetuofos
invalores, os novos defherdados, que a venham fublfituir e
defapoffar.
A nobreza no tempo de Car\'alho, apefar de trazer a li-
bré do rei e de honrar-fe com ella como inlignia de valiofo
privilegio, era ainda arrogante, ambiciofa, indifciplinada. Era
inútil para o bem, mas ainda poderola para o mal. Não era
(tf
'77
como na conftituição feudal da Gran-Bretanha, um mediador
entre as prepotências da coroa e os arrojos dos communs.
Toda a fua intervenção politica fe refumia n'uma fombra
de confenfo nacional na pompofa acclamação e juramento
de cada novo rei, que fubia ao throno. Se não tinha porém
fignificado official, ainda lhe reftavam as memorias das in-
trigas, dos enredos, das ambiciofas confederações, em que
tinha largamente participado durante as efcandalofas com-
petências dos filhos defnaturados de D. João IV. Não pos-
fuia já o direito de fazer leis, mas ainda tinha força para
as defobedecer e defprezar. Não lhe era agora dado influir,
mas ainda podia confpirar.
Carvalho era hoftil á alta nobreza, por um motivo pes-
foal e principalmente pelo feu fundamental axioma de gover-
no. Como a cavalheiro de fidalguia mediana, moderna, de
toga e não de efpada, aírombravam-n'o as arrogâncias, com
que o ingenito orgulho ariftocratico mira com ironia defde-
nhofa os grandes homens, que não tiveram entre os godos
mais illuftres o feu berço immemorial.
O eques romanus não contemplava com bons olhos os
fenadores pertencentes ás famílias nobiliárias, aos filhos da
gens Cornélia ou da Vetiiria. Carvalho diante da nobreza
orgulhofa e infolente era como Cicero, no confulado, o fim-
ples cavalleiro romano, o homem novo, em frente de Catili-
na, o patrício arrogante e perturbador da paz e majeífade
da republica.
Mas eram-lhe particularmente odiofos os magnates, por-
que perante a regia majefiade — legundo o feu diófame, o
único poder n'uma nação, — nenhum elemento focial fe po-
deria alevantar politicamente fobre o nivel rafieiro dos vas-
fallos, cuja funcção era acatar e obedecer. A influencia que
os próceres antigos ainda pretendiam exercer, procurava o re-
formador trafladal-a á clafl"e media; da cortefan ociolidade
178
para o trabalho produítor; dos que tinham por honra o con-
fumir para os que tinham por officio o acrefcentar a rique-
za da nação; do caftello e da efpada para a officina c o tear.
E efte foi um dos grandes méritos de Sebaftião de Car-
valho, como oufado innovador. Egualando a alta nobreza
com os últimos da plebe, perante a fuprema jurifdicção de
um revolucionário deípotifmo, preparava os caminhos, por
onde a velha e heráldica ariftocracia viria a confundir-fe em
breves annos, já fem fignificação, fem valor e fem poder, na
turba dos titulares e dos fidalgos, faídos aos cardumes das
fileiras obfcuras e plebeias.
A nobreza e os jefi^iitas refpondiam com ulura á animad-
verfão, que lhes votava o grande reformador. Contra elle
fi.ibfiítia permanente a confpiração. Empregavam todos os
meios, que podiam empecer ou infamar. Tramavam no paiz
quanto lh'o permittiam os recurfos, de que difpunham. N'elle
divulgavam com mão larga as maliciofas imputações, e tra-
balhavam nos eftados extrangeiros por desfigurar os fiacces-
fos e as intenções do governo portuguez. Aproveitavam aftu-
tamente o defpeito, que nos extranhos produziam as provi-
dencias decretadas para conter e cercear a fua influencia
politica e mercantil em Portugal. Eram principalmente as
duas grandes companhias commerciaes as que lhes ferviam
de bafe e fundamento para eftimular contra o miniftro a
defaffeição dos governos, principalmente do britannico, e dos
negociantes inglezes, que viam diminuto e coar6fado o antigo
trafico, e perturbavam com infolentes reclamações e meneios
turbulentos o curfo regular dos negócios públicos'.
I i.O encarregado de negócios de França em Lifboa, St. Julien, em officio
de 2 de janeiro de 1769, dizia ao feu governo que os inglezes, refidentes em
Portugal, eítavam defcontentes e murmuravam muito contra a perfeguição fei-
ta aos jefuitas, com os quaes tinham grandes e proveitofos negócios commer-
ciaes.» Quadro elementar, tom. xviii, pag. Sbg.
e^»
'79
Aos que, lem dar valor a moralidade e juítiça das acções,
eítão impacientes por algum meio de vigorofa refiftencia
contra um governo por elles odiado, nem fempre é fácil
affrontal-o face a face á luz do dia n'efl:e duello terrível, que
fe chama a revolução. É mais fácil e expedito o nodurno
regicidio que a inlurreição na praça publica. A revolução é
a arma privativa das nações vexadas e opprimidas. A con-
juração é o recurfo dos magnates defapoffados. Na revolução
pleiteia-fe a liberdade e os foros de todo um povo. Na conju-
ração litiga-fe o logar na fuprema audoridade em favor de
poucos homens roidos de ambição e ledentos de vingança e
de poder.
Tinham vifto os defcontentes faír fruítrado o tentame de
começar no Porto a geral conflagração. Era bem que appel-
laíTem d'aquelle cruento e laítimavel defengano para o expe-
diente mais feguro de fazer vacante o folio; do tumulto po-
pular, oufado, patente, exporto aos perigos, para o trabuco
dos ficcarios na cilada noífurna, covarde, cautelofa.
No dia 4 de feptembro de lySS divulgou-fe pela cidade
de Lifboa que D. Jofé fe havia encerrado na fua camará e
a ninguém apparecia por motivo de enfermidade. Corriam
furdamente os rumores de que alguma coufa de mais grave
fignificação fe havia paíTado. As peíToas, que tinham entra-
da no paço, dirigiam-fe ali a informar-fe fobre qual era o
eítado do foberano. Os que podiam ter acceíTo aos gabi-
netes dos miniftros, bufcavam faber o motivo por que o
rei não apparecia, e a rainha e as peíToas da fua familia fe
confervavam retrahidas nos feus apofentos particulares. As
novas, que emanavam do palácio ou do governo, cifravam-
fe em que o rei dera uma queda, e que a rainha adoecera'.
I Officio do encarregado de negócios de França, St. Julien, para o feu go-
verno, de 5 de feptembro de lySS. Quadro elementar, tom. vi, pag. 114.
(Is
4iU
-<[>-§*
180
Entre o vulgo principiaram a ter curfo vozes, que refe-
riam a caufas de outra ordem o encerro do rei e da fua fa-
milia. Ao ouvido fe murmurava entre os do povo, que o
monarcha havia fido em a noite antecedente falteado por
homicidas. Apontavam-fe como andores do crime perpetra-
do os Tavoras com os léus próximos conjundos e aUiados'.
Apefar da cautela e diffimulação, com que Sebaftião de Car-
valho fe empenhava em encobrir o que realmente fi.iccedêra
a D. Jofé, ninguém acceitava como de boa lei as palavras
em que elle attribuia a um defaftre paíTageiro a claufura do
foberano, e a nuvem myíteriofa que toldava os ares do paço.
Os reprefentantes extrangeiros em defpachos fecretos an-
nunciavam ás fuás cortes, que o rei fora ferido gravemente
ao recolher-fe de uma das nodurnas e frequentes aventuras ^
Segundo a noticia official o foberano padecia apenas os effei-
tos de um perigofo defequilibrio. Mas todos fegredavam uns
aos outros que um attentado tremendiíTimo tinha pofto a
poucos paíTos do fepulchro o mantenedor e o patrono do mi-
1 No mais implacável e tremendo libello efcripto contra o miniftro de
D. Jofé, fob o titulo de Vida de Seha/liao Jnjé de Carvalho e Mello, por A.,
manufcripto da Academia das Sciencias, lêem-fe no § 104 eítas palavras, que
fão infufpeitiílimas, porque as traçou a penna vingativa de um contemporâneo,
inimigo odiento de Carvalho: «Logo na manhan feguinte fe divulgou a noti-
cia d'efle fuccelTo, e o povo conftituiu auítora d'efle deliíto a familia dos Ta-
voras. O fundamento era grande, a caufa notória, o juizo verdadeiro».
Ainda fáo mais figniíicativas e terminantes as feguintes palavras do meímo
implacável inimigo de Sebaílião de Carvalho: "Permanecia (o rumor publico)
contra aquella familia (dos Tavoras). E já paíTava como indubitável (o crime)
pelo fobrefalto e inquietação d'eíla familia e feus domeflicos, fendo a perturba-
ção dos feus femblantes a maior prova do delido». Citado manufcripto, S io5.
— Outro ainda mais furiofo inimigo de Carvalho^ e defenfor enthufiaíla da in-
nocencia dos Tavoras e do Aveiro, efcreve textualmente eftas palavras: "F. cer-
to que a poucas horas do referido infulto, começaram em Lif boa a publicar
que eram os fenhores Tavoras os aggreffores do execrando infulto». Mentira
manifejla, manufcripto da Academia das Sciencias.
2 Officio do encarregado de negócios de França em Lif boa, de 12 de fe-
ptembro de 1758. Quadro elementar, tom. vi, pag. 11 5.
«1» 4*
niílro omnipotente. O decreto, em que D. Jole commettia a
fua efpofa a regência do reino durante a fua doença, attes-
tava, fem admittir a menor dubitação, que o rei ficara inhi-
bido inteiramente da minima applicação aos negócios do
governo. Apefar da ardilofa diffimulação, com que o minis-
tro, alfedando a mais imperturbável ferenidade e confiança,
bufcava encobrir e recatar o que realmente fi.iccedêra, fe-
gredava-íe que o rei ao paíTar ás onze e meia da noite junto
de Belém, em fitio ermo, de homicidas poftos em cilada
recebera dois tiros de bacamarte, que o feriram na efpadua
e braço direito. Dizia-fe que eram leis os criminolbs, e que
efperavam a cavallo o Ibberano em feu regreíTo ao paço de
Belém'.
Era a primeira vez que em Portugal acontecia um regi-
cidio. Não eram n'aquelle tempo tão frequentes os attenta-
dos contra a vida dos chefes fupremos das nações, como os
temos prefenceado no feculo prelente. A fua extrema rari-
dade e as idéas politicas dominantes não faziam apenas d'es-
tes crimes um aífijmpto de laflima e reprovação, infundiam
ao contrario um lentimcnto indeícriptivel de horror e abomi-
nação. Agora fão apenas um homicidio, uma culpável trans-
greíTão do principio generofo de que deve fer inviolável e
fagrada a vida humana, a dos humildes ou dos foberbos,
dos grandes ou dos pequenos, dos reis mal endeufados nas
purpuras ephemeras, ou dos pobres mal enroupados nas
veftiduras da miferia. Então era um parricidio, mas dos
parricidios o mais atroz, que eftava bradando ao céu pela
vingança mais cruel e pela mais excruciante expiação. O rei
é hoje um homem, era então um femi-deus. A adaga bran-
dida hoje contra um fimples mortal é tão criminofa e imper-
1 Citado otlicio de St. Julicn, encarregado de negócios de França em Lis-
boa.
182
doavel no fentimento univerfal, como a cufpide vibrada a
um peito, que refpira fob arminhos. O trabuco desfechado
então contra um foberano era como íe o homicida o apon-
tara ao coração da pátria e da nação. Hoje a Ibciedade lafti-
ma e deplora o crime ou o fanatifmo dos ficcarios, e paíTa,
e move-le e caminha, como um exercito, que deixa á re-
taguarda os que foram perecendo nos combates. Então a
focicdade eftremecia nos mais foHdos cimentos, como fe a
própria natureza entraíTe novamente em tremendos paro-
xifmos. Hoje um rei é um fupremo funccionario entre cida-
dãos já hvres e maiores, como nas monarchias europêas h-
beraes, ou entre lervos, c[ue facodem as ferropeas, como na
Ruffia eftremecida peias convulfões do nihiHfmo. Então o
rei era uma creatura quafi preternatural, participante pela
uncção na divindade. Matar um homem era um crime, ferir
um rei, um facrilegio. Matar um homem um peccado, ferir
um rei quali um deicidio. Diante de um rei o povo proftra-
va-fe em adoração, os grandes curvavam-fe na idolatria, os
miniífros ajoelhavam no defpacho, os lacerdotes incenla-
vam-n'o com os thuribulos, e todos celebravam perenne-
mente a ília immortal apotheolb.
Somente Carvalho e os léus collegas no governo eram
depofitarios do legredo, que o rei lhes confiara e d'elle não
deixavam traníluzir o minimo villumbre'.
Defde os princípios de feptembro até g de dezembro
houve campo largo para que o vulgo canlaíTe a phantafia
em anciofas conjeduras. Porém n'aquelle dia o rei por um
decreto communicou aos feus vaíTallos que a lua reclulao de
cerca de três mezes tinha fido o effeito de um atrociíTimo
attentado, em que havia perigado a fua vida. N'eíl:e docu-
mento hiftoriava como recolhendo-lc a 3 de feptembro pelas
I Appenfn 4.° da contrariedade ao libello, '^ 49.
CM
, i83
onze horas da noite para o paço de Belém, ao paffar pelo
campo, que feparava da regia habitação a quinta do meio,
três ficcarios a cavallo, poftados cm cilada junto d'ella, ha-
viam difparado os bacamartes contra a fege, que o levava,
fazendo os tiros não fomente grandiíflmos eftragos na viatura,
fenão também produzindo no foberano feridas graves. De-
clarava D. Jofé que por aquelle infulto horrorofiílimo fica-
ram «barbara e facrilegamente oífendidos todos os principios
fagrados do direito divino, natural, civil e pátrio, com um ge-
ral horror da religião e da humanidade». Encarecia o rei o
amor, a gratidão e fidelidade portugueza ao leu monarcha, e
a urgência de aquietar tão louváveis fentimentos pela prom-
pta expiação de tamanho crime. Incitava com prémios avul-
tadiíTimos a fecreta delação contra os culpados. Promettia
conferir a nobreza aos denunciantes plebeus, e acrefcentar
nos foros immediatos, ou galardoar com titulos nobiliários
os que foíTem já fidalgos, á proporção e medida dos feus
graus. Egualmente declarava, alem d'efi:es alicientes, que
haveria de galardoar os delatores com mercês pecuniárias,
coUação de ofificios públicos e doações de bens da coroa e
das ordens militares. Elias promeíTas comprehendiam os
próprios conjurados, que não foíTem os cabeças principaes
da confpiração. Eítimulava-fe com attradivos femelhantes o
zelo das juítiças que prendeffcm os criminofos. Eftatuia-fe
que a delação, em calo tão execrando, ficava immune de
toda a infâmia e villania. E — taes fão as blafphemias contra
a moral nos governos de fombrio defpotifmo — proclamava
o terrível legiflador que nem os vínculos mais íagrados e os
mais conjunétos parentefcos, difpenfavam a ninguém de ac-
cuíãr leu próprio pae ou de entregar á fanha dos algozes os
filhos mais dilcílos. E dava o rei como fundamento d'efl:a
excepção aos deveres da natureza, que acima dos pães eftava
o rei, pac commum e univerfal de todo o povo. Creava-fe
184
juiz da inconfidência ao doutor Pedro Gonçalves Cordeiro
Pereira, defembargador do paço, chanceller mór, fervindo
então interinamente o fupremo officio judicial de regedor
das juítiças. Apparecia pela primeira vez o juizo da inconfi-
dência, tremendo tribunal inítituido para julgar com forma
extraordinária de proceffo os crimes de lefa-majeftade; trifl:e
e laftimofa renovação d'aquellas nefaftas judicaturas, que
em Inglaterra fe haviam denominado Court of High Com-
nii[fion, e Star Chamber ou camará eftrellada, e fe tinham
antecipado, com maior reprovação e egual crueza, ao tribu-
nal revolucionário durante a Convenção.
Antes, porém, que fe houveíTe publicado o decreto, em
que o rei annunciava o regicídio, haviam-fe tomado as pro-
videncias para colher ás mãos os que appareciam indiciados
como réus. Apenas D. Jofé pôde erguer-fe do leito, onde, fe-
gundo as confiíTões do feu miniftro, jazera por efpaço de três
mezes, «fempre com o perigo de morte diante dos olhos'»,
mandou lavrar e aíTignar os decretos, pelos quaes fe com-
mettia a nove defembargadores o encargo de prender os cri-
minofos, e fez expedir a vários officiaes a ordem de preítar
o auxilio da força militar para que fe executalTem as prifões.
Já antes o miniftro havia concentrado na capital algumas
tropas, alem da guarnição habitual.
No mefmo dia, em que faia á luz por editaes fixados nos
logares públicos o decreto de 9 de dezembro, uma ordem
fuperior prohibia que ninguém fe aufentaífe de Lifboa, fem
que primeiro fe qualificaífe perante um defembargador.
Adoptavam -fe as providencias mais eftreitas para que peíToa
alguma faíífe da cidade á excepção dos que tiveíTem permis-
fão d'aquelle magiftrado.
Poucos dias depois, a 1 6 de dezembro, o juiz do povo e
«is
Appenfo 4.° da contrariedade ao libello, ^ 48.
i85
cafa dos vinte e quatro, como delegados da gente popular,
dirigiam a el-rei uma reprefentação, em que, encarecendo
como vaíTallos fideliflimos a enormidade e facrilegio »de uma
offenla feita, diziam elles, ao ungido do Senhor, lhe agrade-
ciam a honra, com que tratara os mandatários da cidade e
acolhera os feus finceros votos, fignificativos da fua devoção
e fidelidade. Pediam ao foberano que, fufpendendo os effei-
tos da fua clemência, mandaíTe pôr a tormento os indicia-
dos, e depois de convencidos e julgados como réus, foíTem
declarados peregrinos, extrangeiros, para que nunca mais
fe dilTeíTe portuguez, quem não fofle leal ao feu natural le-
nhor e rei » .
A taes extremos de infana c abjeda fervidão inclinam
fatalmente as trevas adenfadas n'um povo inconfciente da
liberdade, pelas funeftas influencias de um ciofo e diuturno
defpotifmo.
A 1 3 de dezembro os defembargadores e magiífrados
procediam ao arrefto dos culpados. Logo Sebaftião de Carva-
lho fez expedir aos prelados diocefanos e aos generaes gover-
nadores das armas na corte e nas províncias as cartas regias
em que le noticiava o attentado. Era grande nos cfpiritos
a agitação. A cidade de Lifboa, depois do terremoto, não
fentira ainda tão vehemente commoção. Durante os mezes
que decorreram defde os primeiros dias de feptembro até
princípios de janeiro, o miniftro de D. Jofé bufcára defenre-
dar em fegredo impenetrável os fios da trama fanguinofa
que fe eftivera urdindo contra a exiftencia do foberano. De-
pois de publicado o regicídio, o proceffo correu breve, rapi-
diffimo. A 4 de janeiro de lyScj publicava-fe o decreto, que
definitivamente inftituia o tribunal, que haveria de julgar os
regicidas. A lei criminal d'aquelle tempo cifrava-fe na orde-
nação filippina do livro quinto, código fevero, crudeliífimo,
porém não melhor equilibrado entre a mifericordia e a jus-
(Is
i8õ
tiça, a humanidade e o rigor do que a legiflação penal con-
temporânea das nações mais cultas e illuminadas, fem ex-
ceptuar a própria livre Gran-Bretanha, onde ainda no pre-
fente tranfparece no direito penal a cada paíTo a barbárie e
a crueza da edade media. A lei confignava o principio de
que o rei era o único juiz para julgar os que de palavra o
offendeíTem, e podia exercitar a fua judicatura criminal ou
por li melmo ou delegando-a nas peffoas, a quem efpecial-
mente commetteíTe o exame e condemnação'. Era omiíTa
acerca de qual era o tribunal, que devia fentenciar os réus
de um delifto mil vezes mais atroz do que a maledicência
ou a calumnia. Do filencio da lei parecia deduzir-fe que o
rei era egualmente o juiz excluíivo no crime, que então fe
julgava nefandifllmo, no que fe capitulava de mais execran-
do parricidio. O foberano, fem tranfccnder os limites da or-
denação, ainda que não fe houvera conftituido fupremo e
irrefponfavel diftador, podia pois nomear a feu talante os
magiftrados, que haviam de conhecer do attentado. Ponde-
rava-fe que em todos os crimes de lefa-majeftade, ainda
quando os réus, como no cafo do duque de Vizeu e do con-
dcftavel feu irmão, eram peffoas mui conjundas ao fangue
régio, os juizes não excediam nunca a três ou quatro-.
Contra eftes precedentes advogavam porém as correcções
feitas á lei ou á tradição pelos novos coftumes fociaes. De-
cretou-fe que o tribunal foffe comporto de togados numero-
fos e que ao julgamento preíidiffem, mas fem voto, os fecre-
tarios de eftado, que então eram Sebaftião de Carvalho, D.
Luiz da Cunha eThomé Joaquim da Cofia Corte Real. Eram
juizes os defembargadores do paço Pedro Gonçalves Cor-
deiro Pereira, já nomeado juiz da inconfidência, o qual fervi-
• Ordenação, liv. v, tit. 7, Dos que di^em mal de el-rei.
2 Appenjo 4.° da contrariedade ao libello, % í\-
'8/
ria de relator do proceíTo, e João Pacheco Pereira de Vafcon-
cellos que havia fido prefidente da alçada para julgar os réus
do tumulto portuenfe; o doutor João Marques Bacalhau, do
confelho da fazenda; Manuel Ferreira de Lima, deputado
da mefa da confciencia e ordens; o doutor Ignacio Ferreira
Souto, defembargador dos aggravos da cafa da fupplicação;
o doutor João Ignacio Pereira Dantas, corregedor do crime
da corte e cafa; o doutor António Alvares da Cunha e Araú-
jo, corregedor do crime da corte ; o doutor Jofé da Coita Ri-
beiro, procurador da coroa, o qual haveria de exercer as
funcções de fifcal ou promotor; e o doutor Jofé António de
Oliveira Machado, defembargador da cafa da fupplicação,
nomeado efcrivão do proceífo.
O decreto, que inftituiu o tribunal, foi feguido por outro
da mefma data (4 de janeiro) pelo c;[ual foi nomeado pela
coroa defenfor único de todos os réus o defembargador Eu-
febio Tavares de Siqueira, tendo por commiífão allegar de
fado e de direito quanto foífe conducente á defeza dos cri-
minofos, para que, dizia o decreto: «a juítiça e a mifericordia
fe confervem fempre no jufto equilíbrio, que faz fempre o
impreterível objedo das minhas reaes difpoíições » .
Contemplado á luz dos modernos princípios do direito
criminal, depois que a liberdade e a civilifação adoçaram os
coítumes e as leis, feria altamente reprehenfivel a conflituição
do tribunal, e a parcimonia da defeza. Hoje os tribunaes
preexiftem ao crime ou ao delido. Mas n'aquclle feculo, em
cafos extraordinários, o juiz era defignado pelo rei depois
de perpetrado o malefício. Era dura, cruel, inconfiftente com
a verdadeira jufliça e liberdade uma femelhante ordem judi-
ciaria. Mas a liberdade não exiftia, antes cm logar d'ella
predominava fem rival o mais defaflfogado abfolutifmo. Hoje,
ainda quando a lei é fevera com os ados criminaes, e deixa
perceber que tem de humana o que a juftiça pôde conceder
tis
188
e a clemência advogar, vê-fe que é feita por homens contra
homens, não por inclementes domadores contra feras racio-
naes. Então era o contrario cabalmente. O legillador mais
confiava no terror e na crueza do que na pena accommoda-
da á graveza do delifto. Hoje a lei penal tem por fim a ex-
piação e a emenda. Então era o terrível inftrumento do ódio
e da vindiíta focial. Hoje a lei condemna e chora. Então es-
pedaçava o criminofo, e rugia como um tigre, encravadas as
garras fundamente nas entranhas da proa defgraçada.
Quando um monarcha abfoluto ou parlamentar eftreme-
ce no feu throno, julgando que lh'o querem com a exifl:encia
derribar, não ha expediente que lhe pareça cru ou defho-
nefto. Tanto em noffos tempos fão raros os foberanos, que
refpondam com a generofidade e a clemência ao punhal ou
ao trabuco do homicida. Não queiramos pois retrotrahir ás
epochas do paliado abfolutifmo o que ainda hoje é quafi
defufado nas mais illuminadas e benevolentes monarchias.
Defde que o tribunal fe conftituiu, foram contínuas as
feíTões. Trabalhavam os juizes noite e dia para apurar as cir-
cumftancias do attentado, coUigir as provas criminaes, difcer-
nir quaes foram os cabeças e os cúmplices da tremenda con-
juração, quaes os fautores e os agentes do crime premeditado.
A I 2 de janeiro proferia o tribunal fua fentença, em que
foram unanimes os julgadores. Firmavam-n'a os três fecre-
tarios de eftado, que haviam prefidido ao tribunal, e os des-
embargadores Cordeiro, Pacheco, Bacalhau, Lima, Souto e
Oliveira Machado, fendo preiente o procurador da coroa,
Jofé da Cofia Ribeiro. No dia immediato o mefmo tribu-
nal, deferindo á fupplica do juiz do povo e cafa dos vinte e
quatro da cidade de Lifboa, havia por defnaturalifados os
réus, que na vefpera tinham fido condemnados, e os declara-
va peregrinos, vagabundos, não pertencentes a nenhuma fo-
ciedade civil, c privados da naturalidade e denominação de
e|9
189
portuguezes. As peíToas, em quem recaíam as duas tremen-
das condemnaçóes, eram Joíe Mafcarenhas, que havia lido
duque de Aveiro; Francifco de Aflis, outr'ora marquez de
Távora; Leonor Thomazia, outr'ora marqueza do mefmo ti-
tulo; Luiz Bernardo, primogénito dos Tavoras, que também
fora marquez ; feu irmão Jole Maria, que havia fido ajudante
de ordens de leu pae; Jeronymo de Athaide, outr'ora conde
de Atouguia; António Alvares Ferreira, guarda roupa de
Jofé Malcarenhas ; Jole Polycarpo de Azevedo, cunhado e
focio do antecedente; Manuel Alvares Ferreira, familiar do
antigo duque; João Miguel, leu fâmulo; Braz Jole Romeiro,
cabo de efquadra da companhia de Luiz Bernardo.
O que fora julgado cabeça principal da conjuração, Jofé
Mafcarenhas, foi fentenciado a que, fendo levado a um alto
cadafalfo erigido na praça de Belem, foífe rompido e rodado
vivo, quebrando-lhe o algoz os oífos dos braços. Após efla
cruel execução, feria queimado vivo juntamente com o patí-
bulo, fendo as cinzas lançadas ao mar. Condemnava-o a fen-
tença ao confifco de todos os feus bens, a que foífem derri-
bados e picados os efcudos das luas armas, e arrazados os
edifícios de fua habitação, falgando-fe o terreno em que fe
erguiam.
Eguaes penas applicavam os juizes ao que fora marquez
de Távora, profcrevendo para fempre como infame efte ap-
pellido para que ninguém podeífe jamais afllm cognominar-
fe. António Alvares Ferreira, que fegundo a fentença, havia
fido um dos executores do regicídio, foi condemnado a fer
queimado vivo. Jole Polycarpo de Azevedo, o único d'entre
todos os criminofos que podéra efcapar ás perquifições da
juftiça real, era fentenciado a egual pena. E porque andava
então foragido ou homifiado, o haviam os juizes por banido,
e promettiam á peífoa, que o levaífe ao juiz da inconfidên-
cia o premio de dez ou vinte mil cruzados, fegundo foífe
4eii ■
_ -ò^
iqo
apprehendido em terras portuguezas ou extrangeiras. Os dois
irmãos Luiz Bernardo e Jofé Maria de Távora, Jeronymo
de Athaide, Braz Jofé Romeiro, João Miguel e Manuel Al-
vares Ferreira, tiveram por caftigo o ferem eftrangulados,
romperem-fe-lhes os oífos dos braços e das pernas, e ferem
depois rodados os feus corpos e lançadas ao mar as cinzas,
a que o fogo os reduziífe. A marqueza de Távora, fegundo
fe lê na fentença, por algumas juftas confiderações, que fe-
riam provavelmente as do leu fexo, contentou-fe a terrível
juíliça monarchica em que foífe publicamente decapitada, e
depois de queimado o leu corpo, fe arrojaífem ao mar as
cinzas execradas.
Alem d'eí1:as cruéis expiações eram a todos os réus con-
fifcados os feus bens, derribados e picados os braloes dos
que eram nobres, arrafadas a todos as próprias habitações,
e decretada a infâmia perpetua e indelével para a fua des-
cendência e geração.
A cruentiíTima fentença foi cumprida no dia 1 3 de ja-
neiro, na praça de Belém. As providencias militares mais ri-
gorofas fe haviam adoptado para a fegurança do fupplicio.
Dois regimentos de infanteria, um da guarnição de Lifboa,
o outro de Campo Maior, logo ao amanhecer eítavam porta-
dos no logar da execução. Dois regimentos de cavallaria, que
eram o do cães, e os dragões de Aveiro, formados em ba-
talha aos lados d'aquelle recinto, deítacavam piquetes, que
nas boccas das ruas impediam o tranfito á multidão. Fora
o marquez de Marialva, parente e familiar dos padecentes,
quem ordenara todas eífas militares difpofições, como go-
vernador das armas da corte e província da Extremadura.
Todos os corpos da guarnição eftavam de prevenção nos
feus quartéis. As rondas dos bairros em Lifboa vagavam
pela cidade, vigiando e inquirindo as gentes, que paíTavam,
e obftando a que ninguém fe encaminhaífe para Belém.
eis
'9'
Principiou a execução dos criminolbs pela marqueza de
Távora antes das fete horas da manhã, e terminou o laíti-
mofo e atrociíTimo efpccftaculo pelo íupplicio de António Al-
vares Ferreira, pouco antes das quatro da tarde. Nove horas
longas, pefadas, dolorolilTimas para os próprios, que affiftiam
por officio áquella fcena de fangue e de tormento, durou a
tremenda expiação. Parece que os homens, que em tempos
felizmente já paíTados, inventaram cm códigos nefaftos as
mais atrozes leis penaes, fe eftiveram deliciando a reprodu-
zir na terra em funeftas miniaturas as pavorolas punições
refervadas aos mais impenitentes peccadores pelas poten-
cias de Aftaroth e Belzebut. Somente a phantafia dos myfti-
cos e dos afceticos podia de longe e confufamente nas luas
mais claras illuminações raftrear as horrendas penalidades,
que o inferno apparelhava aos feus precitos. Pois figure a
barbárie dos legilladores e a feveridade dos juizes nas fuás
atrozes execuções uma imagem pallida ainda, mas vifivel
dos tormentos infernaes.
Dividiram-fe n'aquelle tempo as opiniões e os juizos
acerca da grande conjuração. Uns acreditaram cegamente,
como fe fora texto do Evangelho, as palavras da fentença.
Outros perfiífiram em negar com a maior tenacidade a exis-
tência do attentado. Uns eram os amigos e fequazes do go-
verno e também em grande parte a voz publica e popu-
lar, e alguns dos mais cruéis inimigos de Carvalho. Outros
eram os adverfarios façanholbs do miniftro, os afíins e par-
tidários da nobreza e dos jefuitas nas fuás crebras e calum-
niofas imputações, ainda mais ferozes e mais cegos de ira
e de vingança do que o próprio valido, a quem reprehen-
diam a fevicia e immanidade. Ha, porém, um ponto funda-
mental, em que todos fem difcrepancia eítão concordes. É
que o rei D. Jofé foi realmente ferido gravemente, e por
três mezes fe confcrvou reclufo e incommunica^•el. Dos mais
-^ .-A^
e|í ti»
(Is
192
acerbos accufadores do miniftro por elles odiado ferozmen-
te, uns dando por innegavel e provada a tentativa de homi-
cidio, attribuem-n'a claramente aos Tavoras e ao Aveiro".
Outros, aíTeverando que realmente fe commettêra o crime
contra o rei, phantafiaram explicações mais ou menos efpe-
ciofas e de todo o ponto inverofimeis, bufcando comprovar
a innocencia das perfonagens, que foram executadas como
réus ^
A theoria inventada pelos mais devotados apologiftas
dos fidalgos e mais furiofos inimigos de Carvalho cifra-fe
em que os tiros não eram dirigidos ao monarcha, íenão a
Pedro Teixeira, feu intimo confidente e companheiro nas
aventuras amorofas do régio galanteador. Uns querem n'efl:e
cafo attribuir a aggreíTão á vingança do Aveiro, a quem o
fâmulo predileéto e arrogante de D. Jofé havia no paço diri-
gido palavras infolentes, intoleráveis á foberba proverbial do
duque mordomo mór^ Outros dão a entender que á ira dos
Tavoras e do Aveiro contra o rei e feu domeftico valido, não
era extranho o defgofto, que lhes caufavam os amores do
foberano com a efpofa formofa e juvenil do marquez Luiz
Bernardol Mas o tremendo libellifta, que n'um manufcripto
com centenares de paginas exhauriu contra Carvalho quanto
ha de mais injuriofo e infamante, não poude forrar-fe a con-
' Vida de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por A., volume manufcripto
da Academia das Sciencias de Lifboa, ZZ 104 a 106.
2 «O amor da verdade nos obriga a confeffar que no accidente de el-rei fi-
cou gravemente ferido. — Se não houveffe outras provas inconteftaveis de que
fua majeítade foi ferido n'aquella noite, lendo-fe a fentença . . . não haveria
homem de juizo folido e reflexivo, que fe não fentifíe obrigado a crer que tudo
foi uma fabula.» Mentira manifefta ou analyje da fentença proferida em 12 de
janeiro de 17 5 g. — Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, 1781, tom. u,
pag. 3 e fegg.
-' Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. u, pag. 6 e 7 — «Tei-
mam (alguns) que o tiro deu em el-rci por erro». Mentira manifejla.
4 Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. 11, pag. 9.
■ 93
feflar que era duvidofo fe os tiros foram deliberadamente
dirigidos a D. Jofé, ou ao feu companheiro na viatura". Ahi
temos, pois, o mais ardente defenfor dos Tavoras e do Aveiro
dando por fuperior á menor conteftação o attentado, e pondo
efcaíTa fé em que os tiros foíTem dirigidos contra o fâmulo
Teixeira. Chega a tocar as raias do abfurdo que para ma-
tar a Pedro Teixeira os que ardeíTem em furor de vingar
n'elle uma affronta recebida, elegeíTem juílamente a occafião,
em que paffava n'uma fege ao lado do feu rei. Não eram
n'aquelle tempo muito raros os homicídios perpetrados fem
nenhuma efcrupulofa precaução, á própria luz do meio dia,
em lítio povoado. Quem podia impedir pois que tão altas e
poderofas perfonagens, quaes eram os Tavoras e o Aveiro,
confummaíTem a vindida fem que, por um engano inevitá-
vel, á conta de lavar no fangue do plebeu a macula da hon-
ra, fe pozeífem a rifco de oífender a D. Jofé!'
Houve pois uma premeditada tentativa de tirar a vida
ao rei. Partindo d'efte fado fundamental, os apologiftas dos
réus fentenciados idearam nova traça para moítrar inculpá-
vel, benemérita a memoria dos feus miferos clientes. O mi-
niftro, fegundo elles, ardendo em cruel defejo de proítrar
de um golpe decifivo aquelles, contra quem era feroz e
entranhavel o feu ódio, aproveitara a conjuncção, que lhe
deparava a fua fortuna, e tecera e urdira uma phantafiada
conjuração, em que levaífe as vidimas imbelles até ao ca-
dafalfo de Belém ^
1 ir A verdade é que el-rei foi ferido n'aquella infaufta noite; fe quem o fe-
riu difparou determinadamente contra elle ou contra outro, c mui durido/o."
Mentira manifefta.
2 Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. ii, pag. i8. — Mentira
manifejla, pafTim. Elle enorme volume é efpecialmente deftinado a demon-
ílrar que toda a conjuração dos fidalgos fomente exiftiu na pjjantafia de Car-
valho, e lhe foi infpirada pelo feu ódio á nobreza e aos jefuitas.
eis
'94
Não padece a menor duvida que a alta nobreza era na
fua maior parte inconciliável antagonifta do miniftro, já
n'aquella fazão omnipotente, e que na guerra íurda, mas
contínua dos privilegiados eminentes contra o homem, que
não era alliado ás fuás eftirpes, tinham o primeiro logar os
Tavoras e o duque de Aveiro. Todos os teítemunhos con-
temporâneos, ou fejam de parciaes ou inimigos de Carva-
lho, lao conformes em atteftar as queixas e os aggravos,
que as duas poderofas famílias, as primeiras na hierarchia e
na diftincção nobiliária, não podiam efconder, nem recatar
contra o governo. Mas o governo era, como em todas as
monarchias abfolutas, não fomente o miniftro dominante,
fenão também e principalmente o dynafta, que efpontanea-
mente defveftia a regia purpura e a lançava aos hombros
do privado, conferindo-lhe e roborando-lhe em cada dia
a plenitude do poder. Aggravavam-fe pois os defcontentes
não fó do miniftro, que os afFrontava e impedia de alcançar
os feus defpachos, fe não do rei, que mais fe confiava no
valido, de quafi obfcuro nafcimento, do que nos mais illus-
tres próceres, que tinham com o monarcha o mefmo fan-
gue e geração.
O duque de Aveiro, chefe da mais antiga e opulenta cafa
ducal, das três que havia em Portugal n'aquelle tempo, fo-
licitára com empenhos e inftancias perante o rei que lhe
foífem conferidas as rendofas commendas, que feus maio-
res tinham desfrudado.
Empenhava-fe egualmente, em que o rei lhe concedeífe
a permiífão para contradar o matrimonio de feu filho, o
marquez de Gouvêa, com a irmã do duque de Cadaval. Es-
perava por efte meio, que as duas cafas vieífem a confun-
dir-fe n'uma única familia, mais poderofa e opulenta que
outra alguma em Portugal. Não lograra bom defpacho ne-
nhuma d'eftas ambiciofas pretenções.
eis
■95
Os Tavoras, orgulhofos com a Ília antiga e nohrc origem,
com as honras e diftincções accumuladas por muitos feculos
na fua eílirpe defde tempos quafi immemoriaes, com os
fenhorios encorporados na fua cafa, com as famofas embai-
xadas e os officios eminentes, que os feus avoengos tinham
exercitado, não podiam tolerar com bons olhos, como arbi-
tro fupremo, um homem, que a refpeito do padrão, por
onde aquilatavam a nobreza, era pouco mais c]ue de origem
plebeia e berço obfcuro'.
Attribuia o Aveiro o mau defpacho das fuás pretenções
á malevolencia do miniftro, e não menos á fraqueza do fo-
berano. D'ahi o ódio ao fecretario de citado, que lhe ata-
lhava as azas para voos tão fubidos. D'ahi o mefclar na
cólera contra o valido a ira contra o rei. Em noífos tempos
eftamos vendo a cada paífo nas monarchias parlamentares
os que fe dizem mais acrifolados monarchiftas paífarem
facilmente da oppofição contra os miniftros á guerra decla-
rada contra o rei, que os mantém e favorece, como fe com
elles o vinculara o intereífe commum ou o affefto peífoal.
Que feria pois n'aquelle feculo, em que não havia, longe
do paço, nenhum meio, que ferviífe á oppugnação de um
governo odiado feramente? Em que as leis cerravam o cami-
nho á conquifta do poder, deixando aberto unicamente o ata-
lho eftreito, agro e efcabrofiíTimo da formal conjuração; fen-
da perigofa, que levava n'aquelle tempo ou ao paço ou ao
patíbulo, á privança ou ao algoz? E mais ainda fe o minis-
tro em vez de terçar em favor dos defpachos, que os des-
contentes lhe pediam, os encontrava e diífuadia no animo
do rei?
■ «Sacrificar a fua ambição (pela de Carvalho) aquelles que lembrados da
fua pouco mais que mechanica extracção, não queriam dobrar o joelho á fua for-
tuna.» Mentira mani/ejla.
c|9
19b
Os Tavoras, de feito, afpiravam com empenho a que
a familia afcendeíTe ao faftigio da nobreza titulada, alcan-
çando a fufpirada coroa de cinco florões, a infignia quafi
majeftatica dos duques". O marquez de Távora, Francifco
de AíTis, havia governado a índia como vicc-rei, e tinha aU
preftado alguns ferviços, que não equivaliam certamente aos
do Gama, do Pacheco, do Albuquerque. Chegara a Lifboa
de voha do Oriente, pouco tempo antes do terremoto. Defde
então principiaram as fuás inftancias e os feus defgoílos pelo
ducado, que o rei e o miniftro lhe fruftravam. N'uma car-
ta efcripta por aquelles tempos fentidamente fe queixava de
que o monarcha lhe não deíTe moftras evidentes de reconhe-
cer e galardoar os feus merecimentos e façanhas. A ambição
é nos homens exalçados ás mais fubidas dignidades uma fon-
te inexhaurivel, uma febre, que fe accende mais e mais ao
compaffo das novas acquifições. Mais vezes faz um não, ain-
da que edulcorado com graciofa cortezia, um irreconciliável
inimigo, do que um Jbn benévolo e dadivofo um amigo fiel
e agradecido. E o não, com que o rei refpondia ás inftancias
do feu mordomo mór e do antigo vice-rei, negava-lhes o
defpacho ás petições, e cerrava-lhes o adyto da valia e po-
der, que ambicionavam. O duque de Aveiro era a primeira
e mais alta perfonagem da nobreza. Depois do monarcha e
da lua familia ninguém havia com quem podeíle entrar em
parallclo. No reinado antecedente tivera o fummo poder na
fua familia, quando feu tio Fr. Gafpar da Encarnação gover-
nara como privado e minirtro omnipotente o rei e a nação.
Via-fe agora defapoffado da minima parcella de influencia,
em vez de governar homens, apenas reduzido á honra ines-
' Eítas ambições do Aveiro e dos Tavoras fão atteíladas concordemente
nos efcriptos dos inimigos de Carvalho e panegyriílas dos réus fentenciados.
Veja o manufcripto intitulado Mentira manifejhi. — Vitci di Seb. Giitfeppe di
Carvalho e Mello, tom. 11, pag. i5.
-• «hJ»^
'97
timavel, mas efteril, de reger nominalmente a mordomia.
Não era fácil defabraçar-fc das fuás enraizadas ambições. Os
feus próprios apologilfas deixaram memorado em efcriptos
contemporâneos que elle muitas vezes fe queixava de que
lhe fraudaffem as efperanças e os defpachos. «Não era im-
provável (diz um dos feus mais fogofos defenfores) que elle
tiveíTe concebido uma ira implacável contra o miniftro», que
lhe trocava em amargos defenganos os fonhos de nova gran-
deza e efplendor á lua familia'. Da fanha contra o rniniftro
predilecto, com quem D. Jofé havia quafi repartido o pró-
prio folio, era fácil, era mefmo confequente e neceíTario, pas-
far por uma pautada tranfição para o ódio contra el-rei. O
miniftro era, — dizia a inveja, o dcfpeito, a ambição fruítrada
e inconíblavel, — um tyranno, um monftro, um federado.
Mas o rei, não fomente o mantinha e agafalhava na privança,
fenão que o tinha como fe fora um maftim junto do throno
para o incitar, favorecendo-o, contra os que a elle fe acerca-
vam fupplicantes ou cortezãos. O rei era pois quem appro-
vava as oppreífóes de leu valido e confelheiro, quem tingia
com elle as mãos cruéis nas entranhas das hoftias iniiocentes,
quem vinha confirmar as execuções, e fepultar nos cárceres e
nos ergaftulos as victimas, que lhe apontava o feu miniftro,
quem podendo n'um improvifo volver de olhos afundir no
pó d'onde faira o bandido agaloado, lhe Ibrria complacente,
abdicando n'elle a fua vontade e confundindo com a d'elle
a fua fortuna. Carvalho apparecia como o Sejano da nova
Roma defcaida na extrema e hedionda abominação. Não ha
Sejanos fem Tibcrios. D. Jofé era pois agora refurgido o
cruel e tremendo folitario da ilha de Caprea. O fangue que
caía na cabeça do miniftro refurtia e efpadanava nas faces
do foberano. Era o cafo, em que os doutores da Companhia
' Mcníira niauifcjla.
198
e os moraliftas do probabilifmo haviam pronunciado, le-
guindo a S. Thomás, que era licito, neceíTario, meritório,
expurgar a terra de um monftro disfarçado na purpura e no
diadema.
Houvera um crime fangrento contra o chefe da nação.
As feridas atteftavam que havia certamente um parricida,
como n'aquelle tempo fe appellidava com horror o que punha
mãos facrilegas no feu natural lenhor e rei. Quem eram os
motores e os homicidas? Aqui difcordavam os pareceres, fe-
gundo os infpirava o ódio ou o favor ao miniítro de D. Jofé.
A opinião apontava os Tavoras e o Aveiro. A facção dos ini-
migos e defcontentes do governo lançava á conta de Carva-
lho a odiofa imputação. Diziam que, le a alguém devera
apontar-le o bacamarte, eíTe era o miniftro, e não o rei. Que
le tivera havido conjuração, a vidima deveria de ter fido o
funefto didador, que dominava fem limites, não o monarcha
frouxo e indolente, que lubfcrevia como um fervo aos capri-
chos do fevero potentado. E não penfavam que teria fido
infruduofo o homicidio de Carvalho, porque o rei, que fe
tinha com elle aífociado intimamente em um novo fyftema
de governo, agora mais irritado contra a nobreza e os jefui-
tas, em vez de lhes confiar o poder, que requeftavam, os
havia de punir, como a quem lhe derribara a mais firme
columna do feu throno e o feu mais fiel athleta e defenfor.
Diziam fer impoíTivel moralmente que o Aveiro, a primeira
peífoa da nobreza, o primeiro dignitário palatino pelo feu
oíiicio de mordomo mór, amimado pelo rei com benevolên-
cia e difiincção, fe levantalTe contra aquclle, a quem dera
menagem. Que os Tavoras, ainda que laftimados pela fua
recufa do ducado, não podiam egualmente manchar as mãos
no fangue régio. Mas efqueciam que o duque de Bragança,
D. Fernando, o maior fenhor de Portugal, e porventura de
tocias as Heipanhas, confpirára contra D. João II, porque o
ela
fi|3
Kit)
foberano ciolb da fua autoridade lhe cerceara os léus pode-
res feudaes. Deflembravam que o duque de Vizeu, irmão do
que foi depois rei D. Manuel, le conjurara contra D. João II,
a quem era conjundo pelo langue no grau de primo com-ir-
mão. Não traziam á memoria que n'aquella conjuração ha-
viam incorrido na tacha de traidores alguns nobres cortczãos
da mais clara fidalguia. Sepultavam no filencio que também
o eílado clerical participara na felonia, porque um dos conju-
rados era o bifpo de Évora, D. Garcia de Menezes. Olvida-
vam que o marquez de Villa Real, e feu filho, o duque de
Caminha, parentes de D. João IV, fe haviam contra elle
conjurado. Mettiam no efcuro a confpiração urdida contra o
primeiro monarcha brigantino pelos fidalgos vendidos a Cas-
tella, entrando no leu numero como reprefentando a clere-
zia, o arcebiípo de Braga, n'aquelle tempo a mais eminente
dignidade na egreja lufitana. Simulavam defconhecer que
outros nobres, não menos illuftres pelo berço, fe haviam
conjurado contra D. Pedro II, no intento de repor no folio a
AíTonfo VI, o monarcha de infeliz e efcandalofa recordação.
E não attentavam em que todas eftas conjurações fe tinham
dirigido contra o imperante, deixando elquecidos por impró-
prios da fidalga indignação os feus miniftros e confelheiros.
A p»aixão irracional e facciola, tranfcendendo as raias do
plaufivcl, chegava a imputar a Sebaftião de Carvalho o ter
porventura promovido os tiros ao foberano. Como fe o ho-
mem, cuja fortuna fe fundava na valia e favor de D. Jofé,
podeíTe, por um exceíTo de eftupida loucura, romper o es-
teio e arrimo a que amparar-fe contra a fanha e furor dos
feus contrários.
Se havia, pois, um crime, fegundo o confeífavam os pró-
prios inimigos de Carvalho, quem eram os feus agentes mys-
teriofos? O miniftro? ImpoíTivel. Os vingadores do Aveiro na
pcífoa do terceiro e confidente do monarcha? Os mefmos
1 f
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--0-I-
intereíTados n'efta fútil explicação, a negavam ou a faziam
mais que duvidofa. Os zeladores da honra e primor dos Ta-
voras offendidos e infamados pelo galanteio de D. Jofé á
marqueza, mulher de Luiz Bernardo? Os annaliftas contem-
porâneos, panegyriftas da familia condemnada, o defcrevem
devorando e foffrcndo no filencio a injuria feita pelo rei e a
quebra da lealdade conjugal'.
Não havia então alem da nobreza, dos jefuitas, dos feus
adherentes e feófarios, ninguém mais em quem recaiffem
vehementes as fufpeitas. O ódio, que nutriam contra o mi-
niflro, é um ponto que a hiftoria, firmando-fe em teftemunhos
infufpeitos, pôde affirmar lem nenhuma hefitação. O que
elles principalmente oppugnavam no miniftro era primeira-
mente a fortuna, que o erguera em fuás azas, e íbbre ifto, o
novo fyífema, que havia inaugurado no governo. Contra elle
praguejavam, dizendo de viva voz nas luas converfações e
em fuás querellas, o que os feus parciaes repetiram depois
em feus efcriptos, debuxando a Carvalho como a ignominia
do governo e o opprobrio da humanidade-.
O duque de Aveiro era, fegundo o deixaram retratado
os mais fanhudos inimigos de Carvalho, um homem, que
pelos feus dotes peífoaes, excluia em vez de conciliar a
minima fombra de affeição d'aquelles que o tratavam. Em-
bevecido no feu illuftre berço e dignidade, era foberbo, des-
agradável, mais que defdenhofo, defprezador de quantos fe
1 Vita di Seb. Guifeppe di Carvalho e Mellu, tom. ii, pag. 9.
2 «Com queíli motivi di difguíto erano poço guardmghi ne' loro difcorfi
tanto il duca quanto il marchefe di Távora biafimando la condolta dei miniílro.
... In tutte le corti i grandi foffrono di mal' animo vederfi dominare da' mi-
niftri di ftirpe affai diverfa, e fe affetano per loro dei rifpetto davanti ai fo-
vrano, trovano poi la maniera di sfogare il loro rifcntimento n'elle private
converfazioni: fegnatamente Talterigia, e lagnanze incaute dei duca erano ben
note a Carvalho." Vita di Seb. Giii/eppe di Carvalho e Mello, tom. n, pag. 17
ei8.
lhe acercavam, embora foíTem peíToas qualificadas por officio
ou nafcimento'.
Sobre quaes foíTem as verdadeiras intenções dos conju-
rados, na vacante do throno portuguez, é impoíTivel ou te-
merária a conjeftura. Não parece plaufivel que o Aveiro,
ainda que inluíílado pelo feu régio parentefco, fubiíTe tão
altos os feus voos, que fe enlevaíTe na efperança de lubfti-
tuir a D. Jofé. É mais provável que na traça da conjuração
entraíTe o intento de acclamar a princeza do Brazil, dando-
Ihe por efpofo e por mentor o infante D. Pedro, patrono dos
jefuitas e da nobreza.
Apefar, porém, das fombras, em que fe efcondem os pro-
menores da conjuração, não obítante as ditfufas declama-
ções e narrativas da fentença de 12 de janeiro, é enorme a
probabilidade, que auctorifa a dar por exiftente a fruftrada
confpiração.
O caííigo foi tremendo, a juítiça crueliffima, implacável
a vingança, funeftiíTima a tragedia. Mas n'aquelle tempo e
conforme a fua cruenta legiílação, a lucla entre os que re-
giam e os que afpiravam ao poder, era um combate feroz
de gladiadores. A juítiça perdera defde íeculos o gladio e
a balança, e á femelhança das Menades antigas, corria, fol-
tos e defgrenhados os cabellos, pendcndo-lhe da efpalda a
pelle tigrina, agitando as têas e as antorchas, aturdindo o
ar com os feus rugidos na infrene bacchanal do fangue e do
patíbulo.
Ainda hoje não pôde ler-fe a terrível defcripção dos fup-
plicios de Belém, fem que a mais bota fenfibilidade não fol-
te involuntária um clamor de lailimada compaixão. Aquel-
les verdugos impaíTiveis, que em nome da lei e da juítiça,
■ Vida de Sebajliáo Jofé de Carvalho e Mello, por A., '^ 146. — Mentira
manifejla.
«|9
si» j
na prefença de dois graves delembargadores, quebram com
as marretas, em golpes compaílados, os oíTos dos miferaveis
padecentes, alTombram de horror e indignação os ânimos
de mais rija contextura. Aquelles homens, que porfiam em
horrorolas contorfões por fugir em vão ás chammas, que os
eftão queimando vivos, reprefentam-fe á phantafia Ibhando
gritos defefperados, que abalam e conturbam as peíToas de
mais duro e aceirado coração. Aquella mulher varonil e ani-
mofa, que fora graciofa, bella, mimofa da fortuna, aquella
mulher, que mantendo no cadafalfo a altiva dignidade, como
fe fora ainda a marqueza de Távora, fabe entre homens,
que defanimam ou desfallecem, entregar ao algoz a fua ca-
beça, como le a confiara á fua dama para lh'a compor e
adornar em noite de efplendido feftim, aquella mulher, que
impera pela altivez, e pelo valor faz emmudecer a natureza,
aquella mulher, na muda eloquência do feu fexo e no appa-
rato laftimofo do ultimo fupplicio, apparece-nos, como fe
do alto do patíbulo proteftaífe contra a barbárie da jufliça e
contra a infame inftituição da pena capital.
Sagremos em nome da humanidade a dolorofa comme-
moração ás vidimas da lei; mas em nome da lei faibamos
lambem defcontar na fevera dureza do miniftro o que per-
tence ás idéas e aos coftumes do feu tempo e ao preceito
imperativo da publica falvação.
Ao minifi:ro de D. Jofé fuccedia o que é commum aos
grandes homens em todos os tempos e nações. Todos fão
feitos de paixão e de talento, de herança e de novidade, de
efpirito revolucionário e de refpeito á tradição. AíTim eram
na religião, Luthero pregando contra Roma e afpirando á
infallibilidade; Calvino divinifando o livre exame e quei-
mando os diífidentes da fua fé ; na philofophia, Voltaire der-
rocando pela ironia a velha focicdade e comprazendo-fe no
convívio da corte e dos magnates; no governo dos ellados,
cl)
Cromwel odiando a realeza, decapitando o Stuart em Whi-
tehall, e cobrindo o leu protedorado com a fombra da rea-
leza; Buonaparte prezando-fe de ter no folo cruento da re-
volução as raizes do leu poder e atando, após dez feculos,
ao feu novo cefarifmo as formulas e os eftylos do império
carlovingio.
Sebaftião de Carvalho vivia e exercitava a fua acção na
fegunda metade d'aquelle leculo portentofo, aílignalado pela
mais fecunda e efpantofa revolução, n'aquella edade, que
fazia a tranfição entre a antiga e a nova Ibciedade, entre o
férreo defpotilmo e a livre democracia. Batiam-lhe na fronte
os primeiros, ainda frouxos arreboes da nova alvorada focial,
mas ainda em torno d'elle fe não tinham diíTipado inteira-
mente os nevoeiros da noite calliginofa, que havia precedido
nos coítumes, nas leis, nas inftituições. Antecipava-fe ao fu-
turo pelas fuás largas e generofas reformações, mas enlaçava-
le ao pretérito pela veneração tradicional a muitas das velhas
idéas Ibciaes. A monarchia abfoluta com a lua diuturna exis-
tência de alguns feculos pelava fobre elle como um grilhão,
de que não fabia defapreífar-fe. Ainda mais, a realeza illi-
mitada em feus poderes, era o único inflrumento das fuás
próprias e audazes innovações. A velha machina, que fó ti-
nha produzido a decadência e a ruina do paiz, era nas luas
mãos, aproveitada fagazmente, a alavanca preífadia, com que
podia fuperar as refiftencias mais tenazes. A legiílação pe-
nal ainda vigente era dura e cruelifllma, fervia-lhc porem a
encerrar na eftriíla legalidade os fcveros expedientes, que
as circumftancias lhe impunham o dever de decretar para
manter em toda a fua pujança a regia audoridade contra as
latentes ou abertas confpirações dos feus inimigos capitães.
A lei punia cruelmente os que punham mãos facrilegas na
peífoa do monarcha. Era pois culpada a lei. Os juizes, tão fe-
veros como o código funefto, faziam d'elle fem viflumbres de
ti»
4» 4»
.i-A- -<>-§-
204
equidade a exada applicação. Se alguma coufa poderiam os
antagoniftas de Carvalho reprehender e condemnar, era fo-
mente que o miniftro não tiveíTe conftrangido os julgadores
a facrificarem á piedade o fentido litteral da ordenação. Mas
o rei, fem cuja confirmação a fentença não podéra executar-
fe, o rei, o juiz lupremo e infallivel, que podéra minorar as
fuás punições, cerrara a fete fellos as fontes da clemência, e
elle, o abfoluto, o omnipotente, que a um puro aceno podéra
defarmar os braços dos verdugos, deixara lentamente con-
fumrnar-fe a tremenda tragedia de Belém. Se em vez de uma
pena merecida juftamente houvera apenas uma carniçaria
jurídica, o rei D. Jofé I era o único ficcario e o miniftro obe-
diente apenas um fâmulo do rei.
A fentença foi cruel, mas a hiftoria portugueza memorava
outras femelhantes execuções contra os mais altivos homens
da nobreza, em antigas e frequentes conjurações. O duque de
Bragança, decapitado publicamente na praça de Évora em
tempos de D. João II; o duque deVizeu, morto ás punhala-
das pelo rei, que deante dos feus próprios cortezãos, exerceu
o olftcio infame de carrafco; o bifpo de Évora, D. Garcia de
Menezes, mettido na cifterna de Palmella, para acabar ali a
vida n'um fupplicio mais atroz que o do arcebifpo de Floren-
ça; o marquez de Villa Real, o duque de Caminha e D. Agos-
tinho Manuel, entregues ao algoz pelo primeiro rei da cafa de
Bragança; os réus da conjuração contra D. Pedro II condem-
nados aos fupplicios mais cruéis, ás chammas, á roda, á fra-
6Iura dos oífos ; eis ahi os exemplos e os didados, que a velha
monarchia em feus fartos de fangue deixara confignados, fe
não para auctorifar, ao menos para efcufar as cruentas repre-
falias da otfendida majeftade contra as conjurações da nobre-
za ambiciofa. Era ainda recente a atrociffima execução de
Damiens, que a 5 de janeiro de 1757 ferira ligeiramente o rei
de França; execução a mais horrorofa, a mais infame, a mais
ftM
205
cruel de quantas a hiftoria regiftrou para eterno opprobrio da
humanidade; execução feita em Paris, em Paris, na metrópo-
le da civilifação e da liberdade, na França de Voltaire e dos
philofophos; execução ordenada por Luiz XV, que pedira
ao parlamento uma vingança memorável. Em parallelo com
o martyrio atroz de Damiens o lupplicio do Aveiro e feus
cúmplices era, apefar de todo o feu horror, apenas uma frouxa
imitação, era quafi clemência e humanidade. Eftavam ainda
vivas as memorias dos frequentes autos de fé, em que cen-
tenas de innocentes ou de loucos tinham expiado na fogueira
a nota de hebraizantes ou feiticeiros. E a hiftoria cortezan
infpirada na corrupção e na lifonja, dera ao coroado algoz
do duque de Vizeu o titulo de príncipe perfeito; ao diíToluto
Luiz XV, ao defpota da crápula e da Baftilha, o fuave co-
gnome de Bem-amado; ao fangrento tribunal da inquilição
pela mais fatanica ironia o nome de Santo Officio. Ainda ho-
je, efquecidas as cruezas dos reis e dos inquiíldores, fomen-
te o miniftro de D. José aos olhos dos que deteftam a fua
memoria apparece hediondamente maculado pelo fangue dos
fupplicios, porque foi o flagcllo da nobreza e o açoite dos
jefuitas.
CAPITULO IX
A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS
Na fentença proferida contra os réus da conjuração pelo
tribunal fupremo da inconfidência, a companhia de Jcfus em
Portugal era clamorofamente denunciada como tendo fido
fautora do attentado. Firmando-fe nas provas teftemunhaes e
nas prefumpções de direito, a que os julgadores attribuiam
a máxima importância, dava-fe como exuberantemente de-
monftrado que os chefes principaes da conjuração haviam
c|3
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206
tido largas e frequentes conferencias com jeiliitas na cala
profeíTa de S. Roque, no collegio de Santo Antão, e nas refi-
dencias dos outros conjurados.
Affirmava-fe que os jefuitas, — depois de terem vivido
em implacável averfão com o duque de Aveiro, quando em
tempos de D. João V tivera illimitada valia e parte no go-
verno o recolledo Fr. Gafpar da Encarnação, — pelo ódio
commum contra D. Jole e o feu miniítro, e na efperança de
repartirem entre ú a influencia no eftado, fe haviam final-
mente congraçado com o principal confpirador e urdido com
elle a trama contra el-rei. Attribuia-fe aos jefuitas, por fado
indubitável, o terem elles, como fáceis cafuiífas, diíTipado
no animo do Aveiro a fombra de um efcrupulo, perfuadin-
do-lhe que nem chegava a fer peccado venial o tirar a vida
ao feu régio e odiofo adverfario. Dizia-fe que os jefuitas,
cooperando com o Aveiro, haviam determinado a marqueza
de Távora a entrar na confederação, eftimulando-lhe a nati-
va foberba e ambição com a exaltação religiofa produzida
pelos feus colloquios Íntimos com o padre Gabriel de Mala-
grida. Narrava-fe que eíte famofo jefuita, cujos exercícios
efpirituaes andavam em grande voga entre a nobreza, che-
gara a dominar com império abfoluto no animo da Távo-
ra, que o havia por fanto, penitente e infpirado por divinas
revelações. Citavam-fe como principaes aceeíTores e confe-
Iheiros na fruftrada conjuração, além do Malagrida, os feus
confocios da Companhia, João de Mattos e João Alexan-
dre. Compendiavam-fe todas as ufurpações, que os jefuitas
haviam realifado nos domínios portuguezes do ultramar, es-
pecialmente no Paraguay e Maranhão, e as contínuas ma-
chinações, com que em Portugal inftigando á fedição e nas
cortes extrangeiras á hoftilidade contra a coroa, tinham bus-
cado recuperar a fua influencia no governo, e reconquiftar
a dominação nas terras americanas. Imputava-fe aos jefuitas
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-4>-%-
que depois que el-rei os defpedíra de confeíTores e os pro-
hibíra de volverem mais ao paço, lhes crefcêra com o des-
peito a arrogância e o defdem, com que miravam o Ibbera-
no, confolando-fe com dizer que fe o rei de fi os afaftava, a
nobreza os acolhia e acclamava com fervor. Exprobrava-fe
aos jeíuitas o haverem divulgado em Portugal e fóra d'elle,
como fe fora prophecia e jufta punição de atrozes defacatos,
que feria de breve duração a exiítencia do monarcha, che-
gando a prefixar para feptembro o termo peremptório dos
feus dias. Ainda que a fentença fe alargava diífulamente na
accufação dos jefuitas, e citava fem as individuar as provas,
que nos autos demonítravam a fua autoria ou cumplicidade,
abftinha-fe de pronunciar contra cUes qualquer pena, ainda
mefmo contra os que nominativamente mencionava. Cifra-
va-fe a razão em que, fendo peíToas ecclefiaíticas e, fegundo
o principio venerado n'aquelle tempo, immunes de toda a
jurifdicção e foro fecular, não podiam fer julgados, fem que
fobre tão grave aíTumpto foíTe ouvido o pontífice romano.
Ainda hoje os partidários mais ou menos fervorofos da
reacção religiofa negam terminantes a participação dos je-
fuitas na celebrada confpiração. Entre os próprios adverfarios
alguns ha, que não acham plaufivelmente fundadas as fus-
peitas de que a ambiciofa e irrequieta Companhia incitaífe
com a acção e o confelho o crime contra o rei. É porém
defnatural e improvável que no extremo da indignação, a
que levara os jefuitas o acharem-fe defapoíTados de toda a
influencia no paço e no governo, e ainda fobre iíTo aponta-
dos como réus de tantas execráveis perturbações, ao verem
encaílcllar-fe no horizonte a cerração, que lhes annunciava
imminente e inevitável o ultimo naufrágio, impaíTiveis, refi-
gnados, evangelicamente offerecidos ao martyrio, como hós-
tias immaculadas, aíriítifTem á agitação, que revolvia contra
D. Jofé e o fcu minillro a nobreza vingativa e defpeitada.
208
Quando vemos os jefuitas, no ambiente largo da liberdade,
na França republicana, tendo contra íi as influencias fociaes,
a razão efclarecida, e o efpirito profundamente democrático
do paiz gerador da luz e da revolução, quando os vemos
refiftirem tenazmente contra o governo da republica, envida-
rem todas as armas de acção e propaganda para manterem
o feu pofto e, quaes mineiros oufados e pertinazes, perfifti-
rem na raiz das muralhas fociaes, para minarem o governo
temporal e forçarem a revolução e a democracia a render-fe
e capitular, o que feria n'uma edade e n'uma nação, em que
a burguezia era ainda efcaífamente illuminada, o povo rude,
fuperfticiofo, extranho aos inítindos liberaes, a nobreza ar-
rogante, fanática, agitadora?
Se acreditámos a própria confiífão de um defenfor en-
thufiaíta dos jefuitas, já eram n'aquelle tempo antigas e ve-
hementes as queixas, que a refpeito de Carvalho os das pro-
víncias portuguezas dirigiam ao feu prepofito geral'. Os va-
ticínios do padre Malagrida acerca do próximo fim do rei
fão relatados por um dos mais violentos inimigos do minis-
tro e acérrimo patrono da Companhia. Segundo eíte con-
temporâneo teftemunho, o vifionario jefuita, que fe dava por
divinamente illuminado, pouco antes do regicídio efcrevêra
á camareira-mór D. Anna de Lorena, rogando-lhe preve-
niífe o rei do perigo que talvez em breve tempo feria im-
minente á fua vida^ O próprio Malagrida, interrogado por
Sebaílião de Carvalho, confeíTa haver annunciado a el-rei
o perigofo lance, que teria, e attribue a prophecia a uma
fua devota confeífada, que era, em fua opinião, favorecida
■ Mentira juani/efta oii analyfe da fentença proferida em 12 de janeiro
de ijSg.
2 Vila di Scb. Gitifeppe di Carvalho e Mello, tom. 11, pag. i35. — Mentira
uiani/ejla ou analyfe da fentença, etc.
209
com myfticas e celeftes illuminações '. Não le pôde contcftar
que os jefuitas, ao tempo do regicídio, eram jurados inimi-
gos do governo, e já então irreconciliáveis com o foberano,
que os expulíara do palácio e confentira na fua perfegui-
ção. No eftado, a que chegara a mutua hollilidade, os jefui-
tas, acrefcentando ás antigas machinações no ultramar e aos
meneios para incitar o povo e a nobreza em Portugal os
últimos aggravos recebidos na vifita e reforma já traçada,
eram fatalmente arrebatados na corrente da infurreição, a
que, por jefuitas e por homens, feria impoíTivel, fobrehuma-
no, refiftir. Eram pois agora mais do que nunca incompa-
tíveis com todo o governo profano e temporal. Não podia
haver equilíbrio entre os dois poderes antagoniftas. D'aquel-
les dois animofos ludadores era força que um d'elles na are-
na baqueaífe exânime e proftrado. Haveria em Portugal um
regime defaífombrado de influencias clericaes, tendo por em-
penho fecularifar o governo e a nação, ou continuaria por
longos annos conftituida uma poderofa theocracia, cerrando
o paiz perpetuamente á luz e á liberdade? O miniftro não
podia de um lo jado fundir em moldes novos a fociedade
portugueza, feita á imagem e femelhança dos feus dois ab-
folutos creadores, o régio defpotifmo e a tyrannia clerical.
O feu problema era tornar fecundo, popular, illuminado,
paternal, civilifador, o defpotifmo, relegar a clerefia para os
domínios puramente cfpirituaes, e erigir os marcos divifo-
rios entre o império e o facerdocio, de maneira que o po-
der fecular tiveífe o direito de fuprema infpecção nas cou-
fas religiofas, e o poder facerdotal, fubmiíTo e obediente á
fuprema poteftade, nem oufalTe mefclar-fe levemente nos
negócios temporaes. Os jefuitas eram a guarda pretoriana
do império theocratico. Diffolver eftas cohortes, que a feu
' Vita di Scb. Giufeppe di Carvalho c McHo, tom. ii, pag. i3G.
talante difpunham do poder, era o primeiro paíTo para de
futuro emancipar do jugo íacerdotal o povo portuguez. Vi-
riam depois tempos mais azados e propicios á total abolição
das ordens religiofas, e eftaria eífeituada legalmente a pri-
meira parte da nova metamorphofe focial. Depois, — não o
pôde talvez o minifíro adivinhar,- — o poder fecular, já exem-
pto de partilha, perderia as formas agreftes da monarchia
abfoluta para fe disfarçar nas enganolas apparencias popu-
lares da monarchia parlamentar. Depois o poder, a princi-
pio confubftanciado n'um fó homem, viria a ler, pela na-
tural evolução, a própria acção collediva, foberana, demo-
crática de toda a moderna e livre fociedade. Ora o grande
mérito politico de Carvalho é juftamente o haver iniciado
efte longo proceíTo, em que a nação portugueza fe foi len-
tamente defentranhando da rude cortiça, c]ue a apertava e
conftrangia. Elle deitou na pedra informe e tofca as primei-
ras linhas da efculptura. Defbaftou n'algumas partes com
feguro e próvido cinzel. Outros vieram mais felizes, que
profeguiram na obra começada. Outros virão depois cjue
aprimorem e concertem o defenho. Na fua memorável oíR-
cina tivera por fâmulo e ajudante o delpotifmo. Mas o c[ue
o defpotilmo principiou a efculpir, fó depois d'elle o foube
confummar o eícopro da revolução. Os defpotas, como os
obreiros mufculofos e fortiíTimos, podem cavar profundos
alicerces. Mas fó o povo, o infpirado Miguel Angelo ou o
Bramante revolucionário, lãbe altear nos ares a cúpula fo-
cial.
No mefmo dia, em que os Tavoras, o Aveiro e os feus
confocios feculares haviam lido prelos como rcus, todas as
cafas dos jefuitas á mefma hora, em todo o continente de
Portugal, foram occupadas pelas juftiças com o auxilio das
forças militares.
Os jefuitas exiftentes nas províncias foram claufurados
ti»
eis
nas luas cafas. collegios c noviciados. Impoz-fe-lhes a obri-
gação de não fairem dos encerros, e defendeu-fe-lhes a mí-
nima communicação com as pcíToas feculares. As tropas,
que guardavam os jefuitas apertadamente cuftodiados, não
deixavam a menor duvida de que os focios da Companhia,
fegregados de toda a extranha gente, eftavam realmente en-
carcerados. Os três jefuitas, Malagrida, Mattos e João Ale-
xandre, foram reclufos em eftreitiíTimas prifões como verda-
deiros réus de eftado.Tão promptas e acertadas tinham fido
as providencias adoptadas, que a dihgencia fe pôde effe-
ftuar fem nenhuma perturbação da ordem pubUca, fendo
c[ue os jefuitas ainda tinham numerofos e ardentes partidá-
rios não fomente da nobreza, fenão também do eftado chão
e popular.
A carta regia de ig de janeiro de lySg, dirigida a Pe-
dro Gonçalves Cordeiro, que então fervia de regedor das
juftiças, e outra egual da mefma data ao defembargador
Craafbeck de Carvalho, governador da relação e cafa do
Porto, fummariando novamente os crimes dos jefuitas, or-
denava áquelles magiftrados que emquanto o monarcha não
recorria á fede apoftolica, mandaífem immediatamente pôr
em geral fequeftro os bens da Companhia, fazendo arren-
dar os de raiz, e dando a cada um dos jefuitas um tos-
tão diário para fua alimentação. Uma carta regia circular,
expedida a todos os prelados diocefanos, acompanhava a
copia da fentença proferida contra os conjurados, e um
exemplar do opufculo, em que fe punham de manifeflo as
Ímpias e fediciofas propofições, que os jefuitas haviam di-
vulgado pela penna dos feus probabililfas e doutores. En-
commendava o rei aos bifpos, que pelo feu ofiicio paítoral
trabalhaífem por diradicar o pafto venenofo, que os jefui-
tas tinham miniftrado ás incautas ovelhas do evangélico re-
banho.
tis
4t^
: — ■■ -<>-%^
o opufculo intitulado Erros Ímpios e fediciofos ' era um
tremendiíTimo libelio contra a moral profeffada em livros nu-
merolbs pelos ethicos e theologos da Companhia. Se, como
fe affirmava na fentença e fe repetia no livrinho, os jefuitas
haviam enfinado expreíTamente aos cabeças da confpiração
os perniciofos theoremas, que vinham na obra compendia-
dos, pôde fer porventura ponto conteftavel. Que porém
aquellas opiniões deletérias e corrofivas não fomente de toda
a moral chrilM, fenão da ethica feguida pela antiga e mais
auftera gentilidade, exiftiam cftampadas nos livros mais no-
tórios e vulgares da Companhia, não pôde padecer dubita-
ção. As doutrinas de LeíTio, Bufembaum e outros jeluitas
celebrados, fobre ler permittida a diffamação e a calumnia;
as de Amico e de Navarro, acerca de fer licito o homicídio
perpetrado em defeza da honra própria; a apologia da limu-
lação, da mentira, do falfo juramento e do perjúrio, canonifa-
da nos efcriptos de Sanches e de Toledo, eram denunciadas
e profcriptas com vigor. A defeza dos jefuitas contra aquel-
las terminantes accufações era difficil e efpinhofa, principal-
niente em face das decifões de muitos papas, que ex cathe-
dra haviam condemnado aquellas efcandalofas propofições.
É verdade que nem todos os theologos e moraliftas da eru-
dita fociedade tinham em feus livros enfinado aquellas má-
ximas moraes. Mas era tão extenfo e volumofo o catalogo
dos probabiliftas, e n'elle fe infcreviam nomes tão famofos e
venerados pelos feus confocios na mefma religião, que a
imputação de latitudinarios e relaxiftas, nos pontos mais de-
licados da moral, caía fobre a inteira Companhia, ao menos
1 Erros ímpios e fediciofos, que os religiofos da Companhia de Jefiis enfi-
naram aos réus, que foram jufliçados, e pretendiam e/palhar nos pnvos d'e/les
reinos. Lifboa, na officina de Miguel Rodrigues, fem data, provavelmente dos
fins de 1758.
eia
si»
2l3
tacitamente compromettida nas extranhas propoíições dos
feus doutores.
Por aquelles tempos havia fuccedido no fupremo ponti-
ficado o cardeal Rezzonico, com o nome de Clemente XIII.
Fora aíTumpto á fuprema cadeira a 6 de julho de ij58.
Tomava o leme da naveta de S. Pedro, quando as aguas
revoltas e encapelladas lhe citavam prenunciando fingradu-
ras difficeis, borrafcofas. Com elle novamente renalciam as
luclas, que já durante a edade media haviam aíTignalado
a incompatibilidade entre o eípirito laical, crefcente mais
e mais nas modernas fociedades, e a autocracia efpiritual,
cada vez mais renitente e emhuida na oufada pretenfão de
fubmettel-as á fua tutela e direcção. Principiavam as por-
fiadas contenções, que levaram Pio VI acorrentado ao carro
triumphal da Revolução, que fizeram de Pio VII um lubdito
de Buonaparte, que diclaram a Pio IX o fyllabus, como
fuprema condemnação do moderno penlamento e da nova
liberdade, e na occupação de Roma pela Itália juvenil, una,
liberta e emancipada, defprenderam finalmente do triregno
pontificio a coroa ambiciofa do foberano temporal.
O papa Clemente Xlll não tinha, nem a diicreta piedade,
nem o illuminado entendimento do leu predeceíTor. Defejava
porventura a paz da egreja, mas o leu animo débil e indecilb
não lábia coníervar-fe inacceíTivel ao influxo das facções.
Antes mefmo do leu advento ao folio pontificio, quando as
intrigas politicas do conclave deixavam ainda incerta a elei-
ção, os jefuitas forcejavam por que faííTe defignado para
fijbir á cadeira de S. Pedro um relbluto parcial da Compa-
nhia. Efteve a ponto de ler eleito papa o cardeal Cavalchini,
de cujo patrocínio os jefuitas efperavam o triumpho na lufta
que traziam empenhada. Vindo porém a eícolha finalmente
a recair em Carlos Rezzonico, os jefuitas viram n'elle defde
logo antes um parcial, que adverfario. Rra chegada a fafão
214
accommodada para que junto do novo pontífice agitaíTem
vivamente as fuás ambições, pleiteaíTem com fervor os feus
intereíles, e infamaffem em toda a chrillandade o rei de
Portugal e o feu minlftro.
Sebaftião de Carvalho, em prefença das circumftancias
desfavoráveis, que lhe augurava o novo pontificado e a im-
penitencia da Companhia, não aífrouxava na peleja, nem
remittia o leu vigor. A punição dos jeíliitas, que a fentença
declarava implicados no crime de 3 de leptembro, era no
feu conceito uma neceffidade politica, e um paíTo de grande
fignificação para atteftar ao mundo inteiro, por um acto de
fevera jufi^iça, quão grandes criminofos abrigara no feu
grémio a ordem condemnada. O procurador da coroa dirigiu
a Clemente XIII, a i 5 de abril de lySg, uma fupplica vehe-
mente, na qual depois de compendiar os crimes da Compa-
nhia em Portugal e de allegar exemplos de fe haverem con-
demnado pela mefa da confciencia e ordens os cavalleiros,
capellães e facerdotes das ordens militares, accufados de
confpirar contra o foberano, exorava o fanto padre a que,
feguindo o exemplo de Gregório XIII, concedeíTe beneplá-
cito para que o mefmo tribunal, eífencialmente religiofo,
podeífe julgar a todos os ecclefiafticos, em quem fe provaífe
cumplicidade ou autoria no attentado contra el-rei, e que efta
mefma jurifdicção foífe declarada competente para todos os
cafos femelhantes no porvir.
Por efta occafião o monarcha elcrevia a Clemente XIII
a carta regia de 20 de abril, em que teftemunhava as piedo-
fas contemplações, com que havia procedido em referencia
aos jefuitas, e exhaurido todos os meios para dar talho ás
fuás hoftilidades e efcandalos, e evitar a total ruina de uma
ordem, que fempre nos reis de Portugal havia achado abrigo
e protecção. Defefperava agora o rei de que a Ibciedade,
envelhecida e obdurada nos feus erros, podeífe ter emenda
1.
e reformação, porque a lua corrupção era geral e infita ao
efpirito do feu governo. Via-fe pois coagido a expuUar dos
feus domínios a incorrigivcl Companhia. Pedia finalmente ao
papa fe dignaíTe de lançar a benção apoftolica febre quanto
o governo portuguez acerca da Companhia até aquelle tempo
decretara, e deferiíTe ás inftancias do procurador da coroa.
A carta regia, e a petição do fifcal da coroa foram logo
remettidas ao enviado portuguez junto do papa, e iam acom-
panhadas de uma extenfa pro-memoria, em que defde feu
principio fe deduziam por ordem chronologica todas as mal-
feitorias e enredos jefuiticos durante o governo de Carvalho.
Ao mefmo paífo o minifiro efcrevia particularmente ao re-
prefentante de Portugal, inflruindo-o fecretamente fobre o
modo mais profícuo de encaminhar a efpinhofa negociação.
A egreja era ciofa da fua immunidade, que por uma fraque-
za dos governos tornava as peíToas ecclefiaílicas independen-
tes de toda a jurifdicção commum e fecular. Os jefuitas re-
dobravam de vehemencia na defeza da fua ordem, e na
guerra fem quartel, que tinham empenhada com o eftadifta
portuguez, caufa principal da fua ruina. O papa, concedendo
o que o rei lhe fupplicava, ia entregar á mercê do feu gover-
no os que julgavam fer imprefcriptivel o direito de immuni-
dade. Accrefcia fobre tudo que no cardeal Torriggiani, fecre-
tario de eftado, tinham os jefuitas um follicito patrono, no
padre Lourenço Ricci, prepofito geral, um incanfavel e ar-
guto procurador. Alguns dos próprios defenfores dos jefuitas
parecia defapprovarem no cardeal a fua nimia e indifcreta
parcialidade'. Se o pontifice, porém, defde logo fe declarava
I "11 Cardinal Torriggiani, bcnchc univcríalmentc ílimato per i kioi ta-
lenti e per la fua integrità, era però tacciato da molti di una troppa parzialitâ
per i gefuiti, e rinfamia de' quali non credeva egli difgiunta dalFonorc delia
fanta fede apoílolica» Vita di Seb. Ghi/eppe di Carvalho e Mello, tom. ii,
pag. i6o.
(Is
eis
4-$- ^ ^
216
hoftil ao governo de Portugal, correria o graviíTimo lance de
ver bem depreffa conturbada a paz entre a corte de Lifboa
e o Vaticano, fem que foffe poíTivel adivinhar que turbações
adviriam á egreja, fegundo era inquebrantável e relbluto o
animo de Carvalho, e iubmiíTa ao nuto do miniftro a débil
condição do monarcha portuguez. Do qual bem fe podéra
dizer, como Suetonio efcreve de Cláudio, fujeito aos feus
libertos e miniftros: Noii principem fe, Jed minijínim egit\
A queftão era pois mui agra e efcabrofa. Cumpria que á
firmeza do governo portuguez refpondeíTe a moderação e a
aftucia, a prudência e a perfeverança do feu plenipotenciário
junto da Santa Sé.
Perdia-fe em delongas no entretanto a negociação de
Francifco de Almada com o lecretario de citado pontifício.
Agora cerravam os jefuitas em redor do cardeal Torriggia-
ni, feu encarecido valedor, os empenhos para que faiílem
fruftrados ou illudidos os deíejos do governo portuguez. Di-
vulgavam pela Europa as fuás diffamações contra o rei de
Portugal e o feu miniftro. Invocavam em feu favor todos os
meios, que podiam conduzir a exacerbar terrivelmente o
irritado efpirito do feu incanfavel antagonifta. Faziam pro-
hibir que em Roma circulaífem ou fe reimprimiííem os pa-
peis, que em Portugal fe haviam eftampado para tornar ma-
nifeftas as ufurpações temporaes da Companhia e os deli-
étos e abominações dos feus confrades.
N'efta conjuncção, defefperando o miniftro de que foíTe
poffivel inclinar Clemente XIII a condefcender com o go-
verno portuguez no julgamento criminal dos jefuitas, repu-
tados participantes no regicídio, entendeu que devia aífom-
brar o Vaticano, desferindo o golpe, que defde o mez de
abril tinha fufpenfo, mas certeiro á Companhia de Jefus em
' Sueton., Vitae xii Caefarwu, v. n." 29.
n^ T*
«1?
Portugal. Decretou finalmente que os jefuitas foíTem expul-
Ibs de todo o território portuguez. A lei de 3 de feptembro
de lySg, datada no primeiro anniverfario da fangrenta cons-
piração, declarava os jeluitas «corrompidos e deploravel-
mente alienados do feu fanto inftituto», e pelos feus vicios
inveterados, pela fua endurecida impenitencia, incapazes de
volver á antiga obfervancia da fua primitiva religião. Publi-
cava-os por notórios aggreíTores, rebeldes, adverfarios e trai-
dores contra a peíToa do foberano e léus eftados, contra a
paz publica de Portugal e feus domínios, e contra o bem
commum de feus vaífallos. Ordenava egualmente que foífem
defde logo havidos por delhaturalizados, profcriptos e exter-
minados, e que foífem para fempre expulfos, para nunca
mais voltarem a Portugal. Prohibia com pena capital, que
nenhuma peífoa facilitaífe novamente a fua entrada em terras
portuguezas ou tiveífe com elles communicação oral ou por
efcripto, ainda quando os jefuitas houveífem faído da Com-
panhia para entrarem n'outras ordens ou congregações reli-
giofas. E porque não era equitativo, nem clemente, que as
feveras penalidades infligidas aos jefuitas comprehendeífem
os que fendo nafcidos em Portugal, não houveífem feito
ainda folemne profiífão, nem tiveífem provada alguma cul-
pa, permittia a lei que, fendo-lhes relaxados pelo cardeal
reformador os votos fimples, podeífem confervar-fe em Por-
tugal como fubditos feus e naturaes. Mandava ao mefmo
paífo o legillador, que acerca das tranfgreífóes ao régio edifto
ficaífem abertas e permanentes as devaífas perante os ma-
giftrados civis e'criminaes em fuás jurifdicções, os quaes do
que tiveífem inquirido haveriam de dar conta ao juiz da
inconfidência.
Em cartas regias de 3 de feptembro de 1759 communi-
cou o rei aos prelados diocefanos a lei, que expulfava os je-
fuitas de Portugal. A 6 d'aquelle mez ordenava ao patriarcha
1 F
4tU
2l8
e aos paftores das diocefes, onde havia cafas, noviciados e
coUegios da Companhia, que as egrejas com as fuás alfaias
foííem entregues a peíToas idóneas efcolhidas pelos prelados,
para que ali não defcontinuaílc o culto divino, e os edifícios
e o que n'elles exiftiífe, eftiveífe a bom recado, emquanto
el-rei não houveífe de recorrer á fanta fede para que deter-
minaífe as pias applicações das egrejas, dos prédios e alfaias
outr'ora pertencentes á profcripta fociedade.
D'ahi a poucos dias o cardeal Saldanha, já então patriar-
cha de Lifboa e reformador da Companhia, n'uma paítoral
recendendo fervilmente ao mais puro e devoto monarchifmo,
publicava aos fieis da fua archidiocefe a carta regia com
que el-rei o tinha honrado para lhe participar a expulfão dos
jefuitas. Accumulava o fubmiflb cardeal os textos do antigo
teftamento, do apoftolo das gentes e dos fantos padres e
doutores para demonflrar ás fuás ovelhas que a regia potes-
tade era por Deus inftituida e abençoada, e que aos man-
datos dos foberanos ninguém podia contravir fem incorrer
em eterna condemnação. Exhortava o cardeal os feus dioce-
fanos feculares, e admoeftava ao clero da fua obediência
para que não tiveífe nenhum trato com os religiofos agora
defnaturalizados e banidos. Terminava refumindo em phra-
fes encarecidas e piedofas os méritos de Santo Ignacio de
Loyola c a fantidade e perfeição de feu infí:ituto primitivo.
Era efta fempre, com eífeito, uma nota obrigada e infalli-
vel em todas as tremendas execrações lançadas contra a fo-
ciedade de Jefus. O fundador e patriarcha da profcripta in-
ftituição era, em todos os documentos publicados n'aquelle
tempo, um benemérito da egreja univerfal. Mas os jefuitas,
facudindo o fanto jugo, e convertidos ás mais impuras mun-
danidades, haviam defluftrado e polluido a obra do piedofo
inftituidor. O tronco era viçofo, robufto, falutar. Eram porém
degeneradas as vergonteas, os frudos venenofos. Ao contrario
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219
das arvores communs, a arvore myftica da famola Ibciedade
tinha no céu e na humildade as fuás raizes, na terra e na fo-
berha a fronde, cuja fombra era fatal e deletéria. N'efta glori-
ficação da Companhia cm feus primeiros incunahulos efque-
cia porém ao legiílador e ao prelado, que na requifitoria
intitulada Erros Ímpios e fediciofos fe tinham allegado as pro-
phcticas palavras, em que o bifpo e theologo Melchior Cano,
confeíTor de Carlos V, e o piedofo Árias Montano em tem-
pos de Filippe II, haviam logo no berço da ordem egoifta
finceramente proclamado o feu funefto horófcopo.
Pouco depois que fora publicada a lei expulfando de
Portugal a companhia de Jelus, Carvalho perfeverando in-
flexível e audaz no feu propollto, relblveu expatriar os jefui-
tas. A i6 de feptembro de lySg um navio ragufano conduzia
com deítino a Civita Vecchia cento c trinta e três d'aquelles
religiofos. Em fins de outubro do mefmo anno embarcavam
em Lifboa cento e vinte e dois jefuitas, encaminhados aos
eftados pontifícios, onde o papa os acolheu e hofpedou. A
malicia e a calumnia increparam o miniftro de haver feito
partir defamparados, quafi famélicos, os religiofos da Com-
panhia', mas os próprios capitães, que os levaram em feus
navios, atteftaram por falfaria a injuriofa imputação.
Eífava agora confummado o ado mais vigorofo, com
que Sebaftião de Carvalho até áquelle tempo demonftrára a
fua energia em defenfão da foberania temporal contra as in-
vafôes do poder ecclefiaítico. A Companhia ceifara de exiftir
em Portugal. Reftava confeguir em novas campanhas diplo-
máticas a fua total abolição.
O que Bifmarck na Allemanha, no meio dos trophéus
ainda recentes da máxima viéloria, no cumulo do poder entre
as nações, não pôde confeguir, apefar de uma luda vigoro-
Vita di Seb. Ghifepfc di Carvalho e Mello, tom. ii, pag. 208.
c|3
eis
si»
fa, lidada em muitos annos; o que a França republicana, ins-
pirada nas idéas da moderna liberdade, não alcançou ainda
realifar inteiramente; pôde effeitual-o em breves dias a von-
tade invencível de Carvalho n\ima abfoluta monarchia, em
paiz longamente acalentado pela educação monaftica e in-
quifitorial, perante uma nobreza reaccionária e revoltofa, no
meio de um povo acoftumado a venerar nos jefuitas os fo-
beranos direftores das fuás rudes e timoratas confciencias.
Não queiramos porém perfuadir-nos de que a pugna do
miniftro iníiexivel era apenas contra a famofa Companhia.
Era mais comprehenfivo e largo o feu problema. O feu pro-
pofito era forçar o facerdocio a obedecer no temporal aos
mandatos do império fecular. Era enfrear de vez as mun-
danas pretenfões dos que faziam da egreja, não a efpiritual
e myftica união, a fociedade religiofa dos fieis, fenão o feu-
do ambiciofo das potencias clericaes, não a divina inítitui-
ção encaminhada á celeíte beatitude, fenão um profaniíTi-
mo inlfrumento de auíforidade e influencia nos intereífes
terrenaes. O fim do grande reformador era feparar inteira-
mente do fiel o cidadão, do homem interior o homem
focial, da communhão dos crentes, ligados pelo vinculo da
fé, a fociedade civil, unificada pelo vinculo da lei. O feu
intento era fem duvida levar a reforma religiofa até o ponto,
onde a difciplina ecclefiaftica, mudável ao labor das circum-
ílancias c das epochas, principia a enlaçar-fe com o dogma
e torna inexequível uma ulterior modificação fem alterar
profundamente os princípios capitães da fé chrilfan. Seria
porventura mais do que as eftreitas liberdades da egreja gal-
licana e as fuás quatro celebradas propofições, menos que
a mutação da egreja de Inglaterra pelo ciofo poder de Hen-
rique VIII, quando o antigo adverfario de Luthero, o defen-
for da fé, o audor da Defeca dos fete facrameutos, fem tocar
na dogmática do catholicifmo, fe infurgiu contra o papado
«|3
e fe emancipou da lua juriUiicção, proclamando a real lu-
premacia nas coufas efpirituaes.
Defopprimido de tão obftinados inimigos, quaes eram os
focios da Companhia, abatida a nobreza nos patíbulos, ou
encerrada nos ergaftulos, podia o minirtro innovador conti-
nuar fem ludas inteitinas e íem frequentes conjurações a lua
grande empreza de reformas na condição intelleclual, econó-
mica, civil e Ibcial da íua pátria. Não eftavam porem aquieta-
das, nem dirigidas a bom termo as luas conteftaçóes com o
Vaticano. A neceíTaria, mas violenta expulfão dos jefuitas,
não era o expediente mais propicio a emmudecer os ódios cle-
ricaes ao oufado minilfro portuguez. O papa Clemente XIII,
ainda quando não tora favorável á Companhia, nem efti-
vera circumdado pelos lelantes e partidários da mais larga
reacção, não poderia ver com olhos ferenos e benévolos uma
tal revolução eccleliaílica e um lemelhante golpe de eftado,
qual era a formal diíTolução de uma ordem religiofa em
Portugal e o fequeftro dos feus bens, fem que o pontifício
beneplácito confentilfe, ou approvaffe previamente uma tão
inufitada e extranha refolução.
Emquanto Sebaftião de Carvalho, exacerbado pelos hos-
tis procedimentos dos romanos jefuitas, que bufcavam con-
citar a chriftandade contra o feu antagonifta, precipitava em
Portugal os acontecimentos, em Roma eftava paífando uma
renhida campanha diplomática, na qual o enviado portu-
guez Francifco de Almada feguia pontualmente as inflruc-
ções do miniflro, determinado a impor a lei ao folio pontifí-
cio, ou a romper com elle abertamente ainda a rifco de um
fcifma declarado.
Aprefentára Francifco de Almada a Clemente XIII a
fupplica do rei para que a mela da confciencia e ordens
foífe inveílida na jurildicção criminal contra os jefuitas im-
plicados no regicídio, e as peflbas do clero regular ou fecu-
Í-* *-ò-%^
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lar, que de futuro houveíTem de cair em crime de lefa-ma-
jeftade.
Os jeluitas e os {elaiites, que então influíam poderofa-
mente no animo do papa, empregavam todos os artifícios
e recurfos para mallograr no Vaticano as elperanças e os
defejos da corte de Liíhoa. Em Roma eram publicamente
favorecidos pelo próprio governo pontifício em tudo quanto
podia demonftrar a innocencia dos jeluitas e redundar em
defabono da coroa de Portugal. O regicídio, que tinha levan-
tado em toda a Europa um clamor de geral aflbmbro e in-
dignação, não achái"a na capital do orbe catholico uma voz
que reprovafle os réus ou os fautores d'aquella conjuração.
Prohibia-ieem Roma a reimpreíTão dos papeis e docu-
mentos officiaes, publicados em Lifboa acerca dos jeluitas.
Egualmente le defendia o imprimir-fe e divulgar-fe a fen-
tença da junta da inconfidência, e o diffundir c[uaelquer noti-
cias a refpeito dos lucceíTos em Portugal. Faziam-fe rigoro-
fas perquifíções para defcobrir os audores dos elcriptos, que
em Roma fe eftampavam contra a ordem condemnada. Da
própria chancellaria pontifícal faiam e circulavam p»ela Eu-
ropa documentos, em que hyperbolicamente fe traçava o
panegyrico da Companhia, e fe declarava apenas como um
fruílo da inveja e da impiedade a guerra crueliíllma a uma
tão venerável e benemérita corporação, cujo inlfituto fe ci-
frava em accrefcentar a gloria de Deus e prover por toda a
forte de piedofos exercícios á falvação dos fíeis.
Ainda mefmo quando Clemente XIII não tivera por
fecretario de eftado um cardeal tão fogofo e indilcreto de-
fenfor dos jeluitas, houvera fido ingrata e dolorofa a íituação
do pontifíce romano. Conhecendo a incontraftavel relblução
do miniftro de D. Jofé, e avaliando pelo que já tinha commet-
tido o que era ainda capaz de executar, via immincnte uma
quebra da boa paz entre o governo portuguez e o fummo
4 «Is
pontificado. Repreíentava-l"e-lhe a outra parte o prolpedo
laftimolb de Icenas lemelhantes á que tivera por milerrimos
adores os leculares participantes na punida conjuração.
Conhecia que o acceder ás inliancias de Carvalho era talvez
armar novos patibulos e confiituir a regia audoridade no
Jiís vitae et necis fobre as peíToas ecclefiaíticas, de que fe
podelTe no futuro lulpeitar crime de alta traição. Temia
como pontifice, e talvez deplorava como homem de piedofo
coração, que a didadura judiciaria commettida ao miniftro
vingador cruentaíTe com o langue de no^■as execuções as
vertes facerdotaes. Contemplava os jefuitas, a quem amava,
perleguidos, infamados, ofterecidos ao delprezo e á irriíao
de todo o mundo. Tremia-lhe a confciencia de que, pela fua
lubmiflão aos defejos de CarNalho, vielle porventura a im-
molar os que em fua opinião podiam fer immaculados e in-
nocentes. Ponderava todavia que no Íngreme declivio, em que
o miniftro defcaia para aífrontar abertamente o poder eccle--
fiaftico, e aíTignalar o leu poder com as mais inopinadas
e enérgicas demonftrações, viria finalmente a difpenfar a
intervenção da Santa Sé no julgamento dos criminofos, a
quem a fraqueza dos governos temporaes havia concedido
a immunidade. Seria efta uma nova quebra e delaudoridade
para o fi.tpremo cabeça da egreja. Bem lábia Clemente XIII
que fomente por deferência ao fummo pontifice e em obe-
diência á tradição, careciam os imperantes do beneplácito
apoftolico para fubmetter aos communs juizos criminaes os
ecclefiafticos réus de qualquer crime. Eram numerolbs os
exemplos não fomente de fimples clérigos, mas de prelados,
fobre quem tinha recaído inclemente a vindida das fentenças
leculares. Se o miniftro, oufado e inflexível como era, pedia
ao papa a jurifdicção para um régio tribunal, era confclho
de boa politica na extraordinária fituação, cm que fe achava
collocado. Era precifo disfarçar os golpes mais violentos do
^^^ •^^
(is
eis
224
poder foberano e temporal com as moftras da mais aífeduofa
complacência e filial veneração á Santa Sede, para que os
elpiritos fanáticos não achaíTem pretexto a exprobrar nos ados
de Carvalho a intenção de eximir-le a toda a auctoridade
pontifícia, e converteíTcm em defejo de fciliiia e infurreição
contra a catholica unidade o que era apenas jufta e neceíTa-
ria defenfão dos foros e prerogativas do império.
Clemente XIII com grande lallima, e forçado pelo receio
de um rompimento com a corte de Lifboa, recorreu a um
expediente, que na fua imprevidência lhe pareceu poderia
conciliar por então as diíTidencias, e que era mui ao revez o
novo combuftivel para alimentar o incêndio, que lavrava no
animo agreíte do miniftro. Fez exarar o breve Exponi nobis,
de 1 1 de agofto de lySg, em que fe conferia á mefa da con-
fciencia a jurilciicção para julgar unicamente os eccleíiafticos
envolvidos no attentado contra el-rei, exceptuados os bifpos
e os prelados fuperiores. Na mefma data efcrevia a D. Jofé
duas cartas, em lingua italiana, acompanhando as lettras
apoftolicas. Na primeira interpretava a cúria a feu fabor
o que o governo portuguez lhe communicára na carta regia
de 20 de abril de 1739, dirigida a Clemente XIII. N'aquella
epiftola dizia terminantemente o rei: «Não pude deixar de
apartar do corpo dos meus fieis e louváveis vaíTallos uma
congregação, que tantas, tão cuftofas e repetidas experiên-
cias tem moftrado incompativel com a paz e tranquillidade
publica . . . mandando lair fem a menor dilação os fobreditos
religiolbs d'eftes reinos, onde os lenhores reis meus prede-
ceíTores lhes permittiram a entrada para edificarem, não
para deftruirem » . O rei de Portugal, em vez de fiibmetter á
fancção pontifical a expullao dos jefuitas, como fe fora
apenas um propofito ainda não maduramente deliberado,
denunciava pelo contrario a firme determinação de os exter-
minar, como incorrigível e perigola corporação, qualquer que
225
foíle n'efl;e ponto o parecer do Vaticano. Mas o cardeal
Torriggiani, fingindo ignorar as intenções expreíTas clara-
mente pelo rei, tomava ardilofamente a fuppreffão da Com-
panhia em Portugal como uma queftão propofta á Santa
Sede, para que lhe concedeíTe o beneplácito papal. Agradecia
Clemente XIII a D. Jofé a complacência e veneração, que
lhe moflrava, «pela fabia e religiofa ponderação, com que,
antes de cumprir uma tão grave refolução, julgara de ouvir
primeiro a quem por difpofição da Divina Providencia fe
achava actualmente conítituido no grau de fi.immo facerdote
na egreja de Deus» . Confeffava o pontifice c]ue poderia haver
na ordem dos jefuitas alguns, que houveffem provocado a
regia indignação, mas declarava ao mefmo tempo fer neces-
fario dirtinguir entre as peíToas dos jefuitas e o inftituto que
profeílam. Proteftava com fentidas moítras de finceridade
o feu defejo de que foíTem punidos os culpados. Mas force-
java em perfuadir que muitos deveriam fer os innocentes
n'uma tão numerofa fociedade, que militava em uma regra
de tanta perfeição. Seguia-fe o elogio eloquente da Compa-
nhia de Jefus, a larga enumeração dos feus méritos e fervi-
ços, a memoria da approvação, que merecera a muitos papas,
ao concilio ecuménico de Trento, e aos príncipes temporaes;
a commemoração dos heroes chriflãos, que faídos d'efte
grémio gloriofo eram venerados nos altares, e a muitos dos
quaes o rei de Portugal fagrava uma terna devoção. Reco-
nhecia o papa que o inftituto venerando poderia ter por-
ventura padecido alguma corrupção pela fraqueza ingenita
da natureza humana. Aconfelhava, porém, ao governo por-
tuguez que profeguiíTe na viílta e reforma commettida por
Benedicto XIV ao cardeal Saldanha, e chegada que foífe
ao feu complemento, fe poderiam caftigar os delinquentes
e extirpar da Companhia «tudo quanto lhe podeífe efcurecer
a fantidade e o bom nome». A peroração era encaminhada
226
a perfuadir ao rei de Portugal que acceitaíTe os confelhos
paternaes do lummo facerdote.
Na fegunda carta, efcripta ainda em termos de maior
louvor e cortezia para o Ibberano portuguez, affirmava Cle-
mente XIII que de bom grado concederia á mela da con-
fciencia a Ibllicitada jurifdicção, porque no efpirito da egreja
não eftivera, nem eftaria nunca o lubtrahir os delinquentes de
qualquer eítado ou ordem ás penas merecidas pelas fuás
abominaç(5es. Accrefcentava o pontífice logo em feguida que
a manfidão e o horror aos cruentos fupplicios era egual-
mente um diftinítivo da egreja. Exhortava pois o rei a que fe
fizeíTe mediador entre a mifericordia e a juftiça, fufpendendo
o braço dos verdugos, para que fe não déífe á chriftandade,
e principalmente ao piedofo coração do pae commum dos
fieis, o efpedaculo aífrontofo de ver punido no cadafalfo
algum miniftro dos altares, tanto mais miferavel, quanto
mais réu. E por efta clemência do monarcha lhe antecipava
o pontífice os mais fervorofos teftemunhos da fua gratidão.
A primeira carta era fem duvida um impolitico docu-
mento, mais próprio a exulcerar o animo do rei e a ira de
Carvalho, do que a mitigar as abertas diíTidencias entre
Portugal e a Santa Sede. Proferir o encómio dos jefuitas na
própria conjuncção, cm que o governo portuguez com elles
fe empenhara n'uma luda fem quartel, era levar Clemente
XIII não fó a ver defattendidos e reprovados os feus confe-
lhos, mas a fcr tido por amigo apaixonado e imprudente
da ordem abominada, e quali por feu cúmplice e fautor. Na
fegunda epiftola, porém, o p»ontifice romano mantinha digna-
mente o feu logar. Como obrigado a auxifiar a juftiça tempo-
ral contra os crimes das peífoas ecclefiafticas, via-fe forçado
a armar contra facerdotes o braço tremendo dos juizes fecu-
lares. Mas como vigário de Chrifto, que fempre aborrecera
a effufão de fangue humano, como homem de piedofos fen-
ela
227
timentos e de Iene condição, impendia-lhe o dever de fe
interpor, quaíi de joelhos, entre o algoz e as fuás viítimas,
que pouco antes ainda otfereciam nos altares o incruento
facrificio.
O que ao elpirito de Carvalho fe afigurou, ainda mais
que o breve e as duas cartas, extranho e offenfi-so á majes-
tade e foberania temporal, foi a memoria aprefentada pelo
núncio Acciajuoli, arcebifpo de Petra, a D. Luiz da Cunha,
fecretario de eítado dos negócios extrangeiros. N'efte papel,
que viera de Roma já efcripto, fe commentava a doutrina
do breve e das miíTivas do pontífice a el-rei. Profeílava o nún-
cio ou o cardeal Torriggiani, como um dogma, que as peíloas
ecclefiafticas fó deviam fer julgadas por outras da mefma hie-
rarchia; que o papa teria defejado que um ecclefiaftico de
eminente dignidade, o próprio núncio, ou um cardeal legado
prefidiífe á mefa da confciencia no proceflb dos jefuitas; que
para não dilatar porém a expedição de negocio tão urgente,
difpenfára e preterira todas as difpofições canónicas e con-
fentira finalmente em commetter a um juizo fecular o conhe-
cer dos crimes imputados.
O breve Exponi nobis e as duas epiftolas pontificaes ha-
viam fido de Roma direitamente defpachadas ao núncio de
Lifboa, fem que do feu teor fe houveífe dado conhecimento
ao enviado portuguez junto do papa. Sabia o cardeal Torrig-
giani que Francifco de Almada não acceitaria, para as enviar
ao feu governo, as Icttras apoítolicas na fórma, em que
vinham exaradas.
Carvalho, porém, tivera d'ellas antecipado conhecimento
por um fucccífo extraordinário. O correio pontificio, que trazia
a Portugal a correfpondencia para o núncio de Lifboa, fora
feguido de um correio, defpachado pelo enviado de Portugal.
Enfermando o menfageiro da cúria em Aix de Provença, deu
traças o poítilhão portuguez para que o leu companheiro, inhi-
228
bido de feguir a Ília jornada, lhe confiaíTe os papeis cerrados
e lacrados, de que era portador. Chegado a Lif boa, cntrega-os
defde logo a Sebaftião de Carvalho. Abre-os o miniftro na
officina, em que defde os tempos de D. JoãoV, por indus-
tria do fagaz Alexandre de Gufmão, fe devaffava toda a
correfpondencia dos miniftros extrangeiros em Lifboa, tor-
nando a fechal-a fem nenhum indicio da commettida viola-
ção. Lê os defpachos. Affombra-fe, indigna-fe, enfurece-fe.
Refolve em continente que o rei não acceite o breve injuriofo
á fua independente foberania. Entrega ao núncio a correfpon-
dencia, que de Roma lhe vinha dirigida. Pede o reprefentan-
te pontifício uma audiência para entregar as lettras apoítoli-
cas, remette as copias ao fecretario de eftado. Apraza-fe o dia
em que D. Jofé receberá o núncio, com a expreíTa prohibi-
ção de lhe aprefentar o breve, que não tendo fido communi-
cado a Francifco de Almada, nem com elle concertado, não
pôde fer recebido em Portugal. Infifte o arcebifpo de Petra
em cumprir as ordens do pontifice, entregando a el-rei as let-
tras apoftolicas. Medeia entre o núncio e o governo uma cor-
refpondencia, em que porfiam egualmente, o fecretario de
eftado em manter o decoro da coroa portugueza, o núncio
em depor nas mãos do rei o breve do fanto padre.
Emquanto fe paliavam eftes debates, Sebaftião de Car-
valho meditava contra Roma as fuás terríveis reprefalias.
Procurava o núncio em vão tratar com elle direitamente.
Efcufava-fe o miniftro, não lhe querendo acceitar fequer uma
memoria. De tal maneira fe difpozeram os negócios, que ape-
far de fer recebido em audiência, não logrou o arcebifpo de
Petra que o rei lhe recebeffe o maífo, em que vinham incluí-
dos juntamente o breve pontifício e as cartas particulares.
Ás matérias inflammaveis, que ateavam cada vez mais
o incêndio na queftão dos jefuitas, accrefcia como epifodio
uma nova conteftação entre o governo portuguez e oVatica-
229
no. O arcebifpo da Bahia, D. Jofé Botelho de Mattos, havia
dado provas inequivocas da fua parciahdade em fa^'or dos
jefuitas no Brazil. Carvalho não era eííadifta, que podeíTe to-
lerar, ainda no prelado mais infigne, a defobediencia ás luas
intimações. Incorreu defde logo o arcebifpo no régio defa-
grado. Forçado pela vontade enérgica do miniftro, refignou o
arcebifpado. Aprelentou a coroa de Portugal na fé vacante
o bifpo de Angola, D. Fr. Manuel de Santa Ignez. Era defde
logo manifefto que na corte pontifícia fe não expediriam as
bulias ao novo metropolita. Allegava a cúria não confiar a
renuncia do legitimo prelado.
Taes eram as relações acerbas, quafi raiando em agra e
indómita hoftilidade, em que fe achava a eíla fafão o gover-
no portuguez com o chefe do catholicifmo. De um lado o
ódio entranhavel não fomente contra os jefuitas de Portugal,
fenão contra a indivifa fociedade, do outro o máximo favor
á ordem exterminada. De uma parte a mefma perfeverante
refolução de manter fem quebra, nem limite a guerra come-
çada, da outra o mefmo impolitico propofito de enredar em
delongas diplomáticas, e nas phrafes artificiofas e mellifluas
da chancellaria papal uma difcordia, em que já fe não via
meio de poíTivel conciliação.
Vendo Sebaítião de Carvalho que o breve não refpon-
dia precifamente á petição do procurador da coroa, e que
por meio d'elle não ficava audorifado pela corte pontifícia a
proceder contra novos réus conftituidos em dignidade eccle-
fiaítica, mandou novas inftrucções a Francifco de Almada,
para que expozeíTe a Clemente XIII as razões, que auclorifa-
vam o governo portuguez a negar a lua acceitação ás lettras
pontifícias. Todos eftcs fundamentos foram \igorofamente
fubftanciados na pro-memoria dirigida ao reprefentante de
Portugal junto do papa, em i 5 de feptembro de ij5g. K'efí.e
documento fe referia como o núncio, apefar de reiteradas in-
c|3
timações para que fomente aprefentalTe a D. Jofé as cartas
do pontífice, porém não o breve Exponi nobis, perfiftíra te-
nazmente no feu propofito de o fazer acceitar á corte de Lis-
boa contra a fua expreíTa e terminante negação de o receber.
Proclamava-fe que o breve fendo, como era, contraditório
com o indulto que fe pedia, era forçofamente obrepticio e
fubrepticio, exarado em nome do paftor fupremo fem o
feu conhecimento. Pedia-fe a mais completa fatisfação aos
aggravos n'efl:e aífumpto recebidos pela coroa de Portugal.
Queixava-fe o governo amargamente do núncio e dos proce-
dimentos do cardeal Torriggiani, fecretario de efiado pontifi-
cio. Concluia-fe pedindo ao papa que expediíle um novo
breve com as claufulas amplilTimas, que invéftiífem a mefa
da confciencia na perpetua jurifdicção fobre os clérigos réus
de lefa-majeftade.
A cúria, com a fubtileza habitual da fua chancellaria, pa-
receu a principio deferir á nova fupplica, ou antes peremptó-
ria intimação. Nomeia o papa Clemente XIII ao cardeal Ca-
valchini para tratar direitamente com o enviado portuguez,
afaftando afllm da negociação o cardeal Torriggiani, o defen-
for enthuíiafta da Companhia e o fogofo inimigo de Portugal.
A pouco trecho, porém, depois de encetadas as negociações,
apparece improvifamente o cardeal fecretario de eftado a
ingerir-fe novamente na pendência. Os jefuitas, fufpeitando
no juizo conciliador e difcreto do Cavalchini um damno irre-
parável á fua caufa, haviam dado traças para que o papa fe
demoveífe do feu primeiro intento. No officio de 28 de no-
vembro de 1759, expedido a Francifco de Almada, advoga o
cardeal Torriggiani com ardente e impetuofa indifcrição as
doutrinas, que na fituação embaraçofa dos negócios eram as
mais accommodadas a elevar ao grau extremo a irritação do
minirtro de D. Jofé. Suftentava o romano eftadifia que nunca
em tempo algum fe haviam concedido á mefa da confciencia
as amplas faculdades, que pedia o governo portuguez. De-
fendia o íecretario de eftado do pontífice o procedimento do
feu núncio em Portugal, e ás queixas contra elle formuladas
retorquia com outras mais acerbas contra o enviado portu-
guez. Infiltia o cardeal Torriggiani não fomente na defeza,
mas no mais amplificado panegyrico dos méritos e dos fervi-
ços, pelos quaes o inftituto jefuitico fe tornara merecedor da
protecção de muitos papas, e fingularmente acredor á bene-
volência de Clemente XIII. E declarando n'efi:e aíTumpto in-
variáveis os fentimentos do pontífice, capitulava de remédio
eflficaciífimo aos abufos da Companhia a reforma commet-
tida por Benedido XIV ao cardeal Saldanha. As palavras do
cardeal fecretario de eftado queriam dizer litteralmente que
o pontífice perfeverava tenaciffimo em negar ao governo
portuguez as requeridas faculdades; contradizia e abomina-
va as providencias adoptadas contra os jefuitas, que na opi-
nião da cúria continuavam a fer coUedivamente uma ordem
benemérita, fe bem um ou outro dos léus membros podeíTe
carecer de emenda e correcção. Era pois uma clara demons-
tração de hoftilidade, embora vieíTe condimentada com pa-
lavras de execração contra o intentado regicídio, e com phra-
les benevolentes ao rei de Portugal. Sebaftião de Carvalho
tomou como um defcoberto rompimento o papel da chan-
cellaria pontifical, e preparou-fe defde logo para affrontar as
confequencias infalliveis de uma fcifão com o Vaticano.
O reprefentante portuguez em Roma, provavelmente por
infinuação do feu governo, declarando porém que ia exce-
der os feus poderes, alvitrou a 4 de dezembro um expe-
diente, que lhe parecia encaminhar a feliz termo a dilatada
negociação. Propoz que foíTe concedida á mefa da confcien-
cia a faculdade de proceder até pena capital inclufivamcnte
contra os facerdotes implicados no regicídio; e que para os
futuros crimes de Icfa-majcftade foíTe invertido o mefmo tri-
tia
232
bunal em egual jurifdicção, comtanto que n'elle houveíTe de
prefidir alguma pelToa conftituida em dignidade ecclefiaftica,
recaindo a nomeação em peíToa acceita ao rei. Em termos
peremptórios exigia o plenipotenciário portuguez uma prom-
pta refolução.
Aqui principiaram novamente as delongas do Vaticano.
Após alguns preliminares entre o Almada e o Torriggiani,
deputou novamente o papa ao cardeal Cavalchini para entrar
em conferencias com o reprefentante de Portugal. Entrega-
Ihe a minuta de um novo bre\e, em que até certo ponto a
cúria condefcendia com os defejos do governo portuguez.
Mas eíte diploma fazia referencia ao breve Exponi nobis,
como fe de feito houvera fido acceito e reconhecido pelo go-
verno de Portugal, e vinha exarado por tal forma, que não
podia fer approvado pelo Almada fem algumas correcções.
Da fua lettra, ainda não conforme inteiramente á foberania
e majeftade portugueza, parecia ao menos inferir-fe que dei-
xara finalmente de mefclar-fe na queftão o cardeal Torrig-
giani, o ardilofo antagonifta de Sehaftião de Carvalho. Man-
da Francifco de Almada as emendas, que fe lhe afiguram
neceíTarias. Continuam por alguns dias as negociações. Mas
não parece ainda propinqua a favorável conclufão. A 27 de
dezembro apparece de novo o fecretario de eítado pontificio
como ador n'efta pendência, feparado já da negociação o
cardeal pro-datario Cavalchini. Remette a Francifco de Al-
mada a minuta de um breve, aíTeverando que o rei de Por-
tugal ficaria plenamente fatisfeito com a fua forma e redac-
ção. As novas lettras apoftolicas eram, comtudo, com algu-
mas variantes mui ligeiras, a copia da minuta aprefentada
pelo cardeal Cavalchini. N'ellas fe perfiítia em dar por fub-
fiftente, como fe houvera fido acceito, o breve Exponi nobis.
Exceptuada eífa claufula fundamental, oífenfiva para o de-
coro de Portugal, e julgada indifpenfavel á dignidade ponti-
4tU
-0-%^
233
ficia, o breve concedia o que Sebaítião de Carvalho havia
follicitado. A cúria dobrava a cerviz ao infatigável accufa-
dor dos jefuitas, ao miniftro pertinaz e indomável, com a
condição de que lhe deíTem como realmente recebido o bre-
ve Exponi nobis, que elle houvera por ignominiofo admit-
tir como verdadeira e legitima expreíTão do arbitrio do pon-
tífice. Era de fi manifefto que a nova minuta fabricada fob
os aufpicios do cardeal Torriggiani vinha engravecer, em
vez de melhorar, a fituação.
Era fácil o prever n'aquella conjundura que não haveria
humano expediente, que podeíTe atalhar o rompimento. No
lundo e fubftancia da negociação, que parecia apenas uma
contenda fobre formulas de chancellaria, apparecia realmen-
te uma queftão mais grave e mais diíficil, em que os dois
antagoniítas nem um ápice eftavam difpoftos a ceder. Nem,
fi.ippoftos os precedentes das perfonagens litigantes, e a eíTen-
cia do aíTumpto debatido, era poílivel nenhum accordo ou
conciliação. O que fe controvertia realmente entre Sebaftião
de Carvalho e o fecretario de eftado Torriggiani, ou mais
exadamente entre o miniftro de D. Jofé e o papa Clemente
XIII, eram os erros e os crimes da chamada Companhia de
Jeíus; entre Sebaftião de Carvalho, que a feguia e perfeguia
nos abrigos e nos redudos, aonde bufcava refugio para mais
a leu feguro combater, e o pontífice romano, que procurava
eximil-a ao ultimo naufrágio, acolhendo-a na barquinha de
S. Pedro, confagrando-a folemnemente como inftituição es-
fencial ao moderno catholicifmo. Um accufava-a tenaz-
mente, exaggerando ás vezes porventura os feus grandes
maleficios. O outro não hefitava em facrificar a paz da egreja
á confervação e luzimento do inftituto reprovado. Entre a
affirmação e a negação fubfiftia perennemente uma infoluvel
antinomia. Entre a cxiftencia da Companhia, com os vicios
inlanaveis e orgânicos da ília própria conftituição, e a fua
234
total abolição, e extermínio não havia eftadifta, nem theolo-
go, a quem fe deparaíTe o meio termo. Demais, a ordem
egoifta e invalora eftava irremiflivelmente profcripta de Por-
tugal. O corpo ainda exillia na chriftandade, mas vivia
decepado de um dos léus membros mais valiofos, quaes
eram as províncias religiolas na metrópole e nos vaftos domí-
nios de Portugal. O miniftro inflexível nas fuás refoluções
não podia lequer ouvir fallar em jefuitas, fem que no peito
lhe ferveíTe a indignação. N'elle a razão de eftado viera
a converter-fe em paixão intratável, perliítente, inacceffivel
a uma Ibmbra fequer de compofição. Como poderia pois
acceder a que as portas de S. Roque e Santo Antão fe
abriíTem novamente para que ali fe tramaífem, fenão as ar-
madas conjurações, ao menos os meneios inquietos e os
enredos fubterraneos, que impediam a cada paífo em fuás
reformas o império temporal, e turbavam no púlpito, no
conflífionario e na cadeira magíítral as confciencias timora-
tas e os obfcuros entendimentos? E todavia o papa Cle-
mente XIII reiterava os defejos e as inftancias, não para que
fobre os erros dos jefuitas em Portugal lançaífe o rei em
nome da clemência o manto generofo do perdão, mas em
nome da juftiça e da verdade coroaíTe com a laura facro-
fanta dos mais piedofos confeífores da fé chriftan as virtudes
heróicas da calumniada Companhia. Sebaftião de Carvalho
pedia contra os jefuitas a execração e os fogos da Gehenna
como a dignos companheiros de Datan e Abiron. O papa
Clemente XIII refpondia reverberando-lhes na fronte a luz
etherea do celefte paraizo, como a focios benemerentes de
Jefus. Carvalho não podia remittir a fua animadverfão aos
jefuitas, como quem reprefentava na fua mais fevera perfo-
níficação o poder temporal exempto de fervidões ecclefias-
ticas. O papa não fabia defcer do feu aífedo aos jefuitas,
como quem reprefentava em anachronica figura as preten-
235
ções temporaes do luprcmo lacerdocio nos leculos mais efcu-
ros da velha autocracia pontifical. Sehaftião de Can^alho
prefigurava em pleno abfolutifmo a Ibciedade civil emanci-
pando-le da tutela clerical. No leu animo altivo, indomável
e imperiofo não cabia a vocação de exercitar no feculo xviii,
no feculo da reA'olução e da philofophia, na edade áurea da
duvida e da negação, o papel inglório do imperador Henri-
que IV, recebendo em CanoíTa, coberto de cinza e de cilicio,
os golpes do flagello pontifício.
O papa Clemente XIII principiava a ferie d'eftes moder-
nos pontífices paradoxaes, que fazendo-fe os cavalleiros an-
dantes da foberania da tiara fobre os governos temporaes, fe
empenharam em revocar, no meio da luz e da fciencia, os
dias tenebrofos de Gregório VII. Sebaftião de Carvalho tem
o mérito fingular de fer o primeiro eftadifta, que fe levantou
para conter nos limites da pura efpiritualidade o poder eccle-
fiaftico, para difputar abertamente ao pontificado o direito
que fe arrogara de intervir nas queftões meramente feculares
como fupremo e univerfal moderador na repubhca da chris-
tandade, para conceder ao pontífice romano o feu primado de
ordem e de jurifdicção, negando-lhe porém a fobrehumana
prerogativa de ecuménico e irrefponfavel didador. Foi o
primeiro, que teve por fyftema o coagir o clero a cumprir o
preceito de S. Paulo, e]uando na epiftola aos romanos ex-
hortava os chrifi:ãos a obedecer aos poderes conftituidos,
n'aquellas palavras terminantes : « Omnis anima fubdita Jit
potcjlatibus fiiblimioribus^ . E verdade que antes de Carvalho,
muitos príncipes c republicas haviam contendido com o
Vaticano; nenhum d'ellcs, porém, havia perfeverado na porfia
defegual. A edade media do fummo pontificado, com as pre-
tenções de Gregório VII, de Innocencio III, de Bonifácio VIII,
continuara a perfifiir vidoriofa até pleno feculo xviii. Os
jefuitas haviam tido por empenho glorificar e engrandecer
eis
c|3
236
a monarchia univerfal do pontífice romano. A fraqueza e o
fanatifmo dos governos temporaes contribuíra a perpetuar as
crelcentes invafões do facerdocio febre o império, embora
regaliftas eminentes pleiteaíTem fervorofos, em nome do
direito e da razão, em favor da foberania fecular. Carvalho
é o primeiro que oufa affrontar-fe com o Vaticano, e dizer
ao facerdote-rei : »0 reino de Jefu Chriífo não é d'efte
mundo, e o feu vigário não pôde conquiftar, nem poíTuir nas
mundanas regiões o que o mefmo inftituidor da egreja defen-
deu e condemnou como odiofa profanação das coufas efpiri-
tuaes». E na verdade atravez da queftão dos jefuitas furgia
vifivelmente outro problema de mais fecundos corollarios.
Era o da profunda feparação entre a fociedade civil, como
grémio puramente humano e terrenal, e a fociedade religiofa,
como grei exclulivamente confagrada aos fins efpirituaes e
tranfmundanos.jTodos os feitos de Carvalho fe encaminham
a efte alvo durante a fua larga adminiftração, todos fe con-
globam e unificam n'efte principio eífencial ao progreífo, á
paz, á civilifação da humanidade.
Por iífo o athleta inquebrantável, a cada nova arremet-
tida do feu antagonifta, refponde vibrando um novo golpe.
As negociações em Roma profeguidas pelo enviado
portuguez Francifco de Almada, não davam a minima efpe-
rança de chegar ao termo defejado.
Mas emquanto o ^'^aticano fe empenhava em contradizer
as inftancias de Portugal, um fucceífo inopinado vinha com-
plicar as relações já quafi hoftis entre Carvalho e a Santa
Sede. O núncio Filippe Acciajuoli, arcebifpo de Petra, era
em Lifboa o mais perigofo e perfeverante adverfario do
miniftro portuguez. Era notória a protecção, que dera fempre
aos jefuitas, e a eftreita ligação, em que vivia com todos os
defcontentes e inimigos de Carvalho. O feu procedimento
havia concitado mais do que o defprazer, a animadverfão
c|9
do grande propugnador das immunidades temporaes. Aífe-
ctando grande moderação e luavidade nas maneiras, como
é condão efpecial de romanos diplomatas, e feduzindo, como
dizia o embaixador francez, pelo encanto da fua converfa-
ção, não era parco em aproveitar as circumftancias para con-
trariar quanto podeífe as intenções do minifterio e aflbprar
clandeftinamente o incêndio, que lavrava contra elle. A fua
pofição na corte de Lifboa viera a ler em tal maneira humi-
liante, que o miniíiro principal evitava cautelolamente o
conferir com elle algum negocio '.
O rei não parecia fer mais benévolo com o núncio do
que o feu primeiro fecretario de eftado, nem fe preftava a
recebel-o fenão em audiência official-. O miniftro via com
maus olhos que os reprefentantes extrangeiros, e principal-
mente o embaixador francez, infigne defenfor dos jefuitas em
Lifboa, cultivaífem com o núncio íntimas e frequentes rela-
ções'. Apefar da nenhuma confiança, que infpirava o ardilofo
curial ao governo portuguez, e das queixas, que d'elle tinha
feito á corte de Roma, o arcebifpo de Petra havia fido con-
decorado com a purpura cardinalícia em feptembro de lySg,
na própria occafiáo, em que eram mais inftantes contra elle
os aggravos de Carvalho. O pontífice Clemente XIII quizera
galardoar d'efta maneira a foro de beneméritos os ferviços
do prelado. Era pois uma aggreífão á coroa de Portugal e
uma no-sa difíiculdade ao reftabelecimento de amigáveis
relações.
' Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de
14 de agofto de i/Sg. Quadro elementar, tom. vi, pag. iSy.
2 Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de
M de feptembro de \~ig- Quadro elementar, tom. vi, pag. i63.
3 Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de
8 de janeiro dé 1760. Quadro elementar, tom. vi, pag. 184. — Officio do mes-
mo embaixador, de í de fevereiro de 1760, ihid., pag. 199.
^^-^ -<i^
ti» elí
238
O calamento da princeza do Brazil com o infante D. Pe-
dro, irmão do rei, depois de muitas delongas, que o tinham
eítorvado, veiu finalmente a realifar-fe a 6 de junho de 1 760.
Carvalho conhecendo defde muito na princeza o animo pro-
penfo á exaggerada piedade, ou antes ao mórbido fanatifmo,
deíejára ter-lhe dado por efpofo um homem de efpirito illu-
minado, que podeíTe contrapelar o pendor innato para as
indilcretas devoções e para a cega obediência aos influxos
clericaes. O infante D. Pedro era, como quafi fempre fuccedeu
em Portugal com os fecundo-genitos da cafa de Bragança, o
chefe mais ou menos oftenfivo da opipoíição, um manifefto
fautor dos jefuitas, um patrono e parcial da nobreza ambi-
ciofa e deípeitada. Bem fe podia já adivinhar que ao chegarem
ao throno os dois efpofos, então feria uma alleluia para toda
a reacção politica e religioía. Se Carvalho podéra evitar um
enlace tão funefto á illuftração de Portugal, teria empenhado
os feus esforços em o diíTuadir e reprovar. Mas n'efte ponto
o animo do rei deixou-le aíToberbar pelos refpeitos da famí-
lia, e o conforcio veiu reflorir a elperança e a oufadia nos
inimigos de Carvalho. N'aquelle tempo as feftas dos reinan-
tes eram dias de obrigado jubilo offlcial para todo o povo.
Os efcravos deviam tripudiar, quando os príncipes lhes aíTe-
guravam em fuás núpcias aufpiciofas a fuprema ventura de
ter no futuro um novo defpota. Decretaram-fe pois três dias
de luminárias para celebrar o feliz acontecimento.
O núncio, já então cardeal da fanta egreja romana, fora
tratado pela corte, como fe não fofle príncipe eccleíiallico,
nem reprefentante do papa, rei de Roma. Não fe lhe havia
participado o cafamento da princeza, nem o miniftro dos
negócios cxtrangeiros, D. Luiz da Cunha, o tinha convidado
para o banquete dado ao corpo diplomático. Doera-fe o pur-
purado d'efle que reputava mais que defprimor, oftenfa e
aggravo á lua dignidade cardinalícia, ao leu carader de nun-
^•^-^ -«^
tis w
cio pontifício e ainda ás luas funcções de reprefentante de
quem era, alem de papa, foberano temporal'. A defattenção
que com ellc ufára a corte, entendeu que devia refponder
com uma arrogante reprefalia. Quando a cidade appareceu
de noite illuminada, quando os finos repicavam fcfíivamente
em todos os campanários, quando as pompas cortezans ce-
lebravam os defpoforios dos dois príncipes acceitos ao par-
tido clerical, a cala da nunciatura appareceu como fe d'ali
fugira improvifamente o feu amargurado morador. Cerradas
as janellas e as portas, nem a minima luz na frontaria ou a
menor claridade nos apofentos; o filencio e as trevas em toda
a parte. O eícandalo foi geral. Raiou em fúria a indignação de
Sebaítião de Carvalho. Agitou-fe a corte, irritaram-fe os mi-
niftros, convocou-fe o confelho de eftado. No dia i 5 de junho
occupavam-fe militarmente as ruas próximas ao edifício
da nunciatura. Uma elcolta numerofa formava-fe em bata-
lha em frente do palácio. E que no dia antecedente o fecre-
tario de eftado, D. Luiz da Cunha, havia expedido ao cardeal
núncio uma carta, na qual altivamente lhe intimava que
apenas a recebeffe, logo fem demora fe partiíTe de Lifboa e
atraveíTando o Tejo fe pozeííe a caminho da fronteira. Orde-
nava-lhe outrofim que no precifo termo de quatro dias faíífe
do território portuguez. Obedeceu o núncio proteftando, e
declarando terminada a nunciatura em Portugal.
Sebaftião de Carvalho por uma informação, em que lum-
mariamente fe referiam os efcandalofos procedimentos do no-
vo cardeal, ordenou ao enviado portuguez em Roma rela-
taífe ao pontifíce os motivos, que haviam determinado a
expulfão do feu reprefentante. Mandou-lhe que proteftaífe
novamente a perenne e indefedivél veneração a fua fantidade
' Officio de embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de 8
de junho de 17G0. Quadro elementar, tom. vi, pag. 249 e 25o.
eia
240
e á Santa Sé apoítolica, com que o rei de Portugal perfiftia
e haveria fempre de perfiftir em proteger e fuftentar nos feus
reinos e domínios o decoro do minifterio pontifício e a im-
munidade dos miniftros da egreja, em tudo o que o direito
divino, o natural e o das gentes podeíTem permittir.
Apefar d'eílas reverentes proteftações, a noticia não era
accommodada a accrefcentar o affedo paternal de Clemente
XIII para com leu dilecto filho, o rei de Portugal.
O enviado portuguez Francilco de Almada havia foUici-
tado uma audiência do pontífice para lhe aprefentar a me-
moria ou deducçáo, em que fe compendiavam todos os
aggravos e aíTrontas dirigidas ao governo portuguez pela
cúria e pelo feu reprefentante. Negou Clemente XIII a au-
diência. Era declarar abertamente o rompimento com a corte
de Lifboa. Francilco de Almada, fegundo as prefcripçôes de
Sebaftião de Carvalho, efcreve então ao cardeal Corfini,
protedor da coroa de Portugal, e enviando-lhe os papeis,
que lhe não confentiam entregar direitamente ao padre lanto,
pede-lhe que ponha na prefença do pontífice as razões, que o
obrigam a laír de Roma. Logo a 2 de julho de 1 760 manda
affixar na egreja de Santo António dos portuguezes um edital,
cm que annunciando a fua partida immediata ordena a todos
os vaffallos de Portugal que fe retirem egualmente dos es-
tados pontificios. Por uma carta circular a todos os reprefen-
tantes acreditados junto do papa, declara-lhes os motivos
que o forçavam a fair, e remette-lhes copia das memorias,
onde eftavam deduzidos os aggravos de Portugal. Clemen-
te XIII, aíTombrado porventura de que o negocio houveíTe
chegado a termos de rompimento, pelou as perígolas confe-
quencias de uma interrupção de relações entre o Vaticano e
um eftado, a cujos reis, como a filhos diledtos da egreja, não
havia muitos annos a própria Santa Sé condecorara com o
titulo de fidelilTimos. Quiz fi.iíl:ar com uma nova traça a par-
eis
24'
tida do plenipotenciário portuguez. Deputou o cardeal Cor-
fini para que em boa paz com elle conferiíTe. Efcreveu-lhe
o cardeal efperando que uma tal condefcendencia pontifícia
motivaíTe a fufpenfão das ordens publicadas aos fubditos
de Portugal para deixarem fem detença os eftados da egreja.
Em outra carta expreíTava novamente o cardeal protedor a
Francifco de Almada os delejos, que o pontífice nutria de
coníervar a harmonia com D. Jofé apelar do Ibbrefalto,
que em leu animo havia concitado a inopinada expulíao do
núncio de Lifboa. Atteflava ao mefmo paíTo o cardeal Corfi-
ni, que a deducção e as memorias do governo portuguez
haviam fido prefentes ao pontífice, o qual pedia tempo, em
que detidamente examinaíTe tão volumofos documentos.
A 4 de julho publicava o enviado portuguez um novo
edital, em que fi.ifpendia os efíeitos do primeiro.
Era na verdade laftimola a fituação do papa Clemente
XIII. Havia padecido a maior atfronta, que lhe podiam ir-
rogar como a pontífice e a Ibberano temporal, expuUando-
Ihe um feu reprefentante condecorado com a purpura car-
dinalícia. Pelo direito das gentes, e em nome da lua própria
dignidade era-lhe não fomente licito, mas urgente o defpedir
da fua corte a legação de Portugal. Em vez d'ifto, porém,
pedia quafi humildemente ao enviado portuguez que em re-
torno de lua complacência e manfidão fe deixaíTe ficar
na cidade eterna, offerecendo-lhe levar a feliz termo as exa-
cerbadas contenções. Pouco duraram as efperanças de ami-
gável conciliação. O violento cardeal fecretario de ellado in-
terpoz-fe audaz e refoluto ao papa e ao governo portuguez,
agitando novamente o facho da difcordia. Preponderou no
animo de Clemente XIII. Revogou o pontífice a commiflao,
que havia dado ao cardeal Corfini, e confiou de novo aTor-
riggiani o encargo de tratar os negócios de Portugal.
Para efla re\ogação, é força confeílar. contribuíram em
242
grande parte os termos aggreíTivos, em que eftava efcripto
o edital. Francifco de Almada, em vez de limitar-fe a pre-
venir os íeus compatriotas de que ficavam por juftiíllmos
refpeitos fufpenfas por emquanto as ordens anteriores, defa-
tou-fe em inopportunas imprecações contra os jefuitas, e em
desfavoráveis allufões ao cardeal fecretario de eftado.
Perdida toda a efperança de evitar o rompimento, publi-
cou Francifco de Almada um edital definitivo ordenando aos
vaffallos portuguezes que deixaíTem os eítados pontificios
até feptembro d'aquelle anno. A 7 de julho faia de Roma
Francifco de Almada, vibrando contra o facciofoTorriggiani,
n'um officio ao cardeal Corfini, as frechas derradeiras da
fua indignação, accufando-o de animofidade e de perfidia
contra o governo de Portugal.
Ao procedimento de Francifco de Almada não tardaram
a feguir-fe em Lifhoa as reprefalias contra Roma. O auditor
da nunciatura, Jacintho Acciajuoli, foi intimado a fair de Lis-
boa em vinte e quatro horas, e a paífar a fronteira portu-
gueza no prafo de féis dias. Publicaram-fe os decretos de
4 de agofio de 1760, nos quaes, renovadas textualmente as
prefcripções, que promulgara D. João V em 1728, fe orde-
nava que nenhum vaílallo portuguez ficaífe nos eftados pon-
tificios, nem fubdito romano permaneceífe nos territórios de
Portugal, e fe prohibia fob penas feveriíTimas toda a com-
municação com a corte de Roma.
Eftava pois confummado o rompimento entre a cúria e
Portugal. O minií^ro audaz e perfiftente, no leu propofito im-
mutavel de engrandecer e confirmar a poteítade fecular con-
tra as invafões do poder efpiritual, havia alcançado a cufto
de fagacidade e perfeverança a primeira e a mais diíficil
das vidorias.
eis
tis
24J
CAPITULO X
VIGOR E DIGNIDADE
Agora dava Sehaftião de Can-alho umas tréguas á lua
lufta com o eftado clerical para volver as attenções aos ne-
gócios interiores, que eítavam reclamando inftantemente a lua
incanfavel intelligencia e energia.
Os defcontentes do governo, em vez de aíTrouxarem
com os terríveis exemplos de vindifta minifterial, cada vez
fe moftravam mais impenitentes no feu ódio peflbal ao mi-
niftro reformador, e ás profundas transformações, que já rea-
lifára no paiz. Os léus inimigos continuavam a agitar-fe e
entre elles principalmente a nobreza ecclefiaftica ou fecular.
Não podendo infurgir-fe abertamente, não poupavam malé-
volos expedientes com que podeílem contraminar o feu po-
der. A fegurança do eftado contra os perigos de novas conju-
rações, e não menos a repreíTão dos crimes, que infamavam
n'aquelle tempo os coftumes portuguezes, determinaram a
creação de uma nova e tremenda magiftratura, que foíTe por
aíTim dizer a perpetua fentinella da tranquillidade e ordem
publica. O alvará de 25 de junho de 1760 inftituiu fob o ti-
tulo de intendente geral da policia um magiftrado llípcrior
com o cargo eminente de prover á completa feguridade con-
tra os que bufcaíTem romper a paz com fuás malfeitorias e
delidos. Fundada principalmente para exercer a policia con-
tra os crimes communs, a nova magiftratura era ao meímo
tempo uma inftituição politica. Nos tempos ulteriores mos-
trou a intendência, fob as intolerantes infpirações de Pina
Manique já no reinado de D. Maria I, que o feu ofRcio prin-
cipal era impedir em Portugal o contagio irrefiftivel das idéas
profeífadas pela grande Revolução. O primeiro magiftrado
c|3
o
244
invertido por Sebaftião de Carvalho em o novo emprego foi o
defembargador Ignacio Ferreira Souto, um dos que na junta
de inconfidência tinham firmado a fentença cruentiffima con-
tra os réus da conjuração.
Bufcava Sebafiião de Carvalho com enérgicas providen-
cias acautelar a repetição de novas fedições. Os feus inimi-
gos pullulavam ainda na corte, e em alguns dos altos car-
gos, onde podiam aíTeftar commodamente as fijas baterias.
A violenta oppofição audorifava, fe não defculpava inteira-
mente as reprefalias. É precifo não efquecer que o governo
de Carvalho era em plena monarchia abfoluta um regime
claramente revolucionário. Não era um homem immodera-
do, violento, perfeguidor, que chegado ao fafl:igio da íua for-
tuna pretendia unicamente aílegurar, pela vaidade efteril do
poder, a continuação da fua valia no animo real. Era antes
o reprefentante e o executor de um novo fyftema governa-
tivo, que á fé ardente nas fiaas largas e proveitofas innova-
ções em commum beneficio da nação, era forçado a immolar
os fentimentos da tolerância e da clemência, a moftrar-fe
defhumano no fentido de impiedofo para fer humano na
accepção de amigo e fervidor da humanidade. A tolerância
prefuppõe a liberdade nos eftados democraticamente confti-
tuidos, a clemência lo pôde refidir nas monarchias não con-
turbadas perennemente pela intemperança das facções.
Eis ahi as razões por que Sebaftião de Carvalho fi.ibor-
dina a moderação para com os fufpeitos á lei fi.iprema da
falvação do eftado; o bem dos inquietos perturbadores á paz
e ao progreffo da inteira fociedade. Não ha duvida que fo-
ram feveros os léus procedimentos contra os léus implacá-
veis adverfarios. Mas, luppoftas as circumftancias d'aquel-
la epocha, os hábitos da monarchia abfoluta e a influencia
reaccionária das claíTes privilegiadas, não podemos aquila-
tar pelas inftituições, pelas idéas, pelos coftumes do noíTo
243
tempo, os cárceres e os deíterros decretados com mão larga
pelo miniítro vigilante e odiado.
Muitas das mais notáveis perfonagens mantinham rela-
ções harto aífeduolas com o núncio cardeal Acciajuoli, e fe
com elle não confpiravam abertamente, eram feus fervorofos
parciaes e fecretos ajudadores. Tal era o conde de S. Lou-
renço, camarifta de D. Pedro; tal era o vifconde de Villa
Nova da Cerveira, antigo embaixador na corte de Madrid e
também gentil-homem da camará do infante; taes eram os
baítardos de D. João V, chamados vulgarmente os meninos de
Palliam. Um d'eftes, D. Jole, era inquifidor geral. Ambos,
fegundo o próprio teftemunho dos inimigos de Carvalho", fe
tinham injuriofamente defcomedido com o miniftro.
O inquilidor geral era um d'en:es fanáticos, que eleva-
dos pelo acafo a uma eminente categoria, e chamados pelo
régio favor a exercer a terrivel magiftratura das confciencias
e da fé, punham a fua aucforidade peflbal e a influencia do
feu cargo a Ibldo da politica oppofição ao miniftro de D.
Jofé e ao ferviço da reacção religiofa contra as luas enérgi-
cas providencias encaminhadas a defender e tutelar a inde-
pendência do poder foberano e temporal. O miniftro não ve-
ria defde muito com bons olhos a mais perigofa e abuftva de
todas as jurifdicções nas mãos de um feu adverfario peífoal,
e ainda mais jurado antagonifta de quanto podeíTe diífipar
as trevas efpirituaes, em que o baftardo de D. JoãoY amo-
ravelmente fe comprazia. O feu deftcrro para a laura carme-
litana do BuíTaco, pelo voto do confelho de eftado, não era
pena demafiada para os ultrages commcttidos contra a fobe-
rana poteftadc. Os irmãos do rei imaginaram porventura, que
a fua qualidade principefca lhes permittiria o defobedecer e
confpirar. O miniftro porém enérgico e previdente deu um
■ Vita di Scb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. iii, pag. 98 c yj.
eis
. •-«ç»-§.
