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Full text of "O Marquez de Pombal. Obra comemorativa do centenário da sua morte, mandada publicar pelo Club de Regatas Guanabarense do Rio de Janeiro"

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O  MARQUEZ  DE  POMBAL 


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o  MARPZ  DE  POMBAL 


OBRA  COMMEMORATIVA 


CENTENÁRIO  DA   SUA  MORTE 


MANDADA  PUBÍJCAR 


CLUB  DE  REGATAS  GUANABARENSE 


RIO  DE  JANEIRO 


LISBOA 

IMPRENSA  NACIONAL 
l885 


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FEB  /     1973 


7ív 


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PRIMEIRA    PARTE 


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COLLABORAM  N'ESTA  OBRA  OS  EXCELLENTISSIMOS  SENHORES 


JOSÉ  MARIA  LATINO  COELHO— HENRIQUE  CORRÊA  MOREIRA 

MACHADO  DE  ASSIS  — SYLVIO  ROMERO 

Dr.  THOMÁS  ALVES  JÚNIOR  — CONTE  ANGELO  DE  GUBERNATIS 

Dr.  GEORGE  WEBER  — Dr.  MANUEL  EMYGDIO  GARCIA 

OLIVEIRA  MARTINS  — JÚLIO  MATTOS— THEOPHILO  BRAGA 


GRANDE  COMMISSÃO  EXECUTIVA 

DA  COMMEMORAÇÃO 

DO 

PRIMEIRO  CENTENÁRIO  DO  MARQUEZ  DE  POMBAL 

NO 

RIO  DE  JANEIRO 


Barão  do  Rio  Bonito,  prcjidcnte. 

Vifconde  de  Siflello,  vice-prejidente. 

Commendador  Frederico  Guftavo  de  Oliveira  Roxo,  idem. 

António  Pollo,  fecretario. 

Capitão  de  fragata  Luiz  Filippe  de  Saldanha  da  Gama,  idem. 

Commendador  António  Thomás  Quartim,  thefotireiro. 

Vifconde  de  Arcozello,  idem. 

Commendador  António  Jofé  Ricões. 

Dr.  António  Zeferino  Cândido,  encarregado  da  edição. 

António  Joaquim  Xavier  de  Faria. 

António  Pinto  da  Silva. 

António  Jofé  Marques  de  Abreu  Júnior. 

Alfredo  Ignacio  de  Abreu  Soares. 

Bernardo  Jofé  de  Andrade. 

Dr.  Carlos  Auguílo  de  Miranda  Jordão. 

Eduardo  Jofé  de  Almeida  e  Silva. 

Ernefto  Werneck  Teixeira  de  Caftro. 

Eugénio  Jofé  de  Almeida  e  Silva. 

Francifco  Jofé  Correia  Quintella. 

Dr.  Hermogenes  Pereira  da  Silva. 

Commendador  João  Francifco  Pirões  da  Cruz. 

João  Luiz  Tavares  Guerra. 

Joaquim  Henrique  da  Coll:a  Reis. 

Jofé  de  Miranda  Monteiro  de  Barros. 

Dr.  Thomás  Alves  Júnior. 

Dr.  Ruy  Barbofa,  orador. 

Leopoldo  Américo  Migucz,  direâor  da  parte  mtifical. 


Distribuição  de  50  exemplares  numerados 

ÚNICOS 


PAPEL  WHATMAN 


1  Sua  Mageftade  Dom  Pedro  II,  Imperador  do  Brazil. 

2  Sua  Magellade  Fideliflima  Dom  Luiz  I,  Rei  de  Portugal. 

3  Sua  Alteza  Conde  d'Eu. 

4  Sua  Mageftade  El-Rei  Dom  Fernando. 

5  Marquez  de  Pombal. 

6  Bibliotheca  Publica  do  Rio  de  Janeiro. 

7  Bibliotheca  Publica  de  Lifboa. 

8  Bibliotheca  Publica  do  Porto. 

Q  Bibliotheca  da  Univerlidade  de  Coimbra. 

10  Gabinete  Portuguez  de  Leitura  do  Rio  de  Janeiro. 

1 1  Initituto  Hiftorico  e  Geographico  da  Rio  de  Janeiro. 

12  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lifboa. 
i3  Camará  Municipal  do  Rio  de  Janeiro. 
14  Bibliotheca  Publica  de  Madrid. 

i5  Bibliotheca  Publica  de  Paris. 
i()  Bibliotheca  Publica  de  Londres. 

17  Bibliotheca  Publica  de  Florença. 

18  Bibliotheca  Publica  de  lena. 

19  Dr.  Francifco  Augufto  Correia  Barata,  encarregado  da  collabu- 

ração  e  edição  cm  I^ortiigal  c  no  cflrangciro. 

20  Dr.  Ruy  Barbofa. 

21  Leopoldo  Américo  Miguez. 

22  Confelheiro  Pedro  Luiz  Pereira  de  Soula. 

23  Commcndador  João  Henrique  Ulrich. 


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24  Confelheiro  Jofé  Maria  Latino  Coelho. 

25  Barão  do  Rio  Bonito. 

26  Vifconde  de  Siftello. 

27  Commendador  Frederico  Guftavo  de  Oliveira  Roxo. 

28  António  Poilo. 

29  Bernardo  Jofé  de  Andrade. 

30  Commendador  António  Thomás  Quartim. 
3i  Vifconde  de  Arcozello. 

32  Dr.  António  Zeferino  Cândido. 

33  Capitão  de  fragata  Luiz  Ulippe  de  Saldanha  da  Gama. 

34  Dr.  Thomás  Ahes  Júnior. 

35  Alfredo  Ignacio  de  Abreu  Soares. 

36  António  Joaquim  Xavier  de  Faria. 

37  Commendador  António  Jofé  Ricóes. 

38  António  Jofé  Marques  de  Abreu  Júnior. 
3c)  António  Pinto  da  Silva. 

40  Dr.  Carlos  Auguíto  de  Miranda  Jordão. 

41  Eduardo  Jofé  de  Almeida  e  Silva. 

42  Ernefto  Werneck  Teixeira  de  Callro. 

43  Eugénio  Jofé  de  Almeida  e  Silva. 

44  Francifco  Jofé  Correia  Quintella. 

45  Dr.  Hermogenes  Pereira  da  Silva. 
4(3  Joaquim  Henrique  da  Cofta  Reis. 

47  João  Luiz  Tavares  Guerra. 

48  João  Francifco  Fróes  da  Cruz. 

49  Jofé  de  Miranda  Monteiro  de  Barros. 

50  Club  de  Regatas  Guanabarenfe. 


o  MARQUEZ   DE   POMBAL 


CAPITULO   I 


INTRODUCÇAO 

liando  um  povo  pelos  erros  dos  feus  mo- 
narchas,  pelos  vicios  da  fua  indole,  e  pela 
influencia  das  circumftancias,  degenerado 
inteiramente  da  fua  actividade  primitiva, 
da  fua  priflina  grandeza,  e  da  fua  profpe- 
ridadc  nacional,  chegado  á  ultima  degra- 
dação da  intelligencia  e  dos  coftumes,  eftá 
preftes  a  apagar  o  feu  nome  na  lifta  das  nações,  fó  dois 
caminhos  fe  lhe  ofFerecem  para  frullrar  o  deftino,  que  o  eftá 
ameaçando.  Só  ha  dois  meios  para  evocar  de  novo  á  exis- 
tência um  povo,  que  raiou  as  extremas  da  fua  decadência: 
a  revolução,  que  é  a  energia  violenta  da  própria  fociedade, 
acordando  do  feu  lethargo  diuturno  pela  refurreição  da 
confciencia,  ou  o  defpotifmo  illuminado,  que  é  a  força  de 
um  fó  homem,  fubftituida  á  dormente  razão  da  fociedade. 
Mas  d'eftes  dois  expedientes,  ambos  agros  e  tormento- 
fos,  não  é  fácil,  nem  indifferente  o  difcernir  qual  poífa 
utilifar-fe  cm  qualquer  tempo  ou  conjuncção.  A  revolução 


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preluppõe  necelTariamente  uns  clarões  de  lume  intelledual 
nas  claíTes  fuperiores,  uns  reftos  de  hombridade  varonil  nas 
turbas  populares.  E  precifo  que  os  efpiritos  de  quilate  mais 
fubido  tenham  feito  previamente  a  critica  da  fociedade, 
e  que  chamando  perante  o  feu  pretório  as  inftituições  e  os 
abufos,  os  poderes  e  as  tradições,  o  paíTado  e  o  prefente, 
os  interroguem  e  os  condemnem  em  face  da  razão,  do 
direito,  da  julfiça,  em  nome  da  humanidade.  Toda  a  revo- 
lução tem  de  fer  precedida  forçofamente  por  uma  larga 
elaboração  intelledual.  Antes  de  fer  acção,  ha  de  fer  efcola, 
feita,  philofophia.  Antes  de  efpada,  que  combate,  e  de 
camartello,  que  derroca,  ha  de  fer  penna,  que  difcute, 
e  livro,  que  evangeliza.  Para  que  a  revolução  profpere  e 
vingue,  não  é  forçofo,  —  como  o  pregam  os  fophiltas  da 
reacção,  —  que  haja  um  povo  inteiro  de  fabios  educados  nos 
fegredos  mais  recônditos  da  fciencia  focial,  mas  é  precifo 
que  preexifta  uma  nação  capaz  de  comprehender  ao  menos 
pela  paixão  ou  pelo  inftindo  a  luz  da  revolução.  E  neces- 
fario  que  haja  um  povo,  que  não  tenha  a  razão  entene- 
brecida inteiramente  pela  mais  indómita  bruteza  e  a  con- 
fciencia  avaíTallada  pela  mais  torva  fuperftição. 

Quando  eftas  condições  fe  não  realifam  n'um  eftado, 
refta  apenas  que  o  defpotifmo,  cançado  de  embrutecer  e 
opprimir,  efpontaneamente  fe  refoh^a  a  opprimir  e  a  illus- 
trar.  Refta  apenas  que  o  abfolutifmo  em  vez  de  eíterilifar 
a  gleba,  que  fenhorêa,  fe  determine  a  feitorizal-a  com 
fecundas  bemfeitorias  e  que,  julgando  melhorar  o  feu  pró- 
prio fideicommiíTo,  funde  fem  o  penfar  para  tempos  não 
remotos  o  património  popular,  e  cuidando  encravar  na  terra 
fundamente  as  raizes  da  fua  duradoura  autocracia,  lance 
inconfciente  em  volta  do  throno  hereditário  as  fementes  da 
revolução.  Trifte  mas  fatal  expediente.  Quafi  ignominiofo 
paradoxo,  que  a  ventura  popular  haja  de  manar  da  terrível 


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cornucopia,  meneada  pela  mão  agrefte  e  rude  de  um  dés- 
pota intratável  e  fomhrio  ou  de  um  torvo  e  inexorável 
didador. 

Mas  é  aíTim  feita  a  humanidade.  Ao  povo,  quando  é 
infantil  pela  efcuridade  da  razão  ou  decrépito  pela  degra- 
dação da  confciencia,  não  lhe  é  permittido  dar  um  paíTo 
fem  que  o  leve  pela  mão  efta  ama  defahrida,  que  fe 
chama  defpotifmo,  ou  o  conduza,  tirando-o  por  um  baraço, 
efte  guia  defalmado,  que  tem  nome  tyrannia. 

E  affim  que  a  liberdade  pôde  por  uma  flagrante,  mas 
apparente  contradicção,  nafcer  do  deípotifmo,  como  a  antiga 
Thebas  mythologica,  a  cidade  florente  da  Beócia,  tem  no 
velho  mytho  hellenico  a  lua  origem  nos  dentes  temerofos 
de  um  dragão.  O  delpotilmo  é  então  o  gaftador,  que  prece- 
dendo as  hoftes  da  revolução,  vae  derrocando  no  caminho 
as  caducas  inftituiçôes.  Não  pôde  erigir  folidamente  o  novo 
edifício  focial,  mas  cm  providencial  expiação  de  feus  deli- 
dos é  condemnado  a  confumir  o  extremo  esforço  em  abrir 
os  alicerces  da  revolução.  Sô  a  liberdade  é  creadora.  Mas 
para  deftruir  e  aíTolar  bafta  muitas  vezes  a  cólera  de  um 
defpota  ou  o  capricho  de  um  lenhor.  Para  arremeçar  aos  ares 
a  fublime  eftrudura  do  Parthenon  de  Athenas  ou  a  cúpula 
formofa  do  diiomo  de  Florença  é  precifo  que  nafça  um 
Phidias,  ou  um  Brunellefchi,  que  fão  o  génio,  ifto  é,  a  revo- 
lução da  intelligencia.  Mas  para  aíTolar  a  velha  Roma,  a  fim 
de  que  fobre  os  efcombros  do  caduco  império  fe  levante 
uma  nova  civilifação,  bafta  a  fanha  brutal  de  um  Alarico, 
que  é  a  força,  ifto  é,  o  deípotifmo  da  matéria. 

AíTim,  quando  um  povo  eftá  embrutecido  fatalmente 
pela  duplicada  fervidão  a  um  fenhor,  que  lhe  encadêa  a 
liberdade,  e  a  um  inquifidor,  que  lhe  entorpece  a  con- 
fciencia, fô  pôde  viflumbrar-fe  alguma  luz,  fe  no  meio 
d'aquelles   dois   dominadores   fe   levanta  de  improvifo  um 

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arbitro  llipremo  e  diz  a  um:  «Acurva-te  ante  mim  como 
o  ultimo  da  plebe,  porque  diante  do  meu  poder  lao  eguaes 
o  magnate  e  o  mefteiral»;  e  ao  outro:  «Apaga  as  tuas 
fogueiras,  porque  eu  não  quero  competidores  á  minha 
poteftade  temporal». 

A  revolução  é  como  uma  crefcente  impetuofa,  que  fazen- 
do trafbordar  do  alveo  eítreito  o  rio  outr'ora  remanfado, 
leva  aos  campos  adjacentes  ao  mefmo  paíTo  as  aguas  torren- 
tofas,  que  os  aíTolam,  e  o  propicio  nateiro,  que  os  fecunda. 
O  defpotifmo  é  como  um  terremoto,  que  vem  defquiciar  e 
convellir  a  inteira  conítrudtura  da  fociedade,  e  deixar  difper- 
fos  no  folo  os  troços  e  as  ruinas  da  velha  e  carcomida  edifi- 
cação, para  que  dos  feus  deítroços  fe  poffa  mais  tarde  erigir 
e  fabricar  a  nova  e  mais  folida  eftrudura.  O  defpotifmo 
tem  o  pulfo  forte  e  mufculofo  para  menear  em  duros  golpes 
o  alvião,  mas  a  revolução,  fe  n'uma  das  mãos  não  menos 
vigorofas  empunha  o  camartello  deflruidor,  traz  na  outra, 
regidos  pela  razão  e  pelo  direito,  a  efquadria  e  o  compaífo, 
fymbolos  da  proporção  e  da  harmonia. 

Quando  porém  não  é  ainda  chegado  para  um  povo  o 
dia  claro  da  fua  emancipação  e  liberdade,  é  precifo  acolher 
e  applaudir  os  viflumbres  de  reformação  e  melhoria,  que 
tranfluzem  nas  trevas  populares  pela  enérgica  vontade  de 
um  defpotifmo  intelligente.  É  então  o  primeiro  alvorecer  da 
revolução,  que  defce  das  alturas  governativas  e  prepara  em 
certa  maneira  a  revolução,  que  ha  de  fubir  das  profundezas 
fociaes.  E  ainda  a  luz  dúbia  e  fraca  da  antemanhan,  que 
não  alcança  pela  fua  débil  intenfidade  afaftar  as  fombras, 
que  fe  adenfam  nas  quebradas  e  nos  valles. 

E  a  paffageira  tranfacção  entre  o  paíTado,  que  já  fe  en- 
vergonha de  exiftir,  e  o  futuro,  que  ainda  não  oufa  moflrar- 
fe  claramente.  É  o  defpotifmo,  que  fe  corre  e  fe  arrepende 
das  fuás  próprias  malfeitorias,  e  profcrevendo  a  confciencia 


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e  a  liberdade,  como  um  tremendo  facrilegio,  mas  procla- 
mando a  Iciencia  e  o  trabalho  como  as  condições  imprete- 
riveis  da  nova  civilifação,  ellá  lem  o  cuidar  forjando  as  ar- 
mas á  nafcente  democracia. 

Eis  ahi  o  que  íliccedcu  em  Portugal  depois  do  reinado 
magnifico,  mas  defaftrolb  d'eí1:e  Afurbanipal  do  Occidente, 
ci'eíl:e  pallido  reflexo  de  Luiz  XIV,  d'efte  monarcha  voluptua- 
rio  e  negligente,  que  le  chamou  D.  João  V.  A  nação  pros- 
trada no  extremo  abatimento,  a  intclligencia  degenerada 
quall  até  ao  completo  idiotifmo,  o  trabalho  efquecido  e  des- 
honrado,  as  claíTes  fuperiores  ociofas  e  imitadoras  das 
lumptuofas  lafcivias  do  leu  rei,  o  clero  e  os  magnates 
lugando  quafi  toda  a  fubítancia  da  nação,  o  povo  oppreíTo, 
milerrimo,  envilecido;  uma  nação,  que  vive,  como  o  leu 
monarcha,  entre  o  auto  de  fé  do  Santo  Officio,  o  locutório  de 
Odivellas,  o  cantochão  de  Mafra,  os  touros  do  Terreiro  do 
Paço,  e  os  equívocos  e  trocadilhos  da  litteratura  leifcentifta. 
Um  povo,  em  cujo  regaço  as  minas  do  Brazil  eítão  lançando 
perennemente,  como  fe  fora  a  mais  tremenda  maldicção,  o 
oiro  e  as  pedrarias,  —  a  douradora  e  a  ironia  da  ric[ueza, 
o  ornato  enganador  e  apparente  da  miferia  derradeira. 

Tal  é  a  herança,  que  fe  depara  no  efpolio  politico  do 
monarcha  diíTipador.  Tão  baixo  le  afundira  Portugal  que  ao 
lubir  ao  throno  D.  Jole,  era  improvável  que  podeíTe  levan- 
tar-fe  nunca  mais.  Era  quafi  uma  nação  extranha  á  civilifa- 
ção e  ás  idéas  do  leu  tempo.  Era  uma  organifação  focial 
incompatível  com  o  minimo  progreífo.  O  próprio  abfolu- 
tifmo,  que  julgava  concentrar  na  fua  férrea  dominação  todos 
os  poderes  e  todas  as  energias  do  paiz,  vivia  avalfallado  a 
uma  potencia  fuperior,  contra  a  qual  já  parecia  impraíli- 
cavel  rcfiflir.  O  defpotifmo  temporal  fó  podia  governar  na 
efcaífa  nefga,  que  depois  de  crefcentes  invafóes  lhe  deixara 
a  theocratica  fupremacia  c  poteftade  efpiritual.   Apelar  de 

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Ibmbrio  e  dilcricionario,  como  era  o  governo  de  um  monar- 
cha  portuguez  n'aquelle  tempo,  todos  os  terrores  fe  concen- 
travam na  tremenda  jurifdicção  do  Santo  Officio,  cuja  vifta 
efcrutadora  poderia  eftender-le  até  o  folio,  reger  e  dominar 
a  confciencia  do  imperante  e  forçal-o  a  fubordinar  o  próprio 
fceptro  á  efpada  flammeante  dos  árbitros  da  fé. 

O  rei  D.  Jofé  era  um  homem  que  nafcêra  para  conti- 
nuar fem  a  magnificência  e  a  galanteria  do  leu  predeceflbr 
o  defmando  e  a  negligencia,  em  que  fob  o  leu  reinado 
tinham  corrido  os  negócios  e  os  intereffes  da  nação.  E 
laftima  que  os  foberanos,  que  têem  de  fubftituir-fe  á  von- 
tade e  á  intelligencia  de  todo  um  povo,  não  tenham  as 
mais  das  vezes  nem  intelligencia,  nem  vontade.  E  ainda  é 
mais  laftimolb,  que  a  fraqueza  do  carader  e  as  trevas  do 
entendimento  appareçam  aggravadas  pela  efiulta  convicção 
da  fua  majeftade  hereditária,  e  da  lua  miíTão  providencial, 
e  pelo  fanatilmo  da  confciencia  timorata,  rendida  fuhmiífa- 
mente  ás  miras  profanas  e  terrenaes  de  um  clero  egoifta  e 
adverfo  a  toda  a  falutar  innovação.  Tal  era  infelizmente 
D.  Jofé.  As  fuás  faculdades  eram  porventura  ainda  inferiores 
ás  do  leu  predeceífor,  e  a  idéa  da  lua  quali  divina  fuperio- 
ridade  fobreexcedia  á  monarchica  Ibberba  de  leu  pae.  Parecia 
pois  condemnado  a  cifrar  em  poucos  itens  a  lua  norma  de  go- 
verno. Aíliftir,  fem  mefmo  a  perceber,  á  ultima  decadência  e 
ruina  da  nação;  defpender  em  feftas  e  defportos  de  uma  corte 
indolente  e  ociofa  os  milhões  de  oiro,  que  lhe  traziam  annual- 
mente  as  fuás  frotas,  aninhar  em  torno  de  fi,  gratifican- 
do-a  de  novas  largições  e  munificencias,  a  turba  dos  fidalgos 
prediledos;  obedecer  aos  confeífores,  que  a  ciofa  companhia 
de  Jefus  pozera  nos  feus  paços  como  os  poftos  avançados  da 
theocracia  univerfal;  magnificar  com  a  fua  prefença  no  meio 
de  luzidos  cortezãos  a  finistra  folemnidade  dos  autos  da  fé; 
manter  o  paiz  inerme  e  vaífallo  dos  extranhos;  perpetuar 

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ou  accrefcer  a  dilapidação  e  a  ruina  da  fazenda  publica, 
fem  que  o  povo  melhoraire  na  lua  trifte  condição  de  tribu- 
tário; continuar  a  ignorância  univerfal,  deixando  repallar-le 
a  frouxa  intelligencia  da  nação  na  falia  e  decrépita  Iciencia 
e  litteratura,  que  tocara  o  leu  ápice  funefto  durante  o  reinado 
calamitolb  do  leu  anteceíTor;  tal  feria  porventura  o  que  a 
hiftoria  teria  a  regiftar  do  novo  rei  e  da  grei  defditola  dos 
Icus  povos,  le  a  própria  fraqueza  do  leu  animo  não  tivera 
facilitado  que  um  homem  de  eminentes  faculdades,  por 
incfperado  lance  da  fortuna,  vieíTe  occupar  no  folio  régio  o 
logar  deftinado  á  acção  governativa,  deixando  á  fombra  do 
monarcha  o  fútil  apparato  da  efteril  Ibberania. 

EíTe  homem  foi  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello. 
EíTe  homem  era  a  revolução  inconfciente,  que  vinha  tomar 
das  mãos  ao  débil  potentado  o  Iceptro,  que  elle  mal  podia 
lufter  e  menear.  Era  o  efpirito  do  xviii  leculo,  que  irrom- 
pia finalmente  no  Portugal  da  inquifição,  principiando  as 
luas  oufadas  incurfóes  nos  paços  dos  monarchas.  Era,  fem 
o  fufpeitar  e  fem  o  querer,  o  precurfor  das  reformas  demo- 
cráticas. Era  o  terrível  adverfario  da  arrogância  ariftocratica, 
era  principalmente  o  incançavel  antagonifta  da  poteftade 
clerical ;  e,  por  um  confedario  natural,  o  previdente  fundador 
da  clafle  média.  Ora  n'um  paiz,  onde  como  em  Portugal,  o 
clero  e  a  nobreza  reprefentavam  as  duas  grandes  forças 
Ibciaes,  e  repartiam  entre  fi  a  maior  e  mais  fecunda  parte 
do  fólo  nacional,  e  oneravam  o  trabalho  com  as  gabellas  e 
tributos  mais  pefados,  e  ablbrviam  alentado  quinhão  do 
fifco  régio  pelos  officios  mais  pingues  e  eminentes,  que  o 
favor  e  o  privilegio  lhes  davam  em  monopólio,  quanto  fe 
abatia  e  efcatimava  no  poder  e  na  opulência  d'eítas  duas 
poderofas  hierarchias,  tanto  revertia  forçofamente  em  bene- 
ficio popular.  O  governo  da  nação  refidia  nas  mãos  do 
clero,    principalmente    dos    jefuitas,    que    indiredamente    o 

II 

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exerciam.  No  feio  de  um  eftado  em  profunda  delbrgani- 
fação,  eram  elles  o  único  organiímo  regular,  rohufto,  dotado 
de  força  e  de  harmonia.  Eram  como  uma  republica  folida- 
mente  conftituida  entre  um  governo  de  inexcedivel  laxidão 
fem  os  brios  do  feu  dever,  e  um  povo  inerte  e  ociofo  fem  a 
confciencia  do  feu  direito.  Ora  nos  eftados,  como  nos  fyílemas 
da  mechanica,  a  força  de  maior  intenfidade  em  concorrência 
com  outras  quafi  nuUas,  determina  proximamente  o  movi- 
mento na  fua  própria  direcção.  As  fociedades  fão  fatalmente 
conítituidas  por  tal  modo,  que,  onde  os  poderes  ofl&ciaes 
exercem  frouxamente  a  fua  acção,  forçofamente  alguma 
grande  influencia  extranha  e  anormal  tomarií  a  feu  cargo 
o  dirigir  a  vida  focial.  Os  jefuitas  tinham  a  feu  favor  a 
harmónica  união  dos  feus  poderofos  elementos,  a  difciplina 
fevera  e  imprefcriptivel,  a  cega  obediência  aos  fuperiores  da 
fua  ordem.  Eram  dentro  da  nação  como  que  uma  potencia 
forafteira,  occupando  militarmente  com  as  luas  hoftes  inven- 
cíveis o  que  ainda  tinha  nome  de  território  portuguez.  No 
paço  ora  dominavam  a  timida  confciencia  dos  monarchas 
pelo  influxo  irrellítivel  da  fuprema  direcção  religiofa,  ora 
conquiftavam  a  valia  do  foberano  pelas  artes  do  cortezão 
c  do  politico.  Nos  palácios  da  nobreza  grangeavam  adeptos 
fervorofos  e  preftadios,  e  ligavam  aos  interelfes  da  fua  cor- 
poração as  calas  mais  illuftres,  recrutando  no  leu  grémio  os 
feus  filhos  mais  piedofos.  Para  exercitar  o  feu  poder  moral, 
mas  decifivo,  nas  claífes  populares  tinham  como  fuás  cida- 
dellas  principaes  e  inexpugnáveis  o  confeíTionario  e  a  evan- 
gélica tribuna.  No  tribunal  da  penitencia  influíam  indivi- 
dualmente nos  turs'0s  entendimentos  e  nas  timidas  vontades 
populares.  No  púlpito,  com  a  eloquência  artificiofa,  em  que 
eram  confummados,  governavam  em  mafla  as  turbas  fana- 
tifadas.  Aífim  tinham  nos  feus  confefllonarios  e  nos  feus 
exercícios  efpírituaes  como  que  outros  tantos  ínfignes  atira- 

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dores,  que  preparaíTem  a  acção  pelo  combate  fingular  das 
confciencias.  No  púlpito  eram  as  cargas  decifivas  e  como 
que  a  peleja  na  ordem  unida  contra  as  hoítes  cerradas  dos 
aíTomhrados  auditórios.  Os  moraliftas  da  companhia  não 
reclamavam  dos  léus  devotados  penitentes  uma  natureza 
fobrehumana  e  exempta  de  carnaes  imperfeições.  Mais  feitos 
eram  á  vida  adiva  e  practica  do  que  á  alcése  myftica  e  á 
vida  contemplativa.  O  caminho,  que  abriam  para  o  céu  era 
pois  mais  lhano  e  fácil  de  trilhar  do  que  a  via  efpinhofa 
traçada  defde  a  terra  á  bemaventurança  pelos  afcetas  mace- 
rados e  libertos  de  toda  a  carnalidade,  pelos  Thaulers  e  Fr. 
Luiz  de  la  Puente,  e  pela  efquadra  numerofa  de  myfticos 
ferventes,  que  fioreciam  nas  demais  religiões.  O  que  reftava 
ainda  que  influir  e  conquiftar  fora  do  púlpito  e  confeíTionario, 
tinha  o  feu  campo  de  batalha  de  certiíTimo  triumpho  nas 
efcolas.  AíTim,  a  poderoía  companhia,  a  verdadeira  força 
viva  da  nação,  governava  lem  refiftencia  e  lem  partilha 
a  acção,  a  confciencia  e  a  razão  defde  o  monarcha  e  os 
feus  próceres  até  os  mais  humildes  e  obfcuros  pegureiros. 

A  companhia  de  Jefus  era,  por  aíTim  dizer,  o  exercito 
adivo,  a  primeira  linha  d'efta  cruzada  temerofa,  que  defde 
a  reforma  intentava  contradidar  e  fuspender  a  torrente  do 
progreífo  c  da  innovação.  Nas  demais  ordens  e  congregações 
religiofas  tinha  como  que  as  fuás  milícias  e  ordenanças,  que 
ainda  mefmo  quando  emulas  ou  hoftis  á  companhia,  em 
grande  parte  confpiravam  no  mefmo  intento  de  perpetuar 
a  indolência,  o  fanatifmo,  a  fervidão  e  a  ignorância  popular. 
Defde  os  tempos  ominofos  de  D.  João  III  e  D.  Sebaftião 
a  decadência  de  Portugal  havia  caminhado  com  uma  efpan- 
tola  acceleração.  Pouco  reftava  já  d'efta  raça  heróica  e  quafi 
fobrehumana,  que  fizera  das  navegações  e  conquiftas  portu- 
guezas  na  Africa,  no  Oriente  e  Novo  Mundo  uma  epopea 
quafi  mythica  pelo  incrível  e  alfombrofo  das  fuás  maravilho- 

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4»  4» 


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fas  galhardias.  A  conquifta  caftelhana  viera  laltear  a  nação 
já  quafi  defamparada  de  feus  brios.  Fora  porém  como  um 
enérgico  eftimulante  e  um  poderofo  revulfivo  na  enfermiça 
compleição  do  povo  portuguez,  degenerado  pela  nefafta 
influição  de  um  fenil  ahlblutifmo  e  de  uma  fufpicaz  inqui- 
fição.  Quando  Portugal  defpertou  para  a  lua  independência 
parecia  que  era  a  nação,  que  refurgia  e  egualava  ou  excedia 
nos  feus  feitos  bellicofos  e  na  indómita  hombridade  as  faça- 
nhas e  as  glorias  dos  feus  antepaífados.  As  próprias  claífes 
privilegiadas  e  poderofas,  que  em  i58o  tinham  vendido 
Portugal  ao  filho  de  Carlos  V,  expiando  agora  o  delido 
dos  feus  maiores,  por  civifmo,  ou  por  defpeito,  eram  as 
primeiras  a  haftear  a  bandeira  nacional  como  emblema 
de  infurreição  contra  o  dominio  de  Caftella.  A  pátria  recu- 
perou a  fua  tão  laftimada  independência,  e  com  ella  parecia 
renafcerem  os  mais  formofos  dias  da  fua  gloria  e  poderio. 
As  guerras  fuftentadas  em  prol  da  liberdade  portugueza 
retemperaram  por  alguns  annos  as  flaccidas  e  anemicas 
fibras  da  nação.  A  dynaftia  levantada  nos  efcudos  popu- 
lares a  preço  de  tantas  vidas  e  tão  laftimofa  devaftação, 
bem  depreífa  confumiu  em  fcenas  efcandalofas  e  em  ludas 
egoiftas  entre  irmãos  o  efcaffo  vigor,  que  logo  defde  o  co- 
meço diftinguíra  a  cafa  de  Bragança.  Ao  abfolutifmo  empre- 
hendedor  e  varonil  de  D.  João  II  e  D.  Manuel,  ás  virtudes 
guerreiras  e  civis  de  D.  João  I  e  Aífonfo  V,  fuccederam  os 
vicios  fem  grandeza  e  o  abfolutifmo  abforvente,  mas  efteril 
depois  da  reítauração.  A  medida  que  os  monarchas  vão 
concentrando  na  fua  /ciência  certa  e  poder  real  e  abfoluto 
toda  a  fuprema  direcção  da  fociedade,  ao  paflb  que  vão 
fupprimindo  a  uma  e  uma  todas  as  antigas  liberdades  e  fran- 
quias populares,  quando  as  cortes  fão  apenas  uma  impor- 
tuna tradição  para  a  ciofa  realeza,  quando  o  povo  geme 
oppreífo   em   mais   dura   e   eftreita   fervidão,   é   juftamente 


«1» 


n'eíres  tempos  que  o  ahlblutilmo  patenteia  os  fignaes  mais 
evidentes  da  fua  infecundidade. 

Os  multiplices  phenomenos,  de  que  fe  entretece  e  le 
compõe  a  vida  normal  de  todo  um  povo,  fáo  o  produdo 
neceflario  das  energias  individuaes  e  colledivas  liarmonica- 
mente  confpirando  para  o  mefmo  fim  commum,  —  a  mora- 
lidade, a  riqueza,  a  illuftração,  a  grandeza  nacional.  A  liber- 
dade no  penfamento  e  nas  acções,  a  efpontanea  iniciativa 
nos  indivíduos,  o  trabalho  defapreíTado  de  todas  as  pêas 
officiaes,  a  livre  cooperação  de  todas  as  forças  phyficas  e 
mentaes  da  fociedade,  a  luz  amplamente  diíFundida  pela 
inftrucção  até  as  mais  recônditas  funduras  fociaes,  a  religião 
da  lei  fubftituida  ao  fanatifmo  do  terror,  o  governo  como 
funcção  commum  e  habitual  dos  cidadãos  e  não  como  arbi- 
traria e  imperativa  prelcripção  impofta  por  um  fó  homem 
a  milhões  dos  feus  envilecidos  naturaes,  os  encargos  e  os 
facrificios  repartidos  irmanmente  por  todos  os  membros  da 
cidade,  a  inércia  e  a  ociofidade,  que  nas  monarchias  é  pri- 
mor e  ponto  de  honra  das  clalTes  ariftocraticas,  profcripta 
e  defhonrada  como  opprohriofo  facrilegio,  a  terra,  que  é 
património  commum  da  humanidade,  liberta,  allodial  e 
emancipada  dos  vínculos  feudaes,  eis  ahi  os  elementos  e  as 
condições,  d'onde  refulta  a  crefcente  melhoria  e  a  civilifação 
real  e  progreíTiva  n'um  povo,  que  é  fomente  fubdito  da  lei. 
Eis  ahi  o  que  faz  dos  Eftados  Unidos  a  primeira  nação  do 
mundo  entre  as  modernas  e  as  antigas  povoações.  Entre 
aquelle  typo  ideal,  em  máxima  parte  realilado  na  florente 
União  Americana,  e  a  extrema  degradação  dos  povos  mife- 
raveis  e  fervís,  taes  como  a  Turquia  noíTa  contemporânea, 
ha  graus  intermédios  de  cultura,  exemplificados  nas  moder- 
nas monarchias  europôas. 

O  Portugal  de  D.  João  V  occupa  n'efta  elcala  um  infimo 
logar.  O  ablblutifmo  d'efte  monarcha  tem  chegado  aos  extre- 

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mos  limites  do  poder.  É  porém  um  ablblutifmo  inerte,  indif- 
ferente  de  todo  o  ponto  á  evolução  da  vida  Ibcial.  Durante 
a  maior  porção  do  feu  reinado  nem  ao  menos  tem  a  guerra, 
que  para  as  nações  enervadas  e  ociofas  fimula  muitas  vezes 
a  adividade  e  levanta  por  algum  tempo  os  efpiritos  e  a  con- 
fciencia  nacional.  O  feu  manfo  defpotilmo  fruftra  ou  ani- 
quila totalmente  os  reftos  de  vigor  e  hombridade  no  povo 
portuguez.  Uma  nação,  que  não  tem  miffão  alguma  que 
exercer  na  ordem  focial,  é  como  um  eftancado  mechanilmo, 
que  jaz  defamparado  e  corroido  de  ferrugem  no  rincão  de 
uma  ofíicina.  Torna-fe  bota  e  rude  a  intelligencia,  deperece 
e  atrophia-le  a  vontade.  O  trabalho  desfallece  e  a  pobreza 
contrafta  nas  multidões  com  o  faufto  de  uma  corte  magnifi- 
cente. O  defpota  intolerante  não  confente  que  uma  lo  das 
energias  fociaes  participe  na  obra  commum  de  fe  reger  e  ci- 
vilifar.  O  abfolutifmo  é  ao  mefmo  paffo  o  cérebro,  o  efto- 
mago  e  o  braço  da  nação;  cérebro,  que  não  penfa,  eftoma- 
go,  que  devora,  braço,  que  não  fabe  nem  pôde  trabalhar. 

É  como  um  artífice,  que  no  meio  de  uma  vafla  manufa- 
(ítura,  onde  os  obreiros  numerofos  e  as  machinas  em  movi- 
mento a  povoavam  de  harmónico  trabalho,  tiveíTe  expulfado 
os  companheiros  e  quebrado  os  mechanifmos  e  engrenagens, 
e  fe  deífe  a  lidar  com  a  mais  fomenos  das  ferramentas,  com 
a  eftolida  jadancia  de  que  elle  fó,  fem  alheia  cooperação, 
podeíTe  trabalhar  e  produzir. 

O  poder  abfoluto  da  cafa  de  Bragança  tinha  o  fceptro 
de  ferro  para  opprimir,  de  canna  para  governar.  A  /ciência 
certa,  de  que  bravateava  no  preambulo  das  fuás  leis  e  feus 
decretos,  era  apenas  a  fciencia  do  mal  e  o  talifman  da  efte- 
rilidade.  No  reinado  freiratico  e  diífoluto  de  João  V,  quando 
o  rei  devoto  e  galanteador  mefçlava  em  profana  conlbnan- 
cia  o  piedolb  cantochão  na  bafilica  de  Mafra  e  os  conceitos 
amatorios  na  cella  ou  no  locutório  de  Odivellas,  o  ablblu- 


4 


cia 


tifmo  na  fua  forma  mais  nefaíta,  o  abfolutifmo  de  cogula  e 
pluvial,  de  harém  e  devaíTidão,  tomara  conta  do  paiz 
devaftado  e  abatido  pela  guerra.  Tudo  na  primeira  metade 
do  leculo  xvm  refledia  fielmente  em  Portugal  a  Índole  e  o 
temperamento  do  feu  lafcivo  dominador.  Era  a  frivolidade 
ufurpando  os  foros  da  fciencia,  a  falfa  magnificência  limu- 
lando  a  civilifação:  a  cftrudura  fria  e  coloíTal  do  novo  ce- 
nóbio dos  arrabidos  e  a  foturna  e  eíteril  academia  da  his- 
toria portugueza.  Não  era  na  verdade  pefada  e  oppreffiva  a 
tyrannia.  Era  antes  o  infulfo  pedantifmo,  que  trajando  o 
manto  régio  amoldava  a  nação  ás  fi^ias  praáficas.  Era  o  rei- 
nado dos  conceitos  feifcentiftas,  dos  equívocos  e  trocadi- 
lhos, herdeiros  degenerados  da  Phenix  renafcida.  Embora 
campealTe  pela  Europa  culta  d'aquelles  tempos  a  fciencia 
moderna,  racional,  fecunda,  creadora,  experimental,  não 
havia  entreaberta  uma  lo  frincha,  por  onde  podeíTe  coar 
apenas  um  feixe  de  efcaíTa  luz  em  Portugal.  Newton  era 
havido  quando  muito  como  um  utopilfa  da  natureza  ou 
como  um  facrilego  e  revolucionário  innovador.  Defcartes 
era  quafi  um  heterodoxo  vifionario.  Bacon,  cujas  obras  um 
judeu  eminente  portuguez,  expatriado  e  foragido,  aconfe- 
Ihára  a  D.  João  V  fizelTe  traduzir  e  divulgar,  como  fecunda 
preparação  á  nova  cultura  intelledual,  era  um  herético  an- 
glicano, ao  mefmo  paíTo  inimigo  de  Ariftoteles  e  adverfario 
da  tradição.  Nos  eftados  regidos  pelo  majeítofo  monarcha 
portuguez,  os  fyftemas  aftronomicos  de  Copérnico  e  de  Ke- 
pler  eram  apenas  conhecidos  como  uma  engenhofa  curio- 
fidade  fcientifica.  A  terra  não  podia  mover-fe  nos  efpaços 
nem  defcrever  rodando  a  fiaa  ellipfe,  porque  a  fanta  e  infal- 
livel  inquifição  lhe  negava  em  nome  da  fé  o  paíTaporte. 
Succediam-fe  na  Europa  as  invenções  e  os  defcobrimentos 
fcientificos.  Eram  os  tempos  de  Clairaut  e  d'Alembert,  de 
Buífon  e  Montefquieu,  de  Boerhaave  e  de  Morgagni,  mas 

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as  fciencias  mathematicas  eram  quafi  ignoradas  cm  Portu- 
gal, ou  os  íeus  imperfeitos  rudimentos  eram  apenas  profeíia- 
dos  nos  collegios  da  companhia.  Os  livros,  que  fe  diziam 
confagrados  á  fciencia,  vinham  cheios  de  abufões  e  ignorân- 
cias, tão  groffeiras  e  ridículas,  como  no  âmago  da  mais 
efcura  edade  media.  Nas  cadeiras  da  univerfidade  não  podia 
penetrar  um  fó  luzeiro  da  fciencia,  que  illuminava  já  em 
pleno  dia  a  Europa  culta.  Cifrava-le  todo  o  faber  e  illus- 
tração  em  entender  ou  enredar  ainda  mais  com  cerebrinas 
commentações  os  textos  de  Ariítoteles,  de  Galeno  e  de 
Avicenna,  ineftres  prediledos  e  oráculos  infalliveis,  fora  de 
cujos  âmbitos  não  havia  falvação  para  a  vida  intelledual. 
A  própria  theologia,  o  direito  canónico  e  civil,  que  parece 
alcançariam  melhor  culto  e  luzimento,  jaziam  n'aquelle  es- 
tado de  trifte  abatimento,  em  que  os  defcreve  o  Compendio 
hijlorico  da  imipeijidade  de  Coimbra,  e  já  antes  o  manifeftára 
a  critica  fevera,  mas  juftiffima  de  Verney  nas  famofas  Cartas 
de  um  barbadinho.  A  litteratura  era  mefcla  fingular  do  mais 
extravagante  conceptifmo  e  da  frivolidade  mais  fupina.  O 
talento  pompeava  e  comprazia-íe  nas  metaphoras  abftrulas 
e  gongoricas,  nos  jogos  artificiofos  de  palavras,  nas  allego- 
rias  e  nos  fimiles  do  golfo  mais  depravado.  O  mefmo  eftylo, 
a  mefma  falfa  ornamentação  de  conceitos  e  de  equívocos 
reluzia  com  egual  defpejo  nas  orações  dos  púlpitos  mais 
graves  e  nas  trovas  e  romances  dos  profanos  efcriptores. 
As  puerilidades  litterarias  engroílam  e  avolumam  efpantoía- 
mente  os  efcriptos  d'aquelle  tempo.  Os  próprios  titulos  das 
obras  contemporâneas  logo  defde  a  portada  denunciam  em 
retumbantes  allegorias  a  maneira  dominante  de  penfar  e  de 
efcrever'.  Se  exceptuarmos  alguns  raros  e  fiílidos  eícripto- 


'  Um  elogio  fúnebre  de  D.  João  V  tem  o  titulo  de  Exéquias  do  E:;equias 
Portugue^,  um  fermão  do  jefuita  Lourenço  Criiveiro,  intitula-fe  Merenda  eiicha- 


1     F 

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res,  occupados  principalmente  em  aíTumptos  de  erudição,  a 
intelligencia  nacional  durante  o  reinado  de  D.  João  V  enfei- 
xa na  lua  copiola,  mas  efteril  bibliographia  um  acervo  de 
fermões,  onde  a  profanidade  e  a  extravagância  eftão  confo- 
ciadas  aos  mais  altos  aíTumptos  religiofos ;  as  hiftorias  ej  as 
lendas  hagiographicas;  as  chronicas  de  varias  corporações 
monafticas;  as  poefias  férias  ou  jocofas,  heróicas  ou  amoro- 
fas,  moldadas  pelas  normas  da  Arte  de  conceitos  e  do  Pojti- 
Ihão  de  Apollo.  Os  panegyricos  dedicados  em  prola  ou 
verlb  a  perlbnagens  eminentes  avultam  na  hiíloria  litteraria 
d'aquelle  tempo.  E  é  digno  de  reparo  que  as  epochas  e  as 
nações,  onde  a  litteratura  fe  delicia  principalmente  na  adu- 
lação, ou  nos  encómios  hyperbolicos,  fão  tempos  e  gerações 
de  profunda  baixeza  e  decadência  da  razão  e  do  esforço 
varonil.  Quando  a  litteratura  multiplica  nas  fuás  obras  os 
grandes  homens  e  os  heroes,  é  então  que  o  paiz  entre  o 
mato  rafteiro  e  fáfaro  da  commum  intelligencia  não  deixa 
perceber  como  arvore  ifolada  ninguém,  que  fe  alevante 
acima  da  craveira  univerfal.  E  de  feito,  na  epocha  de 
D.  João  V  não  é  dado  contemplar  um  vulto  de  valor.  Pare- 
ce que  o  manfo  defpotifmo  fe  compraz  em  paífar  fatalmente 
a  lua  ralbura,  como  fe  fora  a  vara  de  Tarquinio,  pelas  mais 
altas  cumieiras,  para  que  tudo  fe  humilhe  e  fe  rebaixe  e  fo- 
mente na  geral  defolação  appareça  eminente  e  exalçada  a 
figura  fmirtra  do  imperante.  No  meio  d'aquella  immenfa  es- 


riftica  e  é  dividido  em  féis  pratos.  Um  dos  médicos  mais  notáveis  do  leculo  xviii, 
Curvo  Semmedo,  dá  a  uma  das  luas  obras  com  rlietorico  apparato  o  titulo  de 
Atalaya  da  vida  contra  as  hojlilidades  da  morte,  e  João  Lopes  Corrêa,  para- 
phraleando  a  mcfma  allcgoria,  chama  a  um  feu  grave  livro  medico,  Cajlello  forte 
contra  todas  as  enfermidades.  Um  fermão  panegyrico  do  jeíuita  Collares,  intitu- 
la-fe  O  nieflre  de  folfa  da  capella  do  céu;  um  fermão  do  mandato  tem  por 
titulo  Geometria  do  amor;  uma  obra  devota  do  celebrado  medico  Braz  Luiz 
de  Abreu  intitula-fe  5o/  nafcido  no  occidente  epojlo  ao  nafcer  do  foi  Santo  António 
portuí^uc^. 

-2-<Í- -H^ 


ib 


curidão  intellectual  refaltam  como  intenfos,  mas  fuspeitos 
luminares,  Verney,  o  revolucionário  do  pcnlamento,  com  o 
íeu  Verdadeiro  methodo  de  ejludar,  Jacob  de  Caftro  Sarmento, 
nas  fciencias  medicas  e  naturaes.  Mas  eftes  dois  efpiritos 
illuminados  e  nutridos  nas  modernas  infpirações,  vivem  fora 
da  pátria,  exilados,  quafi  profcriptos,  porque  ahi  fó  têem 
logar  os  que  enfeudam  o  entendimento  á  ignorância  e  á 
tradição. 

Toda  a  vida  de  uma  nação  é  um  effeito  neceíTario  da 
cultura  intelleftual,  aíTim  como  toda  a  vida  no  individuo 
tem  o  cérebro  por  centro  e  diredor.  No  eftado  laílimofo 
a  que  baixara  a  civilifação,  como  fciencia,  não  era  para 
aíTombrar  que  lhe  refpondeflem  cabalmente  na  mefma  pro- 
porção todas  as  formas  pradicas  da  energia  focial.  E  con- 
dição infallivel  da  humanidade  que  o  efpirito  de  um  ou  de 
outro  modo  ha  de  manter  e  alimentar  forçofamente  a  fua 
adiva  elaboração.  No  campo,  onde  a  charrua  repoufa  inerte 
e  defmantelada,  e  as  fementes  preftadias  não  podem  ger- 
minar, hão  de  brotar  as  hervaíinhas  bravas  e  ruins.  Onde 
a  fciencia  deixa  um  vácuo  nos  efpiritos,  vem  precipitar-fe 
e  enchêl-o  o  fanatifmo.  Onde  a  intelligencia  fica  de  poufio, 
infinua-fe  a  puUular  a  fuperítição.  Por  ilfo  o  tempo  de 
D.  João  V  é  para  as  influencias  clericaes  a  culminação  do 
feu  poder.  Ora  um  povo  onde  a  aufencia  da  inftrucção  é 
aggravada  pela  exageração  religiofa,  é  um  povo  inerte  e 
defcuidofo  do  futuro.  Por  iífo  na  primeira  metade  do  xviii 
feculo  é  em  Portugal  a  agricultura  pouco  diíferente  da  que 
fabem  exercer  os  povos  primitivos  e  infcientes.  A  induftria 
fabril,  já  de  fi  débil  e  improfícua,  ainda  mais  enfraquecida 
fe  moflrou  com  o  golpe  derradeiro  pelo  tratado  de  Methuen, 
de  lyoS.  Não  era  o  commercio  muito  mais  propiciamente 
aquinhoado  que  as  demais  induftrias  fuás  irmans.  Uma 
legiflação  fifcal  abfurda  e  arbitraria,  fundada  no  principio 


4  cia 


irracional  da  prohibição,  como  inftrumento  protector  da 
riqueza  publica,  difficultava  as  relações  mercantis  interna- 
cionaes,  excepto  no  que  era  effipulado  nos  tratados  e  con- 
venções com  a  Inglaterra.  Tudo  quanto  nos  paizes  regidos 
por  uma  adminiftração  centralifada,  contribue  para  a  maior 
profperidade  e  florefcencia  da  nação,  e  fatisfaz  ás  neceíTi- 
dades  económicas,  jazia  inteiramente  defcurado.  Os  rios  de 
oiro,  que  fluiam  annualmente  das  minas  do  Brazil,  não  iam 
defpender-le  em  eftradas,  em  pontes,  em  canaes,  no  melho- 
ramento dos  rios  e  dos  portos.  Coavam-íe  quali  todos  para 
as  obras  da  magnifica  vaidade  ou  oftentofa  devoção.  Erigia- 
le  n'um  ermo  a  bafilica  de  Mafra  e  efcondia-fe  no  deívão 
de  uma  capella,  a  preço  de  quantias  inefi:imaveis,  uma  pre- 
ciofa  maravilha  de  mofaico.  E  que  a  jactanciofa  devoção 
e  a  vaidade  lumptuofa  conftituiam  a  Índole  e  o  caracter  do 
monarcha.  Apparecia  a  cada  paíTo  o  leu  reflexo  nas  obras, 
com  que  foi  aíTignalando  o  leu  reinado.  Quiz  ter  na  lua 
corte  um  fimulacro  da  Roma  pontificia,  e  fundou  a  culfo 
de  cançadas  negociações  e  difpendios  quantiofos  a  opulenta 
patriarchai.  A  religião  de  D.  João  V,  mais  externa  e  efpe- 
ctaculoía  do  que  meritória  pela  humildade  e  pela  uncção, 
precifava  de  um  efplendido  fcenario.  A  pueril  e  ephemera 
divifão  da  capital  em  duas  Lifboas,  uma  oriental  e  outra 
Occidental,  cada  uma  com  o  leu  prelado  privativo,  era 
como  que  a  miniatura  das  duas  celebradas  metrópoles  do 
mundo  antigo,  de  Roma  e  de  Byzancio,  incluidas  na  mefina 
eftreita  cerca  e  território. 

Tudo  o  que  não  podia  lifonjear  o  pendor  de  D.  João  V 
para  as  pompofas  magnificências,  foi  por  elle  defprezado 
ou  efquecido.  O  exercito  depois  da  paz  de  Utrecht  caíra  em 
tal  extremo  de  miferia  e  nullidade,  ^que  apenas  alguém  lus- 
peitaria  n'aquelle  tempo,  que  fora  Portugal  em  eras  ainda 
próximas  uma  nação  briola  de  foldados.   A  adminiftração, 

•i-A- .-A^ 


i8 

aggravados  os  abufos  e  as  vexações  pela  perpetua  negli- 
gencia do  Ibberano,  deixava  os  mais  juftos  intereíTes  nacio- 
naes  á  mercê  da  corrupção  e  do  favor.  De  toda  efta  pertinaz 
efterilidade  governativa  fó  reftaram  para  defcontar  em  certa 
maneira  nos  erros  do  ibberano,  a  conftrucção  do  famofo 
aqueducto  das  aguas  livres,  a  creação  das  três  fecretarias  de 
eítado,  e  a  paíTageira  hombridade  e  refolução,  com  que  um 
rei  eíTencialmente  fubmiíTo  e  devotado  ás  influencias  theo- 
craticas,  n'um  lampejo  de  arrogante  foberania,  foube  ao 
menos  uma  vez  romper  com  o  Vaticano.  E  n'efte  rafgo  de 
autocrática  oufadia  não  fe  revela  a  brilhante  explofão  da 
oflFendida  majeftade  nacional.  D'aquellas  duas  feições  proe- 
minentes, que  diftinguem  o  perfil  moral  do  grande  rei, —  a 
fuperfticiofa  adoração  da  fua  própria  realeza,  e  a  fanática 
fujeição  ao  jugo  da  clerezia,  —  quando  uma  vez  chegadas  a 
conflicto,  a  regia  vaidade  fobrepuja  a  beata  devoção.  Para 
dominar  a  D.  João  V  é  neceíTario  que  a  theocracia,  ao 
lançar-lhe  á  confciencia  as  ferropêas,  ajoelhe  diante  d'elle,  e 
emquanto  o  reduz  a  um  inftrumento  das  fuás  ambiciofas 
pretenções,  obferve  efcrupulofamente  os  ritos  e  as  formulas 
da  liturgia  realenga;  é  precifo  que,  á  femelhança  das  viéfi- 
mas  antigas  nos  facrificios  da  culta  gentilidade,  lhe  cinja  de 
coroas  e  de  flores  a  fronte  abatida  e  condemnada;  é  forçofo 
que  o  rei  atado  á  carroça  triumphal  da  omnipotência  theo- 
cratica,  marche,  como  os  monarchas  do  Oriente  nos  trium- 
phos  romanos,  moftrando  na  dignidade  e  compoíhira,  que 
efle  captivo  que  ahi  vae,  é  a  fombra  de  um  foberano. 

Recapituladas  como  ficam  fummariamente  as  enfermi- 
dades laftimofas,  de  que  padecia  Portugal,  exulceradas  e  en- 
cruecidas pelo  governo  defaítrofo  de  D.  JoãoV,  é  fácil  adivi- 
nhar quaes  haviam  de  fer,  para  um  eftadifta  illuminado, 
refoluto,  patriótico,  oufadamente  revolucionário,  mas  tendo 
por  theatro  das  fuás  emprezas  a  pura  monarchia  abfoluta, 

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eis  e|» 


4  COT 
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'9 

OS  mais  graves  problemas  a  refolver.  A  nação  e  o  governo  vi- 
viam acorrentados  á  theocracia  omnipotente.  A  primeira  nc- 
ceflidade  era  pois  forçar  as  potencias  clericaes,  e  principal- 
mente os  jefuitas,  que  eram  a  fua  mais  poderofa  encarnação, 
a  perder  a  fua  influencia  temporal  e  a  contrahir  ao  íantuario 
e  ás  funcções  meramente  efpirituaes  a  deflocada  e  perigo- 
fa  a6f  ividade,  com  que  perennemente  perturbavam  o  governo 
e  a  nação. 

O  povo  permanecia  nas  fombras  mais  profundas,  onde 
a  fciencia  nem  a  furto  reluzia,  e  onde  a  intelligencia  rara- 
mente encontrava  algum  repaífo,  que  não  foíTe  uma  efleril  e 
depravada  litteratura.  Era  pois  milfer  fundar  em  novos  ali- 
cerces a  educação  intelleflual,  e  diífundir  não  fomente  pelo 
enfino  fuperior  as  fciencias  contemporâneas  e  as  lettras  pres- 
tadias,  creando  as  claíTes  mais  illuífradas  do  paiz,  fenão  tam- 
bém fazer  de  um  povo  de  fervos  ignorantes  e  fequeflrados  á 
cultura  do  entendimento  uma  raça  de  homens  civilifados.  A 
bruteza  e  infciencia  popular,  e  a  indolência  creada  e  fomen- 
tada no  regaço  da  torva  fuperítição  pelo  clero  ambicioíb,  ha- 
viam ao  mefmo  paílb  enervado  a  razão  para  o  faber  e  enfra- 
quecido o  braço  para  o  tráfego  e  lavor  da  vida  focial.  Urgia 
pois  dilpertarpara  o  trabalho  as  forças  adormecidas  da  nação, 
aguilhoando  o  intereíTe  próprio,  eífimulando  a  producção,  fa- 
zendo refurgir  as  induftrias  já  d'antes  exercitadas,  ou  acli- 
matar as  que  podeíTem  filhar  e  radicar-fe  no  fólo  nacional. 

Perdera  Portugal  perante  as  nações  cultas  a  veneração, 
em  que  d'antes  era  tido  no  concento  e  equilíbrio  das  poten- 
cias europêas,  fendo  já  decaído  e  rebaixado  a  tal  extremo, 
que  andava  como  em  provérbio  o  não  fer  mais  que  um 
feudo  ou  colónia  da  Gran-Bretanha  ou  uma  província  re- 
bellada,  que  vivia  independente  pelo  favor  e  tolerância  de 
CaflcUa.  Cumpria  de  novo  levantar  o  brio  e  fidalguia  por- 
tugueza,   e   moftrar   aos   grandes   potentados   que    Portugal 


podia  ter  na  dignidade  e  firmeza  inquebrantável  dos  feus  go- 
vernos e  na  hombridade  e  no  valor  dos  léus  naturaes  os  ti- 
tules mais  indifputaveis  á  lua  independência  e  foberania. 
Era  precifo  dizer  á  Inglaterra,  quando  quizeíTe  di6tar-nos  a 
fua  lei,  e  á  Hefpanha,  quando  pretendeffe  impor-nos  a  lua 
vontade,  que  Portugal,  apefar  de  efcaíTo  em  território  cá  na 
Europa,  não  era  terra,  onde  a  arrogante  diplomacia  ou  as 
cohortes  infolcntes  pretendeíTem  humilhar-nos,  fem  levarem 
em  retorno  o  defengano.  Achava-fe  finalmente  Portugal 
depois  de  tantas  glorias  bellicofas  inerme  e  indefefo,  tendo 
apenas  por  exercito  um  inútil  fimulacro.  Era  pois  urgente 
reformar  de  raiz  as  inítituições  militares  de  Portugal,  fundar 
em  principios  concordantes  com  as  pradicas  d'aquelle  tempo 
nas  guerreiras  nações  da  Europa  civililada,  uma  nova  e 
proficiente  força  publica.  Eis  ahi  os  grandiíTimos  problemas, 
que  o  Sebaftião  de  Carvalho  a  11  mefmo  le  propoz  e  em 
cuja  refolução  empenhou  os  dotes  do  feu  efpirito  e  a  ener- 
gia do  feu  aceirado  temperamento.  Como  officina  e  mecha- 
niímo  efficaz  de  toda  a  boa  e  fruftuofa  reformação  con- 
vinha reformar  as  leis  civis,  diradicar  e  eflirpar  os  velhos 
abufos  adminiftrativos  e  fifcaes,  e  fazer  da  adminiftração 
não  o  inftrumento  das  oppreíTóes  e  dos  vexames  tributários, 
mas  o  poderofo  auxiliar  da  nova  civililação. 

Eítes  foram  os  empenhos  capitães  do  famofo  miniftro  de 
D.  Jofé,  ou  antes  do  miniftro  de  fi  melmo,  authenticando  os 
mandatos  do  feu  génio  com  a  rubrica  real.  Se  fora  dado  a 
um  fó  homem  eflfeituar  pelo  talifman  da  lua  vontade  uma 
completa  revolução,  têl-a-hia  certamente  realifado.  Abriu 
os  caminhos  ao  penfamento  e  á  inftrucção.  Promoveu  e  glo- 
rificou o  trabalho  nacional.  Conftituiu  e  difciplinou  a  força 
defenfiva  do  paiz.  Ora  um  povo,  que  fabe  penfar,  trabalhar 
e  combater — as  três  funcções  caraíterifticas  da  humani- 
dade,—  é  um  povo  que,  digno  e  merecedor  da  fua  indepen- 

^hO- — -<í^ 

4»  4* 


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dencia,  pôde  viver  e  progredir,  fatisfcito  no  leu  lar  e  ref- 
peitado  dos  extranhos.  Um  povo  em  femclhantes  condiajes, 
bem  depreíTa  conquiftará  a  liberdade.  Empenhe-fe  o  abfo- 
lutilmo  e  a  realeza  cm  defbravar-lhe  o  campo,  mondando- 
Ihe  o  torrão  de  todas  as  plantas  eítereis  e  damninhas,  —  do 
poder  e  influencia  deletéria  das  claíTes  ariftocraticas,  e  da 
tyrannia  das  velhas  tradições,  —  e  bem  cedo  na  gleba  rege- 
nerada brotará  frucluola  a  liberdade. 

É  n'ell:e  figniíicado  que  o  miniftro  omnipotente  foi  o  pri- 
meiro e  grande  revolucionário  em  Portugal.  Penfando  confir- 
mar e  robuftecer  o  throno  do  feu  rei,  amontoando-lhe  em 
redor  os  efcombros  e  ruinas  da  velha  fociedade,  efteve  real- 
mente enfraquecendo  a  regia  poteftade  e  apparelhando  o 
triumpho  no  porvir  á  pura  democracia.  É  fegundo  eíte  con- 
ceito que  o  Pombal,  apelar  das  apparentes  contradicçõcs  na 
lua  idéa,  entra  no  catalogo,  onde  fe  infcrevem  os  grandes 
fautores  da  civililação,  d'aquelles,  que  não  fouberam  ou 
não  poderam  traçar  á  revolução  o  feu  caminho  fem  o 
affignalar  lugubremente  com  um  rafto  de  langue  e  de 
terror,  nem  decretar  as  fuás  fecundas  innovaçõcs  fem  ter 
por  finiftro  collaborador  a  hacha  do  carnifice;  na  mefma 
pagina,  onde  eftá  D.  João  II,  Richelieu,  Oliver  Cromwell, 
e  maior  que  todos  elles  o  grande  legiílador  da  era  nova, 
a  terrível,  mas  luminofa  Convenção. 


CAPITULO  II 


os  PRIMEIROS  ANNOS  DE  POMBAL 

O  marquez  de  Pombal  é,  em  grande  parte,  em  Portugal 
e  dentro  da  própria  monarchia  abfoluta,  a  idéa  da  revo- 
lução, e  o  gladio  do  terror. 


Para  a  lignificação  moral  das  grandes  reformas  intenta- 
das pelo  miniftro  de  D.  Jole,  feria  quafi  indiíFerente  que  o 
deílino  lhe  tiveíTe  pofto  o  berço  nas  mais  altas  regiões  arifto- 
craticas  ou  nas  mais  humildes  profundezas  fociaes.  Parece 
porém  que  a  fortuna  o  fez  nafcer  a  um  nivel  médio  entre  o 
foberbo  faítigio  da  nobreza  mais  illuftre  e  a  modeíta  condição 
da  gente  popular,  quafi  a  egual  diftancia  entre  os  Aveiros  ou 
os  Tavoras  e  os  plebeus  e  rudes  promotores  da  infurreição 
contra  a  nova  companhia  do  Alto  Douro.  A  fua  prolapia  e 
geração  nem  foi  tão  efclarecida,  que  affombraíTe,  nem  tão 
baixa,  que  perante  os  preconceitos  nobiliários  do  feu  tempo 
lhe  cerraíTe  para  fempre  as  portas  do  poder.  Como  quem 
havia  de  fer  o  primeiro  inftituidor  do  terceiro  eítado  ou  do 
que  hoje  appellidàmos  claíTe  média  ou  burguezia,  nafceu  de 
uma  d'eflas  familias  de  efquecida  nobreza  provinciana,  que 
fem  hiítorico  luftre  ou  poderio,  mais  fe  acercam  á  gente  do 
commum,  defdenhadas  como  de  linhagem  quafi  obfcura 
pelos  grandes  fidalgos  e  fenhores. 

Foi^o  pae  do  grande  reformador  Manuel  de  Carvalho 
e  Ataíde,  que  depois  de  ter  fervido  nas  armadas,  paífou 
ao  exercito  de  terra  no  pofto  de  capitão  de  cavallos.  Do  leu 
cafamento  com  D.  Thereza  Luiza  de  Mendonça,  filha  de 
João  de  Almada  e  Mello,  alcaide  mór  de  Palmella,  nafce- 
ram  alem  de  outros  filhos,  Sebaftião  de  Carvalho,  Paulo 
de  Carvalho,  c|ue  depois  foi  levantado  ás  maiores  dignidades 
feculares  e  ecclefiafticas  pelo  favor  e  beneficio  do  irmão 
omnipotente,  e  Francifco  Xavier  de  Mendonça,  que  Ibb  os 
mefmos  aufpicios  veiu  a  fer  fecretario  de  eflado  da  marinha 
e  dominios  uhramarinos. 

O  primeiro  d'entre  os  feus  antepaífados,  que  apparece 
exercitando  officios  importantes,  é  o  terceiro  avô,  Sebaftião 
de  Carvalho.  Depois  de  ter  fervido  como  defcmbargador  na 
relação  do  Porto  e  na  cafa  da  fupplicação,  foi  deputado  da 


eis 


-. — •-<í>-^ 


mela  da  confciencia  e  ordens  em  1620,  e  delembargador  do 
paço  em  1634.  E  o  primeiro,  a  quem  a  genealogia  eftam- 
pada  pelo  Padre  António  de  Carvalho  da  Cofta  na  fua 
Chorograpliia  menciona  como  tendo  o  foro  de  fidalgo  e  o 
habito  de  Chriífo.  Foi  elle  quem  inftituiu  com  fua  mulher 
-  D.  Maria  de  Braga  e  Figueiredo  um  morgado,  em  que 
entravam  bens  em  S.  João  da  Pefqueira,  em  Sernancelhe  e 
em  Lifboa.  Paulo  de  Carvalho,  o  íilho  primogénito  d'aquelle 
primeiro  Sebaftião,  exerceu  como  leu  pae  elevadas  magis- 
traturas, fendo  flicceíTivamente  promovido  a  defembarga- 
dor  da  relação  do  Porto  e  da  cala  da  íupplicação,  defem- 
bargador  do  paço,  vereador  da  camará  de  Lifboa  e  prove- 
dor da  alfandega.  Teve  como  feu  pae  o  foro  de  fidalgo  e 
o  habito  de  cavalleiro  na  ordem  de  Chrifto.  Com  fua  mu- 
lher D.  Maria  Pereira  de  Sande  inftituiu  o  morgado  das 
Mercês  na  capital.  Teve  por  irmão  fecundogenito  a  Sebas- 
tião de  Carvalho,  que  á  femelhança  de  feu  pae  e  do  primo- 
génito, fe  dedicou  á  magilfratura  e  foi  defembargador  da 
cafa  ^do  Porto,  d'onde  foi  trafladado  á  de  Lifboa.  D'efte 
magiftrado,  que  teve  por  mulher  D.  Luiza  de  Mello,  nafceu 
um  íilho  do  mefmo  nome  de  leu  pae,  o  qual  fuccedeu  no 
morgado  de  feu  avô  e  no  de  feu  tio  Paulo  de  Carvalho, 
porque  efte  não  tendo  defcendencia,  o  nomeou  por  leu  pri- 
meiro adminiftrador.  Foi  moço  fidalgo  da  cala  real,  e  caval- 
leiro da  ordem  de  Chrifto.  Tendo  fido  capitão  de  infanteria 
paífou  depois  a  capitão  de  cavallos  da  companhia  dos  privi- 
legiados do  Santo  Oííicio.  D'efte  novo  Sebaftião  e  de  lua  es- 
pofa  D.  Leonor  Maria  de  Ataíde,  filha  de  Gonçalo  da  Cofta 
Coutinho,  governador  de  Aveiro,  procederam  alem  de  outros 
filhos,  Manuel  de  Carvalho  e  Ataíde,  pae  do  grande  legis- 
lador, e  Paulo  de  Carvalho,  que  foi  lente  na  univerfidade 
de  Coimbra  e  depois  cónego  da  capella  real.  Pôde,  pois, 
affirmar-fe  com  verdade  que  a  familia  de  Pombal  fó  come- 

-i-<Ç»-. -i-i- 


c|9 


24 

çou  a  ter  illuftração  e  valimento,  principalmente  como  nobre- 
za de  toga,  defde  o  terceiro  avô  do  eftadiíla.  Antes  d'eíte,  fe 
a  eftirpe  não  era  inteiramente  plebeia,  ou  confundida  com  o 
eftado  chão  e  popular,  e  vivia  em  Sernancelhe  com  o  elcalTo 
luzimento  de  cavalheiros  de  provincia,  era  ao  menos  hiftori- 
camente  obfcura  e  fem  valia  na  corte  e  nos  grandes  officios 
da  republica. 

Manuel  de  Carvalho  parece  não  era  defprovido  de 
algum  entendimento,  como  fe  manifeíta  do  livro,  que  fob  o 
pleudonymo  de  D.  Tivifco  de  Nazao  Zarco  y  Colona  efcre- 
veu  e  publicou,  íingindo-o  eítampado  em  Nápoles,  com  o 
titulo  de  Theatro  genealógico.  Vivia  em  Soure,  pequena 
aldeia  ou  povoação  a  pouca  diítancia  de  Coimbra,  e  fe  acre- 
ditámos um  biographo  infufpeito,  alliado  por  eftreita  afíini- 
dade  ao  mais  illuftre  defcendente  de  Pombal,  não  devia  fer 
poíTuidor  de  grandes  cabedaes '.  Em  Soure  viu  a  primeira 
luz  o  grande  legillador,  a  1 3  de  maio  de  1 699,  quali  na 
tranfição  do  feculo  xvii,  a  edade  florente  do  velho  abfolutis- 
mo,  para  o  xviii  feculo,  a  era  da  revolução.  Ao  appellido 
paterno  de  Carvalho  juntou  o  futuro  marquez  de  Pombal 
o  nome  gentilicio  de  Mello,  que  era  o  de  feu  avô  materno, 
João  de  Almada  e  Mello,  como  quem  já  defde  os  primeiros 


I  O  fr.  John  Smith,  (hoje  conde  da  Carnota),  antigo  fecretario  particular  e 
amigo  íntimo  e  cunhado  do  marechal  duque  de  Saldanha,  e  porventura  d'entre 
todos  os  biographos,  o  mais  enthufialla  na  glorificação  do  miniílro  de  D.  Jofé, 
e  que  tinha  inveítigado  certamente  os  antecedentes  da  familia,  omittindo  as 
particularidades  genealógicas,  limita-fe  a  dizer:  «His  father,  Manuel  de  Carva- 
lho, was  a  country  gentleman  of  moderate,  but  indcpendent  fortune,  belonging 
to  that  class  who  are  diftinguished  in  Portugal  by  the  title  of  Fidalgo  de  Pro- 
vincia. (Seu  pae,  Manuel  de  Carvalho,  era  um  cavalheiro  provincial,  de  media- 
nos, mas  independentes  haveres,  pertencente  a  eíla  clalTe,  que  fe  diflingue  em 
Portugal  pelo  titulo  às  fidalgo  de  provincia.J  Memoirs  of  the  marquis  0/  Pombal 
by  John  Smith,  Lond.  1843,  vol.  i,  pag.  Sg. 

«Emanuel  di  Carvalho,  gentiluomo  povero  di  Soure.»  Vita  di  Seb.  Ciufeppe 
di  Carvalho  e  Mello.  Sem  logar  de  impreílão,  1781,  vol.  i,  pag.  i. 


25 

annos  legava  mais  valor  á  illuftre  afcendencia  de  fua  mãe 
que  á  modefta  profapia  de  feu  pae. 

A  femelhança  do  que  fempre  fuccedeu  aos  mais  infignes 
varões  da  nolTa  hiftoria,  a  Valco  da  Gama  e  a  Camões, — 
feus  companheiros  immortaes  na  trilogia  das  glorias  portu- 
guezas,  —  os  primeiros  annos  de  Pombal  cerrados  apparecem 
a  toda  a  luz,  e  o  hiographo  já  citado,  que  teria  ao  leu  difpor 
os  archivos  mais  fecretos  da  familia,  quaíi  nada  pôde  ras- 
trear acerca  da  puerícia  e  adolefcencia  do  eftadifta'.  Quaes 
folTem  os  feus  primeiros  eíludos  na  humilde  e  fertaneja 
pátria  lua,  é  totalmente  ignorado.  Dizia-fe  até  agora  que  em 
fua  adolefcencia  entrou  a  curfar  a  univerfidade,  fem  que 
foíTe  poíTivel  deflindar  fe  apenas  para  efludar  as  humani- 
dades frequentara  o  collegio  das  artes,  regido  então  pelos 
jefuitas,  ou  fe  andara  matriculado  n'alguma  das  faculdades 
e  em  qual  d'ellas,  que  os  biographos  aífentam  feria  prova- 
velmente, fegundo  o  exemplo  de  feus  maiores,  a  de  câno- 
nes ou  a  de  leis.  Eítá  porém  hoje  demonftrado  que  o  futuro 
innovador  do  direito  pátrio  nunca  fe  infcreveu  como  difci- 
pulo  nos  regiftros  da  decadente  academia.  E  deífino  fin- 
gular  que  dos  grandes  homens  portuguezes  nenhum  pôde 
condecorar-fe  com  os  académicos  lauréis.  A  mcfma  forte 
coube  fem  damno  ou  mingua  da  fua  intelligencia  a  Sebas- 
tião Jofé  de  Carvalho  e  Mello.  Era  tão  baça  e  indecifa  a 
efcaífa  luz,  que  a  Alma  mater  portugueza  irradiava  nos  pri- 
meiros annos  do  feculo  xviii,  que  nenhum  efpirito  verda- 
deiramente fuperior  poderia  contentar-fe  com  a  fciencia  que 
d'ali  fe  ditfundia,  nem  um  animo  livre  e  inlbífrido  de  tutela 
intelledual  refpirar  defaffombrado  na  Ibturna  eítreiteza  dos 
feus  geraes. 


'  "Of  the  particulars  of  the  early  life  of  Pombal  it  is  to  be  regretteJ  little 
is  known.»  Smith,  Memnirs,  vol.  i,  pag.  40. 


49 


eis 


eis 


26 

Ainda  mefmo  que  tivefle  entrado  a  ouvir  os  curfos  co- 
nimbricenfes,  é  plaufivel  que  defde  logo  os  houveíTe  deíam- 
parado,  defgoftolb  de  uma  efcola,  onde  nada  fe  aprendia 
que  podeíTe  illuminar  os  largos  horizontes  de  um  nobre 
entendimento.  N'aquelle  tempo  aos  homens,  que  pelo  nas- 
cimento fe  elevavam  acima  do  commum,  apenas  três  pro- 
fiíTões  eram  decorofas  e  conformes  aos  preconceitos  nobi- 
liários; a  magiftratura,  onde  a  valia  ou  a  fortuna  faziam 
muitas  vezes  afcender  os  feus  diledos  ás  mais  eminentes  di- 
gnidades; a  egreja,  onde  os  groífos  benefícios  e  prebendas, 
as  prelazias  e  os  capellos,  podiam  acrefcentar  o  efplendor 
e  a  riqueza  da  família;  e  o  eftado  militar,  cujas  vantagens 
eram  certamente  inferiores,  porque  os  feus  poftos  mais  fubi- 
dos  eram  quafi  exclufivo  privilegio  das  grandes  famílias  ti- 
tulares, ou  da  mais  qualificada  ariftocracia.  Não  podendo 
ou  não  querendo  confeguir  na  univerfidade  os  diplomas, 
que  lhe  deíTem  livre  entrada  aos  chamados  logares  de  let- 
tras,  e  não  o  convidando  a  beata  manfidão  da  vida  eccle- 
fiaftica,  reítava-lhe  bufcar  outro  currículo,  onde  podeífe  dar 
azo  á  fua  irrequieta  actividade.  Elegeu,  pois,  as  armas  por 
officio,  feguindo  o  exemplo  de  feu  pae.  Aífentou  praça  de 
foldado  n'um  regimento,  que  feria  provavelmente  de  caval- 
laria.  Em  breve,  dizem,  foi  promovido  a  cabo  de  efquadra, 
e  n'eíta  humilde  graduação  continuou  por  algum  tempo 
com  a  efperança  de  fubir  talvez  a  capitão,  porque  não  era 
então  raro  o  elevar-fe  de  falto  a  maiores  poftos,  quem  ti- 
nha na  corte  benignos  e  poderofos  valedores.  Alguns  refe- 
rem que  Sebaftião  de  Carvalho,  fiando-fe  n'eftas  interceíTões, 
efperára  fer  mui  cedo  official,  e  que  havendo  em  lySS, 
por  occafião  de  recear-fe  a  guerra  com  Hefpanha,  uma 
grande  promoção,  e  não  fendo  n'ella  contemplado,  fe  des- 
goftára  profundamente  e  refolvêra  deixar  uma  carreira,  a 
qual   pela   extrema  degradação,   a  que  o  exercito  chegara 


n'aquelles  tempos,  ío  lhe  podia  oíferecer,  em  vez  das  glorias 
e  dos  louros,  a  pouco  invejável  perfpectiva  da  quieta  e  en- 
fadonha obfcuridade.  Vohando  á  vida  civil  parece  que  foi 
viver  em  Soure,  onde  lhe  não  feria  de  feguro  mui  aprafivel 
o  demorar-fe  longa  temporada. 

É  por  aquelles  tempos,  quando  Sebaftião  de  Carvalho 
deixa  por  inconfiftente  com  as  fuás  grandiofas  vocações  a 
vida  militar,  que  alguns  biographos,  uns  d'elles  feus  impla- 
cáveis inimigos,  outros  feus  grandes  apologiftas,  referem  as 
mocidades  e  verduras,  em  que  o  pretendem  figurar  como 
um  heroe  de  aventuras  e  pendências  na  turbulenta  capital 
de  D.  João  V.  E  facto  averiguado,  que  na  aufencia  quafi 
completa  de  policia  na  corte  de  Lifboa,  eram  frequentes  e  a 
la  moda  as  rixas,  em  que  de  noite  bufcavam  cruenta  diver- 
fão  e  culpofo  conceito  de  valentes  os  fidalgos  mais  illuftres. 
Nos  paizes,  onde  é  mais  diminuta  a  liberdade,  e  mais  into- 
lerante o  defpotifmo,  ahi  é  também  mais  defpejada  e  mais 
fem  freio  a  licença  individual.  Quando  a  lei  e  a  audoridade 
teem  apenas  a  força  por  fancção,  em  vez  do  confenib  volun- 
tário dos  cidadãos,  ahi  é  fempre  fi-ouxa  ou  inefíicaz  a  acção 
da  lei  e  do  poder  na  manutenção  da  paz  e  ordem  publica. 
Ora  fuccedia  naturalmente  que  em  tempos  do  magnifico 
monarcha  a  illimitada  realeza  do  foberano  era  baftante  para 
prender  ou  exilar  as  peíToas  da  mais  eminente  hierarchia. 
Mas  o  poder  publico,  aquelle  que  tem  as  luas  raizes  na  lei 
e  na  conftituição  normal  da  fociedade,  não  alcançava  facil- 
mente o  fazer-fe  refpeitar  e  obedecer.  Era  quafi  divina  e 
inccnfada  a  majeftade  do  monarcha,  mas  era  quafi  nulla  e 
defprezivel  a  majeftade  da  lei  e  da  juftiça. 

As  ruas  de  Lifboa  eram  eftreitas,  declives,  tortuofas, 
como  de  cidade,  que  em  moldes  mourifcos,  e  em  terra 
montuofa,  fe  fora  adenfando  e  comprimindo  dentro  da  limi- 
tada cerca  dos  feus  antigos  muros  torreados.  A  cada  paflb 

-^<r>-. ^ *<>-^ 

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28 

havia  arcos  e  paíTagens  efcuras  e  azadas  para  os  que  fe 
compraziam  em  renhir  por  vingança  ou  delenfado,  ou  em 
fahear  os  viandantes  por  cubica  e  malvadez.  Não  havia 
iUuminação.  Apenas  a  efpaços  bruxuleavam  aqui  e  acolá 
as  lâmpadas  mortiças  e  as  baças  candeínhas,  accefas  pela 
devoção  diante  dos  nichos  confagrados  ás  imagens  da  Vir- 
gem ou  dos  fantos  de  maior  veneração.  As  rondas,  que 
andavam  correndo  os  bairros  da  cidade,  levando  á  fua 
frente  os  miniftros  criminaes,  quando,  arraftadas  pela  turbu- 
lência endémica  e  habitual,  e  invertendo  a  fua  protedora 
inftituição,  não  eram  as  primeiras  a  romper  em  brigas  e 
difturbios,  viam-fe  acommettidas  pelos  bandos  de  armados 
e  inlblentes  aventureiros,  ou  de  refolutos  e  impenitentes 
malfeitores.  Os  fidalgos  zombavam  da  policia,  porque  ti- 
nham por  efcudo  os  privilégios  da  nobreza  e  o  favor  de  uma 
corte,  onde  os  coftumes  diíTolutos  fe  chamavam  galanteria. 
Os  bandoleiros  já  não  temiam  a  lettra  draconiana  do  livro 
5°  da  ordenação,  emquanto  as  juftiças  do  pacifico  monar- 
cha  dormiam  a  fomno  folto  e  deixavam  jazer  confundidos 
nos  mefmos  cárceres  durante  largos  annos  fem  os  condem- 
nar  ou  abfolver  os  perpetradores  dos  maiores  crimes  e  as 
viítimas  innocentes  da  prepotência  ou  da  calumnia'. 

N'aquella  quafi  anarchica  fituação  da  capital,  fendo  ele- 
gância e  fidalguia  o  andar  renhindo  em  nodurnas  correrias, 
como  lias  velhas  comedias  hefpanholas,  não  feria  para  extra- 
nhar  que  Sebailião  de  Carvalho,  impetuolb  de  caracter,  fe- 
guiíTe  por  algum  tempo  a  corrente  univerfal.  Era  mancebo, 
ociofo,  bem  apeíToado  e  gentil  homem,  de  vigorofa  complei- 


I  Era  tal,  durante  o  reinado  de  D.  João  V  a  fomnolencia  da  julliça,  que  na 
collecção  das  leis  e  decretos  d'aquelle  tempo  le  deparam  a  cada  palTo  providen- 
cias para  que  a  cafa  da  fupplicação  julgue  fem  detença  numeroíbs  encarcerados, 
fó  com  o  fim  de  tomar  menos  denfa  nas  cadeias  a  miferavel  povoação,  onde 
com  frequência  eftavam  lavrando  perigofas  epidemias. 


29 

ção,  e  eftatura  mais  de  mediana,  de  animo  inquebrantável  e 
orgulholb,  de  indómita  bravura  e  galhardia.  Era  galantea- 
dor,  como  preceituava  a  cartilha  do  homem  de  qualidade. 
Tinha  no  feu  rei  o  primeiro  exemplar  e  meftre  de  aventuras 
elegantes;  no  infante  D.  António,  que  ás  anecdotas  do  tem- 
po nos  defenham  como  um  brapo  de  coração  duro  e  alma 
perdida,  brigolb,  efpadachim  e  homem  perverfo,  a  juftifica- 
ção  das  palTageiras  mocidades,  a  que  porventura  o  impel- 
liíTe  o  ócio,  a  adolelcencia,  o  temperamento.  Se  a  nobreza 
de  Lifboa  vivia  no  eftado  natural,  realifando  o  homo  homi- 
ni  liipiis  do  celebre  philolbpho  inglez,  era  licito  a  cada  um 
aperceber-le  para  efta  guerra  quotidiana  e  inteftina,  e  pro- 
ver á  própria  defensão,  emquanto  indolente  dormitava  a 
magiftratura  e  a  policia.  Não  é  licito  aíTeverar  feguramente 
o  que  haveria  de  verdade  n'eftes  primeiros  epifodios  juvenis 
do  grande  e  fevero  legiflador.  O  que  porém  raia  em  dema- 
fiado  romanefco  e  inverolimil,  é  que  Sebaftião  de  Car\'alho, 
fazendo  oíRcio  de  nodurno  batalhador,  conlbciaíTe  ás  íuas 
aventuras  um  companheiro  e  irmão  de  armas,  e  que  verti- 
dos ambos  de  branco,  para  fe  reconhecerem  facilmente  na 
efcuridade,  fc  delTem  a  acommetter  os  ranchos  de  fidalgos 
e  bandidos,  que  cruzavam  as  efpadas  em  rixas  iangrentas  e 
ferozes  nas  viellas  mais  efcufas  da  cidade". 


>  Dumouriez,  Etat  préfent  du  Portugal,  liv.  iv,  cap.  10.  —  Na  obra  que  ttm 
por  titulo  Uadminijlralion  de  ScbaJUen  Jofeph  de  Carvalho  et  Mello,  AmítL-r- 
dam,  1785,  tom.  i,  pag.  2o5,  lè-fe:  «On  croit  que  ce  qui  retarda  fon  avancement, 
fut  quelqu'emportement  de  jeunelTe,  fur  le  quel  il  ne  faut  jamais  jugerles  hom- 
mes. . .  La  jeunelTe  eft  une  maladie  de  râme,  qui  doit  avoir  íon  cours. . .  Tous 
les  Catons  de  vingt  ans  font  morts  des  fcélérats».  Efta  obra  é  o  mais  alto  pane- 
gyrico  do  marquez  de  Pombal,  e  por  eíla  qualidade  parece  digna  de  fé,  quando 
a  algum  defeito  do  feu  heroe  fe  refere  fugitivamente,  como  que  para  o  diffmiu- 
lar  e  efconder. — Vej.  Portrait  hijlorique  du  marquis  de  Pombal,  continuação  ás 
Lettres  écrites  de  Portugal,  impreíTas  cm  feguimento  ao  Tableau  de  Lifbonne  en 
I7g6,  pag.  432-433.  O  Portrait  é  na  fua  brevidade  de  oito  paginas  um  pompo- 
fo  elogio  de  Pombal. 


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3o 

Paulo  de  Carvalho,  tio  do  grande  legiflador,  era  então 
prelado  na  egreja  patriarchal  e  n'eíla  eminente  dignidade 
ecclefiaftica  tinha  na  corte  valimento  e  privava  em  certa 
maneira  com  o  cardeal  da  Motta,  primeiro  miniftro  de 
D.  João.  Anceiava  Sebaftião  de  Carvalho  naturalmente  por 
exercer  algum  officio,  onde  podeíTe  revelar  os  feus  talentos 
e  os  dotes  da  lua  Índole  emprehendedora  e  avôíTa  á  quieta 
ociofidade.  Ia  o  tempo  decorrendo  preíTurolb.  Era  Sebas- 
tião entrado  em  annos  já  maduros.  Corria-fe  provavelmente 
de  que  fendo  paíTada  a  primavera  juvenil,  o  vieffe  colher  o 
inverno  da  velhice  na  efteril  moradia  de  uma  aldeia.  Tinha 
então,  ao  que  parece,  quarenta  annos,  e  para  quem  era  de  li 
tão  cubiçolb  de  gloria  e  luzimento  haviam  de  fer  os  dias 
monótonos  de  Soure  bem  amargurados  de  ambições  e  de 
efperanças  mallogradas.  Hoje  que  aos  vinte  annos  qual- 
quer obfcuro  bacharel  já  começa  a  menear  no  parlamento, 
nos  corrilhos  ou  nos  gabinetes  dos  miniftros,  os  mais  gra- 
ves negócios  da  nação,  hoje  que  aos  trinta  annos  qualquer 
mediano  jornalifta  ou  orador  fe  julga  defairado  em  não  voar 
para  a  cadeira  curul  do  minifterio,  não  é  fácil  comprehen- 
der  como  um  homem  verdadeiramente  grande  e  fuperior 
aos  efpiritos  contemporâneos,  ainda  eftiveíTe  efperando  no 
átrio  do  poder,  já  com  as  primeiras  cans  a  alvejarem-lhe, 
fem  que  ninguém  lhe  abriíTe  a  porta  dos  officios  e  digni- 
dades. Mas  onde  podia  um  homem  d'aquelle  feculo,  por 
mais  notáveis  que  foíTem  os  feus  talentos,  denunciar  publi- 
camente o  que  valia?  Não  havia  então  o  minimo  fignal  de 
vida  publica;  nem  tribuna,  nem  jornal,  nem  aífembléas  e 
comícios  populares.  A  ninguém  era  dado  franquear  fó  pela 
força  do  génio  e  da  palavra  a  fenda,  que  conduz  á  influen- 
cia e  ao  poder.  Os  que  afcendiam  aos  graus  mais  eminen- 
tes, não  fubiam  pelo  esforço  próprio  o  declivio  efcabrofo 
dos  públicos  empregos,  antes  era  neceífario  que  um  patro- 


«Is 


no  e  valedor  os  eftiveíTe  alando  ás  eminências  defcfas  aos 
defvalidos  do  favor  e  da  fortuna.  Felizmente  para  que  fe 
não  perdeíTe  em  gérmen  uma  das  maiores  glorias  portugue- 
zas,  o  tio  de  Sehaftião  acolheu-o  benigno  á  Ília  fombra,  e 
aprefentando-o  com  valiola  recommendação  ao  cardeal,  al- 
cançou que  principiafTe  a  ter  entrada  na  corte  portugueza. 

Que  Sebartião  de  Carvalho  havia  cultivado  o  feu  efpi- 
rito,  confeguindo  por  feus  particulares  efludos  alguma  já 
notável  inftrucção,  fe  patentea  pelo  fado  de  ter  fido  eleito 
membro  da  Academia  de  hijloria  portitgueia  defde  o  anno 
de  1733  e  de  haver  lido  n'uma  das  fuás  conferencias  um 
difcurfo,  que  vem  impreífo  nas  coUecções  d'ac[uella  erudita, 
mas  eftreita  corporação.  Sem  fallar  nos  magnates,  que  a 
illuftravam  á  maneira  d'aquelle  tempo,  mais  pela  claridade 
e  efplendor  da  fua  nobreza  que  pela  fua  pedante  erudição 
e  profa  gongorifta,  fem  contar  os  marquezes  de  Abrantes, 
de  Tancos  e  de  Alegrete,  tinham  aíTento  n'aquellc  inftituto 
predileófo  do  monarcha  todos  os  homens,  que  primavam 
em  lettras  e  faber,  Diogo  Barbofa  Machado,  o  redador  da 
Bibliotheca  liifitana,  Soares  da  Silva,  o  audor  das  Memorias 
de  D.  João  I,  o  padre  D.  António  Caetano  de  Soufa,  que  na 
Historia  genealógica  atteftou  a  fua  paciência  egual  á  dos 
benedidinos,  Caetano  Jofé  da  Silva  Sottomayor,  o  Camões 
do  Rocio,  o  bel-ejprit  d'aquelle  tempo  e  o  companheiro  de 
D.  João  V  nas  fuás  romanefcas  mocidades  e  aventuras,  e 
outros  mais  laboriofos  inveftigadores  de  hiftoricos  fucceffos, 
recontados  materialmente  fem  critica,  nem  philofophia.  Não 
é  plaufivel  que  n'um  congreífo  de  varões  tão  refpeitaveis, 
attenta  a  pouca  e  ruim  fciencia  d'aquelle  feculo,  tivera  Se- 
baítião  de  Carvalho  uma  cadeira,  fe  não  andaífem  bem  aqui- 
latados os  feus  méritos  e  havida  em  grande  conta  a  fua  lit- 
teratura. 

Na   conferencia  celebrada  pela  Academia  em  prefença 

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do  magnifico  Mecenas,  no  próprio  dia  do  leu  anniverfa- 
rio  natalicio  a  24  de  outubro  de  lySS,  o  conde  da  Ericeira, 
depois  de  recitar  o  panegyrico  do  monarcha,  fegundo  era 
eftylo  habitual  d'aquella  companhia,  mais  de  cortezãos  do 
que  de  fabios,  declarou  eftar  eleito  como  novo  académico 
Sehaftião  de  Carvalho,  ao  qual  o  fidalgo  eruditiíTimo  com  a 
fua  hyperbolica  maneira  de  dizer  teceu  n'eíra  occafião  honra- 
.  dos  elogios.  Da  oração  do  conde  da  Ericeira  fica  manifefto 
que  o  futuro  miniftro  de  D.  Jofé  até  pouco  antes  do  íeu  in- 
greíTo  na  academia  vivera  quafi  fempre  retirado  na  provín- 
cia, onde  nos  ócios  de  uma  vida  campeftre  e  defoccupada 
coníeguíra  pelo  eítudo  accumular  copiofos  caudaes  de  eru- 
dição. Era  por  aquelles  tempos  frequentifíimo  o  coítume 
litterario  de  fundar  por  aflim  dizer  a  cada  canto  um  d'eí1:es 
grémios,  ou  particulares  academias,  onde  fe  exercitavam  os 
engenhos  nos  conceitos  e  rhetoricas  então  apreciadas.  Sebas- 
tião de  Carvalho  tinha  já  áquella  fafão  pertencido,  com  as 
honras  de  protedor,  a  uma  d'eíl:as  microfcopicas  e  obscuras 
congregações.  Tinha  o  nome  de  Illujlrada.  Dizia  o  conde 
panegyrifta  que  Sebaftião  de  Carvalho,  florefcendo  até  ali  no 
campo,  tinha  roubado  á  corte  os  frudos,  com  que  na  elo- 
quência, na  hiftoria,  na  poefia  e  em  muitas  linguas  e  erudi- 
ções acreditara  serem  as  fciencias  na  fi.ia  familia  não  fó  he- 
reditárias, mas  adquiridas.  Repartia  pelos  feus  membros  a 
academia,  onde  Carvalho  era  agora  recebido,  o  trabalho  de 
efcrever  as  hiftorias  efpeciaes  dos  differentes  reis  de  Portu- 
gal, as  dos  bifpados  e  das  ordens  de  cavallaria,  e  todas  as 
mais,  de  que  podeffe  a  final  compaginar-fe  a  hiíforia  geral 
d'efta  nação.  Commetteu  a  Sebaftião  de  Carvalho  o  efcrever 
as  dos  reis  D.  Pedro  I  e  D.  Fernando,  nas  quaes  nunca  che- 
gou a  trabalhar. 

Na  própria  conferencia,  em  que  pela  primeira  vez  tomou 
aíTento  em  meio  dos  fabios  hiftoriadores,  leu  o  novo  aca- 

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33 

demico  o  feu  difcurlb  inaugural.  Ajuftava-fe  á  cortezania 
dos  feus  confrades,  e  ás  pradicas  da  adulação  e  lifonjaria, 
que  eram  facramcntaes  e  impreteriveis  na  liturgia  d'aquella 
corte.  «Grande  dita  (exclamava  o  orador)  confagrar  nas 
aras  d'en:a  eruditiílima  affembléa  o  primeiro  facrificio  da 
minha  fujeição,  quando  n'ellas  le  Iblemnifam  os  facros  pre- 
lúdios do  mais  feliz  império!»  Encarecendo  o  pompoío  en- 
cómio do  monarcha,  fegundo  prefcreviam  os  eftylos  aulicos 
ás  mufas  d'aquelle  tempo,  dizia  o  pancgyrifta  que  a  ventura 
refultante  de  tão  faufto  acontecimento,  qual  era  o  nafcimcnto 
commemorado  na  Iblemne  conferencia,  não  ló  enchia  de 
júbilo  aquelle  lahio  mufeu  (era  a  academia),  mas  que  d'elle 
fobejando,  inundava  de  gloria  todos  eftes  reinos,  e  de  as- 
fombro  o  mundo  inteiro.  E  no  final  da  oração,  comparando- 
fe  a  Prometheu,  alludindo  ás  glorias  litterarias,  prorompia 
n'eíta  exclamação,  fundida  fielmente  nos  depravados  moldes 
litterarios  tão  queridos  e  mimoíbs  n'aquelle  tempo:  «Am- 
bos fubimos,  vapores  obfcuros,  ao  pólo  refplandecente :  elle 
porém  a  cair,  eu  a  me  illuftrar;  elle  a  fervir  de  efcandalo  com 
infultos;  eu  de  exemplo  ás  felicidades».  Palavras,  que  profe- 
ridas porventura  fem  nenhuma  intenção  alheia  á  litteratura, 
encerravam  todavia  como  que  a  prophecia  das  grandezas, 
a  que  de  mediana  condição  haveria  de  afcender  o  grande 
legiflador.  Somente  n\im  ponto  fe  enganava  no  fauftiílimo 
prognoítico,  porque  depois  de  arrebatar  o  fogo  lacro  da 
omnipotência  em  Portugal,  teria  ao  cabo  de  uma  exiftencia 
gloriofa,  no  exilio  cruciante  do  Pombal,  o  penedo  e  os  gri- 
lhões de  Prometheu. 

Por  aquelles  tempos  cafou  Sebafiião  de  Carvalho  com 
D.  Thereza  de  Noronha,  filha  de  um  irmão  do  conde  dos 
Arcos  e  viuva  de  feu  primo  António  de  Mendonça.  Anda  na 
tradição  que  efte  cafamento  fe  enlaçou  com  uma  verdadeira 
aventura  de  românticos  amores. 


«is 


eis 


34 

Se  acalb  podemos  conjecturar  como  plaufiveis  as  fuás 
andantes  cavallarias  durante  a  primeira  refidencia  na  corte 
de  Lifboa,  não  fera  de  todo  o  ponto  defconforme  o  prefup- 
por  que  na  conquifta  de  uma  dama  de  tão  qualificado  nafci- 
mento,  qual  era  D.  Thereza  de  Noronha,  algo  intersãeífe 
de  extraordinário  e  romanefco,  e  attento  o  profundiflimo 
defpeito  da  alta  fidalguia,  ultrajada  pelo  conforcio  oppro- 
hriofo,  deífe  o  oufado  galanteador  evidentes  fignaes  da  al- 
teza dos  feus  brios  e  de  como  fabia  executar  em  face  das 
maiores  contrariedades  as  fuás  animofas  refoluções. 

Affrontaram-fe  os  parentes  da  noiva,  foberbos  e  infoífri- 
dos  de  allianças  defeguaes,  com  a  audácia  de  quem  fora,  ao 
que  parece,  quafi  um  intrépido  raptor.  Valer-lhe-hia  fegura- 
mente  a  influencia  de  feu  tio  e  a  protecção  do  cardeal. 

Alguns  annos  decorreram  fem  que  os  talentos  de  Sebas- 
tião achaífem  arena  própria,  onde  fe  podeíTem  expandir. 
Não  era  certamente  o  recinto  obfcuro  e  eíl:reito  da  pobre 
academia  horizonte  accommodado  á  indefeífa  energia  do 
feu  efpirito.  Ali  os  olhos  volviam-fe  continuamente  ás  memo- 
rias dos  tempos  já  pretéritos,  não  para  contemplar  na  hifto- 
ria,  profundamente  meditada,  as  leis  que  regulam  a  huma- 
nidade na  lua  larga  diffusão  no  tempo  e  no  efpaço.  Defen- 
tranhavam-fe  lapides  e  cippos  e  infcripções.  Compunham-fe 
panegyricos,  difcreteavam-fe  conceitos  e  celebrava-fe  peren- 
nemente  a  apotheofe  do  emulo  de  Luiz  XIV,  do  magnifico 
monarcha  portuguez,  de  cujo  reinado  o  Camões  do  Rocio  fa- 
zia, n'uma  das  conferencias  celebradas  perante  a  majeftade, 
a  mais  abflrufa  e  fervil  amplificação,  defenhando-o  em  tra- 
ços cortezãos  como  a  epocha  mais  florente  das  fciencias  e  das 
lettras.  Ali  eftudava-fe  o  paífado  e  adulava-fe  o  prefente. 
E  Sebaftião  de  Carvalho  tinha  a  vifta  perfpicaz  e  dominadora 
cravada  no  futuro,  e  com  a  ironia  refledfida  nos  feus  lábios 
vincados  como  os  de  Voltaire  na  commiíTura,  forria  natural- 


Íeis 
-• — •-<{>-§► 

35 

mente  das  milerias  grandiofas  do  leu  Mecenas  régio  e  da 
mefquinha  terra,  onde  imperava. 

Felizmente  deparou-lhe  a  fortuna  occafião  para  faír  da 
erudita  ociofidade.  Os  bons  officios  do  cardeal  da  Motta 
lograram  fazel-o  acceito  a  D.  João  V  para  que  lhe  commet- 
teíTe  encargo  correlpondente  á  fua  grande  capacidade.  No- 
meou-o  feu  enviado  extraordinário  na  corte  da  Gran-Bre- 
tanha.  Raiava  então  já  nos  quarenta  annos,  boa  edade  para 
ter  encelleirados  os  fruílos  proveitofos  da  reflexão  e  da  ex- 
periência, quafi  já  porém  provecta  para  dar  principio  á  fua 
carreira,  quem  eftaria  já  traçando  alevantar-fe  á  fuprema 
direcção  da  fua  pátria. 

Acabava  de  fer  exonerado  da  enviatura  na  Inglaterra 
Marco  António  de  Azevedo  Coutinho,  que  ali  refidíra  defde 
abril  de  lySõ,  como  reprefentante  de  Portugal.  Fora  nomeado 
fecretario  de  eftado  dos  negócios  extrangeiros  e  da  guerra  e 
devia  partir  de  Londres  a  tomar  poíTe  do  feu  alto  ofiicio 
minifterial.  Succedeu-lhe  Sebaftião  de  Carvalho,  que  em 
agoíto  de  lySS  havia  já  defembarcado  n'um  porto  da  Gran- 
Bretanha,  e  a  29  de  novembro  d'aquelle  anno,  foi  recebido 
em  folemne  e  publica  audiência  pelo  rei  George  II'. 

Não  podia  a  nomeação  vir  mais  a  talho  para  quem 
defejaria  ver  exemplificadas  as  doutrinas  dos  grandes  publi- 
ciftas  nas  praííicas  de  uma  realeza  moderada,  que  em  face 
do  abfolutifmo  dominante  em  todas  as  monarchias  conti- 
nentaes,  era  uma  verdadeira  e  curiofa  raridade.  Ainda  que 
o  governo  de  George  II  e  do  feu  aftuto  miniftro,  o  fami- 
gerado Sir  Robert  Walpole,  que  então  confolidava  no  meio 
de  tormentofas  convulfões  a  nova  dynaftia  de  Hannover, 
não  era  feguramente  o  mais  illuminado  e  progreíTivo,  fem- 


I  Quadro   elementar   das  relações  politicas  e  diplomáticas  de  Portugal, 
tom.  XVIII,  pag.  33g  e  340. 


CM 


X 


\ 


tis 


36 

pre  um  efpirito  inquiridor  das  fciencias  politicas  e  fociaes 
experimentalmente  aprenderia  muito  mais  n'um  paiz  de  opi- 
nião, de  imprenla  e  parlamento,  do  que  na  terra  da  inquiíi- 
ção,  dos  jefuitas  e  das  beatas  orgias  de  Odivellas.  Sebaftião 
de  Carvalho  não  tinha,  na  verdade,  a  Índole  propicia  ás  mo- 
narchias  temperadas  por  uns  longes  fequer  de  legaes  in- 
fluencias democráticas,  fegundo  a  norma,  que  então  preva- 
lecia em  Inglaterra,  fob  o  regimen  parlamentar  do  groíTeiro 
e  imperiofo  George  II  e  do  feu  miniftro  Walpole,  o  modelo 
dos  corruptores.  Mas  no  governo  e  adminiftração,  apcfar 
do  leu  grande  atrazo  em  muitos  pontos  e  das  luftas  fan- 
grentas,  em  que  viveu  pela  infurreição  dos  jacobitas  ou 
partidários  dos  Stuarts  até  1745,  fempre  era  a  Gran-Breta- 
nha  melhor  efcola  de  eftadilías  do  que  o  monaftico  e  deca- 
dente Portugal.  Ainda  que,  fegundo  parece  dos  aftos  legis- 
lativos de  Pombal,  pouco  le  infpiraíTe  nas  tradições  e  nas 
praxes  politicas  da  Inglaterra,  teria  ao  menos  ali  onde  adex- 
trar-fe  no  meneio  dos  negócios,  como  útil  preparação  e  pro- 
pedêutica para  o  governo  dos  eftados. 

Se  outra  coufa,  porém,  não  podeíTe  aproveitar  o  enviado 
portuguez  durante  a  fua  refidencia  na  Gran-Bretanha,  ao 
menos  haveria  de  concitar-lhe  a  attenção  o  eftado  já  floren- 
te das  fuás  induftrias,  e  as  qualidades,  que  a  tornavam  a 
primeira  entre  as  nações  navaes  e  mercantis.  Se  não  cogi- 
tava em  trafladar  á  fua  pátria  as  inftituições,  os  coftumes, 
a  legiflação,  o  mechanifmo  politico  e  focial  da  Inglaterra, 
poderia  eftudar  e  inquirir  por  que  proceflbs  a  poderofa  na- 
ção fe  levantara  ao  faftigio  do  poder  marítimo  e  da  profpe- 
ridade  económica  e  induftrial.  A  fciencia  praílica  e  o  enge- 
nho fabril  dos  inglezes  eftava  já  n'ac[uella  edade  preludiando 
os  fecundos  defcobrimentos,  que  na  fegunda  metade  do  xvm 
feculo  haveriam  de  multiplicar  a  força  produdiva,  —  aquel- 
las  preciofas  invenções,  que  fizeram  memoráveis  os  nomes 


4 


3? 

de  Hargrcaves,  de  Arkwright,  de  Watt,  de  Whitney  e  de 
Cartwright.  Para  quem  já  porventura  penlaria  em  erguer  do 
laítimoío  abatimento  o  trabalho  e  a  induftria  nacional,  ne- 
nhum paiz  poderia  ler  mais  fecunda  e  ampla  doutrinação  ao 
génio  do  grande  reformador. 

Eítava  alem  d'iflb  confagrada  pelo  ufo  a  regra  de  que  os 
miniítros  portuguezes  nas  principaes  cortes  europêas,  quan- 
do as  interceíTões  ou  os  talentos  lhes  faziam  conquiftar  as 
boas  graças  do  Ibberano,  da  milTão  diplomática  fubiíTem  ao 
ofiicio  minifterial,  prelidindo  á  lecretaria  dos  negócios  ex- 
trangeiros.  Affim  no  reinado  de  D.  João  V  o  fecretario  de 
eftado  Pedro  da  Motta  e  Silva,  irmão  do  cardeal  do  melmo 
appellido,  havia  fido  anteriormente  enviado  extraordinário  na 
corte  de  Roma,  António  Guedes  Pereira,  fecretario  de  efta- 
do da  marinha,  exercera  a  legação  na  corte  de  Madrid, 
Marco  António  de  Azevedo  Coutinho,  fecretario  de  eftado 
dos  negócios  extrangeiros  e  da  guerra,  havia  fido  reprefen- 
tante  de  Portugal  em  Londres  e  em  Paris.  Baftava  pois  que 
Scbaftião  de  Carvalho  alcançaíTe  honrada  reputação  na  fua 
enviatura  para  que  mais  tarde  o  capricho  do  monarcha  ou 
o  favor  dos  protedores  o  chamaíTe  na  primeira  vacatura 
ao  fufpirado  pofto  de  confelheiro  e  miniftro  do  foberano. 

Não  deixou  de  deparar-fe  ao  novo  enviado  portuguez  na 
corte  de  Saint-James  propicia  occafião  para  moftrar  a  fua 
valiofa  capacidade.  Não  havia  por  aquelles  tempos  nenhu- 
ma grave  circumftancia  internacional,  que  exigiíTe  do  gover- 
no portuguez  demoradas  e  efcabrofas  negociações.  Portugal 
vivia  então  em  paz,  gratiíTmia  ao  dynafta,  pouco  propenfo 
ás  ambições  e  lances  bellicofos  de  Luiz  XIV,  feu  modelo  na 
grandeza  e  majeftade. 

As  razões,  que  haviam  motivado  a  enviatura  de  Marco 
António,  longamente  experimentado  nos  negócios,  e  torna- 
ram difficil  e  efpinhofa  a  miífáo  portugueza  na  corte  de  Geor- 


eis 


cl9 


38 

ge  II  já  não  fubfiftiam  com  tamanha  gravidade.  A  pendência 
lufcitada  entre  Portugal  e  a  Hefpanha,  vizinhos  n'aquelle 
tempo  lempre  em  vefpera  de  contenderem  e  pleitearem  pe- 
las armas  as  fuás  encontradas  pretenções  e  a  íua  mutua  des- 
confiança, eftava  por  então  aquietada.  DiíTipára-le  o  receio 
de  que  o  defaggravo  das  reciprocas  oíTenfas  fe  houveíTe  de 
commetter  ao  fallivel  julgamento  dos  canhões. 

Os  negócios,  que  pendiam  entre  Portugal  e  a  Inglaterra 
fe  bem  de  fumma  importância  para  o  primeiro,  eram  d'ell:es, 
que  demandam  mais  zelo  e  energia  do  que  talentos  aíTigna- 
lados  no  difcreto  negociador.  A  miífão  de  Car\'alho,  fcgun- 
do  elle  próprio  o  deixou  efcripto',  tinha  por  aílumptos  prin- 
cipaes  o  inquirir  as  caufas,  pelas  quaes  era  activo  e  opulento 
o  commercio  dos  extrangeiros  em  Portugal,  e  paífivo  e  mife- 
ravel  o  dos  noíTos  nacionaes;  occorrer  á  defegualdade,  com 
que  eram  tratados  em  Londres  os  portuguezes,  em  cambio 
dos  amplos  e  valiofos  privilégios,  que  fruiam  os  inglezes  em 
Portugal;  pôr  um  termo  ás  infolencias  commettidas  em 
noíTos  portos  pelos  commandantes  dos  navios  de  guerra  da 
Gran-Bretanha.  De  todas  as  tranfacções  diplomáticas  de 
Sebaftião  de  Carvalho,  a  que  parece  mais  difficil  e  capaz 
de  revelar  a  fua  dextreza  diplomática,  foi  a  que  entre  elle 
e  o  gabinete  inglez  fe  travou  acerca  de  alguns  vexames  fis- 
caes,  a  que  em  Londres  eram  fujeitos  os  negociantes  portu- 
guezes pelos  exaítores  de  uma  impofição,  a  cujo  pagamento 
fe  julgavam  defobrigados  pelos  tratados  em  vigor.  Succedia 
efte  debate  diplomático  pelos  annos  de  lySg.  Redigiu  o 
enviado  portuguez  e  aprefentou  ao  gabinete  britannico  uma 
extenfa  memoria,  compendiando  as  razões  e  fundamentos, 
em  que  se  eftribava  a  reclamação ^ 


1  Appenfo  II  da  Contrariedade  ao  libello,  g  2.° 

2  Quadro   elementar  das   relações  politicas   e  diplomáticas  de  Portugal, 
tom.  XVIII,  pag.  341. 


39 

O  minifterio  brltannico  deferiu  ás  inftancias  do  reprefen- 
tante  portuguez.  N'um  defpacho  de  20  de  novembro  de 
lySg  lhe  aíTegurou  o  duque  de  Newcaftle  que  o  rei  da 
Gran-Bretanha,  para  dar  a  D.  João  V  uma  prova  do  íeu 
affedo  e  confideração,  havia  determinado  exemplar  os  nego- 
ciantes portuguezes  de  todas  as  taxas  e  contribuições,  que 
eítiveffem  eftabelecidas  ou  houveíTem  de  ler  lançadas  por 
ado  do  parlamento  fobre  todos  os  habitantes  do  reino  unido. 

Por  aquelles  tempos  teve  Sehallião  de  Carvalho  que 
dirigir  uma  nova  reclamação  ao  governo  de  George  II.  Fora 
efcaíTa  em  Portugal  a  colheita  de  cereaes,  que  ainda  mefmo 
nos  annos  mais  fecundos  e  apefar  de  diminuta  a  povoação, 
não  podia  baítar  ao  feu  confumo.  O  governo  inglez,  inci- 
tado por  egual  deficiência,  prohihíra  a  exportação.  Eleva- 
ram-fe  em  Portugal  os  preços  nimiamente,  como  em  quadras 
de  grande  efterilidade.  Padeciam  as  gentes  populares  com 
aquella  careflia  exagerada  e  os  bandoleiros  congregados  em 
quadrilhas  e  eftimulados  pela  fome  infeftavam  oufadamente 
a  própria  capital.  Ordenou  o  governo  portuguez  ao  leu 
enviado  em  Inglaterra  que  perante  o  minifterio  britannico 
reclamaíTe  contra  a  nociva  prohibição  e  a  fizelTe  revogar 
por  excepção  em  favor  dos  portuguezes.  E  taes  foram  e  tão 
perfuafivas  e  efficazes  as  ponderações  e  as  inftancias  de 
Carvalho,  que  já  a  26  de  janeiro  de  1741  o  reprefentante  de 
Inglaterra  em  Lifboa,  Lord  Tyrawley,  aíTegurava  ao  minis- 
tério portuguez,  que,  apenas  as  circumftancias  o  permitiílem, 
feria  decretada  em  favor  de  Portugal  a  pedida  revogação". 

Neftas  pendências  diplomáticas  e  em  outra,  que  fe  origi- 
nou por  caufa  do  medico  da  legação,  foi  Sebaftião  de  Car- 
valho um  dos  principaes  cooperadores  para  que  melhor  fe 


I  Qtiadro  elementar  das  relações  politicas  e  diplomáticas  de  Portugal, 
tom.  xviii,  pag.  342. 


(|9 


cia 


eis 


40 

deíànilTem  os  privilégios  e  exempções  aos  reprefentantes  das 
potencias  extrangeiras. 

Os  exadores  de  uma  taxa  local  na  parochia  de  Santa 
Catharina  em  Londres,  para  aíTegurar  o  pagamento,  tinham 
feito  uma  penhora  ao  medico  da  legação  de  Portugal.  Era  o 
fabio  e  illuftre  judeu  portuguez,  Jacob  de  Caftro  Sarmento. 
Reclamou  o  enviado  contra  o  ado  judicial,  que  offendia  as 
fuás  immunidades.  Foi  completa  e  defufada  a  reparação. 
AnnuUou-fe  a  execução  e  foi  ao  medico  reítituida  a  impor- 
tância da  coUeda.  Em  officio  de  20  de  março  de  1743 
efcrevia  o  duque  de  Nev^^caftle  ao  enviado  portuguez,  pedin- 
do-lhe  fixaíTe  o  dia,  em  que  os  reprefentantes  da  parochia 
haviam  de  ir  á  legação  oíferecer-lhe  as  fuás  efcufas.  A  25 
d'aquelle  mez  davam  plena  fatisfação  pela  aggravo  recebi- 
do, e  deixavam  a  Sebaítião  de  Carvalho  um  auto  publico 
das  refoluções  tomadas  acerca  da  pendência. 

As  negociações  encaminhadas  a  pôr  termo  ás  violências 
e  ultrages  commettidos  pelos  officiaes  da  marinha  britannica 
procederam  com  tão  profpero  fucceífo,  que  a  16  de  janeiro 
de  1743  communicava  o  duque  de  Newcaftle  a  Sebaftião 
de  Carvalho  que  todos  os  inglezes,  réus  de  violências  e  de 
crimes  perpetrados  nos  territórios  portuguezes,  poderiam  fer 
prefos,  proceífados  e  punidos  pelos  magiftrados  dos  logares, 
e  que  efta  jurifprudencia  fe  entenderia  applicavel  aos  offi- 
ciaes da  marinha  britannica'. 

Se  o  enviado  portuguez  na  corte  de  Londres  não  pôde 
notavelmente  diftinguir-fe  pela  importância  e  efplendor  das 
fuás  negociações  politicas,  teve  ao  menos  occafião  para  dila- 
tar os  feus  conhecimentos  e  applicar-fe  á  leitura  de  muitas 
obras,  que  eram  talvez  então  defconhecidas  em  Portugal. 
Não  podia  ler  os  livros  inglezes,  porque  não  alcançou  nunca 


Appenfo  II  da  Contrariedade  ao  libello,  §  4.° 


41 


induílriar-fe  no  idioma,  em  que  por  aquelles  tempos  le  illiil- 
trava  Thomlbn,  o  poeta  das  EJtações,  Young,  o  celebrado 
auctor  das  Noites,  Gray,  cujo  nome  anda  aíTociado  á  mais 
pathetica  elegia,  Fielding,  o  audor  de  Tom  Jones  e  Richard- 
Ibn,  o  noveliifta  melancólico  da  fentimental  e  interminável 
Clariffe  Haiioip.  Apefar  de  não  poíTuir  o  conhecimento  da 
lingua  ingleza,  Sebaftião  de  Carvalho  não  deixou  de  fe 
applicar  afliduamente  a  eftudar  tudo  quanto  le  referia  á 
Gran-Bretanha,  e  principalmente  ás  luas  leis  e  inílituiçóes. 
A  forma  politica  da  Inglaterra  não  feria  já  então  muito  con- 
forme ás  politicas  noções,  de  que  fe  compunha  o  leu  credo 
governativo,  fegundo  o  veiu  depois  a  exemplificar  nos  feus 
actos  e  na  lua  legiílação.  A  omnipotência  do  foberano  feria 
já  então  o  feu  principio  fundamental  e  fuperior  ao  exame 
e  difcuíTão.  Era  o  rei  de  higlaterra,  apelar  das  externas 
apparencias  de  abfoluta  majeftade,  um  fâmulo  do  parla- 
mento. Dominava  ali  principalmente  a  mais  poderofa  arilfo- 
cracia,  e  a  camará  dos  communs,  comquanto  quaíl  tida  em 
monopólio  pela  influencia  irrefillivel  da  nobreza  ou  defhon- 
rada  pela  lua  venalidade  e  corrupção,  era  ainda  aíFim  uma 
fomhra  e  fimulacro  da  vontade  popular.  E  Sebaftião  de 
Carvalho,  cujos  traços  capitães  na  fua  norma  de  governo 
eftariam  já  então  profundamente  meditados,  odiaria  poi-\'en- 
tura  a  ordem  patrícia,  como  um  pcrigolb  contrapefo  ao 
abfolutifmo  do  monarcha,  e  a  influencia  das  multidões, 
como  um  tremendo  facrilegio  á  origem  divina  do  poder. 

Demorou-fe  Carvalho  em  higlaterra  até  1745,  em  que 
voltou  a  Lifboa,  exonerado  da  miíTão.  O  ultimo  officio,  que 
da  fua  legação  em  Londres  exifte  no  archivo  dos  negócios 
extrangeiros,  é  datado  a  i3  de  abril  de  1745.  E  provável, 


'  Quadro   elementar  das   relações  politicas  e  diplomáticas  de  Portugal, 
tom.  xviii,  pag.  344. 


cts 


eis 


CM 


42 


porém,  que  ainda  tiveíTe  expedido  mais  algum,  porque  não 
ha  n'aquelle  documento  a  minima  referencia  ao  feu  próximo 
regreíTo  a  Portugal. 

A  legação  portugueza  em  Londres  fó  teve  novo  chefe 
em  1747,  quando  el-rei  D.  João  V  para  aquelle  cargo,  agora 
tornado  mais  importante  pelas  graves  diílldencias  fubfis- 
tentes  entre  a  Hefpanha  e  Inglaterra,  e  a  planeada  mediação 
de  Portugal,  nomeou  a  António  Freire  de  Andrade  Encerra- 
hodes,  que  mais  tarde,  quando  já  Sebaftião  de  Carvalho  era 
miniftro  e  didador  omnipotente,  jazeu  por  fua  ordem  largos 
annos  nos  triftes  calabouços  da  Junqueira. 

Não  fe  fabe  fe  foi  a  feu  pedido,  ou  por  alguma  rafão  de 
conveniência  governativa,  que  Sebaftião  de  Carv^alho  deixou 
a  legação.  Não  foi  de  certo,  como  efcreve  um  dos  feus  mais 
implacáveis  inimigos,  porque  lhe  faltaíTe  a  protecção  de  feu 
tio  Paulo  de  Carvalho  e  o  favor  do  cardeal  da  Motta,  que 
o  parcialiffimo  efcriptor  dá  como  fallecidos  antes  que  Se- 
baftião deixaífe  Inglaterra.  Ora  o  purpurado  primeiro  minis- 
tro de  D.  João  V  deixou  de  exiftir  a  4  de  outubro  de  1747, 
e  o  feu  futuro  e  grande  fucceífor  já  em  1745  terminara  em 
Londres  a  enviatura. 

Não  feria  certamente,  —  como  pretende  o  biographo 
libellifta,  que  citámos,  —  o  defamor  do  rei,  nem  a  pouca 
aflfeição  do  novo  primeiro  miniftro,  Pedro  da  Motta,  para 
com  o  enviado  portuguez,  o  que  determinou  a  fua  demiíTão. 
Porque,  paífado  pouco  tempo,  o  achámos  nomeado  para  ir 
a  Vienna  de  Auftria  defempenhar  uma  difíicil  commiífáo, 
que  prefuppunha  em  quem  a  exercitaífe  a  alta  confiança 
do  governo.  Tratava-fe  nada  menos  que  da  mediação  de 
Portugal  para  levar  a  bom  termo  de  conciliação  a  diíTi- 
dencia,  que  fe  havia  levantado  entre  a  corte  de  Roma  e  a 
rainha  de  Hungria  e  de  Bohemia,  que  mais  tarde  foi  a 
celebrada  imperatriz  Maria  Thereza.  Dava  aífumpto  a  efta 


43 

quebra  nas  boas  relações  das  duas  cortes  a  extincção  do 
patriarchado  de  Aquileia.  Não  era  fácil  concertar  efte  con- 
flido,  porque  a  violenta  oppofição  entre  o  fecretario  de 
eftado  pontifício,  o  cardeal  Valenti,  e  o  conde  de  Welfeld, 
grão-chanceller  da  rainha  de  Hungria,  tornava  impolTivel 
toda  a  pacifica  Iblução  diredamente  negociada  entre  os  dois 
adverfarios ' .  O  papa,  que  era  então  Benedido  XIV,  defe- 
java  aquietar  elta  differença,  que  poderia  accender-fe  e  per- 
turbar a  paz  efpiritual  no  império  auftriaco,  já  propenfo  a 
lacudir  o  jugo  temporal  da  fanta  le.  Bufcou  pois  por  media- 
dora a  rainha  de  Portugal,  D.  Maria  Anna,  que  por  fervo- 
rofa  filha  da  Egreja,  como  efpofa  do  fideliílimo  foberano 
portuguez,  e  por  auftriaca,  a  quem  eram  fempre  caros  os 
intereffes  da  fua  dynall;ia,  fe  empenharia  em  accommodar  a 
paíTageira  diíTenfão.  Governava  então  o  reino  como  regente 
durante  uma  longa  doença  do  monarcha.  Elegeu,  prova- 
velmente por  indicação  do  cardeal  da  Motta,  a  Sebaftião 
de  Carvalho,  para  que  paíTando  a  Vienna  defde  logo,  inter- 
pozeffe  na  queftão  os  bons  officios  de  Portugal  e  envidalle 
os  feus  esforços  em  reítaurar  os  vincules  amigáveis  entre  a 
cúria  e  Maria  Thereza. 

Já  em  meado  de  1745  eivava  na  capital  da  Auftria  o 
enviado  portuguez,  ainda  lem  carader  ofíicial,  procurando 
induftriar-fe  na  pendência  e  preparar  tudo  quanto  podeíTe 
facilitar  a  defejada  conciliação.  Sebaftião  de  Carvalho  che- 
gou a  Vienna  de  Auftria  em  principies  de  julho  d'aquelle 
anno.  A  7  devia  fer,  conforme  o  deixou  efcripto  o  próprio 
enviado^  No  officio  de  3o  de  agofto  de  1745,  no  archivo  dos 
negócios  extrangeiros,  diz  Sebaftião  de  Carvalho  haver  dois 
mezes  que  era  chegado  á  capital  do  império.  Que  para  a 


Appcnfo  II  da  Contrariedade  ao  libello,  §  8. 
Appenfo  II  da  Contrariedade  ao  libello,  §  9. 


44 

nova  commiíTão  partiu  directamente  de  Lifboa,  e  não  de 
Londres,  fem  volver  de  novo  á  pátria,  como  affirmam  erra- 
damente alguns  biographos,  íe  manifefta  do  leu  officio  com 
data  de  3i  de  maio  de  1746,  em  que  diz  textualmente: 
«Empreguei  o  maior  dilVelo  em  render  ferviço  ao  papa, 
como  fempre  foi  meu  defejo  defde  que  lai  de  Lifboa».  No 
anno  feguinte  de  1746  recebia  o  decreto,  em  que  nos  mais 
honrofos  termos  era  defignado  para  exercer  officialmente  a 
mediação.  E  tal  foi  a  diligencia  e  bom  confelho,  com  que 
fe  defempenhou  do  feu  encargo,  que  logrou  ver  diíTipada 
finalmente  a  borrafca  diplomática,  e  aflignada  a  convenção 
ou  concordata  de  1 2  de  março  de  1 747,  que  eftreitou  nova- 
mente as  relações  entre  os  dois  dilcordantes  potentados. 

O  grão-chanceller,  conde  de  Welfeld,  eicreveu  em  agra- 
decidos termos  a  Carvalho,  notificando-lhe  a  plena  fatisfação 
da  fua  corte.  A  negociação,  em  que  fe  empenhara  para 
reftabelecer  a  concordância  entre  o  pontífice  romano  e  a 
rainha  de  Hungria  e  de  Bohemia,  já  então  imperatriz,  não 
podéra  vir  mais  de  molde  a  quem  um  dia,  na  fuprema 
gerência  dos  negócios,  haveria  de  contender  tão  rijamente 
com  o  poder  efpiritual  e  conflrangel-o  a  refpeitar  os  direitos 
da  foberania. 

Foi  aquella  a  fua  efcola  primaria  na  arte  diííicil,  mas 
neceífaria,  de  dar  talho  vigorofo  nas  extranhas  pretenfõcs  do 
pontificado,  e  feparar,  por  limites  bem  traçados,  o  facerdocio 
e  o  império.  Então  era  apenas  medianeiro  para  congraçar 
os  dois  poderes.  Mais  tarde,  na  pátria,  em  mais  graves  diíTi- 
dencias  entre  as  duas  mal  avindas  poteítades,  haveria  de 
intimar  com  voz  imperativa  e  forçar  o  Vaticano  a  con- 
firmar, após  uma  lufla  porfiada,  a  politica  religiofa  da  fua 
adminiflração. 

Tão  bom  nome  conquiítou  para  Cai-valho  a  fua  difcreta 
e  hábil  mediação,  que  bem  depreíTa  alcançou  novo  triumpho 


ela 


45 

como  engenhofo  e  prudente  negociador.  Levantára-fe  uma 
ditferença  entre  o  papa  Benediíto  XIV  e  o  eleitor  arcebifpo 
de  Moguncia  Ibbre  a  confirmação  de  certos  benefícios  ec- 
clefiarticos.  A  corte  de  Vienna,  —  tal  era  a  lua  illimitada 
coníiança  no  reprefentante  portuguez,  —  declarou  ao  núncio 
pontifício,  não  daria  ou^■idos  a  nenhuma  propofíção,  que 
não  foíTe  aprefentada  por  intermédio  de  Carvalho'.  Tão  boas 
traças  fe  deu  o  enviado  portuguez,  que  logrou  defvanecer  a 
paflageira  tcmpcfíade  entre  o  pontifíce  romano  e  o  príncipe 
mithrado,  que  n'uma  carta  de  lo  de  junho  de  1748  agrade- 
ceu o  empenho  e  os  bons  officios  do  portuguez  mediador. 
O  tefíemunho  de  um  diplomata  francez,  que  por  efta 
occafíão  era  minifíro  junto  da  corte  de  Maria  Thereza,  não 
deixa  a  menor  duvida  Ibbre  quaes  foffem  os  dotes  diplomá- 
ticos, revelados  por  Sebafl:ião  de  Carvalho,  durante  a  lua 
refidencia  na  corte  de  Vienna.  Efcrevendo  ao  leu  governo 
aíleverava  o  plenipotenciário  Blondel  que  nas  duas  negocia- 
ções, na  que  era  concernente  ao  patriarchado  de  Aquileia,  e 
na  do  eleitor  arcebifpo  de  Moguncia,  o  enviado  portuguez 
havia  dado  provas  da  Ília  habilidade  e  bom  juizo,  da  fíja 
rectidão  e  amenidade,  e  Ibbretudo  da  lua  extrema  paciência, 
qualidades,  com  que  tinha  grangeado  não  fomente  as  boas 
graças  dos  Ibberanos  intereífados  nas  queftões,  fenão  tam- 
bém a  confíderação  de  todos  os  reprefentantes  extrangeiros 
e  das  peíToas  de  maior  autoridade.  Encarecendo  ainda  mais 
os  dotes,  que  o  faziam  recommendavel  e  diftiníto  entre  os 
feus  coUegas  de  Vienna,  acrefcenta  o  enviado  de  Luiz  XV 
que  Seballião  de  Carvalho  «era  em  tudo  nobre  fem  ofíen- 
tação,  de  concertado  juizo  e  prudência  fíngular,  rico  de 
honrados  fentimentos  e  principios,  tendo  por  alvo  fempre 
o  bem  geral».  E  fínalmente  referia  que  ao  deixar  Sebalfião 


'  Appenfo  II  da  Contrariedade  ao  libello,  S  14. 


(  I 


4  si» 

_ .h(>-^ 

dc  Cai-valho  a  legação,  e  ao  partir  para  Lifhoa,  tinha  fido 
laftimada  a  fua  aufencia  pela  corte  e  pela  cidade". 

As  negociações  de  Carvalho  em  Londres  e  em  Vienna 
tão  longe  eítavam  de  fer,  como  os  íeus  inimigos  apregoavam, 
fobre  aíTumptos  fáceis  de  concluir,  antes  tinham  aos  olhos 
do  próprio  negociacior  tal  valia  e  importância,  que  ainda 
mefmo  depois  de  levantado  ás  mais  altas  dignidades  fe  com- 
prazia em  commemoral-as  com  largueza  e  referil-as  como 
ferviços  meritórios  da  fua  primeira  vida  publicai 

Não  é  provável  que  um  homem  de  tão  certeiro  difcer- 
nimento  tiveífe  em  grande  preço  o  que  fizera  nas  fuás  lega- 
ções, fe  em  confciencia  não  fentiffe  que  d'ellas  fe  podia 
envanecer. 

Foi  durante  a  fua  refidencia  na  corte  de  Maria  Thereza, 
que  Sebaflião  de  Carvalho  recebeu  a  nova  da  lua  viuvez. 
D.  Thereza  de  Noronha  baixando  ao  fepulchro,  ainda  que 
laftimada  naturalmente  de  quem  no  meio  de  tamanhas 
contradicções  havia  conquiftado  o  feu  amor,  deixava-lhe 
vacante  o  coração  e  miniftrava-lhe  occafião  a  novo  e  mais 
brilhante  defpoforio. 

A  condeífa  Leonor  Erneftina  Daun,  fobrinha  do  mare- 
chal Daun,  tão  famolb  durante  a  guerra  da  fucceífão  de 
Auftria,  attrahira  as  attenções  do  enviado  portuguez.  Ella  era 
joven  e  formofa,  elle,  fe  bem  já  não  mancebp,  comtudo 
pelas  fuás  qualidades  merecedor  das  aíTeições  de  uma  mu- 
lher.  Era  ainda  gentil  e  bem  difpoífo,  a  eítatura  elevada, 


1  Documento  extrahido  dos  archivos  do  miniílerio  dos  negócios  extrangei- 
ros  de  França,  de  lo  de  janeiro  de  lySo.  Citado  em  Smith,  Memoirs  of  the  mar- 
quis  of  Pombal,  vol.  ii,  pag.  53  e  54. 

2  Em  officio  do  conde  de  Bachi  ao  feu  governo,  de  4  de  março  de 
1755,  dizia  eíle  embaixador  francez  na  corte  de  Lisboa:  que  quando  elle  (Car- 
valho) acertava  de  entrar  em  converfação  fobre  o  que  havia  feito  nas  cortes 
de  Vienna  e  de  Londres,  era  para  nunca  acabar.  Quadro  elementar,  tom.  vi, 
pag.  53. 

-S-i- -i-i- 


(I} 

-'<^ 


47 

nobre,  varonil;  o  rofto  mais  graciofo,  que  fevero;  o  efpirito 
exornado  dos  talentos,  que  fervem  para  os  altos  negócios  do 
governo,  e  não  menos  para  as  donairofas  converlações  no  trato 
polido  e  focial;  a  palavra  infinuante  e  attradiva.  O  melmo 
génio,  que  n'elle  tornava  irrellftivel  a  fua  dominação  nos  ho- 
mens mais  agreftes,  amoldava-le  com  egual  fuperioridade  á 
conquifta  da  mulher.  Recrefceram,  porém,  dificuldades  ao 
principio  para  que  podeíTe  eífeituar-fe  o  conforcio  defejado. 
Era  a  noiva  de  eftirpe  efclarecida  e  de  terra,  onde  a  aha 
nobreza  hereditária  mais  afincadamente  fe  governa  pelos 
preconceitos  da  fua  feudal  hierarchia.  A  condeífa  daria  de 
barato  os  muitos  quilates  mais,  que  a  fua  nobreza  levava 
de  vantagem  á  obfcura  fidalguia  do  feu  galanteador.  Mas 
eram,  ao  parecer,  mais  efcrupulofos  os  parentes.  Fizeram-fe 
inquirições  fobre  o  nafcimento  e  afcendencia  de  Carvalho. 
Confultou-fe  a  rainha  de  Portugal,  que  informou  favoravel- 
mente e  atteftou  que  o  enviado  portuguez  era  de  familia 
qualificada.  Era  deflino  de  Carvalho  que  houveíTe  de  afpirar 
em  feus  amores  ás  eminentes  fummidades,  e  que  entre  elle 
e  as  fuás  confortes  fe  levantaíTe,  como  importuna  contra- 
dicção,  a  altiveza  ariftocratica  das  familias,  com  quem  pre- 
tendia aparentar-fe.  Fez-fe  a  final  o  cafamento.  Efte  enlace 
não  foi  talvez  extranho  á  fua  próxima  fortuna.  A  condeífa 
Daun,  como  fobrinha  do  afamado  vencedor  de  Frederico  II, 
e  como  compatriota  da  rainha  de  Portugal,  lhe  ganharia 
facilmente  as  boas  graças  e  contribuiria  talvez  efficazmente 
a  que  o  marido,  afpirando  aos  altos  cargos  do  governo, 
podeíTe  triumphar  dos  feus  inimigos  e  rivaes.  O  talento  nos 
homens,  que  nas  monarchias  abfolutas  não  valem  pelo  alto 
nafcimento,  é  como  uma  alavanca,  que  não  pôde  empregar- 
fe  fem  um  fulcro.  Ainda  nos  próprios  governos  populares 
o  mérito  para  afcender  e  refulgir  nas  eminentes  regiões  pre- 
cifa  muitas  vezes  dos  impulfos  externos  do  favor.  O  próprio 


CM 


4^ 
«-ò-i* 

Bonaparte,  fem  os  bons  officios  de  Barras,  teria  porventura 
vegetado  largos  annos,  e  talvez  não  lograria  as  fafces  do 
confulado  e  o  fceptro  de  imperador. 

Eftava  conduzida  a  feliz  termo  a  negociação,  que  o 
levara  á  corte  de  Vienna.  Havia  Sebaftião  de  Carvalho 
padecido  grave  detrimento  na  laude.  O  celebrado  medico 
Van  Sw^ieten  aconfelhava-o  a  que  faííTe  de  Vienna,  onde 
mais  um  inverno  rigorolb  o  poderia  pôr  em  grande  perigo. 
Urgiam-n'o  circumlíancias  particulares  a  volver  de  novo 
á  pátria.  Via  imminente  um  novo  reinado.  Era  aquella  a 
fazão  mais  opportuna  para  vir  a  Lifboa  e  aíTiftir  ao  trifte 
defmoronar  do  reinado  longo  e  efteril  do  monarcha  lum- 
ptuofo.  Teria  talvez  rebates  de  que  poderia  fer  chamado 
pelo  novo  foberano  ao  minifterio.  Deixou  Vienna  a  3  de 
feptembro  de  1 749  e  eftava  já  defde  o  i .°  de  dezembro 
em  Lifboa',  quando  o  piedoíb  D.  João  V  legava  a  D.  Jofé 
uma  extenfa  monarchia,  decadente  e  debilitada  por  todos 
os  vicios  e  corruptelas  de  um  governo,  que  teve  por  arbi- 
tro um  abfoluto  e  voluptuofo  dominador,  e  nos  degraus  do 
throno  a  fervidão  dos  confelheiros  e  o  fanatilmo  dos  con- 
feíTores. 

CAPITULO   III 

POMBAL  NO  MINISTÉRIO 

Defde  que  Sebaftião  de  Carvalho  chegou  a  Portugal  até 
que  D.  João  V  a  3 1  de  julho  deixou  o  throno  vago  ao  fuc- 
celTor,  efteve  o  antigo  e  benemérito  enviado  portuguez,  fem 
que  deíTem  novo  emprego  ás  luas  eminentes  faculdades.  Não 
havia   por   então  vacante   nenhuma   das   mais   importantes 


Appenfo  II  da  Contrariedade  an  libello,  §S  '7  e  18. 


CM 


«I» 


49 

legações.  Dos  miniftros  que  compunham  o  ultimo  gabinete 
de  D.  João  V,  o  cardeal  D.  João  da  Motta  e  Silva  havia 
terminado  a  lua  mortal  carreira  a  4  de  outubro  de  1747. 
O  francifcano  recolleto,  Fr.  Gafpar  da  Encarnação,  tio  do 
duque  de  Aveiro,  nos  annos  derradeiros  de  D.  João  V  domi- 
nava, como  primeiro  miniftro,  o  animo  do  monarcha  enfra- 
quecido por  dilatada  enfermidade.  O  lecretario  de  eftado  da 
marinha  e  domínios  ultramarinos,  António  Guedes  Pereira, 
tinha  fallecido  em  1 747,  e  Marco  António  de  Azevedo  Couti- 
nho, que  dirigira  a  repartição  dos  negócios  extrangeiros  e  da 
guerra,  precedia  de  poucos  mezes  no  íepulchro,  em  i75o, 
ao  leu  régio  protedor.  De  todos  quantos  haviam  exercido  o 
minifterio  defde  1736,  em  que  D.  João  V  inftituira  as  três 
íecretarias  de  eftado,  fomente  Pedro  da  Motta  era  ainda  o 
limulacro  de  um  miniftro,  quebrantadas  as  antigas  faculda- 
des pela  doença  e  invalidez.  Era  elle  quem  preíidia,  delde 
a  lua  recamara  ou  do  leu  leito,  a  todos  os  negócios  da  nação. 
Um  reinado  novo  foi  lempre  em  todos  os  tempos  c  em 
todos  os  logares,  fob  todas  as  formas  de  monarchia,  a  qua- 
dra mais  fecunda  em  ambições  e  em  efperanças,  em  intrigas, 
em  bandos  e  facções.  Em  redor  da  nova  realeza,  que  appa- 
rece,  agham-le,  revolutèam  e  contendem  prellurofos  os  cor- 
tezãos  e  os  pretendentes,  como  os  peixinhos  n'uma  lagoa 
furgem  improvifamente  dos  feus  efconderijos,  e  acodem  em 
cardume  á  flor  da  agua  a  debater-fe,  quando  inefperada  mão 
lhes  atira  um  mendrugo  minimo  de  pão.  Os  que  haviam 
no  reinado  antecedente  desfrudado  com  largueza  os  proven- 
tos da  privança  no  animo  do  foberano,  bufcavam  no  reinado, 
que  nalcia,  confirmar  a  lua  antiga  preponderância.  Os  que 
não  tinham  alcançado  influencia,  esforçavam-fe  por  grangear 
as  graças  e  a  valia  do  príncipe  inexperiente  e  apoucado,  que 
ia  inaugurar  a  lua  duradoura  foberania.  Os  aulicos  difputa- 
vam  o  favor,  os  políticos  o  poder,  os  jeluitas  a  confciencia 


eis 


cl? 


5o 

do  novo  dominador.  E  fácil  adivinhar  como  do  paço,  onde 
efteve  durante  largos  mezes  moribundo  o  rei  D.  João  V, 
faziam  feu  theatro  os  intereffes  encontrados  e  as  ardentes 
ambições. 

Os  ferviços  de  Carvalho  nas  fuás  enviaturas  e  a  reputa- 
ção dos  feus  talentos  já  o  eífavam  aprefentando  candidato 
a  uma  das  fecretarias  de  eftado. 

Mas  n'aquelle  tempo  os  homens  mais  illuftres  pela  lua 
dexteridade,  fciencia  e  bom  confelho  nos  negócios  de  gover- 
no, não  entravam  facilmente  no  poder,  fe  os  não  chamaíTe  a 
efficaz  recommendação  de  algum  alto  valedor. 

Eram  muitos  os  méritos  de  Carvalho  e  zelofos  os  que 
apregoavam  fua  fama.  Eram  porém  mais  numerolbs  os  feus 
émulos,  que  procuravam  deíTervil-o  no  animo  do  principe  e 
aííaftal-o  para  fempre  do  governo. 

Os  efcriptores  ainda  contemporâneos  de  Pombal,  que 
antes  infpirando-fe  na  calumnia  dos  odientos  libelliftas  do 
que  no  efpirito  imparcial  dos  graves  hiftoriadores,  fe  propo- 
zeram  a  vingar  no  efladifta  decaído  os  aggravos  da  Compa- 
nhia e  da  nobreza,  aíTeveram  que  Sebaífião  de  Carvalho  á 
fua  volta  de  Vienna  andara  alhanando  o  feu  caminho  ao 
minifterio,  cortejando  fervilmente  os  homens  de  maior  auto- 
ridade e  os  que  tinham  melhor  entrada  com  el-rei  D.  João  V. 
Os  que  nos  annos  derradeiros  do  monarcha  dominavam  o 
feu  animo  débil  e  enfermiço  eram  principalmente  e  em  pri- 
meiro grau  o  jefuita  napolitano  João  Baptiíta  Carboni,  o  fran- 
cifcano  Fr.  Gafpar  da  Encarnação  e  o  padre  Jofé  Moreira, 
jefuita,  confeífor  de  D.  Jofé,  então  príncipe  do  Brazil.  Afiir- 
mam  efles  inexoráveis  inimigos  que  Sebaftião  de  Carvalho  fe 
proftrava  humilde,  antes  rafteiro  pretendente,  aos  pés  d'eftes 
amigos  e  confelheiros  do  monarcha,  procurando  com  indignos 
artifícios  alcançar  o  feu  favor  e  recommendação,  e  moftran- 
do-fe  fervorofo  adepto  e  defenfor  da  omnipotente  Compa- 


5i 

nhia.  Acrefcentam  que  os  jefuitas,  e  os  da  fua  parcialidade, 
enganados  pelo  profpedo  lifonjeiro  de  ter  nos  confelhos  do 
foberano,  na  peíToa  de  Carvalho,  um  inílrumento  obediente,  o 
recommendavam  com  inftancias  fervorolas  a  D.  João  V,  indi- 
cando-o  como  o  fujeito  mais  capaz  de  reger  a  vafta  monar- 
chia,  e  que  el-rci,  adverfo  ao  pretendente,  fe  recufava  tenaz- 
mente a  admittil-o  ao  feu  governo,  allegando  que  tinha, 
como  fe  diz  em  phrale  familiar,  cabellos  no  coração".  O 
que  parece  verolimil  e  provável  é  que  Sebaftião  de  Carvalho, 
depois  de  ter  defempenhado  honrofamente  as  duas  impor- 
tantes legações,  não  ficaria  ociofo  e  indolente  na  capital 
fem  que  a  lua  energia  fe  mefclaífe  ás  agitações  politicas 
do  tempo,  quando  eftava  próximo  a  inaugurar-fe  um  novo 
reinado.  A  elevada  fituação,  em  que  fe  achava  no  mundo 
official,  lhe  facilitaria  naturalmente  o  acceífo  aos  homens  do 
governo  ou  do  confelho.  Sabendo  que  nas  monarchias 
abfolutas,  e  ainda  em  grande  parte  nas  reprefentativas,  a 
eleição  dos  miniftros  pende  fempre  da  aífeição  e  alvedrio 
do  imperante,  e  que  nas  fuás  rcfoluções  figura  como  fador 
o  influxo  dos  validos,  não  deixaria  de  grangear  os  bons 
officios  dos  que  mais  preponderavam  no  efpirito  de  el-rei. 
Não  é  pois  contra  a  boa  razão  que  Sebaítião  de  Carvalho 
fe  acercaíTe  do  francifcano  e  do  jefuita,  cujo  ódio  ou  bem- 
querença  lhe  poderia  cerrar  ou  delbbflruir  o  ingreflb  no 
poder.  Não  é  porém  crivei  que,  fegundo  refere  o  feu  maior 
e  mais  cruel  adverfario,  fe  fingifle  jefuita  e  fe  gloriaífe  d'cfte 
nome  na  prefença  dos  feus  imaginados  protectores. 

Se  havemos  de  acreditar  no  teftemunho  de  um  agente 
diplomático  francez  na  corte  de  D.  Jofé,  o  recolleto  Fr.  Gas- 


'  Vita  di  Sebafl.  J.  de  Carvalho,  tom.  i,  pag.  1 1  e  i6.  D'ertas  defhonrofas  im- 
putações de  baixeza  e  fervilifmo  o  defende  e  o  vinga  com  fervor  a  obra,  que 
fe  intitula  Uadniiniflration  du  Marquis  de  Pombal,  vol.  i,  pag.  227  e  228. 


52 

par  da  Encarnação,  longe  de  ter  favorecido  a  elevação  de 
Carvalho  ao  minifterio,  ao  contrario  fentiria  defprazer  com 
femelhante  nomeação '.  O  francifcano  ambiciofo,  apefar  da 
humildade  e  rudeza  do  feu  habito,  havendo  já  por  algum 
tempo  libado  á  cabeceira  do  moribundo  D.  João  V  a  taça 
do  poder,  mal  poderia  agora  interceder  por  quem  o  fubfti- 
tuiíTe  na  privança  e  audloridade.  O  alcetico  mentor  do  frei- 
ratico  foberano  cuidara  porventura  ter  firmado  com  tamanha 
folidez  os  feus  créditos  de  eftadifta,  que  a  paíTagem  do  fce- 
ptro  portuguez  de  umas  a  outras  mãos  não  viria  abalar  ou 
deítruir  a  fua  preponderância  no  governo-. 

Não  é  improvável,  ainda  que  não  atteflado  por  docu- 
mentos, que  os  jefuitas  favoreceíTem  as  ambições  do  leu 
futuro  e  terrível  antagonifta.  Até  áquelle  tempo  nenhuma 
demonftração  denunciara  o  ódio  de  Pombal  contra  a  pode- 
rofa  e  abforvente  Companhia.  Não  era  ainda  chegada  a  fazão 
própria,  e  talvez  n'aquelle  tempo  o  grande  legiflador  não 
tiveíTe  contra  o  inftituto  de  Santo  Ignacio  as  mefmas  pre- 
venções, que  lhe  armaram  depois  em  damno  irreparável  o 
braço  [vigorofo.  Os  jefuitas,  diga-fe  em  verdade,  efpiavam 
diligentes  cada  novo  talento  que  apparecia,  anciofos  por 
ahflal-o  em  fuás  hofles,  ou  contal-o  fequer  por  alliado. 
Sobradamente  conheciam  os  méritos  de  Sebaftião,  defejariam 
porventura  annuncial-o  entre  os  feus  devotados  parciaes. 

A  diíTimulação  e  a  prudência,  a  difcrição  e  a  tenacidade 
em  faber  efperar  eram  dotes  preeminentes  no  carader  de 
Pombal.  E  próprio  dos  mundanos  efladiftas  o  eleger  os 
alliados,  fegundo  o  demanda  a  conjuncção,  e  aproveitar  os 


1  Oíficio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  Duvernay,  ao  feu  governo, 
de  4  de  agoflo  de  lySo.  Vifconde  de  Santarém,  Quadro  elementar  das  relações 
politicas  e  diplomáticas,  tom.  vi,  pag.  i. 

2  Ofricio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  Duvernay,  de  1 1  de  agoUo 
de  17 5o,  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  2. 


53 

auxílios  dos  próprios,  que  mais  tarde  haverão  de  perleguir 
e  profcrever.  Ora  SebaíHão  de  Carvalho  era  um  d'eft:es  polí- 
ticos aa  vida  aftiva  e  praáhca.  Acceitemol-o  apenas  Ibb  cite 
afpeílo,  e  não  efperemos  da  fua  indole,  do  feu  tempo  e  da 
atmofphera  governativa,  em  que  viveu,  um  afecta  defpren- 
dido  de  todas  as  terrenas  ambições,  rendido  aos  eftriftos 
preceitos  da  ethica  mais  pura,  e  extranho  por  altiva  indigna- 
ção ás  traças  e  artifícios  da  corte  e  da  politica.  Se  foíTe  poli- 
tico ideal,  governando  com  o  Evangelho  n'uma  das  mãos, 
e  a  Imitação  de  Chrijlo  na  outra,  o  feu  caminho  não  era  para 
os  paços  da  realeza,  nem  para  os  gabinetes  do  governo. 
A  fua  efí:rada  era  ou  para  os  myfticos  c  filenciofos  ermos 
do  BuíTaco  ou  para  a  vida  agrefte  c  campefína  da  fua  natal 
e  fertaneja  povoação.  Até  os  máximos  talentos  na  moderna 
arena  parlamentar  para  fubirem  e  crefcerem  e  coroarem  as 
alturas  do  poder,  precifam  de  cortejar.  Os  mais  nobres  cor- 
tejam a  popularidade,  os  medianos  os  chefes  dos  partidos, 
os  menos  efcrupulofos  a  coroa,  fonte  e  difpenfadora  das 
graças  e  mercês.  Sebaftião  de  Carvalho  não  tinha  tribuna, 
onde  patentear  os  feus  talentos,  nem  povo,  a  quem  apre- 
fentar  candidatura.  Tinha  fomente  o  rei,  os  confeííores  e  os 
validos. 

A  rainha  D.  Maria  Anna  parece  que  era,  porém,  a  fua 
mais  efficaz  patrocinadora.  A  rainha  era  auftriaca  e  defde 
Portugal  efl;endia  olhos  faudofos  á  pátria  e  á  dynaftia.  hite- 
reíravam-n'a  em  fummo  grau  os  negócios  do  império.  Car- 
valho preíMra  um  bom  ferviço  a  Maria  Thereza.  A  mulher 
de  D.  João  V  havia  já  facilitado  o  conforcio  de  Sebaftião. 
Tinha  agora  junto  de  fi  a  condeíTa  Daun,  c[ue  por  fer  com- 
patriota lhe  era  mui  acceita.  As  mulheres  foram  em  todos 
os  tempos  excellentes  mediadoras  em  negócios  de  politica  e 
de  ambição.  Excluídas  dos  públicos  oflfícios,  fempre  foi 
n'ellas  inclinação  o  vingarem  a  fua  inferioridade  legal  exer- 


eis 


cendo  o  governo  das  recamaras  e  dos  íalões,  e  ganhando  na 
direcção  da  fociedade  pelas  graças  e  attradivos  da  debilida- 
de feminil  o  que  muitas  vezes  os  homens  não  confeguem 
pelas  traças  e  empenhos  do  feu  máfculo  vigor. 

El-rei  D.  Jole  fuccedeu  no  throno  dos  Braganças  no  i .° 
de  agofto  de  lySo.  No  dia  feguinte  conftituiu  o  feu  miniíte- 
rio,  confervando  como  fecretario  de  eftado  dos  negócios  do 
reino  ao  invalido  Pedro  da  Motta  e  Silva,  e  nomeando  para 
os  negócios  extrangeiros  e  da  guerra  a  Sebaftião  Jofé  de 
Carvalho  e  Mello.  O  abbade  Diogo  de  Mendonça  Corte- 
Real,  fobrinho  do  notável  miniftro  do  mefmo  nome  em 
tempos  de  D.  João  V,  teve  a  repartição  dos  negócios  da  ma- 
rinha e  domínios  ultramarinos,  e  foi  quem  exerceu  o  officio 
de  efcrivão  da  puridade  no  auto  folemne  da  acclamação  e 
juramento  do  monarcha  portuguez. 

O  novo  gabinete,  em  que  Pedro  da  Motta  deveria  repre- 
fentar,  como  tradição  do  antigo  reinado,  o  elemento  confer- 
vador,  achava-fe  formado,  fegundo  a  norma  dos  miniflerios 
portuguezes  na  antiga  monarchia.  Não  era  propriamente  um 
miniíferio  na  moderna  accepção  d'eíl:e  vocábulo,  fenão  antes 
propriamente  o  confelho  do  imperante.  Os  eftadiftas,  que 
n'elle  figuravam,  não  eram  obrigados  a  profeíTar  eguaes  opi- 
niões fobre  os  mais  altos  aíTumptos  da  politica.  Era  quafi 
habitual  que  entre  elles  fe  paífaílem  ao  revez  as  mais  fla- 
grantes diíTidencias  de  doutrina  e  de  aífeições.  O  rei  elegia 
um  fecretario  de  eftado  como  nomeava  um  eftribeiro  mór, 
fem  inquirir  fe  o  novo  eleito  podia  harmonicamente  conviver 
com  os  feus  collegas  do  governo  ou  com  os  outros  oflficiaes 
da  fua  cafa.  As  invejas,  as  intrigas,  as  malquerenças,  as  ten- 
fões  interiores  d'aquelle  mal  combinado  fyftema  de  heterogé- 
neos elementos,  faziam  neceíTariamente  malbaratar  grande 
parte  da  força  útil  e  produífiva  e  os  negócios  padeciam  as 
confequencias  da  aufencia  de  unidade  no  governo.  Um  efpi- 


CM 


55 

rito  vidente,  enérgico,  reformador,  fentia-fe  encerrado  eftrei- 
tamente  n'aquelle  âmbito,  onde  a  largueza  das  concepções 
mal  acharia  efpaço,  em  que  expandir-fe.  Ou  o  eftadifta  emi- 
nente haveria  de  refignar-fe  a  defpachar  na  fua  dourada 
oblcuridade  o  rafteiro  e  quotidiano  expediente,  ou  teria  de 
levantar-fe  tão  llihido  no  animo  e  na  confiança  do  íbberano, 
que  na  altura  a  que  fe  ergueffe,  deixaíTe  abaixo  do  feu  vulto 
a  figura  quafi  invifivel  do  imperante,  e  confi-indiíTe  os  collegas 
obedientes  e  fijbmiíTos  na  turba  dos  feus  efcribas  e  clientes. 
No  leio  do  gabinete  não  era,  porém,  difficil  a  Sebaílião 
de  Carvalho  o  tornar-le  de  fado  o  primeiro  miniítro  de 
D.  Jofé  e  avaíTallar  ao  feu  talento  os  que  com  elle  eram  par- 
tícipes no  poder.  Pedro  da  Motta  era  homem  de  edade  já 
proveóta,  canfado  de  trabalhos,  enfraquecido  pela  doença 
pertinaz,  que  durante  os  últimos  dez  annos  lhe  não  confen- 
tia  laír  de  cafa..  A  fua  cooperação  no  gabinete  era  por  iífo 
quafi  nulla,  e  o  embaixador  francez  d'aquelle  tempo  na  corte 
de  Lifboa  não  lhe  fazia  com  certeza  uma  oftenfa  bem  pun- 
gente, quando  efcrevia  ao  feu  governo  que  Pedro  da  Motta 
nada  mais  era  que  um  autómato'.  Todavia  a  fua  longa 
permanência  no  gabinete,  aonde  entrara  em  lySõ,  e  os  res- 
peitos, que  a  fua  velhice  e  lealdade  mereciam  ao  novo  rei, 
obrigavam  Sebaftião  de  Carvalho  a  ter  com  o  feu  collega 
obfequiofas  deferências  e  a  confultal-o  com  frequência  nos 
negócios  do  govenio-.  O  abbade  Diogo  de  Mendonça  era 
antes  um  primorofo  cortezão  que  um  eftadifta  mediano, 
mais  zelofo  e  diligente  em  amimar  a  innata  propenfão  de 
D.  Jofé  para  as  diverfões  e  monterias,  que  esforçado  em 


"  Memoria  do  conde  de  Bachi,  embaixador  de  França,  ao  leu  miniftro  dos 
negócios  extrangeiros,  de  5  de  fcptemhro  de  1754.  Qiiadro  elementar,  tom.  vi, 
pag.  47. 

2  Officio  do  conful  francez  Duvcrnay  ao  leu  governo,  de  3o  de  novembro 
de  1751.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  18. 


(|3 


1  f 


56 

alTignalar  por  enérgicas  reformas  a  fua  breve  paíTagem  no 
poder ' . 

Sebaftião  de  Carvalho  fobreexcedia  os  feus  collegas  de 
toda  a  immenfa  altura  do  leu  talento,  da  fua  longa  e  illumi- 
nada  experiência,  e  d'eíte  dote  ingenito,  d'efta  perfpicaz  in- 
tuição, com  que  fe  nafce  general  ou  eftadifta,  com  que  defde 
o  principio  da  carreira  fe  alcança  no  campo  de  batalha  uma 
viftoria,  como  Conde  ou  Buonaparte,  ou  nos  gabinetes  do 
governo  um  civico  triumpho,  como  Sully  e  Richelieu. 

Sebaftião  de  Carvalho  não  era  homem,  que  depois  de 
tomar  nas  cumiadas  a  fua  primeira  pofição,  fe  contentaífe 
em  a  defender  paíTivamente.  Doia-lhe  no  coração  o  eftado 
laftimofo  de  Portugal.  Ardia-lhe  no  animo  o  zelo  fervorofo 
de  o  reformar.  Sentia-fe  com  pullb  para  obras  tão  gigantes, 
que  feriam  quafi  nova  edificação  fobre  ruinas,  como  defbra- 
var  de  charneca  pedregofa  apoz  milhares  de  annos  de  mani- 
nha. Os  miniftros,  que  tinha  de  companheiros,  eram  homens 
de  entendimento  mediano,  incapazes  de  voos  aherofos;  um 
por  velho,  enfermo,  acoftumado  a  um  regimen,  onde  a  arte 
de  governar  fe  refolve  em  impedir  os  progreífos  nacionaes, 
o  outro  com  ambições  fem  proporção  com  a  fua  capacidade 
e,  como  fuccede  fempre  com  os  vaidofos  e  medíocres,  fof- 
frendo  de  maus  olhos  o  talento  fuperior. 

Antes  que  o  novo  legiílador  podeífe  pôr  em  obra  os  vas- 
tiíTimos  planos,  que  porventura  trazia  já  traçados  na  mente 
penfadora,  tinha  de  porfiar  com  grandes  contradicções.  Não 
era  o  mais  favorável  e  feguro  o  theatro,  onde  tinha  de 
exercitar-fe  a  fua  indómita  energia.  Para  que  um  incanfavel 
reformador  podeífe  pôr  o  peito  com  vantagem  á  empreza  de 
infufflar  novos  efpiritos  n'uma  velha  monarchia  decadente, 


'  Officio  do  conful  de  França  ao  feu  governo,  de  3o  de  novembro  de  \-jbi. 
Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  ig. 


abatida,  quafi  a  pique  de  cair  na  ultima  ruina,  era  neceífario 
que  em  meio  do  ambiente  corrompido,  onde  havia  de  refpi- 
rar,  tiveíTe  algumas  propicias  condições,  que  lhe  ferviíTem 
de  valiofo  adjutorio:  um  rei  illuftrado,  zelofo,  empenhado 
fer^'orofamente  em  expiar  com  generofos  facrificios  os  erros 
e  abulbs  do  reinado  antecedente  e  em  intereíTar-fe  com  pro- 
funda finceridade  n'elta  quafi  rellirreiçáo  da  fua  pátria.  Era 
alem  d'ilTo  neceíTario  que  as  peflbas  dominantes  no  animo  e 
na  valia  de  D.  João  V,  deixaíTem  vacante  o  feu  logar  a  novos 
elementos  congruentes  com  as  idéas  de  larga  reformação. 
Cumpria  ademais  que  fe  as  claíTes  mais  poderofas  contradic- 
taíTem  o  novo  teor  e  norma  do  governo,  as  turbas  popula- 
res, pelo  inítindo  do  feu  próprio  intereíTe,  circumdallem  o 
audaz  legillador  com  uma  atmofphera  de  lenlata  opinião. 
Todas  eflas  circumftancias  eftavam,  porém,  mui  longe  de 
exiftirem  n'aquella  conjundura. 

O  rei  não  tinha  um  fó  dos  eminentes  predicados,  que 
podem  Juftificar  o  capricho  da  fortuna,  ao  confiar  pelo  acafo 
do  nafcimento  a  um  homem  predeftinado  a  fuprema  e  irres- 
ponfavel  direcção  dos  léus  compatriotas.  O  feu  eí  piri  to  não 
rafgava  largos  voos  e  a  fua  illuftração,  defcurada  fegundo  o 
ufo  da  cafa  de  Bragança,  não  podia  contrapefar  a  mingua 
dos  talentos. 

No  rei  a  timidez  completava  a  irrelblução. 

As  diverfões  e  palTatempos,  entre  elles,  principalmente 
as  operas,  as  caçadas  e  monterias,  conítituiam  a  fua  mais 
dileda  occupação'.  A  rainha  participava  com  el-rei  nas  mes- 
mas venatorias  predilecções  e  na  mefma  frivolidade  corte- 
zan^  N'efte  ponto  parecia  continuar,  fem  a  magnificência  do 


>  OfRcio  do  conful  francez  Duvernay  para  o  feu  governo,  de  7  de  novembro 
de  1752.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  24. 

2  Memoria  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  para  o  feu  governo,  de  5 
de  feptembro  de  1754.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  47. 


eis 


cl» 


58 

reinado  precedente,  a  leviana  complacência  com  as  munda- 
nas deleitações.  O  embaixador  francez  dizia  ao  feu  governo 
que  era  lem  egual  a  diíTipação,  em  que  vi\ia  a  curte  por- 
tugueza'.  O  thefouro  empobrecido,  apefar  da  aftluencia 
inexhaurivel  do  oiro  do  Brazil,  mal  podia  fatisfazer  aos  pro- 
digiofos  difpendios,  com  que  o  rei  e  a  rainha  tornavam  apra- 
ziveis  e  fauftofas  as  fuás  diverfões^  Ainda  mefmo  defcon- 
tando  largamente  nas  exageradas  proporções,  a  que  os 
teítemunhos  contemporâneos  elevam  os  gaftos  do  rei  e  da 
rainha  nas  fuás  continuas  recreações,  podemos  acreditar  que 
os  régios  appetites  deíTangravam  com  frequência  as  quafi 
defertas  arcas  do  thefouro-'.  O  embaixador  francez  não  fe 
alongava  por  extremo  da  verdade,  quando  aífeverava  ao  feu 
governo  que  á  indolente  corte  portugueza  mais  a  preoccu- 
pava  a  opera  italiana  e  o  feu  cantor  Cafarelli  do  que  os  gra- 
viíTimos  fucceífos  que  no  mundo  fe  paífavam"'. 

As  influencias,  que  haviam  predominado  em  tempos  de 
D.  João  V,  não  eftavam  ainda  inteiramente  debelladas.  A  rai- 
nha D.  Maria  Anna  de  Auftria,  que  pela  fua  extremada  pie- 
dade não  deveria  fer  harto  propicia  a  reformas  e  innovações 
no  poder  ecclefiaftico,  tinha  acceífo  aos  confelhos  de  feu  filho, 
que  com  ella  conferia  em  grande  parte  os  negócios  do  gover- 


'  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  ao  feu  governo  de  i3  de 
fevereiro  de  1 753,  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  28.  —  Officio  do  mefmo  embai- 
xador, de  27  de  fevereiro  de  1753,  ibid.,  pag.  3o. 

2  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  17  de  janeiro  de  1754: 
«Que  a  familia  real  partira  para  Salvaterra  e  deixara  o  erário  fem  vintém».  Quadro 
elementar,  tom.  vi,  pag.  42. 

3  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  21  de  janeiro  de  1/55: 
«Que  el-rei  partira  para  Salvaterra  e. . .  aquellas  jornadas  eramfobremaneiradis- 
pendiofas ;  que  el-rei,  eftando  em  Palma  fem  guardas,  fem  cafa,  nem  pagens  e  fo- 
mente com  a  rainha,  gaitara  em  quinze  dias  quinhentos  mil  cruzados".  Quadro 
elementar,  tom.  vi,  pag.  5i. 

4  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  29  de  abril  de  1755.  Qua- 
dro elementar,  tom.  vi,  pag.  45. 


«I» 


59 

no.  Fr.  Gafpar  da  Encarnação,  faudofo  d'aquelles  áureos 
tempos,  em  que  o  leu  francifcano  burel  fe  fazia  obedecer  da 
regia  purpura,  não  via  com  bons  olhos  o  novo  confelheiro 
do  Ibberano'.  Alexandre  de  Gufmão,  o  antigo  fecretario 
particular  de  D.  João  V,  não  continha  o  feu  animo  irrequieto 
nos  limites  de  uma  grave  moderação,  nem  deixava  ociofos 
os  feus  grandes  talentos  de  politico,  empregando-os  n'uma  es- 
pécie de  furda  oppofição".  A  alta  nobreza.  Já  defde  os  prin- 
cípios fufpeitára  que  em  Sebaftião  de  Carvalho  não  teria 
um  ertrenuo  dcfenfor.  Eftava  acoftumada  a  ingerir-fe  indire- 
ctamente no  governo,  não  manifeftava  uma  notável  affeição, 
a  quem  não  confentiria  facilmente  na  partilha  do  poder  \  As 
machinações  e  os  meneios  encobertos  ou  hoflis  não  fahavam 
em  redor  do  monarcha  inexperiente  e  irrefoluto ''. 

O  povo  nos  começos  de  um  reinado  novo  faudava  apenas 
a  novidade,  porque  fempre  nos  povos  de  fervente  imaginação 
é  bemvindo  e  feítejado  o  que  é  defconhecido.  Os  longos  e 
monótonos  reinados,  como  fora  o  de  el-rei  D.  João  V,  fatigam 
e  aborrecem  finalmente  como  um  drama  de  eflirada  contex- 
tura. Mas  os  applaufos  populares  á  fituação  inaugurada  não 
fignificavam  defejos  vehementes  de  radical  e  ampla  refor- 
mação. Seria  um  erro  o  prefuppor  que  a  geral  opinião  era 
adverfa  ao  predomínio  clerical,  e  que  o  tribunal  da  inquifição 
e  a  companhia  de  Jefus  fó  na  corte  encontrariam  favor  e  pa- 
trocínio. A  fuperftição,  o  fanatifmo,  a  ignorância  alaflravam-fe 
no  paiz  como  um  véu  efpeíTo  e  impenetrável  á  luz  da  razão 


1  Officio  do  conful  francez,  de  7  de  novembro  de  1752.  Quadro  elementar, 
tom.  VI,  pag.  2  5. 

2  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  8  de  janeiro  de  1754. 
Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  40. 

?  Officio  do  conful  francez,  de  3o  de  novembro  de  1751.  Quadro  elemen- 
tar, tom.  VI,  pag.  18. 

4  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  27  de  dezembro  de  1 752. 
Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  25. 


CM 


6o 

e  da  fciencia.  Sob  os  governos  inquifitoriaes  e  obfcurantes 
pôde  ás  vezes  o  povo  murmurar;  mas  não  fabe  refleftir. 
Taes  eram  os  elementos,  de  que  difpunha  Sebaftiáo  de 
Carvalho  ao  tentar  os  primeiros  paíTos  na  fua  carreira  minis- 
terial. Era  tão  defanimadora  e  irremediável  ao  parecer  a  fi- 
tuação  de  Portugal,  que  não  feriam  demafiados  os  máximos 
esforços  e  talentos  para  o  refurgir  e  animar.  Todos  quantos 
órgãos  fe  neceílitam  no  complexo  mechanifmo  do  governo, 
eftavam  em  tão  laftimofo  eflado,  que  não  era  fácil  difcernir 
a  qual  d'elles  primeiro  acudira  com  providencias  efficazes. 
A  adminiftração  deforganifada;  os  rendimentos  públicos  es- 
caíTos  e  lifados  nas  mãos  dos  exadores;  o  thefouro  quafi 
exhauflo ' ;  o  exercito  reduzido  á  mais  deplorável  condição ; 
a  marinha  quafi  nulla;  a  defeza  nacional  inteiramente  des- 
prezada. 

Se  durante  os  primeiros  annos  do  reinado  precedente  nas 
relações  de  Portugal  com  os  governos  extrangeiros,  principal- 
mente com  as  grandes  potencias  europêas,  mais  de  uma  vez 
um  rafgo  de  altiva  dignidade  havia  rememorado  os  velhos 
brios  portuguezes,  nos  tempos  derradeiros  de  D.  João  V, 
a  nação  caíra  novamente  na  fubferviencia  a  extranhos  orgu- 
Ihofos.  Da  inhabilidade  e  fraqueza  governativa  de  D.  João  V 
havia  faido  como  o  frutílo  mais  damnofo  o  tratado  de  1 3  de 
janeiro  de  lySo,  em  que  Portugal  cedera  á  Hefpanha  a  coló- 
nia do  Sacramento,  e  que  durante  o  reinado  inteiro  de 
D.  Jofé  foi  a  femente  ou  o  pretexto  de  acrimoniofas  difllden- 
cias  entre  as  duas  coroas  peninfulares. 

Em  taes  e  tão  adverfas  condições  principiava  Sebaftião 
de  Carvalho  o  longo  e  memorável  minifterio.  As  fuás  facul- 


>  Os  rendimentos  públicos  não  chegavam  n'aquelle  tempo  a  dez  milhões 
de  cruzados,  fegundo  uma  memoria  enviada  pelo  embaixador  francez,  conde  de 
Bachi,  ao  feu  governo  em  1754.  Qiiadro  elementar,  xora.  vi,  pag.  49. 


HÍ« «-V^ 

6i 

dades  eminentes,  fafonadas  pela  experiência,  não  eram,  po- 
rém, inferiores  á  empreza,  que  tentava.  Logo  defde  os  pri- 
meiros dias  de  miniftro  a  energia  do  feu  animo  fe  defen- 
tranhava  em  úteis  providencias.  Era  activo,  indefeíTo  o  leu 
trabalho.  Os  próprios,  a  quem  era  mal  acceito  ou  fufpeitofo, 
rendiam  efpontaneo  teítemunho  dos  feus  altos  dotes  de  eftadis- 
ta  c  da  fua  incanfavel  applicação  aos  negócios  do  governo". 

Um  efpirito  luperiormente  illuminado,  quando  fe  acom- 
panha de  uma  enérgica  vontade  e  de  uma  audácia  inque- 
brantável, fempre  alcança  levantar-fe  acima  do  vulgar.  A 
pouco  trecho  depois  de  nomeado  para  o  officio  miniílerial 
já  o  vulto  de  Carvalho  começava  a  enlbmbrar  as  figuras  dos 
coUegas,  affim  como  uma  eítatua  coloflal  deixa  quali  imper- 
ceptíveis os  pequenos  medalhões  que  lhe  jazem  aos  pés  ex- 
ornando  o  pedeftal. 

Ainda  não  era  decorrido  largo  tempo  após  a  fua  entrada  no 
minifterio  e  já  era  voz  commum  que  Sebaftião  de  Carvalho 
conquiftaria  em  maior  grau  que  os  feus  coUegas  a  confiança 
do  foberano.  Era  no  feio  do  gabinete  o  vulto  principal, 
e  dirigindo  os  negócios  políticos  da  nação,  já  não  reconhecia 
egual  nem  fuperior-.  Deixando  apenas  aos  feus  collegas  os 
negócios  de  puro  expediente,  era  elle  quem  realmente  prefidia 
á  adminiítração  e  á  politica  em  todos  os  aífumptos  importan- 


'  "O  povo  fazia  juftiça  aos  feus  talentos,  e  até  a  própria  nobreza,  que  o  fus- 
peitava  de  querel-a  arredar  o  mais  poffivel  do  governo.»  Officio  do  conful  fran- 
cez  para  o  feu  governo,  de  3o  de  novembro  de  1751.  Qiiadro  elementar,  tom.  vi, 
pag.  18. 

-  «Sebaftião  Jofé  de  Carvalho,  fecretario  de  eltado  dos  negócios  extran- 
geiros  e  da  guerra. . .  podia  fer  confiderado  como  o  principal  miniftro;  infati- 
gável no  trabalho,  adivo  e  expedito,  tinha  conquiftado  a  confiança  de  el-rei,. . . 
e  no  que  refpeitava  á  direcção  dos  negócios  políticos,  ninguém  mais  a  tinha.» 
Officio  do  conful  de  França  para  o  feu  governo,  de  3o  de  novembro  de  ijSi.  Qua- 
dro elementar,  tom.  vi,  pag.  18.  —  Cf  officio  do  mefmo  conful,  de  26  de  janeiro  de 
1751.  Ibid.,  pag.  1 1 1. 

eis  ftM 


62 

tes  internacionaes  ou  interiores.  Para  acudir  ao  defpacho  de 
mil  queftões  e  dependências  em  reino  carecente  de  remédio 
em  tantas  e  tão  graves  enfermidades  fociaes,  a  fortiíTima 
tempera  do  feu  animo  e  a  fua  robufta  conftituição  não  fica- 
vam inferiores  á  multiplicidade  e  afpereza  do  trabalho.  Logo 
defde  os  feus  primeiros  paíTos  no  governo  fe  põe  de  mani- 
feíto  que  á  frente  do  poder  eftá  realmente  um  eftadiíta, 
infpirado  em  idéas  e  praxes  mui  diíferentes  das  que  haviam 
affignalado  os  frouxos  miniíterios  do  monarcha  devoto  e  ga- 
lanteador. 

Não  é  n'eítes  primeiros  annos  de  governo  que  Sebaflião 
de  Carvalho  revela  as  fuás  mais  eminentes  faculdades  e  fe 
levanta  defde  logo  ao  nivel  dos  mais  illuftres  eftadiftas.  Será 
mais  tarde,  quando  extraordinárias  circumftancias  exigirem 
todo  o  esforço  de  talento  e  de  energia,  que  o  infigne  refor- 
mador apparecerá  com  toda  a  majeftade  e  refplendor  do 
rniniftro,  que  domina  ao  mefmo  paífo  os  acontecimentos  e 
os  homens,  o  rei  e  a  nação,  a  adverfidade  e  a  fortuna.  No 
tempo,  que  vamos  agora  contemplando,  o  previdente  legiíla- 
dor  prova  e  enfaia  a  fua  aéfividade  em  reformas  e  negócios, 
que  não  têem  ainda  o  vuho  e  a  importância  dos  que  mais 
tarde  o  terão  de  aíTignalar  ao  aífombro  e  ao  terror.  O  campo, 
onde  trabalha,  ainda  não  confente  ampliíTima  cultura.  Ainda 
Sebaftião  de  Carvalho  não  impera  omnipotente  no  animo 
do  rei.  Ainda  não  fe  vê  defapreífado  de  todas  as  influencias 
rivaes  e  de  todas  as  contradicções  palacianas.  Ainda  não  pôde 
tomar  nas  mãos  a  argilla  informe  de  um  paiz  inculto  e  arrui- 
nado, e  modelal-a  a  leu  talante,  fegundo  o  archetypo  ideal, 
que  o  feu  efpirito  concebeu  e  madurou.  Nos  feus  primeiros 
aftos  de  governo  é  como  um  grande  artifta,  que  na  officina 
ainda  eítreita  e  mal  illuminada  experimenta  o  efcopro  e  o 
cinzel,  e  exercita  em  efboços  imperfeitos  o  eftro  na  conce- 
pção e  a  deftreza  no  trabalho.  É  a  epocha  do  eftudo  e  in- 


^ 


bò 


quirição.  É  o  architecto  contrafeito,  que  procede  ás  mais 
urgentes  reparações  no  vetufto  edifício  focial,  para  que  não 
venha  a  terra  derribado,  emquanto  apparelha  a  nova  traça 
com  que  íblidamente  o  ha  de  reííaurar. 

Os  léus  cuidados  mais  inílantes  fão  defde  logo  dedicados 
ao  que  elle  reputava  juílamente  a  primeira  neceffidade  e  con- 
dição de  um  povo  independente  e  policiado.  Trabalhar,  pro- 
duzir, commutar,  refgatar-íe  quanto  poffivel  da  tutela  econó- 
mica e  politica  de  extranhos,  crear  pelo  effeito  da  própria 
adividade  a  maior  Ibmma  de  produclos,  aproveitar  da  ma- 
neira mais  dilcreta  os  recurfos  naturaes,  eis  ahi  o  problema 
capital,  que  uma  nação  ha  de  forçolamente  relblver,  fe  pre- 
tende infcrever-fe  honrolamente  na  liíta  dos  povos  civilifados 
e  engrandecer-fe  pelas  conquiftas  incruentas,  mas  as  únicas 
reaes  e  verdadeiras,  da  intelligencia  e  do  trabalho. 

A  induftria,  que  nunca  em  Portugal  fora  florente,  chegara 
a  decair  de  tal  feição,  que  até  dos  mais  humildes  artefados 
fe  provia  nos  mercados  exteriores. 

A  agricultura,  avexada  ao  mefmo  paíTo  pelas  ablurdas 
e  iníquas  leis  agrarias,  pela  irracional  conftituição  da  proprie- 
dade territorial,  e  pelo  defleixo  e  ignorância  das  claíTes  agri- 
cultoras, obrigava  Portugal  a  pedir  aos  extranhos  perenne- 
mente  que  lhe  enviaíTem  em  grande  parte  os  cereaes  de  que 
fe  nutria.  O  commercio,  que  em  tempos  não  remotos  fizera 
de  Portugal  o  grande  empório,  eftava  quafi  de  todo  concen- 
trado nas  mãos  dos  extrangeiros.  O  immenfo  território,  que 
portuguezes  tinham  avaífallado  em  todo  o  globo,  quando 
portuguez  e  conquiftador  eram  fynonymos,  deixavam-n'o 
governos  indolentes  defaproveitado  para  os  lucros  mercantis. 
O  oiro  e  os  diamantes  do  Brazil  faldavam  as  prodigalidades 
realengas  e  a  quieta  ociofidade  nacional.  Portugal  recortado 
languidamente  nos  coxins,  onde  em  efpirito  e  corpo  dormi- 
tava, alongava  os  olhos  cubiçofos  para  as  terras  auríferas, 


eis 


^4 

que  julgava  inexhauriveis,  e  á  lemelhança  dos  feus  morgados 
foberbos  e  preguiçofos,  defdenhando  o  trabalho  por  fervil,  e 
a  induftria  por  plebêa,  efperava  a  nau  dos  quintos  com  a 
anciofa  expeítação,  com  que  a  plebe  romana  faminta,  mas 
altiva,  aguardava  as  naves  onerarias  carregadas  de  trigos 
extrangeiros. 

O  primeiro  e  mais  urgente  dos  problemas  governativos 
era  pois  reanimar  a  induftria  e  o  trabalho,  produzir  e  fixar  a 
riqueza  em  Portugal.  As  foluçóes,  com  que  o  miniftro  bufca 
fatisfazer  efta  queftão,  nem  fempre,  confideradas  á  luz  da 
moderna  fciencia  focial,  merecem  elogio. 

E  porém  fempre  louvável  a  intenção.  Não  era  n'aquelle 
tempo  ainda  formada  como  corpo  doutrinal  e  pofitivo,  a  eco- 
nomia politica.  Vogavam  como  axiomas  muitas  doutrinas, 
que  hoje  fe  condemnam  por  erróneas  e  funeftas  á  profperidade 
nacional.  O  fyftema  mercantil,  fundado  na  falfa  interpretação 
das  grandezas  económicas  de  Veneza,  de  Génova,  de  Hol- 
landa,  de  Portugal,  quando  fenhor  do  commercio  no  Oriente, 
dominava  feguro  nos  efpiritos.  A  nação,  que  abforvia  e  con- 
centrava a  maior  fomma  de  metaes  preciofos,  era  julgada  a 
mais  opulenta  e  a  mais  feliz.  Trafladando  para  o  governo 
dos  eftados  a  máxima  fundamental  da  avareza  inerte  e  cubi- 
çofa,  cifrava-fe  no  oiro  toda  a  riqueza  das  nações.  Era  Por- 
tugal um  dos  eftados,  que  a  natureza  mais  favorecera  com 
efta  benção  apparente  e  enganadora.  Mas  confumindo  o  paiz 
as  mercadorias  extrangeiras,  principalmente  as  inglezas,  e 
não  tendo  como  retorno  produdos  fuíficientes  da  fua  indus- 
tria ou  do  feu  folo,  o  oiro  filtrava-fe  naturalmente  para  fora 
de  Portugal  atravez  do  crivo  das  feveras  prohibições.  A  cor- 
rente duplicada  dos  extranhos  artefaéfos  e  das  efpecies  pre- 
ciofas,  em  virtude  das  leis  económicas,  tão  foberanas  e  impe- 
riofas  como  a  lei  da  gravidade,  refiftia  ás  mais  feveras 
comminações.    O   contrabando    por   uma    fatal  neceíTidade 


CM 


65 

reftitue  o  equilíbrio,  quando  a  cega  legillação  vem  pertur- 
bal-o  com  as  luas  inconfideradas  reftricções. 

Carvalho  com  a  penetrante  intuição  do  grande  talento, 
que  prefente  e  adivinha,  alcançava  já  romper  os  efpeíTos 
nevoeiros  das  velhas  monarchias,  e  antecipar-fe  ás  modernas 
e  verdadeiras  concepções  da  economia  Ibcial.  As  luas  máxi- 
mas juftas  e  concordantes  com  a  pura  theoria  apparecem  já 
mefcladas  com  os  erros  económicos.  Por  mais  vidente  que 
um  elpirito  fe  alteie,  nunca  pôde  inteiramente  libertar-fe  dos 
preconceitos  do  tempo,  em  que  viveu.  Carvalho  admittia 
que  uma  nação,  que  das  outras  depende  para  a  lua  própria 
fubfiítencia,  bem  depreíTa  cairá  na  fervidão,  e  fera  a  fácil 
preza  de  um  vulgar  conquiflador.  ProfeíTando  claramente 
que  fó  a  agricultura  e  o  trabalho  fabril  conflituem  a  felicida- 
de focial  e  lao  o  firme  fundamento  da  lua  permanência, 
Carvalho,  diíTentindo  dos  erróneos  princípios  confagrados 
no  reinado  antecedente,  aflevera  que  fe  uma  nação  concentra 
unicamente  nas  minas  do  oiro  e  prata  a  fua  predilecção  e 
o  feu  esforço,  terá  necelfariamente  de  perecer.  Exaggerando 
fobremaneira  as  próprias  verdades  económicas,  acredita  que 
os  metaes  preciofos  lao  apenas  riquezas  fidlicias  e  apparen- 
tes,  os  feus  jazigos  thefouros  funeíllífimos,  e  os  eftados,  que 
os  poífuem,  apenas  os  feus  meros  diftribuidores. 

Se  Carvalho,  porém,  não  confiderava  o  oiro  do  Brazil 
como  o  efplendido  cimento  da  profperidade  e  riqueza  nacio- 
nal, antes  á  fua  Irrefiftivel  feducção  attribuia  a  decadência  e 
o  lethargo  do  trabalho  no  folo  e  na  ofíicina,  via  com  maus 
olhos  que  a  Inglaterra  cubiçofa,  a  troco  da  fua  alllança  nem 
fempre  cordial  e  dos  feus  auxílios  mais  de  uma  vez  ineffica- 
zes  nos  tranfes  mais  dlfficeis,  dominaífe  Portugal  pelo  feu 
ampllíTuTio  commercio  e  pela  fua  politica  ambiclofa  para  com 
as  menos  poderofas  e  enérgicas  nações.  Portugal  era  na  phrafe 
do  eftadlfta  como  um  vafto  amphltheatro,  em  que  os  portu- 


e|» 


66 

guezes  eram  apenas  efpcdadores,  lem  que  lhes  folTe  permit- 
tido  participar  na  reprefentação.  Os  inglezes,  dizia  o  miniftro 
de  D.  Jofé,  monopolifavam  de  todo  o  ponto  o  commercio 
do  Brazil.  Nada  havia  n'elle  de  portuguez,  fenão  o  nome. 
Em  meio  do  feu  immenfo  trafico,  que  parecia  opulentar  e 
engrandecer  a  Portugal,  a  fua  força  decaía  a  cada  paíTo,  e  os 
inglezes  embolfavam  os  proventos  das  extenfas  grangearias. 
As  allianças,  continuava  o  eftadifta,  fão  apenas  vinculos  inte- 
reíTeiros  e  egoiítas,  porque  o  eítado  que  para  ellas  contribue 
com  o  máximo  poder,  efpera  também  o  máximo  proveito. 
A  dependência  de  Portugal  a  refpeito  da  Inglaterra  era,  no 
fentir  do  reformador,  quafi  tão  vexatória  e  oppreíTiva,  qual 
fora  a  lujeição  aos  reis  de  Hefpanha.  Emancipar  o  feu  paiz 
da  tutela  politica  e  mercantil  das  grandes  potencias  euro- 
pêas,  e  principalmente  da  higlaterra,  é  o  penfamento,  que 
tranfparece  defde  os  feus  primeiros  tempos  de  minirtro  nos 
ados  legiflativos  de  Carvalho. 

D'ahi  procedem  os  rigores  inefiíicazes,  com  que  pretende 
cohibir  a  illegal  exportação  do  oiro,  e  as  acertadas  provi- 
dencias, com  que  logo  de  principio  fe  confagra  a  crear  de 
novo  a  induftria  nacional,  a  favorecer  a  agricultura,  a  infuf- 
flar  novos  efpiritos  no  commercio  quafi  preítes  a  extinguir- 
fe.  Tornar  Portugal  independente  dos  extranhos,  na  vida 
económica  e  politica,  tanto  quanto  o  pôde  permittir  a  har- 
monia internacional,  eis  ahi  a  fua  confiante  e  larga  afpira- 
ção.  E  por  iffo  que  as  fuás  primeiras  providencias  fifcaes  fe 
encaminham  a  facilitar  e  proteger  o  trafico  das  principaes 
produções  agrarias  do  Brazil".  E  por  ilTo  que  bufca  prote- 
ger a  induftria  das  fedas,  outr'ora  florefcente,  promovendo 
com  eftimulos  e  prémios  valioíbs  a  plantação  das  amoreiras 


'   Regimento  dos  direitos  do  tabaco  e  do  aíTucar,  de  i6  de  janeiro  de  !~5i. 
Decreto  de  27  de  janeiro  do  mefmo  anno.  Decreto  de  i5  de  dezembro  de  1752. 


HC»- -<í>-^ 

e  prohibindo  leveramente  a  exportação  da  matéria  prima'; 
é  n'eíre  intento  que  fe  empenha  em  fomentar  a  refinação  do 
aíTucar^,  concedendo  notáveis  privilégios  a  Henrique  Schmitz 
e  prohibindo  a  importação  extrangcira;  é  por  iíTo  que  con- 
cede a  todos  a  plena  liberdade  de  defcobrirem  novas  minas 
de  prata  e  outros  metaes  na  America  portugueza^. 

As  vaftiffimas  colónias  de  Portugal  no  antigo  e  novo 
mundo,  tão  fecundas  e  opulentas  pela  próvida  mão  da  na- 
tureza, tão  defaproveitadas  e  ociofas  pela  incúria  dos  gover- 
nos, attrahem  defde  logo  a  attenção  do  folicito  legiflador. 

Portugal  havia  perdido  para  fempre  a  fupremacia  mer- 
cantil no  Oriente.  O  trafico  da  Afia,  reduzido  a  diminutas 
proporções,  atteítava  a  indolência  de  uma  nação,  que  abrira 
aos  demais  povos  europeus  o  caminho  da  índia  oriental. 
Não  era  já  poffivel  evocar  um  paíTado  riquiffimo  de  glorias 
e  não  menos  de  grangeios  commcrciaes.  Porém  o  patriotifmo 
de  Carvalho,  illufo,  mas  não  menos  fincero  e  fervorofo,  ima- 
ginou que  o  monopólio  alcançaria  o  que  a  liberdade  mer- 
cantil não  poderá  conquiftar.  E  em  verdade  não  era  indes- 
culpável o  erro  do  minifiro.  Se  o  campo  aberto  largamente 
á  concorrência  e  ao  livre  tráfego,  o  deixava  a  inércia  na- 
cional cada  vez  mais  decadente  e  infecundo,  porventura  lo- 
graria o  monopólio  a  miraculofa  refiarreição  do  commercio 
oriental.  Eis  ahi  a  explicação  do  exclufivo  decretado  por  dez 
annos  com  privilégios  quafi  majeftaticos  em  favor  do  opulen- 
to contratador  do  tabaco,  Feliciano  Velho  Oldemberg,  e  as 
efperanças  deluforias  de  que  efte  mercador  faria  reflorir  o 
trato  portuguez  na  índia  e  na  China*. 


'  Lei  de  20  de  fevereiro  de  1752. 

2  Decreto  de  14  de  julho  de  175  i.  Decreto  de  i3  de  janeiro  de  1755.  Pro- 
vifão  regia  de  24  de  maio  de  1753. 

3  Alvará  de  4  de  maio  de  lyóS. 

4  Decreto  de  16  de  março  de  1753. 

4»  «Jí 


68 

As  inexhauriveis  riquezas  da  America,  haftantes  a  crear  e 
nutrir  um  grande  império,  ferviam  unicamente  a  enriquecer 
os  inglezes,  em  cujas  mãos  ambiciofas,  mas  enérgicas,  fe  en- 
feixavam as  emprezas  commerciaes. 

Não  bailava  declamar  contra  a  britannica  avareza,  que 
era  a  confequencia  juftiflima  e  natural  da  adtividade  e  do 
talento  mercantil  da  Gran-Bretanha,  e  da  conhecida  negação 
de  Portugal  para  os  intentos  económicos  e  para  o  trabalho 
produótor.  Se  a  America,  entregue  apenas  á  liberdade  e  á  es- 
téril iniciativa  dos  indivíduos,  é  como  um  immenfo  e  bravio 
latifúndio,  invoque-fe  como  eftimulo  e  remédio  o  privilegio 
commercial.  Contraponha-fe  ao  monopólio  natural  de  uma 
nação  adiva  e  induftriofa  o  monopólio  artificial  de  uma  po- 
derofa  companhia.  Tal  foi  em  parte  a  infpiração  que  produ- 
ziu a  companhia  do  Grão-Pará  e  Maranhão  inftaurada  pelo 
impulfo  governativo  e  bafejada  com  a  mais  larga  protecção 
e  os  máximos  favores  e  privilégios".  Era  convidativo  e  tenta- 
dor o  exemplo  da  celebrada  companhia  das  índias,  fob  cujos 
aufpicios  fe  confolidára  e  engrandecera  o  império  britannico 
no  Oriente.  Outras  menos  famofas  em  diverfas  nações  com- 
merciaes eftavam  egualmente  incitando  o  legiflador  a  confiar 
ás  poderofas  aíTociações  o  trato  mercantil  nas  fecundas  re- 
giões americanas.  Era  o  penfamento  que  no  feculo  antece- 
dente tinha  forrido  como  eííicaciífimo  recurfo  para  cultivar 
fruftuofamente  em  proveito  da  metrópole  as  colónias  portu- 
guezas.  Era  ao  mefmo  paíTo  a  primeira  tentativa  de  natu- 
ralifar  em  Portugal  eftes  poderofos  inftrumentos  económi- 
cos, fem  os  quaes  feriam  impoíTiveis  as  emprezas  coloíTaes, 
que  pela  cooperação  dos  capitães  e  dos  esforços  colledivos 
operaram  os  milagres  portentofos  da  prefente  civilifação.  Se 
nos  tempos  de  agora  fe  deixaíTe  ao  alvedrio  de  cada  um  o 


■   Alvará  de  7  de  junho  do  1755. 


conftruir  e  grangear  os  caminhos  de  ferro,  que  exigem  capi- 
tães mui  fuperiores  aos  do  mais  opulento  particular,  as  na- 
ções do  mundo  policiado  ainda  hoje  eftariam  condcmnadas 
aos  lentos  e  difpendiofos  meios  de  communicação  e  de  trans- 
porte. Sem  a  poderofa  alavanca  das  grandes  companhias  to- 
das as  emprezas  induftriaes  de  largo  tomo  feriam  impoíTiveis 
ou  illuforias.  Ao  principiar  a  adminiítração  de  Sebaftião  de 
Carvalho,  o  commercio  e  o  grangeio  dos  vaftiífimos  territó- 
rios portuguezes  na  America  não  achava  nos  indivíduos 
particulares  a  refolução  e  o  cabedal,  com  que  podeíTem  tor- 
nar-fe  proveitofas  e  fecundas  as  riquezas  do  Novo  Mundo. 
A  liberdade  é  o  principio  falutar,  de  que  dimanam  todas  as 
profperidades  e  progreíTos  de  uma  nação,  que  a  fabe  ou  a 
pôde  aproveitar.  A  liberdade  fó  por  fi  é  apenas  um  ambiente, 
mas  para  fer  fruftuofa  e  produftiva  é  neceíTario  que  com  ella 
fe  aíTocie  a  educação  e  a  energia  peíToal.  E  enorme,  é  vivifi- 
cante a  maíTa  da  atmofphera,  mas  é  precifo  ter  órgãos  accom- 
modados  para  ahi  viver  e  refpirar.  Ora  o  povo,  que  D.  João  V 
legava  ao  feu  herdeiro,  era  um  povo  incapaz  de  acção  indi- 
vidual. Era  precifo  que  o  poder,  ou  fe  fubftituiffe  fatalmente 
á  vontade  popular,  ou  commetteíTe  á  defidia  e  inacção  pro- 
verbial o  encargo  de  levar  o  paiz  á  ultima  ruina.  O  ideal  do 
bom  governo  de  uma  nação  chegada,  como  a  União  ameri- 
cana, á  mais  larga  expanfão  do  penfamento  e  da  adividade, 
é  que  as  fuás  funcções  habituaes  fe  contraiam  e  limitem  ao 
que  intereífa  á  inteira  fociedade  e  não  pôde  caber  no  arbítrio 
de  cada  cidadão.  A  milfão  capital  do  poder  publico  é  então 
o  manter  a  liberdade,  e  para  a  defender  e  recatar  o  prover  á 
juífiça  e  á  fcgurança  da  nação.  É  apenas  como  o  volante 
n'um  perfeito  mechanifmo.  Modera  e  equilibra,  mas  não  pô- 
de diredamente  produzir,  nem  trabalhar. 

É  fob  eíte  afpedo  que,  para  fermos  juftos  e  verdadeiros, 
havemos  de  contemplar  as  providencias  económicas  de  Se- 


eis 


baftião  de  Carvalho.  Confrontal-as  com  os  rigorofos  theore- 
mas  económicos,  e  condemnal-as  por  abfurdas,  feria  como 
fe  aquilatando  o  edifício  tofco  e  paíTageiro,  levantado,  fegun- 
do  a  occafião,  para  abrigo  neceíTario  contra  as  bravas  intem- 
péries, rijamente  o  cenfuraíTemos  por  difcorde  das  regras 
architectonicas  de  Vitruvio  ou  de  Vignola.  A  economia  politi- 
ca é  em  verdade  uma  fciencia  experimental  e  pofitiva  nas  fuás 
doutrinas  fundamentaes,  aífim  como  a  mechanica  racional 
é  nos  feus  fundamentos  inabalável.  Nas  applicações,  porém, 
de  uma  e  de  outra  aos  problemas  particulares,  o  dogma 
ideal,  o  archetypo  theorico  ha  de  forçofamente  modificar-fe, 
n'uma  ás  condições  indeílrudiveis  da  matéria,  na  outra  ás 
temporárias  condições  de  cada  fociedade. 

Também  o  principio  eífencial  de  toda  a  induftria  real- 
mente nacional  e  produtiva,  é  a  liberdade  e  a  iniciativa  An- 
gular ou  livremente  cooperativa.  Porém,  quando  eftas  quali- 
dades inteiramente  faltam  n'um  paiz,  o  governo  abfoluto  e 
omnipotente,  arrogando-fe  a  fuprema  direcção  n'uma  efpecie 
de  meio-focialifmo,  fe  transforma,  fe  é  adtivo  e  diligente,  em 
mercador  e  fabricante  univerfal.  As  induftrias,  que  elle  infti- 
tuiu  e  bafejou,  podem  talvez  um  dia  fer  o  gérmen  do  traba- 
lho efpontaneo  e  inteUigente,  defpeiado  de  todas  as  tutelas  e 
coacções  governativas.  O  empenho  do  enérgico  reformador 
é  pois  como  os  defvelos  e  carinhos,  com  que  o  perfeverante 
e  próvido  cultor  eíleve  animando  a  planta  exótica  e  ainda 
rebelde,  que  mais  tarde  aclimatada  largamente  poderá  avul- 
tar em  bofque  extenfo. 

A  fituação  moral  do  paiz  não  era  mais  rifonha  que  o  feu 
eftado  adminiftrativo  e  económico.  Era  lafíimofa  a  diífolução 
dos  coítumes,  precária  a  fegurança  das  peífoas  e  proprieda- 
des ainda  mefmo  no  feio  da  própria  caphal.  A  nação  abun- 
dava principalmente  em  ociofos.  O  ócio  conduz  naturalmente 
á  íbltura  dos  coftumes,  e  d'ahi  facilmente  fe  defcae  nos  atten- 


tados  e  nos  crimes,  que  perturbam  a  paz  publica  e  degra- 
dam a  nação. 

Os  falteadores  e  bandoleiros  infeftavam  infolentes  e  im- 
punes a  capital  e  as  provincias,  em  maior  grau  a  do  Alem- 
tejo,  que  por  mais  defpovoada,  com  os  léus  immenfos  lati- 
fúndios e  charnecas,  fe  accommodava  com  mais  facilidade  ás 
correrias  e  latrocínios  dos  audazes  malfeitores.  Era  frouxa  a 
autoridade,  não  a  temiam  os  culpados.  Era  urgente  acudir 
com  promptas  providencias  e  reflaurar  o  império  da  lei  e  da 
juftiça.  A  efle  fim  focial  fe  dirigiram  vários  diplomas  legiflati- 
vos  logo  defde  os  primeiros  tempos,  em  que  pelo  vigor  e 
acerto  das  reformas  fe  eílava  denunciando  a  prefença  de 
Carvalho,  o  indefeíTo  infpirador  do  minifterio.  Reprime-fe 
a  impunidade  e  a  frequência  dos  ladrões  formigueiros  e 
damninhos'.  Legiflam-fe  penas  feveriíTimas  contra  os  que 
fe  opponham  á  juftiça  e  arrebatem  das  fuás  mãos  os  delin- 
c[uentes  fem  exceptuar  as  peífoas  da  mais  eminente  qualida- 
de*. Promulgam-fe  providencias  efpeciaes  para  eftirpar  de  vez 
os  aífaltos  e  as  violências  das  cjuadrilhas  no  Alemtejo^,  e 
para  tornar  prompta  e  eííicaz  a  acção  da  juftiça  criminaH. 
Procura  o  miniftro  debellar  o  abufo  funeftiffimo  com  que  a 
força  militar,  em  vez  de  contribuir  á  fegurança  interna  e  ao 
refpeito  da  lei  e  do  poder,  fe  eximia  a  auxiliar  os  magiftra- 
dos  na  perfeguição  dos  criminolbs  e  muitas  vezes  contradizia 
as  diligencias  judiciaes\ 

Defde  os  feus  primeiros  paífos  no  governo  a  pcrfpicacia 
do  novo  miniftro  de  D.  Jofé  comprehende  que  é  o  Brazil  a 


1  Alvará  de  lei  de  12  de  septembro  de  1750. 

2  Alvará  de  lei  de  8  de  julho  de  ijSi. 

3  Decreto  de  7  de  agofto  de  1751. 

4  Alvará  de  14  de  agoílo  de  ij5i.  Lei  de  ig  de  outubro  de  1754,  para  fe 
prenderem  os  delinquentes  fem  culpa  formada  em  cafos  de  pena  capital. 

5  Decreto  de  22  de  outubro  de  lybi. 


1  ' 

CM 


4S^ 
.h5>-§. 


fonte  principal  da  riqueza  para  a  metrópole  e  o  fundamento 
eíTencial  da  ília  grandeza  e  profperidade.  A  companhia  do 
Grão-Pará  e  Maranhão  era  o  inítrumento,  que  fe  lhe  afigu- 
rava mais  poderofo  para  reanimar  o  commercio  n'aquellas 
vaftas  e  opulentas  regiões.  Mas  como  condição  impreterível 
para  a  fua  florefcencia  era  neceíTario  que  no  Brazil  fe  exci- 
taíTe  a  cultura  e  aproveitamento  dos  produdos  naturaes.  Era 
pois  conveniente  e  politico  o  convidar  por  meio  de  providen- 
cias humaniíTimas  os  indios  incultos  e  fylveftres  á  commu- 
nhão  civilifada,  admittindo-os  como  irmãos  na  fé  e  na  liber- 
dade ao  grémio  da  nação.  Um  dos  adlos  mais  infignes  de 
Carvalho  foi  pois  a  lei ',  em  que  fe  favoreceram  com  privilé- 
gios Angulares  as  peíToas  de  procedência  portugueza,  que  na 
America  fe  cafaífem  com  indios  do  Brazil,  e  fe  declarou  não 
incorrerem  em  infâmia  por  eífe  fa6to,  antes  fe  haveriam  por 
merecedoras  do  favor  e  da  graça  do  foberano. 

Não  fatisfeho  o  Icgiflador  com  efta  primeira  providencia, 
que  eítimulava  o  augmento  da  povoação,  falu  pouco  de- 
pois com  outra  lei-  ainda  mais  humana  e  memorável,  em 
que  fe  declarou  ferem  livres  os  indios  do  Brazil,  e  fe  reno- 
vou e  fufcitou  a  obfervancia  de  outros  aflos  legiflativos, 
que  fobre  o  mefmo  aífumpto  fe  tinham  promulgado  defde 
iSyo  até  1680.  No  mefmo  tempo  fez  Carvalho  publicar  a 
bulia  Immenfa  pajtorum,  em  que  o  papa  Benedido  XIV  de- 
clarava livres  aquellas  povoações  até  alli  oppreífas  e  avexa- 
das  pela  cubica  e  immanidade  dos  colonos.  Feitos  agora  em 
tudo  eguaes  aos  europeus,  fuj eitos  á  coroa  de  Portugal,  fal- 
tava completar  a  emancipação  dos  indios  do  Pará  e  Mara- 
nhão, reduzindo-os  á  lei  commum,  quanto  ao  governo  tempo- 
ral. Os  miíTionarios,  principalmente  os  jefuitas,  confundindo 


■    Lei  de  4  de  abril  de  1755. 
2  Lei  de  6  de  junho  de  ijSi. 


7J 

como  fuccede  com  frequência,  as  raias,  que  íeparam  da  in- 
fluencia efpiritual  o  poder  politico  inamiíTivel  e  inherente  á 
Ibberania,  haviam  convertido  a  lua  direcção  religiola  em  tu- 
tela profana  e  temporal.  Toda  a  legiflação  da  egreja  defen- 
dia aos  religiofos  o  ingerirem-fe  na  adminiftração  civil  dos 
territórios,  onde  eftavam  exercitando  as  fuás  miíTôes.  Mas  os 
jefuitas,  que  aíTrontavam  os  defcommodos  e  os  perigos  das 
fuás  perfeverantes  emprezas  no  Ultramar,  ambiciofamente 
pretendiam  governar  politicamente  as  felvaticas  gentes,  que  o 
preftigio  do  feu  verbo  e  o  esforço  da  fua  acção  attrahiam  ao 
redil.  Como  operários  incanfaveis  lidando  com  mil  fadigas  no 
amanho  da  vinha  efpiritual,  não  fe  efqueciam  de  ajuntar  ao  fa- 
lario divino  e  evangélico  as  gages  profanas  e  mundanaes,  não 
para  fi,  porque  o  individuo  defapparecia  no  intereíTe  com- 
mum  da  fua  ordem,  fenão  para  acrefcentar  a  força  e  o  po- 
der do  inftituto  deftinado  a  dirigir  e  governar  com  as  appa- 
rencias  da  abnegação  e  da  humildade,  os  monarchas  e  as  na- 
ções. Carvalho,  completando  a  legiflação  acerca  dos  indios 
no  Brazil,  como  preludio  da  fua  longa  e  tenaz  oppofição  ás 
invafóes  temporaes  do  poder  eccleíiaftico,  e  em  confirmação 
de  mais  antigas  leis,  legifla  as  difcretas  providencias,  que 
prohibem  aos  miíTionarios  o  mefclarem-fe  no  governo  poli- 
tico e  civil  dos  indios  americanos'.  É  a  primeira  vez  que  a 
poderofa  Companhia  apparece  mencionada  na  legiflação  do 
grande  e  oufado  reformador.  E  a  primeira  vez  que  elle  re- 
memora aos  ambiciofos  invafores  a  manifelfa  profanação  com 
que,  tranfgredindo  a  fantidade  dos  feus  votos  e  a  lettra  ex- 
preífa  dos  cânones  e  conftituições  apoítolicas,  fe  arrogam  o 
minifterio  e  governo  temporal. 

Todos  eftes  actos  legiflativos,  que  excediam  o  modeílo 


I  Alvará  com  força  de  lei  de  7  de  junho  de  1755,  renovando  e  fufcitando  a 
lei  de  12  de  septembro  de  i653. 


74 

nivel  do  ordinário  expediente  e  denunciavam  o  propofito  de 
mais  ampla  reformação,  não  podiam  menos  de  excitar  a 
malquerença,  e  a  fanha  implacável  dos  que  defejavam  perpe- 
tuar a  indolência  do  reinado  antecedente.  A  companhia  do 
Grão-Pará  levantou  defde  logo  em  muitos  homens  de  nego- 
cio uma  violenta  oppofição.  A  confraria  do  Efpirito  Santo 
da  Pedreira,  com  o  titulo  de  Mefa  dos  homens  de  negocio 
que  conferem  o  bem  commiim  do  Commercio,  reprefentou 
energicamente  contra  a  nova  inftituição,  que  traíladava  á 
companhia  do  Grão-Pará  a  melhor  parte  do  trafico  portu- 
guez  na  America  do  Sul.  Aqui  fe  manifcífou  a  primeira  vez 
a  tempera  e  a  feição  governativa  do  miniftro  inexorável,  que 
não  foíTria  contradicções.  A  Mefa  do  bem  commum  foi  imme- 
diatamente  dilTolvida.  Inftituiu  Carvalho  em  feu  logar  a 
Junta  do  Commercio,  corno  pura  repartição  official,  forman- 
do-a  de  homens  de  negocio,  que  mereciam  a  confiança  do 
governo.  E  para  que  fe  viíTe  defde  logo  qual  era  a  forte  des- 
tinada aos  que  oufaíTem  tolher  ou  ohflruir  o  caminho  das 
reformas,  os  membros  da  extindfa  confraria  efpiaram  com  o 
deíterro  o  abufo  de  fe  opporem  ás  idéas  económicas  cio  au- 
daz reformador.  O  advogado  João  Thomaz  de  Negreiros, 
que  minutara  a  reprefentação  da  Mefa  do  bem  commum,  foi 
fentir  n'um  degredo  de  vinte  annos  em  Mazagão  quanto  é 
perigofo  profeíTar  opiniões  n'uma  irrefponfavel  e  abfoluta 
monarchia.  Os  mefarios  padeceram  egualmente  a  pena  de 
defterro,  defde  féis  até  dois  annos;  alguns  n'aquella  mefma 
praça  de  Africa,  outros  em  terras  de  Portugal'. 

Já  áquelle  tempo  eram  decorridos  cinco  annos  defde  que 
o  novo  confelheiro  do  monarcha  tomara  nas  mãos  robuftas 
o  leme  do  governo.  Os  intereíTes  oífendidos  tinham  já  dado 
rebate,  bufcando  dar  um  talho  vigorofo  ao  crefcente  poderio 


Decreto  de  3o  de  septembro  de  1755. 


(I9 


de  Carvalho.  A  rainha  viuva,  que  porventura  junto  do  fobe- 
rano  teria  abroquelado  o  eftadiíía  contra  as  inlidias  e  meneios 
dos  feus  adverlarios  já  feitos  em  corpo  de  oppofição,  ceíTára 
de  viver  cm  1754.  Os  jefuitas,  antevendo  o  rumo  que  ia  le- 
guir  a  governança,  andavam  já  de  íbbreavifo  e  pelo  menos 
em  mal  coberta  hoftilidade.  As  providencias,  que  aboliam 
o  fcu  império  temporal  no  Grão-Pará  e  Maranhão,  vibradas 
como  o  primeiro  golpe  ás  ambições  da  Companhia,  denun- 
ciavam que  o  inimigo,  fem  tentar  ainda  os  rijiffimos  recon- 
tros e  as  batalhas  decifivas,  que  a  haviam  de  render  e  ani- 
quilar, invocava  contra  ella  a  humildade  e  o  deíapego  dos 
interelTes  mundanos  e  carnaes.  Firmando-fe,  como  em  po- 
fição  inexpugnável,  na  evangélica  doutrina  de  que  não  é  d'es- 
te  mundo  o  reino  de  Deus,  já  fe  eftava  armando  e  aperce- 
bendo para  as  ultimas  vidorias  contra  o  poder  abXorvente 
da  invafora  fociedade. 

Os  jefuitas  não  eram  pois  talvez  extranhos  á  oppofição, 
que  ia  engroíTando  e  elcondendo  as  fuás  miras  egoiftas  na 
defenfão  dos  públicos  intereíTes,  e  dando  aos  feus  clamores 
e  aos  feus  ódios  a  fancção  das  vozes  populares.  O  jefuita 
Manuel  Balleil:er,  pregando  na  fé  de  Lifboa  na  occafião 
de  promulgar-fe  a  inftituição  mercantil  do  Grão-Pará,  cifra- 
va a  fua  prédica  n'uma  allegoria,  em  que  a  fociedade  efpiri- 
tual  de  Deus  com  os  homens  fe  figurava  femelhante  a  uma 
companhia  de  commercio,  onde  os  homens  tinham  a  me- 
lhor parte  no  grangeio.  Alguns  quizeram  ver  no  fimile  do 
orador  uma  allufão  direita  e  aggreíTiva  á  nova  inftituição  tão 
predilefta  de  Carvalho.  O  padre  Ballefter,  apefar  de  valiofas 
interceífões,  expiou  com  o  exilio  a  fogofa  indifcrição  das 
fuás  parenéfes. 

O  mais  inexorável  inimigo  de  Carvalho  e  o  mais  ardente 
apologifta  da  fociedade  de  Jefus  efcreve  que  o  jefuita  Bento 
da  Fonfeca  experimentara  egual  rigor,  porque,  fendo  conful- 


CM 


76 

tado  por  alguns  negociantes  fobre  as  vantagens  da  compa- 
nhia do  Grão-Pará,  manifeftára  opiniões  hoílis  áquella  empre- 
za  commercial'. 

Attentando  nos  intereíTes  que  ligavam  os  jefuitas  ao  Pam 
e  ao  Maranhão,  e  cotejando-os  com  eftes  fados  cnarrados 
por  teftemunha  tão  livre  de  fufpeições,  é  licito  o  aventurar 
que  os  jefuitas  moveriam  contra  Carvalho  todas  as  armas, 
que  lhes  miniftrava  no  púlpito  a  influencia  da  fua  palavra, 
no  confeíTionario  a  fua  dominação  nas  confciencias,  na  corte 
a  fua  intimidade  com  a  nobreza,  no  paço  a  fua  entrada  com 
el-rei.  Já  por  aquelles  tempos  o  embaixador  francez,  conde  de 
Bachi,  inimigo  declarado  de  Carvalho,  contradiftor  das  fuás 
reformas,  e  parcial  dos  fidalgos  portuguezes,  efcrevia  ao  leu 
governo  que  o  miniífro  era  aborrecido  de  todos  os  grandes 
e  dos  que  tinham  algum  valimento  com  o  foberano".  Egual- 
mente  annunciava  por  eíta  occafião  que  o  eíladifta  padecia 
frequentes  diífabores,  e  que  apefar  dos  meneios  dos  Icus 
antagoniítas  mais  e  mais  fe  confirmava  na  confiança  do  mo- 
narcha.  E  de  feito  já  n'aquelle  tempo  era  vifivel  que  o  minis- 
tro dos  negócios  extrangeiros  e  da  guerra  predominava  nos 
confelhos  e  concentrava  em  fuás  mãos  a  fuprema  direcção 
dos  negócios  públicos-*.  Pedro  da  Motta,  encarcerado  em  fua 
recamara  pela  enfermidade  e  a  velhice,  não  podia  certa- 
mente difputar  ao  feu  collega  o  primeiro  logar  na  admi- 
niftração.  Mas  o  fecretario  de  eftado  da  marinha,  Diogo 
de  Mendoça,  não  fe  defcuidava  de  fomentar  no  feio  do 
gabinete  a  diíTidencia.  Parece  que  nos  primeiros  tempos  do 


>    Vila  di  Seb.  Giiifeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  i,  pag.  5o  e  5i. 

2  Ofllcio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  5  de  feptembro  de 
1754.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  17. 

3  «Sebaftião  Jofé  de  Carvalho,  miniítro  dos  negócios  extrangeiros,  era  o 
único  e  verdadeiro  depofitario  do  poder  e  autoridade  real.»  Officio  citado.  Qiia- 
dro  elementar,  tom.  vi,  pag.  48. 

-^<í>- —^ 


|-4>- -H^-f- 


minirterio,  ainda  a  Ibmbra  de  íeu  tio,  o  principal  fecretario 
de  eítado  de  D.  João  V,  o  protegia  e  amparava  para  que  fos- 
fe  preferido  no  favor  do  novo  rei.  Affim  o  vemos  fer  defi- 
gnado  para  exercer  as  altas  e  honorificas  funcções  de  efcri- 
vão  da  puridade  no  auto  da  acclamação  e  juramento  de  D. 
Jofé.  Affim  o  vemos  egualmente  fubfcrever  os  principaes  e 
mais  importantes  diplomas  governativos  nos  impedimentos 
do  fecretario  de  eftado  de  maior  graduação  e  antiguidade. 
Não  é  temerário  o  fufpeitar  que  Diogo  de  Mendoça,  como 
hábil  e  fino  cortezão,  empregava  as  fuás  mais  efficazes  dili- 
gencias para  conquiílar  no  animo  do  rei  a  graça  e  a  valia. 
Nas  frequentes  diverfões,  a  que  feguia  a  corte,  nas  caçadas 
de  Palma  e  Salvaterra,  não  fe  efquecia  de  aproveitar  a  au- 
fencia  de  Carvalho  para  o  deíTervir  e  malquiftar,  fegundo  é 
eftylo  de  aulicos  medíocres,  mal  foífridos  e  invejofos  dos  mé- 
ritos alheios". 

Além  da  inftituição  da  Companhia  do  Grão-Pará  muitas 
outras  providencias  affignalaram  os  primeiros  cinco  annos  do 
minirterio  de  Carvalho.  O  commercio  de  Moçambique  foi 
declarado  aberto  e  livre  a  todos  os  moradores  da  Afia  por- 
tugueza  com  a  única  excepção  de  uma  fazenda,  conítituida 
em  régio  monopólio  ^  Na  pragmática  ou  lei  fumptuaria  de 
24  de  maio  de  1749,  em  vão  intentara  D.  João  V,  o  mais 
luxuofo  e  magnifico  monarcha,  fob  penas  feveriffimas  en- 
frear o  luxo  em  feus  eftados,  e  reduzir  os  feus  fieis  vaífallos 
a  efpartana  fimpleza  no  trajar  e  no  viver.  Procurara  ao  mes- 


■  "O  miniftro  Carvalho  partira  também  logo  para  Salvaterra,  por  iffo  que 
eftava  efcarmentado  do  mau  effeito  que  produzira  a  fua  aufencia  de  Palma, 
aonde  não  tendo  podido  acompanhar  a  el-rei,  o  feu  contrario,  o  abbade  de 
Mendoça,  foubera  tirar  d'ino  todo  o  proveito."  Officio  do  embaixador  francez, 
conde  de  Bachi,  para  o  feu  governo,  de  2i  de  janeiro  de  1755.  Quadro  elemen- 
tar, tom.  VI,  pag.  5i. 

2  Lei  de  10  de  junho  de  ijSí,  declarando  livre  o  commercio  de  Moçam- 
bique, exceptuado  o  vellorio. 


^T*" 

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T* 


mo  tempo,  por  um  meio  indiredo,  mas  illulbrio,  deílerrar 
do  mercado  portuguez  as  mercadorias  extrangeiras  e  oppor 
um  dique  frágil  á  corrente  natural  do  oiro  do  Brazil  para  fora 
de  Portugal.  Era  eíte  um  abfurdo  económico  tão  flagrante, 
que  parecia  urgente  corrigir  com  algum  aviíado  tempera- 
mento as  fuás  extravagantes  prefcripções.  Um  diploma  le- 
giflativo'  occorreu  a  emendar  as  mais  oppreíTivas  difpoíi- 
ções,  mantendo  porém  o  penfamento  de  proteger  e  animar, 
a  foro  de  prohibir  as  fazendas  extrangeiras,  os  produdos  da 
induftria  nacional.  O  officio  dos  cortadores  era  havido  no 
preconceito  nobiliário,  tão  vulgar  em  terra  de  fenhores  e  de 
fidalgos,  como  viliflimo  e  quali  infame.  A  pragmática  de 
D.  João  V  defendia  aos  ofíiciaes  mechanicos  o  trazerem  es- 
pada ou  efpadim.  Pois  agora,  fob  o  novo  regimen  fumptua- 
rio,  efta  inlignia  de  fidalguia  fera  concedida  aos  cortadores, 
e  um  d'eíl:es  humildes  officiaes  depois  de  exercer  no  talho 
o  feu  mifter,  poderá  pompear  na  rua  a  fua  efpada,  roçando 
com  a  ponteira  no  efpadim  cinzelado  e  preciofo  dos  Avei- 
ros  e  dos  Tavoras.  O  mefmo  privilegio  comprehendia  a  to- 
dos os  mefteiraes  embandeirados  e  a  outros  honrados  tra- 
balhadores, porc[ue  (dizia  o  legiflador)  «aos  referidos  é  minha 
intenção  honrar  como  peíToas  úteis  ao  meu  ferviço  e  ao  bem 
commum  de  meus  reinos-».  Aílim  preludiava  o  miniflro  de 
D.  Jofé  ás  futuras  providencias,  com  que  havia  de  precipitar 
das  fuás  arrogantes  eminências  a  nobreza  hereditária  e  ocio- 
sa e  levantar  defde  o  feu  abjedto  vilipendio  a  plebe  trabalha- 
dora e  defprezada. 

Entre  as  mais  difcretas  providencias  decretadas  pelo  mi- 
nifterio  de  Carvalho  figuram  os  numerofos  regulamentos, 
em  que  fe  fixaram  os  vencimentos  de  todos  os  tribunaes  e 


•  Alvará  de  21  de  abril  de  ly.Si. 
2  Alvará  de  21  de  abril  de  lySi. 


de  muitos  officios  públicos".  Não  devemos  omittir  a  provi- 
fão,  com  que  fe  bufcou  favorecer  a  inftrucção  publica,  au- 
gmentando  de  mais  a  terça  parte  os  melquinhos  ordenados 
aos  lentes  e  officiaes  da  univerfidade^. 

Taes  foram  os  enérgicos  eftimulos,  com  que  o  pulfo  vi- 
gorofo  de  Carvalho  intentou  reanimar  a  decadente  vida  na- 
cional, que  ainda  os  feus  mais  odientos  inimigos  não  pode- 
ram  determinar-fe  a  conteftar-lhc  o  mérito  e  o  elogio  pelos 
ados  que  illuftraram  o  feu  governo  durante  os  primeiros 
annos,  e  emquanto  não  fe  empenhou  em  guerra  aberta  com 
os  jefuitas  e  a  nobreza  de  Portugal  ^ 

Nos  annos  derradeiros  do  reinado  de  D.  João  V  a  frou- 
xidão ou  lethargia  do  governo  tinha  feito  defcer  as  relações 
de  Portugal  com  as  potencias  extrangeiras  a  grande  aba- 
timento e  humilhação.  O  magnifico  foberano,  que  durante 
os  áureos  tempos  da  fi.ia  dominação  tinha  ás  vezes  demons- 
trado a  altivez  da  fua  Índole  e  quafi  pretendido  hombrear 
com  as  nações  de  primeira  ordem  na  decifão  das  máximas 
queftÕes  internacionaes,  deixara  finalmente  o  feu  papel  de 
mediador,  e  como  quem  deteíta  a  guerra  e  as  contenções,  le- 
gava ao  fucceffor  o  tratado  de  limites  de  17 5o,  em  que  Por- 
tugal cedia  á  Hefpanha  a  colónia  do  Sacramento  a  troco  de 
pouco  valiofas  compenfações.  A  alliança  ingleza  degenerara 
pela  fraqueza  do  governo  em  quafi  proteílorado.  Á  contem- 
plação do  eftadifta,  que  tinha  agora  a  principal  direcção  dos 
negócios  públicos,  offerecia-fe  como  problema  capital  o  le- 
vantar o  feu  paiz  no  conceito  da  Europa  e  attefiar  que  fe 
bem  era  pequeno  pela  fua  nefga  na  Peninfula,  egualava  no 
brio  e  dignidade  ás  nações  mais  arrogantes  e  poderofas.  Aos 


'  Regimentos,  com  força  de  lei,  pelos  quaes  ha  por  bem  lua  majeftade  ac- 
crefcentar  os  ordenados  e  emolumentos  dos  defembargadores,  etc.  Lifboa,  1754. 
2  Provirão  de  29  de  junho  de  1754. 
-'   Vita  di  Seb.  Ghifeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  i,  pag.  25  e  26. 


8o 

citados  inferiores  pelo  território  e  povoação  impende  mais 
do  que  aos  grandes  potentados  não  diffimular  as  quebras 
de  refpeito,  nem  a  prepotência  internacional.  As  nações  pe- 
quenas, como  os  homens  de  mefquinha  força  e  eftatura,  hão 
de  ter  em  energia  nervofa  o  que  lhes  falta  em  rija  mufcula- 
tura. 

Carvalho  tinha  a  repartição  dos  negócios  extrangeiros, 
onde  lhe  era  dado,  fem  invadir  a  jurifdicção  privativa  dos 
coUegas,  imprimir  á  politica  exterior  o  cunho  da  fua  tempera 
e  dos  feus  inftinítos  peíToaes.  Por  iíTo  o  vemos  logo  de  prin- 
cipio manter  em  lua  pureza  a  majeítade  e  foberania  da  na- 
ção, e  forçar  os  governos  forafteiros  a  reprimir  e  enfrear  as 
fuás  pretenfões. 

Uma  queflão  de  ceremonial  e  formulário  lhe  deu  occa- 
fião  a  moftrar-fe  inflexível  nas  fuás  relações  com  o  rei  de 
França  Luiz  XV.  O  papa  Benedido  XIV,  por  um  motu  pró- 
prio de  21  de  abril  de  1 749,  defejando  galardoar  com  uma 
graça  pontifícia  os  ferviços  que  D.  João  V  preftára  a  chris- 
tandade,  havia-lhe  conferido  e  aos  feus  fúcceífores  o  hono- 
rifico predicado  de  fidelijfimo,  que  o  rei,  tão  vaidofo  e  tão 
devoto  como  era,  comprara  á  cufta  de  efpantofa  prodiga- 
lidade e  que  haveria  de  prezar  como  titulo  de  valia  inefti- 
mavel.  Ficava  por  efle  modo  equiparado  ás  coroas  de  Fran- 
ça e  de  Hefpanha,  porque  a  nova  qualificação  era  de  certo 
equivalente  ao  diífado  de  chrijliauijjimo  ou  de  catholico,  de 
que  tanto  fe  envaneciam  e  honravam,  como  piedofos  filhos 
da  Egreja,  os  dois  maiores  monarchas  da  familia  de  Bour- 
bon. 

O  governo  francez,  ciofo  de  que  um  didado  femelhante  ao 
da  fua  coroa  diftinguiíTe  o  rei  de  Portugal,  parecia  não  reco- 
nhecer o  novo  tratamento,  e  nas  cartas  de  chancellaria  conti- 
nuava a  omittir  o  titulo  de  fidelijjimo.  Carvalho  recufa  ou 
manda  recambiar  as  cartas  de  Luiz  XV  e  de  outras  perfona- 


gens  eminentes.  Levanta-fe  n'eíie  ponto  uma  prolixa  dilcuflao 
entre  os  dois  governos  e  demora-fe  por  efta  caula  largo  tempo 
a  vinda  do  embaixador  francez,  nomeado  para  a  corte  por- 
tugueza.  Tal  era  a  hombridade  com  que  o  fecretario  de  es- 
tado dos  negócios  extrangeiros  fe  havia  com  os  reprefentan- 
tes  das  nações  de  primeira  ordem,  que  o  embaixador  conde 
de  Bachi  efcrevia  ao  feu  governo  que  o  de  Portugal  punha 
a  mira  em  elevar  eíte  paiz  á  categoria  das  grandes  potencias 
europêas".  Mais  tarde  o  orgulhofo  diplomata  amargamente 
fe  queixava  á  fua  corte  de  que  o  miniílerio  portuguez  tra- 
tava com  diminuta  contemplação  os  reprefentantes  das  na- 
ções extranhas'.  Ponderando  ao  feu  governo  que  não  era  com 
civilidades  e  attençõcs  que  fe  podia  conquiftar  a  amifade  dos 
portuguezes,  aconfelhava  contra  elles  a  maior  feveridade'. 
Tal  era  a  fobranceria  e  altivez  com  que  o  miniftro  Carva- 
lho zelava  honrofamente  a  dignidade  nacional  e  efboçava 
n'eftas  queítões  de  etiqueta  diplomática  o  que  haveria  de  fer 
depois  em  aífumptos  de  maior  ponderação  a  norma  e  o 
teor  da  fua  politica.  As  conteftações  levantadas  por  Sebas- 
tião de  Carvalho  a  propofito  do  privilegio  íingular  cha- 
mado Aubaine,  pelo  qual  os  monarchas  francezes  fe  arroga- 
vam o  direito  de  fucceder  na  herança  dos  forafteiros,  que 
em  feus  eftados  falleciam  fem  herdeiros  neceífarios,  e  a  for- 
mal comminação  de  que  Portugal  em  jufta  reprefalia  ob- 
fervaria  o  mefmo  eftylo  com  os  fubditos  da  França,  exa- 
cerbaram a  acrimonia  habitual  do  feu  embaixador.  Por  efta 
occafião  dizia  elle  ao  feu  governo  o  fer  para  extranhar  que 
um  reino  tão  pequeno  quizeífe  em  tudo  emparelhar-fe  com 


'  Officio  do  embaixador  francez,  de  21  de  maio  de  1754.  Quadro  elemen- 
tar; tom.  VI,  pag.  43. 

5  Officio  do  embaixador  francez,  de  6  de  agoílo  de  1754.  Quadro  elemen- 
tar, tom.  VI,  pag.  44  c  45. 

^  Officio  de  27  de  agoílo  de  1754.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  48. 


eis 


cl» 


82 

a  poderola  monarchia,  exigindo  nas  fuás  ordinárias  relações 
a  completa  reciprocidade '. 

N'outra  grave  pendência  diplomática  fe  tiveram  de  exer- 
cer os  talentos  de  Carvalho.  D'efta  vez  era,  porém,  o  mais 
íntimo  alliado  que  expandia  os  feus  queixumes.  A  pro- 
videncia" com  que,  lufcitando-fe  a  obfervancia  de  leis  ante- 
cedentes, fe  havia  ordenado  a  máxima  vigilância  no  exame 
de  todas  as  mercadorias  que  entraífem  nas  alfandegas,  com 
o  fim  de  obviar  á  fraudulenta  exportação  do  oiro,  excitara 
unifono  clamor  entre  os  inglezes,  que  em  numero  crefcido  e 
preponderante  negociavam  em  Lifboa.  Os  officiaes  da  alfan- 
dega haviam  redobrado  os  rigores  aduaneiros.  Os  fubdi- 
tos  britannicos,  apefar  da  fevera  prohibição,  continuavam  a 
extrahir  a  preciofa  mercadoria.  O  decreto  do  governo  orde- 
nava que  não  houveífe  n'eíle  ponto  os  minimos  refpeitos  á 
qualidade  das  peíToas.  As  perquifições  multiplicavam-fe  para 
obviar  á  falda  do  que  era  então  julgado  o  mais  folido  the- 
fouro.  Os  mercadores  britannicos  de  Lifboa  queixavam-fe 
amargamente  ao  feu  governo.  A  feveridade  fifcal  não  hefita- 
va  em  perfeguir  os  próprios  officiaes  dos  navios  de  guerra 
inglezes,  quando  tentavam  fubtrahir-fe  á  lei  prohibitiva  e 
conduziam  para  bordo  o  oiro  difputado^  Multiplicavam-fe 
com  o  rigor  os  confiiflos  entre  o  fifco  e  os  bretões.  Não  fo- 
mente os  inglezes  fe  affrontavam  com  eíles,  que  julgavam  ty- 
rannicos  vexames,  fenão  que  eftremeciam  ao  profpedfode  que 
Portugal,  bufcando  facudir  o  jugo  mercantil  da  Inglaterra, 


1  Officio  do  embaixador  conde  de  Bachi,  de  21  de  outubro  de  1755. 
Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  64.  O  direito  de  Aiibaine  foi  nos  principies  do 
reinado  de  D.  Maria  I  abolido  em  relação  aos  portuguezes,  pela  convenção  de 
21  de  abril  de  1778  entre  Portugal  e  a  França. 

2  Decreto  de  10  de  março  de  1755. 

3  Documento  no  archivo  do  miniílerio  dos  negócios  extrangeiros  de  Fran- 
ça, vol.  Lxxxiv  da  correfpondencia  de  Portugal.  Qiiadro  elementar,  tom.  xviii, 
pag.  35 1. 


(|3 


83 

reítauraíTe  felizmente  o  commercio  portuguez '.  O  gabinete  de 
Saint-James  julgou  prudente  e  neceílario  negociar  com  o  de 
Lifboa  febre  efte  aílumpto,  de  que  pendiam  os  intereflcs  da 
colónia  britannica  em  Portugal.  Defpachou  pois  em  miffão  es- 
pecial a  lord  Tyrawley,  que  em  tempos  de  D.  João  V  tinha  já 
refidido  em  Portugal  como  enviado  extraordinário  de  Ingla- 
terra, conhecia  a  fundo  a  corte  portugucza  e  fora  fempre  bem 
acceito  ao  rei  e  ao  governo.  Trazia  o  inglez  por  encargo  parti- 
cular o  dirigir  inftantes  reclamações  para  que  não  foíTem  ave- 
xados  em  Lifboa  os  feus  compatriotas  e,  aflfrouxados  os  rigo- 
res, fe  deífe  fatisfafloria  conclufão  ás  diífidencias  acerca  dos 
negócios  mercantis.  O  novo  reprefentante,  chegando  a  Lis- 
boa a  1 1  de  abril  de  1752,  defde  logo  entrara  a  conferir  com 
o  miniítro  dos  negócios  extrangeiros.  Duraram  até  julho  as 
negociações,  e  n'eíte  mez  fe  retirava  lord  Tyrawley,  dando  por 
terminada  a  enviatura.  O  penfamento,  que  didára  as  provi- 
dencias, contra  as  quaes  fe  levantavam  em  unifono  as  re- 
clamações da  higlaterra,  era,  quanto  ao  fito  a  que  mirava,  cer- 
tamente defculpavel.  A  intenção  de  Carvalho  era  feguramente 
patriótica,  porque  toda  fe  cifrava  em  proteger  e  emancipar 
da  britannica  tutela  o  trafico  e  a  riqueza  nacional.  A  errónea 
doutrina,  em  que  eífribava,  era  corrente,  vulgar,  audori- 
fada  pelos  governos  e  nações  contemporâneas,  que  todas 
zelavam  egualmente,  como  poderofo  talifman  da  bemaven- 
turança  focial,  a  poífe  do  oiro.  Mas  as  leis  económicas  não 
trepidam,  nem  receiam  perante  as  audazes  intimações  do 
mais  fevero  legiílador,  aíTim  como  a  agua  do  Hellefponto, 
fegundo  a  anecdota  da  antiguidade,  não  fe  encolheu,  ficando 
immovel,  quando  Xerxes  n'um  aífomo  de  jadanciofa  ma- 
jefiade,  enlaçando-o  nas  fuás  cadeias  illuforias,  lhe  prohibiu 
a  invafão.  Eram  por  aquelles  tempos  efcaffiífimas  as  colhei- 


'   Smolelt,  Hijloria  de  Inglaterra,  pag.  i. 


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84 

tas  em  Portugal,  onde  em  aiinos  de  boa  latra  mal  chegavam 
para  o  commum  fuftento  popular.  A  ameaça  da  fome  favore- 
ceu o  triumpho  ás  reclamações  britannicas.  Moderaram-fe  as 
rigorofas  providencias,  e  entrou-fe  em  compofição  com  os 
que,  nos  lances  de  urgência  e  apertura,  eítavam  os  portugue- 
zes  coftumados  a  invocar  por  valedores.  Mandou  o  governo 
reítituir  aos  negociantes  inglezes  os  metaes  que  lhes  haviam 
fido  fequeftrados'.  O  êxito  da  extraordinária  enviatura  não 
havia  fido,  porém,  tão  lifonjeiro  que  os  negociantes  inglezes  fe 
não  defataíTem  em  queixas  e  em  reproches  contra  o  feu  repre- 
fentante,  o  qual  não  dera  plena  fatisfação  a  todas  as  fuás  am- 
biciofas  pretenfões^ 

CAPITULO   IV 

o  TERREMOTO 

A  natureza  phyfica  domina  e  fenhoreia  a  humanidade.  Os 
deílinos  fociaes  enlaçam-fe  intimamente  com  os  phenome- 
nos  da  terra.  A  hiftoria  tem  por  feu  commentario  em  cada 
pagina  as  alterações  que  foi  fucceffivamente  padecendo  o 
noífo  globo.  N'eíl:a  grande  reprefentação,  que  fe  chama  a  vida 
humana,  o  theatro  modifica  o  drama.  Os  adtores  têem  de 
accommodar  á  fcena  a  acção  que  reprefentam.  A  natureza, 
como  que  ciofa  de  que  o  homem  a  fubjugue  e  violente  a  feu 
ferviço,  parece  defquitar-fe  das  aífombrofas  oufadias  do  no- 
vo Prometheu,  enleiando-o  perpetuamente  em  fuás  cadeias  e 
forçando-o  a  mudar  a  cada  paífo  o  rumo  e  o  deítino. 


'  Documento  no  archivo  do  minifterio  dos  negócios  extrangeiros  de  Fran- 
ça, vol.  Lxxxv  da  correfpondencia  de  Portugal,  foi.  5i.  Quadro  elementar,  tom. 
xvni,  pag.  354. 

2  Documento  no  archivo  do  minifterio  dos  negócios  extrangeiros  de  Fran- 
ça, vol.  Lxxxv  da  correfpondencia  de  Portugal,  foi.  5i.  Quadro  elementar,  tom. 
xviii,  pag.  354. 


85 

Um  tremendo  fuccelTo  natural  decidiu  em  grande  parte 
da  forte  de  um  paiz  e  da  gloria  de  um  legiflador.  O  terre- 
moto de  Lifboa  no  i.°  de  novembro  de  lySõ,  é  como  um 
ponto  de  inflexão  na  curva  defcripta  pelo  povo  portuguez. 
Com  elle  le  tranfmudam  as  condições  da  vida  Ibcial.  Com 
elle  íe  delcortinam  ampliíTimos  e  novos  horizontes  ao  efta- 
difta,  que  teria  acafo,  no  meio  da  quieta  natureza  e  de  pa- 
cificos  humanos,  efcondido  na  fombra  de  um  governo  domes- 
tico e  vulgar  os  dotes  fingulares  do  feu  efpirito. 

Quando  os  homens,  como  os  vencedores  tempeftuofos 
da  Baftilha,  não  fazem  revoluções  para  defconjundar  em  feus 
cimentos  uma  velha  fociedade  corroída,  é  bem  que  a  natu- 
reza, com  as  fuás  temerofas  convulfões,  dê  rebate  a  uma  na- 
ção, que  adormece  na  corrupção  e  na  indolência,  e  lhe  faça 
extrahir  dos  efcombros  fumegantes  uma  nova  civilifação; 
para  que  da  defolação  e  da  miferia  furja  por  um  milagre  de 
energia  e  de  talento  uma  nova  e  mais  culta  fociedade. 

O  terremoto  foi  o  terrível  infpirador  do  miniftro,  que  fera 
defde  agora  omnipotente.  Até  ali  o  feu  vulto  não  excede  á 
craveira  vulgar  dos  eftadiftas,  apparece  meio  efcondido  nas 
pregas  da  chlamyde  real.  Agora  é  o  ludador,  que  tem  em 
frente,  n'um  amplo  amphitheatro,  o  inimigo,  a  quem  ven- 
cer. Agora  é  o  grande  artifta  de  governo,  que  perante  uma 
calamidade  fem  exemplo  não  tem  modelos,  nem  didados, 
que  fcguir  e  copiar,  nem  Richelieus,  nem  Sullys,  nem  Col- 
berts,  em  cujas  memorias  fugitivas  poífa  aprender  a  acção 
e  o  penfamento.  Agora  o  legiflador,  alteando-fe  fobre  as  ruí- 
nas de  uma  cidade,  outr'ora  a  grande  metrópole  do  com- 
mercio  do  Oriente,  fará  das  fuás  pedras  defconjundas  o  im- 
menfo  e  gloriofo  pedeftal. 

O  terremoto  foi,  com  a  tremenda  e  anguftiofa  deflruição, 
quafi  uma  benção  para  o  fenil  e  defventurado  Portugal.  Na 
hifloria  nacional  ha  três  grandes  epochas,  nas  quaes  fe  revo- 


eis 


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S6 

lucionou  profundamente  o  crer  e  o  viver  de  Portugal.  O  des- 
cobrimento do  caminho  maritimo  da  índia  em  1497;  o  ter- 
remoto de  1755;  a  revolução  politica  de  1820.  Portugal, 
que  fe  expande  para  fora  dos  feus  eflreitos  âmbitos,  e  funda 
impérios  e  dominações  em  todo  o  globo;  Portugal,  que  depois 
da  orgia  das  fuás  grandezas  e  conquiflas,  fe  concentra  na  fua 
própria  individualidade  e  penitenciando-fe  dos  feus  erros  go- 
vernativos, procura  na  educação  e  no  trabalho  o  que  já  lhe 
não  é  dado  confeguir  pela  conquifta  e  pela  efpada;  Portu- 
gal, emfim,  que  a  fi  próprio  fe  proclama  adulto  e  eman- 
cipado para  o  governo  de  fi  mefmo  no  exercício  das  fran- 
quias populares. 

Todas  três  fão  egualmente  epochas  de  iniciação  e  tirocí- 
nio. Na  primeira  o  Gama  enlina  Portugal  a  conquiftar  pela 
quilha  e  pela  bombarda  um  mundo  de  fonhadas  opulências. 
Na  fegunda  o  Pombal  indica-lhe  os  caminhos,  por  onde  o  es- 
pirito fe  defenleia  ao  mefmo  paíTo  do  jugo  clerical  e  ariftocra- 
tico  e  pela  moderna  educação  ha  de  emergir  do  feu  longo  ecli- 
pfe  intelleílual.  Na  terceira  os  homens  immortaes,  que  fe 
chamam  Fernandes  Thomás,  Borges  Carneiro  e  mais  tarde 
Moufinho  da  Silveira,  acordam  os  humillimos  vaífallos  da  rea- 
leza abfoluta  e  os  chamam  ao  convívio  triumphal  da  liber- 
dade. A  primeira  é  a  efcola  da  gloria  nacional.  Mas  a  gloria 
é  um  fonho,  que  entorpece,  e  uma  ebriedade,  que  debilita 
os  que  libaram  largamente  em  fua  copa.  Por  iífo  a  fegunda 
quadra  convoca  os  portuguezes  ao  viver  intimo  na  efcola,  na 
granja,  na  ofTicina,  mas  ainda  fob  a  tutela  protedora  de  um 
poder  quafi  divino.  Ora  a  vida  nacional,  que  fe  defenvolve  e 
fortalece  aos  pés  de  um  throno,  é  como  a  herva,  que  fe 
enrofca  e  ennovela  ao  tronco  alheio,  é  viçofa,  mas  efcrava. 
Por  iífo  no  terceiro  momento  hiítorico  a  nação  fe  defenro- 
la  das  mantilhas  infantis,  em  que  a  trouxera  envolta  a  mo- 
narchia  abfoluta  e  começa  a  renafccr  para  a  forte  adolefcen- 


e|í 


(is 


87 

cia  da  liberdade.  A  primeira  epocha  faz  heroes,  a  fegunda  ho- 
mens, a  terceira  finalmente  cidadãos.  Na  primeira  Portugal 
attinge  a  culminação  das  fuás  glorias,  porém  logo  declina 
rapidamente  até  cair  com  D.  João  III,  o  rei  fanático,  nas 
cadeias  artificiolas  da  companhia  e  nos  piedofos  brazeiros 
do  Santo  Officio,  e  com  D.  Henrique,  o  rei  inquilidor,  nas 
hachas  cruéis  do  duque  de  Alba  e  nos  cruentos  grilhões  de 
Filippe  II.  Na  fegunda  phafe  nacional  a  nação  levanta-fe 
d'aquelle  dourado  muladar  de  D.  João  V,  e  procura  refgatar 
com  esforços  fobrehumanos  o  que  vae  de  atrazada  na  civilifa- 
ção,  arraítando-fe  decrépita  na  reçaga  das  nações  policiadas, 
mas  vae  de  novo  tropeçar  no  beato  genuflexório,  onde  a  her- 
deira de  D.  Jofé,  a  rainha  devota  e  reaccionária,  converte  em 
leis  os  didames  dos  feus  padres  efpirituaes  e  confunde  o  con- 
feífionario  com  a  cadeira  curul  da  fuprema  magiítratura.  Na 
terceira  quadra  finalmente  a  nação,  empolgando  ao  mefmo 
paífo  o  ferro  dos  íbldados  e  a  audácia  dos  eftadiftas  revolu- 
cionários, começa  a  conquifiar  os  feus  foros  imprefcriptiveis 
e  confegue  levantar-fe  ao  mefmo  nivel  e  egualar-fe  em  cer- 
ta maneira  com  o  folio  dos  feus  reis. 

O  terremoto,  que  foi  uma  laftimofa  calamidade  phyfica, 
foi  ao  mefmo  paífo  o  começo  de  uma  epocha  de  regenera- 
ção e  melhoria  focial. 

Aífolando  Lifboa,  como  que  fepultou  nas  ruinas  ao  mes- 
mo tempo  a  velha  povoação  e  a  antiga  fociedade;  a  cidade 
material,  com  as  fuás  rvias  tortuofas,  ladeirentas,  obfcuras,  e 
a  cidade  moral,  com  as  fuás  profundas  defegualdades,  com 
os  feus  iniquos  privilégios,  com  as  fuás  trevas  intelleduaes. 
Deífruiu  Lifboa  para  que  fe  levantaífe  rejuvenecida,  mas 
aplainou  também  o  Iblo,  onde  havia  de  principiar  a  erigir-fe 
o  edificio  da  moderna  revolução. 

A  tremenda  calamidade  tornou  mais  evidente  o  vuUo  do 
grande  reformador.  Já  tinha  cm  boa  parte  conquiítado  as 


eis  sh 

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88 

graças  do  Ibberano.  Mas  a  improvila  e  fuiíeftiliima  cataltro- 
phe  accrefcentou-o  largamente  na  valia. 

Ao  afpedo  d'aquella  temerofa  ofcillação  e  das  ruínas  fu- 
megantes, de  que  alaflréira  os  mais  populofos  bairros  de  Lis- 
boa, interrompendo  quali  inteiramente  a  vida  focial,  pertur- 
bando e  confundindo  todas  as  relações,  difperfando  o  povo, 
a  juítiça,  os  tribunaes,  fazendo  defapparecer  momentanea- 
mente a  publica  au6toridade,  o  rei  desfallecia  no  auge  do  ter- 
ror. Paralyfado  o  animo  pelo  máximo  infortúnio,  temendo  a 
cada  inftante  que  a  terra,  zombando  da  fua  regia  e  divina 
poteftade,  convelliíTe  com  concuffljes  novas  a  cidade  devora- 
da pelo  incêndio,  e  apagaíTe  os  últimos  veftigios  da  antiga  e 
aíTolada  povoação,  deixava  cair  das  mãos  nativamente  irre- 
folutas  as  rédeas  já  frouxas  do  governo,  olhava  em  torno  de 
fi,  e  anceiava  por  que  um  animo  exornado  da  mais  inque- 
brantável fortaleza,  do  arrojo  mais  indómito  e  da  providen- 
cia mais  enérgica  lhe  vieíTe  acudir  no  lance  defefperado. 

O  fecretario  de  eftado  Pedro  da  Motta,  exacerbada  com 
o  efpantofo  acontecimento  a  enfermidade,  já  aggravada  pela 
quaíi  decrepidez,  não  eflava  ali  para  ordenar  as  mais  urgen- 
tes providencias.  O  abbade  de  Mendoça  não  era  homem 
para  altear-fe  impávido  e  diligente  acima  dos  tranfes  mais 
difficeis.  Era  no  i.°  de  novembro  de  lySS,  dia  confagra- 
do  pela  Egreja  á  commemoração  de  todos  os  fantos.  De- 
fabavam  com  medonho  eítridor  os  mais  folidos  e  mais 
cuftofos  edifícios.  As  ruas  eftreitas  e  angulofas,  atulhadas 
dos  efcombros  de  altos  prédios,  nem  deixavam  perceber 
por  onde  havia  pouco  levavam  o  feu  curfo.  Os  templos, 
onde  o  povo  fe  juntara  para  aíTiftir  aos  ofiicios  divinos, 
citavam  derrocados,  efmagando  íbb  acervos  de  pedras,  de 
tijolos,  de  madeiras,  os  que  pouco  antes  faudavam  des- 
cuidofos  o  efplendido  foi  d'aquelle  dia.  O  fogo,  confo- 
ciando-fe  ás  terríveis  ondulações  repetidas  com  frequência, 

-S-i- -ò-l- 


89 

completava,  fem  que  ninguém  o  podcíTe  reprimir,  a  obra  ne- 
fartiffima  das  energias  fubterraneas.  Os  que  logravam  es- 
capar ao  extemporâneo  ruir  dos  edifícios  e  á  fúria  das  cham- 
mas  voraciíTimas,  fugiam  defacordados  a  uma  e  outra  parte 
com  dolorofos  e  altiffimos  clamores,  invocando  a  celefte  mi- 
íericordia.  Os  malfeitores  e  vagabundos,  que  habitualmente 
pullulavam  na  grande  capital,  faziam  agora  das  ruinas  a  fua 
preia  mais  valioía,  e  convertiam  a  geral  calamidade  em  pro- 
veitofa  e  rica  mercancia.  No  meio  da  horrível  confufão,  o 
egoifmo  fubftituia  os  vínculos  moraes  da  fociedade.  Cada  um 
bufcava  defamparar  as  habitações,  tranfmudadas  em  lepul- 
chros,  deixando  quanto  de  preciofo  poffuia  para  pôr  em 
falvamento  a  exiítencia  attribulada.  Correndo  efpavoridos, 
os  que  deixavam  apreíTadamente  o  lar  domeftico,  eram  na 
fugida  falteados  pelas  denfas  cafarias,  que  defabando  os  fe- 
pultavam  no  caminho.  A  anarchia  do  terror  correfpondia 
cabalmente  ao  defpotifmo  da  natureza.  Todas  as  clalTes  e 
condições  fociaes  andavam  mefcladas  e  confufas,  efqueci- 
das  as  antigas  e  odiofas  diftincções.  As  freiras,  que  em  nu- 
mero efpantofo  povoavam  n'aquelle  tempo  os  conventos  e 
morteiros  de  Lifboa,  divagavam  pela  cidade,  preferindo  á 
claufura  cenobitica  nos  arruinados  edifícios  a  mundana  liber- 
dade. Os  que  podiam  com  o  trabalho  acudir  a  refrear  os 
eftragos  recrecentes,  fugiam  aíTombrados  pela  inopinada  e 
tremenda  convulíão.  Deiertavam  os  foldados,  antepondo  o 
terror  á  obediência.  Os  bandoleiros,  que  laíam  das  cadeias  ar- 
razadas,  furgiam  de  feus  antros,  pretendendo  que  a  povoação, 
inteiramente  defamparada,  lhes  deixaíTe  livre  o  campo  ás  fuás 
depredações,  e  andavam  efpalhando  entre  o  defanimado  po- 
vo, que  reftava,  as  vozes  accommodadas  a  exacerbar  a  geral 
confternação.  Novas  e  mais  violentas  vibrações,  diziam  elles, 
iam  em  breve  derrocar  o  que  de  rotos  ou  alquebrados  edifí- 
cios ainda  podia  offerecer  abrigo  e  habitação.  Os  reftos  da  ci- 


Ai  sU 

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9° 

dade  voariam  no  ultimo  dcftroço,  quando  á  pólvora  exiítente 
no  Caítello  chegaíTe  o  incêndio,  que  lavrava  impetuofo.  Indis- 
cretos e  fanáticos  pregadores,  indoutos  clérigos  ou  frades  im- 
prudentes, cruzavam  pelas  ruinas,  funeftos  Savonarolas,  ater- 
rando com  fuás  declamações  e  prophecias  os  efpiritos  do 
vulgo  propenio  á  credulidade  e  ao  defanimo.  Exhortavam  o 
povo  a  procurar  nos  campos,  com  a  penitencia  e  a  expiação, 
o  feguro  contra  o  braço  vingador  do  Omnipotente,  indigna- 
do pelas  iniquidades  e  torpezas  da  nova  Sodoma  do  Occi- 
dente.  Nem  o  incêndio  de  Roma,  em  tempos  de  Nero,  com 
a  fua  vafta  defolação  encarecida  na  eloquente  hypotypofe 
de  Cornelio  Tácito,  poderia  porventura  raftrear  em  fugitiva 
femelhança  o  terror  e  a  devaftação  da  cidade  portugueza. 
Com  inteira  propriedade  quadravam  ás  fcenas  tremendiíTi- 
mas  do  terremoto  as  palavras,  em  que  o  facundo  hiftoriador 
debuxou  n'aquelle  paflb  a  pavorofa  condição  da  gente  ro- 
mana". 

No  meio  de  tão  nefaífa  calamidade,  qual  nunca  experi- 
mentara nenhuma  populofa  capital,  não  era  para  extranhar 
que  fe  abatelTem  os  ânimos  da  mais  aceirada  fortaleza.  No 
meio  das  tormentas  da  matéria,  não  era  de  certo  defnatural 
que  as  ofcillações  do  efpirito  efcureceíTem  e  entibiafem  a  von- 
tade mais  enérgica.  Um  homem  fó,  porém,  refiftia  inexpu- 
gnável ao  tremendo  contagio  do  terror.  Era  Sebaífião  Jofé 
de  Carvalho  e  Mello.  Figuremos  a  um  general,  que  no  mo- 
mento deciíivo  de  uma  grandiffima  batalha  vê  as  luas  co- 
lumnas  repellidas  e  efmagadas  pela  artilheria  e  pelas  cargas 
dos  feus  adverfarios,  as  tropas  ainda  ha  pouco  mais  dcflemi- 
das  e  briofas,  a  ennovelarem-fe  n'um  impetuofo  turbilhão 
diante  da  procella  irrefiftivel  de  milhares  de  ginetes  inimigos, 
e  que  no  meio  do  geral  deftroço  e  confufão,  ante  a  orchellra 


i  acito,  .Innal.,  lib.  xv,  J)  38. 


9' 

infernal  de  cem  canhões,  rellrugindo  a  unilbna  trovoada  dos 
combates,  n'um  campo  alaítrado  de  acer\'os  de  cadáveres, 
fob  uma  abobada  cerrada  de  projedeis,  que  em  mil  direcções 
eftão  cortando  os  ares,  vendo  cair  junto  de  fi  os  mais  prcítan- 
tes  officiaes  do  feu  eftado  maior,  conferva  o  efpirito  defan- 
nuveado,  tranquillo,  inabalável,  penlador  e  difpõe  com  a  fua 
rápida  e  previdente  comprehenlao,  como  por  methodica  e 
legura  retirada  pôde  ainda  falvar  as  relíquias  do  exercito 
e  fazer  menos  funefto  o  terrivel  defbarato.  Tal  fe  moftra  o 
animolb  miniftro  de  D.  Joíe.  Tudo  ofcilla  em  volta  d'elle,  a 
terra,  o  mar,  as  caías  mais  humildes  e  os  palácios  mais  Ib- 
berbos;  íó  o  leu  animo  não  treme,  nem  vacilla  a  lua  vonta- 
de. E  como  um  d'eítes  rochedos  altiffimos,  aprumados,  que 
nas  margens  do  Oceano  fe  levantam,  e  contra  cujas  efcarpas 
embatem  em  vão  ha  milhares  de  annos  as  vagas  efcumofas, 
fem  confeguirem  aluir  e  defthronar  o  gigante  inquebrantável. 
O  rei  tremia,  como  a  terra,  como  o  Oceano.  Em  pé,  dian- 
te d'elle,  com  a  figura  grave,  dominadora,  majeflofa,  eífava 
o  impávido  miniftro.  Nunca  a  obfcura  majeftade  do  acalb  foi 
mais  pequena  e  mais  humilde  perante  a  majeftade  radio- 
la do  talento.  O  rei,  eftupefado  e  irrelbluto,  pergunta  ao  feu 
miniftro,  o  que  havia  de  fazer  n'aquelle  trance  dolorolb.  A 
tradição  refere  que  a  refpofta  foi  lacónica  e  peremptória : 
«Sepultar  os  mortos  e  cuidar  dos  vivos».  Verdadeira  ou  fabu- 
lada, refumiu  efta  expreíTão  toda  a  incrível  energia  do  grande 
reftaurador  n'aquella  tremenda  conjuncção.  Logo  no  mefmo 
dia  do  terremoto  as  ordens  e  as  providencias  partem  das  fuás 
mãos,  como  raios  de  luz  de  um  foca  intenfo  e  inextinguivel. 
Nada  efcapa  á  actividade  e  penetração  do  feu  efpirito.  E 
elle  como  o  centro  de  toda  a  vida  nacional;  o  coração  ainda 
palpitante  de  todo  aquelle  organifmo  em  convulfão.  As  nu- 
merofas  vidimas  da  cataftrophe  jaziam  foterradas  nos  es- 
combros. Temia-fe  que  a  infecção  accrefcentaífe  á  ruina  e  ao 


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9^ 

fogo  a  epidemia.  Mas  a  cidade  era  então  quafi  delerta.  Ás 
tropas,  que  iVella  eftavam  de  guarnição,  fe  expediram  as  or- 
dens mais  urgentes  para  que  procedeíTem  ao  defentulho  e  fe 
empregaíTem  egualmente  em  extinguir  os  incêndios  e  impe- 
dir que  de  novo  fe  ateaíTem  nos  edifícios  ainda  illefos.  Ex- 
hortam-fe  os  ecclefiafticos  regulares  e  feculares  a  que  dêem 
fepultura  aos  que  pereceram. 

A  fome  eítava  ameaçando  confummar  a  obra  do  terremo- 
to. Acode  Sebaftião  de  Carvalho  com  difcretas  providencias 
a  fazer  conduzir  para  Lifboa  a  maior  copia  de  provifões. 
Acautela  com  feveras  determinações  o  monopólio  e  traveíTia 
dos  mantimentos.  Provê  á  fua  juíta  e  equitativa  repartição 
pela  gente  popular.  Sufpende  todas  as  taxas,  que  pefavam 
nos  comeftiveis  á  fua  entrada  na  cidade,  e  confegue  que  a 
abundância  vá  defterrando  as  ameaças  da  extrema  penúria 
e  efcaíTez. 

N'aquelles  tempos  de  ominofo  defpotifmo  não  havia  ci- 
dadãos. Não  podia  tampouco  exiftir  aquella  fundamental 
inftituição,  que  faz  da  cafa  de  uma  familia  ainda  a  mais 
defherdada  e  defvalida,  o  feu  alcaçar  impenetrável  aos  ex- 
tranhos.  Pelo  odiofo  privilegio  da  apofentadoria  aífiva,  po- 
diam as  claíTes,  que  o  disfruítavam,  expellir  do  próprio  lar 
a  quem  n'elle  vivia  anteriormente.  Pelo  encargo  fervil  da 
apofentadoria  paíTiva,  era  obrigado  o  homem  do  povo  a  dei- 
xar a  fua  habitação  para  que  a  vieíTe  occupar  o  arrogante 
privilegiado.  Sebaftião  de  Carvalho  fufpende  por  iniqua 
efta  oppreíTora  prerogativa  e  mantém  o  ufo  do  próprio  domi- 
cilio aos  que  a  fortuna  exceptuara  da  commum  deftruição. 

Dá  ordem  o  miniftro  vigilante  a  que  fe  reftabeleçam  no 
vigor,  que  demanda  a  conjuntura,  as  varias  citações,  de  que 
pende  a  adminiftração.  Provê  á  proviforia  accommodação 
das  repartições  e  tribunaes,  cujos  edifícios  os  eftragos  do  ter- 
remoto fizeram  incapazes  de  habitação.  Emprega  os  meios 


93 

fuaforios  ou  coadivos  para  que  voltem  á  cidade  os  que  n'ella 
tem  de  trabalhar  nas  obras  mais  urgentes. 

A  defordem  e  confufão,  determinada  pelo  fucceffo  tre- 
mendiíTimo,  eftava  provocando  a  anarchia  na  capital.  Era 
antes  de  tudo  neceíTario  o  acudir  á  paz  e  fegurança  de  Lis- 
boa. Ordena  o  eftadifta  que  fe  concentrem  na  cidade  as  tropas 
indifpenfaveis  á  policia  e  ao  trabalho.  Manda  vir  aprcíTada- 
mente  o  regimento  de  dragões  de  Évora,  e  os  regimentos  de 
infanteria  de  Setúbal,  de  Peniche  e  de  Cafcaes,  e  o  que  ti- 
nha por  coronel  o  conde  de  Soure. 

A  repreíTão  e  o  caftigo  dos  ladrões  e  malfeitores  era  a 
mais  inílante  neceflldade.  Urgia  que  a  cidade,  onde  a  lei  e 
o  poder  haviam  padecido  momentânea  interrupção,  fe  pur- 
gaíTe  d'aquella  nova  calamidade,  que  ia  acrefcentando  ás 
ruinas  caufadas  pelo  mal  inevitável  os  damnos  produzidos 
pelo  crime.  Delega-fe  para  cada  bairro  um  magiítrado  fu- 
perior,  que,  auxiliado  pelas  tropas,  ponha  em  eftreito  cerco 
e  á  mefma  hora  em  todas  aquellas  circumfcripções  colha  ás 
mãos  da  juftiça  os  bandoleiros.  N'aquella  occafião,  ceifando 
as  leis  ordinárias  e  fendo  inexequíveis  as  formas  de  proceífo, 
é  precifo  que  o  terror  aífombre  os  defnaturados  falteadores 
e  homicidas.  A  lei  marcial,  de  que  os  governos  abufam  tan- 
tas vezes  cruelmente  para  fegurar  contra  o  voto  popular  a 
tyrannia,  é  d'eíla  vez  poíta  a  ferviço  da  miferavel  e  aíílida 
humanidade.  E  terrível  o  julgamento  dos  culpados.  Nos  dif- 
ferentes  bairros  de  Lifboa  levantam-fe  patíbulos  de  grande 
altura,  e  os  corpos  dos  padecentes  ficam  ali  por  largos  dias, 
como  exemplo  e  terror  a  novos  attentados. 

Mas  os  ladrões  podem,  fugindo  a  tempo  da  cidade,  ir  es- 
conder feus  latrocínios  longe  d'ella,  internando-fe  no  paiz  ou 
faindo  pelo  Tejo.  Acode  o  miniífro,  que  diríamos  quafi  omni- 
vidente,  ordenando,  que  a  ninguém  fe  permitta  o  fair  da  capi- 
tal ou  tranfitar  pelas  provindas  fem  as  mais  rigorofas  caute- 


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94 

las  policiaes.  Multiplicam-fc  as  rondas  pelo  rio  para  que 
ninguém  fe  traflade  á  margem  meridional.  Redobra-fe  a  vigi- 
lância nas  torres,  que  defendem  a  foz  do  Tejo,  para  que  não 
faia  nenhuma  embarcação.  Dão-fe  bufcas  feveras,  minuciofas 
em  todos  os  navios  furtos  no  porto  de  Lifboa.  Chegara  nova 
de  que  chavecos  argelinos,  que  n'aquelle  tempo  infefta- 
vam  com  feu  corfo  as  coitas  de  Portugal,  fe  apparelhavam  a 
prear  nas  ruinas  da  cidade.  Manda  o  miniftro  aperceber  con- 
tra os  corfarios  a  neceífaria  defenfão. 

Erravam  pela  trifte  povoação  os  vagabundos,  na  maior 
parte  ciganos  e  defertores,  gentes  fem  lar  e  fem  ofíicio,  que 
não  fendo  ainda  abertamente  incurfos  em  delido,  podiam 
n'um  momento  avuhar  ainda  mais  os  execrandos  facrilegios 
dos  que  eram  já  profeífos  na  rapina.  Ordena  o  miniftro 
pelo  decreto  de  4  de  novembro,  que  fejam  prelos  e  conde- 
mnados  a  trabalhar  com  braga  nas  obras  mais  urgentes,  fem 
que  efta  didatoria  penalidade  lhes  irrogue  de  futuro  a  infâ- 
mia do  caftigo. 

Prefcreve  Sebaftião  de  Carvalho  as  regras  mais  prom- 
ptas  e  falutares  para  que  fe  reftituam  a  feus  donos  as  peças 
e  valores,  de  que  os  bandidos  tinham  defvalifado  as  cafas  ar- 
ruinadas ou  defertas  nos  primeiros  momentos  da  cataftrophe. 

Recolhem-fe  próvidamente  quantos  viveres  fe  podem  en- 
contrar nas  ruinas  de  Lifboa,  e  fão  poftos  a  bom  recado 
para  fe  repartirem  ao  povo  neceíTitado.  Manda  o  miniftro 
vir  para  a  capital  a  maior  copia  de  mantimentos,  provendo 
ao  mefmo  paífo  á  lua  prompta  conducção  pela  terra  e  pelo 
rio,  embargando,  fem  excepção  das  mais  qualificadas  perfo- 
nagens,  quantos  barcos  e  tranfportes  fe  fazem  neceífarios. 

Aífegurada  em  poucos  dias  a  cidade  contra  os  progreíTos 
do  incêndio  voracilTimo,  contra  as  depredações  dos  bando- 
leiros, contra  a  fome  e  o  contagio,  reftaurada  a  publica  au- 
doridade,  reftituido  ao  feu  movimento,  agora  mais  enérgico, 


1  I 


93 

o  mechanifmo  do  governo,  vencido  o  terror  da  povoação 
pelas  providencias  do  miniftro,  o  primeiro  cuidado,  que 
defvela  o  incanfavcl  legiflador,  é  a  mais  prompta  reedifica- 
ção  da  aíTolada  capital.  Agora  fão  as  providencias  para  fa- 
zer tranfitaveis  as  ruas  e  as  praças  de  mais  urgente  ferventia, 
que  o  terremoto  convertera  em  acervos  de  ruinas  e  de  entu- 
lhos. Emprega  n'eíl:as  obras,  além  de  numerofos  trabalhado- 
res, grande  copia  de  artilheiros  e  íbldados  de  infanteria.  Ago- 
ra fe  prohibc  o  edificar  no  íblo  das  habitações  já  demolidas 
emquanto  fe  não  decreta  o  plano  regular  das  novas  conftruc- 
ções.  Agora  fe  eftatuem  as  regras,  fegundo  as  quaes,  depois 
das  exaftas  medições  executadas  por  hábeis  engenheiros,  fe 
dgve  defcriminar  no  meio  do  efpantolb  labyrinto  de  rui- 
nas e  deftroços  o  terreno,  que  pertence  a  cada  proprietário. 
Agora  fe  faculta  o  acudir  com  os  reparos  mais  urgentes  aos 
prédios,  que  deixara  o  terremoto  ainda  habitáveis.  Agora  fe 
procura  abaratar  o  falario  dos  obreiros,  e  o  preço  dos  mate- 
riaes,  prevenindo  os  monopólios,  exemptando  de  tributos  as 
madeiras  deftinadas  ás  novas  edificações,  e  defendendo  o 
elevar  os  preços  das  fubfiftencias  além  da  taxa,  por  que  fe 
vendiam  no  mez  antecedente  á  efpantofa  calamidade.  Egual- 
mente  fe  prohibe  o  alterar  os  alugueres  das  calas,  que  ao 
terremoto  refiftiram  ainda  immunes,  e  a  renda  dos  terrenos 
deftinados  a  erigir  as  barracas  de  madeira  para  abrigo  provi- 
forio  da  mifera  população.  Para  que  o  terror  de  que  a  antiga 
cidade  feja  de  novo  convellida  e  arrafada  nas  luas  ultimas  re- 
líquias, não  induza  o  povo  a  edificar  em  fitios  mui  remotos, 
demarca  o  legillador  a  fuperficie,  em  que  é  licito  levantar  os 
novos  prédios.  Eftimula  pela  perfuafão  e  com  o  preceito  a 
dormente  energia  dos  moradores  a  que  proceda  cada  um  a 
erigir  fegundo  as  poífes  os  edificios  particulares. 

Como  fe  fora  para  manter  foUicito  e  vigilante  o  efpi- 
rito  do  grande  rcftaurador,  a  terra  continuava  fempre  a  es- 


96 

pertar-lhe  os  brios  e  o  valor,  tremendo  com  frequência,  fe 
bem  com  menos  temerofas  fecuíTões.  Eram  como  os  recon- 
tros e  efcaramuças  de  poftos  avançados  após  uma  batalha 
renhida  e  fanguinofa,  ficando  ainda  em  prefença  os  dois  in- 
conciliáveis contendores.  Era  vulgar  a  opinião  de  que  a  nova 
cidade  não  podia  levantar-fe  nas  ruinas  da  primeira'.  Quan- 
to mais  fe  ia  acercando  o  trifte  anniverfario  da  tremenda  ca- 
lamidade, mais  ia  também  tomando  corpo  o  terror  de  que 
uma  nova  e  mais  violenta  commoção  acabaíTe  de  tranfmu- 
dar  n'uma  vaftiíTima  necropole  a  antiga  e  florente  capital. 
Os  malfeitores  divulgavam  a  funeíta  prophecia  para  que  o 
povo,  em  grande  parte  já  então  reconduzido,  fugiíTc  nova- 
mente defanimado  e  largaíTe  a  povoação  á  rapacidade  infame 
dos  bandidos.  A  turba  dos  fanáticos,  não  menos  nefafta  que 
os  ladrões  e  vagabundos,  enfombrava  a  timorata  imaginação 
dos  populares  com  o  profpedo  das  novas  fcenas  de  horrorofa 
deítruição,  em  pena  e  expiação  de  fuás  mundanas  iniquida- 
des. Ficaria  Lif  boa  em  breves  dias  novamente  deferta  e  pos- 
ta a  facco  pelos  impenitentes  bandoleiros  a  quem,  fegundo 
fuccede  fempre  infelizmente,  o  exemplo  dos  fupplicios  mais 
atrozes  é  efteril  e  perdida  pregação.  A  efte  novo  lance  acode 
logo  a  providencia  do  incanfavel  didador.  Cerrem-fe  e  vi- 
giem-fe  as  portas  da  cidade  nas  vefperas  do  fatal  anniverfario. 
Appellidem-fe  as  tropas,  que  eítão  acampadas  nos  fuburbios. 
Declare-fe,  como  diríamos  agora,  o  eítado  de  fitio.  Períigam- 
fe,  prendam-fe,  cafliguem-fe  os  qvte  por  malvadez  ou  fanatis- 
mo andam  temerariamente  divulgando  em  povo  crédulo  as 
prophecias  de  uma  nova  e  mais  cruel  ofcillação.  Era  em  ver- 


I  «El-rei  eílava  determinado  a  reedificar  a  cidade  no  mefmo  logar  em 
que  eílava;  projeélo  que  lhe  parecia  inexequível,  comquanto  tiveffe  fido  refo- 
luto  e  decidido.»  Officio  do  embaixador  fi-ancez,  conde  de  Bachi,  para  o  feu  go- 
verno, de  i5  de  novembro  de  1755.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  G7. 

^-Ò- -Ó-l- 


4 


^ 


dade  fingular  a  doutrina  d'eftes  geólogos  do  crime,  ou  d'eí1:es 
naturaliftas  da  fimpleza,  que  n'aquella  edade  férrea  para  a 
Iciencia  em  Portugal  ajuftavam  os  terremotos  ao  movimento 
elliptico  da  terra,  e  attribuiam  a  um  phenomeno,  ainda  hoje 
obfcuro  em  fuás  cauías,  uma  empírica  lei  de  rigorofa  perio- 
dicidade. 

PaíTou  finalmente  o  dia  i .°  de  novembro  de  lySõ,  e  a 
terra  negando-le  d'efl:a  vez  a  ofcillar,  deixou  por  mentirofos 
os  vaticínios  das  lúgubres  lybillas,  e  reftabelecida  a  quieta- 
ção nos  efpiritos  débeis  e  crendeiros. 

Para  emprehender  a  prompta  edificação  da  capital  tor- 
navam-le  precifos  recurfos  extraordinários.  A  fazenda  publi- 
ca era  ainda  infufficiente.  Seriam  groíTos  os  difpendios  nas 
obras,  que  fe  intentavam.  Mas  o  foUícito  reformador  tinha 
entre  os  mais  acaudalados  homens  de  negocio  grande  credi- 
to. Propoz-lhes  o  concorrerem  com  algum  fi_ibfidio  valiofo 
para  a  breve  reftauração,  que  de  perto  lhes  tocava,  porque 
renafcida  Lifboa  mais  florente  e  voltando  a  fer  grande  ci- 
dade, a  favor  das  providencias  já  promulgadas  em  beneficio 
do  commercio  e  de  outras,  que  na  mente  já  trazia  o  provi- 
dente  legiflador,  engroíTaria  o  trafto  mercantil  e  a  riqueza 
brotaria  d'entre  a  própria  defolação.  Refponderam  os  mais 
opulentos  mercadores  aos  defejos  do  miniftro.  Oífereceram 
efpontaneo  o  donativo  de  quatro  por  cento  Ibbre  todas  as 
fazendas  entradas  nas  alfandegas. 

O  terremoto  fizera  os  feus  eftragos  mais  damnolbs  nos 
bairros  da  cidade,  que  decorriam  defde  o  Terreiro  do  Paço 
até  o  Rocio  pelo  valle  mui  dilatado  entre  o  monte  do  Cas- 
tello  e  o  de  Santa  Catharina.  Ali  fora  o  centro  da  adivida- 
de  e  do  commercio.  Ali  cumpria  também  reítabelecel-o  em 
fua  morada. 

Era  porém  agora  o  enfejo  de  fazer  redundar  em  me- 
lhoria e  beneficio  a  própria  calamidade.  O  terremoto  fize- 

eis 


4SÍ9 
-* .-<>-§. 

ra  fummariamente  como  que  a  improvila  expropriação  dos 
edifícios,  agora  convertidos  em  entulhos.  Era  bem  que  o  fo- 
lo  fe  aproveitaíTe  para  n'elle  erigir  decorofas  habitações  em 
ruas  alinhadas,  efpaçofas,  congruentes  a  uma  grande  e  civili- 
fada  povoação.  A  parte  da  cidade  quafi  inteiramente  arruina- 
da compunha-fe  de  um  inextricável  labyrinto  de  ruas  angu- 
lofas  e  apertadas,  de  becos  eftreitiffimos,  de  viellas  torpes  e 
efcuriíTimas,  de  arcos  numerofos,  como  o  dos  Pregos,  o  da 
Confolação,  o  dos  Barretes,  onde  o  ar  não  tinha  circulação, 
onde  a  luz  andava  em  mefquinho  monopólio  dos  andares 
mais  elevados,  onde  os  delpojos  inlalubres  e  hediondos  fe 
accumulavam  livremente  nos  alfuges,  infedando  a  povoação 
com  feus  miafmas.  Já  não  feria  dado  a  cada  um  levantar  o 
prédio  a  feu  talante,  como  outr'ora  ao  acafo  fe  tinham  fabri- 
cado as  demolidas  habitações.  Nivelaram  e  abalifaram  os  en- 
genheiros o  terreno.  Aplainou-fe  regularmente  a  fuperficie. 
Traçaram-fe  entre  a  nova  praça  do  Commercio  e  o  Rocio  as 
ruas  parallelas,  e,  para  aquelle  tempo,  de  grande  formofura  e 
majeftade.  Cortaram-fe  em  angulo  reíto  por  traveífas.  Efta- 
tuiu-fe  o  profpeíto  e  architedura,  que  deveriam  ter  as  fron- 
tarias.  Decretou-fe  a  maneira  de  expropriar  ou  como  então  fe 
dizia,  devaífar  e  fazer  publico  o  íblo,  que  nas  ruas  des- 
truidas  pertencia  a  cada  proprietário. 

Era  agora  chegada  a  occafião  de  reparar  os  damnos  do 
terremoto.  Começava  com  diligencia  inufitada  o  trabalho  da 
grande  reftauração.  Era  LilTDoa  então  como  um  vaftiíTimo 
arfenal,  uma  officina  commum  e  aítiviffima,  onde  os  mcílres 
e  os  obreiros  incanfaveis,  fob  as  viítas  vigilantes  do  miniftro, 
iam  defentranhando  das  ruinas  uma  grande  e  regrada  povoa- 
ção. Emquanto,  porém,  as  novas  e  mais  decorofas  habitações 
não  furgem  á  poderofa  evocação  do  grande  reftaurador,  tcm- 
fe  levantado,  como  proviforios  domicilios  nos  logares  accom- 
modados,  numerofas  barracas  de  madeira,  que  fubfhlucm 

-l-A- -è^ 


99 

as  egrejas,  os  palácios,  as  moradas.  Mais  de  nove  mil  fe  con- 
tavam já  poucos  tempos  depois  do  terremoto. 

Não  foram  certamente  mui  conformes  aos  princípios  da 
liberdade,  nem  ajurtadas  pelas  normas  da  economia  politi- 
ca, as  providencias,  com  que  Sebaftião  de  Carvalho  acudiu 
a  remediar  a  terrível  calamidade.  A  coacção  é  o  feu  inífru- 
mento  predilefto.  O  eífado,  fegundo  o  conceito  do  miniftro, 
fobrepõe-fe  a  todos  os  direitos  individuaes.  O  governo  é  não 
fomente  a  cabeça  politica  da  fociedade,  mas  é  nas  multifor- 
mes relações  da  vida  económica  e  focial  o  feu  abfoluto  guia 
e  diredor.  Ninguém  pôde  vender,  nem  alugar,  fenão  pelas 
taxas  que  elle  impõe.  Ninguém  pode  edificar,  fenão  quando 
elle  o  permittir  ou  ordenar.  A  lei  da  concorrência  defappare- 
ce  revogada  pelas  feveras  prefcripções  do  autocrata  legifla- 
dor.  A  expropriação  do  folo  particular  é  feita  fem  compenfa- 
ção  pecuniária.  O  governo  patriarchal  reapparece  em  toda  a 
fua  illimitada  e  primeva  aufloridade.  E  uma  femelhança  de 
focialifmo,  em  que  o  eftado  ordena  a  cada  um  o  c|ue  deve 
ceder  em  commum  proveito.  A  liberdade  civil  foge  efpavori- 
da,  d'onde  os  foros  políticos  deixaram  o  feu  logar  ao  poder 
abfoluto  de  um  fó  legiflador.  E  Carthago,  edificada  pelos  co- 
lonos fugitivos  da  Phenicia,  fob  o  mando  imperativo  da  rai- 
nha, na  formofa  epopêa  de  Virgílio.  Tudo  é  regulado  pelo  nuto 
de  quem  manda ;  o  preço  dos  mantimentos,  o  valor  dos  mate- 
riaes,  a  taxa  dos  falarios.  Attentemos,  porém,  em  que  o  poder 
real  tinha  em  fi  habitualmente  concentradas  todas  as  faculda- 
des legiflativas,  ainda  mefmo  quando  a  fociedade  vivia  quieta 
e  focegada.  Lembremo-nos  de  que  a  liberdade  politica,  lon- 
ge de  exiftir,  era  quafi  reputada  um  facrilegio  contra  o  mo- 
narcha,  vigário  e  logar  tenente  de  Deus  no  governo  tempo- 
ral. Confidcrcmos  que  a  economia  publica  em  grande  parte, 
ainda  em  tempos  de  paz  e  de  abundância,  pendia  do  fupre- 
mo  arbítrio  do  imperante,  e  que  o  commercio  livre  e  a  li\'re 


tis 


induftria  não  podiam  exercer-fe  n'um  paiz,  onde  os  officios 
eram  corporações  ciofas  e  cerradas.  No  defanimo  geral,  em 
que  o  terremoto  deixara  a  povoação,  já  de  íi  inclinada  á  in- 
dolência, com  o  egoifmo  infrene,  que  fempre  nafce  das  gran- 
des calamidades,  aos  males  do  terremoto  vieram  acrefcer  as 
mais  graves  perturbações  da  fociedade.  Lifboa,  nos  dias  que 
feguiram  o  i.°  de  novembro,  era  como  uma  cidade  fitiada. 
Todos  os  poderes  e  jurifdicções  deviam  enfeixar-fe  nas  mãos 
de  quem  podeíTe  alevantar-fe  acima  das  ruinas,  e  impor  á  fa- 
talidade o  feu  talento,  e  ao  terror  a  lua  vontade.  A  diótadura 
era  inevitável  n'aquelle  trance.  As  leis  normaes  da  econo- 
mia fão  como  a  hygiene  regular  dos  corpos  fociaes,  emquan- 
to  fãos.  Quando  chegam,  porém,  as  terríveis  enfermidades,  é 
precifo  combater  por  algum  tempo  a  defordem  da  natureza 
com  recurfos  efficazes,  mas  difcordantes  da  ordem  habitual. 
Sebaftião  de  Carvalho  é  pois  benemérito  da  pátria,  da  hiflo- 
ria,  da  humanidade,  porque,  fem  exemplo  que  feguir,  nem 
modelo  que  imitar,  faz  furgir  da  potente  energia  do  feu  efpi- 
rito  a  força  que  levantou  de  feus  efcombros,  para  a  entregar 
de  novo  á  paz,  ao  trabalho  e  á  opulência,  a  lacrymofa  capital. 
As  promptas  e  efficazes  providencias,  com  que  fem  re- 
poufo  o  miniftro  de  D.  Jofé  acudira  com  remédios  faluta- 
res  aos  damnos  do  terremoto,  dcfpertaram  em  nacionaes  e 
extrangeiros  a  mais  imparcial  admiração.  Os  agentes  acre- 
ditados na  corte  de  Lifboa  não  amcfquinhavam,  relatando-os 
aos  feus  governos,  os  ferviços  relevantes,  que  a  elles  próprios 
redundaram  em  faudaveis  benefícios'.  Os  mais  fanhudos  ini- 


I  «Que  as  providencias,  que  fe  liaviam  tomado  para  abaftecer  de  viveres 
a  cidade,  para  enterrar  os  mortos,  atalhar  os  roubos  e  refrear  o  zelo  indiícre- 
to  dos  pregadores  fanáticos,  que  eram  também  outro  género  de  flagello,  tinham 
fido  prudentes  e  efficazes.»  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi, 
para  o  feu  governo,  de  8  de  novembro  de  1735.  Quadro  elementar;  tom.  vi, 
pag.  G6.  «Que  fe  devia  fazer  juftiça  ao  miniflerio  ou  antes  ao  miniftro  Carvalho 


migos  do  miniftro,  nos  efcriptos  de  mais  cruel  objurgação, 
dellembram  por  momentos  o  feu  ódio  para  não  elcatima- 
rem  n'efte  ponto  o  leu  louvor  ás  providencias  decretadas; 
attribuem-n'as  porém  principalmente  por  uma  ficção  adula- 
dora á  diligencia  do  monarcha. 

Já  antes  do  terremoto  as  faculdades  fuperiores  de  Carva- 
lho o  tinham  levantado  acima  dos  feus  collegas  na  opinião 
e  na  confiança  do  feu  rei.  Mas  defde  aquelle  dia  fempre  me- 
morável, em  que  o  impávido  minil1:ro  fora  para  o  povo  e  pa- 
ra o  rei  a  providencia  e  a  falvação,  eil-o  de  faflo  conftituido 
na  mais  alta  eminência  do  governo.  Não  é  ainda  o  primeiro 
miniftro  por  diploma,  mas  c  já  na  auirtoridade  o  fupremo  de- 
pofitario  do  poder.  E  como  um  audaz  mordomo  de  palácio 
junto  de  um  novo  carlovingio,  contrapeíando  pela  fua  inde- 
feíTa  actividade  a  indolência,  e  pelo  feu  talento  admirável  a 
curteza  do  efpirito  real.  Poucos  tempos  depois  do  terremoto 
o  fecretario  de  eftado,  Pedro  da  Motta,  efconde-fe  no  tumulo 
e  deixa  vago  a  Sebaftião  de  Carvalho  o  feu  logar.  Era  ape- 
nas uma  fombra,  que  defapparecia,  e  não  um  eftadifta,  que 
legara  o  officio  a  um  fucceíTor.  Da  fua  antiga  repartição 
paífava  Carvalho  para  a  dos  negócios  interiores  do  reino,  e 
aífumia  fegundo  o  eftylo  obfervado  a  dignidade  e  as  funcções 
de  primeiro  miniftro.  D.  Luiz  da  Cunha,  que  era  então  en- 
viado portuguez  em  Inglaterra,  afcendia  a  5  de  maio  de 
1756  a  miniftro  dos  negócios  extrangeiros  e  da  guerra,  e, 
devotado  como  era  ao  feu  novo  c  poderofo  companheiro, 
e  mediano  de  talento  e  de  energia,  entrava  a  fer  o  agaloa- 
do amanuenfe,  o  fiel  executor  das  ordens  e  arbítrios  de  Car- 
valho. 


que  ordenara  promptas  e  bem  entendidas  providencias  no  meio  d'aquclla  cala- 
midade geral;  que  a  abundância  reinava  na  cidade  fem  careítia.»  Officio  do 
mefmo  embaixador,  de  ii  de  novembro  de  ijb5.  Qitadrn  elementar,  tom.  vi, 
pag.  66. 


cl) 


1  > 


1  r 

eis 


A  nova  da  cataftrophe,  ainda  exaggerada  pela  fama,  voa- 
ra pela  Europa,  confternando  os  extranhos,  que  fuppunham 
deftruida  inteiramente  a  famofa  e  opulenta  capital.  A  geral 
commiferação  não  ficou  inferior  á  graveza  do  infortúnio. 
Apreffou-fe  a  Gran-Bretanha  por  um  ado  do  parlamento  a 
enviar  a  Lifboa  fubliftencias  e  dinheiro,  com  que  folTe  mais 
fácil  occorrer  ás  urgências  de  tão  efpantofa  calamidade. 
Defpachou  a  lord  Townfend  em  extraordinária  legação  para 
que  fignificaffe  á  corte  portugueza  a  laftima  fincera  do  leu 
alliado  mais  antigo.  Segundo  as  mais  auftorifadas  relações  a 
liberalidade  compaffiva  da  Inglaterra  mandou  de  prefente  ao 
povo  de  Liftoa  duzentos  mil  alqueires  de  trigo  e  outros  tan- 
tos de  farinha,  féis  mil  barricas  de  carne  falgada,  quatro  mil 
de  manteiga,  arroz  e  bolacha  em  grande  copia  e  um  crefcido 
material  de  utenfilios  e  ferramentas  neceíTarias  para  as  obras 
coloffaes,  que  em  Lifboa  começavam  com  grande  celeridade. 
Aos  navios  de  guerra,  que  traziam  efte  generofo  donativo, 
mandara  o  governo  de  Inglaterra  que  ficaífem  ás  ordens  de 
el-rei  de  Portugal".  Era  o  prefente  direitamente  remettido  ao 
miniftro  de  D.  Jofé.  O  gabinete  de  Londres,  receiando  que  o 
príncipe  orgulhofo  o  recufaífe,  fe  lhe  foífe  peífoalmente  diri- 
gido, accordára  em  que  foífe  feita  a  dadiva  ao  miferrimo 
povo  de  Lifboa.  Não  foi  menos  foUícita  a  Hefpanha  nos  feus 
caritativos  otferecimentos.  Os  vínculos,  que  prendiam  aos 
Bourbons  a  familia  reinante  em  Portugal,  eítimulavam  a  cor- 
te de  Madrid  a  foccorrer  a  devaftada  povoação. 

O  rei  de  França,  Luiz  XV,  egualmente  fe  deu  preífa 
em  efcrever  ao  feu  bom  irmão  de  Portugal,  oíferecendo-lhe 
como  prova  da  lua  inquebrantável  amifade  quanto  era  em 
feu  poder  para  minorar  as  neceífidades  e  angullias  do  paiz 
em   tão   inopinada   e   laítimofa   provação.  Ordenou   egual- 


QuaJro  elementar,  tom.  xviii,  png.  363. 


mente  ao  feu  embaixador  que  renovaíTe  de  viva  voz  o  régio 
oíferecimento  de  um  copiofo  donativo  de  dinheiro".  Não  eram, 
porém,  livres  de  toda  a  Ibmbra  de  egoilmo  os  bons  officios 
do  governo  francez  n'aquella  defgraçada  conjundura  Inflava 
defde  muito  com  o  gabinete  de  Lifboa  para  que  entre  as  duas 
nações  fe  concluiíTe  um  tratado  de  commercio,  cujas  negocia- 
ções fe  liaviam  iniciado  defde  lySg. 

Parece  que  ao  minifterio  francez  fe  antolhava  então  mais 
fácil  o  caminho  de  alcançar  o  que,  apefar  dos  feus  esforços 
diplomáticos,  não  havia  podido  confeguir.  Suppunha-fe  que 
tendo  ficado  exhauridas  inteiramente  as  arcas  do  régio  íifco 
e  impoíTibilitado  o  apercebimento  de  frotas  portuguezas  para 
o  Brazil,  feria  aquelle  o  mais  opportuno  enfejo  para  que  a 
França  por  uma  hábil  negociação,  e  a  favor  de  alguns  Ibccor- 
ros  de  dinheiro  em  lance  de  tanto  aperto,  achaífe  compla- 
cente aos  feus  defejos  o  governo  portuguez-. 

Percebeu  Sebaítião  de  Carvalho,  que  o  acceitar  os  oífe- 
recimentos  feitos  a  D.  Jofé  pelo  próprio  Luiz  XV,  poderiam 
conífituir  Portugal  em  perigofa  dependência  para  com  uma 
corte,  com  quem  não  eram  eftreitas  e  cordiaes  em  fummo 
grau  as  noífas  relações.  Bufcou  maneira  de  protelar  a  ac- 
ceitação  com  palavras  de  grande  cortezia  e  delicado  reco- 
nhecimento á  lembrança  affeduofa  do  chefe  dos  Bourbons. 
Primeiro  lhe  declarou  com  politica  fimulação,  que  fe  ao  rei 
de  Portugal,  nas  laftimofas  condições  do  feu  paiz,  o  eítreitas- 
fe  a  neceífidade,  não  teria  duvida  em  recorrer  ao  foberano 
cbrirtianiffimo  para  que  o  ajudaíTe  com  dinheiro,  architedos, 
ou   outros  indifpenfaveis  fubfidios  para  acudir  á  prompta 


■  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  72. 

2  Memoria  junta  ao  dcfpacho  do  miniftro  dos  negócios  extrangeiros  em 
França,  Rouillé,  ao  embaixador  francez  em  Lifboa,  de  7  de  dezembro  de  1557. 
Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  73. 


(|3 


eis 


104 

reedificação'.  Repetiram-fe  as  inftancias,  ao  parecer  amora- 
veis  e  finceras,  do  embaixador  francez  para  que  Portugal 
acolheíTe  favoravelmente  o  generofo  oíferecimento,  até  que 
fendo  já  entrado  o  mez  de  março  de  lySõ,  fe  refolveu  Se- 
baílião  de  Carvalho  em  declinar  expreffamcnte  os  auxílios 
officiofos  do  Bourbon.  A  relpofta  do  miniftro  foi  de  quem 
fabia  manter,  no  auge  da  publica  miferia,  entre  efcombros 
ainda  quafi  fumegantes,  no  meio  da  fituação  mais  dolorofa, 
a  dignidade  e  fidalguia  da  nação,  a  qual,  ainda  mefmo  reduzi- 
da á  jaftura  e  miferia  derradeira,  não  havia  de  eftender  a  mão 
humilde  e  mendicante  á  efmola  de  quem  parecia  mcfclar  á  ca- 
ridade a  efperança  do  retorno.  Refpondeu  Carvalho  digna- 
mente que  os  offerecimentos  delicados  os  agradecia  Portugal, 
como  fe  realmente  fe  viífe  forçado  a  ufar  d'elles ;  que,  porém, 
os  feus  alliados  fe  tinham  enganado,  exaggerando  a  fituação 
depois  do  terremoto ;  que  fora  em  verdade  immenfo  o  damno, 
que  tão  grande  calamidade  produzira;  mas  que  era  princi- 
palmente o  luxo,  que  teria  de  padecer  as  forçofas  confequen- 
cias  da  cataftrophe.  Haveria  menos  faufto,  feriam  menos  nu- 
merofos  e  mais  modeítos  os  palácios,  menos  fumptuofas  as 
alfaias,  os  coches,  os  painéis,  as  tapeçarias.  Volveria  Portugal 
á  antiga  fimpleza  no  viver.  As  egrejas  leriam  menos  grandiofas 
e  opulentas,  com  o  que  Deus  mais  fe  pagaria  de  culto  menos 
pompofo.  Os  fidalgos,  cujas  magnificas  habitações  o  terremo- 
to ou  o  incêndio  tinham  aíTolado,  iriam  cultivar  as  fuás  terras, 
deixada  a  ociofidade  cortezan  pela  ciiligencia  produétiva  do 
trabalho.  O  commercio  haveria  de  renafcer,  e  o  Brazil,  que  era 
um  thefouro  inexhaurivel,  compenfaria  largamente  no  futuro 
a  adual  efcaífefa  e  neceífidade-.  O  difcurfo  de  Sebaftião  de 


1  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bacht,  para  o  feu  governo,  de 
3i  de  dezembro  de  1755.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  76. 

2  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  para  o  feu  governo,  de 
9  de  março  de  1756.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  81. 


io5 

Carvalho,  ao  embaixador  francez,  fe  bem  defconcertaria  de 
algum  modo  os  intentos  diplomáticos  da  França,  provocou 
da  parte  do  governo  de  Luiz  XV  o  louvor  aos  dotes  emi- 
nentes do  fecretario  de  eítado  portuguez.  As  fuás  reflexões 
fobre  os  eífeitos  económicos  do  terremoto  eítavam,  dizia  o 
miniftro  Rouillé,  denunciando  que  Sebaftião  de  Carvalho  era 
ao  mefmo  paíTo  um  eftadifta  e  um  philofopho  chriflão'. 
O  miniftro  não  diíTimulava  todavia  as  luas  duvidas  de  que 
fe  realifalfem  as  rifonhas  perfpeftivas  do  grande  reformador. 
A  cidade,  levantada  em  breves  annos  d'entre  as  ruinas,  a 
induftria  e  o  commercio  já  florente,  a  riqueza  publica  favore- 
cida pelas  enérgicas  e  illuminadas  providencias  de  Carva- 
lho, deixariam  em  poucos  annos  por  infubfiftentes  e  fallazes 
os  receios  do  gabinete  francez. 

CAPITULO  V 

PRIMEIRAS   INCURSÕES  CONTRA  OS  JESUÍTAS 

Não  é  fácil  difcernir  fe  o  miniftro  de  D.  Jofé  teria  defde 
longos  annos  ou  logo  em  princípios  do  feu  governo  as  pre- 
venções e  as  malquerenças,  que  depois  o  infpiraram  a  travar 
com  os  jefuitas  uma  porfia  tormentofa,  na  qual  um  dos  dois 
poderofos  contendores  haveria  forçofamente  de  cair.  Se  não 
fão  dignas  de  todo  o  credito  as  narrações,  em  que  os  feus  ad- 
verfarios  mais  cruéis  o  figuram  cortejando  a  Companhia  para 
infinuar-fe  na  confiança  e  patrocínio  dos  jefuitas,  confeífores 
ou  confidentes  dos  foberanos,  e  alcançar  por  feu  favor  a  en- 
trada no  minifterio,  não  fe  pôde,  cm  face  de  irrecufaveis  do- 


'  Defpacho  do  miniflro  dos  negócios  cxtrangeiros,  em  França,  para  o  em- 
baixador francez  em  Lifboa,  de  6  de  abril  de  lySô.  Quadro  elementar,  tom.  vi, 
pag.  82. 


4S^ 
-• ^ -Ò-l- 


lOD 


cumentos,  conteftar  que  no  animo  de  Carvalho  até  pouco 
depois  do  terremoto  não  eftaria  ainda  encruecida  a  profunda 
defaífeição  ou  ódio  implacável  contra  a  poderola  Compa- 
nhia, ou  que  ao  menos  o  miniftro  íàberia  aftutamente  diíTi- 
mular  as  fuás  intenções  até  fer  chegado  o  momento  opportu- 
no  de  proftrar  o  feu  tremendo  antagonifta. 

Logo  após  o  terremoto  vemol-o  ordenar  ao  miniftro  por- 
tuguez  em  Roma,  António  Freire  de  Andrade  Encerrabodes, 
que  follicite  do  fanto  padre  a  mercê  efpiritual  de  conceder  a 
Portugal,  como  patrono  e  advogado  contra  os  terremotos,  a 
S.  Francifco  de  Borgia,  um  dos  geraes  mais  celebrados  na 
ordem  de  Jefus,  condecorado  com  todas  as  honras  litúrgicas, 
que  no  ritual  romano  fe  confagram  aos  maiores  e  mais  illus- 
tres  fantos.  O  papa  Benedido  XIV  pelo  breve  Omnipotens 
rerwn,  dado  em  Roma  fob  o  annel  do  pefcador,  a  24  de 
maio  de  1756,  publicado  por  decreto  de  5  de  feptembro  fe- 
guinte,  promovia  o  bemaventurado  Jeluita  á  eminente  cate- 
goria de  patrono  e  protedor  de  Portugal,  devendo  celebrar-le 
a  fua  feftividade  com  rito  de  primeira  clafle,  com  oitava  e 
miffa  folemne.  Para  que  n'efta  piedofa  invocação  a  tão  notá- 
vel fanto  da  Companhia  appareceífe  egualmente  glorificada 
a  fociedade,  que  o  tivera  por  feu  chefe,  e  o  numerava  entre 
as  fuás  glorias  mais  luzidas,  ordenavam  as  lettras  pontifícias, 
a  inftancias  de  D.  Jofé,  que  a  folemnidade  religiofa  em  honra 
do  fanto  Borgia,  fe  houveífe  de  celebrar  nas  egrejas  dos  je- 
fuitas,  e,  onde  não  as  houveífe,  nas  cathedraes  ou  nas  matri- 
zes, aíTiftindo  a  efta  annual  commemoração  as  camarás  de 
todas  as  cidades  e  villas  de  Portugal. 

Seria  talvez  a  piedade  religiofa  do  monarcha,  e  não  a 
própria  deliberação  do  feu  miniftro,  quem  feria  parte  principal 
n'aquella  nova  graça  pontifícia  concedida  ao  reino  fidcliífimo 
pelo  fupremo  paftor  univerfal.  Já  depois  de  começada  a  lufta 
gloriofa  de  Cars^alho  contra  as  ufurpações  e  prepotências  dos 


jefuitas  em  Portugal  e  seus  domínios,  ainda  o  miniftro  enca- 
recia n'um  documento  official  as  heróicas  virtudes  dos  gran- 
des e  gloriofos  eponymos  da  Companhia,  Santo  Ignacio, 
S.  Francilco  Xavier  e  S.  Francilco  de  Borgia,  os  quaes  (es- 
crevia o  eftadifta)  reluzindo  como  relplandecentes  luminares, 
não  fomente  na  fua  ordem,  fe  não  também  em  toda  a  egreja, 
deixaram  os  exemplos  mais  illuftres'.  Ou  ainda  n'eíres  primei- 
ros tempos  o  miniftro  não  tinha  revolvido  no  feu  profundo  en- 
tendimento a  inteira  luppreíTão  da  Companhia  em  Portugal  e 
a  fua  abolição  em  toda  a  egreja,  ou  com  diífimulada  venera- 
ção ao  feu  fundador  e  aos  feus  luzeiros  mais  infignes,  enco- 
bria a  traça,  que  já  tinha  meditada,  á  femelhança  de  um  as- 
tuto conquiftador,  que  marchando  contra  o  inimigo,  ainda 
colorêa  com  vifos  de  reparar  um  aggravo  paífageiro  a  futura 
deftruição  do  feu  contrario. 

Nos  monumentos  legiflativos  anteriores  a  eífa  epocha 
alguns  da  mais  alta  importância  fe  nos  deparam,  os  quaes 
fe  podem  bem  confiderar  como  as  pequenas  efcaramuças,  que 
precedem  os  grandes  recontros  e  batalhas  contra  a  impeniten- 
te Companhia.  As  leis  que  em  ij55  declararam  a  completa 
liberdade  dos  indios  no  Pará  e  Maranhão,  inhibindo  fevera- 
mente  os  religiofos,  nomeadamente  os  jefuitas,  de  fe  mefcla- 
rem  no  governo  temporal  d'aquellas  chriftandades,  eftatuindo 
as  regras  fundamentaes  da  fua  adminiftração  económica  e 
politica,  tornando-os  exclufivamente  fubditos  do  império  tem- 
poral, favorecendo  com  prémios  e  mercês  os  cafamentos  en- 
tre os  brancos  e  os  indígenas,  eram  todas  encaminhadas  a 
conftítuír  n'aquellas  rudes  e  filveftres  povoações  uma  focíe- 
dade  puramente  civil,  emancipada  inteiramente  do  jugo  de 
Companhia,  e  a  diffundir  n'aquelles  americanos  uma  civi- 


■  Infírucçáo  de  8  de  outubro  de  1757  ;io  miniflro  de  Portugal  em  Roma, 
Francifco  de  Almada  e  Mendonça. 


cl) 


(Is 


io8 


lifação  laical.  Ora  os  jefuitas  dominavam  ablblutos  n'aquellas 
extenfas  e  fecundas  regiões.  Erigir  em  frente  da  civilifação 
promovida  por  ambiciofos  miíTionarios,  uma  cultura  focial 
que  lhe  foffe  contrapofta,  era  ferir,  como  por  tiro  indireílo,  os 
intereíTes  capitães  da  Companhia,  era  defalojal-a  das  obras 
avançadas  antes  de  a  commetter  no  recinto  principal  da 
fua  extenfa  e  bem  delineada  fortificação,  que  fe  dilatava  des- 
de a  Afia,  paffando  por  Lifboa,  até  as  ribas  do  Amazonas. 
Eram  os  jefuitas,  que  na  máxima  parte  em  feu  proveito 
grangeavam  a  lavoura  e  o  commercio  do  Pará  e  Maranhão. 
Ao  trafico  da  ordem  não  era  fufiiciente  oppor  os  cânones, 
as  lettras  e  breves  pontificios  de  Urbano  VIII,  em  i633,  de 
Clemente  IX,  em  1669,  de  Benedido  XIV,  em  1741,  que  ful- 
minavam a  excommunhão  maior  latae  jententiae,  e  a  priva- 
ção de  todos  os  officios  e  dignidades  aos  religiofos  empenha- 
dos em  ufuras  e  tratos  mercantis.  Como  na  decadência  do 
império  as  guardas  pretorianas,  inftituidas  para  defenfáo  dos 
cefares,  fe  levantavam  acima  d'elles  e  os  fuj citavam  á  fua  do- 
minação, a  poderofa  Companhia,  a  cohorte  efpiritual  do  fum- 
mo  pontificado,  confeguíra  altear  o  feu  poder  por  detraz  do 
folio  pontificio.  Sabendo  que  o  fupremo  paftor  a  amimava 
como  a  filha  fua  dileda,  recebia  pelo  feu  valor  convencio- 
nal as  moftras  de  fevero  fobrecenho  que  o  papa  era  algumas 
vezes  obrigado  a  contrafazer  por  não  defcontentar  de  todo  o 
ponto  os  príncipes  da  chriftandade.  Ás  cenfuras  ecclefiafticas, 
illudidas  ou  defprezadas  por  aquelles  religiofos  mercantis, 
era  precifo  accrefcentar  algum  efíicaz  expediente  de  feição 
puramente  temporal.  Tal  foi  o  alvo  a  que  mirou  principal- 
mente na  fua  fignificação  politica  a  inftituição  da  companhia 
do  Grão-Pará  e  Maranhão. 

Por  eftes  primórdios  bem  podiam  os  jefuitas  prefuppor 
que  não  ia  fer  quieta  e  remanfada  a  fua  vida  cm  Portugal,  e 
que  nos  ares  até  ali  ferenos  e  rofados,  onde  tinham  exercita- 

^Í-Íh. ►H^ 


log 

do  nos  paços  e  nas  turbas  a  fua  dominação  univerfal,  prin- 
cipiavam a  encaftellar-íe  as  nmens  precurlbras  de  próxima 
tormenta  e  cerração. 

Acoftumados,  durante  o  frouxo  e  devotiffimo  reinado  an- 
tecedente, ao  obfcuro  governo  de  miniftros  em  grande  parte 
ecclefiafticos,  imbuídos  nas  máximas  e  preconceitos  de  con- 
fervadores  impenitentes,  extranhavam  agora  que  um  minillro 
de  acção  e  de  energia  fe  refolveíTe  a  implantar  no  decaído 
Portugal  as  normas  de  governo  civilifador  e  progreíTivo,  e  a 
abrir  á  luz  do  feculo  a  cerrada  inteliigencia  do  paiz.  Logo 
deram  rebate  clamorofo  contra  o  eftadifta  preponderante  nos 
confelhos  do  foberano.  AíTombravam-fe  de  que  um  homem, 
levantado  defde  as  camadas  da  nobreza  mais  próximas  da 
plebe  ás  altas  eminências  do  poder,  fe  atreveíTe  a  immolar 
ao  bem  commum  o  egoilmo  das  claíTes  privilegiadas  na  or- 
dem ecclefiaftica  e  civil.  De  todos  os  defcontentes,  que  já 
fe  contavam  numerofos  defde  os  primeiros  tempos  da  nova 
adminiftração,  eram  os  jefuitas  os  que  pela  força,  unidade  e 
cohefão  do  feu  bem  travado  e  harmónico  inftituto,  podiam 
fer  o  centro  d'efta  furda  confpiração,  que  agitava  os  ânimos 
e  os  intereífes  contra  as  feveras  providencias  do  eftadifta.  Os 
meneios  e  machinações  dos  jefuitas  apparecem  logo  na  infti- 
tuição  da  companhia  do  Grão-Pará  e  Maranhão.  Os  mais 
acerbos  accufadores  do  miniftro  e  os  mais  facciofos  de- 
fenfores  da  ordem  de  Santo  Ignacio,  não  conteftam,  antes 
afíirmam,  que  um  jefuita,  o  padre  Bento  da  Fonfeca,  procu- 
rador da  província  do  Maranhão,  confultado  por  alguns  ho- 
mens de  negocio,  reprovara  o  novo  eftabelecimento  mer- 
cantil '.  E  não  é  provável  que  um  rcligíofo,  o  qual  devia  fer 
aufteramente  confagrado  á  fua  milfão  puramente  efpíritual, 
e  defapegado  de  toda  a  participação  em  negócios  munda- 


Vita  di  Seb.  Giu/eppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  i,  pag.  5i. 


eis 


naes,  n'eftas  queftões  fe  intrometteíTe,  fe  o  não  aguilhoaffe 
alguma  conveniência  temporal. 

Já  porém  de  mais  longe  procedia  a  agitação  dos  jefuitas 
contra  o  novo  miniíterio.  Entre  os  legados  mais  funeftos  dei- 
xados pelo  frouxo  D.  João  V  ao  feu  ainda  mais  débil  fucces- 
for,  foi  talvez  o  mais  fatal  o  tratado  concluído  com  a  Hefpa- 
nha  em  i6  de  janeiro  de  lySo  para  a  commum  demarcação 
dos  limites  entre  as  poíTeíTões  americanas  de  uma  e  outra  mo- 
narchia.  Após  uma  longa  ferie  de  acrimoniofas  controverfias 
e  de  convenções  celebradas  e  desfeitas,  que  mais  iam  accen- 
dendo  em  reciprocas  defconfianças  e  quafi  hoftilidades  a  am- 
bas as  nações,  parecia  finalmente  chegado  o  termo  ás  diutur- 
nas diíTidencias.  Cedia  Portugal  a  colónia  do  Sacramento  na 
margem  oriental  do  Rio  da  Prata.  Em  retorno  transferia-lhe 
a  Hefpanha  o  feu  dominio  nas  miífões  do  Paraguay.  Queixa- 
vam-fe  os  portuguezes,  com  rafão,  de  que  perdeífem  com  a 
colónia  do  Sacramento  o  porto,  que  occupavam  ás  ribas 
d'aquelle  rio,  fronteira  natural  do  Brazil  para  a  parte  meri- 
dional. Laítimavam-fe  egualmente  os  hefpanhoes,  havendo- 
fe  por  mal  quinhoados  no  efcambo.  Aproveitaram  habilmente 
os  jefuitas  as  mutuas  reconvenções,  machinando  em  uma  e 
outra  corte  para  que  não  chegaífe  a  ter  adimplemento  a  pa- 
duada  tranfacção.  Era  o  feu  incentivo  capital  o  terem  inífi- 
tuido  no  Paraguay  entre  as  felvagens  multidões  uma  forma 
de  governo  feu  patriarchal. 

A  principio  haviam  fido  apenas  miíTionarios  occupados 
em  reduzir  á  fé  chriftan  e  a  uma  fombra  de  civilifação  aquel- 
las  incultas  gentilidades.  Pouco  a  pouco,  porém,  fe  foram  infi- 
nuando  nos  ânimos  d'aquelle  povo,  e  grangeando  por  tal  for- 
ma a  fua  confiança  e  devoção,  que  vieram  brevemente  a 
degenerar  de  evangélicos  paftores  e  catcchifias  em  fenhores 
abfolutos.  E  não  contentes  com  a  larga  influencia  efpiritual, 
arrogaram  a  fi  próprios  exclufiva  a  temporal  dominação.  Em- 

-i-<S- •H^ 


•g-cp- 


quanto  os  jefuitas  encadeavam  pela  fé  os  efpiritos  débeis 
d'aquellas  rudes  povoações,  não  le  deícuidavam  de  ir  fenho- 
reando  ao  mefmo  paíTo  a  terra  e  o  trabalho,  convertendo  os 
felvaticos  americanos  em  fervos  adfcripticios  devotados  á 
auítoridade  e  poder  da  Companhia.  Tinham  os  miffionarios 
jefuitas  fundadas  no  Paraguay  numerofas  aldeias  ou  povoa- 
ções, cuja  económica  e  civil  adminiítração  elles  fós  exercita- 
vam, mantendo  os  indios  paraguayos  em  real  e  eítreita  fer- 
vidão.  Á  fombra  da  religião  que  lhes  pregavam,  foram-lhes 
fazendo  crer,  como  dogma  eílencial  da  fua  fé,  a  mais  efcrupu- 
lofa  obediência  aos  feus  diítames  temporaes,  imbuindo-lhes 
os  ânimos  na  firme  perfuafão  de  que  além  dos  miffionarios 
não  havia  na  terra  outro  poder,  a  quem  deveíTem  guardar 
acatamento  e  fujeição.  Trataram  de  aíTegurar  o  feu  dominio, 
acoftumando  os  indios  a  ter  em  ódio  ou  fi.ifpeição  aos  eu- 
ropeus, que  não  trajaíTem  a  roupeta  da  Companhia.  Enfi- 
naram-lhes  o  ter  por  mui  perigofo  á  fua  temporal  commo- 
didade  e  ao  bem  efpiritual  de  fuás  almas  todo  o  trato  e 
communicação  com  gentes  originarias  do  velho  continente. 
Mantiveram  como  idioma  o  guarany,  defendendo  que  nin- 
guém fallaffe  a  linguagem  caftelhana.  E  porque  a  demais 
da  abfoluta  dedicação  d'aquelles  indios,  era  neceíTario  aos 
jefuitas,  para  aíTegurar  efta  fua  ufurpada  foberania,  o  fub- 
fidio  das  armas  materiaes,  os  foram  providamente  induftrian- 
do  na  arte  militar,  dando-lhes  algum  modo  conveniente  de 
organifação  e  difciplina,  exercitando-os  na  tadica  e  no  ma- 
nejo, quanto  o  podia  permittir  a  rudeza  de  gente  bifonha,  e 
acoflumada  á  foltura  e  liberdade  dos  fertões.  Adextraram- 
n'os  em  aproveitar  a  fortificação  de  campanha  para  tornar 
difficeis  ou  impradicaveis  os  desfiladeiros  e  os  palTos,  por 
onde  tropas  europêas  os  poderiam  acommetter. 

Se  os  jefuitas  nas  cortes  europêas,  no  meio  de  uma  flo- 
rente civilifação,  affrontando-fe  com  as  poderofas  influencias 


cia 


de  uma  forte  cultura  intelledual,  tendo  por  cenfores  e  adver- 
farios  os  efpiritos  mais  livres  e  mais  rebeldes  a  toda  a  fupre- 
macia  theocratica,  alcançavam  aíTim  mefmo  egualar  o  con- 
feílionario  ao  folio  dos  potentados,  e  confundir  na  mefma 
eíTencia  o  confeíTor  e  o  valido,  os  aíTumptos  da  confciencia 
com  os  negócios  do  governo,  fe  affim  acontecia  entre  as  na- 
ções, onde  havia  um  Pafcal,  um  Arnault,  um  Nicole,  para  os 
accufar,  um  theologo  piedofo,  como  era  Melchior  Cano,  para 
os  defmafcarar,  janfeniftas  para  os  combater,  lutheranos,  cal- 
viniftas,  anglicanos  para  os  contrapefar,  o  que  feria  n'quellas 
agreftes  e  remotas  regiões,  onde  a  completa  aufencia  de  in- 
fluencias feculares  e  a  efcuridão  total  dos  entendimentos  no 
gentio  deixavam  aos  jefuitas  livre  o  paíTo  para  a  conqviiíta 
material,  disfarçada  na  afcefe  e  na  homilia? 

Ninguém  fabia  melhor  que  os  jefuitas  infinuar-fe  nos 
ânimos  das  mais  intradaveis  e  rebeldes  gentilidades.  Reuniam 
ao  cultivo  da  intelligencia,  á  tempera  do  feu  caraíter,  á  difci- 
plina  rigorofa,  em  que  eram  adextrados,  á  palavra  fimples, 
fácil,  perfuafiva,  a  amenidade  no  feu  trato,  a  brandura  no  feu 
geíto,  a  accommodaticia  tolerância  para  com  as  humanas 
venialidades,  a  perfeverança  inquebrantável,  o  animo  audaz 
e  esforçado,  o  defprezo  dos  perigos,  e  a  indifferença,  com  que, 
foldados  animofos  e  fuhmiífos  á  regra  e  ao  dever,  contempla- 
vam de  frente  e  fem  temor  o  profpedo  do  martyrio.  Era  por 
extremo  attradiva,  feduftora,  a  apparente  fimpleza,  que  aífe- 
dtavam  os  que  a  fi  próprios  fe  diziam  focios  de  Jefus,  a 
gravidade  auílera,  de  que  fe  revertiam,  a  abnegação  e  o  des- 
apego, com  que  a  fi  mefmos  fe  baniam  moralmente  dentro 
da  fociedade  catholica,  acceitando  para  fi  as  viagens  extenfas 
e  perigofas,  as  excurfões  pelos  mattos  mais  bravios  e  as  fer- 
ranias  mais  inhofpitas,  as  pregações  e  catechefes  ás  mais 
duras  e  cruéis  tribus  felvagens,  deixando  ás  outras  ordens  re- 
iigiofas  as  tiaras,  as  mitras  os  rochetes,  e  as  murças,  as  pin- 


ii3 

gues  e  rendofas  abbadias.  Nunca  houvera  no  mundo  ne- 
nhuma outra  Ibcicdade,  onde,  pela  voluntária  abdicação  do 
próprio  alvedrio  e  utilidade,  o  individuo  defappareceíTe, 
como  que  intimamente  diluído,  na  maíTa  condenlada  e  ho- 
mogénea da  apertada  e  poderofa  corporação.  Ali  fe  reali- 
fava  a  confubftanciação  de  cada  membro  d'aquella  harmóni- 
ca cidade  no  todo  individual.  No  efpirito  de  cada  jefuita  vivia 
o  efpirito  de  toda  a  Companhia.  Era  uma  efpecie  de  novo 
pantheiímo,  em  que  o  fingulare  o  diílerentc  fe  confundiam  na 
indilfoluvel  unidade.  O  egoifmo  peífoal,  defterrado  como  um 
crime  da  confciencia,  reapparecia  tranfmudado  no  egoifmo 
coUedivo,  com  que  a  omnipotente  aífociação  aífoberbava  e 
fubmettia  á  fua  illimitada  fujeição  as  nações  e  os  potentados. 
Era  uma  femelhança  dos  inftitutos  fpartanos  no  completo 
defapego,  com  que  o  obfcuro  cidadão  d'aquella  myítica  repu- 
blica fe  offerecia  aos  trances  mais  cuftofos  e  aos  mais  duros 
facrificios  em  honra  e  beneficio  da  inteira  communidade. 
O  fpartano  nafcia  e  educava-fe  para  morrer  gloriofamente 
pela  pátria.  O  jefuita  profeífava  e  inítruia-fe  para  oíferecer 
a  vida  humildemente  nas  aras  facrofantas  da  Companhia. 

Imagine-fe  uma  nação,  cujos  membros,  repartidos  em 
províncias  e  em  colónias,  eftiveíTem  diífundidos  por  todos  os 
povos  do  univerfo,  influindo  nas  cortes,  dominando  nas  mul- 
tidões, expungindo  pradicamente  as  fronteiras  dos  eftados, 
abjurando  a  pátria  nativa  para  fe  fazerem  cidadãos  de  uma 
nova  pátria  efpiritual,  eítrcitando  os  vínculos,  que  entre  fi  os 
enlaçavam  e  os  prendiam  firmemente  ao  fupremo  caudilho 
irrefponfavel,  c  ter-fe-ha  delineado  a  imagem  ainda  imper- 
feita do  que  era  a  Companhia.  Nenhuma  ordem  religiofa 
alcançara  jamais  a  cohefão,  a  unidade,  a  fortaleza,  a  fubor- 
dinação  incondicional,  a  difciplina  inviolável,  que  fazia  da 
fociedade  jefuitica  um  império  diífeminado  por  todo  o  orbe. 
Como  a  hera  frondofa  e  luxuriante  fe  enrofca  nos  caules  mais 


«is 


"4 

robustos,  e  os  vefte  e  os  encobre  com  a  folhagem,  aílim  a  or- 
dem dos  jefuitas  le  eftivera  por  tal  feição  durante  dois  fecu- 
los  ennovelando  no  tronco  dos  eftados,  que  não  era  já  mui 
fácil  difcriminar  por  debaixo  das  fuás  crefcentes  invafões  o 
que  ainda  fubfiftia  de  império  temporal,  que  não  fe  efcon- 
deíTe  e  humilhaíTe  inteiramente  fob  as  frondes  da  nova  theo- 
cracia. 

O  credito,  que  a  principio  conquiftaram,  fora  devido  em 
grande  parte  ao  zelo  com  que,  defdenhando  na  apparencia 
todos  os  cuidados  terrenaes  e  todas  as  mundanas  ambições, 
fe  confagravam,  como  operários  evangélicos,  a  diífundir  as 
doutrinas  religiofas  e  a  ampliar  entre  as  remçtas  gentilidades 
os  âmbitos  da  fé.  Não  contribuiram  talvez  menos  a  augmentar 
a  reputação  da  Companhia  os  numerofos  mifllonarios,  que 
exilando-fe  para  as  mais  diftantes  e  intragáveis  regiões  da 
Afia  e  da  America  haviam  alTrontado  com  impávida  fortaleza 
os  lances  mais  perigofos,  oíferecendo-fe  ás  cruciantes  provas 
do  martyrio,  comtanto  que  lograífem  efparzir  nas  trevas  das 
barbaras  ou  fylveítres  povoações  algum  raio  de  luz  efpi- 
ritual.  O  nome  do  padre  Jofé  de  Anchieta,  o  evangelifador 
dos  Índios  no  Brazil,  a  fama  de  S.  Francifco  Xavier,  o  apos- 
tolo da  índia,  eram  faudados  como  heróicos  teftemunhos  em 
favor  do  novo  inl^ituto  religiofo.  Os  illuftres  luminares,  que 
do  grémio  da  Companhia  eftavam  efclarecendo  o  horizonte 
da  fciencia,  os  Kirchers,  os  Grimaldis,  os  Scheiners,  os  Cla- 
vios,  os  Guldins,  os  Ricciolis,  os  Gregorios  de  Saint-Vincent, 
honrofamente  commemorados  na  hiftoria  das  mathematicas 
puras,  da  phyfica  e  da  aftronomia,  circumdavam  de  uma 
auréola  brilhante  o  inftituto  religiofo,  que  não  fomente  vol- 
via os  olhos  ao  céo  myftico  dos  bemaventurados,  fenão  tam- 
bém ao  cofmico  firmamento  dos  aftronomos,  para  inquirir 
os  feus  phenomenos  e  perfcrutar  as  fuás  leis. 

Era  já  antigo  o  ciúme  ou  a  averfão,  que  os  miíTionarios 


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da  Companhia  confagra\am  a  toda  a  audoridade  ou  mando 
fecular.  Eram  frequentes  os  queixumes,  em  que  os  jefuitas 
portuguezes  do  Maranhão  fe  aggravavam  dos  officiaes  e  das 
justiças  temporaes,  que  ali  reprefentavam  a  soberana  potes- 
tade. O  jefuita  com  jaclanciofa  convicção  acreditava  que  nas 
floreftas  virgens  do  Novo  Mundo,  no  meio  das  tribus  mais 
indomefticas  e  rebeldes  á  poHciada  e  culta  íbciedade,  elle 
fó  podia  operar  aíTombrofos  milagres  de  converfão,  não  fo- 
mente defbravando  para  a  fé  os  inhofpitos  fertões,  mas  con- 
duzindo e  guiando  as  luas  gentes  pelo  redil  de  Chriíto  ás 
formas  temporaes  da  civilifação.  Do  padre  Nóbrega,  primei- 
ro miíTionario  do  Brazil,  refere  o  grande  António  Vieira, 
que  com  mullca  e  harmonia  de  vozes  fe  atrevia  a  trazer  a  fi 
todos  os  gentios  da  America'.  Tal  era  a  illimitada  confiança 
que  a  induftriofa  Companhia  fe  acoftumára  a  pôr  na  brandu- 
ra e  artificio  dos  feus  meios  para  converter  a  fi  e  confervar 
na  fua  abfoluta  dependência  as  ferozes  nações  do  Novo 
Mundo.  Com  eíta  ambiciofa  convicção  da  fua  moral  fuperio- 
ridade  fobre  os  poderes  feculares,  que  dominavam  na  Ame- 
rica, não  é  para  aífombrar  que  os  jefuitas  fempre  viílem 
com  maus  olhos  levantarem-fe  ao  lado  da  fua  theocracia  os 
reprefentantes  e  delegados  da  metrópole,  e  com  elles  vives- 
fem  em  eífado  de  maior  ou  menor  hoftilidade.  Ajudava  a 
efta  fupremacia  dos  miífionarios  o  favor,  que  nos  indios  lhe 
grangeava  o  confiderarem  que  eram  imbelles  e  incruentas  as 
conquiflas  efpirituaes,  e  fempre  executadas  ao  eftrepito  das 
armas  as  invaíoes  da  audoridade  fecular  nos  mattos  e  fer- 
tões onde  viviam.  E  diga-fe  em  verdade  que  o  procelfo  ado- 
ptado geralmente  pelos  capitães  e  pelos  foldados  não  era  o 
mais  conforme  a  avaífallar  pacificamente  o  gentio,  habitua- 
do á  fua  indómita  e  fera  independência.  As  violências  e  ex- 


Vieira,  Vo^es /aitdofas,  T'oj-  hijlorica,  pag.  37  e  38. 


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ii6 

torfões,  com  que  fatisfaziam  a  cubica  e  a  torpeza",  manti- 
nham e  afervoravam  a  hoftilidade  entre  os  indios  e  os  por- 
tuguezes,  que  os  avexavam  e  opprimiam.  N'uma  confulta 
dirigida  ao  confelho  ultramarino  dizia  o  máximo  orador  de 
Portugal:  «Os  poucos  (indios  do  Maranhão)  que  fe  poderão 
ainda  defcobrir,  eftão  tão  efcandalifados  de  fe  lhes  não 
guardar,  o  que  fe  lhes  promette  e  das  tyrannias,  que  com 
elles  fe  tem  ufado,  que  fera  muito  difficultofo  arrancal-os  de 
fuás  terras  e  mais  tendo  tantas  experiências  de  que,  defcen- 
do  para  as  noíTas,  todos  morrem  e  fe  têem  confumido*.» 
E  vindo  a  laftimar  a  deftruição,  em  que  fe  achava  o  eftado 
do  Maranhão,  trinta  e  fete  annos  depois  de  haverem  ali  en- 
trado os  portuguezes,  capitula  o  eminente  jefuita  fer  a  caufa 
única  e  original  de  toda  aquella  triíte  devaítação  «a  infaciavel 
cubica  e  impiedade  d'aquelles  moradores  e  dos  que  lá  os 
vão  governar,  e  ainda  de  muitos  ecclefiafticos,  que  fem  fcien- 
cia,  nem  confciencia  ou  julgavam  por  licitas  eftas  tyrannias 
ou  as  executavam,  como  fe  o  foífem».  E  mais  dizia  o  aus- 
tero miíTionario:  «Não  era  poíTivel,  nem  parece  o  fera  que  a 
juítiça  divina  não  acuda  por  fua  providencia,  e  que  o  caftigo 
de  um  eílado  fecundado  em  tanto  fangue  innocente  pare  fó 
na  prefente  miferia'». 

O  ciúme,  com  que  os  jefuitas  no  Brazil  olhavam  para  o 
governo  temporal  exercido  pelos  delegados  da  coroa,  reífum- 
bra  a  cada  paíTo  das  queixas  do  eloquentiíTimo  Vieira,  nos 
feus  papeis  políticos,  e  ainda  em  alguns  dos  feus  fermões''. 
Já  n'aquelle  tempo  fe  attribuia  geralmente  aos  miíTionarios 


'  "Onde  (na  fortaleza  do  Ceará)  em  certo  modo  fe  pôde  dizer  que  eftava  e 
eftá  o  demónio  mais  forte  pela  cubica  dos  capitães  e  torpeza  dos  foldados.» 
Vo^es  faudófas,  Vo^  hiftorica,  pag.  47. 

2  Vo^es  faiidofas,  Fof  politica,  pag.  gS. 

3  Vo^es  faudófas,  Vo:;  politica,  pag.  97. 

4  Vo:jes  faudófas,  Voj  politica,  pag.  106  e  feguintes.  T  07  defenganada, 
pag.  i33. 


da  Companhia  o  terem  mais  a  peito  as  mundanas  utilidades, 
que  lhes  refultavam  de  fujeitar  os  Índios  a  leu  lerviço,  do  que 
o  mérito  efpiritual  da  fua  converfão".  Era  eíl:a  já  então  no 
conceito  do  grande  orador  a  pedra  de  efcaiidalo,  que  entur- 
vava  na  opinião  dos  portuguezes  a  boa  fama,  que  entre 
elles  alcançara  nos  primeiros  annos  apoz  a  inftituição  a 
ambiciofa  fociedade.  As  luftas  e  porfias  entre  os  magiftra- 
dos  feculares  e  os  jefuitas,  continuamente  difputando  acerca 
da  fua  dominação  fobre  os  indios  avaíTallados,  acompanha- 
vam fem  intermilTão  os  progreíTos  da  Companhia  no  Mara- 
nhão. Em  1661  a  camará  e  a  gente  principal  da  cidade  de 
Bethlem  do  Grão-Pará  expulfára  d'aquelle  território  os  jefui- 
tas, tirando-lhes  a  adminillração,  que  nas  aldeias  exerciam 
como  parochos  e  miíTionarios.  Contra  aquella  oufada  provi- 
dencia, exclamava  António  Vieira  no  protefto  dirigido  ao  fe- 
nado  municipal:  «Quão  grande  macula  e  aíTronta  fera  do 
nome  portuguez  dizer-fe  no  mundo,  que  os  que  têem  dilata- 
do a  fé  por  todo  elle,  fão  agora  os  que  prendem  e  deíferram 
os  pregadores  da  mefma  fé  e  os  que  os  tem  ido  bufcar  e  tirar 
por  força  de  fuás  miílíjes  e  de  entre  os  gentios  e  novos 
chriftãos,  que  eftão  convertendo;  e  que  exemplo  é  eíte  para 
as  gentilidades,  e  que  refpeito  terão  os  indios  aos  facerdotes, 
quando  aíTim  os  vêem  tratar  pelos  portuguezes^?» 

Arrogavam-fe  os  jefuitas  os  méritos  de  quanto  bem  tem- 
poral adviera  ao  Maranhão  e  ao  Pará,  com  o  que  tacitamen- 
te averbavam  de  adverfa  ao  bom  governo  e  civilifação  dos 


'  "Acabarão  de  entender  (os  do  confelho  ultramarino)  a  verdiide  do  zelo 
que  lá  nos  leva  (ao  Maranhão)  e  defenganar-fe  quão  errado  é  o  conceito,  que 
tem  de  nós,  em  cuidarem  que  queremos  mais  os  indios,  que  fuás  almas:  muito 
refolutos  imos  a  procurar  arrancar  efla  pedra  de  efcanJalo  dos  ânimos  dos  por- 
tuguezes, e  a  não  fallar  em  indios  mais  que  no  confefTionario.»  Vojesfaudofas, 
Vo^  de/enganada,  pag.  i35. 

-   Vo^es  Jaudofas,  Vo^  exhortatoria,  pag.  195  e  196. 


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iiS 

Índios  a  natural  intervenção  da  audoridade  Iccular'.  O 
maior  e  porventura  o  mais  rigido,  fincero  e  patriótico  je- 
fuita  portuguez,  confeíTava  a  averfão,  em  que  era  tida  no 
Maranhão  e  no  Pará  a  fua  religiofa  corporação-.  Efcreven- 
do  a  D.  AíTonfo  VI,  logo  em  princípios  do  feu  reinado,  de- 
clarava António  Vieira  as  perfeguições  e  os  ultrages,  com 
que  em  feu  entender  eram  galardoados  os  ferviços  da  Com- 
■  panhia  em  reduzir  á  fé  chriftan  e  á  vida  civilifada  os  gentios 
do  Maranhão,  e  admirava-fe  de  que  fendo  tão  benemérita 
tiveífe  contra  fi  a  geral  opinião.  Depois  de  relatar  as  iniqui- 
dades commettidas  contra  os  Índios  e  o  que  os  jefuitas  faziam 
em  fua  defeza,  exclamava:  «E  sendo  ifto  aíTmi,  fenhor,  fó  os 
que  defendem  efta  juftiça,  fão  perfeguidos ;  fó  os  que  falvam 
eítas  almas  fão  affrontados;  fó  os  que  tomam  á  fua  conta 
efte  tão  grande  ferviço  de  Deus,  têem  contra  fi  os  homens'» . 
Tão  antiga  e  pertinaz  era  no  Maranhão  a  luda  entre  os  re- 
prefentantes  do  poder  temporal  e  os  obreiros  evangélicos  da 
Companhia.  Tão  aíincadamente  bufcavam  os  jefuitas  defen- 
der o  dominio  temporal,  que  fobre  os  Índios  largamente 
exercitavam. 

Não  é  jufto,  porém,  efcurecer  que  fe  os  chamados  focios 
de  Jefus,  dellembrando  o  defapego,  a  humildade  e  a  man- 
fidão  do  Redemptor,  lidavam  por  accrefcentar  o  feu  munda- 


■  "Todo  o  bem  temporal,  que  ha  no  eftado,  foi  procurado  c  confeguido  e 
confervado  por  minha  diligencia  e.  .  .  houvera  outros  muitos  bens  temporaes, 
que  eu  quiz  accrefcentar  n'elle,  fe  houvera  quem  quizelTe  concorrer  para 
iffo,  e.  . .  os  não  ha,  porque  não  quizeram.»  Vo:;es  faudofas,  Vo:^  exhortatoria, 
pag.  200. 

2  «Papeis  feitos  por  inimigos  e  por  miniflros  incompetentes  e  com  tantas 
outras  nullidades  não  fazem  prova  alguma  e  muito  menos  em  terra,  onde  to- 
dos voíTas  mercês  (a  camará  e  nobreza  da  cidade  do  Pará)  fe  queixam  de  fal- 
fos  teflemunhos  e  em  tempo,  onde  os  padres  da  Companhia  e  eu  particular- 
mente eflamos  tanto  no  ódio  de  todos,  como  vofías  mercês  e  os  effeitos  o 
dizem.»  Vo^es faudofas,  Vo:^  exhortatoria,  pag.  202. 

i   Vo^es  faiido/as,  Vo^  íelofa,  pag.  23o. 

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"9 

no  império,  não  era  chrillan,  nem  paternal  a  acção  da  aucto- 
ridade,  reprefentada  nos  governadores,  capitães,  magiftrados 
e  juftiças,  nem  benévolo  e  caritativo  o  procedimento  dos  por- 
tuguezes  moradores  para  com  os  pobres  e  oppreíTos  naturaes 
das  terras  conquiftadas.  A  lede  infaciavel  do  oiro  inficciona- 
va  os  que  punham  pé  em  terras  americanas  defde  os  que 
meneavam  o  lupremo  baftão  e  a  vara  da  judicatura  até  os 
aventureiros  e  colonos,  que  iam  eftabelecer-fe  no  Brazil.  Não 
andava  mui  diftante  da  verdade  o  immortal  jefuita  portuguez 
quando  n'um  Ímpeto  de  generofa  indignação  prorompia  n'es- 
tas  vozes  laftimadas:  «As  injuftiças  e  tyrannias,  que  fe  têem 
executado  nos  naturaes  d'eíl:as  terras  excedem  muito  as  que 
íe  fizeram  na  Africa;  em  efpaço  de  quarenta  annos  fe  mata- 
ram e  fe  deflruiram  por  efta  cofta  e  fertões  mais  de  dois  mi- 
lhões de  Índios  e  mais  de  quinhentas  povoações,  como  gran- 
des cidades  e  d'ifio  nunca  fe  viu  caftigo ...  e  não  fó  fe 
requer  diante  de  voífa  majeftade  a  impunidade  d'eftes  deli- 
dos, fenão  licença  para  os  continuar'».  N'efta  porfia  laftimo- 
fa  entre  os  feculares,  que  defhumanamente  profeguiam  em 
opprimir  e  efpoliar  os  indios  americanos,  e  as  miífões  da 
Companhia,  que  tenazmente  defendiam  o  feu  ambiciofo  mo- 
nopólio de  os  dirigir  e  aproveitar,  confundindo  a  catechefe 
com  o  governo,  e  o  crucifixo  do  miíFionario  com  a  infignia 
do  magiftrado,  refolvêra  a  coroa  o  pleito,  confiando  por  uma 
lei  de  i655  aos  jefuitas  a  adminiftração  temporal  dos  indios 
nas  aldeias,  confolidando  na  mefma  poteftade  a  direcção  civil 
e  o  officio  paftoral.  Por  eíta  providencia  revogara  D.  João  IV, 
no  penúltimo  anno  do  feu  reinado,  outra  difpofição,  c|ue  cm 
1654  decretara,  inclinando  em  favor  dos  intereífes  feculares 
e  contra  as  ambições  da  Companhia,  a  ofcillante  balança 
do  poder.  Agora  ficavam  os  jefuitas  invertidos  na  pilena  au- 


'   Vo^es  faudofas,  Fof  ^elo/a,  pag.  228. 


e|í  ela 


ftoridade.  Agora,  contrabalançando  as  diligencias  dos  por- 
tuguezes  moradores,  propunham  a  el-rei  pela  boca  facun- 
diíTima  de  Vieira,  então  provincial  no  Maranhão,  as  mais 
feveras  demonítrações  contra  os  que  oufalTem  contradizer  e 
tranfgredir  as  regias  providencias".  Não  bastou  a  fraqueza 
de  Aífonfo  VI  a  ferenar  as  tempeftades,  que  da  ambição  da 
Companhia  e  da  cubica  na  gente  fecular,  fe  defencadeavam 
a  cada  paíTo  nas  terras  do  Brazil.  A  lei  de  12  de  feptembro 
de  16 63  tirou  finalmente  aos  jefuitas  a  jurifdicção  civil  dos 
Índios  no  Maranhão,  mantendo-lhes  apenas  no  efpiritual  a 
concorrência  com  os  miffionarios  das  ordens  religiofas.  Era, 
porém,  a  fociedade  tão  poderofa,  e  tão  débil  e  infeudado  á 
theocracia  o  fceptro  de  D.  João  V,  que  não  tiveram  os  jefui- 
tas grande  cufto  em  defobedecer  ás  feveras  prefcripções  e  dei- 
xar efquecer  como  obfoleta  a  previdente  legiflação  canónica 
e  civil,  que  lhes  defendia  o  intrometterem-fe  na  adminiítração 
civil  das  indianas  povoações.  Com  a  regia  tolerância  e  pro- 
tecção, com  a  perícia  crefcente  dos  jefuitas  na  arte  de  cate- 
chifar  e  dirigir  a  rude  fimpleza  dos  naturaes,  com  o  trato  por- 
ventura mais  humano  que  o  dos  officiaes  e  dos  magiftrados 
e  dos  outros  portuguezes  no  Brazil,  vieram  a  aífentar  em  fir- 
miífimos  cimentos  a  fua  conquifta  e  dominação.  Envelheci- 
dos na  ambição  e  enraizados  no  animo  dos  indios,  poderiam 
agora  intimar  feguramente  á  poteftade  temporal  as  fuás  leis 
no  que  tocava  aos  naturaes  por  elles  aldeados  e  convertidos. 
As  providencias  adoptadas  pelo  governo  portuguez,  para 
a  prompta  execução  do  tratado  de  limites,  vieram  pôr  de  ma- 
nifefio  a  irregular  fituação,  em  que  viviam  na  America  os 
jefuitas,  não  fomente  ingerindo-fe  abufivamente  no  governo 
temporal  das  fuás  miífões,  íenão  eftabelecendo  n'ellas  for- 
malmente uma  verdadeira  theocracia.  A  que  parecera  d'an- 


(|3 


Vo^es  faudofas,  Vo^  ^elo/a,  pag.  2j2. 


eis 


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tes  má  vontade  e  paíTiva  contradicção  ao  império  temporal, 
veiu  agora  a  demudar-fe  em  aberta  rebellião. 

Um  dos  primeiros  cuidados  de  Pombal,  logo  em  princí- 
pios do  leu  longo  miniílerio,  fora  accudir  aos  grandes  males 
promovidos  no  Brazil  pelos  miíTionarios  da  Companhia.  Des- 
pachou em  lySi  para  o  Rio  de  Janeiro,  como  capitão  ge- 
neral e  commiíTario  fuperior  para  a  intentada  demarcação, 
a  Gomes  Freire  de  Andrade,  em  a  nau  NoJJa  Senhora  da 
Lampadofa,  levando  ás  fuás  ordens  os  aftronomos,  enge- 
nheiros e  geographos  indifpenfaveis  para  aíTignar  as  fron- 
teiras americanas  entre  os  domínios  portuguezes  e  hefpa- 
nhoes.  Ao  mefmo  tempo  nomeava  o  minilfro  a  feu  irmão 
Franciíco  Xavier  de  Mendoça  Furtado,  para  que,  no  cargo 
de  governador  e  capitão  general  do  Maranhão,  proveíTe  com 
mão  fegura  e  firme  ás  defordens,  que  então  dilaceravam 
aquelle  ampliíTimo  eftado  americano,  onde  os  jefuitas  portu- 
guezes tinham  aíTentado  a  fua  ambiciofa  foberania.  Refor- 
çava o  miniítro  previdente  as  tropas  d'aquella  capitania  com 
três  regimentos  na  mefma  occafião  partidos  de  Lifboa. 

Quando,  porém,  o  commiíTario  de  Portugal,  Freire  de 
Andrade,  com  o  commiíTario  de  Hefpanha,  marquez  de  Vai 
de  Lirios,  determinaram  dar  principio  á  delimitação  entre  as 
poíTeíT(3es  dos  dois  eflados,  acharam-fe  impedidos  pela  belli- 
coTa  refiftencia,  que  lhes  oppozeram  os  indios  do  Paraguay  e 
Uruguay,  dirigidos  e  acaudilhados  pelos  jeTuitas,  Teus  padres 
eTpirituaes  e  Teus  mundanos  governadores.  Conheceu-Te  en- 
tão que  os  Tocios  da  Companhia  faziam  impraticável  a  pa- 
cifica execução  do  tratado  de  limites,  e  que  Teria  forçoTo  aos 
commiíTarios  o  empenharem-Te  n'uma  guerra  com  os  indios 
pertinazes  e  rebeldes.  Repugnavam  eftes  incultos  naturaes  á 
mão  armada  a  mudarem  de  Tenhor,  paíTando  da  foberania 
caftelhana  para  o  dominio  portuguez.  Não  era  certamente 
reprehenfivel  que  os  indios  paraguayos,  inftigados  pelo  Tenti- 


eis 


mento  generolb  da  lua  própria  liberdade  e  humana  condição, 
reíifliffem  a  um  convénio,  que  os  tornava  em  matéria  de  es- 
cambo e  negociação  entre  duas  coroas  conquiftadoras.  Se 
porém  os  indios  rudes  licitamente  defendiam  os  feus  lares 
contra  os  portuguezes,  que  julgavam  inimigos  e  oppreíTores, 
eram  os  jefuitas  pelo  contrario  merecedores  de  alpera  cenfura 
e  de  prompta  repreffão;  porque  fendo  europeus,  civilifados, 
chrillãos,  religiofos  de  uma  ordem  confagrada,  em  leu  dizer, 
á  obediência,  abnegação  e  defapego  de  todos  os  bens  e  com- 
modos  terrenos,  e  de  toda  a  participação  em  negócios  profa- 
nos e  temporaes,  e  eftando  incurfos  nas  penas  fulminadas  pelo 
breve  Immenfa  pajlorwn  de  Benediíto  XIV  e  pelos  de  alguns 
dos  feus  predeceíTores,  perfeveravam  em  fua  rebeldia  ás  dis- 
pofições  dos  cânones,  ás  conftituições  pontifícias  e  ás  leis  ex- 
preíTas  dos  foberanos.  Eram  dobradamente  culpofos,  primei- 
ramente por  terem  inftituido  e  confervado  contra  os  preceitos 
evangélicos  e  prohibições  canónicas  e  civis  um  eftado  em 
certa  forma  independente  em  território  de  um  foberano,  e  em 
fegundo  logar,  porque  em  vez  de  perfuadirem  os  indios  á  mo- 
deração, á  paz  e  á  conformidade  com  as  determinações  do 
legitimo  poder,  os  incitavam  á  completa  rebellião,  aliftan- 
do-os  em  exercito,  armando-os  e  adextrando-os  para  a 
guerra,  e  tomando  á  fua  frente  o  logar  de  chefes  e  officiaes. 
Na  Relação  abreviada  da  Republica,  que  os  reli giojos  jefuitas 
das  proj'iiicias  de  Portugal  e  de  Hefpanha  ejlabeleceram  nos 
domínios  ultramarinos  das  duas  monarchias,  mandada  colligir 
e  publicar  por  Sebaftião  de  Carvalho,  apparecem  vigorofa- 
mente  fubítanciados  os  proceíTos,  a  que  os  jefuitas  fe  foccor- 
reram  para  eífabelecer  e  confolidar  o  leu  império  nas  crédu- 
las e  quafi  infantis  povoações.  Diííicultavam  com  ciúme  todo 
o  trato  e  communicação  dos  naturaes  com  os  hefpanhoes  e 
principalmente  com  as  auftoridades  ecclefiafticas  e  fecula- 
res,  que  fempre  fora  leu  propofito  íigurar-lhes  como  hoftis  á 


-si 


fua  felicidade  terrena  e  efpiritual.  Fortaleciam  e  roboravam 
continuamente  os  vínculos,  que  ligavam  os  jefuitas  aos  indí- 
genas, pela  relação  de  fervos  a  fenhores,  abdicado  nas  mãos 
da  Companhia  o  próprio  alvedrio  e  liberdade. 

Se  defcontamos  na  Relação  abbreinada  os  encarecimen- 
tos e  hyperboles,  com  que  o  elpirito  de  partido  coftuma  lem- 
pre  mefclar  á  verdade  inconteftavel  o  fombrio  colorido  das 
paixões,  das  luas  narrações  em  todo  o  calo  fe  deprehende  que 
os  jefuitas  collocaram  os  dois  exércitos  ás  ordens  de  Gomes 
Freire  e  Vai  de  Lirios  na  dura  condição  de  converterem  uma 
troca  pacifica  de  territórios  n'uma  campanha  difficilima  em 
paiz  fanatisado  e  inimigo.  Attrihue-le  aos  jeluitas  a  atrocida- 
de crueliíTima  de  encommendar  aos  paraguayos  que  não  des- 
fem  quartel  aos  portuguezes,  e  para  que,  matando-os,  não  os 
viíTem  refiifcitar,  decapitaílem  a  quantos  lhes  caiffem  em 
poder,  porque  fó  aíTim  ficariam  certos  de  tornar-fe  impoíTi- 
vel  a  reíurreição.  Cufta  em  verdade  a  acreditar  que  tal  e  tão 
infame  prefcripção  faíffe  da  bocca,  não  já  de  homens  conla- 
grados  a  Deus  e  ao  fervente  amor  do  próximo,  fenão  de  gen- 
te, na  qual  ainda  viílumbraíTcm  uns  lampejos  de  cultura  e 
humanidade.  E  provável  que  na  fragua  das  facções  foíTe  for- 
jada aquella  tremenda  imputação. 

Não  é  porém  invenção  calumniofa  que  defde  1752  até 
1756  as  tropas  de  Portugal  e  da  Helpanha  não  poderam 
avançar  fem  que  fe  lhes  deparaífem  na  fua  marcha  as  maio- 
res contradicções,  caviladas  e  dirigidas  pelos  miíTionarios 
jefuitas,  alma  e  infpiração  dos  indios,  cegamente  devotados 
aos  feus  diredores  efpirituaes.  Foram  numerofos  os  recontros 
e  combates,  innumcraveis  as  cruezas  commettidas  pelos  Ín- 
dios contra  os  foldados  portuguezes  e  hefpanhoes. 

Emquanto  nos  fertões,  que  demoram  nas  margens  do 
Umguay,  fe  paífavam  as  fcenas  tormentofas,  em  que  era 
protagonifta  a  Companhia,  nas  fronteiras  feptentrionaes  do 


s|3 


eis 


4S^ 


124 


Maranhão  achava-fe  o  governador  e  capitão  general  Fran- 
cilco  Xavier  de  Mendoça,  nomeado  commiíTario  portuguez 
para  a  demarcação  ao  norte  do  Brazil,  a  braços  com  uma 
fefnelhante  rebellião.  Ali  eram  jefuitas  portuguezes  os  que 
bufcavam  perpetuar  o  feu  antigo  império  theocratico.  Ali 
predominava  o  principio  fundamental,  que  o  padre  An- 
tónio Vieira  confagrára  n'uma  carta  a  Affonfo  VI,  quando, 
queixando-fe  amargamente  dos  magiftrados  feculares,  pe- 
dia ao  rei  que  houveíTe  de  tomar  no  tocante  ás  miíTóes  dos 
jefuitas  uma  ultima  refolução,  com  a  qual  os  livraíTe  por  uma 
vez  de  requerimentos  e  demandas  com  os  officiaes  e  delega- 
dos da  coroa  n'aquellas  regiões.  «Porque,  dizia  o  eloquen- 
te pregador,  fe  não  eítivermos  totalmente  exemptos  d'elles, 
nunca  poderemos  confeguir  o  fim  para  que  viemos ' » . 

O  procedimento  dos  jefuitas  na  America  tinha  vindo  pôr 
o  fêllo  á  profunda  fufpeição,  em  que  era  tida  a  Companhia, 
como  perigofa  e  incompatível  com  o  poder  e  aitiftoridade  fe- 
cular.  Não  eram  unicamente  os  inimigos  e  invejofos  os  que 
denunciavam  a  ordem  poderofiíTn-na.  No  próprio  feio  d'aquel- 
la  religião  cofmopolita  fe  haviam  levantado  clamores  contra 
a  immoderada  intervenção  dos  jefuitas  em  tratos  feculares 
políticos  ou  mercantis.  Quando  em  princípios  do  feculo  deci- 
mo feptimo  a  Companhia  foi  juftamente  contraftada  por  gran- 
des tempeftades  e  accudiu  ao  pontífice  Paulo  V,  para  que  de 
novo  a  confirmaffe  e  levalfe  á  toa  atraz  da  barca  de  S.  Pe- 
dro, ella  mefma  lhe  aprefentou  os  decretos  de  reforma,  que 
na  fua  quinta  congregação  geral  fe  haviam  accordado  para 
que,  além  da  correcção  de  outros  abufos,  os  jefuitas  fe  não 
mefclaíTem  em  negócios  políticos  e  temporaes".  Já  então  a 
chamada  fociedade  de  Jefus  confeíTava  que  a  fua  religião  fe 


■  Vieira,  Cartas,  tom.  i,  cart.  x 

2  Lettras  pontifícias  de  Paulo  V,  de  4  de  Icptcmbro  de  1606. 


^Í^Íh- -«í^ 

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125 

via  mal  reputada  em  diverfas  regiões  e  efpecialmente  decaída 
no  conceito  de  muitos  potentados.  Apefar  d'eítes  paliiativos  e 
da  benevolência,  com  que  o  Vaticano  amimava  a  fua  mais  di- 
leda  legião  efpiritual,  não  pôde  nos  tempos  ulteriores  o  fum- 
mo  facerdocio  forrar-fe  aos  maiores  empenhos,  ainda  que  fem 
frudo  de  religiofa  reformação,  para  reftituir  (fão  palavras  de 
Benedido  XIV)  a  paz  á  Egreja  por  muitas  e  falutares  confti- 
tuições,  para  que  os  jefuitas  não  exercitaíTem  negócios  fecu- 
lares,  já  foíTe  nas  miffões,  ou  por  lua  occafião,  já  a  reípeito 
dos  graviffimos  diíTidios  e  contenções,  que  contra  os  prelados 
ordinários  dos  logares,  contra  as  demais  ordens  religiofas, 
os  inftitutos  de  piedade,  e  toda  a  forte  de  communidades 
fe  haviam  excitado  na  Europa,  na  Afia  e  na  America,  não 
fem  grande  ruina  das  almas  e  aífombro  das  povoações'.» 
Nos  esforços  para  a  inteira  extirpação  dos  abufos  e  vicios 
inveterados  na  invafora  fociedade  tinham  fido  participantes 
os  pontífices  romanos  Urbano  VIII,  Clementes  IX,  X,  XI  c 
XII,  Alexandres  VII  e  VIII,  Innocencios  X,  XI,  XII  e  XIII,  e 
finalmente  o  papa  Benedido  XIV,  que  ao  tempo  de  rompe- 
rem contra  ella  em  Portugal  as  hoftilidades,  prefidia,  com 
applauíb,  no  folio  pontificio.  Aífim  no  decurfo  de  cem  annos 
a  Egreja  patenteava,  pela  bocca  do  fupremo  pontificado,  os 
enormes  defvios,  com  que  os  humildes  e  ferventes  operá- 
rios evangélicos  da  primeira  fundação  fe  tinham  ido  afas- 
tando da  vinha  efpiritual,  não  fomente  para  marcharem  na 
eftrada  real  dos  negócios  e  manejos  temporaes,  fenão  para  fe 
entranharem  e  perderem  nas  fendas  e  nos  atalhos  tortuofos 
de  enredos  profaniíTimos. 

Podia,  porém,  o  bullario  romano  avolumar-fe  com  os  no- 
vos edidos  pontifícios,  podia  o  papa  Lambertini,  Benedido 


'  Bulia  de  Benediclo  XIV,  Dominus  ac  Redemplnr  nojler,  de  21  de  julho  de 
17-3,  abolindo  a  Companhia  de  Jefus,  §  21. 


126 

XIV,  renovar  com  afperrimas  cenfuras  a  ingerência  dos  ob- 
durados  jefuitas  nos  aíTumptos  feculares  e  concernentes  ao 
governo  dos  eftados,  com  o  fim  de  accrefcentar  a  fua  valia  e 
enthefourar  os  bens  terrenos.  Os  jefuitas,  como  poderofa  e 
privilegiada  milicia  efpiritual,  deixavam  dormir  as  lettras 
apoftolicas  nas  fuás  volumofas  collecções  e  perfiítiam  cega- 
mente na  fua  encanecida  impenitencia. 

Paífando  em  Portugal  de  um  reinado  menos  piedofo  que 
fanático  a  uma  adminiftração  mais  zelofa  da  verdadeira  fo- 
berania,  comprehenderam  que  o  miniftro  de  D.  Jofé  não  era 
antagoniíta,  com  quem  valeífem  demafiado  o  coítume  e  a 
tradição.  O  feu  enérgico  e  vigorofo  minifterio  a  cada  provi- 
dencia, que  lançava  defde  o  paço  com  a  fancção  nominal 
do  monarcha  indolente  e  mundano  em  fummo  grau,  levan- 
tava contra  fi  os  intereífes  egoiftas,  que  iam  fer  immolados 
ao  bem  commum.  Não  ha  quafi  uma  lei  ou  um  alvará,  que 
não  deixe  uma  íerida  infanavel  e  dolorofa  n'alguma  das  clas- 
fes,  em  que  eftavam  repartidas  as  ordens  privilegiadas.  Alem 
d'iíro  um  governo  exercido  por  um  quafi  plebeu,  um  homo  110- 
piis,  fem  imagens  venerandas  de  maiores  e  avoengos,  um  go- 
verno fem  a  influencia  prepotente  da  alta  nobreza  e  a  artifi- 
ciofa  dominação  da  Companhia,  era  um  phenomeno  politico 
extranho,  fingular,  uma  abominação,  um  facrilegio,  pofto  em 
contrafte  laftimofo  com  a  fubferviencia  do  eítado  ás  duas 
ambiciofas  hierarchias  defde  os  tempos  de  D.  João  III,  o 
fundador  da  inquifição  e  o  introduiílor  dos  jefuitas,  até 
D.  João  V,  o  amigo  da  famofa  fociedade  e  o  favorecedor  do 
Santo  Ofiicio. 

A  guerra  fem  quartel  ao  miniftro  audaz  e  innovador  era 
pois  infallivel,  confederadas  contra  elle  a  nobreza  e  a  Compa- 
nhia. Os  fidalgos,  habituados  a  contrapefar  o  poder  official 
dos  miniftros  com  a  fua  entrada  e  valia  nas  recamaras  dos 
reis,  difparavam  contra  Sebaftião  de  Carvalho  as  hervadas  fré- 


1  f 


ti» 


chás  da  fatyra  e  do  epigramma,  emquanto  não  podiam  Ibc- 
correr-fe  ás  mais  potemes  armas  da  aberta  infurreição.  Os 
jefuitas,  encaftellados  no  íntimo  do  paço,  como  régios  con- 
feíTores,  como  que  eftavam  occupando  a  cidadella,  d'onde  a 
falvo  podiam  aíTeftar  os  tiros  efficazes  e  dirigir  os  ramaes 
das  fuás  minas  contra  o  miniftro,  encerrado  no  recinto  prin- 
cipal da  fortaleza.  Quando  o  governo  refide  n^um  fó  homem 
que  herdou  o  fceptro  e  a  majeftade,  e  quando  eífe  homem 
confere  com  os  feus  direílores  efpirituaes  os  mais  graves  ne- 
gócios da  republica,  então  acima  da  realeza  temporal  vem 
erguer-fe  arrogante  e  irrefponfavel  uma  temerofa  theocracia. 
Ao  poder  legiflativo  do  fobcrano  oppõe-fe  com  o  feu  veto  o 
poder  moderador  do  confeíTionario.  O  governo  cifra-fe  então 
fomente  no  facerdocio,  e  os  miniftros  fão  apenas  os  acoly- 
tos,  que  aíTiftem  obedientes  e  refignados  ao  laftimavel  facri- 
íicio  da  nação,  immolada  ao  egoifmo  clerical. 

Sebaftião  de  Carvalho  refufava-fe  tenazmente  ao  papel 
inglório  e  humiliante  dos  fecrctarios  de  eítado  em  tempos  de 
D.  João  V.  Ou  lhe  havia  de  bailar  para  reger  a  monarchia  a 
vara  de  Saul,  ou  deixaria  a  outrem  fem  partilha  a  uncção  de 
Samuel.  Seftario  fervorofo  da  independência  do  poder  fobe- 
rano  e  temporal,  correr-fe-ía  de  governar,  pedindo  a  vénia 
aos  duques  e  aos  marquezes,  e  beijando  a  fímbria  da  roupeta 
aos  filhos  efpirituaes  de  Santo  Ignacio.  Governar  é  combater, 
e  não  contemporifar.  N'efl:a  dura  peleja  ou  fe  impõe  oufada- 
mente  a  lei  ao  adverfario  ou  fe  lhe  cáe  reverente  aos  pés, 
fupplicando-lhe  a  fombra  do  poder,  como  uma  ignominio- 
fa  conceífão.  Quando  um  homem  fe  levanta  com  a  omnipo- 
tente diétadura  ou  em  nome  da  revolução,  como  Danton  e 
Robefpierrc,  ou  por  mercê  do  defpotismo,  como  Pombal 
e  Richelieu,  é  forçofo  que  o  defpotifmo  ou  a  revolução 
perfonificada  no  fupremo  diftador,  paífem  com  a  fua  car- 
roça triumphal  por  cima  dos  dcflroços  do  paífado,  como  o 

II  ir 

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A- 


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12S 

carro  de  Jaggernath  efmaga,  no  feu  tranfito,  os  fanáticos 
hindus. 

A  luda  de  Carvalho  com  os  nobres  e  os  jefuitas  era  pa- 
tente defde  os  primórdios  do  governo.  Nas  machinações  con- 
tra a  companhia  do  Grão-Pará  haviam  procurado  enredar  a 
gente  mercantil  de  mais  groíTos  cabedaes  na  furda  confpira- 
ção.  As  pregações  e  prophecias  divulgadas  por  occafiáo  do 
terremoto  e  depois  d'elle,  os  manejos  dos  jefuitas  e  barbadi- 
nhos  junto  de  D.  Jofé  para  o  eítimularem  á  penitencia  e  ex- 
piação, não  eram  fenão  tremendas  allufões  áquelle  miniftro 
defnaturado,  que  pelas  fuás  impias  refoluções  havia  provoca- 
do a  divina  indignação  e  attrahíra  fobre  a  noviíTima  Gomor- 
rha  o  flagello  vingador. 

Os  ares  enfombravam-fe  em  redor  do  impávido  miniftro. 
A  borrafca  annunciava-fe  temivel  nas  orlas  do  horizonte.  Co- 
meçavam a  defatar-fe  contra  elle  as  linguas,  tanto  mais  peri- 
gofas  e  mais  difíiceis  de  calar  ou  defmentir,  quanto  é  menos 
extenfa  n'um  paiz  a  liberdade  popular.  Quando  não  ha  im- 
prenfa  livre,  os  homens  públicos  e  os  negócios  do  governo 
difcutem-le  na  fombra  e  no  fecreto,  confundindo  na  commum 
murmuração  o  capitulo  jufto  e  verdadeiro  e  a  calumnia,  que 
fe  vae  propagando  e  diffundindo,  e  não  pôde  confutar-fe, 
porque  anda  refugida  á  luz  do  dia. 

De  um  notável  ^decreto  datado  a  17  de  agofto  de  lySõ 
deprehende-fe  que  chegara  n'aquelle  tempo  a  grandes  oufa- 
dias  a  hoftilidade  e  averfão  contra  o  famofo  miniftro  de  D.  Jo- 
fé. Uma  tão  fevera  providencia  repreffiva  não  podia  certa- 
mente decretar-fe  para  conter  gente  mordaz  e  deflinguada, 
que  apenas  defentranhaíTe  em  fatyras  verbaes  o  feu  ódio  con- 
tra Carvalho.  Devia  feguramente  fer  mui  grave  a  circumftan- 
cia,  que  didou  uma  tão  dura  e  cautelofa  prevenção.  Hou- 
vera, dizia  o  rei  no  feu  decreto,  peífoas  taes  e  tão  barbaras, 
que  fe  atreveram  a  proferir  que  haveria  talvez  quem  atten- 


129 

taffe  contra  a  vida  de  algum  dos  feus  miniftros.  Ordenava 
que  defde  logo  íe  procedeffe  a  exacta  averiguação  e  devaíTa, 
que  ficaria  fempre  aberta.  Promettia  vinte  mil  cruzados  de 
premio  a  quem  defcobriíTe  os  auítores  das  tremendiíTimas 
palavras  ou  outras  de  lemelhante  imputação.  Prefcrevia-le 
nas  delações  um  íegredo  inviolável.  Tornavam-fe  cumulati- 
vas todas  as  juftiças  reaes  e  dos  donatários,  e  audorilavam- 
fe  os  particulares  a  prender  os  que  prefumiíTem  incurfos  no 
delido.  Era  o  tribunal  revolucionário,  que  furgia  antecipado 
em  pleno  ablblutifiiio. 

Chegcíra  á  fi^ia  culminação  n'aquelles  dias  a  animadverfão 
contra  o  miniftro,  que  ameaçava  as  claíTes  privilegiadas  com 
uma  inaudita  revolução.  Não  eram  fomente  as  fatyras  e  os 
donaires  allufivos  e  maliciofos  os  canaes,  por  onde  agora  íe 
efcoava  o  aggreíTivo  bom  humor  dos  praguentos  e  dicazes'. 
Dos  fecretos  conciliábulos  paíTavam  os  inimigos  a  tramar  os 
feus  enredos  nas  recamaras  do  paço,  bufcando  enleiar  e  at- 
trahir  o  animo  do  rei.  Apefar  de  que  Sebaftião  de  Carvalho, 
principalmente  depois  do  terremoto,  havia  lançado  raizes  mui 
profundas  na  regia  confiança,  era  comtudo  cada  vez  mais  dif- 
ficil  ao  hábil  timoneiro  marear  a  fua  barca,  levando  firme  o 
rumo  por  entre  os  recifes  e  as  reítingas,  de  que  lhe  aparcella- 
vam  as  oufadas  fingraduras.  Bailaria  um  momento  de  irrefo- 
lução  no  animo  apoucado  do  foberano,  um  capricho  de  po- 
tentado, uma  noite  mal  dormida  após  as  noílurnas  correrias 
amorofas,  para  que  D.  Jofé  com  a  credulidade  fácil  de  um 
efpirito  pouco  allumiado,  deífe  credito  aos  inimigos  de  Car- 
valho, para  que  o  grande  reformador,  iniciada  apenas  a  fua 
obra  memorável,  e  difpoftos  fomente  os  primeiros  e  débeis 
fios  no  tear  da  immenfa  renovação,  caiífe  precipitado  da  al- 


'  Em  officio  de  29  de  janeiro  de  rySli  dizia  o  embaixador  francez,  que  fe 
haviam  clpalhado  pafquins  contra  o  governo.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  go. 


ris 


i3o 

tura  vertiginofa,  em  que  haveria  de  hombrear  com  a  majes- 
tade. 

Trama^'am  contra  elle  no  paço  os  confeíTores,  enredavam 
os  fidalgos.  Traçavam-lhe  a  queda  prompta  e  eítrepitola 
para  que  volveíTem  a  dominar,  como  nos  annos  derradeiros 
do  rei  devoto  e  galanteador.  Logo  depois  do  terremoto,  quan- 
do o  animo  de  D.  Jofé,  aíTom brado  pela  terrivel  calamidade, 
teria  talvez  ainda  mais  torvada  a  lua  pouca  lucidez  e  fortale- 
za, redobraram  os  affaltos,  com  que  a  turba  dos  conjurados 
fe  afadigava  por  deílruir  na  fraqueza  ingenita  do  rei  a  con- 
fiança no  miniftro  e  no  fyftema,  que  elle  fe  propunha  appli- 
car.  E  então  que  introduzem  no  paço  os  dois  barbadinhos 
italianos,  o  padre  Clemente  e  o  padre  Illuminato,  para  que 
eífabelecendo  uma  miflao  religiofa  nas  próprias  eminências 
do  poder,  perfuadam  o  monarcha  á  penitencia  e  deteítação 
dos  feus  peccados. 

A  principal  de  todas  as  culpas  do  foberano  era  fem  du- 
vida o  ter  ao  lado  feu  o  intrépido  eftadifta,  que  nas  horas  de 
terror  univerfal  e  de  geral  defmaio  e  defconforto,  foubera 
contrapor  á  defordem  apparente  da  natureza,  a  boa  ordem 
e  concerto  das  providencias  falutares.  E  era  tão  perfiftente 
a  obfcíTão,  com  que  os  facciofos  inimigos  de  Carvalho  o  efia- 
vam  aíTediando  junto  ao  rei,  que  o  embaixador  francez,  um 
dos  feus  mais  acerbos  contradidores,  dizia  para  o  feu  gover- 
no a  efte  refpeito,  a  tal  ponto  ler  chegado  o  fanatifmo  dos  fra- 
des, que  tinham  oufado  ir  a  Belém  exhortar  el-rei  a  fazer  uma 
confiíTão  publica  dos  feus  peccados'.  Mas  não  era  fomente 
fob  a  cllamcnha  e  o  burel  dos  capuchinhos,  que  fe  efcondiam 
as  armas  para  expugnar  o  miniftro  odiado  pela  clerezia  e  pe- 
los grandes.  Martinho  Velho  Oldcmberg,  filho  do  opulento 


'  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Bachi,  de  25  de  novembro  de 
1755.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  6g. 


i3i 

mercador,  a  quem  Sebaftião  de  Carvalho  concedera  em  mo- 
nopólio a  navegação  e  commercio  do  Oriente,  era  um  dos 
principaes  inftrumentos  da  oulada  reacção  contra  o  minis- 
tro. Teftemunhas  infufpeitas,  porque  todas  lhe  profeíTavam 
um  ódio  implacável  e  ferino,  fáo  conteftes  em  affirmar  a  tra- 
ma delineada'. 

Era  Martinho  Velho  grande  amigo  e  familiar  dos  harha- 
dinhos,  e  na  cerca  do  feu  convento  depois  do  terremoto  eri- 
gira uma  barraca,  onde  fizera  lua  morada.  Privava  particu- 
larmente com  os  padres  Clemente  e  lUuminato.  Eram  eftes 
cabalmente  os  que  logo  após  a  ruina  de  Lif  boa,  pelas  entradas 
que  já  tinham  com  o  rei,  fe  apreflaram  em  ir  ao  paço  a  esfor- 
çal-o  no  infortúnio  com  os  foccorros  e  confortos  efpirituaes. 
Deram  os  barbadinhos  começo  á  fua  miíTão,  em  que,  fegun- 
do  plaufiveis  apparencias,  infiítiam  fortemente  no  caftigo  tre- 
mendo, que  no  terremoto  era  cifrado  contra  os  peccados  e 
abominações  d'aquelle  tempo,  e  na  urgência  de  aplacar  por 
feveras  expiações  a  cólera  divina.  N'aquella  mefma  occafião 
indo  Oldemberg  ao  paço  de  Belém  e  pradicando  com  el-rei 
acerca  da  commum  e  terrivel  calamidade,  propoz-lhe  vários 
arbitrios,  com  que  fe  remediaíTem  os  eífragos  e  fe  accudiífe 
á  miferia  da  nação.  E  dizendo-lhe  o  foberano,  que  foífe  con- 
ferir com  o  feu  miniftro  os  planos,  que  lhe  tinha  bofquejado, 
o  alvitrifta  denunciando  defde  logo  o  feu  ódio  irreconciliável 
a  Carvalho,  defatou  a  lingua  e  a  malquerença  n'uma  corren- 
te de  impropérios,  proteftando  que  com  tal  homem  não  queria 
nenhum  trato,  e  fobre  ifto  ejaculou  as  mais  acerbas  accufa- 
ções  contra  o  eftadifia  benemérito-.  N'aquelles  dias  lacrymo- 


'  Vita  di  Seb.  Giujeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  i,  pag.  67  e  fegg.  —  Rela- 
ção individual  dos  cárceres  no  forte  da  Junqueira,  pelo  marquez  de  Alorna,  ti- 
tulo Dos  barbadinhos  italianos,  manufcripto  da  Academia  das  Sciencias. 

2  Relação  individual  dos  cárceres  no  forte  da  Junqueira,  pelo  marquez  de 
Alorna,  titulo  Dos  barbadinlms  italianos. 


eis 


l32 

fos  os  abalos  e  fecufloes  não  ceifavam  de  convellir  a  cidade 
de  Lifboa,  e  conturbar  e  abater  os  ânimos  de  maior  impavi- 
dez  e  ferenidade.  O  elpirito  do  rei,  fraco  e  vacillante  como 
era,  ofcillava  entre  a  efperança  e  o  terror  ao  compaífo  das 
terreftres  vibrações.  N'eft:as  occafiões  e  trances  dolorofos, 
quando  o  defanimo  e  o  temor  tomam  o  paífo  ao  bom  confe- 
Iho,  cruzam-fe  nos  ares  os  alvitres  e  os  queixumes,  e  lança-fe 
á  conta  de  quem  governa  o  que  pertence  á  fatalidade  ou  á 
fortuna. 

Segundo  a  narrativa  do  máximo  detrador  de  Sebaftião 
de  Carvalho,  o  rei,  no  feu  afogo  e  tribulação,  defabafou 
com  Martinho  Velho  as  fuás  laftimas,  perguntando-lhe  quan- 
do acafo  teriam  fim  tantos  defaftres  e  de  novo  furgiria  a  paz 
e  quietação  na  terra  e  nos  efpiritos.  Aqui  foi  no  fogofo  in- 
terlocutor o  defatar-fe  em  violentas  imprecações  contra  o 
miniítro,  increpando-o  odiofamente  de  fer  o  que  por  feus  ma- 
lefícios provocava  a  cólera  divina,  defrefpeitando  a  religião, 
conculcando  a  juftiça,  exercitando  as  prepotências  e  os  efcan- 
dalos  em  progreíTivo  crefcimento.  E  por  aqui  foi  enfartando 
reparos  e  calumnias,  com  as  quaes,  ao  que  parece,  alcançou 
deixar  perplexo  o  animo  do  rei.  Ordenou-lhe  D.  Jofé  que  po- 
zeífe  por  efcripto  as  queixas  e  os  arbítrios.  Valeu-fe  Marti- 
nho Velho  de  um  advogado  feu  amigo,  jurifconfulto  de  bom 
nome,  que  logo  redigiu  um  vehemente  arrafoado.  Mandou 
el-rei  que  o  deífe  o  arbitrifta  ao  barbadinho  Fr.  Clemente, 
que  aíFim  veiu  a  fer  o  interventor  para  que  chegaífe  ás  regias 
mãos.  Deu  o  capuchinho  o  feu  parecer  acerca  do  papel,  opi- 
nando que,  a  fer  verdade  o  feu  conteúdo,  era  o  foberano 
certamente  enganado  pelo  miniftro. 

Continuava  entretanto  Fr.  Clemente  a  frequentar  o  paço 
de  Belém,  onde  profeguia  fazendo  as  fuás  miífões.  Referem 
os  inimigos  de  Carvalho  que  lhe  não  eram  aprazíveis  eftas 
idas  e  venidas,  em  que  ao  zelo  efpiritual  andava  confociado 


i33 

O  enredo  politico  e  profano.  Todos  os  que  têem  exercido  o 
poder  junto  de  reis,  fabem  quanto  é  perigofa  fobre  importuna 
eíta  frequência  de  maliciofos  cortezãos,  que  fob  color  de  bem 
fervir  a  confciencia  ou  o  intereíTe  do  monarcha,  andam  mi- 
nando em  feu  conceito  o  poder  e  a  influencia  dos  feus  legiti- 
mos  conlelheiros.  E  evidente  que,  effando  já  a  conjuração 
alojada  na  própria  refidencia  do  imperante,  ou  o  miniilro  re- 
formador haveria  de  renunciar  o  feu  oíiicio,  ou  proftrar  ven- 
cidos e  imbelles  os  feus  antagoniítas.  Mas  vencel-os  com 
brandura,  nem  condizia  com  o  leu  altivo  e  impetuofo  tem- 
peramento, nem  com  a  urgência  das  circumftancias,  nem 
com  os  coftumes  políticos  d'aquelle  tempo  de  agrefte  e  omni- 
potente abíblutifmo.  Se  damos  credito  a  um  infuipeitiflimo 
efcriptor,  o  marquez  de  Alorna,  um  dos  encarcerados  no  for- 
te da  Junqueira,  os  conjurados  pretendiam  levantar  ao  pri- 
meiro logar  no  miniíterio,  em  vez  de  Sebaftião  de  Carvalho, 
a  António  Freire  de  Andrade  Encerrabodes,  que  era  então 
enviado  portuguez  junto  do  papa.  Um  Fr.  Manuel  de  Gui- 
marães, confidente  e  amigo  de  Martinho  Velho,  efcrevêra 
para  Roma  ao  fuppofto  fucceffor,  encarecendo-lhe  os  defejos 
e  as  efperanças,  com  que  elle  e  os  barbadinhos  e  ainda  ou- 
tros confpiradores  lidavam  por  conduzir  o  Encerrabodes  ás 
mais  altas  eminências  do  poder. 

E  quafi  certo,  e  o  Alorna  afllm  o  affirma,  que  o  fecre- 
tario  de  eftado,  Diogo  de  Mendoça,  com  o  ódio,  que  inlpira 
fempre  a  mediocridade  avaíTallada  pelo  talento,  cooperava 
efficazmente  na  fervorofa  reacção.  Vieram  as  indifcretas  cor- 
refpondencias  ter  ás  mãos  do  miniftro,  que  fabia  parar  em 
fafão  própria  os  golpes  imprudentes  dos  contrários.  A  29 
de  junho  de  lySõ  foram  prefos  e  interrogados  os  dois  bar- 
badinhos Clemente  e  Illuminato,  Martinho  Velho,  Fr.  Ma- 
nuel de  Guimarães  e  Francifco  Xavier  Teixeira,  o  letrado, 
que  traçara  o  politico  libello.  Alguns  jazeram  por  largos  an- 


ei» 


■34 

nos  no  forte  da  Junqueira,  outros  foram  degredados  para 
Angola. 

Que  os  jefuitas  não  eram  extranhos  a  cites  enredos  le  de- 
prehende  das  queixas  e  aggravos,  que  já  tinham  do  miniftro 
e  fe  confirma  com  a  fingela  narração  de  um  inimigo  de 
Carvalho.  O  Alorna  refere  que  Fr.  Clemente,  eítando  já  en- 
carcerado, pedia  para  confeíTar-fe  com  o  padre  Jofé  Moreira, 
que  ainda  era  áquelle  tempo  o  confelTor  de  D.  Jofé,  bufcan- 
do  por  efle  meio  fazer  chegar  uma  fua  inftancia  aos  ouvidos 
do  monarcha". 

Não  eítaria  defarmada  a  rebellião,  emquanto  nos  pró- 
prios confelhos  do  governo  eftiveffe  um  fecretario  de  eftado, 
não  fomente  defavindo  em  fummo  grau  com  o  homem  emi- 
nente, que  lhe  imprimia  a  direcção  e  o  efpirito,  mas  participe 
e  connivente  com  os  principaes  caudilhos  na  defabrida  oppo- 
fição.  Diogo  de  Mendoça  Corte  Real  vivia,  fegundo  a  própria 
coníàíTão  dos  feus  apologiftas,  em  perpetua  hoífilidade  ao 
feu  coUega  mais  poderofo.  Quem  fabe  o  que  fuccede  com 
frequência  nos  gabinetes  da  monarchia  parlamentar,  onde  os 
miniftros,  na  apparencia  concordes  e  unidos  no  mefmo  pen- 
famento,  difpendem  o  melhor  dos  feus  esforços  em  luffas 
domeíticas  e  interiores  e  em  contínuas  emulações  de  in- 
fluencia e  de  valia,  adivinha  facilmente  o  cjue  feria  n'aquelles 
tempos  de  realeza  abfoluta,  quando  não  havia  para  os  mem- 
bros do  governo  outro  fundamento  do  poder,  fenão  as  boas 
graças  do  imperante.  O  fecretario  de  eflado  da  marinha  e 
domínios  ultramarinos  via-fe,  pela  fuperioridade  irrefiítivel  do 
collega,  reduzido  á  funcção  fubordinada  de  um  mero  execu- 
tor do  alheio  arbítrio.  «Não  fabia  accommodar-fe,  efcreve  o 
mais  duro  inimigo  de  Carvalho,  a  algumas  idéas  de  Sebas- 
tião, por  mais  que  fe  empenhaífe  em  diíTmiular  os  próprios 


Relação  dos  cárceres  no  forte  da  Junqueira,  titulo  Dos  barbadiultos- 


i35 

refentimentos,  receiando  incorrer  na  lua  indignação".  E 
pois  certo  que  não  fe  forraria  aos  meneios,  ardis  e  enredos, 
com  que  o  podeíTe  precipitar  do  minifterio,  e  que  não  veria 
com  maus  olhos  o  esforço  inceffante  dos  conjurados,  que 
impugnavam  rijamente  a  figura  principal  do  gabinete.  A  3o 
de  agoífo  de  lySõ  entrava  o  fecretario  de  eftado  dos  negó- 
cios extrangeiros,  D.  Luiz  da  Cunha,  nos  apofentos  do  feu 
defpercebido  collega  da  marinha,  e  acompanhado  do  defem- 
bargador  João  Ignacio  Dantas,  corregedor  do  crime  da  corte 
e  cafa,  lhe  intimava  o  decreto,  em  que  n'aquelle  mefmo  dia  o 
rei  vibrava  os  raios  vingadores  da  majeftade  contra  o  fâmulo 
infiel.  Os  miniítros  eram,  de  feito,  n'aquella  edade  férrea  os 
domeíficos  do  arbitro  llipremo.  Como  nos  velhos  defpotis- 
mos  orientaes,  a  demiíTão  dos  régios  confelheiros  confun- 
dia-fe  na  mefma  tcrrivel  penalidade  com  o  exilio  ou  a  pri- 
fão. 

O  decreto  de  3o  de  agofto  de  ij56  exprobrava  em  afper- 
rimas  palavras  o  procedimento  de  Diogo  de  Mendoça,  como 
réu  de  lefa  majeftade.  Por  um  exceíTo  de  clemência  com- 
mutava-lhe  a  pena  correfpondente  ao  feu  delido,  ordenan- 
do-lhe  que  no  termo  de  três  horas  faiíTe  de  Lifboa  e  fe  afas- 
taíTe  para  logar  diífante  quarenta  léguas,  d'onde  lhe  era 
defefo  perpetuamente  o  apparecer  de  novo  na  capital.  Dio- 
go de  Mendoça,  referem  os  feus  panegyriflas,  recebeu  com 
eítoica  ferenidade  a  improvifa  condemnação.  Sobraçando  o 
feu  breviário,  e  aíiirmando  que  das  três  horas  concedidas  fó 
o  primeiro  minuto  lhe  baftava  a  aperceber-fe  para  a  jornada, 
diífe  ao  feu  collega,  transformado  em  aguazil:  «Vamos  exe- 


I  \'ita  di  Seb.  Ciufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  i,  pag.  72.  A  Vida  de 
Sebajliáo  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A.,  pag.  66,  manufcripto  da  Academia 
das  Sciencias,  diz  a  efle  rcfpeito:  «Como  tinha  génio  pouco  foffredor,  em  al- 
guma occafião  fe  opporia  ás  máximas  do  companheiro,  caufa  íufficiente  para  o 
leparar  do  lado  do  principe». 


c|3 


4  si» 

i3õ 

cutar  o  preceito  do  noffo  rei'.»  Singelos  e  felizes  tempos 
eram  aquelles,  nos  quaes  fobravam  cortezãos,  que  até  reve- 
renciavam a  realeza,  quando  á  femelhança  do  grão  turco 
antes  de  fer  culto  e  parlamentar,  enviava  o  cordão  de  feda 
aos  feus  effendis  e  pachás.  Logo  o  antigo  e  complacente 
companheiro  das  monterias  e  defportos  pouco  efpirituaes  do 
piedofo  D.  Jofé,  fe  poz  a  feu  caminho,  feguindo  efcoltado 
por  foldados  na  direcção  de  Aveiro.  Tempos  depois  foi  de- 
gredado a  Mazagão,  e  d'ali  o  trafladaram  á  Berlenga,  onde 
vieram  a  dar  fim  todas  as  fuás  grandezas  e  ambições. 

António  Freire  de  Andrade  Encerrabodes  era  o  eftadifta 
preconifado  pelos  caudilhos  e  fautores  da  conjuração  para 
fucceder  no  ofíicio  de  fecretario  de  eftado  ao  miniftro  que 
temiam  e  odiavam.  Os  próprios  inimigos  de  Carvalho  o  ava- 
liam em  feus  efcriptos  como  aquelle,  a  quem  pelas  fuás  qua- 
lidades e  ferviços  competia  o  aho  cargo-.  A  lua  íntima 
communicação  com  os  barbadinhos,  um  dos  quaes  era  feu 
diredor  efpiritual,  é  atteítada  por  tão  irrefragavel  teftemu- 
nho,  qual  é  o  de  um  grande  parcial  e  panegyriífa-.  EUe  pró- 
prio confeífava  que  nas  cartas  de  ofíicio,  que  de  Roma  diri- 
gia ao  feu  governo,  fe  exprimira  muitas  vezes  com  fobrada 
rifpidez,  denunciando  por  eíta  forma  o  feu  defamor  ao  mi- 
niftro preeminente  e  o  quanto  fe  empenhava  em  o  deífervir  e 
contraítar^  Ainda  em  governo  livre  e  democrático  feria  irre- 
gular o  manter  na  mais  importante  enviatura  de  Portugal 
n'aquella  conjundura,  a  um  homem  não  fomente  devotado 
á  facção  clerical  e  uhramontana,  fenão  também  lingua  e  me- 
dianeiro em  feus  conluios  para  abater  e  diíTamar  o  vulto 


1  Vida  de  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A.,  commentada  e  ana- 
lyfada  pelo  defembargador  do  paço,  dr.  Jofé  Joaquim  Vieira  Godinho,  manus- 
cripto  da  Academia  das  Sciencias,  pag.  64. 

2  Relação  dos  cárceres  no  forte  da  Junqueira,  pelo  marquez  de  Alorna, 
titulo  Do  Encerrabodes. 


4sU 


principal  do  gabinete.  Encerrabodes  foi  logo  deporto  da  le- 
gação, que  junto  ao  Vaticano  exercitava.  Na  renhida  peleja, 
que  o  miniftro  de  D.  Jole  tinha  empenhada  com  a  poderofa 
theocracia,  principalmente  reprefentada  pelos  jefuitas  e  léus 
propugnadores,  era  forçolb  ter  em  Roma,  quem  em  vez  de 
contradizer  ao  eftadifta  os  léus  propofitos,  os  ferviíTe  com 
lealdade  e  com  fervor,  quem  foíTe  participante  na  lua  for- 
tuna, como  fedario  e  profeíTor  da  mefma  fé  politica.  Era 
Francifco  de  Almada  e  Mendoça,  primo  de  Sebaftião  de 
Carvalho,  quem  melhor  poderia  comprehender  e  executar  os 
feus  preceitos  na  difficil  enviatura.  Se  lhe  era  conjundo  pelo 
fangue,  não  menos  lhe  era  affim  pela  femelhança  nos  prin- 
cípios que  feguia.  D'cfte  poderia  o  miniftro  certificar-fe  de 
que  fempre  le  manteria  confidente.  Seria  apenas  o  zelofo 
mandatário,  como  que  um  diligente  procurador  para  cum- 
prir em  Roma  pela  acção  o  que  prefcreveíTe  de  Lif  boa  o  in- 
fatigável penlamento  do  grande  reformador.  Em  logar  de 
Diogo  de  Mendoça  foi  nomeado  fecretario  da  marinha  Thomé 
Joaquim  da  Cofta  Corte  Real,  que  era  então  conlelheiro  do 
ultramar.  Um  contemporâneo,  inveterado  inimigo  de  Carva- 
lho, faz  do  novo  miniftro  das  colónias  portuguezas  um  retrato, 
que  o  não  abona  certamente  como  cftadifta  e  labedor.  Se- 
gundo efte  perfil  breve  e  pouco  favorecido,  o  novo  mem- 
bro do  gabinete  mal  fallava  a  lingua  pátria  e  era  incapaz  de 
qualquer  grave  occupação.  O  leu  mérito  era  apenas  o  da 
obediência  incondicional  a  quem  mandava.  N'elle  ficava  o 
logar  provido,  e  vacante  o  exercicio  como  d'antes'.  A  fijb- 
millao  porém,  tão  decantada  pelo  odiento  hiftoriador,  não 
obviou  a  que  Thomé  Joaquim  da  Cofta  Corte  Real  pade- 
celTe  d'ahi  a  poucos  annos  fortuna  egual  á  do  leu  anteceíTor. 


I   Vida  de  SebajUdo  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A.,  pag.  67,  manufcripto 
da  Academia  das  Scicncias. 

e|j  4* 


i38 


CAPITULO  VI 

A  COMPANHIA  DOS  VINHOS  DO  ALTO  DOURO 

Era  trabalhofa  e  cortada  de  obftaculos  a  empreza,  em 
que  lidava  o  miniftro  principal  de  D.  Jofé.  Mas  os  feus  al- 
tos efpiritos  e  a  indómita  fortaleza  do  feu  animo  crefciam  e 
roboravam-fe  ao  compaíTo  da  continua  e  violenta  oppofição. 
Coftumam  os  eftadiftas  medianos  laftimar-le  de  que  os  feus 
inimigos,  empeçonhando  pela  calumnia  as  mais  reftas  inten- 
ções, embargando-lhes  o  caminho  a  cada  inftante,  enredan- 
do-os  no  labyrinto  das  fuás  cavillofas  machinações,  lhes  não 
confentem  pôr  em  obra  as  miríficas  reformas,  que  trazem 
planeadas.  Mas  os  repúblicos  verdadeiros,  como  os  grandes 
navegadores,  quafi  folgam  na  cerração  e  fúria  das  tormen- 
tas, porque  fe  correriam  de  fingrar  em  mares  de  leite,  onde 
os  ventos  bonançofos  e  fagueiros  teriam  todo  o  mérito  da 
feliz  navegação.  Redobra  com  a  vehemente  contradicção  o 
vigor  do  homem  de  eftado.  O  governo  é  então  a  guerra;  e 
é  pela  guerra  ou  pelejada  nos  campos  de  batalha,  com  as  ar- 
mas materiacs,  ou  ferida  entre  as  facções  pela  civica  energia, 
que  as  fociedades  fe  avigoram,  fe  adiantam,  fe  transformam 
e  refurgem  para  os  triumphos  mais  brilhantes  da  liberdade  e 
da  rafão.  Governar  é  combater.  Um  eftadifta  fem  contrários 
é  um  athleta  n'um  ermo  amphitheatro.  Na  paz  e  na  folidão 
o  poder,  que  é  então  uma  vaidade  pueril,  inebria  com  os 
feus  fumos  deletérios  o  pacifico  homem  de  eftado.  Á  paz 
fuccede  o  torpor,  ao  torpor  o  fomno,  ao  fomno  a  obfcurida- 
de.  Dos  miniftros,  que  regeram  fem  encarniçados  inimigos, 
é  muda  a  hiítoria.  A  auréola,  que  circumda  a  fronte  dos  Ri- 
chelieus  e  dos  Pombaes,  fêl-a  principalmente  a  luz,  que  os 
ódios  lhes  jorraram  na  terrível  explofão  dos  feus  rancores. 

'•^^ -<Ò>-^ 


4  cts 
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■39 

Na  tragedia  antiga  o  heroe  é  grande  e  épico  fomente  por  que 
luíta  fem  quebra  do  leu  animo  com  a  tremenda  fatalidade. 
A  gloria  dos  politicos  immortaes  ha  de  ter  em  extremo  grau 
a  feição  dramática,  entretecida  de  aventuras  fingulares.  Pa- 
rece que,  como  nas  antigas  folemnidades  religioías,  o  langue 
vem  fempre  completar  a  glorificação  e  a  apotheofe. 

Não  ha  heroes  coroados  de  rofas  e  de  myrthos,  tangendo 
citharas  e  cantando  dithyrambos  em  folgados  contubernios, 
com  túnicas  immaculadas  e  incruentas. 

Era  formidável  e  tremenda  a  oppofição,  que  de  toda  a 
parte  fe  levantava  contra  o  audaz  reformador.  Era  a  princi- 
pal a  liga  da  nobreza  e  dos  jefuitas.  Mas  digâmol-o  em  ver- 
dade, também  nas  gentes  populares  não  efcaífeavam  os  inimi- 
gos de  Carvalho.  Porque  eíte  é  condão  impreterível  de  todos 
os  grandes  innovadores,  que  tenham  a  principio  contra  fi  os 
mefmos,  a  quem  intentam  defopprimir  de  pefadas  e  duras 
vexações.  Não  fe  pôde  conteftar  que  não  era  branda,  nem 
amoravel  a  maneira  de  governar,  que  as  publicas  urgências 
haviam  infpirado  ao  animo  fevero  do  miniftro.  Com  elle  ap- 
parecia  mais  torvo  e  intraítavel  do  que  nunca  o  abfolutifmo 
puro,  eftreme,  fem  miftura  de  nenhum  extranho  influxo  ou 
legalidade'.  Mas  também  com  elle  era  a  primeira  vez  que  o 
defpotifmo,  para  juftificar  os  feus  golpes  terríveis  e  certeiros, 
poderia  invocar  em  feu  favor  o  fer  inexorável  e  duriíTimo 
para  geral  utilidade  e  commum  beneficio  da  nação.  Os  que 
porém  nas  acções  humanas,  e  principalmente  nas  politicas, 
vêem  fomente  a  cortiça  bronca  e  afperrima,  que  eftá  enco- 


'  Em  ofRcio  de  29  de  junho  de  17Í6,  efcrevia  o  embaixador  francez  con- 
de de  Bachi  ao  feu  governo  que  era  mal  olhado  o  miniílro  Carvalho  pelo  po- 
der abfoluto,  com  que  governava.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  go.  Em  offi- 
cio  de  9  de  feptembro  de  1756,  dizia  o  mefmo  embaixador,  «que  l'e  não  podia 
fazer  idéa  da  indignação  e  do  ódio,  que  todos  os  dias  fe  engroíTava  contra  aquel- 
le  miniílro."  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  95. 

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4»  e^ 


4  9Íi 


140 


brindo  o  cerne  prefladio,  os  que  fó  attentam  no  que  as  fe- 
veras  providencias  têem  de  acerbo  no  prefente  fem  poderem 
prefcrutar  o  que  d'ellas  no  porvir  le  ha  de  colher,  não  acer- 
tavam a  ajuizar  que  de  tamanhas  leveridades  fe  haveria  de 
compor  a  primeira  emancipação  do  povo  portuguez  e  a  pros- 
cripção  dos  abufos  e  preconceitos  Ibciaes.  Eram  como  o 
vulgo  infciente,  que  ao  ver  cruentadas  as  mãos  do  impla- 
cável operador,  não  repara  que  no  gume  dos  feus  ferros 
eítá  para  o  enfermo  defefperado  a  derradeira  falvação. 

Ao  fogo  do  intereíTe  chamou  o  conceituofo  e  elegante 
D.  Francifco  Manuel,  cúmplice  dos  maiores  incêndios  das 
republicas.  Os  intereíTes  e  as  ambições  dos  poucos  oífendi- 
dos  pelas  reformas,  confeguem  muitas  vezes  abafar  nos  feus 
queixumes  e  aggravos  o  que  ellas  tèem  de  falutar  e  previ- 
dente para  a  commum  profperidade.  Um  privilegiado,  a 
quem  privaram  do  feu  hereditário  monopólio,  fente,  enca- 
rece, vinga,  quanto  pôde,  a  oífenfa  recebida.  Um  povo,  a 
quem  fe  fazem  benefícios,  que  não  fão  individualmente  re- 
partidos, raras  vezes  fabe  agradecer  á  mão,  que  no  futuro 
lhe  apercebe  mais  profpero  deítino. 

Nas  monarchias  abfolutas,  quafi  defpoticas,  a  populari- 
dade não  é  precifa  como  elemento  de  governo.  Suppre-a  lar- 
gamente o  favor  real.  Com  uma  das  mãos  o  valido  omnipo- 
tente efcreve  os  feus  decretos  reformadores,  e  com  a  outra 
empunha  a  vara,  prompta  fempre  a  abater  e  humilhar  os  que 
murmuram  ou  confpiram.  No  meio  das  fupplantadas  conju- 
rações e  dos  enredos  fubterraneos  dos  feus  numerofos  adver- 
farios,  Sebaftião  de  Carvalho  profegue  impaffivelmente  nas 
fuás  cogitações  de  melhoria  e  de  reforma  nas  condições  po- 
liticas e  económicas  de  Portugal. 

A  nota  fundamental  no  fyfíema  governativo,  profeíTado 
e  feguido  pelo  miniftro  de  D.  Jofé,  é  a  emancipação  do  rei  e 
da  nação.  Do  rei,  exalçando  o  throno  á  plenitude  do  poder, 

-S-<Vt — •-ò-S^ 


4c|9 
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'4' 

libertando-o  largamente  de  toda  a  influencia  do  clero  e  da 
nobreza,  egualando-os,  quanto  á  lua  nullidade  politica,  aos 
Ínfimos  eftratos  do  vulgo  obediente.  Da  nação,  tornando-a 
independente  de  toda  a  vaflallagem  direda  ou  indireda  ás 
potencias  extrangeiras.  Para  relblver  o  primeiro  problema, 
é  neceíTario  que  o  fceptro  do  monarcha,  abatendo  as  cabe- 
ças, que  fe  alteam  na  turba  dos  vaíTallos,  paíTe  fobre  ellas 
nivelando  as  mais  erguidas  eminências  com  as  mais  humil- 
des profundezas  fociaes.  Do  tronco  da  monarchia  ablbluta 
é  precifo  amputar  as  plantas  epiphytas,  que  ainda  a  enlbm- 
bram  e  afogam  na  pujança  da  folhagem.  E  urgente  deftruir 
os  veftigios  derradeiros  das  inftituições  feudaes,  em  que  os 
barões  e  os  fenhores  confideram  o  foberano  como  o  pri- 
meiro dos  feus  pares.  A  poteftade  regia,  como  emanando  ef- 
fenciaimente  de  uma  origem  Ibbrenatural,  não  pôde  confen- 
tir  competidores  em  nenhum  grau.  O  rei  é  na  terra  como  o 
Jehovah  biblico  no  céu.  O  rei  é  quem  é.  Só  elle  tem  exiften- 
cia  real,  omnipotente,  creadora,  perpetua,  indeftrudivel  pela 
ferie  indefinida  dos  feus  herdeiros  e  fucceíTores.Tudo  o  mais 
fão  feituras  da  fua  graça,  que  vivem  para  o  fervir  e  acatar. 
Mas  como  o  rei  é  na  terra  a  corporificada  providencia,  vela 
paternal  e  amorofamente  pelo  bem  temporal  da  fua  grei.  Eis 
ahi  a  ultima  expreíTão  do  poder  real  e  abfoluto,  da  fciencia 
certa,  com  que  o  rei,  allegando-a  na  cabeceira  dos  feus  de- 
cretos, juftifica  a  fua  inerravel  infallibilidade  e  exclue  como 
torpiíTima  blafphemia  toda  a  extranha  participação  no  exer- 
cício do  poder.  Efla  é  a  doutrina  politico-theologica  do  Ba- 
filikon  Doron,  do  livro  celebrado,  onde  o  rei  James  I  de 
higlaterra  e  VI  de  Efcocia,  deu  o  ultimo  retoque  á  theoria 
do  defpotifmo  dynaítico  e  traçou  o  caminho  que  levou  os 
Stuarts  ao  cadafalfo  ou  ao  exilio. 

Efta  é,  delineada  em  traços  rigorofos  nos  preâmbulos  das 
leis  e  alvarás,  e  confirmada  cm  fevcras  execuções  nas  incon- 

-i-i- -á»-^ 


4S^ 
•-«$»-§» 

142 

fidencias  e  nas  alçadas,  a  philofophia  politica  de  Sebaftião 
de  Carvalho. 

Eis  aqui  de  que  maneira  o  miniftro  no  auge  do  poder 
eífeítivo  e  inconteftavel,  celebrava  a  apotheofe  da  realeza 
abfoluta,  perfonificada  em  D.  Jofé:  «Em  todo  o  Portugal  e 
feus  dominios  não  foam  outras  vozes,  que  não  lejam  as  que 
baixam  do  real  throno  de  fua  majeftade,  que  d'clles  (lubditos) 
fão  ouvidas  com  fumma  reverencia  por  fe  acharem  todos  os 
vaflallos  do  mefmo  fenhor  conftituidos  na  firmiffima  fé  de 
que  elle  fó  refolve  e  determina  o  que  é  mais  útil  aos  feus 
vaíTallos'». 

Seria  efta  porventura  a  fua  crença  intima,  fincera,  inaba- 
lável? E  poíTivel  que  em  pleno  feculo  xviii,  na  edade,  em 
que  fe  abalam  e  eftremecem  todos  os  velhos  preconceitos  fo- 
ciaes  e  em  que  eftão  fendo  minados  os  cimentos  de  todas  as 
abfurdas  tradições,  no  tempo  de  Montefquieu,  de  Rouflfeau 
de  Alembert  e  de  Voltaire,  no  meio  de  tanta  luz,  que  irradia- 
va pela  Europa,  prognofticando  a  já  não  remota  condemnação 
do  mundo  antigo  pela  voz  e  pelo  braço  da  revolução,  um 
efpirito  de  tão  clara  lucidez  em  fua  confciencia  profeífaífe, 
como  verdade  geométrica,  o  puro  abfolutifmo?  Não  é  dado 
irrogar  ao  fuperior  talento  de  Carvalho  efta  laftimofa  aberra- 
ção do  entendimento.  Bafta  ver  de  perto  um  rei,  ter  com  elle 
íntimo  trato  e  converfação,  conhecer  as  fuás  fraquezas  e  pai- 
xões, a  curteza  do  feu  efpirito,  e  a  rafteira  eftatura  do  leu  vul- 
to moral,  para  ver  que  não  é  mais  que  um  homem,  e  um 
homem,  quafi  fempre  bem  vulgar,  bem  achegado  ao  barro 
biblico,  bem  informado  de  mefquinha  humanidade.  E  efte  é 
que  fera  o  deus  terreno  do  puro  abfolutifmo?  E  efte  é  que 
ha  de  fer  o  vigário  e  logar  tenente  da  divina  omnipotência? 


'  Ohfervaçóes  jecretijfimas  do  marque'^  de  Pombal  fobre  a  collocação  da  es- 
tatua equejlre. 

II  > ' 

e|j  4' 


Efte  o  eleito?  Efte  o  predeítinado:'  Efte  o  paftor,  de  quem  os 
demais  homens  lejam  as  rezes  fem  alvedrio,  lem  voz,  lem 
liberdade?  Eíte  não  é  pois  deus,  fenão  idolo,  não  é  divindade 
de  gente  culta  e  racional,  fenão  feitiço  de  irracional  e  bruta 
cafraria. 

Ora  o  rei  D.  Jole  refpondia  juftamente  a  efta  imagem. 
Como  poderia  pois  um  agudo  e  penetrante  entendimento, 
qual  era  o  de  Carvalho,  cair  em  fer^'orofa  e  confciente  ado- 
ração diante  do  idolo  groíTeiro,  em  cujos  contornos  mal  talha- 
dos, em  cujas  feições  de  rude  compoftura  eftava  reflumbran- 
do  em  cada  ponto  fob  artificiofa  douradura,  o  madeiro  tolco, 
onde  a  ignorância  popular,  indouto  e  infeliz  imaginário,  fora 
efculpindo  pouco  a  pouco  o  vulto  do  fobrehumano  abfolu- 
tifmo? 

Sebaftião  de  Carvalho  não  acreditava  feguramente  no 
régio  defpotilmo  como  divina  inltituição.  Mas  cumpria-lhe 
profeffal-o  na  apparencia  e  roboral-o  Iblidamente,  porque  era 
elle  o  fecundo  inítrumento  da  fua  adminiftração.  Governava 
em  nome  do  rei  e  á  fombra  d'elle.  Se  lhe  faltaffe  aquelle  es- 
teio, le  a  luprema  poteífade  abíbluta  fe  minguaffe  ou  divi- 
diíTe,  entrando  algum  outro  elemento  politico  na  partilha  do 
poder,  a  queda  eftrepitofa  do  miniftro  feria  infallivel  e  fegu- 
ra,  ou  confervando-fe  Carvalho  ainda  no  governo,  teria  de 
renunciar  ás  fuás  largas  e  inauditas  reformações.  Era  mais 
fácil  cortejar  um  potentado  abfoluto,  omnipotente,  irrefpon- 
favel,  do  que  feria  a  um  demagogo,  como  Péricles  ou  De- 
moífhenes,  o  firmar  no  favor  e  no  applaufo  popular  a  fua  do- 
minação. O  único  elemento  politico  poderofo,  forte  e  cíficaz 
era  a  regia  audoridade.  Cumpria  pois  ao  miniftro  aprovei- 
tal-a  ou  abdicar  o  propofito  de  grandes  e  falutarcs  innova- 
ções.  A  fegurança  e  a  força  de  fcu  braço  feria  tanto  mais 
enérgica  e  certeira,  quanto  foífe  mais  íirme  e  incontrovcrfo 
o  régio  defpotifmo,  que  lhe  fervia  de  ampliíTimo  broquel. 

«i-A* •-<è-i* 


4^ 
-*. ^ •^ò^ 


144 


Sem  o  inconteítavel  abfolutifmo  de  um  monarcha  fupe- 
rior  a  todos  os  intereíTes  particulares  e  a  todas  as  forças  fo- 
ciaes,  o  audaz  reformador  teria  caído  irremillivelmente  ás 
primeiras  inveftidas  dos  feus  contradi6lores.  Era  elle  a  força 
e  o  motor,  mas  o  machiniírno,  pelo  qual  o  podia  utilifar  e 
converter  em  trabalho  util,  era  a  regia  poteftade,  onde  lhe 
era  dado  reduzir  ao  minimo  poíTivel  todas  as  refiítencias  pas- 
fivas  e  todas  as  perdas  de  força  viva  para  refolver  comple- 
tamente o  feu  grande  problema  de  mechanica  focial. 

Fortalecido  e  roborado  o  poder  régio  de  feição  que  n'elle, 
á  maneira  de  Luiz  XIV,  fe  confubtanciaíTe  a  própria  eíTen- 
cia  do  eftado,  que  feria  apenas  d'elle  uma  pura  emanação, 
era  forçofo  defopprimir  Portugal  de  toda  a  externa  e  oppro- 
briofa  fujeição.  Um  paiz,  que  para  accudir  ás  mais  inftantes 
precifões  da  fua  exiítencia  politica  ou  económica,  eftá  fem- 
pre  e  em  tudo  dependente  dos  extranhos,  não  merece,  nem 
pôde  ser  nação.  E  bem  que  os  povos,  como  n'uma  tacita  con- 
federação e  fincera  fraternidade,  uns  a  outros  fe  encadeiem  pe- 
los vínculos  da  mutua  ligação  internacional,  reciprocando  os 
bons  officios  e  ajudando-fe  uns  a  outros  em  amigáveis  e  fru- 
ftuofas  relações.  Mas  é  neceífario  que  feja  troca  efpontanea, 
egualmente  proveitofo  para  todos  o  reciproco  trato  mercantil. 
E  um  erro  tão  grave  como  infantil  o  pretender  que  uma  nação 
viva  enclauftrada  ciofamente  em  feu  recinto,  cerrando  as  fuás 
fronteiras  a  todo  o  commercio  económico  ou  civil  com  os 
demais  povos,  fabricando  tudo  quanto  poífa  baftar  aos  feus 
confumos.  A  natureza,  mais  próvida  e  mais  difcreta  que  as 
falfas  legiflações,  ao  repartir  diverfamente  os  climas  e  as 
aptidões  da  terra  e  do  trabalho,  eíleve  como  que  tacitamente 
impondo  aos  homens  efta  falutar  communidade,  que  fe  es- 
treita e  perpetua  no  efcambo  dos  produftos,  fuperíluos  n'um 
paiz,  por  outros,  que  a  fua  induftria  ou  não  pôde  produzir,  ou 
fomente  a  muito  cufto  confegue  remedar  e  contrafazer.  O 

^hò-* *y-^ 


4  cia 

143 

principio  racional  cifra-le  n'elle  ponto  em  que  uma  nação 
produza  por  li  mefma  o  que,  lem  esforços  fobrehumanos  e 
fem  artificiaes  aclimatações,  mais  eíteja  em  confonancia  com 
as  fuás  faculdades  induftriaes.  Mas  é  forçofo  que  o  trabalho, 
difcretamente  dirigido,  poíTa  crear  a  riqueza,  que  fe  ha  de  dar 
em  retorno  ao  extrangeiro  pelos  artefaftos  e  produólos  im- 
portados. E  indifpenfavel  pois  a  todo  o  povo  culto  e  merece- 
dor da  fua  independência  e  liberdade  uma  induítria  nacional. 
E  forçofo  que  os  extranhos  fó  exerçam  em  um  paiz  uma  in- 
ííuencia  mercantil  equivalente  á  que  elle  mefmo  alcança  em 
terra  alheia.  Fora  d'efl:as  condições  de  equilíbrio  económico 
o  povo,  que  viver  a  expenfas  de  outro,  é  um  fer\^o  ou  um 
mendigo,  fervo  coroado  e  mendigo  com  bandeira.  A  eíte 
propofito  commemorava  Sebaítião  de  Carvalho  n'um  feu 
efcripto  o  defdem  e  menofpreço,  em  que  tinham  a  Portu- 
gal os  extrangeiros,  «havendo  a  nação  portugueza  por  bifo- 
nha,  rude,  inerte  e  deftituida  de  todos  os  elementos  e  prin- 
cípios das  artes  fabris  e  libcraes'». 

Tal  era  a  fituação  de  Portugal  no  meado  do  feculo  xviii. 
A  alliança  e  convivência  com  a  Inglaterra,  fe  bem  nos  fora 
útil  politicamente,  havia  não  raro  defcaido  em  odiofa  fuze- 
rania  commercial.  Era  Portugal  indiredamente  feudatario 
da  grande  potencia  infulana  e  mercantil.  Eíta  era  a  porta, 
fempre  aberta,  para  que  a  feu  talante  podeífe  entrar  no 
continente.  A  adividade  britannica  foubera  converter  cm 
proveito  próprio  a  inércia  e  laflidão  proverbial  dos  portu- 
guezes,  mais  propenfos  á  guerra  que  ao  trabalho.  Em- 
quanto  das  minas  do  Brazil  jorraífe  o  oiro  em  torrentosa 
inundação,  bem  ia  certamente  á  defidia  e  ignavia  popular. 
O  metal  faldava  facilmente  a  nolfa  mefquinhez  induftrial. 


'  Objervaçòes  fecrctijfnnas  do  marquei;   da  Pombal  Jobrc  a  collocação  da 
eftalua  equeftre. 

ei»  eis 


4  9^ 

-• ■ -<^ 

Havia  com  que  comprar  o  pão  quotidiano,  as  telas,  os  efto- 
fos,  os  tecidos,  as  alfaias  domeílicas  e  habituaes.  Um  povo, 
que  embevecido  em  viciofas  fidalguias,  pôde  arremeíTar  oiro 
ás  mãos  cheias  aos  menos  quinhoados  extrangeiros,  lidados 
e  endurecidos  no  trabalho,  é  como  um  herdeiro  opulentiíTi- 
mo,  que  defbarata  na  ociofidade  os  feus  thefouros,  havendo 
que  das  arcas  inexhauítas  nunca  ha  de  chegar  a  ver  o  fun- 
do. Mas  o  oiro  efgota-le  finalmente,  a  miferia  bate  á  porta, 
e  a  penúria  inexorável  força  o  indolente  perdulário  á  depen- 
dência e  fervidão. 

O  oiro  portuguez  quafi  todo  fe  filtrava  para  os  cofres  da 
Gran-Bretanha.  As  providencias  coadivas  de  Carvalho  para 
obftar  á  corrente  forçofa  e  natural  feriam  improfícuas.  O  oiro 
é  bom,  mas  o  trabalho  é  melhor.  Em  vez  de  trocar  o  valor 
metallico  pelas  riquezas,  de  que  nos  abaftecia  a  Inglaterra, 
era  mais  feguro  e  proveitofo  que  lhe  deíTemos  em  cambio 
algumas  valiofas  producções,  de  que  a  natureza  nos  prove- 
ra. A  melhor,  que  poíTuiamos,  além  dos  géneros  coloniaes, 
—  o  afTucar  e  o  tabaco,  —  era  certamente  o  vinho,  principal- 
mente o  do  Alto  Douro.  Mas  o  leu  trafico  lucrativo  concen- 
trava-fe  em  grande  parte  nas  mãos  dos  commerciantes  in- 
glezes,  na  feitoria  britannica  do  Porto. 

Decaía  rapidamente  eíta  principal  entre  as  minguadas  in- 
duftrias  agrícolas  de  Portugal,  então  ainda  atrazadiífimo  na 
cultura.  Na  qualidade  peioravam  os  noíTos  vinhos,  depre- 
ciava-fe  o  valor.  Com  a  quebra  da  antiga  e  univerlal  repu- 
tação reftringiam-fe  os  mercados,  que  fe  abriam  com  fubida 
predilecção  aos  vinhos  francezes  e  hefpanhoes.  Urgia,  pois, 
accudir  aos  males,  que  ameaçavam  a  ultima  ruina  á  primeira 
e  mais  copiofa  fonte  da  riqueza  nacional,  prefles  a  exhaurir- 
fe.  N'efta  defventurada  fituação  queixavam-fe  os  cultores  de 
que  toda  a  fua  indurtria  vivia  agorcntada  e  fubdita  aos  nego- 
ciantes inglezes,  desfallecia  a  olhos  viftos  o  commercio  por- 

-i-<í>- -<Y^ 


cts 


■47 

tuguez,  que  em  concorrência  com  poderofos  e  foraíleiros 
mercadores,  não  tinha  cabedaes  com  que  luctar. 

Nenhum  dos  contendores  n'efta  porfia  acceitava  para  fi 
a  culpa  do  eftado  laftimoíb,  a  que  chegara  a  cultivação  e  o 
fabrico.  Cada  um  attribuia  ás  artes  maHciofas  do  contrario, 
e  á  cubica  immoderada  de  lucros  avultados,  a  degeneração 
da  induftria  vinhateira.  Queixava-fe  a  feitoria  ingleza,  impu- 
tando aos  lavradores  e  aos  commifTarios  portuguezes  os  no- 
civos ingredientes,  com  que  eftavam  aduherando  os  vinhos 
generoíbs.  Refpondiam  os  accufados,  achacando  á  feitoria 
britannica  a  raiz  de  todo  o  mal. 

Era  n'aquelle  tempo  grande  arbitrifta  de  remédios  econó- 
micos um  Fr.  João  de  Manfilha,  dominicano,  que  depois  veiu 
a  fer  provincial  da  ordem  dos  pregadores.  Entendeu-fe  com 
alguns  dos  proprietários  e  lavradores,  e  com  homens  de  ne- 
gocio, que  no  Porto  faziam  o  feu  trafico  em  vinhos  do  Alto 
Douro.  O  fupremo  recurfo  das  grandes  e  poderofas  compa- 
nhias, como  remédio  extremo  e  íalutar  contra  as  enfermida- 
des mercantis,  era  então  preconifado  como  axioma  na  econo- 
mia publica  d'aquelle  tempo.  A  fciencia,  que  no  feu  eftado 
prefente  de  perfeição  e  evidencia,  quanto  aos  feus  theoremas 
fundamentaes,  ainda  hoje  padece  tantas  quebras  e  infracções 
na  fua  applicação  á  pratica  do  governo,  era  então  ainda  im- 
perfeitiíTima.  Não  é  pois  para  aíTombrar  que  um  efpirito  de 
tamanha  claridade,  como  era  o  de  Carvalho,  perfiftiíTe  em 
acreditar  nos  grandes  monopólios  e  nas  privilegiadas  compa- 
nhias, como  panacea  efiicaciffima.  E  de  feito,  fe  a  extrema 
liberdade  mercantil  tem  méritos  inconteftaveis,  não  é  me- 
nos verdadeiro  que  a  defordenada  concorrência  n'um  paiz 
ainda  mal  convalefcido  de  profundos  achaques  económicos, 
é  ás  vezes  harto  perturbadora  da  producção  e  da  riqueza 
nacional.  Quando  vemos  que  a  fciencia  juflamente  fe  eítá 
infurgindo  hoje  em  dia  a  cada  paífo  contra  o  fyfiema  prohi- 


4  «la 

-. *<^ 

bitivo  ou  ciofamente  protector,  quando  vemos  as  alfande- 
gas denunciadas  pela  boa  economia  como  um  trifte  expe- 
diente fifcal  e  oppreíTor  do  livre-cambio,  vemol-as  também 
multiplicando  a  fua  vigilância,  e  a  fua  acção,  ora  cerrando 
as  fronteiras  de  um  paiz  á  livre  circulação  das  mercadorias, 
ora  eífabelecendo  ás  portas  das  povoações  e  no  interior  do 
feu  mefmo  território  um  exercito  numerofo  de  agentes  adua- 
neiros, para  que  as  próprias  lubfiftencias  mais  urgentes  le  não 
poffam  efquivar  ás  garras  impiedolas  do  fifco  implacável.  E 
todas  eítas  continuadas  tranfgreffões  dos  principies  da  fcien- 
cia,  Ou  para  encher  as  arcas  do  thefouro  ou  para  amimar 
em  fuás  faxas  e  andadeiras  uma  induftria,  que  nunca  chega 
a  tornar-fe  adolefcente,  fe  eífão  paíTando  á  noíTa  viíta,  e  fão 
pelos  governos  abfolvidas  facilmente  á  conta  da  conveniência 
e  neceíTidade. 

Sebaftião  de  Carvalho  reconhecia,  como  os  mais  illumi- 
nados  eftadiftas  do  noíTo  tempo,  o  axioma  capital  de  que  a 
liberdade  é  o  principio  creador  de  todo  o  trato  mercantil. 
No  preambulo  do  decreto  de  17  de  agoíto  de  lySS,  que  ap- 
provou  o  diredorio,  pelo  qual  fe  devia  regular  a  adminiftra- 
ção  civil  e  económica  dos  Índios  novamente  libertados  no 
Pará  e  Maranhão,  dizia  com  luminofa  verdade  o  legiílador: 
«É  certo  indifputavelmente  que  na  liberdade  confiífe  a  alma 
do  commercio».  Nem  Baítiat,  nem  Cobden  ou  Stuart  Mill 
podiam  affirmar  em  mais  categóricas  palavras  o  lemma  fun- 
damental da  economia.  Mas  aíTim  como  na  linguagem  do 
legiílador  os  indios,  apefar  de  emancipados,  não  eítavam 
ainda  pela  fua  felvatica  rudeza  habilitados  a  gerir,  longe  da 
publica  tutela,  os  feus  intereíTes,  affim  também  elle  entendia 
que  na  fituação  de  Portugal,  enfeudado  aos  inglezes  em  to- 
das as  relações  commerciaes,  as  temporárias  excepções  da 
liberdade  poderiam  fer  porventura  mais  benéficas  do  que  a 
rigorofa  applicação  das  abílradas  theorias. 


4  9U 
n^^ 

149 

Para  obviar  á  rápida  ruina  da  induftria  vinicola  no  Dou- 
ro, e  oppor  ao  effedivo  monopólio  dos  inglezes  um  valiofo 
contrapefo,  deliberou  o  miniftro  providente  que  o  meio  mais 
feguro  feria  a  inftituição  de  uma  poderofa  e  opulenta  compa- 
nhia. Conferiu  fobre  eíte  ponto  com  Fr.  João  de  Manfilha, 
que  em  verdade  não  era  pontualmente  obfervante  dos  câno- 
nes e  conftituições  pontifícias,  pelo  muito  que  activamente  se 
mefclava  ás  profanas  negociações,  que  o  minifíro  juftamente 
condemnára  nos  jefuitas  mercadores. 

Procedeu  Sebaílião  de  Carvalho  a  tomar  exaítas  e  mi- 
nuciofas  informações  fobre  o  que  relatava  o  fagaz  domini- 
cano. Confultaram-fe  os  que  eram  intereífados  na  lavoura 
e  no  commercio  dos  vinhos  do  Alto  Douro.  Refultaram  ver- 
dadeiras ou  mui  próximas  á  verdade  as  palavras,  com  que 
Fr.  João  de  Manfilha  retratava  a  miferia,  a  que  chegara  a 
extenfa  e  fecunda  região,  onde  mais  que  nas  minas  do  Bra- 
zil  havia  profperado  a  melhor  e  menos  contingente  riqueza 
nacional. 

Entrou  a  participar  nas  conferencias  fobre  o  aíTumpto  o 
meítre  de  campo  general  Manuel  da  Maia,  o  grande  enge- 
nheiro portuguez.  Fizeram-fe  com  fua  cooperação  os  eftatu- 
tos  de  3  I  de  agoífo  de  lySõ',  exarou-fe  o  alvará  de  10  de 
feptembro  do  mefmo  anno,  em  que  era  confirmada  a  nova 
aífociação.  Eítava  conftituida  legalmente  a  Compmihia  geral 
da  agricultura  das  vinhas  do  Alto  Douro. 

Eram  em  verdade  extenfos  e  extraordinários  os  privilé- 
gios concedidos  á  nova  inftituição,  fimilhantes  aos  que  fe  ti- 
nham decretado  em  favor  da  companhia  do  Grão-Pará.  Era 
como  que  uma  republica  mercante  inferida  e  encravada  no 
eftado,  mas  quafi  d'elle  independente,  excepto  para  o  auxilio 


'  Apologia  3."  do  marque:^  de  Pombal,  manufcripto  da  Academia  das  Scien- 


m 

i5o 

e  protecção.  A  nova  fociedade  ficava,  quanto  ao  feu  corpo  e 
ás  peíToas  intereíTadas,  exempta  de  toda  a  jurifdicção  civil 
e  criminal  exercida  pelas  juftiças  ordinárias  ainda  as  mais 
eminentes  e  graduadas.  Com  o  feu  juiz  conlervador  tinha 
um  foro  privativo  e  fingular.  Competia-lhe  a  faculdade  de 
embargar  a  feu  labor  os  carros  e  embarcações  para  os  feus 
tranfportes,  de  coagir  ao  feu  ferviço  os  trabalhadores,  os  ta- 
noeiros e  os  vendedores  de  retalho.  Gofava  plenitude  abfo- 
luta  do  direito  de  apofentadoria,  tomando  a  feus  proprietá- 
rios as  cafas  e  armazéns,  que  lhe  foífem  neceífarios.  O  ca- 
pital da  poderofa  aífociação  era  de  um  milhão  e  duzentos 
mil  cruzados,  repartidos  em  acções  de  quatrocentos  mil  réis. 
Tinha  entre  as  fuás  obrigações  a  companhia  a  de  preftar 
aos  viticultores  os  benefícios  do  credito  rural,  mutuando-lhes 
dinheiro  a  três  por  cento,  ficando  hypothecado  o  vinho  que 
produziífem.  Taxavam-fe-lhe  os  preços  perpetuamente,  arbi- 
trando-fe  vinte  e  cinco  mil  réis  a  cada  pipa  de  primeira  qua- 
lidade, e  vinte  mil  réis  por  egual  medida  dos  que  foífem  me- 
nos apreciados.  Regulavam-fe  os  fretes,  que  na  conducção 
dos  vinhos  para  o  Brazil  nenhum  navio  poderia  nunca  exce- 
der, entre  dez  mil  réis,  que  era  a  taxa  de  cada  pipa  trans- 
portada para  o  Rio  de  Janeiro  e  fete  mil  e  duzentos  réis  para 
Pernambuco.  A  venda  chamada  do  ramo  dentro  do  Porto  e 
em  três  léguas  de  diftancia  nas  terras  circumvizinhas,  era 
conftituida  em  monopólio  da  companhia.  Mandavam  os  es- 
tatutos proceder  á  exada  demarcação  dos  territórios  vinico- 
las,  cuja  producção  poderia  ter  falda  pela  foz  do  Douro.  Li- 
mitava-fe  a  noventa  e  cinco  o  numero  das  lojas,  em  que  o 
vinho  de  ramo  haveria  de  fer  vendido  na  cidade.  Deveria  a 
nova  inftituição  durar  vinte  annos,  e  seria  a  fua  exiftencia 
prorogada  por  mais  dez,  fe  foífe  conveniente. 

A  breve  duração  aíTignada  á  companhia  defde  logo  a  de- 
nunciava como  uma  experiência  commercial,  e  era  ao  mes- 


e|j 


si»  cIq 


mo  tempo  o  corredivo  do  que  os  feus  privilégios  defcom- 
munaes  poderam  ter  de  impopular  e  odiolb. 

Percorrendo  a  legiflação  d'aquelle  tempo  é  fácil  inferir 
como  a  nova  inftituição  era  a  filha  mimofa  e  predileda  da 
politica  mercantil  e  económica  do  oufado  reformador.  Os  di- 
plomas legiílativos  íliccedem-fe  a  efpaços  breves  uns  aos 
outros  para  auxiliar  e  proteger  a  companhia  e  remover-lhe  do 
caminho  os  embaraços  recreícentes  ou  as  disfarçadas  oppo- 
íições. 

Não  eram  abundantes  no  Porto  os  cabedaes,  que  podes- 
fem  afíluir  á  nova  inftituição.  Mas  os  cofres  da  opulenta  mi- 
fericordia  portuenfe  e  de  outros  pios  inítitutos  da  cidade  en- 
cerravam fommas  groffas,  que  era  precifo  indireétamente 
encaminhar  ás  arcas  da  companhia.  Os  feus  inimigos  apres- 
tavam-íe  a  abforver  os  dinheiros  em  emprcftimos  particula- 
res para  defviar-lhes  a  corrente  e  levantar  difficuldades  á 
formação  do  capital.  O  avifo  de  lo  de  feptembro  de  lySõ 
prohibe  aos  eilabelecimentos  de  religião  e  caridade  mutuar 
quantia  alguma  fem  licença  do  Ibberano.  A  carta  regia  de 
27  do  mcfmo  mcz  preicreve  que  dos  cofres  da  mifericor- 
dia  e  das  outras  piedofas  corporações  fe  empreite  dinheiro  a 
todos  os  que  defejem  entrar  com  elle  na  fundação  da  com- 
panhia. 

Era  urgente  reanimar  a  navegação  mercante  portugueza, 
fem  a  qual  feriam  deluforias  todas  as  efperanças  já  firmadas 
na  companhia  do  Grão-Pará  e  as  que  tornavam  aufpiciofa 
a  das  vinhas  do  Alto  Douro.  Os  marinheiros  portuguczes, 
attrahidos  pelo  natural  defejo  de  foldadas  mais  crefcidas,  na- 
vegavam numerofos  em  navios  inglezes  do  commercio'. 


■  Quadro  elementar  das  relações  politicas  e  diplomáticas  de  Portugal, 
tom.  xviH,  pag.  366,  citando  um  documento  do  archivo  dos  negócios  extrangei- 
ros,  em  Paris. 

^^-^ -i^ 


Para  obviar  feveramente  a  efte  mal  acudiu  o  alvará  de 
27  de  feptembro  de  1756,  defnaturalifando  de  portuguezes 
os  que  da  pátria  fe  aufentaíTem  para  fervir  em  navios  cx- 
trangeiros,  confifcando-lhes  os  bens  e  as  fazendas,  e  commi- 
nando-lhes  além  dTíTo  a  pena  de  dez  annos  de  galés,  quan- 
do foliem  encontrados  em  terras  de  Portugal. 

A  ufura,  que  depois  do  terremoto  fe  tornara  grande  e  ha- 
bitual, era  um  dos  impedimentos,  que  fe  oppunham  a  alcança- 
rem cabedaes  a  juro  módico  os  que  defejaífem  entrar  como 
accioniítas  em  a  nova  companhia.  Uma  providencia  de  Car- 
valho prohibe  fob  graves  penas,  que  a  taxa  de  juro  fe  levan- 
te acima  de  cinco  por  cento". 

Um  dos  mais  beneméritos  ferviços,  preftados  a  Portugal 
pelo  incanfavel  reformador,  foi  fem  duvida  o  esforço  e  tena- 
cidade, com  que  para  favorecer  e  accrefcentar  as  forças  pro- 
dutivas da  nação,  fe  empenhou  em  expvtngir  a  nota  de  vi- 
leza ou  ao  menos  de  ariftocratico  defdem,  em  quen'uma  terra 
de  fidalgos  foberbos  e  ociofos  eram  tidas  as  honeflas  profis- 
fões,  que  pelo  trabalho  e  diligencia  criam  a  riqueza  e  fundam 
em  feguros  alicerces  a  profperidade  focial.  A  legiílação  do 
eftadifta,  fuperior  aos  preconceitos  do  feu  tempo,  faz  ouvir 
a  cada  paífo  eíta  nota  fundamental.  Nos  eílatutos  da  nova 
companhia,  como  nos  da  que  fora  inftituida  para  o  Grão- 
Pará  e  Maranhão,  declara  o  legiflador  em  termos  formaes, 
que  o  entrar  n'eífas  úteis  aífociações  de  mercadores,  « não  de- 
roga  a  nobreza  herdada,  antes  é  meio  para  alcançar  a  adqui- 
rida». Os  diredores  e  os  outros  officiaes  d'eftas  fociedades 
mercantis  ficavam  habilitados  a  receber  as  ordens  militares, 
e  os  feus  filhos  poderiam  ler  no  defembargo  do  paço  fem  o 
que  então  fe  appellidava  «a  difpenfa  da  mechanica»,  quer 
dizer,  a  generofa  abfolvição  de  tal  peccado,  qual  era  o  ha- 


'  Alvará  de  7  de  janeiro  de  1757. 


4«u 
_ : .hJ»-^ 

i53 

ver  tido  humilde  nafcimento  e  exercer  como  plebeo  o  traba- 
lho honefto  e  produítor,  em  vez  de  ter  vifto  a  luz  em  áureos 
berços  e  de  infamar  na  ociofidade  e  na  torpeza  o  nome  her- 
dado. E  para  ainda  confirmar  que  o  trato  mercantil  não  era 
incompativel  com  as  funcções  publicas,  havidas  por  mais 
qualificadas  e  infignes,  decretava  o  honrador  illuftre  das  úteis 
occupações,  que  todos  os  magiftrados  judiciaes,  os  oííiciaes 
de  guerra  e  os  de  fazenda,  poderiam  fem  defaire,  antes  com 
publico  louvor,  entrar  na  companhia  do  Alto  Douro'. 

Não  baftava  porém  confignar  n'efta  legiflação,  precurfo- 
ra  de  rafgados  principios  democráticos,  a  doutrina  de  que 
a  honrada  mercancia  não  deíluílrava  os  mais  efplendidos 
brazões.  Era  conveniente  o  eftimular  a  própria  fidalguia  a  con- 
fociar-fe  nas  emprezas  produótoras.  Por  iffo  na  carta  official, 
em  que  Sebaftião  de  Carvalho  enviava  ao  defembargador 
Bernardo  Duarte  de  Figueiredo  a  minuta  dos  eftatutos^  para 
que  no  Porto  os  aíTignaíTem  os  accioniítas,  que  ha^■iam  de  fer- 
vir  de  provedor  e  deputados  nos  primeiros  três  annos  a  da- 
tar da  inftituição,  ordenava,  que  nos  oflficios  da  companhia 
além  dos  commerciantes  entraíTem  peíToas  nobres.  «Porque, 
diz  o  miniftro  .  .  .  d'efia  forte,  vendo-fe  a  nobreza  a  lervir 
com  os  homens  de  negocio,  promifcua  e  indifhndamente 
fe  deíferra  a  irracional  e  prejudicialiffima  prevenção  de  que 
é  mechanico  o  commercio,  que  fe  faz  em  groífo  por  meio 
da  navegação  mercantil».  N'aquella  mefma  carta  o  efta- 
difia  denunciava  ao  defembargador,  fervindo  então  de  chan- 
celler  da  Relação  e  Cafa  do  Porto,  que  na  cidade  havia 
homens  de  negocio,  que  eftavam  confpirando  contra  a  no- 
va   inítituição,    limitando-fe    por   emquanto   fem   manifeífa 


'  Alvará  de  5  de  janeiro  de  1757. 

2  Carta  de  9  de  agoíto  de  17.^6,  na  coUecção  impreíTa  e  manufcripta  de  legis- 
lação de  Trigofo,  nabibliotheca  da  Academia  das  Sciencias..  annos  de  1754  a  1758. 

II  11 

ti»  tia 


■34 

rebeldia,  a  minar  e  difficultar  a  fua  fundação,  e  prefcrevia 
ao  magiítrado  que  a  refpeito  d'aquellas  hoftilidades  adoptas- 
fe  as  providencias  opportunas. 

É  que  a  oppofição  veliemente,  indefeíTa,  inconciliável 
furgia  impenitente  a  cada  nova  creação  do  famofo  innovador. 
Apenas  fupplantada  qualquer  machinação  infidiofa,  logo  ou- 
tra fe  levantava  mais  audaz  a  tomar  o  paíTo  á  reformação. 
Agora  que  no  Porto  fe  deparava  enfejo  próprio,  a  perpetua 
conjuração  deixaria  com  vantagem  a  corte  de  Lifboa  para 
bufcar  na  terra  mercantil  por  excellencia  o  theatro  das  fuás 
operações. 

Ia  tomando  vigor  e  corpulência  o  poder  e  valimento  do 
miniítro  no  animo  do  rei.  Era  tronco  de  roble  ainda  novo, 
mas  já  de  tamanho  viço  e  tão  bem  filhado  na  terra,  que,  fe 
não  logravam  derribal-o  antes  que  alaftraífe  as  raizes  profun- 
damente, não  haveria  depois  fazel-o  baquear.  Bufcavam  pois 
os  inimigos  todo  o  pretexto  e  occafião  para  lhe  dar  fortiíTimos 
combates.  Principiaram  aífediando-o  nas  próprias  recamaras 
do  rei,  influindo-lhe  pela  voz  dos  jefuitas  efcrupulos  de  timo- 
rata confciencia.  Aífeítaram  contra  o  miniftro  os  mercadores 
da  fua  facção,  para  que  levantando  feus  clamores  contra  a 
companhia  do  Grão-Pará,  obrigaífem  o  rei,  que  ainda  tinham 
por  fraco  e  irrefoluto,  a  defpedil-o  do  cargo  e  da  valia.  Mas 
tudo  lhes  faíra  tanto  ao  revez,  que  em  logar  de  abalarem  o 
animo  real,  mais  o  tinham  roborado  na  confiança  e  intimi- 
dade com  o  vaífallo.  A  companhia  do  Alto  Douro  deparava- 
Ihes  porém  monção  propicia  com  que  podeífem  marear  a 
novo  rumo.  Azava-fe-lhes  o  enfejo  de  fazerem  apparecer  na 
fcena  publica  uma  nova  e  mais  terrível  perfonagem  do  que  os 
fidalgos  e  jefuitas,  que  até  ali  haviam  tido  os  primeiros  papeis 
n'aquelle  drama.  Agora  faíria  á  praça  rugindo  bravamente  o 
povo  de  uma  cidade,  que  a  todas  as  povoações  de  Portugal 
fempre  coftumou  antecipar-fe  na  defeza  e  vindicação  dos  fó- 


e|í 


ti» 


4tU 
. •A-g. 


ros  populares.  O  que  Lifboa,  aíToberbada  pela  prelença  do 
rei  e  do  governo,  não  oularia  emprehender,  havia  de  cum- 
pril-o  a  plebe  portuenfe,  dando  vidoriofamente  o  fignal  da 
infurreição  em  todo  o  norte  de  Portugal. 

Mal  havia  começado  a  companhia  a  exercer  o  feu  lucro- 
fo  privilegio,  efcudada  com  a  protecção  do  miniftro  já  pode- 
rofo,  eis  que  a  23  de  fevereiro  de  lySy  rompe  no  Porto  uma 
formidável  fublevação,  que  os  inimigos  de  Carvalho,  depois 
que  a  viram  frullrada  e  punida  com  rigor,  bufcaram  amefqui- 
nhar  ás  quall  imbelles  proporções  de  um  pequeno  tumulto  e 
arruido.  Referem  que  immenfa  mó  de  gente  popular,  em  que 
as  mulheres  eram  parte  não  pequena,  irrompera  infrene  e  im- 
petuofa  contra  as  cafas  da  companhia,  e  ali  revogando  llirn- 
mariamente  a  lei,  que  havia  por  tyrannica  e  odiofa,  entregou 
ás  chammas  os  papeis  da  fociedade  e  proclamou  de  novo  a 
liberdade  no  trafico  dos  vinhos.  Elmaram  alguns  em  féis  mil 
peíToas  as  que  participaram  n'aquella  turbulência  e  fedição. 
O  que  feria  e  aggravava  em  grau  extremo  a  plebe  enfureci- 
da era  o  monopólio  concedido  á  companhia  para  que  ella  fó 
vendeíTe  na  cidade  os  vinhos  a  retalho.  Era  dura  na  verda- 
de a  providencia,  como  é  fempre  o  eífancar  qualquer  merca- 
doria, concentrando  o  feu  commercio  n'uma  fó  companhia 
ou  no  eftado.  Defculpa-fe  e  em  certa  maneira  juftiíica-fe  a 
fúria  popular,  fe  da  fua  infpiração,  fcm  influxo  alheio,  nas- 
cera efpontanea  e  inftindiva  a  eflrondofa  e  fevera  protefla- 
ção.  Mas  as  paixões  politicas,  os  ódios  infanaveis,  as  invejas 
retrahidas,  os  intereíTes  oíFendidos  da  nobreza  e  da  clerezia, 
não  fe  deícuidavam  certamente  de  alToprar  o  incêndio,  que 
lavrava,  antes  da  final  e  tremenda  explofão.  Conta-fe  que  os 
jefuitas  principalmente,  apoífados  a  envidar  os  golpes  derra- 
deiros contra  o  feu  mal  diíTimulado  antagonifta,  andaram  efti- 
mulando  os  efpiritos  já  propenfos  á  revolta,  utilifando  na 
cruzada  quantas  armas  lhes  fornecia  largamente  o  feu  copio- 

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4sU 
^ — . — *<^ 

fiíTimo  arfenal.  Diz-fe  que  nas  prédicas  troou  clamorofamen- 
te  a  fua  facúndia  contra  a  injuriofa  inftituição.  Refere-fe  que 
do  púlpito  abaixo  proclamaram  que  os  vinhos  da  nova  com- 
panhia eram  impróprios  para  a  celebração  do  incruento  fa- 
crificio  do  altar.  Pôde  fer  que  os  jefuitas  portuenfes  foffem 
tão  férteis  em  claras  allufões  reprehenforas  dos  ados  gover- 
nativos, como  em  tempos  anteriores  havia  fido  a  oratória  vi- 
brante e  popular  do  feu  grande  parenetico,  António  Vieira. 
Não  é  fora  de  razão  que  os  mais  adivos  e  aftuciofos  jefuitas, 
de  operários  evangélicos  tranfmudados  em  políticos  tribunos, 
andaíTem  entre  o  povo  e  a  gente  mercantil,  creando  efcrupu- 
los  e  reprovando  a  companhia  do  Alto  Douro,  aíTim  como 
em  Lifboa  o  padre  Bento  da  Fonfeca  pouco  antes  dera  vo- 
to contra  a  companhia  do  Grão-Pará.  Accufou-os  Sebaftião 
de  Carvalho  de  terem  fido  os  fautores  e  caudilhos  da  infur- 
reição.  hicrepou-os  de  haverem  defentranhado  dos  archi- 
vos  a  hiíloria  da  fedição  do  Porto  em  1661,  e  de  traçarem 
fegundo  eíte  modelo  a  nova  rebellião.  Não  é  fácil  deítrinçar  a 
parte,  que  no  motim  direófamente  pertencera  á  companhia 
de  Jefus.  As  aííirmações  officiaes  podem  fer  porventura 
exageradas,  porque  o  ódio  reciproco  entre  os  partidos  tem 
coítume  de  alterar  a  fubflancia  dos  fucceíTos  e  dá  quafi  fem- 
pre  em  vez  do  feu  defenho  correíto  e  fideliíTimo  uma  desfigu- 
rada anamorphofe.  No  conceito  de  Carvalho,  onde  apparece 
uma  grande  malfeitoria,  lá  eftão  fempre  efcondidos  dctraz 
d'ella  os  focios  da  ordem  infamada.  Efpelhadas  na  torva  ani- 
madverfão  dos  jefuitas  contra  o  feu  inflexível  competidor, 
todas  as  acções  mais  proveitofas  ou  mais  juftas  de  Carvalho 
apparecem  refledidas  como  oppreífões  e  tyrannias.  Se  o  mo- 
vimento, confiderado  como  explofão  da  vontade  popular,  tem 
hoje  certamente  jufiificação  pelo  direito  de  refiftencia,  era 
comtudo  n'aquelle  tempo  aos  olhos  da  mais  temperada  e  Iene 
monarchia  um  dos  mais  atrozes  attentados  entre  os  que  defi- 


4sU 
-* •-^^ 

nia  a  lei  penal  como  crimes  de  lela-majeftade.  A  ordenação 
do  livro  V  declarava  pertencer  a  efta  categoria  qualquer  rebel- 
lião  contra  o  rei  e  feu  eftado'.  O  legiílador  mandava  punir  o 
nefando  facrilegio  com  a  pena,  que  na  linguagem  criminal 
d'aquelle  tempo  fe  chamava  de  uiorte  cruel.  Uma  íedição 
em  plena  monarchia  abfoluta,  quafi  defcaindo  em  aberto, 
ainda  que  illuftrado  defpotifmo,  não  era,  como  nas  moder- 
nas monarchias  mais  ou  menos  liberaes,  um  crime  politico, 
fobre  o  qual,  após  a  primeira  ejfervefcencia,  caííTe  o  manto 
régio,  adoçando  a  afpereza  judicial  em  clemência  e  amniftia 
Apezar  do  que  o  profundo  Montefquieu  no  E/pirito  das  leis  - 
efcrevêra  a  relpeito  dos  crimes  de  lela-majeftade  e  da  jus- 
tiça politica,  nas  praxes  judiciarias  e  no  direito  efcripto  das 
nações,  ainda  as  mais  illuminadas  em  aíTumptos  crimi- 
naes,  vivia  a  tradição  da  barbárie  penal,  que  maculava  de 
fangue  os  códigos  da  edade  media.  O  grande  e  humaniíTimo 
jurifconfulto  marquez  Beccaria  ainda  no  feu  livro  immortal 
Dos  delidos  e  das  penas,  não  levantara  n'aquelle  tempo  a  fua 
voz,  condemnando  em  nome  da  humanidade  a  praífica  atro- 
ciíTima,  em  que  a  juftiça  punia  com  um  crime  legal  e  medi- 
tado o  crime  inconfciente,  commettido  no  momentâneo  as- 
fomo  das  paixões. 

A  infurreição  do  povo  portuenfe  aos  olhos  do  rigorofo 
legiílador,  que  feguia  imperterrito  a  fua  traça  de  governo^ 
aífumia  mais  extranhas  proporções  do  que  a  tomada  da  Bas- 
tilha, preambulo  cruento  da  máxima  e  mais  gloriofa  revolu- 
ção, tomaria  trinta  e  dois  annos  depois,  no  conceito  da  ve- 
lha monarchia  de  S.  Luiz.  Em  relação  á  foberania  do  mo- 
narcha  era  a  rebellião,  como  tinham  dito  os  jurifconfultos 


1  «O  quinto  (cafo  de  lefa-majeflade),  fc  alguém  fizelTe  confelho  e  confede- 
ração contra  o  rei  e  feu  eílado  ou  tratalTe  de  fe  levantar  contra  elle,  ou  para 
ido  defle  ajuda,  confelho  e  favor."  Ordeii.,  liv.  v,  titulo  6,  §  5." 

2  Montefquieu,  De  Vefprit  dcs  loix,  liv.  xii,  cap.  vii,  viii,  ix  e  x. 


4  4' 

_ •-<{»-§. 

redadores  do  código  filippino,  infpirando-fe  nas  doutrinas 
e  nas  tradições  imperialiftas  da  lei  Júlia  de  majejtate,  crime 
tão  grave  e  abominável,  e  que  os  antigos  fahedores  tanto 
extranharam,  que  o  compararam  á  lepra'. 

Em  relação  ao  miniftro  o  crime  tinha  porém  praticamen- 
te mais  grave  fignificação.  Era  a  confpiração  latente  e  diíTimu- 
lada,  que  defde  largo  tempo  o  acoíTava,  trazida  agora  á  praça 
publica  na  forma  de  eftrondofa  fedição,  e  na  cidade  mais  no- 
tável e  podcrofa  depois  da  capital.  Era  imminente  o  perigo 
de  que  o  exemplo  da  fublevada  povoação  contagiaíTe  o  nor- 
te de  Portugal,  onde  por  ler  mais  avultada  a  viticultura,  po- 
deria com  maior  intenfidade  e  rapidez  lavrar  o  incêndio  co- 
meçado. O  intereíTe  da  própria  confervação,  ainda  mais  que  o 
zelo  da  olTendida  realeza,  impellia  o  miniftro  a  enfrear  e  a 
punir  a  fanha  popular. 

Delpachou  defde  logo  para  o  Porto  ao  defembargador  do 
paço  João  Pacheco  Pereira  de  Vafconcellos,  como  prefiden- 
te  da  alçada,  que  devia  conhecer  do  crime  perpetrado.  Le- 
vava o  juiz  por  efcrivão  um  filho  feu,  Joíe  Mafcarenhas  Pa- 
checo Coelho  e  Mello,  defembargador  da  fupplicação:  o  pae, 
fegundo  contam,  magiftrado  fevero  e  zelador  da  majeftade, 
o  filho,  juiz  de  duriífimas  entranhas,  mais  para  algoz  que 
julgador;  um,  tendo  a  afpereza  da  lei  por  trifte  neceífidade,  o 
outro  havendo  por  delicia  a  crueza  do  caftigo.  Mandou  Carva- 
lho guarnecer  com  forças  militares  a  povoação  capitulada  de 
rebelde.  Eftava  ali  então  um  fó  regimento  privativo  da  cidade. 
Era  feu  coronel  e  governava  ao  melmo  tempo  as  armas  do 
partido  do  Porto,  João  de  Almada  e  Mello,  primo  de  Carva- 
lho, irmão  do  outro  Almada,  que  exercia  em  Roma  a  envia- 
tura.  Marcharam  para  o  Porto  dois  regimentos  de  infanteria, 
um  do  Minho,  outro  de  Traz  os  Montes,  o  regimento  de 


'   Ordeu.,  liv.  V,  tit.  6. 


dragões  da  Beira,  e  um  efquadrão  de  dragões  ligeiros  de 
Chaves.  Occuparam  a  povoação  militarmente.  Durava  ain- 
da a  agitação.  Alguns  dos  populares  ainda  fe  aflfoutaram  a 
apparecer  diante  das  cafas,  onde  fe  apofentava  o  defembar- 
gador  Pacheco  Pereira,  dando  vozes  denunciadoras  de  povi- 
co  hofpedeiro  gafalhado.  Um  piquete  de  dragões,  de  efpadas 
nuas,  diíTipou  n'um  momento  o  povo  inerme. 

Impoz-íe  defde  logo  ao  Porto  a  obrigação  de  manter  e 
alojar  pelas  cafas  dos  moradores  as  tropas  da  guarnição,  car- 
regando principalmente  o  encargo  penofiíTimo  nos  bairros, 
onde  houvera  principio  a  fedição.  Tirou-fe  á  gente  popular 
o  antigo  privilegio  de  ferem  reprefentados  os  officios  me- 
chanicos  pelo  juiz  do  povo  e  cafa  dos  vinte  e  quatro,  e  pelos 
mefteres  e  procuradores,  que  affiftiam  na  vereação.  Logo  o 
prefidente  da  alçada  abriu  a  devaífa,  em  que  foram  compre- 
hendidos  quatrocentos  vinte  e  quatro  homens  e  cincoenta  e 
quatro  mulheres.  Continuou  o  proceífo  durante  muitos  mezes 
até  que  a  i  2  de  outubro  de  lySy  foi  pronunciada  a  fenten- 
ça  pelo  defembargador  João  Pacheco,  tendo  por  adjundos 
a  onze  defembargadores  da  Relação  e  Cafa  do  Porto.  Con- 
demnaram  os  feveros  julgadores  á  pena  capital  a  vinte  e 
um  homens  e  cinco  mulheres.  Dos  homens  fó  treze  padece- 
ram a  execução  no  fitio  da  Porta  do  Olival,  onde  o  tumulto 
começara,  os  outros,  porque  a  tempo  fe  haviam  pofto  em 
falvo,  tiveram  apenas  em  eftatua  o  fimulacro  do  fupplicio. 
Das  mulheres,  que  a  fentença  qualificava  entre  as  mais  ter- 
ríveis promotoras  do  motim,  em  quatro  fomente  defde  logo 
fe  exerceu  a  fereza  cruel  da  lei  penal.  Das  mais  peífoas  de- 
claradas cúmplices  no  crime,  umas  foram  condemnadas  em 
açoutes  e  galés,  outras  em  degredo  para  terras  africanas.  Al- 
gumas, culpadas  em  menor  grau,  expiaram  a  fua  participação 
no  levantamento  com  defterro  para  Caflro  Marim,  ou  para 
fora  da  comarca.  A  muitas  deram  os  juizes  em  caftigo  féis 


4sU 
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mezes  de  prifão  em  S.  João  da  Foz,  e  multas,  que  variaram 
defde  fetecentos  e  vinte  até  doze  mil  réis.  Com  os  impú- 
beres foi  a  juftiça  menos  fevera,  fentenceando-os  a  prefencear 
as  execuções,  fendo  logo  açoutados  em  feguida  em  forma  de 
correcção.  Abfoltos  e  immunes  de  toda  a  culpa  fairam  trinta 
e  dois  homens  e  quatro  mulheres.  Antes  do  final  julgamento 
haviam  fido  poítos  em  liberdade  cento  e  oitenta  e  três  ho- 
mens e  doze  mulheres,  porque  não  refultaram  comprehendi- 
dos  na  devaífa. 

Era  tal  n'aquelle  tempo  a  abfurda  e  perigofa  pretenção, 
com  que  o  monarcha  abfoluto,  irrefponfavel,  com  a  fua  alta 
omnipotência  em  íi  confubftanciava  todos  os  poderes  do  eíta- 
do,  que  vemos  o  rei  a  cada  paíTo  intervir  nos  julgamentos  e 
fobrepor-fe  ás  decifões  judiciaes.  Alguns  dos  juizes  que  fir- 
maram a  fentença,  tinham  oufado  proferir  que  o  tumulto  por- 
tuenfe  não  era  crime  de  lefa-majeftade.  Opinavam  de  certo 
erroneamente  ^em  face  da  legiflação  penal,  que  então  regia. 
Defejariam,  porém,  com  branda  e  epicheia  humanidade  exi- 
mir á  crueza  do  verdugo  os  pobres  populares.  Mas  logo  o  po- 
der real  mandou  ao  "prefidente  da  alçada,  que  em  feíTão  do 
tribunal  extranhaífe  feveramente  tão  perniciofa  opinião.  Efles 
fão  os  fruftos  'deletérios,  que  pendem  fempre  e  em  toda  a  par- 
te do  tronco  funeftiífm-io  do  poder  abfoluto.  Só  a  liberdade,  fi- 
lha e  dileéla  companheira  da  civilifação,  fabe  fazer  que  feja 
refpeitavel  a  juftiça  fem  invocar  em  feu  favor  o  arbítrio  e  a 
oppreífão. 

Attentemos,  porém,  em  que  não  era  de  maior  doçura 
e  lenidade  a  juftiça  politica  em  paizes  de  mais  temperada 
monarchia.  Poucos  annos  eram  apenas  decorridos  após  as 
cruas  e  inexoráveis  condemnações,  com  que  tinham  fido  cas- 
tigados na  que  chamavam  livre  Gran-Bretanha  os  fedarios 
do  pretendente,  Carlos  Stuart,  depois  da  infurreição  de  1745, 
e  da  perda  da  batalha  de  Culloden  pelo  romanefco  aventu- 


4tU 
_ -<(>-§. 

i6i 

reiro.  As  fummarias  e  cruéis  execuções,  em  que  toram  im- 
molados  os  infurgentes,  paíTavam-le  n'uma  nação  parlamen- 
tarmente  governada.  Mas  aquellas  terríveis  reprefalias  foram 
taes,  que  o  próprio  filho  do  rei  George  II,  o  duque  de  Cum- 
berland,  ficou  perpetuamente  cognominado  the  bittcher,  o  car- 
niceiro. E  eftes  ados  de  ferocidade  politica  eram  exercidos 
quafi  fem  figura  de  juizo,  emquanto  que  nos  julgamentos 
mais  feveros  durante  o  miniíterio  de  Carv^alho,  fe  refpeitaram 
quanto  á  forma  as  legaes  Iblemnidades. 


CAPITULO  VII 

os  jesuítas 

Se  os  juizos  hiftoricos  tiveíTem  de  firmar-fe  exclufiva- 
mente  na  certeza  e  na  evidencia,  feria  temerário  o  afifirmar 
que  na  oppofição  á  nova  fociedade  mercantil  intervieíTe  aber- 
tamente a  companhia  de  Jefus. 

Na  fentença  proferida  contra  os  réus  da  revolta  portuen- 
fe  não  fe  depara  a  minima  allufão  aos  perigofos  regulares, 
que  tinham  a  parte  principal  nas  machinações  contra  os  no- 
vos princípios  de  governo,  infiaurados  e  feguidos  por  Sebas- 
tião de  Carvalho.  Não  vae  porém  fora  de  razão  o  prefuppor 
que  não  ficariam  indifi'erentes  á  furda  agitação,  que  prece- 
deu e  bofquejou  o  movimento  realifado  a  23  de  fevereiro. 
Parece  incontroverlb  que  religiofos  de  outras  ordens  haviam 
cooperado  em  eftimular  a  fanha  da  plebe  portuenfe  contra  a 
odiada  companhia  do  Alto  Douro.  Os  próprios  efcriptores, 
que  defendem  os  jefuitas  por  extranhos  á  fedição,  aífeveram 
que  muitos  francifcanos  foram  diligentes  em  fuggerir  ou  con- 
citar a  fublevação.  Sebaftião  de  Carvalho  em  feus  efcriptos 
apologéticos  afíirma  expreífamente  a  participação  dos  jcfui- 

*5-<Ç>-« — — •-O-^ 


162 

tas.  Attribue-lhes  o  haverem  fido  elles  os  que  defentranha- 
ram  dos  archivos  a  relação  do  movimento  popular  do  Porto 
em  1661,  e  o  preconifaram  como  norma  e  exemplar  da  nova 
infurreição'. 

A  meíma  accufação  apparece  formalmente  confignada 
n'um  documento  officiaP.  N'elle  aíTevera  Sebaftião  de  Car- 
valho pelo  órgão  do  fecretario  de  eftado  D.  Luiz  da  Cunha, 
que  os  jefuitas,  defconcertados  em  Lifboa  nos  feus  políticos 
enredos,  trabalharam  no  Porto  por  mak|uil1:ar  o  rei  e  o  feu 
governo,  repetindo  as  imputações  e  impofturas,  que  haviam 
divulgado  em  Portugal  e  fora  d'elle,  e  animando  com  as 
fuás  obfeífões  a  outros  regulares,  que  feriam  provavelmente, 
fe  bem  o  documento  o  não  declare,  os  religiofos  de  S.  Fran- 
cifco. 

Os  jefuitas,  havidos  pelo  miniftro  zelador  da  audoridade 
fecular  na  conta  dos  mais  adivos  e  efficazes  inítigadores  de 
toda  a  violenta  oppofição  ao  feu  governo,  eftavam  ainda  no 
paço  encaftellados  e  ainda  podiam  ter  de  fua  mão  a  débil 
confciencia  do  foberano.  Eram  elles  os  confeífores  do  rei  e 
de  feus  parentes.  Não  pode  padecer  a  menor  duvida  que,  de 
parceria  com  os  fidalgos  e  fâmulos  reaes,  todos  elles  inimigos 
de  Carvalho,  formariam  o  que  hoje  appellidâmos  camarilha, 
latente  e  perpetua  conjuração  contra  os  minilfros,  que  de- 
fejam  debellar  em  beneficio  da  nação  os  abufos  clericaes  e 
ariftocraticos.  Os  tumultos  do  Porto  miniftravam  a  Carvalho 
enfejo  accommodado  a  expulfar  do  paço  os  confeífores  da 
ordem  já  mais  do  que  fufpeita,  condemnada.  A  ig  de  fe- 
ptembro  de  1757,  já  de  noite,  fão  intimados  a  fair  fem  dila- 
ção do  palácio  de  Belém.  D'eíl:a  maneira  foram  defpedidos 


(Is 


'  Apologia  S."  Appenfos  da  contrariedade  ao  libello  de  Aíendaiiha. 
2  In/lrucção  dirigida  na  data  de  lO  de  fevereiro  de  j-5S  a  Francifco  de 
Almada  de  Mendoça,  miniílro  de  Portugal  na  cúria  de  Roma. 


-• «-v-?* 

i63 

e  enviados  á  caía  profeíTa  de  S.  Roque  e  ás  outras  cafas  e 
collegios  da  Companhia.  Em  feu  logar  entraram  a  dirigir  a 
confciencia  do  rei  e  da  lua  familia  religiofos  quafi  todos  per- 
tencentes ás  ordens  mendicantes. 

Eftava  dado  o  primeiro  golpe  na  podcrofa  Companliia, 
em  Portugal.  Eram  eftas  as  primeiras  hoftilidades.  Eram  os 
jefuitas  defalojados  da  mais  forte  e  dominante  pofição,  onde 
tinham  o  leu  principal  pofto  avançado;  combate  vigorofo  de 
atiradores,  precedendo  e  preparando  uma  batalha  bem  fe- 
rida e  uma  vidoria  bravamente  difputada. 

Eftava  rota  e  declarada  a  rija  conteftação,  da  qual  ou 
lairiam  mais  confirmados  e  poíTantes  os  jefuitas,  ou  vinga- 
riam em  Portugal  os  primeiros  e  ainda  timidos  rebentos  da 
moderna  liberdade. 

E  provável  que  o  miniftro  de  D.  Jofé,  cada  vez  mais  irri- 
tado com  os  dilcipulos  de  Santo  Ignacio  de  Loyola,  e  tendo 
já  radicada  e  funda  a  convicção  de  que  Ibb  a  fua  influencia 
fe  tornaria  impoíTivel  todo  o  bom  governo  temporal  e  toda 
a  progreíliva  civilifação,  já  n'aquelle  tempo  traria  delineada 
em  feu  efpirito  não  fomente  a  futura  expulfão  dos  jefuitas 
do  folo  portuguez,  fenão  também  a  extincção  da  Companhia 
em  todo  o  orbe  catholico.  O  problema  era  porém  difiicil  e 
complexo,  e  não  podia  relblver-fe  com  um  fó  rafgo,  embo- 
ra violento  do  poder.  Efta  milicia  efpiritual  foubera  por  tal 
maneira  conquiftar  para  a  lua  dominação  a  maior  porção  da 
Europa  e  fuás  dependências  na  Alia  e  na  America,  de  tal 
feição  fe  havia  infinuado  no  animo  dos  povos  e  na  benevolên- 
cia dos  governos,  que  feria  neceíTario  antes  de  tudo  fuperar 
as  refiftencias,  que  na  commum  opinião  ainda  acalb  podes- 
fem  levantar-fe  contra  a  condemnação  final  da  pofTante  focie- 
dade.  Na  expugnação  de  tão  notável  inimigo,  convinha  antes 
de  tudo  deftruir  no  conceito  da  gente  imparcial  a  Ibmbra  de 
uma  duvida  Ibbrc  a  degeneração,  a  que  chegara  o  inílituto. 


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164 

que  ainda  teria  para  o  abonar  os  venerandos  nomes  dos  Xa- 
vieres  e  dos  Anchietas,  a  virtude  dos  Cardins  e  a  gloria  dos 
Vieiras.  AíTim  como  contra  as  maíTas  confiftentes,  fortes,  dis- 
ciplinadas de  uma  bem  ordenada  e  valente  infanteria,  ainda 
intadla  de  fogos  inimigos,  feria  perigofo  e  imprevidente  lan- 
çar os  mais  ardentes  e  velozes  efquadrões,  fem  que  uma  bem 
fervida  e  tremenda  artilheria,  chovendo  o  feu  granifo  de  pro- 
jeíleis  levaífe  a  confufão  ao  feio  das  columnas  e  as  íizeífe 
tremer,  defordenar-fe,  vacillar;  aíTim  também  houvera  fido 
imprudente  e  aleatório  vibrar  contra  a  firme  e  bem  enraizada 
Companhia  o  golpe  decifivo,  fem  haver,  por  acertadas  ope- 
rações preparatórias,  abalado  rijamente  as  fuás  fileiras. 

O  génio  de  Carvalho  comprehendeu  lucidamente,  não  o 
que  feria  mais  audaz,  fenão  o  que  feria  mais  feguro.  O  im- 
pério exiftia  n'aquelle  tempo,  — e  ainda  hoje  em  grande  par- 
te,—  em  tão  intima  travação  com  o  facerdocio,  que  os  mais 
refolutos  reformadores  hcfitavam  e  tremiam  ante  a  folução 
do  problema  referente  ás  relações  da  Egreja  e  do  Eítado. 
O  abfolutifmo  é  n'eft:a  parte  menos  favorecido  que  a  revo- 
lução. Um  povo,  que  no  auge  do  triumpho  a  fi  próprio  fe 
invefhu  na  fua  inalienável  foberania,  pôde  mais  n'eftes  as- 
fumptos  do  que  o  mais  poderofo  rei.  Carlos  V  prendia  bru- 
talmente o  papa  Clemente  VII  no  caftello  de  Santo  Angelo, 
e  deixava  fubfiítir  as  ufurpações  da  poteítade  efpiritual.  A 
França  republicana  didava  a  lei,  na  peífoa  de  Pio  VI,  ao  fu- 
premo  pontificado,  e  levantava  realmente  acima  das  preten- 
fóes  temporaes  do  facerdocio  a  majeftade  inauferivel  do  po- 
der civil.  Henrique  VIII,  de  Inglaterra,  podia  impunemente 
legalifar  o  movimento  religiofo  da  reforma,  abolir  e  feculari- 
far  os  mofteiros  e  abbadias,  e  ajuntar  ao  diadema  temporal 
a  infignia  de  fupremo  chefe  da  egreja  anglicana,  ainda  não 
remodelada  emquanto  ao  dogma  e  á  difciplina.  Depois  da 
guerra  da  liberdade  podia  um  miniftro  oufado  e  grandemen- 


ftM 


-§-<í»-. •■4>-^ 

i65 

tc  reformador,  Joaquim  António  de  Aguiar,  annuUar  por  um 
rasgo  da  Ília  penna  francamente  revolucionaria,  no  decreto 
da  extincção  das  ordens  religiolas,  o  C[ue  muitos  feculos  de 
mal  entendida  piedade  e  religião  tinham  fundado  e  accrefci- 
do  ate  o  abufo  intolerável.  Mas  o  poder  monarchico  do  li- 
bidinofo  rei-theologo  tinha  por  efteio  a  agitação  produzida 
largamente  nos  elpiritos  britannicos  pela  reforma  e  pela  aver- 
lao,  já  desde  João  Wicliífe  proclamada,  á  fuzerania  c  lujei- 
ção  pontifical.  O  miniftro  liberal  decretava  a  abolição  das 
ordens  religiofas,  ao  eftrondo  das  vidorias  alcançadas  contra 
o  duplicado  defpotifmo  do  rei  e  da  clerezia  n'uma  verdadei- 
ra e  tremenda  revolução,  no  meio  da  triumphal  excitação 
contra  as  caducas  inftituições  da  velha  fociedade.  Sebaítião 
de  Carvalho  vivia  n'outra  epocha,  e  refpirava  mal  defafoga- 
do  n'uma  atmolphera  ainda  inficionada  pelos  preconceitos  e 
abufões  de  barbaras  cdadcs. 

O  feu  empenho  género fo  c  o  das  mais  fecundas  confe- 
quencias  para  a  humanidade  e  civililação,  era  firmar  a  fo- 
ciedade em  fundamentos  puramente  civis  e  feculares,  deixan- 
do como  deve  fer,  á  religião,  expurgada  de  toda  a  fijperftição 
e  fanatifmo,  o  feu  império  nas  confciencias  e  o  feu  brando 
jugo  efpiritual  acceito  e  recebido  livremente.  Repugnava-lhe 
que  o  Evangelho,  onde  reílumbra  a  cada  pagina  o  defapego 
dos  intereífes  mundanaes  e  das  profanas  carnalidadcs,  nas 
mãos  de  um  clero  ambiciofo  e  terrenal,  facrilegamentc  fe  ti- 
veífe  convertido  no  código  de  uma  larga  theocracia.  Accen- 
dia-fe  em  vehemente  indignação  ao  attentar  em  que  haven- 
do Jefu  Chrifto  gravado  como  epigraphe  na  frontaria  do  feu 
grande  edificio  religiofo,  a  cxprcífa  aíTirmação  de  que  o/e» 
reino  não  era  d'ejle  mundo,  os  que  fe  diziam  feus  operários  e 
miniftros,  tomaífem  ao  revez  por  feu  lemma  capital,  que  era 
fua  a  terra  inteira  com  tudo  o  que  em  fi  contem  de  material,  e 
que  todas  as  nações  cuhivadas  ou  gentílicas,  e  todos  os  poten- 


cia 


ibt) 


tados  e  governos  caíam  por  divina  inftituição  fob  a  lua  alçada 
e  poderio.  A  linha,  que  devera  feparar  como  fronteira  e  linde 
natural  o  facerdocio  e  o  império,  eftava  por  tal  guiza  oblitte- 
rada  e  confundida  pelas  antigas  e  modernas  ufurpações  da 
poteftade  efpiritual,  que  era  feguramente  empreza  difiicilli- 
ma  o  erguer  de  novo  os  marcos  demolidos.  Era  precifo  for- 
çar o  facerdocio  a  que,  fob  color  de  dirigir  e  fubjugar  almas 
chriftans  pelos  vínculos  fuaves  da  amoravel  catechefe  e  da 
branda  e  fraterna  correcção,  não  encadeaíTe  os  corpos  dos 
fieis  com  os  grilhões  de  um  mundano  captiveiro,  nem  as- 
fombraíTe  a  razão  e  a  conlciencia,  como  le  o  caminho  do  ccu, 
a  eífancia  myftica  da  luz,  houveíTe  de  ler  traçado  em  meio 
de  tenebrofa  efcuridão. 

Eftes  eram  os  propofitos  do  benemérito  miniífro,  mas  o 
feu  génio  emprehendedor  e  arrojado  naturalmente  le  eílreita- 
va  nos  âmbitos  anguftos,  onde  tinha  de  exercer  a  fua  acção. 
Eftava  collocado  entre  um  rei  débil  e  timorato,  e  uma  nação 
defalumiada  e  fuperfticiofa.  De  um  lado  o  delpotifmo  de 
um  fó  homem,  do  outro  lado  o  fanatilmo  da  multidão. 

Cumpria  avançar  pautadamente  e  como  quem  navega 
entre  baixios.  Eram  fáceis  os  golpes  desfechados  Ibbre  a 
gente  fecular.  Eram  difificeis  contra  homens,  a  quem  a  rou- 
peta ou  a  famarra  aíTegurava  a  immunidade,  e  que  na  cré- 
dula phantafia  popular  podiam  apparecer,  em  vez  de  faccio- 
fos  agitadores,  hoílias  innocentes,  coroadas  com  a  laura  do 
martyrio. 

Começou  pois  Sebaftião  de  Carvalho  por  Ibllicitar  do 
Vaticano  as  providencias  occorrentes  á  faudavel  reformação 
da  Companhia  em  Portugal  e  léus  domínios.  Bem  lábia  elle 
que  era  inexequível  o  que  pedia.  O  que  elle  prelumia  ferem 
enfermidades,  que  eflavam  corrompendo  e  afeando  o  antigo 
inftituto  de  Santo  Ignacio,  eram  as  próprias  leis  e  condições 
orgânicas  da  fua  exiflencia  collediva.  A  famofa  fociedade  ou 


-!-<>-• -<>-^ 

havia  de  acabar  inteiramente  ou  manteria  intemeratas  as  fuás 
tradições  e  os  léus  proceíTos.  Os  que  Ic  afiguravam  por  abu- 
fos,  eram  antes  os  coftumes  convenientes  á  ília  inílituição.  Os 
que  le  julgavam  erros  paíTageiros,  eram  os  axiomas,  em  que 
eftribava  a  lua  influencia  e  o  feu  poder.  Tirar-lhe  a  direcção 
das  conlciencias  nas  clafles  mais  poderofas,  a  começar  do 
próprio  rei,  arrebatar  das  fuás  mãos  o  enfmo  e  a  educação  da 
juventude,  limitar-lhe  á  evangélica  parenefe,  fem  mefcla  de 
profana  direcção,  nem  commercios  lucrativos,  o  exercicio  das 
miíTões  no  Oriente  e  Novo  Mundo,  era  abater  a  Companhia 
ao  nivel  das  vulgares  congregações,  e  condemnal-a,  em  vez 
dos  léus  efplendidos  triumphos  nas  cortes  e  nas  praças,  ao 
obfcuro  pfalmear  no  coro  das  fuás  egrejas,  quali  defertas  de 
fieis.  A  Companhia  não  a  creára  aquelle  myftico,  mas  fogo- 
fo  e  enérgico  eftadifta,  leu  primeiro  inflituidor,  para  a  vida 
contemplativa,  e  para  a  afcefe  folitaria,  fenão  para  o  comba- 
te fem  remanfo,  para  a  conquifta  moral  de  todo  o  orbe  pela 
ambição  e  pela  fé,  para  o  governo  fem  refponfabilidade, 
para  a  foberba  dominação  nas  apparencias  da  evangélica  hu- 
mildade. Era  o  exercito  adivo  da  foberania  clerical.  O  bre- 
viário, na  fefta  de  Santo  Ignacio,  cantava  exalçando  o  ferviço 
relevante  do  famolb  fundador:  Nopo  per  bcatiim  Ignathim 
fiill/iíiio  militautem  eclejiam  roborajti,  quafi  dizendo  em  lin- 
guagem: »Por  induftria  e  obra  de  Santo  Ignacio  fortalecefte 
com  um  novo  auxiliar  e  novo  prefidio  a  egreja  militante». 

Apelar  de  tudo  prefuppoz  ou  fingiu  Carvalho  que  a  So- 
ciedade poderia  ter  em  feus  defeitos  correcção,  em  fcus  des- 
mandos emenda  e  melhoria.  Lembravam-lhe  as  palavras, 
em  que  theologos  tão  doutos  e  piedofos  como  os  dois  emi- 
nentes hefpanhoes.  Árias  Montano  e  o  bifpo  de  Canárias, 
Melchior  Cano,  haviam  debuxado  a  imagem  da  Companhia 
em  termos,  que  excluem  da  parte  d'elles  toda  a  crença  na 
fua  proveitofa  reformação.  Lembravam-lhe  c  citava-os.  Mas 


168 

era  ainda  neceíTario  admittir  porventura  como  um  milagre 
o  que,  fegundo  a  ordem  natural,  não  era  já  poíTivel  realifar. 
Era  como  transformar  um  corfel  impetuoíb,  altivo,  quafi  in- 
dómito, coftumado  a  correr  velociílimo  no  circo,  em  ovelha 
humilde,  quieta,  e  remanfada  na  paz  innocente  e  ociofa 
do  redil. 

Ordenou  Sebaftião  de  Carvalho  ao  miniftro  de  Portugal 
na  corte  de  Roma,  Francilco  de  Almada  e  Mendoça,  que 
impetraíTe  do  pontífice  Benedido  XIV  as  providencias  ne- 
ceíTarias  para  que  em  Portugal  fe  procedeíTe  á  vifita  e  re- 
formação da  Companhia.  Expediu-lhe  para  efle  fim  as  duas 
inftrucções  de  8  de  outubro  de  lySy  e  de  10  de  fevereiro 
do  feguinte  anno. 

A  primeira,  a  que  fervia  de  explanação  e  commentario 
o  opufculo  publicado  por  ordem  do  governo  fob  o  titulo  de 
Relação  abreviada  da  republica  que  os  religiqfos  jefuitas  de 
Portugal  e  Hejpaiiha  ejiabeleceram  nos  doiniiúos  ultramarinos 
das  duas  monarchias,  devia  fer  prefente  ao  pontífice  romano, 
e  n'ella  deduzia  o  eftadifta  os  delidos,  pelos  quaes  os  jefui- 
tas fe  haviam  tornado  infeítos  a  Portugal,  concitando  princi- 
palmente os  Índios  da  America  a  opporem-fe  pelas  armas  á 
execução  do  tratado  de  limites  entre  as  duas  coroas  peninfu- 
lares.  Dava  Sebaftião  de  Carvalho  ao  mefmo  tempo  conta 
ao  papa  de  como  os  confeíTores  da  familia  reinante  haviam 
fido  lubffituidos  por  facerdotcs  de  outras  ordens  religiofas. 
Na  fegunda  inftrucção  recapitulava  o  miniftro  de  D.  Joie 
os  procedimentos  dos  jefuitas  para  obftar  ao  cumprimento 
do  tratado,  combater  a  inftituição  da  companhia  do  Grão- 
Pará,  influir  no  animo  do  rei  pelas  miífões  exercidas  nos 
próprios  paços,  e  fublevar  contra  a  companhia  das  vinhas  do 
Alto  Douro  a  plebe  portuenfe.  Criminava  o  miniflro  os  jefui- 
tas pela  tenacidade  impenitente,  com  que  divulgaram  no  pu- 
blico portuguez  as  mais  calumniofas  imputações  ao  governo 


ti» 


169 

de  D.  Jofé,  acculando-o  de  querer  abolir  o  Tanto  ofíicio,  infti- 
tuir  a  liberdade  de  confciencia  e  cafar  a  princeza  do  Brazil 
com  o  duque  de  Cumberland,  filho  legundo-genito  do  rei 
George  II.  AíTeverava  Sebaftião  de  Carvalho  que  na  fen- 
tença  da  alçada  por  occafião  do  tumulto  popular  no  Porto, 
«faria  uma  grande  e  enorme  figura  o  proceíTo  d'aquelles 
religiofos  fe  a  piedade  fi.imma  do  monarcha  não  houvelTe 
defde  o  principio  mandado  feparar  o  que  foíTe  pertencente 
aos  ecclefiafi:icos » . 

As  diligencias  de  Carvalho  fijrtiram  o  effeito  defejado. 
O  pontífice  Benedifto  XIV,  Profpero  Lambertini,  era  um  dos 
mais  illuminados,  juftos  e  venerandos,  entre  os  que  haviam 
meneado  o  leme  á  nave  de  S.  Pedro.  Era  adverfario  e  cor- 
redor dos  abulbs,  que  via  introduzidos  na  egreja,  theologo 
e  canonifta  de  vafia  erudição,  piedofo  como  papa,  clemente 
como  príncipe,  modelto  como  particular.  Era  aquelle,  de 
quem  o  filho  de  Walpole,  do  miniftro  omnipotente  de  Geor- 
ge II,  traçara  n'uma  infcripção  em  fiia  honra,  que  fora  ama- 
do dos  papirtas  c  pelos  proteítantes  elfimado.  Era  um  ho- 
mem que,  pelas  luas  qualidades  eminentes,  purificava  o  tri- 
regno  pontifício  de  todas  as  impurezas,  com  que  lhe  haviam 
embaciado  o  efplendor;  que  pela  manfidão  quafi  eicurecia  a 
arrogância  irrequieta  de  Gregório  VII,  e  pela  virtude  como 
que  expiava  a  mundana  diífipação  de  Alexandre  VI;  pontí- 
fice paftor,  e  não  guerreiro;  amigo  da  paz  e  da  juftiça,  ini- 
migo de  quanto  podelTe  defluftrar  a  virtude  e  a  chriftanda- 
de.  Não  era  adverlb  aos  jefijitas,  antes  venerava  no  inftituto 
a  memoria  dos  feus  grandes  luminares.  AfFligiam-n'o  porém 
as  turbulências,  que  os  focios  da  Companhia  efiavam  exci- 
tando em  Portugal,  a  cujos  reis  havia  poucos  annos  conce- 
dera, como  infignc  teftemunho  da  fiia  piedade  e  religião,  o 
honorifico  diftado  de  //deli//ii)i(>s.  A  inílancias  de  Carvalho, 
propoftas  pelo  miniftro  portuguez  Franciíco  de  Almada,  ex- 


eis 


(Is 


170 

pediu  Benedido  XIV  o  breve  In  fpecula  fupremae  dignitatis, 
datado  de  Roma  no  i."  de  abril  de  lySS.  N'efte  memorável 
diploma  pontifício  citava  o  lummo  paftor  as  inconveniências 
e  abufos,  que  o  rei  de  Portugal  lhe  havia  reprefentado  com- 
mettidos  pelos  jefuitas,  pedindo-lhe  que  houvcffe  de  acudir 
com  providencias  paftoraes  a  atalhar  os  efcandalos,  que  po- 
deriam recreícer.  Para  a  vifita  e  reformação  da  Companhia 
ern  Portugal  conferia  o  papa  ampliffimos  poderes  ao  cardeal 
Francifco  de  Saldanha,  o  qual  deveria  tomar  por  adjundo 
uma  peíToa  conftituida  em  dignidade  ecclefiaftica,  e  verfada 
nas  conítituições  e  coftumes  das  ordens  regulares.  O  pontífi- 
ce, que  n'eftas  lettras  apoftolicas  aífirmava  o  feu  amor  á 
fufpeita  fociedade,  «e  os  atfeiftos  paternaes,  com  que  a  fi 
mefmo  a  eftreitava'»  não  eftava  por  iíTo  menos  convencido 
de  quanto  era  urgente  a  fua  reforma.  Ordenava  a  todos  os 
jefuitas  de  Portugal  e  feus  domínios  que  obedecelTem  ao 
cardeal  e  fe  fujeitaíTem  ás  fuás  determinações.  Declarava 
contra  os  remiíTos  e  contumazes  as  máximas  penas  eccle- 
fiaflicas,  a  excommunhão  latae  fententiae,  a  fufpenfão  à  di- 
innis,  a  privação  de  feus  ofiicios,  além  das  mais,  em  que 
ipfo  fado  incorreriam,  e  lhes  feriam  impoftas  a  arbítrio  do 
pontífice  romano. 

Era  efte  o  primeiro  golpe  dirigido  á  Companhia  por  uma 
audoridade,  c]ue  ella  fem  faír  do  próprio  catholicifmo  e  rene- 
gar o  feu  inflituto,  não  poderia  declarar  incompetente  ou  il- 
ludida  nas  fuás  decifões.  Os  jefuitas  em  efcriptos  numerofos 
haviam  profeífado  a  infallibilidade  pontificia,  durante  largos 
tempos  antes  da  fua  temerária  definição  no  concilio  do  Vati- 
cano. Os  feus  canoniftas  e  theologos  haviam  levado  a  adora- 
ção do  pontificado  ate  ao  extremo  de  afiirmar  acerca  da  fua 
omnipotência  os  abfurdos  mais  rifiveis.  Se  a  ordem,  pois. 


I   «Nos,  qui  focietatem  praedÍL^am  paternis  compleélimur  afícdibus.» 


cl» 


não  era  ainda  formalmente  condemnada,  ao  menos  um  papa 
de  virtude  tão  auílera  e  de  tão  immaculada  religião,  robo- 
rava  em  luas  novas  lettras  pontifícias  as  tremendas  imputa- 
ções, que  lhe  fizera  no  antigo  breve  Lwnenfa  pa/íoriiin,  ac- 
cuíando-os  de  fe  mefclarem  na  America  em  commercios  e 
ufuras  incompatíveis  com  o  eftado  clerical.  E  era  tal  a  boa 
vontade  no  pontífice,  que  fendo  expedidas  em  fevereiro  as 
inftrucções  ao  plenipotenciário  portuguez,  já  no  i ."  de  abril, 
com  brevidade  pouco  ufada  na  expedição  dos  negócios  cu- 
riaes  em  aíTumptos  de  menor  gravidade  e  ponderação,  era 
exarado  o  breve  da  reforma. 

Apenas  inveftido  no  cargo  de  vifitador  c  reformador,  o 
cardeal  Saldanha,  nomeando  por  feu  adjunífo  a  Eítevão  Luiz 
de  Magalhães,  monfenhor  da  patriarchal,  fe  deu  preífa  em 
começar  a  inquirição  acerca  dos  abufos  introduzidos  nas 
províncias  religiofas  da  Companhia  em  todos  os  territórios 
de  Portugal.  A  i  5  de  maio  de  lySS  ordenava  o  cardeal  vifi- 
tador em  feu  decreto  a  todos  os  provinciaes,  vice-provin- 
ciaes,  prepofitos,  reitores  e  mais  prelados,  e  aos  fubditos  da 
fociedade  de  Jefus,  que  ao  fer-lhes  aprefentado  eífe  diplo- 
ma, logo  pozeífem  cobro,  fem  o  minimo  effugio  ou  pretexto 
de  delonga,  aos  negócios,  em  que  andavam  envolvidos.  O 
extenfo  preambulo,  que  precedia  a  parte  decretoria  do  man- 
damento, era  uma  formal  requifitoria  fundada  em  copiolos 
textos  evangélicos  contra  os  abufos  e  tratos  mercantis,  em 
que,  apezar  das  expreífas  prohibições  de  Urbano  VIII,  de 
Clemente  IX  e  de  Benedióío  XIV,  os  jefuitas  fe  obftina- 
vam  tenaciífimos  em  fazer,  como  os  mercadores  expulfos 
do  templo  por  Jefu  Chrifto,  o  officio  de  nummularios,  e 
de  fuás  cafas  de  oração  e  de  pobreza,  efpeluncas  de  la- 
drões. Accufava  o  cardeal  publicamente  os  jefuitas  de  ac- 
ceitar  e  expedir  lettras  de  cambio,  como  fe  as  cafas  religio- 
fas foífem  bancos  e  efcriptorios  de  mercadores,  c  de  traficar 


cl» 


em  mercadorias  transfretadas  da  Africa,  da  Afia  c  do  Novo 
Mundo. 

A  defejada  reformação  teve  o  êxito,  que  defde  o  princi- 
pio fe  podéra  adivinhar.  A  Companhia,  que  fe  julgava  aíTm- 
te  vilipendiada  pelo  feu  implacável  perleguidor,  fez  o  que 
pradicam  fempre  os  que  eítáo  contendendo  rijamente  n'uma 
luóta  politica  apaixonada.  Não  podia  abertamente  refiftir.  II- 
ludiu.  Chegou  em  breve  a  termos  o  negocio,  que  o  patriar- 
cha  de  Lifboa,  D.  Jofé  Manuel,  pelo  edital  de  7  de  junho  de 
1758,  fufpendeu  do  exercicio  de  confeíTar  e  de  pregar  aos 
padres  da  Companhia. 

A  poderofa  fociedade,  offendida  em  um  dos  léus  mem- 
bros mais  preciofos  e  vitaes,  qual  era  a  corporação  de  Por- 
tugal, agitava-fe,  forcejando  por  anteparar  os  novos  golpes  e 
defender  a  fua  integridade.  A  3  i  de  julho  o  prepofito  geral, 
o  padre  Lourenço  Ricci,  o  foberano  irreíponíavel  de  toda  a 
fociedade,  reprelentava  a  Benedifto  XIV,  ponderando-lhe, 
em  termos  de  aíTedada  manlidão  e  humildade,  as  iniquas 
decifões,  pelas  quaes  os  jefuitas  em  Portugal  haviam  fido 
pelo  cardeal  viíltador  declarados  réus  de  profanas  grangea- 
rias,  e  pelo  cardeal  patriarcha  inhibidos  de  empregar  as  fuás 
melhores  armas,  as  mais  acicaladas  e  certeiras,  o  púlpito  e  o 
confeífionario.  Acrefcentava  o  prepofito  geral  que  a  vifita 
commettida  ao  cardeal  Saldanha,  em  vez  de  fer  útil  para  a 
reforma,  fe  temia  podelfe  occafionar  difturbios  inúteis,  efpe- 
cialmente  nas  poífeífões  ultramarinas.  Mandou  o  papa  ouvir 
em  Roma  fobre  a  reprefentação  do  padre  Ricci  a  congrega- 
ção dos  cardeaes.  Opinaram  contrariamente  á  pretenfão  dos 
jefuitas,  e  aconfelharam  que  mantida  e  refpeitada  a  autori- 
dade e  jurifdicção  do  cardeal  viíitador,  para  elle  recorreífem 
os  jefuitas,  que  o  prepofito  geral  affigurava  tão  ottendidos 
e  aggravados. 


173 


CAPITULO  VIU 

A  CONJURAÇÃO 

Tudo  parecia  correr  á  maravilha  e  ageitar-fe  ás  efperan- 
ças  e  defejos  do  miniftro.  Tinha  no  throno  um  rei,  em  cuja 
confiança  vivia  radicado,  no  folio  pontifício  um  papa,  que  pa- 
recia inclinado  a  robuftecer  com  o  poder  das  chaves  o  braço 
lecular  no  feu  empenho  de  abater  e  humilhar  os  jefuitas. 

A  violenta  oppofição  não  fe  dava  porem  ainda  por  ven- 
cida, nem  remittia  facilmente,  antes  mais  incendia  a  lanha 
perdurável.  Os  jefuitas  haveriam  de  trafmudar-fe  realmente 
de  homens  com  paixões  e  refentimentos  em  creaturas  fobre- 
humanas  e  angélicas,  fe  não  padeceílem  cruelmente  com  o 
opprobrio  e  o  defcredito,  em  que  do  auge  do  feu  grande  es- 
plendor os  tinham  precipitado  as  providencias  decretadas, 
fob  a  infpiração  do  miniih'0  inexorável,  pelos  dois  purpura- 
dos portuguezes.  Eram  ainda  havia  pouco  os  religiofos  de 
maior  fama  e  auíforidade.  Tinham  de  fua  mão  a  confciencia 
do  monarcha.  Confundindo  na  regia  confciencia  os  negócios 
profanos  do  governo  com  a  falvação  do  feu  coroado  peniten- 
te, podiam  fubordinar  á  fua  influencia  ecclefiaftica  as  mais 
graves  razões  de  eftado.  Eram  confultados  pelo  Ibberano  na 
folução  das  queftões  mais  efpinhofas'.  Um  dos  mais  terriveis 


I  «11  Ibvrano  ne  avea  troppa  ftima.  AUevato  da  eíli  penfava  alia  loro  ma- 
niera  e  voleva  in  tutti  gli  affari  íentirc  il  configlio  dcl  P.  Moreira  fuo  confes- 
fore."  Vita  di  Seb.  Ghifeppe  di  Carvalho  e  Mello  (efcripta  por  jefuitas,  ou  fob 
a  fua  infpiração),  tom.  1,  pag.  100. 

"O  ódio,  que  aquelle  miniílro  (Carvalho)  lhes  tinha  (aos  jefuitas)  nafcia 
do  grande  credito  e  influencia,  que  elles  tinham  no  animo  d'el-rei:  que  ...  ti- 
nha por  coftume  . . .  encommendar  a  feu  confeflbr  negócios  de  fumma  ponde- 
ração, coufa  que  não  convinha  ao  minilíro,  que  entendia  governar  f ó  . . .  a  fu- 
ga dos  religiofos  do  Maranhão,  o  grande  commercio,  que  faziam  no  Brazil, 


174 

inimigos  de  Carvalho,  o  au6tor  de  uma  larga  e  diffufa  refu- 
tação da  fentença  proferida  contra  os  Tavoras,  affirma  com 
fegurança  que  o  jefuita  Jofé  Moreira,  confeíTor  do  rei  e  da 
rainha,  gofára  da  mais  ampla  amizade  e  confiança  do  monar- 
cha,  fendo  pouco  menos  que  leu  primeiro  miniftro'. 

O  povo  ignorante  ainda  havia  pouco  reputava  os  jefuitas 
fervorofos  evangelifadores,  indemnes  de  toda  a  fombra  de 
peccado,  ignorando  que  na  fua  apparente  fimpleza  e  humil- 
dade a  roupeta  encobria  e  recatava  as  ambições  immodera- 
das,  e  muitas  vezes  egualava  ou  excedia  a  purpura  dos  gran- 
des potentados.  A  elles  fe  podia  accommodar  o  que  o  feu 
mais  eloquente  confocio  portuguez  havia  dito  dos  que  fem 
ofíicio  de  corte  e  de  governo  imperam  nos  monarchas  «vali- 
do, que  fem  nome  é  a  maior  dignidade,  e  fem  jurifdicção 
o  maior  poderá». 

Ainda  hontem  no  paço  eram  archontes  e  didadores,  na 
praça  demagogos  e  tribunos.  Ainda  hontem  eram  no  púlpito 
publiciítas,  efcutados  com  reverencia  pelas  turbas,  no  con- 
feíTionario  curadores  das  confciencias  populares.  E  agora 
eftavam  reclufos  nas  fuás  cafas,  nos  feus  collegios,  nos  feus 
noviciados,  inhibidos  de  toda  a  acção  publica,  defpojados 
das  luas  armas  principaes,  repúblicos  fem  foriiin,  eíladiftas 
fem  fenado.  Accufados,  offendidos,  vilipendiados;  engeitados 
pela  cúria,  renegados  pela  corte,  fufpeitos  á  cidade.  Era  im- 


todas  eftas  circumftancias  levadas  ao  conhecimento  do  foberano  fizeram  com 
que  elle  fe  determinaíTe  a  deixar  operar  o  miniflro  conforme  entendeíVe.»  Offi- 
cio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  em  Lifboa,  ao  feu  governo,  i.°  de 
maio  de  lySg.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  142  e  143. 

'  A  mentira  manifefla  por  fi  me/ma,  ou  analyfe  da  fentença  proferida  em 
12  de  janeiro  de  ijSg.  É  um  enorme  volume  manufcripto  de  folio,  da  bibliothe- 
ca  da  Academia  das  Sciencias,  e  contém  a  dcfeza  e  apologia  dos  Tavoras  e  do 
Aveiro,  que  tem  por  innocentes  e  beneméritos.  E  efcripto  nos  primeiros  annos 
do  reinado  de  D.  Maria  I. 

2  Vieira,  Sermões,  part.  iii,  pag.  igi,  ferindo  da  quarta  dominga  da  qua- 
resma. 


■4^ •-<{>-§* 

■  75 

poílivel  a  conformidade  e  reíignação  em  trance  tão  cuftolb.  O 
exigir  dos  jefuitas  que  affrontados  n'uma  face  oífcreceíTcm 
humilhados  a  outra  face  ao  aggreíTor,  era  fuppor  apagado 
fob  a  roupeta  o  uhimo  brazido  das  paixões.  Os  morahftas  da 
Companhia,  os  feus  famigerados  probabihífas,  não  raiavam 
tão  alto  na  obfervancia  do  Evangelho,  antes  permittiam  a 
repreíalia  e  o  desforço  neceíTario  á  própria  confervação.  Os 
feus  mais  famofos  jurifconfultos  e  profeíTores  de  theologia 
moral,  João  de  Mariana,  Leffio,  Efcobar,  Molina,  Laymann, 
Bufembaum,  e  muitos  outros  dos  feus  mais  celebrados  es- 
criptores,  com  as  fuás  doutrinas  acerca  do  regicidio  e  da  le- 
gitima refiftencia  á  tyrannica  poteftade  temporal,  não  eram 
os  mais  feguros  confelheiros  para  influir  e  confirmar  nos  op- 
primidos  a  paciência  c  humildade  nas  quebras  do  poder,  nos 
damnos  da  fazenda  e  nos  aggravos  da  honra  maculada. 

Pode  pois  aíTcverar-fe,  quando  mefmo  não  houveíTe  in- 
contelfaveis  documentos,  que  nos  jefuitas  eftaria  exacerbado 
contra  o  miniflro,  que  feveramente,  pofto  que  em  legitima 
defeza,  os  oífendêra,  um  ódio  entranhavel  e  infpirador  das 
ultimas  vindiífas.  Tinham  os  jefuitas  entre  os  fidalgos  prin- 
cipaes  os  feus  mais  fervorofos  alliados.  A  nobreza  participa- 
va com  os  focios  da  Companhia  na  averfão  ao  miniftro,  que 
empolgara  fem  partilha  a  audoridade  e  os  excluíra  da  pri- 
vança  e  da  valia,  em  que  cfantes  haviam  eítado  longa- 
mente empadroados. 

A  alta  fidalguia  de  Portugal,  como  fuccede  fempre  ás 
defapoífadas  hierarchias,  não  podia  refignar-fe  a  erguer-fe 
apenas  fobre  o  povo  pelos  privilégios  honoríficos,  ou  pelas 
graças  e  mercês  do  foberano.  Lembravam-lhe  com  faudade 
aquelles  tempos,  em  que  eram  quafi  eguaes  com  o  imperante 
e  em  que  pelo  organifmo  feudal  da  fociedade,  mais  ou  menos 
diffundido  em  toda  a  I-Àiropa  chriftan  nos  feculos  da  edade 
media,  lhes  cabia  uma  parcclla  conlideravel  na  publica  júris- 

^^-^ '^^ 

e|j  4» 


■7Q 

dicção  e  aufloridade.  De  ricos  homens  e  fenhores  infolentes  e 
quafi  abfolutos,  com  os  feus  coutos,  as  luas  honras  e  behc- 
trias,  com  o  feu  quafi  pleno  lenhorio  nas  terras,  de  que  eram 
donatários,  tinham,  pela  crefcente  confolidação  do  poder 
régio,  defcaido  mais  e  mais  em  fâmulos  da  coroa,  e  dis- 
putavam no  paço  pela  valia  com  o  monarcha,  o  que  tinham 
perdido  em  direito  próprio  nas  fuás  ambições  de  arrogante 
dominação.  Podia  ter  fido  em  tempos  mais  antigos  a  nobreza 
uma  inftituição  hiftoricamente  neceíTaria,  como  organifmo 
intermédio  entre  a  anarchia,  fubfequente  ás  invaíoes  dos  bár- 
baros e  a  fundação  de  um  poder  central  e  unitário.  Mas,  ao 
paíTo  que  as  nações  modernas  haviam  conquiftado  cohefão  e 
unidade,  enfeixando  nas  mãos  de  um  fó  dynafta  o  poder  re- 
partido entre  os  fenhores  de  feudos  ou  os  poderofos  donatá- 
rios, a  nobreza,  como  corporação  politica,  em  vez  de  fer  útil 
aos  públicos  progrelfos,  era  um  órgão,  que  na  eftructura  fo- 
cial  fe  tornara,  como  dizem  os  biólogos,  dyjleleologico,  ou 
difconforme  ao  feu  íim  primordial.  Um  novo  elemento  moral 
e  económico,  uma  nova  influencia  irrefiftivel,  fe  havia  levan- 
tado e  batia  á  porta  do  poder  e  requeítava  o  feu  logar  no 
complexo  mechanifmo  da  nação.  Os  villões  e  os  inalados,  ou- 
tr'ora  defdenhados  e  opprimidos  pelos  fenhores,  e  por  elles 
avexados  com  as  multíplices  impofições  territoriaes  em  pro- 
veito das  ariítocracias  feculares  ou  clericaes,  começavam  a 
fer  agora  eíta  formidolofa  claífe  media,  que  fez  a  revolução 
de  89  e  fundou  a  prefente  phafe  da  humana  evolução,  á 
efpera  que  de  inferiores  eftratos  fociaes  brotem,  impetuofos 
invalores,  os  novos  defherdados,  que  a  venham  fublfituir  e 
defapoffar. 

A  nobreza  no  tempo  de  Car\'alho,  apefar  de  trazer  a  li- 
bré do  rei  e  de  honrar-fe  com  ella  como  inlignia  de  valiofo 
privilegio,  era  ainda  arrogante,  ambiciofa,  indifciplinada.  Era 
inútil  para  o  bem,  mas  ainda  poderola  para  o  mal.  Não  era 


(tf 


'77 

como  na  conftituição  feudal  da  Gran-Bretanha,  um  mediador 
entre  as  prepotências  da  coroa  e  os  arrojos  dos  communs. 
Toda  a  fua  intervenção  politica  fe  refumia  n'uma  fombra 
de  confenfo  nacional  na  pompofa  acclamação  e  juramento 
de  cada  novo  rei,  que  fubia  ao  throno.  Se  não  tinha  porém 
fignificado  official,  ainda  lhe  reftavam  as  memorias  das  in- 
trigas, dos  enredos,  das  ambiciofas  confederações,  em  que 
tinha  largamente  participado  durante  as  efcandalofas  com- 
petências dos  filhos  defnaturados  de  D.  João  IV.  Não  pos- 
fuia  já  o  direito  de  fazer  leis,  mas  ainda  tinha  força  para 
as  defobedecer  e  defprezar.  Não  lhe  era  agora  dado  influir, 
mas  ainda  podia  confpirar. 

Carvalho  era  hoftil  á  alta  nobreza,  por  um  motivo  pes- 
foal  e  principalmente  pelo  feu  fundamental  axioma  de  gover- 
no. Como  a  cavalheiro  de  fidalguia  mediana,  moderna,  de 
toga  e  não  de  efpada,  aírombravam-n'o  as  arrogâncias,  com 
que  o  ingenito  orgulho  ariftocratico  mira  com  ironia  defde- 
nhofa  os  grandes  homens,  que  não  tiveram  entre  os  godos 
mais  illuftres  o  feu  berço  immemorial. 

O  eques  romanus  não  contemplava  com  bons  olhos  os 
fenadores  pertencentes  ás  famílias  nobiliárias,  aos  filhos  da 
gens  Cornélia  ou  da  Vetiiria.  Carvalho  diante  da  nobreza 
orgulhofa  e  infolente  era  como  Cicero,  no  confulado,  o  fim- 
ples  cavalleiro  romano,  o  homem  novo,  em  frente  de  Catili- 
na, o  patrício  arrogante  e  perturbador  da  paz  e  majeífade 
da  republica. 

Mas  eram-lhe  particularmente  odiofos  os  magnates,  por- 
que perante  a  regia  majefiade  —  legundo  o  feu  diófame,  o 
único  poder  n'uma  nação, —  nenhum  elemento  focial  fe  po- 
deria alevantar  politicamente  fobre  o  nivel  rafieiro  dos  vas- 
fallos,  cuja  funcção  era  acatar  e  obedecer.  A  influencia  que 
os  próceres  antigos  ainda  pretendiam  exercer,  procurava  o  re- 
formador trafladal-a  á  clafl"e  media;  da  cortefan  ociolidade 


178 

para  o  trabalho  produítor;  dos  que  tinham  por  honra  o  con- 
fumir  para  os  que  tinham  por  officio  o  acrefcentar  a  rique- 
za da  nação;  do  caftello  e  da  efpada  para  a  officina  c  o  tear. 

E  efte  foi  um  dos  grandes  méritos  de  Sebaftião  de  Car- 
valho, como  oufado  innovador.  Egualando  a  alta  nobreza 
com  os  últimos  da  plebe,  perante  a  fuprema  jurifdicção  de 
um  revolucionário  deípotifmo,  preparava  os  caminhos,  por 
onde  a  velha  e  heráldica  ariftocracia  viria  a  confundir-fe  em 
breves  annos,  já  fem  fignificação,  fem  valor  e  fem  poder,  na 
turba  dos  titulares  e  dos  fidalgos,  faídos  aos  cardumes  das 
fileiras  obfcuras  e  plebeias. 

A  nobreza  e  os  jefi^iitas  refpondiam  com  ulura  á  animad- 
verfão,  que  lhes  votava  o  grande  reformador.  Contra  elle 
fi.ibfiítia  permanente  a  confpiração.  Empregavam  todos  os 
meios,  que  podiam  empecer  ou  infamar.  Tramavam  no  paiz 
quanto  lh'o  permittiam  os  recurfos,  de  que  difpunham.  N'elle 
divulgavam  com  mão  larga  as  maliciofas  imputações,  e  tra- 
balhavam nos  eftados  extrangeiros  por  desfigurar  os  fiacces- 
fos  e  as  intenções  do  governo  portuguez.  Aproveitavam  aftu- 
tamente  o  defpeito,  que  nos  extranhos  produziam  as  provi- 
dencias decretadas  para  conter  e  cercear  a  fua  influencia 
politica  e  mercantil  em  Portugal.  Eram  principalmente  as 
duas  grandes  companhias  commerciaes  as  que  lhes  ferviam 
de  bafe  e  fundamento  para  eftimular  contra  o  miniftro  a 
defaffeição  dos  governos,  principalmente  do  britannico,  e  dos 
negociantes  inglezes,  que  viam  diminuto  e  coar6fado  o  antigo 
trafico,  e  perturbavam  com  infolentes  reclamações  e  meneios 
turbulentos  o  curfo  regular  dos  negócios  públicos'. 


I  i.O  encarregado  de  negócios  de  França  em  Lifboa,  St.  Julien,  em  officio 
de  2  de  janeiro  de  1769,  dizia  ao  feu  governo  que  os  inglezes,  refidentes  em 
Portugal,  eítavam  defcontentes  e  murmuravam  muito  contra  a  perfeguição  fei- 
ta aos  jefuitas,  com  os  quaes  tinham  grandes  e  proveitofos  negócios  commer- 
ciaes.» Quadro  elementar,  tom.  xviii,  pag.  Sbg. 


e^» 


'79 

Aos  que,  lem  dar  valor  a  moralidade  e  juítiça  das  acções, 
eítão  impacientes  por  algum  meio  de  vigorofa  refiftencia 
contra  um  governo  por  elles  odiado,  nem  fempre  é  fácil 
affrontal-o  face  a  face  á  luz  do  dia  n'efl:e  duello  terrível,  que 
fe  chama  a  revolução.  É  mais  fácil  e  expedito  o  nodurno 
regicidio  que  a  inlurreição  na  praça  publica.  A  revolução  é 
a  arma  privativa  das  nações  vexadas  e  opprimidas.  A  con- 
juração é  o  recurfo  dos  magnates  defapoffados.  Na  revolução 
pleiteia-fe  a  liberdade  e  os  foros  de  todo  um  povo.  Na  conju- 
ração litiga-fe  o  logar  na  fuprema  audoridade  em  favor  de 
poucos  homens  roidos  de  ambição  e  ledentos  de  vingança  e 
de  poder. 

Tinham  vifto  os  defcontentes  faír  fruítrado  o  tentame  de 
começar  no  Porto  a  geral  conflagração.  Era  bem  que  appel- 
laíTem  d'aquelle  cruento  e  laítimavel  defengano  para  o  expe- 
diente mais  feguro  de  fazer  vacante  o  folio;  do  tumulto  po- 
pular, oufado,  patente,  exporto  aos  perigos,  para  o  trabuco 
dos  ficcarios  na  cilada  noífurna,  covarde,  cautelofa. 

No  dia  4  de  feptembro  de  lySS  divulgou-fe  pela  cidade 
de  Lifboa  que  D.  Jofé  fe  havia  encerrado  na  fua  camará  e 
a  ninguém  apparecia  por  motivo  de  enfermidade.  Corriam 
furdamente  os  rumores  de  que  alguma  coufa  de  mais  grave 
fignificação  fe  havia  paíTado.  As  peíToas,  que  tinham  entra- 
da no  paço,  dirigiam-fe  ali  a  informar-fe  fobre  qual  era  o 
eítado  do  foberano.  Os  que  podiam  ter  acceíTo  aos  gabi- 
netes dos  miniftros,  bufcavam  faber  o  motivo  por  que  o 
rei  não  apparecia,  e  a  rainha  e  as  peíToas  da  fua  familia  fe 
confervavam  retrahidas  nos  feus  apofentos  particulares.  As 
novas,  que  emanavam  do  palácio  ou  do  governo,  cifravam- 
fe  em  que  o  rei  dera  uma  queda,  e  que  a  rainha  adoecera'. 


I  Officio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  St.  Julien,  para  o  feu  go- 
verno, de  5  de  feptembro  de  lySS.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  114. 


(Is 


4iU 
-<[>-§* 

180 

Entre  o  vulgo  principiaram  a  ter  curfo  vozes,  que  refe- 
riam a  caufas  de  outra  ordem  o  encerro  do  rei  e  da  fua  fa- 
milia.  Ao  ouvido  fe  murmurava  entre  os  do  povo,  que  o 
monarcha  havia  fido  em  a  noite  antecedente  falteado  por 
homicidas.  Apontavam-fe  como  andores  do  crime  perpetra- 
do os  Tavoras  com  os  léus  próximos  conjundos  e  aUiados'. 
Apefar  da  cautela  e  diffimulação,  com  que  Sebaftião  de  Car- 
valho fe  empenhava  em  encobrir  o  que  realmente  fi.iccedêra 
a  D.  Jofé,  ninguém  acceitava  como  de  boa  lei  as  palavras 
em  que  elle  attribuia  a  um  defaftre  paíTageiro  a  claufura  do 
foberano,  e  a  nuvem  myíteriofa  que  toldava  os  ares  do  paço. 
Os  reprefentantes  extrangeiros  em  defpachos  fecretos  an- 
nunciavam  ás  fuás  cortes,  que  o  rei  fora  ferido  gravemente 
ao  recolher-fe  de  uma  das  nodurnas  e  frequentes  aventuras  ^ 
Segundo  a  noticia  official  o  foberano  padecia  apenas  os  effei- 
tos  de  um  perigofo  defequilibrio.  Mas  todos  fegredavam  uns 
aos  outros  que  um  attentado  tremendiíTimo  tinha  pofto  a 
poucos  paíTos  do  fepulchro  o  mantenedor  e  o  patrono  do  mi- 


1  No  mais  implacável  e  tremendo  libello  efcripto  contra  o  miniftro  de 
D.  Jofé,  fob  o  titulo  de  Vida  de  Seha/liao  Jnjé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A., 
manufcripto  da  Academia  das  Sciencias,  lêem-fe  no  §  104  eítas  palavras,  que 
fão  infufpeitiílimas,  porque  as  traçou  a  penna  vingativa  de  um  contemporâneo, 
inimigo  odiento  de  Carvalho:  «Logo  na  manhan  feguinte  fe  divulgou  a  noti- 
cia d'efle  fuccelTo,  e  o  povo  conftituiu  auítora  d'efle  deliíto  a  familia  dos  Ta- 
voras. O  fundamento  era  grande,  a  caufa  notória,  o  juizo  verdadeiro». 

Ainda  fáo  mais  figniíicativas  e  terminantes  as  feguintes  palavras  do  meímo 
implacável  inimigo  de  Sebaílião  de  Carvalho:  "Permanecia  (o  rumor  publico) 
contra  aquella  familia  (dos  Tavoras).  E  já  paíTava  como  indubitável  (o  crime) 
pelo  fobrefalto  e  inquietação  d'eíla  familia  e  feus  domeflicos,  fendo  a  perturba- 
ção dos  feus  femblantes  a  maior  prova  do  delido».  Citado  manufcripto,  S  io5. 
—  Outro  ainda  mais  furiofo  inimigo  de  Carvalho^  e  defenfor  enthufiaíla  da  in- 
nocencia  dos  Tavoras  e  do  Aveiro,  efcreve  textualmente  eftas  palavras:  "F.  cer- 
to que  a  poucas  horas  do  referido  infulto,  começaram  em  Lif  boa  a  publicar 
que  eram  os  fenhores  Tavoras  os  aggreffores  do  execrando  infulto».  Mentira 
manifejla,  manufcripto  da  Academia  das  Sciencias. 

2  Officio  do  encarregado  de  negócios  de  França  em  Lif  boa,  de  12  de  fe- 
ptembro  de  1758.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  11 5. 

«1»  4* 


niílro  omnipotente.  O  decreto,  em  que  D.  Jole  commettia  a 
fua  efpofa  a  regência  do  reino  durante  a  fua  doença,  attes- 
tava,  fem  admittir  a  menor  dubitação,  que  o  rei  ficara  inhi- 
bido  inteiramente  da  minima  applicação  aos  negócios  do 
governo.  Apefar  da  ardilofa  diffimulação,  com  que  o  minis- 
tro, alfedando  a  mais  imperturbável  ferenidade  e  confiança, 
bufcava  encobrir  e  recatar  o  que  realmente  fi.iccedêra,  fe- 
gredava-íe  que  o  rei  ao  paíTar  ás  onze  e  meia  da  noite  junto 
de  Belém,  em  fitio  ermo,  de  homicidas  poftos  em  cilada 
recebera  dois  tiros  de  bacamarte,  que  o  feriram  na  efpadua 
e  braço  direito.  Dizia-fe  que  eram  leis  os  criminolbs,  e  que 
efperavam  a  cavallo  o  Ibberano  em  feu  regreíTo  ao  paço  de 
Belém'. 