246
exemplo fevero, mas neceflario, de que ainda nas monar-
chias abfolutas o fangue mais ou menos régio dos oíTenlb-
res os não pode eximir ás melmas penas, que fe irrogam ao
mais humilde e rafteiro dos plebeus. Um dos grandes méri-
tos de Sebaftião de Carvalho efteve juftamentc em humilhar
os grandes e poderofos, e em levantar os pequenos e humil-
des. Os baftardos de D. João V valiam aos olhos do minis-
tro nivelador menos quilates do que o induftriofo mercador
ou o artifice laboriofo. A ociolidade fidalga achava menos
graça no feu animo do que o trabalho plebeu, mas creador.
As claíTes privilegiadas e a irrequieta clerefia houveram por
iniquidade e facrilegio que o miniftro defterraíTe os dois ir-
mãos de D. Joíe. Mas a feveridade exercida contra elles
contrapefa as violências, que a fegurança e a conjundura
neceflitaram o miniftro a empregar contra peíToas de fome-
nos condição. A egualdade perante o ablblutifmo é o pri-
meiro eftadio da egualdade perante a lei.
A inquifição era não fomente uma tremenda jurifdicção
efpiritual, fenão também um poderofo tribunal politico e fo-
cial. Sob as puras apparencias de zelar a fé e combater a
herética pravidade, o Santo Officio era um inftrumento ef-
ficaciíTimo de influencia irrefiftivel nos negócios profanos e
feculares. Sebaftião de Carvalho precifava de tomar poíTe
d'efta forte cidadella, cujos tiros perigofiíTimos podiam a
cada paíTo contrariar o poder civil. Já tinha de fua mão a
junta da inconfidência, que era a inquifição da ordem pu-
blica. Era bem que tiveíTc egualmente da fua mão o Santo
Officio, que era a junta da inconfidência nos dominios efpi-
rituaes. O miniftro audaz e cmprehendedor, fe bem nas fuás
leis e alvarás entoava antiphonas pompofas á feparação, in-
dependência e equilíbrio das duas poteftades, fecular e eccle-
fiaftica, tendia a fubordinar ao império o facerdocio. Se al-
gum d'elles devia preponderar e fubmettcr ao fcu nuto o
-§-À- .H^
e|s ti»
^47
antagoniza, eíTe havia de ler o governo temporal. E de feito
nos eftados, onde por dilatados feculos a debilidade ou o
fanatifmo dos foberanos alteou muito acima da majeftade
civil a autocracia ecclefiaftica, a reacção contra eíte funefto
defequilibrio é lempre a llibmiílao da egreja aos arbítrios do
imperante. Somente nos eftados livres, genuinamente demo-
cráticos, onde não ha na lei confagração ou privilegio para
nenhum culto official, a egreja pôde fer livre. A tutela do
eftado fobre as coufas elpirituaes é apenas reftrida a defen-
der e amparar para todos egualmente a liberdade da con-
fciencia, e a precaver quanto pelo exercício rcligiofo poffa
pôr em rifco a paz e a ordem Ibcial.
Ora Sebaftião de Carvalho não podia no feu tempo, den-
tro de uma piedofa monarchia, no meio de um povo dcfal-
lumiado, inculto, barbarifado por trevas diuturnas de torva
fuperftição, proclamar a noviíTima doutrina de que a focie-
dade civil, como tal, é puramente profana, comquanto ao feu
lado, mas fem a perturbar ou tolher em fuás funcções, fubfis-
ta a crença religiofa abraçada livremente pelos membros da
cidade. Não lhe era dado profeífar a egreja livre no eftado
livre. Mas fora d'eft:e fyíl:ema de equilíbrio verdadeiro entre
a acção focial e a fé religiofa, um dos dois elementos ha
forçofamente de fohrcpujar. Pois feja então o eífado quem
dirija, governe e encaminhe o facerdocio pela parte, em que
confronta com os intereífes mundanos e terrenaes. O rei é, fe-
gundo a tradição, o defenfor da fé e o protedor dos cânones.
Pois quem defende e protege tenha a força, a auítoridade, a
coacção. Efle é o fyftema largamente exemplificado na im-
menfa legiflação, e nos documentos da chancellaria portu-
gueza durante a longa didadura de Carvalho.
A inquifição era um poderofo auxiliar ao ferviço do des-
potifmo reformador. Era pois neceífario que o miniílro de
D. Jofé a tiveífe como uma dependência immediata de fua
c|3
c|9
24S
fecretaria. O inquifidor geral devia pois fer um feu familiar
obediente. Ninguém era talhado mais de molde para efta
fujeição do Santo Officio á autoridade governativa do que
um homem conjunclo pelo fangue e pelo aífedo ao grande
reformador. Paulo de Carvalho e Mendoça, feu irmão, foi
pois nomeado inquifidor geral. Deixaram os contemporâneos
memorado que era varão de poucas lettras e de efcaíTo en-
tendimento. Sobrava-lhe, porém, uma qualidade preciofa.
Era a admiração, que profeffava ao homem eminente, que
era a honra da familia. Sob a fua jurifdicção não haveria nun-
ca perigo de que a fé, por meticulofa ou intranfigente, em-
peceffe os voos do miniftro no feu propoíito fundamental de
romper as ultimas cadeias, que arraftavam o throno de Por-
tugal á fella geítatoria do fummo pontificado.
Para que a didadura de Carvalho podeíTe refpirar des-
apreíTada era força confiar os cargos públicos aos que fe ins-
piravam no fyítema politico do didador, diradicar por a6tos
puramente revolucionários as influencias pernicioias, que
ameaçavam em cada dia uma nova conjuração. Eis ahi por
que depois da expulfão dos jefuitas e do núncio, redobra a
feveridade contra os feítarios da condemnada Companhia.
Eis ahi por que foi prefo nos cárceres da Junqueira o con-
feíTor do antigo inquifidor, um cónego regrante de Santo
Agoftinho. Eis ahi por que foram defterrados monfenhor
Aguilar, os padres João de Macedo e João Chevalier da con-
gregação do Oratório, e por que nas prifões de eftado recres-
ceram aos antigos réus políticos outros novos encarcerados.
E laítima que na hilforia ás grandes revoluções e pro-
greíTos fociaes andem fempre aíTociadas as vindictas e re-
pre falias. Mas é trifte condão da humanidade que os feus
grandes triumphos fe conquiftem á cufia de cruentiffimos
combates e de fcenas lacrymofas. A humanidade não dá
nunca os feus paífos de gigante, fem que a terra eflremeça
249
debaixo dos feus pcs. A revolução ou a guerra lao os an-
daimes funeftos, mas neceíTarios d'efte grande e magnifico
edificio, que fe chama a civilifação. A luz do cofmos focial,
como a luz do mundo phyfico, é fempre a força transforma-
da n'uma brilhante apparição.
Aonde não chega porém a feveridade, pôde a dignidade
e a energia operar os feus milagres. Foi o que Sebartião de
Carvalho deixou honrolamente exemplificado n'uma pendên-
cia delicada, em que eífava de uma parte a honra nacional
offendida gravemente, e da outra a grandeza e arrogância de
uma nação, onde o poder nem fempre fe comediu com a
gcnerolidade e a julfiça.
A Gran-Bretanha eftava em guerra com a França. Eram
poífantes as armadas inglezas, que fe tinham arrogado o
fenhorio abfoluto do Oceano. Em agoíto de lySg a efqua-
dra do almirante britannico Bofcawen, travando batalha
com a frota franceza ao mando do almirante de La Clue,
cerca das cofias do Algarve, tinha vindo concluir a fua em-
preza victoriofa íbb as muralhas da praça de Lagos, vio-
lando a neutralidade e ultrajando a majeftade nacional. Ali,
nas próprias aguas de Portugal, queimaram os inglezes dois
navios inimigos, apefar dos tiros difparados pelas baterias
portuguezas. Muitos francezes foragidos fe haviam acolhido
em terra, e tinham recebido humana hofpitalidade. Era
grande o ultrage á bandeira de Portugal. Pediu Sebaftião
de Carvalho defde logo plena fatisfação ao gabinete britan-
nico. Prefidia então aos negócios em Inglaterra o celebrado
lord Chatam. E taes foram as reclamações e as inftancias
do governo portuguez, tão altiva a dignidade, tão refoluto o
propofito de não tolerar as prepotências, ainda mefmo da na-
ção podcrofa, temida, viiíloriofa, que o rei George II defpa-
chou Lord Kinnoul em embaixada extraordinária para cjue
vieíTe dar inteira e folemne fatisfação ao rei de Portugal.
2 5o
Antes de relblver-fe em Inglaterra a milTáo extraordinária
de Lord Kinnoul, mediara entre a corte de Lifboa e o gabi-
nete de Saint-James uma vehemente contcftação. Exigia
Sebaftião de Carvalho, como zeloíb defenlbr da majeftade
nacional, que o defaggravo foíTe tão cabal e tão completo
que podeíTe expiar cumpridamente a violência commettida
contra a honra do paiz e a quebra efcandalofa dos princí-
pios fundamentaes do direito das gentes. Corre na tradição
que em um dos Icus delpachos o vigorolo miniftro portuguez
fe exprimira em phrafes tão acerbas, cjue leriam capazes de
excitar o refentimento e a vindida de uma nação menos
poderofa e arrogante do que era então a higlaterra, que de
fafto exercitava o dominio e Ibberania Ibbre os mares. Em
alguns efcriptos contemporâneos ' appareceu eftampado como
authentico o diploma, em que Sebaftião de Carvalho, com-
pendiando as arrogâncias da Inglaterra, lhe arremeíTava ao
rofto ameaças" tão jadanciofas e tremendas, como Ic Por-
tugal, para refponder ao incêndio das naus francezas n\im
feu porto, tiveíTe poderofiffimas armadas, com que ir a Ports-
mouth queimar nos próprios eílaleiros os navios da Gran-
Bretanha.
«Eu fei, dizia o minillro n\im defpacho, que o voíTo gabi-
nete fe arrogou o império Ibbre o governo de Portugal, mas
fei também que é tempo de lhe dar lim. Se os meus prede-
ceíTores tiveram a fraqueza de vos conceder até agora tudo
quanto defejaftes, pela minha parte fomente vos concederei
o que vos devo. E ifto o que em conclufão tenho a dizer-
vos». N'outro defpacho efcrevia SebaíUão de Carvalho ao
fecretario de ellado dos negócios extrangeiros em Inglater-
ra: «Rogo-vos que me não obrigueis a recordar as condes-
■ VAdminiJlration du Marquis de Pombal, Amílertlam, 1788, tom. 111,
pag. 3 e legg.
'■ ^ -0-^
25l
cendencias, que o go\'crno portuguez tem tido para com o
volTo. São taes que não fei de nenhuma outra potencia,
que as haja nunca tido íemelhantes. E jufto que de uma vez
ponhamos fim a efte império, e que façamos ver á Euro-
pa, que lacudimos o jugo de uma extrangeira dominação. . .
A França nos haveria de confiderar uma nação fraca em
extremo grau, fe não podeílemos alcançar íatisfação pela
offenfa, que nos fizefles, vindo queimar em paragens portu-
guezas navios, que ali deviam reputar-fe em completa fegu-
rança » .
A expreíTão enérgica, mas decorofa d'efl:es defpachos
não repugna certamente a que foíTem verdadeiros, íenão em
feus termos litteraes, lequer na dignidade e vehemencia da
juíf:iffima reclamação. A indole briofa de Carvalho, pouco
feito a devorar injurias em filencio, parece relpirar na altiva
independência, com que elle, o reprefentante de uma nação
decadente e abatida, fe altêa e engrandece até olhar de nivel
e com torvo fobrecenho o moderno gigante do Oceano. É
Ibbre um terceiro defpacho publicado e encarecido como a
fuprema demonítração do arrojado animo do miniftro, c|ue
recaem principalmente as duvidas, que parece invalidarem
a lua authenticidade. E. por affim dizer a folemne intimação
á Inglaterra para que fatisfaça á razão e á juftiça de Portu-
gal, ou efpere as duras c infalliveis reprefalias. «Pouco valicis
na Europa, dizia Carvalho á Inglaterra, quando era já mui
grande a noíTa reputação. A voíTa ilha era apenas um ponto
na carta geographica, e já Portugal a enchia com o leu nome.
Dominávamos na Afia, na Africa e na America, e vós domi-
náveis apenas em uma pequena ilha do velho mundo. Vós
éreis uma potencia, que fó poderia afpirar a fer de íegunda
ordem; mas pelos meios, que vos miniftrárnos, ílibiftes á
de primeira » .
O minifiro continuava exprobrando á Gran-Bretanha,
c|3
252
como ella havia fempre efpoliado a Portugal. « Por uma es-
tupidez, que não tem exemplo na hiftoria univeríal do mun-
do económico (dizia elle), confentimos que nos fabriqueis
nolTos vertidos, e nos miniftreis os artigos de luxo, o que não
é de efcaíTa confideração. Damos com que viver a quinhen-
tos mil artífices, fubditos de rei George II . . . São os vos-
íbs campos que nos fuftentam. Aos noíTos ceareiros vieftes
fubftituir os voíTos lavradores . . . Mas fe fomos nós os que
vos levantámos ao cúmulo da grandeza, eftá comtudo em
noíTas mãos o precipitar-vos em o nada, de que generofa-
mente vos tirámos . . . Bafta uma lei para derribar voíTo po-
der, ou ao menos debilitar o voíTo império. Não é mais do
que prohibir fob pena capital que faia o oiro portuguez dos
noíTos portos, e o oiro não fairá. . . Fiz romper o duque de
Aveiro, porque attentou contra a vida de el-rei. Também po-
derei mandar enforcar um dos capitães das voffas naus, pelo
crime de levar de Portugal a regia effigie, contra as determi-
nações expreíTas de uma lei. . . Fazei pois o que deveis, e
eu não farei então o que eftá no meu poder». Depois o mi-
niftro bufcava demonftrar que a Inglaterra vivia unicamente
da tolerância e fraqueza de Portugal; que era com o oiro da
America portugueza que o feu governo pagava ao feu exer-
cito e ás fuás armadas, e fubfidiava as potencias extrangeiras
para as ter por fuás auxiliares. A França poderia miniftrar
a Portugal os lanifícios, que defde tantos annos e com tão
vivas inftancias nos offerecia. Poderíamos difpenfar os ce-
reaes inglezes, porque teríamos na Barbaria um próvido cel-
leiro. Exigia Carvalho finalmente em termos peremptórios
que pelo governo britannico foífe dada a Portugal a mais
completa fatisfação.
Efte ultimo defpacho c efcripto em phrafes de tão afpe-
ra contextura e tão diftantes das formas diplomáticas, ainda
obfervadas entre as nações, quando eftão preftes a romper,
253
que não pode fer admittido como authentico. A fubítancia
das razões e a vehemencia da intimação á Gran-Bretanha,
fe guardaíTcm as formas coftumadas nas communicações in-
ternacionaes, feriam perfeitamente accommodadas á magni-
tude da oífenfa recebida, ao enérgico temperamento de Car-
valho, e á inflexivel hombridade com que fempre Ibube zelar
e defender a honra nacional para com os defmandos e info-
lencias dos governos extrangeiros.
A efpecie de humilhação, com que a Inglaterra, no auge
da fua potencia e majeftade, fe ageitou e fubmetteu ás exi-
gências de Portugal, affombrou a Europa n'aquelles dias.
Nunca fe vira uma nação poderofa e arrogante, que domi-
nava foberana em todos os mares do globo, e avaífallava a feu
império as mais diftantes regiões, abater-fe até o ponto de
enviar uma legação extraordinária á nação queixofa e aíFron-
tada. Bem podéra a Gran-Bretanha reprovar a violência
commettida junto ás aguas portuguezas por um feu impru-
dente e intrépido almirante. Mas defpachar um embaixador
com a miífáo efpecial de offerecer as fuás defculpas a uma
nação defegual em poder e audoridade, era um aéto, que
apparecia agora a vez primeira nos faítos politicos da Eu-
ropa.
Chegou a Lifboa Lord Kinnoul a 8 de março de 1760 e
a 21 teve publica audiência de el-rei D. Jofé. N'efta folem-
nidade aprefentou o embaixador da parte de George II os
cumprimentos, com que laftimava a violação da neutrali-
dade portugueza pelo almirante Bofcawen, e lhe oíTerecia
ao mefmo tempo as mais expreíTivas fatisfações pelo ultraje
á bandeira e foberania de Portugal.
Os mais ardentes adverfarios do miniftro não poderam
eximir-fe a confeífar que por efta conquifta diplomática o
eftadifta portuguez, cuja audácia refpondia ao feu talento,
havia alcançado para a pátria a confideração das nações
extranhas, e para fi a honra de fer elle o órgão e inflrumento
d'efl:e feito fingular'.
Cumpre todavia não efquecer que ao mandar a Lifboa
por feu embaixador extraordinário o conde de Kinnoul, par
de Efcocia, a Inglaterra não demonítrava unicamente a fua
honrada reftidão e a fua generofa condefcendencia. Razões
de egoifmo nacional influiam egualmente no feu procedimen-
to. A Inglaterra logo dcfde que principiara o minifterio de
Carvalho, havia começado a perceber que um novo teor e
norma de politica eftava prefidindo aos deítinos de Portu-
gal. Era um governo verdadeiramente portuguez, o que ti-
nha de fuás mãos vigorofas, refolutas, o timão do eftado, até
então fempre indecifo e ofcillante fob o império de foberano
voluptuofo e indolente, e de miniftros incapazes de nenhuma
determinada refolução. Carvalho fizera defde logo fentir que
o feu principio fundamental no regimien interior e nas rela-
ções com as potencias extrangeiras eítava cifrado na abfo-
luta e fuprema auíloridade e foberania do monarcha, e na
inteira liberdade e independência, com que Portugal devia
fer uma nação exempta e imniune de toda a indireda fujei-
ção e valTallagem encoberta a nenhum poder extranho, qual-
quer que foífe, defde Roma, que o dominava com o annel
do pefcador, aproveitado em authenticar intereíTes munda-
nos e terrenaes, até Londres, que governava a Portugal com
o fceptro mercantil dos feus dynaftas. As providencias de-
cretadas contra a exportação do oiro americano, a fundação
da companhia do Grão-Pará, e principalmente a inftituição
da companhia do Alto Douro, e o fomento influido no tra-
balho portuguez pela creação ou melhoria das induftrias,
■ «Quefto fu veramente um paíTo che fece onore ai noílro gran conte di
Oeyras, ma non fappiamo di certo che a lui debba attribuirfi queffatto di umi-
liazione deiringhilterra.» Vita di Seh. Giiifeppe di Carvalho e Mello, tom. iii,
pag. io3.
255
haviam provocado acerbas reclamações dos negociantes in-
glezes eftabelecidos em Portugal e dos que em Londres fe
empenhavam por terem n'elle e no Brazil a fua mais larga
e frufluofa grangearia. Os mercadores britannicos do Porto
e de Lifboa favoreciam como redundante em feu próprio
beneficio a agitação, que os jefuitas fomentavam contra as
novas companhias. Se accreditàmos n'um defpacho efcripto
pelo encarregado de negócios de França ao íeu governo, os
commerciantes inglezes laftimavam que fe fizeíTe em Portu-
gal dura perfeguição aos jeíliitas, com quem andavam enla-
çados por grandes e lucrativas negociações'. Defenganados
de que nada poderiam confeguir pelos feus esforços em Por-
tugal confociando-fe aos defcontentes e agitadores, bufca-
ram novo theatro, e em Londres empenharam mil esforços
por induzir o gabinete de Saint-James a exigir por meios
extraordinários a revogação das leis e providencias adverfas
ao feu egoifmo e proveito mercantil. Embrenharam-fe em
enredos na bolfa da poderofa metrópole britannica, e por
meio de acerbiíTimos pamphletos e de libellos calumniofos
infamavam a honra e a intenção do governo portuguez. Ac-
cufavam acremente de inércia e de fraqueza o minifterio da
Gran-Bretanha, porque não fulminava Portugal com os raios
das fuás frotas coloífaes, e não decretava defde Londres a
total abolição das companhias de commercio, e a final de-
molição da uhima ofiicina portugueza".
Lamentavam a grandes vozes que o novo fyftcma econó-
mico adoptado pelo duro legiflador arruinaífe nos feus mais
antigos e robuftos alicerces o trafico e a navegação da Gran-
Bretanha nos dominios de Portugal.
' OlTicio do encarregado de negócios de França, de 2 de janeiro de 1759.
Quadro elementar, tom. xvm, pag. 36g.
2 Contrariedade ao libello, parte iv, § 5y.
eis
4tU
-<^
256
Não podia o governo de Inglaterra fer infenfivel aos cla-
mores dos feus naturaes, que pediam remédio á laftimada
quebra do feu commercio É pois certo que ao deputar um
embaixador para dar plena fatisfação pelo infulto perpetra-
do, a Gran-Bretanha vinculava a efta moftra de jufta bene-
volência a efperança de alcançar novos favores para o feu
trato mercantil em Portugal. Não era também provavelmen-
te alheio á embaixada o empenho de eftreitar os laços de
antiga alliança e amizade, que nas fituaçÕes mais criticas
da Europa haviam liado fempre as duas coroas e feito de
Portugal o fatellite confiante da Inglaterra em todas as guer-
ras continentaes. O afpedo dos negócios europeus n'aquelle
tempo, a porfia que andava então renhida entre a França
e a Gran-Bretanha, as diligencias empenhadas pelos france-
zes para defatar do feu alliado o governo portuguez, eram
motivos efiicazes para que vieíTe a Portugal a extraordiná-
ria legação de Lord Kinnoul. Demorou-fe o embaixador na
corte de Lif boa até novembro de 1 760. Durante a fua reli-
dencia não deixou de empregar os feus esforços para dobrar
a vontade inflexível do miniftro e obrigal-o com fuás traças
diplomáticas a contentar a Inglaterra, queixofa dos damnos
irrogados aos feus intereíTes mercantis.
Eíla luífa pertinaz e diuturna entre o eftadifta portuguez
e a Gran-Bretanha, reprefentada por hábeis e ardilofos en-
viados, em meio de inteítinas turbações e de aggreífões ex-
tranhas perigofiffimas, é um dos rafgos preexcellentes no
governo de Carvalho. EUe próprio nos reconta em breves
termos como teve de invocar todo o feu ardente patriotifmo,
todo o vigor do feu talento, todos os feus dotes diplomáti-
cos de perfuafiva difcuífão para contender em peleja equili-
brada com tão confummados antagoniftas, quaes eram Lord
Kinnoul, e depois d'elle Edward Hay, William Henry L}1-
tleton e Robert Walpole, fucceffivamente enviados extraor-
237
dinarios de Inglaterra em Portugal. Proleguia a pendência
animada e indecifa ao mefmo tempo em Londres e em Lis-
boa. Aqui era Carvalho em peíToa o negociador, na metró-
pole ingleza o enviado portuguez Martinho de Mello. Mas o
efpirito do grande eftadifta dominava egualmente pela fua
palavra infinuante nas conferencias de Lifboa e nas contes-
tações de Londres pelas luas prudentes e luminofas inftruc-
ções ao plenipotenciário de Portugal. N'ell:es debates fempre
difficeis, e ainda mais elcabrofos quando empenhados com
uma nação altiva, poíTante, convencida da lua força e pre-
eminência, firmou o miniftro portuguez os princípios mais
inconteftaveis e feveros, que definem as relações das poten-
cias entre fi, e aíTentou o dogma fundamental de que, obfer-
vados os deveres e os officios do direito das gentes, a cada
povo, no ufo da própria independência e majeftade, é licito
governar-fe a feu arbítrio, lem que feja permittida a outra po-
tencia a minima intervenção nos feus negócios domefticos e
interiores. Propugnavam-fe as máximas jurídicas, de fi incon-
troverfas, de que não faz offenla a algum terceiro o que ufa
do feu direito; de que á foberania independente e livre de
toda a externa fujeição compete o jus fupremo de regular pela
fua poteífadc legiflativa a vida focial e económica em feus
eftados, como a um Hmples particular é licito adminiftrar a
feu talante a cafa própria, fem que os amigos ou vizinhos te-
nham direito de lhe pedirem explicações ou de julgarem-fe
offendidos e affrontados. Demonftrava-fe que efte era o fun-
damento de toda a foberania, e o ufo confiante de todos os
governos europeus, os quaes tinham fundado companhias
commerciaes, e inítituido as fuás manufacturas, para que o
feu commercio profperaffe e a induftria nacional abaíteceífe
de produdos a nação, fem a forçofa dependência dos fabri-
cos extrangeiros. «E eftas, — dizia o miniftro portuguez aífe-
melhando, fegundo a fua predilecta allegoria, uma abfoluta
.^^ -<J>-§-
258
monarchia a uma familia e o regimen dos eítados ao poder
patriarchal, — eftas fão difpofições domefticas de um bom
pae de familias, que nem deve deixar precipitar os feus fa-
miliares nos vicios e abfurdos da ociofidade, nem tirar o
pão da bocca aos feus próprios filhos para o dar a comer
aos extrangeiros ' » .
A Inglaterra tão ciofa de fua independência e majeftade,
a Inglaterra, que da fua antiga mefquinhez fe tinha levantado
a fer n'aquelle tempo a primeira entre as nações pela fua
induftria e navegação, a Inglaterra, que n'aquella mefma
edade via accrefcido e fecundado o feu tráfego fabril pelas
admiráveis invenções de Arkwright, de Hargreaves, de Cart-
wright, que levaram á vigorofa adolefcencia a induftria do
algodão, não podia conteftar aos demais povos com fombra
de juftiça o que ella própria executava para augmentar a fua
riqueza e multiplicar a fua producção. Algumas conceífões
internacionaes em favor dos negociantes inglezes acalmaram
o fermento das perigofas defintelligencias. D'efta luda os
dois adverfarios faíram abraçando-fe, apertados os vínculos
centenários de fua convivência e amizade. Mas as compa-
nhias continuaram a cxiftir, e Carvalho perfeverou cada vez
mais zelofo no feu empenho de fomentar e engrandecer a
induftria de Portugal. Pouco depois de haver partido o em-
baixador inglez conde de Kinnoul, pelo alvará de i6 de de-
zembro de 1 760 augmentava o zelofo miniftro portuguez em
mais feifcentos mil cruzados o capital da companhia das
vinhas do Alto Douro. A infthuição, apefar de impugnada
pelos jefuitas, combatida pela nobreza, e condemnada pelos
mercadores bretões, refiftia inexpugnável aos golpes dos feus
antagoniítas.
Se a Inglaterra deu plena fatisfação do infulto commet-
■ Appenjo 2." da contrariedade ao libello, § 62.
c|9
tido contra a bandeira portugueza, não foi todavia condes-
cendente em acceder ás inftancias de Portugal para que fos-
fem á França reftituidos os navios do almirante de la Clue,
aprefados por Bolcawen na acção naval junto de Lagos.
As relações entre Portugal e o gabinete deVerfailles não
eram defde muito por extremo cordiaes e aufpiciolas. Via a
França com laftima e ciúme que o governo portuguez gene-
rofamente confentiíTe aos inglezes o apoíTarem-fe do feu com-
mercio, lograrem o melhor quinhão no oiro da America, e
inundarem de fuás fazendas, principalmente de lanifícios, os
mercados de Portugal, fem que a França podeíTe participar
em nenhuma d'el1:as vantagens mercantis. Os defpachos dos
agentes diplomáticos francezes para a corte de Luiz XV fão
copiofos em frequentes lamentações a efte refpeito. N'elles
predomina como tom fundamental a queixa amarga de que
Portugal fe deixe avaflallar inteiramente ao jugo de Ingla-
terra, e da alliança e patronato d'eíta potencia tenha feito
a fua ancora de falvação. A má vontade do governo fran-
cez reíTumbra a cada paíTo nos documentos internacionaes
d'aquelle tempo. Um dos reprefentantes de Luiz XV na cor-
te de Lifboa diítinguia-fe entre todos pela fua malevolencia
contra Portugal e pela fua implacável animadverfão ao pri-
meiro miniftro de D. Jofé. Era o conde de Merlc, que nos
annos de lySg e 1760 refidia em Lifboa acreditado. Era
efte embaixador amigo c fautor apaixonado dos jefuitas, e
cultivava as mais eftreitas intimidades com o núncio Accia-
juoli, e de um e de outros fe declarava ardente apologifta
em feus defpachos. E provável que não teria pequena parte
nas fecretas cabalas e conluios, que por aquelles tempos
bufcavam empecer a cada paífo o progreíTo da adminiftra-
ção.
A infracção da neutralidade portugueza durante a guerra
entre a França e a Inglaterra viera miniftrar novos eftimulos
■y- -ò-l-
e|s tis
260
á fanha do embaixador. E precifo todavia confeíTar que os
inglezes não eram nimiamente efcrupulofos em guardar as
regras e principios do direito internacional. Ao fado realmen-
te efcandalolb e offenfivo de queimarem em aguas portu-
guezas dois vafos e aprefarem alguns outros do almirante
de la Clue, tinham vindo accrefcentar-fe novas aggreíTões
dos inglezes contra os navios inimigos á vifta da bandeira de
Portugal. Achando-fe em Faro fundeada uma polaca fran-
ceza preftes a defcarregar, o coníul de Inglaterra avifára por
meio de fignaes as fragatas inglezas, que andavam cruzando
n'aquelles mares, para que entrando no porto e ancorando
impediíTem o feu tráfego ao navio mercante do inimigo. Em
Vianna do Minho apparecêra pouco depois um corfario fran-
cez conduzindo uma prefa britannica. Os negociantes ingle-
zes, que ali tinham luas cafas de commercio, armando em
guerra quatro chalupas e faindo logo a barra, acommette-
rani rijamente o corfario e, tirando-lhe a preza, voltaram a
Vianna oftentando o feu triumpho á vifta das autoridades
e do povo, que fora teftemunha do confliifto.
Apefar das inftantes reclamações do embaixador pedindo
a reftituição dos navios aprefados por Bofcawen, e a defaf-
fronta pelas violências de Faro e de Vianna, a pendência
diplomática, cada vez mais exacerbada, não dava moftras
de chegar a conclulao. O gabinete deVerlailles accufava aber-
tamente o minifterio portuguez de parcial e condefcendente
com eftas quebras da neutralidade em favor do feu alliado
prediledo. Em um feu defpacho de 3 de fevereiro de 1760
dizia o duque de Choifeul, então miniftro dos negocies ex-
trangeiros em Paris, ao embaixador conde de Merle: «Devo
prevenir-vos de que não temos razão para eftar contentes
com a corte de Lifboa, e que ella não é do numero das
potencias, com as quaes o bem do ferviço de el-rei pôde
exigir que tenhamos condefcendencias, attenções e facilida-
eis
tia
261
des'». E n'um defpacho de i i de março de 1760, referindo-
fe á N-iolencia perpetrada contra o corfario francez no porto
de Vianna, dizia ainda em mais categóricas palavras que
uma tão manifefta violação da neutralidade fe aíTemelharia
extremamente a uma direda hoítilidade, fe a corte de Por-
tugal negaíTe á França n'aquella occafião a juíliça, que lhe
devia-». O defpacho de Choifeul, a 12 de março de 1760,
ameaçava a guerra a Portugal, dizendo que fe a corte de
Lifboa «não delTe ao rei de França cabal e publica fatisfação
acerca dos dois navios tomados pelos inglezes, adoptaria as
mais cfficazes providencias para que juftiça lhe foffe feita^».
Chegada quafi ao cumulo a indignação do gabinete de Ver-
failles, rompia em duras exprefloes o duque de Choifeul,
exprobrando a Seballião de Carvalho a fua notória e injurta
parcialidade para com os inimigos da França, os vexames
que os feus navios padeciam nas aguas portuguezas, as vio-
lências contra o livre commercio e navegação em portos neu-
tros, a defattenção, com que o embaixador francez era tra-
tado pelos fecretarios de eftado de D. Jofé. Expreífava com
vigor que todos aquelles procedimentos fe não podiam já es-
conder nem tolerar, e que o rei de França devia á fua pró-
pria dignidade o fazer experimentar á corte de Lifboa algum
fignal do feu refentimento'')'.
Todas eftas defabridas manifeftações eram prenúncios
do formal rompimento, que fe andava preparando, e que
veiu finalmente a declarar-fe cm 1762. Parece que não eram
deítituidas de fundamento as increpações do duque de Choi-
feul e do embaixador francez na corte de Lifboa. É plaufi-
vel que Sebaílião de Carvalho, vendo já accumuladas nas
' Qiiadro elementar, tom. vi, pag. 197 e 198.
2 Quadro elementar, tom. vi, pag. 209.
3 Quadro elementar, tom. vi, pag. 2i3 e 214.
4 Quadro elementar, tom. vi, pag. 214 e 21 5.
4 4»
^ -<ô>-i-
262
extremas do horizonte as nuvens precurforas da próxima
borrafca, fc inclinaíTe a favorecer com aíhita diffimulação
as infracções da neutralidade commettidas pelos inglezes,
prevendo já que viria não remoto o lance, em que vendo-íe
a braços com os dois monarchas mais poderofos da cafa de
Bourbon, fó teria na Gran-Bretanha o arrimo e falvação.
O que é certo é que preftando-fe a Inglaterra a dar pleno
defaggravo a Portugal pela oífenla feita em Lagos á fua
bandeira, não lograram as inftancias de Carvalho alcançar a
reftituição dos navios aprefados. Da correfpondencia media-
da entre o duque de Choifeul e o feu embaixador fe depre-
hende com evidencia que Portugal não quiz nunca attribuir á
oífenfa própria e ao aprefamento dos navios em aguas portu-
guezas a mefma importância e íignificação.
CAPITULO XI
A EDUCAÇÃO E O TRABALHO NACIONAL
No meio das domefticas turbulências, das complicações
internacionaes, em pleno rompimento efpiritual e temporal
com o Vaticano, a viíta aquilina do grande reformador achava
tempo e occafião para eftudar os problemas fociaes, admi-
niftrativos e económicos da nação, a que foberanamente pre-
fidia.
Expulfos os jefuitas de Portugal eftavam cerradas as
efcolas, d'onde até ali m.anára principalmente ao povo por-
tuguez a fua inefficaz e viciofa educação. Secularifado o go-
verno pela fua emancipação de todo o jugo theocratico, era
precifo fecularifar egualmente o enfino, convertendo-o n\ima
funcção eíTencial da adminiftração. A inftrucção, fegundo as
judiciofas doutrinas de Carvalho, não devia fer o luxo oifen-
.§-A- .H^-^
th e|j
2D3
tofo do efteril pedantifmo, mas o preciofo cabedal do frudi-
fero trabalho. O eftado tinha menos por miíiao o fabricar lá-
bios e eruditos do que allumiar os entendimentos para que
melhor defempenhaffem os officios da vida económica e Ib-
cial. O commercio era um dos aíTumptos fingulares da lua
extrema predilecção. Queria levantal-o da lua decadência e
abatimento. Um dos meios mais profícuos era a cultura dos
homens deftinados ao trato commercial. D'ahi nafceu a fun-
dação do primeiro inftituto mercantil, principio e fonte de
toda a noíTa inftrucção profeíTional. O alvará de 19 de maio
de 1759, confirmando os eftatutos da Aula do commercio,
abriu aos negociantes portuguezes as furgentes da nova luz.
N'efta proveitofa inll:ituição devia profeíTar-fe a arithmetica
mercantil, as doutrinas fcientificas do commercio, os pefos,
medidas e moedas, os câmbios e feguros, e a efcripturação
commercial em partidas dobradas, proceíTo ainda então quafi
defconhecido em Portugal. D'efte primeiro eftabelecimento
faíram durante o miniíterio de Carvalho muitos homens ha-
bilitados e profeíTos nas praxes racionaes da mercancia. O
famofo inítituidor podia com razão aíTeverar em lyyS, quefe
d'antes fe mandavam bufcar a Génova e a Veneza com pin-
gues honorários os guarda-livros para as cafas commerciaes,
havia já então em Portugal numerofas peíToas inftruidas na
fciencia do commercio e na contabilidade mercantil'.
Apregoavam os fcftarios dos jeluitas que pela fua ex-
pulfão fe havia apagado toda a luz da intelligencia. Era pre-
cifo dcmonftrar que em vez de fer um damno o eftarem agora
profcriptas e defertas as efcolas da Companhia, renafceriam
pelo contrario, fob os aufpicios do império temporal, as boas
lettras, como tinham florelcido, antes que no reinado omi-
■ Ob/ervaçóes fecretijfimas do Marque^ de Pombal /obre a collocaçáo da
ejlatua equefire.
<|3
4S^
_ -<í^
264
nofo de D. João III os jefuitas fe apoíTaíTem de toda a fobe-
rania intelledual, expulfando de Coimbra os Teives e os Gou-
veias, os Buchanans e os Grouchys.
Pelo alvará de 28 de junho de lySg eram extindas as es-
colas jefuiticas, e abolida a fua memoria, como fe em tempo
algum houveram exiftido. Era creado o officio-de direftor ge-
ral dos eíludos. Decretava-fe que houveffe em cada bairro de
Lifboa um profeíTor de latim. Prohibia-fe com graves penas o
enfinar pela grammatica do jefuita Manuel Alvares, e pelos
commentarios dos feus confocios António Franco, João Nu-
nes Freire e Jofé Soares. Eftabeleciam-fe um ou dois pro-
feffores de latim em cada uma das villas principaes. Fun-
davam-fe na capital quatro aulas de grego, e duas em cada .
uma das cidades de Coimbra, Porto e Évora. Attribuia-fe
a cada cabeça de comarca um profeíTor do idioma helle-
nico. A rhetorica tinha quatro cadeiras em Lifboa, duas em
cada uma das três outras cidades principaes, e uma em cada
terra, capital de correição. E notável que o eftadifta deixaífe
no filencio a philofophia. Procedeu, porém, com boa razão.
Tinham fido taes e eftavam por tal feição enraizados no paiz
os velhos preconceitos da informe fciencia injuftamente ap-
pellidada ariftotelica, que mais valia profcrevel-a do enfino
totalmente, do que pôr-fe a lanço de continuar cerrando as
trevas, que eíta enredada e efcura difciplina eítivera adenfan-
do nas efcolas jefuiticas e nos clauítros monachaes. Alguns
annos mais tarde a philofophia entrou nos quadros da inftruc-
ção publica, e foram nomeados profeífores, que a enfmaífem
nas principaes povoações.
Os meftres públicos foram declarados nobres, o que não
era como hoje uma diftincção inane e pueril, porque, fubfis-
tindo na legiflação differenças fundamentaes entre os nobres
e os peões, o attribuir a uma peíToa as honras e privilégios
da nobreza era como conceder-lhe os foros de homem livre
eis
elí
265
e de perfeito cidadão, quaes podiam exiftir no feio da mo-
narchia abíbluta.
Para evitar que as doutrinas jefuiticas podeíTem ainda
filtrar-fe diíTimuladas na educação da juventude, prohihiu
Sebaítião de Carvalho o enfino particular, a quem não con-
feguiíTe permiíTão official. Nas inftrucções de 28 de junho de
lySg para os profeíTores novamente inftituidos, o miniftro
previdente, que a tudo fubordinava o feu penfamento funda-
mental de abolir e deíf errar os últimos veftigios da condemna-
da Companhia, decretava prohibida e reprovada a Pwfodia
do jefuita Bento Pereira, e mandava adoptar para o enfino
a grammatica grega de Port-Royal, da famofa abbadia cujo
nome ficou para fempre vinculado ao antagonifmo inconci-
liável entre jefuitas e janfeniftas. A congregação do Oratório,
que paífava por inimiga da profcripta fociedade, foi audori-
fada a continuar o feu enfino nas efcolas da fua religião.
Para que dos livros defefos na inítrucção não podefTem
os numerofos exemplares continuar a diffundir-fe em Portu-
gal, ordenou Sebaítião de Carvalho que fe remetteífem á di-
rectoria geral dos eftudos os compêndios, que exiftiffem nas
cafas e coUegios fequeftrados ú Companhia.
Parallelamente á lufta bravamente empenhada contra os
jefuitas, Sebaftião de Carvalho, imitando e encarecendo o
vigorofo procedimento de D. João II, havia bufcado ani-
quilar inteiramente a influencia politica da nobreza e fidal-
guia. Não lhe era poííivel, fubfifiindo o throno abfoluto,
alvo prediledo da fua idolatria, fupprimir a ordem privile-
giada, que na mefquinha c velha crença dos monarchicos
é o adorno e refplendor, de que apparece conftellada c mais
pompofa a majeftade. Mas fe não lhe era dado extirpar in-
teiramente uma claífe preeminente e rebaixal-a ao nivel com-
mum da peonagem, cumpria que foífe ao menos illuminada
e pela fua crefcente illufiração podeífe confociar-fe aos pro-
^ -í»-^
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greíTos nacionaes. A carta de 7 de maio de 1761 fundou para
a nobreza um inllituto, onde fe induftriaíTem nas lettras e nas.
fciencias os feus filhos. Era o Collegio real de Nobres uma
femelhança e refurreição do que haviam fido cm Coimbra
os de S. Miguel e de Todos os Santos, aonde os fidalgos con-
corriam a educar- fe antes que os jefuitas fe apoderaífem de
toda a inftrucção na univerfidade. Devia profeífar-fe em o^
novo eítabelecimento o latim, o grego, o fi"ancez, o italiano,
o inglez, a rhetorica, a poética, a geographia, a hiftoria. A
philofophia continuava a fer profcripta, e apenas a lógica
devia fer enfinada como um puro adminiculo da oratória,
ao tratar-fe da invenção e difpofição. O collegio era pois um
regular lyceu de humanidades. O legillador, porém, compre-
hcndia que as linguas claíTicas e o que então fe appellidava
a philologia, não podiam ler completo repafto da intelligen-
cia e da razão n'um feculo, em que a fciencia rafgava largos
voos, prenunciando a prefente civilifação. Sebaftião de Car-
valho temia, que pretendendo inftituir homens illuftrados e
preftadios, lhe faiífem pedantes ociofos, e eítereis para todo
o progreífo intellcdual. Era precifo incluir no quadro peda-
gógico as fciencias da razão e da experiência, as fciencias
mathematicas e naturaes. Três profeíTores haviam pois de
enfinar as mathematicas em três annos, defde a arithmetica^
a álgebra e a geometria elementar até á geometria analytica,.
ao calculo infinitefimal, á mechanica e aos princípios eífen-
ciaes da aftronomia. A phyfica reprefentava n'efl:e quadro as
difciplinas experimentaes. Vários curfos efpeciaes completa-
vam o enlino, applicando ás profiífões technicas as fciencias
puras ou abftraftas. Devia pois enfinar-fe a navegação, a
architedtura civil e militar, e o defenho. A efgrima, a danfa,
a equitação contrapefavam, como proveitofos ou elegantes
exercícios corporaes, a fevera difciplina das lettras e fcien-
cias.
2b7
Era o audaz legillador criminado pelos feus duros ini-
migos de ter em menos preço as coufas rcligiofas. O rom-
pimento com o pontifice eftava apenas em principio fem
profpecto de breve terminação. Ao paílb que Sebaílião de
Car\'alho eítá vibrando e fegundando e repetindo fem tré-
gua nem quartel os feus golpes implacáveis contra os jefui-
tas e contra as ufurpações do afiado ecclefiaftico ao governo
temporal, os preâmbulos e as fentenças das fuás leis e alva-
rás refpiram a mais fervorofa piedade e refcendem a uncção
mais orthodoxa. Os eftatutos do Collegio dos Nobres princi-
piam com uma d'eflas religiofas expanfões. Ordenam antes
de tudo, que os eftudantes ouçam miíTa quotodiana como
efpiritual preparação aos trabalhos de cada dia; que ao
fabbado rezem devotamente a ladainha de Noífa Senhora
e que frequentem menfalmente o tribunal da penitencia e a
mefa da communhão. E para que os jefuitas não accufaífem
a Carvalho de que profcrevia a afcefe e a myftica divagação
pelas contemplações celeíliaes, obrigava os efcolares a terem
em cada anno três dias de exercícios efpirituaes.
Com eflas incompletas, mas para aquelle tempo oufadas
providencias litterarias entrou pela primeira vez em Portu-
gal o enfino publico, inteiramente defligado de todo o vin-
culo clerical.
Não era, porém, unicamente a educação nacional, que
preoccupava o efpirito claro e quafi omnividente de Carva-
lho. Defvelavam-n'o com fingular predilecção as providen-
cias encaminhadas a eftatuir a liberdade peífoal, abolindo as
leis, as tradições e os coíkimes abufivos, que eífabeleciam
odiofas e infamantes diftincções entre homens fubordinados
a uma fó e única monarchia. Não entrava nos feus planos
aduaes o favorecer as liberdades e franquias populares na
accepção politica e democrática, mas repugnava-lhe a fervi-
dão como alfronta á humanidade. Havia libertado os indios
eis
268
de Grão-Pará e Maranhão. Agora, pelo alvará de 8 de maio
de 1758, ampliava a todos os Índios do Brazil a mefma juftis-
íima alforria, declarando livres, fem nenhuma reftricção, as
fuás peíToas, os feus bens, os feus convénios. Outra benéfica
providencia, o alvará de 2 de abril de 1761, decretava que
todas as peíToas nafcidas na índia portugueza, fendo chriftans
foíTem em tudo egualadas aos naturaes de Portugal, e ficaíTem
defde logo habilitadas para todas as honras, dignidades, em-
pregos e jurifdicções. Determinava em feu favor confideraveis
privilégios, qual o de ferem preferidos em concurfo para os
cargos d'aquella poífeífão. E para defterrar ignominiofas dis-
tincções prohibia, fob penas mui feveras, aos que foífem origi-
nários da Europa, o alcunharem de negros ou de meftiços os
que pertenceífem ás raças indigenas ou d'ellas derivaífem a
fua genealogia. Efta comprehenfão da egualdade humana
e da liberdade individual n'uma quadra, em que os mais
illuminados publiciftas ainda eram hefitantes acerca das dif-
ferenças de raça e condição, denunciava que no miniftro,
cujo enérgico inftrumerito era na apparencia o intolerante
abfolutifmo, alvoreciam as idéas fomente profeífadas após
alguns decennios pela grande e innovadora Revolução.
No próprio território de Portugal ainda a fervidão era
mantida como memoria opprobriofa d'aquelles tempos, em
que os portuguezes faziam da Africa o fecundo feminario
da fua efcravaria. Eram numerofos os efcravos, que dos
domínios portuguezes fe traziam a Portugal. Antes que nin-
guém na Europa fe lembraífe de expungir efta vergonha da
civilifação chriftan, o miniftro de D. Jofé, fempre infpirado
pela fua alta concepção da humanidade, prohibia pelo alvará
de 19 de fetembro de 1761 que da Africa, da Afia, ou da
America a Portugal fe trafladaífem como efcravos peflbas
de raça negra. Promulgava-fe a falutar, a humana providen-
cia de que todos os pretos, que AÚelfem á metrópole, feriam
tii
269
defde logo reputados livres, fem nenhuma indemnilação pa-
ra os fenhores. Não podemos diíTimular que efta manumiíTão
não era unicamente dirigida a extirpar fequer no território
portuguez da Europa a infame inftituição. Mas fe por efte
meio fe intentava prevenir a falta de africanos trabalhadores
nos dominios do Uhramar, e principalmente no Brazil, nem
por iíTo íica menos veneranda a memoria do grande legifla-
dor. Não podendo pelas conveniências do feu tempo deftruir
de um golpe o viciofo lyítema colonial, commum ás mais es-
clarecidas potencias europêas, antecipava-fe comtudo n'efl:e
empenho a Wilberforce, ao illuftre Sá da Bandeira, c aos
eftadiítas generofos e audazes, que apagaram finalmente da
fronte do Brazil o ferrete, que infamava o vallo império. Se-
baftião de Carvalho foi o primeiro homem, que no governo
fe atreveu a decretar e defender que o trabalho humano não
pôde ler fenão a acção do homem livre e independente fo-
bre a natureza fubdita e efcrava.
A induflria e o commercio continuaram a ter por aquelles
tempos em Sebaftião de Carvalho um infatigável e diligente
promotor. E então que fe eftabelece (6 de agofto de lySy)
a fabrica das fedas no fitio do Rato, fob o immediato patro-
cínio do eítado. E então que efta valiofa induftria fe eftimula
decretando em feu favor a exempção de direitos para todos os
feus produdos fabricados em Portugal'. E então que fingu-
larmente fe protegem com privilégios pelToaes os indivíduos
empregados n'eí]:e ramo de trabalho nacional. E então que
fe ordena junto á fabrica do Rato, no fitio das Amoreiras,
a edificação de cafas accommodadas á habitação e lavor dos
fabricantes-, umas conftruidas a publicas expenfas, as outras
erigidas por peífoas particulares.
1 Decretos de 2 de abril e 24 de outubro de i/Sj.
2 Decreto de 14 de março de 1759.
É também por aquelle tempo que Sebaítião de Carva-
lho decreta providencias em favor das fabricas de lanifícios
nas comarcas da Guarda, Pinhel e Caftello Branco, e feguin-
do os princípios económicos, de que n'aquelle leculo os es-
tados europeus não fabiam defatar-fe, fixa o máximo preço
ás lans e aos artefaílos, de que eram matérias primas".
Não é menos copiofa e importante a legiflação promul-
gada n'aquelle período para fomentar e engrandecer o tra-
do mercantil, e honrar e ennobrecer os que a elle fe dedica-
vam. O commercio e a induftria confUtuiam na ordem focial
a grata predilecção para o animo do miniftro legiílador. Os
preâmbulos das fuás leis e alvarás contêem a glorificação
d'efte ramo de trabalho, que é a medida e o fignal da civi-
lifação económica de um povo. Fixam-fe então os preceitos
fegundo os quaes, em proveito da mais útil e regular commu-
nicação commercial entre o Brazil e a metrópole, fe deviam
regular as frotas, em que então fó era permittido o trafico
para as fecundas regiões da America meridional ^ Amplia-fe
a todos os navios portuguezes, que tranfportaífem madeiras
nacionaes, a reducção de direitos concedidos á companhia
do Grão-Pará^ Depois do terremoto, com o pretexto das
graves perturbações caufadas ao commercio por aquella es-
pantofa calamidade, haviam fido frequentes e numerofas as
quebras fraudulentas. Decreta o eítadifta remédios falutares
para que efta praga mercantil não venha empecer e defani-
mar o tráfego dos honrados mercadores''.
Obedecendo ao principio, quafi geral em toda a Europa,
de que a induftria e o commercio eram profiífões eífencial-
1 Alvará de 1 1 de agoílo de 17 5g.
2 Alvará de 25 de janeiro de 1/55.
3 Alvará de 29 de maio 1756.
4 Alvarás de i3 de novembro de 1756, e 17 e 3o de maio de 1739.
eis
mente fubordinadas aos regulamentos do governo, e de que
os officiaes de cada mefter e os membros de uma claíTe de
mercadores deviam conftituir uma cerrada corporação, regi-
da por difpofições e regras oíficiaes, Sebaftião de Carvalho
publica os eftatutos, pelos quaes fe haveria de governar a
Mela do bem commiim dos mercadores', e aíTigna a cada uma
das cinco claffes, em que fe repartia o commercio das fazen-
das a retalho, as ruas onde, na cidade baixa depois de re-
conítruida, teriam exclufivamente as fuás lojas.
Ao mefmo paíTo, que pela fevera applicação de doutri-
nas económicas erróneas, mas geraes em todos os eítados
europeus de maior cultura, fe mantém a fujeição do com-
mercio interno á ciofa tutela da audoridade, reftitue em
parte o miniflro a liberdade ao commercio em grandes pro-
porções. Declara inteiramente livre a navegação para Angola
e Moçambique-. Decreta a abolição do monopólio, que o es-
tado havia feito do vellorio ou da miífanga para o trato de
permutação com as gentes africanas^ A fedudora theoria,
então amimada e feguida cm toda a Europa de que n'um
paiz de commercio decadente e frouxa energia individual, a
fruduofa exploração das regiões ultramarinas fó poderia efFei-
tuar-fe pela collediva diligencia das poderofas companhias,
continuava a dominar o efpirito de Carvalho. A femelhança
da que eftava inftituida para o trafico da metrópole com o
Grão-Pará e Maranhão fundou o eítadiífa uma nova focie-
dade mercantil, a companhia de Pernambuco e Parahiba,
com o capital de três milhões e quatrocentos mil cruzados, e
com privilégios e exempções tão largas e valiofas, como as
que já foram concedidas á que lhe fervia agora de exemplar
' Alvará de i6 de dezembro de lySy.
2 Alvará de 7 de maio de 1761.
3 Alvará de 7 de maio de i/di.
tia
4eU
272
e de modelo'. Decretou egualmente por aquclles tempos no-
vas conceíTóes á companhia do Grão-Pará, e publicou va-
rias e feveras providencias para fortalecer e profperar a fua
mais dileda inftituição commercial, a companhia do Alto
Douro.
Não fão menos dignas de commemoração as duras pe-
nalidades, com que bufcou reprimir o immenfo contraban-
do, que lefava ao mefmo paíTo os redditos do thefouro, e
opprimia por uma concorrência defegual o licito commer-
cio. É notável a próvida legiflação, em que procura inhibir
e caftigar o abufo, com que os morteiros e conventos, os fi-
dalgos, os militares e os próprios officiaes das alfandegas,
confpiravam todos no contrabando, amparando e favore-
cendo os infra (flores das leis fifcaes-.
A inftituição dos pharoes nas coftas de Portugal é um
ado, que teftifica o empenho de Carvalho em aíTegurar a
navegação. Ordenou o miniftro que fe erigiíTem féis pha-
roes, que deviam fer collocados no Bugio, em S. Julião, na
Guia, nas Berlengas, no Porto e emVianna-.
Applicou-le a lagaz diligencia de Sebaftião de Carvalho
a reduzir a melhor ordem a anarchia e a confufão, que ti-
nham feito da fazenda publica um labyrinto, em que fol-
gavam os exaflores para fraudar os rendimentos nacionaes.
Cumpria centralifar a adminiftração das rendas publicas, re-
partida entre numerofas e improfícuas eftações, e pro^'er á
contabilidade methodica e racional das receitas e dos gas-
tos da nação. A fundação do Thefouro geral ou Erário pu-
blico é uma das mais aíTignaladas innovações do grande re-
formador "•.
' Alvará de 10 de fevereiro de 1757.
2 Alvará de 14 de novembro de 1757.
3 Lei de i de fevereiro de 1758.
4 Carta de lei de 22 de dezembro de 1761.
273
Com eíla previdente inftituição principiou em Portugal
a adminiftração regular da fazenda publica, fem a qual é
impoíTivel, ou por extremo viciofa, toda a acção governativa.
Uma lei, publicada ao mefmo tempo, completava o novo
fyftema de acção fifcal, regulando as attribuições do antigo
confelho da fazenda'.
Todas aftas multiplicadas providencias em beneficio da
illuftração, da riqueza e da ordem interior não diftrahiam
em tanta maneira a attenção incanfavel do miniftro, que o
tiveíTem agora inerte e defapercebido para aíTumptos pon-
derofos, que intereffavam em fummo grau a própria ma-
jeftade e independência de Portugal.
CAPITULO XII
A GUERRA COxM A HESPANHA
Era Sebaftião de Carvalho, na mais ampla accepção
d'eftas palavras, um eftadifta civil e adverlb a toda a oftenta-
ção de força nas fuás relações com as potencias extrangeiras.
Bufcava, antes de tudo, illuftrar e enriquecer a lua pátria, e
contentava a lua indefeffa e innovadora actividade com o
theatro modefto do paiz, a cuja relurrcição moral fe havia
confagrado. Não defejava a guerra, mas tampouco a defde-
nhava, quando foíTe defenfiva contra forafteiras oppreíTões e
prepotências. Evital-a-hia, quanto podeffe, excepto quando
a honra nacional cftiveíTe pendente por um fio da ponta de
uma efpada.
As relações de Portugal com a França e com a Hefpanha
eram já defde longo tempo, fe não rotas e hoftis, ao menos
I Carta de k'i de 22 de dezembro de /761.
T*
274
fufpeitofas, defamoraveis. As diuturnas conteftações com a
Helpanha, acerca dos limites na America do Sul, tinham
accrefcido á velha tradição de malquerença e inimizade en-
tre as duas coroas peninfulares. Os Bourbons affentados no
throno de Filippe II continuavam, fequer nas intenções, as
miras ambiciofas da cafa de Auftria. Portugal era fempre no
conceito dos governos hefpanhoes uma província rebcllada.
A Peninllila inteira devia, fegundo elles, abrigar uma lo
grei, fob um fó dominador.
A França profeguia com a lua rival de além da Mancha
uma guerra defaftrofa. Os íbberanos da cafa de Bourbon
tinham celebrado em 1 5 de agoíto de 176 1 o famofo Pado de
familia, efpecie de permanente confederação entre todos os
monarchas d'efta infaufta e perniciofa dynaftia. A Helpanha
havia fido arraftada a empenhar-fe na luda contra a Gran-
Bretanha. Mas a grande nação infular tinha em Portugal
um alliado fiel e perfeverante na obfervancia dos antigos
tratados com a Inglaterra. Esforçavam-fe as duas coroas de
Bourbon em fegregar a Portugal da alliança e favor aos in-
glezes, e em forçal-o a romper a fua neutralidade.
O rei de Portugal, ainda que ligado eftreitamente por
vínculos de fangue á cafa de Bourbon, não era propriamente
um ramo d'aquelle tronco, e não fora por iffo incluído no
Pado de familia. Mas a convenção firmada em Verfailles
entre Luiz XV e Carlos III, a 4 de fevereiro de 1762, pelos
dois plenipotenciários, duque de Choifeul e marquez de Gri-
maldi, eítabelecia no artigo 7." que os dois monarchas parti-
cipariam ao rei de Portugal a fua união, perfuadindo-o a
congregar-fe com elles na liga paduada, porque feus vas-
fallos padeciam mais do que outra qualquer nação o jugo
impofto pela Inglaterra a quantos povos tinham n'aquellc
tempo navegação e domínios ultramarinos. Não era, diziam,
jullo que a França e a Hefpanha fe houveflem de facrificar
c|3
por um interefle, que lhes era commum com Portugal, e que
elta potencia não fomente fe reculaíTe a auxilial-as, fenão que
pterfiftifle em enriquecer o inimigo e em dar-lhe nos feus
portos guarida e acolhimento. Com uma arrogante infracção
do direito das gentes, decretavam os dois Bourbons que o
rei de Portugal não podia conlervar-fe indiíferente na guerra
já travada, e lançavam terminantemente a ameaça de que
fe não baftaífe a perfuafão, a força o obrigaria a romper a
neutralidade.
Sebaftião de Carvalho prefentia defde muito o golpe,
que lhe eftavam apparelhando as duas potencias inimigas
da Inglaterra. Já em 1 5 de novembro de 1 76 1 e nos pri-
meiros mezes do anno immediato, a vifta perfcrutadora do
miniftro defcortinava os fignaes da próxima tormenta, por-
que expedia n'eíre tempo a Martinho de Mello, plenipoten-
ciário portuguez em Londres, fecretas inftrucções para que
reclamaífe do gabinete britannico os auxilios de tropas e de
navios, fegundo fe eftipulára no tratado de 16 de maio de
1703. Encarregara egualmente aquellc diplomático de al-
cançar de Inglaterra um general de grande capacidade para
que vieffe commandar o exercito portuguez. Commettera-
Ihc também o negociar que outros officiaes de excellentc re-
putação fe obrigaífem a fervir nas fileiras de Portugal.
Tal era por aquelle tempo o defamparo, em que jaziam
as inftituições militares, que era forçofo mendigar em terra
extranha os próprios officiaes, que haviam de mandar folda-
dos portuguezes, outrora celebrados em todo o mundo como
exemplo gloriofo de virtudes e feitos bellicofos. Era laflimo-
fo e miferavel o eftado da força defenfiva em Portugal. O
exercito, apefar das efcaífas providencias, que Sebaftião
de Carvalho adoptara defde logo á fua entrada no governo,
como fecretario d'eífado dos negócios extrangeiros e da
guerra, exiftia quafi nominalmente. Podia ler a duras penas
■A-* .mA-^
4S^
-Íh^
um elemento policial, um agente de repreíTão e de ordem
interior, como fuccedêra na fedição popular do Porto, nas
diligencias dirigidas a aíTegurar a paz domeftica no tempo
da conjuração, ou nos feveros procedimentos empregados
contra os jefuitas. Era, porém, de todo o ponto incapaz
de refiftir a uma invafão e de enfrear no primeiro Ímpeto
as hoftes do aggreíTor. Mais de meio feculo havia decor-
rido defde a guerra da fucceffão de Hefpanha, em que Tol-
dados portuguezes pela ultima vez fe haviam empenhado
em ludas europêas. D. João V, depois da paz de Utrecht,
procurara melhorar as inítituições militares de Portugal. Re-
organifára em 1 7 1 5 as fuás tropas, fegundo os principios
adoptados pelas mais notáveis potencias da Europa. Mas a
Índole pacifica do monarcha fumptuofo deixara bem depres-
fa recair no antigo eftado as enervadas forças hellicofas da
nação. Quando em 1785 uma grave diíTidencia entre Portu-
gal e a Hefpanha parecia fazer imminente a ultima ra{âo Jos
reis, algumas providencias fe adoptaram para melhorar a de-
cadente fituação do exercito portuguez. Mas apenas ciiflipados
os temores de próxima borrafca logo o magnifico monarcha
fe efqueceu de que as bayonetas e os canhões eram n'aquelle
tempo e ainda hoje fão infelizmente em grande parte, os fu-
premos julgadores nas pendências internacionaes e os mais
feguros fiadores da indepenciencia e liberdade. D. João V,
apefar da vaidofa prefumpção, com que facilmente fe offe-
recia como pacificador e medianeiro entre as potencias mais
poderofas, deflembrava que para arbitro da paz é forçofo
ao mefmo tempo o eftar preítes a entrar na guerra, e que
para accommodar as difcordias das nações é neceífario que
a fentença arbitral feja proferida com a mão robufta e mus-
culofa no punho da efpada. Os oito annos derradeiros, em
que D. João V padeceu a ultima enfermidade, foram um
eclipfe quafi total das frouxas energias da nação. O exercito,
^-A- -ó-l-
tis tia
^77
participe na commum deforganifação, chegou ao extremo
da fua ruina. As tropas, mal recrutadas com a barbárie, a
violência e a iniquidade, que diftinguiam a confcripção em
todas as potencias militares no xviii feculo, os regimentos di-
zimados pela crefcente deferção, e enfraquecidos pela mife-
ria e pela fome, eram apenas um ridiculo phantafma e uma
parodia ignominiofa dos exércitos regulares. Emquanto fe
defpendiam com uma prodigalidade babylonica os groíTos
milhões das minas do Brazil em fabricar a bafilica de Mafra
e em conquiftar para Lifboa um patriarcha, reflexo e imita-
ção da grandeza pontifical, decorriam longos mezes fem que
fe pagaíTem aos Ibldados os léus ténues vencimentos, e o
exercito era apenas uma turba de mendigos disfarçados nas
apparencias do uniforme.
Se a organifação, a difciplina, a inítrucção, o valor moral
das tropas em Portugal raiavam na ultima degradação, não
eram mais propicies á defeza nacional os recurfos materiaes.
Segundo efcreveu Carvalho em um dos feus papeis ', não
havia nos arfenaes portuguezes coufa alguma de prejlimo.
Adiantou-fe o miniftro a fazer comprar em Inglaterra pelo
plenipotenciário portuguez, Martinho de Mello, o mais ur-
gente material de artilheria, o armamento e equipamento
para a infanteria e cavallaria, a pólvora de que o reino es-
tava defprovido, e as próprias tendas para o acampamento.
Elevou-le o exercito a quarenta e féis mil homens, o que,
na ambiciofa phrafe de Carvalho, era coufa nunca d"antes
vifta em Portugal.
Já em novembro de 1 76 1 fe procedia com grande aílivi-
dade ao recrutamento. Mas apefar da incanfavel diligencia,
com que Sebaftião de Carvalho no meio das mais extraordi-
nárias circumftancias attendia com louvável follicitude a to-
Contrariedade ao libclln, Appenfo ii, Z -''3.
COT
si»
278
dos os ramos da adminiftração e economia, era certamente
para laftimar que o feu efpirito, elTencialmente civil, e mais
de eftadifta vigorofo do que diligente adminillrador dos ne-
gócios militares, nos largos annos, que levava de governo
tiveíTe deixado em quafi inteiro defamparo as forças defen-
íivas da nação. Um contemporâneo enthufiafta do miniftro
de D. Jofé efcrevia á fua corte que ás tropas fe devia anno
e meio dos foldos tenuiffimos, e que os foldados, ainda mes-
mo eftando de fentinella, eftendiam a mão á caridade, o que
é plenamente confirmado por quantos efcreveram n'aquelle
tempo acerca das inftituições militares em Portugal".
Apefar dos esforços empenhados por Sebaftião de Car-
valho para melhorar a fazenda publica, as prodigalidades,
os erros, os defmandos do reinado antecedente haviam com
os feus effeitos refiftido em grande parte aos talentos organi-
fadores do miniftro pre^'idente. A fundação do erário régio
tinha lido principalmente determinada, como o próprio Car-
valho o confeíTou cm um dos feus efcriptos, para accudir com
recurfos efficazes á regular manutenção do exercito portuguez
na guerra, que antevia já próxima e inevitável. Os redditos
do fifco não bailavam a folver todos os creícentes encargos
de uma lltuação extraordinária. A decima, eftabelecida nos
primeiros tempos do rei D. João IV, como um fubfidio efpe-
cialmente confagrado ás enormes defpezas da guerra da res-
tauração, pareceu ao miniftro fcr chegada a occafião de a
renovar, quando a guerra ainda continuava com a Hefpanha.
Já nos fins de 1761 Sebaftião de Carvalho havia alcan-
çado melhorar a íubfiftencia milera\'el das tropas em Por-
tugal. Fizera-lhes pagar féis mezes dos foldos atrazados, e
decretara providencias falutares, com que foíTe prompto e
' OfTicio do encarregado de negócios de França, St. Julien, para o feu
governo, de 17 de novembro de 1761. Qiiadro elementar, tom. vii, pag. 29.
-S-^
eis
c|3
^79
regular o pagamento. Como fempre lliccedeu em Portugal
accudia-le á defeza, quando o perigo era já imminente e a
guerra inevitável, quando a urgência e apertura apenas con-
fentiam á mais enérgica vontade expedientes e recurfos de
momento. Não é quando o inimigo avança já fobre as fron-
teiras, c[ue o mais próvido talento pôde fundar e robuftecer
as inftituições guerreiras de um paiz. Sebaítião de Carvalho
com a audácia, que tinha habitual, e a fortuna, cjue o bafe-
jou nos lances mais difficeis, realifou porém quanto lhe per-
mittia a conjundura.
Na quafi completa deforganilação, em que jazia o exercito
portuguez, a artilheria, que nas guerras de Frederico tomara
finalmente o leu logar proeminente na mechanica tcrrivel
das batalhas, era porventura entre as armas a mais laífimo-
famente defamparada. Os antigos Pés de cajlello, rellcjuias
eftereis e anachronicas do velho organifmo militar, ordenan-
ças improvifadas em arma technica, ainda n*aquene tempo
guarneciam de imperitos e quafi inúteis artilheiros as forta-
lezas principaes, e efpecialmente as que intentavam defen-
der a foz do Tejo. Sebaftião de Carvalho extingue elfe rifivel
fimulacro de uma boa artilheria, e inílitue em leu logar um
novo regimento de mais de mil e cjuatrocentas praças, dá-
Ihe por feu quartel a torre de S. Julião, e funda para a in-
ftrucção theorica e pradica uma aula regida pelo tenente co-
ronel ou fargento mór'. Eleva a cincoenta e cinco praças,
incluindo os oíiiciaes, cada uma das companhias de infan-
teria e as do regimento de artilheria no Alemtejo, e decreta
c[ue fejam de quarenta e dois homens na fua totalidade as
companhias de cavallaria e de dragões-. Ao mefmo paíTo a
cada um dos regimentos a cavallo accrefcenta mais quatro
■ Alvará de g de abril de 1762.
- Decreto de 16 de abril de 1762.
?- -O^
280
companhias'. Para que poíTa effeítuar-fe em breve tempo
a mobilifação das tropas em Portugal, e incluir-fe nos feus
quadros a grande copia de recrutas, augmenta com mais oito
companhias ou quatro por batalhão cada um dos regimentos
de infanteria e o de artilheria do Alemtejo'. Logo depois de-
creta que das quarenta companhias mandadas accrefcentar
aos dez regimentos de cavallaria e de dragões, fe formem
quatro regimentos novos de quarenta e duas praças em cada
companhia. Os corpos de nova inftituição eram os dragões
de Campo Maior e de Penamacor e os regimentos ligeiros
de Caftello Branco e deVianna^
Era incerta como fempre a duração da guerra com a
Hefpanha. As forças portuguezas, pela aulencia de uma lei
tolerável de recrutamento, feriam infufiicientes, ainda quando
as mais inexoráveis oppreíTões e violências arraftaíTem de
feus lares os filhos do povo, condemnados a figurar como
trebelhos no taboleiro, onde os príncipes jogavam o xadrez
das fi.ias paixões hereditárias ou das fi.:as criminofas ambi-
ções. Cumpria aíToldadar tropas extrangeiras. Levantaram-fe
dois batalhões fuilFos, commandados pelos coronéis Thor-
mann e SauíTure. Tinha cada batalhão quatro companhias,
duzentas praças cada companhia^
Não exiftiam generaes, que podeíTem exercitar o com-
mando n'um exercito moderno. Os que havia em grande nu-
mero eram homens da mais alta fidalguia portugueza, capa-
zes de ferem bons foldados, mas totalmente defprovidos do
faber e da experiência das modernas guerras europêas, ge-
rieraes, que paífavam os feus annos mais no paço como gen-
■ Decreto de 16 de ahril de 1762.
2 Decreto de 21 de ahril de 1762.
3 Decreto de 27 de junho de 1761, approvando as capitulações, com que
haviam fido contratados os dois batalhões de gente fuifía.
^^^ -0^
e|j tia
c|9
281
tis-homens da camará e cortefáos, do que nos campos de
manobra ou nas grandes e feveras guarnições. Alcançou Se-
baítião de Carvalho, que vieíTe commandar em chefe o exer-
cito portuguez um illuftre official, cujo nome fe fizera jufta-
mente celebrado nas guerras de Allemanha, e cujo elpirito
era largamente illuminado pelo eftudo das Iciencias milita-
res, quafi de todo o ponto ignoradas n'aquella fazão em Por-
tugal. Era o conde de Lippe Schauenburg, príncipe imme-
diato ao facro império e foberano no leu pequeno território.
Veiu com elle o duque de Mecklemburg-Strelitz, que paliava
por fer profeíTo na technica e no ferviço da artilheria. Muitos
outros officiaes, os mais d'elles aventureiros, inglezes, efco-
cezes, fuiíTos, allemães, acceitaram o ferviço com vantajofas
condições fob as bandeiras de Portugal.
Com taes e tão expeditas providencias Sebaítião de Car-
valho, apefar da fua pouco vehemente vocação para negó-
cios militares, foube improvifar os meios defenfivos pela in-
tuição perfpicua do talento, que para tudo ferve e a tudo
chega, quando o aguilhoa o patriotifmo e é urgente a occa-
ilão.
Portugal, . porém, apefar da energia do miniítro, e dos
milagres da fua providencia, não podia certamente medir-fe
e aíTrontar-fe fó por lo com as forças de duas nações coUi-
gadas c poderofas. A querella, em que a defpeito dos feus
pacíficos esforços, ia achar-fe envolvido brevemente, empe-
nhava-a em grande parte pela fua lealdade á Inglaterra, de
cuja alliança o pretendiam feparar. Não era pois jufio, nem
decorofo, que ao fer curfado o feu território pelos exércitos
invafores, fe vilTe defamparado de todo o auxilio prompto
e efíicaz n'um lance, que punha em contingência a própria
exiftencia da nação.
Inflava Sebaftião de Carvalho por que a Inglaterra cn-
viaífe a Portugal as luas tropas. Negociava, urgia, encarecendo
^%-^ -í»-§-
4eU
-<^
282
o perigo da fua pátria, e a utilidade própria dos inglezes. Mas,
fegundo acontece quafi fempre, trepidava a Gran-Bretanha
em aventurar as fuás forças nos campos de Portugal. Ohje-
dlava como fempre, que todo o auxilio feria inefficaz, elíando
Portugal imbelle e indefefo, e que o amparo dos extranhos
fó poderia aproveitar a um alliado, que pelos feus recurfos
próprios tiveífe accudido previdente á fua primeira defenfão.
Bufcava Sehaftião de Carvalho folver eftas duvidas e hefi-
tações. Affirmava não fer exada a increpação de que nada
fe havia cuidado por parte do governo na defeza de Portu-
gal, antes muito ao revez, dizia o miniftro, em nenhuma ou-
tra corte poderia haverem -fe tomado mais promptas provi-
dencias, em tempo tão efcaífo e tendo o inimigo quafi nas
fronteiras".
E de feito já os reprefentantes da França e da Hefpanha
intimavam em Lifboa o governo portuguez a entrar na guer-
ra contra o fcu antigo alliado e ainda elle, pelo feu egoifmo
proverbial e mercantil, dilatava com delongas diplomáticas
o acceder ás inftancias de Portugal.
A 16 de março de 1762 o plenipotenciário francez 0'Dun-
ne e o embaixador de Hefpanha, D. Jofé Torrero, aprefen-
tavam colleítivamente ao miniftro dos negócios extrangeiros
e da guerra, D. Luiz da Cunha, uma memoria, na qual em
nome dos feus monarchas pediam ao rei portuguez fe de-
claraífe unido aos dois Bourbons na guerra contra a Gran-
Bretanha, rompeífe todo o trato e communicação com efta
potencia, commum inimiga de todos três, e cerraífe os feus
portos aos navios inglezes de guerra ou de commercio. In-
vocavam para decidir o rei D. Jofé o parentefco eftreito, que
o vinculava ao foberano hefpanhol, irmão da rainha de Por-
> Defpacho de Sebaflião de Carvalho para o enviado portuguez em Lon-
dres, de 22 de março de 17G2.
' ' ti
283
tugal, amigo verdadeiro, vifinho quieto e moderado. Accres-
centavam que a Peninfula para a guerra e para a paz devia
reputar-fe como fe tora de um lo dono. 0'Dunne e Torrero
intimavam o go^'erno porluguez a que deíTe dentro de qua-
tro dias ás propofiçcjes contidas na memoria uma refpoíta
clara, deciliva, categórica.
Efta inlblente e altiva intimação, diffimulada nas appa-
rencias da brandura e amifade, teria quebrantado fem re-
médio o animo do eftadilia mais audaz. Eftava Portugal a
duras penas guarecido com frouxiíTima defeza, as fronteiras
abertas, quafi inermes, as tropas á preíTa levantadas quall
Ibb o cutello do inimigo, os foldados bilbnhos, coUedicios,
os officiaes inexperientes, enervados na vida ociofa das guar-
nições, após cincoenta annos de paz e efc[uecimento das cou-
fas militares. Mas Sebaftião de Carvalho não era homem
que facilmente desfalleceíTe e caííTe rendido e obfequente aos
pés do inimigo. Com eítes lances difficillimos fe queria e fe
arroítava. Governo fácil não era para elle aíTumpto digno
da fua intelligencia e do feu brio. Não dilatou alem dos
quatro dias a refpofta ás arrogantes intimações. Em uma
nota dirigida aos dois reprefentantes nominalmente pelo mi-
niftro dos negócios extrangciros, repulfava Sebaftião de Car-
valho com altivez e hombridade as inauditas propollções da
França e da Hefpanha. A majeftade nacional tranfparecia
dignamente n'eíre papel efcripto quafi em prefença das bayo-
netas inimigas. N'elle dizia o miniftro inflexível c]ue tendo
com a Inglaterra nunca interrompidas ligações puramente
defenfivas e innocentes, confagradas em muitos e íblcmniíli-
mos tratados, e não tendo Portugal recebido da Gran-Breta-
nha nenhuma ofFenfa, que podefle juftificar a fua tranfgres-
fão, viria a offender a religião, a fidelidade e o decoro, fe
porventura accedeíTe ao que lhe propunham em defar da In-
glaterra. Accrefcentava que os parentefcos, as amifades e as
284
allianças, que tinha com as potencias belligerantes e a neu-
tralidade, que fe esforçava por manter, o habilitavam a oífe-
recer a fua mediação para aquietar as diíTerenças entre os
reis da cafa de Bourbon e o feu adual antagoniíla ' .
Na memoria firmada no i ." de abril e aprefentada n'eíre
dia ao governo de Portugal, refpondiam os dois reprefentan-
tes Torrero e 0'Dunne que fe a uma nova negociação de
paz fe offereceíTe occafião, o rei chriftianiffimo e o catholi-
co não repulfariam a mediação do feu confrade portuguez,
fe houveífem de attender unicamente á fua alta hierarchia.
Acer efe entavam todavia que a parcialidade manifefta do feu
governo em favor dos inglezes, fazia augurar que a media-
ção não faíria proveitofa aos dois Bourbons. O rei de Hcs-
panha tinha ademais contra a propofta uma razão efpecial,
e era a de que havendo-fe oíferecido por mediador entre a
corte de Portugal e a de Roma, aos feus bons officios fe res-
pondera com inaudito defapego, allegando o miniíterio por-
tuguez não fer ainda chegado o tempo de concertar as dis-
fidencias com o Vaticano. Bufcavam os dois reprefentantes
demonftrar que de Inglaterra havia recebido Portugal tão
grave offenfa, c]ual era a de que uma efquadra britannica
tivelTe n'um porto d'efte reino combatido contra forças marí-
timas de França fem que nunca fe preftaífe a dar cumprida
fatisfação, reítituindo os navios aprefados á vifta da ban-
deira portugucza. Queixavam-fe de que D. Jofé tinha a feu
ferviço um general inglez e outros officiaes, o que provava
ferem verdadeiros os concertos oífenfivos entre Portugal e
a higlaterra. Terminavam a fua nota os dois miniftros com a
infolente comminação de que logo fem mais ofiicio nem con-
fentimento do governo portuguez entrariam cm Portugal as
' Nota do fecretario de eftado, D. Luiz da Cunha, a D. Jofé Torrero, e
Jacob 0'Dunne, de 20 de março de 17Õ2.
-§-0- -^^
tM eia
285
tropas hefpanholas já portadas nas fronteiras «com o único
íim, diziam 0'Dunne e Torrero, de adiantar-fe e confeguir
que os feus portos não eftiveíTem á difpofição do inimigo,
e com as ordens mais rigorofas de que fem motivo não fizes-
fem a minima extorfão aos vaflallos do rei fideliíTimo, tra-
tando-os como fe foffem de uma fó e única monarcliia » .
A conteftação enviada a 5 de abril aos dois temerários
negociadores por Sebaftião de Carvalho, refpira ao mefmo
paíTo a moderação e a dignidade. Depois de confutar as ra-
zões efpeciofas allegadas pela França e pela Hefpanha, con-
clue com eftas palavras, que lhe infpirou o patriotiímo e a
honra nacional: «N'eí1:e cafo (o de que as tropas hefpanholas
cntraíTem em Portugal) não podendo o . . . monarcha exi-
mir-fe fem oíFenfa dos. . . direitos divino, natural e das gen-
tes, e fem caufar univerfal efcandalo, de fazer ufo de todos
os meios poíTiveis para a fua indifpenfavel defeza, tem dado
as fuás ordens para fe empregarem n'ella as fuás próprias
forças e para fe unirem ás dos feus alliados. . . fendo certo
que feria menos cuftofo á mefma majeftade fideliflima . . .
deixar cair a ultima telha do palácio da fua habitação e aos
feus leaes vaífalios derramarem a ultima gotta de feu fan-
gue, do que facrificar Portugal com o decoro de fua coroa
tudo o que ha de mais preciofo».
Replicaram 0'Dunne e D. Jofé Torrero a 23 de abril a
eíta firmiíTima refpofta. Aífentando a maliciofa premiíTa de
que Portugal vivia oppreífo e tyrannifado pela Inglaterra, e
de que o exercito hefpanhol fe propunha libertal-o de jugo
tão affrontofo, revertiam a invafão iniqua e violenta com o
colorido machiavelico do auxilio e do favor. Efcreviam os
dois indifcretos diplomáticos que Portugal fazia confirtir o
ponto de honra em não defpeiar-fe da oppreífão, e em refis-
tir aos próprios foldados cartelhanos, que viriam com as pon-
tas das fuás bayonetas quebrar nos pulfos do povo portuguez
ti»
si)
286
os pefados grilhões da dominação britannica. Pediam final-
mente os paíTaportes para faírem fem detença de uma cor-
te, onde era, diziam elles, já indecorofa a fua permanência.
Não havia certamente mais inhahil ironia diplomática
do que efta fimulação de amifade cordial a uma nação,
cujo território eílavam preftes a profanar os exércitos cafte-
Ihanos. Os governos de França e da Hefpanha, e ainda mais
do que elles os feus agentes diplomáticos em Lifboa, pareciam
apoftados pelos indifcretos e defaíTifados procedimentos a
tirar á guerra, que intentavam, toda a Ibmbra de juftiça e
feriedade.
Refpondeu Sebaftião de Carvalho, em nota firmada a 25
de abril, ás derradeiras infolencias do embaixador hefpanhol
e do miniítro plenipotenciário de Luiz XV. Refutava com
vehemente gravidade as frívolas razões, com que os dois
Bourbons pretendiam nas fuás guerras ambiciofas tomar a
feu foldo e acorrentar aos feus deftinos uma nação, que a tudo
preferia a fua neutralidade. «Sua majeftade fideliíTima, dizia
Sebaftião de Carvalho, entende que para defender o feu reino
tem um direito. . . que é licito a qualquer particular. . . de-
fender a própria cafa contra quem n'ella quer entrar fem o
feu confentimento».
O embaixador hefpanhol D. Jofé Torrero e o plenipo-
tenciário francez Jacob 0'Dunne faíram de Lifboa a 27 de
abril. Logo de Portugal fe expediram ordens para que o em-
baixador portuguez em Madrid e o enviado na corte de
Paris deixaíTem immediatamente as fuás legações.
Eram decorridos poucos dias, quando a Hefpanha rom-
peu contra Portugal as hoftilidades. A 3o de abril publicava
o marquez de Sarria, general em chefe do exercito hefpanhol
deftinado á invafão, um manifefto dirigido aos povos de Por-
tugal. N'efte documento, datado do acampamento de Zamora,
annunciava o general que a entrada das fuás tropas não era
tM tis
-<>^
287
encaminhada a fazer a guerra aos portuguezes, antes deter-
minada aos fins mais gloriofos e mais úteis á coroa e a Por-
tugal. Imitando a traça pueril do leu governo, pretendia o
marquez de Sarria perluadir que os regimentos hefpanhoes,
ao paliarem as fronteiras contra a vontade exprelTa do go-
verno portuguez, vinham exercer um ado generolb e meri-
tório de caridade e compaixão internacional.
O ardil era mais do que tranfparente, groffeiro e defas-
trado. Uma franca declaração de guerra aberta haveria cer-
tamente provocado em Portugal menor indignação do que
uma iniqua violação do território acompanhada de tão iró-
nica e affrontofa hypocrifia. Sebaftião de Carvalho refpon-
deu declarando a guerra á Hefpanha a 18 de maio de 1762.
Pela ordenança de 20 de junho, Luiz XV, depois de compen-
diar a feu favor os aggravos, que recebera de Portugal, re-
memorando o ultraje feito diante de uma praça portugueza
á elquadra do almirante de La Clue, e a indififerença com
que o governo portuguez havia relpondido ás reiteradas e
urgentes reclamações da França a efte reípeito, formalmente
declarava a guerra a Portugal.
Já a elTe tempo o exercito hefpanhol havia começado as
operações no território portuguez. Felizmente para a nação
invadida brutalmente a Hefpanha não era então fob o as-
pedo militar mais favorecida e c^uinhoada que o outro povo
peninfular. A fama dos feus velhos terços de Flandres e de
Itália eftava apenas confagrada na hiíforia. O ciolb defpo-
tiímo dos monarchas e a terrivel prelTão do Santo OíRcio,
enervaram em ambos os povos da Peninfula os brios mili-
tares, com que outr'ora haviam feito inveja ás nações mais
guerreiras e poderofas. A Hefpanha tinha em verdade mais
foldados que o leu adverfario. Faltavam-lhe porém inteira-
mente as bem ordenadas e harmónicas inftituições, que ha-
bilitam os exércitos a engrolTarem nos criticos momentos e a
eis
elj
transformar-fe velozmente em poderofas machinas de guer-
ra. Os homens fão componentes eíTenciaes da força militar,
mas fomente por fi mefmos íao apenas matéria prima, ainda
não aífeiçoada pelo obreiro. É precifo n'efta congerie, onde
ha apenas os rudimentos do organifmo, inlufílar a vida, a
intelligencia, a arte, o movimento. E neceíTario que os ho-
mens, pela acção maravilhofa da difciplina e do commando,
fe convertam a principio em bons foldados pela tadica ele-
mentar, e que d'eftes foldados já peritos e briofos no officio
de marchar e combater, defentranhem o adminiftrador e o es-
tratégico efte engenhofo mechanifmo, de primorofa travação
e harmonia, a que fe chama um grande exercito, de quan-
tas combinações fe poífam com humanos elementos cogitar
e inftituir, a mais perfeita e congruente ao feu deftino. E um
exercito, que mereça com juftiça o honrofo nome, como que
um pequeno cofmos, um. mundo refumido, em que a unida-
de e fubordinação a um fim commum eflão fempre em ad-
mirável confonancia com a variedade immenfa das fracções,
em que vive repartido.
Ao tempo da guerra com a Hefpanha andavam portu-
guezes e hefpanhoes defde muito divorciados da racional
fciencia militar. Se os generaes e os coronéis em Portugal
eram fidalgos eminentes e cortezãos, os chefes fuperiores das
tropas caftelhanas eram grandes de Hefpanha ou títulos de
Caítella, mais affeitos ás pompas ceremoniaes de uma cor-
te apparatofa do que á frudfuofa convivência dos regrados
acampamentos. O marquez de Sarria, D. Nicolau Carvajal y
Alencafter Viveros Norona de Sande Padilla y de Montezu-
ma, tenente general e coronel das guardas reaes hefpanho-
las, grande de Hefpanha de primeira claíTe, cavalleiro da
ordem de Calatrava, tinha mais nobiliárias honrarias e mais
retumbantes appellidos que predicados valiofos para o com-
mando cm chefe de um exercito n'uma guerra de invafão.
*<f^
289
Erti provecto de annos c de vaidades. Egualava a ignorân-
cia com a defidia, e a beata devoção com o torpor da intel-
ligencia; mais feito para bom familiar do Santo Otficio que
para accrefcentar á cruz vermelha de Calatrava as palmas
da victoria nos campos de batalha. Tinha a feu mando um
exercito, que pelo numero pareceria bem fadado a proezas
gloriofas. Os generaes, que ferviam fob as ordens do velho
fidalgo caftelhano, não podiam pela fciencia e capacidade
fuperior envergonhar o feu caudilho. As tropas não prima-
vam na inftrucção e diíciplina. A adminiftração confiara á
Providencia ou ao acafo o aprovifionamento do exercito em
lubriftencias, em forragens e munições, em material de Titios,
em trem de pontes, em hofpitaes, em todos eítes lerviços
eíTenciaes, que iao os nervos e o eftomago da guerra. As
operações eram defde Madrid planeadas e contradidas pelos
bandos antagoniífas, que na corte pleiteavam a influencia e
o dominio. O miniítro da guerra D. Ricardo Wall, um dos
muitos irlandezes favorecidos pelo rei, tinha de fua mão os
fios complicados e infeguros d'aquella miferavel eítrategia,
que lem ao menos fe lembrar de colligir informações acerca
de Portugal, arrifcava cegamente as fuás tropas em paiz to-
talmente defconhecido'.
Emquanto o embaixador de Hefpanha e o miniftro pleni-
potenciário de França eftreitavam e urgiam o governo portu-
guez a entrar na liga das duas potencias contra a Gran-Bre-
tanha, o gabinete inglez determinara accudir com tropas au-
xiliares á defeza de Portugal. A 2 de maio o rei George III
em menfagem dirigida á camará dos communs dizia «que o
foberano tomara na mais feria confidcração o perigo immi-
nente, de que o reino de Portugal, antigo e natural alliado
' General Dumouricz, État préfenl du Portugal. Laufanne, 177.'^, liv. iv,
cap. VIII.
c|3
2go
da coroa, eítava ameaçado pelas potencias então em guerra
aberta com o rei de Inglaterra, e que era da máxima impor-
tância para os intercfles commerciaes do feu paiz a confer-
vação de Portugal. Pedia á camará que houveíle de habili-
tal-o a occorrer a qualquer defpeza extraordinária de guerra
no anno de 1762, e a tomar todas as providencias neceíTa-
rias para contrariar e vencer os dellgnios e as emprezas do
inimigo contra o rei de Inglaterra ou feus alliados, legundo
a fituação dos negócios o houveffe de exigir».
A camará depois de breve diícuflão, em que fe fez notá-
vel o veliemente difcurlb de Pitt em favor de Portugal, vo-
tou um milhão de libras efterlinas para accudir aos difpen-
dios extraordinários.
Determinou o governo inglez que paíTaíTem a Portugal
oito mil homens de tropas em grande parte irlandezas. Já
algum tempo antes, a 1 1 de março de 1762, chegara a Lis-
boa o navio de guerra Portlaud, trazendo a feu bordo Lord
Tyrawley, que vinha como embaixador da Gran-Bretanha
ao rei D. Jofé, e era deítinado ao mefmo tempo a comman-
dar as forças inglezas. quando vieíTem a defembarcar em
Portugal".
O governo britannico antes de enviar os foccorros mili-
tares, a que pelos tratados fe havia obrigado folemnemente,
julgou fer neceífario o informar-le miudamente de quaes es-
forços envidara o gabinete portuguez para não fruftrar intei-
ramente a efíicacia das tropas auxiliares. A Inglaterra, como
todas as nações poderofas, egoilfa por temperamento e neces-
lldade, não accudia ao lance perigofo de feu velho e fideliíTi-
mo alliado pelas generofas infpirações da compaixão politica,
virtude eíTencialmente defconhecida na ethica internacional.
■ OlTicio de St. Julien ao governo trance/, de lõ lie março Je 1762. Qim-
dro elementar, tom. viii, pag. 55 e 56.
ela
eis
ÍSÍ9
'■ -<>-|*
291
A Gran-Bretanha tinha graviílimos intereffes a defender,
quando parecia empenhada em foccorrer e amparar o povo
portuguez contra a iniqua invafão de francezes e hefpanhoes.
Receiava porém que achando-fe Portugal de todo o ponto
imbelle e indefezo, tivcíTe de pôr os feus Ibldados e o prefti-
gio das fuás armas a lance de perder-le n'uma guerra, para a
qual a inércia governativa e militar d'cfte paiz nada houves-
le apercebido em tão apertada conjuntura. Lord Tyrawley
havia fido muitos annos embaixador na corte de D. João V,
conhecia Portugal, e n'elle tivera já grande entrada no paço
e no governo. \'inha pois a examinar a fituação defenfiva
do paiz, com mandato expreflb de participar ao gabinete
de Inglaterra quanto le lhe houveíTe deparado n'eíte exa-
me. Lord Tyrawley era porém por indole e carader o agente
menos accommodado a conciliar os ânimos e as vontades em
tão diííicil occafião e a fazer operar em confonancia os esfor-
ços empenhados em combater as duas coroas coUigadas pelo
Pado de fainilia e agora hortis a Portugal. A altivez, o orgu-
lho e a violência do leu temperamento imperiofo e arrogante
contrapelavam com excelTo no velho embaixador os predica-
dos de general e de eftadifta. Defde a ília chegada a Portugal
as fuás informações ao miniíferio inglez eram copiofas de mui
agras increpações ao governo portuguez, ou antes a Sebas-
tião de Carvalho, — a alma e o motor de toda a adminiflra-
ção, — pela indolência, com que executava as prefcripções
do iníblente general. A fua animofidade chegava ao ponto
de querer perfuadir ao leu governo que efta guerra entre
Portugal e a Hefpanha não era mais do que um embeleco,
ou fegundo hoje diríamos, uma pura myflificacão para em-
bevecer e enganar a Gran-Bretanha'.
■ Hughes, Conúnuaiion to Hiime and Smollett's Hijlory of England,
chapt. III.
1 í ir
292
As tremendas accufações de Lord Tyrawley eram tão
apaixonadas, quanto injuftas. O altivo general, julgando-fe
um proconful da Inglaterra n'uma fua província ameaçada,
quizera fobrepôr-fe á própria foberania, e achando na rija
tempera do miniftro portuguez um invencível obítaculo, de-
fatára em docftos contra Portugal a fua indignação c o feu
defpeito. Os teflemunhos contemporâneos lao conformes em
affirmar que Sebaftião de Carvalho, vendo-fe improvifamente
provocado por duas nações podcrofas e irritadas, não fó con-
tra Portugal, mas principalmente contra a foberba domina-
dora do Oceano, fizera milagres de energia para levantar,
fe bem coUefticiamente, forças confideraveis para a defeza
do paiz. Sebaftião de Carvalho achara as inftituições mili-
tares de Portugal no extremo abatimento, o exercito quafi re-
duzido a uma efcaíTa horda indifciplinada, miferavel, com
a apparencia enganofa da força e difciplina, defdenhada e
envilecida a profiíTão, havida em pouco amor pelos offi-
ciaes, em grande parte aufentes dos feus regimentos. Logo
defdc os primeiros annos, em que fora nomeado fecretario
de eftado dos negócios extrangeiros e da guerra, empenhá-
ra-fe em accudir com as primeiras e mais urgentes provi-
dencias a tamanha miferia e defamparo. Expedira ao confe-
Iho de guerra em decretos de 12 de janeiro de 1754 ordens
terminantes para que foíTe reftaurada a difciplina e a inftruc-
ção quafi inteiramente deflembrada nos regimentos portu-
guezes, para que os ofíiciaes dentro de vinte dias recolheílem
defde logo aos corpos, de que andavam como que divorcia-
dos, para que fe procedeífc ao recrutamento e fe completas-
fem os quadros eftabelecidos. Ordenara que nos regimentos
de todas as armas fe fizellem frequentes exercícios e fe pra-
fhcaífe quanto folfe conducente a reftabelecer a ordem e a
perícia «de maneira, dizia o legiflador, que em todas as pro-
víncias fe viíTe renafcer o ardor militar, a regularidade da
-* •-V-I"
2g3
difciplina, e o affeio das tropas, pradicando-fe nos corpos e
nas praças, que depois do terremoto ficaram em eftado de
terem guarnição, todo o regular e exafto ferviço, que fe cos-
tuma fazer em tempo de guerra'».
N'aquelles primeiros tempos occorrêra egualmente por
uma grande promoção ás numerofas vagaturas de ofíiciaes, e
confeguira completar os quadros dos regimentos. Era quanto
n'aquella apertada conjuníhira podia fazer um eftadiíta extra-
nho totalmente ás fciencias e ás praclicas da guerra, por Índole
e vocação pouco propenfo ás coufas militares. A luífa defes-
perada, em que logo aos primeiros paflbs da fua adminiftração
teve de entrar com os pertinazes inimigos de toda a falutar
innovação, os cuidados e os empenhos de accudir ao def ba-
rato da fazenda publica, ao lethargo da induftria e do com-
niercio, e ás ruinas da cataftrophe tremenda, não lhe deixa-
ram lazer e occafião a largas e proveitofas reformações na
força publica. Era homem civil e eftadifta, fem predilecção,
nem fciencia de foldado. Só podéra ter adiantado alguns pro-
greíTos no fyftema defeíifivo da fua pátria, fe entre os officiaes
de maior graduação e audoridade fe lhe houveíTem deparado
peritos e fervorofos cooperadores. Mas a ignorância ei"a quafi
univerfal nos generaes, cujo predicado principal era com o
valor e bifarria peífoal e com o efplendor dos titulos arifto-
craticos, a máxima infciencia das coufas militares n'aquelle
feculo, no feculo brilhante de Frederico e do marechal de
Saxe, na epocha fecunda, em que o rei-philofopho completa
na tadica da infanteria e da cavallaria, e no emprego da ar-
tilharia em campanha a revolução iniciada por Guftavo Adol-
fo, o feu bravo e romanefco precurfor.
■ Avifo de Sebaftião de Carvalho para o marquez de Marialva, meflre de
campo general, de 12 de dezembro de 1/55, nas Providencias do terremoto,
pag. 144 e 145.
-i-<Ç>- ^<>^
4tU
-* -^^
294
A mingua ablbluta de generaes, que foubeíTem mais algu-
ma coufa do que frequentar os paços do Ibherano, ou folver
as fáceis obrigações da vida quieta de guarnição durante uma
paz de meio feculo, obrigava o eftadifta a recrutar improvi-
famente os foldados no paiz, e a aíToldadar os generaes em
terras extrangeiras. Efta opprobrioía dependência de illus-
tres aventureiros para o commando das forças portuguezas
ptroduzia fatalmente as fuás neceíTarias confequencias. Os fo-
rafteiros invertidos na iuprcma auftoridade militar, tornados
mais altivos pela opinião de indifpenfaveis, afpiravam a exer-
cer defpoticamente o fcu império e a diótar a lei ao próprio
governo da nação. Lord Tyrawley pelas fuás orgulhofas ar-
rogâncias não fez mais que exacerbar o animo infoftrido de
Sebaítião de Carvalho, cuja efcaífa manfuetude mal poderia
tolerar as oufadias imprudentes do bretão.
As diíTidencias do velho general com o miniftro principal
de D. Jofé chegaram a tal extremo de acrimonia, que torna-
riam impoíTivel todo o bom concerto e proveitofa cooperação
dos alliados nas operaç(5es defenfivas de Portugal. Lord Ty-
rawley foi chamado a Inglaterra, e o mando das tropas ingle-
zas foi conferido a Lord Loudon, ofiicial de provada reputa-
ção.
Antes porém que as forças britannicas houveífem apor-
tado, já os hefpanhoes tinham dado começo ás operações.
A 5 de maio de 1762 paífava o marquez de Sarriá a fron-
teira portugueza com grande parte do exercito ás fuás or-
dens. Entrando na província de Traz os Montes, e fitiando
Miranda apodera va-fe facilmente da praça, cuja reddição
fe antecipou pela tcrrivel explofão de um feu paiol. Depois
d'eífe fácil feito de armas as tropas caftelhanas tomaram fem
refiftencia as praças de Bragança, de Chaves e Torre de
Moncorvo, cujos meios dcfenfivos eram defproporcionados
á minima oppofição.
^%-í>^ -á-i-
ew eia
Pouco depois uma columna hefpanhola commandada
pelo coronel 0'Reilly intentou paíTar o Douro nas cercanias
de Villa Nova de Fofcoa. Apelar, porém, da fuperioridade
numérica das fuás tropas os helpanhoes não poderam etíei-
tuar efta manobra pela contradicção, que lhes oppozeram al-
gumas forças portuguezas. O que difficultava principalmente
as operações do exercito inimigo era a infciencia abfoluta
dos generaes, o defprezo dos princípios mais elementares da
eftrategia, o defconhecimento do paiz, onde queriam profe-
guir a invafão, a feição montuofa e agrefte da província, ta-
lhada de molde para a refiftencia efficaz pela pequena guerra
e o patriótico fervor, com que as povoações haviam impedi-
do ou conturbado a marcha do inimigo, como fendo enca-
minhada, em feu conceito, a annexar o território portuguez
á coroa dos reis catholicos. Ao mefmo tempo os hefpanhoes,
que fe tinham dirigido fobre Chaves, tentaram paffar ao Mi-
nho para avançarem contra o Porto, cuja tomada lhes pare-
cia fácil e fegura. Mas nas alturas de Montalegre algumas
partidas de paizanos armados, aproveitando com vantagem
as circumftancias do terreno, fizeram retroceder os inimigos
até Chaves.
A 2 I de junho uma columna hefpanhola fob o comman-
do de Alvarez acommetteu e incendiou a aldeia de Freixal,
defendida apenas por trezentos paizanos, que na maior parte
caíram vidimas do furor do inimigo.
Tinha o velho marquez de Sarriá começado as fuás ope-
rações fazendo do acafo o feu chefe de eítado maior. Não fe-
guia nenhum plano de campanha, porque na fua profunda
ignorância militar havia julgado inferior á fua dignidade e
ás forças, de que difpunha, medital-o e cumpril-o n'um
paiz, que reputava de facillima conquifta. Haviam lido até
alli eífereis e mefquinhas as miferaveis operações executadas
pelo exercito hcfpanhol.
ti»
296
Já áquelle tempo era chegado a Lifhoa o conde de
Lippe-Schaumburg, que Sebaftião de Carvalho tinha con-
vidado a tomar o commando em chefe do exercito portu-
guez.
Vinham com o general conde de Lippe-Schaumburg,
além do duque reinante de Mecklenburg-Strelitz, irmão da
rainha de Inglaterra, o general Lord Loudon, o tenente ge-
neral Townf hend, o general Lord George Lennox, e os bri-
gadeiros-generaes Crawfurd e Burgoyne, que no exercito
britannico eram havidos no conceito de esforçados e expe-
rientes homens de guerra. Pouco depois da fua chegada foi
o conde de Lippe nomeado marechal general e direófor ge-
ral de todas as armas do exercito portuguez". O duque de
Mecklenburg-Strelitz foi nomeado tenente general e chefe do
regimento de cavallaria, que d'elle tomou o nome.
As forças auxiliares de higlaterra confiftiam em oito mil
homens, que, fegundo authenticos teftemunhos contemporâ-
neos, não eram, principalmente os dos regimentos irlandezes,
por extremo exemplares na difciplina e no refpeito pelos ha-
bitantes do paiz, a quem vinham ajudar. «Não houve, efcreve
Dumouriez, nenhum género de exceíTo, que não commettes-
fem aquellas tropas, que eram peiores que as inimigas ^ » .
Trifte, mas inevitável confequencia de que um po's'o deixe á
mercê de extranhos a defenfão dos próprios lares.
No meado de julho de 1762 o groffo do exercito hefpa-
nhol eftava concentrado junto a Ciudad-Rodrigo. Computa-
va-fe em quarenta e dois mil homens a força ali reunida.
As tropas, que o general em chefe conde de Lippe podia
n'aquel!a occafião oppor ao inimigo em operações de cam-
panha, eram apenas quatorze ou quinze mil homens entre
' Carta patente de lo de julho de 17Õ2.
2 Dumouriez, Etat préfent du Portugal, liv. iv, cap. viu.
A-. •-ò^
2(_)7
portuguezes e inglezes. O refto das forças confagradas á de-
feza eftavam repartidas por difFerentes guarnições, principal-
mente nas provincias do norte, onde era neceíTario obfervar
as tropas adverfas portadas na Galliza. O marechal-general
conde de Lippe era forçofamente determinado a uma guerra
puramente defenfiva, hufcando contrabalançar a efcaíTez do
feu exercito com as vantagens do terreno, habilmente apro-
veitado, e evitando cautelofamente o empenhar-fe em acções
geraes com o inimigo. Convinha-lhe unicamente o canfar o
adverfario por uma ferie de manobras, obrigando-o a divi-
dir as fuás forças, a debilitar-fe pelas marchas e contramar-
chas em paiz agrefte, montanhofo, atfeiçoado pela natureza
para theatro propicio á pequena guerra e ás hoítilidades pe-
rigoíiíTimas das forças irregulares e das armadas povoações.
O inimigo paíTou o Côa a 23 de julho. Apoderava-fe de
Caftello-Rodrigo fem dar um único tiro, apelar de que efte
ponto fortificado poderia ter oppofto alguma fombra de re-
fiítencia". E logo feguidamente principiava o inveftimento
de Almeida, que era então uma das primeiras e mais fortes
praças fronteiras de Portugal, bem fortificada, bem provida
de groíTa e boa artilheria, de copiofas munições e material
de guerra, e aíTaz de fubfiftencias para uma defeza dilatada.
Compunham a guarnição dois batalhões do regimento
de Almeida, um terço de auxiliares, algumas companhias
francas das que fe haviam novamente levantado para a guer-
ra, e um numero fufíiciente de artilheiros. Perfaziam ao todo
obra de três mil homens. A maior parte d'aquella tropa era,
porém, formada de recrutas fem inífrucção adequada, nem
verdadeiro efpirito militar. As deferções frequentes durante
o fitio defraudaram confideravelmente a força da guarnição.
' Memoria fobre a campanha de ijG-j, pelo conde de Lippe, na Revijla
militar, tom. i, pag. iS3.
ti»
eis
298
Apefar de todas as circumftancias, que difficultavam a
defeza, poderia Almeida ter fuftentado um fitio regular, e de-
tido os movimentos do inimigo. O governador era, porém,
um homem octogenário, que no principio d'aquelle feculo
tinha fervido na guerra da fucceíTão de Hefpanha, e prova-
velmente havia cincoenta annos que, durante uma paz inerte
e duradoura, nunca mais vira nem de longe o fimulacro fe-
quer de um cerco ou de uma batalha.
A demorada refiítencia de Almeida ao fitiante era con-
dição mais do que favorável, eíTencial ás operações, que o
marechal Lippe intentava emprehender. Bem fabia elle que
a praça haveria infallivelmente de render-fe, depois que,
fegundo os proceífos de um fitio methodico á Vauban, o
inimigo tiveífe coroado o caminho coberto, feito uma larga
brecha pradticavel ás columnas deftinadas ao aífalto. Ainda
n'aquelle tempo era dogma havido por infallivel que o mo-
mento de entregar-fe a praça mais formidável pela pofição,
pela arte, pelo numero e valor dos defenfores, fe podia ma-
thematicamente calcular pelo computo dos períodos, em que
iam avançando lentamente os trabalhos do fitiante. Ainda
Carnot, o grande revolucionário, o illuftre geometra e enge-
nheiro, na fua obra claíTica De la défenfe des places fortes,
não tinha demonftrado pela fciencia e por exemplos da his-
toria militar que uma praça pôde fempre dilatar por tempo
indefinido a fua defeza. Ainda a Convenção, pelo órgão de
Carnot, não tinha confignado n\ima lei que feria punido
com a pena capital o governador, que tendo viveres e muni-
ções, fe rendeífe ao inimigo antes de haver brecha acceífivel
e pradicavel no corpo da praça, ou antes de ter fuftentado
um aífalto, quando por detraz da brecha exifiiífe um intrin-
cheiramento interior'.
' Lei de 26 de julho de 1792, art. 1."
-. .-<>-^
Almeida, havia, pois certamente de capitular. Mas o ma-
rechal Lippe confiava em que a praça prolongaria quanto
poíTivel a defeza. O governador tivera ordem expreffa e ter-
minante de não dar ouvidos a nenhuma intimação do inimi-
go antes que elle tiveíTe aberto no corpo da praça uma bre-
cha capaz de dar paflagem a uma columna de trinta homens
de frente".
Firmava Lippe as fuás combinações eftrategicas em que
Almeida fe defendeíTe até meado de feptembro. Saíram po-
rém fruftradas as fuás efperanças. O frouxo e decrépito go-
vernador capitulou a 26 de agoíto, quando o inimigo ainda
apenas trabalhava na primeira parallela, e a fua artilheria,
fituada a grande diftancia, nenhum damno havia produzi-
do nas obras exteriores ou no recinto.
Almeida rendia-fe ao inimigo fem ao menos, ao que pa-
rece, perturbar com os feus canhões e as fuás fortidas os tra-
balhos do fitiante. Se acreditámos o general Dumouriez', os
hefpanhoes, aíTombrados com a breviffima duração do cerco
a uma praça de tamanha importância e nomeada, contando
occupar na fua expugnação todo o tempo, que ainda reftaíTe
de campanha, não fabiam agora dar-fe a confelho fobre o
progreífo das operações. Não acertavam a decidir o que ha-
veriam de emprehender n'efta conjuncção, em que a vidoria,
por um inexplicável paradoxo, era um embaraço eílrategico
para o irrefoluto general. As parcialidades, que em Madrid
eílavam difputando a fuprema direcção da guerra, vieram a
determinar a fubflituição do marquez de Sarriá por outro
general, o conde de Aranda.
O inimigo poderia logo apoz a reddição de Almeida
• Memoria /obre a campanha de 1-62, pelo conde de Lippe, Revijla mi-
litar, tom. I, pag. 187.
2 Dumouriez, Etat prcfent du Portui^al, liv. iv, cap. vm.
— <è>-i-
marchar fobre o Porto e Coimbra com as forças, que tinha
em o norte de Portugal. Era neceílario defender ao inva-
for as palTagens principaes, por onde poderia entrar no Mi-
nho e ameaçar a fegunda capital. Por ordem do conde de
Lippe, o tenente general Townfhend com fete batalhões por-
tuguezes, e um inglez, o regimento de cavallaria de Moura,
um deítacamento dos dragões de Burgoyne, os voluntários
reaes commandados por Hamilton, e dez peças de campa-
nha portuguezas, foi deftinado a obfervar e a reprimir o in-
vafor, fe intentaíTe um movimento contra o Porto. Towns-
hend eítabeleceu-fe nas cercanias de Vizeu, e reforçou-fe
com quatro batalhões, com o regimento de cavallaria de
Chaves, e com as tropas, que no Minho obedeciam ao bri-
gadeiro general Lord Lennox. Hamilton occupou Celorico.
O conde de Santiago teve ordem de poftar-fe nas imme-
diações da Guarda com dois batalhões, e os regimentos de
cavallaria de Bragança e Penamacor. As forças anglo-por-
tuguezas na Beira eítendiam-fe pois na linha, que decorre
defde Vizeu por Celorico até á Guarda.
Antes de meado de agofto reuniu o marechal-general
conde de Lippe em Abrantes um campo de fete mil homens.
Os dragões do regimento inglez de Burgoyne occupavam o
Sardoal e féis batalhões britannicos eílacionavam na con-
fluência do Zêzere e do Tejo.
A parte do exercito deítinada a invadir ao fui o territó-
rio portuguez concentrava-fe nas fronteiras da Extremadura
hefpanhola para irromper d'ali no Alemtejo. O inimigo tinha
três a quatro mil homens acantonados junto da raia entre o
Tejo e o Guadiana, principalmente nas vizinhanças de Al-
cântara e nas margens do rio Salor. Os armazéns e depofi-
tos de viveres e munições em muitos pontos da fua Extre-
madura indicavam plenamente que era feu intento penetrar
no Alemtejo.
*I-A.« •-<>-§-
eis e|j
(Is
o conde de Lippe, conhecendo como hábil general que
a defeza paíTiva é quafi fempre um novo eftimulo á audácia
do inimigo e um feguro fiador às luas viclorias, refolvêra
antecipar-fe ao antagoniíta, levando as hoftilidades ao feu
melmo território e empenhando-fe em operações de pequena
guerra, quaes lh'as ellavam permittindo ou aconfelhando as
tropas efcaíTas, de que difpunha, e o deíleixo e infciencia do
inimigo. Determina-fe a acommetter uma vanguarda de hes-
panhoes em Valência de Alcântara, e confia á pericia e ao
valor do hrigadeiro-general Burgoyne a conduda d'efta em-
preza temerária. Burgoyne pafla o Tejo a 24 de agofto na
ponte eftabelecida em Abrantes. Leva comfigo o feu regi-
mento de dragões, doze companhias de granadeiros portu-
guezes, e féis de granadeiros da Gran-Bretanha. A 27 de
agofto ataca improvifamente as forças caftelhanas defaper-
cebidas e negligentes na fegurança do feu acampamento, e
aprifiona o general hefpanhol Dumberry, e com elle muitos
officiaes e duzentos foldados do regimento de Sevilha. Im-
põe á villa de Valência uma contribuição de guerra, que os
habitantes logo fatisfazem.
No próprio dia, em que Burgoyne marchava a executar a
entrepreza de Valência de Alcântara, paflavam o Tejo deze-
fete batalhões de infanteria e quatro regimentos de cavallaria,
tendo por encargo o dirigirem-fe á fronteira de Hefpanha
por entre Montalvão e Caftello de Vide. O marechal-general,
confiando cjue os hefpanhoes teriam occupada grande parte
das fuás tropas no cerco de Almeida, fuppofta a refiftencia
d'efta praça até o momento do aífalto, determinara levar a
guerra ao território do inimigo, dellruir ou difperfar as fuás
forças acantonadas com pouca fegurança em Membrio, em
Herrera, e em Carboja, povoações fronteiriças e abertas a
uma facil incurfão. As tropas do marechal eram porém novas
e ainda mal acoftumadas d prefteza das marchas e manobras,
1 r
ela
-ô-l-
os caminhos afperos, efcaíTiffimos os mantimentos e as for-
ragens, forçofa confequencia de uma improvifada e mal as-
fente adminiftração militar, apenas em embryão imperfeitiíTi-
mo. A delonga na execução foi caufa de que a empreza não
podeffe etfeituar-fe. Porque eram apenas chegadas a Niza as
tropas deftinadas á operação, quando no quartel general do
conde de Lippe confiou haver-fe já rendido Almeida. Des-
apreíTadas agora as tropas inimigas, que eftavam fitiando
aquella praça, mudava inteiramente a fituação. Os hefpanhoes
defciam pela Beira, occupavam Celorico, defamparada pelos
portuguezes depois da entrega de Almeida. Tinham delcm-
baraçada na fua frente a eítrada de Coimbra e podiam cor-
tar as communicações entre as forças portuguezas poftadas
em uma e outra Beira. As tropas, que tinham avançado até
Niza, retrocedem agora para Abrantes e difpõe-fe em efca-
lões defde eíla praça até o rio Alva, tendo como pontos in-
termédios Cabaços e Foz de Arouce. O brigadeiro-general
Burgoyne, recebendo como reforço á columna do feu com-
mando, o regimento de Crawford, e os regimentos de caval-
laria de Olivença e de Sampaio, é deftinado a cobrir a fron-
teira entre Portalegre eVilla Velha. O conde de Santiago com
as tropas foh o feu mando teve ordem de manter-fe quanto
poffivel na Beira Baixa. Na ultima extremidade haveria de
retirar para os desfiladeiros das montanhas, que demoram
entre o Zêzere e o Tejo defde a Covilhan aVilla Velha.
Áquelle tempo já o conde de Aranda havia fubftituido
no commando do exercito hefpanhol o inexperto marquez de
Sarriá. Parecia que as operações da parte dos invafores iam
tomar afpedo mais perigofo. Uma divifão das forças caftelha-
nas dirigiu-fe para Alcântara. O reflo do exercito marchou
em direcção a Penamacor e Sabugal. As praças portuguezas
de Salvaterra e de Segura, pouco defenlaveis e preíidiadas
por efcaíTas guarnições, renderam-fe promptamente á pri-
SÍ9 ^
meira intimação. O exercito hefpanhol, continuando a fua
marcha, eftava em meacio de feptembro em Caftello Bran-
co. Pretendia avançar defde ali a Villa Velha e paffar o Tejo
n'eíl:e ponto. O conde de Lippe é obrigado a dar nova dilpo-
íição ás fuás forças, fubordinando agora as operações ao fim
eífencial de impedir a paífagem ao inimigo.
As tropas efcalonadas a principio entre o Tejo e o Mon-
dego vão agora conccntrar-fe fobre Abrantes. O general
Townfhend, que eftava com a fua divifão nas vizinhanças
de Pinhel, teve ordem de approximar-fe ao Tejo, deixando
em obfervação á praça de Almeida, já em poder do inimigo,
o general Lord Lennox com quatro regimentos portuguezes
de infanteria e dois de cavallaria, e os voluntários reaes com-
mandados por Hamilton.
Ao brigadeiro Burgoyne foi commettido pelo general em
chefe o encargo de obfervar Villa Velha e oppor-fe rijamente
a que o inimigo paífaífe ali o Tejo. Foi occupado o caftello de
Villa Velha por quinhentas praças do regimento de Aveiras,
ao mando do tenente coronel Azevedo Coutinho. O groífo do
exercito portuguez avançou defde Abrantes a Mação.
O general hefpanhol conde de Aranda, algum tanto fu-
perior em talentos eftrategicos ao feu anteceífor, intentou a
paffagem do Tejo, e para efte fim dividiu em três columnas
as forças deftinadas a eífeituar ou auxiliar efta operação. A
primeira, de cerca de féis mil homens, eftabeleceu-fe junto
de Villa Velha a alcance de efpingarda defronte dos poftos
occupados na margem meridional pelo brigadeiro Burgoyne.
A fegunda columna, de quatro mil homens, entre Sarzedas
e Montegordo, devia obfervar as forças do conde de Santia-
go, que eftavam poftadas entre a Venda e Ferreira. O ter-
ceiro corpo, de três mil homens, acampou em frente do des-
filadeiro de S. Simão, que eftava defendido por trezentos
homens de tropas portuguezas.
Foram vãos os esforços empenhados pelo inimigo para
defalojar das fuás bem fortificadas e defendidas pofições o
brigadeiro Burgoyne. Determinou-fe porém a outra empreza
mais faftivel, e foi que, atacando com forças confideraveis as
alturas de Villa Velha, confeguiu que fe rendeíTe o caftel-
lo, que apefar de edificado em fitio favorável á defeza, era
de antigo traçado e conftrucção. O tenente coronel João da
Silva Cunha de Azevedo Coutinho depois de pequena refis-
tencia rendeu-fe ao inimigo, ao que parece, por chegar fora
de tempo o reforço, que pedira ao brigadeiro Burgoyne'. O
major engenheiro DebaíTenon, official francez ao ferviço de
Portugal, foi mais feliz na fua defeza. Occupou com oitenta
praças uns cabeços na ferra de Villa Velha. Atacado por for-
ças mui fuperiores, refiftiu durante cinco horas á aggreífão,
fe acafo é verdadeiro o teftemunho do conde de Lippe, e em
vez de fe render, alcançou retirar, paífando o Tejo, até aos
poítos occupados por Burgoyne.
O marechal-general conde de Lippe anteviu com certeira
previdência militar que os hefpanhoes, depois de tomarem
as alturas de Villa Velha e de verem fruftrado o feu empenho
de defalojar as forças de Burgoyne, tentariam feguir uma
nova linha de operações com o intento de dirigir-fe fobre
Abrantes. Para contrariar o intento do inimigo fez o conde
de Lippe avançar de Mação para Cardigos quatro regimen-
tos inglezes deítinados a occupar as alturas das Talhadas.
Depois que fe apoíTára de Villa Velha e das pofições cir-
cumvizinhas, a columna, que effeituára efla operação, veiu a
I o tenente coronel Azevedo Coutinho, fendo julgado em confelho de
guerra, foi demittido e declarado inhabil para nunca mais poder fervir. Deze-
feis annos depois, em princípios do reinado de D. Maria I, quando era fácil a
reparação a todos, que a pediam invocando em feu favor o haverem fido vi-
climas do miniftro omnipotente, um novo confelho de guerra, apreciando as
circumílancias da defeza, julgou que o tenente coronel tinha fatisfeito ao de-
ver e á honra militar, e rchabilitou-o para entrar de novo no ferviço.
3o5
paíTar a ferra a 3 de outubro no fitio chamado Porto Ca-
brão. Deixara porém em Villa Velha uma força de duzentos
granadeiros e cem cavallos para guardarem féis peças de
artilheria, que não podéra logo tranfportar. Não efcapou a
Burgoyne a occafião de aíTignalar-fe em nova empreza. Or-
dena que o coronel Carlos Lee, official britannico ao ferviço
de Portugal, com duzentos e cincoenta dragões do regimento
de Burgoyne, paífe o Tejo com prefteza e acommetta de im-
provifo os hefpanhoes.
Torneia o coronel inglez o acampamento e cáe-lhe de noi-
te na redaguarda. As furprezas eram frequentes n'aquelles
tempos, em que ainda fe não comprehendêra inteiramente
que o ferviço de fegurança na marcha e na eftação é a hy-
giene guerreira dos exércitos, e o penhor ineftimavel da lua
efficacia na acção e no combate. Difperfam as tropas do co-
ronel Lee as forças hefpanholas com perdas confideraveis,
encravam a artilheria e incendeiam e deftroem os feus mais
bem providos armazéns, ao paífo que Burgoyne por uma
hábil diverfão impede que os invafores acudam com foccor-
ros aos feus, defbaratados em \'illa Velha.
Senhoreava o inimigo a efta fazão a Beira Baixa, e efta-
belecia nas Sarzedas o feu quartel general.
As forças de Townfhend e de Lord Lennox recebem en-
tão ordem de fe reunirem com o intento de cortar as com-
municações dos hefpanhoes com Almeida e Ciudad-Rodri-
go. A marcha de Torwnfhend é certamente a manobra mais
notável de toda efta campanha, em que os recontros foram
menos importantes e mais raros do que os movimentos dcfti-
nados a obfervar o inimigo. O tenente general Townfhend
marcha defde Pinhel até ao Codes, na diftancia de cincoenta
léguas por afperrimos caminhos e quafi impervios territórios
e depois avança de novo fobre a Beira por uma rápida con-
tramarcha. em que no decurfo de quarenta léguas não fão
o "
A-, .-ò-i-
4e|9
3o6
mais favoráveis as eftradas. N'efl:a operação, em que com
grande celeridade fe venceu tamanho efpaço, as qualidades
moraes e militares do foldado portuguez foram largamente
exemplificadas. O general cm chefe conde de Lippe confa-
grou-lhes na fua Memoria com aftas palavras de fubido, mas
verdadeiro panegyrico a fua imparcial glorificação: «Efta
marcha, efcreve o marechal-general, foi pontualmente execu-
tada pela admirável perfeverança do foldado portuguez, que
fupportou as maiores privações, e que não obftante o prom-
pto eftrago do calçado marchava alegremente por aquelles
caminhos de agudos rochedos, deixando por toda a parte
veftigios dos feus pés enfanguentados'».
Tomou o general em chefe as que lhe pareceram mais
favoráveis dilpofições para aguardar o inimigo, fe da Beira
Baixa reíblveíTe pôr-fe em marcha. O groíTo das fuás forças
acampou no Sardoal, e occupou todos os ptaíTos e avenidas
que vem dar á praça de Abrantes. Aproveitou o marechal
com hábil previfão todos os pontos, que na paílagem para
Abrantes, em piaiz eíTencialmente montanholb, fe preftam
com vantagem á guerra de pofições. As manobras calcula-
das e prudentes do conde de Lippe, d'efte novo e períeve-
rante cunítador, tinham forçado o antagonifta a diíTipar em
mal combinadas operações as fuás tropas, a perder as vanta-
gens da iniciativa, e a debilitar ao mefmo paíTo a lua força
moral. O groíTo das tropas hefpanholas retrocedeu Ibbre Cas-
tello Branco.
Pouco depois uma grande parte do exercito inimigo ef-
feituava a retirada. A cavallaria, a artilheria e grande parte
da infantaria dirigiam-fe, paíTando o Tejo, para Alcântara.
Ficavam, porém ainda em Caftello Branco vinte e oito bata-
lhões, dez efquadrões e dezefeis boccas de fogo. Uma nova
I Memoria Jobre a campanha de ijOs, Revijia militar, tom. i, pog. 542.
eis el»
3o7
empreza foi intentada contra eftas forças pelo marechal-ge-
neral conde de Lippe. O inimigo, porém, teve a bem não fe
abalançar a um recontro, e em novembro decidiu-fe a des-
amparar de todo a Beira, demolindo algumas das fortifica-
ções fronteiras de Portugal. O inverno principiava a tornar
cada vez mais penofas e difficeis a ambos os contendores as
fuás operações. Se os caftelhanos padeciam grandes quebras
nas fuás forças, não era mais profpera a fituação das tropas
de Portugal e de Inglaterra. N'aquelle tempo era pradica fe-
guida o tomar quartéis de inverno. O conde de Lippe acan-
tonou pois as forças do feu commando, confervando toda-
via a columna de Burgoyne como corpo de obfervação entre
Niza e Portalegre.
Reforçaram-fe as obras defenfivas e as guarnições em
muitas das praças fronteiras do Alemtejo, por onde agora
parecia mais provável a irrupção. E não era fem fundamen-
to efte receio, porque o inimigo, que parecera fufpender as
operações, tentou ganhar por entrepreza Campo Maior, e por
intimação de fe render a praça de Marvão. Em ambas as
tentativas lhe faíu, porém, fruítrado o intento. As novas dis-
pofições do exercito hefpanhol determinaram que o mare-
chal-general deixalfe os quartéis de inverno e de novo fe
apercebeífe para a fequencia da campanha. As fuás tropas
apoiavam a direita nas alturas de Três Lagares, adiante de
Portalegre. O flanco efquerdo ficava retrahido para facilitar
e proteger a juncção das tropas, que ainda eftavam em Amiei-
ra, em Niza e Alpalhão. Burgoyne com a fua columna occu-
pava as alturas próximas a Caftello de Vide, aífegurando a
efquerda do exercito.
O inimigo, agora poftado nas cercanias de Valência em
três groífas divifões, dava mofiras de querer entrar no Alem-
tejo. Era forçofo difputar-lhe bravamente a palTagem da fron-
teira. A efte empenho accommodou o general em chefe as
CM
3o8
fuás novas difpofições A defeza concentrou-fe principalmen-
te nas vizinhanças de Portalegre e na ferra de S. Mamede.
Contentou-fe o inimigo em tentar uma entrepreza contra Ou-
guella, que apefar de pouco defenfavel, fez honrofa refiften-
cia, e pelos brios militares do feu governador, Braz de Car-
valho, deixou aos invafores a defefperança de tomarem aviva
força ou por induftria nenhuma das praças portuguezas na
fronteira.
Mais bem fuccedida foi a reprefalia, com que o coronel
inglez Wrey, governador de Alegrete, realifou uma incurfão
á povoação hefpanhola da Cordojera, onde fez alguns pri-
fioneiros. Eíta foi a derradeira hoftilidade, que fe regiftou
n'efi:a campanha.
Os hefpanhoes, padecendo em fummo grau as funeftas
confequencias do feu commando negligente, efcaífos de pro-
vifões e abaílecimentos, principalmente para a cavallaria, di-
zimados pelas doenças, e defalentados pelo êxito infeliz das
fuás temerárias tentativas, houveram a bom partido dar fim
ás fuás defconnexas e mal conduzidas operações.
A 22 de novembro o general hefpanhol, conde de Aran-
da, envia o marechal de campo Buccarelli a propor um ar-
mifticio ao conde de Lippe, que tinha então em Monforte o
feu quartel general. Os preliminares de paz, aífignados em
Fontainebleau a 3 de novembro de 1762, tinham porneceífa-
rio complemento a propofta fufpenfão de hoftilidades. Acce-
deu o governo portuguez, e logo a pouco trecho fe publicou
em ambos os exércitos o armifticio.
AíTim terminou uma guerra, em cujo theatro .os invafo-
res haviam empenhado no principio mais de quarenta mil
homens, e os defenfores tinham congregado mais do que efte
numero, fem que uma fó batalha, ou um combate de im-
portância alTignalaífe o decurfo d'efta luóía, apenas entrete-
cida de fitios quafi nominaes, e de nada illuftres operações de
ela
«1»
(is
3of)
pequena guerra. A vantagem, porém, manifeftou-fe em tavor
dos portuguezes e dos pouco numerofos alliados. A gloria
principal d'efta campanha recaiu no miniftro, que pela fua
indómita energia apercebera, quaes as circumftancias lh'o
conlentiram, os meios neceíTarios para a defeza, e no conde
de Lippe, que com o peior de todos os elementos defenfivos,
um exercito coUigido á ultima hora, auxiliado por tropas ex-
trangeiras, fem fraternidade militar e fem robufta cohefão,
foube, por milagres de bom lenfo, enfeixar na fua mão as
forças divididas por funeftas emulações, enfraquecidas pelo
attrito do governo e do commando, e fazer d'ellas o feguro
antemural da independência e liberdade portugueza.
Emquanto a campanha fe fora profeguindo, não fe limi-
tara Sebaítião de Carvalho a dirigir defde Lifboa como fu-
premo adminiftrador dos negócios militares quanto era con-
cernente aos movimentos do exercito, ao feu recrutamento e
aos cuidados de abaítecer as tropas n'um paiz, onde nada
exiftia que podeíTe de longe affimilhar-íe a um ferviço de ad-
miniífração militar. Sebaítião de Carvalho apparece no meio
dos próprios acampamentos, quando é urgente concertar as
diíTidencias, amaciar as frequentes coUifões, fazer cumprir as
ordens expedidas, e combinar com o marechal-general con-
de de Lippe o que não podia eflar pendente de lentas com-
municações entre a corte e o exercito. Apefar da fua pouca
proficiência nas coufas da guerra o miniífro previdente, pela
energia indefefla do feu efpirito e pela nunca annuviada fe-
renidade do feu animo nos lances mais perigofos, fabe com-
penfaro que lhe falta em fciencia militar, e aproveitara pericia
guerreira do chefe extrangeiro e mercenário fem dobrar intei-
ramente ao feu arbítrio a majcftade e o governo da nação.
Haviam-fe realifado as difcretas previfões de Sebaflião
de Carvalho n'um feu defpacho, dirigido alguns mezes antes
ao plenipotenciário portuguez na corte de Saint-James. O
4sU
-* -«0>-i-
3io
Pado de familia, em que os Bourbons tinham firmadas as
feguriíTimas efperanças de fe levantarem como irrefifiiveis
árbitros da Europa, havia abortado miferavehnente. Os de-
faftres padecidos pela Hefpanha e pela França nas fuás
poíTeíTóes da America e da Alia, principalmente a perda da
Havana, tomada pelos inglezes, haviam feito defmaiar os
dois arrogantes alliados, induzindo-os antes a procurar uma
paz decorofa e reparadora do que a profeguir uma guerra
iniciada com aufpicios tão infauftos. Os preliminares aíTi-
gnados em Fontainebleau a 3 de novembro de 1762 poze-
ram termo á guerra. Portugal reprefentado por Martinho de
Mello, como feu embaixador extraordinário, foi comprehen-
dido na convenção, directamente negociada pelos reprefen-
tantes de Inglaterra, de França e da Hefpanha. O tratado
definitivo afllgnado em Paris a 10 de fevereiro de 1763,
aífegurou por emquanto a paz á Europa. Por elle íoi rcfti-
tuido a Portugal quanto lhe haviam tomado os inimigos du-
rante a breviífima campanha.
A guerra de 1762, fe não reverdeceu com o efplendor
de novas glorias os louros nacionaes , foi comtudo de um
proveito inconteflavel. Foi uma cuílofa demonftração de que
o povo portuguez, quando os governos fabem defpertal-o
do fomno lethargico da paz, relembra prefi:amente os dotes
militares, que lhe lao infitos. Foi também aos que governam
um avifo e uma fruduofa prevenção de que os eftados,
para tomarem o leu logar no equilibrio inftavel das nações,
hão de confiar a fua independência mais ao próprio esforço
do que á generofidade fallivel de alliados egoiftas. Na ba-
lança internacional pefam-fe os povos não imbelles, fenão
armados.
É laftimolb condão de Portugal que lo os perigos o
advertem, quando imminentes, ou os defaftres o aconfelham
quando já realifados. Do terremoto faíu a lua renovação mo-
^-i- -á>-^
3ii
ral e phylica. Da guerra com a Helpanha procedeu a pri-
meira conftituição racionarei e harmónica das luas torças
defenfivas.
O conde de Lippe era menos um notável eftrategico do
que um dilcreto organifador. Mu que a defeza de Portugal
fe apercebia a grande preíTa, quando as baionetas inimigas
já lhe eram apontadas ao coração. Ponderou a Sebaftião de
Carvalho os damnos d'eíla negligencia no que ha de mais
vital para um povo independente. O talento do miniftro facil-
mente aflimilava o que lhe parecia conducente á profperida-
de, á honra, á fegurança do paiz. Aflim que depois da guer-
ra, das providencias decretadas na brevidade e apertura de
uma inA'afão ameaçadora, paíTou á meditada e regular orga-
nifação da defeza nacional. D'ahi procedeu uma ferie de leis
e de decretos, cujo fim era adaptar ás inftituições guerreiras
de Portugal o que de melhor então fe conhecia praclicado
pelas mais celebradas potencias militares, principalmente na
PrulTia por Frederico II, o grande meítre dos exércitos no
feculo xviii antes das campanhas paradoxaes da Revolu-
ção.
Os eftados pequenos em território e povoação não podem
nem devem manter na paz exércitos numerofos. Apenas con-
cluida a guerra provê Sebaftião de Carvalho á diminuição
dos encargos populares pela reducção das tropas, que então
eram em defproporção com as faculdades da nação. Suppri-
me na Extremadura leis regimentos de infanteria, quatro no
Alemtejo, dois na Beira, egual numero no Minho e no Al-
garve, e um em Traz os Montes. Reconhecendo a neceíTidade
e importância de ter durante a paz uma numerofa artilheria,
converte em regimento d'efta arma o fegundo batalhão do
regimento de infanteria do Porto'. Mas a artilheria, porque
Decreto de lo de maio de 1763.
eis
3l2
é impoíTivel ou perigoíb pela fua Índole technica organifal-a
nas vefperas de uma campanha, não bafta que feja apenas
numerofa. E precifo que fe adeftre para os ferviços difficeis
e complexos por uma larga e folida inftrucção na Iciencia e
na praítica do leu officio complicado. Achava-fe a artilheria
em Portugal em eftado laftimofo. Era a arma da plebe, quafi
um mifter mechanico, de que os fidalgos refugiam como fe
fora degradação de fua nobreza. Não havia efcolas theoricas,
nem praílicas, onde fe profeífaíTem as fuás doutrinas e fe
exemplificaífem os feus proceífos. Acode o legiílador a efla
lamentável deficiência, reorganifa os quatro regimentos de
artilheiros e decreta a inftituição dos feus eíhidos e exercí-
cios'.
Eram ainda certamente, fe não rudimentares, ao menos
imperfeitas as providencias promulgadas, mas nem por iífo
Sebaftião de Carvalho merece menos que veneremos a fua
memoria como a de inftituidor da regrada e moderna artilhe-
ria em Portugal. Se eíla arma lhe merece efpecial predilecção,
não fão menos importantes as reformas introduzidas na orga-
nifação, na ordenança, na difciplina e no ferviço de guarni-
ção e de campanha, no que era concernente á infanteria e ás
tropas a cavallo. Bem fentia elle que fe os canhões comman-
dados e fervidos por dextros e intelligentes artilheiros fão as
grandes machinas na fangrenta officina dos combates, os in-
fantes e os cavalleiros fão como que os obreiros numerofos
no duriíFimo lavor dos campos de batalha. Sebaftião de Car-
valho decreta a nova organifação das duas armas, fubftitue
á tadica antiquada de lySS a tadica adequada aos progres-
fos da guerra no feu tempo; eftatue as regras e preceitos do
ferviço, e aífignala um paífo memorável na manutenção da
difciplina, refumindo no âmbito breviílimo dos vinte e nove
s|3
Alvará de i5 Jc julho de 1763.
^ -<>-§-
3i3
artigos de guerra, leveros e draconianos como eram, toda a
legiflação penal para o exercito.
A força dos exércitos náo le firma unicamente na profi-
ciência do commando, que é a fciencia da guerra nos feus
differentes graus defde a fimples direcção de uma efquadra
ou companhia até á lliprema e complexa governação das
armas combinadas no maravilholb organifmo de um exer-
cito em campanha. Não refide apenas na inftrucção, na dis-
ciplina, no valor, na abnegação, na temperança e na prodi-
giofa adaptação do íbldado ás máximas privações e aos mais
duros e afperos trabalhos. Tudo ifto é o corpo da profiffão,
mas a alma, o efpirito, a inlpiração é a honra e o pundonor.
O officio militar é uma religião, religião de facrificio perma-
nente á pátria e ao dever. É forçofo que o foldado efteja con-
vencido plenamente de que o feu mifter é honrofo, nobre,
venerado pela nação. Os loiros não podem aíTentar fenão em
frontes livres, immaculadas de toda a tacha infamante ou de-
fairofa. Os ofiiciaes, de quem pende no momento fupremo
da defeza ou da defaffronta nacional, a gloria ou o def barato
da nação, é bem que no conceito univerfal fejam egualados
ás mais illuftres categorias do eftado. Ora durante o longo rei-
nado de D. João V, e ainda nos tempos que feguiram, appa-
recêra deíluftrada muitas vezes a dignidade militar pelo des-
dém, com que os officiaes de berço obfcuro eram olhados
pela nobreza, ou le rebaixavam a condições aviltadoras da
lua honrada hierarchia. Sebaftião de Carvalho eífabeleceu,
como dogma fundamental do novo exercito, que «devendo o
ponto de honra animar aos officiaes mais de que outro algum
motivo, todo o official de patente . . . lerá reputado nobre, e
não poderá executar alguma efpecie de emprego, nem fa-
zer outro algum ferviço, que não feja o lerviço real . . . fe
fucceder que algum official envileça e defacredite o feu poflo
por um procedimento contrario a effa difpofição fera expulfo
(is
J'4
e declarado indigno de lervir nos exércitos de lua majefta-
de' » . As innovações introduzidas no ferviço das tropas pelos
regulamentos de infanteria e de cavallaria eram tanto para
aquelle tempo, apelar dos feus defeitos, uma faudavel revolu-
ção e um progreíTo ineftimavel, que durante mais de um
feculo eftiveram conftituindo a bafe e o principio das inftitui-
ções militares em Portugal.
A infatigável diligencia do miniflro reformador não des-
fallece, nem esfria depois de reorganilar tadicamente a força
publica. A confulao e a anarchia na legiflação e adminis-
tração militar eram então incompatíveis com a exiftencia de
um exercito regular. Sebaftião de Carvalho, remediando aos
abulbs enraizados no abfurdo lyífema de prover á manuten-
ção das tropas portuguezas, decreta a abolição das antigas
vedorias, e fubftitue em feu logar as thefourarias geraes das
tropas nas três regiões, em que divide o território de Por-
tugal. Eftabelece a forma de folver aos officiaes e aos Tol-
dados, com inteira pontualidade, os feus melhorados venci-
mentos \ Os dois batalhões fuiíTos tinham degenerado da lua
primitiva inftituição. Os chefes pelas fuás malverfações e os
Ibldados pela fua indifciplina haviam-fe tornado não fomente
um encargo inútil ao ferviço, mas um perigofo exemplo de ra-
pina e infubordinação. Sebaítião de Carvalho, por um d'eftes
golpes improvifos e audazes, em que era confummado, defar-
ma e diíTolve os dois corpos mercenários, e por uma fentença
do conlelho de guerra, faz executar o coronel Graveron, accu-
fado de abulbs indefculpaveis e de criminofas dilapidações.
Aproveitando para o ferviço muitas praças dos dois fup-
primidos batalhões, e aliftando foldados allemães, infhtue,
' Regulamento da irifanteria, de i8 de fevereiro de 1763, e Regulamento
da cavallaria, de 25 de agofto de 1764, ambos no cap. xiii, n.° 7.
2 Lei de 2 de julho de 1763.
3 Decreto de 3i de julho de 1762.
cjs
3i5
como novo e trifte exemplo de tropas marcenarias, o regi-
mento dos Reaes extrangeiros, o qual foi comporto de oito
companhias de granadeiros", e pouco depois padeceu a mes-
ma forte dos outros forafteiros, léus infelizes anteceffores.
Succede-fe agora uma larga ferie de providencias, que
vão encaminhadas a firmar em mais folidos cimentos as in-
ftituições militares de Portugal e a converter as tropas quafi
irregulares, imperitas, fedentarias do tempo de D. João V
n'um verdadeiro exercito permanente. Defde largos annos
dominava em Portugal para fazer foldados um fyífema vi-
ciofo, oppreflivo, iniquo, defhumano, que arrebatava á po-
voação, ás mais pobres e defvalidas claífes populares, em
levas tumultuofas a flor da juventude, convertendo n'uma
defhonrofa fervidão o ofíicio de foldado, afaftando das filei-
ras, pelo terror de um miferavel e perpetuo captiveiro, todos
os que na fraude ou na valia podiam encontrar efcudo e ar-
rimo contra as violências do recrutamento. As deferções eram
frequentes, numerofas, impenitentes, apefar das penas feve-
riíTimas decretadas a cada paífo para as cohibir e caítigar.
Sebaftião de Carvalho reconhece que a forma do recruta-
mento é na ordem racional o principio e a fonte da conftitui-
ção militar n'uma nação, e que a difciplina mais auftera, a
mais perfeita organifação, a inftrucção mais primorofa no
foldado ferão baldadas, fe não eftiver a ponto a matéria pri-
ma dos exércitos. O alvará de 24 de fevereiro de i 764 funda
em Portugal pela vez primeira o proceífo jufto e efficaz de
recrutamento perante as condições fociaes d'aquelle tempo.
Procura o legiflador conciliar as exigências do exercito com
o minimo vexame popular, refpeitando, quanto era então
poíTivel, o maior commodo das ditferentes povoações e o
movimento progreífivo do trabalho nacional. A cada regi-
Alvará de 17 de feptenibro de 1763.
eis
MS
3i6
mento é aíTignado um diftrido efpecial, d'oiide haja de rece-
ber as fuás recrutas, repartindo-as com egualdade pelas va-
rias freguezias. São ainda numerofas as excepções, umas de-
terminadas peia diftincçáo então fubllftente entre nobres e
plebeus, outras eftatuídas em obfequio á agricultura, e ao
trato fabril e commercial, ou didadas pelas confideraçôes do
intereífe publico e pelos refpeitos da compaixão e humani-
dade. Decreta Sebaftião de Carvalho a maneira regular de
prover ao uniforme e veftuario das tropas, e acode á penúria,
em que n'ell:e ponto tinham vivido quafi fempre, defampa-
radas e efquecidas por uma negligente adminiftração.
O marechal-general conde de Lippe retirou-fe de Portugal
em 1764 para o feu pequeno eílado na AUemanha, remune-
rado largamente pela munificiencia do foberano com eminen-
tes diflincções e valiofiíTimos prefentes. A fua aufencia deixa-
va fem chefe militar o exercito portuguez na própria occafião,
em que deviam fazonar-fe as reformas, que apenas começa-
vam a germinar. Mas do feu caítello fenhorial de Buckburg
o conde de Lippe volve os olhos para as novas inflituições,
que deixa implantadas em Portugal, e d'ali dirige confelhos
e inftrucções para que as fementes caindo em terra fafara fe
não percam pelo defleixo da cultura. Sebaftião de Carvalho
impellido, porém, pelo feu génio para as grandes reformas fo-
ciaes e para os combates contra o feu máximo inimigo, o je-
fuita, ainda mal vencido e fupplantado, deixa desfallecer os
brios militares. Paífados poucos annos após a falda do general
allemão, já as tropas denunciam que não ha em Portugal para
as manter na inftrucção e difciplina a mão vigorofa e firme
do commando. A deferção, inevitável reacção contra as des-
egualdades e vexames do recrutamento, vae crefcendo progres-
fivamente, e o legiflador, ora concedendo perdões geraes aos
defertores, ora comminando-lhes as penas mais feveras, não
confegue extirpar inteiramente efta praga funefta dos exércitos.
3-7
CAPITULO XIII
o SACERDÓCIO E O IMPÉRIO
A empreza, que Sebaftião de Carvalho tomara em feus
robuftos hombros, era tão multíplice nas luas formas e as-
fumptos, e abrangia de tal maneira todas as relações da vi-
da nacional, que não era dado ao miniftro, após uma vido-
ria, repoular por algum tempo fobre os louros alcançados.
\'encida uma embaraçofa difficuldade, logo outra fuccedia,
reclamando a perfeverança e o vigor do incanfavel eftadifta.
Divertíra-o da faina predileda a guerra material, pelejada
mais com as armas diplomáticas do que com os inllrumen-
tos defenfivos, apparelhados na imminencia da invalao. Vol-
via agora as attenções e os cuidados ao feu empenho princi-
pal, qual era o de fujeitar de todo o ponto á poteítade fecu-
lar as antigas e perigofas arrogâncias do poder ecclefiaítico.
Os jefuitas em Portugal e nas fuás poíTeíTóes ultramari-
nas tinham lido defarmados, vencidos, exterminados. A po-
derofa Companhia, fe ainda em Roma encontrava echo ás
fuás laftimas no folio pontifício, e nas cortes europêas não
vira ainda chegada a hora da fua reprovação, eftava de
lado extinfta no paiz, onde mais ampla e mais frudifera
havia fido a fua dominação. Dos jefuitas portuguezes e dos
forafteiros domiciliados em Portugal, a máxima parte fora
expulfa c trafladada como funefto prefcnte ao papa indócil,
que fe obítinava em a proteger e confolar. Alguns dos focios
mais notáveis jaziam nos cárceres de eftado, affrontados
pela tremenda accufação de regicidas. Outros expiavam nas
prifões a fufpeita de ferem participantes na fruflrada conju-
ração ou o trifte privilegio de veftirem a roupeta de Santo
Ignacio.
sii
3i8
De todos os jefuitas encarcerados era o padre Gabriel
Malagrida ao mefmo tempo o mais popular e venerado en-
tre a gente fuperfticiofa, e o mais odiofo e intolerável a
Carvalho e aos inimigos da Companhia. O feu nome ficara
vinculado ao dos Tavoras no proceflb e na fentença, que os
havia condemnado. Eram celebres os exercícios efpirituaes,
a que bufcára attrahir a nobreza e a gente do eftado chão,
como ao único e eíficaciíTmio recurfo contra a ira celefte,
que punira com o feu durifllmo flagello as abominações da
noviflima Sodoma, qual era Portugal, facrilegamente gover-
nado pelo miniftro de D. Jofé. Já defde o terremoto o in-
difcreto fervor e piedade religiofa do fogofo jefuita fe tinham
affignalado pela publicação do feu opufculo, em que forjan-
do a theoria myftica do phenomeno terrível, o dava como
jufta punição de grandes iniquidades. Haviam fido egual-
mente notáveis e divulgados os feus vaticínios annunciando
pouco antes da conjuração um grande perigo á exiftencia do
imperante.
A alta reputação de fantidade, em que era tido entre a
nobreza e nas claífes populares o padre Malagrida, a fua ir-
requieta aítividade, o dom de prophecia, de que elle próprio
bravateava, e de que o vulgo o prefumia aquinhoado, a fin-
geleza habitual da fua vida e os fonhos infantis da fua mór-
bida phantafia, confpiravam para fazer do humilde jefuita
uma d'eftas figuras fobrehumanas, cujos traços fe imprimem
indeléveis na imaginação e na memoria das rudes e crendei-
ras multidões. O padre Malagrida era verdadeiramente um
d'eítes heroes, que a lenda popular fe delicia em exornar de
todas as virtudes, coroar de todas as perfeições e fegregar,
como rariífima excepção, de todas as miferias e fraquezas da
humanidade. No feculo xi teria oífufcado a Pedro Eremita.
No feculo xin haveria difputado a S. Domingos a glorifica-
ção de Deus pela fogueira contra os hereges albigenfes. Dian-
ti»
-• •-V-I-
319
le de Luthero e de Calvino ter-le-ía moftrado mais ardente
do que o próprio fundador, em cuja milicia defde tenros an-
nos fe arrolara. O Malagrida era um mixto fingular de cren-
ça fervorofa e de extravagante myfticifmo, de abnegação e
retiro efpiritual e de ambicioía e turbulenta intervenção nos
affumptos mundanaes, de fimpleza pueril e de arrogante pre-
fumpção, de ignorâncias infantis e de oufadas theologias,
meio illuminado e meio herege, exaggerando a fé até raiar
em blafphemia, e a innovação theologica até degenerar em
religiofa monomania. Era um Savonarola fem o enthuliafmo
ardente da palavra, e um Santo Ignacio fem a politica llibtil
do famofo patriarcha. Ainda affim era clle a mais concreta
perfonificação da Companhia em terras de Portugal. Outros
feus confocios de mais alto engenho e de maior cultura e
fapiencia o excederiam no confeíTionario, nas miíTões e nas
elcolas. Mas nenhum alcançaria íbbrele^■ar-lhe na opinião
e no aífedo popular. Ferir eítrondolamente o celebrado je-
ÍLiita era pois como que fubmetter a própria Companhia ao
opprobrio derradeiro. Teria fido altamente vantajofo ás mi-
ras de Carvalho o fentenciar capitalmente o Malagrida como
réu de lefa-majeftade. O exemplo de um jeluita publica-
mente juítiçado por fentença do terrível tribunal da Inconfi-
dência, haveria fido o reverfo das honras e diftincções, com
que a ordem ambiciofa tinha imperado em Portugal por an-
nos dilatados. Rolando fob o cutello do algoz, a cabeça do
defventurado Jefuita, accufado de incitar pelos feus confelhos
e pelas fuás inftigações a trama fangrenta contra el-rei, teria
fido a confagração judicial de todos os delidos imputados
á famofa Companhia. Para ifto energicamente fe empenhara
o miniftro de D. Jofé, intimando á cúria que lhe defle a
neceífaria audorifação para julgar na junta de inconfidência
os clérigos infamados pelo crime de alta traição. Era grande
a audácia de Carvalho nas fuás incurfões contra a immuni-
^
320
dade clerical, fanccionada pelo abufo da tradição. Não ou-
fou, porém, tocar a extrema raia da civil jurifdicção, entre-
gando aos tribunaes communs um tonfurado. ProfeíTára lar-
gamente em theoria que nos delidos puramente feculares
não valia a immunidade ecclefiaftica. AUegára os exemplos
em que os juizes temporaes, chamando ao feu pretório os
criminofos revertidos de carader facerdotal, os haviam con-
demnado á pena ultima, fem que precedeíTe indulto ou be-
neplácito do pontífice romano. O animo prudente do efta-
difta, em face da fanática povoação da fua pátria, ficou
d'efta vez ainda muito áquem do feu efpirito innovador.
Não julgou o tempo ainda maduro para entregar um clérigo
rebelde ao baraço profano do verdugo temporal. Houve por
mais azado e eftrepitofo o confiar a execução ao algoz au-
dorifado pelas infalliveis decifões do Santo Officio. Podia,
na verdade, fiappliciar o Malagrida como implicado na má-
xima offenfa á foberania terrenal. Preferiu, porém, aprefen-
tal-o em elpedaculo afFrontofo, como réu do attentado mais
tremendo contra a divina majeftade. E de feito, um jefuita
havido e juftiçado folemnemente como herefiarcha e dogma-
tiíta, era ainda maior vilipendio á Companhia do que le no
fupplicio derradeiro expiara o imputado regicídio.
A Companhia de Jefus fora inftituida para fer a guarda
de honra do papado e a milicia pretoriana da orthodoxia.
Aprefental-a pois agora, na peíToa de um dos feus mem-
bros mais notórios, como quem vinha commacular e poUuir
a pureza caítiffima da fé, na própria occafião, em que na
Europa ainda pendiam os juizos acerca da virtude ou pravi-
dade jefuitica, era na verdade accrefcentar um novo e fin-
gular depoimento no proceíTo inftaurado moralmente contra
os focios pretenfos de Jefus.
As acções, as palavras, os efcriptos do padre Gabriel
de Malagrida preftavam-fe á maravilha a que o tribunal do
32 1
Santo Officio avocaíTe da profana afpa dos fupplicios fe-
culares para a religiofa fogueira das penas inquifitoriaes o
malaventurado jefuita. Efcrevêra o Malagrida duas obras
theologicas, em que dera larga rédea aos raptos myfticos da
fua ardente e exacerbada phantafia. Uma d'ellas efcripta em
lingua -vulgar tinha por titulo Vida heróica c admirarei da glo-
riofa Santa Anua, mãe de Maria Santijfima, diélada pela mes-
ma [anta com ajjiftencia, approração e concurfo da me/ma
Jhberaiiijlfmia Senhora e feu Santijfimo filho. A outra era em
latim e intitulava-fe Tradatiis de vita et império Anti-Chrijli
(tratado da vida e império do Anti-Chrifto).
Aquelles dois efcriptos, ambos elles de uma febril e de-
pravada theologia, não eram certamente muito mais pecca-
minofos e oíTenfivos do dogma e da tradição catholica do
que outros numerofiíTimos opufculos, onde a piedade exag-
gerada e o fanatifmo alambicado fe haviam empenhado em
alterar o fentido litteral dos textos evangélicos, adaptando-
os ao que poderá bem cognominar-íe o romance ou a no-
vella do chriílianifmo. Não pôde todavia conteftar-fe que na
Vida de SanfAnua fe continham propofições, que o profano
critério apenas haveria na conta de rifiveis e piedofas ima-
ginações, mas que na afilada balança do Santo Ofiicio pefa-
vam tão gravemente como as mais oufadas innovações de
Luthero, de Zwingle ou de Calvino.
Cifrava-fe a doutrina principal do Jefuita em formalmente
attribuir á mãe da A^irgem Santa o privilegio da conceição
immaculada e a exempção maravilhofa do peccado original.
Segundo as viíoes do Malagrida, Sant'Anna tinha fundado
em Jerufalem um confervatorio de cincoenta e três donzel-
las, e para o concluir os anjos baixando do empyreo fe ha-
viam transfigurado em jornaleiros. As piedofas alumnas edu-
cadas fob a tutela carinhofa de Sant'Anna, ab aeterno Deus
as deífinára para ferem cfpofas de apoffolicos varões, taes
c|3
si»
322
como Nicodcmos, S. Matheus e Jofé de Arimathea. A eftas
e mil outras extravagâncias de um efpirito vifivelmente ex-
traviado, accrefcentava o Malagrida as mais terminantes af-
firmações e juramentos de que Deus e a Virgem immaculada
lhe haviam peíToalmente revelado o que na fua obra confi-
gnára. Elle próprio ouvira por fingular e divino privilegio o
Padre, o Filho, o Efpirito Santo, que em voz clara e diftinda
lhe fallavam.
Ulava a inquifição n'aquelles tempos de mui pouca leni-
dade com os réus accufados e convidos de herefias, de blas-
phemias, de myfticas vifões e prophecias. Não podia julgar
o Malagrida por fuás verdadeiras ou fuppoftas malfeitorias
contra a regia poteftade. Entrava, porém, na fua ordinária
jurifdicção o inquirir e condemnar o fanático jefuita pelos
feus delidos contra a té e pela fua vaidofa prefumpção de il-
luminado por afflatos e favores celeftiaes. Inflaurou-lhe o pro-
ceífo, que feguiu feus tramites odiofos, mas legítimos. Exis-
tiam vivas as provas dos crimes imputados, hirtado muitas
vezes o allucinado dogmatifta a que retractalfe os erros e im-
piedades, perfeverára firme e inabalável. Infiftia cm affirmar
as miraculofas revelações, com que em feus extafis o privile-
giara a divina infpiração. Recontava como Deus o tivera em
feu conceito por egual a S. Francifco Xavier, e o elegera por
feu embaixador, apoftolo e propheta. Perfillia em dizer que a
Virgem Santa lhe revelara havel-o adoptado por feu filho, com
inteira fatisfação de Jefu Chrifto e da Santiffima Trindade.
Contava egualmente os feus colloquios com alguns dos fan-
tos mais illuftres pela lua piedade e fabedoria. Com eftas en-
raizadas phantafias mais e mais fe lhe incendia no animo
enfermiço o ardente defejo do martyrio. Com grande e as-
fombrofa convicção referia os feus próprios milagres nò Bra-
zil e em Portugal, particularifando as occafiões c as peífoas,
a quem tinham redundado em falvação. Com eftas exaltadas
c|3
323
e myfticas allucinações do leu elpirito le melclavam algumas
declarações, por onde relliltava manifefto que o Malagrida
nos que pareciam raptos mais remotos de todo o mundano
intereffe e cogitação, não efquecia os ódios dos jefuitas con-
tra o poder temporal, que os vexava e opprimia.
Em uma noite, contava o Malagrida, tivera uma vifão in-
telleítual, em que le lhe haviam claramente reprefentado as
penas, que padecia a alma do rei e as exprohrações, com
que uns efpiritos devotos lhe eftavam condemnando as fuás
perfeguições á Companhia. Caftigos fimilhantes haveriam de
padecer as mais peíToas, que tinham cooperado na ruina da
ordem exterminada. Dizia o impenitente jefuita, que em tudo
quanto recontava não podia padecer nenhum engano, por-
que era lliccedido com um fujeito, a quem a própria mãe do
Redemptor vinha todos os dias conferir a ablblvição de to-
dos os peccados em nome de feu filho. ConfeíTou que alguma
vez entrara em duvida Ibbre fe efte, que lhe parecia favor
lingulariílimo da Virgem, não feria antes inlidiofa invenção
do tentador, porque affim lh'o haviam ponderado alguns pie-
dofos facerdotes. Mas para confirmal-o em fua crença de que
era abfolto pela voz de Noífa Senhora, viera em peífoa Jefu
Chrifto a lançar-lhe em latim a ablblvição pelos termos for-
maes que referia. Inflado uma e outra vez a defdizer-fe de
fuás jaclanciofas e heterodoxas affirmações, faia do debate
com os inquifidores e os theologos de cada vez mais perfis-
tente e inabalável em feus erros, como aquelle, a quem a exal-
tada imaginação reprefentava mais gloriofa a perfeverança
nas doutrinas, do que temerolbs os trances do martyrio. Ur-
giam-ri'o os inquifidores, taxavam-lhe de heréticas as fuás
propofições, de facrilegio a prefumpção, com que fe dava
por tão familiar em feus coUoquios com Deus e a Virgem
Santa. Convenciam de phantafticas as fuás vilões, de fallazes
as fuás prophecias. Parecia então retrahir-fe da fua impeni-
(Is
324
tencia. Conduzido ao cárcere, rogava que o levaíTem nova-
mente á prefença dos inquifidores e dos theologos. Exhorta-
vam-n'o, reprehendiam-n'o. Diante dos graves antagoniftas,
de novo hefitava por inftantes nos erros condemnados, mas
logo redobrava de ^'igor, tropeçava, reincidia. Com maior in-
timativa reiterava as paíTadas affirmações, defbaratando com
a fua inflexivel contumácia as armas theologicas dos feus con-
tradiftores. Nada pois rcftava aos juizes da fé para reduzir
ao aprifco da boa doutrina a ovelha trefmalliada e fugidia.
Attenta, pois, a fua obftinação, cegueira e impenitencia, con-
demnou-o o Santo Oflficio, pela lentença de 20 de leptem-
bro de 1761, como incurlb no delido de herefia, por haver
affirmado, feguido, efcripto e defendido propofições e dou-
trinas oppoítas aos verdadeiros dogmas, que propõe e enfina
a egreja romana, e fer havido como herético, convido, falfo,
confitente, revocante, pertinaz e proíitente nos erros condem-
nados. A fentença concluía que por feus crimes foífe degra-
dado das ordens facerdotaes, fegundo a forma e difpofições
dos cânones fagrados, e depois com mordaça e carocha re-
laxado á juftiça fecular. Os inquifidores pela formula habi-
tual, com que o Santo Oíiicio bufcava lavar de fuás mãos
o fangue das fuás vidimas, rogavam inftantemente ao braço
fecular, que fe houveífc para com o réu benignamente, nem
o fizeífe expiar as fuás culpas com a effufão do fangue ou o
ultimo fupplicio.
No auto de fé celebrado a 2 1 de feptembro de 1 76 1
faia publicamente o defventurado jefuita milanez, Gabriel
Malagrida. O fupplicio aífrontofo d'aquelle homem quebran-
tado pelos annos, macerado pela doença, devorado pela ar-
dente e irrequieta phantafia, devia fer o epilogo tremendo ás
finiftras execuções do Santo Oíiicio. Era exadamente no
equinoccio autumnal, quando o foi defvefte as luas galas e
fe apparelha para a foturna hibernação da natureza. Aquel-
•i-<U — -á>-§-
la hoítia derradeira, fervida como os poftres do fanatifmo na
facrilega mefa do Thyeíles inquifitorial, era um velho mais
que feptuagenario, a quem a luperftição e o myfticifmo ha-
viam arrojado ás ultimas loucuras da piedade exaggerada.
Em volta do tablado, onde o Malagrida agora fe aprefenta-
va, eftava congregado quanto havia de mais illuftre na velha
fociedade portugueza. As damas e os fidalgos de uma corte
ainda luzida efperavam nos palanques oftentofamente orna-
mentados a apparição do celebrado padecente, como pode-
riam aguardar anciofamente o ingreíTo de um ador nas ta-
boas do theatro. Os embaixadores e enviados extrangeiros
afiavam ali reprefentando a Europa, que afllftia ás fcenas
lastimosas da barbárie nacional no ultimo Occidente. Os fe-
cretarios de eftado fignificavam o poder fijpremo e temporal
que pela vez extrema emprefiava o algoz ao facerdocio. A
Cafa da lupplicação, a mais alta magiftratura de todo o Por-
tugal, defattendendo as rogativas da Inquifição, condemnára
o Malagrida a fer queimado. Mas logo por um esforço de
chrifiã e piedofa benignidade commutára o rigor do feu ac-
cordão, ordenando que o réu morrefle de garrote, e o feu
corpo foífe depois entregue ás chammas.
N'aquella tremenda execução parecia que era apenas o
Malagrida o infeliz fuppliciado. Mas o baraço, que extinguia
na garganta ao jefuila os últimos alentos, estrangulara fatal-
mente o Santo Officio, e vibrara o extremo golpe ao inftituto
de Loyola. N'aquelle dia a Inquifição adoecia de funefta fe-
nilidade. As cinzas do Malagrida não deixariam mais arder
os garavatos na fogueira confagrada á purificação das almas
peccadoras. As flammas, que envolviam o efpolio mortal do
jefuita, defde o feu opprobriofo fambenito iam prender e
atear-fe na roupeta da Companhia. Bem podéra o Malagri-
da, do alto do patíbulo, haver dito em face á hiquifição o
que na tragedia de Cafimiro Delavigne, o velho doge de
II ' '
326
Veneza á criminofa e cruenta Senhoria, referindo-fe ao jul-
gamento da incorruptível pofteridade:
II dirá: elle auHl mife à mort pour les crimes.
E a turba, condenlada nas cercanias do Rocio, pode-
ria ter refpondido ao ultimo reprefentante da Companhia:
«Comtigo morre também a tua fociedade». Alluiam-fe de
feito n'aquella occafião as duas columnas temporaes do poder
ecclefiaftico: a Inquifição e a Companhia de Jefus, a herança
de S. Domingos e o legado de Loyola. A magiftratura da fé
trucidava fem piedade a milicia do papado. Dez ou doze an-
nos mais tarde as duas famofas inflituições, aclimatadas em
Portugal pelo zelo fanático de D. João III, haveriam de re-
ceber o golpe defaftrofo da fua exautoração official, a Inqui-
fição pelo regimento de 1771, decretado em nome da philo-
fophia ainda vacillante pelo grande reformador, a Companhia
no breve Domimis ac Redemptor vibrado em nome da fraqueza
pontifícia pela hefitante mão de Ganganelli.
O fupplicio do Malagrida tem fido um dos capítulos mais
fentimentaes e aggreíTivos contra a memoria do illuftre legis-
lador. Os caufidicos da humanidade, em todo o ampliffimo
catalogo das hoftias immoladas á pureza da fé e da doutri-
na, efquecem facilmente as vidimas illuftres, para fitarem a
vifta fevera e inexorável fobre os julgadores do malaventu-
rado jefuita. O vulto de Carvalho, aos olhos dos feus duros
antagoniltas em nome da philofophia ou da piedade, appa-
rece-lhes por detraz da cadeira inquifitorial, para que fobre
a cabeça do eftadifta caiam indivifas as abominações da In-
quifição. Mas antes da execução politico-religiofa do falfo
propheta defgraçado, regiftam os annaes do Santo Officio
centenares de fupplicios mil vezes mais atrozes. No reinado
pacifico e beato do monarcha de Mafra e Odivellas, o pobre
judeu António Jofé, o mais intenfo luminar na viciofa litte-
3--7
ratura d'aquelle leculo, expia na fogueira o crime da hebrai-
ca aícendencia e profiíTão, e os amigos da humanidade la-
crymofos não põem ao lalcivo monarcha portuguez a culpa
de cumprir fem reludancia as fentenças do braço elpiritual.
Julguemos os homens e os fucceíTos pelos padrões e normas
do leu tempo. A Inquifição, que hoje havemos por deflionra
e opprobrio da civililação, era ainda n'aquella epocha uma
inftituição confervadora, julgada indifpenfavel a manter a
unidade e pureza do catholicifmo, uma judicatura confagrada
pelo voto popular. A philofophia, que profcreve o algoz, ou
trucide em prol da egreja ou em nome da fociedade, era, como
ainda hoje em muitas das relações mais importantes da vida
politica e focial, uma timida afpiração de efpiritos feledos e
videntes. O Santo Officio era n'aquella quadra confiderado
tão legitimo e neceíTario como a Cafa da fupplicação e a de-
fenfão da egreja contra os crimes religiofos, tão elTencial como
a protecção da fociedade contra os aggravos temporaes. Ora
o Malagrida perante a lei e a jurifprudencia d'aquelle leculo,
era um herefiarcha, renitente, formal, obftinado. Segundo os
coftumes d'aquella edade, perante a embrutecida opinião, a
fogueira inquifitorial era tão venerada pelo rei, pela corte,
pelo povo, como o fmiftro cadafalfo, onde a pena capital era
prodigamente executada fem que a um lo jurifconfulto ou a
um theologo, antecipando-fe a Beccaria e a Vidor Hugo, lhe
paflaífe pela mente a poíTibilidade fequer de a abolir. Não
vemos ainda em pleno regimen, que fe diz illuminado e li-
beral, o artigo 6° da carta portugueza obrigar os diíTidentes
da crença official a efconder nas trevas, como os primeiros
chriftãos nas catacumbas, os ritos religiofos do feu culto?
Não vemos hoje o código penal comminando penas ainda
feveras contra os que dcfrefpeitam e oífendem a religião? E
os 'poderes, que fe dizem infpirados pela humanidade e alu-
miados pela philofophia, hão hoje de encadear impunemente
6^9
_ .-<J>-i*
328
as confciencias, e fomente feria execravel a memoria do mi-
niftro que, fegundo as leis, os coftumes e os preconceitos do
feu tempo, fez caftigar no réu de lefa-majeftade o delin-
quente contra a fé? Laftimemos o ancião de vida porventura
impeccavel e puriffima, o fanático exaltado, o efpirito, que
allucinado pela febre da fuperítição e feito heroe pela cega
adoração da fua ordem, bufca intrépido o martyrio, porque
das próprias cinzas eítá lenhando a milagrofa refurreição
da Companhia. Mas julguemos o eftadifta pelas doutrinas da
fua epocha, e negando-lhe com juíliça a lenidade e brandura
do coração, não queiramos, á conta das cruezas inevitáveis,
efcurecer a fua gloria pelas grandes reformas, que intentou.
Não aquilatemos Cromwell pelas thefes de Herbert Spen-
cer, a Convenção pelos princípios de Boífuet, o marquez de
Pombal pela moral incruenta de Jefus. A revolução é fem-
pre um parto laboriofo, e nunca houve fem dor parturição.
A revolução é como o fpeífro folar, radiante de cores bri-
lhantes, formofiílimas, porém interpoladas pelas raias efcuras
de Fraunhofer. Nem a própria luz alcança em a natureza
decompor-fe fem que a defdourem e maculem os listrões
de cerrada efcuridão.
Com melhor fundamento do que contra a execução do
Malagrida nos poderamos porventura levantar contra a ni-
mia tolerância de Carvalho para com o tribunal do Santo
Officio. Para quem fe propunha emancipar das trevas cle-
ricaes a intelligencia popular, e expungir da pátria civilifa-
ção quanto lhe era ainda infefto e defhonrofo, parece que
nada podia haver mais confentaneo aos feus profpedos de
larga reformação do que o fupprimir inteiramente a odiofa
magiftratura. É verdade que as fogueiras para fempre fe
apagaram, apenas as chammas confumiram o defventurado
Malagrida. Mas a inquifição perfeverava ainda, como pe-
renne ameaça ás confciencias. Ainda em 1765 contemplava
-S-í»-^ -í^
4» e|j
ÍÍÍ9
32g
Lifboa um pompofo auto de fé, em que faiam penitenciadas
pelToas numerofas, e muitas d'ellas pertencentes ao eftado
ecclefialfico. Não era Sebaftião de Carvalho, pelas fuás idéas
adverfas francamente á poteítade clerical, propenfo a fomen-
tar e favorecer a Inquifição. No preambulo e nos artigos do
regimento reformado de 1774 tranfparecem a cada paíTo as
reluiftancias do feu cfpirito contra o fevero e temerofo tribu-
nal. Não era porém politico, nem exequível o empenhar ao
mefmo tempo as forças do governo fecular n'uma guerra
travada em toda a linha contra a influencia e jurifdicção do
facerdocio. Tinha na vulgar opinião em feu favor o Santo
Ofíicio o fer o mais leguro e firme antemurai contra as diíTi-
dencias religiofas. Convinha ao legiflador, em vez de o abolir,
convertel-o n'uma regia inítituição, que nas apparencias de
fervir fomente a fé, podeífe eílar a foldo do império temporal.
N'elle achava fubfidio valiofo e inftrumento preítadio na
campanha pertinaz contra a Companhia. Poderia ainda n'elle
apoiar-fe, quando cumpriífe, a auftoridade fecular. Deu-lhe
primeiro os foros de régio tribunal, conferindo-lhe o predica-
mento de majeftade. Impondo-lhe mais tarde, como norma
da fua jurifdicção, um regimento mais accommodado á luz
do feculo e aos intereífes do poder civil, tranfmudou-lhe a es-
fencia primitiva e tornou fácil á futura revolução o apagar da
fronte de Portugal eíte ultimo ferrete da fua degradação reli-
giofa. A Inquifição, refreada nas fuás pretenfões á omnipo-
tência, poderia defde então fazer apenas o mal, que a regia
poteítade permittiíTe.
Outros empenhos mais inftantes concitavam a energia
do miniftro fempre attento aos frequentes rebates, que lhe
dava o feu inimigo mais poderofo e impenitente. Durava
com a cúria o rompimento: o papa Clemente XIII aportado
a proteger os jefuitas como os filhos mais diledos da tiara;
Carvalho inflexivel em perfeguil-os como os mais intradaveis
-§-<)- •-<5>-^
33o
inimigos da coroa fecular. O pontífice, em parle pela fua
obítinada predilecção, em parte pela obfeffão da Companhia,
refolvêra defaggraval-a contra os golpes do miniftro, confir-
mando folemnemente o inftituto períeguido e infamado, e
proclamando ao orbe catholico no mais amplificado panegy-
rico as virtudes, a benemerência, a fantidade e os ferviços
da fatnosa íbciedade. O breve Apojlolicum pajcendi niimiis,
datado de Santa Maria Maior aos 7 de janeiro de 1765, era
um repto lançado do Vaticano ás opiniões e aos poderes que
tinham condemnado a ordem ambiciola. Apefar das feveras
precauções contra a introducção de lettras e breves pontifí-
cios, os jefiútas haviam efparzido clandeftinamente o novo es-
cripto em toda a chriftandade. Chegaram copias a Portugal.
Não podia Sebafiião de Carvalho conter a indignação e a re-
prefalia em prefença da oufada provocação. O pontificado
queria a guerra, acharia pois armado o antagonifta. Aos raios
do Vaticano refponderiam as tremendas comminações da re-
gia majefiade. O procurador da coroa aprefentou uma peti-
ção de recurfo, na qual diffufamente deduzia as antigas ac-
cufações contra os jeíliitas, roboradas com os recentes e no^os
tefi:emunhos da íua audácia incorrigível, e fiipplicava ao fo-
berano que houveíTe de empenhar a audoridade na defeza
da fua coroa, na confervação do Ibcego publico, decretando
fer nuUo e otTenfivo o novo diploma pontificio. A lei de 5 de
maio de 1 765, dando plena fatisfação á fi.ipplica do procurador
da coroa, declarou obrepticio e llibrepticio o breve Apojlolicum
pafcendi múnus, ordenou que todos os feus exemplares exis-
tentes em Portugal foíTem entregues no tribunal da Inconfi-
dência e houve por nuUos todos os breves e outros diplomas,
que emanados da chancellaria papal não houveíTem recebi-
do o régio beneplácito. Comminava a lei as penas mais feveras
aos que oufaífem contravir ás luas prefcripções : a indigna-
ção real, — efpecie de excommunhão maior da realeza abfo-
^%-h^ -k-%^
si) Ai
-<!>-• •-<j>-§-
33i
luta, — a confifcação de todos os bens e as outras formidáveis
expiações, com que na legiflação penal d'aquelle tempo fe
puniam os criminolbs de lefa-majeftadc. Era além d'iíto ne-
ceíTario precaver que pelas artes da Cúria e da Companhia,
fe não ditiiindiffem de novo pelo reino as bulias e refcriptos
procedentes do Vaticano. A lei mandava abrir devaíTa per-
manente contra os que infringiíTem os preceitos, que prohi-
biam a minima communicação com o pontifice.
Á obftinada contumácia, com que Roma e os jefuitas
contendiam por manter a fua auíloridade e influencia, res-
pondia inquebrantável a audácia e o vigor do eíladiíla. A
Companhia de Jefus era então como as ultimas reliquias de
um exercito vencido, mas ainda não de todo relbluto a entre-
gar-íe á difcrição do vencedor. Expulla de Portugal, comba-
tida em França tenazmente pelos parlamentos, léus antigos
e implacáveis adverfarios, fufpeita a alguns eítados, em ou-
tros mal foífrida, em todos infamada, buícára intrincheirar-fe,
como em refugio derradeiro, á fombra do papado na forte
cidadella vaticana. AíTediada rijamente, d'alli irrompia a cada
paflb, como em defefperadas e fubitas furtidas. Saía porém
a difputar-lhe o campo e a picar-lhc a rcçaga na fugida o leu
inexorável antagonifta.
No mefmo tempo, em que os jefuitas arrancavam das
mãos débeis de Clemente XIII o breve Apojfolicwn pafcen-
di, como o titulo folemne da fua apotheofe, um fucceífo
inopinado conduzia ás mãos do governo portuguez alguns
fecretos documentos, que atteftavam a íntima conftituição
da ordem reprovada, e punham novamente de manifeíto o
perigo d'eíl;a fingular corporação para o império temporal
em toda a chriftandade. Navegava do Peru para a Hefpanha
um galeão de nome Hcnnione. Rendido nas cofias de Portu-
gal pela fragata Aãipe, da marinha de guerra britannica,
lançaram os navegantes ao mar um cofre, onde vinham en-
.* . ■ -<^
332
cerrados papeis e correfpondencias. Arrojaram-n'o as ondas
e as correntes ás praias do Algarve. Vem a arca myfteriofa á
prefença do monarcha e dos miniftros. E aberta com uma
efpecie de theatral folcmnidade, levantando-fe de todo o feu
conteúdo um auto publico. Acham-fe cartas e defpachos do
provincial dos jeluitas no Peru para o prepofito geral de toda
a ordem, o famofo padre Lourenço Ricci. Deparam-fe entre
aquelles documentos algumas profiíTões do quarto voto, pelas
quaes os confcriptos n'aquella temerofa milicia efpiritual fe
obrigavam á mais cega e inteira obediência ao feu geral, e
quando aíTumptos a alguma dignidade prelaticia, a executar
pontualmente no governo e minifterio paftoral os confelhos
ou mandatos do leu fupremo chefe. Promulga então Carva-
lho a carta de lei de 4 de maio de 1765 e o alvará de 3o de
abril do mefmo anno, denunciando ao mundo os fecretos in-
ftrumentos, em que a impenitente Companhia firmava a fua
dominação e o feu poder.
Não repoufava o enérgico miniftro na empreza de extir-
par do folo portuguez quanto n'elle haviam femeado os je-
fuitas para extender e folidar o feu dominio. Com o impulfo
vigorofo do feu braço truncara a arvore robufta. Era neces-
fario diradical-a do torrão e arrancar-lhe as ultimas raizes,
defbravando a gleba para culturas mais profícuas. A ordem
invafora não limitava apenas aos feus profeífos o influxo
e a força, de que difpunha. Cumpria que além dos feus re-
ligiofos, coadjutores e eífudantes, fora do recinto das fuás
cafas e collegios, noviciados e miífões, a Companhia tiveíTe
diífeminadas nas terras de Portugal e feus domínios as co-
hortes fubfidiarias, mais temíveis por incógnitas, menos fus-
peitas por defpidas de roupeta e apparencia jefuitica. Eram
os feculares e leigos aíTociados ao perigofiíTimo inífituto pes-
foas de todos os eítados e condições, vinculando eftreita-
mente a fociedade civil á regra de Santo Ignacio. As cartas
eis
333
de confraternidade, expedidas pelo prepofito geral da Com-
panhia, eram como que os titulos de naturalifação na vaíta
monarchia theocratica. A Cúria, proporcionando a lua audá-
cia á violência da oppofição contra a ordem reprovada,
confirmara pelo breve Aminarum falnti de i o de feptembro
de 1 766 os privilégios e indultos efpirituaes, em que ficavam
participantes as peíToas d'efte modo filiadas como externos
auxiliares da Companhia. Dos jefuitas das províncias portu-
guezas o maior numero haviam fido expulfos e banidos,
outros Jaziam nos ergafi:ulos, alguns porém tinham permane-
cido em Portugal, como quem ofi:enfivamente renunciara aos
feus antigos votos e viviam apenas como egreíTos tolerados
fegundo a lei de 3 de feptembro de lySg. Mas fe o apparente
corpo da Companhia já não era para temer, ainda acafo
fijbfiftiam vicejando occultamente os rebentos do tronco prin-
cipal. A nova provocação dos jefi-iitas, que haviam extor-
quido ás mãos trémulas do velho Clemente XIII o breve
Aniinaritm faliiti, era força refpondeífem novos raios da ul-
trajada potencia temporal.
A lei e edido perpetuo de 28 de agofto de 1767 foi o ul-
timo venablo defpedido ao peito da Companhia em Portu-
gal pela mão vigorofa de Carvalho. Prohibiu o fevero legis-
lador que nenhum portuguez fecular ou ecclefiaífico podeífe
foUicitar ou receber do geral dos jefuitas ou dos feus delega-
dos, cartas de confraternidade, aífociação ou communicação
de privilegio, fob pena de incorrer em crime de lefa-majeftade.
A todas as peífoas, que em fuás mãos tivelTem taes diplo-
mas, ordenou que no termo peremptório de dez dias, fe vi-
vcífem em Lifboa, os foífem depofitar no juizo da Inconfi-
dência. Nas províncias e nas terras ultramarinas aíTignalou
prafos mais compridos para que eífes papeis reputados fub-
verfivos fe entregaífem ás juftiças territoriaes. Prefcreveu
que todos os indivíduos áquella data encorporados ou pro-
ei»
-<i>-§-
334
feíTos na Companhia ou aíTociados em alguma confraria es-
tabelecida fob os aufpicios da ordem illegal e reprovada, o
vieflem confelTar aos magiltrados. Declarou todos os mem-
bros públicos e fecretos da Companhia por inimigos iiicorri-
gipeis e coininiiiis de toda a potencia temporal, da tranqiiillida-
de e da }>ida dos príncipes foberanos e do Jocego publico dos
reinos e e/fados. Ordenou feveramente que todos os egreíTos
jefuitas lailTem defde logo de Portugal e feus domínios, conti-
nuando todavia a receber as côngruas, que a lei eíl:atuira,
e exceptuou d'eí1:a derradeira profcripção unicamente os que
obtiveíTem efpecial e régio beneplácito. Mas ainda a eftes,
reputados por mais inoífenfivos, a lei lhes tornou defezo o en-
íino, a catechefe, o púlpito, o confeíTionario. Seriam apenas
tolerados no feio da Ibciedade portugueza, mas como lepro-
fos efpirituaes, contra quem o poder civil excogitava as mais
duras precauções, mantendo-os fegregados de todo o conví-
vio intelledual. Seriam obrigados a preftar juramento de fide-
lidade, a abjurar toda a communicação e frequência com
os membros da Companhia e o feu geral, a prometter que
nunca mais dariam favor e auxilio á ordem réproba. Seriam
" levados egualmente a execrar e deteílar as reífricções men-
taes e as fubtilezas ardilolas inventadas pelos theologos e
moraliftas da Companhia, com o intento de illudir e profanar
a religião do juramento. Haveriam também de abominar a
fujeição e obediência cega e material ao chefe da Companhia.
Os antigos jefuitas, d'efl:a maneira como que defnatural lia-
dos do feu grémio, feriam obrigados a viver nas terras, onde
o governo lhes aífignaífe o domicilio. D'eítas meticulofas,
mas neceíTarias providencias, apenas a lei exceptuava os je-
fuitas que, tendo profeífado n'outras ordens regulares, ha-
viam folcmnementc renunciado á primeira profiífão. A Com-
panhia, fe bem extinda e exterminada de todos os territórios
portuguezes, como hera vivaz e perfiftente, continuava a en-
-i-i-^ -<í>-i-
-* •-<>-§►
335
lear-fe no folio pontifício, e os olhos do paftor univerlal in-
clinavam-fe para ella cada vez mais laftimados e compaffi-
vos de fuás provações e calamidades. Clemente XIII parecia
vincular á fortuna da Companhia os próprios deftinos da
egreja c do papado. O exercito vencido e deítroçado em
Portugal, acantonava em fom de guerra inexorável em to-
dos os mais paizes da chriftandade. Não faltavam n'efí:e reino
os valedores e os amigos, os fanáticos e os confortes na fua
vidoria ou adverfidade. A lei prohibia fob penas feveriíli-
mas que de futuro os jefuitas, ou juntos ou feparados, fos-
fem nunca admittidos em Portugal. Egualmente confidcrava
como perturbadores do focego publico e fujeitos ás p»enas
correfpondentes os que oufaífem aprefentar interceífões e
requerimentos para que jefuita algum foífe de novo recebido
e tolerado. Comminava caftigos aos magiftrados, que taes
requerimentos acceitaífem. A lei declarava também incur-
fos em crime de lefa-majeftade os que introduzilTem jefui-
tas em Portugal, e os que fabendo que exiítiam n'eíle reino
os não denunciaífem no termo peremptório de vinte e qua-
tro horas. E efta difpofição não fomente fe referia aos je-
fuitas de roupeta, aos que ainda pertenceflem á Companhia,
fenão também aos c]ue intentaífem volver a Portugal, dan-
do-fe por egreífos ou faidos do feu grémio. Com penas as-
fim mefmo feveriíTmias ameaça o legiflacfor os jefuitas que
entrados fraudulofamente, em território portuguez foífem
achados. Com egual rigor perfeguia a lei os affociados, que
no prafo definido não fizeífem perante os magirtrados as
fuás declarações. Ordenava alem d'iíro o edido régio, que
a dcvalfa instituída para conhecer das infracções permane-
celfe aberta constantemente. Bem fabia o legillador que o
breve Animanim faliiti íòva expedido com plena fatisfação e
complacência do pontífice romano. Mas o decoro politico
ordenava que o rei fideliffimo, um dos filhos mimofos da fé
eis
336
romana, não fizeffe ao pae commum a affronta de o haver
publicamente por fautor apaixonado e facciofo inftigador
dos jefuitas. A lei, recorrendo a uma ficção de fi mefina
tranfparente, declarava o breve por obrepticio, fubrepticio e
nullo, e prefcrevia fob penas temerofas, que folTem entre-
gues em breve prafo quantos exemplares d'elle exiftiíTem
em Portugal, de maneira que ninguém os podeíTe confervar
em leu poder.
Por aquelle tempo fe imprimia e divulgava largamente
a Dediicção chronologica e critica, a memorável requifitoria,
copiofa de erudição lacra e profana, onde appareciam am-
plamente hiftoriados os erros e os delidos da Companhia,
e a fua influencia funeítiflima em todas as relações fociaes e
religiofas, politicas e intelleduaes de Portugal. O livro trazia
eftampado á fua frente o nome do celebrado procurador da
coroa, Jofé de Seabra da Silva. Mas apefar da paternidade
putativa, muitos fuppozeram n'aquelle tempo, e ainda outros
o mantêem em noíTos dias, que a autoria verdadeira perten-
cera ao miniftro omnipotente. Se o famofo jurifconfulto, ao
principio alumno e lifonjeiro de Carvalho, e mais tarde fua
viftima, não foi o efcriptor do livro celebrado, não é crivei
que o valido e miniftro de D. Jofé, da multidão immenfa de
negócios, em que defpendia o tempo e os cuidados, ainda po-
deíTe aproveitar tão largos ócios, quaes exigia certamente a
empreza de efcrever tão dilatada compofição, e compulfar
ás centenas os livros e as memorias que citava.
Pouco depois de promulgada a lei, que refpondia trium-
phalmente ao breve Aniinarwn Jaliiti, era expedida a cada
um dos prelados portuguezes uma copia d'aquelle documen-
to, levando por commentario e explanação um exemplar da
Dcdiicção chrojioloffica e da petição de recurfo, em que as-
fentára a folemne condemnação das lettras pontificias. Não
era, de feito, unicamente para os dependentes feculares da
.-<>-i-
337
realeza, que era forçofa a obediência ao imperante. Quando
Sebaftião de Carvalho refpondia ás bulias do Vaticano com
os diplomas da fua chancellaria, os primeiros a accurvarcm-
le reverentes e fubmiíTos ás decifóes e aos preceitos do im-
pério fecular, haviam de fer o clero e principalmente a or-
dem epifcopal. Quafi todos os prelados, uns por adulação, os
outros por temor, facilmente cooperavam nas reprefalias do
miniftro contra as invafões da fé romana. Um ou outro le
moftrava, porém, menos lubmiflb ao jugo do governo tem-
poral. Mas ao centro da própria diocefe o iam procurar e
corrigir as duras exprobrações do di6tador, fe o bifpo, ainda
mal aclimatado á fua nova e extranha fervidão, intentava
extender a báculo alem das fuás raias efpirituaes. De to-
dos os prelados, o mais rebelde á fupremacia da regia au-
ítoridade era o bifpo conimbricenfe, D. Miguel da Annuncia-
ção; efpirito eítreito, curtido e educado em todas as velhas
abufões ultramontanas, e em todas as antigas exaggerações do
fanatifmo; homem de bons coftumes e vida auftera; de fcien-
cia efcaífa e ruim; de animo altivo e inflexível ao que fup-
punha derogatorio das fuás faculdades prelaticias. Tinham
por ufança mais antiga do que piedofa os povos de Abiul,
na diocefe de Coimbra, folver no primeiro domingo de agofto
com folemne feftividade na egreja parochial um voto a NoíTa
Senhora das Neves, aífociando, como fe cofluma em Portu-
gal, á celebração religiofa a mundana diverfão dos touros e
das cavalhadas. Efcandalifava-fe o bifpo, com razão, de que
aos oíficios da piedade chriflan mefclaífem povos rudes fo-
bejas e oíTenfivas carnalidades, mais de pagãos que de gentes
alifladas nas myfticas bandeira de Jefu-Chrifto Prohibiu as
cavalhadas e os touros. O povo, que fegundo o teor dos feus
maiores entendia ler imperfeito o culto de Noífa Senhora,
fe aos ritos e ao fermão dentro da egreja, fe não feguiam cá
fora no adro e no terreiro as diverfões eftrepitofas, deu-fe
eií
^ .hJ)-!-
338
por mal fenãdo com a auítera prohibição. Redarguiu, mur-
murou, refiftiu, quafi entrou em aberta infurreição. Ordena
o bifpo então que o parodio não dè a egreja aos ancioibs
fefteiros de Abiul.
Supplicam, inflam, ameaçam, e o bifpo Icmpre inque-
brantável. Aggravam-fe c queixam-fe ao governo da força e
violência, que o prelado lhes fazia. Efcreve então Carvalho
ao bifpo em carta regia afperrimas cenfuras. Dizia efle notá-
vel documento que a refolução epifcopal fora tomada «com
grande defconfolação do povo e ainda efcandalo da pieda*de
chriftan por le lhe difficultar a egreja, em que confiíl^e o prin-
cipal objedo d'aquella feita » . Accrefcentava que « as feitas, que
fe celebram por voto do povo e fe prefcrevem e regulam pelas
camarás do reino, não devem fujeição aos prelados ordinários
para as poderem impedir, e muito menos com o pretexto,
que o bifpo declarou, pois fe não poderia perfuadir que a
fefta celebrada na egreja de manhã fe houveífe de profanar
com os touros corridos pela tarde em praça feparada, nem fe
podia prohibir aos leigos feculares o que os fummos pontífi-
ces permittiam aos próprios ecclefiaíticos» . Concluía a epiflola
fevera com efta formal intimação: «Não podendo tolerar-fe
um exemplo d'efta qualidade, fou fervido declarar-vos que
tão diífonante é o impedir a feita. . . como exceífo e abufo
na voífa jurfdicção e minifterio o prohibirdes direita ou indi-
rectamente os touros . . . e que de uma e outra coufa vos de-
veis abiter . . . fem vos embaraçar no que vos não pertence ' » .
D'eita vez feria o bifpo o defenfor da boa caufa, fe razões
de zelo pharifaico e de exaggerado fanatifmo o não aconfe-
Iharam a combater as profanidades e folias como neceíTa-
rio complemento do culto religiofo. Mas ao prelado não per-
' Carta regia ms. na CoUecção de le^ijlaçáo de Trigofo, anno de 1767, no
gabinete de Manufcriptos da Academia das Sciencií^s.
33q
tencia realmente o reprimir de lua própria auítoridade o que
o povo durante feculos aprendera no exemplo e nos coftu-
mes das claíTes elevadas. A punição ao prelado, que ufurpá-
ra as attrihuições adminilírativas, feguiu de perto a audácia
da invafão.
A repreíTáo contra os abulbs do poder ecclefiaftico e contra
a fua intervenção nos alTumptos puramente feculares era a ha-
bitual preoccupação do oufado reformador. Nas copiolas in-
ítracções expedidas a 2 de agoíto de 1766 a D. Antão de
Almada, que ia por governador e capitão general ás ilhas
dos Açores, entre varias providencias para melhorar a con-
dição moral e económica do archipelago, não fe elquece o
miniftro de encommendar-lhe com inftancias repetidas que
bufque enfrear e repellir as incurfões da jurifdicção facer-
dotaj contra a foberania e independência do império, exe-
cutando n'aquelles territórios quanto as leis acautelavam e
prefcreviam para conter as mundanas ambições do eftado
clerical.
O clero, que n'aquelle feculo já não podia brandir o gla-
dio temporal, para impor pela força a fua vontade e accurvar
aos feus intereíTes terrenaes os que oufaíTem contradizêl-os,
pedia á egreja as armas efpirituaes, com que aflbberbar ao
feu dominio a própria majeftade e os feus reprefentantes e
mandatários. As cenfuras e excommunhões tinham fido nas
primeiras edades do chriftianifmo as penas decretadas con-
tra os delidos meramente ecclefiafticos. Quando porém du-
rante a edade media, a egreja fe confubftanciára intimamente
com o eftado, e o poder das chaves trefpaífára oufadamente
as fuás fronteiras naturaes, os pontífices romanos, confundin-
do aftutamente com as mais peccaminofas abominações a
jufta defeza dos poderes temporaes contra a mundana fupre-
macia do papado, c capitulando de peccado toda a negação
de obediência aos preceitos do paftor univeríál, como fuze-
si)
340
rano de todas as monarchias, tinham abufado longamente
da excommunhão e do interdifto para lubmetter e humilhar
os foberanos e os povos infurreítos contra a omnipotência pon-
tifical. O clero feguindo o exemplo, que defde o folio de
S. Pedro lhe dera por tantos feculos o diftador efpiritual do
Vaticano, acoftumára-fe a ver na excommunhão o terrível
inílrumento das fuás ambiciofas afpirações.
Um cónego da Guarda, contra quem o corregedor da
comarca de Pinhel havia dado fentença n'um litigio, tinha
ameaçado com eíta ultima razão do império facerdotal o ma-
gistrado. Uma provifão expedida em nome do rei caftiga fe-
veramente nas phrafes da mais alta indignação o arrogante
prebendado. Para defabufar, dizia eíte diploma, os povos en-
ganados com lemelhantes apparencias de cenfuras, o poder
temporal declarava todos os documentos publicados n'efte
pleito pelo juiz ecclefiaftico por fimulados, capciofos, nullos,
irritos e vãos, e ordenava que ninguém lhes deffe credito,
fob pena de lhe ferem confifcados os feus bens. No decreto
de 10 de março de 1764 o rei eftatuia ferem exclufivamente
refervados ao feu conhecimento e decifão os cafos de excom-
munhão pronunciada contra os miniftros, juftiças e tribu-
naes, ainda mefmo quando as excommunhões e declarató-
rias foíTem procedentes do Vaticano.
Todas as extranhas pretenfões da corte de Roma e do
poder facerdotal a dirigir e dominar foberanamente o gover-
no temporal e a vida civil das fociedades, andavam compen-
diadas n'uni bulia celebrada, que era por aífim dizer a Ma-
gna Carta das franquezas e liberdades clericaes na lua lufta
immemorial com o império. Era a bulia a que tem nome //;
coena Domini, ou a bulia da Ceia, a qual, defde os tempos de
Pio V, em Roma fe publicava annualmcnte na quinta feira
maior com grande e f) mbolica Iblemnidade. Não podia con-
ceber-fe um diploma pontifício, onde em fummula e compcn-
eis
34-
dio fe oftentaíTem com tamanha crueza e arrogância as dou-
trinas mais adverfas aos direitos do poder civil. Todos os
annos no dia mais folemne da chriftandade Roma, como que
fe contraftalTe mundanamente na lua majeftade e grandeza
imperatoria com a humildade e manfidão do Redemptor pre-
gado n'um madeiro, Roma, não a Roma pagã e triumpha-
dora, fenão a Roma chriftan e efpiritual, cingindo o triregno
refulgente, infjgnia da fua univerfal dominação, meneando
os dois gládios de Gregório VII e veftindo a purpura dos Ce-
fares, pela bulia da Ceia annunciava oufadamente ao orbe ca-
tholico a fujeição de todos os monarchas e governos ao feu
difcricionario poderio. Os potentados mais catholicos e ad-
didos nas coufas religiofas á fanta fede, haviam fempre vilfo
de mau grado aquella audaz proclamação da monarchia pon-
tifical. Era tempo de condemnar egualmente em Portugal a
bulia attentatoria do império fecular. Para diífundir e ro-
borar no catholicifmo as cxtranhas doutrinas profeífadas
n'aquelle memorável diploma pontificio, artificiofamente ha-
via a cúria inventado os índices expurgatorios, efpecie de pau-
ta e aranzel da alfandega efpiritual, onde vinham declaradas
as idéas e os efcriptos, que podiam ter entrada e os que fe
reputavam contrabando no reítrido mercado ultramontano.
A Roma antiga mandara outr'ora a extender e firmar
pelo mundo o feu dominio os feus proconfules e pretores, as
fuás legiões e as fuás cohortes. A Roma pontifical repartia
pela terra, para fegurar a fua conquifta, a inquifição e os je-
fuitas, de ponto em branco armados e apercebidos com a
cenfura ineludavel e fuprema fobre as manifeftações da in-
telligencia. Não baftava fcguir pontualmente a letra do Evan-
gelho, como a egreja a definira quanto ao dogma e á moral.
Para fer havido por catholico fem macula era forçofo admittir
e confeíTar que Roma era não fomente a arbitra infallivel de
toda a fé, fenão também a fonte da potcftade temporal, e a
eM
c|8
342
guia e o fanal dos foberanos e dos povos no regimen das
humanas fociedades. Todo o livro, que não profeíTaffe axio-
mática a infallibilidade pontifícia, e não defendeffe as mais
abftrulas pretenfões ecclefiafticas ao governo fecular, era nos
Índices equiparado ás obras dos herefiarchas, dogmatiftas e
apoílatas de maior execração entre os catholicos. A bulia da
Ceia era por aíllm dizer o evangelho das mundanas ambições
pontificaes. Os Índices, e a cenfura inquifitorial eram os po-
derolbs inftrumentos confagrados a reprimir a duvida ou a
negação contra a foberania univerfai do Vaticano, e afua abu-
fiva intervenção nos intereffes puramente temporaes. A carta
de lei de 2 de abril de 1768 é deftinada a condemnar ao mes-
mo paíTo a bulia da Ceia e os Índices expurgatorios. O procu-
rador da coroa na feptima demonftração da fegunda parte da
Dediicção chronologica denunciara n'uma petição de recurío
aquelles dois funeftos documentos e do rei Ibllicitára o defag-
gravo contra as quebras da lua audoridade. Era urgente
deferir ao que em nome das regalias majeftatícas havia fup-
plicado o filcal da coroa. Era forçofo, dizia o legillador, fus-
tentar as juftas immunidades e a religiofa veneração devida
á egreja, mas urgia egualmente precaver que os abulbs da ju-
rifdicção ecclefiaftica, caufadores de públicos elcandalos, não
pozeffem em rifco os próprios direitos do facerdocio. Era não
menos necelTario manter ao rei e fenhor foberano, que na
terra não tinha fuperior, a livre independência, fem a qual as
fociedades civis, e até mefmo o eflado ecclefiaftico não pode-
riam fubfiftir. A bulia, contra a qual haviam com vehemencia
reclamado os foberanos mais pios e orthodoxos, bufcára es-
tatuir fobre puras temporalidades, de todo o ponto alheias á
cenfura e infpecção do facerdocio. Decretava o legiflador
que a introducção da bulia reprovada era dolofa e clandeflina.
Ordenava que todos os feus exemplares, e os Índices expur-
gatorios, ficaífem para fempre fupprimidos como obrepticios
-i-O- — *^<^
343
e fubrepticios, e de nenhum \igor. Prohibia que ninguém
podeíTe imprimir, vender, publicar, diftribuir ou confervar
em feu poder a bulia da Ceia, os Índices expurgatorios, ou
quaefquer breves pontifícios, em que feja defezo e condem-
nado qualquer livro. Comminava como penas aos infraítores
as dos crimes de lefa-majellade.
Os poderes, quando chegados á ília derradeira decadên-
cia, parece que redobram de imprudente e inútil energia
para manter e dilatar a fua dominação. Eftava então a Eu-
ropa e a chriftandade n'um dos pontos mais notáveis e peri-
gofos da fua carreira, como n'um trópico tremendo, onde
não era fácil antever a que oufadas innovações fe haveria
de arrojar a humanidade. Era a epocha da philolophia de-
molidora, o tempo em que era elegante a incredulidade, a qua-
dra que de breves annos precedia a Revolução de 1 789, a era
em que os efpiritos defcrendo ou duvidando, infeftos ao pas-
fado, incertos do porvir, eííavam largamente accumulando os
combuftiveis, em que havia de prender e flammear a grande
conflagração. A fociedade civil bufcava claramente delatar-fe
dos vinculos herdados, já tão impaciente da oppreíTão gover-
nativa, como da tutela ecclefiaftica nas relações e intereíTes
mundanaes. O pontificado, como força politica, decaia mais
e mais no conceito univerfal. Principiava eíte encadeamento
de fucceíTos, que haveriam fatalmente de levar defde a fu-
jeição de Pio VI á republica franceza até á perda irrepa-
rável do eflado temporal nas mãos nervofas, mas invalidas
de Pio IX. Pois apefar das circumítancias adverfas ás pre-
tenções ambiciofas do papado, ou antes por feu eífeito ne-
ceífario, empenhava a fanta fé os feus esforços por moftrar
na apparencia a força, que não tinha. Como os antigos par-
thos, dando as cofias ás legiões romanas, e defpedindo na
fugida os feus dardos mais certeiros, o poder pontifical quafi
vencido bufcava no carca/ as mais agudas frechas efpiri-
344
tuaes, e as ia defpejando fem repoufo contra os governos já
rebeldes ás fuás intimações. Havia o duque de Parma, in-
fante de Hefpanlia, como foberano em feus eftados, promul-
gado alguns edidos, para cohibir os abufos clericaes. Legis-
lara em aífumptos do feu foro e competência, como quem
reprefentava o poder legiflativo e a majeftade civil e popular.
Mas as leis eram pelo clero julgadas oíTenfivas das fuás
immunidades e franquezas e da jurifdicção ecclefiaftica, defde
largos annos invafora dos foros temporaes O papa Clemente
XIII, ainda não canfado na lufla pela exiflencia, faíu logo
com as lettras apoftolicas de 1768, a condemnar o que re-
putava tyrannia e facrilegio do imperante. O diploma pon-
tifício condemnava os edidos, e os abolia, caífava e havia
como irritos e nullos. O raio defpedido contra o duque de
Parma e Placencia feriu no intimo do feu orgulho majeflatico
os foberanos da chriftandade, principalmente os da cafa de
Bourbon, em cujas faces eflrugira o golpe defcarregado n'um
príncipe d'aquella foberba dynaítia. Os reis de França e de
Hefpanha defde logo fe concertaram no desforço, e moítra-
ram ao pontifice, que fe como filhos piedofos da egreja o
veneravam por herdeiro de S. Pedro, por dominador fem
armas, nem exércitos, como reis o não temiam. Emquanto
Luiz XV e Carlos 1 1 1 exigem imperiofamente do pontifice a
revogação do injuriofo monitorio contra o infante duque de
Parma, emquanto Clemente XIII incitado pelo cardeal Tor-
riggiani e pela facção violenta dos lelantes, refifte impenitente
ás intimações da cafa de Bourbon, emquanto as tropas do
rei chriftianiffimo fe apoderam de Avinhão, e as de Nápoles
occupam os territórios pontifícios de Benavento e Ponte-
Corvo, não eftava Sebaftião de Carvalho aíTiftindo a efta
pendência como fimples efpedador. Como zelofo, e quafi
intolerante adverfario do poder ecclefiaftico, a fua indigna-
ção fubia á nota mais aguda. Fora elle quem principiara
«-V^
efta nova e inefperada porfia do império com o facerdocio,
eíta violenta contenção, em que, fem fe apartarem do girão
da egreja, como fociedade efpiritual, os governos catholicos
confeguiram fobrepor a fua audoridade ás ambições mun-
danas e carnaes do eftado clerical.
Pela carta de lei de 3 de abril de 1768 Sebaftião de Car-
valho declarava « obrepticias, fubrepticias, dolofas, pertur-
bativas da paz e focego publico, incompatíveis com o efpirito
apoítolico do papa Clemente XIII e diametralmente oppoftas
ás fuás paternaes e pias intenções e á fua fantiíTima vontade»
as lettras apoftolicas expedidas em leu nome contra o duque
de Parma. Não podia conceber-fe ironia mais pungente, dis-
farçada na diaphana ficção de que o paftor univerfal era
como um rei conítitucional na monarchia religiofa, irrefpon-
favel e fobranceiro ás tempefi:ades e paixões, que em redor
do feu throno fe agitavam. Sebaftião de Carvalho ao apontar
o feguro golpe á cabeça vifivel da egreja, intentava perfuadir
que o desfechava contra o cardeal Torriggiani, os -{elautes do
facro collegio, e os jefuitas, c[ue na luda redobravam de furor.
Clemente XIII nas fuás provocações ao poder civil, bufcando
reconftruir o velho mechanifmo do império pontifício univer-
fal, era tão confciente do que fazia e decretava, como Gre-
gório VII, Innocencio III ou Bonifácio VIII. Faltava-lhe fo-
mente o animo d'aquelles feus anteceífores para mandar e
coagir, a fubmiflao da edade media para ouvir e obedecer.
Mas na theoria apparente de Carvalho, o pontífice reinante
era apenas o inconfciente mandatário de uma facção impa-
ciente e revoltofa, que lhe arrancava da mão com violência,
para authenticar as bulias fubverfivas, o innocente annel do
pefcador. Como ao foberano inglez, fegundo a ficção politica
dos publiciftas britannicos, ao papa fe adaptava juftamente
o aphorifmo de «que o rei nunca pôde fazer mal». (The
king cannot do ivrong.)
-*<>^
v^
346
Era, como do que expozemos fe deprehende, contínua,
formidável, tenaciíTima a peleja entre o grande miniítro por-
tuguez e o poder facerdotal. Nenhum dos contendores fe
dava por vencido. O terreno do combate propicio ao ag-
greíTor, era desfavorável a quem defendia os direitos e fran-
quezas da fociedade civil. A egreja tinha por fi a fé, que
fabia invocar mui habilmente, ainda quando fe tratava de
puras temporalidades, extranhas, contrarias quafi fempre ao
dogma e á orthodoxia. O elfado não podia appellidar em feu
favor fenão doutrinas, que aos efpiritos meticulofos pareciam
infpiradas e bebidas em fonte fufpcita de heterodoxia. A
egreja tinha a empenhar-fe por feu lado a fuperftição e a
infciencia das multidões com apparencia efpeciofa de zêlo
religiofo. O eftado via em redor de fi uma turba de gentes
educadas longamente pela inquifição e pela Companhia, ha-
bituadas a confundir com a herefia e o facrilegio a juita re-
fiftencia e repreíTão contra as ufurpações temporaes do la-
cerdocio. Era pois defegua"! em extremo grau a pendência
travada entre os dois poderes antagoniftas. Só um eítadis-
ta da procéra eítatura de Carvalho, em nação de fegunda
ordem, em povo de tão efcaffo lume intelledual, poderia ter
logrado as palmas da vidoria. Cumpria-lhe antes de tudo
não tranfcender num ápice fequer os lindes, que leparam
da fidelidade catholica o fcifma e a deferção efpiritual. Era
forçofo exaggerar a pureza da fé, a lujeição e o refpeito ao
pontificado, para que os aíTaltos vigorofos contra o próprio
Vaticano não pareceíTem abertas infurreições contra a egre-
ja. Era precifo ferir o papa, mas oppugnal-o com reveren-
cia e de joelhos. Urgia fer audaz para combater os abufos
da egreja no temporal, e prudente para não cair em nota
de rebelde á catholica unidade. Era neceíTario principalmen-
te oppugnar com valentia as doutrinas, que efpalhadas pro-
digamente em livros e em brochuras, por uma parte faziam
-• «-v-i-
quotidianamente ainda mais craífo o fanatifmo e a ignorân-
cia, e por outro lado canonifavam a omnipotência dos pon-
tífices, a autocracia do clero, c a fujeição dos governos fecula-
res, como fe foíTem condições eíTenciaes da religião inítituida
por Jefu Chrifto. Mas a cenfura dos livros e o orthodoxo
aquilatar das opiniões pendiam do nuto ecclefiaftico. Nenhu-
ma idéa podia correr fem a licença do Santo Officio e do
prelado diocefano. A egreja tinha affim em feu poder o di-
vulgar a doutrina, que fomentava e defendia as fuás ambi-
ções, e prohibir a que em jadura das fuás fuppoftas immu-
nidades, tendia a levantar do fervil abatimento o poder civil.
E verdade que o eftado cooperava na cenfura dos efcriptos
pela intervenção do defembargo do paço na permiífão de os
eftampar. Mas fempre a razão ficava d'efta forma fujeita á
tarifa ecclefiaítica, a idéa ao facerdocio acorrentada e ferva
do altar. Era certamente uma conquifta immenfuravel no
proceflb de fecularifar a Ibciedade, o transferir das mãos do
clero para as do eftado, reprefentante e curador do povo
ainda menor ou interdido, a fuprema adminiífração do pen-
famento, alfumindo plena e indivifa a cenfura dos efcriptos.
A intelligencia obedecia então a duas potencias, defegual-
■ mente ciofas e oppreíforas da fua livre e efpontanea mani-
feftação. Eliminar uma d'eftas duas nefaftas reftricções era
aplanar o caminho á futura emancipação do penfamento.
Concentrar exclufivamente nas mãos do imperante a fupre-
ma infpecção na efphera intelledual, fubftituir uma fó ás
duas tarifas, pelas quaes fe alealdava o que era permittido
publicar e imprimir, fubordinar á razão de eftado as conve-
niências egoiftas do ambiciolb facerdocio, attender nas idéas
e nos efcriptos muito mais á fegurança da fociedade civil
do que á meticulofa compreífão do que parecia herético ou
mal foante aos preconceitos e abufos ecclefiafticos, era tor-
nar mais fácil no porvir a libertação do penfamento, quando
■<v. .-<S-§.
4sU
_ -cjh-i-
348
o povo, tendo facudido o jugo clerical, cobraffe esforço para
defatar e deítruir os pefados grilhões do abfolutifmo e po-
deíTe finalmente refpirar o ar vivificador da liberdade. A
creação da Me/a cenforia, inftituida pela carta de lei de 5
de abril de 1 768, era pois para a monarchia abfoluta, emula
antiga do poder facerdotal, um meio efficaciíTimo de eftear
e robuftecer a fua autoridade no prefente e para as liber-
dades populares uma conquifta valiofa pelas fuás confe-
quencias no futuro. O legiflador fempre coherente em im-
putar aos jefuitas, — algumas vezes, como é inevitável nas
ludas politicas apaixonadas e violentas, com vehemencia
exaggerada, — todas as calamidades fociaes, e todas as tur-
bações e defconcertos na ordem civil e religiofa, contra elles
í'e defentranhava em duras execrações, attribuindo-lhes a au-
toria do Índice expurgatorio, publicado pelo inquifidor geral
D. Fernão Martins Mafcarenhas. Por elle haviam alcançado,
referia o miniftro inexorável, defterrar de Portugal toda a boa
e fan litteratura, prohibindo os livros úteis, divulgando os per-
niciofos, precipitando o povo portuguez em inculpável e for-
çolb idiotifmo. Se os jefuitas não eram os fós culpados na
funefta degradação do entendimento portuguez, fe outros
auxiliares haviam cooperado na obra de amefquinhar, ennoi-
tecer, efterilifar a razão publica, não é menos verdadeiro que
eram elles os réus principaes d'eíl:e delido. A realeza, que tam-
bém fora parte em adenfar as trevas intelleduaes, queria então
purificar-fe das fuás antigas malfeitorias e lavava efcrupulofa-
mente as fuás mãos d'efte grande peccado nacional. A Mefa
cenforia ficava conftituida por um prefidente e fete deputa-
dos ordinários, um dos quaes feria um inquifidor propoflo
ao rei pelo inquifidor geral, e outro o vigário geral da diocefe
de Lifboa, ou um defembargador da cúria patriarchal. De-
putados extraordinários fem numero fixo completavam efi:a
nova magilfratura.
-s-<5>-* -i-^
349
A Mefa cenforia era condecorada com o alto predicamen-
to de régio tribunal, e com o tratamento honorifico de majes-
tade, como fe fora eífeítivamente prefidida pelo foberano. As
fuás funcçÕes comprehendiam a cenfura de todos os li^•ros e
impreíTos, aíTim dos que já eftiveíTem no reino introduzidos
como dos que fe pretendeífe novamente imprimir e divulgar,
fem exceptuar a reimpreífão dos que houveífem anterior-
mente alcançado as licenças neceífarias. A eíta nova aduana
do penfamento nenhuma mercancia intelledual fe podia fub-
trahir. Todos os livros, que de terras extrangeiras vieífem a
Portugal, feriam apprehendidos nas redes da cenfura e leva-
dos ao fupremo julgamento d'efi:a nova inquifição civil.
No regimento promulgado pelo alvará de 18 de maio de
1768, ainda mais que na lei da creação, tranfparecia clara-
mente o intento do legiflador. Na fingular e melindrofa fitua-
ção, em que a refpeito do paftor univerfal fe encontrava a
egreja lufitana, na prefença de um diuturno rompimento, que
bem poderá maliciofamente interpretar-fe como o pream-
bulo de um fcifma declarado, em face de uma nação defal-
lumiada e fuperíticiofa, era mais do que nunca prudente e
neceífario o antepor oftenfivamente a defenfão da fé reli-
giofa e o refpeito pela fupremacia efpiritual de Roma ás
profanas conveniências do elfado temporal. Os deputados do
novo tribunal «deviam ter — dizia o legiflador — um zelo ar-
dentiíTimo do augmento da religião e do bem publico da pá-
tria». A Mefa devia proceder á compofição de um Índice de
livros prohibidos, tomando por fundamento o indice roma-
no, os Índices expurgatorios das varias nações catholicas, o
do celebre dominicano portuguez Fr. Francifco Foreiro, o
do antigo inquifidor geral D. Fernão Martins Mafcarenhas.
A lei declarava genericamente prohibidas todas as obras de
atheiftas e herefiarchas. Deveriam os cenfores moftrar-fe in-
exoráveis contra os audores, que oíTendiam a efpiritual júris-
-<>-l-
35o
dicção dos pontífices romanos, « arrancando, dizia com poli-
tica emphafe o legiílador, as cliaves da egreja das fagradas
mãos do vigário de Chrifto e dos fucceíTores dos apoftolos
para entregal-as aos príncipes temporaes » . O regimento man-
dava prohibir os livros dos philofophos e encyclopediítas do
feculo XVIII, e dos precedentes efcriptores acerca de aíTum-
ptos fociaes e religiofos. Abria, porém, uma honrofiíTima ex-
cepção em favor de nomes tão illuftres, quaes eram Grocio,
Puffendorf, Bynkerfchoek, Barbeyrac, Wolf, e alguns outros,
que fendo proteftantes, eram no conceito do legiflador inten-
fos e preítadios luminares da razão univerfal. Mas apefar
d'eíta apparente determinação de encaminhar a cenfura oííi-
cial em defeza da egreja e do feu chefe efpiritual, a Mefa
cenforia era principalmente uma nova e terrível bateria, que
o poder civil e majeftatico, reprefentante da ordem fecular,
conítruia e aíTeftava contra os jefuitas e contra as pretenfões
ambiciofas e terrenas da Roma pontifical. A feição temporal
da nova inftituição apparecia manifefta na efpecial recom-
mendação de perfeguir fem trégua e fem quartel os livros
promotores da fiaperftição e fanatifmo e aquelles, em que os
vionmxhomachos, ou os oppugnadores da realeza e do direi-
to divino das dynaftias, femeavam os germens fecundiíTimos
da nova democracia.
Ainda os atheus, os dogmatiítas e herefiarchas fe eximiam
aos rigores da Mefa cenforia, quando já os feus primeiros ti-
ros fe difparavam contra a foragida e condemnada Compa-
nhia. A primeira vidima da implacável magiftratura era o
grande e facundo jefuita portuguez. Pelo decreto de lo de
junho de 1 768, eftando ainda a inftituição nas faxas infantis,
condemnava a fer queimada publicamente pelo executor da
alta juftiça a Carta apologética do Padre António Vieira, e fen-
tenciava á mefma pena a Vida do fapateiro Janto, que faira
egualmente das fráguas da Companhia. A Mefa cenforia em
-i-«í>- -<í)-§-
t-
35 1
feus primeiros dias continua infatigável batendo em brecha o
fanatifmo, a luperftição e as arrogâncias temporaes ou dele-
térias da ordem facerdotal. Condemna a fer queimado pelo
algoz o livro Siir la deftnidion desjéjiiites en France, declaran-
do-o falfo, temerário, efcandalofo, infame, fediciofo. N'uma
larga cenfura reprova com a máxima vehemencia os erros
e fuperftições da Jacobea ou feita dos beatos, compendiadas
como em fummula perigofa no livro intitulado Thefes, máxi-
mas, exercidos e obferpancias efpirituaes da Jacobea, e manda
que todos os feus exemplares fejam queimados pela mão
ignominiofa do verdugo. Os jacobeus ou os beatos haviam no
reinado de D. João V perturbado as confciencias e femeado a
zizania no feio da egreja lufitana. Contra elles fe haviam dis-
parado os tiros da inquifição. ProfelTavam que era não fomente
licito, mas até obrigatório aos confeífores, o quebrar o figillo
facramental e defcobrir os peccados, que lhes foífem revela-
dos no tribunal da penitencia. O papa Benedifto XIV lançara
contra eíla feita perniciofa de fanáticos as cenfuras apoítoli-
cas, reprovara e condemnára folemnemente o figillifmo, e
fubmettêra os réus d'efte delido ao julgamento do Santo Offi-
cio, para que lhes impozeífe penas feveriffimas, fem exce-
ptuar nos cafos mais atrozes a pena capital, a infâmia e a
coníifcação. O miniftro perfeguidor do fanatifmo, agora que
os beatos e jacobeus, eftimulados pelo favor do prelado co-
nimbricenfe e efcudados com a fua audoridade, renafciam
com profpedo de novas e mais graves turbações, fegunda vez
revalidava as lettras pontifícias e lhes concedia expreíTo e am-
plo beneplácito, preftando o auxilio do braço fecular á fua
rigorofa execução. Ao mefmo paífo o confelho geral do Santo
Oíiicio tendo á fua frente como inquifidor geral a Paulo de
Carvalho, irmão do audaz reformador, publicava um edital,
denunciando os erros do figillifmo e precavendo contra elles
os fieis.
ela
352
Egualmente padeceram os rigores da nova jurifdicção as
Máximas efpiritiiaes de Fr. Affonfo dos Prazeres, as obras em
que íe defendia a relaxação do figillo facramental, profeíTada
como elemento elTencial nas doutrinas dos jacobeus e figillis-
tas, e todos os livros numerofos, em que fe canonifavam e
encareciam as thefes formuladas na celebrada bulia In Coena
Domini contra os direitos inalienáveis da civil majeftade e
foberania. E fó depois que a Mefa cenforia tem feito as fuás
primeiras armas e as mais brilhantes contra os jefuitas, os
jacobeus e os defenfores da monarchia univeríal dos papas,
que fe lembra de condemnar os heterodoxos efcriptores, ac-
cufados de haverem maculado a pureza da fé catholica e
oufado combater, como o feu poderofo antemural, o Santo
Ofíicio. É então que a Mefa cenforia condemna e prohibe
em 1769 a Hijloire de l'EgliJe de Bafnage, e o famofo Di-
dionnaire hijloriqiie et critique de Bayle. Mas já então prefide
á egreja univerfal Lourenço Ganganelli, fob o nome de Cle-
mente XIV, e Portugal eítá em vefperas de enlaçar-fe nova-
mente por vínculos filiaes e affeduofos ao folio de S. Pedro.
O elogio da inquillção a contar do feculo xiii, o panegyrico
do Ibmbrio D. João III, que a foUicitou e obteve do pontífice
Paulo III, conflituem um dos lunares no carafter do eíta-
difta, antes obrigado pelas circumftancias da occafião do que
pelos didames da confciencia a defender e encomiar eíta
grande vergonha do puro chriflianifmo. Se as conveniências
politicas exigiam, ou antes defculpavam eftas laftimofas aber-
rações no efpirito luminofo do miniftro, a fua intraítavel fe-
veridade contra as abufões religiofas louvavelmente fe mani-
fefta a cada paífo. A Mefa cenforia perfegue fem piedade a
fuperítição, prohibindo todos os livros, que perfuadiam e in-
culcavam as falfas indulgências, e alimentavam entre a gente
rude e popular a opinião de que podia peccar feguramente,
porque os mananciaes da divina complacência jorravam por
ela
353
tantas fontes caudaes e inexhauftas, quantos eram os pretex-
tos da fuperfticiofa c falfa devoção.
E fomente depois de feguras novamente por vínculos
eftreitos as relações de Portugal com a Santa Sé, que o ani-
mo de Carvalho fe levanta a cohibir a torrente das idéas
philofophicas. Até ali a lanha dos cenfores officiaes tivera
por leu alvo prediledo os efcriptores da Companhia, os pro-
babiliftas e milagreiros, os andores ultramontanos e feda-
rios da monarchia univerfal dos pontífices romanos. Mas ao
condemnar pela Mefa cenforia os audazes penfadores do xviii
feculo, não fe penfe que o miniftro abfolutifta põe a mira
unicamente em tutelar as doutrinas chriftans e orthodoxas
contra a corrente impetuofa das idéas philofophicas. Os es-
píritos fortes, «que, na linguagem dos cenfores, fe attribucm
o efpeciofo titulo de philofophos » , ao compaffo dos golpes di-
rigidos contra a fé, eftão minando os fundamentos da velha
fociedade e fazendo á monarchia abfoluta e oppreífora o feu
proceífo, cuja fentença gloriofa terá de proferir em breves an-
nos a triumphante Revolução. Voltaire, Rouífeau e La Mettrie,
mais os teme o terrível Icgiflador por demolidores do direito
divino que por infeflos á pureza caftiíhma da fé. Os philofo-
phos, proclamava o edital da Mefa cenforia de 24 de feptem-
bro de 1770, «invadiam os mais folidos fundamentos do
throno». N'efl:a immenfa profcripção contra o que o feculo
XVIII penfára e efcrevcra de mais revolucionário, compre-
hendiam-fe para cima de cem obras, as mais d'ellas escriptas
em francez, algumas, taes como as de Tolland, de Woolfton, e
de outros mais, eftampadas em inglez. As que fe reputavam
mais perigofas, commettiam-fe ao braço do algoz, para que
lacerando-as e queimando-as com publica folemnidade fa-
gralfe ao penfamento, como fe fora pelo martyrio gloriofo
das idéas, a mais illuftre apotheofe. O carnifice pôde trucidar
o homem, a fogueira confumir o que é apenas ephemero e
4sk
-<>-^
material. Mas os brazeiros de Torquemada e de Cifneros, cm
vez de aniquilar a idéa com o livro, em que fe imprime,
fão como o crilbl, onde fe depura e vivifica.
A perfegLiição implacável contra os livros, que divulga-
vam os princípios philofophicos e políticos do feculo xviii,
bem fabia o ministro illuminado, que não haveria de furtir
melhor effeito do que recommendar á leitura as novidades,
que em fi compendiavam e o proceíTo que faziam á antiga
ordem focial. Se como a refoluto monarchiila, em pleno abfo-
lutifmo, lhe cumpria defterrar os efcriptos, que minavam a
regia autoridade e o dogma do direito divino, a fua vifta
perfpicaz não podia defpregar-fe um fó momento do pro-
blema íundamental, a que votara principalmente o feu largo
e trabalhofo minifterio. A fua predilecção e o feu encargo
de eftadifta cifrava-fe antes de tudo em emancipar da tutela
clerical a fociedade portugueza, traçando á egreja os lindes
neceíTarios, que não podelfe tranfcender para invadir e aífo-
berbar a vida civil e temporal.
A Companhia de Jefus eftava profcripta e infamada,
porém a fua influencia e o feu efpirito, radicado por dois
feculos de venturofa e audaz oligarchia, ainda refumbrava
impenitente. A arvore caíra deftroncada, mas entranhavam-
fe no folo as raizes vivazes e invaforas. Uma parte do clero
fecular e regular mantinha e oftentava a ambiciofa preten-
ção, que havia tornado infefto aos governos temporaes o
predomínio da Companhia. Era o abufo de intervir na au-
doridade e jurifdicção do poder civil, fujeitando-o ao feu
arbítrio e difcrição, e conítituindo-fe em juiz e reprehen-
for das fuás acções. O caudilho d'efta nova confederação
era o bifpo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação. Pela
fua dignidade epifcopal, viciada pela torva e irrequieta fuper-
ítição, o prelado conimbricense, um dos chefes da Jacobea
ou feita dos beatos, vinculava-fe eftreitamente a quanto havia
eis
355
de mais intolerante e aventurofo na reacção religiofa, e pela
ftirpe illuftre, a que pertencia, reprefentava por outra parte o
refentimento da nobreza aggravada e abatida pelo inexorá-
vel reformador. Era o bifpo irreprehenfivel nos coftumes,
lincero na fé, ardente no fanatifmo, intraítavel no ponto de
acceitar por limitada aos aíTumptos meramente efpirituaes
a íua jurifdicção. O que era turbulência aíigurava-fc-lhe
fortaleza varonil, a manfidão havel-a-hia á conta de perjúrio
ás fuás paftoraes obrigações. Ajudava a curteza do entendi-
mento as exagerações do zelo religiofo. Parecia-lhe que to-
das as providencias decretadas para aíTegurar a majeílade
temporal contra as irrupções do clero e do papado, eram
outros tantos paíTos de gigante no caminho das mais execrá-
veis abominações. A expulfão violenta dos jefuitas, o rom-
pimento diuturno com a Santa Sede, a cenfura dos livros
excluíivamente concentrada nas mãos do poder civil, e arre-
batada á infpecção predominante da egreja, faziam certa-
mente no feu efpirito, naturalmente débil e fombrio, a mefma
dolorofa impreíTáo, que os primeiros decretos de Henrique
VIII, nos princípios da reforma religiofa, teriam produzido
no animo dos prelados, addiclos e fieis ao pontífice romano.
O bifpo, julgando cumprir o seu dever, não repoufava em faír
a campo, acaudilhando as hofles do facerdocio contra o im-
pério. Ora chamava a íi os defcontentes, ora enviava miíTio-
narios a accender a imaginação de Rides e fanáticas povoa-
ções; agora aíToprava e fazia reviver o fogo de Jacobea, e logo
deplorava e pretendia reprimir o contagio dos livros, que tinha
por infeftos á pureza da fé e aos bons coítumes. Encheu o
prelado a medida da fua mal disfarçada animadverfão ao
governo de Carvalho, efcrevendo e divulgando uma famola
paíloral, em que depois de fangrentas allufões á impiedade,
que fuppunha no governo, prohibia aos feus diocefanos a
leitura de muitas obras, das quaes enfartava um como indice
4 eis
— ■ -<^
356
expurgatorio. Entre ellas tinham logar preeminente além da
Encydopedia, o Contraélo Social, e o Disair/o Jobre a defigiial-
dade dos homens, de Rouffeau, vários efcriptos de Voltaire
fem efquecer a Henriade. Algumas das obras incluídas pelo
bifpo na fua formal prohibição, no próprio conceito de es-
criptores inimigos de Carvalho, não mereciam o anathema
fevero do paftor'.
Era o bifpo manifefto fautor dos jefuitas, exaltado ultra-
montano e ardente defenfor da fupremacia de Roma fobre
todos os governos temporaes. A paftoral, em que premunia
as fuás ovelhas contra a peçonha das Ímpias doutrinações,
era n'uma parte principal encaminhada a anathematifar os
livros de catholicos ferventes, cujo peccado todo confiflia em
defender as immunidades innegaveis do império contra as
defmefuradas ambições do Vaticano. Confutavam e rebatiam
os feus auiflores o abufo das excommunhões e a audácia, com
que os papas fe haviam arrogado a prerogativa de repartir e
tirar a feu talante as coroas aos monarchas, convertendo a ca-
deira pontifícia em fonte excluíiva de toda a poteftade e go-
verno temporal. O bifpo dirigia os feus anathemas ao Diccio-
nario philofophico^ e á Pucelle de Oiiéans^ mas os feus farpões
mais bem hervados iam pregar-fe em efcriptores, que labiam
alliar á eítreme orthodoxia um efpirito emancipado e fobran-
ceiro a todas as influencias ultramontanas. AíTim o bifpo con-
demnava Dupin e a fua obra Da antiga difciplina da Egi-eja,
Juítino Febronio e o feu livro Do ejtado da egreja e da potes-
tade legitima do pontijice romano. Efta era a zizania que, na
phrafe do paftor illufo e apaixonado, o homem inimigo não
ceifava de femear entre o bom grão dos dogmas da fé. No
' Egli ò vero che forfe qualcheduno dei libri cenfurati dal vefcovo non
meritava il giudizio fevero commune a tutti gli altri.» Vita di Seb. Giu/eppe di
Carvalho e Mello, tom. iv, pag. 99.
^^1
conceito do fanático prelado os apojlolos da mentira, como elle
appellidava com egual animadverfão os philofophos e os au-
étores pios, que oufavam contraftar a monarchia univerfal dos
pontifices romanos, haviam occafionado maiores damnos e
ruinas na egreja do que os pagãos nos primeiros feculos
e os hereges nos feguintes. Para a egreja, — laftimava com
beata e dolorida compuncção o férvido prelado, — era mais
amarga a paz, que na apparencia disfruflava, do que fora
n'aquelles tempos a guerra, com que feus perfeguidores a
opprimiam. Então, dizia o bifpo revoltofo, a guerra coroava
os martyres e enchia de glorias e de júbilos as turbas cres-
centes dos fieis, emquanto que a paz infidiofa reprefentava
no feio da egreja inconfolavel fcenas lacrymofas. Eram cla-
ras, tranfparentes, certeiras as ferinas allufões ao governo
de Carvalho. Era elle, fem duvida, na phrafe da paftoral,
um d'e{[esJjlhos iniqiios da egreja, yècZízr/oí da impiedade, um
d'eí1:es, que á maneira de caçadores infernaes, armam laços
á innocencia e redes á piedade. Era elle um d'eftes «falfos
prophetas, que não profiram e derribam os altares, mas im-
pedem com as fuás doutrinas falfas que fe adore o verda-
deiro Deus» .
A paftoral datada de Coimbra a 8 de novembro de 1768,
poucos mezes depois que pela creação da Mefa cenforia fe
tirara das mãos do clero o exame e cenfura dos efcriptos,
era claramente uma patente reprefalia e como que a reivin-
dação de um direito inalienável do ofíicio epifcopal. Defde
que a lei reftituia ao poder civil a funcção de exercitar a ins-
pecção e a cenfura fobre a imprenfa, a paftoral do bifpo
conimbricenfe, divulgada fem o régio beneplácito, era um
ado de formal dcfobedicncia, fe não de manifefta rebellião.
Era grave a occafião. Andava o poder civil empenhado
rijamente em oppugnar o governo clerical. Pendia violenta
a luda pertinaz com os jefuitas, e com os renitentes curiaes,
c|3
CM
358
leus parceiros e fautores. De fora de Portugal, de Roma
principalmente, partiam os incitamentos, com que os jcfuitas
procuravam manter accefo e vivo o fogo facro entre os feus
mal encobertos parciaes. A bulia Aniinanmi faluti, e o mo-
nitorio contra o duque de Parma tinham dado rebate havia
pouco e annunciado á chriftandade que Roma e os defenfo-
res do illimitado poderio eccleliaítico fe apercebiam com ar-
mas bem temperadas para entrar novamente na requeíta. A
agitação dos jacobeus, capitaneada agora pelo bifpo de Coim-
bra, era como que a repercuíTão do que lá fora fe machi-
nava para turbar e impedir a acção do poder civil. O pre-
lado fediciofo, meneando a teia do fanatifmo para accender
a guerra religiofa, era dentro da fua pátria o focio e auxi-
liar dos que, profcriptos longe d'ella, intentavam reftaurar
n'eíte paiz o predomínio clerical e o império da Companhia.
Era perigofo o repto, a vindida inevitável. Um ado de rigor
moftrou n'eíta grave occafião a quanto fabia aventurar-fe
a omnipotência do miniftro em defeza da poteftade temporal.
O bifpo é logo privado da fua fé, declarado morto civilmen-
te, claufurado no forte de Pedrouços. São-lhe companheiros
na defgraça e no encerro muitos ecclefiafticos feus officiaes e
familiares, ou conjundos na parceria. Pela carta regia de 9 de
dezembro de 1768 ordena Sebaftião de Carvalho ao cabido
da fé de Coimbra que, declarada vacante a cadeira epifcopal,
proceda á eleição do vigário capitular, infinuando-lhe que a
faça recair em Francifco de Lemos de Faria Pereira, depu-
tado do Santo Ofiicio, defembargador da Supplicação, e um
dos mais ardentes parciaes do eítadifta. Poucos dias depois a
carta regia de 14 de dezembro manda á univerfidade de
Coimbra que faça rifcar d'eft:a corporação os lentes e douto-
res, que ali profeíTavam e feguiam os erros fuperfticiofos dos
jacobeus, beatos ou reformados, e pertenciam á congregação
dos cónegos regrantes, á dos eremitas calçados de Santo Agos-
tinho, e á ordem bencdidina, devendo, dizia o diploma ré-
gio, ficar reputados por mortos, como fe nunca houveíTem
exiftido.
Ao mefmo paíTo expedia Sebaftião de Carvalho ao dom
abbade geral e ao definitorio de Alcobaça uma carta regia
ordenando-lhes que reprimiíTem na congregação bencdidina
os coftumes abullvos, que na ordem haviam introduzido os
jacobeiis. Eítes fanáticos menos piedofos que fubverfivos, e
mais ciofos de influencia que de reformação, timbravam em
fegregar-fe do commum, não fomente pela efpeciofa oílenta-
ção de prafticas afceticas, fenão também pela afFeftada fim-
pleza do trage e compoífura. Refugiam á fociedade e convi-
vência dos que não profeíTavam efta feita, havendo-os por
infedos e mundanos, e compraziam-fe no trato e converfa-
ção dos que com elles fe egualavam na mefma exaltação e
fanatifmo. Prefcreveu o legiflador que todos os jacobeus fi-
caíTem perpetuamente inhabilitados para os cargos e ofíicios
da ordem benediftina.
N'um governo regularmente conftituido, poder-fe-ía ter
efperado que o bifpo declarado réu de lefa-majeítade, fe-
gundo affirmava a carta regia ao cabido de Coimbra, foíTe
julgado pelo fupremo tribunal da Inconfidência. Era, porém,
agora fyílema profeguido pelo miniftro omnipotente, o con-
demnar em forma camarária e pelo mero arbítrio do foberano.
Na fituação particular, em que fe achava, havia por mais fegu-
ro e mais clemente o decretar contra muitos delinquentes a re-
clufão ou o exilio do que fujeital-os á jurifdicção de um tri-
bunal, que os fentenciaria como réus de alta traição a penas
feveriíTimas e infamantes para os culpados e para as fuás
cafas e famílias'.
Seria n'aquclle tempo um lance diíiicultofo offerecer a
' Contrariedade ao libello, appcndice iv S 82.
c|3
36o
um paiz aíTombrado por tão graves turbações religiofas o es-
pectáculo de um príncipe da egreja trazido perante o foro
fecular, fem nenhuma intervenção das juftiças ecclefiafticas.
Encarcerado o bifpo no forte de Pedrouços, provia o minis-
tro á fegurança do eftado, fegundo a norma e teor com-
mum d'aquelles tempos, e d'aquella forma abuliva de go-
verno, onde foi habitual e hereditário o defrelpeito pela hu-
mana liberdade. Era, porém, politico e neceíTario não deixar
fem publica expiação a rebeldia temerária do prelado. Sub-
mette Carvalho a paftoral ao exame e julgamento d'aquelle
tribunal, que inftituira para aquilatar o penfamento e a es-
cripta. Delega a Mefa cenforia em três vogaes, Fr. Manuel
do Cenáculo, depois bifpo de Beja, Fr. Ignacio de S. Caeta-
no, depois bifpo de Penafiel e o defembargador João Pereira
Ramos, a cenfura do efcripto. Exaram os cenfores um largo e
eruditiíTimo diclame contra aquelle extranho documento. A 23
• de dezembro de i 768 pronunciava a Mela cenforia a fua fen-
tença, declarando falfa, infame e fediciofa a paítoral, e mandan-
do que foífe lacerada e queimada publicamente na praça do
Commercio pelo executor de alta juítiça. Não era certamente
regular o procedimento do governo com o fanático paftor. Mas
eram aquellas unicamente as armas que o poder temporal
podia então brandir para defender a fociedade e o império
contra as pertinazes arrogâncias do facerdocio. No estado de
guerra crueliílima, em que lidavam fem repoufo as duas ini-
migas poteítades, á paixão do clero respondia a violência do
governo, ao ódio a fevcridade, á ufurpação a reprefalia. Mas
ainda aíOm o bifpo de Coimbra, fimplefmente claufurado,
fem nenhum trato de fevicia, o bifpo levantado á eífatura
heróica dos grandes martyres pelos inimigos de Carvalho,
appellidado o defhumano, o cruel, o homicida, não faz es-
quecer o bifpo da Guarda, fepultado vivo na cifterna de Pal-
mella por D. João II, por efte rei fem coração, a quem os
1 F ir
&M tis
tis
posthumos lilbnjeiros e os feus próprios lucceflbres ainda
agora cognominam o príncipe perfeito.
Os rigorofos procedimentos empregados contra o hifpo
e feus affeclas eram duros, mas forçofos, pendente a guerra
que profeguia* ardendo implacável entre o poder civil e a
clerezia rebelde e ambiciola. Os jeíliitas perfiftiam fempre
impenitentes e confiados no próximo triumpho. Emquanto
a Santa Sé, agora audaz com o papa Clemente XIII, e logo
timida com o leu malaventurado fuccelTor, decretava a apo-
theofe da Companhia ou trepidava perante a fua deftruição,
o incanfavel eftadifla ia fempre amiudando os afperos com-
bates aos que tinha por indomáveis inimigos de todo o poder
e ordem focial. Alfumpto já ao folio pontifício o fraco e irre-
foluto Ganganelli, condemnava a Mefa cenforia' os livros
principaes e mais correntes, onde os probabiliifas jefuiticos
haviam compendiado as fuás doutrinas efcandalofas acerca
da moral. Os canoniíias e theologos da Companhia tinham
feito fubdita á monarchia univerfal dos pontífices romanos a
majeftade e foberania temporal. Entre aquelles doutores, mui-
tos d'elles eminentes por engenho e erudição, numeravam-fe
nomes tão notórios como os de Efcobar, de Molina, de Ami-
co, de Palao, de Layman, Bufembaum e Salmeron.
Os cenfores régios, interpretando fielmente a animadver-
fão do eíladifia contra a ordem chamada de Jefus, reprehen-
diam e condemnavam com termos feveriíTimos os efcriptos
d'aquelles celebres doutores, denunciando-os ao ódio univer-
fal como pervertidos propugnadores de quantos erros moraes
podiam disfarçar-fe nas enganofas apparencias da razão. En-
finavam aquellas obras, no dizer do tribunal cenforio, o pro-
bahilifmo, a fimonia, a blafphemia, o facrilegio, a irreligião*
a idolatria, a impudicicia, a obfcenidade, o perjúrio, o furto,
' Edital da Mcfa cenforia, de 12 de dezembro de 1771.
eis
I
o homicídio, a violação do figillo facramental, o parricidio,
o fuicidio, e, — o que mais offendia os zeloíbs defenfores da
realeza, — profeíTavam os condemnados efcriptores que era
licito, moral e neceíTario attentar contra a vida de um tyranno
em defeza e vindicação da opprimida fociedade. Como fem-
pre acontece e é natural nas luclas apaixonadas, violentas,
fem trégua nem quartel, os cenfores exageravam muitas
vezes a protervia moral dos efcriptores da Companhia, attri-
buindo-lhes como propofições abfolutas as que perdiam um
pouco da fua afperidade e extranheza pelo que tinham de
condicionaes e relativas. Não fe pôde todavia pôr em du^i-
da que nos livros condemnados pela Mefa cenforia fe expla-
navam e defendiam praxes moraes, que dourando com o
probabilifmo cafuiítico os delidos mais atrozes, arraftariam a
fociedade civil e efpiritual á fua completa perverfão. Na
Dediicção chronologica e analytica, e principalmente no Com-
pendio hiftorico da iiniverjidade de Coimbra, apparecem tras-
ladados os textos litteraes, onde os mais famofos doutores da
Companhia prefcrevem e canonifam, como immunes da mais
ligeira venialidade, os mais abomináveis delidos c pecca-
dos. Mas alem das máximas nefaftas, que tranfparcciam nos
efcriptos moraes e theologicos dos Efcobares e dos Molinas, dos
Laymans e Bufembaums, os jefuitas eram não menos infes-
tos á monarchia abfoluta pelas thefes de direito publico, ex-
planadas largamente nos feus livros doutrinaes. Se por uma
parte os publiciftas da Companhia fuftentavam com S. Tho-
mas o principio irrecufavel de que a foberania fecular refide e
fe origina eífencialmente nos povos e nações, e d'ellas fe trans-
fere como fimples e condicional delegação aos dynaftas e aos
reis, por outro lado proclamavam abertamente a fuferania do
papado fobre todos os principados e governos temporaes.
Se pois defendendo a majeítade popular, como fonte e ma-
nancial de toda a civil aucloridade, lifonjeavam e defendiam
Jt)J
os povos contra os léus dominadores, contrapefa^"am larga-
mente eíTas tendências liberaes e democráticas, pondo acima
de todos os poderes mundanos, como tutela fuprema e abfo-
luta, a foberania dos pontifices, a fua omnipotente infallibili-
dade, e a fua decifiva intervenção cm todos os negócios fo-
ciaes. Condemnar pois os cafuiíUis, ainda melmo a rifco de
profcrever os publicill^as liberaes da ordem de Santo Ignacio,
era um ferviço relevante preftado á civililação e uma valiofa
preparação para a futura liberdade. A monarchia abfoluta e
o direito divino, pelo órgão do leu mais vigorofo reprefen-
tante, o miniftro de D. Jofé, combatiam ao mefmo paíTo
rijamente os elementos Ibciaes, com que até ali havia a rea-
leza repartido por hiftorica neceíTidade o feu poder. Difpa-
rava o derradeiro golpe em a nobreza, reprimia os minimos
aíTomos de liberdade popular, e expugnava acerbamente a
cidadella, onde fe encaftellava e defendia, na peffoa de Cle-
mente XIII, o papa e a egrcja da edade media, procurando
fujeitar ao feu dominio a Ibciedade civil e fecular. Na evo-
lução hiftorica dos modernos povos europeus, a concentração
do poder nas mãos vigorofas dos dynaftas foi, fem que elles
o fentiífem ou defejalfem, o preambulo da futura democra-
cia. Principiam os monarchas abatendo as feudaes domina-
ções e inftituindo a unidade nacional. Pro leguem oppugnando
fortemente no clero e no papado um rival inquieto e invafor,
e por vezes um implacável inimigo. Virá tempo, em que,
tendo já pendentes do leu arbítrio todos os poderes e todas
as forças fociaes, entrará com elles em temerofo repto o gi-
gante popular e então, ao revcz do famolb duello biblico,
fera o David régio o proftrado e o vencido na requefta. Os
reis confubftanciam e ablbrvem na fua exclufiva dominação
todas as poteftades civis ou thcocraticas. Mas chegará tam-
bém a vez, em que a tyrannia realenga cederá o paífo final-
mente á triumphante Revolução. As monarchias abfolutas,
eis
364
mas illuminadas, fundam a egualdade pela fujeição com-
mum e neceíTaria de quanto pela fua grandeza e privilégios
as pôde aflbberbar. A revolução democrática inílitue final-
mente a liberdade. Quando o monarcha tiver dito, com a
fegurança da viftoria, á oligarchia da nobreza: Eu Ibu a
força; á theocracia do pontífice: Eu fou o Cefar, e fó eu e
mais ninguém pôde reger monarchias temporaes; então er-
guer-fe-ha o povo, e dirá aos que a fi mefmos le appellidam
ungidos do Senhor: Eu fou o direito, a razão, o poder, a liber-
dade. Então a communidade civil eftará folidamente confti-
tuida nos feus inabaláveis alicerces, diftinfto áo fórum o fan-
tuario; da vida interior e myftica da confciencia, a vida exterior
e mundana da cidade; da egreja independente o eftado livre
e emancipado. Affim, quando Sebaftião de Carvalho lucfa
durante largos annos por fecularifar o governo e a nação,
é elle o illuminado precurfor dos efladiftas liberaes. Na fua
politica eftá em gérmen, ainda inconfciente e nebulofo, a fa-
mofa thefe de Cavour e a abfoluta feparação entre a profana
fociedade unida pelos vínculos do direito, e a voluntária as-
fociação das confciencias eítreitadas pela fé.
Alguns têem intentado attribuir a Sebaftião de Carvalho
o propofito de romper os laços da unidade com os pontífices
romanos. Sob o influxo de propicias circumftancias, bem po-
derá o eftadifta impaciente de todo o jugo efpiritual haver
quebrado as ultimas prifões, que, durante o diuturno rompi-
mento, ainda frouxamente encadeavam a egreja portugueza
á Sé de Roma. Muitas das fuás audazes providencias legis-
lativas fe encaminhavam com evidencia manifefta a li-
mitar os poderes tradicionaes do pontificado e a illidir no
conceito dos fieis a crença fundamente radicada na fua pró-
pria omnipotência efpiritual. A Deducção chronologica, ape-
far das apparencias de refpeito á fuprema cabeça da egreja
tem por nota fundamental e dominante uma aberta infurrei-
4^
365
ção contra o papado. A Tentativa theologica, efcripta com
prodigioía erudição ecclefiaftica pelo oratoriano António Pe-
reira, é uma tremenda bateria levantada contra o fummo fa-
cerdocio em favor dos direitos episcopaes e da antiga difci-
plina da egreja.
N'efte livro memorável hufcava demonílrar o profundo
theologo e canonifla, que era licito aos prelados metropoli-
tanos o confirmar e preconiíar a eleição dos bifpos feus íuf-
fraganeos, e a eftes egualmente o eleger e confagrar os me-
tropolitas.
Emquanto as relações com a Cúria eftão interrompidas
fem efperança de próximo concerto, os prelados diocefanos,
por imperiofa infinuação do miniílro regalifta, concedem a feu
arbítrio as difpenfas matrimoniaes. O arcebifpo de Évora, o
mais fubmiíTo e obediente fedario do eftadifta, dá o exemplo
d'efta novidade ecclefiaftica. Os paftores das outras diocefes
facrificam egualmente os feus efcrupulos á inftante neceífi-
dade elpiritual.
CAPITULO XIV
AS REFORMAS DA INSTRUCÇÃO
Na completa e improvifa revolução produzida no enfino
publico e na cultura intelledual da nação portugueza pelas
enérgicas providencias de Sebaítião de Carvalho, eftá cifrada
em grande parte a gloria mais durável e mais pura do minis-
tro zelofo e illuminado. Até áquelle tempo e defde a epocha
infeliz do fombrio D. João III, parece que os reis de Portu-
gal fe deliciavam e compraziam em reger um povo efcure-
cido pelas trevas efpirituaes. O poder civil calafetava cioíb e
intolerante os refquicios mais eftreitos, por onde poderá fil-
trar-fe alguma luz, efclarecendo a torva intelligencia do paiz.
e|s eis
4
366
Os jeíuitas dominavam foberanamente a educação e o enfi-
no, afaftando para longe de Portugal toda a faudavel re-
formação realifada nas fciencias a datar dos áureos tempos
da Renafcença. A Inquifição, apelar de infefta á Companhia,
n'eíte ponto lua auxiliar e fua miniftra, efcondia na maléfica
fombra da fua bandeira a tenuc claridade, que os influxos
jefuiticos deixavam ainda por banir e fequeftrar.
Durante o reinado de D. João V, a ignorância disfarçada
nas miferaveis opulências do gongorifmo fem infpiração e
fem talento, fizera efquecer inteiramente as quadras gloriofas
do antigo engenho nacional. As lettras, que então fe tinham
em maior preço, reprefentavam a extrema degradação da in-
telligencia. Os esforços empenhados pela Academia de hifto-
ria portugueza apenas haviam alcançado paffageiramente fo-
mentar os eftudos eruditos. Dos feus trabalhos e efcriptos fe
podia com verdade aífeverar que o talento da cortezan cor-
poração era apenas a paciência. Durante o reinado longo e
infecundo do rei galanteador, nem fequer uma fcentelha de
invenção vem reluzir n'aquella denfa efcuridão intelleftual.
A boa efcriptura portugueza tivera o feu ultimo cultor no
padre Manuel Bernardes, em cuja linguagem e em cujo eflylo
já tranfparece todavia que o atticifmo vae cedendo o paífo
obediente ao conceptismo litterario e á engenhofa frivolidade.
Depois do maviofo theatino a profa nacional arrafta-fe
enfermiça, decadente, fem nervo, nem carader varonil. As
lettras pátrias, ou fe alimentam de devotas e pefadas infpi-
rações nas chronicas monafticas, nas lendas hagiologicas, e
nos maífíços fermonarios, ermos egualmente de uncção e de
eloquência, ou fe defenfadam com plebeia efcurrilidade nos
equívocos e trocadilhos dos vates populares, nas canfadas
allegorias do Anatómico jocojo e nas operas meio-ferias,
meio-burlefcas da Mouraria e Bairro Aho. Mefmo affim é no
theatro, que as mufas nacionaes ainda fabem ás vezes evo-
Jb7
car as luas antigas, polto que frouxas infpirações, e é o cftro
de um judeu, queimado pela feroz Inquifição, quem evita á
amena litteratura a ignominia derradeira.
Se as lettras fob a dominação de D. João V retratam fiel-
mente, pela completa aufencia de goíto e penfamento, a fei-
ção eífhetica da íbciedade portugueza, as fciencias, que du-
rante aquella epocha fe cultivam em Portugal, denunciam
que para cá dos Pyreneus o nevoeiro condeníado pelo des-
potifmo e pela Inquifição, intercepta o caminho á luz da Eu-
ropa. E então que a Africa principia com verdade, onde co-
meçam terras da Peninfula. Nada pôde efpelhar com maior
fidelidade o que eram as fciencias em Portugal, do que o
feveriíTimo, porém lúcido proceffo, com que Luiz António
Verney nos feus efcriptos, principalmente no Verdadeiro me-
tliodo de ejiiidar, as condemnou como extrema vergonha na-
cional. Nada pôde egualmente miniftrar a medida juíta de
quanto era profundamente viciofa e radicada nos efpiritos a
ignorância e a tradição, do que a encendida guerra litteraria,
profeguida em cardumes de folhetos contra as perigofas in-
novações, defendidas e propoflas pelo fuppoíto barbadinho.
D'aquelles monumentos fe deprehende o que era a philofo-
phia enfinada nas efcolas, onde o nome de Ariftoteles, — mas
do Ariftoteles efcholaffico, do Ariftoteles da edade media, não
do grande penfador da antiguidade, que os fabios portugue-
zes não podiam comprehendcr, — intimava a profcripção a
todas as idcas modernas, a todos os defcobrimentos experi-
mentaes, a todas as conquiftas mais brilhantes da razão, des-
de Bacon, Defcartes e Galileu, até Newton, Locke, Leibnitz,
Buffon e Montefquieu.
A pefada e abfurda fciencia monachal e jefuitica cerrava
ciofamente as fuás portas á mais inoffenfiva novidade. O
Kofmos e a natureza não eram para o infulfo pedantifmo
peripatetico, o que o efpirito moderno tinha já largamente
368
defcortinado pelos proceíTos experimentaes da obfervação;
era apenas a nebulofa phantafia, que a philofophia efcho-
laffica havia fabulado fobre a audoridade irrefragavcl de
Ariftoteles e dos feus abftrufos commentadores. A phyfica
moderna era inteiramente ignorada em Portugal, e o que
fob efte nome fe profeíTava nos livros e nas efcolas era um
tecido efteril de inanes efpeculações, em que a doutrina do
horror ao vácuo e o principio capital das cmifas ocailtas
contentavam os efpiritos incuriofos e adftridos ás idéas tra-
dicionaes. O Compendio hijlorico do ejlado da Unwerjidade de
Coimbra, porventura o livro mais fubítancial e valiolb de
quantos fob a pombalina inipiração fe publicaram na con-
tenda contra os jefuitas e contra as ufurpações ecclefiaíticas,
debuxava na fua laftimofa defnudez os achaques, de que
padecia, fem apparencia de remédio, a fciencia e a inftruc-
ção em Portugal.
Ás claíTes plebeias e vulgares não miniítrava o poder
nenhuma efcola, onde hauriíTe os efcaíTos rudimentos da
minima cultura. A parca e viciofa nutrição intelledual fó po-
diam raros aproveital-a nos conventos das ordens religiofas e
nas aulas da Companhia. O eftado parecia eftremecer diante
da perigofa perfpeftiva de reger um povo illuminado, culto,
defveítido de fua rudeza agreífe e accommodada á meia fer-
vidão em que vivia. O povo, no conceito da velha monar-
chia e no fyftema egoifta dos feus homens de eftado, tinha
apenas por funcção na fociedade lidar quanto lh'o permittia
a fua bruteza, e produzir nos campos e nas officinas o que
bailava á fua exiftencia attribulada, e ao pagamento dos
multíplices encargos, que pefavam fobre a terra e o trabalho.
Incumbia-lhe egualmente o engroífar na miferrima condição
militar d'aquelle tempo as fileiras do exercito real. Toda a
fua vida efpiritual fe refumia na crença, em grande parte
materialifada pelas fuperftições groífeiras e mais próximas
eis
4tU
4-<(>^
369
da pura idolatria. A fciencia popular cifrava-le unicamente
em venerar a Inquifição, obedecer ao clero, e acreditar picdo-
famente que o foberano, como eleito de Senhor, era na terra
um como vice-Deus.
Nos citratos fuperiores da fociedade portugueza alguma
luz íe ditfundia, tibia e mal filtrada. Luz, porém, de fciencia
falia, efteril, incapaz de aclarar o efpirito ou de auxiliar o
corpo na luda permanente do homem com a natureza; pue-
ril e viciofa como theoria; nulla ou perigofa como pratica
na vida focial. Das fciencias exaítas, phyficas e naturaes
como no feculo xviii fe promoviam e divulgavam pela Eu-
ropa, poucos fabiam fequer a exiftencia e os progreífos. Os
próprios jefuitas portuguezes, cujas efcolas entre as das cor-
porações religiofas eram certamente as mais bem inftituidas
e methodicas, defaproveitavam os exemplos numerofos, que
no cultivo das fciencias lhes eflavam miniftrando os feus
confrades extrangeiros.
Bailaria folhear os livros médicos, publicados na primeira
metade do feculo xviii, para defde logo avaliar o que eram as
fciencias da natureza em Portugal. Se era, porém, laílimofa
e profunda a ignorância nos eftudos mathematicos, phyficos
e naturaes, não era melhor e mais aproveitada a cultura
intelleclual nas fciencias moraes e theologicas e nas lettras
hellenicas c romanas. Tivera Portugal nos tempos mais flo-
rentes da Renafcença illuftres humaniftas, cuja fama trans-
cendera os eftreitos limites da fua pátria, os Oforios, os Caia-
dos, os Refendes, que podiam fem favor emparelhar com os
mais fabios cultores da antiguidade. Tivera illuftres e erudi-
tos jurifconfultos em um e outro direito confummados. Tivera
theologos mui doutos e difcretos, que nas cathedras, nos púl-
pitos e nos concílios haviam logrado confociar á verdadeira
uncção religiofa a mais larga e feleíta erudição. Florecêra em
boas lettras a univerfidade, quando os fabios extrangeiros de
-i-A- -6^
À$ th
370
nome venerando, os Buchanans e os Grouchis, alliados no
fraterno convívio do faher a portuguezes beneméritos, aos
Gouveias e aos Teives, alcançavam enlaçar a gloria de Coim-
bra ao efplendor das famofas academias de Paris, Oxford,
Pádua, Bolonha e Salamanca. Os jefuitas, porém, apoíTan-
do-fe do collegio das artes, e fujeitando ao feu enfmo e di-
recção a univerfidade pela nefaíta e culpofa complacência do
fanático João III, haviam com rapidez prodigiofa feito de-
cair o magifterio portuguez até o nivel opprobriofo, em que
o efpirito nacional jazia adormentado, quando era já em meio
o feculo proverbial do penfamento e da fciencia, o tempo de
Voltaire e D'AIembert.
ía Portugal diftanciado e retrahido na reçaga dos povos
civiiifados. Levavam-lhe os demais tal dianteira, que já fe
afigurava por impoílivel que apreíTando o palTo em esforço
extremo, os houveíTe de alcançar e egualal-os na cultura. As
três forças dominantes na fociedade portugueza, o ciofo des-
potifmo, os ambiciofos jefuitas, e a Inquifição intolerante, fe
bem fempre difcordes e rivaes, fó n'um ponto cooperavam
amigas e conjundas, no de condenfar cada vez mais as tre-
vas, em que perdia a confciencia de fi mefmo o embrutecido
povo portuguez. Quem n'efta laftimofa efcuridade poderia
acafo reaccender a lucerna apagada e efquecida? Que efpi-
rito fuperior á craveira commum da intelligencia valeria para
infufflar a vida nova na amortecida razão de um povo in-
teiro? Não havia em Portugal um d'eíl:es génios aífombrofos,
um d'eí1:es reformadores illuminados, invencíveis, que pelo
influxo magico da palavra, da doutrina, do exemplo, da pre-
gação, operam nos efpiritos a mais cuftofa das revoluções, a
revolução pacifica da idéa. Alguns homens havia em Portu-
gal, que tinham raítreado a furto o que lá fora n'eíTa Europa
culta e progreíTiva fe penfava, fe efcrevia e divulgada. Ho-
mens de talento original e creador mui raros fe podiam nu-
ir _ , p
th ti»
c|3
37'
merar. Elpiritos eminentes, d'eítes que dominam e avaffallam
os feus contemporâneos, nenhum. A evangelifação nada po-
dia para levantar do leu diuturno abatimento a intelligencia
nacional. O próprio Verney, que pozera de manifefto as mi-
ferias intelleduaes da fua pátria, efcrevêra longe d'ella como
quem, diftante de um logar infcdo e infamado, enfina caute-
lofo os remédios mais profícuos para combater e debellar
a doença contagiofa e inveterada. Contra o lacrilego inno-
vador fe havia levantado, ardente em fúria ariftotelica, quafi
todo o mundo litterario portuguez. O confelho, a doutrina-
ção, a propaganda nada podiam contra a velha tyrannia da
tradição. Os fedarios da fciencia monachal e jefuitica de-
nunciavam como infeíta e perigofa á religião toda a novida-
de fcientifica e litteraria. O fyftema de Copérnico, a bafe e
o principio da moderna aítronomia, condemnado em Roma
a 5 de março de 1616, como adverfo ás fagradas efcripturas
pela congregação do indice, permittido apenas como hypo-
thefe — e diga-fe a verdade cruamente — , infamado com o
nome de loucura e facrilegio pelo fanatifmo de Luthero, não
tinha em Portugal, quem oufaíTe abertamente profeíTal-o e
defendel-o da nota e lufpeição de herefia ou de impiedade.
Muitos dos que le tinham na melhor conta de lábios e pen-
fadores, ainda hefitavam porventura duvidando fe o papa
Zacharias no anno de 745 não condemnára juftamente a um
bifpo de notável erudição na aftronomia por ter enfmado pu-
blicamente a exiftencia dos antípodas, mais tarde revelados
com certeza aos mais incrédulos pelas heróicas navegações
dos portuguezes. Ninguém oufaria contraditar a viciofa cor-
rente da opinião nos aífumptos do enfino e da fciencia. Era
precilb decretar a emancipação da intelligencia, como o go-
verno legiflára duramente a reftauração da induftria e do
commercio nacional. Ao defpotifmo da tradição, exercido
pelas potencias clericaes, era forçofo contrapor a energia do
e|4
372
poder. Se a luz havia novamente de efclarecer a intelligencia
popular, fomente um governo illuminado, poderoíb, irrefis-
tivel, com bom êxito podéra proferir o fiat creador, omni-
potente.
No momento hiftorico e opportuno, furge d'aquellas
fombras adenfadas a figura fevera do grande legiflador. In-
quire, eítuda, confulta, examina, decreta e executa. Ao golpe
violento do feu baítão, rue em efcombros o caduco edifício
univerfítario. No folo ermo e devaftado levanta-fe magnifica
a nova e promettedora fundação
Foi apenas por amor da geral illuftração, foi laftimado
unicamente pela bruteza e ignorância do povo portuguez,
pelo defejo fervorofo, mas theorico de revolucionar profun-
damente pela nova fciencia a decrépita e obfcura fociedade,
que Sebaftião de Carvalho planeou e inítituiu a reforma da
inítrucção? Certamente ponderou em feu efpirito o preço
ineftimavel da cultura no valor moral e económico de um
povo. Seria porém desfigurar por uma incompleta interpre-
tação o fignificado hiftorico dos faftos o attribuir unicamente
a um zôlo puro, defintereífado, philofophico pelos progreíibs
da fciencia, a parte principal na famofa reformação.
O grande, o máximo problema, em que efteve empe-
nhada a energia inclemente do minifiro de D. Jofé, a queífão
fundamental, a que as demais ficavam fubordinadas como
inftrumentos indiredos ou como complementos neceífarios,
era a queftão religiofa, era a empreza de emancipar do jugo
ecclefiaítico o Eftado, predominante e fecular. O enfino frou-
xo e viciofo, como era por aquelles tempos em Portugal,
pendendo quafi inteiramente das ordens religiofas e princi-
palmente da emprehendedora Companhia, era um dos po-
derofos machinifmos, que ajudavam o clero na obra de
avaífallar feguramente o povo portuguez, annuveando-lhe a
razão pela fciencia falfa e anachronica, aíTim como lhe tur-
elj
373
ba^■a a confciencia pela extrema luperftição e pelo mystico
terror.
Eílavam expulfos, infamados, fupprimidos de fado os
jefuitas. Eftavam já vibrados, ás vezes cruamente, os golpes
á poteítade e predomínio clerical no paiz e fora d'elle. Mas
ficavam a germinar e a dar frudo as Tementes da doutrina
em Iblo apenas defbravado, quall maninho para as idéas
anti-clericaes e cifmontanas. Fora a univerlidade conimbricen-
fe defde a fua primeira inftituição, como as outras celebradas
academias da edade media, uma fundação puramente eccle-
fiaflica, erigida por diplomas pontifícios. Durante aquelles
íeculos de meia-coníciencia para a Europa, na theoria e na
pradica vivia confagrado o principio effencial de que as
duas poteítades repartiam entre fi o governo da chriftandade
por tal forma, que ao facerdocio e á egreja pertencia a con-
fciencia e a razão, — o que havia de mais nobre e efpiritual, —
ao império e ao eítado a força e a matéria, o que havia de mais
carnal e mais groíTeiro na vida da humanidade. N'efi:e regi-
men abforvente do poder ecclefiaftico, não fe dava poíTivel
feparação entre a f é e a fciencia, entre a confciencia e a ra-
zão, entre o crime e o peccado, entre o homem interior, a
ovelha do evangélico redil, e o homem exterior e politico, o
membro da cidade profana e temporal. A egreja tomava conta
da alma humana em todas as fuás manifeftações, como cain-
do na fua exclufiva jurifdicção. Era aífim que o direito ca-
nónico invadia irrefiítivel as relações civis da fociedade. Era
aíTim que a egreja reclamava as mais largas e abufivas tem-
poralidades, como inftrumento indifpenfavel ao perfeito adim-
plemento dos feus fins fobrenaturaes. Era aífim que os pon-
tífices romanos fe arrogavam a fupremacia fobre todos os
monarchas, refervando ciofamente para a tiara o direito de
confirmar as coroas mais poderofas. Era affim que o fummo
pontificado abfolvia do juramento de fidelidade aos princi-
374
pes, que tinham incorrido no feu mais fevero defagrado. Era
affim que as cenfuras, interdidos e excommunhões, ainda que
puras penas efpirituaes, eram nas mãos do paftor univerfal e
nas dos léus obedientes delegados a arma com que puniam os
rebeldes á fua audoridade temporal. Era affim que o ponti-
íice de Roma, o fucceíTor e o herdeiro do humilde pefcador
de Tiberiades, apparecia no faftigio do poder na edade me-
dia, cingindo os dois gládios temerofos, fymbolos das duas
eminentes poteítades englobadas n'uma única vontade.
Da egreja dimanava toda a claridade para os efpiritos. A
educação, o enfino e a fciencia pertenciam-lhe indivifas, fem
que o eftado nem de leve fulpeitaíTe que elle podia fer ao
mefmo tempo força e luz. As efcolas tinham nas cathedraes,
nos cenóbios e nos morteiros a fua ordinária moradia. As
univerfidades recebiam da egreja a fancção e a auctoridade.
Mas na ordem hillorica nada ha que não leja conlequente e
neceffario. A egreja, no meio das fociedades barbaras, incul-
tas, illettradas, violentas e groíTeiras da Europa chriftã, na
edade media, cm face dos potentados oppreíTores, brutaes,
defnaturados, era em verdade quafi o único afylo, que res-
tava patente ao direito, á fciencia e ao efpirito da humani-
dade. Os fabios mais illuftres e os mais largos penfadores
d'aquelle tempo é, com raras excepções, a egreja que os ins-
pira e os recebe carinhofa em feu girão. Alberto Magno,
S. Thomás, Rogério Bacon, Lanfranc, Abeilard, Okkam,
Gerberto, Anfelmo de Cantuaria, S. Bernardo, Pedro Lom-
bardo, os oráculos da philofophia e da fciencia, tal qual a
concebia a edade media, vinculam por laços eftrcitiffimios,
como homens ecclefiafticos, os trophéus da intelligencia ás
glorias do fanduario. Eram os tempos, em que fabio e clérigo
eram fynonymos. Decorreram os feculos, tranfmudou-fe a con-
dição civil da chriftandade. A reacção meio-pagan da Renas-
cença contra a Índole clerical da edade media, principiou a
-§-6- ■ *^k-%>^
fecularilar a fciencia e a erudição. A Reforma de Luthero, de
Calvino, de Zwingle e de Melanchton, infurreíta abertamente
contra a fupremacia efpiritual de Roma e proclamando o
principio do livre exame e a excellencia do juizo individual
na anarchia turbulenta das facções religiofas, continuou a en-
caminhar os efpiritos a divorciarem-fe da tradição. O feculo
XVIII, com o feu largo fcepticifmo demolidor, abriu os pro-
fundos alicerces da futura forma focial. No meio da nova
fcena, profufamente já illuminada pelos jorros copiofos de
luz profana e temporal, a funcção da egreja, como prece-
ptora da razão, como depofitaria da fciencia, como único
fanal da educação, havia terminado finalmente. Ainda mais,
a egreja, combatida rijamente pelas hereílas recrelcentes,
contraftada pela infurreição aberta dos efpiritos rebeldes,
incitada pela urgência da defeza, cada vez proclamava com
maior fervor e valentia o feu antigo monopólio intelledual,
e exaggerava a repreífão contra toda a fciencia nova, fufpei-
tando em cada original expanfão do entendimento a fonte
d'onde brotaífe uma nova doutrina herética, mal-foante, te-
merária ou offenfiva dos ouvidos piedofos e chriftãos. É as-
fim que o poder ecclefiaítico, a partir da Renafcença, fe tor-
na mais ciofo e fufpicaz das novidades fcientiíicas, do que
nos tempos menos luminofos durante a edade media. É aífim
que a egreja reprova e condcmna, como adverfas á lettra
das efcripturas e á fua authentica exegefe pelos fanftos pa-
dres e doutores, as verdades aítronomicas nebulofamente
raífreadas pelos gregos, e profeíTadas com a irrecufavel evi-
dencia das fciencias mathematicas pelo génio dos Coperni-
cos, dos Keplers, dos Galileus.
Se Portugal era porventura deítinado a entrar no con-
cento e convivência intelledual das nações cultas, que mais
cedo lhe antecederam na moderna civilifação, urgia fecula-
rifar de vez o enfino publico, feparar da cathedra profana o
e|9
4 si»
-•- ^ -<^
376
púlpito da fé, aíTim como fe bufcára deflindar por fronteiras
definidas a ara do facerdocio e a fede curul do império tem-
poral, a egreja e a fociedade, o throno e o altar.
Na fituação, a que haviam chegado as relações religiofas
do paiz, na contenda tenaciífima entre a egreja e o eftado,
a oufada inftituição do enfino fecular era para Sebaflião de
Carvalho um forçofo confeftario das fuás antecedentes pro-
videncias. Antes de tudo era-lhe neceífario que nada fe pro-
fefTaíTe nas efcholas, que não tiveífe o fêllo obrigatório da
majeftade e independência temporal. A idéa, aíTim como
fuccedia na moeda, não poderia correr no commercio intel-
leítual, fem o cunho e a effigie do foberano. Toda a velha
doutrina fubverfiva e contraria aos direitos primordiaes e
inamiíTiveis do eftado, reprefentado pelo rei, feria profcripta
e condemnada com o mefmo rigor, com que fe pune o cri-
me de moeda falfa. Ora as doutrinas mais infeftas ás incon-
teílaveis prerogativas do poder civil, e mais propicias ás in-
vafões do facerdocio na jurifdicção e foberania fecular, eram
profeífadas nas efcolas e recebidas pelo vulgo inconfciente
como pontos dogmáticos de fé. Era principalmente a faculda-
de de theologia, que mais urgia reformar, para que, em provei-
to e luzimento da própria egreja, as fciencias divinas fe enfi-
naífem expurgadas de todo o abufo e fuperíhção, theologia
de Fénélon, de BoíTuet, dos piedofos folitarios de Port-Royal,
theologia chriftã manando copiofa das fontes efcripturaes e
patrifticas, purificada de todas as frivolidades e fubtilezas da
velha philofophia efcholaftica. O direito canónico, tal qual fe
deveria profeífar n'uma faculdade catholica, porém não fa-
mula da univerfal monarchia pontificia, não chamava com
menor follicitudc a attenção do legiílador. Era neceífario pro-
feífal-o fem as doutrinas deftrudivas da majeftade e fobera-
nia fecular, fem as thefcs derivadas das falfas decretaes ifido-
rianas. Era força divulgal-o fegundo o expendiam em feus
_ -4^
377
livros audorifados os canoniftas mais cliriftãos e piedofos, po-
rém ao melmo palTo os mais adverlbs á invaíao ecclefiaftica
nos dominios legitimos do eftado, como o enfinavam Gmeiner
e Van Efpen, Riegger e Febronio, íeparando por fronteiras
impreteriveis o c[ue pertencia a Deus e o que o Cefar não po-
dia abdicar, lem jadura e oftenfa grave do império temporal.
Não menos decadente do que o direito canónico, fe ar-
raítava encadeado ao código, ás pandedas e ás novellas, ás
gloíTas e apoftillas dos doutores a jurifprudencia civil. O di-
reito romano relegava para um quafi total efquecimento o
direito pátrio, havido em conta de quafi bárbaro pelos zelo-
Ibs partidários das conftituições e leis do império. A focie-
dade portugueza, como as das outras monarchias fundadas
fobre as ruinas do mundo romano, pela mutação dos tempos
e dos coftumes, pela feição diverla da nova civilifação, mal
podia accommodar-fe litteralmente á legillação de um povo
já extincfo defdc feculos. Entre os produdos mais admirá-
veis do efpirito humano em todas as edades não é de certo
o direito romano o que menos pôde com razão maravilhar
os que invefligam e meditam as leis e os phenomenos na
evolução moral da humanidade. É o direito romano como
que o alicerce e o fundamento das fciencias jurídicas c fo-
ciaes. D'elle fão os princípios capitães, ainda hoje invocados
pelos juriftas; d'elle a própria linguagem technica ainda vul-
gar; d'elle a mefma diviiao ainda hoje ufada nos códigos
modernos e nos li^vros dos mais audorifados e eminentes ci-
vilizas; d'clle o que ha de fundamental na doutrina do efta-
do das peíToas, dos contrados e obrigações, dos litígios e
acções de lei. Não foi o direito romano alheio em feus influxos
aos códigos das nações conquiífadoras, ao Fuero juigo, ao
Breviário de Alarico, ás leis dos Salicos e Burguinhões, quan-
do o elemento bárbaro e germânico pela irrupção dos po-
vos feptentrionaes invadiu e modificou a Icgiflação do velho
■♦-0-1-
eis
império. O próprio direito canónico fobre o direito romano
fe modelou, innovando todavia o que era congruente á nova
fociedade efpiritual, que havia de reger. Se Roma, porém,
principalmente a Roma cefarea, a Roma das Theodolios e
Juftinianos, ainda após a lua queda material perfiftia em
governar pelas fuás leis e pelas decifões dos feus jurifpRi-
dentes as nações brotadas do leu leio, não era jufto, nem
racional, que alterada profundamente a forma Ibcial, crea-
das novas relações delconhecidas aos romanos, fagraffem
os jurifconfultos, uma luperfticiofa veneração aos textos e
commentarios das fuás leis, menofprezando ou efquecendo
inteiramente o direito pátrio e, como direito fubfidiario, a
moderna legiflação dos povos cultos. Contra efte abulo per-
niciofo, com que nas cathedras os meftres profeífavam a
fciencia dos Ulpianos e dos Paulos, e nos pretórios os julga-
dores derimiam os pleitos fegundo a lei romana e as gloífas
de Bártolo e de Accurfio, defdenhando por femi-barbara a
pátria legiflação, le levantara Sebaftião de Carvalho em al-
guns dos feus mais celebrados monumentos legiflativos, na
famofa providencia antonomaíticamente nomeada a lei da
boa ra{ão'f e na lei- em que, fendo condemnado o direito
illimitado da ultima vontade, fe eftatuiram novas e faluta-
res difpoíições acerca da facção testamentária.
As fciencias medicas atteítavam em Portugal um eftado
vizinho da barbárie pedante e da mais obfcura fervidão aos
antigos, reprefentados em Galeno, e aos árabes da edade me-
dia, cujo infallivel luminar era Avicenna. Em vão os Vefalios,
os Fallopios, os Fabricios de Aquapendente, e depois d'elles
os Morgagnis e os Harveys, haviam revelado admiráveis des-
cobrimentos fobre a eflrudura anatómica do homem e fobre
1 Carta de lei de i8 de agoflo de 1769.
2 Lei de 9 de feptembro de 17Õ9.
e|j tia
-<^
as funcçõcs do organilmo. A anatomia na faculdade de Coim-
bra continuava a ter por leu guia e único mentor o livro De
iifii partiwn do medico de Pergamo. No livro de Braz Luiz
de Abreu, que tem por titulo Portugal medico, onde a mais
vafta e a mais efteril erudição lacra e profana convive em
familiar alTociação com as mais pueris fuperítições, enraiza-
das no vulgo e nos doutores, o efcriptor, encruecido na cega
adoração da antiguidade, zombetêa com o defcobrimento fe-
cundiíTimo de Graeffe, principio e fonte da moderna doutrina
phyfiologica acerca das funcções da reproducção.
A medicina é fempre, através da fua longa hiftoria, o
produdo neceíTario do que o homem alcança em cada epo-
cha defcobrir e comprehender nas leis do Kofmos. Que po-
deriam pois ler as fciencias medicas em Portugal, quando a
fua mais do que pura auxiliar, mãe e preceptora, a fciencia
do univerlb, a fciencia do mundo inorgânico, e a do mundo
biológico, a phyfica, a chimica, a hiftoria natural eram tão
rilivelmente profeíTadas em Coimbra, que mais valera que o
filencio acerca da natureza eftiveíTe alli fempre ininterrupto?
E de feito a natureza eftudada em Ariftoteles e nos feus in-
terpretes efcholafticos, em Theophrafto, e em Diofcorides
e no leu famigerado gloííador o Meftre André Laguna, era
uma natureza convencional, contrafeita e accommodada ex-
preífamente ao ufo viciofo das efcolas.
Urgia pois, no intereíTe da illuftração e da faude, re-
organifar ou antes inftaurar de novo e em racionaes e mo-
dernos fundamentos o enfmo medico. Era precifo livrar ao
mefmo paífo as povoações do galenifmo cego e infciente dos
feus clínicos univerfitarios e da praga dos cirurgiões idiotas
e dos algebriftas c medicaftros, talvez menos perigolbs, ape-
lar da curteza das fuás lettras, do que os feus vaidofos emu-
los, que embalfamavam os miferos enfermos nas beberagens
da velha polypharmacia, e lhes celebravam as exéquias, ain-
-i-6- -0-§-
e|j eis
38o
da em vida, com os textos claíTicos de Galeno, de Hippo-
crates, de Ceifo, em grego ou em latim.
Para iniciar porém as novas gerações na medicina ecle-
flica e experimental, defterrando as viciolas tradições da
medicina fyftematica, era neceíTario inocular a fundo nos es-
píritos o culto fcientifico da natureza, como ella é na lua
phenomenal realidade, e como fe revela á obfervação e á
experiência, não como a fabricaram nos feus livros os mes-
tres da antiguidade, apenas infpirados por falliveis conjedu-
ras ou theoricas antecipações. Tudo o que das Iciencias phy-
ficas e naturaes fe podia aprender nas efcolas de Portugal
fe reduzia quafi litteralmente ás abíurdas e pueris efpecula-
ções, que ferviam de appendice e complemento á que então
fe appellidava philolbphia. Efcureciam os meftres antes de
tudo o efpirito do alumno com as prolixas e nugatorias com-
mentações dos predicamentos ariftotelicos. Perfuadiam-lhe
que no uíb de artiíiciofos fyllogifmos fe cifrava todo o des-
cobrimento da verdade. Entornavam-lhe a jorros na intelli-
gencia a eftrondofa, mas eíteril catadupa de uma inane dia-
leífica, adextrando-o para a luda dos argumentos palavrofos
e fubtis e para as oftentofas logomachias. Embrenhavam-n'o
fundamente pelas devefas e andurriaes de uma caliginofa me-
taphyfica, tanto mais grata aos meftres e fabedores, quanto
mais inacceífivel á luz e á verdade. Apoz eífa infecunda pre-
paração os preceptores e os compêndios efcolares, no Colle-
gio das Artes em Coimbra, na univerfidade jefuitica de Évora
e nos inftitutos monachaes, na volumofa compilação appel-
lidada Ciirfo Conimbricenfe ou na indigefta Philofoplua do
padre Aranha, refolviam o elfudo do univcrfo e das fuás leis
nas doutrinas extravagantes de uma phyfica ideada e cons-
truída pelos raciocínios à priori, fem que aos feus vaidofos
profeífores occorreífe nem de leve a neceíTidade de inquirir
uma fó vez a natureza pelos proceífos experimentaes.
38i
Toda a philofophia do elpirito e do Kofmos era pura-
mente a peripatetica, ou antes a efcholaftica, dominante na
edade media e tenazmente perpetuada, com efcandalo das
lettras, na Peninfula pyrenaica até fer já adulto o feculo
decimo nono. Efta parodia ou múmia de fciencia e as difci-
plinas tradicionaes, que haviam conftituido o trimim e o
quadrimum das efcolas durante a edade media, eram feguidas
e veneradas como um preciofiffimo thefouro, legado por umas
a outras fuperfticiolas gerações, e no qual era defefo introduzir
a menor innovação. Efta era a forma da fciencia e da erudi-
ção, confagrada praticamente pelo clero durante os fecu-
los médios, ifto é, durante as epochas, em que elle tinha
mais firmemente confolidada a ília mundana dominação e
irrompido vidoriofo em todos os interfticios da vida civil
e focial.
Ora foi cabalmente na Peninfula, que o faccrdocio, em
tudo quanto mais intimamente fe enlaçava com a fociedade
temporal, exerceu a maior audoridade, e fe confervou mais
extranho e mais rebelde ás influencias da profana civilifação.
Era na Peninfula que os inftitutos e corporações religiofas
eram geralmente, comparados com os da reftante Europa,
os menos illuminados. Os próprios jefuitas, que além dos
Pyreneus, em França, na Itália, na AUemanha, na Polónia,
tinham patenteado as portas dos feus clauftros á invafão das
modernas fciencias, perfevera^'am na Hefpanha e em Portu-
gal addidos e fieis á velha philofophia e ás formas efcholas-
ticas. Ao influxo perniciofo da preponderância clerical, e á
fevera fifcalifação intellectual exercida pela Inquifição no
propofito de fruftrar os contrabandos efpirituaes, é jufto o
accrefcentar uma nativa e genial difpofição dos povos penin-
fulares para ferem confervadores e adverfos ás innovações
audaciofas e ás creações originacs em tudo quanto cáe fora
dos términos da opulenta e inJifciplinada imaginação meri-
-<>^
382
dional. E de feito parece que os Bacons, os Defcartes, os
Copernicos, os Keplers, os Galileus encontram quafi fáfara
e madrafta a ubérrima região, onde ao foi, que fecunda e
aquenta a arte e a poefia, defabrocham inimitáveis os génios
de Camões e de Cervantes, de Velafques e de Murillo. AíTim
como ha para as floras e para as faunas uma repartição geo-
graphica natural, affim parece também que ao fabor dos
climas e dos logares ha para a Europa civilifada uma geo-
graphia intelleftual, uma diviíao do trabalho para os efpi-
ritos, uma condição predileda e efpecial para as mentaes e
creadoras vocações.
Era pois urgente fubftituir á enervante philofophia das
efcolas jefuiticas e monachaes uma nova fciencia profeíTada
em inftitutos fundados de raiz e immunes da eiva tradicional.
De todas as fcientificas efpeculações, a que pôde levantar-fe
a razão humana, nenhuma ha porventura, que mais a grati-
fique pelos feus frudos do que o eftudo experimental da natu-
reza. Efta é de todas as philofophias a menos declive para o
erro e a mais preftadia e mais fecunda em verdadeiros reilil-
tados para a illuminação do entendimento e para os progres-
fos fociaes. Cumpria forçofamente abrir-lhe praça no quadro
dos eftudos fuperiores, inftituindo própria faculdade, em que
fe podeffe profeíTar.
E, porém, quali impoíTivel o interpretar a natureza fem
que para elevar-fe ao defcobrimento das fuás leis, o efpirito
fe prevaleça de uma lógica mui outra do fyllogifmo reveren-
ciado nas efcolas monachaes; lógica fublime, que nas mãos
dos geómetras immortaes é ainda mais poderofa do que os
telefcopios mais perfeitos, e os apparelhos mais fenfiveis para
ler nos céus a chimica das eftrellas, e defcortinar no Kosmos
os arcanos da matéria. E eíte fecundiffimo inftrumento, com
que na edade moderna da fciencia os aftronomos pefaram o
univerfo e os ph)íicos reduziram a leis invariáveis os phe-
-i-i-» -<í^
eis
383
nomenos do fom e do calor, da luz, da eleíítricidade c ma-
gnetiímo. E a geometria e a mechanica e a analyfe mathe-
matica, lao as azas ligeiriíTimas do penfamento, a machina
de vapor do trabalho intelledual.
Depois de terem florecido por algum tempo em Portugal,
principalmente pelo talento admirável de Pedro Nunes, em
tanta maneira as fciencias mathematicas haviam decaído,
que apenas d'ellas fe aprendiam taxados e incompletos rudi-
mentos. Enlinavam-n'as, é verdade, os jefuitas nos feus colle-
gios, profeíravam-n'as principalmente em Santo Antão, onde
a aula chamada da Sphera fora durante muitos annos o in-
ftituto principal, a que os engenheiros acudiam para a fua
imperfeita doutrinação. D'ali tinham faido as obras do padre
Manuel de Campos, havidas no feu tempo como claíTicas,
apefar do feu cunho elementar. Era nos ofíiciaes do exercito,
mais ciofos de faber, que fe confervava efpecialmente a
herança dos conhecimentos mathematicos, e os nomes de
Manuel de Azevedo Fortes, de Serrão Pimentel, de Manuel
da Maia, atteftavam que ainda havia quem n'eíla parte hon-
raíTe, quanto podia, o nome portuguez. Mas as admiráveis
conquiftas da geometria, do calculo, da dynamica, da aftro-
nomia phyfica, da mechanica celeíte, afelladas com os nomes
gloriofos de Newton, de Pafcal, de Leibnitz, de Clairaut e
D'Alembert, d'efta luminofa dynaftia de geómetras, que ti-
veram o nome de Bernouilli, ou eram inteiramente ignoradas
em Portugal, ou não tinham um lo reprefentante nos eítudos
fuperiores. A velha univerfidade encadeada aos predicamen-
tos ariftotelicos, adextrada na gymnaftica do fyllogifmo, ar-
dente dcfenfora de todas as archaicas doutrinas carcomidas
acerca do efpirito e da natureza, defdenhava por indignas
da borla doutoral as fciencias fecundiífimas do movimento
e da grandeza. Não podia efconder-fe ao audaz reformador
dos efludos nacionaes efta mingua laflimnfa, que era ao mes-
c|3
eis
384
mo paffo uma ignominia e um atteítado vergonhofo da noíTa
decadência intelledual. Deu pois entrada ás mathematicas na
reformada univerlldade. AíTignou-Uies faculdade privativa,
como quem defejava reparar com honrofas crefces o defpre-
zo e vitupério, em que tinham por feculos jazido em Portugal.
Confirmado no animo do eftadifta o propofito de reformar
a inítrucção, cuidou na traça, que haveria de levar. Era for-
çofo achegar para os eftudos preliminares de tão árdua refor-
mação os poucos elementos, que tinham alcançado fuhtrahir-
fe á geral ignorância ou ao phantafma pedante do faher,
ainda mais perniciofo que a infciencia. Veiu a inftituir uma
grande congregação de homens defabufados e eruditos, a que
chamou a. Junta da Propidencia Litteraria\ Prefidiam a efte
confelho o próprio Sebaftião de Carvalho e o arcebifpo de
Évora já então condecorado com a purpura cardinalícia. Eram
membros d'aquella junta D. Fr. Manuel do Cenáculo, agora
elevado á dignidade epifcopal na fé de Beja, novamente
inftituida, os defembargadores Joíe Ricalde Pereira de Cas-
tro, Jofé de Seabra da Silva, procurador da coroa, Francifco
António Marques Geraldes, Francifco de Lemos de Faria,
reitor da univerfidade, Manuel Pereira da Silva e João Pe-
reira Ramos de Azeredo Coutinho. Eram todos devotadiíTi-
mos fedarios do primeiro miniítro, zelofos cooperadores da
fua empreza, fieis executores da fua vontade, inimigos impla-
cáveis dos jeluitas, ardentes propugnadores das foberanas
regalias contra as ufurpações e demafias clericaes. Nem todos
primavam pela inteireza do caracter, nem luziam egualmente
pelo efplendor das fuás lettras, mas eram todos conformes
em bem fervir o fevero reformador. Pozeram mãos á empreza
com indefeíTa applicação e boa vontade. Repetiam-fe as jun-
tas e as confultas. Crefcia a obra a olhos vifta. O primeiro
' Carta de 23 de dezembro de 1770.