Era  a  primeira  vez  que  em  Portugal  acontecia  um  regi- 
cidio.  Não  eram  n'aquelle  tempo  tão  frequentes  os  attenta- 
dos  contra  a  vida  dos  chefes  fupremos  das  nações,  como  os 
temos  prefenceado  no  feculo  prelente.  A  fua  extrema  rari- 
dade e  as  idéas  politicas  dominantes  não  faziam  apenas  d'es- 
tes  crimes  um  aífijmpto  de  laflima  e  reprovação,  infundiam 
ao  contrario  um  lentimcnto  indeícriptivel  de  horror  e  abomi- 
nação. Agora  fão  apenas  um  homicidio,  uma  culpável  trans- 
greíTão  do  principio  generofo  de  que  deve  fer  inviolável  e 
fagrada  a  vida  humana,  a  dos  humildes  ou  dos  foberbos, 
dos  grandes  ou  dos  pequenos,  dos  reis  mal  endeufados  nas 
purpuras  ephemeras,  ou  dos  pobres  mal  enroupados  nas 
veftiduras  da  miferia.  Então  era  um  parricidio,  mas  dos 
parricidios  o  mais  atroz,  que  eftava  bradando  ao  céu  pela 
vingança  mais  cruel  e  pela  mais  excruciante  expiação.  O  rei 
é  hoje  um  homem,  era  então  um  femi-deus.  A  adaga  bran- 
dida hoje  contra  um  fimples  mortal  é  tão  criminofa  e  imper- 


1  Citado  otlicio  de  St.  Julicn,  encarregado  de  negócios  de  França  em  Lis- 
boa. 


182 

doavel  no  fentimento  univerfal,  como  a  cufpide  vibrada  a 
um  peito,  que  refpira  fob  arminhos.  O  trabuco  desfechado 
então  contra  um  foberano  era  como  íe  o  homicida  o  apon- 
tara ao  coração  da  pátria  e  da  nação.  Hoje  a  Ibciedade  lafti- 
ma  e  deplora  o  crime  ou  o  fanatifmo  dos  ficcarios,  e  paíTa, 
e  move-le  e  caminha,  como  um  exercito,  que  deixa  á  re- 
taguarda os  que  foram  perecendo  nos  combates.  Então  a 
focicdade  eftremecia  nos  mais  foHdos  cimentos,  como  fe  a 
própria  natureza  entraíTe  novamente  em  tremendos  paro- 
xifmos.  Hoje  um  rei  é  um  fupremo  funccionario  entre  cida- 
dãos já  hvres  e  maiores,  como  nas  monarchias  europêas  h- 
beraes,  ou  entre  lervos,  c[ue  facodem  as  ferropeas,  como  na 
Ruffia  eftremecida  peias  convulfões  do  nihiHfmo.  Então  o 
rei  era  uma  creatura  quafi  preternatural,  participante  pela 
uncção  na  divindade.  Matar  um  homem  era  um  crime,  ferir 
um  rei,  um  facrilegio.  Matar  um  homem  um  peccado,  ferir 
um  rei  quali  um  deicidio.  Diante  de  um  rei  o  povo  proftra- 
va-fe  em  adoração,  os  grandes  curvavam-fe  na  idolatria,  os 
miniífros  ajoelhavam  no  defpacho,  os  lacerdotes  incenla- 
vam-n'o  com  os  thuribulos,  e  todos  celebravam  perenne- 
mente  a  ília  immortal  apotheolb. 

Somente  Carvalho  e  os  léus  collegas  no  governo  eram 
depofitarios  do  legredo,  que  o  rei  lhes  confiara  e  d'elle  não 
deixavam  traníluzir  o  minimo  villumbre'. 

Defde  os  princípios  de  feptembro  até  g  de  dezembro 
houve  campo  largo  para  que  o  vulgo  canlaíTe  a  phantafia 
em  anciofas  conjeduras.  Porém  n'aquelle  dia  o  rei  por  um 
decreto  communicou  aos  feus  vaíTallos  que  a  lua  reclulao  de 
cerca  de  três  mezes  tinha  fido  o  effeito  de  um  atrociíTimo 
attentado,  em  que  havia  perigado  a  fua  vida.  N'eíl:e  docu- 
mento hiftoriava  como  recolhendo-lc  a  3  de  feptembro  pelas 


I  Appenfn  4.°  da  contrariedade  ao  libello,  '^  49. 


CM 


,    i83 

onze  horas  da  noite  para  o  paço  de  Belém,  ao  paffar  pelo 
campo,  que  feparava  da  regia  habitação  a  quinta  do  meio, 
três  ficcarios  a  cavallo,  poftados  cm  cilada  junto  d'ella,  ha- 
viam difparado  os  bacamartes  contra  a  fege,  que  o  levava, 
fazendo  os  tiros  não  fomente  grandiíflmos  eftragos  na  viatura, 
fenão  também  produzindo  no  foberano  feridas  graves.  De- 
clarava D.  Jofé  que  por  aquelle  infulto  horrorofiílimo  fica- 
ram «barbara  e  facrilegamente  oífendidos  todos  os  principios 
fagrados  do  direito  divino,  natural,  civil  e  pátrio,  com  um  ge- 
ral horror  da  religião  e  da  humanidade».  Encarecia  o  rei  o 
amor,  a  gratidão  e  fidelidade  portugueza  ao  leu  monarcha,  e 
a  urgência  de  aquietar  tão  louváveis  fentimentos  pela  prom- 
pta  expiação  de  tamanho  crime.  Incitava  com  prémios  avul- 
tadiíTimos  a  fecreta  delação  contra  os  culpados.  Promettia 
conferir  a  nobreza  aos  denunciantes  plebeus,  e  acrefcentar 
nos  foros  immediatos,  ou  galardoar  com  titulos  nobiliários 
os  que  foíTem  já  fidalgos,  á  proporção  e  medida  dos  feus 
graus.  Egualmente  declarava,  alem  d'efi:es  alicientes,  que 
haveria  de  galardoar  os  delatores  com  mercês  pecuniárias, 
coUação  de  ofificios  públicos  e  doações  de  bens  da  coroa  e 
das  ordens  militares.  Elias  promeíTas  comprehendiam  os 
próprios  conjurados,  que  não  foíTem  os  cabeças  principaes 
da  confpiração.  Eítimulava-fe  com  attradivos  femelhantes  o 
zelo  das  juítiças  que  prendeffcm  os  criminofos.  Eftatuia-fe 
que  a  delação,  em  calo  tão  execrando,  ficava  immune  de 
toda  a  infâmia  e  villania.  E  — taes  fão  as  blafphemias  contra 
a  moral  nos  governos  de  fombrio  defpotifmo —  proclamava 
o  terrível  legiflador  que  nem  os  vínculos  mais  íagrados  e  os 
mais  conjunétos  parentefcos,  difpenfavam  a  ninguém  de  ac- 
cuíãr  leu  próprio  pae  ou  de  entregar  á  fanha  dos  algozes  os 
filhos  mais  dilcílos.  E  dava  o  rei  como  fundamento  d'efl:a 
excepção  aos  deveres  da  natureza,  que  acima  dos  pães  eftava 
o  rei,  pac  commum  e  univerfal  de  todo  o  povo.  Creava-fe 


184 

juiz  da  inconfidência  ao  doutor  Pedro  Gonçalves  Cordeiro 
Pereira,  defembargador  do  paço,  chanceller  mór,  fervindo 
então  interinamente  o  fupremo  officio  judicial  de  regedor 
das  juítiças.  Apparecia  pela  primeira  vez  o  juizo  da  inconfi- 
dência, tremendo  tribunal  inítituido  para  julgar  com  forma 
extraordinária  de  proceffo  os  crimes  de  lefa-majeftade;  trifl:e 
e  laftimofa  renovação  d'aquellas  nefaftas  judicaturas,  que 
em  Inglaterra  fe  haviam  denominado  Court  of  High  Com- 
nii[fion,  e  Star  Chamber  ou  camará  eftrellada,  e  fe  tinham 
antecipado,  com  maior  reprovação  e  egual  crueza,  ao  tribu- 
nal revolucionário  durante  a  Convenção. 

Antes,  porém,  que  fe  houveíTe  publicado  o  decreto,  em 
que  o  rei  annunciava  o  regicídio,  haviam-fe  tomado  as  pro- 
videncias para  colher  ás  mãos  os  que  appareciam  indiciados 
como  réus.  Apenas  D.  Jofé  pôde  erguer-fe  do  leito,  onde,  fe- 
gundo  as  confiíTões  do  feu  miniftro,  jazera  por  efpaço  de  três 
mezes,  «fempre  com  o  perigo  de  morte  diante  dos  olhos'», 
mandou  lavrar  e  aíTignar  os  decretos,  pelos  quaes  fe  com- 
mettia  a  nove  defembargadores  o  encargo  de  prender  os  cri- 
minofos,  e  fez  expedir  a  vários  officiaes  a  ordem  de  preítar 
o  auxilio  da  força  militar  para  que  fe  executalTem  as  prifões. 
Já  antes  o  miniftro  havia  concentrado  na  capital  algumas 
tropas,  alem  da  guarnição  habitual. 

No  mefmo  dia,  em  que  faia  á  luz  por  editaes  fixados  nos 
logares  públicos  o  decreto  de  9  de  dezembro,  uma  ordem 
fuperior  prohibia  que  ninguém  fe  aufentaífe  de  Lifboa,  fem 
que  primeiro  fe  qualificaífe  perante  um  defembargador. 
Adoptavam -fe  as  providencias  mais  eftreitas  para  que  peíToa 
alguma  faíífe  da  cidade  á  excepção  dos  que  tiveíTem  permis- 
fão  d'aquelle  magiftrado. 

Poucos  dias  depois,  a  1 6  de  dezembro,  o  juiz  do  povo  e 


«is 


Appenfo  4.°  da  contrariedade  ao  libello,  ^  48. 


i85 

cafa  dos  vinte  e  quatro,  como  delegados  da  gente  popular, 
dirigiam  a  el-rei  uma  reprefentação,  em  que,  encarecendo 
como  vaíTallos  fideliflimos  a  enormidade  e  facrilegio  »de  uma 
offenla  feita,  diziam  elles,  ao  ungido  do  Senhor,  lhe  agrade- 
ciam a  honra,  com  que  tratara  os  mandatários  da  cidade  e 
acolhera  os  feus  finceros  votos,  fignificativos  da  fua  devoção 
e  fidelidade.  Pediam  ao  foberano  que,  fufpendendo  os  effei- 
tos  da  fua  clemência,  mandaíTe  pôr  a  tormento  os  indicia- 
dos, e  depois  de  convencidos  e  julgados  como  réus,  foíTem 
declarados  peregrinos,  extrangeiros,  para  que  nunca  mais 
fe  dilTeíTe  portuguez,  quem  não  fofle  leal  ao  feu  natural  le- 
nhor  e  rei » . 

A  taes  extremos  de  infana  c  abjeda  fervidão  inclinam 
fatalmente  as  trevas  adenfadas  n'um  povo  inconfciente  da 
liberdade,  pelas  funeftas  influencias  de  um  ciofo  e  diuturno 
defpotifmo. 

A  1 3  de  dezembro  os  defembargadores  e  magiífrados 
procediam  ao  arrefto  dos  culpados.  Logo  Sebaftião  de  Carva- 
lho fez  expedir  aos  prelados  diocefanos  e  aos  generaes  gover- 
nadores das  armas  na  corte  e  nas  províncias  as  cartas  regias 
em  que  le  noticiava  o  attentado.  Era  grande  nos  cfpiritos 
a  agitação.  A  cidade  de  Lifboa,  depois  do  terremoto,  não 
fentira  ainda  tão  vehemente  commoção.  Durante  os  mezes 
que  decorreram  defde  os  primeiros  dias  de  feptembro  até 
princípios  de  janeiro,  o  miniftro  de  D.  Jofé  bufcára  defenre- 
dar  em  fegredo  impenetrável  os  fios  da  trama  fanguinofa 
que  fe  eftivera  urdindo  contra  a  exiftencia  do  foberano.  De- 
pois de  publicado  o  regicídio,  o  proceffo  correu  breve,  rapi- 
diffimo.  A  4  de  janeiro  de  lyScj  publicava-fe  o  decreto,  que 
definitivamente  inftituia  o  tribunal,  que  haveria  de  julgar  os 
regicidas.  A  lei  criminal  d'aquelle  tempo  cifrava-fe  na  orde- 
nação filippina  do  livro  quinto,  código  fevero,  crudeliífimo, 
porém  não  melhor  equilibrado  entre  a  mifericordia  e  a  jus- 


(Is 


i8õ 

tiça,  a  humanidade  e  o  rigor  do  que  a  legiflação  penal  con- 
temporânea das  nações  mais  cultas  e  illuminadas,  fem  ex- 
ceptuar a  própria  livre  Gran-Bretanha,  onde  ainda  no  pre- 
fente  tranfparece  no  direito  penal  a  cada  paíTo  a  barbárie  e 
a  crueza  da  edade  media.  A  lei  confignava  o  principio  de 
que  o  rei  era  o  único  juiz  para  julgar  os  que  de  palavra  o 
offendeíTem,  e  podia  exercitar  a  fua  judicatura  criminal  ou 
por  li  melmo  ou  delegando-a  nas  peffoas,  a  quem  efpecial- 
mente  commetteíTe  o  exame  e  condemnação'.  Era  omiíTa 
acerca  de  qual  era  o  tribunal,  que  devia  fentenciar  os  réus 
de  um  delifto  mil  vezes  mais  atroz  do  que  a  maledicência 
ou  a  calumnia.  Do  filencio  da  lei  parecia  deduzir-fe  que  o 
rei  era  egualmente  o  juiz  excluíivo  no  crime,  que  então  fe 
julgava  nefandifllmo,  no  que  fe  capitulava  de  mais  execran- 
do parricidio.  O  foberano,  fem  tranfccnder  os  limites  da  or- 
denação, ainda  que  não  fe  houvera  conftituido  fupremo  e 
irrefponfavel  diftador,  podia  pois  nomear  a  feu  talante  os 
magiftrados,  que  haviam  de  conhecer  do  attentado.  Ponde- 
rava-fe  que  em  todos  os  crimes  de  lefa-majeftade,  ainda 
quando  os  réus,  como  no  cafo  do  duque  de  Vizeu  e  do  con- 
dcftavel  feu  irmão,  eram  peffoas  mui  conjundas  ao  fangue 
régio,  os  juizes  não  excediam  nunca  a  três  ou  quatro-. 

Contra  eftes  precedentes  advogavam  porém  as  correcções 
feitas  á  lei  ou  á  tradição  pelos  novos  coftumes  fociaes.  De- 
cretou-fe  que  o  tribunal  foffe  comporto  de  togados  numero- 
fos  e  que  ao  julgamento  preíidiffem,  mas  fem  voto,  os  fecre- 
tarios  de  eftado,  que  então  eram  Sebaftião  de  Carvalho,  D. 
Luiz  da  Cunha  eThomé  Joaquim  da  Cofia  Corte  Real.  Eram 
juizes  os  defembargadores  do  paço  Pedro  Gonçalves  Cor- 
deiro Pereira,  já  nomeado  juiz  da  inconfidência,  o  qual  fervi- 


•   Ordenação,  liv.  v,  tit.  7,  Dos  que  di^em  mal  de  el-rei. 
2  Appenjo  4.°  da  contrariedade  ao  libello,  %  í\- 


'8/ 

ria  de  relator  do  proceíTo,  e  João  Pacheco  Pereira  de  Vafcon- 
cellos  que  havia  fido  prefidente  da  alçada  para  julgar  os  réus 
do  tumulto  portuenfe;  o  doutor  João  Marques  Bacalhau,  do 
confelho  da  fazenda;  Manuel  Ferreira  de  Lima,  deputado 
da  mefa  da  confciencia  e  ordens;  o  doutor  Ignacio  Ferreira 
Souto,  defembargador  dos  aggravos  da  cafa  da  fupplicação; 
o  doutor  João  Ignacio  Pereira  Dantas,  corregedor  do  crime 
da  corte  e  cafa;  o  doutor  António  Alvares  da  Cunha  e  Araú- 
jo, corregedor  do  crime  da  corte ;  o  doutor  Jofé  da  Coita  Ri- 
beiro, procurador  da  coroa,  o  qual  haveria  de  exercer  as 
funcções  de  fifcal  ou  promotor;  e  o  doutor  Jofé  António  de 
Oliveira  Machado,  defembargador  da  cafa  da  fupplicação, 
nomeado  efcrivão  do  proceífo. 

O  decreto,  que  inftituiu  o  tribunal,  foi  feguido  por  outro 
da  mefma  data  (4  de  janeiro)  pelo  c;[ual  foi  nomeado  pela 
coroa  defenfor  único  de  todos  os  réus  o  defembargador  Eu- 
febio  Tavares  de  Siqueira,  tendo  por  commiífão  allegar  de 
fado  e  de  direito  quanto  foífe  conducente  á  defeza  dos  cri- 
minofos,  para  que,  dizia  o  decreto:  «a  juítiça  e  a  mifericordia 
fe  confervem  fempre  no  jufto  equilíbrio,  que  faz  fempre  o 
impreterível  objedo  das  minhas  reaes  difpoíições » . 

Contemplado  á  luz  dos  modernos  princípios  do  direito 
criminal,  depois  que  a  liberdade  e  a  civilifação  adoçaram  os 
coítumes  e  as  leis,  feria  altamente  reprehenfivel  a  conflituição 
do  tribunal,  e  a  parcimonia  da  defeza.  Hoje  os  tribunaes 
preexiftem  ao  crime  ou  ao  delido.  Mas  n'aquclle  feculo,  em 
cafos  extraordinários,  o  juiz  era  defignado  pelo  rei  depois 
de  perpetrado  o  malefício.  Era  dura,  cruel,  inconfiftente  com 
a  verdadeira  jufliça  e  liberdade  uma  femelhante  ordem  judi- 
ciaria. Mas  a  liberdade  não  exiftia,  antes  cm  logar  d'ella 
predominava  fem  rival  o  mais  defaflfogado  abfolutifmo.  Hoje, 
ainda  quando  a  lei  é  fevera  com  os  ados  criminaes,  e  deixa 
perceber  que  tem  de  humana  o  que  a  juftiça  pôde  conceder 


tis 


188 

e  a  clemência  advogar,  vê-fe  que  é  feita  por  homens  contra 
homens,  não  por  inclementes  domadores  contra  feras  racio- 
naes.  Então  era  o  contrario  cabalmente.  O  legillador  mais 
confiava  no  terror  e  na  crueza  do  que  na  pena  accommoda- 
da  á  graveza  do  delifto.  Hoje  a  lei  penal  tem  por  fim  a  ex- 
piação e  a  emenda.  Então  era  o  terrível  inftrumento  do  ódio 
e  da  vindiíta  focial.  Hoje  a  lei  condemna  e  chora.  Então  es- 
pedaçava  o  criminofo,  e  rugia  como  um  tigre,  encravadas  as 
garras  fundamente  nas  entranhas  da  proa  defgraçada. 

Quando  um  monarcha  abfoluto  ou  parlamentar  eftreme- 
ce  no  feu  throno,  julgando  que  lh'o  querem  com  a  exifl:encia 
derribar,  não  ha  expediente  que  lhe  pareça  cru  ou  defho- 
nefto.  Tanto  em  noffos  tempos  fão  raros  os  foberanos,  que 
refpondam  com  a  generofidade  e  a  clemência  ao  punhal  ou 
ao  trabuco  do  homicida.  Não  queiramos  pois  retrotrahir  ás 
epochas  do  paliado  abfolutifmo  o  que  ainda  hoje  é  quafi 
defufado  nas  mais  illuminadas  e  benevolentes  monarchias. 

Defde  que  o  tribunal  fe  conftituiu,  foram  contínuas  as 
feíTões.  Trabalhavam  os  juizes  noite  e  dia  para  apurar  as  cir- 
cumftancias  do  attentado,  coUigir  as  provas  criminaes,  difcer- 
nir  quaes  foram  os  cabeças  e  os  cúmplices  da  tremenda  con- 
juração, quaes  os  fautores  e  os  agentes  do  crime  premeditado. 

A  I  2  de  janeiro  proferia  o  tribunal  fua  fentença,  em  que 
foram  unanimes  os  julgadores.  Firmavam-n'a  os  três  fecre- 
tarios  de  eftado,  que  haviam  prefidido  ao  tribunal,  e  os  des- 
embargadores Cordeiro,  Pacheco,  Bacalhau,  Lima,  Souto  e 
Oliveira  Machado,  fendo  preiente  o  procurador  da  coroa, 
Jofé  da  Cofia  Ribeiro.  No  dia  immediato  o  mefmo  tribu- 
nal, deferindo  á  fupplica  do  juiz  do  povo  e  cafa  dos  vinte  e 
quatro  da  cidade  de  Lifboa,  havia  por  defnaturalifados  os 
réus,  que  na  vefpera  tinham  fido  condemnados,  e  os  declara- 
va peregrinos,  vagabundos,  não  pertencentes  a  nenhuma  fo- 
ciedade  civil,  c  privados  da  naturalidade  e  denominação  de 


e|9 


189 

portuguezes.  As  peíToas,  em  quem  recaíam  as  duas  tremen- 
das condemnaçóes,  eram  Joíe  Mafcarenhas,  que  havia  lido 
duque  de  Aveiro;  Francifco  de  Aflis,  outr'ora  marquez  de 
Távora;  Leonor  Thomazia,  outr'ora  marqueza  do  mefmo  ti- 
tulo; Luiz  Bernardo,  primogénito  dos  Tavoras,  que  também 
fora  marquez ;  feu  irmão  Jole  Maria,  que  havia  fido  ajudante 
de  ordens  de  leu  pae;  Jeronymo  de  Athaide,  outr'ora  conde 
de  Atouguia;  António  Alvares  Ferreira,  guarda  roupa  de 
Jofé  Malcarenhas ;  Jole  Polycarpo  de  Azevedo,  cunhado  e 
focio  do  antecedente;  Manuel  Alvares  Ferreira,  familiar  do 
antigo  duque;  João  Miguel,  leu  fâmulo;  Braz  Jole  Romeiro, 
cabo  de  efquadra  da  companhia  de  Luiz  Bernardo. 

O  que  fora  julgado  cabeça  principal  da  conjuração,  Jofé 
Mafcarenhas,  foi  fentenciado  a  que,  fendo  levado  a  um  alto 
cadafalfo  erigido  na  praça  de  Belem,  foífe  rompido  e  rodado 
vivo,  quebrando-lhe  o  algoz  os  oífos  dos  braços.  Após  efla 
cruel  execução,  feria  queimado  vivo  juntamente  com  o  patí- 
bulo, fendo  as  cinzas  lançadas  ao  mar.  Condemnava-o  a  fen- 
tença  ao  confifco  de  todos  os  feus  bens,  a  que  foífem  derri- 
bados e  picados  os  efcudos  das  luas  armas,  e  arrazados  os 
edifícios  de  fua  habitação,  falgando-fe  o  terreno  em  que  fe 
erguiam. 

Eguaes  penas  applicavam  os  juizes  ao  que  fora  marquez 
de  Távora,  profcrevendo  para  fempre  como  infame  efte  ap- 
pellido  para  que  ninguém  podeífe  jamais  afllm  cognominar- 
fe.  António  Alvares  Ferreira,  que  fegundo  a  fentença,  havia 
fido  um  dos  executores  do  regicídio,  foi  condemnado  a  fer 
queimado  vivo.  Jole  Polycarpo  de  Azevedo,  o  único  d'entre 
todos  os  criminofos  que  podéra  efcapar  ás  perquifições  da 
juftiça  real,  era  fentenciado  a  egual  pena.  E  porque  andava 
então  foragido  ou  homifiado,  o  haviam  os  juizes  por  banido, 
e  promettiam  á  peífoa,  que  o  levaífe  ao  juiz  da  inconfidên- 
cia o  premio  de  dez  ou  vinte  mil  cruzados,  fegundo  foífe 


4eii    ■ 
_ -ò^ 


iqo 


apprehendido  em  terras  portuguezas  ou  extrangeiras.  Os  dois 
irmãos  Luiz  Bernardo  e  Jofé  Maria  de  Távora,  Jeronymo 
de  Athaide,  Braz  Jofé  Romeiro,  João  Miguel  e  Manuel  Al- 
vares Ferreira,  tiveram  por  caftigo  o  ferem  eftrangulados, 
romperem-fe-lhes  os  oífos  dos  braços  e  das  pernas,  e  ferem 
depois  rodados  os  feus  corpos  e  lançadas  ao  mar  as  cinzas, 
a  que  o  fogo  os  reduziífe.  A  marqueza  de  Távora,  fegundo 
fe  lê  na  fentença,  por  algumas  juftas  confiderações,  que  fe- 
riam provavelmente  as  do  leu  fexo,  contentou-fe  a  terrível 
juíliça  monarchica  em  que  foífe  publicamente  decapitada,  e 
depois  de  queimado  o  leu  corpo,  fe  arrojaífem  ao  mar  as 
cinzas  execradas. 

Alem  d'eí1:as  cruéis  expiações  eram  a  todos  os  réus  con- 
fifcados  os  feus  bens,  derribados  e  picados  os  braloes  dos 
que  eram  nobres,  arrafadas  a  todos  as  próprias  habitações, 
e  decretada  a  infâmia  perpetua  e  indelével  para  a  fua  des- 
cendência e  geração. 

A  cruentiíTima  fentença  foi  cumprida  no  dia  1 3  de  ja- 
neiro, na  praça  de  Belém.  As  providencias  militares  mais  ri- 
gorofas  fe  haviam  adoptado  para  a  fegurança  do  fupplicio. 
Dois  regimentos  de  infanteria,  um  da  guarnição  de  Lifboa, 
o  outro  de  Campo  Maior,  logo  ao  amanhecer  eítavam  porta- 
dos no  logar  da  execução.  Dois  regimentos  de  cavallaria,  que 
eram  o  do  cães,  e  os  dragões  de  Aveiro,  formados  em  ba- 
talha aos  lados  d'aquelle  recinto,  deítacavam  piquetes,  que 
nas  boccas  das  ruas  impediam  o  tranfito  á  multidão.  Fora 
o  marquez  de  Marialva,  parente  e  familiar  dos  padecentes, 
quem  ordenara  todas  eífas  militares  difpofições,  como  go- 
vernador das  armas  da  corte  e  província  da  Extremadura. 
Todos  os  corpos  da  guarnição  eftavam  de  prevenção  nos 
feus  quartéis.  As  rondas  dos  bairros  em  Lifboa  vagavam 
pela  cidade,  vigiando  e  inquirindo  as  gentes,  que  paíTavam, 
e  obftando  a  que  ninguém  fe  encaminhaífe  para  Belém. 


eis 


'9' 

Principiou  a  execução  dos  criminolbs  pela  marqueza  de 
Távora  antes  das  fete  horas  da  manhã,  e  terminou  o  laíti- 
mofo  e  atrociíTimo  efpccftaculo  pelo  íupplicio  de  António  Al- 
vares Ferreira,  pouco  antes  das  quatro  da  tarde.  Nove  horas 
longas,  pefadas,  dolorolilTimas  para  os  próprios,  que  affiftiam 
por  officio  áquella  fcena  de  fangue  e  de  tormento,  durou  a 
tremenda  expiação.  Parece  que  os  homens,  que  em  tempos 
felizmente  já  paíTados,  inventaram  cm  códigos  nefaftos  as 
mais  atrozes  leis  penaes,  fe  eftiveram  deliciando  a  reprodu- 
zir na  terra  em  funeftas  miniaturas  as  pavorolas  punições 
refervadas  aos  mais  impenitentes  peccadores  pelas  poten- 
cias de  Aftaroth  e  Belzebut.  Somente  a  phantafia  dos  myfti- 
cos  e  dos  afceticos  podia  de  longe  e  confufamente  nas  luas 
mais  claras  illuminações  raftrear  as  horrendas  penalidades, 
que  o  inferno  apparelhava  aos  feus  precitos.  Pois  figure  a 
barbárie  dos  legilladores  e  a  feveridade  dos  juizes  nas  fuás 
atrozes  execuções  uma  imagem  pallida  ainda,  mas  vifivel 
dos  tormentos  infernaes. 

Dividiram-fe  n'aquelle  tempo  as  opiniões  e  os  juizos 
acerca  da  grande  conjuração.  Uns  acreditaram  cegamente, 
como  fe  fora  texto  do  Evangelho,  as  palavras  da  fentença. 
Outros  perfiífiram  em  negar  com  a  maior  tenacidade  a  exis- 
tência do  attentado.  Uns  eram  os  amigos  e  fequazes  do  go- 
verno e  também  em  grande  parte  a  voz  publica  e  popu- 
lar, e  alguns  dos  mais  cruéis  inimigos  de  Carvalho.  Outros 
eram  os  adverfarios  façanholbs  do  miniftro,  os  afíins  e  par- 
tidários da  nobreza  e  dos  jefuitas  nas  fuás  crebras  e  calum- 
niofas  imputações,  ainda  mais  ferozes  e  mais  cegos  de  ira 
e  de  vingança  do  que  o  próprio  valido,  a  quem  reprehen- 
diam  a  fevicia  e  immanidade.  Ha,  porém,  um  ponto  funda- 
mental, em  que  todos  fem  difcrepancia  eítão  concordes.  É 
que  o  rei  D.  Jofé  foi  realmente  ferido  gravemente,  e  por 
três  mezes  fe  confcrvou  reclufo  e  incommunica^•el.  Dos  mais 


-^ .-A^ 

e|í  ti» 


(Is 


192 

acerbos  accufadores  do  miniftro  por  elles  odiado  ferozmen- 
te, uns  dando  por  innegavel  e  provada  a  tentativa  de  homi- 
cidio,  attribuem-n'a  claramente  aos  Tavoras  e  ao  Aveiro". 
Outros,  aíTeverando  que  realmente  fe  commettêra  o  crime 
contra  o  rei,  phantafiaram  explicações  mais  ou  menos  efpe- 
ciofas  e  de  todo  o  ponto  inverofimeis,  bufcando  comprovar 
a  innocencia  das  perfonagens,  que  foram  executadas  como 
réus  ^ 

A  theoria  inventada  pelos  mais  devotados  apologiftas 
dos  fidalgos  e  mais  furiofos  inimigos  de  Carvalho  cifra-fe 
em  que  os  tiros  não  eram  dirigidos  ao  monarcha,  íenão  a 
Pedro  Teixeira,  feu  intimo  confidente  e  companheiro  nas 
aventuras  amorofas  do  régio  galanteador.  Uns  querem  n'efl:e 
cafo  attribuir  a  aggreíTão  á  vingança  do  Aveiro,  a  quem  o 
fâmulo  predileéto  e  arrogante  de  D.  Jofé  havia  no  paço  diri- 
gido palavras  infolentes,  intoleráveis  á  foberba  proverbial  do 
duque  mordomo  mór^  Outros  dão  a  entender  que  á  ira  dos 
Tavoras  e  do  Aveiro  contra  o  rei  e  feu  domeftico  valido,  não 
era  extranho  o  defgofto,  que  lhes  caufavam  os  amores  do 
foberano  com  a  efpofa  formofa  e  juvenil  do  marquez  Luiz 
Bernardol  Mas  o  tremendo  libellifta,  que  n'um  manufcripto 
com  centenares  de  paginas  exhauriu  contra  Carvalho  quanto 
ha  de  mais  injuriofo  e  infamante,  não  poude  forrar-fe  a  con- 


'  Vida  de  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A.,  volume  manufcripto 
da  Academia  das  Sciencias  de  Lifboa,  ZZ  104  a  106. 

2  «O  amor  da  verdade  nos  obriga  a  confeffar  que  no  accidente  de  el-rei  fi- 
cou gravemente  ferido. — Se  não  houveffe  outras  provas  inconteftaveis  de  que 
fua  majeítade  foi  ferido  n'aquella  noite,  lendo-fe  a  fentença  .  . .  não  haveria 
homem  de  juizo  folido  e  reflexivo,  que  fe  não  fentifíe  obrigado  a  crer  que  tudo 
foi  uma  fabula.»  Mentira  manifefta  ou  analyje  da  fentença  proferida  em  12  de 
janeiro  de  17 5 g.  —  Vita  di  Seb.  Giufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  1781,  tom.  u, 
pag.  3  e  fegg. 

-'  Vita  di  Seb.  Giufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  u,  pag.  6  e  7  — «Tei- 
mam (alguns)  que  o  tiro  deu  em  el-rci  por  erro».  Mentira  manifejla. 

4   Vita  di  Seb.  Giufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  11,  pag.  9. 


■  93 

feflar  que  era  duvidofo  fe  os  tiros  foram  deliberadamente 
dirigidos  a  D.  Jofé,  ou  ao  feu  companheiro  na  viatura".  Ahi 
temos,  pois,  o  mais  ardente  defenfor  dos  Tavoras  e  do  Aveiro 
dando  por  fuperior  á  menor  conteftação  o  attentado,  e  pondo 
efcaíTa  fé  em  que  os  tiros  foíTem  dirigidos  contra  o  fâmulo 
Teixeira.  Chega  a  tocar  as  raias  do  abfurdo  que  para  ma- 
tar a  Pedro  Teixeira  os  que  ardeíTem  em  furor  de  vingar 
n'elle  uma  affronta  recebida,  elegeíTem  juílamente  a  occafião, 
em  que  paffava  n'uma  fege  ao  lado  do  feu  rei.  Não  eram 
n'aquelle  tempo  muito  raros  os  homicídios  perpetrados  fem 
nenhuma  efcrupulofa  precaução,  á  própria  luz  do  meio  dia, 
em  lítio  povoado.  Quem  podia  impedir  pois  que  tão  altas  e 
poderofas  perfonagens,  quaes  eram  os  Tavoras  e  o  Aveiro, 
confummaíTem  a  vindida  fem  que,  por  um  engano  inevitá- 
vel, á  conta  de  lavar  no  fangue  do  plebeu  a  macula  da  hon- 
ra, fe  pozeífem  a  rifco  de  oífender  a  D.  Jofé!' 

Houve  pois  uma  premeditada  tentativa  de  tirar  a  vida 
ao  rei.  Partindo  d'efte  fado  fundamental,  os  apologiftas  dos 
réus  fentenciados  idearam  nova  traça  para  moítrar  inculpá- 
vel, benemérita  a  memoria  dos  feus  miferos  clientes.  O  mi- 
niftro,  fegundo  elles,  ardendo  em  cruel  defejo  de  proítrar 
de  um  golpe  decifivo  aquelles,  contra  quem  era  feroz  e 
entranhavel  o  feu  ódio,  aproveitara  a  conjuncção,  que  lhe 
deparava  a  fua  fortuna,  e  tecera  e  urdira  uma  phantafiada 
conjuração,  em  que  levaífe  as  vidimas  imbelles  até  ao  ca- 
dafalfo  de  Belém ^ 


1  ir  A  verdade  é  que  el-rei  foi  ferido  n'aquella  infaufta  noite;  fe  quem  o  fe- 
riu difparou  determinadamente  contra  elle  ou  contra  outro,  c  mui  durido/o." 
Mentira  manifefta. 

2  Vita  di  Seb.  Giufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  ii,  pag.  i8.  —  Mentira 
manifejla,  pafTim.  Elle  enorme  volume  é  efpecialmente  deftinado  a  demon- 
ílrar  que  toda  a  conjuração  dos  fidalgos  fomente  exiftiu  na  pjjantafia  de  Car- 
valho, e  lhe  foi  infpirada  pelo  feu  ódio  á  nobreza  e  aos  jefuitas. 


eis 


'94 

Não  padece  a  menor  duvida  que  a  alta  nobreza  era  na 
fua  maior  parte  inconciliável  antagonifta  do  miniftro,  já 
n'aquella  fazão  omnipotente,  e  que  na  guerra  íurda,  mas 
contínua  dos  privilegiados  eminentes  contra  o  homem,  que 
não  era  alliado  ás  fuás  eftirpes,  tinham  o  primeiro  logar  os 
Tavoras  e  o  duque  de  Aveiro.  Todos  os  teítemunhos  con- 
temporâneos, ou  fejam  de  parciaes  ou  inimigos  de  Carva- 
lho, lao  conformes  em  atteftar  as  queixas  e  os  aggravos, 
que  as  duas  poderofas  famílias,  as  primeiras  na  hierarchia  e 
na  diftincção  nobiliária,  não  podiam  efconder,  nem  recatar 
contra  o  governo.  Mas  o  governo  era,  como  em  todas  as 
monarchias  abfolutas,  não  fomente  o  miniftro  dominante, 
fenão  também  e  principalmente  o  dynafta,  que  efpontanea- 
mente  defveftia  a  regia  purpura  e  a  lançava  aos  hombros 
do  privado,  conferindo-lhe  e  roborando-lhe  em  cada  dia 
a  plenitude  do  poder.  Aggravavam-fe  pois  os  defcontentes 
não  fó  do  miniftro,  que  os  afFrontava  e  impedia  de  alcançar 
os  feus  defpachos,  fe  não  do  rei,  que  mais  fe  confiava  no 
valido,  de  quafi  obfcuro  nafcimento,  do  que  nos  mais  illus- 
tres  próceres,  que  tinham  com  o  monarcha  o  mefmo  fan- 
gue  e  geração. 

O  duque  de  Aveiro,  chefe  da  mais  antiga  e  opulenta  cafa 
ducal,  das  três  que  havia  em  Portugal  n'aquelle  tempo,  fo- 
licitára  com  empenhos  e  inftancias  perante  o  rei  que  lhe 
foífem  conferidas  as  rendofas  commendas,  que  feus  maio- 
res tinham  desfrudado. 

Empenhava-fe  egualmente,  em  que  o  rei  lhe  concedeífe 
a  permiífão  para  contradar  o  matrimonio  de  feu  filho,  o 
marquez  de  Gouvêa,  com  a  irmã  do  duque  de  Cadaval.  Es- 
perava por  efte  meio,  que  as  duas  cafas  vieífem  a  confun- 
dir-fe  n'uma  única  familia,  mais  poderofa  e  opulenta  que 
outra  alguma  em  Portugal.  Não  lograra  bom  defpacho  ne- 
nhuma d'eftas  ambiciofas  pretenções. 


eis 


■95 

Os  Tavoras,  orgulhofos  com  a  Ília  antiga  e  nohrc  origem, 
com  as  honras  e  diftincções  accumuladas  por  muitos  feculos 
na  fua  eílirpe  defde  tempos  quafi  immemoriaes,  com  os 
fenhorios  encorporados  na  fua  cafa,  com  as  famofas  embai- 
xadas e  os  officios  eminentes,  que  os  feus  avoengos  tinham 
exercitado,  não  podiam  tolerar  com  bons  olhos,  como  arbi- 
tro fupremo,  um  homem,  que  a  refpeito  do  padrão,  por 
onde  aquilatavam  a  nobreza,  era  pouco  mais  c]ue  de  origem 
plebeia  e  berço  obfcuro'. 

Attribuia  o  Aveiro  o  mau  defpacho  das  fuás  pretenções 
á  malevolencia  do  miniftro,  e  não  menos  á  fraqueza  do  fo- 
berano.  D'ahi  o  ódio  ao  fecretario  de  citado,  que  lhe  ata- 
lhava as  azas  para  voos  tão  fubidos.  D'ahi  o  mefclar  na 
cólera  contra  o  valido  a  ira  contra  o  rei.  Em  noífos  tempos 
eftamos  vendo  a  cada  paífo  nas  monarchias  parlamentares 
os  que  fe  dizem  mais  acrifolados  monarchiftas  paífarem 
facilmente  da  oppofição  contra  os  miniftros  á  guerra  decla- 
rada contra  o  rei,  que  os  mantém  e  favorece,  como  fe  com 
elles  o  vinculara  o  intereífe  commum  ou  o  affefto  peífoal. 
Que  feria  pois  n'aquelle  feculo,  em  que  não  havia,  longe 
do  paço,  nenhum  meio,  que  ferviífe  á  oppugnação  de  um 
governo  odiado  feramente?  Em  que  as  leis  cerravam  o  cami- 
nho á  conquifta  do  poder,  deixando  aberto  unicamente  o  ata- 
lho eftreito,  agro  e  efcabrofiíTimo  da  formal  conjuração;  fen- 
da perigofa,  que  levava  n'aquelle  tempo  ou  ao  paço  ou  ao 
patíbulo,  á  privança  ou  ao  algoz?  E  mais  ainda  fe  o  minis- 
tro em  vez  de  terçar  em  favor  dos  defpachos,  que  os  des- 
contentes lhe  pediam,  os  encontrava  e  diífuadia  no  animo 
do  rei? 


■  «Sacrificar  a  fua  ambição  (pela  de  Carvalho)  aquelles  que  lembrados  da 
fua  pouco  mais  que  mechanica  extracção,  não  queriam  dobrar  o  joelho  á  fua  for- 
tuna.» Mentira  mani/ejla. 


c|9 


19b 

Os  Tavoras,  de  feito,  afpiravam  com  empenho  a  que 
a  familia  afcendeíTe  ao  faftigio  da  nobreza  titulada,  alcan- 
çando a  fufpirada  coroa  de  cinco  florões,  a  infignia  quafi 
majeftatica  dos  duques".  O  marquez  de  Távora,  Francifco 
de  AíTis,  havia  governado  a  índia  como  vicc-rei,  e  tinha  aU 
preftado  alguns  ferviços,  que  não  equivaliam  certamente  aos 
do  Gama,  do  Pacheco,  do  Albuquerque.  Chegara  a  Lifboa 
de  voha  do  Oriente,  pouco  tempo  antes  do  terremoto.  Defde 
então  principiaram  as  fuás  inftancias  e  os  feus  defgoílos  pelo 
ducado,  que  o  rei  e  o  miniftro  lhe  fruftravam.  N'uma  car- 
ta efcripta  por  aquelles  tempos  fentidamente  fe  queixava  de 
que  o  monarcha  lhe  não  deíTe  moftras  evidentes  de  reconhe- 
cer e  galardoar  os  feus  merecimentos  e  façanhas.  A  ambição 
é  nos  homens  exalçados  ás  mais  fubidas  dignidades  uma  fon- 
te inexhaurivel,  uma  febre,  que  fe  accende  mais  e  mais  ao 
compaffo  das  novas  acquifições.  Mais  vezes  faz  um  não,  ain- 
da que  edulcorado  com  graciofa  cortezia,  um  irreconciliável 
inimigo,  do  que  um  Jbn  benévolo  e  dadivofo  um  amigo  fiel 
e  agradecido.  E  o  não,  com  que  o  rei  refpondia  ás  inftancias 
do  feu  mordomo  mór  e  do  antigo  vice-rei,  negava-lhes  o 
defpacho  ás  petições,  e  cerrava-lhes  o  adyto  da  valia  e  po- 
der, que  ambicionavam.  O  duque  de  Aveiro  era  a  primeira 
e  mais  alta  perfonagem  da  nobreza.  Depois  do  monarcha  e 
da  lua  familia  ninguém  havia  com  quem  podeíle  entrar  em 
parallclo.  No  reinado  antecedente  tivera  o  fummo  poder  na 
fua  familia,  quando  feu  tio  Fr.  Gafpar  da  Encarnação  gover- 
nara como  privado  e  minirtro  omnipotente  o  rei  e  a  nação. 
Via-fe  agora  defapoffado  da  minima  parcella  de  influencia, 
em  vez  de  governar  homens,  apenas  reduzido  á  honra  ines- 


'  Eítas  ambições  do  Aveiro  e  dos  Tavoras  fão  atteíladas  concordemente 
nos  efcriptos  dos  inimigos  de  Carvalho  e  panegyriílas  dos  réus  fentenciados. 
Veja  o  manufcripto  intitulado  Mentira  manifejhi.  —  Vitci  di  Seb.  Giitfeppe  di 
Carvalho  e  Mello,  tom.  11,  pag.  i5. 


-• «hJ»^ 

'97 

timavel,  mas  efteril,  de  reger  nominalmente  a  mordomia. 
Não  era  fácil  defabraçar-fc  das  fuás  enraizadas  ambições.  Os 
feus  próprios  apologilfas  deixaram  memorado  em  efcriptos 
contemporâneos  que  elle  muitas  vezes  fe  queixava  de  que 
lhe  fraudaffem  as  efperanças  e  os  defpachos.  «Não  era  im- 
provável (diz  um  dos  feus  mais  fogofos  defenfores)  que  elle 
tiveíTe  concebido  uma  ira  implacável  contra  o  miniftro»,  que 
lhe  trocava  em  amargos  defenganos  os  fonhos  de  nova  gran- 
deza e  efplendor  á  lua  familia'.  Da  fanha  contra  o  rniniftro 
predilecto,  com  quem  D.  Jofé  havia  quafi  repartido  o  pró- 
prio folio,  era  fácil,  era  mefmo  confequente  e  neceíTario,  pas- 
far  por  uma  pautada  tranfição  para  o  ódio  contra  el-rei.  O 
miniftro  era,  —  dizia  a  inveja,  o  dcfpeito,  a  ambição  fruítrada 
e  inconíblavel,  —  um  tyranno,  um  monftro,  um  federado. 
Mas  o  rei,  não  fomente  o  mantinha  e  agafalhava  na  privança, 
fenão  que  o  tinha  como  fe  fora  um  maftim  junto  do  throno 
para  o  incitar,  favorecendo-o,  contra  os  que  a  elle  fe  acerca- 
vam fupplicantes  ou  cortezãos.  O  rei  era  pois  quem  appro- 
vava  as  oppreífóes  de  leu  valido  e  confelheiro,  quem  tingia 
com  elle  as  mãos  cruéis  nas  entranhas  das  hoftias  iniiocentes, 
quem  vinha  confirmar  as  execuções,  e  fepultar  nos  cárceres  e 
nos  ergaftulos  as  victimas,  que  lhe  apontava  o  feu  miniftro, 
quem  podendo  n'um  improvifo  volver  de  olhos  afundir  no 
pó  d'onde  faira  o  bandido  agaloado,  lhe  Ibrria  complacente, 
abdicando  n'elle  a  fua  vontade  e  confundindo  com  a  d'elle 
a  fua  fortuna.  Carvalho  apparecia  como  o  Sejano  da  nova 
Roma  defcaida  na  extrema  e  hedionda  abominação.  Não  ha 
Sejanos  fem  Tibcrios.  D.  Jofé  era  pois  agora  refurgido  o 
cruel  e  tremendo  folitario  da  ilha  de  Caprea.  O  fangue  que 
caía  na  cabeça  do  miniftro  refurtia  e  efpadanava  nas  faces 
do  foberano.  Era  o  cafo,  em  que  os  doutores  da  Companhia 


'  Mcníira  niauifcjla. 


198 

e  os  moraliftas  do  probabilifmo  haviam  pronunciado,  le- 
guindo  a  S.  Thomás,  que  era  licito,  neceíTario,  meritório, 
expurgar  a  terra  de  um  monftro  disfarçado  na  purpura  e  no 
diadema. 

Houvera  um  crime  fangrento  contra  o  chefe  da  nação. 
As  feridas  atteftavam  que  havia  certamente  um  parricida, 
como  n'aquelle  tempo  fe  appellidava  com  horror  o  que  punha 
mãos  facrilegas  no  feu  natural  lenhor  e  rei.  Quem  eram  os 
motores  e  os  homicidas?  Aqui  difcordavam  os  pareceres,  fe- 
gundo  os  infpirava  o  ódio  ou  o  favor  ao  miniítro  de  D.  Jofé. 
A  opinião  apontava  os  Tavoras  e  o  Aveiro.  A  facção  dos  ini- 
migos e  defcontentes  do  governo  lançava  á  conta  de  Carva- 
lho a  odiofa  imputação.  Diziam  que,  le  a  alguém  devera 
apontar-le  o  bacamarte,  eíTe  era  o  miniftro,  e  não  o  rei.  Que 
le  tivera  havido  conjuração,  a  vidima  deveria  de  ter  fido  o 
funefto  didador,  que  dominava  fem  limites,  não  o  monarcha 
frouxo  e  indolente,  que  lubfcrevia  como  um  fervo  aos  capri- 
chos do  fevero  potentado.  E  não  penfavam  que  teria  fido 
infruduofo  o  homicidio  de  Carvalho,  porque  o  rei,  que  fe 
tinha  com  elle  aífociado  intimamente  em  um  novo  fyftema 
de  governo,  agora  mais  irritado  contra  a  nobreza  e  os  jefui- 
tas,  em  vez  de  lhes  confiar  o  poder,  que  requeftavam,  os 
havia  de  punir,  como  a  quem  lhe  derribara  a  mais  firme 
columna  do  feu  throno  e  o  feu  mais  fiel  athleta  e  defenfor. 
Diziam  fer  impoíTivel  moralmente  que  o  Aveiro,  a  primeira 
peífoa  da  nobreza,  o  primeiro  dignitário  palatino  pelo  feu 
oíiicio  de  mordomo  mór,  amimado  pelo  rei  com  benevolên- 
cia e  difiincção,  fe  levantalTe  contra  aquclle,  a  quem  dera 
menagem.  Que  os  Tavoras,  ainda  que  laftimados  pela  fua 
recufa  do  ducado,  não  podiam  egualmente  manchar  as  mãos 
no  fangue  régio.  Mas  efqueciam  que  o  duque  de  Bragança, 
D.  Fernando,  o  maior  fenhor  de  Portugal,  e  porventura  de 
tocias  as  Heipanhas,  confpirára  contra  D.  João  II,  porque  o 


ela 


fi|3 


Kit) 


foberano  ciolb  da  fua  autoridade  lhe  cerceara  os  léus  pode- 
res feudaes.  Deflembravam  que  o  duque  de  Vizeu,  irmão  do 
que  foi  depois  rei  D.  Manuel,  le  conjurara  contra  D.  João  II, 
a  quem  era  conjundo  pelo  langue  no  grau  de  primo  com-ir- 
mão.  Não  traziam  á  memoria  que  n'aquella  conjuração  ha- 
viam incorrido  na  tacha  de  traidores  alguns  nobres  cortczãos 
da  mais  clara  fidalguia.  Sepultavam  no  filencio  que  também 
o  eílado  clerical  participara  na  felonia,  porque  um  dos  conju- 
rados era  o  bifpo  de  Évora,  D.  Garcia  de  Menezes.  Olvida- 
vam que  o  marquez  de  Villa  Real,  e  feu  filho,  o  duque  de 
Caminha,  parentes  de  D.  João  IV,  fe  haviam  contra  elle 
conjurado.  Mettiam  no  efcuro  a  confpiração  urdida  contra  o 
primeiro  monarcha  brigantino  pelos  fidalgos  vendidos  a  Cas- 
tella,  entrando  no  leu  numero  como  reprefentando  a  clere- 
zia, o  arcebiípo  de  Braga,  n'aquelle  tempo  a  mais  eminente 
dignidade  na  egreja  lufitana.  Simulavam  defconhecer  que 
outros  nobres,  não  menos  illuftres  pelo  berço,  fe  haviam 
conjurado  contra  D.  Pedro  II,  no  intento  de  repor  no  folio  a 
AíTonfo  VI,  o  monarcha  de  infeliz  e  efcandalofa  recordação. 
E  não  attentavam  em  que  todas  eftas  conjurações  fe  tinham 
dirigido  contra  o  imperante,  deixando  elquecidos  por  impró- 
prios da  fidalga  indignação  os  feus  miniftros  e  confelheiros. 

A  p»aixão  irracional  e  facciola,  tranfcendendo  as  raias  do 
plaufivcl,  chegava  a  imputar  a  Sebaftião  de  Carvalho  o  ter 
porventura  promovido  os  tiros  ao  foberano.  Como  fe  o  ho- 
mem, cuja  fortuna  fe  fundava  na  valia  e  favor  de  D.  Jofé, 
podeíTe,  por  um  exceíTo  de  eftupida  loucura,  romper  o  es- 
teio e  arrimo  a  que  amparar-fe  contra  a  fanha  e  furor  dos 
feus  contrários. 

Se  havia,  pois,  um  crime,  fegundo  o  confeífavam  os  pró- 
prios inimigos  de  Carvalho,  quem  eram  os  feus  agentes  mys- 
teriofos?  O  miniftro?  ImpoíTivel.  Os  vingadores  do  Aveiro  na 
pcífoa  do  terceiro  e  confidente  do  monarcha?  Os  mefmos 


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intereíTados  n'efta  fútil  explicação,  a  negavam  ou  a  faziam 
mais  que  duvidofa.  Os  zeladores  da  honra  e  primor  dos  Ta- 
voras  offendidos  e  infamados  pelo  galanteio  de  D.  Jofé  á 
marqueza,  mulher  de  Luiz  Bernardo?  Os  annaliftas  contem- 
porâneos, panegyriftas  da  familia  condemnada,  o  defcrevem 
devorando  e  foffrcndo  no  filencio  a  injuria  feita  pelo  rei  e  a 
quebra  da  lealdade  conjugal'. 

Não  havia  então  alem  da  nobreza,  dos  jefuitas,  dos  feus 
adherentes  e  feófarios,  ninguém  mais  em  quem  recaiffem 
vehementes  as  fufpeitas.  O  ódio,  que  nutriam  contra  o  mi- 
niflro,  é  um  ponto  que  a  hiftoria,  firmando-fe  em  teftemunhos 
infufpeitos,  pôde  affirmar  lem  nenhuma  hefitação.  O  que 
elles  principalmente  oppugnavam  no  miniftro  era  primeira- 
mente a  fortuna,  que  o  erguera  em  fuás  azas,  e  íbbre  ifto,  o 
novo  fyífema,  que  havia  inaugurado  no  governo.  Contra  elle 
praguejavam,  dizendo  de  viva  voz  nas  luas  converfações  e 
em  fuás  querellas,  o  que  os  feus  parciaes  repetiram  depois 
em  feus  efcriptos,  debuxando  a  Carvalho  como  a  ignominia 
do  governo  e  o  opprobrio  da  humanidade-. 

O  duque  de  Aveiro  era,  fegundo  o  deixaram  retratado 
os  mais  fanhudos  inimigos  de  Carvalho,  um  homem,  que 
pelos  feus  dotes  peífoaes,  excluia  em  vez  de  conciliar  a 
minima  fombra  de  affeição  d'aquelles  que  o  tratavam.  Em- 
bevecido no  feu  illuftre  berço  e  dignidade,  era  foberbo,  des- 
agradável, mais  que  defdenhofo,  defprezador  de  quantos  fe 


1  Vita  di  Seb.  Guifeppe  di  Carvalho  e  Mellu,  tom.  ii,  pag.  9. 

2  «Com  queíli  motivi  di  difguíto  erano  poço  guardmghi  ne'  loro  difcorfi 
tanto  il  duca  quanto  il  marchefe  di  Távora  biafimando  la  condolta  dei  miniílro. 
...  In  tutte  le  corti  i  grandi  foffrono  di  mal'  animo  vederfi  dominare  da'  mi- 
niftri  di  ftirpe  affai  diverfa,  e  fe  affetano  per  loro  dei  rifpetto  davanti  ai  fo- 
vrano,  trovano  poi  la  maniera  di  sfogare  il  loro  rifcntimento  n'elle  private 
converfazioni:  fegnatamente  Talterigia,  e  lagnanze  incaute  dei  duca  erano  ben 
note  a  Carvalho."  Vita  di  Seb.  Giii/eppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  n,  pag.  17 
ei8. 


lhe  acercavam,  embora  foíTem  peíToas  qualificadas  por  officio 
ou  nafcimento'. 

Sobre  quaes  foíTem  as  verdadeiras  intenções  dos  conju- 
rados, na  vacante  do  throno  portuguez,  é  impoíTivel  ou  te- 
merária a  conjeftura.  Não  parece  plaufivel  que  o  Aveiro, 
ainda  que  inluíílado  pelo  feu  régio  parentefco,  fubiíTe  tão 
altos  os  feus  voos,  que  fe  enlevaíTe  na  efperança  de  lubfti- 
tuir  a  D.  Jofé.  É  mais  provável  que  na  traça  da  conjuração 
entraíTe  o  intento  de  acclamar  a  princeza  do  Brazil,  dando- 
Ihe  por  efpofo  e  por  mentor  o  infante  D.  Pedro,  patrono  dos 
jefuitas  e  da  nobreza. 

Apefar,  porém,  das  fombras,  em  que  fe  efcondem  os  pro- 
menores  da  conjuração,  não  obítante  as  ditfufas  declama- 
ções e  narrativas  da  fentença  de  12  de  janeiro,  é  enorme  a 
probabilidade,  que  auctorifa  a  dar  por  exiftente  a  fruftrada 
confpiração. 

O  caííigo  foi  tremendo,  a  juítiça  crueliffima,  implacável 
a  vingança,  funeftiíTima  a  tragedia.  Mas  n'aquelle  tempo  e 
conforme  a  fua  cruenta  legiílação,  a  lucla  entre  os  que  re- 
giam e  os  que  afpiravam  ao  poder,  era  um  combate  feroz 
de  gladiadores.  A  juítiça  perdera  defde  íeculos  o  gladio  e 
a  balança,  e  á  femelhança  das  Menades  antigas,  corria,  fol- 
tos  e  defgrenhados  os  cabellos,  pendcndo-lhe  da  efpalda  a 
pelle  tigrina,  agitando  as  têas  e  as  antorchas,  aturdindo  o 
ar  com  os  feus  rugidos  na  infrene  bacchanal  do  fangue  e  do 
patíbulo. 

Ainda  hoje  não  pôde  ler-fe  a  terrível  defcripção  dos  fup- 
plicios  de  Belém,  fem  que  a  mais  bota  fenfibilidade  não  fol- 
te  involuntária  um  clamor  de  lailimada  compaixão.  Aquel- 
les  verdugos  impaíTiveis,  que  em  nome  da  lei  e  da  juítiça, 


■    Vida  de  Sebajliáo  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  A.,  '^  146.  —  Mentira 
manifejla. 


«|9 


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na  prefença  de  dois  graves  delembargadores,  quebram  com 
as  marretas,  em  golpes  compaílados,  os  oíTos  dos  miferaveis 
padecentes,  alTombram  de  horror  e  indignação  os  ânimos 
de  mais  rija  contextura.  Aquelles  homens,  que  porfiam  em 
horrorolas  contorfões  por  fugir  em  vão  ás  chammas,  que  os 
eftão  queimando  vivos,  reprefentam-fe  á  phantafia  Ibhando 
gritos  defefperados,  que  abalam  e  conturbam  as  peíToas  de 
mais  duro  e  aceirado  coração.  Aquella  mulher  varonil  e  ani- 
mofa,  que  fora  graciofa,  bella,  mimofa  da  fortuna,  aquella 
mulher,  que  mantendo  no  cadafalfo  a  altiva  dignidade,  como 
fe  fora  ainda  a  marqueza  de  Távora,  fabe  entre  homens, 
que  defanimam  ou  desfallecem,  entregar  ao  algoz  a  fua  ca- 
beça, como  le  a  confiara  á  fua  dama  para  lh'a  compor  e 
adornar  em  noite  de  efplendido  feftim,  aquella  mulher,  que 
impera  pela  altivez,  e  pelo  valor  faz  emmudecer  a  natureza, 
aquella  mulher,  na  muda  eloquência  do  feu  fexo  e  no  appa- 
rato  laftimofo  do  ultimo  fupplicio,  apparece-nos,  como  fe 
do  alto  do  patíbulo  proteftaífe  contra  a  barbárie  da  jufliça  e 
contra  a  infame  inftituição  da  pena  capital. 

Sagremos  em  nome  da  humanidade  a  dolorofa  comme- 
moração  ás  vidimas  da  lei;  mas  em  nome  da  lei  faibamos 
lambem  defcontar  na  fevera  dureza  do  miniftro  o  que  per- 
tence ás  idéas  e  aos  coftumes  do  feu  tempo  e  ao  preceito 
imperativo  da  publica  falvação. 

Ao  minifi:ro  de  D.  Jofé  fuccedia  o  que  é  commum  aos 
grandes  homens  em  todos  os  tempos  e  nações.  Todos  fão 
feitos  de  paixão  e  de  talento,  de  herança  e  de  novidade,  de 
efpirito  revolucionário  e  de  refpeito  á  tradição.  AíTim  eram 
na  religião,  Luthero  pregando  contra  Roma  e  afpirando  á 
infallibilidade;  Calvino  divinifando  o  livre  exame  e  quei- 
mando os  diífidentes  da  fua  fé ;  na  philofophia,  Voltaire  der- 
rocando pela  ironia  a  velha  focicdade  e  comprazendo-fe  no 
convívio  da  corte  e  dos  magnates;  no  governo  dos  ellados, 


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Cromwel  odiando  a  realeza,  decapitando  o  Stuart  em  Whi- 
tehall,  e  cobrindo  o  leu  protedorado  com  a  fombra  da  rea- 
leza; Buonaparte  prezando-fe  de  ter  no  folo  cruento  da  re- 
volução as  raizes  do  leu  poder  e  atando,  após  dez  feculos, 
ao  feu  novo  cefarifmo  as  formulas  e  os  eftylos  do  império 
carlovingio. 

Sebaftião  de  Carvalho  vivia  e  exercitava  a  fua  acção  na 
fegunda  metade  d'aquelle  leculo  portentofo,  aílignalado  pela 
mais  fecunda  e  efpantofa  revolução,  n'aquella  edade,  que 
fazia  a  tranfição  entre  a  antiga  e  a  nova  Ibciedade,  entre  o 
férreo  defpotilmo  e  a  livre  democracia.  Batiam-lhe  na  fronte 
os  primeiros,  ainda  frouxos  arreboes  da  nova  alvorada  focial, 
mas  ainda  em  torno  d'elle  fe  não  tinham  diíTipado  inteira- 
mente os  nevoeiros  da  noite  calliginofa,  que  havia  precedido 
nos  coítumes,  nas  leis,  nas  inftituições.  Antecipava-fe  ao  fu- 
turo pelas  fuás  largas  e  generofas  reformações,  mas  enlaçava- 
le  ao  pretérito  pela  veneração  tradicional  a  muitas  das  velhas 
idéas  Ibciaes.  A  monarchia  abfoluta  com  a  lua  diuturna  exis- 
tência de  alguns  feculos  pelava  fobre  elle  como  um  grilhão, 
de  que  não  fabia  defapreífar-fe.  Ainda  mais,  a  realeza  illi- 
mitada  em  feus  poderes,  era  o  único  inflrumento  das  fuás 
próprias  e  audazes  innovações.  A  velha  machina,  que  fó  ti- 
nha produzido  a  decadência  e  a  ruina  do  paiz,  era  nas  luas 
mãos,  aproveitada  fagazmente,  a  alavanca  preífadia,  com  que 
podia  fuperar  as  refiftencias  mais  tenazes.  A  legiílação  pe- 
nal ainda  vigente  era  dura  e  cruelifllma,  fervia-lhc  porem  a 
encerrar  na  eftriíla  legalidade  os  fcveros  expedientes,  que 
as  circumftancias  lhe  impunham  o  dever  de  decretar  para 
manter  em  toda  a  fua  pujança  a  regia  audoridade  contra  as 
latentes  ou  abertas  confpirações  dos  feus  inimigos  capitães. 
A  lei  punia  cruelmente  os  que  punham  mãos  facrilegas  na 
peífoa  do  monarcha.  Era  pois  culpada  a  lei.  Os  juizes,  tão  fe- 
veros  como  o  código  funefto,  faziam  d'elle  fem  viflumbres  de 


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204 


equidade  a  exada  applicação.  Se  alguma  coufa  poderiam  os 
antagoniftas  de  Carvalho  reprehender  e  condemnar,  era  fo- 
mente que  o  miniftro  não  tiveíTe  conftrangido  os  julgadores 
a  facrificarem  á  piedade  o  fentido  litteral  da  ordenação.  Mas 
o  rei,  fem  cuja  confirmação  a  fentença  não  podéra  executar- 
fe,  o  rei,  o  juiz  lupremo  e  infallivel,  que  podéra  minorar  as 
fuás  punições,  cerrara  a  fete  fellos  as  fontes  da  clemência,  e 
elle,  o  abfoluto,  o  omnipotente,  que  a  um  puro  aceno  podéra 
defarmar  os  braços  dos  verdugos,  deixara  lentamente  con- 
fumrnar-fe  a  tremenda  tragedia  de  Belém.  Se  em  vez  de  uma 
pena  merecida  juftamente  houvera  apenas  uma  carniçaria 
jurídica,  o  rei  D.  Jofé  I  era  o  único  ficcario  e  o  miniftro  obe- 
diente apenas  um  fâmulo  do  rei. 

A  fentença  foi  cruel,  mas  a  hiftoria  portugueza  memorava 
outras  femelhantes  execuções  contra  os  mais  altivos  homens 
da  nobreza,  em  antigas  e  frequentes  conjurações.  O  duque  de 
Bragança,  decapitado  publicamente  na  praça  de  Évora  em 
tempos  de  D.  João  II;  o  duque  deVizeu,  morto  ás  punhala- 
das pelo  rei,  que  deante  dos  feus  próprios  cortezãos,  exerceu 
o  olftcio  infame  de  carrafco;  o  bifpo  de  Évora,  D.  Garcia  de 
Menezes,  mettido  na  cifterna  de  Palmella,  para  acabar  ali  a 
vida  n'um  fupplicio  mais  atroz  que  o  do  arcebifpo  de  Floren- 
ça; o  marquez  de  Villa  Real,  o  duque  de  Caminha  e  D.  Agos- 
tinho Manuel,  entregues  ao  algoz  pelo  primeiro  rei  da  cafa  de 
Bragança;  os  réus  da  conjuração  contra  D.  Pedro  II  condem- 
nados  aos  fupplicios  mais  cruéis,  ás  chammas,  á  roda,  á  fra- 
6Iura  dos  oífos ;  eis  ahi  os  exemplos  e  os  didados,  que  a  velha 
monarchia  em  feus  fartos  de  fangue  deixara  confignados,  fe 
não  para  auctorifar,  ao  menos  para  efcufar  as  cruentas  repre- 
falias  da  otfendida  majeftade  contra  as  conjurações  da  nobre- 
za ambiciofa.  Era  ainda  recente  a  atrociffima  execução  de 
Damiens,  que  a  5  de  janeiro  de  1757  ferira  ligeiramente  o  rei 
de  França;  execução  a  mais  horrorofa,  a  mais  infame,  a  mais 


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205 

cruel  de  quantas  a  hiftoria  regiftrou  para  eterno  opprobrio  da 
humanidade;  execução  feita  em  Paris,  em  Paris,  na  metrópo- 
le da  civilifação  e  da  liberdade,  na  França  de  Voltaire  e  dos 
philofophos;  execução  ordenada  por  Luiz  XV,  que  pedira 
ao  parlamento  uma  vingança  memorável.  Em  parallelo  com 
o  martyrio  atroz  de  Damiens  o  lupplicio  do  Aveiro  e  feus 
cúmplices  era,  apefar  de  todo  o  feu  horror,  apenas  uma  frouxa 
imitação,  era  quafi  clemência  e  humanidade.  Eftavam  ainda 
vivas  as  memorias  dos  frequentes  autos  de  fé,  em  que  cen- 
tenas de  innocentes  ou  de  loucos  tinham  expiado  na  fogueira 
a  nota  de  hebraizantes  ou  feiticeiros.  E  a  hiftoria  cortezan 
infpirada  na  corrupção  e  na  lifonja,  dera  ao  coroado  algoz 
do  duque  de  Vizeu  o  titulo  de  príncipe  perfeito;  ao  diíToluto 
Luiz  XV,  ao  defpota  da  crápula  e  da  Baftilha,  o  fuave  co- 
gnome de  Bem-amado;  ao  fangrento  tribunal  da  inquilição 
pela  mais  fatanica  ironia  o  nome  de  Santo  Officio.  Ainda  ho- 
je, efquecidas  as  cruezas  dos  reis  e  dos  inquiíldores,  fomen- 
te o  miniftro  de  D.  José  aos  olhos  dos  que  deteftam  a  fua 
memoria  apparece  hediondamente  maculado  pelo  fangue  dos 
fupplicios,  porque  foi  o  flagcllo  da  nobreza  e  o  açoite  dos 
jefuitas. 

CAPITULO  IX 

A  EXPULSÃO  DOS  JESUÍTAS 

Na  fentença  proferida  contra  os  réus  da  conjuração  pelo 
tribunal  fupremo  da  inconfidência,  a  companhia  de  Jcfus  em 
Portugal  era  clamorofamente  denunciada  como  tendo  fido 
fautora  do  attentado.  Firmando-fe  nas  provas  teftemunhaes  e 
nas  prefumpções  de  direito,  a  que  os  julgadores  attribuiam 
a  máxima  importância,  dava-fe  como  exuberantemente  de- 
monftrado  que  os  chefes  principaes  da  conjuração  haviam 


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206 

tido  largas  e  frequentes  conferencias  com  jeiliitas  na  cala 
profeíTa  de  S.  Roque,  no  collegio  de  Santo  Antão,  e  nas  refi- 
dencias  dos  outros  conjurados. 

Affirmava-fe  que  os  jefuitas,  —  depois  de  terem  vivido 
em  implacável  averfão  com  o  duque  de  Aveiro,  quando  em 
tempos  de  D.  João  V  tivera  illimitada  valia  e  parte  no  go- 
verno o  recolledo  Fr.  Gafpar  da  Encarnação, — pelo  ódio 
commum  contra  D.  Jole  e  o  feu  miniítro,  e  na  efperança  de 
repartirem  entre  ú  a  influencia  no  eftado,  fe  haviam  final- 
mente congraçado  com  o  principal  confpirador  e  urdido  com 
elle  a  trama  contra  el-rei.  Attribuia-fe  aos  jefuitas,  por  fado 
indubitável,  o  terem  elles,  como  fáceis  cafuiífas,  diíTipado 
no  animo  do  Aveiro  a  fombra  de  um  efcrupulo,  perfuadin- 
do-lhe  que  nem  chegava  a  fer  peccado  venial  o  tirar  a  vida 
ao  feu  régio  e  odiofo  adverfario.  Dizia-fe  que  os  jefuitas, 
cooperando  com  o  Aveiro,  haviam  determinado  a  marqueza 
de  Távora  a  entrar  na  confederação,  eftimulando-lhe  a  nati- 
va foberba  e  ambição  com  a  exaltação  religiofa  produzida 
pelos  feus  colloquios  Íntimos  com  o  padre  Gabriel  de  Mala- 
grida.  Narrava-fe  que  eíte  famofo  jefuita,  cujos  exercícios 
efpirituaes  andavam  em  grande  voga  entre  a  nobreza,  che- 
gara a  dominar  com  império  abfoluto  no  animo  da  Távo- 
ra, que  o  havia  por  fanto,  penitente  e  infpirado  por  divinas 
revelações.  Citavam-fe  como  principaes  aceeíTores  e  confe- 
Iheiros  na  fruftrada  conjuração,  além  do  Malagrida,  os  feus 
confocios  da  Companhia,  João  de  Mattos  e  João  Alexan- 
dre. Compendiavam-fe  todas  as  ufurpações,  que  os  jefuitas 
haviam  realifado  nos  domínios  portuguezes  do  ultramar,  es- 
pecialmente no  Paraguay  e  Maranhão,  e  as  contínuas  ma- 
chinações,  com  que  em  Portugal  inftigando  á  fedição  e  nas 
cortes  extrangeiras  á  hoftilidade  contra  a  coroa,  tinham  bus- 
cado recuperar  a  fua  influencia  no  governo,  e  reconquiftar 
a  dominação  nas  terras  americanas.  Imputava-fe  aos  jefuitas 


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que  depois  que  el-rei  os  defpedíra  de  confeíTores  e  os  pro- 
hibíra  de  volverem  mais  ao  paço,  lhes  crefcêra  com  o  des- 
peito a  arrogância  e  o  defdem,  com  que  miravam  o  Ibbera- 
no,  confolando-fe  com  dizer  que  fe  o  rei  de  fi  os  afaftava,  a 
nobreza  os  acolhia  e  acclamava  com  fervor.  Exprobrava-fe 
aos  jeíuitas  o  haverem  divulgado  em  Portugal  e  fóra  d'elle, 
como  fe  fora  prophecia  e  jufta  punição  de  atrozes  defacatos, 
que  feria  de  breve  duração  a  exiítencia  do  monarcha,  che- 
gando a  prefixar  para  feptembro  o  termo  peremptório  dos 
feus  dias.  Ainda  que  a  fentença  fe  alargava  diífulamente  na 
accufação  dos  jefuitas,  e  citava  fem  as  individuar  as  provas, 
que  nos  autos  demonítravam  a  fua  autoria  ou  cumplicidade, 
abftinha-fe  de  pronunciar  contra  cUes  qualquer  pena,  ainda 
mefmo  contra  os  que  nominativamente  mencionava.  Cifra- 
va-fe  a  razão  em  que,  fendo  peíToas  ecclefiaíticas  e,  fegundo 
o  principio  venerado  n'aquelle  tempo,  immunes  de  toda  a 
jurifdicção  e  foro  fecular,  não  podiam  fer  julgados,  fem  que 
fobre  tão  grave  aíTumpto  foíTe  ouvido  o  pontífice  romano. 

Ainda  hoje  os  partidários  mais  ou  menos  fervorofos  da 
reacção  religiofa  negam  terminantes  a  participação  dos  je- 
fuitas na  celebrada  confpiração.  Entre  os  próprios  adverfarios 
alguns  ha,  que  não  acham  plaufivelmente  fundadas  as  fus- 
peitas  de  que  a  ambiciofa  e  irrequieta  Companhia  incitaífe 
com  a  acção  e  o  confelho  o  crime  contra  o  rei.  É  porém 
defnatural  e  improvável  que  no  extremo  da  indignação,  a 
que  levara  os  jefuitas  o  acharem-fe  defapoíTados  de  toda  a 
influencia  no  paço  e  no  governo,  e  ainda  fobre  iíTo  aponta- 
dos como  réus  de  tantas  execráveis  perturbações,  ao  verem 
encaílcllar-fe  no  horizonte  a  cerração,  que  lhes  annunciava 
imminente  e  inevitável  o  ultimo  naufrágio,  impaíTiveis,  refi- 
gnados,  evangelicamente  offerecidos  ao  martyrio,  como  hós- 
tias immaculadas,  aíriítifTem  á  agitação,  que  revolvia  contra 
D.  Jofé  e  o  fcu  minillro  a  nobreza  vingativa  e  defpeitada. 


208 

Quando  vemos  os  jefuitas,  no  ambiente  largo  da  liberdade, 
na  França  republicana,  tendo  contra  íi  as  influencias  fociaes, 
a  razão  efclarecida,  e  o  efpirito  profundamente  democrático 
do  paiz  gerador  da  luz  e  da  revolução,  quando  os  vemos 
refiftirem  tenazmente  contra  o  governo  da  republica,  envida- 
rem todas  as  armas  de  acção  e  propaganda  para  manterem 
o  feu  pofto  e,  quaes  mineiros  oufados  e  pertinazes,  perfifti- 
rem  na  raiz  das  muralhas  fociaes,  para  minarem  o  governo 
temporal  e  forçarem  a  revolução  e  a  democracia  a  render-fe 
e  capitular,  o  que  feria  n'uma  edade  e  n'uma  nação,  em  que 
a  burguezia  era  ainda  efcaífamente  illuminada,  o  povo  rude, 
fuperfticiofo,  extranho  aos  inítindos  liberaes,  a  nobreza  ar- 
rogante, fanática,  agitadora? 

Se  acreditámos  a  própria  confiífão  de  um  defenfor  en- 
thufiaíta  dos  jefuitas,  já  eram  n'aquelle  tempo  antigas  e  ve- 
hementes  as  queixas,  que  a  refpeito  de  Carvalho  os  das  pro- 
víncias portuguezas  dirigiam  ao  feu  prepofito  geral'.  Os  va- 
ticínios do  padre  Malagrida  acerca  do  próximo  fim  do  rei 
fão  relatados  por  um  dos  mais  violentos  inimigos  do  minis- 
tro e  acérrimo  patrono  da  Companhia.  Segundo  eíte  con- 
temporâneo teftemunho,  o  vifionario  jefuita,  que  fe  dava  por 
divinamente  illuminado,  pouco  antes  do  regicídio  efcrevêra 
á  camareira-mór  D.  Anna  de  Lorena,  rogando-lhe  preve- 
niífe  o  rei  do  perigo  que  talvez  em  breve  tempo  feria  im- 
minente  á  fua  vida^  O  próprio  Malagrida,  interrogado  por 
Sebaílião  de  Carvalho,  confeíTa  haver  annunciado  a  el-rei 
o  perigofo  lance,  que  teria,  e  attribue  a  prophecia  a  uma 
fua  devota  confeífada,  que  era,  em  fua  opinião,  favorecida 


■  Mentira  juani/efta  oii  analyfe  da  fentença  proferida  em  12  de  janeiro 
de  ijSg. 

2  Vila  di  Scb.  Gitifeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  11,  pag.  i35.  —  Mentira 
uiani/ejla  ou  analyfe  da  fentença,  etc. 


209 

com  myfticas  e  celeftes  illuminações '.  Não  le  pôde  contcftar 
que  os  jefuitas,  ao  tempo  do  regicídio,  eram  jurados  inimi- 
gos do  governo,  e  já  então  irreconciliáveis  com  o  foberano, 
que  os  expulíara  do  palácio  e  confentira  na  fua  perfegui- 
ção.  No  eftado,  a  que  chegara  a  mutua  hollilidade,  os  jefui- 
tas, acrefcentando  ás  antigas  machinações  no  ultramar  e  aos 
meneios  para  incitar  o  povo  e  a  nobreza  em  Portugal  os 
últimos  aggravos  recebidos  na  vifita  e  reforma  já  traçada, 
eram  fatalmente  arrebatados  na  corrente  da  infurreição,  a 
que,  por  jefuitas  e  por  homens,  feria  impoíTivel,  fobrehuma- 
no,  refiftir.  Eram  pois  agora  mais  do  que  nunca  incompa- 
tíveis com  todo  o  governo  profano  e  temporal.  Não  podia 
haver  equilíbrio  entre  os  dois  poderes  antagoniftas.  D'aquel- 
les  dois  animofos  ludadores  era  força  que  um  d'elles  na  are- 
na baqueaífe  exânime  e  proftrado.  Haveria  em  Portugal  um 
regime  defaífombrado  de  influencias  clericaes,  tendo  por  em- 
penho fecularifar  o  governo  e  a  nação,  ou  continuaria  por 
longos  annos  conftituida  uma  poderofa  theocracia,  cerrando 
o  paiz  perpetuamente  á  luz  e  á  liberdade?  O  miniftro  não 
podia  de  um  lo  jado  fundir  em  moldes  novos  a  fociedade 
portugueza,  feita  á  imagem  e  femelhança  dos  feus  dois  ab- 
folutos  creadores,  o  régio  defpotifmo  e  a  tyrannia  clerical. 
O  feu  problema  era  tornar  fecundo,  popular,  illuminado, 
paternal,  civilifador,  o  defpotifmo,  relegar  a  clerefia  para  os 
domínios  puramente  cfpirituaes,  e  erigir  os  marcos  divifo- 
rios  entre  o  império  e  o  facerdocio,  de  maneira  que  o  po- 
der fecular  tiveífe  o  direito  de  fuprema  infpecção  nas  cou- 
fas  religiofas,  e  o  poder  facerdotal,  fubmiíTo  e  obediente  á 
fuprema  poteftade,  nem  oufalTe  mefclar-fe  levemente  nos 
negócios  temporaes.  Os  jefuitas  eram  a  guarda  pretoriana 
do  império  theocratico.  Diffolver  eftas  cohortes,  que  a  feu 


'    Vita  di  Scb.  Giufeppe  di  Carvalho  c  McHo,  tom.  ii,  pag.  i3G. 


talante  difpunham  do  poder,  era  o  primeiro  paíTo  para  de 
futuro  emancipar  do  jugo  íacerdotal  o  povo  portuguez.  Vi- 
riam depois  tempos  mais  azados  e  propicios  á  total  abolição 
das  ordens  religiofas,  e  eftaria  eífeituada  legalmente  a  pri- 
meira parte  da  nova  metamorphofe  focial.  Depois,  — não  o 
pôde  talvez  o  minifíro  adivinhar,- —  o  poder  fecular,  já  exem- 
pto  de  partilha,  perderia  as  formas  agreftes  da  monarchia 
abfoluta  para  fe  disfarçar  nas  enganolas  apparencias  popu- 
lares da  monarchia  parlamentar.  Depois  o  poder,  a  princi- 
pio confubftanciado  n'um  fó  homem,  viria  a  ler,  pela  na- 
tural evolução,  a  própria  acção  collediva,  foberana,  demo- 
crática de  toda  a  moderna  e  livre  fociedade.  Ora  o  grande 
mérito  politico  de  Carvalho  é  juftamente  o  haver  iniciado 
efte  longo  proceíTo,  em  que  a  nação  portugueza  fe  foi  len- 
tamente defentranhando  da  rude  cortiça,  c]ue  a  apertava  e 
conftrangia.  Elle  deitou  na  pedra  informe  e  tofca  as  primei- 
ras linhas  da  efculptura.  Defbaftou  n'algumas  partes  com 
feguro  e  próvido  cinzel.  Outros  vieram  mais  felizes,  que 
profeguiram  na  obra  começada.  Outros  virão  depois  cjue 
aprimorem  e  concertem  o  defenho.  Na  fua  memorável  oíR- 
cina  tivera  por  fâmulo  e  ajudante  o  delpotifmo.  Mas  o  c[ue 
o  defpotilmo  principiou  a  efculpir,  fó  depois  d'elle  o  foube 
confummar  o  eícopro  da  revolução.  Os  defpotas,  como  os 
obreiros  mufculofos  e  fortiíTimos,  podem  cavar  profundos 
alicerces.  Mas  fó  o  povo,  o  infpirado  Miguel  Angelo  ou  o 
Bramante  revolucionário,  lãbe  altear  nos  ares  a  cúpula  fo- 
cial. 

No  mefmo  dia,  em  que  os  Tavoras,  o  Aveiro  e  os  feus 
confocios  feculares  haviam  lido  prelos  como  rcus,  todas  as 
cafas  dos  jefuitas  á  mefma  hora,  em  todo  o  continente  de 
Portugal,  foram  occupadas  pelas  juftiças  com  o  auxilio  das 
forças  militares. 

Os  jefuitas  exiftentes  nas  províncias  foram  claufurados 


ti» 


eis 


nas  luas  cafas.  collegios  c  noviciados.  Impoz-fe-lhes  a  obri- 
gação de  não  fairem  dos  encerros,  e  defendeu-fe-lhes  a  mí- 
nima communicação  com  as  pcíToas  feculares.  As  tropas, 
que  guardavam  os  jefuitas  apertadamente  cuftodiados,  não 
deixavam  a  menor  duvida  de  que  os  focios  da  Companhia, 
fegregados  de  toda  a  extranha  gente,  eftavam  realmente  en- 
carcerados. Os  três  jefuitas,  Malagrida,  Mattos  e  João  Ale- 
xandre, foram  reclufos  em  eftreitiíTimas  prifões  como  verda- 
deiros réus  de  eftado.Tão  promptas  e  acertadas  tinham  fido 
as  providencias  adoptadas,  que  a  dihgencia  fe  pôde  effe- 
ftuar  fem  nenhuma  perturbação  da  ordem  pubUca,  fendo 
c[ue  os  jefuitas  ainda  tinham  numerofos  e  ardentes  partidá- 
rios não  fomente  da  nobreza,  fenão  também  do  eftado  chão 
e  popular. 

A  carta  regia  de  ig  de  janeiro  de  lySg,  dirigida  a  Pe- 
dro Gonçalves  Cordeiro,  que  então  fervia  de  regedor  das 
juftiças,  e  outra  egual  da  mefma  data  ao  defembargador 
Craafbeck  de  Carvalho,  governador  da  relação  e  cafa  do 
Porto,  fummariando  novamente  os  crimes  dos  jefuitas,  or- 
denava áquelles  magiftrados  que  emquanto  o  monarcha  não 
recorria  á  fede  apoftolica,  mandaífem  immediatamente  pôr 
em  geral  fequeftro  os  bens  da  Companhia,  fazendo  arren- 
dar os  de  raiz,  e  dando  a  cada  um  dos  jefuitas  um  tos- 
tão diário  para  fua  alimentação.  Uma  carta  regia  circular, 
expedida  a  todos  os  prelados  diocefanos,  acompanhava  a 
copia  da  fentença  proferida  contra  os  conjurados,  e  um 
exemplar  do  opufculo,  em  que  fe  punham  de  manifeflo  as 
Ímpias  e  fediciofas  propofições,  que  os  jefuitas  haviam  di- 
vulgado pela  penna  dos  feus  probabililfas  e  doutores.  En- 
commendava  o  rei  aos  bifpos,  que  pelo  feu  ofiicio  paítoral 
trabalhaífem  por  diradicar  o  pafto  venenofo,  que  os  jefui- 
tas tinham  miniftrado  ás  incautas  ovelhas  do  evangélico  re- 
banho. 


tis 


4t^ 
: — ■■ -<>-%^ 


o  opufculo  intitulado  Erros  Ímpios  e  fediciofos '  era  um 
tremendiíTimo  libelio  contra  a  moral  profeffada  em  livros  nu- 
merolbs  pelos  ethicos  e  theologos  da  Companhia.  Se,  como 
fe  affirmava  na  fentença  e  fe  repetia  no  livrinho,  os  jefuitas 
haviam  enfinado  expreíTamente  aos  cabeças  da  confpiração 
os  perniciofos  theoremas,  que  vinham  na  obra  compendia- 
dos, pôde  fer  porventura  ponto  conteftavel.  Que  porém 
aquellas  opiniões  deletérias  e  corrofivas  não  fomente  de  toda 
a  moral  chrilM,  fenão  da  ethica  feguida  pela  antiga  e  mais 
auftera  gentilidade,  exiftiam  cftampadas  nos  livros  mais  no- 
tórios e  vulgares  da  Companhia,  não  pôde  padecer  dubita- 
ção.  As  doutrinas  de  LeíTio,  Bufembaum  e  outros  jeluitas 
celebrados,  fobre  ler  permittida  a  diffamação  e  a  calumnia; 
as  de  Amico  e  de  Navarro,  acerca  de  fer  licito  o  homicídio 
perpetrado  em  defeza  da  honra  própria;  a  apologia  da  limu- 
lação,  da  mentira,  do  falfo  juramento  e  do  perjúrio,  canonifa- 
da  nos  efcriptos  de  Sanches  e  de  Toledo,  eram  denunciadas 
e  profcriptas  com  vigor.  A  defeza  dos  jefuitas  contra  aquel- 
las terminantes  accufações  era  difficil  e  efpinhofa,  principal- 
niente  em  face  das  decifões  de  muitos  papas,  que  ex  cathe- 
dra  haviam  condemnado  aquellas  efcandalofas  propofições. 
É  verdade  que  nem  todos  os  theologos  e  moraliftas  da  eru- 
dita fociedade  tinham  em  feus  livros  enfinado  aquellas  má- 
ximas moraes.  Mas  era  tão  extenfo  e  volumofo  o  catalogo 
dos  probabiliftas,  e  n'elle  fe  infcreviam  nomes  tão  famofos  e 
venerados  pelos  feus  confocios  na  mefma  religião,  que  a 
imputação  de  latitudinarios  e  relaxiftas,  nos  pontos  mais  de- 
licados da  moral,  caía  fobre  a  inteira  Companhia,  ao  menos 


1  Erros  ímpios  e  fediciofos,  que  os  religiofos  da  Companhia  de  Jefiis  enfi- 
naram  aos  réus,  que  foram  jufliçados,  e  pretendiam  e/palhar  nos  pnvos  d'e/les 
reinos.  Lifboa,  na  officina  de  Miguel  Rodrigues,  fem  data,  provavelmente  dos 
fins  de  1758. 


eia 


si» 


2l3 

tacitamente  compromettida  nas  extranhas  propoíições  dos 
feus  doutores. 

Por  aquelles  tempos  havia  fuccedido  no  fupremo  ponti- 
ficado o  cardeal  Rezzonico,  com  o  nome  de  Clemente  XIII. 
Fora  aíTumpto  á  fuprema  cadeira  a  6  de  julho  de  ij58. 
Tomava  o  leme  da  naveta  de  S.  Pedro,  quando  as  aguas 
revoltas  e  encapelladas  lhe  citavam  prenunciando  fingradu- 
ras  difficeis,  borrafcofas.  Com  elle  novamente  renalciam  as 
luclas,  que  já  durante  a  edade  media  haviam  aíTignalado 
a  incompatibilidade  entre  o  eípirito  laical,  crefcente  mais 
e  mais  nas  modernas  fociedades,  e  a  autocracia  efpiritual, 
cada  vez  mais  renitente  e  emhuida  na  oufada  pretenfão  de 
fubmettel-as  á  fua  tutela  e  direcção.  Principiavam  as  por- 
fiadas contenções,  que  levaram  Pio  VI  acorrentado  ao  carro 
triumphal  da  Revolução,  que  fizeram  de  Pio  VII  um  lubdito 
de  Buonaparte,  que  diclaram  a  Pio  IX  o  fyllabus,  como 
fuprema  condemnação  do  moderno  penlamento  e  da  nova 
liberdade,  e  na  occupação  de  Roma  pela  Itália  juvenil,  una, 
liberta  e  emancipada,  defprenderam  finalmente  do  triregno 
pontificio  a  coroa  ambiciofa  do  foberano  temporal. 

O  papa  Clemente  Xlll  não  tinha,  nem  a  diicreta  piedade, 
nem  o  illuminado  entendimento  do  leu  predeceíTor.  Defejava 
porventura  a  paz  da  egreja,  mas  o  leu  animo  débil  e  indecilb 
não  lábia  coníervar-fe  inacceíTivel  ao  influxo  das  facções. 
Antes  mefmo  do  leu  advento  ao  folio  pontificio,  quando  as 
intrigas  politicas  do  conclave  deixavam  ainda  incerta  a  elei- 
ção, os  jefuitas  forcejavam  por  que  faííTe  defignado  para 
fijbir  á  cadeira  de  S.  Pedro  um  relbluto  parcial  da  Compa- 
nhia. Efteve  a  ponto  de  ler  eleito  papa  o  cardeal  Cavalchini, 
de  cujo  patrocínio  os  jefuitas  efperavam  o  triumpho  na  lufta 
que  traziam  empenhada.  Vindo  porém  a  eícolha  finalmente 
a  recair  em  Carlos  Rezzonico,  os  jefuitas  viram  n'elle  defde 
logo  antes  um  parcial,  que  adverfario.  Rra  chegada  a  fafão 


214 

accommodada  para  que  junto  do  novo  pontífice  agitaíTem 
vivamente  as  fuás  ambições,  pleiteaíTem  com  fervor  os  feus 
intereíles,  e  infamaffem  em  toda  a  chrillandade  o  rei  de 
Portugal  e  o  feu  minlftro. 

Sebaftião  de  Carvalho,  em  prefença  das  circumftancias 
desfavoráveis,  que  lhe  augurava  o  novo  pontificado  e  a  im- 
penitencia  da  Companhia,  não  aífrouxava  na  peleja,  nem 
remittia  o  leu  vigor.  A  punição  dos  jeíliitas,  que  a  fentença 
declarava  implicados  no  crime  de  3  de  leptembro,  era  no 
feu  conceito  uma  neceffidade  politica,  e  um  paíTo  de  grande 
fignificação  para  atteftar  ao  mundo  inteiro,  por  um  acto  de 
fevera  jufi^iça,  quão  grandes  criminofos  abrigara  no  feu 
grémio  a  ordem  condemnada.  O  procurador  da  coroa  dirigiu 
a  Clemente  XIII,  a  i  5  de  abril  de  lySg,  uma  fupplica  vehe- 
mente,  na  qual  depois  de  compendiar  os  crimes  da  Compa- 
nhia em  Portugal  e  de  allegar  exemplos  de  fe  haverem  con- 
demnado  pela  mefa  da  confciencia  e  ordens  os  cavalleiros, 
capellães  e  facerdotes  das  ordens  militares,  accufados  de 
confpirar  contra  o  foberano,  exorava  o  fanto  padre  a  que, 
feguindo  o  exemplo  de  Gregório  XIII,  concedeíTe  beneplá- 
cito para  que  o  mefmo  tribunal,  eífencialmente  religiofo, 
podeífe  julgar  a  todos  os  ecclefiafticos,  em  quem  fe  provaífe 
cumplicidade  ou  autoria  no  attentado  contra  el-rei,  e  que  efta 
mefma  jurifdicção  foífe  declarada  competente  para  todos  os 
cafos  femelhantes  no  porvir. 

Por  efta  occafião  o  monarcha  elcrevia  a  Clemente  XIII 
a  carta  regia  de  20  de  abril,  em  que  teftemunhava  as  piedo- 
fas  contemplações,  com  que  havia  procedido  em  referencia 
aos  jefuitas,  e  exhaurido  todos  os  meios  para  dar  talho  ás 
fuás  hoftilidades  e  efcandalos,  e  evitar  a  total  ruina  de  uma 
ordem,  que  fempre  nos  reis  de  Portugal  havia  achado  abrigo 
e  protecção.  Defefperava  agora  o  rei  de  que  a  Ibciedade, 
envelhecida  e  obdurada  nos  feus  erros,  podeífe  ter  emenda 


1. 


e  reformação,  porque  a  lua  corrupção  era  geral  e  infita  ao 
efpirito  do  feu  governo.  Via-fe  pois  coagido  a  expuUar  dos 
feus  domínios  a  incorrigivcl  Companhia.  Pedia  finalmente  ao 
papa  fe  dignaíTe  de  lançar  a  benção  apoftolica  febre  quanto 
o  governo  portuguez  acerca  da  Companhia  até  aquelle  tempo 
decretara,  e  deferiíTe  ás  inftancias  do  procurador  da  coroa. 
A  carta  regia,  e  a  petição  do  fifcal  da  coroa  foram  logo 
remettidas  ao  enviado  portuguez  junto  do  papa,  e  iam  acom- 
panhadas de  uma  extenfa  pro-memoria,  em  que  defde  feu 
principio  fe  deduziam  por  ordem  chronologica  todas  as  mal- 
feitorias e  enredos  jefuiticos  durante  o  governo  de  Carvalho. 
Ao  mefmo  paífo  o  minifiro  efcrevia  particularmente  ao  re- 
prefentante  de  Portugal,  inflruindo-o  fecretamente  fobre  o 
modo  mais  profícuo  de  encaminhar  a  efpinhofa  negociação. 
A  egreja  era  ciofa  da  fua  immunidade,  que  por  uma  fraque- 
za dos  governos  tornava  as  peíToas  ecclefiaílicas  independen- 
tes de  toda  a  jurifdicção  commum  e  fecular.  Os  jefuitas  re- 
dobravam de  vehemencia  na  defeza  da  fua  ordem,  e  na 
guerra  fem  quartel,  que  tinham  empenhada  com  o  eftadifta 
portuguez,  caufa  principal  da  fua  ruina.  O  papa,  concedendo 
o  que  o  rei  lhe  fupplicava,  ia  entregar  á  mercê  do  feu  gover- 
no os  que  julgavam  fer  imprefcriptivel  o  direito  de  immuni- 
dade. Accrefcia  fobre  tudo  que  no  cardeal  Torriggiani,  fecre- 
tario  de  eftado,  tinham  os  jefuitas  um  follicito  patrono,  no 
padre  Lourenço  Ricci,  prepofito  geral,  um  incanfavel  e  ar- 
guto procurador.  Alguns  dos  próprios  defenfores  dos  jefuitas 
parecia  defapprovarem  no  cardeal  a  fua  nimia  e  indifcreta 
parcialidade'.  Se  o  pontifice,  porém,  defde  logo  fe  declarava 


I  "11  Cardinal  Torriggiani,  bcnchc  univcríalmentc  ílimato  per  i  kioi  ta- 
lenti  e  per  la  fua  integrità,  era  però  tacciato  da  molti  di  una  troppa  parzialitâ 
per  i  gefuiti,  e  rinfamia  de'  quali  non  credeva  egli  difgiunta  dalFonorc  delia 
fanta  fede  apoílolica»  Vita  di  Seb.  Ghi/eppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  ii, 
pag.  i6o. 


(Is 


eis 


4-$- ^ ^ 

216 

hoftil  ao  governo  de  Portugal,  correria  o  graviíTimo  lance  de 
ver  bem  depreffa  conturbada  a  paz  entre  a  corte  de  Lifboa 
e  o  Vaticano,  fem  que  foffe  poíTivel  adivinhar  que  turbações 
adviriam  á  egreja,  fegundo  era  inquebrantável  e  relbluto  o 
animo  de  Carvalho,  e  iubmiíTa  ao  nuto  do  miniftro  a  débil 
condição  do  monarcha  portuguez.  Do  qual  bem  fe  podéra 
dizer,  como  Suetonio  efcreve  de  Cláudio,  fujeito  aos  feus 
libertos  e  miniftros:  Noii  principem  fe,  Jed  minijínim  egit\ 

A  queftão  era  pois  mui  agra  e  efcabrofa.  Cumpria  que  á 
firmeza  do  governo  portuguez  refpondeíTe  a  moderação  e  a 
aftucia,  a  prudência  e  a  perfeverança  do  feu  plenipotenciário 
junto  da  Santa  Sé. 

Perdia-fe  em  delongas  no  entretanto  a  negociação  de 
Francifco  de  Almada  com  o  lecretario  de  citado  pontifício. 
Agora  cerravam  os  jefuitas  em  redor  do  cardeal  Torriggia- 
ni,  feu  encarecido  valedor,  os  empenhos  para  que  faiílem 
fruftrados  ou  illudidos  os  deíejos  do  governo  portuguez.  Di- 
vulgavam pela  Europa  as  fuás  diffamações  contra  o  rei  de 
Portugal  e  o  feu  miniftro.  Invocavam  em  feu  favor  todos  os 
meios,  que  podiam  conduzir  a  exacerbar  terrivelmente  o 
irritado  efpirito  do  feu  incanfavel  antagonifta.  Faziam  pro- 
hibir  que  em  Roma  circulaífem  ou  fe  reimprimiííem  os  pa- 
peis, que  em  Portugal  fe  haviam  eftampado  para  tornar  ma- 
nifeftas  as  ufurpações  temporaes  da  Companhia  e  os  deli- 
étos  e  abominações  dos  feus  confrades. 

N'efta  conjuncção,  defefperando  o  miniftro  de  que  foíTe 
poffivel  inclinar  Clemente  XIII  a  condefcender  com  o  go- 
verno portuguez  no  julgamento  criminal  dos  jefuitas,  repu- 
tados participantes  no  regicídio,  entendeu  que  devia  aífom- 
brar  o  Vaticano,  desferindo  o  golpe,  que  defde  o  mez  de 
abril  tinha  fufpenfo,  mas  certeiro  á  Companhia  de  Jefus  em 


'  Sueton.,  Vitae  xii  Caefarwu,  v.  n."  29. 


n^ T* 


«1? 


Portugal.  Decretou  finalmente  que  os  jefuitas  foíTem  expul- 
Ibs  de  todo  o  território  portuguez.  A  lei  de  3  de  feptembro 
de  lySg,  datada  no  primeiro  anniverfario  da  fangrenta  cons- 
piração, declarava  os  jeluitas  «corrompidos  e  deploravel- 
mente  alienados  do  feu  fanto  inftituto»,  e  pelos  feus  vicios 
inveterados,  pela  fua  endurecida  impenitencia,  incapazes  de 
volver  á  antiga  obfervancia  da  fua  primitiva  religião.  Publi- 
cava-os  por  notórios  aggreíTores,  rebeldes,  adverfarios  e  trai- 
dores contra  a  peíToa  do  foberano  e  léus  eftados,  contra  a 
paz  publica  de  Portugal  e  feus  domínios,  e  contra  o  bem 
commum  de  feus  vaífallos.  Ordenava  egualmente  que  foífem 
defde  logo  havidos  por  delhaturalizados,  profcriptos  e  exter- 
minados, e  que  foífem  para  fempre  expulfos,  para  nunca 
mais  voltarem  a  Portugal.  Prohibia  com  pena  capital,  que 
nenhuma  peífoa  facilitaífe  novamente  a  fua  entrada  em  terras 
portuguezas  ou  tiveífe  com  elles  communicação  oral  ou  por 
efcripto,  ainda  quando  os  jefuitas  houveífem  faído  da  Com- 
panhia para  entrarem  n'outras  ordens  ou  congregações  reli- 
giofas.  E  porque  não  era  equitativo,  nem  clemente,  que  as 
feveras  penalidades  infligidas  aos  jefuitas  comprehendeífem 
os  que  fendo  nafcidos  em  Portugal,  não  houveífem  feito 
ainda  folemne  profiífão,  nem  tiveífem  provada  alguma  cul- 
pa, permittia  a  lei  que,  fendo-lhes  relaxados  pelo  cardeal 
reformador  os  votos  fimples,  podeífem  confervar-fe  em  Por- 
tugal como  fubditos  feus  e  naturaes.  Mandava  ao  mefmo 
paífo  o  legillador,  que  acerca  das  tranfgreífóes  ao  régio  edifto 
ficaífem  abertas  e  permanentes  as  devaífas  perante  os  ma- 
giftrados  civis  e'criminaes  em  fuás  jurifdicções,  os  quaes  do 
que  tiveífem  inquirido  haveriam  de  dar  conta  ao  juiz  da 
inconfidência. 

Em  cartas  regias  de  3  de  feptembro  de  1759  communi- 
cou  o  rei  aos  prelados  diocefanos  a  lei,  que  expulfava  os  je- 
fuitas de  Portugal.  A  6  d'aquelle  mez  ordenava  ao  patriarcha 


1    F 


4tU 

2l8 

e  aos  paftores  das  diocefes,  onde  havia  cafas,  noviciados  e 
coUegios  da  Companhia,  que  as  egrejas  com  as  fuás  alfaias 
foííem  entregues  a  peíToas  idóneas  efcolhidas  pelos  prelados, 
para  que  ali  não  defcontinuaílc  o  culto  divino,  e  os  edifícios 
e  o  que  n'elles  exiftiífe,  eftiveífe  a  bom  recado,  emquanto 
el-rei  não  houveífe  de  recorrer  á  fanta  fede  para  que  deter- 
minaífe  as  pias  applicações  das  egrejas,  dos  prédios  e  alfaias 
outr'ora  pertencentes  á  profcripta  fociedade. 

D'ahi  a  poucos  dias  o  cardeal  Saldanha,  já  então  patriar- 
cha  de  Lifboa  e  reformador  da  Companhia,  n'uma  paítoral 
recendendo  fervilmente  ao  mais  puro  e  devoto  monarchifmo, 
publicava  aos  fieis  da  fua  archidiocefe  a  carta  regia  com 
que  el-rei  o  tinha  honrado  para  lhe  participar  a  expulfão  dos 
jefuitas.  Accumulava  o  fubmiflb  cardeal  os  textos  do  antigo 
teftamento,  do  apoftolo  das  gentes  e  dos  fantos  padres  e 
doutores  para  demonflrar  ás  fuás  ovelhas  que  a  regia  potes- 
tade era  por  Deus  inftituida  e  abençoada,  e  que  aos  man- 
datos dos  foberanos  ninguém  podia  contravir  fem  incorrer 
em  eterna  condemnação.  Exhortava  o  cardeal  os  feus  dioce- 
fanos  feculares,  e  admoeftava  ao  clero  da  fua  obediência 
para  que  não  tiveífe  nenhum  trato  com  os  religiofos  agora 
defnaturalizados  e  banidos.  Terminava  refumindo  em  phra- 
fes  encarecidas  e  piedofas  os  méritos  de  Santo  Ignacio  de 
Loyola  c  a  fantidade  e  perfeição  de  feu  infí:ituto  primitivo. 

Era  efta  fempre,  com  eífeito,  uma  nota  obrigada  e  infalli- 
vel  em  todas  as  tremendas  execrações  lançadas  contra  a  fo- 
ciedade de  Jefus.  O  fundador  e  patriarcha  da  profcripta  in- 
ftituição  era,  em  todos  os  documentos  publicados  n'aquelle 
tempo,  um  benemérito  da  egreja  univerfal.  Mas  os  jefuitas, 
facudindo  o  fanto  jugo,  e  convertidos  ás  mais  impuras  mun- 
danidades,  haviam  defluftrado  e  polluido  a  obra  do  piedofo 
inftituidor.  O  tronco  era  viçofo,  robufto,  falutar.  Eram  porém 
degeneradas  as  vergonteas,  os  frudos  venenofos.  Ao  contrario 

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das  arvores  communs,  a  arvore  myftica  da  famola  Ibciedade 
tinha  no  céu  e  na  humildade  as  fuás  raizes,  na  terra  e  na  fo- 
berha  a  fronde,  cuja  fombra  era  fatal  e  deletéria.  N'efta  glori- 
ficação da  Companhia  cm  feus  primeiros  incunahulos  efque- 
cia  porém  ao  legiílador  e  ao  prelado,  que  na  requifitoria 
intitulada  Erros  Ímpios  e  fediciofos  fe  tinham  allegado  as  pro- 
phcticas  palavras,  em  que  o  bifpo  e  theologo  Melchior  Cano, 
confeíTor  de  Carlos  V,  e  o  piedofo  Árias  Montano  em  tem- 
pos de  Filippe  II,  haviam  logo  no  berço  da  ordem  egoifta 
finceramente  proclamado  o  feu  funefto  horófcopo. 

Pouco  depois  que  fora  publicada  a  lei  expulfando  de 
Portugal  a  companhia  de  Jelus,  Carvalho  perfeverando  in- 
flexível e  audaz  no  feu  propollto,  relblveu  expatriar  os  jefui- 
tas.  A  i6  de  feptembro  de  lySg  um  navio  ragufano  conduzia 
com  deítino  a  Civita  Vecchia  cento  c  trinta  e  três  d'aquelles 
religiofos.  Em  fins  de  outubro  do  mefmo  anno  embarcavam 
em  Lifboa  cento  e  vinte  e  dois  jefuitas,  encaminhados  aos 
eftados  pontifícios,  onde  o  papa  os  acolheu  e  hofpedou.  A 
malicia  e  a  calumnia  increparam  o  miniftro  de  haver  feito 
partir  defamparados,  quafi  famélicos,  os  religiofos  da  Com- 
panhia', mas  os  próprios  capitães,  que  os  levaram  em  feus 
navios,  atteftaram  por  falfaria  a  injuriofa  imputação. 

Eífava  agora  confummado  o  ado  mais  vigorofo,  com 
que  Sebaftião  de  Carvalho  até  áquelle  tempo  demonftrára  a 
fua  energia  em  defenfão  da  foberania  temporal  contra  as  in- 
vafôes  do  poder  ecclefiaítico.  A  Companhia  ceifara  de  exiftir 
em  Portugal.  Reftava  confeguir  em  novas  campanhas  diplo- 
máticas a  fua  total  abolição. 

O  que  Bifmarck  na  Allemanha,  no  meio  dos  trophéus 
ainda  recentes  da  máxima  viéloria,  no  cumulo  do  poder  entre 
as  nações,  não  pôde  confeguir,  apefar  de  uma  luda  vigoro- 


Vita  di  Seb.  Ghifepfc  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  ii,  pag.  208. 


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fa,  lidada  em  muitos  annos;  o  que  a  França  republicana,  ins- 
pirada nas  idéas  da  moderna  liberdade,  não  alcançou  ainda 
realifar  inteiramente;  pôde  effeitual-o  em  breves  dias  a  von- 
tade invencível  de  Carvalho  n\ima  abfoluta  monarchia,  em 
paiz  longamente  acalentado  pela  educação  monaftica  e  in- 
quifitorial,  perante  uma  nobreza  reaccionária  e  revoltofa,  no 
meio  de  um  povo  acoftumado  a  venerar  nos  jefuitas  os  fo- 
beranos  direftores  das  fuás  rudes  e  timoratas  confciencias. 
Não  queiramos  porém  perfuadir-nos  de  que  a  pugna  do 
miniftro  iníiexivel  era  apenas  contra  a  famofa  Companhia. 
Era  mais  comprehenfivo  e  largo  o  feu  problema.  O  feu  pro- 
pofito  era  forçar  o  facerdocio  a  obedecer  no  temporal  aos 
mandatos  do  império  fecular.  Era  enfrear  de  vez  as  mun- 
danas pretenfões  dos  que  faziam  da  egreja,  não  a  efpiritual 
e  myftica  união,  a  fociedade  religiofa  dos  fieis,  fenão  o  feu- 
do ambiciofo  das  potencias  clericaes,  não  a  divina  inítitui- 
ção  encaminhada  á  celeíte  beatitude,  fenão  um  profaniíTi- 
mo  inlfrumento  de  auíforidade  e  influencia  nos  intereífes 
terrenaes.  O  fim  do  grande  reformador  era  feparar  inteira- 
mente do  fiel  o  cidadão,  do  homem  interior  o  homem 
focial,  da  communhão  dos  crentes,  ligados  pelo  vinculo  da 
fé,  a  fociedade  civil,  unificada  pelo  vinculo  da  lei.  O  feu 
intento  era  fem  duvida  levar  a  reforma  religiofa  até  o  ponto, 
onde  a  difciplina  ecclefiaftica,  mudável  ao  labor  das  circum- 
ílancias  c  das  epochas,  principia  a  enlaçar-fe  com  o  dogma 
e  torna  inexequível  uma  ulterior  modificação  fem  alterar 
profundamente  os  princípios  capitães  da  fé  chrilfan.  Seria 
porventura  mais  do  que  as  eftreitas  liberdades  da  egreja  gal- 
licana  e  as  fuás  quatro  celebradas  propofições,  menos  que 
a  mutação  da  egreja  de  Inglaterra  pelo  ciofo  poder  de  Hen- 
rique VIII,  quando  o  antigo  adverfario  de  Luthero,  o  defen- 
for  da  fé,  o  audor  da  Defeca  dos  fete  facrameutos,  fem  tocar 
na  dogmática  do  catholicifmo,  fe  infurgiu  contra  o  papado 


«|3 


e  fe  emancipou  da  lua  juriUiicção,  proclamando  a  real  lu- 
premacia  nas  coufas  efpirituaes. 

Defopprimido  de  tão  obftinados  inimigos,  quaes  eram  os 
focios  da  Companhia,  abatida  a  nobreza  nos  patíbulos,  ou 
encerrada  nos  ergaftulos,  podia  o  minirtro  innovador  conti- 
nuar fem  ludas  inteitinas  e  íem  frequentes  conjurações  a  lua 
grande  empreza  de  reformas  na  condição  intelleclual,  econó- 
mica, civil  e  Ibcial  da  íua  pátria.  Não  eftavam  porem  aquieta- 
das, nem  dirigidas  a  bom  termo  as  luas  conteftaçóes  com  o 
Vaticano.  A  neceíTaria,  mas  violenta  expulfão  dos  jefuitas, 
não  era  o  expediente  mais  propicio  a  emmudecer  os  ódios  cle- 
ricaes  ao  oufado  minilfro  portuguez.  O  papa  Clemente  XIII, 
ainda  quando  não  tora  favorável  á  Companhia,  nem  efti- 
vera  circumdado  pelos  lelantes  e  partidários  da  mais  larga 
reacção,  não  poderia  ver  com  olhos  ferenos  e  benévolos  uma 
tal  revolução  eccleliaílica  e  um  lemelhante  golpe  de  eftado, 
qual  era  a  formal  diíTolução  de  uma  ordem  religiofa  em 
Portugal  e  o  fequeftro  dos  feus  bens,  fem  que  o  pontifício 
beneplácito  confentilfe,  ou  approvaffe  previamente  uma  tão 
inufitada  e  extranha  refolução. 

Emquanto  Sebaftião  de  Carvalho,  exacerbado  pelos  hos- 
tis procedimentos  dos  romanos  jefuitas,  que  bufcavam  con- 
citar a  chriftandade  contra  o  feu  antagonifta,  precipitava  em 
Portugal  os  acontecimentos,  em  Roma  eftava  paífando  uma 
renhida  campanha  diplomática,  na  qual  o  enviado  portu- 
guez Francifco  de  Almada  feguia  pontualmente  as  inflruc- 
ções  do  miniflro,  determinado  a  impor  a  lei  ao  folio  pontifí- 
cio, ou  a  romper  com  elle  abertamente  ainda  a  rifco  de  um 
fcifma  declarado. 

Aprefentára  Francifco  de  Almada  a  Clemente  XIII  a 
fupplica  do  rei  para  que  a  mela  da  confciencia  e  ordens 
foífe  inveílida  na  jurildicção  criminal  contra  os  jefuitas  im- 
plicados no  regicídio,  e  as  peflbas  do  clero  regular  ou  fecu- 

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lar,  que  de  futuro  houveíTem  de  cair  em  crime  de  lefa-ma- 
jeftade. 

Os  jeluitas  e  os  {elaiites,  que  então  influíam  poderofa- 
mente  no  animo  do  papa,  empregavam  todos  os  artifícios 
e  recurfos  para  mallograr  no  Vaticano  as  elperanças  e  os 
defejos  da  corte  de  Liíhoa.  Em  Roma  eram  publicamente 
favorecidos  pelo  próprio  governo  pontifício  em  tudo  quanto 
podia  demonftrar  a  innocencia  dos  jeluitas  e  redundar  em 
defabono  da  coroa  de  Portugal.  O  regicídio,  que  tinha  levan- 
tado em  toda  a  Europa  um  clamor  de  geral  aflbmbro  e  in- 
dignação, não  achái"a  na  capital  do  orbe  catholico  uma  voz 
que  reprovafle  os  réus  ou  os  fautores  d'aquella  conjuração. 

Prohibia-ieem  Roma  a  reimpreíTão  dos  papeis  e  docu- 
mentos officiaes,  publicados  em  Lifboa  acerca  dos  jeluitas. 
Egualmente  le  defendia  o  imprimir-fe  e  divulgar-fe  a  fen- 
tença  da  junta  da  inconfidência,  e  o  diffundir  c[uaelquer  noti- 
cias a  refpeito  dos  lucceíTos  em  Portugal.  Faziam-fe  rigoro- 
fas  perquifíções  para  defcobrir  os  audores  dos  elcriptos,  que 
em  Roma  fe  eftampavam  contra  a  ordem  condemnada.  Da 
própria  chancellaria  pontifícal  faiam  e  circulavam  p»ela  Eu- 
ropa documentos,  em  que  hyperbolicamente  fe  traçava  o 
panegyrico  da  Companhia,  e  fe  declarava  apenas  como  um 
fruílo  da  inveja  e  da  impiedade  a  guerra  crueliíllma  a  uma 
tão  venerável  e  benemérita  corporação,  cujo  inlfituto  fe  ci- 
frava em  accrefcentar  a  gloria  de  Deus  e  prover  por  toda  a 
forte  de  piedofos  exercícios  á  falvação  dos  fíeis. 

Ainda  mefmo  quando  Clemente  XIII  não  tivera  por 
fecretario  de  eftado  um  cardeal  tão  fogofo  e  indilcreto  de- 
fenfor  dos  jeluitas,  houvera  fido  ingrata  e  dolorofa  a  íituação 
do  pontifíce  romano.  Conhecendo  a  incontraftavel  relblução 
do  miniftro  de  D.  Jofé,  e  avaliando  pelo  que  já  tinha  commet- 
tido  o  que  era  ainda  capaz  de  executar,  via  immincnte  uma 
quebra  da  boa  paz  entre  o  governo  portuguez  e  o  fummo 


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pontificado.  Repreíentava-l"e-lhe  a  outra  parte  o  prolpedo 
laftimolb  de  Icenas  lemelhantes  á  que  tivera  por  milerrimos 
adores  os  leculares  participantes  na  punida  conjuração. 
Conhecia  que  o  acceder  ás  inliancias  de  Carvalho  era  talvez 
armar  novos  patibulos  e  confiituir  a  regia  audoridade  no 
Jiís  vitae  et  necis  fobre  as  peíToas  ecclefiaíticas,  de  que  fe 
podelTe  no  futuro  lulpeitar  crime  de  alta  traição.  Temia 
como  pontifice,  e  talvez  deplorava  como  homem  de  piedofo 
coração,  que  a  didadura  judiciaria  commettida  ao  miniftro 
vingador  cruentaíTe  com  o  langue  de  no^■as  execuções  as 
vertes  facerdotaes.  Contemplava  os  jefuitas,  a  quem  amava, 
perleguidos,  infamados,  ofterecidos  ao  delprezo  e  á  irriíao 
de  todo  o  mundo.  Tremia-lhe  a  confciencia  de  que,  pela  fua 
lubmiflão  aos  defejos  de  CarNalho,  vielle  porventura  a  im- 
molar  os  que  em  fua  opinião  podiam  fer  immaculados  e  in- 
nocentes.  Ponderava  todavia  que  no  Íngreme  declivio,  em  que 
o  miniftro  defcaia  para  aífrontar  abertamente  o  poder  eccle-- 
fiaftico,  e  aíTignalar  o  leu  poder  com  as  mais  inopinadas 
e  enérgicas  demonftrações,  viria  finalmente  a  difpenfar  a 
intervenção  da  Santa  Sé  no  julgamento  dos  criminofos,  a 
quem  a  fraqueza  dos  governos  temporaes  havia  concedido 
a  immunidade.  Seria  efta  uma  nova  quebra  e  delaudoridade 
para  o  fi.tpremo  cabeça  da  egreja.  Bem  lábia  Clemente  XIII 
que  fomente  por  deferência  ao  fummo  pontifice  e  em  obe- 
diência á  tradição,  careciam  os  imperantes  do  beneplácito 
apoftolico  para  fubmetter  aos  communs  juizos  criminaes  os 
ecclefiafticos  réus  de  qualquer  crime.  Eram  numerolbs  os 
exemplos  não  fomente  de  fimples  clérigos,  mas  de  prelados, 
fobre  quem  tinha  recaído  inclemente  a  vindida  das  fentenças 
leculares.  Se  o  miniftro,  oufado  e  inflexível  como  era,  pedia 
ao  papa  a  jurifdicção  para  um  régio  tribunal,  era  confclho 
de  boa  politica  na  extraordinária  fituação,  cm  que  fe  achava 
collocado.  Era  precifo  disfarçar  os  golpes  mais  violentos  do 

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224 

poder  foberano  e  temporal  com  as  moftras  da  mais  aífeduofa 
complacência  e  filial  veneração  á  Santa  Sede,  para  que  os 
elpiritos  fanáticos  não  achaíTem  pretexto  a  exprobrar  nos  ados 
de  Carvalho  a  intenção  de  eximir-le  a  toda  a  auctoridade 
pontifícia,  e  converteíTcm  em  defejo  de  fciliiia  e  infurreição 
contra  a  catholica  unidade  o  que  era  apenas  jufta  e  neceíTa- 
ria  defenfão  dos  foros  e  prerogativas  do  império. 

Clemente  XIII  com  grande  lallima,  e  forçado  pelo  receio 
de  um  rompimento  com  a  corte  de  Lifboa,  recorreu  a  um 
expediente,  que  na  fua  imprevidência  lhe  pareceu  poderia 
conciliar  por  então  as  diíTidencias,  e  que  era  mui  ao  revez  o 
novo  combuftivel  para  alimentar  o  incêndio,  que  lavrava  no 
animo  agreíte  do  miniftro.  Fez  exarar  o  breve  Exponi  nobis, 
de  1 1  de  agofto  de  lySg,  em  que  fe  conferia  á  mefa  da  con- 
fciencia  a  jurilciicção  para  julgar  unicamente  os  eccleíiafticos 
envolvidos  no  attentado  contra  el-rei,  exceptuados  os  bifpos 
e  os  prelados  fuperiores.  Na  mefma  data  efcrevia  a  D.  Jofé 
duas  cartas,  em  lingua  italiana,  acompanhando  as  lettras 
apoftolicas.  Na  primeira  interpretava  a  cúria  a  feu  fabor 
o  que  o  governo  portuguez  lhe  communicára  na  carta  regia 
de  20  de  abril  de  1739,  dirigida  a  Clemente  XIII.  N'aquella 
epiftola  dizia  terminantemente  o  rei:  «Não  pude  deixar  de 
apartar  do  corpo  dos  meus  fieis  e  louváveis  vaíTallos  uma 
congregação,  que  tantas,  tão  cuftofas  e  repetidas  experiên- 
cias tem  moftrado  incompativel  com  a  paz  e  tranquillidade 
publica .  .  .  mandando  lair  fem  a  menor  dilação  os  fobreditos 
religiolbs  d'eftes  reinos,  onde  os  lenhores  reis  meus  prede- 
ceíTores  lhes  permittiram  a  entrada  para  edificarem,  não 
para  deftruirem » .  O  rei  de  Portugal,  em  vez  de  fiibmetter  á 
fancção  pontifical  a  expullao  dos  jefuitas,  como  fe  fora 
apenas  um  propofito  ainda  não  maduramente  deliberado, 
denunciava  pelo  contrario  a  firme  determinação  de  os  exter- 
minar, como  incorrigível  e  perigola  corporação,  qualquer  que 


225 


foíle  n'efl;e  ponto  o  parecer  do  Vaticano.  Mas  o  cardeal 
Torriggiani,  fingindo  ignorar  as  intenções  expreíTas  clara- 
mente pelo  rei,  tomava  ardilofamente  a  fuppreffão  da  Com- 
panhia em  Portugal  como  uma  queftão  propofta  á  Santa 
Sede,  para  que  lhe  concedeíTe  o  beneplácito  papal.  Agradecia 
Clemente  XIII  a  D.  Jofé  a  complacência  e  veneração,  que 
lhe  moflrava,  «pela  fabia  e  religiofa  ponderação,  com  que, 
antes  de  cumprir  uma  tão  grave  refolução,  julgara  de  ouvir 
primeiro  a  quem  por  difpofição  da  Divina  Providencia  fe 
achava  actualmente  conítituido  no  grau  de  fi.immo  facerdote 
na  egreja  de  Deus» .  Confeffava  o  pontifice  c]ue  poderia  haver 
na  ordem  dos  jefuitas  alguns,  que  houveffem  provocado  a 
regia  indignação,  mas  declarava  ao  mefmo  tempo  fer  neces- 
fario  dirtinguir  entre  as  peíToas  dos  jefuitas  e  o  inftituto  que 
profeílam.  Proteftava  com  fentidas  moítras  de  finceridade 
o  feu  defejo  de  que  foíTem  punidos  os  culpados.  Mas  force- 
java em  perfuadir  que  muitos  deveriam  fer  os  innocentes 
n'uma  tão  numerofa  fociedade,  que  militava  em  uma  regra 
de  tanta  perfeição.  Seguia-fe  o  elogio  eloquente  da  Compa- 
nhia de  Jefus,  a  larga  enumeração  dos  feus  méritos  e  fervi- 
ços,  a  memoria  da  approvação,  que  merecera  a  muitos  papas, 
ao  concilio  ecuménico  de  Trento,  e  aos  príncipes  temporaes; 
a  commemoração  dos  heroes  chriflãos,  que  faídos  d'efte 
grémio  gloriofo  eram  venerados  nos  altares,  e  a  muitos  dos 
quaes  o  rei  de  Portugal  fagrava  uma  terna  devoção.  Reco- 
nhecia o  papa  que  o  inftituto  venerando  poderia  ter  por- 
ventura padecido  alguma  corrupção  pela  fraqueza  ingenita 
da  natureza  humana.  Aconfelhava,  porém,  ao  governo  por- 
tuguez  que  profeguiíTe  na  viílta  e  reforma  commettida  por 
Benedicto  XIV  ao  cardeal  Saldanha,  e  chegada  que  foífe 
ao  feu  complemento,  fe  poderiam  caftigar  os  delinquentes 
e  extirpar  da  Companhia  «tudo  quanto  lhe  podeífe  efcurecer 
a  fantidade  e  o  bom  nome».  A  peroração  era  encaminhada 


226 

a  perfuadir  ao  rei  de  Portugal  que  acceitaíTe  os  confelhos 
paternaes  do  lummo  facerdote. 

Na  fegunda  carta,  efcripta  ainda  em  termos  de  maior 
louvor  e  cortezia  para  o  Ibberano  portuguez,  affirmava  Cle- 
mente XIII  que  de  bom  grado  concederia  á  mela  da  con- 
fciencia  a  Ibllicitada  jurifdicção,  porque  no  efpirito  da  egreja 
não  eftivera,  nem  eftaria  nunca  o  lubtrahir  os  delinquentes  de 
qualquer  eítado  ou  ordem  ás  penas  merecidas  pelas  fuás 
abominaç(5es.  Accrefcentava  o  pontífice  logo  em  feguida  que 
a  manfidão  e  o  horror  aos  cruentos  fupplicios  era  egual- 
mente  um  diftinítivo  da  egreja.  Exhortava  pois  o  rei  a  que  fe 
fizeíTe  mediador  entre  a  mifericordia  e  a  juftiça,  fufpendendo 
o  braço  dos  verdugos,  para  que  fe  não  déífe  á  chriftandade, 
e  principalmente  ao  piedofo  coração  do  pae  commum  dos 
fieis,  o  efpedaculo  aífrontofo  de  ver  punido  no  cadafalfo 
algum  miniftro  dos  altares,  tanto  mais  miferavel,  quanto 
mais  réu.  E  por  efta  clemência  do  monarcha  lhe  antecipava 
o  pontífice  os  mais  fervorofos  teftemunhos  da  fua  gratidão. 

A  primeira  carta  era  fem  duvida  um  impolitico  docu- 
mento, mais  próprio  a  exulcerar  o  animo  do  rei  e  a  ira  de 
Carvalho,  do  que  a  mitigar  as  abertas  diíTidencias  entre 
Portugal  e  a  Santa  Sede.  Proferir  o  encómio  dos  jefuitas  na 
própria  conjuncção,  cm  que  o  governo  portuguez  com  elles 
fe  empenhara  n'uma  luda  fem  quartel,  era  levar  Clemente 
XIII  não  fó  a  ver  defattendidos  e  reprovados  os  feus  confe- 
lhos, mas  a  fcr  tido  por  amigo  apaixonado  e  imprudente 
da  ordem  abominada,  e  quali  por  feu  cúmplice  e  fautor.  Na 
fegunda  epiftola,  porém,  o  p»ontifice  romano  mantinha  digna- 
mente o  feu  logar.  Como  obrigado  a  auxifiar  a  juftiça  tempo- 
ral contra  os  crimes  das  peífoas  ecclefiafticas,  via-fe  forçado 
a  armar  contra  facerdotes  o  braço  tremendo  dos  juizes  fecu- 
lares.  Mas  como  vigário  de  Chrifto,  que  fempre  aborrecera 
a  effufão  de  fangue  humano,  como  homem  de  piedofos  fen- 


ela 


227 

timentos  e  de  Iene  condição,  impendia-lhe  o  dever  de  fe 
interpor,  quaíi  de  joelhos,  entre  o  algoz  e  as  fuás  viítimas, 
que  pouco  antes  ainda  otfereciam  nos  altares  o  incruento 
facrificio. 

O  que  ao  elpirito  de  Carvalho  fe  afigurou,  ainda  mais 
que  o  breve  e  as  duas  cartas,  extranho  e  offenfi-so  á  majes- 
tade e  foberania  temporal,  foi  a  memoria  aprefentada  pelo 
núncio  Acciajuoli,  arcebifpo  de  Petra,  a  D.  Luiz  da  Cunha, 
fecretario  de  eítado  dos  negócios  extrangeiros.  N'efte  papel, 
que  viera  de  Roma  já  efcripto,  fe  commentava  a  doutrina 
do  breve  e  das  miíTivas  do  pontífice  a  el-rei.  Profeílava  o  nún- 
cio ou  o  cardeal  Torriggiani,  como  um  dogma,  que  as  peíloas 
ecclefiafticas  fó  deviam  fer  julgadas  por  outras  da  mefma  hie- 
rarchia;  que  o  papa  teria  defejado  que  um  ecclefiaftico  de 
eminente  dignidade,  o  próprio  núncio,  ou  um  cardeal  legado 
prefidiífe  á  mefa  da  confciencia  no  proceflb  dos  jefuitas;  que 
para  não  dilatar  porém  a  expedição  de  negocio  tão  urgente, 
difpenfára  e  preterira  todas  as  difpofições  canónicas  e  con- 
fentira  finalmente  em  commetter  a  um  juizo  fecular  o  conhe- 
cer dos  crimes  imputados. 

O  breve  Exponi  nobis  e  as  duas  epiftolas  pontificaes  ha- 
viam fido  de  Roma  direitamente  defpachadas  ao  núncio  de 
Lifboa,  fem  que  do  feu  teor  fe  houveífe  dado  conhecimento 
ao  enviado  portuguez  junto  do  papa.  Sabia  o  cardeal  Torrig- 
giani que  Francifco  de  Almada  não  acceitaria,  para  as  enviar 
ao  feu  governo,  as  Icttras  apoítolicas  na  fórma,  em  que 
vinham  exaradas. 

Carvalho,  porém,  tivera  d'ellas  antecipado  conhecimento 
por  um  fucccífo  extraordinário.  O  correio  pontificio,  que  trazia 
a  Portugal  a  correfpondencia  para  o  núncio  de  Lifboa,  fora 
feguido  de  um  correio,  defpachado  pelo  enviado  de  Portugal. 
Enfermando  o  menfageiro  da  cúria  em  Aix  de  Provença,  deu 
traças  o  poítilhão  portuguez  para  que  o  leu  companheiro,  inhi- 


228 

bido  de  feguir  a  Ília  jornada,  lhe  confiaíTe  os  papeis  cerrados 
e  lacrados,  de  que  era  portador.  Chegado  a  Lif  boa,  cntrega-os 
defde  logo  a  Sebaftião  de  Carvalho.  Abre-os  o  miniftro  na 
officina,  em  que  defde  os  tempos  de  D.  JoãoV,  por  indus- 
tria do  fagaz  Alexandre  de  Gufmão,  fe  devaffava  toda  a 
correfpondencia  dos  miniftros  extrangeiros  em  Lifboa,  tor- 
nando a  fechal-a  fem  nenhum  indicio  da  commettida  viola- 
ção. Lê  os  defpachos.  Affombra-fe,  indigna-fe,  enfurece-fe. 
Refolve  em  continente  que  o  rei  não  acceite  o  breve  injuriofo 
á  fua  independente  foberania.  Entrega  ao  núncio  a  correfpon- 
dencia, que  de  Roma  lhe  vinha  dirigida.  Pede  o  reprefentan- 
te  pontifício  uma  audiência  para  entregar  as  lettras  apoítoli- 
cas,  remette  as  copias  ao  fecretario  de  eftado.  Apraza-fe  o  dia 
em  que  D.  Jofé  receberá  o  núncio,  com  a  expreíTa  prohibi- 
ção  de  lhe  aprefentar  o  breve,  que  não  tendo  fido  communi- 
cado  a  Francifco  de  Almada,  nem  com  elle  concertado,  não 
pôde  fer  recebido  em  Portugal.  Infifte  o  arcebifpo  de  Petra 
em  cumprir  as  ordens  do  pontifice,  entregando  a  el-rei  as  let- 
tras apoftolicas.  Medeia  entre  o  núncio  e  o  governo  uma  cor- 
refpondencia, em  que  porfiam  egualmente,  o  fecretario  de 
eftado  em  manter  o  decoro  da  coroa  portugueza,  o  núncio 
em  depor  nas  mãos  do  rei  o  breve  do  fanto  padre. 

Emquanto  fe  paliavam  eftes  debates,  Sebaftião  de  Car- 
valho meditava  contra  Roma  as  fuás  terríveis  reprefalias. 
Procurava  o  núncio  em  vão  tratar  com  elle  direitamente. 
Efcufava-fe  o  miniftro,  não  lhe  querendo  acceitar  fequer  uma 
memoria.  De  tal  maneira  fe  difpozeram  os  negócios,  que  ape- 
far  de  fer  recebido  em  audiência,  não  logrou  o  arcebifpo  de 
Petra  que  o  rei  lhe  recebeffe  o  maífo,  em  que  vinham  incluí- 
dos juntamente  o  breve  pontifício  e  as  cartas  particulares. 

Ás  matérias  inflammaveis,  que  ateavam  cada  vez  mais 
o  incêndio  na  queftão  dos  jefuitas,  accrefcia  como  epifodio 
uma  nova  conteftação  entre  o  governo  portuguez  e  oVatica- 


229 

no.  O  arcebifpo  da  Bahia,  D.  Jofé  Botelho  de  Mattos,  havia 
dado  provas  inequivocas  da  fua  parciahdade  em  fa^'or  dos 
jefuitas  no  Brazil.  Carvalho  não  era  eííadifta,  que  podeíTe  to- 
lerar, ainda  no  prelado  mais  infigne,  a  defobediencia  ás  luas 
intimações.  Incorreu  defde  logo  o  arcebifpo  no  régio  defa- 
grado.  Forçado  pela  vontade  enérgica  do  miniftro,  refignou  o 
arcebifpado.  Aprelentou  a  coroa  de  Portugal  na  fé  vacante 
o  bifpo  de  Angola,  D.  Fr.  Manuel  de  Santa  Ignez.  Era  defde 
logo  manifefto  que  na  corte  pontifícia  fe  não  expediriam  as 
bulias  ao  novo  metropolita.  Allegava  a  cúria  não  confiar  a 
renuncia  do  legitimo  prelado. 

Taes  eram  as  relações  acerbas,  quafi  raiando  em  agra  e 
indómita  hoftilidade,  em  que  fe  achava  a  eíla  fafão  o  gover- 
no portuguez  com  o  chefe  do  catholicifmo.  De  um  lado  o 
ódio  entranhavel  não  fomente  contra  os  jefuitas  de  Portugal, 
fenão  contra  a  indivifa  fociedade,  do  outro  o  máximo  favor 
á  ordem  exterminada.  De  uma  parte  a  mefma  perfeverante 
refolução  de  manter  fem  quebra,  nem  limite  a  guerra  come- 
çada, da  outra  o  mefmo  impolitico  propofito  de  enredar  em 
delongas  diplomáticas,  e  nas  phrafes  artificiofas  e  mellifluas 
da  chancellaria  papal  uma  difcordia,  em  que  já  fe  não  via 
meio  de  poíTivel  conciliação. 

Vendo  Sebaítião  de  Carvalho  que  o  breve  não  refpon- 
dia  precifamente  á  petição  do  procurador  da  coroa,  e  que 
por  meio  d'elle  não  ficava  audorifado  pela  corte  pontifícia  a 
proceder  contra  novos  réus  conftituidos  em  dignidade  eccle- 
fiaítica,  mandou  novas  inftrucções  a  Francifco  de  Almada, 
para  que  expozeíTe  a  Clemente  XIII  as  razões,  que  auclorifa- 
vam  o  governo  portuguez  a  negar  a  lua  acceitação  ás  lettras 
pontifícias.  Todos  eftcs  fundamentos  foram  \igorofamente 
fubftanciados  na  pro-memoria  dirigida  ao  reprefentante  de 
Portugal  junto  do  papa,  em  i  5  de  feptembro  de  ij5g.  K'efí.e 
documento  fe  referia  como  o  núncio,  apefar  de  reiteradas  in- 


c|3 


timações  para  que  fomente  aprefentalTe  a  D.  Jofé  as  cartas 
do  pontífice,  porém  não  o  breve  Exponi  nobis,  perfiftíra  te- 
nazmente no  feu  propofito  de  o  fazer  acceitar  á  corte  de  Lis- 
boa contra  a  fua  expreíTa  e  terminante  negação  de  o  receber. 
Proclamava-fe  que  o  breve  fendo,  como  era,  contraditório 
com  o  indulto  que  fe  pedia,  era  forçofamente  obrepticio  e 
fubrepticio,  exarado  em  nome  do  paftor  fupremo  fem  o 
feu  conhecimento.  Pedia-fe  a  mais  completa  fatisfação  aos 
aggravos  n'efl:e  aífumpto  recebidos  pela  coroa  de  Portugal. 
Queixava-fe  o  governo  amargamente  do  núncio  e  dos  proce- 
dimentos do  cardeal  Torriggiani,  fecretario  de  efiado  pontifi- 
cio.  Concluia-fe  pedindo  ao  papa  que  expediíle  um  novo 
breve  com  as  claufulas  amplilTimas,  que  invéftiífem  a  mefa 
da  confciencia  na  perpetua  jurifdicção  fobre  os  clérigos  réus 
de  lefa-majeftade. 

A  cúria,  com  a  fubtileza  habitual  da  fua  chancellaria,  pa- 
receu a  principio  deferir  á  nova  fupplica,  ou  antes  peremptó- 
ria intimação.  Nomeia  o  papa  Clemente  XIII  ao  cardeal  Ca- 
valchini  para  tratar  direitamente  com  o  enviado  portuguez, 
afaftando  afllm  da  negociação  o  cardeal  Torriggiani,  o  defen- 
for  enthuíiafta  da  Companhia  e  o  fogofo  inimigo  de  Portugal. 
A  pouco  trecho,  porém,  depois  de  encetadas  as  negociações, 
apparece  improvifamente  o  cardeal  fecretario  de  eftado  a 
ingerir-fe  novamente  na  pendência.  Os  jefuitas,  fufpeitando 
no  juizo  conciliador  e  difcreto  do  Cavalchini  um  damno  irre- 
parável á  fua  caufa,  haviam  dado  traças  para  que  o  papa  fe 
demoveífe  do  feu  primeiro  intento.  No  officio  de  28  de  no- 
vembro de  1759,  expedido  a  Francifco  de  Almada,  advoga  o 
cardeal  Torriggiani  com  ardente  e  impetuofa  indifcrição  as 
doutrinas,  que  na  fituação  embaraçofa  dos  negócios  eram  as 
mais  accommodadas  a  elevar  ao  grau  extremo  a  irritação  do 
minirtro  de  D.  Jofé.  Suftentava  o  romano  eftadifia  que  nunca 
em  tempo  algum  fe  haviam  concedido  á  mefa  da  confciencia 


as  amplas  faculdades,  que  pedia  o  governo  portuguez.  De- 
fendia o  íecretario  de  eftado  do  pontífice  o  procedimento  do 
feu  núncio  em  Portugal,  e  ás  queixas  contra  elle  formuladas 
retorquia  com  outras  mais  acerbas  contra  o  enviado  portu- 
guez. Infiltia  o  cardeal  Torriggiani  não  fomente  na  defeza, 
mas  no  mais  amplificado  panegyrico  dos  méritos  e  dos  fervi- 
ços,  pelos  quaes  o  inftituto  jefuitico  fe  tornara  merecedor  da 
protecção  de  muitos  papas,  e  fingularmente  acredor  á  bene- 
volência de  Clemente  XIII.  E  declarando  n'efi:e  aíTumpto  in- 
variáveis os  fentimentos  do  pontífice,  capitulava  de  remédio 
eflficaciífimo  aos  abufos  da  Companhia  a  reforma  commet- 
tida  por  Benedido  XIV  ao  cardeal  Saldanha.  As  palavras  do 
cardeal  fecretario  de  eftado  queriam  dizer  litteralmente  que 
o  pontífice  perfeverava  tenaciffimo  em  negar  ao  governo 
portuguez  as  requeridas  faculdades;  contradizia  e  abomina- 
va as  providencias  adoptadas  contra  os  jefuitas,  que  na  opi- 
nião da  cúria  continuavam  a  fer  coUedivamente  uma  ordem 
benemérita,  fe  bem  um  ou  outro  dos  léus  membros  podeíTe 
carecer  de  emenda  e  correcção.  Era  pois  uma  clara  demons- 
tração de  hoftilidade,  embora  vieíTe  condimentada  com  pa- 
lavras de  execração  contra  o  intentado  regicídio,  e  com  phra- 
les  benevolentes  ao  rei  de  Portugal.  Sebaftião  de  Carvalho 
tomou  como  um  defcoberto  rompimento  o  papel  da  chan- 
cellaria  pontifical,  e  preparou-fe  defde  logo  para  affrontar  as 
confequencias  infalliveis  de  uma  fcifão  com  o  Vaticano. 

O  reprefentante  portuguez  em  Roma,  provavelmente  por 
infinuação  do  feu  governo,  declarando  porém  que  ia  exce- 
der os  feus  poderes,  alvitrou  a  4  de  dezembro  um  expe- 
diente, que  lhe  parecia  encaminhar  a  feliz  termo  a  dilatada 
negociação.  Propoz  que  foíTe  concedida  á  mefa  da  confcien- 
cia  a  faculdade  de  proceder  até  pena  capital  inclufivamcnte 
contra  os  facerdotes  implicados  no  regicídio;  e  que  para  os 
futuros  crimes  de  Icfa-majcftade  foíTe  invertido  o  mefmo  tri- 


tia 


232 

bunal  em  egual  jurifdicção,  comtanto  que  n'elle  houveíTe  de 
prefidir  alguma  pelToa  conftituida  em  dignidade  ecclefiaftica, 
recaindo  a  nomeação  em  peíToa  acceita  ao  rei.  Em  termos 
peremptórios  exigia  o  plenipotenciário  portuguez  uma  prom- 
pta  refolução. 

Aqui  principiaram  novamente  as  delongas  do  Vaticano. 
Após  alguns  preliminares  entre  o  Almada  e  o  Torriggiani, 
deputou  novamente  o  papa  ao  cardeal  Cavalchini  para  entrar 
em  conferencias  com  o  reprefentante  de  Portugal.  Entrega- 
Ihe  a  minuta  de  um  novo  bre\e,  em  que  até  certo  ponto  a 
cúria  condefcendia  com  os  defejos  do  governo  portuguez. 
Mas  eíte  diploma  fazia  referencia  ao  breve  Exponi  nobis, 
como  fe  de  feito  houvera  fido  acceito  e  reconhecido  pelo  go- 
verno de  Portugal,  e  vinha  exarado  por  tal  forma,  que  não 
podia  fer  approvado  pelo  Almada  fem  algumas  correcções. 
Da  fua  lettra,  ainda  não  conforme  inteiramente  á  foberania 
e  majeftade  portugueza,  parecia  ao  menos  inferir-fe  que  dei- 
xara finalmente  de  mefclar-fe  na  queftão  o  cardeal  Torrig- 
giani, o  ardilofo  antagonifta  de  Sehaftião  de  Carvalho.  Man- 
da Francifco  de  Almada  as  emendas,  que  fe  lhe  afiguram 
neceíTarias.  Continuam  por  alguns  dias  as  negociações.  Mas 
não  parece  ainda  propinqua  a  favorável  conclufão.  A  27  de 
dezembro  apparece  de  novo  o  fecretario  de  eítado  pontificio 
como  ador  n'efta  pendência,  feparado  já  da  negociação  o 
cardeal  pro-datario  Cavalchini.  Remette  a  Francifco  de  Al- 
mada a  minuta  de  um  breve,  aíTeverando  que  o  rei  de  Por- 
tugal ficaria  plenamente  fatisfeito  com  a  fua  forma  e  redac- 
ção. As  novas  lettras  apoftolicas  eram,  comtudo,  com  algu- 
mas variantes  mui  ligeiras,  a  copia  da  minuta  aprefentada 
pelo  cardeal  Cavalchini.  N'ellas  fe  perfiítia  em  dar  por  fub- 
fiftente,  como  fe  houvera  fido  acceito,  o  breve  Exponi  nobis. 
Exceptuada  eífa  claufula  fundamental,  oífenfiva  para  o  de- 
coro de  Portugal,  e  julgada  indifpenfavel  á  dignidade  ponti- 


4tU 
-0-%^ 


233 


ficia,  o  breve  concedia  o  que  Sebaítião  de  Carvalho  havia 
follicitado.  A  cúria  dobrava  a  cerviz  ao  infatigável  accufa- 
dor  dos  jefuitas,  ao  miniftro  pertinaz  e  indomável,  com  a 
condição  de  que  lhe  deíTem  como  realmente  recebido  o  bre- 
ve Exponi  nobis,  que  elle  houvera  por  ignominiofo  admit- 
tir  como  verdadeira  e  legitima  expreíTão  do  arbitrio  do  pon- 
tífice. Era  de  fi  manifefto  que  a  nova  minuta  fabricada  fob 
os  aufpicios  do  cardeal  Torriggiani  vinha  engravecer,  em 
vez  de  melhorar,  a  fituação. 

Era  fácil  o  prever  n'aquella  conjundura  que  não  haveria 
humano  expediente,  que  podeíTe  atalhar  o  rompimento.  No 
lundo  e  fubftancia  da  negociação,  que  parecia  apenas  uma 
contenda  fobre  formulas  de  chancellaria,  apparecia  realmen- 
te uma  queftão  mais  grave  e  mais  diíficil,  em  que  os  dois 
antagoniítas  nem  um  ápice  eftavam  difpoftos  a  ceder.  Nem, 
fi.ippoftos  os  precedentes  das  perfonagens  litigantes,  e  a  eíTen- 
cia  do  aíTumpto  debatido,  era  poílivel  nenhum  accordo  ou 
conciliação.  O  que  fe  controvertia  realmente  entre  Sebaftião 
de  Carvalho  e  o  fecretario  de  eftado  Torriggiani,  ou  mais 
exadamente  entre  o  miniftro  de  D.  Jofé  e  o  papa  Clemente 
XIII,  eram  os  erros  e  os  crimes  da  chamada  Companhia  de 
Jeíus;  entre  Sebaftião  de  Carvalho,  que  a  feguia  e  perfeguia 
nos  abrigos  e  nos  redudos,  aonde  bufcava  refugio  para  mais 
a  leu  feguro  combater,  e  o  pontífice  romano,  que  procurava 
eximil-a  ao  ultimo  naufrágio,  acolhendo-a  na  barquinha  de 
S.  Pedro,  confagrando-a  folemnemente  como  inftituição  es- 
fencial  ao  moderno  catholicifmo.  Um  accufava-a  tenaz- 
mente, exaggerando  ás  vezes  porventura  os  feus  grandes 
maleficios.  O  outro  não  hefitava  em  facrificar  a  paz  da  egreja 
á  confervação  e  luzimento  do  inftituto  reprovado.  Entre  a 
affirmação  e  a  negação  fubfiftia  perennemente  uma  infoluvel 
antinomia.  Entre  a  cxiftencia  da  Companhia,  com  os  vicios 
inlanaveis  e  orgânicos  da  ília  própria  conftituição,  e  a  fua 


234 

total  abolição,  e  extermínio  não  havia  eftadifta,  nem  theolo- 
go,  a  quem  fe  deparaíTe  o  meio  termo.  Demais,  a  ordem 
egoifta  e  invalora  eftava  irremiflivelmente  profcripta  de  Por- 
tugal. O  corpo  ainda  exillia  na  chriftandade,  mas  vivia 
decepado  de  um  dos  léus  membros  mais  valiofos,  quaes 
eram  as  províncias  religiolas  na  metrópole  e  nos  vaftos  domí- 
nios de  Portugal.  O  miniftro  inflexível  nas  fuás  refoluções 
não  podia  lequer  ouvir  fallar  em  jefuitas,  fem  que  no  peito 
lhe  ferveíTe  a  indignação.  N'elle  a  razão  de  eftado  viera 
a  converter-fe  em  paixão  intratável,  perliítente,  inacceffivel 
a  uma  Ibmbra  fequer  de  compofição.  Como  poderia  pois 
acceder  a  que  as  portas  de  S.  Roque  e  Santo  Antão  fe 
abriíTem  novamente  para  que  ali  fe  tramaífem,  fenão  as  ar- 
madas conjurações,  ao  menos  os  meneios  inquietos  e  os 
enredos  fubterraneos,  que  impediam  a  cada  paífo  em  fuás 
reformas  o  império  temporal,  e  turbavam  no  púlpito,  no 
conflífionario  e  na  cadeira  magíítral  as  confciencias  timora- 
tas e  os  obfcuros  entendimentos?  E  todavia  o  papa  Cle- 
mente XIII  reiterava  os  defejos  e  as  inftancias,  não  para  que 
fobre  os  erros  dos  jefuitas  em  Portugal  lançaífe  o  rei  em 
nome  da  clemência  o  manto  generofo  do  perdão,  mas  em 
nome  da  juftiça  e  da  verdade  coroaíTe  com  a  laura  facro- 
fanta  dos  mais  piedofos  confeífores  da  fé  chriftan  as  virtudes 
heróicas  da  calumniada  Companhia.  Sebaftião  de  Carvalho 
pedia  contra  os  jefuitas  a  execração  e  os  fogos  da  Gehenna 
como  a  dignos  companheiros  de  Datan  e  Abiron.  O  papa 
Clemente  XIII  refpondia  reverberando-lhes  na  fronte  a  luz 
etherea  do  celefte  paraizo,  como  a  focios  benemerentes  de 
Jefus.  Carvalho  não  podia  remittir  a  fua  animadverfão  aos 
jefuitas,  como  quem  reprefentava  na  fua  mais  fevera  perfo- 
níficação  o  poder  temporal  exempto  de  fervidões  ecclefias- 
ticas.  O  papa  não  fabia  defcer  do  feu  aífedo  aos  jefuitas, 
como  quem  reprefentava  em  anachronica  figura  as  preten- 


235 

ções  temporaes  do  luprcmo  lacerdocio  nos  leculos  mais  efcu- 
ros  da  velha  autocracia  pontifical.  Sehaftião  de  Can^alho 
prefigurava  em  pleno  abfolutifmo  a  Ibciedade  civil  emanci- 
pando-le  da  tutela  clerical.  No  leu  animo  altivo,  indomável 
e  imperiofo  não  cabia  a  vocação  de  exercitar  no  feculo  xviii, 
no  feculo  da  reA'olução  e  da  philofophia,  na  edade  áurea  da 
duvida  e  da  negação,  o  papel  inglório  do  imperador  Henri- 
que IV,  recebendo  em  CanoíTa,  coberto  de  cinza  e  de  cilicio, 
os  golpes  do  flagello  pontifício. 

O  papa  Clemente  XIII  principiava  a  ferie  d'eftes  moder- 
nos pontífices  paradoxaes,  que  fazendo-fe  os  cavalleiros  an- 
dantes da  foberania  da  tiara  fobre  os  governos  temporaes,  fe 
empenharam  em  revocar,  no  meio  da  luz  e  da  fciencia,  os 
dias  tenebrofos  de  Gregório  VII.  Sebaftião  de  Carvalho  tem 
o  mérito  fingular  de  fer  o  primeiro  eftadifta,  que  fe  levantou 
para  conter  nos  limites  da  pura  efpiritualidade  o  poder  eccle- 
fiaftico,  para  difputar  abertamente  ao  pontificado  o  direito 
que  fe  arrogara  de  intervir  nas  queftões  meramente  feculares 
como  fupremo  e  univerfal  moderador  na  repubhca  da  chris- 
tandade,  para  conceder  ao  pontífice  romano  o  feu  primado  de 
ordem  e  de  jurifdicção,  negando-lhe  porém  a  fobrehumana 
prerogativa  de  ecuménico  e  irrefponfavel  didador.  Foi  o 
primeiro,  que  teve  por  fyftema  o  coagir  o  clero  a  cumprir  o 
preceito  de  S.  Paulo,  e]uando  na  epiftola  aos  romanos  ex- 
hortava  os  chrifi:ãos  a  obedecer  aos  poderes  conftituidos, 
n'aquellas  palavras  terminantes :  « Omnis  anima  fubdita  Jit 
potcjlatibus  fiiblimioribus^ .  E  verdade  que  antes  de  Carvalho, 
muitos  príncipes  c  republicas  haviam  contendido  com  o 
Vaticano;  nenhum  d'ellcs,  porém,  havia  perfeverado  na  porfia 
defegual.  A  edade  media  do  fummo  pontificado,  com  as  pre- 
tenções  de  Gregório  VII,  de  Innocencio  III,  de  Bonifácio VIII, 
continuara  a  perfifiir  vidoriofa  até  pleno  feculo  xviii.  Os 
jefuitas  haviam  tido  por  empenho  glorificar  e  engrandecer 


eis 


c|3 


236 

a  monarchia  univerfal  do  pontífice  romano.  A  fraqueza  e  o 
fanatifmo  dos  governos  temporaes  contribuíra  a  perpetuar  as 
crelcentes  invafões  do  facerdocio  febre  o  império,  embora 
regaliftas  eminentes  pleiteaíTem  fervorofos,  em  nome  do 
direito  e  da  razão,  em  favor  da  foberania  fecular.  Carvalho 
é  o  primeiro  que  oufa  affrontar-fe  com  o  Vaticano,  e  dizer 
ao  facerdote-rei :  »0  reino  de  Jefu  Chriífo  não  é  d'efte 
mundo,  e  o  feu  vigário  não  pôde  conquiftar,  nem  poíTuir  nas 
mundanas  regiões  o  que  o  mefmo  inftituidor  da  egreja  defen- 
deu e  condemnou  como  odiofa  profanação  das  coufas  efpiri- 
tuaes».  E  na  verdade  atravez  da  queftão  dos  jefuitas  furgia 
vifivelmente  outro  problema  de  mais  fecundos  corollarios. 
Era  o  da  profunda  feparação  entre  a  fociedade  civil,  como 
grémio  puramente  humano  e  terrenal,  e  a  fociedade  religiofa, 
como  grei  exclulivamente  confagrada  aos  fins  efpirituaes  e 
tranfmundanos.jTodos  os  feitos  de  Carvalho  fe  encaminham 
a  efte  alvo  durante  a  fua  larga  adminiftração,  todos  fe  con- 
globam e  unificam  n'efte  principio  eífencial  ao  progreífo,  á 
paz,  á  civilifação  da  humanidade. 

Por  iífo  o  athleta  inquebrantável,  a  cada  nova  arremet- 
tida  do  feu  antagonifta,  refponde  vibrando  um  novo  golpe. 

As  negociações  em  Roma  profeguidas  pelo  enviado 
portuguez  Francifco  de  Almada,  não  davam  a  minima  efpe- 
rança  de  chegar  ao  termo  defejado. 

Mas  emquanto  o  ^'^aticano  fe  empenhava  em  contradizer 
as  inftancias  de  Portugal,  um  fucceífo  inopinado  vinha  com- 
plicar as  relações  já  quafi  hoftis  entre  Carvalho  e  a  Santa 
Sede.  O  núncio  Filippe  Acciajuoli,  arcebifpo  de  Petra,  era 
em  Lifboa  o  mais  perigofo  e  perfeverante  adverfario  do 
miniftro  portuguez.  Era  notória  a  protecção,  que  dera  fempre 
aos  jefuitas,  e  a  eftreita  ligação,  em  que  vivia  com  todos  os 
defcontentes  e  inimigos  de  Carvalho.  O  feu  procedimento 
havia  concitado  mais  do  que  o  defprazer,  a  animadverfão 


c|9 


do  grande  propugnador  das  immunidades  temporaes.  Aífe- 
ctando  grande  moderação  e  luavidade  nas  maneiras,  como 
é  condão  efpecial  de  romanos  diplomatas,  e  feduzindo,  como 
dizia  o  embaixador  francez,  pelo  encanto  da  fua  converfa- 
ção,  não  era  parco  em  aproveitar  as  circumftancias  para  con- 
trariar quanto  podeífe  as  intenções  do  minifterio  e  aflbprar 
clandeftinamente  o  incêndio,  que  lavrava  contra  elle.  A  fua 
pofição  na  corte  de  Lifboa  viera  a  ler  em  tal  maneira  humi- 
liante,  que  o  miniíiro  principal  evitava  cautelolamente  o 
conferir  com  elle  algum  negocio  '. 

O  rei  não  parecia  fer  mais  benévolo  com  o  núncio  do 
que  o  feu  primeiro  fecretario  de  eftado,  nem  fe  preftava  a 
recebel-o  fenão  em  audiência  official-.  O  miniftro  via  com 
maus  olhos  que  os  reprefentantes  extrangeiros,  e  principal- 
mente o  embaixador  francez,  infigne  defenfor  dos  jefuitas  em 
Lifboa,  cultivaífem  com  o  núncio  íntimas  e  frequentes  rela- 
ções'.  Apefar  da  nenhuma  confiança,  que  infpirava  o  ardilofo 
curial  ao  governo  portuguez,  e  das  queixas,  que  d'elle  tinha 
feito  á  corte  de  Roma,  o  arcebifpo  de  Petra  havia  fido  con- 
decorado com  a  purpura  cardinalícia  em  feptembro  de  lySg, 
na  própria  occafiáo,  em  que  eram  mais  inftantes  contra  elle 
os  aggravos  de  Carvalho.  O  pontífice  Clemente  XIII  quizera 
galardoar  d'efta  maneira  a  foro  de  beneméritos  os  ferviços 
do  prelado.  Era  pois  uma  aggreífão  á  coroa  de  Portugal  e 
uma  no-sa  difíiculdade  ao  reftabelecimento  de  amigáveis 
relações. 


'  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Merle,  para  o  feu  governo,  de 
14  de  agofto  de  i/Sg.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  iSy. 

2  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Merle,  para  o  feu  governo,  de 
M  de  feptembro  de  \~ig-  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  i63. 

3  Officio  do  embaixador  francez,  conde  de  Merle,  para  o  feu  governo,  de 
8  de  janeiro  dé  1760.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  184.  —  Officio  do  mes- 
mo embaixador,  de  í  de  fevereiro  de  1760,  ihid.,  pag.  199. 

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ti»  elí 


238 

O  calamento  da  princeza  do  Brazil  com  o  infante  D.  Pe- 
dro, irmão  do  rei,  depois  de  muitas  delongas,  que  o  tinham 
eítorvado,  veiu  finalmente  a  realifar-fe  a  6  de  junho  de  1 760. 
Carvalho  conhecendo  defde  muito  na  princeza  o  animo  pro- 
penfo  á  exaggerada  piedade,  ou  antes  ao  mórbido  fanatifmo, 
deíejára  ter-lhe  dado  por  efpofo  um  homem  de  efpirito  illu- 
minado,  que  podeíTe  contrapelar  o  pendor  innato  para  as 
indilcretas  devoções  e  para  a  cega  obediência  aos  influxos 
clericaes.  O  infante  D.  Pedro  era,  como  quafi  fempre  fuccedeu 
em  Portugal  com  os  fecundo-genitos  da  cafa  de  Bragança,  o 
chefe  mais  ou  menos  oftenfivo  da  opipoíição,  um  manifefto 
fautor  dos  jefuitas,  um  patrono  e  parcial  da  nobreza  ambi- 
ciofa  e  deípeitada.  Bem  fe  podia  já  adivinhar  que  ao  chegarem 
ao  throno  os  dois  efpofos,  então  feria  uma  alleluia  para  toda 
a  reacção  politica  e  religioía.  Se  Carvalho  podéra  evitar  um 
enlace  tão  funefto  á  illuftração  de  Portugal,  teria  empenhado 
os  feus  esforços  em  o  diíTuadir  e  reprovar.  Mas  n'efte  ponto 
o  animo  do  rei  deixou-le  aíToberbar  pelos  refpeitos  da  famí- 
lia, e  o  conforcio  veiu  reflorir  a  elperança  e  a  oufadia  nos 
inimigos  de  Carvalho.  N'aquelle  tempo  as  feftas  dos  reinan- 
tes eram  dias  de  obrigado  jubilo  offlcial  para  todo  o  povo. 
Os  efcravos  deviam  tripudiar,  quando  os  príncipes  lhes  aíTe- 
guravam  em  fuás  núpcias  aufpiciofas  a  fuprema  ventura  de 
ter  no  futuro  um  novo  defpota.  Decretaram-fe  pois  três  dias 
de  luminárias  para  celebrar  o  feliz  acontecimento. 

O  núncio,  já  então  cardeal  da  fanta  egreja  romana,  fora 
tratado  pela  corte,  como  fe  não  fofle  príncipe  eccleíiallico, 
nem  reprefentante  do  papa,  rei  de  Roma.  Não  fe  lhe  havia 
participado  o  cafamento  da  princeza,  nem  o  miniftro  dos 
negócios  cxtrangeiros,  D.  Luiz  da  Cunha,  o  tinha  convidado 
para  o  banquete  dado  ao  corpo  diplomático.  Doera-fe  o  pur- 
purado d'efle  que  reputava  mais  que  defprimor,  oftenfa  e 
aggravo  á  lua  dignidade  cardinalícia,  ao  leu  carader  de  nun- 

^•^-^ -«^ 

tis  w 


cio  pontifício  e  ainda  ás  luas  funcções  de  reprefentante  de 
quem  era,  alem  de  papa,  foberano  temporal'.  A  defattenção 
que  com  ellc  ufára  a  corte,  entendeu  que  devia  refponder 
com  uma  arrogante  reprefalia.  Quando  a  cidade  appareceu 
de  noite  illuminada,  quando  os  finos  repicavam  fcfíivamente 
em  todos  os  campanários,  quando  as  pompas  cortezans  ce- 
lebravam os  defpoforios  dos  dois  príncipes  acceitos  ao  par- 
tido clerical,  a  cala  da  nunciatura  appareceu  como  fe  d'ali 
fugira  improvifamente  o  feu  amargurado  morador.  Cerradas 
as  janellas  e  as  portas,  nem  a  minima  luz  na  frontaria  ou  a 
menor  claridade  nos  apofentos;  o  filencio  e  as  trevas  em  toda 
a  parte.  O  eícandalo  foi  geral.  Raiou  em  fúria  a  indignação  de 
Sebaítião  de  Carvalho.  Agitou-fe  a  corte,  irritaram-fe  os  mi- 
niftros,  convocou-fe  o  confelho  de  eftado.  No  dia  i  5  de  junho 
occupavam-fe  militarmente  as  ruas  próximas  ao  edifício 
da  nunciatura.  Uma  elcolta  numerofa  formava-fe  em  bata- 
lha em  frente  do  palácio.  E  que  no  dia  antecedente  o  fecre- 
tario  de  eftado,  D.  Luiz  da  Cunha,  havia  expedido  ao  cardeal 
núncio  uma  carta,  na  qual  altivamente  lhe  intimava  que 
apenas  a  recebeffe,  logo  fem  demora  fe  partiíTe  de  Lifboa  e 
atraveíTando  o  Tejo  fe  pozeííe  a  caminho  da  fronteira.  Orde- 
nava-lhe  outrofim  que  no  precifo  termo  de  quatro  dias  faíífe 
do  território  portuguez.  Obedeceu  o  núncio  proteftando,  e 
declarando  terminada  a  nunciatura  em  Portugal. 

Sebaftião  de  Carvalho  por  uma  informação,  em  que  lum- 
mariamente  fe  referiam  os  efcandalofos  procedimentos  do  no- 
vo cardeal,  ordenou  ao  enviado  portuguez  em  Roma  rela- 
taífe  ao  pontifíce  os  motivos,  que  haviam  determinado  a 
expulfão  do  feu  reprefentante.  Mandou-lhe  que  proteftaífe 
novamente  a  perenne  e  indefedivél  veneração  a  fua  fantidade 


'  Officio  de  embaixador  francez,  conde  de  Merle,  para  o  feu  governo,  de  8 
de  junho  de    17G0.  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  249  e  25o. 


eia 


240 

e  á  Santa  Sé  apoítolica,  com  que  o  rei  de  Portugal  perfiftia 
e  haveria  fempre  de  perfiftir  em  proteger  e  fuftentar  nos  feus 
reinos  e  domínios  o  decoro  do  minifterio  pontifício  e  a  im- 
munidade  dos  miniftros  da  egreja,  em  tudo  o  que  o  direito 
divino,  o  natural  e  o  das  gentes  podeíTem  permittir. 

Apefar  d'eílas  reverentes  proteftações,  a  noticia  não  era 
accommodada  a  accrefcentar  o  affedo  paternal  de  Clemente 
XIII  para  com  leu  dilecto  filho,  o  rei  de  Portugal. 

O  enviado  portuguez  Francilco  de  Almada  havia  foUici- 
tado  uma  audiência  do  pontífice  para  lhe  aprefentar  a  me- 
moria ou  deducçáo,  em  que  fe  compendiavam  todos  os 
aggravos  e  aíTrontas  dirigidas  ao  governo  portuguez  pela 
cúria  e  pelo  feu  reprefentante.  Negou  Clemente  XIII  a  au- 
diência. Era  declarar  abertamente  o  rompimento  com  a  corte 
de  Lifboa.  Francilco  de  Almada,  fegundo  as  prefcripçôes  de 
Sebaftião  de  Carvalho,  efcreve  então  ao  cardeal  Corfini, 
protedor  da  coroa  de  Portugal,  e  enviando-lhe  os  papeis, 
que  lhe  não  confentiam  entregar  direitamente  ao  padre  lanto, 
pede-lhe  que  ponha  na  prefença  do  pontífice  as  razões,  que  o 
obrigam  a  laír  de  Roma.  Logo  a  2  de  julho  de  1 760  manda 
affixar  na  egreja  de  Santo  António  dos  portuguezes  um  edital, 
cm  que  annunciando  a  fua  partida  immediata  ordena  a  todos 
os  vaffallos  de  Portugal  que  fe  retirem  egualmente  dos  es- 
tados pontificios.  Por  uma  carta  circular  a  todos  os  reprefen- 
tantes  acreditados  junto  do  papa,  declara-lhes  os  motivos 
que  o  forçavam  a  fair,  e  remette-lhes  copia  das  memorias, 
onde  eftavam  deduzidos  os  aggravos  de  Portugal.  Clemen- 
te XIII,  aíTombrado  porventura  de  que  o  negocio  houveíTe 
chegado  a  termos  de  rompimento,  pelou  as  perígolas  confe- 
quencias  de  uma  interrupção  de  relações  entre  o  Vaticano  e 
um  eftado,  a  cujos  reis,  como  a  filhos  diledtos  da  egreja,  não 
havia  muitos  annos  a  própria  Santa  Sé  condecorara  com  o 
titulo  de  fidelilTimos.  Quiz  fi.iíl:ar  com  uma  nova  traça  a  par- 


eis 


24' 

tida  do  plenipotenciário  portuguez.  Deputou  o  cardeal  Cor- 
fini  para  que  em  boa  paz  com  elle  conferiíTe.  Efcreveu-lhe 
o  cardeal  efperando  que  uma  tal  condefcendencia  pontifícia 
motivaíTe  a  fufpenfão  das  ordens  publicadas  aos  fubditos 
de  Portugal  para  deixarem  fem  detença  os  eftados  da  egreja. 
Em  outra  carta  expreíTava  novamente  o  cardeal  protedor  a 
Francifco  de  Almada  os  delejos,  que  o  pontífice  nutria  de 
coníervar  a  harmonia  com  D.  Jofé  apelar  do  Ibbrefalto, 
que  em  leu  animo  havia  concitado  a  inopinada  expulíao  do 
núncio  de  Lifboa.  Atteflava  ao  mefmo  paíTo  o  cardeal  Corfi- 
ni,  que  a  deducção  e  as  memorias  do  governo  portuguez 
haviam  fido  prefentes  ao  pontífice,  o  qual  pedia  tempo,  em 
que  detidamente  examinaíTe  tão  volumofos  documentos. 

A  4  de  julho  publicava  o  enviado  portuguez  um  novo 
edital,  em  que  fi.ifpendia  os  efíeitos  do  primeiro. 

Era  na  verdade  laftimola  a  fituação  do  papa  Clemente 
XIII.  Havia  padecido  a  maior  atfronta,  que  lhe  podiam  ir- 
rogar  como  a  pontífice  e  a  Ibberano  temporal,  expuUando- 
Ihe  um  feu  reprefentante  condecorado  com  a  purpura  car- 
dinalícia. Pelo  direito  das  gentes,  e  em  nome  da  lua  própria 
dignidade  era-lhe  não  fomente  licito,  mas  urgente  o  defpedir 
da  fua  corte  a  legação  de  Portugal.  Em  vez  d'ifto,  porém, 
pedia  quafi  humildemente  ao  enviado  portuguez  que  em  re- 
torno de  lua  complacência  e  manfidão  fe  deixaíTe  ficar 
na  cidade  eterna,  offerecendo-lhe  levar  a  feliz  termo  as  exa- 
cerbadas contenções.  Pouco  duraram  as  efperanças  de  ami- 
gável conciliação.  O  violento  cardeal  fecretario  de  ellado  in- 
terpoz-fe  audaz  e  refoluto  ao  papa  e  ao  governo  portuguez, 
agitando  novamente  o  facho  da  difcordia.  Preponderou  no 
animo  de  Clemente  XIII.  Revogou  o  pontífice  a  commiflao, 
que  havia  dado  ao  cardeal  Corfini,  e  confiou  de  novo  aTor- 
riggiani  o  encargo  de  tratar  os  negócios  de  Portugal. 

Para  efla  re\ogação,  é  força  confeílar.  contribuíram  em 


242 


grande  parte  os  termos  aggreíTivos,  em  que  eftava  efcripto 
o  edital.  Francifco  de  Almada,  em  vez  de  limitar-fe  a  pre- 
venir os  íeus  compatriotas  de  que  ficavam  por  juftiíllmos 
refpeitos  fufpenfas  por  emquanto  as  ordens  anteriores,  defa- 
tou-fe  em  inopportunas  imprecações  contra  os  jefuitas,  e  em 
desfavoráveis  allufões  ao  cardeal  fecretario  de  eftado. 

Perdida  toda  a  efperança  de  evitar  o  rompimento,  publi- 
cou Francifco  de  Almada  um  edital  definitivo  ordenando  aos 
vaffallos  portuguezes  que  deixaíTem  os  eítados  pontificios 
até  feptembro  d'aquelle  anno.  A  7  de  julho  faia  de  Roma 
Francifco  de  Almada,  vibrando  contra  o  facciofoTorriggiani, 
n'um  officio  ao  cardeal  Corfini,  as  frechas  derradeiras  da 
fua  indignação,  accufando-o  de  animofidade  e  de  perfidia 
contra  o  governo  de  Portugal. 

Ao  procedimento  de  Francifco  de  Almada  não  tardaram 
a  feguir-fe  em  Lifhoa  as  reprefalias  contra  Roma.  O  auditor 
da  nunciatura,  Jacintho  Acciajuoli,  foi  intimado  a  fair  de  Lis- 
boa em  vinte  e  quatro  horas,  e  a  paífar  a  fronteira  portu- 
gueza  no  prafo  de  féis  dias.  Publicaram-fe  os  decretos  de 
4  de  agofio  de  1760,  nos  quaes,  renovadas  textualmente  as 
prefcripções,  que  promulgara  D.  João  V  em  1728,  fe  orde- 
nava que  nenhum  vaílallo  portuguez  ficaífe  nos  eftados  pon- 
tificios, nem  fubdito  romano  permaneceífe  nos  territórios  de 
Portugal,  e  fe  prohibia  fob  penas  feveriíTimas  toda  a  com- 
municação  com  a  corte  de  Roma. 

Eftava  pois  confummado  o  rompimento  entre  a  cúria  e 
Portugal.  O  minií^ro  audaz  e  perfiftente,  no  leu  propofito  im- 
mutavel  de  engrandecer  e  confirmar  a  poteítade  fecular  con- 
tra as  invafões  do  poder  efpiritual,  havia  alcançado  a  cufto 
de  fagacidade  e  perfeverança  a  primeira  e  a  mais  diíficil 
das  vidorias. 


eis 


tis 


24J 


CAPITULO  X 


VIGOR  E  DIGNIDADE 


Agora  dava  Sehaftião  de  Can-alho  umas  tréguas  á  lua 
lufta  com  o  eftado  clerical  para  volver  as  attenções  aos  ne- 
gócios interiores,  que  eítavam  reclamando  inftantemente  a  lua 
incanfavel  intelligencia  e  energia. 

Os  defcontentes  do  governo,  em  vez  de  aíTrouxarem 
com  os  terríveis  exemplos  de  vindifta  minifterial,  cada  vez 
fe  moftravam  mais  impenitentes  no  feu  ódio  peflbal  ao  mi- 
niftro  reformador,  e  ás  profundas  transformações,  que  já  rea- 
lifára  no  paiz.  Os  léus  inimigos  continuavam  a  agitar-fe  e 
entre  elles  principalmente  a  nobreza  ecclefiaftica  ou  fecular. 
Não  podendo  infurgir-fe  abertamente,  não  poupavam  malé- 
volos expedientes  com  que  podeílem  contraminar  o  feu  po- 
der. A  fegurança  do  eftado  contra  os  perigos  de  novas  conju- 
rações, e  não  menos  a  repreíTão  dos  crimes,  que  infamavam 
n'aquelle  tempo  os  coftumes  portuguezes,  determinaram  a 
creação  de  uma  nova  e  tremenda  magiftratura,  que  foíTe  por 
aíTim  dizer  a  perpetua  fentinella  da  tranquillidade  e  ordem 
publica.  O  alvará  de  25  de  junho  de  1760  inftituiu  fob  o  ti- 
tulo de  intendente  geral  da  policia  um  magiftrado  llípcrior 
com  o  cargo  eminente  de  prover  á  completa  feguridade  con- 
tra os  que  bufcaíTem  romper  a  paz  com  fuás  malfeitorias  e 
delidos.  Fundada  principalmente  para  exercer  a  policia  con- 
tra os  crimes  communs,  a  nova  magiftratura  era  ao  meímo 
tempo  uma  inftituição  politica.  Nos  tempos  ulteriores  mos- 
trou a  intendência,  fob  as  intolerantes  infpirações  de  Pina 
Manique  já  no  reinado  de  D.  Maria  I,  que  o  feu  ofRcio  prin- 
cipal era  impedir  em  Portugal  o  contagio  irrefiftivel  das  idéas 
profeífadas  pela  grande  Revolução.  O  primeiro  magiftrado 


c|3 


o 

244 

invertido  por  Sebaftião  de  Carvalho  em  o  novo  emprego  foi  o 
defembargador  Ignacio  Ferreira  Souto,  um  dos  que  na  junta 
de  inconfidência  tinham  firmado  a  fentença  cruentiffima  con- 
tra os  réus  da  conjuração. 

Bufcava  Sebafiião  de  Carvalho  com  enérgicas  providen- 
cias acautelar  a  repetição  de  novas  fedições.  Os  feus  inimi- 
gos pullulavam  ainda  na  corte,  e  em  alguns  dos  altos  car- 
gos, onde  podiam  aíTeftar  commodamente  as  fijas  baterias. 
A  violenta  oppofição  audorifava,  fe  não  defculpava  inteira- 
mente as  reprefalias.  É  precifo  não  efquecer  que  o  governo 
de  Carvalho  era  em  plena  monarchia  abfoluta  um  regime 
claramente  revolucionário.  Não  era  um  homem  immodera- 
do,  violento,  perfeguidor,  que  chegado  ao  fafl:igio  da  íua  for- 
tuna pretendia  unicamente  aílegurar,  pela  vaidade  efteril  do 
poder,  a  continuação  da  fua  valia  no  animo  real.  Era  antes 
o  reprefentante  e  o  executor  de  um  novo  fyftema  governa- 
tivo, que  á  fé  ardente  nas  fiaas  largas  e  proveitofas  innova- 
ções  em  commum  beneficio  da  nação,  era  forçado  a  immolar 
os  fentimentos  da  tolerância  e  da  clemência,  a  moftrar-fe 
defhumano  no  fentido  de  impiedofo  para  fer  humano  na 
accepção  de  amigo  e  fervidor  da  humanidade.  A  tolerância 
prefuppõe  a  liberdade  nos  eftados  democraticamente  confti- 
tuidos,  a  clemência  lo  pôde  refidir  nas  monarchias  não  con- 
turbadas perennemente  pela  intemperança  das  facções. 

Eis  ahi  as  razões  por  que  Sebaftião  de  Carvalho  fi.ibor- 
dina  a  moderação  para  com  os  fufpeitos  á  lei  fi.iprema  da 
falvação  do  eftado;  o  bem  dos  inquietos  perturbadores  á  paz 
e  ao  progreffo  da  inteira  fociedade.  Não  ha  duvida  que  fo- 
ram feveros  os  léus  procedimentos  contra  os  léus  implacá- 
veis adverfarios.  Mas,  luppoftas  as  circumftancias  d'aquel- 
la  epocha,  os  hábitos  da  monarchia  abfoluta  e  a  influencia 
reaccionária  das  claíTes  privilegiadas,  não  podemos  aquila- 
tar pelas  inftituições,  pelas  idéas,  pelos  coftumes  do  noíTo 


243 

tempo,  os  cárceres  e  os  deíterros  decretados  com  mão  larga 
pelo  miniítro  vigilante  e  odiado. 

Muitas  das  mais  notáveis  perfonagens  mantinham  rela- 
ções harto  aífeduolas  com  o  núncio  cardeal  Acciajuoli,  e  fe 
com  elle  não  confpiravam  abertamente,  eram  feus  fervorofos 
parciaes  e  fecretos  ajudadores.  Tal  era  o  conde  de  S.  Lou- 
renço, camarifta  de  D.  Pedro;  tal  era  o  vifconde  de  Villa 
Nova  da  Cerveira,  antigo  embaixador  na  corte  de  Madrid  e 
também  gentil-homem  da  camará  do  infante;  taes  eram  os 
baítardos  de  D.  João  V,  chamados  vulgarmente  os  meninos  de 
Palliam.  Um  d'eftes,  D.  Jole,  era  inquifidor  geral.  Ambos, 
fegundo  o  próprio  teftemunho  dos  inimigos  de  Carvalho",  fe 
tinham  injuriofamente  defcomedido  com  o  miniftro. 

O  inquilidor  geral  era  um  d'en:es  fanáticos,  que  eleva- 
dos pelo  acafo  a  uma  eminente  categoria,  e  chamados  pelo 
régio  favor  a  exercer  a  terrivel  magiftratura  das  confciencias 
e  da  fé,  punham  a  fua  aucforidade  peflbal  e  a  influencia  do 
feu  cargo  a  Ibldo  da  politica  oppofição  ao  miniftro  de  D. 
Jofé  e  ao  ferviço  da  reacção  religiofa  contra  as  luas  enérgi- 
cas providencias  encaminhadas  a  defender  e  tutelar  a  inde- 
pendência do  poder  foberano  e  temporal.  O  miniftro  não  ve- 
ria defde  muito  com  bons  olhos  a  mais  perigofa  e  abuftva  de 
todas  as  jurifdicções  nas  mãos  de  um  feu  adverfario  peífoal, 
e  ainda  mais  jurado  antagonifta  de  quanto  podeíTe  diífipar 
as  trevas  efpirituaes,  em  que  o  baftardo  de  D.  JoãoY  amo- 
ravelmente  fe  comprazia.  O  feu  deftcrro  para  a  laura  carme- 
litana  do  BuíTaco,  pelo  voto  do  confelho  de  eftado,  não  era 
pena  demafiada  para  os  ultrages  commcttidos  contra  a  fobe- 
rana  poteftadc.  Os  irmãos  do  rei  imaginaram  porventura,  que 
a  fua  qualidade  principefca  lhes  permittiria  o  defobedecer  e 
confpirar.  O  miniftro  porém  enérgico  e  previdente  deu  um 


■    Vita  di  Scb.  Giufeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  iii,  pag.  98  c  yj. 


eis 


. •-«ç»-§. 

246 

exemplo  fevero,  mas  neceflario,  de  que  ainda  nas  monar- 
chias  abfolutas  o  fangue  mais  ou  menos  régio  dos  oíTenlb- 
res  os  não  pode  eximir  ás  melmas  penas,  que  fe  irrogam  ao 
mais  humilde  e  rafteiro  dos  plebeus.  Um  dos  grandes  méri- 
tos de  Sebaftião  de  Carvalho  efteve  juftamentc  em  humilhar 
os  grandes  e  poderofos,  e  em  levantar  os  pequenos  e  humil- 
des. Os  baftardos  de  D.  João  V  valiam  aos  olhos  do  minis- 
tro nivelador  menos  quilates  do  que  o  induftriofo  mercador 
ou  o  artifice  laboriofo.  A  ociolidade  fidalga  achava  menos 
graça  no  feu  animo  do  que  o  trabalho  plebeu,  mas  creador. 
As  claíTes  privilegiadas  e  a  irrequieta  clerefia  houveram  por 
iniquidade  e  facrilegio  que  o  miniftro  defterraíTe  os  dois  ir- 
mãos de  D.  Joíe.  Mas  a  feveridade  exercida  contra  elles 
contrapefa  as  violências,  que  a  fegurança  e  a  conjundura 
neceflitaram  o  miniftro  a  empregar  contra  peíToas  de  fome- 
nos  condição.  A  egualdade  perante  o  ablblutifmo  é  o  pri- 
meiro eftadio  da  egualdade  perante  a  lei. 

A  inquifição  era  não  fomente  uma  tremenda  jurifdicção 
efpiritual,  fenão  também  um  poderofo  tribunal  politico  e  fo- 
cial.  Sob  as  puras  apparencias  de  zelar  a  fé  e  combater  a 
herética  pravidade,  o  Santo  Officio  era  um  inftrumento  ef- 
ficaciíTimo  de  influencia  irrefiftivel  nos  negócios  profanos  e 
feculares.  Sebaftião  de  Carvalho  precifava  de  tomar  poíTe 
d'efta  forte  cidadella,  cujos  tiros  perigofiíTimos  podiam  a 
cada  paíTo  contrariar  o  poder  civil.  Já  tinha  de  fua  mão  a 
junta  da  inconfidência,  que  era  a  inquifição  da  ordem  pu- 
blica. Era  bem  que  tiveíTc  egualmente  da  fua  mão  o  Santo 
Officio,  que  era  a  junta  da  inconfidência  nos  dominios  efpi- 
rituaes.  O  miniftro  audaz  e  cmprehendedor,  fe  bem  nas  fuás 
leis  e  alvarás  entoava  antiphonas  pompofas  á  feparação,  in- 
dependência e  equilíbrio  das  duas  poteftades,  fecular  e  eccle- 
fiaftica,  tendia  a  fubordinar  ao  império  o  facerdocio.  Se  al- 
gum d'elles  devia  preponderar  e  fubmettcr  ao  fcu  nuto  o 

-§-À- .H^ 

e|s  ti» 


^47 


antagoniza,  eíTe  havia  de  ler  o  governo  temporal.  E  de  feito 
nos  eftados,  onde  por  dilatados  feculos  a  debilidade  ou  o 
fanatifmo  dos  foberanos  alteou  muito  acima  da  majeftade 
civil  a  autocracia  ecclefiaftica,  a  reacção  contra  eíte  funefto 
defequilibrio  é  lempre  a  llibmiílao  da  egreja  aos  arbítrios  do 
imperante.  Somente  nos  eftados  livres,  genuinamente  demo- 
cráticos, onde  não  ha  na  lei  confagração  ou  privilegio  para 
nenhum  culto  official,  a  egreja  pôde  fer  livre.  A  tutela  do 
eftado  fobre  as  coufas  elpirituaes  é  apenas  reftrida  a  defen- 
der e  amparar  para  todos  egualmente  a  liberdade  da  con- 
fciencia,  e  a  precaver  quanto  pelo  exercício  rcligiofo  poffa 
pôr  em  rifco  a  paz  e  a  ordem  Ibcial. 

Ora  Sebaftião  de  Carvalho  não  podia  no  feu  tempo,  den- 
tro de  uma  piedofa  monarchia,  no  meio  de  um  povo  dcfal- 
lumiado,  inculto,  barbarifado  por  trevas  diuturnas  de  torva 
fuperftição,  proclamar  a  noviíTima  doutrina  de  que  a  focie- 
dade  civil,  como  tal,  é  puramente  profana,  comquanto  ao  feu 
lado,  mas  fem  a  perturbar  ou  tolher  em  fuás  funcções,  fubfis- 
ta  a  crença  religiofa  abraçada  livremente  pelos  membros  da 
cidade.  Não  lhe  era  dado  profeífar  a  egreja  livre  no  eftado 
livre.  Mas  fora  d'eft:e  fyíl:ema  de  equilíbrio  verdadeiro  entre 
a  acção  focial  e  a  fé  religiofa,  um  dos  dois  elementos  ha 
forçofamente  de  fohrcpujar.  Pois  feja  então  o  eífado  quem 
dirija,  governe  e  encaminhe  o  facerdocio  pela  parte,  em  que 
confronta  com  os  intereífes  mundanos  e  terrenaes.  O  rei  é,  fe- 
gundo  a  tradição,  o  defenfor  da  fé  e  o  protedor  dos  cânones. 
Pois  quem  defende  e  protege  tenha  a  força,  a  auítoridade,  a 
coacção.  Efle  é  o  fyftema  largamente  exemplificado  na  im- 
menfa  legiflação,  e  nos  documentos  da  chancellaria  portu- 
gueza  durante  a  longa  didadura  de  Carvalho. 

A  inquifição  era  um  poderofo  auxiliar  ao  ferviço  do  des- 
potifmo  reformador.  Era  pois  neceífario  que  o  miniílro  de 
D.  Jofé  a  tiveífe  como  uma  dependência  immediata  de  fua 


c|3 


c|9 


24S 

fecretaria.  O  inquifidor  geral  devia  pois  fer  um  feu  familiar 
obediente.  Ninguém  era  talhado  mais  de  molde  para  efta 
fujeição  do  Santo  Officio  á  autoridade  governativa  do  que 
um  homem  conjunclo  pelo  fangue  e  pelo  aífedo  ao  grande 
reformador.  Paulo  de  Carvalho  e  Mendoça,  feu  irmão,  foi 
pois  nomeado  inquifidor  geral.  Deixaram  os  contemporâneos 
memorado  que  era  varão  de  poucas  lettras  e  de  efcaíTo  en- 
tendimento. Sobrava-lhe,  porém,  uma  qualidade  preciofa. 
Era  a  admiração,  que  profeffava  ao  homem  eminente,  que 
era  a  honra  da  familia.  Sob  a  fua  jurifdicção  não  haveria  nun- 
ca perigo  de  que  a  fé,  por  meticulofa  ou  intranfigente,  em- 
peceffe  os  voos  do  miniftro  no  feu  propoíito  fundamental  de 
romper  as  ultimas  cadeias,  que  arraftavam  o  throno  de  Por- 
tugal á  fella  geítatoria  do  fummo  pontificado. 

Para  que  a  didadura  de  Carvalho  podeíTe  refpirar  des- 
apreíTada  era  força  confiar  os  cargos  públicos  aos  que  fe  ins- 
piravam no  fyítema  politico  do  didador,  diradicar  por  a6tos 
puramente  revolucionários  as  influencias  pernicioias,  que 
ameaçavam  em  cada  dia  uma  nova  conjuração.  Eis  ahi  por 
que  depois  da  expulfão  dos  jefuitas  e  do  núncio,  redobra  a 
feveridade  contra  os  feítarios  da  condemnada  Companhia. 
Eis  ahi  por  que  foi  prefo  nos  cárceres  da  Junqueira  o  con- 
feíTor  do  antigo  inquifidor,  um  cónego  regrante  de  Santo 
Agoftinho.  Eis  ahi  por  que  foram  defterrados  monfenhor 
Aguilar,  os  padres  João  de  Macedo  e  João  Chevalier  da  con- 
gregação do  Oratório,  e  por  que  nas  prifões  de  eftado  recres- 
ceram aos  antigos  réus  políticos  outros  novos  encarcerados. 

E  laítima  que  na  hilforia  ás  grandes  revoluções  e  pro- 
greíTos  fociaes  andem  fempre  aíTociadas  as  vindictas  e  re- 
pre falias.  Mas  é  trifte  condão  da  humanidade  que  os  feus 
grandes  triumphos  fe  conquiftem  á  cufia  de  cruentiffimos 
combates  e  de  fcenas  lacrymofas.  A  humanidade  não  dá 
nunca  os  feus  paífos  de  gigante,  fem  que  a  terra  eflremeça 


249 

debaixo  dos  feus  pcs.  A  revolução  ou  a  guerra  lao  os  an- 
daimes funeftos,  mas  neceíTarios  d'efte  grande  e  magnifico 
edificio,  que  fe  chama  a  civilifação.  A  luz  do  cofmos  focial, 
como  a  luz  do  mundo  phyfico,  é  fempre  a  força  transforma- 
da n'uma  brilhante  apparição. 

Aonde  não  chega  porém  a  feveridade,  pôde  a  dignidade 
e  a  energia  operar  os  feus  milagres.  Foi  o  que  Sebartião  de 
Carvalho  deixou  honrolamente  exemplificado  n'uma  pendên- 
cia delicada,  em  que  eífava  de  uma  parte  a  honra  nacional 
offendida  gravemente,  e  da  outra  a  grandeza  e  arrogância  de 
uma  nação,  onde  o  poder  nem  fempre  fe  comediu  com  a 
gcnerolidade  e  a  julfiça. 

A  Gran-Bretanha  eftava  em  guerra  com  a  França.  Eram 
poífantes  as  armadas  inglezas,  que  fe  tinham  arrogado  o 
fenhorio  abfoluto  do  Oceano.  Em  agoíto  de  lySg  a  efqua- 
dra  do  almirante  britannico  Bofcawen,  travando  batalha 
com  a  frota  franceza  ao  mando  do  almirante  de  La  Clue, 
cerca  das  cofias  do  Algarve,  tinha  vindo  concluir  a  fua  em- 
preza  victoriofa  íbb  as  muralhas  da  praça  de  Lagos,  vio- 
lando a  neutralidade  e  ultrajando  a  majeftade  nacional.  Ali, 
nas  próprias  aguas  de  Portugal,  queimaram  os  inglezes  dois 
navios  inimigos,  apefar  dos  tiros  difparados  pelas  baterias 
portuguezas.  Muitos  francezes  foragidos  fe  haviam  acolhido 
em  terra,  e  tinham  recebido  humana  hofpitalidade.  Era 
grande  o  ultrage  á  bandeira  de  Portugal.  Pediu  Sebaftião 
de  Carvalho  defde  logo  plena  fatisfação  ao  gabinete  britan- 
nico. Prefidia  então  aos  negócios  em  Inglaterra  o  celebrado 
lord  Chatam.  E  taes  foram  as  reclamações  e  as  inftancias 
do  governo  portuguez,  tão  altiva  a  dignidade,  tão  refoluto  o 
propofito  de  não  tolerar  as  prepotências,  ainda  mefmo  da  na- 
ção podcrofa,  temida,  viiíloriofa,  que  o  rei  George  II  defpa- 
chou  Lord  Kinnoul  em  embaixada  extraordinária  para  cjue 
vieíTe  dar  inteira  e  folemne  fatisfação  ao  rei  de  Portugal. 


2  5o 

Antes  de  relblver-fe  em  Inglaterra  a  milTáo  extraordinária 
de  Lord  Kinnoul,  mediara  entre  a  corte  de  Lifboa  e  o  gabi- 
nete de  Saint-James  uma  vehemente  contcftação.  Exigia 
Sebaftião  de  Carvalho,  como  zeloíb  defenlbr  da  majeftade 
nacional,  que  o  defaggravo  foíTe  tão  cabal  e  tão  completo 
que  podeíTe  expiar  cumpridamente  a  violência  commettida 
contra  a  honra  do  paiz  e  a  quebra  efcandalofa  dos  princí- 
pios fundamentaes  do  direito  das  gentes.  Corre  na  tradição 
que  em  um  dos  Icus  delpachos  o  vigorolo  miniftro  portuguez 
fe  exprimira  em  phrafes  tão  acerbas,  cjue  leriam  capazes  de 
excitar  o  refentimento  e  a  vindida  de  uma  nação  menos 
poderofa  e  arrogante  do  que  era  então  a  higlaterra,  que  de 
fafto  exercitava  o  dominio  e  Ibberania  Ibbre  os  mares.  Em 
alguns  efcriptos  contemporâneos  '  appareceu  eftampado  como 
authentico  o  diploma,  em  que  Sebaftião  de  Carvalho,  com- 
pendiando as  arrogâncias  da  Inglaterra,  lhe  arremeíTava  ao 
rofto  ameaças"  tão  jadanciofas  e  tremendas,  como  Ic  Por- 
tugal, para  refponder  ao  incêndio  das  naus  francezas  n\im 
feu  porto,  tiveíTe  poderofiffimas  armadas,  com  que  ir  a  Ports- 
mouth  queimar  nos  próprios  eílaleiros  os  navios  da  Gran- 
Bretanha. 

«Eu  fei,  dizia  o  minillro  n\im  defpacho,  que  o  voíTo  gabi- 
nete fe  arrogou  o  império  Ibbre  o  governo  de  Portugal,  mas 
fei  também  que  é  tempo  de  lhe  dar  lim.  Se  os  meus  prede- 
ceíTores  tiveram  a  fraqueza  de  vos  conceder  até  agora  tudo 
quanto  defejaftes,  pela  minha  parte  fomente  vos  concederei 
o  que  vos  devo.  E  ifto  o  que  em  conclufão  tenho  a  dizer- 
vos».  N'outro  defpacho  efcrevia  SebaíUão  de  Carvalho  ao 
fecretario  de  ellado  dos  negócios  extrangeiros  em  Inglater- 
ra: «Rogo-vos  que  me  não  obrigueis  a  recordar  as  condes- 


■  VAdminiJlration   du   Marquis   de   Pombal,   Amílertlam,    1788,   tom.   111, 
pag.  3  e  legg. 


'■ ^ -0-^ 

25l 

cendencias,  que  o  go\'crno  portuguez  tem  tido  para  com  o 
volTo.  São  taes  que  não  fei  de  nenhuma  outra  potencia, 
que  as  haja  nunca  tido  íemelhantes.  E  jufto  que  de  uma  vez 
ponhamos  fim  a  efte  império,  e  que  façamos  ver  á  Euro- 
pa, que  lacudimos  o  jugo  de  uma  extrangeira  dominação.  .  . 
A  França  nos  haveria  de  confiderar  uma  nação  fraca  em 
extremo  grau,  fe  não  podeílemos  alcançar  íatisfação  pela 
offenfa,  que  nos  fizefles,  vindo  queimar  em  paragens  portu- 
guezas  navios,  que  ali  deviam  reputar-fe  em  completa  fegu- 
rança » . 

A  expreíTão  enérgica,  mas  decorofa  d'efl:es  defpachos 
não  repugna  certamente  a  que  foíTem  verdadeiros,  íenão  em 
feus  termos  litteraes,  lequer  na  dignidade  e  vehemencia  da 
juíf:iffima  reclamação.  A  indole  briofa  de  Carvalho,  pouco 
feito  a  devorar  injurias  em  filencio,  parece  relpirar  na  altiva 
independência,  com  que  elle,  o  reprefentante  de  uma  nação 
decadente  e  abatida,  fe  altêa  e  engrandece  até  olhar  de  nivel 
e  com  torvo  fobrecenho  o  moderno  gigante  do  Oceano.  É 
Ibbre  um  terceiro  defpacho  publicado  e  encarecido  como  a 
fuprema  demonítração  do  arrojado  animo  do  miniftro,  c|ue 
recaem  principalmente  as  duvidas,  que  parece  invalidarem 
a  lua  authenticidade.  E.  por  affim  dizer  a  folemne  intimação 
á  Inglaterra  para  que  fatisfaça  á  razão  e  á  juftiça  de  Portu- 
gal, ou  efpere  as  duras  c  infalliveis  reprefalias.  «Pouco  valicis 
na  Europa,  dizia  Carvalho  á  Inglaterra,  quando  era  já  mui 
grande  a  noíTa  reputação.  A  voíTa  ilha  era  apenas  um  ponto 
na  carta  geographica,  e  já  Portugal  a  enchia  com  o  leu  nome. 
Dominávamos  na  Afia,  na  Africa  e  na  America,  e  vós  domi- 
náveis apenas  em  uma  pequena  ilha  do  velho  mundo.  Vós 
éreis  uma  potencia,  que  fó  poderia  afpirar  a  fer  de  íegunda 
ordem;  mas  pelos  meios,  que  vos  miniftrárnos,  ílibiftes  á 
de  primeira » . 

O   minifiro   continuava   exprobrando   á  Gran-Bretanha, 


c|3 


252 

como  ella  havia  fempre  efpoliado  a  Portugal.  « Por  uma  es- 
tupidez, que  não  tem  exemplo  na  hiftoria  univeríal  do  mun- 
do económico  (dizia  elle),  confentimos  que  nos  fabriqueis 
nolTos  vertidos,  e  nos  miniftreis  os  artigos  de  luxo,  o  que  não 
é  de  efcaíTa  confideração.  Damos  com  que  viver  a  quinhen- 
tos mil  artífices,  fubditos  de  rei  George  II .  .  .  São  os  vos- 
íbs  campos  que  nos  fuftentam.  Aos  noíTos  ceareiros  vieftes 
fubftituir  os  voíTos  lavradores .  .  .  Mas  fe  fomos  nós  os  que 
vos  levantámos  ao  cúmulo  da  grandeza,  eftá  comtudo  em 
noíTas  mãos  o  precipitar-vos  em  o  nada,  de  que  generofa- 
mente  vos  tirámos .  .  .  Bafta  uma  lei  para  derribar  voíTo  po- 
der, ou  ao  menos  debilitar  o  voíTo  império.  Não  é  mais  do 
que  prohibir  fob  pena  capital  que  faia  o  oiro  portuguez  dos 
noíTos  portos,  e  o  oiro  não  fairá.  .  .  Fiz  romper  o  duque  de 
Aveiro,  porque  attentou  contra  a  vida  de  el-rei.  Também  po- 
derei mandar  enforcar  um  dos  capitães  das  voffas  naus,  pelo 
crime  de  levar  de  Portugal  a  regia  effigie,  contra  as  determi- 
nações expreíTas  de  uma  lei.  .  .  Fazei  pois  o  que  deveis,  e 
eu  não  farei  então  o  que  eftá  no  meu  poder».  Depois  o  mi- 
niftro  bufcava  demonftrar  que  a  Inglaterra  vivia  unicamente 
da  tolerância  e  fraqueza  de  Portugal;  que  era  com  o  oiro  da 
America  portugueza  que  o  feu  governo  pagava  ao  feu  exer- 
cito e  ás  fuás  armadas,  e  fubfidiava  as  potencias  extrangeiras 
para  as  ter  por  fuás  auxiliares.  A  França  poderia  miniftrar 
a  Portugal  os  lanifícios,  que  defde  tantos  annos  e  com  tão 
vivas  inftancias  nos  offerecia.  Poderíamos  difpenfar  os  ce- 
reaes  inglezes,  porque  teríamos  na  Barbaria  um  próvido  cel- 
leiro.  Exigia  Carvalho  finalmente  em  termos  peremptórios 
que  pelo  governo  britannico  foífe  dada  a  Portugal  a  mais 
completa  fatisfação. 

Efte  ultimo  defpacho  c  efcripto  em  phrafes  de  tão  afpe- 
ra  contextura  e  tão  diftantes  das  formas  diplomáticas,  ainda 
obfervadas  entre  as  nações,  quando  eftão  preftes  a  romper, 


253 

que  não  pode  fer  admittido  como  authentico.  A  fubítancia 
das  razões  e  a  vehemencia  da  intimação  á  Gran-Bretanha, 
fe  guardaíTcm  as  formas  coftumadas  nas  communicações  in- 
ternacionaes,  feriam  perfeitamente  accommodadas  á  magni- 
tude da  oífenfa  recebida,  ao  enérgico  temperamento  de  Car- 
valho, e  á  inflexivel  hombridade  com  que  fempre  Ibube  zelar 
e  defender  a  honra  nacional  para  com  os  defmandos  e  info- 
lencias  dos  governos  extrangeiros. 

A  efpecie  de  humilhação,  com  que  a  Inglaterra,  no  auge 
da  fua  potencia  e  majeftade,  fe  ageitou  e  fubmetteu  ás  exi- 
gências de  Portugal,  affombrou  a  Europa  n'aquelles  dias. 
Nunca  fe  vira  uma  nação  poderofa  e  arrogante,  que  domi- 
nava foberana  em  todos  os  mares  do  globo,  e  avaífallava  a  feu 
império  as  mais  diftantes  regiões,  abater-fe  até  o  ponto  de 
enviar  uma  legação  extraordinária  á  nação  queixofa  e  aíFron- 
tada.  Bem  podéra  a  Gran-Bretanha  reprovar  a  violência 
commettida  junto  ás  aguas  portuguezas  por  um  feu  impru- 
dente e  intrépido  almirante.  Mas  defpachar  um  embaixador 
com  a  miífáo  efpecial  de  offerecer  as  fuás  defculpas  a  uma 
nação  defegual  em  poder  e  audoridade,  era  um  aéto,  que 
apparecia  agora  a  vez  primeira  nos  faítos  politicos  da  Eu- 
ropa. 

Chegou  a  Lifboa  Lord  Kinnoul  a  8  de  março  de  1760  e 
a  21  teve  publica  audiência  de  el-rei  D.  Jofé.  N'efta  folem- 
nidade  aprefentou  o  embaixador  da  parte  de  George  II  os 
cumprimentos,  com  que  laftimava  a  violação  da  neutrali- 
dade portugueza  pelo  almirante  Bofcawen,  e  lhe  oíTerecia 
ao  mefmo  tempo  as  mais  expreíTivas  fatisfações  pelo  ultraje 
á  bandeira  e  foberania  de  Portugal. 

Os  mais  ardentes  adverfarios  do  miniftro  não  poderam 
eximir-fe  a  confeífar  que  por  efta  conquifta  diplomática  o 
eftadifta  portuguez,  cuja  audácia  refpondia  ao  feu  talento, 
havia  alcançado  para  a  pátria  a  confideração  das  nações 


extranhas,  e  para  fi  a  honra  de  fer  elle  o  órgão  e  inflrumento 
d'efl:e  feito  fingular'. 

Cumpre  todavia  não  efquecer  que  ao  mandar  a  Lifboa 
por  feu  embaixador  extraordinário  o  conde  de  Kinnoul,  par 
de  Efcocia,  a  Inglaterra  não  demonítrava  unicamente  a  fua 
honrada  reftidão  e  a  fua  generofa  condefcendencia.  Razões 
de  egoifmo  nacional  influiam  egualmente  no  feu  procedimen- 
to. A  Inglaterra  logo  dcfde  que  principiara  o  minifterio  de 
Carvalho,  havia  começado  a  perceber  que  um  novo  teor  e 
norma  de  politica  eftava  prefidindo  aos  deítinos  de  Portu- 
gal. Era  um  governo  verdadeiramente  portuguez,  o  que  ti- 
nha de  fuás  mãos  vigorofas,  refolutas,  o  timão  do  eftado,  até 
então  fempre  indecifo  e  ofcillante  fob  o  império  de  foberano 
voluptuofo  e  indolente,  e  de  miniftros  incapazes  de  nenhuma 
determinada  refolução.  Carvalho  fizera  defde  logo  fentir  que 
o  feu  principio  fundamental  no  regimien  interior  e  nas  rela- 
ções com  as  potencias  extrangeiras  eítava  cifrado  na  abfo- 
luta  e  fuprema  auíloridade  e  foberania  do  monarcha,  e  na 
inteira  liberdade  e  independência,  com  que  Portugal  devia 
fer  uma  nação  exempta  e  imniune  de  toda  a  indireda  fujei- 
ção  e  valTallagem  encoberta  a  nenhum  poder  extranho,  qual- 
quer que  foífe,  defde  Roma,  que  o  dominava  com  o  annel 
do  pefcador,  aproveitado  em  authenticar  intereíTes  munda- 
nos e  terrenaes,  até  Londres,  que  governava  a  Portugal  com 
o  fceptro  mercantil  dos  feus  dynaftas.  As  providencias  de- 
cretadas contra  a  exportação  do  oiro  americano,  a  fundação 
da  companhia  do  Grão-Pará,  e  principalmente  a  inftituição 
da  companhia  do  Alto  Douro,  e  o  fomento  influido  no  tra- 
balho portuguez  pela  creação  ou  melhoria  das  induftrias, 


■  «Quefto  fu  veramente  um  paíTo  che  fece  onore  ai  noílro  gran  conte  di 
Oeyras,  ma  non  fappiamo  di  certo  che  a  lui  debba  attribuirfi  queffatto  di  umi- 
liazione  deiringhilterra.»  Vita  di  Seh.  Giiifeppe  di  Carvalho  e  Mello,  tom.  iii, 
pag.  io3. 


255 

haviam  provocado  acerbas  reclamações  dos  negociantes  in- 
glezes  eftabelecidos  em  Portugal  e  dos  que  em  Londres  fe 
empenhavam  por  terem  n'elle  e  no  Brazil  a  fua  mais  larga 
e  frufluofa  grangearia.  Os  mercadores  britannicos  do  Porto 
e  de  Lifboa  favoreciam  como  redundante  em  feu  próprio 
beneficio  a  agitação,  que  os  jefuitas  fomentavam  contra  as 
novas  companhias.  Se  accreditàmos  n'um  defpacho  efcripto 
pelo  encarregado  de  negócios  de  França  ao  íeu  governo,  os 
commerciantes  inglezes  laftimavam  que  fe  fizeíTe  em  Portu- 
gal dura  perfeguição  aos  jeíliitas,  com  quem  andavam  enla- 
çados por  grandes  e  lucrativas  negociações'.  Defenganados 
de  que  nada  poderiam  confeguir  pelos  feus  esforços  em  Por- 
tugal confociando-fe  aos  defcontentes  e  agitadores,  bufca- 
ram  novo  theatro,  e  em  Londres  empenharam  mil  esforços 
por  induzir  o  gabinete  de  Saint-James  a  exigir  por  meios 
extraordinários  a  revogação  das  leis  e  providencias  adverfas 
ao  feu  egoifmo  e  proveito  mercantil.  Embrenharam-fe  em 
enredos  na  bolfa  da  poderofa  metrópole  britannica,  e  por 
meio  de  acerbiíTimos  pamphletos  e  de  libellos  calumniofos 
infamavam  a  honra  e  a  intenção  do  governo  portuguez.  Ac- 
cufavam  acremente  de  inércia  e  de  fraqueza  o  minifterio  da 
Gran-Bretanha,  porque  não  fulminava  Portugal  com  os  raios 
das  fuás  frotas  coloífaes,  e  não  decretava  defde  Londres  a 
total  abolição  das  companhias  de  commercio,  e  a  final  de- 
molição da  uhima  ofiicina  portugueza". 

Lamentavam  a  grandes  vozes  que  o  novo  fyftcma  econó- 
mico adoptado  pelo  duro  legiflador  arruinaífe  nos  feus  mais 
antigos  e  robuftos  alicerces  o  trafico  e  a  navegação  da  Gran- 
Bretanha  nos  dominios  de  Portugal. 


'  OlTicio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  de  2  de  janeiro  de  1759. 
Quadro  elementar,  tom.  xvm,  pag.  36g. 

2  Contrariedade  ao  libello,  parte  iv,  §  5y. 


eis 


4tU 
-<^ 

256 

Não  podia  o  governo  de  Inglaterra  fer  infenfivel  aos  cla- 
mores dos  feus  naturaes,  que  pediam  remédio  á  laftimada 
quebra  do  feu  commercio  É  pois  certo  que  ao  deputar  um 
embaixador  para  dar  plena  fatisfação  pelo  infulto  perpetra- 
do, a  Gran-Bretanha  vinculava  a  efta  moftra  de  jufta  bene- 
volência a  efperança  de  alcançar  novos  favores  para  o  feu 
trato  mercantil  em  Portugal.  Não  era  também  provavelmen- 
te alheio  á  embaixada  o  empenho  de  eftreitar  os  laços  de 
antiga  alliança  e  amizade,  que  nas  fituaçÕes  mais  criticas 
da  Europa  haviam  liado  fempre  as  duas  coroas  e  feito  de 
Portugal  o  fatellite  confiante  da  Inglaterra  em  todas  as  guer- 
ras continentaes.  O  afpedo  dos  negócios  europeus  n'aquelle 
tempo,  a  porfia  que  andava  então  renhida  entre  a  França 
e  a  Gran-Bretanha,  as  diligencias  empenhadas  pelos  france- 
zes  para  defatar  do  feu  alliado  o  governo  portuguez,  eram 
motivos  efiicazes  para  que  vieíTe  a  Portugal  a  extraordiná- 
ria legação  de  Lord  Kinnoul.  Demorou-fe  o  embaixador  na 
corte  de  Lif boa  até  novembro  de  1 760.  Durante  a  fua  reli- 
dencia  não  deixou  de  empregar  os  feus  esforços  para  dobrar 
a  vontade  inflexível  do  miniftro  e  obrigal-o  com  fuás  traças 
diplomáticas  a  contentar  a  Inglaterra,  queixofa  dos  damnos 
irrogados  aos  feus  intereíTes  mercantis. 

Eíla  luífa  pertinaz  e  diuturna  entre  o  eftadifta  portuguez 
e  a  Gran-Bretanha,  reprefentada  por  hábeis  e  ardilofos  en- 
viados, em  meio  de  inteítinas  turbações  e  de  aggreífões  ex- 
tranhas  perigofiffimas,  é  um  dos  rafgos  preexcellentes  no 
governo  de  Carvalho.  EUe  próprio  nos  reconta  em  breves 
termos  como  teve  de  invocar  todo  o  feu  ardente  patriotifmo, 
todo  o  vigor  do  feu  talento,  todos  os  feus  dotes  diplomáti- 
cos de  perfuafiva  difcuífão  para  contender  em  peleja  equili- 
brada com  tão  confummados  antagoniftas,  quaes  eram  Lord 
Kinnoul,  e  depois  d'elle  Edward  Hay,  William  Henry  L}1- 
tleton  e  Robert  Walpole,  fucceffivamente  enviados  extraor- 


237 

dinarios  de  Inglaterra  em  Portugal.  Proleguia  a  pendência 
animada  e  indecifa  ao  mefmo  tempo  em  Londres  e  em  Lis- 
boa. Aqui  era  Carvalho  em  peíToa  o  negociador,  na  metró- 
pole ingleza  o  enviado  portuguez  Martinho  de  Mello.  Mas  o 
efpirito  do  grande  eftadifta  dominava  egualmente  pela  fua 
palavra  infinuante  nas  conferencias  de  Lifboa  e  nas  contes- 
tações de  Londres  pelas  luas  prudentes  e  luminofas  inftruc- 
ções  ao  plenipotenciário  de  Portugal.  N'ell:es  debates  fempre 
difficeis,  e  ainda  mais  elcabrofos  quando  empenhados  com 
uma  nação  altiva,  poíTante,  convencida  da  lua  força  e  pre- 
eminência, firmou  o  miniftro  portuguez  os  princípios  mais 
inconteftaveis  e  feveros,  que  definem  as  relações  das  poten- 
cias entre  fi,  e  aíTentou  o  dogma  fundamental  de  que,  obfer- 
vados  os  deveres  e  os  officios  do  direito  das  gentes,  a  cada 
povo,  no  ufo  da  própria  independência  e  majeftade,  é  licito 
governar-fe  a  feu  arbítrio,  lem  que  feja  permittida  a  outra  po- 
tencia a  minima  intervenção  nos  feus  negócios  domefticos  e 
interiores.  Propugnavam-fe  as  máximas  jurídicas,  de  fi  incon- 
troverfas,  de  que  não  faz  offenla  a  algum  terceiro  o  que  ufa 
do  feu  direito;  de  que  á  foberania  independente  e  livre  de 
toda  a  externa  fujeição  compete  o  jus  fupremo  de  regular  pela 
fua  poteífadc  legiflativa  a  vida  focial  e  económica  em  feus 
eftados,  como  a  um  Hmples  particular  é  licito  adminiftrar  a 
feu  talante  a  cafa  própria,  fem  que  os  amigos  ou  vizinhos  te- 
nham direito  de  lhe  pedirem  explicações  ou  de  julgarem-fe 
offendidos  e  affrontados.  Demonftrava-fe  que  efte  era  o  fun- 
damento de  toda  a  foberania,  e  o  ufo  confiante  de  todos  os 
governos  europeus,  os  quaes  tinham  fundado  companhias 
commerciaes,  e  inítituido  as  fuás  manufacturas,  para  que  o 
feu  commercio  profperaffe  e  a  induftria  nacional  abaíteceífe 
de  produdos  a  nação,  fem  a  forçofa  dependência  dos  fabri- 
cos extrangeiros.  «E  eftas,  —  dizia  o  miniftro  portuguez  aífe- 
melhando,  fegundo  a  fua  predilecta  allegoria,  uma  abfoluta 


.^^ -<J>-§- 

258 

monarchia  a  uma  familia  e  o  regimen  dos  eítados  ao  poder 
patriarchal,  —  eftas  fão  difpofições  domefticas  de  um  bom 
pae  de  familias,  que  nem  deve  deixar  precipitar  os  feus  fa- 
miliares nos  vicios  e  abfurdos  da  ociofidade,  nem  tirar  o 
pão  da  bocca  aos  feus  próprios  filhos  para  o  dar  a  comer 
aos  extrangeiros  ' » . 

A  Inglaterra  tão  ciofa  de  fua  independência  e  majeftade, 
a  Inglaterra,  que  da  fua  antiga  mefquinhez  fe  tinha  levantado 
a  fer  n'aquelle  tempo  a  primeira  entre  as  nações  pela  fua 
induftria  e  navegação,  a  Inglaterra,  que  n'aquella  mefma 
edade  via  accrefcido  e  fecundado  o  feu  tráfego  fabril  pelas 
admiráveis  invenções  de  Arkwright,  de  Hargreaves,  de  Cart- 
wright,  que  levaram  á  vigorofa  adolefcencia  a  induftria  do 
algodão,  não  podia  conteftar  aos  demais  povos  com  fombra 
de  juftiça  o  que  ella  própria  executava  para  augmentar  a  fua 
riqueza  e  multiplicar  a  fua  producção.  Algumas  conceífões 
internacionaes  em  favor  dos  negociantes  inglezes  acalmaram 
o  fermento  das  perigofas  defintelligencias.  D'efta  luda  os 
dois  adverfarios  faíram  abraçando-fe,  apertados  os  vínculos 
centenários  de  fua  convivência  e  amizade.  Mas  as  compa- 
nhias continuaram  a  cxiftir,  e  Carvalho  perfeverou  cada  vez 
mais  zelofo  no  feu  empenho  de  fomentar  e  engrandecer  a 
induftria  de  Portugal.  Pouco  depois  de  haver  partido  o  em- 
baixador inglez  conde  de  Kinnoul,  pelo  alvará  de  i6  de  de- 
zembro de  1 760  augmentava  o  zelofo  miniftro  portuguez  em 
mais  feifcentos  mil  cruzados  o  capital  da  companhia  das 
vinhas  do  Alto  Douro.  A  infthuição,  apefar  de  impugnada 
pelos  jefuitas,  combatida  pela  nobreza,  e  condemnada  pelos 
mercadores  bretões,  refiftia  inexpugnável  aos  golpes  dos  feus 
antagoniítas. 

Se  a  Inglaterra  deu  plena  fatisfação  do  infulto  commet- 


■  Appenjo  2."  da  contrariedade  ao  libello,  §  62. 


c|9 


tido  contra  a  bandeira  portugueza,  não  foi  todavia  condes- 
cendente em  acceder  ás  inftancias  de  Portugal  para  que  fos- 
fem  á  França  reftituidos  os  navios  do  almirante  de  la  Clue, 
aprefados  por  Bolcawen  na  acção  naval  junto  de  Lagos. 

As  relações  entre  Portugal  e  o  gabinete  deVerfailles  não 
eram  defde  muito  por  extremo  cordiaes  e  aufpiciolas.  Via  a 
França  com  laftima  e  ciúme  que  o  governo  portuguez  gene- 
rofamente  confentiíTe  aos  inglezes  o  apoíTarem-fe  do  feu  com- 
mercio,  lograrem  o  melhor  quinhão  no  oiro  da  America,  e 
inundarem  de  fuás  fazendas,  principalmente  de  lanifícios,  os 
mercados  de  Portugal,  fem  que  a  França  podeíTe  participar 
em  nenhuma  d'el1:as  vantagens  mercantis.  Os  defpachos  dos 
agentes  diplomáticos  francezes  para  a  corte  de  Luiz  XV  fão 
copiofos  em  frequentes  lamentações  a  efte  refpeito.  N'elles 
predomina  como  tom  fundamental  a  queixa  amarga  de  que 
Portugal  fe  deixe  avaflallar  inteiramente  ao  jugo  de  Ingla- 
terra, e  da  alliança  e  patronato  d'eíta  potencia  tenha  feito 
a  fua  ancora  de  falvação.  A  má  vontade  do  governo  fran- 
cez  reíTumbra  a  cada  paíTo  nos  documentos  internacionaes 
d'aquelle  tempo.  Um  dos  reprefentantes  de  Luiz  XV  na  cor- 
te de  Lifboa  diítinguia-fe  entre  todos  pela  fua  malevolencia 
contra  Portugal  e  pela  fua  implacável  animadverfão  ao  pri- 
meiro miniftro  de  D.  Jofé.  Era  o  conde  de  Merlc,  que  nos 
annos  de  lySg  e  1760  refidia  em  Lifboa  acreditado.  Era 
efte  embaixador  amigo  c  fautor  apaixonado  dos  jefuitas,  e 
cultivava  as  mais  eftreitas  intimidades  com  o  núncio  Accia- 
juoli,  e  de  um  e  de  outros  fe  declarava  ardente  apologifta 
em  feus  defpachos.  E  provável  que  não  teria  pequena  parte 
nas  fecretas  cabalas  e  conluios,  que  por  aquelles  tempos 
bufcavam  empecer  a  cada  paífo  o  progreíTo  da  adminiftra- 
ção. 

A  infracção  da  neutralidade  portugueza  durante  a  guerra 
entre  a  França  e  a  Inglaterra  viera  miniftrar  novos  eftimulos 

■y- -ò-l- 

e|s  tis 


260 

á  fanha  do  embaixador.  E  precifo  todavia  confeíTar  que  os 
inglezes  não  eram  nimiamente  efcrupulofos  em  guardar  as 
regras  e  principios  do  direito  internacional.  Ao  fado  realmen- 
te efcandalolb  e  offenfivo  de  queimarem  em  aguas  portu- 
guezas  dois  vafos  e  aprefarem  alguns  outros  do  almirante 
de  la  Clue,  tinham  vindo  accrefcentar-fe  novas  aggreíTões 
dos  inglezes  contra  os  navios  inimigos  á  vifta  da  bandeira  de 
Portugal.  Achando-fe  em  Faro  fundeada  uma  polaca  fran- 
ceza  preftes  a  defcarregar,  o  coníul  de  Inglaterra  avifára  por 
meio  de  fignaes  as  fragatas  inglezas,  que  andavam  cruzando 
n'aquelles  mares,  para  que  entrando  no  porto  e  ancorando 
impediíTem  o  feu  tráfego  ao  navio  mercante  do  inimigo.  Em 
Vianna  do  Minho  apparecêra  pouco  depois  um  corfario  fran- 
cez  conduzindo  uma  prefa  britannica.  Os  negociantes  ingle- 
zes, que  ali  tinham  luas  cafas  de  commercio,  armando  em 
guerra  quatro  chalupas  e  faindo  logo  a  barra,  acommette- 
rani  rijamente  o  corfario  e,  tirando-lhe  a  preza,  voltaram  a 
Vianna  oftentando  o  feu  triumpho  á  vifta  das  autoridades 
e  do  povo,  que  fora  teftemunha  do  confliifto. 

Apefar  das  inftantes  reclamações  do  embaixador  pedindo 
a  reftituição  dos  navios  aprefados  por  Bofcawen,  e  a  defaf- 
fronta  pelas  violências  de  Faro  e  de  Vianna,  a  pendência 
diplomática,  cada  vez  mais  exacerbada,  não  dava  moftras 
de  chegar  a  conclulao.  O  gabinete  deVerlailles  accufava  aber- 
tamente o  minifterio  portuguez  de  parcial  e  condefcendente 
com  eftas  quebras  da  neutralidade  em  favor  do  feu  alliado 
prediledo.  Em  um  feu  defpacho  de  3  de  fevereiro  de  1760 
dizia  o  duque  de  Choifeul,  então  miniftro  dos  negocies  ex- 
trangeiros  em  Paris,  ao  embaixador  conde  de  Merle:  «Devo 
prevenir-vos  de  que  não  temos  razão  para  eftar  contentes 
com  a  corte  de  Lifboa,  e  que  ella  não  é  do  numero  das 
potencias,  com  as  quaes  o  bem  do  ferviço  de  el-rei  pôde 
exigir  que  tenhamos  condefcendencias,  attenções  e  facilida- 


eis 


tia 


261 

des'».  E  n'um  defpacho  de  i  i  de  março  de  1760,  referindo- 
fe  á  N-iolencia  perpetrada  contra  o  corfario  francez  no  porto 
de  Vianna,  dizia  ainda  em  mais  categóricas  palavras  que 
uma  tão  manifefta  violação  da  neutralidade  fe  aíTemelharia 
extremamente  a  uma  direda  hoítilidade,  fe  a  corte  de  Por- 
tugal negaíTe  á  França  n'aquella  occafião  a  juíliça,  que  lhe 
devia-».  O  defpacho  de  Choifeul,  a  12  de  março  de  1760, 
ameaçava  a  guerra  a  Portugal,  dizendo  que  fe  a  corte  de 
Lifboa  «não  delTe  ao  rei  de  França  cabal  e  publica  fatisfação 
acerca  dos  dois  navios  tomados  pelos  inglezes,  adoptaria  as 
mais  cfficazes  providencias  para  que  juftiça  lhe  foffe  feita^». 
Chegada  quafi  ao  cumulo  a  indignação  do  gabinete  de  Ver- 
failles,  rompia  em  duras  exprefloes  o  duque  de  Choifeul, 
exprobrando  a  Seballião  de  Carvalho  a  fua  notória  e  injurta 
parcialidade  para  com  os  inimigos  da  França,  os  vexames 
que  os  feus  navios  padeciam  nas  aguas  portuguezas,  as  vio- 
lências contra  o  livre  commercio  e  navegação  em  portos  neu- 
tros, a  defattenção,  com  que  o  embaixador  francez  era  tra- 
tado pelos  fecretarios  de  eftado  de  D.  Jofé.  Expreífava  com 
vigor  que  todos  aquelles  procedimentos  fe  não  podiam  já  es- 
conder nem  tolerar,  e  que  o  rei  de  França  devia  á  fua  pró- 
pria dignidade  o  fazer  experimentar  á  corte  de  Lifboa  algum 
fignal  do  feu  refentimento'')'. 

Todas  eftas  defabridas  manifeftações  eram  prenúncios 
do  formal  rompimento,  que  fe  andava  preparando,  e  que 
veiu  finalmente  a  declarar-fe  cm  1762.  Parece  que  não  eram 
deítituidas  de  fundamento  as  increpações  do  duque  de  Choi- 
feul e  do  embaixador  francez  na  corte  de  Lifboa.  É  plaufi- 
vel  que  Sebaílião  de  Carvalho,  vendo  já  accumuladas  nas 


'  Qiiadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  197  e  198. 

2  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  209. 

3  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  2i3  e  214. 

4  Quadro  elementar,  tom.  vi,  pag.  214  e  21 5. 


4  4» 

^ -<ô>-i- 


262 


extremas  do  horizonte  as  nuvens  precurforas  da  próxima 
borrafca,  fc  inclinaíTe  a  favorecer  com  aíhita  diffimulação 
as  infracções  da  neutralidade  commettidas  pelos  inglezes, 
prevendo  já  que  viria  não  remoto  o  lance,  em  que  vendo-íe 
a  braços  com  os  dois  monarchas  mais  poderofos  da  cafa  de 
Bourbon,  fó  teria  na  Gran-Bretanha  o  arrimo  e  falvação. 
O  que  é  certo  é  que  preftando-fe  a  Inglaterra  a  dar  pleno 
defaggravo  a  Portugal  pela  oífenla  feita  em  Lagos  á  fua 
bandeira,  não  lograram  as  inftancias  de  Carvalho  alcançar  a 
reftituição  dos  navios  aprefados.  Da  correfpondencia  media- 
da entre  o  duque  de  Choifeul  e  o  feu  embaixador  fe  depre- 
hende  com  evidencia  que  Portugal  não  quiz  nunca  attribuir  á 
oífenfa  própria  e  ao  aprefamento  dos  navios  em  aguas  portu- 
guezas  a  mefma  importância  e  íignificação. 


CAPITULO  XI 

A  EDUCAÇÃO  E  O  TRABALHO   NACIONAL 

No  meio  das  domefticas  turbulências,  das  complicações 
internacionaes,  em  pleno  rompimento  efpiritual  e  temporal 
com  o  Vaticano,  a  viíta  aquilina  do  grande  reformador  achava 
tempo  e  occafião  para  eftudar  os  problemas  fociaes,  admi- 
niftrativos  e  económicos  da  nação,  a  que  foberanamente  pre- 
fidia. 

Expulfos  os  jefuitas  de  Portugal  eftavam  cerradas  as 
efcolas,  d'onde  até  ali  m.anára  principalmente  ao  povo  por- 
tuguez  a  fua  inefficaz  e  viciofa  educação.  Secularifado  o  go- 
verno pela  fua  emancipação  de  todo  o  jugo  theocratico,  era 
precifo  fecularifar  egualmente  o  enfino,  convertendo-o  n\ima 
funcção  eíTencial  da  adminiftração.  A  inftrucção,  fegundo  as 
judiciofas  doutrinas  de  Carvalho,  não  devia  fer  o  luxo  oifen- 

.§-A- .H^-^ 

th  e|j 


2D3 

tofo  do  efteril  pedantifmo,  mas  o  preciofo  cabedal  do  frudi- 
fero  trabalho.  O  eftado  tinha  menos  por  miíiao  o  fabricar  lá- 
bios e  eruditos  do  que  allumiar  os  entendimentos  para  que 
melhor  defempenhaffem  os  officios  da  vida  económica  e  Ib- 
cial.  O  commercio  era  um  dos  aíTumptos  fingulares  da  lua 
extrema  predilecção.  Queria  levantal-o  da  lua  decadência  e 
abatimento.  Um  dos  meios  mais  profícuos  era  a  cultura  dos 
homens  deftinados  ao  trato  commercial.  D'ahi  nafceu  a  fun- 
dação do  primeiro  inftituto  mercantil,  principio  e  fonte  de 
toda  a  noíTa  inftrucção  profeíTional.  O  alvará  de  19  de  maio 
de  1759,  confirmando  os  eftatutos  da  Aula  do  commercio, 
abriu  aos  negociantes  portuguezes  as  furgentes  da  nova  luz. 
N'efta  proveitofa  inll:ituição  devia  profeíTar-fe  a  arithmetica 
mercantil,  as  doutrinas  fcientificas  do  commercio,  os  pefos, 
medidas  e  moedas,  os  câmbios  e  feguros,  e  a  efcripturação 
commercial  em  partidas  dobradas,  proceíTo  ainda  então  quafi 
defconhecido  em  Portugal.  D'efte  primeiro  eftabelecimento 
faíram  durante  o  miniíterio  de  Carvalho  muitos  homens  ha- 
bilitados e  profeíTos  nas  praxes  racionaes  da  mercancia.  O 
famofo  inítituidor  podia  com  razão  aíTeverar  em  lyyS,  quefe 
d'antes  fe  mandavam  bufcar  a  Génova  e  a  Veneza  com  pin- 
gues honorários  os  guarda-livros  para  as  cafas  commerciaes, 
havia  já  então  em  Portugal  numerofas  peíToas  inftruidas  na 
fciencia  do  commercio  e  na  contabilidade  mercantil'. 

Apregoavam  os  fcftarios  dos  jeluitas  que  pela  fua  ex- 
pulfão  fe  havia  apagado  toda  a  luz  da  intelligencia.  Era  pre- 
cifo  dcmonftrar  que  em  vez  de  fer  um  damno  o  eftarem  agora 
profcriptas  e  defertas  as  efcolas  da  Companhia,  renafceriam 
pelo  contrario,  fob  os  aufpicios  do  império  temporal,  as  boas 
lettras,  como  tinham  florelcido,  antes  que  no  reinado  omi- 


■  Ob/ervaçóes  fecretijfimas  do  Marque^  de  Pombal  /obre  a  collocaçáo  da 
ejlatua  equefire. 


<|3 


4S^ 
_ -<í^ 

264 

nofo  de  D.  João  III  os  jefuitas  fe  apoíTaíTem  de  toda  a  fobe- 
rania  intelledual,  expulfando  de  Coimbra  os  Teives  e  os  Gou- 
veias,  os  Buchanans  e  os  Grouchys. 

Pelo  alvará  de  28  de  junho  de  lySg  eram  extindas  as  es- 
colas jefuiticas,  e  abolida  a  fua  memoria,  como  fe  em  tempo 
algum  houveram  exiftido.  Era  creado  o  officio-de  direftor  ge- 
ral dos  eíludos.  Decretava-fe  que  houveffe  em  cada  bairro  de 
Lifboa  um  profeíTor  de  latim.  Prohibia-fe  com  graves  penas  o 
enfinar  pela  grammatica  do  jefuita  Manuel  Alvares,  e  pelos 
commentarios  dos  feus  confocios  António  Franco,  João  Nu- 
nes Freire  e  Jofé  Soares.  Eftabeleciam-fe  um  ou  dois  pro- 
feffores  de  latim  em  cada  uma  das  villas  principaes.  Fun- 
davam-fe  na  capital  quatro  aulas  de  grego,  e  duas  em  cada  . 
uma  das  cidades  de  Coimbra,  Porto  e  Évora.  Attribuia-fe 
a  cada  cabeça  de  comarca  um  profeíTor  do  idioma  helle- 
nico.  A  rhetorica  tinha  quatro  cadeiras  em  Lifboa,  duas  em 
cada  uma  das  três  outras  cidades  principaes,  e  uma  em  cada 
terra,  capital  de  correição.  E  notável  que  o  eftadifta  deixaífe 
no  filencio  a  philofophia.  Procedeu,  porém,  com  boa  razão. 
Tinham  fido  taes  e  eftavam  por  tal  feição  enraizados  no  paiz 
os  velhos  preconceitos  da  informe  fciencia  injuftamente  ap- 
pellidada  ariftotelica,  que  mais  valia  profcrevel-a  do  enfino 
totalmente,  do  que  pôr-fe  a  lanço  de  continuar  cerrando  as 
trevas,  que  eíta  enredada  e  efcura  difciplina  eítivera  adenfan- 
do  nas  efcolas  jefuiticas  e  nos  clauítros  monachaes.  Alguns 
annos  mais  tarde  a  philofophia  entrou  nos  quadros  da  inftruc- 
ção  publica,  e  foram  nomeados  profeífores,  que  a  enfmaífem 
nas  principaes  povoações. 

Os  meftres  públicos  foram  declarados  nobres,  o  que  não 
era  como  hoje  uma  diftincção  inane  e  pueril,  porque,  fubfis- 
tindo  na  legiflação  differenças  fundamentaes  entre  os  nobres 
e  os  peões,  o  attribuir  a  uma  peíToa  as  honras  e  privilégios 
da  nobreza  era  como  conceder-lhe  os  foros  de  homem  livre 


eis 


elí 


265 

e  de  perfeito  cidadão,  quaes  podiam  exiftir  no  feio  da  mo- 
narchia  abíbluta. 

Para  evitar  que  as  doutrinas  jefuiticas  podeíTem  ainda 
filtrar-fe  diíTimuladas  na  educação  da  juventude,  prohihiu 
Sebaítião  de  Carvalho  o  enfino  particular,  a  quem  não  con- 
feguiíTe  permiíTão  official.  Nas  inftrucções  de  28  de  junho  de 
lySg  para  os  profeíTores  novamente  inftituidos,  o  miniftro 
previdente,  que  a  tudo  fubordinava  o  feu  penfamento  funda- 
mental de  abolir  e  deíf  errar  os  últimos  veftigios  da  condemna- 
da  Companhia,  decretava  prohibida  e  reprovada  a  Pwfodia 
do  jefuita  Bento  Pereira,  e  mandava  adoptar  para  o  enfino 
a  grammatica  grega  de  Port-Royal,  da  famofa  abbadia  cujo 
nome  ficou  para  fempre  vinculado  ao  antagonifmo  inconci- 
liável entre  jefuitas  e  janfeniftas.  A  congregação  do  Oratório, 
que  paífava  por  inimiga  da  profcripta  fociedade,  foi  audori- 
fada  a  continuar  o  feu  enfino  nas  efcolas  da  fua  religião. 

Para  que  dos  livros  defefos  na  inítrucção  não  podefTem 
os  numerofos  exemplares  continuar  a  diffundir-fe  em  Portu- 
gal, ordenou  Sebaítião  de  Carvalho  que  fe  remetteífem  á  di- 
rectoria geral  dos  eftudos  os  compêndios,  que  exiftiffem  nas 
cafas  e  coUegios  fequeftrados  ú  Companhia. 

Parallelamente  á  lufta  bravamente  empenhada  contra  os 
jefuitas,  Sebaftião  de  Carvalho,  imitando  e  encarecendo  o 
vigorofo  procedimento  de  D.  João  II,  havia  bufcado  ani- 
quilar inteiramente  a  influencia  politica  da  nobreza  e  fidal- 
guia. Não  lhe  era  poííivel,  fubfifiindo  o  throno  abfoluto, 
alvo  prediledo  da  fua  idolatria,  fupprimir  a  ordem  privile- 
giada, que  na  mefquinha  c  velha  crença  dos  monarchicos 
é  o  adorno  e  refplendor,  de  que  apparece  conftellada  c  mais 
pompofa  a  majeftade.  Mas  fe  não  lhe  era  dado  extirpar  in- 
teiramente uma  claífe  preeminente  e  rebaixal-a  ao  nivel  com- 
mum  da  peonagem,  cumpria  que  foífe  ao  menos  illuminada 
e  pela  fua  crefcente  illufiração  podeífe  confociar-fe  aos  pro- 

^ -í»-^ 

4»  e|í 


4  49 
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greíTos  nacionaes.  A  carta  de  7  de  maio  de  1761  fundou  para 
a  nobreza  um  inllituto,  onde  fe  induftriaíTem  nas  lettras  e  nas. 
fciencias  os  feus  filhos.  Era  o  Collegio  real  de  Nobres  uma 
femelhança  e  refurreição  do  que  haviam  fido  cm  Coimbra 
os  de  S.  Miguel  e  de  Todos  os  Santos,  aonde  os  fidalgos  con- 
corriam a  educar- fe  antes  que  os  jefuitas  fe  apoderaífem  de 
toda  a  inftrucção  na  univerfidade.  Devia  profeífar-fe  em  o^ 
novo  eítabelecimento  o  latim,  o  grego,  o  fi"ancez,  o  italiano, 
o  inglez,  a  rhetorica,  a  poética,  a  geographia,  a  hiftoria.  A 
philofophia  continuava  a  fer  profcripta,  e  apenas  a  lógica 
devia  fer  enfinada  como  um  puro  adminiculo  da  oratória, 
ao  tratar-fe  da  invenção  e  difpofição.  O  collegio  era  pois  um 
regular  lyceu  de  humanidades.  O  legillador,  porém,  compre- 
hcndia  que  as  linguas  claíTicas  e  o  que  então  fe  appellidava 
a  philologia,  não  podiam  ler  completo  repafto  da  intelligen- 
cia  e  da  razão  n'um  feculo,  em  que  a  fciencia  rafgava  largos 
voos,  prenunciando  a  prefente  civilifação.  Sebaftião  de  Car- 
valho temia,  que  pretendendo  inftituir  homens  illuftrados  e 
preftadios,  lhe  faiífem  pedantes  ociofos,  e  eítereis  para  todo 
o  progreífo  intellcdual.  Era  precifo  incluir  no  quadro  peda- 
gógico as  fciencias  da  razão  e  da  experiência,  as  fciencias 
mathematicas  e  naturaes.  Três  profeíTores  haviam  pois  de 
enfinar  as  mathematicas  em  três  annos,  defde  a  arithmetica^ 
a  álgebra  e  a  geometria  elementar  até  á  geometria  analytica,. 
ao  calculo  infinitefimal,  á  mechanica  e  aos  princípios  eífen- 
ciaes  da  aftronomia.  A  phyfica  reprefentava  n'efl:e  quadro  as 
difciplinas  experimentaes.  Vários  curfos  efpeciaes  completa- 
vam o  enlino,  applicando  ás  profiífões  technicas  as  fciencias 
puras  ou  abftraftas.  Devia  pois  enfinar-fe  a  navegação,  a 
architedtura  civil  e  militar,  e  o  defenho.  A  efgrima,  a  danfa, 
a  equitação  contrapefavam,  como  proveitofos  ou  elegantes 
exercícios  corporaes,  a  fevera  difciplina  das  lettras  e  fcien- 
cias. 


2b7 


Era  o  audaz  legillador  criminado  pelos  feus  duros  ini- 
migos de  ter  em  menos  preço  as  coufas  rcligiofas.  O  rom- 
pimento com  o  pontifice  eftava  apenas  em  principio  fem 
profpecto  de  breve  terminação.  Ao  paílb  que  Sebaílião  de 
Car\'alho  eítá  vibrando  e  fegundando  e  repetindo  fem  tré- 
gua nem  quartel  os  feus  golpes  implacáveis  contra  os  jefui- 
tas  e  contra  as  ufurpações  do  afiado  ecclefiaftico  ao  governo 
temporal,  os  preâmbulos  e  as  fentenças  das  fuás  leis  e  alva- 
rás refpiram  a  mais  fervorofa  piedade  e  refcendem  a  uncção 
mais  orthodoxa.  Os  eftatutos  do  Collegio  dos  Nobres  princi- 
piam com  uma  d'eflas  religiofas  expanfões.  Ordenam  antes 
de  tudo,  que  os  eftudantes  ouçam  miíTa  quotodiana  como 
efpiritual  preparação  aos  trabalhos  de  cada  dia;  que  ao 
fabbado  rezem  devotamente  a  ladainha  de  Noífa  Senhora 
e  que  frequentem  menfalmente  o  tribunal  da  penitencia  e  a 
mefa  da  communhão.  E  para  que  os  jefuitas  não  accufaífem 
a  Carvalho  de  que  profcrevia  a  afcefe  e  a  myftica  divagação 
pelas  contemplações  celeíliaes,  obrigava  os  efcolares  a  terem 
em  cada  anno  três  dias  de  exercícios  efpirituaes. 

Com  eflas  incompletas,  mas  para  aquelle  tempo  oufadas 
providencias  litterarias  entrou  pela  primeira  vez  em  Portu- 
gal o  enfino  publico,  inteiramente  defligado  de  todo  o  vin- 
culo clerical. 

Não  era,  porém,  unicamente  a  educação  nacional,  que 
preoccupava  o  efpirito  claro  e  quafi  omnividente  de  Carva- 
lho. Defvelavam-n'o  com  fingular  predilecção  as  providen- 
cias encaminhadas  a  eftatuir  a  liberdade  peífoal,  abolindo  as 
leis,  as  tradições  e  os  coíkimes  abufivos,  que  eífabeleciam 
odiofas  e  infamantes  diftincções  entre  homens  fubordinados 
a  uma  fó  e  única  monarchia.  Não  entrava  nos  feus  planos 
aduaes  o  favorecer  as  liberdades  e  franquias  populares  na 
accepção  politica  e  democrática,  mas  repugnava-lhe  a  fervi- 
dão  como  alfronta  á  humanidade.  Havia  libertado  os  indios 


eis 


268 

de  Grão-Pará  e  Maranhão.  Agora,  pelo  alvará  de  8  de  maio 
de  1758,  ampliava  a  todos  os  Índios  do  Brazil  a  mefma  juftis- 
íima  alforria,  declarando  livres,  fem  nenhuma  reftricção,  as 
fuás  peíToas,  os  feus  bens,  os  feus  convénios.  Outra  benéfica 
providencia,  o  alvará  de  2  de  abril  de  1761,  decretava  que 
todas  as  peíToas  nafcidas  na  índia  portugueza,  fendo  chriftans 
foíTem  em  tudo  egualadas  aos  naturaes  de  Portugal,  e  ficaíTem 
defde  logo  habilitadas  para  todas  as  honras,  dignidades,  em- 
pregos e  jurifdicções.  Determinava  em  feu  favor  confideraveis 
privilégios,  qual  o  de  ferem  preferidos  em  concurfo  para  os 
cargos  d'aquella  poífeífão.  E  para  defterrar  ignominiofas  dis- 
tincções  prohibia,  fob  penas  mui  feveras,  aos  que  foífem  origi- 
nários da  Europa,  o  alcunharem  de  negros  ou  de  meftiços  os 
que  pertenceífem  ás  raças  indigenas  ou  d'ellas  derivaífem  a 
fua  genealogia.  Efta  comprehenfão  da  egualdade  humana 
e  da  liberdade  individual  n'uma  quadra,  em  que  os  mais 
illuminados  publiciftas  ainda  eram  hefitantes  acerca  das  dif- 
ferenças  de  raça  e  condição,  denunciava  que  no  miniftro, 
cujo  enérgico  inftrumerito  era  na  apparencia  o  intolerante 
abfolutifmo,  alvoreciam  as  idéas  fomente  profeífadas  após 
alguns  decennios  pela  grande  e  innovadora  Revolução. 

No  próprio  território  de  Portugal  ainda  a  fervidão  era 
mantida  como  memoria  opprobriofa  d'aquelles  tempos,  em 
que  os  portuguezes  faziam  da  Africa  o  fecundo  feminario 
da  fua  efcravaria.  Eram  numerofos  os  efcravos,  que  dos 
domínios  portuguezes  fe  traziam  a  Portugal.  Antes  que  nin- 
guém na  Europa  fe  lembraífe  de  expungir  efta  vergonha  da 
civilifação  chriftan,  o  miniftro  de  D.  Jofé,  fempre  infpirado 
pela  fua  alta  concepção  da  humanidade,  prohibia  pelo  alvará 
de  19  de  fetembro  de  1761  que  da  Africa,  da  Afia,  ou  da 
America  a  Portugal  fe  trafladaífem  como  efcravos  peflbas 
de  raça  negra.  Promulgava-fe  a  falutar,  a  humana  providen- 
cia de  que  todos  os  pretos,  que  AÚelfem  á  metrópole,  feriam 


tii 


269 

defde  logo  reputados  livres,  fem  nenhuma  indemnilação  pa- 
ra os  fenhores.  Não  podemos  diíTimular  que  efta  manumiíTão 
não  era  unicamente  dirigida  a  extirpar  fequer  no  território 
portuguez  da  Europa  a  infame  inftituição.  Mas  fe  por  efte 
meio  fe  intentava  prevenir  a  falta  de  africanos  trabalhadores 
nos  dominios  do  Uhramar,  e  principalmente  no  Brazil,  nem 
por  iíTo  íica  menos  veneranda  a  memoria  do  grande  legifla- 
dor.  Não  podendo  pelas  conveniências  do  feu  tempo  deftruir 
de  um  golpe  o  viciofo  lyítema  colonial,  commum  ás  mais  es- 
clarecidas potencias  europêas,  antecipava-fe  comtudo  n'efl:e 
empenho  a  Wilberforce,  ao  illuftre  Sá  da  Bandeira,  c  aos 
eftadiítas  generofos  e  audazes,  que  apagaram  finalmente  da 
fronte  do  Brazil  o  ferrete,  que  infamava  o  vallo  império.  Se- 
baftião  de  Carvalho  foi  o  primeiro  homem,  que  no  governo 
fe  atreveu  a  decretar  e  defender  que  o  trabalho  humano  não 
pôde  ler  fenão  a  acção  do  homem  livre  e  independente  fo- 
bre  a  natureza  fubdita  e  efcrava. 

A  induflria  e  o  commercio  continuaram  a  ter  por  aquelles 
tempos  em  Sebaftião  de  Carvalho  um  infatigável  e  diligente 
promotor.  E  então  que  fe  eftabelece  (6  de  agofto  de  lySy) 
a  fabrica  das  fedas  no  fitio  do  Rato,  fob  o  immediato  patro- 
cínio do  eítado.  E  então  que  efta  valiofa  induftria  fe  eftimula 
decretando  em  feu  favor  a  exempção  de  direitos  para  todos  os 
feus  produdos  fabricados  em  Portugal'.  E  então  que  fingu- 
larmente  fe  protegem  com  privilégios  pelToaes  os  indivíduos 
empregados  n'eí]:e  ramo  de  trabalho  nacional.  E  então  que 
fe  ordena  junto  á  fabrica  do  Rato,  no  fitio  das  Amoreiras, 
a  edificação  de  cafas  accommodadas  á  habitação  e  lavor  dos 
fabricantes-,  umas  conftruidas  a  publicas  expenfas,  as  outras 
erigidas  por  peífoas  particulares. 


1  Decretos  de  2  de  abril  e  24  de  outubro  de  i/Sj. 

2  Decreto  de  14  de  março  de  1759. 


É  também  por  aquelle  tempo  que  Sebaítião  de  Carva- 
lho decreta  providencias  em  favor  das  fabricas  de  lanifícios 
nas  comarcas  da  Guarda,  Pinhel  e  Caftello  Branco,  e  feguin- 
do  os  princípios  económicos,  de  que  n'aquelle  leculo  os  es- 
tados europeus  não  fabiam  defatar-fe,  fixa  o  máximo  preço 
ás  lans  e  aos  artefaílos,  de  que  eram  matérias  primas". 

Não  é  menos  copiofa  e  importante  a  legiflação  promul- 
gada n'aquelle  período  para  fomentar  e  engrandecer  o  tra- 
do mercantil,  e  honrar  e  ennobrecer  os  que  a  elle  fe  dedica- 
vam. O  commercio  e  a  induftria  confUtuiam  na  ordem  focial 
a  grata  predilecção  para  o  animo  do  miniftro  legiílador.  Os 
preâmbulos  das  fuás  leis  e  alvarás  contêem  a  glorificação 
d'efte  ramo  de  trabalho,  que  é  a  medida  e  o  fignal  da  civi- 
lifação  económica  de  um  povo.  Fixam-fe  então  os  preceitos 
fegundo  os  quaes,  em  proveito  da  mais  útil  e  regular  commu- 
nicação  commercial  entre  o  Brazil  e  a  metrópole,  fe  deviam 
regular  as  frotas,  em  que  então  fó  era  permittido  o  trafico 
para  as  fecundas  regiões  da  America  meridional  ^  Amplia-fe 
a  todos  os  navios  portuguezes,  que  tranfportaífem  madeiras 
nacionaes,  a  reducção  de  direitos  concedidos  á  companhia 
do  Grão-Pará^  Depois  do  terremoto,  com  o  pretexto  das 
graves  perturbações  caufadas  ao  commercio  por  aquella  es- 
pantofa  calamidade,  haviam  fido  frequentes  e  numerofas  as 
quebras  fraudulentas.  Decreta  o  eítadifta  remédios  falutares 
para  que  efta  praga  mercantil  não  venha  empecer  e  defani- 
mar  o  tráfego  dos  honrados  mercadores''. 

Obedecendo  ao  principio,  quafi  geral  em  toda  a  Europa, 
de  que  a  induftria  e  o  commercio  eram  profiífões  eífencial- 


1  Alvará  de  1 1  de  agoílo  de  17 5g. 

2  Alvará  de  25  de  janeiro  de  1/55. 

3  Alvará  de  29  de  maio  1756. 

4  Alvarás  de  i3  de  novembro  de  1756,  e  17  e  3o  de  maio  de  1739. 


eis 


mente  fubordinadas  aos  regulamentos  do  governo,  e  de  que 
os  officiaes  de  cada  mefter  e  os  membros  de  uma  claíTe  de 
mercadores  deviam  conftituir  uma  cerrada  corporação,  regi- 
da por  difpofições  e  regras  oíficiaes,  Sebaftião  de  Carvalho 
publica  os  eftatutos,  pelos  quaes  fe  haveria  de  governar  a 
Mela  do  bem  commiim  dos  mercadores',  e  aíTigna  a  cada  uma 
das  cinco  claffes,  em  que  fe  repartia  o  commercio  das  fazen- 
das a  retalho,  as  ruas  onde,  na  cidade  baixa  depois  de  re- 
conítruida,  teriam  exclufivamente  as  fuás  lojas. 

Ao  mefmo  paíTo,  que  pela  fevera  applicação  de  doutri- 
nas económicas  erróneas,  mas  geraes  em  todos  os  eítados 
europeus  de  maior  cultura,  fe  mantém  a  fujeição  do  com- 
mercio interno  á  ciofa  tutela  da  audoridade,  reftitue  em 
parte  o  miniflro  a  liberdade  ao  commercio  em  grandes  pro- 
porções. Declara  inteiramente  livre  a  navegação  para  Angola 
e  Moçambique-.  Decreta  a  abolição  do  monopólio,  que  o  es- 
tado havia  feito  do  vellorio  ou  da  miífanga  para  o  trato  de 
permutação  com  as  gentes  africanas^  A  fedudora  theoria, 
então  amimada  e  feguida  cm  toda  a  Europa  de  que  n'um 
paiz  de  commercio  decadente  e  frouxa  energia  individual,  a 
fruduofa  exploração  das  regiões  ultramarinas  fó  poderia  efFei- 
tuar-fe  pela  collediva  diligencia  das  poderofas  companhias, 
continuava  a  dominar  o  efpirito  de  Carvalho.  A  femelhança 
da  que  eftava  inftituida  para  o  trafico  da  metrópole  com  o 
Grão-Pará  e  Maranhão  fundou  o  eítadiífa  uma  nova  focie- 
dade  mercantil,  a  companhia  de  Pernambuco  e  Parahiba, 
com  o  capital  de  três  milhões  e  quatrocentos  mil  cruzados,  e 
com  privilégios  e  exempções  tão  largas  e  valiofas,  como  as 
que  já  foram  concedidas  á  que  lhe  fervia  agora  de  exemplar 


'  Alvará  de  i6  de  dezembro  de  lySy. 

2  Alvará  de  7  de  maio  de  1761. 

3  Alvará  de  7  de  maio  de  i/di. 


tia 


4eU 

272 

e  de  modelo'.  Decretou  egualmente  por  aquclles  tempos  no- 
vas conceíTóes  á  companhia  do  Grão-Pará,  e  publicou  va- 
rias e  feveras  providencias  para  fortalecer  e  profperar  a  fua 
mais  dileda  inftituição  commercial,  a  companhia  do  Alto 
Douro. 

Não  fão  menos  dignas  de  commemoração  as  duras  pe- 
nalidades, com  que  bufcou  reprimir  o  immenfo  contraban- 
do, que  lefava  ao  mefmo  paíTo  os  redditos  do  thefouro,  e 
opprimia  por  uma  concorrência  defegual  o  licito  commer- 
cio.  É  notável  a  próvida  legiflação,  em  que  procura  inhibir 
e  caftigar  o  abufo,  com  que  os  morteiros  e  conventos,  os  fi- 
dalgos, os  militares  e  os  próprios  officiaes  das  alfandegas, 
confpiravam  todos  no  contrabando,  amparando  e  favore- 
cendo os  infra  (flores  das  leis  fifcaes-. 

A  inftituição  dos  pharoes  nas  coftas  de  Portugal  é  um 
ado,  que  teftifica  o  empenho  de  Carvalho  em  aíTegurar  a 
navegação.  Ordenou  o  miniftro  que  fe  erigiíTem  féis  pha- 
roes, que  deviam  fer  collocados  no  Bugio,  em  S.  Julião,  na 
Guia,  nas  Berlengas,  no  Porto  e  emVianna-. 

Applicou-le  a  lagaz  diligencia  de  Sebaftião  de  Carvalho 
a  reduzir  a  melhor  ordem  a  anarchia  e  a  confufão,  que  ti- 
nham feito  da  fazenda  publica  um  labyrinto,  em  que  fol- 
gavam os  exaflores  para  fraudar  os  rendimentos  nacionaes. 
Cumpria  centralifar  a  adminiftração  das  rendas  publicas,  re- 
partida entre  numerofas  e  improfícuas  eftações,  e  pro^'er  á 
contabilidade  methodica  e  racional  das  receitas  e  dos  gas- 
tos da  nação.  A  fundação  do  Thefouro  geral  ou  Erário  pu- 
blico é  uma  das  mais  aíTignaladas  innovações  do  grande  re- 
formador "•. 


'  Alvará  de  10  de  fevereiro  de  1757. 

2  Alvará  de  14  de  novembro  de   1757. 

3  Lei  de  i  de  fevereiro  de  1758. 

4  Carta  de  lei  de  22  de  dezembro  de  1761. 


273 

Com  eíla  previdente  inftituição  principiou  em  Portugal 
a  adminiftração  regular  da  fazenda  publica,  fem  a  qual  é 
impoíTivel,  ou  por  extremo  viciofa,  toda  a  acção  governativa. 
Uma  lei,  publicada  ao  mefmo  tempo,  completava  o  novo 
fyftema  de  acção  fifcal,  regulando  as  attribuições  do  antigo 
confelho  da  fazenda'. 

Todas  aftas  multiplicadas  providencias  em  beneficio  da 
illuftração,  da  riqueza  e  da  ordem  interior  não  diftrahiam 
em  tanta  maneira  a  attenção  incanfavel  do  miniftro,  que  o 
tiveíTem  agora  inerte  e  defapercebido  para  aíTumptos  pon- 
derofos,  que  intereffavam  em  fummo  grau  a  própria  ma- 
jeftade  e  independência  de  Portugal. 


CAPITULO  XII 

A  GUERRA   COxM   A    HESPANHA 

Era  Sebaftião  de  Carvalho,  na  mais  ampla  accepção 
d'eftas  palavras,  um  eftadifta  civil  e  adverlb  a  toda  a  oftenta- 
ção  de  força  nas  fuás  relações  com  as  potencias  extrangeiras. 
Bufcava,  antes  de  tudo,  illuftrar  e  enriquecer  a  lua  pátria,  e 
contentava  a  lua  indefeffa  e  innovadora  actividade  com  o 
theatro  modefto  do  paiz,  a  cuja  relurrcição  moral  fe  havia 
confagrado.  Não  defejava  a  guerra,  mas  tampouco  a  defde- 
nhava,  quando  foíTe  defenfiva  contra  forafteiras  oppreíTões  e 
prepotências.  Evital-a-hia,  quanto  podeffe,  excepto  quando 
a  honra  nacional  cftiveíTe  pendente  por  um  fio  da  ponta  de 
uma  efpada. 

As  relações  de  Portugal  com  a  França  e  com  a  Hefpanha 
eram  já  defde  longo  tempo,  fe  não  rotas  e  hoftis,  ao  menos 


I  Carta  de  k'i  de  22  de  dezembro  de  /761. 