_ .-(Ç>-§^
385
frudo, com que a erudita congregação faíu a lume, foi o Com- .
pendio hijlorico do ejlado da iiniverjidade de Coimbra, efcripto
ílibftanciofo e eruditiíTimo, onde com a forma fefquipedal
e a bombaftica majeftadc caraderiftica dos efcriptos ofiiciaes
na epocha pombalina, fe defcrevia por feus paíTos contados
a fucceíTiva decadência e abatimento, em que fe havia pre-
cipitado a velha univerfidade portugueza defde os infauífos
dias do fombrio D. João III. D'eíta laítimofa degradação in-
telledual fe imputava no livro a culpa inteira aos funeftos
influxos jefuiticos, accumulando contra a ordem condemna-
da os epithetos mais injuriofos.
Compoz a Jimta da providencia litteraria e confirmou o rei
pela carta regia de 28 de agoflo de 1772 os novos eítatutos,
pelos quaes haveria de reger-fe a renafcente univerfidade. E
renafcente, fe não inteiramente renovada, era a litteraria in-
ftituição, que das ruinas do velho edifício jefuitico brotava
promettendo inefperado luzimento á decaída intelligencia em
Portugal. Pela nova legiflação académica eram declarados
fem vigor os antigos eftatutos de iSgS, fabricados fob o in-
fluxo e direcção da Companhia. A faculdade theologica, por
fer a que mais inteiramente fe prendia á confiante preoc-
cupação do grande legiflador, foi a que antes de todas lhe
attrahiu a attenção para que foíTe completa e ajuftada aos
modelos mais infignes d'aquelle tempo a fua orthodoxa dou-
trinação. Repartiam-fc os eftudos por oito cadeiras, nas quaes
havia de profeflar-fe a theologia dogmática e polemica, a
theologia moral, chriftan e defpojada de todas as theorias
probabiliflas e de todas as relaxações da confciencia, a exe-
gcfe do antigo e do novo Teftamento, a hifloria ecclefiaflica,
e a liturgia. Deviam fer oito os cathedraticos, féis os fubíti-
tutos, illimitado o numero de oppofitores, chamados even-
tualmente á regência d'aquelles curfos, quando o pediífe a
neceíTidade. Os lentes haveriam de fer efcolhidos por cgual
^%-h^ -<5^
ela eis
(|3
386
e em ordem alternada entre o clero fecular e as corporações
religiolas.
As duas antigas faculdades jurídicas, a de cânones e a de
leis, foram confervadas na fua primitiva independência. Para
ambas fe inítituiram dezefeis cadeiras com egual numero de
cathedraticos e mais féis ílibítitutos para cada faculdade. Os
eítatutos proclamavam a preexcellencia das leis pátrias febre
as romanas, concedendo ás imperiaes a funcção de fubfidia-
rias, quando não contradigam a boa razão. O eníino do di-
reito portuguez recebia novos defenvolvimentos, como que
naturalmente fe antepunha á legiflação e aos coítumes de uma
nação antiga e mui diverfa das fociedades modernas e chris-
tans. Como eíTencial e luminofa propedêutica ás doutrinas do
direito civil de Portugal, ordenavam os eítatutos, que na fa-
culdade jurídica fe enfinafle o direito natural e o das gentes,
a hiftoria do direito romano, e a hiitoria particular do povo
portuguez e da lua peculiar legiflação. N'eíta parte prefcre-
viam os eítatutos, que o profeífor expendeífe e condemnaífe
claramente as perigofas innovações, as máximas ultramonta-
nas introduzidas na pátria legiflação para amefquinhar e des-
luzir as regalias majeftaticas em beneficio das preteníoes tem-
poraes do clero e dos pontífices.
A invencível fupremacia, que nos eítatutos novos ainda
mantinham as fciencias moraes e theologicas fobre as exa-
étas, phylicas e naturaes, denuncia-fe na eftreiteza relativa,
com que fão n'elles iníthuidas as faculdades de mathematica
e philofophia, e principalmente a de medicina. Ao enlino
medico eram deputadas unicamente féis cadeiras com egual
numero de cathedraticos, apenas dois lentes fubftitutos, e ou-
tros tantos demonítradores.
Somente quatro cadeiras conftituiam a faculdade de ma-
thematica. Outros tantos cathedraticos e dois lentes fubltitu-
tos deviam eníinar as mathematicas elementares, o calculo
387
infinitefimal, a mechanica ou, fegundo iVaquelle tempo le cha-
mava, a phoronomia, e a aftronomia pratica. Inftaurava-fe ao
mefmo paffo um obfervatorio, neceffario complemento dos
bons eítudos aftronomicos. Reconhecendo a aka importância
das mathematicas e bufcando fomentar o feu cultivo em terra,
onde tanto andavam efquecidas ou delprezadas, convidava o
legillador á frequência da nova faculdade com attraífivos ali-
cientes, abrindo, aos que n'ella fe graduaíTem, algumas das
mais honrofas carreiras publicas, e concedendo-lhes valiofas
preferencias no ferviço do exercito e da armada.
A faculdade, que nas velhas univerfidades tinha o nome
claíTico das artes, — fubentendendo n'efta denominação a
grammatica, a rhetorica, a lógica, a arithmetica, a geome-
tria, a mufica e a aftronomia, — foi abolida por efteril, ana-
chronica, e fomente accommodada a viciar a inftrucção. No
feu logar erigiu-fe a faculdade, que o legiflador cognominou
de Philofophia, fe bem o feu deftino principal foífe, não já o
profeífar as nebulofas efpeculações da metaphyfica, fenão
o divulgar as fans doutrinas das fciencias phyficas e naturaes.
A philofophia racional e moral, entrava, porém, no quadro
da noviíTima faculdade; a phyfica, a chimica e a hiíforia na-
tural completavam o currículo académico. Somente quatro
cadeiras com outros tantos cathedraticos, e dois lentes fubfti-
tutos, altribuia a nova legiflaçáo ás fciencias da natureza, já
então opulentiíTimas de novos defcobrimentos e largamente
divulgadas pela Europa. A mineralogia, a botânica, a zoolo-
gia, haveriam de fer enfinadas n'um fó curfo e n'um fó anno.
Reduzia-fe por eíta forma o feu eftudo ás mefquinhas di-
menfões da fciencia profeífada n'um inífituto fecundario.
Apefar, porém, da mefquinhez com que o legiflador, depois
das fuás larguezas jurídicas e theologicas, repartia o feu qui-
nhão á natureza e aífegurava o logar nos feus geraes á philo-
fophia experimental, efte primeiro e fyífematico luzir das que
ela
ela
-Í-6-» — : ^-^Hr
388
podem chamar-fe as fciencias da moderna civilifação, era
tão novo, tão extranho em terra habituada a fermonarios, e
apoftillas de theologos efcolafficos e de romaniílas eruditos,
que affim mefmo ainda atteílava a larga previdência do illus-
trado legiflador. A philofophia da natureza apparecia então
ao egoifmo dos governos, como menos valiofa e preftadia que
as demais difciplinas profeíTadas na refundida univerfidade.
A theologia haveria de educar prelados e inquifidores, zelofos
de feparar o facerdocio e o império; os cânones e as leis, ha-
veriam de formar jurifperitos c togados, egualmente dextros
em defender as prerogativas do foberano abfoluto contra as
irrupções temporaes da egreja, e as tentações da popular au-
tonomia. A medicina recommendava-fe como fciencia da vi-
da material. As mathematicas faziam navegadores e enge-
nheiros. Mas as fciencias naturaes, apefar do efplendor, com
que já refulgiam pela Europa, ainda não fe entendia cabal-
mente como podiam lifonjear no mefmo grau a intereífeira
conveniência dos eftados. Eram os tempos, em que Franklin,
o phyfico democrata, não era já menos illuítre, fegundo o
verfo latino de Turgot, por haver arrebatado o raio ás nuvens
do que o fceptro aos tyrannos. Mas os milagres da phyfica e
da chimica eftavam ainda apenas em principio. Ninguém po-
derá ainda adivinhar o que feria a induftria librada n'eftas
duas azas poderofiíTimas, rafgando os voos maravilhofos do
prefente. Sebaftião de Carvalho e os feus cooperadores na
creação do novo enfmo, não fão pois menos dignos de agra-
decimento e de louvor. A fua generofa follicitude em obfe-
quio ás fciencias da natureza, apparece teífificada pela gran-
diofa inftituição do mufcu univerfitario, do jardim botânico,
do gabinete de phyfica experimental e do laboratório defti-
nado á chimica pradica. E elle o introdudor das fciencias
mathematicas, phyficas c naturaes nos quadros do enfmo por-
tuguez. Ser-lhe-hia de fobra efte fó titulo para que o feu no-
ejj ti»
389
me refplandeceíTe gloriolb na hirtoria da intelligencia em Por-
tugal. Foi tal e tão fubida a fignificação, que attribuiu á fua
miíTão de reformador, ou antes de novo inffituidor do enfino
pátrio, que para efta funcção legiflativa julgou neceffario con-
decorar-fe com todo o efplendor da majeftade.
Pela carta regia de 28 de agofto de 1772 conferiu D. Jofé
ao feu miniftro a eminente dignidade e os latilTimos poderes
de feu plenipotenciário e logar-tenente na fundação da nova
univeríidade. PaíTou o reformador á cidade de Coimbra com
todo o apparato e oftentação de monarcha verdadeiro, dei-
xando na fombra, que merecia em empreza de tanta magni-
tude, o foberano mais aífedo a monterias que propenfo a
praticas mentaes. Foi logo pondo em feu vigor os eftatutos e
ordenando o que cumpria á fabrica e alojamento da refor-
mada academia. Do collegio dos jefuitas applicou uma parte
á univerfidade, e mandou que no caífello fe erigiífe um edifício
nobre e accommodado a fervir de obfervatorio'. Reftaurou e
encorporou na univerfidade o collegio das artes, memorando
no diploma, que o reífituiu á fua antiga fiorefcencia, as glorias
litterarias, de que fora nobiliffimo theatro, e renovando as
tremendas accufações contra os jefuitas, que fob a fua direc-
ção o tinham defluftrado e corrompido^ Elegeu para as
fciencias moraes e pofitivas as maiores habilidades, que fe
lhe depararam no meio da quali geral corrupção das boas
lettras, provendo as cadeiras em peífoas nacionaes. Era porém
de todo inexequível encontrar homens confummados, ou ao
menos competentes nas fciencias mathematicas, phyficas e
naturaes para lhes commetter a inífauração do novo eníino
em difciplinas ignoradas quafi inteiramente em Portugal. Para
a faculdade de mathematica ainda lhe deparou a boa fortuna
' Carta regia de 1 1 de outubro de 1772.
2 Provifão do logar-tenente, de iG de outubro de 1772.
(( «I
eis elí
(|3
jgo
dois nomes illuftriffimos, Jofé Monteiro da Rocha e Jofé Anas-
tafio da Cunha. E é notável que por uma fmgular ironia do
acafo, Jofé Monteiro era faido havia poucos annos dos claus-
tros da própria Companhia, cujos profundiíTimos eftragos na
inftrucção o miniftro de D. Jofé era chamado a reparar. De
todas as ordens e congregações religiofas, fomente a profcri-
pta fociedade teve a honra de contar um dos feus antigos
membros entre os que iam derramar defde as cathedras
noviffimas a luz da fciencia moderna e fecular. Jofé Anafta-
fio era official de artilheria e honrava o exercito portuguez,
atteftando nobremente que nas fuás fileiras, apefar da velha
negligencia governativa em promover e favonear os bons es-
tudos, fe confervára nunca extindo o fogo das fciencias, que
mais illuftram e ennobrecem a razão. Os dois únicos repre-
fentantes portuguezes das fciencias mathematicas na recente
univerfidade eram pois, como aítronomo diftinclo, um je-
fuita, como geometra, um livre penfador, para quem já de
longe fe apparelhavam as futuras perfeguições da inquifição.
Os demais profeífores foi neceífario mcndigal-os entre nações
extranhas. Eram para a faculdade de mathematica o piemon-
tez Miguel António Ciera e o veneziano Miguel Franzini. A
faculdade de philofophia teve como feus primeiros cathe-
draticos nas fciencias phyficas e naturaes os italianos Van-
delli e Dalla Bella, que em Pádua haviam tido egual offi-
cio. Todos eftes notáveis extrangeiros tinham de Itália vindo
a Portugal para enfinarem as fciencias phyficas e mathema-
ticas no coUegio de nobres. Agora trafladados a Coimbra
os profeífores, e de vez inítituido o novo enlino, abolia o le-
giílador as cadeiras correfpondentes no coUegio', confagran-
> Carta de lei de lo de novembro de 1772, extinguindo no collcgio de no-
bres os efludos phyficos e mathematicas por exiltirem já eftabelecidos em a
nova univerfidade.
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do-o unicamente á inftrucção nas humanidades. Já a cila
fafão deixava Sebaítião de Carvalho inftituida a univerfi-
dade, aberta folemnemente pelo miniftro logar-tenente cm
outubro de 1772. Volvera á capital, tendo cumprido a mais
illuftre e memorável das fuás audazes reformações. Porque
era porém agora neceílario que deílie Lifboa vigiaíTe a nova
planta, ainda mal fegura em terra ingrata, e acudiíTe com
affiduas providencias a folidar a inftituição, foi-lhe proro-
gado o officio de logar-tenente. Inveftido n'efta podcrola
magiftratura, era elle, no lignificado ampliffimo da palavra,
o didador da intelligencia e o monarcha da inftrucção '.
Se o miniftro audazmente revolucionário confiderava a fua
luda com as potencias clericaes uma empreza gloriofa, não
era menos aquilatada no leu animo, como obra monumen-
tal, a fundação da univerfidade. Refpondendo ao bifpo de
Zenopolis, D. Francifco de Lemos, reitor da univerfidade,
e á deputação que viera agradecer a D. Jofé a fruduofa re-
nafcença da caduca inftituição, o grande reformador, attri-
buindo ao foberano o louvor, que a íi próprio lhe quadrava,
podia aííirmar com hiftorica verdade, que era aquella nova
creação «o mais gloriofo monumento do feu feliz reinado^».
Se a univerfidade era porém deftinada a renovar a vida
intelleílual e a iniciar o povo portuguez na moderna civili-
fação, a fua luz diff"undia-fe apenas direitamente pelos eftra-
tos fuperiores da fociedade. Creando aíTim uma ariftocracia
litteraria e fcientifica, fomente o inftituto renafcente poderia
por uma acção reflexa e indireda influir nas claífes popu-
lares, as mais defalumiadas e envilecidas pela fua diuturna
obfcuridade, e por iífo as que mais inftantemente dcmanda-
' Carta regia de 6 de novembro de 1772.
2 OíTicio do marqucz de Pombal ao reitor da univerfidade, na Cnllecçáo
de legijlação, de Trigofo, manuícripto da Academia das Sciencias de Lifboa.
-i-<Í>- -<>-l-
392
vam os benefícios da inftrucção. São as univerfidades e as
efcolas fuperiores como intenfos focos de luz centraliíados nas
eminentes regiões da fociedade, e lançando apenas alguns
pallidos clarões nas profundezas fociaes. Tendem a fazer da
illuítração um privilegio e da fciencia uma oligarchia. So-
mente a efcola popular, modeíta, mas patente aos humildes
e aos pequenos, alcança diftribuir fraternalmente a nutrição
efpiritual e alumiar com bem repartida intenfidade a maíTa
inteira da nação. Nunca houvera em Portugal enfino para o
povo. Mas Sebaílião de Carv^alho, apefar do leu ahfolutifmo
intranfigente e fyftematico, defde as eminências, em que a fua
vifta fe alongava no futuro, comprehendia a máxima doutri-
naria. «Tudo para o povo, nada pelo povo». O próprio
egoifmo da coroa abfoluta devia cifrar o feu intereíTe em re-
ger uma nação illuminada, opulenta, poderofa, trabalhadora.
Trifte haveria de fer a condição de um rei, fenhoreando a
uma turba de mendigos ou a uma horda de felvagens, inve-
terados na abufão, jubilados no preconceito e encanecidos na
barbárie. Ainda outra razão ponderofiffima o determinava a
preencher nos quadros da inftrucção a lacuna, que deixava a
efcola primaria. Sebaftião de Carvalho na fua porfia tenaz e
inclemente com o poder clerical e jefuitico, vira na ignorân-
cia e bruteza popular um dos mais irrefiftiveis adjutorios do
feu antagonifta. Um povo illuftrado não pôde fer uma confra-
ria de fanáticos. A luz da intelligencia não pôde confentir as
trevas da fuperftição.
Eftavam Já abertos os novos eftudos fuperiores, quando
o previdente legiflador acudiu a inftituir o enfino commum e
popular". Devia fer miniftrado em efcolas publicas diftribuidas
por todo o território portuguez. As difciplinas profeífadas ha-
viam de fer a leitura, a efcripta, a orthographia, e os ele-
i Alvará de 6 de novembro de 1772
393
mentos indifpeníaveis da grammatica, principalmente no que
era concernente d recta conftrucção da linguagem, o calculo
arithmetico, a doutrina chriftan e a civilidade. Era eíTencial-
mente o mefmo quadro, que até ás reformas da inftrucção
cm i836 havia comprehendido tudo quanto os legilladores
tinham julgado fuííiciente á illuftração rudimentar. Inftituia
o reformador quatrocentas e fetenta e nove efcolas, c]ue cha-
mava de ler e efcrcver, attribuindo ao reino quatrocentos e
quarenta, vinte e quatro aos dominios portuguezes no ultra-
mar, e quinze ás ilhas adjacentes. Além do enfmo official era
permittido aos particulares o magifterio, comtanto que attes-
taíTem em exame publico a fua capacidade. Na mefma pro-
videncia legiflativa, que fundava a inftrucção primaria, fe
regulava o numero e a diftribuição das cadeiras de humani-
dades. Os profeíTores de latim deviam fer duzentos e trinta
e féis, os de grego trinta e oito, e quarenta e nove os de rhe-
torica. A philofophia, que na primeira inftituição do enlino
litterario não tivera reprefentação, achava melhor graça aos
olhos do legiflador, e devia profeíTar-fe em trinta e cinco au-
las em todo o âmbito das terras portuguezas.
Havia, como defde logo é manifefto, uma extrema defpro-
porção entre o numero das efcolas confagradas á educação e
enfmo popular, e a largueza exuberante, com que era dota-
da a inftrucção gymnafial ou fecundaria. Era harto parcimo-
niofo o quadro dos profcífores primários, exceífivo certamente
o dos que tinham por encargo diffundir as lettras claíficas. Se
attentarmos, porém, em que era novo, defufado até ali, quafi
havido por inútil ou fuperfiuo o enfmo da gente commum e
não lettrada, e em que por toda a Europa era vulgar, ainda
nos paizes de maior cultura, o cifrar nas humanidades, prin-
cipalmente no latim, o melhor thcfouro e ornamento intelle-
dual, não podemos forrar-nos a admirar como uma oufada e
falutar innovação o reputar o legiflador, como um encargo
^%-^ -<^
4 9Vi
-• -<ç»-i-
394
publico, defde então imprefcriptivel, o enfino primário mi-
niftrado ás mais humildes e fertanejas povoações. Se refle-
ítirmos em que atrazo laftimofo ainda fe encontra a educação
official do povo portuguez, agora que é decorrido mais de um
feculo depois do giganteo esforço de Pombal, fe rememorar-
mos a fumma difiiculdade em obter meftres idóneos e pres-
tadios, é forçoíb confeíTar, que pefadas as circumítancias do
tempo e a Índole diverfa na forma governativa, as quatrocen-
tas e fetenta e nove efcolas inftituidas pelo miniftro de D. Jofé
reprefentam um paíTo mais audaz nos progreíTos nacionaes
do que as três ou quatro mil, com que Portugal confegue
apenas fobrepôr-fe á Ruffia e á Turquia no mappa compa-
rativo do enfino popular em toda a Europa.
Não podéra Sebaílião de Carvalho, na prefença da monar-
chia, abolir a nobreza hereditária, depois de apagar na legis-
lação e nos coftumes a diftincção das caílas e das famílias,
nem difpenfar inteiramente o patriciado como elemento íbcial.
Pretendera porém aproveital-o, encaminhando-o á commu-
nhão com a nova fociedade pelo baptiímo da illuítração e da
fciencia. Creára para efte fim expreíTamente o CoUegio de
nobres, erigindo-o na cafa onde outr'ora íiorefcêra o mais
illuftre noviciado jeiliitico. Sebaftião de Carvalho, como fuc-
cede fempre ao homo noviis, principalmente nas monarchias,
ao homem levantado de berço obfcuro ou de modefta fidal-
guia ás eminências reaes da audoridade e aos vaidofos des-
lumbramentos da grandeza ariílocratica, não era inacceíTivel
ás complacências com a ordem patrícia, em que abaixo dos
duques fe infcrevia. Mas os feus inífinéfos eram eíTencial-
mente democráticos no conceito de confiderar o povo como a
força dos eífados, e a íua melhoria intelleífual como o tim-
bre mais honrofo das nações. O CoUegio de nobres era um
feminario exclufivamente deftinado á liberal educação dos
que tiveíTem o foro de moços fidalgos. Os filhos dos mecha-
-i-ò- -<à>-§-
4À3
395
nicos, ou da plebe dos oíficios e mifteres, não podiam acoftar
nos geraes do antigo noviciado da Cotovia, os herdeiros dos
nomes mais illuftres. Mas para compenlar etia exclufão, fun-
dava o legiflador um novo collegio, que poderia ler appel-
lidado o collegio plebeu e defornado de pergaminhos e bra-
zões". Era na forma, na inftrucção, na difciplina egual ao da
nobreza, que lhe fervia de exemplar e de modelo. Confa-
grava-íe efpecialmente a educar os filhos das famílias hones-
tas, que não le diftinguiam pelo efplendor do nafcimento,
mas viviam pelo trato já diftantes da plebeia multidão. Devia
n'aquelle inftituto profeíTar-le o grego e o latim, o hebraico,
as linguas modernas mais vulgares, a rhetorica e a poética, a
chronologia, a hiftoria, a geographia, a lógica, a metaphyfica
e os elementos da phyfica experimental. Tinha o collegio em
Mafra o feii aíTento. Eram feus profeíTores os cónegos regran-
tes de Santo Agoftinho. Pela primeira vez o grandiofo monu-
mento erigido pelo monarcha devoto e fumptuario á fua de-
voção e á fua vaidade, fervia aos intereífes e aos progreífos
da nação.
Apefar do oiro. que vinha copiofo do Brazil, os forçofos
difpendios da monarchia com todos os abufos centenários,
que não era exequível extirpar inteiramente, não deixavam
que os rendimentos do elfado baftaífem a todos os encargos
de uma nova civilifação. O enfmo popular não tivera nunca
uma verba privativa. Era neceífario acudirá remuneração dos
profeífores e á manutenção das efcolas então fundadas. De-
cretou o miniftro de D. Jofé um novo importo efpecialmente
confagrado ás defpezas da inftrucção publica-. Foi iiiftituida
a contribuição indirecta chamada ///i^/<.y/o litterario. No conti-
' .Alvará df i8 de agodo de 1772 approvando os edatutos do collegio de
Mafra.
2 Carta de lei de 10 de novembro de 1772.
-i-c>- -<5>-i-
4 si»
-<>-i-
3g6
nente de Portugal e nas ilhas adjacentes confiftia a nova im-
pofição em um real em cada canada de vinho, quatro réis
- em canada de aguardente, cento e feíTenta réis em cada pipa
de vinagre. Na America e na Africa a cada arrátel de carne
confumida devia caber a taxa de um real. Na Afia, nos do-
mínios da Africa e no Brazil, em cada uma canada de agua-
ardente impunha a nova lei o direito de dez réis. Era aíTim
que a intemperança era forçada a cobrir as defpezas da in-
ftrucção, e o que mais annuvêa e embrutece a intelligencia
a expiar as llias malfeitorias, contribuindo na maior parte a
promover os progreíTos da razão.
CAPITULO XV
AS REFORMAS SOCIAES E ECONÓMICAS
Durante o primeiro decennio do feu longo minifterio, a
acção governativa de Sebaftião de Carvalho tivera de con-
centrar-fe particularmente na peleja tormentofa contra os
jefuitas e os lidalgos. Fora principalmente politica a fua con-
turbada adminiftração. Nos intervallos, que lhe deixava livres
o combate, não fe efquecèra todavia de attender com efficazes
providencias ao remédio de muitas neceffidades económicas.
E porém depois de mais abonançada a atmofphera focial,
depois que fe não remanfados, ao menos comprimidos cftão
os ódios e fedições das clalles confervadoras e privilegiadas
quando a paz celebrada com Hefpanha após a guerra de 1762
o tem mais largamente libertado dos negócios diplomáticos e
das complicações internacionaes, que o enérgico legillador
acha lazer e occafião para expandir em varias direcções o
feu efpirito audaz e innovador. E então que elle pôde com-
pletar o que nos primeiros annos tinha apenas efboçado para
-4^
eis
J97_
levantar de feu longo abatimento e lethargia a velha focieda-
de portugLieza. E então que a lua vifáo intelledual compre-
hende e abraça no feu ampliíTimo horizonte o profpecio da
nação, a que prefide, e tafteia as luas mais urgentes preci-
fões, e traça á intelligencia e ao trabalho nacional a norma
e o caminho, por onde tem de dirigir-fe para conquiftar em
poucos annos os proventos e as glorias da moderna civili-
fação.
Antes de tudo fere a vifta do legiflador a deplorável con-
dição moral da fociedade. E para elle a egualdade o prin-
cipio fundamental, a que fubordina as fuás grandiofas refor-
mações. Gerindo os intereífes de uma velha monarchia, que
julga fer efteio eífencial uma ordem patrícia e uma claífe
equeftre, na honra e luzimento fuperiores á gente popular,
não c dado ao defabufado reformador o nivellar abfolutamen-
te perante a lei e a omnipotência do foberano todos os vaífal-
los, confundindo-os por egual na mefma categoria e fujei-
ção. Até onde porém lh'o podem confentir as abuloes e pre-
conceitos da realeza abfoluta, leva Sebaflião de Carvalho o
feu firmiíTmio propofito de approximar as claífes antagoniflas,
rebaixando as eminentes e exalçando as inferiores; cerceando
a umas os feus hereditários privilégios e a fua influencia no
governo; dilatando a outras os feus foros e franquezas e a fua
indirecta participação na economia focial; demudando em
pura e honorifica nobreza palatina a que era orgulhofa aris-
tocracia na accepção politica do termo; convertendo em
nobreza civil e claífe media a plebe, que mais fe diflinguia
por lou^'avel e fruftuofa applicação ao eftudo e ao trabalho.
A repreífão violenta executada contra os membros da
altiva e fediciofa fidalguia, uns ignominiofamente juftiçados
nos patíbulos, fem refpeito a feus antigos privilégios, como fe
foram gente viliíTima e foez, os outros encerrados nas prifões
ou dcfterrados aos logares ultramarinos, fora o primeiro paífo
4í|s
-* — ■ -<o>-§-
398
n'efte empenho decifivo de abater e humilhar o orgulhofo
patriciado. A lei veiu depois completar o que a juftiça come-
çara. Continuou o legiflador a obra do juiz e do algoz.
Nenhum grémio de magnates pôde fer mais que uma
fombra de vaidades eftereis e decrépitas, fe vivendo Ibmente
do luftre dos brazões e do fulgor das genealogias, não tem
no folo fincadas folidamente as fuás raizes. E a terra o funda-
mento das poderofas ariftocracias, mas a terra quafi inteira
repartida em património hereditário entre os feus membros,
atada perpetuamente pelos vínculos feudaes ou ao menos
continuada nas eftirpes pela inítituição do fideicommiíTo e do
.morgado. Sem efte predicado eíTencial a fidalguia é apenas
uma tradição, não um poder; um hiítorico monumento, não
uma força viva focial. A nobreza desfrudava n'quelle tempo
com a egreja a maior parte do território. Os morgados per-
petuavam nas famílias a terra hereditária e avoenga. O mo-
narcha repartia pelos próceres os bens da coroa, que apelar
das prudentes difpofições da lei mental, e de ler em principio
vitalícia a conceíTão, ficavam durante longas gerações na
mefma familia ariftocratica. Uma porção confideravel dos
bens, que tinham a natureza de ecclefiafticos, as commendas,
muitas d'ellas rendofiffimas, das ordens militares de Chriífo,
de Aviz, de Santiago, diftribuia-as o foberano, como grão
meífre e governador de todas ellas, pelos membros da no-
breza, confirmando-as habitualmente aos reprefentantes e
herdeiros dos antigos commendadores.
Para deftruir de vez a nobreza como elemento politico
era forçofo antes de tudo converter em allodial a terra vin-
culada, fupprimir as ordens militares, como anachronicas in-
ftituiçÕes, fem nenhuma utilidade para a egreja e o eífado,
encorporar no dominio da nação os bens da coroa, lauta-
mente repartidos por um ociofo e efteril patriciado. Somente,
porém, a revolução poderia operar no futuro eftes milagres.
\ f IP
.|-A- .H^
eM eis
Mas o miniítro previdente, íe não lograva relblver practi-
camente eftes graves problemas fociaes, deixava comtudo
incilivamente confignada em notáveis monumentos legillati-
vos a fua reprovação ás excepcionaes e abufivas inftituições
em que ainda fe firmava o derradeiro poderio da nobreza.
Na lei reformadora dos morgados apparecem luminolamente
fubftanciadas as razões, que os mais revolucionários inno-
vadores poderiam invocar para fubmetter a propriedade pre-
dial a um regimen uniforme. Os morgados fão na phrale
do legiflador «uma rigorofa amortilação de bens, contraria
ao ufo honefto do dominio . . . á juftiça e á egualdade . . .
á multiplicação das famílias. . . ao giro do commercio. . .
á utilidade publica ... e ao bem commum dos povos » . « Os
princípios, continua o eftadifta, fomente fazem admiíTiveis
os morgados dentro de certos limites, didados (contra a re-
gra) pela razão da utilidade publica da monarchia'». «O au-
gmento e confervação das cafas nobres, efcreve em outra
lei o judiciofo reformador, fão as caufas únicas por que fe
tem permittido os vínculos, aliás prejudiciaes ao erário régio
e ao commercio dos paJ)allos^y>. Ahi temos o miniftro profes-
fando com vinte annos de antecedência as idéas proclama-
das pela grande Revolução. A razão, o direito, a juftiça, a
utilidade condemnam fem piedade a amortifação da terra,
commum património e nutrimento. Somente a funefta con-
temporifação com os preconceitos da monarchia e com as
archaicas tradições obriga o legiflador a tentar uma reforma
incompleta, a qual todavia reftitue alguma parte das glebas
portuguezas á fua primitiva allodialidade.
Ainda não confentia a occafião que de vez fe tiralTcm á
nobreza os copiofos bens da coroa, com que fe opulentavam
' Carta de lei de 3 de agolto de 1770, no preambulo.
2 Lei de g de feptembro de 1769, no preambulo.
si»
400
as famílias. Era porém exequível o fubordínar o ufufrucío
a claufulas prudentes, examinando rigorofamente os títulos
das antigas conceíTões, e fubmettendo-as á regia confirmação.
Inftituiu-fe para eíTe fim a junta das Confirmações ge-
raes, fob a prefidencia do arcebifpo de Évora, porventura o
mais fi.ibmilTo parcial do miniítro omnipotente'. Defde an-
tigos tempos andavam as faboarias, o monopólio exclufivo
do fabão, repartido em todo o território portuguez por varias
famílias de fidalgos, em manifefto damno popular e jaflura
do thelburo. A lei encorpora na coroa o monopólio, fazendo
ao menos reverter em beneficio do erário, o que d'antes fe
acrefcentava com violentas extorfões ás propinas da nobreza.
Havia em Portugal introduzido o coftume e auflorifa-
do o egoifmo que a immenfa maioria dos empregos e offi-
cios eftiveíTe vinculada nas famílias e n'ellas fe tranfmittiíTe
como património inconteftavel e por fi-icceíTão hereditária.
Não havia lei que affim converteffe em propriedade vincu-
lada o que era eíTencialmente tranfitorio e inftituido não em
proveito individual, fenão em ferviço da republica. Efta in-
verfão de todos os princípios mais vulgares do bom gover-
no tinha por feu titulo e fundamento o direito confiictiidi-
nario. Decepou o legiílador mais efte abulo, principalmente
proveitofo á nobreza fecundaria, ordenando que os offi^cios
públicos foffem meramente peíToaes e vitalícios. São notáveis
as expreíTões, com que Sebaflião de Carvalho firma os prin-
cípios da boa adminiftração, e reprova o abufo de fubordi-
nar a caufa publica ao intereffe parficular. «Nos empregos,
efcreve o eftadifta, fe elege fomente a perfonaliffima indus-
tria e aptidão das peífoas, que os hão de fervir», porque fão
apor fua natureza exercício e minifterio perfonaliffimo com
repugnância intrinfeca a ferem trafmittidos», porque «fão
I Carta di; lei de 6 de maio de 17Õ9 e alvará da mefma data.
401
commiffão precária e dependente da boa ou má condiiíla
do official'.»
Não efquece ao omnipotente legiflador o combater as lar-
gas fumptuofidades, com que a nobreza pretendia egualar-
fe em feu efplendor com a majeftade. Prohibe á fidalguia os
cafamentos públicos, celebrados com pompa extraordinária e
vaidofa prodigalidade \ Para cohibir o luxo exaggerado, com
que os nobres mais opulentos oftentavam em cufloías car-
ruagens a fua riqueza, decreta que ninguém polTa em Lifboa
e duas léguas em redor tranlportar-le em viatura conduzida
por mais de uma parelha. E exceptuando da rigorofa prohi-
bição os cardeaes e os prelados, não fe efquece de advertir-
Ihes que as fumptuofas e mundanas oftentações não quadram
á evangélica pobreza e á humildade exemplar dos tempos
apoftolicos. Porque «fera, efcreve o legiflador, muito mais con-
forme ao feu eftado que dêem antes exemplos de moderação
do que de faufto^».
A efta categoria de difpofições prohibitivas, que em parte
fe filiam no erróneo principio fundamental das leis fumptua-
rias, — a averfão ao luxo e magnificência no domeftico vi-
ver,— e em parte fe encaminham a cercear as principefcas
apparencias do infolente patriciado, pertencem as prefcripções,
com que o miniftro regula a mefa dos generaes, que eram
todos com raras excepções os mais altos e poderofos titu-
lares, prohibindo feveramente quanto podeífe menofcabar e
oífender a fimpleza e a modeftia da vida militara
Emquanto a mão vigorofa de Carvalho vae abatendo a
1 Alvará de 23 de novembro de 1770.
2 Lei de 17 de agofto de 1761.
3 Alvará de 2 de abril de 1762.
4 Alvará de 2 de abril de 1762. Prohibe em campanha as baixellas de pra-
ta, com a única excepção da que feja eflriclamente indirpcnfavel, e profcrcve
da mefa dos generaes a porcelana da China.
eis
4SÍ3
-^ -^Í^
402
nobreza rebelde e ambiciola, ora pelo cadafalíb e pelo exí-
lio, ora pelo poder enérgico das leis, o fcu empenho mais
vehemente é o de abolir na condição civil e no eftado das
peíToas as mais iniquas deiegualdades fociaes. A fua legiíla-
ção é copiofa de providencias humaniffimas para confagrar
a liberdade, não a liberdade politica, de que na lua nionar-
chica idolatria é fervente contradidor, mas a liberdade civil
e individual. Na lua luminofa comprehenfão da vida civili-
fada toda a fervidão é um opprobrio da monarchia, e uma
defhonra da humanidade. O rei é o pae, abfoluto e irres-
ponfavel, mas não pôde ler o fenhor de uma turba de efcra-
vos embrutecidos e aviltados. N'eftes princípios generoíbs fe
infpira o legillador para decretar, defde os primeiros annos
de feu governo, a liberdade aos indios do Grão-Pará e Ma-
ranhão', e para ampliar três annos depois efta humana pro-
videncia a todos os indios do Brazil-. É fob as mefmas
influencias, que declara fem infâmia as peíToas europêas,
que nos domínios da America elegeíTem os feus cônjuges
nas tribus indianas\ Quando a eícravidão nas raças africa-
nas ainda perfeverava largamente confagrada pela crença
de que os negros eram pouco fuperiores a brutos animaes,
decreta o magnânimo eftadifta que todo o efcravo feja livre
apenas pile terra da metrópole, como fe foíTe contra a pátria
um nefando facrilegio que um homem, luftrando pela pri-
meira vez as fuás plagas, não viíTe defde logo quebrados os
grilhões''. Não contente o legiflador, com que não vieíTem
de fora do reino novos efcravos, indigna-o que em terra
livre fe vá indefinidamente perpetuando a fervidão pela des-
1 Lei de 6 de junho de 1755.
2 Alvará de 8 de maio iy58.
3 Lei de 4 de abril de 1755.
4 Alvará de 19 de leptembro de 1761.
40-)
cendencia dos efcravos africanos exillentcs então cm Portu-
gal. Não permittiam os preconceitos inveterados, e os inte-
reíTes egoiftas que por um rafgo de penna decretaíTe o re-
formador a liberdade para todos os efcravos numerofos,
que viviam no continente portuguez. Mas deu o eftadifta
um talho vigorofo na defhUmana e brutal inftituição. A lei
eftatuiu que foíTem livres todos os que d'ali em diante nas-
ceíTem de mães efcravas'. Mas não é fomente a liberdade,
que o generofo e humano legillador concede á trifte raça
condemnada pela avareza mercantil dos portuguezes nave-
gadores. A lei não quer que do eítado fervil e opprobriofo
paífem pautadamente por feus graus á condição de ingenui-
dade. Ficam livres, como os brancos de raça mais illuftre,
fem que lhes defhonre a legiflação a incompleta liberdade
com o titulo aífrontofo de libertos, «que a fuperftição dos
romanos, diz a lei, eflabeleceu nos feus coífumes e que a
união chriflan e a fociedade civil faz hoje intolerável » . Eíta
condição intermediaria ao animal, á res, e ao homem, á
peffoa, afigura-fe ao illuminado efpirito de Carvalho, como
uma affronta ao chriítianifmo e aos axiomas fociaes. O ne-
gro, oriundo das terras africanas, é para o eftadifla não um
animado inítrumento d^ trabalho, fenão um ente racional,
difpondo livremente das fuás faculdades. Mas não fe con-
tenta o legillador com trahfmudar em homem o c]ue a du-
reza e a cubica converteram em pouco mais que vilifllma
alimária. Os negros não ficam apenas fendo homens, fão
também ao mefmo tempo cidadãos. A lei declara-os hábeis
para todos os ofiicios, honras, dignidades, fem a nota infa-
mante de libertos. Os efcravos já nafcidos de concubinatos
ou de legítimos conforcios, ordenava a lei que permaneces-
fem toda a vida na fervidáo, fe unicamente as mães e avós
' Alvará com força de lei cie i() de janeiro de lyyB.
(|3
eis
4eU
-<i»-§-
*
404
houveíTem fido efcravas. Se a efcravidão, porém, fe deri-
vaffe das hifavós, ficariam defde logo favorecidos com a
plena liberdade. Attentemos nas circumftancias d'aquelle
tempo, em que a lei foi promulgada, no egoifmo dominante
das claíles opulentas, nos hereditários preconceitos de raça e
de conquifta, na efcaíTa illuftração dos entendimentos, nas
confufas noções do direito e da juftiça, e admiremos na
providencia humana e chriífianifllma o mais gloriolb mo-
numento na fecunda adminilfração do grande reformador.
Refpiram defafogados n'ell:a lei os principies luminofos pro-
feíTados por Montefquieu e o abbade Raynal, cujas doutrinas
meditara certamente o profundo legiflador. O amor da hu-
manidade, na fua mais nobre e generofa comprehenfão, efte
elevado fentimento, que principia a ter a fua eloquentifQma
expreífão no xviii feculo, nos efcriptos dos grandes penfado-
res, de Rouffeau, de Montefquieu, de Voltaire e de Alem-
bert e nas pracficas dos foberanos iliuminados, do imperador
Jofé II, do philofophico Frederico, e do benemérito Leopoldo
de Tofcana, infpira o animo do miniífro portuguez e adoça
as nativas afperezas do feu altivo e indomável coração. Pôde
fer duro, tremendo, implacável com o homem individual,
quando o tem na frente por antagoniífa e no caminho por
obítaculo ás luas emprezas grandiofas ou ás fuás próprias
ambições; mas o homem coUeítivo defperta na alma do eífa-
difta os mais vivos fentimentos de fincera fympathia. Nin-
guém foi mais que Sebalhão de Carvalho zelador efíicacis-
fimo da humana dignidade, em tudo quanto pôde conciliar-fe
com a adoração da monarchia. Nas fuás leis, que têem por
fim apagar as odiofas diftincções de raças, de famílias e de
eftados fociaes, efquecemos o idolatra da realeza, para fo-
mente commemorar o philofopho legiflador. A philofophia
do feculo xviii, apefar das oftenfivas prohibições da cenfura
official, como um elemento incoercível, apparece infinuando-
elí ela
^%-<^ -v-§^
1 4o5
le em tudo quanto é concernente ás velhas abufões e ás ini-
quidades Ibciaes, nos monumentos legiflativos do infigne
reformador.
Offendem-lhe o fentimento e o conceito, que formava
da humana dignidade, as odiofas diliincções que o fanatis-
mo, defhonrando a religião, introduzira na fociedade portu-
gueza. Não pôde o animo íbífrer-lhe que entre homens da
melma pátria e egual eftirpe uns lejam havidos na conta de
puros e immaculados na afcendencia e geração, e outros
qualificados com ignominiofas defignações. Um dos mais
intoleráveis preconceitos, e mais fundamente enraizados na
vulgar opinião, era aquelle, fegundo o qual fe eftabelecêra
e perpetuara em Portugal a diíferença entre chriífãos velhos
e chriihíos novos, entre gentes puritanas, cujo fangue não
tinha mefcla de mouro, de gentio, ou de judeu, c familias
impuras e fufpeitas, cuja profapia fe entroncava em origens
infedas de judaifmo. Bem podiam as aguas baptifmaes ter
banhado por muitas gerações os filhos de uma familia. Se o
tronco era um hebreu convertido ao chriftianilmo, a abufão
commum e popular tinha maior poder que o facramento, e
os que a egreja havia por feus filhos eram na fociedade vi-
lipendiados como efpurios, como ovelhas intrufas no aprifco.
Era difficil ludar logo de frente com o funeífo preconceito,
roborado pelo tempo e pelo efcuro fanatifmo nacional. Para
expurgar o corpo focial de tão ruim enfermidade, era neces-
fario um braço vigorofo, e um efpirito elevado acima das
mais torvas abufões. Começa o legiflador abolindo os roes
das fintas dos chriftãos novos', reprovando, caífando c an-
nuUando o abufo, com que fe impunham aos chriftãos, des-
cendentes de judeus, encargos fmgulares, que não cabiam aos
chamados chrilfãos-velhos; comminando finalmente aos que
Alvará de 2 de maio de 1768.
4eU
^ ■ -cÇ)^
400
com tal pretexto infamalTem a outrem de palavra ou por es-
cripto, as penas deftinadas aos réus de libello famolb. Mais
adiante e com maior audácia prolegue o legiflador três annos
depois. Os defcendentes das peíToas condemnadas na inquifi-
ção pelo que era ainda crime de Judailmo, ficavam perpetua-
mente infamados e inhabeis. Não podia conceber-fe mais
iniqua, irracional inftituição. Baftava que a maledicência e a
calumnia divulgaíTem que uma peflba procedia de algum
penitenciado por judaizante, para que a inhabilidade abfoluta
ou a infamante fufpeição caiíTe inexorável Ibbre o trifle, con-
demnado a expiar depois de nurnerofas gerações o fuppofto
delido dos feus maiores. Um paiz, onde fegundo infi-ifpeitas
autoridades, entre ellas Alexandre de Gufmão, a grande
maioria dos habitantes defcendia de judeus, fem exceptuar
a própria dynaftia de Bragança, a injuriofa diftincção entre
os chriftãos de raça pura e os de raça infecta, era nas mãos
do obfcuro fanatifmo ou da malquerença peflbal um terrivel
inftrumento de aífronta e de vingança, como na epocha do ter-
ror revolucionário, um meio funeftiíTimo de macular peíToas
inoífenllvas e refpeitaveis com a tacha de fiifpeitas e indicadas
á publica animadveríao. Contra efte abufo efcandalolb arre-
mette refoluto o legiflador'. Com o empenho de filiar nas
atrocidades jefuiticas todas as viciofas inftituiçúes e todas as
formas de fanatifmo e perverfão da íbciedade, nas luas rela-
ções civis ou religiofas, attribue Sebaftião de Carvalho aos
jefuitas o haverem introduzido em Portugal a diftincção ei>
tre os chriftãos, com o fim de tornar odiofo e impopular o
prior do Crato, como próximo defcendente de judeus. A dou-
trina da pureza e impureza c tratada pelo eftadifta nos ter-
mos de defprezo que merecia. Para elle, apelar de extranho
aos eftudos phyfiologicos, o fangue humano tem fernprc e em
> Alvará de 24 de janeiro de 1771.
ela
e|j
407
toda a parte a melma compofiçáo. Reprova em termos íeve-
rifllmos a perigofa fuperftição, e congloba fob a forma de um
aphorilmo phyfiologico, o principio gencrolb da egualdade
perante a geração e o nafcimento, « como le podeíTe haver
langue humano, que foíTe originalmente impuro e de outra
diverfa natureza » . Decreta o legiflador que as peíToas, de
quem le não provaíTe o defcenderem de outras condemnadas
por apoftafia, fe não podeíTem confiderar inhabeis. As provas
deveriam ler irrefragaveis, firmadas em documentos públicos
authenticos, fuperiores á minima fufpeição. Não parou porém
o eftadifta neffa incompleta fatisfação á doutrina da egual-
dade civil entre os chriftãos de diverfas procedências. Uma
nova lei, mais radical e peremptória do que as antecedentes
põe termo por uma vez á iniqua e opprobriofa diítincção'.
E efte um dos mais infignes monumentos legiflativos, a mais
vigorofa proteítação contra o preconceito nacional, e pfeu-
do chriítão que fazia dos judeus uma raça maldita e merece-
dora da mais impiedofa perfeguição. Aproveita o intradavel
contendor da Companhia a bem azada occafião para explanar
no preambulo da lei a hilforia d'efte perriicioíb abufo e fana-
tilmo. São ainda, no conceito do eíl:adifta, os jefuitas os mali-
ciofos introdutores da fubverfiva diftincção com o intento de
excluírem do throno portuguez o prior do Crato. Rememora
o legiflador a protecção e o favor, com que durante a edade
média os judeus foram tradados pelos reis de Portugal. Traz
á memoria a D. David, grande privado de el-rei D. Fernando
e a D. Judas, leu thefoureiro; a meftre Moyfés, phyíico de D.
João I e tão feu favorecido que a fuás inítancias lhe alcançou
do papa Bonifácio IX uma bulia de religiofa tolerância para
que os judeus não foliem violentados a receber as aguas
baptifmaes, e por uma provifão de 17 de julho de 1392 lhes
' Ciirta de lei, conftituição geral c cdiclo perpetuo de 23 de maio de 1773.
ela tii
408
mandou guardar feus invioláveis privilégios. Ainda o próprio
D. Manuel, o auftor da perfeguição contra os hebreus, o que
os forçou indignamente a fubmetterem-fe pela fua lei de i de
março de iSoy, ordenava que os novamente convertidos á
fé catholica foffem cm tudo havidos, favorecidos c tratados
como próprios chriftãos velhos, fem que d'elles em coufa
alguma foíTem diftindos e apartados. O fanático e fombrio
D. João III, o idolatra da Inquifição e o fervo da Companhia,
confirmou pela fua lei de 16 de dezembro de i 524 as fenfatas
prefcripções do feu antecelfor. Depois de ter feito o elogio
dos judeus, ainda mefmo perfiftentes na fua fé, Sebaflião
de Carvalho ordena que novamente fiquem em vigor as leis
de D. Manuel e D. João III. Declara abolidos os diplomas
legiílativos em contrario. Impõe graviíTimas penas aos que
oufarem de palavra ou por cfcripto renovar a injuriofa dis-
tincção. Aos clérigos commina, como caftigo, a perpetua des-
naturalifação e extermínio ou relegação para fora de Portu-
gal; aos nobres, a perda da nobreza e dos oííicios e bens da
coroa e das ordens militares; aos peões a pena dos açoites e
o degredo perpetuo para Angola.
Alfombra na verdade que junto de um monarcha de es-
treito entendimento, no meio de uma rude e fuperfticiofa po-
voação, na prefença do Santo Officio, cujas fogueiras tinham
não muitos annos antes ardido inexoráveis contra miferos
judeus, no paiz, onde, após a Hefpanha, era mais bronco o
fanatifmo e o preconceito mais fundo e radicado, um minis-
tro oufaífe defender e fanccionar com o rigor da lei, que não
era o fangue d'aquella raça iniquamente condemnada e per-
feguida menos preclaro que o langue dos chriftãos. E mais
fobe de ponto a admiração, quando vemos na que chamam
liberal Inglaterra os judeus fó na fegunda metade d'efte fe-
culo admittidos á egualdade com os feus concidadãos, quando
aíliftimos agora mefmo ás fcenas de felvatica e brutal into-
409
lerancia, com que na PruíTia, na terra claíTica da razão e da
fciencia, fe levanta a obcecada opinião ameaçando renovar,
fe lhe foíTe dado, os dias calamitofos do catholico Fernando
e D. Manuel. Nada no mundo exifte mais tenaz e refirtente
que os preconceitos fundados nas diílincções de raça e de
familia. Tanto mais é portanto de louvar a energia, com que
Sehaftião de Carvalho contra elles arremette refoluto á lua
inteira extirpação. Mas ainda n'efte ponto o legiflador não
fabe eximir-fe inteiramente aos influxos e arrebatamentos da
paixão. Os jefuitas fão para elle os caufadores d'eftas perni-
ciofas qualificações, que dividiram os portuguezes em chris-
tãos de velha raça e de nova geração. Mas a verdade não
confente o efquecer que na Deducção chronologica um dos
capitulos de mais grave accufação contra a ordem de Jefus
é o de ter por ódio ao Santo Officio empenhado os feus es-
forços no tempo de el-rei D. Pedro II em reítituir a Portu-
gal, com o livre exercício da fua religião, os judeus, que a
feroz intolerância trazia foragidos em paizes extrangeiros ou
vivendo mal convertidos cm terra portugueza, receando a
cada inftante as fevicias da Inquifição".
Entre o fevero legiflador e o chronifta minucioib dos
grandes attentados jefuiticos, entre Sebaftião de Carvalho,
diéfando a lei, e Jofé de Seabra, efcrevendo fob os feus
aulpicios e porventura muitas vezes fob feu diflado, a fa-
mofa Deducção, é manifefta, mas em certa maneira defcul-
pavel, a contradicção porque ainda pendia no Vaticano in-
decifa e talvez periclitante a total abolição da Companhia.
A efte empenho de extirpar nas leis c nos coflumes a dif-
ferença focial entre os velhos chriflãos e os chriftãos novos,
fe prende a providencia decretada para cohibir a arrogante
prctenção, com que uma parte da nobreza fe j adiava de ter
I Deducção chronologica e analytica, tom. i, parte 11, 5 702 c fegg.
-0^
-* i-cj)^
410
o fangue fem mefcla de gente de nação, e acoimava por in-
fedas de judailmo a muitas das familias mais illuftres, evi-
tando com ellas alliar-fe por vincules matrimoniaes. Tinham
os fidalgos inftituida na egreja parochial de Santa Engracia
uma confraria do SantiíTimo, em que, fegundo o compro-
miíTo e o coftume, fomente podia fer admittido quem foíTe
chrijtão velho, fem nunca fe entender o contrario. O pertencer
áquella irmandade era pois um teílemunho e um fignal de
puriíTuna extracção, immaculada de toda aícendencia não
chriftan. Chamavam-fe os confrades por excellencia purita-
nos. Os demais, embora de berço mais infigne, eram des-
denhados como de hebraica genealogia. As familias puri-
tanas entre fi fe entrelaçavam em conforcios, com inteira
exclufão das que, apefar da nobreza efclarecida, tinham a
nódoa indelével de procederem de judeu ou raça impura.
AíTmi era que poucas familias da mais foberba e poderofa
fidalguia, as dos marquezes de Angeja, de Valença, dos con-
des de Villar Maior, do Monteiro mór do reino, e outras
mais formavam entre fi como uma cerrada congregação,
fora da qual as eítirpes mais nobres na apparencia andavam
apodadas com o nome injuriofo de chriftãos novos. Contra
efta arrogância ariftocratica irrompe o legiílador para a fub-
metter á lei commum'. Sebaftião de Carvalho, no pream-
bulo da lua providencia, faz dizer ao rei que «elle é a úni-
ca fonte, de que podem manar as honras, as graduações, e
as qualificações civis». Declara prohibidos os matrimónios
entre as familias puritanas, forçando-as a contrahir as fuás
núpcias com as familias até ali por ellas confideradas como
infedas. Condcmna e fujcita a graves penas os que, delatten-
dendo as habilitações de genere, feitas perante a inquiíição e
a mela da confciencia e ordens, perfiítam em haver por im-
■ Alvará de 5 de outubro de 1768.
411
puros e íulpeitos de hebraifmo os que vivam expurgados de
toda a macula judaica. A fevera providencia foi intimada aos
chefes das familias puritanas, que por termos aíTignados na
fecretaria de eftado, fe obrigaram a cumprir o que lhes era
determinado.
Tal era o íirmiíhmo propofito, com que o delpreoccu-
pado legillador fe empenhava em erigir a humana dignida-
de como o grande principio focial. O feu lemma parece ter
fido abater e humilhar os foberbos e os grandes, e levantar
e engrandecer os pequenos e humildes. Não lhe confentiam
porém os preconceitos eífenciaes á monarchia abfoluta, e
ainda mefmo ás modernas realezas parlamentares, paííar de
vez o nivel da egualdade fobre todas as categorias fociaes.
A nobreza era, fegundo as idéas d'aquelle tempo, e ainda
hoje grotefcamente parodiada é nas modernas monarchias,
reputada o alicerce e o ornamento dos thronos hereditários.
O movimento democrático não podia pois eflfeituar-fe pela
egualdade abfoluta dos eftados e condições perante a lei. O
fó caminho aberto ao engrandecimento das claíTes trabalha-
doras e populares, cifrava-fe em as approximar das ordens
mais elevadas, conferindo-lhes o privilegio da nobreza. O
trabalho, o mérito, o ferviço fão a medida, por que fe aferem
as graças e as mercês concedidas aos homens de berço obs-
curo e plebeu. E affim que ao fundar a companhia do Grão-
Pará declara o legifíador que «o commercio não é mccha-
nico, antes officio nobre ' » . E fundado n'eif e generofo pos-
tulado, dá a nobreza ao provedor e aos deputados d'aquella
fociedade mercantil, em fua primeira nomeação. A mefma
dignidade civil é outorgada aos diredores, e aos próprios cai-
xeiros e officiaes da companhia do Alto Douro " e aos que
' Alvará de 7 de junho de ijSS.
- Alvará de 10 de feptcmbro de 1756.
(Is
412
poíTuam dez acções ' da companhia de Pernambuco e Para-
hyba-.
Não lhe merecem menos confideração os homens, que
cuhivam c promovem as fciencias e as lettras n'um paiz,
onde os nobres de naícimento eftavam, com algumas hon-
rofas excepções, habituados a defprezar quem dos godos não
derivava a fua profapia. E certamente para louvar que o pre-
vidente legiílador, com o zelo de fomentar o enfmo e a illus-
tração, declaraffe nobres os públicos profeíTores de linguas e
humanidades, cujas cadeiras dilTeminava em grande numero
por toda a extenfão de PortugaF.
A conftituição da propriedade predial traçava n'aquelle
tempo uma profunda feparação entre as ordens da nobreza
e as claíTes inferiores da população. A terra allodial era 'em
geral plebeia, a terra vinculada era, quafi geralmente, um
fignal de raça illuftre. A lei, pela qual Seballião de Carvalho
regulou o direito vincular, ampliou a faculdade de inftituir
novos morgados aos homens, que fem o lullre da nobreza
hereditária foíTem pela fua benemerência nas armas, nas let-
tras, nas fciencias, na agricultura, no commercio e nas artes
liberaes, como que os efclarecidos fundadores da fua própria
dynaftia. Foi aílun que ao lado das hiftoricas eftirpes de in-
fignes avoengos e centenária fidalguia fe levantaram, com
ellas hombreando em influencia e excedendo-as em riqueza,
as famílias dos que nos groífos tratos mercantis e fob os aus-
picies do miniftro omnipotente, lançaram os fundamentos á
moderna e alta burguezia.
O mefmo efpirito de animar e proteger o trabalho pro-
dudor e de exalçar ao menos uma parte da commum po-
' Alvará de 24 de novembro de 1764.
2 Alvará de i3 de agoílo de lySg.
3 Alvará de 28 de junho de 1759, creando os eíludos fecundarios.
c|3
41 j
Aoação ás preeminências Ibciaes, egualando-a com a nobre-
za, apparece dictando ao legiflador as exempções, com que
na lei do recrutamento favorece as clalTes que mais úteis e
meritórias lhe parecem. É laftima que Sebaftião de Carva-
lho não podeffe completar a fua empreza generofa de res-
tituir ao homem Ibcial as plenas immunidades no que era
concernente á fua condição civil, abolindo a ignominiofa dis-
tincção, com que a ordenação do livro v accommodava as
penas aos delidos, não fomente fegundo a fua graveza e enor-
midade, fenão também difcriminando no fangue e no berço
dos culpados a fidalguia ou a vileza da progénie. Não ti-
nham, porém, chegado n'aquelle tempo á inteira maturidade
os princípios philofophicos do moderno direito penal, nem
efta forma da egualdade, a mais racional e preciofa, a egual-
dade nos prémios e nos caftigos, le tinha ainda revelado aos
impulfos da poderofa Revolução. A nobreza, fe não era já
como d'antes um poder e uma força focial, era ainda uma
d'eftas renitentes e vigorofas tradições, perante as quaes es-
tremece nas abfolutas monarchias o braço do mais eftrenuo
reformador.
Se a liberdade e a egualdade entre os membros de uma
nação conflituem a fecunda condição do feu aperfeiçoamento
civil e material, a maneira, por que a lei define as relações
entre a terra e o feu culto habitador, communica á fociedade
a fua feição efpecial. A terra é como o pedeftal da huma-
nidade. Qual a faz o coíhime, a conquifla, a legiflação, tal é
também a conftituição moral e económica dos povos. Como
fundo commum, d'onde procede a fatisfação das necelTida-
des orgânicas e phyficas, a terra é por fua natureza elfencial-
mente indivifivel e incapaz de fer perpetuamente apropria-
da. A fua divifão e propriedade é um effeito único da lei.
A terra, como o Oceano e a athmofphera, tem por origi-
nário attributo a communidade. A lei reparte-a e a vincula
eis
cia
414
a um homem, a uma corporação, a uma família, ao fabor
dos tempos, das occafiões, das circumftancias, modificando
a cada paíTo o elemento hiftorico, que fundou a propriedade,
pelo elemento íbcial, que determina a fua nova maneira de
exiftir. A terra efcrava, enfeudada, inalienável, caraíterila
as epochas de predomínio das claíTes livres e privilegiadas
fohre a plebe fervil c indigente, a tyrannia de uma efcaífa
minoria de mundanos bemaventurados contra a immenla
maioria dos hilotas fociaes. Na terra agrilhoada fó pôde ílib-
fiífir um povo de fervos defherdados. A liberdade fó pôde
germinar e fiorefcer no folo emancipado de todas as peias
feudaes ou vinculares. A completa allodialidade é como que
a poíTivel retrogradação ao communifmo primordial. N'es-
te regimen, onde as glebas fe tranfmittem de uns a outros
n'uma perpetua circulação, onde o proletário de hoje lerá
o p»roprietario de amanhã, e o opulento de hontem é agora
o defvalicio, todos fão, ao menos potencialmente, poíTuidores
da lua geira. A terra então é como um immenlb amphithea-
tro, onde os c[ue faíram, gofando parte do efpedaculo, dei-
xam o logar vallo aos que mais tarde vierem aíTiftir á fes-
tiva íblemnidade. A terra não é commum, porque todos a
polTuam indivifa ao mefmo paíTo, mas é commum porque
todos têem no trabalho e na economia abertos e patentes
os caminhos, que conduzem á ília acquiíição. Novas revo-
luções no inítavel equilíbrio das humanas fociedades, produ-
zindo novos eftados fociaes, exigirão um dia porventura que
a terra aífuma juridicamente noviíBmas feições. A terra fera
então como o foi, como o calor, como a eledricidade, como
a luz, como toda a natureza, que o homem aproveita, domina
e faz fervir aos milagres do trabalho, fem a poífuir nem \m-
cular no feu morgado. Achar-fe-ha talvez uma forma de
communidade, cm que a terra, como a ampliífima officina
da induibia univerfal, concentrando em fi os esforços co-
si»
4' 3
operadores e colledivos de toda a multidão, reparta equitati-
va a cada um o leu quinhão nos frudos da mãe commum.
Emquanto porém le não refolve efte problema diíRcillimo,
— cuja folução leria temerário predizer como impoíTivel, —
a terra allodial é a condição impreícriptivel das livres e civi-
liladas povoações.
É efta verdade, que proclamam a cada paíTo as leis de
Sebaftião de Carvalho, relativas á conílituição da proprie-
dade. Na fua theoria Ibcial o principio, a que devem llibor-
dinar-fe todos os interelTes particulares, é unicamente a caiifa
publica'. Na immobilidade e amortifação da terra tinha fido
a egreja durante largos leculos a principal collaboradora. Era
pois contra o abufo profano e mundanal da propriedade ec-
clefiaftica, que o legiílador havia de empregar a repreffão
enérgica das leis. Fora fempre defde os primeiros tempos
da monarchia follícho o governo fecular em cohibir a cres-
cente amortifação exercida pela egreja. A ordenação philip-
pina e antes d'ella a manuelina e a aftonlina, prohibiam que
os mofteiros, as egrejas, os prelados e outras peíToas eccle-
fiafticas podeíTem comprar ou poíTuir bens de raiz nas de-
marcações dos reguengos^ ou os adquiriíTem n'outra parte,
fem expreffa licença do foberano, nem os havidos a titulo
gratuito os houveíTem de confervar em feu poder além do
anno e dial Mantendo os princípios, que haviam inlpirado
n'efte aíTumpto a antiga legiílação de Portugal, o miniflro de
D. Jofé prohibe á egreja o conlblidar com o diredo o domí-
nio útil dos prazos por ella poíTuidos. Declara nullas, abufi-
vas e de nenhum efíeito femclhantes confolidações. Ordena
que de novo fejam emphyteuticados dentro de um anno to-
' Lei de q de feptembro de 1769, carta de lei de 3 de agofto de 1770.
2 Ordenação, liv. 11, tit. 16.
3 Ordenação, liv. 11, tit. 18.
4e^
416
dos os prédios que defde 1 6 1 1 ' eftejam abufivamente confoli-
dados. Não era ainda chegada a occafião de proclamar intei-
ramente allodial toda a terra immobilifada pela egreja. Mas
o beneficio da emphyteufe vinha em certa maneira fi^ibftituir
as vantagens da completa allodialidade e abrir as glebas á
induítria das claíTes trabalhadoras e defherdadas. Uma nova
providencia eftatue o procelTo, por que em publico beneficio
fe haveriam de fazer os emprazamentos das terras ecclefias-
ticas\
De todas as leis, porém, que tiveram por efcopo o conter
em limites moderados a fiacceíTiva acquifição dos bens tem-
poraes pelo efi:ado clerical, teve fem duvida a mais politica
fignificação a que poz cobro á infrene faculdade de inftituir
a alma por herdeiras As peflbas alligadas por feus votos ás
ordens religiolas lao por ella declaradas inhabeis para her-
dar; «porque, efcreve o legiflador, a profiíTão extingue os
vínculos do langue.» Levanta-fe o eftadifi:a contra a abufiva
inftituição das capellas, cujos bens eram principalmente con-
fagrados a retribuir as miíTas e os fuffragios por alma do in-
ítituidor. Era tão exaggerado e tão incrível o numero de mis-
fas, que fegundo eftas piedofas fundações fe deviam dizer
durante o anno, que «nem fendo clérigos todos os portu-
guezes, dizia com certo pique de gracejo o legiflador, pode-
riam celebrar a terça parte das que efta^•am ordenadas » . Só
n'uma das mais pequenas provedorias, fe contavam não me-
nos de doze mil capellas, em que havia o encargo pio de
quinhentas mil miífas annuaes. Por efte modo, acrefcentava
o eftadiífa com remoque faceto ou joco-ferio, « chegar-fe-hia
a ferem as almas do outro mundo fenhoras de todos os pre-
1 Carta de lei de 4 de julho de 1768.
2 Alvará de 12 de maio de 1769.
3 Lei de 9 de feptembro de 1769.
elí tis
4'7
dios d'eí1:es reinos » . Em tom mais s^vave accrelcentava o re-
formador: «As propriedades, cafas e fundos de terras, que fo-
ram crcados para a íuhriftencia dos vivos, de nenhum modo
podem pertencer aos defundos». Decreta Sebaítião de Car-
valho que os legados pios em bens de alma nunca excedam
a nona parte dos haveres do teftador, e tenham em todos os
calos por extremo limite mil cruzados. Somente a efta regra
faz excepção para as inilituições que fc encaminhem a íins
benéficos e fociaes.
A lei permittia pois que às mifericordias, aos holpitaes,
aos orphãos, aos expoftos, ás efcolas e íeminarios podelTe o
teífador legar até dois mil cruzados. Todas as difpofições tes-
tamentárias e todas as convenções, em que le eítabelece a al-
ma por herdeira', fáo havidas por nuUas e de nenhum valor.
O legiflador dá por abolidas as capellas, que na Extremadu-
ra não rendeíTem livres dos feus encargos duzentos mil réis,
e as que nas demais províncias não tiveíTem de rendimento
metade d'efla quantia.
Por efte modo uma parte conlideravel da terra vinculada
era já reítituida á fua primitiva allodialidade. As novas pro-
videncias decretadas para firmar em princípios mais racio-
naes e confentaneos á publica utilidade, a velha e anti-demo-
cratica inftituição dos morgados, vieram ainda tornar livre
uma nova porção do território e precaver a futura e progres-
liva amortifação". Se as fictícias conveniências da velha mo-
narchia não andaíTem ainda então urgindo como efteio na-
tural da majeífade a Ibmbra léquerde um patriciado, e como
natural confequencia não eftiveíTem proclamando ler preciía
ao luftre da nobreza e á decorola conlérvação das famílias
privilegiadas a exiífencia dos morgados, por\'entura das pre-
Lei já citada de- y de feptL-mbro du 1769.
Carta de lei de 3 de agoílo de 1770.
ti»
4eL
^<}^
418
miíTas formuladas no preambulo da lei haveria tirado o le-
giflador os rigorofos corollarios, que d'ahi forçofamente deri-
vavam. Não influiria pouco na manifefta contradicção entre
as razões da lei e a fua fentença, o intereffe próprio, com que
o eítadifta Já chegado ás mais altas preeminências da nobreza
titular, fe comprazia na fundação e luzimento de uma eftirpe,
onde o feu nome ficaíTe nobremente perpetuado. Mas fe as
próprias vaidades nobiliárias, defculpaveis n'um homem já
então mais que leptuagenario, fe o preito rendido ás fuppos-
tas exigências da monarchia, a cuja confervação Montefquieu
aíTignára por fundamento eífencial a exiflencia de uma lus-
trofa fidalguia, ainda predominam no animo do miniftro, o
proceífo luminofo feito no preambulo da lei á monrtruofa in-
ítituição e ao odiofo privilegio da primogenitura, amoífram
o economifta e o philofopho em todo o efplendor da lua
illuminada intelligencia, liberta de hereditários preconceitos
fociaes. A perniciofa amortifação da terra é energicamente
denunciada como um attentado á boa economia, ao direito,
á juftiça, á conveniência popular. A lei abolia todos os vin-
cules, que na Extremadura e no Alemtejo não rendeflim
duzentos mil réis, e cem mil nas outras provindas, e os de-
clarava defde logo livres dos encargos. Os vínculos de efcas-
fos rendimentos fó poderiam confervar-fe, quando houveífe
na mefma família muitos d'eftes, que reunidos fatisfizeífem
ao limite minimo fixado. Se a natureza vincular da proprie-
dade não podefle comprovar-fe com expreffa inftituição ou
por fentenças tranfitadas em julgado, a terra feria defde logo
havida por allodial. Era permittido inftituir novos morgados,
precedendo licença regia, e fendo os inífituidores fidalgos e
peíToas de nobreza conhecida ou homens beneméritos por
ferviços eminentes nas diverfas manifelfações da adividade
focial. A permilfão era porém fubordinada a que os bens,
que fe pretendeífem vincular, fendeífem em Lifboa íeis mil
si)
4'9
cruzados, trcs mil na Extremadura e no Alcmtejo, e nas ou-
tras províncias um conto de reis. Ás peíToas, que tiveíTem
aberto paues e defhravado mattos e maninhos, era egual-
mente concedido vincular os terrenos conquiftados para a
cultura. Como para compenfar em publica utilidade a exce-
pção cifrada nos morgados, impunha nos feus redditos o le-
gillador o encargo de um por cento applicado a obras pias.
O principal e grande mérito de Sebaftião de Carvalho
confifte menos talvez nas reformas realiladas que nos prin-
cipies luminofos que anteviu. O miniltro omnividente é me-
nos radical na execução do que revolucionário na doutrina.
E principalmente um audaz e illuminado precurfor. Como
que fubido aos pináculos, d'onde o talento íuperior defcobre
ao longe os tempos do porvir, aponta defde aquellas eminên-
cias os defeitos e as miferias da terra, em que nafceu. E como
um medico, verlado na mais profunda pathologia, formulando
o diagnoliico dos achaques Ibciaes, acudindo por um trata-
mento fymptomatico ás mais perigofas e urgentes manifefta-
ções da enfermidade e legando a mais defafogados therapeu-
tas as dolorolas operações a executar pelo ferro da revolução.
Allim não torna de improvifo allodial a terra amortifada, mas
dá os primeiros golpes nos mais graves abulbs que a tem es-
cravilada, e miniftra nos preâmbulos das leis aos feus mais
bemfadados fucceíTores os argumentos com que proftrar a
caduca inítituição. E era tal a vitalidade nas raizes, com que
os morgados tinham filhado na gleba de Portugal, que pode-
ram refiíliir á torrente innovadora de 1820, ás revolucionarias
didaduras de Moulinho da Silveira e de Aguiar, á democrá-
tica legiflação de PaíTos Manuel, e fó vieram a cair, não fem
grandes contradicções, pela enérgica vontade de parlamen-
tos liberaes, fendo já decorrido quafi um feculo depois da fa-
mofa legiflação do grande reformador.
A terra inteiramente allodial e a egual partilha entre os íi-
fflg eh
-Í-cJh. : : -<H^
420
lhos do proprietário fão a íórma democrática da propriedade
territorial. Se porém efta conrtituição reíponde perfeitamente
ás exigências do direito, da juftiça, da egualdade, não podemos
diíTimular que levando diredamente á extrema divifão dos
antigos latifúndios, ameaçaria conduzir até á leiva ou á molé-
cula, fe outras caufas não cooperaffem para manter aos campos
e ás herdades uma extenfão accommodada ao grangeio mais
perfeito. Eíta momentofa objecção contra o parcellamento
indefinido envolvida naturalmente no problema tão largamen-
te debatido entre os modernos economiftas fobre o confronto
e preferencia da grande e da pequena cultura, não efcapou á
viíta penetrante de Sebaftião de Carvalho, apaixonado e fer-
vorofo cultor da arithmetica politica, fegundo então geralmen-
te fe chamava á fciencia da riqueza. Reprovando em thefe o
direito de teftar e eftatuindo a partilha egual entre os filhos
de uma familia, Sebaftião de Carvalho antecipa-fe em certa
maneira ás revolucionarias innovaçÕes jurídicas do código
civil francez, herdeiro e reprefentante da Revolução. Repu-
gna-lhe todavia a extrema divifão da propriedade. O princi-
pio da expropriação por utilidade publica tem na concepção
do legiflador ampliíTmia latitude, e não fe reflringe apenas
como hoje ás commodidades coUedivas do elfado. A lei
pôde, fegundo elle, foberanamente prefcrever por meio de
equitativas compenfações, a quem deve pertencer em cafos
de excepção e em beneficio da agricultura, uma ou outra
porção da propriedade. O legiflador condemna inexorável as
pequenas glebas a arredondarem as terras mais extenfas, a
que fiquem adjacentes ou em que eltejam encravadas'. Em
Lifboa c nas outras principaes povoações os terrenos pouco
extenfos e as cafas pequenas ou domitiiculas (aífim lhes cha-
ma o legiflador) deviam fer reunidas ás cafas grandes, a que
" Carta de lei de 9 de julho de 1773.
42'
foíTem contíguas mediante a indemnifação do feu jufto preço
com mais 2 5 por cento da avaliação. Todas as terras encra-
vadas em quintas muradas ou circumfcriptas por vallados,
eram adjudicadas ao proprietário principal pelo feu legitimo
valor e mais um terço. Era porém condição eíTencial que
valeíTem as quintas pelo menos féis vezes tanto como os
terrenos annexados. Ordenava outrofim a lei que os prédios
rufticos de uma geira não podeífem mais fer divididos, antes
fe encabeçaífem n'um fó herdeiro. As terras de colonos par-
ciarios no Alemtejo feriam adjudicadas ao parceiro ou pos-
feiro, que tiveífe n'ellas a poífe principal.
Eíla foi uma das leis, cuja violência mais encareceram e
reprovaram os inimigos de Carvalho. Não faltaram a attribuir
ao egoifmo e avareza do legiflador a principal razão d'efta
quebra flagrante ao direito e immunidade peífoal. Se a forçada
expropriação ordenada pelo miniftro eífá hoje em manifefta
contradicção com as thefes geralmente admittidas nos eflados
livres acerca da propriedade, não andava todavia em delac-
cordo com o principio fundamental de que no fyífema gover-
nativo de Carvalho aos intereífes do individuo fe deviam an-
tepor em todo o cafo os intereífes fociaes. Segundo a fua noção
de governo politico e de humana aífociação, o poder fupremo
tinha o jus e o dever de repartir e equilibrar os bens e com-
modidades, como um pae follicito e vigilante pela melhor
ordem e proveito da familia patriarchal. Uma côr, fe bem
amortecida, manifefta de moderado focialifmo, prevalecia na
fua legiflação. A oufada reprovação do direito de tcftar era
a condemnação da propriedade na fua forma abfoluta e invio-
lável. Quanto á maneira de poífuir a terra e difpor d'ella, os
princípios e os ados do miniftro eftavam em plena concor-
dância com os exemplos da hiftoria e com as prefcripções es-
tabelecidas na antiga e na moderna legiflação. A hiftoria en-
finava-lhe de feito que os annacs da propriedade fão os faftos
-i-<>-*^ -<>-§►
422
da violência, da conquifta, da ulurpação. Roma triumphante
repartira a feu labor os agros dos vencidos. Os bárbaros mais
tarde dividiram e expropriaram as herdades na Itália, nas
Gallias, nas Hefpanhas. Os árabes partilharam entre fi as
glebas wifigothicas. Os hefpanhoes c os portuguezes na recon-
quiíta da Peninlula remodelaram novamente a propriedade,
imprimindo-lhe por carader da lua legitimidade o havel-as
conquiftado contra os mouros. A terra tinha lido em todos
os tempos e Ibb todas as civililações o theatro e o defpojo
da Ilida pela vida entre as raças e as nações. Hiftoricamente
apparecia verdadeiro o celebrado aphorilmo de Proudhon,
de que a propriedade é o latrocínio. A laftimada exclamação
de Virgílio, defapoíTado dos léus campos pelo foldado aven-
tureiro e triumphal, após a vidoria de Augufto Cefar, refu-
me em poucos verfos quanto é precária, tranfitoria, infubfi-
ftente a poffeíTão pacifica da terra, e quanto a força é mais
vezes do que o direito o fundamento da propriedade predial.
O Lycida, vivi pervenimus, advena noftri,
(Quod numquam veriti llimus), ut poffefTor agelli
Diceret: Haec mea lunt, veteres migrate coloni.
ViRGiL., EcLog. IX, Ma'ris, vers. 2-4.
O veteres migrate coloni (lai oh antigos colonos e cultores
da terra) refôa a cada paíTo na hiftoria da humanidade c nas
paginas da fua legiílação.
As revoluções fociaes mudam a fituação dos Hndes e dos
hermes, que feparam as glebas entre íi. A lei confirma ou
modifica a conifituição da propriedade, que nafceu da vio-
lência e da conquifta. A propriedade é pois emquanto á terra
effencialmente ephemera e amovível á vontade do legillador.
Não podemos admirar-nos d'efias forçadas expropriações de-
cretadas ha mais de um feculo por um eftadifta de poderes
illimitados na monarchia abfoluta omnipotente, quando vi-
< F I F
eis w
42J
mos ha pouco tempo, ante as exigências e as perturbações
da Laiid League, ou liga agraria, o governo da Gran-Breta-
nha, exercido pelos whigs mais liheraes, lacrificar á elpe-
rança de pacificar a Irlanda o principio legal da proprie-
dacie, e legiílar a expropriação dos opulentos lenhorios ou
Landlords em favor dos colonos ou Laudtenants.
A melma categoria de arbitrarias providencias colorea-
das com o maior bem da caufa publica pertence a lei, que
mandou arrancar todas as vinhas no Riba-Tcjo entre Saca-
vém e Villa Xova da Rainha, nos campos de Vallada, Go-
legan e Santarém, e nas margens do Vouga e do Mondego".
Em logar da viticultura, que o legiílador julgava ali nociva
e inopportuna, ordenava c[ue as terras foíTem reftituidas á cul-
tura cerealífera. A razão determinante d'efta lei cifrava-fe na
efcaíTeza de cereaes, de que padecia Portugal. O trigo então
era como hoje importado em enormes quantidades. O vinho
pelo contrario manifeífava uma exaggerada producção. Se-
baftião de Carvalho, apefar da aífeítada infiftencia, com que
em feus efcriptos glorifica a arithmctica politica e le dá por
iniciado profundamente em fuás doutrinas, defconhece o prin-
cipio fundamental da fciencia económica, — a liberdade, e
coiifiando intemperadamente na acção governativa como
enérgico propulfor da Ibciedade, põe o peito a emprezas fu-
periores á força coercitiva do poder. Nas luas mãos a terra é
plaflica, inerte, obediente para tomar todas as formas ao fa-
bor do oleiro ou do toreuta refoluto. Os homens íao apenas
as moléculas de um corpo, ás C[uaes elle no recelTo do feu
laboratório pôde communicar, no intuito da harmonia e do
bem geral, as aggregações e os logarcs, que, fegundo o ideal
do feu Eítado, correfpondern á maxitna ventura e ordem fo-
cial. A fociedade inteira é um exercito civil, que elle, o ítratégo
' Alvíirá da lei de 2(3 de outubro de 1765.
424
da paz e da civililação, pôde a feu talante fubmetter ás formas
taóticas mais próprias a oppugnar a miferia, a ignorância, o
fanatifmo e o abatimento nacional. Na apreciação e julgamen-
to de Sebaftião de Carvalho é precifo a cada paíTo ter pre-
fente a epocha, em que viveu, a monarchia, a quem ferviu, a
fociedade, que regeu, as idéas, que antes dos tempos de Ques-
nay, de Turgot, de Necker e Adam Smith infpiravam nas
relações económicas dos Eftados os governos mais ardentes
na profecução do bem commum. Muitos annos depois que
a lei contra as vinhas era promulgada, ainda o congreíTo
americano, quando os Eftados Unidos fe debatiam na luifta
memorável contra a metrópole, taxava por uma lei os preços
das mercadorias e fazia da violação da liberdade mercantil
um inftrumento auxiliar da politica liberdade.
A França era ainda no feculo xviii fecunda em provi-
dencias regulamentares e reftricfivas da viticultura, e eram
muito frequentes os exemplos de vinhas arrafadas por man-
dado e arbítrio da autoridade'.
Na mefma falfa economia politica tem a fua explicação
e a lua efcufa a providencia, que prohibe o introduzir na ca-
pital os vinhos de Vianna, de Monção, do Porto, de Aveiro,
da Bairrada, Anadia, Figueira e outras partes, exceptuan-
do unicamente os vinhos doces do Pico e da Madeira-. Na
mefma ordem de princípios fe filia a prefcripção, ordenando
que nos terrenos de vinhos de embarque fe enxertaífem em
tintas as uvas brancas de maneira a profcrever inteiramente
o vinho branco'', e caftigando com penas feveriílimas os que
adulterem a bebida com perniciofas confeições.
1 Dareíle de la Chavanne, Hijloire des clajfes agricoles cn France. Paris,
i858, pag. 454 e 455.
2 Alvará de 17 de outubro de 1768.
3 Alvará de 10 de abril de 1773.
eis
eis
42 3
É principalmente quanto á indurtria vinicola que lao mais
frequentes e flagrantes as infracções da liberdade no traba-
lho, porque é também para o legiílador a predilecla infti-
tuição da companhia do Alto Douro aquella, em que tem
poífas principalmente as luas elperanças de riqueza e pros-
peridade nacional. A efta poderofa Ibciedade mercantil eftá
a cada paffo o eftadifta fubordinando os deftinos da agricul-
tura. Apenas eftão próximos a terminar os dez annos aífi-
gnados á duração da companhia, apparece a fua exiftencia
prorogada por mais vinte annos'. São quafi innumeraveis as
providencias que na volumofa legiílação de Sebaftião de Car-
valho tem por íim regular por minuciofas prefcripções a cul-
tura e o commercio dos vinhos, aíTegurar a fua pureza contra
as fraudes e obífar á exaggerada producção e á confequente
quebra no valor. Somente é quando a companhia eítá já foli-
damente robuftecida, quando já reparte por dividendo aos ac-
cioniftas mais de 7 por cento do capital-, que o legiílador tem
por opportuno afrouxar o rigor das leis prohibitivas e dos
feveros regulamentos para livrar da concorrência a opulenta
aíTociação. E então que fe declara abolido o curfo torçado
ás apólices da companhia do Alto Douro, e das companhias
do Maranhão e da Parahyba', e fe volve novamente n'efle
ponto ao regimen da liberdade nas trocas e tranfacções com-
merciaes, concedida já antes como privilegio aos extrangei-
ros, que viviam em Portugal^ e tinham reclamado inftante-
mente contra a dura impofição. E então que o legiflador abre
e patentêa livres ao commercio dos vinhos da Extremadura
e das ilhas adjacentes os mercados da Africa e da Afia, os da
1 Alvará de 28 de agoíto de i 776.
2 Edital da junta de adminiftraçfio da companhia do Alto Douro, de 26 de
junho de 1772.
3 Alvará de 2 3 de fevereiro de 1771.
-t Alvará de 3o de agoílo de 1768.
-H>-* -y^
■ -<v^
426
Bahia, Pernambuco c Parahyba, deixando em monopólio á
companhia do Aho Douro a exportação para o Rio de Janei-
ro e para os portos fituados ao fui da metrópole brazileira'.
As providencias decretadas por Sebaítião de Cars^alho
para fomentar directamente com o favor e o arbitrio do po-
der os três ramos da induítria portugueza e crear-lhes em
deredor uma atmoíphera puramente artificial, tem a fua na-
tural explicação cm primeiro logar no profundo abatimento
e inércia da nação, a qual parecia incapaz de melhoria e de
progrelTo, fe foffe deixada á fecundante acção da liberdade
e aos impulfos defconnexos da energia individual. Em fe-
gundo logar infpiravam o reformador as idéas predominantes
nas fciencias económicas e íbciaes antes que foíTem não fo-
mente vulgarifadas, mas em parte recebidas pelos governos
europeus e applicadas prafticamente ao mcchanifmo focial,
as verdades enfinadas pelos egrégios fundadores da economia
politica, os Smiths, os Queínays, os Turgots, os Morellets.
Em terceiro logar era firme o legiílador no preconceito acata-
do e feguido reverentemente em toda a Europa continental,
e ainda hoje infelizmente profeílkdo com inteira convicção
entre os povos neo-latinos, de que fó e exclufivamente a acção
enérgica e irrefiftivel dos governos pôde imprimir impulfos
vigorofos á civilifação e ás induftrias das nações, mantidas
na perpetua menoridade fob a tutela ciofa de príncipes here-
ditários.
Não eram eífas doutrinas invenção e monopólio de Sebas-
tião de Carvalho. Eram os principies direítores de Sully e de
Colbert na fua politica induftrial e económica, eram no feculo
xviii as crenças e as praxes dos mais illuftres reformadores,
de Leopoldo II na Tofcana, e do imperador Jofé II na Alle-
manha. A intervenção direita, minuciofa, quotidiana de Se-
' Alvará de 6 de agofto de 1776.
tis e|j
42:
baftião de Carvalho nas tranlacções da vida económica, podia
achar a fua apologia nas circumrtancias peculares da occafião
e na defidia opprobriofa, em que a monarchia ablbluta havia
feito cair a actividade nacional. A influencia dos proceflbs
regulamentares e artificiaes não podia, porém, pela fua pró-
pria condição de excepções contra-naturaes, fobreviver por
largo tempo ao bafejo do legiflador. Tudo quanto, pelo con-
trario, o efpirito do memorável eftadifla concebeu e realifou
na lua politica meramente revolucionaria, negativa, demoli-
dora, perpetuou-le e tranfmittiu-fe como herança á moderna
ci^■ililação de Portugal. E que a acção dos governos fó é pro-
liíica e duradoura, quando fe limitam a extirpar ou corrigir
tudo quanto é adverlb á peíToal e livre adividade, ou a inífi-
tuir com difcrição e previdência quanto pôde indiredamente
dilatar e fazer mais fecunda a producção. AlTim poderam
fobreviver ao legiflador os primeiros paíTos de Sebaftiáo de
Carvalho no caminho fruduofo da liberdade da terra, na
mais democrática organifação da propriedade, na mais egual
diflribuição dos encargos fociaes, na maior difFuíao dos co-
nhecimentos, e na melhor accommodação do direito civil ás
neceflidades e condições da moderna fociedade.
Entre as leis, que fe referem ás relações juridicas em Por-
tugal, figuram a que deu nova maneira de exiftir á proprie-
dade vincular, as que regularam a facção teftamentaria e o
direito fucceíTorio, e mais do que eftas é porventura memo-
rável a que nos faftos da jurifprudencia nacional fe chama
por excellencia a lei da boa raião\ Nada pode, em verdade,
fer de maior importância n'uma nação do que os principios
fundamentaes, em que fe firma o feu direito civil e as fuás
praxes de julgar. A lei da boa ra^ão teve por aífumpto obviar
á pradica abufiva, defde muito feguida pelos julgadores e
Carta de lei de 18 de agoflo de i7fj'j.
eh
-<>-i-
428
advogados, de preferir ao direito pátrio, havido por elles na
conta de menos culto e preftadio , a romana jurifprudencia, tal
como a formularam as conftituições imperiaes, as doutrinas
dos antigos juriíconfultos e as interpretações e commentarios
dos Irnerios, dos Bartholos, dos Accurfios e dos outros glos-
fadores. No conceito do profundo legiflador a fociedade por-
tugueza, collocada pela differença das epochas e pelos pro-
greíTos fociaes em condições mui diíTonantes do velho mundo
romano, mal poderia governar-fe pela fua legiflação. Pro-
hibia pois Sebaftião de Carvalho, que os caufidicos e magis-
trados adduzilTem nas allegações e nas fentenças os textos
da lei romana ou as opiniões e gloíTas dos doutores em tudo
quanto pelo direito pátrio eftiveíTe claramente definido ou na
falta de lei efcripta o coífume do reino tiveíTe confagrado.
Sem profcrever inteiramente a difcreta applicação da legifla-
ção e jurifprudencia dos romanos, ordenava que no foro fe
difcriminafle d'entre as leis imperiaes as que têem ou não
por fundamento a boa raião. Explanava o legiflador o que
por efta expreíTão fe haveria de entender. Tinham as leis
por bafe a boa raião: i .°, quando continham verdades eíTen-
ciaes e inalteráveis; 2.°, quando fe radicavam nos princi-
pies do direito das gentes; 3.°, quando refpondiam ás novas
condições e formas fociaes, e ás forçofas transformações, que
o progreíTo no decorrer dos feculos imprime nas relações
jurídicas de um povo civiliíado. N'efta categoria fe conglo-
bam as leis politicas, e principalmente as commerciaes, as
económicas e as marítimas com excepção da Lei Rhodia e
poucas mais, quafi inteiramente defconhecidas aos romanos,
mais ciolbs de conquiftas c feitos bellicofos que de pacíficos
tratos mercantis e proveitofas navegações. A lei da boa ra{ão
abolia como nocivas á juftiça as ampliações e reftricções do
direito pátrio pelas difpofições da lei romana, comminan-
do punição aos advogados, que profcguilíem n'elfa pradica
eis eis
4^9
abufiva, a qual, já em tempos de D. João III, Jorge Ferreira
de Vafconcellos pozera de manifefto n'uma fcena joco-feria
da fua vernacLiIiffima Eiifrofina' . Não era porém o direito
romano unicamente o que ufurpava para 11 nos auditórios o
que legitimamente pertencia á portugueza legiflação. Junto
com o direito cefareo havia quafi ao mefmo tempo irrompi-
do em grande parte da Europa latina durante a edade media
o direito canónico e pontifício. A Egreja, no intuito perfeve-
rante de ablbrver o Eftado e a íbciedade temporal, intervi-
nha com a fua legillação elpiritual no julgamento das ques-
tões e dos litígios de pura condição profana e fecular. Baftava
que n'uma queftão do foro externo fe podeíTe raftrear uma
fombra de efpiritualidade, e a femelhança de um peccado,
para que a lei canónica fe antepozeíle á lei civil. A Orde-
nação philippina confagrava expreífamente efta invafão, efta-
tuindo que fendo omiífa a pátria legiflação, fe julgaíTe pelos
cânones em todos os cafos, em que eíliveíTe comprehendido
algum peccado-.
A lei da boa raião aboliu inteiramente efta pradica peri-
gofa de julgar. O eftadifta, que timbrava em feparar por fron-
teiras bem vifiveis a Egreja e o Eftado, deixa aos cânones
e conftituiçóes pontifícias o julgamento das caufas efpiri-
tuaes, e exclufivamente fubordina ás leis civis as relações
tcmporaes da fociedade, aífentando que não incumbe aos
tribunaes o conhecimento dos peccados, mas fó e unica-
mente o dos delidos. Profcreve o legiflador as gloífas de
Accurfio e de Bartholo, mandadas obfervar em alguns cafos
pelas ordenações do reino \ Condemna e prohibe a allegação
de commentarios e opiniões, porque as audoridades nada
' Eufrofma^ Aclov, Iccna I.
2 Orden. philipp., Liv. iii, tit. 64.
3 Orden. philipp., Liv. iii, tit. 64, § i .
^
-♦-i-
eis
^-<>-^ *-v-§-
43o
valem, e fó devem elcutar-fe as vozes da lei e os diítames
da boa razão. Define ainda o legiflador quaes fão as circum-
flancias, que devem acompanhar os eftylos e coftumes do
reino, para valerem como leis. Determina como fe hão de
racionavelmente remediar as omiíTóes do direito pátrio, fup-
pridas principalmente pelos aílentos da cafa da fupplicação.
Tal era fummariamente enunciada a famofa lei da boa
raião. Ve-le n'ella o elpirito moderno a inlurgir-fe refoluto
contra o delpotifmo do paliado e as cadeias da tradição.
Admira-fe n'ella o eltadifta fuperior, que comprehende a no-
va Ibciedade e adivinha quafi a juníprudencia dos Portalis e
dos Merlins e a idéa revolucionaria do código Napoleão.
As modificações introduzidas pelo miniftro reformador
na confl:ituição da propriedade territorial influíram indire-
(Tlamente fobre a agricultura. Efta forma porém de humana
adividade não era aquella, em que o reformador principal-
mente concentrava as luas predilecções. A lua paixão domi-
nante era a induftria manufaílora e o trato mercantil. Tinha
fido o commercio, que tornara poderofo e florefcente o eftreito
Portugal. Uma nação, que poíTuia na Africa, na Afia, na
America e na Oceania vaftas e fecundas polTeíTões, parecia
ao legiflador talhada para empório das riquezas coloniaes.
A falfa, mas então dominante theoria da balança do com-
mercio, fazia acreditar a Sebaftião de Carvalho que um paiz
fe devia furtar quanto podefle a precifar e admittir os extra-
nhos artefaétos, e esforçar-le, pelo contrario, em eftendermais
e mais os feus mercados para a larga exportação das pró-
prias mercadorias. N'efta apertada concepção da força e va-
lia das nações, o paiz mais venturolb e opulento leria o que
de nada careceffe de extrangeiros. Seria o EJlado cerrado, fe-
melhante ao que mais tarde haveria de reduzir a contextura
fcientifica no feu Syftema nacional de economia politica o ce-
lebrado economifta allemão Frederico Lift. Seria a economia
43 1
da nacionalidade profelTada em todo o leu pleno antagonis-
mo á economia colmopolita das modernas elcolas libcraes.
Seria o fyftema proteftor exaggcrado até as fuás derradei-
ras confequencias em harmonia com o dogma inviolável do
egoilmo nacional.
E precifo, porém, julgar os eftadiftas, as fuás idéas e os
feus feitos governativos não fegundo as modernas conquiftas
das fciencias fociaes e as novas condições do equilibrio inter-
nacional ; mas conforme aos princípios geralmente acceitos no
feu tempo e á fituação particular dos povos, a quem tiveram
de reger. Se a balança do commercio, na ambiciofa e larga
fignificação, em que a tomava no feculo paífado a efcola
mercantil, é hoje provadamente falfa á luz das theorias e dos
factos, não é todavia menos certo que uma nação carece, quan-
do menos, de produzir o neceífario para alcançar das outras
pelo efcambo o que o feu trabalho não pôde abfolutamente
fabricar. Não é também menos evidente que a liberdade mer-
cantil illimitada, inftituida como fyftema n\im povo defprovido
inteiramente de faculdades produftoras, não confeguirá da ter-
ra um grão de trigo, nem da oíficina o artefado mais vulgar.
A lei natural e fecundiíTmia da divifão do trabalho internacional
fomente pôde fazonar feus fruítos de oiro, qviando no con-
certo das nações tem cada uma d'ellas naturalifado e florente
em certo grau algum dos ramos do trabalho mais conformes
ao clima, ao território, á vocação. Portugal era nos tempos de
Sebaftião de Carvalho um paiz, onde a inércia deixava em
grande parte os campos fem cultura, as ofíicinas fem lavor.
Urgia pois aguilhoar a indolência, incitar a nativa indecifão,'
crear a induftria, fomentar o commercio nacional. Não fe
conhecia então, nem merecia fé outro caminho fenão o do
fyftema protector com toda a fua variada comitiva de feveras
prohibições, de ciofos regulamentos, de tarifas audoritarias
e de quotidiana intervenção das forças governativas na troca
-i-À-i -hÇ^^
ftM ela
4eL
-<Ç^
432
e na producção. O propofito de Sebaftião de Cangalho, nas
fuás providencias em favor das induítrias nacionaes, era pois
não fomente accommodado á fciencia económica d'aquelle
tempo e ás condições do povo portuguez, fenão que cifrava
um benemérito ferviço á civilifação de Portugal. Emquanto
a humanidade fubfiftir feparada e dividida em diil:in6tas na-
cionalidades, fe não hoílis, ao menos dominadas por interes-
fes contraditórios, o conceito de nação trará fempre comfigo
forçofamente a idéa de emulação e rivalidade entre os povos
extranhos e empenhados em fe excederem uns aos outros na
riqueza e no poder.
O egoifmo nacional prevalecerá feguramente contra o
cofmopolitifmo humanitário.
O eftado tem duas maneiras de inter^■ir na creação e no
fomento das induítrias. A primeira direita, immediata, con-
vertendo-fe elle próprio em capitaliíta e emprezario. A fegun-
da reflexa e indireíta pelas exempções e privilégios concedi-
dos ás emprezas nacionaes e pelas providencias que fufpcndem
ou annuUam a concorrência dos produdos extrangeiros. A
ambas fe foccorreu o reformador, fegundo fe lhe deparava a
occafião. É aíhm que Sebaftião de Carvalho eftabelece a ex-
penfas do thefouro a fabrica de chapéus em Pombal', a de
faiança, no fitio do Rato, fob a immediata direcção do enge-
nhofo Bartholomeu da Cofta. Á impulfão do eftado foi devida
a ofíicina dos eftuques, e a aula annexa de defenho ornamental
fob a infpecção adminiftrativa da fabrica das fedas, e o ensi-
no technico do italiano João GroíTr. São extrangeiros princi-
palmente os que vem inftituir em Portugal algumas induftrias
novas ou reftaurar as que Jaziam defamparadas. A fabrica de
vidros da Marinha Grande pertencia ao eftado . Eftava porém
eis
' Alvará de 24 de março de 1769.
2 Alvará de 23 de dezembro 1771.
e|í
4^9
abufiva, a qual, já cm tempos de D. João III, Jorge Ferreira
de Vafconcellos pozera de manifefto n'uma Icena joco-leria
da lua vernaculiffima Eufrofina'. Não era porém o direito
romano unicamente o que ufurpava para 11 nos auditórios o
que legitimamente pertencia á portugueza legiflação. Junto
com o direito cefareo havia quali ao mefmo tempo irrompi-
do em grande parte da Europa latina durante a edade media
o direito canónico e pontifício. A Egreja, no intuito perfeve-
rante de ahforver o Eftado e a fociedade temporal, intervi-
nha com a fua legiílação efpiritual no julgamento das ques-
tões e dos litigios de pura condição profana e fecular. Bailava
que n'uma queítão do foro externo fe podeíTe raftrear uma
fombra de efpiritualidade, e a femelhança de um peccado,
para que a lei canónica fe antepozeíTe á lei civil. A Orde-
nação philippina confagrava expreíTamente efta invafão, efta-
tuindo que fendo omiíTa a pátria legiílação, fe julgaífe pelos
cânones em todos os cafos, em que eftiveífe comprehendido
algum peccado-.
A lei da boa raião aboliu inteiramente efta pradica peri-
gofa de julgar. O eftadifta, que timbrava em feparar por fron-
teiras bem vifiveis a Egreja e o Eftado, deixa aos cânones
e conftituições pontifícias o julgamento das caufas efpiri-
tuaes, e exclufívamente fubordina ás leis civis as relações
temporaes da fociedade, afl"entando que não incumbe aos
tribunaes o conhecimento dos peccados, mas fó e unica-
mente o dos delidos. Profcreve o legillador as gloífas de
Accurfio e de Bartholo, mandadas obfervar em alguns cafos
pelas ordenações do reino'. Condemna e prohibe a allegação
de commentarios e opiniões, porque as audoridades nada
1 Eii/rofiiia, Aclov, fcena I.
2 Ordeii. pliilipp., Liv. iii, tit. 64.
3 Orden. philipp., Liv. m, tit. 64, § i.
e|s eis
-^<ô>- -v-§-
43o
valem, e fó devem efcutar-fe as vozes da lei e os didames
da boa razão. Define ainda o legiflador quaes fão as circum-
ftancias, que devem acompanhar os eftylos e coftumes do
reino, para valerem como leis. Determina como fe hão de
racionavelmente remediar as omiíTões do direito pátrio, fup-
pridas principalmente pelos aíTentos da caía da fupplicação.
Tal era fummariamente enunciada a famofa lei da boa
raião. Vê-le n'ella o efpirito moderno a infurgir-le refoluto
contra o deípotifmo do paflado e as cadeias da tradição.
Admira-fe n'ella o elladifta luperior, que comprehende a no-
va fociedade e adivinha quafi a jurilprudencia dos Portalis e
dos Mcrlins e a idéa revolucionaria do código Napoleão.
As modificações introduzidas pelo miniftro reformador
na conflituição da propriedade territorial influíram indire-
ctamente Ibbre a agricultura. Efta forma porém de humana
actividade não era aquella, em que o reformador principal-
mente concentrava as luas predilecções. A fi.ia paixão domi-
nante era a indufiria manufaftora e o trato mercantil. Tinha
fido o commercio, que tornara poderofo e florefcente o eítreito
Portugal. Uma nação, que poflfuia na Africa, na Afia, na
America e na Oceania vaftas e fecundas poffeíTões, parecia
ao legiflador talhada para empório das riquezas coloniaes.
A falia, mas então dominante theoria da balança do com-
mercio, fazia acreditar a Sebaftião de Carvalho que um paiz
fe devia furtar quanto podeíTe a precifar e admittir os extra-
nhos artefados, e esforçar-íe, pelo contrario, em eftendermais
e mais os feus mercados para a larga exportação das pró-
prias mercadorias. N'efta apertada concepção da força e va-
lia das nações, o paiz mais venturofo e opulento feria o que
de nada carecefle de extrangeiros. Seria o EJlado cerrado, fe-
melhante ao que mais tarde haveria de reduzir a contextura
fcientifica no feu Syjlema nacional de economia politica o ce-
lebrado economifla allemão Frederico Liíi. Seria a economia
1 > \ I
elí eis
«is
43 1
da nacionalidade prolelTada cm todo o feu pleno antagonis-
mo á economia cofmopolita das modernas efcolas liberaes.
Seria o lyftema proteítor exaggerado até as fuás derradei-
ras confequencias cm harmonia com o dogma inviolável do
cgoifmo nacional.
E precifo, porém, julgar os eftadiftas, as ílias idéas e os
feus feitos gOA'ernativos não fegundo as modernas conquiftas
das fciencias fociaes e as novas condições do equilibrio inter-
nacional; mas conforme aos princípios geralmente acceitos no
feu tempo e á fituação particular dos povos, a quem tiveram
de reger. Se a balança do commercio, na ambiciofa e larga
fignificação, em que a tomava no feculo palTado a efcola
mercantil, é hoje provadamente falfa á luz das theorias e dos
fadtos, não é todavia menos certo que uma nação carece, c[uan-
do menos, de produzir o neceífario para alcançar das outras
pelo efcambo o que o feu trabalho não pode abfolutamente
fabricar. Não é também menos evidente que a liberdade mer-
cantil illimitada, inftituida como fylfema n'um povo dcfprovido
inteiramente de faculdades produftoras, não confeguirá da ter-
ra um grão de trigo, nem da oíficina o artefado mais vulgar.
A lei natural e fecundiíllma da divifão do trabalho internacional
fomente pôde fazonar feus frudos de oiro, quando no con-
certo das nações tem cada uma d'ellas naturalifado e ííorcntc
em certo grau algum dos ramos do trabalho mais conformes
ao clima, ao território, á vocação. Portugal era nos tempos de
Sebaítião de Carvalho um paiz, onde a inércia deixava em
grande parte os campos fem cultura, as officinas fem lavor.
Urgia pois aguilhoar a indolência, incitar a nativa indecifão,
crear a induftria, fomentar o commercio nacional. Não fe
conhecia então, nem merecia fé outro caminho fenão o do
fyftema protedor com toda a fua variada comitiva de feveras
prohibições, de ciofos regulamentos, de tarifas audoritarias
e de quotidiana intci-venção das forças governativas na troca
eis
4 9^
.-<5^^
e na producção. O propofito de Sebaftião de Can-alho, nas
fuás providencias em favor das induftrias nacionaes, era pois
não fomente accommodado á fciencia económica d'aquelle
tempo e ás condições do povo portuguez, fenão que cifrava
um benemérito ferviço á civilifação de Portugal. Emquanto
a humanidade fubfiftir feparada e dividida em diftincfas na--
cionalidades, fe não hoítis, ao menos dominadas por interes-
fes contraditórios, o conceito de nação trará fempre comíigo
forçofamente a idéa de emulação e rivalidade entre os povos
extranhos e empenhados em fe excederem uns aos outros na
riqueza e no poder.
O egoifmo nacional prevalecerá feguramente contra o
cofmopolitifmo humanitário .
O eftado tem duas maneiras de intervir na creação e no
fomento das induftrias. A primeira direita, immediata, con-
vertendo-fe elle próprio em capitalifta e emprezario. A fegun-
da reflexa e indireffa pelas exempções e privilégios concedi-
dos ás emprezas nacionaes e pelas providencias que fufpendem
ou annuUam a concorrência dos produífos extrangeiros. A
ambas fe foccorreu o reformador, fegundo fe lhe deparava a
occafião. E affim que Sebaífião de Carvalho eftabelece a ex-
penfas do thefouro a fabrica de chapéus em Pombal', a de
faiança, no fitio do Rato, fob a immediata direcção do enge-
nhofo Bartholomeu da Coita. A impulfão do eífado foi de^'ida
a officina dos eftuques, e a aula annexa de defenho ornamental
fob a infpecção adminiflrativa da fabrica das fedas, e o ensi-
no technico do italiano João Groflr. São extrangeiros princi-
palmente os que vem inftituir em Portugal algumas induftrias
novas ou reftaurar as que jaziam defamparadas. A fabrica de
vidros da Marinha Grande pertencia ao eífado . Eft ava porém
' Alvará de 24 de março de 17Õ9.
2 Alvará de 23 de dezembro 1771.
-i-A- -6-^
Sp tp
4^7
eivas ao delenvolvimento indultrial, as idéas profeíTadas pelo
eminente reformador, é neceíTario não elquecer que eftas
eram as doutrinas realifadas na praxe governativa das nações
mais efclarecidas e notáveis pela fua riqueza e excellencia
induftrial. A Inglaterra d'aquelle tempo, não obftante a fua
indifputavel fupremacia naval e da lua grande indurtria ma-
nufactora, continuava a ter por bale e penhor da lua pros-
peridade as leis reftrictivas do commercio, inípiradas pelo
mais meticulofo egoifmo nacional. Os actos de napegação, prin-
cipalmente fortalecidos por Oiiver Cromwell durante o feu
enérgico protedorado, e depois da reftauração por Carlos II,
a eftreita legiflação dos cereaes, o Íòxov irracional á induflria
ainda então imperfeitilllma das fedas na Gran-Bretanha, as
pefadiíTimas taxas aduaneiras, com que fe diíiicultava a im-
portação, todo erte machinifmo de protecção artificial e ana-
chronica, perfeverava triumphante e nem fequer ainda fufpei-
tava que fendo já paífado o primeiro quartel do feculo xix, um
miniífro oufado, Hufkiífon, conciliando o patriotifmo com a
verdade, e o governo com a fciencia, demonftraria á velha In-
glaterra a inanidade opprobriofa do fyftema protector havido
como o palladio da nação. E ainda foi precifo que muitos
annos decorreífem antes que a grande meftra das induftrias
e a rainha do Oceano, depois da agitação de Richard Cob-
den e da efcola económica de Manchelfer, fe refignaífe, á
voz do convertido Robert Peei, a defpojar-fe das fuás vi-
ciofas tradições e a entrar oufadamente na via triumphal
do li\re cambio. A França contemporânea de Carvalho man-
tinha ainda em pleno vigor o fyftema regulamentar e reftri-
c^ivo, com que o famoíb Colbert encadeara a fuprema direc-
ção do eftado todas as formas do trabalho. Somente em i 774,
quando já tocava o leu occafo o poder e a energia do mi-
niltro portuguez, um dos mais eminentes fundadores da eco-
nomia politica, Turgot. chamado aos confelhos de Luiz XVI,
ft|s
.|-(J>- ■ -S>-§-
438
começava com vigor a tralladar para as praticas de um gover-
no illuminado as doutrinas, que havia profeíTado em artigos da
Encyclopedia, e principalmente nas fuás obras, e entre ellas
na mais profunda e memorável, as Reflexões fobre a forma-
ção e a dijhibuição das riqueias, publicada em 1766. E me-
nos poderemos extranhar as idéas económicas de Sebaftião
de Carvalho acerca dos aíTumptos induftriaes, quando atten-
tarmos em que os Eítados Unidos, a primeira nação do mundo
no prefente, a mais opulenta produtora, a que hoje defcar-
rega nos mercados europeus vima grande parte dos cereaes,
de que fe nutre a faminta e velha Europa, ainda perfevera
impenitente nos decrépitos abufos do fyltema protedor, pro-
feflado por muitos dos léus melhores economiftas, fem ex-
ceptuar o illuftre Carey.
A confequencia inevitável da legiflação prohibitiva de-
cretada por Sebaífião de Carvalho era o contrabando a em-
penhar activamente os feus esforços para illudir e lliperar
a mais rigorofa vigilância e repreíTão. Deparam-fe a cada
paffo nas collecções de leis d'aquelle tempo as penas mais
feveras contra os que intentam fubtrahir-fe á acção fiscal'.
Parecia que uma valia confpiração fe havia propofto contra-
dizer o fyftema prohibitivo adoptado pelo elladifta, e o crime,
revertido de circumftancias fubverfivas da ordem publica,
encarregava-fe de reprefentar contra as idéas do governo os
principies da liberdade mercantil.
A tal ponto fe aggravára o contrabando, que os próprios
militares, em vez de auxiliar as perquifições contra os des-
caminhos da fazenda, fe juntavam em partidas de dez e
vinte homens armados para afifrontarem feguramente as jus-
' Entre outros o alvará de 26 de maio de 1766, creando dois fuperinten-
dentes geraes das alfandegas, um para as provindas do norte, outro para as do
fui, e o alvará de i3 de novembro de lyyS, dando providencias fobre a faca ou
faida de ouro para fora de Portugal.
-<v>-|^
439
tiças c defenderem as fazendas lubtrahidas ás legaes impofi-
ções. Recorre o legiflador ás mais duras comminações para
enfrear os contrahandiftas de uniforme, decretando que fejam
punidas com a pena capital as praças, que em numero de três
ou d'ahi para cima fora do ferviço le cncontralTem aperce-
bidas com armas brancas ou cie fogo. Com outras não menos
terríveis providencias buícava o elfadifta refrear a audácia
criminofa dos que aítrontavam publicamente os magiítrados
no exercício do feu mandato focial".
Mas a economia politica tem leis tão naturaes, tão neces-
íarias, tão fuperiores a todo o arbítrio individual e a toda a
coacção governativa, como a lei da gravidade, como as que
nas aguas determinam o equilíbrio e o movimento. O legifla-
dor, como o architeflo ao projectar nos ares as luas cúpulas,
como o engenheiro, ao traçar e conftruir os léus canaes, os feus
portos, as fuás defezas contra as prováveis inundações, ha de
forçofamente contar com ellas e fazel-as lervir racionalmente
ao proveito Ibcial. O primeiro dever do poder publico, quan-
do falia pelo órgão da lua lei, é evitar cautelolamente as oc-
cafiões de novos crimes para a illudir ou falfear. O fyftema
protector e o prohibitivo, e as taxas delmedidas Ibbre os pro-
ducfos extrangeiros ou nacionaes têem por impreterível con-
leclario o levantar um exercito permanente de infradores e
contrabandirtas, combatendo em ordem difperla pela extenfão
dos portos e fronteiras, contra uma phalange numerofa e cus-
tofiílima de exactores e guardas fifcaes. Mas o erro de Se-
baftião de Car\alho é, pofto que cm mais largas proporções, o
erro económico preponderante nos governos contemporâneos
da Europa continental. De todos os que a luz da fciencia pro-
cura illuminar, lao os governos em toda a parte os mais in-
crédulos e refradarios em a faudar e receber.
' Alvani de 14 de fevereiro de 1772-
ti»
(is
. ih
440
Se a induítria defvellava o foUicito legiflador e lhe de-
buxava em íbnhos de engrandecimento nacional as mais ri-
dentes perfpecl:i%'as, não eram menos fagueiras as efperanças
de le^"antar de novo Portugal ao luzimento e poderio, com
que o leu nome outr'ora havia infcripto entre os mais celebres
povos mercantis. Alem da fundação das companhias, de que
o paiz veiu a derivar proveitos inconteftaveis, Sebaftião de
Carvalho é infatigável cm promover, fegundo os princípios
fundamentaes do feu fyftema, a maior Aalia e extenfão das
nolTas relações commerciaes. É n'efte ponto innegavel que
muitas das fuás providencias merecem juftiffimo louvor.
No feu tempo era eftreito, irracional e egoifta o fyftema
colonial dos povos europeus. Cada nação fechava ciofamente
os portos das fuás colónias aos navios extrangeiros, e na fua
legiflação tomava as mais vexatórias prevenções para que o
trafico dos produftos coloniaes eftiveífe exclufn'amente con-
centrado em luas mãos. D'ahi provinha a apertada regulamen-
tação, em que vivia conítrangida a navegação e o commercio
com as colónias. D'ahi que navio algum mercante podeífe de
Portugal endireitar para o Brazil fem ir com outros encorpo-
rado em frotas que em epochas prefixas fmgravam comboia-
das por naus de guerra. A abolição d'efte regimen oppreíTi-
vo e contrario a toda a iniciativa e efpeculação commercial é
um dos ferviços eminentes do eífadifta á exempção e fran-
quia do trabalho. A lei declara livre a navegação para o Bra-
zil, abolidas as frotas, e caífadas as antigas providencias que
fixavam a epocha da partida c do retorno aos navios do
commercio'. Não defifte porém o legiflador inteiramente da
intervenção enérgica do eftado nas operações e nos contratos
mercantis. A lei fixa o preço dos fretes ás mercadorias de
Portugal levadas ao Brazil, e ás que em retorno fe conduzam
■ Alvará de 10 de Icptcmbro de ijGS.
«Is
*-<>-%^
44'
em navios procedentes dos portos americanos'. Pela anterior
legiflação era vedado a qualquer navio o navegar a outro
porto do Brazil, alem d'aquelle a que ia deílinado. Era defe-
fo o tranfitar de um a outro mercado na America, embora
íoíTe conveniente aos intereíTes mercantis o eleger as praças
mais propicias ao feu carregamento. Sebaftião de Carvalho
rompe ainda eftas cadcas, que prendiam a navegação, e de-
clara que aos navios mercantes é facultado o irem e levarem
mercadorias de uns a outros logares na cofta do Brazil, onde
o commercio não efteja monopolilado pelo favor concedido
ás companhias-. Acabadas as frotas como forçada inftitui-
ção não le efquece todavia o legiflador de prover á feguran-
ça dos navios, que defejem livremente utilifar a protecção e
força dos comboios. Duas fragatas de guerra fairiam todos os
annos de Liíboa para o Rio de Janeiro, com o destino de
trazerem o dinheiro do eítado e o dos particulares, que d'efi:e
modo julgaíTem mais feguro o feu tranfporte. As fragatas fer-
\iriam de comboiar na torna-viagem as embarcações mer-
cantes, que pretendeíTem rcgreíTar em frotas á metrópole \
Não devem omittir-fe pelo feu efpirito de juítiça e egual-
dade as leis promulgadas para abolir as prafticas aduaneiras,
com que perante o íifco o Algarve era havido como fe fora
na verdade um reino feparado e mal annexo, uma efpecie
de Irlanda em Portugal. Reparando a injuftiça perpetrada
contra uma parte importante da nação, extingue o legiflador
os direitos exigidos no Algarve aos legumes e cereaes, que
das mais terras portuguezas para alli fe tranfportavam-*. Abo-
liu egualmente todos os direitos differenciaes, com que nas
' Alvará de 29 de abril de 1766.
2 Alvará de 2 de junho de 1766.
3 Decreto de 10 de junho de 1766.
■4 Alvará de iS de janeiro de 1773.
eis
eis
«is
442
alfandegas o Algarve era opprimido e conliderado como paiz
extranho ou de conqiiiíta'.
Uma das mais notáveis providencias, com o intuito de
illuftrar e engrandecer as claíTes mercantis, foi aquella em que
Sebaftião de Carvalho conftituiu, como em nova corporação,
todos os que exercitavam o commercio na capital. Eftatuia
o legiflador a matricula para todos os commerciantes de Lis-
boa. Ordenava que todos os guardas-livros e caixeiros tives-
fem o curfo da aula do commercio, e eguaes habilitações
foíTem exigidas aos fobrecargas, aos caixas e efcripturarios
dos navios deflinados para o trafico da Afia. A lei prefcrevia
o mefmo noviciado fcientifico para os efcrivães da armada,
para os empregos nas companhias geraes e privilegiadas, e
para os oíiicios da adminiítração e arrecadação da fazenda
publica-. D'efta maneira a fciencia do commercio, methodi-
camente profelTada n'um inítituto efpecial, feria largamente
divulgada e um dos elementos eíTenciaes aos progreíTos econó-
micos,— a cultura do entendimento e a educação profeílio-
nal, — feria penhor e fegurança de que o trafico portuguez
haveria de crefcer e profperar.
Apelar de todos eftes valiofos incitamentos á energia
commercial, o rigor regulamentar e a fubordinação da liber-
dade mercantil ás preocupações da audoridade refòa, como
a nota fundamental, na legiflação de Sebaftião de Carvalho.
A doutrina de que o preço é naturalmente determinado pela
relação entre a procura e a offerta, o principio de que a troca
é um ado voluntário e independente da tutela governativa,
ainda não tem podido infinuar-fe no efpirito dos governos, e
ainda tem por adverfario impenitente um varão de quilates
tão fubidos qual era para o feu tempo o miniftro de D. Jofé.
■ Carta de lei de 4 de fevereiro de 1773.
2 Carta de lei de 3o de agoílo de 1770.
eis
'■ -<>-^
44J
Não admira pois que no leu empenho de íirmar as luas pre-
diledas companhias com os efteios da autoridade, commine
penas feveras aos que comprem as acções d'aquellas Ibcie-
dades mercantis por menos do leu valor nominal'. Ainda o
legiflador não comprehendia como os fundos públicos e as
acções commerciaes deviam por neceíTidade ineluftavel fub-
metter-fe ás ofcillações perpetuas do mercado.
As pefcarias portuguezas outfora florefcentes, como de
nação eíTencialmente dedicada aos trabalhos Ímprobos do
mar, tinham a tal ponto decaído, que chamavam fobrc li a
attenção do legiflador. Confiando mais nas poderofas aíTocia-
ções commerciaes como infirumentos de fecundidade e effi-
cacia do que na acção do esforço e do capital, quando ilbla-
dos, inftitue Sebaftião de Carvalho a companhia geral das.
pefcarias reaes do Algarve-. Attribue-lhe o capital de quarenta
contos, depois elevados até ao dobro por ulterior dilpofição
legiflativa"'. Eífa nova inftituição nos léus primeiros tempos
exerceu benéficos influxos no melhoramento da induftria pis-
catória e na riqueza do Algarve. Em cerca de dois mil contos
Ic computaram os produdos das armações na pefca do atum
e de outros peixes, defde a fundação da companhia até o
anno de 18 12''.
Eis ahi lummariadas as mais importantes e notáveis pro-
vifões decretadas por Sebaftião de Carvalho para fomentar e
proteger as induftrias nacionaes. D'entre ellas algumas, ainda
que em manifefto delaccordo com os princípios fundamentaes
das modernas fciencias económicas, tiveram por afortunada
confequencia o augmcntar a producção e a riqueza nacional.
1 Alvará de 3o de agoflo de 1768.
2 Eílatutos de 8 de janeiro de 1773, confirmados por alvará de i5 de janeiro
do mefmo anno.
-' Alvará de Ti de julho de 1776.
4 Baptiíta Lopes, Chorographia do Algarve, pag. 8g.
II I '
-i-<í>- -Ò^
e|j eis
444
Outras fe não lograram frudos copiofos, tiveram pelo menos
a vantagem de accordar os ânimos irrefolutos e dormentes,
demonftrando que pela diligencia e pelo trabalho feria ainda
poíTivel reftaurar o que leculos de ignorância e ociofidade
tinham feito perder e malbaratar.
CAPITULO XVI
o TRIUMPHO
No meio dos negócios variados e multiformes, que tra-
ziam prefa a attenção do eftadifta, no intento de promover
a reformação e melhoria da nação e reprimir as demaíias de
ultramontanos e fanáticos, mantendo a paz e quietação no in-
terior de Portugal, nunca um momento deflembrava Sebas-
tião de Carvalho a miíTão principal do leu longo e agitado
minifterio. Tinha elle fido o primeiro a levantar o grito no feio
do catholicifmo contra a poderofa fociedade, inftituida por
Santo Ignacio de Loyola. Havia defde os primeiros tempos
da fua adminiftração faído a terreiro a combater aquelles re-
ligiofos, a quem tinha por jurados inimigos do poder tempo-
ral e por obftaculos quafi irrefiíliveis a todo o progreíTo do
entendimento e a toda a emancipação da coníciencia. Como
ftrenuo luftador tinha envidado esforços fobrehumanos em
porfia na apparencia defegual, mas após os rijifluTios comba-
tes, ninguém o vira, defalentado e rendido pela fadiga, defam-
parar a arena das fuás vicl:orias memoráveis. Tinha proftrado
em Portugal a odiada Companhia, mas as hoftes jefuiticas,
defbaratadas e profcriptas no paiz, onde fora mais extenfo
e oppreffivo o feu longo poderio, cerravam agora as fuás
fileiras em redor do Vaticano, e faziam da cidade eterna a
derradeira, mas formidável cidadella, em que eftavam des-
tis
c|3
afiando impunemente a cólera e o delpeito dos monarchas
mais poderofos. Quafi tinliam fentado no folio pontificio
o feu geral, cuja figura altiva e dominante deixava mal vifi-
vel na penumbra o vulto macerado do pontífice, já prefi:es
a efconder-fe nas Ibmbras fepulchraes. A companhia de
Jefus era um exercito vencido cm vários pontos nos flancos
da fua linha de batalha, tendo porém o centro ainda intado
e protegido por defezas ainda então inacceffiveis ao inimigo.
Emquanto em Roma continuaífe a tremular a bandeira da or-
dem audaciífima, quem poderia aíTegurar-fe contra a poíTivel
contingência de que volveíTem os jefuitas novamente á re-
conquifta do terreno já perdido nas principaes nações da
chriftandade? A Companhia e os feus adeptos efperavam
confiados a bonança, e emquanto o Vigário de Chrifto os
continuaífe a ter de lua mão, e os abroquelaífe com a fua
valiofa audoridade, e confiindiífe a fua caufa com a própria
fubftancia do catholicifmo, e lhes deífe perante a egreja quafi
a fantidade e o valor de um dogma fundamental, não feriam
defafifadas as efperanças dos que faudavam como próximo
o termo á profcripção e captiveiro.
Clemente XIII Ibubera inflexível refiftir a todos os em-
bates das potencias mais empenhadas na total abolição da
Companhia. O pontífice, com uma alteza de animo real-
mente admirável n'um papa da edade média, fupportára
com paciência exemplar as humilhações c as ameaças dos
maiores e mais catholicos potentados. Alongando as viftas
piedofas e afceticas aos tempos, em que as infignias pontifi-
caes eram o prenuncio do martyrio, julgava-fe fadado a fal-
var a egreja contra a aífolação da impiedade. Era Leão o
magno abatendo com o preltigio efpiritual do fummo facer-
docio a majeftade e o poder do bárbaro coroado. Podéra a
França coUigada com a Hefpanha na vindicação de uma af-
fronta infolita aos Bourbons, tomar com as luas tropas os
446
dominios do papa em Avinháo, em Benevento, em Ponte
Corvo. Clemente XIII perfeverava impaíTivel e refoluto a
defender o que, na fua eftreita mas ingénua comprehcnfáo do
pontificado, reputava indiíToluvelmente vinculado á dignidade
e á honra da cadeira de S. Pedro. O velho antiftite via com
intenfa dor o rei JideUj[Jiino por excellencia quafi inteiramente
feparado da cabeça vifivel da fé chriftan.Via o rei catholico,
na terra claííica da inquifição e do fanatifmo, enviar em tom
hoftil os feus foldados contra o património pontifício. Via o
rei chrijiiauijjimo, o filho primogénito da egreja, pelo órgão
do fceptico Choifeul e do violento D'Aubeterre, lembrar-fe
mais de que era foberano do que bom chriftão fi.TbmilTo e
reverente ás bulias e refcriptos do papado. Via a própria ma-
jeftade apostólica, reprelentada na imperatriz Maria Thereza
de Auftria, inlenfivel e indiíferente ás tribulações do c[ue fe
nomeava o mais alto lucceíTor do apoítolado. Lafiimava-fe,
receiava porventura, que um novo condeftavel de Bourbon,
acaudilhando as hordas de mercenários, pozeíTe mãos profa-
nas nos muros lacratiffimos de Roma, e renovando o capti-
veiro de Clemente VII no caftello de Sant'Angelo, lhe in-
íiigilTe a derradeira humilhação como áquelle leu gloriolb
anteceíTor. Amargurava-le, mas perfiftia inquebrantável. Os
jefuitas applaudiam a firmeza do pontífice, que cerrava os
ouvidos ás inftancias imperiofas, com que o rei de Hefpanha
Carlos III e o duque de Choifeul, o miniftro de Luiz XV, exi-
giam a completa abolição da Companhia. Emquanto as duas
cortes de Bourbon marchavam na ^'anguarda na campanha,
bufcando eftreitar Clemente XIII e fazel-o render á difcri-
ção, decretando finalmente a luppreíTão da Companhia, não
eítava ociofo o eítadifta portuguez. A fi.ia fervorofa impa-
ciência levava-o a confiderar demafiada a manfidão, com que
fe haviam os monarchas de França e da Hefpanha. O du-
que de Choifeul ordenara ao embaixador francez em Roma,
447
que em todos os Icus procedimentos para com o papa Cle-
mente XIII fe accordaíTe com o miniftro plenipotenciário
portuguez, que retirado a Nápoles não deixava de feguir aíTi-
duamente o proceíTo das negociações.
Nos primeiros tempos depois do rompimento das relações
com oVaticano, o rei D. Jofé, a quem pelava porventura na
confciencia eíte divorcio efpiritual com a Sé apoílolica, de-
fejava com ardor que fe bufcaíTe algum meio de honrofa con-
ciliação. N'eíte fentido efcreviam íem carader official o pa-
triarcha de Lifboa e o próprio Sebaftião de Carvalho. Ao
feu efpirito vidente e experimentado nas traças e artifícios
da cúria romana, e profundamente convencido da inflexível
tempera do pontífice reinante, não fe afiguravam efperan-
çofas aquellas oflficiofas negociações. Perfiftia o papa inque-
brantável, como quem defejava levar ao extremo ponto a
fituação religiofa de Portugal, para que a final vieíTe a fub-
metter-fe ás duras condições do pontificado. E era entre
ellas a principal que os jefuitas foífem reftituidos, e trium-
phalfem orgulhofos do feu humilhado e penitente adverfario'.
Um efcriptor de tão grande auítoridade e tão connexo
intimamente com os legítimos intereífes da Santa Sé, o pro-
feíTor allemão Theiner, obferva na fua Hijloria do pontificado
de Clemente XIV, que um fonho tão piedofo fó podéra en-
gendrar-fe na cabeça dos jefuitas e dos feus obcecados pro-
pugnadores.
Na crença lifonjeira de que a lua ordem era deítinada
a coexiítir com a própria egreja até á confummação dos fe-
I Gefchichte des Pontificais C.lemcns' \IV nach unedirten Staats/chriften
aiis dem geheimen Archive des Valicaiis von profeflbr dr. Theiner, Prafeél-
Coadjutor des geheimen Archivs des heiligen Stuhls (Hiíloria do pontificado
de Clemente XIV, íegundo documentos officiaes inéditos do archivo fecreto do
Vaticano pelo profeílor dr. Theiner, prefeito-coadjutor do archivo fecreto da
Santa Sé). Leipzig, i853, parte i, pag. 7.1.
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culos, os jefuitas não defalentavam nas cfperanças de ver
reconduzidos ás terras de Portugal os que cm numero de
cerca de novecentos então padeciam nos eftados pontifícios a
penúria e o exilio. Aflim o confeíTava n'um longo memorial
a Clemente XIII o padre Lourenço Ricci, geral da Compa-
nhia, com o intento de moílrar ao fanto padre que não podia,
nem devia fecularifar e abfolver dos votos religiofos os jefui-
tas de Portugal ' .
O monarcha portuguez, apelar da eítreiteza proverbial
do feu eípirito e dos eícrupulos da lua meticulola confciencia,
era antes de tudo rei e zelador das fuás prerogativas, e per-
liftia em laftimar como chriftão e filho obediente da Sé apos-
tólica, o que a dureza d'eíta mãe inexorável o conftrangia a
fazer como foberano independente em juftitnma defeza do
feu direito e da fua dignidade. Carvalho, attentando na in-
vencível refiftencia do pontifice a todo o expediente de julfa
e decorofa accommodação, não via aberto outro caminho
fenão o do enérgico e refoluto proceder das cortes catholicas
para forçar o Vaticano a immolar á unidade e á paz da egre-
ja as paixões de uma ordem turbulenta e condemnada.
São notáveis as palavras, com que Sebaftião de Carvalho
n'um feu papel otferecido ao confelho de eftado por occa-
lião de fe difcutir n'aquelle tribunal politico a bulia Aiiiiua-
nini faliiti, expreíTa claramente a fua completa defefperança
de que podelTe Portugal com as cortes empenhadas na
' «Siccome il papa ha tenuto fempre un cappello vacante per la noniina ili
Portugallo, per fperanza che debbano un giorno comporfi le difcordie, che ver-
tano tra la corte di Portugallo e quella di Roma, cofi confervandofi rairiflenza
di Portugallo, fi verrà a moflrarfi la fperanza che col divino ajuto (lano un giorno
por eirerc richiamati i gefuiti in quel regno; Non eft hnpojjibile apud Deinii o)}uie
verbum; non ejl abbreviata }namis Domini. E certo che il papa, come padre com-
mune per bene di queíto regno e per la premura delia cattolica religione deve
nutrire e moftrare una tale fperanza." Memorial do padre geral dos jefuitas d
fanlidade de Clemente XIII, Z 4."
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extincção da Companhia, confeguir a paz da egreja durante
o funefto pontificado de Clemente XIII. Depois de proteftar
o fer a guerra, comquanto um grande mal, o único remédio
para com elle fe evitarem maiores damnos, depois de reca-
pitular os attentados jefuiticos contra as coroas mais catho-
licas, e ponderar o direito aíTédio, em que os jefuitas, tendo
á frente o leu indómito geral, haviam pofto o timorato e dé-
bil Clemente XIII, accrefcenta o republico eminente, que, to-
dos os ados da Companhia e do pontífice têem conftituido
outros tantos defenganos defi:ru6I:ivos de toda a efperança de
que as calamitofas ruinas e extremofos males, que eftá pade-
cendo a egreja . . . poíTam achar reparação ou remédio algum
na cúria de Roma, a menos que a Divina Providencia não
obre um d'aquelles rarifllmos milagres, que de modo ordiná-
rio não cofl:uma fazer baixar ao mundo, emquanto n'elle ha
meios humanos, que poíTam fazer ceíTar calamidades taes,
como eítas de que hoje fe trata'.
Opinava o eftadifta que, em prefença de um mal, que ia
todos os dias mais engravecendo, devia Portugal unir-fe ás
cortes de França e de Hefpanha, egualmente oífendidas pela
cúria e os jefuitas, para que de commum accordo os redu-
ziíTem á razão, e defaíTombraíTem o pontífice do captiveiro
moral, em que jazia. Indicava Sebafi:ião de Carvalho que
entre os remédios poderia alguém lembrar o que pedia a con-
jundura, qual era a convocação de um concilio geral-, mas
era expediente demorado, e na epocha actual, fujeito a mil
contradicções e embaraços. A guerra aberta, material, inexo-
rável, qual poderia fer feita por foberanos a outro príncipe
temporal, parecia ao miniítro portuguez o extremo recurfo
■ Voto original do conde de Oeiras para o confelho de eftado em 24 de
agoílo de 1767. Collecçáo dos negócios de Kntna, parte 11, pag. 284 e 285.
2 Voto citado, pag. 28b.
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contra a cúria impenitente. Citava os exemplos memoráveis
do imperador Henrique IV contra o papa Gregório VII, de
Filippe o formolb, rei de França, contra Bonifácio VIII de
triftiííima recordação, do piedolb Carlos V mandando o con-
deftavcl de Bourbon á frente dos feus reitres e landfknechts
allemães tomar e metter a facco e devaífação a cidade eterna
e encarcerar o papa ClementeVII no caftello de Santo Angelo,
de Filippe II contra o pontifice Paulo IV. E é notável que
Sebaftião de Carvalho, defejando que n'eftes feveros procedi-
mentos le catem inviolavelmente as attenções ao lummo fa-
cerdote, e le encubra a guerra com o euphemiímo artiliciofo
de occiípação das temporalidades, profeíTa que a foberania
temporal dos pontífices romanos « nada tem de commum com
a egreja de Deus' » . Propunha finalmente Sebaftião de Carva-
lho que Portugal, a França e a Hefpanha alcançaíTem pela
força a total extincção da Companhia e o caftigo fevero do
feu geral, e dos feus principaes cooperadores nos infultos
commettidos contra os foberanos coUigados. Defde que do
alto do throno pontifício partia n'um chuveiro de raios efpi-
rituaes a aggreíTão contra as potencias mais infignes pelo feu
catholicifmo, era licito, opinava o efladifta, que á hoftilidade
aberta do pontifice refpondcíle a violenta reprefalia. Não po-
dia Sebaftião de Carvalho ingerir-fe oííicialmente na queftão,
que trazia incendidas contra Roma as três cortes da cafa de
Bourbon, porque eftavam rotas as relações de Portugal com
o fanto padre. Mas o feu efpirito, dominado pela impacien-
te afpiração de ver extindía por uma vez a Companhia, não
deixava de empregar todos os meios para inftigar os reis bour-
bonicos a uma acção vigorofa, que poderia acafo terminar
no emprego da força material. Em feu parecer, as cortes de
França, de Nápoles e da Hefpanha deviam concertar-fe para
■ Voto citiido, pag. 289.
ti»
exigir a demiílao do cardeal Torreggiani, íecretario de erta-
do pontifício, e a immcdiata abolição da Companhia. Segun-
do uma veríao, o eftadirta portuguez chegava a lembrar em
cafo extremo a própria depofição de Clemente XIII, como de
quem pela fua conlervação na combatida naveta de S. Pedro
poderia porventura ainda expôl-a a mais calamitofas tempes-
tades'. Os gabinetes deVerfailles e Madrid apelar da Ília ani-
madverfão á cúria, não condefcendiam com os defejos de Car-
valho, pondo em eífeito defde logo as providencias radicaes.
Mas o duque de Choifeul, miniftro dos negócios extrangeiros
de Luiz XV, por muitas vezes exprime nos feus defpachos a
confideração, que lhe merecem os ferviços e os confelhos do
célebre eftadifta e o propofito de que o embaixador de Fran-
ça em Roma bufque lempre concertar-le com o antigo ple-
nipotenciário portuguez ^ Egualmente prefcrevêra o governo
de Madrid que o leu reprefentante junto da Santa Sé com-
municaíle com Francifco de Almada tudo quanto houveíTe
de aprefentar a Clemente XIII.
Emquanto a corte de Roma bulcava artificiofamentc na
apparencia concertar-fe com a de Portugal, não remittiam
os jefuitas e os feus fautores no empenho de levar o pontifice
romano e as fuás temerárias oufadias até o extremo derradei-
ro. Não contente a cúria de ter por largo tempo, antes e de-
pois do rompimento, affrontado com as luas infenfatas provi-
dencias a coroa de Portugal, pozera ainda o remate á fua obra.
expedindo e fazendo divulgar n'efte paiz a bulia Animanim
faliiti, que preítava novas armas á companhia de Jefus para
que a feu talante podelfc fortalecer a perpetua confpira-
1 Vilconde de Sant;irem. Quadro elementar, tom. vii, pag. 279.
2 Defpacho de Simonin, encarregado de negócios de França em Lifboa,
ao duque de Choifeul, de 27 de outubro de 1767. Santarém. Quadro elementar,
tom. VII, pag. 327.
«Is
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cão contra o governo portuguez. Mas a lei de 28 de agoíto
de 1767, com que Sebaftião de Carvalho reprimira a nova
audácia do Vaticano, chegara a convencer os jefuitas e os
curiaes feus protedores de que não era já vibrando golpes
temerofos, que lograriam aterrar o briofo miniftro portuguez
e promover a fua proftrada fubmiíTão ao arbítrio da Sé roma-
na. Apenas o marquez d'Aubeterre, embaixador francez em
Roma, fez chegar ás mãos do papa a valente reprelalia, com
que Sebaftião de Carvalho refpondêra na lei de 28 de agofto
á nova provocação, foi tremendo, indifivel o terror do ponti-
fica oófogenario, perdidas quafi as forças na violência dos
combates. Acudiram os jefuitas e os {elantes a aconfelhar a
inftancia, a brandura, a humildade, em vez do império, da
arrogância e da ahivez. Veiu o papa em efcrever a D. Jofé
em termos fentimentaes, exorando-o a que em nome da cari-
dade chriftan e da piedade filial para com o pae commum e
efpiritual da chriftandade, pozeíTe termo á longa diffidencia
entre o paftor univerfal e as ovelhas defgarradas dos aprifcos
evangélicos. O breve dirigido ao monarcha portuguez era
datado a 3i de agofto de 1767. «Não repugnes, dizia Cle-
mente XIII, ó cariílimo filho em Chrifto, a efta paz, c aflim
como nós a ti nos dirigimos, fe a tua regia majeftade a nós
fe approximar, o mefmo Deus mifericordiofiffimo, que é
Deus de paz e de amor, coagmentará entre nós ambos a paz
e a concórdia». Em meio. das mais aífeéfuofas expreíTões,
com que o vigário de Chrifto bufcava lenir e abrandar o rei
de Portugal, e encarecer com palavras evangélicas as excel-
lencias da paz na egreja univerfal, nem uma única vez trans-
luzia no pontifice o propofito de emendar os aggravos, que fi-
zera á corte portugueza, nem de corrigir as infolentes aggres-
fões, com que os jefuitas em Roma fomentavam a crefcente
defunião entre as nações catholicas e o fupremo chefe efpiri-
tual.
«Is
4ii ■
U papa com altucia romana, que lhe parecia accommo-
dada á occalião, dirigia na mefma data um breve deprecato-
rio ao levero miniftro de D. Jofé. N'eíte notável díjcumento
laftimava Clemente XIII, como a maior de quantas calamida-
des tinham affligido o feu infauíto pontiíicado, a feparação e
rompimento, em que vivia do feu religiofo Portugal. Doia-
Ihe no intimo da alma o ver-fe mal-avindo com o Ibberano,
cm quem, aíTun como um pae fe enleva e fe compraz n'um
tilho dilediffimo, afllm elle fe comprazia e enlevava com
aífeclo paternal. Efperava o pontiíice da piedade e religião
de D. Jofé e dos exemplos dos feus maiores, que não efta-
ria longe o dia, em que fe vinculaíle no^'amente por laços
de extremofa conciliação a coroa portugueza e a Santa Sé.
Mas a fua principal efperança, dizia Clemente XIII, eftava
pofta no auxilio e intercelfão de Sebaftião de Carvalho. «To-
das as condições em ti fobejam para coníblidar de novo a
amifade entre nós e o rei de Portugal; e entre ellas princi-
palmente com razão a confiança, que o foberano tem nos
teus confelhos » . Terminava o pontífice a fua epiftola com
aquellas palavras da efcriptura: «Attenta, ó filho, na edade
proveda de teu pae, e não amargures mais a ília vida».
Juntamente com os breves para el-rei, e para Carvalho,
remettêra o arcebifpo de Nicéa, núncio em Madrid, mais
duas epiftolas, uma d'ellas dirigida á rainha e outra ao in-
fante D. Pedro.
E manifefto que os jefuitas, os curiaes e os lelaíitcs, que
tinham aconfelhado Clemente XIII a expedir os breves onde
as blandícias hyperbolicas ferviam a efconder e mafcarar a
aufencia de um aífumpto para fincera negociação, não po-
diam confiar na efficacia de tão inane e pueril expediente.
Adivinhavam feguramente que o eíTeito das lettras pontifí-
cias no animo de Carvalho feria o que elle cxpreífou n'eftas
phrafes de indómito defdem: «Tudo ifto fão palavras patheti-
s|9
(|3
cas, que fó fervem para moverem dos púlpitos o povo igno-
rante e que de nada fervem fenão para moftrarem a malicia
com que as efcreveu, quem com ellas fignificou defejar um
fim, para o qual tem negado e efta aílualmente negando to-
dos os meios úteis'».
Eftas expreffões cifraram a fummula da refporta efcripta
por Sebaftião de Carvalho e expedida ao papa Clemente XIII
com a regia aíTignatura. O celebre uon pojjwniis do inflexivel
Pio IX era antecipado n'efl:a epiftola pelo duro miniftro do
rei de Portugal.
Na carta efcripta a Clemente XIII por D: Jofé, datada
de Azeitão a 5 de dezembro de 1767, o hábil eftadifta por-
tuguez excedia no preambulo os termos aflfeduofos de que
o papa entretecera a fua miíTiva ao foherano fideliínmo.
Defentranhava-fe o monarcha em amoraveis e rendidas ex-
preífóes, com que fignificava a fua mais fervorofa devoção
e ternura filial á Santa Sede e á pjcífoa venerável do pontífice
romano. Depois de fe proftrar aos pés do antiftite fupremo
para o venerar como catholico, erguia-fe improvifamente
como rei, e rei ludibriado e oífendido, para vindicar em ás-
peras, mas verdadeiras exprobraçôes os aggravos e as aftVon-
tas, que da cúria longamente recebera. Não era elle quem
movera a aberto rompimento as pacificas relações das duas
cortes. Não era elle o culpado de que uma ordem de regu-
lares, que fe propoz por objedo a conquifta do mundo e por
fyftema o homicidio dos foberanos, « . . . e que na corte do
pontífice tinha o centro do feu governo, machinaífe dentro
n'ella o malvado plano, com que mandara aífaílinar ás por-
tas do feu palácio o rei de Portugal » .
Profeguia a refpofta compendiando todas as fucceífivas
' Analyfe dos ahfurdos, que se contém no breve... ile 'ii de agoflo de
1767. Cnllecçãn dos negócios de Roma, parte ii, pag. 149.
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machinações, com que os jeluitas, á Ibmhra protedora do fo-
lio pontifício, haviam concitado a jufta indignação do rei de
Portugal e o tinham neceílltado a recorrer aos uhimos remé-
dios e a empregar o poder Ibberano e lecular para retorquir
os golpes do gladio efpiritual, «fí.iftentar o decoro da majes-
tade, a dignidade e o direito da coroa e o Ibcego publico dos
povos, que viviam debaixo da fua immediata protecção » .
Taxava de obrepção e fí.ibrepção o breve de Clemente XIII,
que fob color de laftima, de uncção e de piedade, era, como
outros forjados na mefma fragua jefuitica, encaminhado a que
verteíTem novo fangue as feridas, que na apparencia preten-
diam cicatrizar. E ifto fe revelava claramente em que nas
lettras do pontífice não tranfluziam, nem por minima allu-
fão, os meios, a que a Santa Sede fe propunha recorrer para
chamar de novo á obediência efpiritual do fanto padre as
chriftandades portuguezas.
De egual teor era na fuhftancia a refpoíta de Carvalho
ao breve exhortatorio, em que o pontifíce o exorava a fer
interceíTor e medianeiro na fonhada reconciliação. Nada fe
podia conceber de mais gentil, graciofo e cortezão do que
as palavras em que o ardilolb diplomático agradecia a Cle-
mente XIII a conta, em que tivera a lua interceífão. Era
porém infelizmente inexequível todo o empenho de concilia-
ção e de concerto, defde que no breve dirigido ao rei fe não
defcortinava um meio único de tornar effeftiva a defejada
accommodação.
Bem fabiam os curiaes e os jefuitas, que a frecha inha-
bilmente difparada contra o eftadifla portuguez, rigido e in-
flexível propugnador das regalias temporaes, viria defpon-
tar-fe na couraça do tremendo antagonifta e que do retorno
faíriam certamente mal-feridos. Determinava-os todavia a
conta, que deitaram, de que por ertas infídiofas propofições
de paz e de concórdia, alcançariam pôr da fua parte a razão
1 '
e a JLiftiça. Dir-fe-ía no mundo entre os illulbs e os malévo-
los, que o vigário de Chrifto fe humilhara fupplice e lacry-
mofo diante do monarcha portuguez, rojando aos pés profa-
nos de um novo Henrique IV a tiara de Hildehrando, e que
o obdurado e rebelde filho pródigo repellíra com felvatica
bruteza as caricias apoftolicas de um pae anguftiado e extre-
mofo.
Com os breves expedidos pelo papa viera juntamente a
bulia da cruzada, cujo ultimo fexennio concluíra em 1763.
Julgara Clemente XIII com efta graça efpontaneamente
concedida poder teftemunhar o feu efpirito pacifico e o
quanto fe comprazia em ter abertos para o foberano portu-
guez os thefouros da egreja. Mas ainda efte ardilofo expediente
não logrou o eíFeito defejado. Repulfou Sebaftião de Carva-
lho com indomável altivez a munificência pontificia. Acerca
da bulia da cruzada deu parecer o procurador da coroa,
Jofé de Seabra, demonftrando que não era neceíTaria, por-
que todas as indulgências e favores efpirituaes, que n'ella íe
continham, permaneciam em ^'igor, e a difpenfa de ovos e
lacticínios na quarefina entrava na jurifdicção ordinária dos
prelados, fem que podeíTem contra ella prevalecer as refer-
vas do ÍLipremo pontificado". Conformou-fe com o voto do
Seabra a mefa do defembargo do paço, concluindo que de-
via negar-fe o beneplácito ao diploma pontifício, que o fis-
cal da coroa reputa\a como nova ca\-illação dos jefuitas e
affrontofa provocação á majeftade-.
Não baftava porém, no intento do miniftro, declarar lub-
repticia a bulia da cruzada.
' Refpolla do procurador da coroa fobre a pretendida bulia da cruzada.
Collecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. i 58 e fegg.
2 Confulta do defembargo do paço, de i3 de janeiro de 1768. Collecção dos
negócios de Roma, pag. 174 e fegg.
437
Cumpria dar aos que a tinham fuggerido e minutado,
relpofta mais fevera, não de palavras, mas de fados. O fa-
nado da camará de Lifboa reprefentou ao patriarcha, pelo
órgão dos feus procuradores, os graves inconvenientes que
nafciam para as confciencias timoratas e para os intereíTes
económicos da cidade c povoações circumvizinhas, que na
aufencia da bulia não foíTe difpenfada pelo prelado a prohi-
bição dos ovos e lacticínios. Adduzia uma larga memoria,
em que hiftorica e juridicamente fe provava que era geral
coílume defde íeculos nas diocefes portuguezas o ufar de ovos
e lacticínios no tempo quadragefimal'. Deferindo ás inftancias
do fenado, o cardeal Saldanha, patriarcha de Lifboa, decla-
rou n'um edital que na fua archidiocefe não era de preceito
a abítinencia, e que todas as fuás ovelhas podiam fem efcru-
pulo, nem embaraço das fuás confciencias, ufar livremente
dos ovos e lacticínios-.
D'efta maneira procedia Sebaítião de Carvalho, o inte-
merato e animofo regaliíla, que pela audácia das doutrinas
e dos feitos no governo deixava na fombra os mais eftrenuos
defenfores das liberdades na egreja gallicana, os mais illus-
tres magiftrados dos parlamentos em França, e os mais arro-
jados propugnadores das regalias majeftaticas em Hefpanha,
os Campomanes, os Rodas, os Moninos, que fairam a enfrear
as ufurpaç(3es dos curiaes e as invafões do poder cccleíiartico
nas foberanas temporalidades.
E mais adiante procedera porventura o efladifta portu-
guez, fe o tempo lhe tivera afado a conjundura. Durante a
quebra das relações com o Vaticano as egrejas epifcopaes,
■ Demonllração do poder e obrigação que todos os prelados têem de dis-
penfar na abftinencia de ovos e laílicinios, ele. Collecçdn dos negócios de Roma,
parte ii, pag 177 e fegg.
2 Edital do cardeal patriarcha de 24 de fevereiro de 1768. Collecção dos
negocias de Roma, parte 11, pag. 177 e íegg.
eis
-§-<>-• ►V^
458
que iam vagando, ficavam viuvas de paíiores. Não podiam
impetrar de Roma a confirmação os bifpos novamente apre-
fentados. Pois difpenfemos Roma e a tiara, e volvamos refo-
lutos á primeira difciplina da egreja n'aquelles tempos de
evangélica fingeleza, em que os papas fe não tinham arroga-
do, como lua, a maior parte da jurifdicção inherente ao epis-
copado. Era em 1766. Tinha el-rei aprefentado novos bifpos
nas diocefes deVizeu e Portalegre. Poderiam os prelados, fcm
efperar a confirmação, entrar logo na adminiílração temporal
e elpiritual dos léus bifpados? O doutor João Pereira Ramos
de Azeredo Coutinho, jurifconfulto verfadiífimo em ambos
os direitos, refpondeu com a affirmação e deduziu as provas
da fua doutrina em uma obra memorável'. Mandara Sebaítião
de Carvalho que uma junta de magiftrados, canoniftas e
theologos, em numero de trinta, confultaífe acerca d'aquelle
efcripto. Reunem-le a 3 de abril na fecretaria do reino. Eram
entre elles os mais notáveis o arcebifpo de Évora, o in-
quifidor geral Paulo de Carvalho, o doutor Jofé Ricalde Pe-
reira de Caftro, os defembargadores Ignacio Ferreira Souto,
Jofé de Seabra, João Pereira Ramos, Fr. António de Sant'An-
na, confeífor do rei, Fr. António da Annunciação, confeífor da
rainha, o theologo eminente António Pereira de Figueiredo,
o eruditiílimo Cenáculo, então provincial da ordem terceira
da Penitencia, c Fr. Ignacio de S. Caetano, que depois foi
bifpo de Penafiel. Foram concordes todos os votos em que
aos bifpos era licito adminiftrar as diocefes antes de recebe-
rem confirmação. Apefar de tantas e tão graves auétoridades,
em muitas das quaes era indubitável a piedade e a averlão
ao fcifma e á herefia, não oufára Sebaftião de Carvalho pôr
' Tratado original fobre o poder dos bifpos nomeados por fua majeílade
no tempo de rotura com Roma para poderem adminiftrar os feus refpeíUvos
bifpados, antes de obterem as confirmações pontifícias. Collecçáo dos negócios
de Roma, parte ii, pag. i88 e fegg.
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eis ti»
cia
em eífeito defde logo a extranha refoluçáo. Quizera a princi-
pio florear aos olhos de Roma e fazer luzir ameaçadora a
nova arma, que tinha preíles para o combate, como que para
incutir-lhe o terror de que aos últimos extremos le podia
gradativamente abalançar, fe a romana prudência não com-
praíTe a tempo a paz da egreja a preço de extinguir a odiada
Companhia.
A crefcente irritação do miniftro portuguez contra os je-
fuitas, feus entranhados inimigos, e contra a obcecação dos
curiaes chegou ao leu cumulo, quando teve conhecimento do
monitorio pontifício contra o duque de Parma e Placencia.
Era Sebaftião de Carvalho, como um leão, que já ferido no
combate recebe novo golpe no lítio mais fenfivel, onde gote-
ja langue antiga ferida. O inlulto feito ao duque de Parma
recaía ainda mais pefado e affrontolb nos príncipes das anti-
gas e mais orthodoxas monarchias. A efte repto do papado
era urgente relponder com a derradeira humilhação
Era indifpenfavel que todas as potencias catholicas, inju-
riadas pelo ediéto do pontífice, de commum accordo retor-
quiíTem com violência a aflronta do Vaticano. Urgia marchar
lem dilação e relblutamente contra Roma e impor a Cle-
mente XIII a immediata abolição dos jefuitas, cuja proterva
impenitencia eftava lem ceíTar aíTligindo a egreja com lafti-
maveis turbações e ameaçando convellir e derrotar o catho-
licifmo. Se já defde c]ue em Portugal fe fizera conhecido o
breve Animaritm faliiti, dizia Sebaftião de Carvalho n'um es-
cripto oíficial, fe não podia deixar de proceder pelas vias de
fado a cohibir as façanhofas temeridades do minifterio ro-
mano, e a caftigar os facrilegos infultos do geral dos jefuitas
e do feu abominável fynedrio, muito mais fe faziam agora
urgentes os enérgicos procedimentos depois que fe haviam
aventurado os jefuitas e os curiaes a declarar por defunido
do grémio catholico ao duque de Parma e a concitar á rebel-
460
lião os feus eftados". Opinava Sebaftião de Carvalho que em
todos os eftados catholicos, oífendidos pelo monitorio contra
o infante de Hefpanha, duque de Parma, fe deveriam affixar
Iblemnes e publicas annuUatorias das excommunhões vibra-
das com tão grande iniquidade, expreíTamente áquelle prín-
cipe, e tacitamente a quantos no orbe catholico exercitavam
livremente os foros e regalias do império temporal. Deviam
egualmente as potencias intereffadas no confiido defde logo
exercer nas temporalidades pontifícias as juftas repre falias,
permittidas por todos os direitos divinos e humanos, com as
quaes podeíTem caftigar o atroz infulto^
A i5 de março de 1768 efcrevia Sebaftião de Carvalho
a Ayres de Sá e Mello, embaixador de Portugal em Madrid,
para que pozeíTe na preiença do rei catholico os perigos
imminentes e agora mais cjue nunca temerofos, que eftavam
ameaçando as nações catholicas da Europa meridional. Or-
denava-lhe que exprimiffe a Carlos III a parte que o rei de
Portugal tomava finceramente no ultraje dirigido pela cúria
ao infante duque de Parma e a toda a familia de Bourbon.
Significava-lhe ao mefmo tempo n'ac]uelle pompofo e figura-
do eftylo, que refpira ao mefmo paffo a majeftade e denun-
cia as influencias feifcentiftas, que fizeíTe conftar ao rei de
Hefpanha a confiante firmeza, em que fe achava de con-
correr com quanto foíTe poffivel para que de uma vez foffem
cortadas as cabeças da disforme hydra, que eftava derraman-
do tantos venenos infernaes na mefma corte, cabeça da egre-
ja, e nas de toda a Europa catholica romana \
1 Analyfe do cedulão expedido em Roma... para fulminar as ceníuras
n'elle contidas contra o duque de Parma, etc. Collecção dos negócios de Roma,
parte 11, pag. 296.
2 Ibid., pag. 298.
3 Carta inftrucliva do conde de Oeiras a Ayres de Sá e Mello. Collecção
dos negócios de Roma, parte 11, pag. 3o i.
461
Numa carta lecretiíTima a Ayres de Sá e Mello ponderava
o inflexível adverlario dos jefuitas fer chegada a mais pró-
pria conjuncção de que as potencias otfendidas pelo papa
inftaíTem com ^■ehemcncia pela extinção da Companhia, pela
dura punição do feu geral e dos feus confelheiros e fautores.
E n'uma nota que devia expedir o embaixador de Portugal
ao marquez Grimaldi, primeiro miniftro de Carlos III, e cuja
minuta ia exarada, ha^■eriam de reitcrar-fe as já feitas foUi-
citações para que os foberanos colligados exigilTem, como
único remédio aos males prefentes. a prompta abolição da
funefta fociedade'.
Não dava tréguas Sebaítião de Carvalho á fua enérgica
diligencia em eftimular os brios e o vigor do rei catholico e
do minirtro napolitano, que tinha então o logar preeminente
em feus confelhos. Mas nem Carlos III, a defpeito do feu
profundo refentimento contra o papa, nem Grimaldi, apefar
de concitado pelos mais ardentes regaliítas, e entre elles o
celebrado Campomanes, pareciam áquella fafão determina-
dos a ver na extincção total da ordem turbulenta a única
baftante reparação ás oíTenfas recebidas pela coroa e ás tur-
bações graviíTimas da egreja. Apefar de aggravado na honra
da familia. e nas preeminências da regia poteftade, ardendo
em defejos de redarguir com alguma eftrondofa reprefalia á
audácia dos curiaes, não chegara a comprehender inteira-
mente como a confervação dos jefuitas tornaria infeguras,
precárias, enganofas todas as demais fatisfações, que lhe po-
deífe dar o Vaticano.
Repugnava a principio Carlos III á total abolição da
Companhia, por lhe parecer que depois de a expulfar de
I Cana lecretiíTima a Ayres de Sá e Mello, de i5 de março de 176S. Col-
lecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. 3o2.
«I?
--6^
eh
4Ó2
feus eftados, como turbadora manifeíta da paz publica, níío
convinha dar aos livres penfadores e aos philofophos um
triumpho tão completo como a inteira luppreffão da focieda-
de em todo o orbe catholico. O fanatifmo torvo do monarcha
e a zelofa defenfão das luas regalias celebravam uma mo-
derada tranlacção, e julgavam-fe egualmente fatisfeitos com
expullar do território das Hefpanhas os jefuitas das provin-
cias helpanholas'.
Acrefcia a eíta frieza no ponto capital da queítão religiofa
que trazia agitada a opinião e convulfos os governos, o ciúme
delpertado pela idéa de que Portugal, reprelentado pelo íeu
grande eftadifta, foíTe parte na pendência, que os foberanos
da cafa de Bourbon reputavam como própria e exclullva de
qualquer extranha intervenção. Accedendo na apparencia ás
inftancias de Carvalho, convinha o gabinete de Madrid, em
que o rei de Portugal fe unilTe aos três monarchas da cala
de Bourbon em tudo o que le houveíTe de reprelentar a Cle-
mente XIII, a propolito do famolb monitorio contra o infante
duque de Parma. Aconfelhava porém que em vifta de não
ter Portugal miniftro em Roma, delegalTe nos agentes diplo-
máticos de França, de Nápoles, de Helpanha a faculdade de
pedirem ao papa latisfação por parte do monarcha portu-
guez-.
Para folver a objecção de que, na prelença de um longo
rompimento com o pontifice, Portugal não tinha em Roma
miniftro acreditado, ordenou Sebaftião de Carvalho que fem
fazer detença na partida fe embarcaíTe para Itália o antigo
enviado portuguez, que em Lifboa refidia áquelle tempo. As
> Saint-Prieft, Hijloire de la chute des jé/uiles au x\m fii^cle. Paris, 1846,
pag. 70.
2 Carta de Sehaltião de Carvalho a Ayres de Sá e Mello, de 9 de abril de
17G8. Collecçáo dns negócios de Roma, parte 11, pag. 3o3.
eis
inftrucções expedidas a i6 de abril de 1768 ordenavam ao
antigo negociador que em um navio dinamarquez então furto
no Tejo, fe dirigilTe a Génova e d'ali procedeíTe a Pifa e
a Siena. D'ali fe lhe mandava que efcrevelTe aos miniftros
das três cortes bourbonicas junto do papa, annunciando-lhes
o fer chegado e eftar difpofto a ir a Roma, quando elles o
houveífem de avifar de fer opportuna ali a fua entrada. Em
dois pontos eífenciaes eram terminantes e formaes as inftruc-
ções. Em primeiro logar o enviado portuguez deveria, pelo
feu hábil e cautelofo procedimento, tirar a occafião ao menor
equivoco fobre qual era a natureza efpecial da fua miífão.
A fufpenfão das relações entre a cúria e Portugal permane-
cia fem nenhum temperamento ou retradação. O enviado
portuguez devia em todas as fuás palavras e acções confirmar
que o rei de Portugal «nem um fó ponto cedia da quebra
jufta e neceífaria, em que fe achava com os curiaes de Roma,
que tinham bloqueado e feito inacceíTivel o paftor univerfal».
Em fegundo logar deveria Francifco de Almada accingir-fe
tenazmente ao poftulado de que o pontifice era inteiramente
irrefponfavel nos ados, que firmava com feu nome, cobria
com a fua audoridade e roborava com o annel do pefcador.
Inventava Sebaftião de Carvalho, por que ficaífe immune e
reverenciada a peífoa do fummo facerdote, a ficção metaphy-
fica dos modernos cafuiftas conftitucionaes. Todas as calami-
dades produzidas pela obfiinação pontifical tinham por an-
dores exclufivos os jefuitas e os iclantes, e fobre as fuás
cabeças deveria cair a execração pelos feitos voluntários do
pontifice. O rei teftemunhava que nunca havia quebrado,
nem jamais quebraria com a peífoa de Clemente III, cabeça
vifivel da egreja, antes lhe profeífava (eram termos textuaes
das inftmcções) filial amor e veneração, e eftes fentimentos
haveria de cultivar ardentemente, quando viífe o papa «res-
tituído á fua plena liberdade para lhe adminiftrar juftiça e
(Is
464
reparação ' • . Prelcrevia-fe a Francifco de Almada que guar-
dadas eílas refervas eíTenciaes, fe accordaíTe com os mi-
niftros da cafa de Bourbon em tudo quanto foffe conducente
á extincção da Companhia e á fatisfação pelo aggravo com-
mettido contra o duque de Parma e de Placencia. Francifco
de Almada faiu de Lifboa a 19 de abril de 1768, mas era
fácil predizer que a fua miífão feria deluforia, emquanto
Clemente XIII occupaífe a cadeira de S. Pedro, tendo a feus
pés como confelheiro e como victima o famofo geral Lou-
renço Ricci, e por detraz do efpaldar o gladio flammeante
de Júlio II e a fombra terrível de Hildebrando. E de feito,
o papa Clemente XIII nem era moralmente irrefponfavel
pela defmefurada protecção outorgada aos jefuitas, nem era
logicamente reprehenfivel pela fua indomável obftinação.
Eítava profundamente convencido de que o fummo pontifi-
cado ou era a fuprema dominação efpiritual e temporal, o
ufo fimultaneo dos dois gládios, e a omnipotente magiftratura
figurada no triregno pontificio, como elle havia fido nos tem-
pos mais efcuros da edade media, ou era uma fombra mal
diítinda, um vaniffimo fimulacro de uma realeza e de um
poder. No efpirito obcecado, mas fincero, illudido, mas hon-
rado de Clemente XIII, como no do noífo contemporâneo
Pio IX, o papado, como limples império das confcicncias fem
nenhuma poteftade temporal, era uma pura e fingular abs-
tracção, que não podia corporificar-fe e fubfiftir. Segundo
cfta doutrina radicada por largos feculos, Clemente XIII re-
putava por fynonymos o papado e a egreja. Todos os que
favoreceíTem as pretenfões pontificaes embora damnofas á
chriftandade, eram bemvindos e amimados no Vaticano.
Os jefuitas refpondiam cabalmente a efta preciofa con-
1 Inftrucção para Francifco de Almada e Mendoça palTíir á Itália. Coltec-
çáo dos negócios da Roma, parto iii, pag. 3o.
465.
dição. Eram como que a velha guarda pontifícia, os mais
fieis e devotados defenfores da monarchia univerlal do pon-
tífice romano. No meio dos embates e das tormentas que
agitavam o papado na legunda metade do feculo xviii a
Roma pontifical, á femelhança da Roma imperatoria na de-
clinação do leu poder, fe via ao mefino paíTo ameaçada ou
invadida pela immenfa exteníão das luas fronteiras. Alçava-
fe diante d'ella um poder novo mais temível que a reforma,
e reptavam-n"a outros efpi ritos mais audazes que Luthero,
Melanchton, Calvino, Zwingle, Beza, ou James Knox. Era
a philofophia reprefentada em Voltaire, em d'Alemhert e na
turba innovadora da Eucyclopedia. Do outro lado arremettiam
contra Roma as egrejas diílidentes, que não celTavam de
apodal-a com o terrivel cognomento de moderna e mais cor-
rupta Babylonia. E onde os efpiritos fortes ou philoíbphos,
e os proteftantes das diverfas confiffões deixavam defguarne-
cida a extenla linha de batalha, lá appareciam amcudando
as luas vigorofas arremettidas os cifmontanos radicaes e os
intranfigentes regalifias. N'efta laftimofa conjunítura, o prin-
cipio da crife porventura a mais tremenda, que tenha pade-
cido o pontificado, licenciar ou dilTolver a milicia mais fiel,
mais difciplinada, mais provecta nas campanhas eípirituaes,
e mais obediente aos arbítrios do papado, feria como fe Na-
poleão, depois da fruftranca expedição á RuíTia, já fangrado
em batalhas defaftrofas, e trahido pelos feus mais perfeveran-
tes alliados, tiveíTe abfolto do facramento militar e difperfa-
do pelos campos n"uma opprobriofa retirada a velha guarda,
aqucUes veteranos, para quem luzira, como o prenuncio de
viftoria, o foi radiofo de Aufierlitz. Clemente XIII em obfe-
quio á paz da egreja, e como fucceífor efpiritual e evangélico
do príncipe dos apoftolos, devia cortar pela raiz a velha ar-
vore, cuja fombra, como a de funefta mançanilha, efterilifava
e refequia a evangélica feara. Mas como fucceíTor dos pa_
466
pas invalbres e terrenaes, era exculavel le em favor não da
egreja, mas da diftadura pontifícia, cerrava em volta do
feu throno vacillante as hoftes dos jefuitas, a quem melhor
que o nome ambiciolb de focios de Jcfus, vinha de molde o
titulo verdadeiro de alabardeiros efpirituaes do fanto padre.
A Companhia era a columna robuftiflima, em que fe firmava
o pontificado, como dominação mundana e temporal. Podia
o papa, como Sanfão, abraçando-fe com ella e convellindo-a
n'um Ímpeto irrelMivel, fazer que n'um ápice caiffe derrocado
o edificio. Alas o papado ficaria envolvido nos efcombros e
os philifteus laíriam immunes de todo o perigo para cantar
o profano Io triumphc da ^•icloria.
Clemente XIII preferia pois á paz da egreja o confundir
os feus deftinos com a fortuna da Companhia, e negava-fe
pertinazmente á minima condefcendencia n'efte ponto com
as cortes empenhadas na inteira abolição. Com a vifão cla-
riffima e penetrante, com que Sebafiião de Carvalho calcu-
lava pelo exacto conhecimento das circumflancias e dos ho-
mens a fequencia neceííaria dos fucceíTos, prophetifava o
eítadirta que íeria impoíTivel o arrancar a Clemente XIII o
breve da extincção. No leu conceito, não era a peíToal predi-
lecção d'efi:e pontífice pela vetufta Companhia, nem o influxo
irrefiftivel exercido no feu' animo pelo facciofo cardeal Secre-
tario de eifado, a caufa principal de que os jeluhas perleve-
raíTem triumphantes, zombando das potencias, com quem
andavam em accefa contenlao. A tenaz confervação dos je-
fuitas enlaçava-fe a um fyítema, que era o móbil principal
em todas as acções da cúria romana, porque mantendo a
Companhia fuftentava os feus próprios e chimericos direitos
a dominar a temporalidade dos foberanos'.
' Minuta do que pareceu ao conde de Oeiras que fe podia efcrever a Fran-
cilco de Almada. Collecçdn dos negócios de Ronm, parte iii, pag. 33 c 3^.
-<0>-« «-v-i"
467
Depois que todos os esforços das três cortes da caía de
Bourbon fe haviam eftrellado infrucluolbs contra a impalTi-
vel refiftencia do pontifice, quando as tropas francezas e na-
politanas, occupando varias terras dos eftados da egreja, não
tinham determinado no animo de Clemente XIII a relblução
de revogar o aflrontofo breve contra Parma, relblveram os
monarchas aíTediar mais rijamente o Vaticano, não, como
propozera ao duque de Choileul o embaixador francez em
Roma, d'Aubeterre, bloqueando e rendendo pela fome a ci-
dade eterna e promovendo n'ella a inlurreição', mas dilpa-
rando Ibbre o decrépito pontiíice um golpe mais certeiro e
inopinado. Recufava deferir ás inflancias de revogar o moni-
torio, quando as bayonetas lhe intimavam a delaífronta dos
dois filhos mais dileítos da egreja. Pois agora ou o papa
aboliria de uma vez a Companhia, ou as confequencias do
leu erro lentir-fe-iam repercutidas em tremendas calamidades
por todo o catholicifmo. O rei de Hefpanha tinha diíTipado
no leu animo os últimos eícrupulos. A averlão entranhavel
do elíadifta portuguez a todos os jefuitas, como funeíta e
criminofa corporação, tinha paílado inteira, ou porventura
ainda exaggerada ao coração de Carlos III. Choileul, que
defde o principio da queftão le moftrára adveríb á Compa-
nhia, mas adverfo iem paixão e lem rancor, ia agora arras-
tado na corrente, a que dava o impuUb principal o Ibbera-
no das Helpanhas. A 10 de dezembro de 1768 o embaixador
de França e o miniftro plenipotenciário helpanhol aprefenta-
vam ao pontifice uma categórica memoria, em que exigiam
a immediata fuppreífão. Tinha chegado para Clemente XIII
o momento das mais cruéis angufiias. Delenlaçava-fe a tra-
gedia, em que, á íemelhança das antigas, a fatalidade enca-
minhava cegamente a acção e o desfecho. O pontifice, que-
Siiint-Príclt, Hijioirc de la chute des jé/uites ati wui Jiècle, pag. 76 e 77.
th
4 Ai
•-fy-^
468
brantado pelos annos c; cumulado de diílabores, não pôde
fobreviver por muitos dias á terrível eítreiteza a que o tinha
chegado a má fortuna. A 2 de fevereiro de 1 769 vagava a
cadeira pontifícia no momento em que era mais grave e em-
baraçofa a fítuação da Santa Sé e das potencias contra ella
colligadas. Cumpria-fe o vaticínio, com que Sebaftião de
Carvalho havia fempre defelperado de que Ibh o pontifica-
do agora concluído vieíTe a reftaurar-fe a paz da egreja, com
a final extincção de Companhia. Por uma carta participou o
facro coUegio a el-rei D. Jofé o eítar vacante o lummo lacer-
docio, e apreílbu-fe o monarcha a reíponder-lhe a i de mar-
ço de 1769, manifeftando fentimento pela perda do pontífice
e fignificando ao mefmo paíTo em termos claros quanto era
neceíTario que o conclave, infpirando-fe no bem commum
da chriftandade, elegeíTe um papa tão fanto e previdente,
que pozeffe termo ás funeftas perturbações que agitavam a
egreja, e foíTe exemplo e edificação á grei de Chrifto'.
Eftes votos não refpondiam cabalmente ás duvidas, que
preoccupavam o eftadifta portuguez fobre o acerto da eleição
no conclave, que ia em breve cclebrar-fe. Sabia Sebaftião
de Carvalho que os jefi.iitas não repoufavam um momento
para imporem aos purpurados eleitores um papa da fi.ia fei-
ção. Tinha para elles chegado juftamente o critico momento,
de que eftava pendente o termo ou a confervação da Com-
panhia. Egualmente conhecia que eram os cardeaes na flia
grande maioria zelofos parciaes da politica feguida pelo papa
antecedente, e como taes ardentes defenfores dos jelliitas.
Parecia-lhe que os negócios da chriftandade agora na vacante
do papado aprefentavam mais funefto cariz do que nas lon-
gas e ruidofas conteftações com o ultimo pontífice. Appa-
■ Carta de el-rei D. Jofé ao facro coUegio, do i." de março de ijOo. C.nllcc-
ção dos negócios de Roma, parte ni, pag. 44.
Á) th
-^A^ -A-l-
rccia-lhc imminente e como forçofo conledtario da prepon-
derância jelliitica no cullegio cardinalício, a eleição de um
papa addicto e ^■inculado fervilmente á facção dos jefuitas e
{dantes, de iim llimmo facerdote efcondendo incautamente
fob as vertes pontifícias a roupeta efcura da Companhia.
Segundo o juizo de Carvalho, nada podia elperar-fe do
conclave, que foíTe conducente á paz da egreja e ao defag-
gravo dos monarchas otfendidos. Ao leu animo revolucioná-
rio fomente fe afigurava um único remédio contra os influxos
perniciofos, que haviam forçofamente de avaflallar os car-
deaes. Era a acção prompta, enérgica, refoluta, com que as
potencias catholicas, empenhadas principalmente na conten-
da, deviam intimar ao lacro coUegio a lua inabalável refolução
de não acceitarem como chefe da egreja um pontifice pro-
penfo á Companhia. O plano de Carvalho era em verda-
de o que parecia mais conforme á Ília irrequieta impaciên-
cia e á trifte reputação, em que tinha a fenfatez dos cardeaes.
Em primeiro logar, no conceito do miniftro, era urgente que
a eleição não recaiíTe em homem condecorado com a pur-
pura cardinalicia, antes fe elegcíTe por ^^igario de Chrifto um
prelado extranho ao facro collegio, porque não prohibiam os
cânones que fe bufcaífe a peífoa mais digna e imparcial,
qualquer que foífe o grau, em que eftiveíTe na hierarchia.
Só com a expreífa exclufão dos cardeaes fe poderia evitar
que fubiífe á cadeira de S. Pedro um jefuita. A efta perem-
ptória intimação devia accrefcentar-fe que o novo papa antes
de ler declarada a eleição, folemnemente fe obrigaífe á total
extincção da Companhia. Aconfelhava também Sebaftião de
Carvalho que para fazer vigorofa e irrefiftiAel a formal inti-
mação era conveniente que marchaífem contra os Eftados pon-
tifícios as tropas, que foífe então polfivel empregar. N'eftes
oufados expedientes, que fariam fair o novo papa de uma
Lirna cercada de bayonetas. cifra\a o mlnilfro portuguez a es-
_470_
perança única de que o novo conclave não daria a vicloria
aos jelliitas'. N'efte lentido fe expediram inftrucções a Fran-
cifco de Almada-, que em Veneza aguardava agora o enle-
jo de traíladar-fe á corte pontifícia. Na meíma data le es-
crevia aos reprelentantes de Portugal em Madrid e em Paris,
participando-lhes o que a Francifco de Almada le ordenara,
recommendando-lhes que do plano contido nas inftrucções
deffem pleno conhecimento ao governo do rei catholico e
ao duque de Choifeul. O antigo enviado portuguez deveria
confer-s-ar-fe em Veneza ate que os governos de França e Hes-
panha hou^eílem aíTentado em fazer ao conclave a perem-
ptória intimação, ou que os reprefentantes d'aquellas duas
nações em Roma lhe avifalTem ler chegada a occafião de
com elles cooperar nas diligencias e empenhos de uma elei-
ção propicia aos Bourbons e a Portugal'.
Quando o plenipotenciário portuguez tiveffe fa^•orave!
conjuncção para ir a Roma, deveria fazer-fe acreditar perante
o facro coUegio pela credencial, que lhe foi logo expedida.
Os defejos impacientes de Sebaftião de Carvalho não
achavam infelizmente nos governos de França e da Hefpa-
nha acolhimento proporcionado ás efperanças concebidas.
Carlos III c Grimaldi, o leu miniftro. não correfpondiam com
demallada cordialidade ás confidencias e ás propoftas do
eftadifta portuguez. O rei de Hefpanha, apefar dos bons
officios de fua irman, a rainha de Portugal, guardava a re-
ferva mais ciofa a refpeito dos negócios graviíllmos de Roma.
Pungia-o certamente a reludancia de Carvalho a formar com
' Carta de Sebaíliáo de Carvalho ao fecretario de eftado D. I.uiz da Cunha,
de 27 de fevereiro de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 35.
= Inílrucção fecretiflima expedida a Francifco de Almada em i de março
de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 38.
3 Carta de Sebaftião de Carvalho a Francifco de Almada, 1." de março
de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 43.
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_47i
as cortes de Bourbon a ertreitiílima alliança, a que deíde
muito o convidavam, e a cuja denegação fora de^•ida a injulia
yuerra de 1762. Ao lyftematico filencio, em que le entrin-
cheirava o gabinete de Madrid, recatando e efcondendo a
Portugal o que era concernente á eleição do novo papa e ã
prompta abolição da Companhia, oppunha Sebaftião de
Carvalho o defdem com que ligniíicaAa ao rei de Heípanha
que feria Portugal em todo o catholicilmo a potencia menos
otfendida. le do conclave faiíTe finalmente um jeluita coroado
com a tiara. «Se a eleição, elcrevia o eftadifta, foíTe recebida
pelas outras potencias, renderia Portugal ao novo papa a
devida veneração, mas continuaria a manter illefos os direitos
da independência temporal, porque n'efte paiz era já enraiza-
da nas opiniões e nos coíkimes a repugnância á minima in-
\aíao ecclefialíica nos foros e franquezas da majeftade fecu-
lar%.
Os projedos audazes do eftadifta portuguez achavam
mais bem difpofto a applaudil-os, porém não a conformar-
fe com elles totalmente, o mundano e fceptico Choifeul.
Efte miniftro de Luiz XV, mixto fingular de cortezão, de es-
tadiífa e de philofopho, não participava certamente da im-
placa\'el avcrfão, que o fcu contemporâneo portuguez votava
lem piedade á Companhia. Não odiava os filhos de Loyola,
mas via na confervação da ordem infamada pelas fentenças
dos parlamentos e expulfa de toda a França pelo ediíto de
Luiz XV, um tronco ainda robufto, que era precifo decepar
a bem da paz no orbe catholico. A fecularifação dos jefi.iitas
ha\ ia-a elle proclamado como fendo ao mefmo paffo o termo
ás turbações religiofas dos eftados e ás privações e amargu-
ras de tantos mil religiofos, cumprindo no defamparo e na
' Carta do conde de Oeiras a Ayres de Sá e Mello, de 4 de março de 1 769.
(^nllecçdo dos negócios de Ruma, parte iii, pag. 45.
e|j eis
9Í»
miferia do exilio a fentença cruel, mas neccíTaria da fua
confummada profcripção". Parecia-lhe geometricamente de-
monftrado que a diíTolução da Companhia redundava em
bem da religião, em proveito da Santa Sede, em beneficio
das potencias catholicas e em vantagem dos próprios jefui-
tas'.
Já nos annos derradeiros de Clemente XIII e ainda an-
tes dos eítrondofos epifodios occaílonados pelo famofo mo-
nitorio contra o duque de Parma, Choifeul manifeftára com
infiftencia eftas fuás opiniões, e revelara a intenção de fe-
guir em relação ao Vaticano a politica de Carlos III, e aju-
dar activamente o monarcha das Hefpanhas nos feus esforços
para abolir a funeíta Companhia ^ O efpirito porém do mi-
niflro de Luiz XV enfombrava-fe em duvidas eguaes ás do
feu vidente collega de Lifboa, quanto á docilidade fácil do
pontífice em acceder ás inftancias mais urgentes, ainda mes-
mo roboradas pela forçai
E provável que Choifeul, julgando mais faftidiofa e im-
portuna do que urgente a diuturna queftão dos jefuitas, fe
deixara adormecer nos ócios elegantes de Verfailles, fe não
' «Je vous ai déjá parle, monfieur, plufieurs fois de la fécularifation dts
jéfuites, et je crois que je vous ai démontré combien cette opération ferait
avantajeufe à la cour de Rome, qui par là fe raccommoderait de plus avec le
Portugal fous la médiation du roi et du roi d'Efpagne; combien elle ferait
agréable aux fouverains qui ont exclus cette fociété de leurs états; enfin de
qucUe utilité elle ferait pour les individus jéfuites.» Officio do duque de Choi-
feul ao marquez d'Aubeterre, embaixador francez em Roma, i." de junho de
1767, em Saint-Prieíl, Hiftoire de la chute des jéfuites, Appendice, pag. 280.
- «En vérité il me parait démontré géométriquement que la diffolution de
la fociété eft le bien de la religion, celui du Saint-Siége, celui des puiíTances
catholiques, et celui des particuliers, qui ont été et font jéfuites.» Oflicio de
Choifeul a d'Aubeterre em Saint-Prieíl, Hiftoire de la chute des jéfuites, Appen-
dice, pag. 27.
3 Officio citado de Choifeul a J'Auheterre do i.» de junho de 1767.
4 Officio de Choifeul a d'Aubeterre, de 27 de maio de i7<)7, em Saint-
Prieít, Hifloire de la chute des jéfuites, Appendice, pag. 27S.
47J
fora a conveniência de obtemperar aos ardentes deíejos de
Carlos Iir. Era neceíTario conferir ao rei de Hefpanha a he-
gemonia nos aíTumptos religiofos para que aproveitando a
íntima alliança firmada entre os Bourbons pelo Pado defami-
lia, o tiveíTe a França nos feus intereíTes politicos por fâmulo
e fervidor. Não é pois para extranhar que o duque de Choifeul,
convindo com o fecretario de eftado portuguez nos perigos de
um conclave propicio aos jefuitas, acolheíTe com frieza o proje-
cfo original e arrogante, que Sebaífião de Carvalho fizera pôr
na fua prefença pelo embaixador de Portugal na corte de Ver-
failles. Concordava o miniítro de Luiz XV em ferem laftima-
veis e perigofas as intrigas e as paixões, que no conclave fe mo-
viam infrenes e mundanas em íãxov dos jefuitas. Conformava
com Sebaftião de Carvalho na urgência das vehementes infti-
gações, para que fe elegeíTe um novo papa, que podeíTe abo-
lir a Companhia. Admittia por neceíTaria a intima colligação
da França, da Hefpanha, de Nápoles, de Parma e Portugal.
Mas conllderava inexequível a traça propofta pelo eftadifta
portuguez de excluir os cardeaes de ferem candidatos ao pa-
pado. Em vez das ícveras intimações e da violenta coacção
a um conclave cercado de bayonetas julgava baftante o ad-
vertir aos cardeaes que fe o novo papa não lupprimiíTe a
Companhia, fe arrifcava a não ler reconhecido pelas potencias
empenhadas na fua immediata abolição. Na própria occa-
fião, em que o duque de Choifeul manifeftava ao embaixa-
dor de Portugal eftes fentimentos acerca da quelfão pen-
dente em Roma, deixava tranfparecer o leu defpeito de que
' '.Concluiu (Choifeul) que le me não lalhiva mais a miudo n'eíle negocio,
é porque, íuppolto foífe grande, era d'aquelles que o occupavam menos, tendo
outros de maior entidade não fó no interior do reino, mas em toda a Europa.»
Officio de D. Vicente de SouCa Coutinho, embaixador portuguez em França
para o conde de Oeiras, de 23 de março de 1769. CoUecçán dos nefandos de Ro-
ma, parte m, pag. 48.
cts
-%^ ^ -V-l-
474
Portugal defattendeíTe e defdenhaíTe a politica alliança dos
Bourbons'.
Firmando-fe no defejo manifcftado pelas cortes de Ma-
drid e de Paris, de que o plenipotenciário portuguez defde
logo fe traíladaffe á metrópole da chriftandade, a fim de
cooperar activamente com os demais agentes diplomáticos,
ordenou Sebaftião de Car^'alho que o Almada fem delonga
partiíTe de Veneza para Roma. Enviou-lhe as inftrucções,
por que devia governar-fe, unindo-fe em concerto efficaz c
inceflante com os reprefentantes dos Bourbons, não fomente
no que foíTe attinente á eleição, mas principalmente á lecu-
larifação dos jefuitas, problema, que no conceito do eftadilia
deixava na Ibmbra as demais pendências com o Vaticano.
Ordenava-fe egualmente ao enviado portuguez que fegun-
do as expreíTas declarações do duque de Choilcul, deveria o
Almada advertir os cardeaes de que fe o papa eleito nova-
mente fe oppozeífe á extincção da Companhia, ficaria pofto
a perigo de não fer reconhecido como chefe legitimo dos
catholicos. Infurgia-fe o audaz contradidor do illimitado im-
pério dos pontífices contra a forma da eleição, que não tinha,
fegundo elle, nem raizes em todo o Novo Teftamento, nem
fundamentos na tradição, nem auítoridade na auítera difci-
plina da egreja primitiva. A eleição etfeituada no conclave
deveria cifrar, em leu parecer, apenas uma propofta, que o
coUegio cardinalício aprefentava ao grémio dos fieis, e que
fomente fe tornava decifiva, quando recebia da egreja uni-
verfal a tacita approvação-.
Tão oufadas, ainda que não defconformes ás praticas fe-
■ Ofticio citado do embaixador portuguez em França, D. Vicente de Sou-
la Coutinho ao conde de Oeiras. Collecção dos negócios de Rorna, parte iii, pag.
48 e fegg.
- Inftrucção expedida pelo conde de Oeiras a Francilco de Almada, em 8
de abril de iTtiQ. Collecção dos negócios de Roma, parte iii, pag. 54 e fegg.
-%-h^ -è-^l
eis T 1
47J
guidas nos tempos apoltolicos, eram as doutrinas radicaes
de Sebaftião de Carvalho em tudo o que tocava á disciplina
ecclefiaftica e ás relações do poder temporal com o fupremo
pontificado. Efcrevia ademais o intraíiavel regalifta ao leu
plenipotenciário que fe foílem illudidas as efperanças, que os
governos catholicos haviam porto nas advertências termi-
nantes ao conclave, e podeíTe mais com os imprudentes car-
deaes o oiro e a obleíTão da Companhia, não haveria obriga-
ção de reconhecer um papa jeíuita comprado com o próprio
dinheiro das nações, que mais lhe contradiziam a eleição'.
Emquanto Sebaftião de Carvalho vivia preoccupado
com a votação futura do pontífice, e defcontente das cavillo-
fas dilações de Choifeul e de Grimaldi, e predizia como pro-
vável a aíTumpção de um jefi.nta á cadeira de S. Pedro, e
a funefta continuação das turbações no orbe catholico, pro-
feguia o conclave as luas operações e efcrutinios no meio
dos mundanos enredos e paixões, que raras vezes deixam
de preceder a efcolha do pontifice. E na verdade cm ne-
nhuma aíTembléa politica, a mais profana e dividida por
difcordias e facções, fe paíTam habitualmente fcenas mais
laftimofas e mais denunciadoras do que podem no animo
dos homens os intereíTes, as ambições, os ódios, os affedos,
as emulações, os proveitos egoiftas, a própria venalidade e
corrupção. Parece que entre o pontifice, que le efconde no
lepulchro e o que faz a lua primeira marcha triumphal na
fella geftatoria, ha um parenthele de anarchia moral e de in-
frene dominação para quanto ha de mais carnal e mais re-
moto das fantas c evangélicas afpirações. Ahi le vê repre-
lentada a diílimulação e a intriga, o intereffe luctando com
o dever, a corrupção Ibbrepondo-fe á juftiça, a ambição afo-
gando as relíquias derradeiras das virtudes evangélicas. Ali
■ Inlirucção citada a Francifco de .Almada, pag. 56.
cia
.-<Í^-|-
476
os embaixadores e os miniftros das cortes catholicas corren-
do a uma e outra parte, bufcando adivinhar os concertos de
cada parceria no conclave, ora cortejando, ora ameaçan-
do os eleitores, e procurando inclinal-os pela adulação ou
pela efperança de largos favores e diftincções. Ali os car-
deaes repartidos em corrilhos, enganando-fe uns aos outros,
efcondendo em romanos artifícios as lecretas intenções, e
forcejando por defcobrir e desfazer os planos dos contrários.
Parece que a pomba íymbolica, figura do Paracleto, invoca-
da a infpirar com luz divina as decifôes foberanas do con-
clave, não le dignaria de voejar n'aquella profana e munda-
nal atmofphera.
Não cabe nos limites d'efta noíTa obra o feguir em todas
as fuás particularidades a hiftoria do conclave. Somos obri-
gados a preterir a agitação, o terror, as efperanças, as roga-
tivas e os meneios dos jefuitas, que fitando os olhos no
Vaticano, aguardavam dos fuífragios cardinalícios o feu trium-
pho ou a ília perdição. Deixemos enleiarem-fe e defatarem-
íe os enredos, os pactos e os conluios das facç<5es, que
tumultuam no apparente retiro e no afcetico filencio das
cellas no conclave. Felizmente para as potencias intereíTadas
e para a paz do catholicilmo, a aíTembléa não prolongou
por féis mezes os feus trabalhos, como na eleição de Lam-
bertini, que fubira ao pontificado com o nome de Benedifto
XIV. A 19 de maio de 1 769 os cardeaes conferiam por
unanimidade a tiara pontifícia ao francifcano clauftral Lou-
renço Ganganelli, que afcendia ao folio de S. Pedro cha-
mando-fe Clemente XIV. Não era efte certamente o que
Choifeul defejava a principio ver eleito, fenão o cardeal Stop-
pani, que lhe parecia mais propicio ás pretenfões da familia
de Bourbon.
Não podia o novo papa ver fem grande lafíima que Por-
tugal vivcífe como que feparado da fé de Roma por um rom-
477
pimento de annos dilatados. Poucos mezes depois da lua
afcenfão á fuprema cadeira, tomou por interceíTor e media-
neiro na conciliação de Portugal com o Vaticano ao primeiro
miniftro de D. Jofé.
Já então fe achava em Roma o plenipotenciário portu-
guez Francifco de Almada, que a 1 8 de agofto de 1 769
fora pelo papa em primeira audiência recebido com as mais
aífectuofas demonftrações de quem tanto fe alegrava com as
efperanças de vincular de novo á Santa Sé o rei de Portugal
e os feus vaíTallos. Era agora chegada a conjuncção de ten-
tar o caminho mais feguro a uma reconciliação fincera e
amigável. Sabia o papa que todo o êxito pendia do favor e
arhitrio de Carvalho.
Efcreveu-lhe a 28 de agoífo de 176c) um breve em lín-
gua italiana, no qual o amimava com lilbnj eiras expreíTões,
e lhe promettia, ainda que em termos nebulofos, íatisfação
aos feus defejos mais ardentes, quando para iífo fe talhaífe a
occafião'. Da negociação iniciada aíTmi pelo pontífice veiu
brevemente a refultar que as duas cortes até ali diíTidentes e
hoftis, vieram a congraçar-fe, acceitando Sebaítião de Carva-
lho o núncio Conti, que o pontífice lhe propozera. Não era
porém exempta de condições cila cordial pacificação. Toda
a boa harmonia e concordância entre Portugal e o Vaticano
feria apenas ephemera e apparente, emquanto fubfiftiífe um
jefuita, amoftrando na roupeta que era viva e pertinaz a
fua ordem. Na refpoífa de Carvalho ao breve de Clemente
XIV apparecia irrevogável o propofito de confiderar a ex-
tincção da Companhia como o feguro fiador da paz fincera
c duradoura entre Portugal e a Santa Sé-. O papa, natural-
1 Breve de Clemente XIV ao conde de Oeiras, de 28 de agofto de 1769.
CoUecçáo dns negócios de Roma, parte iii, pag. ói.
2 Carta do conde Oeiras para Clemente XIV. Oillccção dos negocias de
Roma, parte iii, pag. 64 e 65.
ir 1 F
-§-<>- ^ -<l>-i-
478
mente receolb do poder e influencia, que em Roma exerci-
tavam os jefuitas, e mal feguro com o frouxo auxilio, que
lhe preftavam os governos de França e da Heípanha, eftava
perplexo e temerofo, ofcillando fempre entre o defejo de pro-
ceder á abolição, e o terror que lhe infundia a audácia da
Companhia. Sebaítião de Carvalho, coherente com os princi-
pios de violenta leveridade, quando a força era o inífru-
mento mais efficaz e mais poderoíb de uma prompta e ra-
dical reformação, traçava um novo plano, fegundo o qual
as tropas napolitanas, que então occupavam Benavento e
Pontecorvo, deveriam guarnecer a metrópole chriflan, e re-
primir as defordens promovidas pelos exacerbados jefuitas
quando o papa decretaffe a abolição'.
N'efi:a efperança de que vieíTe finalmente a fer extinífa
a fociedade, continuou a boa e leal correfpondencia entre
Sebaftião de Carvalho e o leu novo amigo Lourenço Gan-
ganelli. Trocavam-fe de um a outro, no frequente cartear,
as mais gentis e aífeduofas exprelTões. Honrava o pontifica
com o feu retrato o íecretario de eftado portuguez, e ren-
dia-lhe n'um breve italiano as mais aífeflivas graças por fer
elle o verdadeiro reftaurador da paz entre Portugal e a Sé de
Roma.
Expediu Clemente XIV a 1 2 de dezembro de 1 769, fe-
gundo o ufo, uma encyclica aos prelados e decretou ao mes-
mo tempo um jubileu univerfal. Aproveitou Sebaftião de
Carvalho aquelle enfejo para demonftrar publicamente que
nenhum diploma pontifício poderia correr em Portugal fem
o régio beneplácito, que havia declarado obrigatório. Conce-
deu-o fem detença ás lettras apoftolicas, e permittiu aos pre-
lados que nas diocefes as publicaífem aos fieis.
' Relpoítii fccretiffima (do conde de Oeiras) á memoria confidencial de
monfenhor Macedónio. Collecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 67.
ti» e|9
479
Era a encyclica notável por três circumftancias principaes,
que não podiam elcapar á fina penetração do eftadifta. Es-
forçava-fe o pontífice por aíTentar o feu primado de ordem e
jurifdicção fobre a egreja univerfal e a lua fi.iperioridade fobre
todos os demais bifpos da chrifi:andade, como fe quizeíTe
d'efta maneira combater, fem comtudo as memorar, as dou-
trinas então correntes entre muitos canoniftas e theologos,
que pretendiam reduzir o pontificado ás limitadas proporções
da egreja primitiva. Laftimava Clemente XIV as perniciofas
opiniões, que vogavam n'aquelle tempo, defi:inadas a abalar
ou dertruir as crenças religiofas, e concitava os pafi:ores da
grei de Chrifi:o a empenharem todas as forças da fi.ia diligencia
e audoridade a fim de repullar a oufadia e a infania das
doutrinas adA-crfas á egreja. Alludia o papa vifi^•elmente em
grande parte aos encyclopediftas e philofophos, e ás arrojadas
concepções, com que o efpirito humano em uma das fi^ias pha-
les mais famolas bufcava fi_ibmetter aos domínios da razão
quanto lhe parecia andar remoto da fi.ia alçada. Tal era po-
rém a fi-ilpicacia do miniftro portuguez, que não deixou de
reparar nas palavras da encyclica. Não faltou quem as qui-
zeíTe interpretar como reprehenforas e allufivas aos que pre-
tendiam fubordinar inteiramente ao império o facerdocio, e
talvez que em parte n'ellas fe efcondeíTe um remoque fugi-
tivo aos mais ardentes regaliftas. Sebaftião de Carvalho apro-
veitou a conjunclura para vibrar um novo golpe aos jefuitas,
dando por demonftrado que as erróneas e nocivas opiniões,
que o pontífice tanto lamentava, eram as que profeffava
impenitente a Companhia. N'efl:e lentido as explicaram em
luas pafl;oraes, por ordem do miniftro, o arcebifpo de Évora,
e o patriarcha de Lifboa, cujo báculo paftoral, — tal era a
força e preftigio incontraftavel do poder civil n'aquelles tem-
pos de vigor e energia, — fomente fabia menear-fe para pafcer
a grei chriftan, fegundo o infinuava a vontade irrefiftivel do
tia
c|3
480
poderofo didador'. Quando a cúria eftava ainda mal fegura
da benevolência e fujeição dos monarchas havia pouco hos-
tis á Santa Sede, julgava útil o aftuciofo Ganganelli lifonjear
na encyclica as majeftades temporaes, exalçando até ás nuvens
a excellencia, a primazia, o carader divino, fagrado, inviolá-
vel dos príncipes foberanos, c tecendo em phrafes hyperbo-
licas o elogio da realeza abfoluta na quadra, em que fe
acaítellavam contra ella no horizonte as borrafcas da immi-
nente Revolução.
Nos principios de 1770 chegava a Lifboa o novo núncio,
Innocencio Conti, arcebiípo deTyro. Não foi porém admitti-
do a exercer as fuás funcções fenão depois de lhe haverem
fido intimados os limites, em que haveria de ufar das facul-
dades concedidas nas bulias da fua commiífáo. Devia o
núncio, fegundo lhe era notificado, abfter-fe de tudo que foífe
novidade ou fe tivcíTe abufivamente introduzido em prejuízo
e perturbação da fociedade civil. A 23 de agofto o rei annun-
ciava por um decreto expedido ao defembargo do paço que
eftava aberta a correfpondencia com a corte de Roma. Ao
mefmo tempo enviava Sebaftião de Carvalho uma carta circu-
lar a todos os prelados dioccfanos, declarando-lhes que fe-
gundo a lei- não podiam fer recebidos, nem ter execução em
Portugal os breves, as bulias e os refcriptos do pontífice fem
que houveífe precedido o régio beneplácito.
Se o primeiro miniftro de D. Jofé com efta confummada
reconciliação fe julgava propinquo ao feu triumpho, não foi
menos celebrada na capital do orbe catholico a paz efpiritual,
que trazia de novo o rei fideliífimo á communicação com a
Santa Sede. N'uma allocucão aos cardeaes no confiftorio fe-
I Paftoral do arcebiípo de Évora, de 24 de fevereiro de 1770. Collecçáo
dos negócios de Roma, parte ni, pag. 81, c paftoral do patriarcha de Lifboa,
ibid.
- Lei de 6 de maio de 176.^.
1 f
.-<i>^
481
creto, a 6 de agofto de 1770, Clemente XIV parecia trans-
bordar em jubilo entranharei e em fervorofa gratidão ao rei
de Portugal. As folemnidades religiofas e as profanas fes-
tividades oftentaram em Roma por muitos dias o preço em
que era tida a paz e a concórdia com o reino de Portugal.
Defde as primeiras rogativas de Clemente XIV para
congraçar com o foberano portuguez a Santa Sede, otferecêra
o novo papa conferir o capello cardinalicio á peíToa, que lhe
foíle aprefentada pelo rei. Recaiu a eleição em Paulo de
Carvalho, que na qualidade de inquifidor e commilTario da
bulia da cruzada fora fempre nas queftões ecclefiafticas um
fer^•orolb e leal cooperador de leu irmão. Foi promovido á
facra purpura. Não chegou porém a gofar a preeminência,
porque já era fallecido, quando veiu a noticia official d'elta
mercê, com que o pontífice quizera indireítamente gratificar
os ferviços beneméritos do grande legiflador. No logar que
ficara vago no collegio cardinalicio nomeou Clemente XIV
ao arcebifpo de Évora, D. João de NoíTa Senhora da Porta,
e com efta nova promoção egualmente lifonjeou a Sebaltião
de Carv^alho, que no auge da gloria e do poder fempre tive-
ra no prelado um tão fanático fatellite, quanto nos tempos
adverfos o encontrou defabrido e ingrato defprezador.
Em outras mais importantes conceíTóes moítrou Clemente
XIV a boa vontade, com que defejava agradecer os otiicios
do eftadifta no reftabelecimento das relações amigáveis entre
Portugal e o Vaticano. Foi uma das mais notáveis providen-
cias confirmadas pelo pontífice, no breve Sacrofancliim apos-
tolatiis de 4 de julho de 1770, a extincção de nove mofteiros
pertencentes á opulenta congregação dos cónegos regrantes
de Santo Agoftinho e a applicação das fuás rendas ao mos-
teiro de Mafra, primitivamente detfinado aos frades arrabi-
dos e concedido então aos cónegos regrantes. Não carecia de
fundamento parficular efta determinação. Tinham aquelles
Í- -í^
eis
482
religiofos incorrido no juíto delagrado do miniftro, como fe-
ítarios e fautores enthufiaftas do fcifma dos Jacobeus. Con-
fiderava Sebaítião de Carvalho que reftituindo á fua pri-
meira vocação de inftruir a juventude a congregação, defde
largos annos corrompida e relaxada, poderia o novo efpirito
inllifflado n'aquella antiga ordem equivaler a uma falutar re-
formação. Ninguém pode pôr em duvida que o miniftro illu-
minado, que meditara longamente fobre as inftituições eccle-
fiafticas e a fua eftreita relação com a íbciedade temporal,
não confiava feguramente nas corporações monafticas e no
clero regular como efficaz inftrumento de perfeição efpiritual
e ainda menos de profana civilifação. Não odiava a par
com os jeíuitas as famílias monachaes, mas vendo-as geral-
mente defcaidas de feus primeiros inftitutos e tão mundanas
e defconformes á evangélica pureza, não houvera fido com
ellas mais clemente, fe lhe proporcionara o tempo a conjunc-
çáo. Reduzir pois o numero das caías religiofas tão exube-
rantes em Portugal, era já um paíTo no caminho futuro e
não diftante da fua inteira fecularifação.
Diverfil-as da efteril profiíTão da vida contemplativa e
ociola para o ofiicio Ibcial de educadoras, fob a vigilância
do eftado, era em certa maneira e para aquelle tempo mui
outro do prefente, como que reconcilial-as com a íbciedade
temporal e trazêl-as defde as alturas, onde nem lempre fe
enlevavam nas celeftes beatitudes, a participar no movi-
mento e no progreíTo do mundo terrenal. A importância de ver
extinda c profcripta da chriftandade a Companhia, lhe fazia
parecer inoffenlivas as outras ordens religiofas. E de feito,
vencida a uhima campanha e marcados os jefuitas na fronte
com o ferrete ignominofo pela mão fuppofta immaculada e
infallivel do paftor univerfal, não feria já difticil aos futu-
ros eftadiftas diradicar de vez o monachifmo e deixar intei-
ramente ao clero fecular o conforto e pafcigo das ovelhas.
í^l
«la
eis
483
Não ertava ainda conclufa a grande empreza, que havia
tantos annos occupára o penfamento e a acção do grande
reformador. Faltava ainda o decreto da fuppreffão da Com-
panhia.
A abolição dos jefuitas foi o principal empenho de Car-
valho defde que viu o novo papa fubmetter-fe fupplice e
lacrymofo á lua indifputada audoridade, e pedir-lhe anima-
ção e adjutorio nos primeiros tempos do tormentolb ponti-
ficado. Demafiado fe deveria de alongar o narrador, fe qui-
zeíTe referir miudamente as intricadas e efcabrofas negocia-
ções, que por parte de Portugal, de França e da Hefpanha
levaram finalmente á extincção da Companhia. As melmas
defconfianças, que a Sebaftião de Carvalho tinham inlpirado
as duas principaes cortes de Bourbon e os feus agentes di-
plomáticos em Roma, no pontificado antecedente e durante
o conclave, perfiftiam ainda mais aggravadas porventura.
Não punha o enérgico efiadifta as fuás efperanças na calcu-
lada e inerte lentidão da França e da Hefpanha. Accufa-
va-as de haverem com fua má vontade e arrogância impe-
dido que faiíTe dos fuflfragios um pontífice, o qual, efcudado
pela força das potencias contra a rebeldia jefuitica, fe an-
nunciaíTe ao orbe catholico, defde a varanda do Vaticano,
levando já na mão o breve fupprimindo a Companhia. Co-
nhecia a malevolencia do cardeal de Bernis, que logo defde
o principio do novo pontificado era embaixador francez em
Roma, e continuava como negociador as melmas intrigas,
com que fe havia aífignalado no conclave. Tinha Carva-
lho no breve fecretiíTimo, que lhe efcrevêra Clemente XIV,
a promeífa formal da abolição. Tinha em monfenhor Ma-
cedónio, confidente do pontífice, um oíficiofo e efficaz me-
dianeiro na fecreta correfpondencia, que fe trocava entre
Sebaftião de Carvalho e Ganganelli acerca da fufpirada pro-
videncia. Sabia que o papa eftimulava o enviado portuguez
«is
4S4
para que foíTe frequente nas luas vilitações ao Vaticano,
onde o ardilofo Almada podia contraílar os meneios de Ber-
nis e os enredos, que o faziam fufpeitar de propenfo á con-
fervação da Companhia. Envidavam os jefuitas os últimos
empenhos para defviar o golpe irreparável. Era poderofa
em Roma a ibciedade. Tinha parciaes no lacro coUegio, na
prelatura, em a nobreza, no mais inculto e rude das claffes
populares. Divulgavam diariamente os jefuitas as novas mais
abítrufas e as mais manifeífas falíidades com o intento de
illudir e enliçar a opinião. Diziam que a ordem de Jefus
não feria abolida, mas fomente reformada. O pontífice, em-
bora certificaífe conítantemente a Francifco de Almada e a
Sebaítião de Carvalho que não affrouxava no propofito da
abolição, vacillava perpetuamente, avéxado por efcrupulos,
falteado de terrores, ora temerolb do poder coloífal, que
ainda fuppunha á Companhia, ora receiofo de que a plebe
romana fe infurgiífe em defenfão da ordem revoltofa; agora
temendo um fcifma provocado pelos amigos e fautores dos
jefuitas, e logo dando pefo ás tremendas prophecias, com
que aos jefuitas fe vaticinava próximo o efplendido trium-
pho e o termo defaftrofo ao novo pontificado. Não repoufa-
va o eftadirta portuguez em combater defde Lifboa as inlidias
dos jefuitas, em increpar a tibieza das cortes de Bourbon,
em alentar o pontífice defanimado. Rcduplicava as inítruc-
ções ao enviado Francifco de Almada, que não defcanfava
um momento na tarefa de defconcertar os esforços jefuiticos,
e as pcrigofas aftucias de Bernis. As cortes de Bourbon
faziam crer a Clemente XIV que a Portugal eífencialmente
revertia o proveito principal da abolição. A Francifco de
Almada fazia o eftadifta portuguez dizer ao papa que ne-
nhum paiz era menos intereíTado do que o leu na total
fuppreífão da Companhia, porque tendo-a expulfado já de feus
domínios e feito contra cila executar uma inexorável legilla-
eia
485
ção, fe tinha de Ibbra premunido contra os males, que fazia
na chriítandade. Era pois no intereíTe de toda a egreja, que
Portugal pedia e reclamava a extincção. Ponderava Sebas-
tião de Carvalho, pelo órgão do feu reprefentante, o graviííi-
mo erro que feria o reformar uma ordem em fuás malfeito-
rias jubilada e endurecida, e por iífo incapaz de emenda e
correcção. Ás delongas das curtes de Bourbon, que nas fuás
negociações eftavam antepondo á quellão capital da aboli-
ção outros negócios de feu intereíTe ambiciofo e pri\ativo,
oppunha Sebaftião de Carvalho nas luas enérgicas repre-
fentações o dever impreterível, que ao pontífice corria de
expurgar da maior praga a egreja univerfal, e o direito, que
tinha indifputavel de extinguir a Companhia fem confultar os
príncipes foberanos fobre a maneira de proceder á fuppres-
fão. Refpondia Clemente XIV, confirmando novamente a
palavra, que tinha empenhada defde os primeiros paífos
da lua reconciliação, encarecendo os fentimentos de aíFeduo-
fa gratidão, que o vinculavam ao rei de Portugal e prin-
cipalmente ao feu miniftro, a quem fempre cognominava com
hyperbolicos epithetos de agradecimento c de louvor. Tinha
o papa fempre em mente a extincção da Companhia, mas
queria realifal-a maduramente, e de feição que foífe recebida
fem eftorvos por todas as potencias do catholicifmo, fem pôr
a egreja a perigo de um ícifma defaftrofo em tempos de ta-
manha defcrença e turbação, nem ofi^ender os imperantes,
que ainda protegiam ou fuftentavam em feus eftados os fo-
cios da mal-aífegurada congregação.
Profeguia Francifco de Almada concorrendo ás confe-
rencias, que em Roma celebravam os reprefentantes das
cortes de Bourbon, e concertando com elles as inftancias que
deviam aprefentar no Vaticano para a abolição da Companhia.
Não era porém n'eí1:e accordo oííicial com o cardeal de Ber-
nis, e o arccbifpo de Valência, Azpuru, que Sebaftião de
ir 1 F
eis
«Is
486
Carvalho cifrava a fegura eíiicacia para o cxito propicio da
fua impaciente afpiração. As fuás efperanças eftavam poftas
principalmente nas fecretas negociações conduzidas pelo in-
termédio officiofo de monlenhor Macedónio, fervorofamen-
te devotado á corte de Portugal. O enviado portuguez não
deixou porém de aprefentar a Clemente XIV uma memoria
em que, de accordo com os miniftros da caía de Bourbon,
pedia inftantemente a abolição. Uma nova circumftancia dif-
íicultava porém o paíTo á delongada negociação. O cardeal
de Bernis e os outros repreíentantes dos Bourbons preten-
diam que o pontífice antes de exarar a bulia da extincção,
expediíTe dois breves preparatórios. Em um d'elles o papa
confirmaria quanto as cortes catholicas ha^•iam feito em re-
lação á Companhia. No outro fubmetteria á approvação e
exame dos monarchas a minuta das lettras pontificias, que
deviam decretar a fuppreffáo. Sebaifião de Carvalho inven-
civelmente repugnava a efte demorado e nocivo expediente.
Quanto havia decretado em Portugal a refpeito dos jefuitas,
caía dentro da autoridade e jurifdicção do poder temporal,
e feria uma abjeda degradação o acceitar um breve do pon-
tifice para o confirmar e revalidar, como fe os ados ema-
nados da fuprema majeftade podelfem taxar-fe de illegitimos,
irregulares, anticanonicos, e careceífem de fer fanados pela
auítoridade pontificia. N'outro ponto eífencial divergia o
oufado eftadifta portuguez das frouxas pretenfões do cardeal
de Bernis. O embaixador francez pedia apenas a extincção,
porém não o caftigo dos jefuitas implicados como auctorcs
nos defacatos e difturbios commettidos na chriftandade pela
ambiciofa Companhia. Sebaftião de Carvalho infiftia ao revez
como em ponto fubftancial, na punição exemplar do geral
Lourenço Ricci, e dos feus mais turbulentos e culpolbs aífes-
fores e confelheiros. Ordenava porém a Francifco de Al-
mada, que trataífe principalmente da abolição deixando ao
eia e|9
487
arbítrio de Clemente XIV a punição, como áquelle, a quem
unicamente competia.
Pouco havia adiantado a negociação quando um fucceíTo
inopinado vciu dar calor e eítimulo á irrefolução e tibieza
do pontífice. O rei de Portugal, eflando em Vílla Viçofa, e
indo a lair a porta do palácio, fora aggredido violentamente
por um homem, que lhe vibrou á cabeça um golpe de bor-
dão. Livrou-fe o rei, defviando o corpo com ligeireza. Era a
3 de dezembro de 1769. Não faltou quem attribuiíTe o atten-
tado ás machinações dos jefuitas. Chega a noticia a Roma.
Conlterna-fe o pontífice, e com as mais fignificativas de-
monftrações teftemunha a D. Jole a dor, que lhe caufára o
defacato á peflba do ungido do Senhor. Efcreve ao rei e a
Carvalho em termos de entranhado affedo e fentimento.
Não participavam por\entura os jefuitas no intentado regi-
cídio, mas na prelença da lua crefcente irritação, não foi
difficil acreditar que eram elles os motores da nova atroci-
dade. O crime de Vílla Viçofa foi pois um poderofo incentivo
a que redobraífem mais urgentes as inftancías reclamando
a abolição.
Mas o papa cada vez mais e mais fe enleava n'uma re-
de de laftimofas indecifões. Cada vez lhe pareciam mais te-
míveis e poderofos os terríveis antagoniftas, contra os quaes
o mandavam faír a campo a elle fraco athleta, mal armado
para tão defegual rec[uefta, onde a fua torva imaginação lhe
predizia que haAeria de comprar com a ^•ida a fua vídoría.
N'efta anguftíofa fituação defafogava Clemente XIV as fuás
laítimas com o artificiofo Francifco de Almada, prompto
fempre a encravar na mórbida confciencia do pontífice o
efpinho da fua averfão á Companhia. As confidencias com
que o papa fe abria defconfortado com o miniftro de Por-
tugal, pedindo-lhe confelho e favor na lua trifte fituação,
replicava Sebaflião de Carvalho n'uma carta firmada pelo
488
rei e dirigida a Clemente XIV '. Refpondia o monarcha por-
tuguez aos Íntimos defafogos do pontifice e lhe encarecia
em termos vehementes quanto era neceíTario aproveitar a
conjuntura, e decretar promptamente a abolição, a qual já
viria a fazer-fe inexequível, deixando-fe paíTar a occafião.
Diííipava-lhe os receios de fcifma ou diíTidencia das potencias
não hoítis aos jefuitas. Ao mefmo tempo fazia o miniftro de
D. Jofé paíTar ás mãos do papa uma memoria, em que exa-
minando a fituação das cortes catholicas, lhe aíTegurava,
em prefença d'eíl:a analyle, o nenhum receio de que a imme-
diata fuppreffão produziíTe fenão frudos abençoados á paz
da egreja e das nações".
Não defcontinuaram as inítantes follicitações do eftadifta
portuguez até que o papa, depois de vacillar mais de três
annos entre o cumprimento das folemniílimas promeíTas e os
efcrupulos e os receios da lua timorata conlciencia, veiu fi-
nalmente a expedir ás cortes catholicas, por intermédio de
Carlos III, a minuta da bulia de fuppreffão. O rei de Hefpa-
nha tivera fempre em grande honra o fer elle o inftrumento
principal na extincção da Companhia. Olhava com ciúme e
com defpeito os que lhe difputa^■am o primado n'efle ponto,
como fe foffe o poderofo Agamemnon n'ell:e cerco poíto es-
treitamente á Tróia jefuitica.
Para condefcender com cita vaidofa pretenfão deliberou
Clemente XIV enviar a Carlos III a minuta da bulia, em
que intentava decretar a abolição, e commetteu-lhe o encar-
go de a communicar ás cortes catholicas para que fobre ella
houveffem de fazer as luas obfervacões. Conveiu facilmente
' Carta de D. Jofé a Clemente XIV, de 21 de dezembro de 1772. Collecção
dos negócios de Roma, parte ni, pag. i5i.
2 Carta de Sebaftião de Carvalho para Francifco de Almada. C.ollecçáo dos
negócios de Roma, parte 111, pag. iS3 e segg.
•^
489
Sebaftião de Carvalho em approvar defde logo efte rafcu-
nho. Alhanadas pelo papa as difficuldades, veiu finalmente
a declarar ao orbe catholico, pela bulia Domimis ac Re-
demptor, de 21 de julho de 1773, que ficava abolida para
fempre a Companhia de Jefus. Nunca Sebaftião de Carvalho
preftou o régio beneplácito a refcripto algum do Vaticano
com maior alvoroço do que a efte, que fora tantos annos o
fonho mais dilecto e a mais dourada efperança da fija alma.
A mais affignalada vidoria das armas portuguezas, a con-
quifta mais valiofa, não poderiam celebrar-fe com tantas e
tão geraes demonftrações de jubilo univerfal. Tão relevante
confiderava Sebaftião de Carvalho a abolição da ordem odia-
da, que na carta gratulatoria, dirigida por D. Jofé a Cle-
mente XIV, não duvidava em qualificar o acto do pontifica
como o maior e mais tranfcendente beneficio, que depois' da
redempção do género humano haviam recebido dos fucces-
fores apoftolicos de S. Pedro a egreja e as fociedades civis
de todo o orbe. A carta de lei, em que o rei de Portugal con-
cedia o beneplácito á bulia Dominus ac Redemptor ' traf bor-
dava em fubidas expreíTões do mais fervorofo panegyrico
ao paftor univerfal, que depois dos esforços infruéfiferos de
mais de vinte papas em corrigir e enfrear a ambiciofa e tur-
bulenta Companhia, fc determinara finalmente em expungir
da communhão chriftan aquelle copiofo feminario, d'onde,
no conceito do eftadifta, fe tinham derivado as maiores per-
turbações á chriftandade. Depois de exautorados pelo papa,
o miniftro portuguez, que contra os jefuitas fora o primeiro
a dar rebate vigorofo, vinha, como pontífice profano e re-
prefentante fecular da moderna fociedade, lançar contra el-
les a excommunhão civil e celebrar com tremenda objurga-
toria as exéquias da Companhia.
■ Carta de lei de 9 de leptembrode 1773.
eis
<^ -ò-§-
e|j ela
490
A íntima e cordial correfpondencia, que eftreitava as re-
lações entre a Guria e Portugal depois da abolição dos jefui-
tas, revelou-fe na fácil condefcendencia, com que o papa
defpachou os negócios canonicamente mais difficeis, fegundo
lh'os propunha o miniftro portuguez. Entre elles não Ibi de
certo o menos grave o que fe referia ao bifpo de Coimbra
D. Miguel da Annunciação, que no feu dilatado captiveiro fe
negava tenazmente a refignar o epifcopado. O poder civil por
um dos feus aífos de oufadia mais francamente revolucio-
naria, havia-o declarado morto civilmente. Concertou-fe en-
tre Portugal e a Santa Sede um expediente, que refpondia
ao mefmo paíTo á incapacidade politica do prelado e aos
efcrupulos canónicos do papa. Nomeou Clemente XIV a
D. Francifco de Lemos para bifpo de Zenopolis, in partibiis
inftdelhim, e commetteu-lhe como coadjutor e futuro fuc-
ceíTor do réu de eftado a jurifdicção efpiritual e temporal na
diocefe de Coimbra'.
Se os jefuitas eram como inftituição ecclefiaftica um fer-
mento permanente no grémio efpiritual, e como profana
corporação um perigo temerofo para a fociedade fecular,
o Santo Officio era mais do que um perigo e um fermento,
era para a egreja uma ignominia, uma defhonra para a mo-
derna civilifação. Teria Sebaftião de Carvalho vindicado com-
pletamente o illuminado íeculo, em que vivia, fe obedecendo
ao feu efpirito adverfo a toda a coacção temporal exercida
em nome de Jefu Chrifto houveíTe ao mefmo paíTo deftruido
a Inquifição e a Companhia. Teria vinculado na mefma con-
demnação os Laynes e os Torquemadas, os cafuiítas, que
alargavam as confciencias e os caminhos ao peccado, e os
inquiridores, que povoavam de fogueiras a eftrada da eterna
bcatitude; a roupeta, que aífrontava a humanidade como a
' Bulia Romanus pontifex, de 1 3 de abril de 1774.
49'
inlignia da fuprema dominação, e o lambenito, que cifrava
para a egreja o reinado perpetuo do terror. Não confentiam
porém os tempos e as circumftancias que o vidente legiíla-
dor levaíle emparelhadas as duas radicaes expurgações. Man-
teve a inquifição, porque ainda poderia fervir de auxiliar ao
poder régio contra as infidias e tramas jefuiticas. Confervou
o leão, cortou-lhe porém as garras e as prefas, e encerrou-o
como fe fora na eftreita claulura de uma jaula. O cardeal ar-
cebifpo de Évora, D. João da Cunha, era então inquifidor
geral. Defde a laíf imola condemnação do Malagrida os ver-
dugos reaes em vão eífavam aguardando alguma vidima.
A inquifição, já açaimada pelo eminente didador, tinha de-
generado do feu cruento zelo pela fé. No auto de 17Õ7 ti-
nham laido a publico onze homens e treze mulheres, fem
que o braço fecular fe maculaffe com. o fangue de ninguém.
Eram já mais Ienes do que d'antes os proceflfos inquifitorios.
Cumpria então reduzir a lei o que era apenas coftume de
prudência e humanidade. A el1:e fim faiu o legiflador com
o regimento do Santo Ofiício de 14 de agoflo de 1774. Fir-
mava-o o cardeal inquifidor. Confirmava-o o foberano". E
muito para notar, que onde Sebaflião de Carvalho, na fua
larga e providente legiflação, confervou por mera conve-
niência ou fujeição ás circumftancias, alguma viciofa, repre-
henfivel, ou abfurda inftituição, aífignalou-a defde logo nos
preâmbulos ou nas razões das luas leis com o íinete impere-
cível da mais Iblemne reprovação. O theorico publicifta con-
demnava defde logo o que era repugnante ao direito, á razão,
á humanidade, mas o eftadifta pradico vinha corrigir a pri-
meira infpiração, confervando como excepção temporária e
mal fegura o cjue os princípios claramente anathematizavam.
Era como fe contemplando a arvore dellinada a futuro cór-
■ Alvará de i de Itptcmbro de 1774-
eis
49^
te lhe deixaíTe no tronco delineada a marca, por onde mão
robufta de mais revolucionário demolidor em tempos mais
propicios, havia de afundar os golpes de machado para que
vieíTe a baquear o annofo roble. AíTmi aos morgados, reftrin-
gindo-os, marcara com o cítygma de anti-íòciaes e damno-
fiífimos ao progreíTo económico da fociedade. AíTim agora
também procedia o legiflador com o Santo Officio. Levanta-
va-fe Carvalho contra o que chamava cruel e enganofo meio
do tormento. Declarava bem alto que «a egreja, como mãe
piiíTima e mãe de mifericordia, não tem o direito de matar,
de ferir, de atormentar». Efpraiava-fe o eftadifta nos termos
da mais fentida execração contra a prova judiciaria, abfurda,
irracional, inhumaniffima no potro, no equuleo, em tratos
crueliíTimos. Mas era neceíTario juftiíicar as paíTadas feveri-
dades contra o pobre Malagrida. Limitava-fe a applicação
do tormento aos novadores, aos herefiarchas, e aos ejpiritos
fortes, e ainda n'efte cafo fe remittia de lua antiga atrocidade
cite proceíTo infame de inquirir os fuppoftos delidos das
confciencias. Inílituia-fe nova forma de proceíTo. Concedia-
fe aos réus a máxima amplitude na defeza. Condemnava-fe
o dar fé a teftemunhas llngulares, excepto unicamente os
crimes de foUicitação, de figillilmo, e algum outro nefandiíTi-
mo. Reprovava o legiflador em termos de merecida afperi-
dade os autos da fé, c]ue appellidava «publicas oítentações
de horrores e de miferias»; efpedaculos degradantes, oppro-
briofos e felvaticos, para os quaes, efcrevia o eftadifta, «fe
convidavam os embaixadores e miniftros extrangeiros para
teftemunharem de vifta e di\aftgaram nos feus efcriptos por
toda a Europa culta o deplorável eftado d'eftes reinos». Ex-
ceptuava, apenas, por coherencia com os feus ados anterio-
res, os autos da fé celebrados para trazer á publica vergonha
os herefiarchas, como fora, dizia o legiflador, «o monftro
Malagrida». Prohibia como regra a celebração d'eftc picdo-
I
I
eis
fo cannihalifmo, em que o humilde, o manlb, o incruento, o
amoravel chrirtianifmo, defhonrado pelos feus fanáticos ze-
ladores, fazia da fé uma cruenta religião e da egreja um cir-
co pagão e fanguinario, onde as vidimas humanas caiam
aos applaufos da multidão feroz e envilecida.
Eftava completa a obra, em que Sebaftião de Carvalho
fe empenhara de firmar Iblidamente a independência e Ib-
berania temporal, recatando-a ciofamente das incurfões ec-
clefiaíficas. Eftava então na culminação da fua gloria. Podia
defvanecer-fe fem jaófancia de que o feu longo minifterio tinha
fido, depois do defaftre de Alcacer-Kibir, a epocha mais bri-
lhante de Portugal, a viçofa rejuvenefcencia de um paiz, que
elle encontrara quafi exânime, pobriíluno no meio da rique-
za efteril das luas minas americanas, inerte no meio do feu
clima feraz e ameniífimo, ignorante e embrutecido no meio
da radiofa illuftração da Europa contemporânea, eíquecido e
obfcuro apefar das fuás pretéritas grandezas, fanático, fu-
perfticiofo, quafi idolatra no meio das mais taifas apparen-
cias de piedofa compuncção.
Quiz Sebaftião de Carvalho efculpir em bronze e em
mármore o epilogo da fua obra grandiofa. Na praça maior
da capital, confagrada como em honra fingular ao commer-
cio, que era a força da nação, ordenou que fe erigiíTe um
majeftofo monumento, que aos evos perpetuaíTe a memoria
gloriofa de fua longa e vigorofa adminiftração. A 6 de junho
de 1775, em meio de eftrondofas acclamações e das feftas mais
efplendidas de pompofa folemnidade, inaugurava-fe a efta-
tua equeftre do rei. Na aufencia de outra gloria peíToal, ti-
vera D. Jofé por única benemerência a pertinácia, com que
foubera confervar e defender o feu grande confelheiro con-
tra as machinações de poderofos e terríveis adverfarios, e a
dócil complacência de firmar as leis e os decretos do minis-
tro. No pedeftal da regia effigie oftentava-fe n'um medalhão
e|9
de bronze, por graciola benevolência do Ibberano, o bufto
do immortal legiflador. Era o debuxo, o lavor, a fundição
do monumento, tudo obra nacional erigida a glorias pura-
mente portuguezas fem melcla de forafteira ajuda e lublldio.
Aquella figura, que lilbnjeira eftá mentindo, a reprefentar
o foberano epicureifta e indolente na auftera compoftura e
grave continente de um grande batalhador, é apenas um
pretexto. O monumento apparece como invertido á poíterida-
de imparcial. O vulto principal é Sebaftião de Carvalho. A
eftatua do rei é um acceíTorio decorativo, como o elephante
e o cavallo de mármore, que ornamentam o pedeftal.
Laftima foi, porém, que ás folemnidades, que por três
dias exalçaram em públicos e memoráveis regofijos, em
banquetes, em bailes, em apparatofas illuminações, o trium-
pho brilhante do eítadifta, lliccedefle a derradeira tragedia
judiciaria, de todas as que enludaram o efplendor do leu
próvido e fecundo minifterio. Sebaftião de Carvalho, como
todos os grandes reformadores, concitava ódios proporcio-
naes á audácia das luas providencias, e ao egoilmo dos inte-
reíTes que oífendia. Já de uma vez, em 1771, á porta do
paço, um furiolb aggreffor bufcára oftendel-o atirando-lhe
pedradas, a que pôde efcapar illefo e imperturbável na lua
eftoica ferenidade. Por occafião de fe inaugurar a eftatua
equeftre defcobriu-le que um italiano, de nome João Baptifta
Pelle, difpozera uma machina infernal, com que intentava
efpedaçar o coche do eftadifta, c[uando n'elle foíTe para as-
fiftir á Iblemne inauguração. Prelb c julgado pelo tribunal
da fupplicação, foi o delinquente a 9 de outubro de lyyS
punido ainda com mais cruel rigor do que o tinham fido os
réus da conjuração contra D. Jofé. Encerrava affim o rigido
miniftro a lua carreira com a melma terrível feveridade, com
que defde os primeiros annos de governo aflbmbrára, fem
comtudo os defalentar, os léus implacáveis inimigos. Não
6M
decorreram longos tempos cintes que a vida do monarcha e
o miniíterio de Carvalho chegaffem ao leu termo. Em fins de
1776, a faude do rei dava poucas efperanças de que vieíTe
a recobrar-fe. Um decreto de 29 de dezembro d'aquelle anno
commetteu á rainha D. Marianna Victoria a regência do rei-
no. Pouco tempo depois o throno dos Braganças era va-
cante, e a princeza do Brazil, com o nome de Maria I,
empunhava o fceptro portuguez íbb os aufpicios de uma vi-
fivel e impaciente reacção.
CAPITULO XVII
MARTYRIO E CONCLUSÃO
A filha primogénita de D. Jole herdava o throno de feu
pae a 23 de fevereiro de 1777. Realifavam-fe finalmente as
efperanças tantas vezes mallogradas dos inimigos de Carva-
lho, e podiam expandir-fe livremente os ódios por largo tem-
po concentrados e recrefcentes com intenfidade correfpon-
dente á tenacidade e ao vigor do leu poderofo antagonifta.
Todo o poder do grande legillador, como é forçofo nos des-
poficos eftados, eftivera pendente do favor e da exiftencia do
monarcha. Os alentos derradeiros do Ibberano intimavam
fatalmente o feu occafo ao longo minifterio. A dilatada e
torva didadura, por mais fecunda e encaminhada que foífe
á refurreição e gloria pátria, não fora na lua eífencia mais
do que um largo e vigorofo vizirato, mais do que a rara for-
tuna de um valido aproveitada pelo talento de um audaz
reformador. A única exterior influencia, que o mantivera
firme e inabalável no leu pofto, havia fido a vontade e a
confiança do moderno fultão do Occidcnte, cuja defidia e
frouxidão intelledual o miniftro fagaz e cortezão foubera con-
eii
496
verter em força própria. Não o favoneava certamente a aura
popular tão volúvel e caprichola ainda mefmo nas focie-
dades democráticas, nulla quafi inteiramente nos povos
dominados pelo arbítrio de um fenhor. As mais úteis e ge-
nerofas entre as fuás reformações, fe haviam difpertado fym-
pathicos accordes nos efpiritos mais illuminados, ainda então
em efcaffa minoria, não podiam ler comprehendidas pelas
turbas ainda mal avindas a affrontar a nova luz. Portugal,
fe bem menos que a Hefpanha, era uma nação fanática, in-
culta, inquiíitorial. O povo, como fiibjlratimi e fundamento
da opinião, era apenas ainda em gérmen. As antigas ariíto-
cracias, feculares e ecclefiaíticas, fe não ^•aIiam pela força,
exerciam a influencia da tradição, que fempre fubfifte em
largos traços, ainda mefmo após as mais radicaes e cruentas
revoluções. Carvalho não fora o enérgico executor de idéas
reformadoras, engendradas e nutridas no confenfo da nação.
As fuás infpirações eram todas exteriores e dimanadas d'efte
efpirito do feculo, d'efta luz intelleíftual que tinha principal-
mente em França o feu foco mais intenfo, e cujas ondula-
ções irradiadas a toda a Europa culta parece que encontra-
vam nos Pyreneus uma antepara, que as não deixava áquem
d'elles progredir. Se contámos uma hofte pouco numerofa,
mas preíladia de homens mais lettrados do que o ^'ulgo, os
Cenáculos, os Ricaldes, os Pereiras Ramos, os Seabras, e
os mais eminentes magiítrados da ordem judiciaria, — togada
ariítocracia em toda a parte e fempre emula e ciofa da no-
breza hereditária, e fervorofa aduladora da regia poteífade,
— fe ainda fazemos o conto da claffe media, e mercantil,
que faia, nova e predileiffa creação, como a Galathea renas-
cendo na officina do mythico eítatuario, ahi teremos quafi
encerrada a lifta dos amigos e fautores do grande legiflador.
E d'eíres parciaes uns eram os cortezãos ordinários da for-
tuna, outros os que eífão fempre enfileirados ao lado do po-
6M
497_
der. Amigos finccros, devotados na grandeza e na ad^■erll-
dade, amigos do eftadirta e da idéa, eíles poucos, raros,
iildecifos, affrouxando no afFedo e na gratidão, quando o
foi, que fe efcondia entre brumas precurforas de tormentofo
vendaval, os não podia aquecer, nem confortar.
O bem que o legiílador tinha feito á fua pátria, fora quafi
fendo ella incita, ingrata e adverfa ao próprio beneficio, que
recebera. Accrefcia ainda contra o grande eftadiíta portuguez
a desfavorável circumítancia de que as fuás reformas tinham
íido pela trifte neceffidade aíTignaladas com um rafto de fan-
gue defde a trágica fcena de Belém e os judiciários morti-
cínios da porta do Olival até á execução do Malagrida e
ao cruel fupplicio de João Baptifta Pelle. A mão, com que
o reformador diffipiára os nevoeiros da intelligencia nacio-
nal, quebrara os grilhões ignominiofos aos fer^■os e aos des-
cendentes dos judeus, e repulfára com vigor as invafões do
poder eccleíiaítico, apparecia envolta e mal vifn^el na torva
atmofphera focial, cmquanto o punho que firmara as fenten-
ças capitães, c as ordens de defterro e captiveiro, refulgia
com o vivaz e fmiftro efplendor do langue ainda recente.
Na phantafia popular a imagem de Carvalho reprefentava-fe
eclipfando mal na lua aureola o vulto do algoz. Trifte con-
dão dos homens que fó poderam, pelo influxo imperativo
dos tempos em que A-ÍA'eram, fervir pela força as grandes
idéas, fazer jorrar a luz faifcando nos campos de batalha
e nos patíbulos, circurndar a civilifação com um envoltório
de miferias individuaes, e, por um extranho paradoxo, vin-
cular ao terror e á crueza o fanático amor da humanidade.
Taes foram os Cromwells, os Robefpierres, os Pombaes.
A queda do miniílro devia fer pois tão eftrepitofa, como
fora alevantado o leu poder e brilhante a fua gloria. Não
podia Sebaílião de Carvalho illudir-fe com a efperança de
que os feus inimigos lhe perdoaífem. nem a rainha, devota
th
498
e avaíTallada á vontade de um marido, de curtiíTimo intelle-
dto e declarado parcial da reacção politica e religiofa, o con-
fervaíTe dominante no governo. Ainda o rei não exhalára os
últimos alentos, e já o eítadifta aprefentava uma lupplica
á rainha regente para que o exoneraíTe de um encargo, para
que o eftavam já inhabilitando os achaques, os annos, as
fadigas de íeu longo e tormentofo minifterio.
Apenas poucos dias decorreram depois que fubira ao
throno a filha de D. Joíe, quando Sebaftião de Carvalho
pede á Ibberana que longe dos negócios o deixe repoufar
nos annos derradeiros. Já então era apenas miniftro nomi-
nal. Já no paço o coníideravam como extranho e importuno.
Já os próprios que lhe haviam lido liíonjeiros cortezãos nos
tempos da maior profperidade, como o cardeal da Cunha,
lhe voltavam as coitas com arrogância e com defdem. Na
íupplica dirigida a D. Maria I, compendiava o canfado minis-
tro de D. Joíe os ferviços que fizera á coroa e á nação. Inflava
por que lhe foíTe concedida a permiífão de retirar-fe ao quieto
e obícuro remanfo do Pombal, onde lhe parecia não have-
riam de chegar tão vivos e cruéis os ódios e as vinganças
dos feus adverfarios. Comparava-fe na tribulação, em que fe
via, ao grande Sully, em quem a ingratidão defconhecêra e
oíTufcára as glorias da lua adminiftração.
A 5 de março de i 777 a rainha, deferindo na apparencia
ás inftancias de Carvalho, mas na realidade obedecendo á
terrível conjuração, que no paço eftava urdindo a famélica
turba dos novos cortezãos, demittia do cargo o valido e con-
felheiro de feu pae, e permittia-lhe o ir viver na villa de Pom-
bal. Ainda a eíla lazão alguns raros amigos alcançavam c^ue
não fe defencadeaíTe contra o velho a impaciente e feroz
perfeguição. A rainha ao defpedil-o do alto oflicio fazia-lhe
a mercê de uma commenda, a de Santiago de Lanhofo, na
ordem militar de Chrifto.
499
Ncío era porém plaulivel confiar que os rancores de tan-
tos annos fe deíTem por fatisfeitos com o retiro de Carva-
lho á vida particular. Começavam a exercer-fe manifeftas
perfeguições contra alguns dos que foram mais conjundos
e confidentes ao eftadifta. N'efte numero fe contavam princi-
palmente uma irman de Sebaftião de Carvalho, D. Maria
Magdalena, prioreza do mofteiro de Santa Joanna, Fr. Ma-
nuel de Mendoça, dom abbade de Alcobaça e efmoler-mór,
primo e amigo particular do eitadifta, Fr. João de Manlllha,
da ordem dominicana, o qual tivera a parte principal na
fundação da companhia do Alto Douro, e um irmão do
bifpo Cenáculo, que era frade da ordem terceira da peniten-
cia no convento de Jeius.
Bem defejariam os ferozes inimigos de Carvalho, valen-
do-íe da plebe efcandecida, afFrontar com violências a pes-
foa do illuftre reformador. Eftava porém aufente e longe de
Lifboa. Refolveram laciar as luas iras, oífendendo-o em ef-
figie. Contra o medalhão de bronze, encravado no pedeftal
da eftatua equeífre, choviam diariamente nuvens de pedra-
das. Era um opprobrio para a triumphante reacção, que o
bufto de quem reiíaurára a capital depois da lua quaíl total
aíTolação, ainda perpetuaíle a honrada memoria de tal feito.
Uma noite, a defhoras, o medalhão é apeado e poftas no leu
logar as infignias da cidade. Refere-fe que ao faber no Pom-
bal a nova injuria, Sebafíião de Carvalho, com a ferena for-
taleza de feu animo, diíTera, zombeteando : « Não me faz
pena que tiraffem a efiigie, porque em nada me era feme-
Ihante » . Se das affrontas diredas e peíToaes, que mais podiam
vellicar e ferir a fenfibilidade e os brios de Carvalho, nenhu-
ma efquecia aos feus vingativos adverfarios, não eram me-
nos hoflis as providencias, com que bulcavam abrogar a fua
legiílação. A companhia do Grão-Pará e Maranhão, a infti-
tuição mimofa do eftadifta, era abolida como contraria aos
eis
5oo
intereíTes públicos'. Os negociantes de Liftoa, — para que
nem efta claíTe predileda do legiílador faltaíTe no cortejo da
reacção, — feftejaram com um folemniffimo Tc Dciim a dis-
folução da poderofa fociedade mercantil.
No paço dominavam já fem emulo os mais altos repre-
fentantes da nobreza, jurados inimigos de Car\'alho. Do an-
tigo minifterio fubfiftiam apenas no confelho da rainha o
aftuto Martinho de Mello, como fecretario de eftado da ma-
rinha, e o devoto Ayres de Sá e Mello, na lecretaria dos
negócios extrangeiros e da guerra. O vifconde de Villa Nova
da Cerveira occupava agora o logar preeminente de miniftro
principal.
O Marquez de Angeja recebia o encargo de infpector do
real erário, quafi miniftro da fazenda em o no\'o e obfcuro
minifterio.
Por teftemunhos inequívocos fe eftava defde então an-
nunciando que o governo da rainha, inípirado pelos feus in-
vejofos e mefquinhos confelheiros, fe empenhava por ler de
todo o ponto o reverfo da anterior adminiftração. A nobre-
za arrogante e ambiciofa já fonhava a refurreição da fua
antiga influencia e poderio. Já as graças honorificas e rendo-
fas ertavam jorrando a flux fobre as famílias mais illuftres
pelo berço e mais jubiladas no ódio contra Carvalho. O cle-
ro e feus parciaes já fuppunham a Ibberana deftinada a re-
prefentar em Portugal o mefmo officio, que cm rafgos de
cruento fanatifmo exercera em Inglaterra a lua homonyma,
depois da herética dominação de Eduardo VI. Os jefuitas
já oufavam fupplicar a revogação do leu exilio, emquanto
não alcançavam refurgir no corpo m)'ftico e triumphal da
Companhia. Os parentes mais chegados dos nobres jufti-
çados em Belém pediam com arrogância, em nome da in-
' Decreto de 5 de janeiro de 1778.
5oi
nocencia e da juftiça, que fe rcviíTe o famofiíllmo proceíTo
e fe declaraíle pura e immaculada a memoria das victimas
illuftres. Os fidalgos, que haviam longos annos vivido encer-
rados nas prifões, o marquez de Alorna, e os irmãos do
marquez de Távora, requeriam com imperiofas intimações
que a rainha os declaraíTe por innocentes, porque de outro
modo não agradeceriam a Uberdade, nem queriam tomar na
corte o feu logar.
Decretavam-fe as honras de benemérito ao conde de S.
Lourenço, que jazera nos ergaftulos da Junqueira. Honra-
va-fe egualmente com palavras de encarecida fatisfação a
memoria do vifconde de Villa Nova da Cerveira, que havia
fido embaixador em Hefpanha, e terminara os feus dias na
prifão.
Os homens, que mais haviam concitado lobre fi as du-
ras reprefalias de Carvalho, eram agora recebidos e fefteja-
dos como viclimas de um cruel perleguidor e exalçados á
eminência dos martyres ou dos heroes. O bifpo de Coimbra,
D. Miguel da Annunciação, a mais completa perfonificação
do fanatifino, depois de fer recebido com as moftras de en-
tranhavel amor nos paços régios, fazia triumphalmente a fiia
entrada na velha cidade univerfitaria. Os bafl:ardos de D.
João V, os meninos de Palhavã, D. António e D. Jofé de Bra-
gança, voltavam do feu defierro do BulTaco, faudando-os na
capital as clamorofas acclamações da plebe defadnada. Jofé
de Seabra, que fora o flagello vibrado pelo grande legifla-
dor contra a reacção religiofa, regreíTava de feu degredo,
recebendo agora os parabéns e os prolfaças dos próprios,
que poucos annos antes o haviam aíTociado na fua cólera ás
que tinham por nefandas malfeitorias do feu patrono e ins-
pirador.
A plebe d'aquelle tempo, incuUa c fempre attreita, na
fua infantil volubilidade, a aíTociar-fe ás tremendas reprefa-
5o2
lias das facções, defentranhava-fe cm motejos e doeftos con-
tra o homem que via agora proftrado e abatido. Succediam-
fe as fatyras e os pafquins injuriofos, condenfando ora em
gracejos efcurris, ora em ferozes ameaças o furor e a vingan-
ça do partido clerical.
A eftrondoía e publica reprovação, que n'eftes aítos,
com o favor e confenfo da rainha, fe revelava odienta e in-
exorável contra a politica de Carvalho, era a neceíTaria e ló-
gica preparação do que fe eftava já traçando nos corrilhos
e facções do clero e da nobreza. Não bailava que os fober-
bos ariítocratas fe viífem guindados improvifamente ás hon-
ras e á privança e faciaífem a ambição, a que lhe cortara
os voos impudentes o fevero miniflro de D. Jole. Não bas-
tava que fe viífem manifeftos os fymptomas da fujeição e vas-
fallagem do império ao facerdocio, e que o fanatifmo, como
fupremo legiflador, fe aífentaífe no folio de Portugal á mão
direita da rainha. Não afpiravam unicamente os inimigos de
Carvalho á emenda e correcção do que em feus feitos haviam
condemnado. Não os contentava a rápida metamorphofe, que
já fe ia operando no governo e na politica de Portugal. Bra-
miam por vingança eftrepitofa. Pretendiam propiciar com a
cabeça de um velho de oitenta annos as cinzas difperfas
dos Tavoras, do Aveiro e Malagrida. Os que taxavam des-
abridos em Carvalho as cruezas, que exercera, defejavam
apenas imitar do feu emulo proftrado a dureza fatal do co-
ração, já que não podiam copiar-lhe as magnânimas acções
em prol da pátria, e ainda mefmo, depois de caído e humi-
lhado, por mais que fe alteaífem não fabiam raftrear-lhe a
hiftorica eftatura. Vivia Sebaítião de Carvalho nas fuás pro-
priedades de Pombal, emquanto fe acaftellavam já vifiveis
no horizonte as nuvens precurforas da borrafca. Ali quieta-
mente dava ordem aos domefticos negócios, revia e completa-
va os feus papeis polhicos fobre o curfo da longa adminiftra-
ti»
5o3
ção. Ali efcrevia as luas reflexões ás dezefete cartas publi-
cadas em Londres acerca da fituação de Portugal durante o
feu fecundo minifterio. Ali traçava algumas das luas obras
apologéticas em contra das calumnias e doeftos divulgados
com fanha recrefcente, e recebidos como dogmas entre o
vulgacho. O que entre os íeus elcriptos d'eíta epocha l'e tornou
mais memorável, foi a Contrariedade ao libello, que contra
elle fizera articular um certo Mendanha, homem abalfado,
mas ao que parece turbulento e de vida mui pouco exem-
plar. Celebrára-fe um contrado entre Carvalho e o feu aflual
e terrivel accufador. Cedêra-lhc o miniílro umas proprieda-
des que poíTuia em Villa Velha, e eftipulára o preço da alhea-
ção, não oufàmos aííirmar que com total efquecimento de
que um dos outorgantes n'eft:e pado era o fupremo dicfador
de Portugal, o outro um homem opulento, mas defegual na
valia e no poder. Por motivos occorrentes e extranhos ao
contracto, fora o Mendanha camarariamente deíterrado para
a ilha Terceira, fem forma de proceíTo, como era ufo habitual
na delpotica monarchia. De volta de leu defterro, o inimigo
mais fedento de vingança, c|ue de juítiça direita em pleito
eivei, tornou-fe por aíTuTi dizer o órgão e reprefentante dos
que eftavam accufando o eftadifta pelas que diziam violên-
cias, malverfações, atrocidades. Fez redigir por um dicaz e
fogofo advogado o feu libello, no qual em vez de limitar-
fe a pedir a annullação do antigo pado, por enormiffima le-
fão, deduzia longamente, menos as luas particulares allega-
ções do que as tremendas e ferozes invedivas contra o longo
minifterio de Carvalho. A aggreffão defdc logo vulgarifa-
da e applaudida, pedia naturalmente uma digna contefta-
ção. Efcreveu-a o eftadifta na fua Contrariedade ao libello,
de que fez extrahir diverfas copias. Era uma longa c docu-
mentada apologia, que cifrava como que a hiftoria politica
de Portugal defde que Sebaítião de Carvalho principiara a
5 04
vida publica, e compendiava os ferviços eminentes do mi-
niftro. Efte efcripto paíTava naturalmente de apologia a re-
prefalia. Os inimigos de Carvalho não ficavam bem aqui-
nhoados n'eft:a luda empenhada com o feu velho contendor.
A Contrariedade fez efcandalo. Um decreto da rainha, exa-
rado em afperrimas palavras', ordenou que foíTem fuppri-
midos os originaes e as copias da conteftação e do libello,
confervando-fe apenas os documentos neceíTarios para aqui-
latar juridicamente a jufliça dos litigantes. A rainha firmava
com o feu nome um papel official, em que o ancião, verga-
do aos annos e aos trabalhos, era feveramente reprehendi-
do, porque tivera a oufadia de efcrever, dizia o decreto, fob
a infpiração do ódio, uma tal apologia, revelando fem re-
cato as íntimas negociações do gabinete, oífendendo a me-
moria de D. Jofé, e perfiftindo em denegrir reputações, que
a foberana fizera publicar intemeratas.
Eftava aberta e declarada a perleguição contra o grande
legiflador. Infamava-o a rainha, que a adulação chamou
piedofa, e fanática appellida hoje a verdade. Não ceíTavam
em torno d'ella as obfeííões para que decretaffe o julgamen-
to do miniftro, e completaíTe as oífenfas contra a honra com
os tentames contra a vida de Carvalho.
No mez de outubro ordenou a rainha, inítigada na fiaa
fraqueza pelas mefquinhas fi.ipplicações dos feus fátuos e
vingativos confelheiros, que dois magiftrados foffem ao Pom-
bal a começar os interrogatórios ao exilado reformador. Sof-
freu Carvalho com eftoica firmeza e conformidade o novo ul-
trage, e moftrou-fe nas palavras cortefão e obfequente á fobe-
rana dementada que a um velho de oitenta annos, caído havia
pouco do máximo faftigio, ia atormentar-lhe os derradeiros
dias da exiftencia com uma longa e penofa inquirição. As
eis
■ Decreto de 3 de feptembro de 1779.
(Is
5o5
enfermidades, que delde longos annos aftligiam o eftadirta,
eítavam engravecidas pela velhice já proveda e pelos tranfes
anguftiofos de tantas humilhações. Que ainda os ânimos mais
de bronze c mais Ibbranceiros ás miferias d'efte mundo e ás
torpezas de uma corte, não fabem tão rijamente defabraçar-
fe da condição de homem e de politico, que lhes não doam
fundamente os efpinhos da ingratidão. Eram já de fi os in-
terrogatórios uma grave penalidade, punição moral, phyfico
tormento. Tormento para um ancião tão quebrantado, a quem
forçavam muitas vezes a levantar-fe do feu leito para con-
teítar por largas horas ás perguntas dos civis inquifidores.
Punição e punição injuriofa, porque tal era para quem tinha
ainda tão frefcas na memoria as alturas, de que viera des-
penhado, o ver-fe cavillofa e duramente interrogado por um
obfcuro e malevolente leguleio. E tal era na verdade o con-
felheiro da fazenda Jofé Luiz de França, nomeado interro-
gante, a quem fervia de efcrivão o defembargador Bruno
Manuel Monteiro. Duraram íete mezes as humilhações judi-
ciarias infligidas pelos dois magiftrados ao velho eftadirta
portuguez. A todas as interrogações, em que bufcavam ad-
judicar á fua exclurtva refponfabilidade os feitos de incle-
mência e de rigor refpondia Sebaftião de Carvalho fazendo
tenazmente relurtir contra o arbítrio do foberano os tiros,
com que o frechavam. Não eftava ainda inventada e intro-
duzida efta politica ficção ou antes pueril hypocrifia, com
que os modernos publiciftas, para conciliarem a poteftade
fuprema do reinante com a máxima ideal de que não pôde
nunca fazer mal, pretenderam alTentar fobre uma fubtileza
metaphyfica ou um conceito puramente convencional o edi-
fício do governo, o que ha de mais pratico e inconfirtente com
as fobrenaturaes abífracções. Não tinha vogado ainda entre os
políticos o fuppofto axioma conftitucional de que o rei apenas
reina e não governa. Reinar c governar eram fynonymos. O
4 4»
5o6
monarcha não era pois impeccavel, nem podia furtar o corpo
como homem á moral refponfabilidade, efcondendo-fe como
rei por detraz do leu minirtro. O miniftro era pois um fâmulo,
um mero executor da vontade incontraftavel do imperante,
que pelo fado de o manter jundo de li, podendo-o expulfar
dos feus conlelhos e punil-o a leu talante, tomava a fi pre-
cípua a audoria nos ados do valido. O langue das vldlmas
efpadanava com effeito na cabeça do monarcha. Seria abfur-
do hiftoricamente declarar cândida e virtuofa a memoria de
Nero ou de Tibério e concentrar nos vultos de Tigellino ou
de Sejano todas as exprobrações da poíteridade. Se as vio-
lências de Carvalho eram crimes, de que não ha\ia pofllvel
remiffão, o principe que as firmara com o feu nome ou era
um idiota, ou um affaíTmo, ou indigno de reinar pela lua fra-
queza, ou digno de execração pela lua crueldade.
A condemnação de Sebaftião de Carvalho não deixaria
pois immune a memoria de D. Jole. Não efcapou certamente
eíla difficuldade aos que incitavam a rainha ás ferozes vin-
ganças contra o velho. É de crer que ao ordenar contra o
miniftro um procedimento judicial não paíTou pela mente da
rainha o funeftar com uma Icena de cruenta expiação os
princípios do reinado. A rainha era fanática, mas refugia ás
fentenças capitães. O feu valido e confeílbr Fr. Ignaclo de
S. Caetano, antigo Inftrumento de Carvalho na lua luda com
as demafias clericaes, eftaria junto d'ella refoluto a parar o
ultimo golpe, fe o quizeíTem desfechar contra o leu antigo
bcmfeitor. O intento principal dos ódios contra o miniih"o não
era conduzil-o ao cadafallb. Baftava-lhes excruciar com as
derradeiras humilhações o animo do fevero legiflador. Con-
tentavam-fe com que n'um diploma officlal appareceffe o
antigo miniftro de D. Jofé como um incorrigível criminofo,
a quem a rainha pela fua piedade e commileração, como fe
o verdugo defdenhalTe uma cabeça já decrépita, concedia a
eis
1
5 07
exiftencia. N'uma junta de delembargadores, celebrada a 22
de maio de 1 780, dividiram-fe os votos, opinando uns que
fe profeguiíTe o proceíTo judicial, que ertava apenas iniciado
pelo interrogatório no Pombal, tencionando outros que era
baftante íentenciar camarariamente para que não ficaíTe, di-
ziam elles, em fufpenfo o caftigo, que merecia o delinquente.
A queftão era tão árdua e elcabrofa de reíblver, que
durante largo tempo ficou Sebaftião de Carvalho efperando
no leu retiro em que ^■iria finalmente a defatar-fe a tem-
peftade. Vários dos jurilconfultos, que na junta haviam as-
fignado a conlulta fobre o proceíTo, eram d'aquelles, que ti-
nham auxiliado o eftadifta com fuás luzes e efcriptos n'alguns
dos feitos mais famofos da fua adminilfração. Taes eram
principalmente Jofé Ricalde Pereira de Caftro e João Pereira
Ramos. A grande maioria dos falfos e intereíTeiros parciaes,
deixára-fe arraftar na corrente da apaixonada opinião, pre-
ferindo á lealdade e á coherencia o favor da nova corte. Os
raros, que ainda ficavam no íecreto inclinados á manfidão
em favor do velho octogenário, eram tibios e recciofos de
incorrer na mefma rígida fortuna. Succedia o que fempre
aconteceu ao fequito dos grandes homens, quando a fua
eítrella de todo fe efcondeu. O poder, e não a gloria do
caudilho retém enfileirados em volta d'elle os egoifmos dis-
farçados na pura dedicação. Parece todavia que ás diíficul-
dades politicas e judiciarias do proceíTo fe accrefcentava a
benévola interceíTão de alguém, cuja privança era mais intima
no animo irrefoluto da rainha.
Emquanto no paço fe enlaçavam e complicavam os en-
redos, forcejando os mais ferozes inimigos de Carvalho por
defhonrar-lhe juntamente o carader e o governo, um nego-
cio capital occupava n'effes dias o animo inquieto da reac-
ção. Tratava-fe de nada menos que de annullar a fentença
proferida pela junta da Inconfidência contra os réus do re-
eis
5o8
gicidio. Se a innocencia dos juftiçados fe julgaíTe n'um pro-
ceíTo de revifta, e o governo fe conformaíTe com efta audaz
refolução, os delinquentes rellirgiriam na memoria dos vin-
douros como um coro de martyres illuftres, immolados á fe-
rocia de um ficcario. Se Carvalho apparecia como um aíTas-
fino, mal acobertado na apparencia das formulas judiciarias,
o máximo rigor exercido contra elle era a jufta expiação dos
feus delidos. Era o marquez de Alorna o que em honra dos
Tavoras, feus parentes, pedia com inftancia a revifão. Um
decreto da rainha', após mil combates e hefitações, concedeu
a revifta de graça efpecialiffima. Eram quinze os defembar-
gadores que deviam examinar o proceíTo e a fentença con-
demnatoria. Entre elles não eram raros os que tinham con-
fpicuamente figurado como fatellites juridicos do miniftro
omnipotente. Os fecretarios de eftado, fegundo era praxe
monftruofa n'efta parodia de grave judicatura, prefidiam ao
fynedrio dos legiftas. Após muitas delongas, irritada a im-
paciência da rainha ou a dos feus defafifados confelheiros,
congregaram-fe de noite no palácio da Ajuda os juizes da
revifta, e fendo já as quatro da madrugada do dia 23 de
maio de 1781, proferiram a tardia fentença abfolutoria, de-
clarando indemnes de toda a infâmia e culpa a memoria dos
Tavoras e do conde de Atouguia, e reftituindo ás fuás fa-
mílias as honras e preeminências de feus maiores. O procu-
rador da coroa, João Pereira Ramos, oppoz-fe com embar-
gos á fentença, que a foberana, por occultas influencias, e
porventura com o efcrupulo de aífociar a uma flagrante ini-
quidade o nome de feu pae, nunca chegou a confirmar.
Os echos d'eftas incanfaveis diligencias, com que fe pre-
tendia apreífar a final condemnação do perfeguido reforma-
dor, chegavam aos feus ouvidos como o terrível ulular dos
I Decreto do lo de outubro de 17S0.
feus crus adverlarios. Efperava a cada inlíante que por íor-
çolb corollario da fentença abfolutoria dos Tavoras e do
Atouguia, chegalTe ao cabo de tão duras provações o decre-
to da rainha condemnando o miniftro de feu pae. Ainda não
eram cumpridos bem três mezes depois da fentença revifo-
ria, quando um no\o diploma da Ibberana' refolvia finalmen-
te as incertezas crueliffimas, em que tinha paílado no Pom-
bal mais de três annos o odiado reformador.
Faziam os infenfatos confelheiros que a rainha íirmaffe
n'aquelle diploma o juizo mais implacável e fevero contra o
miniftro de leu pae, exhalando-le em vagas acculações, que
não le preoccupava de aíTentar em factos certos. Declarava
que apefar de haverem fido qualificados os feus delictos,
como de réu e merecedor de exemplar cafligo, o piedofo co-
ração da imperante, attentas as graves moleftias e os decré-
pitos annos do efi:adifta. e infpirando-fe antes na clemência
que na juftiça, lhe perdoava e remittia as penas corporaes,
ordenando-lhe porém de viver a vinte léguas longe da corte,
emquanto aprouveífe ao feu animo real. Deixava porém li-
vre ao régio fifco e aos particulares toda a acção civil para
ferem indemnifados das perdas e damnos, que contra Se-
bafi:ião de Car\'alho podeífem nos tribunaes competentes
comprovar.
Aífim condemnava implicitamente a rainha, que appelli-
daram piedofa, a memoria de feu pae. Segundo aquelle de-
creto a longa adminiftração de Sebaftião de Carvalho havia
fido um tecido de iniquidades e porventura de violentas ou
artificiofas extorfões ao fifco e aos particulares. E como pode-
ria fobrenadar á infâmia do miniftro a honra do foberano,
que durante vinte e fete annos fora fe não o refponfavel prin-
cipal, ao menos o activo cooperador do eftadifta dcfhonradoi'
■ Decreto de iG de at^ollo de 1781.
c|3
ela
4sh
-«5»-f.
5io
A dolorofa impreíTão, que no animo de Carvalho haveria
de fazer o hrutalilTimo decreto, não é precifo encarecel-a
com palavras. Não o culpavam de erros, fenão de crimes, e
não de crimes políticos fomente, fenão de peculato e con-
cuífão no exercício dos feus cargos. Aos oitenta e dois annos
já cumpridos, não havia fortaleza de efpirito nem robuftez de
corpo, que podeíTem refiftir imperturbáveis a tão cruel e iní-
qua exprobração. Foi para contradizer as aííirmações ou as
fufpeitas de que houveífe abulado do poder para accrefcentar
as fuás riquezas, que Sebaftião de Carvalho defcreveu n'uma
longa memoria o eífado dos feus bens e a fua proveniência.
As dolorofas provações, com que Sebaftião de Carvalho es-
tava expiando os largos annos de incontraftavel didadura,
eram a trifte, mas neceífaria confequencia da própria natu-
reza do poder que exercitara. O feu governo fora politica-
mente uma dominação abfoluta, que punha acima das leis
a vontade do foberano, e fazia do feu arbítrio o fynonymo
da legalidade, e das fuás refoluções irrefponfaveis a norma
de juftiça. A fua adminiftração havia lido uma luda de força,
não temperada pelo influxo do direito ou da ec^uidade.
Quando o viram prolfrado na arena, onde o tiveram por
invencível antagonilla, então foi o retorquirem contra elle as
próprias armas que forjara. A violência refpondia a violência,
á dureza a feveridade. A guerra é affim em toda a parte.
Não é pois para extranhar que o maior miniftro, que Portu-
gal celebrou nos feus annaes, foífe egualmente o mais fcvero
para com os feus contradiífores, e o mais cruamente maltra-
tado pelos feus adverfarios.
Sebaftião de Carvalho recebera da rainha a aftronta der-
radeira. Era o perdão da pena corporal. Ao homem que
tinha a confciencia de benemérito, em vez dos louros que
merecia, condemnavam-n'o por delinquente, e perdoavam-
Ihe por velho e achacado. A clemência infamante da rai-
th
nha, cm vez de encher de gratidão affeduola o coração
do eftadirta, era pelo contrario a ultima tribulação da fua
vida. Com as atfecções do animo engraveceu a enfermidade,
já defde largos dias progreíTiva e accelerada pelos annos. A
8 de maio de 1 782 tocava o leu termo a exiftencia mais fecun-
da e mais activa de quantas no gabinete fe votaram ao gover-
no e ao bem da fua pátria. Foram os defpojos mortaes do
legillador fepultados na egreja do antigo convento de Santo
António na villa do Pombal. De c[uantos amigos o haviam
circumdado frequentes, ofiiciofos, aduladores nas horas do
poder, raros fe atreveram a affrontar a opinião, comparecen-
do a render as honras ultimas ao antigo omnipotente diófa-
dor. O bifpo D. Francifco de Lemos não faltou ás folemnes
exéquias do que fora feu patrono e era então leu diocefano.
Pregou o lermão fúnebre o benediclino Fr. Joaquim de San-
ta Clara, e honrou a oratória lacra pela forma eloquente do
elogio c pela audácia de o pregar n'um tempo, em que a
refpeito do eftadifta, a diftamação era virtude, o filencio
lufpeição, e lela-majeilade o panegyrico.
Quando haviam já paliado largos annos depois que Se-
baftião de Carvalho pertencera á ferena jurifdicção da hifto-
ria, principiou a poíteridade a fer mais jufta do que foram
com elle os léus contemporâneos.
Um decreto do duque de Bragança de 1 2 de outubro de
i833 iniciou a reparação devida á memoria do miniftro, or-
denando que no pedeftal da eífatua equeftre folTe repofto o
medalhão de Sebaftião de Carvalho. Mais tarde, a 1 6 de ju-
nho de i856, as cin/as do eífadifta, que reedificara a deítrui-
da capital, foram defde o Pombal trafladadas folemnemente
para Lifboa, e depois de um officio folemne, mandado cele-
brar pela municipalidade lifbonenfe na egreja de Santo An-
tónio da Sé, foram depofitadas na capella das Mercês, na rua
Formofa.
tis
cia
5l2
A grande c folemniíTima apotheofe do eminente refor-
mador eftava porém guardada para quando cem annos fe
perfizeíTem depois que fe efcondêra no fepulchro. Por lou-
vável e generofa diligencia dos eftudantes de Lifboa, e pela
cooperação das claíTes commerciaes, principalmente da ci-
dade baixa, fe feftejou na capital com magnificas e oftento-
fas illuminações durante os dias 8, 9 e 10 de maio do pre-
fente anno de 1882 o centenário do grande legiflador. Um
pompofo cortejo civico, em que havia cuftofos carros de
artificiolb lavor e invenção, e onde por largas horas des-
filaram, precedidas de bandeiras e repartidas em numerofas
corporações, milhares de peífoas, foi a mais apparatofa ma-
nifeítação de quanto Lifboa, e com ella Portugal inteiro,
apreciava os beneméritos ferviços do grande homem á civi-
lifação puramente fecular e á moral emancipação do povo
portuguez.
A fefta magnifica do centenário foi como que a folemne
canonifação civil de Sebaftião Jofé de Car\'alho c Mello. Por
ella ficou authenticamente infcripto o nome gloriofo do efta-
difta no livro de oiro, onde fe regiftram os beneméritos da
humanidade, aquelles que pela tranquilla cogitação no
gabinete ou pela enérgica acção na vida praftica, alargaram
os caminhos ao progreífo e inundaram de luz intenfa a
atmofphera focial. Não é o favor nem a lifonja quem aífim
decreta a immortalidade ao homem, que ha um feculo pas-
fou. Quando do que teve de humano, de caduco, de terre-
nal, fó refla um pouco de pó, quando o feu poder é uma
memoria, a fua grandeza um nada, as homenagens ren-
didas ao feu nome e á fua gloria reprefentam a jufiiça in-
defeflivel da auftera pofteridade. E Sebaftião de Carvalho
foi em verdade um grande eftadifta e um grande portuguez.
Separemos do feu efpirito as grandes imperfeições e do feu
animo os numerofos defeitos, que o macularam, e appare-
(is
5i3
cer-nos-ha como um dos raros portuguezes, em quem ao
mefmo tempo concorreram as maiores illuminações do es-
pirito, e as mais activas e nobres qualidades do animo. Não
era Sebaltião de Carvalho certamente uma d'eftas rariíTimas
intelligencias, que nos léus voos mais erguidos raiam a cada
paíTo no original e no fublime. Era um talento, não um génio,
mas o leu entendimento era profundamente reflexivo e opu-
lentado com mui vafta e copiola erudição. A lua palavra,
ou tallaffe no idioma pátrio ou fe exprimiíTe em lingua fran-
ceza, era fluente, amena, períliafiva, relevada pela gravidade
majeítofa do feu gefto e pela nobre compoítura do feu vul-
to procero, quafi agigantado. A efcrever era claro e metho-
dico, mas diffulb e hyperbolico na idéa, redundante na dic-
ção. Comprazia-íe nos fuperlativos e nos advérbios, com
que bufcava realçar o penfamento, principalmente quando
os feus efcriptos eram deftinados a affear até o monftruofo
o carader e as acções dos feus adverfarios e em elpecial dos
jefuitas.
Todavia os feus efcriptos puramente litterarios, fe ainda
um pouco fe refentem do conceptifmo feifcentifta e dos ter-
mos fefquipedaes da epocha de D. João V, denunciam um
efpirito de larga illuftração e um eftylo corrente e defaíTe-
élado. AíTim o Elogio do primeiro marquei do Loiíriçal, reci-
tado na Academia de lújloria, fe não fe levanta demafiado
acima do commum nivel litterario do feu tempo, attcfta a
clareza do entendimento e a correcção da linguagem. É prin-
cipalmente, quando applicadas aos máximos negócios ou aos
minimos particulares de politica e de adminiílração, que as
faculdades eminentes de Carvalho rafgam os feus voos mais
brilhantes. As fuás idéas nem fempre fão ingenitas e origi-
naes. As mais das vezes citram-fc na imitação do que lhe
parece ter mais efficazmente contribuido para a profperida-
dc e grandeza das nações. SuUy e Colbert eftão prefentes
fempre á lua memoria, como Alexandre, Annibal e Júlio
Cefar apparecem por modelos ao eípirito guerreiro de Buo-
naparte. A idéa, que uma vez fe debuxou no feu efpirito, é
por elle tralladada á adminiftração com a indelével impres-
fão de uma vontade, que não íabe defiftir nem trepidar. A
energia e a perfeverança na refolução conflituem de feito os
rafgos principaes da fua phyfionomia moral. O feu caraéter
ainda é mais rijo e mais fevero do que o feu efpirito: é a
tenacidade do bronze fervindo a encadear a forma fugaz do
penfamento. O que elle quer com a vontade omnipotente, é
irrefiflivel como a neceíTidade, fatal como o deftino. E pre-
cifo que emmudeçam no coração todas as vozes da huma-
nidade, quando uma vez fallou a razão do eftado. Por iífo
Carvalho facrifica a fenfihilidade á urgência dos feus gol-
pes. Para elle o governo é como a guerra, uma luda, onde a
primeira condição é aniquilar o inimigo, fe de outro modo
não é poflivel defarmal-o. A idéa nova ha de a^'ançar mar-
chando fobre a velha tradição. Onde os adverfarios lhe ob-
ftruem o caminho, lerá a força o gaftador que derrube e
alhane os obítaculos. A dureza de Carvalho é a própria con-
dição do feu triumpho. A fua crença vivaz e intolerante na
preexcellencia do poder civil e na emancipação intelledual
da humanidade, não é apenas enthufiafmo, toca as raias do
exaltado fanatifmo. D'ahi vem a febril exaltação que o tem
fempre em fobrefalto contra os deteftados jefuitas. D'ahi vem
as mais duras perfeguições contra os que bufcam ajudar ou
favorecer os intentos da Companhia. Dois defeitos capitães
empanam a limpidez ferena do feu animo. O primeiro c o
defejo ardente de perpetuar o feu nome e a fua gloria n\ima
familia levantada ás honras mais diil:indas da nobreza titu-
lar, como fe os grandes homens podeífem ter outra famiha,
onde o feu culto fe perpetue, fenão a agradecida pofterida-
de, como fe os defcendentes dos heroes não folfem, por uma
'■ -íj)-!-
5i5
lei providencial, condemnados a rojar pela rafteira obfcuri-
dade um nome, com que não podem, uma gloria, que nem
fabem comprehender. E d'ahi que fe origina a complacên-
cia, com que recebe o titulo de conde de Oeiras, e mais tar-
de o de marquez de Pombal. D'efte defeito fundamental de-
riva-le um fegundo de não menos defprimor e menofcabo
para a gloria de Carvalho. Foi a lua dominante cubica de
adquirir e enriquecer, como fe as próprias thefes, que elle
rijamente propugnou em luas leis, lhe não eftiveram já pro-
gnofticando, que pela futura abolição de todas as formas
de amortifação, e pelo termo fatal da velha monarchia, as
famílias fundadas no privilegio e na munificência dos mo-
narchas, leriam em breves tempos reduzidas a eleger entre
a mendicidade ou o trabalho, e a confundirem-fe pela egual-
dade na maíTa commum e ablbrvente da moderna demo-
cracia.
si) «JQ
SEGUNDA PARTE
*S-C>- : -ô-§*
1
i
SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO
E MELLO
o EMINENTE PROPULSOR DA EVOLUÇÃO SOCIAL
EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII
cl?
Mouftrat iler.
]). J. I.
uem algum dia fe inclinou anciofo fohre o
corpo exânime de um pae idolatrado e, de-
pois de prolongada anguftia, lhe prelentiu o
primeiro palpitar do coração que annuncia-
va a volta á vida, eíTe poderá comprehen-
der o jubilo immenfo com que os amigos do
velho Portugal fentiram o defpertar d'aquel-
le nobre povo acudindo á grande fefta das nações, que pare-
ce convocada para o fim d'efl:e feculo pelas leis imperiofas
da hilloria.
A celebração do tricentenário de Camões fez o effeito
de uma defcarga eledrica que abalaffe até o intimo do or-
ganifmo a todos quantos poíTuem um coração portuguez.
Ceifou inftantancamentc o marafmo que durante cem annos
paralyfára aquelle paiz; os herdeiros das velhas glorias can-
tadas pelo poeta immortal, fentiram a folidariedade que os
eis
-A-i-
ligava, defpertaram do pefado lethargo do dclpotilmo, lacu-
diram as reminifcencias do ominofo pefadello das fuperfti-
ções theocraticas, e entraram de poíTe da fua confciencia
inaugurando uma nova epocha de vida publica racional.
A celebração dos centenários dos grandes homens é uma
feita eíTencialmente nacional. Nenhuma academia a decide;
nenhum governo a decreta; nenhum príncipe a íancciona.
A veneração pelos homens verdadeiramente grandes impõe-
fe imperiofamente, nalce efpontanea no fundo de todas as
confciencias, fentem-n'a os mais felizmente dotados como
os mais rudes: acode aos mais inlfruidos como aos mais
ignorantes; a uns aviva-lh'a o eftudo: a outros enfina-lh'a a
tradição; os reis e os governos tèem cunhado muita moeda
falfa de nobreza; o juizo da pofteridade, eíTe é que facil-
mente fe não corrompe.
A grandeza humana tem manifeítações variadas como é
largo e vario o campo da nofla adividade. Uma nação nobi-
lita-fe quando prefla homenagem a um philofopho como Spi-
nofa, a um poeta como o Dante, a um artilla como Raphael,
a um inventor como Guttemberg; mas quando depois de
prolongada inércia, um povo inteiro fe levanta como um fó
homem para celebrar o tricentenário d'aquelle em quem as
circumftancias como que perfonificaram a grandeza e até as
defgraças da pátria, eíTe povo evidentemente retempera-fe
para caminhar energicamente ao encontro dos feus deftinos.
As nações como os indivíduos fáo fuj citas a certos desfalle-
cimentos de que defpertam para reconquiflar o tempo perdi-
do; nenhum peito género fo deixará de vidoriar com enthu-
fiafmo cheio de efperança eíTe immenlb reviver da Europa
inteira, c]ue emfim fe levanta e fe orienta, penfa e reflede,
fente fuás forças e entra denodadamente na phafe de acção
que a fciencia lhe indica. A celebração do tricentenário de
Camões foi por certo em Portugal, nos últimos tempos, a
4» 4'
mais vigorofa affirmação do elpirito publico para o grande
movimento Ibcial que fe eftá operando na Europa na ultima
parte d'en:e feculo. Mas eíTe movimento não é ilblado. Seria
ingrato e perigofo defconhecel-o. A republica reerguendo-fe
em 1S70, em França, foltou eíTe brado fonoro de emancipa-
ção que delpertou os echos e eftimulou a dignidade do
mundo inteiro. O tricentenário de Camões teria fido celebra-
do ainda quando um Bourbon, um Bonaparte ou um Or-
leans governalTe em França. Mas eíTa fefla não teria tido a
mefma fignificação, leria apenas um faclo ifolado, e não
faria um elo d'eíra immenla cadeia que parte de alem do
Neva, atraveíTa como a medula efpinhal de um fyftema ncr-
vofo a Europa inteira, e vem perder-fe no grande continente
americano, trazendo eíTa corrente magnética emancipadora
que defperta a um tempo as mais nobres afpirações.
Os operários do futuro, aquelles que fe dedicam á nobre
tarefa de firmar na terra o reinado da jufliça, refpondem uns
a outros como fentinellas perdidas n'eíre campo immenfo
da actividade humana. As luas fileiras engroífam ao palfo
que rareiam as dos feus inimigos, e cada vez fe condenfará
mais eífa força da vontade dos povos, determinada pela
generalifação de uma verdade fcientifica, que mais tarde fe
tornará irrefiftivel.
Entrando aclivamente no grau de movimento da huma-
nidade, Portugal e todos os que o acompanham, não traba-
lha fó para fi, cumpre o grande dever de acudir ao concurlb
das nações para trazer o feu contingente á folução do gran-
de problema Ibcial.
Quafi um puro acalb vciu approximar em nolfo culto os
dois grandes nomes de Luiz de Camões e de Sebaftião Jofé
ti»
4sU
de Carvalho e Mello. O grande fado Ibcial que hoje fe eftá
dando em todo o mundo civililado parece uma reproducção
ou uma confirmação do que acontecia em todas as focieda-
des politicas quando o grande miniftro chegou ao poder.
Então o foi da idéa moderna, defpontando no extremo hori-
fonte intelleéfual, illuminava apenas cumeadas do efpirito
humano.
Bluntfchli, que fe ferviu d'efla imagem, quer dar a honra
da iniciação da nova epocha focial ao reinado de Frederi-
co II da PruíTia em 1740. E por demais germânica a pre-
tenfão.
A nova era eftá irrevogavelmente fixada por um accordo
tácito em 14 de julho de 1789, e ninguém poderá jamais
conteftar á França, á França que nos últimos feculos fe tem
fempre encontrado á frente do penfamento humano, o mé-
rito immenlb de ter feito folemnemente a mais enérgica e
gloriofa afiirmação da jufliça nos tempos modernos. lUumi-
nou-a com o mais vivo fulgor do feu talento e confagrou-a
abundantemente com o leu fangue. Um paiz que faz tão
prodigiofos facrificios por um ideal, tem direito a que lhe
refpeitem as fuás glorias.
Mas fe é inconteftavel que foi em França que reben-
tou eíTe immenfo vulcão de faber, de talento e de heroifmo,
a que a hiftoria poz o nome da grande revolução focial,
também não é poílivel defconhecer que em meados do fe-
culo XVIII cm toda a Europa fe operava um trabalho furdo,
mas poderofo, de intelligencia que, fe pelas circumflancias
da epocha não podia defcer até a grande muhidão dos efpi-
ritos fubalternos, deu origem, entretanto, a grandes manifes-
tações nas intelligencias mais elevadas. Frederico II merece
por certo fer citado entre aquelles a quem, n'eíTas alturas
intelleduaes, illuminou primeiro o foi da moderna afpira-
ção. Catharina, da Ruflia, não deve ler efquccida; .lofé II,
-i-À- -À-l-
•J>-^
de Auftria, acompanhou dignamente os efpiritos mais cultos
do feu tempo. A todos clles coube a honra infigne de le pre-
occuparem com a queftão focial, que no feu tempo aprelen-
tava (nem outra coufa era poíTivel), uma forma muito con-
fufa; mas feria injuílo negar a Sehartião Jofe de Carvalho e
Mello o primeiro logar n'eíra plêiade illuflre, em que aliás
figuraram muitos outros aflros de fegunda e de terceira gran-
deza, que tiveram o mais benigno influxo nos deftinos da
humanidade.
Se não é illuíao d'elfe immenfo amor que, aos que nas-
ceram em Portugal, infpiram fempre ao longe as coufas por-
tuguezas, a Sebaftião de Carvalho fó faltou a felicidade de
ter Voltaire por correfpondente e amigo, para que a Europa
lhe preílaífe defde meados do feculo paífado as homenagens
que nós fempre lhe rendemos. Se em logar de fe atolar nas
mefquinharias de Berlim e de Sans-Souci, o rei Voltaire
tiveífe ido até Oeiras em 1775 aífiifir á primeira expofição
de induftria nacional que fe fez no mundo, é provável que
elle tiveífe achado uma formula mais jufta e comprehcnfiva
do cjue a do celebre verfo:
Ccjl dn iiorl à prcfciit que iióiis vient la liimicrc
Do Meio-Dia também podia irradiar então alguma luz.
ainda para a França d'aquelles tempos.
A grande obra de Sebalfião de Carvalho pode folírer o
confronto e a critica de quem quer que feja. A actual fefla
o prova. Elle pertence inqueftionavelmente áe]uella claífe de
homens cujo nome fòa mais longe e mais forte depois da
morte; cujo vulto fe eleva mais alto depois que entrou no
tumulo; cuja intelligencia deita um fulgor mais vivo depois
que fua voz emmudeceu. Ha cem annos que defappareceu
de entre os vivos, e o feu nome como os feus diófos en-
chem a memoria e circulam na bocca de quantos faliam a
lingua portugueza. No momento em que a hiftoria aprefen-
ta ao noíTo reconhecimento e á noffa admiração os feitos
do grande miniftro, defvanecem-fe e fomem-fe como vãos
phantafmas, muitos vivos que a forte e a fatuidade condem-
nou á irrifão de lhe fuccederem.
É impoffivel contemplar a obra de Sebaftião Jofé de
Carvalho e Mello fem reconhecer n'elle o precurfor da gran-
de revolução de 1789. E não é dizer tudo, porque não é dif-
ficil defcobrir no fcu mais intimo penfamento o gérmen de
algumas das mais adiantadas afpirações do noífo tempo.
Sebaftião de Carvalho conheceu o abufo immenfo da theo-
cracia e 'da metaphyíica, viu claramente a perniciofa in-
fluencia do direito romano, entreviu a falfidade de alguns
principios económicos cjue ainde hoje dominam grande nu-
mero de efpiritos, foi um apoftolo dedicado da egualdade en-
tre os homens, quanto o comportavam os preconceitos do
feu tempo, trabalhou quanto pôde para a diffufão dos mais
úteis conhecimentos, deu um impulfo enorme á induftria na-
• cional, promoveu a agricultura, o commercio, a navegação,
favoreceu as artes, reorganifou a inftrucção publica, difcipli-
nou o exercito, dignificou perante o mundo o nome portu-
guez, reprimiu a nobreza, refreou o clero audaciofo, efmagou
os jefuitas facciofos e rebeldes, conteve Roma imperiofa-
mente, deu ao folo de Portugal a prerogativa de libertar os
efcravos que o pizaíTem, melhorou a condição dos Índios do
Brazil, rehabilitou os chriftãos novos, reedificou Lilboa fub-
vertida, efFeituou a primeira expofição de induftria nacional,
que fó vinte e três annos depois foi imitada pela republica
^%-^ -A-i-
4» t\»
franceza no fim do feculo, abriu as fontes induftriaes da
opulência, encheu o erário e emendou os coftumes. Deixou-
nos um exemplo, que até hoje ainda não foi egualado, de
uma actividade aíTombrofa dirigida por uma intelligencia tão
penetrante, por uma intuição tão perfpicaz, fuftentada por
uma vontade tão tenaz e tão firme que parece ter prece-
dido de um feculo o efpirito humano. O arrojo com que em-
prchendia os mais oufados commettimentos, e a galhardia
com que os levava a cabo fazem fingular contrafte com a
meticulofidade e inefficacia com que em noíTos dias têem
fido tratados os mefmiíTimos problemas. Aquelles cipós ma-
tadores a que o grande miniftro mcttèra o machado com
braço tão esforçacio, reviveram depois da fua morte, todos
nós os virnos reflorir cm noíTos dias, enleiando a arvore da
civilifação, fi-iífocando com o feu amplexo pérfido c finifiro
as mais legitimas afpirações da fociedade, fem que cfle me-
chanifmo hybrido da monarchia conllitucional, que pelas
dynaftias é íblidario com os intereffes da reacção e pelo po-
vo tende ao eftabelecimento do direito, poíTa chegar a ou-
tro refultado lenão a um compromilTo em que o direito é
facrificado.
A grandeza de Sebaítião de Carvalho impõe-fe-nos tan-
to mais imperiofamente, quanto fomos obrigados a confeíTar
que nem tivemos a força neceíTaria para confolidarmos to-
das as fuás conquiftas!
A feição mais laliente da adminilfração de Sebailião de
Carvalho é inqucftionalmente a tremenda luda que elle tra-
vou com a theocracia, e da qual faiu vencedor. Cerca de
uma decima parte da população de Portugal vivia na mais
ignominiofa ociofidade e tirava a fi.ia alimentação principal-
mente dos bens que o clero confeguíra adquirir fob pretexto
de garantir a felicidade na vida eterna. Singular fophifma!
As ordens religiofas tiravam argumento a feu favor do foc-
Ai eii
corro que davam á mendicidade que ellas próprias origina-
vam! Hoje taes opiniões refugiaram-fe no fundo das facris-
tias ou nas alcovas dos palácios; mas ainda lá exiflem.
O babylonifmo catholico de D. João V cuílára a Portugal
fommas fabulofas. Todos conhecem os efbanjamentos de
Mafra. Conta-fe que das ruinas da patriarchal queimada fe
defenterraram cerca de mil e quinhentas arrobas de prata.
Portugal não tinha efcolas nem eltradas; mas cuftodias e
relicários de oiro e pedras preciofas, abundavam por toda
a parte. Os profeíTores morriam de fome; mas o clero, que
por irrifão pregava a humildade e a pobreza, nadava na
opulência. Se os phenomenos naturaes andavam um pouco
defpercebidos, em compenfação o povo era iniciado nas
mais intimas minudencias do fobrenaturalilmo. A idéa cedia
o logar á. . . afíirmativa; em vez do eftudo a phantafia. A
razão fugia efpavorida diante de uma imaginação febril irri-
tada pela fuperftição e pela hypocrifia.
A dominação theocratica em Portugal cm meados do
feculo paíTado era verdadeiramente hedionda! O eítado de
aviltamento mental e de miíeria a que ella reduzira aquelle
pobre povo, é verdadeiramente inconcebivel. Se as condições
em que naíceu Sebaftião de Carvalho lhe difficultavam a
apreciação das circumftancias em que elle encontrou a fo-
ciedade do feu tempo, também vencida efta diíficuldade, elle
fe achava baftante perto do poder para o alcançar, e realifar
as fuás concepções. O que é certo é que, na falta de uma
orientação fcientiflca que n'aquelle tempo era impoíTivel, a
lua feliz intuição o infpirou a lançar o primeiro rumo que
mais tarde foi regiftado na grande carta da evolução huma-
na pela revolução franceza de 1789, e pelo qual depois dos
tropeços que lhe atiraram em caminho os Bourbons, os Bo-
napartes e os Orleans, a humanidade continua em fua car-
reira. O mundo fegue a França.
4» 4*
^ ,ÀI.
Durante um quarto de feculo Sebaftião de Carvalho fin-
grou imperterrito por eíTe rumo. Sebaftião de Carvalho elca-
pou á trift;e lei de óptica íbcial que não deixa ver os objectos
quando fão muito grandes e fe acham muito perto de nós.
Sua immenfa eftatura lhe permittia vel-os de alto, medil-os e
arcar com elles. Um dos peiores eífeitos das mais odiofas do-
minações é o abaftardamento dos efpiritos a ponto de lhes
delvanecer toda a efperança de emancipação e liberdade.
Sebaftião de Carvalho não fe aterrou, nem diante do terrí-
vel tribunal da Inquifição, o maior crime commettido pelos
papas contra a humanidade— a maior vergonha que a efpe-
cie humana ainda fupportou!
Quer attendàmos ao immenlb alcance dos princípios dis-
cutidos, quer ao numero de peíToas interefladas na contenda
(porque as queftões com Roma intereíTam toda a chriftanda-
de) cremos poder dizer afoutamente que a luda travada por
Sebaftião de Carvalho foi uma das mais importantes da his-
toria. D. João V conduzira a nação ao ultimo grau de vili-
pendio focial e moral a que ella podia defcer. Um terremoto,
enchendo de ruinas a capital, levara o pavor aos últimos li-
mites do paiz.
O génio humano dá verdadeiramente uma boa medida
do feu grande poder quando, apoiando-fe em tão frágeis
fundamentos, ou antes, quando a defpeito de tão temerofos
obftaculos, confegue ferir tão duras batalhas, e confegue re-
erguer do feu leito de Lazaro, um paiz que parece irreme-
diavelmente perdido.
A hiquifição foi açaimada, e á fúria d'eíra corte que tem
glorificado pela pintura cm feu palácio o afiTaíTinio de Coly-
gny, nunca mais em Portugal foram facrificadas vidimas hu-
manas. Fecharam-fe muitas dezenas de conventos. Corta-
ram-fe as relações com Roma. Ordenou-fe ao internuncio
do papa que dentro em quatro dias (n'aquelle tempo o prafo
sU
-'^>^
indifpenfavel para o fazer) tranfpozeíTe a fronteira de Portu-
gal. Mas o que foi verdadeiramente coloffai foi eíTa campa-
nha inexorável que elle abriu contra os jefuitas, começando
por prohibir-lhes o púlpito e o confeffionario, declarando-os
rebeldes, e terminando por confifcar-lhes os bens e por ba-
nil-os para fempre de Portugal e de todos os domínios por-
tuguezes, e a final por obter de Roma a diffolução da finiftra
e odiofa companhia.