T* 


274 


fufpeitofas,  defamoraveis.  As  diuturnas  conteftações  com  a 
Helpanha,  acerca  dos  limites  na  America  do  Sul,  tinham 
accrefcido  á  velha  tradição  de  malquerença  e  inimizade  en- 
tre as  duas  coroas  peninfulares.  Os  Bourbons  affentados  no 
throno  de  Filippe  II  continuavam,  fequer  nas  intenções,  as 
miras  ambiciofas  da  cafa  de  Auftria.  Portugal  era  fempre  no 
conceito  dos  governos  hefpanhoes  uma  província  rebcllada. 
A  Peninllila  inteira  devia,  fegundo  elles,  abrigar  uma  lo 
grei,  fob  um  fó  dominador. 

A  França  profeguia  com  a  lua  rival  de  além  da  Mancha 
uma  guerra  defaftrofa.  Os  íbberanos  da  cafa  de  Bourbon 
tinham  celebrado  em  1 5  de  agoíto  de  176 1  o  famofo  Pado  de 
familia,  efpecie  de  permanente  confederação  entre  todos  os 
monarchas  d'efta  infaufta  e  perniciofa  dynaftia.  A  Helpanha 
havia  fido  arraftada  a  empenhar-fe  na  luda  contra  a  Gran- 
Bretanha.  Mas  a  grande  nação  infular  tinha  em  Portugal 
um  alliado  fiel  e  perfeverante  na  obfervancia  dos  antigos 
tratados  com  a  Inglaterra.  Esforçavam-fe  as  duas  coroas  de 
Bourbon  em  fegregar  a  Portugal  da  alliança  e  favor  aos  in- 
glezes,  e  em  forçal-o  a  romper  a  fua  neutralidade. 

O  rei  de  Portugal,  ainda  que  ligado  eftreitamente  por 
vínculos  de  fangue  á  cafa  de  Bourbon,  não  era  propriamente 
um  ramo  d'aquelle  tronco,  e  não  fora  por  iffo  incluído  no 
Pado  de  familia.  Mas  a  convenção  firmada  em  Verfailles 
entre  Luiz  XV  e  Carlos  III,  a  4  de  fevereiro  de  1762,  pelos 
dois  plenipotenciários,  duque  de  Choifeul  e  marquez  de  Gri- 
maldi,  eítabelecia  no  artigo  7."  que  os  dois  monarchas  parti- 
cipariam ao  rei  de  Portugal  a  fua  união,  perfuadindo-o  a 
congregar-fe  com  elles  na  liga  paduada,  porque  feus  vas- 
fallos  padeciam  mais  do  que  outra  qualquer  nação  o  jugo 
impofto  pela  Inglaterra  a  quantos  povos  tinham  n'aquellc 
tempo  navegação  e  domínios  ultramarinos.  Não  era,  diziam, 
jullo  que  a  França  e  a  Hefpanha  fe  houveflem  de  facrificar 


c|3 


por  um  interefle,  que  lhes  era  commum  com  Portugal,  e  que 
elta  potencia  não  fomente  fe  reculaíTe  a  auxilial-as,  fenão  que 
pterfiftifle  em  enriquecer  o  inimigo  e  em  dar-lhe  nos  feus 
portos  guarida  e  acolhimento.  Com  uma  arrogante  infracção 
do  direito  das  gentes,  decretavam  os  dois  Bourbons  que  o 
rei  de  Portugal  não  podia  conlervar-fe  indiíferente  na  guerra 
já  travada,  e  lançavam  terminantemente  a  ameaça  de  que 
fe  não  baftaífe  a  perfuafão,  a  força  o  obrigaria  a  romper  a 
neutralidade. 

Sebaftião  de  Carvalho  prefentia  defde  muito  o  golpe, 
que  lhe  eftavam  apparelhando  as  duas  potencias  inimigas 
da  Inglaterra.  Já  em  1 5  de  novembro  de  1 76 1  e  nos  pri- 
meiros mezes  do  anno  immediato,  a  vifta  perfcrutadora  do 
miniftro  defcortinava  os  fignaes  da  próxima  tormenta,  por- 
que expedia  n'eíre  tempo  a  Martinho  de  Mello,  plenipoten- 
ciário portuguez  em  Londres,  fecretas  inftrucções  para  que 
reclamaífe  do  gabinete  britannico  os  auxilios  de  tropas  e  de 
navios,  fegundo  fe  eftipulára  no  tratado  de  16  de  maio  de 
1703.  Encarregara  egualmente  aquellc  diplomático  de  al- 
cançar de  Inglaterra  um  general  de  grande  capacidade  para 
que  vieffe  commandar  o  exercito  portuguez.  Commettera- 
Ihc  também  o  negociar  que  outros  officiaes  de  excellentc  re- 
putação fe  obrigaífem  a  fervir  nas  fileiras  de  Portugal. 

Tal  era  por  aquelle  tempo  o  defamparo,  em  que  jaziam 
as  inftituições  militares,  que  era  forçofo  mendigar  em  terra 
extranha  os  próprios  officiaes,  que  haviam  de  mandar  folda- 
dos  portuguezes,  outrora  celebrados  em  todo  o  mundo  como 
exemplo  gloriofo  de  virtudes  e  feitos  bellicofos.  Era  laflimo- 
fo  e  miferavel  o  eftado  da  força  defenfiva  em  Portugal.  O 
exercito,  apefar  das  efcaífas  providencias,  que  Sebaftião 
de  Carvalho  adoptara  defde  logo  á  fua  entrada  no  governo, 
como  fecretario  d'eífado  dos  negócios  extrangeiros  e  da 
guerra,  exiftia  quafi  nominalmente.  Podia  ler  a  duras  penas 

■A-* .mA-^ 


4S^ 
-Íh^ 


um  elemento  policial,  um  agente  de  repreíTão  e  de  ordem 
interior,  como  fuccedêra  na  fedição  popular  do  Porto,  nas 
diligencias  dirigidas  a  aíTegurar  a  paz  domeftica  no  tempo 
da  conjuração,  ou  nos  feveros  procedimentos  empregados 
contra  os  jefuitas.  Era,  porém,  de  todo  o  ponto  incapaz 
de  refiftir  a  uma  invafão  e  de  enfrear  no  primeiro  Ímpeto 
as  hoftes  do  aggreíTor.  Mais  de  meio  feculo  havia  decor- 
rido defde  a  guerra  da  fucceffão  de  Hefpanha,  em  que  Tol- 
dados portuguezes  pela  ultima  vez  fe  haviam  empenhado 
em  ludas  europêas.  D.  João  V,  depois  da  paz  de  Utrecht, 
procurara  melhorar  as  inítituições  militares  de  Portugal.  Re- 
organifára  em  1 7 1 5  as  fuás  tropas,  fegundo  os  principios 
adoptados  pelas  mais  notáveis  potencias  da  Europa.  Mas  a 
Índole  pacifica  do  monarcha  fumptuofo  deixara  bem  depres- 
fa  recair  no  antigo  eftado  as  enervadas  forças  hellicofas  da 
nação.  Quando  em  1785  uma  grave  diíTidencia  entre  Portu- 
gal e  a  Hefpanha  parecia  fazer  imminente  a  ultima  ra{âo  Jos 
reis,  algumas  providencias  fe  adoptaram  para  melhorar  a  de- 
cadente fituação  do  exercito  portuguez.  Mas  apenas  ciiflipados 
os  temores  de  próxima  borrafca  logo  o  magnifico  monarcha 
fe  efqueceu  de  que  as  bayonetas  e  os  canhões  eram  n'aquelle 
tempo  e  ainda  hoje  fão  infelizmente  em  grande  parte,  os  fu- 
premos  julgadores  nas  pendências  internacionaes  e  os  mais 
feguros  fiadores  da  indepenciencia  e  liberdade.  D.  João  V, 
apefar  da  vaidofa  prefumpção,  com  que  facilmente  fe  offe- 
recia  como  pacificador  e  medianeiro  entre  as  potencias  mais 
poderofas,  deflembrava  que  para  arbitro  da  paz  é  forçofo 
ao  mefmo  tempo  o  eftar  preítes  a  entrar  na  guerra,  e  que 
para  accommodar  as  difcordias  das  nações  é  neceífario  que 
a  fentença  arbitral  feja  proferida  com  a  mão  robufta  e  mus- 
culofa  no  punho  da  efpada.  Os  oito  annos  derradeiros,  em 
que  D.  João  V  padeceu  a  ultima  enfermidade,  foram  um 
eclipfe  quafi  total  das  frouxas  energias  da  nação.  O  exercito, 

^-A- -ó-l- 

tis  tia 


^77 

participe  na  commum  deforganifação,  chegou  ao  extremo 
da  fua  ruina.  As  tropas,  mal  recrutadas  com  a  barbárie,  a 
violência  e  a  iniquidade,  que  diftinguiam  a  confcripção  em 
todas  as  potencias  militares  no  xviii  feculo,  os  regimentos  di- 
zimados pela  crefcente  deferção,  e  enfraquecidos  pela  mife- 
ria  e  pela  fome,  eram  apenas  um  ridiculo  phantafma  e  uma 
parodia  ignominiofa  dos  exércitos  regulares.  Emquanto  fe 
defpendiam  com  uma  prodigalidade  babylonica  os  groíTos 
milhões  das  minas  do  Brazil  em  fabricar  a  bafilica  de  Mafra 
e  em  conquiftar  para  Lifboa  um  patriarcha,  reflexo  e  imita- 
ção da  grandeza  pontifical,  decorriam  longos  mezes  fem  que 
fe  pagaíTem  aos  Ibldados  os  léus  ténues  vencimentos,  e  o 
exercito  era  apenas  uma  turba  de  mendigos  disfarçados  nas 
apparencias  do  uniforme. 

Se  a  organifação,  a  difciplina,  a  inítrucção,  o  valor  moral 
das  tropas  em  Portugal  raiavam  na  ultima  degradação,  não 
eram  mais  propicies  á  defeza  nacional  os  recurfos  materiaes. 
Segundo  efcreveu  Carvalho  em  um  dos  feus  papeis ',  não 
havia  nos  arfenaes  portuguezes  coufa  alguma  de  prejlimo. 
Adiantou-fe  o  miniftro  a  fazer  comprar  em  Inglaterra  pelo 
plenipotenciário  portuguez,  Martinho  de  Mello,  o  mais  ur- 
gente material  de  artilheria,  o  armamento  e  equipamento 
para  a  infanteria  e  cavallaria,  a  pólvora  de  que  o  reino  es- 
tava defprovido,  e  as  próprias  tendas  para  o  acampamento. 
Elevou-le  o  exercito  a  quarenta  e  féis  mil  homens,  o  que, 
na  ambiciofa  phrafe  de  Carvalho,  era  coufa  nunca  d"antes 
vifta  em  Portugal. 

Já  em  novembro  de  1 76 1  fe  procedia  com  grande  aílivi- 
dade  ao  recrutamento.  Mas  apefar  da  incanfavel  diligencia, 
com  que  Sebaftião  de  Carvalho  no  meio  das  mais  extraordi- 
nárias circumftancias  attendia  com  louvável  follicitude  a  to- 


Contrariedade  ao  libclln,  Appenfo  ii,  Z  -''3. 


COT 


si» 


278 

dos  os  ramos  da  adminiftração  e  economia,  era  certamente 
para  laftimar  que  o  feu  efpirito,  elTencialmente  civil,  e  mais 
de  eftadifta  vigorofo  do  que  diligente  adminillrador  dos  ne- 
gócios militares,  nos  largos  annos,  que  levava  de  governo 
tiveíTe  deixado  em  quafi  inteiro  defamparo  as  forças  defen- 
íivas  da  nação.  Um  contemporâneo  enthufiafta  do  miniftro 
de  D.  Jofé  efcrevia  á  fua  corte  que  ás  tropas  fe  devia  anno 
e  meio  dos  foldos  tenuiffimos,  e  que  os  foldados,  ainda  mes- 
mo eftando  de  fentinella,  eftendiam  a  mão  á  caridade,  o  que 
é  plenamente  confirmado  por  quantos  efcreveram  n'aquelle 
tempo  acerca  das  inftituições  militares  em  Portugal". 

Apefar  dos  esforços  empenhados  por  Sebaftião  de  Car- 
valho para  melhorar  a  fazenda  publica,  as  prodigalidades, 
os  erros,  os  defmandos  do  reinado  antecedente  haviam  com 
os  feus  effeitos  refiftido  em  grande  parte  aos  talentos  organi- 
fadores  do  miniftro  pre^'idente.  A  fundação  do  erário  régio 
tinha  lido  principalmente  determinada,  como  o  próprio  Car- 
valho o  confeíTou  cm  um  dos  feus  efcriptos,  para  accudir  com 
recurfos  efficazes  á  regular  manutenção  do  exercito  portuguez 
na  guerra,  que  antevia  já  próxima  e  inevitável.  Os  redditos 
do  fifco  não  bailavam  a  folver  todos  os  creícentes  encargos 
de  uma  lltuação  extraordinária.  A  decima,  eftabelecida  nos 
primeiros  tempos  do  rei  D.  João  IV,  como  um  fubfidio  efpe- 
cialmente  confagrado  ás  enormes  defpezas  da  guerra  da  res- 
tauração, pareceu  ao  miniftro  fcr  chegada  a  occafião  de  a 
renovar,  quando  a  guerra  ainda  continuava  com  a  Hefpanha. 

Já  nos  fins  de  1761  Sebaftião  de  Carvalho  havia  alcan- 
çado melhorar  a  íubfiftencia  milera\'el  das  tropas  em  Por- 
tugal. Fizera-lhes  pagar  féis  mezes  dos  foldos  atrazados,  e 
decretara  providencias  falutares,  com  que  foíTe  prompto  e 


'  OfTicio  do  encarregado  de  negócios  de  França,  St.  Julien,  para  o  feu 
governo,  de  17  de  novembro  de  1761.  Qiiadro  elementar,  tom.  vii,  pag.  29. 


-S-^ 


eis 


c|3 


^79 

regular  o  pagamento.  Como  fempre  lliccedeu  em  Portugal 
accudia-le  á  defeza,  quando  o  perigo  era  já  imminente  e  a 
guerra  inevitável,  quando  a  urgência  e  apertura  apenas  con- 
fentiam  á  mais  enérgica  vontade  expedientes  e  recurfos  de 
momento.  Não  é  quando  o  inimigo  avança  já  fobre  as  fron- 
teiras, c[ue  o  mais  próvido  talento  pôde  fundar  e  robuftecer 
as  inftituições  guerreiras  de  um  paiz.  Sebaítião  de  Carvalho 
com  a  audácia,  que  tinha  habitual,  e  a  fortuna,  cjue  o  bafe- 
jou nos  lances  mais  difficeis,  realifou  porém  quanto  lhe  per- 
mittia  a  conjundura. 

Na  quafi  completa  deforganilação,  em  que  jazia  o  exercito 
portuguez,  a  artilheria,  que  nas  guerras  de  Frederico  tomara 
finalmente  o  leu  logar  proeminente  na  mechanica  tcrrivel 
das  batalhas,  era  porventura  entre  as  armas  a  mais  laífimo- 
famente  defamparada.  Os  antigos  Pés  de  cajlello,  rellcjuias 
eftereis  e  anachronicas  do  velho  organifmo  militar,  ordenan- 
ças improvifadas  em  arma  technica,  ainda  n*aquene  tempo 
guarneciam  de  imperitos  e  quafi  inúteis  artilheiros  as  forta- 
lezas principaes,  e  efpecialmente  as  que  intentavam  defen- 
der a  foz  do  Tejo.  Sebaftião  de  Carvalho  extingue  elfe  rifivel 
fimulacro  de  uma  boa  artilheria,  e  inílitue  em  leu  logar  um 
novo  regimento  de  mais  de  mil  e  cjuatrocentas  praças,  dá- 
Ihe  por  feu  quartel  a  torre  de  S.  Julião,  e  funda  para  a  in- 
ftrucção  theorica  e  pradica  uma  aula  regida  pelo  tenente  co- 
ronel ou  fargento  mór'.  Eleva  a  cincoenta  e  cinco  praças, 
incluindo  os  oíiiciaes,  cada  uma  das  companhias  de  infan- 
teria  e  as  do  regimento  de  artilheria  no  Alemtejo,  e  decreta 
c[ue  fejam  de  quarenta  e  dois  homens  na  fua  totalidade  as 
companhias  de  cavallaria  e  de  dragões-.  Ao  mefmo  paíTo  a 
cada  um  dos  regimentos  a  cavallo  accrefcenta  mais  quatro 


■  Alvará  de  g  de  abril  de  1762. 
-  Decreto  de  16  de  abril  de  1762. 


?- -O^ 


280 

companhias'.  Para  que  poíTa  effeítuar-fe  em  breve  tempo 
a  mobilifação  das  tropas  em  Portugal,  e  incluir-fe  nos  feus 
quadros  a  grande  copia  de  recrutas,  augmenta  com  mais  oito 
companhias  ou  quatro  por  batalhão  cada  um  dos  regimentos 
de  infanteria  e  o  de  artilheria  do  Alemtejo'.  Logo  depois  de- 
creta que  das  quarenta  companhias  mandadas  accrefcentar 
aos  dez  regimentos  de  cavallaria  e  de  dragões,  fe  formem 
quatro  regimentos  novos  de  quarenta  e  duas  praças  em  cada 
companhia.  Os  corpos  de  nova  inftituição  eram  os  dragões 
de  Campo  Maior  e  de  Penamacor  e  os  regimentos  ligeiros 
de  Caftello  Branco  e  deVianna^ 

Era  incerta  como  fempre  a  duração  da  guerra  com  a 
Hefpanha.  As  forças  portuguezas,  pela  aulencia  de  uma  lei 
tolerável  de  recrutamento,  feriam  infufiicientes,  ainda  quando 
as  mais  inexoráveis  oppreíTões  e  violências  arraftaíTem  de 
feus  lares  os  filhos  do  povo,  condemnados  a  figurar  como 
trebelhos  no  taboleiro,  onde  os  príncipes  jogavam  o  xadrez 
das  fi.ias  paixões  hereditárias  ou  das  fi.:as  criminofas  ambi- 
ções. Cumpria  aíToldadar  tropas  extrangeiras.  Levantaram-fe 
dois  batalhões  fuilFos,  commandados  pelos  coronéis  Thor- 
mann  e  SauíTure.  Tinha  cada  batalhão  quatro  companhias, 
duzentas  praças  cada  companhia^ 

Não  exiftiam  generaes,  que  podeíTem  exercitar  o  com- 
mando  n'um  exercito  moderno.  Os  que  havia  em  grande  nu- 
mero eram  homens  da  mais  alta  fidalguia  portugueza,  capa- 
zes de  ferem  bons  foldados,  mas  totalmente  defprovidos  do 
faber  e  da  experiência  das  modernas  guerras  europêas,  ge- 
rieraes,  que  paífavam  os  feus  annos  mais  no  paço  como  gen- 


■  Decreto  de  16  de  ahril  de  1762. 

2  Decreto  de  21  de  ahril  de  1762. 

3  Decreto  de  27  de  junho  de  1761,  approvando  as  capitulações,  com  que 
haviam  fido  contratados  os  dois  batalhões  de  gente  fuifía. 

^^^ -0^ 

e|j  tia 


c|9 


281 

tis-homens  da  camará  e  cortefáos,  do  que  nos  campos  de 
manobra  ou  nas  grandes  e  feveras  guarnições.  Alcançou  Se- 
baítião  de  Carvalho,  que  vieíTe  commandar  em  chefe  o  exer- 
cito portuguez  um  illuftre  official,  cujo  nome  fe  fizera  jufta- 
mente  celebrado  nas  guerras  de  Allemanha,  e  cujo  elpirito 
era  largamente  illuminado  pelo  eftudo  das  Iciencias  milita- 
res, quafi  de  todo  o  ponto  ignoradas  n'aquella  fazão  em  Por- 
tugal. Era  o  conde  de  Lippe  Schauenburg,  príncipe  imme- 
diato  ao  facro  império  e  foberano  no  leu  pequeno  território. 
Veiu  com  elle  o  duque  de  Mecklemburg-Strelitz,  que  paliava 
por  fer  profeíTo  na  technica  e  no  ferviço  da  artilheria.  Muitos 
outros  officiaes,  os  mais  d'elles  aventureiros,  inglezes,  efco- 
cezes,  fuiíTos,  allemães,  acceitaram  o  ferviço  com  vantajofas 
condições  fob  as  bandeiras  de  Portugal. 

Com  taes  e  tão  expeditas  providencias  Sebaítião  de  Car- 
valho, apefar  da  fua  pouco  vehemente  vocação  para  negó- 
cios militares,  foube  improvifar  os  meios  defenfivos  pela  in- 
tuição perfpicua  do  talento,  que  para  tudo  ferve  e  a  tudo 
chega,  quando  o  aguilhoa  o  patriotifmo  e  é  urgente  a  occa- 
ilão. 

Portugal, .  porém,  apefar  da  energia  do  miniítro,  e  dos 
milagres  da  fua  providencia,  não  podia  certamente  medir-fe 
e  aíTrontar-fe  fó  por  lo  com  as  forças  de  duas  nações  coUi- 
gadas  c  poderofas.  A  querella,  em  que  a  defpeito  dos  feus 
pacíficos  esforços,  ia  achar-fe  envolvido  brevemente,  empe- 
nhava-a  em  grande  parte  pela  fua  lealdade  á  Inglaterra,  de 
cuja  alliança  o  pretendiam  feparar.  Não  era  pois  jufio,  nem 
decorofo,  que  ao  fer  curfado  o  feu  território  pelos  exércitos 
invafores,  fe  vilTe  defamparado  de  todo  o  auxilio  prompto 
e  efíicaz  n'um  lance,  que  punha  em  contingência  a  própria 
exiftencia  da  nação. 

Inflava  Sebaftião  de  Carvalho  por  que  a  Inglaterra  cn- 
viaífe  a  Portugal  as  luas  tropas.  Negociava,  urgia,  encarecendo 

^%-^ -í»-§- 


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282 

o  perigo  da  fua  pátria,  e  a  utilidade  própria  dos  inglezes.  Mas, 
fegundo  acontece  quafi  fempre,  trepidava  a  Gran-Bretanha 
em  aventurar  as  fuás  forças  nos  campos  de  Portugal.  Ohje- 
dlava  como  fempre,  que  todo  o  auxilio  feria  inefficaz,  elíando 
Portugal  imbelle  e  indefefo,  e  que  o  amparo  dos  extranhos 
fó  poderia  aproveitar  a  um  alliado,  que  pelos  feus  recurfos 
próprios  tiveífe  accudido  previdente  á  fua  primeira  defenfão. 
Bufcava  Sehaftião  de  Carvalho  folver  eftas  duvidas  e  hefi- 
tações.  Affirmava  não  fer  exada  a  increpação  de  que  nada 
fe  havia  cuidado  por  parte  do  governo  na  defeza  de  Portu- 
gal, antes  muito  ao  revez,  dizia  o  miniftro,  em  nenhuma  ou- 
tra corte  poderia  haverem -fe  tomado  mais  promptas  provi- 
dencias, em  tempo  tão  efcaífo  e  tendo  o  inimigo  quafi  nas 
fronteiras". 

E  de  feito  já  os  reprefentantes  da  França  e  da  Hefpanha 
intimavam  em  Lifboa  o  governo  portuguez  a  entrar  na  guer- 
ra contra  o  fcu  antigo  alliado  e  ainda  elle,  pelo  feu  egoifmo 
proverbial  e  mercantil,  dilatava  com  delongas  diplomáticas 
o  acceder  ás  inftancias  de  Portugal. 

A  16  de  março  de  1762  o  plenipotenciário  francez  0'Dun- 
ne  e  o  embaixador  de  Hefpanha,  D.  Jofé  Torrero,  aprefen- 
tavam  colleítivamente  ao  miniftro  dos  negócios  extrangeiros 
e  da  guerra,  D.  Luiz  da  Cunha,  uma  memoria,  na  qual  em 
nome  dos  feus  monarchas  pediam  ao  rei  portuguez  fe  de- 
claraífe  unido  aos  dois  Bourbons  na  guerra  contra  a  Gran- 
Bretanha,  rompeífe  todo  o  trato  e  communicação  com  efta 
potencia,  commum  inimiga  de  todos  três,  e  cerraífe  os  feus 
portos  aos  navios  inglezes  de  guerra  ou  de  commercio.  In- 
vocavam para  decidir  o  rei  D.  Jofé  o  parentefco  eftreito,  que 
o  vinculava  ao  foberano  hefpanhol,  irmão  da  rainha  de  Por- 


>  Defpacho  de  Sebaflião  de  Carvalho  para  o  enviado  portuguez  em  Lon- 
dres, de  22  de  março  de  17G2. 

'  '  ti 


283 


tugal,  amigo  verdadeiro,  vifinho  quieto  e  moderado.  Accres- 
centavam  que  a  Peninfula  para  a  guerra  e  para  a  paz  devia 
reputar-fe  como  fe  tora  de  um  lo  dono.  0'Dunne  e  Torrero 
intimavam  o  go^'erno  porluguez  a  que  deíTe  dentro  de  qua- 
tro dias  ás  propofiçcjes  contidas  na  memoria  uma  refpoíta 
clara,  deciliva,  categórica. 

Efta  inlblente  e  altiva  intimação,  diffimulada  nas  appa- 
rencias  da  brandura  e  amifade,  teria  quebrantado  fem  re- 
médio o  animo  do  eftadilia  mais  audaz.  Eftava  Portugal  a 
duras  penas  guarecido  com  frouxiíTima  defeza,  as  fronteiras 
abertas,  quafi  inermes,  as  tropas  á  preíTa  levantadas  quall 
Ibb  o  cutello  do  inimigo,  os  foldados  bilbnhos,  coUedicios, 
os  officiaes  inexperientes,  enervados  na  vida  ociofa  das  guar- 
nições, após  cincoenta  annos  de  paz  e  efc[uecimento  das  cou- 
fas  militares.  Mas  Sebaftião  de  Carvalho  não  era  homem 
que  facilmente  desfalleceíTe  e  caííTe  rendido  e  obfequente  aos 
pés  do  inimigo.  Com  eítes  lances  difficillimos  fe  queria  e  fe 
arroítava.  Governo  fácil  não  era  para  elle  aíTumpto  digno 
da  fua  intelligencia  e  do  feu  brio.  Não  dilatou  alem  dos 
quatro  dias  a  refpofta  ás  arrogantes  intimações.  Em  uma 
nota  dirigida  aos  dois  reprefentantes  nominalmente  pelo  mi- 
niftro  dos  negócios  extrangciros,  repulfava  Sebaftião  de  Car- 
valho com  altivez  e  hombridade  as  inauditas  propollções  da 
França  e  da  Hefpanha.  A  majeftade  nacional  tranfparecia 
dignamente  n'eíre  papel  efcripto  quafi  em  prefença  das  bayo- 
netas  inimigas.  N'elle  dizia  o  miniftro  inflexível  c]ue  tendo 
com  a  Inglaterra  nunca  interrompidas  ligações  puramente 
defenfivas  e  innocentes,  confagradas  em  muitos  e  íblcmniíli- 
mos  tratados,  e  não  tendo  Portugal  recebido  da  Gran-Breta- 
nha  nenhuma  ofFenfa,  que  podefle  juftificar  a  fua  tranfgres- 
fão,  viria  a  offender  a  religião,  a  fidelidade  e  o  decoro,  fe 
porventura  accedeíTe  ao  que  lhe  propunham  em  defar  da  In- 
glaterra. Accrefcentava  que  os  parentefcos,  as  amifades  e  as 


284 

allianças,  que  tinha  com  as  potencias  belligerantes  e  a  neu- 
tralidade, que  fe  esforçava  por  manter,  o  habilitavam  a  oífe- 
recer  a  fua  mediação  para  aquietar  as  diíTerenças  entre  os 
reis  da  cafa  de  Bourbon  e  o  feu  adual  antagoniíla ' . 

Na  memoria  firmada  no  i ."  de  abril  e  aprefentada  n'eíre 
dia  ao  governo  de  Portugal,  refpondiam  os  dois  reprefentan- 
tes  Torrero  e  0'Dunne  que  fe  a  uma  nova  negociação  de 
paz  fe  offereceíTe  occafião,  o  rei  chriftianiffimo  e  o  catholi- 
co  não  repulfariam  a  mediação  do  feu  confrade  portuguez, 
fe  houveífem  de  attender  unicamente  á  fua  alta  hierarchia. 
Acer  efe  entavam  todavia  que  a  parcialidade  manifefta  do  feu 
governo  em  favor  dos  inglezes,  fazia  augurar  que  a  media- 
ção não  faíria  proveitofa  aos  dois  Bourbons.  O  rei  de  Hcs- 
panha  tinha  ademais  contra  a  propofta  uma  razão  efpecial, 
e  era  a  de  que  havendo-fe  oíferecido  por  mediador  entre  a 
corte  de  Portugal  e  a  de  Roma,  aos  feus  bons  officios  fe  res- 
pondera com  inaudito  defapego,  allegando  o  miniíterio  por- 
tuguez não  fer  ainda  chegado  o  tempo  de  concertar  as  dis- 
fidencias  com  o  Vaticano.  Bufcavam  os  dois  reprefentantes 
demonftrar  que  de  Inglaterra  havia  recebido  Portugal  tão 
grave  offenfa,  c]ual  era  a  de  que  uma  efquadra  britannica 
tivelTe  n'um  porto  d'efte  reino  combatido  contra  forças  marí- 
timas de  França  fem  que  nunca  fe  preftaífe  a  dar  cumprida 
fatisfação,  reítituindo  os  navios  aprefados  á  vifta  da  ban- 
deira portugucza.  Queixavam-fe  de  que  D.  Jofé  tinha  a  feu 
ferviço  um  general  inglez  e  outros  officiaes,  o  que  provava 
ferem  verdadeiros  os  concertos  oífenfivos  entre  Portugal  e 
a  higlaterra.  Terminavam  a  fua  nota  os  dois  miniftros  com  a 
infolente  comminação  de  que  logo  fem  mais  ofiicio  nem  con- 
fentimento  do  governo  portuguez  entrariam  cm  Portugal  as 


'  Nota  do  fecretario  de  eftado,  D.  Luiz  da  Cunha,  a  D.  Jofé  Torrero,  e 
Jacob  0'Dunne,  de  20  de  março  de  17Õ2. 

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tM  eia 


285 

tropas  hefpanholas  já  portadas  nas  fronteiras  «com  o  único 
íim,  diziam  0'Dunne  e  Torrero,  de  adiantar-fe  e  confeguir 
que  os  feus  portos  não  eftiveíTem  á  difpofição  do  inimigo, 
e  com  as  ordens  mais  rigorofas  de  que  fem  motivo  não  fizes- 
fem  a  minima  extorfão  aos  vaflallos  do  rei  fideliíTimo,  tra- 
tando-os  como  fe  foffem  de  uma  fó  e  única  monarcliia » . 

A  conteftação  enviada  a  5  de  abril  aos  dois  temerários 
negociadores  por  Sebaftião  de  Carvalho,  refpira  ao  mefmo 
paíTo  a  moderação  e  a  dignidade.  Depois  de  confutar  as  ra- 
zões efpeciofas  allegadas  pela  França  e  pela  Hefpanha,  con- 
clue  com  eftas  palavras,  que  lhe  infpirou  o  patriotiímo  e  a 
honra  nacional:  «N'eí1:e  cafo  (o  de  que  as  tropas  hefpanholas 
cntraíTem  em  Portugal)  não  podendo  o .  .  .  monarcha  exi- 
mir-fe  fem  oíFenfa  dos.  .  .  direitos  divino,  natural  e  das  gen- 
tes, e  fem  caufar  univerfal  efcandalo,  de  fazer  ufo  de  todos 
os  meios  poíTiveis  para  a  fua  indifpenfavel  defeza,  tem  dado 
as  fuás  ordens  para  fe  empregarem  n'ella  as  fuás  próprias 
forças  e  para  fe  unirem  ás  dos  feus  alliados.  .  .  fendo  certo 
que  feria  menos  cuftofo  á  mefma  majeftade  fideliflima .  .  . 
deixar  cair  a  ultima  telha  do  palácio  da  fua  habitação  e  aos 
feus  leaes  vaífalios  derramarem  a  ultima  gotta  de  feu  fan- 
gue,  do  que  facrificar  Portugal  com  o  decoro  de  fua  coroa 
tudo  o  que  ha  de  mais  preciofo». 

Replicaram  0'Dunne  e  D.  Jofé  Torrero  a  23  de  abril  a 
eíta  firmiíTima  refpofta.  Aífentando  a  maliciofa  premiíTa  de 
que  Portugal  vivia  oppreífo  e  tyrannifado  pela  Inglaterra,  e 
de  que  o  exercito  hefpanhol  fe  propunha  libertal-o  de  jugo 
tão  affrontofo,  revertiam  a  invafão  iniqua  e  violenta  com  o 
colorido  machiavelico  do  auxilio  e  do  favor.  Efcreviam  os 
dois  indifcretos  diplomáticos  que  Portugal  fazia  confirtir  o 
ponto  de  honra  em  não  defpeiar-fe  da  oppreífão,  e  em  refis- 
tir  aos  próprios  foldados  cartelhanos,  que  viriam  com  as  pon- 
tas das  fuás  bayonetas  quebrar  nos  pulfos  do  povo  portuguez 


ti» 


si) 


286 

os  pefados  grilhões  da  dominação  britannica.  Pediam  final- 
mente os  paíTaportes  para  faírem  fem  detença  de  uma  cor- 
te, onde  era,  diziam  elles,  já  indecorofa  a  fua  permanência. 

Não  havia  certamente  mais  inhahil  ironia  diplomática 
do  que  efta  fimulação  de  amifade  cordial  a  uma  nação, 
cujo  território  eílavam  preftes  a  profanar  os  exércitos  cafte- 
Ihanos.  Os  governos  de  França  e  da  Hefpanha,  e  ainda  mais 
do  que  elles  os  feus  agentes  diplomáticos  em  Lifboa,  pareciam 
apoftados  pelos  indifcretos  e  defaíTifados  procedimentos  a 
tirar  á  guerra,  que  intentavam,  toda  a  Ibmbra  de  juftiça  e 
feriedade. 

Refpondeu  Sebaftião  de  Carvalho,  em  nota  firmada  a  25 
de  abril,  ás  derradeiras  infolencias  do  embaixador  hefpanhol 
e  do  miniítro  plenipotenciário  de  Luiz  XV.  Refutava  com 
vehemente  gravidade  as  frívolas  razões,  com  que  os  dois 
Bourbons  pretendiam  nas  fuás  guerras  ambiciofas  tomar  a 
feu  foldo  e  acorrentar  aos  feus  deftinos  uma  nação,  que  a  tudo 
preferia  a  fua  neutralidade.  «Sua  majeftade  fideliíTima,  dizia 
Sebaftião  de  Carvalho,  entende  que  para  defender  o  feu  reino 
tem  um  direito.  .  .  que  é  licito  a  qualquer  particular.  .  .  de- 
fender a  própria  cafa  contra  quem  n'ella  quer  entrar  fem  o 
feu  confentimento». 

O  embaixador  hefpanhol  D.  Jofé  Torrero  e  o  plenipo- 
tenciário francez  Jacob  0'Dunne  faíram  de  Lifboa  a  27  de 
abril.  Logo  de  Portugal  fe  expediram  ordens  para  que  o  em- 
baixador portuguez  em  Madrid  e  o  enviado  na  corte  de 
Paris  deixaíTem  immediatamente  as  fuás  legações. 

Eram  decorridos  poucos  dias,  quando  a  Hefpanha  rom- 
peu contra  Portugal  as  hoftilidades.  A  3o  de  abril  publicava 
o  marquez  de  Sarria,  general  em  chefe  do  exercito  hefpanhol 
deftinado  á  invafão,  um  manifefto  dirigido  aos  povos  de  Por- 
tugal. N'efte  documento,  datado  do  acampamento  de  Zamora, 
annunciava  o  general  que  a  entrada  das  fuás  tropas  não  era 

tM  tis 


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287 

encaminhada  a  fazer  a  guerra  aos  portuguezes,  antes  deter- 
minada aos  fins  mais  gloriofos  e  mais  úteis  á  coroa  e  a  Por- 
tugal. Imitando  a  traça  pueril  do  leu  governo,  pretendia  o 
marquez  de  Sarria  perluadir  que  os  regimentos  hefpanhoes, 
ao  paliarem  as  fronteiras  contra  a  vontade  exprelTa  do  go- 
verno portuguez,  vinham  exercer  um  ado  generolb  e  meri- 
tório de  caridade  e  compaixão  internacional. 

O  ardil  era  mais  do  que  tranfparente,  groffeiro  e  defas- 
trado.  Uma  franca  declaração  de  guerra  aberta  haveria  cer- 
tamente provocado  em  Portugal  menor  indignação  do  que 
uma  iniqua  violação  do  território  acompanhada  de  tão  iró- 
nica e  affrontofa  hypocrifia.  Sebaftião  de  Carvalho  refpon- 
deu  declarando  a  guerra  á  Hefpanha  a  18  de  maio  de  1762. 
Pela  ordenança  de  20  de  junho,  Luiz  XV,  depois  de  compen- 
diar a  feu  favor  os  aggravos,  que  recebera  de  Portugal,  re- 
memorando o  ultraje  feito  diante  de  uma  praça  portugueza 
á  elquadra  do  almirante  de  La  Clue,  e  a  indififerença  com 
que  o  governo  portuguez  havia  relpondido  ás  reiteradas  e 
urgentes  reclamações  da  França  a  efte  reípeito,  formalmente 
declarava  a  guerra  a  Portugal. 

Já  a  elTe  tempo  o  exercito  hefpanhol  havia  começado  as 
operações  no  território  portuguez.  Felizmente  para  a  nação 
invadida  brutalmente  a  Hefpanha  não  era  então  fob  o  as- 
pedo  militar  mais  favorecida  e  c^uinhoada  que  o  outro  povo 
peninfular.  A  fama  dos  feus  velhos  terços  de  Flandres  e  de 
Itália  eftava  apenas  confagrada  na  hiíforia.  O  ciolb  defpo- 
tiímo  dos  monarchas  e  a  terrivel  prelTão  do  Santo  OíRcio, 
enervaram  em  ambos  os  povos  da  Peninfula  os  brios  mili- 
tares, com  que  outr'ora  haviam  feito  inveja  ás  nações  mais 
guerreiras  e  poderofas.  A  Hefpanha  tinha  em  verdade  mais 
foldados  que  o  leu  adverfario.  Faltavam-lhe  porém  inteira- 
mente as  bem  ordenadas  e  harmónicas  inftituições,  que  ha- 
bilitam os  exércitos  a  engrolTarem  nos  criticos  momentos  e  a 


eis 


elj 


transformar-fe  velozmente  em  poderofas  machinas  de  guer- 
ra. Os  homens  fão  componentes  eíTenciaes  da  força  militar, 
mas  fomente  por  fi  mefmos  íao  apenas  matéria  prima,  ainda 
não  aífeiçoada  pelo  obreiro.  É  precifo  n'efta  congerie,  onde 
ha  apenas  os  rudimentos  do  organifmo,  inlufílar  a  vida,  a 
intelligencia,  a  arte,  o  movimento.  E  neceíTario  que  os  ho- 
mens, pela  acção  maravilhofa  da  difciplina  e  do  commando, 
fe  convertam  a  principio  em  bons  foldados  pela  tadica  ele- 
mentar, e  que  d'eftes  foldados  já  peritos  e  briofos  no  officio 
de  marchar  e  combater,  defentranhem  o  adminiftrador  e  o  es- 
tratégico efte  engenhofo  mechanifmo,  de  primorofa  travação 
e  harmonia,  a  que  fe  chama  um  grande  exercito,  de  quan- 
tas combinações  fe  poífam  com  humanos  elementos  cogitar 
e  inftituir,  a  mais  perfeita  e  congruente  ao  feu  deftino.  E  um 
exercito,  que  mereça  com  juftiça  o  honrofo  nome,  como  que 
um  pequeno  cofmos,  um.  mundo  refumido,  em  que  a  unida- 
de e  fubordinação  a  um  fim  commum  eflão  fempre  em  ad- 
mirável confonancia  com  a  variedade  immenfa  das  fracções, 
em  que  vive  repartido. 

Ao  tempo  da  guerra  com  a  Hefpanha  andavam  portu- 
guezes  e  hefpanhoes  defde  muito  divorciados  da  racional 
fciencia  militar.  Se  os  generaes  e  os  coronéis  em  Portugal 
eram  fidalgos  eminentes  e  cortezãos,  os  chefes  fuperiores  das 
tropas  caftelhanas  eram  grandes  de  Hefpanha  ou  títulos  de 
Caítella,  mais  affeitos  ás  pompas  ceremoniaes  de  uma  cor- 
te apparatofa  do  que  á  frudfuofa  convivência  dos  regrados 
acampamentos.  O  marquez  de  Sarria,  D.  Nicolau  Carvajal  y 
Alencafter  Viveros  Norona  de  Sande  Padilla  y  de  Montezu- 
ma,  tenente  general  e  coronel  das  guardas  reaes  hefpanho- 
las,  grande  de  Hefpanha  de  primeira  claíTe,  cavalleiro  da 
ordem  de  Calatrava,  tinha  mais  nobiliárias  honrarias  e  mais 
retumbantes  appellidos  que  predicados  valiofos  para  o  com- 
mando cm  chefe  de  um  exercito  n'uma  guerra  de  invafão. 


*<f^ 

289 

Erti  provecto  de  annos  c  de  vaidades.  Egualava  a  ignorân- 
cia com  a  defidia,  e  a  beata  devoção  com  o  torpor  da  intel- 
ligencia;  mais  feito  para  bom  familiar  do  Santo  Otficio  que 
para  accrefcentar  á  cruz  vermelha  de  Calatrava  as  palmas 
da  victoria  nos  campos  de  batalha.  Tinha  a  feu  mando  um 
exercito,  que  pelo  numero  pareceria  bem  fadado  a  proezas 
gloriofas.  Os  generaes,  que  ferviam  fob  as  ordens  do  velho 
fidalgo  caftelhano,  não  podiam  pela  fciencia  e  capacidade 
fuperior  envergonhar  o  feu  caudilho.  As  tropas  não  prima- 
vam na  inftrucção  e  diíciplina.  A  adminiftração  confiara  á 
Providencia  ou  ao  acafo  o  aprovifionamento  do  exercito  em 
lubriftencias,  em  forragens  e  munições,  em  material  de  Titios, 
em  trem  de  pontes,  em  hofpitaes,  em  todos  eítes  lerviços 
eíTenciaes,  que  iao  os  nervos  e  o  eftomago  da  guerra.  As 
operações  eram  defde  Madrid  planeadas  e  contradidas  pelos 
bandos  antagoniífas,  que  na  corte  pleiteavam  a  influencia  e 
o  dominio.  O  miniítro  da  guerra  D.  Ricardo  Wall,  um  dos 
muitos  irlandezes  favorecidos  pelo  rei,  tinha  de  fua  mão  os 
fios  complicados  e  infeguros  d'aquella  miferavel  eítrategia, 
que  lem  ao  menos  fe  lembrar  de  colligir  informações  acerca 
de  Portugal,  arrifcava  cegamente  as  fuás  tropas  em  paiz  to- 
talmente defconhecido'. 

Emquanto  o  embaixador  de  Hefpanha  e  o  miniftro  pleni- 
potenciário de  França  eftreitavam  e  urgiam  o  governo  portu- 
guez  a  entrar  na  liga  das  duas  potencias  contra  a  Gran-Bre- 
tanha,  o  gabinete  inglez  determinara  accudir  com  tropas  au- 
xiliares á  defeza  de  Portugal.  A  2  de  maio  o  rei  George  III 
em  menfagem  dirigida  á  camará  dos  communs  dizia  «que  o 
foberano  tomara  na  mais  feria  confidcração  o  perigo  immi- 
nente,  de  que  o  reino  de  Portugal,  antigo  e  natural  alliado 


'  General  Dumouricz,  État  préfenl  du  Portugal.  Laufanne,  177.'^,  liv.  iv, 
cap.  VIII. 


c|3 


2go 

da  coroa,  eítava  ameaçado  pelas  potencias  então  em  guerra 
aberta  com  o  rei  de  Inglaterra,  e  que  era  da  máxima  impor- 
tância para  os  intercfles  commerciaes  do  feu  paiz  a  confer- 
vação  de  Portugal.  Pedia  á  camará  que  houveíle  de  habili- 
tal-o  a  occorrer  a  qualquer  defpeza  extraordinária  de  guerra 
no  anno  de  1762,  e  a  tomar  todas  as  providencias  neceíTa- 
rias  para  contrariar  e  vencer  os  dellgnios  e  as  emprezas  do 
inimigo  contra  o  rei  de  Inglaterra  ou  feus  alliados,  legundo 
a  fituação  dos  negócios  o  houveffe  de  exigir». 

A  camará  depois  de  breve  diícuflão,  em  que  fe  fez  notá- 
vel o  veliemente  difcurlb  de  Pitt  em  favor  de  Portugal,  vo- 
tou um  milhão  de  libras  efterlinas  para  accudir  aos  difpen- 
dios  extraordinários. 

Determinou  o  governo  inglez  que  paíTaíTem  a  Portugal 
oito  mil  homens  de  tropas  em  grande  parte  irlandezas.  Já 
algum  tempo  antes,  a  1 1  de  março  de  1762,  chegara  a  Lis- 
boa o  navio  de  guerra  Portlaud,  trazendo  a  feu  bordo  Lord 
Tyrawley,  que  vinha  como  embaixador  da  Gran-Bretanha 
ao  rei  D.  Jofé,  e  era  deítinado  ao  mefmo  tempo  a  comman- 
dar  as  forças  inglezas.  quando  vieíTem  a  defembarcar  em 
Portugal". 

O  governo  britannico  antes  de  enviar  os  foccorros  mili- 
tares, a  que  pelos  tratados  fe  havia  obrigado  folemnemente, 
julgou  fer  neceífario  o  informar-le  miudamente  de  quaes  es- 
forços envidara  o  gabinete  portuguez  para  não  fruftrar  intei- 
ramente a  efíicacia  das  tropas  auxiliares.  A  Inglaterra,  como 
todas  as  nações  poderofas,  egoilfa  por  temperamento  e  neces- 
lldade,  não  accudia  ao  lance  perigofo  de  feu  velho  e  fideliíTi- 
mo  alliado  pelas  generofas  infpirações  da  compaixão  politica, 
virtude  eíTencialmente  defconhecida  na  ethica  internacional. 


■  OlTicio  de  St.  Julien  ao  governo  trance/,  de  lõ  lie  março  Je  1762.  Qim- 
dro  elementar,  tom.  viii,  pag.  55  e  56. 


ela 


eis 


ÍSÍ9 
'■ -<>-|* 

291 

A  Gran-Bretanha  tinha  graviílimos  intereffes  a  defender, 
quando  parecia  empenhada  em  foccorrer  e  amparar  o  povo 
portuguez  contra  a  iniqua  invafão  de  francezes  e  hefpanhoes. 
Receiava  porém  que  achando-fe  Portugal  de  todo  o  ponto 
imbelle  e  indefezo,  tivcíTe  de  pôr  os  feus  Ibldados  e  o  prefti- 
gio  das  fuás  armas  a  lance  de  perder-le  n'uma  guerra,  para  a 
qual  a  inércia  governativa  e  militar  d'cfte  paiz  nada  houves- 
le  apercebido  em  tão  apertada  conjuntura.  Lord  Tyrawley 
havia  fido  muitos  annos  embaixador  na  corte  de  D.  João  V, 
conhecia  Portugal,  e  n'elle  tivera  já  grande  entrada  no  paço 
e  no  governo.  \'inha  pois  a  examinar  a  fituação  defenfiva 
do  paiz,  com  mandato  expreflb  de  participar  ao  gabinete 
de  Inglaterra  quanto  le  lhe  houveíTe  deparado  n'eíte  exa- 
me. Lord  Tyrawley  era  porém  por  indole  e  carader  o  agente 
menos  accommodado  a  conciliar  os  ânimos  e  as  vontades  em 
tão  diííicil  occafião  e  a  fazer  operar  em  confonancia  os  esfor- 
ços empenhados  em  combater  as  duas  coroas  coUigadas  pelo 
Pado  de  fainilia  e  agora  hortis  a  Portugal.  A  altivez,  o  orgu- 
lho e  a  violência  do  leu  temperamento  imperiofo  e  arrogante 
contrapelavam  com  excelTo  no  velho  embaixador  os  predica- 
dos de  general  e  de  eftadifta.  Defde  a  ília  chegada  a  Portugal 
as  fuás  informações  ao  miniíferio  inglez  eram  copiofas  de  mui 
agras  increpações  ao  governo  portuguez,  ou  antes  a  Sebas- 
tião de  Carvalho,  — a  alma  e  o  motor  de  toda  a  adminiflra- 
ção, —  pela  indolência,  com  que  executava  as  prefcripções 
do  iníblente  general.  A  fua  animofidade  chegava  ao  ponto 
de  querer  perfuadir  ao  leu  governo  que  efta  guerra  entre 
Portugal  e  a  Hefpanha  não  era  mais  do  que  um  embeleco, 
ou  fegundo  hoje  diríamos,  uma  pura  myflificacão  para  em- 
bevecer e  enganar  a  Gran-Bretanha'. 


■   Hughes,   Conúnuaiion   to   Hiime   and   Smollett's  Hijlory  of  England, 
chapt.  III. 

1  í  ir 


292 

As  tremendas  accufações  de  Lord  Tyrawley  eram  tão 
apaixonadas,  quanto  injuftas.  O  altivo  general,  julgando-fe 
um  proconful  da  Inglaterra  n'uma  fua  província  ameaçada, 
quizera  fobrepôr-fe  á  própria  foberania,  e  achando  na  rija 
tempera  do  miniftro  portuguez  um  invencível  obítaculo,  de- 
fatára  em  docftos  contra  Portugal  a  fua  indignação  c  o  feu 
defpeito.  Os  teflemunhos  contemporâneos  lao  conformes  em 
affirmar  que  Sebaftião  de  Carvalho,  vendo-fe  improvifamente 
provocado  por  duas  nações  podcrofas  e  irritadas,  não  fó  con- 
tra Portugal,  mas  principalmente  contra  a  foberba  domina- 
dora do  Oceano,  fizera  milagres  de  energia  para  levantar, 
fe  bem  coUefticiamente,  forças  confideraveis  para  a  defeza 
do  paiz.  Sebaftião  de  Carvalho  achara  as  inftituições  mili- 
tares de  Portugal  no  extremo  abatimento,  o  exercito  quafi  re- 
duzido a  uma  efcaíTa  horda  indifciplinada,  miferavel,  com 
a  apparencia  enganofa  da  força  e  difciplina,  defdenhada  e 
envilecida  a  profiíTão,  havida  em  pouco  amor  pelos  offi- 
ciaes,  em  grande  parte  aufentes  dos  feus  regimentos.  Logo 
defdc  os  primeiros  annos,  em  que  fora  nomeado  fecretario 
de  eftado  dos  negócios  extrangeiros  e  da  guerra,  empenhá- 
ra-fe  em  accudir  com  as  primeiras  e  mais  urgentes  provi- 
dencias a  tamanha  miferia  e  defamparo.  Expedira  ao  confe- 
Iho  de  guerra  em  decretos  de  12  de  janeiro  de  1754  ordens 
terminantes  para  que  foíTe  reftaurada  a  difciplina  e  a  inftruc- 
ção  quafi  inteiramente  deflembrada  nos  regimentos  portu- 
guezes,  para  que  os  ofíiciaes  dentro  de  vinte  dias  recolheílem 
defde  logo  aos  corpos,  de  que  andavam  como  que  divorcia- 
dos, para  que  fe  procedeífc  ao  recrutamento  e  fe  completas- 
fem  os  quadros  eftabelecidos.  Ordenara  que  nos  regimentos 
de  todas  as  armas  fe  fizellem  frequentes  exercícios  e  fe  pra- 
fhcaífe  quanto  folfe  conducente  a  reftabelecer  a  ordem  e  a 
perícia  «de  maneira,  dizia  o  legiflador,  que  em  todas  as  pro- 
víncias fe  viíTe  renafcer  o  ardor  militar,  a  regularidade  da 


-* •-V-I" 

2g3 

difciplina,  e  o  affeio  das  tropas,  pradicando-fe  nos  corpos  e 
nas  praças,  que  depois  do  terremoto  ficaram  em  eftado  de 
terem  guarnição,  todo  o  regular  e  exafto  ferviço,  que  fe  cos- 
tuma fazer  em  tempo  de  guerra'». 

N'aquelles  primeiros  tempos  occorrêra  egualmente  por 
uma  grande  promoção  ás  numerofas  vagaturas  de  ofíiciaes,  e 
confeguira  completar  os  quadros  dos  regimentos.  Era  quanto 
n'aquella  apertada  conjuníhira  podia  fazer  um  eftadiíta  extra- 
nho  totalmente  ás  fciencias  e  ás  praclicas  da  guerra,  por  Índole 
e  vocação  pouco  propenfo  ás  coufas  militares.  A  luífa  defes- 
perada,  em  que  logo  aos  primeiros  paflbs  da  fua  adminiftração 
teve  de  entrar  com  os  pertinazes  inimigos  de  toda  a  falutar 
innovação,  os  cuidados  e  os  empenhos  de  accudir  ao  def  ba- 
rato da  fazenda  publica,  ao  lethargo  da  induftria  e  do  com- 
niercio,  e  ás  ruinas  da  cataftrophe  tremenda,  não  lhe  deixa- 
ram lazer  e  occafião  a  largas  e  proveitofas  reformações  na 
força  publica.  Era  homem  civil  e  eftadifta,  fem  predilecção, 
nem  fciencia  de  foldado.  Só  podéra  ter  adiantado  alguns  pro- 
greíTos  no  fyftema  defeíifivo  da  fua  pátria,  fe  entre  os  officiaes 
de  maior  graduação  e  audoridade  fe  lhe  houveíTem  deparado 
peritos  e  fervorofos  cooperadores.  Mas  a  ignorância  ei"a  quafi 
univerfal  nos  generaes,  cujo  predicado  principal  era  com  o 
valor  e  bifarria  peífoal  e  com  o  efplendor  dos  titulos  arifto- 
craticos,  a  máxima  infciencia  das  coufas  militares  n'aquelle 
feculo,  no  feculo  brilhante  de  Frederico  e  do  marechal  de 
Saxe,  na  epocha  fecunda,  em  que  o  rei-philofopho  completa 
na  tadica  da  infanteria  e  da  cavallaria,  e  no  emprego  da  ar- 
tilharia em  campanha  a  revolução  iniciada  por  Guftavo  Adol- 
fo, o  feu  bravo  e  romanefco  precurfor. 


■  Avifo  de  Sebaftião  de  Carvalho  para  o  marquez  de  Marialva,  meflre  de 
campo  general,  de  12  de  dezembro  de  1/55,  nas  Providencias  do  terremoto, 
pag.  144  e  145. 

-i-<Ç>- ^<>^ 


4tU 
-* -^^ 

294 

A  mingua  ablbluta  de  generaes,  que  foubeíTem  mais  algu- 
ma coufa  do  que  frequentar  os  paços  do  Ibherano,  ou  folver 
as  fáceis  obrigações  da  vida  quieta  de  guarnição  durante  uma 
paz  de  meio  feculo,  obrigava  o  eftadifta  a  recrutar  improvi- 
famente  os  foldados  no  paiz,  e  a  aíToldadar  os  generaes  em 
terras  extrangeiras.  Efta  opprobrioía  dependência  de  illus- 
tres  aventureiros  para  o  commando  das  forças  portuguezas 
ptroduzia  fatalmente  as  fuás  neceíTarias  confequencias.  Os  fo- 
rafteiros  invertidos  na  iuprcma  auftoridade  militar,  tornados 
mais  altivos  pela  opinião  de  indifpenfaveis,  afpiravam  a  exer- 
cer defpoticamente  o  fcu  império  e  a  diótar  a  lei  ao  próprio 
governo  da  nação.  Lord  Tyrawley  pelas  fuás  orgulhofas  ar- 
rogâncias não  fez  mais  que  exacerbar  o  animo  infoftrido  de 
Sebaítião  de  Carvalho,  cuja  efcaífa  manfuetude  mal  poderia 
tolerar  as  oufadias  imprudentes  do  bretão. 

As  diíTidencias  do  velho  general  com  o  miniftro  principal 
de  D.  Jofé  chegaram  a  tal  extremo  de  acrimonia,  que  torna- 
riam impoíTivel  todo  o  bom  concerto  e  proveitofa  cooperação 
dos  alliados  nas  operaç(5es  defenfivas  de  Portugal.  Lord  Ty- 
rawley foi  chamado  a  Inglaterra,  e  o  mando  das  tropas  ingle- 
zas  foi  conferido  a  Lord  Loudon,  ofiicial  de  provada  reputa- 
ção. 

Antes  porém  que  as  forças  britannicas  houveífem  apor- 
tado, já  os  hefpanhoes  tinham  dado  começo  ás  operações. 
A  5  de  maio  de  1762  paífava  o  marquez  de  Sarriá  a  fron- 
teira portugueza  com  grande  parte  do  exercito  ás  fuás  or- 
dens. Entrando  na  província  de  Traz  os  Montes,  e  fitiando 
Miranda  apodera va-fe  facilmente  da  praça,  cuja  reddição 
fe  antecipou  pela  tcrrivel  explofão  de  um  feu  paiol.  Depois 
d'eífe  fácil  feito  de  armas  as  tropas  caftelhanas  tomaram  fem 
refiftencia  as  praças  de  Bragança,  de  Chaves  e  Torre  de 
Moncorvo,  cujos  meios  dcfenfivos  eram  defproporcionados 
á  minima  oppofição. 

^%-í>^ -á-i- 

ew  eia 


Pouco  depois  uma  columna  hefpanhola  commandada 
pelo  coronel  0'Reilly  intentou  paíTar  o  Douro  nas  cercanias 
de  Villa  Nova  de  Fofcoa.  Apelar,  porém,  da  fuperioridade 
numérica  das  fuás  tropas  os  helpanhoes  não  poderam  etíei- 
tuar  efta  manobra  pela  contradicção,  que  lhes  oppozeram  al- 
gumas forças  portuguezas.  O  que  difficultava  principalmente 
as  operações  do  exercito  inimigo  era  a  infciencia  abfoluta 
dos  generaes,  o  defprezo  dos  princípios  mais  elementares  da 
eftrategia,  o  defconhecimento  do  paiz,  onde  queriam  profe- 
guir  a  invafão,  a  feição  montuofa  e  agrefte  da  província,  ta- 
lhada de  molde  para  a  refiftencia  efficaz  pela  pequena  guerra 
e  o  patriótico  fervor,  com  que  as  povoações  haviam  impedi- 
do ou  conturbado  a  marcha  do  inimigo,  como  fendo  enca- 
minhada, em  feu  conceito,  a  annexar  o  território  portuguez 
á  coroa  dos  reis  catholicos.  Ao  mefmo  tempo  os  hefpanhoes, 
que  fe  tinham  dirigido  fobre  Chaves,  tentaram  paffar  ao  Mi- 
nho para  avançarem  contra  o  Porto,  cuja  tomada  lhes  pare- 
cia fácil  e  fegura.  Mas  nas  alturas  de  Montalegre  algumas 
partidas  de  paizanos  armados,  aproveitando  com  vantagem 
as  circumftancias  do  terreno,  fizeram  retroceder  os  inimigos 
até  Chaves. 

A  2  I  de  junho  uma  columna  hefpanhola  fob  o  comman- 
do  de  Alvarez  acommetteu  e  incendiou  a  aldeia  de  Freixal, 
defendida  apenas  por  trezentos  paizanos,  que  na  maior  parte 
caíram  vidimas  do  furor  do  inimigo. 

Tinha  o  velho  marquez  de  Sarriá  começado  as  fuás  ope- 
rações fazendo  do  acafo  o  feu  chefe  de  eítado  maior.  Não  fe- 
guia  nenhum  plano  de  campanha,  porque  na  fua  profunda 
ignorância  militar  havia  julgado  inferior  á  fua  dignidade  e 
ás  forças,  de  que  difpunha,  medital-o  e  cumpril-o  n'um 
paiz,  que  reputava  de  facillima  conquifta.  Haviam  lido  até 
alli  eífereis  e  mefquinhas  as  miferaveis  operações  executadas 
pelo  exercito  hcfpanhol. 


ti» 


296 

Já  áquelle  tempo  era  chegado  a  Lifhoa  o  conde  de 
Lippe-Schaumburg,  que  Sebaftião  de  Carvalho  tinha  con- 
vidado a  tomar  o  commando  em  chefe  do  exercito  portu- 
guez. 

Vinham  com  o  general  conde  de  Lippe-Schaumburg, 
além  do  duque  reinante  de  Mecklenburg-Strelitz,  irmão  da 
rainha  de  Inglaterra,  o  general  Lord  Loudon,  o  tenente  ge- 
neral Townf hend,  o  general  Lord  George  Lennox,  e  os  bri- 
gadeiros-generaes  Crawfurd  e  Burgoyne,  que  no  exercito 
britannico  eram  havidos  no  conceito  de  esforçados  e  expe- 
rientes homens  de  guerra.  Pouco  depois  da  fua  chegada  foi 
o  conde  de  Lippe  nomeado  marechal  general  e  direófor  ge- 
ral de  todas  as  armas  do  exercito  portuguez".  O  duque  de 
Mecklenburg-Strelitz  foi  nomeado  tenente  general  e  chefe  do 
regimento  de  cavallaria,  que  d'elle  tomou  o  nome. 

As  forças  auxiliares  de  higlaterra  confiftiam  em  oito  mil 
homens,  que,  fegundo  authenticos  teftemunhos  contemporâ- 
neos, não  eram,  principalmente  os  dos  regimentos  irlandezes, 
por  extremo  exemplares  na  difciplina  e  no  refpeito  pelos  ha- 
bitantes do  paiz,  a  quem  vinham  ajudar.  «Não  houve,  efcreve 
Dumouriez,  nenhum  género  de  exceíTo,  que  não  commettes- 
fem  aquellas  tropas,  que  eram  peiores  que  as  inimigas  ^ » . 
Trifte,  mas  inevitável  confequencia  de  que  um  po's'o  deixe  á 
mercê  de  extranhos  a  defenfão  dos  próprios  lares. 

No  meado  de  julho  de  1762  o  groffo  do  exercito  hefpa- 
nhol  eftava  concentrado  junto  a  Ciudad-Rodrigo.  Computa- 
va-fe  em  quarenta  e  dois  mil  homens  a  força  ali  reunida. 

As  tropas,  que  o  general  em  chefe  conde  de  Lippe  podia 
n'aquel!a  occafião  oppor  ao  inimigo  em  operações  de  cam- 
panha, eram  apenas  quatorze  ou  quinze  mil  homens  entre 


'  Carta  patente  de  lo  de  julho  de  17Õ2. 

2  Dumouriez,  Etat  préfent  du  Portugal,  liv.  iv,  cap.  viu. 


A-. •-ò^ 


2(_)7 


portuguezes  e  inglezes.  O  refto  das  forças  confagradas  á  de- 
feza  eftavam  repartidas  por  difFerentes  guarnições,  principal- 
mente nas  provincias  do  norte,  onde  era  neceíTario  obfervar 
as  tropas  adverfas  portadas  na  Galliza.  O  marechal-general 
conde  de  Lippe  era  forçofamente  determinado  a  uma  guerra 
puramente  defenfiva,  hufcando  contrabalançar  a  efcaíTez  do 
feu  exercito  com  as  vantagens  do  terreno,  habilmente  apro- 
veitado, e  evitando  cautelofamente  o  empenhar-fe  em  acções 
geraes  com  o  inimigo.  Convinha-lhe  unicamente  o  canfar  o 
adverfario  por  uma  ferie  de  manobras,  obrigando-o  a  divi- 
dir as  fuás  forças,  a  debilitar-fe  pelas  marchas  e  contramar- 
chas  em  paiz  agrefte,  montanhofo,  atfeiçoado  pela  natureza 
para  theatro  propicio  á  pequena  guerra  e  ás  hoítilidades  pe- 
rigoíiíTimas  das  forças  irregulares  e  das  armadas  povoações. 

O  inimigo  paíTou  o  Côa  a  23  de  julho.  Apoderava-fe  de 
Caftello-Rodrigo  fem  dar  um  único  tiro,  apelar  de  que  efte 
ponto  fortificado  poderia  ter  oppofto  alguma  fombra  de  re- 
fiítencia".  E  logo  feguidamente  principiava  o  inveftimento 
de  Almeida,  que  era  então  uma  das  primeiras  e  mais  fortes 
praças  fronteiras  de  Portugal,  bem  fortificada,  bem  provida 
de  groíTa  e  boa  artilheria,  de  copiofas  munições  e  material 
de  guerra,  e  aíTaz  de  fubfiftencias  para  uma  defeza  dilatada. 

Compunham  a  guarnição  dois  batalhões  do  regimento 
de  Almeida,  um  terço  de  auxiliares,  algumas  companhias 
francas  das  que  fe  haviam  novamente  levantado  para  a  guer- 
ra, e  um  numero  fufíiciente  de  artilheiros.  Perfaziam  ao  todo 
obra  de  três  mil  homens.  A  maior  parte  d'aquella  tropa  era, 
porém,  formada  de  recrutas  fem  inífrucção  adequada,  nem 
verdadeiro  efpirito  militar.  As  deferções  frequentes  durante 
o  fitio  defraudaram  confideravelmente  a  força  da  guarnição. 


'  Memoria  fobre  a  campanha  de  ijG-j,  pelo  conde  de  Lippe,  na  Revijla 
militar,  tom.  i,  pag.  iS3. 


ti» 


eis 


298 

Apefar  de  todas  as  circumftancias,  que  difficultavam  a 
defeza,  poderia  Almeida  ter  fuftentado  um  fitio  regular,  e  de- 
tido os  movimentos  do  inimigo.  O  governador  era,  porém, 
um  homem  octogenário,  que  no  principio  d'aquelle  feculo 
tinha  fervido  na  guerra  da  fucceíTão  de  Hefpanha,  e  prova- 
velmente havia  cincoenta  annos  que,  durante  uma  paz  inerte 
e  duradoura,  nunca  mais  vira  nem  de  longe  o  fimulacro  fe- 
quer  de  um  cerco  ou  de  uma  batalha. 

A  demorada  refiítencia  de  Almeida  ao  fitiante  era  con- 
dição mais  do  que  favorável,  eíTencial  ás  operações,  que  o 
marechal  Lippe  intentava  emprehender.  Bem  fabia  elle  que 
a  praça  haveria  infallivelmente  de  render-fe,  depois  que, 
fegundo  os  proceífos  de  um  fitio  methodico  á  Vauban,  o 
inimigo  tiveífe  coroado  o  caminho  coberto,  feito  uma  larga 
brecha  pradticavel  ás  columnas  deftinadas  ao  aífalto.  Ainda 
n'aquelle  tempo  era  dogma  havido  por  infallivel  que  o  mo- 
mento de  entregar-fe  a  praça  mais  formidável  pela  pofição, 
pela  arte,  pelo  numero  e  valor  dos  defenfores,  fe  podia  ma- 
thematicamente  calcular  pelo  computo  dos  períodos,  em  que 
iam  avançando  lentamente  os  trabalhos  do  fitiante.  Ainda 
Carnot,  o  grande  revolucionário,  o  illuftre  geometra  e  enge- 
nheiro, na  fua  obra  claíTica  De  la  défenfe  des  places  fortes, 
não  tinha  demonftrado  pela  fciencia  e  por  exemplos  da  his- 
toria militar  que  uma  praça  pôde  fempre  dilatar  por  tempo 
indefinido  a  fua  defeza.  Ainda  a  Convenção,  pelo  órgão  de 
Carnot,  não  tinha  confignado  n\ima  lei  que  feria  punido 
com  a  pena  capital  o  governador,  que  tendo  viveres  e  muni- 
ções, fe  rendeífe  ao  inimigo  antes  de  haver  brecha  acceífivel 
e  pradicavel  no  corpo  da  praça,  ou  antes  de  ter  fuftentado 
um  aífalto,  quando  por  detraz  da  brecha  exifiiífe  um  intrin- 
cheiramento  interior'. 


'   Lei  de  26  de  julho  de  1792,  art.  1." 


-. .-<>-^ 

Almeida,  havia,  pois  certamente  de  capitular.  Mas  o  ma- 
rechal Lippe  confiava  em  que  a  praça  prolongaria  quanto 
poíTivel  a  defeza.  O  governador  tivera  ordem  expreffa  e  ter- 
minante de  não  dar  ouvidos  a  nenhuma  intimação  do  inimi- 
go antes  que  elle  tiveíTe  aberto  no  corpo  da  praça  uma  bre- 
cha capaz  de  dar  paflagem  a  uma  columna  de  trinta  homens 
de  frente". 

Firmava  Lippe  as  fuás  combinações  eftrategicas  em  que 
Almeida  fe  defendeíTe  até  meado  de  feptembro.  Saíram  po- 
rém fruftradas  as  fuás  efperanças.  O  frouxo  e  decrépito  go- 
vernador capitulou  a  26  de  agoíto,  quando  o  inimigo  ainda 
apenas  trabalhava  na  primeira  parallela,  e  a  fua  artilheria, 
fituada  a  grande  diftancia,  nenhum  damno  havia  produzi- 
do nas  obras  exteriores  ou  no  recinto. 

Almeida  rendia-fe  ao  inimigo  fem  ao  menos,  ao  que  pa- 
rece, perturbar  com  os  feus  canhões  e  as  fuás  fortidas  os  tra- 
balhos do  fitiante.  Se  acreditámos  o  general  Dumouriez',  os 
hefpanhoes,  aíTombrados  com  a  breviffima  duração  do  cerco 
a  uma  praça  de  tamanha  importância  e  nomeada,  contando 
occupar  na  fua  expugnação  todo  o  tempo,  que  ainda  reftaíTe 
de  campanha,  não  fabiam  agora  dar-fe  a  confelho  fobre  o 
progreífo  das  operações.  Não  acertavam  a  decidir  o  que  ha- 
veriam de  emprehender  n'efta  conjuncção,  em  que  a  vidoria, 
por  um  inexplicável  paradoxo,  era  um  embaraço  eílrategico 
para  o  irrefoluto  general.  As  parcialidades,  que  em  Madrid 
eílavam  difputando  a  fuprema  direcção  da  guerra,  vieram  a 
determinar  a  fubflituição  do  marquez  de  Sarriá  por  outro 
general,  o  conde  de  Aranda. 

O   inimigo  poderia  logo  apoz   a  reddição  de  Almeida 


•  Memoria  /obre  a  campanha  de  1-62,  pelo  conde  de  Lippe,  Revijla  mi- 
litar, tom.  I,  pag.  187. 

2  Dumouriez,  Etat  prcfent  du  Portui^al,  liv.  iv,  cap.  vm. 


— <è>-i- 


marchar  fobre  o  Porto  e  Coimbra  com  as  forças,  que  tinha 
em  o  norte  de  Portugal.  Era  neceílario  defender  ao  inva- 
for  as  palTagens  principaes,  por  onde  poderia  entrar  no  Mi- 
nho e  ameaçar  a  fegunda  capital.  Por  ordem  do  conde  de 
Lippe,  o  tenente  general  Townfhend  com  fete  batalhões  por- 
tuguezes,  e  um  inglez,  o  regimento  de  cavallaria  de  Moura, 
um  deítacamento  dos  dragões  de  Burgoyne,  os  voluntários 
reaes  commandados  por  Hamilton,  e  dez  peças  de  campa- 
nha portuguezas,  foi  deftinado  a  obfervar  e  a  reprimir  o  in- 
vafor,  fe  intentaíTe  um  movimento  contra  o  Porto.  Towns- 
hend  eítabeleceu-fe  nas  cercanias  de  Vizeu,  e  reforçou-fe 
com  quatro  batalhões,  com  o  regimento  de  cavallaria  de 
Chaves,  e  com  as  tropas,  que  no  Minho  obedeciam  ao  bri- 
gadeiro general  Lord  Lennox.  Hamilton  occupou  Celorico. 
O  conde  de  Santiago  teve  ordem  de  poftar-fe  nas  imme- 
diações  da  Guarda  com  dois  batalhões,  e  os  regimentos  de 
cavallaria  de  Bragança  e  Penamacor.  As  forças  anglo-por- 
tuguezas  na  Beira  eítendiam-fe  pois  na  linha,  que  decorre 
defde  Vizeu  por  Celorico  até  á  Guarda. 

Antes  de  meado  de  agofto  reuniu  o  marechal-general 
conde  de  Lippe  em  Abrantes  um  campo  de  fete  mil  homens. 
Os  dragões  do  regimento  inglez  de  Burgoyne  occupavam  o 
Sardoal  e  féis  batalhões  britannicos  eílacionavam  na  con- 
fluência do  Zêzere  e  do  Tejo. 

A  parte  do  exercito  deítinada  a  invadir  ao  fui  o  territó- 
rio portuguez  concentrava-fe  nas  fronteiras  da  Extremadura 
hefpanhola  para  irromper  d'ali  no  Alemtejo.  O  inimigo  tinha 
três  a  quatro  mil  homens  acantonados  junto  da  raia  entre  o 
Tejo  e  o  Guadiana,  principalmente  nas  vizinhanças  de  Al- 
cântara e  nas  margens  do  rio  Salor.  Os  armazéns  e  depofi- 
tos  de  viveres  e  munições  em  muitos  pontos  da  fua  Extre- 
madura indicavam  plenamente  que  era  feu  intento  penetrar 
no  Alemtejo. 

*I-A.« •-<>-§- 

eis  e|j 


(Is 


o  conde  de  Lippe,  conhecendo  como  hábil  general  que 
a  defeza  paíTiva  é  quafi  fempre  um  novo  eftimulo  á  audácia 
do  inimigo  e  um  feguro  fiador  às  luas  viclorias,  refolvêra 
antecipar-fe  ao  antagoniíta,  levando  as  hoftilidades  ao  feu 
melmo  território  e  empenhando-fe  em  operações  de  pequena 
guerra,  quaes  lh'as  ellavam  permittindo  ou  aconfelhando  as 
tropas  efcaíTas,  de  que  difpunha,  e  o  deíleixo  e  infciencia  do 
inimigo.  Determina-fe  a  acommetter  uma  vanguarda  de  hes- 
panhoes  em  Valência  de  Alcântara,  e  confia  á  pericia  e  ao 
valor  do  hrigadeiro-general  Burgoyne  a  conduda  d'efta  em- 
preza  temerária.  Burgoyne  pafla  o  Tejo  a  24  de  agofto  na 
ponte  eftabelecida  em  Abrantes.  Leva  comfigo  o  feu  regi- 
mento de  dragões,  doze  companhias  de  granadeiros  portu- 
guezes,  e  féis  de  granadeiros  da  Gran-Bretanha.  A  27  de 
agofto  ataca  improvifamente  as  forças  caftelhanas  defaper- 
cebidas  e  negligentes  na  fegurança  do  feu  acampamento,  e 
aprifiona  o  general  hefpanhol  Dumberry,  e  com  elle  muitos 
officiaes  e  duzentos  foldados  do  regimento  de  Sevilha.  Im- 
põe á  villa  de  Valência  uma  contribuição  de  guerra,  que  os 
habitantes  logo  fatisfazem. 

No  próprio  dia,  em  que  Burgoyne  marchava  a  executar  a 
entrepreza  de  Valência  de  Alcântara,  paflavam  o  Tejo  deze- 
fete  batalhões  de  infanteria  e  quatro  regimentos  de  cavallaria, 
tendo  por  encargo  o  dirigirem-fe  á  fronteira  de  Hefpanha 
por  entre  Montalvão  e  Caftello  de  Vide.  O  marechal-general, 
confiando  cjue  os  hefpanhoes  teriam  occupada  grande  parte 
das  fuás  tropas  no  cerco  de  Almeida,  fuppofta  a  refiftencia 
d'efta  praça  até  o  momento  do  aífalto,  determinara  levar  a 
guerra  ao  território  do  inimigo,  dellruir  ou  difperfar  as  fuás 
forças  acantonadas  com  pouca  fegurança  em  Membrio,  em 
Herrera,  e  em  Carboja,  povoações  fronteiriças  e  abertas  a 
uma  facil  incurfão.  As  tropas  do  marechal  eram  porém  novas 
e  ainda  mal  acoftumadas  d  prefteza  das  marchas  e  manobras, 


1  r 

ela 


-ô-l- 


os  caminhos  afperos,  efcaíTiffimos  os  mantimentos  e  as  for- 
ragens, forçofa  confequencia  de  uma  improvifada  e  mal  as- 
fente  adminiftração  militar,  apenas  em  embryão  imperfeitiíTi- 
mo.  A  delonga  na  execução  foi  caufa  de  que  a  empreza  não 
podeffe  etfeituar-fe.  Porque  eram  apenas  chegadas  a  Niza  as 
tropas  deftinadas  á  operação,  quando  no  quartel  general  do 
conde  de  Lippe  confiou  haver-fe  já  rendido  Almeida.  Des- 
apreíTadas  agora  as  tropas  inimigas,  que  eftavam  fitiando 
aquella  praça,  mudava  inteiramente  a  fituação.  Os  hefpanhoes 
defciam  pela  Beira,  occupavam  Celorico,  defamparada  pelos 
portuguezes  depois  da  entrega  de  Almeida.  Tinham  delcm- 
baraçada  na  fua  frente  a  eítrada  de  Coimbra  e  podiam  cor- 
tar as  communicações  entre  as  forças  portuguezas  poftadas 
em  uma  e  outra  Beira.  As  tropas,  que  tinham  avançado  até 
Niza,  retrocedem  agora  para  Abrantes  e  difpõe-fe  em  efca- 
lões  defde  eíla  praça  até  o  rio  Alva,  tendo  como  pontos  in- 
termédios Cabaços  e  Foz  de  Arouce.  O  brigadeiro-general 
Burgoyne,  recebendo  como  reforço  á  columna  do  feu  com- 
mando,  o  regimento  de  Crawford,  e  os  regimentos  de  caval- 
laria  de  Olivença  e  de  Sampaio,  é  deftinado  a  cobrir  a  fron- 
teira entre  Portalegre  eVilla  Velha.  O  conde  de  Santiago  com 
as  tropas  foh  o  feu  mando  teve  ordem  de  manter-fe  quanto 
poffivel  na  Beira  Baixa.  Na  ultima  extremidade  haveria  de 
retirar  para  os  desfiladeiros  das  montanhas,  que  demoram 
entre  o  Zêzere  e  o  Tejo  defde  a  Covilhan  aVilla  Velha. 

Áquelle  tempo  já  o  conde  de  Aranda  havia  fubftituido 
no  commando  do  exercito  hefpanhol  o  inexperto  marquez  de 
Sarriá.  Parecia  que  as  operações  da  parte  dos  invafores  iam 
tomar  afpedo  mais  perigofo.  Uma  divifão  das  forças  caftelha- 
nas  dirigiu-fe  para  Alcântara.  O  reflo  do  exercito  marchou 
em  direcção  a  Penamacor  e  Sabugal.  As  praças  portuguezas 
de  Salvaterra  e  de  Segura,  pouco  defenlaveis  e  preíidiadas 
por  efcaíTas  guarnições,  renderam-fe  promptamente  á  pri- 


SÍ9  ^ 


meira  intimação.  O  exercito  hefpanhol,  continuando  a  fua 
marcha,  eftava  em  meacio  de  feptembro  em  Caftello  Bran- 
co. Pretendia  avançar  defde  ali  a  Villa  Velha  e  paffar  o  Tejo 
n'eíl:e  ponto.  O  conde  de  Lippe  é  obrigado  a  dar  nova  dilpo- 
íição  ás  fuás  forças,  fubordinando  agora  as  operações  ao  fim 
eífencial  de  impedir  a  paífagem  ao  inimigo. 

As  tropas  efcalonadas  a  principio  entre  o  Tejo  e  o  Mon- 
dego vão  agora  conccntrar-fe  fobre  Abrantes.  O  general 
Townfhend,  que  eftava  com  a  fua  divifão  nas  vizinhanças 
de  Pinhel,  teve  ordem  de  approximar-fe  ao  Tejo,  deixando 
em  obfervação  á  praça  de  Almeida,  já  em  poder  do  inimigo, 
o  general  Lord  Lennox  com  quatro  regimentos  portuguezes 
de  infanteria  e  dois  de  cavallaria,  e  os  voluntários  reaes  com- 
mandados  por  Hamilton. 

Ao  brigadeiro  Burgoyne  foi  commettido  pelo  general  em 
chefe  o  encargo  de  obfervar  Villa  Velha  e  oppor-fe  rijamente 
a  que  o  inimigo  paífaífe  ali  o  Tejo.  Foi  occupado  o  caftello  de 
Villa  Velha  por  quinhentas  praças  do  regimento  de  Aveiras, 
ao  mando  do  tenente  coronel  Azevedo  Coutinho.  O  groífo  do 
exercito  portuguez  avançou  defde  Abrantes  a  Mação. 

O  general  hefpanhol  conde  de  Aranda,  algum  tanto  fu- 
perior  em  talentos  eftrategicos  ao  feu  anteceífor,  intentou  a 
paffagem  do  Tejo,  e  para  efte  fim  dividiu  em  três  columnas 
as  forças  deftinadas  a  eífeituar  ou  auxiliar  efta  operação.  A 
primeira,  de  cerca  de  féis  mil  homens,  eftabeleceu-fe  junto 
de  Villa  Velha  a  alcance  de  efpingarda  defronte  dos  poftos 
occupados  na  margem  meridional  pelo  brigadeiro  Burgoyne. 
A  fegunda  columna,  de  quatro  mil  homens,  entre  Sarzedas 
e  Montegordo,  devia  obfervar  as  forças  do  conde  de  Santia- 
go, que  eftavam  poftadas  entre  a  Venda  e  Ferreira.  O  ter- 
ceiro corpo,  de  três  mil  homens,  acampou  em  frente  do  des- 
filadeiro de  S.  Simão,  que  eftava  defendido  por  trezentos 
homens  de  tropas  portuguezas. 


Foram  vãos  os  esforços  empenhados  pelo  inimigo  para 
defalojar  das  fuás  bem  fortificadas  e  defendidas  pofições  o 
brigadeiro  Burgoyne.  Determinou-fe  porém  a  outra  empreza 
mais  faftivel,  e  foi  que,  atacando  com  forças  confideraveis  as 
alturas  de  Villa  Velha,  confeguiu  que  fe  rendeíTe  o  caftel- 
lo,  que  apefar  de  edificado  em  fitio  favorável  á  defeza,  era 
de  antigo  traçado  e  conftrucção.  O  tenente  coronel  João  da 
Silva  Cunha  de  Azevedo  Coutinho  depois  de  pequena  refis- 
tencia  rendeu-fe  ao  inimigo,  ao  que  parece,  por  chegar  fora 
de  tempo  o  reforço,  que  pedira  ao  brigadeiro  Burgoyne'.  O 
major  engenheiro  DebaíTenon,  official  francez  ao  ferviço  de 
Portugal,  foi  mais  feliz  na  fua  defeza.  Occupou  com  oitenta 
praças  uns  cabeços  na  ferra  de  Villa  Velha.  Atacado  por  for- 
ças mui  fuperiores,  refiftiu  durante  cinco  horas  á  aggreífão, 
fe  acafo  é  verdadeiro  o  teftemunho  do  conde  de  Lippe,  e  em 
vez  de  fe  render,  alcançou  retirar,  paífando  o  Tejo,  até  aos 
poítos  occupados  por  Burgoyne. 

O  marechal-general  conde  de  Lippe  anteviu  com  certeira 
previdência  militar  que  os  hefpanhoes,  depois  de  tomarem 
as  alturas  de  Villa  Velha  e  de  verem  fruftrado  o  feu  empenho 
de  defalojar  as  forças  de  Burgoyne,  tentariam  feguir  uma 
nova  linha  de  operações  com  o  intento  de  dirigir-fe  fobre 
Abrantes.  Para  contrariar  o  intento  do  inimigo  fez  o  conde 
de  Lippe  avançar  de  Mação  para  Cardigos  quatro  regimen- 
tos inglezes  deítinados  a  occupar  as  alturas  das  Talhadas. 

Depois  que  fe  apoíTára  de  Villa  Velha  e  das  pofições  cir- 
cumvizinhas,  a  columna,  que  effeituára  efla  operação,  veiu  a 


I  o  tenente  coronel  Azevedo  Coutinho,  fendo  julgado  em  confelho  de 
guerra,  foi  demittido  e  declarado  inhabil  para  nunca  mais  poder  fervir.  Deze- 
feis  annos  depois,  em  princípios  do  reinado  de  D.  Maria  I,  quando  era  fácil  a 
reparação  a  todos,  que  a  pediam  invocando  em  feu  favor  o  haverem  fido  vi- 
climas  do  miniftro  omnipotente,  um  novo  confelho  de  guerra,  apreciando  as 
circumílancias  da  defeza,  julgou  que  o  tenente  coronel  tinha  fatisfeito  ao  de- 
ver e  á  honra  militar,  e  rchabilitou-o  para  entrar  de  novo  no  ferviço. 


3o5 

paíTar  a  ferra  a  3  de  outubro  no  fitio  chamado  Porto  Ca- 
brão. Deixara  porém  em  Villa  Velha  uma  força  de  duzentos 
granadeiros  e  cem  cavallos  para  guardarem  féis  peças  de 
artilheria,  que  não  podéra  logo  tranfportar.  Não  efcapou  a 
Burgoyne  a  occafião  de  aíTignalar-fe  em  nova  empreza.  Or- 
dena que  o  coronel  Carlos  Lee,  official  britannico  ao  ferviço 
de  Portugal,  com  duzentos  e  cincoenta  dragões  do  regimento 
de  Burgoyne,  paífe  o  Tejo  com  prefteza  e  acommetta  de  im- 
provifo  os  hefpanhoes. 

Torneia  o  coronel  inglez  o  acampamento  e  cáe-lhe  de  noi- 
te na  redaguarda.  As  furprezas  eram  frequentes  n'aquelles 
tempos,  em  que  ainda  fe  não  comprehendêra  inteiramente 
que  o  ferviço  de  fegurança  na  marcha  e  na  eftação  é  a  hy- 
giene  guerreira  dos  exércitos,  e  o  penhor  ineftimavel  da  lua 
efficacia  na  acção  e  no  combate.  Difperfam  as  tropas  do  co- 
ronel Lee  as  forças  hefpanholas  com  perdas  confideraveis, 
encravam  a  artilheria  e  incendeiam  e  deftroem  os  feus  mais 
bem  providos  armazéns,  ao  paífo  que  Burgoyne  por  uma 
hábil  diverfão  impede  que  os  invafores  acudam  com  foccor- 
ros  aos  feus,  defbaratados  em  \'illa  Velha. 

Senhoreava  o  inimigo  a  efta  fazão  a  Beira  Baixa,  e  efta- 
belecia  nas  Sarzedas  o  feu  quartel  general. 

As  forças  de  Townfhend  e  de  Lord  Lennox  recebem  en- 
tão ordem  de  fe  reunirem  com  o  intento  de  cortar  as  com- 
municações  dos  hefpanhoes  com  Almeida  e  Ciudad-Rodri- 
go.  A  marcha  de  Torwnfhend  é  certamente  a  manobra  mais 
notável  de  toda  efta  campanha,  em  que  os  recontros  foram 
menos  importantes  e  mais  raros  do  que  os  movimentos  dcfti- 
nados  a  obfervar  o  inimigo.  O  tenente  general  Townfhend 
marcha  defde  Pinhel  até  ao  Codes,  na  diftancia  de  cincoenta 
léguas  por  afperrimos  caminhos  e  quafi  impervios  territórios 
e  depois  avança  de  novo  fobre  a  Beira  por  uma  rápida  con- 
tramarcha.  em  que  no  decurfo  de  quarenta  léguas  não  fão 

o  " 

A-, .-ò-i- 


4e|9 

3o6 

mais  favoráveis  as  eftradas.  N'efl:a  operação,  em  que  com 
grande  celeridade  fe  venceu  tamanho  efpaço,  as  qualidades 
moraes  e  militares  do  foldado  portuguez  foram  largamente 
exemplificadas.  O  general  cm  chefe  conde  de  Lippe  confa- 
grou-lhes  na  fua  Memoria  com  aftas  palavras  de  fubido,  mas 
verdadeiro  panegyrico  a  fua  imparcial  glorificação:  «Efta 
marcha,  efcreve  o  marechal-general,  foi  pontualmente  execu- 
tada pela  admirável  perfeverança  do  foldado  portuguez,  que 
fupportou  as  maiores  privações,  e  que  não  obftante  o  prom- 
pto  eftrago  do  calçado  marchava  alegremente  por  aquelles 
caminhos  de  agudos  rochedos,  deixando  por  toda  a  parte 
veftigios  dos  feus  pés  enfanguentados'». 

Tomou  o  general  em  chefe  as  que  lhe  pareceram  mais 
favoráveis  dilpofições  para  aguardar  o  inimigo,  fe  da  Beira 
Baixa  reíblveíTe  pôr-fe  em  marcha.  O  groíTo  das  fuás  forças 
acampou  no  Sardoal,  e  occupou  todos  os  ptaíTos  e  avenidas 
que  vem  dar  á  praça  de  Abrantes.  Aproveitou  o  marechal 
com  hábil  previfão  todos  os  pontos,  que  na  paílagem  para 
Abrantes,  em  piaiz  eíTencialmente  montanholb,  fe  preftam 
com  vantagem  á  guerra  de  pofições.  As  manobras  calcula- 
das e  prudentes  do  conde  de  Lippe,  d'efte  novo  e  períeve- 
rante  cunítador,  tinham  forçado  o  antagonifta  a  diíTipar  em 
mal  combinadas  operações  as  fuás  tropas,  a  perder  as  vanta- 
gens da  iniciativa,  e  a  debilitar  ao  mefmo  paíTo  a  lua  força 
moral.  O  groíTo  das  tropas  hefpanholas  retrocedeu  Ibbre  Cas- 
tello  Branco. 

Pouco  depois  uma  grande  parte  do  exercito  inimigo  ef- 
feituava  a  retirada.  A  cavallaria,  a  artilheria  e  grande  parte 
da  infantaria  dirigiam-fe,  paíTando  o  Tejo,  para  Alcântara. 
Ficavam,  porém  ainda  em  Caftello  Branco  vinte  e  oito  bata- 
lhões, dez  efquadrões  e  dezefeis  boccas  de  fogo.  Uma  nova 


I  Memoria  Jobre  a  campanha  de  ijOs,  Revijia  militar,  tom.  i,  pog.  542. 

eis  el» 


3o7 

empreza  foi  intentada  contra  eftas  forças  pelo  marechal-ge- 
neral  conde  de  Lippe.  O  inimigo,  porém,  teve  a  bem  não  fe 
abalançar  a  um  recontro,  e  em  novembro  decidiu-fe  a  des- 
amparar de  todo  a  Beira,  demolindo  algumas  das  fortifica- 
ções fronteiras  de  Portugal.  O  inverno  principiava  a  tornar 
cada  vez  mais  penofas  e  difficeis  a  ambos  os  contendores  as 
fuás  operações.  Se  os  caftelhanos  padeciam  grandes  quebras 
nas  fuás  forças,  não  era  mais  profpera  a  fituação  das  tropas 
de  Portugal  e  de  Inglaterra.  N'aquelle  tempo  era  pradica  fe- 
guida  o  tomar  quartéis  de  inverno.  O  conde  de  Lippe  acan- 
tonou pois  as  forças  do  feu  commando,  confervando  toda- 
via a  columna  de  Burgoyne  como  corpo  de  obfervação  entre 
Niza  e  Portalegre. 

Reforçaram-fe  as  obras  defenfivas  e  as  guarnições  em 
muitas  das  praças  fronteiras  do  Alemtejo,  por  onde  agora 
parecia  mais  provável  a  irrupção.  E  não  era  fem  fundamen- 
to efte  receio,  porque  o  inimigo,  que  parecera  fufpender  as 
operações,  tentou  ganhar  por  entrepreza  Campo  Maior,  e  por 
intimação  de  fe  render  a  praça  de  Marvão.  Em  ambas  as 
tentativas  lhe  faíu,  porém,  fruítrado  o  intento.  As  novas  dis- 
pofições  do  exercito  hefpanhol  determinaram  que  o  mare- 
chal-general  deixalfe  os  quartéis  de  inverno  e  de  novo  fe 
apercebeífe  para  a  fequencia  da  campanha.  As  fuás  tropas 
apoiavam  a  direita  nas  alturas  de  Três  Lagares,  adiante  de 
Portalegre.  O  flanco  efquerdo  ficava  retrahido  para  facilitar 
e  proteger  a  juncção  das  tropas,  que  ainda  eftavam  em  Amiei- 
ra, em  Niza  e  Alpalhão.  Burgoyne  com  a  fua  columna  occu- 
pava  as  alturas  próximas  a  Caftello  de  Vide,  aífegurando  a 
efquerda  do  exercito. 

O  inimigo,  agora  poftado  nas  cercanias  de  Valência  em 
três  groífas  divifões,  dava  mofiras  de  querer  entrar  no  Alem- 
tejo. Era  forçofo  difputar-lhe  bravamente  a  palTagem  da  fron- 
teira. A  efte  empenho  accommodou  o  general  em  chefe  as 


CM 


3o8 

fuás  novas  difpofições  A  defeza  concentrou-fe  principalmen- 
te nas  vizinhanças  de  Portalegre  e  na  ferra  de  S.  Mamede. 
Contentou-fe  o  inimigo  em  tentar  uma  entrepreza  contra  Ou- 
guella,  que  apefar  de  pouco  defenfavel,  fez  honrofa  refiften- 
cia,  e  pelos  brios  militares  do  feu  governador,  Braz  de  Car- 
valho, deixou  aos  invafores  a  defefperança  de  tomarem  aviva 
força  ou  por  induftria  nenhuma  das  praças  portuguezas  na 
fronteira. 

Mais  bem  fuccedida  foi  a  reprefalia,  com  que  o  coronel 
inglez  Wrey,  governador  de  Alegrete,  realifou  uma  incurfão 
á  povoação  hefpanhola  da  Cordojera,  onde  fez  alguns  pri- 
fioneiros.  Eíta  foi  a  derradeira  hoftilidade,  que  fe  regiftou 
n'efi:a  campanha. 

Os  hefpanhoes,  padecendo  em  fummo  grau  as  funeftas 
confequencias  do  feu  commando  negligente,  efcaífos  de  pro- 
vifões  e  abaílecimentos,  principalmente  para  a  cavallaria,  di- 
zimados pelas  doenças,  e  defalentados  pelo  êxito  infeliz  das 
fuás  temerárias  tentativas,  houveram  a  bom  partido  dar  fim 
ás  fuás  defconnexas  e  mal  conduzidas  operações. 

A  22  de  novembro  o  general  hefpanhol,  conde  de  Aran- 
da,  envia  o  marechal  de  campo  Buccarelli  a  propor  um  ar- 
mifticio  ao  conde  de  Lippe,  que  tinha  então  em  Monforte  o 
feu  quartel  general.  Os  preliminares  de  paz,  aífignados  em 
Fontainebleau  a  3  de  novembro  de  1762,  tinham  porneceífa- 
rio  complemento  a  propofta  fufpenfão  de  hoftilidades.  Acce- 
deu  o  governo  portuguez,  e  logo  a  pouco  trecho  fe  publicou 
em  ambos  os  exércitos  o  armifticio. 

AíTim  terminou  uma  guerra,  em  cujo  theatro  .os  invafo- 
res haviam  empenhado  no  principio  mais  de  quarenta  mil 
homens,  e  os  defenfores  tinham  congregado  mais  do  que  efte 
numero,  fem  que  uma  fó  batalha,  ou  um  combate  de  im- 
portância alTignalaífe  o  decurfo  d'efta  luóía,  apenas  entrete- 
cida de  fitios  quafi  nominaes,  e  de  nada  illuftres  operações  de 


ela 


«1» 


(is 


3of) 

pequena  guerra.  A  vantagem,  porém,  manifeftou-fe  em  tavor 
dos  portuguezes  e  dos  pouco  numerofos  alliados.  A  gloria 
principal  d'efta  campanha  recaiu  no  miniftro,  que  pela  fua 
indómita  energia  apercebera,  quaes  as  circumftancias  lh'o 
conlentiram,  os  meios  neceíTarios  para  a  defeza,  e  no  conde 
de  Lippe,  que  com  o  peior  de  todos  os  elementos  defenfivos, 
um  exercito  coUigido  á  ultima  hora,  auxiliado  por  tropas  ex- 
trangeiras,  fem  fraternidade  militar  e  fem  robufta  cohefão, 
foube,  por  milagres  de  bom  lenfo,  enfeixar  na  fua  mão  as 
forças  divididas  por  funeftas  emulações,  enfraquecidas  pelo 
attrito  do  governo  e  do  commando,  e  fazer  d'ellas  o  feguro 
antemural  da  independência  e  liberdade  portugueza. 

Emquanto  a  campanha  fe  fora  profeguindo,  não  fe  limi- 
tara Sebaítião  de  Carvalho  a  dirigir  defde  Lifboa  como  fu- 
premo  adminiftrador  dos  negócios  militares  quanto  era  con- 
cernente aos  movimentos  do  exercito,  ao  feu  recrutamento  e 
aos  cuidados  de  abaítecer  as  tropas  n'um  paiz,  onde  nada 
exiftia  que  podeíTe  de  longe  affimilhar-íe  a  um  ferviço  de  ad- 
miniífração  militar.  Sebaítião  de  Carvalho  apparece  no  meio 
dos  próprios  acampamentos,  quando  é  urgente  concertar  as 
diíTidencias,  amaciar  as  frequentes  coUifões,  fazer  cumprir  as 
ordens  expedidas,  e  combinar  com  o  marechal-general  con- 
de de  Lippe  o  que  não  podia  eflar  pendente  de  lentas  com- 
municações  entre  a  corte  e  o  exercito.  Apefar  da  fua  pouca 
proficiência  nas  coufas  da  guerra  o  miniífro  previdente,  pela 
energia  indefefla  do  feu  efpirito  e  pela  nunca  annuviada  fe- 
renidade  do  feu  animo  nos  lances  mais  perigofos,  fabe  com- 
penfaro  que  lhe  falta  em  fciencia  militar,  e  aproveitara  pericia 
guerreira  do  chefe  extrangeiro  e  mercenário  fem  dobrar  intei- 
ramente ao  feu  arbítrio  a  majcftade  e  o  governo  da  nação. 

Haviam-fe  realifado  as  difcretas  previfões  de  Sebaflião 
de  Carvalho  n'um  feu  defpacho,  dirigido  alguns  mezes  antes 
ao  plenipotenciário  portuguez  na  corte  de  Saint-James.  O 


4sU 
-* -«0>-i- 

3io 

Pado  de  familia,  em  que  os  Bourbons  tinham  firmadas  as 
feguriíTimas  efperanças  de  fe  levantarem  como  irrefifiiveis 
árbitros  da  Europa,  havia  abortado  miferavehnente.  Os  de- 
faftres  padecidos  pela  Hefpanha  e  pela  França  nas  fuás 
poíTeíTóes  da  America  e  da  Alia,  principalmente  a  perda  da 
Havana,  tomada  pelos  inglezes,  haviam  feito  defmaiar  os 
dois  arrogantes  alliados,  induzindo-os  antes  a  procurar  uma 
paz  decorofa  e  reparadora  do  que  a  profeguir  uma  guerra 
iniciada  com  aufpicios  tão  infauftos.  Os  preliminares  aíTi- 
gnados  em  Fontainebleau  a  3  de  novembro  de  1762  poze- 
ram  termo  á  guerra.  Portugal  reprefentado  por  Martinho  de 
Mello,  como  feu  embaixador  extraordinário,  foi  comprehen- 
dido  na  convenção,  directamente  negociada  pelos  reprefen- 
tantes  de  Inglaterra,  de  França  e  da  Hefpanha.  O  tratado 
definitivo  afllgnado  em  Paris  a  10  de  fevereiro  de  1763, 
aífegurou  por  emquanto  a  paz  á  Europa.  Por  elle  íoi  rcfti- 
tuido  a  Portugal  quanto  lhe  haviam  tomado  os  inimigos  du- 
rante a  breviífima  campanha. 

A  guerra  de  1762,  fe  não  reverdeceu  com  o  efplendor 
de  novas  glorias  os  louros  nacionaes  ,  foi  comtudo  de  um 
proveito  inconteflavel.  Foi  uma  cuílofa  demonftração  de  que 
o  povo  portuguez,  quando  os  governos  fabem  defpertal-o 
do  fomno  lethargico  da  paz,  relembra  prefi:amente  os  dotes 
militares,  que  lhe  lao  infitos.  Foi  também  aos  que  governam 
um  avifo  e  uma  fruduofa  prevenção  de  que  os  eftados, 
para  tomarem  o  leu  logar  no  equilibrio  inftavel  das  nações, 
hão  de  confiar  a  fua  independência  mais  ao  próprio  esforço 
do  que  á  generofidade  fallivel  de  alliados  egoiftas.  Na  ba- 
lança internacional  pefam-fe  os  povos  não  imbelles,  fenão 
armados. 

É  laftimolb  condão  de  Portugal  que  lo  os  perigos  o 
advertem,  quando  imminentes,  ou  os  defaftres  o  aconfelham 
quando  já  realifados.  Do  terremoto  faíu  a  lua  renovação  mo- 

^-i- -á>-^ 


3ii 

ral  e  phylica.  Da  guerra  com  a  Helpanha  procedeu  a  pri- 
meira conftituição  racionarei  e  harmónica  das  luas  torças 
defenfivas. 

O  conde  de  Lippe  era  menos  um  notável  eftrategico  do 
que  um  dilcreto  organifador.  Mu  que  a  defeza  de  Portugal 
fe  apercebia  a  grande  preíTa,  quando  as  baionetas  inimigas 
já  lhe  eram  apontadas  ao  coração.  Ponderou  a  Sebaftião  de 
Carvalho  os  damnos  d'eíla  negligencia  no  que  ha  de  mais 
vital  para  um  povo  independente.  O  talento  do  miniftro  facil- 
mente aflimilava  o  que  lhe  parecia  conducente  á  profperida- 
de,  á  honra,  á  fegurança  do  paiz.  Aflim  que  depois  da  guer- 
ra, das  providencias  decretadas  na  brevidade  e  apertura  de 
uma  inA'afão  ameaçadora,  paíTou  á  meditada  e  regular  orga- 
nifação  da  defeza  nacional.  D'ahi  procedeu  uma  ferie  de  leis 
e  de  decretos,  cujo  fim  era  adaptar  ás  inftituições  guerreiras 
de  Portugal  o  que  de  melhor  então  fe  conhecia  praclicado 
pelas  mais  celebradas  potencias  militares,  principalmente  na 
PrulTia  por  Frederico  II,  o  grande  meítre  dos  exércitos  no 
feculo  xviii  antes  das  campanhas  paradoxaes  da  Revolu- 
ção. 

Os  eftados  pequenos  em  território  e  povoação  não  podem 
nem  devem  manter  na  paz  exércitos  numerofos.  Apenas  con- 
cluida  a  guerra  provê  Sebaftião  de  Carvalho  á  diminuição 
dos  encargos  populares  pela  reducção  das  tropas,  que  então 
eram  em  defproporção  com  as  faculdades  da  nação.  Suppri- 
me  na  Extremadura  leis  regimentos  de  infanteria,  quatro  no 
Alemtejo,  dois  na  Beira,  egual  numero  no  Minho  e  no  Al- 
garve, e  um  em  Traz  os  Montes.  Reconhecendo  a  neceíTidade 
e  importância  de  ter  durante  a  paz  uma  numerofa  artilheria, 
converte  em  regimento  d'efta  arma  o  fegundo  batalhão  do 
regimento  de  infanteria  do  Porto'.  Mas  a  artilheria,  porque 


Decreto  de  lo  de  maio  de  1763. 


eis 


3l2 

é  impoíTivel  ou  perigoíb  pela  fua  Índole  technica  organifal-a 
nas  vefperas  de  uma  campanha,  não  bafta  que  feja  apenas 
numerofa.  E  precifo  que  fe  adeftre  para  os  ferviços  difficeis 
e  complexos  por  uma  larga  e  folida  inftrucção  na  Iciencia  e 
na  praítica  do  leu  officio  complicado.  Achava-fe  a  artilheria 
em  Portugal  em  eftado  laftimofo.  Era  a  arma  da  plebe,  quafi 
um  mifter  mechanico,  de  que  os  fidalgos  refugiam  como  fe 
fora  degradação  de  fua  nobreza.  Não  havia  efcolas  theoricas, 
nem  praílicas,  onde  fe  profeífaíTem  as  fuás  doutrinas  e  fe 
exemplificaífem  os  feus  proceífos.  Acode  o  legiílador  a  efla 
lamentável  deficiência,  reorganifa  os  quatro  regimentos  de 
artilheiros  e  decreta  a  inftituição  dos  feus  eíhidos  e  exercí- 
cios'. 

Eram  ainda  certamente,  fe  não  rudimentares,  ao  menos 
imperfeitas  as  providencias  promulgadas,  mas  nem  por  iífo 
Sebaftião  de  Carvalho  merece  menos  que  veneremos  a  fua 
memoria  como  a  de  inftituidor  da  regrada  e  moderna  artilhe- 
ria em  Portugal.  Se  eíla  arma  lhe  merece  efpecial  predilecção, 
não  fão  menos  importantes  as  reformas  introduzidas  na  orga- 
nifação,  na  ordenança,  na  difciplina  e  no  ferviço  de  guarni- 
ção e  de  campanha,  no  que  era  concernente  á  infanteria  e  ás 
tropas  a  cavallo.  Bem  fentia  elle  que  fe  os  canhões  comman- 
dados  e  fervidos  por  dextros  e  intelligentes  artilheiros  fão  as 
grandes  machinas  na  fangrenta  officina  dos  combates,  os  in- 
fantes e  os  cavalleiros  fão  como  que  os  obreiros  numerofos 
no  duriíFimo  lavor  dos  campos  de  batalha.  Sebaftião  de  Car- 
valho decreta  a  nova  organifação  das  duas  armas,  fubftitue 
á  tadica  antiquada  de  lySS  a  tadica  adequada  aos  progres- 
fos  da  guerra  no  feu  tempo;  eftatue  as  regras  e  preceitos  do 
ferviço,  e  aífignala  um  paífo  memorável  na  manutenção  da 
difciplina,  refumindo  no  âmbito  breviílimo  dos  vinte  e  nove 


s|3 


Alvará  de  i5  Jc  julho  de  1763. 


^ -<>-§- 

3i3 

artigos  de  guerra,  leveros  e  draconianos  como  eram,  toda  a 
legiflação  penal  para  o  exercito. 

A  força  dos  exércitos  náo  le  firma  unicamente  na  profi- 
ciência do  commando,  que  é  a  fciencia  da  guerra  nos  feus 
differentes  graus  defde  a  fimples  direcção  de  uma  efquadra 
ou  companhia  até  á  lliprema  e  complexa  governação  das 
armas  combinadas  no  maravilholb  organifmo  de  um  exer- 
cito em  campanha.  Não  refide  apenas  na  inftrucção,  na  dis- 
ciplina, no  valor,  na  abnegação,  na  temperança  e  na  prodi- 
giofa  adaptação  do  íbldado  ás  máximas  privações  e  aos  mais 
duros  e  afperos  trabalhos.  Tudo  ifto  é  o  corpo  da  profiffão, 
mas  a  alma,  o  efpirito,  a  inlpiração  é  a  honra  e  o  pundonor. 
O  officio  militar  é  uma  religião,  religião  de  facrificio  perma- 
nente á  pátria  e  ao  dever.  É  forçofo  que  o  foldado  efteja  con- 
vencido plenamente  de  que  o  feu  mifter  é  honrofo,  nobre, 
venerado  pela  nação.  Os  loiros  não  podem  aíTentar  fenão  em 
frontes  livres,  immaculadas  de  toda  a  tacha  infamante  ou  de- 
fairofa.  Os  ofiiciaes,  de  quem  pende  no  momento  fupremo 
da  defeza  ou  da  defaffronta  nacional,  a  gloria  ou  o  def  barato 
da  nação,  é  bem  que  no  conceito  univerfal  fejam  egualados 
ás  mais  illuftres  categorias  do  eftado.  Ora  durante  o  longo  rei- 
nado de  D.  João  V,  e  ainda  nos  tempos  que  feguiram,  appa- 
recêra  deíluftrada  muitas  vezes  a  dignidade  militar  pelo  des- 
dém, com  que  os  officiaes  de  berço  obfcuro  eram  olhados 
pela  nobreza,  ou  le  rebaixavam  a  condições  aviltadoras  da 
lua  honrada  hierarchia.  Sebaftião  de  Carvalho  eífabeleceu, 
como  dogma  fundamental  do  novo  exercito,  que  «devendo  o 
ponto  de  honra  animar  aos  officiaes  mais  de  que  outro  algum 
motivo,  todo  o  official  de  patente .  .  .  lerá  reputado  nobre,  e 
não  poderá  executar  alguma  efpecie  de  emprego,  nem  fa- 
zer outro  algum  ferviço,  que  não  feja  o  lerviço  real .  .  .  fe 
fucceder  que  algum  official  envileça  e  defacredite  o  feu  poflo 
por  um  procedimento  contrario  a  effa  difpofição  fera  expulfo 


(is 


J'4 

e  declarado  indigno  de  lervir  nos  exércitos  de  lua  majefta- 
de' » .  As  innovações  introduzidas  no  ferviço  das  tropas  pelos 
regulamentos  de  infanteria  e  de  cavallaria  eram  tanto  para 
aquelle  tempo,  apelar  dos  feus  defeitos,  uma  faudavel  revolu- 
ção e  um  progreíTo  ineftimavel,  que  durante  mais  de  um 
feculo  eftiveram  conftituindo  a  bafe  e  o  principio  das  inftitui- 
ções  militares  em  Portugal. 

A  infatigável  diligencia  do  miniflro  reformador  não  des- 
fallece,  nem  esfria  depois  de  reorganilar  tadicamente  a  força 
publica.  A  confulao  e  a  anarchia  na  legiflação  e  adminis- 
tração militar  eram  então  incompatíveis  com  a  exiftencia  de 
um  exercito  regular.  Sebaftião  de  Carvalho,  remediando  aos 
abulbs  enraizados  no  abfurdo  lyífema  de  prover  á  manuten- 
ção das  tropas  portuguezas,  decreta  a  abolição  das  antigas 
vedorias,  e  fubftitue  em  feu  logar  as  thefourarias  geraes  das 
tropas  nas  três  regiões,  em  que  divide  o  território  de  Por- 
tugal. Eftabelece  a  forma  de  folver  aos  officiaes  e  aos  Tol- 
dados, com  inteira  pontualidade,  os  feus  melhorados  venci- 
mentos \  Os  dois  batalhões  fuiíTos  tinham  degenerado  da  lua 
primitiva  inftituição.  Os  chefes  pelas  fuás  malverfações  e  os 
Ibldados  pela  fua  indifciplina  haviam-fe  tornado  não  fomente 
um  encargo  inútil  ao  ferviço,  mas  um  perigofo  exemplo  de  ra- 
pina e  infubordinação.  Sebaítião  de  Carvalho,  por  um  d'eftes 
golpes  improvifos  e  audazes,  em  que  era  confummado,  defar- 
ma  e  diíTolve  os  dois  corpos  mercenários,  e  por  uma  fentença 
do  conlelho  de  guerra,  faz  executar  o  coronel  Graveron,  accu- 
fado  de  abulbs  indefculpaveis  e  de  criminofas  dilapidações. 

Aproveitando  para  o  ferviço  muitas  praças  dos  dois  fup- 
primidos  batalhões,  e  aliftando  foldados  allemães,  infhtue, 


'  Regulamento  da  irifanteria,  de  i8  de  fevereiro  de  1763,  e  Regulamento 
da  cavallaria,  de  25  de  agofto  de  1764,  ambos  no  cap.  xiii,  n.°  7. 

2  Lei  de  2  de  julho  de  1763. 

3  Decreto  de  3i  de  julho  de  1762. 


cjs 


3i5 

como  novo  e  trifte  exemplo  de  tropas  marcenarias,  o  regi- 
mento dos  Reaes  extrangeiros,  o  qual  foi  comporto  de  oito 
companhias  de  granadeiros",  e  pouco  depois  padeceu  a  mes- 
ma forte  dos  outros  forafteiros,  léus  infelizes  anteceffores. 

Succede-fe  agora  uma  larga  ferie  de  providencias,  que 
vão  encaminhadas  a  firmar  em  mais  folidos  cimentos  as  in- 
ftituições  militares  de  Portugal  e  a  converter  as  tropas  quafi 
irregulares,  imperitas,  fedentarias  do  tempo  de  D.  João  V 
n'um  verdadeiro  exercito  permanente.  Defde  largos  annos 
dominava  em  Portugal  para  fazer  foldados  um  fyífema  vi- 
ciofo,  oppreflivo,  iniquo,  defhumano,  que  arrebatava  á  po- 
voação, ás  mais  pobres  e  defvalidas  claífes  populares,  em 
levas  tumultuofas  a  flor  da  juventude,  convertendo  n'uma 
defhonrofa  fervidão  o  ofíicio  de  foldado,  afaftando  das  filei- 
ras, pelo  terror  de  um  miferavel  e  perpetuo  captiveiro,  todos 
os  que  na  fraude  ou  na  valia  podiam  encontrar  efcudo  e  ar- 
rimo contra  as  violências  do  recrutamento.  As  deferções  eram 
frequentes,  numerofas,  impenitentes,  apefar  das  penas  feve- 
riíTimas  decretadas  a  cada  paífo  para  as  cohibir  e  caítigar. 
Sebaftião  de  Carvalho  reconhece  que  a  forma  do  recruta- 
mento é  na  ordem  racional  o  principio  e  a  fonte  da  conftitui- 
ção  militar  n'uma  nação,  e  que  a  difciplina  mais  auftera,  a 
mais  perfeita  organifação,  a  inftrucção  mais  primorofa  no 
foldado  ferão  baldadas,  fe  não  eftiver  a  ponto  a  matéria  pri- 
ma dos  exércitos.  O  alvará  de  24  de  fevereiro  de  i  764  funda 
em  Portugal  pela  vez  primeira  o  proceífo  jufto  e  efficaz  de 
recrutamento  perante  as  condições  fociaes  d'aquelle  tempo. 
Procura  o  legiflador  conciliar  as  exigências  do  exercito  com 
o  minimo  vexame  popular,  refpeitando,  quanto  era  então 
poíTivel,  o  maior  commodo  das  ditferentes  povoações  e  o 
movimento  progreífivo  do  trabalho  nacional.  A  cada  regi- 


Alvará  de  17  de  feptenibro  de  1763. 


eis 


MS 


3i6 

mento  é  aíTignado  um  diftrido  efpecial,  d'oiide  haja  de  rece- 
ber as  fuás  recrutas,  repartindo-as  com  egualdade  pelas  va- 
rias freguezias.  São  ainda  numerofas  as  excepções,  umas  de- 
terminadas peia  diftincçáo  então  fubllftente  entre  nobres  e 
plebeus,  outras  eftatuídas  em  obfequio  á  agricultura,  e  ao 
trato  fabril  e  commercial,  ou  didadas  pelas  confideraçôes  do 
intereífe  publico  e  pelos  refpeitos  da  compaixão  e  humani- 
dade. Decreta  Sebaftião  de  Carvalho  a  maneira  regular  de 
prover  ao  uniforme  e  veftuario  das  tropas,  e  acode  á  penúria, 
em  que  n'ell:e  ponto  tinham  vivido  quafi  fempre,  defampa- 
radas  e  efquecidas  por  uma  negligente  adminiftração. 

O  marechal-general  conde  de  Lippe  retirou-fe  de  Portugal 
em  1764  para  o  feu  pequeno  eílado  na  AUemanha,  remune- 
rado largamente  pela  munificiencia  do  foberano  com  eminen- 
tes diflincções  e  valiofiíTimos  prefentes.  A  fua  aufencia  deixa- 
va fem  chefe  militar  o  exercito  portuguez  na  própria  occafião, 
em  que  deviam  fazonar-fe  as  reformas,  que  apenas  começa- 
vam a  germinar.  Mas  do  feu  caítello  fenhorial  de  Buckburg 
o  conde  de  Lippe  volve  os  olhos  para  as  novas  inflituições, 
que  deixa  implantadas  em  Portugal,  e  d'ali  dirige  confelhos 
e  inftrucções  para  que  as  fementes  caindo  em  terra  fafara  fe 
não  percam  pelo  defleixo  da  cultura.  Sebaftião  de  Carvalho 
impellido,  porém,  pelo  feu  génio  para  as  grandes  reformas  fo- 
ciaes  e  para  os  combates  contra  o  feu  máximo  inimigo,  o  je- 
fuita,  ainda  mal  vencido  e  fupplantado,  deixa  desfallecer  os 
brios  militares.  Paífados  poucos  annos  após  a  falda  do  general 
allemão,  já  as  tropas  denunciam  que  não  ha  em  Portugal  para 
as  manter  na  inftrucção  e  difciplina  a  mão  vigorofa  e  firme 
do  commando.  A  deferção,  inevitável  reacção  contra  as  des- 
egualdades  e  vexames  do  recrutamento,  vae  crefcendo  progres- 
fivamente,  e  o  legiflador,  ora  concedendo  perdões  geraes  aos 
defertores,  ora  comminando-lhes  as  penas  mais  feveras,  não 
confegue  extirpar  inteiramente  efta  praga  funefta  dos  exércitos. 


3-7 

CAPITULO  XIII 

o    SACERDÓCIO   E   O    IMPÉRIO 

A  empreza,  que  Sebaftião  de  Carvalho  tomara  em  feus 
robuftos  hombros,  era  tão  multíplice  nas  luas  formas  e  as- 
fumptos,  e  abrangia  de  tal  maneira  todas  as  relações  da  vi- 
da nacional,  que  não  era  dado  ao  miniftro,  após  uma  vido- 
ria,  repoular  por  algum  tempo  fobre  os  louros  alcançados. 
\'encida  uma  embaraçofa  difficuldade,  logo  outra  fuccedia, 
reclamando  a  perfeverança  e  o  vigor  do  incanfavel  eftadifta. 
Divertíra-o  da  faina  predileda  a  guerra  material,  pelejada 
mais  com  as  armas  diplomáticas  do  que  com  os  inllrumen- 
tos  defenfivos,  apparelhados  na  imminencia  da  invalao.  Vol- 
via agora  as  attenções  e  os  cuidados  ao  feu  empenho  princi- 
pal, qual  era  o  de  fujeitar  de  todo  o  ponto  á  poteítade  fecu- 
lar  as  antigas  e  perigofas  arrogâncias  do  poder  ecclefiaítico. 

Os  jefuitas  em  Portugal  e  nas  fuás  poíTeíTóes  ultramari- 
nas tinham  lido  defarmados,  vencidos,  exterminados.  A  po- 
derofa  Companhia,  fe  ainda  em  Roma  encontrava  echo  ás 
fuás  laftimas  no  folio  pontifício,  e  nas  cortes  europêas  não 
vira  ainda  chegada  a  hora  da  fua  reprovação,  eftava  de 
lado  extinfta  no  paiz,  onde  mais  ampla  e  mais  frudifera 
havia  fido  a  fua  dominação.  Dos  jefuitas  portuguezes  e  dos 
forafteiros  domiciliados  em  Portugal,  a  máxima  parte  fora 
expulfa  c  trafladada  como  funefto  prefcnte  ao  papa  indócil, 
que  fe  obítinava  em  a  proteger  e  confolar.  Alguns  dos  focios 
mais  notáveis  jaziam  nos  cárceres  de  eftado,  affrontados 
pela  tremenda  accufação  de  regicidas.  Outros  expiavam  nas 
prifões  a  fufpeita  de  ferem  participantes  na  fruflrada  conju- 
ração ou  o  trifte  privilegio  de  veftirem  a  roupeta  de  Santo 
Ignacio. 


sii 


3i8 

De  todos  os  jefuitas  encarcerados  era  o  padre  Gabriel 
Malagrida  ao  mefmo  tempo  o  mais  popular  e  venerado  en- 
tre a  gente  fuperfticiofa,  e  o  mais  odiofo  e  intolerável  a 
Carvalho  e  aos  inimigos  da  Companhia.  O  feu  nome  ficara 
vinculado  ao  dos  Tavoras  no  proceflb  e  na  fentença,  que  os 
havia  condemnado.  Eram  celebres  os  exercícios  efpirituaes, 
a  que  bufcára  attrahir  a  nobreza  e  a  gente  do  eftado  chão, 
como  ao  único  e  eíficaciíTmio  recurfo  contra  a  ira  celefte, 
que  punira  com  o  feu  durifllmo  flagello  as  abominações  da 
noviflima  Sodoma,  qual  era  Portugal,  facrilegamente  gover- 
nado pelo  miniftro  de  D.  Jofé.  Já  defde  o  terremoto  o  in- 
difcreto  fervor  e  piedade  religiofa  do  fogofo  jefuita  fe  tinham 
affignalado  pela  publicação  do  feu  opufculo,  em  que  forjan- 
do a  theoria  myftica  do  phenomeno  terrível,  o  dava  como 
jufta  punição  de  grandes  iniquidades.  Haviam  fido  egual- 
mente  notáveis  e  divulgados  os  feus  vaticínios  annunciando 
pouco  antes  da  conjuração  um  grande  perigo  á  exiftencia  do 
imperante. 

A  alta  reputação  de  fantidade,  em  que  era  tido  entre  a 
nobreza  e  nas  claífes  populares  o  padre  Malagrida,  a  fua  ir- 
requieta aítividade,  o  dom  de  prophecia,  de  que  elle  próprio 
bravateava,  e  de  que  o  vulgo  o  prefumia  aquinhoado,  a  fin- 
geleza  habitual  da  fua  vida  e  os  fonhos  infantis  da  fua  mór- 
bida phantafia,  confpiravam  para  fazer  do  humilde  jefuita 
uma  d'eftas  figuras  fobrehumanas,  cujos  traços  fe  imprimem 
indeléveis  na  imaginação  e  na  memoria  das  rudes  e  crendei- 
ras  multidões.  O  padre  Malagrida  era  verdadeiramente  um 
d'eítes  heroes,  que  a  lenda  popular  fe  delicia  em  exornar  de 
todas  as  virtudes,  coroar  de  todas  as  perfeições  e  fegregar, 
como  rariífima  excepção,  de  todas  as  miferias  e  fraquezas  da 
humanidade.  No  feculo  xi  teria  oífufcado  a  Pedro  Eremita. 
No  feculo  xin  haveria  difputado  a  S.  Domingos  a  glorifica- 
ção de  Deus  pela  fogueira  contra  os  hereges  albigenfes.  Dian- 


ti» 


-• •-V-I- 

319 

le  de  Luthero  e  de  Calvino  ter-le-ía  moftrado  mais  ardente 
do  que  o  próprio  fundador,  em  cuja  milicia  defde  tenros  an- 
nos  fe  arrolara.  O  Malagrida  era  um  mixto  fingular  de  cren- 
ça fervorofa  e  de  extravagante  myfticifmo,  de  abnegação  e 
retiro  efpiritual  e  de  ambicioía  e  turbulenta  intervenção  nos 
affumptos  mundanaes,  de  fimpleza  pueril  e  de  arrogante  pre- 
fumpção,  de  ignorâncias  infantis  e  de  oufadas  theologias, 
meio  illuminado  e  meio  herege,  exaggerando  a  fé  até  raiar 
em  blafphemia,  e  a  innovação  theologica  até  degenerar  em 
religiofa  monomania.  Era  um  Savonarola  fem  o  enthuliafmo 
ardente  da  palavra,  e  um  Santo  Ignacio  fem  a  politica  llibtil 
do  famofo  patriarcha.  Ainda  affim  era  clle  a  mais  concreta 
perfonificação  da  Companhia  em  terras  de  Portugal.  Outros 
feus  confocios  de  mais  alto  engenho  e  de  maior  cultura  e 
fapiencia  o  excederiam  no  confeíTionario,  nas  miíTões  e  nas 
elcolas.  Mas  nenhum  alcançaria  íbbrele^■ar-lhe  na  opinião 
e  no  aífedo  popular.  Ferir  eítrondolamente  o  celebrado  je- 
ÍLiita  era  pois  como  que  fubmetter  a  própria  Companhia  ao 
opprobrio  derradeiro.  Teria  fido  altamente  vantajofo  ás  mi- 
ras de  Carvalho  o  fentenciar  capitalmente  o  Malagrida  como 
réu  de  lefa-majeftade.  O  exemplo  de  um  jeluita  publica- 
mente juítiçado  por  fentença  do  terrível  tribunal  da  Inconfi- 
dência, haveria  fido  o  reverfo  das  honras  e  diftincções,  com 
que  a  ordem  ambiciofa  tinha  imperado  em  Portugal  por  an- 
nos  dilatados.  Rolando  fob  o  cutello  do  algoz,  a  cabeça  do 
defventurado  Jefuita,  accufado  de  incitar  pelos  feus  confelhos 
e  pelas  fuás  inftigações  a  trama  fangrenta  contra  el-rei,  teria 
fido  a  confagração  judicial  de  todos  os  delidos  imputados 
á  famofa  Companhia.  Para  ifto  energicamente  fe  empenhara 
o  miniftro  de  D.  Jofé,  intimando  á  cúria  que  lhe  defle  a 
neceífaria  audorifação  para  julgar  na  junta  de  inconfidência 
os  clérigos  infamados  pelo  crime  de  alta  traição.  Era  grande 
a  audácia  de  Carvalho  nas  fuás  incurfões  contra  a  immuni- 


^ 


320 

dade  clerical,  fanccionada  pelo  abufo  da  tradição.  Não  ou- 
fou,  porém,  tocar  a  extrema  raia  da  civil  jurifdicção,  entre- 
gando aos  tribunaes  communs  um  tonfurado.  ProfeíTára  lar- 
gamente em  theoria  que  nos  delidos  puramente  feculares 
não  valia  a  immunidade  ecclefiaftica.  AUegára  os  exemplos 
em  que  os  juizes  temporaes,  chamando  ao  feu  pretório  os 
criminofos  revertidos  de  carader  facerdotal,  os  haviam  con- 
demnado  á  pena  ultima,  fem  que  precedeíTe  indulto  ou  be- 
neplácito do  pontífice  romano.  O  animo  prudente  do  efta- 
difta,  em  face  da  fanática  povoação  da  fua  pátria,  ficou 
d'efta  vez  ainda  muito  áquem  do  feu  efpirito  innovador. 
Não  julgou  o  tempo  ainda  maduro  para  entregar  um  clérigo 
rebelde  ao  baraço  profano  do  verdugo  temporal.  Houve  por 
mais  azado  e  eftrepitofo  o  confiar  a  execução  ao  algoz  au- 
dorifado  pelas  infalliveis  decifões  do  Santo  Officio.  Podia, 
na  verdade,  fiappliciar  o  Malagrida  como  implicado  na  má- 
xima offenfa  á  foberania  terrenal.  Preferiu,  porém,  aprefen- 
tal-o  em  elpedaculo  afFrontofo,  como  réu  do  attentado  mais 
tremendo  contra  a  divina  majeftade.  E  de  feito,  um  jefuita 
havido  e  juftiçado  folemnemente  como  herefiarcha  e  dogma- 
tiíta,  era  ainda  maior  vilipendio  á  Companhia  do  que  le  no 
fupplicio  derradeiro  expiara  o  imputado  regicídio. 

A  Companhia  de  Jefus  fora  inftituida  para  fer  a  guarda 
de  honra  do  papado  e  a  milicia  pretoriana  da  orthodoxia. 
Aprefental-a  pois  agora,  na  peíToa  de  um  dos  feus  mem- 
bros mais  notórios,  como  quem  vinha  commacular  e  poUuir 
a  pureza  caítiffima  da  fé,  na  própria  occafião,  em  que  na 
Europa  ainda  pendiam  os  juizos  acerca  da  virtude  ou  pravi- 
dade jefuitica,  era  na  verdade  accrefcentar  um  novo  e  fin- 
gular  depoimento  no  proceíTo  inftaurado  moralmente  contra 
os  focios  pretenfos  de  Jefus. 

As  acções,  as  palavras,  os  efcriptos  do  padre  Gabriel 
de  Malagrida  preftavam-fe  á  maravilha  a  que  o  tribunal  do 


32  1 

Santo  Officio  avocaíTe  da  profana  afpa  dos  fupplicios  fe- 
culares  para  a  religiofa  fogueira  das  penas  inquifitoriaes  o 
malaventurado  jefuita.  Efcrevêra  o  Malagrida  duas  obras 
theologicas,  em  que  dera  larga  rédea  aos  raptos  myfticos  da 
fua  ardente  e  exacerbada  phantafia.  Uma  d'ellas  efcripta  em 
lingua  -vulgar  tinha  por  titulo  Vida  heróica  c  admirarei  da  glo- 
riofa  Santa  Anua,  mãe  de  Maria  Santijfima,  diélada  pela  mes- 
ma [anta  com  ajjiftencia,  approração  e  concurfo  da  me/ma 
Jhberaiiijlfmia  Senhora  e  feu  Santijfimo  filho.  A  outra  era  em 
latim  e  intitulava-fe  Tradatiis  de  vita  et  império  Anti-Chrijli 
(tratado  da  vida  e  império  do  Anti-Chrifto). 

Aquelles  dois  efcriptos,  ambos  elles  de  uma  febril  e  de- 
pravada theologia,  não  eram  certamente  muito  mais  pecca- 
minofos  e  oíTenfivos  do  dogma  e  da  tradição  catholica  do 
que  outros  numerofiíTimos  opufculos,  onde  a  piedade  exag- 
gerada  e  o  fanatifmo  alambicado  fe  haviam  empenhado  em 
alterar  o  fentido  litteral  dos  textos  evangélicos,  adaptando- 
os  ao  que  poderá  bem  cognominar-íe  o  romance  ou  a  no- 
vella  do  chriílianifmo.  Não  pôde  todavia  conteftar-fe  que  na 
Vida  de  SanfAnua  fe  continham  propofições,  que  o  profano 
critério  apenas  haveria  na  conta  de  rifiveis  e  piedofas  ima- 
ginações, mas  que  na  afilada  balança  do  Santo  Ofiicio  pefa- 
vam  tão  gravemente  como  as  mais  oufadas  innovações  de 
Luthero,  de  Zwingle  ou  de  Calvino. 

Cifrava-fe  a  doutrina  principal  do  Jefuita  em  formalmente 
attribuir  á  mãe  da  A^irgem  Santa  o  privilegio  da  conceição 
immaculada  e  a  exempção  maravilhofa  do  peccado  original. 
Segundo  as  viíoes  do  Malagrida,  Sant'Anna  tinha  fundado 
em  Jerufalem  um  confervatorio  de  cincoenta  e  três  donzel- 
las,  e  para  o  concluir  os  anjos  baixando  do  empyreo  fe  ha- 
viam transfigurado  em  jornaleiros.  As  piedofas  alumnas  edu- 
cadas fob  a  tutela  carinhofa  de  Sant'Anna,  ab  aeterno  Deus 
as  deífinára  para  ferem  cfpofas  de  apoffolicos  varões,  taes 


c|3 


si» 


322 

como  Nicodcmos,  S.  Matheus  e  Jofé  de  Arimathea.  A  eftas 
e  mil  outras  extravagâncias  de  um  efpirito  vifivelmente  ex- 
traviado, accrefcentava  o  Malagrida  as  mais  terminantes  af- 
firmações  e  juramentos  de  que  Deus  e  a  Virgem  immaculada 
lhe  haviam  peíToalmente  revelado  o  que  na  fua  obra  confi- 
gnára.  Elle  próprio  ouvira  por  fingular  e  divino  privilegio  o 
Padre,  o  Filho,  o  Efpirito  Santo,  que  em  voz  clara  e  diftinda 
lhe  fallavam. 

Ulava  a  inquifição  n'aquelles  tempos  de  mui  pouca  leni- 
dade  com  os  réus  accufados  e  convidos  de  herefias,  de  blas- 
phemias,  de  myfticas  vifões  e  prophecias.  Não  podia  julgar 
o  Malagrida  por  fuás  verdadeiras  ou  fuppoftas  malfeitorias 
contra  a  regia  poteftade.  Entrava,  porém,  na  fua  ordinária 
jurifdicção  o  inquirir  e  condemnar  o  fanático  jefuita  pelos 
feus  delidos  contra  a  té  e  pela  fua  vaidofa  prefumpção  de  il- 
luminado  por  afflatos  e  favores  celeftiaes.  Inflaurou-lhe  o  pro- 
ceífo,  que  feguiu  feus  tramites  odiofos,  mas  legítimos.  Exis- 
tiam vivas  as  provas  dos  crimes  imputados,  hirtado  muitas 
vezes  o  allucinado  dogmatifta  a  que  retractalfe  os  erros  e  im- 
piedades,  perfeverára  firme  e  inabalável.  Infiftia  cm  affirmar 
as  miraculofas  revelações,  com  que  em  feus  extafis  o  privile- 
giara a  divina  infpiração.  Recontava  como  Deus  o  tivera  em 
feu  conceito  por  egual  a  S.  Francifco  Xavier,  e  o  elegera  por 
feu  embaixador,  apoftolo  e  propheta.  Perfillia  em  dizer  que  a 
Virgem  Santa  lhe  revelara  havel-o  adoptado  por  feu  filho,  com 
inteira  fatisfação  de  Jefu  Chrifto  e  da  Santiffima  Trindade. 
Contava  egualmente  os  feus  colloquios  com  alguns  dos  fan- 
tos  mais  illuftres  pela  lua  piedade  e  fabedoria.  Com  eftas  en- 
raizadas phantafias  mais  e  mais  fe  lhe  incendia  no  animo 
enfermiço  o  ardente  defejo  do  martyrio.  Com  grande  e  as- 
fombrofa  convicção  referia  os  feus  próprios  milagres  nò  Bra- 
zil  e  em  Portugal,  particularifando  as  occafiões  c  as  peífoas, 
a  quem  tinham  redundado  em  falvação.  Com  eftas  exaltadas 


c|3 


323 

e  myfticas  allucinações  do  leu  elpirito  le  melclavam  algumas 
declarações,  por  onde  relliltava  manifefto  que  o  Malagrida 
nos  que  pareciam  raptos  mais  remotos  de  todo  o  mundano 
intereffe  e  cogitação,  não  efquecia  os  ódios  dos  jefuitas  con- 
tra o  poder  temporal,  que  os  vexava  e  opprimia. 

Em  uma  noite,  contava  o  Malagrida,  tivera  uma  vifão  in- 
telleítual,  em  que  le  lhe  haviam  claramente  reprefentado  as 
penas,  que  padecia  a  alma  do  rei  e  as  exprohrações,  com 
que  uns  efpiritos  devotos  lhe  eftavam  condemnando  as  fuás 
perfeguições  á  Companhia.  Caftigos  fimilhantes  haveriam  de 
padecer  as  mais  peíToas,  que  tinham  cooperado  na  ruina  da 
ordem  exterminada.  Dizia  o  impenitente  jefuita,  que  em  tudo 
quanto  recontava  não  podia  padecer  nenhum  engano,  por- 
que era  lliccedido  com  um  fujeito,  a  quem  a  própria  mãe  do 
Redemptor  vinha  todos  os  dias  conferir  a  ablblvição  de  to- 
dos os  peccados  em  nome  de  feu  filho.  ConfeíTou  que  alguma 
vez  entrara  em  duvida  Ibbre  fe  efte,  que  lhe  parecia  favor 
lingulariílimo  da  Virgem,  não  feria  antes  inlidiofa  invenção 
do  tentador,  porque  affim  lh'o  haviam  ponderado  alguns  pie- 
dofos  facerdotes.  Mas  para  confirmal-o  em  fua  crença  de  que 
era  abfolto  pela  voz  de  Noífa  Senhora,  viera  em  peífoa  Jefu 
Chrifto  a  lançar-lhe  em  latim  a  ablblvição  pelos  termos  for- 
maes  que  referia.  Inflado  uma  e  outra  vez  a  defdizer-fe  de 
fuás  jaclanciofas  e  heterodoxas  affirmações,  faia  do  debate 
com  os  inquifidores  e  os  theologos  de  cada  vez  mais  perfis- 
tente  e  inabalável  em  feus  erros,  como  aquelle,  a  quem  a  exal- 
tada imaginação  reprefentava  mais  gloriofa  a  perfeverança 
nas  doutrinas,  do  que  temerolbs  os  trances  do  martyrio.  Ur- 
giam-ri'o  os  inquifidores,  taxavam-lhe  de  heréticas  as  fuás 
propofições,  de  facrilegio  a  prefumpção,  com  que  fe  dava 
por  tão  familiar  em  feus  coUoquios  com  Deus  e  a  Virgem 
Santa.  Convenciam  de  phantafticas  as  fuás  vilões,  de  fallazes 
as  fuás  prophecias.  Parecia  então  retrahir-fe  da  fua  impeni- 


(Is 


324 

tencia.  Conduzido  ao  cárcere,  rogava  que  o  levaíTem  nova- 
mente á  prefença  dos  inquifidores  e  dos  theologos.  Exhorta- 
vam-n'o,  reprehendiam-n'o.  Diante  dos  graves  antagoniftas, 
de  novo  hefitava  por  inftantes  nos  erros  condemnados,  mas 
logo  redobrava  de  ^'igor,  tropeçava,  reincidia.  Com  maior  in- 
timativa reiterava  as  paíTadas  affirmações,  defbaratando  com 
a  fua  inflexivel  contumácia  as  armas  theologicas  dos  feus  con- 
tradiftores.  Nada  pois  rcftava  aos  juizes  da  fé  para  reduzir 
ao  aprifco  da  boa  doutrina  a  ovelha  trefmalliada  e  fugidia. 
Attenta,  pois,  a  fua  obftinação,  cegueira  e  impenitencia,  con- 
demnou-o  o  Santo  Oflficio,  pela  lentença  de  20  de  leptem- 
bro  de  1761,  como  incurlb  no  delido  de  herefia,  por  haver 
affirmado,  feguido,  efcripto  e  defendido  propofições  e  dou- 
trinas oppoítas  aos  verdadeiros  dogmas,  que  propõe  e  enfina 
a  egreja  romana,  e  fer  havido  como  herético,  convido,  falfo, 
confitente,  revocante,  pertinaz  e  proíitente  nos  erros  condem- 
nados. A  fentença  concluía  que  por  feus  crimes  foífe  degra- 
dado das  ordens  facerdotaes,  fegundo  a  forma  e  difpofições 
dos  cânones  fagrados,  e  depois  com  mordaça  e  carocha  re- 
laxado á  juftiça  fecular.  Os  inquifidores  pela  formula  habi- 
tual, com  que  o  Santo  Oíiicio  bufcava  lavar  de  fuás  mãos 
o  fangue  das  fuás  vidimas,  rogavam  inftantemente  ao  braço 
fecular,  que  fe  houveífc  para  com  o  réu  benignamente,  nem 
o  fizeífe  expiar  as  fuás  culpas  com  a  effufão  do  fangue  ou  o 
ultimo  fupplicio. 

No  auto  de  fé  celebrado  a  2 1  de  feptembro  de  1 76 1 
faia  publicamente  o  defventurado  jefuita  milanez,  Gabriel 
Malagrida.  O  fupplicio  aífrontofo  d'aquelle  homem  quebran- 
tado pelos  annos,  macerado  pela  doença,  devorado  pela  ar- 
dente e  irrequieta  phantafia,  devia  fer  o  epilogo  tremendo  ás 
finiftras  execuções  do  Santo  Oíiicio.  Era  exadamente  no 
equinoccio  autumnal,  quando  o  foi  defvefte  as  luas  galas  e 
fe  apparelha  para  a  foturna  hibernação  da  natureza.  Aquel- 

•i-<U — -á>-§- 


la  hoítia  derradeira,  fervida  como  os  poftres  do  fanatifmo  na 
facrilega  mefa  do  Thyeíles  inquifitorial,  era  um  velho  mais 
que  feptuagenario,  a  quem  a  luperftição  e  o  myfticifmo  ha- 
viam arrojado  ás  ultimas  loucuras  da  piedade  exaggerada. 
Em  volta  do  tablado,  onde  o  Malagrida  agora  fe  aprefenta- 
va,  eftava  congregado  quanto  havia  de  mais  illuftre  na  velha 
fociedade  portugueza.  As  damas  e  os  fidalgos  de  uma  corte 
ainda  luzida  efperavam  nos  palanques  oftentofamente  orna- 
mentados a  apparição  do  celebrado  padecente,  como  pode- 
riam aguardar  anciofamente  o  ingreíTo  de  um  ador  nas  ta- 
boas  do  theatro.  Os  embaixadores  e  enviados  extrangeiros 
afiavam  ali  reprefentando  a  Europa,  que  afllftia  ás  fcenas 
lastimosas  da  barbárie  nacional  no  ultimo  Occidente.  Os  fe- 
cretarios  de  eftado  fignificavam  o  poder  fijpremo  e  temporal 
que  pela  vez  extrema  emprefiava  o  algoz  ao  facerdocio.  A 
Cafa  da  lupplicação,  a  mais  alta  magiftratura  de  todo  o  Por- 
tugal, defattendendo  as  rogativas  da  Inquifição,  condemnára 
o  Malagrida  a  fer  queimado.  Mas  logo  por  um  esforço  de 
chrifiã  e  piedofa  benignidade  commutára  o  rigor  do  feu  ac- 
cordão,  ordenando  que  o  réu  morrefle  de  garrote,  e  o  feu 
corpo  foífe  depois  entregue  ás  chammas. 

N'aquella  tremenda  execução  parecia  que  era  apenas  o 
Malagrida  o  infeliz  fuppliciado.  Mas  o  baraço,  que  extinguia 
na  garganta  ao  jefuila  os  últimos  alentos,  estrangulara  fatal- 
mente o  Santo  Officio,  e  vibrara  o  extremo  golpe  ao  inftituto 
de  Loyola.  N'aquelle  dia  a  Inquifição  adoecia  de  funefta  fe- 
nilidade.  As  cinzas  do  Malagrida  não  deixariam  mais  arder 
os  garavatos  na  fogueira  confagrada  á  purificação  das  almas 
peccadoras.  As  flammas,  que  envolviam  o  efpolio  mortal  do 
jefuita,  defde  o  feu  opprobriofo  fambenito  iam  prender  e 
atear-fe  na  roupeta  da  Companhia.  Bem  podéra  o  Malagri- 
da, do  alto  do  patíbulo,  haver  dito  em  face  á  hiquifição  o 
que  na  tragedia  de  Cafimiro  Delavigne,  o  velho  doge  de 

II  ' ' 


326 

Veneza  á  criminofa  e  cruenta  Senhoria,  referindo-fe  ao  jul- 
gamento da  incorruptível  pofteridade: 

II  dirá:  elle  auHl  mife  à  mort  pour  les  crimes. 

E  a  turba,  condenlada  nas  cercanias  do  Rocio,  pode- 
ria ter  refpondido  ao  ultimo  reprefentante  da  Companhia: 
«Comtigo  morre  também  a  tua  fociedade».  Alluiam-fe  de 
feito  n'aquella  occafião  as  duas  columnas  temporaes  do  poder 
ecclefiaftico:  a  Inquifição  e  a  Companhia  de  Jefus,  a  herança 
de  S.  Domingos  e  o  legado  de  Loyola.  A  magiftratura  da  fé 
trucidava  fem  piedade  a  milicia  do  papado.  Dez  ou  doze  an- 
nos  mais  tarde  as  duas  famofas  inflituições,  aclimatadas  em 
Portugal  pelo  zelo  fanático  de  D.  João  III,  haveriam  de  re- 
ceber o  golpe  defaftrofo  da  fua  exautoração  official,  a  Inqui- 
fição pelo  regimento  de  1771,  decretado  em  nome  da  philo- 
fophia  ainda  vacillante  pelo  grande  reformador,  a  Companhia 
no  breve  Domimis  ac  Redemptor  vibrado  em  nome  da  fraqueza 
pontifícia  pela  hefitante  mão  de  Ganganelli. 

O  fupplicio  do  Malagrida  tem  fido  um  dos  capítulos  mais 
fentimentaes  e  aggreíTivos  contra  a  memoria  do  illuftre  legis- 
lador. Os  caufidicos  da  humanidade,  em  todo  o  ampliffimo 
catalogo  das  hoftias  immoladas  á  pureza  da  fé  e  da  doutri- 
na, efquecem  facilmente  as  vidimas  illuftres,  para  fitarem  a 
vifta  fevera  e  inexorável  fobre  os  julgadores  do  malaventu- 
rado  jefuita.  O  vulto  de  Carvalho,  aos  olhos  dos  feus  duros 
antagoniltas  em  nome  da  philofophia  ou  da  piedade,  appa- 
rece-lhes  por  detraz  da  cadeira  inquifitorial,  para  que  fobre 
a  cabeça  do  eftadifta  caiam  indivifas  as  abominações  da  In- 
quifição. Mas  antes  da  execução  politico-religiofa  do  falfo 
propheta  defgraçado,  regiftam  os  annaes  do  Santo  Officio 
centenares  de  fupplicios  mil  vezes  mais  atrozes.  No  reinado 
pacifico  e  beato  do  monarcha  de  Mafra  e  Odivellas,  o  pobre 
judeu  António  Jofé,  o  mais  intenfo  luminar  na  viciofa  litte- 


3--7 

ratura  d'aquelle  leculo,  expia  na  fogueira  o  crime  da  hebrai- 
ca aícendencia  e  profiíTão,  e  os  amigos  da  humanidade  la- 
crymofos  não  põem  ao  lalcivo  monarcha  portuguez  a  culpa 
de  cumprir  fem  reludancia  as  fentenças  do  braço  elpiritual. 
Julguemos  os  homens  e  os  fucceíTos  pelos  padrões  e  normas 
do  leu  tempo.  A  Inquifição,  que  hoje  havemos  por  deflionra 
e  opprobrio  da  civililação,  era  ainda  n'aquella  epocha  uma 
inftituição  confervadora,  julgada  indifpenfavel  a  manter  a 
unidade  e  pureza  do  catholicifmo,  uma  judicatura  confagrada 
pelo  voto  popular.  A  philofophia,  que  profcreve  o  algoz,  ou 
trucide  em  prol  da  egreja  ou  em  nome  da  fociedade,  era,  como 
ainda  hoje  em  muitas  das  relações  mais  importantes  da  vida 
politica  e  focial,  uma  timida  afpiração  de  efpiritos  feledos  e 
videntes.  O  Santo  Officio  era  n'aquella  quadra  confiderado 
tão  legitimo  e  neceíTario  como  a  Cafa  da  fupplicação  e  a  de- 
fenfão  da  egreja  contra  os  crimes  religiofos,  tão  elTencial  como 
a  protecção  da  fociedade  contra  os  aggravos  temporaes.  Ora 
o  Malagrida  perante  a  lei  e  a  jurifprudencia  d'aquelle  leculo, 
era  um  herefiarcha,  renitente,  formal,  obftinado.  Segundo  os 
coftumes  d'aquella  edade,  perante  a  embrutecida  opinião,  a 
fogueira  inquifitorial  era  tão  venerada  pelo  rei,  pela  corte, 
pelo  povo,  como  o  fmiftro  cadafalfo,  onde  a  pena  capital  era 
prodigamente  executada  fem  que  a  um  lo  jurifconfulto  ou  a 
um  theologo,  antecipando-fe  a  Beccaria  e  a  Vidor  Hugo,  lhe 
paflaífe  pela  mente  a  poíTibilidade  fequer  de  a  abolir.  Não 
vemos  ainda  em  pleno  regimen,  que  fe  diz  illuminado  e  li- 
beral, o  artigo  6°  da  carta  portugueza  obrigar  os  diíTidentes 
da  crença  official  a  efconder  nas  trevas,  como  os  primeiros 
chriftãos  nas  catacumbas,  os  ritos  religiofos  do  feu  culto? 
Não  vemos  hoje  o  código  penal  comminando  penas  ainda 
feveras  contra  os  que  dcfrefpeitam  e  oífendem  a  religião?  E 
os 'poderes,  que  fe  dizem  infpirados  pela  humanidade  e  alu- 
miados pela  philofophia,  hão  hoje  de  encadear  impunemente 


6^9 


_ .-<J>-i* 

328 

as  confciencias,  e  fomente  feria  execravel  a  memoria  do  mi- 
niftro  que,  fegundo  as  leis,  os  coftumes  e  os  preconceitos  do 
feu  tempo,  fez  caftigar  no  réu  de  lefa-majeftade  o  delin- 
quente contra  a  fé?  Laftimemos  o  ancião  de  vida  porventura 
impeccavel  e  puriffima,  o  fanático  exaltado,  o  efpirito,  que 
allucinado  pela  febre  da  fuperítição  e  feito  heroe  pela  cega 
adoração  da  fua  ordem,  bufca  intrépido  o  martyrio,  porque 
das  próprias  cinzas  eítá  lenhando  a  milagrofa  refurreição 
da  Companhia.  Mas  julguemos  o  eftadifta  pelas  doutrinas  da 
fua  epocha,  e  negando-lhe  com  juíliça  a  lenidade  e  brandura 
do  coração,  não  queiramos,  á  conta  das  cruezas  inevitáveis, 
efcurecer  a  fua  gloria  pelas  grandes  reformas,  que  intentou. 
Não  aquilatemos  Cromwell  pelas  thefes  de  Herbert  Spen- 
cer,  a  Convenção  pelos  princípios  de  Boífuet,  o  marquez  de 
Pombal  pela  moral  incruenta  de  Jefus.  A  revolução  é  fem- 
pre  um  parto  laboriofo,  e  nunca  houve  fem  dor  parturição. 
A  revolução  é  como  o  fpeífro  folar,  radiante  de  cores  bri- 
lhantes, formofiílimas,  porém  interpoladas  pelas  raias  efcuras 
de  Fraunhofer.  Nem  a  própria  luz  alcança  em  a  natureza 
decompor-fe  fem  que  a  defdourem  e  maculem  os  listrões 
de  cerrada  efcuridão. 

Com  melhor  fundamento  do  que  contra  a  execução  do 
Malagrida  nos  poderamos  porventura  levantar  contra  a  ni- 
mia  tolerância  de  Carvalho  para  com  o  tribunal  do  Santo 
Officio.  Para  quem  fe  propunha  emancipar  das  trevas  cle- 
ricaes  a  intelligencia  popular,  e  expungir  da  pátria  civilifa- 
ção  quanto  lhe  era  ainda  infefto  e  defhonrofo,  parece  que 
nada  podia  haver  mais  confentaneo  aos  feus  profpedos  de 
larga  reformação  do  que  o  fupprimir  inteiramente  a  odiofa 
magiftratura.  É  verdade  que  as  fogueiras  para  fempre  fe 
apagaram,  apenas  as  chammas  confumiram  o  defventurado 
Malagrida.  Mas  a  inquifição  perfeverava  ainda,  como  pe- 
renne  ameaça  ás  confciencias.  Ainda  em  1765  contemplava 

-S-í»-^ -í^ 

4»  e|j 


ÍÍÍ9 

32g 

Lifboa  um  pompofo  auto  de  fé,  em  que  faiam  penitenciadas 
pelToas  numerofas,  e  muitas  d'ellas  pertencentes  ao  eftado 
ecclefialfico.  Não  era  Sebaftião  de  Carvalho,  pelas  fuás  idéas 
adverfas  francamente  á  poteítade  clerical,  propenfo  a  fomen- 
tar e  favorecer  a  Inquifição.  No  preambulo  e  nos  artigos  do 
regimento  reformado  de  1774  tranfparecem  a  cada  paíTo  as 
reluiftancias  do  feu  cfpirito  contra  o  fevero  e  temerofo  tribu- 
nal. Não  era  porém  politico,  nem  exequível  o  empenhar  ao 
mefmo  tempo  as  forças  do  governo  fecular  n'uma  guerra 
travada  em  toda  a  linha  contra  a  influencia  e  jurifdicção  do 
facerdocio.  Tinha  na  vulgar  opinião  em  feu  favor  o  Santo 
Ofíicio  o  fer  o  mais  leguro  e  firme  antemurai  contra  as  diíTi- 
dencias  religiofas.  Convinha  ao  legiflador,  em  vez  de  o  abolir, 
convertel-o  n'uma  regia  inítituição,  que  nas  apparencias  de 
fervir  fomente  a  fé,  podeífe  eílar  a  foldo  do  império  temporal. 
N'elle  achava  fubfidio  valiofo  e  inftrumento  preítadio  na 
campanha  pertinaz  contra  a  Companhia.  Poderia  ainda  n'elle 
apoiar-fe,  quando  cumpriífe,  a  auftoridade  fecular.  Deu-lhe 
primeiro  os  foros  de  régio  tribunal,  conferindo-lhe  o  predica- 
mento de  majeftade.  Impondo-lhe  mais  tarde,  como  norma 
da  fua  jurifdicção,  um  regimento  mais  accommodado  á  luz 
do  feculo  e  aos  intereífes  do  poder  civil,  tranfmudou-lhe  a  es- 
fencia  primitiva  e  tornou  fácil  á  futura  revolução  o  apagar  da 
fronte  de  Portugal  eíte  ultimo  ferrete  da  fua  degradação  reli- 
giofa.  A  Inquifição,  refreada  nas  fuás  pretenfões  á  omnipo- 
tência, poderia  defde  então  fazer  apenas  o  mal,  que  a  regia 
poteítade  permittiíTe. 

Outros  empenhos  mais  inftantes  concitavam  a  energia 
do  miniftro  fempre  attento  aos  frequentes  rebates,  que  lhe 
dava  o  feu  inimigo  mais  poderofo  e  impenitente.  Durava 
com  a  cúria  o  rompimento:  o  papa  Clemente  XIII  aportado 
a  proteger  os  jefuitas  como  os  filhos  mais  diledos  da  tiara; 
Carvalho  inflexivel  em  perfeguil-os  como  os  mais  intradaveis 


-§-<)- •-<5>-^ 

33o 

inimigos  da  coroa  fecular.  O  pontífice,  em  parle  pela  fua 
obítinada  predilecção,  em  parte  pela  obfeffão  da  Companhia, 
refolvêra  defaggraval-a  contra  os  golpes  do  miniftro,  confir- 
mando folemnemente  o  inftituto  períeguido  e  infamado,  e 
proclamando  ao  orbe  catholico  no  mais  amplificado  panegy- 
rico  as  virtudes,  a  benemerência,  a  fantidade  e  os  ferviços 
da  fatnosa  íbciedade.  O  breve  Apojlolicum  pajcendi  niimiis, 
datado  de  Santa  Maria  Maior  aos  7  de  janeiro  de  1765,  era 
um  repto  lançado  do  Vaticano  ás  opiniões  e  aos  poderes  que 
tinham  condemnado  a  ordem  ambiciola.  Apefar  das  feveras 
precauções  contra  a  introducção  de  lettras  e  breves  pontifí- 
cios, os  jefiútas  haviam  efparzido  clandeftinamente  o  novo  es- 
cripto  em  toda  a  chriftandade.  Chegaram  copias  a  Portugal. 
Não  podia  Sebafiião  de  Carvalho  conter  a  indignação  e  a  re- 
prefalia  em  prefença  da  oufada  provocação.  O  pontificado 
queria  a  guerra,  acharia  pois  armado  o  antagonifta.  Aos  raios 
do  Vaticano  refponderiam  as  tremendas  comminações  da  re- 
gia majefiade.  O  procurador  da  coroa  aprefentou  uma  peti- 
ção de  recurfo,  na  qual  diffufamente  deduzia  as  antigas  ac- 
cufações  contra  os  jeíliitas,  roboradas  com  os  recentes  e  no^os 
tefi:emunhos  da  íua  audácia  incorrigível,  e  fiipplicava  ao  fo- 
berano  que  houveíTe  de  empenhar  a  audoridade  na  defeza 
da  fua  coroa,  na  confervação  do  Ibcego  publico,  decretando 
fer  nuUo  e  otTenfivo  o  novo  diploma  pontificio.  A  lei  de  5  de 
maio  de  1 765,  dando  plena  fatisfação  á  fi.ipplica  do  procurador 
da  coroa,  declarou  obrepticio  e  llibrepticio  o  breve  Apojlolicum 
pafcendi  múnus,  ordenou  que  todos  os  feus  exemplares  exis- 
tentes em  Portugal  foíTem  entregues  no  tribunal  da  Inconfi- 
dência e  houve  por  nuUos  todos  os  breves  e  outros  diplomas, 
que  emanados  da  chancellaria  papal  não  houveíTem  recebi- 
do o  régio  beneplácito.  Comminava  a  lei  as  penas  mais  feveras 
aos  que  oufaífem  contravir  ás  luas  prefcripções :  a  indigna- 
ção real,  — efpecie  de  excommunhão  maior  da  realeza  abfo- 

^%-h^ -k-%^ 


si)  Ai 

-<!>-• •-<j>-§- 

33i 

luta, —  a  confifcação  de  todos  os  bens  e  as  outras  formidáveis 
expiações,  com  que  na  legiflação  penal  d'aquelle  tempo  fe 
puniam  os  criminolbs  de  lefa-majeftadc.  Era  além  d'iíto  ne- 
ceíTario  precaver  que  pelas  artes  da  Cúria  e  da  Companhia, 
fe  não  ditiiindiffem  de  novo  pelo  reino  as  bulias  e  refcriptos 
procedentes  do  Vaticano.  A  lei  mandava  abrir  devaíTa  per- 
manente contra  os  que  infringiíTem  os  preceitos,  que  prohi- 
biam  a  minima  communicação  com  o  pontifice. 

Á  obftinada  contumácia,  com  que  Roma  e  os  jefuitas 
contendiam  por  manter  a  fua  auíloridade  e  influencia,  res- 
pondia inquebrantável  a  audácia  e  o  vigor  do  eíladiíla.  A 
Companhia  de  Jefus  era  então  como  as  ultimas  reliquias  de 
um  exercito  vencido,  mas  ainda  não  de  todo  relbluto  a  entre- 
gar-íe  á  difcrição  do  vencedor.  Expulla  de  Portugal,  comba- 
tida em  França  tenazmente  pelos  parlamentos,  léus  antigos 
e  implacáveis  adverfarios,  fufpeita  a  alguns  eítados,  em  ou- 
tros mal  foífrida,  em  todos  infamada,  buícára  intrincheirar-fe, 
como  em  refugio  derradeiro,  á  fombra  do  papado  na  forte 
cidadella  vaticana.  AíTediada  rijamente,  d'alli  irrompia  a  cada 
paflb,  como  em  defefperadas  e  fubitas  furtidas.  Saía  porém 
a  difputar-lhe  o  campo  e  a  picar-lhc  a  rcçaga  na  fugida  o  leu 
inexorável  antagonifta. 

No  mefmo  tempo,  em  que  os  jefuitas  arrancavam  das 
mãos  débeis  de  Clemente  XIII  o  breve  Apojfolicwn  pafcen- 
di,  como  o  titulo  folemne  da  fua  apotheofe,  um  fucceífo 
inopinado  conduzia  ás  mãos  do  governo  portuguez  alguns 
fecretos  documentos,  que  atteftavam  a  íntima  conftituição 
da  ordem  reprovada,  e  punham  novamente  de  manifeíto  o 
perigo  d'eíl;a  fingular  corporação  para  o  império  temporal 
em  toda  a  chriftandade.  Navegava  do  Peru  para  a  Hefpanha 
um  galeão  de  nome  Hcnnione.  Rendido  nas  cofias  de  Portu- 
gal pela  fragata  Aãipe,  da  marinha  de  guerra  britannica, 
lançaram  os  navegantes  ao  mar  um  cofre,  onde  vinham  en- 


.* . ■ -<^ 

332 

cerrados  papeis  e  correfpondencias.  Arrojaram-n'o  as  ondas 
e  as  correntes  ás  praias  do  Algarve.  Vem  a  arca  myfteriofa  á 
prefença  do  monarcha  e  dos  miniftros.  E  aberta  com  uma 
efpecie  de  theatral  folcmnidade,  levantando-fe  de  todo  o  feu 
conteúdo  um  auto  publico.  Acham-fe  cartas  e  defpachos  do 
provincial  dos  jeluitas  no  Peru  para  o  prepofito  geral  de  toda 
a  ordem,  o  famofo  padre  Lourenço  Ricci.  Deparam-fe  entre 
aquelles  documentos  algumas  profiíTões  do  quarto  voto,  pelas 
quaes  os  confcriptos  n'aquella  temerofa  milicia  efpiritual  fe 
obrigavam  á  mais  cega  e  inteira  obediência  ao  feu  geral,  e 
quando  aíTumptos  a  alguma  dignidade  prelaticia,  a  executar 
pontualmente  no  governo  e  minifterio  paftoral  os  confelhos 
ou  mandatos  do  leu  fupremo  chefe.  Promulga  então  Carva- 
lho a  carta  de  lei  de  4  de  maio  de  1765  e  o  alvará  de  3o  de 
abril  do  mefmo  anno,  denunciando  ao  mundo  os  fecretos  in- 
ftrumentos,  em  que  a  impenitente  Companhia  firmava  a  fua 
dominação  e  o  feu  poder. 

Não  repoufava  o  enérgico  miniftro  na  empreza  de  extir- 
par do  folo  portuguez  quanto  n'elle  haviam  femeado  os  je- 
fuitas  para  extender  e  folidar  o  feu  dominio.  Com  o  impulfo 
vigorofo  do  feu  braço  truncara  a  arvore  robufta.  Era  neces- 
fario  diradical-a  do  torrão  e  arrancar-lhe  as  ultimas  raizes, 
defbravando  a  gleba  para  culturas  mais  profícuas.  A  ordem 
invafora  não  limitava  apenas  aos  feus  profeífos  o  influxo 
e  a  força,  de  que  difpunha.  Cumpria  que  além  dos  feus  re- 
ligiofos,  coadjutores  e  eífudantes,  fora  do  recinto  das  fuás 
cafas  e  collegios,  noviciados  e  miífões,  a  Companhia  tiveíTe 
diífeminadas  nas  terras  de  Portugal  e  feus  domínios  as  co- 
hortes  fubfidiarias,  mais  temíveis  por  incógnitas,  menos  fus- 
peitas  por  defpidas  de  roupeta  e  apparencia  jefuitica.  Eram 
os  feculares  e  leigos  aíTociados  ao  perigofiíTimo  inífituto  pes- 
foas  de  todos  os  eítados  e  condições,  vinculando  eftreita- 
mente  a  fociedade  civil  á  regra  de  Santo  Ignacio.  As  cartas 


eis 


333 

de  confraternidade,  expedidas  pelo  prepofito  geral  da  Com- 
panhia, eram  como  que  os  titulos  de  naturalifação  na  vaíta 
monarchia  theocratica.  A  Cúria,  proporcionando  a  lua  audá- 
cia á  violência  da  oppofição  contra  a  ordem  reprovada, 
confirmara  pelo  breve  Aminarum  falnti  de  i  o  de  feptembro 
de  1 766  os  privilégios  e  indultos  efpirituaes,  em  que  ficavam 
participantes  as  peíToas  d'efte  modo  filiadas  como  externos 
auxiliares  da  Companhia.  Dos  jefuitas  das  províncias  portu- 
guezas  o  maior  numero  haviam  fido  expulfos  e  banidos, 
outros  Jaziam  nos  ergafi:ulos,  alguns  porém  tinham  permane- 
cido em  Portugal,  como  quem  ofi:enfivamente  renunciara  aos 
feus  antigos  votos  e  viviam  apenas  como  egreíTos  tolerados 
fegundo  a  lei  de  3  de  feptembro  de  lySg.  Mas  fe  o  apparente 
corpo  da  Companhia  já  não  era  para  temer,  ainda  acafo 
fijbfiftiam  vicejando  occultamente  os  rebentos  do  tronco  prin- 
cipal. A  nova  provocação  dos  jefi-iitas,  que  haviam  extor- 
quido ás  mãos  trémulas  do  velho  Clemente  XIII  o  breve 
Aniinaritm  faliiti,  era  força  refpondeífem  novos  raios  da  ul- 
trajada potencia  temporal. 

A  lei  e  edido  perpetuo  de  28  de  agofto  de  1767  foi  o  ul- 
timo venablo  defpedido  ao  peito  da  Companhia  em  Portu- 
gal pela  mão  vigorofa  de  Carvalho.  Prohibiu  o  fevero  legis- 
lador que  nenhum  portuguez  fecular  ou  ecclefiaífico  podeífe 
foUicitar  ou  receber  do  geral  dos  jefuitas  ou  dos  feus  delega- 
dos, cartas  de  confraternidade,  aífociação  ou  communicação 
de  privilegio,  fob  pena  de  incorrer  em  crime  de  lefa-majeftade. 
A  todas  as  peífoas,  que  em  fuás  mãos  tivelTem  taes  diplo- 
mas, ordenou  que  no  termo  peremptório  de  dez  dias,  fe  vi- 
vcífem  em  Lifboa,  os  foífem  depofitar  no  juizo  da  Inconfi- 
dência. Nas  províncias  e  nas  terras  ultramarinas  aíTignalou 
prafos  mais  compridos  para  que  eífes  papeis  reputados  fub- 
verfivos  fe  entregaífem  ás  juftiças  territoriaes.  Prefcreveu 
que  todos  os  indivíduos  áquella  data  encorporados  ou  pro- 


ei» 


-<i>-§- 

334 

feíTos  na  Companhia  ou  aíTociados  em  alguma  confraria  es- 
tabelecida fob  os  aufpicios  da  ordem  illegal  e  reprovada,  o 
vieflem  confelTar  aos  magiltrados.  Declarou  todos  os  mem- 
bros públicos  e  fecretos  da  Companhia  por  inimigos  iiicorri- 
gipeis  e  coininiiiis  de  toda  a  potencia  temporal,  da  tranqiiillida- 
de  e  da  }>ida  dos  príncipes  foberanos  e  do  Jocego  publico  dos 
reinos  e  e/fados.  Ordenou  feveramente  que  todos  os  egreíTos 
jefuitas  lailTem  defde  logo  de  Portugal  e  feus  domínios,  conti- 
nuando todavia  a  receber  as  côngruas,  que  a  lei  eíl:atuira, 
e  exceptuou  d'eí1:a  derradeira  profcripção  unicamente  os  que 
obtiveíTem  efpecial  e  régio  beneplácito.  Mas  ainda  a  eftes, 
reputados  por  mais  inoífenfivos,  a  lei  lhes  tornou  defezo  o  en- 
íino,  a  catechefe,  o  púlpito,  o  confeíTionario.  Seriam  apenas 
tolerados  no  feio  da  Ibciedade  portugueza,  mas  como  lepro- 
fos  efpirituaes,  contra  quem  o  poder  civil  excogitava  as  mais 
duras  precauções,  mantendo-os  fegregados  de  todo  o  conví- 
vio intelledual.  Seriam  obrigados  a  preftar  juramento  de  fide- 
lidade, a  abjurar  toda  a  communicação  e  frequência  com 
os  membros  da  Companhia  e  o  feu  geral,  a  prometter  que 
nunca  mais  dariam  favor  e  auxilio  á  ordem  réproba.  Seriam 
"  levados  egualmente  a  execrar  e  deteílar  as  reífricções  men- 
taes  e  as  fubtilezas  ardilolas  inventadas  pelos  theologos  e 
moraliftas  da  Companhia,  com  o  intento  de  illudir  e  profanar 
a  religião  do  juramento.  Haveriam  também  de  abominar  a 
fujeição  e  obediência  cega  e  material  ao  chefe  da  Companhia. 
Os  antigos  jefuitas,  d'efl:a  maneira  como  que  defnatural lia- 
dos do  feu  grémio,  feriam  obrigados  a  viver  nas  terras,  onde 
o  governo  lhes  aífignaífe  o  domicilio.  D'eítas  meticulofas, 
mas  neceíTarias  providencias,  apenas  a  lei  exceptuava  os  je- 
fuitas que,  tendo  profeífado  n'outras  ordens  regulares,  ha- 
viam folcmnementc  renunciado  á  primeira  profiífão.  A  Com- 
panhia, fe  bem  extinda  e  exterminada  de  todos  os  territórios 
portuguezes,  como  hera  vivaz  e  perfiftente,  continuava  a  en- 

-i-i-^ -<í>-i- 


-* •-<>-§► 

335 

lear-fe  no  folio  pontifício,  e  os  olhos  do  paftor  univerlal  in- 
clinavam-fe  para  ella  cada  vez  mais  laftimados  e  compaffi- 
vos  de  fuás  provações  e  calamidades.  Clemente  XIII  parecia 
vincular  á  fortuna  da  Companhia  os  próprios  deftinos  da 
egreja  c  do  papado.  O  exercito  vencido  e  deítroçado  em 
Portugal,  acantonava  em  fom  de  guerra  inexorável  em  to- 
dos os  mais  paizes  da  chriftandade.  Não  faltavam  n'efí:e  reino 
os  valedores  e  os  amigos,  os  fanáticos  e  os  confortes  na  fua 
vidoria  ou  adverfidade.  A  lei  prohibia  fob  penas  feveriíli- 
mas  que  de  futuro  os  jefuitas,  ou  juntos  ou  feparados,  fos- 
fem  nunca  admittidos  em  Portugal.  Egualmente  confidcrava 
como  perturbadores  do  focego  publico  e  fujeitos  ás  p»enas 
correfpondentes  os  que  oufaífem  aprefentar  interceífões  e 
requerimentos  para  que  jefuita  algum  foífe  de  novo  recebido 
e  tolerado.  Comminava  caftigos  aos  magiftrados,  que  taes 
requerimentos  acceitaífem.  A  lei  declarava  também  incur- 
fos  em  crime  de  lefa-majeftade  os  que  introduzilTem  jefui- 
tas em  Portugal,  e  os  que  fabendo  que  exiítiam  n'eíle  reino 
os  não  denunciaífem  no  termo  peremptório  de  vinte  e  qua- 
tro horas.  E  efta  difpofição  não  fomente  fe  referia  aos  je- 
fuitas de  roupeta,  aos  que  ainda  pertenceflem  á  Companhia, 
fenão  também  aos  c]ue  intentaífem  volver  a  Portugal,  dan- 
do-fe  por  egreífos  ou  faidos  do  feu  grémio.  Com  penas  as- 
fim  mefmo  feveriíTmias  ameaça  o  legiflacfor  os  jefuitas  que 
entrados  fraudulofamente,  em  território  portuguez  foífem 
achados.  Com  egual  rigor  perfeguia  a  lei  os  affociados,  que 
no  prafo  definido  não  fizeífem  perante  os  magirtrados  as 
fuás  declarações.  Ordenava  alem  d'iíro  o  edido  régio,  que 
a  dcvalfa  instituída  para  conhecer  das  infracções  permane- 
celfe  aberta  constantemente.  Bem  fabia  o  legillador  que  o 
breve  Animanim  faliiti  íòva  expedido  com  plena  fatisfação  e 
complacência  do  pontífice  romano.  Mas  o  decoro  politico 
ordenava  que  o  rei  fideliffimo,  um  dos  filhos  mimofos  da  fé 


eis 


336 

romana,  não  fizeffe  ao  pae  commum  a  affronta  de  o  haver 
publicamente  por  fautor  apaixonado  e  facciofo  inftigador 
dos  jefuitas.  A  lei,  recorrendo  a  uma  ficção  de  fi  mefina 
tranfparente,  declarava  o  breve  por  obrepticio,  fubrepticio  e 
nullo,  e  prefcrevia  fob  penas  temerofas,  que  folTem  entre- 
gues em  breve  prafo  quantos  exemplares  d'elle  exiftiíTem 
em  Portugal,  de  maneira  que  ninguém  os  podeíTe  confervar 
em  leu  poder. 

Por  aquelle  tempo  fe  imprimia  e  divulgava  largamente 
a  Dediicção  chronologica  e  critica,  a  memorável  requifitoria, 
copiofa  de  erudição  lacra  e  profana,  onde  appareciam  am- 
plamente hiftoriados  os  erros  e  os  delidos  da  Companhia, 
e  a  fua  influencia  funeítiflima  em  todas  as  relações  fociaes  e 
religiofas,  politicas  e  intelleduaes  de  Portugal.  O  livro  trazia 
eftampado  á  fua  frente  o  nome  do  celebrado  procurador  da 
coroa,  Jofé  de  Seabra  da  Silva.  Mas  apefar  da  paternidade 
putativa,  muitos  fuppozeram  n'aquelle  tempo,  e  ainda  outros 
o  mantêem  em  noíTos  dias,  que  a  autoria  verdadeira  perten- 
cera ao  miniftro  omnipotente.  Se  o  famofo  jurifconfulto,  ao 
principio  alumno  e  lifonjeiro  de  Carvalho,  e  mais  tarde  fua 
viftima,  não  foi  o  efcriptor  do  livro  celebrado,  não  é  crivei 
que  o  valido  e  miniftro  de  D.  Jofé,  da  multidão  immenfa  de 
negócios,  em  que  defpendia  o  tempo  e  os  cuidados,  ainda  po- 
deíTe aproveitar  tão  largos  ócios,  quaes  exigia  certamente  a 
empreza  de  efcrever  tão  dilatada  compofição,  e  compulfar 
ás  centenas  os  livros  e  as  memorias  que  citava. 

Pouco  depois  de  promulgada  a  lei,  que  refpondia  trium- 
phalmente  ao  breve  Aniinarwn  Jaliiti,  era  expedida  a  cada 
um  dos  prelados  portuguezes  uma  copia  d'aquelle  documen- 
to, levando  por  commentario  e  explanação  um  exemplar  da 
Dcdiicção  chrojioloffica  e  da  petição  de  recurfo,  em  que  as- 
fentára  a  folemne  condemnação  das  lettras  pontificias.  Não 
era,  de  feito,  unicamente  para  os  dependentes  feculares  da 


.-<>-i- 

337 

realeza,  que  era  forçofa  a  obediência  ao  imperante.  Quando 
Sebaftião  de  Carvalho  refpondia  ás  bulias  do  Vaticano  com 
os  diplomas  da  fua  chancellaria,  os  primeiros  a  accurvarcm- 
le  reverentes  e  fubmiíTos  ás  decifóes  e  aos  preceitos  do  im- 
pério fecular,  haviam  de  fer  o  clero  e  principalmente  a  or- 
dem epifcopal.  Quafi  todos  os  prelados,  uns  por  adulação,  os 
outros  por  temor,  facilmente  cooperavam  nas  reprefalias  do 
miniftro  contra  as  invafões  da  fé  romana.  Um  ou  outro  le 
moftrava,  porém,  menos  lubmiflb  ao  jugo  do  governo  tem- 
poral. Mas  ao  centro  da  própria  diocefe  o  iam  procurar  e 
corrigir  as  duras  exprobrações  do  di6tador,  fe  o  bifpo,  ainda 
mal  aclimatado  á  fua  nova  e  extranha  fervidão,  intentava 
extender  a  báculo  alem  das  fuás  raias  efpirituaes.  De  to- 
dos os  prelados,  o  mais  rebelde  á  fupremacia  da  regia  au- 
ítoridade  era  o  bifpo  conimbricenfe,  D.  Miguel  da  Annuncia- 
ção;  efpirito  eítreito,  curtido  e  educado  em  todas  as  velhas 
abufões  ultramontanas,  e  em  todas  as  antigas  exaggerações  do 
fanatifmo;  homem  de  bons  coftumes  e  vida  auftera;  de  fcien- 
cia  efcaífa  e  ruim;  de  animo  altivo  e  inflexível  ao  que  fup- 
punha  derogatorio  das  fuás  faculdades  prelaticias.  Tinham 
por  ufança  mais  antiga  do  que  piedofa  os  povos  de  Abiul, 
na  diocefe  de  Coimbra,  folver  no  primeiro  domingo  de  agofto 
com  folemne  feftividade  na  egreja  parochial  um  voto  a  NoíTa 
Senhora  das  Neves,  aífociando,  como  fe  cofluma  em  Portu- 
gal, á  celebração  religiofa  a  mundana  diverfão  dos  touros  e 
das  cavalhadas.  Efcandalifava-fe  o  bifpo,  com  razão,  de  que 
aos  oíficios  da  piedade  chriflan  mefclaífem  povos  rudes  fo- 
bejas  e  oíTenfivas  carnalidades,  mais  de  pagãos  que  de  gentes 
alifladas  nas  myfticas  bandeira  de  Jefu-Chrifto  Prohibiu  as 
cavalhadas  e  os  touros.  O  povo,  que  fegundo  o  teor  dos  feus 
maiores  entendia  ler  imperfeito  o  culto  de  Noífa  Senhora, 
fe  aos  ritos  e  ao  fermão  dentro  da  egreja,  fe  não  feguiam  cá 
fora  no  adro  e  no  terreiro  as  diverfões  eftrepitofas,  deu-fe 


eií 


^ .hJ)-!- 

338 

por  mal  fenãdo  com  a  auítera  prohibição.  Redarguiu,  mur- 
murou, refiftiu,  quafi  entrou  em  aberta  infurreição.  Ordena 
o  bifpo  então  que  o  parodio  não  dè  a  egreja  aos  ancioibs 
fefteiros  de  Abiul. 

Supplicam,  inflam,  ameaçam,  e  o  bifpo  Icmpre  inque- 
brantável. Aggravam-fe  c  queixam-fe  ao  governo  da  força  e 
violência,  que  o  prelado  lhes  fazia.  Efcreve  então  Carvalho 
ao  bifpo  em  carta  regia  afperrimas  cenfuras.  Dizia  efle  notá- 
vel documento  que  a  refolução  epifcopal  fora  tomada  «com 
grande  defconfolação  do  povo  e  ainda  efcandalo  da  pieda*de 
chriftan  por  le  lhe  difficultar  a  egreja,  em  que  confiíl^e  o  prin- 
cipal objedo  d'aquella  feita » .  Accrefcentava  que  « as  feitas,  que 
fe  celebram  por  voto  do  povo  e  fe  prefcrevem  e  regulam  pelas 
camarás  do  reino,  não  devem  fujeição  aos  prelados  ordinários 
para  as  poderem  impedir,  e  muito  menos  com  o  pretexto, 
que  o  bifpo  declarou,  pois  fe  não  poderia  perfuadir  que  a 
fefta  celebrada  na  egreja  de  manhã  fe  houveífe  de  profanar 
com  os  touros  corridos  pela  tarde  em  praça  feparada,  nem  fe 
podia  prohibir  aos  leigos  feculares  o  que  os  fummos  pontífi- 
ces permittiam  aos  próprios  ecclefiaíticos» .  Concluía  a  epiflola 
fevera  com  efta  formal  intimação:  «Não  podendo  tolerar-fe 
um  exemplo  d'efta  qualidade,  fou  fervido  declarar-vos  que 
tão  diífonante  é  o  impedir  a  feita.  .  .  como  exceífo  e  abufo 
na  voífa  jurfdicção  e  minifterio  o  prohibirdes  direita  ou  indi- 
rectamente os  touros .  .  .  e  que  de  uma  e  outra  coufa  vos  de- 
veis abiter .  .  .  fem  vos  embaraçar  no  que  vos  não  pertence ' » . 

D'eita  vez  feria  o  bifpo  o  defenfor  da  boa  caufa,  fe  razões 
de  zelo  pharifaico  e  de  exaggerado  fanatifmo  o  não  aconfe- 
Iharam  a  combater  as  profanidades  e  folias  como  neceíTa- 
rio  complemento  do  culto  religiofo.  Mas  ao  prelado  não  per- 


'  Carta  regia  ms.  na  CoUecção  de  le^ijlaçáo  de  Trigofo,  anno  de  1767,  no 
gabinete  de  Manufcriptos  da  Academia  das  Sciencií^s. 


33q 

tencia  realmente  o  reprimir  de  lua  própria  auítoridade  o  que 
o  povo  durante  feculos  aprendera  no  exemplo  e  nos  coftu- 
mes  das  claíTes  elevadas.  A  punição  ao  prelado,  que  ufurpá- 
ra  as  attrihuições  adminilírativas,  feguiu  de  perto  a  audácia 
da  invafão. 

A  repreíTáo  contra  os  abulbs  do  poder  ecclefiaftico  e  contra 
a  fua  intervenção  nos  alTumptos  puramente  feculares  era  a  ha- 
bitual preoccupação  do  oufado  reformador.  Nas  copiolas  in- 
ítracções  expedidas  a  2  de  agoíto  de  1766  a  D.  Antão  de 
Almada,  que  ia  por  governador  e  capitão  general  ás  ilhas 
dos  Açores,  entre  varias  providencias  para  melhorar  a  con- 
dição moral  e  económica  do  archipelago,  não  fe  elquece  o 
miniftro  de  encommendar-lhe  com  inftancias  repetidas  que 
bufque  enfrear  e  repellir  as  incurfões  da  jurifdicção  facer- 
dotaj  contra  a  foberania  e  independência  do  império,  exe- 
cutando n'aquelles  territórios  quanto  as  leis  acautelavam  e 
prefcreviam  para  conter  as  mundanas  ambições  do  eftado 
clerical. 

O  clero,  que  n'aquelle  feculo  já  não  podia  brandir  o  gla- 
dio temporal,  para  impor  pela  força  a  fua  vontade  e  accurvar 
aos  feus  intereíTes  terrenaes  os  que  oufaíTem  contradizêl-os, 
pedia  á  egreja  as  armas  efpirituaes,  com  que  aflbberbar  ao 
feu  dominio  a  própria  majeftade  e  os  feus  reprefentantes  e 
mandatários.  As  cenfuras  e  excommunhões  tinham  fido  nas 
primeiras  edades  do  chriftianifmo  as  penas  decretadas  con- 
tra os  delidos  meramente  ecclefiafticos.  Quando  porém  du- 
rante a  edade  media,  a  egreja  fe  confubftanciára  intimamente 
com  o  eftado,  e  o  poder  das  chaves  trefpaífára  oufadamente 
as  fuás  fronteiras  naturaes,  os  pontífices  romanos,  confundin- 
do aftutamente  com  as  mais  peccaminofas  abominações  a 
jufta  defeza  dos  poderes  temporaes  contra  a  mundana  fupre- 
macia  do  papado,  c  capitulando  de  peccado  toda  a  negação 
de  obediência  aos  preceitos  do  paftor  univeríál,  como  fuze- 


si) 


340 

rano  de  todas  as  monarchias,  tinham  abufado  longamente 
da  excommunhão  e  do  interdifto  para  lubmetter  e  humilhar 
os  foberanos  e  os  povos  infurreítos  contra  a  omnipotência  pon- 
tifical. O  clero  feguindo  o  exemplo,  que  defde  o  folio  de 
S.  Pedro  lhe  dera  por  tantos  feculos  o  diftador  efpiritual  do 
Vaticano,  acoftumára-fe  a  ver  na  excommunhão  o  terrível 
inílrumento  das  fuás  ambiciofas  afpirações. 

Um  cónego  da  Guarda,  contra  quem  o  corregedor  da 
comarca  de  Pinhel  havia  dado  fentença  n'um  litigio,  tinha 
ameaçado  com  eíta  ultima  razão  do  império  facerdotal  o  ma- 
gistrado. Uma  provifão  expedida  em  nome  do  rei  caftiga  fe- 
veramente  nas  phrafes  da  mais  alta  indignação  o  arrogante 
prebendado.  Para  defabufar,  dizia  eíte  diploma,  os  povos  en- 
ganados com  lemelhantes  apparencias  de  cenfuras,  o  poder 
temporal  declarava  todos  os  documentos  publicados  n'efte 
pleito  pelo  juiz  ecclefiaftico  por  fimulados,  capciofos,  nullos, 
irritos  e  vãos,  e  ordenava  que  ninguém  lhes  deffe  credito, 
fob  pena  de  lhe  ferem  confifcados  os  feus  bens.  No  decreto 
de  10  de  março  de  1764  o  rei  eftatuia  ferem  exclufivamente 
refervados  ao  feu  conhecimento  e  decifão  os  cafos  de  excom- 
munhão pronunciada  contra  os  miniftros,  juftiças  e  tribu- 
naes,  ainda  mefmo  quando  as  excommunhões  e  declarató- 
rias foíTem  procedentes  do  Vaticano. 

Todas  as  extranhas  pretenfões  da  corte  de  Roma  e  do 
poder  facerdotal  a  dirigir  e  dominar  foberanamente  o  gover- 
no temporal  e  a  vida  civil  das  fociedades,  andavam  compen- 
diadas n'uni  bulia  celebrada,  que  era  por  aífim  dizer  a  Ma- 
gna Carta  das  franquezas  e  liberdades  clericaes  na  lua  lufta 
immemorial  com  o  império.  Era  a  bulia  a  que  tem  nome  //; 
coena  Domini,  ou  a  bulia  da  Ceia,  a  qual,  defde  os  tempos  de 
Pio  V,  em  Roma  fe  publicava  annualmcnte  na  quinta  feira 
maior  com  grande  e  f)  mbolica  Iblemnidade.  Não  podia  con- 
ceber-fe  um  diploma  pontifício,  onde  em  fummula  e  compcn- 


eis 


34- 

dio  fe  oftentaíTem  com  tamanha  crueza  e  arrogância  as  dou- 
trinas mais  adverfas  aos  direitos  do  poder  civil.  Todos  os 
annos  no  dia  mais  folemne  da  chriftandade  Roma,  como  que 
fe  contraftalTe  mundanamente  na  lua  majeftade  e  grandeza 
imperatoria  com  a  humildade  e  manfidão  do  Redemptor  pre- 
gado n'um  madeiro,  Roma,  não  a  Roma  pagã  e  triumpha- 
dora,  fenão  a  Roma  chriftan  e  efpiritual,  cingindo  o  triregno 
refulgente,  infjgnia  da  fua  univerfal  dominação,  meneando 
os  dois  gládios  de  Gregório  VII  e  veftindo  a  purpura  dos  Ce- 
fares,  pela  bulia  da  Ceia  annunciava  oufadamente  ao  orbe  ca- 
tholico  a  fujeição  de  todos  os  monarchas  e  governos  ao  feu 
difcricionario  poderio.  Os  potentados  mais  catholicos  e  ad- 
didos  nas  coufas  religiofas  á  fanta  fede,  haviam  fempre  vilfo 
de  mau  grado  aquella  audaz  proclamação  da  monarchia  pon- 
tifical. Era  tempo  de  condemnar  egualmente  em  Portugal  a 
bulia  attentatoria  do  império  fecular.   Para  diífundir  e  ro- 
borar   no   catholicifmo   as   cxtranhas   doutrinas   profeífadas 
n'aquelle  memorável  diploma  pontificio,  artificiofamente  ha- 
via a  cúria  inventado  os  índices  expurgatorios,  efpecie  de  pau- 
ta e  aranzel  da  alfandega  efpiritual,  onde  vinham  declaradas 
as  idéas  e  os  efcriptos,  que  podiam  ter  entrada  e  os  que  fe 
reputavam  contrabando  no  reítrido  mercado  ultramontano. 
A  Roma  antiga  mandara  outr'ora  a  extender  e  firmar 
pelo  mundo  o  feu  dominio  os  feus  proconfules  e  pretores,  as 
fuás  legiões  e  as  fuás  cohortes.  A  Roma  pontifical  repartia 
pela  terra,  para  fegurar  a  fua  conquifta,  a  inquifição  e  os  je- 
fuitas,  de  ponto  em  branco  armados  e  apercebidos  com  a 
cenfura  ineludavel  e  fuprema  fobre  as  manifeftações  da  in- 
telligencia.  Não  baftava  fcguir  pontualmente  a  letra  do  Evan- 
gelho, como  a  egreja  a  definira  quanto  ao  dogma  e  á  moral. 
Para  fer  havido  por  catholico  fem  macula  era  forçofo  admittir 
e  confeíTar  que  Roma  era  não  fomente  a  arbitra  infallivel  de 
toda  a  fé,  fenão  também  a  fonte  da  potcftade  temporal,  e  a 


eM 


c|8 


342 

guia  e  o  fanal  dos  foberanos  e  dos  povos  no  regimen  das 
humanas  fociedades.  Todo  o  livro,  que  não  profeíTaffe  axio- 
mática a  infallibilidade  pontifícia,  e  não  defendeffe  as  mais 
abftrulas  pretenfões  ecclefiafticas  ao  governo  fecular,  era  nos 
Índices  equiparado  ás  obras  dos  herefiarchas,  dogmatiftas  e 
apoílatas  de  maior  execração  entre  os  catholicos.  A  bulia  da 
Ceia  era  por  aíllm  dizer  o  evangelho  das  mundanas  ambições 
pontificaes.  Os  Índices,  e  a  cenfura  inquifitorial  eram  os  po- 
derolbs  inftrumentos  confagrados  a  reprimir  a  duvida  ou  a 
negação  contra  a  foberania  univerfai  do  Vaticano,  e  afua  abu- 
fiva  intervenção  nos  intereffes  puramente  temporaes.  A  carta 
de  lei  de  2  de  abril  de  1768  é  deftinada  a  condemnar  ao  mes- 
mo paíTo  a  bulia  da  Ceia  e  os  Índices  expurgatorios.  O  procu- 
rador da  coroa  na  feptima  demonftração  da  fegunda  parte  da 
Dediicção  chronologica  denunciara  n'uma  petição  de  recurío 
aquelles  dois  funeftos  documentos  e  do  rei  Ibllicitára  o  defag- 
gravo  contra  as  quebras  da  lua  audoridade.  Era  urgente 
deferir  ao  que  em  nome  das  regalias  majeftatícas  havia  fup- 
plicado  o  filcal  da  coroa.  Era  forçofo,  dizia  o  legillador,  fus- 
tentar  as  juftas  immunidades  e  a  religiofa  veneração  devida 
á  egreja,  mas  urgia  egualmente  precaver  que  os  abulbs  da  ju- 
rifdicção  ecclefiaftica,  caufadores  de  públicos  elcandalos,  não 
pozeffem  em  rifco  os  próprios  direitos  do  facerdocio.  Era  não 
menos  necelTario  manter  ao  rei  e  fenhor  foberano,  que  na 
terra  não  tinha  fuperior,  a  livre  independência,  fem  a  qual  as 
fociedades  civis,  e  até  mefmo  o  eflado  ecclefiaftico  não  pode- 
riam fubfiftir.  A  bulia,  contra  a  qual  haviam  com  vehemencia 
reclamado  os  foberanos  mais  pios  e  orthodoxos,  bufcára  es- 
tatuir fobre  puras  temporalidades,  de  todo  o  ponto  alheias  á 
cenfura  e  infpecção  do  facerdocio.  Decretava  o  legiflador 
que  a  introducção  da  bulia  reprovada  era  dolofa  e  clandeflina. 
Ordenava  que  todos  os  feus  exemplares,  e  os  Índices  expur- 
gatorios, ficaífem  para  fempre  fupprimidos  como  obrepticios 

-i-O- — *^<^ 


343 

e  fubrepticios,  e  de  nenhum  \igor.  Prohibia  que  ninguém 
podeíTe  imprimir,  vender,  publicar,  diftribuir  ou  confervar 
em  feu  poder  a  bulia  da  Ceia,  os  Índices  expurgatorios,  ou 
quaefquer  breves  pontifícios,  em  que  feja  defezo  e  condem- 
nado  qualquer  livro.  Comminava  como  penas  aos  infraítores 
as  dos  crimes  de  lefa-majellade. 

Os  poderes,  quando  chegados  á  ília  derradeira  decadên- 
cia, parece  que  redobram  de  imprudente  e  inútil  energia 
para  manter  e  dilatar  a  fua  dominação.  Eftava  então  a  Eu- 
ropa e  a  chriftandade  n'um  dos  pontos  mais  notáveis  e  peri- 
gofos  da  fua  carreira,  como  n'um  trópico  tremendo,  onde 
não  era  fácil  antever  a  que  oufadas  innovações  fe  haveria 
de  arrojar  a  humanidade.  Era  a  epocha  da  philolophia  de- 
molidora, o  tempo  em  que  era  elegante  a  incredulidade,  a  qua- 
dra que  de  breves  annos  precedia  a  Revolução  de  1 789,  a  era 
em  que  os  efpiritos  defcrendo  ou  duvidando,  infeftos  ao  pas- 
fado,  incertos  do  porvir,  eííavam  largamente  accumulando  os 
combuftiveis,  em  que  havia  de  prender  e  flammear  a  grande 
conflagração.  A  fociedade  civil  bufcava  claramente  delatar-fe 
dos  vinculos  herdados,  já  tão  impaciente  da  oppreíTão  gover- 
nativa, como  da  tutela  ecclefiaftica  nas  relações  e  intereíTes 
mundanaes.  O  pontificado,  como  força  politica,  decaia  mais 
e  mais  no  conceito  univerfal.  Principiava  eíte  encadeamento 
de  fucceíTos,  que  haveriam  fatalmente  de  levar  defde  a  fu- 
jeição  de  Pio  VI  á  republica  franceza  até  á  perda  irrepa- 
rável do  eflado  temporal  nas  mãos  nervofas,  mas  invalidas 
de  Pio  IX.  Pois  apefar  das  circumítancias  adverfas  ás  pre- 
tenções  ambiciofas  do  papado,  ou  antes  por  feu  eífeito  ne- 
ceífario,  empenhava  a  fanta  fé  os  feus  esforços  por  moftrar 
na  apparencia  a  força,  que  não  tinha.  Como  os  antigos  par- 
thos,  dando  as  cofias  ás  legiões  romanas,  e  defpedindo  na 
fugida  os  feus  dardos  mais  certeiros,  o  poder  pontifical  quafi 
vencido  bufcava  no  carca/  as  mais  agudas  frechas  efpiri- 


344 

tuaes,  e  as  ia  defpejando  fem  repoufo  contra  os  governos  já 
rebeldes  ás  fuás  intimações.  Havia  o  duque  de  Parma,  in- 
fante de  Hefpanlia,  como  foberano  em  feus  eftados,  promul- 
gado alguns  edidos,  para  cohibir  os  abufos  clericaes.  Legis- 
lara em  aífumptos  do  feu  foro  e  competência,  como  quem 
reprefentava  o  poder  legiflativo  e  a  majeftade  civil  e  popular. 
Mas  as  leis  eram  pelo  clero  julgadas  oíTenfivas  das  fuás 
immunidades  e  franquezas  e  da  jurifdicção  ecclefiaftica,  defde 
largos  annos  invafora  dos  foros  temporaes  O  papa  Clemente 
XIII,  ainda  não  canfado  na  lufla  pela  exiflencia,  faíu  logo 
com  as  lettras  apoftolicas  de  1768,  a  condemnar  o  que  re- 
putava tyrannia  e  facrilegio  do  imperante.  O  diploma  pon- 
tifício condemnava  os  edidos,  e  os  abolia,  caífava  e  havia 
como  irritos  e  nullos.  O  raio  defpedido  contra  o  duque  de 
Parma  e  Placencia  feriu  no  intimo  do  feu  orgulho  majeflatico 
os  foberanos  da  chriftandade,  principalmente  os  da  cafa  de 
Bourbon,  em  cujas  faces  eflrugira  o  golpe  defcarregado  n'um 
príncipe  d'aquella  foberba  dynaítia.  Os  reis  de  França  e  de 
Hefpanha  defde  logo  fe  concertaram  no  desforço,  e  moítra- 
ram  ao  pontifice,  que  fe  como  filhos  piedofos  da  egreja  o 
veneravam  por  herdeiro  de  S.  Pedro,  por  dominador  fem 
armas,  nem  exércitos,  como  reis  o  não  temiam.  Emquanto 
Luiz  XV  e  Carlos  1 1 1  exigem  imperiofamente  do  pontifice  a 
revogação  do  injuriofo  monitorio  contra  o  infante  duque  de 
Parma,  emquanto  Clemente  XIII  incitado  pelo  cardeal Tor- 
riggiani  e  pela  facção  violenta  dos  lelantes,  refifte  impenitente 
ás  intimações  da  cafa  de  Bourbon,  emquanto  as  tropas  do 
rei  chriftianiffimo  fe  apoderam  de  Avinhão,  e  as  de  Nápoles 
occupam  os  territórios  pontifícios  de  Benavento  e  Ponte- 
Corvo,  não  eftava  Sebaftião  de  Carvalho  aíTiftindo  a  efta 
pendência  como  fimples  efpedador.  Como  zelofo,  e  quafi 
intolerante  adverfario  do  poder  ecclefiaftico,  a  fua  indigna- 
ção fubia  á  nota  mais  aguda.  Fora  elle  quem  principiara 


«-V^ 

efta  nova  e  inefperada  porfia  do  império  com  o  facerdocio, 
eíta  violenta  contenção,  em  que,  fem  fe  apartarem  do  girão 
da  egreja,  como  fociedade  efpiritual,  os  governos  catholicos 
confeguiram  fobrepor  a  fua  audoridade  ás  ambições  mun- 
danas e  carnaes  do  eftado  clerical. 

Pela  carta  de  lei  de  3  de  abril  de  1768  Sebaftião  de  Car- 
valho declarava  « obrepticias,  fubrepticias,  dolofas,  pertur- 
bativas  da  paz  e  focego  publico,  incompatíveis  com  o  efpirito 
apoítolico  do  papa  Clemente  XIII  e  diametralmente  oppoftas 
ás  fuás  paternaes  e  pias  intenções  e  á  fua  fantiíTima  vontade» 
as  lettras  apoftolicas  expedidas  em  leu  nome  contra  o  duque 
de  Parma.  Não  podia  conceber-fe  ironia  mais  pungente,  dis- 
farçada na  diaphana  ficção  de  que  o  paftor  univerfal  era 
como  um  rei  conítitucional  na  monarchia  religiofa,  irrefpon- 
favel  e  fobranceiro  ás  tempefi:ades  e  paixões,  que  em  redor 
do  feu  throno  fe  agitavam.  Sebaftião  de  Carvalho  ao  apontar 
o  feguro  golpe  á  cabeça  vifivel  da  egreja,  intentava  perfuadir 
que  o  desfechava  contra  o  cardeal  Torriggiani,  os  -{elautes  do 
facro  collegio,  e  os  jefuitas,  c[ue  na  luda  redobravam  de  furor. 
Clemente  XIII  nas  fuás  provocações  ao  poder  civil,  bufcando 
reconftruir  o  velho  mechanifmo  do  império  pontifício  univer- 
fal, era  tão  confciente  do  que  fazia  e  decretava,  como  Gre- 
gório VII,  Innocencio  III  ou  Bonifácio  VIII.  Faltava-lhe  fo- 
mente o  animo  d'aquelles  feus  anteceífores  para  mandar  e 
coagir,  a  fubmiflao  da  edade  media  para  ouvir  e  obedecer. 
Mas  na  theoria  apparente  de  Carvalho,  o  pontífice  reinante 
era  apenas  o  inconfciente  mandatário  de  uma  facção  impa- 
ciente e  revoltofa,  que  lhe  arrancava  da  mão  com  violência, 
para  authenticar  as  bulias  fubverfivas,  o  innocente  annel  do 
pefcador.  Como  ao  foberano  inglez,  fegundo  a  ficção  politica 
dos  publiciftas  britannicos,  ao  papa  fe  adaptava  juftamente 
o  aphorifmo  de  «que  o  rei  nunca  pôde  fazer  mal».  (The 
king  cannot  do  ivrong.) 


-*<>^ 
v^ 


346 

Era,  como  do  que  expozemos  fe  deprehende,  contínua, 
formidável,  tenaciíTima  a  peleja  entre  o  grande  miniítro  por- 
tuguez  e  o  poder  facerdotal.  Nenhum  dos  contendores  fe 
dava  por  vencido.  O  terreno  do  combate  propicio  ao  ag- 
greíTor,  era  desfavorável  a  quem  defendia  os  direitos  e  fran- 
quezas da  fociedade  civil.  A  egreja  tinha  por  fi  a  fé,  que 
fabia  invocar  mui  habilmente,  ainda  quando  fe  tratava  de 
puras  temporalidades,  extranhas,  contrarias  quafi  fempre  ao 
dogma  e  á  orthodoxia.  O  elfado  não  podia  appellidar  em  feu 
favor  fenão  doutrinas,  que  aos  efpiritos  meticulofos  pareciam 
infpiradas  e  bebidas  em  fonte  fufpcita  de  heterodoxia.  A 
egreja  tinha  a  empenhar-fe  por  feu  lado  a  fuperftição  e  a 
infciencia  das  multidões  com  apparencia  efpeciofa  de  zêlo 
religiofo.  O  eftado  via  em  redor  de  fi  uma  turba  de  gentes 
educadas  longamente  pela  inquifição  e  pela  Companhia,  ha- 
bituadas a  confundir  com  a  herefia  e  o  facrilegio  a  juita  re- 
fiftencia  e  repreíTão  contra  as  ufurpações  temporaes  do  la- 
cerdocio.  Era  pois  defegua"!  em  extremo  grau  a  pendência 
travada  entre  os  dois  poderes  antagoniftas.  Só  um  eítadis- 
ta  da  procéra  eítatura  de  Carvalho,  em  nação  de  fegunda 
ordem,  em  povo  de  tão  efcaffo  lume  intelledual,  poderia  ter 
logrado  as  palmas  da  vidoria.  Cumpria-lhe  antes  de  tudo 
não  tranfcender  num  ápice  fequer  os  lindes,  que  leparam 
da  fidelidade  catholica  o  fcifma  e  a  deferção  efpiritual.  Era 
forçofo  exaggerar  a  pureza  da  fé,  a  lujeição  e  o  refpeito  ao 
pontificado,  para  que  os  aíTaltos  vigorofos  contra  o  próprio 
Vaticano  não  pareceíTem  abertas  infurreições  contra  a  egre- 
ja. Era  precifo  ferir  o  papa,  mas  oppugnal-o  com  reveren- 
cia e  de  joelhos.  Urgia  fer  audaz  para  combater  os  abufos 
da  egreja  no  temporal,  e  prudente  para  não  cair  em  nota 
de  rebelde  á  catholica  unidade.  Era  neceíTario  principalmen- 
te oppugnar  com  valentia  as  doutrinas,  que  efpalhadas  pro- 
digamente em  livros  e  em  brochuras,  por  uma  parte  faziam 


-• «-v-i- 

quotidianamente  ainda  mais  craífo  o  fanatifmo  e  a  ignorân- 
cia, e  por  outro  lado  canonifavam  a  omnipotência  dos  pon- 
tífices, a  autocracia  do  clero,  c  a  fujeição  dos  governos  fecula- 
res,  como  fe  foíTem  condições  eíTenciaes  da  religião  inítituida 
por  Jefu  Chrifto.  Mas  a  cenfura  dos  livros  e  o  orthodoxo 
aquilatar  das  opiniões  pendiam  do  nuto  ecclefiaftico.  Nenhu- 
ma idéa  podia  correr  fem  a  licença  do  Santo  Officio  e  do 
prelado  diocefano.  A  egreja  tinha  affim  em  feu  poder  o  di- 
vulgar a  doutrina,  que  fomentava  e  defendia  as  fuás  ambi- 
ções, e  prohibir  a  que  em  jadura  das  fuás  fuppoftas  immu- 
nidades,  tendia  a  levantar  do  fervil  abatimento  o  poder  civil. 
E  verdade  que  o  eftado  cooperava  na  cenfura  dos  efcriptos 
pela  intervenção  do  defembargo  do  paço  na  permiífão  de  os 
eftampar.  Mas  fempre  a  razão  ficava  d'efta  forma  fujeita  á 
tarifa  ecclefiaítica,  a  idéa  ao  facerdocio  acorrentada  e  ferva 
do  altar.  Era  certamente  uma  conquifta  immenfuravel  no 
proceflb  de  fecularifar  a  Ibciedade,  o  transferir  das  mãos  do 
clero  para  as  do  eftado,  reprefentante  e  curador  do  povo 
ainda  menor  ou  interdido,  a  fuprema  adminiífração  do  pen- 
famento,  alfumindo  plena  e  indivifa  a  cenfura  dos  efcriptos. 
A  intelligencia  obedecia  então  a  duas  potencias,  defegual- 
■  mente  ciofas  e  oppreíforas  da  fua  livre  e  efpontanea  mani- 
feftação.  Eliminar  uma  d'eftas  duas  nefaftas  reftricções  era 
aplanar  o  caminho  á  futura  emancipação  do  penfamento. 
Concentrar  exclufivamente  nas  mãos  do  imperante  a  fupre- 
ma infpecção  na  efphera  intelledual,  fubftituir  uma  fó  ás 
duas  tarifas,  pelas  quaes  fe  alealdava  o  que  era  permittido 
publicar  e  imprimir,  fubordinar  á  razão  de  eftado  as  conve- 
niências egoiftas  do  ambiciolb  facerdocio,  attender  nas  idéas 
e  nos  efcriptos  muito  mais  á  fegurança  da  fociedade  civil 
do  que  á  meticulofa  compreífão  do  que  parecia  herético  ou 
mal  foante  aos  preconceitos  e  abufos  ecclefiafticos,  era  tor- 
nar mais  fácil  no  porvir  a  libertação  do  penfamento,  quando 

■<v. .-<S-§. 


4sU 
_ -cjh-i- 

348 

o  povo,  tendo  facudido  o  jugo  clerical,  cobraffe  esforço  para 
defatar  e  deítruir  os  pefados  grilhões  do  abfolutifmo  e  po- 
deíTe  finalmente  refpirar  o  ar  vivificador  da  liberdade.  A 
creação  da  Me/a  cenforia,  inftituida  pela  carta  de  lei  de  5 
de  abril  de  1 768,  era  pois  para  a  monarchia  abfoluta,  emula 
antiga  do  poder  facerdotal,  um  meio  efficaciíTimo  de  eftear 
e  robuftecer  a  fua  autoridade  no  prefente  e  para  as  liber- 
dades populares  uma  conquifta  valiofa  pelas  fuás  confe- 
quencias  no  futuro.  O  legiflador  fempre  coherente  em  im- 
putar aos  jefuitas,  — algumas  vezes,  como  é  inevitável  nas 
ludas  politicas  apaixonadas  e  violentas,  com  vehemencia 
exaggerada, —  todas  as  calamidades  fociaes,  e  todas  as  tur- 
bações e  defconcertos  na  ordem  civil  e  religiofa,  contra  elles 
í'e  defentranhava  em  duras  execrações,  attribuindo-lhes  a  au- 
toria do  Índice  expurgatorio,  publicado  pelo  inquifidor  geral 
D.  Fernão  Martins  Mafcarenhas.  Por  elle  haviam  alcançado, 
referia  o  miniftro  inexorável,  defterrar  de  Portugal  toda  a  boa 
e  fan  litteratura,  prohibindo  os  livros  úteis,  divulgando  os  per- 
niciofos,  precipitando  o  povo  portuguez  em  inculpável  e  for- 
çolb  idiotifmo.  Se  os  jefuitas  não  eram  os  fós  culpados  na 
funefta  degradação  do  entendimento  portuguez,  fe  outros 
auxiliares  haviam  cooperado  na  obra  de  amefquinhar,  ennoi- 
tecer,  efterilifar  a  razão  publica,  não  é  menos  verdadeiro  que 
eram  elles  os  réus  principaes  d'eíl:e  delido.  A  realeza,  que  tam- 
bém fora  parte  em  adenfar  as  trevas  intelleduaes,  queria  então 
purificar-fe  das  fuás  antigas  malfeitorias  e  lavava  efcrupulofa- 
mente  as  fuás  mãos  d'efte  grande  peccado  nacional.  A  Mefa 
cenforia  ficava  conftituida  por  um  prefidente  e  fete  deputa- 
dos ordinários,  um  dos  quaes  feria  um  inquifidor  propoflo 
ao  rei  pelo  inquifidor  geral,  e  outro  o  vigário  geral  da  diocefe 
de  Lifboa,  ou  um  defembargador  da  cúria  patriarchal.  De- 
putados extraordinários  fem  numero  fixo  completavam  efi:a 
nova  magilfratura. 

-s-<5>-* -i-^ 


349 

A  Mefa  cenforia  era  condecorada  com  o  alto  predicamen- 
to de  régio  tribunal,  e  com  o  tratamento  honorifico  de  majes- 
tade, como  fe  fora  eífeítivamente  prefidida  pelo  foberano.  As 
fuás  funcçÕes  comprehendiam  a  cenfura  de  todos  os  li^•ros  e 
impreíTos,  aíTim  dos  que  já  eftiveíTem  no  reino  introduzidos 
como  dos  que  fe  pretendeífe  novamente  imprimir  e  divulgar, 
fem  exceptuar  a  reimpreífão  dos  que  houveífem  anterior- 
mente alcançado  as  licenças  neceífarias.  A  eíta  nova  aduana 
do  penfamento  nenhuma  mercancia  intelledual  fe  podia  fub- 
trahir.  Todos  os  livros,  que  de  terras  extrangeiras  vieífem  a 
Portugal,  feriam  apprehendidos  nas  redes  da  cenfura  e  leva- 
dos ao  fupremo  julgamento  d'efi:a  nova  inquifição  civil. 

No  regimento  promulgado  pelo  alvará  de  18  de  maio  de 
1768,  ainda  mais  que  na  lei  da  creação,  tranfparecia  clara- 
mente o  intento  do  legiflador.  Na  fingular  e  melindrofa  fitua- 
ção,  em  que  a  refpeito  do  paftor  univerfal  fe  encontrava  a 
egreja  lufitana,  na  prefença  de  um  diuturno  rompimento,  que 
bem  poderá  maliciofamente  interpretar-fe  como  o  pream- 
bulo de  um  fcifma  declarado,  em  face  de  uma  nação  defal- 
lumiada  e  fuperíticiofa,  era  mais  do  que  nunca  prudente  e 
neceífario  o  antepor  oftenfivamente  a  defenfão  da  fé  reli- 
giofa  e  o  refpeito  pela  fupremacia  efpiritual  de  Roma  ás 
profanas  conveniências  do  elfado  temporal.  Os  deputados  do 
novo  tribunal  «deviam  ter  — dizia  o  legiflador —  um  zelo  ar- 
dentiíTimo  do  augmento  da  religião  e  do  bem  publico  da  pá- 
tria». A  Mefa  devia  proceder  á  compofição  de  um  Índice  de 
livros  prohibidos,  tomando  por  fundamento  o  indice  roma- 
no, os  Índices  expurgatorios  das  varias  nações  catholicas,  o 
do  celebre  dominicano  portuguez  Fr.  Francifco  Foreiro,  o 
do  antigo  inquifidor  geral  D.  Fernão  Martins  Mafcarenhas. 
A  lei  declarava  genericamente  prohibidas  todas  as  obras  de 
atheiftas  e  herefiarchas.  Deveriam  os  cenfores  moftrar-fe  in- 
exoráveis contra  os  audores,  que  oíTendiam  a  efpiritual  júris- 


-<>-l- 

35o 

dicção  dos  pontífices  romanos,  « arrancando,  dizia  com  poli- 
tica emphafe  o  legiílador,  as  cliaves  da  egreja  das  fagradas 
mãos  do  vigário  de  Chrifto  e  dos  fucceíTores  dos  apoftolos 
para  entregal-as  aos  príncipes  temporaes » .  O  regimento  man- 
dava prohibir  os  livros  dos  philofophos  e  encyclopediítas  do 
feculo  XVIII,  e  dos  precedentes  efcriptores  acerca  de  aíTum- 
ptos  fociaes  e  religiofos.  Abria,  porém,  uma  honrofiíTima  ex- 
cepção em  favor  de  nomes  tão  illuftres,  quaes  eram  Grocio, 
Puffendorf,  Bynkerfchoek,  Barbeyrac,  Wolf,  e  alguns  outros, 
que  fendo  proteftantes,  eram  no  conceito  do  legiflador  inten- 
fos  e  preítadios  luminares  da  razão  univerfal.  Mas  apefar 
d'eíta  apparente  determinação  de  encaminhar  a  cenfura  oííi- 
cial  em  defeza  da  egreja  e  do  feu  chefe  efpiritual,  a  Mefa 
cenforia  era  principalmente  uma  nova  e  terrível  bateria,  que 
o  poder  civil  e  majeftatico,  reprefentante  da  ordem  fecular, 
conítruia  e  aíTeftava  contra  os  jefuitas  e  contra  as  pretenfões 
ambiciofas  e  terrenas  da  Roma  pontifical.  A  feição  temporal 
da  nova  inftituição  apparecia  manifefta  na  efpecial  recom- 
mendação  de  perfeguir  fem  trégua  e  fem  quartel  os  livros 
promotores  da  fiaperftição  e  fanatifmo  e  aquelles,  em  que  os 
vionmxhomachos,  ou  os  oppugnadores  da  realeza  e  do  direi- 
to divino  das  dynaftias,  femeavam  os  germens  fecundiíTimos 
da  nova  democracia. 

Ainda  os  atheus,  os  dogmatiítas  e  herefiarchas  fe  eximiam 
aos  rigores  da  Mefa  cenforia,  quando  já  os  feus  primeiros  ti- 
ros fe  difparavam  contra  a  foragida  e  condemnada  Compa- 
nhia. A  primeira  vidima  da  implacável  magiftratura  era  o 
grande  e  facundo  jefuita  portuguez.  Pelo  decreto  de  lo  de 
junho  de  1 768,  eftando  ainda  a  inftituição  nas  faxas  infantis, 
condemnava  a  fer  queimada  publicamente  pelo  executor  da 
alta  juftiça  a  Carta  apologética  do  Padre  António  Vieira,  e  fen- 
tenciava  á  mefma  pena  a  Vida  do  fapateiro  Janto,  que  faira 
egualmente  das  fráguas  da  Companhia.  A  Mefa  cenforia  em 

-i-«í>- -<í)-§- 


t- 


35 1 

feus  primeiros  dias  continua  infatigável  batendo  em  brecha  o 
fanatifmo,  a  luperftição  e  as  arrogâncias  temporaes  ou  dele- 
térias da  ordem  facerdotal.  Condemna  a  fer  queimado  pelo 
algoz  o  livro  Siir  la  deftnidion  desjéjiiites  en  France,  declaran- 
do-o  falfo,  temerário,  efcandalofo,  infame,  fediciofo.  N'uma 
larga  cenfura  reprova  com  a  máxima  vehemencia  os  erros 
e  fuperftições  da  Jacobea  ou  feita  dos  beatos,  compendiadas 
como  em  fummula  perigofa  no  livro  intitulado  Thefes,  máxi- 
mas, exercidos  e  obferpancias  efpirituaes  da  Jacobea,  e  manda 
que  todos  os  feus  exemplares  fejam  queimados  pela  mão 
ignominiofa  do  verdugo.  Os  jacobeus  ou  os  beatos  haviam  no 
reinado  de  D.  João  V  perturbado  as  confciencias  e  femeado  a 
zizania  no  feio  da  egreja  lufitana.  Contra  elles  fe  haviam  dis- 
parado os  tiros  da  inquifição.  ProfelTavam  que  era  não  fomente 
licito,  mas  até  obrigatório  aos  confeífores,  o  quebrar  o  figillo 
facramental  e  defcobrir  os  peccados,  que  lhes  foífem  revela- 
dos no  tribunal  da  penitencia.  O  papa  Benedifto  XIV  lançara 
contra  eíla  feita  perniciofa  de  fanáticos  as  cenfuras  apoítoli- 
cas,  reprovara  e  condemnára  folemnemente  o  figillifmo,  e 
fubmettêra  os  réus  d'efte  delido  ao  julgamento  do  Santo  Offi- 
cio,  para  que  lhes  impozeífe  penas  feveriffimas,  fem  exce- 
ptuar nos  cafos  mais  atrozes  a  pena  capital,  a  infâmia  e  a 
coníifcação.  O  miniftro  perfeguidor  do  fanatifmo,  agora  que 
os  beatos  e  jacobeus,  eftimulados  pelo  favor  do  prelado  co- 
nimbricenfe  e  efcudados  com  a  fua  audoridade,  renafciam 
com  profpedo  de  novas  e  mais  graves  turbações,  fegunda  vez 
revalidava  as  lettras  pontifícias  e  lhes  concedia  expreíTo  e  am- 
plo beneplácito,  preftando  o  auxilio  do  braço  fecular  á  fua 
rigorofa  execução.  Ao  mefmo  paífo  o  confelho  geral  do  Santo 
Oíiicio  tendo  á  fua  frente  como  inquifidor  geral  a  Paulo  de 
Carvalho,  irmão  do  audaz  reformador,  publicava  um  edital, 
denunciando  os  erros  do  figillifmo  e  precavendo  contra  elles 
os  fieis. 


ela 


352 

Egualmente  padeceram  os  rigores  da  nova  jurifdicção  as 
Máximas  efpiritiiaes  de  Fr.  Affonfo  dos  Prazeres,  as  obras  em 
que  íe  defendia  a  relaxação  do  figillo  facramental,  profeíTada 
como  elemento  elTencial  nas  doutrinas  dos  jacobeus  e  figillis- 
tas,  e  todos  os  livros  numerofos,  em  que  fe  canonifavam  e 
encareciam  as  thefes  formuladas  na  celebrada  bulia  In  Coena 
Domini  contra  os  direitos  inalienáveis  da  civil  majeftade  e 
foberania.  E  fó  depois  que  a  Mefa  cenforia  tem  feito  as  fuás 
primeiras  armas  e  as  mais  brilhantes  contra  os  jefuitas,  os 
jacobeus  e  os  defenfores  da  monarchia  univeríal  dos  papas, 
que  fe  lembra  de  condemnar  os  heterodoxos  efcriptores,  ac- 
cufados  de  haverem  maculado  a  pureza  da  fé  catholica  e 
oufado  combater,  como  o  feu  poderofo  antemural,  o  Santo 
Ofíicio.  É  então  que  a  Mefa  cenforia  condemna  e  prohibe 
em  1769  a  Hijloire  de  l'EgliJe  de  Bafnage,  e  o  famofo  Di- 
dionnaire  hijloriqiie  et  critique  de  Bayle.  Mas  já  então  prefide 
á  egreja  univerfal  Lourenço  Ganganelli,  fob  o  nome  de  Cle- 
mente XIV,  e  Portugal  eítá  em  vefperas  de  enlaçar-fe  nova- 
mente por  vínculos  filiaes  e  affeduofos  ao  folio  de  S.  Pedro. 
O  elogio  da  inquillção  a  contar  do  feculo  xiii,  o  panegyrico 
do  Ibmbrio  D.  João  III,  que  a  foUicitou  e  obteve  do  pontífice 
Paulo  III,  conflituem  um  dos  lunares  no  carafter  do  eíta- 
difta,  antes  obrigado  pelas  circumftancias  da  occafião  do  que 
pelos  didames  da  confciencia  a  defender  e  encomiar  eíta 
grande  vergonha  do  puro  chriflianifmo.  Se  as  conveniências 
politicas  exigiam,  ou  antes  defculpavam  eftas  laftimofas  aber- 
rações no  efpirito  luminofo  do  miniftro,  a  fua  intraítavel  fe- 
veridade  contra  as  abufões  religiofas  louvavelmente  fe  mani- 
fefta  a  cada  paífo.  A  Mefa  cenforia  perfegue  fem  piedade  a 
fuperítição,  prohibindo  todos  os  livros,  que  perfuadiam  e  in- 
culcavam as  falfas  indulgências,  e  alimentavam  entre  a  gente 
rude  e  popular  a  opinião  de  que  podia  peccar  feguramente, 
porque  os  mananciaes  da  divina  complacência  jorravam  por 


ela 


353 

tantas  fontes  caudaes  e  inexhauftas,  quantos  eram  os  pretex- 
tos da  fuperfticiofa  c  falfa  devoção. 

E  fomente  depois  de  feguras  novamente  por  vínculos 
eftreitos  as  relações  de  Portugal  com  a  Santa  Sé,  que  o  ani- 
mo de  Carvalho  fe  levanta  a  cohibir  a  torrente  das  idéas 
philofophicas.  Até  ali  a  lanha  dos  cenfores  officiaes  tivera 
por  leu  alvo  prediledo  os  efcriptores  da  Companhia,  os  pro- 
babiliftas  e  milagreiros,  os  andores  ultramontanos  e  feda- 
rios  da  monarchia  univerfal  dos  pontífices  romanos.  Mas  ao 
condemnar  pela  Mefa  cenforia  os  audazes  penfadores  do  xviii 
feculo,  não  fe  penfe  que  o  miniftro  abfolutifta  põe  a  mira 
unicamente  em  tutelar  as  doutrinas  chriftans  e  orthodoxas 
contra  a  corrente  impetuofa  das  idéas  philofophicas.  Os  es- 
píritos fortes,  «que,  na  linguagem  dos  cenfores,  fe  attribucm 
o  efpeciofo  titulo  de  philofophos » ,  ao  compaffo  dos  golpes  di- 
rigidos contra  a  fé,  eftão  minando  os  fundamentos  da  velha 
fociedade  e  fazendo  á  monarchia  abfoluta  e  oppreífora  o  feu 
proceífo,  cuja  fentença  gloriofa  terá  de  proferir  em  breves  an- 
nos  a  triumphante  Revolução.  Voltaire,  Rouífeau  e  La  Mettrie, 
mais  os  teme  o  terrível  Icgiflador  por  demolidores  do  direito 
divino  que  por  infeflos  á  pureza  caftiíhma  da  fé.  Os  philofo- 
phos, proclamava  o  edital  da  Mefa  cenforia  de  24  de  feptem- 
bro  de  1770,  «invadiam  os  mais  folidos  fundamentos  do 
throno».  N'efl:a  immenfa  profcripção  contra  o  que  o  feculo 
XVIII  penfára  e  efcrevcra  de  mais  revolucionário,  compre- 
hendiam-fe  para  cima  de  cem  obras,  as  mais  d'ellas  escriptas 
em  francez,  algumas,  taes  como  as  de  Tolland,  de  Woolfton,  e 
de  outros  mais,  eftampadas  em  inglez.  As  que  fe  reputavam 
mais  perigofas,  commettiam-fe  ao  braço  do  algoz,  para  que 
lacerando-as  e  queimando-as  com  publica  folemnidade  fa- 
gralfe  ao  penfamento,  como  fe  fora  pelo  martyrio  gloriofo 
das  idéas,  a  mais  illuftre  apotheofe.  O  carnifice  pôde  trucidar 
o  homem,  a  fogueira  confumir  o  que  é  apenas  ephemero  e 


4sk 
-<>-^ 

material.  Mas  os  brazeiros  de  Torquemada  e  de  Cifneros,  cm 
vez  de  aniquilar  a  idéa  com  o  livro,  em  que  fe  imprime, 
fão  como  o  crilbl,  onde  fe  depura  e  vivifica. 

A  perfegLiição  implacável  contra  os  livros,  que  divulga- 
vam os  princípios  philofophicos  e  políticos  do  feculo  xviii, 
bem  fabia  o  ministro  illuminado,  que  não  haveria  de  furtir 
melhor  effeito  do  que  recommendar  á  leitura  as  novidades, 
que  em  fi  compendiavam  e  o  proceíTo  que  faziam  á  antiga 
ordem  focial.  Se  como  a  refoluto  monarchiila,  em  pleno  abfo- 
lutifmo,  lhe  cumpria  defterrar  os  efcriptos,  que  minavam  a 
regia  autoridade  e  o  dogma  do  direito  divino,  a  fua  vifta 
perfpicaz  não  podia  defpregar-fe  um  fó  momento  do  pro- 
blema íundamental,  a  que  votara  principalmente  o  feu  largo 
e  trabalhofo  minifterio.  A  fua  predilecção  e  o  feu  encargo 
de  eftadifta  cifrava-fe  antes  de  tudo  em  emancipar  da  tutela 
clerical  a  fociedade  portugueza,  traçando  á  egreja  os  lindes 
neceíTarios,  que  não  podelfe  tranfcender  para  invadir  e  aífo- 
berbar  a  vida  civil  e  temporal. 

A  Companhia  de  Jefus  eftava  profcripta  e  infamada, 
porém  a  fua  influencia  e  o  feu  efpirito,  radicado  por  dois 
feculos  de  venturofa  e  audaz  oligarchia,  ainda  refumbrava 
impenitente.  A  arvore  caíra  deftroncada,  mas  entranhavam- 
fe  no  folo  as  raizes  vivazes  e  invaforas.  Uma  parte  do  clero 
fecular  e  regular  mantinha  e  oftentava  a  ambiciofa  preten- 
ção,  que  havia  tornado  infefto  aos  governos  temporaes  o 
predomínio  da  Companhia.  Era  o  abufo  de  intervir  na  au- 
doridade  e  jurifdicção  do  poder  civil,  fujeitando-o  ao  feu 
arbítrio  e  difcrição,  e  conítituindo-fe  em  juiz  e  reprehen- 
for  das  fuás  acções.  O  caudilho  d'efta  nova  confederação 
era  o  bifpo  de  Coimbra,  D.  Miguel  da  Annunciação.  Pela 
fua  dignidade  epifcopal,  viciada  pela  torva  e  irrequieta  fuper- 
ítição,  o  prelado  conimbricense,  um  dos  chefes  da  Jacobea 
ou  feita  dos  beatos,  vinculava-fe  eftreitamente  a  quanto  havia 


eis 


355 

de  mais  intolerante  e  aventurofo  na  reacção  religiofa,  e  pela 
ftirpe  illuftre,  a  que  pertencia,  reprefentava  por  outra  parte  o 
refentimento  da  nobreza  aggravada  e  abatida  pelo  inexorá- 
vel reformador.  Era  o  bifpo  irreprehenfivel  nos  coftumes, 
lincero  na  fé,  ardente  no  fanatifmo,  intraítavel  no  ponto  de 
acceitar  por  limitada  aos  aíTumptos  meramente  efpirituaes 
a  íua  jurifdicção.  O  que  era  turbulência  aíigurava-fc-lhe 
fortaleza  varonil,  a  manfidão  havel-a-hia  á  conta  de  perjúrio 
ás  fuás  paftoraes  obrigações.  Ajudava  a  curteza  do  entendi- 
mento as  exagerações  do  zelo  religiofo.  Parecia-lhe  que  to- 
das as  providencias  decretadas  para  aíTegurar  a  majeílade 
temporal  contra  as  irrupções  do  clero  e  do  papado,  eram 
outros  tantos  paíTos  de  gigante  no  caminho  das  mais  execrá- 
veis abominações.  A  expulfão  violenta  dos  jefuitas,  o  rom- 
pimento diuturno  com  a  Santa  Sede,  a  cenfura  dos  livros 
excluíivamente  concentrada  nas  mãos  do  poder  civil,  e  arre- 
batada á  infpecção  predominante  da  egreja,  faziam  certa- 
mente no  feu  efpirito,  naturalmente  débil  e  fombrio,  a  mefma 
dolorofa  impreíTáo,  que  os  primeiros  decretos  de  Henrique 
VIII,  nos  princípios  da  reforma  religiofa,  teriam  produzido 
no  animo  dos  prelados,  addiclos  e  fieis  ao  pontífice  romano. 
O  bifpo,  julgando  cumprir  o  seu  dever,  não  repoufava  em  faír 
a  campo,  acaudilhando  as  hofles  do  facerdocio  contra  o  im- 
pério. Ora  chamava  a  íi  os  defcontentes,  ora  enviava  miíTio- 
narios  a  accender  a  imaginação  de  Rides  e  fanáticas  povoa- 
ções; agora  aíToprava  e  fazia  reviver  o  fogo  de  Jacobea,  e  logo 
deplorava  e  pretendia  reprimir  o  contagio  dos  livros,  que  tinha 
por  infeftos  á  pureza  da  fé  e  aos  bons  coítumes.  Encheu  o 
prelado  a  medida  da  fua  mal  disfarçada  animadverfão  ao 
governo  de  Carvalho,  efcrevendo  e  divulgando  uma  famola 
paíloral,  em  que  depois  de  fangrentas  allufões  á  impiedade, 
que  fuppunha  no  governo,  prohibia  aos  feus  diocefanos  a 
leitura  de  muitas  obras,  das  quaes  enfartava  um  como  indice 


4  eis 

— ■ -<^ 

356 

expurgatorio.  Entre  ellas  tinham  logar  preeminente  além  da 
Encydopedia,  o  Contraélo  Social,  e  o  Disair/o  Jobre  a  defigiial- 
dade  dos  homens,  de  Rouffeau,  vários  efcriptos  de  Voltaire 
fem  efquecer  a  Henriade.  Algumas  das  obras  incluídas  pelo 
bifpo  na  fua  formal  prohibição,  no  próprio  conceito  de  es- 
criptores  inimigos  de  Carvalho,  não  mereciam  o  anathema 
fevero  do  paftor'. 

Era  o  bifpo  manifefto  fautor  dos  jefuitas,  exaltado  ultra- 
montano  e  ardente  defenfor  da  fupremacia  de  Roma  fobre 
todos  os  governos  temporaes.  A  paftoral,  em  que  premunia 
as  fuás  ovelhas  contra  a  peçonha  das  Ímpias  doutrinações, 
era  n'uma  parte  principal  encaminhada  a  anathematifar  os 
livros  de  catholicos  ferventes,  cujo  peccado  todo  confiflia  em 
defender  as  immunidades  innegaveis  do  império  contra  as 
defmefuradas  ambições  do  Vaticano.  Confutavam  e  rebatiam 
os  feus  auiflores  o  abufo  das  excommunhões  e  a  audácia,  com 
que  os  papas  fe  haviam  arrogado  a  prerogativa  de  repartir  e 
tirar  a  feu  talante  as  coroas  aos  monarchas,  convertendo  a  ca- 
deira pontifícia  em  fonte  excluíiva  de  toda  a  poteftade  e  go- 
verno temporal.  O  bifpo  dirigia  os  feus  anathemas  ao  Diccio- 
nario  philofophico^  e  á  Pucelle  de  Oiiéans^  mas  os  feus  farpões 
mais  bem  hervados  iam  pregar-fe  em  efcriptores,  que  labiam 
alliar  á  eítreme  orthodoxia  um  efpirito  emancipado  e  fobran- 
ceiro  a  todas  as  influencias  ultramontanas.  AíTim  o  bifpo  con- 
demnava  Dupin  e  a  fua  obra  Da  antiga  difciplina  da  Egi-eja, 
Juítino  Febronio  e  o  feu  livro  Do  ejtado  da  egreja  e  da  potes- 
tade legitima  do  pontijice  romano.  Efta  era  a  zizania  que,  na 
phrafe  do  paftor  illufo  e  apaixonado,  o  homem  inimigo  não 
ceifava  de  femear  entre  o  bom  grão  dos  dogmas  da  fé.  No 


'  Egli  ò  vero  che  forfe  qualcheduno  dei  libri  cenfurati  dal  vefcovo  non 
meritava  il  giudizio  fevero  commune  a  tutti  gli  altri.»  Vita  di  Seb.  Giu/eppe  di 
Carvalho  e  Mello,  tom.  iv,  pag.  99. 


^^1 


conceito  do  fanático  prelado  os  apojlolos  da  mentira,  como  elle 
appellidava  com  egual  animadverfão  os  philofophos  e  os  au- 
étores  pios,  que  oufavam  contraftar  a  monarchia  univerfal  dos 
pontifices  romanos,  haviam  occafionado  maiores  damnos  e 
ruinas  na  egreja  do  que  os  pagãos  nos  primeiros  feculos 
e  os  hereges  nos  feguintes.  Para  a  egreja,  — laftimava  com 
beata  e  dolorida  compuncção  o  férvido  prelado, —  era  mais 
amarga  a  paz,  que  na  apparencia  disfruflava,  do  que  fora 
n'aquelles  tempos  a  guerra,  com  que  feus  perfeguidores  a 
opprimiam.  Então,  dizia  o  bifpo  revoltofo,  a  guerra  coroava 
os  martyres  e  enchia  de  glorias  e  de  júbilos  as  turbas  cres- 
centes dos  fieis,  emquanto  que  a  paz  infidiofa  reprefentava 
no  feio  da  egreja  inconfolavel  fcenas  lacrymofas.  Eram  cla- 
ras, tranfparentes,  certeiras  as  ferinas  allufões  ao  governo 
de  Carvalho.  Era  elle,  fem  duvida,  na  phrafe  da  paftoral, 
um  d'e{[esJjlhos  iniqiios  da  egreja,  yècZízr/oí  da  impiedade,  um 
d'eí1:es,  que  á  maneira  de  caçadores  infernaes,  armam  laços 
á  innocencia  e  redes  á  piedade.  Era  elle  um  d'eftes  «falfos 
prophetas,  que  não  profiram  e  derribam  os  altares,  mas  im- 
pedem com  as  fuás  doutrinas  falfas  que  fe  adore  o  verda- 
deiro Deus» . 

A  paftoral  datada  de  Coimbra  a  8  de  novembro  de  1768, 
poucos  mezes  depois  que  pela  creação  da  Mefa  cenforia  fe 
tirara  das  mãos  do  clero  o  exame  e  cenfura  dos  efcriptos, 
era  claramente  uma  patente  reprefalia  e  como  que  a  reivin- 
dação  de  um  direito  inalienável  do  ofíicio  epifcopal.  Defde 
que  a  lei  reftituia  ao  poder  civil  a  funcção  de  exercitar  a  ins- 
pecção e  a  cenfura  fobre  a  imprenfa,  a  paftoral  do  bifpo 
conimbricenfe,  divulgada  fem  o  régio  beneplácito,  era  um 
ado  de  formal  dcfobedicncia,  fe  não  de  manifefta  rebellião. 

Era  grave  a  occafião.  Andava  o  poder  civil  empenhado 
rijamente  em  oppugnar  o  governo  clerical.  Pendia  violenta 
a  luda  pertinaz  com  os  jefuitas,  e  com  os  renitentes  curiaes, 


c|3 


CM 


358 

leus  parceiros  e  fautores.  De  fora  de  Portugal,  de  Roma 
principalmente,  partiam  os  incitamentos,  com  que  os  jcfuitas 
procuravam  manter  accefo  e  vivo  o  fogo  facro  entre  os  feus 
mal  encobertos  parciaes.  A  bulia  Aniinanmi  faluti,  e  o  mo- 
nitorio  contra  o  duque  de  Parma  tinham  dado  rebate  havia 
pouco  e  annunciado  á  chriftandade  que  Roma  e  os  defenfo- 
res  do  illimitado  poderio  eccleliaítico  fe  apercebiam  com  ar- 
mas bem  temperadas  para  entrar  novamente  na  requeíta.  A 
agitação  dos  jacobeus,  capitaneada  agora  pelo  bifpo  de  Coim- 
bra, era  como  que  a  repercuíTão  do  que  lá  fora  fe  machi- 
nava  para  turbar  e  impedir  a  acção  do  poder  civil.  O  pre- 
lado fediciofo,  meneando  a  teia  do  fanatifmo  para  accender 
a  guerra  religiofa,  era  dentro  da  fua  pátria  o  focio  e  auxi- 
liar dos  que,  profcriptos  longe  d'ella,  intentavam  reftaurar 
n'eíte  paiz  o  predomínio  clerical  e  o  império  da  Companhia. 
Era  perigofo  o  repto,  a  vindida  inevitável.  Um  ado  de  rigor 
moftrou  n'eíta  grave  occafião  a  quanto  fabia  aventurar-fe 
a  omnipotência  do  miniftro  em  defeza  da  poteftade  temporal. 
O  bifpo  é  logo  privado  da  fua  fé,  declarado  morto  civilmen- 
te, claufurado  no  forte  de  Pedrouços.  São-lhe  companheiros 
na  defgraça  e  no  encerro  muitos  ecclefiafticos  feus  officiaes  e 
familiares,  ou  conjundos  na  parceria.  Pela  carta  regia  de  9  de 
dezembro  de  1768  ordena  Sebaftião  de  Carvalho  ao  cabido 
da  fé  de  Coimbra  que,  declarada  vacante  a  cadeira  epifcopal, 
proceda  á  eleição  do  vigário  capitular,  infinuando-lhe  que  a 
faça  recair  em  Francifco  de  Lemos  de  Faria  Pereira,  depu- 
tado do  Santo  Ofiicio,  defembargador  da  Supplicação,  e  um 
dos  mais  ardentes  parciaes  do  eítadifta.  Poucos  dias  depois  a 
carta  regia  de  14  de  dezembro  manda  á  univerfidade  de 
Coimbra  que  faça  rifcar  d'eft:a  corporação  os  lentes  e  douto- 
res, que  ali  profeíTavam  e  feguiam  os  erros  fuperfticiofos  dos 
jacobeus,  beatos  ou  reformados,  e  pertenciam  á  congregação 
dos  cónegos  regrantes,  á  dos  eremitas  calçados  de  Santo  Agos- 


tinho,  e  á  ordem  bencdidina,  devendo,  dizia  o  diploma  ré- 
gio, ficar  reputados  por  mortos,  como  fe  nunca  houveíTem 
exiftido. 

Ao  mefmo  paíTo  expedia  Sebaftião  de  Carvalho  ao  dom 
abbade  geral  e  ao  definitorio  de  Alcobaça  uma  carta  regia 
ordenando-lhes  que  reprimiíTem  na  congregação  bencdidina 
os  coftumes  abullvos,  que  na  ordem  haviam  introduzido  os 
jacobeiis.  Eítes  fanáticos  menos  piedofos  que  fubverfivos,  e 
mais  ciofos  de  influencia  que  de  reformação,  timbravam  em 
fegregar-fe  do  commum,  não  fomente  pela  efpeciofa  oílenta- 
ção  de  prafticas  afceticas,  fenão  também  pela  afFeftada  fim- 
pleza  do  trage  e  compoífura.  Refugiam  á  fociedade  e  convi- 
vência dos  que  não  profeíTavam  efta  feita,  havendo-os  por 
infedos  e  mundanos,  e  compraziam-fe  no  trato  e  converfa- 
ção  dos  que  com  elles  fe  egualavam  na  mefma  exaltação  e 
fanatifmo.  Prefcreveu  o  legiflador  que  todos  os  jacobeus  fi- 
caíTem  perpetuamente  inhabilitados  para  os  cargos  e  ofíicios 
da  ordem  benediftina. 

N'um  governo  regularmente  conftituido,  poder-fe-ía  ter 
efperado  que  o  bifpo  declarado  réu  de  lefa-majeítade,  fe- 
gundo  affirmava  a  carta  regia  ao  cabido  de  Coimbra,  foíTe 
julgado  pelo  fupremo  tribunal  da  Inconfidência.  Era,  porém, 
agora  fyílema  profeguido  pelo  miniftro  omnipotente,  o  con- 
demnar  em  forma  camarária  e  pelo  mero  arbítrio  do  foberano. 
Na  fituação  particular,  em  que  fe  achava,  havia  por  mais  fegu- 
ro  e  mais  clemente  o  decretar  contra  muitos  delinquentes  a  re- 
clufão  ou  o  exilio  do  que  fujeital-os  á  jurifdicção  de  um  tri- 
bunal, que  os  fentenciaria  como  réus  de  alta  traição  a  penas 
feveriíTimas  e  infamantes  para  os  culpados  e  para  as  fuás 
cafas  e  famílias'. 

Seria  n'aquclle  tempo  um  lance  diíiicultofo  offerecer  a 


'  Contrariedade  ao  libello,  appcndice  iv  S  82. 


c|3 


36o 

um  paiz  aíTombrado  por  tão  graves  turbações  religiofas  o  es- 
pectáculo de  um  príncipe  da  egreja  trazido  perante  o  foro 
fecular,  fem  nenhuma  intervenção  das  juftiças  ecclefiafticas. 
Encarcerado  o  bifpo  no  forte  de  Pedrouços,  provia  o  minis- 
tro á  fegurança  do  eftado,  fegundo  a  norma  e  teor  com- 
mum  d'aquelles  tempos,  e  d'aquella  forma  abuliva  de  go- 
verno, onde  foi  habitual  e  hereditário  o  defrelpeito  pela  hu- 
mana liberdade.  Era,  porém,  politico  e  neceíTario  não  deixar 
fem  publica  expiação  a  rebeldia  temerária  do  prelado.  Sub- 
mette  Carvalho  a  paftoral  ao  exame  e  julgamento  d'aquelle 
tribunal,  que  inftituira  para  aquilatar  o  penfamento  e  a  es- 
cripta.  Delega  a  Mefa  cenforia  em  três  vogaes,  Fr.  Manuel 
do  Cenáculo,  depois  bifpo  de  Beja,  Fr.  Ignacio  de  S.  Caeta- 
no, depois  bifpo  de  Penafiel  e  o  defembargador  João  Pereira 
Ramos,  a  cenfura  do  efcripto.  Exaram  os  cenfores  um  largo  e 
eruditiíTimo  diclame  contra  aquelle  extranho  documento.  A  23 
•  de  dezembro  de  i  768  pronunciava  a  Mela  cenforia  a  fua  fen- 
tença,  declarando  falfa,  infame  e  fediciofa  a  paítoral,  e  mandan- 
do que  foífe  lacerada  e  queimada  publicamente  na  praça  do 
Commercio  pelo  executor  de  alta  juítiça.  Não  era  certamente 
regular  o  procedimento  do  governo  com  o  fanático  paftor.  Mas 
eram  aquellas  unicamente  as  armas  que  o  poder  temporal 
podia  então  brandir  para  defender  a  fociedade  e  o  império 
contra  as  pertinazes  arrogâncias  do  facerdocio.  No  estado  de 
guerra  crueliílima,  em  que  lidavam  fem  repoufo  as  duas  ini- 
migas poteítades,  á  paixão  do  clero  respondia  a  violência  do 
governo,  ao  ódio  a  fevcridade,  á  ufurpação  a  reprefalia.  Mas 
ainda  aíOm  o  bifpo  de  Coimbra,  fimplefmente  claufurado, 
fem  nenhum  trato  de  fevicia,  o  bifpo  levantado  á  eífatura 
heróica  dos  grandes  martyres  pelos  inimigos  de  Carvalho, 
appellidado  o  defhumano,  o  cruel,  o  homicida,  não  faz  es- 
quecer o  bifpo  da  Guarda,  fepultado  vivo  na  cifterna  de  Pal- 
mella  por  D.  João  II,  por  efte  rei  fem  coração,  a  quem  os 

1   F  ir 

&M  tis 


tis 


posthumos  lilbnjeiros  e  os  feus  próprios  lucceflbres  ainda 
agora  cognominam  o  príncipe  perfeito. 

Os  rigorofos  procedimentos  empregados  contra  o  hifpo 
e  feus  affeclas  eram  duros,  mas  forçofos,  pendente  a  guerra 
que  profeguia*  ardendo  implacável  entre  o  poder  civil  e  a 
clerezia  rebelde  e  ambiciola.  Os  jeíliitas  perfiftiam  fempre 
impenitentes  e  confiados  no  próximo  triumpho.  Emquanto 
a  Santa  Sé,  agora  audaz  com  o  papa  Clemente  XIII,  e  logo 
timida  com  o  leu  malaventurado  fuccelTor,  decretava  a  apo- 
theofe  da  Companhia  ou  trepidava  perante  a  fua  deftruição, 
o  incanfavel  eftadifla  ia  fempre  amiudando  os  afperos  com- 
bates aos  que  tinha  por  indomáveis  inimigos  de  todo  o  poder 
e  ordem  focial.  Alfumpto  já  ao  folio  pontifício  o  fraco  e  irre- 
foluto  Ganganelli,  condemnava  a  Mefa  cenforia'  os  livros 
principaes  e  mais  correntes,  onde  os  probabiliifas  jefuiticos 
haviam  compendiado  as  fuás  doutrinas  efcandalofas  acerca 
da  moral.  Os  canoniíias  e  theologos  da  Companhia  tinham 
feito  fubdita  á  monarchia  univerfal  dos  pontífices  romanos  a 
majeftade  e  foberania  temporal.  Entre  aquelles  doutores,  mui- 
tos d'elles  eminentes  por  engenho  e  erudição,  numeravam-fe 
nomes  tão  notórios  como  os  de  Efcobar,  de  Molina,  de  Ami- 
co,  de  Palao,  de  Layman,  Bufembaum  e  Salmeron. 

Os  cenfores  régios,  interpretando  fielmente  a  animadver- 
fão  do  eíladifia  contra  a  ordem  chamada  de  Jefus,  reprehen- 
diam  e  condemnavam  com  termos  feveriíTimos  os  efcriptos 
d'aquelles  celebres  doutores,  denunciando-os  ao  ódio  univer- 
fal como  pervertidos  propugnadores  de  quantos  erros  moraes 
podiam  disfarçar-fe  nas  enganofas  apparencias  da  razão.  En- 
finavam  aquellas  obras,  no  dizer  do  tribunal  cenforio,  o  pro- 
bahilifmo,  a  fimonia,  a  blafphemia,  o  facrilegio,  a  irreligião* 
a  idolatria,  a  impudicicia,  a  obfcenidade,  o  perjúrio,  o  furto, 


'  Edital  da  Mcfa  cenforia,  de  12  de  dezembro  de  1771. 


eis 


I 


o  homicídio,  a  violação  do  figillo  facramental,  o  parricidio, 
o  fuicidio,  e,  — o  que  mais  offendia  os  zeloíbs  defenfores  da 
realeza, —  profeíTavam  os  condemnados  efcriptores  que  era 
licito,  moral  e  neceíTario  attentar  contra  a  vida  de  um  tyranno 
em  defeza  e  vindicação  da  opprimida  fociedade.  Como  fem- 
pre  acontece  e  é  natural  nas  luclas  apaixonadas,  violentas, 
fem  trégua  nem  quartel,  os  cenfores  exageravam  muitas 
vezes  a  protervia  moral  dos  efcriptores  da  Companhia,  attri- 
buindo-lhes  como  propofições  abfolutas  as  que  perdiam  um 
pouco  da  fua  afperidade  e  extranheza  pelo  que  tinham  de 
condicionaes  e  relativas.  Não  fe  pôde  todavia  pôr  em  du^i- 
da  que  nos  livros  condemnados  pela  Mefa  cenforia  fe  expla- 
navam e  defendiam  praxes  moraes,  que  dourando  com  o 
probabilifmo  cafuiítico  os  delidos  mais  atrozes,  arraftariam  a 
fociedade  civil  e  efpiritual  á  fua  completa  perverfão.  Na 
Dediicção  chronologica  e  analytica,  e  principalmente  no  Com- 
pendio hiftorico  da  iiniverjidade  de  Coimbra,  apparecem  tras- 
ladados os  textos  litteraes,  onde  os  mais  famofos  doutores  da 
Companhia  prefcrevem  e  canonifam,  como  immunes  da  mais 
ligeira  venialidade,  os  mais  abomináveis  delidos  c  pecca- 
dos.  Mas  alem  das  máximas  nefaftas,  que  tranfparcciam  nos 
efcriptos  moraes  e  theologicos  dos  Efcobares  e  dos  Molinas,  dos 
Laymans  e  Bufembaums,  os  jefuitas  eram  não  menos  infes- 
tos á  monarchia  abfoluta  pelas  thefes  de  direito  publico,  ex- 
planadas largamente  nos  feus  livros  doutrinaes.  Se  por  uma 
parte  os  publiciftas  da  Companhia  fuftentavam  com  S.  Tho- 
mas  o  principio  irrecufavel  de  que  a  foberania  fecular  refide  e 
fe  origina  eífencialmente  nos  povos  e  nações,  e  d'ellas  fe  trans- 
fere como  fimples  e  condicional  delegação  aos  dynaftas  e  aos 
reis,  por  outro  lado  proclamavam  abertamente  a  fuferania  do 
papado  fobre  todos  os  principados  e  governos  temporaes. 
Se  pois  defendendo  a  majeítade  popular,  como  fonte  e  ma- 
nancial de  toda  a  civil  aucloridade,  lifonjeavam  e  defendiam 


Jt)J 


os  povos  contra  os  léus  dominadores,  contrapefa^"am  larga- 
mente eíTas  tendências  liberaes  e  democráticas,  pondo  acima 
de  todos  os  poderes  mundanos,  como  tutela  fuprema  e  abfo- 
luta,  a  foberania  dos  pontifices,  a  fua  omnipotente  infallibili- 
dade,  e  a  fua  decifiva  intervenção  cm  todos  os  negócios  fo- 
ciaes.  Condemnar  pois  os  cafuiíUis,  ainda  melmo  a  rifco  de 
profcrever  os  publicill^as  liberaes  da  ordem  de  Santo  Ignacio, 
era  um  ferviço  relevante  preftado  á  civililação  e  uma  valiofa 
preparação  para  a  futura  liberdade.  A  monarchia  abfoluta  e 
o  direito  divino,  pelo  órgão  do  leu  mais  vigorofo  reprefen- 
tante,  o  miniftro  de  D.  Jofé,  combatiam  ao  mefmo  paíTo 
rijamente  os  elementos  Ibciaes,  com  que  até  ali  havia  a  rea- 
leza repartido  por  hiftorica  neceíTidade  o  feu  poder.  Difpa- 
rava  o  derradeiro  golpe  em  a  nobreza,  reprimia  os  minimos 
aíTomos  de  liberdade  popular,  e  expugnava  acerbamente  a 
cidadella,  onde  fe  encaftellava  e  defendia,  na  peffoa  de  Cle- 
mente XIII,  o  papa  e  a  egrcja  da  edade  media,  procurando 
fujeitar  ao  feu  dominio  a  Ibciedade  civil  e  fecular.  Na  evo- 
lução hiftorica  dos  modernos  povos  europeus,  a  concentração 
do  poder  nas  mãos  vigorofas  dos  dynaftas  foi,  fem  que  elles 
o  fentiífem  ou  defejalfem,  o  preambulo  da  futura  democra- 
cia. Principiam  os  monarchas  abatendo  as  feudaes  domina- 
ções e  inftituindo  a  unidade  nacional.  Pro leguem  oppugnando 
fortemente  no  clero  e  no  papado  um  rival  inquieto  e  invafor, 
e  por  vezes  um  implacável  inimigo.  Virá  tempo,  em  que, 
tendo  já  pendentes  do  leu  arbítrio  todos  os  poderes  e  todas 
as  forças  fociaes,  entrará  com  elles  em  temerofo  repto  o  gi- 
gante popular  e  então,  ao  revcz  do  famolb  duello  biblico, 
fera  o  David  régio  o  proftrado  e  o  vencido  na  requefta.  Os 
reis  confubftanciam  e  ablbrvem  na  fua  exclufiva  dominação 
todas  as  poteftades  civis  ou  thcocraticas.  Mas  chegará  tam- 
bém a  vez,  em  que  a  tyrannia  realenga  cederá  o  paífo  final- 
mente á  triumphante  Revolução.  As  monarchias  abfolutas, 


eis 


364 

mas  illuminadas,  fundam  a  egualdade  pela  fujeição  com- 
mum  e  neceíTaria  de  quanto  pela  fua  grandeza  e  privilégios 
as  pôde  aflbberbar.  A  revolução  democrática  inílitue  final- 
mente a  liberdade.  Quando  o  monarcha  tiver  dito,  com  a 
fegurança  da  viftoria,  á  oligarchia  da  nobreza:  Eu  Ibu  a 
força;  á  theocracia  do  pontífice:  Eu  fou  o  Cefar,  e  fó  eu  e 
mais  ninguém  pôde  reger  monarchias  temporaes;  então  er- 
guer-fe-ha  o  povo,  e  dirá  aos  que  a  fi  mefmos  le  appellidam 
ungidos  do  Senhor:  Eu  fou  o  direito,  a  razão,  o  poder,  a  liber- 
dade. Então  a  communidade  civil  eftará  folidamente  confti- 
tuida  nos  feus  inabaláveis  alicerces,  diftinfto  áo  fórum  o  fan- 
tuario;  da  vida  interior  e  myftica  da  confciencia,  a  vida  exterior 
e  mundana  da  cidade;  da  egreja  independente  o  eftado  livre 
e  emancipado.  Affim,  quando  Sebaftião  de  Carvalho  lucfa 
durante  largos  annos  por  fecularifar  o  governo  e  a  nação, 
é  elle  o  illuminado  precurfor  dos  efladiftas  liberaes.  Na  fua 
politica  eftá  em  gérmen,  ainda  inconfciente  e  nebulofo,  a  fa- 
mofa  thefe  de  Cavour  e  a  abfoluta  feparação  entre  a  profana 
fociedade  unida  pelos  vínculos  do  direito,  e  a  voluntária  as- 
fociação  das  confciencias  eítreitadas  pela  fé. 