Nós que temos debaixo dos olhos a encarniçada lufla
que em França ha pouco fe travou entre a Ibciedade civil e
as ordens religiofas; nós que teftemunhàmos como o clero
tem defendido palmo a palmo, defefperadamente, o terreno
do feu fombrio domínio; nós que temos prefenciado em
noíTos dias eíTe fingulariífimo duello entre um ancião enclau-
furado no Vaticano e o temperamento mais audaciofo e enér-
gico dos tempos modernos, apoiado no mais poderofo dos
exércitos e nas mais adiantadas conclufões fcientificas, pode-
mos fazer uma idéa do que teria fido em Portugal uma tal
luda ha cento e vinte annos, não efquecendo nunca que a
ariftocracia e a realeza viram confiantemente no clero, e com
a maior razão, o feu mais poderofo e natural (fe nem fem-
pre o mais fiel) alliado.
É impoífivel demorar por um momento a attenção Ibbre
efte immenfo feito de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello
fem regiftrar ao pé de tão grande nome o de um homem il-
luftre, que nós vimos defcer á campa nos tempos modernos,
carregado de annos e de ferviços, e cercado de uma venera-
ção publica raras vezes egualada. Sem fe elevar ás alturas de
que o grande miniftro domina a fua e a nofla epocha, Joa-
quim António de Aguiar, a quem as circumftancias não im-
pozeram tão onerofa tarefa, teve o mérito infigne de fer o
homem de uma grande idéa, e a felicidade rara e in^■eja-
vel de a levar a cabo. Joaquim António de Aguiar, o hon-
tis
si»
rado minirtro da rertauração portugueza, proferiu poucas
palavras: mas eíTas deixaram um veftigio indelével e fize-
ram echo no mundo. « Com frades a liberdade é impoíTi-
vel!» Eis a fua thele em toda a fua mudez e na linguagem
do tempo. E poíTivel que hoje achaíTemos uma formula
de maior âmbito e ao mefmo tempo mais exada; mas fo-
ram eíTes os termos que, fegundo a tradição, primeiro lhe
acudiram aos lábios, aquelles que elle repetia conllante-
mente até que pôde finalmente obter a anciada afTignatura
para o decreto, em virtude do qual no mefmo dia e á mefma
hora em Portugal fe fecharam todos os conventos depois de
expulfos todos os feus habitantes.
E inútil e defleal voltar o rofto para não encarar todas
as peripécias dolorofas a que inevitavelmente dão logar me-
didas de tal ordem. Então, como feíTenta annos antes, um
numero a%ailtado de homens abatidos pelos annos, incapazes
de exercer induftria alguma, foram lançados fem conforto, e
talvez fem pão, aos tormentos e ás vergonhas da miferia.
Muitos d'elles tinham crenças íinceras; alguns polTuiam a
cultura que com taes crenças era compatível. Um homem,
cuja memoria nós todos venerámos pelo leu talento, íaber
e caracter, e pelos relevantes ferviços que preífou ao paiz,
deixou cair da fua valente penna expreíTões cheias de aze-
dume para cenfurar cile acto evidentemente indifpenfavel.
Alexandre Herculano teve a forte de muitos dos feus illus-
tres contemporâneos, a cujo efpirito fó chegou a luz do cri-
tério moderno quando a fua obra já eftava muito adiantada
ou concluída, e quando a orientação fcientifica lo podia fer-
vir para moftrar-lhe os paífados defvios do próprio penfa-
mento, e quando já não era tempo de refazer a fua difciplina
mental. E eífe talvez o fegredo do acérrimo defencantamen-
to que nos pareceu enfombrar o ultimo quartel da vida do
audor da Vo{ do Propheta.
4tÍ3
^ .-<W
Amante da liberdade, fem duvida, aírufi:avam-n'o as ou-
fadias de Joaquim António de Aguiar. Ainda que conhe-
cendo bem o allemão, Alexandre Herculano parece ter-fe
conlervado afaftado d'eíTe movimento, que já em feu tempo
faziam em torno da qiie/tão-focial os Katheder-Jocialijlen das
margens do Spree. Apezar, porém, das cenfuras d'eíT:e ho-
mem eminente, ou antes, apezar do feu fentimentalifmo, a
pofteridade applaudiu o ado do miniftro de D. Pedro IV,
como applaudira o do miniftro de D. Jofé I, que ahás Her-
culano jamais impugnou.
Aquelle cancro Ibcial foi por duas vezes cauterizado com
fogo, ou antes Joaquim António de Aguiar deu a ultima de-
mão á obra de Carvalho e Mello. A fotaina negra defappa-
receu para fempre de Portugal, aonde não mais voltará. Po-
derão introduzir-fe cavilofamente algumas feitas folapadas.
Dos vãos de alguma facriftia húmida ou de algum palácio
bolorento podem rumorejar-fe algumas imprecações odien-
tas contra a civilifação; mas á luz do foi apparece fó eífa
reprefentação hypocrita em que o phantafma de um fyftema
de governo defpreítigiado e o phantafma de uma theocracia
caduca fimulam um compromiífo eíferil em cima da vora-
gem que os deve abforver a ambos.
O fentimentalifmo latino (die lateinifche fentimentalitãt) le-
vou-nos a fazer poefia com as ordens religiofas. Nos clauftros
e nas cathedraes efgotaram os melhores artiílas o melhor do
feu talento. Architedura, efculptura, pintura, mufica e poefia
encontraram no ideal religiofo muitas e bellas infpirações.
Miguel Angelo, Raphael, Paleífrina, Milton (e quantos
outros?) lhe deveram a immortalidade, fe não no paraizo ce-
leftial que elles fonhavam, pelo menos na memoria dos
homens. O amor, eífe fuave inífinófo, pervertido pela littera-
tura e contrariado pela legiflação — conculcado violentamen-
te por um myllicifmo afcetico, ao mefmo tempo irritante e
^%-h^ -^í»^
i3
inexorável, produziu explofões e delirios que deviam exaltar
ardentemente todas as phantafias. Durante muito tempo le-
duziu-nos a contemplação d'efles milTionarios que iam entre
bárbaros e gentios levar o gérmen da concepção theogonica
do catholicifmo. Mas o criticifmo moderno lança Ibbre eíles
fados uma luz dellumbrante e defapiedada. Quantas vezes a
intolerância, ufual companheira das convicções profundas,
deixou da noíTa civilifação entre os povos felvagens os mais
triftes e deploráveis veftigiosP! Quando hoje nos acode á
mente o vulto do venerável padre António Vieira, todo cheio
da fua fabedoria, enfinando aos indios os dogmas do catholi-
cifmo, ficámos eftupefados ! Invade-nos um fentimento inti-
mo e profundo de trifteza e aíTombro! Envolve-nos uma
atmofphera de duvida e defanimo! Taes fão as paragens on-
de vae divagar o génio e o faher dos homens!
Qualquer que foíTe, porém, o lyriímo com que Chateau-
briand e tantos outros quizeffem reaccender os enthufiafmos
esfriados, a arvore do fobrenaturalilmo mirrou para fempre.
Sebaítião Jofé de Carvalho, como Voltaire e feus confrades,
fizeram quanto homens ifolados podiam fazer para a cortar
pela rama. Eftava refervado á grande philofophia d'eíl:e fe-
culo vibrar-lhe o golpe final, decepando-lhe a raiz. O tronco
que até agora reverdecia de um lado quando o amputavam
do outro, não pôde mais haurir a feiva do folo em que íe
alimentava. A corrente da metaphyfica eftancou para fempre.
A evolução orgânica eítá concluída; agora refta fó a obra da
decompofição.
Sebaftião Jofé de Carvalho defpreftigiou a nobreza, apre-
fentando-a ao publico como ré dos mais nefandos delicios.
e fijjeitando-a a caftigos infamantes. Não feremos nós quem
?^ ^ ..A-i.
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'4
defenda os tormentos, nem ainda a pena de morte; mas o
que hoje ninguém admittirá é que os Tavoras e os Aveiros
deveíTem eítar perante a juftiça em condições mais favoráveis
que o ultimo homem do povo; e firmar eíte principio era da
maior importância focial.
É hoje moda cenfurar os erros económicos do miniftro
de D. Jofé. Não admira que elle ignoraíTe uma Iciencia, cuja
exiftencia era ainda ha poucos annos conteítada por homens
do mais fubido critério e cujos principios fundamentaes fão
fempre portos em duvida. Hoje por certo nenhum eftadiíta
referendaria um decreto prohibindo a exportação dos me-
taes preciofos; entretanto, quantas intuições verdadeiramente
geniaes revelavam um tado adminiftrativo, que parecia o re-
fultado de uma deducção fcientifica?!
Sebaftião de Carvalho promulgou leis fumptuarias, e ves-
tiu-fe e fez vcftir a corte com o panno ordinário da manufa-
ftura portugueza. Não falta quem exclame: «Grandes erros
económicos!» Não é efte o logar de difcutir as leis fumptua-
rias, mas não fe acha em taes difpofições o gérmen da con-
demnação d'eíre Jijiphifmo que Laveleye combate tão vido-
riofamente, pelo qual a fociedade fe condemna a um trabalho
Ímprobo para obter o fuperfluo e o inútil, emquanto lhe falta
o neceíTario e o indifpenfavel?
Na reforma da inítrucção publica Sebaftião Jofé de Car-
valho introduziu modificações profundas; nenhuma por certo
mais importante do que aquella que fujeitou o direito romã-
i5
no ao critério da boa raião. É verdadeiramente notável que
Carvalho ahrifle aíTini a porta á reforma da conftituição da
propriedade conforme o direito quiritario, que ainda hoje é
apenas uma afpiração de alguns poucos efpiritos mais adian-
tados como Laveleye, H. Spencer e H. George. Entreviu
elle a falfidade dos principies económicos e jurídicos que
tornam a miferia companheira infeparavel da civilifação,
e cuja demonftração por abllirdo chegou ao ultimo grau de
evidencia na Irlanda?
Os efpiritos, bem como os aítros, procedem por um mo-
vimento complexo de rotação e de tranllação. O mefmo fe
pôde dizer das fociedades, e d'aquelles que as dirigem. Ha
uma ferie de fados que defpertam diariamente outras tantas
refoluções, que fe impõem a cada momento, e que exigem
prompto defpacho; eíTes conflituem a adividade da rota-
ção diária, que de um certo ponto de •\iita fe pôde dizer
puramente individual. Mas os efpiritos, como as focieda-
des, como os aítros, obedecem também a uma lei de muito
maior alcance, traçando nos efpaços infinitos do céu ou do
penfamento elfa linha de vaftiífimas proporções, que os as-
trónomos denominam orbita, e que nas diítancias incom-
menfuraveis do univerfo ou do ideal levam a paragens des-
conhecidas.
Emquanto os efpiritos modeítos efquecem, fe é que ja-
mais chegaram a comprchender, a importância dos feus des-
tinos, aquelles que faíram mais rijamente temperados das
mãos da natureza alongam os olhos de águia pelas regiões
do infinito e indicam ás multidões o caminho do progreífo.
O rude camponez cujas preoccupações não ultrapaífam o
limite do campo que cultiva, ou quando muito chegam ao
mercado em que vende os feus produdos, ficaria repaífado
de terror fe lhe fizcífem comprchender que durante toda a
fua vida é arrebatado e revolvido por efpaços e abyfmos fem
eis
cia
i6
fim, com uma rapidez mil vezes mais vertiginofa que a da
pluma abandonada ás fúrias do tufão.
A adminiftração de Carvalho e Mello tem aíTim duas
partes diftindas: a da economia diária e interna e a da evo-
lução focial. A primeira fem duvida merece o maior elogio.
A reorganilação de um paiz corrompido e defmantelado,
depois do defaífre immenfo de um terremoto, exigiu real-
mente uma adividade aíTombrofa. A fua grandeza principal,
porém, terá fempre por fundamento a parte que cUe tomou
na evolução focial, na obra do futuro. É principalmente por
aquillo que elle trabalhou para nós, que a pofteridade fera
fempre grata á fua memoria.
D. Jofé entendeu dever premiar ao modo da epocha o
feu miniftro, conferindo-lhe titulos nobiliários e condecora-
ções. Aos eruditos e aos aulicos compete regiítrar e apreciar
eífas manifeftações do real agrado. Em noífos dias um rei
elevando um grande homem a taes alturas faz lembrar aquelle
governador de Sevilha exornando com efpeífas camadas de
oca e de vermelhão os magníficos mofaicos do Alcazar.
Affim como o bom gofto moderno reftaurou os antigos pri-
mores artiílicos da civilifação agarena, compete-nos também
aprefentar perante a pofteridade o grande miniftro, fob o
feu nome verdadeiro, efcoimando-o d'eíras fuperfetações pa-
rafitas com que a fatuidade principefca queria chancellar o
génio.
Era defculpavel a intenção. A burguezia então não tinha
preftado o bom ferviço de defpreftigiar eífas frandulagens que
aliás ainda fão objecto de ambição e de refpeito para muita
gente.
Quando Sebaftião de Carvalho caiu do poder aconteceu
como nas grandes commoções geológicas, em que o folo á
beiramar fe levanta inopinadamente fazendo recuar as aguas
a immenfa diftancia. Uma onda pavorofa, torpiíTima de to-
eis
'7
das eíTas fezes que as ruins paixões accumularam ao longe,
irrompeu com dobrada fúria Ibbre eíTe terreno abandona-
do. A ignorância odienta, a fuperítição rancorofa do clero e
da nobreza, longo tempo refreadas, precipitaram-fe fobre o
pobre Portugal, que então caiu mais baixo que nunca. Ao
devorarem a prcfa todos procuravam o miniflro para n'elle
faciarem a vingança. Sebaftião de Carvalho podia exclamar
como Álvaro Vaz de Almada na batalha de Alfarrobeira:
«Fartar, villanagem!» O derradeiro padre, o ultimo fidalgo
idiota vinham atirar o feu infulto ao leão moribundo! A gran-
deza da obra do eítadifta pôde medir-fe pela violência da
reacção. O efpeítaculo que então aprefentou Portugal teria
feus traços de ridículo íe a grandeza da cataftrophe o não
tornaíTe verdadeiramente medonho. Os Lilliputianos debal-
de tentavam triangulizar o gigante que efcapava com o feu
immenfo vulto ás mais efticadas concepções dos feus ini-
migos! Debalde o queriam enlear com os ténues fios em
armadilhas de pigmeus! A fombra do coloíTo proftrado es-
magava feus miferos perfeguidores ! Aquelle nome que ecli-
pfára e annullára a realeza, lançava agora um clarão finiftro
e uma maldição implacável fobre quantos o vilipendiavam,
condemnando-os ao pelourinho da hiftoria. Tal é a vingança
do génio! Aquelles bandos de frades e fidalgos famélicos e
fandeus, no meio dos quaes fe agitava uma rainha louca,
precipitavam-fe fobre o erário para devorar os milhões que
o previdente miniflro ali accumulára. Recomeçava em larga
efcala o trafico fordido para beneficiar as almas no outro
mundo. Exhumavam-fe os mortos e as reputações. Reviam-
fe os proceíTos, reformavam-fe as fentenças paífadas em jul-
gado; e como no bello quadro do pintor allemão a fombra
de Shakefpeare aíFifte folitaria fob as arcadas monumentaes
de Weítminfler ao desfilar de todos os perfonagens creados
pelo feu génio poderofo, Sebaftião de Carvalho pôde aíTiftir
■^ ^ *-^
í|9 eja
-i-0-« -V-l-
i8
de braços cruzados do alto do immenfo pedeftal do exilio,
que feus ineptos inimigos lhe haviam levantado em Pombal,
a eíTa trifte mafcarada de uma immenfa legião de fanáticos
que fe defpenhava inconfciente no immenfo abyfmo do des-
prezo da pofteridade! Encarado do feu verdadeiro ponto de
vifta, o infortúnio do grande miniftro é bello e digno de in-
veja. Se o applaufo dos bons e entendidos aíTignala a verda-
deira grandeza, efta íempre recebe a fua mais inconteftavel
confirmação do vilipendio dos maus e dos incapazes. Galli-
leu fem a inquifição, Dante fem o exilio, Jeíus lem o Gol-
gotha feriam incompletos. Depois de taes ódios e de taes
infultos elle podia focegadamente baixar á campa, certo de
que feus golpes tinham ferido fundo, e de que a femente
lançada á terra germinaria em tempo opportuno. Nada fal-
tava á fua gloria. A bella eftrophe de Le Franc de Pompi-
gnan dará fempre a mais primorofa imagem do génio ludi-
briado:
O negro lá nas paragens
Onde o Nilo tem o berço
Lançava infultos felvagens
Ao aftro rei do univerfo.
Era ridícula a offenfa!
Emquanto na efphera immenfa
Se perdiam taes clamores,
O deus dos raios ardentes
Jorra\'a a luz em torrentes
Sobre os vis blafphemadores!
Sebaflião de Carvalho tinha plena confciencia da immen-
fa crife focial que íe preparava. Bramiam furdamente debai-
xo da terra os elementos que breve iam fazer explofão. Car-
valho attento preftava o ouvido e exclamava: «Meus filhos
ainda viverão focegados; mas meus netos . . . ! »
■9
Effedivamente fete annos depois que elle cerrara os olhos
á luz do dia rebentava a glorioía Revolução Franceza. Em
Portugal lo em 1820 fe deram as primeiras manifeftações
publicas da regeneração focial. O esforço confiante do clero
e da nobreza para obfcurantizar aquelle pobre paiz ainda
pôde produzir a volta de Villa Franca, a mais ominofa pagina
da hiftoriada realeza depois da fuga de D. João VI para o
Brazil. Mas o fevero caftigo dos jeíuitas deixiíra fundo vefti-
gio na memoria popular. A nação não podia efquecer como
fe flagellava a nobreza na praça publica. AíTim, o mais que
a realeza confeguiu (e não foi pouco) foi eíTa tranfacção
hibrida do governo monarchico reprefentativo, em que o
quarto ejlado foi mais uma vez facriíicado juntamente com
a dignidade de todos. Mas o impulfo dado pelo grande mi-
niftro lente-le lempre. Agora que um leculo depois de fua
morte as fuás intenções começam a fer claramente entendidas,
depois de corrido o véu dos tempos, elle tem direito á honrofa
denominação de «grande cidadão».
E tal a força da previfão do génio que foi precifo que
decorre íTem cem annos para que bem o comprehendeffemos.
Mas emfim chegou o dia em que lhe podemos fazer plena
juftiça e ir diante da fua effigie depofitar palmas, coroas e
flores. A forma efculptural do monumento da praça do Com-
mercio poderia dar logar a uma confufão, que cumpre evitar
a todo o curto.
Ordenado por Sebaftião de Carvalho, o rifco do monu-
mento tinha de feguir fatalmente as exigências da epocha
em que fora levantado. AíTim eífe monumento configna uma
injurtiça graviíTima, que o nobre povo portuguez reparará
por certo no dia em que entrar definitivamente na poífe do
feu próprio governo. A eftatua equcftre deve fer refundida
para reprefentar o vulto coloífal e auftero do grande inicia-
dor da evolução focial, em Portugal, no feculo xviii.
cts
No logar em que fe acha adualmente o feu medalhão
deverá engaftar-fe o do rei que foube efcolher e fuftentar tal
miniftro. Efperâmos que no dia 14 de julho de 1889, por
occafião do grande centenário, poderemos fob eíTa forma ra-
cional e definitiva preftar-lhe as noíTas homenagens.
Rio de Janeiro.
Henrique Corrêa Moreira.
eis
A DERRADEIRA INJURIA
E ainda, nymphas minhas, não bastava..
Camões, Liíj. vii, Si.
I
^t/i ^^ ^"^ féretro poílo em folitaria igreja ?
ÒmF^ EíTe pó que defcanfa, e fe efconde, e fe fome,
Traz de um grande miniftro o formidável nome,
Que em vivas letras de oiro e lagrimas flammeja.
Lá fora uma invafáo efqualida braceja.
Como um mar de miferia e luto, que tem fome
E novas praias bufoa e novas praias come,
Emquanto a multidão, recuando, peleja.
O gaulez que perfegue, o bretão que defende.
Duas mãos de um deftino implacável e occulto,
Vão fangrando a nação exhaufta que fe rende;
4í|9
— .Hjh^
D'entre os mortos da hiítoria um fó único vulto
Não refurge; um Pacheco, um Caflro não attende;
E a cobiça recolhe os defpojos do infulto.
II
Ora, na Iblitaria igreja em que le ha pofto
O féretro, fe alguém podeíTe ouvir, ouvira
Uma voz cavernofa e repaíTada de ira,
De trifteza e defgofto.
Era uma voz fem rofto,
Um echo fem rumor, uma nota fem lyra.
Como que o fufpirar do cadáver difpofto
A rejeitar o leito eterno em que dormira.
E ninguém, falvo tu, ó pallido, ó fuave
Chriíto, ninguém, excepto uns três ou quatro fantos,
Envolvidos e fós, nos feus fombrios mantos,
Ninguém ouvia em toda aquella efcura nave
Deífa voz tão fevera, e tão trifte, e tão grave,
Murmurados a medo, as cóleras e os prantos.
III
E dizia eíTa voz: — «Eis, Lufitania, a efpada
Que reluz, como o foi, e, como o raio, lança
Sobre a attonita Europa a morte enfanguentada.
-i-A-^ -ò^
23
«Venceu tudo; eil-a ahi que te fere e te alcança,
Que te rafga e te põe na cabeça proftrada
O terrível lignal das legiões de França.
« E, como fe o furor, e, como fe a ruina
Não baftaíTem a dar-te a pena grande e inteira,
Vem juntar-fe outra dor á tua dor primeira,
E o que a efpada começa a triíteza termina.
« Es o campo funefto e rude em que fe afina
Pugna eftranha; não tens a gloria derradeira
De devolver farpada e vencida a bandeira,
E fer Xerxes embora, ao pé de Salamina.
IV
« No emtanto, ao longe, ao longe uma comprida hifloria
De batalhas e defcobertas.
Um entrar de continuo as portas da memoria
Efcancaradamente abertas,
« Enchia efta nação, que aprendera a viíloria
N'aquella crefpa idade antiga.
Quando, em vez do repoufo, era a lei da fadiga,
E a gloria coroava a gloria.
« E aíTim foi, palmo a palmo, e reduílo a redufto,
Que um punhado de heroes, que um embryão de povo
Levantara efte reino novo;
ela
ti»
« E livre, independente, effe afpero produdo
Da immenfa forja pôde, achegando-fe ás plagas.
Fitar ao longe as longas vagas.
V
« Era efcaíTo o torrão; por compenfar-Ihe a mingua,
AíTim foi que dobrafte aquelle occulto cabo,
Não fabido de Plinio, ignorado de Strabo,
E que Homero cantou em uma nova lingua.
<r Affim Ibi que podéfte haver Africa adufta.
Alia, e effe futuro e defmedido império.
Que no fecundo chão- do recente hemifpherio
A femente brotou da tua raça auguíta.
« Eis, Lufitania, a obra. Os feculos que a viram
Emergir, como o foi dos mares, e a poliram,
Tranlmittem-lhe a memoria aos feculos futuros.
« Hoje a terra de heroes foffre a planta inimiga. . .
Quem podéra mandar aquelles peitos duros!
Quem foubera empregar aquella força antiga!»
VI
E depois de um filencio: — « Um dia, um dia, um dia
Houve em que n'efla nobre e antiga monarchia
Um homem, — paz lhe feja e a quantos lhe confomem
A fangrada memoria, — houve um dia em que um homem,
eis
« Pofto ao lado do rei e ao lado do perigo
Viu abater o chão; viu as pedras candentes
Ruirem; viu o mal das coufas e das gentes,
E um povo inteiro nú de pão, de luz e abrigo.
« EíTe homem, ao litar uma cidade em oíTos,
Terror, diíTolução, crime, fome, penúria,
l^ão íe deixou cair co'os últimos deftroços.
« Oppoz a força á força, oppoz a pena á injuria,
Reftituiu ao povo a perdida hombridade,
E onde era uma ruina ergueu uma cidade.
VII
» EíTe homem eras tu, alma que ora repoufas
Da cobiça, da gloria e da ambição do mando,
Eras tu que um deflino, e propicio, e nefando,
Ao faftigio elevou dos homens e das coufas.
« Eras tu que da lede ingrata de miniftro
Fizefte um folio ao pé do folio; tu, liniftro
Ao paliado, tu novo obreiro, afpero e duro.
Que traçavas no chão a planta do futuro.
«Tu querias fazer da hifloria uma fó maífa
Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida,
A mafla obediente e nua.
«|9
20
« A luminola effigie tua
Quizefte dar-lhe, como, á brônzea eftatua erguida,
Que o feculo corteja, inda aíTuftado, e paffa.
VIII
I
« Contra aquelle edifício velho
Da nobreza, — elevado ao lado do edifício
Da monarchia e do evangelho, —
Tu pozefte a reforma e pozeíle o fíjpplicio.
« Querias defí;ruir o vicio
Que a teus olhos roia eíTa fabrica enorme,
E começafl:e o duro officio
Contra o que era caduco, e contra o que era informe.
« Não te fez recuar n'eíre afpero duello
Nem dos annos a flor, nem dos annos o gelo.
Nem dos olhos das mães as lagrimas fagradas.
« Nada; nem o negror auftero da batina.
Nem as débeis feições da graça feminina
Pela veneração e pelo amor choradas.
IX
« Ah! fe por um prodígio efpecial da forte,
Podeífes emergir das entranhas da morte.
Cheio d'aquella antiga e fera gravidade,
Com que falvafte uma cidade;
tis I
« Quem fabe? Não houvera em tão longa campanha
Enfanguentado o chão do lufo a planta eftranha,
Nem correra a nação tal dor e taes perigos
Ás mãos de amigos e inimigos.
« Tu ferias o mefmo afperrimo e impaíTivel
Que viu, fem defmaiar, o conflicto terrível
Da natureza efcura e da efcura alma humana;
« Que levantando ao céu a fronte foberana,
« — Eis o homem! » diífefte: — e a garra do dcftino
hidelevel te poz o feu fignal divino. »
X
E, foltado eífe lamento
Ao pé do grande moimento,
Calou-fe a voz, dolorida
De indignação.
Nenhum outro fom de vida
N'aquella igreja efcondida. . .
Era uma paufa, um momento
De folidão.
E continuavam fora
A morte, dona e fenhora
Da multidão;
ela
(is
28
E devaftava a batalha,
Como o temporal que efpalha
Folhas ao chão.
XI
E effa voz era a tua, ó trifte e folitario
Efpirito! eras tu, forte outr'ora e vibrante.
Que poufavas agora, — apenas fcmtillante, —
Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.
Era tua eíTa voz do aíylo mortuário,
Effa voz que efquecia o ódio triumphante
Contra o que havia feito a tua mão poffante,
E a inveja que te deu o pontual falario.
E comtigo fallava uma nação inteira,
E gemia com ella a hiltoria, não a hiftoria
Que bajula ou deítroe, que morde ou fantifica.
Não; mas a hiftoria pura, auftera, verdadeira,
Que de uma vida errada a parte que lhe fica
De gloria, não efconde ás ovações da gloria.
XII
E, tendo emmudecido effa garganta morta,
O filencio voltara áquella nave efcura,
Quando fubitamente abre-fe a velha porta,
E penetra na igreja uma eftranha figura.
eis
eis
si»
^9
Depois outra, e mais outra, e mais três, e mais quatro,
E todas, eftendendo os braços, vão abrindo
As trevas, cofteando os muros, e feguindo
Como a confpiração nas tábuas de um theatro.
E param juntamente em derredor do leito
Ultimo em que defcanla eíTe único delpojo
De uma vida, que foi uma longa batalha.
E emquanto um fere a luz que as tcnebras efpalha,
Outro, com geíto firme e firmilTimo arrojo,
Toma nas cruas mãos aquelle rei desfeito.
XIII
Então. . . O homem que viu arrancarem-lhe aos braços
Poder, gloria, ambição, tudo o que amado havia:
EíTe que foi o foi de um feculo, que um dia.
Um fó dia baftou para fazer pedaços;
Que, íe aos hombros atara uma purpura nova.
Viu, farrapo a farrapo, arrancarem- lh'a aos hombros.
Que padecera em vida os últimos aíTombros,
Tinha ainda na morte uma ultima prova.
Era a brutal rapina, anonyma, nodurna.
Era a mão cafual, que efpedaçava a urna
A troco de um galão, a troco de uma cfpada;
eis
-^-o
Oh. ■ *-Ò-%-
Que, depois de tomar-lhe effes fignaes funeítos
Da fombra de um poder, pegou dos triftes reftos,
OíTos íb, e efpalhou pela nave fagrada.
XIV
AíTim pois, nada falta á gloria d'eíte mundo,
Nem a perfeguição repleta de ódio e fanha,
Nem a fértil inveja, a livida companha.
De tudo o que radia e tudo que é profundo.
Nada falta ao poder, quando o poder acaba,
Nada; nem a calumnia, o efcarneo, a injuria, a intriga,
E, por trifte coroa á merencória liga,
A ingratidão que efquece e a ingratidão que baba.
Faltava a violação do ultimo fomno eterno,
Não para faciar um ódio infaciavel,
Infaciavel como os círculos do inferno.
E deram-t'a; eis-te ahi, ó grande invulnerável,
Eis-te oflada fem nome, elparfa e miferavel.
Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.
Machado de Assis.
o MARQUEZ DE POMBAL
E A CIVILISACAO BRAZILEIRA
(is
u fei que na apreciação dos grandes typos
da hiftoria, o que mais lhes realça o brilho
e mais interelía aos feus admiradores fão os
ferviços por elles preííados á humanidade
em geral. Goftàmos de ver antes do cidadão
— o penfador; antes do patriota — o homem.
Pombal é um d'eíres que, trabalhando para
o leu paiz, defprendeu forças em elphera tão alta, encarou
problemas tão geraes, que léus feitos intereíTam á caufa do
género humano. Atravez do portuguez brilha n'elle o efpiri-
to do feculo dos encyclopediflas. Deixando, porém, a outros
a tarefa de encaral-o d'elTa altura, leja-me permittido pegar
o aíTumpto por um lado mais particular, pela face america-
na, brazileira. Pombal foi um fador poderolb do defenvol-
vimento do Brazil; foi um agente de ditFerenciação pátria,
indigcna, para nós outros americanos; ajudou-nos na elabo-
ração da epocha mais fecunda da noffa hiftoria. Qualquer
que leja o deftino que os leculos futuros tenham de preparar
tia
a Portugal, qualquer que feja o encurtamento ou prolação
do raio de feus feitos, não fera menos certo que a fundação
de um povo em o novo continente, a preparação da pátria
brazileira, ha de fer contada como o feu maior titulo hiftori-
co. O velho duello travado na Europa moderna entre latinos
e germânicos tem de protrahir-fe na America em fua luda
pela civilifação.
Pombal foi um elemento de vida, um eflimulo de força
na Europa e no novo mundo. Em feu esforço para acabar
com os últimos veftigios da idade media em Portugal, o mi-
niflro de D. Jofé não fe efqueceu do Brazil, e póde-fe dizer
que os refultados aqui obtidos foram mais brilhantes do que
os da Europa.
Não fei até que ponto dever-fe-ha repetir o logar com-
mum hiftorico da união dos reis e dos povos contra os no-
bres e o clero, paflagem natural para o predominio da bur-
guezia. Em Portugal, pelo menos, o plano parece não ter
fido confciente, nem garantido pelos refultados.
A luda de Pombal contra o clero e a nobreza teve um
carader circumfcripto, quafi peífoal; e com o defappareci-
mento, e ainda em tempo do illuftre miniflro, o clero e a
nobreza acharam-fe no mefmo pé de outr'ora, arrogantes e
oufados, em fua eterna união com a realeza. O povo, eífe
fempre ifolado e batido em feus direitos.
Em Portugal e Brazil não devemos Ibnhar o conforcio
da realeza e do povo contra padres e nobres; realeza, clero
e ariífocratas foram-fe defmoronando a pouco e pouco pela
carcoma que lhes devorava o intimo, batidos pelo efpirito
dos tempos, e efte efpirito é preparado lentamente, penivel-
mente, pelo povo, fem alliados contra o tríplice inimigo.
Pombal é um benemérito da hiíforia, não por ter fonha-
do a alliança do rei e do povo, não por ter aniquilado a no-
breza c a clerezia; elle o c como grande adminiífrador, que
tis
th
33
não trepidara em introduzir em Portugal medidas progreíTi-
vas, que eftimularam o delenvolvimento nacional e abriram
alli a porta ao efpirito do feu feculo. E como o elpirito do
feu feculo trazia no leio a femente transformadora e revolu-
cionaria, o minilíro de D. Jole I, talvez fem o faber, foi um
auxiliar do defenvolvimento democrático. O que o lalva na
hiftoria é o leu tempo; elle é feliz cm ter fido homem de lua
epocha.
Mas vejamos rapidamente o que era então o Brazil. Em
lySo, quando começa a avolumar-le a eíírella de Pombal,
a colónia portugueza já tinha todos os elementos de feu de-
fenvolvimento ulterior. Duzentos e cincoenta annos tinham
bailado para a fundação de noílas cidades, a arroteação de
noíTos campos, a profperidade de noífas induíirias. O efpirito
publico eftava formado. A nação eftava ainda na puerícia;
já moftrava, porém, o viço das juventudes fortes e fadias.
Todas as luclas que enchem o quadro da hiftoria da
America tinham fido pelejadas aqui. Os velhos direitos e
pripilegios feudaes dos donatários tinham quafi todos cedido
ante o poder monarchico; o 7miniápalifmo burguei tinha me-
dido forças com a nobreza territorial na guerra dos Mafca-
tes; os negros tinham lavrado o leu protefto de homens no
poema dos Palmares-, o nativifmo tinha-fe oftentado no des-
dém aos Emboabas; o patriotifmo tinha levantado todas as
claífes contra os extrangeiros — na libertação de Pernambu-
co, do Rio de Janeiro e Maranhão; os fetichiftas Índios já
haviam lido fuftigados ou cfcravifados pelos Bandeiras; o
Amazonas, ao norte, já tinha revelado os feus fegredos, e
o Rio Grande, ao fui, lido o theatro da rivalidade dos feus
povos ibéricos, que vieram continuar luas juftas na penin-
fula meridional da America.
Toda uma efcola de poetas, chroniftas e oradores tinha
florccido no Brazil; o génio de Gregório de Mattos achara
ela
grande meíTe para a fatyra. São de notar as invedivas d'efte
poeta, o primeiro da lingua no feu tempo, contra governa-
dores, padres e grandes funccionarios, indicando d'eft'arte a
confciencia que o efpirito popular já poíTuia de fi melmo.
Pitta lançara os primeiros lineamentos de noíTa hiftoria; mui-
tos brazileiros tinham-fe paíTado á Europa e confeguido gran-
de laliencia nas lettras e na politica.
E liava preparado o folo d'onde deveria brotar a flor da
poefia mineira, e bem perto bruxuleava a luz da Inconjiden-
cia. A libertação era qucftão de algumas décadas.
A fegunda metade do feculo xviii no Brazil é a noíTa
epocha de mais fecundos efpiritos. A mocidade do tempo de
Pombal fornece a plêiade brilhante de brazileiros, que influem
nos negócios e na litteratura do reino, continuando as tradi-
ções dos dois irmãos Alexandre e Bartholomeu de Guímão.
«Já n'eíre tempo, principalmente defde o Marquez de
Pombal, vemos filhos do Brazil occupando os primeiros car-
gos do Eftado e outros diftinguindo-íe com efcriptos que
ganharam nomeada. João Pereira Ramos, um dos reforma-
dores da univerfidade, é guarda mór do archivo da Torre
do Tombo. Seu irmão, o bifpo de Coimbra, D. Francifco de
Lemos, é reitor e reformador da univerfidade; D. Jofé Joa-
quim Juftiniano Mafcarenhas foi feito bifpo do Rio de Ja-
neiro, ília terra natal; o báculo de Pernambuco foi confiado
a D. Francifco da Affumpção, natural de Marianna, depois
a D. Diogo de Jefus Jardim, de Sabará, e mais tarde a
D. Jofé Joaquim de Azeredo Coutinho, de Campos. D. Tho-
maz da Incarnação, natural da Bahia, é audor de uma co-
nhecida Hiftoria ecdefiaftica, publicada em Coimbra em qua-
tro tomos. O francifcano Jaboatão, nafcido na villa d'efle
nome, publicou uma hiftoria de fua ordem feraphica no Bra-
zil; Pedro Taques Paes c Fr. Gafpar da Madre Deus efcre-
^•eram memorias hiftoricas fobre a lua pro^•incia de S. Pau-
-i-<ç>-— »A-§.
4» e|í
lo; Jofé Monteiro de Noronha, do Pará, em cuja fé foi vigá-
rio capitular, era um ecclefiaflico de baftante laber.
«Na advocacia diftinguiram-fe os cioutores Ignacio F.
Silveira da Motta e Saturnino, e como magiítrado fez-fe mui-
to notável o defembargadorVellolb.
«Também nas fciencias alguns brazileiros ganharam ce-
lebridade n'eíta epocha: Alexandre Rodrigues Ferreira, o
Humboldt brazileiro, com fuás extenfas viagens pelos fer-
tões do Pará; Jofé Bonifácio de Andrada, viajando como
mineralogifta pela Europa, do mefmo modo que o naturalis-
ta Manuel d'Arruda Camará c o lluminenfe António de Nola,
ao depois lente em Coimbra; Coelho de Seabra, efcrevendo
tratados de chimica, além de muitas diífertações fcientificas;
Conceição Vellofo, trabalhando em fua grande Flora flwni-
nenfe e deixando impreíTos muitos tratados compoílos ou
traduzidos; o Dr. Jofé Vieira de Couto, naturalifta em Mi-
nas; Manuel Jacinto Nogueira da Gama, diftinguindo-fe cm
Coimbra nas mathematicas, do mefmo modo que Francifco
Villela Barbofa, e vindo ambos reger cadeiras d'eífas fcien-
cias; Pires da Silva Pontes, encarregado dos tratados de li-
mites e de levantamento de cartas no Brazil; Jofé Feliciano
Fernandes Pinheiro, occupando-fe de traducções de obras
que podiam ter applicação á indullria do paiz; Silva Fei-
jó, naturalifta empregado em explorações nas ilhas de Cabo
Verde; Jofé Pinto de Azevedo, medico diflindo da efcola de
Edimburgo, e outros'.»
Faltam ahi os nomes de Silva Lifboa e Hippolyto da
Corta, o economifta e o jornalifta, ambos pertencentes á mo-
cidade do tempo.
Por efta profperidade da intelligencia manifefta-fe a con-
ftituição orgânica do Brazil.
' Varnhagen, Florilégio, tom. i, pag. 54 e fegg
e|5
36
Alguns fedarios da fynietria na hiftoria explicam o ex-
pedaculo do deíenvolvimento americano como uma efpecie
de reproducção do que fe tem dado na Europa a datar da
idade media. Levados por efte penfamento dirigente, divi-
dem os povos europeus em latinos e germânicos, catholicos
e proteftantes, e os da America em duas iguaes categorias;
e d'ahi deduzem uma commoda philofophia da hiftoria.
Se os hoUandezes, por exemplo, fão expulíbs de Per-
nambuco, é que era providencial para a marcha da huma-
nidade a manutenção da unidade catholica na America do
fui. Por um raciocinio análogo dever-fe-ha dizer que a ex-
pulfão dos francezes de territórios dos Eftados Unidos, foi
também providencial para a manutenção do predomínio pro-
teftante na America do Norte. Entretanto a hiftoria não fe
prefta a accommodações tão rápidas. Na Europa não exis-
tem fomente latinos e germânicos, catholicos e proteftantes;
é mifter contar, pelo menos, com os flavos e celtas, e fôra
neceífario que todas as raças d'alli tiveífem reprefentantes
no novo continente para fer perfeita a femelhança e exaflo
o equilíbrio.
Além d'ifto os allemães, o exemplar mais acabado de
fua raça, os francezes e os italianos, os mais perfeitos do gru-
po latino, não fundaram aqui nacionalidades novas; e bem
fe comprehende que a Providencia deveria efcolher os exe-
cutores de feus planos entre os mais progreíTivos reprefen-
tantes dos povos europeus que defejava tranfportar para a
America.
Tal theoria tem, além do mais, o defeito de confiderar a
civilifação americana como um todo emigrado, um movei
de luxo transferido no convés dos navios da Europa para
efte continente; c paíTa a efponja fobre os elementos autóno-
mos fornecidos pelas raças indígenas, pela acção do meio
phyfico e pelos povos africanos encorporados a nós.
37
No Brazil todos eftes elementos devem fer ponderados.
efclarecidos em fua acção!
A noíTa hiftoria não é, não pôde fer, pois, uma copia
fer^■il da hiftoria de Portugal; não fomos um povo de nave-
gantes. . . e defde ahi começa a ditferença entre a colónia
e a metrópole.
A boa politica a feguir no Brazil feria a que deixaífe
plena liberdade á acção das diverfas raças exiftentes no
paiz, fem impor o predomínio de uma fobre as outras por
meio de uma efpecie de felecção artificial, feria a que aju-
daífe o defenvolvimento normal do povo brazileiro pela fe-
lecção natural.
A efta luz é que Pombal furge aureolado do feio de
noífa hiftoria.
Por meia dúzia de fados capitães comprehender-fe-ha
todo o alcance da acção do eftadifta fobre o defenvolvi-
mento do Brazil:
a) A abolição dos últimos direitos feudaes e reverfão para
o Eftado das capitanias reftantes;
b) Emancipação dos indios do Pará e Maranhão, e de-
pois de todo o Brazil;
c) Expulfão dos jefuitas e derrota de feus planos anti-
nacionaes ;
d) Facilidade de viagem para navios do Brazil e creação
de companhias de commercio, como as do Pará e Maranhão,
Pernambuco e Parahyba;
e) Elevação do paiz a vice-reinado com a mudança da
capital para o fui, a creação de uma relação c de efcolas
publicas;
f) Cuidado ás noífas queftões de limites ao norte e fui.
Pombal compenetrou-fe da importância da grande coló-
nia portugueza, e attribue-fe-lhe ate vagamente o penfamen-
to de mudar a fede da monarchia para Belém, no Pará.
ft|s
As três primeiras medidas que ficaram efpecificadas en-
cerram todo o leu penlamento politico Ibbrc o Brazil. Era
a idéa clara de fazer do paiz um todo compado, com os
mefiiios direitos diante do poder central. Ao mefino tempo
indiredamente contribuia o miniil:ro para definantelar a ten-
dência poíTivel do jefuita para a formação de uma nação
em que predominaria talvez o caboclo. Pombal quebrou a
efte as cadeias, pondo-o em pé de igualdade com os de-
mais colonos e expulfando o jefuita. O indio deixou de ler
uma força politica, paffando ao papel de fimples contribui-
dor ethnico. Se tiver ao diante de fer vencido na lucia pela
civilifação, dever-fe-ha queixar fomente da natureza.
As outras medidas referem-le ao delenvolvimento eco-
nómico e Ibcial da colónia. O Brazil era então, como ainda
hoje, quer ao norte, quer ao fui, agricultor; mas atraveífava
o momento económico da defcobería das minas de oiro no
centro de Minas.
O oiro tinha fido incentivo para o povoamento do inte-
rior já antes de Pombal; mas nos últimos annos do governo
de D. Jofé a producção efcaífeava. O miniftro comprehen-
deu que os áureos tempos de D. João V tinham paífado.
Não poz no oiro toda a fua efperança; a agricultura, a in-
duífria e o commercio lhe mereceram mais attenção.
Os outros ados referem-fe ás condições geographicas da
nação, que procurava as luas fronteiras naturaes. Por efie
lado o poderofo miniftro não foi de todo feliz; mas é certo
que não affignaria os tratados vergonhofos de 1777 e 1778.
De todos ertes factos a expulfão dos jefuitas é o que
tornou mais ruidofa a paífagem de Pombal pelo poder. A
acção, porém, do miniftro poderofo não aífume aos olhos
dos efpiritos calmos um carader phenomehal. Além de ler
igualmente praticado n'outros eftados da Europa, não con-
ftituindo afllm uma originalidade portugueza, accrcfce que
-<>-f.
muitiíTimo natural era o choque entre a famofa e turbulenta
ordem e o poder civil. O conceito jeluitico da foberania in-
directa dos papas Ibbre o temporal era levado a exceíTo e
devia chocar mefmo aos reis catholicos, fideliffimos e chrijlia-
niffimos . . .
Não fou, por certo, inclinado a admirar muito a vicloria
de reis, que le arrogam um direito diinno contra os padres
que julgam difpor da graça divina. Uns e outros fe ajudam
ou combatem conforme as circumftancias do momento.
Apefar de muito lacunofa n'efte ponto, a acção de Pom-
bal tem o mérito de ler uma expreíTão dos fentimentos libe-
raes da epocha.
Quanto ao Brazil, não padece duvida a vantagem da
coerção do poder jefuitico. O jefuita no feculo xvi, quando
ainda não tinha grandes planos políticos, foi útil para a co-
lonifação d'eíta parte da America. Nos feculos feguintes a lua
acção religiofa era quafi nulla, e a fua influencia politica e
focial nociva.
Ha alguma coufa de phantafiofo na opinião d'aquclles
que pretendem em noíTa hiftoria eftabelecer um dualilino
confciente de duas forças que fe chocam durante os três fe-
culos primeiros da conquifta: o colono portuguez e o negro
de um lado; o jefuita e o caboclo de outro.
A theocracia Ibnhada pela ordem famofa não pretendia
fundar-fe exclufivamente no Brazil onde exiftiam caboclos,
e fim também onde os não havia, como no próprio Portu-
gal. Aqui na America o jefuita fazia a fua propaganda tanto
entre os indios, como entre os negros e os portuguezes. E
natural que entre eftes não encontraífe tantos adeptos, como
entre os felvagens.
Não fe lhe deve, porem, attribuir o plano confciente da
exclufão do elemento europeu. As coufas poderiam chegar
a eíte refultado por caufas eítranhas á vontade dos padres.
4* 4*
4°
Nem a lua expulfão do Brazil foi da parte de Pombal uma
prova de receio n'aquelle fentido; foi antes uma confequen-
cia de fua expulfão da metrópole, onde feguramente não
havia perigo de que vieffe a predominar o caboclo.
Como quer que foíTe, o illuftre miniílro de D. Jofé I, por
feus aítos, contribuiu para o defenvolvimento normal d'efte
paiz, como nação latina, como um prolongamento da civili-
fação Occidental. E efte o feu titulo aos olhos dos brazilei-
ros. Os últimos cem annos que paíTaram fobre a morte d'es-
te grande homem hão confirmado fuás efperanças e idéas
fobre o Brazil. Devemos confideral-o como um dos agentes
de noífo progreíTo: é de juftiça que o apreciemos tanto quan-
to admirou o noífo compatriota, aquelle illuftre efpirito que
fe chamava Bafilio da Gama.
Repitamos com elle, fallando do grande miniftro:
« Para fer immortal teu nome auguIl:o
Náo depende do bronze derretido;
Em mais firmes padrões fica inlculpido.»
Sim, fica infculpido em noífa hiíloria; ficará gravado
onde quer que eftejam efcriptos os nomes dos bemfeitores
da humanidade!
Syl\'io Romero.
eis
o MARQUEZ DE POMBAL
A LIBERDADE DOS ÍNDIOS
4?
ara julgarmos Sebaftião Jofé de Carvalho
e Mello, depois conde de Oeiras, e depois
marquez de Pombal, cumpre eítudar os feus
ados, no tempo em que viveu, e portanto
n'eíre terceiro período da idade moderna, que
vae defde a paz de Utrecht (171 3) até a inde-
pendência dos Eítados Unidos (1776), que, na opinião de
Minghetti, foi precurfora da revolução franceza.
Não é porém noíTo intuito, nas ligeiras paginas que va-
mos traçar, em commemoração do primeiro centenário da
morte do marquez de Pombal, formar juizo d'aquelle que
julgado eftá n'eíl:e mefmo livro, por quem tem o efpirito en-
riquecido de lições de hiítoria, e o aprefenta qual elle foi á
confciencia imparcial dos contemporâneos.
4»
42
Vamos vel-o, depofitario de todos os poderes Ibciaes
pela confiança cega e illimitada de um rei abfoluto; qual o
uíb que fez d'eíres poderes em relação ao Brazil, então coló-
nia; fe foi além das idéas do feu íeculo; e qual o beneficio
que, defapaixonadamente aquilatado pelo Brazil, hoje im-
pério, o eleve ao pantheon dos bemfeitores da humanidade.
Nas viagens e defcobertas de nopos mundos, que, no dizer
de Draper, marcam os primeiros tempos em que começa
para a Europa a epoclia da raião, as nações fe infpiravam
em idéas erróneas, que lanccionavam uma barbara jurifpru-
dencia ainda enunciada por Mello Freire no feguinte prin-
cipio: SERVI AUT NASCUNTUR, AUT FIUNT.
Era um principio de puro romanifino, herdado do berço
da humanidade, e que as doutrinas do Chrifto não tinham
ainda podido fiipplantar.
SubmiíTos a efliis idéas, e fob o eíl:andarte cuja legenda
era v.e victis, correram os ardentes argonautas fobre os
povos do novo mundo, e os hefpanhoes, mais do que outros
quaefquer, condemnavam os que efcapavam á morte afphy-
xiante das minas ás duras penas do captiveiro.
Os portuguezes, lenhores pela delcoberta de Pedro Al-
vares Cabral das plagas dos Brazis ou terra de Santa Cruz,
dominio e poíTe aíTegurada pela decifão do fupremo arbitro
dos tempos, Alexandre VI, não podiam confiderar os indigc-
nas lenão como povos conqui fiados.
Foram talvez mais brandos, porque mais brandos eram
os feus coftumes, mais humanos os fentimentos dos feus co-
rações, mas nem por illo le levantaram acima das falfas
4J
crenças do dia, e ligados a eíTas crenças também fizeram
elcravos entre os povos conquiftados.
Embora fe não fizeíTem tardar os protefi:os, lavrados pe-
las leis dos fenhores reis de Portugal, em obediência aos
diélames das bulias do Vaticano a favor da liberdade dos Ín-
dios, embora denodados e defintereíTados apoftõios do chris-
tianilmo n'aquellas paragens, como o immortal padre Antó-
nio Vieira, ÍLiftentaíTem, com arroubos de uma convincente
eloquência, e por ados de inquebrantável vontade, o grande
principio da liberdade dos homens, que o invido reforma-
dor do mundo focial havia pregado, como bafe de uma mo-
ral defconhecida aos antigos philofophos, é certo que o mar-
quez de Pombal teve de intervir para acabar com abufos
inveterados, alimentados por intereíTes individuaes, em me-
nofcabo de preceitos de leis tão fabiamente promulgadas.
Affim é que pela lei de 6 de junho de lySõ recommendou
a execução de outras leis anteriores, cujas difpofições pare-
ciam efquecidas, as quaes ordenavam que as peíToas dos
Índios, como o feu trabalho, como a fi.ia propriedade, eram
invioláveis e fagradas, e mandou que eíTas leis também fos-
fem applicadas aos indios do Pará e do Maranhão; injio
ejlar reconhecido, diz a lei, que a caiifa que tem produzido tão
pernicio/os eff eitos confijtia, confijle ainda, em fe não haverem
Jujlentado os ditos indios na liberdade que a feu favor foi de-
clarada pelos fumtnos pontifices, e pelos fenhores reis meus pre-
deceffores.
Parece porém que, apefar de tão decifivas como termi-
nantes medidas, que apefar da voz dos fummos pontifices,
e de feus enviados apoftolicos, o erro continuava pelo abufo,
que alimentavam fordidos e inconfeífaveis intereíTes, pelo
4 si»
-• •'Ò-h
44
que o grande miniftro promulgou a lei de 8 de maio de
1758.
Efla lei declara livres fem reftricção a todos os índios
habitando os domínios de Portugal, bem como todos os feus
bens, aíTim de raiz como femoventes e moveis, a fua lavoura
e o feu commercio.
E defde então nenhum indio mais dentro do território
de jurifdicção portugueza foi confiderado escravo.
Não era poílivel que quem levava a liberdade aos povos
da colónia, deixaíTe que na metrópole fe fizeíTe trafico de
carne humana, e que debaixo de feu céu alguém nafcelTe
com o ignominiofo ferrete da efcravidão.
E por ilTo fez promulgar o alvará de ig de leptembro
de 1761, prohibindo a entrada de efcravos em Portugal,
fob pena de ferem confiderados livres; e por iíTo mais
tarde fez promulgar o alvará de 16 de janeiro de lyyS,
declarando que ninguém mais nafceria efcravo em terras
de Portugal.
Lendo-fe o primeiro alvará não fe pôde deixar de reco-
nhecer que um governo, por fer abíbluto, feja defpota ou
tyranno, defprezando ou ufurpando direitos individuaes.
D. Jofé n'eíre alvará decreta que o efcravo vindo a Por-
tugal em companhia de feu fenhor, torna-fe livre, como fe
de ventre livre tivelle nafcido.
Até aqui efta difpofição nada tem de arbitraria : fica tudo
dependente da vontade do fenhor.
ela tis
45
Mas a difpolição poderia dar logar a abufo, e eíTe abufo
o alvará trata de impedir, dizendo, que eítá fora da protec-
ção da lei o efcravo que /ponte Jua fuja e venha a terras de
Portugal ; eíTe voltará na fua condição ao logar d'onde faíu.
Não fe confagra melhor o direito de propriedade par-
ticular.
Lendo-fe o fegundo alvará encontra-fe n'elle confagrado
um principio de fã philofophia, e que um feculo depois vi-
mos alguém conteftar em nolTo parlamento!
AíTim fe exprime o alvará: « . . . E que todos os fobreditos,
por eíFeito d'efl:a minha paternal e pia providencia liberta-
dos, fiquem hábeis para todos os oíiicios, honras e dignida-
des, fem a nota difhnda de libertos, que a fuperftição dos
romanos eftabeleceu nos feus coftumes, e que a união chriftã,
e a fociedade civil faz hoje intolerável no meu reino, como
o tem fido em todos os outros da Europa » .
Grandiofo contraíte! Em 1778 o marquez de Pombal
não quer que o eítado de efcravidão fira e humilhe aquelle
que d'elle faíra ou d'elie nafcèra, acompanhando-o com a
nota diftinííta de libertos, equivalente a eíTa marca em braza
que o arbítrio leva ao corpo do egreífo das galés, como fe
a pena não tiveífe expiado o crime.
A liberdade, qual as aguas luftraes do baptifmo, lava
toda a culpa original.
Perante a lei todo o cidadão deve fer igual no direito e
na dignidade humana, tenha ou não pertencido, tenha ou
não nafcido n'eíre eftado, completamente eítranho á fua von-
ti»
46
tade, incompatível com a fua natureza moral; eftado e con-
dição anormal que fó fe fuítenta pela força bruta efmagadora
de todo o direito.
A infâmia da pena, confequencia da infâmia do crime,
perde-fe pela rehabilitação.
Quem fe tornou infame pelo crime tem o dever de fe
moftrar regenerado e digno da fociedade.
A ignominia da efcravidão morre, defapparece comple-
tamente pelo a6lo da manumiíTão.
O homem innocente que gemeu nos ferros da efcravi-
dão, pela vontade tão fomente de outrem, não tem o dever
de fe moftrar regenerado; — readquire direitos que a violên-
cia fequeftrára, é livre como fempre o devera fer.
A ignominia da efcravidão não pôde infamar o homem
que adquire a fua liberdade, porque o homem por vontade
própria jamais feria efcravo.
A doutrina de Pombal Ibbre os eífeitos da efcravidão, no
feculo XVIII, moftra quanto efle grande efpirito já havia ca-
minhado, arcando e vencendo falfos preconceitos, prejudi-
ciaes fuperftições, que fó podem fer vencidas pela educação
e illullração, aliás n'eífe tempo mefquinhas e limitadas.
É certo, pois, que por taes aflos reformadores, quando
no congreífo de Vienna, em 181 5, as grandes potencias dis-
cutiram e proclamaram a abolição da efcravatura, o pequeno
Portugal não foi de certo a nação a quem fimilhante doutrina
furprehendeu, porque, graças ao miniftro marquez de Pom-
el»
47
bal, quarenta annos antes já tinha fido decretado: ninguém
pija falo litfitano como ejcravo, ninguém vè pela primeira vei
a luiJob o céu das terras de Viriato que não Jeja homem liire.
E porque Pombal, que, com tanto denodo quanta ga-
lhardia, foube cortar abufo por abulo, e tornar a liberdade
dos Índios uma realidade ; porque Pombal, que com tanta
convicção quanta tenacidade foube aífrontar intereffes, com-
bater preconceitos, proclamando a liberdade do ventre, c tor-
nando inacceíTiveis as fronteiras de Portugal ao efcravo;
por que razão Pombal deixou que nas colónias permaneceífe
eíTa mentira ás convicções do chriftão, eífe cancro ao futuro
focial — o efcravo?
Foi porque a um homem fó, embora a um homem da
altura do marquez de Pombal, não era licito concluir a obra
que um feculo ainda não pôde completamente realifar.
Os grandes homens que fe notam de tempos a tempos
na vida das nações, muito fazem e de muito fão dignos,
quando, operários providenciaes da civilifação, deixam cm
feu caminho pedras indeftruéliveis que fe vão accumulan-
do, e formando o grande edifício focial-humanitario, o qual
aliás jamais fera completo, porque a lei do progreífo é inde-
finida!
E Sebaítião Jofé de Carvalho e Mello, fe tudo não fez,
fez muito para que hoje a hilloria o confidere, com titulo
indifputavel, benemérito e bemfeitor da humanidade.
N'eíl:e coro internacional de certo que não deftoa o Brazil,
não fó porque feus filhos não fão dos últimos a alimentar
eífe fentimento fecundo de fraternidade, que é a bafe da
(is
48
união de todos os povos, como porque, quando olham para
a hiítoria de fua pátria, n'ella encontram veftigios valiofos
das elevadas viítas adminiftrativas do immortal miniftro de
D. Jofé I.
Rio de Janeiro, 3i de dezembro de 1881.
Dr. Thomás Alves Júnior,
advogado.
(|9
IL MARCHESE Dl POMBAL
cir anno in cui nafceva Don Sebaftiano Car-
valho, futuro emancipatore dei Portogallo dal
dominio temporalc dei clero, ferveva in Roma
ed in Torino tra Ia corte papale e il Duca di
Savoia Vittorio Amedeo il Grande una gran
lite per la fucceíTione nei feudi cofi detti
ecclefiaftici dei Piemonte; chè, il Papa ed il
Duca di Savoia volevano rivendicare ciafcuno a lè il diritto
di nomina, con la conceíllone delle relative prebende. Fu
quello il primo ferio tentativo che 11 fece in Piemonte o, per
dir meglio, dai principi Sabaudi, per condurci a quclla
compiuta indipendenza dello flato dalla Chiefa, una delle
opere che diftinfero il governo riformatore dei fempre com-
pianto Conte Camillo di Cavour.
Fin dal tempo di Vittorio Amedeo II, rautorità dei domi-
nio temporale pontifício in Piemonte fu grandemente fcoíTa;
dei che fenti la Corte Papale cofi grave il danno, che non
ti»
-<o^
5o
tardo a minacciare e poi a lanciare veramente Pinterdetto,
contro il piccolo ftato che ofava ribellarfi alia fua autorità.
Una queftione, come accade, ne conduce un'altra, e, in bre-
ve, 11 vide il Duca Vittorio Amedeo II, quantunque uomo
religiofo, prendera Tattitudine d'un principe intieramente
indipendente innanzi alia Santa Sede. Sortenitore prudente
ma animofo, non meno che dottiíTimo de' diritti dei principe
innanzi ai Pontefice ed ai CoUegio de' Cardinali, era Tamba-
fciator di Savoia Conte Gerolamo Marcello De Gubernatis,
già prefidente dei Senato di Nizza, poi ambafciatore di Sa-
voia a Madrid ed a Lif bona, finalmente Miniftro di Stato a
Torino e Gran Canceliiere di Gafa Savoia nelFanno ftelTo in
cui il Duca di Savoia cambio in regia la fua corona ducale.
Per cura di lui fu nominato il fratello Clemente De Guber-
natis Grande Inquifitore di Stato a Torino, eh' era un modo
di affermare che 11 voleva togliere Tinquifizione alia fetta
miíleriofa che 1'aveva fino allora governata, per farne un
tribunale ordinário e manifefto di giuftizia fovrana. Volle poi
la fortuna delia mia vita, che la mia laurea foffe la prima
laurea in lettere dei nuovo Regno d'Italia e eh' io, nella mia
tell di floria, imprendeíTi a combattere con argomenti ftorici
i diritti de' pontefici fi.il potere temporale e le relative dot-
trine dei cardinal Bellarmino; dei che i giornali cattolici dei
Piemonte, come di grave fcandalo univerfitario, levarono
allora grande rumore.
Con quefti precedenti, quantunque ftraniero, invitato a
fcrivere alcune parole llil marchefe di Pombal, io poíTo dire
con fincerità che mi trovavo preparato a fimpatia per quel
poço che già conofcevo delia vita operofa dei grande rifor-
matore portoghefe. Ma quefta fimpatia faccrebbe leggendo
la bella monografia dei Conte di Carnota fiai Marchefij di
Pombal; nè valfe a diminuiria la leitura delle infami Memorie
che i Gefiiiti divulgarono in parecchie lingue per ofcurare il
-i-<Ò>- -i-l^
4 eis
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5i
nome dei Sully, dei Colbert, dei Richelieu portoghele. Quan-
tunque io intenda, pur troppo, come i Gefuiti ahbiano fulla
maggioranza de' lettori ottenuto intiero il loro fcopo, avendo
effi fatto próprio il motto dei Voltaire : calomnie{, calomniei,
queLpie chofe en reftera, il fatto íleíTo che il Portogallo ed il
Bralile íi preparano a rcftaurare, cent' anni dopo la morte dei
marchefe di Pombal, con una dimollrazione Iblenne, la me-
moria di lui oppreíTa dalla calunnia pofluma de' fuoi nemici,
dimoílra che la floria è finalmente una gran giuftiziera.
Vivendo ora io da molti anni in Tofcana, avrei defiderato
per una cofi grande occafione, porgere un tributo, che valeíTe,
alia memoria dei Pombal, raccogliendo da quefh archivii tutte
le notizie che giungevano dal Portogallo alia Corte Gran-
ducale, nel tempo delFamminiftrazione dei grande uomo di
ftato. Ma, difgraziatamente, quefti archivii fono quali muti in-
torno alia floria portoghele di quel tempo. Nella rovina delia
dinaftia Medicea, le relazioni eftere furono quafi intieramente
interrotte, e nel principio dei nuovo governo lorenefe le cure
dei riordinamento interno dello flato occuparono talmente
Tanimo di Pietro Leopoldo, ch'egli pote daríi aíTai piccoio
penfiero di quello che accadeva negli altri ftati, coi quali gli
baítava di poter riftabilire relazioni ufiiciali nella forma piú
conveniente.
Tuttavia, poichè dallo ífelTo povero carteggio di Lifbo-
na alia corte lorenefe, appare di tratto in tratto in ilcorcio
la figura dei conte di Oeyras, come d'uomo occupatiíTimo,
fpeíTo infermo, e fovra ogni altro, autorevole, e alcun poço
autoritário; e poichè qualche cofa vi c pur detto che può
illuminarne la condotta verfo il clero e verlb le nazioni lira-
niere, io credo d' interpretare il voto degli onorevoli pro-
motori dei Centenário di Pombal, levando da due filze deli'
archivio lorenefe que' brani che poífono, in cjualche modo,
conferire ad illuminare la floria portoghcfe di quel tempo.
-§-<>- -«i>-|-
52
II Carteggio incomincia nell' anno 1766. II refidente au-
ítriaco Giambattifta de Kail avea puré ricevuto Tincarico di
rapprefentare a Lif bona il Granduca di Tofcana. Prima pra-
tica dovea eíTer quella di ftabilire il ceremoniale, e fi fecero
immediate premure perche dai Sovrani dei Portogallo il nuovo
Granduca veniíTe trattato come Altezza Reale e come Cu-
gino. A Lif bona la pratica ando molto in lungo, non forfe
per mala volontà dei Miniftro degli eíteri portogheli, Don
Luigi da Cunha, ma per la lentezza confueta degli afFari. Una
domanda limile era già ftata fatta fm dali' anno 17 14, fotto
il governo di Cofimo terzo, a mezzo dei cavalier Giudici; e
la corte di Lifbona ne avea convenuto. Ma gli atti di quel
negoziato erano fcomparfi con le altre carte delParchivio di
ílato nel terremoto di Lifbona. Di piú il Granduca incaricò
il fuo refidente d'interporrc i fuoi ufficii per la rifcoíTione
d' un credito che il Bali Ottaviano Giufeppe de' Mediei van-
tava preífo il Governo Portoghefe. Le prime lettere dei refi-
dente íi riferifcono pertanto ai cerimoniale, e ai credito dei
Mediei. II 18 ottobre deli' anno 1766, il refidente de Kail
fcriveva ai miniftero tofcano ne' termini feguenti:
«Abbenchè, feconde tutte le mie già anteriori ed anche
rinnovate fegrete notizie, non fia la difficoltà fopra quefto
Cerimoniale o Trattamento, ma piú tofto una tal quale già
qui accoftumata e da tutti e in tutto pur troppo efperimen-
tata dilazione, fe non Túnica, almeno la maggior parte delia
fopradetta fofpenfione.»
Ma fu quefto argomento giova meglio udire la intiera
relazione che, in forma di lettera, fpediva in Tofcana il refi-
dente de Kail il 20 gennaio delfanno 1767.
«Avendo rinnovato per parecchi intervalli fpeífe volte le
mie Iftanze apprelTo quel fignor Segretario di Stato Don Luis
da Cunha, fenza mai averne potuto cavare nè altra rifpofta,
nè altro eíTetto di prima, mi fono finalmente determinato a
4^
^ _ .H^
tenerne parola con il fignor Conte d'Oeyras, che mi promife
con moita prontezza di parlarne. Lui fteíTo, con Taccennato
fignor Segretario, otto giorni dopo, piú o meno, eíTendo io con
quefti in Conferenza per altre occorrenze, e non volendo tras-
curare una cofi buona occafione, di fcuoprire Teífetto delia
promeíTa dei fignor Conte, giudicai a propofito di toccare nel
Dilcorfo ancora quefta pendenza; ma indarno, e lenza che il
mentovato fignor Segretario aveíTe mai mutato il fuo prece-
dente linguaggio già ufato. Vedendomi con ciò da capo e
credendo di non dover reftar in quefta incertezza, mi rifolfi
a ritornare dal fignor Conte, a farli, come effettivamente feci, il
ragguaglio dei contegno dei detto fignor Segretario, pregandolo
nelFifteílb tempo di aver la hontà di dirmi che cofa avevo fi-
nalmente da rifpondere alia Corte di S. A. R., almeno per mio
difcarico. La fua rifpoíta fopra di ciò era: Egli dunque non ha
detto altro? queíto aífare bifogna terminado, io me ne impe-
gno; io faro, io parlerò; ed avendo io riprefo, ch'io dunque di
queífa dichiarazione fteíTa mi farei fervito per mia giuífifica-
zione, e favrei fcritta alia Corte, egli mi replico di fofpendere,
e non farlo, e che egli avrehhe parlato quelfifteíTo giorno me-
defimo. Reítando le cofe in quefto ftato, e vedendo che il fignor
Conte non oftante che fpeíTo c'incontraílimo nelle fue AíTem-
blee, non motivava mai niente, mi avanzai di nuovo a ricor-
darli piú volte, ma non con altro fe non con quefto effetto, che
egli fi fcufó di non aver ancora potuto parlare, ora per non
eífere ufcito di cafa, ora per eíTere ftato indifpofto, ed ora per
non aver veduto il mentovato fignor Segretario, fino che quefti
parti finalmente con la corte per Salvaterra, per non tornarfene,
fecondo il coftiime, fe non fui principio delia quadragefima
e che, per ciò fteíTo, ho creduto di non dovere indugiare di piú
con la prefente mia umiliífima relazione, diíTerita fin ora per
la fpcranza che aveva che, vifte le continove mie reiterate
iftanze, e le ridette promeífe d'un giorno alFaltro, fi farcbbe
^%-h^ «-^
si» sii
-§-<>- -c^
manifeftato qualche fucceíTo piú rilevante e defiderato da
participare. Per altro, mi fi aíTicura fotto mano, che non ò nè
per mancanza di volontà, nè per difficoltà dei trattamento
dovuto a S. A. R. nè per un altro odiofo motivo, ma Iblo
per via di una già qui inveterata lentezza nelli affari, che
quefto, come tanti altri vanno cofi alia lunga, tanto di piú che
la convenuta rifpofta, fecondo lo ftile fubfiftente, dovrebbe in
effetto eíTere ftefa dal fignor Conte lui fteflb, la maggior parte
troppo occupato, non Iblo con tutti li interni, ma ancora esteri
affari, fu i quali ogni notte in cafa fua con il tante volte men-
tovato fignor Segretario regolarmente conferifce, e ordina. So
poi di piú e mi fu fcoperto in fomma coníidenza, che il mo-
tivo delle tardanza di quefta rifpofta fui principio non era
altro che un dubbio fui Trattamento da darfi a S. A. R., non
già per diminuire il dovuto, ma bensi e piú tofto aumentar e
renderlo piú diftinto per via delia Dignità Arciducale, fe foífe
conveniente, trovandofi in un cafo nuovo e fenza anteacta,
parte bruciati, e parte fmarriti con tutto TArcliivio in tempo
dei gran Terremoto doppio imharazzo per cui, nel fopra-
detto principio, fi fcriífe alia maggior parte de' Miniftri refi-
denti di quefta alie Corti foraftiere per confulta e informa-
zione fu tal Trattamento da eífe ufato con S. A. R., fenza
che dopo abbia potuto arrivare a venire in cognizione delle
feguite rifpofte. Mi reffa da comunicare ali' E. V. che dopo
aver avuto ricevuto con lettere dei fignor Bali Ottaviano Giu-
feppe de Mediei tutte le refpettive informazioni riguardo alie
fue confapute pretenlioni, ho ugualmente tentato in una delle
fopradette mie converfazioni con il fignor Conte di incam-
minare quefte pendenze, e che egli mi rifpole che di quefto
fi farebbe parlato dopo, e che prima bifognava fbrigare il
negozio dairinterrotta corrifpondenza. Eífendo quefta circo-
ftanza che non mi fembra convenirmi di parteciparfi da me
ai fignor Bali, ho giudicato di dimorare a rifponderli Uno a
4» 4»
55
queft'oggi medefimo, e di rimettermi nella mia lettera a quel
tanto che V. Ex." troverà próprio di avviíarli. »
La lettera feguente dei confole auftriaco Stocqueler, ai
quale il Granduca di Tofcana concedeva puré la fua íiducia,
informa d'una fpedizione mifteriofa di navi fatta ai Bralile
neiranno 1767, delia quale non ho trovato ricordo nel libro
dei Conte da Karnota. In quefto libro fono riferiti que' Ibli
brani dei carteggio dei refidente inglele Kay, i quali poílbno
giovare a mettere in rilievo la flima che gli Inglefi facevano
dei grande miniftro portoghefe, e il luo buon defiderio di man-
tenere, con Tindependenza dei Portogallo, i migliori rapporti
con la ricca ed intraprendente nazione inglefe. Ma è proba-
bile che non lia ffuggito alia penetrazione dei refidente in-
glefe, quanto apparve manifefto ai confole auftriaco, che ciò
è la fpedizione di navi portogheíi ai Brafile foífe una prudente
dimoftrazione contro agli Inglefi. II conte d'Oeyras avrà forfe
meglio d'ogni altro comprefo che, per farfi rifpettare dagli
Inglefi, era neceífario che i Portoghefi deífero prova d'animo
rifoluto e di forza, e però in virtú deiraíTioma : si pis pacem
para bel/um, volendo mantenere i fuoi buoni rapporti con
eíTi, armo le cofte dei Brafile che, indifefe, avrebbero forfe
potuto tentare la potente nazione britanna a impadronirfi
intieramente delle celebre mine d'oro braíiliane. Checchè
ne fia, ecco quanto fcriveva da Lisbona ai miniftro dei Gran-
duca il confole Stocqueler il g giugno delfanno 1 767 :
«Monfeigneur. Pour ne pas manquer d'inflruire Votre
Excellence de tout ce qui fe paífe d'intéreírant à cette Cour,
j'ai rhonneur de dire que depuis le premier de ce móis, on
arme à la hâte deux vaiífeaux de 64 canons qui doivent ser-
vir d'efcorte à cinq navires de tranfport qu'on chargc de
toute forte de munitions et attirails de guerre et habillements
militaires. Pour faire cette expédition plus promptement, on
fe ferve de trois navires de la compagnie de Pernambuco,
eis
56
qui avaient déjà une partie de leur charge et qu'on a fait
débarquer. On dit qu'on y embarquera des troupes, mais
jusqu'à préfent on ne fait qu'il y ait des corps nommés à
cet eífet.
« La deftination de cette expédition eft un myftère. On dit
dans le public qu'elle va aux lies Açores pour châtier des fou-
levés qui, ne voulant pas faíTujettir à des nouveaux impôts,
doivent avoir maílacré le Gouverneur; mais il y a des raifons
qui ne laiíTent pas ajouter foi à ces bruits, et dès que j'ap-
prendrai quelque chofe de pofitif, j'aurai Thonneur d'en faire
d'abord le rapport à Votre Excellence. On embarquera dans
le courant de cette semaine environ 40 jéfuites de ceux qui
font dans les prifons pour les envoyer à Genes.»
11 16 giugno, il confole Stocqueler torna a fcrivere fullo
fteíTo argomento, facendo rilevare che vennero prefi per ar-
mare la fquadra navale reggimenti dali' interno, ove non fi
trovano uííiciali inglefi:
«Par ma lettre du 9 courant j'ai eu Thonneur de comu-
niquer à Votre Excellence qu'on faifait aftuellement ici les
préparatifs pour une expédition et que la deftination que le
public lui donnait était pour les lies des Açores. Mais ce
bruit étant tout-à-fait tombe parce que les lettres arrivées de-
puis des mêmes líles ne parlent d'aucun foulèvement, on ne
doute plus que 1'expédition qui confifte en deux vaiíTeaux de
guerre et neuf navires de tranfport avec toute forte d'attirails
de guerre et qui doivent aller à Lagos prendre à bord deux
ou trois régiments d'infanterie, eft deftiné pour renforcer les
places maritimes du Bréfil.»
A queft'ora, gli inveftigatori delle ftorie portoghefi devono
già avere intieramente rifchiarata quefta pagina delia loro
ftoria navale. Tuttavia non è forfe fenza curiofità il leggere
quello che fe ne fcriveva allora alFeftero da un auftriaco che
non dà, dei refto, fegno di una grande benevolenza pel conte
\ t IP
eis ti»
d'Oeyras, nelle fue informazioni, e chc, probabilmente, fen-
tiva fimpatia per i geluiti prolcritti.
Ecco pertanto quanto egli fcriveva il 7 fettembre deli' anno
1767 da Lifbona ai governo dei Granduca:
« Les Aftaires Eccléfiaftiques continuent d'occuper la pre-
mière attention du miniftère. Dans le Conícil d'Etat qu'on a
tenu le 24 et qui a dure fix heures, il y a été lu le placet que
le procureur du Roi a prcíenté à Sa Majefté et dans lequel fai-
fant une répétition de tout ce qui a été déjà dit contre Tinfli-
tut et la doctrine des jéfuites, il ajoute que cette doctrine
ayant acquis des racines três grandes parmi le peuple, d'oú il
fenfuivaient des maux immenfes, et que Texpérience ayant
fait voir que tous les remedes qu'on y a voulu apporter n'ont
à rien fervi juíqu'à préíent, parce que cette doctrine et cet in-
ftitut fonttoujours declares faints et bons par la Cour de Rome,
et que cette Cour tout-à-fait jéfuite et le Pape étant dans des
circonftances qu"on a trou\'é le moyen de lui dérober la vé-
rité, lui Procureur du Roi devait le reíTouvenir des moyens
dont plufieurs Empereurs fe font fervis dans des cas oú il a
faliu faire déclarer par des conciles les dodrines qui étaient
bonnes ou mauvaifes, et que le cas actuei en clt un; parce
que ces dodrines étant en foi-mêmes hérétiques et la cour
de Rome et le Pape obfédé aprouvant cette doftrine, ils
ont donné eux mêmes dans Fliéréfie, et il finit pour fup-
plier le Roi d'y porter tel rémède que la grande fageífe lui
diítera. Je crois que dans le dit confeil on a rien determine
et que Favis du Cardinal Patriarche a fait au moins que le
Roi n'y ait pas pris aucune rélblution finale. Cette pièce,
aulTi bien que 1'hiftoire des jéfuites en Portugal, les preuves
de cette hiftoire et une collection des lois fur Fautorité ecclé-
fiaftique font déjà imprimes, mais on ne les debite pas, et
on les imprime aclucllcment en langue italiennc et fran-
çaife, et comme ce font des pièces intéreíTantes, j'aurais foin
3S
d'en procurer des exemplaires pour les envoyer à \"otre
Excellence. »
II 27 ottobre 1767, il confole Stocqueler annunzia la
morte dei refidente Kail e aggiunge:
«Monfenhor Sans Paejo Prélat de la Patriarchale, dont,
en general, on refpedait les vertus, a été conduit dans un
cachot, comme prifonnier d'état. Ses biens et fes papiers ont
été confilqués et on ne lui a pas permis de fe faire accom-
pagner par aucun de fes domeftiques. »
II 19 gennaio 1768 lo fteffo ícrive:
«Depuis deux jours on a commencé à diltribuer la fe-
conde partie de la déduction chronologique analytique, avec
une feconde réquifition du procureur du Roi qui a pour titre :
Réquifition du procureur du Roi sur les ruines qui ont fait
dans ces royaumes et fes domaines fintroduílion clande-
ftine des Bulles in Coena Domini, et des Index Expurga-
toires Romano-Jefuiticos, toute dans les termes détaillés de
la feconde partie de la Déduction Chronologique, etc. Ces
deux pièces imprimées en portugais, et que je n'ai pas eu le
temps que d'en lire le fommaire des matières, doivent fervir
de bafe à une nouvelle loi en conféquence; et cette loi rè-
glera auíTi définitivement la juridiction des deux empires
eccléfiaftique et féculaire en Portugal. Dimanche au foir il
feft tenu un confeil d'état auquel le Comte d'Oeyras n'a
pas pu être préfent, parce qu'il fe trouve depuis dix jours
au lit et foigné des fuites d'une bleífure à une jambe. Le
confeil d'état aura été aílemblé probablement pour 1'appro-
bation de la loi fufdite que le Comte d'Oeyras y aura fait
propofer afin qu'elle puiífe être publiée inceífamment. Cette
feconde partie de la déduction, la réquifition du procureur
du Roi y annexe et la loi en conféquence par lefc[uelles le
Comte d'Oeyras a dit vouloir faire le plus grand et dernier
de fes fervices à la patrie, efl: d'une nature à donner plus
4ei>
-• ■ •-<!>-§»
d'occupation à la cour de Rome que tous les imprimes et
toutes les démarches qu'on fait jufqu'à préfent. »
Lo fteflb Stocqueler il primo marzo 1768, fcriveva:
« Les ouvertures que le Pape a fait dernièrement pour un
acommodement et par un Bref adreíTé au Roi, ont été reje-
tés, et la Bulle de la Croizade que Sa Sainteté a envoyé
en môme temps, a été renvoyée. Le commiflaire de la dite
Bulle a fait affixer la déclaration que j'ai Thonneur d'en-
voyer à Votre Excellence, comme auífi le Mandement du
Cardinal Patriarche, qui en clt une fuite. »
Ed otti giorni dopo: «II fagit de fe concerter réciproque-
ment pour régler les aífaires avec la cour de Rome; mais ce
projet efl d'autant plus difficile que les deux miniftères pen-
fent ditféremment. Le Marquis Grimaldi parait être autant
incline pour la modération que le Comte d'Oeyras pour la
hrulqucrie. Le tribunal de Tlnquifition a fait retirer tous les
vieiLX affixes, ne voulant que foient entre les mains du puhlic
ceux dernièrement publiés. Le Roi a donné à la Confrairie
de la Miféricorde de cette ville le couvent, Téglife et tout ce
q^ui appartient aux autels de la maifon profeíTe des jéfuites.»
Le notizie feguenti dei confole Stoqueler, dei 1 2 aprile
1768, 11 riferilcono tutte alie queftioni ecclefiaftiche :
«II eft afluellement fous la preíTe la feconde loi, par
laquelle le Roi fait ériger un nouveau tribunal compofé d'un
prélident eccléfiaflique et de quelques eccléíiaftiques et fécu-
liers, auquel feulement eft referve le pouvoir de donner per-
miíTion pour les livres qu'on voudra faire imprimer et Texa-
men de ceux qui entreront dans le royaume, au point que ni
révèque ni Tinquifition, ni le Delembargo do Paço ne doi-
vent plus fen mêler; mais en échange un des membres du
tribunal fera le vicaire du Patriarche, un miniftre de Tinqui-
fition et un autre du Defembargo do Paço. Les matières
feront décidées à la pluralité des voix.»
^^^ -<ç>-§-
4» e|j
4«lí
-.- ; ►hÇ^
6o
Dal paíTo feguente, fi rileva che le difpofizioni delia corte
di Torino verfo quella di Roma non erano il 26 aprile 1768
come quelle di circa fettanfanni innanzi:
11 L'alliance avec la cour de Turin que le Comte d'Oeyras
avait cru néceíTaire au commencement des brouilleries avec
Rome, et fur laquelle on a ^al depuis qu'on avait mal com-
pté, vient à préfent d'avoir lieu et de foi-même avec la cour
de Parme.»
Le informazioni leguenti ci moftrano il conte d'Oeyras
ineforabile caftigatore dei clero ribelle:
26 Aprili: «Monfenhor Magalhães vient d'ètre banni du
royaume qu'il a du quitter en trois jours de temps; et les pè-
res Salvador Conca de Fordre de Saint Gêrome et Joachim
Forjas, Auguftin, ont été relegues à des couvents éloignés
de cette capitale. Comme j'ignore abfolument leur crime j'in-
formerai Votre Excellence au moins de ce que je fais de leur
perfonnel. Le premier a été lecrétaire de la reforme des jéfui-
tes et les deux autrcs font proches parents du Cardinal Pa-
triarche, tous trois hommes lettrés et de la confulte de Son
Eminence.»
21 Giugno: «Le dofteur Jofeph Mendes da Cofta un des
plus favants membres du tribunal eccléíiaftique a été banni
du royaume. Le père Alhandra, erémite de Saint Paul, et un
père Capucin ont été arretes. Les pères de la milfion de
Saint Vincent de Paul ont reçu ordre de n'en point faire dans
cette ville et fon diítriít, et il y a quelque temps qu'on a dé-
fendu aux miífionaires des autres ordres Texercice des miffions
dans cette ville.»
26 Luglio: «On prétend que le chevalier Pecci qui eft ar-
rivé depuis quek]ues femaines de Rome et en dernier lieu de
Genes, fera declare directeur du Collège des Nobles, et qu'on
Ta fait venir expròs pour remplir cette place.»
Qui terminano le notizie dei Portogallo pervenute alia
4^
eis
ti»
4sU
6i
corte Tofcana, fotto il governo dei conte d'Oeyras, rapprefen-
tato principalmente come un perfecutore de ' gefuiti e de' loro
fautori. II conte d'Oeyras aveva probabilmente imparato dal
Machiavelli che i nemici bifogna carezzarli o fpègnerli ; egli
non volle carezzarli, e li fpenfe. Quindi la fama che s'acquiíl:ò
nel fuo tempo e che dura ancora, d'uomo duro e violento.
Fra que' termini eftremi propofti dal Machiavelli, vi farebbe
flato un mezzo termine degno di un animo grande, quale íi
rilevò in parecchie occafioni, il marchefe di Pombal. Senza
carezzarli, fenza fpègnerli, i nemici egli avrebbe potuto vin-
cerli, forte come egli dovea fentirfi per la íiducia che infpi-
rava ai fuo rè, dei cuore dei quale come il cancellière di
Federico II, tenne ambo le chiavi, volgendole
Serrando e diííerrando fi soavi,
Che dal fegreto fuo quafi ogn^uom tolfe.
Probabilmente, quello fteíTo Duca d'Aveiro, quello fteíTo
marchefe Távora che boriofo dei loro folo fafto magnatizio,
moftravano un cofi fiero difprezzo per la piccola nohiltà dei
Carv^alho, e fe quefti aveífe moderato la fua impazienza,
vedendo ch'egli continuava a regnare potente e a fervire
con nobiltà il fuo paefe, avrebbero finito per reprimere il
loro ridicolo orgoglio, e ricercato, effi medefimi, Talleanza dei
nuovo vero gran fignore dei fuo tempo. Noi fiamo teftimonii
ogni giorno, innanzi ai trionfo prefente delle democrazie, di
nobili ben noti, fino a pochi anni innanzi, per la pompofa
vanitá di titoli ai quali non corrifponde in eíTi, alcun próprio
valore, alcuna vera dignità, alcun fenfo di fchietta nobiltà,
e che fi fanno demagoghi per entrar nei parlamenti e per car-
pire ufíicii per i quali fi veggono ora foflituiti agli antichi
privilegi ariflocratici i nuovi privilegi burocratici.
Vedendo i vecchi nobili che i governi democratici coníi-
nuano a viverc, invece di fortificarfi eíTi fteffi, unendofi, edu-
^^ .X-^
-^ .A^
b2
candofi, iftruendofi, moltrando di avere idee piú alte, piú
larghe e di concepire in modo piú nobile e piú dilintereffato
rintereffe pubblico, 11 umiliano fino a contentarfi delle briciole
che cadono dalla menfa demagógica, per partecipare, col loro
farto che dà fempre negli occhi dei volgo, ai comune ban-
chetto. Quanto meglio prowederebbero eíTi, invece, alia loro
dignità, ai loro intereíTe ed alia salvezza dei loro paefe racco-
gliendofi in una laboriofa e ftudiofa e paziente afpettazione,
finche ritorni il giorno in cui il paefe abbia di nuovo bifogno
di loro. L'ariftocrazia e la democrazia Ibno due grandi poteri
fociali che 11 contendono da íecoli il governo delia Ibcietà
umana; quando Tuno decade, Tahro riforge; quando Tuno
è flanco, l'altro rinvigorito e nuovamente purificato viene a
far nuovamente valere la fua virtú. Un potere fcatena, Faltro
potere tempera ; un potere mette a prova la forza dei numero ;
faltro il valore de' pochi; fefperienza degli errori d\in pote-
re giova alfaltro; fariítocrazia richiama il mondo dalle idee
baífe e volgari; la democrazia lo libera dal pericolo che il
regno prolungato de' pochi 11 converta in eterna e moftruofa
tirànnide. Entrambi i poteri poífono eífere benèfici, quando
viene il loro tempo; ma fono benèfici foltanto a condizione
che non fi faceia alcuna confullone frà eífi, e che i due po-
teri ben diftinti non riefcano ad un organifmo ibrido, informe,
fimile a quello di cui danno, pur troppo, mefchino afpetto
parecchi degli odierni governi coftituzionali, che paiono acco-
gliere in fè tutti i vizii delle ariítocrazie e delle democrazie,
fenza ferbarne le virtú.
II marchete di Pombal, fentendofi veramente nobile, non
ifdegnava, di certo, e non difprezzava la fua condizione di
nobile; ma la fua maggior fodiíTazione innanzi ai fèmplici
titolati e cofi detti grandi dei regno doveva elTer quella di
avere egli fteífo accrefciuta la própria nobiltà. Nato fòmplice
gentiluomo, diventò conte d'Oeyras, e marchefe di Pombal,
-i-^J-» -^^
4sU
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per llioi meriti perfonali; e quando ftabili che i profeíTori piú
eminenti dell'univerrità riceveíTero il trattamento de' nohili e
quando fondò il Collegio de' Nobili miro a foftituire con la
nuova educazione liberale ed intelligente de' nobili un nuovo
valore reale ad un antico valore íittizio.
Si comprende, pur troppo, aíTai bene come Tantica no-
biltà feudale. che fino a quel tempo, con la fola moftra de' fuoi
vecchi blalbni, trionfava, non foíle contenta dei nuovo ordine
di cole inftaurato dal Carvalho, e che i gefuiti onnipotenti
Iblo a condizione che fi manteneíTe nella focietà portoghefe
lo Jfahí qiio feudale abbiano adoperato ogni loro arte per
farlo durare. Chè, per quanto fiano riufciti a perfuaderci che
il Carvalho farebbe ftato piú grande íe fi foíTe cò fuoi nemici
mortrato piú mite, non fi riufcirà mai a perfuadere che il
duca d'Aveyro e il marchefe di Távora non miraíTero, in
ódio dei luo miniítro, ch'eíri chiamavano il Rè Sebaftiano,
a togliere di vita il Rè Giufeppe, Ibflenitore fedele e co-
rtante delTuomo di génio nel quale egli aveva ripofta ogni
fua fiducia.
I gefuiti accufarono il Re Giufeppe di debolezza. Sem-
bra, invece, ch'egli abbia dato una prova di gran forza mo-
rale, mantenendo il potere nelle mani dei Carvalho, a dis-
petto di tutti gli intrighi orditi a corte contro di lui, e di tutte
le calunnie che i fuoi nemici, aiutati dai gefuiti, avevano pro-
palato. Un uomo che fappia refiftere imperterrito alia calunnia,
e che la refpinga quando eífa venga a colpire un amico di
cui fa fi:ima, è un uomo di gran carattere; tali caratteri fono
rari, e il Rè Giufeppe moftrò d'avere un tal carattere. Sia
dunque gloria ai fuo nome, e poífa il fuo nobile efempio gio-
vare ancora ad altri principi. Che importa fe il campo d'azione
nel quale f 'efercitava la prudenza dei Rè Giufeppe col génio
dei Pombal era un campo riflretto? II nome dei Pombal non
divenne forfe mondiale? E il Portogallo ed il Brafile non fen-
-^^ «H^
-M>^ -4^
tono forfe anche oggi i beneficii dei paíTaggio ai governo di un
uomo di génio, che doveva puré, chechè ne penfino i nemici
dei fuo nome, avere un gran cuore?!
Deploriamo tutti i fuoi errori; nella repreíTione fu vio-
lento e parve inumano; nè era bello che egli fteíTo fi faceíTe
caftigatore fpietato de' fuoi nemici, valendoíl delia forza pu-
blica che egli aveva nelle proprie mani ; la verità ú deve a
tutti, ma piú ai grandi, i quali dovrebbero fentire piú alta-
mente ciò che conviene; Pombal a Porto e fui Rio Morto fi
è un poço macchiato, e piú volte, ne' giorni delia fua difgra-
zia, avrà certamente rimpianto di non eíferfi moftrato piú
umano e piú grande, quand'era ai fommo delia fua potenza.
Ma non fi poteva fenza un gran cuore, fentire com'egli fenti,
una nobile impazienza di far grande, profpera, indipendente,
rifpettata la fua pátria. Senza un gran direttore fpirituale in-
terno, fenza una grande cofcienza di patriota, farebbe flato
impofllbile che Tattenzione dei miniftro portoghefe fi portaífe
come fece, con prowedimenti falutari, a tutte le fonti delia
profperità nazionale, per renderle tutte infieme produttive;
il commercio, Tindurtria, la marina, Fefercito, le arti, le let-
tere, le fcienze dovettero a lui folo il loro nuovo riforgimento.
E molti de' fuoi pro\^edimenti apparivano cofi liberali che
precorrevano, prima delia rivoluzione francefe, il movimento
liberale moderno, il quale gli ftorici demagogici ripetono quafi
efclufivamente da eífa. No, i Bogino in Piemonte, iTannucci e
Pietro Leopoldo in Toscana ed a Napoli, Giufeppe II in Lom-
bardia, e tutti gli economifli e ítatifti dei fecolo paífato aveano
già preparato il terreno fecondo per le riforme; la rivoluzione
francefe fu un uragano che ifterili e difertò il terreno ed ebbe
per confequenza il militarifmo Napoleónico e la Santa Al-
leanza. Se invece 1'opera pacifica dei riformatori liberali
aveífe potuto profeguirfi fenza interruzioni, a queff ora avrem-
mo, invece, quel progreífo che pone Tlnghilterra a capo de-
4* 4»
-<J>^
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gli odierni popoli civili. E il Pombal, nel luo Ibggiorno a
Londra e nelle lue relazioni coi miniftri ingleli, avea dovuto
imparare moita arte di governo, moita fcienza di flato.
Che può ora dire uno flraniero parlando dei Pombal in-
nanzi ad un publico infigne di portogheíi e di brafiliani, che
non folo ne venera la memoria, ma che ha già intefo intorno
ad effo da ftorici bene informati tutto quanto può eíTere laputo
ai noftri giorni? Certo, non aggiungere nè un fatto, nè un'idea;
ma folamente alTociarfi, con mente rifpettofa, alPomaggio che
la nobile nazione portoghefe rende ai fuo grande benefattore
dei fecolo fcorfo. Confervar la memoria de' benificii ricevTiti
è fempre, per i popoli come per gli individui, un fegno di gen-
tilezza e di civiltà. Convien dunque che il Portogallo ed il
Brafile inalzino ora un monumento alia memoria dei mar-
chefe di Pombal, come nel fecolo venturo nelFanno 1961,
i noítri futuri nepoti pel centenário dei conte Camillo di Ca-
vour, celebreranno il nome e la gloria dei riftoratore delia for-
tuna e indipendenza d'Italia; e a quelfi omaggi nazionali è
bene che tutte le nazioni civili rechino il loro confenfo am-
mirativo. I grandi benefattori d'un popolo diventano, quafi
inconfapevolmente, benefattori delFintiera umanità; chi rende
piú civile, piú profpero, piú grande il próprio paefe, non può
impedire che una parte di quella civiltà, di quella profperità,
di quella grandezza, íl riverfi benéfica, piú o meno diretta,
fulle altre nazioni. No, non è vero che un vicino veramente
grande, faceia noi piú deboli; egli, invece, infegnerà a noi la
via per confeguire in cafa noftra, coi noflri proprii mezzi, una
fimile grandezza; folo il povero impotente può eíTer gelofo
dei fuo vicino potente. Quanto a me, nelle condizioni prefente
d' Itália, non potrei terminare con altro augúrio piú cordiale
che quello di veder forgere nel mio próprio paefe un uomo
dei génio e deli' animo di Sebaftian Carvalho. II Rè Umberto I
diventerebbe facilmente il nuovo Don Giufeppe di quefto defi-
cl»
<|3
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derato, neceíTario, animofo riformatore, il quale fapeíTe ciò
che fi deve fortemente volere, e le cofe fortemente volute tra-
duceíTe in pronte opere durevoli. Utinam!
Firenze, 26 decembre 1881.
Conte Angelo De Gueernatis.
DER MINISTER POMBAL
EIN LEBEXS- UXD CHARAKTERBILD
AUS DER
ZEIT DER AUP^KLAERUNG
it Stolz und Bewunderung blickt unler Zcit-
alter auf die Geiftesheroen des voriíien Jahr-
hunderts und beeifert lich, ihre Nahmen und
Thaten dem gegenwãrtigen Gefchlechte ins
Gediichtniss zurLickzurufen, wenn der Ge-
hurts- oder Todestag des einen oder andern
Gelegenheit dazu bietet. So hat Frankreich im
Jahre 1 878 das Andenken an Voltaire und RouíTeau durch
Gedachtnifsfefte gefeiert; fo hat Deutlchland im Jalir 1S81
feinen grofsen Schriftfteller LeíTing in feiner Stellung zu dem
Geiftesleben leiner Zeit den nachgebornen Gefchlechtern vor
die Seele gefiihrt; lo Ichickt fích jetzt die portugierílche Welt
an, ihrem grofsen reformatorifchen Staatsmann Pombal, dem
Zeit- und GefinnungsgenoíTen des Kõnigs Friedrich II von
PreuíTen ein Denkmal zu ftiften. Und in der That hat man
alie Urfache an jene Zeit der philofophifchen Aufklarung zu
erinnern, wo fo viele neue reformatorifche Ideen dem frucht-
baren Mutterfchoofse entkeimten, wo man nicht nur den
Schutt verjahrterVorurtheile und úberlieferter Dodrinen weg-
(is
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raumte, fondern auch neue Anfchauungen und Lebensformen
ins Dafein rief, wo man die beítehenden Einrichtungen und
Zuftande und alie abgelebten Inftitute und Satzungen durch
die Gebilde der Vernunft, des rationellen Denkens, des ge-
funden Menfchenverftandes zu erfetzen fuchte. Die ganze ge-
bildete Welt Europas war von der machtigen Strõmung des
neuen Zeitgeiftes durchzogen, der in Paris feinen Urfprung
und feine Geburtsftatte hatte. Es foU nicht geleugnet werden,
dafs der Cultus des menfchlichen Genius und der Vernunft
mitunter zu einem neuen Gõtzendienft fiihrte, dafs die Philo-
' fophie des Senfualismus den Sinn fiir das Hõhere und Ideale
in den herrfchenden Kreiíen abftumpfte, dafs der Glaube an
eine moralifche Weltordnung vielfach erfchúttert ward; abar
es wâre unrecht, úber diefen dunkeln Schattenbildern die
Lichtftrahlen zu úberfehen.Wenn der clericale Obfcurantifmus
oder die rigorofe puritanifche Weltanfchauung in jener Zeit
einer gahrenden Ideenwelt nurVerfall und Entartung erblicken
mõchte, fo vergifst diefe morofe und peíTimistifche Auffaífung,
dafs auch zugleich die Gebote der Humanitat, der Menfchen-
liebe, der GewiíTens- und Geiítesfreiheit zur Geltung kamen,
dafs die wichtigften Faftoren des modernen Staats- und
Gefellfchaftslebens in den Aufklarungsideen jenes philofo-
phifchen Jahrhunderts ihre Wurzeln haben, dafs die Erzeu-
gniífe einer unfreien Zeit und einer unwúrdigen Geiftes-
knechtfchaft, wie Inquilltion und Ketzerverbrennungen, wie
Hexenproceíre,Torturen, graufame Hinrichtungen, entehrende
Feudalrechte befeitigt oder gemildert wurden, dafs die Gefell-
fchaft Jefu, welche nur in der Herrfchaft der rõmifchen Hie-
rarchie und in der Unterordnung der Võlker unter die geiftliche
Autoritât das Heil der Menfchheit erblickt, gebrochen und aut
Jahrzehnte von der Oberflache der Welt verbannt ward. Aus
diefen Kreiíen philofophifcher Lebensanfchauung iít Pombal,
der Reformator Portugals hervorgegangen.
-i-Ô- ^-Ó^
4» e|j
I
KOENIG JOSÉ I. UND POMBAL. DAS ERDBEBEN VON LISSABON
Das Haus Braganza war einft durch einen Akt des Na-
tionalwillens auf den portugiefifchen Thron erhoben worden.
Diefen Urfprung feincr Macht hatte João V aus dem Auge
verloren und ais abfoluter «Kõnig von Gottes Gnaden» re-
giert, nur den Clerus und den hohen Adel begúnftigend. Ein
folcher Ruckfchritt zu iiberlebten Formen, eine folche aus-
fchliefsliche Anlehnung der fouveranen Monarchie an zwei
bevorrechtete und bevorzugte Stande, welche zu der herr-
fchenden Zeitrichtung und Zeitbildung in fchroffem Gegenfatz
ftanden, konnte den noch kaum befeftigten Staat von Neucm
den Sturmen der Anarchie entgegentreiben, von Neuem biir-
gerliche Bewegungen hervorrufen, die den lauernden neidi-
fchen Nachbarftaat leicht zur Wiederaufnahme der frúheren
Feindfeligkeiten anfpornen mochten. War doch die Colonie
dei Sacramento, auf einem feifigen Vorgebirge am Nordufer
des Rio de la Plata, welche die Portugielen im J. 1678 ange-
legt und feitdem gegen viele Anfechtungen behauptet hatten,
ein fteter Erisapfel zwifchen den beiden pyrenaifchen Kõnig-
reichen. Portugals Staatswefen bedurfte einer dem Geifte der
Zeit entfprechenden Reform, folhe es fich ais freier lebens-
kraftiger Staat erhalten.
Diefe Reform folhe dem Reich in glitnzender Weife zu
Theil werden durch einen Mann, der dem ncuen Kõnig Jo-
feph Emanuel zur Seite ftand wie einfl: Richelieu dem fran-
zõfifchen Kõnig Ludwig XIII. Diefer Mann war Sebaftian
Jofeph de Carvalho e Mello, Graf von Ocyras, bckannter
unter feinem Ipiiteren Titel Marquis de Pombal. Abkõmm-
ling eines alten Adelsgefchlechts von maííigem Vermõgen,
hatte er nach vollendeten Sutdien in Coimbra durch einflufs-
reiche Verwandte in LiíTabon eine Anítellung erhalten, war
dann von Kõnig João V mit diplomatifchen Auftragen nach
London und Wien gelandt worden, hatte auch in Paris einige
Zeit verweilt und kannte fomit die wichtigften Stadte Euro-
pa's, die feinem fahigen und empfanglichen Geifte Belehrung
geben konnten iiber Staatsverwaltung und Volkswirthfchaft, '
úber kirchliche und religiõfe Dinge, uber moderne Zeitbil-
dung und priefterlichjefuitifche Weltanfchauung. Und je mehr
er íich mit den Ideen der Aufklarungsphiiofophie befreundete,
defto melir kam er zu der Ueberzeugung, dais die õífentlichen
Zuftande in Portugal nur dann einer BeíTerung entgegenge-
fiihrt werden konnten, wenn die hierarchifch-ariftokratifche
Atmofphare, die wie ein tõdtlicher Mehlthau íiber alie Lebens-
functionen gelagert war, durchbrochen und weggefegt wurde.
Und lo machtig und úberwaltigend war die Perfõnlichkeit
des Mannes, dafs, fobald er nach dem Tode des alten Kõnigs
durch den Einflufs der kõniglichen Wittwe, einer õfterreichi-
fchen Kaifertochter, von dem Sohn und Nachfolger in das
Minifterium berufen ward, die alten klerikalen Râthe bald
weiclien mufsten, dafs Carvalho mit fouverãner Machtfiille
das Regiment fuhrte und der Polhik und Staatsverwaltung
Portugals einen andern Charakter aufpragte. Der neue Mi-
nifter, bereits einundfunfzig Jahre alt (geb. i3 mai i6gg) und
in zweiter Ehe mit einer Tochter des Feldmarfchalls Daun
vermahlt, wird gefchildert ais ein Mann von ungewõhnlich
hoher Geftah, dabei wohlgebaut und fchõn, feine Gefichts-
bildung gciftreich und ausdrucksvoll, fein Benehmen gewin-
nend, feine Sprache leicht und flieífend, von einer melodi-
fchcn, íiberaus anmuthigen Stimme unterftLitzt. Sein Einflufs
in LiíTabon war machtiger und gebieterifcher ais der feines
Zeitgenoífen Choifeul in Verfailles, weil Kõnig Jofé dem fran-
zõfifchen Monarchen nur in dem Hange zur Sinnenluft, zu
cinem gcnufsreichcn Hofleben, zu Jagd, Mufik und Theater
*i-«í>- -i^
cia
7'
ahnlich war, ihm aber nicht gleichkam in der Willenskraft,
m dem defpotifch-autokratifchen Hcrrfcherlinn, in der ruck-
fichtslofen Selbftíucht, in dem hochmiithigen Souveranetats-
gefiihl. Arbeitfcheu, wenig befãhigt und durftig unterrichtet,
úberliefs Kõnig Jofeph die Staatsgefchafte und die Laft der
Regierung dem gewandten Minifter, welcher gegentiber fei-
nem Fúrften ftets die Formen eines Cavaliers und Hofmannes
beobachtete, wíthrend er feine Gegner mit defpotilcher Hand
niederwarf. Um fo mehr Zeit konnte der Kõnig auf feine
Liebhabereien verwenden, um fo ungeftõrter fur feine Opern
und feine Kapelle, fíir den Bau und die Einrichtung eines
prachtvollenTheaters forgen, um fo haufiger demWaidwerk
nachgelien oder fchõnen Frauen den Hof machen, fo viel es
die Eiferfucht feiner fpanifchen Gemahlin, einerTochter Phi-
lipps V geftattete. Jofeph liefs den Minifter auch darum ge-
wahren, weil die ganze Perfõnlichkeit des muthigen durch-
greifenden Mannes feiner eigenen fchwachen und furchtfamen
Natur imponirte, fo dafs er ihm nicht entgegenzutreten wagte.
Dabei erkannte er mit richtigem Inftinkt, dafs Pombal, indem
er die nationalen Krafte fammehe und entwickehe, die S lan-
des- und Sonderintereífen der feudalen und klerikalen Ele-
mente bandigte und niederhieh, zugleich die Kõnigsgcwalt
und die Priirogative der Krone hob und ftarkte.
Der hohe Adel, der fich im unbefchriinkten Befitz aller
wichtigen Hof-, Regierungs- und Richterftellen befand, fich
einen grofsen Theil der Kronguter angeeignet oder durch den
verftorbenen Kõnig hatte zutheilen laífen, fah mit Mifstrauen
und Abneigung auf den Landedelmann, den cinzigcn und
wahren Inhaber der Macht der kõniglichen Autoritat, der
alie Aemter und Gefchafte einer forgfaltigen Aufficht und
Controle unterwarf, mit einer Menge von Reformplanen fich
trug, in unheimlicher Vielgefchâftigkeit und mit fpâhendem
Blick Alies pruftc und Vicies anderte. Von ahnlichen Gefiihlen
ti»
eis c|3
war der Pralatenftand durchdrungen. Jener fiirchtete fúr feine
Sinecuren, feine eintraglichen Stellen, feine ufurpirten Do-
manen und Jahrgelder, diefer fúr feine Vorrechte, feine Ein-
kúnfte und Emolumente, feine reichen Inftitute und Pfrunden;
beide fur ihren Einflufs, ihre Machtftellung, ihre Herrfchaft.
Ihre Befurchtungen waren nicht ungegrúndet. Nachdem Car-
valho, oder wie wir ihn fclion jetzt vorgreifend nennen wol-
len, Pombal die Regierungsgewalt in feine Hande gebracht,
fich des Kõnigs verfichert und die Hof- und Staatsâmter mit
zuverlâffigen Leuten, mitVerwandten und Anhangern gefullt,
begann er mit der Lebhaftigkeit und Beweglichkeit eines Siid-
landers das gefammte õffentliche Leben zu reformiren. Durch
eine Fluth von Verordnungen fuchte er die Mifsftande in der
Verwaltung zu befeitigen, die zerriitteten Finanzen zu ordnen,
Induftrie und Handel zu heleben. Selbll: das grofse National-
ungluck, das Erdbeben von LilTabon, das die Gemuther der
Zeitgenoífen fo machtig erfchútterte und von der Geiftlichkeit
ais ein Stra%ericht Gottes gedeutet ward, wurde von dem
energifchen Staatsmann zu reformatorifchenWerken benutzt.
Es ift allbekannt, dafs an dem Fefttage Allerheiligen, an
einem heitern fonnigen Novembermorgen plõtzlich ein Natur-
ereignifs eintrat, welches in dem Zeitraume von einer Vier-
telítunde den grõfsten Theil der ftolzen Stadt Liífahon in
Trummer legte, Taufende von Menfchen unter den einftúr-
zenden Gebauden begrub und vereint mit einer Sturmflut
des Tajo und einer mehrere Tage andauernden Feuersbrunft
Tod und Verderben in jeglichcr Geftalt úber die entfetzten
Einwohner hrachte. Das kõnigliche Schlofs, der neucrbaute
Palaft des Patriarchen, zahllofe Kirchen, Klõfter und Wohn-
hauser fielen in Trummer zufammen. Die Zahl der Ungluck-
lichen, die an diefemTage des Schreckens und derVerwti-
ftung unter den Ruinen oder durch Feuer oder WaíTer um-
kamen, wird auf 3o:ooo gefchiitzt. Und zu den empõrten
ti»
-• •-Ç>-§»
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Elementen gelellten fich die Leidenlchaften und wilden Triebe
der Menlchen: aus den Gefangnillen iHirztenVerbrecher und
Rauber hervor und verubten, unterlHitzt von dem Abfchaum
der Bevõlkerung, den jede grofse Stadt in ihrem SchooíTe
birgt, Frevel und MilTethaten aller Art, die rohen Begierden
durch Handlungen thierilcher Lull, durch Mord und Dieb-
llahl, durch Verruchtheit und Ziigellorigkeit fattigend. Auch
uber andere Kúrtenorte, uber Setúbal, Oporto, Algarve dehnte
fich die wilde Naturgewalt aus. Der Kõnig, der fich mit feiner
Familie in dem Luftfchlofs Belém befand und dadurch dem
Verderben entging, liefs fofort den Minifter zu fich rufen und
richtete in der Angíl: feiner Seele die Frage an ihn: «Was ift
zu thun, um diefem gõttlichen Strafgerichte zu begegnen?»
Feít und ruhig antwortete der Graf: « Herr, die Todten be-
graben und fúr die Lebenden forgen». VoU Bewunderung
blickte der Monarch auf den muthigen ftandhaften Mann und
fein Vertrauen zu ihm war feitdem unerfchutterlich. Er wiir-
digte deífen hohen Genius, der feiner Regierung Glanz und
Ruhm zu verleihen verfprach, und fchiitzte ihn gegen alie
Anfchlãge und Kabalen der Gegner und Neider. Und nie hat
ein Staatsmann mit mehr Umficht und Entfchloífenheit in
Tagen der Noth und des Schreckens gehandelt ais damals
Pombal. Sein Wagen, in dem er die Unglucksltatte befuchte,
war mehrere Tage und Nachte fein fteter Aufenthaltsort, fein
Arbeitszimmer: mit wunderbarer Energie traf er Mafsregeln
zur Erhaltung der Ordnung, zur Unterbringung des Volkes,
zur Vertheilung von Lebensmitteln. Er felbft hat in wenigen
Tagen gegen zweihundert Decrete erlaífen. Die Todten wur-
den begraben, verbrannt, ins Meer gefenkt, damit nicht auch
noch die Peíl: das Elend mehre; die Verwundeten wurden in
Sicherheit gebracht und verpflegt; zur Aufnahme der Ob-
dachlofen wurden Hiitten und Bretterbuden errichtet; durch
OefTnen der kõniglichen Kornfpcicher und durch Herbei-
-i-<Ç^- -o»!-
4tÍ3
-«{>^
74
fchaffung fremden Getreides fteuerte er der Noth und trug
Sorge, dafs kein Armer durch Hunger umkam; er liefs Mili-
tar aus den Provinzen herbeikommen, um die Sicherheit zu
erhalten, und wehrte durch ftrenge und rafche Juftiz den
Dieben und Uehelthatern. Niemand durfte die Hauptftadt
verlaíTen, damit kein geraubtes Gut verfchleppt werde. Die
befchadigten WaíTerleitungen wurden in Stand gefetzt, den
Fanatikern, welche die Gemiither angíligten und aufreizten,
wurde Einhalt gethan. Die ProzeíTionen und õíTentlichen An-
dachtsubungen mufsten eingeftellt werden. Er vergafs es nie,
dais der Jefuitenpater Gabriele Malagrida das Nationalungliick
fíir eine himmlifche Zúchtigung wegen des gottlofen Regi-
ments erklarte. Und ais die Ruhe in die Gemúther zuriick-
gekehrt war und man zu dem Wiederauf bau der Stadt fchritt,
da beftand Pombal darauf, dafs breite StralTen angelegt und
zweckmafsige anlehnliche Wohnhaufer errichtet wurden, da-
mit das Volk fich an Reinlichkeit gewõhne und LiíTabon Ichõ-
ner und gefunder wúrde. Zu dem Ende liefs er auch pracht-
voUe gemeinnútzige Gebaude auffúhren wie Bõrfe, Kaufhaus,
Arfenal, freie Platze und einen õffentlichen Garten anlegen, die
WaíTerleitungen verbeífern u. A. m. Wiire der Plan zu Stande
gekommcn, am Ufer desTajo bis nach Belém eine Promenade
mit Baumpflanzungen aufzufúhren, fo wurden die Reize der
portugiefifchen Refidenzftadt noch wefentlich erhõht worden
fein. Hatte er zuerft die Staatsmittel zur Linderung des Elends
verwendet, fo bediente er fich jetzt derfelben zu Anlagen im
allgemeinen Intereíle.
II
DIE PORTUGIESISCHE REGIERUNG IM KAMPFE GEGEN JESUITEN
UND PAPSTTHUM.
Pombais Name hat eine weltgefchichtliche Bedeutung
erhalten durch fein kúhnes Vorgehen gegen die Jeluiten. Es
e|s
-, '. -A-l-
iíl: eine bekanntcThatlache dafs die GelelUchalt Jelli leit ihrer
Grundung in deii beiden Kõnigreichen der pyrenailchen Halb-
inlel íehr grofsen Einfluís erlangt und dafs insbelbndere
João V sein Vertrauen und feine Guníl den Ordensbrúdern
in hohem Grade zugewendet hatte: fie waren nicht blofs die
Beichtvater und GewiíTensrathe der ganzen kõniglichen Fa-
milie, der Haupter des Adels und der Hofwelt, auch in den
Angelegenheiten der Politik wurden lie um Rath gefragt; die
wichtigrten Aemter und Hofltellen gingen gleiclifam durch
ihre Hande; Schulen und wiíTenfchaftliche Anftalten ftanden
unter ihrer Leitung und Pflege ; die lUiffionen in den Colonien
wurden von ihnen belorgl. Es war ein eigenthúmliches Zu-
lammentreífen, dafs die Ordensglieder gerade um die Zeit,
da die Spitzen der Gefellfchaft den philofophifchen Reform-
ideen huldigten und die Gemúther der Gebildeten den reli-
giõfen und kirchlichen Dingen abgewendet waren, fich mehr
wie je mit fremdartigen weltlichen Gefchaften abgaben, dafs
fie in Nachahmung der englifch-oftindifchen Compagnie in
Handels- und Geldfachen fich einliefsen, nach einem felb-
ftandigen politifchen Staatsorganismus tracliteten, fich nur
zum Schein einer hõheren Autoritat unterwarfen, in Wirk-
lichkeit aber durch allerlei fophiftifche Kunfte und Umge-
hungen nicht nur der wehHchen Obrigkeit, fondern felbfl: den
Gefetzen undVerboten des Papftes fich zu entziehen wufsten.
VonWerten und Often trugcn ihre KaufmannfchitFe Colonial-
waaren nach den europaifchen SeepUttzen. Die Handelsun-
ternehmungen gingen freihch nur von einzelnen Mitghedern
aus; aber der Gewinn kam dem ganzen Orden zu gute. Diefe
mercantile Thãtigkcit des Ordens trat befonders bei einem
Prozeífe zuTage, den ein Marfeiller Handelshaus gegen die
GefeUfchaft anftrengte, ais diefe fich weigerte, die von dem
Generalprocurator der Miífionen in Welhndien ausgefteUten
und von dem Haufe angenommenen Wechfel anzuerkennen
eis
4 4»
-* -<>^
76
und zu bezahlen. Unter diefen Umftânden, ais die ganze
Welt mit Spaiinung dem Ausgange der gerichtlichen Unter-
fuchung entgegenfah und mit Indignation auf das unredliche
Treiben dcs Ordens blickte, war es ein gewagter Schritt, ais
die Jefuiten auch gegen die Regierung des kiihnen Staats-
mannes in LiíTabon feindfelig auftraten.
Auf der ludlichen Halfte des americanifchen Continents
hatte der Jeílútenorden bald nach feiner Begriindung feine
weltgefchichtliche MiíTion am grofsartigsten entfaltet. Un-
widerftehlich drangen die Vater in die Urwalder vor und
wufsten fich das Vertrauen der von den Spaniern mifshan-
delten Eingebornen zu erwerben. Auf diefen Zúgen betraten
fie zueríl den Boden von Paraguay, wo fie mit Genehmigung
des Kõnigs von Spanien ein eigenes Gemeinwefen unter fei-
ner Oberlioheit errichteten. Der ganze Staat follte ein chrift-
liches Patriarchat darftellen und trug auch in der That ein
focialiífifclies Geprage. Die Indianer wurden ais Kinder be-
handelt, an LandwirthfchaftViehzucht und religiõfe Uebungen
gewõhnt, im Uebrigen in jeder Beziehung bevormundet und
auf eine mõglichst niedrige Stufe von Wiífen und Urtheil
reducirt. Jede Familie hatte ein kleines Befitzthum, aber der
grõfste Theil des Landes war Gemeindeacker (poífeflio Dei).
Mit dem Ueberfchuífe der Ertrãgniífe trieb der Orden einen
grofsartigen Handel, deífen Gewinn dem Staate felbft wieder
zu gute ftommen follte. Um Einfalle abzuwehren, wurden
Grenzfeftungen angelegt und die hidianer waíTenfahig ge-
macht. Das Land felbft war jedem Fremden verfchloífen und
felbft Spanier konnten nur zeitweilig im Gefolge des Gouver-
neurs und des Bifchofs Zutritt erhalten. Dem Namen nach
ftand Paraguay unter der Oberhoheit der Krone Spanien;
aber diefe Hoheit war bei der grofsen Hingebung des
kõniglichen Haufes in Madrid an die Gefellfchaft nur ein
Schein und Schatten; die Vater der MiíTion benahmen fich
4tU
-• •-ç^
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ais felbílãndige Herren und Gcbieterdes Ichõnen und reichen
Landes, hielten alie Europaer fern und regierten tiber die
Indianer, die lie aus Wáldern und Wiiften in ihren Nieder-
laíTungen am Uruguay gefammelt und in Dõrfern und Flecken
zur Gemeinfchaft der Arbeit, der GCiter, der Zucht und des
Lebens herangezogen hatten, wie Hirten uber ihre Heerden.
Da wurde zwifchen den \'erwandten Hõfen von Madrid und
LiíTabon einTaulchvertrag abgerchloflen, in Folge deffen die
Portugiefen die viel umlirittene Colónia dei Sacramento gegen
fieben MiíTionsbezirke (Reductionen) in Paraguay abtraten.
Die Jefuiten íctzten alie Hebel ein, um den Landertaufch zu
verhindern; ihr Einflufs und ihre diplomatilchen Kunfte wa-
ren jedoch nicht ausreichend. Da reizten die geiftlichen Vater
ihre indianifchen Schutzlinge zum Wideriland, verfahen fie
mitWaffen und ftellten franzõíifche Offiziere, die fie in Dienft
nahmcn, an ihre Spitzc. So erhob fich ein mehrjahriger Búr-
gerkrieg, der erft nach grofsen Anftrengungen, Koften und
Befchwerden von Seiten der vereinigten fpanifch-portugiefi-
fchen Armee beendigt ward. Die Indianer wurden durch
Gomez Freire de Andrada, Statthaher von Rio Janeiro befiegt
und theils ais Sclaven behandelt, theils in die Urwalder und
Wufteneien zuruckverfetzt, aus denen die MiíTionare fie einíl
hervorgezogen. Diefe Auflõfi.ing des Jefuitenftaats hatte An-
fangs fur Paraguay fchlimme Folgen: was unter der patriar-
chalifchen Regierung gefchaffen worden, ging wieder der
Verõdung entgegen. Aber mit der Zeit erwies fich die Aus-
weifi-ing der Vater ais ein fegensreiches Ereignifs fúr die Fort-
bildung und Hebung der weiffen Bevõlkerung in America.
Denn jetzt erft fing diefelbe an, fich den Studien zu widmen
und an dem geiftigen Leben Europa's zu betheiligen; jetzt
erft fiihlte man das Bcdurfiiifs, die eigencn Krafte anzu-
ftrengen, ein íelbftandiges Culturleben zu íchaffen.
Der Krieg in Paraguay hatte der Krone Portugal ^•iclc
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^i-<J>-* -<>-§-
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Millionen gekoftet; es war daher begreiflich, dais man in
LiíTabon gegen die Anftifter und Urheber deíTelben in den
heftigíten Zorn gerieth. Zugleich hatten die geiftlichen Herren
keine Gelegenlieit unterlaíTen, das Volk wider die Regierung
aufzureizen. Nicht genug, dafs fie, wie erwahnt, das Erdbeben
zu agitatorifchen Zweckeii verwertheten ; ais Pombal in der
Umgebung von Oporto den Weinbau in den fiir Rebland
weniger geeigneten Gegenden zu befchranken fuchte, theils
um mehr Boden fiir Getreide und andere Produkte zu ge-
winnen, theils um die Qualitat und damit die Preife des Port-
weins zu fteigern, und dann denWeinhandel in Oporto einer
privilegirten Handelsgefellfchaft iibertrug, wandten auch hier
die Jefuiten alie Mittel an, um dasVorhaben des Minifters zu
vereiteln oder zu verkúmmern. Es kam fogar zu einemVolks-
aufftand, der miiitarifches Einfchreiten nothwendig machte
und nur durch ftrenge Strafgerichte unterdrúckt werden
konnte. Und nun hielt íich Pombal fiir berufen und berech-
tigt, gegen den feindlich gefinnten Orden mit aller Energie
vorzugehen. Er wufste, dais ihn íein Monarch in Aliem ge-
wahren laffen, ihm in Nichts entgegentreten wurde. Es war
ein ganz unerhõrtes Ereignifs, ais in einer Septembernacht
(19 Sept. 1757) die Beichtvater des Kõnigs, der Kõnigin, der
Infanten in das Jefuitenklofter gebracht wurden und allen
Religiofen des Ordens verboten, ohne ausdriickliche Erlaub-
nifs bei Hofe zu erfcheinen. Bald darauf legte der portugie-
fifche Gefandte in Rom dem Papfte eine Reihe von Akten-
ftucken vor, worin die Entartung und Verweltlichung der
Gefellícliaft Jefu dargethan war, ihre Handelsunternehmun-
gen, ihre Wucher- und Geldgeichâfte, ihre Betheiligung am
Verkauf von Sclíiven und am Schleichhandel, ihre polifilchen
Umtriebe im Kõnigreich wie in den Colonien. Der Minirter
erreichte feinen Zweck. Papll Benedict XIV bctraute am
I April 1758 den Cardinal Saldanha mit derVifitation und Re-
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4» sU
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formation der Geíelllchaft Jefu in den Kõnigreichen Portugal
und Algarve Ibwie in den portugiefílchen Colonien Oft- und
Weftindiens. Dieler verhot darauf den Mitgliedern der Gefell-
fchaft Jefu alie Art von Handelsgefchaften und befchrânkte
ihre Thatigkeit im ganzen Umfang feines Patriarchats. Allein
noch in demfelben Jahr ftarben Benedict XIV und Cardinal
Saldanha, und nun ftrengten die Jefuiten alie Krafte an, den
paprtlichen Stuhl im Interefle ihres Ordens zu beletzen. Der
Nachfolger war Clemens XIII, ein frommer und wohlmci-
nender, aber in den Dingen der Zeit wenig erfahrener Kir-
chenfurft, eifrig befliíTen, die Autoritat des Pontificats unver-
letzt und ungefchwacht zu halten. Diefem úberreichte fofort
der Ordensgeneral eine Denklchrift, worin er die der Gefell-
fchaft vorgeworfenen Vergehen und Unordnungen in Abrede
ftellte und auf die Verlegung der Unterfuchung nach Rom
drang. Clemens XIII, der in den Jefuiten die treueften Vcr-
fechter des Papftthums und der Religion fah, fchenkte ihncn
vollen Glauben. Damit wãren wohl Pombais Reformplane
begraben worden, hatte fich nicht ein Ereignifs zugetragen,
das ihn rafcher zum Ziele fiihrte, ais durch den geiftlichen
Gerichtsgang je mõglich gewefen ware.
Ais einft der Kõnig in Begleitung feines Kãmmerers und
Gunftlings Pedro Texeira von einem nachtlichen Befuche.
den er der Gemahlin des Marquis Luis Bernardo de Távora
abftattete, von Belém nach dem Schlofs Ajuda fuhr, fielen
zwei Schiilfe in denWagen, durch welche Jofeph am Arm
und in der Seite leicht vcrwundet ward. Die Sache wurde
fehr gehcim gehalten, um alies Auffehcn zu vermeiden und
Vorkehrungen zur Entdeckung und Haftnahme der Urheber
zu treffen. Der Kõnig hielt fich vor aller Welt verborgen,
wahrend der Minifter mit raftlofer Thatigkeit die Unterfu-
chung betrieb. DerVerdacht fiel auf den Hcrzog von Aveiro
und die Familic Távora. Man war iibcrzeugt, dais eine Ver-
4» 4*
8o
fchwõrung zum Umfturz der Regierung bertehe, deren Fâden
lich in die hõchften Adelskreife zu verlaufen fchienen. Schon
waren tiber drei Monate feit dem myfteriõfen Attentat ver-
floíTen, ais plõtzlich die drei Edelleute, die man fúr die Haup-
ter des Compiots hielt, der Herzog von Aveiro, der Marquis
von Távora und fein Schwiegerfohn der Graf von Atouguia
ins Gefângnifs gefuhrt und ilire Papiere mit Befchlag belegt
wurden (i3 Decbr. lySS). Unter den Scliriftítucken w^aren
einige Briefe, in denen man rathfelhafte und dunkle Andeu-
tungen eines verbrecherifchen Vorhabens zu finden glaubte.
In einem deríelben Ias man die Worte: «Um die Autoritat
des Kõnigs Sebaftião (Sebaít. Joí. de Carvalho) zu zerftõren,
muíTen wir die des Kõnigs Jofé vernichten » . Bald befanden
fich alie Glieder der zahlreichen und angefehenen Familie
Távora, Manner wie Frauen, an verlchiedenen Orten unter
Schlols und Riegel; die Frauen in Klollerkammern, die Man-
ner, mit Ketten beíchwert in Kerkerlõchern und ehemaligen
Thierbehaltern. Und da man die nahen Beziehungen diefes
Adelsgefchlechts zu den Jeluiten kannte, wurden auch meh-
rere Ordensbruder in Haft genommen und ihre Klõfter und
Collegien durch Soldaten abgefperrt. Darauf wurden die
Verhafteten auf Grund von Auslagen und Geftandniílen, die
man ihnen durch Torturen und Zwangsmittel abgeprefst, von
einem befondern Gerichtshofe des Hochverraths und Maje-
ftatsverbrechens íchuldig erkannt und zu den entehrendften
und martervoUften Strafen verurtheilt. Acht Glieder des reich-
ften alteften Adels, welche die hõchften Ehrenamter bei
Hof und im Militar bekleidet hatten, ftarben auf dem Schaf-
fott (i3 Jan. 1759); ihre Leichen wurden auf das Rad ge-
íiochten, ihre Guter eingezogen, ihr Name gefchandet. Antó-
nio Alvarez Ferreira, der die Stutzbiichfe abgefeuert hatte,
wurde an einen Pfahl gebunden und lebendig verbrannt.
Jofé Mafcarcnhas, Herzog von Aveiro, ein Verwandtcr
^-ò^
des kòniglichen Hauíes, in deíTen Familie das Amt des
Mordomo oder Oherhofmarlchalls erblich war, der Mar-
quis von Távora, ehcdem Vicekõnig in Oftindien, Icinc
ftolze Gemahlin, einíl: eine gefeierte Schõnheit und auch jetzt
noch trotz ihrer vorgerúckteren Jahre eine ftolze Edeldame
von kõrperlichen und geiftigen Vorziigen, ihr Sohn Jofé Maria,
ein trefflicher talentvoller junger Mann von einundzwanzig
Jahren und lein alterer Brudcr Luis Bernardo, mit deíTen
fchoner Gemahlin Tiíerefe der Kõnig das heimliche Liebes-
verhaltniís unterhalten hatte, der Graf von Atougia, Schwie-
gerfohn des Marquis und mehrere Diener des Haufes mufsten
die Bitterkeit eines gewaltfamen Todes erleiden. Nur die
Marquise Tiíerefe felbll: wurde in einem Frauenklofter unter-
gebracht, ihrem Stande gemais behandelt und dann in Frei-
lieit gefetzt. Die Verurtiíeilten, úber deren verbreciíerifche
Plane und Handlungen ein amtlicher Bericht verõffentlicht
ward, warcn alie erklarte Feinde des Minifters, den fie ais
einen weit unter ihnen ftehenden Emporkõmmling haísten
und beneideten, der fie um die Gunft des Monarchen ge-
bracht, deíTen Reformen fo tief in die kirchlichen, politilchen
und gelellfchaftlichen Traditionen einfchnitten, der ihrem
Ehrgeize, ihrer bisherigen Machtftellung Einhalt zu gebieten
gewagt, der die Jefuiten, mit denen das Haus Távora von
jeher durch Bande der Pietat, der Religion, des Vertrauens
verknupft war, vom Hofe und vom Beichtftuhl verdrangt hatte.
Eine groíse Anzahl Verwandter, Freunde und Gelinnungsge-
noíTen wurden in graíTlichen Kerkern gefangen gehalten.
Bei der Abneigung, welche Carvalho, der um diefe Zeit
wegen feines Verdienftes um die Entdeckung des Complots
zum Grafen von Oeyras erhoben ward, gegen den machtigen
Jcíuitenorden hegte, ftand zu erwarten, dais man die gcricht-
liche Verfolgung auch iiber diefe geiftliche BrLiderfchaft aus-
dehnen wurde. Man hatte bereits zehn Mitglieder, die man
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ais Anftifter und Mitfchuldige betrachtete, unter ihnen den
Pater Gabriel Malagrida, einen gebornen Mailãnder in Ge-
wahrfam gefetzt und ihre Papiere und Brieflchaften wegge-
nommen. Man fand bald manche verdachtige Anzeichen, die
auf conlpiratorifche Anfchlage gedeutet werden konnten. Ihre
zuverfichtliche Haltung, ihr herausforderndes Benehmen, ihre
Dreiftigkeit gegen die õífentliche Autoritat vor dem Mordver-
fuch, die Ausfagen Aveiro's bei feinem Verhõr, verfangliche
AeuíTerungen, dafs der Konig nicht lange leben und die Ty-
rannei des Grafen bald ein Ende nehmen wiirde, aufgefan-
gene Briefe nach Rom, worin die Lage des Reiches und die
Bedrãngnifs der Ordensbrúder in grellen Farben dargeftellt
waren; diefe und andere Dinge wurden ais Beweife ihrer
Schuld und bõfen Abfichten gedeutet. Schon einige Wochen
nach dem Blutgerichte (Febr. lySg) konnte der franzõlilche
Gefandte in LiíTabon an den Minifter Choileul berichten,
«man behauptet, die Jefuiten hãtten das Volk aufwiegeln
follen, im Falle der Kõnig getõdtet worden wâre»; und einige
Wochen fpâter meldete er nach Paris, man habe entdeckt,
dafs drei der verhafteten Ordensgeiftlichen in die Verfchwõ-
rung verflochten gewcfen, und dafs Mitglieder der Gefell-
fchaft Jefu ais die Anftifter des Mordanfalls angefehen wiir-
den. Sie hatten die gereizte Stimmung und den verletzten
Ehrgeiz des Herzogs von Aveiro und der Familie Távora
iiber widerfahrene Zurúckw^eifungen von Seiten des -Kõnigs
benutzt, um fie zu dem verbrecherifchen Unternehmen an-
zufporncn. Auf Grund folcher Schuldbeweife wurde im Laute
des Jahres lySg eine Reihe von Mafsregeln gegen die Gefell-
fchaft Jefu in Anwendung gebracht, die ihrer Exiftenz und
Wirkfamkeit in allen der portugiefifchen Krone unterwor-
fenen Landern ein Ende machten.
Nachdem in einer an Papft Clemens XIII gerichtcten
Denkfchrift die Entartung des Ordens von den urfpriinglichen
eis
83
Grundílttzen, das ungefetzliche und aufruhrerifche Betragen
íeiner Mitglieder in Paraguay und Brafilien, die confpirato-
rifchen Umtriebe des vorigen Jahres dargelegt und der heil.
Vater erlucht worden, das gerichtliche Vorgehen gegen die
des Hochverraths verdãchtigen Ordensbriider zu geftatten,
damit fie nach den Gelblzen beftraft wiirden, ergingen kõnig-
liche Auslchreiben, welche den Jcfuiten das VerlaíTen ihrer
Klofterwohnungen und den Verkehr mit Weltlichen unter-
fagten, ihre Wirkfamkeit im Beichtftuhl und auf der Lehr-
kanzei hemmten, das Vermõgen der Gefellfchaft und ihre
Schritítiicke mit Befchlag belegten. Der Papft liefs gefchehen
was er nicht zu verhindern vermochte: der ZeitgeiíT:, die
õífentliche Meinung, die Vorurtheiie und Abneigungen der
Regierungen und der herríchenden KlaíTen waren machtiger
ais die kirchliche Autoritat. Clemens mufste lich begniigen,
die Befchuldigten und Angegriffenen der Milde des Kõnigs
zu empfehlen. Doch konnte man lich in Rom nicht ent-
IchUeíTen, die Jeluitenvater in Portugal einem weltlichen Tri-
bunal zu unterwerfen; man furchtete, es mõchte cine Wieder-
holung des ProzeíTes gegen dieTempelherren in Sccne gefetzt
werden. Auch hatten mehrere hundert Bifchõfe und Cardi-
nãle Deutfchlands und Italiens ein Schreiben an den Papft
gerichtct, mit dem Erílichen fich der bedrangten Ordens-
briider anzunehmen, und in allen Landern wurde von den
Jefuiten felbft und ihren Frcunden und Anhiingern eine Fluth
von Schmahlchriften, verlcumderifchen Befchuldigungen,
feindfeligen Nachredcn und Angritfen wider dieTyrannei der
portugiefifchen Regierung lolsgelaíTen. Das Breve, welches
die Erlaubnils zu dem Gerichtsverfahren gegen die ange-
Ichuldigten Kleriker ertheilte, war daher mit lo vielen Cau-
tclen verfehen, dafs es zu einem umfaíTenden Prozeís, wie
ihn der Minifter beabfichtigte, nicht hinreichte. Nur gegen
bcftimmte Perfonen und unler dem Vorfitz eines Geiftlichen
84
foUte die Unterfuchung ^'or fich gehen. Auch war der Nun-
tius angewiefen, das Schriftftúck dem Kõnig felbfl einzu-
handigen. Man hoíTte, der lalbungsvolle Curialílil werde auf
das Gemuth des der Kirche und dem rõmifchen Stuhle mit
Ehrfurcht ergebenen Fiirften feines Eindrucks nichtverfehlen.
Abar Pombal, von dem Inhalt des Schreibens unterrichtet,
bewog feinen Monarchen, die Annahme des Breve zu ver-
weigern. Es wurde ais ein Eingriff in die Prarogative der
Krone angeíehen, dafs man Leute, welche Unterthanen zur
Empõrung verleitet und fich in hochverrãtherilche Complotte
eingelaíTen, dem Arme der Gerechtigkeit entziehen wolle.
Diefer Kriegserklarung gegen Rom liefs der Minifter einen
Gewaltakt folgen, welcher die ganzeWelt in Erftaunen fetzte
und bald auch in andern Lândern Nachahmung fand. Ermu-
thigt durch die ungunftige Stimmung, die gleichzeitig in den
BourbonTchen Staaten gegen die Jeluiten zu Tage trat, gab
Pombal (i 3 Sept. lySg) den Befehl, dafs alie Religiofen der
Gelellfchaft Jefu aus ihren Ordenshãufern und Klõftern abge-
holt und zu Schiff nach dem Kirchenftaate gefúhrt wtirden.
Diefer Befehl wurde mit grofser Hãrte vollftreckt. Zwei ragu-
fanifche Schiffe, die kaum den nõthigen Raum hatten, fúhrten
etliche hundert, meiftens bejahrte und an ein gemachliches
Leben gewõhnte geiftliche Manner nach Civita Vecchia, wo fie
iiber zwei Monate in kalter Jahreszeit in den Cajúten aushar-
ren mufsten, bis Vorkehrungen zu ihrer Aufnahme getrotten
waren. Nur diejenigen Jefuitenvater, welche ais Mitfchuldige
oder Mitwiífer der Verfchwõrung bereits in Haft gebracht wa-
ren, blicben im Fort S. Julião an der Miindung dcsTajo einge-
fchloífen, wo das Volk fie in ihrer Ordenstracht vom Geftade
aus fehen konnte. Zugleich wairde von Amtswegen cine Reihe
von Schriftftucken gedruckt und bei allen Gerichts- und Re-
gierungsftellen niedergelegt, um in Zukunft ais authentifche
Documente der Schutd und der vcrderblichcn Grundfatze
eis
(is
85
und Handlungsweiíe der Jefuiten fo wie zur Rechtfertigung
der Líber fie verhangten Ausweifung zu dieiien.
Dies war die Einleitung zu einem ganzlichen Bruch mit
Rom. So fchwer es dem kirchlich und glaubig gefinnten
Kõnig fiel, mit dem heil. Vater in Unfrieden zu leben, der
Einflufs des gewaltigen Mannes, der den fchwachen unlclb-
ftandigen Furften mit Verfchwõrungsplanen und Nachftel-
lungen der Jefuiten angftigte, war mãchtiger ais die Furcht
vor dem Kirchenhavipte und feinen geiíllichen Waífen. Zehn
volle Jahre dauerte das feindfelige Verhaltnifs zwifchen LiíTa-
bon und Rom; neue Krankungen und Zwiftigkeitcn fcharften
den Streit; gehaífige Flugfchriften und Druckwerke, von
beiden Seiten in die Oeftentlichkeit geworfen, fuhrten der
Flamme fortwahrend neuen Brennftoff zu. Im folgenden Jahr
(6 Juni 1760) wurde bei Gelegenheit der Vermahlung des
Infanten Pedro mit des Kõnigs Tochter, der Thronerbin, ein
grofses Nationalfeít veranftaltet. Da blieb allein der Palaít
des Nuntius Acciajuoli unbeleuchtet, weil man unterlaíTen
hatte, ihn offizicll von dem Feft in Kenntnifs zu fetzen.
Einige Tage nachher wurde der Cardinal genõthigt, LiíTabon
und das ganze Kõnigreich in grõflíer Eile zu verlaífen. Dies
hatte die Ausweifung des portugiefifchen Gefandten Almada
aus Rom zur Folge. Er begab fich nach Florenz, w^o er Flug-
fchriften in kirchenfeindlichem Sinne verhreitete, die dann in
derTiberftadt vcrdammt und verbrannt wurden. Nun íolgten
neue Zwangsmafsregeln: alie Portugiefen wurden aus dem
Kirchenftaat, alie papftlichen Unterthanen, Geiftliche wie
Laien, aus Portugal ausgewiefen. Die Regierung in Lilfabon
unterfagte jede Ausfúhrung -von Geld und Gut nach Rom
ohnc kõnigliche Erlaubnifs und jede Einholung oder An-
nahme von Bullen oder Brcven. Die gehaífigen Schriften,
Libelle, verleumderifchen Flugblatter, die in allen Landern
gegen Pombal und den Kõnig ausgeftreut wurden, hatten
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zur Folge, dafs der Minifter auf der eingefchlagenen Bahn
immer energifcher vorging. Er wollte die Gefellfchaft Jefu
fúr alie Zeiten in Portugal vernichten. Zu dem Zweck wurde
im Febr. 1 7 6 1 verfúgt, dafs alies Vermõgen, welches der
Orden an Gutern, Haulern, Geldrenten, Waaren in Portugal
befitze, dem Fifcus verfallen fei und alie Lândereien, die
einft von der Krone verliehen worden, an diefelbe zurúcker-
ílattet werden foUten. Und bald erregte ein neues Schaufpiel
die Aufmerkfamkeit von ganz Europa. Der wegen Theil-
nahme an dem Complot verhaftete Pater Malagrida, der ais
Beichtvater der Familie Távora und vieler adeligen Haufer
grofses Anfehen in den ariftokratilchen Kreifen genofs und
ais Prophet und Heiliger verehrt ward, der aber íeit dem
Erdbeben gegen das herrfchende Regiment eine feindíelige
Sprache gefiihrt, viel von gõttlichen Otfenbarungen, Vilionen
und Weiflagungen geredet hatte, wurde auf Pombais Befehl
vor das Inquifitionstribunal geftellt, und ais ihn diefes wegen
Gotteslaíterung, falfcher Prophezeiungen und Irrlehren ais
Ketzer und Feind des katholifchen Glaubens verurtheilt und
dem weltlichen Gerichte uberantwortet hatte, im Angefichte
einer grofsen Menfchenmenge von dem Henker zuerít er-
droíTelt, dann verbrannt (20 Sept. 1761). Der Verurtheilte,
ein achtzigjâhriger Greis, bei dem Phantafie und religiõfe
Schwãrmerei weit iiber feine Vernunft und Einficht gingen
und auf deíTen Geift die aufregenden EreigniíTe und die lange
Gefangenfchaft verwirrend eingewirkt zu haben fcheinen,
hielt die Wahrheit feiner Prophezeiungen bis zum letzten
Augenblick aufrecht. Die Jefuitenfreunde fahen in ihm cinen
wimderthatigen Mãrtyrer, der dem HaíTe Pombais zum Opfer
gefallen, Andere betrachteten ihn ais einen Fanatiker, dem
Verftand und richtiges Urtheil verloren gegangen. Dafs die
Regierung die Inquifition, deren Jurisdiction und Machtbefug-
nifse Pombal felbít im Anfang feiner Verwaltung befchriinkt
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4SÍ9
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hatte, nun zu ihren ordensfeindlichen Zwecken gchrauchte,
den Pater ais Ketzer den Flammen uberlieferte ftatt ihn we-
gen Hochverraths durch das Gcricht verurtheilen zu laíTen,
machte natiirlich in Rom und m der ganzen katholifchen
Welt bofes Blut und erweiterte die Kluft zwifchen den beiden
Machten. Der Kõnig befetzte den erzbifchõflichen Stuhl von
Bahia ohne die Beftatigung der Curie einzuholen, und ais
der Bifchof von Coimbra in einem Hirtenbrief fich in feind-
feligen Aeufferungen gegen die Gottlofigkeit und unkirchliche
Richtung der Regierung erging und neues Unheil íur die
Nation daraus prophezeite, wurde er feines Amtes entfetzt
und ins Gefangnifs gebracht, der Hirtenbrief õffentlich ver-
brannt, das Bisthum unter andere Verwaltung geftellt und
das kõnigliche Cenforamt oder «Tribunal des GewiíTens» zu
ftrenger Ueberwachung aller klerikalen Schriftftucke ange-
halten. Wie in den Bltithetagen der Inquifition fullten fich die
Gefangniíle mit Schuldigen, Unzufriedenen, Verdachtigen.
Auf der Buhne fah man den ins Portugiefifche uberfetzten
«Tartufte» im Jefuitenornat erfcheinen.
Mit richtigem Urtheil erkannte der Minifter, dais nur
durch Hebung und Verbreitung der Volksbildung die Nation
von der Macht der Hierarchie und von den Banden des
Aberglaubens und der priefterlichen Einwirkung befreit wer-
den kõnnte. Darum war er unermiidlich beftrebt, durch Auf-
klíirungsfchriften, durch Errichtung von Volksfchulen und
Unterrichtsanftalten aller Art, durch Herbeiziehung fremder
Lehrer und Buchdrucker der geiftlichen Herrfchaft auf immcr
zu fteuern, im Gegenfatz zu den unfruchtbaren Mõnchs-
fchulen praktilche Anílalten fiir das Leben und fiir nationale
Bildung zu grundcn. Wir werden fpater die Reformthiitig-
keit des Miniífers auf allen Gebieten des Staats und der
Volkserziehung kennen lerncn, durch welche ein neues Por-
tugal gefchafTen werden folltc, wúrdig den tibrigen Cultur-
1 F
4e|8
ftaaten an die Seite zu treten. Zunachll: benutzte Pombal
die Zeit der Mifshelligkeiten mit Rom zur Befchrankung der
klerikalen und kirchlichen MachtbefugniíTe. Ais ein Cano-
nicLis gegen das Urtheil einer Staatsbehõrde in einer Pen-
fionsfache Einfpruch erhob und mit der Excommunication
drohte, wurde diefe Anmafsung durch ein kõnigliches Decret
vom IO Marz 1764 zuruckgewielen und dabei in fcharfen
Worten betont, dafs die Krone die Macht und Pflicht, die
Unterthanen zu fchirmen unmittelbar von Gott habe, und
dafs es eine Mifsachtung der íbuveranen Fúrftengewalt fei,
die in zeitlichen Dingen keinen Hõheren anerkenne, wenn
die Kirche, ftatt das Erbe und den Weinberg des Herrn zu
vertheidigen die kõnigliche Autoritat angreife. Darauf wurde
verfQgt, dafs keine Excommunication uber Behõrden oder
Beamten ohne die unmittelbare Cognition des Kõnigs ver-
hangt werden dúrfe. Um der Vermehrung des Kirchenver-
mõgens und den erbfchleicherifchen Kunften des Klerus
Schranken zu fetzen, erging die Verordnung, dafs alie Or-
densleute, weibliche wie mannliche, bei ihrem Eintritt in
eine geiftliche Kõrperfchaft von jedem vaterlichen und
miitterlichen Erbtheil ausgefchloíTen feien. Schenkungen,
fromme Legate und Vermachtniffe fur SeelenmeíTen wurden
befchrânkt und durften einen beftimmten Vermõgenstheil
nicht úberfteigen. Eine grofse Zahl von Mõnchs- und Non-
nenklõftern vmrde aufgehoben und die Aufnahme von No-
vizen vor ihrem fúnfundzwanzigften Lebensjahr und ohne
ausdriíckliche Erlaubnifs des Kõnigs verboten. Alie ohne
kõnigliches Placet bekannt gemachten pãpftlichen BuUen
und Breven, insbefondere die von den Jefuiten heimlich
eingefuhrte Bulle «in Coena Domini» gegen Irrlehrer, Ketzer
und Schismatiker (1768) wurden fiir ungiiltig erklart, die
Unterfcheidung zwifchen «Neuen Chriften» und «Alten
Chrillen» aufgehoben und dadurch die Rcchtsungleichheit,
-i-«í>- -á^
4 si»
-<y^
_89_
die hisher die crftercn von den uílcntlichen Aemtern aus-
gefchloíTen hatte, heleitigt. Feiertage und ProzeíTionen wur-
den vcrmindert. Durch diefe Gcfetze und Vcrordnungen
^vu^den auch die Befugniíle und der Gefchaftskreis des
Inquifitiontribunals eingefchrankt, wenn gleich das Amt
felbft noch fortheftand, und mehr im Dienfte der Regierung
ais der kirchlichen Rechtglauhigkeit angewendet ward. Doch
kamen keine Autos de fé mehr vor, man hegntigte fich mit
Gefangenhaltung. Die Todesftrafe wurde iiberhaupt unter
Pombais Regierung felten verhangt, dagegen war es nichts
Ungewõhnliches zu gleicher Zeit zwanzig oder dreilTig, die
in eine Veríchwõrung oder in aufruhrerilche Bewegungen
^'er^vickeIt waren, ins Gefangnils gefiihrt zu lehen. Aber
um Uebelftande und Gewohnheiten, die durch hunderjahrige
Tradition und Uebung zur\'olksnatur geworden, zu vertilgen,
reichen die Krafte eines einzigen Mannes, und wiWc er noch
fo kiihn und gewaltig im Aufraumen, nicht hin. Zum Nieder-
rciíTen war Pombal der rechte Mann, zum Aufbauen hatte
CS einer ruhigeren, befonneneren Perfõnlichkeit und einer
langeren Dauer der herrfchenden Zeitrichtung bedurft.
Die Jelliiten glaubten die feindfelige Stimmung, welche
in Portugal und in den BourbonTchen Landern gegen den
Orden fich lo fcharf kund gab, durch die Autoritat des von
ihnen beherrlchten Papftes Clemens XIII niederhaltcn zu
kõnnen. Sie envirkten daher durch ihren Einflufs imVatican,
dafs insgeheim eine Bulle entworfen ward, worin nicht nur
die Gefellfchaft Jefu aufs Ncue bellatigt, fondern auch die
in den letzten Jahren ausgeftreuten gehafligen Angaben und
Berichte ais bõswillige Verleumdungen erklart wurden. Diefe
Bulle vom 7 Jan. 1765, bekannt unter dem Namen « Apoftoli-
cum pafcendi múnus», ward durch die Nuntien allen Bifchõ-
ten der Chrillenheit zugeftellt. Sie folhe den AngriíTen gegen
den Orden ein Ziel fctzcn, hatte aber den entgegengefetzten
CM
4 si»
.-<0>-|.
90
Erfolg, fie forderte die Feinde zu Gegenmafsregcln heraus:
in Neapel und Venedig wurde die Bekanntmachung und Ver-
breitung verboten, in Frankrcich úbcrgab man das Schrift-
ítuck an manchen Orten den Flammen, in Portugal, wohin es
auf Schleichwegen gelangte, wurde auf Antrag des Kronan-
walts in einer durch Beiziehung der angelehenllen Theologen
und Juriften verftarkten Staatsrathsíitzung die Erklarung
abgegeben, die BuUe, ^velchc die Jefuiten durch unwLirdige
Kunftgriífe erlchlichen hiitten, verletze die Rechte der Krone,
gefilhrde die Ruhe des Reichs und ftõre den Frieden der
Kirche. Ein eigenes Gefetz belegte daher das Befitzen, Dru-
cken und Verbreiten derfelben mit Ichweren Strafen (6 Mai
1765). So lõfte fich mehr und mehr das Band auf, das Rom
bisher mit den katholifchen Staaten fo innig verbunden hatte.
Schon wurden zwilchen Liflabon und Paris Scliriftftúcke ge-
wechfelt, wie man bei dem piípftlichen Stuhle die Aufhebung
des Jefuitenordens am nachdrucklichften betreiben kõnne.
Auch das Madrider Cabinet fuchte man zur iMitwirkung zu
gewinnen. Wenn die drei Kronen, meinte Pombal, mit ein-
miithigen Forderungen fich an die Curie wendeten, lo kõnnte
lie weder die Authebung der GelelUchaft Jelli noch die Ab-
ílellung anftõffiger Mifsbrauche in Religionslachen verwei-
gern. Ein neues kõnigliches Manifeft erklarte (28 Aug. 1767),
dafs jeder Jeluit, der in Portugal betroffen werde, ais Hoch-
verrather und Majeftatsverbrecher beftraft werden wiirde.
«Die Ordensglieder und ihre Freunde und BelchiUzer íeien
die unverbelTerlichen und gemeinlamen Feinde allcr welt-
lichen Macht, der hõchften gefetzmãíTigen und von Gott
eingeletzten Obrigkeit, der Ruhe und des Lebens der chriU:-
lichen Fúríten und des õífentlichen Friedens der Staaten».
Alie Portugiefen foUten fich durch einen vor den Magiíb-aten
abzulegenden Eid feierlich vejpflichten, mit der Gerellfchaft
Jefu in keinerlei Verbindung zu ftehen oder ihre Lehren zu
^i-A- »A-|.
.hO^
9'
thcilen. Ais Antwort auf die Bulle richtete Kõnig Joleph ein
Schreiben an Clemens XIII (6 Decebr. 1767), worin er unter
\'erricherung leiner Ehrfurcht fur dcn heil. Vater felbft fcin
Bedauern auslpricht, dafs derfelbe cinen Ordcn in Schutz
nehme, der fich die Ermordung der Furften, die Aufwiege-
lung der Unterthanen, die Stõrung des õffentlichen Friedens
durch Scbriften undThaten zum Ziele leines Strebens celetzt.
Die \'organge in Portugal wirkten auf Spanien und
Frankreich zuruck. Dem Nuntius in Madrid \vurde bereits
die Andeutung gemacht, wenn Clemens XI 11 fich noch
langer weigere die Sãculariíation der Gefellfchaft Jelli vor-
zunehmen d. h. die Mitglieder von ihren Gelúbden loszu-
Iprechen und in den Weltpriefteríiand eintreten zu laíTen,
lo kõnnte es leicht gelchehen, daís dem paprtlichen Stuhle
einige leiner Befitzungen entriffen ^vúrden. Die Kirche felbft
und die Autoritat ihres Oberhauptes litten unter den Schla-
gen gegen die Jelliiten. In Portugal íing man an fich an
den Gedanken einer Trennung von Rom zu gewõhnen. Die
Erzbifchõfe ertheilten kirchliche Difpenfationen tiuf eigene
Hand; erledigte Pfrunden wurden durch die Regierung
befetzt; die Frage iiber den Primat des rõmifchen Bifchofs
wurde gefchichtlich erforfcht und die Selbftandigkeit des
Landcsepifcopats nachgewiefen; die portugiefifche Geiftlich-
keit machte fich mit dem Gedanken vertraut, dafs Kirche
und Staat einen unaufloslichen Bund mit einander fchlieífen,
Krone und Epifcopat wie in England zu einem einheitlichcn
Organifmus zufammenwachfen mõchten. Wie fehr immer
der in lei nem Gewilfen geangftigte Kõnig eine Ausfõhnung
wtinfchte und anftrebte, der Papft felbft machte fie unmõg-
lich durch das eigenfinnige Bcharren auf der Riickberufung
der ausgewiefenen Jefuiten. Wie hiltte Pombal auf eine folche
Bedingung fich einlaften kõnneni' So dauerte das feindfeligc
Verhiiltnifs fort und erweiterte fich zu einem Kampf aller
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romanifchen Võlker gegen das Pontificat. Das ftrenge Ver-
fahren des heftigen Papftes Clemens XIII gegen den Herzog
von Parma gab den Anstofs zu einem Streite, der von den
katholifchen Hõfen ais cine allen Souveranen gemeinfchaft-
liche Angelegenheit betrachtct wurde. Pombal war der An-
ficht, man mulTe durch vereintes Vorgehen den Papll: aus
den Banden befreien, in welchen ihn die Jeluiten gefangen
hielten, feine ganze Umgebung beftehe aus Gliedern diefes
Ordens, fo dais der wenig crleuchtete und fchwache Greis
im Vatican die Dinge der Welt nur nach ihrer einfeitigen
und egoiftilchen Darftellung erfiihre. Der portugiefifche Mi-
nifter erblickte in der Auflõfung der Gelelllchaft das einzige
Mittel, fie fiir immer von dem Kõnigreiche auszufchlieíTen.
Ohne dieíe entfcheidende Maísregel war zu furchten, dafs
der Infant Dom Pedro, der ganz andere Anfichten hegte und
die anticlerikale Richtung des Grafen verablcheute, nach
dem Tode Jofephs die Rúckberufung der geiftlichen BrLider-
fchaft anordnen wiirde. Aber Choifeul war der Meinung,
man folie warten, bis die Tiara auf ein anderes Haupt kame
und dann bei dem Nachfolger die Sache mit mehr Energie
betreiben. Grõfseren Eifer entwickelte Karl III von Spanien,
der fich befonders verletzt fiihlte durch das feindfelige Auf-
treten der Curie gegen feinen NeíTen, den Herzog \'on Parma.
Er bewirkte durch feinen Minifter Aranda, dafs Frankreich
das pâpftliche Gebiet an der Rhone befetzte, dafs Neapel
Befitz von Benevent und Pontecorvo nahm und dafs die
Gefandten der Bourbon'fchen Hõfe im Vatican Denkfchriften
einreichten (Juni 1768), in welchen unter andern Forderungen
auch die Auflõfung der Gefellfchatt Jefu dringend verlangt
ward. Diefer entfcheidende Schritt war ein Herzílofs fiir den
kranken Papft, der Nagel zu feinem Sarg. Noch ehe das zur
Berathune iiber die fchwierige Laae einberufene Confiltorium
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zufammentreten konnte, ftarb Clemens XIII (2 Febr. 1769).
93
Schmerzerfullt und kummervoll fuhr er in die Grube hinab.
Sein elfjahriges Pontificat war eine ununterbrochene Kette
von herben Mifsgcfchicken, Unfallen und Demiithigungen.
Das Gebíiude der Hierarchie war innerlich erfchuttert, aus
feinen Fugen geriíTcn, allen Stúrmen der Zeit preisgegeben.
Auf die Kunde von dem Ableben des Papftes Clcmens
XIII kehrte der portugiefifche Gefandte Almada von Florenz
nach Rom zuriíck und verband fich mit den Botfchaftern
der drei Bourbonfchen Hõfe von Frankreich, Spanien und
Neapcl, um bei dem neuen kirchlichen Oberhaupte die von
dem Vorganger lo beharrlich verweigerte Auflõlling des Je-
fuitenordens zu betreiben und damit den Weg zur Wieder-
herfteilung des Verkehrs zwifchen der Krone Portugal und
dem heil. Stuhle anzubahnen. Seine Bemiihungen waren
von dem glanzendften Erfolg gekrõnt. Cardinal Ganganelli,
der mit feinem Vorganger nur den Namen nicht aber die
Gefinnung und die Politik gemein hatte, gab den Abgefan-
dten unter der Hand zu verftehen, dafs er, fobald die Um-
ftande es geftatteten, dem Verlangen der Hõfe nachkommen
wiirde. Zugleich gab er dem Kõnig und dem Minirter von
Portugal folche Beweife von friedfertiger und verfõhnlicher
Gefinnung, dafs bald eine vollftandige Ausgleichung der
Streitigkeiten erwartet werden durfte. Im Juni 1 770 hielt
der neue Nuntius, Innocenz Conti, ciner altrõmifchen Gra-
fenfamilie entílammt, feinen Einzug in Lilfabon, vom Hofe
und von dem ganzen Lande feierlich empfangen. Bei dem
allfeitigen Wunfche einer aufrichtigen Verfõhnung fand man
fchnell Mittel und Wege die kirchenfeindlichen Edikte wir-
kungslos zu machen, ohne die kõnigliche Autoritat zu fchwa-
chen, fo dafs fchon im Auguft der papftliche Botfchafter
nach Rom berichtcn konnte: «Jegliche Angelegenheit geht
gegenwartig hier in der beften Ordnung und Ruhe vor fich.
Die ganze Vergangenheit ill vergeíTen und Alies wieder ins
-§-6- -ò-^
ti) tia
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alie Geleife gebracht. Die Nuntiatur iibt ihre Rechte aus
ohne die geringfte Beeintrachtigung; die ganze Bevõlkerung
jubelt, indem fie den Verkehr mit Rom auf rechtskrâftige
Weife wieder erõffnet fieht » . Auch im Vatican empfand man
grofse Freude, dafs die Scheidewand endlich gefallen war.
Der Papft feierte das glíickliche Ereignifs mit einem Tedeum
und die Bevõlkerung der Tiberftadt durch eine Beleuchtung
ihrer Haufer. Der Erzbifchof von Coimbra, der feinerWúrde
nicht entfagen wollte, wiirde « wegen vorgerúckten Alters und
anderer Grande » feines Amtes enthoben, die erledigten Bis-
thumer mit wiirdigen Pralaten beletzt, alie Folgen des zehn-
jahrigen Schisma auf entgegenkommcnde Weife ausgeglichen.
Der Minifter hatte alie Urfache mit dem Gange der
Dinge zufrieden zu fein. Er brauchte nicht mehr zu furch-
ten, dafs die Jefuiten wiederkehren und feine Reformen
durchkreuzen oder riickgãngig machen wiirden. Der Kõnig
bewies ihm feinen Dank und feine Anerkennung durch die
Verleihung des Ranges cines Marquis von Pombal. Um fo
unzufriedener w^aren die Jefuiten felbll und ihre ultramon-
tangefmnten Parteigenoílen und fie unterlieífen nichts, um
durch Verdachtigúngen, Verleumdungen, unheilverktindende
Prophezeiungen den neugefchloíTenen Bund zwifchen Rom
und Liífabon wieder zu zerftõren. Aber ihre Tage waren
gezâhlt. Pombal erlebte noch das Aufhebungsbreve, in
welchem Clemens XIV., nachdem er fich durch langere
Zurúckgezogenheit und Sammlung fúr den wichtigen Schritt
vorbereitet, die Gefellfchaft Jefu fúr aufgelõft: erklarte und
zugleich in Rom felblt alie ihre CoUegien und Ordenshaufer
fchliefsen liefs (Auguft lõyS). In Liífabon ^vurde das Ereig-
nifs mit Dankgottesdienft, Illumination und Freudenfeuer
begrúfst. «Der Marquez von Pombal», fchrieb damals der
englifche Gefandte in Portugal nach London, «ift befonders
vergnijgt úber die Vernichtung einer Kõrperfchaft, mit wcl-
4$u
cher er fo viele Jahre in Streit gelegen. Man muls ihm das
Verdienft zugeftehen, dafs er der erfte in diefem Jahrhundert
war, der es wagte, eine Gelelllchaft offen anzugreifen, die
an manchen Hõfen und zumal an dem portugiefifchen fo
grofsen Einflufs befafz » .
III
POMBALS REFORMTHAETIGKEIT UND AUSGANG
Wie lehr immer die kirchlichen Angelegenheitcn die
Arbeitslíraft des Minifters in Anfpruch nalimen, dennoch
fand der energifche Mann noch Zeit, auch den úbrigen
Seiten des õífentliclien Lebens eine grofsartige Rcform-
tliatigkeit zuzuwenden. Man blickt mit Erftaunen auf die
Schõpfungen, die fein fruchtbarer Geist ins Leben rief,
wenn dabei auch nicht geleugnet werden foll, dafs er bei
der Einfugung feiner gefetzgeberifchen Ideen in das Gewebe
der Wirklichkeit oft mit defpotifcher und gewaltthatiger
Hand in die beftehenden Zuftande, Rechte und Ueberlie-
ferungen eingriíí. Ohne Finanzen, ohne Credit, ohne Handel,
ohne Induftrie, ohne Landheer und Seemacht, fo urtheilt
ein ZeitgenoíTe, kampfend gegen feindfeHge Elemente, wel-
che alie weife berechneten Mafsregeln zur Herftellung der
zerrLitteten Staatsmafchine lahmten, gelang es dem grofsen
Manne Finanzmittel zu fchaflen, der Regierung wieder
Vertrauen zu ervverben, Handel und Schiífahrt anfehnlich
zu erweitern, den Fifchereien in Algarve neues Lebcn zu
geben, eine grofse Anzahl Fabriken und Manufacturen zu
errichten, die Literatur und die Wiífenfchaft aufzumuntern
durch die Neugeftaltung der Univerfitat Coimbra und
Errichtung verfchiedener Anftalten fiir den õífentlichen
Unterricht, das Landheer zu ordnen, neue Feftungcn auf-
zufiihren, die alten herzuítellen, eine Achtung gebietende
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Flotte zu Ichaífen, dem Kõnigreiche das Ansehen, worin es
ehedem im Auslande gestanden, zuriickzugeben und aus den
Triiirimern von LiíTabon eine prachtigere, grõfsere und volk-
reichere Stadt, ais die alte gewelen, erftehen zu laíTen. Mag
Pombal bei diefer vielgeíchaftigen Thatigkeit auch manche
Mifsgrifte gethan, auch manches Angefangene unvollendet
gelafíen, Manches verfucht und unternommen haben, was lich
in der Folge nicht bewahrte, fo war es doch lediglich feiner
Arbeit, feiner Einficht und Energie, leinem Scharfblick
und weiten Gefichtskreife zu verdanken, wenn Portugal aus
der Abhangigkeit vom Ausiand, aus den Ketten einer hie-
rarchiích-ariílokratifchen Zwingherrfchaft erlõít ward und
in die Reihe der úbrigen CuUurftaaten eintrat.
Dais Pombal der Haufung der Giiter in unproduktiven
Handen Grenzen fetzte, indem er die Erwerbfucht der
Kirche belchrankte, die Ausdehnung der adeligen Befitzun-
gen auf Koften der Krone und des freien Bauernftandes
hemmte, dais er dem Weinbau ungeeignete und unergiebige
Bodenftrecken entzog, war ein grofser Schritt zur Hebung
und VerbeíTerung der Landwirthlchaft und zur Mehrung des
Getreidebaues. Doch lag ihm vorzugsweife die Fõrderung
der mercantilen und gewerblichen IntereíTen am Herzen.
Sowohl die Errichtung einer grofsen Compagnie zur Cultur
der Weinberge in der Umgegend von Oporto, die wie
erwahnt zu agitatorifchen Umtrieben benutzt ward, ais die
Befõrderung der Seidencultur, wozu man gegen 20,000
Maulbeerbaume aus Frankreich kommen lieis, hatte in
erlter Linie den Auflchwung des Handels und der Induftrie
zum Zweck. Auch Wollemanufaduren und andere Fabriken
und Gewcrbc wurden durch Staatsmittel gefõrdert und
fremde Arbeiter und Handwerker zur Einwanderung aufge-
muntert. Wie freute íich der Minifter, ais er in feinem Dorfe
Oeyras, das cr mit herrlichen Baumanlagen und Ziergàrten
si»
97
gefchmúckt, einfl: dem Kõnig eine Ausftellung inlandilcher
InduftrieerzeugniíTe vorfuhren konnte! Er grúndete eine
Handelsjunta, deren Statuten er felbft entwarf, und errich-
tete in LiíTabon eine Schule, worin zweihundert Zõglinge in
allen Zweigen des Handelswefens und der Schiffahrtskunde
unterrichtet wurden. Er felbft und andere Minifter und
Beamten wohnten der õffentlichen Prtifung bei, um der
neuen Schõpfung mehr Anfehen zu geben. « Manufaduren
und Handel», fprach er einft, «bereichern und civilifiren
eine Nation und machen den Staat machtig. Die Seele des
Handels aber liegt in der Freiheit des Volks » .
Die Krone fetzte Pombal feiner Reformthatigkeit auf
durch die Fúrforge und Pflege, die er der Volksbildung und
den Unterrichtsanftalten zuwendete. Von der niedern Ele-
mentarfchule bis zur Univerfitat machte fich der hohe Sinn
und der weite wiífenfchaftliche Gefichtskreis des Ministers
bemerkbar. Hunderte von Schulen aller Art wurden ge-
griíndet, in denen alie Unterrichtsgegenftande in einer pada-
gogifch organifirten Stufenfolge unentgeltlich gelehrt wur-
den; hunderte von Profeíforen und Lehrern auch aus dem
Auslande fanden Verwendung und Anftellungen ; fur die
adelige Jugend wurde in Liífabon «das kõnigliche Adelscol-
legium» gegrundet mit trefílichen Lehrern fiir alie Wiífens-
zwcige humaniftifcher und realiftifcher Art; die Univerfitat
Coimbra erfuhr eine gtinzliche Umgeftaltung, die einer
Neufchõpfung gleichkam. Durch Vermehrung der Lehr-
ílíihle, durch Anftellung wiífenfchaftlich- philofophifch gebil-
deter Profeíforen, durch Errichtung akademifcher Gebaude
fur Studienzwecke und Instrumente, durch eine Sternwarte
und durch einen auf freier humaner Grundiagc aufgebauten
Organifationsplan wollte Pombal ein Werk ins Leben rufen,
das die Jefuitenanrtalten ganzlich in Schatten ftellen follte.
Sein Helfer und Rathgeber bei der Einrichtung war ein
98
Prieíler vom Oratorium, Manoel do Cenáculo de Villas Boas,
fpãter Erzbifchof von Évora, ein Mann von vielfeitigem
WilTen, «ein Brunnen ohne Grund und Schlamm», dem
wieder António Pereira de Figueiredo, ein grundgelehrter
freifinniger Theolog zur Seite ftand. Auch bei den Mittel-
fchulen wurden vorzugsweife Prieíter vom Oratorium ver-
wendet. Neben den Sprachen des Alterthums follten auch
die portugiefifche Sprache und Literatur, neben dem rõmi-
fchen Rechte die heimifchen Gefetze und Institutionen zur
Geltung gebracht v\'erden; den philofophifchen und mathe-
matifchen WiíTenlchaften wurde befondere Aufmerkfamkeit
gewidmet. Die Reform der Univerfitat Coimbra war das
«Signal zur Wiedergeburt der Wiffenfchaften » in Portugal.
Neue Lehrbiicher und Lehrmethoden verdrangten die fcho-
laftifch- jefuitifche Unterrichtsweife und eine grofsartige
kõnigliche Druckerei nebíl: Schriftgiefserei folhe dazu dienen
die Wiffenfchaften zu beleben und durch die Druckerzeug-
niffe dem Gemeinw^efen niitzlich zu fcin.
Zugleich richtete Pombal fein Augenmerk auf Verbef-
ferung der Rechtspflege und des Gerichtsverfahrens und
fchuf nach reifen Berathungen mit Richtern und rechts-
kundigen Mânnern ein Gefetzbuch, das der grõfste portugie-
fifche Jurift «ein wahrhaft goldenes Gefetz» genannt hat,
ein aus alteren Ordonnanzen, Gewohnheiten und Rechts-
beftimmungen zufammengeftelltes und im Geifte der Zeit
und der modernen Wiffenfchaft redigirtes Landrecht, klar
und bíindig und mit ftrenger Schcidung der Juftiz und
Verwaltung. Eine neue wachfame Polizci unter einem thati-
gen Intendanten fiihrte in Portugal, insbefondere in den
fiidlichen Gauen einen Zuftand õffentlicher Sicherheit herbei,
wic er bisher noch nie beftanden. Diebe, Múffigganger,
Pasquillanten verfchwanden mehr und mchr.
Auch das Finanz -und Steuerwefen und der gefammte
eis
99
Staatshaushalt wurden mit Verftand und Umficht geordnet.
Die Errichtung von vier Rechnungskammern erleichterte die
Ueberficht und Controle úher Einnahmen und Ausgaben;
die Einfíihrung eines Schatzamtes ais Oberíteuerbehõrde
vereinfachte die Erhebung der õffentlichen Abgaben und
gewahrte grõfseren Schutz gegen Betrug, Unterfchleif und
Bedrlickung. Selbít úber die Hoflialtung und des Kõnigs
Hauswefen erflreckte fich die Aufmerkfamkeit des Minifters.
Und noch niemals war Brafilien eine fo ergiebige Quelle des
Reichthums fur die Portugiefen wie unter Pombais Ver-
waltung. Jahr aus Jahr ein trugen reichbeladene SchiíTe
Gold, Edelfteine und koftbare Waaren in den Hafen von
LilTabon. Zwei Handelsgefellfchaften vermittelten und befõr-
derten den Verkehr; Directoren leiteten die Verwaltung, die
Rechtspflege und das Unterrichtswefen in den einzelnen
Provinzen des grofsen Landes, Miffionen wurden in die
entlegenen Gegenden gefandt, um die Eingebornen zu
bekehren, zu unterrichten und zu cultiviren, an Fleifs und
geordnetes Leben zu gewõhnen.
Nicht blofs in den inneren Zuftíinden Portugals fchuf
die Verwaltung des Marquis von Pombal eine neue Aera; er
wufste auch nach Aufsen die Ehre und Wúrde des Kõnig-
reichs zu wahren und ihm die Achtung der grõfseren
Staaten zu verfchaíFen. Ais wahrend des fiebenjãhrigen
Krieges (Aug. lySg) ein englifches Gefchwadcr einige franzõ-
fifche Schiffe in die Bucht von Lagos verfolgte und fie ohne
Riickficht auf die Neutralitât des Landes wegnahm oder zer-
ftõrte, trat Pombal ais Riicher des verletzten Võlkerrechts
und der Ehre der portugiefifchen Flagge auf. Er konnte frei-
lich keine Kriegsflotte gegen die erfte Seemacht Europa's
unter Segel gehen laíTcn, nicht durch einen Gcgenakt der
englifchen Nation zu Gemuthe íuhrcn, wie ungrofsmúthig
es fei, gegen einen kleinen befreundeten Staat ihr Ueberge-
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wicht geltend zu machen; aber leine Noten an das cnglifche
Minifterium athmeten das Selbftgefíihl eines Mannes, der
nicht ruhig hinnehmen woUte, dais England das Land am
Tajo ais einen Vafallenftaat, ais ein von ihm abhangiges
Territorium behandle. Seit funfzig Jahren, fagte er, fei
Grofsbritannien durch vortheilhafte Handelsvertrage im Be-
fitze folcher Vorrechte und Befreiungen in Portugal, dais die
Kaufmannfchaft des Infelreichs jãhrlich einen Gewinn von
einer Million Pf. St. aus dem Lande ziehe, dafs der Bedarf
desVolks an Getreide, an Kleidungsftoífen, an Fabrikwaaren
aller Art zu zwei Drittheilen von England geliefert werde.
Diefe Handelsgefetze und Monopole kõnnten gekúndigt und
aufgelõít werden, Frankreich wurde mit Freuden dem portu-
giefifchen Volke unter die Arme greifen und feinen Bedúrf-
niíTen mit dem eigenen Ueberflufs an Naturprodukten und
KunfterzeugniíTen abhelfen. An der Themle verftand man
den Wink und die verfteckte Drohung, und der Minifter Pitt
war klug genug nachzugeben und die verlangte Genug-
thuung zu gewahren. Dadurch wurde das gute Einverneh-
men wieder hergeftellt und die Englãnder konnten nach
vsàe vor ihre reichen Goldladungen einbringen. Allein fie
blickten mit unheimlichen Gefiihlen und mit Aerger auf die
fchõpferilche Thatigkeit Pombais, die Portugal unabhangig
von dem Auslande zu machen fuchte. Die Klagen der bri-
tifchen Kaufleute wurden immer lauter und bitterer; die
Zeitungen und Flugfchriften nahmen einen gereiztenTon an;
in der Griindung der Handelsgefellíchaften, in den induftriel-
len Unternehmungen, in dem Bemuhen, die Portugiefen auf
ihre eigenen Fuíle zu ftellen, erblickten die Englãnder Ein-
griffe in ihre fo lange genoíTenen commerciellen Vorrechte,
eine Beeintrachtigung ihrer Monopole und Begunftigungen.
Diefe Stimmungen traten zeitweife zuríick, wenn die
poHtifche Lage Europa's der cnglifchcn Regierung das enge
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Bundnils mit Portugal N-ortheihaft machte. So im Anfang
der fechziger Jahre, ais Choilcul durch den «Familienpakt»
alie Zweige des Bourbonilchen Haufes zu einem ewigen
Bund vereinigte in der Ablicht, Englands maritimes Ueber-
ge^^•icht zu brechen. Portugal wurde eingeladen der Con-
vention beizutreten, der neutralen Stellung, welche bisher
der britiíchen Seeherrlchaft fo nachdriicklichen Vorlchub
geleiltet, zu entfagen. Ais das Cabinet von Liflabon der
Auíforderunc widerftand und dcm Freundfchaftsbund mit
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England trcu blieb, wurde in Paris und Madrid der Plan
gefafst, fich der portugiefifchen Seehafen zu bemachtigen
und durch Befetzung des Kõnigreichs ein reales Unterpfand
zu erwerben, das man leiner Zeit gegen Groísbritannien
verwerthen kõnne. In Spanien mochten auch die alten Ero-
berungsgedankeii wieder auftauchen. Man hatte in Madrid
nicht vergeíTen, dais Portugal nur durch einen re\-olu-
tionaren Handrtreich aus einer fpanifchen Provinz ein lelb-
llandiges Kõnigreich geworden war. In diefer drohenden
Zeitlage entfaltete Pombal wieder eine ahnliche Thatigkeit
und Energie, wie nach dem Erdbeben. Die Felkmgen
wurden in Stand gefetzt und mit reichlichem GelchiUz
verfehen, die Armeen verftarkt, Watfenvorrathe gefammelt.
Vom Fort Julião ftarrten 1 20 Kanonen auf den Tajo herab.
Ais das LiíTaboner Cabinet in einer hõflich aber feftgehal-
tenen diplomatifchen Note der Ipanilchen und franzõlifchen
Regicrung erkliirte, dais Portugal dem Angritfsbund der
verwandten Hõfe nicht beizutreten, Ibndern in leiner bis-
herigen Neutralitat und Freundfchaft zu beharren ent-
fchloíTen fei, erfolgte die Kriegserklarung und das Einrúcken
einer fpanifchen Occupationsarmce in Tras-os-Montes (Mai
1762). Pombal hatte das portugiellíche Heer bis zu einer
Stiirke von 60:000 Mann gebracht; allein cr konnte llch
bald úberzeugen, dais die der Waífen und des Kriegs ent-
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wõhnten Truppen der feindlichen Uebermacht nicht ge-
wachfen leien, dais das vaterlãndifche Gefúhl und der
Nationalhafs gegen Spanien, wovon die portugiefiíche Ju-
gend durchdrungen war, den Mangel an Uchung und Dis-
ciplin nicht zu erfetzen vermõchte, dafs auch die englifchen
Offiziere, die ihm die Londoner Regierung zur Verfúgung
llellte, und einige Regimenter Hiilfstruppen unter Lord Ti-
rawley, einem farkaítifchen Irlander, nicht geniigten. Er
richtete daher feinen Blick nach dem an militarifchen Kraf-
ten fo fruchtbaren deutfchen Reich und uhertrug mit
Zurtimmung Englands dem Grafen Wilhelm von Lippe-
Schaumburg, einem erfahrenen Kriegsmann, der in London
geboren, eine Zeitlang in der englifchen Carde gedient,
dann unter Ferdinand von Braunfchweig mehrere Feldzuge
im liebenjabrigen Krieg mitgemacht und in feinem Stamm-
lande militarilches Organifationstalent an den Tag gelegt
hatte, cien Oberbefehl úber das portugiefifche Heer und die
englifchen Hiilfstruppen. Prinz Karl von Mecklenburg-Stre-
litz erhielt das Commando tiber die Artillerie. Im Juli 1762
fammelte fich das franzõfifch-fpanifche Heer unter dem
Oberbefehl des Grafen von Aranda tibcr 42:000 Mann ftark
in der Umgegend von Ciudad Rodrigo und riickte in Beira
ein, um in das Herz des Landes vorzudringen. Das portu-
giefifch-englifche Heer, bei welchem unter dem reichsgraf-
lichen Oberbefehlshaber, der den Rang eines Feldmarfchalls
hatte, die englifchen Anftthrer Bourgoyne, Townsend, Len-
nox, Clarke das Meifte leifteten, war kaum halb fo ftark
ais der Feind, da ein grofser Theil der Truppen in den
Feftungen lag oder die Nordgrenze hiitete. Die Spanier
und Franzofen machten daher Anfangs rafche Fortfchritte.
Sie zwangen die Feftung Almeida zur Ucbergabe, brachten
das Gebirgsland im Often der Sierra Eftrella, zwifchen
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Mondego und Tajo in ihre Gewalt und fchlugen ihr Haupt-
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quartier bei Caftello-Branco auf. Bald anderte lich jedoch
die Lage. Der Reichsgraf und dic englilchen Oherften be-
letzten die fteilen Gebirgspaííc und hemmten das weitere
Vordringen dcs Feindes; die Bergbewohner, empõrt iiber
die graufame und vcrheercnde Kriegsweife der Spanier und
entflammt von Nationalhaís, Ichaarten fich in Banden zu-
fammen und organifirten gegen die Eindringlinge den kleinen
Krieg in Schluchten und Waldern; Townsend fuhrte mit
groísem Geíchick einen vielbewunderten Marlch úber die
Hõhen der Eftrella aus, wobei die Portugielen viel Ausdauer
bewiefen, indem fie in zerfetzten Kleidern und Schuhen die
felfigen Wege hinanícliritten, liaufig Spuren der blutenden
Fiifse zurúcklaíTend. Im Herbft, ais noch Regen und Kãlte
eintrat und Mann und Rofs vor Hunger und Ermattung zu-
lammenlanken, fah ficli Aranda genõtliigt, cinen Theil leiner
Truppen úber die Grenze zu ftihren und in Alcântara unter-
zubringen. Im nachften Monat (Okt. 1762) folgte er lelbft
mit dem Rerte des Heeres, die Kranken und Verwundeten
in den Lazarethen von Caftello-Branco zurúcklaíTend. Aber
auch die Portugiefen und Englander bedurften dringend der
Erholung; daher willigte der Reichsgraf-Marfchall ein, dafs
lie in verfchiedenen Grenzftadten Winterquarticre bezogen.
Neun Regimenter wurden nach Portalegre verlegt, um das
Eindringen der Feinde in Alemtejo zu verhindern. Der Ab-
fchlufs des Friedens von Fontainebleau zu Anfang des
nachften Jahres (Febr. 1763) machte auch dem Krieg in
Portugal ein Ende und ftellte die Zuftande her, wie fie vor
dem Feldzug gew'efen. Nach dem Frieden kehrten die
englifchen Húlfstruppen zuriick. Der reichsgrâfliche Ober-
feldherr aber blieb noch einige Zeit in Portugal und unter-
ftutzte den Minifter in feinen Bemiihungen, die einhei-
mifchen Truppen feldtCichtig zu machen, die Milizen zu
organifiren, die Feftungen in Vertheidigungsftand zu fetzen,
1 f
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mit Rath und That. Elvas wurde durch ein Fort verftarkt,
das noch jetzt den Nameii «Lippe» fiilirt. Ais cr cndlich
(Sept. 1764) das pyrenaifche Laiid, das ihm lelne ganze
militarifche Disciplin und Kriegszucht zu dankcn hatte, ver-
liefs um iiber England nach Dcutlchland zuruckzukehren,
fchlug er alie Geldbelohnungen aus und begntigte fich mit
dem Ruhme und dem Danke der Nation.
Diefer Verbefferung des Heerwefens und der gleichzei-
tigen Verftarkung der Marine hatte es Portugal zu verdanken,
dafs der Krieg, der zehn Jahre fpater zwifchen den beiden
Pyrenaifchen Staaten auszubrechen drohte fiir die Portu-
giefen einen gunftigen Verlauf hatte. Ein Grenzftreit in Súd-
amerika hatte zu Feindfeligkeiten zwifchen den beiden Go-
vernadoren von Bralilien und Buenos-Ayres gefuhrt, wobei
die fpanifchen Kriegsmannfchaften in zwei Gefechten den
Kíirzeren zogen. Diefer Streit der Colonien fchien fich nach
dem europaifchen Mutterlande hintiberfpielen zu wollen.
Schon befetzten abermals portugiefifche und fpanifche Trup-
pen die Grenzlandfchaften. Die englifche Regierung, die bei
ihrem bevorftehenden Kampfe mit Nordamerika nicht auch
noch in pyrenaifche Kriegsangelegenheiten verwickelt fein
mochte, fuchte den Streit zu vermitteln. Allein fie erreichte
nur fo viel, dafs in den portugiefifch-fpanifchen Grenzlanden
das bereits geztickte Schwert nicht wirklich zum Kampfe
gefchwungen ward. Defto hitziger entbrannte der Krieg im
Gebiete des Rio Grande. Kõnig Karl III hatte den friíher
gefchloíTenen Taufchvertrag verworfen, woUte aber doch
nicht gerne auf die Colónia dei Sacramento verzichten. Er
fchickte eine grofse fpanifche Flotte mit 12:000 Seefoldaten
unter Pedro de Cevallos nach Buenos-Ayres in einem Au-
genblick, da Kõnig Jofeph fchwer erkrankt war und feinc
Gemahlin, Karls Schwefter die Regentfchaft in LiíTabon
úbernahm, fniiit Pombais Einflufs auf die Regierungs-
4«u
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gefchafte unficher und fchwankend ward. Diefer Conftel-
lation hatte es der Kõnig von Spanien zu danken, dais der
Streit zu feinem Vortheil endete. In dem zwifchen der Kõni-
gin-Regentin und ihrem Bruder abgefchloíTenen Prãliminar-
frieden von San Ildefonfo (i Okt. 1777), dem dann einige
Monate nachher der AUianzvertrag zu Pardo folgte (i i Marz
1778), wurde die Grenze am La Plata und Uruguay feftge-
fetzt und die Colónia dei Sacramento den Spaniern úber-
laffen. Seitdem hõrte der Schleichhandel mit Buenos-Ayres
auf und ihr Wohlítand fank.
Ais der Friedensvertrag von Pardo zwifchen Spanien
und Portugal abgefchloíTen ward, war Kõnig Jofeph Ema-
nuel nicht mehr unter den Lebenden. Er hatte noch die
Frende dem grofsen dreitagigen Fefte beizuwohnen, das
der Minifter bei der feierlichen Enthullung der prachtvollen
Reiterítatue des Monarchen auf dem « Handelsplatze » in
Liífabon veranítaltete (6. Juni 1775), ein wahres Volksfeft mit
Umzugen Feuerwerk, Banketten und Beluftigungen aller Art.
Aber fein Gemúth war verdliftert; ein zweiter Anfall auf fein
Leben bei Gelegenheit eines Jagdrittes, Mifsftimmungen und
Intriguen in der kõniglichen Familie, Mifstrauen gegen feine
Umgebung hatten die Heiterkeit feiner Seele, apoplektifche
Anfalle die Gefundheit feines Kõrpers untergraben. Der
Staatsfecretar Seabra, der thatigfte Mitarbeiter Pombais in
allen civilifatorifchen Arbeiten, wurde plõtzlich in Ungnade
entlaflen und auf ein Landgut verwiefen, ohne dafs man
genau die Urfache erfuhr. Es ward behauptet, er habe feine
Stellung zu eigenniitzigen Zwecken mifsbraucht. Seine Ent-
fernung war das erfte Zeichen, dafs es den Ranken und
Kabalen der dem Minifter feindfeligen Hofpartei bald gelingen
werde, auch Pombais Machtftellung zu erfchuttern. Der
Kõnig felbft bewahrte jedoch dem grofsen Manne, der
fiinfundzwanzie Jahre lane das Staatsruder mit fo krãftiger
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und gefchickter Hand geleitet, íein Vertrauen bis zum letzten
Athemzuge. Er freute fich mit allen Freunden der neuen
Ordnung, dais der Mordplan eines Italieners, der den erften
Minifter bei dem erwahnten Nationalfefte mit einer Art
Hõllenmalchine aus der Welt fchaífen woUte, vor der Aus-
fíihrung entdeckt und vereitelt ward, und der Verbrecher,
der fein Vorhaben eingeftand, dem blutigen Strafgericht
úberliefert werden konnte (6 Okt. 1774). Bald nachher traten .
wiederholte Krankheitsanfalle ein, die den Kõnig nõthigten
fich von allen Staatsgefchaften zuriíckzuziehen und feine
Gemahlin Maria Anna zur Regentin zu ernennen. Drei
Monate nachher machte ein wiederholter Schlaganfall feinem
leidensvoUen Leben ein Ende (24 Febr. 1777). Seine altefte
Tochter Maria, die mit ihrem Oheim Dom Pedro vermahlt
war, erbte die Krone. Der papftliche Stuhl, der vor dem
Streite die Dispenfation zu der Verwandtenehe gegeben,
hatte auch nach dem Wunfche des fterbenden Monarchen
eingewilligt, dafs der Sprõfsling diefer Ehe, der fechzehn-
jãhrige Enkel des Kõnigs Jofeph, Prinz von Beira, mit feiner
einunddreifsigjâhrigen Muhme Donna Maria Francisca Bene-
dicta, Jolephs zweiter Tochter vermahlt ward, zwei dynafti-
Iche Heirathen, die fali: ais blutfchânderifch gelten konnten
und dem Herrfcherhaufe kein Gltick brachten.
Ehe noch des Kõnigs letzte Stunde gekommen war,
reichte Pombal, der wohl wufste, dafs, wenn der kõnigliche
Stíitzpfeiler gefunken ware, die zahlreichen Gegner des Allge-
waltigen mit leidenlchaftlichem Haffe wider ihn losbrechen
wiirden, der Regentin ein EntlaíTungsgeluch ein. Alter, An-
ílrengungen und Kõrperleiden hãtten feine Krafte erfchõpft.
Sie mõge andere Manner ihres Vertrauens ernennen, die er in
die Gefchâfte einfúhren wolle, und ihm geftatten, feine noch
kurze Lebensfrift auf feinen Giitern in der Zuriíckgezogen-
heit zuzubringen. Er fúgte dem Gefuch einen Rechenfchafts-
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107
bericht uber feine Verwaltung und den Zuftand der Finan-
zen bei, der an Sully's Beifpiel erinnerte und mit Recht
allgemeine Bewunderung erregte. Er wies nach, dafs aufser
dem Diamantenvorrath im Staatsfchatz und in der kõnigli-
chen KalTe achtundfiebenzig Millionen Cruzados vorrathig
feien, ein in der portugiefifchen Finanzgefchichte unerhõrter
Fali. Ehe die Regentin eine Entfcheidung getrofFen, ftarb
der Kõnig und Donna Maria beftieg den Thron (i Mãrz 1 777).
Da wiederholte der Minifter fein Gefuch und die neue
Kõnigin gewahrte ihm vier Tage nachher den erbetenen
Abfchied in der gnadigften Form. Und nun trat ein võlliger
Umfchwung in Syftem und Perfonen ein. Maria war fchwa-
chen Geiftes und zeigte fchon Spuren von Seelenítõrungen,
die in der Folge zur Unheilbarkeit fich fteigerten ; ihr Oheim-
Gemahl war fo fehr in kirchlicher Glaubigkeit befangen,
dais er jeden Morgen mehrere Male die MeíTe befuchte und
jeden Abend dem Gebetsgottesdienft andachtig beiwohnte.
Beide hatten daher nichts Eiligeres zu thun, ais die Gefan-
gniíTe zu õíTnen und die wegen Theilnahme an den Ver-
fchwõrungen oder wegen Widerfetzlichkeit gegen die Mafs-
regeln der Regierung in Haft befindlichen Geilllichen und
Edelleute in Freiheit zu fetzen. Der Bifchof von Coimbra
eilte aus dem Gefangnifs in den Palaft, wo ihn Dom Pedro
umarmte ; mehrere geiftliche Stellen kamen nach dem Vor-
íchlage des Nuntius an andere Kleriker; die wichtigíten
Staats- und Holamter wurden adeligen Herren úbertragen,
welche ais die entfchiedenften Gegner des Marquis bekannt
waren. Zuerít wurde ausgeítreut, Pombal habe feine Stel-
lung zu feiner eigenen Bereicherung benutzt: da wies er
aktcnmâfsig nach, dafs erwâhrend feiner ganzen Verwaltung
nurfein Miniliergehalt und geringe andere Emolumente bezo-
gen und niemals kõnigliche Donationen, Gratiíicationen oder
fnoftige Gnadenerweifungen, wie fie von den Souverancn an
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begúnítigte Perfonen verliehen wLirden, angenommen habe.
Defto eifriger war man bcftrebt, die von Pombal getroífenen
Reformen und Einrichtungen in Schatten zu ftellen oder
ruckgângig zu machen. Der Gerichtshof, der die Jurisdiction
des Nuntius in Schranken halten folhe, wurdc befeitigt; der
Papft erhielt eine halbe Million Gulden zur Entfchadigung fiir
die Unkoíten, welche dem rõmifchen Stuhle einít durch die
Ueberfiihrung der Jefuiten nach CivitaVecchia erwachfen wa-
ren; dem Patriarchat wurden alie Giiter und Einkiinfte, die
ihm der Marquis entzogen hatte, zuriickgegeben, und wahrend
man den Vorfteher der kõniglichen Druckerei aus dem Lande
jagte, wurden die aus dem Kalender geftrichenen Feiertage,
fo wie die Bruderfchaften, Prozeílionen u. a. D. hergeftellt.
Pombal hatte fich durch feine defpotifche Verwaltung zu
viele Feinde gemacht, ais dafs diefe nicht alie Hebel zu
feinem Verderben hatten einfetzen follen. Adelige, Geiftliche,
Jefuiten entftiegen aus den Gefângniífen wie aus Grabern
und vereinigten ihre Angritfe gegen den fruher fo gewaltigen
Mann. Es geníigte ihnen nicht, dafs durch eine Revifion der
Prozeífe lie fiir unfchuldig erklart und in ihrer Ehre, ihrem
Rang, ihrer gefellfchaftlichen Stellung hergeftellt, dafs die
gegen die Familie Távora gefallten Richterfpruche ais unge-
recht und nichtig caíTirt, dafs die Beftraften von jeder
Schuld und Makel freigefprochen wurden; Viele verlangten
Entfchadigung von ihrem Verfolger; Alie dúríteten nach
Rache. Aus dem Fufsgeftell des Reitermonuments wurde in
einer Nacht das bronzene Medaillonbildnifs des Minifters
herausgenommen und an feine Stelle das Stadtwappen
gefetzt. Pamphlete und polemifche Flugfchriften dritngten
einander; eine derfelben, das beruchtigte «Libell» aus der
Feder eines Adligen, ging fo weit in Verleumdung und
Verunglimpfung, dafs der Minifter eine fcharfe Widerlegung
der boshaften Schmahfchrift ausgehen liefs. Zugleich fam-
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melte er in feinem Palaíte zu Pombal, wohin er fich zuriick-
gezogen, die Materialien zu einer Rechtfertigungsfchrift tiber
leine \'envaltung, nicht um fich zu râchen, wie er felbft
fagte, Ibndern um die beleidigte Wahrheit oífenbar zu
machen. Die Kõnigin wurde unruhig; in ihrem Innern
entítand ein Kampf zwifchen ihrer Hinneigung zu den
kirchlichen und politilchen Traditionen und dem Gefúhle
der Pietat gegen ihren Vater, in deíTen Namcn und mit
deíien Zuftimmung und Unterfchrift doch alie Verfugungen
des Reformminifters erlaíTen waren. Sie glaubte den Sturm
dadurch belchwõren zu kõnnen, dafs fie beide Flugfchriften,
das «Libell» wie die «Vertheidigung» durch ein Dekret
unterdríickte. Ais aber die Stimmen der Widerlacher immer
lauter ertõnten, die Klagen und Befchuldigungen immer
mehr anwuchfen, wurden zwei kõnigliche CommiíTare mit
ausgedehnten Vollmachten nach Pombal abgeordnet, welche
den Marquis úber eine Menge Fragen gerichtlich ver-
nehmen Ibllten. Vor diefen mufste fich der achtzigjahrige
Greis fúnfzig Tage hindurch taglich fúnf bis acht Stunden
lang verantworten, bis man ihn krank und erfchõpft zu
Bette brachte. Auf Grund diefer fchriftlichen Aufzeichnun-
gen erklarte {i6 Aug. 1781) die Kõnigin nach Anhõrung
ihrer Rathe, dafs der Marquis fiir fchuldig und ftrafwúrdig
zu erachten fei, dafs fie aber aus Rúckficht auf fein Kõrper-
leidcn und feine Altersfchwache, «mehr der Milde ais der Ge-
rechtigkeit eingedenk», keine Beftrafung úber ihn vcrhangen
wolle. Doch folie es den Befchadigten unverwehrt fein, bei
den Gerichten Klagen auf Erfatz zu erheben. So fchwebte
das Damoklesfchwert noch ferner tiber Pombais Haupte.
Aber er folhe bald durch eine hõhere Macht von allen
weiteren Verfolgungen und Bedrãngniífen befreit werden.
Am 8 Mai 1782 verfchied er in den Armen feiner Gattin
im dreiundachtzigrtcn Lebensjahr. « Das Befte meines Kõnigs
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war ftets mein Zweck», waren íeine letzten Worte, «wo ich
gefehlt habe, gefchah es aus Mangel an Einficht, nie mit
Willen » . Unftreitig darf Pombal den grõlsten Staatsmannern
des Jahrhunderts beigezahlt werden: er war zum Herrfchen
geboren, klar im Erkennen, von hõheren politifchen Ideen
getragen, energifch und entfchloíTen bei der Ausfúhrung.
Nach feinem Tode gingen feine Schõpfungen allmahlich
unter; Priefter und Mõnche herrfchten wieder am Hofe und
in der Schule; ftatt der Anftalten fúr Kunít und WiíTen-
fchaft wurden Klõfter und fromme Stiftungen errichtet und
gepflegt; Aberglaube, Unreinlichkeit und UnwiíTenheit kehr-
ten wieder bei dem Volke ein, und die Nation fank zurúck
in den Zuftand der Abhangigkeit und Hulflofigkeit, aus dem
fie Pombais krâftige Hand zu reifsen gefucht. Aber noch in
den nachften Jahrzehnten waren die wohlthatigen Wirkun-
gen der Reformthatigkeit des grofsen Minifters fichtbar.
Reformator auf allen Gebieten des õffentlichen Lebens hatte
er viele neue Aníchauungen geweckt, viele neue Richtungen
angebahnt; diefe Spuren konnten nie wieder ganz verwifcht
werden, wie wenig auch die zu Ichwarmerifchen Religions-
iibungen geneigte, dem heiligen Stuhl und der Geiftlichkeit
ítreng ergebene Kõnigin und ihr befchrankter «fehr devoter»
Gemahl den Zeitgeift begriífen und wiirdigten, unter deíTen
EinflúíTen Pombal gehandelt. Triíblmn, Seelenangít und
Schwermuth wurden endlich lo machtig in der ungliickli-
chen, von Zweifeln und Beangftigungen gequalten Frau, dafs
zuletzt ihr Geift von der Nacht des Wahnfinns verdunkelt
ward, fo dafs, da ihr Erftgeborner Jofeph bereits im J. 1788
geftorben war, ihr zweiter Sohn Johannes bis zum Tode der
Mutter die Regentfchaft iibernahm.
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1
cia
MARQUEZ DE POMBAL
INTRODUCÇÃO
DEFINIÇÕES E ESCLARECIMENTOS
A HISTORIA
maior parte dos hiftoriadores e biographos,
que efcreveram, e os que efcrevem ainda hoje
acerca do Marquez de Pombal, quafi exclufi-
vamente fe occupam, pelo que refpeita á fua
vida publica, dos aftos do feu governo; e tra-
tam da fua acção e influencia adminiftrativa,
económica, moral e religiofa, pondo de lado
ou deixando no efcuro do quadro, ora grandiofo e brilhante,
ora mefquinho e fombrio, por elles traçado, a fua acção e in-
fluencia politica, as quaes, comquanto não foíTem coufa que
para logo fe vifle oftenfiva, e apparatofa fe moftraíTe, nem
por ilTo deixaram de fer poderofas e enérgicas, como depois
fe veiu a fentir e a conhecer claramente, comparando e rela-
cionando antecedentes e confequentes hiftoricos.
CM
cia
eis
Em qualquer dos dois pontos de vifta, publico e parti-
cular, a perfpediva hiftorica, iíto é, a realidade dos fados
moftra-fe-nos profundamente perturbada e o colorido moral,
ifto é, a juftiça, deploravelmente compromettida, pela par-
cialidade á miftura com a ignorância d'aquelles que, ou do-
minados pelo propofito de exaltar, ou arraítados pelo defejo
de deprimir, falfificam e deturpam os fados, por tal arte 'e
com tal empenho, que mais e melhor poffam fervir de mol-
de e matéria prima á fua critica fubjediva, imaginofa, theo-
logica, metaphyfica, e por iíTo inteiramente arredada dos ele-
mentos e proceffos pofitivos, os únicos que podem fervir ás
modernas conftrucções ícientificas da hiítoria, quer fe trate
de um homem, de um povo, de uma nação, quer da huma-
nidade inteira. As operações complicam-fe, fem duvida, em
qualquer dos cafos, mas os proceíTos e a critica, em uma pa-
lavra, o methodo e a doutrina, permanecem inalteravelmente
os mefmos.
Pelo que refpeita á fua vida particular, parece que fe
comprazem, encomiaítas e detradores, em fazer do Marquez
de Pombal o protogonifta de phantafiofos romances e inve-
rofimeis lendas, em que o dramático e o cómico fe mifturam
e combinam em variados e extravagantes melodramas. E to-
davia foi elle o homem mais pofitivo e pratico do feu tem-
po, não diremos fomente em Portugal, mas em toda a Eu-
ropa, e no qual uma intelligencia efclarecida e uma vontade
inabalável tiveram fempre a rara virtude e a energia inflexí-
vel para fubjugar a imaginação perante a realidade, e fujei-
tar ao bom fenfo e ao tino pratico aquelle fentimentalifmo,
que, a par do efpirito revolucionário, tão falientemente ca-
raderifava os philofophos e eftadiftas do xviii feculo.
Em todos os trabalhos hiftoricos é condição indifpenfa-
vel de boa critica não confundir o que lubjediva e peíToal-
mente pertence ao individuo com o que objedivamente per-
tence á coUedividade no meio focial, o que é arbitrariamente
litterario, com o que deve fer obrigatoriamente fcientifico.
A hiftoria, ainda ha poucos annos, vivia em relações in-
timas com a litteratura, e tinha, nos programmas officiaes,
por companheiras infeparaveis, a amante rhetorica de Quin-
tiliano e a lógica elementar de Genuenfe e de outros com-
pêndios, principalmente ad tifiim femiuarionim; infufílava-lhe
eí\a irmã querida o elpirito theologico-metaphyfico, e aquel-
la, pelo menos, contornava-lhe as formas, e veftia-a fegundo
os caprichos da moda philofophica de efcolas rivaes e va-
riegados fyftemas.
E aíTim, os mais notáveis hiftoriadores, aquelles mefmos
que tomaram para fi, ou receberam dos feus contemporâ-
neos, ou mereceram á pofteridade o titulo augufto de philo-
fophos, eíles mefmos animaram os feus trabalhos de um
principio vital que lhes aprouve efcolher, e, confoante a elle,
deram a forma que mais lhes agradou ás luas obras. Umas
vezes é o myjticifmo theologico e eíTa efpecie de fatalifmo
metaphyfico de J. B. Viço, procurando fubordinar ás com-
binações fubjectivas de feu penfamento e ás creações phan-
tafiofas da fua imaginação atrevida, a que elle dá o nome
de leis e de /ciência nova, a realidade dos fados, coordena-
dos em fynthefes mais ou menos arbitrarias.
Outras vezes é o naturalifmo poético e fentimental de
Herder e, até certo ponto, de Michelet e E. Pelletan, que-
rendo encadear por analogia a evolução hiftorica de certos
povos e da humanidade no movimento geral da natureza.
Tudo lhes ferve: o curfo dos aftros, a formação do globo,
o fluxo e refluxo das marés, as epochas ou cdades geológi-
cas da terra, a alternação das eftações, etc, fão, por com-
paração e analogia, outras tantas leis que dominam e regem
o dcfenvolvimento hilforico das nações. Traçando e colorin-
do, com o artiftico pincel da mais aprimorada litteratura,
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"4
quadros maravilhofos, pretendem fazer á hiftoria o que Ber-
nardin de Saint Pierre fez á natureza.
Uns, como BoíTuet e Chateaubriand, fão elevados pelo
myíticifmo catholico e pelo fentimentalilmo chriftão, tradu-
zidos em uma forma attrahente e fafcinadora, ás mais fubli-
madas e recônditas regiões da metaphyfica religiofa, nas
quaes o fatalifmo providencial impelle e dirige os preftabele-
cidos deífinos de cada povo e da humanidade em geral.
Outros, e d'eírcs é o maior numero, forcejando por des-
prender-fe do empyrifmo vulgar e groffeiro da «narração dos
fados», vão cair no ecclefliímo efteril e na erudição balofa
da «expofição ligada e difcurfiva dos acontecimentos verda-
deiros, para inítrucção da humanidade» .Taes fão Millot, Rol-
Hn, Cantu, Guizot, Thiers e muitos mais.
Eftes vicioibs proceííos, effes falfos critérios, eíTas inapro-
priadas formas de tratar aíTumptos hiftoricos ainda vigoram
entre nós, comquanto fe tenha confideravelmente melhorado
o noíTo eftado mental. Os trabalhos de Alexandre Hercula-
no, pofto que reprefentem um grande progreíTo, uma opu-
lenta conquifla, e, como trabalhos crhicos, revelem, em um
grau elevado, o efpirito metaphyfico de rebellião contra as
impofições theologicas e intervenções do Ibbre-natural na
evolução hiftorica portugueza, accufam ao mesmo tempo,
em aquelle infatigável explorador, a mais lamentável inópia
de bafes e elementos fcientificos, e denunciam a carência
quafi completa do verdadeiro critério pofitivo; e bem o pre-
fentiu, e por fim reconheceu, elle próprio, penitenciando-fe
d'eíra enorme falta no retiro e na Iblidão de Valle de Lobos.
E em verdade, fe pelo lado critico, Alexandre Herculano
fe nos aprefenta e avulta como revolucionário ingente, de-
molidor audaciofo, iconoclofta defapiedado de falfos idolos
e fuppoífas divindades, pelo lado fcientifico, nos apparece
como doutrinário, armado com eífe apparatofo eccledifmo
-• «njí-^
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incoherente, que lhe inocularam a leitura dos livros do feu
prcdiledo meítre Guizot, de Thiers, de Cantu, de SchaefFer e
de quantos, a torto e a direito, arrotearam o campo, e rafga-
ram o caminho, por onde o noíTo illuftre concidadão devia
fazer, na pátria, a Ília traveffia hiftorica, defde o milagre de
Ourique até á excommunhão e arrependimento de D. Af-
fonfo III, ou, melhor diríamos, defde a formação da noíTa
nacionalidade na Peninfula até ás mais pequeninas efpeciali-
dades do governo municipal e adminiftrativo, nos primeiros
feculos da fua exiítencia.
E foi em noíTa opinião a tardia confciencia d'eíre vicio
radical, d'eíra lefão congénita irremediável, e não o defgos-
to ou o defpeito, obfequiofas condefcendencias e affeduofas
contemplações, motivo que determinou o noíTo primeiro his-
toriador critico a engeitar o filho defeituofo e inviável das
fuás excavações archeologicas, e comquanto fempre vi6fo-
riofo, a depor as armas apoz tantos certames gloriofos tra-
vados contra os preconceitos tradicionaes do vulgo, e contra o
obfcurantifmo fyftematico dos reaccionários, que, vencidos
na luda, fe refugiaram, como é velho coftume, no redudo
habitual das injurias e das calumnias, que fobre elle arremes-
faram deforientados os loucos e raivofos defenfores do re-
troceíTo.
Outros efcrevem a hiftoria, como fazem romances ou com-
põem dramas; e julgam que, traduzindo ou imitando os li-
vros de Ferdinand Denis ou de M. Bouchot, confeguem na-
turalifar producções extrangeiras, nas quaes, fe abundam o
efpirito mercantil e o amor do lucro, efcaífeiam o efpirito
fcientifico, o amor e o zelo efcrupulofo da verdade e faha
a dedicação patriótica.
Também alguns, cm e^uem por certo não faltariam ca-
pacidade e bom cabedal fcientifico para emprehender origi-
nariamente magnificas e folidas conftrucções hifl:oricas, fe
th
(is
ii6
contentam em refundir e reftaurar, fegundo a moderna fcien-
cia, a convite de qualquer livreiro efpeculador, as velhas e
obfoletas producções de Cefar Cantu, á femelhança d'aquel-
les emigrados portuguezes, que havendo enriquecido no Bra-
zil, regreíTando á pátria, carregados de oiro, querem levantar
fobre o velho pardieiro ou fobre o arruinado cafarão, onde
nafceram e viveram os feus progenitores, elegante e fum-
ptuofo palacete, fegundo a moda e o bom gofto da epocha.
Por ultimo apparecem, e deflacam, por entre a multi-
dão, efpiritos muito efclarecidos, intelligencias repletas de
boa doutrina politiva, e por iíTo fcientilicamente bem orien-
tadas, logicamente preparadas pela nova difciplina, preten-
dendo alliar as modernas bafes fcientiíicas e os novos pro-
ceíTos de invefligação com a clareza, fimplicidade e minu-
dência, de que, em affumptos hiftoricos, ufaram os noíTos
antigos e mais conlcienciolbs chroniftas. Mas, quando, por
exemplo, julgámos ir encontrar um eftudo real e profundo,
da mefologia e da etimologia applicadas a Portugal, depará-
mos apenas com umas elementares noções de chorographia
e ethnographia portugueza.
No mais, defcripções e quadros traçados e coloridos
com raro brilhantifmo e notável energia, próprios, fem duvi-
da, para integrar em uma valiofa e deleitavel producção
romântica, e nos quaes as furprezas, o imprevifto de um
myfticifmo theologico, os acafos de um fatalifmo brutal e
materialifta e um como peflimiímo fyftematico fubftituem
as previfões da fciencia e as leis naturaes e invariáveis, que,
nas fuás relações neceíTarias de antecedência, coexiftencia e
confequencia, regem e ligam, em um movimento continuo de
evolução, os fados paíTados, prefentes e futuros, que pheno-
menalmente traduzem a vida dos povos, das nações, da hu-
manidade.
E aíTim é que no fundo de quafi todos os trabalhos hilfori-
ela e|í
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"7
COS, emprehendidos e executados por efcriptores portuguezes,
encontra-fe um precipitado de fentimentaliímo romântico,
de fubjedivilmo metaphyfico e de providencialifmo fobre-
natural theologico, diluido com algumas pequeninas doíes
de moderno efpirito fcientifico em um eccleftifmo heteroge-
nio e amorpho, comporto de elementos repugnantes, que,
quando não tenha o defaftrofo cífeito de nos allucinar ou
fazer fcepticos, lervirá apenas de nos embuir com uma té-
nue camada fuperficial d'eíre verniz de erudição a retalho,
que os doutrinários fabem manipular nos feus laboratórios
clajjicos e officiaes, e expõem á venda recommendado pelos
rótulos de reclame, fellado na junta coníliltiva de inftruc-
ção publica e com a etiqueta carimbada no minifterio do
reino.
Sobretudo o romantifmo, e aquillo a que geralmente fe
dá nome de litteratiira preponderam em quaíi todos os noíTos
trabalhos hiftoricos, quando, alem d'iíro, o que é frequente,
os não corrompem e viciam o preconceito de feita, de par-
tido, de efcola, intereíTes e conveniências particulares em fuás
múltiplas e variadas combinações.
Se, por exemplo, paíTàmos immediatamente da leitura de
um capitulo da Hijloria de Portugal de Alexandre Herculano
á leitura de um capitulo do Eurico ou do Monge de Cijlcr,
de uma pagina da Hijloria de Portugal de Rebello da Silva
para uma pagina da Mocidade de D. João V, a tranfição não
fe prefente; a maneira de efcrever é idêntica, o efpirito que
vivifica os dois trabalhos o mefmo. E fempre a imaginação
a levantar phantafticas perfpedivas e a eftender enganofas
miragens por fobre a realidade dos fados; é fempre um es-
tylo feduófor e attrahente ao ferviço de fentimentos peífoaes,
noções fubjeflivas, de conveniências partidárias.
Pede a juítiça que façamos algumas excepções: a pri-
meira, e bem merecida, em favor do dr. Coelho da Rocha,
e|»
C|3
ii8
lente de Direito Civil na Univerfidade de Coimbra, com re-
lação ao feu preciofo livro Enfaio fobre a Hijloria do Governo
e da Legiflação de Portugal, etc. Não a fundamentaremos:
por brevidade diremos fomente que o dr. Coelho da Rocha
não era litterato, nem poeta, nem rhetorico, nem politico; ju-
rifconfulto e homem de fciencia, legundo a Iciencia do feu
tempo, foi experimentaliíla nos proceffos de inveftigação,
pofitivo e, por iífo, imparcial na critica, iíto é, no modo de
ver e apreciar os faftos, os homens e as inflituições.
Também é certo que alguns modernos penfadores fe toem
esforçado por emancipar-fe dos velhos preconceitos e vicio-
fos hábitos, herdados de nolTos meftres e tranfmittidos pela
meiquinha e deplorável educação intelledual, que nas efcolas
fecundarias e nos curfos fuperiores recebemos. Honra lhes
feja, fe bem que ainda nenhum o confeguiu de um modo
completo.
Mas, apefar da fua vaíta e complexa erudição e folida
fciencia em todos os ramos, facriíicam tudo á forma, e ainda
fe curvam, reverentes idolatras do e%lo, perante as já arrui-
nadas aras da velha rhetorica. Outros, por mais que leiam e
releiam e foffregamente devorem os produdos da efcola po-
fitivifta, e procurem refazer o feu efpirito e renovar o leu es-
tado mental na philoíbphia comteana, fegundo os commenta-
rios e gloífas de Littré, de Wyrouboíf, não confeguem apagar
nos feus cfcriptos hiíloricos as gratas reminifcencias de Viço
e Michelet, feus primeiros meftres; e o myfticifmo theologi-
co e metaphyfico d'aquellc e o naturalifmo fentimental d'efte
a cada paífo repontam no caminho, para denunciar as raizcs,
que o machado innovador da critica pofitiva, cortando o tron-
co, não pôde expungir.
Felizmente a hiftoria vae-fe hoje eftreitamente ligando,
em indiflbluvel conforcio, com a fciencia defde a mathema-
tica até á íbciologia, cortando com a metaphyfica e com a
4SÍ9
tis
119
rhetorica eíTas relações illegitimas e eftereis de hons frudos,
relações que o delenvolvimento do efpirito humano foi afrou-
xando cada vez mais, e, por fim, ha de annullar completa-
mente. A hifloria tem hoje por elementos orgânicos da fua
conftituição fomente aquelles que lhe fornece a realidade
verificável dos fados, e por únicas formas aquellas que lhe
vae miniflrando a phenomenalidade evolutiva que traduz, na
fua complexidade crefcente, a vida progreíTiva das focieda-
des, e a civilifação, cada vez mais opulenta, da humanidade
no feio da natureza.
II
EVOLUÇÃO POLITICA
A palavra politica é uma d'aquellas de que, vulgar e
fcientificamente, mais fe tem ufado e abufado.
Todos faliam em politica; mas não haveria talvez quem,
fe lhe perguntalfem inefperadamente o que entende por po-
litica e o que efta palavra figniíica, refpondeífe fem hefitações
e embaraços; ninguém daria uma definição que refiíl:iífe á
critica mais fuperficial e empyrica.
Uns entendem por politica «o governo das fociedades».
Dizem outros que a polhica tem principalmente por objedo
« a forma governamental de um paiz » . Aííirmam alguns que
ella comprehende »as inftituiçóes admittidas por differentes
grupos de uma fociedade ou por diverfas fociedades». Que-
rem eítes que a politica feja «a arte de governar a cidade,
um povo, uma nação» . Suftentam ac]uelles que ella «abrange,
na fua vafta efphera, as relações entre governantes e gover-
nados», e tem, «como fciencia e como arte, a miífão de es-
clarecer e dirigir os governos na fua acção e influencia fobre
os cidadãos e eíf rangeiros » . A politica aíTim comprehendida
eis
-i-6- .-<J>-§.
é uma arte, um complexo de regras e de expedientes, que fe
refolve na combinação, mais ou menos aítuciofa, dos fins e
dos meios de governar, fegundo as circumftancias de occafião
e opportunidade.
Todas eftas definições, fe não fão um circulo viciofo, em
que fe refponde á pergunta com a mefma pergunta, traduzem
apenas eífe empirifmo vulgar e groífeiro, a que, por ignorân-
cia e força de habito, fe convencionou chamar politica ou
melhor ainda habilidade.
Modernamente é mais elevada e mais fcientifica a com-
prehenfão da politica. Na fua accepção mais ampla, dizem
os innovadores é «a fciencia da ordem e do progreífo, ap-
plicada ás fociedades humanas » . A conciliação d'efl:es dois
termos — ordem e progreífo — refume em fi toda a fciencia
efpeculativa e pratica da politica. AíTim confiderada, a poli-
tica já não fe limita ao governo de uma cidade, de uma pro-
víncia, de uma nação, fignifica «a direcção da humanidade
inteira no fentido da fua evolução natural e hiftorica » . Mas
qual é a fciencia ou ramo de fciencia que não deva ter como
bafe fundamental e condição impreterível a conciliação da
ordern com o progreífo, que é uma lei univerfal da natu-
reza?!
No meio d'efl:a confufão de idéas e abufo de palavras,
que ainda adualmente enchem e, arbitraria e tumultuofamente,
revolvem o campo da fciencia focial e particularmente da po-
litica, podemos affirmar que eíta não é fimplefmente uma
arte, a combinação habilidofa de expedientes tranfitorios ; é
uma fciencia experimental, que tem por fontes a natureza e
a hiftoria.
Para nós a politica, e é efta fem duvida a fua compre-
henfão pofitiva, aprefenta-fe, na ordem natural e hiftorica,
a primeira das fciencias, em que, na fua ordem hierarchica,
fe fubdivide a fociologia. Efta, nas luas mais elevadas afpi-
eis «is
K>-§-
rações, fuppõe o conhecimento real e profundo do fer huma-
no, confiderado em fi, nas luas origens, nas fuás tendências
progreíllvas, nas luas aptidões múltiplas, nas condições ne-
ceíTarias da lua complexa exiftencia, e, por iffo, nas luas re-
lações com o univerlb de que elle faz parte integrante. A po-
litica tem pois, como a lociologia, raizes profundas que é
forçofo procurar, atravez da indefinida complicação de todas
as Iciencias. A vida politica de um povo é uma refultante
das leis naturaes que regem o mundo, e o produtflo de uma
evolução hiftorica particular, que le coordena no movimento
geral afcendente da humanidade, no decurlb dos leculos e
por toda a parte.
A fociologia, na fua maior generalidade e complexidade,
eítuda as condições de exiftencia, internas e externas, do
organifmo focial humano; ou mais concifamente, é a fciencia
da condicionalidade Ibcial humana, nos phenomenos que a
traduzem (conhecimento empirico), nas leis que a regem
(conhecimento fcientifico), nos principies fupremos e univer-
faes que a fuhordinam (conhecimento racional). E como as
fociedades, do meímo modo que outro qualquer organilmo
vivo, fe formam, conflituem, renovam, conlervam e perfis-
tem, defenvolvem e aperfeiçoam, garantindo-fe nos meios em
que vivem envolvidas e como que mergulhadas, as focieda-
des precifam de condições de formação, conftituição e re-
novação, de confervação e perfiftencia, de aperfeiçoamento
e de garantia; e como em todo o organifmo deve haver um
certo grau de vitalidade orgânica, acrefcentaremos e col-
locaremos convenientemente um outro grupo de condições,
as condições de vitalidade.
D'aqui as cinco fubdivifões ou ramos que nós entende-
mos, que naturalmente fe devem e podem fazer na fociologia:
I." Condições de formação, conftituição e renovação —
Politica.
2." Condições de vitalidade orgânica — Economia.
3.° Condições de conlervação e perfiftencia — Adminis-
tração.
4." Condições de delenvolvimento e aperfeiçoamento —
Moral.
5." Condições de garantia — Direito.
Abrtendo-nos de grandes explanações e largos commen-
tarios, que a indolc d'ell:e trabalho e eítreitos limites de uma
breve introducção não nos confentem, diremos apenas, que
as bales da noffa claíTiíicação exiftem politivamente eílabele-
cidas na fociologia e experimentalmente verificadas na Ins-
taria.
São eíTas bafes fcientificas e effas laboriofas verificações
experimentaes, que no dizer profundamente verdadeiro de
um moderno fociologifta, explicam elTa efpecie de terror que
a politica infpira áquelles homens que têem eífudado baftante
para faber o que elles ignoram, e a lamentável cegueira
d'ac[uelles que, tendo a pretenfão de governar uma nação e
dirigir a ília politica, contando fomente com os recurfos e
expedientes da lua aftuciofa habilidade, perdem o leu tempo,
e arruinam o feii povo.
E affim que pelo proceíTo fcientirico empregado, chegá-
mos a determinar objectivamente, de um modo precifo, e a
limitar, por um termo irreludivel, a fciencia politica. E fe a
fciencia focial tem por objedo as condições de exiítencia dos
organifmos fociaes humanos, fe nos domínios da fciencia
focial efpeculativa vêm coordenar-fc todas as leis e todos os
princípios defcobertos e fornecidos pelas outras fciencias, fe
na fociologia pratica devem combinar-fe e cooperar as ap-
plicações d'eífas mefmas leis e princípios á ordem e progreífo
focial, eíTa mefma coordenação e efla mefma cooperação
têem de realifar-fe na politica theorica e na politica applicada.
Logo a fciencia politica immediamcntc fubordinada, como
4tÍ3
123
parte integrante, á fociologia geral e ahftrada, tem de fub-
ordinar-fe á biologia, ás Iciencias phyfico-chimicas e a todos
os princípios, leis e meios de inveftigação dependentes da
aftronomia e do calculo. Em politica, como em tudo, é in-
difpenfavel uma ralao, um critério fcientifico, um enorme
poder de precifão pofitiva, pois, fe aíTim' não foíTe, teríamos
como principio motor dos movimentos fociaes da humani-
dade a força bruta e cega do acafo, e por lei o arbítrio ca-
pricholb dos grandes homens, dos heroes, dos deules.
Entendemos por evolução politica progreíTiva, a fucceíTão
natural e hirtoricamente coordenada de períodos ou phafes
de exiftencia, que uma fociedade atraveíTa ou percorre na
fua formação, conftituição e renovação orgânicas, de modo
que poíTa adquirir o necelTario grau de vitalidade correfpon-
dente (progreíTo económico), prover á fua confervação (pro-
greíTo adminiftrativo), preparar e realifar o leu aperfeiçoa-
mento (progreíTo moral), e garantir-fe mais e melhor em
todas eftas condições de exiftencia contra a acção, reacção
e influencia, prejudiciaes e damnofas, dos meios internos e
externos, d"onde eflas condições originariamente derivam — o
território, a população e o eftado Ibcial (progreffo jurídico).
Decadência e retroceíTo fignificam a evolução em íenti-
do contrario; e por iflb, em oppoíição áquella, lhe chamare-
mos evolução retrograda.
III
DA INFLUENCIA DOS GRANDES HOMENS
E DA ACÇÃO INDIVIDUAL
Quando abrimos a maior parte dos livros de hiftoria, e
procuramos defcobrir os motivos, a que os hiftoriadores at-
tribuem os factos ou phenomenos fociaes, encontrámos con-
eis
4tÍ3
-<i>-§*
124
ftantementc e geralmente invocados, como factores principaes
— a propidencia e os grandes homens. E eíTes livros, na fua
maioria, fão apenas um tecido de biographias de reis, de
generaes e de homens de Eftado, que á Providencia aprouve
efcolher para feus delegados e interpretes, ou meros inftru-
mentos na realifação dos feus myfteriofos defignios fobre o
mundo. A influencia dos meios, das raças, das crenças, a
continuidade hiftorica, a tranfmiíTão hereditária, a evolução
progreíTiva, tudo quanto modernamente e, fegundo os verda-
deiros methodos fcientiíicos, e para os eípiritos fuperiormente
dilciplinados pela fciencia, forma o real e pofitivo dos phe-
nomenos hiftoricos, não fe vêem, não fe encontram, parece
não haverem lido ao menos prefentidos.
Tendo de nos occupar da acção e influencia do Marquez
de Pombal na evolução politica da nacionalidade portugueza,
também precifámos de nos explicar acerca da maneira como
comprehendemos a acção e influencia dos grandes homens
nos deftinos dos povos, das nações e da humanidade, por
maiores que os pofl'amos conflderar no génio e na adividade,
por mais laliente que feja o relevo e impreflionadora que
nos pareça a perfpeftiva, com que deftacam e avultam no
quadro hiflorico onde figuram.
Os phenomenos fociaes, afllm os mais importantes como
os mais fecundarios, eftão fujeitos, como pheiíomenos natu-
raes e objedivos, a leis fixas que os aggregam e encadeiam
regular e indiíToluvelmente por luas relações de antecedência,
coexiftencia ou fimultaneidade e confequcncia.
Verdade é que efias leis não lao ainda bem conhecidas
e formuladas; fe o foflem, a fociologia eftaria conftituida nas
fuás generalifações abftradas e nas luas efpecialidades con-
cretas, no todo e em cada uma das fuás partes; mas nem
por iíTo o principio de fubordinação deixa de fer verdadeiro
e experimentalmente verificável.
ir \ f
-§-<>- -ò-l*
125
Todo o fafto politico e, por iffo, toda a reforma ou reno-
vação politica, fe cila não é o relultado de um puro capricho
ou devaneio individual ou de uma temeridade revoluciona-
ria, e por iíTo ephemera e perturbadora, fe ella tem um certo
alcance e influencia, para ler efficaz e permanente, deve ter
a fua ralão de exiftencia nos léus antecedentes direitos, e
produzir, no meio que a recebe, e ao qual fe adapta, os feus
inevitáveis confequentes. Logo todo o homem politico, todo
o reformador, digno d'efte nome, deve ter a comprehenfão
e, por iffo, a confciencia d'effes antecedentes e confequentes
que Ião, ou devem ler, o determinifmo da fua acção renova-
dora, e como que a idéa progenitora e fundamental das fuás
reíormas e emprehendimentos.
Que Vafco da Gama tiveffe furgido no xii feculo e Chris-
tovam Colombo no mefmo ou no xiii feculo, e elles pode-
riam ler bifpos, Icudes, papas, guerreiros ou doutores da Igre-
ja, mas não teriam fido navegadores; poderiam ter fundado
um império, um reino, um condado, um convento, uma abba-
dia, uma univerfidadc, mas não teriam fido os defcobridores
de novos mundos; vel-os-hiamos dirigir uma cruzada á terra
fanta, pregar uma herefia e commandar uma guerra reli-
giofa, mas não teriam aberto um novo caminho para a ín-
dia, nem conquiftado á velha humanidade da Afia e da Eu-
ropa o continente americano, para fe expandir e como que
rejuvenefcer em novas e acrefcentadas civilifações.
O império de Napoleão III, do mefmo modo que o impé-
rio de Napoleão I, do mefmo modo que o império de Othão
o grande e de Carlos Magno, caiu, porque elle, como todos
efles grandes homens, todas eflas notabilijjimas individuali-
dades, obedecendo a moveis puramente fubjedivos, em que
as ambições egoiffas e as miragens da imaginação prepon-
deravam, não tinha a confciencia do feu tempo, e longe de
aproveitar os antecedentes direitos e provocar os confequen-
eis
i2b
tes legítimos na evolução progreffiva do feu tempo, os per-
turbava na lua con\'ergencia, contrariava e enfraquecia na
fua efpontanea energia critica e renovadora, fubftituindo
as leis naturaes e hiftoricas da humanidade pelo arbítrio, e
oppondo os caprichos da fua vontade abforvente e defpotica
ás correntes civilifadoras do meio, que mais tarde ou mais
cedo devia fubmergir e afundar para fempre o novo im-
pério, que flufluava, fem direcção e fem rumo, á mercê das
ambições de um homem, no intereíTe de uma familia e de
uma numerofa clientela de aulicos e apaniguados efpccula-
dores, ávidos de honrarias e riquezas.
Nenhuma das condições objectivas, das verdades pofiti-
vas e experimentaes, que, natural e iieceíTariamente, derivam
umas das outras, foi comprehendida e refpeitada por eftes re-
tardatários políticos, que têem o único feftro de tomar fonhos
como fe foram realidades, e os feus próprios fentimentos, os
feus intereíTes, as fuás afpirações individuaes, corno leis ca-
pazes de fubjugar as fociedades que os toleram, e dar ás na-
ções o impulfo vigorofo e indomável, que poderia tornal-as
felizes e poderofas; mas para as fazer fuás efcravas e, não
raras vezes, fuás idolatras.
Ora, fão efles homens aquelles, a quem os noífos políticos
de hoje e os noífos hiíforiadores de hontem chamam envia-
dos do céu, inftrumentos de Deus, braços da Providencia,
mandatários da divindade, delegados do Omnipotente. E
aíhm a paífagem do governo abfoluto para o regimen par-
lamentar do conftitucionalifmo monarchico explica-fe pela
generofidade patriótica, e depois pelos heróicos esforços e po-
derofa influencia de D. Pedro IV; a independência do Brazil,
longe de fer um produdo efpontaneo das circumftancias,
refultado e impofição de uma lei de defciivolvimento orgâ-
nico, a mefma lei que determinou na antiguidade a emanci-
pação das colónias gregas e phenicias, e nos tempos moder-
-i-í>- -i-^
cia e|9
4 si)
-A-l*
nos a libertação das colónias ihglezas e hefpanholas da
America, e ha de emancipar Cuba e quantas tenham chega-
do á maturidade, c, para os brazileiros, um favor da Provi-
dencia e uma dadiva principelca do primogénito de D. João
VI, e, para os portuguezes, um caftigo de Deus e uma dupla,
traição do príncipe ao pae efpoliado d'aquella parte dos léus
domínios e á pátria privada dos léus recurlbs. A unidade
italiana é um mimo do céu, um prefente da divindade,
offerecido á Itália, ou melhor ainda á dynaftia faboyana pela
mão poderofa de Victor Manuel, a quem os homens da
igreja catholica chamam o açoute da Providencia, como
outr'ora os romanos chamaram ao Attila o flagello de Deus.
A unidade germânica, o novo império allemão é o produclo
de um capricho, de uma ambição egoifta, ou melhor ainda
de uma allucinação diplomática do príncipe de Bilmarck;
e a republica franccza eftá apertada nas mãos omnipotentes
do Ir. Gambetta; fe um dia o fabio eftadifta e o enérgico
tribuno, em um momento de mau humor ou de delalento,
abrir as mãos ou as metter nos bolfos do leu pardejfus, a re-
publica franceza cairá no abyfmo de um quarto império,
mefrno fem o precedente de um confulado retrogrado ou de
uma didadura militar intolerante, para fer fantificado pelo
papa, defendido pelo fenado ariftocratico e pela guarda pre-
toriana de um novo Celar Augufto, que poderá exclamar,
diante de um povo fafcinado pelos efplendores deílumbran-
tes de uma corte magniíicente e apparatofa, ou narcotifado
pelos venenos da centralifação e do auctoritarifmo, « o EJtado
fou eu — a França foii cu», parodiando Luiz XIV, ou fazendo
o plagiato de Naptoleão I.
A hiftoria e a politica affim comprehendidas e aíTim expli-
cadas, o deítino das nações e da humanidade, entregue ex-
cluíivamente ao génio e á vontade dos grandes homens, á
direcção e influencia das indi^■idualidades privilegiadas, faz-
(|3
128
nos lembrar um relógio nas mãos infantis de um collegial.
Que lhe importa a elle o curfo natural do tempo, e as leis
.orgânicas e difciplinares ás quaes eíM fujeito na fua educa-
ção e aprendizagem? Tudo vae bem, tudo corre na medi-
da dos feus defejos e ao fabor do feu egoifmo, logo que os
ponteiros marquem a fufpirada hora do recreio e do re-
poufo. Uns querem que elles le adiantem, outros que elles
fe atrazem, e todos pretendem fubftituir o mecaniímo inte-
rior da fabrica, regulado fegundo as leis do movimento da
terra e do univerlb, pela fua vontade, pelo feu arbitrio, pelo
feu intereífe; todos fe enganam, e foífrem as confequencias
do feu erro e o caftigo da fua falta; e mais tarde ou mais ce-
do terão de confultar a natureza para, em conformidade com
as fuás leis e indicações, coUocar devidamente os ponteiros
no quadrante.
Ora pois a politica não é um capricho peífoal, também
não é uma arte; é uma fciencia de obfervação e de expe-
riência, que tem por campo immenfo de exploração a natureza
e a hiftoria. Confultemos pois a hiftoria e a natureza, e veja-
mos o que ellas nos dizem e enfinam a refpeito dos grandes
homens e das individualidades celebres.
Dos exemplos que apontámos, e que poderíamos multi-
plicar e alargar até ás proporções de uma completa inducção
experimental, podemos feguramente concluir:
I .° Os grandes homens fão o producto de uma evolução
anterior; a fua acção e influencia feriam nullas ou infigni-
íicantes, fe ellas fe manifeftallem em uma epocha ditferente, e
fe defenvolveífem em um meio diverfo d'aquelle que os pro-
duziu. Logo, para determinar o valor real e pofitivo da acção
e influencia dos grandes homens, é indifpenfavel eftudar bem
a epocha, e conhecer bem o meio ou eftado focial que os pro-
duziram.
2.° Não fão os homens que geram os fados, e criam as cir-
eis
129
cumftancias do feu tempo; mas, ao contrario, lao os fados e
as circumftancias do tempo que geram os grandes homens,
eftimulam e provocam a fua acção e influencia reformadoras.
3." Os grandes ferviços que uma individualidade pode-
rofa prefta ao feu tempo, á fua nação ou á humanidade
inteira, na fciencia, na induftria, na poUtica, fão relativa-
mente pequenos, fe os compararmos á enorme fomma he-
reditária, accumulada pela experiência de muitos feculos e
de muitas gerações.
4. ' Uma grande defcoherta, uma invenção, que á primei-
ra vifta fe nos antolha furprehendente e maravilhofa, nunca
faiu completa do cérebro de um único homem; é um pro-
duófo lentamente elaborado, e a confequencia de invenções e
defcobertas fucceíTivamente feitas e accumuladas durante fe-
culos. E juífamente o que fuccedeu com a pólvora, com a
imprenfa, com a machina a vapor, com o telegrapho eleílri-
co, com a circulação do fangue e com quantas preciolidades
fcientificas e induftriaes formam o mais rico e folido thcfou-
ro da humanidade.
5." No dominio da politica, a fuperioridade dos grandes
homens confifte em conhecer o palfado, comprehender bem o
prefente, prefentir e prever a direcção phenomenal do futuro,
impellir e dirigir os povos na fua conquifta e realifação.
A fuperioridade dos grandes homens no dominio politico,
ainda que muito menor do que no dominio fcientiíico e
induflrial, não deixa todavia de fer real e inconteftavel. É
precifo um juizo muito efclarecido pela obfervação e pela
experiência e um raciocínio muito feguro para defcobrir,
atravez da infinita complexidade dos phenomenos fociaes, a
direcção e o fentido da evolução de uma epocha, e prever
futuros acontecimentos e novas transformações.
Alem de uma grande fuperioridade intelledual, o ho-
mem de Eífado. o verdadeiro homem de governo, precifa
4 si»
«hJ)-!.
de um caraíter auftero e de uma enérgica vontade inque-
brantável, a fim de não perder a influencia moral, o preftigio
e a audoridade publica fobre a multidão, condição indis-
penfavel á fácil e prompta realifação dos feus planos de re-
forma e renovação focial. «Governar é prever e prover»; e
para prever é indifpenfavel a fciencia experimental e pofitiva.
A maior e a mais perigofa de todas as ambições é a de cjuerer
governar um povo e dirigir a politica de um eftado fem o
talento neceffario para iíTo.
Cada grupo de fados ou phenomenos fociaes correfpon-
de fimultaneamente a um ou outro grupo de condições de
exiftencia, fegundo a claíTificação que fizemos, e a uma phafe
de evolução continua, com fuás transformações e metamor-
phofes, as quaes p>henomenalmente traduzem, em correntes
tranquillas ou precipitadas, patentes ou occultas, o movi-
mento afcenfional das fociedades, defde a fua origem até
entrar franca e abertamente no oceano pacifico da civilifa-
ção, no feio immenfo da humanidade, que as recolhe e apro-
veita em ultima eftancia.
EíTe movimento pôde fer demafiadamente accelerado
pela acção imprevidente e pela influencia perturbadora dos
revolucionários, retardado ou empecido pelos esforços retró-
grados de obftinados reaccionários, ou paralyfado pela im-
mobilifação fyftematica dos confervadores empíricos. E n'eíte
modo de fer da evolução focial pôde ter larga e profunda in-
fluencia a acção de um homem, de um governo, de um par-
tido, de qualquer feita ou aíTociação particular; nenhum, po-
rém, homem, governo, partido, feita ou aíTociação, nem
todos colligados confeguiriam produzir ou deítruir o movi-
mento, quando muito poderiam modifical-o, ou alterar-Ihe a
direcção e o fentido, mas creal-o na fua origem e fornecer-
Ihe o ponto de apoio, iíTo nunca; a origem vem-lhe da pró-
pria natureza e o ponto de apoio miniftra-o a hiftoria.O Mar-
.g-A- ►A-i-
el» eis
c|3
i3i
quez de Pombal, que conhecia a hiltoria geral da civilifa-
çáo, e particularmente a da nacionalidade portugueza, pos-
luia, alem da pofitiva comprehenfão do prefente, a clara pre-
vilao do futuro. Sabia que as reformas fociaes não devem
começar por uma fuperíicial renovação morphologica do go-
verno, mas por uma renovação intima das condições de
exiftencia do organifmo Ibcial. Aquella fem efta, já o fabia
elle perfeitamente, é uma apparencia fem realidade, fão co-
mo effes brilhantes meteoros de eífeitos defaftrofos, que, quan-
to mais brilham, mais depreíTa fe apagam e desfazem; podem
derramar mais alguma luz nas imaginações exaltadas dos re-
volucionários; mas não tèem, nem podem ter a realidade pal-
pável e a eílabilidade perfiftente d'aquellas reformas que, par-
tindo directamente da renovação vital da fociedade, affedam
e melhoram a fua conftituição orgânica.
Foi também por iíTo mefmo que elle, procurando evitar
a revolução, preparava, por uma renovação geral e profun-
da dos elementos orgânicos da fociedade portugueza, uma
transformação politica, económica, adminiftrativa, moral e
jurídica correfpondente, tendo, porque não podia deixar de
ter, a convicção de que a mudança na forma de governo,
apropriada ao novo eítado Ibcial, viria fatalmente, como
confequencia inevitável e produíto efpontaneo d'efra reno-
vação. Não foi, nem podia ler revolucionário na rua, á frente
do povo; foi revolucionário no feu gabinete, ao lado do rei.
Não empregou a liberdade nem invocou a democracia,
para, em um momento, deftruir o poder e a audoridade e arrui-
nar o abfolutifmo, ferviu-fe do poder abfoluto e da autori-
dade defpotica para fundar a liberdade e preparar o futuro
da democracia.
O Marquez de Pombal foi, no feu tempo, um opportu-
nifla ao ferviço da revolução.
Vejamos fe o podemos moftrar.
CM
n-^
CAPITULO I
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Depois da refurreição nacional, que, em 1640, reftaurou
a independência de Portugal, efmagado pelo pelo oppreíTor
de eftranho jugo, devida, não como pretendem alguns ás
combinações grandiofas e á politica admirável de Richelieu,
mas á patriótica iniciativa e á dignidade heróica dos confpi-
radores pop»ulares, a nação portugueza recobrou a fua au-
tonomia politica, defpedaçou as algemas de tão odiofa fer-
vidão económica, defprendeu-fe, por um foberano esforço de
coragem, dos braços de ferro, em que, durante longo e an-
guftiofo periodo, a tinham apertado os defpotas caífelhanos,
e levantou íbbre o throno, em que havia aíTentado Aífonfo
Henriques e o Meífre d'Aviz, chefes, fe não filhos do povo,
eleitos e acclamados por elle.
Portugal entrou de novo no dominio e poíTe de fuás con-
quiftas; o foberano opulento do Oriente, o defcobridor ou-
íado e o civilifador generolb de ignotas plagas e de extra-
nhas gentes, ergueu-fe do tumulo que lhe tinham aberto o
arrojo pueril de uma creança, ávida de glorias vãs, e a im-
becilidade trôpega de um velho cardeal fanatizado.
Era, todavia, fombra mageífofa de um vulto heróico,
furgindo por entre as ruinas de lumptuofo edifício deíman-
telado.
Nem exercito, nem marinha; fem commercio, fem indus-
tria; exhauítos os cofres do eftado, perdido o credito, nominal
a riqueza de fuás maravilhofas defcobertas, vafio o thelburo
de fuás conquiflas!. . . fó com a aureola de paífadas glorias;
fem outro titulo perante as nações, alem da merecida grati-
dão a que tinha direito pelos valiofos ferviços preftados á
i33
humanidade e a cíTa religião, a que o prenderam logo no
berço.
Dir-fe-ia que o milero revivera por momentos, para
logo depois tornar a morrer defalentado.
Mas havia para elle a eíperança no futuro, firmada na
lembrança do paflado; exiftiam amontoados, fobre os mares
e nas fuás p)Oíreírões abandonadas, os ricos efpolios da
fua antiga grandeza: retomou animo, ganhou coragem. Efta-
va o leu nome efcrip>to fobre toda a extenfão do oceano,
echoava por todas as regiões do globo, brilhando na coroa de
poderofos monarchas, exiftia gravado no coração de muitas
nações florefcentes ; por iíTo todas acolheram com applaufo
o brado da fua independência, e lhe ajudaram a manter a li-
berdade, que defaftrofamente havia perdido nos plainos de
Alcácer Quibir e fobre o leito do cardeal rei moribundo.
Os herdeiros da cafa de Bragança, os populares foberanos
eleitos pelo poi'o, os primeiros reprefentantes d'eíra realeza le-
gitima, nem comprehenderam a fua elevada miífão, nem
lhes importaram as neceíTidades do feii p)ovo, nem, ao me-
nos, fouberam aproveitar-fe do amor e da confiança que
n'elles haviam depofitado os que, refgatando o reino, lhes
cingiram o diadema, e lançaram fobre os hombros a purpu-
ra de duas dynajlias.
Não emprehenderam reformas ; não traçaram plano algum
de polifica definida; não promoveram o defenvolvimento ou,
ao menos, a reftauração da agricultura, da indufiria, do com-
mercio, da navegação, de quantos elementos conflituem a
vida laboriofa, a adividade produdora, o bem eftar íbcial, a
profperidade moral e económica de uma nação livre, inde-
pendente e opulenta de tudo quanto poderia tornal-a gran-
de e rcfpeitada. Exhaurindo o erário, fem adivar as forças
produdoras da riqueza publica e particular, fem abrir novos
mananciaes de producção, lem dotar o paiz com melhora-
4S^
^ . .-<$)-l.
mentos de reconhecida utilidade, a lua única preoccupação,
todo o feu empenho limitava-le, parecia comprazer-le até em
augmentar e completar o defpotifmo, que extranhos para cá
haviam importado, o gofto da epocha e o exemplo de ou-
tras cortes muito favoreciam, engrandecendo ao mefmo tem-
po os jefuitas, dando força e apoio ao tribunal da inquifição,
mantendo um fauíto ruinofo, propagando o amor e a paixão
do luxo, mais do que inútil, prejudicial, e, por vezes e em
muitas coufas, infolente, defmoralifador; confumindo com vai-
dades realengas, em fumptuofas conítrucçôes, em dilpendio-
fas obras d'arte, e, o que é peior, em beatificas e exageradas
piedades mundanas, capitães immenfos, fommas fabulofas.
D. Pedro II e D. João V, fafcinados pelo brilho deílum-
brante e pelo apparato tumultuofo da corte de Luiz XIV, fi-
zeram d'efte rei abfoluto, libertino e folgazão, confiderado,
n'aquelle tempo e pelos retrógrados e fanáticos, o prototypo
da realeza abfoluta, o feu aperfeiçoado modelo, fem todavia
lhe imitarem uma única das fuás virtudes.
Um, leguindo a lua politica e imitando na adminiftração
o leu exemplo, lançou ao efquecimento as formas da antiga
monarchia reprefentativa; reprimindo a nobreza e o clero,
fem libertar o povo, preparou o abfolutifmo.
O outro, animado de um efpirito romanefco e comicamen-
te aventureiro, dotado de uma imaginação infantil e de um
temperamento ardente, dominado por uma piedade exage-
rada, ou efpeculando com uma calculada hypocrifia, imitou
Luiz XIV nas faas vaidades, invejou-lhe a pompa e o es-
plendor da lua corte, fatisfez os mais pueris caprichos e as
mais extravagantes phantafias, nada lacrificou ao bem do
povo, enriquecendo a envia romana, esfalcou o theiburo pu-
blico, enfraqueceu a agricultura e a navegação, ennervou o
efpirito de actividade nacional, em uma palavra, o rei faná-
tico e libertino. . . fanatilbu e defmoralilbu o povo!
ir \ t
e|s ela
ti» fh
-§-ò- -V-l*
Portugal, arrancado pela mão do povo ao jugo de Cas-
tella, é, em 1703, hypothecado pela realeza aos inglezes que o
exploraram, e ainda hoje exploram, como o poíTuidor de má
fé explora a propriedade alheia; Roma elpeculou também;
a nobreza e o clero completaram efte lyftema de legal e con-
vencionada pilhagem!. . ,
Portugal era no começo do reinado de D. Jole I o que a
França principiara a íer deíde o reinado de Luiz XV.
Por toda a parte o abandono da agricultura, o delprezo
pelas artes, infignificantiffimo o trato commercial ; um gover-
no monarchico lem prelhgio, um throno efplendido de pur-
pura e oiro fem folidez; o jelliitilmo e a nobreza lilbnjeian-
do e trahindo o rei, fanatilando o povo e elpeculando com a
lua piedade, dominando e opprimindo a multidão ignorante
e lliperfticiola, gofando fem trabalho, adquirindo por meio de
violentas e aftuciofas ufurpações e confilcos, accumulando
lem esforço; o luxo e a immoralidade para uns, a miferia e
a degradação para outros. . . Tal era a fituação perigofa e
aíTuftadora, o triíte efpeótaculo que a nação portugueza e o
leu eftado Ibcial exhibiam, quando Sebaftião Jole de Car-
valho e Mello appareceu na fcena publica, e concebeu o
arriscado mas grandiofo projedo da lua emancipação, refta-
belecimento e progrelTo, por meio da renovação intima, pro-
funda dos feus elementos orgânicos e das fuás adormentadas
e gaftas energias.
O eftado lamentável de quali completa deforgani facão
e ruina, em que Portugal fe debatia, a oppreífão que fobre
nós exerciam algumas cortes extrangeiras, nomeadamente a
de higlaterra, que de Portugal havia feito não lo pupillo,
mas vaífallo obediente, dirigindo-nos a politica, exhaurin-
do-nos as fontes de toda a vida económica, dominando em
todos os noífos portos, explorando as noífas colónias occiden-
taes e obrigando-nns a votar a um quafi completo abando-
— -hL^
eis
-* -<è»-^
i36
no as ricas poíTeíTóes do Oriente, fingindo manter em equilí-
brio na fua balança commercial a noíTa independência politi-
ca, e opprimindo-nos, vexando-nos como povo conquiftado,
— eram motivos fortes, eítimulantes irrefiftiveis para deter-
minar o animo e defpertar o defejo de applicar remédio a
tamanhos males, quebrar aquelle jugo funeftiflimo ou, pelo
menos, attenuar as confequencias defaftrofas, que, de dia para
dia, fe iam aggravando, em todo o portuguez que fe conhe-
ceíTe apto, pela capacidade fcientifica e força de vontade, para
tentar, com probabilidade de bom êxito, tão ouíada e patrió-
tica empreza.
O homem, que as circumftancias reclamavam, afado para
tal commettimento, appareccu, e foi Sebaítião Jofé de Car-
valho e Mello.
CAPITULO 11
o MARQUEZ DE POMBAL E O SEU TEMPO
Era pleno feculo xviii.
Principiara a arvore da renafcença a produzir os feus
frudos, e de lua frondofa copa já pendia lobre a cabeça do
povo o abençoado pomo da liberdade: fem que lhe aguar-
daíTem a queda muitos efpiritos alevantados, vontades firmes
e perfeverantes haviam calculado as leis da mechanica focial,
e, em harmonia com ellas, traçado a mechanica politica do
regimen conjlitucional ; diftinguindo fomente rei e povo, não
reconhecendo outras entidades ou forças fociaes, demonflra-
ram a neceíTidade de abater o orgulho da nobreza e deftruir
a influencia preponderante do clero, — elementos economica-
mente inúteis e politicamente prejudiciaes a um tal lyftema.
O foi da democracia moderna começava de furgir e já fe
elevava no horifonte das fociedades europêas, e com ellc des-
-s-á^-» i-i-^
4» e|»
sii
■37
pontava também, do lado da França, o dia da emancipação
popular.
A Europa agitava-le em feus fundamentos; fentiam-le, de
efpaço a efpaço, uns vagos e finirtros rumores, que impres-
íionavam os efpiritos; extranhas convulfões abalavam o gran-
de corpo focial, como fymptomas precurfores de uma próxi-
ma crile moral e politica.
A impaciência popular avifinhava-fe do fcu momento
fatal; o governo monarchico abfoluto, defacreditado em qua-
fi todos os eftados da Europa, repellido no Novo Mundo e
declarado por muitos efpiritos efclarecidos e redos o peior
dos governos, elperava, todos os dias, o momento em que
foíTe executada a fua lentença de morte.
A acção da philofophia critica, apoderando-fe das intel-
ligencias elevadas do leculo, ía-lhe preparando o fupplicio
revolucionário no tribunal da opinião publica, ao mefmo
tempo que a philofophia orgânica ia lançando, por entre as
ruinas do velho e galfo regimen catholico feudal, os funda-
mentos do novo regimen [cientifico indiijMal, que lhe devia
fucceder. Os philofophos de Inglaterra e de França trabalha-
vam fervorofos na propaganda liberal e revolucionaria.
As theorias de Baccon e de Montefquieu tinham fido pro-
fundamente defenvolvidas e levadas até algumas das fuás
ultimas confequencias.
A interferência da Inglaterra, a fua acção politica, envol-
vida na forma, e como que disfarçada debaixo da apparencia
de um groífo trato commercial e maritimo, influenciava, tam-
bém de um modo enérgico e profundo, a fituação moral e
económica dos povos; como as cruzadas, em nome de Deus
e pela fé, produziram, ou antes provocaram, em feu tempo,
notável transformação focial, transformação que as inven-
ções e defcobrimentos marítimos dos xvi e xvii feculos com-
pletaram, e defenvolveram.
fcM
eis
(|3
i38
Um vento philofophico, fe é licito aííim dizer, íopra^a
da Allemanha, da Inglaterra, da França e da America, e
murmurava, e trazia aos ouvidos de muitos as palavras —
liberdade, emancipação, democracia, republica e outras, que
fignificavam não eftar longe o momento, em que o povo,
confcio da fua força e fenhor da fua vontade, reivindicaíTe os
feus originários direitos, uíurpados pela realeza, ultrajados
pelos nobres, e, em parte, abíbrvidos pelo clero.
Uma nova forma de governo exiftia já na mente de mui-
tos homens illuftres, franca ou difllmuladamente traçada e
defcripta nas obras philolbphicas, politicas e económicas do
feculo.
As matérias combuftiveis, que fe haviam de inflammar ao
primeiro fopro da fúria popular, para accender a revolução,
acercavam-fe por toda a parte, e convergiam de todos os la-
dos.
Alguma coufa de extraordinário e aíTombrofo fe prepa-
rava no laboratório immenfo da Europa.
Algum monumento, de fumptuofa fachada e magnifica
architedura, mas já gafto e apodrecido pelo roçar dos tem-
pos, ia defabar até os alicerces.
Era a bajlilha monarchica do abfolutifmo; era. o capitólio
jefuitico da theocracia, minados nos fundamentos, abalados
na fua apparente Iblidez ! . . .
Finalmente as inítituições, os poderes, as opiniões. . .
tudo annunciava que a transformação eftava imminente, e,
inevita^'cl e fatal, devia operar-fe por uma revolução geral e
profunda.
Rabelais, Bayle, Fontenelle, Baccon e Montefquieu pre-
pararam a aurora do grande dia; Diderot, Alembert, Turgot,
Condorcet e Rouífeau animaram-lhe cada vez mais os raios
luminofos ; Voltaire, o novo afiro da philofophia critica e de-
molidora, aguardava Mirabeau o génio da eloquência, para,
4» . T
c|3
■39
relumindo aíTim toda a fciencia, toda a energia do feu feculo,
darem ao fentimento e a idéa revolucionaria a força con^in-
cente e perfuafiva da realidade.
Foi no feio d'elTa atmofphera, repaflada de novos ele-
mentos e impregnada de novos germens de vida, que o es-
pirito de Sebaftião Joíé de Carvalho e Mello crefceu, fe de-
fenvolveu, e preparou para vir a fer o que na realidade foi,
com grande applaulb de nacionaes e eftrangeiros, e de certo
com maior proveito noíTo, fe tivelfe logrado levar a cabo a
renovação politica, económica, adminiftrativa, moral e juri-
dica do feu paiz, que tão habilmente emprehendêra, e á qual
miravam as viftas, eminentemente liberaes e patrióticas, do
miniltro de D. Jofé.
Cultor aíTiduo de todos aquelles eftudos que habilitam
o homem para bem governar, já herdeiro do aperfeiçoamento
de muitas fciencias e artes, que podiam illuftrar o mundo
politico e determinar a profperidade e engrandecimento dos
povos, lendo e meditando os livros económicos, políticos e
financeiros, que, em feu tempo, inundavam a Europa, ia dis-
pondo o animo e adquirindo o neceíTario grau de talento e
aptidão para entrar um dia afoito, e lidar defaíTombrada-
mente com os negócios da alta governação e adminiftração
publicas.
Tomara por modelos, efcolhêra para feus meftres Riche-
lieu, SuUy, Colbert, Argenfon, e as máximas, as memorias,
os teftamentos políticos e financeiros d'eftes eftadilfas, mas
principalmente a moral, a philofophia e os trabalhos fcien-
tiíicos dos encyclopediftas, foram o thefouro, onde aquella
intelligencia vafta, aquelle efpirito eminente, aquella vontade
firme e enérgica fe enriqueceram, e adquiriram luz e força
para produzir o que depois fe viu e admirou; e bem me-
rece elle os louvores e applaufos da poftcridade que, em no-
me da honra nacional c para gloria da pátria, decreta e ceie-
<^ '-<>^
T 4»
«Is
cl)
140
bra, um íeculo depois da morte do grande homem, a fua
apotheofe.
Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, difcipulo fervorofo
das idéas philofophicas, politicas e económicas, que a Fran-
ça efpalhára por toda a Europa, e a America do Norte havia
de realilar praticamente nas fuás inftituições republicanas, á
fombra das quaes foram acolher-fe grande numero de emi-
grantes europeus, comprehendia bem o eftado de fermentação
revolucionaria, que, por toda a parte, agitava os ânimos.
Génio perfpicaz, philofopho profundo e hábil politico, já
previa, como o antigo miniftro de Luiz XV, que uma crife
tempeftuofa fe avifinhava para tudo transformar e regenerar
tudo, ou tudo perder.
«Uma revolução é quafi fempre um mal, dizia elle, com
os olhos fitos na hiftoria, uma enfermidade, que, fó depois
de anguífiofa lucta e demorada convalefcença, poderá dar ao
corpo focial martyrifado vigor e robuflez.»
Penfando aííim, era natural que concebeíTe, e defde logo
traçaíTe o plano, immenfo, profundo e íalutar, de renovação
e progreíTo, fem perturbar a ordem, cuja realifação fó efpe-
rava a opportunidade de occafião para fe moftrar e defen-
volver de um modo verdadeiramente efíicaz e proveitofo ao
feu paiz, gloriofo para elle e para o rei, em nome e por auto-
ridade do qual e a bem do povo, devia progredir afanofo e
inflexível na tarefa reformadora, que o feu génio concebera,
confeguiu oufadamente emprehender e praticamente execu-
tar, como vamos ver e apreciar.
141
CAPITULO III
o MARQUEZ DE POMBAL E OS ACTOS PRINCIPAES
DO SEU GOVERNO
Quando Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por cir-
cumftancias, talvez cafuaes e impreviftas aos olhos do vulgo,
mas bem conhecidas e hoje preci lamente determinadas por
aquelles que eítudam e analyfam, em toda a fua complexi-
dade, os phenomenos fociaes, appareceu á frente dos negó-
cios públicos do Eftado, aíTenhoreando-fe do monarcha,
concentrando em fi todo o poder politico nacional, abatehdo
a nobreza, reprimindo o clero e fubjugando o povo, Portu-
gal era património do rei, feiídatario da corte de Roma,
objedo de exploração para as duas ordens privilegiadas, ermo
de patriotifmo, pupillo de nações eftranhas. O reino, povoado
de fumptuofos edifícios, e a corte, deflumbrante de oiro e fe-
das, como a fízera e deixara a prodigalidade monftruola de
D. João V, dobravam fob o enorme pelo de tantas pompas
em magnificências vans e defmoralifadoras. A nação, pobre
de adividade e iniciativa para trabalhes úteis e produdivos,
definhava, na mais defolada e repugnante miferia, á mingoa
de moralidade e infirucção, e pendia já fobre o fundo abys-
mo, que um luxo reprehenfivel e uma criminofa ociofidade
lhe tinham aberto pelas próprias mãos do rei, dirigido pela
corte de Roma, aconfelhado pelos jefijitas, lifonjeado pela
nobreza e dominado pelo beaterio.
Filho do feculo xviii, herdeiro da Renafcença, educado
na philofophia e na politica dos encyclopediftas, admirador
dos grandes homens da França e da Inglaterra, verfado nas
fuás theorias, mantendo com alguns boas relações de ami-
fade e familiar correfpondencia, feguidor das fuás máximas.
ela
cia
142
iniciado na vida politica e diplomática da Gran-Bretanha,
Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello via, bem claramente, os
males que affligiam o povo, e degradavam a nação, e que o
único remédio que podia oppôr-fe-lhes era ou a revolução
popular, a guerra civil, tempeftuola e terrível em fua acção,
talvez falutar e benéfica em fuás confequencias, ou a refor-
ma pacifica e diplomática das inftituições.
Para operar a transformação, que não fó os philofophos
annunciavam theoricamente, mas, de dia para dia, fe appro-
ximava da fua realifação pratica, tinha forçofamente de em-
pregar ou o meio violento da revolução popular ou a evo-
lução accelerada, mas bem combinada, fenfata e efficaz de
um vafto e complexo plano de reformas. Para a revolução
precifava de fervir-fe, como inftrumento, da força incon-
fciente do povo; mas como e por que procelTos poderia elle
arraftar eífa maíTa bruta, inerte, beftificada pela ignorância e
pelo fanatifmo?!
Para emprehender reformas quem é que lhe havia de
dar a precifa força e a indifpenfavel audoridade? O -clero?
A nobreza? Mas fe o clero e a nobreza eram, entre nós
e n'aquelle tempo, os maiores obftaculos, a lagoa impura
d'onde fe levantavam os deletérios miafmas que envenena-
vam o povo e matavam lentamente a nação?!
E depois como luftar e vencer as refiftencias, que, inac-
ceffivel montanha, fe erguiam diante da luz, ainda frouxa e
duvidofa, do futuro?
Quem lhe reftava pois? O rei? O rei fim, mas fem par-
lamentos, fem confelho de eflado, o rei abfoluto, o rei des-
pótico, infallivel na fua rafáo, omnipotente na fua vontade.
E do rei fe fcrviu para camartello deftruidor de tudo
quanto pôde embargar-lhe os paífos e tolher a fua acção
reformadora, preparando ao mefmo tempo o povo pela in-
ftrucção c pelo trabalho, como podcrofo elemento de rcorga-
-S-0-» *-c^
4» e|»
nifação e regeneração focial. Abandonando pois o plano re-
volucionário por ler impraticável, inefficaz e fem duvida,
n'aquelle tempo e para Portugal, contraproducente, quando
porventura foíTe poffivel, optou pelos proceíTos reformado-
res evolutivos.
Como politico propoz-fe o plano e as fahias providencias
de Richelieu, mas com outro fim e mirando a mui divcrfos
rclultados; como economifta e financeiro esforçou-fe por
imitar SuUy e Colbert; dilcipulo de Quefnay, aprendera com
elle e com os phyfiocratas que é no Iblo onde refide a
principal fonte de riqueza e as matérias primas de toda a
producção; como Adam Smith já não ignorava que fó o tra-
balho pode arrancar á natureza os feus produdos, e, trans-
formando-os, fazel-os fervir á fatisfação das neceíTidades hu-
manas, á felicidade nacional e á profperidade domeftica.
Foi defpota, foi tyranno, foi fanguinario. Muito embora.
O meio em que viveu e as circumftancias que o envolviam,
as ciladas, as confpirações, que, por toda a parte, o perfe-
guiam e infidiavam, explicam fatisfaftoriamente as violências
commettidas e os bárbaros expedientes, de que, mais de uma
vez, fe viu obrigado a lançar mão. O que não pôde negar-fe
ao Marquez de Pombal é eíTa grande virtude da franqueza,
rara em políticos e principalmente nos políticos do feu tem-
po. Podia ter fido aftuciofo e hypocrita como o celebre Ma-
zarin ; preferiu a força e a violência do grande Richelieu.
O que não pode negar-fe é que o Marquez de Pombal teve
a clara comprehenfão do feu tempo e do feu meio, e foube
prever o futuro, e prover, como ninguém antes d'elle o havia
feito, ás grandes e urgentes neceífidades do prefente, e pre-
parar o advento de um fyftema focial mui diverfo do que
dominava a fociedade portugueza fua contemporânea.
A maneira como fe houve e os meios que em.pregou é o
que vamos examinar.
eis
■44
Deixemos pois a critica, íempre mais ou menos arbi-
traria e apaixonada, e entremos no campo politivo dos fa-
étos, que experimentalmente comprovam as noíTas affirma-
ções.
Valendo-fe, por um bem combinado calculo, da protec-
ção, que, defde muito tempo, lhe difpenfava a viuva de D.
João V, da docilidade e benevolência de D. Jofé I (que de
feu pae havia recebido uma mediocre e fuperficial educação,
fendo por natureza débil em forças e talentos), gofando já
entre nós de um nome illuftre, que, a par de outros titulos,
tinha por fundamento a fubida reputação que alcançara em
Vienna d'Auítria, não perdeu a primeira occafião, que lhe pa-
receu opportuna, para, aproveitando o favor e a confiança
do rei, falvar o feu paiz, reivindicar a independência da na-
ção e dar liberdade ao povo.
Foi o feu governo um dos periodos mais gloriofos da nos-
fa hiítoria!
Foi Sebaítião Jofé de Carvalho um dos maiores vultos
do feculo XVIII !
Foi então que fe travou no meio de nós a mais porfiada
luda da reacção com a liberdade!
E por ilTo que, entre os grandes génios, fadados para ou-
fados commettimentos, entre os miniítros enérgicos em em-
prehender e vigorofos em executar, não ha nenhum que fe
lhe avantaje, nenhum que, em menos tempo, mais fe diítin-
guiífe, maiores benefícios prodigalifaífe ao povo e mais gloria
alcançaífe ao rei:
Reftaurou a difciplina militar.
Fortificou as praças d'armas.
Renovou a marinha.
Reanimou a agricultura.
Reftaurou e defenvolvcu as artes, de todo efquecidas, e
vivificou o commercio moribundo.
i
eis
49
'43
Reftabeleceu e firmou o credito publico, e organifou as
finanças.
Reformou e ampliou os eftudos fi.iperiores, fegundo os
progreflbs litterarios e fcientificos do feculo.
Abriu as portas da inftrucção popular, fechadas pelo je-
fuitifmo, áquelles que, durante feculos, haviam fido conde-
mnados ás trevas da ignorância e da fi.iperílição.
hiftituiu mais de oitocentas efcolas gratuitas para o enfi-
no primário.
Creou, e dotou collegios, efcolas fecundarias e profeífio-
naes para a navegação, commercio e outras induftrias.
Diminuiu as prerogativas, cerceou os privilégios, e abateu
o orgulho da nobreza.
Tentou apagar ódios de raça e extinguir ludas de cren-
ças religiofas.
Abriu caminho amplo á confufão das claffes e á egual-
dade perante a lei.
Tornou livres os indígenas do Brazil, e levantou barrei-
ras ao trafico infame e degradante da efcravatura.
Reprimiu as defpoticas exigências e a preponderância or-
gulhofa da infaciavel Inglaterra.
Fruftrou os planos ambiciofos da Hefpanha.
Celebrou tratados políticos e commerciaes com muitas
nações da Europa, e com outras o pado da noíTa independên-
cia, impondo-lhes o refpeito pela noíTa dignidade nacional.
Fundou e organifou companhias de commercio e indus-
tria, para reanimar as noíTas colónias, ou de todo abando-
nadas, ou prefa da cubica de extranhos efpeculadores.
Refiringiu o tremendo poder da inquifição, e profcrevcu
os autos de fé.
Dobrou, e venceu a preponderância pontificia, e refreou,
por vezes, a cholera do Vaticano, apontando ao Papa quaes
os limites onde devia expirar o feu poder temporal e politico . . .
4» «I»
<|3
146
Subftituiu á auftoridade dos jurifconfultos romanos e ás
argucias e fophifmas dos gloffadores, que mantinham agri-
lhoadas as leis e a jurifprudencia ao império ablbluto de uma
fciencia convencional, curvada fob o pefo de muitos íeculos
e já decrépita, a audoridade da Rafão, «eíTe poder fobera-
no, capaz de defcobrir a verdade»; alargando aíTim o campo
de exploração a um dos maiores génios do feculo, Pafchoal
Jofé de Mello Freire, o fabio jurifconfulto portuguez, que por
fi ío egualou, fe não é que excedeu, ao mefmo tempo Mon-
tefquieu e Beccaria.
Vendo que as artes e as Iciencias floreciam na Ingla-
terra e por quafi toda a Allemanha, para logo viu também
a neceflldade de operar uma revolução completa no mun-
do fcientifico, litterario e artiftico; e foi ella tão profunda e
falutar, que, no dizer de Almeida Garrett, «tudo mudou de
face; caiu o coloffo jefuitico, o reino de Ariftoteles e a bar-
baridade Thorniftica, para lhe fucceder Milton, Baccon, Des-
cartes, Newton, Linneu e outros».
E que o reflexo de uma nova luz brilhava do lado do fe-
tentrião, para inundar com o feu efplendor a nós «os me-
ridionaes, que eftudavamos as categorias e as fwnmas, agu-
çávamos diftincções, alambicávamos conceitos, retorcíamos
a phrafe no difcurfo, e torcíamos a rafão no penfamento»,
nada produzindo de bom e útil ao progreflb da humani-
dade.
A reforma da univerfidade produziu logo: Jofé Analtafio
da Cunha, Avelar Brotero, Monteiro da Rocha, Mello Freire
e muitas outras illuftrações, que, exterminando a barbaridade
theologica, haviam de produzir a civilifação, e, fundando a
republica das letras, pela foberania da fciencia, única verda-
deira e legitima, abater, fe não deítruir, o império ablbluto de
uma audoridade prepotente, acoitada fob a roupeta jefuitica
e entrincheirada por detrás do volumofo, mas indigefto, cor-
tii
'47
pus Jiiris romanoniin, das leis canónicas e dos mil in-folio dos
gloíTadores e reinicolas.
E a univcrfidade de Coimbra começou de ler mais uma
prova eloquente, não fó da influencia, mas também da fe-
cunda iniciativa, que as luiiperjidacles defenvolveram fempre
em preparar e promover as transformações evolutivas da ci-
vililação e as revoluções do progreíTo pela liberdade.
Bem fabia elle, porque a reflexão e a experiência poucas
vezes deixam illudir os homens de génio, que á republica
das letras, á emancipação da intelligencia deviam fucceder
— a democracia politica e a liberdade para o povo.
Foi também em virtude d'efta lei que á profunda refor-
ma religiola do feculo xvi fuccedeu — a revolução focial de
1688 em Inglaterra; e á grande revolução litteraria e fcien-
tifica das idéas no feculo xviii — a revolução politica de 1789
em França.
Ordenou que as execuções por divicias paraíTem dian-
te das portas das cadeias, que até 1774 em Portugal, até 1867
em França, íe abriam, como ainda hoje em Inglaterra, para
fequeftrar a liberdade d'aquelles, que muitas vezes não ti-
nham outro crime alem da pobreza, outro delido alem da
miferia.
E quando ainda hontem a imprenfa liberal de todos os
paizes faudava, cm nome do progreíTo, e applaudia, como
gloriofa e civililadora, a abolição de tão odiofa pena, have-
mos de ficar filenciofos ante a memoria do Marquez de Pom-
bal, que a eliminou, um feculo prim.eiro, em nome da hu-
manidade?!.
Finalmente, o Marquez de Pombal, ufando da oppreífão
e da tyrannia, empregando o terror e o defpotifmo, mirava
á grande transformação focial, que em França fe operou de-
pois; preparava, pacifica e diplomaticamente, o que ella fó
pôde alcançar por meio de uma conflagração geral, e entre-
T*
4^
-4-1-
gando-fe a todos os exceíTos, a todos os horrores da guerra
civil, á guilhotina e ás barricadas, com que immolava os feus
próprios filhos, e aíTolava as cidades, as villas e os campos,
enfanguentados pelos combates fratricidas ou entregues á vo-
racidade das chammas, á pilhagem e á carnificina!. . .
Não recuou o Marquez de Pombal, porque o julgou ne-
ceíTario e de maravilhofo effeito para libertar o povo, diante
do cadafalfo, levantado para rolarem algumas cabeças no-
bres.
Não tremeu o Marquez de Pombal, quando lavrou o de-
creto que expulfava os Jefuitas; pois com tão rafgada medida
não fó beneficiou Portugal, mas a Europa inteira e o Novo
Mundo; com efte adto de fabia politica quebrava as cadeias,
com que os padres da companhia amarravam as confciencias
ao pofte de uma fé convencional; limpava o corpo íbcial da
luperftição e do fanatifmo, que rapidamente fe propagavam e
defenvolviam, por toda a parte, aonde penetrava o mórbido
contagio da roupeta dos maus e falfos companheiros de Jefus!
Para alguns fão eftes dois fados dois grandes e execran-
dos crimes; para outros duas louváveis virtudes; para nós
dura neceíTidade, confequencia forçada na realifação de um
plano falutar e benéfico.
A nobreza e o jefuitifino eram, n'aquella epocha, os obs-
táculos gigantes, que fe oppunham ao eítabelecimento da li-
berdade.
A nobreza e o jefi.iitifmo, def herdando, efpoliando o povo
de tudo o que podia tornal-o livre e independente, difputando
o poder, a infiuencia e a preponderância monarchica, eram
eítorvo invencível ao Jyjtema reprejentativo, á adopção e re-
conhecimento legal das garantias conjlitucionaes e das prero-
gativas da coroa, que a philofophia politica do feculo, as ne-
ceíTidades do tempo e o exemplo da Inglaterra inftantemente
reclamavam, cuja triangulação havia fido habilmente traçada
-s-6- -<í>-^
■49
fobre — a inviolabilidade do rei — a refponfabilidade dos minis-
tros e a foberania do jt7o;'o.
O Marquez de Pombal queria a liberdade para a pátria
e para o povo, como a primeira fonte de engrandecimento
e profperidade nacional.
O Marquez de Pombal não phantafiava theorias politicas
nem traçava fyftemas philofophicos; não efcrevia pungentes
ironias e alperos epigrammas; não defendia e exaltava o pro-
teftantifmo, para cenfurar e maldizer a egreja catholica; não
perfuadia á revolta, nem excitava os povos á pilhagem e á
carnificina; concebia medidas úteis e prudentes, c executava-
as conforme as circumftancias imperiofamente o exigiam.
A regeneração íntima dos homens e das inftituições, e
não a organifação/or/;?!^/ e fuperficial do fyftema governativo,
foi o feu firme propofito, objedo confiante da fi.ia aftividade
e defvelo, embora para o confeguir foíTe neceíTario dominar
o rei, opprimir e defacreditar os nobres, defprefiigiar e aba-
ter o clero.
Tinha porventura o ra força, energia, firmeza de von-
tade, fciencia e coragem para íalvar a nação e o povo, e de-
tel-os á beira do abyfino, que de dia para dia lhes cavavam
profundo tantas caufas de ruina!'!
Seria baftante robufto o feu braço, poderofo o feu fceptro
de oiro, valiofos os diamantes da fi.ia coroa, para poupal-os
ao choque revolucionário, que, de perto e ao longe, le prefen-
tia, e que em breve devia abalar a Europa inteira, já confi-
deravelmente agitada pelas pulfações, que violentas fe fi.icce-
diam no coração da França, e que a faziam eftremecer até
ás mais afaftadas e.xtremidades?!
Qual teria fido o deftino do pequeno e então pobre e hu-
milhado Portugal, fe o não houveífem preparado para refiftir
á onda revolucionaria, que mais tarde lhe devia paífar por
fobre as quinas e inundar os feus cajlellos ?!
e|9
4 cts
i5o
Exiftiria hoje Portugal, como nação e paiz independente,
fe lhe não houveíTem dado, annos antes, força e coragem,
recurfos e patriotifmo, para não fuccumbir abatido ante as
armas viítoriofas do moderno Cefar, que, debaixo da forma
do defpotilmo e da tyrannia, da invalao e da conquiíta, con-
tra a fua vontade ou, melhor ainda, lem o prefentir, fazia,
com a ponta da efpada e com a boca de feus mil canhões,
a propaganda liberal?!
Era eil:a a fituação, difíicil e aggravada por muitos males,
em que o lábio e corajofo minilfro de D. Jofé le propoz á
tarefa enorme de reftaurar a pátria, quebrar o jugo extranho,
que lhe pefava odiofo, extinguir aquella vexatória exploração
ingleza, que, debaixo da apparencia de uma benéfica tutela,
lhe ia aniquilando as forças phyficas, ao mefmo tempo que
outros, invocando a f é e o Evangelho, a cruz e a redempção,
abrindo maímorras e atiçando fogueiras, iam apagando a luz
na alma e immobilifando o efpirito crédulo do povo! . . .
Reífabelecer a aítividade e a ordem no feio da familia
portugueza, dar-lhe a liberdade, fundar a felicidade domeftica
e a profperidade publica, tal foi o feu elevado empenho.
E, pois, a intelligencia, a vontade, o poder de um fó ho-
mem,— reanimando uma nação moribunda, preftes a efcon-
der-fe no cemitério da hiftoria, embora as gerações vindouras,
preftando-lhe a devida homenagem, houveíTem de lhe gravar
fobre a campa o mais gloriofo epitaphio; — chamando á vi-
da, ao trabalho, á liberdade e á independência um povo es-
cravo da nobreza e do clero, e, por iíTo, da ignorância, do
fanatifmo, da indolência e da miíeria; — elevando e fazendo
refpeitar um rei fervo da corte de Roma, rajfaílo da higla-
terra. . . .
Luíta infatigável de tantos annos, fe não de todo infrudi-
fera, porque a fcmente, que ficara efcondida na terra, veiu
mais tarde a germinar com o calor das revoluções, foi toda-
i5i
via mallograda pelas intrigas dos nobres e do clero, pelas
ambições da Inglaterra e da Hefpanha. Aquelles, ainda
hypocritamente curvados fobre o catafalco de D. Jole, jura-
vam o exterminio do homem, que confideravam feu impla-
cável e invencivel inimigo; eítas, infinuando, ás occultas, a
queda do independente miniflro, promettiam apoio fegiiro aos
que emprehendelTem, e conleguiíTem derribal-o.
A morte do rei fuccedeu pois a queda do miniflro, e por
ultimo a condemnação e o exilio do varão preftante e bene-
mérito, calumniado, perfeguido e procelTado por ter amado
e fervido a pátria, o povo e a liberdade!. . .
Poucos annos depois da fua morte, apreffada talvez pela
condemnação, que o obrigara a encerrar-fe em logar obfcuro
e afaftado da corte, onde oftentára fciencia e poder, força de
vontade e energia, regulando fabiamente os deífinos da nação,
que, por fua direcção immediata e em fuás próprias mãos fe
havia reanimado e engrandecido, realifavam-fe em França
as prophecias da revolução, com todos os horrores da guerra
civil.
A cabeça de Luiz XVI rolava nos degraus do cadafalfo,
que lhe alevantaram os defpotas da liberdade, como também
em Inglaterra havia caído abatida a cabeça de Carlos I. A
guilhotina fazia vidimas, tragava, devorava, em nome da
deufa da rafão, como a fogueira inquifitorial em nome da re-
ligião fanta! O punhal revolucionário, impellido pelo braço
homicida dos revohofos, alaftrava as ruas e as praças de
cadáveres, quafi com a mefma fúria, com que a realeza ca-
tholica e o papado em outras eras immolaram os albigenjes
e os fedarios da religião reformada.
Foi feu intuito, objedo de feus infatigáveis esforços, ob-
ter, por meios brandos e pacificos, os mefmos refultados, que
fe attribuem á grande revolução de 1 789, conquiftar as mes-
mas idéas, fazer dominar os mefmos princípios, firmar o
4^9
e|j
l52
poder dos reis na foberania de todos, dar a liberdade ao povo
por meio de uma conflituição reprefentativa, femelhante á que
vigorava em Inglaterra, embora para o confeguir foíTe neces-
fario uíar de tyrannia contra alguns nobres, decretar o ex-
termínio de uma congregação mais politica do que religiofa,
odiada já em toda a Europa e em muitas regiões da Ameri-
ca, condemnada pelas Univerfidades feculares, mal vifta dos
povos e de uma parte confideravel do clero, e até repudiada
pela Egreja.
Era forçofo, em tão arrifcado e perigofiírimo lance, em
circumftancias tão anormaes, oppor á tyrannia de alguns a
tyrannia de um fó, ao defpotilmo de muitos o defpotifmo em
nome do rei; de outra forte não confeguiria defarmar as ci-
ladas, desfazer as intrigas, cortar os tramas, fruítrar manejos,
furprehender confpirações, que tudo e por toda a parte a no-
breia e o jefuitifmo eítendiam, e machinavam ao rei, ao feu
minijlro e ao povo, que, ligando-fe, por um pado inviolável,
não tardariam a deftruir-lhes a infolente preponderância, a
extinguir-lhes os privilégios, a fupprimir-lhes as regalias, a
alevantar-lhes os foros, a picar-lhes os bra{óes, em uma pa-
lavra a dobrar-lhes as orgulho/as cervis fob o jugo inflexivel
da egualdade perante a lei.
Se o Marquez de Pombal não foffe vidima de falfas
accufações e vis intrigas, fe fe confervaíTe mais algum tempo
á tefta dos negócios públicos, invertido do fupremo governo
da nação, fe houveífe gofado junto do throno de D. Maria
da mefma confiança, apoio e favor, que alcançara perante
D. Jofc, a conjtituição liberal teria apparecido primeiro em
Portugal do que em França, em Hefpanha e em outros
paizes, e o fyftema reprefentativo feria proclamado entre nós,
pelo menos, ao mefmo tempo.
É efta uma verdade, que immediatamente deriva dos
fados, e que difficilmente poderá efcurecer-fe.
4» s^
OJ
o despotilmo, a tyrannia de que le argúe Pombal, era
importa pelas neceíTidades, como o único meio de chegar á
liberdade.
Foi por iíTo que lhe mereceram particular cuidado e des-
velado efmero a fciencia e a educação popular, a agricultura
e as outras induftrias, as artes e os officios, que arrancando os
homens da abjecção, que a miferia gera, da ociofidade, que
enerva e perverte, têem a fingular virtude de emancipar o povo,
entregando nas fuás mãos, com o fceptro do trabalho, a rea-
leza politica e a foberania nacional. AlTim preparava elle a
verdadeira democracia, irto é, a paíTagem evolutiva e pacifica
do velho regimen para o regimen [cientifico indiijirial.
Não ignorava por certo efte grande homem, que a liber-
dade e a tolerância fó com a liberdade e com a tolerância
podem folidamente fundar-fe no feio de uma nação.
Bem fabia elle que os partidários da liberdade e da
tolerância devem deixar o emprego da força aos partidários
da força e da intolerância.
Mas efte principio humanitário, que fó hoje começa a
converter-fe em preceito obrigatório e a penetrar nos hábitos
da confciencia particular e publica, efte grande principio
theorico, era naquella epocha, fenão defconhecido, attentas
as circumrtancias, de impoíTivel applicação na pratica.
O que no feculo xix, em 1868, não pôde realifar a Hes-
panha, era nos fins do feculo xviii uma utopia impraticável
cm higlaterra, em França, e muito mais em Portugal.
Os defignios do grande ertadifta e as fuás viftas eram
patrióticas; o feu ideal a emancipação politica, religiofa,
moral e económica do povo, que elle conhecia — grande,
opulento e fobcrano na hiftoria, — pequeno, pobre e efcravo
no prefcnte; o móbil que o determinava o amor da liberdade.
Sebaftião Jofé de Carvalho moftrava, em muitos dos feus
adíos, fer, no interior da fua alma c no intimo da fua con-
eis
4SÍ9
i-M
fciencia, pela rafão e pelo fentimento, um dos maiores e
mais enthufiafticos liberaes do feculo xviii.
Se não pôde ver executado o feu plano e levar ao cabo
tão gloriofa empreza, arremeíTando para longe a mafcara do
defpotilmo, foi porque o não deixaram; foi ainda a reacção,
que lh'o impediu, a injuítiça que lh'o eftorvou.
Defpojado do poder, privado da acção governativa, con-
demnado ao oftracifmo politico, exilado para longe da corte,
afaítado dos negócios públicos, viu mallograda a fua obra
nas fuás ultimas confequencias; não lhe embaciaram porém
a gloria, não lhe quebraram os brazões, e, o que é de maior
valia, não lhe extinguiram a gratidão no coração dos povos;
e, fe ao tumulo baixam efperanças, devia acompanhal-o a
lembrança de que um dia as fuás idéas haviam de fer rea-
Ufadas, os feus principios triumphar, e o plano, que lhe ab-
forvêra a exiífencia inteira, pofto em plena execução, o feu
nome exaltado, a fua reputação glorificada e os feus inimi-
gos, os inimigos do povo e da liberdade, confundidos.
Se ao Marquez de Pombal não permittiu a adverfida-
de das circumftancias continuar a obra do conjlitucionalifmo,
cabe-lhe, todavia, a bem-merecida gloria de preparar o paiz
e os povos para a proclamarem quarenta annos depois da
fua morte em uma conftituição democrática.
CAPITULO IV
o MARQUEZ DE POMBAL E A SUA INFLUENCIA
CONSEQUENTES E CONCLUSÃO
A transformação que Portugal experimentou, pela acção
previdente e reformadora do grande miniftro, aos elementos
de força e profperidade, que não fó iniciou, mas com que
legalmente dotou a pátria, ás inftituições politicas e econó-
micas, e aos germens de educação popular, que femeou, de-
vemos em grande parte os benefícios, que, com rafão, fe at-
tribuem á revolução liberal.
Sem o génio fecundo, fem a intelligencia vaíta e a dedi-
cação inexcedivel de Sebaítião Jofé de Carvalho, feria Por-
tugal conquifta partilhada entre a França e a Hefpanha, ou
nação livre e independente?
No eftado de deforganifação politica, de defordem moral
e económica, de miferia e degradação, a que Portugal tinha
chegado antes da fua adminiftração, feria poífivel o triumpho
gloriofo do partido liberal em 1820?
Cremos firmemente que não: alTim nol-o dizem a rafão
e a confciencia, firmadas na hiftoria e efclarecidas pela cri-
tica dos fados.
E por iíTo que entre as caufas remotas, mas elTencial-
mente determinativas, da transformação liberal, que depois
fe operou, devemos confiderar, como uma das mais impor-
tantes e efificazes, o governo forte e enérgico, a adminiftração
fabia e illiiftrada, a politica fevera e, por vezes, intolerante
do Marquez de Pombal.
Abone a hiftoria imparcial a verdade, que o paradoxo
efconde.
Que importa a cxpulfão dos jefuitas?
líò
Era uma neceíTidade para o eítabelecimento da liberdade
politica e da tolerância religiofa, que o Marquez de Pombal
amava, queria fundar, e que elles deteftavam. A extincção
dos jefuitas era condição impreterível, bafe fundamental de
todo o progreíTo moderno.
Que importa, que do alto do cadafalfo rolaíTem as cabeças
de alguns nobres, que, ociosos e embriagados no mais efcan-
dalofo luxo, confpiravam contra o rei, odiavam as reformas do
minifterio, queriam privilégios e prerogativas injuflificaveis,
opprimiam, e vexavam o povo, nada fazendo em beneficio
da pátria; e, de mãos dadas já com os inquiíidores, já com os
difcipulos de Loyola, dedicados familiares do fando ojjicio,
procuravam a morte do rei, a queda do miniftro e a ruina
da nação?!
A morte politica da ariftocracia feudal era uma neceíTi-
dade indeclinável para libertar o povo e eftabelecer, como
garantia jurídica, a egualdade perante a lei.
O Marquez de Pombal obftou por uma fabia politica —
ao defpotifmo do rei, á oligarchia dos nobres, á theocracia
dos jefuitas, á miferia e á degradação do povo.
«Foi, como fe exprimem alguns, odiado dos nobres pelo
feu nafcimento e pelo feu liberaliímo; dos inquiíidores pela
fua tolerância e moderada piedade; dos jefuitas pelo feu
faber e perfeverança ; da populaça por fua feveridade; dos
inglezes pelos obftaculos que lhes oppoz, e com que abateu
a fua prepotência commercial e politica. »
Os inimigos implacáveis do miniftro lo com a morte do
rei poderam derribal-o, mas não perdel-o. Afaftaram-n'o
dos negócios públicos; mas, nos dias do feu poder, nem lhe
torceram o animo, nem lhe afrouxaram os esforços, que con-
tinuadamente empregou para o engrandecimento e regene-
ração da fua pátria.
Interrogae a politica, a moral, a jurifprudencia, as finan-
-§-5»- *^k^
4» ejj
'37
ças, a agricultura, o commercio, a induftria, as artes, a na-
vegação, a milicia, a inftrucção publica, e até a própria reli-
gião; confultae as leis, as inftituições e os coftumes, e por
toda a parte encontrareis, ainda hoje, a fua acção benéfica e
reformadora, a fua poderofa influencia.
A guerra implacável, que então lhe fizeram os retrógra-
dos e os abfolutifias, os nobres e os jefuitas, a inquifição,
a Hefpanha c a própria Inglaterra, é a mefina que a reac-
ção machina e promove ainda hoje, e tem promovido fempre
contra os liberaes.
Se o Marquez de Pombal foi defpota, fe empregou o ter-
ror e a tyrannia, não lhe vinham d'alma taes exceíTos, nem
lh'os infpirava o feu génio altivo e fevero, mas liberal e bem-
fazejo; provocava-lh'os a reacção dos nobres e dos fanáticos,
exigiam-lh'os as neceíTidades da pátria e a refiftencia dos ve-
lhos e inveterados prejuizos do paíTado.