Alguns  têem  intentado  attribuir  a  Sebaftião  de  Carvalho 
o  propofito  de  romper  os  laços  da  unidade  com  os  pontífices 
romanos.  Sob  o  influxo  de  propicias  circumftancias,  bem  po- 
derá o  eftadifta  impaciente  de  todo  o  jugo  efpiritual  haver 
quebrado  as  ultimas  prifões,  que,  durante  o  diuturno  rompi- 
mento, ainda  frouxamente  encadeavam  a  egreja  portugueza 
á  Sé  de  Roma.  Muitas  das  fuás  audazes  providencias  legis- 
lativas fe  encaminhavam  com  evidencia  manifefta  a  li- 
mitar os  poderes  tradicionaes  do  pontificado  e  a  illidir  no 
conceito  dos  fieis  a  crença  fundamente  radicada  na  fua  pró- 
pria omnipotência  efpiritual.  A  Deducção  chronologica,  ape- 
far  das  apparencias  de  refpeito  á  fuprema  cabeça  da  egreja 
tem  por  nota  fundamental  e  dominante  uma  aberta  infurrei- 


4^ 


365 

ção  contra  o  papado.  A  Tentativa  theologica,  efcripta  com 
prodigioía  erudição  ecclefiaftica  pelo  oratoriano  António  Pe- 
reira, é  uma  tremenda  bateria  levantada  contra  o  fummo  fa- 
cerdocio  em  favor  dos  direitos  episcopaes  e  da  antiga  difci- 
plina  da  egreja. 

N'efte  livro  memorável  hufcava  demonílrar  o  profundo 
theologo  e  canonifla,  que  era  licito  aos  prelados  metropoli- 
tanos o  confirmar  e  preconiíar  a  eleição  dos  bifpos  feus  íuf- 
fraganeos,  e  a  eftes  egualmente  o  eleger  e  confagrar  os  me- 
tropolitas. 

Emquanto  as  relações  com  a  Cúria  eftão  interrompidas 
fem  efperança  de  próximo  concerto,  os  prelados  diocefanos, 
por  imperiofa  infinuação  do  miniílro  regalifta,  concedem  a  feu 
arbítrio  as  difpenfas  matrimoniaes.  O  arcebifpo  de  Évora,  o 
mais  fubmiíTo  e  obediente  fedario  do  eftadifta,  dá  o  exemplo 
d'efta  novidade  ecclefiaftica.  Os  paftores  das  outras  diocefes 
facrificam  egualmente  os  feus  efcrupulos  á  inftante  neceífi- 
dade  elpiritual. 

CAPITULO  XIV 

AS  REFORMAS   DA  INSTRUCÇÃO 

Na  completa  e  improvifa  revolução  produzida  no  enfino 
publico  e  na  cultura  intelledual  da  nação  portugueza  pelas 
enérgicas  providencias  de  Sebaítião  de  Carvalho,  eftá  cifrada 
em  grande  parte  a  gloria  mais  durável  e  mais  pura  do  minis- 
tro zelofo  e  illuminado.  Até  áquelle  tempo  e  defde  a  epocha 
infeliz  do  fombrio  D.  João  III,  parece  que  os  reis  de  Portu- 
gal fe  deliciavam  e  compraziam  em  reger  um  povo  efcure- 
cido  pelas  trevas  efpirituaes.  O  poder  civil  calafetava  cioíb  e 
intolerante  os  refquicios  mais  eftreitos,  por  onde  poderá  fil- 
trar-fe  alguma  luz,  efclarecendo  a  torva  intelligencia  do  paiz. 

e|s  eis 


4 


366 

Os  jeíuitas  dominavam  foberanamente  a  educação  e  o  enfi- 
no,  afaftando  para  longe  de  Portugal  toda  a  faudavel  re- 
formação realifada  nas  fciencias  a  datar  dos  áureos  tempos 
da  Renafcença.  A  Inquifição,  apelar  de  infefta  á  Companhia, 
n'eíte  ponto  lua  auxiliar  e  fua  miniftra,  efcondia  na  maléfica 
fombra  da  fua  bandeira  a  tenuc  claridade,  que  os  influxos 
jefuiticos  deixavam  ainda  por  banir  e  fequeftrar. 

Durante  o  reinado  de  D.  João  V,  a  ignorância  disfarçada 
nas  miferaveis  opulências  do  gongorifmo  fem  infpiração  e 
fem  talento,  fizera  efquecer  inteiramente  as  quadras  gloriofas 
do  antigo  engenho  nacional.  As  lettras,  que  então  fe  tinham 
em  maior  preço,  reprefentavam  a  extrema  degradação  da  in- 
telligencia.  Os  esforços  empenhados  pela  Academia  de  hifto- 
ria  portugueza  apenas  haviam  alcançado  paffageiramente  fo- 
mentar os  eftudos  eruditos.  Dos  feus  trabalhos  e  efcriptos  fe 
podia  com  verdade  aífeverar  que  o  talento  da  cortezan  cor- 
poração era  apenas  a  paciência.  Durante  o  reinado  longo  e 
infecundo  do  rei  galanteador,  nem  fequer  uma  fcentelha  de 
invenção  vem  reluzir  n'aquella  denfa  efcuridão  intelleftual. 
A  boa  efcriptura  portugueza  tivera  o  feu  ultimo  cultor  no 
padre  Manuel  Bernardes,  em  cuja  linguagem  e  em  cujo  eflylo 
já  tranfparece  todavia  que  o  atticifmo  vae  cedendo  o  paífo 
obediente  ao  conceptismo  litterario  e  á  engenhofa  frivolidade. 

Depois  do  maviofo  theatino  a  profa  nacional  arrafta-fe 
enfermiça,  decadente,  fem  nervo,  nem  carader  varonil.  As 
lettras  pátrias,  ou  fe  alimentam  de  devotas  e  pefadas  infpi- 
rações  nas  chronicas  monafticas,  nas  lendas  hagiologicas,  e 
nos  maífíços  fermonarios,  ermos  egualmente  de  uncção  e  de 
eloquência,  ou  fe  defenfadam  com  plebeia  efcurrilidade  nos 
equívocos  e  trocadilhos  dos  vates  populares,  nas  canfadas 
allegorias  do  Anatómico  jocojo  e  nas  operas  meio-ferias, 
meio-burlefcas  da  Mouraria  e  Bairro  Aho.  Mefmo  affim  é  no 
theatro,  que  as  mufas  nacionaes  ainda  fabem  ás  vezes  evo- 


Jb7 

car  as  luas  antigas,  polto  que  frouxas  infpirações,  e  é  o  cftro 
de  um  judeu,  queimado  pela  feroz  Inquifição,  quem  evita  á 
amena  litteratura  a  ignominia  derradeira. 

Se  as  lettras  fob  a  dominação  de  D.  João  V  retratam  fiel- 
mente, pela  completa  aufencia  de  goíto  e  penfamento,  a  fei- 
ção eífhetica  da  íbciedade  portugueza,  as  fciencias,  que  du- 
rante aquella  epocha  fe  cultivam  em  Portugal,  denunciam 
que  para  cá  dos  Pyreneus  o  nevoeiro  condeníado  pelo  des- 
potifmo  e  pela  Inquifição,  intercepta  o  caminho  á  luz  da  Eu- 
ropa. E  então  que  a  Africa  principia  com  verdade,  onde  co- 
meçam terras  da  Peninfula.  Nada  pôde  efpelhar  com  maior 
fidelidade  o  que  eram  as  fciencias  em  Portugal,  do  que  o 
feveriíTimo,  porém  lúcido  proceffo,  com  que  Luiz  António 
Verney  nos  feus  efcriptos,  principalmente  no  Verdadeiro  me- 
tliodo  de  ejiiidar,  as  condemnou  como  extrema  vergonha  na- 
cional. Nada  pôde  egualmente  miniftrar  a  medida  juíta  de 
quanto  era  profundamente  viciofa  e  radicada  nos  efpiritos  a 
ignorância  e  a  tradição,  do  que  a  encendida  guerra  litteraria, 
profeguida  em  cardumes  de  folhetos  contra  as  perigofas  in- 
novações,  defendidas  e  propoflas  pelo  fuppoíto  barbadinho. 
D'aquelles  monumentos  fe  deprehende  o  que  era  a  philofo- 
phia  enfinada  nas  efcolas,  onde  o  nome  de  Ariftoteles,  — mas 
do  Ariftoteles  efcholaffico,  do  Ariftoteles  da  edade  media,  não 
do  grande  penfador  da  antiguidade,  que  os  fabios  portugue- 
zes  não  podiam  comprehendcr, —  intimava  a  profcripção  a 
todas  as  idcas  modernas,  a  todos  os  defcobrimentos  experi- 
mentaes,  a  todas  as  conquiftas  mais  brilhantes  da  razão,  des- 
de Bacon,  Defcartes  e  Galileu,  até  Newton,  Locke,  Leibnitz, 
Buffon  e  Montefquieu. 

A  pefada  e  abfurda  fciencia  monachal  e  jefuitica  cerrava 
ciofamente  as  fuás  portas  á  mais  inoffenfiva  novidade.  O 
Kofmos  e  a  natureza  não  eram  para  o  infulfo  pedantifmo 
peripatetico,  o  que  o  efpirito  moderno  tinha  já  largamente 


368 

defcortinado  pelos  proceíTos  experimentaes  da  obfervação; 
era  apenas  a  nebulofa  phantafia,  que  a  philofophia  efcho- 
laffica  havia  fabulado  fobre  a  audoridade  irrefragavcl  de 
Ariftoteles  e  dos  feus  abftrufos  commentadores.  A  phyfica 
moderna  era  inteiramente  ignorada  em  Portugal,  e  o  que 
fob  efte  nome  fe  profeíTava  nos  livros  e  nas  efcolas  era  um 
tecido  efteril  de  inanes  efpeculações,  em  que  a  doutrina  do 
horror  ao  vácuo  e  o  principio  capital  das  cmifas  ocailtas 
contentavam  os  efpiritos  incuriofos  e  adftridos  ás  idéas  tra- 
dicionaes.  O  Compendio  hijlorico  do  ejlado  da  Unwerjidade  de 
Coimbra,  porventura  o  livro  mais  fubítancial  e  valiolb  de 
quantos  fob  a  pombalina  inipiração  fe  publicaram  na  con- 
tenda contra  os  jefuitas  e  contra  as  ufurpações  ecclefiaíticas, 
debuxava  na  fua  laftimofa  defnudez  os  achaques,  de  que 
padecia,  fem  apparencia  de  remédio,  a  fciencia  e  a  inftruc- 
ção  em  Portugal. 

Ás  claíTes  plebeias  e  vulgares  não  miniítrava  o  poder 
nenhuma  efcola,  onde  hauriíTe  os  efcaíTos  rudimentos  da 
minima  cultura.  A  parca  e  viciofa  nutrição  intelledual  fó  po- 
diam raros  aproveital-a  nos  conventos  das  ordens  religiofas  e 
nas  aulas  da  Companhia.  O  eftado  parecia  eftremecer  diante 
da  perigofa  perfpeftiva  de  reger  um  povo  illuminado,  culto, 
defveítido  de  fua  rudeza  agreífe  e  accommodada  á  meia  fer- 
vidão  em  que  vivia.  O  povo,  no  conceito  da  velha  monar- 
chia  e  no  fyftema  egoifta  dos  feus  homens  de  eftado,  tinha 
apenas  por  funcção  na  fociedade  lidar  quanto  lh'o  permittia 
a  fua  bruteza,  e  produzir  nos  campos  e  nas  officinas  o  que 
bailava  á  fua  exiftencia  attribulada,  e  ao  pagamento  dos 
multíplices  encargos,  que  pefavam  fobre  a  terra  e  o  trabalho. 
Incumbia-lhe  egualmente  o  engroífar  na  miferrima  condição 
militar  d'aquelle  tempo  as  fileiras  do  exercito  real.  Toda  a 
fua  vida  efpiritual  fe  refumia  na  crença,  em  grande  parte 
materialifada  pelas  fuperftições  groífeiras  e  mais  próximas 


eis 


4tU 
4-<(>^ 

369 

da  pura  idolatria.  A  fciencia  popular  cifrava-le  unicamente 
em  venerar  a  Inquifição,  obedecer  ao  clero,  e  acreditar  picdo- 
famente  que  o  foberano,  como  eleito  de  Senhor,  era  na  terra 
um  como  vice-Deus. 

Nos  citratos  fuperiores  da  fociedade  portugueza  alguma 
luz  íe  ditfundia,  tibia  e  mal  filtrada.  Luz,  porém,  de  fciencia 
falia,  efteril,  incapaz  de  aclarar  o  efpirito  ou  de  auxiliar  o 
corpo  na  luda  permanente  do  homem  com  a  natureza;  pue- 
ril e  viciofa  como  theoria;  nulla  ou  perigofa  como  pratica 
na  vida  focial.  Das  fciencias  exaítas,  phyficas  e  naturaes 
como  no  feculo  xviii  fe  promoviam  e  divulgavam  pela  Eu- 
ropa, poucos  fabiam  fequer  a  exiftencia  e  os  progreífos.  Os 
próprios  jefuitas  portuguezes,  cujas  efcolas  entre  as  das  cor- 
porações religiofas  eram  certamente  as  mais  bem  inftituidas 
e  methodicas,  defaproveitavam  os  exemplos  numerofos,  que 
no  cultivo  das  fciencias  lhes  eflavam  miniftrando  os  feus 
confrades  extrangeiros. 

Bailaria  folhear  os  livros  médicos,  publicados  na  primeira 
metade  do  feculo  xviii,  para  defde  logo  avaliar  o  que  eram  as 
fciencias  da  natureza  em  Portugal.  Se  era,  porém,  laílimofa 
e  profunda  a  ignorância  nos  eftudos  mathematicos,  phyficos 
e  naturaes,  não  era  melhor  e  mais  aproveitada  a  cultura 
intelleclual  nas  fciencias  moraes  e  theologicas  e  nas  lettras 
hellenicas  c  romanas.  Tivera  Portugal  nos  tempos  mais  flo- 
rentes da  Renafcença  illuftres  humaniftas,  cuja  fama  trans- 
cendera os  eftreitos  limites  da  fua  pátria,  os  Oforios,  os  Caia- 
dos, os  Refendes,  que  podiam  fem  favor  emparelhar  com  os 
mais  fabios  cultores  da  antiguidade.  Tivera  illuftres  e  erudi- 
tos jurifconfultos  em  um  e  outro  direito  confummados.  Tivera 
theologos  mui  doutos  e  difcretos,  que  nas  cathedras,  nos  púl- 
pitos e  nos  concílios  haviam  logrado  confociar  á  verdadeira 
uncção  religiofa  a  mais  larga  e  feleíta  erudição.  Florecêra  em 
boas  lettras  a  univerfidade,  quando  os  fabios  extrangeiros  de 

-i-A- -6^ 

À$  th 


370 

nome  venerando,  os  Buchanans  e  os  Grouchis,  alliados  no 
fraterno  convívio  do  faher  a  portuguezes  beneméritos,  aos 
Gouveias  e  aos  Teives,  alcançavam  enlaçar  a  gloria  de  Coim- 
bra ao  efplendor  das  famofas  academias  de  Paris,  Oxford, 
Pádua,  Bolonha  e  Salamanca.  Os  jefuitas,  porém,  apoíTan- 
do-fe  do  collegio  das  artes,  e  fujeitando  ao  feu  enfmo  e  di- 
recção a  univerfidade  pela  nefaíta  e  culpofa  complacência  do 
fanático  João  III,  haviam  com  rapidez  prodigiofa  feito  de- 
cair o  magifterio  portuguez  até  o  nivel  opprobriofo,  em  que 
o  efpirito  nacional  jazia  adormentado,  quando  era  já  em  meio 
o  feculo  proverbial  do  penfamento  e  da  fciencia,  o  tempo  de 
Voltaire  e  D'AIembert. 

ía  Portugal  diftanciado  e  retrahido  na  reçaga  dos  povos 
civiiifados.  Levavam-lhe  os  demais  tal  dianteira,  que  já  fe 
afigurava  por  impoílivel  que  apreíTando  o  palTo  em  esforço 
extremo,  os  houveíTe  de  alcançar  e  egualal-os  na  cultura.  As 
três  forças  dominantes  na  fociedade  portugueza,  o  ciofo  des- 
potifmo,  os  ambiciofos  jefuitas,  e  a  Inquifição  intolerante,  fe 
bem  fempre  difcordes  e  rivaes,  fó  n'um  ponto  cooperavam 
amigas  e  conjundas,  no  de  condenfar  cada  vez  mais  as  tre- 
vas, em  que  perdia  a  confciencia  de  fi  mefmo  o  embrutecido 
povo  portuguez.  Quem  n'efta  laftimofa  efcuridade  poderia 
acafo  reaccender  a  lucerna  apagada  e  efquecida?  Que  efpi- 
rito fuperior  á  craveira  commum  da  intelligencia  valeria  para 
infufflar  a  vida  nova  na  amortecida  razão  de  um  povo  in- 
teiro? Não  havia  em  Portugal  um  d'eíl:es  génios  aífombrofos, 
um  d'eí1:es  reformadores  illuminados,  invencíveis,  que  pelo 
influxo  magico  da  palavra,  da  doutrina,  do  exemplo,  da  pre- 
gação, operam  nos  efpiritos  a  mais  cuftofa  das  revoluções,  a 
revolução  pacifica  da  idéa.  Alguns  homens  havia  em  Portu- 
gal, que  tinham  raítreado  a  furto  o  que  lá  fora  n'eíTa  Europa 
culta  e  progreíTiva  fe  penfava,  fe  efcrevia  e  divulgada.  Ho- 
mens de  talento  original  e  creador  mui  raros  fe  podiam  nu- 

ir  _  ,  p 

th  ti» 


c|3 


37' 

merar.  Elpiritos  eminentes,  d'eítes  que  dominam  e  avaffallam 
os  feus  contemporâneos,  nenhum.  A  evangelifação  nada  po- 
dia para  levantar  do  leu  diuturno  abatimento  a  intelligencia 
nacional.  O  próprio  Verney,  que  pozera  de  manifefto  as  mi- 
ferias  intelleduaes  da  fua  pátria,  efcrevêra  longe  d'ella  como 
quem,  diftante  de  um  logar  infcdo  e  infamado,  enfina  caute- 
lofo  os  remédios  mais  profícuos  para  combater  e  debellar 
a  doença  contagiofa  e  inveterada.  Contra  o  lacrilego  inno- 
vador  fe  havia  levantado,  ardente  em  fúria  ariftotelica,  quafi 
todo  o  mundo  litterario  portuguez.  O  confelho,  a  doutrina- 
ção, a  propaganda  nada  podiam  contra  a  velha  tyrannia  da 
tradição.  Os  fedarios  da  fciencia  monachal  e  jefuitica  de- 
nunciavam como  infeíta  e  perigofa  á  religião  toda  a  novida- 
de fcientifica  e  litteraria.  O  fyftema  de  Copérnico,  a  bafe  e 
o  principio  da  moderna  aítronomia,  condemnado  em  Roma 
a  5  de  março  de  1616,  como  adverfo  ás  fagradas  efcripturas 
pela  congregação  do  indice,  permittido  apenas  como  hypo- 
thefe  — e  diga-fe  a  verdade  cruamente — ,  infamado  com  o 
nome  de  loucura  e  facrilegio  pelo  fanatifmo  de  Luthero,  não 
tinha  em  Portugal,  quem  oufaíTe  abertamente  profeíTal-o  e 
defendel-o  da  nota  e  lufpeição  de  herefia  ou  de  impiedade. 
Muitos  dos  que  le  tinham  na  melhor  conta  de  lábios  e  pen- 
fadores,  ainda  hefitavam  porventura  duvidando  fe  o  papa 
Zacharias  no  anno  de  745  não  condemnára  juftamente  a  um 
bifpo  de  notável  erudição  na  aftronomia  por  ter  enfmado  pu- 
blicamente a  exiftencia  dos  antípodas,  mais  tarde  revelados 
com  certeza  aos  mais  incrédulos  pelas  heróicas  navegações 
dos  portuguezes.  Ninguém  oufaria  contraditar  a  viciofa  cor- 
rente da  opinião  nos  aífumptos  do  enfino  e  da  fciencia.  Era 
precilb  decretar  a  emancipação  da  intelligencia,  como  o  go- 
verno legiflára  duramente  a  reftauração  da  induftria  e  do 
commercio  nacional.  Ao  defpotifmo  da  tradição,  exercido 
pelas  potencias  clericaes,  era  forçofo  contrapor  a  energia  do 


e|4 


372 

poder.  Se  a  luz  havia  novamente  de  efclarecer  a  intelligencia 
popular,  fomente  um  governo  illuminado,  poderoíb,  irrefis- 
tivel,  com  bom  êxito  podéra  proferir  o  fiat  creador,  omni- 
potente. 

No  momento  hiftorico  e  opportuno,  furge  d'aquellas 
fombras  adenfadas  a  figura  fevera  do  grande  legiflador.  In- 
quire, eítuda,  confulta,  examina,  decreta  e  executa.  Ao  golpe 
violento  do  feu  baítão,  rue  em  efcombros  o  caduco  edifício 
univerfítario.  No  folo  ermo  e  devaftado  levanta-fe  magnifica 
a  nova  e  promettedora  fundação 

Foi  apenas  por  amor  da  geral  illuftração,  foi  laftimado 
unicamente  pela  bruteza  e  ignorância  do  povo  portuguez, 
pelo  defejo  fervorofo,  mas  theorico  de  revolucionar  profun- 
damente pela  nova  fciencia  a  decrépita  e  obfcura  fociedade, 
que  Sebaftião  de  Carvalho  planeou  e  inítituiu  a  reforma  da 
inítrucção?  Certamente  ponderou  em  feu  efpirito  o  preço 
ineftimavel  da  cultura  no  valor  moral  e  económico  de  um 
povo.  Seria  porém  desfigurar  por  uma  incompleta  interpre- 
tação o  fignificado  hiftorico  dos  faftos  o  attribuir  unicamente 
a  um  zôlo  puro,  defintereífado,  philofophico  pelos  progreíibs 
da  fciencia,  a  parte  principal  na  famofa  reformação. 

O  grande,  o  máximo  problema,  em  que  efteve  empe- 
nhada a  energia  inclemente  do  minifiro  de  D.  Jofé,  a  queífão 
fundamental,  a  que  as  demais  ficavam  fubordinadas  como 
inftrumentos  indiredos  ou  como  complementos  neceífarios, 
era  a  queftão  religiofa,  era  a  empreza  de  emancipar  do  jugo 
ecclefiaítico  o  Eftado,  predominante  e  fecular.  O  enfino  frou- 
xo e  viciofo,  como  era  por  aquelles  tempos  em  Portugal, 
pendendo  quafi  inteiramente  das  ordens  religiofas  e  princi- 
palmente da  emprehendedora  Companhia,  era  um  dos  po- 
derofos  machinifmos,  que  ajudavam  o  clero  na  obra  de 
avaífallar  feguramente  o  povo  portuguez,  annuveando-lhe  a 
razão  pela  fciencia  falfa  e  anachronica,  aíTim  como  lhe  tur- 


elj 


373 

ba^■a  a  confciencia  pela  extrema  luperftição  e  pelo  mystico 
terror. 

Eílavam  expulfos,  infamados,  fupprimidos  de  fado  os 
jefuitas.  Eftavam  já  vibrados,  ás  vezes  cruamente,  os  golpes 
á  poteítade  e  predomínio  clerical  no  paiz  e  fora  d'elle.  Mas 
ficavam  a  germinar  e  a  dar  frudo  as  Tementes  da  doutrina 
em  Iblo  apenas  defbravado,  quall  maninho  para  as  idéas 
anti-clericaes  e  cifmontanas.  Fora  a  univerlidade  conimbricen- 
fe  defde  a  fua  primeira  inftituição,  como  as  outras  celebradas 
academias  da  edade  media,  uma  fundação  puramente  eccle- 
fiaflica,  erigida  por  diplomas  pontifícios.  Durante  aquelles 
íeculos  de  meia-coníciencia  para  a  Europa,  na  theoria  e  na 
pradica  vivia  confagrado  o  principio  effencial  de  que  as 
duas  poteítades  repartiam  entre  fi  o  governo  da  chriftandade 
por  tal  forma,  que  ao  facerdocio  e  á  egreja  pertencia  a  con- 
fciencia e  a  razão,  — o  que  havia  de  mais  nobre  e  efpiritual, — 
ao  império  e  ao  eítado  a  força  e  a  matéria,  o  que  havia  de  mais 
carnal  e  mais  groíTeiro  na  vida  da  humanidade.  N'efi:e  regi- 
men abforvente  do  poder  ecclefiaftico,  não  fe  dava  poíTivel 
feparação  entre  a  f é  e  a  fciencia,  entre  a  confciencia  e  a  ra- 
zão, entre  o  crime  e  o  peccado,  entre  o  homem  interior,  a 
ovelha  do  evangélico  redil,  e  o  homem  exterior  e  politico,  o 
membro  da  cidade  profana  e  temporal.  A  egreja  tomava  conta 
da  alma  humana  em  todas  as  fuás  manifeftações,  como  cain- 
do na  fua  exclufiva  jurifdicção.  Era  aífim  que  o  direito  ca- 
nónico invadia  irrefiítivel  as  relações  civis  da  fociedade.  Era 
aíTim  que  a  egreja  reclamava  as  mais  largas  e  abufivas  tem- 
poralidades, como  inftrumento  indifpenfavel  ao  perfeito  adim- 
plemento  dos  feus  fins  fobrenaturaes.  Era  aífim  que  os  pon- 
tífices romanos  fe  arrogavam  a  fupremacia  fobre  todos  os 
monarchas,  refervando  ciofamente  para  a  tiara  o  direito  de 
confirmar  as  coroas  mais  poderofas.  Era  affim  que  o  fummo 
pontificado  abfolvia  do  juramento  de  fidelidade  aos  princi- 


374 

pes,  que  tinham  incorrido  no  feu  mais  fevero  defagrado.  Era 
affim  que  as  cenfuras,  interdidos  e  excommunhões,  ainda  que 
puras  penas  efpirituaes,  eram  nas  mãos  do  paftor  univerfal  e 
nas  dos  léus  obedientes  delegados  a  arma  com  que  puniam  os 
rebeldes  á  fua  audoridade  temporal.  Era  affim  que  o  ponti- 
íice  de  Roma,  o  fucceíTor  e  o  herdeiro  do  humilde  pefcador 
de  Tiberiades,  apparecia  no  faftigio  do  poder  na  edade  me- 
dia, cingindo  os  dois  gládios  temerofos,  fymbolos  das  duas 
eminentes  poteítades  englobadas  n'uma  única  vontade. 

Da  egreja  dimanava  toda  a  claridade  para  os  efpiritos.  A 
educação,  o  enfino  e  a  fciencia  pertenciam-lhe  indivifas,  fem 
que  o  eftado  nem  de  leve  fulpeitaíTe  que  elle  podia  fer  ao 
mefmo  tempo  força  e  luz.  As  efcolas  tinham  nas  cathedraes, 
nos  cenóbios  e  nos  morteiros  a  fua  ordinária  moradia.  As 
univerfidades  recebiam  da  egreja  a  fancção  e  a  auctoridade. 
Mas  na  ordem  hillorica  nada  ha  que  não  leja  conlequente  e 
neceffario.  A  egreja,  no  meio  das  fociedades  barbaras,  incul- 
tas, illettradas,  violentas  e  groíTeiras  da  Europa  chriftã,  na 
edade  media,  cm  face  dos  potentados  oppreíTores,  brutaes, 
defnaturados,  era  em  verdade  quafi  o  único  afylo,  que  res- 
tava patente  ao  direito,  á  fciencia  e  ao  efpirito  da  humani- 
dade. Os  fabios  mais  illuftres  e  os  mais  largos  penfadores 
d'aquelle  tempo  é,  com  raras  excepções,  a  egreja  que  os  ins- 
pira e  os  recebe  carinhofa  em  feu  girão.  Alberto  Magno, 
S.  Thomás,  Rogério  Bacon,  Lanfranc,  Abeilard,  Okkam, 
Gerberto,  Anfelmo  de  Cantuaria,  S.  Bernardo,  Pedro  Lom- 
bardo, os  oráculos  da  philofophia  e  da  fciencia,  tal  qual  a 
concebia  a  edade  media,  vinculam  por  laços  eftrcitiffimios, 
como  homens  ecclefiafticos,  os  trophéus  da  intelligencia  ás 
glorias  do  fanduario.  Eram  os  tempos,  em  que  fabio  e  clérigo 
eram  fynonymos.  Decorreram  os  feculos,  tranfmudou-fe  a  con- 
dição civil  da  chriftandade.  A  reacção  meio-pagan  da  Renas- 
cença contra  a  Índole  clerical  da  edade  media,  principiou  a 

-§-6- ■ *^k-%>^ 


fecularilar  a  fciencia  e  a  erudição.  A  Reforma  de  Luthero,  de 
Calvino,  de  Zwingle  e  de  Melanchton,  infurreíta  abertamente 
contra  a  fupremacia  efpiritual  de  Roma  e  proclamando  o 
principio  do  livre  exame  e  a  excellencia  do  juizo  individual 
na  anarchia  turbulenta  das  facções  religiofas,  continuou  a  en- 
caminhar os  efpiritos  a  divorciarem-fe  da  tradição.  O  feculo 
XVIII,  com  o  feu  largo  fcepticifmo  demolidor,  abriu  os  pro- 
fundos alicerces  da  futura  forma  focial.  No  meio  da  nova 
fcena,  profufamente  já  illuminada  pelos  jorros  copiofos  de 
luz  profana  e  temporal,  a  funcção  da  egreja,  como  prece- 
ptora da  razão,  como  depofitaria  da  fciencia,  como  único 
fanal  da  educação,  havia  terminado  finalmente.  Ainda  mais, 
a  egreja,  combatida  rijamente  pelas  hereílas  recrelcentes, 
contraftada  pela  infurreição  aberta  dos  efpiritos  rebeldes, 
incitada  pela  urgência  da  defeza,  cada  vez  proclamava  com 
maior  fervor  e  valentia  o  feu  antigo  monopólio  intelledual, 
e  exaggerava  a  repreífão  contra  toda  a  fciencia  nova,  fufpei- 
tando  em  cada  original  expanfão  do  entendimento  a  fonte 
d'onde  brotaífe  uma  nova  doutrina  herética,  mal-foante,  te- 
merária ou  offenfiva  dos  ouvidos  piedofos  e  chriftãos.  É  as- 
fim  que  o  poder  ecclefiaítico,  a  partir  da  Renafcença,  fe  tor- 
na mais  ciofo  e  fufpicaz  das  novidades  fcientiíicas,  do  que 
nos  tempos  menos  luminofos  durante  a  edade  media.  É  aífim 
que  a  egreja  reprova  e  condcmna,  como  adverfas  á  lettra 
das  efcripturas  e  á  fua  authentica  exegefe  pelos  fanftos  pa- 
dres e  doutores,  as  verdades  aítronomicas  nebulofamente 
raífreadas  pelos  gregos,  e  profeíTadas  com  a  irrecufavel  evi- 
dencia das  fciencias  mathematicas  pelo  génio  dos  Coperni- 
cos,  dos  Keplers,  dos  Galileus. 

Se  Portugal  era  porventura  deítinado  a  entrar  no  con- 
cento  e  convivência  intelledual  das  nações  cultas,  que  mais 
cedo  lhe  antecederam  na  moderna  civilifação,  urgia  fecula- 
rifar  de  vez  o  enfino  publico,  feparar  da  cathedra  profana  o 


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4  si» 

-•- ^ -<^ 

376 

púlpito  da  fé,  aíTim  como  fe  bufcára  deflindar  por  fronteiras 
definidas  a  ara  do  facerdocio  e  a  fede  curul  do  império  tem- 
poral, a  egreja  e  a  fociedade,  o  throno  e  o  altar. 

Na  fituação,  a  que  haviam  chegado  as  relações  religiofas 
do  paiz,  na  contenda  tenaciífima  entre  a  egreja  e  o  eftado, 
a  oufada  inftituição  do  enfino  fecular  era  para  Sebaflião  de 
Carvalho  um  forçofo  confeftario  das  fuás  antecedentes  pro- 
videncias. Antes  de  tudo  era-lhe  neceífario  que  nada  fe  pro- 
fefTaíTe  nas  efcholas,  que  não  tiveífe  o  fêllo  obrigatório  da 
majeftade  e  independência  temporal.  A  idéa,  aíTim  como 
fuccedia  na  moeda,  não  poderia  correr  no  commercio  intel- 
leítual,  fem  o  cunho  e  a  effigie  do  foberano.  Toda  a  velha 
doutrina  fubverfiva  e  contraria  aos  direitos  primordiaes  e 
inamiíTiveis  do  eftado,  reprefentado  pelo  rei,  feria  profcripta 
e  condemnada  com  o  mefmo  rigor,  com  que  fe  pune  o  cri- 
me de  moeda  falfa.  Ora  as  doutrinas  mais  infeftas  ás  incon- 
teílaveis  prerogativas  do  poder  civil,  e  mais  propicias  ás  in- 
vafões  do  facerdocio  na  jurifdicção  e  foberania  fecular,  eram 
profeífadas  nas  efcolas  e  recebidas  pelo  vulgo  inconfciente 
como  pontos  dogmáticos  de  fé.  Era  principalmente  a  faculda- 
de de  theologia,  que  mais  urgia  reformar,  para  que,  em  provei- 
to e  luzimento  da  própria  egreja,  as  fciencias  divinas  fe  enfi- 
naífem  expurgadas  de  todo  o  abufo  e  fuperíhção,  theologia 
de  Fénélon,  de  BoíTuet,  dos  piedofos  folitarios  de  Port-Royal, 
theologia  chriftã  manando  copiofa  das  fontes  efcripturaes  e 
patrifticas,  purificada  de  todas  as  frivolidades  e  fubtilezas  da 
velha  philofophia  efcholaftica.  O  direito  canónico,  tal  qual  fe 
deveria  profeífar  n'uma  faculdade  catholica,  porém  não  fa- 
mula  da  univerfal  monarchia  pontificia,  não  chamava  com 
menor  follicitudc  a  attenção  do  legiílador.  Era  neceífario  pro- 
feífal-o  fem  as  doutrinas  deftrudivas  da  majeftade  e  fobera- 
nia fecular,  fem  as  thefcs  derivadas  das  falfas  decretaes  ifido- 
rianas.  Era  força  divulgal-o  fegundo  o  expendiam  em  feus 


_ -4^ 

377 

livros  audorifados  os  canoniftas  mais  cliriftãos  e  piedofos,  po- 
rém ao  melmo  palTo  os  mais  adverlbs  á  invaíao  ecclefiaftica 
nos  dominios  legitimos  do  eftado,  como  o  enfinavam  Gmeiner 
e  Van  Efpen,  Riegger  e  Febronio,  íeparando  por  fronteiras 
impreteriveis  o  c[ue  pertencia  a  Deus  e  o  que  o  Cefar  não  po- 
dia abdicar,  lem  jadura  e  oftenfa  grave  do  império  temporal. 
Não  menos  decadente  do  que  o  direito  canónico,  fe  ar- 
raítava  encadeado  ao  código,  ás  pandedas  e  ás  novellas,  ás 
gloíTas  e  apoftillas  dos  doutores  a  jurifprudencia  civil.  O  di- 
reito romano  relegava  para  um  quafi  total  efquecimento  o 
direito  pátrio,  havido  em  conta  de  quafi  bárbaro  pelos  zelo- 
Ibs  partidários  das  conftituições  e  leis  do  império.  A  focie- 
dade  portugueza,  como  as  das  outras  monarchias  fundadas 
fobre  as  ruinas  do  mundo  romano,  pela  mutação  dos  tempos 
e  dos  coftumes,  pela  feição  diverla  da  nova  civilifação,  mal 
podia  accommodar-fe  litteralmente  á  legillação  de  um  povo 
já  extincfo  defdc  feculos.  Entre  os  produdos  mais  admirá- 
veis do  efpirito  humano  em  todas  as  edades  não  é  de  certo 
o  direito  romano  o  que  menos  pôde  com  razão  maravilhar 
os  que  invefligam  e  meditam  as  leis  e  os  phenomenos  na 
evolução  moral  da  humanidade.  É  o  direito  romano  como 
que  o  alicerce  e  o  fundamento  das  fciencias  jurídicas  c  fo- 
ciaes.  D'elle  fão  os  princípios  capitães,  ainda  hoje  invocados 
pelos  juriftas;  d'elle  a  própria  linguagem  technica  ainda  vul- 
gar; d'elle  a  mefma  diviiao  ainda  hoje  ufada  nos  códigos 
modernos  e  nos  li^vros  dos  mais  audorifados  e  eminentes  ci- 
vilizas; d'clle  o  que  ha  de  fundamental  na  doutrina  do  efta- 
do  das  peíToas,  dos  contrados  e  obrigações,  dos  litígios  e 
acções  de  lei.  Não  foi  o  direito  romano  alheio  em  feus  influxos 
aos  códigos  das  nações  conquiífadoras,  ao  Fuero  juigo,  ao 
Breviário  de  Alarico,  ás  leis  dos  Salicos  e  Burguinhões,  quan- 
do o  elemento  bárbaro  e  germânico  pela  irrupção  dos  po- 
vos feptentrionaes  invadiu  e  modificou  a  Icgiflação  do  velho 


■♦-0-1- 

eis 


império.  O  próprio  direito  canónico  fobre  o  direito  romano 
fe  modelou,  innovando  todavia  o  que  era  congruente  á  nova 
fociedade  efpiritual,  que  havia  de  reger.  Se  Roma,  porém, 
principalmente  a  Roma  cefarea,  a  Roma  das  Theodolios  e 
Juftinianos,  ainda  após  a  lua  queda  material  perfiftia  em 
governar  pelas  fuás  leis  e  pelas  decifões  dos  feus  jurifpRi- 
dentes  as  nações  brotadas  do  leu  leio,  não  era  jufto,  nem 
racional,  que  alterada  profundamente  a  forma  Ibcial,  crea- 
das  novas  relações  delconhecidas  aos  romanos,  fagraffem 
os  jurifconfultos,  uma  luperfticiofa  veneração  aos  textos  e 
commentarios  das  fuás  leis,  menofprezando  ou  efquecendo 
inteiramente  o  direito  pátrio  e,  como  direito  fubfidiario,  a 
moderna  legiflação  dos  povos  cultos.  Contra  efte  abulo  per- 
niciofo,  com  que  nas  cathedras  os  meftres  profeífavam  a 
fciencia  dos  Ulpianos  e  dos  Paulos,  e  nos  pretórios  os  julga- 
dores derimiam  os  pleitos  fegundo  a  lei  romana  e  as  gloífas 
de  Bártolo  e  de  Accurfio,  defdenhando  por  femi-barbara  a 
pátria  legiflação,  le  levantara  Sebaftião  de  Carvalho  em  al- 
guns dos  feus  mais  celebrados  monumentos  legiflativos,  na 
famofa  providencia  antonomaíticamente  nomeada  a  lei  da 
boa  ra{ão'f  e  na  lei-  em  que,  fendo  condemnado  o  direito 
illimitado  da  ultima  vontade,  fe  eftatuiram  novas  e  faluta- 
res  difpoíições  acerca  da  facção  testamentária. 

As  fciencias  medicas  atteítavam  em  Portugal  um  eftado 
vizinho  da  barbárie  pedante  e  da  mais  obfcura  fervidão  aos 
antigos,  reprefentados  em  Galeno,  e  aos  árabes  da  edade  me- 
dia, cujo  infallivel  luminar  era  Avicenna.  Em  vão  os  Vefalios, 
os  Fallopios,  os  Fabricios  de  Aquapendente,  e  depois  d'elles 
os  Morgagnis  e  os  Harveys,  haviam  revelado  admiráveis  des- 
cobrimentos fobre  a  eflrudura  anatómica  do  homem  e  fobre 


1  Carta  de  lei  de  i8  de  agoflo  de  1769. 

2  Lei  de  9  de  feptembro  de  17Õ9. 


e|j  tia 


-<^ 

as  funcçõcs  do  organilmo.  A  anatomia  na  faculdade  de  Coim- 
bra continuava  a  ter  por  leu  guia  e  único  mentor  o  livro  De 
iifii  partiwn  do  medico  de  Pergamo.  No  livro  de  Braz  Luiz 
de  Abreu,  que  tem  por  titulo  Portugal  medico,  onde  a  mais 
vafta  e  a  mais  efteril  erudição  lacra  e  profana  convive  em 
familiar  alTociação  com  as  mais  pueris  fuperítições,  enraiza- 
das no  vulgo  e  nos  doutores,  o  efcriptor,  encruecido  na  cega 
adoração  da  antiguidade,  zombetêa  com  o  defcobrimento  fe- 
cundiíTimo  de  Graeffe,  principio  e  fonte  da  moderna  doutrina 
phyfiologica  acerca  das  funcções  da  reproducção. 

A  medicina  é  fempre,  através  da  fua  longa  hiftoria,  o 
produdo  neceíTario  do  que  o  homem  alcança  em  cada  epo- 
cha  defcobrir  e  comprehender  nas  leis  do  Kofmos.  Que  po- 
deriam pois  ler  as  fciencias  medicas  em  Portugal,  quando  a 
fua  mais  do  que  pura  auxiliar,  mãe  e  preceptora,  a  fciencia 
do  univerlb,  a  fciencia  do  mundo  inorgânico,  e  a  do  mundo 
biológico,  a  phyfica,  a  chimica,  a  hiftoria  natural  eram  tão 
rilivelmente  profeíTadas  em  Coimbra,  que  mais  valera  que  o 
filencio  acerca  da  natureza  eftiveíTe  alli  fempre  ininterrupto? 
E  de  feito  a  natureza  eftudada  em  Ariftoteles  e  nos  feus  in- 
terpretes efcholafticos,  em  Theophrafto,  e  em  Diofcorides 
e  no  leu  famigerado  gloííador  o  Meftre  André  Laguna,  era 
uma  natureza  convencional,  contrafeita  e  accommodada  ex- 
preífamente  ao  ufo  viciofo  das  efcolas. 

Urgia  pois,  no  intereíTe  da  illuftração  e  da  faude,  re- 
organifar  ou  antes  inftaurar  de  novo  e  em  racionaes  e  mo- 
dernos fundamentos  o  enfmo  medico.  Era  precifo  livrar  ao 
mefmo  paífo  as  povoações  do  galenifmo  cego  e  infciente  dos 
feus  clínicos  univerfitarios  e  da  praga  dos  cirurgiões  idiotas 
e  dos  algebriftas  c  medicaftros,  talvez  menos  perigolbs,  ape- 
lar da  curteza  das  fuás  lettras,  do  que  os  feus  vaidofos  emu- 
los,  que  embalfamavam  os  miferos  enfermos  nas  beberagens 
da  velha  polypharmacia,  e  lhes  celebravam  as  exéquias,  ain- 

-i-6- -0-§- 

e|j  eis 


38o 

da  em  vida,  com  os  textos  claíTicos  de  Galeno,  de  Hippo- 
crates,  de  Ceifo,  em  grego  ou  em  latim. 

Para  iniciar  porém  as  novas  gerações  na  medicina  ecle- 
flica  e  experimental,  defterrando  as  viciolas  tradições  da 
medicina  fyftematica,  era  neceíTario  inocular  a  fundo  nos  es- 
píritos o  culto  fcientifico  da  natureza,  como  ella  é  na  lua 
phenomenal  realidade,  e  como  fe  revela  á  obfervação  e  á 
experiência,  não  como  a  fabricaram  nos  feus  livros  os  mes- 
tres da  antiguidade,  apenas  infpirados  por  falliveis  conjedu- 
ras  ou  theoricas  antecipações.  Tudo  o  que  das  Iciencias  phy- 
ficas  e  naturaes  fe  podia  aprender  nas  efcolas  de  Portugal 
fe  reduzia  quafi  litteralmente  ás  abíurdas  e  pueris  efpecula- 
ções,  que  ferviam  de  appendice  e  complemento  á  que  então 
fe  appellidava  philolbphia.  Efcureciam  os  meftres  antes  de 
tudo  o  efpirito  do  alumno  com  as  prolixas  e  nugatorias  com- 
mentações  dos  predicamentos  ariftotelicos.  Perfuadiam-lhe 
que  no  uíb  de  artiíiciofos  fyllogifmos  fe  cifrava  todo  o  des- 
cobrimento da  verdade.  Entornavam-lhe  a  jorros  na  intelli- 
gencia  a  eftrondofa,  mas  eíteril  catadupa  de  uma  inane  dia- 
leífica,  adextrando-o  para  a  luda  dos  argumentos  palavrofos 
e  fubtis  e  para  as  oftentofas  logomachias.  Embrenhavam-n'o 
fundamente  pelas  devefas  e  andurriaes  de  uma  caliginofa  me- 
taphyfica,  tanto  mais  grata  aos  meftres  e  fabedores,  quanto 
mais  inacceífivel  á  luz  e  á  verdade.  Apoz  eífa  infecunda  pre- 
paração os  preceptores  e  os  compêndios  efcolares,  no  Colle- 
gio  das  Artes  em  Coimbra,  na  univerfidade  jefuitica  de  Évora 
e  nos  inftitutos  monachaes,  na  volumofa  compilação  appel- 
lidada  Ciirfo  Conimbricenfe  ou  na  indigefta  Philofoplua  do 
padre  Aranha,  refolviam  o  elfudo  do  univcrfo  e  das  fuás  leis 
nas  doutrinas  extravagantes  de  uma  phyfica  ideada  e  cons- 
truída pelos  raciocínios  à  priori,  fem  que  aos  feus  vaidofos 
profeífores  occorreífe  nem  de  leve  a  neceíTidade  de  inquirir 
uma  fó  vez  a  natureza  pelos  proceífos  experimentaes. 


38i 

Toda  a  philofophia  do  elpirito  e  do  Kofmos  era  pura- 
mente a  peripatetica,  ou  antes  a  efcholaftica,  dominante  na 
edade  media  e  tenazmente  perpetuada,  com  efcandalo  das 
lettras,  na  Peninfula  pyrenaica  até  fer  já  adulto  o  feculo 
decimo  nono.  Efta  parodia  ou  múmia  de  fciencia  e  as  difci- 
plinas  tradicionaes,  que  haviam  conftituido  o  trimim  e  o 
quadrimum  das  efcolas  durante  a  edade  media,  eram  feguidas 
e  veneradas  como  um  preciofiffimo  thefouro,  legado  por  umas 
a  outras  fuperfticiolas  gerações,  e  no  qual  era  defefo  introduzir 
a  menor  innovação.  Efta  era  a  forma  da  fciencia  e  da  erudi- 
ção, confagrada  praticamente  pelo  clero  durante  os  fecu- 
los  médios,  ifto  é,  durante  as  epochas,  em  que  elle  tinha 
mais  firmemente  confolidada  a  ília  mundana  dominação  e 
irrompido  vidoriofo  em  todos  os  interfticios  da  vida  civil 
e  focial. 

Ora  foi  cabalmente  na  Peninfula,  que  o  faccrdocio,  em 
tudo  quanto  mais  intimamente  fe  enlaçava  com  a  fociedade 
temporal,  exerceu  a  maior  audoridade,  e  fe  confervou  mais 
extranho  e  mais  rebelde  ás  influencias  da  profana  civilifação. 
Era  na  Peninfula  que  os  inftitutos  e  corporações  religiofas 
eram  geralmente,  comparados  com  os  da  reftante  Europa, 
os  menos  illuminados.  Os  próprios  jefuitas,  que  além  dos 
Pyreneus,  em  França,  na  Itália,  na  AUemanha,  na  Polónia, 
tinham  patenteado  as  portas  dos  feus  clauftros  á  invafão  das 
modernas  fciencias,  perfevera^'am  na  Hefpanha  e  em  Portu- 
gal addidos  e  fieis  á  velha  philofophia  e  ás  formas  efcholas- 
ticas.  Ao  influxo  perniciofo  da  preponderância  clerical,  e  á 
fevera  fifcalifação  intellectual  exercida  pela  Inquifição  no 
propofito  de  fruftrar  os  contrabandos  efpirituaes,  é  jufto  o 
accrefcentar  uma  nativa  e  genial  difpofição  dos  povos  penin- 
fulares  para  ferem  confervadores  e  adverfos  ás  innovações 
audaciofas  e  ás  creações  originacs  em  tudo  quanto  cáe  fora 
dos  términos  da  opulenta  e  inJifciplinada  imaginação  meri- 


-<>^ 

382 

dional.  E  de  feito  parece  que  os  Bacons,  os  Defcartes,  os 
Copernicos,  os  Keplers,  os  Galileus  encontram  quafi  fáfara 
e  madrafta  a  ubérrima  região,  onde  ao  foi,  que  fecunda  e 
aquenta  a  arte  e  a  poefia,  defabrocham  inimitáveis  os  génios 
de  Camões  e  de  Cervantes,  de  Velafques  e  de  Murillo.  AíTim 
como  ha  para  as  floras  e  para  as  faunas  uma  repartição  geo- 
graphica  natural,  affim  parece  também  que  ao  fabor  dos 
climas  e  dos  logares  ha  para  a  Europa  civilifada  uma  geo- 
graphia  intelleftual,  uma  diviíao  do  trabalho  para  os  efpi- 
ritos,  uma  condição  predileda  e  efpecial  para  as  mentaes  e 
creadoras  vocações. 

Era  pois  urgente  fubftituir  á  enervante  philofophia  das 
efcolas  jefuiticas  e  monachaes  uma  nova  fciencia  profeíTada 
em  inftitutos  fundados  de  raiz  e  immunes  da  eiva  tradicional. 
De  todas  as  fcientificas  efpeculações,  a  que  pôde  levantar-fe 
a  razão  humana,  nenhuma  ha  porventura,  que  mais  a  grati- 
fique pelos  feus  frudos  do  que  o  eftudo  experimental  da  natu- 
reza. Efta  é  de  todas  as  philofophias  a  menos  declive  para  o 
erro  e  a  mais  preftadia  e  mais  fecunda  em  verdadeiros  reilil- 
tados  para  a  illuminação  do  entendimento  e  para  os  progres- 
fos  fociaes.  Cumpria  forçofamente  abrir-lhe  praça  no  quadro 
dos  eftudos  fuperiores,  inftituindo  própria  faculdade,  em  que 
fe  podeffe  profeíTar. 

E,  porém,  quali  impoíTivel  o  interpretar  a  natureza  fem 
que  para  elevar-fe  ao  defcobrimento  das  fuás  leis,  o  efpirito 
fe  prevaleça  de  uma  lógica  mui  outra  do  fyllogifmo  reveren- 
ciado nas  efcolas  monachaes;  lógica  fublime,  que  nas  mãos 
dos  geómetras  immortaes  é  ainda  mais  poderofa  do  que  os 
telefcopios  mais  perfeitos,  e  os  apparelhos  mais  fenfiveis  para 
ler  nos  céus  a  chimica  das  eftrellas,  e  defcortinar  no  Kosmos 
os  arcanos  da  matéria.  E  eíte  fecundiffimo  inftrumento,  com 
que  na  edade  moderna  da  fciencia  os  aftronomos  pefaram  o 
univerfo  e  os  ph)íicos  reduziram  a  leis  invariáveis  os  phe- 

-i-i-» -<í^ 


eis 


383 

nomenos  do  fom  e  do  calor,  da  luz,  da  eleíítricidade  c  ma- 
gnetiímo.  E  a  geometria  e  a  mechanica  e  a  analyfe  mathe- 
matica,  lao  as  azas  ligeiriíTimas  do  penfamento,  a  machina 
de  vapor  do  trabalho  intelledual. 

Depois  de  terem  florecido  por  algum  tempo  em  Portugal, 
principalmente  pelo  talento  admirável  de  Pedro  Nunes,  em 
tanta  maneira  as  fciencias  mathematicas  haviam  decaído, 
que  apenas  d'ellas  fe  aprendiam  taxados  e  incompletos  rudi- 
mentos. Enlinavam-n'as,  é  verdade,  os  jefuitas  nos  feus  colle- 
gios,  profeíravam-n'as  principalmente  em  Santo  Antão,  onde 
a  aula  chamada  da  Sphera  fora  durante  muitos  annos  o  in- 
ftituto  principal,  a  que  os  engenheiros  acudiam  para  a  fua 
imperfeita  doutrinação.  D'ali  tinham  faido  as  obras  do  padre 
Manuel  de  Campos,  havidas  no  feu  tempo  como  claíTicas, 
apefar  do  feu  cunho  elementar.  Era  nos  ofíiciaes  do  exercito, 
mais  ciofos  de  faber,  que  fe  confervava  efpecialmente  a 
herança  dos  conhecimentos  mathematicos,  e  os  nomes  de 
Manuel  de  Azevedo  Fortes,  de  Serrão  Pimentel,  de  Manuel 
da  Maia,  atteftavam  que  ainda  havia  quem  n'eíla  parte  hon- 
raíTe,  quanto  podia,  o  nome  portuguez.  Mas  as  admiráveis 
conquiftas  da  geometria,  do  calculo,  da  dynamica,  da  aftro- 
nomia  phyfica,  da  mechanica  celeíte,  afelladas  com  os  nomes 
gloriofos  de  Newton,  de  Pafcal,  de  Leibnitz,  de  Clairaut  e 
D'Alembert,  d'efta  luminofa  dynaftia  de  geómetras,  que  ti- 
veram o  nome  de  Bernouilli,  ou  eram  inteiramente  ignoradas 
em  Portugal,  ou  não  tinham  um  lo  reprefentante  nos  eítudos 
fuperiores.  A  velha  univerfidade  encadeada  aos  predicamen- 
tos ariftotelicos,  adextrada  na  gymnaftica  do  fyllogifmo,  ar- 
dente dcfenfora  de  todas  as  archaicas  doutrinas  carcomidas 
acerca  do  efpirito  e  da  natureza,  defdenhava  por  indignas 
da  borla  doutoral  as  fciencias  fecundiífimas  do  movimento 
e  da  grandeza.  Não  podia  efconder-fe  ao  audaz  reformador 
dos  efludos  nacionaes  efta  mingua  laflimnfa,  que  era  ao  mes- 


c|3 


eis 


384 

mo  paffo  uma  ignominia  e  um  atteítado  vergonhofo  da  noíTa 
decadência  intelledual.  Deu  pois  entrada  ás  mathematicas  na 
reformada  univerlldade.  AíTignou-Uies  faculdade  privativa, 
como  quem  defejava  reparar  com  honrofas  crefces  o  defpre- 
zo  e  vitupério,  em  que  tinham  por  feculos  jazido  em  Portugal. 
Confirmado  no  animo  do  eftadifta  o  propofito  de  reformar 
a  inítrucção,  cuidou  na  traça,  que  haveria  de  levar.  Era  for- 
çofo  achegar  para  os  eftudos  preliminares  de  tão  árdua  refor- 
mação os  poucos  elementos,  que  tinham  alcançado  fuhtrahir- 
fe  á  geral  ignorância  ou  ao  phantafma  pedante  do  faher, 
ainda  mais  perniciofo  que  a  infciencia.  Veiu  a  inftituir  uma 
grande  congregação  de  homens  defabufados  e  eruditos,  a  que 
chamou  a.  Junta  da  Propidencia  Litteraria\  Prefidiam  a  efte 
confelho  o  próprio  Sebaftião  de  Carvalho  e  o  arcebifpo  de 
Évora  já  então  condecorado  com  a  purpura  cardinalícia.  Eram 
membros  d'aquella  junta  D.  Fr.  Manuel  do  Cenáculo,  agora 
elevado  á  dignidade  epifcopal  na  fé  de  Beja,  novamente 
inftituida,  os  defembargadores  Joíe  Ricalde  Pereira  de  Cas- 
tro, Jofé  de  Seabra  da  Silva,  procurador  da  coroa,  Francifco 
António  Marques  Geraldes,  Francifco  de  Lemos  de  Faria, 
reitor  da  univerfidade,  Manuel  Pereira  da  Silva  e  João  Pe- 
reira Ramos  de  Azeredo  Coutinho.  Eram  todos  devotadiíTi- 
mos  fedarios  do  primeiro  miniítro,  zelofos  cooperadores  da 
fua  empreza,  fieis  executores  da  fua  vontade,  inimigos  impla- 
cáveis dos  jeluitas,  ardentes  propugnadores  das  foberanas 
regalias  contra  as  ufurpações  e  demafias  clericaes.  Nem  todos 
primavam  pela  inteireza  do  caracter,  nem  luziam  egualmente 
pelo  efplendor  das  fuás  lettras,  mas  eram  todos  conformes 
em  bem  fervir  o  fevero  reformador.  Pozeram  mãos  á  empreza 
com  indefeíTa  applicação  e  boa  vontade.  Repetiam-fe  as  jun- 
tas e  as  confultas.  Crefcia  a  obra  a  olhos  vifta.  O  primeiro 


'  Carta  de  23  de  dezembro  de  1770. 


_ .-(Ç>-§^ 

385 

frudo,  com  que  a  erudita  congregação  faíu  a  lume,  foi  o  Com-  . 
pendio  hijlorico  do  ejlado  da  iiniverjidade  de  Coimbra,  efcripto 
ílibftanciofo  e  eruditiíTimo,  onde  com  a  forma  fefquipedal 
e  a  bombaftica  majeftadc  caraderiftica  dos  efcriptos  ofiiciaes 
na  epocha  pombalina,  fe  defcrevia  por  feus  paíTos  contados 
a  fucceíTiva  decadência  e  abatimento,  em  que  fe  havia  pre- 
cipitado a  velha  univerfidade  portugueza  defde  os  infauífos 
dias  do  fombrio  D.  João  III.  D'eíta  laítimofa  degradação  in- 
telledual  fe  imputava  no  livro  a  culpa  inteira  aos  funeftos 
influxos  jefuiticos,  accumulando  contra  a  ordem  condemna- 
da  os  epithetos  mais  injuriofos. 

Compoz  a  Jimta  da  providencia  litteraria  e  confirmou  o  rei 
pela  carta  regia  de  28  de  agoflo  de  1772  os  novos  eítatutos, 
pelos  quaes  haveria  de  reger-fe  a  renafcente  univerfidade.  E 
renafcente,  fe  não  inteiramente  renovada,  era  a  litteraria  in- 
ftituição,  que  das  ruinas  do  velho  edifício  jefuitico  brotava 
promettendo  inefperado  luzimento  á  decaída  intelligencia  em 
Portugal.  Pela  nova  legiflação  académica  eram  declarados 
fem  vigor  os  antigos  eftatutos  de  iSgS,  fabricados  fob  o  in- 
fluxo e  direcção  da  Companhia.  A  faculdade  theologica,  por 
fer  a  que  mais  inteiramente  fe  prendia  á  confiante  preoc- 
cupação  do  grande  legiflador,  foi  a  que  antes  de  todas  lhe 
attrahiu  a  attenção  para  que  foíTe  completa  e  ajuftada  aos 
modelos  mais  infignes  d'aquelle  tempo  a  fua  orthodoxa  dou- 
trinação. Repartiam-fc  os  eftudos  por  oito  cadeiras,  nas  quaes 
havia  de  profeflar-fe  a  theologia  dogmática  e  polemica,  a 
theologia  moral,  chriftan  e  defpojada  de  todas  as  theorias 
probabiliflas  e  de  todas  as  relaxações  da  confciencia,  a  exe- 
gcfe  do  antigo  e  do  novo  Teftamento,  a  hifloria  ecclefiaflica, 
e  a  liturgia.  Deviam  fer  oito  os  cathedraticos,  féis  os  fubíti- 
tutos,  illimitado  o  numero  de  oppofitores,  chamados  even- 
tualmente á  regência  d'aquelles  curfos,  quando  o  pediífe  a 
neceíTidade.  Os  lentes  haveriam  de  fer  efcolhidos  por  cgual 

^%-h^ -<5^ 

ela  eis 


(|3 


386 


e  em  ordem  alternada  entre  o  clero  fecular  e  as  corporações 
religiolas. 

As  duas  antigas  faculdades  jurídicas,  a  de  cânones  e  a  de 
leis,  foram  confervadas  na  fua  primitiva  independência.  Para 
ambas  fe  inítituiram  dezefeis  cadeiras  com  egual  numero  de 
cathedraticos  e  mais  féis  ílibítitutos  para  cada  faculdade.  Os 
eítatutos  proclamavam  a  preexcellencia  das  leis  pátrias  febre 
as  romanas,  concedendo  ás  imperiaes  a  funcção  de  fubfidia- 
rias,  quando  não  contradigam  a  boa  razão.  O  eníino  do  di- 
reito portuguez  recebia  novos  defenvolvimentos,  como  que 
naturalmente  fe  antepunha  á  legiflação  e  aos  coítumes  de  uma 
nação  antiga  e  mui  diverfa  das  fociedades  modernas  e  chris- 
tans.  Como  eíTencial  e  luminofa  propedêutica  ás  doutrinas  do 
direito  civil  de  Portugal,  ordenavam  os  eítatutos,  que  na  fa- 
culdade jurídica  fe  enfinafle  o  direito  natural  e  o  das  gentes, 
a  hiftoria  do  direito  romano,  e  a  hiitoria  particular  do  povo 
portuguez  e  da  lua  peculiar  legiflação.  N'eíta  parte  prefcre- 
viam  os  eítatutos,  que  o  profeífor  expendeífe  e  condemnaífe 
claramente  as  perigofas  innovações,  as  máximas  ultramonta- 
nas  introduzidas  na  pátria  legiflação  para  amefquinhar  e  des- 
luzir  as  regalias  majeftaticas  em  beneficio  das  preteníoes  tem- 
poraes  do  clero  e  dos  pontífices. 

A  invencível  fupremacia,  que  nos  eítatutos  novos  ainda 
mantinham  as  fciencias  moraes  e  theologicas  fobre  as  exa- 
étas,  phylicas  e  naturaes,  denuncia-fe  na  eftreiteza  relativa, 
com  que  fão  n'elles  iníthuidas  as  faculdades  de  mathematica 
e  philofophia,  e  principalmente  a  de  medicina.  Ao  enlino 
medico  eram  deputadas  unicamente  féis  cadeiras  com  egual 
numero  de  cathedraticos,  apenas  dois  lentes  fubftitutos,  e  ou- 
tros tantos  demonítradores. 

Somente  quatro  cadeiras  conftituiam  a  faculdade  de  ma- 
thematica. Outros  tantos  cathedraticos  e  dois  lentes  fubltitu- 
tos  deviam  eníinar  as  mathematicas  elementares,  o  calculo 


387 

infinitefimal,  a  mechanica  ou,  fegundo  iVaquelle  tempo  le  cha- 
mava, a  phoronomia,  e  a  aftronomia  pratica.  Inftaurava-fe  ao 
mefmo  paffo  um  obfervatorio,  neceffario  complemento  dos 
bons  eítudos  aftronomicos.  Reconhecendo  a  aka  importância 
das  mathematicas  e  bufcando  fomentar  o  feu  cultivo  em  terra, 
onde  tanto  andavam  efquecidas  ou  delprezadas,  convidava  o 
legillador  á  frequência  da  nova  faculdade  com  attraífivos  ali- 
cientes,  abrindo,  aos  que  n'ella  fe  graduaíTem,  algumas  das 
mais  honrofas  carreiras  publicas,  e  concedendo-lhes  valiofas 
preferencias  no  ferviço  do  exercito  e  da  armada. 

A  faculdade,  que  nas  velhas  univerfidades  tinha  o  nome 
claíTico  das  artes,  — fubentendendo  n'efta  denominação  a 
grammatica,  a  rhetorica,  a  lógica,  a  arithmetica,  a  geome- 
tria, a  mufica  e  a  aftronomia, —  foi  abolida  por  efteril,  ana- 
chronica,  e  fomente  accommodada  a  viciar  a  inftrucção.  No 
feu  logar  erigiu-fe  a  faculdade,  que  o  legiflador  cognominou 
de  Philofophia,  fe  bem  o  feu  deftino  principal  foífe,  não  já  o 
profeífar  as  nebulofas  efpeculações  da  metaphyfica,  fenão 
o  divulgar  as  fans  doutrinas  das  fciencias  phyficas  e  naturaes. 
A  philofophia  racional  e  moral,  entrava,  porém,  no  quadro 
da  noviíTima  faculdade;  a  phyfica,  a  chimica  e  a  hiíforia  na- 
tural completavam  o  currículo  académico.  Somente  quatro 
cadeiras  com  outros  tantos  cathedraticos,  e  dois  lentes  fubfti- 
tutos,  altribuia  a  nova  legiflaçáo  ás  fciencias  da  natureza,  já 
então  opulentiíTimas  de  novos  defcobrimentos  e  largamente 
divulgadas  pela  Europa.  A  mineralogia,  a  botânica,  a  zoolo- 
gia, haveriam  de  fer  enfinadas  n'um  fó  curfo  e  n'um  fó  anno. 
Reduzia-fe  por  eíta  forma  o  feu  eftudo  ás  mefquinhas  di- 
menfões  da  fciencia  profeífada  n'um  inífituto  fecundario. 
Apefar,  porém,  da  mefquinhez  com  que  o  legiflador,  depois 
das  fuás  larguezas  jurídicas  e  theologicas,  repartia  o  feu  qui- 
nhão á  natureza  e  aífegurava  o  logar  nos  feus  geraes  á  philo- 
fophia experimental,  efte  primeiro  e  fyífematico  luzir  das  que 


ela 


ela 


-Í-6-» — : ^-^Hr 

388 

podem  chamar-fe  as  fciencias  da  moderna  civilifação,  era 
tão  novo,  tão  extranho  em  terra  habituada  a  fermonarios,  e 
apoftillas  de  theologos  efcolafficos  e  de  romaniílas  eruditos, 
que  affim  mefmo  ainda  atteílava  a  larga  previdência  do  illus- 
trado  legiflador.  A  philofophia  da  natureza  apparecia  então 
ao  egoifmo  dos  governos,  como  menos  valiofa  e  preftadia  que 
as  demais  difciplinas  profeíTadas  na  refundida  univerfidade. 
A  theologia  haveria  de  educar  prelados  e  inquifidores,  zelofos 
de  feparar  o  facerdocio  e  o  império;  os  cânones  e  as  leis,  ha- 
veriam de  formar  jurifperitos  c  togados,  egualmente  dextros 
em  defender  as  prerogativas  do  foberano  abfoluto  contra  as 
irrupções  temporaes  da  egreja,  e  as  tentações  da  popular  au- 
tonomia. A  medicina  recommendava-fe  como  fciencia  da  vi- 
da material.  As  mathematicas  faziam  navegadores  e  enge- 
nheiros. Mas  as  fciencias  naturaes,  apefar  do  efplendor,  com 
que  já  refulgiam  pela  Europa,  ainda  não  fe  entendia  cabal- 
mente como  podiam  lifonjear  no  mefmo  grau  a  intereífeira 
conveniência  dos  eftados.  Eram  os  tempos,  em  que  Franklin, 
o  phyfico  democrata,  não  era  já  menos  illuítre,  fegundo  o 
verfo  latino  de  Turgot,  por  haver  arrebatado  o  raio  ás  nuvens 
do  que  o  fceptro  aos  tyrannos.  Mas  os  milagres  da  phyfica  e 
da  chimica  eftavam  ainda  apenas  em  principio.  Ninguém  po- 
derá ainda  adivinhar  o  que  feria  a  induftria  librada  n'eftas 
duas  azas  poderofiíTimas,  rafgando  os  voos  maravilhofos  do 
prefente.  Sebaftião  de  Carvalho  e  os  feus  cooperadores  na 
creação  do  novo  enfmo,  não  fão  pois  menos  dignos  de  agra- 
decimento e  de  louvor.  A  fua  generofa  follicitude  em  obfe- 
quio  ás  fciencias  da  natureza,  apparece  teífificada  pela  gran- 
diofa  inftituição  do  mufcu  univerfitario,  do  jardim  botânico, 
do  gabinete  de  phyfica  experimental  e  do  laboratório  defti- 
nado  á  chimica  pradica.  E  elle  o  introdudor  das  fciencias 
mathematicas,  phyficas  c  naturaes  nos  quadros  do  enfmo  por- 
tuguez.  Ser-lhe-hia  de  fobra  efte  fó  titulo  para  que  o  feu  no- 

ejj  ti» 


389 

me  refplandeceíTe  gloriolb  na  hirtoria  da  intelligencia  em  Por- 
tugal. Foi  tal  e  tão  fubida  a  fignificação,  que  attribuiu  á  fua 
miíTão  de  reformador,  ou  antes  de  novo  inffituidor  do  enfino 
pátrio,  que  para  efta  funcção  legiflativa  julgou  neceffario  con- 
decorar-fe  com  todo  o  efplendor  da  majeftade. 

Pela  carta  regia  de  28  de  agofto  de  1772  conferiu  D.  Jofé 
ao  feu  miniftro  a  eminente  dignidade  e  os  latilTimos  poderes 
de  feu  plenipotenciário  e  logar-tenente  na  fundação  da  nova 
univeríidade.  PaíTou  o  reformador  á  cidade  de  Coimbra  com 
todo  o  apparato  e  oftentação  de  monarcha  verdadeiro,  dei- 
xando na  fombra,  que  merecia  em  empreza  de  tanta  magni- 
tude, o  foberano  mais  aífedo  a  monterias  que  propenfo  a 
praticas  mentaes.  Foi  logo  pondo  em  feu  vigor  os  eftatutos  e 
ordenando  o  que  cumpria  á  fabrica  e  alojamento  da  refor- 
mada academia.  Do  collegio  dos  jefuitas  applicou  uma  parte 
á  univerfidade,  e  mandou  que  no  caífello  fe  erigiífe  um  edifício 
nobre  e  accommodado  a  fervir  de  obfervatorio'.  Reftaurou  e 
encorporou  na  univerfidade  o  collegio  das  artes,  memorando 
no  diploma,  que  o  reífituiu  á  fua  antiga  fiorefcencia,  as  glorias 
litterarias,  de  que  fora  nobiliffimo  theatro,  e  renovando  as 
tremendas  accufações  contra  os  jefuitas,  que  fob  a  fua  direc- 
ção o  tinham  defluftrado  e  corrompido^  Elegeu  para  as 
fciencias  moraes  e  pofitivas  as  maiores  habilidades,  que  fe 
lhe  depararam  no  meio  da  quali  geral  corrupção  das  boas 
lettras,  provendo  as  cadeiras  em  peífoas  nacionaes.  Era  porém 
de  todo  inexequível  encontrar  homens  confummados,  ou  ao 
menos  competentes  nas  fciencias  mathematicas,  phyficas  e 
naturaes  para  lhes  commetter  a  inífauração  do  novo  eníino 
em  difciplinas  ignoradas  quafi  inteiramente  em  Portugal.  Para 
a  faculdade  de  mathematica  ainda  lhe  deparou  a  boa  fortuna 


'  Carta  regia  de  1 1  de  outubro  de  1772. 

2  Provifão  do  logar-tenente,  de  iG  de  outubro  de  1772. 


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eis  elí 


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dois  nomes  illuftriffimos,  Jofé  Monteiro  da  Rocha  e  Jofé  Anas- 
tafio  da  Cunha.  E  é  notável  que  por  uma  fmgular  ironia  do 
acafo,  Jofé  Monteiro  era  faido  havia  poucos  annos  dos  claus- 
tros da  própria  Companhia,  cujos  profundiíTimos  eftragos  na 
inftrucção  o  miniftro  de  D.  Jofé  era  chamado  a  reparar.  De 
todas  as  ordens  e  congregações  religiofas,  fomente  a  profcri- 
pta  fociedade  teve  a  honra  de  contar  um  dos  feus  antigos 
membros  entre  os  que  iam  derramar  defde  as  cathedras 
noviffimas  a  luz  da  fciencia  moderna  e  fecular.  Jofé  Anafta- 
fio  era  official  de  artilheria  e  honrava  o  exercito  portuguez, 
atteftando  nobremente  que  nas  fuás  fileiras,  apefar  da  velha 
negligencia  governativa  em  promover  e  favonear  os  bons  es- 
tudos, fe  confervára  nunca  extindo  o  fogo  das  fciencias,  que 
mais  illuftram  e  ennobrecem  a  razão.  Os  dois  únicos  repre- 
fentantes  portuguezes  das  fciencias  mathematicas  na  recente 
univerfidade  eram  pois,  como  aítronomo  diftinclo,  um  je- 
fuita,  como  geometra,  um  livre  penfador,  para  quem  já  de 
longe  fe  apparelhavam  as  futuras  perfeguições  da  inquifição. 
Os  demais  profeífores  foi  neceífario  mcndigal-os  entre  nações 
extranhas.  Eram  para  a  faculdade  de  mathematica  o  piemon- 
tez  Miguel  António  Ciera  e  o  veneziano  Miguel  Franzini.  A 
faculdade  de  philofophia  teve  como  feus  primeiros  cathe- 
draticos  nas  fciencias  phyficas  e  naturaes  os  italianos  Van- 
delli  e  Dalla  Bella,  que  em  Pádua  haviam  tido  egual  offi- 
cio.  Todos  eftes  notáveis  extrangeiros  tinham  de  Itália  vindo 
a  Portugal  para  enfinarem  as  fciencias  phyficas  e  mathema- 
ticas no  coUegio  de  nobres.  Agora  trafladados  a  Coimbra 
os  profeífores,  e  de  vez  inítituido  o  novo  enlino,  abolia  o  le- 
giílador  as  cadeiras  correfpondentes  no  coUegio',  confagran- 


>  Carta  de  lei  de  lo  de  novembro  de  1772,  extinguindo  no  collcgio  de  no- 
bres os  efludos  phyficos  e  mathematicas  por  exiltirem  já  eftabelecidos  em  a 
nova  univerfidade. 

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do-o  unicamente  á  inftrucção  nas  humanidades.  Já  a  cila 
fafão  deixava  Sebaítião  de  Carvalho  inftituida  a  univerfi- 
dade,  aberta  folemnemente  pelo  miniftro  logar-tenente  cm 
outubro  de  1772.  Volvera  á  capital,  tendo  cumprido  a  mais 
illuftre  e  memorável  das  fuás  audazes  reformações.  Porque 
era  porém  agora  neceílario  que  deílie  Lifboa  vigiaíTe  a  nova 
planta,  ainda  mal  fegura  em  terra  ingrata,  e  acudiíTe  com 
affiduas  providencias  a  folidar  a  inftituição,  foi-lhe  proro- 
gado  o  officio  de  logar-tenente.  Inveftido  n'efta  podcrola 
magiftratura,  era  elle,  no  lignificado  ampliffimo  da  palavra, 
o  didador  da  intelligencia  e  o  monarcha  da  inftrucção  '. 
Se  o  miniftro  audazmente  revolucionário  confiderava  a  fua 
luda  com  as  potencias  clericaes  uma  empreza  gloriofa,  não 
era  menos  aquilatada  no  leu  animo,  como  obra  monumen- 
tal, a  fundação  da  univerfidade.  Refpondendo  ao  bifpo  de 
Zenopolis,  D.  Francifco  de  Lemos,  reitor  da  univerfidade, 
e  á  deputação  que  viera  agradecer  a  D.  Jofé  a  fruduofa  re- 
nafcença  da  caduca  inftituição,  o  grande  reformador,  attri- 
buindo  ao  foberano  o  louvor,  que  a  íi  próprio  lhe  quadrava, 
podia  aííirmar  com  hiftorica  verdade,  que  era  aquella  nova 
creação  «o  mais  gloriofo  monumento  do  feu  feliz  reinado^». 
Se  a  univerfidade  era  porém  deftinada  a  renovar  a  vida 
intelleílual  e  a  iniciar  o  povo  portuguez  na  moderna  civili- 
fação,  a  fua  luz  diff"undia-fe  apenas  direitamente  pelos  eftra- 
tos  fuperiores  da  fociedade.  Creando  aíTim  uma  ariftocracia 
litteraria  e  fcientifica,  fomente  o  inftituto  renafcente  poderia 
por  uma  acção  reflexa  e  indireda  influir  nas  claífes  popu- 
lares, as  mais  defalumiadas  e  envilecidas  pela  fua  diuturna 
obfcuridade,  e  por  iífo  as  que  mais  inftantemente  dcmanda- 


'  Carta  regia  de  6  de  novembro  de  1772. 

2  OíTicio  do  marqucz  de  Pombal  ao  reitor  da  univerfidade,  na  Cnllecçáo 
de  legijlação,  de  Trigofo,  manuícripto  da  Academia  das  Sciencias  de  Lifboa. 


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392 

vam  os  benefícios  da  inftrucção.  São  as  univerfidades  e  as 
efcolas  fuperiores  como  intenfos  focos  de  luz  centraliíados  nas 
eminentes  regiões  da  fociedade,  e  lançando  apenas  alguns 
pallidos  clarões  nas  profundezas  fociaes.  Tendem  a  fazer  da 
illuítração  um  privilegio  e  da  fciencia  uma  oligarchia.  So- 
mente a  efcola  popular,  modeíta,  mas  patente  aos  humildes 
e  aos  pequenos,  alcança  diftribuir  fraternalmente  a  nutrição 
efpiritual  e  alumiar  com  bem  repartida  intenfidade  a  maíTa 
inteira  da  nação.  Nunca  houvera  em  Portugal  enfino  para  o 
povo.  Mas  Sebaílião  de  Carv^alho,  apefar  do  leu  ahfolutifmo 
intranfigente  e  fyftematico,  defde  as  eminências,  em  que  a  fua 
vifta  fe  alongava  no  futuro,  comprehendia  a  máxima  doutri- 
naria. «Tudo  para  o  povo,  nada  pelo  povo».  O  próprio 
egoifmo  da  coroa  abfoluta  devia  cifrar  o  feu  intereíTe  em  re- 
ger uma  nação  illuminada,  opulenta,  poderofa,  trabalhadora. 
Trifte  haveria  de  fer  a  condição  de  um  rei,  fenhoreando  a 
uma  turba  de  mendigos  ou  a  uma  horda  de  felvagens,  inve- 
terados na  abufão,  jubilados  no  preconceito  e  encanecidos  na 
barbárie.  Ainda  outra  razão  ponderofiffima  o  determinava  a 
preencher  nos  quadros  da  inftrucção  a  lacuna,  que  deixava  a 
efcola  primaria.  Sebaftião  de  Carvalho  na  fua  porfia  tenaz  e 
inclemente  com  o  poder  clerical  e  jefuitico,  vira  na  ignorân- 
cia e  bruteza  popular  um  dos  mais  irrefiftiveis  adjutorios  do 
feu  antagonifta.  Um  povo  illuftrado  não  pôde  fer  uma  confra- 
ria de  fanáticos.  A  luz  da  intelligencia  não  pôde  confentir  as 
trevas  da  fuperftição. 

Eftavam  Já  abertos  os  novos  eftudos  fuperiores,  quando 
o  previdente  legiflador  acudiu  a  inftituir  o  enfino  commum  e 
popular".  Devia  fer  miniftrado  em  efcolas  publicas  diftribuidas 
por  todo  o  território  portuguez.  As  difciplinas  profeífadas  ha- 
viam de  fer  a  leitura,  a  efcripta,  a  orthographia,  e  os  ele- 


i  Alvará  de  6  de  novembro  de  1772 


393 

mentos  indifpeníaveis  da  grammatica,  principalmente  no  que 
era  concernente  d  recta  conftrucção  da  linguagem,  o  calculo 
arithmetico,  a  doutrina  chriftan  e  a  civilidade.  Era  eíTencial- 
mente  o  mefmo  quadro,  que  até  ás  reformas  da  inftrucção 
cm  i836  havia  comprehendido  tudo  quanto  os  legilladores 
tinham  julgado  fuííiciente  á  illuftração  rudimentar.  Inftituia 
o  reformador  quatrocentas  e  fetenta  e  nove  efcolas,  c]ue  cha- 
mava de  ler  e  efcrcver,  attribuindo  ao  reino  quatrocentos  e 
quarenta,  vinte  e  quatro  aos  dominios  portuguezes  no  ultra- 
mar, e  quinze  ás  ilhas  adjacentes.  Além  do  enfmo  official  era 
permittido  aos  particulares  o  magifterio,  comtanto  que  attes- 
taíTem  em  exame  publico  a  fua  capacidade.  Na  mefma  pro- 
videncia legiflativa,  que  fundava  a  inftrucção  primaria,  fe 
regulava  o  numero  e  a  diftribuição  das  cadeiras  de  humani- 
dades. Os  profeíTores  de  latim  deviam  fer  duzentos  e  trinta 
e  féis,  os  de  grego  trinta  e  oito,  e  quarenta  e  nove  os  de  rhe- 
torica.  A  philofophia,  que  na  primeira  inftituição  do  enlino 
litterario  não  tivera  reprefentação,  achava  melhor  graça  aos 
olhos  do  legiflador,  e  devia  profeíTar-fe  em  trinta  e  cinco  au- 
las em  todo  o  âmbito  das  terras  portuguezas. 

Havia,  como  defde  logo  é  manifefto,  uma  extrema  defpro- 
porção  entre  o  numero  das  efcolas  confagradas  á  educação  e 
enfmo  popular,  e  a  largueza  exuberante,  com  que  era  dota- 
da a  inftrucção  gymnafial  ou  fecundaria.  Era  harto  parcimo- 
niofo  o  quadro  dos  profcífores  primários,  exceífivo  certamente 
o  dos  que  tinham  por  encargo  diffundir  as  lettras  claíficas.  Se 
attentarmos,  porém,  em  que  era  novo,  defufado  até  ali,  quafi 
havido  por  inútil  ou  fuperfiuo  o  enfmo  da  gente  commum  e 
não  lettrada,  e  em  que  por  toda  a  Europa  era  vulgar,  ainda 
nos  paizes  de  maior  cultura,  o  cifrar  nas  humanidades,  prin- 
cipalmente no  latim,  o  melhor  thcfouro  e  ornamento  intelle- 
dual,  não  podemos  forrar-nos  a  admirar  como  uma  oufada  e 
falutar  innovação  o  reputar  o  legiflador,  como  um  encargo 

^%-^ -<^ 


4  9Vi 

-• -<ç»-i- 

394 

publico,  defde  então  imprefcriptivel,  o  enfino  primário  mi- 
niftrado  ás  mais  humildes  e  fertanejas  povoações.  Se  refle- 
ítirmos  em  que  atrazo  laftimofo  ainda  fe  encontra  a  educação 
official  do  povo  portuguez,  agora  que  é  decorrido  mais  de  um 
feculo  depois  do  giganteo  esforço  de  Pombal,  fe  rememorar- 
mos a  fumma  difiiculdade  em  obter  meftres  idóneos  e  pres- 
tadios,  é  forçoíb  confeíTar,  que  pefadas  as  circumítancias  do 
tempo  e  a  Índole  diverfa  na  forma  governativa,  as  quatrocen- 
tas e  fetenta  e  nove  efcolas  inftituidas  pelo  miniftro  de  D.  Jofé 
reprefentam  um  paíTo  mais  audaz  nos  progreíTos  nacionaes 
do  que  as  três  ou  quatro  mil,  com  que  Portugal  confegue 
apenas  fobrepôr-fe  á  Ruffia  e  á  Turquia  no  mappa  compa- 
rativo do  enfino  popular  em  toda  a  Europa. 

Não  podéra  Sebaílião  de  Carvalho,  na  prefença  da  monar- 
chia,  abolir  a  nobreza  hereditária,  depois  de  apagar  na  legis- 
lação e  nos  coftumes  a  diftincção  das  caílas  e  das  famílias, 
nem  difpenfar  inteiramente  o  patriciado  como  elemento  íbcial. 
Pretendera  porém  aproveital-o,  encaminhando-o  á  commu- 
nhão  com  a  nova  fociedade  pelo  baptiímo  da  illuítração  e  da 
fciencia.  Creára  para  efte  fim  expreíTamente  o  CoUegio  de 
nobres,  erigindo-o  na  cafa  onde  outr'ora  íiorefcêra  o  mais 
illuftre  noviciado  jeiliitico.  Sebaftião  de  Carvalho,  como  fuc- 
cede  fempre  ao  homo  noviis,  principalmente  nas  monarchias, 
ao  homem  levantado  de  berço  obfcuro  ou  de  modefta  fidal- 
guia ás  eminências  reaes  da  audoridade  e  aos  vaidofos  des- 
lumbramentos da  grandeza  ariílocratica,  não  era  inacceíTivel 
ás  complacências  com  a  ordem  patrícia,  em  que  abaixo  dos 
duques  fe  infcrevia.  Mas  os  feus  inífinéfos  eram  eíTencial- 
mente  democráticos  no  conceito  de  confiderar  o  povo  como  a 
força  dos  eífados,  e  a  íua  melhoria  intelleífual  como  o  tim- 
bre mais  honrofo  das  nações.  O  CoUegio  de  nobres  era  um 
feminario  exclufivamente  deftinado  á  liberal  educação  dos 
que  tiveíTem  o  foro  de  moços  fidalgos.  Os  filhos  dos  mecha- 

-i-ò- -<à>-§- 


4À3 

395 

nicos,  ou  da  plebe  dos  oíficios  e  mifteres,  não  podiam  acoftar 
nos  geraes  do  antigo  noviciado  da  Cotovia,  os  herdeiros  dos 
nomes  mais  illuftres.  Mas  para  compenlar  etia  exclufão,  fun- 
dava o  legiflador  um  novo  collegio,  que  poderia  ler  appel- 
lidado  o  collegio  plebeu  e  defornado  de  pergaminhos  e  bra- 
zões".  Era  na  forma,  na  inftrucção,  na  difciplina  egual  ao  da 
nobreza,  que  lhe  fervia  de  exemplar  e  de  modelo.  Confa- 
grava-íe  efpecialmente  a  educar  os  filhos  das  famílias  hones- 
tas, que  não  le  diftinguiam  pelo  efplendor  do  nafcimento, 
mas  viviam  pelo  trato  já  diftantes  da  plebeia  multidão.  Devia 
n'aquelle  inftituto  profeíTar-le  o  grego  e  o  latim,  o  hebraico, 
as  linguas  modernas  mais  vulgares,  a  rhetorica  e  a  poética,  a 
chronologia,  a  hiftoria,  a  geographia,  a  lógica,  a  metaphyfica 
e  os  elementos  da  phyfica  experimental.  Tinha  o  collegio  em 
Mafra  o  feii  aíTento.  Eram  feus  profeíTores  os  cónegos  regran- 
tes de  Santo  Agoftinho.  Pela  primeira  vez  o  grandiofo  monu- 
mento erigido  pelo  monarcha  devoto  e  fumptuario  á  fua  de- 
voção e  á  fua  vaidade,  fervia  aos  intereífes  e  aos  progreífos 
da  nação. 

Apefar  do  oiro.  que  vinha  copiofo  do  Brazil,  os  forçofos 
difpendios  da  monarchia  com  todos  os  abufos  centenários, 
que  não  era  exequível  extirpar  inteiramente,  não  deixavam 
que  os  rendimentos  do  elfado  baftaífem  a  todos  os  encargos 
de  uma  nova  civilifação.  O  enfmo  popular  não  tivera  nunca 
uma  verba  privativa.  Era  neceífario  acudirá  remuneração  dos 
profeífores  e  á  manutenção  das  efcolas  então  fundadas.  De- 
cretou o  miniftro  de  D.  Jofé  um  novo  importo  efpecialmente 
confagrado  ás  defpezas  da  inftrucção  publica-.  Foi  iiiftituida 
a  contribuição  indirecta  chamada ///i^/<.y/o  litterario.  No  conti- 


'  .Alvará  df  i8  de  agodo  de  1772  approvando  os  edatutos  do  collegio  de 
Mafra. 

2  Carta  de  lei  de  10  de  novembro  de  1772. 


-i-c>- -<5>-i- 


4  si» 
-<>-i- 

3g6 

nente  de  Portugal  e  nas  ilhas  adjacentes  confiftia  a  nova  im- 
pofição  em  um  real  em  cada  canada  de  vinho,  quatro  réis 
-  em  canada  de  aguardente,  cento  e  feíTenta  réis  em  cada  pipa 
de  vinagre.  Na  America  e  na  Africa  a  cada  arrátel  de  carne 
confumida  devia  caber  a  taxa  de  um  real.  Na  Afia,  nos  do- 
mínios da  Africa  e  no  Brazil,  em  cada  uma  canada  de  agua- 
ardente  impunha  a  nova  lei  o  direito  de  dez  réis.  Era  aíTim 
que  a  intemperança  era  forçada  a  cobrir  as  defpezas  da  in- 
ftrucção,  e  o  que  mais  annuvêa  e  embrutece  a  intelligencia 
a  expiar  as  llias  malfeitorias,  contribuindo  na  maior  parte  a 
promover  os  progreíTos  da  razão. 


CAPITULO  XV 

AS   REFORMAS  SOCIAES   E   ECONÓMICAS 

Durante  o  primeiro  decennio  do  feu  longo  minifterio,  a 
acção  governativa  de  Sebaftião  de  Carvalho  tivera  de  con- 
centrar-fe  particularmente  na  peleja  tormentofa  contra  os 
jefuitas  e  os  lidalgos.  Fora  principalmente  politica  a  fua  con- 
turbada adminiftração.  Nos  intervallos,  que  lhe  deixava  livres 
o  combate,  não  fe  efquecèra  todavia  de  attender  com  efficazes 
providencias  ao  remédio  de  muitas  neceffidades  económicas. 
E  porém  depois  de  mais  abonançada  a  atmofphera  focial, 
depois  que  fe  não  remanfados,  ao  menos  comprimidos  cftão 
os  ódios  e  fedições  das  clalles  confervadoras  e  privilegiadas 
quando  a  paz  celebrada  com  Hefpanha  após  a  guerra  de  1762 
o  tem  mais  largamente  libertado  dos  negócios  diplomáticos  e 
das  complicações  internacionaes,  que  o  enérgico  legillador 
acha  lazer  e  occafião  para  expandir  em  varias  direcções  o 
feu  efpirito  audaz  e  innovador.  E  então  que  elle  pôde  com- 
pletar o  que  nos  primeiros  annos  tinha  apenas  efboçado  para 


-4^ 

eis 


J97_ 

levantar  de  feu  longo  abatimento  e  lethargia  a  velha  focieda- 
de  portugLieza.  E  então  que  a  lua  vifáo  intelledual  compre- 
hende  e  abraça  no  feu  ampliíTimo  horizonte  o  profpecio  da 
nação,  a  que  prefide,  e  tafteia  as  luas  mais  urgentes  preci- 
fões,  e  traça  á  intelligencia  e  ao  trabalho  nacional  a  norma 
e  o  caminho,  por  onde  tem  de  dirigir-fe  para  conquiftar  em 
poucos  annos  os  proventos  e  as  glorias  da  moderna  civili- 
fação. 

Antes  de  tudo  fere  a  vifta  do  legiflador  a  deplorável  con- 
dição moral  da  fociedade.  E  para  elle  a  egualdade  o  prin- 
cipio fundamental,  a  que  fubordina  as  fuás  grandiofas  refor- 
mações. Gerindo  os  intereífes  de  uma  velha  monarchia,  que 
julga  fer  efteio  eífencial  uma  ordem  patrícia  e  uma  claífe 
equeftre,  na  honra  e  luzimento  fuperiores  á  gente  popular, 
não  c  dado  ao  defabufado  reformador  o  nivellar  abfolutamen- 
te  perante  a  lei  e  a  omnipotência  do  foberano  todos  os  vaífal- 
los,  confundindo-os  por  egual  na  mefma  categoria  e  fujei- 
ção.  Até  onde  porém  lh'o  podem  confentir  as  abuloes  e  pre- 
conceitos da  realeza  abfoluta,  leva  Sebaflião  de  Carvalho  o 
feu  firmiíTmio  propofito  de  approximar  as  claífes  antagoniflas, 
rebaixando  as  eminentes  e  exalçando  as  inferiores;  cerceando 
a  umas  os  feus  hereditários  privilégios  e  a  fua  influencia  no 
governo;  dilatando  a  outras  os  feus  foros  e  franquezas  e  a  fua 
indirecta  participação  na  economia  focial;  demudando  em 
pura  e  honorifica  nobreza  palatina  a  que  era  orgulhofa  aris- 
tocracia na  accepção  politica  do  termo;  convertendo  em 
nobreza  civil  e  claífe  media  a  plebe,  que  mais  fe  diflinguia 
por  lou^'avel  e  fruftuofa  applicação  ao  eftudo  e  ao  trabalho. 

A  repreífão  violenta  executada  contra  os  membros  da 
altiva  e  fediciofa  fidalguia,  uns  ignominiofamente  juftiçados 
nos  patíbulos,  fem  refpeito  a  feus  antigos  privilégios,  como  fe 
foram  gente  viliíTima  e  foez,  os  outros  encerrados  nas  prifões 
ou  dcfterrados  aos  logares  ultramarinos,  fora  o  primeiro  paífo 


4í|s 
-* — ■ -<o>-§- 

398 

n'efte  empenho  decifivo  de  abater  e  humilhar  o  orgulhofo 
patriciado.  A  lei  veiu  depois  completar  o  que  a  juftiça  come- 
çara. Continuou  o  legiflador  a  obra  do  juiz  e  do  algoz. 

Nenhum  grémio  de  magnates  pôde  fer  mais  que  uma 
fombra  de  vaidades  eftereis  e  decrépitas,  fe  vivendo  Ibmente 
do  luftre  dos  brazões  e  do  fulgor  das  genealogias,  não  tem 
no  folo  fincadas  folidamente  as  fuás  raizes.  E  a  terra  o  funda- 
mento das  poderofas  ariftocracias,  mas  a  terra  quafi  inteira 
repartida  em  património  hereditário  entre  os  feus  membros, 
atada  perpetuamente  pelos  vínculos  feudaes  ou  ao  menos 
continuada  nas  eftirpes  pela  inítituição  do  fideicommiíTo  e  do 
.morgado.  Sem  efte  predicado  eíTencial  a  fidalguia  é  apenas 
uma  tradição,  não  um  poder;  um  hiítorico  monumento,  não 
uma  força  viva  focial.  A  nobreza  desfrudava  n'quelle  tempo 
com  a  egreja  a  maior  parte  do  território.  Os  morgados  per- 
petuavam nas  famílias  a  terra  hereditária  e  avoenga.  O  mo- 
narcha  repartia  pelos  próceres  os  bens  da  coroa,  que  apelar 
das  prudentes  difpofições  da  lei  mental,  e  de  ler  em  principio 
vitalícia  a  conceíTão,  ficavam  durante  longas  gerações  na 
mefma  familia  ariftocratica.  Uma  porção  confideravel  dos 
bens,  que  tinham  a  natureza  de  ecclefiafticos,  as  commendas, 
muitas  d'ellas  rendofiffimas,  das  ordens  militares  de  Chriífo, 
de  Aviz,  de  Santiago,  diftribuia-as  o  foberano,  como  grão 
meífre  e  governador  de  todas  ellas,  pelos  membros  da  no- 
breza, confirmando-as  habitualmente  aos  reprefentantes  e 
herdeiros  dos  antigos  commendadores. 

Para  deftruir  de  vez  a  nobreza  como  elemento  politico 
era  forçofo  antes  de  tudo  converter  em  allodial  a  terra  vin- 
culada, fupprimir  as  ordens  militares,  como  anachronicas  in- 
ftituiçÕes,  fem  nenhuma  utilidade  para  a  egreja  e  o  eífado, 
encorporar  no  dominio  da  nação  os  bens  da  coroa,  lauta- 
mente repartidos  por  um  ociofo  e  efteril  patriciado.  Somente, 
porém,  a  revolução  poderia  operar  no  futuro  eftes  milagres. 

\  f  IP 

.|-A- .H^ 

eM  eis 


Mas  o  miniítro  previdente,  íe  não  lograva  relblver  practi- 
camente  eftes  graves  problemas  fociaes,  deixava  comtudo 
incilivamente  confignada  em  notáveis  monumentos  legillati- 
vos  a  fua  reprovação  ás  excepcionaes  e  abufivas  inftituições 
em  que  ainda  fe  firmava  o  derradeiro  poderio  da  nobreza. 
Na  lei  reformadora  dos  morgados  apparecem  luminolamente 
fubftanciadas  as  razões,  que  os  mais  revolucionários  inno- 
vadores  poderiam  invocar  para  fubmetter  a  propriedade  pre- 
dial a  um  regimen  uniforme.  Os  morgados  fão  na  phrale 
do  legiflador  «uma  rigorofa  amortilação  de  bens,  contraria 
ao  ufo  honefto  do  dominio .  .  .  á  juftiça  e  á  egualdade .  .  . 
á  multiplicação  das  famílias.  .  .  ao  giro  do  commercio.  .  . 
á  utilidade  publica ...  e  ao  bem  commum  dos  povos » .  « Os 
princípios,  continua  o  eftadifta,  fomente  fazem  admiíTiveis 
os  morgados  dentro  de  certos  limites,  didados  (contra  a  re- 
gra) pela  razão  da  utilidade  publica  da  monarchia'».  «O  au- 
gmento  e  confervação  das  cafas  nobres,  efcreve  em  outra 
lei  o  judiciofo  reformador,  fão  as  caufas  únicas  por  que  fe 
tem  permittido  os  vínculos,  aliás  prejudiciaes  ao  erário  régio 
e  ao  commercio  dos  paJ)allos^y>.  Ahi  temos  o  miniftro  profes- 
fando  com  vinte  annos  de  antecedência  as  idéas  proclama- 
das pela  grande  Revolução.  A  razão,  o  direito,  a  juftiça,  a 
utilidade  condemnam  fem  piedade  a  amortifação  da  terra, 
commum  património  e  nutrimento.  Somente  a  funefta  con- 
temporifação  com  os  preconceitos  da  monarchia  e  com  as 
archaicas  tradições  obriga  o  legiflador  a  tentar  uma  reforma 
incompleta,  a  qual  todavia  reftitue  alguma  parte  das  glebas 
portuguezas  á  fua  primitiva  allodialidade. 

Ainda  não  confentia  a  occafião  que  de  vez  fe  tiralTcm  á 
nobreza  os  copiofos  bens  da  coroa,  com  que  fe  opulentavam 


'  Carta  de  lei  de  3  de  agolto  de  1770,  no  preambulo. 
2  Lei  de  g  de  feptembro  de  1769,  no  preambulo. 


si» 


400 

as  famílias.  Era  porém  exequível  o  fubordínar  o  ufufrucío 
a  claufulas  prudentes,  examinando  rigorofamente  os  títulos 
das  antigas  conceíTões,  e  fubmettendo-as  á  regia  confirmação. 

Inftituiu-fe  para  eíTe  fim  a  junta  das  Confirmações  ge- 
raes,  fob  a  prefidencia  do  arcebifpo  de  Évora,  porventura  o 
mais  fi.ibmilTo  parcial  do  miniítro  omnipotente'.  Defde  an- 
tigos tempos  andavam  as  faboarias,  o  monopólio  exclufivo 
do  fabão,  repartido  em  todo  o  território  portuguez  por  varias 
famílias  de  fidalgos,  em  manifefto  damno  popular  e  jaflura 
do  thelburo.  A  lei  encorpora  na  coroa  o  monopólio,  fazendo 
ao  menos  reverter  em  beneficio  do  erário,  o  que  d'antes  fe 
acrefcentava  com  violentas  extorfões  ás  propinas  da  nobreza. 

Havia  em  Portugal  introduzido  o  coftume  e  auflorifa- 
do  o  egoifmo  que  a  immenfa  maioria  dos  empregos  e  offi- 
cios  eftiveíTe  vinculada  nas  famílias  e  n'ellas  fe  tranfmittiíTe 
como  património  inconteftavel  e  por  fi-icceíTão  hereditária. 
Não  havia  lei  que  affim  converteffe  em  propriedade  vincu- 
lada o  que  era  eíTencialmente  tranfitorio  e  inftituido  não  em 
proveito  individual,  fenão  em  ferviço  da  republica.  Efta  in- 
verfão  de  todos  os  princípios  mais  vulgares  do  bom  gover- 
no tinha  por  feu  titulo  e  fundamento  o  direito  confiictiidi- 
nario.  Decepou  o  legiílador  mais  efte  abulo,  principalmente 
proveitofo  á  nobreza  fecundaria,  ordenando  que  os  offi^cios 
públicos  foffem  meramente  peíToaes  e  vitalícios.  São  notáveis 
as  expreíTões,  com  que  Sebaflião  de  Carvalho  firma  os  prin- 
cípios da  boa  adminiftração,  e  reprova  o  abufo  de  fubordi- 
nar  a  caufa  publica  ao  intereffe  parficular.  «Nos  empregos, 
efcreve  o  eftadifta,  fe  elege  fomente  a  perfonaliffima  indus- 
tria e  aptidão  das  peífoas,  que  os  hão  de  fervir»,  porque  fão 
apor  fua  natureza  exercício  e  minifterio  perfonaliffimo  com 
repugnância  intrinfeca   a  ferem   trafmittidos»,  porque    «fão 


I  Carta  di;  lei  de  6  de  maio  de  17Õ9  e  alvará  da  mefma  data. 


401 

commiffão  precária  e  dependente  da  boa  ou  má  condiiíla 
do  official'.» 

Não  efquece  ao  omnipotente  legiflador  o  combater  as  lar- 
gas fumptuofidades,  com  que  a  nobreza  pretendia  egualar- 
fe  em  feu  efplendor  com  a  majeftade.  Prohibe  á  fidalguia  os 
cafamentos  públicos,  celebrados  com  pompa  extraordinária  e 
vaidofa  prodigalidade  \  Para  cohibir  o  luxo  exaggerado,  com 
que  os  nobres  mais  opulentos  oftentavam  em  cufloías  car- 
ruagens a  fua  riqueza,  decreta  que  ninguém  polTa  em  Lifboa 
e  duas  léguas  em  redor  tranlportar-le  em  viatura  conduzida 
por  mais  de  uma  parelha.  E  exceptuando  da  rigorofa  prohi- 
bição  os  cardeaes  e  os  prelados,  não  fe  efquece  de  advertir- 
Ihes  que  as  fumptuofas  e  mundanas  oftentações  não  quadram 
á  evangélica  pobreza  e  á  humildade  exemplar  dos  tempos 
apoftolicos.  Porque  «fera,  efcreve  o  legiflador,  muito  mais  con- 
forme ao  feu  eftado  que  dêem  antes  exemplos  de  moderação 
do  que  de  faufto^». 

A  efta  categoria  de  difpofições  prohibitivas,  que  em  parte 
fe  filiam  no  erróneo  principio  fundamental  das  leis  fumptua- 
rias,  — a  averfão  ao  luxo  e  magnificência  no  domeftico  vi- 
ver,—  e  em  parte  fe  encaminham  a  cercear  as  principefcas 
apparencias  do  infolente  patriciado,  pertencem  as  prefcripções, 
com  que  o  miniftro  regula  a  mefa  dos  generaes,  que  eram 
todos  com  raras  excepções  os  mais  altos  e  poderofos  titu- 
lares, prohibindo  feveramente  quanto  podeífe  menofcabar  e 
oífender  a  fimpleza  e  a  modeftia  da  vida  militara 

Emquanto  a  mão  vigorofa  de  Carvalho  vae  abatendo  a 


1  Alvará  de  23  de  novembro  de  1770. 

2  Lei  de  17  de  agofto  de  1761. 

3  Alvará  de  2  de  abril  de  1762. 

4  Alvará  de  2  de  abril  de  1762.  Prohibe  em  campanha  as  baixellas  de  pra- 
ta, com  a  única  excepção  da  que  feja  eflriclamente  indirpcnfavel,  e  profcrcve 
da  mefa  dos  generaes  a  porcelana  da  China. 


eis 


4SÍ3 
-^ -^Í^ 

402 

nobreza  rebelde  e  ambiciola,  ora  pelo  cadafalíb  e  pelo  exí- 
lio, ora  pelo  poder  enérgico  das  leis,  o  fcu  empenho  mais 
vehemente  é  o  de  abolir  na  condição  civil  e  no  eftado  das 
peíToas  as  mais  iniquas  deiegualdades  fociaes.  A  fua  legiíla- 
ção  é  copiofa  de  providencias  humaniffimas  para  confagrar 
a  liberdade,  não  a  liberdade  politica,  de  que  na  lua  nionar- 
chica  idolatria  é  fervente  contradidor,  mas  a  liberdade  civil 
e  individual.  Na  lua  luminofa  comprehenfão  da  vida  civili- 
fada  toda  a  fervidão  é  um  opprobrio  da  monarchia,  e  uma 
defhonra  da  humanidade.  O  rei  é  o  pae,  abfoluto  e  irres- 
ponfavel,  mas  não  pôde  ler  o  fenhor  de  uma  turba  de  efcra- 
vos  embrutecidos  e  aviltados.  N'eftes  princípios  generoíbs  fe 
infpira  o  legillador  para  decretar,  defde  os  primeiros  annos 
de  feu  governo,  a  liberdade  aos  indios  do  Grão-Pará  e  Ma- 
ranhão', e  para  ampliar  três  annos  depois  efta  humana  pro- 
videncia a  todos  os  indios  do  Brazil-.  É  fob  as  mefmas 
influencias,  que  declara  fem  infâmia  as  peíToas  europêas, 
que  nos  domínios  da  America  elegeíTem  os  feus  cônjuges 
nas  tribus  indianas\  Quando  a  eícravidão  nas  raças  africa- 
nas ainda  perfeverava  largamente  confagrada  pela  crença 
de  que  os  negros  eram  pouco  fuperiores  a  brutos  animaes, 
decreta  o  magnânimo  eftadifta  que  todo  o  efcravo  feja  livre 
apenas  pile  terra  da  metrópole,  como  fe  foíTe  contra  a  pátria 
um  nefando  facrilegio  que  um  homem,  luftrando  pela  pri- 
meira vez  as  fuás  plagas,  não  viíTe  defde  logo  quebrados  os 
grilhões''.  Não  contente  o  legiflador,  com  que  não  vieíTem 
de  fora  do  reino  novos  efcravos,  indigna-o  que  em  terra 
livre  fe  vá  indefinidamente  perpetuando  a  fervidão  pela  des- 


1  Lei  de  6  de  junho  de  1755. 

2  Alvará  de  8  de  maio  iy58. 

3  Lei  de  4  de  abril  de  1755. 

4  Alvará  de  19  de  leptembro  de  1761. 


40-) 

cendencia  dos  efcravos  africanos  exillentcs  então  cm  Portu- 
gal. Não  permittiam  os  preconceitos  inveterados,  e  os  inte- 
reíTes  egoiftas  que  por  um  rafgo  de  penna  decretaíTe  o  re- 
formador a  liberdade  para  todos  os  efcravos  numerofos, 
que  viviam  no  continente  portuguez.  Mas  deu  o  eftadifta 
um  talho  vigorofo  na  defhUmana  e  brutal  inftituição.  A  lei 
eftatuiu  que  foíTem  livres  todos  os  que  d'ali  em  diante  nas- 
ceíTem  de  mães  efcravas'.  Mas  não  é  fomente  a  liberdade, 
que  o  generofo  e  humano  legillador  concede  á  trifte  raça 
condemnada  pela  avareza  mercantil  dos  portuguezes  nave- 
gadores. A  lei  não  quer  que  do  eítado  fervil  e  opprobriofo 
paífem  pautadamente  por  feus  graus  á  condição  de  ingenui- 
dade. Ficam  livres,  como  os  brancos  de  raça  mais  illuftre, 
fem  que  lhes  defhonre  a  legiflação  a  incompleta  liberdade 
com  o  titulo  aífrontofo  de  libertos,  «que  a  fuperftição  dos 
romanos,  diz  a  lei,  eflabeleceu  nos  feus  coífumes  e  que  a 
união  chriflan  e  a  fociedade  civil  faz  hoje  intolerável » .  Eíta 
condição  intermediaria  ao  animal,  á  res,  e  ao  homem,  á 
peffoa,  afigura-fe  ao  illuminado  efpirito  de  Carvalho,  como 
uma  affronta  ao  chriítianifmo  e  aos  axiomas  fociaes.  O  ne- 
gro, oriundo  das  terras  africanas,  é  para  o  eftadifla  não  um 
animado  inítrumento  d^  trabalho,  fenão  um  ente  racional, 
difpondo  livremente  das  fuás  faculdades.  Mas  não  fe  con- 
tenta o  legillador  com  trahfmudar  em  homem  o  c]ue  a  du- 
reza e  a  cubica  converteram  em  pouco  mais  que  vilifllma 
alimária.  Os  negros  não  ficam  apenas  fendo  homens,  fão 
também  ao  mefmo  tempo  cidadãos.  A  lei  declara-os  hábeis 
para  todos  os  ofiicios,  honras,  dignidades,  fem  a  nota  infa- 
mante de  libertos.  Os  efcravos  já  nafcidos  de  concubinatos 
ou  de  legítimos  conforcios,  ordenava  a  lei  que  permaneces- 
fem  toda  a  vida  na  fervidáo,  fe  unicamente  as  mães  e  avós 


'  Alvará  com  força  de  lei  cie  i()  de  janeiro  de  lyyB. 


(|3 


eis 


4eU 
-<i»-§- 

* 

404 

houveíTem  fido  efcravas.  Se  a  efcravidão,  porém,  fe  deri- 
vaffe  das  hifavós,  ficariam  defde  logo  favorecidos  com  a 
plena  liberdade.  Attentemos  nas  circumftancias  d'aquelle 
tempo,  em  que  a  lei  foi  promulgada,  no  egoifmo  dominante 
das  claíles  opulentas,  nos  hereditários  preconceitos  de  raça  e 
de  conquifta,  na  efcaíTa  illuftração  dos  entendimentos,  nas 
confufas  noções  do  direito  e  da  juftiça,  e  admiremos  na 
providencia  humana  e  chriífianifllma  o  mais  gloriolb  mo- 
numento na  fecunda  adminilfração  do  grande  reformador. 
Refpiram  defafogados  n'ell:a  lei  os  principies  luminofos  pro- 
feíTados  por  Montefquieu  e  o  abbade  Raynal,  cujas  doutrinas 
meditara  certamente  o  profundo  legiflador.  O  amor  da  hu- 
manidade, na  fua  mais  nobre  e  generofa  comprehenfão,  efte 
elevado  fentimento,  que  principia  a  ter  a  fua  eloquentifQma 
expreífão  no  xviii  feculo,  nos  efcriptos  dos  grandes  penfado- 
res,  de  Rouffeau,  de  Montefquieu,  de  Voltaire  e  de  Alem- 
bert  e  nas  pracficas  dos  foberanos  iliuminados,  do  imperador 
Jofé  II,  do  philofophico  Frederico,  e  do  benemérito  Leopoldo 
de  Tofcana,  infpira  o  animo  do  miniífro  portuguez  e  adoça 
as  nativas  afperezas  do  feu  altivo  e  indomável  coração.  Pôde 
fer  duro,  tremendo,  implacável  com  o  homem  individual, 
quando  o  tem  na  frente  por  antagoniífa  e  no  caminho  por 
obítaculo  ás  luas  emprezas  grandiofas  ou  ás  fuás  próprias 
ambições;  mas  o  homem  coUeítivo  defperta  na  alma  do  eífa- 
difta  os  mais  vivos  fentimentos  de  fincera  fympathia.  Nin- 
guém foi  mais  que  Sebalhão  de  Carvalho  zelador  efíicacis- 
fimo  da  humana  dignidade,  em  tudo  quanto  pôde  conciliar-fe 
com  a  adoração  da  monarchia.  Nas  fuás  leis,  que  têem  por 
fim  apagar  as  odiofas  diftincções  de  raças,  de  famílias  e  de 
eftados  fociaes,  efquecemos  o  idolatra  da  realeza,  para  fo- 
mente commemorar  o  philofopho  legiflador.  A  philofophia 
do  feculo  xviii,  apefar  das  oftenfivas  prohibições  da  cenfura 
official,  como  um  elemento  incoercível,  apparece  infinuando- 

elí  ela 


^%-<^ -v-§^ 

1  4o5 

le  em  tudo  quanto  é  concernente  ás  velhas  abufões  e  ás  ini- 
quidades Ibciaes,  nos  monumentos  legiflativos  do  infigne 
reformador. 

Offendem-lhe  o  fentimento  e  o  conceito,  que  formava 
da  humana  dignidade,  as  odiofas  diliincções  que  o  fanatis- 
mo, defhonrando  a  religião,  introduzira  na  fociedade  portu- 
gueza.  Não  pôde  o  animo  íbífrer-lhe  que  entre  homens  da 
melma  pátria  e  egual  eftirpe  uns  lejam  havidos  na  conta  de 
puros  e  immaculados  na  afcendencia  e  geração,  e  outros 
qualificados  com  ignominiofas  defignações.  Um  dos  mais 
intoleráveis  preconceitos,  e  mais  fundamente  enraizados  na 
vulgar  opinião,  era  aquelle,  fegundo  o  qual  fe  eftabelecêra 
e  perpetuara  em  Portugal  a  diíferença  entre  chriífãos  velhos 
e  chriihíos  novos,  entre  gentes  puritanas,  cujo  fangue  não 
tinha  mefcla  de  mouro,  de  gentio,  ou  de  judeu,  c  familias 
impuras  e  fufpeitas,  cuja  profapia  fe  entroncava  em  origens 
infedas  de  judaifmo.  Bem  podiam  as  aguas  baptifmaes  ter 
banhado  por  muitas  gerações  os  filhos  de  uma  familia.  Se  o 
tronco  era  um  hebreu  convertido  ao  chriftianilmo,  a  abufão 
commum  e  popular  tinha  maior  poder  que  o  facramento,  e 
os  que  a  egreja  havia  por  feus  filhos  eram  na  fociedade  vi- 
lipendiados como  efpurios,  como  ovelhas  intrufas  no  aprifco. 
Era  difficil  ludar  logo  de  frente  com  o  funeífo  preconceito, 
roborado  pelo  tempo  e  pelo  efcuro  fanatifmo  nacional.  Para 
expurgar  o  corpo  focial  de  tão  ruim  enfermidade,  era  neces- 
fario  um  braço  vigorofo,  e  um  efpirito  elevado  acima  das 
mais  torvas  abufões.  Começa  o  legiflador  abolindo  os  roes 
das  fintas  dos  chriftãos  novos',  reprovando,  caífando  c  an- 
nuUando  o  abufo,  com  que  fe  impunham  aos  chriftãos,  des- 
cendentes de  judeus,  encargos  fmgulares,  que  não  cabiam  aos 
chamados  chrilfãos-velhos;  comminando  finalmente  aos  que 


Alvará  de  2  de  maio  de  1768. 


4eU 
^ ■ -cÇ)^ 

400 

com  tal  pretexto  infamalTem  a  outrem  de  palavra  ou  por  es- 
cripto,  as  penas  deftinadas  aos  réus  de  libello  famolb.  Mais 
adiante  e  com  maior  audácia  prolegue  o  legiflador  três  annos 
depois.  Os  defcendentes  das  peíToas  condemnadas  na  inquifi- 
ção  pelo  que  era  ainda  crime  de  Judailmo,  ficavam  perpetua- 
mente infamados  e  inhabeis.  Não  podia  conceber-fe  mais 
iniqua,  irracional  inftituição.  Baftava  que  a  maledicência  e  a 
calumnia  divulgaíTem  que  uma  peflba  procedia  de  algum 
penitenciado  por  judaizante,  para  que  a  inhabilidade  abfoluta 
ou  a  infamante  fufpeição  caiíTe  inexorável  Ibbre  o  trifle,  con- 
demnado  a  expiar  depois  de  nurnerofas  gerações  o  fuppofto 
delido  dos  feus  maiores.  Um  paiz,  onde  fegundo  infi-ifpeitas 
autoridades,  entre  ellas  Alexandre  de  Gufmão,  a  grande 
maioria  dos  habitantes  defcendia  de  judeus,  fem  exceptuar 
a  própria  dynaftia  de  Bragança,  a  injuriofa  diftincção  entre 
os  chriftãos  de  raça  pura  e  os  de  raça  infecta,  era  nas  mãos 
do  obfcuro  fanatifmo  ou  da  malquerença  peflbal  um  terrivel 
inftrumento  de  aífronta  e  de  vingança,  como  na  epocha  do  ter- 
ror revolucionário,  um  meio  funeftiíTimo  de  macular  peíToas 
inoífenllvas  e  refpeitaveis  com  a  tacha  de  fiifpeitas  e  indicadas 
á  publica  animadveríao.  Contra  efte  abufo  efcandalolb  arre- 
mette  refoluto  o  legiflador'.  Com  o  empenho  de  filiar  nas 
atrocidades  jefuiticas  todas  as  viciofas  inftituiçúes  e  todas  as 
formas  de  fanatifmo  e  perverfão  da  íbciedade,  nas  luas  rela- 
ções civis  ou  religiofas,  attribue  Sebaftião  de  Carvalho  aos 
jefuitas  o  haverem  introduzido  em  Portugal  a  diftincção  ei> 
tre  os  chriftãos,  com  o  fim  de  tornar  odiofo  e  impopular  o 
prior  do  Crato,  como  próximo  defcendente  de  judeus.  A  dou- 
trina da  pureza  e  impureza  c  tratada  pelo  eftadifta  nos  ter- 
mos de  defprezo  que  merecia.  Para  elle,  apelar  de  extranho 
aos  eftudos  phyfiologicos,  o  fangue  humano  tem  fernprc  e  em 


>  Alvará  de  24  de  janeiro  de  1771. 


ela 


e|j 


407 

toda  a  parte  a  melma  compofiçáo.  Reprova  em  termos  íeve- 
rifllmos  a  perigofa  fuperftição,  e  congloba  fob  a  forma  de  um 
aphorilmo  phyfiologico,  o  principio  gencrolb  da  egualdade 
perante  a  geração  e  o  nafcimento,  « como  le  podeíTe  haver 
langue  humano,  que  foíTe  originalmente  impuro  e  de  outra 
diverfa  natureza » .  Decreta  o  legiflador  que  as  peíToas,  de 
quem  le  não  provaíTe  o  defcenderem  de  outras  condemnadas 
por  apoftafia,  fe  não  podeíTem  confiderar  inhabeis.  As  provas 
deveriam  ler  irrefragaveis,  firmadas  em  documentos  públicos 
authenticos,  fuperiores  á  minima  fufpeição.  Não  parou  porém 
o  eftadifta  neffa  incompleta  fatisfação  á  doutrina  da  egual- 
dade civil  entre  os  chriftãos  de  diverfas  procedências.  Uma 
nova  lei,  mais  radical  e  peremptória  do  que  as  antecedentes 
põe  termo  por  uma  vez  á  iniqua  e  opprobriofa  diítincção'. 
E  efte  um  dos  mais  infignes  monumentos  legiflativos,  a  mais 
vigorofa  proteítação  contra  o  preconceito  nacional,  e  pfeu- 
do  chriítão  que  fazia  dos  judeus  uma  raça  maldita  e  merece- 
dora da  mais  impiedofa  perfeguição.  Aproveita  o  intradavel 
contendor  da  Companhia  a  bem  azada  occafião  para  explanar 
no  preambulo  da  lei  a  hilforia  d'efte  perriicioíb  abufo  e  fana- 
tilmo.  São  ainda,  no  conceito  do  eíl:adifta,  os  jefuitas  os  mali- 
ciofos  introdutores  da  fubverfiva  diftincção  com  o  intento  de 
excluírem  do  throno  portuguez  o  prior  do  Crato.  Rememora 
o  legiflador  a  protecção  e  o  favor,  com  que  durante  a  edade 
média  os  judeus  foram  tradados  pelos  reis  de  Portugal.  Traz 
á  memoria  a  D.  David,  grande  privado  de  el-rei  D.  Fernando 
e  a  D.  Judas,  leu  thefoureiro;  a  meftre  Moyfés,  phyíico  de  D. 
João  I  e  tão  feu  favorecido  que  a  fuás  inítancias  lhe  alcançou 
do  papa  Bonifácio  IX  uma  bulia  de  religiofa  tolerância  para 
que  os  judeus  não  foliem  violentados  a  receber  as  aguas 
baptifmaes,  e  por  uma  provifão  de  17  de  julho  de  1392  lhes 


'  Ciirta  de  lei,  conftituição  geral  c  cdiclo  perpetuo  de  23  de  maio  de  1773. 

ela  tii 


408 

mandou  guardar  feus  invioláveis  privilégios.  Ainda  o  próprio 
D.  Manuel,  o  auftor  da  perfeguição  contra  os  hebreus,  o  que 
os  forçou  indignamente  a  fubmetterem-fe  pela  fua  lei  de  i  de 
março  de  iSoy,  ordenava  que  os  novamente  convertidos  á 
fé  catholica  foffem  cm  tudo  havidos,  favorecidos  c  tratados 
como  próprios  chriftãos  velhos,  fem  que  d'elles  em  coufa 
alguma  foíTem  diftindos  e  apartados.  O  fanático  e  fombrio 
D.  João  III,  o  idolatra  da  Inquifição  e  o  fervo  da  Companhia, 
confirmou  pela  fua  lei  de  16  de  dezembro  de  i  524  as  fenfatas 
prefcripções  do  feu  antecelfor.  Depois  de  ter  feito  o  elogio 
dos  judeus,  ainda  mefmo  perfiftentes  na  fua  fé,  Sebaflião 
de  Carvalho  ordena  que  novamente  fiquem  em  vigor  as  leis 
de  D.  Manuel  e  D.  João  III.  Declara  abolidos  os  diplomas 
legiílativos  em  contrario.  Impõe  graviíTimas  penas  aos  que 
oufarem  de  palavra  ou  por  cfcripto  renovar  a  injuriofa  dis- 
tincção.  Aos  clérigos  commina,  como  caftigo,  a  perpetua  des- 
naturalifação  e  extermínio  ou  relegação  para  fora  de  Portu- 
gal; aos  nobres,  a  perda  da  nobreza  e  dos  oííicios  e  bens  da 
coroa  e  das  ordens  militares;  aos  peões  a  pena  dos  açoites  e 
o  degredo  perpetuo  para  Angola. 

Alfombra  na  verdade  que  junto  de  um  monarcha  de  es- 
treito entendimento,  no  meio  de  uma  rude  e  fuperfticiofa  po- 
voação, na  prefença  do  Santo  Officio,  cujas  fogueiras  tinham 
não  muitos  annos  antes  ardido  inexoráveis  contra  miferos 
judeus,  no  paiz,  onde,  após  a  Hefpanha,  era  mais  bronco  o 
fanatifmo  e  o  preconceito  mais  fundo  e  radicado,  um  minis- 
tro oufaífe  defender  e  fanccionar  com  o  rigor  da  lei,  que  não 
era  o  fangue  d'aquella  raça  iniquamente  condemnada  e  per- 
feguida  menos  preclaro  que  o  langue  dos  chriftãos.  E  mais 
fobe  de  ponto  a  admiração,  quando  vemos  na  que  chamam 
liberal  Inglaterra  os  judeus  fó  na  fegunda  metade  d'efte  fe- 
culo  admittidos  á  egualdade  com  os  feus  concidadãos,  quando 
aíliftimos  agora  mefmo  ás  fcenas  de  felvatica  e  brutal  into- 


409 

lerancia,  com  que  na  PruíTia,  na  terra  claíTica  da  razão  e  da 
fciencia,  fe  levanta  a  obcecada  opinião  ameaçando  renovar, 
fe  lhe  foíTe  dado,  os  dias  calamitofos  do  catholico  Fernando 
e  D.  Manuel.  Nada  no  mundo  exifte  mais  tenaz  e  refirtente 
que  os  preconceitos  fundados  nas  diílincções  de  raça  e  de 
familia.  Tanto  mais  é  portanto  de  louvar  a  energia,  com  que 
Sehaftião  de  Carvalho  contra  elles  arremette  refoluto  á  lua 
inteira  extirpação.  Mas  ainda  n'efte  ponto  o  legiflador  não 
fabe  eximir-fe  inteiramente  aos  influxos  e  arrebatamentos  da 
paixão.  Os  jefuitas  fão  para  elle  os  caufadores  d'eftas  perni- 
ciofas  qualificações,  que  dividiram  os  portuguezes  em  chris- 
tãos  de  velha  raça  e  de  nova  geração.  Mas  a  verdade  não 
confente  o  efquecer  que  na  Deducção  chronologica  um  dos 
capitulos  de  mais  grave  accufação  contra  a  ordem  de  Jefus 
é  o  de  ter  por  ódio  ao  Santo  Officio  empenhado  os  feus  es- 
forços no  tempo  de  el-rei  D.  Pedro  II  em  reítituir  a  Portu- 
gal, com  o  livre  exercício  da  fua  religião,  os  judeus,  que  a 
feroz  intolerância  trazia  foragidos  em  paizes  extrangeiros  ou 
vivendo  mal  convertidos  cm  terra  portugueza,  receando  a 
cada  inftante  as  fevicias  da  Inquifição". 

Entre  o  fevero  legiflador  e  o  chronifta  minucioib  dos 
grandes  attentados  jefuiticos,  entre  Sebaftião  de  Carvalho, 
diéfando  a  lei,  e  Jofé  de  Seabra,  efcrevendo  fob  os  feus 
aulpicios  e  porventura  muitas  vezes  fob  feu  diflado,  a  fa- 
mofa  Deducção,  é  manifefta,  mas  em  certa  maneira  defcul- 
pavel,  a  contradicção  porque  ainda  pendia  no  Vaticano  in- 
decifa  e  talvez  periclitante  a  total  abolição  da  Companhia. 

A  efte  empenho  de  extirpar  nas  leis  c  nos  coflumes  a  dif- 
ferença  focial  entre  os  velhos  chriflãos  e  os  chriftãos  novos, 
fe  prende  a  providencia  decretada  para  cohibir  a  arrogante 
prctenção,  com  que  uma  parte  da  nobreza  fe  j adiava  de  ter 


I  Deducção  chronologica  e  analytica,  tom.  i,  parte  11,  5  702  c  fegg. 


-0^ 


-* i-cj)^ 

410 

o  fangue  fem  mefcla  de  gente  de  nação,  e  acoimava  por  in- 
fedas  de  judailmo  a  muitas  das  familias  mais  illuftres,  evi- 
tando com  ellas  alliar-fe  por  vincules  matrimoniaes.  Tinham 
os  fidalgos  inftituida  na  egreja  parochial  de  Santa  Engracia 
uma  confraria  do  SantiíTimo,  em  que,  fegundo  o  compro- 
miíTo  e  o  coftume,  fomente  podia  fer  admittido  quem  foíTe 
chrijtão  velho,  fem  nunca  fe  entender  o  contrario.  O  pertencer 
áquella  irmandade  era  pois  um  teílemunho  e  um  fignal  de 
puriíTuna  extracção,  immaculada  de  toda  aícendencia  não 
chriftan.  Chamavam-fe  os  confrades  por  excellencia  purita- 
nos. Os  demais,  embora  de  berço  mais  infigne,  eram  des- 
denhados como  de  hebraica  genealogia.  As  familias  puri- 
tanas entre  fi  fe  entrelaçavam  em  conforcios,  com  inteira 
exclufão  das  que,  apefar  da  nobreza  efclarecida,  tinham  a 
nódoa  indelével  de  procederem  de  judeu  ou  raça  impura. 
AíTmi  era  que  poucas  familias  da  mais  foberba  e  poderofa 
fidalguia,  as  dos  marquezes  de  Angeja,  de  Valença,  dos  con- 
des de  Villar  Maior,  do  Monteiro  mór  do  reino,  e  outras 
mais  formavam  entre  fi  como  uma  cerrada  congregação, 
fora  da  qual  as  eítirpes  mais  nobres  na  apparencia  andavam 
apodadas  com  o  nome  injuriofo  de  chriftãos  novos.  Contra 
efta  arrogância  ariftocratica  irrompe  o  legiílador  para  a  fub- 
metter  á  lei  commum'.  Sebaftião  de  Carvalho,  no  pream- 
bulo da  lua  providencia,  faz  dizer  ao  rei  que  «elle  é  a  úni- 
ca fonte,  de  que  podem  manar  as  honras,  as  graduações,  e 
as  qualificações  civis».  Declara  prohibidos  os  matrimónios 
entre  as  familias  puritanas,  forçando-as  a  contrahir  as  fuás 
núpcias  com  as  familias  até  ali  por  ellas  confideradas  como 
infedas.  Condcmna  e  fujcita  a  graves  penas  os  que,  delatten- 
dendo  as  habilitações  de  genere,  feitas  perante  a  inquiíição  e 
a  mela  da  confciencia  e  ordens,  perfiítam  em  haver  por  im- 


■  Alvará  de  5  de  outubro  de  1768. 


411 

puros  e  íulpeitos  de  hebraifmo  os  que  vivam  expurgados  de 
toda  a  macula  judaica.  A  fevera  providencia  foi  intimada  aos 
chefes  das  familias  puritanas,  que  por  termos  aíTignados  na 
fecretaria  de  eftado,  fe  obrigaram  a  cumprir  o  que  lhes  era 
determinado. 

Tal  era  o  íirmiíhmo  propofito,  com  que  o  delpreoccu- 
pado  legillador  fe  empenhava  em  erigir  a  humana  dignida- 
de como  o  grande  principio  focial.  O  feu  lemma  parece  ter 
fido  abater  e  humilhar  os  foberbos  e  os  grandes,  e  levantar 
e  engrandecer  os  pequenos  e  humildes.  Não  lhe  confentiam 
porém  os  preconceitos  eífenciaes  á  monarchia  abfoluta,  e 
ainda  mefmo  ás  modernas  realezas  parlamentares,  paííar  de 
vez  o  nivel  da  egualdade  fobre  todas  as  categorias  fociaes. 
A  nobreza  era,  fegundo  as  idéas  d'aquelle  tempo,  e  ainda 
hoje  grotefcamente  parodiada  é  nas  modernas  monarchias, 
reputada  o  alicerce  e  o  ornamento  dos  thronos  hereditários. 
O  movimento  democrático  não  podia  pois  eflfeituar-fe  pela 
egualdade  abfoluta  dos  eftados  e  condições  perante  a  lei.  O 
fó  caminho  aberto  ao  engrandecimento  das  claíTes  trabalha- 
doras e  populares,  cifrava-fe  em  as  approximar  das  ordens 
mais  elevadas,  conferindo-lhes  o  privilegio  da  nobreza.  O 
trabalho,  o  mérito,  o  ferviço  fão  a  medida,  por  que  fe  aferem 
as  graças  e  as  mercês  concedidas  aos  homens  de  berço  obs- 
curo e  plebeu.  E  affim  que  ao  fundar  a  companhia  do  Grão- 
Pará  declara  o  legifíador  que  «o  commercio  não  é  mccha- 
nico,  antes  officio  nobre ' » .  E  fundado  n'eif e  generofo  pos- 
tulado, dá  a  nobreza  ao  provedor  e  aos  deputados  d'aquella 
fociedade  mercantil,  em  fua  primeira  nomeação.  A  mefma 
dignidade  civil  é  outorgada  aos  diredores,  e  aos  próprios  cai- 
xeiros e  officiaes  da  companhia  do  Alto  Douro "  e  aos  que 


'  Alvará  de  7  de  junho  de  ijSS. 

-  Alvará  de  10  de  feptcmbro  de  1756. 


(Is 


412 

poíTuam  dez  acções '  da  companhia  de  Pernambuco  e  Para- 
hyba-. 

Não  lhe  merecem  menos  confideração  os  homens,  que 
cuhivam  c  promovem  as  fciencias  e  as  lettras  n'um  paiz, 
onde  os  nobres  de  naícimento  eftavam,  com  algumas  hon- 
rofas  excepções,  habituados  a  defprezar  quem  dos  godos  não 
derivava  a  fua  profapia.  E  certamente  para  louvar  que  o  pre- 
vidente legiílador,  com  o  zelo  de  fomentar  o  enfmo  e  a  illus- 
tração,  declaraffe  nobres  os  públicos  profeíTores  de  linguas  e 
humanidades,  cujas  cadeiras  dilTeminava  em  grande  numero 
por  toda  a  extenfão  de  PortugaF. 

A  conftituição  da  propriedade  predial  traçava  n'aquelle 
tempo  uma  profunda  feparação  entre  as  ordens  da  nobreza 
e  as  claíTes  inferiores  da  população.  A  terra  allodial  era  'em 
geral  plebeia,  a  terra  vinculada  era,  quafi  geralmente,  um 
fignal  de  raça  illuftre.  A  lei,  pela  qual  Seballião  de  Carvalho 
regulou  o  direito  vincular,  ampliou  a  faculdade  de  inftituir 
novos  morgados  aos  homens,  que  fem  o  lullre  da  nobreza 
hereditária  foíTem  pela  fua  benemerência  nas  armas,  nas  let- 
tras, nas  fciencias,  na  agricultura,  no  commercio  e  nas  artes 
liberaes,  como  que  os  efclarecidos  fundadores  da  fua  própria 
dynaftia.  Foi  aílun  que  ao  lado  das  hiftoricas  eftirpes  de  in- 
fignes  avoengos  e  centenária  fidalguia  fe  levantaram,  com 
ellas  hombreando  em  influencia  e  excedendo-as  em  riqueza, 
as  famílias  dos  que  nos  groífos  tratos  mercantis  e  fob  os  aus- 
picies do  miniftro  omnipotente,  lançaram  os  fundamentos  á 
moderna  e  alta  burguezia. 

O  mefmo  efpirito  de  animar  e  proteger  o  trabalho  pro- 
dudor  e  de  exalçar  ao  menos  uma  parte  da  commum  po- 


'  Alvará  de  24  de  novembro  de  1764. 

2  Alvará  de  i3  de  agoílo  de  lySg. 

3  Alvará  de  28  de  junho  de  1759,  creando  os  eíludos  fecundarios. 


c|3 


41  j 


Aoação  ás  preeminências  Ibciaes,  egualando-a  com  a  nobre- 
za, apparece  dictando  ao  legiflador  as  exempções,  com  que 
na  lei  do  recrutamento  favorece  as  clalTes  que  mais  úteis  e 
meritórias  lhe  parecem.  É  laftima  que  Sebaftião  de  Carva- 
lho não  podeffe  completar  a  fua  empreza  generofa  de  res- 
tituir ao  homem  Ibcial  as  plenas  immunidades  no  que  era 
concernente  á  fua  condição  civil,  abolindo  a  ignominiofa  dis- 
tincção,  com  que  a  ordenação  do  livro  v  accommodava  as 
penas  aos  delidos,  não  fomente  fegundo  a  fua  graveza  e  enor- 
midade, fenão  também  difcriminando  no  fangue  e  no  berço 
dos  culpados  a  fidalguia  ou  a  vileza  da  progénie.  Não  ti- 
nham, porém,  chegado  n'aquelle  tempo  á  inteira  maturidade 
os  princípios  philofophicos  do  moderno  direito  penal,  nem 
efta  forma  da  egualdade,  a  mais  racional  e  preciofa,  a  egual- 
dade  nos  prémios  e  nos  caftigos,  le  tinha  ainda  revelado  aos 
impulfos  da  poderofa  Revolução.  A  nobreza,  fe  não  era  já 
como  d'antes  um  poder  e  uma  força  focial,  era  ainda  uma 
d'eftas  renitentes  e  vigorofas  tradições,  perante  as  quaes  es- 
tremece nas  abfolutas  monarchias  o  braço  do  mais  eftrenuo 
reformador. 

Se  a  liberdade  e  a  egualdade  entre  os  membros  de  uma 
nação  conflituem  a  fecunda  condição  do  feu  aperfeiçoamento 
civil  e  material,  a  maneira,  por  que  a  lei  define  as  relações 
entre  a  terra  e  o  feu  culto  habitador,  communica  á  fociedade 
a  fua  feição  efpecial.  A  terra  é  como  o  pedeftal  da  huma- 
nidade. Qual  a  faz  o  coíhime,  a  conquifla,  a  legiflação,  tal  é 
também  a  conftituição  moral  e  económica  dos  povos.  Como 
fundo  commum,  d'onde  procede  a  fatisfação  das  necelTida- 
des  orgânicas  e  phyficas,  a  terra  é  por  fua  natureza  elfencial- 
mente  indivifivel  e  incapaz  de  fer  perpetuamente  apropria- 
da. A  fua  divifão  e  propriedade  é  um  effeito  único  da  lei. 
A  terra,  como  o  Oceano  e  a  athmofphera,  tem  por  origi- 
nário attributo  a  communidade.  A  lei  reparte-a  e  a  vincula 


eis 


cia 


414 

a  um  homem,  a  uma  corporação,  a  uma  família,  ao  fabor 
dos  tempos,  das  occafiões,  das  circumftancias,  modificando 
a  cada  paíTo  o  elemento  hiftorico,  que  fundou  a  propriedade, 
pelo  elemento  íbcial,  que  determina  a  fua  nova  maneira  de 
exiftir.  A  terra  efcrava,  enfeudada,  inalienável,  caraíterila 
as  epochas  de  predomínio  das  claíTes  livres  e  privilegiadas 
fohre  a  plebe  fervil  c  indigente,  a  tyrannia  de  uma  efcaífa 
minoria  de  mundanos  bemaventurados  contra  a  immenla 
maioria  dos  hilotas  fociaes.  Na  terra  agrilhoada  fó  pôde  ílib- 
fiífir  um  povo  de  fervos  defherdados.  A  liberdade  fó  pôde 
germinar  e  fiorefcer  no  folo  emancipado  de  todas  as  peias 
feudaes  ou  vinculares.  A  completa  allodialidade  é  como  que 
a  poíTivel  retrogradação  ao  communifmo  primordial.  N'es- 
te  regimen,  onde  as  glebas  fe  tranfmittem  de  uns  a  outros 
n'uma  perpetua  circulação,  onde  o  proletário  de  hoje  lerá 
o  p»roprietario  de  amanhã,  e  o  opulento  de  hontem  é  agora 
o  defvalicio,  todos  fão,  ao  menos  potencialmente,  poíTuidores 
da  lua  geira.  A  terra  então  é  como  um  immenlb  amphithea- 
tro,  onde  os  c[ue  faíram,  gofando  parte  do  efpedaculo,  dei- 
xam o  logar  vallo  aos  que  mais  tarde  vierem  aíTiftir  á  fes- 
tiva íblemnidade.  A  terra  não  é  commum,  porque  todos  a 
polTuam  indivifa  ao  mefmo  paíTo,  mas  é  commum  porque 
todos  têem  no  trabalho  e  na  economia  abertos  e  patentes 
os  caminhos,  que  conduzem  á  ília  acquiíição.  Novas  revo- 
luções no  inítavel  equilíbrio  das  humanas  fociedades,  produ- 
zindo novos  eftados  fociaes,  exigirão  um  dia  porventura  que 
a  terra  aífuma  juridicamente  noviíBmas  feições.  A  terra  fera 
então  como  o  foi,  como  o  calor,  como  a  eledricidade,  como 
a  luz,  como  toda  a  natureza,  que  o  homem  aproveita,  domina 
e  faz  fervir  aos  milagres  do  trabalho,  fem  a  poífuir  nem  \m- 
cular  no  feu  morgado.  Achar-fe-ha  talvez  uma  forma  de 
communidade,  cm  que  a  terra,  como  a  ampliífima  officina 
da  induibia  univerfal,  concentrando  em  fi  os  esforços  co- 


si» 


4' 3 

operadores  e  colledivos  de  toda  a  multidão,  reparta  equitati- 
va a  cada  um  o  leu  quinhão  nos  frudos  da  mãe  commum. 
Emquanto  porém  le  não  refolve  efte  problema  diíRcillimo, 
— cuja  folução  leria  temerário  predizer  como  impoíTivel, — 
a  terra  allodial  é  a  condição  impreícriptivel  das  livres  e  civi- 
liladas  povoações. 

É  efta  verdade,  que  proclamam  a  cada  paíTo  as  leis  de 
Sebaftião  de  Carvalho,  relativas  á  conílituição  da  proprie- 
dade. Na  fua  theoria  Ibcial  o  principio,  a  que  devem  llibor- 
dinar-fe  todos  os  interelTes  particulares,  é  unicamente  a  caiifa 
publica'.  Na  immobilidade  e  amortifação  da  terra  tinha  fido 
a  egreja  durante  largos  leculos  a  principal  collaboradora.  Era 
pois  contra  o  abufo  profano  e  mundanal  da  propriedade  ec- 
clefiaftica,  que  o  legiílador  havia  de  empregar  a  repreffão 
enérgica  das  leis.  Fora  fempre  defde  os  primeiros  tempos 
da  monarchia  follícho  o  governo  fecular  em  cohibir  a  cres- 
cente amortifação  exercida  pela  egreja.  A  ordenação  philip- 
pina  e  antes  d'ella  a  manuelina  e  a  aftonlina,  prohibiam  que 
os  mofteiros,  as  egrejas,  os  prelados  e  outras  peíToas  eccle- 
fiafticas  podeíTem  comprar  ou  poíTuir  bens  de  raiz  nas  de- 
marcações dos  reguengos^  ou  os  adquiriíTem  n'outra  parte, 
fem  expreffa  licença  do  foberano,  nem  os  havidos  a  titulo 
gratuito  os  houveíTem  de  confervar  em  feu  poder  além  do 
anno  e  dial  Mantendo  os  princípios,  que  haviam  inlpirado 
n'efte  aíTumpto  a  antiga  legiílação  de  Portugal,  o  miniflro  de 
D.  Jofé  prohibe  á  egreja  o  conlblidar  com  o  diredo  o  domí- 
nio útil  dos  prazos  por  ella  poíTuidos.  Declara  nullas,  abufi- 
vas  e  de  nenhum  efíeito  femclhantes  confolidações.  Ordena 
que  de  novo  fejam  emphyteuticados  dentro  de  um  anno  to- 


'   Lei  de  q  de  feptembro  de  1769,  carta  de  lei  de  3  de  agofto  de  1770. 

2  Ordenação,  liv.  11,  tit.  16. 

3  Ordenação,  liv.  11,  tit.  18. 


4e^ 

416 

dos  os  prédios  que  defde  1 6 1 1 '  eftejam  abufivamente  confoli- 
dados.  Não  era  ainda  chegada  a  occafião  de  proclamar  intei- 
ramente allodial  toda  a  terra  immobilifada  pela  egreja.  Mas 
o  beneficio  da  emphyteufe  vinha  em  certa  maneira  fi^ibftituir 
as  vantagens  da  completa  allodialidade  e  abrir  as  glebas  á 
induítria  das  claíTes  trabalhadoras  e  defherdadas.  Uma  nova 
providencia  eftatue  o  procelTo,  por  que  em  publico  beneficio 
fe  haveriam  de  fazer  os  emprazamentos  das  terras  ecclefias- 
ticas\ 

De  todas  as  leis,  porém,  que  tiveram  por  efcopo  o  conter 
em  limites  moderados  a  fiacceíTiva  acquifição  dos  bens  tem- 
poraes  pelo  efi:ado  clerical,  teve  fem  duvida  a  mais  politica 
fignificação  a  que  poz  cobro  á  infrene  faculdade  de  inftituir 
a  alma  por  herdeiras  As  peflbas  alligadas  por  feus  votos  ás 
ordens  religiolas  lao  por  ella  declaradas  inhabeis  para  her- 
dar; «porque,  efcreve  o  legiflador,  a  profiíTão  extingue  os 
vínculos  do  langue.»  Levanta-fe  o  eftadifi:a  contra  a  abufiva 
inftituição  das  capellas,  cujos  bens  eram  principalmente  con- 
fagrados  a  retribuir  as  miíTas  e  os  fuffragios  por  alma  do  in- 
ítituidor.  Era  tão  exaggerado  e  tão  incrível  o  numero  de  mis- 
fas,  que  fegundo  eftas  piedofas  fundações  fe  deviam  dizer 
durante  o  anno,  que  «nem  fendo  clérigos  todos  os  portu- 
guezes,  dizia  com  certo  pique  de  gracejo  o  legiflador,  pode- 
riam celebrar  a  terça  parte  das  que  efta^•am  ordenadas » .  Só 
n'uma  das  mais  pequenas  provedorias,  fe  contavam  não  me- 
nos de  doze  mil  capellas,  em  que  havia  o  encargo  pio  de 
quinhentas  mil  miífas  annuaes.  Por  efte  modo,  acrefcentava 
o  eftadiífa  com  remoque  faceto  ou  joco-ferio,  « chegar-fe-hia 
a  ferem  as  almas  do  outro  mundo  fenhoras  de  todos  os  pre- 


1  Carta  de  lei  de  4  de  julho  de  1768. 

2  Alvará  de  12  de  maio  de  1769. 

3  Lei  de  9  de  feptembro  de  1769. 


elí  tis 


4'7 

dios  d'eí1:es  reinos » .  Em  tom  mais  s^vave  accrelcentava  o  re- 
formador: «As  propriedades,  cafas  e  fundos  de  terras,  que  fo- 
ram crcados  para  a  íuhriftencia  dos  vivos,  de  nenhum  modo 
podem  pertencer  aos  defundos».  Decreta  Sebaítião  de  Car- 
valho que  os  legados  pios  em  bens  de  alma  nunca  excedam 
a  nona  parte  dos  haveres  do  teftador,  e  tenham  em  todos  os 
calos  por  extremo  limite  mil  cruzados.  Somente  a  efta  regra 
faz  excepção  para  as  inilituições  que  fc  encaminhem  a  íins 
benéficos  e  fociaes. 

A  lei  permittia  pois  que  às  mifericordias,  aos  holpitaes, 
aos  orphãos,  aos  expoftos,  ás  efcolas  e  íeminarios  podelTe  o 
teífador  legar  até  dois  mil  cruzados.  Todas  as  difpofições  tes- 
tamentárias e  todas  as  convenções,  em  que  le  eítabelece  a  al- 
ma por  herdeira',  fáo  havidas  por  nuUas  e  de  nenhum  valor. 
O  legiflador  dá  por  abolidas  as  capellas,  que  na  Extremadu- 
ra  não  rendeíTem  livres  dos  feus  encargos  duzentos  mil  réis, 
e  as  que  nas  demais  províncias  não  tiveíTem  de  rendimento 
metade  d'efla  quantia. 

Por  efte  modo  uma  parte  conlideravel  da  terra  vinculada 
era  já  reítituida  á  fua  primitiva  allodialidade.  As  novas  pro- 
videncias decretadas  para  firmar  em  princípios  mais  racio- 
naes  e  confentaneos  á  publica  utilidade,  a  velha  e  anti-demo- 
cratica  inftituição  dos  morgados,  vieram  ainda  tornar  livre 
uma  nova  porção  do  território  e  precaver  a  futura  e  progres- 
liva  amortifação".  Se  as  fictícias  conveniências  da  velha  mo- 
narchia  não  andaíTem  ainda  então  urgindo  como  efteio  na- 
tural da  majeífade  a  Ibmbra  léquerde  um  patriciado,  e  como 
natural  confequencia  não  eftiveíTem  proclamando  ler  preciía 
ao  luftre  da  nobreza  e  á  decorola  conlérvação  das  famílias 
privilegiadas  a  exiífencia  dos  morgados,  por\'entura  das  pre- 


Lei  já  citada  de-  y  de  feptL-mbro  du  1769. 
Carta  de  lei  de  3  de  agoílo  de  1770. 


ti» 


4eL 
^<}^ 

418 

miíTas  formuladas  no  preambulo  da  lei  haveria  tirado  o  le- 
giflador  os  rigorofos  corollarios,  que  d'ahi  forçofamente  deri- 
vavam. Não  influiria  pouco  na  manifefta  contradicção  entre 
as  razões  da  lei  e  a  fua  fentença,  o  intereffe  próprio,  com  que 
o  eítadifta  Já  chegado  ás  mais  altas  preeminências  da  nobreza 
titular,  fe  comprazia  na  fundação  e  luzimento  de  uma  eftirpe, 
onde  o  feu  nome  ficaíTe  nobremente  perpetuado.  Mas  fe  as 
próprias  vaidades  nobiliárias,  defculpaveis  n'um  homem  já 
então  mais  que  leptuagenario,  fe  o  preito  rendido  ás  fuppos- 
tas  exigências  da  monarchia,  a  cuja  confervação  Montefquieu 
aíTignára  por  fundamento  eífencial  a  exiflencia  de  uma  lus- 
trofa  fidalguia,  ainda  predominam  no  animo  do  miniftro,  o 
proceífo  luminofo  feito  no  preambulo  da  lei  á  monrtruofa  in- 
ítituição  e  ao  odiofo  privilegio  da  primogenitura,  amoífram 
o  economifta  e  o  philofopho  em  todo  o  efplendor  da  lua 
illuminada  intelligencia,  liberta  de  hereditários  preconceitos 
fociaes.  A  perniciofa  amortifação  da  terra  é  energicamente 
denunciada  como  um  attentado  á  boa  economia,  ao  direito, 
á  juftiça,  á  conveniência  popular.  A  lei  abolia  todos  os  vin- 
cules, que  na  Extremadura  e  no  Alemtejo  não  rendeflim 
duzentos  mil  réis,  e  cem  mil  nas  outras  provindas,  e  os  de- 
clarava defde  logo  livres  dos  encargos.  Os  vínculos  de  efcas- 
fos  rendimentos  fó  poderiam  confervar-fe,  quando  houveífe 
na  mefma  família  muitos  d'eftes,  que  reunidos  fatisfizeífem 
ao  limite  minimo  fixado.  Se  a  natureza  vincular  da  proprie- 
dade não  podefle  comprovar-fe  com  expreffa  inftituição  ou 
por  fentenças  tranfitadas  em  julgado,  a  terra  feria  defde  logo 
havida  por  allodial.  Era  permittido  inftituir  novos  morgados, 
precedendo  licença  regia,  e  fendo  os  inífituidores  fidalgos  e 
peíToas  de  nobreza  conhecida  ou  homens  beneméritos  por 
ferviços  eminentes  nas  diverfas  manifelfações  da  adividade 
focial.  A  permilfão  era  porém  fubordinada  a  que  os  bens, 
que  fe  pretendeífem  vincular,  fendeífem  em  Lifboa  íeis  mil 


si) 


4'9 

cruzados,  trcs  mil  na  Extremadura  e  no  Alcmtejo,  e  nas  ou- 
tras províncias  um  conto  de  reis.  Ás  peíToas,  que  tiveíTem 
aberto  paues  e  defhravado  mattos  e  maninhos,  era  egual- 
mente  concedido  vincular  os  terrenos  conquiftados  para  a 
cultura.  Como  para  compenfar  em  publica  utilidade  a  exce- 
pção cifrada  nos  morgados,  impunha  nos  feus  redditos  o  le- 
gillador  o  encargo  de  um  por  cento  applicado  a  obras  pias. 

O  principal  e  grande  mérito  de  Sebaftião  de  Carvalho 
confifte  menos  talvez  nas  reformas  realiladas  que  nos  prin- 
cipies luminofos  que  anteviu.  O  miniltro  omnividente  é  me- 
nos radical  na  execução  do  que  revolucionário  na  doutrina. 
E  principalmente  um  audaz  e  illuminado  precurfor.  Como 
que  fubido  aos  pináculos,  d'onde  o  talento  íuperior  defcobre 
ao  longe  os  tempos  do  porvir,  aponta  defde  aquellas  eminên- 
cias os  defeitos  e  as  miferias  da  terra,  em  que  nafceu.  E  como 
um  medico,  verlado  na  mais  profunda  pathologia,  formulando 
o  diagnoliico  dos  achaques  Ibciaes,  acudindo  por  um  trata- 
mento fymptomatico  ás  mais  perigofas  e  urgentes  manifefta- 
ções  da  enfermidade  e  legando  a  mais  defafogados  therapeu- 
tas  as  dolorolas  operações  a  executar  pelo  ferro  da  revolução. 
Allim  não  torna  de  improvifo  allodial  a  terra  amortifada,  mas 
dá  os  primeiros  golpes  nos  mais  graves  abulbs  que  a  tem  es- 
cravilada,  e  miniftra  nos  preâmbulos  das  leis  aos  feus  mais 
bemfadados  fucceíTores  os  argumentos  com  que  proftrar  a 
caduca  inítituição.  E  era  tal  a  vitalidade  nas  raizes,  com  que 
os  morgados  tinham  filhado  na  gleba  de  Portugal,  que  pode- 
ram  refiíliir  á  torrente  innovadora  de  1820,  ás  revolucionarias 
didaduras  de  Moulinho  da  Silveira  e  de  Aguiar,  á  democrá- 
tica legiflação  de  PaíTos  Manuel,  e  fó  vieram  a  cair,  não  fem 
grandes  contradicções,  pela  enérgica  vontade  de  parlamen- 
tos liberaes,  fendo  já  decorrido  quafi  um  feculo  depois  da  fa- 
mofa  legiflação  do  grande  reformador. 

A  terra  inteiramente  allodial  e  a  egual  partilha  entre  os  íi- 


fflg  eh 

-Í-cJh. : : -<H^ 

420 

lhos  do  proprietário  fão  a  íórma  democrática  da  propriedade 
territorial.  Se  porém  efta  conrtituição  reíponde  perfeitamente 
ás  exigências  do  direito,  da  juftiça,  da  egualdade,  não  podemos 
diíTimular  que  levando  diredamente  á  extrema  divifão  dos 
antigos  latifúndios,  ameaçaria  conduzir  até  á  leiva  ou  á  molé- 
cula, fe  outras  caufas  não  cooperaffem  para  manter  aos  campos 
e  ás  herdades  uma  extenfão  accommodada  ao  grangeio  mais 
perfeito.  Eíta  momentofa  objecção  contra  o  parcellamento 
indefinido  envolvida  naturalmente  no  problema  tão  largamen- 
te debatido  entre  os  modernos  economiftas  fobre  o  confronto 
e  preferencia  da  grande  e  da  pequena  cultura,  não  efcapou  á 
viíta  penetrante  de  Sebaftião  de  Carvalho,  apaixonado  e  fer- 
vorofo  cultor  da  arithmetica  politica,  fegundo  então  geralmen- 
te fe  chamava  á  fciencia  da  riqueza.  Reprovando  em  thefe  o 
direito  de  teftar  e  eftatuindo  a  partilha  egual  entre  os  filhos 
de  uma  familia,  Sebaftião  de  Carvalho  antecipa-fe  em  certa 
maneira  ás  revolucionarias  innovaçÕes  jurídicas  do  código 
civil  francez,  herdeiro  e  reprefentante  da  Revolução.  Repu- 
gna-lhe  todavia  a  extrema  divifão  da  propriedade.  O  princi- 
pio da  expropriação  por  utilidade  publica  tem  na  concepção 
do  legiflador  ampliíTmia  latitude,  e  não  fe  reflringe  apenas 
como  hoje  ás  commodidades  coUedivas  do  elfado.  A  lei 
pôde,  fegundo  elle,  foberanamente  prefcrever  por  meio  de 
equitativas  compenfações,  a  quem  deve  pertencer  em  cafos 
de  excepção  e  em  beneficio  da  agricultura,  uma  ou  outra 
porção  da  propriedade.  O  legiflador  condemna  inexorável  as 
pequenas  glebas  a  arredondarem  as  terras  mais  extenfas,  a 
que  fiquem  adjacentes  ou  em  que  eltejam  encravadas'.  Em 
Lifboa  c  nas  outras  principaes  povoações  os  terrenos  pouco 
extenfos  e  as  cafas  pequenas  ou  domitiiculas  (aífim  lhes  cha- 
ma o  legiflador)  deviam  fer  reunidas  ás  cafas  grandes,  a  que 


"   Carta  de  lei  de  9  de  julho  de  1773. 


42' 

foíTem  contíguas  mediante  a  indemnifação  do  feu  jufto  preço 
com  mais  2  5  por  cento  da  avaliação.  Todas  as  terras  encra- 
vadas em  quintas  muradas  ou  circumfcriptas  por  vallados, 
eram  adjudicadas  ao  proprietário  principal  pelo  feu  legitimo 
valor  e  mais  um  terço.  Era  porém  condição  eíTencial  que 
valeíTem  as  quintas  pelo  menos  féis  vezes  tanto  como  os 
terrenos  annexados.  Ordenava  outrofim  a  lei  que  os  prédios 
rufticos  de  uma  geira  não  podeífem  mais  fer  divididos,  antes 
fe  encabeçaífem  n'um  fó  herdeiro.  As  terras  de  colonos  par- 
ciarios  no  Alemtejo  feriam  adjudicadas  ao  parceiro  ou  pos- 
feiro,  que  tiveífe  n'ellas  a  poífe  principal. 

Eíla  foi  uma  das  leis,  cuja  violência  mais  encareceram  e 
reprovaram  os  inimigos  de  Carvalho.  Não  faltaram  a  attribuir 
ao  egoifmo  e  avareza  do  legiflador  a  principal  razão  d'efta 
quebra  flagrante  ao  direito  e  immunidade  peífoal.  Se  a  forçada 
expropriação  ordenada  pelo  miniftro  eífá  hoje  em  manifefta 
contradicção  com  as  thefes  geralmente  admittidas  nos  eflados 
livres  acerca  da  propriedade,  não  andava  todavia  em  delac- 
cordo  com  o  principio  fundamental  de  que  no  fyífema  gover- 
nativo de  Carvalho  aos  intereífes  do  individuo  fe  deviam  an- 
tepor em  todo  o  cafo  os  intereífes  fociaes.  Segundo  a  fua  noção 
de  governo  politico  e  de  humana  aífociação,  o  poder  fupremo 
tinha  o  jus  e  o  dever  de  repartir  e  equilibrar  os  bens  e  com- 
modidades,  como  um  pae  follicito  e  vigilante  pela  melhor 
ordem  e  proveito  da  familia  patriarchal.  Uma  côr,  fe  bem 
amortecida,  manifefta  de  moderado  focialifmo,  prevalecia  na 
fua  legiflação.  A  oufada  reprovação  do  direito  de  tcftar  era 
a  condemnação  da  propriedade  na  fua  forma  abfoluta  e  invio- 
lável. Quanto  á  maneira  de  poífuir  a  terra  e  difpor  d'ella,  os 
princípios  e  os  ados  do  miniftro  eftavam  em  plena  concor- 
dância com  os  exemplos  da  hiftoria  e  com  as  prefcripções  es- 
tabelecidas na  antiga  e  na  moderna  legiflação.  A  hiftoria  en- 
finava-lhe  de  feito  que  os  annacs  da  propriedade  fão  os  faftos 


-i-<>-*^ -<>-§► 

422 

da  violência,  da  conquifta,  da  ulurpação.  Roma  triumphante 
repartira  a  feu  labor  os  agros  dos  vencidos.  Os  bárbaros  mais 
tarde  dividiram  e  expropriaram  as  herdades  na  Itália,  nas 
Gallias,  nas  Hefpanhas.  Os  árabes  partilharam  entre  fi  as 
glebas  wifigothicas.  Os  hefpanhoes  c  os  portuguezes  na  recon- 
quiíta  da  Peninlula  remodelaram  novamente  a  propriedade, 
imprimindo-lhe  por  carader  da  lua  legitimidade  o  havel-as 
conquiftado  contra  os  mouros.  A  terra  tinha  lido  em  todos 
os  tempos  e  Ibb  todas  as  civililações  o  theatro  e  o  defpojo 
da  Ilida  pela  vida  entre  as  raças  e  as  nações.  Hiftoricamente 
apparecia  verdadeiro  o  celebrado  aphorilmo  de  Proudhon, 
de  que  a  propriedade  é  o  latrocínio.  A  laftimada  exclamação 
de  Virgílio,  defapoíTado  dos  léus  campos  pelo  foldado  aven- 
tureiro e  triumphal,  após  a  vidoria  de  Augufto  Cefar,  refu- 
me  em  poucos  verfos  quanto  é  precária,  tranfitoria,  infubfi- 
ftente  a  poffeíTão  pacifica  da  terra,  e  quanto  a  força  é  mais 
vezes  do  que  o  direito  o  fundamento  da  propriedade  predial. 

O  Lycida,  vivi  pervenimus,  advena  noftri, 
(Quod  numquam  veriti  llimus),  ut  poffefTor  agelli 
Diceret:  Haec  mea  lunt,  veteres  migrate  coloni. 

ViRGiL.,  EcLog.  IX,  Ma'ris,  vers.  2-4. 

O  veteres  migrate  coloni  (lai  oh  antigos  colonos  e  cultores 
da  terra)  refôa  a  cada  paíTo  na  hiftoria  da  humanidade  c  nas 
paginas  da  fua  legiílação. 

As  revoluções  fociaes  mudam  a  fituação  dos  Hndes  e  dos 
hermes,  que  feparam  as  glebas  entre  íi.  A  lei  confirma  ou 
modifica  a  conifituição  da  propriedade,  que  nafceu  da  vio- 
lência e  da  conquifta.  A  propriedade  é  pois  emquanto  á  terra 
effencialmente  ephemera  e  amovível  á  vontade  do  legillador. 
Não  podemos  admirar-nos  d'efias  forçadas  expropriações  de- 
cretadas ha  mais  de  um  feculo  por  um  eftadifta  de  poderes 
illimitados  na  monarchia  abfoluta  omnipotente,  quando  vi- 


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eis  w 


42J 


mos  ha  pouco  tempo,  ante  as  exigências  e  as  perturbações 
da  Laiid  League,  ou  liga  agraria,  o  governo  da  Gran-Breta- 
nha,  exercido  pelos  whigs  mais  liheraes,  lacrificar  á  elpe- 
rança  de  pacificar  a  Irlanda  o  principio  legal  da  proprie- 
dacie,  e  legiílar  a  expropriação  dos  opulentos  lenhorios  ou 
Landlords  em  favor  dos  colonos  ou  Laudtenants. 

A  melma  categoria  de  arbitrarias  providencias  colorea- 
das  com  o  maior  bem  da  caufa  publica  pertence  a  lei,  que 
mandou  arrancar  todas  as  vinhas  no  Riba-Tcjo  entre  Saca- 
vém e  Villa  Xova  da  Rainha,  nos  campos  de  Vallada,  Go- 
legan  e  Santarém,  e  nas  margens  do  Vouga  e  do  Mondego". 
Em  logar  da  viticultura,  que  o  legiílador  julgava  ali  nociva 
e  inopportuna,  ordenava  c[ue  as  terras  foíTem  reftituidas  á  cul- 
tura cerealífera.  A  razão  determinante  d'efta  lei  cifrava-fe  na 
efcaíTeza  de  cereaes,  de  que  padecia  Portugal.  O  trigo  então 
era  como  hoje  importado  em  enormes  quantidades.  O  vinho 
pelo  contrario  manifeífava  uma  exaggerada  producção.  Se- 
baftião  de  Carvalho,  apefar  da  aífeítada  infiftencia,  com  que 
em  feus  efcriptos  glorifica  a  arithmctica  politica  e  le  dá  por 
iniciado  profundamente  em  fuás  doutrinas,  defconhece  o  prin- 
cipio fundamental  da  fciencia  económica,  —  a  liberdade,  e 
coiifiando  intemperadamente  na  acção  governativa  como 
enérgico  propulfor  da  Ibciedade,  põe  o  peito  a  emprezas  fu- 
periores  á  força  coercitiva  do  poder.  Nas  luas  mãos  a  terra  é 
plaflica,  inerte,  obediente  para  tomar  todas  as  formas  ao  fa- 
bor  do  oleiro  ou  do  toreuta  refoluto.  Os  homens  íao  apenas 
as  moléculas  de  um  corpo,  ás  C[uaes  elle  no  recelTo  do  feu 
laboratório  pôde  communicar,  no  intuito  da  harmonia  e  do 
bem  geral,  as  aggregações  e  os  logarcs,  que,  fegundo  o  ideal 
do  feu  Eítado,  correfpondern  á  maxitna  ventura  e  ordem  fo- 
cial.  A  fociedade  inteira  é  um  exercito  civil,  que  elle,  o  ítratégo 


'  Alvíirá  da  lei  de  2(3  de  outubro  de  1765. 


424 

da  paz  e  da  civililação,  pôde  a  feu  talante  fubmetter  ás  formas 
taóticas  mais  próprias  a  oppugnar  a  miferia,  a  ignorância,  o 
fanatifmo  e  o  abatimento  nacional.  Na  apreciação  e  julgamen- 
to de  Sebaftião  de  Carvalho  é  precifo  a  cada  paíTo  ter  pre- 
fente  a  epocha,  em  que  viveu,  a  monarchia,  a  quem  ferviu,  a 
fociedade,  que  regeu,  as  idéas,  que  antes  dos  tempos  de  Ques- 
nay,  de  Turgot,  de  Necker  e  Adam  Smith  infpiravam  nas 
relações  económicas  dos  Eftados  os  governos  mais  ardentes 
na  profecução  do  bem  commum.  Muitos  annos  depois  que 
a  lei  contra  as  vinhas  era  promulgada,  ainda  o  congreíTo 
americano,  quando  os  Eftados  Unidos  fe  debatiam  na  luifta 
memorável  contra  a  metrópole,  taxava  por  uma  lei  os  preços 
das  mercadorias  e  fazia  da  violação  da  liberdade  mercantil 
um  inftrumento  auxiliar  da  politica  liberdade. 

A  França  era  ainda  no  feculo  xviii  fecunda  em  provi- 
dencias regulamentares  e  reftricfivas  da  viticultura,  e  eram 
muito  frequentes  os  exemplos  de  vinhas  arrafadas  por  man- 
dado e  arbítrio  da  autoridade'. 

Na  mefma  falfa  economia  politica  tem  a  fua  explicação 
e  a  lua  efcufa  a  providencia,  que  prohibe  o  introduzir  na  ca- 
pital os  vinhos  de  Vianna,  de  Monção,  do  Porto,  de  Aveiro, 
da  Bairrada,  Anadia,  Figueira  e  outras  partes,  exceptuan- 
do unicamente  os  vinhos  doces  do  Pico  e  da  Madeira-.  Na 
mefma  ordem  de  princípios  fe  filia  a  prefcripção,  ordenando 
que  nos  terrenos  de  vinhos  de  embarque  fe  enxertaífem  em 
tintas  as  uvas  brancas  de  maneira  a  profcrever  inteiramente 
o  vinho  branco'',  e  caftigando  com  penas  feveriílimas  os  que 
adulterem  a  bebida  com  perniciofas  confeições. 


1  Dareíle  de  la  Chavanne,  Hijloire  des  clajfes  agricoles  cn  France.  Paris, 
i858,  pag.  454  e  455. 

2  Alvará  de  17  de  outubro  de  1768. 

3  Alvará  de  10  de  abril  de  1773. 


eis 


eis 


42  3 


É  principalmente  quanto  á  indurtria  vinicola  que  lao  mais 
frequentes  e  flagrantes  as  infracções  da  liberdade  no  traba- 
lho, porque  é  também  para  o  legiílador  a  predilecla  infti- 
tuição  da  companhia  do  Alto  Douro  aquella,  em  que  tem 
poífas  principalmente  as  luas  elperanças  de  riqueza  e  pros- 
peridade nacional.  A  efta  poderofa  Ibciedade  mercantil  eftá 
a  cada  paffo  o  eftadifta  fubordinando  os  deftinos  da  agricul- 
tura. Apenas  eftão  próximos  a  terminar  os  dez  annos  aífi- 
gnados  á  duração  da  companhia,  apparece  a  fua  exiftencia 
prorogada  por  mais  vinte  annos'.  São  quafi  innumeraveis  as 
providencias  que  na  volumofa  legiílação  de  Sebaftião  de  Car- 
valho tem  por  íim  regular  por  minuciofas  prefcripções  a  cul- 
tura e  o  commercio  dos  vinhos,  aíTegurar  a  fua  pureza  contra 
as  fraudes  e  obífar  á  exaggerada  producção  e  á  confequente 
quebra  no  valor.  Somente  é  quando  a  companhia  eítá  já  foli- 
damente  robuftecida,  quando  já  reparte  por  dividendo  aos  ac- 
cioniftas  mais  de  7  por  cento  do  capital-,  que  o  legiílador  tem 
por  opportuno  afrouxar  o  rigor  das  leis  prohibitivas  e  dos 
feveros  regulamentos  para  livrar  da  concorrência  a  opulenta 
aíTociação.  E  então  que  fe  declara  abolido  o  curfo  torçado 
ás  apólices  da  companhia  do  Alto  Douro,  e  das  companhias 
do  Maranhão  e  da  Parahyba',  e  fe  volve  novamente  n'efle 
ponto  ao  regimen  da  liberdade  nas  trocas  e  tranfacções  com- 
merciaes,  concedida  já  antes  como  privilegio  aos  extrangei- 
ros,  que  viviam  em  Portugal^  e  tinham  reclamado  inftante- 
mente  contra  a  dura  impofição.  E  então  que  o  legiflador  abre 
e  patentêa  livres  ao  commercio  dos  vinhos  da  Extremadura 
e  das  ilhas  adjacentes  os  mercados  da  Africa  e  da  Afia,  os  da 


1  Alvará  de  28  de  agoíto  de  i  776. 

2  Edital  da  junta  de  adminiftraçfio  da  companhia  do  Alto  Douro,  de  26  de 
junho  de  1772. 

3  Alvará  de  2  3  de  fevereiro  de  1771. 
-t  Alvará  de  3o  de  agoílo  de  1768. 

-H>-* -y^ 


■  -<v^ 

426 

Bahia,  Pernambuco  c  Parahyba,  deixando  em  monopólio  á 
companhia  do  Aho  Douro  a  exportação  para  o  Rio  de  Janei- 
ro e  para  os  portos  fituados  ao  fui  da  metrópole  brazileira'. 

As  providencias  decretadas  por  Sebaítião  de  Cars^alho 
para  fomentar  directamente  com  o  favor  e  o  arbitrio  do  po- 
der os  três  ramos  da  induítria  portugueza  e  crear-lhes  em 
deredor  uma  atmoíphera  puramente  artificial,  tem  a  fua  na- 
tural explicação  cm  primeiro  logar  no  profundo  abatimento 
e  inércia  da  nação,  a  qual  parecia  incapaz  de  melhoria  e  de 
progrelTo,  fe  foffe  deixada  á  fecundante  acção  da  liberdade 
e  aos  impulfos  defconnexos  da  energia  individual.  Em  fe- 
gundo  logar  infpiravam  o  reformador  as  idéas  predominantes 
nas  fciencias  económicas  e  íbciaes  antes  que  foíTem  não  fo- 
mente vulgarifadas,  mas  em  parte  recebidas  pelos  governos 
europeus  e  applicadas  prafticamente  ao  mcchanifmo  focial, 
as  verdades  enfinadas  pelos  egrégios  fundadores  da  economia 
politica,  os  Smiths,  os  Queínays,  os  Turgots,  os  Morellets. 
Em  terceiro  logar  era  firme  o  legiílador  no  preconceito  acata- 
do e  feguido  reverentemente  em  toda  a  Europa  continental, 
e  ainda  hoje  infelizmente  profeílkdo  com  inteira  convicção 
entre  os  povos  neo-latinos,  de  que  fó  e  exclufivamente  a  acção 
enérgica  e  irrefiftivel  dos  governos  pôde  imprimir  impulfos 
vigorofos  á  civilifação  e  ás  induftrias  das  nações,  mantidas 
na  perpetua  menoridade  fob  a  tutela  ciofa  de  príncipes  here- 
ditários. 

Não  eram  eífas  doutrinas  invenção  e  monopólio  de  Sebas- 
tião de  Carvalho.  Eram  os  principies  direítores  de  Sully  e  de 
Colbert  na  fua  politica  induftrial  e  económica,  eram  no  feculo 
xviii  as  crenças  e  as  praxes  dos  mais  illuftres  reformadores, 
de  Leopoldo  II  na  Tofcana,  e  do  imperador  Jofé  II  na  Alle- 
manha.  A  intervenção  direita,  minuciofa,  quotidiana  de  Se- 


'  Alvará  de  6  de  agofto  de  1776. 


tis  e|j 


42: 


baftião  de  Carvalho  nas  tranlacções  da  vida  económica,  podia 
achar  a  fua  apologia  nas  circumrtancias  peculares  da  occafião 
e  na  defidia  opprobriofa,  em  que  a  monarchia  ablbluta  havia 
feito  cair  a  actividade  nacional.  A  influencia  dos  proceflbs 
regulamentares  e  artificiaes  não  podia,  porém,  pela  fua  pró- 
pria condição  de  excepções  contra-naturaes,  fobreviver  por 
largo  tempo  ao  bafejo  do  legiflador.  Tudo  quanto,  pelo  con- 
trario, o  efpirito  do  memorável  eftadifla  concebeu  e  realifou 
na  lua  politica  meramente  revolucionaria,  negativa,  demoli- 
dora, perpetuou-le  e  tranfmittiu-fe  como  herança  á  moderna 
ci^■ililação  de  Portugal.  E  que  a  acção  dos  governos  fó  é  pro- 
liíica  e  duradoura,  quando  fe  limitam  a  extirpar  ou  corrigir 
tudo  quanto  é  adverlb  á  peíToal  e  livre  adividade,  ou  a  inífi- 
tuir  com  difcrição  e  previdência  quanto  pôde  indiredamente 
dilatar  e  fazer  mais  fecunda  a  producção.  AlTim  poderam 
fobreviver  ao  legiflador  os  primeiros  paíTos  de  Sebaftiáo  de 
Carvalho  no  caminho  fruduofo  da  liberdade  da  terra,  na 
mais  democrática  organifação  da  propriedade,  na  mais  egual 
diflribuição  dos  encargos  fociaes,  na  maior  difFuíao  dos  co- 
nhecimentos, e  na  melhor  accommodação  do  direito  civil  ás 
neceflidades  e  condições  da  moderna  fociedade. 

Entre  as  leis,  que  fe  referem  ás  relações  juridicas  em  Por- 
tugal, figuram  a  que  deu  nova  maneira  de  exiftir  á  proprie- 
dade vincular,  as  que  regularam  a  facção  teftamentaria  e  o 
direito  fucceíTorio,  e  mais  do  que  eftas  é  porventura  memo- 
rável a  que  nos  faftos  da  jurifprudencia  nacional  fe  chama 
por  excellencia  a  lei  da  boa  raião\  Nada  pode,  em  verdade, 
fer  de  maior  importância  n'uma  nação  do  que  os  principios 
fundamentaes,  em  que  fe  firma  o  feu  direito  civil  e  as  fuás 
praxes  de  julgar.  A  lei  da  boa  ra^ão  teve  por  aífumpto  obviar 
á  pradica  abufiva,  defde  muito  feguida  pelos  julgadores  e 


Carta  de  lei  de  18  de  agoflo  de  i7fj'j. 


eh 


-<>-i- 

428 

advogados,  de  preferir  ao  direito  pátrio,  havido  por  elles  na 
conta  de  menos  culto  e  preftadio  ,  a  romana  jurifprudencia,  tal 
como  a  formularam  as  conftituições  imperiaes,  as  doutrinas 
dos  antigos  juriíconfultos  e  as  interpretações  e  commentarios 
dos  Irnerios,  dos  Bartholos,  dos  Accurfios  e  dos  outros  glos- 
fadores.  No  conceito  do  profundo  legiflador  a  fociedade  por- 
tugueza,  collocada  pela  differença  das  epochas  e  pelos  pro- 
greíTos  fociaes  em  condições  mui  diíTonantes  do  velho  mundo 
romano,  mal  poderia  governar-fe  pela  fua  legiflação.  Pro- 
hibia  pois  Sebaftião  de  Carvalho,  que  os  caufidicos  e  magis- 
trados adduzilTem  nas  allegações  e  nas  fentenças  os  textos 
da  lei  romana  ou  as  opiniões  e  gloíTas  dos  doutores  em  tudo 
quanto  pelo  direito  pátrio  eftiveíTe  claramente  definido  ou  na 
falta  de  lei  efcripta  o  coífume  do  reino  tiveíTe  confagrado. 
Sem  profcrever  inteiramente  a  difcreta  applicação  da  legifla- 
ção e  jurifprudencia  dos  romanos,  ordenava  que  no  foro  fe 
difcriminafle  d'entre  as  leis  imperiaes  as  que  têem  ou  não 
por  fundamento  a  boa  raião.  Explanava  o  legiflador  o  que 
por  efta  expreíTão  fe  haveria  de  entender.  Tinham  as  leis 
por  bafe  a  boa  raião:  i .°,  quando  continham  verdades  eíTen- 
ciaes  e  inalteráveis;  2.°,  quando  fe  radicavam  nos  princi- 
pies do  direito  das  gentes;  3.°,  quando  refpondiam  ás  novas 
condições  e  formas  fociaes,  e  ás  forçofas  transformações,  que 
o  progreíTo  no  decorrer  dos  feculos  imprime  nas  relações 
jurídicas  de  um  povo  civiliíado.  N'efta  categoria  fe  conglo- 
bam as  leis  politicas,  e  principalmente  as  commerciaes,  as 
económicas  e  as  marítimas  com  excepção  da  Lei  Rhodia  e 
poucas  mais,  quafi  inteiramente  defconhecidas  aos  romanos, 
mais  ciolbs  de  conquiftas  c  feitos  bellicofos  que  de  pacíficos 
tratos  mercantis  e  proveitofas  navegações.  A  lei  da  boa  ra{ão 
abolia  como  nocivas  á  juftiça  as  ampliações  e  reftricções  do 
direito  pátrio  pelas  difpofições  da  lei  romana,  comminan- 
do  punição  aos  advogados,  que  profcguilíem  n'elfa  pradica 


eis  eis 


4^9 

abufiva,  a  qual,  já  em  tempos  de  D.  João  III,  Jorge  Ferreira 
de  Vafconcellos  pozera  de  manifefto  n'uma  fcena  joco-feria 
da  fua  vernacLiIiffima  Eiifrofina' .  Não  era  porém  o  direito 
romano  unicamente  o  que  ufurpava  para  11  nos  auditórios  o 
que  legitimamente  pertencia  á  portugueza  legiflação.  Junto 
com  o  direito  cefareo  havia  quafi  ao  mefmo  tempo  irrompi- 
do em  grande  parte  da  Europa  latina  durante  a  edade  media 
o  direito  canónico  e  pontifício.  A  Egreja,  no  intuito  perfeve- 
rante  de  ablbrver  o  Eftado  e  a  íbciedade  temporal,  intervi- 
nha com  a  fua  legillação  elpiritual  no  julgamento  das  ques- 
tões e  dos  litígios  de  pura  condição  profana  e  fecular.  Baftava 
que  n'uma  queftão  do  foro  externo  fe  podeíTe  raftrear  uma 
fombra  de  efpiritualidade,  e  a  femelhança  de  um  peccado, 
para  que  a  lei  canónica  fe  antepozeíle  á  lei  civil.  A  Orde- 
nação philippina  confagrava  expreífamente  efta  invafão,  efta- 
tuindo  que  fendo  omiífa  a  pátria  legiflação,  fe  julgaíTe  pelos 
cânones  em  todos  os  cafos,  em  que  eíliveíTe  comprehendido 
algum  peccado-. 

A  lei  da  boa  raião  aboliu  inteiramente  efta  pradica  peri- 
gofa  de  julgar.  O  eftadifta,  que  timbrava  em  feparar  por  fron- 
teiras bem  vifiveis  a  Egreja  e  o  Eftado,  deixa  aos  cânones 
e  conftituiçóes  pontifícias  o  julgamento  das  caufas  efpiri- 
tuaes,  e  exclufivamente  fubordina  ás  leis  civis  as  relações 
tcmporaes  da  fociedade,  aífentando  que  não  incumbe  aos 
tribunaes  o  conhecimento  dos  peccados,  mas  fó  e  unica- 
mente o  dos  delidos.  Profcreve  o  legiflador  as  gloífas  de 
Accurfio  e  de  Bartholo,  mandadas  obfervar  em  alguns  cafos 
pelas  ordenações  do  reino \  Condemna  e  prohibe  a  allegação 
de  commentarios  e  opiniões,  porque  as  audoridades  nada 


'  Eufrofma^  Aclov,  Iccna  I. 

2  Orden.  philipp.,  Liv.  iii,  tit.  64. 

3  Orden.  philipp.,  Liv.  iii,  tit.  64,  §  i . 


^ 
-♦-i- 


eis 


^-<>-^ *-v-§- 

43o 

valem,  e  fó  devem  elcutar-fe  as  vozes  da  lei  e  os  diítames 
da  boa  razão.  Define  ainda  o  legiflador  quaes  fão  as  circum- 
flancias,  que  devem  acompanhar  os  eftylos  e  coftumes  do 
reino,  para  valerem  como  leis.  Determina  como  fe  hão  de 
racionavelmente  remediar  as  omiíTóes  do  direito  pátrio,  fup- 
pridas  principalmente  pelos  aílentos  da  cafa  da  fupplicação. 

Tal  era  fummariamente  enunciada  a  famofa  lei  da  boa 
raião.  Ve-le  n'ella  o  elpirito  moderno  a  inlurgir-fe  refoluto 
contra  o  delpotifmo  do  paliado  e  as  cadeias  da  tradição. 
Admira-fe  n'ella  o  eltadifta  fuperior,  que  comprehende  a  no- 
va Ibciedade  e  adivinha  quafi  a  juníprudencia  dos  Portalis  e 
dos  Merlins  e  a  idéa  revolucionaria  do  código  Napoleão. 

As  modificações  introduzidas  pelo  miniftro  reformador 
na  confl:ituição  da  propriedade  territorial  influíram  indire- 
(Tlamente  fobre  a  agricultura.  Efta  forma  porém  de  humana 
adividade  não  era  aquella,  em  que  o  reformador  principal- 
mente concentrava  as  luas  predilecções.  A  lua  paixão  domi- 
nante era  a  induftria  manufaílora  e  o  trato  mercantil.  Tinha 
fido  o  commercio,  que  tornara  poderofo  e  florefcente  o  eftreito 
Portugal.  Uma  nação,  que  poíTuia  na  Africa,  na  Afia,  na 
America  e  na  Oceania  vaftas  e  fecundas  polTeíTões,  parecia 
ao  legiflador  talhada  para  empório  das  riquezas  coloniaes. 
A  falfa,  mas  então  dominante  theoria  da  balança  do  com- 
mercio, fazia  acreditar  a  Sebaftião  de  Carvalho  que  um  paiz 
fe  devia  furtar  quanto  podefle  a  precifar  e  admittir  os  extra- 
nhos  artefaétos,  e  esforçar-le,  pelo  contrario,  em  eftendermais 
e  mais  os  feus  mercados  para  a  larga  exportação  das  pró- 
prias mercadorias.  N'efta  apertada  concepção  da  força  e  va- 
lia das  nações,  o  paiz  mais  venturolb  e  opulento  leria  o  que 
de  nada  careceffe  de  extrangeiros.  Seria  o  EJlado  cerrado,  fe- 
melhante  ao  que  mais  tarde  haveria  de  reduzir  a  contextura 
fcientifica  no  feu  Syftema  nacional  de  economia  politica  o  ce- 
lebrado economifta  allemão  Frederico  Lift.  Seria  a  economia 


43 1 

da  nacionalidade  profelTada  em  todo  o  leu  pleno  antagonis- 
mo á  economia  colmopolita  das  modernas  elcolas  libcraes. 
Seria  o  fyftema  proteftor  exaggcrado  até  as  fuás  derradei- 
ras confequencias  em  harmonia  com  o  dogma  inviolável  do 
egoilmo  nacional. 

E  precifo,  porém,  julgar  os  eftadiftas,  as  fuás  idéas  e  os 
feus  feitos  governativos  não  fegundo  as  modernas  conquiftas 
das  fciencias  fociaes  e  as  novas  condições  do  equilibrio  inter- 
nacional ;  mas  conforme  aos  princípios  geralmente  acceitos  no 
feu  tempo  e  á  fituação  particular  dos  povos,  a  quem  tiveram 
de  reger.  Se  a  balança  do  commercio,  na  ambiciofa  e  larga 
fignificação,  em  que  a  tomava  no  feculo  paífado  a  efcola 
mercantil,  é  hoje  provadamente  falfa  á  luz  das  theorias  e  dos 
factos,  não  é  todavia  menos  certo  que  uma  nação  carece,  quan- 
do menos,  de  produzir  o  neceífario  para  alcançar  das  outras 
pelo  efcambo  o  que  o  feu  trabalho  não  pôde  abfolutamente 
fabricar.  Não  é  também  menos  evidente  que  a  liberdade  mer- 
cantil illimitada,  inftituida  como  fyftema  n\im  povo  defprovido 
inteiramente  de  faculdades  produftoras,  não  confeguirá  da  ter- 
ra um  grão  de  trigo,  nem  da  oíficina  o  artefado  mais  vulgar. 
A  lei  natural  e  fecundiíTmia  da  divifão  do  trabalho  internacional 
fomente  pôde  fazonar  feus  fruítos  de  oiro,  qviando  no  con- 
certo das  nações  tem  cada  uma  d'ellas  naturalifado  e  florente 
em  certo  grau  algum  dos  ramos  do  trabalho  mais  conformes 
ao  clima,  ao  território,  á  vocação.  Portugal  era  nos  tempos  de 
Sebaftião  de  Carvalho  um  paiz,  onde  a  inércia  deixava  em 
grande  parte  os  campos  fem  cultura,  as  ofíicinas  fem  lavor. 
Urgia  pois  aguilhoar  a  indolência,  incitar  a  nativa  indecifão,' 
crear  a  induftria,  fomentar  o  commercio  nacional.  Não  fe 
conhecia  então,  nem  merecia  fé  outro  caminho  fenão  o  do 
fyftema  protector  com  toda  a  fua  variada  comitiva  de  feveras 
prohibições,  de  ciofos  regulamentos,  de  tarifas  audoritarias 
e  de  quotidiana  intervenção  das  forças  governativas  na  troca 


-i-À-i -hÇ^^ 

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-<Ç^ 

432 

e  na  producção.  O  propofito  de  Sebaftião  de  Cangalho,  nas 
fuás  providencias  em  favor  das  induítrias  nacionaes,  era  pois 
não  fomente  accommodado  á  fciencia  económica  d'aquelle 
tempo  e  ás  condições  do  povo  portuguez,  fenão  que  cifrava 
um  benemérito  ferviço  á  civilifação  de  Portugal.  Emquanto 
a  humanidade  fubfiftir  feparada  e  dividida  em  diil:in6tas  na- 
cionalidades, fe  não  hoílis,  ao  menos  dominadas  por  interes- 
fes  contraditórios,  o  conceito  de  nação  trará  fempre  comfigo 
forçofamente  a  idéa  de  emulação  e  rivalidade  entre  os  povos 
extranhos  e  empenhados  em  fe  excederem  uns  aos  outros  na 
riqueza  e  no  poder. 

O  egoifmo  nacional  prevalecerá  feguramente  contra  o 
cofmopolitifmo  humanitário. 

O  eftado  tem  duas  maneiras  de  inter^■ir  na  creação  e  no 
fomento  das  induítrias.  A  primeira  direita,  immediata,  con- 
vertendo-fe  elle  próprio  em  capitaliíta  e  emprezario.  A  fegun- 
da  reflexa  e  indireíta  pelas  exempções  e  privilégios  concedi- 
dos ás  emprezas  nacionaes  e  pelas  providencias  que  fufpcndem 
ou  annuUam  a  concorrência  dos  produdos  extrangeiros.  A 
ambas  fe  foccorreu  o  reformador,  fegundo  fe  lhe  deparava  a 
occafião.  É  aíhm  que  Sebaftião  de  Carvalho  eftabelece  a  ex- 
penfas  do  thefouro  a  fabrica  de  chapéus  em  Pombal',  a  de 
faiança,  no  fitio  do  Rato,  fob  a  immediata  direcção  do  enge- 
nhofo  Bartholomeu  da  Cofta.  Á  impulfão  do  eftado  foi  devida 
a  ofíicina  dos  eftuques,  e  a  aula  annexa  de  defenho  ornamental 
fob  a  infpecção  adminiftrativa  da  fabrica  das  fedas,  e  o  ensi- 
no technico  do  italiano  João  GroíTr.  São  extrangeiros  princi- 
palmente os  que  vem  inftituir  em  Portugal  algumas  induftrias 
novas  ou  reftaurar  as  que  Jaziam  defamparadas.  A  fabrica  de 
vidros  da  Marinha  Grande  pertencia  ao  eftado .  Eftava  porém 


eis 


'  Alvará  de  24  de  março  de  1769. 
2  Alvará  de  23  de  dezembro  1771. 


e|í 


4^9 

abufiva,  a  qual,  já  cm  tempos  de  D.  João  III,  Jorge  Ferreira 
de  Vafconcellos  pozera  de  manifefto  n'uma  Icena  joco-leria 
da  lua  vernaculiffima  Eufrofina'.  Não  era  porém  o  direito 
romano  unicamente  o  que  ufurpava  para  11  nos  auditórios  o 
que  legitimamente  pertencia  á  portugueza  legiflação.  Junto 
com  o  direito  cefareo  havia  quali  ao  mefmo  tempo  irrompi- 
do em  grande  parte  da  Europa  latina  durante  a  edade  media 
o  direito  canónico  e  pontifício.  A  Egreja,  no  intuito  perfeve- 
rante  de  ahforver  o  Eftado  e  a  fociedade  temporal,  intervi- 
nha com  a  fua  legiílação  efpiritual  no  julgamento  das  ques- 
tões e  dos  litigios  de  pura  condição  profana  e  fecular.  Bailava 
que  n'uma  queítão  do  foro  externo  fe  podeíTe  raftrear  uma 
fombra  de  efpiritualidade,  e  a  femelhança  de  um  peccado, 
para  que  a  lei  canónica  fe  antepozeíTe  á  lei  civil.  A  Orde- 
nação philippina  confagrava  expreíTamente  efta  invafão,  efta- 
tuindo  que  fendo  omiíTa  a  pátria  legiílação,  fe  julgaífe  pelos 
cânones  em  todos  os  cafos,  em  que  eftiveífe  comprehendido 
algum  peccado-. 

A  lei  da  boa  raião  aboliu  inteiramente  efta  pradica  peri- 
gofa  de  julgar.  O  eftadifta,  que  timbrava  em  feparar  por  fron- 
teiras bem  vifiveis  a  Egreja  e  o  Eftado,  deixa  aos  cânones 
e  conftituições  pontifícias  o  julgamento  das  caufas  efpiri- 
tuaes,  e  exclufívamente  fubordina  ás  leis  civis  as  relações 
temporaes  da  fociedade,  afl"entando  que  não  incumbe  aos 
tribunaes  o  conhecimento  dos  peccados,  mas  fó  e  unica- 
mente o  dos  delidos.  Profcreve  o  legillador  as  gloífas  de 
Accurfio  e  de  Bartholo,  mandadas  obfervar  em  alguns  cafos 
pelas  ordenações  do  reino'.  Condemna  e  prohibe  a  allegação 
de  commentarios  e  opiniões,  porque  as  audoridades  nada 


1  Eii/rofiiia,  Aclov,  fcena  I. 

2  Ordeii.  pliilipp.,  Liv.  iii,  tit.  64. 

3  Orden.  philipp.,  Liv.  m,  tit.  64,  §  i. 


e|s  eis 


-^<ô>- -v-§- 

43o 

valem,  e  fó  devem  efcutar-fe  as  vozes  da  lei  e  os  didames 
da  boa  razão.  Define  ainda  o  legiflador  quaes  fão  as  circum- 
ftancias,  que  devem  acompanhar  os  eftylos  e  coftumes  do 
reino,  para  valerem  como  leis.  Determina  como  fe  hão  de 
racionavelmente  remediar  as  omiíTões  do  direito  pátrio,  fup- 
pridas  principalmente  pelos  aíTentos  da  caía  da  fupplicação. 

Tal  era  fummariamente  enunciada  a  famofa  lei  da  boa 
raião.  Vê-le  n'ella  o  efpirito  moderno  a  infurgir-le  refoluto 
contra  o  deípotifmo  do  paflado  e  as  cadeias  da  tradição. 
Admira-fe  n'ella  o  elladifta  luperior,  que  comprehende  a  no- 
va fociedade  e  adivinha  quafi  a  jurilprudencia  dos  Portalis  e 
dos  Mcrlins  e  a  idéa  revolucionaria  do  código  Napoleão. 

As  modificações  introduzidas  pelo  miniftro  reformador 
na  conflituição  da  propriedade  territorial  influíram  indire- 
ctamente Ibbre  a  agricultura.  Efta  forma  porém  de  humana 
actividade  não  era  aquella,  em  que  o  reformador  principal- 
mente concentrava  as  luas  predilecções.  A  fi.ia  paixão  domi- 
nante era  a  indufiria  manufaftora  e  o  trato  mercantil.  Tinha 
fido  o  commercio,  que  tornara  poderofo  e  florefcente  o  eítreito 
Portugal.  Uma  nação,  que  poflfuia  na  Africa,  na  Afia,  na 
America  e  na  Oceania  vaftas  e  fecundas  poffeíTões,  parecia 
ao  legiflador  talhada  para  empório  das  riquezas  coloniaes. 
A  falia,  mas  então  dominante  theoria  da  balança  do  com- 
mercio, fazia  acreditar  a  Sebaftião  de  Carvalho  que  um  paiz 
fe  devia  furtar  quanto  podeíTe  a  precifar  e  admittir  os  extra- 
nhos  artefados,  e  esforçar-íe,  pelo  contrario,  em  eftendermais 
e  mais  os  feus  mercados  para  a  larga  exportação  das  pró- 
prias mercadorias.  N'efta  apertada  concepção  da  força  e  va- 
lia das  nações,  o  paiz  mais  venturofo  e  opulento  feria  o  que 
de  nada  carecefle  de  extrangeiros.  Seria  o  EJlado  cerrado,  fe- 
melhante  ao  que  mais  tarde  haveria  de  reduzir  a  contextura 
fcientifica  no  feu  Syjlema  nacional  de  economia  politica  o  ce- 
lebrado economifla  allemão  Frederico  Liíi.  Seria  a  economia 


1  >  \  I 

elí  eis 


«is 


43 1 

da  nacionalidade  prolelTada  cm  todo  o  feu  pleno  antagonis- 
mo á  economia  cofmopolita  das  modernas  efcolas  liberaes. 
Seria  o  lyftema  proteítor  exaggerado  até  as  fuás  derradei- 
ras confequencias  cm  harmonia  com  o  dogma  inviolável  do 
cgoifmo  nacional. 

E  precifo,  porém,  julgar  os  eftadiftas,  as  ílias  idéas  e  os 
feus  feitos  gOA'ernativos  não  fegundo  as  modernas  conquiftas 
das  fciencias  fociaes  e  as  novas  condições  do  equilibrio  inter- 
nacional; mas  conforme  aos  princípios  geralmente  acceitos  no 
feu  tempo  e  á  fituação  particular  dos  povos,  a  quem  tiveram 
de  reger.  Se  a  balança  do  commercio,  na  ambiciofa  e  larga 
fignificação,  em  que  a  tomava  no  feculo  palTado  a  efcola 
mercantil,  é  hoje  provadamente  falfa  á  luz  das  theorias  e  dos 
fadtos,  não  é  todavia  menos  certo  que  uma  nação  carece,  c[uan- 
do  menos,  de  produzir  o  neceífario  para  alcançar  das  outras 
pelo  efcambo  o  que  o  feu  trabalho  não  pode  abfolutamente 
fabricar.  Não  é  também  menos  evidente  que  a  liberdade  mer- 
cantil illimitada,  inftituida  como  fylfema  n'um  povo  dcfprovido 
inteiramente  de  faculdades  produftoras,  não  confeguirá  da  ter- 
ra um  grão  de  trigo,  nem  da  oíficina  o  artefado  mais  vulgar. 
A  lei  natural  e  fecundiíllma  da  divifão  do  trabalho  internacional 
fomente  pôde  fazonar  feus  frudos  de  oiro,  quando  no  con- 
certo das  nações  tem  cada  uma  d'ellas  naturalifado  e  ííorcntc 
em  certo  grau  algum  dos  ramos  do  trabalho  mais  conformes 
ao  clima,  ao  território,  á  vocação.  Portugal  era  nos  tempos  de 
Sebaítião  de  Carvalho  um  paiz,  onde  a  inércia  deixava  em 
grande  parte  os  campos  fem  cultura,  as  officinas  fem  lavor. 
Urgia  pois  aguilhoar  a  indolência,  incitar  a  nativa  indecifão, 
crear  a  induftria,  fomentar  o  commercio  nacional.  Não  fe 
conhecia  então,  nem  merecia  fé  outro  caminho  fenão  o  do 
fyftema  protedor  com  toda  a  fua  variada  comitiva  de  feveras 
prohibições,  de  ciofos  regulamentos,  de  tarifas  audoritarias 
e  de  quotidiana  intci-venção  das  forças  governativas  na  troca 


eis 


4  9^ 
.-<5^^ 

e  na  producção.  O  propofito  de  Sebaftião  de  Can-alho,  nas 
fuás  providencias  em  favor  das  induftrias  nacionaes,  era  pois 
não  fomente  accommodado  á  fciencia  económica  d'aquelle 
tempo  e  ás  condições  do  povo  portuguez,  fenão  que  cifrava 
um  benemérito  ferviço  á  civilifação  de  Portugal.  Emquanto 
a  humanidade  fubfiftir  feparada  e  dividida  em  diftincfas  na-- 
cionalidades,  fe  não  hoítis,  ao  menos  dominadas  por  interes- 
fes  contraditórios,  o  conceito  de  nação  trará  fempre  comíigo 
forçofamente  a  idéa  de  emulação  e  rivalidade  entre  os  povos 
extranhos  e  empenhados  em  fe  excederem  uns  aos  outros  na 
riqueza  e  no  poder. 

O  egoifmo  nacional  prevalecerá  feguramente  contra  o 
cofmopolitifmo  humanitário . 

O  eftado  tem  duas  maneiras  de  intervir  na  creação  e  no 
fomento  das  induftrias.  A  primeira  direita,  immediata,  con- 
vertendo-fe  elle  próprio  em  capitalifta  e  emprezario.  A  fegun- 
da  reflexa  e  indireffa  pelas  exempções  e  privilégios  concedi- 
dos ás  emprezas  nacionaes  e  pelas  providencias  que  fufpendem 
ou  annuUam  a  concorrência  dos  produífos  extrangeiros.  A 
ambas  fe  foccorreu  o  reformador,  fegundo  fe  lhe  deparava  a 
occafião.  E  affim  que  Sebaífião  de  Carvalho  eftabelece  a  ex- 
penfas  do  thefouro  a  fabrica  de  chapéus  em  Pombal',  a  de 
faiança,  no  fitio  do  Rato,  fob  a  immediata  direcção  do  enge- 
nhofo  Bartholomeu  da  Coita.  A  impulfão  do  eífado  foi  de^'ida 
a  officina  dos  eftuques,  e  a  aula  annexa  de  defenho  ornamental 
fob  a  infpecção  adminiflrativa  da  fabrica  das  fedas,  e  o  ensi- 
no technico  do  italiano  João  Groflr.  São  extrangeiros  princi- 
palmente os  que  vem  inftituir  em  Portugal  algumas  induftrias 
novas  ou  reftaurar  as  que  jaziam  defamparadas.  A  fabrica  de 
vidros  da  Marinha  Grande  pertencia  ao  eífado .  Eft ava  porém 


'  Alvará  de  24  de  março  de  17Õ9. 
2  Alvará  de  23  de  dezembro  1771. 


-i-A- -6-^ 


Sp  tp 


4^7 


eivas  ao  delenvolvimento  indultrial,  as  idéas  profeíTadas  pelo 
eminente  reformador,  é  neceíTario  não  elquecer  que  eftas 
eram  as  doutrinas  realifadas  na  praxe  governativa  das  nações 
mais  efclarecidas  e  notáveis  pela  fua  riqueza  e  excellencia 
induftrial.  A  Inglaterra  d'aquelle  tempo,  não  obftante  a  fua 
indifputavel  fupremacia  naval  e  da  lua  grande  indurtria  ma- 
nufactora,  continuava  a  ter  por  bale  e  penhor  da  lua  pros- 
peridade as  leis  reftrictivas  do  commercio,  inípiradas  pelo 
mais  meticulofo  egoifmo  nacional.  Os  actos  de  napegação,  prin- 
cipalmente fortalecidos  por  Oiiver  Cromwell  durante  o  feu 
enérgico  protedorado,  e  depois  da  reftauração  por  Carlos  II, 
a  eftreita  legiflação  dos  cereaes,  o  Íòxov  irracional  á  induflria 
ainda  então  imperfeitilllma  das  fedas  na  Gran-Bretanha,  as 
pefadiíTimas  taxas  aduaneiras,  com  que  fe  diíiicultava  a  im- 
portação, todo  erte  machinifmo  de  protecção  artificial  e  ana- 
chronica,  perfeverava  triumphante  e  nem  fequer  ainda  fufpei- 
tava  que  fendo  já  paífado  o  primeiro  quartel  do  feculo  xix,  um 
miniífro  oufado,  Hufkiífon,  conciliando  o  patriotifmo  com  a 
verdade,  e  o  governo  com  a  fciencia,  demonftraria  á  velha  In- 
glaterra a  inanidade  opprobriofa  do  fyftema  protector  havido 
como  o  palladio  da  nação.  E  ainda  foi  precifo  que  muitos 
annos  decorreífem  antes  que  a  grande  meftra  das  induftrias 
e  a  rainha  do  Oceano,  depois  da  agitação  de  Richard  Cob- 
den  e  da  efcola  económica  de  Manchelfer,  fe  refignaífe,  á 
voz  do  convertido  Robert  Peei,  a  defpojar-fe  das  fuás  vi- 
ciofas  tradições  e  a  entrar  oufadamente  na  via  triumphal 
do  li\re  cambio.  A  França  contemporânea  de  Carvalho  man- 
tinha ainda  em  pleno  vigor  o  fyftema  regulamentar  e  reftri- 
c^ivo,  com  que  o  famoíb  Colbert  encadeara  a  fuprema  direc- 
ção do  eftado  todas  as  formas  do  trabalho.  Somente  em  i  774, 
quando  já  tocava  o  leu  occafo  o  poder  e  a  energia  do  mi- 
niltro  portuguez,  um  dos  mais  eminentes  fundadores  da  eco- 
nomia politica,  Turgot.  chamado  aos  confelhos  de  Luiz  XVI, 


ft|s 


.|-(J>- ■ -S>-§- 

438 

começava  com  vigor  a  tralladar  para  as  praticas  de  um  gover- 
no illuminado  as  doutrinas,  que  havia  profeíTado  em  artigos  da 
Encyclopedia,  e  principalmente  nas  fuás  obras,  e  entre  ellas 
na  mais  profunda  e  memorável,  as  Reflexões  fobre  a  forma- 
ção e  a  dijhibuição  das  riqueias,  publicada  em  1766.  E  me- 
nos poderemos  extranhar  as  idéas  económicas  de  Sebaftião 
de  Carvalho  acerca  dos  aíTumptos  induftriaes,  quando  atten- 
tarmos  em  que  os  Eítados  Unidos,  a  primeira  nação  do  mundo 
no  prefente,  a  mais  opulenta  produtora,  a  que  hoje  defcar- 
rega  nos  mercados  europeus  vima  grande  parte  dos  cereaes, 
de  que  fe  nutre  a  faminta  e  velha  Europa,  ainda  perfevera 
impenitente  nos  decrépitos  abufos  do  fyltema  protedor,  pro- 
feflado  por  muitos  dos  léus  melhores  economiftas,  fem  ex- 
ceptuar o  illuftre  Carey. 

A  confequencia  inevitável  da  legiflação  prohibitiva  de- 
cretada por  Sebaífião  de  Carvalho  era  o  contrabando  a  em- 
penhar activamente  os  feus  esforços  para  illudir  e  lliperar 
a  mais  rigorofa  vigilância  e  repreíTão.  Deparam-fe  a  cada 
paffo  nas  collecções  de  leis  d'aquelle  tempo  as  penas  mais 
feveras  contra  os  que  intentam  fubtrahir-fe  á  acção  fiscal'. 
Parecia  que  uma  valia  confpiração  fe  havia  propofto  contra- 
dizer o  fyftema  prohibitivo  adoptado  pelo  elladifta,  e  o  crime, 
revertido  de  circumftancias  fubverfivas  da  ordem  publica, 
encarregava-fe  de  reprefentar  contra  as  idéas  do  governo  os 
principies  da  liberdade  mercantil. 

A  tal  ponto  fe  aggravára  o  contrabando,  que  os  próprios 
militares,  em  vez  de  auxiliar  as  perquifições  contra  os  des- 
caminhos da  fazenda,  fe  juntavam  em  partidas  de  dez  e 
vinte  homens  armados  para  afifrontarem  feguramente  as  jus- 


'  Entre  outros  o  alvará  de  26  de  maio  de  1766,  creando  dois  fuperinten- 
dentes  geraes  das  alfandegas,  um  para  as  provindas  do  norte,  outro  para  as  do 
fui,  e  o  alvará  de  i3  de  novembro  de  lyyS,  dando  providencias  fobre  a  faca  ou 
faida  de  ouro  para  fora  de  Portugal. 


-<v>-|^ 

439 

tiças  c  defenderem  as  fazendas  lubtrahidas  ás  legaes  impofi- 
ções.  Recorre  o  legiflador  ás  mais  duras  comminações  para 
enfrear  os  contrahandiftas  de  uniforme,  decretando  que  fejam 
punidas  com  a  pena  capital  as  praças,  que  em  numero  de  três 
ou  d'ahi  para  cima  fora  do  ferviço  le  cncontralTem  aperce- 
bidas com  armas  brancas  ou  cie  fogo.  Com  outras  não  menos 
terríveis  providencias  buícava  o  elfadifta  refrear  a  audácia 
criminofa  dos  que  aítrontavam  publicamente  os  magiítrados 
no  exercício  do  feu  mandato  focial". 

Mas  a  economia  politica  tem  leis  tão  naturaes,  tão  neces- 
íarias,  tão  fuperiores  a  todo  o  arbítrio  individual  e  a  toda  a 
coacção  governativa,  como  a  lei  da  gravidade,  como  as  que 
nas  aguas  determinam  o  equilíbrio  e  o  movimento.  O  legifla- 
dor, como  o  architeflo  ao  projectar  nos  ares  as  luas  cúpulas, 
como  o  engenheiro,  ao  traçar  e  conftruir  os  léus  canaes,  os  feus 
portos,  as  fuás  defezas  contra  as  prováveis  inundações,  ha  de 
forçofamente  contar  com  ellas  e  fazel-as  lervir  racionalmente 
ao  proveito  Ibcial.  O  primeiro  dever  do  poder  publico,  quan- 
do falia  pelo  órgão  da  lua  lei,  é  evitar  cautelolamente  as  oc- 
cafiões  de  novos  crimes  para  a  illudir  ou  falfear.  O  fyftema 
protector  e  o  prohibitivo,  e  as  taxas  delmedidas  Ibbre  os  pro- 
ducfos  extrangeiros  ou  nacionaes  têem  por  impreterível  con- 
leclario  o  levantar  um  exercito  permanente  de  infradores  e 
contrabandirtas,  combatendo  em  ordem  difperla  pela  extenfão 
dos  portos  e  fronteiras,  contra  uma  phalange  numerofa  e  cus- 
tofiílima  de  exactores  e  guardas  fifcaes.  Mas  o  erro  de  Se- 
baftião  de  Car\alho  é,  pofto  que  cm  mais  largas  proporções,  o 
erro  económico  preponderante  nos  governos  contemporâneos 
da  Europa  continental.  De  todos  os  que  a  luz  da  fciencia  pro- 
cura illuminar,  lao  os  governos  em  toda  a  parte  os  mais  in- 
crédulos e  refradarios  em  a  faudar  e  receber. 


'  Alvani  de  14  de  fevereiro  de  1772- 


ti» 


(is 


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440 

Se  a  induítria  defvellava  o  foUicito  legiflador  e  lhe  de- 
buxava em  íbnhos  de  engrandecimento  nacional  as  mais  ri- 
dentes perfpecl:i%'as,  não  eram  menos  fagueiras  as  efperanças 
de  le^"antar  de  novo  Portugal  ao  luzimento  e  poderio,  com 
que  o  leu  nome  outr'ora  havia  infcripto  entre  os  mais  celebres 
povos  mercantis.  Alem  da  fundação  das  companhias,  de  que 
o  paiz  veiu  a  derivar  proveitos  inconteftaveis,  Sebaftião  de 
Carvalho  é  infatigável  cm  promover,  fegundo  os  princípios 
fundamentaes  do  feu  fyftema,  a  maior  Aalia  e  extenfão  das 
nolTas  relações  commerciaes.  É  n'efte  ponto  innegavel  que 
muitas  das  fuás  providencias  merecem  juftiffimo  louvor. 

No  feu  tempo  era  eftreito,  irracional  e  egoifta  o  fyftema 
colonial  dos  povos  europeus.  Cada  nação  fechava  ciofamente 
os  portos  das  fuás  colónias  aos  navios  extrangeiros,  e  na  fua 
legiflação  tomava  as  mais  vexatórias  prevenções  para  que  o 
trafico  dos  produftos  coloniaes  eftiveífe  exclufn'amente  con- 
centrado em  luas  mãos.  D'ahi  provinha  a  apertada  regulamen- 
tação, em  que  vivia  conítrangida  a  navegação  e  o  commercio 
com  as  colónias.  D'ahi  que  navio  algum  mercante  podeífe  de 
Portugal  endireitar  para  o  Brazil  fem  ir  com  outros  encorpo- 
rado  em  frotas  que  em  epochas  prefixas  fmgravam  comboia- 
das por  naus  de  guerra.  A  abolição  d'efte  regimen  oppreíTi- 
vo  e  contrario  a  toda  a  iniciativa  e  efpeculação  commercial  é 
um  dos  ferviços  eminentes  do  eífadifta  á  exempção  e  fran- 
quia do  trabalho.  A  lei  declara  livre  a  navegação  para  o  Bra- 
zil, abolidas  as  frotas,  e  caífadas  as  antigas  providencias  que 
fixavam  a  epocha  da  partida  c  do  retorno  aos  navios  do 
commercio'.  Não  defifte  porém  o  legiflador  inteiramente  da 
intervenção  enérgica  do  eftado  nas  operações  e  nos  contratos 
mercantis.  A  lei  fixa  o  preço  dos  fretes  ás  mercadorias  de 
Portugal  levadas  ao  Brazil,  e  ás  que  em  retorno  fe  conduzam 


■  Alvará  de  10  de  Icptcmbro  de  ijGS. 


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44' 

em  navios  procedentes  dos  portos  americanos'.  Pela  anterior 
legiflação  era  vedado  a  qualquer  navio  o  navegar  a  outro 
porto  do  Brazil,  alem  d'aquelle  a  que  ia  deílinado.  Era  defe- 
fo  o  tranfitar  de  um  a  outro  mercado  na  America,  embora 
íoíTe  conveniente  aos  intereíTes  mercantis  o  eleger  as  praças 
mais  propicias  ao  feu  carregamento.  Sebaftião  de  Carvalho 
rompe  ainda  eftas  cadcas,  que  prendiam  a  navegação,  e  de- 
clara que  aos  navios  mercantes  é  facultado  o  irem  e  levarem 
mercadorias  de  uns  a  outros  logares  na  cofta  do  Brazil,  onde 
o  commercio  não  efteja  monopolilado  pelo  favor  concedido 
ás  companhias-.  Acabadas  as  frotas  como  forçada  inftitui- 
ção  não  le  efquece  todavia  o  legiflador  de  prover  á  feguran- 
ça  dos  navios,  que  defejem  livremente  utilifar  a  protecção  e 
força  dos  comboios.  Duas  fragatas  de  guerra  fairiam  todos  os 
annos  de  Liíboa  para  o  Rio  de  Janeiro,  com  o  destino  de 
trazerem  o  dinheiro  do  eítado  e  o  dos  particulares,  que  d'efi:e 
modo  julgaíTem  mais  feguro  o  feu  tranfporte.  As  fragatas  fer- 
\iriam  de  comboiar  na  torna-viagem  as  embarcações  mer- 
cantes, que  pretendeíTem  rcgreíTar  em  frotas  á  metrópole \ 

Não  devem  omittir-fe  pelo  feu  efpirito  de  juítiça  e  egual- 
dade  as  leis  promulgadas  para  abolir  as  prafticas  aduaneiras, 
com  que  perante  o  íifco  o  Algarve  era  havido  como  fe  fora 
na  verdade  um  reino  feparado  e  mal  annexo,  uma  efpecie 
de  Irlanda  em  Portugal.  Reparando  a  injuftiça  perpetrada 
contra  uma  parte  importante  da  nação,  extingue  o  legiflador 
os  direitos  exigidos  no  Algarve  aos  legumes  e  cereaes,  que 
das  mais  terras  portuguezas  para  alli  fe  tranfportavam-*.  Abo- 
liu egualmente  todos  os  direitos  differenciaes,  com  que  nas 


'  Alvará  de  29  de  abril  de  1766. 

2  Alvará  de  2  de  junho  de  1766. 

3  Decreto  de  10  de  junho  de  1766. 
■4  Alvará  de  iS  de  janeiro  de  1773. 


eis 


eis 


«is 


442 

alfandegas  o  Algarve  era  opprimido  e  conliderado  como  paiz 
extranho  ou  de  conqiiiíta'. 

Uma  das  mais  notáveis  providencias,  com  o  intuito  de 
illuftrar  e  engrandecer  as  claíTes  mercantis,  foi  aquella  em  que 
Sebaftião  de  Carvalho  conftituiu,  como  em  nova  corporação, 
todos  os  que  exercitavam  o  commercio  na  capital.  Eftatuia 
o  legiflador  a  matricula  para  todos  os  commerciantes  de  Lis- 
boa. Ordenava  que  todos  os  guardas-livros  e  caixeiros  tives- 
fem  o  curfo  da  aula  do  commercio,  e  eguaes  habilitações 
foíTem  exigidas  aos  fobrecargas,  aos  caixas  e  efcripturarios 
dos  navios  deflinados  para  o  trafico  da  Afia.  A  lei  prefcrevia 
o  mefmo  noviciado  fcientifico  para  os  efcrivães  da  armada, 
para  os  empregos  nas  companhias  geraes  e  privilegiadas,  e 
para  os  oíiicios  da  adminiítração  e  arrecadação  da  fazenda 
publica-.  D'efta  maneira  a  fciencia  do  commercio,  methodi- 
camente  profelTada  n'um  inítituto  efpecial,  feria  largamente 
divulgada  e  um  dos  elementos  eíTenciaes  aos  progreíTos  econó- 
micos,—  a  cultura  do  entendimento  e  a  educação  profeílio- 
nal, — feria  penhor  e  fegurança  de  que  o  trafico  portuguez 
haveria  de  crefcer  e  profperar. 

Apelar  de  todos  eftes  valiofos  incitamentos  á  energia 
commercial,  o  rigor  regulamentar  e  a  fubordinação  da  liber- 
dade mercantil  ás  preocupações  da  audoridade  refòa,  como 
a  nota  fundamental,  na  legiflação  de  Sebaftião  de  Carvalho. 
A  doutrina  de  que  o  preço  é  naturalmente  determinado  pela 
relação  entre  a  procura  e  a  offerta,  o  principio  de  que  a  troca 
é  um  ado  voluntário  e  independente  da  tutela  governativa, 
ainda  não  tem  podido  infinuar-fe  no  efpirito  dos  governos,  e 
ainda  tem  por  adverfario  impenitente  um  varão  de  quilates 
tão  fubidos  qual  era  para  o  feu  tempo  o  miniftro  de  D.  Jofé. 


■  Carta  de  lei  de  4  de  fevereiro  de  1773. 
2  Carta  de  lei  de  3o  de  agoílo  de  1770. 


eis 


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44J 


Não  admira  pois  que  no  leu  empenho  de  íirmar  as  luas  pre- 
diledas  companhias  com  os  efteios  da  autoridade,  commine 
penas  feveras  aos  que  comprem  as  acções  d'aquellas  Ibcie- 
dades  mercantis  por  menos  do  leu  valor  nominal'.  Ainda  o 
legiflador  não  comprehendia  como  os  fundos  públicos  e  as 
acções  commerciaes  deviam  por  neceíTidade  ineluftavel  fub- 
metter-fe  ás  ofcillações  perpetuas  do  mercado. 

As  pefcarias  portuguezas  outfora  florefcentes,  como  de 
nação  eíTencialmente  dedicada  aos  trabalhos  Ímprobos  do 
mar,  tinham  a  tal  ponto  decaído,  que  chamavam  fobrc  li  a 
attenção  do  legiflador.  Confiando  mais  nas  poderofas  aíTocia- 
ções  commerciaes  como  infirumentos  de  fecundidade  e  effi- 
cacia  do  que  na  acção  do  esforço  e  do  capital,  quando  ilbla- 
dos,  inftitue  Sebaftião  de  Carvalho  a  companhia  geral  das. 
pefcarias  reaes  do  Algarve-.  Attribue-lhe  o  capital  de  quarenta 
contos,  depois  elevados  até  ao  dobro  por  ulterior  dilpofição 
legiflativa"'.  Eífa  nova  inftituição  nos  léus  primeiros  tempos 
exerceu  benéficos  influxos  no  melhoramento  da  induftria  pis- 
catória e  na  riqueza  do  Algarve.  Em  cerca  de  dois  mil  contos 
Ic  computaram  os  produdos  das  armações  na  pefca  do  atum 
e  de  outros  peixes,  defde  a  fundação  da  companhia  até  o 
anno  de  18 12''. 

Eis  ahi  lummariadas  as  mais  importantes  e  notáveis  pro- 
vifões  decretadas  por  Sebaftião  de  Carvalho  para  fomentar  e 
proteger  as  induftrias  nacionaes.  D'entre  ellas  algumas,  ainda 
que  em  manifefto  delaccordo  com  os  princípios  fundamentaes 
das  modernas  fciencias  económicas,  tiveram  por  afortunada 
confequencia  o  augmcntar  a  producção  e  a  riqueza  nacional. 


1  Alvará  de  3o  de  agoflo  de  1768. 

2  Eílatutos  de  8  de  janeiro  de  1773,  confirmados  por  alvará  de  i5  de  janeiro 
do  mefmo  anno. 

-'  Alvará  de  Ti  de  julho  de  1776. 

4  Baptiíta  Lopes,  Chorographia  do  Algarve,  pag.  8g. 

II  I ' 

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e|j  eis 


444 

Outras  fe  não  lograram  frudos  copiofos,  tiveram  pelo  menos 
a  vantagem  de  accordar  os  ânimos  irrefolutos  e  dormentes, 
demonftrando  que  pela  diligencia  e  pelo  trabalho  feria  ainda 
poíTivel  reftaurar  o  que  leculos  de  ignorância  e  ociofidade 
tinham  feito  perder  e  malbaratar. 


CAPITULO  XVI 

o  TRIUMPHO 

No  meio  dos  negócios  variados  e  multiformes,  que  tra- 
ziam prefa  a  attenção  do  eftadifta,  no  intento  de  promover 
a  reformação  e  melhoria  da  nação  e  reprimir  as  demaíias  de 
ultramontanos  e  fanáticos,  mantendo  a  paz  e  quietação  no  in- 
terior de  Portugal,  nunca  um  momento  deflembrava  Sebas- 
tião de  Carvalho  a  miíTão  principal  do  leu  longo  e  agitado 
minifterio.  Tinha  elle  fido  o  primeiro  a  levantar  o  grito  no  feio 
do  catholicifmo  contra  a  poderofa  fociedade,  inftituida  por 
Santo  Ignacio  de  Loyola.  Havia  defde  os  primeiros  tempos 
da  fua  adminiftração  faído  a  terreiro  a  combater  aquelles  re- 
ligiofos,  a  quem  tinha  por  jurados  inimigos  do  poder  tempo- 
ral e  por  obftaculos  quafi  irrefiíliveis  a  todo  o  progreíTo  do 
entendimento  e  a  toda  a  emancipação  da  coníciencia.  Como 
ftrenuo  luftador  tinha  envidado  esforços  fobrehumanos  em 
porfia  na  apparencia  defegual,  mas  após  os  rijifluTios  comba- 
tes, ninguém  o  vira,  defalentado  e  rendido  pela  fadiga,  defam- 
parar  a  arena  das  fuás  vicl:orias  memoráveis. Tinha  proftrado 
em  Portugal  a  odiada  Companhia,  mas  as  hoftes  jefuiticas, 
defbaratadas  e  profcriptas  no  paiz,  onde  fora  mais  extenfo 
e  oppreffivo  o  feu  longo  poderio,  cerravam  agora  as  fuás 
fileiras  em  redor  do  Vaticano,  e  faziam  da  cidade  eterna  a 
derradeira,  mas  formidável  cidadella,  em  que  eftavam  des- 


tis 


c|3 


afiando  impunemente  a  cólera  e  o  delpeito  dos  monarchas 
mais  poderofos.  Quafi  tinliam  fentado  no  folio  pontificio 
o  feu  geral,  cuja  figura  altiva  e  dominante  deixava  mal  vifi- 
vel  na  penumbra  o  vulto  macerado  do  pontífice,  já  prefi:es 
a  efconder-fe  nas  Ibmbras  fepulchraes.  A  companhia  de 
Jefus  era  um  exercito  vencido  cm  vários  pontos  nos  flancos 
da  fua  linha  de  batalha,  tendo  porém  o  centro  ainda  intado 
e  protegido  por  defezas  ainda  então  inacceffiveis  ao  inimigo. 
Emquanto  em  Roma  continuaífe  a  tremular  a  bandeira  da  or- 
dem audaciífima,  quem  poderia  aíTegurar-fe  contra  a  poíTivel 
contingência  de  que  volveíTem  os  jefuitas  novamente  á  re- 
conquifta  do  terreno  já  perdido  nas  principaes  nações  da 
chriftandade?  A  Companhia  e  os  feus  adeptos  efperavam 
confiados  a  bonança,  e  emquanto  o  Vigário  de  Chrifto  os 
continuaífe  a  ter  de  lua  mão,  e  os  abroquelaífe  com  a  fua 
valiofa  audoridade,  e  confiindiífe  a  fua  caufa  com  a  própria 
fubftancia  do  catholicifmo,  e  lhes  deífe  perante  a  egreja  quafi 
a  fantidade  e  o  valor  de  um  dogma  fundamental,  não  feriam 
defafifadas  as  efperanças  dos  que  faudavam  como  próximo 
o  termo  á  profcripção  e  captiveiro. 

Clemente  XIII  Ibubera  inflexível  refiftir  a  todos  os  em- 
bates das  potencias  mais  empenhadas  na  total  abolição  da 
Companhia.  O  pontífice,  com  uma  alteza  de  animo  real- 
mente admirável  n'um  papa  da  edade  média,  fupportára 
com  paciência  exemplar  as  humilhações  c  as  ameaças  dos 
maiores  e  mais  catholicos  potentados.  Alongando  as  viftas 
piedofas  e  afceticas  aos  tempos,  em  que  as  infignias  pontifi- 
caes  eram  o  prenuncio  do  martyrio,  julgava-fe  fadado  a  fal- 
var  a  egreja  contra  a  aífolação  da  impiedade.  Era  Leão  o 
magno  abatendo  com  o  preltigio  efpiritual  do  fummo  facer- 
docio  a  majeftade  e  o  poder  do  bárbaro  coroado.  Podéra  a 
França  coUigada  com  a  Hefpanha  na  vindicação  de  uma  af- 
fronta  infolita  aos  Bourbons,  tomar  com  as  luas  tropas  os 


446 

dominios  do  papa  em  Avinháo,  em  Benevento,  em  Ponte 
Corvo.  Clemente  XIII  perfeverava  impaíTivel  e  refoluto  a 
defender  o  que,  na  fua  eftreita  mas  ingénua  comprehcnfáo  do 
pontificado,  reputava  indiíToluvelmente  vinculado  á  dignidade 
e  á  honra  da  cadeira  de  S.  Pedro.  O  velho  antiftite  via  com 
intenfa  dor  o  rei  JideUj[Jiino  por  excellencia  quafi  inteiramente 
feparado  da  cabeça  vifivel  da  fé  chriftan.Via  o  rei  catholico, 
na  terra  claííica  da  inquifição  e  do  fanatifmo,  enviar  em  tom 
hoftil  os  feus  foldados  contra  o  património  pontifício.  Via  o 
rei  chrijiiauijjimo,  o  filho  primogénito  da  egreja,  pelo  órgão 
do  fceptico  Choifeul  e  do  violento  D'Aubeterre,  lembrar-fe 
mais  de  que  era  foberano  do  que  bom  chriftão  fi.TbmilTo  e 
reverente  ás  bulias  e  refcriptos  do  papado.  Via  a  própria  ma- 
jeftade  apostólica,  reprelentada  na  imperatriz  Maria  Thereza 
de  Auftria,  inlenfivel  e  indiíferente  ás  tribulações  do  c[ue  fe 
nomeava  o  mais  alto  lucceíTor  do  apoítolado.  Lafiimava-fe, 
receiava  porventura,  que  um  novo  condeftavel  de  Bourbon, 
acaudilhando  as  hordas  de  mercenários,  pozeíTe  mãos  profa- 
nas nos  muros  lacratiffimos  de  Roma,  e  renovando  o  capti- 
veiro  de  Clemente  VII  no  caftello  de  Sant'Angelo,  lhe  in- 
íiigilTe  a  derradeira  humilhação  como  áquelle  leu  gloriolb 
anteceíTor.  Amargurava-le,  mas  perfiftia  inquebrantável.  Os 
jefuitas  applaudiam  a  firmeza  do  pontífice,  que  cerrava  os 
ouvidos  ás  inftancias  imperiofas,  com  que  o  rei  de  Hefpanha 
Carlos  III  e  o  duque  de  Choifeul,  o  miniftro  de  Luiz  XV,  exi- 
giam a  completa  abolição  da  Companhia.  Emquanto  as  duas 
cortes  de  Bourbon  marchavam  na  ^'anguarda  na  campanha, 
bufcando  eftreitar  Clemente  XIII  e  fazel-o  render  á  difcri- 
ção,  decretando  finalmente  a  luppreíTão  da  Companhia,  não 
eítava  ociofo  o  eítadifta  portuguez.  A  fi.ia  fervorofa  impa- 
ciência levava-o  a  confiderar  demafiada  a  manfidão,  com  que 
fe  haviam  os  monarchas  de  França  e  da  Hefpanha.  O  du- 
que de  Choifeul  ordenara  ao  embaixador  francez  em  Roma, 


447 


que  em  todos  os  Icus  procedimentos  para  com  o  papa  Cle- 
mente XIII  fe  accordaíTe  com  o  miniftro  plenipotenciário 
portuguez,  que  retirado  a  Nápoles  não  deixava  de  feguir  aíTi- 
duamente  o  proceíTo  das  negociações. 

Nos  primeiros  tempos  depois  do  rompimento  das  relações 
com  oVaticano,  o  rei  D.  Jofé,  a  quem  pelava  porventura  na 
confciencia  eíte  divorcio  efpiritual  com  a  Sé  apoílolica,  de- 
fejava  com  ardor  que  fe  bufcaíTe  algum  meio  de  honrofa  con- 
ciliação. N'eíte  fentido  efcreviam  íem  carader  official  o  pa- 
triarcha  de  Lifboa  e  o  próprio  Sebaftião  de  Carvalho.  Ao 
feu  efpirito  vidente  e  experimentado  nas  traças  e  artifícios 
da  cúria  romana,  e  profundamente  convencido  da  inflexível 
tempera  do  pontífice  reinante,  não  fe  afiguravam  efperan- 
çofas  aquellas  oflficiofas  negociações.  Perfiftia  o  papa  inque- 
brantável, como  quem  defejava  levar  ao  extremo  ponto  a 
fituação  religiofa  de  Portugal,  para  que  a  final  vieíTe  a  fub- 
metter-fe  ás  duras  condições  do  pontificado.  E  era  entre 
ellas  a  principal  que  os  jefuitas  foífem  reftituidos,  e  trium- 
phalfem  orgulhofos  do  feu  humilhado  e  penitente  adverfario'. 

Um  efcriptor  de  tão  grande  auítoridade  e  tão  connexo 
intimamente  com  os  legítimos  intereífes  da  Santa  Sé,  o  pro- 
feíTor  allemão  Theiner,  obferva  na  fua  Hijloria  do  pontificado 
de  Clemente  XIV,  que  um  fonho  tão  piedofo  fó  podéra  en- 
gendrar-fe  na  cabeça  dos  jefuitas  e  dos  feus  obcecados  pro- 
pugnadores. 

Na  crença  lifonjeira  de  que  a  lua  ordem  era  deítinada 
a  coexiítir  com  a  própria  egreja  até  á  confummação  dos  fe- 


I  Gefchichte  des  Pontificais  C.lemcns'  \IV  nach  unedirten  Staats/chriften 
aiis  dem  geheimen  Archive  des  Valicaiis  von  profeflbr  dr.  Theiner,  Prafeél- 
Coadjutor  des  geheimen  Archivs  des  heiligen  Stuhls  (Hiíloria  do  pontificado 
de  Clemente  XIV,  íegundo  documentos  officiaes  inéditos  do  archivo  fecreto  do 
Vaticano  pelo  profeílor  dr.  Theiner,  prefeito-coadjutor  do  archivo  fecreto  da 
Santa  Sé).  Leipzig,  i853,  parte  i,  pag.  7.1. 


(As 


c|3 


"T 


448 

culos,  os  jefuitas  não  defalentavam  nas  cfperanças  de  ver 
reconduzidos  ás  terras  de  Portugal  os  que  cm  numero  de 
cerca  de  novecentos  então  padeciam  nos  eftados  pontifícios  a 
penúria  e  o  exilio.  Aflim  o  confeíTava  n'um  longo  memorial 
a  Clemente  XIII  o  padre  Lourenço  Ricci,  geral  da  Compa- 
nhia, com  o  intento  de  moílrar  ao  fanto  padre  que  não  podia, 
nem  devia  fecularifar  e  abfolver  dos  votos  religiofos  os  jefui- 
tas de  Portugal ' . 

O  monarcha  portuguez,  apelar  da  eítreiteza  proverbial 
do  feu  eípirito  e  dos  eícrupulos  da  lua  meticulola  confciencia, 
era  antes  de  tudo  rei  e  zelador  das  fuás  prerogativas,  e  per- 
liftia  em  laftimar  como  chriftão  e  filho  obediente  da  Sé  apos- 
tólica, o  que  a  dureza  d'eíta  mãe  inexorável  o  conftrangia  a 
fazer  como  foberano  independente  em  juftitnma  defeza  do 
feu  direito  e  da  fua  dignidade.  Carvalho,  attentando  na  in- 
vencível refiftencia  do  pontifice  a  todo  o  expediente  de  julfa 
e  decorofa  accommodação,  não  via  aberto  outro  caminho 
fenão  o  do  enérgico  e  refoluto  proceder  das  cortes  catholicas 
para  forçar  o  Vaticano  a  immolar  á  unidade  e  á  paz  da  egre- 
ja  as  paixões  de  uma  ordem  turbulenta  e  condemnada. 

São  notáveis  as  palavras,  com  que  Sebaftião  de  Carvalho 
n'um  feu  papel  otferecido  ao  confelho  de  eftado  por  occa- 
lião  de  fe  difcutir  n'aquelle  tribunal  politico  a  bulia  Aiiiiua- 
nini  faliiti,  expreíTa  claramente  a  fua  completa  defefperança 
de    que    podelTe    Portugal   com   as   cortes   empenhadas   na 


'  «Siccome  il  papa  ha  tenuto  fempre  un  cappello  vacante  per  la  noniina  ili 
Portugallo,  per  fperanza  che  debbano  un  giorno  comporfi  le  difcordie,  che  ver- 
tano  tra  la  corte  di  Portugallo  e  quella  di  Roma,  cofi  confervandofi  rairiflenza 
di  Portugallo,  fi  verrà  a  moflrarfi  la  fperanza  che  col  divino  ajuto  (lano  un  giorno 
por  eirerc  richiamati  i  gefuiti  in  quel  regno;  Non  eft  hnpojjibile  apud  Deinii  o)}uie 
verbum;  non  ejl  abbreviata  }namis  Domini.  E  certo  che  il  papa,  come  padre  com- 
mune  per  bene  di  queíto  regno  e  per  la  premura  delia  cattolica  religione  deve 
nutrire  e  moftrare  una  tale  fperanza."  Memorial  do  padre  geral  dos  jefuitas  d 
fanlidade  de  Clemente  XIII,  Z  4." 


449 

extincção  da  Companhia,  confeguir  a  paz  da  egreja  durante 
o  funefto  pontificado  de  Clemente  XIII.  Depois  de  proteftar 
o  fer  a  guerra,  comquanto  um  grande  mal,  o  único  remédio 
para  com  elle  fe  evitarem  maiores  damnos,  depois  de  reca- 
pitular os  attentados  jefuiticos  contra  as  coroas  mais  catho- 
licas,  e  ponderar  o  direito  aíTédio,  em  que  os  jefuitas,  tendo 
á  frente  o  leu  indómito  geral,  haviam  pofto  o  timorato  e  dé- 
bil Clemente  XIII,  accrefcenta  o  republico  eminente,  que,  to- 
dos os  ados  da  Companhia  e  do  pontífice  têem  conftituido 
outros  tantos  defenganos  defi:ru6I:ivos  de  toda  a  efperança  de 
que  as  calamitofas  ruinas  e  extremofos  males,  que  eftá  pade- 
cendo a  egreja .  . .  poíTam  achar  reparação  ou  remédio  algum 
na  cúria  de  Roma,  a  menos  que  a  Divina  Providencia  não 
obre  um  d'aquelles  rarifllmos  milagres,  que  de  modo  ordiná- 
rio não  cofl:uma  fazer  baixar  ao  mundo,  emquanto  n'elle  ha 
meios  humanos,  que  poíTam  fazer  ceíTar  calamidades  taes, 
como  eítas  de  que  hoje  fe  trata'. 

Opinava  o  eftadifta  que,  em  prefença  de  um  mal,  que  ia 
todos  os  dias  mais  engravecendo,  devia  Portugal  unir-fe  ás 
cortes  de  França  e  de  Hefpanha,  egualmente  oífendidas  pela 
cúria  e  os  jefuitas,  para  que  de  commum  accordo  os  redu- 
ziíTem  á  razão,  e  defaíTombraíTem  o  pontífice  do  captiveiro 
moral,  em  que  jazia.  Indicava  Sebafi:ião  de  Carvalho  que 
entre  os  remédios  poderia  alguém  lembrar  o  que  pedia  a  con- 
jundura,  qual  era  a  convocação  de  um  concilio  geral-,  mas 
era  expediente  demorado,  e  na  epocha  actual,  fujeito  a  mil 
contradicções  e  embaraços.  A  guerra  aberta,  material,  inexo- 
rável, qual  poderia  fer  feita  por  foberanos  a  outro  príncipe 
temporal,  parecia  ao  miniítro  portuguez  o  extremo  recurfo 


■  Voto  original  do  conde  de  Oeiras  para  o  confelho  de  eftado  em  24  de 
agoílo  de  1767.  Collecçáo  dos  negócios  de  Kntna,  parte  11,  pag.  284  e  285. 
2  Voto  citado,  pag.  28b. 


eis 


c|3 


eis 


4Í0 

contra  a  cúria  impenitente.  Citava  os  exemplos  memoráveis 
do  imperador  Henrique  IV  contra  o  papa  Gregório  VII,  de 
Filippe  o  formolb,  rei  de  França,  contra  Bonifácio  VIII  de 
triftiííima  recordação,  do  piedolb  Carlos  V  mandando  o  con- 
deftavcl  de  Bourbon  á  frente  dos  feus  reitres  e  landfknechts 
allemães  tomar  e  metter  a  facco  e  devaífação  a  cidade  eterna 
e  encarcerar  o  papa  ClementeVII  no  caftello  de  Santo  Angelo, 
de  Filippe  II  contra  o  pontifice  Paulo  IV.  E  é  notável  que 
Sebaftião  de  Carvalho,  defejando  que  n'eftes  feveros  procedi- 
mentos le  catem  inviolavelmente  as  attenções  ao  lummo  fa- 
cerdote,  e  le  encubra  a  guerra  com  o  euphemiímo  artiliciofo 
de  occiípação  das  temporalidades,  profeíTa  que  a  foberania 
temporal  dos  pontífices  romanos  « nada  tem  de  commum  com 
a  egreja  de  Deus' » .  Propunha  finalmente  Sebaftião  de  Carva- 
lho que  Portugal,  a  França  e  a  Hefpanha  alcançaíTem  pela 
força  a  total  extincção  da  Companhia  e  o  caftigo  fevero  do 
feu  geral,  e  dos  feus  principaes  cooperadores  nos  infultos 
commettidos  contra  os  foberanos  coUigados.  Defde  que  do 
alto  do  throno  pontifício  partia  n'um  chuveiro  de  raios  efpi- 
rituaes  a  aggreíTão  contra  as  potencias  mais  infignes  pelo  feu 
catholicifmo,  era  licito,  opinava  o  efladifta,  que  á  hoftilidade 
aberta  do  pontifice  refpondcíle  a  violenta  reprefalia.  Não  po- 
dia Sebaftião  de  Carvalho  ingerir-fe  oííicialmente  na  queftão, 
que  trazia  incendidas  contra  Roma  as  três  cortes  da  cafa  de 
Bourbon,  porque  eftavam  rotas  as  relações  de  Portugal  com 
o  fanto  padre.  Mas  o  feu  efpirito,  dominado  pela  impacien- 
te afpiração  de  ver  extindía  por  uma  vez  a  Companhia,  não 
deixava  de  empregar  todos  os  meios  para  inftigar  os  reis  bour- 
bonicos  a  uma  acção  vigorofa,  que  poderia  acafo  terminar 
no  emprego  da  força  material.  Em  feu  parecer,  as  cortes  de 
França,  de  Nápoles  e  da  Hefpanha  deviam  concertar-fe  para 


■  Voto  citiido,  pag.  289. 


ti» 


exigir  a  demiílao  do  cardeal  Torreggiani,  íecretario  de  erta- 
do  pontifício,  e  a  immcdiata  abolição  da  Companhia.  Segun- 
do uma  veríao,  o  eftadirta  portuguez  chegava  a  lembrar  em 
cafo  extremo  a  própria  depofição  de  Clemente  XIII,  como  de 
quem  pela  fua  conlervação  na  combatida  naveta  de  S.  Pedro 
poderia  porventura  ainda  expôl-a  a  mais  calamitofas  tempes- 
tades'. Os  gabinetes  deVerfailles  e  Madrid  apelar  da  Ília  ani- 
madverfão  á  cúria,  não  condefcendiam  com  os  defejos  de  Car- 
valho, pondo  em  eífeito  defde  logo  as  providencias  radicaes. 
Mas  o  duque  de  Choifeul,  miniftro  dos  negócios  extrangeiros 
de  Luiz  XV,  por  muitas  vezes  exprime  nos  feus  defpachos  a 
confideração,  que  lhe  merecem  os  ferviços  e  os  confelhos  do 
célebre  eftadifta  e  o  propofito  de  que  o  embaixador  de  Fran- 
ça em  Roma  bufque  lempre  concertar-le  com  o  antigo  ple- 
nipotenciário portuguez  ^  Egualmente  prefcrevêra  o  governo 
de  Madrid  que  o  leu  reprefentante  junto  da  Santa  Sé  com- 
municaíle  com  Francifco  de  Almada  tudo  quanto  houveíTe 
de  aprefentar  a  Clemente  XIII. 

Emquanto  a  corte  de  Roma  bulcava  artificiofamentc  na 
apparencia  concertar-fe  com  a  de  Portugal,  não  remittiam 
os  jefuitas  e  os  feus  fautores  no  empenho  de  levar  o  pontifice 
romano  e  as  fuás  temerárias  oufadias  até  o  extremo  derradei- 
ro. Não  contente  a  cúria  de  ter  por  largo  tempo,  antes  e  de- 
pois do  rompimento,  affrontado  com  as  luas  infenfatas  provi- 
dencias a  coroa  de  Portugal,  pozera  ainda  o  remate  á  fua  obra. 
expedindo  e  fazendo  divulgar  n'efte  paiz  a  bulia  Animanim 
faliiti,  que  preítava  novas  armas  á  companhia  de  Jefus  para 
que   a  feu  talante  podelfc  fortalecer  a   perpetua   confpira- 


1  Vilconde  de  Sant;irem.  Quadro  elementar,  tom.  vii,  pag.  279. 

2  Defpacho  de  Simonin,  encarregado  de  negócios  de  França  em  Lifboa, 
ao  duque  de  Choifeul,  de  27  de  outubro  de  1767.  Santarém.  Quadro  elementar, 
tom.  VII,  pag.  327. 


«Is 


452 

cão  contra  o  governo  portuguez.  Mas  a  lei  de  28  de  agoíto 
de  1767,  com  que  Sebaftião  de  Carvalho  reprimira  a  nova 
audácia  do  Vaticano,  chegara  a  convencer  os  jefuitas  e  os 
curiaes  feus  protedores  de  que  não  era  já  vibrando  golpes 
temerofos,  que  lograriam  aterrar  o  briofo  miniftro  portuguez 
e  promover  a  fua  proftrada  fubmiíTão  ao  arbítrio  da  Sé  roma- 
na. Apenas  o  marquez  d'Aubeterre,  embaixador  francez  em 
Roma,  fez  chegar  ás  mãos  do  papa  a  valente  reprelalia,  com 
que  Sebaftião  de  Carvalho  refpondêra  na  lei  de  28  de  agofto 
á  nova  provocação,  foi  tremendo,  indifivel  o  terror  do  ponti- 
fica oófogenario,  perdidas  quafi  as  forças  na  violência  dos 
combates.  Acudiram  os  jefuitas  e  os  {elantes  a  aconfelhar  a 
inftancia,  a  brandura,  a  humildade,  em  vez  do  império,  da 
arrogância  e  da  ahivez.  Veiu  o  papa  em  efcrever  a  D.  Jofé 
em  termos  fentimentaes,  exorando-o  a  que  em  nome  da  cari- 
dade chriftan  e  da  piedade  filial  para  com  o  pae  commum  e 
efpiritual  da  chriftandade,  pozeíTe  termo  á  longa  diffidencia 
entre  o  paftor  univerfal  e  as  ovelhas  defgarradas  dos  aprifcos 
evangélicos.  O  breve  dirigido  ao  monarcha  portuguez  era 
datado  a  3i  de  agofto  de  1767.  «Não  repugnes,  dizia  Cle- 
mente XIII,  ó  cariílimo  filho  em  Chrifto,  a  efta  paz,  c  aflim 
como  nós  a  ti  nos  dirigimos,  fe  a  tua  regia  majeftade  a  nós 
fe  approximar,  o  mefmo  Deus  mifericordiofiffimo,  que  é 
Deus  de  paz  e  de  amor,  coagmentará  entre  nós  ambos  a  paz 
e  a  concórdia».  Em  meio. das  mais  aífeéfuofas  expreíTões, 
com  que  o  vigário  de  Chrifto  bufcava  lenir  e  abrandar  o  rei 
de  Portugal,  e  encarecer  com  palavras  evangélicas  as  excel- 
lencias  da  paz  na  egreja  univerfal,  nem  uma  única  vez  trans- 
luzia no  pontifice  o  propofito  de  emendar  os  aggravos,  que  fi- 
zera á  corte  portugueza,  nem  de  corrigir  as  infolentes  aggres- 
fões,  com  que  os  jefuitas  em  Roma  fomentavam  a  crefcente 
defunião  entre  as  nações  catholicas  e  o  fupremo  chefe  efpiri- 
tual. 


«Is 


4ii    ■ 

U  papa  com  altucia  romana,  que  lhe  parecia  accommo- 
dada  á  occalião,  dirigia  na  mefma  data  um  breve  deprecato- 
rio  ao  levero  miniftro  de  D.  Jofé.  N'eíte  notável  díjcumento 
laftimava  Clemente  XIII,  como  a  maior  de  quantas  calamida- 
des tinham  affligido  o  feu  infauíto  pontiíicado,  a  feparação  e 
rompimento,  em  que  vivia  do  feu  religiofo  Portugal.  Doia- 
Ihe  no  intimo  da  alma  o  ver-fe  mal-avindo  com  o  Ibberano, 
cm  quem,  aíTun  como  um  pae  fe  enleva  e  fe  compraz  n'um 
tilho  dilediffimo,  afllm  elle  fe  comprazia  e  enlevava  com 
aífeclo  paternal.  Efperava  o  pontiíice  da  piedade  e  religião 
de  D.  Jofé  e  dos  exemplos  dos  feus  maiores,  que  não  efta- 
ria  longe  o  dia,  em  que  fe  vinculaíle  no^'amente  por  laços 
de  extremofa  conciliação  a  coroa  portugueza  e  a  Santa  Sé. 
Mas  a  fua  principal  efperança,  dizia  Clemente  XIII,  eftava 
pofta  no  auxilio  e  intercelfão  de  Sebaftião  de  Carvalho.  «To- 
das as  condições  em  ti  fobejam  para  coníblidar  de  novo  a 
amifade  entre  nós  e  o  rei  de  Portugal;  e  entre  ellas  princi- 
palmente com  razão  a  confiança,  que  o  foberano  tem  nos 
teus  confelhos » .  Terminava  o  pontífice  a  fua  epiftola  com 
aquellas  palavras  da  efcriptura:  «Attenta,  ó  filho,  na  edade 
proveda  de  teu  pae,  e  não  amargures  mais  a  ília  vida». 

Juntamente  com  os  breves  para  el-rei,  e  para  Carvalho, 
remettêra  o  arcebifpo  de  Nicéa,  núncio  em  Madrid,  mais 
duas  epiftolas,  uma  d'ellas  dirigida  á  rainha  e  outra  ao  in- 
fante D.  Pedro. 

E  manifefto  que  os  jefuitas,  os  curiaes  e  os  lelaíitcs,  que 
tinham  aconfelhado  Clemente  XIII  a  expedir  os  breves  onde 
as  blandícias  hyperbolicas  ferviam  a  efconder  e  mafcarar  a 
aufencia  de  um  aífumpto  para  fincera  negociação,  não  po- 
diam confiar  na  efficacia  de  tão  inane  e  pueril  expediente. 
Adivinhavam  feguramente  que  o  eíTeito  das  lettras  pontifí- 
cias no  animo  de  Carvalho  feria  o  que  elle  cxpreífou  n'eftas 
phrafes  de  indómito  defdem:  «Tudo  ifto  fão  palavras  patheti- 


s|9 


(|3 


cas,  que  fó  fervem  para  moverem  dos  púlpitos  o  povo  igno- 
rante e  que  de  nada  fervem  fenão  para  moftrarem  a  malicia 
com  que  as  efcreveu,  quem  com  ellas  fignificou  defejar  um 
fim,  para  o  qual  tem  negado  e  efta  aílualmente  negando  to- 
dos os  meios  úteis'». 

Eftas  expreffões  cifraram  a  fummula  da  refporta  efcripta 
por  Sebaftião  de  Carvalho  e  expedida  ao  papa  Clemente  XIII 
com  a  regia  aíTignatura.  O  celebre  uon  pojjwniis  do  inflexivel 
Pio  IX  era  antecipado  n'efl:a  epiftola  pelo  duro  miniftro  do 
rei  de  Portugal. 

Na  carta  efcripta  a  Clemente  XIII  por  D:  Jofé,  datada 
de  Azeitão  a  5  de  dezembro  de  1767,  o  hábil  eftadifta  por- 
tuguez  excedia  no  preambulo  os  termos  aflfeduofos  de  que 
o  papa  entretecera  a  fua  miíTiva  ao  foherano  fideliínmo. 
Defentranhava-fe  o  monarcha  em  amoraveis  e  rendidas  ex- 
preífóes,  com  que  fignificava  a  fua  mais  fervorofa  devoção 
e  ternura  filial  á  Santa  Sede  e  á  pjcífoa  venerável  do  pontífice 
romano.  Depois  de  fe  proftrar  aos  pés  do  antiftite  fupremo 
para  o  venerar  como  catholico,  erguia-fe  improvifamente 
como  rei,  e  rei  ludibriado  e  oífendido,  para  vindicar  em  ás- 
peras, mas  verdadeiras  exprobraçôes  os  aggravos  e  as  aftVon- 
tas,  que  da  cúria  longamente  recebera.  Não  era  elle  quem 
movera  a  aberto  rompimento  as  pacificas  relações  das  duas 
cortes.  Não  era  elle  o  culpado  de  que  uma  ordem  de  regu- 
lares, que  fe  propoz  por  objedo  a  conquifta  do  mundo  e  por 
fyftema  o  homicidio  dos  foberanos,  «  .  .  .  e  que  na  corte  do 
pontífice  tinha  o  centro  do  feu  governo,  machinaífe  dentro 
n'ella  o  malvado  plano,  com  que  mandara  aífaílinar  ás  por- 
tas do  feu  palácio  o  rei  de  Portugal » . 

Profeguia  a  refpofta  compendiando  todas  as  fucceífivas 


'  Analyfe  dos  ahfurdos,  que  se  contém  no  breve...  ile  'ii  de  agoflo  de 
1767.  Cnllecçãn  dos  negócios  de  Roma,  parte  ii,  pag.  149. 


455 

machinações,  com  que  os  jeluitas,  á  Ibmhra  protedora  do  fo- 
lio pontifício,  haviam  concitado  a  jufta  indignação  do  rei  de 
Portugal  e  o  tinham  neceílltado  a  recorrer  aos  uhimos  remé- 
dios e  a  empregar  o  poder  Ibberano  e  lecular  para  retorquir 
os  golpes  do  gladio  efpiritual,  «fí.iftentar  o  decoro  da  majes- 
tade, a  dignidade  e  o  direito  da  coroa  e  o  Ibcego  publico  dos 
povos,  que  viviam  debaixo  da  fua  immediata  protecção » . 
Taxava  de  obrepção  e  fí.ibrepção  o  breve  de  Clemente  XIII, 
que  fob  color  de  laftima,  de  uncção  e  de  piedade,  era,  como 
outros  forjados  na  mefma  fragua  jefuitica,  encaminhado  a  que 
verteíTem  novo  fangue  as  feridas,  que  na  apparencia  preten- 
diam cicatrizar.  E  ifto  fe  revelava  claramente  em  que  nas 
lettras  do  pontífice  não  tranfluziam,  nem  por  minima  allu- 
fão,  os  meios,  a  que  a  Santa  Sede  fe  propunha  recorrer  para 
chamar  de  novo  á  obediência  efpiritual  do  fanto  padre  as 
chriftandades  portuguezas. 

De  egual  teor  era  na  fuhftancia  a  refpoíta  de  Carvalho 
ao  breve  exhortatorio,  em  que  o  pontifíce  o  exorava  a  fer 
interceíTor  e  medianeiro  na  fonhada  reconciliação.  Nada  fe 
podia  conceber  de  mais  gentil,  graciofo  e  cortezão  do  que 
as  palavras  em  que  o  ardilolb  diplomático  agradecia  a  Cle- 
mente XIII  a  conta,  em  que  tivera  a  lua  interceífão.  Era 
porém  infelizmente  inexequível  todo  o  empenho  de  concilia- 
ção e  de  concerto,  defde  que  no  breve  dirigido  ao  rei  fe  não 
defcortinava  um  meio  único  de  tornar  effeftiva  a  defejada 
accommodação. 

Bem  fabiam  os  curiaes  e  os  jefuitas,  que  a  frecha  inha- 
bilmente  difparada  contra  o  eftadifla  portuguez,  rigido  e  in- 
flexível propugnador  das  regalias  temporaes,  viria  defpon- 
tar-fe  na  couraça  do  tremendo  antagonifta  e  que  do  retorno 
faíriam  certamente  mal-feridos.  Determinava-os  todavia  a 
conta,  que  deitaram,  de  que  por  ertas  infídiofas  propofições 
de  paz  e  de  concórdia,  alcançariam  pôr  da  fua  parte  a  razão 


1  ' 


e  a  JLiftiça.  Dir-fe-ía  no  mundo  entre  os  illulbs  e  os  malévo- 
los, que  o  vigário  de  Chrifto  fe  humilhara  fupplice  e  lacry- 
mofo  diante  do  monarcha  portuguez,  rojando  aos  pés  profa- 
nos de  um  novo  Henrique  IV  a  tiara  de  Hildehrando,  e  que 
o  obdurado  e  rebelde  filho  pródigo  repellíra  com  felvatica 
bruteza  as  caricias  apoftolicas  de  um  pae  anguftiado  e  extre- 
mofo. 

Com  os  breves  expedidos  pelo  papa  viera  juntamente  a 
bulia  da  cruzada,  cujo  ultimo  fexennio  concluíra  em  1763. 