Não foi para exaltar o delpotifmo, nem para lifonjear o
monarcha, que, por amor do povo e para bem da nação, pa-
recia adorar a realeza.
Não foi para fatisfazer vaidofas ambições de quem nun-
ca moftrára tel-as, que a memoria do augiijlo príncipe fe gra-
vou no bronze da eftatua equeftre, nem o monumento levan-
tado para impor ao povo a idolatria monarchica.
Todos os grandes homens, como todos os fantos, têem a
fua eftrophe na epopea legendaria do povo.
Affonfo Henriques, Meftre d'Aviz, Nuno Alvares Pereira,
João das Regras, Vafco da Gama, D. João de Caftro, Affonfo
de Albuquerque, Camões, João Pinto Ribeiro, e mil outros,
perpétuos na hiftoria, fão creações ideaes na immortalidade
da legenda.
O Marquez de Pombal, tendo fido na realidade tudo o
que diffemos, é no bom fenfo dos povos um ente legendário.
E um typo ideal, que não fe apaga, que jamais fe apagará
-<>^ ■ «4^
4» e|í
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->-<>-%-
i58
na confciencia e na imaginação do noíTo povo, como o ferão
no futuro, e em parte já o eftão fendo Gomes Freire, Fernan-
des Thomaz, Borges Carneiro, Ferreira Borges, Moufinho da
Silveira, PaíTos Manuel, Alexandre Herculano. . . fão fem-
pre eftes os homens que o povo efcolhe para cantar na fua
lyra de oiro, para perpetuar-lhes a memoria na fua rude,
mas efpontanea e fincera poefia.
Todos os grandes homens começam por fer utopiftas; a
fua vida é uma luda fem tréguas. Em uma das mãos o ca-
martello deftruidor do palTado inútil que refifte, na outra o
facho civilifador das idéas novas, alumiando o caminho do
futuro que a lua rafão defcobre.
Para premio as mais das vezes o martyrio; para recom-
penfa o efquecimento ou a injuftiça na hiftoria.
Mas, para falval-os d'eíre efquecimento ou reparar eífa
injuftiça, lá eftá o bom fenlb, o efpirito refto, a alma poética,
o coração agradecido dos povos, a legenda, eífe — rdatus in-
ter divos, com que elle íignifica, e apregoa a immortalidade e
faz a apotheofe dos feus heroes.
A eftatua de D. Jofé I pôde tomhal-a a mão foberana do
povo, ou pulverifal-a a lima edaz do tempo, que aíTmi gafta
o granito como o bronze, e tudo confome.
A realeia abfoluta, depois de haver durante feculos con-
trariado os progreífos da civilifação pela liberdade, pôde fer
amanhã um facto utópico^ fem valor na confciencia da hu-
manidade, fem deixar faudades nem merecer bênçãos; mas
o homem grande pela grandeza do génio, pelo acerto e ener-
gia de acção, o homem, que, illuftrando a pátria, beneficiou
o povo, é vulto que fe ergue mageftofo ante os olhos de to-
das as gerações que paífam e em todos os feculos que voam;
tem a immortalidade no fcntimento intimo das maífas, na
confciencia do povo, em cada coração um altar de fauda-
des, em cada cabeça um monumento de gloria, em cada
eis
'59
boca uma trombeta a apregoar-lhe as virtudes. . . e todas
as mãos fe erguem para o abençoar e applaudir.
Que a realidade hiftorica do grande Sebaftião Jofé de
Carvalho e Mello correfponde á pocfia da legenda provam-o
muitos documentos, cuja authenticidade não pôde fer contes-
tada: foi por iíTo que nos difpenfámos de os apontar ou
tranfcrever.
E quando erigimos cftatuas, e levantamos columnas, e fu-
blimâmos arcos de triumpho, e cunhámos medalhas comme-
morativas, e gravámos legendas no mármore ou no bronze
em honra dos grandes homens, é fempre em honra e para
gloria da humanidade, para marcar eftadios n'efte caminhar
inceffante da civilifação univerfal, de que a humanidade é o
infatigável, omnipotente e fabio creador, e não para impor,
em nome de um paíTado irreftauravel, ás novas gerações a
adoração dos f eus fetiches, a idolatria dos feus deu/es, o culto
dos feus; mas apontar-lhes o exemplo dos feus beneméritos.
Não foram fó os germens da civilifação, defpontando ao
foi da renafcença, a luz irradiada pela philofophia do feculo
XVIII, o brado univerfal de 1789, as armas de Napoleão I, o
drama fanguinario de 18 17, que prepararam a revolução
de 1820.
De longe, de mui longe nos veiu e fe gravou em Portu-
gal o efpirito de liberdade e de independência. Manifeftou-fe,
bem folemnemcnte, na iniciativa popular em i385; mais fo-
lemnemente ainda em 1640; arraigou-fe, de um modo profun-
do e indeftru6tivel, durante a fabia adminiflração de um gé-
nio reformador, que lhe preparou o campo de fuás legitimas
conquiftas, e removeu os eftorvos, que lhe empeciam o cami-
nho, por onde, mais tarde, devia deixar feu raftro luminofo.
Foi eífa epocha o prologo fecundo das revoluções! Effe
homem o precurfor admirável do liberalifmo!
Foi mais uma lufta gigante dos opprimidos contra os
(|3
i6o
defpotas; a reacção /ocial contra, a reacção idtramontana; lu6ta
na qual, por fim, a liberdade pareceu fuccumbir, e deixar-fe
efmagar debaixo dos pés da ariftocracia orgulhofa e da clerelia
degenerada e pervertida, para mais tarde refurgir, e erguer-fe
do mal encerrado tumulo, vigorofa e oufada para cantar no
dia do merecido triumpho o hymno da legitima vidoria!
Em Portugal, como em Inglaterra, como em França, a
revolução reformadora teve os feus precurfores: para não
fallar em muitos outros, de mais circumlcripta efphera e me-
nor vulto, apontaremos para o celebre miniftro de D. Jofé.
Coimbra, abril de 1882.
Dr. Manuel Emygdio Garcia.
I
i
A LEGISLAÇÃO POMBALINA
oje que cm toda a Europa fe denuncia uma
reacção contra as phantafias do efpiritualifmo
ou do romantifmo dominante no fegundo quar-
tel do feculo, é chegado o momento de fazer
juftiça ao grande portuguez de ha cem annos.
Portugal nunca deixou de o venerar como
o Sanfão cujos hombros alluiram as columnas
miferaveis d'eíra fociedade fradefca e beata, educada pela
férula dos jefuitas e coroada por D. João V — Rei-bolonio,
como dizia Alexandre de Gufmão, o brazileiro, ou Grande-
governador da ilha dos Lagartos, como diíTe, antes de fer
queimado, o illuftre António Jofé.
Mas o antigo efpirito portuguez acclamava fomente em
Pombal o Anti-chrifto, o inimigo figadal dos jefuitas, ao
paffo que o moderno efpirito jacobino ou radical veiu tam-
bém acclamar apenas o plano dos ataques ás velhas infti-
tuições nacionaes, a fúria demolidora do eftadifta que, infpi-
rado pelo mecanifmo abftrado do feculo xvni, difcipulo de
c|3
162
Newton e Defcartes, lavrou o terreno para a fementeira das
doutrinas individualiftas e radicaes com o arado dos princí-
pios utilitários que não infpiravam menos o Marquez do que
os eítadiítas dos noffos dias.
Tempo é já de moftrar, porém, que efte principio reves-
tia no feculo xviii formas de realidade bem diverfas das
modernas. A Utilidade que então apparecia como a alma do
Eftado, tornou-fe depois o apanágio abfoluto do individuo:
negou-fe a realidade dos corpos colledivos, negou-fe-lhes a
autoridade eminente, diíTipando-fe theoricamente a idéa de
nação e prégando-fe o ilblamento ou a autonomia dos indi-
víduos congregados fortuitamente fobre a immenfa área do
globo. O humanitarilmo tomou o logar do civifmo, o cofmo-
politifmo fubftituiu o amor-patrio, o liberalifmo paíTou por
fobre as idéas de audoridade focial, negando-as, ao mefmo
tempo que um vago efpiritualifmo deifta negava o Deus po-
fitivo das religiões chriftans. Dir-fe-hia que um nevoeiro
denfo, envolvendo em li todas as coufas reaes, apagava os
contornos, efbatia as cores, pondo em vez de noções defini-
das e pofitivas, um cháos vago, diíTufo, confufo, de opiniões
poéticas. Chamou-fe Romantifmo a effa revolução cujas ul-
timas refracções ouvimos ainda hoje no vozear eftridulo mas
já efporadico dos clubs da demagogia radical. Ha trinta an-
nos era um clamor unifono de enthufiafmos, de efperanças,
de illufões finceras, ingénuas e univerfaes!
Effa nuvem que paffou, como paffa ás vezes uma tro-
voada para limpar os ares, era a nebulofe das idéas natura-
liftas: era uma nuvem de reptos fentimentaes, apaixonados,
abfolutos por iffo mefmo que eram efpontaneos, chimericos
por ferem apenas fentidos, fortes por ferem ingénuos. Era a
explofão de um naturalifmo inconfciente, rebellando-fe con-
tra todas as idéas formaliftas da mecânica dos architedos
claíTicos — na politica, nas artes, nos coftumes. O vendaval
i63
paíTou, vafaram as torrentes, regreíTaram os rios aos feus
leitos depois de terem ennateirado as terras das margens, e
viu-fe então que motivo pofitivo e real determinara a crife.
Os architedos tinham chegado a efquecer que o material
humano tem veias e fangue, que o homem não é uma ab-
ftracção numérica ou geométrica ou chrematiftica; tinham
chegado a penfar que uma nação era uma tavola de xadrez ;
tinham concebido como abftracções mathematicas, os ho-
mens, as coufas e as nações. A reacção romântica, ou libe-
ral, naturaliíta e efpiritualiíta — pois todos eftes caraderes
partilha — paíTou, mas paíTando alargou os horifontes do
penfamento, e reconítituiu o edifício do direito fobre duas
bafes naturaes — a Vontade, ifto é, o querer dos cidadãos, e
a Egualdade, ifto é, a affirmação da tendência neceíTaria das
fociedades para uma approximação fempre crefcente das
condições de todos. Antes da crife, a Vontade era fymbo-
lica, perfonalifada em Deus e no Rei, e a Egualdade era
ainda inconfciente, pois fe realifava fob as formas antagóni-
cas da protecção ariftocratica.
A defínição d'eíl:es dois princípios deu uma fignificação
nova á velha palavra — Democracia. Poderíamos juntar-lhe
o adjeótivo /cientifica, pois de fado a fciencia, introduzindo-
fe em todas as efpheras do penfamento contemporâneo, dá-
Ihe uma phyfionomia fem precedentes. Eífa Vontade, eífa
Egualdade, que fícaram como fumma, ou fynthefe, das re-
voluções da primeira metade do feculo, não fão já hoje os
fentimentos e phantafias poéticas dos arrebatamentos d'ou-
tr'ora. São princípios tão íntimos, tão reaes, tão pofitivos, tão
orgânicos, como as leis geraes da cofmogonia ou da biolo-
gia. Concebidas aíTim — e não nos é licito já concebel-as de
outra forma — apparecem-nos como a alma de um corpo,
denunciando-nos a realidade pofitiva, moftrando-nos o viver
orgânico e íntimo das fociedades: feres tão reaes na congre-
eij
«|9
164
gação dos feus elementos humanos, como o homem o é na
congregação dos feus órgãos, e cada órgão na reunião de
cellulas de que fe compõe.
Os princípios deduzidos, pois, da revolução naturaliíla
do principio do noíTo feculo, reagem contra o penfamento
fubjedivo que a infpirou; e reagindo vão prender-fe ou li-
liar-fe nas idéas do feculo xviii, como um eftio fuccede a
uma primavera depois que as trovoadas de maio revolucio-
naram as feivas e as fontes. Por iífo nós diífemos ter che-
gado o momento de fazer a apotheofe do noífo eftadifta, não
como demolidor do paífado, mas como apoftolo do futuro.
Um feculo baftou para que voltaíTe a coordenar-fe a ferie
dos anneis que formam no tempo a evolução das idéas.
Quaes fão os princípios pofitivos que infpiram a legifla-
ção pombalina em fi, defpida das formas accidentaes ou his-
tóricas (monarchia, ariftocracia, fyftema-mercantil, etc.) que
os revertem? Parece-nos poderem reduzir-fe a duas expres-
fões fummarias:
A primeira é a de que uma nação é em fi um todo, um
corpo, um organifmo, vivendo por leis que lhe dão homo-
geneidade, confiftencia e força baftante para ter uma con-
fciencia nitida do feu querer e do feu poder, da fua au-
doridade e da fua nobreza. — Eífa nação do penfamento
pombalino era uma conftrucção apparatofa, como os templos
claflicos, de pórticos oftentofos, com uma cúpula — a mo-
narchia— efcadarias de nobreza, archontes como na Gré-
cia, parachiftas como no Egypto, e pelos pateos vaftos as
plebes de peões fubmiífos.
A fegunda denuncia, no fundo da pompa claíTica, um
penfamento pratico. O templo é um fcenario, não é um fa-
crario. Cúpula, degraus, pórticos não fe levantam do chão
como efílorefcencias efpontaneas da alma religiofa: fão utili-
dades, fão neceíTidades indifpenfaveis á confervação do edi-
■<y» •-<Í>-§-
i65
ficio focial. Monarcha, fidalgos, facerdotes, throno, nobreza,
clero, fão inftrumentos de fomento e manutenção do povo,
na fua unidade total e concreta. A utilidade geral é de íado
o principio das leis: não é já o culto de um deus que nos
anima ou de um foberano que adorámos — embora fe ve-
nere effe deus e fe obedeça a eíTe foberano, por iífo que,
aufentes ambos, o edifício inteiro da fociedade cairia por
terra em ruinas.
Não cabe de certo nas acanhadas proporções d'efl:e arti-
go analyfar perante os textos das leis os vários caradteres das
numerofas reformas pombalinas, para verificarmos a exa-
étidão do que antes deixámos efcripto. E em vez de abraçar-
mos o conjuncto da legiílação do Marquez, eífudando-o nos
feus traços geraes, entendemos mais ufil e mais pratico limi-
tar-nos a uma efpecie: feja eífa o regimen das heranças, dos
legados pios e dos morgados, conforme fe vè das leis de 25
de junho de 1 766, de 9 de feptembro de 1 769 e de 3 de
agofto de 1770, todas mais ou menos completamente revo-
gadas pelos decretos dos dois primeiros annos do governo
reaccionário de D. Maria I.
A primeira d'eíras leis tem como fim corrigir o defvaira-
mento dos teftadores «reduzindo com os referidos abufos
bárbaros e cruéis muitas e muito numerofas familias á lafti-
mofa indigência», diz o preambulo. O legiflador tem em
vifta manter de pé a unidade da família, molécula da focie-
dade, viciada profundamente entre nós defde o feculo xvi,
primeiro pelas expedições ultramarinas e fuás confequencias,
depois pelo myfticifmo da educação jefuita. A beira do tu-
mulo, o moribundo efquecia os filhos pelos padres, e a forte
dos que deixava na terra pela fonhada fortuna das regiões
ultra-tumulares phantafticas. Explorando com uma finceri-
dade mais ou menos genuina efta difpofição dos efpiritos, o
clero fomentava os abufos, e eram frequentes verdadeiros
«1»
i66
crimes e extorfões: «profanaram as difpofições canónicas e a
difciplina regular nas frequentes fimulações e extorfões com
que fizeram fcrvir os cânones da Egreja e os eftatutos das
ordens religiofas á infaciavel e eftranha cubica » . A franque-
za crua com que as coufas fe dizem nas leis pombalinas
attefta mais ainda a força e a convicção que as infpirava do
que a violência das fuás difpofições pofitivas. O Marquez foi
o ultimo eítadifta dos antigos que teve génio e a coragem con-
fequente para fallar verdade. Dos modernos ha um único:
Moufinho da Silveira.
A lei de 2 5 de junho creava uma ferie de caufas de
nullidade de teítamento, e n'eíra ferie o obfervador encontra
a revelação dos proceífos criminofos com que fe extorquiam
as heranças. A lei annullava toda a herança e todo o lega-
do a favor de parente d'aquella peífoa que tiveífe efcripto o
teftamento, a favor de confraria ou corporação a que per-
tenceífe: os bens iriam para os herdeiros legitimos, ou, não
os havendo, para o íifco. Tampouco podia herdar o parente
ou o afiliado na confraria ou corporação do letrado habitual
confelheiro do defunto; tampouco frades podiam fer teíta-
menteiros; e eram nuUos todos os teítamentos lavrados pelo
enfermo no feu leito, quando atacado por uma doença grave
ou aguda.
Conforme fe vê, a lei de 2 5 de junho tinha apenas, diga-
mos aíTim, um carader preventivo ou policial; mas a que
fe lhe feguiu três annos depois, em g de feptembro, feria
mais fundo, introduzindo alterações graves no regimen das
heranças. O feu penfamento evidente é impedir a diminuição
das caJas de fidalgos ou burguezes enriquecidos: eííasfami-
lias que para o eítadifta do feculo xviii eram a corte do
monarcha, força da nação, núcleos de fomento e ancoras de
fegurança. As idéas modernas de egualdade na diítribuição
da riqueza, de divifão da propriedade do folo, não tinham
eis
167
lurgido ainda; e le hoje a eítrudura das nações fe concebe
de um modo democrático, ha um feculo as leis do noíTo
Marquez moítram a uhima forma que as idéas ariftocrati-
cas reveftiram quando á nobreza do fangue e á protecção
feudal fe fubítituíra já na philofophia do direito a idéa da
utilidade.
A lei de g de feptembro ordena que todo aquelle que
herdar, tendo parentes até ao quarto grau, não poderá dis-
por em vida do valor d'eíras heranças. Se não tiver outros
bens alem d'elTes poderá teftar a tcTça, mas exclufivamente
a favor de um filho ou defcendente; tendo porém riqueza
lua própria, adquirida por trabalho ou induftria, a difpofição
teftamentaria da terça é livre. Quando o herdeiro não tenha
parentes até ao quarto grau, poderá difpor de metade dos
bens herdados e de todos os adquiridos como bem lhe pa-
recer.
«Porquanto, diz em feguida a lei, tem chegado aos últi-
mos exceíTos a defordem e a defhumanidade com que nos
teftamentos fe coftuma quotidianamente (debaixo dos pre-
textos de caufas pias e bens-da-alma) abular impia e intole-
ravelmente da fraqueza e defacordo dos teítadores preoccu-
pados com as funeftas cogitações da vida e da morte ...»
porquanto, na fua grande maíTa, os bens diflrahidos da for-
tuna das famílias iam parar ás mãos abforventes de um cle-
ro fanatifado e ávido — eíTe clero inimigo da eftabilidade
do templo da nação — a lei eífabelece:
Que os legados pios ou bens-da-alma não poíTam jamais
fer fuperiores ao terço da terra livre, ifto é, ao nono da tota-
lidade dos bens do teítador; e que cm todo o cafo eíTa quan-
tia nunca poderá exceder o máximo de 4oo.'!íooo réis. Efie
limite é egualmente importo aos herdeiros do que morreu
ab intejlato, para as defpezas de íliífragios pela alma do de-
funto.
?- -Ò-|.
eis
c|9
168
Que enorme campo de lavra fupprimido! Não parava,
comtudo, aqui o atrevimento do Marquez. EUe queria dis-
folver a confraria de facriftães que a nação fora no tempo
de D. João V — e voltou a fer no de D. Maria I, terminado
o interregno do autocrata. A vida de frade era a melhor e
a mais rendofa: cortou a queftão pela raiz, excluindo todos
os que profeíTaffem do direito ás heranças ab intejlato, ás
heranças diredas paternas, e á fucceíTão dos bens vincula-
dos.
O efpirito mylTiico portuguez tinha enxertado na inftitui-
ção vincular uma inftituição religiofa: as capellas, taes e tan-
tas que tornavam muitas vezes uma inftituição de direito
económico, e uma invenção deftinada a manter os grandes
núcleos de riqueza e a tradição das famílias, n'uma fimples
fonte de rendimentos pingues e eternos para a clerezia. As
confiderações da lei a tal refpeito fão inífrudivas e eloquen-
tes :
« Por uma parte, fão já tantos os encargos de miíTas, que
ainda que todos os indivíduos exiftentes n'efl:es reinos em
um e outro íexo, foíTem clérigos, nem aífim poderiam dizer
a terça parte das miíTas que confiam das inftituições regifta-
das nas provedorias dos mefmos reinos; cm uma das mais
pequenas das quaes (por exemplo) fe acharam inftituidas
doze mil capellas e mais de quinhentas mil miíTas annuaes.
í Por outra parte, para fe diíTimular e cobrir a referida
impoíTibilidade, fe affeílam Bulias Millenarias que não exis-
tem, nem poderiam exiftir fem o reprovado vicio de fimonia;
e fe fazem negociações fordidas de flores, doces e outras
mercadorias, a troco de miífas Ibllicitadas para as fazerem
gyrar as peífoas que as bufcam depois de confeguidas.
«Por outra parte, aíTim fica fendo incomparavelmente
menor o numero de almas beneficiadas com as miífas que
effeítivamente fe dizem, ou podem dizer, do que o das ou-
eis
cl?
169
trás almas, quafi innumeraveis, que fe não aproveitam nem
podem aproveitar das outras miíTas accumuladas e luppoítas
que não podem dizer-le.
» Por outra parte, fendo licito, no prefente eftado de defor-
dem, a qualquer proprietário de bens, gravar as fuás terras
com os referidos encargos, tendo feu filho a mefma liberda-
de, e paífando efta ao neto e bifneto e mais defcendentes,
dentro em poucas gerações ficarão eftas terras, não fó inúteis,
como moleftas ás famílias dos fobreditos inflituidores . . . e
fe chegará ao calo de ferem as almas do outro mundo fe-
nhoras de todos os prédios d'eftes reinos.
«E por outra parte, efte cafo, fendo muito trifte, fomente
figurado, acha-fe já tão infelizmente fuccedido que, fe todos
os encargos adualmente impoftos fe cumpriífem, não baila-
riam para a fatisfação d'elles todos os rendimentos das pro-
priedades d'eftes reinos . . .
«As propriedades de cafas, os fundos de terras e as fa-
zendas que foram creadas, — diz ao depois a mefma lei, —
para a fubfiftencia dos vivos, de nenhuma forte podem per-
tencer aos defuntos. Nem ha rafão alguma para que qual-
quer homem depois de morto haja de confervar até ao dia
de juizo o dominio dos bens e fazendas que tinha quando
vivo. Menos a pôde haver para que o fobredito homem pre-
tenda tirar proveito do perpetuo incommodo de todos os feus
fuccelfores até ao fim do mundo ...»
Ifto era dito, como fe vê, n'uma linguagem franca, chan,
popular até, como a dos relatórios poíleriores de Moufinho
da Silveira, como a de todos os que tèem convicções e força
no carafter e na intelligencia. A franqueza é o melhor fym-
ptoma do génio, e o eftylo baço, anonymo, arrevezado, das
fecretarias de hoje ficará como um documento da incapaci-
dade dos fecretarios que a nação tem tido.
Ao nervo do eftylo correfpondc a nitidez das decifões:
eis
c|3
Prohibição abfoluta de creação de novas capellas; abolição
das devolutas ou que forem devolvendo á coroa por vacantes ;
limite de um decimo do rendimento dos bens encapellados
para encargos pios; nuUidade de todas as difpofições ou con-
venções caiifa mortis ou inter-pivos em que fe inftituir a alma
por herdeira; livres todos os bens de Capellas e Anniverfarios
que renderem, deduzidos os encargos, menos de i ooJíooo réis
nas províncias do reino e 2ooí?ooo réis na corte e Extrema-
dura.
Efta ultima difpofição prende-fe diredamente com o as-
fumpto da lei de 3 de agofto de 1 770, a ultima das três que
efcolhemos para o noíTo eftudo. Eíla lei é um prenuncio do
penfamento realifado feffenta annos depois por Moufinho: é
o principio da reftauração da propriedade rural pela reacção
contra o regimen vincular. Atacar os morgados, dir-íe-ha, é
illogico para o penfamento de um eftadifta como Pombal,
o que via na corte de grandes famílias opulentas o alicerce
da fortuna da nação. Não é; a idéa do eftadiíta apparece
clara n'eftas palavras que tranfcrevemos :
«Sendo a inítituição dos morgados em geral uma rigo-
rofa amortifação de bens contraria ao ufo honeífo do domí-
nio que o proprietário tem por direito natural, contraria á
juftiça e á egualdade em que eíTes bens deviam fer reparti-
dos entre os filhos; contraria por iflb á multiplicação das fa-
mílias, contraria ao gyro do commercio que dos melmos bens
em liberdade fe podia fazer . . . mas fendo por outra parte
neceífaria a referida amortifação nos governos monarchicos
para eftabelecimento e confervação da nobreza ...» a lei fup-
prime todos os vínculos de rendimento inferior a 2002^000
réis na Extremadura e Alemtejo, e a ioo;jíooo réis nas ou-
tras províncias, falvo quando uma cafa exifta com o ren-
dimento fommado de vários vínculos minufculos; fupprime
todos os vínculos que correm fem títulos fuíficientes ; fup-
u
prime os morgados, creados para os filhos-fegundos e os de
agnação e mafculinidadc; eftabelecendo que não fe creará
mais vinculo fem licença regia efpecial, e que effa licença
nunca poderá fer dada a bens de rendimento inferior a réis
2:4003^000 na corte e i:2oo.:*ooo réis nas provindas.
O penfamento é pois claro, a decifão nitida : o vinculo é
uma inftituição excepcional e até contra direito, mas Juftifi-
cada pela neceíTidade focial de grandes núcleos de proprie-
dade, de familias ricas — iíTo a que no feculo xviii fe chama-
va nobreza, mas que era já uma claíTe inteiramente diverfa
da antiga ariítocracia fegundo o direito feudal dos godos da
Hefpanha.
Efte rápido cftudo que fizemos, aíigura-fe-nos eminen-
temente illuftrativo. Todo aquelle que applaudir o grande
Marquez, quando elle coarda o direito natural de teftar os
bens próprios a favor de quem quer que feja, com o fim de
falvar a alma, ou de enriquecer as egrejas; todo aquelle que
alTim fizer, é contraditório comligo mefmo quando acclame
ao mefmo tempo o radicalifmo liberal individualiíta, cuja pri-
meira confequencia natural é o direito abfoluto de dilpor de
tudo o que nos pertence e é noífo, como e quando muito bem
nos aprouver. Perante a doutrina, fó é lógica a liberdade de
teftar, como exifte em Inglaterra — o ex-modelo das nações.
Se nós, continentaes, não penfàmos aflim, e entendemos ne-
ceífaria á confervação da fociedade uma legiflação regula-
dora das heranças, coercitiva do jus utciuii et abutendi: nós
feremos inconfequentes fempre que negarmos a realidade de
um principio anterior, de uma idéa ou de um critério fupe-
rior á idéa da liberdade individual. Eífe principio, eíTa idéa,
eífe critério, é como que a alma da fociedade: é a egualdade,
que infpirando as normas de uma juífiça focial diliributiva,
tem de combinar-fe com a força expanfiva das vontades in-
dividuaes, n'uma equação que o eftadifla de génio formula e
que, deftruida, dá de fi as revoluções anarchicas ou as ty-
rannias brutaes.
Eis ahi o que hoje a fciencia do direito diz pela boca
do feu mais eminente cultor, o grande Bluntfchli; e por iffo,
agora que os nevoeiros naturaliftas do romantifmo indivi-
dualiíla e liberal fe diffipam, furge o momento propicio para
reftabelecer fobre o feu pedeftal de gloria o noffo grande es-
tadifta.
O que deixámos efcripto moftra comtudo que, fe nós ap-
plaudimos o principio da fua legiflação, não é já do noífo
tempo applaudir da mefma forma as theorias em que eífe
principio fe vafava no feculo xviii. A ariftocracia e á monar-
chia fuccederam a egualdade nas claífes e a democracia nas
inítituições; mas a evolução natural das theorias não deftroe
a noção da fociedade em 11, como realidade de exiílencia col-
lediva dos homens.
Na fua Hijloria do Futuro o padre Vieira efcrevêra: «Ah!
fe os reis e monarchas confideraífem que as purpuras que
veftem lh'as empreita Deus da fua guarda-roupa para que
reprefentem o papel de reis emquanto elle for fervido!»
Então, na ferie de miniftros da egreja que por feculos to-
maram fobre fi o veftir e defender os reis, o padre era o
alfayate dos foberanos. O ideal da monarchia jefuita era
theocratico.
No feculo xviii, lê-fe nos preâmbulos da lei de 9 de feptem-
bro de 1769: «E fendo infeparaveis da alta e independente
foberania que nas matérias temporaes recebi immediatamen-
te de Deus Todo Poderofo o poder de regular as difpofi-
ções dos bens de meus vaífallos em commum beneficio. . . »
Vê-fe pois que o fymbolo fe fimplificou: no Ablblutifmo o
rei é facerdote civil.
Hoje fó é foberana e abfoluta a fociedade. Traduzam-fe
pois democraticamente as formulas antigas, e ver-fe-ha a
eis
cts
173
identidade de um penfamento orgânico expreíTo de um mo-
do evolutivamente variável.
O momento do Marquez de Pombal precede o noíTo ; o
noíTo eftadifta é pois um precurfor, embora a fua doutrina fe
formulaffe de um modo já hoje caduco para nós, e a fua
empreza falhaíTe em um paiz abaftardado por dois feculos
de educação jefuita.
Oliveira Martins.
e|9
i
sU
-i>-^
o MARQUEZ DE POMBAL
A COMPANHIA DE JESUS
publicação do decreto que em 3 de feptembro
de 1759 expulíou para /e}7ipre de Portugal e
feus domínios toda a forte e difciplinada mi-
lícia da Companhia de Jelus é o fado, fe não
mais importante, pelo menos mais ruidofo de
toda a vida publica do Marquez de Pombal.
A eíTe decreto audaciofo deve o miniftro de
D. Jofé o ler conhecido ainda hoje d'aquelles mefmos que
não lêem a hiftoria; porque o povo portuguez, que efqueceu
todos ou quafi todos os ados políticos da fua longa dida-
dura, fixou eíTe de memoria e, ao penfar agora na figura im-
perativa e proeminente do eftadifta revolucionário, não vê
n'elle nem o diplomata, nem o economifi:a, nem o miniftro
reformador da inftrucção nacional, mas o inimigo da Com-
panhia, o inclemente pcrfcguidor dos jefuitas.
Sobre o ado didatorial de 3 de feptembro de lySg, pre-
ludio fignificativo de um rompimento de amigáveis relações
eis
Ài
-<>^
tradicionaes entre a corte portugueza e a cúria romana, de-
correram já cento e vinte e dois annos; e no entanto ainda
fe não extinguiram de todo as paixões que no momento pro-
vocou. Minoradas, fem duvida, pela acção pacificadora do
tempo, é todavia certo que ainda hoje fe exacerbam no fun-
do de muitas confciencias as emoções de lympathia ou de
rancor que, no accêfo da luda, le defencadearam em torno
do enérgico minifi:ro. Os fentimentos d'eíra epocha não revi-
verão mais com o vigor febril que os carafterifou um dia,
nem a Europa do feculo xix tornará a ler, de certo, os pam-
phletos virulentos e acrimoniofos com que os amigos do
Marquez e os amigos da Companhia inundaram, na hora da
luda, a Europa do feculo xviii; mas, porque exiftem ainda
ultramontanos impenitentes e revolucionários fem educação
fcientifica, taes fentimentos, que um dia foram coUedivos e
intenfos, reapparecem, embora individuaes e já enfraqueci-
dos^ agora que fe celebra o centenário do homem que os
provocou.
Ao eítrepito formado pela conjuncção defharmonica de
encomiaíticas declamações e defconcertados proteítos, impor-
ta refponder ferenamente com a hiftoria na mão. Compete-
nos a nós, homens de uma geração que fe educou no eftudo
fevero da philofophia fcientifica, proclamar fem paixões inop-
portunas a inteira verdade.
Para comprehender o fado hiftorico da expulfão dos
jefuitas é mifter confideral-o nas fuás caufas determinantes,
na maneira efpecial por que foi preparado e levado a effeito,
e ainda nas confequencias a que deu origem. As condições
geraes do paiz ao tempo em que o fado fe realifou e as in-
tenções que prefidiram no efpirito do miniílro á publicação
do celebre decreto, fão também circumftancias de que não
podemos abftrahir, fob pena de fazermos um eftudo incom-
pleto e uma falia apreciação.
1 f
•77
N^eíle fentido examinaremos as relações do Marquez de
Pombal com a Companhia de Jefus, relações hoftís cujo
epilogo tremendo foi o decreto de lySg.
Ucnoncer à ies voluntés propres ert plus méritoire que de
réveiller Ies morts.
Pas d ennemi qui loit aufTi dangereQX que Tableuce de
tout ennemi.
LOVOLA.
Introduzidos em Portugal no reinado de D. João III, os
jefuitas alcançaram rapidamente Ibbre os efpiritos e Ibbre a
politica do paiz, graças a circumítancias que adiante lerão
eftudadas, uma preponderância que o tempo não fez fenão
acrefcentar progreíUvamente até ao reinado de D. Jole. A
realeza abfoluta, apparentemente foberana, foi na realidade
pouco e pouco avaíTallada pela Companhia; D. João III,
D. Sebaftião, o cardeal D. Henrique c D. João V reprefen-
tam outros tantos e fucceíTivos exemplos da abdicação moral
e politica da monarchia nas mãos do jefuitilmo. A nobreza,
tão arrogante dos feus pergaminhos, tão ciofa do leu vali-
mento, lentia-le inerme diante da humildade aftuciofa dos
jefuitas, que no efpaço de poucos annos fe tornaram em
Portugal os directores efpirituaes e os meftres da ariftocracia
inteira. O povo, lentamente fanatifado e já embrutecido pelo
terror dos autos-da-fé, veiu a fer também para o jefuita o
mefmo que efte, obedecendo ao preceito expreífo de Loyola,
fora defde todo o principio para os fuperiores da Companhia:
a lima na mão do operário. E a própria Inquifição, eíTe
forte poder difcricionario que D. João III implantara entre
nós, eíTa inftituição religiofa que tinha raizes fundas na hirto-
ria do Occidente, porque aqui nafcêra em plena idade media,
eíTa mefma, poucos annos depois da inftituição da Compa-
elí
eis
c|3
178
nhia de Jefus em Portugal, lentia-fe abalada, reconhecia-fe
impotente para dominar as confciencias.
E não era fó no reino que a Companhia imperava. Efcu-
dados pelo preftigio de S. Francilco Xavier, cobertos pelo
nome e tradições do piedofo allucinado, os jefuitas viviam,
antes mefmo da introducção da Companhia em Portugal, res-
peitados, adorados quafi na Afia, na Africa e na America.
Eram ahi defde muito os diftribuidores do pão efpiritual das
confciencias e os educadores do entendimento, como foram
mais tarde os primeiros capitaliftas, os banqueiros e os com-
merciantes mais ricos. O Portugal fanático para quem, como
oblerva Francifco Luiz Gomes, a converfão dos infiéis era
defde feculos uma paixão abforvente, uma ambição e uma
gloria, applaudia commovido o jefuitiímo que aíTim avan-
çava triumphante, levando ás paragens longiquas o ardor
prolelytico de Jefus e a difciplina fevera da Igreja.
D'onde emanava para a Companhia eífe eftranho poder
que a tornou por toda a parte dominadora abfoluta das con-
fciencias e arbitra, muitas vezes, dos deftinos políticos das
nações? E precifo refponder: da ignorância geral do tempo
em que fe fundou, da exaltação fincera dos feus inflituido-
res, dos proceífos hábeis e da inquebrantável difciplina dos
feus foldados. A convergência d'eftes fadores é indifpenfavel
para explicar o dominio do jefuitifmo; um fó não pôde ler
evocado como caufa.
A ignorância do feculo de Loyola fignifica muito, mas
não explica tudo; muitas ordens religiofas, coevas do jefui-
tifmo, não tinham, a defpeito do obfcurantifmo geral, confe-
guido profperar. A mefma Inquifição, mais antiga três fecu-
los na Europa do que a Companhia e contemporânea d'ella
em Portugal, impoz-fe pelo terror, imperou pelo auto-da-fé,
mas não logrou, explorando a ignorância do povo e dos
reis, eftender os largos domínios efpirituaes e temporaes da
eia
c|9
'79
Companhia que a minou como inftituição religiofa, difpu-
tando-lhe a lubmiíTáo dos crentes, e como inftituição politica,
cerceando-lhe a autoridade, alienando-lhe as fympathias
dos grandes.
O myfticifmo apaixonado e fincero — porque o foi — dos
inítituidores da Companhia não é também lufíiciente para
explicar o império dos jefuitas. Santo Ignacio e S. Francifco
Xavier, fe lhes faltaíTem a confciencia do próprio valimento
e o efpirito dilciplinador, não teriam deixado atraz de li, ao
morrerem de inanição e de febre, a forte Companhia que a
Europa recebeu primeiro para a combater e expulfar depois.
EíTes homens, em quem, por uma fingular anomalia pfy-
chologica concorriam llmultaneamente, como nota o fr. de
Pompery, uma exaltação fanática levada até ao delírio e
um efpirito methodico de organifação levado até á minúcia,
não foram produdos efporadicos e inconfcientes do myfti-
cifmo catholico; foram fim os mais altos reprefentantes de
uma viva emoção genérica, as fortes individualidades que
fouberam aproveitar e difciplinar em folida organifação os
homens que penfavam e fentiam de egual maneira, fob o
influxo de análogos fentimentos. Os que a elles fe juntaram,
conftituindo-fe foldados voluntários da ordem nova, acceita-
ram o pacto de fujeição aos fuperiores, indifpenfavel para
que a unidade e a difciplina fe perpetuaífem inquebrantáveis
e puras, atravez dos tempos, como na hora em que um fen-
timento commum os congregou pela primeira vez. D'ahi a
pafllva e incondicional fubmiífão aos chefes, que fempre
caractcrifou a Companhia como organifmo colledivo; d'ahi
também um poderofo elemento de força para o jefuitifmo.
Nada ha de extranho n'eíte fafto; a Igreja viveu aíTim
os feculos áureos do feu explendor e da fua grandeza. Quando
a unidade fe rompeu, quando o efpirito de livre exame des-
pontou e os fcifmas fe declararam, a barca de S. Pedro, fen-
eis
iSo
dida, aberta de todos os lados, metteu agua e principiou a
defcer, por forma que já não ha marinhagem robufta que a
falve do naufrágio.
Mas o obfcurantifmo focial, as intenções primitivas dos
inítituidores da Companhia, a forte difciplina dos léus mem-
bros ainda não baítam para explicar o phenomeno que efta-
mos examinando do crefcente poderio do jefuitifmo: os pro-
ceíTos efpecialiffimos empregados para dominar a fociedade
conflituem, como annunciâmos, um elemento indifpenfavel
da etiologia do fafto. EíTes proceíTos foram os mais hábeis e
os mais radicaes que é poffivel conceber; no emprego d'elles
não ha aflucia apenas, ha talento também.
Seguindo as tradições do catholicifmo, a Companhia, pe-
netrou n'eífes três grandes baluartes de acção: o púlpito, o
coníiíTionario e a efcola. Mas, porque exiftia já dentro dos
invencíveis redudos uma população notável de emiíTarios de
todas as ordens, reprefentantes de todas as inftituições reli-
giofas, o jefuita procurou inutilifal-os; a Companhia, com ef-
feito, accentúa lucidamente o fr. Oliveira Martins, não le li-
mitava a concorrer, queria dominar abfoluta. Era precifo
confeguir que o púlpito, o coníiíTionario e a efcola paíTaflem
á exclufiva poífe do jefuita. A cmpreza era diíiicil, eriçada
de fortes obftaculos; mas, precifamente porque o era, impor-
tava tental-a. A Companhia de Jefus foi fempre uma focie-
dade de combate; aíTim a caraderifou Santo Ignacio de Loyola
quando diífe: não ha mais pérfida tempeftade que a calma-
ria, nem mais perigofo inimigo que a aufencia de todo o ini-
migo.
Para confeguirem o fim ambiciofo que fe propunham, os
jefuitas focorreram-fe dos papas de quem fouberam habil-
mente confeguir para a Companhia immunidades, indulgên-
cias, difpenfas e privilégios taes que nenhuma outra ordem
pôde defde então fazer-lhe concorrência na alliciação dos de-
c|3
votos. Os jeluitas, aos votos ordinários de pobreza e caftidade,
tinham juntado o de obediência elpecial e abfoluta ao papa.
Efte additamento iilbnjeára por tal modo os chefes lupremos
do catholicifmo que as bulias de 1549, i582 e 1(384 i-hegani
a conceder aos jeluitas nada menos que o poder de reformar
os ertatutos da ordem, accommodando-os ás neceffidades
de occalião, fem pré^•ia confulta á fanta fé. Os jefuitas co-
meçaram affim por manietar os próprios papas, eftabele-
cendo, pelos meios brandos da legalidade, a almejada inde-
pendência da Companhia. O primeiro palTo eftava dado. At-
trahidos e fafcinados os crentes e os devotos pelos privilégios
excepcionaes da ordem nova, importava agora manter a co-
hefão efpiritual pelo enfmo, pela predica e pela coníàíTão.
N"efle intento abandonaram os jefuitas os velhos proces-
fos terroriftas e bárbaros de outras inftituições religiofas. Con-
vinha fer aífavel e brando; convinha depor a feveridade que
gera o medo para revellir a complacência que produz o amor.
AíFim, ás perfpedivas do inferno, ás deprimentes ameaças
de eternos caftigos de que tanto ufou e abufou defde o co-
meço o myíticifmo catholico, oppunham agora os jefuitas as
promeífas de perdão e as efperanças de refgate ainda aos
mais criminofos. Por iffo a Companhia triumphou da pró-
pria Inquifição. Francifco Luiz Gomes frifa bem eíte ponto
quando efcreve: «A Inquifição empregava como proceífos
únicos de acção a ameaça, a tortura e a fogueira. A Com-
panhia de Jefus tirava a fua força das efperanças que fazia
defpontar no coração dos defefperados, das confolações que
dava aos inconfolaveis, do feu amor por todos. A Inquifição
era um tribunal; a Companhia uma fociedade. Uma queimava
os corpos ; a outra inflammava as confciencias' « . E os jefuitas
não foram fó complacentes e brandos; foram mefmo aftucio-
' F. L. Gomes, Marquis de Pombal, efquijje de /a rie publique, iSôg.
s|3
IS2
famente opportunijias. Para fe elevarem, para exercerem do-
mínio conveiu-lhes ao principio tranfigir com os vicios e a
immoralidade dos grandes; e tranfigiram até ao ponto de
baixarem á categoria de meras culpas e peccados veniaes
os maiores crimes, os vicios mais abjedos. Que importa, di-
ziam entre li, que os meios lejam maus íe o fim é bom? O
próprio Santo Ignacio juftificava eíTa tranfigencia, porque
differa: aos homens inteiramente abforvidos pelos intereíTes
mundanos não fe falle abruptamente na falvação da alma;
feria empregar uma armadilha fem engodo. E a Companhia,
commentando praticamente a máxima do meftre, mundani-
fava-fe um pouco, tranfigia com a corrupção, lifonjeava
quantos podiam concecier-lhe uma parcella de aucloridade,
creava emfim uma vafta clientella.
A moral fácil do jefuitifmo, tão diverfa da frieza fombria
e glacial de outras ordens, era um attraclivo. Quem deixaria
de procurar aos pés do confeífor jefuita a abfolvição que os
outros padres negavam? Quem iria trocar pela feveridade que
faz das pequenas culpas grandes peccados a benevolência
complacente que reduz os crimes a leves faltas? Ninguém,
de certo; e muito menos os grandes. Aífim é que os reis pro-
curaram de preferencia os jefuitas para confeflbres. A expo-
fição devota de efcrupulos e de peccados fempre abfolvidos
feguiu-fe naturalmente a confiança e a fympathia dos mo-
narchas pelos jefuitas; e todos fabem hoje como os aflutos
confeífores exploraram em proveito próprio e da Companhia
eífes ingénuos fentimentos fobre os quaes, como folidos ali-
cerces, conftruiram o edifício da fua enorme auítoridade.
Conquiftada a realeza pelo confiífionario, os nobres, pres-
furofos de feguir o exemplo que vinha do alto, caíram egíial-
mente aos pés dos jefuitas; os que não envergaram o habito
da ordem, confiaram-lhes a direcção das confciencias e a
educação dos filhos. A plebe, imitadora inconfciente das ai-
eis
4^
i83
tas camadas Ibciaes, procurou também no llgillo do confiíTio-
nario jcíuita uma parcella das indulgências e do perdão que
pareciam trazer confolados e felizes os grandes do reino.
Eftava tomado o primeiro redudo; já ninguém Ic atre-
via a difputar-lhes a poíTe.
Reftava conquiílar a efcola c o púlpito, pondo cm de-
bandada beneditinos e francifcanos. Foi o que a Companhia,
protegida pelos reis e dilpondo de bons meftres e de bons
pregadores, confeguiu rapidamente. Ninguém orava com mais
eloquência, ninguém conhecia melhor os fegredos do enfino;
fobretudo, ninguém como o jeluita accumulava nos templos
quando pregava e nas efcolas quando enfinava, Ibciedade
mais feleíta: — a fina flor da ariftocracia, a corte, os burgue-
zes opulentos. Ninguém podia concorrer com o jefuita na
conceíTão de indulgências, ninguém lábia aclarar como elle
os myíferios do grego e do latim. Na própria Allemanha pro-
tef1:ante, nota o Ir. Oliveira Martins, todos concordavam em
que a mocidade aprendia mais e melhor com os padres da
Companhia, que com todos os outros meftres. Fácil foi aos
jefuitas monopoliíar o eníino. D. João III entregou-lhes em
i555 o Collegio das artes, e prohibiu a entrada para a uni-
verfidade, nas faculdades de direito e theologia, a quem não
tiveíTe eftudado ali os preparatórios. O collegio de Évora, de
profeíTores jefuitas, foi em i55g elevado á categoria de uni-
verfidade, e os doutores d'ella faídos equiparados em foros
aos de Coimbra.
AíTim o jefuitifmo avaíTalára tudo em Portugal; o clero
das outras ordens religiofas e os padres leculares fentiam-fe
inútil ifados. O confiíTionario, o púlpito e a efcola eftavam
nas mãos da Companhia que, para tudo ter por fi, creára
também um thcatro popular onde ás vivas reprefentações dos
autos de Gil Vicente fubftituiu o deíempenho das iníuUás
e narcóticas tragi-comedias latinas.
184
Senhora abfoluta do reino, o que fez a Companhia? Pro-
curou reahfar o ideal myftico dos inítituidores, deftruindo
no homem a intelligencia e a vontade para reduzil-o á pas-
fividadc abfoluta e ao completo automatifmo que deftroem
o cidadão e fazem apparecer no logar d'elle o afceta. Não fe
efqueça que a Companhia de Jefus foi fundada para coníb-
lidar o principio catholico da auftoridade, á hora meíma
em que o proteftantiímo apparecia, como reforma religioía,
apoiada no principio do livre exame. A Companhia repre-
fenta pois uma reacção contra a liberdade e a favor do ca-
tholiciímo. Luthero preconifava a livre dilcuíTão, a inde-
pendência do crente em matérias de confciencia religiofa;
Santo Ignacio exaltava a doutrina oppofta da obediência
paíTiva do homem á Igreja e ao papa que a reprefenta. Mas
aíTmi como o livre exame é uma chimera onde não exifte a
intelligencia eíclarecida e a vontade forte, aíTim a autori-
dade abfoluta é uma ficção onde não ha o entendimento
atrophiado e a efpontaneidade morta. Por iíTo a Companhia,
auftoritaria e papifta, comprehendeu a neceffidade eíTencial
de deftruir o homem tal como a natureza o fizera, efpon-
taneo na intelligencia e na vontade, para reduzil-o a um
cadáver, como Santo Ignacio dizia com lelvagem energia.
Poderá parecer a efpiritos menos reflexivos (e tem-fe es-
cripto) que a Companhia não vifava a deftruir o entendimen-
to; crer-fe-ha até que, enfinando o jeluita melhor do que
ninguém, longe de aniquilar a rafão humana, elle fe propu-
nha robuftecel-a. Attenda-fe porém: o enfino é um meio
educativo que pôde dar tantos effeitos diíTerentes quantos os
proceíTos que n'elle fe empregarem e os objectos fobre que fe
exercer. O enfino que produz o fabio e o philofopho, cria
também o fimples erudito; a efcola que produz os grandes
penfadores, dá de fi igualmente os cafuiftas inúteis. Importa,
pois, quando fe falia de enfino, inquirir dos proceflbs por que
4^
.-<0>-l-
i85
clle fe faz o dos aíllimptos fobre que fe exerce. Todos com-
prehendem que não é indifferente enfinar a cartilha ou a
mathematica, enfinar pelos proceíTos fecundos das fciencias
cxperimentaes ou pela dialedica eíferil do probabilifmo theo-
logico. O que eníinaram e como enfinaram os jefuitas? Eis o
que importa determinar para comprehender na eíTencia a
acção hiftorica da Companhia.
Na efcola primaria os jefuitas propinavam á infância a
doutrina chriftã compilada na cartilha de Canillo, primeiro
provincial da Ordem na Allemanha; na efcola fecundaria
profeífavam as linguas mortas — o grego e principalmente
o latim; nas efcolas fuperiores, emfim, reftaurando o trimim
da Efcolaftica, efmagavam os cérebros juvenis fob a ava-
laiiche da grammatica, da rhetorica e da dialeclica. A car-
tilha principiava na creança a obra de atrophiamento e de
intoxicação mental que no adolefcente viriam acabar os fuc-
cedaneos enérgicos do tripiíim de Alcuino. Os jefuitas remon-
tavam habilmente á idade media. A cartilha, infulfo repo-
fitorio de orações e dogmas, não feria comprehendida, mas
decorada e inconfcientemente repetida, pela infância; para
a formação do futuro homem-cadaver nada convinha me-
lhor. A grammatica, tão abftrada e tão árida, enfinada na
idade em que o fentimento moral irrompe e quando os cére-
bros defpertam cheios de curiofidade e de vida, era tam-
bém um poderofo veneno, um narcótico excellente; affim o
penlbu o inftituidor Laynez. A rhetorica, banalidade retum-
bante, e a dialeftica, difíicil machinifmo de engrenagens fyl-
logiíticas, epichrematicas e Ibriticas, tão apparatofo e tão
infecundo, convinham, de certo, á creação de pedantes e fa-
bios falfos, fervidores da Igreja e do papado. O eífudo das
linguas mortas conftituia uma diverfão de todo innocente
fendo, como era, fimultanea com a aprendizagem do cate-
chifmo, da grammatica e da dialeftica. «A Companhia dava
^^ -6^
iS6
nas Seleãas, diz o fr. Oliveira Martins, os textos claíTicos,
bons para exercicios rhetoricos, fem perigo de que os leito-
res comprehendeflem e íe namoralTem do naturalifmo vivo
da antigvúdade'».
O eftudo das Iciencias, eíTc era pelo jeluita pofto de la-
do; eftava ahi o contra-veneno que ao neophito era precilb
cuidadofamente efconder. Para o enfino da mathematica ha-
via na Univerfidade uma cadeira apenas; e a medicina, in-
terdigas as diíTecções anatómicas e as vivifecções, tornára-le
um eftudo fem bafes, um ofiicio de atrevidos curandeiros.
Não fe confultava a natureza, liam-fe os livros; não fe eftu-
davam idéas, decoravam-fe palavras e formulas.
A educação jefuita foi efta; Portugal que a recebeu ficou
emparvecido e narcotifado a dormir um fomno de feculos.
A Companhia, realifados n'efte canto do Occidente o delejo
e a afpiração de Loyola, transformado o paiz n'uma popula-
ção de fomnambulos, difpoz difcricionariamente de todos e
de tudo. O dominio efpiritual abfoluto e inconteffado trou-
xe naturalmente comfigo, por uma inevitável generalifação,
o poder temporal; e affim é que não ha pendência interna-
cional ou queftão de politica interna portugueza nos feculos
XVI, XVII e XVIII em que o jefuita não figure, fe lhe convém.
No Brazil acontecia o mefmo; e no Paraguay, no primeiro
quartel do feculo xviii, o indígena, vergaífado pelo jefuita,
beijava fervilmente, como um rafeiro, a mão que o ferira
em nome de Deus!
II
O eftado de apathia e corrupção profunda a que no meia-
do do feculo xviii chegara o paiz, educado pela Companhia,
reclamava medidas enérgicas de reforma. Em plena monar-
cas
■ J. P. Oliveira Martins, Hi/hiria du Portugal, vol. ii. Lilboa, 1881.
«is
■ 87
chia abfoluta eíTas medidas não podiam partir da nação;
tentou-as o poder minifterial reprelentado em Sebaílião Jole
de Carvalho e Mello. Veremos de que maneira, com que re-
fultados e Ibb que intenções. Sem a difcuíTão d'eftes três
pontos mal le comprehenderá a acção hiftorica do miniftro
de D. Jole.
Penfam muitos ainda hoje, e tem-fe efcripto com deplo-
rável leviandade que Carvalho e Mello, expullbr dos jeluitas,
foi um livre penlador. Não feria para eftranhar que afllm ti-
veíTe acontecido, porque o eftadifta portuguez pertenceu ao
feculo de Voltaire, de Condorcet, de Diderot, d'Alambert, ao
feculo dos encyclopediftas que, emancipados da theologia,
fizeram ouvir na Europa o grito revolucionário e tremendo:
nem padres, nem reis abfolutos! A verdade, porém, é que o
Marquez de Pombal não feguia a linha doutrinaria traçada
pelos grandes efpiritos do leu tempo. Que os energúmenos
religiofos recolham as luas iras e os livres penfadores as luas
apologias até occafião mais própria: o Marquez de Pombal
não pôde juftamente fervir de objeftivo nem de umas, nem
de outras. O Marquez foi um bom catholico, um pouco in-
coherente, é verdade, a quem Voltaire farcafticamente cha-
mou o amigo da Inquijição. Grande, certamente, fe o com-
parámos á raça de pigmeus devotos do Portugal jcíuita, o
Marquez fica todavia muito áquem dos grandes homens do
feu feculo, na moral e no entendimento. Voltaire chegou
mcfmo a rir-fe um pouco d'efta pcrfonalidade, que do fun-
do do feu orgulho de burguez colérico e acrimoniofo decla-
rava, em nome da nação, guerra á Companhia de Jefus para
fubmettel-a depois na peflba do padre Malagrida ao julga-
mento do mais abjedo e impopular dos tribunaes, a Inquifi-
ção. Fazendo nas palavras do philolbpho francez um certo
defconto de ironia — defconto a que nos obriga o conheci-
mento de Portugal no feculo paífado — é mifler concordar
188
em que ha iVellas um fundo de bom fenlb e de jufta com-
preheníao. É o que vê quem examina defpreoccupadamente
a hiftoria.
A luda contra os jefuitas por parte de Carvalho e Mello,
que ao tempo não polTuia ainda o titulo por que é mais co-
nhecido, irrompeu no momento em que o governo de D. Jóle,
procurando executar o tratado pelo qual a Hefpanha cedia o
Paraguay aos portuguezes em troca da colónia do Sacramento,
encontrou por parte dos paraguayenfes uma violenta reacção
armada, que os padres da Companhia levantaram e mantive-
ram com fmgular tenacidade e pericia. Documentam a habi-
lidade com que os jefuitas fouberam tornar forte a revolta
americana, as cartas do general Gomes Freire e do gover-
nador do Maranhão, Xavier Mendonça. Efte ultimo efcrevia
a Carvalho e Mello, feu irmão: «Não poíTo reprimir os je-
fuitas; a lua politica fagaz pôde mais que os meus cuidados.
Logram fobre os indígenas uma influencia abfoluta ' » .
Para caítigar a audácia da Companhia, Carvalho e Mello
principiou por mandar publicar dois decretos conformes ao
breve Immenfa Paftonim Prindpis, pelo qual Benedido XIV
prohibíra aos padres jefuitas, ao tempo de D. João V, intro-
metterem-fe em negócios feculares. Efte breve, que os jefui-
tas tinham deixado cair em efquecimento, era, pela origem
d'onde partia, oífenílvo da dignidade e completa indepen-
dência da Companhia; recordal-o, foi o grito de guerra. Ao
mefmo tempo Carvalho inculcou a D. Jofé a neceffidade de
defpedir todos os jefuitas confeífores da familia real e da
corte, prohibindo-lhes expreífamente defde eífe dia a entra-
da no palácio. O rei accedeu á vontade do miniftro; e os
jefuitas, perdido o confifllonario real, experimentaram um
I S. J. L. Soriano, Hiftoria do reinado de el-rei D. Jofé e da adminiflra-
çáo do Marque'^ de Pombal, tom. i. Lilboa, 1S67.
elj
189
rude golpe, precurlbr de outros maiores. Não contente ainda,
Carvalho mandou redigir um relatório ou memoria de todos
os crimes da Companhia na America até lySy. Efta memo-
ria devia ler prelente ao papa pelo embaixador portuguez
em Roma, Francifco de Almada. Carvalho efperava que o
papa, indignado d vifta da expofição d'eíres crimes, que
eram muitos e grandes, lançaíTe mão de meios enérgicos e
violentos contra os jefuitas. As elperanças do minirtro tinham
algum fundamento; o papa era o mefmo que annos antes
desfechara contra a Companhia o breve Lnmeufa Pajlorum
Priucipis. Carvalho enviando a Francifco de Almada, íeu pri-
mo, o relatório, efcrevia-lhe ao mefmo tempo uma longa carta
na qual lhe ordenava que mantiveíTe junto do papa uma at-
titudc enérgica. N'eíra carta Carvalho contava minuciofamen-
te a Almada os crimes dos jefuitas em Portugal, attribuindo-
Ihes calumniofamente o levantamento popular do Porto por
occafião da inílituição monopolifta da Companhia dos Vinhos
do Alto Douro. N'eífa revoha defpoticamente abafada por
Carvalho, o jefuita não entrara. O miniftro de D. Jofé fa-
bia-o perfeitamente ; mas, convindo-lhe ver a Companhia em
toda a parte, não vacillava em defcer á calumnia.
O leitor admira-fe, de certo, que um miniífro da efta-
tura de Carvalho e Mello falfiíicaíre a verdade. Mas infeliz-
mente era aíTim; e a hilloria tem obrigação de dizel-o. Fran-
cifco Luiz Gomes, profundamente affeiçoado á memoria do
eftadifta portuguez e audor de um livro Ibbre a fua vida, o
mais confcienciolb que conhecemos, efcreve: »Um outro de-
feito tinha que não podemos pcrdoar-lhe: é a pouca exactidão
e a pouca linceridade com que narrava os fados, quando
iífo lhe podia convir aos feus intuitos'». E mais adiante:
«Raras vezes fallava fmceramcnte nos feus, cfcriptos; allega-
' F. L. Gomes, obr. cil-, pag. 192.
igo
va fempre intenções e motivos diverfos na realidade dos que
o levavam a aftuar'». O mefmo au6lor já antes diíTera:
«Carvalho não fazia efcrupulo dos meios a empregar, quando
mefmo elles foíTem os mais indignos^». Vc bem o leitor que
não fizemos uma affirmação gratuita quando declarámos o
Marquez de Pombal inferior em moralidade aos grandes
homens do feu tempo.
Quem lè poderá perguntar ainda: Para que mentir e
calumniar na accufação dos jefuitas, fe a fimples realidade
dos lliccelTos os condemnava? Condemnava e condemna, de
certo, para quem labe ver a acção íntima da Companhia nos
feus grandes proceíTos de corrupção, para quem por um es-
tudo attento chega a reconhecer que o abulo do poder tem-
poral e os crimes políticos do jeluitifmo fão naturaes e ne-
ceffarias confequencias dos próprios princípios audoritarios
da Ordem e do catholicifmo que ella genuinamente repre-
fenta. Huber diz com lucidez extrema: «E precifo não es-
quecer que os attentados da Companhia contra a Igreja e
contra o efpirito humano foram antes d'ella enlaiados pelo
papado, recaindo pois uma parte da refponlabilidade d'eíres
crimes fobre a cúria romana, de que os jeluitas não foram,
no fim de tudo, mais do que a milicia elpiritual'». Afllm a
condemnação do jefi.iitirmo envolve a da religião catholica;
a Companhia é uma fuccurfal da Cúria. O miniftro de D.
Jofé, porém, não viu iffo. F. L. Gomes diz expreíTamente :
«Carvalho nunca accuíbu os jefuitas de pertencerem a uma
fociedade cujas máximas foíTem contrarias á moral de Chrifto
e á independência e fegurança dos Eftados e dos príncipes.
Accufava-os, fim, de fe terem defviado dos princípios de
' F. L. Gomes, obr. cit., pag. 194.
2 Ibid., pag. iSi.
3 Huber, Les Jéfiiites, traJucção franceza. Paris, 1S74.
4À9
'9'
Santo Ignacio e dos exemplos de S. Francilco Xavier. . .
CoUocado n'efte terreno movediço, emmudecia muitas vezes
diante do argumento dos adverfarios que liie diziam: fe exis-
tem abulbs, reformae-os, mas não toqueis na inftituição, cuja
pureza Ibis o primeiro a reconhecer ' » . Carvalho e Mello não
viu, pois, claramente o problema que tentava refolver. Como
catholico que era, não percebeu a acção effencial da Com-
panhia; viu apenas os abulbs, viu as confequencias, mas não
foube reconhecer que um fio lógico, refiftente e neceíTario, as
prendia indiíToluvelmente aos principios de Santo Ignacio.
Aífim, quando os crimes e os abulbs dos jefuitas lhe pare-
ciam pequenos ou pouco numerofos para reclamar do papa,
em nome d'elles, medidas enérgicas contra a Companhia,
avolumava-os, multiplicava-os.
Proíigamos, porém, a noíTa narrativa.
Chegadas a Roma a memoria official contra os jefuitas
e a carta particular que a acompanhava, Almada procurou
immediatamente o papa. Benediclo XIV excitado, como Car-
valho previra, pela leitura da memoria, pirometteu defde logo
a Almada chamar o geral dos jefuitas, e fazer-lhe fentir
quanto os religiolbs da Companhia fe tinham afaftado da
moral chriftan e da pratica dos feus deveres. Almada, porém
inítigado pela carta particular do primo, não fe contentou
com tão pouco; lembrou ao papa que os abulbs da Compa-
nhia reclamavam mais fevero caftigo que uma fimples adver-
tência paternal. O papa concordou e decidiu, a pedido de
Almada, que foífe nomeado um ^ ilitador e reformador da Or-
dem dos jefuitas com auctoridade baftante para reprimir em
Portugal e feus domínios os abufos d'eft:es padres. O vifita-
dor e reformador feria o cardeal Francifco de Saldanha, pes-
foa aífeiçoada ao governo portuguez.
' F. L. Gomes, loc. cii.
ti»
192
Efta negociação era grave, e reclamava por parte dos
intereíTados um ablbluto íegredo. O cardeal Timoni, le-
cretario do papa, era amigo dos jeluitas e podia levantar
difficuldades ao plano de Almada; Benedifto XIV affim o
comprehendeu, mandando, a inftancias do embaixador por-
tuguez, expedir pelo cardeal Pacionci, amigo de Almada, o
breve In fpecula fiipremae dignitatis, que invertia Saldanha no
cargo de reformador da Companhia. O breve foi minutado
pelo próprio fecretario particular do embaixador portuguez e
fielmente copiado por Pacionci. Não ficaram lem recompen-
fa os bons ferviços d'en:e cardeal. Alludindo a elle, Almada
efcrevia ao primo: «Não fe efqueça de enviar-me aiineis de
brilhantes ou coufa digna de fer-lhe offerecida » . Veremos
adiante que papel Carvalho fez defempenhar ás pedras pre-
ciofas no luborno dos cardeaes durante todo o feguimento
das negociações diplomáticas contra os jefuitas.
O breve In fpecula fiipremae dignitatis, de cuja expedi-
ção os jefuitas não fouberam, mau grado o zelo infatigável
dos feus amigos em Roma, foi-lhes intimado juridicamente
em 12 de maio de lySS, formando-fe auto d'eíTa formalida-
de folemne.
Francifco de Saldanha inftigado por Carvalho e Mello,
não delcanfou. Três dias depois da intimação do breve, o
cardeal reformador publicava uma paftoral cheia de termos
violentos, cm que prohibia expreíTamente aos jefuitas o com-
mercio de mercadorias provenientes da Afia, da Africa e da
America, e bem affim as operações bancarias de toda a or-
dem a que defde muito fe entregavam, fazendo concorrência
aos feculares. N'eíra paftoral os jefuitas eram comparados
aos « Numularios e vendilhões que Chrifto azorragára no tem-
plo». Os golpes vibrados pelo próprio clero contra a Com-
panhia eram profundos e fucceffivos. A 7 de junho do mes-
mo anno o cardeal patriarcha de Lifboa, D. Jofé Manuel,
ri
■93
mandou affixar ás portas das igrejas um edital em que fus-
pendia aos jeíuitas a faculdade de confeíTar e pregar não
fó dentro da capital, mas em todo o patriarchado. Seguindo
o exemplo do prelado de Lifboa, todos os bifpos do reino
paíTaram igual ordem nos domínios das fuás refpeftivas dio-
cefes. Os jefuitas perdiam tudo.
Entretanto, da^■a-fe em Roma um acontecimento funeíto
ás pretenfões da corte portugueza: Benedi6fo XIV expirava.
PaíTemos por fobre a hiftoria indecorofa de intrigas, de fu-
bornos, de corrupções de toda a efpecie que caraderifaram
a eleição do novo papa; o que nos importa faber é que foi
Clemente XIII, amigo dos jeíuitas, o fucceffor de Benedicto
XIV.
A Companhia teve um momento de efperança. Ricci, ge-
ral dos jefuitas, aprefentou defde logo ao novo papa uma
longa memoria na qual fe cjueixava de que o governo por-
tuguez tiveíTe tornado extenfivos a todos os padres da fua
Ordem crimes e culpas que, quando muito, teriam commet-
tido alguns; jurava a innocencia dos fuperiores da Compa-
nhia, e terminava pedindo ao papa que fufpendeíTe a reforma
começada em Lifboa pelo cardeal Saldanha. Sint iitfiint. Cle-
mente XIII, fem nada participar ao embaixador portuguez,
fubmetteu a memoria de Ricci á confulta e decifão do Sacro
CoUegio, onde as opiniões fe dividiram, votando uns pela
revogação immediata do breve In fpeciila fupremae diguita-
tis, infiftindo outros, Racionei entre elles, por que continuaíTe
a reforma, como o exigia o governo de Portugal. No meio
das opiniões encontradas dos cardeaes, o papa refolveu con-
temporifar, recommendando ao núncio em Portugal que vifi-
taíTe o reformador Saldanha, e lhe aconfelhaíTe toda a mode-
ração e prudência no defempenho da fua melindrofa miííão.
Emquanto iílo fe paílãva em Roma, dava-fe em Lifboa,
na noite de 3 de feptembro, o celebre attentado contra a vida
eis
'94
de D. Jofé. Três jefuitas, Gabriel Malagrida, João de Mattos
e João Alexandre, foram pelo Tribunal da Inconfidência de-
clarados cúmplices no crime, embora não exiítiíTem contra
elles, aíTim como não exiftiam contra a família Távora, pro-
vas claras, mas llmples fufpeitas, problemáticos indícios.
O Tribunal da Inconfidência, creado por decreto de 9 de
dezembro de lySS para julgar os réus do attentado de 3 de
feptembro e os de futuras conjurações poíTiveis de natureza
femelhante, era uma inftituição antipathica, que reprefentava
na ordem civil e politica o papel ominofo da Inquifição na
ordem religiofa. EíTe tribunal foi prelidido por Carvalho e
pelos outros miniftros de eftado, feus manequins. Tudo ahi
foi lummario, expedito, cynicamente precipitado. A defeza
foi uma formalidade e o inquérito das teftemunhas uma burla
indecorofa; os réus não foram ouvidos e, porque faltaflem
provas, inventaram-fe. Debalde fe procuram hoje documen-
tos que eítabeleçam claramente a cumplicidade dos jefuitas
no attentado de 3 de feptembro; não fe encontram. Carva-
lho, interrogado na hora da defgraça fobre a cumplicidade
dos padres jefuitas, refpondeu apenas que o Tribunal da In-
confidência os declarara réus. Efla refpoíta é evidentemente
a evaíiva defgraçada de um efpirito menos efcrupulofo; ten-
do prelidido ao tribunal que julgou os padres jefuitas como
réus no attentado de 3 de feptembro, Carvalho ou poíTuia
as provas da criminalidade e devia declaral-as para fe juíti-
íicar, ou as não poíTuia (a verdade é eífa) e então procedeu
arbitrariamente, por um defpotifmo vizinho da ferocidade.
Nós não pomos em duvida, um momento, que os jefuitas fos-
fem capazes de attentar contra a vida de D. Jofé; o regicídio
afiava no efpirito da Ordem, e contra o monarcha portuguez
havia por parte d^eífes padres refentimentos profundos. Mas
fufpeitas e probabilidades não lao provas; e a juftiça exige
para condemnar, clfas e não aqucUas.
e|j j
193
Entretanto os três jefuitas eram encarcerados no forte da
Junqueira e todos os outros cercados em luas cafas e colle-
gios ou encerrados na quinta do duque de Aveiro, onde che-
garam a paffar longas horas de fome. Ao mefmo tempo todos
os bens d'eft:es ecclefiafticos eram confifcados como proprie-
dade de réus de alta traição.
Feito ifto, Carvalho e Mello efcreveu longamente ao pa-
pa, impetrando de Sua Santidade auflorifação para que a
Me^a da Confciencia, julgados ecclefiafticamente os jeluitas,
réus do attentado de 3 de feptemhro, os entregalTe ao braço
fecular; ao melmo tempo pedia que tal audorifação, de ur-
gente neceffidade n'aquelle momento, íe tornaíTe perpetua e,
como tal, eífectiva todas as vezes que fe trataíTe de cafos fe-
melhantes ao que na occafião o forçava a efcrever a Sua San-
tidade. Carvalho terminava fazendo votos por que todos os
feus actos minifteriaes mereceíTem a benção apoflolica que ar-
dentemente defejara. Efta carta mereceu de Voltaire palavras
implacáveis de ironia. Luiz Gomes procura proteger Carvalho
dos ataques do philofopho, afíirmando que o miniftro por-
tuguez, á maneira de BolTuet, redobrava calculadamente de
refpeito para com o papa todas as vezes que procurava dar
um golpe fundo nas prerogativas de Roma. Explicação be-
nevolente, mas inacceitavel : a polidez diplomática, quando
fe agitavam intereíTes, nunca foi o apanágio de Carvalho.
Ac[uelle refpeito pelo papa não era nem fingida cortezia, nem
calculo; era fim a elTufão de um fentimento fincero de ca-
tholico. Refpeitava ingenuamente o papa, não obftante odiar
e bater a milicia efpiritual da Cúria. Efia inconfequencia, de
refto abfolutamente inevitável no efpirito eftreito de um ca-
tholico que fuppunha poffivel a reforma dos jefuitas por in-
termédio da Igreja, que lhes adopta os princípios, revela
podcrofamente que Carvalho ignorava a intima hiitoria do
mechanifmo religiofo. Appellava para Roma, porque não fabia
e|9
sii
196
que era ella a alma mater d'eíra feita teiiebrofa e valente que
o incommodava. Queria reformar abufos e dirigia-fe á Cúria,
fem fe lembrar de que no apparelho centralifta do catholi-
cilmo o calor que anima e excita os órgãos periphericos vem
de lá, d'eíre coração recôndito.
Efcrevendo ao papa, Carvalho dirigia ao mefmo tempo car-
tas confidenciaes a Almada, pondo-o ao corrente da nova ne-
gociação, e inftruindo-o minuciofamente fobre o modo por
que devia comportar-fe em face do Sacro Collegio. «Com-
bata, eícrevia Carvalho, o luborno dos jefuitas, defcobrindo
quem fejam os cardeaes e as peíToas mais importantes em
relação ao negocio e comprando-os por todos os meios pos-
fiveis, fem fe expor a ler por elles facrificado.Vale mais e é
menos caro fazer a guerra com dinheiro do que com armas.
Tenho aqui mais de cem mil cruzados em fina prata lavrada
em Paris e em porcelana de Saxe. Não fei como lhe mande
tudo ifto para Roma, fem que fe lhe defcubra a procedência
e o deflino. Poderei enviar-lhe também alguns diamantes
brutos, que mandará lapidar ahi; diga-me, entretanto, fe po-
dem fervir para cruzes, peitoraes, etc. Mando-lhe quatro an-
uais dignos de ferem oíTerecidos para comprar ou pelo me-
nos difpor á noífa parte alguns bons amigos. As pedras
podem ler lapidadas em Lifboa, mas c um trabalho demo-
rado; fera melhor offerecel-as em bruto, como amoftra dos
produdos dos paizes tão queridos da Companhia». Em
igualdade de circumftancias, um jefuita teria procedido como
Carvalho; e não deixaria de juftificar á própria confciencia
o indecorofo dos meios pela neceíTidade de alcançar os fins.
O embaixador portuguez, recebidas as cartas de Portu-
gal, poz-fe energicamente em acção. Infelizmente para o bom
andamento das negociações, Torrigiani, cardeal fecretario, era
parente de Ricci, geral dos jefuhas, e o próprio papa fentia-
fe inclinado á caufa d'eftes padres. Almada previu defde logo
eis
eis I
'97
O infucceffo que efperava as pretenfões do governo portuguez.
Não fe enganava. Os mezes iam paíTando fem que le che-
gafle a uma folução qualquer. Foi então que Carvalho e
Mello, impacientado com as delongas que a violência do
feu carader fazia parecer maiores, e prevendo talvez uma
conclulao desfavorável aos feus defcjos, publicou, precila-
mente um anno depois do attentado contra o rei, o decreto
celebre de 3 de feptembro de lySg, expulfando de Portugal
e feus domínios todos os padres da Companhia de Jefus.
Não eftava tudo terminado ainda. A expulfão fora pouco;
os ódios de Car^^alho exigiam uma fcena de langue. O padre
Malagrida, ultimo reprefentante da Companhia, eftava ainda
vivo, e podia bem íervir de protogonifta n\im apparatofo
drama, que elcéfrifaíTe e commo^'eí^e Lifboa inteira.
Gabriel Malagrida, confeílbr do paço no reinado de
D. JoãoV, eftava doente e na decrepitude; e os fotfrimentos
de três annos de ifolamento n'um cárcere cheio de humida-
de onde paíTava os feus dias na oração e na penitencia, tinham
acabado por enlouquecel-o. A Vida da glorio/a Santa Anua,
que efcrevêra na prifão, era o documento vivo das alluci-
nações de um efpirito enfermo. Nada lhe valeu, porém: nem
a idade, nem os foffrimentos phyficos, nem a loucura. Servia
mefmo aíTim, fervia de todos os modos para o drama; defde
que veftiffe a roupeta do jefuita, era um fymbolo que fe podia
infultar na praça publica com applaufo de uma corte e de
um povo tão eftupidos como fanguinarios.
Carvalho e Mello fubmetteu o infeliz ao julgamento da
Inquifição, velha inimiga da Companhia, que o degradou das
ordens ecclefiafticas e arbitrariamente o entregou á juftiça
fecular. Soriano obferva caufticamente que o tribunal da In-
quifição era ao tempo prcfidido por Monfenhor Paulo de
Carvalho, irmão do miniftro de D. Jofé.
Deplorável!
1 F 1 »
el» eis
-• — «-y-l^
198
o tribuna! da Relação confirmou a lentença inquifitorial,
condemnando Malagrida a ler garrotado, queimando-fe-lhe
depois o cadáver para que d'elle e fiia fepultiira não ficajje
memoria no mundo.
A 2 1 de feptembro de 1 76 1 realifou-fe a execução na
praça do Rocio. Carvalho e Mello diftribuíra largamente
cartas de convite para a fejla. O corpo diplomático, a no-
breza, reflos da que exiltia ainda, delegados de todos os tri-
bunaes, reprefentantes de todos os minifterios, deputados de
todas as inftituições officiacs, — tudo foi convidado e tudo
compareceu. Em torno da praça tinham-le previamente le-
vantado barracas para as peíToas de difi:incção aíTifiirem; e
ao centro elevavam-le, ricamente adornados, o tabernáculo
em que a fentença devia ler lida e o cadafallb que devia gar-
rotar o defventurado louco. Deftacamentos de cavallaria e
infanteria circumdavam a praça, eftendendo depois em linha
até ao convento dos dominicanos. Aíllm era precifo para
conter na ordem até ao fim milhares de efpeftadores: toda
a populaça de Lifboa. Não fe pouparam nem esforços, nem
dinheiro na mife en fcène do drama.
Á hora aprazada furgiu na praça, entre dois padres, a
figura pallida e tremula do condemnado. Um ulb tradicional,
e não fei mefino fe uma lei, efiabelecia que n'eftas condições
os ccclefiaíficos fe defpojaíTem dos hábitos das luas ordens.
Para o jcfuita abriu-fe uma excepção odiofa: Malagrida ves-
tia a roupeta da Companhia. Affim era precifo: o habito era
tudo, era o fymbolo. O velho jefuita voltava em todas as
direcções um olhar amortecido a que as névoas da loucura
e do terror davam n'aquella agonia uma eftranha expreíTão;
tremia e encoftava-fe aos padres para não cair. Conduzido
ao tabernáculo, leram-lhe a lentença da Inquifição que o
declarava, fegundo o eftylo, um falfo propheta, um herético
e um fingidor de relações que Deus fó concede aos J cus ver-
'99
dadeiros fervos. O jcluita omiu calado o capitulo de accu-
fação. Por que eftranhos mundos de myfticifmo erraria o
efpirito d'aquelle defgraçado?
Concluida a leitura, o cadafalfo armou-fe e o carrafco fez
o leu dever. Depois veiu o auto-da-fé, o corpo foi atirado
ás chammas e tudo acabou no meio de um lllencio ahfoluto.
Não houve, com effeito, n'aquella maíTa enorme de corações
humanos uma voz que fe ergueíTe para proteftar. Carvalho
devia eftar fatisfeito: o terror da fua peíToa paralylava as
energias de uma cidade inteira!
III
O leitor que agora conhece a maneira por que Cars^alho
e Mello levou a eíTeito a expullao dos jeluitas, pôde bem
ajuizar quanto ha de falfo nas opiniões vulgares Ibbre o
alTumpto. Ha ainda muito quem penfe que o miniftro de
D. Jofé procedeu ferenamente contra a Companhia, deíhtuin-
do-a por um calculo frio de radicalifmo anti-religiofo, como
o cirurgião que corta fundo nas carnes para ir bufcar as raí-
zes primitivas de um cancro. Não foi aíTim : o que efcrevemos
deve ter provado que o efladiíta nem viu eíTas raizes, porque
não lh'o permittia o feu efpirito de crente, nem teve a fere-
nidade do operador, porque a ilTo fe oppunha o fcu cara-
fter violento e arrebatado.
Primitivamente, Carvalho defejava apenas reformar a
Companhia, combatendo os abufos de que fe tornara res-
ponfavcl cm Portugal e na America; foi para iíTo que pediu
o auxilio do papa. O attentado contra o rei fuggeriu-lhe
depois a idca de caftigar civilmente os padres incurfos nos
crimes políticos de confpirações; n'eífe intuito impetrou de
Roma auclorifação para que o tribunal ecclefiaftico, julgados
(Is
eis
religiofamente os réus, os entregaíTe ao braço fecular. As re-
ludtancias da Guria e as delongas d'eíl:a negociação, em que
Carvalho batia a Companhia, íubornando indecorofamente
os cardeaes do Sacro CoUegio, impacientaram o efpirito ir-
requieto do eítadifta, que n'um acceffo da cólera decretou a
expulfão dos jefuitas. Não foi, pois, um fereno calculo, uma
comprehenfão dos intereffes moraes do paiz que prefidiram
no animo de Carvalho á publicação do decreto de 3 de fe-
ptembro; foram, fim, o defpeito contra Roma, a neceíTidade
de defaífrontar a realeza e, fobretudo, o defejo de uma vin-
gança que a guerra jefuitica do Paraguay fizera nafcer no
feu efpirito dominativo e implacável. A execução de Gabriel
Malagrida, dois annos depois de expulfos todos os jefuitas,
é a prova; e nem todo o refpeito pelos ferviços do Mar-
quez de Pombal pôde conteílar eíTe documento vivo na his-
toria.
As intenções de Carvalho e Mello não foram, pois, nem
anti-catholicas, nem democráticas, como fe tem dito. Não
foram anti-catholicas, porque o eftadiíla portuguez, contraria-
mente aos encyclopediftas, era um crente; não foram demo-
cráticas, porque a realeza abfoluta era para elle um fetiche
cuja adoração impunha tyrannicamente ao paiz. «No fyfte-
ma focial de Carvalho, efcreve Soriano, as funcções de rei
eram mandar o que muito bem lhe aprouveíTe, e as da na-
ção toda obedecer fubmiíTa e paíTivamente, fem nem ao me-
nos lhe permittir o direito de cenfura ou de reprefentação
em contrario'». O fr. Theophilo Braga reforça a opinião de
Soriano com eftas palavras expreffivas: «Pombal confidera-
va a realeza acima dos povos como uma guarda providen-
cial do tiirpe peais; para elle toda a barbaridade refinada
pela tortura não bailava para caftigar os crimes de lefa-ma-
' Soriano, obr. cit., vol. i.
eis
eis
jeftade, cuja fcitncia certa c vontade foberana eram o funda-
mento de todas as leis'».
Mas mais alto que todas as audoridades faliam os fa-
dos. Nós vamos apontar três, particularmente demonítrati-
vos da afiirmação contida nas citações que fizemos.
O livro de Velafco de Gouveia, Jiijla Acclamação^ pro-
clamava o principio da foberania nacional. Carvalho e Mel-
lo, incommodado por effa doutrina liberal, fubmetteu o livro
ao exame de cinco doutores da univerfidade de Coimbra
para que o declaraíTem apocrypho e fem aufforidade jurídi-
ca. Os nomeados alllm o fizeram, imputando a obra aos
jefuitas, e declarando atoniiiiareis os princípios n'ella conti-
dos. E figniíicativo.
Outro fado. — Quando em fevereiro de lySy fe declarou
no Porto a revolta popular a que já nos referimos, provocada
pela creação da Companhia do Alto Douro, monopolifadora
do commercio dos vinhos, Carvalho e Mello mandou imme-
diatamente ao foco da agitação uma alçada que no efpaço
de cinco mezes prendeu nada menos de 478 indivíduos.
Exercendo preíTão fobre os juizes e forçando-os a confide-
rarem a revolta um crime de lefa-majejlade, Carvalho con-
tribuiu para que fubiíTem ao patíbulo 2 1 dos implicados
n'aquelle movimento. Para provar que a revolta merecia a
claíTilicação que lhe deram os juizes, Carvalho efcrevia: «A
majeftade não conlifte fó na peíToa do rei, mas nas fuás leis
e Eftado». A realeza era tudo; uma cidade que fe revoltava.,
ferida nos feus intereíTes por um monopólio, era nada.
Um ultimo fado ainda. — A Meia do Bem Coinininn,
conliderando um attentado contra a liberdade e contra os
intereíTes dos que faziam commercio entre Portugal e o Bra-
zil, a exiítencia da Companhia do Grão-Pará e Maranhão,
I Th. Braga. Do adreníu cvulutivo das idcas democralicas. Lifboa, 1879.
cia
(Í3
creada por decreto de ii de agofto de lySS, reprefentou ao
rei no fentido de annuUar o ado minifterial d'efta data. A re-
prefentação, apoiada em argumentos ferios e confiderações
económicas importantes, era concebida em termos modera-
dos e refpeitolbs. O que fez Carvalho e Mello? Ferido no
feu orgulho, maguado por encontrar uma refiftencia, decla-
rou a reprefentação um crime de lefa-majejlade, aboliu a
Meia do Bem Commiiin, mandou prender todos os lignata-
rios da reprefentação, e fez condemnar a degredo para a
Africa o advogado que a redigira, João Thomaz Negreiro,
que não chegou a cumprir degredo, porque, retido á efpera
de navio na prifão do Limoeiro, ahi encontrou a morte e o
tumulo por occafião do terremoto. Era efte o modo por que
Carvalho e Mello comprehendia e commentava o direito de
petição. Era aíTim que elle antepunha a fua vontade e o
preftigio da realeza abfoluta aos intereíTes dos cidadãos.
Relgatam-no d'eftas culpas, apreíTo-me a dizei o, ados
bons; nem nós pretendemos que o Marquez de Pombal des-
confideraíTe a profperidade do paiz. Seria ahfurdo pretender
tal: feria efquecer ados como a abolição cia efcravatura, a
rehabilitação dos judeus, a reforma da univerlidade e ou-
tros ainda que nos impõem o dever da gratidão. Mas nem
por iflb é menos certo que lhe mereciam mais folicitude os
intereffes da coroa que os dos cidadãos; nem por iífo deixa
de fer verdade que ás prerogativas da monarchia abfoluta
vidimava, fem perplexidades, os intereíTes e os direitos do
povo. Ao catholico, pcrfeguidor dos jefuitas, correfpondia o
ablblutifta, perfeguidor da liberdade, embora libertador dos
efcravos. O homem que combatia a Companhia de Jefus
para purificar a religião, cujos principios admittia como
crente, era o mefmo que combatia a liberdade para dar es-
plendor d realeza, cuja invefhdura divina era o feu credo
politico eflencial.
«|3 eí»
203
Efte fetichifmo do Marquez de Pombal pela realeza ab-
foluta, no Icculo dos encyclopediftas, denuncia acanhadas
preoccupaçôes mentaes de que os altos efpiritos do feu tem-
po le tinham emancipado já.
Conhecidas intimamente nos proceíTos de manifeítação
e nas caufas determinantes as hoftilidades de Pombal con-
tra a Companhia de Jefus, vejamos agora, refumidamente,
quaes foram as conlequencias do ado de 3 de feptcmbro.
Expulfos os jeÍLiitas, ficaria Portugal defaífrontado da nu-
vem negra que defde D. João III lhe viera efcurecendo os
horifontes? Aufentc a roupeta, reviveriam no efpirito do po-
vo, amortecido e quebrado pelas algemas de uma educação
deprimente de feculos, o vigor e a coragem dos tempos for-
tes da noíTa nacionalidade!' O Ir. Oliveira Martins refponde:
«O reinado de D. Maria I vem demonífrar que o braço de
ferro do Marquez de Pombal não podéra defviar da carreira
da decompofição, eíta fociedade envenenada pela educação
jefuita. O miniftro pôde exterminar a Companhia; mas não
pôde extinguir o feu efpirito, nem os feus difcipulos, que
eram em Portugal toda a gente, incluindo Pombal em pes-
foa . . . Como a charrua que revolve a gleba, exterminou as
plantas vifiveis; porém as raizes dos cardos ficaram e rever-
deceram'».
É efta a verdade que o próprio Marquez dolorofamente
verificou nos últimos annos de vida. Morto D. Jofé, que lhe
dera força, que lhe fanccionára com aucforidade de rei ab-
foluto todos os ados minifteriaes, Pombal, ifolado e efcarne-
cido na velhice, viu erguer- fe impetuofa e cheia de vida a
reacção que vinha, como um cyclone irreverente, derrubar
a feara querida das fuás reformas. Os inimigos do Marquez
> Oliveira Martins, obr. cil., vol. ii.
ti»
eis
204
rehabilitaram-fe; e o beaterio, que principiava na corte, onde
a rainha emparvecida chorava noite e dia os erros de feu
pae, eftendia-fc por todo o reino com geral aprazimento. A
hora das defiUuloes chegara: os perfeguidos tornaram-fe per-
feguidores. O miniftro de D. Jofé, no ultimo quartel da vida,
com oitenta e dois annos de edade, foi fubmettido a um in-
terrogatório fevero em que pigmeus e nullos lhe pediram
arrogantemente a juftificação dos feus aítos adminiftrativos e
politicos.
Debalde o velho e alquebrado eítadifta declarava, para
obftar ao defdobramento de importunas minuciofidades, que
todos os feus ados tinham merecido a approvação do rei, de
accordo com cuja vontade foberana procedera fempre. Efta
declaração não o iíentou da refponfabilidade completa e
abfoluta em face dos inimigos, agora arvorados em juizes
feveros e teftemunhas implacáveis de accufação. O defaforo
e arrogância do interrogatório official attingiram o efcan-
dalo; entre outros, o abjedo e repulfivo intendente da poli-
cia atreveu-fe a defmentir os depoimentos do Marquez. O
leão decrépito recebia o coice d'aquelle Pina Manique de que
reza a fabula. Exhaufto e deprimido pelo rude golpe moral,
mais talvez que pela edade e pelos foífrimentos phylicos, o
Marquez de Pombal acabou por implorar para os feus cri-
mes a piedade da rainha! Foi uma queda. Mas Luiz Gomes
diz bem: «Os homens que fe levantam por meios violentos
e extraordinários não defcem, cahem. São como as folhas
que a violência do vento ergue ás grandes alturas e que, fere-
nada a tempeftade, tombam folicitadas pelo próprio pefo'».
A reacção tremenda do reinado de D. Maria I não a
provocaram, certamente, os jefuitas expulfos, mas provocou-
as, o que vale o mefmo, o efpirito da Companhia que ficara
I Luiz Gomes, obr. cit.
CM
4fU
arraigado nas confciencias. Os jefuitas de roupeta tinham
paflado as fronteiras á voz imperiofa do Marquez de Pom-
bal; mas os jefuitas de cafaca, mais temiveis, porque não
têem uniforme que os denuncie, effes ficaram; nem podia
deixar de fer: quem tentaíTe expulfal-os no feculo xviii, te-
ria de defpovoar o reino.
1 V On lie détruit que ce qu'on remplace.
A. CoMTE.
Terminada a parte propriamente hiítorica do eftudo que
nos propozemos fazer, apontemos agora algumas confidera-
ções que elle nos fuggere, e que a commemoração do cente-
nário vemi tornar opportunas.
O jefuitifmo não morreu. O efpirito incoercível da Com-
panhia paira ainda fobre a Europa e fobre a America, como
a tremenda ameaça de futuras agitações poffiveis. O jefui-
tifmo é ainda hoje, não o efqueça ninguém, a feita religiofa
que conferva puras as tradições aucforitorias e centraliftas
do catholicifmo ; é ainda a milícia difciplinada de Roma, te-
naciíTima, perfiftente, armada e difpofta fempre para a luda
contra o livre penfamento. Os mefmos fempre na eífencia e
no efpirito íntimo dos feus princípios, mas proteiformes nas
manifeítações, os foldados do jefuitifmo mudam de táctica e
de nome quando lhes convém, mas nunca de intuito. Se lhes
vedam a entrada nos confeíTionarios, penetram nos hofpitaes,
onde defvelando gratuitamente os enfermos, fe apoffam dos
efpiritos por uma propaganda vagarofa e infenílvel, mas ef-
ficaz, porque parece protegel-a a idéa generofa do definte-
reífe; fe lhes prohibem a apparição nos púlpitos, entram na
imprenfa c faliam d'ahi pelos jornaes e pelos livros á intel-
ligencia dos fuperfticiofos e dos fracos; fe lhes rejeitam a
denominação antipathica da Ordem, mudam de nome e con-
tinuam defaíTrontados a fua obra, conftruindo cfcolas, ele-
ti»
-• : -é>-^
20b
vando templos, minando fempre, fem tréguas e fem des-
alentos.
O povo ignorante acceita-os de rofto alegre, e as claíTes
confervadoras, obcecadas pela faudade do paíTado, hoítis ao
prelente e ao futuro, preftam-lhes, como fe viu ainda ha
pouco em França, um incondicional apoio. N'eíl:as condi-
ções o jefuitifmo profpera hoje mefmo nos paizes catholicos.
Em Portugal e no Brazil, nações atardadas em que exifte
ainda efta coufa irriforia que fe chama religião do EJlado,
ninguém ignora a influencia decifiva do jefuita.
Deftruir efta influencia deletéria que nos envenena, amar-
rando ao paflado os que deviam olhar para o futuro, folidi-
íicando inftituições provedas que nos tolhem o movimento
expanfivo e já agora urgente das reformas politicas e fociacs,
eis um dever que á geração nova importa fortemente cum-
prir. Mas de que maneira? Pelos proceflbs revolucionários,
pela violência? Não o cremos. A hiftoria do Marquez de
Pombal deve fervir-nos de exemplo e de lição. Ha em todas
as queftões de transformação Ibcial, como em todas as de
transformação biológica, um fador de que íe não pôde pre-
fcindir: é o tempo. O proceflb revolucionário — confequen-
cia metaphyfica das doutrinas e concepções politicas ante-
riores á conftituição fcientifica da fociologia — , pretendendo
fupprimir aquelle fador, ha de conduzir fempre e fatalmen-
te ao infucceífo. Simulará transformações, mas não as fará.
Deftruirá abufos, privilégios e erros, mas na apparencia ape-
nas; porque, no fundo, os erros, os privilégios e os abufos
ficarão fubfiftindo. O Marquez de Pombal no meiado do fe-
culo XVIII expulfou para Jhnpre de Portugal e feus domínios
os jefuitas, por um decreto revolucionário; e comtudo ao de-
clinar do feculo XIX, cento e vinte e três annos depois do de-
creto, os jefuitas vivem ainda ao noflb lado. A França expul-
fou-os também duas vezes, em i5g4, primeiro, e depois em
-i-i- -<í>-^
e|» 4*
207
1762; e todavia ainda hontem a vimos cm lufta com elles.
A Inglaterra deftituiu a Companhia em iSyi ; mas em 1601
teve de proceder de novo contra cila, porque, a defpeito das
medidas legaes, a roupeta achara meios de introduzir-fe de
novo. A RuíTia decretou igualmente a expulfão dos padres
jeluitas cm 17 17; mas em 181 7, precifamente um feculo
depois, viu-os de novo florefcentes no feu folo, e teve de ex-
pulfal-os outra vez. Affim é lempre: as inftituições que fe
radicaram nos efpiritos não fe deftroem de um momento
para o outro a golpes de penna ou de cfpada.
O proceíTo revolucionário pôde ler exigido pelas cir-
cumftancias de uma fituação defefperada; e é então o remé-
dio extremo que a afflicção collediva de um povo explica e
juftifica. Em cafos taes o proceflb a empregar não fe difcute,
porque não ha logar para reflcdir; e a revolução apparece
como um movimento defordenado, como a explofão ruidofa
de um foífrimcnto que não conhece leis. Foi o que em Fran-
ça aconteceu em I7g3. Mas n'eíres cafos excepcionaes, úni-
cos que fe juftificam, o proccífo revolucionário e a revolução
confundem-fe : não ha um miniftro que decreta ou um gene-
ral que fe impõe; ha, fim, uma fociedade que fe agita, a
maioria de um povo que proclama violentamente direitos
que um defpota ou uma pequena minoria lhe não deixavam
proclamar ferenamente. Eis o que importa advertir. Fora
d'cífes cafos anómalos, que nos paizcs onde o povo tem um
parlamento já fe não podem repetir, o proceflb revolucionário
confunde-fe com o moderno jacobinijmo, e fignifica apenas,
por melhores intenções que lhe prefidam, a impofição fempre
odiofa da minoria á maioria de um povo; é precifamente o
contrario da revolução, em que a maioria de um paiz, oíTen-
dida nos feus direitos pelos privilégios da minoria, impõe a
efta a fua vontade ou, o que tanto vale, define a fua foberania.
A diftincção que eftabelecemos entre proceíTos revolucio-
208
narios e revoluções não é um jogo de palavras; é a confi-
gnação de um fado bem eíTencial que devia andar lembra-
do e que infelizmente anda efquecido.
Derivando d'eítas confiderações geraes para o cafo efpe-
cial que nos occupa, repitamos a pergunta feita: Como nos
cumpre proceder em face dos jefuitas? Expulfal-os, feria re-
montar ao paíTado em bufca de novas defiUufóes. O proces-
fo a empregar em noíTos dias é outro: mais morofo, de cer-
to, mas mais radical e mais feguro.
Os jefuitas vivem da ignorância do povo pelas raizes do
catholicifmo, como os tortulhos vivem da humidade dos
pântanos. Cortar a parte apparente dos tortulhos e deixar o
pântano é trabalho baldado; os cogumelos, confervada a
raiz em terreno apropriado, reapparecerão tantas vezes
quantas as que forem cortados. Que ha pois a fazer? Eítan-
car o pântano para matar a raiz; inítruir o povo até que o
catholicifmo — que é hoje a fuperftição fyftematifada, tenha
perdido toda a influencia que ainda conferva nas confcien-
cias. Uma vez confeguido ifto, um governo virá que, interpre-
tando a vontade efclarecida e preponderante do paiz, procla-
me a feparação da Igreja e do Eftado; e então, perdido o
dominio Ibbre as confciencias e perdido o apoio oíRcial, o
jefuitifmo defapparecerá naturalmente, fatalmente, fem vio-
lências e fem agitações. E nem mefmo lhe reftará o direito
de queixar-fe: ninguém o expulfa, — é elle que fe retira.
Os meios a empregar para chegar a efte fim, fão os pró-
prios jefuitas que nol-os eníinam. Elles têem o púlpito, o
confellionario e a efcola; empreguemos nós armas iguaes,
que as temos: a imprenfa, as conferencias populares e a es-
cola também.
Proceder affim, é feguir o caminho feguro. E efte o pro-
ceífo evolutivo, único efíicaz. É longo, dirão muitos. Não
o conteftàmos; mas porque o é, precifamente porque não
elí
20Q
abftrahe do tempo, factor eíTencial, os feus refultados ferão
certos, radicaes. O proceíTo revolucionário dirige-le ás appa-
rencias; o proceíTo evolutivo ao fundo mefmo das inftitui-
ções. O primeiro procede contra a roupeta; o fegundo con-
tra o catholicifmo que lhe dá força. Um extirpa os jefuitas
uniformifados, o outro, todos os jefuitas. O proceíTo revo-
lucionário vê Tómente a Companhia de Jefus; o proceíTo evo-
lutivo vê principalmente e mais fundo a Igreja, ell:a ultima
haftilha, como lhe chama um pofitiviífa francez, em que to-
dos os reaccionários Te refugiaram para dar o derradeiro
combate á democracia.
Qual dos dois proceíTos convém ao radicalifmo democrá-
tico? A hiíl:oria condemna um; a Tciencia focial preconifa
o outro. A geração nova que efcolha.
JuLio DF, Mattos.
cts
1 '
eis
1
o MARQUEZ DE POMBAL
E A RESTAURAÇÃO DA
LITTERATURA PORTUGUEZA
omecemos por carafterifar o efpirito e a ten-
dência hiftorica do leculo xviii, para julgarmos
^ da coherencia dos esforços quer da audorida-
de, confinada no cefarifmo, quer da intelligen-
cia, amefquinhada nas academias. A organi-
fação da fociedade moderna foi iniciada pefos
jurifconfultos do fim da Edade media, que fun-
daram a egiialdade civil; atacando a prepotên-
cia dos barões feudaes, que fe impunham pela impetuofi-
dade arbitraria, procuraram eftabelecer a lei efcripta, quer
redigindo as garantias locaes, ou fazendo reviver o direito
romano. Affim a vontade era fubordinada a uma norma
prefcripta. Pela forma efcripta as garantias locaes deram
força ás populações trabalhadoras dos campos e dos burgos,
e acordando o fentimento do individualifmo fufcitaram eíTes
movimentos revolucionários que deram em terra com a des-
egualdade feudal. Era uma grande parte da obra que firmou
eis
eis
cia
fila
a ordem focial fobre a eítabilidade do direito; o terceiro cita-
do, ou a exiftencia jurídica do proletariado, tornou-fe a con-
dição para o defeiivolvimento de um poder central, a quem
convinha reconhecer o novo principio da egualdade civil.
EíTe poder era a realeza, que fe deítacou e tornou inde-
pendente do feudalifmo pela hereditariedade dynaítica; o
trabalho dos jurifconfultos coadjuvou eíta independência
pela renafcença erudita do direito romano, em que prevale-
cia o efpirito centralifta da unidade imperial. Preoccupados
exclufivamente da egualdade civil, os jurifconfultos abando-
naram o outro elemento imprefcindivel do progreíTo, a liber-
dade politica, que os feus conhecimentos humaniftas teriam
encontrado claramente definidos na civilifação hellenica.
D'efte abandono refultou, que todas as republicas da Edade
media foram caindo diante da abforpção do poder monar-
chico, e por ultimo a própria egualdade civil ficou expofta
aos caprichos de um poder irrefponfavel, tornado abfoluto,
defpotico e cefarifta.
O que fe não fez pela tradição hiftorica, completou-fe
pela efpeculação philofophica e pelas afpirações fentimen-
taes, que infpiraram as litteraturas. É por iífo que o proble-
ma da liberdade politica pertence ao feculo xviii, ao feculo
dos encyclopediftas, aos litteratos, como Voltaire e Rouífeau,
e aos philofophos, como Montefquieu, Diderot, Condorcet,
Turgot, vindo as revoltas communaes a acharem o feu com-
plemento definitivo no grande phenomeno da Revolução
franceza.
Em Portugal achámos a primeira parte do movimento
da reorganifação focial moderna; defde o feculo xv, que
florefcem entre nós os grandes jurifconfultos e codificadores,
João Mendes, Ruy Fernandes, Ruy Botto, João Façanha e
Fernão de Pina, alguns dos quaes, como Velafco de Gouvêa,
chegaram a prefentir a liberdade politica affirmada em prin-
eis
2l3
cipio na doutrina da foberania nacional. Mas o noíTo fecu-
lo XVIII não teve philolbphos, e os litteratos eram académi-
cos convencionaes que imitavam os cânones rhetoricos das
epochas da decadência claíTica, não tinham idéas, eftavam
fora do leu tempo, e as fuás afpiraçóes limitavam-fe a aco-
llierem-fe ás graças do cefarifmo omnipotente. Como não
exiftiram philofophos, nem os litteratos fe infpiravam da
verdade do fentimento, por iíTo não fe crearam opiniões, e
os raros efpiritos que fe alimentaram das doutrinas dos en-
cyclopediftas e dos phyfiocratas, calaram-fe com o terror da
repreífão ou emigraram de Portugal, mefmo antes da terrivel
intendência de Manique fechar as portas á entrada dos livros
francezes, ou mandal-os queimar na praça publica pela mão
do carrafco, ou apprehendel-os nas livrarias particulares,
como fe fez á de Frei Joaquim de Santa Clara, á de Jofé
Anaftafio da Cunha, á de Bocage e até ás encommendas do
duque de Lafões, parente da cala real. As idéas franceias e o
pliilofopliifino, como em Portugal fe defignava a corrente da
liberdade politica, foram duramente abafados por todos os
poderes confervadores do eftado. Por iíTo defde a renafcen-
ça, em que fomos grandes, até ao primeiro quartel d'en:e fe-
culo, Portugal profeguiu em uma irremediável decadência a
cuja caufa fe pôde ainda attribuir a apathia adual, a falta ou
a fophifmação da liberdade politica. O feculo xviii tão rico
em Portugal de homens de talento e de fciencia, contrafta
com a profunda irracionalidade das inftituições por falta do
complemento da egualdade civil na liberdade politica. O
próprio Marquez de Pombal, extremamente regalifta, tornou
eífa liberdade um crime de lefa-mageftade, chegando a pu-
nir com feveridade o direito de reprefentação.
Qual feria n'eftâs condições deprimentes o deflino do
homem de lettras? No feculo xviii, em Portugal, o poeta era
um miferavel, que fe admittia á mefa dos creados das cafas
-i-6- \ -6-1-
e|j eis
214
fidalgas, e, como diz o próprio Tolentino retratando-fe in-
confcientemente, acabava fempre por pedir efmola; fuppria
o antigo coftume dos bobos dos palácios feudaes, metrifi-
cando encómios fobre todos os fucceíTos da realeza ou da
ariítocracia. As compofições mais appetecidas eram as que
não tinham penfamento, que le ouviam no intervallo das
grandes digeítões dos banquetes e dos outeiros poéticos dos
abbadeçados, vindo a conftituir um género de compofições
jocoferias, e acabando por le diíTolverem na obfcenidade.
Os poetas tornavam-le por efte meio, não diremos popula-
res, porcjue elles ignoravam as fontes vivas da tradição, mas
a fabula da gente, chegando o nome do poeta a tornar-fe
fynonymo de fordido e def bragado; os mais conhecidos per-
tencem á corte de D. JoãoV, effes Thomaz Pinto Brandão,
Alexandre de Lima, o padre Braz da Cofia, Frei Lucas de
Santa Catharina e Caetano da Silva Souto Maior, o Camões
do Rocio. Efte fymptoma de decadência intelledual perfiftiu
fob D. Jofé, em António Lobo de Carvalho, e Bocage e o
próprio Filinto Elyfio facrificaram parte do feu talento a
afta perverfão do fentimento. Não havia outro intuito fenão
louvar, encomiar, panegyricar com defcaro até á indignida-
de; o que fe efcrevia não era obra litteraria, era para uns
uma garantia contra as prepotências de cefarifmo, para ou-
tros um ganha pão, um pretexto para os prefentes dos ricos,
e os mais elevados viam n'eíre trabalho um nobre ócio, um
honefto paíTatempo, que não deixava que a confciencia fe
infurgifl"e contra a intolerância catholica ou contra a violên-
cia cefarifta. N'efte intuito é que fe formaram as academias
litterarias, em que os defembargadores, os confelheiros, os
altos funccionarios do eftado, os fidalgos, le reuniram, como
conftituindo uma claíTe á parte, mas fimilhante á dos efcri-
bas do Egypto ou da China, porque a lituação politica de
Portugal era idêntica á d'eíras civilifações primitivas. Al-
^%^
e^
guns efcriptores, como Cruz e Silva, tinham vergonha de
pubHcar os léus produdos Htterarios pelo fado de não des-
luftrar a refpeitahilidadc de defemhargador! Comprehende-
fe bem n'ell:a demência intelledual, em que a litteratura não
tinha deítino, porque é que eíTes dois poderes, o Catholi-
cilmo e o Cefarifmo, patrocinaram effe género de cultura.
Defde o feculo xvi, os jefuitas apoderam-fe do enfmo publi-
co, para embaraçarem a intelligencia por um efteril e ôcco
humanilmo, afaílando-a da corrente de renovação fcientiíica
que prepondera com Gallileo e adquire a lua maior intenfi-
dade depois de Delcartes. Pelo feu lado a realeza cefarifta
favorecia as academias litterarias emquanto ellas adormen-
tavam a afpiração da liberdade politica; D. João V protege
a Academia de Hiftoria, o Marquez de Pombal patrocinou
momentaneamente a Arcádia de Lifboa, e o intendente Ma-
nique era o protedor nato da Nova Arcádia ou Academia de
Bellas Lettras, durante a demência de D. Maria I.
A acção profunda do Marquez de Pombal eftendeu-fe
também á litteratura; batendo os jefuitas na regulamentação
do enfino official, foi-lhe ao encontro no defenvolvimento
dos productos humaniftas. E extraordinário o numero de vo-
lumes de verfos compoítos para a ceremonia da elevação
da eftatua equeítre e para as feitas reaes; o Marquez era im-
placável para as fatyras em verfo, e ai d'aquelle fobre quem
caííTe a fufpcita de um verlb menos refpeitolb contra a fua
peíToa, porque ficaria fepultado para fempre nas mafmorras
da Junqueira. Efta fituação de efpirito explica-nos como,
tendo o Marquez de Pombal fido um dos membros da an-
tiga Academia de HiJIoria portugueia, fe achou primeiramen-
te bem difpoíto em favor da nova fundação da Arcádia
Ulyfftponenfe, e como acabou por fim em perfeguir por des-
confianças ainda não explicadas os principaes dos feus mem-
bros, como Garção.
cia
216
Façamos a tranfição do reinado de D. João V para o
de D. Jofé, para comprehendermos melhor a influencia de
Pombal na litteratura. A opulência do reinado de D. João V
contrafta com o eftado miferavel da nação, arrazada pelo
tratado de Mettwen, reduzida em 1732 á cifra de menos
de dois milhões e meio de habitantes em geral indigentes,
porque a terra pertencia aos morgados, aos titulares, ás ca-
fas real de Bragança e do Infantado, e ás corporações mo-
nachaes; e eftupidecida, porque o enfino eílava monopoli-
íado pelos frades e reduzido a dilciplinas pedantefcas. As
riquezas defpendidas nas conítrucções pharaonicas, eram o
produéto cafual das minas de ouro do Brazil, e não a con-
fequencia de uma força viva, como a riqueza que provém
da induífria. As minas do Brazil produziram de 1714 a
1746 em ouro amoedado 96.04o:62 8w'4i5 réis, e em dia-
mantes 12:000 contos. Comprehende-fe como a monarchia
era um poder myíteriofo, e como as energias individuacs fe
abandonavam á vontade foberana que diftribuia eítes re-
curfos. Tão extraordinário capital corrompia, não fecunda-
va; viu-fe iíTo tanto na arte como na litteratura. A bafilica
de Mafra e a Patriarchal não produziram uma efcola artís-
tica, e o gofto de recócó, a chinelaria tomados da moda fran-
ceza e o eítylo jefuitico acabaram de deftruir todas as no-
ções do bello que exiftiam na alma portugueza. O eftupendo
theatro da Ribeira (i755), onde o architedo decorador Ser-
vandoni phantafiava ornamentações defvairadas, capazes de
arruinarem um eftado, não produziu nem a opera nacional,
para a qual exiítia o elemento nacional da Modinha^ como o
declara StraíFord, nem o drama litterario apefar do talento
excepcional do defgraçado António Jole. A fundação da es-
plendida Bibliotheca da Univerfidade de Coimbra, começa-
da em 10 de abril de 171 2 e terminada em 1728, cuflou
66:6225? 129 réis; e a compra da livraria de Francifco Barre-
1
1
eis
-i-<|>-» .-<0»-l^
217
to por 5:6oOv00o réis, a do padre La Rue em Paris, e a
de João Baptifta Lerzo, bem como as remeíTas de Lucas
Seabra da Silva, tudo foi improfícuo, porque os lentes não
fe inftruiram e a Univerfidade defceu ao ponto de em 1772
o miniílro de D. Jofé ter de reorganifal-a pela omnipotência
official. A fundação da Academia de Hijloria portiigiieia, em
1720, não creou entre nós o critério da hiftoria, apefar do
rei a dotar com todos os privilégios imagináveis, mandar-lhe
patentear todos os cartórios do reino, nomeando paleogra-
phos para tirarem as copias precifas, e impondo por um
decreto de 14 de agoíto de 172 1 o refpeito aos feus vaíTal-
los por todos os monumentos architedonicos. Apefar de to-
dos eftes influxos, a decadência intelleítual vê-fe patente no
eftylo e nos refí.iltados das noticias, praticas, orações, elo-
gios e diíTertações dos feus membros.
Uma coufa faltava para que efles generofos esforços fru-
éfificaíTem, a liberdade! A nação não tinha parlamento, o
povo não tinha terra, o trabalho era confiderado degradan-
te, a educação publica ell:ava em poder dos jefuitas, a con-
fciencia era atropellada por um clero abforvente e canni-
bal, o efpirito crítico tinha a efpionagem do Santo Ofíicio e
a fogueira, a realeza era um fetiche, e a ariítocracia uma
proftituição galante. Era um meio excellente para a indigni-
dade campear infrene, mas nunca para fe crearem conce-
pções artifticas, ou fe manifeftarcm os penfamentos fecun-
dos. Um povo fem opinião, fubmiíTo ao regimen que corta
toda a manifeftação do penfamento fobre os actos do gover-
no difcricionario, os efpedaculos deftinados a defviarem as
attenções da caufa publica, as idéas confideradas como um
perigo focial, tudo conduzia ao cretinifmo, á idiotia, para
exprimir a qual é ainda generofa a palavra decadência. E
efla decadência nacional não podia deixar de aggravar-fe
com as monítruofidades de um rei epiléptico, fauítofo como
218
Luiz XIV, devaíTo como Luiz XV, e fanático como Filippe
II; tal era D. João V, que o leu contemporâneo Frederico II,
o violador da Pragmática Sancção, e portanto leu inimigo,
retratava com efta phrafe farcaftica, mas profunda: «Ses plai-
Jirs étaient des fonãions facerdotales, fes bátiments des couvents;
et fes armées des moines et fes inaitrejjes des religieiifesy> . As
tentativas de reforma litteraria fob D. João V caíram pela
efterilidade do meio focial e official, poftoque d'ahi provies-
fem os germens de novos esforços. Ainda aíTim, eíTes ger-
mens pertenceram á iniciativa particular e individual, e é
notável como os primeiros esforços para a fundação da Ar-
cádia de Li/boa foram a continuação do antigo grupo litte-
rario denominado a Academia dos Occultos. Em uma oração
recitada na Arcádia em lySS, Garção toca em um rápido
elboço todos as tentativas encetadas no reinado de D. João
V, depois da paz geral, para a reorganilação da inftrucção
publica e da litteratura portugueza; fervir-nos-hemos das
fuás próprias palavras que encerram a hiftoria dos prece-
dentes d'eíra academia reformadora, afphyxiada Ibb a acção
abforvente de Pombal: «A teimofa guerra com que nos vi-
mos obrigados a rebater a fúria dos helpanhoes ainda não
permittia que entre o ruido das armas e motim dos tambo-
res fe deíTe ouvidos á harmonia das mufas; continuava a
decadência. Ajuftou-fe a paz; focegaram-fe os ânimos, mas
tão inveterado eftava o contagio, que fe houve quem o in-
tentou, não houve quem não defefperaífe da reflauração das
bellas lettras, das artes e das fciencias em Portugal. O nego-
cio era tão importante e de tão difficil êxito, que nem ainda
o grande efpirito e pródiga mão de D. João V pôde confeguir
mais do que lançar os primeiros fundamentos. Eftimou os lá-
bios, premiou os meftres, enriqueceu as livrarias do reino, e
fundou a Real Academia de Hiftoria. Roubou-lhc a morte efta
gloria, quando principiaram a amanhecer as primeiras luzes
(|3
219
em Portugal do bom gofto, da verdadeira erudição e da
prudente critica. Devemos alegrar-nos de fer inconteftavel
que o primeiro documento em que podemos fixar a epocha
d'eíla reftauração é o papei crítico que compoz e imprimiu
o árcade Sincero Jerabifcenfc (lySg). É verdade que alguns
efpiritos mais fortes tentaram efta empreza ainda hoje ár-
dua, e então impoíTivel; mas como nas primeiras efcolas
reinava certo efpirito de opinião, que foberbamente luften-
tava o efpirito do mau gofto, o verdadeiro methodo ( 1 747) ou
le não conhecia ou fe defprezava. Fundaram-fc academias.
Algumas permaneceram fem mais frudo que o de propaga-
rem o contagio. Nos últimos annos do reinado de D. João V
apparecem os primeiros crepuículos do bom gojlo. Já então
a Sociedade dos Occidtos, eftabelecida em um palácio em
que fempre habitaram as mufas, e fundada por um génio
extraordinário, herdeiro não fó do fangue, mas também dos
raros talentos e virtudes dos feus progenitores, trabalhava
n'eíte tempo na reftauração da lingua portugueza, do eftylo
e da boa poefia. Poderia fer que a ella fe deveífe toda a
gloria fe a publica defgraça não feparaífe tão útil e tão fa-
bia companhia». Como fe vê, Garção ennumera as tentati-
vas de renovação litteraria que precederam a fundação da
Arcádia de Li/boa, e a cataftrophe do terremoto de Lifboa
de 1755 trunca os últimos esforços da academia dos Occid-
tos. Primeiramente eífas tentativas vifaram todas a obterem
a intervenção ofíicial da omnipotência do abfolutifmo. As-
fim em 17 10 Mello da Fonfcca aventava que fó D. João V é
que podia mandar reformar a lingua portugueza dos muitos
plebeifmos que a afaftavam da pureza latina. Bluteau attri-
blie á munificência de D. João V o ter-fe publicado o grande
Vocabulário portugue^; emfim a Academia de Hijloria rece-
beu o influxo real, « com o exemplo do cardeal Richelieu,
que no anno de i635 eftabeleceu em Paris a Academia
eis
franceza. . . » Depois de todas as preffôes do cefarifmo, que
reftava á iniciativa individuai? apenas a bajulação do con-
ílituido. Apenas Verney, continuando em Portugal o criticis-
mo iniciado em Helpanha por Benito Feyjó, fez no Verda-
deiro methodo de ejíiidar uma analyfe fundamentada do enfmo
jefuitico e das eftereis difciplinas em que fe efgotava a in-
telligencia portugueza, analyfe que produziu uma vigorofa
reacção da parte dos jefuitas em folhetos pfeudonymos, que
defvairaram por algum tempo as opiniões; mas o trabalho
negativo de Verney teve a extraordinária importância de
levantar a queftão do enfino publico e de fervir de bafe ao
penfamento das reformas pedagógicas do Marquez de Pom-
bal. Até onde os regulamentos têm efiicacia, eftende-fe a
intervenção do eftado; mas o mundo moral eítá fora d'efta
alçada, e o que então fe chamava o ffojfo era incoercível,
ninguém fabia como trazel-o á difciplina. Tal era a preoc-
cupação dos efpiritos, que fentiam a nova corrente da in-
telligencia que Jacob de Caífro Sarmento recommendava
a D. João V a traducção das obras de Bacon como primei-
ro paíTo para as reformas, ou como Verney reconheciam a
importância das doutrinas de Defcartes e de GaíTendi. Os
jefuitas efterilifavam todos os esforços, impondo a confer-
vação do eftreito ariftotelifmo da Philofophia conimbricenfe,
que irradiava do CoUegio das Artes fobre Portugal, che-
gando a formular no Ritual theologico: «Não fe defenderão
opiniões contra a Lógica conimbricenfe». A confervação do
acanhado humanifmo, com que os jefuitas durante o feculo
XVII nos fepararam do movimento intelledual europeu, pro-
longando-fe pela circumítancia de fe acharem miniftros de
D. João V, coadjuvou ainda no feculo xviii a perfiftencia
d'eíre eípinto fei/centijta, a que fe dava o nome de mau gos-
to, e contra o qual procurou reagir a Arcádia, já fob a
protecção de Pombal. Antes porem da cooperação do mi-
eis
CM
4 cts
-• •-<v>-|^
niftro, effa reacção contra o mau gojlo era um ataque dire-
cto aos jefuitas, como fe viu pela celeuma levantada com as
Cartas de Verney, e é por ilTo que o titulo de Occultos, fob
que fe aggremiaram alguns efpiritos, nos revela que havia
alguma coula de liberdade e de protefto a que fe el1:ava
defacoftumado e que condiz com as tentativas de emanci-
pação intelledual encetadas fob egual fegredo em França
e Inglaterra. Em Portugal imitavam-fe as modas francezas,
e liam-fe de preferencia os efcriptores do começo do reina-
do de Luiz XIV; as relações de Boilcau com o conde da
Ericeira moftram-nos que fe procurava em França a direc-
ção mental pela rafão de que eftavamos divorciados politi-
camente da Hefpanha intelleclualmente annuUada fob a de-
gradação de Filippe V. A influencia franceza penetrava
na peninfula, mas não era ainda a corrente philofophica e
litteraria dos efcriptores que precederam a Revolução; ao
primeiro impulfo correfponde, como já notámos, a Acade-
mia de Hijforia, a traducção da Poética de Boileau, e tudo
quanto provinha das pompas do cefarifmo; os proteftos, as
idéas novas, a revolta mental, o efpirito encyclopedifla fó
muito tarde é que reflediram em Portugal, parte nos aclos
do grande miniftro, parte nas afpirações do príncipe D. Jofé
e no duque de Lafões ou ainda em Jofé Anaftafio da Cunha.
Mefmo em França efte trabalho de reorganifação mental
fora fecreto. A influencia que a liberdade do penfamento no
dominio da politica exerceu, fobre todo o feculo xviii e em
todos os paizes, começou a fortalecer-fe em uma aífociação
de livres penfadores chamada o Club de Fentrefol, da qual
falia o marquez de Argenfon nas fuás Memorias: «Era uma
cfpecie de Club á ingleza, formado de indivíduos que gos-
tando de difcorrer fobre o que fe paflava, podiam reunir-fe
e communicarem, fem terror de fe comprometterem, fua opi-
nião, porque fe conheciam bem uns aos outros, e fabiam
-i-6- -<í^-^
e|s eis
cia
com quem e diante de quem fallavam. Eíta fociedade cha-
mava-fe o Entrefol (fobreloja) pelo logar onde fe reunia, que
era a fobreloja onde habitava o abbade Alary. Ali fe acha-
vam fempre gazetas de França, da HoUanda e melino jor-
naes inglezes. » D'Argenfon hiftoría nas fuás Memorias efta
aíTociação iniciadora da primeira efcola dos economiftas
francezes e dos próprios encyclopediftas; muitos dos feus
membros eram altos funccionarios da politica e do clero,
mas bafta citarmos eífe typo extraordinário de evangelifador
da humanidade, o Abbade de S. Pedro, o audor do Projedo
da Pai perpetua, para determinar-fe a ordem da elaboração
mental que fe eftava paífando nos efpiritos que precederam
Montefquieu e Rouífeau. Era a incubação da fociedade eu-
ropêa, voltada para o problema da liberdade politica, porque
mefmo fem o contado com efta nova corrente da crítica, da
philofophia e da litteratura, em Portugal manifeftaram-fe
caraderes de um individualifmo altamente notável, como o
Cavalheiro de Oliveira, que fe refugiou na Hollanda, então
o redudo da liberdade de confciencia, o originaliírimo ab-
bade António da Cofta, que o erudito Burnay confiderava
uma efpecie de Rouífeau com mais elevação moral, e que
viveu no foco das fummidades artifticas de Vienna, o gran-
de medico António Ribeiro Sanches, cujas defcobertas fo-
ram proclamadas por Vic d'Azyr, um dos fundadores da
phyfiologia. Em Portugal tel-os-íam queimado. Mais tarde
quando eífas idéas philofophicas fe accentuaram, começou
a reacção tremenda primeiro pela morte mylteriofa e repen-
tina do príncipe D. Jofé, o amigo de Jofé II, pelo encar-
ceramento de Jofé Anaftafio da Cunha, e pela expatriação
de Félix de Avellar Brotero e de Jofé Corrêa de Serra, não
fallando de Francifco Manuel do Nafcimento envolvido, tal-
vez já por caufa das fuás diífidencias litterarias, n'efta per-
feguição da epocha denominada do intolerantifmo.
4 4^
-<>-f-
223
Sahe-fe pouquiíTimo da Academia dos Occultos; alguns
dos opulculos laídos d'ella delcobrem uma Ibciedade de ver-
fejadores fem penfamento. Garção attribue-lhe planos de re-
novação litteraria, que le não realifaram pela difperfão cau-
fada pelo grande terremoto, perleguindo comtudo o mefmo
penfamento na fundação da Arcádia de Lifboa, cujos pri-
meiros membros haviam pertencido á corporação anterior.
A Arcádia teve a virtude de nalcer da iniciativa particular,
mas foi rojar-fe ante a omnipotência official, e para captar
effe influxo achou-fe infenfivelmente reaccionária, primei-
ramente pela contemporifação com o elemento feifcentifta,
depois pela fubmiífão ao efpirito jefuita que a tornou odiofa
ao Marquez de Pombal e a deixou morrer na inanidade.
Cruz e Silva e Garção foram os dois principaes vultos d'eífa
corporação litteraria, e pelas fuás relações com o Marquez
de Pombal fe conhece o que o grande minirtro pretendia;
Cruz e Silva, no poema heroi-comico do Hyffope, dera um
golpe profundo nos infatuados ridiculos do mundo clerical,
e o miniftro eítimava-o por elTa fua cooperação na obra da
fecularifação focial; Garção era o amigo intimo dos padres
das Neceífidades, conviva da ariftocracia hoftil ao audaciofo
reformador, e por iífo foi fob um pretexto fútil encarcerado
no Limoeiro, onde expirou mezes depois. Celebrando a pri-
meira reunião da Arcádia, dizia Garção em um difcurfo:
« Chegou o feliz inftante de nos ajuntarmos, então fundámos
efta fociedade, jurando padroeira d'ella a immaculada rai-
nha dos céus e da terra, debaixo do ineífavel titulo da fua
puriíTima Conceição». Começando por bajular o fanatifmo
religiofo, a fua actividade tinha de defpendcr-fe cm bajular
a auftoridade do abfolutifmo monarchico; os três fundado-
res. Cruz e Silva, Thcotonio Gomes de Carvalho e Efteves
Negrão, eram altos funccionarios da confiança do miniltro, e
trouxeram para a nova academia a benevolência d'aquelle,
-i-6- -ò-§-
e|í ela
-^<>-t -<>-§-
224
que também começara a fua adividade mental pela Acade-
mia de Hijloria. Pela fua grande preponderância peíToal,
Theotonio Gomes de Carvalho foi o primeiro prefidente;
Cruz e Silva redigiu os eftatutos, fazendo dos actos da fo-
ciedade nas queftões criticas uma efpecie de inquifição de
eftado; Eíteves Negrão ficou o fecretario perpetuo. A pri-
meira reunião definitiva da Arcádia celebrou-fe em 19 de
julho de 1757, tendo-fe realifado uma outra preliminar em
II de março de 1756. Parece que o miniítro omnipotente
aíTiftiu a eftes actos. Garção, em um difcurfo recitado em
1758, allude a eíTa benignidade oííicial: «Ganharam as nos-
fas obras nova reputação; conciliou refpeitos o nome de
Árcade; e deíejou o publico aíTiftir ás noíTas conferencias.
Atrevemo-nos a louvar um príncipe a quem Plinio podia
fem lifonja recitar o famolb panegyrico de Trajano. O mes-
mo foi ouvirem-nos, que eftimarem-nos os homens mais fa-
bios e prudentes." Olharam o frudo do noíTo trabalho como
para uma vantagem da nação. E a grande alma d'aquelle
vigilante miniftro, que não tira os olhos do adiantamento da
pátria, com publicas demonítrações nos honrou e animou,
para não defirtirmos da diíiicultofa, mas illuítre empreza a
que facrificavamos os noíTos eftudos. Segunda vez nos ou-
viu, fegunda vez nos honrou; de lua mefma bocca ouvimos
expreífões com que em Portugal não cuftumam faltar os
miniífros. Podemos aíTeverar que vimos aquelle grande co-
ração, e que n'elle cftava vivamente impreíTo o incanfaval
zelo com que traballia pelo bem de feus compatriotas, com
que honra e com que eftima os portuguezes beneméritos.
Não tardará muito que o publico conheça que efte género
de lettras lhe merece uma feria attenção, e que as eftima
porque as conhece » .
Apefar d'eíl:as homenagens ao miniífro, elle não patroci-
nou a Arcádia, talvez por defcobrir-lhe a errada compre-
henfão do feu deftino; em uma d'eíras vifitas officiaes de
Sebaftião Jofé de Carvalho, o árcade Garção fez a leitura
de uma ode emphatica, em que celebra o génio adminiftra-
tivo do miniflro:
No Menalo, íe Arcádia não levanta
Em honra de teu nome
Uma Ibberba eftatua,
De rico jafpe, como tu mereces,
Seus hymnos te confagra,
E n^elles \iverá tua memoria;
Teu nome efcreveremos
Em nolfos corações, em noffos verfos.
Porém o miniftro abandonou a Arcádia como um foco de
reacção jefuitica e não cumpriu nenhuma das fuás promes-
fas. PaíTados cinco annos, ainda Garção fonhava com eíTe
ambicionado favor ofíicial: «Tempo, tempo virá em que
cheguem os eccos do nolTo merecimento aos ouvidos de
quem o eftima, de quem o conhece e de quem o protege,
ainda quando o defcobre defvalido, pobre e defprezado; já
nós ouvimos de fua bocca promeffas que não hão de faltar,
e foi a noíTa cobardia quem deixou fugir a occafião. Cuide-
mos em merecer o premio, que é mais fácil confeguil-o do
que merecel-o, e ordinariamente o defeja quem o não me-
rece». Na ode já alludida de Garção ao conde de Oeiras, o
poeta refere-fe á malevolencia que pretendia defluftrar as
acções do miniftro:
Não ergue a mão cruenta a fria morte
Contra fonoros verfos!
Em vão levanta templos e columnas
Quem da pátria os louvores não merece;
226
Teu zelo incontraftavel,
Tuas acções illuítres, cantaremos!
A macilenta inveja
As viboras cerúleas delpedace!
Os grandes fucceíTos de extermínio da cafa de Aveiro
em 1758, a neceíTidade de occorrer á invafão do exercito
hefpanhol, o ataque deilemido á poderofa corporação dos
jefuitas, fe nos moftram por um lado a extraordinária adi-
vidade do miniílro que o embaraçava de animar com o feu
favor a Arcádia, por outro lado outros tantos themas íbbre
que o elpirito reaccionário dos jefuitas e das familias arifto-
craticas envolvidas na confpiração contra o rei, fe haviam de
exercer, minando o favoritifmo do miniftro. Para elle a Ar-
cádia era um centro de reacção; os feus principaes mem-
bros eram frades e padres. E como nada tinha a efperar
d'ali, deixou-a vegetar no eftiolamento e extinguir-fe na ina-
nidade. A occajião perdida a que allude Garção, pôde deter-
minar-fe antes do primeiro golpe vibrado em 1757 contra
os jefuitas; d'ahi em diante a luda tornou- fe mais violenta,
e a Arcádia no meio da reorganifação geral ficou um corpo
eftranho. O próprio Garção nada via n'efl:a ordem de cou-
fas confinado na imitação do feu Horácio, e elle próprio já
pela lua educação no Collegio dos jefuitas e pelas idéas po-
Hticas nas relações da Gaieta portiigiieia, já pela intimidade
peíToal com as familias ariftocraticas perfeguidas, como a de
Alorna e a do conde de S. Lourenço, incorreu no ódio do
poderofo miniftro, fob o qual fuccumbiu.
Sabendo-fe o motivo da prifão e morte do conde de
Óbidos, por ter chafqueado no paço acerca do nome de Se-
baftião (que D. Sebaftião não podia vir a reinar em Portu-
gal, porque já cá eftava governando outro Sebaífião) é fácil
de perceber como a vaidade irafcivel do minifiro poderia
^
■^-6^
6M
227
lem fundamento determinar a ruina do indefefo Garção.
Pelo crime de fazerem verfos, ou de lhe encontrarem em
cafa verfos fatyricos contra o Marquez, morreram no forte
da Junqueira o efcrivão do fifco Salvador Soares Cotrim e
o padre António Rodrigues; Tolentino efteve fempre calado
até ao dia da viradeira. E verdade que Garção tinha cele-
brado em uma pompofa epiftola a di6fadura do i .° Mar-
quez de Pombal, comparando-o a Atlante cujos hombros
fuftentava o folio portuguez, comparando-o a Mazzarino, a
Richelieu e a Colbert, mas no meio das fatyras anonymas
que circulavam contra o valido de D. Jofé, era poíTivel que
alguma foífe por intrigas particulares, fobretudo do elemen-
to feifcentifta e diíTidente que ficou fora da Arcádia, attri-
buida a Garção. As mefmas vaidades fe infurgiram e pro-
duziram mais tarde a prifão de Bocage. O titulo de Árcade
tornou-fe uma diftincção honorifica, fobretudo defde que eífa
academia celebrava conferencias publicas nos palácios do
eftado, a que aíTiftia por mais de uma vez o miniftro fobe-
rano. Na fua oração de lySS, Garção precifa eftes fados
como caufa do enervamento da Arcádia : « Ganharam as nos-
fas obras nova reputação, cohciliou refpeitos o nome de ár-
cade, e defejou o publico afliftir ás nolTas conferencias». Por
iíto fe acirraram azedas vaidades, e fe digladiaram defpei-
tos, como fe nota n'eíre grupo da Ribeira das Naus, capita-
neado por Filinto. Garção innfte em outro difcurfo: »A noffa
ambição (não vos aíTuilieis). a grande ambição de gloria com
que nos facrificámos ao trabalho de tão profundos eftudos
foi quem nos reduziu a tão extrema penúria, foi quem exe-
cutou tão vergonhofa cataftrophe; julgámos que entre montes
não cabia a noíTa fama; quizemos expol-a a maior theatro,
e Deus, que não podia deixar de proteger noíTos defejos em-
quanto foram finceros, não tardou em levantar-nos á maior
altura de honra e eftimação. Apparecemos aos olhos do pu-
228
blico, agradámos, fomos ouvidos, conheciam-fe os noíTos
nomes, refpeitava-fe a Arcádia. Então enamorados de tão
alta fortuna, nos pareceu mal tornar para um monte e viver
em cabanas.
«Prefidir n'uma grande fala, magnificamente decorada,
rodeado de ouvintes illuftres, fabios e virtuofos que talvez
converfavam no fucceíTo da campanha (1762) emquanto nós
fallavamos, ou eftavam com o lápis notando palavras, que
lhes pareceram novas porque não leram Ferreira, nem as
toparam nos fermões de Vieira; cantarmos noílbs verfos ao
fom de uma orcheílra immenfa e talvez imprópria; ifto é que
julgámos honra ...» A eftas ironias, Garção acrefcenta o pen-
famento primordial que motivava a inércia: «que era indis-
penfavel fazer mais feíTôes publicas, porque eíte foi o único
objedo da fundação da Arcádia, — ainda que tal não lem-
brou aos fundadores.» N'efte difcurfo recitado em 1762,
quando o efpirito publico fe occupava com a campanha di-
rigida pelo conde de Lippe, Garção alludia ás duas feíTões
apparatofas de 29 de outubro de 1759, na fala da Junta do
Commercio, por motivo de Sebaftião Jofé de Carvalho fer
agraciado com o titulo de conde de Oeiras, e de 14 de mar-
ço de 1760, nas NeceíBdades, celebrando as melhoras de
el-rei D. Jofé. Uma grande parte não fe preoccupava da
reítauração da litteratura portugueza; inftrumentos incon-
fcientes do cefarifmo que fe impõe pela força contra as idéas,
e que cobre a prepotência com as pompas deflumbrantes,
elles queriam fomente a honra de ferem viftos em um falão
fumptuofo e em uma pofição exclufiva. Foi ifto o que tor-
nou o nome de Árcade honrofo e appetecido, e foi efte o
motivo por que fe confervou a lifta dos feu§ nomes, e por-
que aquelles que imprimiram em vida os feus verfos fe não
efqueceram de fe nobilitar com o cognome poético que fe
tornou moda mefmo fora da Arcádia. A litteratura tinha de
229
reproduzir fatalmente o meio focial, e os bons talentos da
Arcádia, como Garção, Diniz e o Quita, e ainda as mais
fervorolas vontades, como Manuel de Figueiredo, acharam-
le impotentes, porque a adividade litteraria, foh o cefaris-
mo bragantino que outro deftino poderia ter, fenão a baju-
lação do poder? No feu bom fenfo fecular, Montaigne trans-
creve uma phrale de Tito Livio, que fynthetifa todas as de-
cadencias intelleduaes e artifticas: « Titus Liviíis dict iray —
que le laugage des liommes noiírris foiíbs la voyaiité, ejl toiís-
joiírs plciu de raines ojleiítatioiís etfaidx tefníoignages^ n . Eis a
fynthefe de toda a nofla adividade mental do feculo xviii;
a um diíToluto e apparatofo D. João V, correfpondem obras
litterarias pautadas pela Arte de faier conceitos, deftinadas
a elogiar com devoção budhica o monarcha e todos os fuc-
ceíTos da vida do paço. Poefia, eloquência, theatro, hiftoria,
tudo traz eíTe cunho da bajulação e da indignidade lervil,
e ao melmo tempo o tédio de uma linguagem empolada e
fem idéas, violentada a exprimir emoções fem naturali-
dade, nem verdade. Se a acção dos jefuitas no humanifmo
da Europa fe manifefta na perverfão do gofto, que fe pro-
paga a todas as litteraturas do feculo xvii, no feculo xviii o
cefarifmo continuou eífa decadência pela influencia direita
para a banalidade. A maior aítividade litteraria defpendeu-
fe em incalculáveis rumas de verfos, lamentando a morte da
princeza D. Francifca Benedida, a elevação da eftatua
equeílre, a morte prematura do príncipe D. Jole, o nafci-
mcnto do principe D. António, e quando o Marquez de
Pombal fe recolheu á vida privada eífa quantidade pafmofa
de fatyras e de epigrammas que a covardia dos homens de
lettras lhe atiraram de todos os lados. Ifto explica a relação
do Marquez de Pombal com a litteratura; o próprio Cruz e
EJfais, liv. I, c;ip. iii.
cia
(is
23o
Silva, que o glorificava em uns verfos epifodicos do Hyffo-
pe, na queda do miniftro cortou, legundo a tradição, os ver-
fos que defagradavam á reacção dominante. Apenas um
poeta, Jofé Bafilio da Gama, o auítor da pequena cpopêa
brazileira o Uniguay, teve a coragem dos feus fentimentos,
não efquecendo que devera a Pombal o perdão do defterro
para Angola pelo motivo de ler jcfuita. Nicolau Tolentino,
verberando nos feus fonetos o miniftro fob cujo governo
fe contivera em filencio prudente, ultrapaífa a indignidade,
porque vilava unicamente a lilbnjear os refentimentos dos
que difpunham agora do poder.
A litteratura nas fuás formas orgânicas, lyrica, épica e
dramática, fó exiftia por uma reproducção material ou ma-
caqueação dos exemplares convencionaes. O fentimento in-
dividual, que produz a emoção do lyrifmo, eftava reduzido
á indignidade c á fubmiífáo de um defpotifmo degradante,
e por iífo fubmettia-fe ao convencionalifmo auiítoritario, pa-
rodiando fem intelligencia os lyricos romanos. A acção, que
produz a epopêa, eftava centralifada no poder ablbluto, e
por iífo as individualidades heróicas não tinham que fe ma-
nifeftar porque nada tinham que fazer; Pombal comprehen-
deu ifto, mandando vir da AUemanha um general, o conde
de Lippe, para dirigir a campanha defenfiva contra a Hes-
panha. Emfim, a creação dramática, que fe funda no con-
trafte da opinião publica com as fituações individuaes, como
podia defabroxar, fe a opinião eftava contida entre as duas
preífões tremendas, a orthodoxia catholica pelas fogueiras do
Santo Officio, e a rafão do eftado, pela forca e garrote? As-
fim o theatro, que não chegou a ter vida nas mãos de Ma-
nuel de Figueiredo, foi uma miftura de plagiatos remenda-
dos indiftindamente das comedias hefpanholas, italianas e
francezas, para diftrahir uma fociedade a quem era conve-
niente afaftar-lhe a attenção do exame da governação pu-
1 í
23l
blica. Apefar da grande força de Pombal e da fua eftupen-
da iniciativa, elle não pôde eftimular o delenvolvimento da
litteratura, porque matou o fentimento da libe}\iade politi-
ca da nação, exagerando até ao abfurdo a idéa do regalis-
luo, que o levou a applicações verdadeiramente monftruofas.
O que inlpirou os génios fuperiores da litteratura do feculo
XVIII, e os fez, com relação á independência da fociedade, os
verdadeiros cooperadores dos philolbphos, e continuadores
dos jurifconfultos da Edade media, íó penetrou em Portugal
no fegundo quartel do feculo xix, quando Garrett levado
pelo enthufialmo do Romantiímo, poz as novas formas lit-
terarias ao lerviço da liberdade politica, pela revivefcencia
das tradições nacionaes, pelas impreíTões direitas de duas
emigrações, e pela participação das ludas do conítituciona-
lifmo. Sendo a miffão do grande homem o exercer a fua
força na convergência de todas as adividades Ibciaes para
eíTe ponto commum que conflitue a vida hiftorica de uma
nacionalidade. Pombal ultrapaíTou elTa miíTão, ablbrvendo
todas as energias, e dando ao progreíTo a forma de abalos
produzidos pela lua impetuofa audoridade peíToal. Aquillo
que, pela fua natureza automática depende de uma forte re-
gulamentação, lubUfliu; porém o que é uma expreíTão ou a
confequencia da liberdade moral e intelleclual, ou ficou fora
da acção minifterial, ou atrophiou-fe, como as plantas deli-
cadas que murcham quando fe lhes põe a mão.
Theophilo Braga.
^:
índice
PRIMEIRA PARTE
O marquez de Pombal: r''"'-
Capitulo I — Introducção i
Capitulo II — Os primeiros annos de Pombal 21
Capitulo III — Pombal no minillerio 48
Capitulo IV — O terremoto 84
Capitulo V — Primeiras incurfões contra os jefuitas io5
Capitulo VI — A companhia dos vinhos do Alto Douro i38
Capitulo VII — Os jeluitas 161
Capitulo VIII — A conjuração 178
Capitulo IX — A expuHão dos jefuitas 2o5
Capitulo X — Vigor e dignidade 243
Capitulo XI — A educação e o trabalho nacional 262
Capitulo XII — A guerra com a Hefpanha 278
Capitulo XIII — O facerdocio e o império 3i7
Capitulo XIV — As reformas da inflrucção 365
Capitulo XV — As reformas fociaes e económicas 3g6
Capitulo XVI — O triumpho 444
Capitulo X\'ll — Martyrio e conclufão 495
SEGUNDA PARTE
Seballião Jofé de Carvalho e Mello — O eminente propulfor da evolução
focial em Portugal no feculo xviii i
A derradeira injuria 21
O marquez de Pombal e a civilifação brazileira 3 1
O marquez de Pombal e a liberdade dos Índios 41
II marchefe di Pombal 49
Der minifter Pombal — Ein Icbens- und charakterbild aus der zeit der auf-
klaerung 67
Marquez de Pombal:
Introducção, definições e efclarecimentos 1 1 1
Capitulo I — Antecedentes hifloricos i32
Capitulo II — O marquez de Pombal e o feu tempo i36
Capitulo III — O marquez de Pombal e os aílos principaes do feu go-
verno 141
Capitulo IV — O marquez de Pombal c a fua inllucncia, confequentes
e conclufão 1 55
A legillação pombalina 161
O marquez de Pombal e a companhia de Jefus 175
O marquez de Pombal e a rellauração da litteratura portugueza 21 1
tii
Q,8Bl
31^S
PLEASE DO NOT REMOVE
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DP Marquez de Pombal
M33