Julgara  Clemente  XIII  com  efta  graça  efpontaneamente 
concedida  poder  teftemunhar  o  feu  efpirito  pacifico  e  o 
quanto  fe  comprazia  em  ter  abertos  para  o  foberano  portu- 
guez os  thefouros  da  egreja.  Mas  ainda  efte  ardilofo  expediente 
não  logrou  o  eíFeito  defejado.  Repulfou  Sebaftião  de  Carva- 
lho com  indomável  altivez  a  munificência  pontificia.  Acerca 
da  bulia  da  cruzada  deu  parecer  o  procurador  da  coroa, 
Jofé  de  Seabra,  demonftrando  que  não  era  neceíTaria,  por- 
que todas  as  indulgências  e  favores  efpirituaes,  que  n'ella  íe 
continham,  permaneciam  em  ^'igor,  e  a  difpenfa  de  ovos  e 
lacticínios  na  quarefina  entrava  na  jurifdicção  ordinária  dos 
prelados,  fem  que  podeíTem  contra  ella  prevalecer  as  refer- 
vas do  ÍLipremo  pontificado".  Conformou-fe  com  o  voto  do 
Seabra  a  mefa  do  defembargo  do  paço,  concluindo  que  de- 
via negar-fe  o  beneplácito  ao  diploma  pontifício,  que  o  fis- 
cal da  coroa  reputa\a  como  nova  ca\-illação  dos  jefuitas  e 
affrontofa  provocação  á  majeftade-. 

Não  baftava  porém,  no  intento  do  miniftro,  declarar  lub- 
repticia  a  bulia  da  cruzada. 


'  Refpolla  do  procurador  da  coroa  fobre  a  pretendida  bulia  da  cruzada. 
Collecção  dos  negócios  de  Roma,  parte  11,  pag.  i  58  e  fegg. 

2  Confulta  do  defembargo  do  paço,  de  i3  de  janeiro  de  1768.  Collecção  dos 
negócios  de  Roma,  pag.  174  e  fegg. 


437 

Cumpria  dar  aos  que  a  tinham  fuggerido  e  minutado, 
relpofta  mais  fevera,  não  de  palavras,  mas  de  fados.  O  fa- 
nado da  camará  de  Lifboa  reprefentou  ao  patriarcha,  pelo 
órgão  dos  feus  procuradores,  os  graves  inconvenientes  que 
nafciam  para  as  confciencias  timoratas  e  para  os  intereíTes 
económicos  da  cidade  c  povoações  circumvizinhas,  que  na 
aufencia  da  bulia  não  foíTe  difpenfada  pelo  prelado  a  prohi- 
bição  dos  ovos  e  lacticínios.  Adduzia  uma  larga  memoria, 
em  que  hiftorica  e  juridicamente  fe  provava  que  era  geral 
coílume  defde  íeculos  nas  diocefes  portuguezas  o  ufar  de  ovos 
e  lacticínios  no  tempo  quadragefimal'.  Deferindo  ás  inftancias 
do  fenado,  o  cardeal  Saldanha,  patriarcha  de  Lifboa,  decla- 
rou n'um  edital  que  na  fua  archidiocefe  não  era  de  preceito 
a  abítinencia,  e  que  todas  as  fuás  ovelhas  podiam  fem  efcru- 
pulo,  nem  embaraço  das  fuás  confciencias,  ufar  livremente 
dos  ovos  e  lacticínios-. 

D'efta  maneira  procedia  Sebaítião  de  Carvalho,  o  inte- 
merato e  animofo  regaliíla,  que  pela  audácia  das  doutrinas 
e  dos  feitos  no  governo  deixava  na  fombra  os  mais  eftrenuos 
defenfores  das  liberdades  na  egreja  gallicana,  os  mais  illus- 
tres  magiftrados  dos  parlamentos  em  França,  e  os  mais  arro- 
jados propugnadores  das  regalias  majeftaticas  em  Hefpanha, 
os  Campomanes,  os  Rodas,  os  Moninos,  que  fairam  a  enfrear 
as  ufurpaç(3es  dos  curiaes  e  as  invafões  do  poder  cccleíiartico 
nas  foberanas  temporalidades. 

E  mais  adiante  procedera  porventura  o  efladifta  portu- 
guez,  fe  o  tempo  lhe  tivera  afado  a  conjundura.  Durante  a 
quebra  das  relações  com  o  Vaticano  as  egrejas  epifcopaes, 


■  Demonllração  do  poder  e  obrigação  que  todos  os  prelados  têem  de  dis- 
penfar  na  abftinencia  de  ovos  e  laílicinios,  ele.  Collecçdn  dos  negócios  de  Roma, 
parte  ii,  pag  177  e  fegg. 

2  Edital  do  cardeal  patriarcha  de  24  de  fevereiro  de  1768.  Collecção  dos 
negocias  de  Roma,  parte  11,  pag.  177  e  íegg. 


eis 


-§-<>-• ►V^ 

458 

que  iam  vagando,  ficavam  viuvas  de  paíiores.  Não  podiam 
impetrar  de  Roma  a  confirmação  os  bifpos  novamente  apre- 
fentados.  Pois  difpenfemos  Roma  e  a  tiara,  e  volvamos  refo- 
lutos  á  primeira  difciplina  da  egreja  n'aquelles  tempos  de 
evangélica  fingeleza,  em  que  os  papas  fe  não  tinham  arroga- 
do, como  lua,  a  maior  parte  da  jurifdicção  inherente  ao  epis- 
copado. Era  em  1766.  Tinha  el-rei  aprefentado  novos  bifpos 
nas  diocefes  deVizeu  e  Portalegre.  Poderiam  os  prelados,  fcm 
efperar  a  confirmação,  entrar  logo  na  adminiílração  temporal 
e  elpiritual  dos  léus  bifpados?  O  doutor  João  Pereira  Ramos 
de  Azeredo  Coutinho,  jurifconfulto  verfadiífimo  em  ambos 
os  direitos,  refpondeu  com  a  affirmação  e  deduziu  as  provas 
da  fua  doutrina  em  uma  obra  memorável'.  Mandara  Sebaítião 
de  Carvalho  que  uma  junta  de  magiftrados,  canoniftas  e 
theologos,  em  numero  de  trinta,  confultaífe  acerca  d'aquelle 
efcripto.  Reunem-le  a  3  de  abril  na  fecretaria  do  reino.  Eram 
entre  elles  os  mais  notáveis  o  arcebifpo  de  Évora,  o  in- 
quifidor  geral  Paulo  de  Carvalho,  o  doutor  Jofé  Ricalde  Pe- 
reira de  Caftro,  os  defembargadores  Ignacio  Ferreira  Souto, 
Jofé  de  Seabra,  João  Pereira  Ramos,  Fr.  António  de  Sant'An- 
na,  confeífor  do  rei,  Fr.  António  da  Annunciação,  confeífor  da 
rainha,  o  theologo  eminente  António  Pereira  de  Figueiredo, 
o  eruditiílimo  Cenáculo,  então  provincial  da  ordem  terceira 
da  Penitencia,  c  Fr.  Ignacio  de  S.  Caetano,  que  depois  foi 
bifpo  de  Penafiel.  Foram  concordes  todos  os  votos  em  que 
aos  bifpos  era  licito  adminiftrar  as  diocefes  antes  de  recebe- 
rem confirmação.  Apefar  de  tantas  e  tão  graves  auétoridades, 
em  muitas  das  quaes  era  indubitável  a  piedade  e  a  averlão 
ao  fcifma  e  á  herefia,  não  oufára  Sebaftião  de  Carvalho  pôr 


'  Tratado  original  fobre  o  poder  dos  bifpos  nomeados  por  fua  majeílade 
no  tempo  de  rotura  com  Roma  para  poderem  adminiftrar  os  feus  refpeíUvos 
bifpados,  antes  de  obterem  as  confirmações  pontifícias.  Collecçáo  dos  negócios 
de  Roma,  parte  ii,  pag.  i88  e  fegg. 

IP  <     F 

eis  ti» 


cia 


em  eífeito  defde  logo  a  extranha  refoluçáo.  Quizera  a  princi- 
pio florear  aos  olhos  de  Roma  e  fazer  luzir  ameaçadora  a 
nova  arma,  que  tinha  preíles  para  o  combate,  como  que  para 
incutir-lhe  o  terror  de  que  aos  últimos  extremos  le  podia 
gradativamente  abalançar,  fe  a  romana  prudência  não  com- 
praíTe  a  tempo  a  paz  da  egreja  a  preço  de  extinguir  a  odiada 
Companhia. 

A  crefcente  irritação  do  miniftro  portuguez  contra  os  je- 
fuitas,  feus  entranhados  inimigos,  e  contra  a  obcecação  dos 
curiaes  chegou  ao  leu  cumulo,  quando  teve  conhecimento  do 
monitorio  pontifício  contra  o  duque  de  Parma  e  Placencia. 
Era  Sebaftião  de  Carvalho,  como  um  leão,  que  já  ferido  no 
combate  recebe  novo  golpe  no  lítio  mais  fenfivel,  onde  gote- 
ja langue  antiga  ferida.  O  inlulto  feito  ao  duque  de  Parma 
recaía  ainda  mais  pefado  e  affrontolb  nos  príncipes  das  anti- 
gas e  mais  orthodoxas  monarchias.  A  efte  repto  do  papado 
era  urgente  relponder  com  a  derradeira  humilhação 

Era  indifpenfavel  que  todas  as  potencias  catholicas,  inju- 
riadas pelo  ediéto  do  pontífice,  de  commum  accordo  retor- 
quiíTem  com  violência  a  aflronta  do  Vaticano.  Urgia  marchar 
lem  dilação  e  relblutamente  contra  Roma  e  impor  a  Cle- 
mente XIII  a  immediata  abolição  dos  jefuitas,  cuja  proterva 
impenitencia  eftava  lem  ceíTar  aíTligindo  a  egreja  com  lafti- 
maveis  turbações  e  ameaçando  convellir  e  derrotar  o  catho- 
licifmo.  Se  já  defde  c]ue  em  Portugal  fe  fizera  conhecido  o 
breve  Animaritm  faliiti,  dizia  Sebaftião  de  Carvalho  n'um  es- 
cripto  oíficial,  fe  não  podia  deixar  de  proceder  pelas  vias  de 
fado  a  cohibir  as  façanhofas  temeridades  do  minifterio  ro- 
mano, e  a  caftigar  os  facrilegos  infultos  do  geral  dos  jefuitas 
e  do  feu  abominável  fynedrio,  muito  mais  fe  faziam  agora 
urgentes  os  enérgicos  procedimentos  depois  que  fe  haviam 
aventurado  os  jefuitas  e  os  curiaes  a  declarar  por  defunido 
do  grémio  catholico  ao  duque  de  Parma  e  a  concitar  á  rebel- 


460 

lião  os  feus  eftados".  Opinava  Sebaftião  de  Carvalho  que  em 
todos  os  eftados  catholicos,  oífendidos  pelo  monitorio  contra 
o  infante  de  Hefpanha,  duque  de  Parma,  fe  deveriam  affixar 
Iblemnes  e  publicas  annuUatorias  das  excommunhões  vibra- 
das com  tão  grande  iniquidade,  expreíTamente  áquelle  prín- 
cipe, e  tacitamente  a  quantos  no  orbe  catholico  exercitavam 
livremente  os  foros  e  regalias  do  império  temporal.  Deviam 
egualmente  as  potencias  intereffadas  no  confiido  defde  logo 
exercer  nas  temporalidades  pontifícias  as  juftas  repre falias, 
permittidas  por  todos  os  direitos  divinos  e  humanos,  com  as 
quaes  podeíTem  caftigar  o  atroz  infulto^ 

A  i5  de  março  de  1768  efcrevia  Sebaftião  de  Carvalho 
a  Ayres  de  Sá  e  Mello,  embaixador  de  Portugal  em  Madrid, 
para  que  pozeíTe  na  preiença  do  rei  catholico  os  perigos 
imminentes  e  agora  mais  cjue  nunca  temerofos,  que  eftavam 
ameaçando  as  nações  catholicas  da  Europa  meridional.  Or- 
denava-lhe  que  exprimiffe  a  Carlos  III  a  parte  que  o  rei  de 
Portugal  tomava  finceramente  no  ultraje  dirigido  pela  cúria 
ao  infante  duque  de  Parma  e  a  toda  a  familia  de  Bourbon. 
Significava-lhe  ao  mefmo  tempo  n'ac]uelle  pompofo  e  figura- 
do eftylo,  que  refpira  ao  mefmo  paffo  a  majeftade  e  denun- 
cia as  influencias  feifcentiftas,  que  fizeíTe  conftar  ao  rei  de 
Hefpanha  a  confiante  firmeza,  em  que  fe  achava  de  con- 
correr com  quanto  foíTe  poffivel  para  que  de  uma  vez  foffem 
cortadas  as  cabeças  da  disforme  hydra,  que  eftava  derraman- 
do tantos  venenos  infernaes  na  mefma  corte,  cabeça  da  egre- 
ja,  e  nas  de  toda  a  Europa  catholica  romana  \ 


1  Analyfe  do  cedulão  expedido  em  Roma...  para  fulminar  as  ceníuras 
n'elle  contidas  contra  o  duque  de  Parma,  etc.  Collecção  dos  negócios  de  Roma, 
parte  11,  pag.  296. 

2  Ibid.,  pag.  298. 

3  Carta  inftrucliva  do  conde  de  Oeiras  a  Ayres  de  Sá  e  Mello.  Collecção 
dos  negócios  de  Roma,  parte  11,  pag.  3o  i. 


461 

Numa  carta  lecretiíTima  a  Ayres  de  Sá  e  Mello  ponderava 
o  inflexível  adverlario  dos  jefuitas  fer  chegada  a  mais  pró- 
pria conjuncção  de  que  as  potencias  otfendidas  pelo  papa 
inftaíTem  com  ^■ehemcncia  pela  extinção  da  Companhia,  pela 
dura  punição  do  feu  geral  e  dos  feus  confelheiros  e  fautores. 
E  n'uma  nota  que  devia  expedir  o  embaixador  de  Portugal 
ao  marquez  Grimaldi,  primeiro  miniftro  de  Carlos  III,  e  cuja 
minuta  ia  exarada,  ha^■eriam  de  reitcrar-fe  as  já  feitas  foUi- 
citações  para  que  os  foberanos  colligados  exigilTem,  como 
único  remédio  aos  males  prefentes.  a  prompta  abolição  da 
funefta  fociedade'. 

Não  dava  tréguas  Sebaítião  de  Carvalho  á  fua  enérgica 
diligencia  em  eftimular  os  brios  e  o  vigor  do  rei  catholico  e 
do  minirtro  napolitano,  que  tinha  então  o  logar  preeminente 
em  feus  confelhos.  Mas  nem  Carlos  III,  a  defpeito  do  feu 
profundo  refentimento  contra  o  papa,  nem  Grimaldi,  apefar 
de  concitado  pelos  mais  ardentes  regaliítas,  e  entre  elles  o 
celebrado  Campomanes,  pareciam  áquella  fafão  determina- 
dos a  ver  na  extincção  total  da  ordem  turbulenta  a  única 
baftante  reparação  ás  oíTenfas  recebidas  pela  coroa  e  ás  tur- 
bações graviíTimas  da  egreja.  Apefar  de  aggravado  na  honra 
da  familia.  e  nas  preeminências  da  regia  poteftade,  ardendo 
em  defejos  de  redarguir  com  alguma  eftrondofa  reprefalia  á 
audácia  dos  curiaes,  não  chegara  a  comprehender  inteira- 
mente como  a  confervação  dos  jefuitas  tornaria  infeguras, 
precárias,  enganofas  todas  as  demais  fatisfações,  que  lhe  po- 
deífe  dar  o  Vaticano. 

Repugnava  a  principio  Carlos  III  á  total  abolição  da 
Companhia,  por  lhe  parecer  que  depois  de  a  expulfar  de 


I  Cana  lecretiíTima  a  Ayres  de  Sá  e  Mello,  de  i5  de  março  de  176S.  Col- 
lecção  dos  negócios  de  Roma,  parte  11,  pag.  3o2. 


«I? 

--6^ 


eh 


4Ó2 

feus  eftados,  como  turbadora  manifeíta  da  paz  publica,  níío 
convinha  dar  aos  livres  penfadores  e  aos  philofophos  um 
triumpho  tão  completo  como  a  inteira  luppreffão  da  focieda- 
de  em  todo  o  orbe  catholico.  O  fanatifmo  torvo  do  monarcha 
e  a  zelofa  defenfão  das  luas  regalias  celebravam  uma  mo- 
derada tranlacção,  e  julgavam-fe  egualmente  fatisfeitos  com 
expullar  do  território  das  Hefpanhas  os  jefuitas  das  provin- 
cias  helpanholas'. 

Acrefcia  a  eíta  frieza  no  ponto  capital  da  queítão  religiofa 
que  trazia  agitada  a  opinião  e  convulfos  os  governos,  o  ciúme 
delpertado  pela  idéa  de  que  Portugal,  reprelentado  pelo  íeu 
grande  eftadifta,  foíTe  parte  na  pendência,  que  os  foberanos 
da  cafa  de  Bourbon  reputavam  como  própria  e  exclullva  de 
qualquer  extranha  intervenção.  Accedendo  na  apparencia  ás 
inftancias  de  Carvalho,  convinha  o  gabinete  de  Madrid,  em 
que  o  rei  de  Portugal  fe  unilTe  aos  três  monarchas  da  cala 
de  Bourbon  em  tudo  o  que  le  houveíTe  de  reprelentar  a  Cle- 
mente XIII,  a  propolito  do  famolb  monitorio  contra  o  infante 
duque  de  Parma.  Aconfelhava  porém  que  em  vifta  de  não 
ter  Portugal  miniftro  em  Roma,  delegalTe  nos  agentes  diplo- 
máticos de  França,  de  Nápoles,  de  Helpanha  a  faculdade  de 
pedirem  ao  papa  latisfação  por  parte  do  monarcha  portu- 
guez-. 

Para  folver  a  objecção  de  que,  na  prelença  de  um  longo 
rompimento  com  o  pontifice,  Portugal  não  tinha  em  Roma 
miniftro  acreditado,  ordenou  Sebaftião  de  Carvalho  que  fem 
fazer  detença  na  partida  fe  embarcaíTe  para  Itália  o  antigo 
enviado  portuguez,  que  em  Lifboa  refidia  áquelle  tempo.  As 


>  Saint-Prieft,  Hijloire  de  la  chute  des  jé/uiles  au  x\m  fii^cle.  Paris,  1846, 
pag.  70. 

2  Carta  de  Sehaltião  de  Carvalho  a  Ayres  de  Sá  e  Mello,  de  9  de  abril  de 
17G8.  Collecçáo  dns  negócios  de  Roma,  parte  11,  pag.  3o3. 


eis 


inftrucções  expedidas  a  i6  de  abril  de  1768  ordenavam  ao 
antigo  negociador  que  em  um  navio  dinamarquez  então  furto 
no  Tejo,  fe  dirigilTe  a  Génova  e  d'ali  procedeíTe  a  Pifa  e 
a  Siena.  D'ali  fe  lhe  mandava  que  efcrevelTe  aos  miniftros 
das  três  cortes  bourbonicas  junto  do  papa,  annunciando-lhes 
o  fer  chegado  e  eftar  difpofto  a  ir  a  Roma,  quando  elles  o 
houveífem  de  avifar  de  fer  opportuna  ali  a  fua  entrada.  Em 
dois  pontos  eífenciaes  eram  terminantes  e  formaes  as  inftruc- 
ções.  Em  primeiro  logar  o  enviado  portuguez  deveria,  pelo 
feu  hábil  e  cautelofo  procedimento,  tirar  a  occafião  ao  menor 
equivoco  fobre  qual  era  a  natureza  efpecial  da  fua  miífão. 
A  fufpenfão  das  relações  entre  a  cúria  e  Portugal  permane- 
cia fem  nenhum  temperamento  ou  retradação.  O  enviado 
portuguez  devia  em  todas  as  fuás  palavras  e  acções  confirmar 
que  o  rei  de  Portugal  «nem  um  fó  ponto  cedia  da  quebra 
jufta  e  neceífaria,  em  que  fe  achava  com  os  curiaes  de  Roma, 
que  tinham  bloqueado  e  feito  inacceíTivel  o  paftor  univerfal». 
Em  fegundo  logar  deveria  Francifco  de  Almada  accingir-fe 
tenazmente  ao  poftulado  de  que  o  pontifice  era  inteiramente 
irrefponfavel  nos  ados,  que  firmava  com  feu  nome,  cobria 
com  a  fua  audoridade  e  roborava  com  o  annel  do  pefcador. 
Inventava  Sebaftião  de  Carvalho,  por  que  ficaífe  immune  e 
reverenciada  a  peífoa  do  fummo  facerdote,  a  ficção  metaphy- 
fica  dos  modernos  cafuiftas  conftitucionaes. Todas  as  calami- 
dades produzidas  pela  obfiinação  pontifical  tinham  por  an- 
dores exclufivos  os  jefuitas  e  os  iclantes,  e  fobre  as  fuás 
cabeças  deveria  cair  a  execração  pelos  feitos  voluntários  do 
pontifice.  O  rei  teftemunhava  que  nunca  havia  quebrado, 
nem  jamais  quebraria  com  a  peífoa  de  Clemente  III,  cabeça 
vifivel  da  egreja,  antes  lhe  profeífava  (eram  termos  textuaes 
das  inftmcções)  filial  amor  e  veneração,  e  eftes  fentimentos 
haveria  de  cultivar  ardentemente,  quando  viífe  o  papa  «res- 
tituído á  fua  plena  liberdade  para  lhe  adminiftrar  juftiça  e 


(Is 


464 

reparação '  • .  Prelcrevia-fe  a  Francifco  de  Almada  que  guar- 
dadas eílas  refervas  eíTenciaes,  fe  accordaíTe  com  os  mi- 
niftros  da  cafa  de  Bourbon  em  tudo  quanto  foffe  conducente 
á  extincção  da  Companhia  e  á  fatisfação  pelo  aggravo  com- 
mettido  contra  o  duque  de  Parma  e  de  Placencia.  Francifco 
de  Almada  faiu  de  Lifboa  a  19  de  abril  de  1768,  mas  era 
fácil  predizer  que  a  fua  miífão  feria  deluforia,  emquanto 
Clemente  XIII  occupaífe  a  cadeira  de  S.  Pedro,  tendo  a  feus 
pés  como  confelheiro  e  como  victima  o  famofo  geral  Lou- 
renço Ricci,  e  por  detraz  do  efpaldar  o  gladio  flammeante 
de  Júlio  II  e  a  fombra  terrível  de  Hildebrando.  E  de  feito, 
o  papa  Clemente  XIII  nem  era  moralmente  irrefponfavel 
pela  defmefurada  protecção  outorgada  aos  jefuitas,  nem  era 
logicamente  reprehenfivel  pela  fua  indomável  obftinação. 
Eítava  profundamente  convencido  de  que  o  fummo  pontifi- 
cado ou  era  a  fuprema  dominação  efpiritual  e  temporal,  o 
ufo  fimultaneo  dos  dois  gládios,  e  a  omnipotente  magiftratura 
figurada  no  triregno  pontificio,  como  elle  havia  fido  nos  tem- 
pos mais  efcuros  da  edade  media,  ou  era  uma  fombra  mal 
diítinda,  um  vaniffimo  fimulacro  de  uma  realeza  e  de  um 
poder.  No  efpirito  obcecado,  mas  fincero,  illudido,  mas  hon- 
rado de  Clemente  XIII,  como  no  do  noífo  contemporâneo 
Pio  IX,  o  papado,  como  limples  império  das  confcicncias  fem 
nenhuma  poteftade  temporal,  era  uma  pura  e  fingular  abs- 
tracção, que  não  podia  corporificar-fe  e  fubfiftir.  Segundo 
cfta  doutrina  radicada  por  largos  feculos,  Clemente  XIII  re- 
putava por  fynonymos  o  papado  e  a  egreja.  Todos  os  que 
favoreceíTem  as  pretenfões  pontificaes  embora  damnofas  á 
chriftandade,  eram  bemvindos  e  amimados  no  Vaticano. 
Os  jefuitas  refpondiam  cabalmente  a  efta  preciofa  con- 


1  Inftrucção  para  Francifco  de  Almada  e  Mendoça  palTíir  á  Itália.  Coltec- 
çáo  dos  negócios  da  Roma,  parto  iii,  pag.  3o. 


465. 

dição.  Eram  como  que  a  velha  guarda  pontifícia,  os  mais 
fieis  e  devotados  defenfores  da  monarchia  univerlal  do  pon- 
tífice romano.  No  meio  dos  embates  e  das  tormentas  que 
agitavam  o  papado  na  legunda  metade  do  feculo  xviii  a 
Roma  pontifical,  á  femelhança  da  Roma  imperatoria  na  de- 
clinação do  leu  poder,  fe  via  ao  mefino  paíTo  ameaçada  ou 
invadida  pela  immenfa  exteníão  das  luas  fronteiras.  Alçava- 
fe  diante  d'ella  um  poder  novo  mais  temível  que  a  reforma, 
e  reptavam-n"a  outros  efpi ritos  mais  audazes  que  Luthero, 
Melanchton,  Calvino,  Zwingle,  Beza,  ou  James  Knox.  Era 
a  philofophia  reprefentada  em  Voltaire,  em  d'Alemhert  e  na 
turba  innovadora  da  Eucyclopedia.  Do  outro  lado  arremettiam 
contra  Roma  as  egrejas  diílidentes,  que  não  celTavam  de 
apodal-a  com  o  terrivel  cognomento  de  moderna  e  mais  cor- 
rupta Babylonia.  E  onde  os  efpiritos  fortes  ou  philoíbphos, 
e  os  proteftantes  das  diverfas  confiffões  deixavam  defguarne- 
cida  a  extenla  linha  de  batalha,  lá  appareciam  amcudando 
as  luas  vigorofas  arremettidas  os  cifmontanos  radicaes  e  os 
intranfigentes  regalifias.  N'efta  laftimofa  conjunítura,  o  prin- 
cipio da  crife  porventura  a  mais  tremenda,  que  tenha  pade- 
cido o  pontificado,  licenciar  ou  dilTolver  a  milicia  mais  fiel, 
mais  difciplinada,  mais  provecta  nas  campanhas  eípirituaes, 
e  mais  obediente  aos  arbítrios  do  papado,  feria  como  fe  Na- 
poleão, depois  da  fruftranca  expedição  á  RuíTia,  já  fangrado 
em  batalhas  defaftrofas,  e  trahido  pelos  feus  mais  perfeveran- 
tes  alliados,  tiveíTe  abfolto  do  facramento  militar  e  difperfa- 
do  pelos  campos  n"uma  opprobriofa  retirada  a  velha  guarda, 
aqucUes  veteranos,  para  quem  luzira,  como  o  prenuncio  de 
viftoria,  o  foi  radiofo  de  Aufierlitz.  Clemente  XIII  em  obfe- 
quio  á  paz  da  egreja,  e  como  fucceífor  efpiritual  e  evangélico 
do  príncipe  dos  apoftolos,  devia  cortar  pela  raiz  a  velha  ar- 
vore, cuja  fombra,  como  a  de  funefta  mançanilha,  efterilifava 
e  refequia  a  evangélica  feara.  Mas  como  fucceíTor  dos  pa_ 


466 

pas  invalbres  e  terrenaes,  era  exculavel  le  em  favor  não  da 
egreja,  mas  da  diftadura  pontifícia,  cerrava  em  volta  do 
feu  throno  vacillante  as  hoftes  dos  jefuitas,  a  quem  melhor 
que  o  nome  ambiciolb  de  focios  de  Jcfus,  vinha  de  molde  o 
titulo  verdadeiro  de  alabardeiros  efpirituaes  do  fanto  padre. 
A  Companhia  era  a  columna  robuftiflima,  em  que  fe  firmava 
o  pontificado,  como  dominação  mundana  e  temporal.  Podia 
o  papa,  como  Sanfão,  abraçando-fe  com  ella  e  convellindo-a 
n'um  Ímpeto  irrelMivel,  fazer  que  n'um  ápice  caiffe  derrocado 
o  edificio.  Alas  o  papado  ficaria  envolvido  nos  efcombros  e 
os  philifteus  laíriam  immunes  de  todo  o  perigo  para  cantar 
o  profano  Io  triumphc  da  ^•icloria. 

Clemente  XIII  preferia  pois  á  paz  da  egreja  o  confundir 
os  feus  deftinos  com  a  fortuna  da  Companhia,  e  negava-fe 
pertinazmente  á  minima  condefcendencia  n'efte  ponto  com 
as  cortes  empenhadas  na  inteira  abolição.  Com  a  vifão  cla- 
riffima  e  penetrante,  com  que  Sebafiião  de  Carvalho  calcu- 
lava pelo  exacto  conhecimento  das  circumflancias  e  dos  ho- 
mens a  fequencia  neceííaria  dos  fucceíTos,  prophetifava  o 
eítadirta  que  íeria  impoíTivel  o  arrancar  a  Clemente  XIII  o 
breve  da  extincção.  No  leu  conceito,  não  era  a  peíToal  predi- 
lecção d'efi:e  pontífice  pela  vetufta  Companhia,  nem  o  influxo 
irrefiftivel  exercido  no  feu' animo  pelo  facciofo  cardeal  Secre- 
tario de  eifado,  a  caufa  principal  de  que  os  jeluhas  perleve- 
raíTem  triumphantes,  zombando  das  potencias,  com  quem 
andavam  em  accefa  contenlao.  A  tenaz  confervação  dos  je- 
fuitas enlaçava-fe  a  um  fyítema,  que  era  o  móbil  principal 
em  todas  as  acções  da  cúria  romana,  porque  mantendo  a 
Companhia  fuftentava  os  feus  próprios  e  chimericos  direitos 
a  dominar  a  temporalidade  dos  foberanos'. 


'  Minuta  do  que  pareceu  ao  conde  de  Oeiras  que  fe  podia  efcrever  a  Fran- 
cilco  de  Almada.  Collecçdn  dos  negócios  de  Ronm,  parte  iii,  pag.  33  c  3^. 


-<0>-« «-v-i" 

467 

Depois  que  todos  os  esforços  das  três  cortes  da  caía  de 
Bourbon  fe  haviam  eftrellado  infrucluolbs  contra  a  impalTi- 
vel  refiftencia  do  pontifice,  quando  as  tropas  francezas  e  na- 
politanas, occupando  varias  terras  dos  eftados  da  egreja,  não 
tinham  determinado  no  animo  de  Clemente  XIII  a  relblução 
de  revogar  o  aflrontofo  breve  contra  Parma,  relblveram  os 
monarchas  aíTediar  mais  rijamente  o  Vaticano,  não,  como 
propozera  ao  duque  de  Choileul  o  embaixador  francez  em 
Roma,  d'Aubeterre,  bloqueando  e  rendendo  pela  fome  a  ci- 
dade eterna  e  promovendo  n'ella  a  inlurreição',  mas  dilpa- 
rando  Ibbre  o  decrépito  pontiíice  um  golpe  mais  certeiro  e 
inopinado.  Recufava  deferir  ás  inflancias  de  revogar  o  moni- 
torio,  quando  as  bayonetas  lhe  intimavam  a  delaífronta  dos 
dois  filhos  mais  dileítos  da  egreja.  Pois  agora  ou  o  papa 
aboliria  de  uma  vez  a  Companhia,  ou  as  confequencias  do 
leu  erro  lentir-fe-iam  repercutidas  em  tremendas  calamidades 
por  todo  o  catholicifmo.  O  rei  de  Hefpanha  tinha  diíTipado 
no  leu  animo  os  últimos  eícrupulos.  A  averlão  entranhavel 
do  elíadifta  portuguez  a  todos  os  jefuitas,  como  funeíta  e 
criminofa  corporação,  tinha  paílado  inteira,  ou  porventura 
ainda  exaggerada  ao  coração  de  Carlos  III.  Choileul,  que 
defde  o  principio  da  queftão  le  moftrára  adveríb  á  Compa- 
nhia, mas  adverfo  iem  paixão  e  lem  rancor,  ia  agora  arras- 
tado na  corrente,  a  que  dava  o  impuUb  principal  o  Ibbera- 
no  das  Helpanhas.  A  10  de  dezembro  de  1768  o  embaixador 
de  França  e  o  miniftro  plenipotenciário  helpanhol  aprefenta- 
vam  ao  pontifice  uma  categórica  memoria,  em  que  exigiam 
a  immediata  fuppreífão.  Tinha  chegado  para  Clemente  XIII 
o  momento  das  mais  cruéis  angufiias.  Delenlaçava-fe  a  tra- 
gedia, em  que,  á  íemelhança  das  antigas,  a  fatalidade  enca- 
minhava cegamente  a  acção  e  o  desfecho.  O  pontifice,  que- 


Siiint-Príclt,  Hijioirc  de  la  chute  des  jé/uites  ati  wui  Jiècle,  pag.  76  e  77. 


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4  Ai 
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468 

brantado  pelos  annos  c;  cumulado  de  diílabores,  não  pôde 
fobreviver  por  muitos  dias  á  terrível  eítreiteza  a  que  o  tinha 
chegado  a  má  fortuna.  A  2  de  fevereiro  de  1 769  vagava  a 
cadeira  pontifícia  no  momento  em  que  era  mais  grave  e  em- 
baraçofa  a  fítuação  da  Santa  Sé  e  das  potencias  contra  ella 
colligadas.  Cumpria-fe  o  vaticínio,  com  que  Sebaftião  de 
Carvalho  havia  fempre  defelperado  de  que  Ibh  o  pontifica- 
do agora  concluído  vieíTe  a  reftaurar-fe  a  paz  da  egreja,  com 
a  final  extincção  de  Companhia.  Por  uma  carta  participou  o 
facro  coUegio  a  el-rei  D.  Jofé  o  eítar  vacante  o  lummo  lacer- 
docio,  e  apreílbu-fe  o  monarcha  a  reíponder-lhe  a  i  de  mar- 
ço de  1769,  manifeftando  fentimento  pela  perda  do  pontífice 
e  fignificando  ao  mefmo  paíTo  em  termos  claros  quanto  era 
neceíTario  que  o  conclave,  infpirando-fe  no  bem  commum 
da  chriftandade,  elegeíTe  um  papa  tão  fanto  e  previdente, 
que  pozeffe  termo  ás  funeftas  perturbações  que  agitavam  a 
egreja,  e  foíTe  exemplo  e  edificação  á  grei  de  Chrifto'. 

Eftes  votos  não  refpondiam  cabalmente  ás  duvidas,  que 
preoccupavam  o  eftadifta  portuguez  fobre  o  acerto  da  eleição 
no  conclave,  que  ia  em  breve  cclebrar-fe.  Sabia  Sebaftião 
de  Carvalho  que  os  jefi.iitas  não  repoufavam  um  momento 
para  imporem  aos  purpurados  eleitores  um  papa  da  fi.ia  fei- 
ção. Tinha  para  elles  chegado  juftamente  o  critico  momento, 
de  que  eftava  pendente  o  termo  ou  a  confervação  da  Com- 
panhia. Egualmente  conhecia  que  eram  os  cardeaes  na  flia 
grande  maioria  zelofos  parciaes  da  politica  feguida  pelo  papa 
antecedente,  e  como  taes  ardentes  defenfores  dos  jelliitas. 
Parecia-lhe  que  os  negócios  da  chriftandade  agora  na  vacante 
do  papado  aprefentavam  mais  funefto  cariz  do  que  nas  lon- 
gas e  ruidofas  conteftações  com  o  ultimo  pontífice.  Appa- 


■  Carta  de  el-rei  D.  Jofé  ao  facro  coUegio,  do  i."  de  março  de  ijOo.  C.nllcc- 
ção  dos  negócios  de  Roma,  parte  ni,  pag.  44. 


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rccia-lhc  imminente  e  como  forçofo  conledtario  da  prepon- 
derância jelliitica  no  cullegio  cardinalício,  a  eleição  de  um 
papa  addicto  e  ^■inculado  fervilmente  á  facção  dos  jefuitas  e 
{dantes,  de  iim  llimmo  facerdote  efcondendo  incautamente 
fob  as  vertes  pontifícias  a  roupeta  efcura  da  Companhia. 

Segundo  o  juizo  de  Carvalho,  nada  podia  elperar-fe  do 
conclave,  que  foíTe  conducente  á  paz  da  egreja  e  ao  defag- 
gravo  dos  monarchas  otfendidos.  Ao  leu  animo  revolucioná- 
rio fomente  fe  afigurava  um  único  remédio  contra  os  influxos 
perniciofos,  que  haviam  forçofamente  de  avaflallar  os  car- 
deaes.  Era  a  acção  prompta,  enérgica,  refoluta,  com  que  as 
potencias  catholicas,  empenhadas  principalmente  na  conten- 
da, deviam  intimar  ao  lacro  coUegio  a  lua  inabalável  refolução 
de  não  acceitarem  como  chefe  da  egreja  um  pontifice  pro- 
penfo  á  Companhia.  O  plano  de  Carvalho  era  em  verda- 
de o  que  parecia  mais  conforme  á  Ília  irrequieta  impaciên- 
cia e  á  trifte  reputação,  em  que  tinha  a  fenfatez  dos  cardeaes. 
Em  primeiro  logar,  no  conceito  do  miniftro,  era  urgente  que 
a  eleição  não  recaiíTe  em  homem  condecorado  com  a  pur- 
pura cardinalicia,  antes  fe  elegcíTe  por  ^^igario  de  Chrifto  um 
prelado  extranho  ao  facro  collegio,  porque  não  prohibiam  os 
cânones  que  fe  bufcaífe  a  peífoa  mais  digna  e  imparcial, 
qualquer  que  foífe  o  grau,  em  que  eftiveíTe  na  hierarchia. 
Só  com  a  expreífa  exclufão  dos  cardeaes  fe  poderia  evitar 
que  fubiífe  á  cadeira  de  S.  Pedro  um  jefuita.  A  efta  perem- 
ptória intimação  devia  accrefcentar-fe  que  o  novo  papa  antes 
de  ler  declarada  a  eleição,  folemnemente  fe  obrigaífe  á  total 
extincção  da  Companhia.  Aconfelhava  também  Sebaftião  de 
Carvalho  que  para  fazer  vigorofa  e  irrefiftiAel  a  formal  inti- 
mação era  conveniente  que  marchaífem  contra  os  Eftados  pon- 
tifícios as  tropas,  que  foífe  então  polfivel  empregar.  N'eftes 
oufados  expedientes,  que  fariam  fair  o  novo  papa  de  uma 
Lirna  cercada  de  bayonetas.  cifra\a  o  mlnilfro  portuguez  a  es- 


_470_ 

perança  única  de  que  o  novo  conclave  não  daria  a  vicloria 
aos  jelliitas'.  N'efte  lentido  fe  expediram  inftrucções  a  Fran- 
cifco  de  Almada-,  que  em  Veneza  aguardava  agora  o  enle- 
jo  de  traíladar-fe  á  corte  pontifícia.  Na  meíma  data  le  es- 
crevia aos  reprelentantes  de  Portugal  em  Madrid  e  em  Paris, 
participando-lhes  o  que  a  Francifco  de  Almada  le  ordenara, 
recommendando-lhes  que  do  plano  contido  nas  inftrucções 
deffem  pleno  conhecimento  ao  governo  do  rei  catholico  e 
ao  duque  de  Choifeul.  O  antigo  enviado  portuguez  deveria 
confer-s-ar-fe  em  Veneza  ate  que  os  governos  de  França  e  Hes- 
panha  hou^eílem  aíTentado  em  fazer  ao  conclave  a  perem- 
ptória intimação,  ou  que  os  reprefentantes  d'aquellas  duas 
nações  em  Roma  lhe  avifalTem  ler  chegada  a  occafião  de 
com  elles  cooperar  nas  diligencias  e  empenhos  de  uma  elei- 
ção propicia  aos  Bourbons  e  a  Portugal'. 

Quando  o  plenipotenciário  portuguez  tiveffe  fa^•orave! 
conjuncção  para  ir  a  Roma,  deveria  fazer-fe  acreditar  perante 
o  facro  coUegio  pela  credencial,  que  lhe  foi  logo  expedida. 

Os  defejos  impacientes  de  Sebaftião  de  Carvalho  não 
achavam  infelizmente  nos  governos  de  França  e  da  Hefpa- 
nha  acolhimento  proporcionado  ás  efperanças  concebidas. 
Carlos  III  c  Grimaldi,  o  leu  miniftro.  não  correfpondiam  com 
demallada  cordialidade  ás  confidencias  e  ás  propoftas  do 
eftadifta  portuguez.  O  rei  de  Hefpanha,  apefar  dos  bons 
officios  de  fua  irman,  a  rainha  de  Portugal,  guardava  a  re- 
ferva mais  ciofa  a  refpeito  dos  negócios  graviíllmos  de  Roma. 
Pungia-o  certamente  a  reludancia  de  Carvalho  a  formar  com 


'  Carta  de  Sebaíliáo  de  Carvalho  ao  fecretario  de  eftado  D.  I.uiz  da  Cunha, 
de  27  de  fevereiro  de  1769.  CoUecçáo  dos  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  35. 

=  Inílrucção  fecretiflima  expedida  a  Francifco  de  Almada  em  i  de  março 
de  1769.  CoUecçáo  dos  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  38. 

3  Carta  de  Sebaftião  de  Carvalho  a  Francifco  de  Almada,  1."  de  março 
de  1769.  CoUecçáo  dos  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  43. 


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_47i 

as  cortes  de  Bourbon  a  ertreitiílima  alliança,  a  que  deíde 
muito  o  convidavam,  e  a  cuja  denegação  fora  de^•ida  a  injulia 
yuerra  de  1762.  Ao  lyftematico  filencio,  em  que  le  entrin- 
cheirava o  gabinete  de  Madrid,  recatando  e  efcondendo  a 
Portugal  o  que  era  concernente  á  eleição  do  novo  papa  e  ã 
prompta  abolição  da  Companhia,  oppunha  Sebaftião  de 
Carvalho  o  defdem  com  que  ligniíicaAa  ao  rei  de  Heípanha 
que  feria  Portugal  em  todo  o  catholicilmo  a  potencia  menos 
otfendida.  le  do  conclave  faiíTe  finalmente  um  jeluita  coroado 
com  a  tiara.  «Se  a  eleição,  elcrevia  o  eftadifta,  foíTe  recebida 
pelas  outras  potencias,  renderia  Portugal  ao  novo  papa  a 
devida  veneração,  mas  continuaria  a  manter  illefos  os  direitos 
da  independência  temporal,  porque  n'efte  paiz  era  já  enraiza- 
da nas  opiniões  e  nos  coíkimes  a  repugnância  á  minima  in- 
\aíao  ecclefialíica  nos  foros  e  franquezas  da  majeftade  fecu- 
lar%. 

Os  projedos  audazes  do  eftadifta  portuguez  achavam 
mais  bem  difpofto  a  applaudil-os,  porém  não  a  conformar- 
fe  com  elles  totalmente,  o  mundano  e  fceptico  Choifeul. 
Efte  miniftro  de  Luiz  XV,  mixto  fingular  de  cortezão,  de  es- 
tadiífa  e  de  philofopho,  não  participava  certamente  da  im- 
placa\'el  avcrfão,  que  o  fcu  contemporâneo  portuguez  votava 
lem  piedade  á  Companhia.  Não  odiava  os  filhos  de  Loyola, 
mas  via  na  confervação  da  ordem  infamada  pelas  fentenças 
dos  parlamentos  e  expulfa  de  toda  a  França  pelo  ediíto  de 
Luiz  XV,  um  tronco  ainda  robufto,  que  era  precifo  decepar 
a  bem  da  paz  no  orbe  catholico.  A  fecularifação  dos  jefi.iitas 
ha\  ia-a  elle  proclamado  como  fendo  ao  mefmo  paffo  o  termo 
ás  turbações  religiofas  dos  eftados  e  ás  privações  e  amargu- 
ras de  tantos  mil  religiofos,  cumprindo  no  defamparo  e  na 


'  Carta  do  conde  de  Oeiras  a  Ayres  de  Sá  e  Mello,  de  4  de  março  de  1 769. 
(^nllecçdo  dos  negócios  de  Ruma,  parte  iii,  pag.  45. 

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miferia  do  exilio  a  fentença  cruel,  mas  neccíTaria  da  fua 
confummada  profcripção".  Parecia-lhe  geometricamente  de- 
monftrado  que  a  diíTolução  da  Companhia  redundava  em 
bem  da  religião,  em  proveito  da  Santa  Sede,  em  beneficio 
das  potencias  catholicas  e  em  vantagem  dos  próprios  jefui- 
tas'. 

Já  nos  annos  derradeiros  de  Clemente  XIII  e  ainda  an- 
tes dos  eítrondofos  epifodios  occaílonados  pelo  famofo  mo- 
nitorio  contra  o  duque  de  Parma,  Choifeul  manifeftára  com 
infiftencia  eftas  fuás  opiniões,  e  revelara  a  intenção  de  fe- 
guir  em  relação  ao  Vaticano  a  politica  de  Carlos  III,  e  aju- 
dar activamente  o  monarcha  das  Hefpanhas  nos  feus  esforços 
para  abolir  a  funeíta  Companhia  ^  O  efpirito  porém  do  mi- 
niflro  de  Luiz  XV  enfombrava-fe  em  duvidas  eguaes  ás  do 
feu  vidente  collega  de  Lifboa,  quanto  á  docilidade  fácil  do 
pontífice  em  acceder  ás  inftancias  mais  urgentes,  ainda  mes- 
mo roboradas  pela  forçai 

E  provável  que  Choifeul,  julgando  mais  faftidiofa  e  im- 
portuna do  que  urgente  a  diuturna  queftão  dos  jefuitas,  fe 
deixara  adormecer  nos  ócios  elegantes  de  Verfailles,  fe  não 


'  «Je  vous  ai  déjá  parle,  monfieur,  plufieurs  fois  de  la  fécularifation  dts 
jéfuites,  et  je  crois  que  je  vous  ai  démontré  combien  cette  opération  ferait 
avantajeufe  à  la  cour  de  Rome,  qui  par  là  fe  raccommoderait  de  plus  avec  le 
Portugal  fous  la  médiation  du  roi  et  du  roi  d'Efpagne;  combien  elle  ferait 
agréable  aux  fouverains  qui  ont  exclus  cette  fociété  de  leurs  états;  enfin  de 
qucUe  utilité  elle  ferait  pour  les  individus  jéfuites.»  Officio  do  duque  de  Choi- 
feul ao  marquez  d'Aubeterre,  embaixador  francez  em  Roma,  i."  de  junho  de 
1767,  em  Saint-Prieíl,  Hiftoire  de  la  chute  des  jéfuites,  Appendice,  pag.  280. 

-  «En  vérité  il  me  parait  démontré  géométriquement  que  la  diffolution  de 
la  fociété  eft  le  bien  de  la  religion,  celui  du  Saint-Siége,  celui  des  puiíTances 
catholiques,  et  celui  des  particuliers,  qui  ont  été  et  font  jéfuites.»  Oflicio  de 
Choifeul  a  d'Aubeterre  em  Saint-Prieíl,  Hiftoire  de  la  chute  des  jéfuites,  Appen- 
dice, pag.  27. 

3  Officio  citado  de  Choifeul  a  J'Auheterre  do  i.»  de  junho  de  1767. 

4  Officio  de  Choifeul  a  d'Aubeterre,  de  27  de  maio  de  i7<)7,  em  Saint- 
Prieít,  Hifloire  de  la  chute  des  jéfuites,  Appendice,  pag.  27S. 


47J 

fora  a  conveniência  de  obtemperar  aos  ardentes  deíejos  de 
Carlos  Iir.  Era  neceíTario  conferir  ao  rei  de  Hefpanha  a  he- 
gemonia nos  aíTumptos  religiofos  para  que  aproveitando  a 
íntima  alliança  firmada  entre  os  Bourbons  pelo  Pado  defami- 
lia,  o  tiveíTe  a  França  nos  feus  intereíTes  politicos  por  fâmulo 
e  fervidor.  Não  é  pois  para  extranhar  que  o  duque  de  Choifeul, 
convindo  com  o  fecretario  de  eftado  portuguez  nos  perigos  de 
um  conclave  propicio  aos  jefuitas,  acolheíTe  com  frieza  o  proje- 
cfo  original  e  arrogante,  que  Sebaífião  de  Carvalho  fizera  pôr 
na  fua  prefença  pelo  embaixador  de  Portugal  na  corte  de  Ver- 
failles.  Concordava  o  miniítro  de  Luiz  XV  em  ferem  laftima- 
veis  e  perigofas  as  intrigas  e  as  paixões,  que  no  conclave  fe  mo- 
viam infrenes  e  mundanas  em  íãxov  dos  jefuitas.  Conformava 
com  Sebaftião  de  Carvalho  na  urgência  das  vehementes  infti- 
gações,  para  que  fe  elegeíTe  um  novo  papa,  que  podeíTe  abo- 
lir a  Companhia.  Admittia  por  neceíTaria  a  intima  colligação 
da  França,  da  Hefpanha,  de  Nápoles,  de  Parma  e  Portugal. 
Mas  conllderava  inexequível  a  traça  propofta  pelo  eftadifta 
portuguez  de  excluir  os  cardeaes  de  ferem  candidatos  ao  pa- 
pado. Em  vez  das  ícveras  intimações  e  da  violenta  coacção 
a  um  conclave  cercado  de  bayonetas  julgava  baftante  o  ad- 
vertir aos  cardeaes  que  fe  o  novo  papa  não  lupprimiíTe  a 
Companhia,  fe  arrifcava  a  não  ler  reconhecido  pelas  potencias 
empenhadas  na  fua  immediata  abolição.  Na  própria  occa- 
fião,  em  que  o  duque  de  Choifeul  manifeftava  ao  embaixa- 
dor de  Portugal  eftes  fentimentos  acerca  da  quelfão  pen- 
dente em  Roma,  deixava  tranfparecer  o  leu  defpeito  de  que 


'  '.Concluiu  (Choifeul)  que  le  me  não  lalhiva  mais  a  miudo  n'eíle  negocio, 
é  porque,  íuppolto  foífe  grande,  era  d'aquelles  que  o  occupavam  menos,  tendo 
outros  de  maior  entidade  não  fó  no  interior  do  reino,  mas  em  toda  a  Europa.» 
Officio  de  D.  Vicente  de  SouCa  Coutinho,  embaixador  portuguez  em  França 
para  o  conde  de  Oeiras,  de  23  de  março  de  1769.  CoUecçán  dos  nefandos  de  Ro- 
ma, parte  m,  pag.  48. 


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474 

Portugal  defattendeíTe  e  defdenhaíTe  a  politica  alliança  dos 
Bourbons'. 

Firmando-fe  no  defejo  manifcftado  pelas  cortes  de  Ma- 
drid e  de  Paris,  de  que  o  plenipotenciário  portuguez  defde 
logo  fe  traíladaffe  á  metrópole  da  chriftandade,  a  fim  de 
cooperar  activamente  com  os  demais  agentes  diplomáticos, 
ordenou  Sebaftião  de  Car^'alho  que  o  Almada  fem  delonga 
partiíTe  de  Veneza  para  Roma.  Enviou-lhe  as  inftrucções, 
por  que  devia  governar-fe,  unindo-fe  em  concerto  efficaz  c 
inceflante  com  os  reprefentantes  dos  Bourbons,  não  fomente 
no  que  foíTe  attinente  á  eleição,  mas  principalmente  á  lecu- 
larifação  dos  jefuitas,  problema,  que  no  conceito  do  eftadilia 
deixava  na  Ibmbra  as  demais  pendências  com  o  Vaticano. 
Ordenava-fe  egualmente  ao  enviado  portuguez  que  fegun- 
do  as  expreíTas  declarações  do  duque  de  Choilcul,  deveria  o 
Almada  advertir  os  cardeaes  de  que  fe  o  papa  eleito  nova- 
mente fe  oppozeífe  á  extincção  da  Companhia,  ficaria  pofto 
a  perigo  de  não  fer  reconhecido  como  chefe  legitimo  dos 
catholicos.  Infurgia-fe  o  audaz  contradidor  do  illimitado  im- 
pério dos  pontífices  contra  a  forma  da  eleição,  que  não  tinha, 
fegundo  elle,  nem  raizes  em  todo  o  Novo  Teftamento,  nem 
fundamentos  na  tradição,  nem  auítoridade  na  auítera  difci- 
plina  da  egreja  primitiva.  A  eleição  etfeituada  no  conclave 
deveria  cifrar,  em  leu  parecer,  apenas  uma  propofta,  que  o 
coUegio  cardinalício  aprefentava  ao  grémio  dos  fieis,  e  que 
fomente  fe  tornava  decifiva,  quando  recebia  da  egreja  uni- 
verfal  a  tacita  approvação-. 

Tão  oufadas,  ainda  que  não  defconformes  ás  praticas  fe- 


■  Ofticio  citado  do  embaixador  portuguez  em  França,  D.  Vicente  de  Sou- 
la  Coutinho  ao  conde  de  Oeiras.  Collecção  dos  negócios  de  Rorna,  parte  iii,  pag. 
48  e  fegg. 

-  Inftrucção  expedida  pelo  conde  de  Oeiras  a  Francilco  de  Almada,  em  8 
de  abril  de  iTtiQ.  Collecção  dos  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  54  e  fegg. 

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47J 

guidas  nos  tempos  apoltolicos,  eram  as  doutrinas  radicaes 
de  Sebaftião  de  Carvalho  em  tudo  o  que  tocava  á  disciplina 
ecclefiaftica  e  ás  relações  do  poder  temporal  com  o  fupremo 
pontificado.  Efcrevia  ademais  o  intraíiavel  regalifta  ao  leu 
plenipotenciário  que  fe  foílem  illudidas  as  efperanças,  que  os 
governos  catholicos  haviam  porto  nas  advertências  termi- 
nantes ao  conclave,  e  podeíTe  mais  com  os  imprudentes  car- 
deaes  o  oiro  e  a  obleíTão  da  Companhia,  não  haveria  obriga- 
ção de  reconhecer  um  papa  jeíuita  comprado  com  o  próprio 
dinheiro  das  nações,  que  mais  lhe  contradiziam  a  eleição'. 
Emquanto  Sebaftião  de  Carvalho  vivia  preoccupado 
com  a  votação  futura  do  pontífice,  e  defcontente  das  cavillo- 
fas  dilações  de  Choifeul  e  de  Grimaldi,  e  predizia  como  pro- 
vável a  aíTumpção  de  um  jefi.nta  á  cadeira  de  S.  Pedro,  e 
a  funefta  continuação  das  turbações  no  orbe  catholico,  pro- 
feguia  o  conclave  as  luas  operações  e  efcrutinios  no  meio 
dos  mundanos  enredos  e  paixões,  que  raras  vezes  deixam 
de  preceder  a  efcolha  do  pontifice.  E  na  verdade  cm  ne- 
nhuma aíTembléa  politica,  a  mais  profana  e  dividida  por 
difcordias  e  facções,  fe  paíTam  habitualmente  fcenas  mais 
laftimofas  e  mais  denunciadoras  do  que  podem  no  animo 
dos  homens  os  intereíTes,  as  ambições,  os  ódios,  os  affedos, 
as  emulações,  os  proveitos  egoiftas,  a  própria  venalidade  e 
corrupção.  Parece  que  entre  o  pontifice,  que  le  efconde  no 
lepulchro  e  o  que  faz  a  lua  primeira  marcha  triumphal  na 
fella  geftatoria,  ha  um  parenthele  de  anarchia  moral  e  de  in- 
frene dominação  para  quanto  ha  de  mais  carnal  e  mais  re- 
moto das  fantas  c  evangélicas  afpirações.  Ahi  le  vê  repre- 
lentada  a  diílimulação  e  a  intriga,  o  intereffe  luctando  com 
o  dever,  a  corrupção  Ibbrepondo-fe  á  juftiça,  a  ambição  afo- 
gando as  relíquias  derradeiras  das  virtudes  evangélicas.  Ali 


■  Inlirucção  citada  a  Francifco  de  .Almada,  pag.  56. 


cia 


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476 

os  embaixadores  e  os  miniftros  das  cortes  catholicas  corren- 
do a  uma  e  outra  parte,  bufcando  adivinhar  os  concertos  de 
cada  parceria  no  conclave,  ora  cortejando,  ora  ameaçan- 
do os  eleitores,  e  procurando  inclinal-os  pela  adulação  ou 
pela  efperança  de  largos  favores  e  diftincções.  Ali  os  car- 
deaes  repartidos  em  corrilhos,  enganando-fe  uns  aos  outros, 
efcondendo  em  romanos  artifícios  as  lecretas  intenções,  e 
forcejando  por  defcobrir  e  desfazer  os  planos  dos  contrários. 
Parece  que  a  pomba  íymbolica,  figura  do  Paracleto,  invoca- 
da a  infpirar  com  luz  divina  as  decifôes  foberanas  do  con- 
clave, não  le  dignaria  de  voejar  n'aquella  profana  e  munda- 
nal atmofphera. 

Não  cabe  nos  limites  d'efta  noíTa  obra  o  feguir  em  todas 
as  fuás  particularidades  a  hiftoria  do  conclave.  Somos  obri- 
gados a  preterir  a  agitação,  o  terror,  as  efperanças,  as  roga- 
tivas e  os  meneios  dos  jefuitas,  que  fitando  os  olhos  no 
Vaticano,  aguardavam  dos  fuífragios  cardinalícios  o  feu  trium- 
pho  ou  a  ília  perdição.  Deixemos  enleiarem-fe  e  defatarem- 
íe  os  enredos,  os  pactos  e  os  conluios  das  facç<5es,  que 
tumultuam  no  apparente  retiro  e  no  afcetico  filencio  das 
cellas  no  conclave.  Felizmente  para  as  potencias  intereíTadas 
e  para  a  paz  do  catholicilmo,  a  aíTembléa  não  prolongou 
por  féis  mezes  os  feus  trabalhos,  como  na  eleição  de  Lam- 
bertini,  que  fubira  ao  pontificado  com  o  nome  de  Benedifto 
XIV.  A  19  de  maio  de  1 769  os  cardeaes  conferiam  por 
unanimidade  a  tiara  pontifícia  ao  francifcano  clauftral  Lou- 
renço Ganganelli,  que  afcendia  ao  folio  de  S.  Pedro  cha- 
mando-fe  Clemente  XIV.  Não  era  efte  certamente  o  que 
Choifeul  defejava  a  principio  ver  eleito,  fenão  o  cardeal  Stop- 
pani,  que  lhe  parecia  mais  propicio  ás  pretenfões  da  familia 
de  Bourbon. 

Não  podia  o  novo  papa  ver  fem  grande  lafíima  que  Por- 
tugal vivcífe  como  que  feparado  da  fé  de  Roma  por  um  rom- 


477 

pimento  de  annos  dilatados.  Poucos  mezes  depois  da  lua 
afcenfão  á  fuprema  cadeira,  tomou  por  interceíTor  e  media- 
neiro na  conciliação  de  Portugal  com  o  Vaticano  ao  primeiro 
miniftro  de  D.  Jofé. 

Já  então  fe  achava  em  Roma  o  plenipotenciário  portu- 
guez  Francifco  de  Almada,  que  a  1 8  de  agofto  de  1 769 
fora  pelo  papa  em  primeira  audiência  recebido  com  as  mais 
aífectuofas  demonftrações  de  quem  tanto  fe  alegrava  com  as 
efperanças  de  vincular  de  novo  á  Santa  Sé  o  rei  de  Portugal 
e  os  feus  vaíTallos.  Era  agora  chegada  a  conjuncção  de  ten- 
tar o  caminho  mais  feguro  a  uma  reconciliação  fincera  e 
amigável.  Sabia  o  papa  que  todo  o  êxito  pendia  do  favor  e 
arhitrio  de  Carvalho. 

Efcreveu-lhe  a  28  de  agoífo  de  176c)  um  breve  em  lín- 
gua italiana,  no  qual  o  amimava  com  lilbnj eiras  expreíTões, 
e  lhe  promettia,  ainda  que  em  termos  nebulofos,  íatisfação 
aos  feus  defejos  mais  ardentes,  quando  para  iífo  fe  talhaífe  a 
occafião'.  Da  negociação  iniciada  aíTmi  pelo  pontífice  veiu 
brevemente  a  refultar  que  as  duas  cortes  até  ali  diíTidentes  e 
hoftis,  vieram  a  congraçar-fe,  acceitando  Sebaítião  de  Carva- 
lho o  núncio  Conti,  que  o  pontífice  lhe  propozera.  Não  era 
porém  exempta  de  condições  cila  cordial  pacificação.  Toda 
a  boa  harmonia  e  concordância  entre  Portugal  e  o  Vaticano 
feria  apenas  ephemera  e  apparente,  emquanto  fubfiftiífe  um 
jefuita,  amoftrando  na  roupeta  que  era  viva  e  pertinaz  a 
fua  ordem.  Na  refpoífa  de  Carvalho  ao  breve  de  Clemente 
XIV  apparecia  irrevogável  o  propofito  de  confiderar  a  ex- 
tincção  da  Companhia  como  o  feguro  fiador  da  paz  fincera 
c  duradoura  entre  Portugal  e  a  Santa  Sé-.  O  papa,  natural- 


1  Breve  de  Clemente  XIV  ao  conde  de  Oeiras,  de  28  de  agofto  de  1769. 
CoUecçáo  dns  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  ói. 

2  Carta  do  conde  Oeiras  para  Clemente  XIV.  Oillccção  dos  negocias  de 
Roma,  parte  iii,  pag.  64  e  65. 


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478 

mente  receolb  do  poder  e  influencia,  que  em  Roma  exerci- 
tavam os  jefuitas,  e  mal  feguro  com  o  frouxo  auxilio,  que 
lhe  preftavam  os  governos  de  França  e  da  Heípanha,  eftava 
perplexo  e  temerofo,  ofcillando  fempre  entre  o  defejo  de  pro- 
ceder á  abolição,  e  o  terror  que  lhe  infundia  a  audácia  da 
Companhia.  Sebaítião  de  Carvalho,  coherente  com  os  princi- 
pios  de  violenta  leveridade,  quando  a  força  era  o  inífru- 
mento  mais  efficaz  e  mais  poderoíb  de  uma  prompta  e  ra- 
dical reformação,  traçava  um  novo  plano,  fegundo  o  qual 
as  tropas  napolitanas,  que  então  occupavam  Benavento  e 
Pontecorvo,  deveriam  guarnecer  a  metrópole  chriflan,  e  re- 
primir as  defordens  promovidas  pelos  exacerbados  jefuitas 
quando  o  papa  decretaffe  a  abolição'. 

N'efi:a  efperança  de  que  vieíTe  finalmente  a  fer  extinífa 
a  fociedade,  continuou  a  boa  e  leal  correfpondencia  entre 
Sebaftião  de  Carvalho  e  o  leu  novo  amigo  Lourenço  Gan- 
ganelli.  Trocavam-fe  de  um  a  outro,  no  frequente  cartear, 
as  mais  gentis  e  aífeduofas  exprelTões.  Honrava  o  pontifica 
com  o  feu  retrato  o  íecretario  de  eftado  portuguez,  e  ren- 
dia-lhe  n'um  breve  italiano  as  mais  aífeflivas  graças  por  fer 
elle  o  verdadeiro  reftaurador  da  paz  entre  Portugal  e  a  Sé  de 
Roma. 

Expediu  Clemente  XIV  a  1  2  de  dezembro  de  1 769,  fe- 
gundo o  ufo,  uma  encyclica  aos  prelados  e  decretou  ao  mes- 
mo tempo  um  jubileu  univerfal.  Aproveitou  Sebaftião  de 
Carvalho  aquelle  enfejo  para  demonftrar  publicamente  que 
nenhum  diploma  pontifício  poderia  correr  em  Portugal  fem 
o  régio  beneplácito,  que  havia  declarado  obrigatório.  Conce- 
deu-o  fem  detença  ás  lettras  apoftolicas,  e  permittiu  aos  pre- 
lados que  nas  diocefes  as  publicaífem  aos  fieis. 


'  Relpoítii  fccretiffima   (do  conde  de   Oeiras)  á  memoria  confidencial  de 
monfenhor  Macedónio.  Collecçáo  dos  negócios  de  Roma,  parte  iii,  pag.  67. 

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479 

Era  a  encyclica  notável  por  três  circumftancias  principaes, 
que  não  podiam  elcapar  á  fina  penetração  do  eftadifta.  Es- 
forçava-fe  o  pontífice  por  aíTentar  o  feu  primado  de  ordem  e 
jurifdicção  fobre  a  egreja  univerfal  e  a  lua  fi.iperioridade  fobre 
todos  os  demais  bifpos  da  chrifi:andade,  como  fe  quizeíTe 
d'efta  maneira  combater,  fem  comtudo  as  memorar,  as  dou- 
trinas então  correntes  entre  muitos  canoniftas  e  theologos, 
que  pretendiam  reduzir  o  pontificado  ás  limitadas  proporções 
da  egreja  primitiva.  Laftimava  Clemente  XIV  as  perniciofas 
opiniões,  que  vogavam  n'aquelle  tempo,  defi:inadas  a  abalar 
ou  dertruir  as  crenças  religiofas,  e  concitava  os  pafi:ores  da 
grei  de  Chrifi:o  a  empenharem  todas  as  forças  da  fi.ia  diligencia 
e  audoridade  a  fim  de  repullar  a  oufadia  e  a  infania  das 
doutrinas  adA-crfas  á  egreja.  Alludia  o  papa  vifi^•elmente  em 
grande  parte  aos  encyclopediftas  e  philofophos,  e  ás  arrojadas 
concepções,  com  que  o  efpirito  humano  em  uma  das  fi^ias  pha- 
les  mais  famolas  bufcava  fi_ibmetter  aos  domínios  da  razão 
quanto  lhe  parecia  andar  remoto  da  fi.ia  alçada.  Tal  era  po- 
rém a  fi-ilpicacia  do  miniftro  portuguez,  que  não  deixou  de 
reparar  nas  palavras  da  encyclica.  Não  faltou  quem  as  qui- 
zeíTe interpretar  como  reprehenforas  e  allufivas  aos  que  pre- 
tendiam fubordinar  inteiramente  ao  império  o  facerdocio,  e 
talvez  que  em  parte  n'ellas  fe  efcondeíTe  um  remoque  fugi- 
tivo aos  mais  ardentes  regaliftas.  Sebaftião  de  Carvalho  apro- 
veitou a  conjunclura  para  vibrar  um  novo  golpe  aos  jefuitas, 
dando  por  demonftrado  que  as  erróneas  e  nocivas  opiniões, 
que  o  pontífice  tanto  lamentava,  eram  as  que  profeffava 
impenitente  a  Companhia.  N'efl:e  lentido  as  explicaram  em 
luas  pafl;oraes,  por  ordem  do  miniftro,  o  arcebifpo  de  Évora, 
e  o  patriarcha  de  Lifboa,  cujo  báculo  paftoral,  —  tal  era  a 
força  e  preftigio  incontraftavel  do  poder  civil  n'aquelles  tem- 
pos de  vigor  e  energia,  —  fomente  fabia  menear-fe  para  pafcer 
a  grei  chriftan,  fegundo  o  infinuava  a  vontade  irrefiftivel  do 


tia 


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480 

poderofo  didador'.  Quando  a  cúria  eftava  ainda  mal  fegura 
da  benevolência  e  fujeição  dos  monarchas  havia  pouco  hos- 
tis á  Santa  Sede,  julgava  útil  o  aftuciofo  Ganganelli  lifonjear 
na  encyclica  as  majeftades  temporaes,  exalçando  até  ás  nuvens 
a  excellencia,  a  primazia,  o  carader  divino,  fagrado,  inviolá- 
vel dos  príncipes  foberanos,  c  tecendo  em  phrafes  hyperbo- 
licas  o  elogio  da  realeza  abfoluta  na  quadra,  em  que  fe 
acaítellavam  contra  ella  no  horizonte  as  borrafcas  da  immi- 
nente  Revolução. 

Nos  principios  de  1770  chegava  a  Lifboa  o  novo  núncio, 
Innocencio  Conti,  arcebiípo  deTyro.  Não  foi  porém  admitti- 
do  a  exercer  as  fuás  funcções  fenão  depois  de  lhe  haverem 
fido  intimados  os  limites,  em  que  haveria  de  ufar  das  facul- 
dades concedidas  nas  bulias  da  fua  commiífáo.  Devia  o 
núncio,  fegundo  lhe  era  notificado,  abfter-fe  de  tudo  que  foífe 
novidade  ou  fe  tivcíTe  abufivamente  introduzido  em  prejuízo 
e  perturbação  da  fociedade  civil.  A  23  de  agofto  o  rei  annun- 
ciava  por  um  decreto  expedido  ao  defembargo  do  paço  que 
eftava  aberta  a  correfpondencia  com  a  corte  de  Roma.  Ao 
mefmo  tempo  enviava  Sebaftião  de  Carvalho  uma  carta  circu- 
lar a  todos  os  prelados  dioccfanos,  declarando-lhes  que  fe- 
gundo a  lei-  não  podiam  fer  recebidos,  nem  ter  execução  em 
Portugal  os  breves,  as  bulias  e  os  refcriptos  do  pontífice  fem 
que  houveífe  precedido  o  régio  beneplácito. 

Se  o  primeiro  miniftro  de  D.  Jofé  com  efta  confummada 
reconciliação  fe  julgava  propinquo  ao  feu  triumpho,  não  foi 
menos  celebrada  na  capital  do  orbe  catholico  a  paz  efpiritual, 
que  trazia  de  novo  o  rei  fideliífimo  á  communicação  com  a 
Santa  Sede.  N'uma  allocucão  aos  cardeaes  no  confiftorio  fe- 


I  Paftoral  do  arcebiípo  de  Évora,  de  24  de  fevereiro  de  1770.  Collecçáo 
dos  negócios  de  Roma,  parte  ni,  pag.  81,  c  paftoral  do  patriarcha  de  Lifboa, 
ibid. 

-  Lei  de  6  de  maio  de  176.^. 


1  f 


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481 

creto,  a  6  de  agofto  de  1770,  Clemente  XIV  parecia  trans- 
bordar em  jubilo  entranharei  e  em  fervorofa  gratidão  ao  rei 
de  Portugal.  As  folemnidades  religiofas  e  as  profanas  fes- 
tividades oftentaram  em  Roma  por  muitos  dias  o  preço  em 
que  era  tida  a  paz  e  a  concórdia  com  o  reino  de  Portugal. 

Defde  as  primeiras  rogativas  de  Clemente  XIV  para 
congraçar  com  o  foberano  portuguez  a  Santa  Sede,  otferecêra 
o  novo  papa  conferir  o  capello  cardinalicio  á  peíToa,  que  lhe 
foíle  aprefentada  pelo  rei.  Recaiu  a  eleição  em  Paulo  de 
Carvalho,  que  na  qualidade  de  inquifidor  e  commilTario  da 
bulia  da  cruzada  fora  fempre  nas  queftões  ecclefiafticas  um 
fer^•orolb  e  leal  cooperador  de  leu  irmão.  Foi  promovido  á 
facra  purpura.  Não  chegou  porém  a  gofar  a  preeminência, 
porque  já  era  fallecido,  quando  veiu  a  noticia  official  d'elta 
mercê,  com  que  o  pontífice  quizera  indireítamente  gratificar 
os  ferviços  beneméritos  do  grande  legiflador.  No  logar  que 
ficara  vago  no  collegio  cardinalicio  nomeou  Clemente  XIV 
ao  arcebifpo  de  Évora,  D.  João  de  NoíTa  Senhora  da  Porta, 
e  com  efta  nova  promoção  egualmente  lifonjeou  a  Sebaltião 
de  Carv^alho,  que  no  auge  da  gloria  e  do  poder  fempre  tive- 
ra no  prelado  um  tão  fanático  fatellite,  quanto  nos  tempos 
adverfos  o  encontrou  defabrido  e  ingrato  defprezador. 

Em  outras  mais  importantes  conceíTóes  moítrou  Clemente 
XIV  a  boa  vontade,  com  que  defejava  agradecer  os  otiicios 
do  eftadifta  no  reftabelecimento  das  relações  amigáveis  entre 
Portugal  e  o  Vaticano.  Foi  uma  das  mais  notáveis  providen- 
cias confirmadas  pelo  pontífice,  no  breve  Sacrofancliim  apos- 
tolatiis  de  4  de  julho  de  1770,  a  extincção  de  nove  mofteiros 
pertencentes  á  opulenta  congregação  dos  cónegos  regrantes 
de  Santo  Agoftinho  e  a  applicação  das  fuás  rendas  ao  mos- 
teiro de  Mafra,  primitivamente  detfinado  aos  frades  arrabi- 
dos  e  concedido  então  aos  cónegos  regrantes.  Não  carecia  de 
fundamento  parficular  efta  determinação.  Tinham  aquelles 


Í- -í^ 
eis 


482 

religiofos  incorrido  no  juíto  delagrado  do  miniftro,  como  fe- 
ítarios  e  fautores  enthufiaftas  do  fcifma  dos  Jacobeus.  Con- 
fiderava  Sebaítião  de  Carvalho  que  reftituindo  á  fua  pri- 
meira vocação  de  inftruir  a  juventude  a  congregação,  defde 
largos  annos  corrompida  e  relaxada,  poderia  o  novo  efpirito 
inllifflado  n'aquella  antiga  ordem  equivaler  a  uma  falutar  re- 
formação. Ninguém  pode  pôr  em  duvida  que  o  miniftro  illu- 
minado,  que  meditara  longamente  fobre  as  inftituições  eccle- 
fiafticas  e  a  fua  eftreita  relação  com  a  íbciedade  temporal, 
não  confiava  feguramente  nas  corporações  monafticas  e  no 
clero  regular  como  efficaz  inftrumento  de  perfeição  efpiritual 
e  ainda  menos  de  profana  civilifação.  Não  odiava  a  par 
com  os  jeíuitas  as  famílias  monachaes,  mas  vendo-as  geral- 
mente defcaidas  de  feus  primeiros  inftitutos  e  tão  mundanas 
e  defconformes  á  evangélica  pureza,  não  houvera  fido  com 
ellas  mais  clemente,  fe  lhe  proporcionara  o  tempo  a  conjunc- 
çáo.  Reduzir  pois  o  numero  das  caías  religiofas  tão  exube- 
rantes em  Portugal,  era  já  um  paíTo  no  caminho  futuro  e 
não  diftante  da  fua  inteira  fecularifação. 

Diverfil-as  da  efteril  profiíTão  da  vida  contemplativa  e 
ociola  para  o  ofiicio  Ibcial  de  educadoras,  fob  a  vigilância 
do  eftado,  era  em  certa  maneira  e  para  aquelle  tempo  mui 
outro  do  prefente,  como  que  reconcilial-as  com  a  íbciedade 
temporal  e  trazêl-as  defde  as  alturas,  onde  nem  lempre  fe 
enlevavam  nas  celeftes  beatitudes,  a  participar  no  movi- 
mento e  no  progreíTo  do  mundo  terrenal.  A  importância  de  ver 
extinda  c  profcripta  da  chriftandade  a  Companhia,  lhe  fazia 
parecer  inoffenlivas  as  outras  ordens  religiofas.  E  de  feito, 
vencida  a  uhima  campanha  e  marcados  os  jefuitas  na  fronte 
com  o  ferrete  ignominofo  pela  mão  fuppofta  immaculada  e 
infallivel  do  paftor  univerfal,  não  feria  já  difticil  aos  futu- 
ros eftadiftas  diradicar  de  vez  o  monachifmo  e  deixar  intei- 
ramente ao  clero  fecular  o  conforto  e  pafcigo  das  ovelhas. 


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eis 


483 

Não  ertava  ainda  conclufa  a  grande  empreza,  que  havia 
tantos  annos  occupára  o  penfamento  e  a  acção  do  grande 
reformador.  Faltava  ainda  o  decreto  da  fuppreffão  da  Com- 
panhia. 

A  abolição  dos  jefuitas  foi  o  principal  empenho  de  Car- 
valho defde  que  viu  o  novo  papa  fubmetter-fe  fupplice  e 
lacrymofo  á  lua  indifputada  audoridade,  e  pedir-lhe  anima- 
ção e  adjutorio  nos  primeiros  tempos  do  tormentolb  ponti- 
ficado. Demafiado  fe  deveria  de  alongar  o  narrador,  fe  qui- 
zeíTe  referir  miudamente  as  intricadas  e  efcabrofas  negocia- 
ções, que  por  parte  de  Portugal,  de  França  e  da  Hefpanha 
levaram  finalmente  á  extincção  da  Companhia.  As  melmas 
defconfianças,  que  a  Sebaftião  de  Carvalho  tinham  inlpirado 
as  duas  principaes  cortes  de  Bourbon  e  os  feus  agentes  di- 
plomáticos em  Roma,  no  pontificado  antecedente  e  durante 
o  conclave,  perfiftiam  ainda  mais  aggravadas  porventura. 
Não  punha  o  enérgico  efiadifta  as  fuás  efperanças  na  calcu- 
lada e  inerte  lentidão  da  França  e  da  Hefpanha.  Accufa- 
va-as  de  haverem  com  fua  má  vontade  e  arrogância  impe- 
dido que  faiíTe  dos  fuflfragios  um  pontífice,  o  qual,  efcudado 
pela  força  das  potencias  contra  a  rebeldia  jefuitica,  fe  an- 
nunciaíTe  ao  orbe  catholico,  defde  a  varanda  do  Vaticano, 
levando  já  na  mão  o  breve  fupprimindo  a  Companhia.  Co- 
nhecia a  malevolencia  do  cardeal  de  Bernis,  que  logo  defde 
o  principio  do  novo  pontificado  era  embaixador  francez  em 
Roma,  e  continuava  como  negociador  as  melmas  intrigas, 
com  que  fe  havia  aífignalado  no  conclave.  Tinha  Carva- 
lho no  breve  fecretiíTimo,  que  lhe  efcrevêra  Clemente  XIV, 
a  promeífa  formal  da  abolição.  Tinha  em  monfenhor  Ma- 
cedónio, confidente  do  pontífice,  um  oíficiofo  e  efficaz  me- 
dianeiro na  fecreta  correfpondencia,  que  fe  trocava  entre 
Sebaftião  de  Carvalho  e  Ganganelli  acerca  da  fufpirada  pro- 
videncia. Sabia  que  o  papa  eftimulava  o  enviado  portuguez 


«is 


4S4 

para  que  foíTe  frequente  nas  luas  vilitações  ao  Vaticano, 
onde  o  ardilofo  Almada  podia  contraílar  os  meneios  de  Ber- 
nis  e  os  enredos,  que  o  faziam  fufpeitar  de  propenfo  á  con- 
fervação  da  Companhia.  Envidavam  os  jefuitas  os  últimos 
empenhos  para  defviar  o  golpe  irreparável.  Era  poderofa 
em  Roma  a  ibciedade.  Tinha  parciaes  no  lacro  coUegio,  na 
prelatura,  em  a  nobreza,  no  mais  inculto  e  rude  das  claffes 
populares.  Divulgavam  diariamente  os  jefuitas  as  novas  mais 
abítrufas  e  as  mais  manifeífas  falíidades  com  o  intento  de 
illudir  e  enliçar  a  opinião.  Diziam  que  a  ordem  de  Jefus 
não  feria  abolida,  mas  fomente  reformada.  O  pontífice,  em- 
bora certificaífe  conítantemente  a  Francifco  de  Almada  e  a 
Sebaítião  de  Carvalho  que  não  affrouxava  no  propofito  da 
abolição,  vacillava  perpetuamente,  avéxado  por  efcrupulos, 
falteado  de  terrores,  ora  temerolb  do  poder  coloífal,  que 
ainda  fuppunha  á  Companhia,  ora  receiofo  de  que  a  plebe 
romana  fe  infurgiífe  em  defenfão  da  ordem  revoltofa;  agora 
temendo  um  fcifma  provocado  pelos  amigos  e  fautores  dos 
jefuitas,  e  logo  dando  pefo  ás  tremendas  prophecias,  com 
que  aos  jefuitas  fe  vaticinava  próximo  o  efplendido  trium- 
pho  e  o  termo  defaftrofo  ao  novo  pontificado.  Não  repoufa- 
va  o  eftadirta  portuguez  em  combater  defde  Lifboa  as  inlidias 
dos  jefuitas,  em  increpar  a  tibieza  das  cortes  de  Bourbon, 
em  alentar  o  pontífice  defanimado.  Rcduplicava  as  inítruc- 
ções  ao  enviado  Francifco  de  Almada,  que  não  defcanfava 
um  momento  na  tarefa  de  defconcertar  os  esforços  jefuiticos, 
e  as  pcrigofas  aftucias  de  Bernis.  As  cortes  de  Bourbon 
faziam  crer  a  Clemente  XIV  que  a  Portugal  eífencialmente 
revertia  o  proveito  principal  da  abolição.  A  Francifco  de 
Almada  fazia  o  eftadifta  portuguez  dizer  ao  papa  que  ne- 
nhum paiz  era  menos  intereíTado  do  que  o  leu  na  total 
fuppreífão  da  Companhia,  porque  tendo-a  expulfado  já  de  feus 
domínios  e  feito  contra  cila  executar  uma  inexorável  legilla- 


eia 


485 

ção,  fe  tinha  de  Ibbra  premunido  contra  os  males,  que  fazia 
na  chriítandade.  Era  pois  no  intereíTe  de  toda  a  egreja,  que 
Portugal  pedia  e  reclamava  a  extincção.  Ponderava  Sebas- 
tião de  Carvalho,  pelo  órgão  do  feu  reprefentante,  o  graviííi- 
mo  erro  que  feria  o  reformar  uma  ordem  em  fuás  malfeito- 
rias jubilada  e  endurecida,  e  por  iífo  incapaz  de  emenda  e 
correcção.  Ás  delongas  das  curtes  de  Bourbon,  que  nas  fuás 
negociações  eftavam  antepondo  á  quellão  capital  da  aboli- 
ção outros  negócios  de  feu  intereíTe  ambiciofo  e  pri\ativo, 
oppunha  Sebaftião  de  Carvalho  nas  luas  enérgicas  repre- 
fentações  o  dever  impreterível,  que  ao  pontífice  corria  de 
expurgar  da  maior  praga  a  egreja  univerfal,  e  o  direito,  que 
tinha  indifputavel  de  extinguir  a  Companhia  fem  confultar  os 
príncipes  foberanos  fobre  a  maneira  de  proceder  á  fuppres- 
fão.  Refpondia  Clemente  XIV,  confirmando  novamente  a 
palavra,  que  tinha  empenhada  defde  os  primeiros  paífos 
da  lua  reconciliação,  encarecendo  os  fentimentos  de  aíFeduo- 
fa  gratidão,  que  o  vinculavam  ao  rei  de  Portugal  e  prin- 
cipalmente ao  feu  miniftro,  a  quem  fempre  cognominava  com 
hyperbolicos  epithetos  de  agradecimento  c  de  louvor.  Tinha 
o  papa  fempre  em  mente  a  extincção  da  Companhia,  mas 
queria  realifal-a  maduramente,  e  de  feição  que  foífe  recebida 
fem  eftorvos  por  todas  as  potencias  do  catholicifmo,  fem  pôr 
a  egreja  a  perigo  de  um  ícifma  defaftrofo  em  tempos  de  ta- 
manha defcrença  e  turbação,  nem  ofi^ender  os  imperantes, 
que  ainda  protegiam  ou  fuftentavam  em  feus  eftados  os  fo- 
cios  da  mal-aífegurada  congregação. 

Profeguia  Francifco  de  Almada  concorrendo  ás  confe- 
rencias, que  em  Roma  celebravam  os  reprefentantes  das 
cortes  de  Bourbon,  e  concertando  com  elles  as  inftancias  que 
deviam  aprefentar  no  Vaticano  para  a  abolição  da  Companhia. 
Não  era  porém  n'eí1:e  accordo  oííicial  com  o  cardeal  de  Ber- 
nis,  e  o  arccbifpo  de  Valência,  Azpuru,  que  Sebaftião  de 


ir  1    F 

eis 


«Is 


486 

Carvalho  cifrava  a  fegura  eíiicacia  para  o  cxito  propicio  da 
fua  impaciente  afpiração.  As  fuás  efperanças  eftavam  poftas 
principalmente  nas  fecretas  negociações  conduzidas  pelo  in- 
termédio officiofo  de  monlenhor  Macedónio,  fervorofamen- 
te  devotado  á  corte  de  Portugal.  O  enviado  portuguez  não 
deixou  porém  de  aprefentar  a  Clemente  XIV  uma  memoria 
em  que,  de  accordo  com  os  miniftros  da  caía  de  Bourbon, 
pedia  inftantemente  a  abolição.  Uma  nova  circumftancia  dif- 
íicultava  porém  o  paíTo  á  delongada  negociação.  O  cardeal 
de  Bernis  e  os  outros  repreíentantes  dos  Bourbons  preten- 
diam que  o  pontífice  antes  de  exarar  a  bulia  da  extincção, 
expediíTe  dois  breves  preparatórios.  Em  um  d'elles  o  papa 
confirmaria  quanto  as  cortes  catholicas  ha^•iam  feito  em  re- 
lação á  Companhia.  No  outro  fubmetteria  á  approvação  e 
exame  dos  monarchas  a  minuta  das  lettras  pontificias,  que 
deviam  decretar  a  fuppreffáo.  Sebaifião  de  Carvalho  inven- 
civelmente  repugnava  a  efte  demorado  e  nocivo  expediente. 
Quanto  havia  decretado  em  Portugal  a  refpeito  dos  jefuitas, 
caía  dentro  da  autoridade  e  jurifdicção  do  poder  temporal, 
e  feria  uma  abjeda  degradação  o  acceitar  um  breve  do  pon- 
tifice  para  o  confirmar  e  revalidar,  como  fe  os  ados  ema- 
nados da  fuprema  majeftade  podelfem  taxar-fe  de  illegitimos, 
irregulares,  anticanonicos,  e  careceífem  de  fer  fanados  pela 
auítoridade  pontificia.  N'outro  ponto  eífencial  divergia  o 
oufado  eftadifta  portuguez  das  frouxas  pretenfões  do  cardeal 
de  Bernis.  O  embaixador  francez  pedia  apenas  a  extincção, 
porém  não  o  caftigo  dos  jefuitas  implicados  como  auctorcs 
nos  defacatos  e  difturbios  commettidos  na  chriftandade  pela 
ambiciofa  Companhia.  Sebaftião  de  Carvalho  infiftia  ao  revez 
como  em  ponto  fubftancial,  na  punição  exemplar  do  geral 
Lourenço  Ricci,  e  dos  feus  mais  turbulentos  e  culpolbs  aífes- 
fores  e  confelheiros.  Ordenava  porém  a  Francifco  de  Al- 
mada, que  trataífe  principalmente  da  abolição  deixando  ao 


eia  e|9 


487 

arbítrio  de  Clemente  XIV  a  punição,  como  áquelle,  a  quem 
unicamente  competia. 

Pouco  havia  adiantado  a  negociação  quando  um  fucceíTo 
inopinado  vciu  dar  calor  e  eítimulo  á  irrefolução  e  tibieza 
do  pontífice.  O  rei  de  Portugal,  eflando  em  Vílla  Viçofa,  e 
indo  a  lair  a  porta  do  palácio,  fora  aggredido  violentamente 
por  um  homem,  que  lhe  vibrou  á  cabeça  um  golpe  de  bor- 
dão. Livrou-fe  o  rei,  defviando  o  corpo  com  ligeireza.  Era  a 
3  de  dezembro  de  1769.  Não  faltou  quem  attribuiíTe  o  atten- 
tado  ás  machinações  dos  jefuitas.  Chega  a  noticia  a  Roma. 
Conlterna-fe  o  pontífice,  e  com  as  mais  fignificativas  de- 
monftrações  teftemunha  a  D.  Jole  a  dor,  que  lhe  caufára  o 
defacato  á  peflba  do  ungido  do  Senhor.  Efcreve  ao  rei  e  a 
Carvalho  em  termos  de  entranhado  affedo  e  fentimento. 
Não  participavam  por\entura  os  jefuitas  no  intentado  regi- 
cídio, mas  na  prelença  da  lua  crefcente  irritação,  não  foi 
difficil  acreditar  que  eram  elles  os  motores  da  nova  atroci- 
dade. O  crime  de  Vílla  Viçofa  foi  pois  um  poderofo  incentivo 
a  que  redobraífem  mais  urgentes  as  inftancías  reclamando 
a  abolição. 

Mas  o  papa  cada  vez  mais  e  mais  fe  enleava  n'uma  re- 
de de  laftimofas  indecifões.  Cada  vez  lhe  pareciam  mais  te- 
míveis e  poderofos  os  terríveis  antagoniftas,  contra  os  quaes 
o  mandavam  faír  a  campo  a  elle  fraco  athleta,  mal  armado 
para  tão  defegual  rec[uefta,  onde  a  fua  torva  imaginação  lhe 
predizia  que  haAeria  de  comprar  com  a  ^•ida  a  fua  vídoría. 
N'efta  anguftíofa  fituação  defafogava  Clemente  XIV  as  fuás 
laítimas  com  o  artificiofo  Francifco  de  Almada,  prompto 
fempre  a  encravar  na  mórbida  confciencia  do  pontífice  o 
efpinho  da  fua  averfão  á  Companhia.  As  confidencias  com 
que  o  papa  fe  abria  defconfortado  com  o  miniftro  de  Por- 
tugal, pedindo-lhe  confelho  e  favor  na  lua  trifte  fituação, 
replicava  Sebaflião  de  Carvalho  n'uma  carta  firmada  pelo 


488 

rei  e  dirigida  a  Clemente  XIV '.  Refpondia  o  monarcha  por- 
tuguez  aos  Íntimos  defafogos  do  pontifice  e  lhe  encarecia 
em  termos  vehementes  quanto  era  neceíTario  aproveitar  a 
conjuntura,  e  decretar  promptamente  a  abolição,  a  qual  já 
viria  a  fazer-fe  inexequível,  deixando-fe  paíTar  a  occafião. 
Diííipava-lhe  os  receios  de  fcifma  ou  diíTidencia  das  potencias 
não  hoítis  aos  jefuitas.  Ao  mefmo  tempo  fazia  o  miniftro  de 
D.  Jofé  paíTar  ás  mãos  do  papa  uma  memoria,  em  que  exa- 
minando a  fituação  das  cortes  catholicas,  lhe  aíTegurava, 
em  prefença  d'eíl:a  analyle,  o  nenhum  receio  de  que  a  imme- 
diata  fuppreffão  produziíTe  fenão  frudos  abençoados  á  paz 
da  egreja  e  das  nações". 

Não  defcontinuaram  as  inítantes  follicitações  do  eftadifta 
portuguez  até  que  o  papa,  depois  de  vacillar  mais  de  três 
annos  entre  o  cumprimento  das  folemniílimas  promeíTas  e  os 
efcrupulos  e  os  receios  da  lua  timorata  conlciencia,  veiu  fi- 
nalmente a  expedir  ás  cortes  catholicas,  por  intermédio  de 
Carlos  III,  a  minuta  da  bulia  de  fuppreffão.  O  rei  de  Hefpa- 
nha  tivera  fempre  em  grande  honra  o  fer  elle  o  inftrumento 
principal  na  extincção  da  Companhia.  Olhava  com  ciúme  e 
com  defpeito  os  que  lhe  difputa^■am  o  primado  n'efle  ponto, 
como  fe  foffe  o  poderofo  Agamemnon  n'ell:e  cerco  poíto  es- 
treitamente á  Tróia  jefuitica. 

Para  condefcender  com  cita  vaidofa  pretenfão  deliberou 
Clemente  XIV  enviar  a  Carlos  III  a  minuta  da  bulia,  em 
que  intentava  decretar  a  abolição,  e  commetteu-lhe  o  encar- 
go de  a  communicar  ás  cortes  catholicas  para  que  fobre  ella 
houveffem  de  fazer  as  luas  obfervacões.  Conveiu  facilmente 


'  Carta  de  D.  Jofé  a  Clemente  XIV,  de  21  de  dezembro  de  1772.  Collecção 
dos  negócios  de  Roma,  parte  ni,  pag.  i5i. 

2  Carta  de  Sebaftião  de  Carvalho  para  Francifco  de  Almada.  C.ollecçáo  dos 
negócios  de  Roma,  parte  111,  pag.  iS3  e  segg. 


•^ 


489 

Sebaftião  de  Carvalho  em  approvar  defde  logo  efte  rafcu- 
nho.  Alhanadas  pelo  papa  as  difficuldades,  veiu  finalmente 
a  declarar  ao  orbe  catholico,  pela  bulia  Domimis  ac  Re- 
demptor,  de  21  de  julho  de  1773,  que  ficava  abolida  para 
fempre  a  Companhia  de  Jefus.  Nunca  Sebaftião  de  Carvalho 
preftou  o  régio  beneplácito  a  refcripto  algum  do  Vaticano 
com  maior  alvoroço  do  que  a  efte,  que  fora  tantos  annos  o 
fonho  mais  dilecto  e  a  mais  dourada  efperança  da  fija  alma. 
A  mais  affignalada  vidoria  das  armas  portuguezas,  a  con- 
quifta  mais  valiofa,  não  poderiam  celebrar-fe  com  tantas  e 
tão  geraes  demonftrações  de  jubilo  univerfal.  Tão  relevante 
confiderava  Sebaftião  de  Carvalho  a  abolição  da  ordem  odia- 
da, que  na  carta  gratulatoria,  dirigida  por  D.  Jofé  a  Cle- 
mente XIV,  não  duvidava  em  qualificar  o  acto  do  pontifica 
como  o  maior  e  mais  tranfcendente  beneficio,  que  depois'  da 
redempção  do  género  humano  haviam  recebido  dos  fucces- 
fores  apoftolicos  de  S.  Pedro  a  egreja  e  as  fociedades  civis 
de  todo  o  orbe.  A  carta  de  lei,  em  que  o  rei  de  Portugal  con- 
cedia o  beneplácito  á  bulia  Dominus  ac  Redemptor  '  traf  bor- 
dava em  fubidas  expreíTões  do  mais  fervorofo  panegyrico 
ao  paftor  univerfal,  que  depois  dos  esforços  infruéfiferos  de 
mais  de  vinte  papas  em  corrigir  e  enfrear  a  ambiciofa  e  tur- 
bulenta Companhia,  fc  determinara  finalmente  em  expungir 
da  communhão  chriftan  aquelle  copiofo  feminario,  d'onde, 
no  conceito  do  eftadifta,  fe  tinham  derivado  as  maiores  per- 
turbações á  chriftandade.  Depois  de  exautorados  pelo  papa, 
o  miniftro  portuguez,  que  contra  os  jefuitas  fora  o  primeiro 
a  dar  rebate  vigorofo,  vinha,  como  pontífice  profano  e  re- 
prefentante  fecular  da  moderna  fociedade,  lançar  contra  el- 
les  a  excommunhão  civil  e  celebrar  com  tremenda  objurga- 
toria  as  exéquias  da  Companhia. 


■  Carta  de  lei  de  9  de  leptembrode  1773. 


eis 


<^ -ò-§- 

e|j  ela 


490 

A  íntima  e  cordial  correfpondencia,  que  eftreitava  as  re- 
lações entre  a  Guria  e  Portugal  depois  da  abolição  dos  jefui- 
tas,  revelou-fe  na  fácil  condefcendencia,  com  que  o  papa 
defpachou  os  negócios  canonicamente  mais  difficeis,  fegundo 
lh'os  propunha  o  miniftro  portuguez.  Entre  elles  não  Ibi  de 
certo  o  menos  grave  o  que  fe  referia  ao  bifpo  de  Coimbra 
D.  Miguel  da  Annunciação,  que  no  feu  dilatado  captiveiro  fe 
negava  tenazmente  a  refignar  o  epifcopado.  O  poder  civil  por 
um  dos  feus  aífos  de  oufadia  mais  francamente  revolucio- 
naria, havia-o  declarado  morto  civilmente.  Concertou-fe  en- 
tre Portugal  e  a  Santa  Sede  um  expediente,  que  refpondia 
ao  mefmo  paíTo  á  incapacidade  politica  do  prelado  e  aos 
efcrupulos  canónicos  do  papa.  Nomeou  Clemente  XIV  a 
D.  Francifco  de  Lemos  para  bifpo  de  Zenopolis,  in  partibiis 
inftdelhim,  e  commetteu-lhe  como  coadjutor  e  futuro  fuc- 
ceíTor  do  réu  de  eftado  a  jurifdicção  efpiritual  e  temporal  na 
diocefe  de  Coimbra'. 

Se  os  jefuitas  eram  como  inftituição  ecclefiaftica  um  fer- 
mento permanente  no  grémio  efpiritual,  e  como  profana 
corporação  um  perigo  temerofo  para  a  fociedade  fecular, 
o  Santo  Officio  era  mais  do  que  um  perigo  e  um  fermento, 
era  para  a  egreja  uma  ignominia,  uma  defhonra  para  a  mo- 
derna civilifação.  Teria  Sebaftião  de  Carvalho  vindicado  com- 
pletamente o  illuminado  íeculo,  em  que  vivia,  fe  obedecendo 
ao  feu  efpirito  adverfo  a  toda  a  coacção  temporal  exercida 
em  nome  de  Jefu  Chrifto  houveíTe  ao  mefmo  paíTo  deftruido 
a  Inquifição  e  a  Companhia.  Teria  vinculado  na  mefma  con- 
demnação  os  Laynes  e  os  Torquemadas,  os  cafuiítas,  que 
alargavam  as  confciencias  e  os  caminhos  ao  peccado,  e  os 
inquiridores,  que  povoavam  de  fogueiras  a  eftrada  da  eterna 
bcatitude;  a  roupeta,  que  aífrontava  a  humanidade  como  a 


'  Bulia  Romanus  pontifex,  de  1 3  de  abril  de  1774. 


49' 

inlignia  da  fuprema  dominação,  e  o  lambenito,  que  cifrava 
para  a  egreja  o  reinado  perpetuo  do  terror.  Não  confentiam 
porém  os  tempos  e  as  circumftancias  que  o  vidente  legiíla- 
dor  levaíle  emparelhadas  as  duas  radicaes  expurgações.  Man- 
teve a  inquifição,  porque  ainda  poderia  fervir  de  auxiliar  ao 
poder  régio  contra  as  infidias  e  tramas  jefuiticas.  Confervou 
o  leão,  cortou-lhe  porém  as  garras  e  as  prefas,  e  encerrou-o 
como  fe  fora  na  eftreita  claulura  de  uma  jaula.  O  cardeal  ar- 
cebifpo  de  Évora,  D.  João  da  Cunha,  era  então  inquifidor 
geral.  Defde  a  laíf imola  condemnação  do  Malagrida  os  ver- 
dugos reaes  em  vão  eífavam  aguardando  alguma  vidima. 
A  inquifição,  já  açaimada  pelo  eminente  didador,  tinha  de- 
generado do  feu  cruento  zelo  pela  fé.  No  auto  de  17Õ7  ti- 
nham laido  a  publico  onze  homens  e  treze  mulheres,  fem 
que  o  braço  fecular  fe  maculaffe  com.  o  fangue  de  ninguém. 
Eram  já  mais  Ienes  do  que  d'antes  os  proceflfos  inquifitorios. 
Cumpria  então  reduzir  a  lei  o  que  era  apenas  coftume  de 
prudência  e  humanidade.  A  el1:e  fim  faiu  o  legiflador  com 
o  regimento  do  Santo  Ofiício  de  14  de  agoflo  de  1774.  Fir- 
mava-o  o  cardeal  inquifidor.  Confirmava-o  o  foberano".  E 
muito  para  notar,  que  onde  Sebaflião  de  Carvalho,  na  fua 
larga  e  providente  legiflação,  confervou  por  mera  conve- 
niência ou  fujeição  ás  circumftancias,  alguma  viciofa,  repre- 
henfivel,  ou  abfurda  inftituição,  aífignalou-a  defde  logo  nos 
preâmbulos  ou  nas  razões  das  luas  leis  com  o  íinete  impere- 
cível da  mais  Iblemne  reprovação.  O  theorico  publicifta  con- 
demnava  defde  logo  o  que  era  repugnante  ao  direito,  á  razão, 
á  humanidade,  mas  o  eftadifta  pradico  vinha  corrigir  a  pri- 
meira infpiração,  confervando  como  excepção  temporária  e 
mal  fegura  o  cjue  os  princípios  claramente  anathematizavam. 
Era  como  fe  contemplando  a  arvore  dellinada  a  futuro  cór- 


■  Alvará  de  i  de  Itptcmbro  de  1774- 


eis 


49^ 

te  lhe  deixaíTe  no  tronco  delineada  a  marca,  por  onde  mão 
robufta  de  mais  revolucionário  demolidor  em  tempos  mais 
propicios,  havia  de  afundar  os  golpes  de  machado  para  que 
vieíTe  a  baquear  o  annofo  roble.  AíTmi  aos  morgados,  reftrin- 
gindo-os,  marcara  com  o  cítygma  de  anti-íòciaes  e  damno- 
fiífimos  ao  progreíTo  económico  da  fociedade.  AíTim  agora 
também  procedia  o  legiflador  com  o  Santo  Officio.  Levanta- 
va-fe  Carvalho  contra  o  que  chamava  cruel  e  enganofo  meio 
do  tormento.  Declarava  bem  alto  que  «a  egreja,  como  mãe 
piiíTima  e  mãe  de  mifericordia,  não  tem  o  direito  de  matar, 
de  ferir,  de  atormentar».  Efpraiava-fe  o  eftadifta  nos  termos 
da  mais  fentida  execração  contra  a  prova  judiciaria,  abfurda, 
irracional,  inhumaniffima  no  potro,  no  equuleo,  em  tratos 
crueliíTimos.  Mas  era  neceíTario  juftiíicar  as  paíTadas  feveri- 
dades  contra  o  pobre  Malagrida.  Limitava-fe  a  applicação 
do  tormento  aos  novadores,  aos  herefiarchas,  e  aos  ejpiritos 
fortes,  e  ainda  n'efte  cafo  fe  remittia  de  lua  antiga  atrocidade 
cite  proceíTo  infame  de  inquirir  os  fuppoftos  delidos  das 
confciencias.  Inílituia-fe  nova  forma  de  proceíTo.  Concedia- 
fe  aos  réus  a  máxima  amplitude  na  defeza.  Condemnava-fe 
o  dar  fé  a  teftemunhas  llngulares,  excepto  unicamente  os 
crimes  de  foUicitação,  de  figillilmo,  e  algum  outro  nefandiíTi- 
mo.  Reprovava  o  legiflador  em  termos  de  merecida  afperi- 
dade  os  autos  da  fé,  c]ue  appellidava  «publicas  oítentações 
de  horrores  e  de  miferias»;  efpedaculos  degradantes,  oppro- 
briofos  e  felvaticos,  para  os  quaes,  efcrevia  o  eftadifta,  «fe 
convidavam  os  embaixadores  e  miniftros  extrangeiros  para 
teftemunharem  de  vifta  e  di\aftgaram  nos  feus  efcriptos  por 
toda  a  Europa  culta  o  deplorável  eftado  d'eftes  reinos».  Ex- 
ceptuava, apenas,  por  coherencia  com  os  feus  ados  anterio- 
res, os  autos  da  fé  celebrados  para  trazer  á  publica  vergonha 
os  herefiarchas,  como  fora,  dizia  o  legiflador,  «o  monftro 
Malagrida».  Prohibia  como  regra  a  celebração  d'eftc  picdo- 


I 


I 


eis 


fo  cannihalifmo,  em  que  o  humilde,  o  manlb,  o  incruento,  o 
amoravel  chrirtianifmo,  defhonrado  pelos  feus  fanáticos  ze- 
ladores, fazia  da  fé  uma  cruenta  religião  e  da  egreja  um  cir- 
co pagão  e  fanguinario,  onde  as  vidimas  humanas  caiam 
aos  applaufos  da  multidão  feroz  e  envilecida. 

Eftava  completa  a  obra,  em  que  Sebaftião  de  Carvalho 
fe  empenhara  de  firmar  Iblidamente  a  independência  e  Ib- 
berania  temporal,  recatando-a  ciofamente  das  incurfões  ec- 
clefiaíficas.  Eftava  então  na  culminação  da  fua  gloria.  Podia 
defvanecer-fe  fem  jaófancia  de  que  o  feu  longo  minifterio  tinha 
fido,  depois  do  defaftre  de  Alcacer-Kibir,  a  epocha  mais  bri- 
lhante de  Portugal,  a  viçofa  rejuvenefcencia  de  um  paiz,  que 
elle  encontrara  quafi  exânime,  pobriíluno  no  meio  da  rique- 
za efteril  das  luas  minas  americanas,  inerte  no  meio  do  feu 
clima  feraz  e  ameniífimo,  ignorante  e  embrutecido  no  meio 
da  radiofa  illuftração  da  Europa  contemporânea,  eíquecido  e 
obfcuro  apefar  das  fuás  pretéritas  grandezas,  fanático,  fu- 
perfticiofo,  quafi  idolatra  no  meio  das  mais  taifas  apparen- 
cias  de  piedofa  compuncção. 

Quiz  Sebaftião  de  Carvalho  efculpir  em  bronze  e  em 
mármore  o  epilogo  da  fua  obra  grandiofa.  Na  praça  maior 
da  capital,  confagrada  como  em  honra  fingular  ao  commer- 
cio,  que  era  a  força  da  nação,  ordenou  que  fe  erigiíTe  um 
majeftofo  monumento,  que  aos  evos  perpetuaíTe  a  memoria 
gloriofa  de  fua  longa  e  vigorofa  adminiftração.  A  6  de  junho 
de  1775,  em  meio  de  eftrondofas  acclamações  e  das  feftas  mais 
efplendidas  de  pompofa  folemnidade,  inaugurava-fe  a  efta- 
tua  equeftre  do  rei.  Na  aufencia  de  outra  gloria  peíToal,  ti- 
vera D.  Jofé  por  única  benemerência  a  pertinácia,  com  que 
foubera  confervar  e  defender  o  feu  grande  confelheiro  con- 
tra as  machinações  de  poderofos  e  terríveis  adverfarios,  e  a 
dócil  complacência  de  firmar  as  leis  e  os  decretos  do  minis- 
tro. No  pedeftal  da  regia  effigie  oftentava-fe  n'um  medalhão 


e|9 


de  bronze,  por  graciola  benevolência  do  Ibberano,  o  bufto 
do  immortal  legiflador.  Era  o  debuxo,  o  lavor,  a  fundição 
do  monumento,  tudo  obra  nacional  erigida  a  glorias  pura- 
mente portuguezas  fem  melcla  de  forafteira  ajuda  e  lublldio. 
Aquella  figura,  que  lilbnjeira  eftá  mentindo,  a  reprefentar 
o  foberano  epicureifta  e  indolente  na  auftera  compoftura  e 
grave  continente  de  um  grande  batalhador,  é  apenas  um 
pretexto.  O  monumento  apparece  como  invertido  á  poíterida- 
de  imparcial.  O  vulto  principal  é  Sebaftião  de  Carvalho.  A 
eftatua  do  rei  é  um  acceíTorio  decorativo,  como  o  elephante 
e  o  cavallo  de  mármore,  que  ornamentam  o  pedeftal. 

Laftima  foi,  porém,  que  ás  folemnidades,  que  por  três 
dias  exalçaram  em  públicos  e  memoráveis  regofijos,  em 
banquetes,  em  bailes,  em  apparatofas  illuminações,  o  trium- 
pho  brilhante  do  eítadifta,  lliccedefle  a  derradeira  tragedia 
judiciaria,  de  todas  as  que  enludaram  o  efplendor  do  leu 
próvido  e  fecundo  minifterio.  Sebaftião  de  Carvalho,  como 
todos  os  grandes  reformadores,  concitava  ódios  proporcio- 
naes  á  audácia  das  luas  providencias,  e  ao  egoilmo  dos  inte- 
reíTes  que  oífendia.  Já  de  uma  vez,  em  1771,  á  porta  do 
paço,  um  furiolb  aggreffor  bufcára  oftendel-o  atirando-lhe 
pedradas,  a  que  pôde  efcapar  illefo  e  imperturbável  na  lua 
eftoica  ferenidade.  Por  occafião  de  fe  inaugurar  a  eftatua 
equeftre  defcobriu-le  que  um  italiano,  de  nome  João  Baptifta 
Pelle,  difpozera  uma  machina  infernal,  com  que  intentava 
efpedaçar  o  coche  do  eftadifta,  c[uando  n'elle  foíTe  para  as- 
fiftir  á  Iblemne  inauguração.  Prelb  c  julgado  pelo  tribunal 
da  fupplicação,  foi  o  delinquente  a  9  de  outubro  de  lyyS 
punido  ainda  com  mais  cruel  rigor  do  que  o  tinham  fido  os 
réus  da  conjuração  contra  D.  Jofé.  Encerrava  affim  o  rigido 
miniftro  a  lua  carreira  com  a  melma  terrível  feveridade,  com 
que  defde  os  primeiros  annos  de  governo  aflbmbrára,  fem 
comtudo  os  defalentar,  os  léus  implacáveis  inimigos.  Não 


6M 


decorreram  longos  tempos  cintes  que  a  vida  do  monarcha  e 
o  miniíterio  de  Carvalho  chegaffem  ao  leu  termo.  Em  fins  de 
1776,  a  faude  do  rei  dava  poucas  efperanças  de  que  vieíTe 
a  recobrar-fe.  Um  decreto  de  29  de  dezembro  d'aquelle  anno 
commetteu  á  rainha  D.  Marianna  Victoria  a  regência  do  rei- 
no. Pouco  tempo  depois  o  throno  dos  Braganças  era  va- 
cante,  e  a  princeza  do  Brazil,  com  o  nome  de  Maria  I, 
empunhava  o  fceptro  portuguez  íbb  os  aufpicios  de  uma  vi- 
fivel  e  impaciente  reacção. 


CAPITULO  XVII 

MARTYRIO  E  CONCLUSÃO 

A  filha  primogénita  de  D.  Jole  herdava  o  throno  de  feu 
pae  a  23  de  fevereiro  de  1777.  Realifavam-fe  finalmente  as 
efperanças  tantas  vezes  mallogradas  dos  inimigos  de  Carva- 
lho, e  podiam  expandir-fe  livremente  os  ódios  por  largo  tem- 
po concentrados  e  recrefcentes  com  intenfidade  correfpon- 
dente  á  tenacidade  e  ao  vigor  do  leu  poderofo  antagonifta. 
Todo  o  poder  do  grande  legillador,  como  é  forçofo  nos  des- 
poficos  eftados,  eftivera  pendente  do  favor  e  da  exiftencia  do 
monarcha.  Os  alentos  derradeiros  do  Ibberano  intimavam 
fatalmente  o  feu  occafo  ao  longo  minifterio.  A  dilatada  e 
torva  didadura,  por  mais  fecunda  e  encaminhada  que  foífe 
á  refurreição  e  gloria  pátria,  não  fora  na  lua  eífencia  mais 
do  que  um  largo  e  vigorofo  vizirato,  mais  do  que  a  rara  for- 
tuna de  um  valido  aproveitada  pelo  talento  de  um  audaz 
reformador.  A  única  exterior  influencia,  que  o  mantivera 
firme  e  inabalável  no  leu  pofto,  havia  fido  a  vontade  e  a 
confiança  do  moderno  fultão  do  Occidcnte,  cuja  defidia  e 
frouxidão  intelledual  o  miniftro  fagaz  e  cortezão  foubera  con- 


eii 


496 

verter  em  força  própria.  Não  o  favoneava  certamente  a  aura 
popular  tão  volúvel  e  caprichola  ainda  mefmo  nas  focie- 
dades  democráticas,  nulla  quafi  inteiramente  nos  povos 
dominados  pelo  arbítrio  de  um  fenhor.  As  mais  úteis  e  ge- 
nerofas  entre  as  fuás  reformações,  fe  haviam  difpertado  fym- 
pathicos  accordes  nos  efpiritos  mais  illuminados,  ainda  então 
em  efcaffa  minoria,  não  podiam  ler  comprehendidas  pelas 
turbas  ainda  mal  avindas  a  affrontar  a  nova  luz.  Portugal, 
fe  bem  menos  que  a  Hefpanha,  era  uma  nação  fanática,  in- 
culta, inquiíitorial.  O  povo,  como  fiibjlratimi  e  fundamento 
da  opinião,  era  apenas  ainda  em  gérmen.  As  antigas  ariíto- 
cracias,  feculares  e  ecclefiaíticas,  fe  não  ^•aIiam  pela  força, 
exerciam  a  influencia  da  tradição,  que  fempre  fubfifte  em 
largos  traços,  ainda  mefmo  após  as  mais  radicaes  e  cruentas 
revoluções.  Carvalho  não  fora  o  enérgico  executor  de  idéas 
reformadoras,  engendradas  e  nutridas  no  confenfo  da  nação. 
As  fuás  infpirações  eram  todas  exteriores  e  dimanadas  d'efte 
efpirito  do  feculo,  d'efta  luz  intelleíftual  que  tinha  principal- 
mente em  França  o  feu  foco  mais  intenfo,  e  cujas  ondula- 
ções irradiadas  a  toda  a  Europa  culta  parece  que  encontra- 
vam nos  Pyreneus  uma  antepara,  que  as  não  deixava  áquem 
d'elles  progredir.  Se  contámos  uma  hofte  pouco  numerofa, 
mas  preíladia  de  homens  mais  lettrados  do  que  o  ^'ulgo,  os 
Cenáculos,  os  Ricaldes,  os  Pereiras  Ramos,  os  Seabras,  e 
os  mais  eminentes  magiítrados  da  ordem  judiciaria, — togada 
ariítocracia  em  toda  a  parte  e  fempre  emula  e  ciofa  da  no- 
breza hereditária,  e  fervorofa  aduladora  da  regia  poteífade, 
—  fe  ainda  fazemos  o  conto  da  claffe  media,  e  mercantil, 
que  faia,  nova  e  predileiffa  creação,  como  a  Galathea  renas- 
cendo na  officina  do  mythico  eítatuario,  ahi  teremos  quafi 
encerrada  a  lifta  dos  amigos  e  fautores  do  grande  legiflador. 
E  d'eíres  parciaes  uns  eram  os  cortezãos  ordinários  da  for- 
tuna, outros  os  que  eífão  fempre  enfileirados  ao  lado  do  po- 


6M 


497_ 

der.  Amigos  finccros,  devotados  na  grandeza  e  na  ad^■erll- 
dade,  amigos  do  eftadirta  e  da  idéa,  eíles  poucos,  raros, 
iildecifos,  affrouxando  no  afFedo  e  na  gratidão,  quando  o 
foi,  que  fe  efcondia  entre  brumas  precurforas  de  tormentofo 
vendaval,  os  não  podia  aquecer,  nem  confortar. 

O  bem  que  o  legiílador  tinha  feito  á  fua  pátria,  fora  quafi 
fendo  ella  incita,  ingrata  e  adverfa  ao  próprio  beneficio,  que 
recebera.  Accrefcia  ainda  contra  o  grande  eftadiíta  portuguez 
a  desfavorável  circumítancia  de  que  as  fuás  reformas  tinham 
íido  pela  trifte  neceffidade  aíTignaladas  com  um  rafto  de  fan- 
gue  defde  a  trágica  fcena  de  Belém  e  os  judiciários  morti- 
cínios da  porta  do  Olival  até  á  execução  do  Malagrida  e 
ao  cruel  fupplicio  de  João  Baptifta  Pelle.  A  mão,  com  que 
o  reformador  diffipiára  os  nevoeiros  da  intelligencia  nacio- 
nal, quebrara  os  grilhões  ignominiofos  aos  fer^■os  e  aos  des- 
cendentes dos  judeus,  e  repulfára  com  vigor  as  invafões  do 
poder  eccleíiaítico,  apparecia  envolta  e  mal  vifn^el  na  torva 
atmofphera  focial,  cmquanto  o  punho  que  firmara  as  fenten- 
ças  capitães,  c  as  ordens  de  defterro  e  captiveiro,  refulgia 
com  o  vivaz  e  fmiftro  efplendor  do  langue  ainda  recente. 
Na  phantafia  popular  a  imagem  de  Carvalho  reprefentava-fe 
eclipfando  mal  na  lua  aureola  o  vulto  do  algoz.  Trifte  con- 
dão dos  homens  que  fó  poderam,  pelo  influxo  imperativo 
dos  tempos  em  que  A-ÍA'eram,  fervir  pela  força  as  grandes 
idéas,  fazer  jorrar  a  luz  faifcando  nos  campos  de  batalha 
e  nos  patíbulos,  circurndar  a  civilifação  com  um  envoltório 
de  miferias  individuaes,  e,  por  um  extranho  paradoxo,  vin- 
cular ao  terror  e  á  crueza  o  fanático  amor  da  humanidade. 
Taes  foram  os  Cromwells,  os  Robefpierres,  os  Pombaes. 

A  queda  do  miniílro  devia  fer  pois  tão  eftrepitofa,  como 
fora  alevantado  o  leu  poder  e  brilhante  a  fua  gloria.  Não 
podia  Sebaílião  de  Carvalho  illudir-fe  com  a  efperança  de 
que  os  feus  inimigos  lhe  perdoaífem.  nem  a  rainha,  devota 


th 


498 

e  avaíTallada  á  vontade  de  um  marido,  de  curtiíTimo  intelle- 
dto  e  declarado  parcial  da  reacção  politica  e  religiofa,  o  con- 
fervaíTe  dominante  no  governo.  Ainda  o  rei  não  exhalára  os 
últimos  alentos,  e  já  o  eítadifta  aprefentava  uma  lupplica 
á  rainha  regente  para  que  o  exoneraíTe  de  um  encargo,  para 
que  o  eftavam  já  inhabilitando  os  achaques,  os  annos,  as 
fadigas  de  íeu  longo  e  tormentofo  minifterio. 

Apenas  poucos  dias  decorreram  depois  que  fubira  ao 
throno  a  filha  de  D.  Joíe,  quando  Sebaftião  de  Carvalho 
pede  á  Ibberana  que  longe  dos  negócios  o  deixe  repoufar 
nos  annos  derradeiros.  Já  então  era  apenas  miniftro  nomi- 
nal. Já  no  paço  o  coníideravam  como  extranho  e  importuno. 
Já  os  próprios  que  lhe  haviam  lido  liíonjeiros  cortezãos  nos 
tempos  da  maior  profperidade,  como  o  cardeal  da  Cunha, 
lhe  voltavam  as  coitas  com  arrogância  e  com  defdem.  Na 
íupplica  dirigida  a  D.  Maria  I,  compendiava  o  canfado  minis- 
tro de  D.  Joíe  os  ferviços  que  fizera  á  coroa  e  á  nação.  Inflava 
por  que  lhe  foíTe  concedida  a  permiífão  de  retirar-fe  ao  quieto 
e  obícuro  remanfo  do  Pombal,  onde  lhe  parecia  não  have- 
riam de  chegar  tão  vivos  e  cruéis  os  ódios  e  as  vinganças 
dos  feus  adverfarios.  Comparava-fe  na  tribulação,  em  que  fe 
via,  ao  grande  Sully,  em  quem  a  ingratidão  defconhecêra  e 
oíTufcára  as  glorias  da  lua  adminiftração. 

A  5  de  março  de  i  777  a  rainha,  deferindo  na  apparencia 
ás  inftancias  de  Carvalho,  mas  na  realidade  obedecendo  á 
terrível  conjuração,  que  no  paço  eftava  urdindo  a  famélica 
turba  dos  novos  cortezãos,  demittia  do  cargo  o  valido  e  con- 
felheiro  de  feu  pae,  e  permittia-lhe  o  ir  viver  na  villa  de  Pom- 
bal. Ainda  a  eíla  lazão  alguns  raros  amigos  alcançavam  c^ue 
não  fe  defencadeaíTe  contra  o  velho  a  impaciente  e  feroz 
perfeguição.  A  rainha  ao  defpedil-o  do  alto  oflicio  fazia-lhe 
a  mercê  de  uma  commenda,  a  de  Santiago  de  Lanhofo,  na 
ordem  militar  de  Chrifto. 


499 

Ncío  era  porém  plaulivel  confiar  que  os  rancores  de  tan- 
tos annos  fe  deíTem  por  fatisfeitos  com  o  retiro  de  Carva- 
lho á  vida  particular.  Começavam  a  exercer-fe  manifeftas 
perfeguições  contra  alguns  dos  que  foram  mais  conjundos 
e  confidentes  ao  eftadifta.  N'efte  numero  fe  contavam  princi- 
palmente uma  irman  de  Sebaftião  de  Carvalho,  D.  Maria 
Magdalena,  prioreza  do  mofteiro  de  Santa  Joanna,  Fr.  Ma- 
nuel de  Mendoça,  dom  abbade  de  Alcobaça  e  efmoler-mór, 
primo  e  amigo  particular  do  eitadifta,  Fr.  João  de  Manlllha, 
da  ordem  dominicana,  o  qual  tivera  a  parte  principal  na 
fundação  da  companhia  do  Alto  Douro,  e  um  irmão  do 
bifpo  Cenáculo,  que  era  frade  da  ordem  terceira  da  peniten- 
cia no  convento  de  Jeius. 

Bem  defejariam  os  ferozes  inimigos  de  Carvalho,  valen- 
do-íe  da  plebe  efcandecida,  afFrontar  com  violências  a  pes- 
foa  do  illuftre  reformador.  Eftava  porém  aufente  e  longe  de 
Lifboa.  Refolveram  laciar  as  luas  iras,  oífendendo-o  em  ef- 
figie.  Contra  o  medalhão  de  bronze,  encravado  no  pedeftal 
da  eftatua  equeífre,  choviam  diariamente  nuvens  de  pedra- 
das. Era  um  opprobrio  para  a  triumphante  reacção,  que  o 
bufto  de  quem  reiíaurára  a  capital  depois  da  lua  quaíl  total 
aíTolação,  ainda  perpetuaíle  a  honrada  memoria  de  tal  feito. 
Uma  noite,  a  defhoras,  o  medalhão  é  apeado  e  poftas  no  leu 
logar  as  infignias  da  cidade.  Refere-fe  que  ao  faber  no  Pom- 
bal a  nova  injuria,  Sebafíião  de  Carvalho,  com  a  ferena  for- 
taleza de  feu  animo,  diíTera,  zombeteando :  « Não  me  faz 
pena  que  tiraffem  a  efiigie,  porque  em  nada  me  era  feme- 
Ihante » .  Se  das  affrontas  diredas  e  peíToaes,  que  mais  podiam 
vellicar  e  ferir  a  fenfibilidade  e  os  brios  de  Carvalho,  nenhu- 
ma efquecia  aos  feus  vingativos  adverfarios,  não  eram  me- 
nos hoflis  as  providencias,  com  que  bulcavam  abrogar  a  fua 
legiílação.  A  companhia  do  Grão-Pará  e  Maranhão,  a  infti- 
tuição  mimofa  do  eftadifta,  era  abolida  como  contraria  aos 


eis 


5oo 

intereíTes  públicos'.  Os  negociantes  de  Liftoa,  —  para  que 
nem  efta  claíTe  predileda  do  legiílador  faltaíTe  no  cortejo  da 
reacção,  —  feftejaram  com  um  folemniffimo  Tc  Dciim  a  dis- 
folução  da  poderofa  fociedade  mercantil. 

No  paço  dominavam  já  fem  emulo  os  mais  altos  repre- 
fentantes  da  nobreza,  jurados  inimigos  de  Car\'alho.  Do  an- 
tigo minifterio  fubfiftiam  apenas  no  confelho  da  rainha  o 
aftuto  Martinho  de  Mello,  como  fecretario  de  eftado  da  ma- 
rinha, e  o  devoto  Ayres  de  Sá  e  Mello,  na  lecretaria  dos 
negócios  extrangeiros  e  da  guerra.  O  vifconde  de  Villa  Nova 
da  Cerveira  occupava  agora  o  logar  preeminente  de  miniftro 
principal. 

O  Marquez  de  Angeja  recebia  o  encargo  de  infpector  do 
real  erário,  quafi  miniftro  da  fazenda  em  o  no\'o  e  obfcuro 
minifterio. 

Por  teftemunhos  inequívocos  fe  eftava  defde  então  an- 
nunciando  que  o  governo  da  rainha,  inípirado  pelos  feus  in- 
vejofos  e  mefquinhos  confelheiros,  fe  empenhava  por  ler  de 
todo  o  ponto  o  reverfo  da  anterior  adminiftração.  A  nobre- 
za arrogante  e  ambiciofa  já  fonhava  a  refurreição  da  fua 
antiga  influencia  e  poderio.  Já  as  graças  honorificas  e  rendo- 
fas  ertavam  jorrando  a  flux  fobre  as  famílias  mais  illuftres 
pelo  berço  e  mais  jubiladas  no  ódio  contra  Carvalho.  O  cle- 
ro e  feus  parciaes  já  fuppunham  a  Ibberana  deftinada  a  re- 
prefentar  em  Portugal  o  mefmo  officio,  que  cm  rafgos  de 
cruento  fanatifmo  exercera  em  Inglaterra  a  lua  homonyma, 
depois  da  herética  dominação  de  Eduardo  VI.  Os  jefuitas 
já  oufavam  fupplicar  a  revogação  do  leu  exilio,  emquanto 
não  alcançavam  refurgir  no  corpo  m)'ftico  e  triumphal  da 
Companhia.  Os  parentes  mais  chegados  dos  nobres  jufti- 
çados  em  Belém  pediam  com  arrogância,  em  nome  da  in- 


'  Decreto  de  5  de  janeiro  de  1778. 


5oi 

nocencia  e  da  juftiça,  que  fe  rcviíTe  o  famofiíllmo  proceíTo 
e  fe  declaraíle  pura  e  immaculada  a  memoria  das  victimas 
illuftres.  Os  fidalgos,  que  haviam  longos  annos  vivido  encer- 
rados nas  prifões,  o  marquez  de  Alorna,  e  os  irmãos  do 
marquez  de  Távora,  requeriam  com  imperiofas  intimações 
que  a  rainha  os  declaraíTe  por  innocentes,  porque  de  outro 
modo  não  agradeceriam  a  Uberdade,  nem  queriam  tomar  na 
corte  o  feu  logar. 

Decretavam-fe  as  honras  de  benemérito  ao  conde  de  S. 
Lourenço,  que  jazera  nos  ergaftulos  da  Junqueira.  Honra- 
va-fe  egualmente  com  palavras  de  encarecida  fatisfação  a 
memoria  do  vifconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira,  que  havia 
fido  embaixador  em  Hefpanha,  e  terminara  os  feus  dias  na 
prifão. 

Os  homens,  que  mais  haviam  concitado  lobre  fi  as  du- 
ras reprefalias  de  Carvalho,  eram  agora  recebidos  e  fefteja- 
dos  como  viclimas  de  um  cruel  perleguidor  e  exalçados  á 
eminência  dos  martyres  ou  dos  heroes.  O  bifpo  de  Coimbra, 
D.  Miguel  da  Annunciação,  a  mais  completa  perfonificação 
do  fanatifino,  depois  de  fer  recebido  com  as  moftras  de  en- 
tranhavel  amor  nos  paços  régios,  fazia  triumphalmente  a  fiia 
entrada  na  velha  cidade  univerfitaria.  Os  bafl:ardos  de  D. 
João  V,  os  meninos  de  Palhavã,  D.  António  e  D.  Jofé  de  Bra- 
gança, voltavam  do  feu  defierro  do  BulTaco,  faudando-os  na 
capital  as  clamorofas  acclamações  da  plebe  defadnada.  Jofé 
de  Seabra,  que  fora  o  flagello  vibrado  pelo  grande  legifla- 
dor  contra  a  reacção  religiofa,  regreíTava  de  feu  degredo, 
recebendo  agora  os  parabéns  e  os  prolfaças  dos  próprios, 
que  poucos  annos  antes  o  haviam  aíTociado  na  fua  cólera  ás 
que  tinham  por  nefandas  malfeitorias  do  feu  patrono  e  ins- 
pirador. 

A  plebe  d'aquelle  tempo,  incuUa  c  fempre  attreita,  na 
fua  infantil  volubilidade,  a  aíTociar-fe  ás  tremendas  reprefa- 


5o2 

lias  das  facções,  defentranhava-fe  cm  motejos  e  doeftos  con- 
tra o  homem  que  via  agora  proftrado  e  abatido.  Succediam- 
fe  as  fatyras  e  os  pafquins  injuriofos,  condenfando  ora  em 
gracejos  efcurris,  ora  em  ferozes  ameaças  o  furor  e  a  vingan- 
ça do  partido  clerical. 

A  eftrondoía  e  publica  reprovação,  que  n'eftes  aítos, 
com  o  favor  e  confenfo  da  rainha,  fe  revelava  odienta  e  in- 
exorável contra  a  politica  de  Carvalho,  era  a  neceíTaria  e  ló- 
gica preparação  do  que  fe  eftava  já  traçando  nos  corrilhos 
e  facções  do  clero  e  da  nobreza.  Não  bailava  que  os  fober- 
bos  ariítocratas  fe  viífem  guindados  improvifamente  ás  hon- 
ras e  á  privança  e  faciaífem  a  ambição,  a  que  lhe  cortara 
os  voos  impudentes  o  fevero  miniflro  de  D.  Jole.  Não  bas- 
tava que  fe  viífem  manifeftos  os  fymptomas  da  fujeição  e  vas- 
fallagem  do  império  ao  facerdocio,  e  que  o  fanatifmo,  como 
fupremo  legiflador,  fe  aífentaífe  no  folio  de  Portugal  á  mão 
direita  da  rainha.  Não  afpiravam  unicamente  os  inimigos  de 
Carvalho  á  emenda  e  correcção  do  que  em  feus  feitos  haviam 
condemnado.  Não  os  contentava  a  rápida  metamorphofe,  que 
já  fe  ia  operando  no  governo  e  na  politica  de  Portugal.  Bra- 
miam por  vingança  eftrepitofa.  Pretendiam  propiciar  com  a 
cabeça  de  um  velho  de  oitenta  annos  as  cinzas  difperfas 
dos  Tavoras,  do  Aveiro  e  Malagrida.  Os  que  taxavam  des- 
abridos em  Carvalho  as  cruezas,  que  exercera,  defejavam 
apenas  imitar  do  feu  emulo  proftrado  a  dureza  fatal  do  co- 
ração, já  que  não  podiam  copiar-lhe  as  magnânimas  acções 
em  prol  da  pátria,  e  ainda  mefmo,  depois  de  caído  e  humi- 
lhado, por  mais  que  fe  alteaífem  não  fabiam  raftrear-lhe  a 
hiftorica  eftatura.  Vivia  Sebaítião  de  Carvalho  nas  fuás  pro- 
priedades de  Pombal,  emquanto  fe  acaftellavam  já  vifiveis 
no  horizonte  as  nuvens  precurforas  da  borrafca.  Ali  quieta- 
mente dava  ordem  aos  domefticos  negócios,  revia  e  completa- 
va os  feus  papeis  polhicos  fobre  o  curfo  da  longa  adminiftra- 


ti» 


5o3 

ção.  Ali  efcrevia  as  luas  reflexões  ás  dezefete  cartas  publi- 
cadas em  Londres  acerca  da  fituação  de  Portugal  durante  o 
feu  fecundo  minifterio.  Ali  traçava  algumas  das  luas  obras 
apologéticas  em  contra  das  calumnias  e  doeftos  divulgados 
com  fanha  recrefcente,  e  recebidos  como  dogmas  entre  o 
vulgacho.  O  que  entre  os  íeus  elcriptos  d'eíta  epocha  l'e  tornou 
mais  memorável,  foi  a  Contrariedade  ao  libello,  que  contra 
elle  fizera  articular  um  certo  Mendanha,  homem  abalfado, 
mas  ao  que  parece  turbulento  e  de  vida  mui  pouco  exem- 
plar. Celebrára-fe  um  contrado  entre  Carvalho  e  o  feu  aflual 
e  terrivel  accufador.  Cedêra-lhc  o  miniílro  umas  proprieda- 
des que  poíTuia  em  Villa  Velha,  e  eftipulára  o  preço  da  alhea- 
ção,  não  oufàmos  aííirmar  que  com  total  efquecimento  de 
que  um  dos  outorgantes  n'eft:e  pado  era  o  fupremo  dicfador 
de  Portugal,  o  outro  um  homem  opulento,  mas  defegual  na 
valia  e  no  poder.  Por  motivos  occorrentes  e  extranhos  ao 
contracto,  fora  o  Mendanha  camarariamente  deíterrado  para 
a  ilha  Terceira,  fem  forma  de  proceíTo,  como  era  ufo  habitual 
na  delpotica  monarchia.  De  volta  de  leu  defterro,  o  inimigo 
mais  fedento  de  vingança,  c|ue  de  juítiça  direita  em  pleito 
eivei,  tornou-fe  por  aíTuTi  dizer  o  órgão  e  reprefentante  dos 
que  eftavam  accufando  o  eftadifta  pelas  que  diziam  violên- 
cias, malverfações,  atrocidades.  Fez  redigir  por  um  dicaz  e 
fogofo  advogado  o  feu  libello,  no  qual  em  vez  de  limitar- 
fe  a  pedir  a  annullação  do  antigo  pado,  por  enormiffima  le- 
fão,  deduzia  longamente,  menos  as  luas  particulares  allega- 
ções  do  que  as  tremendas  e  ferozes  invedivas  contra  o  longo 
minifterio  de  Carvalho.  A  aggreffão  defdc  logo  vulgarifa- 
da  e  applaudida,  pedia  naturalmente  uma  digna  contefta- 
ção.  Efcreveu-a  o  eftadifta  na  fua  Contrariedade  ao  libello, 
de  que  fez  extrahir  diverfas  copias.  Era  uma  longa  c  docu- 
mentada apologia,  que  cifrava  como  que  a  hiftoria  politica 
de  Portugal  defde  que  Sebaítião  de  Carvalho  principiara  a 


5  04 

vida  publica,  e  compendiava  os  ferviços  eminentes  do  mi- 
niftro.  Efte  efcripto  paíTava  naturalmente  de  apologia  a  re- 
prefalia.  Os  inimigos  de  Carvalho  não  ficavam  bem  aqui- 
nhoados n'eft:a  luda  empenhada  com  o  feu  velho  contendor. 
A  Contrariedade  fez  efcandalo.  Um  decreto  da  rainha,  exa- 
rado em  afperrimas  palavras',  ordenou  que  foíTem  fuppri- 
midos  os  originaes  e  as  copias  da  conteftação  e  do  libello, 
confervando-fe  apenas  os  documentos  neceíTarios  para  aqui- 
latar juridicamente  a  jufliça  dos  litigantes.  A  rainha  firmava 
com  o  feu  nome  um  papel  official,  em  que  o  ancião,  verga- 
do aos  annos  e  aos  trabalhos,  era  feveramente  reprehendi- 
do,  porque  tivera  a  oufadia  de  efcrever,  dizia  o  decreto,  fob 
a  infpiração  do  ódio,  uma  tal  apologia,  revelando  fem  re- 
cato as  íntimas  negociações  do  gabinete,  oífendendo  a  me- 
moria de  D.  Jofé,  e  perfiftindo  em  denegrir  reputações,  que 
a  foberana  fizera  publicar  intemeratas. 

Eftava  aberta  e  declarada  a  perleguição  contra  o  grande 
legiflador.  Infamava-o  a  rainha,  que  a  adulação  chamou 
piedofa,  e  fanática  appellida  hoje  a  verdade.  Não  ceíTavam 
em  torno  d'ella  as  obfeííões  para  que  decretaffe  o  julgamen- 
to do  miniftro,  e  completaíTe  as  oífenfas  contra  a  honra  com 
os  tentames  contra  a  vida  de  Carvalho. 

No  mez  de  outubro  ordenou  a  rainha,  inítigada  na  fiaa 
fraqueza  pelas  mefquinhas  fi.ipplicações  dos  feus  fátuos  e 
vingativos  confelheiros,  que  dois  magiftrados  foffem  ao  Pom- 
bal a  começar  os  interrogatórios  ao  exilado  reformador.  Sof- 
freu  Carvalho  com  eftoica  firmeza  e  conformidade  o  novo  ul- 
trage,  e  moftrou-fe  nas  palavras  cortefão  e  obfequente  á  fobe- 
rana dementada  que  a  um  velho  de  oitenta  annos,  caído  havia 
pouco  do  máximo  faftigio,  ia  atormentar-lhe  os  derradeiros 
dias  da  exiftencia  com  uma  longa  e  penofa  inquirição.  As 


eis 


■  Decreto  de  3  de  feptembro  de  1779. 


(Is 


5o5 

enfermidades,  que  delde  longos  annos  aftligiam  o  eftadirta, 
eítavam  engravecidas  pela  velhice  já  proveda  e  pelos  tranfes 
anguftiofos  de  tantas  humilhações.  Que  ainda  os  ânimos  mais 
de  bronze  c  mais  Ibbranceiros  ás  miferias  d'efte  mundo  e  ás 
torpezas  de  uma  corte,  não  fabem  tão  rijamente  defabraçar- 
fe  da  condição  de  homem  e  de  politico,  que  lhes  não  doam 
fundamente  os  efpinhos  da  ingratidão.  Eram  já  de  fi  os  in- 
terrogatórios uma  grave  penalidade,  punição  moral,  phyfico 
tormento.  Tormento  para  um  ancião  tão  quebrantado,  a  quem 
forçavam  muitas  vezes  a  levantar-fe  do  feu  leito  para  con- 
teítar  por  largas  horas  ás  perguntas  dos  civis  inquifidores. 
Punição  e  punição  injuriofa,  porque  tal  era  para  quem  tinha 
ainda  tão  frefcas  na  memoria  as  alturas,  de  que  viera  des- 
penhado, o  ver-fe  cavillofa  e  duramente  interrogado  por  um 
obfcuro  e  malevolente  leguleio.  E  tal  era  na  verdade  o  con- 
felheiro  da  fazenda  Jofé  Luiz  de  França,  nomeado  interro- 
gante,  a  quem  fervia  de  efcrivão  o  defembargador  Bruno 
Manuel  Monteiro.  Duraram  íete  mezes  as  humilhações  judi- 
ciarias infligidas  pelos  dois  magiftrados  ao  velho  eftadirta 
portuguez.  A  todas  as  interrogações,  em  que  bufcavam  ad- 
judicar á  fua  exclurtva  refponfabilidade  os  feitos  de  incle- 
mência e  de  rigor  refpondia  Sebaftião  de  Carvalho  fazendo 
tenazmente  relurtir  contra  o  arbítrio  do  foberano  os  tiros, 
com  que  o  frechavam.  Não  eftava  ainda  inventada  e  intro- 
duzida efta  politica  ficção  ou  antes  pueril  hypocrifia,  com 
que  os  modernos  publiciftas,  para  conciliarem  a  poteftade 
fuprema  do  reinante  com  a  máxima  ideal  de  que  não  pôde 
nunca  fazer  mal,  pretenderam  alTentar  fobre  uma  fubtileza 
metaphyfica  ou  um  conceito  puramente  convencional  o  edi- 
fício do  governo,  o  que  ha  de  mais  pratico  e  inconfirtente  com 
as  fobrenaturaes  abífracções.  Não  tinha  vogado  ainda  entre  os 
políticos  o  fuppofto  axioma  conftitucional  de  que  o  rei  apenas 
reina  e  não  governa.  Reinar  c  governar  eram  fynonymos.  O 


4  4» 

5o6 

monarcha  não  era  pois  impeccavel,  nem  podia  furtar  o  corpo 
como  homem  á  moral  refponfabilidade,  efcondendo-fe  como 
rei  por  detraz  do  leu  minirtro.  O  miniftro  era  pois  um  fâmulo, 
um  mero  executor  da  vontade  incontraftavel  do  imperante, 
que  pelo  fado  de  o  manter  jundo  de  li,  podendo-o  expulfar 
dos  feus  conlelhos  e  punil-o  a  leu  talante,  tomava  a  fi  pre- 
cípua a  audoria  nos  ados  do  valido.  O  langue  das  vldlmas 
efpadanava  com  effeito  na  cabeça  do  monarcha.  Seria  abfur- 
do  hiftoricamente  declarar  cândida  e  virtuofa  a  memoria  de 
Nero  ou  de  Tibério  e  concentrar  nos  vultos  de  Tigellino  ou 
de  Sejano  todas  as  exprobrações  da  poíteridade.  Se  as  vio- 
lências de  Carvalho  eram  crimes,  de  que  não  ha\ia  pofllvel 
remiffão,  o  principe  que  as  firmara  com  o  feu  nome  ou  era 
um  idiota,  ou  um  affaíTmo,  ou  indigno  de  reinar  pela  lua  fra- 
queza, ou  digno  de  execração  pela  lua  crueldade. 

A  condemnação  de  Sebaftião  de  Carvalho  não  deixaria 
pois  immune  a  memoria  de  D.  Jole.  Não  efcapou  certamente 
eíla  difficuldade  aos  que  incitavam  a  rainha  ás  ferozes  vin- 
ganças contra  o  velho.  É  de  crer  que  ao  ordenar  contra  o 
miniftro  um  procedimento  judicial  não  paíTou  pela  mente  da 
rainha  o  funeftar  com  uma  Icena  de  cruenta  expiação  os 
princípios  do  reinado.  A  rainha  era  fanática,  mas  refugia  ás 
fentenças  capitães.  O  feu  valido  e  confeílbr  Fr.  Ignaclo  de 
S.  Caetano,  antigo  Inftrumento  de  Carvalho  na  lua  luda  com 
as  demafias  clericaes,  eftaria  junto  d'ella  refoluto  a  parar  o 
ultimo  golpe,  fe  o  quizeíTem  desfechar  contra  o  leu  antigo 
bcmfeitor.  O  intento  principal  dos  ódios  contra  o  miniih"o  não 
era  conduzil-o  ao  cadafallb.  Baftava-lhes  excruciar  com  as 
derradeiras  humilhações  o  animo  do  fevero  legiflador.  Con- 
tentavam-fe  com  que  n'um  diploma  officlal  appareceffe  o 
antigo  miniftro  de  D.  Jofé  como  um  incorrigível  criminofo, 
a  quem  a  rainha  pela  fua  piedade  e  commileração,  como  fe 
o  verdugo  defdenhalTe  uma  cabeça  já  decrépita,  concedia  a 


eis 


1 


5  07 

exiftencia.  N'uma  junta  de  delembargadores,  celebrada  a  22 
de  maio  de  1 780,  dividiram-fe  os  votos,  opinando  uns  que 
fe  profeguiíTe  o  proceíTo  judicial,  que  ertava  apenas  iniciado 
pelo  interrogatório  no  Pombal,  tencionando  outros  que  era 
baftante  íentenciar  camarariamente  para  que  não  ficaíTe,  di- 
ziam elles,  em  fufpenfo  o  caftigo,  que  merecia  o  delinquente. 

A  queftão  era  tão  árdua  e  elcabrofa  de  reíblver,  que 
durante  largo  tempo  ficou  Sebaftião  de  Carvalho  efperando 
no  leu  retiro  em  que  ^■iria  finalmente  a  defatar-fe  a  tem- 
peftade.  Vários  dos  jurilconfultos,  que  na  junta  haviam  as- 
fignado  a  conlulta  fobre  o  proceíTo,  eram  d'aquelles,  que  ti- 
nham auxiliado  o  eftadifta  com  fuás  luzes  e  efcriptos  n'alguns 
dos  feitos  mais  famofos  da  fua  adminilfração.  Taes  eram 
principalmente  Jofé  Ricalde  Pereira  de  Caftro  e  João  Pereira 
Ramos.  A  grande  maioria  dos  falfos  e  intereíTeiros  parciaes, 
deixára-fe  arraftar  na  corrente  da  apaixonada  opinião,  pre- 
ferindo á  lealdade  e  á  coherencia  o  favor  da  nova  corte.  Os 
raros,  que  ainda  ficavam  no  íecreto  inclinados  á  manfidão 
em  favor  do  velho  octogenário,  eram  tibios  e  recciofos  de 
incorrer  na  mefma  rígida  fortuna.  Succedia  o  que  fempre 
aconteceu  ao  fequito  dos  grandes  homens,  quando  a  fua 
eítrella  de  todo  fe  efcondeu.  O  poder,  e  não  a  gloria  do 
caudilho  retém  enfileirados  em  volta  d'elle  os  egoifmos  dis- 
farçados na  pura  dedicação.  Parece  todavia  que  ás  diíficul- 
dades  politicas  e  judiciarias  do  proceíTo  fe  accrefcentava  a 
benévola  interceíTão  de  alguém,  cuja  privança  era  mais  intima 
no  animo  irrefoluto  da  rainha. 

Emquanto  no  paço  fe  enlaçavam  e  complicavam  os  en- 
redos, forcejando  os  mais  ferozes  inimigos  de  Carvalho  por 
defhonrar-lhe  juntamente  o  carader  e  o  governo,  um  nego- 
cio capital  occupava  n'effes  dias  o  animo  inquieto  da  reac- 
ção. Tratava-fe  de  nada  menos  que  de  annullar  a  fentença 
proferida  pela  junta  da  Inconfidência  contra  os  réus  do  re- 


eis 


5o8 

gicidio.  Se  a  innocencia  dos  juftiçados  fe  julgaíTe  n'um  pro- 
ceíTo  de  revifta,  e  o  governo  fe  conformaíTe  com  efta  audaz 
refolução,  os  delinquentes  rellirgiriam  na  memoria  dos  vin- 
douros como  um  coro  de  martyres  illuftres,  immolados  á  fe- 
rocia  de  um  ficcario.  Se  Carvalho  apparecia  como  um  aíTas- 
fino,  mal  acobertado  na  apparencia  das  formulas  judiciarias, 
o  máximo  rigor  exercido  contra  elle  era  a  jufta  expiação  dos 
feus  delidos.  Era  o  marquez  de  Alorna  o  que  em  honra  dos 
Tavoras,  feus  parentes,  pedia  com  inftancia  a  revifão.  Um 
decreto  da  rainha',  após  mil  combates  e  hefitações,  concedeu 
a  revifta  de  graça  efpecialiffima.  Eram  quinze  os  defembar- 
gadores  que  deviam  examinar  o  proceíTo  e  a  fentença  con- 
demnatoria.  Entre  elles  não  eram  raros  os  que  tinham  con- 
fpicuamente  figurado  como  fatellites  juridicos  do  miniftro 
omnipotente.  Os  fecretarios  de  eftado,  fegundo  era  praxe 
monftruofa  n'efta  parodia  de  grave  judicatura,  prefidiam  ao 
fynedrio  dos  legiftas.  Após  muitas  delongas,  irritada  a  im- 
paciência da  rainha  ou  a  dos  feus  defafifados  confelheiros, 
congregaram-fe  de  noite  no  palácio  da  Ajuda  os  juizes  da 
revifta,  e  fendo  já  as  quatro  da  madrugada  do  dia  23  de 
maio  de  1781,  proferiram  a  tardia  fentença  abfolutoria,  de- 
clarando indemnes  de  toda  a  infâmia  e  culpa  a  memoria  dos 
Tavoras  e  do  conde  de  Atouguia,  e  reftituindo  ás  fuás  fa- 
mílias as  honras  e  preeminências  de  feus  maiores.  O  procu- 
rador da  coroa,  João  Pereira  Ramos,  oppoz-fe  com  embar- 
gos á  fentença,  que  a  foberana,  por  occultas  influencias,  e 
porventura  com  o  efcrupulo  de  aífociar  a  uma  flagrante  ini- 
quidade o  nome  de  feu  pae,  nunca  chegou  a  confirmar. 

Os  echos  d'eftas  incanfaveis  diligencias,  com  que  fe  pre- 
tendia apreífar  a  final  condemnação  do  perfeguido  reforma- 
dor, chegavam  aos  feus  ouvidos  como  o  terrível  ulular  dos 


I  Decreto  do  lo  de  outubro  de  17S0. 


feus  crus  adverlarios.  Efperava  a  cada  inlíante  que  por  íor- 
çolb  corollario  da  fentença  abfolutoria  dos  Tavoras  e  do 
Atouguia,  chegalTe  ao  cabo  de  tão  duras  provações  o  decre- 
to da  rainha  condemnando  o  miniftro  de  feu  pae.  Ainda  não 
eram  cumpridos  bem  três  mezes  depois  da  fentença  revifo- 
ria,  quando  um  no\o  diploma  da  Ibberana'  refolvia  finalmen- 
te as  incertezas  crueliffimas,  em  que  tinha  paílado  no  Pom- 
bal mais  de  três  annos  o  odiado  reformador. 

Faziam  os  infenfatos  confelheiros  que  a  rainha  íirmaffe 
n'aquelle  diploma  o  juizo  mais  implacável  e  fevero  contra  o 
miniftro  de  leu  pae,  exhalando-le  em  vagas  acculações,  que 
não  le  preoccupava  de  aíTentar  em  factos  certos.  Declarava 
que  apefar  de  haverem  fido  qualificados  os  feus  delictos, 
como  de  réu  e  merecedor  de  exemplar  cafligo,  o  piedofo  co- 
ração da  imperante,  attentas  as  graves  moleftias  e  os  decré- 
pitos annos  do  efi:adifta.  e  infpirando-fe  antes  na  clemência 
que  na  juftiça,  lhe  perdoava  e  remittia  as  penas  corporaes, 
ordenando-lhe  porém  de  viver  a  vinte  léguas  longe  da  corte, 
emquanto  aprouveífe  ao  feu  animo  real.  Deixava  porém  li- 
vre ao  régio  fifco  e  aos  particulares  toda  a  acção  civil  para 
ferem  indemnifados  das  perdas  e  damnos,  que  contra  Se- 
bafi:ião  de  Car\'alho  podeífem  nos  tribunaes  competentes 
comprovar. 

Aífim  condemnava  implicitamente  a  rainha,  que  appelli- 
daram  piedofa,  a  memoria  de  feu  pae.  Segundo  aquelle  de- 
creto a  longa  adminiftração  de  Sebaftião  de  Carvalho  havia 
fido  um  tecido  de  iniquidades  e  porventura  de  violentas  ou 
artificiofas  extorfões  ao  fifco  e  aos  particulares.  E  como  pode- 
ria fobrenadar  á  infâmia  do  miniftro  a  honra  do  foberano, 
que  durante  vinte  e  fete  annos  fora  fe  não  o  refponfavel  prin- 
cipal, ao  menos  o  activo  cooperador  do  eftadifta  dcfhonradoi' 


■  Decreto  de  iG  de  at^ollo  de  1781. 


c|3 


ela 


4sh 
-«5»-f. 

5io 

A  dolorofa  impreíTão,  que  no  animo  de  Carvalho  haveria 
de  fazer  o  hrutalilTimo  decreto,  não  é  precifo  encarecel-a 
com  palavras.  Não  o  culpavam  de  erros,  fenão  de  crimes,  e 
não  de  crimes  políticos  fomente,  fenão  de  peculato  e  con- 
cuífão  no  exercício  dos  feus  cargos.  Aos  oitenta  e  dois  annos 
já  cumpridos,  não  havia  fortaleza  de  efpirito  nem  robuftez  de 
corpo,  que  podeíTem  refiftir  imperturbáveis  a  tão  cruel  e  iní- 
qua exprobração.  Foi  para  contradizer  as  aííirmações  ou  as 
fufpeitas  de  que  houveífe  abulado  do  poder  para  accrefcentar 
as  fuás  riquezas,  que  Sebaftião  de  Carvalho  defcreveu  n'uma 
longa  memoria  o  eífado  dos  feus  bens  e  a  fua  proveniência. 
As  dolorofas  provações,  com  que  Sebaftião  de  Carvalho  es- 
tava expiando  os  largos  annos  de  incontraftavel  didadura, 
eram  a  trifte,  mas  neceífaria  confequencia  da  própria  natu- 
reza do  poder  que  exercitara.  O  feu  governo  fora  politica- 
mente uma  dominação  abfoluta,  que  punha  acima  das  leis 
a  vontade  do  foberano,  e  fazia  do  feu  arbítrio  o  fynonymo 
da  legalidade,  e  das  fuás  refoluções  irrefponfaveis  a  norma 
de  juftiça.  A  fua  adminiftração  havia  lido  uma  luda  de  força, 
não  temperada  pelo  influxo  do  direito  ou  da  ec^uidade. 

Quando  o  viram  prolfrado  na  arena,  onde  o  tiveram  por 
invencível  antagonilla,  então  foi  o  retorquirem  contra  elle  as 
próprias  armas  que  forjara.  A  violência  refpondia  a  violência, 
á  dureza  a  feveridade.  A  guerra  é  affim  em  toda  a  parte. 
Não  é  pois  para  extranhar  que  o  maior  miniftro,  que  Portu- 
gal celebrou  nos  feus  annaes,  foífe  egualmente  o  mais  fcvero 
para  com  os  feus  contradiífores,  e  o  mais  cruamente  maltra- 
tado pelos  feus  adverfarios. 

Sebaftião  de  Carvalho  recebera  da  rainha  a  aftronta  der- 
radeira. Era  o  perdão  da  pena  corporal.  Ao  homem  que 
tinha  a  confciencia  de  benemérito,  em  vez  dos  louros  que 
merecia,  condemnavam-n'o  por  delinquente,  e  perdoavam- 
Ihe  por  velho  e  achacado.  A  clemência  infamante  da  rai- 


th 


nha,  cm  vez  de  encher  de  gratidão  affeduola  o  coração 
do  eftadirta,  era  pelo  contrario  a  ultima  tribulação  da  fua 
vida.  Com  as  atfecções  do  animo  engraveceu  a  enfermidade, 
já  defde  largos  dias  progreíTiva  e  accelerada  pelos  annos.  A 
8  de  maio  de  1 782  tocava  o  leu  termo  a  exiftencia  mais  fecun- 
da e  mais  activa  de  quantas  no  gabinete  fe  votaram  ao  gover- 
no e  ao  bem  da  fua  pátria.  Foram  os  defpojos  mortaes  do 
legillador  fepultados  na  egreja  do  antigo  convento  de  Santo 
António  na  villa  do  Pombal.  De  c[uantos  amigos  o  haviam 
circumdado  frequentes,  ofiiciofos,  aduladores  nas  horas  do 
poder,  raros  fe  atreveram  a  affrontar  a  opinião,  comparecen- 
do a  render  as  honras  ultimas  ao  antigo  omnipotente  diófa- 
dor.  O  bifpo  D.  Francifco  de  Lemos  não  faltou  ás  folemnes 
exéquias  do  que  fora  feu  patrono  e  era  então  leu  diocefano. 
Pregou  o  lermão  fúnebre  o  benediclino  Fr.  Joaquim  de  San- 
ta Clara,  e  honrou  a  oratória  lacra  pela  forma  eloquente  do 
elogio  c  pela  audácia  de  o  pregar  n'um  tempo,  em  que  a 
refpeito  do  eftadifta,  a  diftamação  era  virtude,  o  filencio 
lufpeição,  e  lela-majeilade  o  panegyrico. 

Quando  haviam  já  paliado  largos  annos  depois  que  Se- 
baftião  de  Carvalho  pertencera  á  ferena  jurifdicção  da  hifto- 
ria,  principiou  a  poíteridade  a  fer  mais  jufta  do  que  foram 
com  elle  os  léus  contemporâneos. 

Um  decreto  do  duque  de  Bragança  de  1 2  de  outubro  de 
i833  iniciou  a  reparação  devida  á  memoria  do  miniftro,  or- 
denando que  no  pedeftal  da  eífatua  equeftre  folTe  repofto  o 
medalhão  de  Sebaftião  de  Carvalho.  Mais  tarde,  a  1 6  de  ju- 
nho de  i856,  as  cin/as  do  eífadifta,  que  reedificara  a  deítrui- 
da  capital,  foram  defde  o  Pombal  trafladadas  folemnemente 
para  Lifboa,  e  depois  de  um  officio  folemne,  mandado  cele- 
brar pela  municipalidade  lifbonenfe  na  egreja  de  Santo  An- 
tónio da  Sé,  foram  depofitadas  na  capella  das  Mercês,  na  rua 
Formofa. 


tis 


cia 


5l2 

A  grande  c  folemniíTima  apotheofe  do  eminente  refor- 
mador eftava  porém  guardada  para  quando  cem  annos  fe 
perfizeíTem  depois  que  fe  efcondêra  no  fepulchro.  Por  lou- 
vável e  generofa  diligencia  dos  eftudantes  de  Lifboa,  e  pela 
cooperação  das  claíTes  commerciaes,  principalmente  da  ci- 
dade baixa,  fe  feftejou  na  capital  com  magnificas  e  oftento- 
fas  illuminações  durante  os  dias  8,  9  e  10  de  maio  do  pre- 
fente  anno  de  1882  o  centenário  do  grande  legiflador.  Um 
pompofo  cortejo  civico,  em  que  havia  cuftofos  carros  de 
artificiolb  lavor  e  invenção,  e  onde  por  largas  horas  des- 
filaram, precedidas  de  bandeiras  e  repartidas  em  numerofas 
corporações,  milhares  de  peífoas,  foi  a  mais  apparatofa  ma- 
nifeítação  de  quanto  Lifboa,  e  com  ella  Portugal  inteiro, 
apreciava  os  beneméritos  ferviços  do  grande  homem  á  civi- 
lifação  puramente  fecular  e  á  moral  emancipação  do  povo 
portuguez. 

A  fefta  magnifica  do  centenário  foi  como  que  a  folemne 
canonifação  civil  de  Sebaftião  Jofé  de  Car\'alho  c  Mello.  Por 
ella  ficou  authenticamente  infcripto  o  nome  gloriofo  do  efta- 
difta  no  livro  de  oiro,  onde  fe  regiftram  os  beneméritos  da 
humanidade,  aquelles  que  pela  tranquilla  cogitação  no 
gabinete  ou  pela  enérgica  acção  na  vida  praftica,  alargaram 
os  caminhos  ao  progreífo  e  inundaram  de  luz  intenfa  a 
atmofphera  focial.  Não  é  o  favor  nem  a  lifonja  quem  aífim 
decreta  a  immortalidade  ao  homem,  que  ha  um  feculo  pas- 
fou.  Quando  do  que  teve  de  humano,  de  caduco,  de  terre- 
nal, fó  refla  um  pouco  de  pó,  quando  o  feu  poder  é  uma 
memoria,  a  fua  grandeza  um  nada,  as  homenagens  ren- 
didas ao  feu  nome  e  á  fua  gloria  reprefentam  a  jufiiça  in- 
defeflivel  da  auftera  pofteridade.  E  Sebaftião  de  Carvalho 
foi  em  verdade  um  grande  eftadifta  e  um  grande  portuguez. 
Separemos  do  feu  efpirito  as  grandes  imperfeições  e  do  feu 
animo  os  numerofos  defeitos,  que  o  macularam,  e  appare- 


(is 


5i3 

cer-nos-ha  como  um  dos  raros  portuguezes,  em  quem  ao 
mefmo  tempo  concorreram  as  maiores  illuminações  do  es- 
pirito, e  as  mais  activas  e  nobres  qualidades  do  animo.  Não 
era  Sebaltião  de  Carvalho  certamente  uma  d'eftas  rariíTimas 
intelligencias,  que  nos  léus  voos  mais  erguidos  raiam  a  cada 
paíTo  no  original  e  no  fublime.  Era  um  talento,  não  um  génio, 
mas  o  leu  entendimento  era  profundamente  reflexivo  e  opu- 
lentado  com  mui  vafta  e  copiola  erudição.  A  lua  palavra, 
ou  tallaffe  no  idioma  pátrio  ou  fe  exprimiíTe  em  lingua  fran- 
ceza,  era  fluente,  amena,  períliafiva,  relevada  pela  gravidade 
majeítofa  do  feu  gefto  e  pela  nobre  compoítura  do  feu  vul- 
to procero,  quafi  agigantado.  A  efcrever  era  claro  e  metho- 
dico,  mas  diffulb  e  hyperbolico  na  idéa,  redundante  na  dic- 
ção. Comprazia-íe  nos  fuperlativos  e  nos  advérbios,  com 
que  bufcava  realçar  o  penfamento,  principalmente  quando 
os  feus  efcriptos  eram  deftinados  a  affear  até  o  monftruofo 
o  carader  e  as  acções  dos  feus  adverfarios  e  em  elpecial  dos 
jefuitas. 

Todavia  os  feus  efcriptos  puramente  litterarios,  fe  ainda 
um  pouco  fe  refentem  do  conceptifmo  feifcentifta  e  dos  ter- 
mos fefquipedaes  da  epocha  de  D.  João  V,  denunciam  um 
efpirito  de  larga  illuftração  e  um  eftylo  corrente  e  defaíTe- 
élado.  AíTim  o  Elogio  do  primeiro  marquei  do  Loiíriçal,  reci- 
tado na  Academia  de  lújloria,  fe  não  fe  levanta  demafiado 
acima  do  commum  nivel  litterario  do  feu  tempo,  attcfta  a 
clareza  do  entendimento  e  a  correcção  da  linguagem.  É  prin- 
cipalmente, quando  applicadas  aos  máximos  negócios  ou  aos 
minimos  particulares  de  politica  e  de  adminiílração,  que  as 
faculdades  eminentes  de  Carvalho  rafgam  os  feus  voos  mais 
brilhantes.  As  fuás  idéas  nem  fempre  fão  ingenitas  e  origi- 
naes.  As  mais  das  vezes  citram-fc  na  imitação  do  que  lhe 
parece  ter  mais  efficazmente  contribuido  para  a  profperida- 
dc  e  grandeza  das  nações.  SuUy  e  Colbert  eftão  prefentes 


fempre  á  lua  memoria,  como  Alexandre,  Annibal  e  Júlio 
Cefar  apparecem  por  modelos  ao  eípirito  guerreiro  de  Buo- 
naparte.  A  idéa,  que  uma  vez  fe  debuxou  no  feu  efpirito,  é 
por  elle  tralladada  á  adminiftração  com  a  indelével  impres- 
fão  de  uma  vontade,  que  não  íabe  defiftir  nem  trepidar.  A 
energia  e  a  perfeverança  na  refolução  conflituem  de  feito  os 
rafgos  principaes  da  fua  phyfionomia  moral.  O  feu  caraéter 
ainda  é  mais  rijo  e  mais  fevero  do  que  o  feu  efpirito:  é  a 
tenacidade  do  bronze  fervindo  a  encadear  a  forma  fugaz  do 
penfamento.  O  que  elle  quer  com  a  vontade  omnipotente,  é 
irrefiflivel  como  a  neceíTidade,  fatal  como  o  deftino.  E  pre- 
cifo  que  emmudeçam  no  coração  todas  as  vozes  da  huma- 
nidade, quando  uma  vez  fallou  a  razão  do  eftado.  Por  iífo 
Carvalho  facrifica  a  fenfihilidade  á  urgência  dos  feus  gol- 
pes. Para  elle  o  governo  é  como  a  guerra,  uma  luda,  onde  a 
primeira  condição  é  aniquilar  o  inimigo,  fe  de  outro  modo 
não  é  poflivel  defarmal-o.  A  idéa  nova  ha  de  a^'ançar  mar- 
chando fobre  a  velha  tradição.  Onde  os  adverfarios  lhe  ob- 
ftruem  o  caminho,  lerá  a  força  o  gaftador  que  derrube  e 
alhane  os  obítaculos.  A  dureza  de  Carvalho  é  a  própria  con- 
dição do  feu  triumpho.  A  fua  crença  vivaz  e  intolerante  na 
preexcellencia  do  poder  civil  e  na  emancipação  intelledual 
da  humanidade,  não  é  apenas  enthufiafmo,  toca  as  raias  do 
exaltado  fanatifmo.  D'ahi  vem  a  febril  exaltação  que  o  tem 
fempre  em  fobrefalto  contra  os  deteftados  jefuitas.  D'ahi  vem 
as  mais  duras  perfeguições  contra  os  que  bufcam  ajudar  ou 
favorecer  os  intentos  da  Companhia.  Dois  defeitos  capitães 
empanam  a  limpidez  ferena  do  feu  animo.  O  primeiro  c  o 
defejo  ardente  de  perpetuar  o  feu  nome  e  a  fua  gloria  n\ima 
familia  levantada  ás  honras  mais  diil:indas  da  nobreza  titu- 
lar, como  fe  os  grandes  homens  podeífem  ter  outra  famiha, 
onde  o  feu  culto  fe  perpetue,  fenão  a  agradecida  pofterida- 
de,  como  fe  os  defcendentes  dos  heroes  não  folfem,  por  uma 


'■ -íj)-!- 

5i5 

lei  providencial,  condemnados  a  rojar  pela  rafteira  obfcuri- 
dade  um  nome,  com  que  não  podem,  uma  gloria,  que  nem 
fabem  comprehender.  E  d'ahi  que  fe  origina  a  complacên- 
cia, com  que  recebe  o  titulo  de  conde  de  Oeiras,  e  mais  tar- 
de o  de  marquez  de  Pombal.  D'efte  defeito  fundamental  de- 
riva-le  um  fegundo  de  não  menos  defprimor  e  menofcabo 
para  a  gloria  de  Carvalho.  Foi  a  lua  dominante  cubica  de 
adquirir  e  enriquecer,  como  fe  as  próprias  thefes,  que  elle 
rijamente  propugnou  em  luas  leis,  lhe  não  eftiveram  já  pro- 
gnofticando,  que  pela  futura  abolição  de  todas  as  formas 
de  amortifação,  e  pelo  termo  fatal  da  velha  monarchia,  as 
famílias  fundadas  no  privilegio  e  na  munificência  dos  mo- 
narchas,  leriam  em  breves  tempos  reduzidas  a  eleger  entre 
a  mendicidade  ou  o  trabalho,  e  a  confundirem-fe  pela  egual- 
dade  na  maíTa  commum  e  ablbrvente  da  moderna  demo- 
cracia. 


si)  «JQ 


SEGUNDA    PARTE 


*S-C>- : -ô-§* 


1 


i 


SEBASTIÃO  JOSÉ  DE  CARVALHO 
E  MELLO 

o  EMINENTE  PROPULSOR  DA  EVOLUÇÃO  SOCIAL 
EM  PORTUGAL  NO   SÉCULO  XVIII 


cl? 


Mouftrat  iler. 
]).  J.  I. 

uem  algum  dia  fe  inclinou  anciofo  fohre  o 
corpo  exânime  de  um  pae  idolatrado  e,  de- 
pois de  prolongada  anguftia,  lhe  prelentiu  o 
primeiro  palpitar  do  coração  que  annuncia- 
va  a  volta  á  vida,  eíTe  poderá  comprehen- 
der  o  jubilo  immenfo  com  que  os  amigos  do 
velho  Portugal  fentiram  o  defpertar  d'aquel- 
le  nobre  povo  acudindo  á  grande  fefta  das  nações,  que  pare- 
ce convocada  para  o  fim  d'efl:e  feculo  pelas  leis  imperiofas 
da  hilloria. 

A  celebração  do  tricentenário  de  Camões  fez  o  effeito 
de  uma  defcarga  eledrica  que  abalaffe  até  o  intimo  do  or- 
ganifmo  a  todos  quantos  poíTuem  um  coração  portuguez. 
Ceifou  inftantancamentc  o  marafmo  que  durante  cem  annos 
paralyfára  aquelle  paiz;  os  herdeiros  das  velhas  glorias  can- 
tadas pelo  poeta  immortal,  fentiram  a  folidariedade  que  os 


eis 


-A-i- 


ligava,  defpertaram  do  pefado  lethargo  do  dclpotilmo,  lacu- 
diram  as  reminifcencias  do  ominofo  pefadello  das  fuperfti- 
ções  theocraticas,  e  entraram  de  poíTe  da  fua  confciencia 
inaugurando  uma  nova  epocha  de  vida  publica  racional. 

A  celebração  dos  centenários  dos  grandes  homens  é  uma 
feita  eíTencialmente  nacional.  Nenhuma  academia  a  decide; 
nenhum  governo  a  decreta;  nenhum  príncipe  a  íancciona. 
A  veneração  pelos  homens  verdadeiramente  grandes  impõe- 
fe  imperiofamente,  nalce  efpontanea  no  fundo  de  todas  as 
confciencias,  fentem-n'a  os  mais  felizmente  dotados  como 
os  mais  rudes:  acode  aos  mais  inlfruidos  como  aos  mais 
ignorantes;  a  uns  aviva-lh'a  o  eftudo:  a  outros  enfina-lh'a  a 
tradição;  os  reis  e  os  governos  tèem  cunhado  muita  moeda 
falfa  de  nobreza;  o  juizo  da  pofteridade,  eíTe  é  que  facil- 
mente fe  não  corrompe. 

A  grandeza  humana  tem  manifeítações  variadas  como  é 
largo  e  vario  o  campo  da  nofla  adividade.  Uma  nação  nobi- 
lita-fe  quando  prefla  homenagem  a  um  philofopho  como  Spi- 
nofa,  a  um  poeta  como  o  Dante,  a  um  artilla  como  Raphael, 
a  um  inventor  como  Guttemberg;  mas  quando  depois  de 
prolongada  inércia,  um  povo  inteiro  fe  levanta  como  um  fó 
homem  para  celebrar  o  tricentenário  d'aquelle  em  quem  as 
circumftancias  como  que  perfonificaram  a  grandeza  e  até  as 
defgraças  da  pátria,  eíTe  povo  evidentemente  retempera-fe 
para  caminhar  energicamente  ao  encontro  dos  feus  deftinos. 
As  nações  como  os  indivíduos  fáo  fuj citas  a  certos  desfalle- 
cimentos  de  que  defpertam  para  reconquiflar  o  tempo  perdi- 
do; nenhum  peito  género fo  deixará  de  vidoriar  com  enthu- 
fiafmo  cheio  de  efperança  eíTe  immenlb  reviver  da  Europa 
inteira,  c]ue  emfim  fe  levanta  e  fe  orienta,  penfa  e  reflede, 
fente  fuás  forças  e  entra  denodadamente  na  phafe  de  acção 
que  a  fciencia  lhe  indica.  A  celebração  do  tricentenário  de 
Camões  foi  por  certo  em  Portugal,  nos  últimos  tempos,  a 

4»  4' 


mais  vigorofa  affirmação  do  elpirito  publico  para  o  grande 
movimento  Ibcial  que  fe  eftá  operando  na  Europa  na  ultima 
parte  d'en:e  feculo.  Mas  eíTe  movimento  não  é  ilblado.  Seria 
ingrato  e  perigofo  defconhecel-o.  A  republica  reerguendo-fe 
em  1S70,  em  França,  foltou  eíTe  brado  fonoro  de  emancipa- 
ção que  delpertou  os  echos  e  eftimulou  a  dignidade  do 
mundo  inteiro.  O  tricentenário  de  Camões  teria  fido  celebra- 
do ainda  quando  um  Bourbon,  um  Bonaparte  ou  um  Or- 
leans  governalTe  em  França.  Mas  eíTa  fefla  não  teria  tido  a 
mefma  fignificação,  leria  apenas  um  faclo  ifolado,  e  não 
faria  um  elo  d'eíra  immenla  cadeia  que  parte  de  alem  do 
Neva,  atraveíTa  como  a  medula  efpinhal  de  um  fyftema  ncr- 
vofo  a  Europa  inteira,  e  vem  perder-fe  no  grande  continente 
americano,  trazendo  eíTa  corrente  magnética  emancipadora 
que  defperta  a  um  tempo  as  mais  nobres  afpirações. 

Os  operários  do  futuro,  aquelles  que  fe  dedicam  á  nobre 
tarefa  de  firmar  na  terra  o  reinado  da  jufliça,  refpondem  uns 
a  outros  como  fentinellas  perdidas  n'eíre  campo  immenfo 
da  actividade  humana.  As  luas  fileiras  engroífam  ao  palfo 
que  rareiam  as  dos  feus  inimigos,  e  cada  vez  fe  condenfará 
mais  eífa  força  da  vontade  dos  povos,  determinada  pela 
generalifação  de  uma  verdade  fcientifica,  que  mais  tarde  fe 
tornará  irrefiftivel. 

Entrando  aclivamente  no  grau  de  movimento  da  huma- 
nidade, Portugal  e  todos  os  que  o  acompanham,  não  traba- 
lha fó  para  fi,  cumpre  o  grande  dever  de  acudir  ao  concurlb 
das  nações  para  trazer  o  feu  contingente  á  folução  do  gran- 
de problema  Ibcial. 


Quafi  um  puro  acalb  vciu  approximar  em  nolfo  culto  os 
dois  grandes  nomes  de  Luiz  de  Camões  e  de  Sebaftião  Jofé 


ti» 


4sU 


de  Carvalho  e  Mello.  O  grande  fado  Ibcial  que  hoje  fe  eftá 
dando  em  todo  o  mundo  civililado  parece  uma  reproducção 
ou  uma  confirmação  do  que  acontecia  em  todas  as  focieda- 
des  politicas  quando  o  grande  miniftro  chegou  ao  poder. 
Então  o  foi  da  idéa  moderna,  defpontando  no  extremo  hori- 
fonte  intelleéfual,  illuminava  apenas  cumeadas  do  efpirito 
humano. 

Bluntfchli,  que  fe  ferviu  d'efla  imagem,  quer  dar  a  honra 
da  iniciação  da  nova  epocha  focial  ao  reinado  de  Frederi- 
co II  da  PruíTia  em  1740.  E  por  demais  germânica  a  pre- 
tenfão. 

A  nova  era  eftá  irrevogavelmente  fixada  por  um  accordo 
tácito  em  14  de  julho  de  1789,  e  ninguém  poderá  jamais 
conteftar  á  França,  á  França  que  nos  últimos  feculos  fe  tem 
fempre  encontrado  á  frente  do  penfamento  humano,  o  mé- 
rito immenlb  de  ter  feito  folemnemente  a  mais  enérgica  e 
gloriofa  afiirmação  da  jufliça  nos  tempos  modernos.  lUumi- 
nou-a  com  o  mais  vivo  fulgor  do  feu  talento  e  confagrou-a 
abundantemente  com  o  leu  fangue.  Um  paiz  que  faz  tão 
prodigiofos  facrificios  por  um  ideal,  tem  direito  a  que  lhe 
refpeitem  as  fuás  glorias. 

Mas  fe  é  inconteftavel  que  foi  em  França  que  reben- 
tou eíTe  immenfo  vulcão  de  faber,  de  talento  e  de  heroifmo, 
a  que  a  hiftoria  poz  o  nome  da  grande  revolução  focial, 
também  não  é  poílivel  defconhecer  que  em  meados  do  fe- 
culo  XVIII  cm  toda  a  Europa  fe  operava  um  trabalho  furdo, 
mas  poderofo,  de  intelligencia  que,  fe  pelas  circumflancias 
da  epocha  não  podia  defcer  até  a  grande  muhidão  dos  efpi- 
ritos  fubalternos,  deu  origem,  entretanto,  a  grandes  manifes- 
tações nas  intelligencias  mais  elevadas.  Frederico  II  merece 
por  certo  fer  citado  entre  aquelles  a  quem,  n'eíTas  alturas 
intelleduaes,  illuminou  primeiro  o  foi  da  moderna  afpira- 
ção.  Catharina,  da  Ruflia,  não  deve  ler  efquccida;  .lofé  II, 

-i-À- -À-l- 


•J>-^ 


de  Auftria,  acompanhou  dignamente  os  efpiritos  mais  cultos 
do  feu  tempo.  A  todos  clles  coube  a  honra  infigne  de  le  pre- 
occuparem  com  a  queftão  focial,  que  no  feu  tempo  aprelen- 
tava  (nem  outra  coufa  era  poíTivel),  uma  forma  muito  con- 
fufa;  mas  feria  injuílo  negar  a  Sehartião  Jofe  de  Carvalho  e 
Mello  o  primeiro  logar  n'eíra  plêiade  illuflre,  em  que  aliás 
figuraram  muitos  outros  aflros  de  fegunda  e  de  terceira  gran- 
deza, que  tiveram  o  mais  benigno  influxo  nos  deftinos  da 
humanidade. 

Se  não  é  illuíao  d'elfe  immenfo  amor  que,  aos  que  nas- 
ceram em  Portugal,  infpiram  fempre  ao  longe  as  coufas  por- 
tuguezas,  a  Sebaftião  de  Carvalho  fó  faltou  a  felicidade  de 
ter  Voltaire  por  correfpondente  e  amigo,  para  que  a  Europa 
lhe  preílaífe  defde  meados  do  feculo  paífado  as  homenagens 
que  nós  fempre  lhe  rendemos.  Se  em  logar  de  fe  atolar  nas 
mefquinharias  de  Berlim  e  de  Sans-Souci,  o  rei  Voltaire 
tiveífe  ido  até  Oeiras  em  1775  aífiifir  á  primeira  expofição 
de  induftria  nacional  que  fe  fez  no  mundo,  é  provável  que 
elle  tiveífe  achado  uma  formula  mais  jufta  e  comprehcnfiva 
do  cjue  a  do  celebre  verfo: 

Ccjl  dn  iiorl  à  prcfciit  que  iióiis  vient  la  liimicrc 

Do  Meio-Dia  também  podia  irradiar  então  alguma  luz. 
ainda  para  a  França  d'aquelles  tempos. 

A  grande  obra  de  Sebalfião  de  Carvalho  pode  folírer  o 
confronto  e  a  critica  de  quem  quer  que  feja.  A  actual  fefla 
o  prova.  Elle  pertence  inqueftionavelmente  áe]uella  claífe  de 
homens  cujo  nome  fòa  mais  longe  e  mais  forte  depois  da 
morte;  cujo  vulto  fe  eleva  mais  alto  depois  que  entrou  no 
tumulo;  cuja  intelligencia  deita  um  fulgor  mais  vivo  depois 
que  fua  voz  emmudeceu.  Ha  cem  annos  que  defappareceu 
de  entre  os  vivos,  e  o  feu  nome  como  os  feus  diófos  en- 


chem  a  memoria  e  circulam  na  bocca  de  quantos  faliam  a 
lingua  portugueza.  No  momento  em  que  a  hiftoria  aprefen- 
ta  ao  noíTo  reconhecimento  e  á  noffa  admiração  os  feitos 
do  grande  miniftro,  defvanecem-fe  e  fomem-fe  como  vãos 
phantafmas,  muitos  vivos  que  a  forte  e  a  fatuidade  condem- 
nou  á  irrifão  de  lhe  fuccederem. 


É  impoffivel  contemplar  a  obra  de  Sebaftião  Jofé  de 
Carvalho  e  Mello  fem  reconhecer  n'elle  o  precurfor  da  gran- 
de revolução  de  1789.  E  não  é  dizer  tudo,  porque  não  é  dif- 
ficil  defcobrir  no  fcu  mais  intimo  penfamento  o  gérmen  de 
algumas  das  mais  adiantadas  afpirações  do  noífo  tempo. 
Sebaftião  de  Carvalho  conheceu  o  abufo  immenfo  da  theo- 
cracia  e  'da  metaphyíica,  viu  claramente  a  perniciofa  in- 
fluencia do  direito  romano,  entreviu  a  falfidade  de  alguns 
principios  económicos  cjue  ainde  hoje  dominam  grande  nu- 
mero de  efpiritos,  foi  um  apoftolo  dedicado  da  egualdade  en- 
tre os  homens,  quanto  o  comportavam  os  preconceitos  do 
feu  tempo,  trabalhou  quanto  pôde  para  a  diffufão  dos  mais 
úteis  conhecimentos,  deu  um  impulfo  enorme  á  induftria  na- 
•  cional,  promoveu  a  agricultura,  o  commercio,  a  navegação, 
favoreceu  as  artes,  reorganifou  a  inftrucção  publica,  difcipli- 
nou  o  exercito,  dignificou  perante  o  mundo  o  nome  portu- 
guez,  reprimiu  a  nobreza,  refreou  o  clero  audaciofo,  efmagou 
os  jefuitas  facciofos  e  rebeldes,  conteve  Roma  imperiofa- 
mente,  deu  ao  folo  de  Portugal  a  prerogativa  de  libertar  os 
efcravos  que  o  pizaíTem,  melhorou  a  condição  dos  Índios  do 
Brazil,  rehabilitou  os  chriftãos  novos,  reedificou  Lilboa  fub- 
vertida,  efFeituou  a  primeira  expofição  de  induftria  nacional, 
que  fó  vinte  e  três  annos  depois  foi  imitada  pela  republica 

^%-^ -A-i- 

4»  t\» 


franceza  no  fim  do  feculo,  abriu  as  fontes  induftriaes  da 
opulência,  encheu  o  erário  e  emendou  os  coftumes.  Deixou- 
nos  um  exemplo,  que  até  hoje  ainda  não  foi  egualado,  de 
uma  actividade  aíTombrofa  dirigida  por  uma  intelligencia  tão 
penetrante,  por  uma  intuição  tão  perfpicaz,  fuftentada  por 
uma  vontade  tão  tenaz  e  tão  firme  que  parece  ter  prece- 
dido de  um  feculo  o  efpirito  humano.  O  arrojo  com  que  em- 
prchendia  os  mais  oufados  commettimentos,  e  a  galhardia 
com  que  os  levava  a  cabo  fazem  fingular  contrafte  com  a 
meticulofidade  e  inefficacia  com  que  em  noíTos  dias  têem 
fido  tratados  os  mefmiíTimos  problemas.  Aquelles  cipós  ma- 
tadores a  que  o  grande  miniftro  mcttèra  o  machado  com 
braço  tão  esforçacio,  reviveram  depois  da  fua  morte,  todos 
nós  os  virnos  reflorir  cm  noíTos  dias,  enleiando  a  arvore  da 
civilifação,  fi-iífocando  com  o  feu  amplexo  pérfido  c  finifiro 
as  mais  legitimas  afpirações  da  fociedade,  fem  que  cfle  me- 
chanifmo  hybrido  da  monarchia  conllitucional,  que  pelas 
dynaftias  é  íblidario  com  os  intereffes  da  reacção  e  pelo  po- 
vo tende  ao  eftabelecimento  do  direito,  poíTa  chegar  a  ou- 
tro refultado  lenão  a  um  compromilTo  em  que  o  direito  é 
facrificado. 

A  grandeza  de  Sebaítião  de  Carvalho  impõe-fe-nos  tan- 
to mais  imperiofamente,  quanto  fomos  obrigados  a  confeíTar 
que  nem  tivemos  a  força  neceíTaria  para  confolidarmos  to- 
das as  fuás  conquiftas! 

A  feição  mais  laliente  da  adminilfração  de  Sebailião  de 
Carvalho  é  inqucftionalmente  a  tremenda  luda  que  elle  tra- 
vou com  a  theocracia,  e  da  qual  faiu  vencedor.  Cerca  de 
uma  decima  parte  da  população  de  Portugal  vivia  na  mais 
ignominiofa  ociofidade  e  tirava  a  fi.ia  alimentação  principal- 
mente dos  bens  que  o  clero  confeguíra  adquirir  fob  pretexto 
de  garantir  a  felicidade  na  vida  eterna.  Singular  fophifma! 
As  ordens  religiofas  tiravam  argumento  a  feu  favor  do  foc- 


Ai  eii 


corro  que  davam  á  mendicidade  que  ellas  próprias  origina- 
vam! Hoje  taes  opiniões  refugiaram-fe  no  fundo  das  facris- 
tias  ou  nas  alcovas  dos  palácios;  mas  ainda  lá  exiflem. 

O  babylonifmo  catholico  de  D.  João  V  cuílára  a  Portugal 
fommas  fabulofas.  Todos  conhecem  os  efbanjamentos  de 
Mafra.  Conta-fe  que  das  ruinas  da  patriarchal  queimada  fe 
defenterraram  cerca  de  mil  e  quinhentas  arrobas  de  prata. 
Portugal  não  tinha  efcolas  nem  eltradas;  mas  cuftodias  e 
relicários  de  oiro  e  pedras  preciofas,  abundavam  por  toda 
a  parte.  Os  profeíTores  morriam  de  fome;  mas  o  clero,  que 
por  irrifão  pregava  a  humildade  e  a  pobreza,  nadava  na 
opulência.  Se  os  phenomenos  naturaes  andavam  um  pouco 
defpercebidos,  em  compenfação  o  povo  era  iniciado  nas 
mais  intimas  minudencias  do  fobrenaturalilmo.  A  idéa  cedia 
o  logar  á.  .  .  afíirmativa;  em  vez  do  eftudo  a  phantafia.  A 
razão  fugia  efpavorida  diante  de  uma  imaginação  febril  irri- 
tada pela  fuperftição  e  pela  hypocrifia. 

A  dominação  theocratica  em  Portugal  cm  meados  do 
feculo  paíTado  era  verdadeiramente  hedionda!  O  eítado  de 
aviltamento  mental  e  de  miíeria  a  que  ella  reduzira  aquelle 
pobre  povo,  é  verdadeiramente  inconcebivel.  Se  as  condições 
em  que  naíceu  Sebaftião  de  Carvalho  lhe  difficultavam  a 
apreciação  das  circumftancias  em  que  elle  encontrou  a  fo- 
ciedade  do  feu  tempo,  também  vencida  efta  diíficuldade,  elle 
fe  achava  baftante  perto  do  poder  para  o  alcançar,  e  realifar 
as  fuás  concepções.  O  que  é  certo  é  que,  na  falta  de  uma 
orientação  fcientiflca  que  n'aquelle  tempo  era  impoíTivel,  a 
lua  feliz  intuição  o  infpirou  a  lançar  o  primeiro  rumo  que 
mais  tarde  foi  regiftado  na  grande  carta  da  evolução  huma- 
na pela  revolução  franceza  de  1789,  e  pelo  qual  depois  dos 
tropeços  que  lhe  atiraram  em  caminho  os  Bourbons,  os  Bo- 
napartes  e  os  Orleans,  a  humanidade  continua  em  fua  car- 
reira. O  mundo  fegue  a  França. 

4»  4* 


^ ,ÀI. 


Durante  um  quarto  de  feculo  Sebaftião  de  Carvalho  fin- 
grou  imperterrito  por  eíTe  rumo.  Sebaftião  de  Carvalho  elca- 
pou  á  trift;e  lei  de  óptica  íbcial  que  não  deixa  ver  os  objectos 
quando  fão  muito  grandes  e  fe  acham  muito  perto  de  nós. 
Sua  immenfa  eftatura  lhe  permittia  vel-os  de  alto,  medil-os  e 
arcar  com  elles.  Um  dos  peiores  eífeitos  das  mais  odiofas  do- 
minações é  o  abaftardamento  dos  efpiritos  a  ponto  de  lhes 
delvanecer  toda  a  efperança  de  emancipação  e  liberdade. 
Sebaftião  de  Carvalho  não  fe  aterrou,  nem  diante  do  terrí- 
vel tribunal  da  Inquifição,  o  maior  crime  commettido  pelos 
papas  contra  a  humanidade— a  maior  vergonha  que  a  efpe- 
cie  humana  ainda  fupportou! 

Quer  attendàmos  ao  immenlb  alcance  dos  princípios  dis- 
cutidos, quer  ao  numero  de  peíToas  interefladas  na  contenda 
(porque  as  queftões  com  Roma  intereíTam  toda  a  chriftanda- 
de)  cremos  poder  dizer  afoutamente  que  a  luda  travada  por 
Sebaftião  de  Carvalho  foi  uma  das  mais  importantes  da  his- 
toria. D.  João  V  conduzira  a  nação  ao  ultimo  grau  de  vili- 
pendio focial  e  moral  a  que  ella  podia  defcer.  Um  terremoto, 
enchendo  de  ruinas  a  capital,  levara  o  pavor  aos  últimos  li- 
mites do  paiz. 

O  génio  humano  dá  verdadeiramente  uma  boa  medida 
do  feu  grande  poder  quando,  apoiando-fe  em  tão  frágeis 
fundamentos,  ou  antes,  quando  a  defpeito  de  tão  temerofos 
obftaculos,  confegue  ferir  tão  duras  batalhas,  e  confegue  re- 
erguer do  feu  leito  de  Lazaro,  um  paiz  que  parece  irreme- 
diavelmente perdido. 

A  hiquifição  foi  açaimada,  e  á  fúria  d'eíra  corte  que  tem 
glorificado  pela  pintura  cm  feu  palácio  o  afiTaíTinio  de  Coly- 
gny,  nunca  mais  em  Portugal  foram  facrificadas  vidimas  hu- 
manas. Fecharam-fe  muitas  dezenas  de  conventos.  Corta- 
ram-fe  as  relações  com  Roma.  Ordenou-fe  ao  internuncio 
do  papa  que  dentro  em  quatro  dias  (n'aquelle  tempo  o  prafo 


sU 
-'^>^ 


indifpenfavel  para  o  fazer)  tranfpozeíTe  a  fronteira  de  Portu- 
gal. Mas  o  que  foi  verdadeiramente  coloffai  foi  eíTa  campa- 
nha inexorável  que  elle  abriu  contra  os  jefuitas,  começando 
por  prohibir-lhes  o  púlpito  e  o  confeffionario,  declarando-os 
rebeldes,  e  terminando  por  confifcar-lhes  os  bens  e  por  ba- 
nil-os  para  fempre  de  Portugal  e  de  todos  os  domínios  por- 
tuguezes,  e  a  final  por  obter  de  Roma  a  diffolução  da  finiftra 
e  odiofa  companhia. 

Nós  que  temos  debaixo  dos  olhos  a  encarniçada  lufla 
que  em  França  ha  pouco  fe  travou  entre  a  Ibciedade  civil  e 
as  ordens  religiofas;  nós  que  teftemunhàmos  como  o  clero 
tem  defendido  palmo  a  palmo,  defefperadamente,  o  terreno 
do  feu  fombrio  domínio;  nós  que  temos  prefenciado  em 
noíTos  dias  eíTe  fingulariífimo  duello  entre  um  ancião  enclau- 
furado  no  Vaticano  e  o  temperamento  mais  audaciofo  e  enér- 
gico dos  tempos  modernos,  apoiado  no  mais  poderofo  dos 
exércitos  e  nas  mais  adiantadas  conclufões  fcientificas,  pode- 
mos fazer  uma  idéa  do  que  teria  fido  em  Portugal  uma  tal 
luda  ha  cento  e  vinte  annos,  não  efquecendo  nunca  que  a 
ariftocracia  e  a  realeza  viram  confiantemente  no  clero,  e  com 
a  maior  razão,  o  feu  mais  poderofo  e  natural  (fe  nem  fem- 
pre o  mais  fiel)  alliado. 

É  impoífivel  demorar  por  um  momento  a  attenção  Ibbre 
efte  immenfo  feito  de  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello 
fem  regiftrar  ao  pé  de  tão  grande  nome  o  de  um  homem  il- 
luftre,  que  nós  vimos  defcer  á  campa  nos  tempos  modernos, 
carregado  de  annos  e  de  ferviços,  e  cercado  de  uma  venera- 
ção publica  raras  vezes  egualada.  Sem  fe  elevar  ás  alturas  de 
que  o  grande  miniftro  domina  a  fua  e  a  nofla  epocha,  Joa- 
quim António  de  Aguiar,  a  quem  as  circumftancias  não  im- 
pozeram  tão  onerofa  tarefa,  teve  o  mérito  infigne  de  fer  o 
homem  de  uma  grande  idéa,  e  a  felicidade  rara  e  in^■eja- 
vel  de  a  levar  a  cabo.  Joaquim  António  de  Aguiar,  o  hon- 


tis 


si» 


rado  minirtro  da  rertauração  portugueza,  proferiu  poucas 
palavras:  mas  eíTas  deixaram  um  veftigio  indelével  e  fize- 
ram echo  no  mundo.  « Com  frades  a  liberdade  é  impoíTi- 
vel!»  Eis  a  fua  thele  em  toda  a  fua  mudez  e  na  linguagem 
do  tempo.  E  poíTivel  que  hoje  achaíTemos  uma  formula 
de  maior  âmbito  e  ao  mefmo  tempo  mais  exada;  mas  fo- 
ram eíTes  os  termos  que,  fegundo  a  tradição,  primeiro  lhe 
acudiram  aos  lábios,  aquelles  que  elle  repetia  conllante- 
mente  até  que  pôde  finalmente  obter  a  anciada  afTignatura 
para  o  decreto,  em  virtude  do  qual  no  mefmo  dia  e  á  mefma 
hora  em  Portugal  fe  fecharam  todos  os  conventos  depois  de 
expulfos  todos  os  feus  habitantes. 

E  inútil  e  defleal  voltar  o  rofto  para  não  encarar  todas 
as  peripécias  dolorofas  a  que  inevitavelmente  dão  logar  me- 
didas de  tal  ordem.  Então,  como  feíTenta  annos  antes,  um 
numero  a%ailtado  de  homens  abatidos  pelos  annos,  incapazes 
de  exercer  induftria  alguma,  foram  lançados  fem  conforto,  e 
talvez  fem  pão,  aos  tormentos  e  ás  vergonhas  da  miferia. 
Muitos  d'elles  tinham  crenças  íinceras;  alguns  polTuiam  a 
cultura  que  com  taes  crenças  era  compatível.  Um  homem, 
cuja  memoria  nós  todos  venerámos  pelo  leu  talento,  íaber 
e  caracter,  e  pelos  relevantes  ferviços  que  preífou  ao  paiz, 
deixou  cair  da  fua  valente  penna  expreíTões  cheias  de  aze- 
dume para  cenfurar  cile  acto  evidentemente  indifpenfavel. 
Alexandre  Herculano  teve  a  forte  de  muitos  dos  feus  illus- 
tres  contemporâneos,  a  cujo  efpirito  fó  chegou  a  luz  do  cri- 
tério moderno  quando  a  fua  obra  já  eftava  muito  adiantada 
ou  concluída,  e  quando  a  orientação  fcientifica  lo  podia  fer- 
vir  para  moftrar-lhe  os  paífados  defvios  do  próprio  penfa- 
mento,  e  quando  já  não  era  tempo  de  refazer  a  fua  difciplina 
mental.  E  eífe  talvez  o  fegredo  do  acérrimo  defencantamen- 
to  que  nos  pareceu  enfombrar  o  ultimo  quartel  da  vida  do 
audor  da  Vo{  do  Propheta. 


4tÍ3 
^ .-<W 


Amante  da  liberdade,  fem  duvida,  aírufi:avam-n'o  as  ou- 
fadias  de  Joaquim  António  de  Aguiar.  Ainda  que  conhe- 
cendo bem  o  allemão,  Alexandre  Herculano  parece  ter-fe 
conlervado  afaftado  d'eíTe  movimento,  que  já  em  feu  tempo 
faziam  em  torno  da  qiie/tão-focial  os  Katheder-Jocialijlen  das 
margens  do  Spree.  Apezar,  porém,  das  cenfuras  d'eíT:e  ho- 
mem eminente,  ou  antes,  apezar  do  feu  fentimentalifmo,  a 
pofteridade  applaudiu  o  ado  do  miniftro  de  D.  Pedro  IV, 
como  applaudira  o  do  miniftro  de  D.  Jofé  I,  que  ahás  Her- 
culano jamais  impugnou. 

Aquelle  cancro  Ibcial  foi  por  duas  vezes  cauterizado  com 
fogo,  ou  antes  Joaquim  António  de  Aguiar  deu  a  ultima  de- 
mão  á  obra  de  Carvalho  e  Mello.  A  fotaina  negra  defappa- 
receu  para  fempre  de  Portugal,  aonde  não  mais  voltará.  Po- 
derão introduzir-fe  cavilofamente  algumas  feitas  folapadas. 
Dos  vãos  de  alguma  facriftia  húmida  ou  de  algum  palácio 
bolorento  podem  rumorejar-fe  algumas  imprecações  odien- 
tas contra  a  civilifação;  mas  á  luz  do  foi  apparece  fó  eífa 
reprefentação  hypocrita  em  que  o  phantafma  de  um  fyftema 
de  governo  defpreítigiado  e  o  phantafma  de  uma  theocracia 
caduca  fimulam  um  compromiífo  eíferil  em  cima  da  vora- 
gem que  os  deve  abforver  a  ambos. 

O  fentimentalifmo  latino  (die  lateinifche  fentimentalitãt)  le- 
vou-nos  a  fazer  poefia  com  as  ordens  religiofas.  Nos  clauftros 
e  nas  cathedraes  efgotaram  os  melhores  artiílas  o  melhor  do 
feu  talento.  Architedura,  efculptura,  pintura,  mufica  e  poefia 
encontraram  no  ideal  religiofo  muitas  e  bellas  infpirações. 

Miguel  Angelo,  Raphael,  Paleífrina,  Milton  (e  quantos 
outros?)  lhe  deveram  a  immortalidade,  fe  não  no  paraizo  ce- 
leftial  que  elles  fonhavam,  pelo  menos  na  memoria  dos 
homens.  O  amor,  eífe  fuave  inífinófo,  pervertido  pela  littera- 
tura  e  contrariado  pela  legiflação  —  conculcado  violentamen- 
te por  um  myllicifmo  afcetico,  ao  mefmo  tempo  irritante  e 

^%-h^ -^í»^ 


i3 

inexorável,  produziu  explofões  e  delirios  que  deviam  exaltar 
ardentemente  todas  as  phantafias.  Durante  muito  tempo  le- 
duziu-nos  a  contemplação  d'efles  milTionarios  que  iam  entre 
bárbaros  e  gentios  levar  o  gérmen  da  concepção  theogonica 
do  catholicifmo.  Mas  o  criticifmo  moderno  lança  Ibbre  eíles 
fados  uma  luz  dellumbrante  e  defapiedada.  Quantas  vezes  a 
intolerância,  ufual  companheira  das  convicções  profundas, 
deixou  da  noíTa  civilifação  entre  os  povos  felvagens  os  mais 
triftes  e  deploráveis  veftigiosP!  Quando  hoje  nos  acode  á 
mente  o  vulto  do  venerável  padre  António  Vieira,  todo  cheio 
da  fua  fabedoria,  enfinando  aos  indios  os  dogmas  do  catholi- 
cifmo, ficámos  eftupefados !  Invade-nos  um  fentimento  inti- 
mo e  profundo  de  trifteza  e  aíTombro!  Envolve-nos  uma 
atmofphera  de  duvida  e  defanimo!  Taes  fão  as  paragens  on- 
de vae  divagar  o  génio  e  o  faher  dos  homens! 

Qualquer  que  foíTe,  porém,  o  lyriímo  com  que  Chateau- 
briand  e  tantos  outros  quizeffem  reaccender  os  enthufiafmos 
esfriados,  a  arvore  do  fobrenaturalilmo  mirrou  para  fempre. 
Sebaítião  Jofé  de  Carvalho,  como  Voltaire  e  feus  confrades, 
fizeram  quanto  homens  ifolados  podiam  fazer  para  a  cortar 
pela  rama.  Eftava  refervado  á  grande  philofophia  d'eíl:e  fe- 
culo  vibrar-lhe  o  golpe  final,  decepando-lhe  a  raiz.  O  tronco 
que  até  agora  reverdecia  de  um  lado  quando  o  amputavam 
do  outro,  não  pôde  mais  haurir  a  feiva  do  folo  em  que  íe 
alimentava.  A  corrente  da  metaphyfica  eftancou  para  fempre. 
A  evolução  orgânica  eítá  concluída;  agora  refta  fó  a  obra  da 
decompofição. 


Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  defpreftigiou  a  nobreza,  apre- 
fentando-a  ao  publico  como  ré  dos  mais  nefandos  delicios. 
e  fijjeitando-a  a  caftigos  infamantes.  Não  feremos  nós  quem 

?^ ^ ..A-i. 


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'4 


defenda  os  tormentos,  nem  ainda  a  pena  de  morte;  mas  o 
que  hoje  ninguém  admittirá  é  que  os  Tavoras  e  os  Aveiros 
deveíTem  eítar  perante  a  juftiça  em  condições  mais  favoráveis 
que  o  ultimo  homem  do  povo;  e  firmar  eíte  principio  era  da 
maior  importância  focial. 


É  hoje  moda  cenfurar  os  erros  económicos  do  miniftro 
de  D.  Jofé.  Não  admira  que  elle  ignoraíTe  uma  Iciencia,  cuja 
exiftencia  era  ainda  ha  poucos  annos  conteítada  por  homens 
do  mais  fubido  critério  e  cujos  principios  fundamentaes  fão 
fempre  portos  em  duvida.  Hoje  por  certo  nenhum  eftadiíta 
referendaria  um  decreto  prohibindo  a  exportação  dos  me- 
taes  preciofos;  entretanto,  quantas  intuições  verdadeiramente 
geniaes  revelavam  um  tado  adminiftrativo,  que  parecia  o  re- 
fultado  de  uma  deducção  fcientifica?! 

Sebaftião  de  Carvalho  promulgou  leis  fumptuarias,  e  ves- 
tiu-fe  e  fez  vcftir  a  corte  com  o  panno  ordinário  da  manufa- 
ftura  portugueza.  Não  falta  quem  exclame:  «Grandes  erros 
económicos!»  Não  é  efte  o  logar  de  difcutir  as  leis  fumptua- 
rias, mas  não  fe  acha  em  taes  difpofições  o  gérmen  da  con- 
demnação  d'eíre  Jijiphifmo  que  Laveleye  combate  tão  vido- 
riofamente,  pelo  qual  a  fociedade  fe  condemna  a  um  trabalho 
Ímprobo  para  obter  o  fuperfluo  e  o  inútil,  emquanto  lhe  falta 
o  neceíTario  e  o  indifpenfavel? 


Na  reforma  da  inítrucção  publica  Sebaftião  Jofé  de  Car- 
valho introduziu  modificações  profundas;  nenhuma  por  certo 
mais  importante  do  que  aquella  que  fujeitou  o  direito  romã- 


i5 

no  ao  critério  da  boa  raião.  É  verdadeiramente  notável  que 
Carvalho  ahrifle  aíTini  a  porta  á  reforma  da  conftituição  da 
propriedade  conforme  o  direito  quiritario,  que  ainda  hoje  é 
apenas  uma  afpiração  de  alguns  poucos  efpiritos  mais  adian- 
tados como  Laveleye,  H.  Spencer  e  H.  George.  Entreviu 
elle  a  falfidade  dos  principies  económicos  e  jurídicos  que 
tornam  a  miferia  companheira  infeparavel  da  civilifação, 
e  cuja  demonftração  por  abllirdo  chegou  ao  ultimo  grau  de 
evidencia  na  Irlanda? 

Os  efpiritos,  bem  como  os  aítros,  procedem  por  um  mo- 
vimento complexo  de  rotação  e  de  tranllação.  O  mefmo  fe 
pôde  dizer  das  fociedades,  e  d'aquelles  que  as  dirigem.  Ha 
uma  ferie  de  fados  que  defpertam  diariamente  outras  tantas 
refoluções,  que  fe  impõem  a  cada  momento,  e  que  exigem 
prompto  defpacho;  eíTes  conflituem  a  adividade  da  rota- 
ção diária,  que  de  um  certo  ponto  de  •\iita  fe  pôde  dizer 
puramente  individual.  Mas  os  efpiritos,  como  as  focieda- 
des, como  os  aítros,  obedecem  também  a  uma  lei  de  muito 
maior  alcance,  traçando  nos  efpaços  infinitos  do  céu  ou  do 
penfamento  elfa  linha  de  vaftiífimas  proporções,  que  os  as- 
trónomos denominam  orbita,  e  que  nas  diítancias  incom- 
menfuraveis  do  univerfo  ou  do  ideal  levam  a  paragens  des- 
conhecidas. 

Emquanto  os  efpiritos  modeítos  efquecem,  fe  é  que  ja- 
mais chegaram  a  comprchender,  a  importância  dos  feus  des- 
tinos, aquelles  que  faíram  mais  rijamente  temperados  das 
mãos  da  natureza  alongam  os  olhos  de  águia  pelas  regiões 
do  infinito  e  indicam  ás  multidões  o  caminho  do  progreífo. 
O  rude  camponez  cujas  preoccupações  não  ultrapaífam  o 
limite  do  campo  que  cultiva,  ou  quando  muito  chegam  ao 
mercado  em  que  vende  os  feus  produdos,  ficaria  repaífado 
de  terror  fe  lhe  fizcífem  comprchender  que  durante  toda  a 
fua  vida  é  arrebatado  e  revolvido  por  efpaços  e  abyfmos  fem 


eis 


cia 


i6 

fim,  com  uma  rapidez  mil  vezes  mais  vertiginofa  que  a  da 
pluma  abandonada  ás  fúrias  do  tufão. 

A  adminiftração  de  Carvalho  e  Mello  tem  aíTim  duas 
partes  diftindas:  a  da  economia  diária  e  interna  e  a  da  evo- 
lução focial.  A  primeira  fem  duvida  merece  o  maior  elogio. 
A  reorganilação  de  um  paiz  corrompido  e  defmantelado, 
depois  do  defaífre  immenfo  de  um  terremoto,  exigiu  real- 
mente uma  adividade  aíTombrofa.  A  fua  grandeza  principal, 
porém,  terá  fempre  por  fundamento  a  parte  que  cUe  tomou 
na  evolução  focial,  na  obra  do  futuro.  É  principalmente  por 
aquillo  que  elle  trabalhou  para  nós,  que  a  pofteridade  fera 
fempre  grata  á  fua  memoria. 

D.  Jofé  entendeu  dever  premiar  ao  modo  da  epocha  o 
feu  miniftro,  conferindo-lhe  titulos  nobiliários  e  condecora- 
ções. Aos  eruditos  e  aos  aulicos  compete  regiítrar  e  apreciar 
eífas  manifeftações  do  real  agrado.  Em  noífos  dias  um  rei 
elevando  um  grande  homem  a  taes  alturas  faz  lembrar  aquelle 
governador  de  Sevilha  exornando  com  efpeífas  camadas  de 
oca  e  de  vermelhão  os  magníficos  mofaicos  do  Alcazar. 
Affim  como  o  bom  gofto  moderno  reftaurou  os  antigos  pri- 
mores artiílicos  da  civilifação  agarena,  compete-nos  também 
aprefentar  perante  a  pofteridade  o  grande  miniftro,  fob  o 
feu  nome  verdadeiro,  efcoimando-o  d'eíras  fuperfetações  pa- 
rafitas  com  que  a  fatuidade  principefca  queria  chancellar  o 
génio. 

Era  defculpavel  a  intenção.  A  burguezia  então  não  tinha 
preftado  o  bom  ferviço  de  defpreftigiar  eífas  frandulagens  que 
aliás  ainda  fão  objecto  de  ambição  e  de  refpeito  para  muita 
gente. 

Quando  Sebaftião  de  Carvalho  caiu  do  poder  aconteceu 
como  nas  grandes  commoções  geológicas,  em  que  o  folo  á 
beiramar  fe  levanta  inopinadamente  fazendo  recuar  as  aguas 
a  immenfa  diftancia.  Uma  onda  pavorofa,  torpiíTima  de  to- 


eis 


'7 

das  eíTas  fezes  que  as  ruins  paixões  accumularam  ao  longe, 
irrompeu  com  dobrada  fúria  Ibbre  eíTe  terreno  abandona- 
do. A  ignorância  odienta,  a  fuperítição  rancorofa  do  clero  e 
da  nobreza,  longo  tempo  refreadas,  precipitaram-fe  fobre  o 
pobre  Portugal,  que  então  caiu  mais  baixo  que  nunca.  Ao 
devorarem  a  prcfa  todos  procuravam  o  miniflro  para  n'elle 
faciarem  a  vingança.  Sebaftião  de  Carvalho  podia  exclamar 
como  Álvaro  Vaz  de  Almada  na  batalha  de  Alfarrobeira: 
«Fartar,  villanagem!»  O  derradeiro  padre,  o  ultimo  fidalgo 
idiota  vinham  atirar  o  feu  infulto  ao  leão  moribundo!  A  gran- 
deza da  obra  do  eítadifta  pôde  medir-fe  pela  violência  da 
reacção.  O  efpeítaculo  que  então  aprefentou  Portugal  teria 
feus  traços  de  ridículo  íe  a  grandeza  da  cataftrophe  o  não 
tornaíTe  verdadeiramente  medonho.  Os  Lilliputianos  debal- 
de tentavam  triangulizar  o  gigante  que  efcapava  com  o  feu 
immenfo  vulto  ás  mais  efticadas  concepções  dos  feus  ini- 
migos! Debalde  o  queriam  enlear  com  os  ténues  fios  em 
armadilhas  de  pigmeus!  A  fombra  do  coloíTo  proftrado  es- 
magava feus  miferos  perfeguidores !  Aquelle  nome  que  ecli- 
pfára  e  annullára  a  realeza,  lançava  agora  um  clarão  finiftro 
e  uma  maldição  implacável  fobre  quantos  o  vilipendiavam, 
condemnando-os  ao  pelourinho  da  hiftoria.  Tal  é  a  vingança 
do  génio!  Aquelles  bandos  de  frades  e  fidalgos  famélicos  e 
fandeus,  no  meio  dos  quaes  fe  agitava  uma  rainha  louca, 
precipitavam-fe  fobre  o  erário  para  devorar  os  milhões  que 
o  previdente  miniflro  ali  accumulára.  Recomeçava  em  larga 
efcala  o  trafico  fordido  para  beneficiar  as  almas  no  outro 
mundo.  Exhumavam-fe  os  mortos  e  as  reputações.  Reviam- 
fe  os  proceíTos,  reformavam-fe  as  fentenças  paífadas  em  jul- 
gado; e  como  no  bello  quadro  do  pintor  allemão  a  fombra 
de  Shakefpeare  aíFifte  folitaria  fob  as  arcadas  monumentaes 
de  Weítminfler  ao  desfilar  de  todos  os  perfonagens  creados 
pelo  feu  génio  poderofo,  Sebaftião  de  Carvalho  pôde  aíTiftir 

■^ ^ *-^ 


í|9  eja 

-i-0-« -V-l- 

i8 

de  braços  cruzados  do  alto  do  immenfo  pedeftal  do  exilio, 
que  feus  ineptos  inimigos  lhe  haviam  levantado  em  Pombal, 
a  eíTa  trifte  mafcarada  de  uma  immenfa  legião  de  fanáticos 
que  fe  defpenhava  inconfciente  no  immenfo  abyfmo  do  des- 
prezo da  pofteridade!  Encarado  do  feu  verdadeiro  ponto  de 
vifta,  o  infortúnio  do  grande  miniftro  é  bello  e  digno  de  in- 
veja. Se  o  applaufo  dos  bons  e  entendidos  aíTignala  a  verda- 
deira grandeza,  efta  íempre  recebe  a  fua  mais  inconteftavel 
confirmação  do  vilipendio  dos  maus  e  dos  incapazes.  Galli- 
leu  fem  a  inquifição,  Dante  fem  o  exilio,  Jeíus  lem  o  Gol- 
gotha  feriam  incompletos.  Depois  de  taes  ódios  e  de  taes 
infultos  elle  podia  focegadamente  baixar  á  campa,  certo  de 
que  feus  golpes  tinham  ferido  fundo,  e  de  que  a  femente 
lançada  á  terra  germinaria  em  tempo  opportuno.  Nada  fal- 
tava á  fua  gloria.  A  bella  eftrophe  de  Le  Franc  de  Pompi- 
gnan  dará  fempre  a  mais  primorofa  imagem  do  génio  ludi- 
briado: 

O  negro  lá  nas  paragens 

Onde  o  Nilo  tem  o  berço 
Lançava  infultos  felvagens 

Ao  aftro  rei  do  univerfo. 

Era  ridícula  a  offenfa! 
Emquanto  na  efphera  immenfa 

Se  perdiam  taes  clamores, 
O  deus  dos  raios  ardentes 
Jorra\'a  a  luz  em  torrentes 

Sobre  os  vis  blafphemadores! 

Sebaflião  de  Carvalho  tinha  plena  confciencia  da  immen- 
fa crife  focial  que  íe  preparava.  Bramiam  furdamente  debai- 
xo da  terra  os  elementos  que  breve  iam  fazer  explofão.  Car- 
valho attento  preftava  o  ouvido  e  exclamava:  «Meus  filhos 
ainda  viverão  focegados;  mas  meus  netos  . . . ! » 


■9 

Effedivamente  fete  annos  depois  que  elle  cerrara  os  olhos 
á  luz  do  dia  rebentava  a  glorioía  Revolução  Franceza.  Em 
Portugal  lo  em  1820  fe  deram  as  primeiras  manifeftações 
publicas  da  regeneração  focial.  O  esforço  confiante  do  clero 
e  da  nobreza  para  obfcurantizar  aquelle  pobre  paiz  ainda 
pôde  produzir  a  volta  de  Villa  Franca,  a  mais  ominofa  pagina 
da  hiftoriada  realeza  depois  da  fuga  de  D.  João  VI  para  o 
Brazil.  Mas  o  fevero  caftigo  dos  jeíuitas  deixiíra  fundo  vefti- 
gio  na  memoria  popular.  A  nação  não  podia  efquecer  como 
fe  flagellava  a  nobreza  na  praça  publica.  AíTim,  o  mais  que 
a  realeza  confeguiu  (e  não  foi  pouco)  foi  eíTa  tranfacção 
hibrida  do  governo  monarchico  reprefentativo,  em  que  o 
quarto  ejlado  foi  mais  uma  vez  facriíicado  juntamente  com 
a  dignidade  de  todos.  Mas  o  impulfo  dado  pelo  grande  mi- 
niftro  lente-le  lempre.  Agora  que  um  leculo  depois  de  fua 
morte  as  fuás  intenções  começam  a  fer  claramente  entendidas, 
depois  de  corrido  o  véu  dos  tempos,  elle  tem  direito  á  honrofa 
denominação  de  «grande  cidadão». 

E  tal  a  força  da  previfão  do  génio  que  foi  precifo  que 
decorre íTem  cem  annos  para  que  bem  o  comprehendeffemos. 
Mas  emfim  chegou  o  dia  em  que  lhe  podemos  fazer  plena 
juftiça  e  ir  diante  da  fua  effigie  depofitar  palmas,  coroas  e 
flores.  A  forma  efculptural  do  monumento  da  praça  do  Com- 
mercio  poderia  dar  logar  a  uma  confufão,  que  cumpre  evitar 
a  todo  o  curto. 

Ordenado  por  Sebaftião  de  Carvalho,  o  rifco  do  monu- 
mento tinha  de  feguir  fatalmente  as  exigências  da  epocha 
em  que  fora  levantado.  AíTim  eífe  monumento  configna  uma 
injurtiça  graviíTima,  que  o  nobre  povo  portuguez  reparará 
por  certo  no  dia  em  que  entrar  definitivamente  na  poífe  do 
feu  próprio  governo.  A  eftatua  equcftre  deve  fer  refundida 
para  reprefentar  o  vulto  coloífal  e  auftero  do  grande  inicia- 
dor da  evolução  focial,  em  Portugal,  no  feculo  xviii. 


cts 


No  logar  em  que  fe  acha  adualmente  o  feu  medalhão 
deverá  engaftar-fe  o  do  rei  que  foube  efcolher  e  fuftentar  tal 
miniftro.  Efperâmos  que  no  dia  14  de  julho  de  1889,  por 
occafião  do  grande  centenário,  poderemos  fob  eíTa  forma  ra- 
cional e  definitiva  preftar-lhe  as  noíTas  homenagens. 


Rio  de  Janeiro. 


Henrique  Corrêa  Moreira. 


eis 


A  DERRADEIRA  INJURIA 


E  ainda,  nymphas  minhas,  não  bastava.. 
Camões,  Liíj.  vii,  Si. 


I 


^t/i  ^^  ^"^  féretro  poílo  em  folitaria  igreja  ? 

ÒmF^    EíTe  pó  que  defcanfa,  e  fe  efconde,  e  fe  fome, 

Traz  de  um  grande  miniftro  o  formidável  nome, 
Que  em  vivas  letras  de  oiro  e  lagrimas  flammeja. 


Lá  fora  uma  invafáo  efqualida  braceja. 
Como  um  mar  de  miferia  e  luto,  que  tem  fome 
E  novas  praias  bufoa  e  novas  praias  come, 
Emquanto  a  multidão,  recuando,  peleja. 

O  gaulez  que  perfegue,  o  bretão  que  defende. 
Duas  mãos  de  um  deftino  implacável  e  occulto, 
Vão  fangrando  a  nação  exhaufta  que  fe  rende; 


4í|9 
— .Hjh^ 


D'entre  os  mortos  da  hiítoria  um  fó  único  vulto 
Não  refurge;  um  Pacheco,  um  Caflro  não  attende; 
E  a  cobiça  recolhe  os  defpojos  do  infulto. 


II 


Ora,  na  Iblitaria  igreja  em  que  le  ha  pofto 
O  féretro,  fe  alguém  podeíTe  ouvir,  ouvira 
Uma  voz  cavernofa  e  repaíTada  de  ira, 
De  trifteza  e  defgofto. 

Era  uma  voz  fem  rofto, 
Um  echo  fem  rumor,  uma  nota  fem  lyra. 
Como  que  o  fufpirar  do  cadáver  difpofto 
A  rejeitar  o  leito  eterno  em  que  dormira. 

E  ninguém,  falvo  tu,  ó  pallido,  ó  fuave 

Chriíto,  ninguém,  excepto  uns  três  ou  quatro  fantos, 

Envolvidos  e  fós,  nos  feus  fombrios  mantos, 

Ninguém  ouvia  em  toda  aquella  efcura  nave 
Deífa  voz  tão  fevera,  e  tão  trifte,  e  tão  grave, 
Murmurados  a  medo,  as  cóleras  e  os  prantos. 


III 

E  dizia  eíTa  voz: —  «Eis,  Lufitania,  a  efpada 
Que  reluz,  como  o  foi,  e,  como  o  raio,  lança 
Sobre  a  attonita  Europa  a  morte  enfanguentada. 

-i-A-^ -ò^ 


23 

«Venceu  tudo;  eil-a  ahi  que  te  fere  e  te  alcança, 
Que  te  rafga  e  te  põe  na  cabeça  proftrada 
O  terrível  lignal  das  legiões  de  França. 

«  E,  como  fe  o  furor,  e,  como  fe  a  ruina 
Não  baftaíTem  a  dar-te  a  pena  grande  e  inteira, 
Vem  juntar-fe  outra  dor  á  tua  dor  primeira, 
E  o  que  a  efpada  começa  a  triíteza  termina. 

«  Es  o  campo  funefto  e  rude  em  que  fe  afina 
Pugna  eftranha;  não  tens  a  gloria  derradeira 
De  devolver  farpada  e  vencida  a  bandeira, 
E  fer  Xerxes  embora,  ao  pé  de  Salamina. 


IV 


« No  emtanto,  ao  longe,  ao  longe  uma  comprida  hifloria 

De  batalhas  e  defcobertas. 
Um  entrar  de  continuo  as  portas  da  memoria 

Efcancaradamente  abertas, 

« Enchia  efta  nação,  que  aprendera  a  viíloria 

N'aquella  crefpa  idade  antiga. 
Quando,  em  vez  do  repoufo,  era  a  lei  da  fadiga, 

E  a  gloria  coroava  a  gloria. 

«  E  aíTim  foi,  palmo  a  palmo,  e  reduílo  a  redufto, 
Que  um  punhado  de  heroes,  que  um  embryão  de  povo 
Levantara  efte  reino  novo; 


ela 


ti» 


«  E  livre,  independente,  effe  afpero  produdo 
Da  immenfa  forja  pôde,  achegando-fe  ás  plagas. 
Fitar  ao  longe  as  longas  vagas. 


V 


«  Era  efcaíTo  o  torrão;  por  compenfar-Ihe  a  mingua, 
AíTim  foi  que  dobrafte  aquelle  occulto  cabo, 
Não  fabido  de  Plinio,  ignorado  de  Strabo, 
E  que  Homero  cantou  em  uma  nova  lingua. 

<r  Affim  Ibi  que  podéfte  haver  Africa  adufta. 
Alia,  e  effe  futuro  e  defmedido  império. 
Que  no  fecundo  chão- do  recente  hemifpherio 
A  femente  brotou  da  tua  raça  auguíta. 

«  Eis,  Lufitania,  a  obra.  Os  feculos  que  a  viram 
Emergir,  como  o  foi  dos  mares,  e  a  poliram, 
Tranlmittem-lhe  a  memoria  aos  feculos  futuros. 

«  Hoje  a  terra  de  heroes  foffre  a  planta  inimiga. . . 
Quem  podéra  mandar  aquelles  peitos  duros! 
Quem  foubera  empregar  aquella  força  antiga!» 


VI 


E  depois  de  um  filencio: —  « Um  dia,  um  dia,  um  dia 

Houve  em  que  n'efla  nobre  e  antiga  monarchia 

Um  homem,  —  paz  lhe  feja  e  a  quantos  lhe  confomem 

A  fangrada  memoria, — houve  um  dia  em  que  um  homem, 


eis 


«  Pofto  ao  lado  do  rei  e  ao  lado  do  perigo 
Viu  abater  o  chão;  viu  as  pedras  candentes 
Ruirem;  viu  o  mal  das  coufas  e  das  gentes, 
E  um  povo  inteiro  nú  de  pão,  de  luz  e  abrigo. 

« EíTe  homem,  ao  litar  uma  cidade  em  oíTos, 
Terror,  diíTolução,  crime,  fome,  penúria, 
l^ão  íe  deixou  cair  co'os  últimos  deftroços. 

« Oppoz  a  força  á  força,  oppoz  a  pena  á  injuria, 
Reftituiu  ao  povo  a  perdida  hombridade, 
E  onde  era  uma  ruina  ergueu  uma  cidade. 


VII 


» EíTe  homem  eras  tu,  alma  que  ora  repoufas 
Da  cobiça,  da  gloria  e  da  ambição  do  mando, 
Eras  tu  que  um  deflino,  e  propicio,  e  nefando, 
Ao  faftigio  elevou  dos  homens  e  das  coufas. 

« Eras  tu  que  da  lede  ingrata  de  miniftro 
Fizefte  um  folio  ao  pé  do  folio;  tu,  liniftro 
Ao  paliado,  tu  novo  obreiro,  afpero  e  duro. 
Que  traçavas  no  chão  a  planta  do  futuro. 

«Tu  querias  fazer  da  hifloria  uma  fó  maífa 
Nas  tuas  fortes  mãos,  tenazes  como  a  vida, 
A  mafla  obediente  e  nua. 


«|9 


20 


«  A  luminola  effigie  tua 


Quizefte  dar-lhe,  como,  á  brônzea  eftatua  erguida, 
Que  o  feculo  corteja,  inda  aíTuftado,  e  paffa. 


VIII 


I 


«  Contra  aquelle  edifício  velho 
Da  nobreza,  —  elevado  ao  lado  do  edifício 

Da  monarchia  e  do  evangelho, — 
Tu  pozefte  a  reforma  e  pozeíle  o  fíjpplicio. 

«  Querias  defí;ruir  o  vicio 
Que  a  teus  olhos  roia  eíTa  fabrica  enorme, 

E  começafl:e  o  duro  officio 
Contra  o  que  era  caduco,  e  contra  o  que  era  informe. 

«  Não  te  fez  recuar  n'eíre  afpero  duello 
Nem  dos  annos  a  flor,  nem  dos  annos  o  gelo. 
Nem  dos  olhos  das  mães  as  lagrimas  fagradas. 

«  Nada;  nem  o  negror  auftero  da  batina. 
Nem  as  débeis  feições  da  graça  feminina 
Pela  veneração  e  pelo  amor  choradas. 


IX 


«  Ah!  fe  por  um  prodígio  efpecial  da  forte, 
Podeífes  emergir  das  entranhas  da  morte. 
Cheio  d'aquella  antiga  e  fera  gravidade, 
Com  que  falvafte  uma  cidade; 


tis       I 


«  Quem  fabe?  Não  houvera  em  tão  longa  campanha 
Enfanguentado  o  chão  do  lufo  a  planta  eftranha, 
Nem  correra  a  nação  tal  dor  e  taes  perigos 
Ás  mãos  de  amigos  e  inimigos. 

«  Tu  ferias  o  mefmo  afperrimo  e  impaíTivel 
Que  viu,  fem  defmaiar,  o  conflicto  terrível 
Da  natureza  efcura  e  da  efcura  alma  humana; 

« Que  levantando  ao  céu  a  fronte  foberana, 

«  — Eis  o  homem! »  diífefte: —  e  a  garra  do  dcftino 

hidelevel  te  poz  o  feu  fignal  divino.  » 


X 

E,  foltado  eífe  lamento 
Ao  pé  do  grande  moimento, 
Calou-fe  a  voz,  dolorida 
De  indignação. 

Nenhum  outro  fom  de  vida 
N'aquella  igreja  efcondida. . . 
Era  uma  paufa,  um  momento 
De  folidão. 

E  continuavam  fora 
A  morte,  dona  e  fenhora 
Da  multidão; 


ela 


(is 


28 


E  devaftava  a  batalha, 
Como  o  temporal  que  efpalha 
Folhas  ao  chão. 


XI 


E  effa  voz  era  a  tua,  ó  trifte  e  folitario 
Efpirito!  eras  tu,  forte  outr'ora  e  vibrante. 
Que  poufavas  agora,  — apenas  fcmtillante, — 
Sobre  o  féretro,  como  a  luz  de  um  lampadário. 

Era  tua  eíTa  voz  do  aíylo  mortuário, 
Effa  voz  que  efquecia  o  ódio  triumphante 
Contra  o  que  havia  feito  a  tua  mão  poffante, 
E  a  inveja  que  te  deu  o  pontual  falario. 


E  comtigo  fallava  uma  nação  inteira, 

E  gemia  com  ella  a  hiltoria,  não  a  hiftoria 

Que  bajula  ou  deítroe,  que  morde  ou  fantifica. 


Não;  mas  a  hiftoria  pura,  auftera,  verdadeira, 
Que  de  uma  vida  errada  a  parte  que  lhe  fica 
De  gloria,  não  efconde  ás  ovações  da  gloria. 


XII 

E,  tendo  emmudecido  effa  garganta  morta, 
O  filencio  voltara  áquella  nave  efcura, 
Quando  fubitamente  abre-fe  a  velha  porta, 
E  penetra  na  igreja  uma  eftranha  figura. 


eis 


eis 


si» 


^9 

Depois  outra,  e  mais  outra,  e  mais  três,  e  mais  quatro, 
E  todas,  eftendendo  os  braços,  vão  abrindo 
As  trevas,  cofteando  os  muros,  e  feguindo 
Como  a  confpiração  nas  tábuas  de  um  theatro. 

E  param  juntamente  em  derredor  do  leito 
Ultimo  em  que  defcanla  eíTe  único  delpojo 
De  uma  vida,  que  foi  uma  longa  batalha. 

E  emquanto  um  fere  a  luz  que  as  tcnebras  efpalha, 
Outro,  com  geíto  firme  e  firmilTimo  arrojo, 
Toma  nas  cruas  mãos  aquelle  rei  desfeito. 


XIII 


Então. . .  O  homem  que  viu  arrancarem-lhe  aos  braços 
Poder,  gloria,  ambição,  tudo  o  que  amado  havia: 
EíTe  que  foi  o  foi  de  um  feculo,  que  um  dia. 
Um  fó  dia  baftou  para  fazer  pedaços; 

Que,  íe  aos  hombros  atara  uma  purpura  nova. 
Viu,  farrapo  a  farrapo,  arrancarem- lh'a  aos  hombros. 
Que  padecera  em  vida  os  últimos  aíTombros, 
Tinha  ainda  na  morte  uma  ultima  prova. 

Era  a  brutal  rapina,  anonyma,  nodurna. 
Era  a  mão  cafual,  que  efpedaçava  a  urna 
A  troco  de  um  galão,  a  troco  de  uma  cfpada; 


eis 


-^-o 


Oh. ■ *-Ò-%- 


Que,  depois  de  tomar-lhe  effes  fignaes  funeítos 
Da  fombra  de  um  poder,  pegou  dos  triftes  reftos, 
OíTos  íb,  e  efpalhou  pela  nave  fagrada. 


XIV 

AíTim  pois,  nada  falta  á  gloria  d'eíte  mundo, 
Nem  a  perfeguição  repleta  de  ódio  e  fanha, 
Nem  a  fértil  inveja,  a  livida  companha. 
De  tudo  o  que  radia  e  tudo  que  é  profundo. 

Nada  falta  ao  poder,  quando  o  poder  acaba, 

Nada;  nem  a  calumnia,  o  efcarneo,  a  injuria,  a  intriga, 

E,  por  trifte  coroa  á  merencória  liga, 

A  ingratidão  que  efquece  e  a  ingratidão  que  baba. 

Faltava  a  violação  do  ultimo  fomno  eterno, 
Não  para  faciar  um  ódio  infaciavel, 
Infaciavel  como  os  círculos  do  inferno. 

E  deram-t'a;  eis-te  ahi,  ó  grande  invulnerável, 
Eis-te  oflada  fem  nome,  elparfa  e  miferavel. 
Sobre  um  pouco  de  chão  do  ninho  teu  paterno. 

Machado  de  Assis. 


o  MARQUEZ  DE  POMBAL 


E  A  CIVILISACAO  BRAZILEIRA 


(is 


u  fei  que  na  apreciação  dos  grandes  typos 
da  hiftoria,  o  que  mais  lhes  realça  o  brilho 
e  mais  interelía  aos  feus  admiradores  fão  os 
ferviços  por  elles  preííados  á  humanidade 
em  geral.  Goftàmos  de  ver  antes  do  cidadão 
—  o  penfador;  antes  do  patriota  —  o  homem. 
Pombal  é  um  d'eíres  que,  trabalhando  para 
o  leu  paiz,  defprendeu  forças  em  elphera  tão  alta,  encarou 
problemas  tão  geraes,  que  léus  feitos  intereíTam  á  caufa  do 
género  humano.  Atravez  do  portuguez  brilha  n'elle  o  efpiri- 
to  do  feculo  dos  encyclopediflas.  Deixando,  porém,  a  outros 
a  tarefa  de  encaral-o  d'elTa  altura,  leja-me  permittido  pegar 
o  aíTumpto  por  um  lado  mais  particular,  pela  face  america- 
na, brazileira.  Pombal  foi  um  fador  poderolb  do  defenvol- 
vimento  do  Brazil;  foi  um  agente  de  ditFerenciação  pátria, 
indigcna,  para  nós  outros  americanos;  ajudou-nos  na  elabo- 
ração da  epocha  mais  fecunda  da  noffa  hiftoria.  Qualquer 
que  leja  o  deftino  que  os  leculos  futuros  tenham  de  preparar 


tia 


a  Portugal,  qualquer  que  feja  o  encurtamento  ou  prolação 
do  raio  de  feus  feitos,  não  fera  menos  certo  que  a  fundação 
de  um  povo  em  o  novo  continente,  a  preparação  da  pátria 
brazileira,  ha  de  fer  contada  como  o  feu  maior  titulo  hiftori- 
co.  O  velho  duello  travado  na  Europa  moderna  entre  latinos 
e  germânicos  tem  de  protrahir-fe  na  America  em  fua  luda 
pela  civilifação. 

Pombal  foi  um  elemento  de  vida,  um  eflimulo  de  força 
na  Europa  e  no  novo  mundo.  Em  feu  esforço  para  acabar 
com  os  últimos  veftigios  da  idade  media  em  Portugal,  o  mi- 
niflro  de  D.  Jofé  não  fe  efqueceu  do  Brazil,  e  póde-fe  dizer 
que  os  refultados  aqui  obtidos  foram  mais  brilhantes  do  que 
os  da  Europa. 

Não  fei  até  que  ponto  dever-fe-ha  repetir  o  logar  com- 
mum  hiftorico  da  união  dos  reis  e  dos  povos  contra  os  no- 
bres e  o  clero,  paflagem  natural  para  o  predominio  da  bur- 
guezia.  Em  Portugal,  pelo  menos,  o  plano  parece  não  ter 
fido  confciente,  nem  garantido  pelos  refultados. 

A  luda  de  Pombal  contra  o  clero  e  a  nobreza  teve  um 
carader  circumfcripto,  quafi  peífoal;  e  com  o  defappareci- 
mento,  e  ainda  em  tempo  do  illuftre  miniflro,  o  clero  e  a 
nobreza  acharam-fe  no  mefmo  pé  de  outr'ora,  arrogantes  e 
oufados,  em  fua  eterna  união  com  a  realeza.  O  povo,  eífe 
fempre  ifolado  e  batido  em  feus  direitos. 

Em  Portugal  e  Brazil  não  devemos  Ibnhar  o  conforcio 
da  realeza  e  do  povo  contra  padres  e  nobres;  realeza,  clero 
e  ariífocratas  foram-fe  defmoronando  a  pouco  e  pouco  pela 
carcoma  que  lhes  devorava  o  intimo,  batidos  pelo  efpirito 
dos  tempos,  e  efte  efpirito  é  preparado  lentamente,  penivel- 
mente,  pelo  povo,  fem  alliados  contra  o  tríplice  inimigo. 

Pombal  é  um  benemérito  da  hiíforia,  não  por  ter  fonha- 
do  a  alliança  do  rei  e  do  povo,  não  por  ter  aniquilado  a  no- 
breza c  a  clerezia;  elle  o  c  como  grande  adminiífrador,  que 


tis 


th 


33 

não  trepidara  em  introduzir  em  Portugal  medidas  progreíTi- 
vas,  que  eftimularam  o  delenvolvimento  nacional  e  abriram 
alli  a  porta  ao  efpirito  do  feu  feculo.  E  como  o  elpirito  do 
feu  feculo  trazia  no  leio  a  femente  transformadora  e  revolu- 
cionaria, o  minilíro  de  D.  Jole  I,  talvez  fem  o  faber,  foi  um 
auxiliar  do  defenvolvimento  democrático.  O  que  o  lalva  na 
hiftoria  é  o  leu  tempo;  elle  é  feliz  cm  ter  fido  homem  de  lua 
epocha. 

Mas  vejamos  rapidamente  o  que  era  então  o  Brazil.  Em 
lySo,  quando  começa  a  avolumar-le  a  eíírella  de  Pombal, 
a  colónia  portugueza  já  tinha  todos  os  elementos  de  feu  de- 
fenvolvimento ulterior.  Duzentos  e  cincoenta  annos  tinham 
bailado  para  a  fundação  de  noílas  cidades,  a  arroteação  de 
noíTos  campos,  a  profperidade  de  noífas  induíirias.  O  efpirito 
publico  eftava  formado.  A  nação  eftava  ainda  na  puerícia; 
já  moftrava,  porém,  o  viço  das  juventudes  fortes  e  fadias. 

Todas  as  luclas  que  enchem  o  quadro  da  hiftoria  da 
America  tinham  fido  pelejadas  aqui.  Os  velhos  direitos  e 
pripilegios  feudaes  dos  donatários  tinham  quafi  todos  cedido 
ante  o  poder  monarchico;  o  7miniápalifmo  burguei  tinha  me- 
dido forças  com  a  nobreza  territorial  na  guerra  dos  Mafca- 
tes;  os  negros  tinham  lavrado  o  leu  protefto  de  homens  no 
poema  dos  Palmares-,  o  nativifmo  tinha-fe  oftentado  no  des- 
dém aos  Emboabas;  o  patriotifmo  tinha  levantado  todas  as 
claífes  contra  os  extrangeiros — na  libertação  de  Pernambu- 
co, do  Rio  de  Janeiro  e  Maranhão;  os  fetichiftas  Índios  já 
haviam  lido  fuftigados  ou  cfcravifados  pelos  Bandeiras;  o 
Amazonas,  ao  norte,  já  tinha  revelado  os  feus  fegredos,  e 
o  Rio  Grande,  ao  fui,  lido  o  theatro  da  rivalidade  dos  feus 
povos  ibéricos,  que  vieram  continuar  luas  juftas  na  penin- 
fula  meridional  da  America. 

Toda  uma  efcola  de  poetas,  chroniftas  e  oradores  tinha 
florccido  no  Brazil;  o  génio  de  Gregório  de  Mattos  achara 


ela 


grande  meíTe  para  a  fatyra.  São  de  notar  as  invedivas  d'efte 
poeta,  o  primeiro  da  lingua  no  feu  tempo,  contra  governa- 
dores, padres  e  grandes  funccionarios,  indicando  d'eft'arte  a 
confciencia  que  o  efpirito  popular  já  poíTuia  de  fi  melmo. 
Pitta  lançara  os  primeiros  lineamentos  de  noíTa  hiftoria;  mui- 
tos brazileiros  tinham-fe  paíTado  á  Europa  e  confeguido  gran- 
de laliencia  nas  lettras  e  na  politica. 

E liava  preparado  o  folo  d'onde  deveria  brotar  a  flor  da 
poefia  mineira,  e  bem  perto  bruxuleava  a  luz  da  Inconjiden- 
cia.  A  libertação  era  qucftão  de  algumas  décadas. 

A  fegunda  metade  do  feculo  xviii  no  Brazil  é  a  noíTa 
epocha  de  mais  fecundos  efpiritos.  A  mocidade  do  tempo  de 
Pombal  fornece  a  plêiade  brilhante  de  brazileiros,  que  influem 
nos  negócios  e  na  litteratura  do  reino,  continuando  as  tradi- 
ções dos  dois  irmãos  Alexandre  e  Bartholomeu  de  Guímão. 

«Já  n'eíre  tempo,  principalmente  defde  o  Marquez  de 
Pombal,  vemos  filhos  do  Brazil  occupando  os  primeiros  car- 
gos do  Eftado  e  outros  diftinguindo-íe  com  efcriptos  que 
ganharam  nomeada.  João  Pereira  Ramos,  um  dos  reforma- 
dores da  univerfidade,  é  guarda  mór  do  archivo  da  Torre 
do  Tombo.  Seu  irmão,  o  bifpo  de  Coimbra,  D.  Francifco  de 
Lemos,  é  reitor  e  reformador  da  univerfidade;  D.  Jofé  Joa- 
quim Juftiniano  Mafcarenhas  foi  feito  bifpo  do  Rio  de  Ja- 
neiro, ília  terra  natal;  o  báculo  de  Pernambuco  foi  confiado 
a  D.  Francifco  da  Affumpção,  natural  de  Marianna,  depois 
a  D.  Diogo  de  Jefus  Jardim,  de  Sabará,  e  mais  tarde  a 
D.  Jofé  Joaquim  de  Azeredo  Coutinho,  de  Campos.  D.  Tho- 
maz  da  Incarnação,  natural  da  Bahia,  é  audor  de  uma  co- 
nhecida Hiftoria  ecdefiaftica,  publicada  em  Coimbra  em  qua- 
tro tomos.  O  francifcano  Jaboatão,  nafcido  na  villa  d'efle 
nome,  publicou  uma  hiftoria  de  fua  ordem  feraphica  no  Bra- 
zil; Pedro  Taques  Paes  c  Fr.  Gafpar  da  Madre  Deus  efcre- 
^•eram  memorias  hiftoricas  fobre  a  lua  pro^•incia  de  S.  Pau- 

-i-<ç>-— »A-§. 

4»  e|í 


lo;  Jofé  Monteiro  de  Noronha,  do  Pará,  em  cuja  fé  foi  vigá- 
rio capitular,  era  um  ecclefiaflico  de  baftante  laber. 

«Na  advocacia  diftinguiram-fe  os  cioutores  Ignacio  F. 
Silveira  da  Motta  e  Saturnino,  e  como  magiítrado  fez-fe  mui- 
to notável  o  defembargadorVellolb. 

«Também  nas  fciencias  alguns  brazileiros  ganharam  ce- 
lebridade n'eíta  epocha:  Alexandre  Rodrigues  Ferreira,  o 
Humboldt  brazileiro,  com  fuás  extenfas  viagens  pelos  fer- 
tões  do  Pará;  Jofé  Bonifácio  de  Andrada,  viajando  como 
mineralogifta  pela  Europa,  do  mefmo  modo  que  o  naturalis- 
ta Manuel  d'Arruda  Camará  c  o  lluminenfe  António  de  Nola, 
ao  depois  lente  em  Coimbra;  Coelho  de  Seabra,  efcrevendo 
tratados  de  chimica,  além  de  muitas  diífertações  fcientificas; 
Conceição  Vellofo,  trabalhando  em  fua  grande  Flora  flwni- 
nenfe  e  deixando  impreíTos  muitos  tratados  compoílos  ou 
traduzidos;  o  Dr.  Jofé  Vieira  de  Couto,  naturalifta  em  Mi- 
nas; Manuel  Jacinto  Nogueira  da  Gama,  diftinguindo-fe  cm 
Coimbra  nas  mathematicas,  do  mefmo  modo  que  Francifco 
Villela  Barbofa,  e  vindo  ambos  reger  cadeiras  d'eífas  fcien- 
cias; Pires  da  Silva  Pontes,  encarregado  dos  tratados  de  li- 
mites e  de  levantamento  de  cartas  no  Brazil;  Jofé  Feliciano 
Fernandes  Pinheiro,  occupando-fe  de  traducções  de  obras 
que  podiam  ter  applicação  á  indullria  do  paiz;  Silva  Fei- 
jó, naturalifta  empregado  em  explorações  nas  ilhas  de  Cabo 
Verde;  Jofé  Pinto  de  Azevedo,  medico  diflindo  da  efcola  de 
Edimburgo,  e  outros'.» 

Faltam  ahi  os  nomes  de  Silva  Lifboa  e  Hippolyto  da 
Corta,  o  economifta  e  o  jornalifta,  ambos  pertencentes  á  mo- 
cidade do  tempo. 

Por  efta  profperidade  da  intelligencia  manifefta-fe  a  con- 
ftituição  orgânica  do  Brazil. 


'  Varnhagen,  Florilégio,  tom.  i,  pag.  54  e  fegg 


e|5 


36 

Alguns  fedarios  da  fynietria  na  hiftoria  explicam  o  ex- 
pedaculo  do  deíenvolvimento  americano  como  uma  efpecie 
de  reproducção  do  que  fe  tem  dado  na  Europa  a  datar  da 
idade  media.  Levados  por  efte  penfamento  dirigente,  divi- 
dem os  povos  europeus  em  latinos  e  germânicos,  catholicos 
e  proteftantes,  e  os  da  America  em  duas  iguaes  categorias; 
e  d'ahi  deduzem  uma  commoda  philofophia  da  hiftoria. 

Se  os  hoUandezes,  por  exemplo,  fão  expulíbs  de  Per- 
nambuco, é  que  era  providencial  para  a  marcha  da  huma- 
nidade a  manutenção  da  unidade  catholica  na  America  do 
fui.  Por  um  raciocinio  análogo  dever-fe-ha  dizer  que  a  ex- 
pulfão  dos  francezes  de  territórios  dos  Eftados  Unidos,  foi 
também  providencial  para  a  manutenção  do  predomínio  pro- 
teftante  na  America  do  Norte.  Entretanto  a  hiftoria  não  fe 
prefta  a  accommodações  tão  rápidas.  Na  Europa  não  exis- 
tem fomente  latinos  e  germânicos,  catholicos  e  proteftantes; 
é  mifter  contar,  pelo  menos,  com  os  flavos  e  celtas,  e  fôra 
neceífario  que  todas  as  raças  d'alli  tiveífem  reprefentantes 
no  novo  continente  para  fer  perfeita  a  femelhança  e  exaflo 
o  equilíbrio. 

Além  d'ifto  os  allemães,  o  exemplar  mais  acabado  de 
fua  raça,  os  francezes  e  os  italianos,  os  mais  perfeitos  do  gru- 
po latino,  não  fundaram  aqui  nacionalidades  novas;  e  bem 
fe  comprehende  que  a  Providencia  deveria  efcolher  os  exe- 
cutores de  feus  planos  entre  os  mais  progreíTivos  reprefen- 
tantes dos  povos  europeus  que  defejava  tranfportar  para  a 
America. 

Tal  theoria  tem,  além  do  mais,  o  defeito  de  confiderar  a 
civilifação  americana  como  um  todo  emigrado,  um  movei 
de  luxo  transferido  no  convés  dos  navios  da  Europa  para 
efte  continente;  c  paíTa  a  efponja  fobre  os  elementos  autóno- 
mos fornecidos  pelas  raças  indígenas,  pela  acção  do  meio 
phyfico  e  pelos  povos  africanos  encorporados  a  nós. 


37 

No  Brazil  todos  eftes  elementos  devem  fer  ponderados. 
efclarecidos  em  fua  acção! 

A  noíTa  hiftoria  não  é,  não  pôde  fer,  pois,  uma  copia 
fer^■il  da  hiftoria  de  Portugal;  não  fomos  um  povo  de  nave- 
gantes. .  .  e  defde  ahi  começa  a  ditferença  entre  a  colónia 
e  a  metrópole. 

A  boa  politica  a  feguir  no  Brazil  feria  a  que  deixaífe 
plena  liberdade  á  acção  das  diverfas  raças  exiftentes  no 
paiz,  fem  impor  o  predomínio  de  uma  fobre  as  outras  por 
meio  de  uma  efpecie  de  felecção  artificial,  feria  a  que  aju- 
daífe  o  defenvolvimento  normal  do  povo  brazileiro  pela  fe- 
lecção natural. 

A  efta  luz  é  que  Pombal  furge  aureolado  do  feio  de 
noífa  hiftoria. 

Por  meia  dúzia  de  fados  capitães  comprehender-fe-ha 
todo  o  alcance  da  acção  do  eftadifta  fobre  o  defenvolvi- 
mento do  Brazil: 

a)  A  abolição  dos  últimos  direitos  feudaes  e  reverfão  para 
o  Eftado  das  capitanias  reftantes; 

b)  Emancipação  dos  indios  do  Pará  e  Maranhão,  e  de- 
pois de  todo  o  Brazil; 

c)  Expulfão  dos  jefuitas  e  derrota  de  feus  planos  anti- 
nacionaes ; 

d)  Facilidade  de  viagem  para  navios  do  Brazil  e  creação 
de  companhias  de  commercio,  como  as  do  Pará  e  Maranhão, 
Pernambuco  e  Parahyba; 

e)  Elevação  do  paiz  a  vice-reinado  com  a  mudança  da 
capital  para  o  fui,  a  creação  de  uma  relação  c  de  efcolas 
publicas; 

f)  Cuidado  ás  noífas  queftões  de  limites  ao  norte  e  fui. 

Pombal  compenetrou-fe  da  importância  da  grande  coló- 
nia portugueza,  e  attribue-fe-lhe  ate  vagamente  o  penfamen- 
to  de  mudar  a  fede  da  monarchia  para  Belém,  no  Pará. 


ft|s 


As  três  primeiras  medidas  que  ficaram  efpecificadas  en- 
cerram todo  o  leu  penlamento  politico  Ibbrc  o  Brazil.  Era 
a  idéa  clara  de  fazer  do  paiz  um  todo  compado,  com  os 
mefiiios  direitos  diante  do  poder  central.  Ao  mefino  tempo 
indiredamente  contribuia  o  miniil:ro  para  definantelar  a  ten- 
dência poíTivel  do  jefuita  para  a  formação  de  uma  nação 
em  que  predominaria  talvez  o  caboclo.  Pombal  quebrou  a 
efte  as  cadeias,  pondo-o  em  pé  de  igualdade  com  os  de- 
mais colonos  e  expulfando  o  jefuita.  O  indio  deixou  de  ler 
uma  força  politica,  paffando  ao  papel  de  fimples  contribui- 
dor  ethnico.  Se  tiver  ao  diante  de  fer  vencido  na  lucia  pela 
civilifação,  dever-fe-ha  queixar  fomente  da  natureza. 

As  outras  medidas  referem-le  ao  delenvolvimento  eco- 
nómico e  Ibcial  da  colónia.  O  Brazil  era  então,  como  ainda 
hoje,  quer  ao  norte,  quer  ao  fui,  agricultor;  mas  atraveífava 
o  momento  económico  da  defcobería  das  minas  de  oiro  no 
centro  de  Minas. 

O  oiro  tinha  fido  incentivo  para  o  povoamento  do  inte- 
rior já  antes  de  Pombal;  mas  nos  últimos  annos  do  governo 
de  D.  Jofé  a  producção  efcaífeava.  O  miniftro  comprehen- 
deu  que  os  áureos  tempos  de  D.  João  V  tinham  paífado. 
Não  poz  no  oiro  toda  a  fua  efperança;  a  agricultura,  a  in- 
duífria  e  o  commercio  lhe  mereceram  mais  attenção. 

Os  outros  ados  referem-fe  ás  condições  geographicas  da 
nação,  que  procurava  as  luas  fronteiras  naturaes.  Por  efie 
lado  o  poderofo  miniftro  não  foi  de  todo  feliz;  mas  é  certo 
que  não  affignaria  os  tratados  vergonhofos  de  1777  e  1778. 

De  todos  ertes  factos  a  expulfão  dos  jefuitas  é  o  que 
tornou  mais  ruidofa  a  paífagem  de  Pombal  pelo  poder.  A 
acção,  porém,  do  miniftro  poderofo  não  aífume  aos  olhos 
dos  efpiritos  calmos  um  carader  phenomehal.  Além  de  ler 
igualmente  praticado  n'outros  eftados  da  Europa,  não  con- 
ftituindo  afllm  uma  originalidade  portugueza,  accrcfce  que 


-<>-f. 

muitiíTimo  natural  era  o  choque  entre  a  famofa  e  turbulenta 
ordem  e  o  poder  civil.  O  conceito  jeluitico  da  foberania  in- 
directa dos  papas  Ibbre  o  temporal  era  levado  a  exceíTo  e 
devia  chocar  mefmo  aos  reis  catholicos,  fideliffimos  e  chrijlia- 
niffimos .  .  . 

Não  fou,  por  certo,  inclinado  a  admirar  muito  a  vicloria 
de  reis,  que  le  arrogam  um  direito  diinno  contra  os  padres 
que  julgam  difpor  da  graça  divina.  Uns  e  outros  fe  ajudam 
ou  combatem  conforme  as  circumftancias  do  momento. 

Apefar  de  muito  lacunofa  n'efte  ponto,  a  acção  de  Pom- 
bal tem  o  mérito  de  ler  uma  expreíTão  dos  fentimentos  libe- 
raes  da  epocha. 

Quanto  ao  Brazil,  não  padece  duvida  a  vantagem  da 
coerção  do  poder  jefuitico.  O  jefuita  no  feculo  xvi,  quando 
ainda  não  tinha  grandes  planos  políticos,  foi  útil  para  a  co- 
lonifação  d'eíta  parte  da  America.  Nos  feculos  feguintes  a  lua 
acção  religiofa  era  quafi  nulla,  e  a  fua  influencia  politica  e 
focial  nociva. 

Ha  alguma  coufa  de  phantafiofo  na  opinião  d'aquclles 
que  pretendem  em  noíTa  hiftoria  eftabelecer  um  dualilino 
confciente  de  duas  forças  que  fe  chocam  durante  os  três  fe- 
culos primeiros  da  conquifta:  o  colono  portuguez  e  o  negro 
de  um  lado;  o  jefuita  e  o  caboclo  de  outro. 

A  theocracia  Ibnhada  pela  ordem  famofa  não  pretendia 
fundar-fe  exclufivamente  no  Brazil  onde  exiftiam  caboclos, 
e  fim  também  onde  os  não  havia,  como  no  próprio  Portu- 
gal. Aqui  na  America  o  jefuita  fazia  a  fua  propaganda  tanto 
entre  os  indios,  como  entre  os  negros  e  os  portuguezes.  E 
natural  que  entre  eftes  não  encontraífe  tantos  adeptos,  como 
entre  os  felvagens. 

Não  fe  lhe  deve,  porem,  attribuir  o  plano  confciente  da 
exclufão  do  elemento  europeu.  As  coufas  poderiam  chegar 
a  eíte  refultado  por  caufas  eítranhas  á  vontade  dos  padres. 

4*  4* 


4° 

Nem  a  lua  expulfão  do  Brazil  foi  da  parte  de  Pombal  uma 
prova  de  receio  n'aquelle  fentido;  foi  antes  uma  confequen- 
cia  de  fua  expulfão  da  metrópole,  onde  feguramente  não 
havia  perigo  de  que  vieffe  a  predominar  o  caboclo. 

Como  quer  que  foíTe,  o  illuftre  miniílro  de  D.  Jofé  I,  por 
feus  aítos,  contribuiu  para  o  defenvolvimento  normal  d'efte 
paiz,  como  nação  latina,  como  um  prolongamento  da  civili- 
fação  Occidental.  E  efte  o  feu  titulo  aos  olhos  dos  brazilei- 
ros.  Os  últimos  cem  annos  que  paíTaram  fobre  a  morte  d'es- 
te  grande  homem  hão  confirmado  fuás  efperanças  e  idéas 
fobre  o  Brazil.  Devemos  confideral-o  como  um  dos  agentes 
de  noífo  progreíTo:  é  de  juftiça  que  o  apreciemos  tanto  quan- 
to admirou  o  noífo  compatriota,  aquelle  illuftre  efpirito  que 
fe  chamava  Bafilio  da  Gama. 

Repitamos  com  elle,  fallando  do  grande  miniftro: 

« Para  fer  immortal  teu  nome  auguIl:o 

Náo  depende  do  bronze  derretido; 

Em  mais  firmes  padrões  fica  inlculpido.» 

Sim,  fica  infculpido  em  noífa  hiíloria;  ficará  gravado 
onde  quer  que  eftejam  efcriptos  os  nomes  dos  bemfeitores 
da  humanidade! 

Syl\'io  Romero. 


eis 


o  MARQUEZ  DE  POMBAL 


A  LIBERDADE  DOS  ÍNDIOS 


4? 


ara  julgarmos  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho 
e  Mello,  depois  conde  de  Oeiras,  e  depois 
marquez  de  Pombal,  cumpre  eítudar  os  feus 
ados,  no  tempo  em  que  viveu,  e  portanto 
n'eíre  terceiro  período  da  idade  moderna,  que 
vae  defde  a  paz  de  Utrecht  (171 3)  até  a  inde- 
pendência dos  Eítados  Unidos  (1776),  que,  na  opinião  de 
Minghetti,  foi  precurfora  da  revolução  franceza. 

Não  é  porém  noíTo  intuito,  nas  ligeiras  paginas  que  va- 
mos traçar,  em  commemoração  do  primeiro  centenário  da 
morte  do  marquez  de  Pombal,  formar  juizo  d'aquelle  que 
julgado  eftá  n'eíl:e  mefmo  livro,  por  quem  tem  o  efpirito  en- 
riquecido de  lições  de  hiítoria,  e  o  aprefenta  qual  elle  foi  á 
confciencia  imparcial  dos  contemporâneos. 


4» 


42 

Vamos  vel-o,  depofitario  de  todos  os  poderes  Ibciaes 
pela  confiança  cega  e  illimitada  de  um  rei  abfoluto;  qual  o 
uíb  que  fez  d'eíres  poderes  em  relação  ao  Brazil,  então  coló- 
nia; fe  foi  além  das  idéas  do  feu  íeculo;  e  qual  o  beneficio 
que,  defapaixonadamente  aquilatado  pelo  Brazil,  hoje  im- 
pério, o  eleve  ao  pantheon  dos  bemfeitores  da  humanidade. 

Nas  viagens  e  defcobertas  de  nopos  mundos,  que,  no  dizer 
de  Draper,  marcam  os  primeiros  tempos  em  que  começa 
para  a  Europa  a  epoclia  da  raião,  as  nações  fe  infpiravam 
em  idéas  erróneas,  que  lanccionavam  uma  barbara  jurifpru- 
dencia  ainda  enunciada  por  Mello  Freire  no  feguinte  prin- 
cipio: SERVI  AUT  NASCUNTUR,  AUT  FIUNT. 

Era  um  principio  de  puro  romanifino,  herdado  do  berço 
da  humanidade,  e  que  as  doutrinas  do  Chrifto  não  tinham 
ainda  podido  fiipplantar. 

SubmiíTos  a  efliis  idéas,  e  fob  o  eíl:andarte  cuja  legenda 
era  v.e  victis,  correram  os  ardentes  argonautas  fobre  os 
povos  do  novo  mundo,  e  os  hefpanhoes,  mais  do  que  outros 
quaefquer,  condemnavam  os  que  efcapavam  á  morte  afphy- 
xiante  das  minas  ás  duras  penas  do  captiveiro. 

Os  portuguezes,  lenhores  pela  delcoberta  de  Pedro  Al- 
vares Cabral  das  plagas  dos  Brazis  ou  terra  de  Santa  Cruz, 
dominio  e  poíTe  aíTegurada  pela  decifão  do  fupremo  arbitro 
dos  tempos,  Alexandre  VI,  não  podiam  confiderar  os  indigc- 
nas  lenão  como  povos  conqui fiados. 

Foram  talvez  mais  brandos,  porque  mais  brandos  eram 
os  feus  coftumes,  mais  humanos  os  fentimentos  dos  feus  co- 
rações, mas  nem  por  illo  le  levantaram  acima  das  falfas 


4J 


crenças  do  dia,  e  ligados  a  eíTas  crenças  também  fizeram 
elcravos  entre  os  povos  conquiftados. 

Embora  fe  não  fizeíTem  tardar  os  protefi:os,  lavrados  pe- 
las leis  dos  fenhores  reis  de  Portugal,  em  obediência  aos 
diélames  das  bulias  do  Vaticano  a  favor  da  liberdade  dos  Ín- 
dios, embora  denodados  e  defintereíTados  apoftõios  do  chris- 
tianilmo  n'aquellas  paragens,  como  o  immortal  padre  Antó- 
nio Vieira,  ÍLiftentaíTem,  com  arroubos  de  uma  convincente 
eloquência,  e  por  ados  de  inquebrantável  vontade,  o  grande 
principio  da  liberdade  dos  homens,  que  o  invido  reforma- 
dor do  mundo  focial  havia  pregado,  como  bafe  de  uma  mo- 
ral defconhecida  aos  antigos  philofophos,  é  certo  que  o  mar- 
quez  de  Pombal  teve  de  intervir  para  acabar  com  abufos 
inveterados,  alimentados  por  intereíTes  individuaes,  em  me- 
nofcabo  de  preceitos  de  leis  tão  fabiamente  promulgadas. 

Affim  é  que  pela  lei  de  6  de  junho  de  lySõ  recommendou 
a  execução  de  outras  leis  anteriores,  cujas  difpofições  pare- 
ciam efquecidas,  as  quaes  ordenavam  que  as  peíToas  dos 
Índios,  como  o  feu  trabalho,  como  a  fi.ia  propriedade,  eram 
invioláveis  e  fagradas,  e  mandou  que  eíTas  leis  também  fos- 
fem  applicadas  aos  indios  do  Pará  e  do  Maranhão;  injio 
ejlar  reconhecido,  diz  a  lei,  que  a  caiifa  que  tem  produzido  tão 
pernicio/os  eff eitos  confijtia,  confijle  ainda,  em  fe  não  haverem 
Jujlentado  os  ditos  indios  na  liberdade  que  a  feu  favor  foi  de- 
clarada pelos  fumtnos  pontifices,  e  pelos  fenhores  reis  meus  pre- 
deceffores. 

Parece  porém  que,  apefar  de  tão  decifivas  como  termi- 
nantes medidas,  que  apefar  da  voz  dos  fummos  pontifices, 
e  de  feus  enviados  apoftolicos,  o  erro  continuava  pelo  abufo, 
que  alimentavam  fordidos  e  inconfeífaveis  intereíTes,   pelo 


4  si» 

-• •'Ò-h 


44 


que  o  grande  miniftro  promulgou  a  lei  de  8  de  maio  de 
1758. 

Efla  lei  declara  livres  fem  reftricção  a  todos  os  índios 
habitando  os  domínios  de  Portugal,  bem  como  todos  os  feus 
bens,  aíTim  de  raiz  como  femoventes  e  moveis,  a  fua  lavoura 
e  o  feu  commercio. 

E  defde  então  nenhum  indio  mais  dentro  do  território 
de  jurifdicção  portugueza  foi  confiderado  escravo. 

Não  era  poílivel  que  quem  levava  a  liberdade  aos  povos 
da  colónia,  deixaíTe  que  na  metrópole  fe  fizeíTe  trafico  de 
carne  humana,  e  que  debaixo  de  feu  céu  alguém  nafcelTe 
com  o  ignominiofo  ferrete  da  efcravidão. 

E  por  ilTo  fez  promulgar  o  alvará  de  ig  de  leptembro 
de  1761,  prohibindo  a  entrada  de  efcravos  em  Portugal, 
fob  pena  de  ferem  confiderados  livres;  e  por  iíTo  mais 
tarde  fez  promulgar  o  alvará  de  16  de  janeiro  de  lyyS, 
declarando  que  ninguém  mais  nafceria  efcravo  em  terras 
de  Portugal. 

Lendo-fe  o  primeiro  alvará  não  fe  pôde  deixar  de  reco- 
nhecer que  um  governo,  por  fer  abíbluto,  feja  defpota  ou 
tyranno,  defprezando  ou  ufurpando  direitos  individuaes. 

D.  Jofé  n'eíre  alvará  decreta  que  o  efcravo  vindo  a  Por- 
tugal em  companhia  de  feu  fenhor,  torna-fe  livre,  como  fe 
de  ventre  livre  tivelle  nafcido. 

Até  aqui  efta  difpofição  nada  tem  de  arbitraria :  fica  tudo 
dependente  da  vontade  do  fenhor. 

ela  tis 


45 

Mas  a  difpolição  poderia  dar  logar  a  abufo,  e  eíTe  abufo 
o  alvará  trata  de  impedir,  dizendo,  que  eítá  fora  da  protec- 
ção da  lei  o  efcravo  que  /ponte  Jua  fuja  e  venha  a  terras  de 
Portugal ;  eíTe  voltará  na  fua  condição  ao  logar  d'onde  faíu. 

Não  fe  confagra  melhor  o  direito  de  propriedade  par- 
ticular. 

Lendo-fe  o  fegundo  alvará  encontra-fe  n'elle  confagrado 
um  principio  de  fã  philofophia,  e  que  um  feculo  depois  vi- 
mos alguém  conteftar  em  nolTo  parlamento! 

AíTim  fe  exprime  o  alvará:  « . . .  E  que  todos  os  fobreditos, 
por  eíFeito  d'efl:a  minha  paternal  e  pia  providencia  liberta- 
dos, fiquem  hábeis  para  todos  os  oíiicios,  honras  e  dignida- 
des, fem  a  nota  difhnda  de  libertos,  que  a  fuperftição  dos 
romanos  eftabeleceu  nos  feus  coftumes,  e  que  a  união  chriftã, 
e  a  fociedade  civil  faz  hoje  intolerável  no  meu  reino,  como 
o  tem  fido  em  todos  os  outros  da  Europa » . 

Grandiofo  contraíte!  Em  1778  o  marquez  de  Pombal 
não  quer  que  o  eítado  de  efcravidão  fira  e  humilhe  aquelle 
que  d'elle  faíra  ou  d'elie  nafcèra,  acompanhando-o  com  a 
nota  diftinííta  de  libertos,  equivalente  a  eíTa  marca  em  braza 
que  o  arbítrio  leva  ao  corpo  do  egreífo  das  galés,  como  fe 
a  pena  não  tiveífe  expiado  o  crime. 

A  liberdade,  qual  as  aguas  luftraes  do  baptifmo,  lava 
toda  a  culpa  original. 

Perante  a  lei  todo  o  cidadão  deve  fer  igual  no  direito  e 
na  dignidade  humana,  tenha  ou  não  pertencido,  tenha  ou 
não  nafcido  n'eíre  eftado,  completamente  eítranho  á  fua  von- 


ti» 


46 

tade,  incompatível  com  a  fua  natureza  moral;  eftado  e  con- 
dição anormal  que  fó  fe  fuítenta  pela  força  bruta  efmagadora 
de  todo  o  direito. 

A  infâmia  da  pena,  confequencia  da  infâmia  do  crime, 
perde-fe  pela  rehabilitação. 

Quem  fe  tornou  infame  pelo  crime  tem  o  dever  de  fe 
moftrar  regenerado  e  digno  da  fociedade. 

A  ignominia  da  efcravidão  morre,  defapparece  comple- 
tamente pelo  a6lo  da  manumiíTão. 

O  homem  innocente  que  gemeu  nos  ferros  da  efcravi- 
dão, pela  vontade  tão  fomente  de  outrem,  não  tem  o  dever 
de  fe  moftrar  regenerado;  —  readquire  direitos  que  a  violên- 
cia fequeftrára,  é  livre  como  fempre  o  devera  fer. 

A  ignominia  da  efcravidão  não  pôde  infamar  o  homem 
que  adquire  a  fua  liberdade,  porque  o  homem  por  vontade 
própria  jamais  feria  efcravo. 

A  doutrina  de  Pombal  Ibbre  os  eífeitos  da  efcravidão,  no 
feculo  XVIII,  moftra  quanto  efle  grande  efpirito  já  havia  ca- 
minhado, arcando  e  vencendo  falfos  preconceitos,  prejudi- 
ciaes  fuperftições,  que  fó  podem  fer  vencidas  pela  educação 
e  illullração,  aliás  n'eífe  tempo  mefquinhas  e  limitadas. 

É  certo,  pois,  que  por  taes  aflos  reformadores,  quando 
no  congreífo  de  Vienna,  em  181  5,  as  grandes  potencias  dis- 
cutiram e  proclamaram  a  abolição  da  efcravatura,  o  pequeno 
Portugal  não  foi  de  certo  a  nação  a  quem  fimilhante  doutrina 
furprehendeu,  porque,  graças  ao  miniftro  marquez  de  Pom- 


el» 


47 

bal,  quarenta  annos  antes  já  tinha  fido  decretado:  ninguém 
pija  falo  litfitano  como  ejcravo,  ninguém  vè  pela  primeira  vei 
a  luiJob  o  céu  das  terras  de  Viriato  que  não  Jeja  homem  liire. 

E  porque  Pombal,  que,  com  tanto  denodo  quanta  ga- 
lhardia, foube  cortar  abufo  por  abulo,  e  tornar  a  liberdade 
dos  Índios  uma  realidade ;  porque  Pombal,  que  com  tanta 
convicção  quanta  tenacidade  foube  aífrontar  intereffes,  com- 
bater preconceitos,  proclamando  a  liberdade  do  ventre,  c  tor- 
nando inacceíTiveis  as  fronteiras  de  Portugal  ao  efcravo; 
por  que  razão  Pombal  deixou  que  nas  colónias  permaneceífe 
eíTa  mentira  ás  convicções  do  chriftão,  eífe  cancro  ao  futuro 
focial  —  o  efcravo? 

Foi  porque  a  um  homem  fó,  embora  a  um  homem  da 
altura  do  marquez  de  Pombal,  não  era  licito  concluir  a  obra 
que  um  feculo  ainda  não  pôde  completamente  realifar. 

Os  grandes  homens  que  fe  notam  de  tempos  a  tempos 
na  vida  das  nações,  muito  fazem  e  de  muito  fão  dignos, 
quando,  operários  providenciaes  da  civilifação,  deixam  cm 
feu  caminho  pedras  indeftruéliveis  que  fe  vão  accumulan- 
do,  e  formando  o  grande  edifício  focial-humanitario,  o  qual 
aliás  jamais  fera  completo,  porque  a  lei  do  progreífo  é  inde- 
finida! 

E  Sebaítião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  fe  tudo  não  fez, 
fez  muito  para  que  hoje  a  hilloria  o  confidere,  com  titulo 
indifputavel,  benemérito  e  bemfeitor  da  humanidade. 

N'eíl:e  coro  internacional  de  certo  que  não  deftoa  o  Brazil, 
não  fó  porque  feus  filhos  não  fão  dos  últimos  a  alimentar 
eífe  fentimento  fecundo  de  fraternidade,  que  é  a  bafe  da 


(is 


48 

união  de  todos  os  povos,  como  porque,  quando  olham  para 
a  hiítoria  de  fua  pátria,  n'ella  encontram  veftigios  valiofos 
das  elevadas  viítas  adminiftrativas  do  immortal  miniftro  de 
D.  Jofé  I. 

Rio  de  Janeiro,  3i  de  dezembro  de  1881. 

Dr.  Thomás  Alves  Júnior, 
advogado. 


(|9 


IL  MARCHESE  Dl  POMBAL 


cir  anno  in  cui  nafceva  Don  Sebaftiano  Car- 
valho, futuro  emancipatore  dei  Portogallo  dal 
dominio  temporalc  dei  clero,  ferveva  in  Roma 
ed  in  Torino  tra  Ia  corte  papale  e  il  Duca  di 
Savoia  Vittorio  Amedeo  il  Grande  una  gran 
lite  per  la  fucceíTione  nei  feudi  cofi  detti 
ecclefiaftici  dei  Piemonte;  chè,  il  Papa  ed  il 
Duca  di  Savoia  volevano  rivendicare  ciafcuno  a  lè  il  diritto 
di  nomina,  con  la  conceíllone  delle  relative  prebende.  Fu 
quello  il  primo  ferio  tentativo  che  11  fece  in  Piemonte  o,  per 
dir  meglio,  dai  principi  Sabaudi,  per  condurci  a  quclla 
compiuta  indipendenza  dello  flato  dalla  Chiefa,  una  delle 
opere  che  diftinfero  il  governo  riformatore  dei  fempre  com- 
pianto  Conte  Camillo  di  Cavour. 

Fin  dal  tempo  di  Vittorio  Amedeo  II,  rautorità  dei  domi- 
nio temporale  pontifício  in  Piemonte  fu  grandemente  fcoíTa; 
dei  che  fenti  la  Corte  Papale  cofi  grave  il  danno,  che  non 


ti» 


-<o^ 

5o 

tardo  a  minacciare  e  poi  a  lanciare  veramente  Pinterdetto, 
contro  il  piccolo  ftato  che  ofava  ribellarfi  alia  fua  autorità. 
Una  queftione,  come  accade,  ne  conduce  un'altra,  e,  in  bre- 
ve, 11  vide  il  Duca  Vittorio  Amedeo  II,  quantunque  uomo 
religiofo,  prendera  Tattitudine  d'un  principe  intieramente 
indipendente  innanzi  alia  Santa  Sede.  Sortenitore  prudente 
ma  animofo,  non  meno  che  dottiíTimo  de'  diritti  dei  principe 
innanzi  ai  Pontefice  ed  ai  CoUegio  de'  Cardinali,  era  Tamba- 
fciator  di  Savoia  Conte  Gerolamo  Marcello  De  Gubernatis, 
già  prefidente  dei  Senato  di  Nizza,  poi  ambafciatore  di  Sa- 
voia a  Madrid  ed  a  Lif  bona,  finalmente  Miniftro  di  Stato  a 
Torino  e  Gran  Canceliiere  di  Gafa  Savoia  nelFanno  ftelTo  in 
cui  il  Duca  di  Savoia  cambio  in  regia  la  fua  corona  ducale. 
Per  cura  di  lui  fu  nominato  il  fratello  Clemente  De  Guber- 
natis Grande  Inquifitore  di  Stato  a  Torino,  eh'  era  un  modo 
di  affermare  che  11  voleva  togliere  Tinquifizione  alia  fetta 
miíleriofa  che  1'aveva  fino  allora  governata,  per  farne  un 
tribunale  ordinário  e  manifefto  di  giuftizia  fovrana.  Volle  poi 
la  fortuna  delia  mia  vita,  che  la  mia  laurea  foffe  la  prima 
laurea  in  lettere  dei  nuovo  Regno  d'Italia  e  eh'  io,  nella  mia 
tell  di  floria,  imprendeíTi  a  combattere  con  argomenti  ftorici 
i  diritti  de'  pontefici  fi.il  potere  temporale  e  le  relative  dot- 
trine  dei  cardinal  Bellarmino;  dei  che  i  giornali  cattolici  dei 
Piemonte,  come  di  grave  fcandalo  univerfitario,  levarono 
allora  grande  rumore. 

Con  quefti  precedenti,  quantunque  ftraniero,  invitato  a 
fcrivere  alcune  parole  llil  marchefe  di  Pombal,  io  poíTo  dire 
con  fincerità  che  mi  trovavo  preparato  a  fimpatia  per  quel 
poço  che  già  conofcevo  delia  vita  operofa  dei  grande  rifor- 
matore  portoghefe.  Ma  quefta  fimpatia  faccrebbe  leggendo 
la  bella  monografia  dei  Conte  di  Carnota  fiai  Marchefij  di 
Pombal;  nè  valfe  a  diminuiria  la  leitura  delle  infami  Memorie 
che  i  Gefiiiti  divulgarono  in  parecchie  lingue  per  ofcurare  il 

-i-<Ò>- -i-l^ 


4  eis 
-li^ 

5i 

nome  dei  Sully,  dei  Colbert,  dei  Richelieu  portoghele.  Quan- 
tunque  io  intenda,  pur  troppo,  come  i  Gefuiti  ahbiano  fulla 
maggioranza  de'  lettori  ottenuto  intiero  il  loro  fcopo,  avendo 
effi  fatto  próprio  il  motto  dei  Voltaire :  calomnie{,  calomniei, 
queLpie  chofe  en  reftera,  il  fatto  íleíTo  che  il  Portogallo  ed  il 
Bralile  íi  preparano  a  rcftaurare,  cent'  anni  dopo  la  morte  dei 
marchefe  di  Pombal,  con  una  dimollrazione  Iblenne,  la  me- 
moria di  lui  oppreíTa  dalla  calunnia  pofluma  de'  fuoi  nemici, 
dimoílra  che  la  floria  è  finalmente  una  gran  giuftiziera. 

Vivendo  ora  io  da  molti  anni  in  Tofcana,  avrei  defiderato 
per  una  cofi  grande  occafione,  porgere  un  tributo,  che  valeíTe, 
alia  memoria  dei  Pombal,  raccogliendo  da  quefh  archivii  tutte 
le  notizie  che  giungevano  dal  Portogallo  alia  Corte  Gran- 
ducale,  nel  tempo  delFamminiftrazione  dei  grande  uomo  di 
ftato.  Ma,  difgraziatamente,  quefti  archivii  fono  quali  muti  in- 
torno  alia  floria  portoghele  di  quel  tempo.  Nella  rovina  delia 
dinaftia  Medicea,  le  relazioni  eftere  furono  quafi  intieramente 
interrotte,  e  nel  principio  dei  nuovo  governo  lorenefe  le  cure 
dei  riordinamento  interno  dello  flato  occuparono  talmente 
Tanimo  di  Pietro  Leopoldo,  ch'egli  pote  daríi  aíTai  piccoio 
penfiero  di  quello  che  accadeva  negli  altri  ftati,  coi  quali  gli 
baítava  di  poter  riftabilire  relazioni  ufiiciali  nella  forma  piú 
conveniente. 

Tuttavia,  poichè  dallo  ífelTo  povero  carteggio  di  Lifbo- 
na  alia  corte  lorenefe,  appare  di  tratto  in  tratto  in  ilcorcio 
la  figura  dei  conte  di  Oeyras,  come  d'uomo  occupatiíTimo, 
fpeíTo  infermo,  e  fovra  ogni  altro,  autorevole,  e  alcun  poço 
autoritário;  e  poichè  qualche  cofa  vi  c  pur  detto  che  può 
illuminarne  la  condotta  verfo  il  clero  e  verlb  le  nazioni  lira- 
niere,  io  credo  d'  interpretare  il  voto  degli  onorevoli  pro- 
motori  dei  Centenário  di  Pombal,  levando  da  due  filze  deli' 
archivio  lorenefe  que'  brani  che  poífono,  in  cjualche  modo, 
conferire  ad  illuminare  la  floria  portoghcfe  di  quel  tempo. 


-§-<>- -«i>-|- 

52 

II  Carteggio  incomincia  nell'  anno  1766.  II  refidente  au- 
ítriaco  Giambattifta  de  Kail  avea  puré  ricevuto  Tincarico  di 
rapprefentare  a  Lif  bona  il  Granduca  di  Tofcana.  Prima  pra- 
tica dovea  eíTer  quella  di  ftabilire  il  ceremoniale,  e  fi  fecero 
immediate  premure  perche  dai  Sovrani  dei  Portogallo  il  nuovo 
Granduca  veniíTe  trattato  come  Altezza  Reale  e  come  Cu- 
gino.  A  Lif  bona  la  pratica  ando  molto  in  lungo,  non  forfe 
per  mala  volontà  dei  Miniftro  degli  eíteri  portogheli,  Don 
Luigi  da  Cunha,  ma  per  la  lentezza  confueta  degli  afFari.  Una 
domanda  limile  era  già  ftata  fatta  fm  dali'  anno  17 14,  fotto 
il  governo  di  Cofimo  terzo,  a  mezzo  dei  cavalier  Giudici;  e 
la  corte  di  Lifbona  ne  avea  convenuto.  Ma  gli  atti  di  quel 
negoziato  erano  fcomparfi  con  le  altre  carte  delParchivio  di 
ílato  nel  terremoto  di  Lifbona.  Di  piú  il  Granduca  incaricò 
il  fuo  refidente  d'interporrc  i  fuoi  ufficii  per  la  rifcoíTione 
d'  un  credito  che  il  Bali  Ottaviano  Giufeppe  de'  Mediei  van- 
tava  preífo  il  Governo  Portoghefe.  Le  prime  lettere  dei  refi- 
dente  íi  riferifcono  pertanto  ai  cerimoniale,  e  ai  credito  dei 
Mediei.  II  18  ottobre  deli'  anno  1766,  il  refidente  de  Kail 
fcriveva  ai  miniftero  tofcano  ne'  termini  feguenti: 

«Abbenchè,  feconde  tutte  le  mie  già  anteriori  ed  anche 
rinnovate  fegrete  notizie,  non  fia  la  difficoltà  fopra  quefto 
Cerimoniale  o  Trattamento,  ma  piú  tofto  una  tal  quale  già 
qui  accoftumata  e  da  tutti  e  in  tutto  pur  troppo  efperimen- 
tata  dilazione,  fe  non  Túnica,  almeno  la  maggior  parte  delia 
fopradetta  fofpenfione.» 

Ma  fu  quefto  argomento  giova  meglio  udire  la  intiera 
relazione  che,  in  forma  di  lettera,  fpediva  in  Tofcana  il  refi- 
dente  de  Kail  il  20  gennaio  delfanno  1767. 

«Avendo  rinnovato  per  parecchi  intervalli  fpeífe  volte  le 
mie  Iftanze  apprelTo  quel  fignor  Segretario  di  Stato  Don  Luis 
da  Cunha,  fenza  mai  averne  potuto  cavare  nè  altra  rifpofta, 
nè  altro  eíTetto  di  prima,  mi  fono  finalmente  determinato  a 


4^ 
^ _ .H^ 


tenerne  parola  con  il  fignor  Conte  d'Oeyras,  che  mi  promife 
con  moita  prontezza  di  parlarne.  Lui  fteíTo,  con  Taccennato 
fignor  Segretario,  otto  giorni  dopo,  piú  o  meno,  eíTendo  io  con 
quefti  in  Conferenza  per  altre  occorrenze,  e  non  volendo  tras- 
curare  una  cofi  buona  occafione,  di  fcuoprire  Teífetto  delia 
promeíTa  dei  fignor  Conte,  giudicai  a  propofito  di  toccare  nel 
Dilcorfo  ancora  quefta  pendenza;  ma  indarno,  e  lenza  che  il 
mentovato  fignor  Segretario  aveíTe  mai  mutato  il  fuo  prece- 
dente linguaggio  già  ufato.  Vedendomi  con  ciò  da  capo  e 
credendo  di  non  dover  reftar  in  quefta  incertezza,  mi  rifolfi 
a  ritornare  dal  fignor  Conte,  a  farli,  come  effettivamente  feci,  il 
ragguaglio  dei  contegno  dei  detto  fignor  Segretario,  pregandolo 
nelFifteílb  tempo  di  aver  la  hontà  di  dirmi  che  cofa  avevo  fi- 
nalmente da  rifpondere  alia  Corte  di  S.  A.  R.,  almeno  per  mio 
difcarico.  La  fua  rifpoíta  fopra  di  ciò  era:  Egli  dunque  non  ha 
detto  altro?  queíto  aífare  bifogna  terminado,  io  me  ne  impe- 
gno;  io  faro,  io  parlerò;  ed  avendo  io  riprefo,  ch'io  dunque  di 
queífa  dichiarazione  fteíTa  mi  farei  fervito  per  mia  giuífifica- 
zione,  e  favrei  fcritta  alia  Corte,  egli  mi  replico  di  fofpendere, 
e  non  farlo,  e  che  egli  avrehhe  parlato  quelfifteíTo  giorno  me- 
defimo.  Reítando  le  cofe  in  quefto  ftato,  e  vedendo  che  il  fignor 
Conte  non  oftante  che  fpeíTo  c'incontraílimo  nelle  fue  AíTem- 
blee,  non  motivava  mai  niente,  mi  avanzai  di  nuovo  a  ricor- 
darli  piú  volte,  ma  non  con  altro  fe  non  con  quefto  effetto,  che 
egli  fi  fcufó  di  non  aver  ancora  potuto  parlare,  ora  per  non 
eífere  ufcito  di  cafa,  ora  per  eíTere  ftato  indifpofto,  ed  ora  per 
non  aver  veduto  il  mentovato  fignor  Segretario,  fino  che  quefti 
parti  finalmente  con  la  corte  per  Salvaterra,  per  non  tornarfene, 
fecondo  il  coftiime,  fe  non  fui  principio  delia  quadragefima 
e  che,  per  ciò  fteíTo,  ho  creduto  di  non  dovere  indugiare  di  piú 
con  la  prefente  mia  umiliífima  relazione,  diíTerita  fin  ora  per 
la  fpcranza  che  aveva  che,  vifte  le  continove  mie  reiterate 
iftanze,  e  le  ridette  promeífe  d'un  giorno  alFaltro,  fi  farcbbe 

^%-h^ «-^ 


si»  sii 

-§-<>- -c^ 

manifeftato  qualche  fucceíTo  piú  rilevante  e  defiderato  da 
participare.  Per  altro,  mi  fi  aíTicura  fotto  mano,  che  non  ò  nè 
per  mancanza  di  volontà,  nè  per  difficoltà  dei  trattamento 
dovuto  a  S.  A.  R.  nè  per  un  altro  odiofo  motivo,  ma  Iblo 
per  via  di  una  già  qui  inveterata  lentezza  nelli  affari,  che 
quefto,  come  tanti  altri  vanno  cofi  alia  lunga,  tanto  di  piú  che 
la  convenuta  rifpofta,  fecondo  lo  ftile  fubfiftente,  dovrebbe  in 
effetto  eíTere  ftefa  dal  fignor  Conte  lui  fteflb,  la  maggior  parte 
troppo  occupato,  non  Iblo  con  tutti  li  interni,  ma  ancora  esteri 
affari,  fu  i  quali  ogni  notte  in  cafa  fua  con  il  tante  volte  men- 
tovato  fignor  Segretario  regolarmente  conferifce,  e  ordina.  So 
poi  di  piú  e  mi  fu  fcoperto  in  fomma  coníidenza,  che  il  mo- 
tivo delle  tardanza  di  quefta  rifpofta  fui  principio  non  era 
altro  che  un  dubbio  fui  Trattamento  da  darfi  a  S.  A.  R.,  non 
già  per  diminuire  il  dovuto,  ma  bensi  e  piú  tofto  aumentar  e 
renderlo  piú  diftinto  per  via  delia  Dignità  Arciducale,  fe  foífe 
conveniente,  trovandofi  in  un  cafo  nuovo  e  fenza  anteacta, 
parte  bruciati,  e  parte  fmarriti  con  tutto  TArcliivio  in  tempo 
dei  gran  Terremoto  doppio  imharazzo  per  cui,  nel  fopra- 
detto  principio,  fi  fcriífe  alia  maggior  parte  de'  Miniftri  refi- 
denti  di  quefta  alie  Corti  foraftiere  per  confulta  e  informa- 
zione  fu  tal  Trattamento  da  eífe  ufato  con  S.  A.  R.,  fenza 
che  dopo  abbia  potuto  arrivare  a  venire  in  cognizione  delle 
feguite  rifpofte.  Mi  reffa  da  comunicare  ali'  E.  V.  che  dopo 
aver  avuto  ricevuto  con  lettere  dei  fignor  Bali  Ottaviano  Giu- 
feppe  de  Mediei  tutte  le  refpettive  informazioni  riguardo  alie 
fue  confapute  pretenlioni,  ho  ugualmente  tentato  in  una  delle 
fopradette  mie  converfazioni  con  il  fignor  Conte  di  incam- 
minare  quefte  pendenze,  e  che  egli  mi  rifpole  che  di  quefto 
fi  farebbe  parlato  dopo,  e  che  prima  bifognava  fbrigare  il 
negozio  dairinterrotta  corrifpondenza.  Eífendo  quefta  circo- 
ftanza  che  non  mi  fembra  convenirmi  di  parteciparfi  da  me 
ai  fignor  Bali,  ho  giudicato  di  dimorare  a  rifponderli  Uno  a 

4»  4» 


55 

queft'oggi  medefimo,  e  di  rimettermi  nella  mia  lettera  a  quel 
tanto  che  V.  Ex."  troverà  próprio  di  avviíarli. » 

La  lettera  feguente  dei  confole  auftriaco  Stocqueler,  ai 
quale  il  Granduca  di  Tofcana  concedeva  puré  la  fua  íiducia, 
informa  d'una  fpedizione  mifteriofa  di  navi  fatta  ai  Bralile 
neiranno  1767,  delia  quale  non  ho  trovato  ricordo  nel  libro 
dei  Conte  da  Karnota.  In  quefto  libro  fono  riferiti  que'  Ibli 
brani  dei  carteggio  dei  refidente  inglele  Kay,  i  quali  poílbno 
giovare  a  mettere  in  rilievo  la  flima  che  gli  Inglefi  facevano 
dei  grande  miniftro  portoghefe,  e  il  luo  buon  defiderio  di  man- 
tenere,  con  Tindependenza  dei  Portogallo,  i  migliori  rapporti 
con  la  ricca  ed  intraprendente  nazione  inglefe.  Ma  è  proba- 
bile  che  non  lia  ffuggito  alia  penetrazione  dei  refidente  in- 
glefe, quanto  apparve  manifefto  ai  confole  auftriaco,  che  ciò 
è  la  fpedizione  di  navi  portogheíi  ai  Brafile  foífe  una  prudente 
dimoftrazione  contro  agli  Inglefi.  II  conte  d'Oeyras  avrà  forfe 
meglio  d'ogni  altro  comprefo  che,  per  farfi  rifpettare  dagli 
Inglefi,  era  neceífario  che  i  Portoghefi  deífero  prova  d'animo 
rifoluto  e  di  forza,  e  però  in  virtú  deiraíTioma :  si  pis  pacem 
para  bel/um,  volendo  mantenere  i  fuoi  buoni  rapporti  con 
eíTi,  armo  le  cofte  dei  Brafile  che,  indifefe,  avrebbero  forfe 
potuto  tentare  la  potente  nazione  britanna  a  impadronirfi 
intieramente  delle  celebre  mine  d'oro  braíiliane.  Checchè 
ne  fia,  ecco  quanto  fcriveva  da  Lisbona  ai  miniftro  dei  Gran- 
duca il  confole  Stocqueler  il  g  giugno  delfanno  1 767 : 

«Monfeigneur.  Pour  ne  pas  manquer  d'inflruire  Votre 
Excellence  de  tout  ce  qui  fe  paífe  d'intéreírant  à  cette  Cour, 
j'ai  rhonneur  de  dire  que  depuis  le  premier  de  ce  móis,  on 
arme  à  la  hâte  deux  vaiífeaux  de  64  canons  qui  doivent  ser- 
vir d'efcorte  à  cinq  navires  de  tranfport  qu'on  chargc  de 
toute  forte  de  munitions  et  attirails  de  guerre  et  habillements 
militaires.  Pour  faire  cette  expédition  plus  promptement,  on 
fe  ferve  de  trois  navires  de  la  compagnie  de  Pernambuco, 


eis 


56 

qui  avaient  déjà  une  partie  de  leur  charge  et  qu'on  a  fait 
débarquer.  On  dit  qu'on  y  embarquera  des  troupes,  mais 
jusqu'à  préfent  on  ne  fait  qu'il  y  ait  des  corps  nommés  à 
cet  eífet. 

« La  deftination  de  cette  expédition  eft  un  myftère.  On  dit 
dans  le  public  qu'elle  va  aux  lies  Açores  pour  châtier  des  fou- 
levés  qui,  ne  voulant  pas  faíTujettir  à  des  nouveaux  impôts, 
doivent  avoir  maílacré  le  Gouverneur;  mais  il  y  a  des  raifons 
qui  ne  laiíTent  pas  ajouter  foi  à  ces  bruits,  et  dès  que  j'ap- 
prendrai  quelque  chofe  de  pofitif,  j'aurai  Thonneur  d'en  faire 
d'abord  le  rapport  à  Votre  Excellence.  On  embarquera  dans 
le  courant  de  cette  semaine  environ  40  jéfuites  de  ceux  qui 
font  dans  les  prifons  pour  les  envoyer  à  Genes.» 

11  16  giugno,  il  confole  Stocqueler  torna  a  fcrivere  fullo 
fteíTo  argomento,  facendo  rilevare  che  vennero  prefi  per  ar- 
mare  la  fquadra  navale  reggimenti  dali'  interno,  ove  non  fi 
trovano  uííiciali  inglefi: 

«Par  ma  lettre  du  9  courant  j'ai  eu  Thonneur  de  comu- 
niquer  à  Votre  Excellence  qu'on  faifait  aftuellement  ici  les 
préparatifs  pour  une  expédition  et  que  la  deftination  que  le 
public  lui  donnait  était  pour  les  lies  des  Açores.  Mais  ce 
bruit  étant  tout-à-fait  tombe  parce  que  les  lettres  arrivées  de- 
puis  des  mêmes  líles  ne  parlent  d'aucun  foulèvement,  on  ne 
doute  plus  que  1'expédition  qui  confifte  en  deux  vaiíTeaux  de 
guerre  et  neuf  navires  de  tranfport  avec  toute  forte  d'attirails 
de  guerre  et  qui  doivent  aller  à  Lagos  prendre  à  bord  deux 
ou  trois  régiments  d'infanterie,  eft  deftiné  pour  renforcer  les 
places  maritimes  du  Bréfil.» 

A  queft'ora,  gli  inveftigatori  delle  ftorie  portoghefi  devono 
già  avere  intieramente  rifchiarata  quefta  pagina  delia  loro 
ftoria  navale.  Tuttavia  non  è  forfe  fenza  curiofità  il  leggere 
quello  che  fe  ne  fcriveva  allora  alFeftero  da  un  auftriaco  che 
non  dà,  dei  refto,  fegno  di  una  grande  benevolenza  pel  conte 

\  t  IP 

eis  ti» 


d'Oeyras,  nelle  fue  informazioni,  e  chc,  probabilmente,  fen- 
tiva  fimpatia  per  i  geluiti  prolcritti. 

Ecco  pertanto  quanto  egli  fcriveva  il  7  fettembre  deli'  anno 
1767  da  Lifbona  ai  governo  dei  Granduca: 

« Les  Aftaires  Eccléfiaftiques  continuent  d'occuper  la  pre- 
mière  attention  du  miniftère.  Dans  le  Conícil  d'Etat  qu'on  a 
tenu  le  24  et  qui  a  dure  fix  heures,  il  y  a  été  lu  le  placet  que 
le  procureur  du  Roi  a  prcíenté  à  Sa  Majefté  et  dans  lequel  fai- 
fant  une  répétition  de  tout  ce  qui  a  été  déjà  dit  contre  Tinfli- 
tut  et  la  doctrine  des  jéfuites,  il  ajoute  que  cette  doctrine 
ayant  acquis  des  racines  três  grandes  parmi  le  peuple,  d'oú  il 
fenfuivaient  des  maux  immenfes,  et  que  Texpérience  ayant 
fait  voir  que  tous  les  remedes  qu'on  y  a  voulu  apporter  n'ont 
à  rien  fervi  juíqu'à  préíent,  parce  que  cette  doctrine  et  cet  in- 
ftitut  fonttoujours  declares  faints  et  bons  par  la  Cour  de  Rome, 
et  que  cette  Cour  tout-à-fait  jéfuite  et  le  Pape  étant  dans  des 
circonftances  qu"on  a  trou\'é  le  moyen  de  lui  dérober  la  vé- 
rité,  lui  Procureur  du  Roi  devait  le  reíTouvenir  des  moyens 
dont  plufieurs  Empereurs  fe  font  fervis  dans  des  cas  oú  il  a 
faliu  faire  déclarer  par  des  conciles  les  dodrines  qui  étaient 
bonnes  ou  mauvaifes,  et  que  le  cas  actuei  en  clt  un;  parce 
que  ces  dodrines  étant  en  foi-mêmes  hérétiques  et  la  cour 
de  Rome  et  le  Pape  obfédé  aprouvant  cette  doftrine,  ils 
ont  donné  eux  mêmes  dans  Fliéréfie,  et  il  finit  pour  fup- 
plier  le  Roi  d'y  porter  tel  rémède  que  la  grande  fageífe  lui 
diítera.  Je  crois  que  dans  le  dit  confeil  on  a  rien  determine 
et  que  Favis  du  Cardinal  Patriarche  a  fait  au  moins  que  le 
Roi  n'y  ait  pas  pris  aucune  rélblution  finale.  Cette  pièce, 
aulTi  bien  que  1'hiftoire  des  jéfuites  en  Portugal,  les  preuves 
de  cette  hiftoire  et  une  collection  des  lois  fur  Fautorité  ecclé- 
fiaftique  font  déjà  imprimes,  mais  on  ne  les  debite  pas,  et 
on  les  imprime  aclucllcment  en  langue  italiennc  et  fran- 
çaife,  et  comme  ce  font  des  pièces  intéreíTantes,  j'aurais  foin 


3S 

d'en   procurer  des   exemplaires   pour  les   envoyer  à  \"otre 
Excellence. » 

II  27  ottobre  1767,  il  confole  Stocqueler  annunzia  la 
morte  dei  refidente  Kail  e  aggiunge: 

«Monfenhor  Sans  Paejo  Prélat  de  la  Patriarchale,  dont, 
en  general,  on  refpedait  les  vertus,  a  été  conduit  dans  un 
cachot,  comme  prifonnier  d'état.  Ses  biens  et  fes  papiers  ont 
été  confilqués  et  on  ne  lui  a  pas  permis  de  fe  faire  accom- 
pagner  par  aucun  de  fes  domeftiques. » 

II  19  gennaio  1768  lo  fteffo  ícrive: 

«Depuis  deux  jours  on  a  commencé  à  diltribuer  la  fe- 
conde  partie  de  la  déduction  chronologique  analytique,  avec 
une  feconde  réquifition  du  procureur  du  Roi  qui  a  pour  titre : 
Réquifition  du  procureur  du  Roi  sur  les  ruines  qui  ont  fait 
dans  ces  royaumes  et  fes  domaines  fintroduílion  clande- 
ftine  des  Bulles  in  Coena  Domini,  et  des  Index  Expurga- 
toires  Romano-Jefuiticos,  toute  dans  les  termes  détaillés  de 
la  feconde  partie  de  la  Déduction  Chronologique,  etc.  Ces 
deux  pièces  imprimées  en  portugais,  et  que  je  n'ai  pas  eu  le 
temps  que  d'en  lire  le  fommaire  des  matières,  doivent  fervir 
de  bafe  à  une  nouvelle  loi  en  conféquence;  et  cette  loi  rè- 
glera  auíTi  définitivement  la  juridiction  des  deux  empires 
eccléfiaftique  et  féculaire  en  Portugal.  Dimanche  au  foir  il 
feft  tenu  un  confeil  d'état  auquel  le  Comte  d'Oeyras  n'a 
pas  pu  être  préfent,  parce  qu'il  fe  trouve  depuis  dix  jours 
au  lit  et  foigné  des  fuites  d'une  bleífure  à  une  jambe.  Le 
confeil  d'état  aura  été  aílemblé  probablement  pour  1'appro- 
bation  de  la  loi  fufdite  que  le  Comte  d'Oeyras  y  aura  fait 
propofer  afin  qu'elle  puiífe  être  publiée  inceífamment.  Cette 
feconde  partie  de  la  déduction,  la  réquifition  du  procureur 
du  Roi  y  annexe  et  la  loi  en  conféquence  par  lefc[uelles  le 
Comte  d'Oeyras  a  dit  vouloir  faire  le  plus  grand  et  dernier 
de  fes  fervices  à  la  patrie,  efl:  d'une  nature  à  donner  plus 


4ei> 
-• ■ •-<!>-§» 

d'occupation  à  la  cour  de  Rome  que  tous  les  imprimes  et 
toutes  les  démarches  qu'on  fait  jufqu'à  préfent. » 

Lo  fteflb  Stocqueler  il  primo  marzo  1768,  fcriveva: 

« Les  ouvertures  que  le  Pape  a  fait  dernièrement  pour  un 
acommodement  et  par  un  Bref  adreíTé  au  Roi,  ont  été  reje- 
tés,  et  la  Bulle  de  la  Croizade  que  Sa  Sainteté  a  envoyé 
en  môme  temps,  a  été  renvoyée.  Le  commiflaire  de  la  dite 
Bulle  a  fait  affixer  la  déclaration  que  j'ai  Thonneur  d'en- 
voyer  à  Votre  Excellence,  comme  auífi  le  Mandement  du 
Cardinal  Patriarche,  qui  en  clt  une  fuite. » 

Ed  otti  giorni  dopo:  «II  fagit  de  fe  concerter  réciproque- 
ment  pour  régler  les  aífaires  avec  la  cour  de  Rome;  mais  ce 
projet  efl  d'autant  plus  difficile  que  les  deux  miniftères  pen- 
fent  ditféremment.  Le  Marquis  Grimaldi  parait  être  autant 
incline  pour  la  modération  que  le  Comte  d'Oeyras  pour  la 
hrulqucrie.  Le  tribunal  de  Tlnquifition  a  fait  retirer  tous  les 
vieiLX  affixes,  ne  voulant  que  foient  entre  les  mains  du  puhlic 
ceux  dernièrement  publiés.  Le  Roi  a  donné  à  la  Confrairie 
de  la  Miféricorde  de  cette  ville  le  couvent,  Téglife  et  tout  ce 
q^ui  appartient  aux  autels  de  la  maifon  profeíTe  des  jéfuites.» 

Le  notizie  feguenti  dei  confole  Stoqueler,  dei  1 2  aprile 
1768,  11  riferilcono  tutte  alie  queftioni  ecclefiaftiche : 

«II  eft  afluellement  fous  la  preíTe  la  feconde  loi,  par 
laquelle  le  Roi  fait  ériger  un  nouveau  tribunal  compofé  d'un 
prélident  eccléfiaflique  et  de  quelques  eccléíiaftiques  et  fécu- 
liers,  auquel  feulement  eft  referve  le  pouvoir  de  donner  per- 
miíTion  pour  les  livres  qu'on  voudra  faire  imprimer  et  Texa- 
men  de  ceux  qui  entreront  dans  le  royaume,  au  point  que  ni 
révèque  ni  Tinquifition,  ni  le  Delembargo  do  Paço  ne  doi- 
vent  plus  fen  mêler;  mais  en  échange  un  des  membres  du 
tribunal  fera  le  vicaire  du  Patriarche,  un  miniftre  de  Tinqui- 
fition  et  un  autre  du  Defembargo  do  Paço.  Les  matières 
feront  décidées  à  la  pluralité  des  voix.» 

^^^ -<ç>-§- 

4»  e|j 


4«lí 
-.- ; ►hÇ^ 

6o 

Dal  paíTo  feguente,  fi  rileva  che  le  difpofizioni  delia  corte 
di  Torino  verfo  quella  di  Roma  non  erano  il  26  aprile  1768 
come  quelle  di  circa  fettanfanni  innanzi: 

11  L'alliance  avec  la  cour  de  Turin  que  le  Comte  d'Oeyras 
avait  cru  néceíTaire  au  commencement  des  brouilleries  avec 
Rome,  et  fur  laquelle  on  a  ^al  depuis  qu'on  avait  mal  com- 
pté,  vient  à  préfent  d'avoir  lieu  et  de  foi-même  avec  la  cour 
de  Parme.» 

Le  informazioni  leguenti  ci  moftrano  il  conte  d'Oeyras 
ineforabile  caftigatore  dei  clero  ribelle: 

26  Aprili:  «Monfenhor  Magalhães  vient  d'ètre  banni  du 
royaume  qu'il  a  du  quitter  en  trois  jours  de  temps;  et  les  pè- 
res  Salvador  Conca  de  Fordre  de  Saint  Gêrome  et  Joachim 
Forjas,  Auguftin,  ont  été  relegues  à  des  couvents  éloignés 
de  cette  capitale.  Comme  j'ignore  abfolument  leur  crime  j'in- 
formerai  Votre  Excellence  au  moins  de  ce  que  je  fais  de  leur 
perfonnel.  Le  premier  a  été  lecrétaire  de  la  reforme  des  jéfui- 
tes  et  les  deux  autrcs  font  proches  parents  du  Cardinal  Pa- 
triarche,  tous  trois  hommes  lettrés  et  de  la  confulte  de  Son 
Eminence.» 

21  Giugno:  «Le  dofteur  Jofeph  Mendes  da  Cofta  un  des 
plus  favants  membres  du  tribunal  eccléíiaftique  a  été  banni 
du  royaume.  Le  père  Alhandra,  erémite  de  Saint  Paul,  et  un 
père  Capucin  ont  été  arretes.  Les  pères  de  la  milfion  de 
Saint  Vincent  de  Paul  ont  reçu  ordre  de  n'en  point  faire  dans 
cette  ville  et  fon  diítriít,  et  il  y  a  quelque  temps  qu'on  a  dé- 
fendu  aux  miífionaires  des  autres  ordres  Texercice  des  miffions 
dans  cette  ville.» 

26  Luglio:  «On  prétend  que  le  chevalier  Pecci  qui  eft  ar- 
rivé  depuis  quek]ues  femaines  de  Rome  et  en  dernier  lieu  de 
Genes,  fera  declare  directeur  du  Collège  des  Nobles,  et  qu'on 
Ta  fait  venir  expròs  pour  remplir  cette  place.» 

Qui  terminano  le  notizie  dei  Portogallo  pervenute   alia 


4^ 

eis 


ti» 


4sU 

6i 

corte  Tofcana,  fotto  il  governo  dei  conte  d'Oeyras,  rapprefen- 
tato  principalmente  come  un  perfecutore  de '  gefuiti  e  de'  loro 
fautori.  II  conte  d'Oeyras  aveva  probabilmente  imparato  dal 
Machiavelli  che  i  nemici  bifogna  carezzarli  o  fpègnerli ;  egli 
non  volle  carezzarli,  e  li  fpenfe.  Quindi  la  fama  che  s'acquiíl:ò 
nel  fuo  tempo  e  che  dura  ancora,  d'uomo  duro  e  violento. 
Fra  que'  termini  eftremi  propofti  dal  Machiavelli,  vi  farebbe 
flato  un  mezzo  termine  degno  di  un  animo  grande,  quale  íi 
rilevò  in  parecchie  occafioni,  il  marchefe  di  Pombal.  Senza 
carezzarli,  fenza  fpègnerli,  i  nemici  egli  avrebbe  potuto  vin- 
cerli,  forte  come  egli  dovea  fentirfi  per  la  íiducia  che  infpi- 
rava  ai  fuo  rè,  dei  cuore  dei  quale  come  il  cancellière  di 
Federico  II,  tenne  ambo  le  chiavi,  volgendole 

Serrando  e  diííerrando  fi  soavi, 

Che  dal  fegreto  fuo  quafi  ogn^uom  tolfe. 

Probabilmente,  quello  fteíTo  Duca  d'Aveiro,  quello  fteíTo 
marchefe  Távora  che  boriofo  dei  loro  folo  fafto  magnatizio, 
moftravano  un  cofi  fiero  difprezzo  per  la  piccola  nohiltà  dei 
Carv^alho,  e  fe  quefti  aveífe  moderato  la  fua  impazienza, 
vedendo  ch'egli  continuava  a  regnare  potente  e  a  fervire 
con  nobiltà  il  fuo  paefe,  avrebbero  finito  per  reprimere  il 
loro  ridicolo  orgoglio,  e  ricercato,  effi  medefimi,  Talleanza  dei 
nuovo  vero  gran  fignore  dei  fuo  tempo.  Noi  fiamo  teftimonii 
ogni  giorno,  innanzi  ai  trionfo  prefente  delle  democrazie,  di 
nobili  ben  noti,  fino  a  pochi  anni  innanzi,  per  la  pompofa 
vanitá  di  titoli  ai  quali  non  corrifponde  in  eíTi,  alcun  próprio 
valore,  alcuna  vera  dignità,  alcun  fenfo  di  fchietta  nobiltà, 
e  che  fi  fanno  demagoghi  per  entrar  nei  parlamenti  e  per  car- 
pire  ufíicii  per  i  quali  fi  veggono  ora  foflituiti  agli  antichi 
privilegi  ariflocratici  i  nuovi  privilegi  burocratici. 

Vedendo  i  vecchi  nobili  che  i  governi  democratici  coníi- 
nuano  a  viverc,  invece  di  fortificarfi  eíTi  fteffi,  unendofi,  edu- 

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-^ .A^ 


b2 


candofi,  iftruendofi,  moltrando  di  avere  idee  piú  alte,  piú 
larghe  e  di  concepire  in  modo  piú  nobile  e  piú  dilintereffato 
rintereffe  pubblico,  11  umiliano  fino  a  contentarfi  delle  briciole 
che  cadono  dalla  menfa  demagógica,  per  partecipare,  col  loro 
farto  che  dà  fempre  negli  occhi  dei  volgo,  ai  comune  ban- 
chetto.  Quanto  meglio  prowederebbero  eíTi,  invece,  alia  loro 
dignità,  ai  loro  intereíTe  ed  alia  salvezza  dei  loro  paefe  racco- 
gliendofi  in  una  laboriofa  e  ftudiofa  e  paziente  afpettazione, 
finche  ritorni  il  giorno  in  cui  il  paefe  abbia  di  nuovo  bifogno 
di  loro.  L'ariftocrazia  e  la  democrazia  Ibno  due  grandi  poteri 
fociali  che  11  contendono  da  íecoli  il  governo  delia  Ibcietà 
umana;  quando  Tuno  decade,  Tahro  riforge;  quando  Tuno 
è  flanco,  l'altro  rinvigorito  e  nuovamente  purificato  viene  a 
far  nuovamente  valere  la  fua  virtú.  Un  potere  fcatena,  Faltro 
potere  tempera ;  un  potere  mette  a  prova  la  forza  dei  numero ; 
faltro  il  valore  de'  pochi;  fefperienza  degli  errori  d\in  pote- 
re giova  alfaltro;  fariítocrazia  richiama  il  mondo  dalle  idee 
baífe  e  volgari;  la  democrazia  lo  libera  dal  pericolo  che  il 
regno  prolungato  de'  pochi  11  converta  in  eterna  e  moftruofa 
tirànnide.  Entrambi  i  poteri  poífono  eífere  benèfici,  quando 
viene  il  loro  tempo;  ma  fono  benèfici  foltanto  a  condizione 
che  non  fi  faceia  alcuna  confullone  frà  eífi,  e  che  i  due  po- 
teri ben  diftinti  non  riefcano  ad  un  organifmo  ibrido,  informe, 
fimile  a  quello  di  cui  danno,  pur  troppo,  mefchino  afpetto 
parecchi  degli  odierni  governi  coftituzionali,  che  paiono  acco- 
gliere  in  fè  tutti  i  vizii  delle  ariítocrazie  e  delle  democrazie, 
fenza  ferbarne  le  virtú. 

II  marchete  di  Pombal,  fentendofi  veramente  nobile,  non 
ifdegnava,  di  certo,  e  non  difprezzava  la  fua  condizione  di 
nobile;  ma  la  fua  maggior  fodiíTazione  innanzi  ai  fèmplici 
titolati  e  cofi  detti  grandi  dei  regno  doveva  elTer  quella  di 
avere  egli  fteífo  accrefciuta  la  própria  nobiltà.  Nato  fòmplice 
gentiluomo,  diventò  conte  d'Oeyras,  e  marchefe  di  Pombal, 

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-ò-l^ 


63 


per  llioi  meriti  perfonali;  e  quando  ftabili  che  i  profeíTori  piú 
eminenti  dell'univerrità  riceveíTero  il  trattamento  de'  nohili  e 
quando  fondò  il  Collegio  de'  Nobili  miro  a  foftituire  con  la 
nuova  educazione  liberale  ed  intelligente  de'  nobili  un  nuovo 
valore  reale  ad  un  antico  valore  íittizio. 

Si  comprende,  pur  troppo,  aíTai  bene  come  Tantica  no- 
biltà  feudale.  che  fino  a  quel  tempo,  con  la  fola  moftra  de'  fuoi 
vecchi  blalbni,  trionfava,  non  foíle  contenta  dei  nuovo  ordine 
di  cole  inftaurato  dal  Carvalho,  e  che  i  gefuiti  onnipotenti 
Iblo  a  condizione  che  fi  manteneíTe  nella  focietà  portoghefe 
lo  Jfahí  qiio  feudale  abbiano  adoperato  ogni  loro  arte  per 
farlo  durare.  Chè,  per  quanto  fiano  riufciti  a  perfuaderci  che 
il  Carvalho  farebbe  ftato  piú  grande  íe  fi  foíTe  cò  fuoi  nemici 
mortrato  piú  mite,  non  fi  riufcirà  mai  a  perfuadere  che  il 
duca  d'Aveyro  e  il  marchefe  di  Távora  non  miraíTero,  in 
ódio  dei  luo  miniítro,  ch'eíri  chiamavano  il  Rè  Sebaftiano, 
a  togliere  di  vita  il  Rè  Giufeppe,  Ibflenitore  fedele  e  co- 
rtante delTuomo  di  génio  nel  quale  egli  aveva  ripofta  ogni 
fua  fiducia. 

I  gefuiti  accufarono  il  Re  Giufeppe  di  debolezza.  Sem- 
bra,  invece,  ch'egli  abbia  dato  una  prova  di  gran  forza  mo- 
rale,  mantenendo  il  potere  nelle  mani  dei  Carvalho,  a  dis- 
petto  di  tutti  gli  intrighi  orditi  a  corte  contro  di  lui,  e  di  tutte 
le  calunnie  che  i  fuoi  nemici,  aiutati  dai  gefuiti,  avevano  pro- 
palato.  Un  uomo  che  fappia  refiftere  imperterrito  alia  calunnia, 
e  che  la  refpinga  quando  eífa  venga  a  colpire  un  amico  di 
cui  fa  fi:ima,  è  un  uomo  di  gran  carattere;  tali  caratteri  fono 
rari,  e  il  Rè  Giufeppe  moftrò  d'avere  un  tal  carattere.  Sia 
dunque  gloria  ai  fuo  nome,  e  poífa  il  fuo  nobile  efempio  gio- 
vare  ancora  ad  altri  principi.  Che  importa  fe  il  campo  d'azione 
nel  quale  f 'efercitava  la  prudenza  dei  Rè  Giufeppe  col  génio 
dei  Pombal  era  un  campo  riflretto?  II  nome  dei  Pombal  non 
divenne  forfe  mondiale?  E  il  Portogallo  ed  il  Brafile  non  fen- 

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tono  forfe  anche  oggi  i  beneficii  dei  paíTaggio  ai  governo  di  un 
uomo  di  génio,  che  doveva  puré,  chechè  ne  penfino  i  nemici 
dei  fuo  nome,  avere  un  gran  cuore?! 

Deploriamo  tutti  i  fuoi  errori;  nella  repreíTione  fu  vio- 
lento e  parve  inumano;  nè  era  bello  che  egli  fteíTo  fi  faceíTe 
caftigatore  fpietato  de'  fuoi  nemici,  valendoíl  delia  forza  pu- 
blica che  egli  aveva  nelle  proprie  mani ;  la  verità  ú  deve  a 
tutti,  ma  piú  ai  grandi,  i  quali  dovrebbero  fentire  piú  alta- 
mente ciò  che  conviene;  Pombal  a  Porto  e  fui  Rio  Morto  fi 
è  un  poço  macchiato,  e  piú  volte,  ne'  giorni  delia  fua  difgra- 
zia,  avrà  certamente  rimpianto  di  non  eíferfi  moftrato  piú 
umano  e  piú  grande,  quand'era  ai  fommo  delia  fua  potenza. 
Ma  non  fi  poteva  fenza  un  gran  cuore,  fentire  com'egli  fenti, 
una  nobile  impazienza  di  far  grande,  profpera,  indipendente, 
rifpettata  la  fua  pátria.  Senza  un  gran  direttore  fpirituale  in- 
terno, fenza  una  grande  cofcienza  di  patriota,  farebbe  flato 
impofllbile  che  Tattenzione  dei  miniftro  portoghefe  fi  portaífe 
come  fece,  con  prowedimenti  falutari,  a  tutte  le  fonti  delia 
profperità  nazionale,  per  renderle  tutte  infieme  produttive; 
il  commercio,  Tindurtria,  la  marina,  Fefercito,  le  arti,  le  let- 
tere,  le  fcienze  dovettero  a  lui  folo  il  loro  nuovo  riforgimento. 
E  molti  de'  fuoi  pro\^edimenti  apparivano  cofi  liberali  che 
precorrevano,  prima  delia  rivoluzione  francefe,  il  movimento 
liberale  moderno,  il  quale  gli  ftorici  demagogici  ripetono  quafi 
efclufivamente  da  eífa.  No,  i  Bogino  in  Piemonte,  iTannucci  e 
Pietro  Leopoldo  in  Toscana  ed  a  Napoli,  Giufeppe  II  in  Lom- 
bardia, e  tutti  gli  economifli  e  ítatifti  dei  fecolo  paífato  aveano 
già  preparato  il  terreno  fecondo  per  le  riforme;  la  rivoluzione 
francefe  fu  un  uragano  che  ifterili  e  difertò  il  terreno  ed  ebbe 
per  confequenza  il  militarifmo  Napoleónico  e  la  Santa  Al- 
leanza.  Se  invece  1'opera  pacifica  dei  riformatori  liberali 
aveífe  potuto  profeguirfi  fenza  interruzioni,  a  queff  ora  avrem- 
mo,  invece,  quel  progreífo  che  pone  Tlnghilterra  a  capo  de- 

4*  4» 


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65 

gli  odierni  popoli  civili.  E  il  Pombal,  nel  luo  Ibggiorno  a 
Londra  e  nelle  lue  relazioni  coi  miniftri  ingleli,  avea  dovuto 
imparare  moita  arte  di  governo,  moita  fcienza  di  flato. 

Che  può  ora  dire  uno  flraniero  parlando  dei  Pombal  in- 
nanzi  ad  un  publico  infigne  di  portogheíi  e  di  brafiliani,  che 
non  folo  ne  venera  la  memoria,  ma  che  ha  già  intefo  intorno 
ad  effo  da  ftorici  bene  informati  tutto  quanto  può  eíTere  laputo 
ai  noftri  giorni?  Certo,  non  aggiungere  nè  un  fatto,  nè  un'idea; 
ma  folamente  alTociarfi,  con  mente  rifpettofa,  alPomaggio  che 
la  nobile  nazione  portoghefe  rende  ai  fuo  grande  benefattore 
dei  fecolo  fcorfo.  Confervar  la  memoria  de'  benificii  ricevTiti 
è  fempre,  per  i  popoli  come  per  gli  individui,  un  fegno  di  gen- 
tilezza  e  di  civiltà.  Convien  dunque  che  il  Portogallo  ed  il 
Brafile  inalzino  ora  un  monumento  alia  memoria  dei  mar- 
chefe  di  Pombal,  come  nel  fecolo  venturo  nelFanno  1961, 
i  noítri  futuri  nepoti  pel  centenário  dei  conte  Camillo  di  Ca- 
vour,  celebreranno  il  nome  e  la  gloria  dei  riftoratore  delia  for- 
tuna e  indipendenza  d'Italia;  e  a  quelfi  omaggi  nazionali  è 
bene  che  tutte  le  nazioni  civili  rechino  il  loro  confenfo  am- 
mirativo.  I  grandi  benefattori  d'un  popolo  diventano,  quafi 
inconfapevolmente,  benefattori  delFintiera  umanità;  chi  rende 
piú  civile,  piú  profpero,  piú  grande  il  próprio  paefe,  non  può 
impedire  che  una  parte  di  quella  civiltà,  di  quella  profperità, 
di  quella  grandezza,  íl  riverfi  benéfica,  piú  o  meno  diretta, 
fulle  altre  nazioni.  No,  non  è  vero  che  un  vicino  veramente 
grande,  faceia  noi  piú  deboli;  egli,  invece,  infegnerà  a  noi  la 
via  per  confeguire  in  cafa  noftra,  coi  noflri  proprii  mezzi,  una 
fimile  grandezza;  folo  il  povero  impotente  può  eíTer  gelofo 
dei  fuo  vicino  potente.  Quanto  a  me,  nelle  condizioni  prefente 
d' Itália,  non  potrei  terminare  con  altro  augúrio  piú  cordiale 
che  quello  di  veder  forgere  nel  mio  próprio  paefe  un  uomo 
dei  génio  e  deli'  animo  di  Sebaftian  Carvalho.  II  Rè  Umberto  I 
diventerebbe  facilmente  il  nuovo  Don  Giufeppe  di  quefto  defi- 


cl» 


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66 

derato,  neceíTario,  animofo  riformatore,  il  quale  fapeíTe  ciò 
che  fi  deve  fortemente  volere,  e  le  cofe  fortemente  volute  tra- 
duceíTe  in  pronte  opere  durevoli.  Utinam! 

Firenze,  26  decembre  1881. 

Conte  Angelo  De  Gueernatis. 


DER  MINISTER  POMBAL 

EIN     LEBEXS-    UXD     CHARAKTERBILD 

AUS  DER 

ZEIT  DER  AUP^KLAERUNG 

it  Stolz  und  Bewunderung  blickt  unler  Zcit- 
alter  auf  die  Geiftesheroen  des  voriíien  Jahr- 
hunderts  und  beeifert  lich,  ihre  Nahmen  und 
Thaten  dem  gegenwãrtigen  Gefchlechte  ins 
Gediichtniss  zurLickzurufen,  wenn  der  Ge- 
hurts-  oder  Todestag  des  einen  oder  andern 
Gelegenheit  dazu  bietet.  So  hat  Frankreich  im 
Jahre  1 878  das  Andenken  an  Voltaire  und  RouíTeau  durch 
Gedachtnifsfefte  gefeiert;  fo  hat  Deutlchland  im  Jalir  1S81 
feinen  grofsen  Schriftfteller  LeíTing  in  feiner  Stellung  zu  dem 
Geiftesleben  leiner  Zeit  den  nachgebornen  Gefchlechtern  vor 
die  Seele  gefiihrt;  lo  Ichickt  fích  jetzt  die  portugierílche  Welt 
an,  ihrem  grofsen  reformatorifchen  Staatsmann  Pombal,  dem 
Zeit-  und  GefinnungsgenoíTen  des  Kõnigs  Friedrich  II  von 
PreuíTen  ein  Denkmal  zu  ftiften.  Und  in  der  That  hat  man 
alie  Urfache  an  jene  Zeit  der  philofophifchen  Aufklarung  zu 
erinnern,  wo  fo  viele  neue  reformatorifche  Ideen  dem  frucht- 
baren  Mutterfchoofse  entkeimten,  wo  man  nicht  nur  den 
Schutt  verjahrterVorurtheile  und  úberlieferter  Dodrinen  weg- 


(is 


68 

raumte,  fondern  auch  neue  Anfchauungen  und  Lebensformen 
ins  Dafein  rief,  wo  man  die  beítehenden  Einrichtungen  und 
Zuftande  und  alie  abgelebten  Inftitute  und  Satzungen  durch 
die  Gebilde  der  Vernunft,  des  rationellen  Denkens,  des  ge- 
funden  Menfchenverftandes  zu  erfetzen  fuchte.  Die  ganze  ge- 
bildete  Welt  Europas  war  von  der  machtigen  Strõmung  des 
neuen  Zeitgeiftes  durchzogen,  der  in  Paris  feinen  Urfprung 
und  feine  Geburtsftatte  hatte.  Es  foU  nicht  geleugnet  werden, 
dafs  der  Cultus  des  menfchlichen  Genius  und  der  Vernunft 
mitunter  zu  einem  neuen  Gõtzendienft  fiihrte,  dafs  die  Philo- 
'  fophie  des  Senfualismus  den  Sinn  fiir  das  Hõhere  und  Ideale 
in  den  herrfchenden  Kreiíen  abftumpfte,  dafs  der  Glaube  an 
eine  moralifche  Weltordnung  vielfach  erfchúttert  ward;  abar 
es  wâre  unrecht,  úber  diefen  dunkeln  Schattenbildern  die 
Lichtftrahlen  zu  úberfehen.Wenn  der  clericale  Obfcurantifmus 
oder  die  rigorofe  puritanifche  Weltanfchauung  in  jener  Zeit 
einer  gahrenden  Ideenwelt  nurVerfall  und  Entartung  erblicken 
mõchte,  fo  vergifst  diefe  morofe  und  peíTimistifche  Auffaífung, 
dafs  auch  zugleich  die  Gebote  der  Humanitat,  der  Menfchen- 
liebe,  der  GewiíTens-  und  Geiítesfreiheit  zur  Geltung  kamen, 
dafs  die  wichtigften  Faftoren  des  modernen  Staats-  und 
Gefellfchaftslebens  in  den  Aufklarungsideen  jenes  philofo- 
phifchen  Jahrhunderts  ihre  Wurzeln  haben,  dafs  die  Erzeu- 
gniífe  einer  unfreien  Zeit  und  einer  unwúrdigen  Geiftes- 
knechtfchaft,  wie  Inquilltion  und  Ketzerverbrennungen,  wie 
Hexenproceíre,Torturen,  graufame  Hinrichtungen,  entehrende 
Feudalrechte  befeitigt  oder  gemildert  wurden,  dafs  die  Gefell- 
fchaft  Jefu,  welche  nur  in  der  Herrfchaft  der  rõmifchen  Hie- 
rarchie  und  in  der  Unterordnung  der  Võlker  unter  die  geiftliche 
Autoritât  das  Heil  der  Menfchheit  erblickt,  gebrochen  und  aut 
Jahrzehnte  von  der  Oberflache  der  Welt  verbannt  ward.  Aus 
diefen  Kreiíen  philofophifcher  Lebensanfchauung  iít  Pombal, 
der  Reformator  Portugals  hervorgegangen. 

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4»  e|j 


I 

KOENIG  JOSÉ  I.  UND  POMBAL.  DAS  ERDBEBEN  VON  LISSABON 

Das  Haus  Braganza  war  einft  durch  einen  Akt  des  Na- 
tionalwillens  auf  den  portugiefifchen  Thron  erhoben  worden. 
Diefen  Urfprung  feincr  Macht  hatte  João  V  aus  dem  Auge 
verloren  und  ais  abfoluter  «Kõnig  von  Gottes  Gnaden»  re- 
giert,  nur  den  Clerus  und  den  hohen  Adel  begúnftigend.  Ein 
folcher  Ruckfchritt  zu  iiberlebten  Formen,  eine  folche  aus- 
fchliefsliche  Anlehnung  der  fouveranen  Monarchie  an  zwei 
bevorrechtete  und  bevorzugte  Stande,  welche  zu  der  herr- 
fchenden  Zeitrichtung  und  Zeitbildung  in  fchroffem  Gegenfatz 
ftanden,  konnte  den  noch  kaum  befeftigten  Staat  von  Neucm 
den  Sturmen  der  Anarchie  entgegentreiben,  von  Neuem  biir- 
gerliche  Bewegungen  hervorrufen,  die  den  lauernden  neidi- 
fchen  Nachbarftaat  leicht  zur  Wiederaufnahme  der  frúheren 
Feindfeligkeiten  anfpornen  mochten.  War  doch  die  Colonie 
dei  Sacramento,  auf  einem  feifigen  Vorgebirge  am  Nordufer 
des  Rio  de  la  Plata,  welche  die  Portugielen  im  J.  1678  ange- 
legt  und  feitdem  gegen  viele  Anfechtungen  behauptet  hatten, 
ein  fteter  Erisapfel  zwifchen  den  beiden  pyrenaifchen  Kõnig- 
reichen.  Portugals  Staatswefen  bedurfte  einer  dem  Geifte  der 
Zeit  entfprechenden  Reform,  folhe  es  fich  ais  freier  lebens- 
kraftiger  Staat  erhalten. 

Diefe  Reform  folhe  dem  Reich  in  glitnzender  Weife  zu 
Theil  werden  durch  einen  Mann,  der  dem  ncuen  Kõnig  Jo- 
feph  Emanuel  zur  Seite  ftand  wie  einfl:  Richelieu  dem  fran- 
zõfifchen  Kõnig  Ludwig  XIII.  Diefer  Mann  war  Sebaftian 
Jofeph  de  Carvalho  e  Mello,  Graf  von  Ocyras,  bckannter 
unter  feinem  Ipiiteren  Titel  Marquis  de  Pombal.  Abkõmm- 
ling  eines  alten  Adelsgefchlechts  von  maííigem  Vermõgen, 
hatte  er  nach  vollendeten  Sutdien  in  Coimbra  durch  einflufs- 


reiche  Verwandte  in  LiíTabon  eine  Anítellung  erhalten,  war 
dann  von  Kõnig  João  V  mit  diplomatifchen  Auftragen  nach 
London  und  Wien  gelandt  worden,  hatte  auch  in  Paris  einige 
Zeit  verweilt  und  kannte  fomit  die  wichtigften  Stadte  Euro- 
pa's,  die  feinem  fahigen  und  empfanglichen  Geifte  Belehrung 
geben  konnten  iiber  Staatsverwaltung  und  Volkswirthfchaft, ' 
úber  kirchliche  und  religiõfe  Dinge,  uber  moderne  Zeitbil- 
dung  und  priefterlichjefuitifche  Weltanfchauung.  Und  je  mehr 
er  íich  mit  den  Ideen  der  Aufklarungsphiiofophie  befreundete, 
defto  melir  kam  er  zu  der  Ueberzeugung,  dais  die  õífentlichen 
Zuftande  in  Portugal  nur  dann  einer  BeíTerung  entgegenge- 
fiihrt  werden  konnten,  wenn  die  hierarchifch-ariftokratifche 
Atmofphare,  die  wie  ein  tõdtlicher  Mehlthau  íiber  alie  Lebens- 
functionen  gelagert  war,  durchbrochen  und  weggefegt  wurde. 
Und  lo  machtig  und  úberwaltigend  war  die  Perfõnlichkeit 
des  Mannes,  dafs,  fobald  er  nach  dem  Tode  des  alten  Kõnigs 
durch  den  Einflufs  der  kõniglichen  Wittwe,  einer  õfterreichi- 
fchen  Kaifertochter,  von  dem  Sohn  und  Nachfolger  in  das 
Minifterium  berufen  ward,  die  alten  klerikalen  Râthe  bald 
weiclien  mufsten,  dafs  Carvalho  mit  fouverãner  Machtfiille 
das  Regiment  fuhrte  und  der  Polhik  und  Staatsverwaltung 
Portugals  einen  andern  Charakter  aufpragte.  Der  neue  Mi- 
nifter,  bereits  einundfunfzig  Jahre  alt  (geb.  i3  mai  i6gg)  und 
in  zweiter  Ehe  mit  einer  Tochter  des  Feldmarfchalls  Daun 
vermahlt,  wird  gefchildert  ais  ein  Mann  von  ungewõhnlich 
hoher  Geftah,  dabei  wohlgebaut  und  fchõn,  feine  Gefichts- 
bildung  gciftreich  und  ausdrucksvoll,  fein  Benehmen  gewin- 
nend,  feine  Sprache  leicht  und  flieífend,  von  einer  melodi- 
fchcn,  íiberaus  anmuthigen  Stimme  unterftLitzt.  Sein  Einflufs 
in  LiíTabon  war  machtiger  und  gebieterifcher  ais  der  feines 
Zeitgenoífen  Choifeul  in  Verfailles,  weil  Kõnig  Jofé  dem  fran- 
zõfifchen  Monarchen  nur  in  dem  Hange  zur  Sinnenluft,  zu 
cinem  gcnufsreichcn  Hofleben,  zu  Jagd,  Mufik  und  Theater 

*i-«í>- -i^ 


cia 


7' 

ahnlich  war,  ihm  aber  nicht  gleichkam  in  der  Willenskraft, 
m  dem  defpotifch-autokratifchen  Hcrrfcherlinn,  in  der  ruck- 
fichtslofen  Selbftíucht,  in  dem  hochmiithigen  Souveranetats- 
gefiihl.  Arbeitfcheu,  wenig  befãhigt  und  durftig  unterrichtet, 
úberliefs  Kõnig  Jofeph  die  Staatsgefchafte  und  die  Laft  der 
Regierung  dem  gewandten  Minifter,  welcher  gegentiber  fei- 
nem  Fúrften  ftets  die  Formen  eines  Cavaliers  und  Hofmannes 
beobachtete,  wíthrend  er  feine  Gegner  mit  defpotilcher  Hand 
niederwarf.  Um  fo  mehr  Zeit  konnte  der  Kõnig  auf  feine 
Liebhabereien  verwenden,  um  fo  ungeftõrter  fur  feine  Opern 
und  feine  Kapelle,  fíir  den  Bau  und  die  Einrichtung  eines 
prachtvollenTheaters  forgen,  um  fo  haufiger  demWaidwerk 
nachgelien  oder  fchõnen  Frauen  den  Hof  machen,  fo  viel  es 
die  Eiferfucht  feiner  fpanifchen  Gemahlin,  einerTochter  Phi- 
lipps  V  geftattete.  Jofeph  liefs  den  Minifter  auch  darum  ge- 
wahren,  weil  die  ganze  Perfõnlichkeit  des  muthigen  durch- 
greifenden  Mannes  feiner  eigenen  fchwachen  und  furchtfamen 
Natur  imponirte,  fo  dafs  er  ihm  nicht  entgegenzutreten  wagte. 
Dabei  erkannte  er  mit  richtigem  Inftinkt,  dafs  Pombal,  indem 
er  die  nationalen  Krafte  fammehe  und  entwickehe,  die  S lan- 
des- und  Sonderintereífen  der  feudalen  und  klerikalen  Ele- 
mente  bandigte  und  niederhieh,  zugleich  die  Kõnigsgcwalt 
und  die  Priirogative  der  Krone  hob  und  ftarkte. 

Der  hohe  Adel,  der  fich  im  unbefchriinkten  Befitz  aller 
wichtigen  Hof-,  Regierungs-  und  Richterftellen  befand,  fich 
einen  grofsen  Theil  der  Kronguter  angeeignet  oder  durch  den 
verftorbenen  Kõnig  hatte  zutheilen  laífen,  fah  mit  Mifstrauen 
und  Abneigung  auf  den  Landedelmann,  den  cinzigcn  und 
wahren  Inhaber  der  Macht  der  kõniglichen  Autoritat,  der 
alie  Aemter  und  Gefchafte  einer  forgfaltigen  Aufficht  und 
Controle  unterwarf,  mit  einer  Menge  von  Reformplanen  fich 
trug,  in  unheimlicher  Vielgefchâftigkeit  und  mit  fpâhendem 
Blick  Alies  pruftc  und  Vicies  anderte.  Von  ahnlichen  Gefiihlen 


ti» 


eis  c|3 

war  der  Pralatenftand  durchdrungen.  Jener  fiirchtete  fúr  feine 
Sinecuren,  feine  eintraglichen  Stellen,  feine  ufurpirten  Do- 
manen  und  Jahrgelder,  diefer  fúr  feine  Vorrechte,  feine  Ein- 
kúnfte  und  Emolumente,  feine  reichen  Inftitute  und  Pfrunden; 
beide  fur  ihren  Einflufs,  ihre  Machtftellung,  ihre  Herrfchaft. 
Ihre  Befurchtungen  waren  nicht  ungegrúndet.  Nachdem  Car- 
valho, oder  wie  wir  ihn  fclion  jetzt  vorgreifend  nennen  wol- 
len,  Pombal  die  Regierungsgewalt  in  feine  Hande  gebracht, 
fich  des  Kõnigs  verfichert  und  die  Hof-  und  Staatsâmter  mit 
zuverlâffigen  Leuten,  mitVerwandten  und  Anhangern  gefullt, 
begann  er  mit  der  Lebhaftigkeit  und  Beweglichkeit  eines  Siid- 
landers  das  gefammte  õffentliche  Leben  zu  reformiren.  Durch 
eine  Fluth  von  Verordnungen  fuchte  er  die  Mifsftande  in  der 
Verwaltung  zu  befeitigen,  die  zerriitteten  Finanzen  zu  ordnen, 
Induftrie  und  Handel  zu  heleben.  Selbll:  das  grofse  National- 
ungluck,  das  Erdbeben  von  LilTabon,  das  die  Gemuther  der 
Zeitgenoífen  fo  machtig  erfchútterte  und  von  der  Geiftlichkeit 
ais  ein  Stra%ericht  Gottes  gedeutet  ward,  wurde  von  dem 
energifchen  Staatsmann  zu  reformatorifchenWerken  benutzt. 
Es  ift  allbekannt,  dafs  an  dem  Fefttage  Allerheiligen,  an 
einem  heitern  fonnigen  Novembermorgen  plõtzlich  ein  Natur- 
ereignifs  eintrat,  welches  in  dem  Zeitraume  von  einer  Vier- 
telítunde  den  grõfsten  Theil  der  ftolzen  Stadt  Liífahon  in 
Trummer  legte,  Taufende  von  Menfchen  unter  den  einftúr- 
zenden  Gebauden  begrub  und  vereint  mit  einer  Sturmflut 
des  Tajo  und  einer  mehrere  Tage  andauernden  Feuersbrunft 
Tod  und  Verderben  in  jeglichcr  Geftalt  úber  die  entfetzten 
Einwohner  hrachte.  Das  kõnigliche  Schlofs,  der  neucrbaute 
Palaft  des  Patriarchen,  zahllofe  Kirchen,  Klõfter  und  Wohn- 
hauser  fielen  in  Trummer  zufammen.  Die  Zahl  der  Ungluck- 
lichen,  die  an  diefemTage  des  Schreckens  und  derVerwti- 
ftung  unter  den  Ruinen  oder  durch  Feuer  oder  WaíTer  um- 
kamen,  wird  auf  3o:ooo  gefchiitzt.   Und  zu  den  empõrten 


ti» 


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Elementen  gelellten  fich  die  Leidenlchaften  und  wilden  Triebe 
der  Menlchen:  aus  den  Gefangnillen  iHirztenVerbrecher  und 
Rauber  hervor  und  verubten,  unterlHitzt  von  dem  Abfchaum 
der  Bevõlkerung,  den  jede  grofse  Stadt  in  ihrem  SchooíTe 
birgt,  Frevel  und  MilTethaten  aller  Art,  die  rohen  Begierden 
durch  Handlungen  thierilcher  Lull,  durch  Mord  und  Dieb- 
llahl,  durch  Verruchtheit  und  Ziigellorigkeit  fattigend.  Auch 
uber  andere  Kúrtenorte,  uber  Setúbal,  Oporto,  Algarve  dehnte 
fich  die  wilde  Naturgewalt  aus.  Der  Kõnig,  der  fich  mit  feiner 
Familie  in  dem  Luftfchlofs  Belém  befand  und  dadurch  dem 
Verderben  entging,  liefs  fofort  den  Minifter  zu  fich  rufen  und 
richtete  in  der  Angíl:  feiner  Seele  die  Frage  an  ihn:  «Was  ift 
zu  thun,  um  diefem  gõttlichen  Strafgerichte  zu  begegnen?» 
Feít  und  ruhig  antwortete  der  Graf:  « Herr,  die  Todten  be- 
graben  und  fúr  die  Lebenden  forgen».  VoU  Bewunderung 
blickte  der  Monarch  auf  den  muthigen  ftandhaften  Mann  und 
fein  Vertrauen  zu  ihm  war  feitdem  unerfchutterlich.  Er  wiir- 
digte  deífen  hohen  Genius,  der  feiner  Regierung  Glanz  und 
Ruhm  zu  verleihen  verfprach,  und  fchiitzte  ihn  gegen  alie 
Anfchlãge  und  Kabalen  der  Gegner  und  Neider.  Und  nie  hat 
ein  Staatsmann  mit  mehr  Umficht  und  Entfchloífenheit  in 
Tagen  der  Noth  und  des  Schreckens  gehandelt  ais  damals 
Pombal.  Sein  Wagen,  in  dem  er  die  Unglucksltatte  befuchte, 
war  mehrere  Tage  und  Nachte  fein  fteter  Aufenthaltsort,  fein 
Arbeitszimmer:  mit  wunderbarer  Energie  traf  er  Mafsregeln 
zur  Erhaltung  der  Ordnung,  zur  Unterbringung  des  Volkes, 
zur  Vertheilung  von  Lebensmitteln.  Er  felbft  hat  in  wenigen 
Tagen  gegen  zweihundert  Decrete  erlaífen.  Die  Todten  wur- 
den  begraben,  verbrannt,  ins  Meer  gefenkt,  damit  nicht  auch 
noch  die  Peíl:  das  Elend  mehre;  die  Verwundeten  wurden  in 
Sicherheit  gebracht  und  verpflegt;  zur  Aufnahme  der  Ob- 
dachlofen  wurden  Hiitten  und  Bretterbuden  errichtet;  durch 
OefTnen   der  kõniglichen    Kornfpcicher  und   durch    Herbei- 

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74 

fchaffung  fremden  Getreides  fteuerte  er  der  Noth  und  trug 
Sorge,  dafs  kein  Armer  durch  Hunger  umkam;  er  liefs  Mili- 
tar aus  den  Provinzen  herbeikommen,  um  die  Sicherheit  zu 
erhalten,  und  wehrte  durch  ftrenge  und  rafche  Juftiz  den 
Dieben  und  Uehelthatern.  Niemand  durfte  die  Hauptftadt 
verlaíTen,  damit  kein  geraubtes  Gut  verfchleppt  werde.  Die 
befchadigten  WaíTerleitungen  wurden  in  Stand  gefetzt,  den 
Fanatikern,  welche  die  Gemiither  angíligten  und  aufreizten, 
wurde  Einhalt  gethan.  Die  ProzeíTionen  und  õíTentlichen  An- 
dachtsubungen  mufsten  eingeftellt  werden.  Er  vergafs  es  nie, 
dais  der  Jefuitenpater  Gabriele  Malagrida  das  Nationalungliick 
fíir  eine  himmlifche  Zúchtigung  wegen  des  gottlofen  Regi- 
ments  erklarte.  Und  ais  die  Ruhe  in  die  Gemúther  zuriick- 
gekehrt  war  und  man  zu  dem  Wiederauf bau  der  Stadt  fchritt, 
da  beftand  Pombal  darauf,  dafs  breite  StralTen  angelegt  und 
zweckmafsige  anlehnliche  Wohnhaufer  errichtet  wurden,  da- 
mit das  Volk  fich  an  Reinlichkeit  gewõhne  und  LiíTabon  Ichõ- 
ner  und  gefunder  wúrde.  Zu  dem  Ende  liefs  er  auch  pracht- 
voUe  gemeinnútzige  Gebaude  auffúhren  wie  Bõrfe,  Kaufhaus, 
Arfenal,  freie  Platze  und  einen  õffentlichen  Garten  anlegen,  die 
WaíTerleitungen  verbeífern  u.  A.  m.  Wiire  der  Plan  zu  Stande 
gekommcn,  am  Ufer  desTajo  bis  nach  Belém  eine  Promenade 
mit  Baumpflanzungen  aufzufúhren,  fo  wurden  die  Reize  der 
portugiefifchen  Refidenzftadt  noch  wefentlich  erhõht  worden 
fein.  Hatte  er  zuerft  die  Staatsmittel  zur  Linderung  des  Elends 
verwendet,  fo  bediente  er  fich  jetzt  derfelben  zu  Anlagen  im 
allgemeinen  Intereíle. 

II 

DIE  PORTUGIESISCHE  REGIERUNG  IM  KAMPFE  GEGEN  JESUITEN 

UND   PAPSTTHUM. 

Pombais   Name  hat   eine  weltgefchichtliche  Bedeutung 
erhalten  durch  fein  kúhnes  Vorgehen  gegen  die  Jeluiten.  Es 


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iíl:  eine  bekanntcThatlache  dafs  die  GelelUchalt  Jelli  leit  ihrer 
Grundung  in  deii  beiden  Kõnigreichen  der  pyrenailchen  Halb- 
inlel  íehr  grofsen  Einfluís  erlangt  und  dafs  insbelbndere 
João  V  sein  Vertrauen  und  feine  Guníl  den  Ordensbrúdern 
in  hohem  Grade  zugewendet  hatte:  fie  waren  nicht  blofs  die 
Beichtvater  und  GewiíTensrathe  der  ganzen  kõniglichen  Fa- 
milie,  der  Haupter  des  Adels  und  der  Hofwelt,  auch  in  den 
Angelegenheiten  der  Politik  wurden  lie  um  Rath  gefragt;  die 
wichtigrten  Aemter  und  Hofltellen  gingen  gleiclifam  durch 
ihre  Hande;  Schulen  und  wiíTenfchaftliche  Anftalten  ftanden 
unter  ihrer  Leitung  und  Pflege ;  die  lUiffionen  in  den  Colonien 
wurden  von  ihnen  belorgl.  Es  war  ein  eigenthúmliches  Zu- 
lammentreífen,  dafs  die  Ordensglieder  gerade  um  die  Zeit, 
da  die  Spitzen  der  Gefellfchaft  den  philofophifchen  Reform- 
ideen  huldigten  und  die  Gemúther  der  Gebildeten  den  reli- 
giõfen  und  kirchlichen  Dingen  abgewendet  waren,  fich  mehr 
wie  je  mit  fremdartigen  weltlichen  Gefchaften  abgaben,  dafs 
fie  in  Nachahmung  der  englifch-oftindifchen  Compagnie  in 
Handels-  und  Geldfachen  fich  einliefsen,  nach  einem  felb- 
ftandigen  politifchen  Staatsorganismus  tracliteten,  fich  nur 
zum  Schein  einer  hõheren  Autoritat  unterwarfen,  in  Wirk- 
lichkeit  aber  durch  allerlei  fophiftifche  Kunfte  und  Umge- 
hungen  nicht  nur  der  wehHchen  Obrigkeit,  fondern  felbfl:  den 
Gefetzen  undVerboten  des  Papftes  fich  zu  entziehen  wufsten. 
VonWerten  und  Often  trugcn  ihre  KaufmannfchitFe  Colonial- 
waaren  nach  den  europaifchen  SeepUttzen.  Die  Handelsun- 
ternehmungen  gingen  freihch  nur  von  einzelnen  Mitghedern 
aus;  aber  der  Gewinn  kam  dem  ganzen  Orden  zu  gute.  Diefe 
mercantile  Thãtigkcit  des  Ordens  trat  befonders  bei  einem 
Prozeífe  zuTage,  den  ein  Marfeiller  Handelshaus  gegen  die 
GefeUfchaft  anftrengte,  ais  diefe  fich  weigerte,  die  von  dem 
Generalprocurator  der  Miífionen  in  Welhndien  ausgefteUten 
und  von  dem  Haufe  angenommenen  Wechfel  anzuerkennen 


eis 


4  4» 

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76 

und  zu  bezahlen.  Unter  diefen  Umftânden,  ais  die  ganze 
Welt  mit  Spaiinung  dem  Ausgange  der  gerichtlichen  Unter- 
fuchung  entgegenfah  und  mit  Indignation  auf  das  unredliche 
Treiben  dcs  Ordens  blickte,  war  es  ein  gewagter  Schritt,  ais 
die  Jefuiten  auch  gegen  die  Regierung  des  kiihnen  Staats- 
mannes  in  LiíTabon  feindfelig  auftraten. 

Auf  der  ludlichen  Halfte  des  americanifchen  Continents 
hatte  der  Jeílútenorden  bald  nach  feiner  Begriindung  feine 
weltgefchichtliche  MiíTion  am  grofsartigsten  entfaltet.  Un- 
widerftehlich  drangen  die  Vater  in  die  Urwalder  vor  und 
wufsten  fich  das  Vertrauen  der  von  den  Spaniern  mifshan- 
delten  Eingebornen  zu  erwerben.  Auf  diefen  Zúgen  betraten 
fie  zueríl  den  Boden  von  Paraguay,  wo  fie  mit  Genehmigung 
des  Kõnigs  von  Spanien  ein  eigenes  Gemeinwefen  unter  fei- 
ner Oberlioheit  errichteten.  Der  ganze  Staat  follte  ein  chrift- 
liches  Patriarchat  darftellen  und  trug  auch  in  der  That  ein 
focialiífifclies  Geprage.  Die  Indianer  wurden  ais  Kinder  be- 
handelt,  an  LandwirthfchaftViehzucht  und  religiõfe  Uebungen 
gewõhnt,  im  Uebrigen  in  jeder  Beziehung  bevormundet  und 
auf  eine  mõglichst  niedrige  Stufe  von  Wiífen  und  Urtheil 
reducirt.  Jede  Familie  hatte  ein  kleines  Befitzthum,  aber  der 
grõfste  Theil  des  Landes  war  Gemeindeacker  (poífeflio  Dei). 
Mit  dem  Ueberfchuífe  der  Ertrãgniífe  trieb  der  Orden  einen 
grofsartigen  Handel,  deífen  Gewinn  dem  Staate  felbft  wieder 
zu  gute  ftommen  follte.  Um  Einfalle  abzuwehren,  wurden 
Grenzfeftungen  angelegt  und  die  hidianer  waíTenfahig  ge- 
macht.  Das  Land  felbft  war  jedem  Fremden  verfchloífen  und 
felbft  Spanier  konnten  nur  zeitweilig  im  Gefolge  des  Gouver- 
neurs  und  des  Bifchofs  Zutritt  erhalten.  Dem  Namen  nach 
ftand  Paraguay  unter  der  Oberhoheit  der  Krone  Spanien; 
aber  diefe  Hoheit  war  bei  der  grofsen  Hingebung  des 
kõniglichen  Haufes  in  Madrid  an  die  Gefellfchaft  nur  ein 
Schein  und  Schatten;  die  Vater  der  MiíTion  benahmen  fich 


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77 

ais  felbílãndige  Herren  und  Gcbieterdes  Ichõnen  und  reichen 
Landes,  hielten  alie  Europaer  fern  und  regierten  tiber  die 
Indianer,  die  lie  aus  Wáldern  und  Wiiften  in  ihren  Nieder- 
laíTungen  am  Uruguay  gefammelt  und  in  Dõrfern  und  Flecken 
zur  Gemeinfchaft  der  Arbeit,  der  GCiter,  der  Zucht  und  des 
Lebens  herangezogen  hatten,  wie  Hirten  uber  ihre  Heerden. 
Da  wurde  zwifchen  den  \'erwandten  Hõfen  von  Madrid  und 
LiíTabon  einTaulchvertrag  abgerchloflen,  in  Folge  deffen  die 
Portugiefen  die  viel  umlirittene  Colónia  dei  Sacramento  gegen 
fieben  MiíTionsbezirke  (Reductionen)  in  Paraguay  abtraten. 
Die  Jefuiten  íctzten  alie  Hebel  ein,  um  den  Landertaufch  zu 
verhindern;  ihr  Einflufs  und  ihre  diplomatilchen  Kunfte  wa- 
ren  jedoch  nicht  ausreichend.  Da  reizten  die  geiftlichen  Vater 
ihre  indianifchen  Schutzlinge  zum  Wideriland,  verfahen  fie 
mitWaffen  und  ftellten  franzõíifche  Offiziere,  die  fie  in  Dienft 
nahmcn,  an  ihre  Spitzc.  So  erhob  fich  ein  mehrjahriger  Búr- 
gerkrieg,  der  erft  nach  grofsen  Anftrengungen,  Koften  und 
Befchwerden  von  Seiten  der  vereinigten  fpanifch-portugiefi- 
fchen  Armee  beendigt  ward.  Die  Indianer  wurden  durch 
Gomez  Freire  de  Andrada,  Statthaher  von  Rio  Janeiro  befiegt 
und  theils  ais  Sclaven  behandelt,  theils  in  die  Urwalder  und 
Wufteneien  zuruckverfetzt,  aus  denen  die  MiíTionare  fie  einíl 
hervorgezogen.  Diefe  Auflõfi.ing  des  Jefuitenftaats  hatte  An- 
fangs  fur  Paraguay  fchlimme  Folgen:  was  unter  der  patriar- 
chalifchen  Regierung  gefchaffen  worden,  ging  wieder  der 
Verõdung  entgegen.  Aber  mit  der  Zeit  erwies  fich  die  Aus- 
weifi-ing  der  Vater  ais  ein  fegensreiches  Ereignifs  fúr  die  Fort- 
bildung  und  Hebung  der  weiffen  Bevõlkerung  in  America. 
Denn  jetzt  erft  fing  diefelbe  an,  fich  den  Studien  zu  widmen 
und  an  dem  geiftigen  Leben  Europa's  zu  betheiligen;  jetzt 
erft  fiihlte  man  das  Bcdurfiiifs,  die  eigencn  Krafte  anzu- 
ftrengen,  ein  íelbftandiges  Culturleben  zu  íchaffen. 

Der  Krieg  in  Paraguay  hatte  der  Krone  Portugal  ^•iclc 

e|í  eis 


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78 

Millionen  gekoftet;  es  war  daher  begreiflich,  dais  man  in 
LiíTabon  gegen  die  Anftifter  und  Urheber  deíTelben  in  den 
heftigíten  Zorn  gerieth.  Zugleich  hatten  die  geiftlichen  Herren 
keine  Gelegenlieit  unterlaíTen,  das  Volk  wider  die  Regierung 
aufzureizen.  Nicht  genug,  dafs  fie,  wie  erwahnt,  das  Erdbeben 
zu  agitatorifchen  Zweckeii  verwertheten ;  ais  Pombal  in  der 
Umgebung  von  Oporto  den  Weinbau  in  den  fiir  Rebland 
weniger  geeigneten  Gegenden  zu  befchranken  fuchte,  theils 
um  mehr  Boden  fiir  Getreide  und  andere  Produkte  zu  ge- 
winnen,  theils  um  die  Qualitat  und  damit  die  Preife  des  Port- 
weins  zu  fteigern,  und  dann  denWeinhandel  in  Oporto  einer 
privilegirten  Handelsgefellfchaft  iibertrug,  wandten  auch  hier 
die  Jefuiten  alie  Mittel  an,  um  dasVorhaben  des  Minifters  zu 
vereiteln  oder  zu  verkúmmern.  Es  kam  fogar  zu  einemVolks- 
aufftand,  der  miiitarifches  Einfchreiten  nothwendig  machte 
und  nur  durch  ftrenge  Strafgerichte  unterdrúckt  werden 
konnte.  Und  nun  hielt  íich  Pombal  fiir  berufen  und  berech- 
tigt,  gegen  den  feindlich  gefinnten  Orden  mit  aller  Energie 
vorzugehen.  Er  wufste,  dais  ihn  íein  Monarch  in  Aliem  ge- 
wahren  laffen,  ihm  in  Nichts  entgegentreten  wurde.  Es  war 
ein  ganz  unerhõrtes  Ereignifs,  ais  in  einer  Septembernacht 
(19  Sept.  1757)  die  Beichtvater  des  Kõnigs,  der  Kõnigin,  der 
Infanten  in  das  Jefuitenklofter  gebracht  wurden  und  allen 
Religiofen  des  Ordens  verboten,  ohne  ausdriickliche  Erlaub- 
nifs  bei  Hofe  zu  erfcheinen.  Bald  darauf  legte  der  portugie- 
fifche  Gefandte  in  Rom  dem  Papfte  eine  Reihe  von  Akten- 
ftucken  vor,  worin  die  Entartung  und  Verweltlichung  der 
Gefellícliaft  Jefu  dargethan  war,  ihre  Handelsunternehmun- 
gen,  ihre  Wucher-  und  Geldgeichâfte,  ihre  Betheiligung  am 
Verkauf  von  Sclíiven  und  am  Schleichhandel,  ihre  polifilchen 
Umtriebe  im  Kõnigreich  wie  in  den  Colonien.  Der  Minirter 
erreichte  feinen  Zweck.  Papll  Benedict  XIV  bctraute  am 
I  April  1758  den  Cardinal  Saldanha  mit  derVifitation  und  Re- 

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formation  der  Geíelllchaft  Jefu  in  den  Kõnigreichen  Portugal 
und  Algarve  Ibwie  in  den  portugiefílchen  Colonien  Oft-  und 
Weftindiens.  Dieler  verhot  darauf  den  Mitgliedern  der  Gefell- 
fchaft  Jefu  alie  Art  von  Handelsgefchaften  und  befchrânkte 
ihre  Thatigkeit  im  ganzen  Umfang  feines  Patriarchats.  Allein 
noch  in  demfelben  Jahr  ftarben  Benedict  XIV  und  Cardinal 
Saldanha,  und  nun  ftrengten  die  Jefuiten  alie  Krafte  an,  den 
paprtlichen  Stuhl  im  Interefle  ihres  Ordens  zu  beletzen.  Der 
Nachfolger  war  Clemens  XIII,  ein  frommer  und  wohlmci- 
nender,  aber  in  den  Dingen  der  Zeit  wenig  erfahrener  Kir- 
chenfurft,  eifrig  befliíTen,  die  Autoritat  des  Pontificats  unver- 
letzt  und  ungefchwacht  zu  halten.  Diefem  úberreichte  fofort 
der  Ordensgeneral  eine  Denklchrift,  worin  er  die  der  Gefell- 
fchaft  vorgeworfenen  Vergehen  und  Unordnungen  in  Abrede 
ftellte  und  auf  die  Verlegung  der  Unterfuchung  nach  Rom 
drang.  Clemens  XIII,  der  in  den  Jefuiten  die  treueften  Vcr- 
fechter  des  Papftthums  und  der  Religion  fah,  fchenkte  ihncn 
vollen  Glauben.  Damit  wãren  wohl  Pombais  Reformplane 
begraben  worden,  hatte  fich  nicht  ein  Ereignifs  zugetragen, 
das  ihn  rafcher  zum  Ziele  fiihrte,  ais  durch  den  geiftlichen 
Gerichtsgang  je  mõglich  gewefen  ware. 

Ais  einft  der  Kõnig  in  Begleitung  feines  Kãmmerers  und 
Gunftlings  Pedro  Texeira  von  einem  nachtlichen  Befuche. 
den  er  der  Gemahlin  des  Marquis  Luis  Bernardo  de  Távora 
abftattete,  von  Belém  nach  dem  Schlofs  Ajuda  fuhr,  fielen 
zwei  Schiilfe  in  denWagen,  durch  welche  Jofeph  am  Arm 
und  in  der  Seite  leicht  vcrwundet  ward.  Die  Sache  wurde 
fehr  gehcim  gehalten,  um  alies  Auffehcn  zu  vermeiden  und 
Vorkehrungen  zur  Entdeckung  und  Haftnahme  der  Urheber 
zu  treffen.  Der  Kõnig  hielt  fich  vor  aller  Welt  verborgen, 
wahrend  der  Minifter  mit  raftlofer  Thatigkeit  die  Unterfu- 
chung betrieb.  DerVerdacht  fiel  auf  den  Hcrzog  von  Aveiro 
und  die  Familic  Távora.  Man  war  iibcrzeugt,  dais  eine  Ver- 

4»  4* 


8o 

fchwõrung  zum  Umfturz  der  Regierung  bertehe,  deren  Fâden 
lich  in  die  hõchften  Adelskreife  zu  verlaufen  fchienen.  Schon 
waren  tiber  drei  Monate  feit  dem  myfteriõfen  Attentat  ver- 
floíTen,  ais  plõtzlich  die  drei  Edelleute,  die  man  fúr  die  Haup- 
ter  des  Compiots  hielt,  der  Herzog  von  Aveiro,  der  Marquis 
von  Távora  und  fein  Schwiegerfohn  der  Graf  von  Atouguia 
ins  Gefângnifs  gefuhrt  und  ilire  Papiere  mit  Befchlag  belegt 
wurden  (i3  Decbr.  lySS).  Unter  den  Scliriftítucken  w^aren 
einige  Briefe,  in  denen  man  rathfelhafte  und  dunkle  Andeu- 
tungen  eines  verbrecherifchen  Vorhabens  zu  finden  glaubte. 
In  einem  deríelben  Ias  man  die  Worte:  «Um  die  Autoritat 
des  Kõnigs  Sebaftião  (Sebaít.  Joí.  de  Carvalho)  zu  zerftõren, 
muíTen  wir  die  des  Kõnigs  Jofé  vernichten » .  Bald  befanden 
fich  alie  Glieder  der  zahlreichen  und  angefehenen  Familie 
Távora,  Manner  wie  Frauen,  an  verlchiedenen  Orten  unter 
Schlols  und  Riegel;  die  Frauen  in  Klollerkammern,  die  Man- 
ner, mit  Ketten  beíchwert  in  Kerkerlõchern  und  ehemaligen 
Thierbehaltern.  Und  da  man  die  nahen  Beziehungen  diefes 
Adelsgefchlechts  zu  den  Jeluiten  kannte,  wurden  auch  meh- 
rere  Ordensbruder  in  Haft  genommen  und  ihre  Klõfter  und 
Collegien  durch  Soldaten  abgefperrt.  Darauf  wurden  die 
Verhafteten  auf  Grund  von  Auslagen  und  Geftandniílen,  die 
man  ihnen  durch  Torturen  und  Zwangsmittel  abgeprefst,  von 
einem  befondern  Gerichtshofe  des  Hochverraths  und  Maje- 
ftatsverbrechens  íchuldig  erkannt  und  zu  den  entehrendften 
und  martervoUften  Strafen  verurtheilt.  Acht  Glieder  des  reich- 
ften  alteften  Adels,  welche  die  hõchften  Ehrenamter  bei 
Hof  und  im  Militar  bekleidet  hatten,  ftarben  auf  dem  Schaf- 
fott  (i3  Jan.  1759);  ihre  Leichen  wurden  auf  das  Rad  ge- 
íiochten,  ihre  Guter  eingezogen,  ihr  Name  gefchandet.  Antó- 
nio Alvarez  Ferreira,  der  die  Stutzbiichfe  abgefeuert  hatte, 
wurde  an  einen  Pfahl  gebunden  und  lebendig  verbrannt. 
Jofé    Mafcarcnhas,    Herzog    von    Aveiro,    ein    Verwandtcr 


^-ò^ 


des  kòniglichen  Hauíes,  in  deíTen  Familie  das  Amt  des 
Mordomo  oder  Oherhofmarlchalls  erblich  war,  der  Mar- 
quis  von  Távora,  ehcdem  Vicekõnig  in  Oftindien,  Icinc 
ftolze  Gemahlin,  einíl:  eine  gefeierte  Schõnheit  und  auch  jetzt 
noch  trotz  ihrer  vorgerúckteren  Jahre  eine  ftolze  Edeldame 
von  kõrperlichen  und  geiftigen  Vorziigen,  ihr  Sohn  Jofé  Maria, 
ein  trefflicher  talentvoller  junger  Mann  von  einundzwanzig 
Jahren  und  lein  alterer  Brudcr  Luis  Bernardo,  mit  deíTen 
fchoner  Gemahlin  Tiíerefe  der  Kõnig  das  heimliche  Liebes- 
verhaltniís  unterhalten  hatte,  der  Graf  von  Atougia,  Schwie- 
gerfohn  des  Marquis  und  mehrere  Diener  des  Haufes  mufsten 
die  Bitterkeit  eines  gewaltfamen  Todes  erleiden.  Nur  die 
Marquise  Tiíerefe  felbll:  wurde  in  einem  Frauenklofter  unter- 
gebracht,  ihrem  Stande  gemais  behandelt  und  dann  in  Frei- 
lieit  gefetzt.  Die  Verurtiíeilten,  úber  deren  verbreciíerifche 
Plane  und  Handlungen  ein  amtlicher  Bericht  verõffentlicht 
ward,  warcn  alie  erklarte  Feinde  des  Minifters,  den  fie  ais 
einen  weit  unter  ihnen  ftehenden  Emporkõmmling  haísten 
und  beneideten,  der  fie  um  die  Gunft  des  Monarchen  ge- 
bracht,  deíTen  Reformen  fo  tief  in  die  kirchlichen,  politilchen 
und  gelellfchaftlichen  Traditionen  einfchnitten,  der  ihrem 
Ehrgeize,  ihrer  bisherigen  Machtftellung  Einhalt  zu  gebieten 
gewagt,  der  die  Jefuiten,  mit  denen  das  Haus  Távora  von 
jeher  durch  Bande  der  Pietat,  der  Religion,  des  Vertrauens 
verknupft  war,  vom  Hofe  und  vom  Beichtftuhl  verdrangt  hatte. 
Eine  groíse  Anzahl  Verwandter,  Freunde  und  Gelinnungsge- 
noíTen  wurden  in  graíTlichen  Kerkern  gefangen  gehalten. 

Bei  der  Abneigung,  welche  Carvalho,  der  um  diefe  Zeit 
wegen  feines  Verdienftes  um  die  Entdeckung  des  Complots 
zum  Grafen  von  Oeyras  erhoben  ward,  gegen  den  machtigen 
Jcíuitenorden  hegte,  ftand  zu  erwarten,  dais  man  die  gcricht- 
liche  Verfolgung  auch  iiber  diefe  geiftliche  BrLiderfchaft  aus- 
dehnen  wurde.  Man  hatte  bereits  zehn  Mitglieder,  die  man 

^l-A-*^ -Ík-I* 


82 

ais  Anftifter  und  Mitfchuldige  betrachtete,  unter  ihnen  den 
Pater  Gabriel  Malagrida,  einen  gebornen  Mailãnder  in  Ge- 
wahrfam  gefetzt  und  ihre  Papiere  und  Brieflchaften  wegge- 
nommen.  Man  fand  bald  manche  verdachtige  Anzeichen,  die 
auf  conlpiratorifche  Anfchlage  gedeutet  werden  konnten.  Ihre 
zuverfichtliche  Haltung,  ihr  herausforderndes  Benehmen,  ihre 
Dreiftigkeit  gegen  die  õífentliche  Autoritat  vor  dem  Mordver- 
fuch,  die  Ausfagen  Aveiro's  bei  feinem  Verhõr,  verfangliche 
AeuíTerungen,  dafs  der  Konig  nicht  lange  leben  und  die  Ty- 
rannei  des  Grafen  bald  ein  Ende  nehmen  wiirde,  aufgefan- 
gene  Briefe  nach  Rom,  worin  die  Lage  des  Reiches  und  die 
Bedrãngnifs  der  Ordensbrúder  in  grellen  Farben  dargeftellt 
waren;  diefe  und  andere  Dinge  wurden  ais  Beweife  ihrer 
Schuld  und  bõfen  Abfichten  gedeutet.  Schon  einige  Wochen 
nach  dem  Blutgerichte  (Febr.  lySg)  konnte  der  franzõlilche 
Gefandte  in  LiíTabon  an  den  Minifter  Choileul  berichten, 
«man  behauptet,  die  Jefuiten  hãtten  das  Volk  aufwiegeln 
follen,  im  Falle  der  Kõnig  getõdtet  worden  wâre»;  und  einige 
Wochen  fpâter  meldete  er  nach  Paris,  man  habe  entdeckt, 
dafs  drei  der  verhafteten  Ordensgeiftlichen  in  die  Verfchwõ- 
rung  verflochten  gewcfen,  und  dafs  Mitglieder  der  Gefell- 
fchaft  Jefu  ais  die  Anftifter  des  Mordanfalls  angefehen  wiir- 
den.  Sie  hatten  die  gereizte  Stimmung  und  den  verletzten 
Ehrgeiz  des  Herzogs  von  Aveiro  und  der  Familie  Távora 
iiber  widerfahrene  Zurúckw^eifungen  von  Seiten  des  -Kõnigs 
benutzt,  um  fie  zu  dem  verbrecherifchen  Unternehmen  an- 
zufporncn.  Auf  Grund  folcher  Schuldbeweife  wurde  im  Laute 
des  Jahres  lySg  eine  Reihe  von  Mafsregeln  gegen  die  Gefell- 
fchaft  Jefu  in  Anwendung  gebracht,  die  ihrer  Exiftenz  und 
Wirkfamkeit  in  allen  der  portugiefifchen  Krone  unterwor- 
fenen  Landern  ein  Ende  machten. 

Nachdem  in  einer  an   Papft   Clemens  XIII  gerichtcten 
Denkfchrift  die  Entartung  des  Ordens  von  den  urfpriinglichen 


eis 


83 

Grundílttzen,  das  ungefetzliche  und  aufruhrerifche  Betragen 
íeiner  Mitglieder  in  Paraguay  und  Brafilien,  die  confpirato- 
rifchen  Umtriebe  des  vorigen  Jahres  dargelegt  und  der  heil. 
Vater  erlucht  worden,  das  gerichtliche  Vorgehen  gegen  die 
des  Hochverraths  verdãchtigen  Ordensbriider  zu  geftatten, 
damit  fie  nach  den  Gelblzen  beftraft  wiirden,  ergingen  kõnig- 
liche  Auslchreiben,  welche  den  Jcfuiten  das  VerlaíTen  ihrer 
Klofterwohnungen  und  den  Verkehr  mit  Weltlichen  unter- 
fagten,  ihre  Wirkfamkeit  im  Beichtftuhl  und  auf  der  Lehr- 
kanzei  hemmten,  das  Vermõgen  der  Gefellfchaft  und  ihre 
Schritítiicke  mit  Befchlag  belegten.  Der  Papft  liefs  gefchehen 
was  er  nicht  zu  verhindern  vermochte:  der  ZeitgeiíT:,  die 
õífentliche  Meinung,  die  Vorurtheiie  und  Abneigungen  der 
Regierungen  und  der  herríchenden  KlaíTen  waren  machtiger 
ais  die  kirchliche  Autoritat.  Clemens  mufste  lich  begniigen, 
die  Befchuldigten  und  Angegriffenen  der  Milde  des  Kõnigs 
zu  empfehlen.  Doch  konnte  man  lich  in  Rom  nicht  ent- 
IchUeíTen,  die  Jeluitenvater  in  Portugal  einem  weltlichen  Tri- 
bunal zu  unterwerfen;  man  furchtete,  es  mõchte  cine  Wieder- 
holung  des  ProzeíTes  gegen  dieTempelherren  in  Sccne  gefetzt 
werden.  Auch  hatten  mehrere  hundert  Bifchõfe  und  Cardi- 
nãle  Deutfchlands  und  Italiens  ein  Schreiben  an  den  Papft 
gerichtct,  mit  dem  Erílichen  fich  der  bedrangten  Ordens- 
briider anzunehmen,  und  in  allen  Landern  wurde  von  den 
Jefuiten  felbft  und  ihren  Frcunden  und  Anhiingern  eine  Fluth 
von  Schmahlchriften,  verlcumderifchen  Befchuldigungen, 
feindfeligen  Nachredcn  und  Angritfen  wider  dieTyrannei  der 
portugiefifchen  Regierung  lolsgelaíTen.  Das  Breve,  welches 
die  Erlaubnils  zu  dem  Gerichtsverfahren  gegen  die  ange- 
Ichuldigten  Kleriker  ertheilte,  war  daher  mit  lo  vielen  Cau- 
tclen  verfehen,  dafs  es  zu  einem  umfaíTenden  Prozeís,  wie 
ihn  der  Minifter  beabfichtigte,  nicht  hinreichte.  Nur  gegen 
bcftimmte  Perfonen  und  unler  dem  Vorfitz  eines  Geiftlichen 


84 

foUte  die  Unterfuchung  ^'or  fich  gehen.  Auch  war  der  Nun- 
tius  angewiefen,  das  Schriftftúck  dem  Kõnig  felbfl  einzu- 
handigen.  Man  hoíTte,  der  lalbungsvolle  Curialílil  werde  auf 
das  Gemuth  des  der  Kirche  und  dem  rõmifchen  Stuhle  mit 
Ehrfurcht  ergebenen  Fiirften  feines  Eindrucks  nichtverfehlen. 
Abar  Pombal,  von  dem  Inhalt  des  Schreibens  unterrichtet, 
bewog  feinen  Monarchen,  die  Annahme  des  Breve  zu  ver- 
weigern.  Es  wurde  ais  ein  Eingriff  in  die  Prarogative  der 
Krone  angeíehen,  dafs  man  Leute,  welche  Unterthanen  zur 
Empõrung  verleitet  und  fich  in  hochverrãtherilche  Complotte 
eingelaíTen,  dem  Arme  der  Gerechtigkeit  entziehen  wolle. 

Diefer  Kriegserklarung  gegen  Rom  liefs  der  Minifter  einen 
Gewaltakt  folgen,  welcher  die  ganzeWelt  in  Erftaunen  fetzte 
und  bald  auch  in  andern  Lândern  Nachahmung  fand.  Ermu- 
thigt  durch  die  ungunftige  Stimmung,  die  gleichzeitig  in  den 
BourbonTchen  Staaten  gegen  die  Jeluiten  zu  Tage  trat,  gab 
Pombal  (i  3  Sept.  lySg)  den  Befehl,  dafs  alie  Religiofen  der 
Gelellfchaft  Jefu  aus  ihren  Ordenshãufern  und  Klõftern  abge- 
holt  und  zu  Schiff  nach  dem  Kirchenftaate  gefúhrt  wtirden. 
Diefer  Befehl  wurde  mit  grofser  Hãrte  vollftreckt.  Zwei  ragu- 
fanifche  Schiffe,  die  kaum  den  nõthigen  Raum  hatten,  fúhrten 
etliche  hundert,  meiftens  bejahrte  und  an  ein  gemachliches 
Leben  gewõhnte  geiftliche  Manner  nach  Civita  Vecchia,  wo  fie 
iiber  zwei  Monate  in  kalter  Jahreszeit  in  den  Cajúten  aushar- 
ren  mufsten,  bis  Vorkehrungen  zu  ihrer  Aufnahme  getrotten 
waren.  Nur  diejenigen  Jefuitenvater,  welche  ais  Mitfchuldige 
oder  Mitwiífer  der  Verfchwõrung  bereits  in  Haft  gebracht  wa- 
ren, blicben  im  Fort  S.  Julião  an  der  Miindung  dcsTajo  einge- 
fchloífen,  wo  das  Volk  fie  in  ihrer  Ordenstracht  vom  Geftade 
aus  fehen  konnte.  Zugleich  wairde  von  Amtswegen  cine  Reihe 
von  Schriftftucken  gedruckt  und  bei  allen  Gerichts-  und  Re- 
gierungsftellen  niedergelegt,  um  in  Zukunft  ais  authentifche 
Documente   der  Schutd  und   der  vcrderblichcn  Grundfatze 


eis 


(is 


85 

und  Handlungsweiíe  der  Jefuiten  fo  wie  zur  Rechtfertigung 
der  Líber  fie  verhangten  Ausweifung  zu  dieiien. 

Dies  war  die  Einleitung  zu  einem  ganzlichen  Bruch  mit 
Rom.  So  fchwer  es  dem  kirchlich  und  glaubig  gefinnten 
Kõnig  fiel,  mit  dem  heil.  Vater  in  Unfrieden  zu  leben,  der 
Einflufs  des  gewaltigen  Mannes,  der  den  fchwachen  unlclb- 
ftandigen  Furften  mit  Verfchwõrungsplanen  und  Nachftel- 
lungen  der  Jefuiten  angftigte,  war  mãchtiger  ais  die  Furcht 
vor  dem  Kirchenhavipte  und  feinen  geiíllichen  Waífen.  Zehn 
volle  Jahre  dauerte  das  feindfelige  Verhaltnifs  zwifchen  LiíTa- 
bon  und  Rom;  neue  Krankungen  und  Zwiftigkeitcn  fcharften 
den  Streit;  gehaífige  Flugfchriften  und  Druckwerke,  von 
beiden  Seiten  in  die  Oeftentlichkeit  geworfen,  fuhrten  der 
Flamme  fortwahrend  neuen  Brennftoff  zu.  Im  folgenden  Jahr 
(6  Juni  1760)  wurde  bei  Gelegenheit  der  Vermahlung  des 
Infanten  Pedro  mit  des  Kõnigs  Tochter,  der  Thronerbin,  ein 
grofses  Nationalfeít  veranftaltet.  Da  blieb  allein  der  Palaít 
des  Nuntius  Acciajuoli  unbeleuchtet,  weil  man  unterlaíTen 
hatte,  ihn  offizicll  von  dem  Feft  in  Kenntnifs  zu  fetzen. 
Einige  Tage  nachher  wurde  der  Cardinal  genõthigt,  LiíTabon 
und  das  ganze  Kõnigreich  in  grõflíer  Eile  zu  verlaífen.  Dies 
hatte  die  Ausweifung  des  portugiefifchen  Gefandten  Almada 
aus  Rom  zur  Folge.  Er  begab  fich  nach  Florenz,  w^o  er  Flug- 
fchriften in  kirchenfeindlichem  Sinne  verhreitete,  die  dann  in 
derTiberftadt  vcrdammt  und  verbrannt  wurden.  Nun  íolgten 
neue  Zwangsmafsregeln:  alie  Portugiefen  wurden  aus  dem 
Kirchenftaat,  alie  papftlichen  Unterthanen,  Geiftliche  wie 
Laien,  aus  Portugal  ausgewiefen.  Die  Regierung  in  Lilfabon 
unterfagte  jede  Ausfúhrung  -von  Geld  und  Gut  nach  Rom 
ohnc  kõnigliche  Erlaubnifs  und  jede  Einholung  oder  An- 
nahme  von  Bullen  oder  Brcven.  Die  gehaífigen  Schriften, 
Libelle,  verleumderifchen  Flugblatter,  die  in  allen  Landern 
gegen  Pombal  und   den  Kõnig  ausgeftreut  wurden,  hatten 


eis 


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zur  Folge,  dafs  der  Minifter  auf  der  eingefchlagenen  Bahn 
immer  energifcher  vorging.  Er  wollte  die  Gefellfchaft  Jefu 
fúr  alie  Zeiten  in  Portugal  vernichten.  Zu  dem  Zweck  wurde 
im  Febr.  1 7  6 1  verfúgt,  dafs  alies  Vermõgen,  welches  der 
Orden  an  Gutern,  Haulern,  Geldrenten,  Waaren  in  Portugal 
befitze,  dem  Fifcus  verfallen  fei  und  alie  Lândereien,  die 
einft  von  der  Krone  verliehen  worden,  an  diefelbe  zurúcker- 
ílattet  werden  foUten.  Und  bald  erregte  ein  neues  Schaufpiel 
die  Aufmerkfamkeit  von  ganz  Europa.  Der  wegen  Theil- 
nahme  an  dem  Complot  verhaftete  Pater  Malagrida,  der  ais 
Beichtvater  der  Familie  Távora  und  vieler  adeligen  Haufer 
grofses  Anfehen  in  den  ariftokratilchen  Kreifen  genofs  und 
ais  Prophet  und  Heiliger  verehrt  ward,  der  aber  íeit  dem 
Erdbeben  gegen  das  herrfchende  Regiment  eine  feindíelige 
Sprache  gefiihrt,  viel  von  gõttlichen  Otfenbarungen,  Vilionen 
und  Weiflagungen  geredet  hatte,  wurde  auf  Pombais  Befehl 
vor  das  Inquifitionstribunal  geftellt,  und  ais  ihn  diefes  wegen 
Gotteslaíterung,  falfcher  Prophezeiungen  und  Irrlehren  ais 
Ketzer  und  Feind  des  katholifchen  Glaubens  verurtheilt  und 
dem  weltlichen  Gerichte  uberantwortet  hatte,  im  Angefichte 
einer  grofsen  Menfchenmenge  von  dem  Henker  zuerít  er- 
droíTelt,  dann  verbrannt  (20  Sept.  1761).  Der  Verurtheilte, 
ein  achtzigjâhriger  Greis,  bei  dem  Phantafie  und  religiõfe 
Schwãrmerei  weit  iiber  feine  Vernunft  und  Einficht  gingen 
und  auf  deíTen  Geift  die  aufregenden  EreigniíTe  und  die  lange 
Gefangenfchaft  verwirrend  eingewirkt  zu  haben  fcheinen, 
hielt  die  Wahrheit  feiner  Prophezeiungen  bis  zum  letzten 
Augenblick  aufrecht.  Die  Jefuitenfreunde  fahen  in  ihm  cinen 
wimderthatigen  Mãrtyrer,  der  dem  HaíTe  Pombais  zum  Opfer 
gefallen,  Andere  betrachteten  ihn  ais  einen  Fanatiker,  dem 
Verftand  und  richtiges  Urtheil  verloren  gegangen.  Dafs  die 
Regierung  die  Inquifition,  deren  Jurisdiction  und  Machtbefug- 
nifse  Pombal  felbít  im  Anfang  feiner  Verwaltung  befchriinkt 

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4SÍ9 
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hatte,  nun  zu  ihren  ordensfeindlichen  Zwecken  gchrauchte, 
den  Pater  ais  Ketzer  den  Flammen  uberlieferte  ftatt  ihn  we- 
gen  Hochverraths  durch  das  Gcricht  verurtheilen  zu  laíTen, 
machte  natiirlich  in  Rom  und  m  der  ganzen  katholifchen 
Welt  bofes  Blut  und  erweiterte  die  Kluft  zwifchen  den  beiden 
Machten.  Der  Kõnig  befetzte  den  erzbifchõflichen  Stuhl  von 
Bahia  ohne  die  Beftatigung  der  Curie  einzuholen,  und  ais 
der  Bifchof  von  Coimbra  in  einem  Hirtenbrief  fich  in  feind- 
feligen  Aeufferungen  gegen  die  Gottlofigkeit  und  unkirchliche 
Richtung  der  Regierung  erging  und  neues  Unheil  íur  die 
Nation  daraus  prophezeite,  wurde  er  feines  Amtes  entfetzt 
und  ins  Gefangnifs  gebracht,  der  Hirtenbrief  õffentlich  ver- 
brannt,  das  Bisthum  unter  andere  Verwaltung  geftellt  und 
das  kõnigliche  Cenforamt  oder  «Tribunal  des  GewiíTens»  zu 
ftrenger  Ueberwachung  aller  klerikalen  Schriftftucke  ange- 
halten.  Wie  in  den  Bltithetagen  der  Inquifition  fullten  fich  die 
Gefangniíle  mit  Schuldigen,  Unzufriedenen,  Verdachtigen. 
Auf  der  Buhne  fah  man  den  ins  Portugiefifche  uberfetzten 
«Tartufte»  im  Jefuitenornat  erfcheinen. 

Mit  richtigem  Urtheil  erkannte  der  Minifter,  dais  nur 
durch  Hebung  und  Verbreitung  der  Volksbildung  die  Nation 
von  der  Macht  der  Hierarchie  und  von  den  Banden  des 
Aberglaubens  und  der  priefterlichen  Einwirkung  befreit  wer- 
den  kõnnte.  Darum  war  er  unermiidlich  beftrebt,  durch  Auf- 
klíirungsfchriften,  durch  Errichtung  von  Volksfchulen  und 
Unterrichtsanftalten  aller  Art,  durch  Herbeiziehung  fremder 
Lehrer  und  Buchdrucker  der  geiftlichen  Herrfchaft  auf  immcr 
zu  fteuern,  im  Gegenfatz  zu  den  unfruchtbaren  Mõnchs- 
fchulen  praktilche  Anílalten  fiir  das  Leben  und  fiir  nationale 
Bildung  zu  grundcn.  Wir  werden  fpater  die  Reformthiitig- 
keit  des  Miniífers  auf  allen  Gebieten  des  Staats  und  der 
Volkserziehung  kennen  lerncn,  durch  welche  ein  neues  Por- 
tugal gefchafTen  werden  folltc,  wúrdig  den  tibrigen  Cultur- 


1     F 


4e|8 


ftaaten  an  die  Seite  zu  treten.  Zunachll:  benutzte  Pombal 
die  Zeit  der  Mifshelligkeiten  mit  Rom  zur  Befchrankung  der 
klerikalen  und  kirchlichen  MachtbefugniíTe.  Ais  ein  Cano- 
nicLis  gegen  das  Urtheil  einer  Staatsbehõrde  in  einer  Pen- 
fionsfache  Einfpruch  erhob  und  mit  der  Excommunication 
drohte,  wurde  diefe  Anmafsung  durch  ein  kõnigliches  Decret 
vom  IO  Marz  1764  zuruckgewielen  und  dabei  in  fcharfen 
Worten  betont,  dafs  die  Krone  die  Macht  und  Pflicht,  die 
Unterthanen  zu  fchirmen  unmittelbar  von  Gott  habe,  und 
dafs  es  eine  Mifsachtung  der  íbuveranen  Fúrftengewalt  fei, 
die  in  zeitlichen  Dingen  keinen  Hõheren  anerkenne,  wenn 
die  Kirche,  ftatt  das  Erbe  und  den  Weinberg  des  Herrn  zu 
vertheidigen  die  kõnigliche  Autoritat  angreife.  Darauf  wurde 
verfQgt,  dafs  keine  Excommunication  uber  Behõrden  oder 
Beamten  ohne  die  unmittelbare  Cognition  des  Kõnigs  ver- 
hangt  werden  dúrfe.  Um  der  Vermehrung  des  Kirchenver- 
mõgens  und  den  erbfchleicherifchen  Kunften  des  Klerus 
Schranken  zu  fetzen,  erging  die  Verordnung,  dafs  alie  Or- 
densleute,  weibliche  wie  mannliche,  bei  ihrem  Eintritt  in 
eine  geiftliche  Kõrperfchaft  von  jedem  vaterlichen  und 
miitterlichen  Erbtheil  ausgefchloíTen  feien.  Schenkungen, 
fromme  Legate  und  Vermachtniffe  fur  SeelenmeíTen  wurden 
befchrânkt  und  durften  einen  beftimmten  Vermõgenstheil 
nicht  úberfteigen.  Eine  grofse  Zahl  von  Mõnchs-  und  Non- 
nenklõftern  vmrde  aufgehoben  und  die  Aufnahme  von  No- 
vizen  vor  ihrem  fúnfundzwanzigften  Lebensjahr  und  ohne 
ausdriíckliche  Erlaubnifs  des  Kõnigs  verboten.  Alie  ohne 
kõnigliches  Placet  bekannt  gemachten  pãpftlichen  BuUen 
und  Breven,  insbefondere  die  von  den  Jefuiten  heimlich 
eingefuhrte  Bulle  «in  Coena  Domini»  gegen  Irrlehrer,  Ketzer 
und  Schismatiker  (1768)  wurden  fiir  ungiiltig  erklart,  die 
Unterfcheidung  zwifchen  «Neuen  Chriften»  und  «Alten 
Chrillen»  aufgehoben  und  dadurch  die  Rcchtsungleichheit, 

-i-«í>- -á^ 


4  si» 
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_89_ 

die  hisher  die  crftercn  von  den  uílcntlichen  Aemtern  aus- 
gefchloíTen  hatte,  heleitigt.  Feiertage  und  ProzeíTionen  wur- 
den  vcrmindert.  Durch  diefe  Gcfetze  und  Vcrordnungen 
^vu^den  auch  die  Befugniíle  und  der  Gefchaftskreis  des 
Inquifitiontribunals  eingefchrankt,  wenn  gleich  das  Amt 
felbft  noch  fortheftand,  und  mehr  im  Dienfte  der  Regierung 
ais  der  kirchlichen  Rechtglauhigkeit  angewendet  ward.  Doch 
kamen  keine  Autos  de  fé  mehr  vor,  man  hegntigte  fich  mit 
Gefangenhaltung.  Die  Todesftrafe  wurde  iiberhaupt  unter 
Pombais  Regierung  felten  verhangt,  dagegen  war  es  nichts 
Ungewõhnliches  zu  gleicher  Zeit  zwanzig  oder  dreilTig,  die 
in  eine  Veríchwõrung  oder  in  aufruhrerilche  Bewegungen 
^'er^vickeIt  waren,  ins  Gefangnils  gefiihrt  zu  lehen.  Aber 
um  Uebelftande  und  Gewohnheiten,  die  durch  hunderjahrige 
Tradition  und  Uebung  zur\'olksnatur  geworden,  zu  vertilgen, 
reichen  die  Krafte  eines  einzigen  Mannes,  und  wiWc  er  noch 
fo  kiihn  und  gewaltig  im  Aufraumen,  nicht  hin.  Zum  Nieder- 
rciíTen  war  Pombal  der  rechte  Mann,  zum  Aufbauen  hatte 
CS  einer  ruhigeren,  befonneneren  Perfõnlichkeit  und  einer 
langeren  Dauer  der  herrfchenden  Zeitrichtung  bedurft. 

Die  Jelliiten  glaubten  die  feindfelige  Stimmung,  welche 
in  Portugal  und  in  den  BourbonTchen  Landern  gegen  den 
Orden  fich  lo  fcharf  kund  gab,  durch  die  Autoritat  des  von 
ihnen  beherrlchten  Papftes  Clemens  XIII  niederhaltcn  zu 
kõnnen.  Sie  envirkten  daher  durch  ihren  Einflufs  imVatican, 
dafs  insgeheim  eine  Bulle  entworfen  ward,  worin  nicht  nur 
die  Gefellfchaft  Jefu  aufs  Ncue  bellatigt,  fondern  auch  die 
in  den  letzten  Jahren  ausgeftreuten  gehafligen  Angaben  und 
Berichte  ais  bõswillige  Verleumdungen  erklart  wurden.  Diefe 
Bulle  vom  7  Jan.  1765,  bekannt  unter  dem  Namen  « Apoftoli- 
cum  pafcendi  múnus»,  ward  durch  die  Nuntien  allen  Bifchõ- 
ten  der  Chrillenheit  zugeftellt.  Sie  folhe  den  AngriíTen  gegen 


den  Orden  ein  Ziel  fctzcn,  hatte  aber  den  entgegengefetzten 


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Erfolg,  fie  forderte  die  Feinde  zu  Gegenmafsregcln  heraus: 
in  Neapel  und  Venedig  wurde  die  Bekanntmachung  und  Ver- 
breitung  verboten,  in  Frankrcich  úbcrgab  man  das  Schrift- 
ítuck  an  manchen  Orten  den  Flammen,  in  Portugal,  wohin  es 
auf  Schleichwegen  gelangte,  wurde  auf  Antrag  des  Kronan- 
walts  in  einer  durch  Beiziehung  der  angelehenllen  Theologen 
und  Juriften  verftarkten  Staatsrathsíitzung  die  Erklarung 
abgegeben,  die  BuUe,  ^velchc  die  Jefuiten  durch  unwLirdige 
Kunftgriífe  erlchlichen  hiitten,  verletze  die  Rechte  der  Krone, 
gefilhrde  die  Ruhe  des  Reichs  und  ftõre  den  Frieden  der 
Kirche.  Ein  eigenes  Gefetz  belegte  daher  das  Befitzen,  Dru- 
cken  und  Verbreiten  derfelben  mit  Ichweren  Strafen  (6  Mai 
1765).  So  lõfte  fich  mehr  und  mehr  das  Band  auf,  das  Rom 
bisher  mit  den  katholifchen  Staaten  fo  innig  verbunden  hatte. 
Schon  wurden  zwilchen  Liflabon  und  Paris  Scliriftftúcke  ge- 
wechfelt,  wie  man  bei  dem  piípftlichen  Stuhle  die  Aufhebung 
des  Jefuitenordens  am  nachdrucklichften  betreiben  kõnne. 
Auch  das  Madrider  Cabinet  fuchte  man  zur  iMitwirkung  zu 
gewinnen.  Wenn  die  drei  Kronen,  meinte  Pombal,  mit  ein- 
miithigen  Forderungen  fich  an  die  Curie  wendeten,  lo  kõnnte 
lie  weder  die  Authebung  der  GelelUchaft  Jelli  noch  die  Ab- 
ílellung  anftõffiger  Mifsbrauche  in  Religionslachen  verwei- 
gern.  Ein  neues  kõnigliches  Manifeft  erklarte  (28  Aug.  1767), 
dafs  jeder  Jeluit,  der  in  Portugal  betroffen  werde,  ais  Hoch- 
verrather  und  Majeftatsverbrecher  beftraft  werden  wiirde. 
«Die  Ordensglieder  und  ihre  Freunde  und  BelchiUzer  íeien 
die  unverbelTerlichen  und  gemeinlamen  Feinde  allcr  welt- 
lichen  Macht,  der  hõchften  gefetzmãíTigen  und  von  Gott 
eingeletzten  Obrigkeit,  der  Ruhe  und  des  Lebens  der  chriU:- 
lichen  Fúríten  und  des  õífentlichen  Friedens  der  Staaten». 
Alie  Portugiefen  foUten  fich  durch  einen  vor  den  Magiíb-aten 
abzulegenden  Eid  feierlich  vejpflichten,  mit  der  Gerellfchaft 
Jefu  in  keinerlei  Verbindung  zu  ftehen  oder  ihre  Lehren  zu 

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thcilen.  Ais  Antwort  auf  die  Bulle  richtete  Kõnig  Joleph  ein 
Schreiben  an  Clemens  XIII  (6  Decebr.  1767),  worin  er  unter 
\'erricherung  leiner  Ehrfurcht  fur  dcn  heil.  Vater  felbft  fcin 
Bedauern  auslpricht,  dafs  derfelbe  cinen  Ordcn  in  Schutz 
nehme,  der  fich  die  Ermordung  der  Furften,  die  Aufwiege- 
lung  der  Unterthanen,  die  Stõrung  des  õffentlichen  Friedens 
durch  Scbriften  undThaten  zum  Ziele  leines  Strebens  celetzt. 
Die  \'organge  in  Portugal  wirkten  auf  Spanien  und 
Frankreich  zuruck.  Dem  Nuntius  in  Madrid  \vurde  bereits 
die  Andeutung  gemacht,  wenn  Clemens  XI 11  fich  noch 
langer  weigere  die  Sãculariíation  der  Gefellfchaft  Jelli  vor- 
zunehmen  d.  h.  die  Mitglieder  von  ihren  Gelúbden  loszu- 
Iprechen  und  in  den  Weltpriefteríiand  eintreten  zu  laíTen, 
lo  kõnnte  es  leicht  gelchehen,  daís  dem  paprtlichen  Stuhle 
einige  leiner  Befitzungen  entriffen  ^vúrden.  Die  Kirche  felbft 
und  die  Autoritat  ihres  Oberhauptes  litten  unter  den  Schla- 
gen  gegen  die  Jelliiten.  In  Portugal  íing  man  an  fich  an 
den  Gedanken  einer  Trennung  von  Rom  zu  gewõhnen.  Die 
Erzbifchõfe  ertheilten  kirchliche  Difpenfationen  tiuf  eigene 
Hand;  erledigte  Pfrunden  wurden  durch  die  Regierung 
befetzt;  die  Frage  iiber  den  Primat  des  rõmifchen  Bifchofs 
wurde  gefchichtlich  erforfcht  und  die  Selbftandigkeit  des 
Landcsepifcopats  nachgewiefen;  die  portugiefifche  Geiftlich- 
keit  machte  fich  mit  dem  Gedanken  vertraut,  dafs  Kirche 
und  Staat  einen  unaufloslichen  Bund  mit  einander  fchlieífen, 
Krone  und  Epifcopat  wie  in  England  zu  einem  einheitlichcn 
Organifmus  zufammenwachfen  mõchten.  Wie  fehr  immer 
der  in  lei  nem  Gewilfen  geangftigte  Kõnig  eine  Ausfõhnung 
wtinfchte  und  anftrebte,  der  Papft  felbft  machte  fie  unmõg- 
lich  durch  das  eigenfinnige  Bcharren  auf  der  Riickberufung 
der  ausgewiefenen  Jefuiten.  Wie  hiltte  Pombal  auf  eine  folche 
Bedingung  fich  einlaften  kõnneni'  So  dauerte  das  feindfeligc 
Verhiiltnifs  fort  und  erweiterte  fich  zu  einem  Kampf  aller 

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romanifchen  Võlker  gegen  das  Pontificat.  Das  ftrenge  Ver- 
fahren  des  heftigen  Papftes  Clemens  XIII  gegen  den  Herzog 
von  Parma  gab  den  Anstofs  zu  einem  Streite,  der  von  den 
katholifchen  Hõfen  ais  cine  allen  Souveranen  gemeinfchaft- 
liche  Angelegenheit  betrachtct  wurde.  Pombal  war  der  An- 
ficht,  man  mulTe  durch  vereintes  Vorgehen  den  Papll:  aus 
den  Banden  befreien,  in  welchen  ihn  die  Jeluiten  gefangen 
hielten,  feine  ganze  Umgebung  beftehe  aus  Gliedern  diefes 
Ordens,  fo  dais  der  wenig  crleuchtete  und  fchwache  Greis 
im  Vatican  die  Dinge  der  Welt  nur  nach  ihrer  einfeitigen 
und  egoiftilchen  Darftellung  erfiihre.  Der  portugiefifche  Mi- 
nifter  erblickte  in  der  Auflõfung  der  Gelelllchaft  das  einzige 
Mittel,  fie  fiir  immer  von  dem  Kõnigreiche  auszufchlieíTen. 
Ohne  dieíe  entfcheidende  Maísregel  war  zu  furchten,  dafs 
der  Infant  Dom  Pedro,  der  ganz  andere  Anfichten  hegte  und 
die  anticlerikale  Richtung  des  Grafen  verablcheute,  nach 
dem  Tode  Jofephs  die  Rúckberufung  der  geiftlichen  BrLider- 
fchaft  anordnen  wiirde.  Aber  Choifeul  war  der  Meinung, 
man  folie  warten,  bis  die  Tiara  auf  ein  anderes  Haupt  kame 
und  dann  bei  dem  Nachfolger  die  Sache  mit  mehr  Energie 
betreiben.  Grõfseren  Eifer  entwickelte  Karl  III  von  Spanien, 
der  fich  befonders  verletzt  fiihlte  durch  das  feindfelige  Auf- 
treten  der  Curie  gegen  feinen  NeíTen,  den  Herzog  \'on  Parma. 
Er  bewirkte  durch  feinen  Minifter  Aranda,  dafs  Frankreich 
das  pâpftliche  Gebiet  an  der  Rhone  befetzte,  dafs  Neapel 
Befitz  von  Benevent  und  Pontecorvo  nahm  und  dafs  die 
Gefandten  der  Bourbon'fchen  Hõfe  im  Vatican  Denkfchriften 
einreichten  (Juni  1768),  in  welchen  unter  andern  Forderungen 
auch  die  Auflõfung  der  Gefellfchatt  Jefu  dringend  verlangt 
ward.  Diefer  entfcheidende  Schritt  war  ein  Herzílofs  fiir  den 
kranken  Papft,  der  Nagel  zu  feinem  Sarg.  Noch  ehe  das  zur 
Berathune  iiber  die  fchwierige  Laae  einberufene  Confiltorium 


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zufammentreten  konnte,  ftarb  Clemens  XIII  (2  Febr.  1769). 


93 

Schmerzerfullt  und  kummervoll  fuhr  er  in  die  Grube  hinab. 
Sein  elfjahriges  Pontificat  war  eine  ununterbrochene  Kette 
von  herben  Mifsgcfchicken,  Unfallen  und  Demiithigungen. 
Das  Gebíiude  der  Hierarchie  war  innerlich  erfchuttert,  aus 
feinen  Fugen  geriíTcn,  allen  Stúrmen  der  Zeit  preisgegeben. 
Auf  die  Kunde  von  dem  Ableben  des  Papftes  Clcmens 
XIII  kehrte  der  portugiefifche  Gefandte  Almada  von  Florenz 
nach  Rom  zuriíck  und  verband  fich  mit  den  Botfchaftern 
der  drei  Bourbonfchen  Hõfe  von  Frankreich,  Spanien  und 
Neapcl,  um  bei  dem  neuen  kirchlichen  Oberhaupte  die  von 
dem  Vorganger  lo  beharrlich  verweigerte  Auflõlling  des  Je- 
fuitenordens  zu  betreiben  und  damit  den  Weg  zur  Wieder- 
herfteilung  des  Verkehrs  zwifchen  der  Krone  Portugal  und 
dem  heil.  Stuhle  anzubahnen.  Seine  Bemiihungen  waren 
von  dem  glanzendften  Erfolg  gekrõnt.  Cardinal  Ganganelli, 
der  mit  feinem  Vorganger  nur  den  Namen  nicht  aber  die 
Gefinnung  und  die  Politik  gemein  hatte,  gab  den  Abgefan- 
dten  unter  der  Hand  zu  verftehen,  dafs  er,  fobald  die  Um- 
ftande  es  geftatteten,  dem  Verlangen  der  Hõfe  nachkommen 
wiirde.  Zugleich  gab  er  dem  Kõnig  und  dem  Minirter  von 
Portugal  folche  Beweife  von  friedfertiger  und  verfõhnlicher 
Gefinnung,  dafs  bald  eine  vollftandige  Ausgleichung  der 
Streitigkeiten  erwartet  werden  durfte.  Im  Juni  1 770  hielt 
der  neue  Nuntius,  Innocenz  Conti,  ciner  altrõmifchen  Gra- 
fenfamilie  entílammt,  feinen  Einzug  in  Lilfabon,  vom  Hofe 
und  von  dem  ganzen  Lande  feierlich  empfangen.  Bei  dem 
allfeitigen  Wunfche  einer  aufrichtigen  Verfõhnung  fand  man 
fchnell  Mittel  und  Wege  die  kirchenfeindlichen  Edikte  wir- 
kungslos  zu  machen,  ohne  die  kõnigliche  Autoritat  zu  fchwa- 
chen,  fo  dafs  fchon  im  Auguft  der  papftliche  Botfchafter 
nach  Rom  berichtcn  konnte:  «Jegliche  Angelegenheit  geht 
gegenwartig  hier  in  der  beften  Ordnung  und  Ruhe  vor  fich. 
Die  ganze  Vergangenheit  ill  vergeíTen  und  Alies  wieder  ins 

-§-6- -ò-^ 

ti)  tia 


94 

alie  Geleife  gebracht.  Die  Nuntiatur  iibt  ihre  Rechte  aus 
ohne  die  geringfte  Beeintrachtigung;  die  ganze  Bevõlkerung 
jubelt,  indem  fie  den  Verkehr  mit  Rom  auf  rechtskrâftige 
Weife  wieder  erõffnet  fieht » .  Auch  im  Vatican  empfand  man 
grofse  Freude,  dafs  die  Scheidewand  endlich  gefallen  war. 
Der  Papft  feierte  das  glíickliche  Ereignifs  mit  einem  Tedeum 
und  die  Bevõlkerung  der  Tiberftadt  durch  eine  Beleuchtung 
ihrer  Haufer.  Der  Erzbifchof  von  Coimbra,  der  feinerWúrde 
nicht  entfagen  wollte,  wiirde  « wegen  vorgerúckten  Alters  und 
anderer  Grande »  feines  Amtes  enthoben,  die  erledigten  Bis- 
thumer  mit  wiirdigen  Pralaten  beletzt,  alie  Folgen  des  zehn- 
jahrigen  Schisma  auf  entgegenkommcnde  Weife  ausgeglichen. 
Der  Minifter  hatte  alie  Urfache  mit  dem  Gange  der 
Dinge  zufrieden  zu  fein.  Er  brauchte  nicht  mehr  zu  furch- 
ten,  dafs  die  Jefuiten  wiederkehren  und  feine  Reformen 
durchkreuzen  oder  riickgãngig  machen  wiirden.  Der  Kõnig 
bewies  ihm  feinen  Dank  und  feine  Anerkennung  durch  die 
Verleihung  des  Ranges  cines  Marquis  von  Pombal.  Um  fo 
unzufriedener  w^aren  die  Jefuiten  felbll  und  ihre  ultramon- 
tangefmnten  Parteigenoílen  und  fie  unterlieífen  nichts,  um 
durch  Verdachtigúngen,  Verleumdungen,  unheilverktindende 
Prophezeiungen  den  neugefchloíTenen  Bund  zwifchen  Rom 
und  Liífabon  wieder  zu  zerftõren.  Aber  ihre  Tage  waren 
gezâhlt.  Pombal  erlebte  noch  das  Aufhebungsbreve,  in 
welchem  Clemens  XIV.,  nachdem  er  fich  durch  langere 
Zurúckgezogenheit  und  Sammlung  fúr  den  wichtigen  Schritt 
vorbereitet,  die  Gefellfchaft  Jefu  fúr  aufgelõft:  erklarte  und 
zugleich  in  Rom  felblt  alie  ihre  CoUegien  und  Ordenshaufer 
fchliefsen  liefs  (Auguft  lõyS).  In  Liífabon  ^vurde  das  Ereig- 
nifs mit  Dankgottesdienft,  Illumination  und  Freudenfeuer 
begrúfst.  «Der  Marquez  von  Pombal»,  fchrieb  damals  der 
englifche  Gefandte  in  Portugal  nach  London,  «ift  befonders 
vergnijgt  úber  die  Vernichtung  einer  Kõrperfchaft,  mit  wcl- 


4$u 

cher  er  fo  viele  Jahre  in  Streit  gelegen.  Man  muls  ihm  das 
Verdienft  zugeftehen,  dafs  er  der  erfte  in  diefem  Jahrhundert 
war,  der  es  wagte,  eine  Gelelllchaft  offen  anzugreifen,  die 
an  manchen  Hõfen  und  zumal  an  dem  portugiefifchen  fo 
grofsen  Einflufs  befafz » . 

III 

POMBALS  REFORMTHAETIGKEIT  UND  AUSGANG 

Wie  lehr  immer  die  kirchlichen  Angelegenheitcn  die 
Arbeitslíraft  des  Minifters  in  Anfpruch  nalimen,  dennoch 
fand  der  energifche  Mann  noch  Zeit,  auch  den  úbrigen 
Seiten  des  õífentliclien  Lebens  eine  grofsartige  Rcform- 
tliatigkeit  zuzuwenden.  Man  blickt  mit  Erftaunen  auf  die 
Schõpfungen,  die  fein  fruchtbarer  Geist  ins  Leben  rief, 
wenn  dabei  auch  nicht  geleugnet  werden  foll,  dafs  er  bei 
der  Einfugung  feiner  gefetzgeberifchen  Ideen  in  das  Gewebe 
der  Wirklichkeit  oft  mit  defpotifcher  und  gewaltthatiger 
Hand  in  die  beftehenden  Zuftande,  Rechte  und  Ueberlie- 
ferungen  eingriíí.  Ohne  Finanzen,  ohne  Credit,  ohne  Handel, 
ohne  Induftrie,  ohne  Landheer  und  Seemacht,  fo  urtheilt 
ein  ZeitgenoíTe,  kampfend  gegen  feindfeHge  Elemente,  wel- 
che  alie  weife  berechneten  Mafsregeln  zur  Herftellung  der 
zerrLitteten  Staatsmafchine  lahmten,  gelang  es  dem  grofsen 
Manne  Finanzmittel  zu  fchaflen,  der  Regierung  wieder 
Vertrauen  zu  ervverben,  Handel  und  Schiífahrt  anfehnlich 
zu  erweitern,  den  Fifchereien  in  Algarve  neues  Lebcn  zu 
geben,  eine  grofse  Anzahl  Fabriken  und  Manufacturen  zu 
errichten,  die  Literatur  und  die  Wiífenfchaft  aufzumuntern 
durch  die  Neugeftaltung  der  Univerfitat  Coimbra  und 
Errichtung  verfchiedener  Anftalten  fiir  den  õífentlichen 
Unterricht,  das  Landheer  zu  ordnen,  neue  Feftungcn  auf- 
zufiihren,   die   alten  herzuítellen,   eine  Achtung  gebietende 

4>  4» 


-§-<>-• -V-§" 

Flotte  zu  Ichaífen,  dem  Kõnigreiche  das  Ansehen,  worin  es 
ehedem  im  Auslande  gestanden,  zuriickzugeben  und  aus  den 
Triiirimern  von  LiíTabon  eine  prachtigere,  grõfsere  und  volk- 
reichere  Stadt,  ais  die  alte  gewelen,  erftehen  zu  laíTen.  Mag 
Pombal  bei  diefer  vielgeíchaftigen  Thatigkeit  auch  manche 
Mifsgrifte  gethan,  auch  manches  Angefangene  unvollendet 
gelafíen,  Manches  verfucht  und  unternommen  haben,  was  lich 
in  der  Folge  nicht  bewahrte,  fo  war  es  doch  lediglich  feiner 
Arbeit,  feiner  Einficht  und  Energie,  leinem  Scharfblick 
und  weiten  Gefichtskreife  zu  verdanken,  wenn  Portugal  aus 
der  Abhangigkeit  vom  Ausiand,  aus  den  Ketten  einer  hie- 
rarchiích-ariílokratifchen  Zwingherrfchaft  erlõít  ward  und 
in  die  Reihe  der  úbrigen  CuUurftaaten  eintrat. 

Dais  Pombal  der  Haufung  der  Giiter  in  unproduktiven 
Handen  Grenzen  fetzte,  indem  er  die  Erwerbfucht  der 
Kirche  belchrankte,  die  Ausdehnung  der  adeligen  Befitzun- 
gen  auf  Koften  der  Krone  und  des  freien  Bauernftandes 
hemmte,  dais  er  dem  Weinbau  ungeeignete  und  unergiebige 
Bodenftrecken  entzog,  war  ein  grofser  Schritt  zur  Hebung 
und  VerbeíTerung  der  Landwirthlchaft  und  zur  Mehrung  des 
Getreidebaues.  Doch  lag  ihm  vorzugsweife  die  Fõrderung 
der  mercantilen  und  gewerblichen  IntereíTen  am  Herzen. 
Sowohl  die  Errichtung  einer  grofsen  Compagnie  zur  Cultur 
der  Weinberge  in  der  Umgegend  von  Oporto,  die  wie 
erwahnt  zu  agitatorifchen  Umtrieben  benutzt  ward,  ais  die 
Befõrderung  der  Seidencultur,  wozu  man  gegen  20,000 
Maulbeerbaume  aus  Frankreich  kommen  lieis,  hatte  in 
erlter  Linie  den  Auflchwung  des  Handels  und  der  Induftrie 
zum  Zweck.  Auch  Wollemanufaduren  und  andere  Fabriken 
und  Gewcrbc  wurden  durch  Staatsmittel  gefõrdert  und 
fremde  Arbeiter  und  Handwerker  zur  Einwanderung  aufge- 
muntert.  Wie  freute  íich  der  Minifter,  ais  er  in  feinem  Dorfe 
Oeyras,  das  cr  mit  herrlichen  Baumanlagen  und  Ziergàrten 


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97 

gefchmúckt,  einfl:  dem  Kõnig  eine  Ausftellung  inlandilcher 
InduftrieerzeugniíTe  vorfuhren  konnte!  Er  grúndete  eine 
Handelsjunta,  deren  Statuten  er  felbft  entwarf,  und  errich- 
tete  in  LiíTabon  eine  Schule,  worin  zweihundert  Zõglinge  in 
allen  Zweigen  des  Handelswefens  und  der  Schiffahrtskunde 
unterrichtet  wurden.  Er  felbft  und  andere  Minifter  und 
Beamten  wohnten  der  õffentlichen  Prtifung  bei,  um  der 
neuen  Schõpfung  mehr  Anfehen  zu  geben.  « Manufaduren 
und  Handel»,  fprach  er  einft,  «bereichern  und  civilifiren 
eine  Nation  und  machen  den  Staat  machtig.  Die  Seele  des 
Handels  aber  liegt  in  der  Freiheit  des  Volks » . 

Die  Krone  fetzte  Pombal  feiner  Reformthatigkeit  auf 
durch  die  Fúrforge  und  Pflege,  die  er  der  Volksbildung  und 
den  Unterrichtsanftalten  zuwendete.  Von  der  niedern  Ele- 
mentarfchule  bis  zur  Univerfitat  machte  fich  der  hohe  Sinn 
und  der  weite  wiífenfchaftliche  Gefichtskreis  des  Ministers 
bemerkbar.  Hunderte  von  Schulen  aller  Art  wurden  ge- 
griíndet,  in  denen  alie  Unterrichtsgegenftande  in  einer  pada- 
gogifch  organifirten  Stufenfolge  unentgeltlich  gelehrt  wur- 
den; hunderte  von  Profeíforen  und  Lehrern  auch  aus  dem 
Auslande  fanden  Verwendung  und  Anftellungen ;  fur  die 
adelige  Jugend  wurde  in  Liífabon  «das  kõnigliche  Adelscol- 
legium»  gegrundet  mit  trefílichen  Lehrern  fiir  alie  Wiífens- 
zwcige  humaniftifcher  und  realiftifcher  Art;  die  Univerfitat 
Coimbra  erfuhr  eine  gtinzliche  Umgeftaltung,  die  einer 
Neufchõpfung  gleichkam.  Durch  Vermehrung  der  Lehr- 
ílíihle,  durch  Anftellung  wiífenfchaftlich-  philofophifch  gebil- 
deter  Profeíforen,  durch  Errichtung  akademifcher  Gebaude 
fur  Studienzwecke  und  Instrumente,  durch  eine  Sternwarte 
und  durch  einen  auf  freier  humaner  Grundiagc  aufgebauten 
Organifationsplan  wollte  Pombal  ein  Werk  ins  Leben  rufen, 
das  die  Jefuitenanrtalten  ganzlich  in  Schatten  ftellen  follte. 
Sein   Helfer  und   Rathgeber  bei   der   Einrichtung  war  ein 


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Prieíler  vom  Oratorium,  Manoel  do  Cenáculo  de  Villas  Boas, 
fpãter  Erzbifchof  von  Évora,  ein  Mann  von  vielfeitigem 
WilTen,  «ein  Brunnen  ohne  Grund  und  Schlamm»,  dem 
wieder  António  Pereira  de  Figueiredo,  ein  grundgelehrter 
freifinniger  Theolog  zur  Seite  ftand.  Auch  bei  den  Mittel- 
fchulen  wurden  vorzugsweife  Prieíter  vom  Oratorium  ver- 
wendet.  Neben  den  Sprachen  des  Alterthums  follten  auch 
die  portugiefifche  Sprache  und  Literatur,  neben  dem  rõmi- 
fchen  Rechte  die  heimifchen  Gefetze  und  Institutionen  zur 
Geltung  gebracht  v\'erden;  den  philofophifchen  und  mathe- 
matifchen  WiíTenlchaften  wurde  befondere  Aufmerkfamkeit 
gewidmet.  Die  Reform  der  Univerfitat  Coimbra  war  das 
«Signal  zur  Wiedergeburt  der  Wiffenfchaften »  in  Portugal. 
Neue  Lehrbiicher  und  Lehrmethoden  verdrangten  die  fcho- 
laftifch-  jefuitifche  Unterrichtsweife  und  eine  grofsartige 
kõnigliche  Druckerei  nebíl:  Schriftgiefserei  folhe  dazu  dienen 
die  Wiffenfchaften  zu  beleben  und  durch  die  Druckerzeug- 
niffe  dem  Gemeinw^efen  niitzlich  zu  fcin. 

Zugleich  richtete  Pombal  fein  Augenmerk  auf  Verbef- 
ferung  der  Rechtspflege  und  des  Gerichtsverfahrens  und 
fchuf  nach  reifen  Berathungen  mit  Richtern  und  rechts- 
kundigen  Mânnern  ein  Gefetzbuch,  das  der  grõfste  portugie- 
fifche Jurift  «ein  wahrhaft  goldenes  Gefetz»  genannt  hat, 
ein  aus  alteren  Ordonnanzen,  Gewohnheiten  und  Rechts- 
beftimmungen  zufammengeftelltes  und  im  Geifte  der  Zeit 
und  der  modernen  Wiffenfchaft  redigirtes  Landrecht,  klar 
und  bíindig  und  mit  ftrenger  Schcidung  der  Juftiz  und 
Verwaltung.  Eine  neue  wachfame  Polizci  unter  einem  thati- 
gen  Intendanten  fiihrte  in  Portugal,  insbefondere  in  den 
fiidlichen  Gauen  einen  Zuftand  õffentlicher  Sicherheit  herbei, 
wic  er  bisher  noch  nie  beftanden.  Diebe,  Múffigganger, 
Pasquillanten  verfchwanden  mehr  und  mchr. 

Auch  das  Finanz  -und  Steuerwefen  und  der  gefammte 


eis 


99 

Staatshaushalt  wurden  mit  Verftand  und  Umficht  geordnet. 
Die  Errichtung  von  vier  Rechnungskammern  erleichterte  die 
Ueberficht  und  Controle  úher  Einnahmen  und  Ausgaben; 
die  Einfíihrung  eines  Schatzamtes  ais  Oberíteuerbehõrde 
vereinfachte  die  Erhebung  der  õffentlichen  Abgaben  und 
gewahrte  grõfseren  Schutz  gegen  Betrug,  Unterfchleif  und 
Bedrlickung.  Selbít  úber  die  Hoflialtung  und  des  Kõnigs 
Hauswefen  erflreckte  fich  die  Aufmerkfamkeit  des  Minifters. 
Und  noch  niemals  war  Brafilien  eine  fo  ergiebige  Quelle  des 
Reichthums  fur  die  Portugiefen  wie  unter  Pombais  Ver- 
waltung.  Jahr  aus  Jahr  ein  trugen  reichbeladene  SchiíTe 
Gold,  Edelfteine  und  koftbare  Waaren  in  den  Hafen  von 
LilTabon.  Zwei  Handelsgefellfchaften  vermittelten  und  befõr- 
derten  den  Verkehr;  Directoren  leiteten  die  Verwaltung,  die 
Rechtspflege  und  das  Unterrichtswefen  in  den  einzelnen 
Provinzen  des  grofsen  Landes,  Miffionen  wurden  in  die 
entlegenen  Gegenden  gefandt,  um  die  Eingebornen  zu 
bekehren,  zu  unterrichten  und  zu  cultiviren,  an  Fleifs  und 
geordnetes  Leben  zu  gewõhnen. 

Nicht  blofs  in  den  inneren  Zuftíinden  Portugals  fchuf 
die  Verwaltung  des  Marquis  von  Pombal  eine  neue  Aera;  er 
wufste  auch  nach  Aufsen  die  Ehre  und  Wúrde  des  Kõnig- 
reichs  zu  wahren  und  ihm  die  Achtung  der  grõfseren 
Staaten  zu  verfchaíFen.  Ais  wahrend  des  fiebenjãhrigen 
Krieges  (Aug.  lySg)  ein  englifches  Gefchwadcr  einige  franzõ- 
fifche  Schiffe  in  die  Bucht  von  Lagos  verfolgte  und  fie  ohne 
Riickficht  auf  die  Neutralitât  des  Landes  wegnahm  oder  zer- 
ftõrte,  trat  Pombal  ais  Riicher  des  verletzten  Võlkerrechts 
und  der  Ehre  der  portugiefifchen  Flagge  auf.  Er  konnte  frei- 
lich  keine  Kriegsflotte  gegen  die  erfte  Seemacht  Europa's 
unter  Segel  gehen  laíTcn,  nicht  durch  einen  Gcgenakt  der 
englifchen  Nation  zu  Gemuthe  íuhrcn,  wie  ungrofsmúthig 
es  fei,  gegen  einen  kleinen  befreundeten  Staat  ihr  Ueberge- 


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wicht  geltend  zu  machen;  aber  leine  Noten  an  das  cnglifche 
Minifterium  athmeten  das  Selbftgefíihl  eines  Mannes,  der 
nicht  ruhig  hinnehmen  woUte,  dais  England  das  Land  am 
Tajo  ais  einen  Vafallenftaat,  ais  ein  von  ihm  abhangiges 
Territorium  behandle.  Seit  funfzig  Jahren,  fagte  er,  fei 
Grofsbritannien  durch  vortheilhafte  Handelsvertrage  im  Be- 
fitze  folcher  Vorrechte  und  Befreiungen  in  Portugal,  dais  die 
Kaufmannfchaft  des  Infelreichs  jãhrlich  einen  Gewinn  von 
einer  Million  Pf.  St.  aus  dem  Lande  ziehe,  dafs  der  Bedarf 
desVolks  an  Getreide,  an  Kleidungsftoífen,  an  Fabrikwaaren 
aller  Art  zu  zwei  Drittheilen  von  England  geliefert  werde. 
Diefe  Handelsgefetze  und  Monopole  kõnnten  gekúndigt  und 
aufgelõít  werden,  Frankreich  wurde  mit  Freuden  dem  portu- 
giefifchen  Volke  unter  die  Arme  greifen  und  feinen  Bedúrf- 
niíTen  mit  dem  eigenen  Ueberflufs  an  Naturprodukten  und 
KunfterzeugniíTen  abhelfen.  An  der  Themle  verftand  man 
den  Wink  und  die  verfteckte  Drohung,  und  der  Minifter  Pitt 
war  klug  genug  nachzugeben  und  die  verlangte  Genug- 
thuung  zu  gewahren.  Dadurch  wurde  das  gute  Einverneh- 
men  wieder  hergeftellt  und  die  Englãnder  konnten  nach 
vsàe  vor  ihre  reichen  Goldladungen  einbringen.  Allein  fie 
blickten  mit  unheimlichen  Gefiihlen  und  mit  Aerger  auf  die 
fchõpferilche  Thatigkeit  Pombais,  die  Portugal  unabhangig 
von  dem  Auslande  zu  machen  fuchte.  Die  Klagen  der  bri- 
tifchen  Kaufleute  wurden  immer  lauter  und  bitterer;  die 
Zeitungen  und  Flugfchriften  nahmen  einen  gereiztenTon  an; 
in  der  Griindung  der  Handelsgefellíchaften,  in  den  induftriel- 
len  Unternehmungen,  in  dem  Bemuhen,  die  Portugiefen  auf 
ihre  eigenen  Fuíle  zu  ftellen,  erblickten  die  Englãnder  Ein- 
griffe  in  ihre  fo  lange  genoíTenen  commerciellen  Vorrechte, 
eine  Beeintrachtigung  ihrer  Monopole  und  Begunftigungen. 
Diefe  Stimmungen  traten  zeitweife  zuríick,  wenn  die 
poHtifche  Lage  Europa's  der  cnglifchcn  Regierung  das  enge 


4tU 


Bundnils  mit  Portugal  N-ortheihaft  machte.  So  im  Anfang 
der  fechziger  Jahre,  ais  Choilcul  durch  den  «Familienpakt» 
alie  Zweige  des  Bourbonilchen  Haufes  zu  einem  ewigen 
Bund  vereinigte  in  der  Ablicht,  Englands  maritimes  Ueber- 
ge^^•icht  zu  brechen.  Portugal  wurde  eingeladen  der  Con- 
vention  beizutreten,  der  neutralen  Stellung,  welche  bisher 
der  britiíchen  Seeherrlchaft  fo  nachdriicklichen  Vorlchub 
geleiltet,  zu  entfagen.  Ais  das  Cabinet  von  Liflabon  der 
Auíforderunc  widerftand  und  dcm  Freundfchaftsbund  mit 


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England  trcu  blieb,  wurde  in  Paris  und  Madrid  der  Plan 
gefafst,  fich  der  portugiefifchen  Seehafen  zu  bemachtigen 
und  durch  Befetzung  des  Kõnigreichs  ein  reales  Unterpfand 
zu  erwerben,  das  man  leiner  Zeit  gegen  Groísbritannien 
verwerthen  kõnne.  In  Spanien  mochten  auch  die  alten  Ero- 
berungsgedankeii  wieder  auftauchen.  Man  hatte  in  Madrid 
nicht  vergeíTen,  dais  Portugal  nur  durch  einen  re\-olu- 
tionaren  Handrtreich  aus  einer  fpanifchen  Provinz  ein  lelb- 
llandiges  Kõnigreich  geworden  war.  In  diefer  drohenden 
Zeitlage  entfaltete  Pombal  wieder  eine  ahnliche  Thatigkeit 
und  Energie,  wie  nach  dem  Erdbeben.  Die  Felkmgen 
wurden  in  Stand  gefetzt  und  mit  reichlichem  GelchiUz 
verfehen,  die  Armeen  verftarkt,  Watfenvorrathe  gefammelt. 
Vom  Fort  Julião  ftarrten  1 20  Kanonen  auf  den  Tajo  herab. 
Ais  das  LiíTaboner  Cabinet  in  einer  hõflich  aber  feftgehal- 
tenen  diplomatifchen  Note  der  Ipanilchen  und  franzõlifchen 
Regicrung  erkliirte,  dais  Portugal  dem  Angritfsbund  der 
verwandten  Hõfe  nicht  beizutreten,  Ibndern  in  leiner  bis- 
herigen  Neutralitat  und  Freundfchaft  zu  beharren  ent- 
fchloíTen  fei,  erfolgte  die  Kriegserklarung  und  das  Einrúcken 
einer  fpanifchen  Occupationsarmce  in  Tras-os-Montes  (Mai 
1762).  Pombal  hatte  das  portugiellíche  Heer  bis  zu  einer 
Stiirke  von  60:000  Mann  gebracht;  allein  cr  konnte  llch 
bald  úberzeugen,  dais  die  der  Waífen  und  des  Kriegs  ent- 

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wõhnten  Truppen  der  feindlichen  Uebermacht  nicht  ge- 
wachfen  leien,  dais  das  vaterlãndifche  Gefúhl  und  der 
Nationalhafs  gegen  Spanien,  wovon  die  portugiefiíche  Ju- 
gend  durchdrungen  war,  den  Mangel  an  Uchung  und  Dis- 
ciplin  nicht  zu  erfetzen  vermõchte,  dafs  auch  die  englifchen 
Offiziere,  die  ihm  die  Londoner  Regierung  zur  Verfúgung 
llellte,  und  einige  Regimenter  Hiilfstruppen  unter  Lord  Ti- 
rawley,  einem  farkaítifchen  Irlander,  nicht  geniigten.  Er 
richtete  daher  feinen  Blick  nach  dem  an  militarifchen  Kraf- 
ten  fo  fruchtbaren  deutfchen  Reich  und  uhertrug  mit 
Zurtimmung  Englands  dem  Grafen  Wilhelm  von  Lippe- 
Schaumburg,  einem  erfahrenen  Kriegsmann,  der  in  London 
geboren,  eine  Zeitlang  in  der  englifchen  Carde  gedient, 
dann  unter  Ferdinand  von  Braunfchweig  mehrere  Feldzuge 
im  liebenjabrigen  Krieg  mitgemacht  und  in  feinem  Stamm- 
lande  militarilches  Organifationstalent  an  den  Tag  gelegt 
hatte,  cien  Oberbefehl  úber  das  portugiefifche  Heer  und  die 
englifchen  Hiilfstruppen.  Prinz  Karl  von  Mecklenburg-Stre- 
litz  erhielt  das  Commando  tiber  die  Artillerie.  Im  Juli  1762 
fammelte  fich  das  franzõfifch-fpanifche  Heer  unter  dem 
Oberbefehl  des  Grafen  von  Aranda  tibcr  42:000  Mann  ftark 
in  der  Umgegend  von  Ciudad  Rodrigo  und  riickte  in  Beira 
ein,  um  in  das  Herz  des  Landes  vorzudringen.  Das  portu- 
giefifch-englifche  Heer,  bei  welchem  unter  dem  reichsgraf- 
lichen  Oberbefehlshaber,  der  den  Rang  eines  Feldmarfchalls 
hatte,  die  englifchen  Anftthrer  Bourgoyne,  Townsend,  Len- 
nox,  Clarke  das  Meifte  leifteten,  war  kaum  halb  fo  ftark 
ais  der  Feind,  da  ein  grofser  Theil  der  Truppen  in  den 
Feftungen  lag  oder  die  Nordgrenze  hiitete.  Die  Spanier 
und  Franzofen  machten  daher  Anfangs  rafche  Fortfchritte. 
Sie  zwangen  die  Feftung  Almeida  zur  Ucbergabe,  brachten 
das    Gebirgsland    im    Often    der   Sierra    Eftrella,   zwifchen 


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Mondego  und  Tajo  in  ihre  Gewalt  und  fchlugen  ihr  Haupt- 

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quartier  bei  Caftello-Branco  auf.  Bald  anderte  lich  jedoch 
die  Lage.  Der  Reichsgraf  und  dic  englilchen  Oherften  be- 
letzten  die  fteilen  Gebirgspaííc  und  hemmten  das  weitere 
Vordringen  dcs  Feindes;  die  Bergbewohner,  empõrt  iiber 
die  graufame  und  vcrheercnde  Kriegsweife  der  Spanier  und 
entflammt  von  Nationalhaís,  Ichaarten  fich  in  Banden  zu- 
fammen  und  organifirten  gegen  die  Eindringlinge  den  kleinen 
Krieg  in  Schluchten  und  Waldern;  Townsend  fuhrte  mit 
groísem  Geíchick  einen  vielbewunderten  Marlch  úber  die 
Hõhen  der  Eftrella  aus,  wobei  die  Portugielen  viel  Ausdauer 
bewiefen,  indem  fie  in  zerfetzten  Kleidern  und  Schuhen  die 
felfigen  Wege  hinanícliritten,  liaufig  Spuren  der  blutenden 
Fiifse  zurúcklaíTend.  Im  Herbft,  ais  noch  Regen  und  Kãlte 
eintrat  und  Mann  und  Rofs  vor  Hunger  und  Ermattung  zu- 
lammenlanken,  fah  ficli  Aranda  genõtliigt,  cinen  Theil  leiner 
Truppen  úber  die  Grenze  zu  ftihren  und  in  Alcântara  unter- 
zubringen.  Im  nachften  Monat  (Okt.  1762)  folgte  er  lelbft 
mit  dem  Rerte  des  Heeres,  die  Kranken  und  Verwundeten 
in  den  Lazarethen  von  Caftello-Branco  zurúcklaíTend.  Aber 
auch  die  Portugiefen  und  Englander  bedurften  dringend  der 
Erholung;  daher  willigte  der  Reichsgraf-Marfchall  ein,  dafs 
lie  in  verfchiedenen  Grenzftadten  Winterquarticre  bezogen. 
Neun  Regimenter  wurden  nach  Portalegre  verlegt,  um  das 
Eindringen  der  Feinde  in  Alemtejo  zu  verhindern.  Der  Ab- 
fchlufs  des  Friedens  von  Fontainebleau  zu  Anfang  des 
nachften  Jahres  (Febr.  1763)  machte  auch  dem  Krieg  in 
Portugal  ein  Ende  und  ftellte  die  Zuftande  her,  wie  fie  vor 
dem  Feldzug  gew'efen.  Nach  dem  Frieden  kehrten  die 
englifchen  Húlfstruppen  zuriick.  Der  reichsgrâfliche  Ober- 
feldherr  aber  blieb  noch  einige  Zeit  in  Portugal  und  unter- 
ftutzte  den  Minifter  in  feinen  Bemiihungen,  die  einhei- 
mifchen  Truppen  feldtCichtig  zu  machen,  die  Milizen  zu 
organifiren,  die  Feftungen  in  Vertheidigungsftand  zu  fetzen, 


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mit  Rath  und  That.  Elvas  wurde  durch  ein  Fort  verftarkt, 
das  noch  jetzt  den  Nameii  «Lippe»  fiilirt.  Ais  cr  cndlich 
(Sept.  1764)  das  pyrenaifche  Laiid,  das  ihm  lelne  ganze 
militarifche  Disciplin  und  Kriegszucht  zu  dankcn  hatte,  ver- 
liefs  um  iiber  England  nach  Dcutlchland  zuruckzukehren, 
fchlug  er  alie  Geldbelohnungen  aus  und  begntigte  fich  mit 
dem  Ruhme  und  dem  Danke  der  Nation. 

Diefer  Verbefferung  des  Heerwefens  und  der  gleichzei- 
tigen  Verftarkung  der  Marine  hatte  es  Portugal  zu  verdanken, 
dafs  der  Krieg,  der  zehn  Jahre  fpater  zwifchen  den  beiden 
Pyrenaifchen  Staaten  auszubrechen  drohte  fiir  die  Portu- 
giefen  einen  gunftigen  Verlauf  hatte.  Ein  Grenzftreit  in  Súd- 
amerika  hatte  zu  Feindfeligkeiten  zwifchen  den  beiden  Go- 
vernadoren  von  Bralilien  und  Buenos-Ayres  gefuhrt,  wobei 
die  fpanifchen  Kriegsmannfchaften  in  zwei  Gefechten  den 
Kíirzeren  zogen.  Diefer  Streit  der  Colonien  fchien  fich  nach 
dem  europaifchen  Mutterlande  hintiberfpielen  zu  wollen. 
Schon  befetzten  abermals  portugiefifche  und  fpanifche  Trup- 
pen  die  Grenzlandfchaften.  Die  englifche  Regierung,  die  bei 
ihrem  bevorftehenden  Kampfe  mit  Nordamerika  nicht  auch 
noch  in  pyrenaifche  Kriegsangelegenheiten  verwickelt  fein 
mochte,  fuchte  den  Streit  zu  vermitteln.  Allein  fie  erreichte 
nur  fo  viel,  dafs  in  den  portugiefifch-fpanifchen  Grenzlanden 
das  bereits  geztickte  Schwert  nicht  wirklich  zum  Kampfe 
gefchwungen  ward.  Defto  hitziger  entbrannte  der  Krieg  im 
Gebiete  des  Rio  Grande.  Kõnig  Karl  III  hatte  den  friíher 
gefchloíTenen  Taufchvertrag  verworfen,  woUte  aber  doch 
nicht  gerne  auf  die  Colónia  dei  Sacramento  verzichten.  Er 
fchickte  eine  grofse  fpanifche  Flotte  mit  12:000  Seefoldaten 
unter  Pedro  de  Cevallos  nach  Buenos-Ayres  in  einem  Au- 
genblick,  da  Kõnig  Jofeph  fchwer  erkrankt  war  und  feinc 
Gemahlin,  Karls  Schwefter  die  Regentfchaft  in  LiíTabon 
úbernahm,    fniiit    Pombais    Einflufs    auf    die    Regierungs- 


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gefchafte  unficher  und  fchwankend  ward.  Diefer  Conftel- 
lation  hatte  es  der  Kõnig  von  Spanien  zu  danken,  dais  der 
Streit  zu  feinem  Vortheil  endete.  In  dem  zwifchen  der  Kõni- 
gin-Regentin  und  ihrem  Bruder  abgefchloíTenen  Prãliminar- 
frieden  von  San  Ildefonfo  (i  Okt.  1777),  dem  dann  einige 
Monate  nachher  der  AUianzvertrag  zu  Pardo  folgte  (i  i  Marz 
1778),  wurde  die  Grenze  am  La  Plata  und  Uruguay  feftge- 
fetzt  und  die  Colónia  dei  Sacramento  den  Spaniern  úber- 
laffen.  Seitdem  hõrte  der  Schleichhandel  mit  Buenos-Ayres 
auf  und  ihr  Wohlítand  fank. 

Ais  der  Friedensvertrag  von  Pardo  zwifchen  Spanien 
und  Portugal  abgefchloíTen  ward,  war  Kõnig  Jofeph  Ema- 
nuel nicht  mehr  unter  den  Lebenden.  Er  hatte  noch  die 
Frende  dem  grofsen  dreitagigen  Fefte  beizuwohnen,  das 
der  Minifter  bei  der  feierlichen  Enthullung  der  prachtvollen 
Reiterítatue  des  Monarchen  auf  dem  « Handelsplatze »  in 
Liífabon  veranítaltete  (6.  Juni  1775),  ein  wahres  Volksfeft  mit 
Umzugen  Feuerwerk,  Banketten  und  Beluftigungen  aller  Art. 
Aber  fein  Gemúth  war  verdliftert;  ein  zweiter  Anfall  auf  fein 
Leben  bei  Gelegenheit  eines  Jagdrittes,  Mifsftimmungen  und 
Intriguen  in  der  kõniglichen  Familie,  Mifstrauen  gegen  feine 
Umgebung  hatten  die  Heiterkeit  feiner  Seele,  apoplektifche 
Anfalle  die  Gefundheit  feines  Kõrpers  untergraben.  Der 
Staatsfecretar  Seabra,  der  thatigfte  Mitarbeiter  Pombais  in 
allen  civilifatorifchen  Arbeiten,  wurde  plõtzlich  in  Ungnade 
entlaflen  und  auf  ein  Landgut  verwiefen,  ohne  dafs  man 
genau  die  Urfache  erfuhr.  Es  ward  behauptet,  er  habe  feine 
Stellung  zu  eigenniitzigen  Zwecken  mifsbraucht.  Seine  Ent- 
fernung  war  das  erfte  Zeichen,  dafs  es  den  Ranken  und 
Kabalen  der  dem  Minifter  feindfeligen  Hofpartei  bald  gelingen 
werde,  auch  Pombais  Machtftellung  zu  erfchuttern.  Der 
Kõnig  felbft  bewahrte  jedoch  dem  grofsen  Manne,  der 
fiinfundzwanzie  Jahre  lane  das  Staatsruder  mit  fo  krãftiger 


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und  gefchickter  Hand  geleitet,  íein  Vertrauen  bis  zum  letzten 
Athemzuge.  Er  freute  fich  mit  allen  Freunden  der  neuen 
Ordnung,  dais  der  Mordplan  eines  Italieners,  der  den  erften 
Minifter  bei  dem  erwahnten  Nationalfefte  mit  einer  Art 
Hõllenmalchine  aus  der  Welt  fchaífen  woUte,  vor  der  Aus- 
fíihrung  entdeckt  und  vereitelt  ward,  und  der  Verbrecher, 
der  fein  Vorhaben  eingeftand,  dem  blutigen  Strafgericht 
úberliefert  werden  konnte  (6  Okt.  1774).  Bald  nachher  traten  . 
wiederholte  Krankheitsanfalle  ein,  die  den  Kõnig  nõthigten 
fich  von  allen  Staatsgefchaften  zuriíckzuziehen  und  feine 
Gemahlin  Maria  Anna  zur  Regentin  zu  ernennen.  Drei 
Monate  nachher  machte  ein  wiederholter  Schlaganfall  feinem 
leidensvoUen  Leben  ein  Ende  (24  Febr.  1777).  Seine  altefte 
Tochter  Maria,  die  mit  ihrem  Oheim  Dom  Pedro  vermahlt 
war,  erbte  die  Krone.  Der  papftliche  Stuhl,  der  vor  dem 
Streite  die  Dispenfation  zu  der  Verwandtenehe  gegeben, 
hatte  auch  nach  dem  Wunfche  des  fterbenden  Monarchen 
eingewilligt,  dafs  der  Sprõfsling  diefer  Ehe,  der  fechzehn- 
jãhrige  Enkel  des  Kõnigs  Jofeph,  Prinz  von  Beira,  mit  feiner 
einunddreifsigjâhrigen  Muhme  Donna  Maria  Francisca  Bene- 
dicta,  Jolephs  zweiter  Tochter  vermahlt  ward,  zwei  dynafti- 
Iche  Heirathen,  die  fali:  ais  blutfchânderifch  gelten  konnten 
und  dem  Herrfcherhaufe  kein  Gltick  brachten. 

Ehe  noch  des  Kõnigs  letzte  Stunde  gekommen  war, 
reichte  Pombal,  der  wohl  wufste,  dafs,  wenn  der  kõnigliche 
Stíitzpfeiler  gefunken  ware,  die  zahlreichen  Gegner  des  Allge- 
waltigen  mit  leidenlchaftlichem  Haffe  wider  ihn  losbrechen 
wiirden,  der  Regentin  ein  EntlaíTungsgeluch  ein.  Alter,  An- 
ílrengungen  und  Kõrperleiden  hãtten  feine  Krafte  erfchõpft. 
Sie  mõge  andere  Manner  ihres  Vertrauens  ernennen,  die  er  in 
die  Gefchâfte  einfúhren  wolle,  und  ihm  geftatten,  feine  noch 
kurze  Lebensfrift  auf  feinen  Giitern  in  der  Zuriíckgezogen- 
heit  zuzubringen.  Er  fúgte  dem  Gefuch  einen  Rechenfchafts- 


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bericht  uber  feine  Verwaltung  und  den  Zuftand  der  Finan- 
zen  bei,  der  an  Sully's  Beifpiel  erinnerte  und  mit  Recht 
allgemeine  Bewunderung  erregte.  Er  wies  nach,  dafs  aufser 
dem  Diamantenvorrath  im  Staatsfchatz  und  in  der  kõnigli- 
chen  KalTe  achtundfiebenzig  Millionen  Cruzados  vorrathig 
feien,  ein  in  der  portugiefifchen  Finanzgefchichte  unerhõrter 
Fali.  Ehe  die  Regentin  eine  Entfcheidung  getrofFen,  ftarb 
der  Kõnig  und  Donna  Maria  beftieg  den  Thron  (i  Mãrz  1 777). 
Da  wiederholte  der  Minifter  fein  Gefuch  und  die  neue 
Kõnigin  gewahrte  ihm  vier  Tage  nachher  den  erbetenen 
Abfchied  in  der  gnadigften  Form.  Und  nun  trat  ein  võlliger 
Umfchwung  in  Syftem  und  Perfonen  ein.  Maria  war  fchwa- 
chen  Geiftes  und  zeigte  fchon  Spuren  von  Seelenítõrungen, 
die  in  der  Folge  zur  Unheilbarkeit  fich  fteigerten ;  ihr  Oheim- 
Gemahl  war  fo  fehr  in  kirchlicher  Glaubigkeit  befangen, 
dais  er  jeden  Morgen  mehrere  Male  die  MeíTe  befuchte  und 
jeden  Abend  dem  Gebetsgottesdienft  andachtig  beiwohnte. 
Beide  hatten  daher  nichts  Eiligeres  zu  thun,  ais  die  Gefan- 
gniíTe  zu  õíTnen  und  die  wegen  Theilnahme  an  den  Ver- 
fchwõrungen  oder  wegen  Widerfetzlichkeit  gegen  die  Mafs- 
regeln  der  Regierung  in  Haft  befindlichen  Geilllichen  und 
Edelleute  in  Freiheit  zu  fetzen.  Der  Bifchof  von  Coimbra 
eilte  aus  dem  Gefangnifs  in  den  Palaft,  wo  ihn  Dom  Pedro 
umarmte ;  mehrere  geiftliche  Stellen  kamen  nach  dem  Vor- 
íchlage  des  Nuntius  an  andere  Kleriker;  die  wichtigíten 
Staats-  und  Holamter  wurden  adeligen  Herren  úbertragen, 
welche  ais  die  entfchiedenften  Gegner  des  Marquis  bekannt 
waren.  Zuerít  wurde  ausgeítreut,  Pombal  habe  feine  Stel- 
lung  zu  feiner  eigenen  Bereicherung  benutzt:  da  wies  er 
aktcnmâfsig  nach,  dafs  erwâhrend  feiner  ganzen  Verwaltung 
nurfein  Miniliergehalt  und  geringe  andere  Emolumente  bezo- 
gen  und  niemals  kõnigliche  Donationen,  Gratiíicationen  oder 
fnoftige  Gnadenerweifungen,  wie  fie  von  den  Souverancn  an 


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begúnítigte  Perfonen  verliehen  wLirden,  angenommen  habe. 
Defto  eifriger  war  man  bcftrebt,  die  von  Pombal  getroífenen 
Reformen  und  Einrichtungen  in  Schatten  zu  ftellen  oder 
ruckgângig  zu  machen.  Der  Gerichtshof,  der  die  Jurisdiction 
des  Nuntius  in  Schranken  halten  folhe,  wurdc  befeitigt;  der 
Papft  erhielt  eine  halbe  Million  Gulden  zur  Entfchadigung  fiir 
die  Unkoíten,  welche  dem  rõmifchen  Stuhle  einít  durch  die 
Ueberfiihrung  der  Jefuiten  nach  CivitaVecchia  erwachfen  wa- 
ren;  dem  Patriarchat  wurden  alie  Giiter  und  Einkiinfte,  die 
ihm  der  Marquis  entzogen  hatte,  zuriickgegeben,  und  wahrend 
man  den  Vorfteher  der  kõniglichen  Druckerei  aus  dem  Lande 
jagte,  wurden  die  aus  dem  Kalender  geftrichenen  Feiertage, 
fo  wie  die  Bruderfchaften,  Prozeílionen  u.  a.  D.  hergeftellt. 
Pombal  hatte  fich  durch  feine  defpotifche  Verwaltung  zu 
viele  Feinde  gemacht,  ais  dafs  diefe  nicht  alie  Hebel  zu 
feinem  Verderben  hatten  einfetzen  follen.  Adelige,  Geiftliche, 
Jefuiten  entftiegen  aus  den  Gefângniífen  wie  aus  Grabern 
und  vereinigten  ihre  Angritfe  gegen  den  fruher  fo  gewaltigen 
Mann.  Es  geníigte  ihnen  nicht,  dafs  durch  eine  Revifion  der 
Prozeífe  lie  fiir  unfchuldig  erklart  und  in  ihrer  Ehre,  ihrem 
Rang,  ihrer  gefellfchaftlichen  Stellung  hergeftellt,  dafs  die 
gegen  die  Familie  Távora  gefallten  Richterfpruche  ais  unge- 
recht  und  nichtig  caíTirt,  dafs  die  Beftraften  von  jeder 
Schuld  und  Makel  freigefprochen  wurden;  Viele  verlangten 
Entfchadigung  von  ihrem  Verfolger;  Alie  dúríteten  nach 
Rache.  Aus  dem  Fufsgeftell  des  Reitermonuments  wurde  in 
einer  Nacht  das  bronzene  Medaillonbildnifs  des  Minifters 
herausgenommen  und  an  feine  Stelle  das  Stadtwappen 
gefetzt.  Pamphlete  und  polemifche  Flugfchriften  dritngten 
einander;  eine  derfelben,  das  beruchtigte  «Libell»  aus  der 
Feder  eines  Adligen,  ging  fo  weit  in  Verleumdung  und 
Verunglimpfung,  dafs  der  Minifter  eine  fcharfe  Widerlegung 
der  boshaften  Schmahfchrift  ausgehen  liefs.  Zugleich  fam- 

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melte  er  in  feinem  Palaíte  zu  Pombal,  wohin  er  fich  zuriick- 
gezogen,  die  Materialien  zu  einer  Rechtfertigungsfchrift  tiber 
leine  \'envaltung,  nicht  um  fich  zu  râchen,  wie  er  felbft 
fagte,  Ibndern  um  die  beleidigte  Wahrheit  oífenbar  zu 
machen.  Die  Kõnigin  wurde  unruhig;  in  ihrem  Innern 
entítand  ein  Kampf  zwifchen  ihrer  Hinneigung  zu  den 
kirchlichen  und  politilchen  Traditionen  und  dem  Gefúhle 
der  Pietat  gegen  ihren  Vater,  in  deíTen  Namcn  und  mit 
deíien  Zuftimmung  und  Unterfchrift  doch  alie  Verfugungen 
des  Reformminifters  erlaíTen  waren.  Sie  glaubte  den  Sturm 
dadurch  belchwõren  zu  kõnnen,  dafs  fie  beide  Flugfchriften, 
das  «Libell»  wie  die  «Vertheidigung»  durch  ein  Dekret 
unterdríickte.  Ais  aber  die  Stimmen  der  Widerlacher  immer 
lauter  ertõnten,  die  Klagen  und  Befchuldigungen  immer 
mehr  anwuchfen,  wurden  zwei  kõnigliche  CommiíTare  mit 
ausgedehnten  Vollmachten  nach  Pombal  abgeordnet,  welche 
den  Marquis  úber  eine  Menge  Fragen  gerichtlich  ver- 
nehmen  Ibllten.  Vor  diefen  mufste  fich  der  achtzigjahrige 
Greis  fúnfzig  Tage  hindurch  taglich  fúnf  bis  acht  Stunden 
lang  verantworten,  bis  man  ihn  krank  und  erfchõpft  zu 
Bette  brachte.  Auf  Grund  diefer  fchriftlichen  Aufzeichnun- 
gen  erklarte  {i6  Aug.  1781)  die  Kõnigin  nach  Anhõrung 
ihrer  Rathe,  dafs  der  Marquis  fiir  fchuldig  und  ftrafwúrdig 
zu  erachten  fei,  dafs  fie  aber  aus  Rúckficht  auf  fein  Kõrper- 
leidcn  und  feine  Altersfchwache,  «mehr  der  Milde  ais  der  Ge- 
rechtigkeit  eingedenk»,  keine  Beftrafung  úber  ihn  vcrhangen 
wolle.  Doch  folie  es  den  Befchadigten  unverwehrt  fein,  bei 
den  Gerichten  Klagen  auf  Erfatz  zu  erheben.  So  fchwebte 
das  Damoklesfchwert  noch  ferner  tiber  Pombais  Haupte. 

Aber  er  folhe  bald  durch  eine  hõhere  Macht  von  allen 
weiteren  Verfolgungen  und  Bedrãngniífen  befreit  werden. 
Am  8  Mai  1782  verfchied  er  in  den  Armen  feiner  Gattin 
im  dreiundachtzigrtcn  Lebensjahr.  « Das  Befte  meines  Kõnigs 


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war  ftets  mein  Zweck»,  waren  íeine  letzten  Worte,  «wo  ich 
gefehlt  habe,  gefchah  es  aus  Mangel  an  Einficht,  nie  mit 
Willen » .  Unftreitig  darf  Pombal  den  grõlsten  Staatsmannern 
des  Jahrhunderts  beigezahlt  werden:  er  war  zum  Herrfchen 
geboren,  klar  im  Erkennen,  von  hõheren  politifchen  Ideen 
getragen,  energifch  und  entfchloíTen  bei  der  Ausfúhrung. 
Nach  feinem  Tode  gingen  feine  Schõpfungen  allmahlich 
unter;  Priefter  und  Mõnche  herrfchten  wieder  am  Hofe  und 
in  der  Schule;  ftatt  der  Anftalten  fúr  Kunít  und  WiíTen- 
fchaft  wurden  Klõfter  und  fromme  Stiftungen  errichtet  und 
gepflegt;  Aberglaube,  Unreinlichkeit  und  UnwiíTenheit  kehr- 
ten  wieder  bei  dem  Volke  ein,  und  die  Nation  fank  zurúck 
in  den  Zuftand  der  Abhangigkeit  und  Hulflofigkeit,  aus  dem 
fie  Pombais  krâftige  Hand  zu  reifsen  gefucht.  Aber  noch  in 
den  nachften  Jahrzehnten  waren  die  wohlthatigen  Wirkun- 
gen  der  Reformthatigkeit  des  grofsen  Minifters  fichtbar. 
Reformator  auf  allen  Gebieten  des  õffentlichen  Lebens  hatte 
er  viele  neue  Aníchauungen  geweckt,  viele  neue  Richtungen 
angebahnt;  diefe  Spuren  konnten  nie  wieder  ganz  verwifcht 
werden,  wie  wenig  auch  die  zu  Ichwarmerifchen  Religions- 
iibungen  geneigte,  dem  heiligen  Stuhl  und  der  Geiftlichkeit 
ítreng  ergebene  Kõnigin  und  ihr  befchrankter  «fehr  devoter» 
Gemahl  den  Zeitgeift  begriífen  und  wiirdigten,  unter  deíTen 
EinflúíTen  Pombal  gehandelt.  Triíblmn,  Seelenangít  und 
Schwermuth  wurden  endlich  lo  machtig  in  der  ungliickli- 
chen,  von  Zweifeln  und  Beangftigungen  gequalten  Frau,  dafs 
zuletzt  ihr  Geift  von  der  Nacht  des  Wahnfinns  verdunkelt 
ward,  fo  dafs,  da  ihr  Erftgeborner  Jofeph  bereits  im  J.  1788 
geftorben  war,  ihr  zweiter  Sohn  Johannes  bis  zum  Tode  der 
Mutter  die  Regentfchaft  iibernahm. 


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MARQUEZ    DE    POMBAL 


INTRODUCÇÃO 


DEFINIÇÕES  E  ESCLARECIMENTOS 


A  HISTORIA 

maior  parte  dos  hiftoriadores  e  biographos, 
que  efcreveram,  e  os  que  efcrevem  ainda  hoje 
acerca  do  Marquez  de  Pombal,  quafi  exclufi- 
vamente  fe  occupam,  pelo  que  refpeita  á  fua 
vida  publica,  dos  aftos  do  feu  governo;  e  tra- 
tam da  fua  acção  e  influencia  adminiftrativa, 
económica,  moral  e  religiofa,  pondo  de  lado 
ou  deixando  no  efcuro  do  quadro,  ora  grandiofo  e  brilhante, 
ora  mefquinho  e  fombrio,  por  elles  traçado,  a  fua  acção  e  in- 
fluencia politica,  as  quaes,  comquanto  não  foíTem  coufa  que 
para  logo  fe  vifle  oftenfiva,  e  apparatofa  fe  moftraíTe,  nem 
por  ilTo  deixaram  de  fer  poderofas  e  enérgicas,  como  depois 
fe  veiu  a  fentir  e  a  conhecer  claramente,  comparando  e  rela- 
cionando antecedentes  e  confequentes  hiftoricos. 


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Em  qualquer  dos  dois  pontos  de  vifta,  publico  e  parti- 
cular, a  perfpediva  hiftorica,  iíto  é,  a  realidade  dos  fados 
moftra-fe-nos  profundamente  perturbada  e  o  colorido  moral, 
ifto  é,  a  juftiça,  deploravelmente  compromettida,  pela  par- 
cialidade á  miftura  com  a  ignorância  d'aquelles  que,  ou  do- 
minados pelo  propofito  de  exaltar,  ou  arraítados  pelo  defejo 
de  deprimir,  falfificam  e  deturpam  os  fados,  por  tal  arte  'e 
com  tal  empenho,  que  mais  e  melhor  poffam  fervir  de  mol- 
de e  matéria  prima  á  fua  critica  fubjediva,  imaginofa,  theo- 
logica,  metaphyfica,  e  por  iíTo  inteiramente  arredada  dos  ele- 
mentos e  proceffos  pofitivos,  os  únicos  que  podem  fervir  ás 
modernas  conftrucções  ícientificas  da  hiítoria,  quer  fe  trate 
de  um  homem,  de  um  povo,  de  uma  nação,  quer  da  huma- 
nidade inteira.  As  operações  complicam-fe,  fem  duvida,  em 
qualquer  dos  cafos,  mas  os  proceíTos  e  a  critica,  em  uma  pa- 
lavra, o  methodo  e  a  doutrina,  permanecem  inalteravelmente 
os  mefmos. 

Pelo  que  refpeita  á  fua  vida  particular,  parece  que  fe 
comprazem,  encomiaítas  e  detradores,  em  fazer  do  Marquez 
de  Pombal  o  protogonifta  de  phantafiofos  romances  e  inve- 
rofimeis  lendas,  em  que  o  dramático  e  o  cómico  fe  mifturam 
e  combinam  em  variados  e  extravagantes  melodramas.  E  to- 
davia foi  elle  o  homem  mais  pofitivo  e  pratico  do  feu  tem- 
po, não  diremos  fomente  em  Portugal,  mas  em  toda  a  Eu- 
ropa, e  no  qual  uma  intelligencia  efclarecida  e  uma  vontade 
inabalável  tiveram  fempre  a  rara  virtude  e  a  energia  inflexí- 
vel para  fubjugar  a  imaginação  perante  a  realidade,  e  fujei- 
tar  ao  bom  fenfo  e  ao  tino  pratico  aquelle  fentimentalifmo, 
que,  a  par  do  efpirito  revolucionário,  tão  falientemente  ca- 
raderifava  os  philofophos  e  eftadiftas  do  xviii  feculo. 

Em  todos  os  trabalhos  hiftoricos  é  condição  indifpenfa- 
vel  de  boa  critica  não  confundir  o  que  lubjediva  e  peíToal- 
mente  pertence  ao  individuo  com  o  que  objedivamente  per- 


tence  á  coUedividade  no  meio  focial,  o  que  é  arbitrariamente 
litterario,  com  o  que  deve  fer  obrigatoriamente  fcientifico. 

A  hiftoria,  ainda  ha  poucos  annos,  vivia  em  relações  in- 
timas com  a  litteratura,  e  tinha,  nos  programmas  officiaes, 
por  companheiras  infeparaveis,  a  amante  rhetorica  de  Quin- 
tiliano e  a  lógica  elementar  de  Genuenfe  e  de  outros  com- 
pêndios, principalmente  ad  tifiim  femiuarionim;  infufílava-lhe 
eí\a  irmã  querida  o  elpirito  theologico-metaphyfico,  e  aquel- 
la,  pelo  menos,  contornava-lhe  as  formas,  e  veftia-a  fegundo 
os  caprichos  da  moda  philofophica  de  efcolas  rivaes  e  va- 
riegados fyftemas. 

E  aíTim,  os  mais  notáveis  hiftoriadores,  aquelles  mefmos 
que  tomaram  para  fi,  ou  receberam  dos  feus  contemporâ- 
neos, ou  mereceram  á  pofteridade  o  titulo  augufto  de  philo- 
fophos,  eíles  mefmos  animaram  os  feus  trabalhos  de  um 
principio  vital  que  lhes  aprouve  efcolher,  e,  confoante  a  elle, 
deram  a  forma  que  mais  lhes  agradou  ás  luas  obras.  Umas 
vezes  é  o  myjticifmo  theologico  e  eíTa  efpecie  de  fatalifmo 
metaphyfico  de  J.  B.  Viço,  procurando  fubordinar  ás  com- 
binações fubjectivas  de  feu  penfamento  e  ás  creações  phan- 
tafiofas  da  fua  imaginação  atrevida,  a  que  elle  dá  o  nome 
de  leis  e  de  /ciência  nova,  a  realidade  dos  fados,  coordena- 
dos em  fynthefes  mais  ou  menos  arbitrarias. 

Outras  vezes  é  o  naturalifmo  poético  e  fentimental  de 
Herder  e,  até  certo  ponto,  de  Michelet  e  E.  Pelletan,  que- 
rendo encadear  por  analogia  a  evolução  hiftorica  de  certos 
povos  e  da  humanidade  no  movimento  geral  da  natureza. 
Tudo  lhes  ferve:  o  curfo  dos  aftros,  a  formação  do  globo, 
o  fluxo  e  refluxo  das  marés,  as  epochas  ou  cdades  geológi- 
cas da  terra,  a  alternação  das  eftações,  etc,  fão,  por  com- 
paração e  analogia,  outras  tantas  leis  que  dominam  e  regem 
o  dcfenvolvimento  hilforico  das  nações.  Traçando  e  colorin- 
do, com  o  artiftico  pincel  da  mais  aprimorada  litteratura, 


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quadros  maravilhofos,  pretendem  fazer  á  hiftoria  o  que  Ber- 
nardin  de  Saint  Pierre  fez  á  natureza. 

Uns,  como  BoíTuet  e  Chateaubriand,  fão  elevados  pelo 
myíticifmo  catholico  e  pelo  fentimentalilmo  chriftão,  tradu- 
zidos em  uma  forma  attrahente  e  fafcinadora,  ás  mais  fubli- 
madas  e  recônditas  regiões  da  metaphyfica  religiofa,  nas 
quaes  o  fatalifmo  providencial  impelle  e  dirige  os  preftabele- 
cidos  deífinos  de  cada  povo  e  da  humanidade  em  geral. 

Outros,  e  d'eírcs  é  o  maior  numero,  forcejando  por  des- 
prender-fe  do  empyrifmo  vulgar  e  groffeiro  da  «narração  dos 
fados»,  vão  cair  no  ecclefliímo  efteril  e  na  erudição  balofa 
da  «expofição  ligada  e  difcurfiva  dos  acontecimentos  verda- 
deiros, para  inítrucção  da  humanidade»  .Taes  fão  Millot,  Rol- 
Hn,  Cantu,  Guizot,  Thiers  e  muitos  mais. 

Eftes  vicioibs  proceííos,  effes  falfos  critérios,  eíTas  inapro- 
priadas formas  de  tratar  aíTumptos  hiftoricos  ainda  vigoram 
entre  nós,  comquanto  fe  tenha  confideravelmente  melhorado 
o  noíTo  eftado  mental.  Os  trabalhos  de  Alexandre  Hercula- 
no, pofto  que  reprefentem  um  grande  progreíTo,  uma  opu- 
lenta conquifla,  e,  como  trabalhos  crhicos,  revelem,  em  um 
grau  elevado,  o  efpirito  metaphyfico  de  rebellião  contra  as 
impofições  theologicas  e  intervenções  do  Ibbre-natural  na 
evolução  hiftorica  portugueza,  accufam  ao  mesmo  tempo, 
em  aquelle  infatigável  explorador,  a  mais  lamentável  inópia 
de  bafes  e  elementos  fcientificos,  e  denunciam  a  carência 
quafi  completa  do  verdadeiro  critério  pofitivo;  e  bem  o  pre- 
fentiu,  e  por  fim  reconheceu,  elle  próprio,  penitenciando-fe 
d'eíra  enorme  falta  no  retiro  e  na  Iblidão  de  Valle  de  Lobos. 

E  em  verdade,  fe  pelo  lado  critico,  Alexandre  Herculano 
fe  nos  aprefenta  e  avulta  como  revolucionário  ingente,  de- 
molidor audaciofo,  iconoclofta  defapiedado  de  falfos  idolos 
e  fuppoífas  divindades,  pelo  lado  fcientifico,  nos  apparece 
como  doutrinário,  armado  com  eífe  apparatofo  eccledifmo 


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ii5 

incoherente,  que  lhe  inocularam  a  leitura  dos  livros  do  feu 
prcdiledo  meítre  Guizot,  de  Thiers,  de  Cantu,  de  SchaefFer  e 
de  quantos,  a  torto  e  a  direito,  arrotearam  o  campo,  e  rafga- 
ram  o  caminho,  por  onde  o  noíTo  illuftre  concidadão  devia 
fazer,  na  pátria,  a  Ília  traveffia  hiftorica,  defde  o  milagre  de 
Ourique  até  á  excommunhão  e  arrependimento  de  D.  Af- 
fonfo  III,  ou,  melhor  diríamos,  defde  a  formação  da  noíTa 
nacionalidade  na  Peninfula  até  ás  mais  pequeninas  efpeciali- 
dades  do  governo  municipal  e  adminiftrativo,  nos  primeiros 
feculos  da  fua  exiítencia. 

E  foi  em  noíTa  opinião  a  tardia  confciencia  d'eíre  vicio 
radical,  d'eíra  lefão  congénita  irremediável,  e  não  o  defgos- 
to  ou  o  defpeito,  obfequiofas  condefcendencias  e  affeduofas 
contemplações,  motivo  que  determinou  o  noíTo  primeiro  his- 
toriador critico  a  engeitar  o  filho  defeituofo  e  inviável  das 
fuás  excavações  archeologicas,  e  comquanto  fempre  vi6fo- 
riofo,  a  depor  as  armas  apoz  tantos  certames  gloriofos  tra- 
vados contra  os  preconceitos  tradicionaes  do  vulgo,  e  contra  o 
obfcurantifmo  fyftematico  dos  reaccionários,  que,  vencidos 
na  luda,  fe  refugiaram,  como  é  velho  coftume,  no  redudo 
habitual  das  injurias  e  das  calumnias,  que  fobre  elle  arremes- 
faram  deforientados  os  loucos  e  raivofos  defenfores  do  re- 
troceíTo. 

Outros  efcrevem  a  hiftoria,  como  fazem  romances  ou  com- 
põem dramas;  e  julgam  que,  traduzindo  ou  imitando  os  li- 
vros de  Ferdinand  Denis  ou  de  M.  Bouchot,  confeguem  na- 
turalifar  producções  extrangeiras,  nas  quaes,  fe  abundam  o 
efpirito  mercantil  e  o  amor  do  lucro,  efcaífeiam  o  efpirito 
fcientifico,  o  amor  e  o  zelo  efcrupulofo  da  verdade  e  faha 
a  dedicação  patriótica. 

Também  alguns,  cm  e^uem  por  certo  não  faltariam  ca- 
pacidade e  bom  cabedal  fcientifico  para  emprehender  origi- 
nariamente magnificas  e  folidas  conftrucções  hifl:oricas,  fe 


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ii6 

contentam  em  refundir  e  reftaurar,  fegundo  a  moderna  fcien- 
cia,  a  convite  de  qualquer  livreiro  efpeculador,  as  velhas  e 
obfoletas  producções  de  Cefar  Cantu,  á  femelhança  d'aquel- 
les  emigrados  portuguezes,  que  havendo  enriquecido  no  Bra- 
zil,  regreíTando  á  pátria,  carregados  de  oiro,  querem  levantar 
fobre  o  velho  pardieiro  ou  fobre  o  arruinado  cafarão,  onde 
nafceram  e  viveram  os  feus  progenitores,  elegante  e  fum- 
ptuofo  palacete,  fegundo  a  moda  e  o  bom  gofto  da  epocha. 

Por  ultimo  apparecem,  e  deflacam,  por  entre  a  multi- 
dão, efpiritos  muito  efclarecidos,  intelligencias  repletas  de 
boa  doutrina  politiva,  e  por  iíTo  fcientilicamente  bem  orien- 
tadas, logicamente  preparadas  pela  nova  difciplina,  preten- 
dendo alliar  as  modernas  bafes  fcientiíicas  e  os  novos  pro- 
ceíTos  de  invefligação  com  a  clareza,  fimplicidade  e  minu- 
dência, de  que,  em  affumptos  hiftoricos,  ufaram  os  noíTos 
antigos  e  mais  conlcienciolbs  chroniftas.  Mas,  quando,  por 
exemplo,  julgámos  ir  encontrar  um  eftudo  real  e  profundo, 
da  mefologia  e  da  etimologia  applicadas  a  Portugal,  depará- 
mos apenas  com  umas  elementares  noções  de  chorographia 
e  ethnographia  portugueza. 

No  mais,  defcripções  e  quadros  traçados  e  coloridos 
com  raro  brilhantifmo  e  notável  energia,  próprios,  fem  duvi- 
da, para  integrar  em  uma  valiofa  e  deleitavel  producção 
romântica,  e  nos  quaes  as  furprezas,  o  imprevifto  de  um 
myfticifmo  theologico,  os  acafos  de  um  fatalifmo  brutal  e 
materialifta  e  um  como  peflimiímo  fyftematico  fubftituem 
as  previfões  da  fciencia  e  as  leis  naturaes  e  invariáveis,  que, 
nas  fuás  relações  neceíTarias  de  antecedência,  coexiftencia  e 
confequencia,  regem  e  ligam,  em  um  movimento  continuo  de 
evolução,  os  fados  paíTados,  prefentes  e  futuros,  que  pheno- 
menalmente  traduzem  a  vida  dos  povos,  das  nações,  da  hu- 
manidade. 

E  aíTim  é  que  no  fundo  de  quafi  todos  os  trabalhos  hilfori- 


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COS,  emprehendidos  e  executados  por  efcriptores  portuguezes, 
encontra-fe  um  precipitado  de  fentimentaliímo  romântico, 
de  fubjedivilmo  metaphyfico  e  de  providencialifmo  fobre- 
natural  theologico,  diluido  com  algumas  pequeninas  doíes 
de  moderno  efpirito  fcientifico  em  um  eccleftifmo  heteroge- 
nio  e  amorpho,  comporto  de  elementos  repugnantes,  que, 
quando  não  tenha  o  defaftrofo  cífeito  de  nos  allucinar  ou 
fazer  fcepticos,  lervirá  apenas  de  nos  embuir  com  uma  té- 
nue camada  fuperficial  d'eíre  verniz  de  erudição  a  retalho, 
que  os  doutrinários  fabem  manipular  nos  feus  laboratórios 
clajjicos  e  officiaes,  e  expõem  á  venda  recommendado  pelos 
rótulos  de  reclame,  fellado  na  junta  coníliltiva  de  inftruc- 
ção  publica  e  com  a  etiqueta  carimbada  no  minifterio  do 
reino. 

Sobretudo  o  romantifmo,  e  aquillo  a  que  geralmente  fe 
dá  nome  de  litteratiira  preponderam  em  quaíi  todos  os  noíTos 
trabalhos  hiftoricos,  quando,  alem  d'iíro,  o  que  é  frequente, 
os  não  corrompem  e  viciam  o  preconceito  de  feita,  de  par- 
tido, de  efcola,  intereíTes  e  conveniências  particulares  em  fuás 
múltiplas  e  variadas  combinações. 

Se,  por  exemplo,  paíTàmos  immediatamente  da  leitura  de 
um  capitulo  da  Hijloria  de  Portugal  de  Alexandre  Herculano 
á  leitura  de  um  capitulo  do  Eurico  ou  do  Monge  de  Cijlcr, 
de  uma  pagina  da  Hijloria  de  Portugal  de  Rebello  da  Silva 
para  uma  pagina  da  Mocidade  de  D.  João  V,  a  tranfição  não 
fe  prefente;  a  maneira  de  efcrever  é  idêntica,  o  efpirito  que 
vivifica  os  dois  trabalhos  o  mefmo.  E  fempre  a  imaginação 
a  levantar  phantafticas  perfpedivas  e  a  eftender  enganofas 
miragens  por  fobre  a  realidade  dos  fados;  é  fempre  um  es- 
tylo  feduófor  e  attrahente  ao  ferviço  de  fentimentos  peífoaes, 
noções  fubjeflivas,  de  conveniências  partidárias. 

Pede  a  juítiça  que  façamos  algumas  excepções:  a  pri- 
meira, e  bem  merecida,  em  favor  do  dr.  Coelho  da  Rocha, 


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ii8 

lente  de  Direito  Civil  na  Univerfidade  de  Coimbra,  com  re- 
lação ao  feu  preciofo  livro  Enfaio  fobre  a  Hijloria  do  Governo 
e  da  Legiflação  de  Portugal,  etc.  Não  a  fundamentaremos: 
por  brevidade  diremos  fomente  que  o  dr.  Coelho  da  Rocha 
não  era  litterato,  nem  poeta,  nem  rhetorico,  nem  politico;  ju- 
rifconfulto  e  homem  de  fciencia,  legundo  a  Iciencia  do  feu 
tempo,  foi  experimentaliíla  nos  proceffos  de  inveftigação, 
pofitivo  e,  por  iífo,  imparcial  na  critica,  iíto  é,  no  modo  de 
ver  e  apreciar  os  faftos,  os  homens  e  as  inflituições. 

Também  é  certo  que  alguns  modernos  penfadores  fe  toem 
esforçado  por  emancipar-fe  dos  velhos  preconceitos  e  vicio- 
fos  hábitos,  herdados  de  nolTos  meftres  e  tranfmittidos  pela 
meiquinha  e  deplorável  educação  intelledual,  que  nas  efcolas 
fecundarias  e  nos  curfos  fuperiores  recebemos.  Honra  lhes 
feja,  fe  bem  que  ainda  nenhum  o  confeguiu  de  um  modo 
completo. 

Mas,  apefar  da  fua  vaíta  e  complexa  erudição  e  folida 
fciencia  em  todos  os  ramos,  facriíicam  tudo  á  forma,  e  ainda 
fe  curvam,  reverentes  idolatras  do  e%lo,  perante  as  já  arrui- 
nadas aras  da  velha  rhetorica.  Outros,  por  mais  que  leiam  e 
releiam  e  foffregamente  devorem  os  produdos  da  efcola  po- 
fitivifta,  e  procurem  refazer  o  feu  efpirito  e  renovar  o  leu  es- 
tado mental  na  philoíbphia  comteana,  fegundo  os  commenta- 
rios  e  gloífas  de  Littré,  de  Wyrouboíf,  não  confeguem  apagar 
nos  feus  cfcriptos  hiíloricos  as  gratas  reminifcencias  de  Viço 
e  Michelet,  feus  primeiros  meftres;  e  o  myfticifmo  theologi- 
co  e  metaphyfico  d'aquellc  e  o  naturalifmo  fentimental  d'efte 
a  cada  paífo  repontam  no  caminho,  para  denunciar  as  raizcs, 
que  o  machado  innovador  da  critica  pofitiva,  cortando  o  tron- 
co, não  pôde  expungir. 

Felizmente  a  hiftoria  vae-fe  hoje  eftreitamente  ligando, 
em  indiflbluvel  conforcio,  com  a  fciencia  defde  a  mathema- 
tica  até  á  íbciologia,  cortando  com  a  metaphyfica  e  com  a 


4SÍ9 


tis 


119 


rhetorica  eíTas  relações  illegitimas  e  eftereis  de  hons  frudos, 
relações  que  o  delenvolvimento  do  efpirito  humano  foi  afrou- 
xando cada  vez  mais,  e,  por  fim,  ha  de  annullar  completa- 
mente. A  hifloria  tem  hoje  por  elementos  orgânicos  da  fua 
conftituição  fomente  aquelles  que  lhe  fornece  a  realidade 
verificável  dos  fados,  e  por  únicas  formas  aquellas  que  lhe 
vae  miniflrando  a  phenomenalidade  evolutiva  que  traduz,  na 
fua  complexidade  crefcente,  a  vida  progreíTiva  das  focieda- 
des,  e  a  civilifação,  cada  vez  mais  opulenta,  da  humanidade 
no  feio  da  natureza. 

II 

EVOLUÇÃO  POLITICA 

A  palavra  politica  é  uma  d'aquellas  de  que,  vulgar  e 
fcientificamente,  mais  fe  tem  ufado  e  abufado. 

Todos  faliam  em  politica;  mas  não  haveria  talvez  quem, 
fe  lhe  perguntalfem  inefperadamente  o  que  entende  por  po- 
litica e  o  que  efta  palavra  figniíica,  refpondeífe  fem  hefitações 
e  embaraços;  ninguém  daria  uma  definição  que  refiíl:iífe  á 
critica  mais  fuperficial  e  empyrica. 

Uns  entendem  por  politica  «o  governo  das  fociedades». 
Dizem  outros  que  a  polhica  tem  principalmente  por  objedo 
« a  forma  governamental  de  um  paiz » .  Aííirmam  alguns  que 
ella  comprehende  »as  inftituiçóes  admittidas  por  differentes 
grupos  de  uma  fociedade  ou  por  diverfas  fociedades».  Que- 
rem eítes  que  a  politica  feja  «a  arte  de  governar  a  cidade, 
um  povo,  uma  nação» .  Suftentam  ac]uelles  que  ella  «abrange, 
na  fua  vafta  efphera,  as  relações  entre  governantes  e  gover- 
nados», e  tem,  «como  fciencia  e  como  arte,  a  miífão  de  es- 
clarecer e  dirigir  os  governos  na  fua  acção  e  influencia  fobre 
os  cidadãos  e  eíf rangeiros » .  A  politica  aíTim  comprehendida 


eis 


-i-6- .-<J>-§. 


é  uma  arte,  um  complexo  de  regras  e  de  expedientes,  que  fe 
refolve  na  combinação,  mais  ou  menos  aítuciofa,  dos  fins  e 
dos  meios  de  governar,  fegundo  as  circumftancias  de  occafião 
e  opportunidade. 

Todas  eftas  definições,  fe  não  fão  um  circulo  viciofo,  em 
que  fe  refponde  á  pergunta  com  a  mefma  pergunta,  traduzem 
apenas  eífe  empirifmo  vulgar  e  groífeiro,  a  que,  por  ignorân- 
cia e  força  de  habito,  fe  convencionou  chamar  politica  ou 
melhor  ainda  habilidade. 

Modernamente  é  mais  elevada  e  mais  fcientifica  a  com- 
prehenfão  da  politica.  Na  fua  accepção  mais  ampla,  dizem 
os  innovadores  é  «a  fciencia  da  ordem  e  do  progreífo,  ap- 
plicada  ás  fociedades  humanas » .  A  conciliação  d'efl:es  dois 
termos  — ordem  e  progreífo —  refume  em  fi  toda  a  fciencia 
efpeculativa  e  pratica  da  politica.  AíTim  confiderada,  a  poli- 
tica já  não  fe  limita  ao  governo  de  uma  cidade,  de  uma  pro- 
víncia, de  uma  nação,  fignifica  «a  direcção  da  humanidade 
inteira  no  fentido  da  fua  evolução  natural  e  hiftorica » .  Mas 
qual  é  a  fciencia  ou  ramo  de  fciencia  que  não  deva  ter  como 
bafe  fundamental  e  condição  impreterível  a  conciliação  da 
ordern  com  o  progreífo,  que  é  uma  lei  univerfal  da  natu- 
reza?! 

No  meio  d'efl:a  confufão  de  idéas  e  abufo  de  palavras, 
que  ainda  adualmente  enchem  e,  arbitraria  e  tumultuofamente, 
revolvem  o  campo  da  fciencia  focial  e  particularmente  da  po- 
litica, podemos  affirmar  que  eíta  não  é  fimplefmente  uma 
arte,  a  combinação  habilidofa  de  expedientes  tranfitorios ;  é 
uma  fciencia  experimental,  que  tem  por  fontes  a  natureza  e 
a  hiftoria. 

Para  nós  a  politica,  e  é  efta  fem  duvida  a  fua  compre- 
henfão  pofitiva,  aprefenta-fe,  na  ordem  natural  e  hiftorica, 
a  primeira  das  fciencias,  em  que,  na  fua  ordem  hierarchica, 
fe  fubdivide  a  fociologia.  Efta,  nas  luas  mais  elevadas  afpi- 


eis  «is 


K>-§- 


rações,  fuppõe  o  conhecimento  real  e  profundo  do  fer  huma- 
no, confiderado  em  fi,  nas  luas  origens,  nas  fuás  tendências 
progreíllvas,  nas  luas  aptidões  múltiplas,  nas  condições  ne- 
ceíTarias  da  lua  complexa  exiftencia,  e,  por  iffo,  nas  luas  re- 
lações com  o  univerlb  de  que  elle  faz  parte  integrante.  A  po- 
litica tem  pois,  como  a  lociologia,  raizes  profundas  que  é 
forçofo  procurar,  atravez  da  indefinida  complicação  de  todas 
as  Iciencias.  A  vida  politica  de  um  povo  é  uma  refultante 
das  leis  naturaes  que  regem  o  mundo,  e  o  produtflo  de  uma 
evolução  hiftorica  particular,  que  le  coordena  no  movimento 
geral  afcendente  da  humanidade,  no  decurlb  dos  leculos  e 
por  toda  a  parte. 

A  fociologia,  na  fua  maior  generalidade  e  complexidade, 
eítuda  as  condições  de  exiftencia,  internas  e  externas,  do 
organifmo  focial  humano;  ou  mais  concifamente,  é  a  fciencia 
da  condicionalidade  Ibcial  humana,  nos  phenomenos  que  a 
traduzem  (conhecimento  empirico),  nas  leis  que  a  regem 
(conhecimento  fcientifico),  nos  principies  fupremos  e  univer- 
faes  que  a  fuhordinam  (conhecimento  racional).  E  como  as 
fociedades,  do  meímo  modo  que  outro  qualquer  organilmo 
vivo,  fe  formam,  conflituem,  renovam,  conlervam  e  perfis- 
tem,  defenvolvem  e  aperfeiçoam,  garantindo-fe  nos  meios  em 
que  vivem  envolvidas  e  como  que  mergulhadas,  as  focieda- 
des precifam  de  condições  de  formação,  conftituição  e  re- 
novação, de  confervação  e  perfiftencia,  de  aperfeiçoamento 
e  de  garantia;  e  como  em  todo  o  organifmo  deve  haver  um 
certo  grau  de  vitalidade  orgânica,  acrefcentaremos  e  col- 
locaremos  convenientemente  um  outro  grupo  de  condições, 
as  condições  de  vitalidade. 

D'aqui  as  cinco  fubdivifões  ou  ramos  que  nós  entende- 
mos, que  naturalmente  fe  devem  e  podem  fazer  na  fociologia: 

I."  Condições  de  formação,  conftituição  e  renovação  — 
Politica. 


2."  Condições  de  vitalidade  orgânica — Economia. 

3.°  Condições  de  conlervação  e  perfiftencia — Adminis- 
tração. 

4."  Condições  de  delenvolvimento  e  aperfeiçoamento  — 
Moral. 

5."  Condições  de  garantia  —  Direito. 

Abrtendo-nos  de  grandes  explanações  e  largos  commen- 
tarios,  que  a  indolc  d'ell:e  trabalho  e  eítreitos  limites  de  uma 
breve  introducção  não  nos  confentem,  diremos  apenas,  que 
as  bales  da  noffa  claíTiíicação  exiftem  politivamente  eílabele- 
cidas  na  fociologia  e  experimentalmente  verificadas  na  Ins- 
taria. 

São  eíTas  bafes  fcientificas  e  effas  laboriofas  verificações 
experimentaes,  que  no  dizer  profundamente  verdadeiro  de 
um  moderno  fociologifta,  explicam  elTa  efpecie  de  terror  que 
a  politica  infpira  áquelles  homens  que  têem  eífudado  baftante 
para  faber  o  que  elles  ignoram,  e  a  lamentável  cegueira 
d'ac[uelles  que,  tendo  a  pretenfão  de  governar  uma  nação  e 
dirigir  a  ília  politica,  contando  fomente  com  os  recurfos  e 
expedientes  da  lua  aftuciofa  habilidade,  perdem  o  leu  tempo, 
e  arruinam  o  feii  povo. 

E  affim  que  pelo  proceíTo  fcientirico  empregado,  chegá- 
mos a  determinar  objectivamente,  de  um  modo  precifo,  e  a 
limitar,  por  um  termo  irreludivel,  a  fciencia  politica.  E  fe  a 
fciencia  focial  tem  por  objedo  as  condições  de  exiítencia  dos 
organifmos  fociaes  humanos,  fe  nos  domínios  da  fciencia 
focial  efpeculativa  vêm  coordenar-fc  todas  as  leis  e  todos  os 
princípios  defcobertos  e  fornecidos  pelas  outras  fciencias,  fe 
na  fociologia  pratica  devem  combinar-fe  e  cooperar  as  ap- 
plicações  d'eífas  mefmas  leis  e  princípios  á  ordem  e  progreífo 
focial,  eíTa  mefma  coordenação  e  efla  mefma  cooperação 
têem  de  realifar-fe  na  politica  theorica  e  na  politica  applicada. 
Logo  a  fciencia  politica  immediamcntc  fubordinada,  como 


4tÍ3 

123 

parte  integrante,  á  fociologia  geral  e  ahftrada,  tem  de  fub- 
ordinar-fe  á  biologia,  ás  Iciencias  phyfico-chimicas  e  a  todos 
os  princípios,  leis  e  meios  de  inveftigação  dependentes  da 
aftronomia  e  do  calculo.  Em  politica,  como  em  tudo,  é  in- 
difpenfavel  uma  ralao,  um  critério  fcientifico,  um  enorme 
poder  de  precifão  pofitiva,  pois,  fe  aíTim'  não  foíTe,  teríamos 
como  principio  motor  dos  movimentos  fociaes  da  humani- 
dade a  força  bruta  e  cega  do  acafo,  e  por  lei  o  arbítrio  ca- 
pricholb  dos  grandes  homens,  dos  heroes,  dos  deules. 

Entendemos  por  evolução  politica  progreíTiva,  a  fucceíTão 
natural  e  hirtoricamente  coordenada  de  períodos  ou  phafes 
de  exiftencia,  que  uma  fociedade  atraveíTa  ou  percorre  na 
fua  formação,  conftituição  e  renovação  orgânicas,  de  modo 
que  poíTa  adquirir  o  necelTario  grau  de  vitalidade  correfpon- 
dente  (progreíTo  económico),  prover  á  fua  confervação  (pro- 
greíTo  adminiftrativo),  preparar  e  realifar  o  leu  aperfeiçoa- 
mento (progreíTo  moral),  e  garantir-fe  mais  e  melhor  em 
todas  eftas  condições  de  exiftencia  contra  a  acção,  reacção 
e  influencia,  prejudiciaes  e  damnofas,  dos  meios  internos  e 
externos,  d"onde  eflas  condições  originariamente  derivam  —  o 
território,  a  população  e  o  eftado  Ibcial  (progreffo  jurídico). 

Decadência  e  retroceíTo  fignificam  a  evolução  em  íenti- 
do  contrario;  e  por  iflb,  em  oppoíição  áquella,  lhe  chamare- 
mos evolução  retrograda. 

III 

DA  INFLUENCIA  DOS  GRANDES  HOMENS 
E   DA   ACÇÃO   INDIVIDUAL 

Quando  abrimos  a  maior  parte  dos  livros  de  hiftoria,  e 
procuramos  defcobrir  os  motivos,  a  que  os  hiftoriadores  at- 
tribuem  os  factos  ou  phenomenos  fociaes,  encontrámos  con- 


eis 


4tÍ3 
-<i>-§* 


124 


ftantementc  e  geralmente  invocados,  como  factores  principaes 
— a  propidencia  e  os  grandes  homens.  E  eíTes  livros,  na  fua 
maioria,  fão  apenas  um  tecido  de  biographias  de  reis,  de 
generaes  e  de  homens  de  Eftado,  que  á  Providencia  aprouve 
efcolher  para  feus  delegados  e  interpretes,  ou  meros  inftru- 
mentos  na  realifação  dos  feus  myfteriofos  defignios  fobre  o 
mundo.  A  influencia  dos  meios,  das  raças,  das  crenças,  a 
continuidade  hiftorica,  a  tranfmiíTão  hereditária,  a  evolução 
progreíTiva,  tudo  quanto  modernamente  e,  fegundo  os  verda- 
deiros methodos  fcientiíicos,  e  para  os  eípiritos  fuperiormente 
dilciplinados  pela  fciencia,  forma  o  real  e  pofitivo  dos  phe- 
nomenos  hiftoricos,  não  fe  vêem,  não  fe  encontram,  parece 
não  haverem  lido  ao  menos  prefentidos. 

Tendo  de  nos  occupar  da  acção  e  influencia  do  Marquez 
de  Pombal  na  evolução  politica  da  nacionalidade  portugueza, 
também  precifámos  de  nos  explicar  acerca  da  maneira  como 
comprehendemos  a  acção  e  influencia  dos  grandes  homens 
nos  deftinos  dos  povos,  das  nações  e  da  humanidade,  por 
maiores  que  os  pofl'amos  conflderar  no  génio  e  na  adividade, 
por  mais  laliente  que  feja  o  relevo  e  impreflionadora  que 
nos  pareça  a  perfpeftiva,  com  que  deftacam  e  avultam  no 
quadro  hiflorico  onde  figuram. 

Os  phenomenos  fociaes,  afllm  os  mais  importantes  como 
os  mais  fecundarios,  eftão  fujeitos,  como  pheiíomenos  natu- 
raes  e  objedivos,  a  leis  fixas  que  os  aggregam  e  encadeiam 
regular  e  indiíToluvelmente  por  luas  relações  de  antecedência, 
coexiftencia  ou  fimultaneidade  e  confequcncia. 

Verdade  é  que  efias  leis  não  lao  ainda  bem  conhecidas 
e  formuladas;  fe  o  foflem,  a  fociologia  eftaria  conftituida  nas 
fuás  generalifações  abftradas  e  nas  luas  efpecialidades  con- 
cretas, no  todo  e  em  cada  uma  das  fuás  partes;  mas  nem 
por  iíTo  o  principio  de  fubordinação  deixa  de  fer  verdadeiro 
e  experimentalmente  verificável. 


ir  \  f 

-§-<>- -ò-l* 


125 

Todo  o  fafto  politico  e,  por  iffo,  toda  a  reforma  ou  reno- 
vação politica,  fe  cila  não  é  o  relultado  de  um  puro  capricho 
ou  devaneio  individual  ou  de  uma  temeridade  revoluciona- 
ria, e  por  iíTo  ephemera  e  perturbadora,  fe  ella  tem  um  certo 
alcance  e  influencia,  para  ler  efficaz  e  permanente,  deve  ter 
a  fua  ralão  de  exiftencia  nos  léus  antecedentes  direitos,  e 
produzir,  no  meio  que  a  recebe,  e  ao  qual  fe  adapta,  os  feus 
inevitáveis  confequentes.  Logo  todo  o  homem  politico,  todo 
o  reformador,  digno  d'efte  nome,  deve  ter  a  comprehenfão 
e,  por  iffo,  a  confciencia  d'effes  antecedentes  e  confequentes 
que  Ião,  ou  devem  ler,  o  determinifmo  da  fua  acção  renova- 
dora, e  como  que  a  idéa  progenitora  e  fundamental  das  fuás 
reíormas  e  emprehendimentos. 

Que  Vafco  da  Gama  tiveffe  furgido  no  xii  feculo  e  Chris- 
tovam  Colombo  no  mefmo  ou  no  xiii  feculo,  e  elles  pode- 
riam ler  bifpos,  Icudes,  papas,  guerreiros  ou  doutores  da  Igre- 
ja, mas  não  teriam  fido  navegadores;  poderiam  ter  fundado 
um  império,  um  reino,  um  condado,  um  convento,  uma  abba- 
dia,  uma  univerfidadc,  mas  não  teriam  fido  os  defcobridores 
de  novos  mundos;  vel-os-hiamos  dirigir  uma  cruzada  á  terra 
fanta,  pregar  uma  herefia  e  commandar  uma  guerra  reli- 
giofa,  mas  não  teriam  aberto  um  novo  caminho  para  a  ín- 
dia, nem  conquiftado  á  velha  humanidade  da  Afia  e  da  Eu- 
ropa o  continente  americano,  para  fe  expandir  e  como  que 
rejuvenefcer  em  novas  e  acrefcentadas  civilifações. 

O  império  de  Napoleão  III,  do  mefmo  modo  que  o  impé- 
rio de  Napoleão  I,  do  mefmo  modo  que  o  império  de  Othão 
o  grande  e  de  Carlos  Magno,  caiu,  porque  elle,  como  todos 
efles  grandes  homens,  todas  eflas  notabilijjimas  individuali- 
dades, obedecendo  a  moveis  puramente  fubjedivos,  em  que 
as  ambições  egoiffas  e  as  miragens  da  imaginação  prepon- 
deravam, não  tinha  a  confciencia  do  feu  tempo,  e  longe  de 
aproveitar  os  antecedentes  direitos  e  provocar  os  confequen- 


eis 


i2b 


tes  legítimos  na  evolução  progreffiva  do  feu  tempo,  os  per- 
turbava na  lua  con\'ergencia,  contrariava  e  enfraquecia  na 
fua  efpontanea  energia  critica  e  renovadora,  fubftituindo 
as  leis  naturaes  e  hiftoricas  da  humanidade  pelo  arbítrio,  e 
oppondo  os  caprichos  da  fua  vontade  abforvente  e  defpotica 
ás  correntes  civilifadoras  do  meio,  que  mais  tarde  ou  mais 
cedo  devia  fubmergir  e  afundar  para  fempre  o  novo  im- 
pério, que  flufluava,  fem  direcção  e  fem  rumo,  á  mercê  das 
ambições  de  um  homem,  no  intereíTe  de  uma  familia  e  de 
uma  numerofa  clientela  de  aulicos  e  apaniguados  efpccula- 
dores,  ávidos  de  honrarias  e  riquezas. 

Nenhuma  das  condições  objectivas,  das  verdades  pofiti- 
vas  e  experimentaes,  que,  natural  e  iieceíTariamente,  derivam 
umas  das  outras,  foi  comprehendida  e  refpeitada  por  eftes  re- 
tardatários políticos,  que  têem  o  único  feftro  de  tomar  fonhos 
como  fe  foram  realidades,  e  os  feus  próprios  fentimentos,  os 
feus  intereíTes,  as  fuás  afpirações  individuaes,  corno  leis  ca- 
pazes de  fubjugar  as  fociedades  que  os  toleram,  e  dar  ás  na- 
ções o  impulfo  vigorofo  e  indomável,  que  poderia  tornal-as 
felizes  e  poderofas;  mas  para  as  fazer  fuás  efcravas  e,  não 
raras  vezes,  fuás  idolatras. 

Ora,  fão  efles  homens  aquelles,  a  quem  os  noífos  políticos 
de  hoje  e  os  noífos  hiíforiadores  de  hontem  chamam  envia- 
dos do  céu,  inftrumentos  de  Deus,  braços  da  Providencia, 
mandatários  da  divindade,  delegados  do  Omnipotente.  E 
aíhm  a  paífagem  do  governo  abfoluto  para  o  regimen  par- 
lamentar do  conftitucionalifmo  monarchico  explica-fe  pela 
generofidade  patriótica,  e  depois  pelos  heróicos  esforços  e  po- 
derofa  influencia  de  D.  Pedro  IV;  a  independência  do  Brazil, 
longe  de  fer  um  produdo  efpontaneo  das  circumftancias, 
refultado  e  impofição  de  uma  lei  de  defciivolvimento  orgâ- 
nico, a  mefma  lei  que  determinou  na  antiguidade  a  emanci- 
pação das  colónias  gregas  e  phenicias,  e  nos  tempos  moder- 

-i-í>- -i-^ 

cia  e|9 


4  si) 
-A-l* 


nos  a  libertação  das  colónias  ihglezas  e  hefpanholas  da 
America,  e  ha  de  emancipar  Cuba  e  quantas  tenham  chega- 
do á  maturidade,  c,  para  os  brazileiros,  um  favor  da  Provi- 
dencia e  uma  dadiva  principelca  do  primogénito  de  D.  João 
VI,  e,  para  os  portuguezes,  um  caftigo  de  Deus  e  uma  dupla, 
traição  do  príncipe  ao  pae  efpoliado  d'aquella  parte  dos  léus 
domínios  e  á  pátria  privada  dos  léus  recurlbs.  A  unidade 
italiana  é  um  mimo  do  céu,  um  prefente  da  divindade, 
offerecido  á  Itália,  ou  melhor  ainda  á  dynaftia  faboyana  pela 
mão  poderofa  de  Victor  Manuel,  a  quem  os  homens  da 
igreja  catholica  chamam  o  açoute  da  Providencia,  como 
outr'ora  os  romanos  chamaram  ao  Attila  o  flagello  de  Deus. 
A  unidade  germânica,  o  novo  império  allemão  é  o  produclo 
de  um  capricho,  de  uma  ambição  egoifta,  ou  melhor  ainda 
de  uma  allucinação  diplomática  do  príncipe  de  Bilmarck; 
e  a  republica  franccza  eftá  apertada  nas  mãos  omnipotentes 
do  Ir.  Gambetta;  fe  um  dia  o  fabio  eftadifta  e  o  enérgico 
tribuno,  em  um  momento  de  mau  humor  ou  de  delalento, 
abrir  as  mãos  ou  as  metter  nos  bolfos  do  leu  pardejfus,  a  re- 
publica franceza  cairá  no  abyfmo  de  um  quarto  império, 
mefrno  fem  o  precedente  de  um  confulado  retrogrado  ou  de 
uma  didadura  militar  intolerante,  para  fer  fantificado  pelo 
papa,  defendido  pelo  fenado  ariftocratico  e  pela  guarda  pre- 
toriana de  um  novo  Celar  Augufto,  que  poderá  exclamar, 
diante  de  um  povo  fafcinado  pelos  efplendores  deílumbran- 
tes  de  uma  corte  magniíicente  e  apparatofa,  ou  narcotifado 
pelos  venenos  da  centralifação  e  do  auctoritarifmo,  « o  EJtado 
fou  eu  —  a  França  foii  cu»,  parodiando  Luiz  XIV,  ou  fazendo 
o  plagiato  de  Naptoleão  I. 

A  hiftoria  e  a  politica  affim  comprehendidas  e  aíTim  expli- 
cadas, o  deítino  das  nações  e  da  humanidade,  entregue  ex- 
cluíivamente  ao  génio  e  á  vontade  dos  grandes  homens,  á 
direcção  e  influencia  das  indi^■idualidades  privilegiadas,  faz- 


(|3 


128 

nos  lembrar  um  relógio  nas  mãos  infantis  de  um  collegial. 
Que  lhe  importa  a  elle  o  curfo  natural  do  tempo,  e  as  leis 
.orgânicas  e  difciplinares  ás  quaes  eíM  fujeito  na  fua  educa- 
ção e  aprendizagem?  Tudo  vae  bem,  tudo  corre  na  medi- 
da dos  feus  defejos  e  ao  fabor  do  feu  egoifmo,  logo  que  os 
ponteiros  marquem  a  fufpirada  hora  do  recreio  e  do  re- 
poufo.  Uns  querem  que  elles  le  adiantem,  outros  que  elles 
fe  atrazem,  e  todos  pretendem  fubftituir  o  mecaniímo  inte- 
rior da  fabrica,  regulado  fegundo  as  leis  do  movimento  da 
terra  e  do  univerlb,  pela  fua  vontade,  pelo  feu  arbitrio,  pelo 
feu  intereífe;  todos  fe  enganam,  e  foífrem  as  confequencias 
do  feu  erro  e  o  caftigo  da  fua  falta;  e  mais  tarde  ou  mais  ce- 
do terão  de  confultar  a  natureza  para,  em  conformidade  com 
as  fuás  leis  e  indicações,  coUocar  devidamente  os  ponteiros 
no  quadrante. 

Ora  pois  a  politica  não  é  um  capricho  peífoal,  também 
não  é  uma  arte;  é  uma  fciencia  de  obfervação  e  de  expe- 
riência, que  tem  por  campo  immenfo  de  exploração  a  natureza 
e  a  hiftoria.  Confultemos  pois  a  hiftoria  e  a  natureza,  e  veja- 
mos o  que  ellas  nos  dizem  e  enfinam  a  refpeito  dos  grandes 
homens  e  das  individualidades  celebres. 

Dos  exemplos  que  apontámos,  e  que  poderíamos  multi- 
plicar e  alargar  até  ás  proporções  de  uma  completa  inducção 
experimental,  podemos  feguramente  concluir: 

I .°  Os  grandes  homens  fão  o  producto  de  uma  evolução 
anterior;  a  fua  acção  e  influencia  feriam  nullas  ou  infigni- 
íicantes,  fe  ellas  fe  manifeftallem  em  uma  epocha  ditferente,  e 
fe  defenvolveífem  em  um  meio  diverfo  d'aquelle  que  os  pro- 
duziu. Logo,  para  determinar  o  valor  real  e  pofitivo  da  acção 
e  influencia  dos  grandes  homens,  é  indifpenfavel  eftudar  bem 
a  epocha,  e  conhecer  bem  o  meio  ou  eftado  focial  que  os  pro- 
duziram. 

2.°  Não  fão  os  homens  que  geram  os  fados,  e  criam  as  cir- 


eis 


129 

cumftancias  do  feu  tempo;  mas,  ao  contrario,  lao  os  fados  e 
as  circumftancias  do  tempo  que  geram  os  grandes  homens, 
eftimulam  e  provocam  a  fua  acção  e  influencia  reformadoras. 

3."  Os  grandes  ferviços  que  uma  individualidade  pode- 
rofa  prefta  ao  feu  tempo,  á  fua  nação  ou  á  humanidade 
inteira,  na  fciencia,  na  induftria,  na  poUtica,  fão  relativa- 
mente pequenos,  fe  os  compararmos  á  enorme  fomma  he- 
reditária, accumulada  pela  experiência  de  muitos  feculos  e 
de  muitas  gerações. 

4. '  Uma  grande  defcoherta,  uma  invenção,  que  á  primei- 
ra vifta  fe  nos  antolha  furprehendente  e  maravilhofa,  nunca 
faiu  completa  do  cérebro  de  um  único  homem;  é  um  pro- 
duófo  lentamente  elaborado,  e  a  confequencia  de  invenções  e 
defcobertas  fucceíTivamente  feitas  e  accumuladas  durante  fe- 
culos. E  juífamente  o  que  fuccedeu  com  a  pólvora,  com  a 
imprenfa,  com  a  machina  a  vapor,  com  o  telegrapho  eleílri- 
co,  com  a  circulação  do  fangue  e  com  quantas  preciolidades 
fcientificas  e  induftriaes  formam  o  mais  rico  e  folido  thcfou- 
ro  da  humanidade. 

5."  No  dominio  da  politica,  a  fuperioridade  dos  grandes 
homens  confifte  em  conhecer  o  palfado,  comprehender  bem  o 
prefente,  prefentir  e  prever  a  direcção  phenomenal  do  futuro, 
impellir  e  dirigir  os  povos  na  fua  conquifta  e  realifação. 

A  fuperioridade  dos  grandes  homens  no  dominio  politico, 
ainda  que  muito  menor  do  que  no  dominio  fcientiíico  e 
induflrial,  não  deixa  todavia  de  fer  real  e  inconteftavel.  É 
precifo  um  juizo  muito  efclarecido  pela  obfervação  e  pela 
experiência  e  um  raciocínio  muito  feguro  para  defcobrir, 
atravez  da  infinita  complexidade  dos  phenomenos  fociaes,  a 
direcção  e  o  fentido  da  evolução  de  uma  epocha,  e  prever 
futuros  acontecimentos  e  novas  transformações. 

Alem  de  uma  grande  fuperioridade  intelledual,  o  ho- 
mem de  Eífado.  o  verdadeiro  homem  de  governo,  precifa 


4  si» 
«hJ)-!. 

de  um  caraíter  auftero  e  de  uma  enérgica  vontade  inque- 
brantável, a  fim  de  não  perder  a  influencia  moral,  o  preftigio 
e  a  audoridade  publica  fobre  a  multidão,  condição  indis- 
penfavel  á  fácil  e  prompta  realifação  dos  feus  planos  de  re- 
forma e  renovação  focial.  «Governar  é  prever  e  prover»;  e 
para  prever  é  indifpenfavel  a  fciencia  experimental  e  pofitiva. 
A  maior  e  a  mais  perigofa  de  todas  as  ambições  é  a  de  cjuerer 
governar  um  povo  e  dirigir  a  politica  de  um  eftado  fem  o 
talento  neceffario  para  iíTo. 

Cada  grupo  de  fados  ou  phenomenos  fociaes  correfpon- 
de  fimultaneamente  a  um  ou  outro  grupo  de  condições  de 
exiftencia,  fegundo  a  claíTificação  que  fizemos,  e  a  uma  phafe 
de  evolução  continua,  com  fuás  transformações  e  metamor- 
phofes,  as  quaes  p>henomenalmente  traduzem,  em  correntes 
tranquillas  ou  precipitadas,  patentes  ou  occultas,  o  movi- 
mento afcenfional  das  fociedades,  defde  a  fua  origem  até 
entrar  franca  e  abertamente  no  oceano  pacifico  da  civilifa- 
ção,  no  feio  immenfo  da  humanidade,  que  as  recolhe  e  apro- 
veita em  ultima  eftancia. 

EíTe  movimento  pôde  fer  demafiadamente  accelerado 
pela  acção  imprevidente  e  pela  influencia  perturbadora  dos 
revolucionários,  retardado  ou  empecido  pelos  esforços  retró- 
grados de  obftinados  reaccionários,  ou  paralyfado  pela  im- 
mobilifação  fyftematica  dos  confervadores  empíricos.  E  n'eíte 
modo  de  fer  da  evolução  focial  pôde  ter  larga  e  profunda  in- 
fluencia a  acção  de  um  homem,  de  um  governo,  de  um  par- 
tido, de  qualquer  feita  ou  aíTociação  particular;  nenhum,  po- 
rém, homem,  governo,  partido,  feita  ou  aíTociação,  nem 
todos  colligados  confeguiriam  produzir  ou  deítruir  o  movi- 
mento, quando  muito  poderiam  modifical-o,  ou  alterar-Ihe  a 
direcção  e  o  fentido,  mas  creal-o  na  fua  origem  e  fornecer- 
Ihe  o  ponto  de  apoio,  iíTo  nunca;  a  origem  vem-lhe  da  pró- 
pria natureza  e  o  ponto  de  apoio  miniftra-o  a  hiftoria.O  Mar- 

.g-A- ►A-i- 

el»  eis 


c|3 


i3i 

quez  de  Pombal,  que  conhecia  a  hiltoria  geral  da  civilifa- 
çáo,  e  particularmente  a  da  nacionalidade  portugueza,  pos- 
luia,  alem  da  pofitiva  comprehenfão  do  prefente,  a  clara  pre- 
vilao  do  futuro.  Sabia  que  as  reformas  fociaes  não  devem 
começar  por  uma  fuperíicial  renovação  morphologica  do  go- 
verno, mas  por  uma  renovação  intima  das  condições  de 
exiftencia  do  organifmo  Ibcial.  Aquella  fem  efta,  já  o  fabia 
elle  perfeitamente,  é  uma  apparencia  fem  realidade,  fão  co- 
mo effes  brilhantes  meteoros  de  eífeitos  defaftrofos,  que,  quan- 
to mais  brilham,  mais  depreíTa  fe  apagam  e  desfazem;  podem 
derramar  mais  alguma  luz  nas  imaginações  exaltadas  dos  re- 
volucionários; mas  não  tèem,  nem  podem  ter  a  realidade  pal- 
pável e  a  eílabilidade  perfiftente  d'aquellas  reformas  que,  par- 
tindo directamente  da  renovação  vital  da  fociedade,  affedam 
e  melhoram  a  fua  conftituição  orgânica. 

Foi  também  por  iíTo  mefmo  que  elle,  procurando  evitar 
a  revolução,  preparava,  por  uma  renovação  geral  e  profun- 
da dos  elementos  orgânicos  da  fociedade  portugueza,  uma 
transformação  politica,  económica,  adminiftrativa,  moral  e 
jurídica  correfpondente,  tendo,  porque  não  podia  deixar  de 
ter,  a  convicção  de  que  a  mudança  na  forma  de  governo, 
apropriada  ao  novo  eítado  Ibcial,  viria  fatalmente,  como 
confequencia  inevitável  e  produíto  efpontaneo  d'efra  reno- 
vação. Não  foi,  nem  podia  ler  revolucionário  na  rua,  á  frente 
do  povo;  foi  revolucionário  no  feu  gabinete,  ao  lado  do  rei. 

Não  empregou  a  liberdade  nem  invocou  a  democracia, 
para,  em  um  momento,  deftruir  o  poder  e  a  audoridade  e  arrui- 
nar o  abfolutifmo,  ferviu-fe  do  poder  abfoluto  e  da  autori- 
dade defpotica  para  fundar  a  liberdade  e  preparar  o  futuro 
da  democracia. 

O  Marquez  de  Pombal  foi,  no  feu  tempo,  um  opportu- 
nifla  ao  ferviço  da  revolução. 

Vejamos  fe  o  podemos  moftrar. 


CM 


n-^ 


CAPITULO  I 

ANTECEDENTES   HISTÓRICOS 

Depois  da  refurreição  nacional,  que,  em  1640,  reftaurou 
a  independência  de  Portugal,  efmagado  pelo  pelo  oppreíTor 
de  eftranho  jugo,  devida,  não  como  pretendem  alguns  ás 
combinações  grandiofas  e  á  politica  admirável  de  Richelieu, 
mas  á  patriótica  iniciativa  e  á  dignidade  heróica  dos  confpi- 
radores  pop»ulares,  a  nação  portugueza  recobrou  a  fua  au- 
tonomia politica,  defpedaçou  as  algemas  de  tão  odiofa  fer- 
vidão  económica,  defprendeu-fe,  por  um  foberano  esforço  de 
coragem,  dos  braços  de  ferro,  em  que,  durante  longo  e  an- 
guftiofo  periodo,  a  tinham  apertado  os  defpotas  caífelhanos, 
e  levantou  íbbre  o  throno,  em  que  havia  aíTentado  Aífonfo 
Henriques  e  o  Meífre  d'Aviz,  chefes,  fe  não  filhos  do  povo, 
eleitos  e  acclamados  por  elle. 

Portugal  entrou  de  novo  no  dominio  e  poíTe  de  fuás  con- 
quiftas;  o  foberano  opulento  do  Oriente,  o  defcobridor  ou- 
íado  e  o  civilifador  generolb  de  ignotas  plagas  e  de  extra- 
nhas  gentes,  ergueu-fe  do  tumulo  que  lhe  tinham  aberto  o 
arrojo  pueril  de  uma  creança,  ávida  de  glorias  vãs,  e  a  im- 
becilidade trôpega  de  um  velho  cardeal  fanatizado. 

Era,  todavia,  fombra  mageífofa  de  um  vulto  heróico, 
furgindo  por  entre  as  ruinas  de  lumptuofo  edifício  deíman- 
telado. 

Nem  exercito,  nem  marinha;  fem  commercio,  fem  indus- 
tria; exhauítos  os  cofres  do  eftado,  perdido  o  credito,  nominal 
a  riqueza  de  fuás  maravilhofas  defcobertas,  vafio  o  thelburo 
de  fuás  conquiflas!.  .  .  fó  com  a  aureola  de  paífadas  glorias; 
fem  outro  titulo  perante  as  nações,  alem  da  merecida  grati- 
dão a  que  tinha  direito  pelos  valiofos  ferviços  preftados  á 


i33 

humanidade  e  a  cíTa  religião,  a  que  o  prenderam  logo  no 
berço. 

Dir-fe-ia  que  o  milero  revivera  por  momentos,  para 
logo  depois  tornar  a  morrer  defalentado. 

Mas  havia  para  elle  a  eíperança  no  futuro,  firmada  na 
lembrança  do  paflado;  exiftiam  amontoados,  fobre  os  mares 
e  nas  fuás  p)Oíreírões  abandonadas,  os  ricos  efpolios  da 
fua  antiga  grandeza:  retomou  animo,  ganhou  coragem.  Efta- 
va  o  leu  nome  efcrip>to  fobre  toda  a  extenfão  do  oceano, 
echoava  por  todas  as  regiões  do  globo,  brilhando  na  coroa  de 
poderofos  monarchas,  exiftia  gravado  no  coração  de  muitas 
nações  florefcentes ;  por  iíTo  todas  acolheram  com  applaufo 
o  brado  da  fua  independência,  e  lhe  ajudaram  a  manter  a  li- 
berdade, que  defaftrofamente  havia  perdido  nos  plainos  de 
Alcácer  Quibir  e  fobre  o  leito  do  cardeal  rei  moribundo. 

Os  herdeiros  da  cafa  de  Bragança,  os  populares  foberanos 
eleitos  pelo  poi'o,  os  primeiros  reprefentantes  d'eíra  realeza  le- 
gitima, nem  comprehenderam  a  fua  elevada  miífão,  nem 
lhes  importaram  as  neceíTidades  do  feii  p)ovo,  nem,  ao  me- 
nos, fouberam  aproveitar-fe  do  amor  e  da  confiança  que 
n'elles  haviam  depofitado  os  que,  refgatando  o  reino,  lhes 
cingiram  o  diadema,  e  lançaram  fobre  os  hombros  a  purpu- 
ra de  duas  dynajlias. 

Não  emprehenderam  reformas ;  não  traçaram  plano  algum 
de  polifica  definida;  não  promoveram  o  defenvolvimento  ou, 
ao  menos,  a  reftauração  da  agricultura,  da  indufiria,  do  com- 
mercio,  da  navegação,  de  quantos  elementos  conflituem  a 
vida  laboriofa,  a  adividade  produdora,  o  bem  eftar  íbcial,  a 
profperidade  moral  e  económica  de  uma  nação  livre,  inde- 
pendente e  opulenta  de  tudo  quanto  poderia  tornal-a  gran- 
de e  rcfpeitada.  Exhaurindo  o  erário,  fem  adivar  as  forças 
produdoras  da  riqueza  publica  e  particular,  fem  abrir  novos 
mananciaes  de  producção,  lem  dotar  o  paiz  com  melhora- 


4S^ 
^ . .-<$)-l. 

mentos  de  reconhecida  utilidade,  a  lua  única  preoccupação, 
todo  o  feu  empenho  limitava-le,  parecia  comprazer-le  até  em 
augmentar  e  completar  o  defpotifmo,  que  extranhos  para  cá 
haviam  importado,  o  gofto  da  epocha  e  o  exemplo  de  ou- 
tras cortes  muito  favoreciam,  engrandecendo  ao  mefmo  tem- 
po os  jefuitas,  dando  força  e  apoio  ao  tribunal  da  inquifição, 
mantendo  um  fauíto  ruinofo,  propagando  o  amor  e  a  paixão 
do  luxo,  mais  do  que  inútil,  prejudicial,  e,  por  vezes  e  em 
muitas  coufas,  infolente,  defmoralifador;  confumindo  com  vai- 
dades realengas,  em  fumptuofas  conítrucçôes,  em  dilpendio- 
fas  obras  d'arte,  e,  o  que  é  peior,  em  beatificas  e  exageradas 
piedades  mundanas,  capitães  immenfos,  fommas  fabulofas. 

D.  Pedro  II  e  D.  João  V,  fafcinados  pelo  brilho  deílum- 
brante  e  pelo  apparato  tumultuofo  da  corte  de  Luiz  XIV,  fi- 
zeram d'efte  rei  abfoluto,  libertino  e  folgazão,  confiderado, 
n'aquelle  tempo  e  pelos  retrógrados  e  fanáticos,  o  prototypo 
da  realeza  abfoluta,  o  feu  aperfeiçoado  modelo,  fem  todavia 
lhe  imitarem  uma  única  das  fuás  virtudes. 

Um,  leguindo  a  lua  politica  e  imitando  na  adminiftração 
o  leu  exemplo,  lançou  ao  efquecimento  as  formas  da  antiga 
monarchia  reprefentativa;  reprimindo  a  nobreza  e  o  clero, 
fem  libertar  o  povo,  preparou  o  abfolutifmo. 

O  outro,  animado  de  um  efpirito  romanefco  e  comicamen- 
te  aventureiro,  dotado  de  uma  imaginação  infantil  e  de  um 
temperamento  ardente,  dominado  por  uma  piedade  exage- 
rada, ou  efpeculando  com  uma  calculada  hypocrifia,  imitou 
Luiz  XIV  nas  faas  vaidades,  invejou-lhe  a  pompa  e  o  es- 
plendor da  lua  corte,  fatisfez  os  mais  pueris  caprichos  e  as 
mais  extravagantes  phantafias,  nada  lacrificou  ao  bem  do 
povo,  enriquecendo  a  envia  romana,  esfalcou  o  theiburo  pu- 
blico, enfraqueceu  a  agricultura  e  a  navegação,  ennervou  o 
efpirito  de  actividade  nacional,  em  uma  palavra,  o  rei  faná- 
tico e  libertino.  .  .  fanatilbu  e  defmoralilbu  o  povo! 


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e|s  ela 


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Portugal,  arrancado  pela  mão  do  povo  ao  jugo  de  Cas- 
tella,  é,  em  1703,  hypothecado  pela  realeza  aos  inglezes  que  o 
exploraram,  e  ainda  hoje  exploram,  como  o  poíTuidor  de  má 
fé  explora  a  propriedade  alheia;  Roma  elpeculou  também; 
a  nobreza  e  o  clero  completaram  efte  lyftema  de  legal  e  con- 
vencionada pilhagem!.  .  , 

Portugal  era  no  começo  do  reinado  de  D.  Jole  I  o  que  a 
França  principiara  a  íer  deíde  o  reinado  de  Luiz  XV. 

Por  toda  a  parte  o  abandono  da  agricultura,  o  delprezo 
pelas  artes,  infignificantiffimo  o  trato  commercial ;  um  gover- 
no monarchico  lem  prelhgio,  um  throno  efplendido  de  pur- 
pura e  oiro  fem  folidez;  o  jelliitilmo  e  a  nobreza  lilbnjeian- 
do  e  trahindo  o  rei,  fanatilando  o  povo  e  elpeculando  com  a 
lua  piedade,  dominando  e  opprimindo  a  multidão  ignorante 
e  lliperfticiola,  gofando  fem  trabalho,  adquirindo  por  meio  de 
violentas  e  aftuciofas  ufurpações  e  confilcos,  accumulando 
lem  esforço;  o  luxo  e  a  immoralidade  para  uns,  a  miferia  e 
a  degradação  para  outros.  .  .  Tal  era  a  fituação  perigofa  e 
aíTuftadora,  o  triíte  efpeótaculo  que  a  nação  portugueza  e  o 
leu  eftado  Ibcial  exhibiam,  quando  Sebaftião  Jole  de  Car- 
valho e  Mello  appareceu  na  fcena  publica,  e  concebeu  o 
arriscado  mas  grandiofo  projedo  da  lua  emancipação,  refta- 
belecimento  e  progrelTo,  por  meio  da  renovação  intima,  pro- 
funda dos  feus  elementos  orgânicos  e  das  fuás  adormentadas 
e  gaftas  energias. 

O  eftado  lamentável  de  quali  completa  deforgani facão 
e  ruina,  em  que  Portugal  fe  debatia,  a  oppreífão  que  fobre 
nós  exerciam  algumas  cortes  extrangeiras,  nomeadamente  a 
de  higlaterra,  que  de  Portugal  havia  feito  não  lo  pupillo, 
mas  vaífallo  obediente,  dirigindo-nos  a  politica,  exhaurin- 
do-nos  as  fontes  de  toda  a  vida  económica,  dominando  em 
todos  os  noífos  portos,  explorando  as  noífas  colónias  occiden- 
taes  e  obrigando-nns  a  votar  a  um  quafi  completo  abando- 


— -hL^ 
eis 


-* -<è»-^ 

i36 

no  as  ricas  poíTeíTóes  do  Oriente,  fingindo  manter  em  equilí- 
brio na  fua  balança  commercial  a  noíTa  independência  politi- 
ca, e  opprimindo-nos,  vexando-nos  como  povo  conquiftado, 
—  eram  motivos  fortes,  eítimulantes  irrefiftiveis  para  deter- 
minar o  animo  e  defpertar  o  defejo  de  applicar  remédio  a 
tamanhos  males,  quebrar  aquelle  jugo  funeftiflimo  ou,  pelo 
menos,  attenuar  as  confequencias  defaftrofas,  que,  de  dia  para 
dia,  fe  iam  aggravando,  em  todo  o  portuguez  que  fe  conhe- 
ceíTe  apto,  pela  capacidade  fcientifica  e  força  de  vontade,  para 
tentar,  com  probabilidade  de  bom  êxito,  tão  ouíada  e  patrió- 
tica empreza. 

O  homem,  que  as  circumftancias  reclamavam,  afado  para 
tal  commettimento,  appareccu,  e  foi  Sebaítião  Jofé  de  Car- 
valho e  Mello. 

CAPITULO  11 

o  MARQUEZ  DE  POMBAL  E   O   SEU  TEMPO 

Era  pleno  feculo  xviii. 

Principiara  a  arvore  da  renafcença  a  produzir  os  feus 
frudos,  e  de  lua  frondofa  copa  já  pendia  lobre  a  cabeça  do 
povo  o  abençoado  pomo  da  liberdade:  fem  que  lhe  aguar- 
daíTem  a  queda  muitos  efpiritos  alevantados,  vontades  firmes 
e  perfeverantes  haviam  calculado  as  leis  da  mechanica  focial, 
e,  em  harmonia  com  ellas,  traçado  a  mechanica  politica  do 
regimen  conjlitucional ;  diftinguindo  fomente  rei  e  povo,  não 
reconhecendo  outras  entidades  ou  forças  fociaes,  demonflra- 
ram  a  neceíTidade  de  abater  o  orgulho  da  nobreza  e  deftruir 
a  influencia  preponderante  do  clero,  —  elementos  economica- 
mente inúteis  e  politicamente  prejudiciaes  a  um  tal  lyftema. 

O  foi  da  democracia  moderna  começava  de  furgir  e  já  fe 
elevava  no  horifonte  das  fociedades  europêas,  e  com  ellc  des- 

-s-á^-» i-i-^ 

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sii 


■37 

pontava  também,  do  lado  da  França,  o  dia  da  emancipação 
popular. 

A  Europa  agitava-le  em  feus  fundamentos;  fentiam-le,  de 
efpaço  a  efpaço,  uns  vagos  e  finirtros  rumores,  que  impres- 
íionavam  os  efpiritos;  extranhas  convulfões  abalavam  o  gran- 
de corpo  focial,  como  fymptomas  precurfores  de  uma  próxi- 
ma crile  moral  e  politica. 

A  impaciência  popular  avifinhava-fe  do  fcu  momento 
fatal;  o  governo  monarchico  abfoluto,  defacreditado  em  qua- 
fi  todos  os  eftados  da  Europa,  repellido  no  Novo  Mundo  e 
declarado  por  muitos  efpiritos  efclarecidos  e  redos  o  peior 
dos  governos,  elperava,  todos  os  dias,  o  momento  em  que 
foíTe  executada  a  fua  lentença  de  morte. 

A  acção  da  philofophia  critica,  apoderando-fe  das  intel- 
ligencias  elevadas  do  leculo,  ía-lhe  preparando  o  fupplicio 
revolucionário  no  tribunal  da  opinião  publica,  ao  mefmo 
tempo  que  a  philofophia  orgânica  ia  lançando,  por  entre  as 
ruinas  do  velho  e  galfo  regimen  catholico  feudal,  os  funda- 
mentos do  novo  regimen  [cientifico  indiijMal,  que  lhe  devia 
fucceder.  Os  philofophos  de  Inglaterra  e  de  França  trabalha- 
vam fervorofos  na  propaganda  liberal  e  revolucionaria. 

As  theorias  de  Baccon  e  de  Montefquieu  tinham  fido  pro- 
fundamente defenvolvidas  e  levadas  até  algumas  das  fuás 
ultimas  confequencias. 

A  interferência  da  Inglaterra,  a  fua  acção  politica,  envol- 
vida na  forma,  e  como  que  disfarçada  debaixo  da  apparencia 
de  um  groífo  trato  commercial  e  maritimo,  influenciava,  tam- 
bém de  um  modo  enérgico  e  profundo,  a  fituação  moral  e 
económica  dos  povos;  como  as  cruzadas,  em  nome  de  Deus 
e  pela  fé,  produziram,  ou  antes  provocaram,  em  feu  tempo, 
notável  transformação  focial,  transformação  que  as  inven- 
ções e  defcobrimentos  marítimos  dos  xvi  e  xvii  feculos  com- 
pletaram, e  defenvolveram. 


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eis 


(|3 


i38 

Um  vento  philofophico,  fe  é  licito  aííim  dizer,  íopra^a 
da  Allemanha,  da  Inglaterra,  da  França  e  da  America,  e 
murmurava,  e  trazia  aos  ouvidos  de  muitos  as  palavras  — 
liberdade,  emancipação,  democracia,  republica  e  outras,  que 
fignificavam  não  eftar  longe  o  momento,  em  que  o  povo, 
confcio  da  fua  força  e  fenhor  da  fua  vontade,  reivindicaíTe  os 
feus  originários  direitos,  uíurpados  pela  realeza,  ultrajados 
pelos  nobres,  e,  em  parte,  abíbrvidos  pelo  clero. 

Uma  nova  forma  de  governo  exiftia  já  na  mente  de  mui- 
tos homens  illuftres,  franca  ou  difllmuladamente  traçada  e 
defcripta  nas  obras  philolbphicas,  politicas  e  económicas  do 
feculo. 

As  matérias  combuftiveis,  que  fe  haviam  de  inflammar  ao 
primeiro  fopro  da  fúria  popular,  para  accender  a  revolução, 
acercavam-fe  por  toda  a  parte,  e  convergiam  de  todos  os  la- 
dos. 

Alguma  coufa  de  extraordinário  e  aíTombrofo  fe  prepa- 
rava no  laboratório  immenfo  da  Europa. 

Algum  monumento,  de  fumptuofa  fachada  e  magnifica 
architedura,  mas  já  gafto  e  apodrecido  pelo  roçar  dos  tem- 
pos, ia  defabar  até  os  alicerces. 

Era  a  bajlilha  monarchica  do  abfolutifmo;  era.  o  capitólio 
jefuitico  da  theocracia,  minados  nos  fundamentos,  abalados 
na  fua  apparente  Iblidez ! .  .  . 

Finalmente  as  inítituições,  os  poderes,  as  opiniões.  .  . 
tudo  annunciava  que  a  transformação  eftava  imminente,  e, 
inevita^'cl  e  fatal,  devia  operar-fe  por  uma  revolução  geral  e 
profunda. 

Rabelais,  Bayle,  Fontenelle,  Baccon  e  Montefquieu  pre- 
pararam a  aurora  do  grande  dia;  Diderot,  Alembert,  Turgot, 
Condorcet  e  Rouífeau  animaram-lhe  cada  vez  mais  os  raios 
luminofos ;  Voltaire,  o  novo  afiro  da  philofophia  critica  e  de- 
molidora, aguardava  Mirabeau  o  génio  da  eloquência,  para, 


4»     .  T 


c|3 


■39 

relumindo  aíTim  toda  a  fciencia,  toda  a  energia  do  feu  feculo, 
darem  ao  fentimento  e  a  idéa  revolucionaria  a  força  con^in- 
cente  e  perfuafiva  da  realidade. 

Foi  no  feio  d'elTa  atmofphera,  repaflada  de  novos  ele- 
mentos e  impregnada  de  novos  germens  de  vida,  que  o  es- 
pirito de  Sebaftião  Joíé  de  Carvalho  e  Mello  crefceu,  fe  de- 
fenvolveu,  e  preparou  para  vir  a  fer  o  que  na  realidade  foi, 
com  grande  applaulb  de  nacionaes  e  eftrangeiros,  e  de  certo 
com  maior  proveito  noíTo,  fe  tivelfe  logrado  levar  a  cabo  a 
renovação  politica,  económica,  adminiftrativa,  moral  e  juri- 
dica  do  feu  paiz,  que  tão  habilmente  emprehendêra,  e  á  qual 
miravam  as  viftas,  eminentemente  liberaes  e  patrióticas,  do 
miniltro  de  D.  Jofé. 

Cultor  aíTiduo  de  todos  aquelles  eftudos  que  habilitam 
o  homem  para  bem  governar,  já  herdeiro  do  aperfeiçoamento 
de  muitas  fciencias  e  artes,  que  podiam  illuftrar  o  mundo 
politico  e  determinar  a  profperidade  e  engrandecimento  dos 
povos,  lendo  e  meditando  os  livros  económicos,  políticos  e 
financeiros,  que,  em  feu  tempo,  inundavam  a  Europa,  ia  dis- 
pondo o  animo  e  adquirindo  o  neceíTario  grau  de  talento  e 
aptidão  para  entrar  um  dia  afoito,  e  lidar  defaíTombrada- 
mente  com  os  negócios  da  alta  governação  e  adminiftração 
publicas. 

Tomara  por  modelos,  efcolhêra  para  feus  meftres  Riche- 
lieu,  SuUy,  Colbert,  Argenfon,  e  as  máximas,  as  memorias, 
os  teftamentos  políticos  e  financeiros  d'eftes  eftadilfas,  mas 
principalmente  a  moral,  a  philofophia  e  os  trabalhos  fcien- 
tiíicos  dos  encyclopediftas,  foram  o  thefouro,  onde  aquella 
intelligencia  vafta,  aquelle  efpirito  eminente,  aquella  vontade 
firme  e  enérgica  fe  enriqueceram,  e  adquiriram  luz  e  força 
para  produzir  o  que  depois  fe  viu  e  admirou;  e  bem  me- 
rece elle  os  louvores  e  applaufos  da  poftcridade  que,  em  no- 
me da  honra  nacional  c  para  gloria  da  pátria,  decreta  e  ceie- 


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140 

bra,  um  íeculo  depois  da  morte  do  grande  homem,  a  fua 
apotheofe. 

Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  difcipulo  fervorofo 
das  idéas  philofophicas,  politicas  e  económicas,  que  a  Fran- 
ça efpalhára  por  toda  a  Europa,  e  a  America  do  Norte  havia 
de  realilar  praticamente  nas  fuás  inftituições  republicanas,  á 
fombra  das  quaes  foram  acolher-fe  grande  numero  de  emi- 
grantes europeus,  comprehendia  bem  o  eftado  de  fermentação 
revolucionaria,  que,  por  toda  a  parte,  agitava  os  ânimos. 

Génio  perfpicaz,  philofopho  profundo  e  hábil  politico,  já 
previa,  como  o  antigo  miniftro  de  Luiz  XV,  que  uma  crife 
tempeftuofa  fe  avifinhava  para  tudo  transformar  e  regenerar 
tudo,  ou  tudo  perder. 

«Uma  revolução  é  quafi  fempre  um  mal,  dizia  elle,  com 
os  olhos  fitos  na  hiftoria,  uma  enfermidade,  que,  fó  depois 
de  anguífiofa  lucta  e  demorada  convalefcença,  poderá  dar  ao 
corpo  focial  martyrifado  vigor  e  robuflez.» 

Penfando  aííim,  era  natural  que  concebeíTe,  e  defde  logo 
traçaíTe  o  plano,  immenfo,  profundo  e  íalutar,  de  renovação 
e  progreíTo,  fem  perturbar  a  ordem,  cuja  realifação  fó  efpe- 
rava  a  opportunidade  de  occafião  para  fe  moftrar  e  defen- 
volver  de  um  modo  verdadeiramente  efíicaz  e  proveitofo  ao 
feu  paiz,  gloriofo  para  elle  e  para  o  rei,  em  nome  e  por  auto- 
ridade do  qual  e  a  bem  do  povo,  devia  progredir  afanofo  e 
inflexível  na  tarefa  reformadora,  que  o  feu  génio  concebera, 
confeguiu  oufadamente  emprehender  e  praticamente  execu- 
tar, como  vamos  ver  e  apreciar. 


141 


CAPITULO  III 

o   MARQUEZ   DE   POMBAL    E  OS  ACTOS  PRINCIPAES 
DO  SEU  GOVERNO 

Quando  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello,  por  cir- 
cumftancias,  talvez  cafuaes  e  impreviftas  aos  olhos  do  vulgo, 
mas  bem  conhecidas  e  hoje  preci lamente  determinadas  por 
aquelles  que  eítudam  e  analyfam,  em  toda  a  fua  complexi- 
dade, os  phenomenos  fociaes,  appareceu  á  frente  dos  negó- 
cios públicos  do  Eftado,  aíTenhoreando-fe  do  monarcha, 
concentrando  em  fi  todo  o  poder  politico  nacional,  abatehdo 
a  nobreza,  reprimindo  o  clero  e  fubjugando  o  povo,  Portu- 
gal era  património  do  rei,  feiídatario  da  corte  de  Roma, 
objedo  de  exploração  para  as  duas  ordens  privilegiadas,  ermo 
de  patriotifmo,  pupillo  de  nações  eftranhas.  O  reino,  povoado 
de  fumptuofos  edifícios,  e  a  corte,  deflumbrante  de  oiro  e  fe- 
das, como  a  fízera  e  deixara  a  prodigalidade  monftruola  de 
D.  João  V,  dobravam  fob  o  enorme  pelo  de  tantas  pompas 
em  magnificências  vans  e  defmoralifadoras.  A  nação,  pobre 
de  adividade  e  iniciativa  para  trabalhes  úteis  e  produdivos, 
definhava,  na  mais  defolada  e  repugnante  miferia,  á  mingoa 
de  moralidade  e  infirucção,  e  pendia  já  fobre  o  fundo  abys- 
mo,  que  um  luxo  reprehenfivel  e  uma  criminofa  ociofidade 
lhe  tinham  aberto  pelas  próprias  mãos  do  rei,  dirigido  pela 
corte  de  Roma,  aconfelhado  pelos  jefijitas,  lifonjeado  pela 
nobreza  e  dominado  pelo  beaterio. 

Filho  do  feculo  xviii,  herdeiro  da  Renafcença,  educado 
na  philofophia  e  na  politica  dos  encyclopediftas,  admirador 
dos  grandes  homens  da  França  e  da  Inglaterra,  verfado  nas 
fuás  theorias,  mantendo  com  alguns  boas  relações  de  ami- 
fade  e  familiar  correfpondencia,  feguidor  das  fuás  máximas. 


ela 


cia 


142 

iniciado  na  vida  politica  e  diplomática  da  Gran-Bretanha, 
Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello  via,  bem  claramente,  os 
males  que  affligiam  o  povo,  e  degradavam  a  nação,  e  que  o 
único  remédio  que  podia  oppôr-fe-lhes  era  ou  a  revolução 
popular,  a  guerra  civil,  tempeftuola  e  terrível  em  fua  acção, 
talvez  falutar  e  benéfica  em  fuás  confequencias,  ou  a  refor- 
ma pacifica  e  diplomática  das  inftituições. 

Para  operar  a  transformação,  que  não  fó  os  philofophos 
annunciavam  theoricamente,  mas,  de  dia  para  dia,  fe  appro- 
ximava  da  fua  realifação  pratica,  tinha  forçofamente  de  em- 
pregar ou  o  meio  violento  da  revolução  popular  ou  a  evo- 
lução accelerada,  mas  bem  combinada,  fenfata  e  efficaz  de 
um  vafto  e  complexo  plano  de  reformas.  Para  a  revolução 
precifava  de  fervir-fe,  como  inftrumento,  da  força  incon- 
fciente  do  povo;  mas  como  e  por  que  procelTos  poderia  elle 
arraftar  eífa  maíTa  bruta,  inerte,  beftificada  pela  ignorância  e 
pelo  fanatifmo?! 

Para  emprehender  reformas  quem  é  que  lhe  havia  de 
dar  a  precifa  força  e  a  indifpenfavel  audoridade?  O -clero? 
A  nobreza?  Mas  fe  o  clero  e  a  nobreza  eram,  entre  nós 
e  n'aquelle  tempo,  os  maiores  obftaculos,  a  lagoa  impura 
d'onde  fe  levantavam  os  deletérios  miafmas  que  envenena- 
vam o  povo  e  matavam  lentamente  a  nação?! 

E  depois  como  luftar  e  vencer  as  refiftencias,  que,  inac- 
ceffivel  montanha,  fe  erguiam  diante  da  luz,  ainda  frouxa  e 
duvidofa,  do  futuro? 

Quem  lhe  reftava  pois?  O  rei?  O  rei  fim,  mas  fem  par- 
lamentos, fem  confelho  de  eflado,  o  rei  abfoluto,  o  rei  des- 
pótico, infallivel  na  fua  rafáo,  omnipotente  na  fua  vontade. 

E  do  rei  fe  fcrviu  para  camartello  deftruidor  de  tudo 
quanto  pôde  embargar-lhe  os  paífos  e  tolher  a  fua  acção 
reformadora,  preparando  ao  mefmo  tempo  o  povo  pela  in- 
ftrucção  c  pelo  trabalho,  como  podcrofo  elemento  de  rcorga- 

-S-0-» *-c^ 

4»  e|» 


nifação  e  regeneração  focial.  Abandonando  pois  o  plano  re- 
volucionário por  ler  impraticável,  inefficaz  e  fem  duvida, 
n'aquelle  tempo  e  para  Portugal,  contraproducente,  quando 
porventura  foíTe  poffivel,  optou  pelos  proceíTos  reformado- 
res evolutivos. 

Como  politico  propoz-fe  o  plano  e  as  fahias  providencias 
de  Richelieu,  mas  com  outro  fim  e  mirando  a  mui  divcrfos 
rclultados;  como  economifta  e  financeiro  esforçou-fe  por 
imitar  SuUy  e  Colbert;  dilcipulo  de  Quefnay,  aprendera  com 
elle  e  com  os  phyfiocratas  que  é  no  Iblo  onde  refide  a 
principal  fonte  de  riqueza  e  as  matérias  primas  de  toda  a 
producção;  como  Adam  Smith  já  não  ignorava  que  fó  o  tra- 
balho pode  arrancar  á  natureza  os  feus  produdos,  e,  trans- 
formando-os,  fazel-os  fervir  á  fatisfação  das  neceíTidades  hu- 
manas, á  felicidade  nacional  e  á  profperidade  domeftica. 

Foi  defpota,  foi  tyranno,  foi  fanguinario.  Muito  embora. 
O  meio  em  que  viveu  e  as  circumftancias  que  o  envolviam, 
as  ciladas,  as  confpirações,  que,  por  toda  a  parte,  o  perfe- 
guiam  e  infidiavam,  explicam  fatisfaftoriamente  as  violências 
commettidas  e  os  bárbaros  expedientes,  de  que,  mais  de  uma 
vez,  fe  viu  obrigado  a  lançar  mão.  O  que  não  pôde  negar-fe 
ao  Marquez  de  Pombal  é  eíTa  grande  virtude  da  franqueza, 
rara  em  políticos  e  principalmente  nos  políticos  do  feu  tem- 
po. Podia  ter  fido  aftuciofo  e  hypocrita  como  o  celebre  Ma- 
zarin ;  preferiu  a  força  e  a  violência  do  grande  Richelieu. 
O  que  não  pode  negar-fe  é  que  o  Marquez  de  Pombal  teve 
a  clara  comprehenfão  do  feu  tempo  e  do  feu  meio,  e  foube 
prever  o  futuro,  e  prover,  como  ninguém  antes  d'elle  o  havia 
feito,  ás  grandes  e  urgentes  neceífidades  do  prefente,  e  pre- 
parar o  advento  de  um  fyftema  focial  mui  diverfo  do  que 
dominava  a  fociedade  portugueza  fua  contemporânea. 

A  maneira  como  fe  houve  e  os  meios  que  em.pregou  é  o 
que  vamos  examinar. 


eis 


■44 

Deixemos  pois  a  critica,  íempre  mais  ou  menos  arbi- 
traria e  apaixonada,  e  entremos  no  campo  politivo  dos  fa- 
étos,  que  experimentalmente  comprovam  as  noíTas  affirma- 
ções. 

Valendo-fe,  por  um  bem  combinado  calculo,  da  protec- 
ção, que,  defde  muito  tempo,  lhe  difpenfava  a  viuva  de  D. 
João  V,  da  docilidade  e  benevolência  de  D.  Jofé  I  (que  de 
feu  pae  havia  recebido  uma  mediocre  e  fuperficial  educação, 
fendo  por  natureza  débil  em  forças  e  talentos),  gofando  já 
entre  nós  de  um  nome  illuftre,  que,  a  par  de  outros  titulos, 
tinha  por  fundamento  a  fubida  reputação  que  alcançara  em 
Vienna  d'Auítria,  não  perdeu  a  primeira  occafião,  que  lhe  pa- 
receu opportuna,  para,  aproveitando  o  favor  e  a  confiança 
do  rei,  falvar  o  feu  paiz,  reivindicar  a  independência  da  na- 
ção e  dar  liberdade  ao  povo. 

Foi  o  feu  governo  um  dos  periodos  mais  gloriofos  da  nos- 
fa  hiítoria! 

Foi  Sebaítião  Jofé  de  Carvalho  um  dos  maiores  vultos 
do  feculo  XVIII ! 

Foi  então  que  fe  travou  no  meio  de  nós  a  mais  porfiada 
luda  da  reacção  com  a  liberdade! 

E  por  ilTo  que,  entre  os  grandes  génios,  fadados  para  ou- 
fados  commettimentos,  entre  os  miniítros  enérgicos  em  em- 
prehender  e  vigorofos  em  executar,  não  ha  nenhum  que  fe 
lhe  avantaje,  nenhum  que,  em  menos  tempo,  mais  fe  diítin- 
guiífe,  maiores  benefícios  prodigalifaífe  ao  povo  e  mais  gloria 
alcançaífe  ao  rei: 

Reftaurou  a  difciplina  militar. 

Fortificou  as  praças  d'armas. 

Renovou  a  marinha. 

Reanimou  a  agricultura. 

Reftaurou  e  defenvolvcu  as  artes,  de  todo  efquecidas,  e 
vivificou  o  commercio  moribundo. 


i 


eis 


49 


'43 

Reftabeleceu  e  firmou  o  credito  publico,  e  organifou  as 
finanças. 

Reformou  e  ampliou  os  eftudos  fi.iperiores,  fegundo  os 
progreflbs  litterarios  e  fcientificos  do  feculo. 

Abriu  as  portas  da  inftrucção  popular,  fechadas  pelo  je- 
fuitifmo,  áquelles  que,  durante  feculos,  haviam  fido  conde- 
mnados  ás  trevas  da  ignorância  e  da  fi.iperílição. 

hiftituiu  mais  de  oitocentas  efcolas  gratuitas  para  o  enfi- 
no  primário. 

Creou,  e  dotou  collegios,  efcolas  fecundarias  e  profeífio- 
naes  para  a  navegação,  commercio  e  outras  induftrias. 

Diminuiu  as  prerogativas,  cerceou  os  privilégios,  e  abateu 
o  orgulho  da  nobreza. 

Tentou  apagar  ódios  de  raça  e  extinguir  ludas  de  cren- 
ças religiofas. 

Abriu  caminho  amplo  á  confufão  das  claffes  e  á  egual- 
dade  perante  a  lei. 

Tornou  livres  os  indígenas  do  Brazil,  e  levantou  barrei- 
ras ao  trafico  infame  e  degradante  da  efcravatura. 

Reprimiu  as  defpoticas  exigências  e  a  preponderância  or- 
gulhofa  da  infaciavel  Inglaterra. 

Fruftrou  os  planos  ambiciofos  da  Hefpanha. 

Celebrou  tratados  políticos  e  commerciaes  com  muitas 
nações  da  Europa,  e  com  outras  o  pado  da  noíTa  independên- 
cia, impondo-lhes  o  refpeito  pela  noíTa  dignidade  nacional. 

Fundou  e  organifou  companhias  de  commercio  e  indus- 
tria, para  reanimar  as  noíTas  colónias,  ou  de  todo  abando- 
nadas, ou  prefa  da  cubica  de  extranhos  efpeculadores. 

Refiringiu  o  tremendo  poder  da  inquifição,  e  profcrevcu 
os  autos  de  fé. 

Dobrou,  e  venceu  a  preponderância  pontificia,  e  refreou, 
por  vezes,  a  cholera  do  Vaticano,  apontando  ao  Papa  quaes 
os  limites  onde  devia  expirar  o  feu  poder  temporal  e  politico . . . 


4»  «I» 


<|3 


146 

Subftituiu  á  auftoridade  dos  jurifconfultos  romanos  e  ás 
argucias  e  fophifmas  dos  gloffadores,  que  mantinham  agri- 
lhoadas as  leis  e  a  jurifprudencia  ao  império  ablbluto  de  uma 
fciencia  convencional,  curvada  fob  o  pefo  de  muitos  íeculos 
e  já  decrépita,  a  audoridade  da  Rafão,  «eíTe  poder  fobera- 
no,  capaz  de  defcobrir  a  verdade»;  alargando  aíTim  o  campo 
de  exploração  a  um  dos  maiores  génios  do  feculo,  Pafchoal 
Jofé  de  Mello  Freire,  o  fabio  jurifconfulto  portuguez,  que  por 
fi  ío  egualou,  fe  não  é  que  excedeu,  ao  mefmo  tempo  Mon- 
tefquieu  e  Beccaria. 

Vendo  que  as  artes  e  as  Iciencias  floreciam  na  Ingla- 
terra e  por  quafi  toda  a  Allemanha,  para  logo  viu  também 
a  neceflldade  de  operar  uma  revolução  completa  no  mun- 
do fcientifico,  litterario  e  artiftico;  e  foi  ella  tão  profunda  e 
falutar,  que,  no  dizer  de  Almeida  Garrett,  «tudo  mudou  de 
face;  caiu  o  coloffo  jefuitico,  o  reino  de  Ariftoteles  e  a  bar- 
baridade Thorniftica,  para  lhe  fucceder  Milton,  Baccon,  Des- 
cartes, Newton,  Linneu  e  outros». 

E  que  o  reflexo  de  uma  nova  luz  brilhava  do  lado  do  fe- 
tentrião,  para  inundar  com  o  feu  efplendor  a  nós  «os  me- 
ridionaes,  que  eftudavamos  as  categorias  e  as  fwnmas,  agu- 
çávamos diftincções,  alambicávamos  conceitos,  retorcíamos 
a  phrafe  no  difcurfo,  e  torcíamos  a  rafão  no  penfamento», 
nada  produzindo  de  bom  e  útil  ao  progreflb  da  humani- 
dade. 

A  reforma  da  univerfidade  produziu  logo:  Jofé  Analtafio 
da  Cunha,  Avelar  Brotero,  Monteiro  da  Rocha,  Mello  Freire 
e  muitas  outras  illuftrações,  que,  exterminando  a  barbaridade 
theologica,  haviam  de  produzir  a  civilifação,  e,  fundando  a 
republica  das  letras,  pela  foberania  da  fciencia,  única  verda- 
deira e  legitima,  abater,  fe  não  deítruir,  o  império  ablbluto  de 
uma  audoridade  prepotente,  acoitada  fob  a  roupeta  jefuitica 
e  entrincheirada  por  detrás  do  volumofo,  mas  indigefto,  cor- 


tii 


'47 

pus  Jiiris  romanoniin,  das  leis  canónicas  e  dos  mil  in-folio  dos 
gloíTadores  e  reinicolas. 

E  a  univcrfidade  de  Coimbra  começou  de  ler  mais  uma 
prova  eloquente,  não  fó  da  influencia,  mas  também  da  fe- 
cunda iniciativa,  que  as  luiiperjidacles  defenvolveram  fempre 
em  preparar  e  promover  as  transformações  evolutivas  da  ci- 
vililação  e  as  revoluções  do  progreíTo  pela  liberdade. 

Bem  fabia  elle,  porque  a  reflexão  e  a  experiência  poucas 
vezes  deixam  illudir  os  homens  de  génio,  que  á  republica 
das  letras,  á  emancipação  da  intelligencia  deviam  fucceder 
—  a  democracia  politica  e  a  liberdade  para  o  povo. 

Foi  também  em  virtude  d'efta  lei  que  á  profunda  refor- 
ma religiola  do  feculo  xvi  fuccedeu  —  a  revolução  focial  de 
1688  em  Inglaterra;  e  á  grande  revolução  litteraria  e  fcien- 
tifica  das  idéas  no  feculo  xviii — a  revolução  politica  de  1789 
em  França. 

Ordenou  que  as  execuções  por  divicias  paraíTem  dian- 
te das  portas  das  cadeias,  que  até  1774  em  Portugal,  até  1867 
em  França,  íe  abriam,  como  ainda  hoje  em  Inglaterra,  para 
fequeftrar  a  liberdade  d'aquelles,  que  muitas  vezes  não  ti- 
nham outro  crime  alem  da  pobreza,  outro  delido  alem  da 
miferia. 

E  quando  ainda  hontem  a  imprenfa  liberal  de  todos  os 
paizes  faudava,  cm  nome  do  progreíTo,  e  applaudia,  como 
gloriofa  e  civililadora,  a  abolição  de  tão  odiofa  pena,  have- 
mos de  ficar  filenciofos  ante  a  memoria  do  Marquez  de  Pom- 
bal, que  a  eliminou,  um  feculo  prim.eiro,  em  nome  da  hu- 
manidade?!. 

Finalmente,  o  Marquez  de  Pombal,  ufando  da  oppreífão 
e  da  tyrannia,  empregando  o  terror  e  o  defpotifmo,  mirava 
á  grande  transformação  focial,  que  em  França  fe  operou  de- 
pois; preparava,  pacifica  e  diplomaticamente,  o  que  ella  fó 
pôde  alcançar  por  meio  de  uma  conflagração  geral,  e  entre- 


T* 


4^ 
-4-1- 

gando-fe  a  todos  os  exceíTos,  a  todos  os  horrores  da  guerra 
civil,  á  guilhotina  e  ás  barricadas,  com  que  immolava  os  feus 
próprios  filhos,  e  aíTolava  as  cidades,  as  villas  e  os  campos, 
enfanguentados  pelos  combates  fratricidas  ou  entregues  á  vo- 
racidade das  chammas,  á  pilhagem  e  á  carnificina!.  .  . 

Não  recuou  o  Marquez  de  Pombal,  porque  o  julgou  ne- 
ceíTario  e  de  maravilhofo  effeito  para  libertar  o  povo,  diante 
do  cadafalfo,  levantado  para  rolarem  algumas  cabeças  no- 
bres. 

Não  tremeu  o  Marquez  de  Pombal,  quando  lavrou  o  de- 
creto que  expulfava  os  Jefuitas;  pois  com  tão  rafgada  medida 
não  fó  beneficiou  Portugal,  mas  a  Europa  inteira  e  o  Novo 
Mundo;  com  efte  adto  de  fabia  politica  quebrava  as  cadeias, 
com  que  os  padres  da  companhia  amarravam  as  confciencias 
ao  pofte  de  uma  fé  convencional;  limpava  o  corpo  íbcial  da 
luperftição  e  do  fanatifmo,  que  rapidamente  fe  propagavam  e 
defenvolviam,  por  toda  a  parte,  aonde  penetrava  o  mórbido 
contagio  da  roupeta  dos  maus  e  falfos  companheiros  de  Jefus! 

Para  alguns  fão  eftes  dois  fados  dois  grandes  e  execran- 
dos crimes;  para  outros  duas  louváveis  virtudes;  para  nós 
dura  neceíTidade,  confequencia  forçada  na  realifação  de  um 
plano  falutar  e  benéfico. 

A  nobreza  e  o  jefuitifino  eram,  n'aquella  epocha,  os  obs- 
táculos gigantes,  que  fe  oppunham  ao  eítabelecimento  da  li- 
berdade. 

A  nobreza  e  o  jefi.iitifmo,  def  herdando,  efpoliando  o  povo 
de  tudo  o  que  podia  tornal-o  livre  e  independente,  difputando 
o  poder,  a  infiuencia  e  a  preponderância  monarchica,  eram 
eítorvo  invencível  ao  Jyjtema  reprejentativo,  á  adopção  e  re- 
conhecimento legal  das  garantias  conjlitucionaes  e  das  prero- 
gativas  da  coroa,  que  a  philofophia  politica  do  feculo,  as  ne- 
ceíTidades  do  tempo  e  o  exemplo  da  Inglaterra  inftantemente 
reclamavam,  cuja  triangulação  havia  fido  habilmente  traçada 


-s-6- -<í>-^ 


■49 

fobre — a  inviolabilidade  do  rei — a  refponfabilidade  dos  minis- 
tros e  a  foberania  do  jt7o;'o. 

O  Marquez  de  Pombal  queria  a  liberdade  para  a  pátria 
e  para  o  povo,  como  a  primeira  fonte  de  engrandecimento 
e  profperidade  nacional. 

O  Marquez  de  Pombal  não  phantafiava  theorias  politicas 
nem  traçava  fyftemas  philofophicos;  não  efcrevia  pungentes 
ironias  e  alperos  epigrammas;  não  defendia  e  exaltava  o  pro- 
teftantifmo,  para  cenfurar  e  maldizer  a  egreja  catholica;  não 
perfuadia  á  revolta,  nem  excitava  os  povos  á  pilhagem  e  á 
carnificina;  concebia  medidas  úteis  e  prudentes,  c  executava- 
as  conforme  as  circumftancias  imperiofamente  o  exigiam. 

A  regeneração  íntima  dos  homens  e  das  inftituições,  e 
não  a  organifação/or/;?!^/  e  fuperficial  do  fyftema  governativo, 
foi  o  feu  firme  propofito,  objedo  confiante  da  fi.ia  aftividade 
e  defvelo,  embora  para  o  confeguir  foíTe  neceíTario  dominar 
o  rei,  opprimir  e  defacreditar  os  nobres,  defprefiigiar  e  aba- 
ter o  clero. 

Tinha  porventura  o  ra  força,  energia,  firmeza  de  von- 
tade, fciencia  e  coragem  para  íalvar  a  nação  e  o  povo,  e  de- 
tel-os  á  beira  do  abyfino,  que  de  dia  para  dia  lhes  cavavam 
profundo  tantas  caufas  de  ruina!'! 

Seria  baftante  robufto  o  feu  braço,  poderofo  o  feu  fceptro 
de  oiro,  valiofos  os  diamantes  da  fi.ia  coroa,  para  poupal-os 
ao  choque  revolucionário,  que,  de  perto  e  ao  longe,  le  prefen- 
tia,  e  que  em  breve  devia  abalar  a  Europa  inteira,  já  confi- 
deravelmente  agitada  pelas  pulfações,  que  violentas  fe  fi.icce- 
diam  no  coração  da  França,  e  que  a  faziam  eftremecer  até 
ás  mais  afaftadas  e.xtremidades?! 

Qual  teria  fido  o  deftino  do  pequeno  e  então  pobre  e  hu- 
milhado Portugal,  fe  o  não  houveífem  preparado  para  refiftir 
á  onda  revolucionaria,  que  mais  tarde  lhe  devia  paífar  por 
fobre  as  quinas  e  inundar  os  feus  cajlellos  ?! 


e|9 


4  cts 

i5o 

Exiftiria  hoje  Portugal,  como  nação  e  paiz  independente, 
fe  lhe  não  houveíTem  dado,  annos  antes,  força  e  coragem, 
recurfos  e  patriotifmo,  para  não  fuccumbir  abatido  ante  as 
armas  viítoriofas  do  moderno  Cefar,  que,  debaixo  da  forma 
do  defpotilmo  e  da  tyrannia,  da  invalao  e  da  conquiíta,  con- 
tra a  fua  vontade  ou,  melhor  ainda,  lem  o  prefentir,  fazia, 
com  a  ponta  da  efpada  e  com  a  boca  de  feus  mil  canhões, 
a  propaganda  liberal?! 

Era  eil:a  a  fituação,  difíicil  e  aggravada  por  muitos  males, 
em  que  o  lábio  e  corajofo  minilfro  de  D.  Jofé  le  propoz  á 
tarefa  enorme  de  reftaurar  a  pátria,  quebrar  o  jugo  extranho, 
que  lhe  pefava  odiofo,  extinguir  aquella  vexatória  exploração 
ingleza,  que,  debaixo  da  apparencia  de  uma  benéfica  tutela, 
lhe  ia  aniquilando  as  forças  phyficas,  ao  mefmo  tempo  que 
outros,  invocando  a  f é  e  o  Evangelho,  a  cruz  e  a  redempção, 
abrindo  maímorras  e  atiçando  fogueiras,  iam  apagando  a  luz 
na  alma  e  immobilifando  o  efpirito  crédulo  do  povo!  .  .  . 

Reífabelecer  a  aítividade  e  a  ordem  no  feio  da  familia 
portugueza,  dar-lhe  a  liberdade,  fundar  a  felicidade  domeftica 
e  a  profperidade  publica,  tal  foi  o  feu  elevado  empenho. 

E,  pois,  a  intelligencia,  a  vontade,  o  poder  de  um  fó  ho- 
mem,— reanimando  uma  nação  moribunda,  preftes  a  efcon- 
der-fe  no  cemitério  da  hiftoria,  embora  as  gerações  vindouras, 
preftando-lhe  a  devida  homenagem,  houveíTem  de  lhe  gravar 
fobre  a  campa  o  mais  gloriofo  epitaphio; — chamando  á  vi- 
da, ao  trabalho,  á  liberdade  e  á  independência  um  povo  es- 
cravo da  nobreza  e  do  clero,  e,  por  iíTo,  da  ignorância,  do 
fanatifmo,  da  indolência  e  da  miíeria;  —  elevando  e  fazendo 
refpeitar  um  rei  fervo  da  corte  de  Roma,  rajfaílo  da  higla- 
terra.  .  .  . 

Luíta  infatigável  de  tantos  annos,  fe  não  de  todo  infrudi- 
fera,  porque  a  fcmente,  que  ficara  efcondida  na  terra,  veiu 
mais  tarde  a  germinar  com  o  calor  das  revoluções,  foi  toda- 


i5i 

via  mallograda  pelas  intrigas  dos  nobres  e  do  clero,  pelas 
ambições  da  Inglaterra  e  da  Hefpanha.  Aquelles,  ainda 
hypocritamente  curvados  fobre  o  catafalco  de  D.  Jole,  jura- 
vam o  exterminio  do  homem,  que  confideravam  feu  impla- 
cável e  invencivel  inimigo;  eítas,  infinuando,  ás  occultas,  a 
queda  do  independente  miniflro,  promettiam  apoio  fegiiro  aos 
que  emprehendelTem,  e  conleguiíTem  derribal-o. 

A  morte  do  rei  fuccedeu  pois  a  queda  do  miniflro,  e  por 
ultimo  a  condemnação  e  o  exilio  do  varão  preftante  e  bene- 
mérito, calumniado,  perfeguido  e  procelTado  por  ter  amado 
e  fervido  a  pátria,  o  povo  e  a  liberdade!.  .  . 

Poucos  annos  depois  da  fua  morte,  apreffada  talvez  pela 
condemnação,  que  o  obrigara  a  encerrar-fe  em  logar  obfcuro 
e  afaftado  da  corte,  onde  oftentára  fciencia  e  poder,  força  de 
vontade  e  energia,  regulando  fabiamente  os  deífinos  da  nação, 
que,  por  fua  direcção  immediata  e  em  fuás  próprias  mãos  fe 
havia  reanimado  e  engrandecido,  realifavam-fe  em  França 
as  prophecias  da  revolução,  com  todos  os  horrores  da  guerra 
civil. 

A  cabeça  de  Luiz  XVI  rolava  nos  degraus  do  cadafalfo, 
que  lhe  alevantaram  os  defpotas  da  liberdade,  como  também 
em  Inglaterra  havia  caído  abatida  a  cabeça  de  Carlos  I.  A 
guilhotina  fazia  vidimas,  tragava,  devorava,  em  nome  da 
deufa  da  rafão,  como  a  fogueira  inquifitorial  em  nome  da  re- 
ligião fanta!  O  punhal  revolucionário,  impellido  pelo  braço 
homicida  dos  revohofos,  alaftrava  as  ruas  e  as  praças  de 
cadáveres,  quafi  com  a  mefma  fúria,  com  que  a  realeza  ca- 
tholica  e  o  papado  em  outras  eras  immolaram  os  albigenjes 
e  os  fedarios  da  religião  reformada. 

Foi  feu  intuito,  objedo  de  feus  infatigáveis  esforços,  ob- 
ter, por  meios  brandos  e  pacificos,  os  mefmos  refultados,  que 
fe  attribuem  á  grande  revolução  de  1 789,  conquiftar  as  mes- 
mas idéas,  fazer  dominar  os  mefmos  princípios,  firmar  o 


4^9 


e|j 


l52 


poder  dos  reis  na  foberania  de  todos,  dar  a  liberdade  ao  povo 
por  meio  de  uma  conflituição  reprefentativa,  femelhante  á  que 
vigorava  em  Inglaterra,  embora  para  o  confeguir  foíTe  neces- 
fario  uíar  de  tyrannia  contra  alguns  nobres,  decretar  o  ex- 
termínio de  uma  congregação  mais  politica  do  que  religiofa, 
odiada  já  em  toda  a  Europa  e  em  muitas  regiões  da  Ameri- 
ca, condemnada  pelas  Univerfidades  feculares,  mal  vifta  dos 
povos  e  de  uma  parte  confideravel  do  clero,  e  até  repudiada 
pela  Egreja. 

Era  forçofo,  em  tão  arrifcado  e  perigofiírimo  lance,  em 
circumftancias  tão  anormaes,  oppor  á  tyrannia  de  alguns  a 
tyrannia  de  um  fó,  ao  defpotilmo  de  muitos  o  defpotifmo  em 
nome  do  rei;  de  outra  forte  não  confeguiria  defarmar  as  ci- 
ladas, desfazer  as  intrigas,  cortar  os  tramas,  fruítrar  manejos, 
furprehender  confpirações,  que  tudo  e  por  toda  a  parte  a  no- 
breia  e  o  jefuitifmo  eítendiam,  e  machinavam  ao  rei,  ao  feu 
minijlro  e  ao  povo,  que,  ligando-fe,  por  um  pado  inviolável, 
não  tardariam  a  deftruir-lhes  a  infolente  preponderância,  a 
extinguir-lhes  os  privilégios,  a  fupprimir-lhes  as  regalias,  a 
alevantar-lhes  os  foros,  a  picar-lhes  os  bra{óes,  em  uma  pa- 
lavra a  dobrar-lhes  as  orgulho/as  cervis  fob  o  jugo  inflexivel 
da  egualdade  perante  a  lei. 

Se  o  Marquez  de  Pombal  não  foffe  vidima  de  falfas 
accufações  e  vis  intrigas,  fe  fe  confervaíTe  mais  algum  tempo 
á  tefta  dos  negócios  públicos,  invertido  do  fupremo  governo 
da  nação,  fe  houveífe  gofado  junto  do  throno  de  D.  Maria 
da  mefma  confiança,  apoio  e  favor,  que  alcançara  perante 
D.  Jofc,  a  conjtituição  liberal  teria  apparecido  primeiro  em 
Portugal  do  que  em  França,  em  Hefpanha  e  em  outros 
paizes,  e  o  fyftema  reprefentativo  feria  proclamado  entre  nós, 
pelo  menos,  ao  mefmo  tempo. 

É  efta  uma  verdade,  que  immediatamente  deriva  dos 
fados,  e  que  difficilmente  poderá  efcurecer-fe. 


4»  s^ 


OJ 


o  despotilmo,  a  tyrannia  de  que  le  argúe  Pombal,  era 
importa  pelas  neceíTidades,  como  o  único  meio  de  chegar  á 
liberdade. 

Foi  por  iíTo  que  lhe  mereceram  particular  cuidado  e  des- 
velado efmero  a  fciencia  e  a  educação  popular,  a  agricultura 
e  as  outras  induftrias,  as  artes  e  os  officios,  que  arrancando  os 
homens  da  abjecção,  que  a  miferia  gera,  da  ociofidade,  que 
enerva  e  perverte,  têem  a  fingular  virtude  de  emancipar  o  povo, 
entregando  nas  fuás  mãos,  com  o  fceptro  do  trabalho,  a  rea- 
leza politica  e  a  foberania  nacional.  AlTim  preparava  elle  a 
verdadeira  democracia,  irto  é,  a  paíTagem  evolutiva  e  pacifica 
do  velho  regimen  para  o  regimen  [cientifico  indiijirial. 

Não  ignorava  por  certo  efte  grande  homem,  que  a  liber- 
dade e  a  tolerância  fó  com  a  liberdade  e  com  a  tolerância 
podem  folidamente  fundar-fe  no  feio  de  uma  nação. 

Bem  fabia  elle  que  os  partidários  da  liberdade  e  da 
tolerância  devem  deixar  o  emprego  da  força  aos  partidários 
da  força  e  da  intolerância. 

Mas  efte  principio  humanitário,  que  fó  hoje  começa  a 
converter-fe  em  preceito  obrigatório  e  a  penetrar  nos  hábitos 
da  confciencia  particular  e  publica,  efte  grande  principio 
theorico,  era  naquella  epocha,  fenão  defconhecido,  attentas 
as  circumrtancias,  de  impoíTivel  applicação  na  pratica. 

O  que  no  feculo  xix,  em  1868,  não  pôde  realifar  a  Hes- 
panha,  era  nos  fins  do  feculo  xviii  uma  utopia  impraticável 
cm  higlaterra,  em  França,  e  muito  mais  em  Portugal. 

Os  defignios  do  grande  ertadifta  e  as  fuás  viftas  eram 
patrióticas;  o  feu  ideal  a  emancipação  politica,  religiofa, 
moral  e  económica  do  povo,  que  elle  conhecia — grande, 
opulento  e  fobcrano  na  hiftoria,  —  pequeno,  pobre  e  efcravo 
no  prefcnte;  o  móbil  que  o  determinava  o  amor  da  liberdade. 

Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  moftrava,  em  muitos  dos  feus 
adíos,  fer,  no  interior  da  fua  alma  c  no  intimo  da  fua  con- 


eis 


4SÍ9 


i-M 


fciencia,  pela  rafão  e  pelo  fentimento,  um  dos  maiores  e 
mais  enthufiafticos  liberaes  do  feculo  xviii. 

Se  não  pôde  ver  executado  o  feu  plano  e  levar  ao  cabo 
tão  gloriofa  empreza,  arremeíTando  para  longe  a  mafcara  do 
defpotilmo,  foi  porque  o  não  deixaram;  foi  ainda  a  reacção, 
que  lh'o  impediu,  a  injuítiça  que  lh'o  eftorvou. 

Defpojado  do  poder,  privado  da  acção  governativa,  con- 
demnado  ao  oftracifmo  politico,  exilado  para  longe  da  corte, 
afaítado  dos  negócios  públicos,  viu  mallograda  a  fua  obra 
nas  fuás  ultimas  confequencias;  não  lhe  embaciaram  porém 
a  gloria,  não  lhe  quebraram  os  brazões,  e,  o  que  é  de  maior 
valia,  não  lhe  extinguiram  a  gratidão  no  coração  dos  povos; 
e,  fe  ao  tumulo  baixam  efperanças,  devia  acompanhal-o  a 
lembrança  de  que  um  dia  as  fuás  idéas  haviam  de  fer  rea- 
Ufadas,  os  feus  principios  triumphar,  e  o  plano,  que  lhe  ab- 
forvêra  a  exiífencia  inteira,  pofto  em  plena  execução,  o  feu 
nome  exaltado,  a  fua  reputação  glorificada  e  os  feus  inimi- 
gos, os  inimigos  do  povo  e  da  liberdade,  confundidos. 

Se  ao  Marquez  de  Pombal  não  permittiu  a  adverfida- 
de  das  circumftancias  continuar  a  obra  do  conjlitucionalifmo, 
cabe-lhe,  todavia,  a  bem-merecida  gloria  de  preparar  o  paiz 
e  os  povos  para  a  proclamarem  quarenta  annos  depois  da 
fua  morte  em  uma  conftituição  democrática. 


CAPITULO  IV 

o  MARQUEZ  DE  POMBAL  E  A  SUA  INFLUENCIA 
CONSEQUENTES  E  CONCLUSÃO 

A  transformação  que  Portugal  experimentou,  pela  acção 
previdente  e  reformadora  do  grande  miniftro,  aos  elementos 
de  força  e  profperidade,  que  não  fó  iniciou,  mas  com  que 
legalmente  dotou  a  pátria,  ás  inftituições  politicas  e  econó- 
micas, e  aos  germens  de  educação  popular,  que  femeou,  de- 
vemos em  grande  parte  os  benefícios,  que,  com  rafão,  fe  at- 
tribuem  á  revolução  liberal. 

Sem  o  génio  fecundo,  fem  a  intelligencia  vaíta  e  a  dedi- 
cação inexcedivel  de  Sebaítião  Jofé  de  Carvalho,  feria  Por- 
tugal conquifta  partilhada  entre  a  França  e  a  Hefpanha,  ou 
nação  livre  e  independente? 

No  eftado  de  deforganifação  politica,  de  defordem  moral 
e  económica,  de  miferia  e  degradação,  a  que  Portugal  tinha 
chegado  antes  da  fua  adminiftração,  feria  poífivel  o  triumpho 
gloriofo  do  partido  liberal  em  1820? 

Cremos  firmemente  que  não:  alTim  nol-o  dizem  a  rafão 
e  a  confciencia,  firmadas  na  hiftoria  e  efclarecidas  pela  cri- 
tica dos  fados. 

E  por  iíTo  que  entre  as  caufas  remotas,  mas  elTencial- 
mente  determinativas,  da  transformação  liberal,  que  depois 
fe  operou,  devemos  confiderar,  como  uma  das  mais  impor- 
tantes e  efificazes,  o  governo  forte  e  enérgico,  a  adminiftração 
fabia  e  illiiftrada,  a  politica  fevera  e,  por  vezes,  intolerante 
do  Marquez  de  Pombal. 

Abone  a  hiftoria  imparcial  a  verdade,  que  o  paradoxo 
efconde. 

Que  importa  a  cxpulfão  dos  jefuitas? 


líò 


Era  uma  neceíTidade  para  o  eítabelecimento  da  liberdade 
politica  e  da  tolerância  religiofa,  que  o  Marquez  de  Pombal 
amava,  queria  fundar,  e  que  elles  deteftavam.  A  extincção 
dos  jefuitas  era  condição  impreterível,  bafe  fundamental  de 
todo  o  progreíTo  moderno. 

Que  importa,  que  do  alto  do  cadafalfo  rolaíTem  as  cabeças 
de  alguns  nobres,  que,  ociosos  e  embriagados  no  mais  efcan- 
dalofo  luxo,  confpiravam  contra  o  rei,  odiavam  as  reformas  do 
minifterio,  queriam  privilégios  e  prerogativas  injuflificaveis, 
opprimiam,  e  vexavam  o  povo,  nada  fazendo  em  beneficio 
da  pátria;  e,  de  mãos  dadas  já  com  os  inquiíidores,  já  com  os 
difcipulos  de  Loyola,  dedicados  familiares  do  fando  ojjicio, 
procuravam  a  morte  do  rei,  a  queda  do  miniftro  e  a  ruina 
da  nação?! 

A  morte  politica  da  ariftocracia  feudal  era  uma  neceíTi- 
dade indeclinável  para  libertar  o  povo  e  eftabelecer,  como 
garantia  jurídica,  a  egualdade  perante  a  lei. 

O  Marquez  de  Pombal  obftou  por  uma  fabia  politica — 
ao  defpotifmo  do  rei,  á  oligarchia  dos  nobres,  á  theocracia 
dos  jefuitas,  á  miferia  e  á  degradação  do  povo. 

«Foi,  como  fe  exprimem  alguns,  odiado  dos  nobres  pelo 
feu  nafcimento  e  pelo  feu  liberaliímo;  dos  inquiíidores  pela 
fua  tolerância  e  moderada  piedade;  dos  jefuitas  pelo  feu 
faber  e  perfeverança ;  da  populaça  por  fua  feveridade;  dos 
inglezes  pelos  obftaculos  que  lhes  oppoz,  e  com  que  abateu 
a  fua  prepotência  commercial  e  politica. » 

Os  inimigos  implacáveis  do  miniftro  lo  com  a  morte  do 
rei  poderam  derribal-o,  mas  não  perdel-o.  Afaftaram-n'o 
dos  negócios  públicos;  mas,  nos  dias  do  feu  poder,  nem  lhe 
torceram  o  animo,  nem  lhe  afrouxaram  os  esforços,  que  con- 
tinuadamente empregou  para  o  engrandecimento  e  regene- 
ração da  fua  pátria. 

Interrogae  a  politica,  a  moral,  a  jurifprudencia,  as  finan- 

-§-5»- *^k^ 

4»  ejj 


'37 

ças,  a  agricultura,  o  commercio,  a  induftria,  as  artes,  a  na- 
vegação, a  milicia,  a  inftrucção  publica,  e  até  a  própria  reli- 
gião; confultae  as  leis,  as  inftituições  e  os  coftumes,  e  por 
toda  a  parte  encontrareis,  ainda  hoje,  a  fua  acção  benéfica  e 
reformadora,  a  fua  poderofa  influencia. 

A  guerra  implacável,  que  então  lhe  fizeram  os  retrógra- 
dos e  os  abfolutifias,  os  nobres  e  os  jefuitas,  a  inquifição, 
a  Hefpanha  c  a  própria  Inglaterra,  é  a  mefina  que  a  reac- 
ção machina  e  promove  ainda  hoje,  e  tem  promovido  fempre 
contra  os  liberaes. 

Se  o  Marquez  de  Pombal  foi  defpota,  fe  empregou  o  ter- 
ror e  a  tyrannia,  não  lhe  vinham  d'alma  taes  exceíTos,  nem 
lh'os  infpirava  o  feu  génio  altivo  e  fevero,  mas  liberal  e  bem- 
fazejo;  provocava-lh'os  a  reacção  dos  nobres  e  dos  fanáticos, 
exigiam-lh'os  as  neceíTidades  da  pátria  e  a  refiftencia  dos  ve- 
lhos e  inveterados  prejuizos  do  paíTado. 

Não  foi  para  exaltar  o  delpotifmo,  nem  para  lifonjear  o 
monarcha,  que,  por  amor  do  povo  e  para  bem  da  nação,  pa- 
recia adorar  a  realeza. 

Não  foi  para  fatisfazer  vaidofas  ambições  de  quem  nun- 
ca moftrára  tel-as,  que  a  memoria  do  augiijlo  príncipe  fe  gra- 
vou no  bronze  da  eftatua  equeftre,  nem  o  monumento  levan- 
tado para  impor  ao  povo  a  idolatria  monarchica. 

Todos  os  grandes  homens,  como  todos  os  fantos,  têem  a 
fua  eftrophe  na  epopea  legendaria  do  povo. 

Affonfo  Henriques,  Meftre  d'Aviz,  Nuno  Alvares  Pereira, 
João  das  Regras,  Vafco  da  Gama,  D.  João  de  Caftro,  Affonfo 
de  Albuquerque,  Camões,  João  Pinto  Ribeiro,  e  mil  outros, 
perpétuos  na  hiftoria,  fão  creações  ideaes  na  immortalidade 
da  legenda. 

O  Marquez  de  Pombal,  tendo  fido  na  realidade  tudo  o 
que  diffemos,  é  no  bom  fenfo  dos  povos  um  ente  legendário. 
E  um  typo  ideal,  que  não  fe  apaga,  que  jamais  fe  apagará 


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i58 

na  confciencia  e  na  imaginação  do  noíTo  povo,  como  o  ferão 
no  futuro,  e  em  parte  já  o  eftão  fendo  Gomes  Freire,  Fernan- 
des Thomaz,  Borges  Carneiro,  Ferreira  Borges,  Moufinho  da 
Silveira,  PaíTos  Manuel,  Alexandre  Herculano.  .  .  fão  fem- 
pre  eftes  os  homens  que  o  povo  efcolhe  para  cantar  na  fua 
lyra  de  oiro,  para  perpetuar-lhes  a  memoria  na  fua  rude, 
mas  efpontanea  e  fincera  poefia. 

Todos  os  grandes  homens  começam  por  fer  utopiftas;  a 
fua  vida  é  uma  luda  fem  tréguas.  Em  uma  das  mãos  o  ca- 
martello  deftruidor  do  palTado  inútil  que  refifte,  na  outra  o 
facho  civilifador  das  idéas  novas,  alumiando  o  caminho  do 
futuro  que  a  lua  rafão  defcobre. 

Para  premio  as  mais  das  vezes  o  martyrio;  para  recom- 
penfa  o  efquecimento  ou  a  injuftiça  na  hiftoria. 

Mas,  para  falval-os  d'eíre  efquecimento  ou  reparar  eífa 
injuftiça,  lá  eftá  o  bom  fenlb,  o  efpirito  refto,  a  alma  poética, 
o  coração  agradecido  dos  povos,  a  legenda,  eífe  —  rdatus  in- 
ter divos,  com  que  elle  íignifica,  e  apregoa  a  immortalidade  e 
faz  a  apotheofe  dos  feus  heroes. 

A  eftatua  de  D.  Jofé  I  pôde  tomhal-a  a  mão  foberana  do 
povo,  ou  pulverifal-a  a  lima  edaz  do  tempo,  que  aíTmi  gafta 
o  granito  como  o  bronze,  e  tudo  confome. 

A  realeia  abfoluta,  depois  de  haver  durante  feculos  con- 
trariado os  progreífos  da  civilifação  pela  liberdade,  pôde  fer 
amanhã  um  facto  utópico^  fem  valor  na  confciencia  da  hu- 
manidade, fem  deixar  faudades  nem  merecer  bênçãos;  mas 
o  homem  grande  pela  grandeza  do  génio,  pelo  acerto  e  ener- 
gia de  acção,  o  homem,  que,  illuftrando  a  pátria,  beneficiou 
o  povo,  é  vulto  que  fe  ergue  mageftofo  ante  os  olhos  de  to- 
das as  gerações  que  paífam  e  em  todos  os  feculos  que  voam; 
tem  a  immortalidade  no  fcntimento  intimo  das  maífas,  na 
confciencia  do  povo,  em  cada  coração  um  altar  de  fauda- 
des, em  cada  cabeça  um  monumento  de  gloria,  em  cada 


eis 


'59 

boca  uma  trombeta  a  apregoar-lhe  as  virtudes.  .  .  e  todas 
as  mãos  fe  erguem  para  o  abençoar  e  applaudir. 

Que  a  realidade  hiftorica  do  grande  Sebaftião  Jofé  de 
Carvalho  e  Mello  correfponde  á  pocfia  da  legenda  provam-o 
muitos  documentos,  cuja  authenticidade  não  pôde  fer  contes- 
tada: foi  por  iíTo  que  nos  difpenfámos  de  os  apontar  ou 
tranfcrever. 

E  quando  erigimos  cftatuas,  e  levantamos  columnas,  e  fu- 
blimâmos  arcos  de  triumpho,  e  cunhámos  medalhas  comme- 
morativas,  e  gravámos  legendas  no  mármore  ou  no  bronze 
em  honra  dos  grandes  homens,  é  fempre  em  honra  e  para 
gloria  da  humanidade,  para  marcar  eftadios  n'efte  caminhar 
inceffante  da  civilifação  univerfal,  de  que  a  humanidade  é  o 
infatigável,  omnipotente  e  fabio  creador,  e  não  para  impor, 
em  nome  de  um  paíTado  irreftauravel,  ás  novas  gerações  a 
adoração  dos  f eus  fetiches,  a  idolatria  dos  feus  deu/es,  o  culto 
dos  feus;  mas  apontar-lhes  o  exemplo  dos  feus  beneméritos. 

Não  foram  fó  os  germens  da  civilifação,  defpontando  ao 
foi  da  renafcença,  a  luz  irradiada  pela  philofophia  do  feculo 
XVIII,  o  brado  univerfal  de  1789,  as  armas  de  Napoleão  I,  o 
drama  fanguinario  de  18 17,  que  prepararam  a  revolução 
de  1820. 

De  longe,  de  mui  longe  nos  veiu  e  fe  gravou  em  Portu- 
gal o  efpirito  de  liberdade  e  de  independência.  Manifeftou-fe, 
bem  folemnemcnte,  na  iniciativa  popular  em  i385;  mais  fo- 
lemnemente  ainda  em  1640;  arraigou-fe,  de  um  modo  profun- 
do e  indeftru6tivel,  durante  a  fabia  adminiflração  de  um  gé- 
nio reformador,  que  lhe  preparou  o  campo  de  fuás  legitimas 
conquiftas,  e  removeu  os  eftorvos,  que  lhe  empeciam  o  cami- 
nho, por  onde,  mais  tarde,  devia  deixar  feu  raftro  luminofo. 

Foi  eífa  epocha  o  prologo  fecundo  das  revoluções!  Effe 
homem  o  precurfor  admirável  do  liberalifmo! 

Foi  mais  uma  lufta  gigante  dos  opprimidos  contra  os 


(|3 


i6o 

defpotas;  a  reacção  /ocial  contra,  a  reacção  idtramontana;  lu6ta 
na  qual,  por  fim,  a  liberdade  pareceu  fuccumbir,  e  deixar-fe 
efmagar  debaixo  dos  pés  da  ariftocracia  orgulhofa  e  da  clerelia 
degenerada  e  pervertida,  para  mais  tarde  refurgir,  e  erguer-fe 
do  mal  encerrado  tumulo,  vigorofa  e  oufada  para  cantar  no 
dia  do  merecido  triumpho  o  hymno  da  legitima  vidoria! 

Em  Portugal,  como  em  Inglaterra,  como  em  França,  a 
revolução  reformadora  teve  os  feus  precurfores:  para  não 
fallar  em  muitos  outros,  de  mais  circumlcripta  efphera  e  me- 
nor vulto,  apontaremos  para  o  celebre  miniftro  de  D.  Jofé. 

Coimbra,  abril  de  1882. 

Dr.  Manuel  Emygdio  Garcia. 


I 


i 


A  LEGISLAÇÃO  POMBALINA 


oje  que  cm  toda  a  Europa  fe  denuncia  uma 
reacção  contra  as  phantafias  do  efpiritualifmo 
ou  do  romantifmo  dominante  no  fegundo  quar- 
tel do  feculo,  é  chegado  o  momento  de  fazer 
juftiça  ao  grande  portuguez  de  ha  cem  annos. 
Portugal  nunca  deixou  de  o  venerar  como 
o  Sanfão  cujos  hombros  alluiram  as  columnas 
miferaveis  d'eíra  fociedade  fradefca  e  beata,  educada  pela 
férula  dos  jefuitas  e  coroada  por  D.  João  V — Rei-bolonio, 
como  dizia  Alexandre  de  Gufmão,  o  brazileiro,  ou  Grande- 
governador  da  ilha  dos  Lagartos,  como  diíTe,  antes  de  fer 
queimado,  o  illuftre  António  Jofé. 

Mas  o  antigo  efpirito  portuguez  acclamava  fomente  em 
Pombal  o  Anti-chrifto,  o  inimigo  figadal  dos  jefuitas,  ao 
paffo  que  o  moderno  efpirito  jacobino  ou  radical  veiu  tam- 
bém acclamar  apenas  o  plano  dos  ataques  ás  velhas  infti- 
tuições  nacionaes,  a  fúria  demolidora  do  eftadifta  que,  infpi- 
rado  pelo  mecanifmo  abftrado  do  feculo  xvni,  difcipulo  de 


c|3 


162 

Newton  e  Defcartes,  lavrou  o  terreno  para  a  fementeira  das 
doutrinas  individualiftas  e  radicaes  com  o  arado  dos  princí- 
pios utilitários  que  não  infpiravam  menos  o  Marquez  do  que 
os  eítadiítas  dos  noffos  dias. 

Tempo  é  já  de  moftrar,  porém,  que  efte  principio  reves- 
tia no  feculo  xviii  formas  de  realidade  bem  diverfas  das 
modernas.  A  Utilidade  que  então  apparecia  como  a  alma  do 
Eftado,  tornou-fe  depois  o  apanágio  abfoluto  do  individuo: 
negou-fe  a  realidade  dos  corpos  colledivos,  negou-fe-lhes  a 
autoridade  eminente,  diíTipando-fe  theoricamente  a  idéa  de 
nação  e  prégando-fe  o  ilblamento  ou  a  autonomia  dos  indi- 
víduos congregados  fortuitamente  fobre  a  immenfa  área  do 
globo.  O  humanitarilmo  tomou  o  logar  do  civifmo,  o  cofmo- 
politifmo  fubftituiu  o  amor-patrio,  o  liberalifmo  paíTou  por 
fobre  as  idéas  de  audoridade  focial,  negando-as,  ao  mefmo 
tempo  que  um  vago  efpiritualifmo  deifta  negava  o  Deus  po- 
fitivo  das  religiões  chriftans.  Dir-fe-hia  que  um  nevoeiro 
denfo,  envolvendo  em  li  todas  as  coufas  reaes,  apagava  os 
contornos,  efbatia  as  cores,  pondo  em  vez  de  noções  defini- 
das e  pofitivas,  um  cháos  vago,  diíTufo,  confufo,  de  opiniões 
poéticas.  Chamou-fe  Romantifmo  a  effa  revolução  cujas  ul- 
timas refracções  ouvimos  ainda  hoje  no  vozear  eftridulo  mas 
já  efporadico  dos  clubs  da  demagogia  radical.  Ha  trinta  an- 
nos  era  um  clamor  unifono  de  enthufiafmos,  de  efperanças, 
de  illufões  finceras,  ingénuas  e  univerfaes! 

Effa  nuvem  que  paffou,  como  paffa  ás  vezes  uma  tro- 
voada para  limpar  os  ares,  era  a  nebulofe  das  idéas  natura- 
liftas:  era  uma  nuvem  de  reptos  fentimentaes,  apaixonados, 
abfolutos  por  iffo  mefmo  que  eram  efpontaneos,  chimericos 
por  ferem  apenas  fentidos,  fortes  por  ferem  ingénuos.  Era  a 
explofão  de  um  naturalifmo  inconfciente,  rebellando-fe  con- 
tra todas  as  idéas  formaliftas  da  mecânica  dos  architedos 
claíTicos  —  na  politica,  nas  artes,  nos  coftumes.  O  vendaval 


i63 

paíTou,  vafaram  as  torrentes,  regreíTaram  os  rios  aos  feus 
leitos  depois  de  terem  ennateirado  as  terras  das  margens,  e 
viu-fe  então  que  motivo  pofitivo  e  real  determinara  a  crife. 
Os  architedos  tinham  chegado  a  efquecer  que  o  material 
humano  tem  veias  e  fangue,  que  o  homem  não  é  uma  ab- 
ftracção  numérica  ou  geométrica  ou  chrematiftica;  tinham 
chegado  a  penfar  que  uma  nação  era  uma  tavola  de  xadrez ; 
tinham  concebido  como  abftracções  mathematicas,  os  ho- 
mens, as  coufas  e  as  nações.  A  reacção  romântica,  ou  libe- 
ral, naturaliíta  e  efpiritualiíta  — pois  todos  eftes  caraderes 
partilha —  paíTou,  mas  paíTando  alargou  os  horifontes  do 
penfamento,  e  reconítituiu  o  edifício  do  direito  fobre  duas 
bafes  naturaes  —  a  Vontade,  ifto  é,  o  querer  dos  cidadãos,  e 
a  Egualdade,  ifto  é,  a  affirmação  da  tendência  neceíTaria  das 
fociedades  para  uma  approximação  fempre  crefcente  das 
condições  de  todos.  Antes  da  crife,  a  Vontade  era  fymbo- 
lica,  perfonalifada  em  Deus  e  no  Rei,  e  a  Egualdade  era 
ainda  inconfciente,  pois  fe  realifava  fob  as  formas  antagóni- 
cas da  protecção  ariftocratica. 

A  defínição  d'eíl:es  dois  princípios  deu  uma  fignificação 
nova  á  velha  palavra  —  Democracia.  Poderíamos  juntar-lhe 
o  adjeótivo  /cientifica,  pois  de  fado  a  fciencia,  introduzindo- 
fe  em  todas  as  efpheras  do  penfamento  contemporâneo,  dá- 
Ihe  uma  phyfionomia  fem  precedentes.  Eífa  Vontade,  eífa 
Egualdade,  que  fícaram  como  fumma,  ou  fynthefe,  das  re- 
voluções da  primeira  metade  do  feculo,  não  fão  já  hoje  os 
fentimentos  e  phantafias  poéticas  dos  arrebatamentos  d'ou- 
tr'ora.  São  princípios  tão  íntimos,  tão  reaes,  tão  pofitivos,  tão 
orgânicos,  como  as  leis  geraes  da  cofmogonia  ou  da  biolo- 
gia. Concebidas  aíTim  — e  não  nos  é  licito  já  concebel-as  de 
outra  forma —  apparecem-nos  como  a  alma  de  um  corpo, 
denunciando-nos  a  realidade  pofitiva,  moftrando-nos  o  viver 
orgânico  e  íntimo  das  fociedades:  feres  tão  reaes  na  congre- 


eij 


«|9 


164 

gação  dos  feus  elementos  humanos,  como  o  homem  o  é  na 
congregação  dos  feus  órgãos,  e  cada  órgão  na  reunião  de 
cellulas  de  que  fe  compõe. 

Os  princípios  deduzidos,  pois,  da  revolução  naturaliíla 
do  principio  do  noíTo  feculo,  reagem  contra  o  penfamento 
fubjedivo  que  a  infpirou;  e  reagindo  vão  prender-fe  ou  li- 
liar-fe  nas  idéas  do  feculo  xviii,  como  um  eftio  fuccede  a 
uma  primavera  depois  que  as  trovoadas  de  maio  revolucio- 
naram as  feivas  e  as  fontes.  Por  iífo  nós  diífemos  ter  che- 
gado o  momento  de  fazer  a  apotheofe  do  noífo  eftadifta,  não 
como  demolidor  do  paífado,  mas  como  apoftolo  do  futuro. 
Um  feculo  baftou  para  que  voltaíTe  a  coordenar-fe  a  ferie 
dos  anneis  que  formam  no  tempo  a  evolução  das  idéas. 

Quaes  fão  os  princípios  pofitivos  que  infpiram  a  legifla- 
ção  pombalina  em  fi,  defpida  das  formas  accidentaes  ou  his- 
tóricas (monarchia,  ariftocracia,  fyftema-mercantil,  etc.)  que 
os  revertem?  Parece-nos  poderem  reduzir-fe  a  duas  expres- 
fões  fummarias: 

A  primeira  é  a  de  que  uma  nação  é  em  fi  um  todo,  um 
corpo,  um  organifmo,  vivendo  por  leis  que  lhe  dão  homo- 
geneidade, confiftencia  e  força  baftante  para  ter  uma  con- 
fciencia  nitida  do  feu  querer  e  do  feu  poder,  da  fua  au- 
doridade  e  da  fua  nobreza.  —  Eífa  nação  do  penfamento 
pombalino  era  uma  conftrucção  apparatofa,  como  os  templos 
claflicos,  de  pórticos  oftentofos,  com  uma  cúpula  — a  mo- 
narchia—  efcadarias  de  nobreza,  archontes  como  na  Gré- 
cia, parachiftas  como  no  Egypto,  e  pelos  pateos  vaftos  as 
plebes  de  peões  fubmiífos. 

A  fegunda  denuncia,  no  fundo  da  pompa  claíTica,  um 
penfamento  pratico.  O  templo  é  um  fcenario,  não  é  um  fa- 
crario.  Cúpula,  degraus,  pórticos  não  fe  levantam  do  chão 
como  efílorefcencias  efpontaneas  da  alma  religiofa:  fão  utili- 
dades, fão  neceíTidades  indifpenfaveis  á  confervação  do  edi- 


■<y» •-<Í>-§- 

i65 

ficio  focial.  Monarcha,  fidalgos,  facerdotes,  throno,  nobreza, 
clero,  fão  inftrumentos  de  fomento  e  manutenção  do  povo, 
na  fua  unidade  total  e  concreta.  A  utilidade  geral  é  de  íado 
o  principio  das  leis:  não  é  já  o  culto  de  um  deus  que  nos 
anima  ou  de  um  foberano  que  adorámos  —  embora  fe  ve- 
nere effe  deus  e  fe  obedeça  a  eíTe  foberano,  por  iífo  que, 
aufentes  ambos,  o  edifício  inteiro  da  fociedade  cairia  por 
terra  em  ruinas. 

Não  cabe  de  certo  nas  acanhadas  proporções  d'efl:e  arti- 
go analyfar  perante  os  textos  das  leis  os  vários  caradteres  das 
numerofas  reformas  pombalinas,  para  verificarmos  a  exa- 
étidão  do  que  antes  deixámos  efcripto.  E  em  vez  de  abraçar- 
mos o  conjuncto  da  legiílação  do  Marquez,  eífudando-o  nos 
feus  traços  geraes,  entendemos  mais  ufil  e  mais  pratico  limi- 
tar-nos  a  uma  efpecie:  feja  eífa  o  regimen  das  heranças,  dos 
legados  pios  e  dos  morgados,  conforme  fe  vè  das  leis  de  25 
de  junho  de  1 766,  de  9  de  feptembro  de  1 769  e  de  3  de 
agofto  de  1770,  todas  mais  ou  menos  completamente  revo- 
gadas pelos  decretos  dos  dois  primeiros  annos  do  governo 
reaccionário  de  D.  Maria  I. 

A  primeira  d'eíras  leis  tem  como  fim  corrigir  o  defvaira- 
mento  dos  teftadores  «reduzindo  com  os  referidos  abufos 
bárbaros  e  cruéis  muitas  e  muito  numerofas  familias  á  lafti- 
mofa  indigência»,  diz  o  preambulo.  O  legiflador  tem  em 
vifta  manter  de  pé  a  unidade  da  família,  molécula  da  focie- 
dade, viciada  profundamente  entre  nós  defde  o  feculo  xvi, 
primeiro  pelas  expedições  ultramarinas  e  fuás  confequencias, 
depois  pelo  myfticifmo  da  educação  jefuita.  A  beira  do  tu- 
mulo, o  moribundo  efquecia  os  filhos  pelos  padres,  e  a  forte 
dos  que  deixava  na  terra  pela  fonhada  fortuna  das  regiões 
ultra-tumulares  phantafticas.  Explorando  com  uma  finceri- 
dade  mais  ou  menos  genuina  efta  difpofição  dos  efpiritos,  o 
clero  fomentava  os  abufos,  e  eram  frequentes  verdadeiros 


«1» 


i66 

crimes  e  extorfões:  «profanaram  as  difpofições  canónicas  e  a 
difciplina  regular  nas  frequentes  fimulações  e  extorfões  com 
que  fizeram  fcrvir  os  cânones  da  Egreja  e  os  eftatutos  das 
ordens  religiofas  á  infaciavel  e  eftranha  cubica » .  A  franque- 
za crua  com  que  as  coufas  fe  dizem  nas  leis  pombalinas 
attefta  mais  ainda  a  força  e  a  convicção  que  as  infpirava  do 
que  a  violência  das  fuás  difpofições  pofitivas.  O  Marquez  foi 
o  ultimo  eítadifta  dos  antigos  que  teve  génio  e  a  coragem  con- 
fequente  para  fallar  verdade.  Dos  modernos  ha  um  único: 
Moufinho  da  Silveira. 

A  lei  de  2  5  de  junho  creava  uma  ferie  de  caufas  de 
nullidade  de  teítamento,  e  n'eíra  ferie  o  obfervador  encontra 
a  revelação  dos  proceífos  criminofos  com  que  fe  extorquiam 
as  heranças.  A  lei  annullava  toda  a  herança  e  todo  o  lega- 
do a  favor  de  parente  d'aquella  peífoa  que  tiveífe  efcripto  o 
teftamento,  a  favor  de  confraria  ou  corporação  a  que  per- 
tenceífe:  os  bens  iriam  para  os  herdeiros  legitimos,  ou,  não 
os  havendo,  para  o  íifco.  Tampouco  podia  herdar  o  parente 
ou  o  afiliado  na  confraria  ou  corporação  do  letrado  habitual 
confelheiro  do  defunto;  tampouco  frades  podiam  fer  teíta- 
menteiros;  e  eram  nuUos  todos  os  teítamentos  lavrados  pelo 
enfermo  no  feu  leito,  quando  atacado  por  uma  doença  grave 
ou  aguda. 

Conforme  fe  vê,  a  lei  de  2  5  de  junho  tinha  apenas,  diga- 
mos aíTim,  um  carader  preventivo  ou  policial;  mas  a  que 
fe  lhe  feguiu  três  annos  depois,  em  g  de  feptembro,  feria 
mais  fundo,  introduzindo  alterações  graves  no  regimen  das 
heranças.  O  feu  penfamento  evidente  é  impedir  a  diminuição 
das  caJas  de  fidalgos  ou  burguezes  enriquecidos:  eííasfami- 
lias  que  para  o  eítadifta  do  feculo  xviii  eram  a  corte  do 
monarcha,  força  da  nação,  núcleos  de  fomento  e  ancoras  de 
fegurança.  As  idéas  modernas  de  egualdade  na  diítribuição 
da  riqueza,  de  divifão  da  propriedade  do  folo,  não  tinham 


eis 


167 

lurgido  ainda;  e  le  hoje  a  eítrudura  das  nações  fe  concebe 
de  um  modo  democrático,  ha  um  feculo  as  leis  do  noíTo 
Marquez  moítram  a  uhima  forma  que  as  idéas  ariftocrati- 
cas  reveftiram  quando  á  nobreza  do  fangue  e  á  protecção 
feudal  fe  fubítituíra  já  na  philofophia  do  direito  a  idéa  da 
utilidade. 

A  lei  de  g  de  feptembro  ordena  que  todo  aquelle  que 
herdar,  tendo  parentes  até  ao  quarto  grau,  não  poderá  dis- 
por em  vida  do  valor  d'eíras  heranças.  Se  não  tiver  outros 
bens  alem  d'elTes  poderá  teftar  a  tcTça,  mas  exclufivamente 
a  favor  de  um  filho  ou  defcendente;  tendo  porém  riqueza 
lua  própria,  adquirida  por  trabalho  ou  induftria,  a  difpofição 
teftamentaria  da  terça  é  livre.  Quando  o  herdeiro  não  tenha 
parentes  até  ao  quarto  grau,  poderá  difpor  de  metade  dos 
bens  herdados  e  de  todos  os  adquiridos  como  bem  lhe  pa- 
recer. 

«Porquanto,  diz  em  feguida  a  lei,  tem  chegado  aos  últi- 
mos exceíTos  a  defordem  e  a  defhumanidade  com  que  nos 
teftamentos  fe  coftuma  quotidianamente  (debaixo  dos  pre- 
textos de  caufas  pias  e  bens-da-alma)  abular  impia  e  intole- 
ravelmente  da  fraqueza  e  defacordo  dos  teítadores  preoccu- 
pados  com  as  funeftas  cogitações  da  vida  e  da  morte ...» 
porquanto,  na  fua  grande  maíTa,  os  bens  diflrahidos  da  for- 
tuna das  famílias  iam  parar  ás  mãos  abforventes  de  um  cle- 
ro fanatifado  e  ávido  —  eíTe  clero  inimigo  da  eftabilidade 
do  templo  da  nação —  a  lei  eífabelece: 

Que  os  legados  pios  ou  bens-da-alma  não  poíTam  jamais 
fer  fuperiores  ao  terço  da  terra  livre,  ifto  é,  ao  nono  da  tota- 
lidade dos  bens  do  teítador;  e  que  cm  todo  o  cafo  eíTa  quan- 
tia nunca  poderá  exceder  o  máximo  de  4oo.'!íooo  réis.  Efie 
limite  é  egualmente  importo  aos  herdeiros  do  que  morreu 
ab  intejlato,  para  as  defpezas  de  íliífragios  pela  alma  do  de- 
funto. 


?- -Ò-|. 
eis 


c|9 


168 

Que  enorme  campo  de  lavra  fupprimido!  Não  parava, 
comtudo,  aqui  o  atrevimento  do  Marquez.  EUe  queria  dis- 
folver  a  confraria  de  facriftães  que  a  nação  fora  no  tempo 
de  D.  João  V — e  voltou  a  fer  no  de  D.  Maria  I,  terminado 
o  interregno  do  autocrata.  A  vida  de  frade  era  a  melhor  e 
a  mais  rendofa:  cortou  a  queftão  pela  raiz,  excluindo  todos 
os  que  profeíTaffem  do  direito  ás  heranças  ab  intejlato,  ás 
heranças  diredas  paternas,  e  á  fucceíTão  dos  bens  vincula- 
dos. 

O  efpirito  mylTiico  portuguez  tinha  enxertado  na  inftitui- 
ção  vincular  uma  inftituição  religiofa:  as  capellas,  taes  e  tan- 
tas que  tornavam  muitas  vezes  uma  inftituição  de  direito 
económico,  e  uma  invenção  deftinada  a  manter  os  grandes 
núcleos  de  riqueza  e  a  tradição  das  famílias,  n'uma  fimples 
fonte  de  rendimentos  pingues  e  eternos  para  a  clerezia.  As 
confiderações  da  lei  a  tal  refpeito  fão  inífrudivas  e  eloquen- 
tes : 

« Por  uma  parte,  fão  já  tantos  os  encargos  de  miíTas,  que 
ainda  que  todos  os  indivíduos  exiftentes  n'efl:es  reinos  em 
um  e  outro  íexo,  foíTem  clérigos,  nem  aífim  poderiam  dizer 
a  terça  parte  das  miíTas  que  confiam  das  inftituições  regifta- 
das  nas  provedorias  dos  mefmos  reinos;  cm  uma  das  mais 
pequenas  das  quaes  (por  exemplo)  fe  acharam  inftituidas 
doze  mil  capellas  e  mais  de  quinhentas  mil  miíTas  annuaes. 

í  Por  outra  parte,  para  fe  diíTimular  e  cobrir  a  referida 
impoíTibilidade,  fe  affeílam  Bulias  Millenarias  que  não  exis- 
tem, nem  poderiam  exiftir  fem  o  reprovado  vicio  de  fimonia; 
e  fe  fazem  negociações  fordidas  de  flores,  doces  e  outras 
mercadorias,  a  troco  de  miífas  Ibllicitadas  para  as  fazerem 
gyrar  as  peífoas  que  as  bufcam  depois  de  confeguidas. 

«Por  outra  parte,  aíTim  fica  fendo  incomparavelmente 
menor  o  numero  de  almas  beneficiadas  com  as  miífas  que 
effeítivamente  fe  dizem,  ou  podem  dizer,  do  que  o  das  ou- 


eis 


cl? 


169 

trás  almas,  quafi  innumeraveis,  que  fe  não  aproveitam  nem 
podem  aproveitar  das  outras  miíTas  accumuladas  e  luppoítas 
que  não  podem  dizer-le. 

» Por  outra  parte,  fendo  licito,  no  prefente  eftado  de  defor- 
dem,  a  qualquer  proprietário  de  bens,  gravar  as  fuás  terras 
com  os  referidos  encargos,  tendo  feu  filho  a  mefma  liberda- 
de, e  paífando  efta  ao  neto  e  bifneto  e  mais  defcendentes, 
dentro  em  poucas  gerações  ficarão  eftas  terras,  não  fó  inúteis, 
como  moleftas  ás  famílias  dos  fobreditos  inflituidores  .  .  .  e 
fe  chegará  ao  calo  de  ferem  as  almas  do  outro  mundo  fe- 
nhoras  de  todos  os  prédios  d'eftes  reinos. 

«E  por  outra  parte,  efte  cafo,  fendo  muito  trifte,  fomente 
figurado,  acha-fe  já  tão  infelizmente  fuccedido  que,  fe  todos 
os  encargos  adualmente  impoftos  fe  cumpriífem,  não  baila- 
riam para  a  fatisfação  d'elles  todos  os  rendimentos  das  pro- 
priedades d'eftes  reinos  .  .  . 

«As  propriedades  de  cafas,  os  fundos  de  terras  e  as  fa- 
zendas que  foram  creadas,  — diz  ao  depois  a  mefma  lei, — 
para  a  fubfiftencia  dos  vivos,  de  nenhuma  forte  podem  per- 
tencer aos  defuntos.  Nem  ha  rafão  alguma  para  que  qual- 
quer homem  depois  de  morto  haja  de  confervar  até  ao  dia 
de  juizo  o  dominio  dos  bens  e  fazendas  que  tinha  quando 
vivo.  Menos  a  pôde  haver  para  que  o  fobredito  homem  pre- 
tenda tirar  proveito  do  perpetuo  incommodo  de  todos  os  feus 
fuccelfores  até  ao  fim  do  mundo  ...» 

Ifto  era  dito,  como  fe  vê,  n'uma  linguagem  franca,  chan, 
popular  até,  como  a  dos  relatórios  poíleriores  de  Moufinho 
da  Silveira,  como  a  de  todos  os  que  tèem  convicções  e  força 
no  carafter  e  na  intelligencia.  A  franqueza  é  o  melhor  fym- 
ptoma  do  génio,  e  o  eftylo  baço,  anonymo,  arrevezado,  das 
fecretarias  de  hoje  ficará  como  um  documento  da  incapaci- 
dade dos  fecretarios  que  a  nação  tem  tido. 

Ao  nervo  do  eftylo  correfpondc  a  nitidez  das  decifões: 


eis 


c|3 


Prohibição  abfoluta  de  creação  de  novas  capellas;  abolição 
das  devolutas  ou  que  forem  devolvendo  á  coroa  por  vacantes ; 
limite  de  um  decimo  do  rendimento  dos  bens  encapellados 
para  encargos  pios;  nuUidade  de  todas  as  difpofições  ou  con- 
venções caiifa  mortis  ou  inter-pivos  em  que  fe  inftituir  a  alma 
por  herdeira;  livres  todos  os  bens  de  Capellas  e  Anniverfarios 
que  renderem,  deduzidos  os  encargos,  menos  de  i  ooJíooo  réis 
nas  províncias  do  reino  e  2ooí?ooo  réis  na  corte  e  Extrema- 
dura. 

Efta  ultima  difpofição  prende-fe  diredamente  com  o  as- 
fumpto  da  lei  de  3  de  agofto  de  1 770,  a  ultima  das  três  que 
efcolhemos  para  o  noíTo  eftudo.  Eíla  lei  é  um  prenuncio  do 
penfamento  realifado  feffenta  annos  depois  por  Moufinho:  é 
o  principio  da  reftauração  da  propriedade  rural  pela  reacção 
contra  o  regimen  vincular.  Atacar  os  morgados,  dir-íe-ha,  é 
illogico  para  o  penfamento  de  um  eftadifta  como  Pombal, 
o  que  via  na  corte  de  grandes  famílias  opulentas  o  alicerce 
da  fortuna  da  nação.  Não  é;  a  idéa  do  eftadiíta  apparece 
clara  n'eftas  palavras  que  tranfcrevemos : 

«Sendo  a  inítituição  dos  morgados  em  geral  uma  rigo- 
rofa  amortifação  de  bens  contraria  ao  ufo  honeífo  do  domí- 
nio que  o  proprietário  tem  por  direito  natural,  contraria  á 
juftiça  e  á  egualdade  em  que  eíTes  bens  deviam  fer  reparti- 
dos entre  os  filhos;  contraria  por  iflb  á  multiplicação  das  fa- 
mílias, contraria  ao  gyro  do  commercio  que  dos  melmos  bens 
em  liberdade  fe  podia  fazer .  .  .  mas  fendo  por  outra  parte 
neceífaria  a  referida  amortifação  nos  governos  monarchicos 
para  eftabelecimento  e  confervação  da  nobreza  ...»  a  lei  fup- 
prime  todos  os  vínculos  de  rendimento  inferior  a  2002^000 
réis  na  Extremadura  e  Alemtejo,  e  a  ioo;jíooo  réis  nas  ou- 
tras províncias,  falvo  quando  uma  cafa  exifta  com  o  ren- 
dimento fommado  de  vários  vínculos  minufculos;  fupprime 
todos  os  vínculos  que  correm  fem  títulos  fuíficientes ;  fup- 


u 


prime  os  morgados,  creados  para  os  filhos-fegundos  e  os  de 
agnação  e  mafculinidadc;  eftabelecendo  que  não  fe  creará 
mais  vinculo  fem  licença  regia  efpecial,  e  que  effa  licença 
nunca  poderá  fer  dada  a  bens  de  rendimento  inferior  a  réis 
2:4003^000  na  corte  e  i:2oo.:*ooo  réis  nas  provindas. 

O  penfamento  é  pois  claro,  a  decifão  nitida :  o  vinculo  é 
uma  inftituição  excepcional  e  até  contra  direito,  mas  Juftifi- 
cada  pela  neceíTidade  focial  de  grandes  núcleos  de  proprie- 
dade, de  familias  ricas  —  iíTo  a  que  no  feculo  xviii  fe  chama- 
va nobreza,  mas  que  era  já  uma  claíTe  inteiramente  diverfa 
da  antiga  ariítocracia  fegundo  o  direito  feudal  dos  godos  da 
Hefpanha. 

Efte  rápido  cftudo  que  fizemos,  aíigura-fe-nos  eminen- 
temente illuftrativo.  Todo  aquelle  que  applaudir  o  grande 
Marquez,  quando  elle  coarda  o  direito  natural  de  teftar  os 
bens  próprios  a  favor  de  quem  quer  que  feja,  com  o  fim  de 
falvar  a  alma,  ou  de  enriquecer  as  egrejas;  todo  aquelle  que 
alTim  fizer,  é  contraditório  comligo  mefmo  quando  acclame 
ao  mefmo  tempo  o  radicalifmo  liberal  individualiíta,  cuja  pri- 
meira confequencia  natural  é  o  direito  abfoluto  de  dilpor  de 
tudo  o  que  nos  pertence  e  é  noífo,  como  e  quando  muito  bem 
nos  aprouver.  Perante  a  doutrina,  fó  é  lógica  a  liberdade  de 
teftar,  como  exifte  em  Inglaterra  —  o  ex-modelo  das  nações. 
Se  nós,  continentaes,  não  penfàmos  aflim,  e  entendemos  ne- 
ceífaria  á  confervação  da  fociedade  uma  legiflação  regula- 
dora das  heranças,  coercitiva  do  jus  utciuii  et  abutendi:  nós 
feremos  inconfequentes  fempre  que  negarmos  a  realidade  de 
um  principio  anterior,  de  uma  idéa  ou  de  um  critério  fupe- 
rior  á  idéa  da  liberdade  individual.  Eífe  principio,  eíTa  idéa, 
eífe  critério,  é  como  que  a  alma  da  fociedade:  é  a  egualdade, 
que  infpirando  as  normas  de  uma  juífiça  focial  diliributiva, 
tem  de  combinar-fe  com  a  força  expanfiva  das  vontades  in- 
dividuaes,  n'uma  equação  que  o  eftadifla  de  génio  formula  e 


que,  deftruida,  dá  de  fi  as  revoluções  anarchicas  ou  as  ty- 
rannias  brutaes. 

Eis  ahi  o  que  hoje  a  fciencia  do  direito  diz  pela  boca 
do  feu  mais  eminente  cultor,  o  grande  Bluntfchli;  e  por  iffo, 
agora  que  os  nevoeiros  naturaliftas  do  romantifmo  indivi- 
dualiíla  e  liberal  fe  diffipam,  furge  o  momento  propicio  para 
reftabelecer  fobre  o  feu  pedeftal  de  gloria  o  noffo  grande  es- 
tadifta. 

O  que  deixámos  efcripto  moftra  comtudo  que,  fe  nós  ap- 
plaudimos  o  principio  da  fua  legiflação,  não  é  já  do  noífo 
tempo  applaudir  da  mefma  forma  as  theorias  em  que  eífe 
principio  fe  vafava  no  feculo  xviii.  A  ariftocracia  e  á  monar- 
chia  fuccederam  a  egualdade  nas  claífes  e  a  democracia  nas 
inítituições;  mas  a  evolução  natural  das  theorias  não  deftroe 
a  noção  da  fociedade  em  11,  como  realidade  de  exiílencia  col- 
lediva  dos  homens. 

Na  fua  Hijloria  do  Futuro  o  padre  Vieira  efcrevêra:  «Ah! 
fe  os  reis  e  monarchas  confideraífem  que  as  purpuras  que 
veftem  lh'as  empreita  Deus  da  fua  guarda-roupa  para  que 
reprefentem  o  papel  de  reis  emquanto  elle  for  fervido!» 
Então,  na  ferie  de  miniftros  da  egreja  que  por  feculos  to- 
maram fobre  fi  o  veftir  e  defender  os  reis,  o  padre  era  o 
alfayate  dos  foberanos.  O  ideal  da  monarchia  jefuita  era 
theocratico. 

No  feculo  xviii,  lê-fe  nos  preâmbulos  da  lei  de  9  de  feptem- 
bro  de  1769:  «E  fendo  infeparaveis  da  alta  e  independente 
foberania  que  nas  matérias  temporaes  recebi  immediatamen- 
te  de  Deus  Todo  Poderofo  o  poder  de  regular  as  difpofi- 
ções  dos  bens  de  meus  vaífallos  em  commum  beneficio.  .  .  » 
Vê-fe  pois  que  o  fymbolo  fe  fimplificou:  no  Ablblutifmo  o 
rei  é  facerdote  civil. 

Hoje  fó  é  foberana  e  abfoluta  a  fociedade.  Traduzam-fe 
pois  democraticamente  as  formulas  antigas,  e  ver-fe-ha  a 


eis 


cts 


173 

identidade  de  um  penfamento  orgânico  expreíTo  de  um  mo- 
do evolutivamente  variável. 

O  momento  do  Marquez  de  Pombal  precede  o  noíTo ;  o 
noíTo  eftadifta  é  pois  um  precurfor,  embora  a  fua  doutrina  fe 
formulaffe  de  um  modo  já  hoje  caduco  para  nós,  e  a  fua 
empreza  falhaíTe  em  um  paiz  abaftardado  por  dois  feculos 
de  educação  jefuita. 

Oliveira  Martins. 


e|9 


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-i>-^ 


o  MARQUEZ  DE  POMBAL 


A  COMPANHIA  DE  JESUS 


publicação  do  decreto  que  em  3  de  feptembro 
de  1759  expulíou  para /e}7ipre  de  Portugal  e 
feus  domínios  toda  a  forte  e  difciplinada  mi- 
lícia da  Companhia  de  Jelus  é  o  fado,  fe  não 
mais  importante,  pelo  menos  mais  ruidofo  de 
toda  a  vida  publica  do  Marquez  de  Pombal. 
A  eíTe  decreto  audaciofo  deve  o  miniftro  de 
D.  Jofé  o  ler  conhecido  ainda  hoje  d'aquelles  mefmos  que 
não  lêem  a  hiftoria;  porque  o  povo  portuguez,  que  efqueceu 
todos  ou  quafi  todos  os  ados  políticos  da  fua  longa  dida- 
dura,  fixou  eíTe  de  memoria  e,  ao  penfar  agora  na  figura  im- 
perativa e  proeminente  do  eftadifta  revolucionário,  não  vê 
n'elle  nem  o  diplomata,  nem  o  economifi:a,  nem  o  miniftro 
reformador  da  inftrucção  nacional,  mas  o  inimigo  da  Com- 
panhia, o  inclemente  pcrfcguidor  dos  jefuitas. 

Sobre  o  ado  didatorial  de  3  de  feptembro  de  lySg,  pre- 
ludio fignificativo  de  um  rompimento  de  amigáveis  relações 


eis 


Ài 

-<>^ 


tradicionaes  entre  a  corte  portugueza  e  a  cúria  romana,  de- 
correram já  cento  e  vinte  e  dois  annos;  e  no  entanto  ainda 
fe  não  extinguiram  de  todo  as  paixões  que  no  momento  pro- 
vocou. Minoradas,  fem  duvida,  pela  acção  pacificadora  do 
tempo,  é  todavia  certo  que  ainda  hoje  fe  exacerbam  no  fun- 
do de  muitas  confciencias  as  emoções  de  lympathia  ou  de 
rancor  que,  no  accêfo  da  luda,  le  defencadearam  em  torno 
do  enérgico  minifi:ro.  Os  fentimentos  d'eíra  epocha  não  revi- 
verão mais  com  o  vigor  febril  que  os  carafterifou  um  dia, 
nem  a  Europa  do  feculo  xix  tornará  a  ler,  de  certo,  os  pam- 
phletos  virulentos  e  acrimoniofos  com  que  os  amigos  do 
Marquez  e  os  amigos  da  Companhia  inundaram,  na  hora  da 
luda,  a  Europa  do  feculo  xviii;  mas,  porque  exiftem  ainda 
ultramontanos  impenitentes  e  revolucionários  fem  educação 
fcientifica,  taes  fentimentos,  que  um  dia  foram  coUedivos  e 
intenfos,  reapparecem,  embora  individuaes  e  já  enfraqueci- 
dos^ agora  que  fe  celebra  o  centenário  do  homem  que  os 
provocou. 

Ao  eítrepito  formado  pela  conjuncção  defharmonica  de 
encomiaíticas  declamações  e  defconcertados  proteítos,  impor- 
ta refponder  ferenamente  com  a  hiftoria  na  mão.  Compete- 
nos  a  nós,  homens  de  uma  geração  que  fe  educou  no  eftudo 
fevero  da  philofophia  fcientifica,  proclamar  fem  paixões  inop- 
portunas  a  inteira  verdade. 

Para  comprehender  o  fado  hiftorico  da  expulfão  dos 
jefuitas  é  mifter  confideral-o  nas  fuás  caufas  determinantes, 
na  maneira  efpecial  por  que  foi  preparado  e  levado  a  effeito, 
e  ainda  nas  confequencias  a  que  deu  origem.  As  condições 
geraes  do  paiz  ao  tempo  em  que  o  fado  fe  realifou  e  as  in- 
tenções que  prefidiram  no  efpirito  do  miniílro  á  publicação 
do  celebre  decreto,  fão  também  circumftancias  de  que  não 
podemos  abftrahir,  fob  pena  de  fazermos  um  eftudo  incom- 
pleto e  uma  falia  apreciação. 


1  f 


•77 


N^eíle  fentido  examinaremos  as  relações  do  Marquez  de 
Pombal  com  a  Companhia  de  Jefus,  relações  hoftís  cujo 
epilogo  tremendo  foi  o  decreto  de  lySg. 


Ucnoncer  à  ies  voluntés  propres  ert  plus  méritoire  que  de 
réveiller  Ies  morts. 

Pas  d  ennemi  qui  loit  aufTi  dangereQX  que  Tableuce  de 
tout  ennemi. 

LOVOLA. 

Introduzidos  em  Portugal  no  reinado  de  D.  João  III,  os 
jefuitas  alcançaram  rapidamente  Ibbre  os  efpiritos  e  Ibbre  a 
politica  do  paiz,  graças  a  circumítancias  que  adiante  lerão 
eftudadas,  uma  preponderância  que  o  tempo  não  fez  fenão 
acrefcentar  progreíUvamente  até  ao  reinado  de  D.  Jole.  A 
realeza  abfoluta,  apparentemente  foberana,  foi  na  realidade 
pouco  e  pouco  avaíTallada  pela  Companhia;  D.  João  III, 
D.  Sebaftião,  o  cardeal  D.  Henrique  c  D.  João  V  reprefen- 
tam  outros  tantos  e  fucceíTivos  exemplos  da  abdicação  moral 
e  politica  da  monarchia  nas  mãos  do  jefuitilmo.  A  nobreza, 
tão  arrogante  dos  feus  pergaminhos,  tão  ciofa  do  leu  vali- 
mento, lentia-le  inerme  diante  da  humildade  aftuciofa  dos 
jefuitas,  que  no  efpaço  de  poucos  annos  fe  tornaram  em 
Portugal  os  directores  efpirituaes  e  os  meftres  da  ariftocracia 
inteira.  O  povo,  lentamente  fanatifado  e  já  embrutecido  pelo 
terror  dos  autos-da-fé,  veiu  a  fer  também  para  o  jefuita  o 
mefmo  que  efte,  obedecendo  ao  preceito  expreífo  de  Loyola, 
fora  defde  todo  o  principio  para  os  fuperiores  da  Companhia: 
a  lima  na  mão  do  operário.  E  a  própria  Inquifição,  eíTe 
forte  poder  difcricionario  que  D.  João  III  implantara  entre 
nós,  eíTa  inftituição  religiofa  que  tinha  raizes  fundas  na  hirto- 
ria  do  Occidente,  porque  aqui  nafcêra  em  plena  idade  media, 
eíTa  mefma,  poucos  annos  depois  da  inftituição  da  Compa- 


elí 


eis 


c|3 


178 

nhia  de  Jefus  em  Portugal,  lentia-fe  abalada,  reconhecia-fe 
impotente  para  dominar  as  confciencias. 

E  não  era  fó  no  reino  que  a  Companhia  imperava.  Efcu- 
dados  pelo  preftigio  de  S.  Francilco  Xavier,  cobertos  pelo 
nome  e  tradições  do  piedofo  allucinado,  os  jefuitas  viviam, 
antes  mefmo  da  introducção  da  Companhia  em  Portugal,  res- 
peitados, adorados  quafi  na  Afia,  na  Africa  e  na  America. 
Eram  ahi  defde  muito  os  diftribuidores  do  pão  efpiritual  das 
confciencias  e  os  educadores  do  entendimento,  como  foram 
mais  tarde  os  primeiros  capitaliftas,  os  banqueiros  e  os  com- 
merciantes  mais  ricos.  O  Portugal  fanático  para  quem,  como 
oblerva  Francifco  Luiz  Gomes,  a  converfão  dos  infiéis  era 
defde  feculos  uma  paixão  abforvente,  uma  ambição  e  uma 
gloria,  applaudia  commovido  o  jefuitiímo  que  aíTim  avan- 
çava triumphante,  levando  ás  paragens  longiquas  o  ardor 
prolelytico  de  Jefus  e  a  difciplina  fevera  da  Igreja. 

D'onde  emanava  para  a  Companhia  eífe  eftranho  poder 
que  a  tornou  por  toda  a  parte  dominadora  abfoluta  das  con- 
fciencias e  arbitra,  muitas  vezes,  dos  deftinos  políticos  das 
nações?  E  precifo  refponder:  da  ignorância  geral  do  tempo 
em  que  fe  fundou,  da  exaltação  fincera  dos  feus  inflituido- 
res,  dos  proceífos  hábeis  e  da  inquebrantável  difciplina  dos 
feus  foldados.  A  convergência  d'eftes  fadores  é  indifpenfavel 
para  explicar  o  dominio  do  jefuitifmo;  um  fó  não  pôde  ler 
evocado  como  caufa. 

A  ignorância  do  feculo  de  Loyola  fignifica  muito,  mas 
não  explica  tudo;  muitas  ordens  religiofas,  coevas  do  jefui- 
tifmo, não  tinham,  a  defpeito  do  obfcurantifmo  geral,  confe- 
guido  profperar.  A  mefma  Inquifição,  mais  antiga  três  fecu- 
los na  Europa  do  que  a  Companhia  e  contemporânea  d'ella 
em  Portugal,  impoz-fe  pelo  terror,  imperou  pelo  auto-da-fé, 
mas  não  logrou,  explorando  a  ignorância  do  povo  e  dos 
reis,  eftender  os  largos  domínios  efpirituaes  e  temporaes  da 


eia 


c|9 


'79 

Companhia  que  a  minou  como  inftituição  religiofa,  difpu- 
tando-lhe  a  lubmiíTáo  dos  crentes,  e  como  inftituição  politica, 
cerceando-lhe  a  autoridade,  alienando-lhe  as  fympathias 
dos  grandes. 

O  myfticifmo  apaixonado  e  fincero  — porque  o  foi —  dos 
inítituidores  da  Companhia  não  é  também  lufíiciente  para 
explicar  o  império  dos  jefuitas.  Santo  Ignacio  e  S.  Francifco 
Xavier,  fe  lhes  faltaíTem  a  confciencia  do  próprio  valimento 
e  o  efpirito  dilciplinador,  não  teriam  deixado  atraz  de  li,  ao 
morrerem  de  inanição  e  de  febre,  a  forte  Companhia  que  a 
Europa  recebeu  primeiro  para  a  combater  e  expulfar  depois. 
EíTes  homens,  em  quem,  por  uma  fingular  anomalia  pfy- 
chologica  concorriam  llmultaneamente,  como  nota  o  fr.  de 
Pompery,  uma  exaltação  fanática  levada  até  ao  delírio  e 
um  efpirito  methodico  de  organifação  levado  até  á  minúcia, 
não  foram  produdos  efporadicos  e  inconfcientes  do  myfti- 
cifmo catholico;  foram  fim  os  mais  altos  reprefentantes  de 
uma  viva  emoção  genérica,  as  fortes  individualidades  que 
fouberam  aproveitar  e  difciplinar  em  folida  organifação  os 
homens  que  penfavam  e  fentiam  de  egual  maneira,  fob  o 
influxo  de  análogos  fentimentos.  Os  que  a  elles  fe  juntaram, 
conftituindo-fe  foldados  voluntários  da  ordem  nova,  acceita- 
ram  o  pacto  de  fujeição  aos  fuperiores,  indifpenfavel  para 
que  a  unidade  e  a  difciplina  fe  perpetuaífem  inquebrantáveis 
e  puras,  atravez  dos  tempos,  como  na  hora  em  que  um  fen- 
timento  commum  os  congregou  pela  primeira  vez.  D'ahi  a 
pafllva  e  incondicional  fubmiífão  aos  chefes,  que  fempre 
caractcrifou  a  Companhia  como  organifmo  colledivo;  d'ahi 
também  um  poderofo  elemento  de  força  para  o  jefuitifmo. 

Nada  ha  de  extranho  n'eíte  fafto;  a  Igreja  viveu  aíTim 
os  feculos  áureos  do  feu  explendor  e  da  fua  grandeza.  Quando 
a  unidade  fe  rompeu,  quando  o  efpirito  de  livre  exame  des- 
pontou e  os  fcifmas  fe  declararam,  a  barca  de  S.  Pedro,  fen- 


eis 


iSo 

dida,  aberta  de  todos  os  lados,  metteu  agua  e  principiou  a 
defcer,  por  forma  que  já  não  ha  marinhagem  robufta  que  a 
falve  do  naufrágio. 

Mas  o  obfcurantifmo  focial,  as  intenções  primitivas  dos 
inítituidores  da  Companhia,  a  forte  difciplina  dos  léus  mem- 
bros ainda  não  baítam  para  explicar  o  phenomeno  que  efta- 
mos  examinando  do  crefcente  poderio  do  jefuitifmo:  os  pro- 
ceíTos  efpecialiffimos  empregados  para  dominar  a  fociedade 
conflituem,  como  annunciâmos,  um  elemento  indifpenfavel 
da  etiologia  do  fafto.  EíTes  proceíTos  foram  os  mais  hábeis  e 
os  mais  radicaes  que  é  poffivel  conceber;  no  emprego  d'elles 
não  ha  aflucia  apenas,  ha  talento  também. 

Seguindo  as  tradições  do  catholicifmo,  a  Companhia,  pe- 
netrou n'eífes  três  grandes  baluartes  de  acção:  o  púlpito,  o 
coníiíTionario  e  a  efcola.  Mas,  porque  exiftia  já  dentro  dos 
invencíveis  redudos  uma  população  notável  de  emiíTarios  de 
todas  as  ordens,  reprefentantes  de  todas  as  inftituições  reli- 
giofas,  o  jefuita  procurou  inutilifal-os;  a  Companhia,  com  ef- 
feito,  accentúa  lucidamente  o  fr.  Oliveira  Martins,  não  le  li- 
mitava a  concorrer,  queria  dominar  abfoluta.  Era  precifo 
confeguir  que  o  púlpito,  o  coníiíTionario  e  a  efcola  paíTaflem 
á  exclufiva  poífe  do  jefuita.  A  cmpreza  era  diíiicil,  eriçada 
de  fortes  obftaculos;  mas,  precifamente  porque  o  era,  impor- 
tava tental-a.  A  Companhia  de  Jefus  foi  fempre  uma  focie- 
dade de  combate;  aíTim  a  caraderifou  Santo  Ignacio  de  Loyola 
quando  diífe:  não  ha  mais  pérfida  tempeftade  que  a  calma- 
ria, nem  mais  perigofo  inimigo  que  a  aufencia  de  todo  o  ini- 
migo. 

Para  confeguirem  o  fim  ambiciofo  que  fe  propunham,  os 
jefuitas  focorreram-fe  dos  papas  de  quem  fouberam  habil- 
mente confeguir  para  a  Companhia  immunidades,  indulgên- 
cias, difpenfas  e  privilégios  taes  que  nenhuma  outra  ordem 
pôde  defde  então  fazer-lhe  concorrência  na  alliciação  dos  de- 


c|3 


votos.  Os  jeluitas,  aos  votos  ordinários  de  pobreza  e  caftidade, 
tinham  juntado  o  de  obediência  elpecial  e  abfoluta  ao  papa. 
Efte  additamento  iilbnjeára  por  tal  modo  os  chefes  lupremos 
do  catholicifmo  que  as  bulias  de  1549,  i582  e  1(384  i-hegani 
a  conceder  aos  jeluitas  nada  menos  que  o  poder  de  reformar 
os  ertatutos  da  ordem,  accommodando-os  ás  neceffidades 
de  occalião,  fem  pré^•ia  confulta  á  fanta  fé.  Os  jefuitas  co- 
meçaram affim  por  manietar  os  próprios  papas,  eftabele- 
cendo,  pelos  meios  brandos  da  legalidade,  a  almejada  inde- 
pendência da  Companhia.  O  primeiro  palTo  eftava  dado.  At- 
trahidos  e  fafcinados  os  crentes  e  os  devotos  pelos  privilégios 
excepcionaes  da  ordem  nova,  importava  agora  manter  a  co- 
hefão  efpiritual  pelo  enfmo,  pela  predica  e  pela  coníàíTão. 

N"efle  intento  abandonaram  os  jefuitas  os  velhos  proces- 
fos  terroriftas  e  bárbaros  de  outras  inftituições  religiofas.  Con- 
vinha fer  aífavel  e  brando;  convinha  depor  a  feveridade  que 
gera  o  medo  para  revellir  a  complacência  que  produz  o  amor. 
AíFim,  ás  perfpedivas  do  inferno,  ás  deprimentes  ameaças 
de  eternos  caftigos  de  que  tanto  ufou  e  abufou  defde  o  co- 
meço o  myíticifmo  catholico,  oppunham  agora  os  jefuitas  as 
promeífas  de  perdão  e  as  efperanças  de  refgate  ainda  aos 
mais  criminofos.  Por  iffo  a  Companhia  triumphou  da  pró- 
pria Inquifição.  Francifco  Luiz  Gomes  frifa  bem  eíte  ponto 
quando  efcreve:  «A  Inquifição  empregava  como  proceífos 
únicos  de  acção  a  ameaça,  a  tortura  e  a  fogueira.  A  Com- 
panhia de  Jefus  tirava  a  fua  força  das  efperanças  que  fazia 
defpontar  no  coração  dos  defefperados,  das  confolações  que 
dava  aos  inconfolaveis,  do  feu  amor  por  todos.  A  Inquifição 
era  um  tribunal;  a  Companhia  uma  fociedade.  Uma  queimava 
os  corpos ;  a  outra  inflammava  as  confciencias' « .  E  os  jefuitas 
não  foram  fó  complacentes  e  brandos;  foram  mefmo  aftucio- 


'  F.  L.  Gomes,  Marquis  de  Pombal,  efquijje  de /a  rie  publique,  iSôg. 


s|3 


IS2 


famente  opportunijias.  Para  fe  elevarem,  para  exercerem  do- 
mínio conveiu-lhes  ao  principio  tranfigir  com  os  vicios  e  a 
immoralidade  dos  grandes;  e  tranfigiram  até  ao  ponto  de 
baixarem  á  categoria  de  meras  culpas  e  peccados  veniaes 
os  maiores  crimes,  os  vicios  mais  abjedos.  Que  importa,  di- 
ziam entre  li,  que  os  meios  lejam  maus  íe  o  fim  é  bom?  O 
próprio  Santo  Ignacio  juftificava  eíTa  tranfigencia,  porque 
differa:  aos  homens  inteiramente  abforvidos  pelos  intereíTes 
mundanos  não  fe  falle  abruptamente  na  falvação  da  alma; 
feria  empregar  uma  armadilha  fem  engodo.  E  a  Companhia, 
commentando  praticamente  a  máxima  do  meftre,  mundani- 
fava-fe  um  pouco,  tranfigia  com  a  corrupção,  lifonjeava 
quantos  podiam  concecier-lhe  uma  parcella  de  aucloridade, 
creava  emfim  uma  vafta  clientella. 

A  moral  fácil  do  jefuitifmo,  tão  diverfa  da  frieza  fombria 
e  glacial  de  outras  ordens,  era  um  attraclivo.  Quem  deixaria 
de  procurar  aos  pés  do  confeífor  jefuita  a  abfolvição  que  os 
outros  padres  negavam?  Quem  iria  trocar  pela  feveridade  que 
faz  das  pequenas  culpas  grandes  peccados  a  benevolência 
complacente  que  reduz  os  crimes  a  leves  faltas?  Ninguém, 
de  certo;  e  muito  menos  os  grandes.  Aífim  é  que  os  reis  pro- 
curaram de  preferencia  os  jefuitas  para  confeflbres.  A  expo- 
fição  devota  de  efcrupulos  e  de  peccados  fempre  abfolvidos 
feguiu-fe  naturalmente  a  confiança  e  a  fympathia  dos  mo- 
narchas  pelos  jefuitas;  e  todos  fabem  hoje  como  os  aflutos 
confeífores  exploraram  em  proveito  próprio  e  da  Companhia 
eífes  ingénuos  fentimentos  fobre  os  quaes,  como  folidos  ali- 
cerces, conftruiram  o  edifício  da  fua  enorme  auítoridade. 

Conquiftada  a  realeza  pelo  confiífionario,  os  nobres,  pres- 
furofos  de  feguir  o  exemplo  que  vinha  do  alto,  caíram  egíial- 
mente  aos  pés  dos  jefuitas;  os  que  não  envergaram  o  habito 
da  ordem,  confiaram-lhes  a  direcção  das  confciencias  e  a 
educação  dos  filhos.  A  plebe,  imitadora  inconfciente  das  ai- 


eis 


4^ 

i83 

tas  camadas  Ibciaes,  procurou  também  no  llgillo  do  confiíTio- 
nario  jcíuita  uma  parcella  das  indulgências  e  do  perdão  que 
pareciam  trazer  confolados  e  felizes  os  grandes  do  reino. 

Eftava  tomado  o  primeiro  redudo;  já  ninguém  Ic  atre- 
via a  difputar-lhes  a  poíTe. 

Reftava  conquiílar  a  efcola  c  o  púlpito,  pondo  cm  de- 
bandada beneditinos  e  francifcanos.  Foi  o  que  a  Companhia, 
protegida  pelos  reis  e  dilpondo  de  bons  meftres  e  de  bons 
pregadores,  confeguiu  rapidamente.  Ninguém  orava  com  mais 
eloquência,  ninguém  conhecia  melhor  os  fegredos  do  enfino; 
fobretudo,  ninguém  como  o  jeluita  accumulava  nos  templos 
quando  pregava  e  nas  efcolas  quando  enfinava,  Ibciedade 
mais  feleíta:  —  a  fina  flor  da  ariftocracia,  a  corte,  os  burgue- 
zes  opulentos.  Ninguém  podia  concorrer  com  o  jefuita  na 
conceíTão  de  indulgências,  ninguém  lábia  aclarar  como  elle 
os  myíferios  do  grego  e  do  latim.  Na  própria  Allemanha  pro- 
tef1:ante,  nota  o  Ir.  Oliveira  Martins,  todos  concordavam  em 
que  a  mocidade  aprendia  mais  e  melhor  com  os  padres  da 
Companhia,  que  com  todos  os  outros  meftres.  Fácil  foi  aos 
jefuitas  monopoliíar  o  eníino.  D.  João  III  entregou-lhes  em 
i555  o  Collegio  das  artes,  e  prohibiu  a  entrada  para  a  uni- 
verfidade,  nas  faculdades  de  direito  e  theologia,  a  quem  não 
tiveíTe  eftudado  ali  os  preparatórios.  O  collegio  de  Évora,  de 
profeíTores  jefuitas,  foi  em  i55g  elevado  á  categoria  de  uni- 
verfidade,  e  os  doutores  d'ella  faídos  equiparados  em  foros 
aos  de  Coimbra. 

AíTim  o  jefuitifmo  avaíTalára  tudo  em  Portugal;  o  clero 
das  outras  ordens  religiofas  e  os  padres  leculares  fentiam-fe 
inútil ifados.  O  confiíTionario,  o  púlpito  e  a  efcola  eftavam 
nas  mãos  da  Companhia  que,  para  tudo  ter  por  fi,  creára 
também  um  thcatro  popular  onde  ás  vivas  reprefentações  dos 
autos  de  Gil  Vicente  fubftituiu  o  deíempenho  das  iníuUás 
e  narcóticas  tragi-comedias  latinas. 


184 

Senhora  abfoluta  do  reino,  o  que  fez  a  Companhia?  Pro- 
curou reahfar  o  ideal  myftico  dos  inítituidores,  deftruindo 
no  homem  a  intelligencia  e  a  vontade  para  reduzil-o  á  pas- 
fividadc  abfoluta  e  ao  completo  automatifmo  que  deftroem 
o  cidadão  e  fazem  apparecer  no  logar  d'elle  o  afceta.  Não  fe 
efqueça  que  a  Companhia  de  Jefus  foi  fundada  para  coníb- 
lidar  o  principio  catholico  da  auftoridade,  á  hora  meíma 
em  que  o  proteftantiímo  apparecia,  como  reforma  religioía, 
apoiada  no  principio  do  livre  exame.  A  Companhia  repre- 
fenta  pois  uma  reacção  contra  a  liberdade  e  a  favor  do  ca- 
tholiciímo.  Luthero  preconifava  a  livre  dilcuíTão,  a  inde- 
pendência do  crente  em  matérias  de  confciencia  religiofa; 
Santo  Ignacio  exaltava  a  doutrina  oppofta  da  obediência 
paíTiva  do  homem  á  Igreja  e  ao  papa  que  a  reprefenta.  Mas 
aíTmi  como  o  livre  exame  é  uma  chimera  onde  não  exifte  a 
intelligencia  eíclarecida  e  a  vontade  forte,  aíTim  a  autori- 
dade abfoluta  é  uma  ficção  onde  não  ha  o  entendimento 
atrophiado  e  a  efpontaneidade  morta.  Por  iíTo  a  Companhia, 
auftoritaria  e  papifta,  comprehendeu  a  neceffidade  eíTencial 
de  deftruir  o  homem  tal  como  a  natureza  o  fizera,  efpon- 
taneo  na  intelligencia  e  na  vontade,  para  reduzil-o  a  um 
cadáver,  como  Santo  Ignacio  dizia  com  lelvagem  energia. 

Poderá  parecer  a  efpiritos  menos  reflexivos  (e  tem-fe  es- 
cripto)  que  a  Companhia  não  vifava  a  deftruir  o  entendimen- 
to; crer-fe-ha  até  que,  enfinando  o  jeluita  melhor  do  que 
ninguém,  longe  de  aniquilar  a  rafão  humana,  elle  fe  propu- 
nha robuftecel-a.  Attenda-fe  porém:  o  enfino  é  um  meio 
educativo  que  pôde  dar  tantos  effeitos  diíTerentes  quantos  os 
proceíTos  que  n'elle  fe  empregarem  e  os  objectos  fobre  que  fe 
exercer.  O  enfino  que  produz  o  fabio  e  o  philofopho,  cria 
também  o  fimples  erudito;  a  efcola  que  produz  os  grandes 
penfadores,  dá  de  fi  igualmente  os  cafuiftas  inúteis.  Importa, 
pois,  quando  fe  falia  de  enfino,  inquirir  dos  proceflbs  por  que 


4^ 
.-<0>-l- 

i85 

clle  fe  faz  o  dos  aíllimptos  fobre  que  fe  exerce.  Todos  com- 
prehendem  que  não  é  indifferente  enfinar  a  cartilha  ou  a 
mathematica,  enfinar  pelos  proceíTos  fecundos  das  fciencias 
cxperimentaes  ou  pela  dialedica  eíferil  do  probabilifmo  theo- 
logico.  O  que  eníinaram  e  como  enfinaram  os  jefuitas?  Eis  o 
que  importa  determinar  para  comprehender  na  eíTencia  a 
acção  hiftorica  da  Companhia. 

Na  efcola  primaria  os  jefuitas  propinavam  á  infância  a 
doutrina  chriftã  compilada  na  cartilha  de  Canillo,  primeiro 
provincial  da  Ordem  na  Allemanha;  na  efcola  fecundaria 
profeífavam  as  linguas  mortas  —  o  grego  e  principalmente 
o  latim;  nas  efcolas  fuperiores,  emfim,  reftaurando  o  trimim 
da  Efcolaftica,  efmagavam  os  cérebros  juvenis  fob  a  ava- 
laiiche  da  grammatica,  da  rhetorica  e  da  dialeclica.  A  car- 
tilha principiava  na  creança  a  obra  de  atrophiamento  e  de 
intoxicação  mental  que  no  adolefcente  viriam  acabar  os  fuc- 
cedaneos  enérgicos  do  tripiíim  de  Alcuino.  Os  jefuitas  remon- 
tavam habilmente  á  idade  media.  A  cartilha,  infulfo  repo- 
fitorio  de  orações  e  dogmas,  não  feria  comprehendida,  mas 
decorada  e  inconfcientemente  repetida,  pela  infância;  para 
a  formação  do  futuro  homem-cadaver  nada  convinha  me- 
lhor. A  grammatica,  tão  abftrada  e  tão  árida,  enfinada  na 
idade  em  que  o  fentimento  moral  irrompe  e  quando  os  cére- 
bros defpertam  cheios  de  curiofidade  e  de  vida,  era  tam- 
bém um  poderofo  veneno,  um  narcótico  excellente;  affim  o 
penlbu  o  inftituidor  Laynez.  A  rhetorica,  banalidade  retum- 
bante, e  a  dialeftica,  difíicil  machinifmo  de  engrenagens  fyl- 
logiíticas,  epichrematicas  e  Ibriticas,  tão  apparatofo  e  tão 
infecundo,  convinham,  de  certo,  á  creação  de  pedantes  e  fa- 
bios  falfos,  fervidores  da  Igreja  e  do  papado.  O  eífudo  das 
linguas  mortas  conftituia  uma  diverfão  de  todo  innocente 
fendo,  como  era,  fimultanea  com  a  aprendizagem  do  cate- 
chifmo,  da  grammatica  e  da  dialeftica.  «A  Companhia  dava 


^^ -6^ 


iS6 

nas  Seleãas,  diz  o  fr.  Oliveira  Martins,  os  textos  claíTicos, 
bons  para  exercicios  rhetoricos,  fem  perigo  de  que  os  leito- 
res comprehendeflem  e  íe  namoralTem  do  naturalifmo  vivo 
da  antigvúdade'». 

O  eftudo  das  Iciencias,  eíTc  era  pelo  jeluita  pofto  de  la- 
do; eftava  ahi  o  contra-veneno  que  ao  neophito  era  precilb 
cuidadofamente  efconder.  Para  o  enfino  da  mathematica  ha- 
via na  Univerfidade  uma  cadeira  apenas;  e  a  medicina,  in- 
terdigas as  diíTecções  anatómicas  e  as  vivifecções,  tornára-le 
um  eftudo  fem  bafes,  um  ofiicio  de  atrevidos  curandeiros. 
Não  fe  confultava  a  natureza,  liam-fe  os  livros;  não  fe  eftu- 
davam  idéas,  decoravam-fe  palavras  e  formulas. 

A  educação  jefuita  foi  efta;  Portugal  que  a  recebeu  ficou 
emparvecido  e  narcotifado  a  dormir  um  fomno  de  feculos. 
A  Companhia,  realifados  n'efte  canto  do  Occidente  o  delejo 
e  a  afpiração  de  Loyola,  transformado  o  paiz  n'uma  popula- 
ção de  fomnambulos,  difpoz  difcricionariamente  de  todos  e 
de  tudo.  O  dominio  efpiritual  abfoluto  e  inconteffado  trou- 
xe naturalmente  comfigo,  por  uma  inevitável  generalifação, 
o  poder  temporal;  e  affim  é  que  não  ha  pendência  interna- 
cional ou  queftão  de  politica  interna  portugueza  nos  feculos 
XVI,  XVII  e  XVIII  em  que  o  jefuita  não  figure,  fe  lhe  convém. 
No  Brazil  acontecia  o  mefmo;  e  no  Paraguay,  no  primeiro 
quartel  do  feculo  xviii,  o  indígena,  vergaífado  pelo  jefuita, 
beijava  fervilmente,  como  um  rafeiro,  a  mão  que  o  ferira 
em  nome  de  Deus! 

II 

O  eftado  de  apathia  e  corrupção  profunda  a  que  no  meia- 
do  do  feculo  xviii  chegara  o  paiz,  educado  pela  Companhia, 
reclamava  medidas  enérgicas  de  reforma.  Em  plena  monar- 


cas 


■  J.  P.  Oliveira  Martins,  Hi/hiria  du  Portugal,  vol.  ii.  Lilboa,  1881. 


«is 


■  87 

chia  abfoluta  eíTas  medidas  não  podiam  partir  da  nação; 
tentou-as  o  poder  minifterial  reprelentado  em  Sebaílião  Jole 
de  Carvalho  e  Mello.  Veremos  de  que  maneira,  com  que  re- 
fultados  e  Ibb  que  intenções.  Sem  a  difcuíTão  d'eftes  três 
pontos  mal  le  comprehenderá  a  acção  hiftorica  do  miniftro 
de  D.  Jole. 

Penfam  muitos  ainda  hoje,  e  tem-fe  efcripto  com  deplo- 
rável leviandade  que  Carvalho  e  Mello,  expullbr  dos  jeluitas, 
foi  um  livre  penlador.  Não  feria  para  eftranhar  que  afllm  ti- 
veíTe  acontecido,  porque  o  eftadifta  portuguez  pertenceu  ao 
feculo  de  Voltaire,  de  Condorcet,  de  Diderot,  d'Alambert,  ao 
feculo  dos  encyclopediftas  que,  emancipados  da  theologia, 
fizeram  ouvir  na  Europa  o  grito  revolucionário  e  tremendo: 
nem  padres,  nem  reis  abfolutos!  A  verdade,  porém,  é  que  o 
Marquez  de  Pombal  não  feguia  a  linha  doutrinaria  traçada 
pelos  grandes  efpiritos  do  leu  tempo.  Que  os  energúmenos 
religiofos  recolham  as  luas  iras  e  os  livres  penfadores  as  luas 
apologias  até  occafião  mais  própria:  o  Marquez  de  Pombal 
não  pôde  juftamente  fervir  de  objeftivo  nem  de  umas,  nem 
de  outras.  O  Marquez  foi  um  bom  catholico,  um  pouco  in- 
coherente,  é  verdade,  a  quem  Voltaire  farcafticamente  cha- 
mou o  amigo  da  Inquijição.  Grande,  certamente,  fe  o  com- 
parámos á  raça  de  pigmeus  devotos  do  Portugal  jcíuita,  o 
Marquez  fica  todavia  muito  áquem  dos  grandes  homens  do 
feu  feculo,  na  moral  e  no  entendimento.  Voltaire  chegou 
mcfmo  a  rir-fe  um  pouco  d'efta  pcrfonalidade,  que  do  fun- 
do do  feu  orgulho  de  burguez  colérico  e  acrimoniofo  decla- 
rava, em  nome  da  nação,  guerra  á  Companhia  de  Jefus  para 
fubmettel-a  depois  na  peflba  do  padre  Malagrida  ao  julga- 
mento do  mais  abjedo  e  impopular  dos  tribunaes,  a  Inquifi- 
ção.  Fazendo  nas  palavras  do  philolbpho  francez  um  certo 
defconto  de  ironia  —  defconto  a  que  nos  obriga  o  conheci- 
mento de  Portugal  no  feculo  paífado —  é  mifler  concordar 


188 

em  que  ha  iVellas  um  fundo  de  bom  fenlb  e  de  jufta  com- 
preheníao.  É  o  que  vê  quem  examina  defpreoccupadamente 
a  hiftoria. 

A  luda  contra  os  jefuitas  por  parte  de  Carvalho  e  Mello, 
que  ao  tempo  não  polTuia  ainda  o  titulo  por  que  é  mais  co- 
nhecido, irrompeu  no  momento  em  que  o  governo  de  D.  Jóle, 
procurando  executar  o  tratado  pelo  qual  a  Hefpanha  cedia  o 
Paraguay  aos  portuguezes  em  troca  da  colónia  do  Sacramento, 
encontrou  por  parte  dos  paraguayenfes  uma  violenta  reacção 
armada,  que  os  padres  da  Companhia  levantaram  e  mantive- 
ram com  fmgular  tenacidade  e  pericia.  Documentam  a  habi- 
lidade com  que  os  jefuitas  fouberam  tornar  forte  a  revolta 
americana,  as  cartas  do  general  Gomes  Freire  e  do  gover- 
nador do  Maranhão,  Xavier  Mendonça.  Efte  ultimo  efcrevia 
a  Carvalho  e  Mello,  feu  irmão:  «Não  poíTo  reprimir  os  je- 
fuitas; a  lua  politica  fagaz  pôde  mais  que  os  meus  cuidados. 
Logram  fobre  os  indígenas  uma  influencia  abfoluta ' » . 

Para  caítigar  a  audácia  da  Companhia,  Carvalho  e  Mello 
principiou  por  mandar  publicar  dois  decretos  conformes  ao 
breve  Immenfa  Paftonim  Prindpis,  pelo  qual  Benedido  XIV 
prohibíra  aos  padres  jefuitas,  ao  tempo  de  D.  João  V,  intro- 
metterem-fe  em  negócios  feculares.  Efte  breve,  que  os  jefui- 
tas tinham  deixado  cair  em  efquecimento,  era,  pela  origem 
d'onde  partia,  oífenílvo  da  dignidade  e  completa  indepen- 
dência da  Companhia;  recordal-o,  foi  o  grito  de  guerra.  Ao 
mefmo  tempo  Carvalho  inculcou  a  D.  Jofé  a  neceffidade  de 
defpedir  todos  os  jefuitas  confeífores  da  familia  real  e  da 
corte,  prohibindo-lhes  expreífamente  defde  eífe  dia  a  entra- 
da no  palácio.  O  rei  accedeu  á  vontade  do  miniftro;  e  os 
jefuitas,  perdido  o  confifllonario  real,  experimentaram  um 


I     S.  J.  L.  Soriano,  Hiftoria  do  reinado  de  el-rei  D.  Jofé  e  da  adminiflra- 
çáo  do  Marque'^  de  Pombal,  tom.  i.  Lilboa,  1S67. 


elj 


189 

rude  golpe,  precurlbr  de  outros  maiores.  Não  contente  ainda, 
Carvalho  mandou  redigir  um  relatório  ou  memoria  de  todos 
os  crimes  da  Companhia  na  America  até  lySy.  Efta  memo- 
ria devia  ler  prelente  ao  papa  pelo  embaixador  portuguez 
em  Roma,  Francifco  de  Almada.  Carvalho  efperava  que  o 
papa,  indignado  d  vifta  da  expofição  d'eíres  crimes,  que 
eram  muitos  e  grandes,  lançaíTe  mão  de  meios  enérgicos  e 
violentos  contra  os  jefuitas.  As  elperanças  do  minirtro  tinham 
algum  fundamento;  o  papa  era  o  mefmo  que  annos  antes 
desfechara  contra  a  Companhia  o  breve  Lnmeufa  Pajlorum 
Priucipis.  Carvalho  enviando  a  Francifco  de  Almada,  íeu  pri- 
mo, o  relatório,  efcrevia-lhe  ao  mefmo  tempo  uma  longa  carta 
na  qual  lhe  ordenava  que  mantiveíTe  junto  do  papa  uma  at- 
titudc  enérgica.  N'eíra  carta  Carvalho  contava  minuciofamen- 
te  a  Almada  os  crimes  dos  jefuitas  em  Portugal,  attribuindo- 
Ihes  calumniofamente  o  levantamento  popular  do  Porto  por 
occafião  da  inílituição  monopolifta  da  Companhia  dos  Vinhos 
do  Alto  Douro.  N'eífa  revoha  defpoticamente  abafada  por 
Carvalho,  o  jefuita  não  entrara.  O  miniftro  de  D.  Jofé  fa- 
bia-o  perfeitamente ;  mas,  convindo-lhe  ver  a  Companhia  em 
toda  a  parte,  não  vacillava  em  defcer  á  calumnia. 

O  leitor  admira-fe,  de  certo,  que  um  miniífro  da  efta- 
tura  de  Carvalho  e  Mello  falfiíicaíre  a  verdade.  Mas  infeliz- 
mente era  aíTim;  e  a  hilloria  tem  obrigação  de  dizel-o.  Fran- 
cifco Luiz  Gomes,  profundamente  affeiçoado  á  memoria  do 
eftadifta  portuguez  e  audor  de  um  livro  Ibbre  a  fua  vida,  o 
mais  confcienciolb  que  conhecemos,  efcreve:  »Um  outro  de- 
feito tinha  que  não  podemos  pcrdoar-lhe:  é  a  pouca  exactidão 
e  a  pouca  linceridade  com  que  narrava  os  fados,  quando 
iífo  lhe  podia  convir  aos  feus  intuitos'».  E  mais  adiante: 
«Raras  vezes  fallava  fmceramcnte  nos  feus,  cfcriptos;  allega- 


'  F.  L.  Gomes,  obr.  cil-,  pag.  192. 


igo 


va  fempre  intenções  e  motivos  diverfos  na  realidade  dos  que 
o  levavam  a  aftuar'».  O  mefmo  au6lor  já  antes  diíTera: 
«Carvalho  não  fazia  efcrupulo  dos  meios  a  empregar, quando 
mefmo  elles  foíTem  os  mais  indignos^».  Vc  bem  o  leitor  que 
não  fizemos  uma  affirmação  gratuita  quando  declarámos  o 
Marquez  de  Pombal  inferior  em  moralidade  aos  grandes 
homens  do  feu  tempo. 

Quem  lè  poderá  perguntar  ainda:  Para  que  mentir  e 
calumniar  na  accufação  dos  jefuitas,  fe  a  fimples  realidade 
dos  lliccelTos  os  condemnava?  Condemnava  e  condemna,  de 
certo,  para  quem  labe  ver  a  acção  íntima  da  Companhia  nos 
feus  grandes  proceíTos  de  corrupção,  para  quem  por  um  es- 
tudo attento  chega  a  reconhecer  que  o  abulo  do  poder  tem- 
poral e  os  crimes  políticos  do  jeluitifmo  fão  naturaes  e  ne- 
ceffarias  confequencias  dos  próprios  princípios  audoritarios 
da  Ordem  e  do  catholicifmo  que  ella  genuinamente  repre- 
fenta.  Huber  diz  com  lucidez  extrema:  «E  precifo  não  es- 
quecer que  os  attentados  da  Companhia  contra  a  Igreja  e 
contra  o  efpirito  humano  foram  antes  d'ella  enlaiados  pelo 
papado,  recaindo  pois  uma  parte  da  refponlabilidade  d'eíres 
crimes  fobre  a  cúria  romana,  de  que  os  jeluitas  não  foram, 
no  fim  de  tudo,  mais  do  que  a  milicia  elpiritual'».  Afllm  a 
condemnação  do  jefi.iitirmo  envolve  a  da  religião  catholica; 
a  Companhia  é  uma  fuccurfal  da  Cúria.  O  miniftro  de  D. 
Jofé,  porém,  não  viu  iffo.  F.  L.  Gomes  diz  expreíTamente : 
«Carvalho  nunca  accuíbu  os  jefuitas  de  pertencerem  a  uma 
fociedade  cujas  máximas  foíTem  contrarias  á  moral  de  Chrifto 
e  á  independência  e  fegurança  dos  Eftados  e  dos  príncipes. 
Accufava-os,   fim,  de  fe  terem  defviado  dos  princípios  de 


'  F.  L.  Gomes,  obr.  cit.,  pag.  194. 

2  Ibid.,  pag.  iSi. 

3  Huber,  Les  Jéfiiites,  traJucção  franceza.  Paris,  1S74. 


4À9 

'9' 

Santo  Ignacio  e  dos  exemplos  de  S.  Francilco  Xavier.  .  . 
CoUocado  n'efte  terreno  movediço,  emmudecia  muitas  vezes 
diante  do  argumento  dos  adverfarios  que  liie  diziam:  fe  exis- 
tem abulbs,  reformae-os,  mas  não  toqueis  na  inftituição,  cuja 
pureza  Ibis  o  primeiro  a  reconhecer ' » .  Carvalho  e  Mello  não 
viu,  pois,  claramente  o  problema  que  tentava  refolver.  Como 
catholico  que  era,  não  percebeu  a  acção  effencial  da  Com- 
panhia; viu  apenas  os  abulbs,  viu  as  confequencias,  mas  não 
foube  reconhecer  que  um  fio  lógico,  refiftente  e  neceíTario,  as 
prendia  indiíToluvelmente  aos  principios  de  Santo  Ignacio. 
Aífim,  quando  os  crimes  e  os  abulbs  dos  jefuitas  lhe  pare- 
ciam pequenos  ou  pouco  numerofos  para  reclamar  do  papa, 
em  nome  d'elles,  medidas  enérgicas  contra  a  Companhia, 
avolumava-os,  multiplicava-os. 

Proíigamos,  porém,  a  noíTa  narrativa. 

Chegadas  a  Roma  a  memoria  official  contra  os  jefuitas 
e  a  carta  particular  que  a  acompanhava,  Almada  procurou 
immediatamente  o  papa.  Benediclo  XIV  excitado,  como  Car- 
valho previra,  pela  leitura  da  memoria,  pirometteu  defde  logo 
a  Almada  chamar  o  geral  dos  jefuitas,  e  fazer-lhe  fentir 
quanto  os  religiolbs  da  Companhia  fe  tinham  afaftado  da 
moral  chriftan  e  da  pratica  dos  feus  deveres.  Almada,  porém 
inítigado  pela  carta  particular  do  primo,  não  fe  contentou 
com  tão  pouco;  lembrou  ao  papa  que  os  abulbs  da  Compa- 
nhia reclamavam  mais  fevero  caftigo  que  uma  fimples  adver- 
tência paternal.  O  papa  concordou  e  decidiu,  a  pedido  de 
Almada,  que  foífe  nomeado  um  ^  ilitador  e  reformador  da  Or- 
dem dos  jefuitas  com  auctoridade  baftante  para  reprimir  em 
Portugal  e  feus  domínios  os  abufos  d'eft:es  padres.  O  vifita- 
dor  e  reformador  feria  o  cardeal  Francifco  de  Saldanha,  pes- 
foa  aífeiçoada  ao  governo  portuguez. 


'  F.  L.  Gomes,  loc.  cii. 


ti» 


192 

Efta  negociação  era  grave,  e  reclamava  por  parte  dos 
intereíTados  um  ablbluto  íegredo.  O  cardeal  Timoni,  le- 
cretario  do  papa,  era  amigo  dos  jeluitas  e  podia  levantar 
difficuldades  ao  plano  de  Almada;  Benedifto  XIV  affim  o 
comprehendeu,  mandando,  a  inftancias  do  embaixador  por- 
tuguez,  expedir  pelo  cardeal  Pacionci,  amigo  de  Almada,  o 
breve  In  fpecula  fiipremae  dignitatis,  que  invertia  Saldanha  no 
cargo  de  reformador  da  Companhia.  O  breve  foi  minutado 
pelo  próprio  fecretario  particular  do  embaixador  portuguez  e 
fielmente  copiado  por  Pacionci.  Não  ficaram  lem  recompen- 
fa  os  bons  ferviços  d'en:e  cardeal.  Alludindo  a  elle,  Almada 
efcrevia  ao  primo:  «Não  fe  efqueça  de  enviar-me  aiineis  de 
brilhantes  ou  coufa  digna  de  fer-lhe  offerecida » .  Veremos 
adiante  que  papel  Carvalho  fez  defempenhar  ás  pedras  pre- 
ciofas  no  luborno  dos  cardeaes  durante  todo  o  feguimento 
das  negociações  diplomáticas  contra  os  jefuitas. 

O  breve  In  fpecula  fiipremae  dignitatis,  de  cuja  expedi- 
ção os  jefuitas  não  fouberam,  mau  grado  o  zelo  infatigável 
dos  feus  amigos  em  Roma,  foi-lhes  intimado  juridicamente 
em  12  de  maio  de  lySS,  formando-fe  auto  d'eíTa  formalida- 
de folemne. 

Francifco  de  Saldanha  inftigado  por  Carvalho  e  Mello, 
não  delcanfou.  Três  dias  depois  da  intimação  do  breve,  o 
cardeal  reformador  publicava  uma  paftoral  cheia  de  termos 
violentos,  cm  que  prohibia  expreíTamente  aos  jefuitas  o  com- 
mercio  de  mercadorias  provenientes  da  Afia,  da  Africa  e  da 
America,  e  bem  affim  as  operações  bancarias  de  toda  a  or- 
dem a  que  defde  muito  fe  entregavam,  fazendo  concorrência 
aos  feculares.  N'eíra  paftoral  os  jefuitas  eram  comparados 
aos  « Numularios  e  vendilhões  que  Chrifto  azorragára  no  tem- 
plo». Os  golpes  vibrados  pelo  próprio  clero  contra  a  Com- 
panhia eram  profundos  e  fucceffivos.  A  7  de  junho  do  mes- 
mo anno  o  cardeal  patriarcha  de  Lifboa,  D.  Jofé  Manuel, 


ri 


■93 

mandou  affixar  ás  portas  das  igrejas  um  edital  em  que  fus- 
pendia  aos  jeíuitas  a  faculdade  de  confeíTar  e  pregar  não 
fó  dentro  da  capital,  mas  em  todo  o  patriarchado.  Seguindo 
o  exemplo  do  prelado  de  Lifboa,  todos  os  bifpos  do  reino 
paíTaram  igual  ordem  nos  domínios  das  fuás  refpeftivas  dio- 
cefes.  Os  jefuitas  perdiam  tudo. 

Entretanto,  da^■a-fe  em  Roma  um  acontecimento  funeíto 
ás  pretenfões  da  corte  portugueza:  Benedi6fo  XIV  expirava. 
PaíTemos  por  fobre  a  hiftoria  indecorofa  de  intrigas,  de  fu- 
bornos,  de  corrupções  de  toda  a  efpecie  que  caraderifaram 
a  eleição  do  novo  papa;  o  que  nos  importa  faber  é  que  foi 
Clemente  XIII,  amigo  dos  jeíuitas,  o  fucceffor  de  Benedicto 
XIV. 

A  Companhia  teve  um  momento  de  efperança.  Ricci,  ge- 
ral dos  jefuitas,  aprefentou  defde  logo  ao  novo  papa  uma 
longa  memoria  na  qual  fe  cjueixava  de  que  o  governo  por- 
tuguez  tiveíTe  tornado  extenfivos  a  todos  os  padres  da  fua 
Ordem  crimes  e  culpas  que,  quando  muito,  teriam  commet- 
tido  alguns;  jurava  a  innocencia  dos  fuperiores  da  Compa- 
nhia, e  terminava  pedindo  ao  papa  que  fufpendeíTe  a  reforma 
começada  em  Lifboa  pelo  cardeal  Saldanha.  Sint  iitfiint.  Cle- 
mente XIII,  fem  nada  participar  ao  embaixador  portuguez, 
fubmetteu  a  memoria  de  Ricci  á  confulta  e  decifão  do  Sacro 
CoUegio,  onde  as  opiniões  fe  dividiram,  votando  uns  pela 
revogação  immediata  do  breve  In  fpeciila  fupremae  diguita- 
tis,  infiftindo  outros,  Racionei  entre  elles,  por  que  continuaíTe 
a  reforma,  como  o  exigia  o  governo  de  Portugal.  No  meio 
das  opiniões  encontradas  dos  cardeaes,  o  papa  refolveu  con- 
temporifar,  recommendando  ao  núncio  em  Portugal  que  vifi- 
taíTe  o  reformador  Saldanha,  e  lhe  aconfelhaíTe  toda  a  mode- 
ração e  prudência  no  defempenho  da  fua  melindrofa  miííão. 

Emquanto  iílo  fe  paílãva  em  Roma,  dava-fe  em  Lifboa, 
na  noite  de  3  de  feptembro,  o  celebre  attentado  contra  a  vida 


eis 


'94 

de  D.  Jofé.  Três  jefuitas,  Gabriel  Malagrida,  João  de  Mattos 
e  João  Alexandre,  foram  pelo  Tribunal  da  Inconfidência  de- 
clarados cúmplices  no  crime,  embora  não  exiítiíTem  contra 
elles,  aíTim  como  não  exiftiam  contra  a  família  Távora,  pro- 
vas claras,  mas  llmples  fufpeitas,  problemáticos  indícios. 

O  Tribunal  da  Inconfidência,  creado  por  decreto  de  9  de 
dezembro  de  lySS  para  julgar  os  réus  do  attentado  de  3  de 
feptembro  e  os  de  futuras  conjurações  poíTiveis  de  natureza 
femelhante,  era  uma  inftituição  antipathica,  que  reprefentava 
na  ordem  civil  e  politica  o  papel  ominofo  da  Inquifição  na 
ordem  religiofa.  EíTe  tribunal  foi  prelidido  por  Carvalho  e 
pelos  outros  miniftros  de  eftado,  feus  manequins.  Tudo  ahi 
foi  lummario,  expedito,  cynicamente  precipitado.  A  defeza 
foi  uma  formalidade  e  o  inquérito  das  teftemunhas  uma  burla 
indecorofa;  os  réus  não  foram  ouvidos  e,  porque  faltaflem 
provas,  inventaram-fe.  Debalde  fe  procuram  hoje  documen- 
tos que  eítabeleçam  claramente  a  cumplicidade  dos  jefuitas 
no  attentado  de  3  de  feptembro;  não  fe  encontram.  Carva- 
lho, interrogado  na  hora  da  defgraça  fobre  a  cumplicidade 
dos  padres  jefuitas,  refpondeu  apenas  que  o  Tribunal  da  In- 
confidência os  declarara  réus.  Efla  refpoíta  é  evidentemente 
a  evaíiva  defgraçada  de  um  efpirito  menos  efcrupulofo;  ten- 
do prelidido  ao  tribunal  que  julgou  os  padres  jefuitas  como 
réus  no  attentado  de  3  de  feptembro,  Carvalho  ou  poíTuia 
as  provas  da  criminalidade  e  devia  declaral-as  para  fe  juíti- 
íicar,  ou  as  não  poíTuia  (a  verdade  é  eífa)  e  então  procedeu 
arbitrariamente,  por  um  defpotifmo  vizinho  da  ferocidade. 
Nós  não  pomos  em  duvida,  um  momento,  que  os  jefuitas  fos- 
fem  capazes  de  attentar  contra  a  vida  de  D.  Jofé;  o  regicídio 
afiava  no  efpirito  da  Ordem,  e  contra  o  monarcha  portuguez 
havia  por  parte  d^eífes  padres  refentimentos  profundos.  Mas 
fufpeitas  e  probabilidades  não  lao  provas;  e  a  juftiça  exige 
para  condemnar,  clfas  e  não  aqucUas. 


e|j       j 


193 

Entretanto  os  três  jefuitas  eram  encarcerados  no  forte  da 
Junqueira  e  todos  os  outros  cercados  em  luas  cafas  e  colle- 
gios  ou  encerrados  na  quinta  do  duque  de  Aveiro,  onde  che- 
garam a  paffar  longas  horas  de  fome.  Ao  mefmo  tempo  todos 
os  bens  d'eft:es  ecclefiafticos  eram  confifcados  como  proprie- 
dade de  réus  de  alta  traição. 

Feito  ifto,  Carvalho  e  Mello  efcreveu  longamente  ao  pa- 
pa, impetrando  de  Sua  Santidade  auflorifação  para  que  a 
Me^a  da  Confciencia,  julgados  ecclefiafticamente  os  jeluitas, 
réus  do  attentado  de  3  de  feptemhro,  os  entregalTe  ao  braço 
fecular;  ao  melmo  tempo  pedia  que  tal  audorifação,  de  ur- 
gente neceffidade  n'aquelle  momento,  íe  tornaíTe  perpetua  e, 
como  tal,  eífectiva  todas  as  vezes  que  fe  trataíTe  de  cafos  fe- 
melhantes  ao  que  na  occafião  o  forçava  a  efcrever  a  Sua  San- 
tidade. Carvalho  terminava  fazendo  votos  por  que  todos  os 
feus  actos  minifteriaes  mereceíTem  a  benção  apoflolica  que  ar- 
dentemente defejara.  Efta  carta  mereceu  de  Voltaire  palavras 
implacáveis  de  ironia.  Luiz  Gomes  procura  proteger  Carvalho 
dos  ataques  do  philofopho,  afíirmando  que  o  miniftro  por- 
tuguez,  á  maneira  de  BolTuet,  redobrava  calculadamente  de 
refpeito  para  com  o  papa  todas  as  vezes  que  procurava  dar 
um  golpe  fundo  nas  prerogativas  de  Roma.  Explicação  be- 
nevolente, mas  inacceitavel :  a  polidez  diplomática,  quando 
fe  agitavam  intereíTes,  nunca  foi  o  apanágio  de  Carvalho. 
Ac[uelle  refpeito  pelo  papa  não  era  nem  fingida  cortezia,  nem 
calculo;  era  fim  a  elTufão  de  um  fentimento  fincero  de  ca- 
tholico.  Refpeitava  ingenuamente  o  papa,  não  obftante  odiar 
e  bater  a  milicia  efpiritual  da  Cúria.  Efia  inconfequencia,  de 
refto  abfolutamente  inevitável  no  efpirito  eftreito  de  um  ca- 
tholico  que  fuppunha  poffivel  a  reforma  dos  jefuitas  por  in- 
termédio da  Igreja,  que  lhes  adopta  os  princípios,  revela 
podcrofamente  que  Carvalho  ignorava  a  intima  hiitoria  do 
mechanifmo  religiofo.  Appellava  para  Roma,  porque  não  fabia 


e|9 


sii 


196 

que  era  ella  a  alma  mater  d'eíra  feita  teiiebrofa  e  valente  que 
o  incommodava.  Queria  reformar  abufos  e  dirigia-fe  á  Cúria, 
fem  fe  lembrar  de  que  no  apparelho  centralifta  do  catholi- 
cilmo  o  calor  que  anima  e  excita  os  órgãos  periphericos  vem 
de  lá,  d'eíre  coração  recôndito. 

Efcrevendo  ao  papa,  Carvalho  dirigia  ao  mefmo  tempo  car- 
tas confidenciaes  a  Almada,  pondo-o  ao  corrente  da  nova  ne- 
gociação, e  inftruindo-o  minuciofamente  fobre  o  modo  por 
que  devia  comportar-fe  em  face  do  Sacro  Collegio.  «Com- 
bata, eícrevia  Carvalho,  o  luborno  dos  jefuitas,  defcobrindo 
quem  fejam  os  cardeaes  e  as  peíToas  mais  importantes  em 
relação  ao  negocio  e  comprando-os  por  todos  os  meios  pos- 
fiveis,  fem  fe  expor  a  ler  por  elles  facrificado.Vale  mais  e  é 
menos  caro  fazer  a  guerra  com  dinheiro  do  que  com  armas. 
Tenho  aqui  mais  de  cem  mil  cruzados  em  fina  prata  lavrada 
em  Paris  e  em  porcelana  de  Saxe.  Não  fei  como  lhe  mande 
tudo  ifto  para  Roma,  fem  que  fe  lhe  defcubra  a  procedência 
e  o  deflino.  Poderei  enviar-lhe  também  alguns  diamantes 
brutos,  que  mandará  lapidar  ahi;  diga-me,  entretanto,  fe  po- 
dem fervir  para  cruzes,  peitoraes,  etc.  Mando-lhe  quatro  an- 
uais dignos  de  ferem  oíTerecidos  para  comprar  ou  pelo  me- 
nos difpor  á  noífa  parte  alguns  bons  amigos.  As  pedras 
podem  ler  lapidadas  em  Lifboa,  mas  c  um  trabalho  demo- 
rado; fera  melhor  offerecel-as  em  bruto,  como  amoftra  dos 
produdos  dos  paizes  tão  queridos  da  Companhia».  Em 
igualdade  de  circumftancias,  um  jefuita  teria  procedido  como 
Carvalho;  e  não  deixaria  de  juftificar  á  própria  confciencia 
o  indecorofo  dos  meios  pela  neceíTidade  de  alcançar  os  fins. 
O  embaixador  portuguez,  recebidas  as  cartas  de  Portu- 
gal, poz-fe  energicamente  em  acção.  Infelizmente  para  o  bom 
andamento  das  negociações,  Torrigiani,  cardeal  fecretario,  era 
parente  de  Ricci,  geral  dos  jefuhas,  e  o  próprio  papa  fentia- 
fe  inclinado  á  caufa  d'eftes  padres.  Almada  previu  defde  logo 


eis 


eis        I 


'97 

O  infucceffo  que  efperava  as  pretenfões  do  governo  portuguez. 
Não  fe  enganava.  Os  mezes  iam  paíTando  fem  que  le  che- 
gafle  a  uma  folução  qualquer.  Foi  então  que  Carvalho  e 
Mello,  impacientado  com  as  delongas  que  a  violência  do 
feu  carader  fazia  parecer  maiores,  e  prevendo  talvez  uma 
conclulao  desfavorável  aos  feus  defcjos,  publicou,  precila- 
mente  um  anno  depois  do  attentado  contra  o  rei,  o  decreto 
celebre  de  3  de  feptembro  de  lySg,  expulfando  de  Portugal 
e  feus  domínios  todos  os  padres  da  Companhia  de  Jefus. 

Não  eftava  tudo  terminado  ainda.  A  expulfão  fora  pouco; 
os  ódios  de  Car^^alho  exigiam  uma  fcena  de  langue.  O  padre 
Malagrida,  ultimo  reprefentante  da  Companhia,  eftava  ainda 
vivo,  e  podia  bem  íervir  de  protogonifta  n\im  apparatofo 
drama,  que  elcéfrifaíTe  e  commo^'eí^e  Lifboa  inteira. 

Gabriel  Malagrida,  confeílbr  do  paço  no  reinado  de 
D.  JoãoV,  eftava  doente  e  na  decrepitude;  e  os  fotfrimentos 
de  três  annos  de  ifolamento  n'um  cárcere  cheio  de  humida- 
de onde  paíTava  os  feus  dias  na  oração  e  na  penitencia,  tinham 
acabado  por  enlouquecel-o.  A  Vida  da  glorio/a  Santa  Anua, 
que  efcrevêra  na  prifão,  era  o  documento  vivo  das  alluci- 
nações  de  um  efpirito  enfermo.  Nada  lhe  valeu,  porém:  nem 
a  idade,  nem  os  foffrimentos  phyficos,  nem  a  loucura.  Servia 
mefmo  aíTim,  fervia  de  todos  os  modos  para  o  drama;  defde 
que  veftiffe  a  roupeta  do  jefuita,  era  um  fymbolo  que  fe  podia 
infultar  na  praça  publica  com  applaufo  de  uma  corte  e  de 
um  povo  tão  eftupidos  como  fanguinarios. 

Carvalho  e  Mello  fubmetteu  o  infeliz  ao  julgamento  da 
Inquifição,  velha  inimiga  da  Companhia,  que  o  degradou  das 
ordens  ecclefiafticas  e  arbitrariamente  o  entregou  á  juftiça 
fecular.  Soriano  obferva  caufticamente  que  o  tribunal  da  In- 
quifição era  ao  tempo  prcfidido  por  Monfenhor  Paulo  de 
Carvalho,  irmão  do  miniftro  de  D.  Jofé. 

Deplorável! 


1    F  1    » 

el»  eis 


-• — «-y-l^ 

198 

o  tribuna!  da  Relação  confirmou  a  lentença  inquifitorial, 
condemnando  Malagrida  a  ler  garrotado,  queimando-fe-lhe 
depois  o  cadáver  para  que  d'elle  e  fiia  fepultiira  não  ficajje 
memoria  no  mundo. 

A  2 1  de  feptembro  de  1 76 1  realifou-fe  a  execução  na 
praça  do  Rocio.  Carvalho  e  Mello  diftribuíra  largamente 
cartas  de  convite  para  a  fejla.  O  corpo  diplomático,  a  no- 
breza, reflos  da  que  exiltia  ainda,  delegados  de  todos  os  tri- 
bunaes,  reprefentantes  de  todos  os  minifterios,  deputados  de 
todas  as  inftituições  officiacs, —  tudo  foi  convidado  e  tudo 
compareceu.  Em  torno  da  praça  tinham-le  previamente  le- 
vantado barracas  para  as  peíToas  de  difi:incção  aíTifiirem;  e 
ao  centro  elevavam-le,  ricamente  adornados,  o  tabernáculo 
em  que  a  fentença  devia  ler  lida  e  o  cadafallb  que  devia  gar- 
rotar o  defventurado  louco.  Deftacamentos  de  cavallaria  e 
infanteria  circumdavam  a  praça,  eftendendo  depois  em  linha 
até  ao  convento  dos  dominicanos.  Aíllm  era  precifo  para 
conter  na  ordem  até  ao  fim  milhares  de  efpeftadores:  toda 
a  populaça  de  Lifboa.  Não  fe  pouparam  nem  esforços,  nem 
dinheiro  na  mife  en  fcène  do  drama. 

Á  hora  aprazada  furgiu  na  praça,  entre  dois  padres,  a 
figura  pallida  e  tremula  do  condemnado.  Um  ulb  tradicional, 
e  não  fei  mefino  fe  uma  lei,  efiabelecia  que  n'eftas  condições 
os  ccclefiaíficos  fe  defpojaíTem  dos  hábitos  das  luas  ordens. 
Para  o  jcfuita  abriu-fe  uma  excepção  odiofa:  Malagrida  ves- 
tia a  roupeta  da  Companhia.  Affim  era  precifo:  o  habito  era 
tudo,  era  o  fymbolo.  O  velho  jefuita  voltava  em  todas  as 
direcções  um  olhar  amortecido  a  que  as  névoas  da  loucura 
e  do  terror  davam  n'aquella  agonia  uma  eftranha  expreíTão; 
tremia  e  encoftava-fe  aos  padres  para  não  cair.  Conduzido 
ao  tabernáculo,  leram-lhe  a  lentença  da  Inquifição  que  o 
declarava,  fegundo  o  eftylo,  um  falfo  propheta,  um  herético 
e  um  fingidor  de  relações  que  Deus  fó  concede  aos  J cus  ver- 


'99 

dadeiros  fervos.  O  jcluita  omiu  calado  o  capitulo  de  accu- 
fação.  Por  que  eftranhos  mundos  de  myfticifmo  erraria  o 
efpirito  d'aquelle  defgraçado? 

Concluida  a  leitura,  o  cadafalfo  armou-fe  e  o  carrafco  fez 
o  leu  dever.  Depois  veiu  o  auto-da-fé,  o  corpo  foi  atirado 
ás  chammas  e  tudo  acabou  no  meio  de  um  lllencio  ahfoluto. 
Não  houve,  com  effeito,  n'aquella  maíTa  enorme  de  corações 
humanos  uma  voz  que  fe  ergueíTe  para  proteftar.  Carvalho 
devia  eftar  fatisfeito:  o  terror  da  fua  peíToa  paralylava  as 
energias  de  uma  cidade  inteira! 


III 


O  leitor  que  agora  conhece  a  maneira  por  que  Cars^alho 
e  Mello  levou  a  eíTeito  a  expullao  dos  jeluitas,  pôde  bem 
ajuizar  quanto  ha  de  falfo  nas  opiniões  vulgares  Ibbre  o 
alTumpto.  Ha  ainda  muito  quem  penfe  que  o  miniftro  de 
D.  Jofé  procedeu  ferenamente  contra  a  Companhia,  deíhtuin- 
do-a  por  um  calculo  frio  de  radicalifmo  anti-religiofo,  como 
o  cirurgião  que  corta  fundo  nas  carnes  para  ir  bufcar  as  raí- 
zes primitivas  de  um  cancro.  Não  foi  aíTim :  o  que  efcrevemos 
deve  ter  provado  que  o  efladiíta  nem  viu  eíTas  raizes,  porque 
não  lh'o  permittia  o  feu  efpirito  de  crente,  nem  teve  a  fere- 
nidade  do  operador,  porque  a  ilTo  fe  oppunha  o  fcu  cara- 
fter  violento  e  arrebatado. 

Primitivamente,  Carvalho  defejava  apenas  reformar  a 
Companhia,  combatendo  os  abufos  de  que  fe  tornara  res- 
ponfavcl  cm  Portugal  e  na  America;  foi  para  iíTo  que  pediu 
o  auxilio  do  papa.  O  attentado  contra  o  rei  fuggeriu-lhe 
depois  a  idca  de  caftigar  civilmente  os  padres  incurfos  nos 
crimes  políticos  de  confpirações;  n'eífe  intuito  impetrou  de 
Roma  auclorifação  para  que  o  tribunal  ecclefiaftico,  julgados 


(Is 


eis 


religiofamente  os  réus,  os  entregaíTe  ao  braço  fecular.  As  re- 
ludtancias  da  Guria  e  as  delongas  d'eíl:a  negociação,  em  que 
Carvalho  batia  a  Companhia,  íubornando  indecorofamente 
os  cardeaes  do  Sacro  CoUegio,  impacientaram  o  efpirito  ir- 
requieto do  eítadifta,  que  n'um  acceffo  da  cólera  decretou  a 
expulfão  dos  jefuitas.  Não  foi,  pois,  um  fereno  calculo,  uma 
comprehenfão  dos  intereffes  moraes  do  paiz  que  prefidiram 
no  animo  de  Carvalho  á  publicação  do  decreto  de  3  de  fe- 
ptembro;  foram,  fim,  o  defpeito  contra  Roma,  a  neceíTidade 
de  defaífrontar  a  realeza  e,  fobretudo,  o  defejo  de  uma  vin- 
gança que  a  guerra  jefuitica  do  Paraguay  fizera  nafcer  no 
feu  efpirito  dominativo  e  implacável.  A  execução  de  Gabriel 
Malagrida,  dois  annos  depois  de  expulfos  todos  os  jefuitas, 
é  a  prova;  e  nem  todo  o  refpeito  pelos  ferviços  do  Mar- 
quez de  Pombal  pôde  conteílar  eíTe  documento  vivo  na  his- 
toria. 

As  intenções  de  Carvalho  e  Mello  não  foram,  pois,  nem 
anti-catholicas,  nem  democráticas,  como  fe  tem  dito.  Não 
foram  anti-catholicas,  porque  o  eftadiíla  portuguez,  contraria- 
mente aos  encyclopediftas,  era  um  crente;  não  foram  demo- 
cráticas, porque  a  realeza  abfoluta  era  para  elle  um  fetiche 
cuja  adoração  impunha  tyrannicamente  ao  paiz.  «No  fyfte- 
ma  focial  de  Carvalho,  efcreve  Soriano,  as  funcções  de  rei 
eram  mandar  o  que  muito  bem  lhe  aprouveíTe,  e  as  da  na- 
ção toda  obedecer  fubmiíTa  e  paíTivamente,  fem  nem  ao  me- 
nos lhe  permittir  o  direito  de  cenfura  ou  de  reprefentação 
em  contrario'».  O  fr.  Theophilo  Braga  reforça  a  opinião  de 
Soriano  com  eftas  palavras  expreffivas:  «Pombal  confidera- 
va  a  realeza  acima  dos  povos  como  uma  guarda  providen- 
cial do  tiirpe  peais;  para  elle  toda  a  barbaridade  refinada 
pela  tortura  não  bailava  para  caftigar  os  crimes  de  lefa-ma- 


'  Soriano,  obr.  cit.,  vol.  i. 


eis 


eis 


jeftade,  cuja  fcitncia  certa  c  vontade  foberana  eram  o  funda- 
mento de  todas  as  leis'». 

Mas  mais  alto  que  todas  as  audoridades  faliam  os  fa- 
dos. Nós  vamos  apontar  três,  particularmente  demonítrati- 
vos  da  afiirmação  contida  nas  citações  que  fizemos. 

O  livro  de  Velafco  de  Gouveia,  Jiijla  Acclamação^  pro- 
clamava o  principio  da  foberania  nacional.  Carvalho  e  Mel- 
lo, incommodado  por  effa  doutrina  liberal,  fubmetteu  o  livro 
ao  exame  de  cinco  doutores  da  univerfidade  de  Coimbra 
para  que  o  declaraíTem  apocrypho  e  fem  aufforidade  jurídi- 
ca. Os  nomeados  alllm  o  fizeram,  imputando  a  obra  aos 
jefuitas,  e  declarando  atoniiiiareis  os  princípios  n'ella  conti- 
dos. E  figniíicativo. 

Outro  fado.  —  Quando  em  fevereiro  de  lySy  fe  declarou 
no  Porto  a  revolta  popular  a  que  já  nos  referimos,  provocada 
pela  creação  da  Companhia  do  Alto  Douro,  monopolifadora 
do  commercio  dos  vinhos,  Carvalho  e  Mello  mandou  imme- 
diatamente  ao  foco  da  agitação  uma  alçada  que  no  efpaço 
de  cinco  mezes  prendeu  nada  menos  de  478  indivíduos. 
Exercendo  preíTão  fobre  os  juizes  e  forçando-os  a  confide- 
rarem  a  revolta  um  crime  de  lefa-majejlade,  Carvalho  con- 
tribuiu para  que  fubiíTem  ao  patíbulo  2 1  dos  implicados 
n'aquelle  movimento.  Para  provar  que  a  revolta  merecia  a 
claíTilicação  que  lhe  deram  os  juizes,  Carvalho  efcrevia:  «A 
majeftade  não  conlifte  fó  na  peíToa  do  rei,  mas  nas  fuás  leis 
e  Eftado».  A  realeza  era  tudo;  uma  cidade  que  fe  revoltava., 
ferida  nos  feus  intereíTes  por  um  monopólio,  era  nada. 

Um  ultimo  fado  ainda.  —  A  Meia  do  Bem  Coinininn, 
conliderando  um  attentado  contra  a  liberdade  e  contra  os 
intereíTes  dos  que  faziam  commercio  entre  Portugal  e  o  Bra- 
zil,  a  exiítencia  da  Companhia  do  Grão-Pará  e  Maranhão, 


I  Th.  Braga.  Do  adreníu  cvulutivo  das  idcas  democralicas.  Lifboa,  1879. 


cia 


(Í3 


creada  por  decreto  de  ii  de  agofto  de  lySS,  reprefentou  ao 
rei  no  fentido  de  annuUar  o  ado  minifterial  d'efta  data.  A  re- 
prefentação,  apoiada  em  argumentos  ferios  e  confiderações 
económicas  importantes,  era  concebida  em  termos  modera- 
dos e  refpeitolbs.  O  que  fez  Carvalho  e  Mello?  Ferido  no 
feu  orgulho,  maguado  por  encontrar  uma  refiftencia,  decla- 
rou a  reprefentação  um  crime  de  lefa-majejlade,  aboliu  a 
Meia  do  Bem  Commiiin,  mandou  prender  todos  os  lignata- 
rios  da  reprefentação,  e  fez  condemnar  a  degredo  para  a 
Africa  o  advogado  que  a  redigira,  João  Thomaz  Negreiro, 
que  não  chegou  a  cumprir  degredo,  porque,  retido  á  efpera 
de  navio  na  prifão  do  Limoeiro,  ahi  encontrou  a  morte  e  o 
tumulo  por  occafião  do  terremoto.  Era  efte  o  modo  por  que 
Carvalho  e  Mello  comprehendia  e  commentava  o  direito  de 
petição.  Era  aíTim  que  elle  antepunha  a  fua  vontade  e  o 
preftigio  da  realeza  abfoluta  aos  intereíTes  dos  cidadãos. 

Relgatam-no  d'eftas  culpas,  apreíTo-me  a  dizei  o,  ados 
bons;  nem  nós  pretendemos  que  o  Marquez  de  Pombal  des- 
confideraíTe  a  profperidade  do  paiz.  Seria  ahfurdo  pretender 
tal:  feria  efquecer  ados  como  a  abolição  cia  efcravatura,  a 
rehabilitação  dos  judeus,  a  reforma  da  univerlidade  e  ou- 
tros ainda  que  nos  impõem  o  dever  da  gratidão.  Mas  nem 
por  iflb  é  menos  certo  que  lhe  mereciam  mais  folicitude  os 
intereffes  da  coroa  que  os  dos  cidadãos;  nem  por  iífo  deixa 
de  fer  verdade  que  ás  prerogativas  da  monarchia  abfoluta 
vidimava,  fem  perplexidades,  os  intereíTes  e  os  direitos  do 
povo.  Ao  catholico,  pcrfeguidor  dos  jefuitas,  correfpondia  o 
ablblutifta,  perfeguidor  da  liberdade,  embora  libertador  dos 
efcravos.  O  homem  que  combatia  a  Companhia  de  Jefus 
para  purificar  a  religião,  cujos  principios  admittia  como 
crente,  era  o  mefmo  que  combatia  a  liberdade  para  dar  es- 
plendor d  realeza,  cuja  invefhdura  divina  era  o  feu  credo 
politico  eflencial. 


«|3  eí» 

203 

Efte  fetichifmo  do  Marquez  de  Pombal  pela  realeza  ab- 
foluta,  no  Icculo  dos  encyclopediftas,  denuncia  acanhadas 
preoccupaçôes  mentaes  de  que  os  altos  efpiritos  do  feu  tem- 
po le  tinham  emancipado  já. 

Conhecidas  intimamente  nos  proceíTos  de  manifeítação 
e  nas  caufas  determinantes  as  hoftilidades  de  Pombal  con- 
tra a  Companhia  de  Jefus,  vejamos  agora,  refumidamente, 
quaes  foram  as  conlequencias  do  ado  de  3  de  feptcmbro. 

Expulfos  os  jeÍLiitas,  ficaria  Portugal  defaífrontado  da  nu- 
vem negra  que  defde  D.  João  III  lhe  viera  efcurecendo  os 
horifontes?  Aufentc  a  roupeta,  reviveriam  no  efpirito  do  po- 
vo, amortecido  e  quebrado  pelas  algemas  de  uma  educação 
deprimente  de  feculos,  o  vigor  e  a  coragem  dos  tempos  for- 
tes da  noíTa  nacionalidade!'  O  Ir.  Oliveira  Martins  refponde: 
«O  reinado  de  D.  Maria  I  vem  demonífrar  que  o  braço  de 
ferro  do  Marquez  de  Pombal  não  podéra  defviar  da  carreira 
da  decompofição,  eíta  fociedade  envenenada  pela  educação 
jefuita.  O  miniftro  pôde  exterminar  a  Companhia;  mas  não 
pôde  extinguir  o  feu  efpirito,  nem  os  feus  difcipulos,  que 
eram  em  Portugal  toda  a  gente,  incluindo  Pombal  em  pes- 
foa . .  .  Como  a  charrua  que  revolve  a  gleba,  exterminou  as 
plantas  vifiveis;  porém  as  raizes  dos  cardos  ficaram  e  rever- 
deceram'». 

É  efta  a  verdade  que  o  próprio  Marquez  dolorofamente 
verificou  nos  últimos  annos  de  vida.  Morto  D.  Jofé,  que  lhe 
dera  força,  que  lhe  fanccionára  com  aucforidade  de  rei  ab- 
foluto  todos  os  ados  minifteriaes,  Pombal,  ifolado  e  efcarne- 
cido  na  velhice,  viu  erguer- fe  impetuofa  e  cheia  de  vida  a 
reacção  que  vinha,  como  um  cyclone  irreverente,  derrubar 
a  feara  querida  das  fuás  reformas.  Os  inimigos  do  Marquez 


>  Oliveira  Martins,  obr.  cil.,  vol.  ii. 


ti» 


eis 


204 


rehabilitaram-fe;  e  o  beaterio,  que  principiava  na  corte,  onde 
a  rainha  emparvecida  chorava  noite  e  dia  os  erros  de  feu 
pae,  eftendia-fc  por  todo  o  reino  com  geral  aprazimento.  A 
hora  das  defiUuloes  chegara:  os  perfeguidos  tornaram-fe  per- 
feguidores.  O  miniftro  de  D.  Jofé,  no  ultimo  quartel  da  vida, 
com  oitenta  e  dois  annos  de  edade,  foi  fubmettido  a  um  in- 
terrogatório fevero  em  que  pigmeus  e  nullos  lhe  pediram 
arrogantemente  a  juftificação  dos  feus  aítos  adminiftrativos  e 
politicos. 

Debalde  o  velho  e  alquebrado  eítadifta  declarava,  para 
obftar  ao  defdobramento  de  importunas  minuciofidades,  que 
todos  os  feus  ados  tinham  merecido  a  approvação  do  rei,  de 
accordo  com  cuja  vontade  foberana  procedera  fempre.  Efta 
declaração  não  o  iíentou  da  refponfabilidade  completa  e 
abfoluta  em  face  dos  inimigos,  agora  arvorados  em  juizes 
feveros  e  teftemunhas  implacáveis  de  accufação.  O  defaforo 
e  arrogância  do  interrogatório  official  attingiram  o  efcan- 
dalo;  entre  outros,  o  abjedo  e  repulfivo  intendente  da  poli- 
cia atreveu-fe  a  defmentir  os  depoimentos  do  Marquez.  O 
leão  decrépito  recebia  o  coice  d'aquelle  Pina  Manique  de  que 
reza  a  fabula.  Exhaufto  e  deprimido  pelo  rude  golpe  moral, 
mais  talvez  que  pela  edade  e  pelos  foífrimentos  phylicos,  o 
Marquez  de  Pombal  acabou  por  implorar  para  os  feus  cri- 
mes a  piedade  da  rainha!  Foi  uma  queda.  Mas  Luiz  Gomes 
diz  bem:  «Os  homens  que  fe  levantam  por  meios  violentos 
e  extraordinários  não  defcem,  cahem.  São  como  as  folhas 
que  a  violência  do  vento  ergue  ás  grandes  alturas  e  que,  fere- 
nada  a  tempeftade,  tombam  folicitadas  pelo  próprio  pefo'». 

A  reacção  tremenda  do  reinado  de  D.  Maria  I  não  a 
provocaram,  certamente,  os  jefuitas  expulfos,  mas  provocou- 
as,  o  que  vale  o  mefmo,  o  efpirito  da  Companhia  que  ficara 


I   Luiz  Gomes,  obr.  cit. 


CM 


4fU 


arraigado  nas  confciencias.  Os  jefuitas  de  roupeta  tinham 
paflado  as  fronteiras  á  voz  imperiofa  do  Marquez  de  Pom- 
bal; mas  os  jefuitas  de  cafaca,  mais  temiveis,  porque  não 
têem  uniforme  que  os  denuncie,  effes  ficaram;  nem  podia 
deixar  de  fer:  quem  tentaíTe  expulfal-os  no  feculo  xviii,  te- 
ria de  defpovoar  o  reino. 

1  V  On  lie  détruit  que  ce  qu'on  remplace. 

A.  CoMTE. 

Terminada  a  parte  propriamente  hiítorica  do  eftudo  que 
nos  propozemos  fazer,  apontemos  agora  algumas  confidera- 
ções  que  elle  nos  fuggere,  e  que  a  commemoração  do  cente- 
nário vemi  tornar  opportunas. 

O  jefuitifmo  não  morreu.  O  efpirito  incoercível  da  Com- 
panhia paira  ainda  fobre  a  Europa  e  fobre  a  America,  como 
a  tremenda  ameaça  de  futuras  agitações  poffiveis.  O  jefui- 
tifmo é  ainda  hoje,  não  o  efqueça  ninguém,  a  feita  religiofa 
que  conferva  puras  as  tradições  aucforitorias  e  centraliftas 
do  catholicifmo ;  é  ainda  a  milícia  difciplinada  de  Roma,  te- 
naciíTima,  perfiftente,  armada  e  difpofta  fempre  para  a  luda 
contra  o  livre  penfamento.  Os  mefmos  fempre  na  eífencia  e 
no  efpirito  íntimo  dos  feus  princípios,  mas  proteiformes  nas 
manifeítações,  os  foldados  do  jefuitifmo  mudam  de  táctica  e 
de  nome  quando  lhes  convém,  mas  nunca  de  intuito.  Se  lhes 
vedam  a  entrada  nos  confeíTionarios,  penetram  nos  hofpitaes, 
onde  defvelando  gratuitamente  os  enfermos,  fe  apoffam  dos 
efpiritos  por  uma  propaganda  vagarofa  e  infenílvel,  mas  ef- 
ficaz,  porque  parece  protegel-a  a  idéa  generofa  do  definte- 
reífe;  fe  lhes  prohibem  a  apparição  nos  púlpitos,  entram  na 
imprenfa  c  faliam  d'ahi  pelos  jornaes  e  pelos  livros  á  intel- 
ligencia  dos  fuperfticiofos  e  dos  fracos;  fe  lhes  rejeitam  a 
denominação  antipathica  da  Ordem,  mudam  de  nome  e  con- 
tinuam defaíTrontados  a  fua  obra,  conftruindo  cfcolas,  ele- 


ti» 


-• : -é>-^ 


20b 


vando  templos,  minando  fempre,  fem  tréguas  e  fem  des- 
alentos. 

O  povo  ignorante  acceita-os  de  rofto  alegre,  e  as  claíTes 
confervadoras,  obcecadas  pela  faudade  do  paíTado,  hoítis  ao 
prelente  e  ao  futuro,  preftam-lhes,  como  fe  viu  ainda  ha 
pouco  em  França,  um  incondicional  apoio.  N'eíl:as  condi- 
ções o  jefuitifmo  profpera  hoje  mefmo  nos  paizes  catholicos. 
Em  Portugal  e  no  Brazil,  nações  atardadas  em  que  exifte 
ainda  efta  coufa  irriforia  que  fe  chama  religião  do  EJlado, 
ninguém  ignora  a  influencia  decifiva  do  jefuita. 

Deftruir  efta  influencia  deletéria  que  nos  envenena,  amar- 
rando ao  paflado  os  que  deviam  olhar  para  o  futuro,  folidi- 
íicando  inftituições  provedas  que  nos  tolhem  o  movimento 
expanfivo  e  já  agora  urgente  das  reformas  politicas  e  fociacs, 
eis  um  dever  que  á  geração  nova  importa  fortemente  cum- 
prir. Mas  de  que  maneira?  Pelos  proceflbs  revolucionários, 
pela  violência?  Não  o  cremos.  A  hiftoria  do  Marquez  de 
Pombal  deve  fervir-nos  de  exemplo  e  de  lição.  Ha  em  todas 
as  queftões  de  transformação  Ibcial,  como  em  todas  as  de 
transformação  biológica,  um  fador  de  que  íe  não  pôde  pre- 
fcindir:  é  o  tempo.  O  proceflb  revolucionário  — confequen- 
cia  metaphyfica  das  doutrinas  e  concepções  politicas  ante- 
riores á  conftituição  fcientifica  da  fociologia  — ,  pretendendo 
fupprimir  aquelle  fador,  ha  de  conduzir  fempre  e  fatalmen- 
te ao  infucceífo.  Simulará  transformações,  mas  não  as  fará. 
Deftruirá  abufos,  privilégios  e  erros,  mas  na  apparencia  ape- 
nas; porque,  no  fundo,  os  erros,  os  privilégios  e  os  abufos 
ficarão  fubfiftindo.  O  Marquez  de  Pombal  no  meiado  do  fe- 
culo  XVIII  expulfou  para  Jhnpre  de  Portugal  e  feus  domínios 
os  jefuitas,  por  um  decreto  revolucionário;  e  comtudo  ao  de- 
clinar do  feculo  XIX,  cento  e  vinte  e  três  annos  depois  do  de- 
creto, os  jefuitas  vivem  ainda  ao  noflb  lado.  A  França  expul- 
fou-os  também  duas  vezes,  em  i5g4,  primeiro,  e  depois  em 

-i-i- -<í>-^ 

e|»  4* 


207 

1762;  e  todavia  ainda  hontem  a  vimos  cm  lufta  com  elles. 
A  Inglaterra  deftituiu  a  Companhia  em  iSyi ;  mas  em  1601 
teve  de  proceder  de  novo  contra  cila,  porque,  a  defpeito  das 
medidas  legaes,  a  roupeta  achara  meios  de  introduzir-fe  de 
novo.  A  RuíTia  decretou  igualmente  a  expulfão  dos  padres 
jeluitas  cm  17 17;  mas  em  181 7,  precifamente  um  feculo 
depois,  viu-os  de  novo  florefcentes  no  feu  folo,  e  teve  de  ex- 
pulfal-os  outra  vez.  Affim  é  lempre:  as  inftituições  que  fe 
radicaram  nos  efpiritos  não  fe  deftroem  de  um  momento 
para  o  outro  a  golpes  de  penna  ou  de  cfpada. 

O  proceíTo  revolucionário  pôde  ler  exigido  pelas  cir- 
cumftancias  de  uma  fituação  defefperada;  e  é  então  o  remé- 
dio extremo  que  a  afflicção  collediva  de  um  povo  explica  e 
juftifica.  Em  cafos  taes  o  proceflb  a  empregar  não  fe  difcute, 
porque  não  ha  logar  para  reflcdir;  e  a  revolução  apparece 
como  um  movimento  defordenado,  como  a  explofão  ruidofa 
de  um  foífrimcnto  que  não  conhece  leis.  Foi  o  que  em  Fran- 
ça aconteceu  em  I7g3.  Mas  n'eíres  cafos  excepcionaes,  úni- 
cos que  fe  juftificam,  o  proccífo  revolucionário  e  a  revolução 
confundem-fe :  não  ha  um  miniftro  que  decreta  ou  um  gene- 
ral que  fe  impõe;  ha,  fim,  uma  fociedade  que  fe  agita,  a 
maioria  de  um  povo  que  proclama  violentamente  direitos 
que  um  defpota  ou  uma  pequena  minoria  lhe  não  deixavam 
proclamar  ferenamente.  Eis  o  que  importa  advertir.  Fora 
d'cífes  cafos  anómalos,  que  nos  paizcs  onde  o  povo  tem  um 
parlamento  já  fe  não  podem  repetir,  o  proceflb  revolucionário 
confunde-fe  com  o  moderno  jacobinijmo,  e  fignifica  apenas, 
por  melhores  intenções  que  lhe  prefidam,  a  impofição  fempre 
odiofa  da  minoria  á  maioria  de  um  povo;  é  precifamente  o 
contrario  da  revolução,  em  que  a  maioria  de  um  paiz,  oíTen- 
dida  nos  feus  direitos  pelos  privilégios  da  minoria,  impõe  a 
efta  a  fua  vontade  ou,  o  que  tanto  vale,  define  a  fua  foberania. 

A  diftincção  que  eftabelecemos  entre  proceíTos  revolucio- 


208 

narios  e  revoluções  não  é  um  jogo  de  palavras;  é  a  confi- 
gnação  de  um  fado  bem  eíTencial  que  devia  andar  lembra- 
do e  que  infelizmente  anda  efquecido. 

Derivando  d'eítas  confiderações  geraes  para  o  cafo  efpe- 
cial  que  nos  occupa,  repitamos  a  pergunta  feita:  Como  nos 
cumpre  proceder  em  face  dos  jefuitas?  Expulfal-os,  feria  re- 
montar ao  paíTado  em  bufca  de  novas  defiUufóes.  O  proces- 
fo  a  empregar  em  noíTos  dias  é  outro:  mais  morofo,  de  cer- 
to, mas  mais  radical  e  mais  feguro. 

Os  jefuitas  vivem  da  ignorância  do  povo  pelas  raizes  do 
catholicifmo,  como  os  tortulhos  vivem  da  humidade  dos 
pântanos.  Cortar  a  parte  apparente  dos  tortulhos  e  deixar  o 
pântano  é  trabalho  baldado;  os  cogumelos,  confervada  a 
raiz  em  terreno  apropriado,  reapparecerão  tantas  vezes 
quantas  as  que  forem  cortados.  Que  ha  pois  a  fazer?  Eítan- 
car  o  pântano  para  matar  a  raiz;  inítruir  o  povo  até  que  o 
catholicifmo  — que  é  hoje  a  fuperftição  fyftematifada,  tenha 
perdido  toda  a  influencia  que  ainda  conferva  nas  confcien- 
cias.  Uma  vez  confeguido  ifto,  um  governo  virá  que,  interpre- 
tando a  vontade  efclarecida  e  preponderante  do  paiz,  procla- 
me a  feparação  da  Igreja  e  do  Eftado;  e  então,  perdido  o 
dominio  Ibbre  as  confciencias  e  perdido  o  apoio  oíRcial,  o 
jefuitifmo  defapparecerá  naturalmente,  fatalmente,  fem  vio- 
lências e  fem  agitações.  E  nem  mefmo  lhe  reftará  o  direito 
de  queixar-fe:  ninguém  o  expulfa, —  é  elle  que  fe  retira. 

Os  meios  a  empregar  para  chegar  a  efte  fim,  fão  os  pró- 
prios jefuitas  que  nol-os  eníinam.  Elles  têem  o  púlpito,  o 
confellionario  e  a  efcola;  empreguemos  nós  armas  iguaes, 
que  as  temos:  a  imprenfa,  as  conferencias  populares  e  a  es- 
cola também. 

Proceder  affim,  é  feguir  o  caminho  feguro.  E  efte  o  pro- 
ceífo  evolutivo,  único  efíicaz.  É  longo,  dirão  muitos.  Não 
o  conteftàmos;  mas  porque  o  é,  precifamente  porque  não 


elí 


20Q 


abftrahe  do  tempo,  factor  eíTencial,  os  feus  refultados  ferão 
certos,  radicaes.  O  proceíTo  revolucionário  dirige-le  ás  appa- 
rencias;  o  proceíTo  evolutivo  ao  fundo  mefmo  das  inftitui- 
ções.  O  primeiro  procede  contra  a  roupeta;  o  fegundo  con- 
tra o  catholicifmo  que  lhe  dá  força.  Um  extirpa  os  jefuitas 
uniformifados,  o  outro,  todos  os  jefuitas.  O  proceíTo  revo- 
lucionário vê  Tómente  a  Companhia  de  Jefus;  o  proceíTo  evo- 
lutivo vê  principalmente  e  mais  fundo  a  Igreja,  ell:a  ultima 
haftilha,  como  lhe  chama  um  pofitiviífa  francez,  em  que  to- 
dos os  reaccionários  Te  refugiaram  para  dar  o  derradeiro 
combate  á  democracia. 

Qual  dos  dois  proceíTos  convém  ao  radicalifmo  democrá- 
tico? A  hiíl:oria  condemna  um;  a  Tciencia  focial  preconifa 
o  outro.  A  geração  nova  que  efcolha. 

JuLio  DF,  Mattos. 


cts 


1  ' 

eis 


1 


o  MARQUEZ   DE   POMBAL 


E  A   RESTAURAÇÃO  DA 


LITTERATURA  PORTUGUEZA 


omecemos  por  carafterifar  o  efpirito  e  a  ten- 
dência hiftorica  do  leculo  xviii,  para  julgarmos 
^  da  coherencia  dos  esforços  quer  da  audorida- 
de,  confinada  no  cefarifmo,  quer  da  intelligen- 
cia,  amefquinhada  nas  academias.  A  organi- 
fação  da  fociedade  moderna  foi  iniciada  pefos 
jurifconfultos  do  fim  da  Edade  media,  que  fun- 
daram a  egiialdade  civil;  atacando  a  prepotên- 
cia dos  barões  feudaes,  que  fe  impunham  pela  impetuofi- 
dade  arbitraria,  procuraram  eftabelecer  a  lei  efcripta,  quer 
redigindo  as  garantias  locaes,  ou  fazendo  reviver  o  direito 
romano.  Affim  a  vontade  era  fubordinada  a  uma  norma 
prefcripta.  Pela  forma  efcripta  as  garantias  locaes  deram 
força  ás  populações  trabalhadoras  dos  campos  e  dos  burgos, 
e  acordando  o  fentimento  do  individualifmo  fufcitaram  eíTes 
movimentos  revolucionários  que  deram  em  terra  com  a  des- 
egualdade  feudal.  Era  uma  grande  parte  da  obra  que  firmou 


eis 


eis 


cia 


fila 


a  ordem  focial  fobre  a  eítabilidade  do  direito;  o  terceiro  cita- 
do, ou  a  exiftencia  jurídica  do  proletariado,  tornou-fe  a  con- 
dição para  o  defeiivolvimento  de  um  poder  central,  a  quem 
convinha  reconhecer  o  novo  principio  da  egualdade  civil. 

EíTe  poder  era  a  realeza,  que  fe  deítacou  e  tornou  inde- 
pendente do  feudalifmo  pela  hereditariedade  dynaítica;  o 
trabalho  dos  jurifconfultos  coadjuvou  eíta  independência 
pela  renafcença  erudita  do  direito  romano,  em  que  prevale- 
cia o  efpirito  centralifta  da  unidade  imperial.  Preoccupados 
exclufivamente  da  egualdade  civil,  os  jurifconfultos  abando- 
naram o  outro  elemento  imprefcindivel  do  progreíTo,  a  liber- 
dade politica,  que  os  feus  conhecimentos  humaniftas  teriam 
encontrado  claramente  definidos  na  civilifação  hellenica. 
D'efte  abandono  refultou,  que  todas  as  republicas  da  Edade 
media  foram  caindo  diante  da  abforpção  do  poder  monar- 
chico,  e  por  ultimo  a  própria  egualdade  civil  ficou  expofta 
aos  caprichos  de  um  poder  irrefponfavel,  tornado  abfoluto, 
defpotico  e  cefarifta. 

O  que  fe  não  fez  pela  tradição  hiftorica,  completou-fe 
pela  efpeculação  philofophica  e  pelas  afpirações  fentimen- 
taes,  que  infpiraram  as  litteraturas.  É  por  iífo  que  o  proble- 
ma da  liberdade  politica  pertence  ao  feculo  xviii,  ao  feculo 
dos  encyclopediftas,  aos  litteratos,  como  Voltaire  e  Rouífeau, 
e  aos  philofophos,  como  Montefquieu,  Diderot,  Condorcet, 
Turgot,  vindo  as  revoltas  communaes  a  acharem  o  feu  com- 
plemento definitivo  no  grande  phenomeno  da  Revolução 
franceza. 

Em  Portugal  achámos  a  primeira  parte  do  movimento 
da  reorganifação  focial  moderna;  defde  o  feculo  xv,  que 
florefcem  entre  nós  os  grandes  jurifconfultos  e  codificadores, 
João  Mendes,  Ruy  Fernandes,  Ruy  Botto,  João  Façanha  e 
Fernão  de  Pina,  alguns  dos  quaes,  como  Velafco  de  Gouvêa, 
chegaram  a  prefentir  a  liberdade  politica  affirmada  em  prin- 


eis 


2l3 

cipio  na  doutrina  da  foberania  nacional.  Mas  o  noíTo  fecu- 
lo  XVIII  não  teve  philolbphos,  e  os  litteratos  eram  académi- 
cos convencionaes  que  imitavam  os  cânones  rhetoricos  das 
epochas  da  decadência  claíTica,  não  tinham  idéas,  eftavam 
fora  do  leu  tempo,  e  as  fuás  afpiraçóes  limitavam-fe  a  aco- 
llierem-fe  ás  graças  do  cefarifmo  omnipotente.  Como  não 
exiftiram  philofophos,  nem  os  litteratos  fe  infpiravam  da 
verdade  do  fentimento,  por  iíTo  não  fe  crearam  opiniões,  e 
os  raros  efpiritos  que  fe  alimentaram  das  doutrinas  dos  en- 
cyclopediftas  e  dos  phyfiocratas,  calaram-fe  com  o  terror  da 
repreífão  ou  emigraram  de  Portugal,  mefmo  antes  da  terrivel 
intendência  de  Manique  fechar  as  portas  á  entrada  dos  livros 
francezes,  ou  mandal-os  queimar  na  praça  publica  pela  mão 
do  carrafco,  ou  apprehendel-os  nas  livrarias  particulares, 
como  fe  fez  á  de  Frei  Joaquim  de  Santa  Clara,  á  de  Jofé 
Anaftafio  da  Cunha,  á  de  Bocage  e  até  ás  encommendas  do 
duque  de  Lafões,  parente  da  cala  real.  As  idéas  franceias  e  o 
pliilofopliifino,  como  em  Portugal  fe  defignava  a  corrente  da 
liberdade  politica,  foram  duramente  abafados  por  todos  os 
poderes  confervadores  do  eftado.  Por  iíTo  defde  a  renafcen- 
ça,  em  que  fomos  grandes,  até  ao  primeiro  quartel  d'en:e  fe- 
culo,  Portugal  profeguiu  em  uma  irremediável  decadência  a 
cuja  caufa  fe  pôde  ainda  attribuir  a  apathia  adual,  a  falta  ou 
a  fophifmação  da  liberdade  politica.  O  feculo  xviii  tão  rico 
em  Portugal  de  homens  de  talento  e  de  fciencia,  contrafta 
com  a  profunda  irracionalidade  das  inftituições  por  falta  do 
complemento  da  egualdade  civil  na  liberdade  politica.  O 
próprio  Marquez  de  Pombal,  extremamente  regalifta,  tornou 
eífa  liberdade  um  crime  de  lefa-mageftade,  chegando  a  pu- 
nir com  feveridade  o  direito  de  reprefentação. 

Qual  feria  n'eftâs  condições  deprimentes  o  deflino  do 
homem  de  lettras?  No  feculo  xviii,  em  Portugal,  o  poeta  era 
um  miferavel,  que  fe  admittia  á  mefa  dos  creados  das  cafas 


-i-6- \ -6-1- 

e|j  eis 


214 

fidalgas,  e,  como  diz  o  próprio  Tolentino  retratando-fe  in- 
confcientemente,  acabava  fempre  por  pedir  efmola;  fuppria 
o  antigo  coftume  dos  bobos  dos  palácios  feudaes,  metrifi- 
cando encómios  fobre  todos  os  fucceíTos  da  realeza  ou  da 
ariítocracia.  As  compofições  mais  appetecidas  eram  as  que 
não  tinham  penfamento,  que  le  ouviam  no  intervallo  das 
grandes  digeítões  dos  banquetes  e  dos  outeiros  poéticos  dos 
abbadeçados,  vindo  a  conftituir  um  género  de  compofições 
jocoferias,  e  acabando  por  le  diíTolverem  na  obfcenidade. 
Os  poetas  tornavam-le  por  efte  meio,  não  diremos  popula- 
res, porcjue  elles  ignoravam  as  fontes  vivas  da  tradição,  mas 
a  fabula  da  gente,  chegando  o  nome  do  poeta  a  tornar-fe 
fynonymo  de  fordido  e  def bragado;  os  mais  conhecidos  per- 
tencem á  corte  de  D.  JoãoV,  effes  Thomaz  Pinto  Brandão, 
Alexandre  de  Lima,  o  padre  Braz  da  Cofia,  Frei  Lucas  de 
Santa  Catharina  e  Caetano  da  Silva  Souto  Maior,  o  Camões 
do  Rocio.  Efte  fymptoma  de  decadência  intelledual  perfiftiu 
fob  D.  Jofé,  em  António  Lobo  de  Carvalho,  e  Bocage  e  o 
próprio  Filinto  Elyfio  facrificaram  parte  do  feu  talento  a 
afta  perverfão  do  fentimento.  Não  havia  outro  intuito  fenão 
louvar,  encomiar,  panegyricar  com  defcaro  até  á  indignida- 
de; o  que  fe  efcrevia  não  era  obra  litteraria,  era  para  uns 
uma  garantia  contra  as  prepotências  de  cefarifmo,  para  ou- 
tros um  ganha  pão,  um  pretexto  para  os  prefentes  dos  ricos, 
e  os  mais  elevados  viam  n'eíre  trabalho  um  nobre  ócio,  um 
honefto  paíTatempo,  que  não  deixava  que  a  confciencia  fe 
infurgifl"e  contra  a  intolerância  catholica  ou  contra  a  violên- 
cia cefarifta.  N'efte  intuito  é  que  fe  formaram  as  academias 
litterarias,  em  que  os  defembargadores,  os  confelheiros,  os 
altos  funccionarios  do  eftado,  os  fidalgos,  le  reuniram,  como 
conftituindo  uma  claíTe  á  parte,  mas  fimilhante  á  dos  efcri- 
bas  do  Egypto  ou  da  China,  porque  a  lituação  politica  de 
Portugal  era  idêntica  á  d'eíras  civilifações  primitivas.  Al- 


^%^ 
e^ 


guns  efcriptores,  como  Cruz  e  Silva,  tinham  vergonha  de 
pubHcar  os  léus  produdos  Htterarios  pelo  fado  de  não  des- 
luftrar  a  refpeitahilidadc  de  defemhargador!  Comprehende- 
fe  bem  n'ell:a  demência  intelledual,  em  que  a  litteratura  não 
tinha  deítino,  porque  é  que  eíTes  dois  poderes,  o  Catholi- 
cilmo  e  o  Cefarifmo,  patrocinaram  effe  género  de  cultura. 
Defde  o  feculo  xvi,  os  jefuitas  apoderam-fe  do  enfmo  publi- 
co, para  embaraçarem  a  intelligencia  por  um  efteril  e  ôcco 
humanilmo,  afaílando-a  da  corrente  de  renovação  fcientiíica 
que  prepondera  com  Gallileo  e  adquire  a  lua  maior  intenfi- 
dade  depois  de  Delcartes.  Pelo  feu  lado  a  realeza  cefarifta 
favorecia  as  academias  litterarias  emquanto  ellas  adormen- 
tavam a  afpiração  da  liberdade  politica;  D.  João  V  protege 
a  Academia  de  Hiftoria,  o  Marquez  de  Pombal  patrocinou 
momentaneamente  a  Arcádia  de  Lifboa,  e  o  intendente  Ma- 
nique era  o  protedor  nato  da  Nova  Arcádia  ou  Academia  de 
Bellas  Lettras,  durante  a  demência  de  D.  Maria  I. 

A  acção  profunda  do  Marquez  de  Pombal  eftendeu-fe 
também  á  litteratura;  batendo  os  jefuitas  na  regulamentação 
do  enfino  official,  foi-lhe  ao  encontro  no  defenvolvimento 
dos  productos  humaniftas.  E  extraordinário  o  numero  de  vo- 
lumes de  verfos  compoítos  para  a  ceremonia  da  elevação 
da  eftatua  equeítre  e  para  as  feitas  reaes;  o  Marquez  era  im- 
placável para  as  fatyras  em  verfo,  e  ai  d'aquelle  fobre  quem 
caííTe  a  fufpcita  de  um  verlb  menos  refpeitolb  contra  a  fua 
peíToa,  porque  ficaria  fepultado  para  fempre  nas  mafmorras 
da  Junqueira.  Efta  fituação  de  efpirito  explica-nos  como, 
tendo  o  Marquez  de  Pombal  fido  um  dos  membros  da  an- 
tiga Academia  de  HiJIoria  portugueia,  fe  achou  primeiramen- 
te bem  difpoíto  em  favor  da  nova  fundação  da  Arcádia 
Ulyfftponenfe,  e  como  acabou  por  fim  em  perfeguir  por  des- 
confianças ainda  não  explicadas  os  principaes  dos  feus  mem- 
bros, como  Garção. 


cia 


216 

Façamos  a  tranfição  do  reinado  de  D.  João  V  para  o 
de  D.  Jofé,  para  comprehendermos  melhor  a  influencia  de 
Pombal  na  litteratura.  A  opulência  do  reinado  de  D.  João  V 
contrafta  com  o  eftado  miferavel  da  nação,  arrazada  pelo 
tratado  de  Mettwen,  reduzida  em  1732  á  cifra  de  menos 
de  dois  milhões  e  meio  de  habitantes  em  geral  indigentes, 
porque  a  terra  pertencia  aos  morgados,  aos  titulares,  ás  ca- 
fas  real  de  Bragança  e  do  Infantado,  e  ás  corporações  mo- 
nachaes;  e  eftupidecida,  porque  o  enfino  eílava  monopoli- 
íado  pelos  frades  e  reduzido  a  dilciplinas  pedantefcas.  As 
riquezas  defpendidas  nas  conítrucções  pharaonicas,  eram  o 
produéto  cafual  das  minas  de  ouro  do  Brazil,  e  não  a  con- 
fequencia  de  uma  força  viva,  como  a  riqueza  que  provém 
da  induífria.  As  minas  do  Brazil  produziram  de  1714  a 
1746  em  ouro  amoedado  96.04o:62  8w'4i5  réis,  e  em  dia- 
mantes 12:000  contos.  Comprehende-fe  como  a  monarchia 
era  um  poder  myíteriofo,  e  como  as  energias  individuacs  fe 
abandonavam  á  vontade  foberana  que  diftribuia  eítes  re- 
curfos.  Tão  extraordinário  capital  corrompia,  não  fecunda- 
va; viu-fe  iíTo  tanto  na  arte  como  na  litteratura.  A  bafilica 
de  Mafra  e  a  Patriarchal  não  produziram  uma  efcola  artís- 
tica, e  o  gofto  de  recócó,  a  chinelaria  tomados  da  moda  fran- 
ceza  e  o  eítylo  jefuitico  acabaram  de  deftruir  todas  as  no- 
ções do  bello  que  exiftiam  na  alma  portugueza.  O  eftupendo 
theatro  da  Ribeira  (i755),  onde  o  architedo  decorador  Ser- 
vandoni  phantafiava  ornamentações  defvairadas,  capazes  de 
arruinarem  um  eftado,  não  produziu  nem  a  opera  nacional, 
para  a  qual  exiítia  o  elemento  nacional  da  Modinha^  como  o 
declara  StraíFord,  nem  o  drama  litterario  apefar  do  talento 
excepcional  do  defgraçado  António  Jole.  A  fundação  da  es- 
plendida Bibliotheca  da  Univerfidade  de  Coimbra,  começa- 
da em  10  de  abril  de  171 2  e  terminada  em  1728,  cuflou 
66:6225?  129  réis;  e  a  compra  da  livraria  de  Francifco  Barre- 


1 


1 


eis 


-i-<|>-» .-<0»-l^ 

217 

to  por  5:6oOv00o  réis,  a  do  padre  La  Rue  em  Paris,  e  a 
de  João  Baptifta  Lerzo,  bem  como  as  remeíTas  de  Lucas 
Seabra  da  Silva,  tudo  foi  improfícuo,  porque  os  lentes  não 
fe  inftruiram  e  a  Univerfidade  defceu  ao  ponto  de  em  1772 
o  miniílro  de  D.  Jofé  ter  de  reorganifal-a  pela  omnipotência 
official.  A  fundação  da  Academia  de  Hijloria  portiigiieia,  em 
1720,  não  creou  entre  nós  o  critério  da  hiftoria,  apefar  do 
rei  a  dotar  com  todos  os  privilégios  imagináveis,  mandar-lhe 
patentear  todos  os  cartórios  do  reino,  nomeando  paleogra- 
phos  para  tirarem  as  copias  precifas,  e  impondo  por  um 
decreto  de  14  de  agoíto  de  172 1  o  refpeito  aos  feus  vaíTal- 
los  por  todos  os  monumentos  architedonicos.  Apefar  de  to- 
dos eftes  influxos,  a  decadência  intelleítual  vê-fe  patente  no 
eftylo  e  nos  refí.iltados  das  noticias,  praticas,  orações,  elo- 
gios e  diíTertações  dos  feus  membros. 

Uma  coufa  faltava  para  que  efles  generofos  esforços  fru- 
éfificaíTem,  a  liberdade!  A  nação  não  tinha  parlamento,  o 
povo  não  tinha  terra,  o  trabalho  era  confiderado  degradan- 
te, a  educação  publica  ell:ava  em  poder  dos  jefuitas,  a  con- 
fciencia  era  atropellada  por  um  clero  abforvente  e  canni- 
bal,  o  efpirito  crítico  tinha  a  efpionagem  do  Santo  Ofíicio  e 
a  fogueira,  a  realeza  era  um  fetiche,  e  a  ariítocracia  uma 
proftituição  galante.  Era  um  meio  excellente  para  a  indigni- 
dade campear  infrene,  mas  nunca  para  fe  crearem  conce- 
pções artifticas,  ou  fe  manifeftarcm  os  penfamentos  fecun- 
dos. Um  povo  fem  opinião,  fubmiíTo  ao  regimen  que  corta 
toda  a  manifeftação  do  penfamento  fobre  os  actos  do  gover- 
no difcricionario,  os  efpedaculos  deftinados  a  defviarem  as 
attenções  da  caufa  publica,  as  idéas  confideradas  como  um 
perigo  focial,  tudo  conduzia  ao  cretinifmo,  á  idiotia,  para 
exprimir  a  qual  é  ainda  generofa  a  palavra  decadência.  E 
efla  decadência  nacional  não  podia  deixar  de  aggravar-fe 
com  as  monítruofidades  de  um  rei  epiléptico,  fauítofo  como 


218 

Luiz  XIV,  devaíTo  como  Luiz  XV,  e  fanático  como  Filippe 
II;  tal  era  D.  João  V,  que  o  leu  contemporâneo  Frederico  II, 
o  violador  da  Pragmática  Sancção,  e  portanto  leu  inimigo, 
retratava  com  efta  phrafe  farcaftica,  mas  profunda:  «Ses plai- 
Jirs  étaient  des  fonãions  facerdotales,  fes  bátiments  des  couvents; 
et  fes  armées  des  moines  et  fes  inaitrejjes  des  religieiifesy> .  As 
tentativas  de  reforma  litteraria  fob  D.  João  V  caíram  pela 
efterilidade  do  meio  focial  e  official,  poftoque  d'ahi  provies- 
fem  os  germens  de  novos  esforços.  Ainda  aíTim,  eíTes  ger- 
mens pertenceram  á  iniciativa  particular  e  individual,  e  é 
notável  como  os  primeiros  esforços  para  a  fundação  da  Ar- 
cádia de  Li/boa  foram  a  continuação  do  antigo  grupo  litte- 
rario  denominado  a  Academia  dos  Occultos.  Em  uma  oração 
recitada  na  Arcádia  em  lySS,  Garção  toca  em  um  rápido 
elboço  todos  as  tentativas  encetadas  no  reinado  de  D.  João 
V,  depois  da  paz  geral,  para  a  reorganilação  da  inftrucção 
publica  e  da  litteratura  portugueza;  fervir-nos-hemos  das 
fuás  próprias  palavras  que  encerram  a  hiftoria  dos  prece- 
dentes d'eíra  academia  reformadora,  afphyxiada  Ibb  a  acção 
abforvente  de  Pombal:  «A  teimofa  guerra  com  que  nos  vi- 
mos obrigados  a  rebater  a  fúria  dos  helpanhoes  ainda  não 
permittia  que  entre  o  ruido  das  armas  e  motim  dos  tambo- 
res fe  deíTe  ouvidos  á  harmonia  das  mufas;  continuava  a 
decadência.  Ajuftou-fe  a  paz;  focegaram-fe  os  ânimos,  mas 
tão  inveterado  eftava  o  contagio,  que  fe  houve  quem  o  in- 
tentou, não  houve  quem  não  defefperaífe  da  reflauração  das 
bellas  lettras,  das  artes  e  das  fciencias  em  Portugal.  O  nego- 
cio era  tão  importante  e  de  tão  difficil  êxito,  que  nem  ainda 
o  grande  efpirito  e  pródiga  mão  de  D.  João  V  pôde  confeguir 
mais  do  que  lançar  os  primeiros  fundamentos.  Eftimou  os  lá- 
bios, premiou  os  meftres,  enriqueceu  as  livrarias  do  reino,  e 
fundou  a  Real  Academia  de  Hiftoria.  Roubou-lhc  a  morte  efta 
gloria,  quando  principiaram  a  amanhecer  as  primeiras  luzes 


(|3 


219 

em  Portugal  do  bom  gofto,  da  verdadeira  erudição  e  da 
prudente  critica.  Devemos  alegrar-nos  de  fer  inconteftavel 
que  o  primeiro  documento  em  que  podemos  fixar  a  epocha 
d'eíla  reftauração  é  o  papei  crítico  que  compoz  e  imprimiu 
o  árcade  Sincero  Jerabifcenfc  (lySg).  É  verdade  que  alguns 
efpiritos  mais  fortes  tentaram  efta  empreza  ainda  hoje  ár- 
dua, e  então  impoíTivel;  mas  como  nas  primeiras  efcolas 
reinava  certo  efpirito  de  opinião,  que  foberbamente  luften- 
tava  o  efpirito  do  mau  gofto,  o  verdadeiro  methodo  ( 1 747)  ou 
le  não  conhecia  ou  fe  defprezava.  Fundaram-fc  academias. 
Algumas  permaneceram  fem  mais  frudo  que  o  de  propaga- 
rem o  contagio.  Nos  últimos  annos  do  reinado  de  D.  João  V 
apparecem  os  primeiros  crepuículos  do  bom  gojlo.  Já  então 
a  Sociedade  dos  Occidtos,  eftabelecida  em  um  palácio  em 
que  fempre  habitaram  as  mufas,  e  fundada  por  um  génio 
extraordinário,  herdeiro  não  fó  do  fangue,  mas  também  dos 
raros  talentos  e  virtudes  dos  feus  progenitores,  trabalhava 
n'eíte  tempo  na  reftauração  da  lingua  portugueza,  do  eftylo 
e  da  boa  poefia.  Poderia  fer  que  a  ella  fe  deveífe  toda  a 
gloria  fe  a  publica  defgraça  não  feparaífe  tão  útil  e  tão  fa- 
bia  companhia».  Como  fe  vê,  Garção  ennumera  as  tentati- 
vas de  renovação  litteraria  que  precederam  a  fundação  da 
Arcádia  de  Li/boa,  e  a  cataftrophe  do  terremoto  de  Lifboa 
de  1755  trunca  os  últimos  esforços  da  academia  dos  Occid- 
tos. Primeiramente  eífas  tentativas  vifaram  todas  a  obterem 
a  intervenção  ofíicial  da  omnipotência  do  abfolutifmo.  As- 
fim  em  17 10  Mello  da  Fonfcca  aventava  que  fó  D.  João  V  é 
que  podia  mandar  reformar  a  lingua  portugueza  dos  muitos 
plebeifmos  que  a  afaftavam  da  pureza  latina.  Bluteau  attri- 
blie  á  munificência  de  D.  João  V  o  ter-fe  publicado  o  grande 
Vocabulário  portugue^;  emfim  a  Academia  de  Hijloria  rece- 
beu o  influxo  real,  « com  o  exemplo  do  cardeal  Richelieu, 
que  no  anno  de    i635   eftabeleceu  em   Paris   a  Academia 


eis 


franceza.  .  .  »  Depois  de  todas  as  preffôes  do  cefarifmo,  que 
reftava  á  iniciativa  individuai?  apenas  a  bajulação  do  con- 
ílituido.  Apenas  Verney,  continuando  em  Portugal  o  criticis- 
mo  iniciado  em  Helpanha  por  Benito  Feyjó,  fez  no  Verda- 
deiro methodo  de  ejíiidar  uma  analyfe  fundamentada  do  enfmo 
jefuitico  e  das  eftereis  difciplinas  em  que  fe  efgotava  a  in- 
telligencia  portugueza,  analyfe  que  produziu  uma  vigorofa 
reacção  da  parte  dos  jefuitas  em  folhetos  pfeudonymos,  que 
defvairaram  por  algum  tempo  as  opiniões;  mas  o  trabalho 
negativo  de  Verney  teve  a  extraordinária  importância  de 
levantar  a  queftão  do  enfino  publico  e  de  fervir  de  bafe  ao 
penfamento  das  reformas  pedagógicas  do  Marquez  de  Pom- 
bal. Até  onde  os  regulamentos  têm  efiicacia,  eftende-fe  a 
intervenção  do  eftado;  mas  o  mundo  moral  eítá  fora  d'efta 
alçada,  e  o  que  então  fe  chamava  o  ffojfo  era  incoercível, 
ninguém  fabia  como  trazel-o  á  difciplina.  Tal  era  a  preoc- 
cupação  dos  efpiritos,  que  fentiam  a  nova  corrente  da  in- 
telligencia  que  Jacob  de  Caífro  Sarmento  recommendava 
a  D.  João  V  a  traducção  das  obras  de  Bacon  como  primei- 
ro paíTo  para  as  reformas,  ou  como  Verney  reconheciam  a 
importância  das  doutrinas  de  Defcartes  e  de  GaíTendi.  Os 
jefuitas  efterilifavam  todos  os  esforços,  impondo  a  confer- 
vação  do  eftreito  ariftotelifmo  da  Philofophia  conimbricenfe, 
que  irradiava  do  CoUegio  das  Artes  fobre  Portugal,  che- 
gando a  formular  no  Ritual  theologico:  «Não  fe  defenderão 
opiniões  contra  a  Lógica  conimbricenfe».  A  confervação  do 
acanhado  humanifmo,  com  que  os  jefuitas  durante  o  feculo 
XVII  nos  fepararam  do  movimento  intelledual  europeu,  pro- 
longando-fe  pela  circumítancia  de  fe  acharem  miniftros  de 
D.  João  V,  coadjuvou  ainda  no  feculo  xviii  a  perfiftencia 
d'eíre  eípinto  fei/centijta,  a  que  fe  dava  o  nome  de  mau  gos- 
to, e  contra  o  qual  procurou  reagir  a  Arcádia,  já  fob  a 
protecção  de  Pombal.  Antes  porem  da  cooperação  do  mi- 


eis 


CM 


4  cts 

-• •-<v>-|^ 


niftro,  effa  reacção  contra  o  mau  gojlo  era  um  ataque  dire- 
cto aos  jefuitas,  como  fe  viu  pela  celeuma  levantada  com  as 
Cartas  de  Verney,  e  é  por  ilTo  que  o  titulo  de  Occultos,  fob 
que  fe  aggremiaram  alguns  efpiritos,  nos  revela  que  havia 
alguma  coula  de  liberdade  e  de  protefto  a  que  fe  el1:ava 
defacoftumado  e  que  condiz  com  as  tentativas  de  emanci- 
pação intelledual  encetadas  fob  egual  fegredo  em  França 
e  Inglaterra.  Em  Portugal  imitavam-fe  as  modas  francezas, 
e  liam-fe  de  preferencia  os  efcriptores  do  começo  do  reina- 
do de  Luiz  XIV;  as  relações  de  Boilcau  com  o  conde  da 
Ericeira  moftram-nos  que  fe  procurava  em  França  a  direc- 
ção mental  pela  rafão  de  que  eftavamos  divorciados  politi- 
camente da  Hefpanha  intelleclualmente  annuUada  fob  a  de- 
gradação de  Filippe  V.  A  influencia  franceza  penetrava 
na  peninfula,  mas  não  era  ainda  a  corrente  philofophica  e 
litteraria  dos  efcriptores  que  precederam  a  Revolução;  ao 
primeiro  impulfo  correfponde,  como  já  notámos,  a  Acade- 
mia de  Hijforia,  a  traducção  da  Poética  de  Boileau,  e  tudo 
quanto  provinha  das  pompas  do  cefarifmo;  os  proteftos,  as 
idéas  novas,  a  revolta  mental,  o  efpirito  encyclopedifla  fó 
muito  tarde  é  que  reflediram  em  Portugal,  parte  nos  aclos 
do  grande  miniftro,  parte  nas  afpirações  do  príncipe  D.  Jofé 
e  no  duque  de  Lafões  ou  ainda  em  Jofé  Anaftafio  da  Cunha. 
Mefmo  em  França  efte  trabalho  de  reorganifação  mental 
fora  fecreto.  A  influencia  que  a  liberdade  do  penfamento  no 
dominio  da  politica  exerceu,  fobre  todo  o  feculo  xviii  e  em 
todos  os  paizes,  começou  a  fortalecer-fe  em  uma  aífociação 
de  livres  penfadores  chamada  o  Club  de  Fentrefol,  da  qual 
falia  o  marquez  de  Argenfon  nas  fuás  Memorias:  «Era  uma 
cfpecie  de  Club  á  ingleza,  formado  de  indivíduos  que  gos- 
tando de  difcorrer  fobre  o  que  fe  paflava,  podiam  reunir-fe 
e  communicarem,  fem  terror  de  fe  comprometterem,  fua  opi- 
nião, porque  fe  conheciam  bem  uns  aos  outros,  e  fabiam 


-i-6- -<í^-^ 

e|s  eis 


cia 


com  quem  e  diante  de  quem  fallavam.  Eíta  fociedade  cha- 
mava-fe  o  Entrefol  (fobreloja)  pelo  logar  onde  fe  reunia,  que 
era  a  fobreloja  onde  habitava  o  abbade  Alary.  Ali  fe  acha- 
vam fempre  gazetas  de  França,  da  HoUanda  e  melino  jor- 
naes  inglezes. »  D'Argenfon  hiftoría  nas  fuás  Memorias  efta 
aíTociação  iniciadora  da  primeira  efcola  dos  economiftas 
francezes  e  dos  próprios  encyclopediftas;  muitos  dos  feus 
membros  eram  altos  funccionarios  da  politica  e  do  clero, 
mas  bafta  citarmos  eífe  typo  extraordinário  de  evangelifador 
da  humanidade,  o  Abbade  de  S.  Pedro,  o  audor  do  Projedo 
da  Pai  perpetua,  para  determinar-fe  a  ordem  da  elaboração 
mental  que  fe  eftava  paífando  nos  efpiritos  que  precederam 
Montefquieu  e  Rouífeau.  Era  a  incubação  da  fociedade  eu- 
ropêa,  voltada  para  o  problema  da  liberdade  politica,  porque 
mefmo  fem  o  contado  com  efta  nova  corrente  da  crítica,  da 
philofophia  e  da  litteratura,  em  Portugal  manifeftaram-fe 
caraderes  de  um  individualifmo  altamente  notável,  como  o 
Cavalheiro  de  Oliveira,  que  fe  refugiou  na  Hollanda,  então 
o  redudo  da  liberdade  de  confciencia,  o  originaliírimo  ab- 
bade António  da  Cofta,  que  o  erudito  Burnay  confiderava 
uma  efpecie  de  Rouífeau  com  mais  elevação  moral,  e  que 
viveu  no  foco  das  fummidades  artifticas  de  Vienna,  o  gran- 
de medico  António  Ribeiro  Sanches,  cujas  defcobertas  fo- 
ram proclamadas  por  Vic  d'Azyr,  um  dos  fundadores  da 
phyfiologia.  Em  Portugal  tel-os-íam  queimado.  Mais  tarde 
quando  eífas  idéas  philofophicas  fe  accentuaram,  começou 
a  reacção  tremenda  primeiro  pela  morte  mylteriofa  e  repen- 
tina do  príncipe  D.  Jofé,  o  amigo  de  Jofé  II,  pelo  encar- 
ceramento de  Jofé  Anaftafio  da  Cunha,  e  pela  expatriação 
de  Félix  de  Avellar  Brotero  e  de  Jofé  Corrêa  de  Serra,  não 
fallando  de  Francifco  Manuel  do  Nafcimento  envolvido,  tal- 
vez já  por  caufa  das  fuás  diífidencias  litterarias,  n'efta  per- 
feguição  da  epocha  denominada  do  intolerantifmo. 


4  4^ 
-<>-f- 

223 

Sahe-fe  pouquiíTimo  da  Academia  dos  Occultos;  alguns 
dos  opulculos  laídos  d'ella  delcobrem  uma  Ibciedade  de  ver- 
fejadores  fem  penfamento.  Garção  attribue-lhe  planos  de  re- 
novação litteraria,  que  le  não  realifaram  pela  difperfão  cau- 
fada  pelo  grande  terremoto,  perleguindo  comtudo  o  mefmo 
penfamento  na  fundação  da  Arcádia  de  Lifboa,  cujos  pri- 
meiros membros  haviam  pertencido  á  corporação  anterior. 
A  Arcádia  teve  a  virtude  de  nalcer  da  iniciativa  particular, 
mas  foi  rojar-fe  ante  a  omnipotência  official,  e  para  captar 
effe  influxo  achou-fe  infenfivelmente  reaccionária,  primei- 
ramente pela  contemporifação  com  o  elemento  feifcentifta, 
depois  pela  fubmiífão  ao  efpirito  jefuita  que  a  tornou  odiofa 
ao  Marquez  de  Pombal  e  a  deixou  morrer  na  inanidade. 
Cruz  e  Silva  e  Garção  foram  os  dois  principaes  vultos  d'eífa 
corporação  litteraria,  e  pelas  fuás  relações  com  o  Marquez 
de  Pombal  fe  conhece  o  que  o  grande  minirtro  pretendia; 
Cruz  e  Silva,  no  poema  heroi-comico  do  Hyffope,  dera  um 
golpe  profundo  nos  infatuados  ridiculos  do  mundo  clerical, 
e  o  miniftro  eítimava-o  por  elTa  fua  cooperação  na  obra  da 
fecularifação  focial;  Garção  era  o  amigo  intimo  dos  padres 
das  Neceífidades,  conviva  da  ariftocracia  hoftil  ao  audaciofo 
reformador,  e  por  iífo  foi  fob  um  pretexto  fútil  encarcerado 
no  Limoeiro,  onde  expirou  mezes  depois.  Celebrando  a  pri- 
meira reunião  da  Arcádia,  dizia  Garção  em  um  difcurfo: 
« Chegou  o  feliz  inftante  de  nos  ajuntarmos,  então  fundámos 
efta  fociedade,  jurando  padroeira  d'ella  a  immaculada  rai- 
nha dos  céus  e  da  terra,  debaixo  do  ineífavel  titulo  da  fua 
puriíTima  Conceição».  Começando  por  bajular  o  fanatifmo 
religiofo,  a  fua  actividade  tinha  de  defpendcr-fe  cm  bajular 
a  auftoridade  do  abfolutifmo  monarchico;  os  três  fundado- 
res. Cruz  e  Silva,  Thcotonio  Gomes  de  Carvalho  e  Efteves 
Negrão,  eram  altos  funccionarios  da  confiança  do  miniltro,  e 
trouxeram  para  a  nova  academia  a  benevolência  d'aquelle, 


-i-6- -ò-§- 

e|í  ela 


-^<>-t -<>-§- 

224 

que  também  começara  a  fua  adividade  mental  pela  Acade- 
mia de  Hijloria.  Pela  fua  grande  preponderância  peíToal, 
Theotonio  Gomes  de  Carvalho  foi  o  primeiro  prefidente; 
Cruz  e  Silva  redigiu  os  eftatutos,  fazendo  dos  actos  da  fo- 
ciedade  nas  queftões  criticas  uma  efpecie  de  inquifição  de 
eftado;  Eíteves  Negrão  ficou  o  fecretario  perpetuo.  A  pri- 
meira reunião  definitiva  da  Arcádia  celebrou-fe  em  19  de 
julho  de  1757,  tendo-fe  realifado  uma  outra  preliminar  em 
II  de  março  de  1756.  Parece  que  o  miniítro  omnipotente 
aíTiftiu  a  eftes  actos.  Garção,  em  um  difcurfo  recitado  em 
1758,  allude  a  eíTa  benignidade  oííicial:  «Ganharam  as  nos- 
fas  obras  nova  reputação;  conciliou  refpeitos  o  nome  de 
Árcade;  e  deíejou  o  publico  aíTiftir  ás  noíTas  conferencias. 
Atrevemo-nos  a  louvar  um  príncipe  a  quem  Plinio  podia 
fem  lifonja  recitar  o  famolb  panegyrico  de  Trajano.  O  mes- 
mo foi  ouvirem-nos,  que  eftimarem-nos  os  homens  mais  fa- 
bios  e  prudentes." Olharam  o  frudo  do  noíTo  trabalho  como 
para  uma  vantagem  da  nação.  E  a  grande  alma  d'aquelle 
vigilante  miniftro,  que  não  tira  os  olhos  do  adiantamento  da 
pátria,  com  publicas  demonítrações  nos  honrou  e  animou, 
para  não  defirtirmos  da  diíiicultofa,  mas  illuítre  empreza  a 
que  facrificavamos  os  noíTos  eftudos.  Segunda  vez  nos  ou- 
viu, fegunda  vez  nos  honrou;  de  lua  mefma  bocca  ouvimos 
expreífões  com  que  em  Portugal  não  cuftumam  faltar  os 
miniífros.  Podemos  aíTeverar  que  vimos  aquelle  grande  co- 
ração, e  que  n'elle  cftava  vivamente  impreíTo  o  incanfaval 
zelo  com  que  traballia  pelo  bem  de  feus  compatriotas,  com 
que  honra  e  com  que  eftima  os  portuguezes  beneméritos. 
Não  tardará  muito  que  o  publico  conheça  que  efte  género 
de  lettras  lhe  merece  uma  feria  attenção,  e  que  as  eftima 
porque  as  conhece » . 

Apefar  d'eíl:as  homenagens  ao  miniífro,  elle  não  patroci- 
nou a  Arcádia,  talvez  por  defcobrir-lhe  a  errada  compre- 


henfão  do  feu  deftino;  em  uma  d'eíras  vifitas  officiaes  de 
Sebaftião  Jofé  de  Carvalho,  o  árcade  Garção  fez  a  leitura 
de  uma  ode  emphatica,  em  que  celebra  o  génio  adminiftra- 
tivo  do  miniflro: 


No  Menalo,  íe  Arcádia  não  levanta 

Em  honra  de  teu  nome 

Uma  Ibberba  eftatua, 

De  rico  jafpe,  como  tu  mereces, 

Seus  hymnos  te  confagra, 

E  n^elles  \iverá  tua  memoria; 

Teu  nome  efcreveremos 

Em  nolfos  corações,  em  noffos  verfos. 


Porém  o  miniftro  abandonou  a  Arcádia  como  um  foco  de 
reacção  jefuitica  e  não  cumpriu  nenhuma  das  fuás  promes- 
fas.  PaíTados  cinco  annos,  ainda  Garção  fonhava  com  eíTe 
ambicionado  favor  ofíicial:  «Tempo,  tempo  virá  em  que 
cheguem  os  eccos  do  nolTo  merecimento  aos  ouvidos  de 
quem  o  eftima,  de  quem  o  conhece  e  de  quem  o  protege, 
ainda  quando  o  defcobre  defvalido,  pobre  e  defprezado;  já 
nós  ouvimos  de  fua  bocca  promeffas  que  não  hão  de  faltar, 
e  foi  a  noíTa  cobardia  quem  deixou  fugir  a  occafião.  Cuide- 
mos em  merecer  o  premio,  que  é  mais  fácil  confeguil-o  do 
que  merecel-o,  e  ordinariamente  o  defeja  quem  o  não  me- 
rece». Na  ode  já  alludida  de  Garção  ao  conde  de  Oeiras,  o 
poeta  refere-fe  á  malevolencia  que  pretendia  defluftrar  as 
acções  do  miniftro: 


Não  ergue  a  mão  cruenta  a  fria  morte 
Contra  fonoros  verfos! 
Em  vão  levanta  templos  e  columnas 
Quem  da  pátria  os  louvores  não  merece; 


226 


Teu  zelo  incontraftavel, 

Tuas  acções  illuítres,  cantaremos! 

A  macilenta  inveja 

As  viboras  cerúleas  delpedace! 


Os  grandes  fucceíTos  de  extermínio  da  cafa  de  Aveiro 
em  1758,  a  neceíTidade  de  occorrer  á  invafão  do  exercito 
hefpanhol,  o  ataque  deilemido  á  poderofa  corporação  dos 
jefuitas,  fe  nos  moftram  por  um  lado  a  extraordinária  adi- 
vidade  do  miniílro  que  o  embaraçava  de  animar  com  o  feu 
favor  a  Arcádia,  por  outro  lado  outros  tantos  themas  íbbre 
que  o  elpirito  reaccionário  dos  jefuitas  e  das  familias  arifto- 
craticas  envolvidas  na  confpiração  contra  o  rei,  fe  haviam  de 
exercer,  minando  o  favoritifmo  do  miniftro.  Para  elle  a  Ar- 
cádia era  um  centro  de  reacção;  os  feus  principaes  mem- 
bros eram  frades  e  padres.  E  como  nada  tinha  a  efperar 
d'ali,  deixou-a  vegetar  no  eftiolamento  e  extinguir-fe  na  ina- 
nidade. A  occajião  perdida  a  que  allude  Garção,  pôde  deter- 
minar-fe  antes  do  primeiro  golpe  vibrado  em  1757  contra 
os  jefuitas;  d'ahi  em  diante  a  luda  tornou- fe  mais  violenta, 
e  a  Arcádia  no  meio  da  reorganifação  geral  ficou  um  corpo 
eftranho.  O  próprio  Garção  nada  via  n'efl:a  ordem  de  cou- 
fas  confinado  na  imitação  do  feu  Horácio,  e  elle  próprio  já 
pela  lua  educação  no  Collegio  dos  jefuitas  e  pelas  idéas  po- 
Hticas  nas  relações  da  Gaieta  portiigiieia,  já  pela  intimidade 
peíToal  com  as  familias  ariftocraticas  perfeguidas,  como  a  de 
Alorna  e  a  do  conde  de  S.  Lourenço,  incorreu  no  ódio  do 
poderofo  miniftro,  fob  o  qual  fuccumbiu. 

Sabendo-fe  o  motivo  da  prifão  e  morte  do  conde  de 
Óbidos,  por  ter  chafqueado  no  paço  acerca  do  nome  de  Se- 
baftião  (que  D.  Sebaftião  não  podia  vir  a  reinar  em  Portu- 
gal, porque  já  cá  eftava  governando  outro  Sebaífião)  é  fácil 
de  perceber  como  a  vaidade  irafcivel  do  minifiro  poderia 


^ 

■^-6^ 


6M 


227 

lem  fundamento  determinar  a  ruina  do  indefefo  Garção. 
Pelo  crime  de  fazerem  verfos,  ou  de  lhe  encontrarem  em 
cafa  verfos  fatyricos  contra  o  Marquez,  morreram  no  forte 
da  Junqueira  o  efcrivão  do  fifco  Salvador  Soares  Cotrim  e 
o  padre  António  Rodrigues;  Tolentino  efteve  fempre  calado 
até  ao  dia  da  viradeira.  E  verdade  que  Garção  tinha  cele- 
brado em  uma  pompofa  epiftola  a  di6fadura  do  i .°  Mar- 
quez de  Pombal,  comparando-o  a  Atlante  cujos  hombros 
fuftentava  o  folio  portuguez,  comparando-o  a  Mazzarino,  a 
Richelieu  e  a  Colbert,  mas  no  meio  das  fatyras  anonymas 
que  circulavam  contra  o  valido  de  D.  Jofé,  era  poíTivel  que 
alguma  foífe  por  intrigas  particulares,  fobretudo  do  elemen- 
to feifcentifta  e  diíTidente  que  ficou  fora  da  Arcádia,  attri- 
buida  a  Garção.  As  mefmas  vaidades  fe  infurgiram  e  pro- 
duziram mais  tarde  a  prifão  de  Bocage.  O  titulo  de  Árcade 
tornou-fe  uma  diftincção  honorifica,  fobretudo  defde  que  eífa 
academia  celebrava  conferencias  publicas  nos  palácios  do 
eftado,  a  que  aíTiftia  por  mais  de  uma  vez  o  miniftro  fobe- 
rano.  Na  fua  oração  de  lySS,  Garção  precifa  eftes  fados 
como  caufa  do  enervamento  da  Arcádia :  « Ganharam  as  nos- 
fas  obras  nova  reputação,  cohciliou  refpeitos  o  nome  de  ár- 
cade, e  defejou  o  publico  afliftir  ás  nolTas  conferencias».  Por 
iíto  fe  acirraram  azedas  vaidades,  e  fe  digladiaram  defpei- 
tos,  como  fe  nota  n'eíre  grupo  da  Ribeira  das  Naus,  capita- 
neado por  Filinto.  Garção  innfte  em  outro  difcurfo:  »A  noffa 
ambição  (não  vos  aíTuilieis).  a  grande  ambição  de  gloria  com 
que  nos  facrificámos  ao  trabalho  de  tão  profundos  eftudos 
foi  quem  nos  reduziu  a  tão  extrema  penúria,  foi  quem  exe- 
cutou tão  vergonhofa  cataftrophe;  julgámos  que  entre  montes 
não  cabia  a  noíTa  fama;  quizemos  expol-a  a  maior  theatro, 
e  Deus,  que  não  podia  deixar  de  proteger  noíTos  defejos  em- 
quanto  foram  finceros,  não  tardou  em  levantar-nos  á  maior 
altura  de  honra  e  eftimação.  Apparecemos  aos  olhos  do  pu- 


228 

blico,  agradámos,  fomos  ouvidos,  conheciam-fe  os  noíTos 
nomes,  refpeitava-fe  a  Arcádia.  Então  enamorados  de  tão 
alta  fortuna,  nos  pareceu  mal  tornar  para  um  monte  e  viver 
em  cabanas. 

«Prefidir  n'uma  grande  fala,  magnificamente  decorada, 
rodeado  de  ouvintes  illuftres,  fabios  e  virtuofos  que  talvez 
converfavam  no  fucceíTo  da  campanha  (1762)  emquanto  nós 
fallavamos,  ou  eftavam  com  o  lápis  notando  palavras,  que 
lhes  pareceram  novas  porque  não  leram  Ferreira,  nem  as 
toparam  nos  fermões  de  Vieira;  cantarmos  noílbs  verfos  ao 
fom  de  uma  orcheílra  immenfa  e  talvez  imprópria;  ifto  é  que 
julgámos  honra ...»  A  eftas  ironias,  Garção  acrefcenta  o  pen- 
famento  primordial  que  motivava  a  inércia:  «que  era  indis- 
penfavel  fazer  mais  feíTôes  publicas,  porque  eíte  foi  o  único 
objedo  da  fundação  da  Arcádia,  — ainda  que  tal  não  lem- 
brou aos  fundadores.»  N'efte  difcurfo  recitado  em  1762, 
quando  o  efpirito  publico  fe  occupava  com  a  campanha  di- 
rigida pelo  conde  de  Lippe,  Garção  alludia  ás  duas  feíTões 
apparatofas  de  29  de  outubro  de  1759,  na  fala  da  Junta  do 
Commercio,  por  motivo  de  Sebaftião  Jofé  de  Carvalho  fer 
agraciado  com  o  titulo  de  conde  de  Oeiras,  e  de  14  de  mar- 
ço de  1760,  nas  NeceíBdades,  celebrando  as  melhoras  de 
el-rei  D.  Jofé.  Uma  grande  parte  não  fe  preoccupava  da 
reítauração  da  litteratura  portugueza;  inftrumentos  incon- 
fcientes  do  cefarifmo  que  fe  impõe  pela  força  contra  as  idéas, 
e  que  cobre  a  prepotência  com  as  pompas  deflumbrantes, 
elles  queriam  fomente  a  honra  de  ferem  viftos  em  um  falão 
fumptuofo  e  em  uma  pofição  exclufiva.  Foi  ifto  o  que  tor- 
nou o  nome  de  Árcade  honrofo  e  appetecido,  e  foi  efte  o 
motivo  por  que  fe  confervou  a  lifta  dos  feu§  nomes,  e  por- 
que aquelles  que  imprimiram  em  vida  os  feus  verfos  fe  não 
efqueceram  de  fe  nobilitar  com  o  cognome  poético  que  fe 
tornou  moda  mefmo  fora  da  Arcádia.  A  litteratura  tinha  de 


229 

reproduzir  fatalmente  o  meio  focial,  e  os  bons  talentos  da 
Arcádia,  como  Garção,  Diniz  e  o  Quita,  e  ainda  as  mais 
fervorolas  vontades,  como  Manuel  de  Figueiredo,  acharam- 
le  impotentes,  porque  a  adividade  litteraria,  foh  o  cefaris- 
mo  bragantino  que  outro  deftino  poderia  ter,  fenão  a  baju- 
lação do  poder?  No  feu  bom  fenfo  fecular,  Montaigne  trans- 
creve uma  phrale  de  Tito  Livio,  que  fynthetifa  todas  as  de- 
cadencias  intelleduaes  e  artifticas:  «  Titus  Liviíis  dict  iray  — 
que  le  laugage  des  liommes  noiírris  foiíbs  la  voyaiité,  ejl  toiís- 
joiírs  plciu  de  raines  ojleiítatioiís  etfaidx  tefníoignages^  n .  Eis  a 
fynthefe  de  toda  a  nofla  adividade  mental  do  feculo  xviii; 
a  um  diíToluto  e  apparatofo  D.  João  V,  correfpondem  obras 
litterarias  pautadas  pela  Arte  de  faier  conceitos,  deftinadas 
a  elogiar  com  devoção  budhica  o  monarcha  e  todos  os  fuc- 
ceíTos  da  vida  do  paço.  Poefia,  eloquência,  theatro,  hiftoria, 
tudo  traz  eíTe  cunho  da  bajulação  e  da  indignidade  lervil, 
e  ao  melmo  tempo  o  tédio  de  uma  linguagem  empolada  e 
fem  idéas,  violentada  a  exprimir  emoções  fem  naturali- 
dade, nem  verdade.  Se  a  acção  dos  jefuitas  no  humanifmo 
da  Europa  fe  manifefta  na  perverfão  do  gofto,  que  fe  pro- 
paga a  todas  as  litteraturas  do  feculo  xvii,  no  feculo  xviii  o 
cefarifmo  continuou  eífa  decadência  pela  influencia  direita 
para  a  banalidade.  A  maior  aítividade  litteraria  defpendeu- 
fe  em  incalculáveis  rumas  de  verfos,  lamentando  a  morte  da 
princeza  D.  Francifca  Benedida,  a  elevação  da  eftatua 
equeílre,  a  morte  prematura  do  príncipe  D.  Jole,  o  nafci- 
mcnto  do  principe  D.  António,  e  quando  o  Marquez  de 
Pombal  fe  recolheu  á  vida  privada  eífa  quantidade  pafmofa 
de  fatyras  e  de  epigrammas  que  a  covardia  dos  homens  de 
lettras  lhe  atiraram  de  todos  os  lados.  Ifto  explica  a  relação 
do  Marquez  de  Pombal  com  a  litteratura;  o  próprio  Cruz  e 


EJfais,  liv.  I,  c;ip.  iii. 


cia 


(is 


23o 

Silva,  que  o  glorificava  em  uns  verfos  epifodicos  do  Hyffo- 
pe,  na  queda  do  miniftro  cortou,  legundo  a  tradição,  os  ver- 
fos que  defagradavam  á  reacção  dominante.  Apenas  um 
poeta,  Jofé  Bafilio  da  Gama,  o  auítor  da  pequena  cpopêa 
brazileira  o  Uniguay,  teve  a  coragem  dos  feus  fentimentos, 
não  efquecendo  que  devera  a  Pombal  o  perdão  do  defterro 
para  Angola  pelo  motivo  de  ler  jcfuita.  Nicolau  Tolentino, 
verberando  nos  feus  fonetos  o  miniftro  fob  cujo  governo 
fe  contivera  em  filencio  prudente,  ultrapaífa  a  indignidade, 
porque  vilava  unicamente  a  lilbnjear  os  refentimentos  dos 
que  difpunham  agora  do  poder. 

A  litteratura  nas  fuás  formas  orgânicas,  lyrica,  épica  e 
dramática,  fó  exiftia  por  uma  reproducção  material  ou  ma- 
caqueação  dos  exemplares  convencionaes.  O  fentimento  in- 
dividual, que  produz  a  emoção  do  lyrifmo,  eftava  reduzido 
á  indignidade  c  á  fubmiífáo  de  um  defpotifmo  degradante, 
e  por  iífo  fubmettia-fe  ao  convencionalifmo  auiítoritario,  pa- 
rodiando fem  intelligencia  os  lyricos  romanos.  A  acção,  que 
produz  a  epopêa,  eftava  centralifada  no  poder  ablbluto,  e 
por  iífo  as  individualidades  heróicas  não  tinham  que  fe  ma- 
nifeftar  porque  nada  tinham  que  fazer;  Pombal  comprehen- 
deu  ifto,  mandando  vir  da  AUemanha  um  general,  o  conde 
de  Lippe,  para  dirigir  a  campanha  defenfiva  contra  a  Hes- 
panha.  Emfim,  a  creação  dramática,  que  fe  funda  no  con- 
trafte  da  opinião  publica  com  as  fituações  individuaes,  como 
podia  defabroxar,  fe  a  opinião  eftava  contida  entre  as  duas 
preífões  tremendas,  a  orthodoxia  catholica  pelas  fogueiras  do 
Santo  Officio,  e  a  rafão  do  eftado,  pela  forca  e  garrote?  As- 
fim  o  theatro,  que  não  chegou  a  ter  vida  nas  mãos  de  Ma- 
nuel de  Figueiredo,  foi  uma  miftura  de  plagiatos  remenda- 
dos indiftindamente  das  comedias  hefpanholas,  italianas  e 
francezas,  para  diftrahir  uma  fociedade  a  quem  era  conve- 
niente afaftar-lhe  a  attenção  do  exame  da  governação  pu- 


1  í 


23l 

blica.  Apefar  da  grande  força  de  Pombal  e  da  fua  eftupen- 
da  iniciativa,  elle  não  pôde  eftimular  o  delenvolvimento  da 
litteratura,  porque  matou  o  fentimento  da  libe}\iade  politi- 
ca da  nação,  exagerando  até  ao  abfurdo  a  idéa  do  regalis- 
luo,  que  o  levou  a  applicações  verdadeiramente  monftruofas. 
O  que  inlpirou  os  génios  fuperiores  da  litteratura  do  feculo 
XVIII,  e  os  fez,  com  relação  á  independência  da  fociedade,  os 
verdadeiros  cooperadores  dos  philolbphos,  e  continuadores 
dos  jurifconfultos  da  Edade  media,  íó  penetrou  em  Portugal 
no  fegundo  quartel  do  feculo  xix,  quando  Garrett  levado 
pelo  enthufialmo  do  Romantiímo,  poz  as  novas  formas  lit- 
terarias  ao  lerviço  da  liberdade  politica,  pela  revivefcencia 
das  tradições  nacionaes,  pelas  impreíTões  direitas  de  duas 
emigrações,  e  pela  participação  das  ludas  do  conítituciona- 
lifmo.  Sendo  a  miffão  do  grande  homem  o  exercer  a  fua 
força  na  convergência  de  todas  as  adividades  Ibciaes  para 
eíTe  ponto  commum  que  conflitue  a  vida  hiftorica  de  uma 
nacionalidade.  Pombal  ultrapaíTou  elTa  miíTão,  ablbrvendo 
todas  as  energias,  e  dando  ao  progreíTo  a  forma  de  abalos 
produzidos  pela  lua  impetuofa  audoridade  peíToal.  Aquillo 
que,  pela  fua  natureza  automática  depende  de  uma  forte  re- 
gulamentação, lubUfliu;  porém  o  que  é  uma  expreíTão  ou  a 
confequencia  da  liberdade  moral  e  intelleclual,  ou  ficou  fora 
da  acção  minifterial,  ou  atrophiou-fe,  como  as  plantas  deli- 
cadas que  murcham  quando  fe  lhes  põe  a  mão. 

Theophilo  Braga. 


^: 


índice 


PRIMEIRA  PARTE 

O  marquez  de  Pombal:  r''"'- 

Capitulo  I  — Introducção i 

Capitulo  II  —  Os  primeiros  annos  de  Pombal 21 

Capitulo  III  —  Pombal  no  minillerio 48 

Capitulo  IV — O  terremoto 84 

Capitulo  V — Primeiras  incurfões  contra  os  jefuitas io5 

Capitulo  VI  —  A  companhia  dos  vinhos  do  Alto  Douro i38 

Capitulo  VII  —  Os  jeluitas 161 

Capitulo  VIII  —  A  conjuração 178 

Capitulo  IX  —  A  expuHão  dos  jefuitas 2o5 

Capitulo  X — Vigor  e  dignidade 243 

Capitulo  XI — A  educação  e  o  trabalho  nacional 262 

Capitulo  XII  —  A  guerra  com  a  Hefpanha 278 

Capitulo  XIII  —  O  facerdocio  e  o  império 3i7 

Capitulo  XIV  —  As  reformas  da  inflrucção 365 

Capitulo  XV  —  As  reformas  fociaes  e  económicas 3g6 

Capitulo  XVI  —  O  triumpho 444 

Capitulo  X\'ll  —  Martyrio  e  conclufão 495 

SEGUNDA  PARTE 

Seballião  Jofé  de  Carvalho  e  Mello  —  O  eminente  propulfor  da  evolução 

focial  em  Portugal  no  feculo  xviii i 

A  derradeira  injuria 21 

O  marquez  de  Pombal  e  a  civilifação  brazileira 3 1 

O  marquez  de  Pombal  e  a  liberdade  dos  Índios 41 

II  marchefe  di  Pombal 49 

Der  minifter  Pombal  —  Ein  Icbens-  und  charakterbild  aus  der  zeit  der  auf- 

klaerung 67 

Marquez  de  Pombal: 

Introducção,  definições  e  efclarecimentos 1 1 1 

Capitulo  I  — Antecedentes  hifloricos i32 

Capitulo  II  — O  marquez  de  Pombal  e  o  feu  tempo i36 

Capitulo  III  —  O  marquez  de  Pombal  e  os  aílos  principaes  do  feu  go- 
verno   141 

Capitulo  IV  —  O  marquez  de  Pombal  c  a  fua  inllucncia,  confequentes 

e  conclufão 1 55 

A  legillação  pombalina 161 

O  marquez  de  Pombal  e  a  companhia  de  Jefus 175 

O  marquez  de  Pombal  e  a  rellauração  da  litteratura  portugueza 21 1 


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31^S 


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DP  Marquez  de   Pombal 

M33